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Series & Trilogias Literarias
ERA NOITE EM OSLO, NORUEGA, e estava nevando. Grandes e aparentemente inofensivos flocos de neve caíam do céu e iam parar nos telhados das casas, nas ruas e nos parques da cidade.
Um especialista do serviço meteorológico com certeza explicaria que os flocos de neve não passam de chuva congelada e que eles vêm das nuvens, mas o fato é que ninguém tem muita certeza disso. Os flocos de neve podiam, por exemplo, estar vindo da Lua, que podia ser vista por entre as nuvens e lançava uma encantadora luz sobre a cidade adormecida. Os cristais de neve que atingiam o asfalto diante da Prefeitura derretiam imediatamente e, uma vez na forma de água, escorriam para o bueiro mais próximo, atravessando os ralos e caindo em uma tubulação que levava diretamente para a rede de esgotos emaranhada lá embaixo, nas profundezas da cidade de Oslo.
Ninguém sabia ao certo o que, de fato, havia lá embaixo, no mundo dos esgotos, mas se você fosse tonto e corajoso a ponto de ousar descer até lá nessa noite de dezembro, e ficasse bem quietinho, prendendo a respiração, ouviria alguns ruídos estranhos. O gotejar da água, o gorgolejar do esgoto, o rumorejar dos ratos, o coaxar de uma rã. E se você fosse um sujeito muitíssimo azarado, ouviria o som de um par de maxilares maciços escancarando-se em uma boca do tamanho de uma boia inflável, o som da saliva pingando da boca de uma sucuri e, então, uma espécie de rangido, quando a abertura se fechasse com força. Depois disso, com certeza haveria completo silêncio para você, meu infeliz amigo. Mas, supondo que não fosse tão azarado, você teria ouvido outros sons nessa noite, sons que lhe causariam admiração... O som de uma forma de waffle se fechando, de manteiga chiando e de vozes murmurando suavemente, da forma de waffle se abrindo. Depois, um leve ruído de mastigação.
Por fim, a neve parou de cair, a mastigação cessou, e a população de Oslo começou a acordar para um novo dia, dirigindo-se, em meio à escuridão do inverno e sobre a neve derretida, para o trabalho ou para a escola. E, no exato momento em que a senhora Strobe começava a falar sobre a Segunda Guerra Mundial, um pálido sol de inverno, que, mais uma vez, dormira até mais tarde, espiou cautelosamente por cima da colina.
Lise estava sentada à sua carteira, olhando para o quadro-negro. A senhora Strobe escrevera “Segundo Guerra Mundial” no quadro e tinha escrito errado a palavra “Segunda”. Aquilo estava incomodando Lise, que gostava de ver tudo muito bem escrito, de modo que ela não conseguia se concentrar na senhora Strobe, que agora afirmava que os alemães tinham atacado a Noruega em 1940 e que alguns poucos heróis os tinham expulsado, de forma que os noruegueses tinham ganho a guerra e podiam cantar “A vitória é nossa, ganhamos a guerra, a vitória é nossa.”
– Bem, e o que todos os outros estavam fazendo, hein?
– Devemos levantar a mão quando queremos falar, Bumbão! – disse asperamente a senhora Strobe.
– Sim, eu sei – disse Bumbão. – Mas não vejo como isso resultaria em perguntas melhores. Meu método, senhora Strobe, é simplesmente mergulhar de cabeça e... – O menininho ruivo e cheio de sardas chamado Bumbão levantou uma mãozinha no ar, como se estivesse colhendo maçãs invisíveis. – Bum! Assumo o controle da conversa, dou asas às minhas palavras e deixo que elas voem até a senhora...
A senhora Strobe inclinou a cabeça e o olhou fixamente, os olhos esbugalhados por cima dos óculos, que escorregaram mais alguns centímetros no nariz comprido. E Lise, apavorada, percebeu que a senhora Strobe levantara a mão, preparando-se para um de seus horríveis tapões na escrivaninha.
O som da mão da senhora Strobe batendo no tampo de pinho era assustador. Dizia-se que fazia homens adultos soluçarem e mulheres chorarem chamando pela mãe.
Entretanto, agora que Lise pensava sobre o assunto, lembrou-se de que fora Bumbão quem lhe dissera aquilo, portanto não havia muita garantia de que fosse verdade.
– O que os outros, que não eram heróis, estavam fazendo? – repetiu Bumbão. – Responda, minha cara professora, cuja beleza só é suplantada por sua sabedoria. Responda e deixe que bebamos da fonte de seu conhecimento.
A senhora Strobe abaixou a mão e soltou um suspiro. E Lise teve a impressão de ver os cantos dos lábios da mulher contraindo-se, apesar de toda a sua severidade. A senhora Strobe não era muito dada a sorrisos nem a nenhuma outra expressão facial que manifestasse alegria.
– Os noruegueses que não foram heróis de guerra – principiou a senhora Strobe. – Eles... bem... apoiaram.
– Apoiaram? – perguntou Bumbão.
– Eles apoiaram os heróis, e também apoiaram o rei, que fugiu para Londres.
– Quer dizer, então, que eles não fizeram nada – disse Bumbão.
– A coisa não é tão simples – retrucou a senhora Strobe. – Nem todo o mundo pode ser herói.
– Por que não? – perguntou Bumbão.
– Por que não o quê? – perguntou a senhora Strobe.
– Por que nem todo o mundo pode ser herói? – repetiu Bumbão, sacudindo a franja vermelha, que, por ele ser baixinho, mal podia ser vista acima de sua carteira.
No silêncio que se seguiu, Lise conseguiu ouvir gritos e soluços vindos da sala vizinha. E ela sabia que se tratava do professor de Artes, que se chamava Gregor Galvanius, mas que era chamado de senhor Soluço pelos alunos, pois se punha a soluçar toda vez que ficava nervoso.
– Truls! – gritou Gregor Galvanius, com uma voz esganiçada que traía seu desespero. – Hic! Trym! Hic!
Lise ouviu o riso maldoso de Truls e o riso quase igualmente maldoso de seu irmão gêmeo, Trym. Depois, passos correndo e uma porta se abrindo.
Nem todos têm inclinação para o heroísmo – continuou a senhora Strobe. – As pessoas, em sua maioria, querem apenas paz e tranquilidade para cuidar de seus assuntos sem ser muito incomodadas pelos outros.
Àquela altura quase toda a classe já não prestava atenção. Em vez disso, os alunos olhavam pelas janelas, vendo Truls e Trym Thrane correndo em círculos pelo playground, agora coberto de neve. Não era bonito de ver, porque Truls e Trym eram dois meninos muito gordos, e as pernas de suas calças roçavam uma na outra enquanto eles corriam. Mas a pessoa que os perseguia não era nem um pouco mais elegante. O senhor Soluço esfalfava-se sob o sol da manhã, correndo dobrado para a frente, com os joelhos virados para dentro, como um alce desengonçado usando pantufas. O motivo de todo esse esforço, e de ele correr dobrado para a frente, era a cadeira da escrivaninha, que parecia colada aos fundilhos de suas calças, e o senhor Soluço avançava desajeitadamente, arrastando-a.
A senhora Strobe olhou pela janela e suspirou fundo.
– Bumbão, acho que algumas pessoas são apenas pessoas normais, sem um pingo de heroísmo.
– O que aconteceu com aquela cadeira? – perguntou Bumbão em tom suave.
– Parece que ela foi costurada às calças dele – respondeu Lise, com um suspiro. – E... ai, ai, ele está quase chegando ao lugar onde tem gelo...
As pantufas de Gregor Galvanius, também conhecido como senhor Soluço, começaram a girar sob seus pés. Então ele perdeu o equilíbrio e caiu para trás, de bunda. E como seu traseiro estava costurado à cadeira, ela tinha rodinhas muitíssimo bem lubrificadas e o pátio da escola inclinava-se ligeiramente na direção do riacho Cannon, o senhor Soluço, de repente, viu-se na incômoda posição de passageiro de uma cadeira de escrivaninha que rolava colina abaixo a uma velocidade cada vez maior.
– Meu Deus do céu! – exclamou, apavorada, a senhora Strobe, quando constatou a trajetória acelerada de seu colega até o fim do mundo – ou, pelo menos, até o fim do território da escola.
Por alguns segundos, fez-se um silêncio tão profundo que só o que se podia ouvir era o ruído das rodas da cadeira sobre o gelo, o atrito das pantufas tentando desesperadamente frear, além de soluços frenéticos. Então a cadeira e o professor bateram no monte de neve acumulada à beira do pátio da escola. E aí, puf!, o monte explodiu, enchendo imediatamente o ar com uma nuvem de neve. A cadeira e Gregor Galvanius desapareceram sem deixar vestígio!
– Homem ao mar! – gritou Bumbão, que deu um salto e foi pulando de carteira em carteira até a porta. E todos os demais o seguiram, até a senhora Strobe, e tão rápido quanto contar até três todos estavam lá fora, exceto Lise. A menina estava de pé diante do quadro-negro, com um giz na mão. Com um dedo ela apagou o “o” da palavra “Segundo” e escreveu um “a” em seu lugar: Segunda Guerra Mundial. Pronto. Então ela também correu para fora.
A senhora Strobe e outro professor já tentavam tirar Gregor Galvanius, ainda preso à cadeira, de dentro do monte de neve.
– Você está bem, Gregor? – perguntou a senhora Strobe.
– Hic – fez Gregor. – Estou cego.
– Não, não está – disse a senhora Strobe, limpando com o dedo a neve acumulada nas lentes dos óculos dele. – Pronto.
Atarantado, Galvanius piscou e enrubesceu ao ver sua colega.
– Oh, olá, Rosemarie... quer dizer, senhora Strobe! Hic!
– Que confusão danada – disse Lise a Bumbão, que fora o primeiro a chegar ao lugar e tinha vindo tão depressa que ficara coberto pela nuvem branca de neve levantada por Galvanius. Bumbão não respondeu, apenas ficou olhando fixamente para o riacho Cannon.
– Há alguma coisa errada? – perguntou Lise.
– Vi alguma coisa ali quando cheguei aqui. A nuvem de neve a cobriu.
– Cobriu o quê? – perguntou Lise.
– Isso é o que eu não sei – disse Bumbão. – Então a neve derreteu e a coisa tinha sumido.
– Logo teremos de dar um jeito nessa sua imaginação desenfreada, Bumbão – disse Lise com um suspiro. – Talvez o doutor Proktor possa inventar alguma coisa que a contenha um pouco.
Bumbão piscou os olhos para tirar a neve dos cílios e segurou a mão dela.
– Venha comigo – ele disse.
– Bumbão... – protestou Lise.
– Vamos – disse Bumbão, fechando o zíper de seu casaco.
– Nós estamos no meio de uma aula! – protestou Lise.
Mas aquilo não teve nenhum efeito sobre o garoto. Ele simplesmente mergulhou na neve profunda e, agora, deslizava de barriga pelo acentuado declive que levava ao riacho congelado.
– Bumbão! – exclamou Lise, chapinhando atrás dele. – Não temos permissão para descer até o riacho!
Bumbão, que já se pusera de pé novamente, apontou com satisfação para alguma coisa na neve.
– O que é isso? – perguntou Lise, aproximando-se.
– Rastros – disse Bumbão. – Pegadas.
Lise olhou para baixo e viu o que certamente eram pegadas na neve. Elas prosseguiam sobre o gelo, onde havia apenas uma fina camada de neve.
– Alguém atravessou o riacho – afirmou Lise. – E daí?
– Mas observe as pegadas – disse Bumbão. – Elas não foram feitas por um animal, certo?
Lise tentou se lembrar de todas as pegadas de animais que eles tinham estudado nas aulas de Ciências ao longo dos anos. Patas, garras, pés de galinha. Aquelas pegadas em nada se pareciam com nenhuma delas. Então ela balançou a cabeça concordando.
– E não são de sapatos nem de botas – disse Bumbão. – Muito estranho...
Ele começou a avançar lentamente, arrastando os pés, seguindo as pegadas no gelo.
– Espere! – exclamou Lise. – E se o gelo não estiver... Mas Bumbão não estava ouvindo. E logo que chegou com segurança ao outro lado voltou-se e disse:
– Como é? Você vem ou não vem?
– Só porque o gelo suportou seu peso não significa que vai suportar o meu – sussurrou Lise, temendo que a senhora Strobe pudesse vê-los do pátio da escola.
– O quê? – gritou Bumbão.
Lise apontou para o gelo.
– Faça o favor de usar esse seu cérebro de galinha, tá? – respondeu Bumbão, apontando para a cabeça. – Olhe para essas pegadas! Seja lá o que tenha cruzado o riacho, é mais pesado do que você e eu juntos.
Lise detestava quando Bumbão agia como se fosse mais inteligente do que ela. Então, irritada, bateu os pés na neve algumas vezes e pensou no que seu pai comandante – ou, pior ainda, sua mãe comandante – diria se ela chegasse da escola com um bilhete da senhora Strobe. Ela sabia que não queria aquilo de modo algum.
Ainda assim, pôs-se a caminho através do gelo, porque é dessa forma que as coisas acontecem quando você é azarada o bastante para ser a melhor amiga de um cara chamado Bumbão.
As pegadas formavam um grande círculo pelo interior do bosque Hazelnut, que, na verdade, não passava de um grupo de belas árvores que atravessavam a Ponte Hazelnut, voltando para o pátio da escola, e subiam os degraus que levavam ao ginásio de esportes. Lise e Bumbão abriram a porta e entraram.
– Olhe – disse Bumbão, apontando para as pegadas úmidas no piso. Mas as pegadas ficavam cada vez mais apagadas à medida que Lise e Bumbão avançaram pelo corredor, passaram pelas salas dos armários e, finalmente, chegaram ao ginásio vazio, onde ficaram parados, olhando para os últimos vestígios delas, que logo sumiram por completo.
– Seus pés devem ter secado – disse Bumbão, farejando o ar.
– E o que é aquilo? – perguntou Lise, olhando para a bandeira da banda de música da escola, que estava encostada na parede atrás das esteiras e do velho cavalo mecânico. Era no ginásio de esportes que a banda ensaiava. Bumbão tocava clarim, Lise tocava clarineta. A bandeira da banda era azul e o nome dela estava bordado em amarelo: “Banda da escola Dølgen”.
Bumbão se pôs a andar novamente em direção à saída e Lise saiu correndo atrás dele. Isso porque, embora fosse uma garota sensata e corajosa, que não acreditava em fantasmas nem em monstros ou coisa parecida (“Ora, como uma pessoa de 10 anos pode acreditar nesse tipo de coisa?”, ela costumava zombar), não queria ficar sozinha no ginásio de esportes porque havia alguma coisa ali que lhe fez arrepiar os cabelos da nuca, alguma coisa que estava muito errada.
No pátio da escola, a diretora estava diante do monte de neve, perguntando em altos brados se alguém podia lhe dizer quem tinha costurado as calças do senhor Galvanius à cadeira. Bumbão e Lise estavam no alto das escadas, junto à porta do ginásio de esportes, e observavam os meninos olhando em volta, apavorados – primeiro para a diretora, depois para Truls e Trym, que estavam lado a lado, com os braços cruzados, encarando ameaçadoramente os colegas.
– Ninguém jamais ousará denunciar Truls nem Trym – disse Lise.
– Acho que a senhora Strobe tem razão – disse Bumbão. – As pessoas, em sua maioria, querem apenas paz e tranquilidade para cuidar de seus assuntos sem serem muito incomodadas pelos outros.
Naquele exato momento, soou o sinal. E Lise achou que o dia estava se tornando muito estranho.
E a coisa ficou ainda mais estranha no meio da última aula. Porque foi então que Lise percebeu o que estava errado. Essa compreensão bateu em sua cabeça como uma das bolas de neve lançadas por Truls e Trym. A bandeira da fanfarra! A bandeira com o nome bordado em amarelo que ela já vira uma centena de vezes: banda da Escola Dølgen. Só que na bandeira que eles tinham visto naquela manhã estava escrito: “BANDA DA ESCLA (e não escola) DØLGEN.” Estava faltando a letra “o” na palavra “escola”. De repente Lise sentiu-se gelar. Como podia ser aquilo?
O sinal soara e Lise tinha arrastado Bumbão de volta ao ginásio de esportes vazio, onde eles se encontravam agora, olhando para a velha bandeira da banda. Bumbão soletrou as palavras com dificuldade:
– B-A-N-D-A D-A E-S-C-O-L-A D-Ø-L-G-E-N.
– Mas hoje de manhã a palavra “escola” estava escrita sem a letra “o”! – disse Lise em tom lamentoso. – Eu juro!
Bumbão juntou a ponta dos dedos das duas mãos e voltou-se para encará-la.
– Hum... – ele disse –, talvez o doutor Proktor possa inventar alguma coisa para controlar sua imaginação, minha cara.
– Não estou imaginando coisíssima nenhuma! – gritou Lise com irritação.
Bumbão deu-lhe um tapinha amistoso nas costas.
– Eu estava só brincando. Sabe qual é a diferença entre mim e você, Lise?
– Não. Espere... sei, sim. A gente é diferente em tudo.
– A diferença, Lise, é que eu, como sou seu amigo, sempre acredito em tudo o que você diz. Completamente.
– Isso – disse Lise – é porque a diferença entre mim e você é que eu sempre digo a verdade.
Bumbão examinou a bandeira pensativamente.
– Acho que já é hora de pedirmos uns conselhos aos nossos amigos.
– Não temos amigos coisa nenhuma, Bumbão. Além de termos um ao outro, temos apenas um amigo!
– Se você quer saber, para mim isso já é uma multidão de amigos – disse Bumbão, e tentou assobiar a parte do clarim da “Marcha do Velho Soldado”, tradicional marcha militar norueguesa. Quando ele fez isso, Lise não se conteve e passou a acompanhá-lo, assobiando a parte da clarineta.
E, ao som da “Marcha do Velho Soldado”, eles saíram marchando da escola para a Avenida Cannon, passaram pela casa vermelha onde Lise morava, pela casa amarela do outro lado da rua, onde vivia Bumbão, e seguiram para a casa azul, estranha e inclinada para um dos lados, no fim da rua, quase escondida sob a neve acumulada pelo vento, onde morava seu único amigo. Eles avançaram com dificuldade através da neve, passaram por uma pereira sem folhas e bateram à porta, porque a campainha ainda estava quebrada.
– Doutor Proktor! – gritou Bumbão. – Abra!
Capítulo 2.
Sapatos equilibristas e
camaleões lunares
MAS NINGUÉM VEIO ABRIR a porta da casa do doutor Proktor.
– Onde ele pode estar? – murmurou Bumbão, espiando pela fenda da caixa do correio.
– Ali – disse Lise.
– Onde? – perguntou Bumbão.
– Ali em cima.
Bumbão voltou-se e olhou na direção que Lise apontava com o indicador.
E lá, equilibrando-se na cumeeira da casa, ele viu um homem alto e magro, usando um jaleco de professor e protetores de ouvido cor-de-rosa. O homem avançava a pequenos passos, andando com as mãos estendidas à sua frente.
– Doutor Proktor! – Bumbão gritou o mais alto que pôde.
– Ele não pode ouvi-lo – disse Lise. – Está usando os Protetores Duplos.
Os Protetores Duplos – ou Protetores Duplos do Doutor Proktor – eram algo que o professor inventara para proteger a audição das pessoas de outra de suas invenções: O PÓ DE SOLTAR PUM DO DOUTOR PROKTOR.
Lise fez uma bola de neve e a atirou. Ela foi parar no telhado, bem na frente do professor, que deu um salto e começou a executar uma dança esquisita lá em cima. Seus braços moviam-se como se ele estivesse usando uma pá, batendo de tal forma nos protetores de ouvido cor-de-rosa que eles cobriram um de seus olhos.
– O que você está fazendo? – gritou Bumbão.
– Eu estou... estou agitando meus braços! – gritou o professor, agitando os braços ainda mais freneticamente. – E inclinando a parte de cima de meu corpo... – murmurou ele, enquanto seu comprido e fino tronco começava a balançar para a frente e para trás. – E perdendo o equilíbrio! – ele gritou e, de repente, sumiu.
Lise e Bumbão entreolharam-se assustados.
– Olá! – gritou Lise.
– Olá! – gritou Bumbão.
– Olá – foi a resposta abafada que receberam, vinda de um buraco na neve, de onde surgiam duas mãos. – E, se já acabamos com os “olás”, vocês poderiam fazer a gentileza de me dar uma pequena ajuda aqui?
Lise e Bumbão pegaram cada um em uma mão e, pela segunda vez naquele dia incomum, um adulto foi retirado de dentro da neve. Se bem que, na verdade, a maioria das pessoas que conheciam o doutor Proktor não diria que ele era exatamente um adulto. É verdade que ele já vivera muitos anos. Mas as coisas que ele inventava eram ridiculamente divertidas e, infelizmente, tinham pouca utilidade no mundo dos adultos. Por isso ele não era nem rico nem famoso. Mas, apesar disso, era feliz. Ele tinha o que desejava. Todos os dias fazia o que mais lhe agradava, isto é, inventar coisas um pouco malucas. Ele tinha um jardim com uma pereira. E dois bons amigos. E estava comprometido com a mulher mais encantadora do mundo, que – tanto quanto ele conseguia ver através dos óculos de natação que sempre usava – era também a mais bonita de Oslo, Juliette Margarine. Na ocasião, Juliette estava em Paris, mas logo viria ficar com o doutor Proktor.
– Por que você estava usando os Protetores de Ouvido Duplos? – perguntou Lise enquanto ajudava o doutor a levantar-se.
– Minhas orelhas estavam muito frias e não consegui achar meu chapéu – disse o professor. – O que está havendo?
Lise contou o que acontecera na escola.
– Gregor Galvanius, hein? – disse o doutor Proktor, sacudindo a neve de seus cabelos desgrenhados. – Esse sujeito é uma figura.
– Você conhece o senhor Soluço? – perguntou Bumbão. – Truls e Trym costuraram as calças dele na cadeira de sua escrivaninha, usando uns pontos de costura terríveis. Talento artístico e habilidade são coisas muito difíceis de perceber, não são? Mas me pergunto como os dois fizeram isso sem que ele nada percebesse.
O doutor Proktor deu um suspiro.
– Tenho certeza de que Gregor deve ter caído no sono, coitado.
– Professores não caem no sono no meio de suas aulas – disse Lise.
– Caem, sim – respondeu o doutor Proktor. – Quando se trata de criaturas que, na verdade, deviam estar hibernando, eles caem.
– Hum. Ei, o que são essas coisas aí? – perguntou Bumbão, apontando para os pés do doutor Proktor.
– Estas coisas são a minha mais recente invenção: Sapatos Equilibristas do Doutor Proktor – disse o professor, olhando para suas botas vermelhas e alaranjadas com cadarços azuis. – Vejam... – Ele levantou um pé e mostrou-lhes a sola. – É um par de antigos calçados de boxe em que instalei placas magnéticas que lhe permitem manter o equilíbrio em cima de qualquer coisa. Basta girar esta chave aqui.
Um botão comum de fogão estava colado à parte da bota correspondente ao dorso do pé. Lise leu as indicações:
CORDA RETESADA
CORDA BAMBA
CERCA
PONTE
TELHADO
– Legal! – exclamou Bumbão. – Posso experimentar?
– Ainda não, meu caro Bumbão. Elas precisam de alguns aperfeiçoamentos antes que fiquem... bem, perfeitas.
– Mas, se é assim, por que você as estava usando ainda há pouco, no telhado? – perguntou Bumbão, um tanto aborrecido. Quando Bumbão testava as invenções do doutor Proktor, ele gostava mais daquelas que ainda não estavam perfeitas.
– Eu estava ajustando a antena – disse o doutor Proktor, apontando para o telhado, onde se viam perfeitamente os contornos de uma enorme antena de televisão, linhas retas e escuras destacando-se contra o pálido céu de inverno. – Eu mal consigo sintonizar um único canal de televisão nos dias de hoje.
– Mas meu caro professor! – gemeu Lise. – Você não sabe que atualmente todos os sinais de TV são digitais? Nenhuma dessas antenas antigas funciona mais.
O doutor Proktor ergueu uma sobrancelha, olhou para Lise, depois, para a antena no telhado e, em seguida, para seu relógio de pulso.
– Bem, o relógio está funcionando normalmente. O que está havendo?
– Como? – disse Lise.
– O que está acontecendo? – repetiu o doutor Proktor.
– Vi uma coisa que desapareceu quando a neve derreteu – disse Bumbão.
– É isso o que acontece quando a neve derrete – disse o doutor Proktor com um bocejo. – O que mais está acontecendo?
– Estava faltando um “o” na bandeira da escola – disse Lise.
– Parece que o mundo vai acabar – disse o doutor Proktor, pondo-se a avançar penosamente, através da neve, em direção à porta de sua casa.
– Você tem alguma ideia do que a gente deve fazer? – perguntou Lise.
– É claro que sim – disse o doutor Proktor.
– E o que seria? – apressou-se a perguntar Lise.
– Ora, o que nós sempre fazemos. Vamos preparar gelatina.
– Bem – disse o doutor Proktor depois que os três terminaram de fazer uma gelatina de um metro e meio de comprimento na mesa de cozinha do professor.
No balcão estavam a miniatura de helicóptero que ele usara para bater o creme que serviria de cobertura, a torradeira que ele usara para dar uma secada rápida em suas luvas e meias e uma panela para fazer sopa de peixe, no fundo da qual ele fizera um grande buraco, pois detestava sopa de peixe.
– Quer dizer, então, que você viu uma coisa – disse o doutor Proktor.
– Vi, sim – disse Bumbão, e soltou um sonoro arroto. – Desculpem-me.
– Claro. O que você viu?
– É difícil dizer. Era uma espécie de polvilhado, com um pouco da rajada de neve provocada pela colisão de Gregor Galvanius. Vi a silhueta dele. Mas aí a neve derreteu e o que quer que fosse que estava embaixo ficou invisível.
– Gente ou animal?
– Não sei. Os rastros não se pareciam com os de nenhum animal que conheço. Nem com os de alguém descalço ou usando sapatos ou botas. Era como se ele estivesse usando... – Bumbão fechou os olhos e pareceu concentrar-se completamente no que a coisa poderia estar usando.
– Hum – fez o doutor Proktor. – E tem a história da bandeira em que a palavra “ESCOLA” estava sem a letra “o”. Mas aí, quando vocês voltaram, o “o” estava lá novamente?
Lise fez que sim.
O doutor Proktor passou a mão no queixo.
– Meias! – gritou Bumbão.
Lise e o doutor Proktor olharam para ele.
– Eram pegadas de meias – disse Bumbão. – Vocês sabem, como quando ficamos com os pés encharcados e, ao voltarmos para casa, tiramos os sapatos e andamos sobre o assoalho só com as meias molhadas.
– Ladrão de meias – sussurrou Proktor, como se falasse consigo mesmo. – Dificuldades de fala, Camale...
Então, como se tivesse se dado conta da presença de Bumbão e Lise, ele, de repente, parou de falar.
– Ladrão de meias? – perguntaram Lise e Bumbão ao mesmo tempo.
– Dificuldades de fala! – disse Proktor. – Isto é... minha fala estava embargada... Falei de forma atrapalhada. Mas olhem só aquilo! – disse ele apontando para a janela. – Olhem, está começando a nevar!
Eles olharam para fora e viram que, realmente, minúsculos flocos de neve estavam caindo. Mas ali era a Noruega, onde neva bastante.
– O que é um ladrão de mei... – perguntou Lise, olhando para o professor.
– Seja como for, estou trabalhando numa nova invenção – disse o doutor Proktor interrompendo-a antes que ela tivesse tempo de terminar. – É um híbrido de uma árvore de Natal e um pinheiro comum. Assim, os pinheiros já podem crescer com festões, correntes de papel e luzes. Você só precisa cortá-los, já totalmente decorados, e colocá-los em sua sala de estar. O que vocês acham?
Bumbão balançou a cabeça e disse:
– Péssima ideia. Metade do divertimento é você mesmo decorar a árvore.
– É mesmo? – perguntou o doutor Proktor.
– É isso aí – disse Bumbão, raspando o seu prato de gelatina. – Você não poderia, em vez disso, inventar alguma coisa que faça a banda da escola Dølgen tocar melhor?
– Isso aí eu acho impossível – disse o doutor Proktor. – Mas que tal gelatina com sabor de pão de gengibre?
– Acho que agora você acertou! – exclamou Bumbão, olhando para o último pedaço de gelatina que restava na travessa. – Se ninguém mais quiser, então talvez eu possa...
– Doutor Proktor – disse Lise. – O que você quis dizer com ladrão de meias?
– Nunca ouvi falar de tal coisa – disse Proktor. – E tampouco vocês dois.
Lise lançou um olhar para Bumbão. As bochechas dele estavam cheias como dois balões e a travessa de gelatina estava vazia.
– Bem, bem, vocês verão na hora certa – disse o doutor Proktor, depois bocejou alto e ostensivamente.
– Você não acha que o doutor Proktor estava agindo de maneira um pouco esquisita esta noite? – perguntou Lise a Bumbão quando os dois estavam de saída, já no vestíbulo.
– Negativo – disse Bumbão, que então arrotou ruidosamente e sorriu satisfeito.
– É como eu digo – disse Lise, revirando os olhos.
Depois de Lise ter chegado em casa, jantado, feito suas tarefas escolares e praticado clarineta, sua mãe gritou lá de baixo, da sala de estar, que já estava na hora de ela ir se deitar. E a menina concordou. Após escovar os dentes, ela desceu à sala de estar para dizer boa-noite. Seus pais estavam lá sentados, assistindo à televisão. Um grupo de homens e mulheres, usando capas brancas que balançavam feito cortinas à brisa do verão, cantava a plenos pulmões. E Lise se deu conta de que sonhava com a chegada da primavera.
– A que vocês estão assistindo? – perguntou Lise.
– A que estamos assistindo? – repetiu, um pouco surpreso, seu pai comandante. – Trata-se do Concurso de Corais NoroVision. O vencedor ganha 20 mil dólares e 50 centavos. Além de um programa de TV. E de uma viagem para acampar na Dinamarca, com todas as despesas pagas.
– E também cortes de cabelo gratuitos durante seis meses em cidades como Moss, Voss ou qualquer outra cujo nome rime com esses – acrescentou a mãe de Lise. – Mais...
– Que grupo está cantando agora? – interrompeu Lise.
– O coral de Hallvard Tenoresen – murmurou o pai.
– Quem é Hallvard Tenoresen? – perguntou Lise.
– Quem é Hallvard Tenoresen? – repetiu a mãe, chocada. – Francamente, Lise, você devia ler um pouco mais os jornais. Hallvard Tenoresen é aquele quiroprático cantor de Jönköping, Suécia. Nunca ouviu falar dele, Lise? É o mais atraente regente de corais ao sul do Polo Norte. Olhe só! Veja como ele é bonito. Estranho que não seja casado.
– Não é estranho ele não ser casado – gracejou o pai comandante de Lise.
Lise olhou para as bocas escancaradas dos cantores, para os sorridentes integrantes do coral, e saiu.
Quando já estava em sua cama, Lise desligou a luz de leitura, ligou sua lanterna e apontou-a para uma janela da casa amarela do outro lado da rua. Como sempre, a luz se acendeu lá do outro lado e alguns dedinhos começaram a fazer um jogo de sombras.
Naquela noite a apresentação parecia ser sobre um homem com soluços que, afastando-se sobre rodas, chocava-se com alguma coisa, e uma mulher com um narigão que o ajudava a levantar-se. O homem parecia estar tentando beijá-la, mas ela o empurrava. Lise riu alto. E se esqueceu completamente de que se esquecera do que se esquecera. Então, quando a apresentação terminou, Lise, mais depressa do que de costume, caiu em seu costumeiro sono profundo. E ela não notou que parara de nevar, nem que um estranho som murmurante começara a sair pelo ralo do bueiro da Avenida Cannon. O murmúrio subiu até a Lua, que piscou de forma sonolenta para Oslo enquanto cantarolava uma canção.
Capítulo 3.
Aranhas de sete pernas
e Apollo 11
NO DIA SEGUINTE, na escola, todos discutiam a respeito da competição de corais e de quem tinha feito a melhor apresentação.
– Coral Hallvard Tenoresen – diziam alguns.
– O Coral Hallvard Tenoresen – diziam outros.
– Hallvard Tenoresen – outros diziam apenas.
A rodada final da competição seria naquela noite. Naturalmente, todos estariam assistindo, e a pessoa em quem prestariam mais atenção seria Hallvard Tenoresen.
No intervalo para o lanche, as garotas sentaram-se no banco do corredor, comendo o que tinham trazido em suas lancheiras e falando sobre as longas e macias franjas de Tenoresen, que praticamente cobriam aqueles suaves olhos azuis. E sobre aqueles dentes perfeitos, chamando a atenção em sua boca como uma cerca de estacas caiadas de branco.
– Falando sério – disse Beatrize, que era não apenas a mais bonita de sua classe, mas também a melhor em Matemática, em Educação Física, em pular corda, no jogo chinês e em praticamente tudo o que interessava na escola. – Eu acho que devíamos criar nosso próprio coral e participar da competição no próximo ano.
E, como sempre acontecia quando Beatrize manifestava uma opinião, as demais garotas balançaram a cabeça concordando. Todo o mundo, exceto Lise, que mal conseguira, com muita delicadeza, descolar um pequeno espaço na ponta do banco.
Beatrize sacudiu seus longos cabelos loiros e examinou suas unhas recém-esmaltadas.
– Tenho quase certeza de que podemos ganhar, sabem? Quer dizer, olhem só para nós. Esbanjamos tanto charme, tanta beleza interior e tudo o mais.
Lise revirou os olhos, mas nenhuma das outras garotas notou. E se tivessem notado, dificilmente teriam se importado.
– Mas... tipo... como podemos criar um coral, hein, Beatrize? – perguntou uma das garotas.
– É fácil – disse Beatrize, examinando o cabelo para ver se havia fios com pontas duplas. – A única coisa de que precisamos é... tipo... um regente.
– Mas como podemos... você sabe... arranjar um, hein?
– Um regente? – exclamou alguém que estava lá no alto, acima delas.
E, naquele exato momento, alguma coisa veio caindo e foi parar no chão exatamente diante das garotas, fazendo o barulho de duas minúsculas solas de sapato, sapatos de criança tamanho 27. Os olhos dele brilhavam entre as sardas. Em sua cabecinha, ele usava um enorme gorro de malha cor de laranja com um pompom meio torto em cima.
– Legal. Eu assumo o cargo – disse Bumbão.
– Tipo... de onde é que você veio? – perguntou Beatrize.
– Daquela pequena prateleira onde as pessoas põem seus chapéus – ele respondeu, amassando o saquinho de papel onde estivera seu lanche e atirando-o, num arco perfeito, na lata de lixo perto de Lise. – Quando posso começar?
Beatrize revirou os olhos.
– Como? Você acha que teríamos um anão ruivo como regente?
As outras garotas deram risinhos de zombaria.
– Tipo... isso nos traria um monte de votos – alguém sussurrou.
– Algumas pessoas achariam divertido – sussurrou outra menina.
– Não muitas. Ele não passa de um montinho de poeira – disse Beatrize.
– Bem, minha proposta expira em exatamente cinco segundos – disse Bumbão. – Quatro, três... bem, o que vocês dizem?
E a resposta, na verdade, soou como um coral:
– NÃÃÃO!!!
– Está bem, então – disse Bumbão. – Depois não venham para a escola reclamando e dizendo que não tiveram uma chance quando nós ganharmos no próximo ano.
– Nós? – perguntou Beatrize.
– É isso aí – disse Bumbão.
– Nós quem?
– Lise cantando em soprano e eu como tenor.
As garotas riram histericamente, mas Lise pareceu magoada.
– Bumbão... – principiou ela.
– Bem, quer dizer que essa dupla já tem um nome? – disse Beatrize zombeteiramente.
– Claro – respondeu Bumbão, traçando as letras no ar com o indicador enquanto pronunciava o nome, devagar e com exagero. “Coral Muito Harmonioso e Muito Variado de Bumbão.”
– Ah, ah! – fez Beatrize desdenhosamente. – Vocês têm um coral... tipo... com duas pessoas apenas? O Hallvard Tenoresen deve ter... tipo... pelo menos trinta componentes.
– Quem disse que somos apenas dois? – perguntou Bumbão. – Naturalmente, temos mais gente.
– Quem, por exemplo? Isto é, quantos no total? – Beatrize zombou.
– Bem, o doutor Proktor fará a parte do barítono – disse Bumbão, franzindo os sobrolhos enquanto contava nos dedos como se fosse difícil lembrar-se de todos. – E... no contralto, temos a noiva dele, Juliette Margarine. Bem, se ela estivesse aqui. E, naturalmente, há o castrato; temos Perry, que canta essa parte.
– Bom... tipo... quem é Perry?
– É uma aranha sugadora peruana de sete pernas. Ela é capaz de cantar notas tão agudas que um ouvido humano não musical não consegue ouvi-las. É encantador.
– Até parece – disse Beatrize. – Você está... tipo, armando a mesma confusão de sempre, Bumbão. Todo o mundo sabe que não existe essa coisa de aranha sugadora peru... peru...
– Aranha sugadora peruana – Lise terminou a frase para ela e deu um suspiro. Toda aquela história era, na verdade, mais embaraçosa do que de costume.
– Não existe? – disse Bumbão. – Bem, então, diga olá para... – ele tirou o chapéu cor de laranja – ... Perry!
As garotas gritaram, e algumas fizeram isso tão alto que deixaram cair seus sanduíches no chão. Isso porque, de fato, acomodada no alto da cabeça de Bumbão, havia uma aranha negra de pernas arqueadas. É verdade que não parecia muito peruana, tampouco ansiosa por sugar ou entusiasta da música, mas era uma aranha. E se você contasse, veria que ela realmente tinha sete pernas. Mas como não se tratava de uma aranha muito grande nem muito peluda, logo as garotas se acalmaram.
– Mas se-será que ela sabe cantar? – zombou Beatrize.
– Claro – disse Bumbão. – Cante alguma coisa popular, Perry. É! Isso mesmo! Bem sacada, Perry!
As garotas olharam embasbacadas para Bumbão e para a aranha, que estava imóvel e com suas patas encurvadas no topo da juba de cabelos cor de fogo de Bumbão.
– Não é uma maravilha? – exclamou Bumbão, que, de olhos fechados, movia a cabeça de um lado para outro, extasiado, enquanto cantava: “Aleluia, Aleluia...”
– Falando sério – disse Beatrize –, só estou ouvindo você, Bumbão.
– Claro – disse Lise com um suspiro. – Como ele disse, aranhas sugadoras cantam tão agudamente que só ouvidos musicais conseguem ouvi-las.
Beatrize, boquiaberta, fitou Lise. Isso porque a música era muito valorizada na escola deles, e lá estava Lise dizendo, em alto e bom som, que ela, Beatrize, não tinha dotes musicais!
– Aleluia, aleluia – cantou Lise, começando a balançar a cabeça no mesmo ritmo de Bumbão.
– Até parece – disse Beatrize zombeteiramente. – Vamos embora, garotas do coral.
E, com isso, elas empinaram o nariz e passaram por Lise, Bumbão e Perry, dirigindo-se ao playground.
– Que nojo! – disse Lise. – Aquelas são as garotas que eu queria ter como amigas. E aquele é o coral do qual eu queria participar. Que horror! Enfim consegui um lugar no banco delas.
– Bem, agora temos muito mais espaço aqui – disse Bumbão, sentando-se ao lado dela. – E quem é que deseja cantar num coral quando pode tocar numa banda?
E quando Lise refletiu sobre isso achou que ele devia ter razão.
– Não há dúvida de que essa aranha é muito bonita.
Aquela voz fez com que Bumbão e Lise se levantassem de um salto. Porque eles não tinham visto ninguém se aproximar.
Acima deles elevava-se a figura encurvada do professor de Artes, Gregor Galvanius, que olhava fixamente para eles – ou, mais exatamente, para Bumbão – com um olhar que quase podia ser interpretado como ganancioso.
– Senhor Soluço – deixou escapar Bumbão.
– Senhor Soluço? – perguntou Galvanius enquanto suas pálpebras subiam e desciam sobre os olhos levemente esbugalhados, que estavam fixos em Perry. – É isso o que você chama de um bonito exemplar?
– Oh, a aranha? – disse Bumbão. – Seus amigos o chamam de Perry. O senhor gosta de aranhas, senhor Galvanius?
– Demais – disse o senhor Galvanius, e uma língua comprida saiu rapidamente de sua boca, lambendo toda a sua volta. – E de insetos em geral, pode-se dizer.
– Não me diga – disse Bumbão. – Esta é uma aranha sugadora...
– ... peruana de sete pernas – completou Galvanius. – E, aliás, muito bonita. – Um pequeno fio de baba começou a escorrer de um dos cantos de sua boca.
Bumbão pegou seu chapéu laranja e o colocou de novo na cabeça, cobrindo Perry cuidadosamente.
– Está fazendo frio – disse Bumbão, à guisa de explicação. – As pernas de Perry se resfriam com muita facilidade. E, quando você tem sete pernas que podem se resfriar, bem... há muita... tremedeira, não?
Lise se deu conta de que estava examinando os sapatos do senhor Galvanius. Eles pareciam novos, novinhos em folha. Para falar a verdade, extraordinariamente novos. Sim, agora que ela pensava sobre isso, podia dizer que nunca vira sapatos tão novos.
– O que está acontecendo aqui? – Eles ouviram uma voz perguntar.
Era a senhora Strobe. O senhor Galvanius soluçou alto e enrubesceu.
– Vocês não deviam estar a caminho de sua sala agora mesmo? – ela perguntou.
– M-mas o sinal nem ao menos tocou – disse Lise.
E no mesmo instante o sinal da escola começou a tocar, como se estivesse sob o controle da senhora Strobe. Agudo e zumbidor como uma mamangava presa num pote de geleia.
Bumbão e Lise levantaram-se de um salto e correram para a sala de aula. E, atrás deles, ouviram a voz autoritária da senhora Strobe dizer:
– O senhor também não devia estar a caminho da sala, Gregor?
– Claro, senhora Strobe.
Em seguida o senhor Galvanius saiu em disparada, dando curiosos saltos.
E quando Lise e Bumbão já estavam de volta à sala e a aula começou, Lise percebeu que Beatrize e as outras garotas aproximavam as cabeças, riam e olhavam maliciosamente na direção dela e de Bumbão. E Lise achou que Bumbão tinha razão. Quem ia querer cantar num coral, se podia tocar numa banda? E naquela noite haveria ensaio da banda.
Capítulo 4.
Coral e banda de música
COM RARAS EXCEÇÕES, todos na Noruega estavam grudados na tela da TV quando Nømsk Ull, o apresentador do Concurso de Corais Norovision, gritou para a câmera que estava na hora da final e que a primeira apresentação seria...
Nømsk Ull ergueu a voz num falsete, enquanto estendia o braço para o palco:
– Hallvard Tenoresen e seu coral, Fuhhhhhni! Voisis!
E lá estavam eles, usando modernas camisetas pretas coladas ao corpo: Funny Voices. E, diante deles, em uma camiseta ainda mais moderna, mais justa e mais preta: o próprio Hallvard Tenoresen. Ele abriu um largo sorriso, levantou as duas mãos, juntou seus polegares e indicadores, apertando-os como se segurasse alguma coisa suja, e balançou a cabeça algumas vezes de um modo esquisito, como se estivesse sendo submetido a eletrochoques. Então o coral entrou, cantando uma canção do grupo BABA com o mais intenso sotaque norueguês que se possa imaginar.
Ducinho, ducinho, ducinho
Você é tão divertita Esto
é um mundo louco!
No terceiro verso, Tenoresen deu uma volta e sorriu para a câmera, como se os telespectadores, nos muitos milhares de casas da Noruega, também estivessem cantando a canção.
E era quase certo que estivessem. Os noruegueses estavam sentados em suas salas de estar, com suas xícaras de café, suas garrafas de soda ou seus petiscos, cantando junto com eles sobre como era chato trabalhar e como seria muito mais divertido ser rico.
E quando Tenoresen e seu coral terminaram, Nømsk Ull voltou à tela e gritou:
– Maravilha! Se você quiser votar em Fuhni Voisis, basta ligar para o número que está na tela!
E em salas de estar de toda a Noruega, de norte a sul, as pessoas se precipitaram para seus telefones e votaram. E enquanto os outros corais cantavam, dando o melhor de si, as pessoas comiam batatas fritas, pipoca, pretzels, pururuca e outras coisas cujos nomes começam com “p”, enquanto faziam comentários sobre o fabuloso Hallvard Tenoresen.
Num salão de beleza, uma cabeleireira riu e disse:
– Acho que gostaria de ter uma sessãozinha de quiroprática com Tenoresen.
Num restaurante de beira de estrada, um chofer de caminhão rosnou:
– Ouvi dizer que ele é capaz de vencer três homens corpulentos na luta livre, ao mesmo tempo em que troca um pneu furado, tocando uquelele e lavando pratos.
E num lar de velhinhos, o homem mais idoso disse com voz trêmula:
– O jornal diz que ele beijou seiscentas e sessenta e duas garotas e mulheres. Mais alguns homens que pareciam mulheres. E uma mulher que ele achou que fosse um homem que pensou que ele fosse uma mulher.
Quando todos os corais tinham se apresentado, faltando um minuto para as 7 horas, o rosto de Nømsky Ull tomou novamente a tela.
– Continuem votando, pessoal. Nossas linhas estarão abertas até as 8 horas, pelo Horário da Europa Central, quando tudo estará decidido e será anunciado o vencedor do... – ele fez um gesto em direção ao público para que todos gritassem a uma só voz – ... Concurso de Corais NoroVision...
Exatamente às 7 horas o senhor Madsen ajustou seus óculos de aviador, limpou a garganta e ergueu sua batuta. No ginásio, à sua frente, viam-se meninos, meninas, clarins, clarinetas, tambores de corda, trompas, saxofones, tambores de metal e uma tuba, que, em conjunto, constituíam a Banda da Escola Dølgen. Naquele verão, a banda recebera uma menção especial na competição de fanfarras de Lillehammer. Os jurados tinham dito que aquela, com toda a certeza, era a pior fanfarra que eles já tinham ouvido – com exceção de uma dupla de integrantes talentosos, principalmente o menininho de cabelos ruivos do clarim –, que ela era um impressionante amontoado de crianças sem talento musical e que somente um real entusiasta da música poderia conseguir dirigi-la por muito tempo. E então eles deram um prêmio ao senhor Madsen, um par de protetores de ouvidos de legítimo couro alemão. O senhor Madsen jogou fora os protetores de ouvidos, acrescentou uma sessão extra de ensaios por semana, e agora lá estava ele fazendo a contagem para o início da “Marcha do Soldado Muito Velho”, que fora composta após a “Marcha do Velho Soldado”, mas antes da “Marcha do Novo Soldado”. Na verdade, tratava-se de uma contagem regressiva, como se ele estivesse diante de uma bomba prestes a explodir.
– Quatro, três, dois...
Ele murmurou silenciosamente uma última oração e empertigou-se antes de gritar “um!”, enquanto abaixava a batuta.
Três minutos depois ele traçou um X no ar com a batuta, o que significava que a “Marcha do Soldado Muito Velho” tinha acabado. E, afora um balido atrasado de um saxofone, todos acabaram mais ou menos ao mesmo tempo.
– Hum – fez o senhor Madsen, quando a sala ficou em silêncio. Ele tentou bolar uma analogia que melhor descrevesse o que acabara de ouvir. Porque a coisa não fora tão horrível. Naturalmente, houvera alguns ruídos inadequados, uma clarineta nervosa, que guinchava, tocando agudo demais; algumas notas levemente desafinadas das trompas; uma batida de tambor fora de hora; além de algo que podia ter sido um peido, que viera da ala dos instrumentos de sopro, solto por algum músico que fizera muita força. No geral, porém, tinha sido bom. Até muito bom.
O senhor Madsen limpou a garganta enquanto a banda olhava para ele ansiosamente.
– Bem, não foi tão ruim assim.
Porque o fato é que a Banda da Escola Dølgen fizera grandes progressos desde a desastrosa apresentação em Lillehammer naquele verão. Pela primeira vez em sua vida de regente de banda, o senhor Madsen teve um pequeno lampejo de esperança. O que o fez sentir algo que, ao contrário, ele nunca sentira: ele ficou emocionado. Sim, por trás das lentes, seus olhos ficaram úmidos. Ele ajeitou os óculos para que ninguém notasse.
– Mais uma vez – disse ele, percebendo que devia ter limpado a garganta antes.
E a Banda da Escola Dølgen tocou mais uma vez. E mais uma. E parecia melhorar a cada vez.
– Vamos tocá-la mais uma vez desde o começo antes de encerrar por esta noite – disse o senhor Madsen.
Ele levantou a batuta, mas, então, abaixou-a novamente antes de começar a contar.
– Para onde vocês vão, Truls e Trym?
Truls e Trym tinham afastado de si os tambores, levantado o zíper de suas grossas e idênticas jaquetas, que faziam os dois se parecerem com pilhas de pneus de carros, e se dirigiam para a saída.
– Vamos para casa para votar em Tenoresen – disse Truls. – A votação acaba dentro de meia hora.
– Mas o ensaio ainda não acabou – alertou o senhor Madsen.
– Não interessa – disse Truls. – Vamos embora.
– Em-embora? – perguntou o senhor Madsen, ajeitando os óculos algumas vezes, embora não houvesse nada de errado com sua visão e ele não tivesse ouvido mal. Aqueles dois vagabundos estavam realmente querendo deixar a banda!
– Mas vocês não podem sair agora! – gritou Lise. – Não agora que finalmente estamos começando a tocar como uma banda de verdade!
– Ora, cale a boca, Lise-Peidorreira – disse Truls. – Essa banda é uma caca.
– Uma enorme porcaria – disse Trym, abrindo a porta.
– Esperem! – gritou o senhor Madsen. – O que vocês vão fazer em vez de ensaiar na banda?
– Vamos participar do coral.
– Do coral? – exclamou o senhor Madsen, que não acreditava nos próprios ouvidos apurados. – Quem quer entrar em um coral, quando pode tocar numa banda?
– Nós – disse Truls. – E eles.
Ele apontou para Beatrize e dois amigos dela que também estavam largando seus instrumentos.
– E eles – disse Trym, apontando para os três que tocavam trompa. Todos eles estavam trancando o fecho dos estojos de suas trompas.
– O que está havendo aqui? – gritou o senhor Madsen, batendo a batuta na borda de sua estante de música. Mas isso de nada adiantou. Muito pelo contrário: cada vez mais crianças largavam seus instrumentos.
– Mas isso é um motim! – gritou Bumbão, subindo em sua cadeira.
Porém ninguém pareceu ouvi-lo. Enquanto eles estavam saindo do ginásio, Beatrize, que foi a última a sair, virou para trás, mostrou a língua para Bumbão e bateu ruidosamente a porta atrás de si.
Quando o silêncio voltou ao ginásio, Lise olhou em volta. Além de Bumbão e do senhor Madsen, só tinha sobrado Janne, a tocadora de tuba, uma garota que nunca falava com ninguém e que usava protetores sobre as lentes dos óculos, porque, em janeiro, a neve a ofuscava. E aquele ano não era uma exceção.
O senhor Madsen ficou lá diante deles, os braços caídos e o lábio inferior trêmulo. Ele ficou ali assim por um bom tempo, totalmente imóvel, até, finalmente, seu lábio parar de tremer. Então ele ajeitou os óculos, levantou a batuta e dirigiu o olhar para os três músicos restantes.
– Prontos para a “Marcha do Soldado Muito Velho”? Quatro, três, dois, um...
Quando Lise chegou em casa, tirou as botas e colocou-as no armário dos casacos. Em seguida foi até a sala de estar. De detrás das poltronas de seus pais, ela viu a TV, onde Tenoresen estava de pé, com os braços cheios de flores, radiante e sorrindo para todo o mundo.
– E aí, como vão as coisas? – Lise perguntou.
– Tenoresen e Funny Voices acabam de ganhar! – respondeu-lhe o pai, rindo alegremente. – Você não fica emocionada?
– Olá, querida – disse a mãe sem se voltar. – Sua comida está num prato na geladeira.
– Todos da banda saíram para ir cantar num coral e... – Lise começou a falar.
– Psiu! – fez sua mãe. – Tenoresen vai tornar a reger. – Ela e o pai de Lise inclinaram-se para a frente em suas poltronas.
Lise suspirou e foi para a cozinha, onde comeu dois pãezinhos já untados com requeijão cremoso. Vindo da sala, ela ouvia o canto de seus pais, acompanhando a canção pop:
Amor. A mais bela palavra do mundo...
Depois de tomar seu leite e escovar os dentes, ela voltou para perto dos pais. O Concurso de Corais NoroVision terminara e um âncora do noticiário da TV informava que, em seguida, Hallvard Tenoresen faria um extenso pronunciamento à nação sobre sua vitória.
– Boa noite – disse Lise, dando um abraço em sua mãe e outro em seu pai.
– Ah, esqueci de dizer – falou sua mãe. – Ontem, na reunião de pais e mestres, a senhora Strobe disse que você devia levantar a mão mais vezes na sala de aula porque sempre sabe a resposta certa.
– Ótimo – disse Lise, que não estava a fim de explicar que Bumbão normalmente respondia antes que ela pudesse levantar a mão e que as respostas dele normalmente pouco tinham a ver com as perguntas.
– Ah, e nóis conhecemos seu novo pofressor de Artes – disse o pai. – O senhor Galvanius, não é?
– Achei ele um pouco assustador – disse a mãe com um arrepio. – Sabe que a mão dele pareceu muito pegajosa quando nóis a apertamos? E seus dedos são esquisitos também, como se estivessem colados uns aos outros com membranas ou coisa parecida.
Então o pai comandante de Lise sacudiu a pança com seu grande riso.
– Ah, ah! Agora você está exagerando, querida. Não acha, Lise?
– Hum-hum – fez Lise, que não tinha ouvido a pergunta, porque o apresentador da TV acabara de chamar sua atenção com uma pequena notícia. A nota era tão pequena que podia facilmente passar despercebida, espremida que fora entre um grande terremoto, que, reconfortantemente, acontecera bem longe, e a previsão do tempo. Na verdade, a nota limitava-se a uma frase. Mesmo assim, fez com que os cabelos de sua nuca se arrepiassem. Exatamente como acontecera quando ela estava no ginásio olhando para a bandeira da banda.
– Durma bem, querida – disse o pai beijando a filha na testa.
Mas, quando Lise estava na cama tentando dormir, aquela única frase continuou girando em sua mente. A pequena notícia era tão insignificante que o apresentador a lera com um pequeno sorriso. “A polícia tem percebido um aumento impressionante no número de queixas sobre o desaparecimento de meias.”
Capítulo 5.
Bolas de neve cobertas de
gelo e cérebros sugados
QUANDO BUMBÃO ACORDOU na manhã seguinte, sentiu que havia algo diferente. Ele não sabia o que era, porque tudo estava praticamente como sempre. Por exemplo, Eva, sua irmã mais velha, fechara a porta do banheiro e dissera a ele que desse o fora e arranjasse o que fazer enquanto ela se embelezava.
– Enquanto você estoura as espinhas, não é? – perguntou Bumbão do corredor.
– Morra, seu patético galalauzinho com cobertura de cenoura! – gritou ela. – Estou sem pressa nenhuma, sabia?
Bumbão desceu para a cozinha, onde passou manteiga em quatro fatias de pão. Ele comeu uma e embrulhou duas em papel impermeável para levar de lanche para a escola. A outra ele pôs num prato e levou-a ao quarto de sua mãe, junto com um copo de suco de laranja e o jornal do dia. Ele depositou tudo na mesinha de cabeceira e sacudiu-a levemente.
– Acorde, ó mãe de todas as mães. Está fazendo um lindo dia.
Ela rolou na cama, lançou-lhe um olhar desconfiado com os olhos injetados e estalou os lábios duas vezes antes de bufar.
– Como sempre, você está mentindo, Bumbão.
– Hoje teremos oito graus negativos e muito sol – Bumbão leu no jornal.
– Cale a boca e leia-me as manchetes – disse sua mãe, fechando os olhos e rolando o corpo para voltar o rosto novamente para a parede.
– O vencedor foi Hallvard Tenoresen! – leu Bumbão. – Na entrevista que deu após a vitória, Tenoresen disse que a Noruega está sendo mal governada, que nada funciona, que o rei e o primeiro-ministro são incompetentes e que o orgulhoso povo da Noruega devia eleger, o mais rapidamente possível, um líder que saiba como agir. Alguém que saiba fazer as pessoas trabalharem em estreita colaboração. Exatamente como os componentes de um coral.
– Hum. Mais alguma notícia?
– Deixe-me ver... – disse Bumbão, apertando os olhos para ler a pequena chamada sob a enorme fotografia de Hallvard Tenoresen. – Ao que parece, houve um grande terremoto em algum lugar.
– Onde? – gritou estridentemente do banheiro a irmã de Bumbão.
– Não dá pra dizer – respondeu Bumbão, apertando os olhos para ler melhor.
– Que chato! – disse sua mãe. – Leia mais sobre Tenoresen.
– Tenoresen disse que o tempo é o mais importante – leu Bumbão. – “Se as pessoas concordarem, estou disposto a aceitar a tarefa de tirar a Noruega desse embaraço”, ofereceu-se Tenoresen em sua entrevista à televisão.
Bumbão riu alto.
– Do que você está rindo, seu imbecil?! – gritou sua irmã, que saíra do banheiro e estava parada na porta do quarto, com pequenas e inflamadas crateras vermelhas em todo o rosto.
– De Tenoresen – disse Bumbão. – O cara acha que deveriam confiar-lhe o governo da Noruega. Dá pra imaginar uma coisa dessas?! – Bumbão traçou no ar uma frase, como se estivesse escrevendo a manchete de um jornal. “Quiroprático Cantor Sueco Assume o Governo da Noruega.”
Bumbão riu com tanta força que começou a soluçar, mas parou quando percebeu que sua mãe e Eva estavam olhando fixamente para ele.
– Em quem haveríamos de confiar senão em Tenoresen? – perguntou-lhe a mãe com toda frieza. – Em você?
Eva riu alto da piada de sua mãe, e a mãe deles riu ainda mais alto porque Eva rira de sua piada, e Eva riu ainda mais alto porque sua mãe estava rindo por ela estar rindo. Bumbão consultou o relógio, largou o jornal e foi pegar sua mochila escolar.
– Não se esqueça de parar no armazém quando voltar para casa! – sua mãe gritou. – Estamos sem leite e sem pão, e você pode comprar também um pouco de queso sedar.
Como de costume, Bumbão esperou no portão até Lise aparecer com sua mochila. E, como sempre, eles não trocaram uma palavra, apenas se puseram a andar pela Avenida Cannon, como normalmente faziam.
– Tudo está normal – disse Lise quando eles se aproximavam da casa de Truls e Trym. – Ainda assim, é como se... como se...
– Como se houvesse algo muito fora do normal? – perguntou Bumbão. – Você também está com essa sensação?
– Minha mãe e meu pai... eles não parecem muito normais.
– Também sinto algo parecido – disse Bumbão. – Embora, naturalmente, seja normal minha irmã e minha mãe parecerem anormais.
– E quase toda a nossa banda foi embora de repente, daquela maneira. Você acha que isso é normal?
– Não, de jeito nenhum, é uma coisa absolutamente fora do comum. Na verdade, uma coisa misteriosamente anormal.
– De todo modo, porém, na casa dos Thrane tudo continua normal – disse Lise, fazendo um gesto de cabeça em direção à cerca que rodeava a imponente casa à frente deles.
E, de fato, Truls e Trym Thrane estavam agachados em seu forte de neve atrás da cerca, observando Bumbão e Lise com risinhos de escárnio antecipados, já com suas bolas de neve preparadas. Lise e Bumbão normalmente sofriam ataques de bolas de neve quando passavam por ali, mas quase sempre conseguiam esquivar-se dos fracos lançamentos porque Truls e Trym tinham engordado tanto no último ano que já não conseguiam girar os braços com a mesma destreza.
Mas Lise logo percebeu que naquele dia eles não iriam se safar tão facilmente. Os gêmeos tinham pulado a cerca e, agora, bloqueavam a calçada. Cada um segurava uma enorme bola de neve. E ao ver os primeiros raios do sol da manhã brilhando na superfície das bolas, Lise concluiu que Truls e Trym tinham jogado água sobre elas, cobrindo-as de gelo.
– Não se preocupe, Lise – Bumbão disse em voz baixa. – Deixe que eu cuido disso.
Lise abaixou os olhos para o seu pequenino amigo. Ele podia ser irritante, aborrecido e desprezar a verdade. Mas ela não conhecia ninguém que fosse mais corajoso. Às vezes tão corajoso que era impossível não se perguntar se ele não era, na verdade, um pouco bobo.
– Bom dia, Capitão Thrane e Capitão Thrane! – exclamou Bumbão com um sorriso radiante. – Porque o que vocês têm na cabeça são capacetes de capitão, não é mesmo?
– São chapéus do uniforme do coral – responderam os gêmeos ao mesmo tempo, quase com orgulho. Os chapéus eram brancos e tinham uma viseira preta brilhante e uma borla na ponta de uma corda que pendia do centro deles.
– Coral? – perguntou Bumbão. – Quer dizer que vocês, além de tocar tambores, também cantam? Quem iria imaginar que tanto talento caberia em corpos tão pequenos?
Truls e Trym olharam para Bumbão boquiabertos, o hálito saindo em ondas da boca como se fossem duas chaminés de fornalha.
– Ele está tentando nos enrolar – sussurrou Trym para o irmão. – Ele está sendo gentil com a gente.
– Mas... – sussurrou Truls – eu acredito nele, porque ele está dizendo que somos bons tocadores de tambor, certo?
– Isso porque ele conseguiu enrolar você – sussurrou Trym.
– Ele me enrolou – concordou Truls com um gesto de cabeça.
– Agora vamos massacrá-lo – sussurrou Trym. – Amassar a cabeça dele!
– Sim, amassar essa cabeça irritante – disse Truls, levantando a mão e o pedaço de gelo dentro dela.
– Deixe-me facilitar as coisas para vocês, nessa história de amassar minha cabeça, meus caros irmãos Thrane – disse Bumbão, tirando seu chapéu cor de laranja.
– Ah, ah! – riram os gêmeos, impulsionando os braços para trás tanto quanto lhes era possível fisicamente.
– O que você tem aí em cima da cabeça? – perguntou Trym.
– É um animal – disse Truls.
– Isso eu sei. Mas que tipo de animal?
– Um animal pequeno.
– Uma pulga, talvez?
– É, é isso mesmo – disse Trym rindo. – O gnomo tem pulgas. Esmague-o!
– Pode mandar bala – disse Bumbão, que continuava ali, imóvel e sorrindo. – Mas, na qualidade de vizinho, tenho de adverti-los a respeito das consequências de atirar uma bola de neve congelada numa aranha sugadora peruana de sete pernas.
– Cabeça amassada! – gritou Truls.
– Espere! – exclamou Trym. – Que tipo de con... conso... consi... quências?
– Bem – disse Bumbão. – Como ela é peruana, esta aranha sugadora cresceu nas montanhas nevadas dos Andes e está bastante acostumada a bolas de neve, uma vez que bolas de neve são algo muito comum no dia a dia dos Andes. Lá existem ferozes batalhas de bolas de neve entre tribos incas rivais. No Peru, todos atiram bolas de neve. Até as lhamas. Elas comem neve e a cospem de novo como bolas de neve, junto com saliva, catarro e seja lá mais o que for. Perry aguenta tudo isso. Mas existe uma diferença entre aguentar e aguentar. Quer dizer... se a acertam, ela fica louca. Muito louca. E a vingança dela é terrível...
– É isso aí! – exclamou Lise, que se surpreendeu ao ouvir a própria voz. Mas continuou. – Quando ela se enfurece, a aranha é capaz de, num piscar de olhos, pular na cabeça de quem atirou a bola de neve e entrar na orelha dessa pessoa.
– Na orelha? – perguntou Truls.
– E ela vai adentrando pelo canal auditivo – disse Bumbão.
– Ai! – fez Trym.
Só de pensar nisso, Truls sentiu uma tremenda comichão e tentou enfiar o dedo no ouvido para coçar, mas se esqueceu de que estava usando luvas com apenas o polegar separado.
– E quando ela chega ao seu cérebro – disse Lise –, começa a sugar.
– A sugar?! – exclamaram os gêmeos ao mesmo tempo.
– Claro. É por isso que ela é chamada de aranha sugadora. Ela suga... – Lise abaixou a voz e Truls e Trym tiveram de se inclinar para chegar mais perto e poder ouvi-la – ... todo o seu cérebro. – Então, de repente, ela emitiu um som alto de sugar, o que fez os gêmeos saltarem para trás, assustados.
– O que some primeiro é tudo o que vocês aprenderam sobre tabuada, sobre os países da Europa e tudo o que mais aprenderam na escola – disse Lise. Quando viu que aquilo não pareceu impressioná-los, ela continuou. – Depois vocês esquecem como tocar o hino nacional, os nomes de todos os seus amigos, o caminho de volta para casa e, finalmente, seus próprios nomes.
Mas isso apenas provocou um bocejo em Trym.
– Então... então... – disse Lise, tentando inventar mais alguma coisa, mas lhe deu um branco.
Truls levantou a mão em que segurava o pedaço de gelo.
– Então vocês vão se esquecer de comer – disse Bumbão. – Pizza, batatas fritas, bombons... tudo isso vai deixar de importar para vocês. Vocês ficarão magros feito palitos e depois morrerão de fome.
Truls e Trym olhavam fixamente para Bumbão, os olhos esbugalhados de medo.
– Ele está fazendo aquilo novamente – disse Truls, arquejando. – Ele está querendo nos enrolar!
– Tapeação – disse Trym, estendendo a mão para a cabeça de Bumbão, retirando e abrindo a luva. Perry estava na palma de sua mão.
– Ah, ah! – fez Trym em tom de triunfo. – Eu a peguei. Ela não passa de uma reles aranha normal!
– Quebre uma de suas pernas! – gritou Truls aos saltos. – Não, arranque-lhe três pernas! Então nós teremos uma aranha perúcica... perúvica... pe... sugadora de três pernas!
– De quatro pernas – disse Lise com um suspiro.
– Hã?
– Sete menos três é igual a quatro – explicou Lise, revirando os olhos.
– Cale a boca! – disse Truls. – Nós vamos quebrar mais uma.
– Se eu fosse vocês, não faria isso – disse Bumbão.
Os gêmeos se voltaram para olhar para ele.
– Todo o mundo sabe que a aranha sugadora peruana de três pernas é três vezes mais perigosa do que a de sete pernas.
Os gêmeos olharam para a aranha.
– Você é quem vai fazer isso – disse Trym, passando a luva com a aranha para Truls.
– Eu? – perguntou Truls saltando para trás. – Faça você!
– Não, você! – disse Trym, agitando a luva para cá e para lá.
– Você!
– Eu mesmo faço – disse Bumbão agarrando a luva. Com todo cuidado, ele pegou Perry e o colocou novamente sobre a cabeça. Depois colocou o chapéu cor de laranja e devolveu a luva a Trym.
– Mas só mais tarde, depois que chegar em casa – disse Bumbão. – Cirurgias como essa, com pernas de aranha, têm de ser feitas de forma controlada, com equipamento de cauterização, anestesia e sob a supervisão de adultos, certo?
– Certo – disse Trym em tom submisso.
– Está bem, então – assentiu Truls.
– Tenham um belíssimo dia – disse Bumbão.
E com isso ele e Lise foram correndo para a escola.
– Eu não sabia que você tinha isso – disse Bumbão quando eles já estavam a uma distância em que não podiam ser ouvidos pelos gêmeos.
– Isso o quê? – perguntou Lise.
– Essa história de esquecer a tabuada e o hino nacional. Você é mais terrível do que eu nessas invenções.
– Ninguém bate você nisso, Bumbão.
– Nem eu inventaria uma coisa dessas... – E ele repetiu bem alto o som de sugar que Lise tinha feito para os gêmeos.
E isso fez os dois rirem muito, até passarem a brincar de espetar os dedos um no outro e praticamente caírem sobre o gelo.
E assim eles percorreram o resto do caminho, trombando um com o outro, rindo e imitando sons de sugar.
E só quando estavam no meio da primeira aula, quando a senhora Strobe começava a falar sobre os problemas de pronúncia comuns entre os noruegueses, Lise percebeu o que havia de errado. Porque ela sentia que havia alguma coisa errada com seus pais. E não apenas com eles. Com os outros também. Truls e Trym. E Beatrize. Na verdade, agora que ela refletia sobre aquilo, praticamente todos à sua volta estavam afetados. E essa conclusão fez não apenas com que os cabelos de sua cabeça se arrepiassem, mas até os pelos ainda mais finos, praticamente invisíveis, de seus antebraços.
Capítulo 6.
Comedores de cegonhas,
besouros coa e formigas
comedoras de gente
– VOCÊ SE LEMBRA DE ONTEM, quando o doutor Proktor falou primeiro em “ladrão de meias” e depois em “dificuldades de fala”? – perguntou Lise durante o intervalo.
Ela e Bumbão estavam de pé sobre um monte de neve no pátio da escola, olhando para os colegas lá embaixo, que, alvoroçadíssimos, discutiam Hallvard Tenoresen e Funny Voices.
– E ontem meus pais disseram “pofressor”, em vez de “professor”. E “nóis”, em vez de “nós”. Isso não parece uma dificuldade de fala?
– Pode ser apenas coincidência – disse Bumbão. – Talvez eles não tenham conseguido pronunciar corretamente as palavras por algum outro motivo. Por exemplo, por eles terem passado o dia fora de casa ou coisa assim, você sabe.
– Mas pense um pouco – disse Lise. – Você não notou que nos últimos dias quase todo o mundo começou a trocar sons?
Bumbão pensou um pouco.
– Agora que você falou – disse ele –, na verdade minha mãe me pediu para comprar um pouco de “queso sedar” no armazém, em vez de “queijo cheddar”. E minha irmã me chamou de “galalauzinho”, em vez de “anãozinho”.
– Mas isso é exatamente o contrário.
– Minha irmã não é normal.
– E tem mais – disse Lise. – Você sabe o que disseram nas notícias de ontem à noite?
– Que, em uma votação mundial, as mulheres apontaram Bumbão como o homem do ano? – perguntou Bumbão candidamente.
– Não. Que as pessoas andam perdendo mais meias que de costume.
– Oh, não! – disse Bumbão. – Ladrões de meias. Você acha...?
– Acho que está acontecendo algo estranho, Bumbão. E acho que o doutor Proktor sabe de alguma coisa e não quer nos contar.
– Você está me assustando, Lise.
– Sinto isso no ar, Bumbão! Essa história do “O” que sumiu da bandeira da escola, as pegadas de meias molhadas. O que é que nós vamos fazer?
– Temos de consultar um adulto.
– Mas são os adultos que estão trocando letras, falando em “queso sedar”, “seques de viagem” e em “doações de saridade”. Será que podemos mesmo confiar neles?
Bumbão coçou suas suíças. Perdão, suas costeletas.
– Doutor Proktor – disse Bumbão. – Ele ainda pronuncia “queijo” da forma correta.
– E toda vez que a gente lhe pergunta sobre o que está acontecendo, ele sai pela tangente – disse Lise com um suspiro. – Bumbão, temos de resolver isso por nossa conta. Vamos começar pelo começo: com a coisa invisível que deixou rastros úmidos na escola.
– Hum – fez Bumbão. – Talvez esteja na hora de fazermos uma pequena investigação. E, naturalmente, devemos começar por criaturas do tipo A.Q.G.Q.N.E., ou seja, Animais Que Gostaríamos Que Não Existissem.
Lise concordou com um gesto de cabeça. A.Q.G.Q.N.E., Animais Que Gostaríamos Que Não Existissem. Aquele era o título de um livro de seiscentas páginas que Bumbão dizia ter sido escrito em grande parte por seu avô.
Depois das aulas, Bumbão e Lise correram de volta para a Avenida Cannon.
– Eu tenho esse livro em meu quarto – disse Bumbão, voltando-se quando percebeu que Lise parara de segui-lo e estava simplesmente parada nos degraus da frente.
Ela acabara de se dar conta de que nunca entrara na casa de Bumbão, embora as duas ficassem uma de frente para a outra.
– Vamos – sussurrou Bumbão.
Hesitante, ela subiu os degraus até a porta da casa. Ela imaginou que Bumbão estava sussurrando porque não lhe permitiam que trouxesse outras pessoas para dentro de casa, e embora ela nunca lhe tivesse perguntado, aquilo confirmava a impressão que ela sempre tivera. Ela supôs que essa devia ser a razão pela qual ela nunca se dera ao trabalho de perguntar. Além disso, ela nunca tivera vontade de entrar ali. A irmã e a mãe de Bumbão eram mais esquisitas do que a média da família da gente. Lise olhou em volta e aspirou os aromas. Todas as casas cheiram a alguma coisa. Bem, exceto a casa dela, naturalmente. Mas isso deve ser igual para todo o mundo, ela pensou. Simplesmente, não conseguimos sentir o cheiro de nossa própria casa. A casa de Bumbão cheirava a... bem, a que mesmo ela cheirava? Cigarros e perfume, talvez? Com certeza ela não tinha o mesmo cheiro de Bumbão. Ele não cheirava a nada, apenas um pouco a Bumbão.
Lise tirou as botas e seguiu Bumbão na ponta dos pés. Ela viu a sala de estar – uma TV e um sofá. Acima destes, uma grande fotografia da irmã e da mãe dele pendurada na parede. Em seguida, ela subiu correndo a escada atrás de Bumbão e entrou depressa no quarto dele. As paredes eram azul-claras, cobertas com imagens de todos os super-heróis de quem ela já tinha ouvido falar, e de mais alguns de quem nunca ouvira nada. O modelo de um planador pendia do teto, preso a um barbante. Bumbão já estava estendido na cama, folheando um livro com uma encadernação de couro meio desgastada. O livro era quase do tamanho dele.
Lise se deixou cair ao lado dele.
– Vamos ver – disse Bumbão. – Ladrão de meias.
Ele foi passando as páginas que tratavam de animais cujos nomes começavam pelas letras “M”, “N” e “O”, e Lise viu páginas com descrições e desenhos de animais que ela, definitivamente, gostaria que não existissem. É verdade que ela não tinha bem certeza de que todos eles existiam. Se tinha sido mesmo o avô de Bumbão quem escrevera esse livro, era possível que ele fosse um pouco parecido com o neto, que não levava a verdade muito a sério se ela não fosse suficientemente divertida.
Eles examinaram minuciosamente as entradas que começavam com “C”. Em “comedor de cegonhas” havia um animal que se assemelhava a um edifício de tijolos e tinha uma boca parecida com uma chaminé, evidentemente destinada a atrair cegonhas.
Em seguida, passaram para a letra “L”.
– Não há nada sobre ladrões de meias aqui – disse Bumbão. – Vamos procurar em “dificuldades de fala”.
Mas também não havia nada sobre “dificuldades de fala”.
– Hum – matutou Bumbão. – Isso é um pouco decepcionante – acrescentou, levantando-se da cama. – Por outro lado, se essa criatura não é um animal que não gostaríamos que existisse, não pode ser lá tão perigosa, não é? – E ele se dispôs a fechar o livro.
– Espere! – exclamou Lise. – O doutor Proktor disse mais uma coisa. Ele não disse a palavra inteira, mas ela começava com “camale”. Ela se concentrou de tal forma que seus cabelos se encresparam. – Camale alguma coisa! Ele disse “camale”.
Bumbão folheou o livro até as palavras começadas com “C”.
– Há uma entrada para “coa, besouros” – disse ele. – E também para “comedoras de gente, formigas”. Mas nada sobre camale.
– Olhe aqui! – disse Lise apontando para a entrada depois de “comedoras de gente, formigas”. Bumbão pronunciou com dificuldade o comprido nome da criatura “C-A-M-A-L-E-Ã-O L-U-N-A-R”.
Lise leu em voz alta, sentindo os cabelos se arrepiarem:
– Chamaeleonus lunaris. Hábitat: a Lua (e vamos torcer para que assim seja). Come: qualquer coisa que tenha carne no corpo, de preferência seres humanos. E de preferência em forma de waffle. Bebe: sangue e chá recém-preparado. Aparência: infelizmente, não se conhecem descrições, fotografias ou desenhos dessa criatura pavorosa, porque todos os que viram um camaleão lunar, bem... provavelmente essa foi a última coisa que eles viram na vida. Mas dizem que se pode reconhecer o som da aproximação de um camaleão lunar. Supõe-se ser um som suave, parecido com o de meias arrastando-se sobre um soalho de madeira e...
– Shh! – interrompeu Bumbão.
Eles apuraram os ouvidos e puderam ouvir. Alguma coisa do outro lado da porta se aproximava. Um som suave de...
– Esconda-se debaixo da cama, rápido! – sussurrou Bumbão.
Lise lhe obedeceu o mais depressa que pôde e, enquanto se enfiava debaixo da cama, ouviu a porta escancarar-se e uma voz berrar:
– Estou com fome!
Lise prendeu a respiração. Então ela ouviu a voz de Bumbão.
– Estou terminando minhas tarefas escolares, depois vou preparar a refeição.
E então palavras em tom de zombaria:
– Tarefas escolares? Você sabe o que acontece com quem faz tarefas escolares demais? Simplesmente recebe mais tarefas escolares para fazer!
– Eu já vou, mamãe. Volte para cama, está bem?
– E nada de furar as batatas com o garfo hoje, senão você não terá sua festa de aniversário.
– Eu nunca tive uma festa de aniversário, mamãe.
– Isso não interessa.
A porta tornou a se fechar.
Lise esperou, esperou, até ter certeza de que a mamãe-monstro não iria voltar. Só então se arrastou para fora. Bumbão estava estirado na cama, ainda com o nariz arrebitado enfiado no livro.
– E aí? – perguntou ela.
– A coisa é feia – disse Bumbão, sem levantar os olhos do livro. Ele parecia sério, mais sério do que Lise jamais o tinha visto, mais sério do que um cemitério... não, que dois cemitérios.
– Sei, eu ouvi – disse Lise. – Nada de festa de aniversário.
– Não estou falando sobre festas – disse Bumbão apontando para o livro. – O que está em jogo aqui é se algum de nós ainda terá chance de ter outro aniversário. Ou Natal, por falar nisso.
– Não... Natal, não – repetiu Lise, ouvindo o pequeno tremor na própria voz. Porque, ainda que Bumbão zombasse de um monte de coisas, ele nunca iria fazer brincadeiras com o Natal. Não importava o que acontecesse.
– O-o-que você quer dizer com isso?
– Estou dizendo que estamos diante do fim do mundo – disse Bumbão.
Capítulo 7.
O fim do mundo
LISE E BUMBÃO ENCONTRARAM o doutor Proktor em sua oficina de trabalho, no porão da casa azul. Ele estava martelando as solas de seus sapatos equilibristas. O doutor se levantou quando os viu parados à porta.
– Entrem! – disse ele, deslocando seus óculos de mergulho para a testa e conduzindo Lise e Bumbão para a lavanderia. Com todo cuidado, ele colocou os sapatos sobre o varal que atravessava o aposento: primeiro, um sapato; depois, o outro. E, com efeito, os sapatos ficaram equilibrados em cima do fio do varal.
– Impressionante! – exclamou Bumbão, tão contente e alvoroçado que Lise teve de pigarrear ruidosamente duas vezes antes que o garoto lembrasse por que eles estavam ali. E a expressão do rosto dele assumiu um ar mais sério, mais adequado para a gravidade da situação.
– Nós lemos sobre o camaleão lunar – começou Lise.
O doutor Proktor olhou para ela aterrorizado.
– Vocês leram sobre o... o...?
– E entendemos por que você não quis nos falar sobre ele – disse Lise. – Não é coisa que se comente com crianças.
– Onde diabos vocês leram sobre o camaleão lunar?
– Em Animais Que Não Gostaríamos Que Existissem – respondeu Bumbão. – Na página 315.
O doutor Proktor se deixou cair numa cadeira.
– Mas o camaleão lunar não passa de um boato. Uma história de fantasmas de 1969, de quando a primeira nave espacial voltou da Lua para a Terra. Correu o boato de que alguma coisa tinha vindo com ela. Ou alguém. Alguém invisível. Ou melhor, alguém que podia se disfarçar para se parecer com qualquer coisa. Foi por isso que o chamaram de “camaleão lunar”. Diziam que ele fazia as coisas mais terríveis, mas me esqueci de toda essa história até vocês me falarem sobre a criatura invisível, os rastros de meias e os erros de pronúncia. Tudo se encaixava, porém eu não queria assustá-los. Era apenas uma história de fantasmas e, como todos sabemos, fantasmas não existem. – Ele levantou os olhos para Lise e Bumbão. – Não é verdade?
Eles não responderam.
O doutor Proktor torceu as mãos.
– Oh, meu Deus, meu Deus. O que é que o livro diz?
Bumbão resumiu as informações do verbete, e Lise completou com as partes que ele esquecera.
– Além de ser capaz de se confundir com qualquer ambiente, ele rouba – disse Bumbão. – Roubo de meias puro e simples. Ele entra na casa das pessoas, passa por trás delas sorrateiramente enquanto elas veem TV, disfarçando-se para parecer um quadro de previsão do tempo ou um jogo de futebol, vai direto à lavanderia, onde retira meias da máquina de lavar e as coloca nos pés. Foi por isso que vimos pegadas úmidas de meias no ginásio de esportes da escola.
O doutor Proktor coçou o queixo.
– Ouvi falar de roubos de meias, mas não acreditei.
Bumbão suspirou e apontou para os pés do doutor Proktor.
– Olhe para você mesmo. Você está com uma meia vermelha e outra azul. Como explica isso?
– Explicar, “xisplicar” – murmurou o doutor Proktor. – Perdi uma meia vermelha.
– Exatamente. Porque, misteriosamente, uma meia vermelha sumiu de sua máquina de lavar, certo?
– Não, ela se queimou quando eu tentei secá-la na torradeira.
Lise riu e Bumbão suspirou.
– Bem, seja como for – continuou Bumbão –, todos os dias, em todo o mundo, desaparecem meias. Esse mistério do desaparecimento diário de meias continua insolúvel. As pessoas se entreolham atônitas e dizem: “Para onde diabos foram todas elas...” Mas, como se trata apenas de meias, as pessoas se esquecem de seu sumiço e não pensam mais nisso. Milhões de meias! Uma imensa quantidade de meias! Galáxias de meias, costuradas, feitas de tricô ou de crochê!
– Mas para que uma..., bem, uma criatura lunar haveria de querer meias? – perguntou o doutor Proktor.
– O que é que você acha? – perguntou Bumbão.
– Bem...
– Seus pezinhos são frios – disse Bumbão.
– Mas, nesse caso, não seria melhor usar sapatos?
Bumbão fez uma careta.
– Os dedos de seus pés não se adaptam a sapatos. As pegadas mostram que os camaleões lunares têm as mais compridas, afiadas e ásperas unhas dos pés que se possam imaginar. Daquelas que logo furam as meias. É por isso que eles precisam roubar outras o tempo todo. E, o que é pior, eles são invencíveis, não têm pontos fracos. Bem, exceto uns probleminhas de pronúncia.
– O que você acabou de dizer? – exclamou o doutor Proktor.
Lise pigarreou e disse:
– Segundo o livro Animais Que Não Gostaríamos Que Existissem, os camaleões lunares têm uma pronúncia muito defeituosa.
– Na verdade, defeituosíssima – corrigiu Bumbão.
– E principalmente no caso de determinados grupos de letras – disse Lise. – Essa é uma das poucas características que denunciam um camaleão lunar.
– Quando eles tentam se disfarçar de anúncio, por exemplo, algum anúncio que diga “Especial para Pudim de Baunilha”, normalmente eles acabam escrevendo ou pronunciando “Especial para Pundim de Baunila”.
– B-A-U-N-I-L-A – pronunciou Bumbão. – Sacou?
O doutor Proktor confirmou com um gesto de cabeça.
– E P-U-N-D-I... – continuou Bumbão.
– Acho que ele já entendeu – disse Lise.
– Ótimo – disse Bumbão. – Então, quando Lise pensou que estava olhando para a bandeira de nossa banda e viu que faltava um “o”, na verdade ela não estava vendo bandeira nenhuma. – Bumbão abaixou a voz. – Ela estava olhando direto para um camaleão lunar postado diante da bandeira, quieto feito um camundongo!
– Caramba! – disse o doutor Proktor.
– Bota caramba nisso – enfatizou Lise.
– Mas e quanto aos problemas de pronúncia? – perguntou o doutor Proktor.
– Hipnotismo – respondeu Lise.
– Hipnotismo?
O doutor Proktor olhou primeiro para Lise, depois para Bumbão, que balançou a cabeça devagar.
– Está no livro – disse ele. – Se um camaleão camuflado conseguir fitar seus olhos por mais de dois minutos, ele pode hipnotizá-lo, e você fará tudo o que ele mandar. O único meio de saber se alguém está hipnotizado é observar se essa pessoa apresenta algum defeito de pronúncia.
– E a única maneira de tirá-la dessa situação – continuou Lise – é usar algo mais forte que a hipnose.
– Tipo o quê?
– Algo que seja ainda mais hipnótico.
– Ou dar um baita susto nela – disse Bumbão, mostrando os dentes. – Grrr!
– Hum – fez o doutor Proktor. – Vejo que vocês leram o verbete com muita atenção.
Bumbão e Lise confirmaram com um gesto de cabeça.
– E que vocês entenderam que a razão de essa criatura figurar no livro não é sua dificuldade de fala nem seus erros de pronúncia e tampouco o roubo das meias?
Os dois balançaram a cabeça. Lise fechou os olhos e disse, concentrada:
– Página 316 – ela disse, começando a citar. – Ninguém sabe onde vive o camaleão lunar aqui na Terra, mas sabemos que ele evita a luz do dia. Se você tiver o grande azar de ver um camaleão lunar em plena luz do dia, isso significa que uma coisa tenebrosa vai acontecer. Na verdade, algo supertenebroso. Algo muitíssimo tenebroso, para ser exata. Ou para ser completamente, totalmente, absolutamente precisa: o fim do mundo.
Por alguns segundos, fez-se um silêncio tão grande no porão que se poderia ouvir um alfinete caindo sobre um monte de feno. Se é que o silêncio não era maior ainda. Então o doutor Proktor balançou a cabeça com uma expressão de tristeza.
– O fim do mundo. Era o que andavam dizendo na ocasião, também.
– Sim, bem – disse Bumbão. – Vamos ver o lado positivo dessa história toda. Não teríamos a oportunidade de salvar o mundo se não estivéssemos sendo ameaçados por seu fim, não é mesmo?
– Ora – disse o doutor Proktor com um dar de ombros. Então ele olhou pela janela do porão e notou que já anoitecera.
– Essa conversa toda foi tão desagradável que acho que devemos ir para a cozinha e comer um pouco de gelatina!
Naquele instante, uma das duas sentinelas que estavam de serviço à entrada do Palácio Real, um edifício grande, amarelo, feito de tijolos rebocados, localizado no centro de Oslo, apurou os ouvidos e olhou para o espaço coberto de neve que tinham diante de si.
– Ei, Gunnar, você ouviu alguma coisa? – ele perguntou, passando o dedo por seus bigodes, que tinham as pontas viradas para cima, como um guidão.
– O que você ouviu, Rolf? – perguntou-lhe o colega, dando um puxão em seu bigode de Fu Manchu.
– Tive a impressão de que alguém passava diante de nós.
– Eu não vi ninguém – disse o senhor Fu Manchu, fitando a escuridão. Então ele se voltou para a fachada do edifício, onde se via luz acesa em apenas uma janela. – Bem, de todo modo, não era o rei. Ele ainda está acordado, fazendo suas palavras cruzadas.
– Olhe! – disse o senhor Bigodes de Guidão.
Fu Manchu se voltou. Seu colega apontou para alguma coisa na neve diante deles. Fu Manchu tirou o chapéu preto do uniforme, aquele com um ridículo pompom em cima, que parecia o rabo de um cavalo, e inclinou o corpo para a frente.
– Parecem pegadas de cachorro – disse ele.
– Um cachorro que há muito tempo não corta as unhas – acrescentou Bigodes de Guidão.
– E que anda apenas sobre duas pernas – disse Fu Manchu.
– É isso aí – disse Bigodes de Guidão com um bocejo. – Hoje em dia as pessoas fazem cada coisa esquisita com seus cães.
– Com licença – disse um homem com forte sotaque sueco.
Os dois guardas levantaram os olhos.
Diante deles estava um homem alto, de cabelos loiros, trajando algo que parecia o uniforme de um almirante. Atrás dele, estava estacionada uma grande van com as palavras “major movers” pintadas na lateral.
– Sim?
– Eu venci a disputa – o homem falou em sueco.
– Ah, é?
– Sou o novo presidente. Vocês poderiam fazer a gentileza de dizer ao rei que faça as malas para ir embora? E então, quem sabe, vocês poderiam me ajudar a levar as minhas coisas para o Palácio?
Capítulo 8.
Hipnotismo e uma
Noruega maior
TINHA FICADO TARDE, mas, na cozinha do doutor Proktor, só metade da gelatina Proktor tinha sido comida. Pensando bem, aquela não era uma noite adequada para comer gelatina, porque gelatina nem parece gelatina depois que alguém pergunta “Como vamos salvar o mundo da destruição?”.
Havia silêncio à mesa. O doutor Proktor, Lise e Bumbão tinham coçado o queixo um monte de vezes, murmurando “hum”, “mm”, “umf” e produzindo outros sons que podem ser emitidos sem que seja preciso abrir a boca e ajudam um pouco quando a gente está refletindo.
Então, finalmente, o doutor Proktor disse duas vezes a palavra “exatamente” e, em seguida, “precisamente”, como se aprovando as próprias ideias. Então ele se endireitou na cadeira e olhou para Bumbão e Lise.
– A primeira coisa que temos de fazer é descobrir como as pessoas estão sendo hipnotizadas e, assim, evitar que isso nos aconteça.
– E como vamos fazer isso? – perguntou Lise.
– Usando o método científico – disse o doutor Proktor. – Fazemos uma lista de algumas pessoas que sabemos terem sido hipnotizadas e descobrimos o que elas têm em comum. Em seguida fazemos uma lista das pessoas que não foram hipnotizadas e vemos o que essas pessoas têm em comum. Então, a coisa que todas as pessoas hipnotizadas têm em comum, mas as não hipnotizadas não têm, poderá ser considerada a causa do hipnotismo. Estão entendendo?
– Claro – disse Bumbão.
Lise repetiu algumas vezes a si mesma a longa explicação do doutor Proktor.
– Acho que entendi – disse ela. – Mas, por via das dúvidas, você podia me explicar, Bumbão?
– Bem... bom... – disse Bumbão. – Bem, é como... a coisa é tão engenhosa... que, talvez, bem, você poderia explicá-la, doutor Proktor?
– Claro. Digamos que todas as pessoas que falam “queso sedar” tomaram leite na semana passada. E digamos que uma das coisas comuns a todos os que dizem corretamente “queijo cheddar” é o fato de não terem tomado leite...
– Então alguma coisa contida no leite é que teria hipnotizado as primeiras – disse Lise.
– Exatamente – confirmou o doutor Proktor. – O método científico.
– A própria essência do método científico – disse Bumbão, empurrando um pouco de gelatina para Perry, que parecia totalmente desinteressado dela.
– Se partimos do princípio de que atualmente a maioria das pessoas tem algum tipo de dificuldade de pronúncia, podemos fazer uma lista daquelas que não têm – disse o professor.
– Nós três – disse Lise. – E a senhora Strobe.
– E Galvanius – lembrou Bumbão.
– É o bastante – disse o doutor Proktor. – Então, o que nós cinco temos em comum além do fato de não termos dificuldade de pronúncia?
Eles ficaram pensando por um bom tempo.
– Nós não fumamos, não bebemos nem contamos mentiras – disse Bumbão.
Sobrancelhas erguidas, os outros dois olharam para ele.
– Bem... nós não fumamos nem bebemos, é isso – corrigiu o menino.
– Vamos devagar – disse o doutor Proktor. – Na verdade, gosto de fumar um cigarrinho de vez em quando. E, às vezes, de tomar um copo de vinho tinto.
– Gelatina! – exclamou Bumbão. – Tenho certeza absoluta de que a senhora Strobe disse certa vez que gostava de gelatina.
– Mas não sabemos se Galvanius também gosta – disse Lise. – Aí é que está o problema. Não sabemos nada sobre ele. Só que ele é muito excêntrico.
– Espere um pouco – disse Bumbão. – Doutor, quando dissemos que Galvanius caiu no sono na classe, você disse alguma coisa sobre ele ser uma figura. Isso não significa que você o conhece?
– Eu e ele estudamos em Paris na mesma época – disse o doutor Proktor. – Eu estudava Química e ele estudava Biologia, mas não precisamos remexer nessa história agora.
– Ora, vamos! – disse Bumbão impaciente. – Qual é o problema do senhor Soluço?
– Simplesmente o fato de que ele foi louco o bastante para pegar coisas que estavam na minha prateleira da geladeira. Preciso dizer mais?
– Sim! – exclamaram Lise e Bumbão ao mesmo tempo.
O doutor Proktor suspirou.
– Gregor tomou o líquido de um jarro que ele pensou que fosse suco de laranja, mas, na verdade, era um tônico fortificante que eu estava desenvolvendo.
– Um tônico fortificante! – exclamou Bumbão. – Legal! O que havia nele?
– Nada muito especial. Só uma mistura de diferentes fluidos corporais. – O doutor Proktor apertou um dos olhos e começou a contar nos dedos. – Vejamos... do camundongo tubarão-tigre, do lemingue norueguês do tipo A e..., ah, sim, da rã-rinoceronte ameaçada de extinção. Acrescentei asteroides anabolizantes. E, por fim, uma pimenta mexicana superforte.
– Para fazer pessoas superfortes?
– Não, só para dar gosto, mesmo. Infelizmente a AFSSAPS, a Agência Francesa de Medicamentos, proibiu o tônico.
– Por que diabos eles fizeram isso? – exclamou Bumbão indignado. – Parece ser o máximo!
– Por causa do excesso do corante FD&C E-18 – disse o professor com um suspiro.
– Mas o senhor Soluço o tomou assim mesmo? – perguntou Lise.
– Infelizmente – respondeu o doutor Proktor. – E o resultado foi... – ele procurava a forma correta de expressar a ideia – ... interessante. É curioso que ele terminou sendo um professor de Artes, em vez de professor de Biologia. Mas basta de falar de Gregor. Precisamos descobrir como todas essas pessoas estão sendo hipnotizadas!
Eles continuaram pensando juntos, porém não chegaram a nenhuma conclusão.
– Desisto – disse Bumbão finalmente.
– Hum – fez o doutor Proktor. – Vamos pensar em alguma coisa que todo o mundo está fazendo, menos nós.
Eles recomeçaram a pensar. Com muito esforço. E, depois, com mais um pouco de esforço. Mas de nada adiantava.
– Por hoje, basta – disse o doutor Proktor com um bocejo. – Vamos dormir pensando nisso e conversar novamente sobre o assunto amanhã.
Lise e Bumbão saíram para a Avenida Cannon e estavam dizendo boa-noite um ao outro quando ocorreu uma ideia a Lise.
– Espere! Meus pais e sua mãe foram hipnotizados. E Truls e Trym também, não é verdade?
– É, é isso...
– Senhor Soluço! – exclamou Lise. – É isso o que eles têm em comum.
– O que você quer dizer com isso?
– Pense um pouco! – sussurrou Lise, olhando em volta como se temesse que alguém ouvisse a conversa no escuro. – Todos eles, ou compareceram ao encontro de pais e mestres com Gregor Galvanius ou tiveram aulas com ele.
– Não! – exclamou Bumbão. – É verdade! Temos de descobrir o que aconteceu! Precisamos interrogar nossos pais.
– Interrogar quem? – perguntou Lise. – Como?
– Interrogatório de terceiro grau, é claro – disse Bumbão, esfregando as mãos ansiosamente. – Você vai pressionar seus pais, eu pressionarei minha mãe. Amanhã conversamos. Heh, heh, heh!
E com isso Bumbão correu para a porta de sua pequena casa amarela, onde Lise viu a luz tremeluzente da tela da TV através da janela da sala de estar. Lise olhou para a própria casa: “Interrogar meus próprios pais?”, pensou.
Então, criou coragem, passou pelo portão, pela porta da frente e caminhou decidida para a sala de estar, onde seus pais estavam sentados diante da TV.
– Gostaria de fazer algumas perguntas a vocês – anunciou Lise.
– Mas seus pais não responderam nem ao menos se voltaram para olhar para ela. Eles simplesmente continuaram a olhar para a tela da TV, onde Lise viu um rosto que ela conhecia bem.
– Vocês foram hipnotizados – disse Lise em voz alta e clara.
– Shh – fez seu pai autoritário.
– Shh – fez sua mãe igualmente autoritária.
– Foi o Senhor Solu..., quer dizer, o senhor Galvanius quem fez isso? – perguntou Lise.
– Quieta, Lise – disse sua mãe. – Nosso presidente está fazendo um pronunciamento à nação.
Lise olhou para a tela da TV novamente.
– Pra começo de conversa, a Noruega é uma democracia parlamentar – ela disse então. – Não temos presidente. Temos um rei e um primeiro-ministro. Em segundo lugar, esse sujeito não é presidente de coisa nenhuma. É apenas Hallvard Tenoresen.
Seus pais se voltaram para olhar para a filha com o rosto pálido e sério.
– Apenas?! – eles disseram ao mesmo tempo.
– Sim – disse Lise. – Ele é um... ahn... um quiroprático cantor de Jönköping, na Suécia.
– Lise – disse sua mãe num tom que anunciava que ela logo levaria uma bronca –, eu lhe pedi que prestasse mais atenção às notícias. Hallvard Tenoresen foi eleito presidente da Noruega em todos os seus territórios... – sua mãe lançou um olhar ao relógio... – há quatro horas. Onde você estava? Na Lua?
– De certa forma – murmurou Lise. – Como é que foi isso?
– Eles pediram aos telespectadores que ligassem e votassem – disse o pai dela. – Tenoresen ganhou e já se dirigiu ao Palácio Real, em Oslo. O primeiro-ministro, todo o governo e o rei não foram votados e têm de ir embora. Agora as decisões cabem ao presidente Tenoresen.
– O quiroprático cantor sueco está tomando decisões relativas a todo o nosso país? – perguntou Lise incrédula.
– Aleluia – disse sua mãe.
– Mas e o rei? Ele mora no Palácio Real. É a casa dele.
– Ele foi para o exílio no estrangeiro – disse seu pai.
– Para R. T. S.
– Erreteesse? – repetiu Lise, tentando lembrar-se das lições de Geografia para descobrir onde ficava isso.
– A República de Trøndelag do Sul – respondeu o pai. – Ele tem uma cabana de veraneio lá.
– Hum – fez Lise. – Mas Trøndelag do Sul é um condado da Noruega.
– Claro que não – retrucou o pai.
– O quê? – continuou Lise. – Trøndelag do Sul? Conhecida pela considerável pesca de salmões? Trøndelag do Sul faz parte da Noruega, papai.
O pai limitou-se a dizer:
– Shh!
– Preciso saber se Gregor Galvanius hipnotizou vocês! – protestou Lise.
Mas seus pais tinham sido novamente absorvidos pelo discurso de Tenoresen.
– A Noruega é um paisinho minúsculo – disse Tenoresen com ar grave. – Não obstante... como disse certa vez um poeta... é uma terra de heróis. O que significa que nosso país, às vezes, pode parecer um pouco... bem, pequeno. Mas prometo que eu – com a ajuda de vocês – o tornarei maior. A Noruega Maior logo será tão grande quanto os outros grandes impérios do mundo.
– Noruega Maior? – perguntou Lise. – Ele mudou o nome de nosso país?
– Shh! – seus pais responderam rapidamente e ao mesmo tempo.
Tenoresen elevou o tom de voz.
– A Noruega Maior e seus territórios e colônias logo se estenderão de um deserto, no sul, até o polo, no norte. No mínimo!
Lise ouviu aplausos e vivas vindos da TV, mas achou aquilo meio estranho porque ela não via nenhum auditório, via apenas Tenoresen sentado a uma pequena bancada que se parecia suspeitosamente com a que o âncora do noticiário costumava usar.
– Agora talvez pareça que estou pretendendo tomar decisões unilateralmente – disse Tenoresen. – Mas é claro que não se trata disso. Afinal de contas, estamos vivendo sob uma ditadura... ah, ah, desculpem, é óbvio que eu quis dizer democracia! Todos participam das decisões. Eu vou apenas fazer-lhes uma recomendação presidencial, que de modo algum deve ser confundida com uma ordem. Minha primeira recomendação presidencial é a de que todos devem fazer o que eu determinar. E nem é preciso dizer que, se vocês não concordarem com essa ideia, simplesmente me digam.
Tenoresen abriu um largo sorriso para a câmera.
– Sim, eu, com toda simplicidade, quero estimular as pessoas que não concordam comigo a me comunicar o que pensam. Quem achar que o presidente não deve tomar nenhuma decisão pode ligar para o número de telefone que está na tela. Ligue, deixe seu nome e endereço para que eu possa... possa... – A expressão facial de Tenoresen tinha mudado. Ele já não sorria. Seus cabelos loiros lhe caíam sobre a testa e seus olhos brilhavam como se fossem antes um par de faróis. Mas então seu rosto relaxou e ele tornou a exibir o sorriso do tipo “eu-ganhei-as-eleições-presidenciais” – ... discutir o assunto com você.
Aplausos do auditório invisível.
– Isso não parece nada bom – disse Lise.
– Bobagem – disse a voz autoritária do pai dela.
– Tolice – falou a voz autoritária de sua mãe.
– E, enquanto vocês consideram o assunto – Tenoresen disse –, vamos cantar uma canção. Porque cantar fortalece a comunidade e resolve todos os problemas. Pensem nisso. Vamos cantar a tradicional canção patriótica da Noruega, “Entre Colinas e Montanhas”.
– Vou dormir – disse Lise. – Amanhã nossa classe vai praticar esqui.
Sua mãe voltou-se e olhou para ela espantada.
– Você não vai cantar junto?
Lise balançou a cabeça, negando.
– Prefiro fanfarras.
Quando Lise estava na cama assistindo ao teatro de sombras de Bumbão na janela do quarto do outro lado da rua, ela ouvia “Entre Colinas e Montanhas” ecoando da sala de estar. E quando fechou os olhos percebeu que a canção vinha de todas as casas da Avenida Cannon. Ela imaginava a luz das telas de TV piscando sobre o rosto das pessoas, que obedeciam com toda a reverência às ordens do presidente. Não apenas na Avenida Cannon, e não apenas em Oslo, mas em toda a Noruega Maior. E em seus territórios e colônias.
Capítulo 9.
Recorde na colina e
marcha à ré
– MINHA MÃE E MINHA IRMÃ riram bestamente quando eu lhes perguntei se elas se sentiam hipnotizadas – disse Bumbão, quando ele e Lise chegaram ao alto da rampa de onde desceriam usando esquis e bastões. Eles se alinharam com as demais crianças e esperaram sua vez. Todos usavam um avental em que se lia um número de largada. O de Lise era o número 12, e Bumbão pedira o número 13.
– Minha mãe e meu pai nem se deram ao trabalho de responder – disse Lise em tom desanimado. – Eles só queriam assistir à televisão.
– Número 8! – gritou a senhora Strobe da parte inferior da rampa de esqui que ela e Gregor Galvanius tinham construído no meio da encosta da colina.
– O número 8 era Trym. Ele deu uma olhada colina abaixo.
– Vá lá – ele disse para Truls, que era o número 9. – Hoje não estou a fim.
– Eu também não – disse Truls com um bocejo.
Então eles empurraram Ulrik, o número 10, para o ponto de partida. Ulrik ainda estava segurando uma torrada e tinha a boca cheia, mas ele ficou tão paralisado de medo que simplesmente ficou lá, os esquis presos aos trilhos que levavam ao salto, ganhando velocidade aos poucos. Por fim ele se deu conta de que precisava fazer alguma coisa, por isso jogou a torrada fora e pulou de lado. Mas era um pouco tarde demais. Ele deslizou meio de banda para fora da borda da rampa de salto e aterrissou numa posição semelhante à de uma águia com as patas e as asas abertas, produzindo um recorte em forma de Ulrik na neve próxima à rampa e provocando hurras e risos enquanto Galvanius o ajudava a rearranjar esquis, bastões, pernas e braços.
– Quatro metros! – gritou Galvanius. – Número de pontos: zero! Ainda no oitavo e último lugar!
Mais risos.
– Número... deixe-me ver... 11! – gritou a senhora Strobe.
Beatrize se preparou.
– Nós mesmos precisamos pôr Galvanius na berlinda – disse Bumbão. – Temos de espioná-lo para ver o que ele anda fazendo.
– Espioná-lo como?
– Vamos segui-lo quando ele for para casa hoje. Descobriremos onde ele mora, observaremos o que ele faz. Sabe como é: o trabalho básico de um espião. rincadeira de criança...
Beatrize começou seu salto e eles a acompanharam com o olhar. Ela precipitou-se da borda da rampa, flutuou elegantemente no ar e fez uma bela aterrissagem lá adiante no declive.
– Dez metros! – gritou Galvanius. – Número de pontos: dezenove, dezenove e meio! Ela assumiu a liderança!
Aplausos da turma.
– Número 12! – gritou a senhora Strobe.
– É sua vez – disse Bumbão. – Olhe, tome um pouco disto – acrescentou ele, entregando-lhe um saquinho onde se lia: “Pó de Soltar Pum Náutico do Doutor Proktor”.
– Pó de soltar pum! – sussurrou ela. – Bumbão, você está maluco! – Ela pegou o saquinho e enfiou no bolso dele antes que mais alguém visse.
Bumbão deu de ombros e disse:
– Sobra mais pra mim.
– Isso é trapaça, Bumbão!
– Trapaça? – perguntou o garoto, inclinando a cabeça para o lado. – E o que você me diz de Beatrize ter trazido esquis especiais de salto, que o pai dela encomendou a um encerador profissional de esquis, ao passo que eu tenho de competir com estes aqui?
Dizendo isso, ele fez um gesto de cabeça em direção aos seus miniesquis de plástico azul e ergueu os velhos bastões de madeira de seu avô que ele tivera de serrar para que ficassem com o comprimento adequado. E Lise teve de concordar que, com um equipamento daqueles, não era surpresa nenhuma que Bumbão estivesse em último lugar, por grande diferença de pontos, decorrida boa parte da competição. E desesperadamente atrás de Beatrize.
– Não temos o dia inteiro, número 12! – gritou a senhora Strobe.
Lise deu a largada. Ela principiou suavemente, saltou, oscilou quando seus esquis bambearam um pouco, mas fez uma bela aterrissagem e foi parar na área plana na parte mais baixa da rampa de salto.
– Oito metros e meio! – gritou Galvanius, todo alvoroçado. – Número de pontos: dezoito e meio, dezenove. Ainda no terceiro lugar!
– Número 13!
Lise voltou-se para olhar para o alto do declive, onde viu uma silhueta semelhante à de um elfo que já estava a plena velocidade. Um silêncio caiu sobre toda a classe, como se todo o mundo soubesse que iria acontecer algo de extraordinário. Eles sabiam disso simplesmente porque Bumbão era Bumbão, e sempre se podia ter certeza de que alguma coisa extraordinária aconteceria quando ele estava participando do que quer que fosse. Lise sabia que daquela vez seria ainda mais extraordinário do que de costume porque, em meio ao silêncio, ela ouviu Bumbão fazendo a contagem regressiva “Quatro, três, dois, um...”, que correspondia ao tempo decorrido entre engolir um saco do Pó de Soltar Pum Náutico do Doutor Proktor e o momento em que você solta uma bufa com a força e o barulho de uma manada de 300 mil gnus e 18 búfalos-asiáticos peidando ao mesmo tempo.
– Zero!
Bumbão atingiu a borda da rampa. Lise tapou os ouvidos.
– À explosão ensurdecedora seguiu-se uma breve, mas violenta, nevasca. Depois disso todos tiraram a neve dos olhos e piscaram, confusos, olhando em volta, para o declive de esqui e para a densa floresta de abetos que os rodeava. Mas tanto o menininho ruivo quanto a rampa que a senhora Strobe e o senhor Galvanius tinham construído haviam desaparecido. Sumido mesmo. Nivelados com o chão.
– Bumbão! – gritou a senhora Strobe, girando bem devagar, como uma... bem... como uma luz estroboscópica lentíssima.
– Bumbão! – gritou Gregor Galvanius.
– Onde está você? – gritou a senhora Strobe. Ela estava tão desesperada que seus óculos tinham deslizado completamente, chegando até a ponta do nariz.
– Aqui! – gritou uma voz que vinha de algum lugar da floresta. Todos se voltaram e olharam para o pequeno, minúsculo, menino ruivo que avançava com dificuldade, usando seus bastões de esqui, por entre as gigantescas árvores cobertas de neve. Seu sorriso era tão grande que dava a impressão de que sua cabeça ia se partir em duas.
– O... o... que você estava fazendo na floresta? – perguntou a senhora Strobe, estupefata, mas ao mesmo tempo bastante aliviada.
– Aterrissando depois de meu salto – disse Bumbão. Ele tirou seu chapéu cor de laranja, verificou que Perry ainda estava onde devia estar, retirou a neve do chapéu e tornou a colocá-lo na cabeça com todo cuidado. – Eu quase cravei a aterrissagem de Telemark. Meus pés estavam um tanto juntos demais, mas minha postura estava perfeita.
Todos olharam em silêncio para Bumbão, que, usando os bastões de esqui, avançava em direção a Beatrize.
– Olhe aqui, um prêmio de consolação por ficar em segundo lugar. Colhi isto no alto do mais alto dos abetos.
Beatrize, boquiaberta, olhou para a pinha que ele lhe deu.
A parte final da competição foi cancelada, pois a rampa tinha sumido e, como eles estavam muito ao norte e era inverno, o sol já se escondia atrás das árvores. Gregor Galvanius ficou para trás para dar um jeito na bagunça, enquanto as crianças, perfeitamente em ordem, como patinhos atrás da mamãe pata, seguiram a senhora Strobe pela pista de esquis. Bumbão deu um jeito de ele e Lise ficarem no fim da fila.
– Temos de escapulir – sussurrou ele.
– Por quê? – perguntou Lise.
– Se vamos espionar o senhor Galvanius hoje, temos de começar agora, para evitar que ele nos escape.
Lise concordou com um gesto de cabeça. Eles se deixaram ficar para trás, e quando todos os demais dobraram uma curva e desapareceram de vista atrás de um bosque, Lise e Bumbão deram meia-volta e esquiaram o mais rapidamente possível, retornando pela mesma trilha de onde tinham vindo.
Quando eles se aproximavam da clareira onde ficava o declive de esqui, ouviram alguém murmurando.
– É Galvanius – sussurrou Lise.
Eles se esconderam atrás de uns pinheiros e ficaram espiando. O senhor Soluço estava sentado num trenó, inclinado sobre o rádio que usara para tocar música para a classe. Ao seu lado, via-se uma pilha de coletes de esqui dobrados, cada um com um número, e as bandeiras de início e fim do percurso. Ele estava segurando a cabeça entre as mãos e parecia estar repetindo as mesmas três palavras continuamente.
– O que ele está dizendo? – sussurrou Bumbão.
– Cale-se! – ela ordenou. – Assim, talvez a gente possa ouvir.
– E se você não estivesse tão empenhada em me dizer pra calar a boca talvez o tivéssemos ouvido.
– Shh!
– Duas vezes shh para você!
– Três vezes shh!
– Tantos shhs quantos você puder dizer mais um!
Lise desistiu. E ficou ouvindo.
– Você ouviu isso? – sussurrou Bumbão.
– Sim, ouvi – disse Lise. – Ele está dizendo: “Eu... sou... invisível.”
– Essa é a nossa prova! O homem é um camaleão lunar!
Naquele exato momento o senhor Galvanius levantou a cabeça, e Lise e Bumbão pularam para trás do tronco de uma árvore.
– Será que ele nos ouviu? – sussurrou Bumbão.
– Shh! – fez Lise.
– O mesmo digo eu!
– Música? – perguntou Lise.
Bumbão ouviu.
– É, está tocando De Beetels.
A música vinha do rádio.
Help! I need somebody.
Help! Not just anybody...
Eles ergueram a cabeça por trás do tronco.
– Onde está Galvanius? – perguntou Lise.
Eles não viram nada.
– Você sentiu isso? – perguntou Bumbão.
– O quê?
– Esse tremor de terra – disse Bumbão. – Como se alguma coisa tivesse acabado de aterrissar.
– Abaixe-se! – disse Lise.
Era o senhor Galvanius. De repente, ele estava subindo em zigue-zague até o alto da colina em seus esquis, a partir do local onde estivera a rampa de salto antes de Bumbão detoná-la com seus gases. Ele agarrara a corda amarrada ao trenó em que estava o rádio e, arrastando tudo atrás de si, desapareceu entre as árvores rumo ao estacionamento.
– Vamos! – disse Lise, começando a impulsionar-se atrás de Galvanius com seus bastões de esqui.
– Espere! – disse Bumbão. – Primeiro preciso verificar uma coisa. – Ele foi descendo a colina, deslizando na neve pela mesma trilha usada pelo senhor Galvanius para subir em zigue-zague. Quando Bumbão voltou um minuto depois, estava ofegante e seus olhos mostravam grande espanto e alvoroço.
– O senhor Galvanius saltou!
– O que você quer dizer com isso?
– Ele deu um SUPERSALTO! Aquele tremor que nós sentimos era ele aterrissando.
– O que você está dizendo? Ali não tem mais rampa para saltos.
– Mesmo assim ele deu um salto de mais de cinquenta metros! Vi onde os rastros de seus esquis sumiram. E eles só reapareceram no final da clareira. Um salto de uns cinquenta metros sem usar rampa, Lise. Isso é humanamente impossível! – Bumbão abaixou a voz. – Daqui pra frente, precisamos tomar o maior cuidado ao fazer nosso trabalho de espionagem! Porque não estamos lidando com um ser humano, mas com uma espécie de criatura super-horripilante.
Bumbão e Lise esquiaram o mais depressa que puderam, mas só conseguiram alcançar o senhor Galvanius quando ele já estava no estacionamento. Eles esperaram entre dois carros e o viram levantar o trenó e os números de partida e colocá-los numa velha e empoeirada caminhonete verde, que estava estacionada de tal forma que eles tinham uma boa visão de sua carroceria. Então ele entrou na perua e ligou o motor, que roncou e cuspiu uma fumaça preta.
– O que vamos fazer? – perguntou Lise. – Vamos perdê-lo.
– Não se eu puder fazer alguma coisa – disse Bumbão, que realmente podia fazer algo. Ele deu a Lise seus bastões de esqui, deslizou na direção do carro em seus pequenos esquis de plástico, agachou-se e agarrou o para-choque traseiro do carro.
O motor produziu alguns sons horríveis e chocantes que fizeram Lise perceber que o senhor Galvanius estava querendo dar ré. Marcha à ré!
– Cuidado! – ela gritou. – Ele está dando ré...!
Mas era tarde demais. O carro verde saiu de ré do estacionamento e foi para cima de Bumbão, que desapareceu.
– Oh, não! – gemeu Lise. Mas quando o carro fez a curva e avançou, Bumbão reapareceu, ainda segurando firmemente o para-choque. O senhor Galvanius cruzou o estacionamento em direção à rodovia principal rebocando Bumbão. Porém quando o carro se aproximou do ônibus que os professores tinham alugado para a excursão, a senhora Strobe esticou o corpo e acenou para que Galvanius parasse. Lise o viu abaixar o vidro da janela do carro e ouviu a senhora Strobe exclamar:
– Lise e Bumbão estão desaparecidos! Temos de procurá-los!
O senhor Galvanius já estava saindo do carro e Lise percebeu que logo os descobririam. Era preciso fazer algo. E era preciso fazer uma coisa que Lise detestava: mentir. Mas o que estava em jogo ali era o fim do mundo, ela não tinha escolha.
– Ei! – gritou Lise, saindo de entre os carros estacionados e acenando com os bastões de esqui, tanto os dela quanto os serrados de Bumbão.
– Lise! – gritou a senhora Strobe. – Onde vocês estavam?
– Pegamos um atalho – disse Lise, usando seus bastões para tomar impulso e aproximar-se, evitando que eles viessem até ela, pois isso os faria passar por trás do carro e, assim, eles descobririam Bumbão. – Chegamos aqui antes de vocês. Bumbão se cansou de esperar, então... pegou um táxi e foi para casa.
– Um táxi?
– É, ele tinha de voltar porque... tinha uma reunião importante.
– Que tipo de reunião? – perguntou a senhora Strobe devagar.
– Com um..., bem..., um coral. – Ela não percebia o quanto a sua voz revelava a pouca prática que tinha em mentir.
– Um coral? – perguntou a senhora Strobe franzindo o cenho, formando um alarmante V logo acima do nariz.
– Sim, um coral da América – disse Lise, engolindo em seco. – Eles querem que ele seja seu regente.
Com o canto do olho ela via Bumbão agachado atrás do carro. E do outro lado ela via o ônibus com Beatrize e seus amigos, que estavam todos de rosto colado nas janelas.
– Amanhã vou ter uma conversa sobre isso com Bumbão – disse a senhora Strobe. – Vamos, vamos embora.
– Está bem – disse Lise, seguindo a senhora Strobe até o ônibus. Lise encontrou um banco vago e viu pela janela o senhor Galvanius voltar para seu carro e ligar o motor novamente.
– Ei, Lise?
Lise levantou o olhar. Era Beatrize quem a chamava.
– Ei, será que eu... posso... me sentar com você?
Em resposta, Lise deu de ombros e olhou pela janela novamente.
– Então... ahn... – disse Beatrize, que se sentou ao lado de Lise. – Como você conhece Bumbão e ele vai... tipo... reger o coral americano...
– Hum-hum.
– Você acha que tudo bem se nóis também fôssemos junto... você sabe?
– Por quê?
– Bem... porque nóis poderíamos aparecer na TV americana e nóis ficaríamos famosas!
– Entendo – disse Lise, olhando o senhor Galvanius ir embora. E ali, na nuvem de fumaça preta atrás do carro, ela teve a impressão de ver mechas dos cabelos ruivos de alguém.
Capítulo 10.
Trabalho-padrão básico
de espionagem
NAQUELA NOITE LISE FOI PARA A CAMA, mas não conseguiu dormir. Não havia luz na janela do quarto de Bumbão. O que teria acontecido? Ela se perguntou por algum tempo se não devia dizer alguma coisa a seus pais, mas naturalmente eles estavam hipnotizados. Ela resolveu ir sorrateiramente até a casa do doutor Proktor para perguntar-lhe o que eles deveriam fazer, porém um barulho repentino a fez dar um salto e se erguer uns sete centímetros do colchão. Ela olhou para a vidraça escura, que ainda vibrava com o impacto. O que sobrara de uma bola de neve deslizava vidro abaixo. Truls e Trym? Não, eles eram covardes demais para atirar bolas de neve na casa do Comandante. Ela pulou da cama e olhou para fora. E ali, à luz de uma solitária lâmpada da iluminação da rua, estava um sujeito com uma cara preta como carvão, olhando para ela. Seu coração deu um salto de mais de sete centímetros de pura alegria. Era Bumbão! Lise acendeu a luz do quarto para que ele pudesse vê-la.
Bumbão fez um aceno pedindo-lhe que descesse. Lise vestiu-se depressa e desceu a escada sorrateiramente. Quando passou pela sala de estar, na ponta dos pés, ouviu uma voz conhecida na TV dizer:
– A Noruega é pequena demais, meus caros cidadãos. Na qualidade de presidente da Noruega Maior, liguei para o rei da Dinamarca e lhe perguntei se tudo bem para ele se nos apossarmos de seu país. Infelizmente, ele não concordou. E, como se isso não bastasse, mostrou-se hostil, chamando-nos de macacos montanheses e dizendo: “Vocês devem permanecer aí em suas árvores. Se é que vocês conseguem cultivar árvores nessa região tão ao norte.”
No vestíbulo, Lise calçou as botas e vestiu o casaco.
– A primeira pergunta é – trovejava Hallvard Tenoresen da sala de estar – se nós, o altivo povo da Noruega, vamos ignorar esse comentário desrespeitoso. A segunda pergunta é se o rei da Dinamarca, com esse comentário, quer dizer que, uma vez que nós somos macacos, ele pode simplesmente dar um giro por aqui e povoar a Noruega com seu povo dinamarquês, cuja língua é tão truncada que dá a impressão de que eles estão tentando falar com batatas na boca. Minha recomendação presidencial é que devemos tomar a iniciativa de atacar a Dinamarca primeiro, antes que eles nos ataquem! Liguem agora mesmo e votem! E, se você for contra, lembre-se de deixar seu nome e endereço. Agora vamos cantar o hino nacional. Todos estão prontos? É um, é dois, é três...
Lise pegou os bastões de esqui de Bumbão e saiu de fininho de casa.
– Descobri onde ele mora – disse Bumbão quando ela se aproximou do portão de entrada.
– Estou tão contente em ver você! – sussurrou ela. – Se seu rosto não estivesse tão sujo, eu lhe daria um abraço.
– Sujo? – perguntou Bumbão.
– Sim, está todo preto – disse Lise, e passou um dedo no rosto dele, revelando uma faixa leitosa cintilante de pele sardenta. Ela lhe mostrou a ponta do dedo toda preta.
– Deve ter sido o escapamento – disse Bumbão. – O senhor Galvanius precisa banhar as velas de seu carro com óleo. Não há a menor dúvida. De todo modo, ele foi direto para casa e estacionou na rua. Eu o segui sorrateiramente e o vi entrar numa pequena casa de tijolos. Então, entrei de fininho no jardim, subi numa árvore perto da janela da sala de estar, espiei e tornei a espiar.
– O que você viu? – perguntou Lise, já sentindo aquela grande agitação que a gente sempre sente pouco antes de as aventuras se tornarem verdadeiramente aventurosas.
– Eu o vi dormir – respondeu Bumbão, recebendo das mãos dela seus bastões de esqui.
– O quê?
– Ele estava dormindo. Encheu a banheira, despiu-se, entrou nela e se pôs a dormir.
– Ele estava deitado em sua banheira? E ele ainda está lá, na banheira?
– Nunca vi ninguém tomar um banho tão longo, nem dormir tanto! – disse Bumbão. – Essa deve ser a missão de espionagem mais aborrecida da história. E a mais fria.
– Entendo – disse Lise, um pouco desapontada pelo fato de que, afinal de contas, não se tratava de nada muito emocionante. – E agora?
– Troca de guarda. Perry está fazendo o trabalho de espionagem agora, mas depois será a sua vez.
– Espionar um homem dormindo enquanto toma banho de banheira?
– Ora – disse Bumbão. – Não é longe: basta subir na parte de trás dos meus esquis.
E Lise achou que talvez a aventura pudesse ser um pouco emocionante se ela desse uma pequena ajuda. Então ela apoiou suas botas de inverno na parte de trás dos minúsculos esquis de Bumbão, firmou o corpo agarrando-se aos ombros dele e disse:
– Vamos lá!
Com isso, Bumbão saiu em disparada, fazendo tremer a neve abaixo deles.
Eles chegaram a uma rua com casas mergulhadas no silêncio. A Lua brilhava sobre a casinha de tijolos diante da qual Bumbão parou. Não havia carros nem ninguém à vista, e o silêncio era completo.
– É aqui? – perguntou Lise.
– Sim – disse Bumbão, aproximando-se cautelosamente do portão da frente e colocando um dedo no batente dele.
– Vamos entrar e nos aquecer, Perry – disse Bumbão.
À luz da Lua, Lise viu Perry pular na mão e no braço de Bumbão, depois entrar debaixo de seu chapéu.
Bumbão estava prestes a abrir o portão quando sua mão parou.
– Ele saiu de novo – disse Bumbão.
– Como você...? – principiou Lise.
– Perry fez isso antes de eu ir embora – disse Bumbão, apontando para a teia de aranha que fora feita havia pouco e se estendia entre o batente e o portão. Ela estava solta, pendendo no ar.
– Alguém saiu há pouco – confirmou Lise. – Mas aonde teriam ido?
Em resposta a essa pergunta, eles ouviram um motor roncar duas vezes e, finalmente, começar a funcionar, fazendo um barulhão que eles conheciam bem.
– Depressa! – disse Bumbão. – Vamos voltar aos esquis!
Quando eles cruzaram a rua deslizando, viram que a caminhonete verde já tinha partido, cuspindo fumaça, e desaparecia, rumo ao primeiro cruzamento.
– Meus braços são mais compridos – disse Lise, arrancando os bastões de esqui de Bumbão e utilizando-os para dar um grande impulso aos esquis, que ganharam velocidade. Mas o carro do senhor Galvanius já atingira o primeiro cruzamento e se afastava.
– Mais depressa! – gritou Bumbão. – Nós vamos perdê-lo!
– Isso é o mais rápido que podemos ir! – disse Lise, jogando os bastões na rua coberta de neve. Temos de desistir.
– Não, não! – exclamou o garoto. – O sinal está fechando para ele. Ainda é possível alcançá-lo no sinal vermelho!
– Ele está muito à nossa frente, Bumbão.
– Ah, é? – disse Bumbão, tirando uma coisa do bolso do casaco. – Olhe aqui! Pegue o que sobrou!
Lise viu que era o saco de Pó de Soltar Pum Náutico do Doutor Proktor.
– De jeito nenhum – disse ela. – Garotas não soltam peidos!
– Soltam, sim, e já vi você soltar um daqueles. Você tem de fazer isso. O fim do mundo etc. etc. etc.
– Já disse que não! Faça isso você!
– Não tenha vergonha de peidar agora, Lise! Eu estou na sua frente. Se eu tomasse o pó, iria atirá-la para longe dos esquis, você sabe muito bem.
Lise se remoía por dentro. Ela detestava peidar, mas ela odiava ainda mais que lhe dissessem que tinha vergonha disso.
– Passe-me isso – disse ela, pegando o saco. Inclinando a cabeça para trás, ela despejou seu conteúdo na boca.
– Oh, oh, oh! – gritou Bumbão, dobrando-se de tanta satisfação. – Sete, seis...
Bem lá adiante, à frente da manchinha escura do carro, Lise teve a impressão de avistar uma luz. Uma luz verde. Ela já estava com o estômago coçando, fervendo e borbulhando.
– Cinco, quatro... – contou Bumbão.
Não, espere, agora a luz estava amarela. E a pressão, que crescia em seu estômago, fazia com que ela se sentisse como se tivesse engolido um balão de gás.
– Três, dois, um...
A luz à frente deles ficou vermelha. Lise viu os faróis dos freios do carro do senhor Galvanius se acenderem. E o balão em seu estômago não estava apenas cheio, estava prestes a explodir.
– Segure firme! – encorajou-a Bumbão. – Decolar!
E a explosão aconteceu. Lise teve a impressão de que os fundilhos de suas calças tinham se rasgado quando um jato de gás quente assobiou e explodiu. E, como se tivessem um motor a jato no traseiro – o que, de certa forma, tinham –, eles foram projetados em alta velocidade para a frente. Os jardins e quintais, as casas e os cruzamentos ficaram para trás. Aos poucos, porém, à medida que eles avançavam, o jato de gás foi se amenizando.
– Aterrissagem difícil! – gritou Bumbão.
Então sete coisas aconteceram em rápida sucessão.
Ouviu-se um som surdo quando eles bateram contra a traseira da caminhonete.
O sinal de trânsito passou do vermelho para o verde.
A caminhonete verde avançou.
Bumbão agarrou o para-choque, mas suas luvas escorregaram e ficaram coladas nele. (E Bumbão imaginou que sua mãe e Eva haveriam de ficar muito furiosas. Elas lhe tinham dado aquelas luvas como presente de Natal no ano anterior, junto com a advertência de que, se ele as perdesse, elas lhe dariam um cascudo, um puxão nas cuecas e um soco na boca.)
Bumbão soltou um palavrão que, infelizmente, não pode ser escrito aqui, pois este é um livro para crianças.
Lise balançou o braço direito e o bastão de esqui de tal forma que a cestinha que fica perto da extremidade inferior do bastão, na bilionésima fração final de segundo, enganchou no para-choque e rebocou os dois amigos atrás do carro.
Bumbão soltou uma exclamação que felizmente pode ser reproduzida aqui:
– Oba!
Lise e Bumbão, segurando-se com firmeza no bastão de esqui, continuaram a ser rebocados pelo carro, deslocando-se no silêncio da noite. A fumaça preta do escapamento provocou pequenos acessos de tosse em Lise, mas, para falar a verdade, a coisa não foi tão ruim assim. Os esquis deslizavam na neve e nos sulcos congelados, e, quando Lise olhou para cima, ela viu a Lua pairando num claro céu noturno cheio de estrelas. E a garota então achou que, afinal de contas, aquela tinha se revelado uma bela noite. Apesar de toda aquela história de fim do mundo e tudo o mais, era realmente uma bela noite.
De repente eles ouviram um som alto de raspagem sob seus esquis, e o carro começou a brecar.
– O que está acontecendo? – perguntou Lise, que, com as mãos ocupadas, tentava manter o equilíbrio.
– Acabamos de passar por cima da grade de um bueiro – disse Bumbão.
O carro parou. Lise desenganchou o bastão de esqui do para-choque.
– Vamos, Bumbão! – sussurrou ela. – Temos de nos esconder!
Bumbão arrancou suas luvas, que ainda estavam penduradas no para-choque, e foi patinando logo atrás da amiga até a beira da calçada. Eles se agacharam atrás de um carro estacionado.
O senhor Galvanius saiu da caminhonete verde.
– Olhe – sussurrou Lise. – Ele está só de roupão de banho!
– E com suas meias comemorativas dos feitos olímpicos do grande esquiador norueguês Vegard Ulvand – sussurrou Bumbão. – Se você quer saber, isso me cheira a coisa de camaleão lunar.
Eles o acompanharam com os olhos enquanto ele avançava em direção ao bueiro sobre o qual tinham passado. O ar quente dos esgotos subterrâneos tinha derretido a neve e o gelo de cima da tampa do bueiro. O senhor Galvanius agachou-se, meteu a mão entre as fendas do pesado círculo de ferro que fechava a abertura e puxou-o para cima. Um segundo depois, Galvanius tinha desaparecido.
– Ele se arrastou para dentro do esgoto! – exclamou Bumbão.
– Que diabos ele vai fazer lá? – perguntou Lise. – Será que se sentiu limpo demais depois do banho?
– Vamos descobrir – disse Bumbão, livrando-se dos esquis. – Depressa!
Com suas pernas curtas, ele disparou em direção à tampa do bueiro e tentou levantá-la da mesma forma que Galvanius o fizera, mas ela era pesada demais.
– Quer fazer o favor de ajudar? – ele disse com os dentes cerrados, enquanto dava puxões na tampa.
Lise enfiou os dedos entre as fendas e fez o possível para levantar a tampa, mas esta não se mexeu.
– Quem haveria de dizer que o senhor Soluço era tão forte? – disse Bumbão, puxando com tanta força que seu rosto ficou completamente vermelho.
Lise de repente soltou a tampa.
– O que houve? – perguntou Bumbão.
– Não devemos descer lá.
– Por que não? – perguntou o menino.
– Anaconda – disse Lise.
– Anna Conda?
– Anaconda! A serpente, a sucuri. Grande. Enoooorme! Eu não quero nada com serpentes enormes.
Bumbão soltou a tampa e inclinou a cabeça para o lado.
– Lise! Não me diga que você acredita nessa antiga lenda urbana?
Lise lançou a Bumbão um olhar ofendido.
– Bem, existem crenças e crenças. Na verdade foi você quem me falou disso pela primeira vez, Bumbão. Você me disse que existe uma sucuri de dezoito metros de comprimento nos esgotos de Oslo. Uma sucuri tão insaciável que devora tudo o que encontra pela frente. Isso mesmo. Você disse até que, na verdade, a sucuri o engoliu em certa ocasião, mas, milagrosamente, você conseguiu se livrar da enrascada.
– Eu disse? – falou Bumbão coçando as costeletas. – Humm, acho que estou começando a ficar esquecido. Mas, naturalmente, se seu informante é uma pessoa tão confiável quanto eu, tenho de acreditar em você. Tudo bem, não vamos entrar aí. Porque eu também não quero nada com essa história de sucuri.
Por algum tempo, eles ficaram ali espiando através da tampa preta do bueiro, cujas fendas ainda mais pretas levavam a uma escuridão muito, mas muito maior, que levava ao negror dos negrores: o emaranhado subterrâneo dos canos de esgoto e passadiços de Oslo, que ninguém sabia – nem queria saber – exatamente aonde ia dar.
– Bem, então quer dizer que, por esta noite, estamos de folga do trabalho de espionagem? – perguntou Lise esperançosamente.
– É quase isso – disse Bumbão exibindo aquele sorrisinho que Lise bem conhecia: “quase isso” quase sempre significava enrascada.
– O que você quer dizer com isso? – perguntou ela, já adivinhando qual seria a resposta.
– A casa de Gregor Galvanius está vazia. E, como você sabe, as aranhas peruanas de sete pernas são bambas em abrir fechaduras.
– Bumbão, não! Não podemos sair por aí invadindo a casa das pessoas.
– Em primeiro lugar, pequenas invasões não são motivo para tanta revolta quando estamos tentando salvar o mundo da destruição. Em segundo lugar, pensei que tivéssemos concordado que o senhor Galvanius não é uma pessoa, ele é um camaleão lunar. E o lugar mais provável em que podemos encontrar provas disso é a casa dele.
– Sim, mas...
– Esta é a nossa chance, Lise.
– Sim, mas não é... nós não podemos... – Lise tentou e tentou descobrir uma saída, porém, por mais que pensasse, ela sabia que Bumbão tinha razão. E ela detestava quando Bumbão se mostrava maluco e certo ao mesmo tempo, especialmente quando isso implicava mais complicações para sua vida.
– Oh, dane-se – disse a menina. – Então vamos lá, vamos a essa invasão.
– Oba! – exclamou Bumbão.
Capítulo 11.
Invasões e cartas de amor
OUVIU-SE UM PEQUENO “CLIC” E, então, Perry arrastou-se para fora do buraco da fechadura.
– Bom trabalho, Perry! – disse Bumbão. Ele girou a maçaneta e a porta da casinha de tijolos de Galvanius se abriu. Bumbão colocou Perry sobre a parede, junto à campainha, e lançou um olhar grave à aranha:
– Toca el timbre si ves al señor Galvanius que viene,¿de acuerdo?
– Ahn? – perguntou Lise.
– Pedi a ela que toque a campainha se vir o senhor Galvanius chegando.
– Ah, é? – disse Lise. – Como assim? Em língua de aranha ou coisa assim?
– Deixe de bobagem. As aranhas não sabem falar. Mas elas entendem espanhol. É a língua que falam no Peru.
Lise estava quase respondendo, mas percebeu que isso de nada adiantaria. Então entrou correndo na casa, logo depois de Bumbão, e fechou a porta atrás deles. Eles ficaram parados no corredor escuro, prendendo a respiração e apurando os ouvidos.
– Que barulho é esse? – sussurrou Lise.
– As batidas de seu coração – sussurrou Bumbão.
– Não, preste atenção.
– Você está ouvindo coisas, Lise. Não há ninguém aqui além de nós.
– Estou ouvindo um zumbido.
– Pare com isso. Isso é só... espere! Você ouviu isso? É um zumbido.
– Mas é claro. Foi exatamente o que eu...
– Venha! – interrompeu Bumbão, puxando-a pelo braço.
Eles avançaram pelo corredor, passaram pela sala de estar e chegaram a uma porta.
– O zumbido está vindo daqui – disse Bumbão.
– Isso mesmo – disse Lise.
– Talvez você deva abrir a porta – falou Bumbão.
– Ou quem sabe você deva abri-la? – respondeu Lise.
– Pedra, papel, tesoura – disse Bumbão.
Eles contaram até três e mostraram as mãos.
– Eba! – exclamou Lise triunfantemente, porque ela escolhera o papel e Bumbão escolhera a pedra.
– Por que essa alegria toda? – perguntou Bumbão. – A pedra ganha do papel.
– O quê?
– Você não ficou sabendo? Eles mudaram as regras no torneio anual de outubro passado.
– Eles?
– Sim, a Associação Internacional Pedra-Papel-Tesoura.
Lise ia protestar, mas de repente achou que eles podiam deixar aquela tolice de lado. Ela abriu a porta.
Lá dentro estava escuro, mas o zumbido era muito forte.
– Ai! – gritou Lise, mais por estar sobressaltada do que pela dor da picadinha em seu pescoço. Naturalmente, Bumbão tinha achado o interruptor, porque no mesmo instante a sala se iluminou.
Lise ficou de olhos esbugalhados, como os de um inseto. Literalmente.
– Mosquitos – ela disse, esfregando o pescoço.
– E moscas – acrescentou Bumbão.
Aquele quarto sem nenhuma mobília estava cheio de insetos, pequenos e grandes. Pelo visto, todos capazes de voar. E todos eles agora giravam em torno da lâmpada que pendia do teto.
Lise bateu a porta, fechando-a novamente.
– Esquisito – disse Bumbão.
Eles atravessaram os outros cômodos. Não levou muito tempo: havia apenas uma sala de estar, uma cozinha e um banheiro, onde a banheira ainda estava cheia de água.
– Tirando essa coisa dos insetos, este lugar não parece tão estranho – disse Bumbão quando eles voltaram à sala de estar.
– Não mesmo – disse Lise. – Exceto por algo que não existe aqui.
– É mesmo – concordou Bumbão, deixando-se cair, exausto, no sofá. – O cara não tem TV. Isso é uma coisa quase assustadora.
– Estava me referindo a uma cama. Cadê a cama do senhor Galvanius?
– Hum – fez Bumbão, pondo as mãos atrás da cabeça e fechando os olhos. – Talvez ele durma no sofá.
– Mas ele tem um quarto, então por quê...? – Lise parou de repente e exclamou:
– Ele dorme na banheira!
– É isso aí, foi o que eu disse.
– Estou querendo dizer que lá é o lugar onde ele dorme. Todas as noites!
– Deixe de brincadeiras – disse Bumbão com um bocejo. – Pense no mal que isso faria à sua coluna: hérnia de disco, ciática, luxação do nervo cubital...
– Você é quem diz que ele não é uma pessoa normal, certo? – disse ela.
Mas Bumbão não respondeu. Sua boca estava aberta e, de vez em quando, a intervalos regulares, ele emitia um som parecido com o de alguém tentando engatar a ré. Ele estava roncando.
Lá fora estava tudo em silêncio.
Então o portão produziu um rangido quase inaudível.
Em seguida, mais silêncio.
Depois, o som de um assobio, como o de um laço sendo lançado na escuridão, seguido por um pequeno estalo, como se alguma coisa úmida tivesse atingido a lateral da casa.
A seguir, o mesmo som de assobio e, por fim, um som mais alto de estalo, como o de um par de mandíbulas se fechando.
E, depois, novamente silêncio.
Lise deu uma voltinha rápida pela sala de estar enquanto ouvia o ronco suave e regular de Bumbão. Não havia nenhum quadro nas paredes, mas, então, ela se aproximou da escrivaninha, onde havia uma folha de papel em que alguém tinha começado a escrever. Ele pegou a folha e leu:
Lise sentiu o suor banhando-lhe a testa. Ela fixou o olhar na palavra “manuzear”, escrita com “z”, quando a grafia correta é com “s”. Isso podia significar uma de três coisas:
Que Gregor Galvanius tinha dificuldades com ortografia, o que não é tão incomum. Errar é humano.
Que aquilo não tinha sido escrito, de modo algum, por um ser humano, mas, antes, por um camaleão lunar!
Que a palavra “manusear” estava escrita corretamente na carta verdadeira, mas um camaleão lunar estava postado entre Lise e a carta exatamente naquele momento!
Soltando um gritinho, Lise deixou cair a carta.
No sofá, Bumbão emitiu um pequeno ronco.
E, no mesmo instante, a luz se apagou.
Lise levou as mãos à boca para não gritar de novo. Ela olhou diretamente para a escuridão, mas não viu nada, apenas ouviu. Ouviu o suave ressonar de Bumbão e mais alguma coisa. Um som que lhe arrepiou os cabelos. Primeiro os dos braços; depois, os da nuca; em seguida, os da cabeça. Soluços. Ela ouviu soluços ásperos, que lhe eram bastante conhecidos. E eles não vinham de fora da casa, estavam ali. Ali na sala.
– N-N-Bumbão – gaguejou Lise, tentando controlar o tremor da voz. Mas, em vez disso, o tremor espalhou-se pelo resto de seu corpo, até que ela se sentiu tremer como se fosse uma britadeira. Porque agora ela conseguia enxergar alguma coisa na escuridão. Um par de olhos grandes, esbugalhados, brilhantes, com pálpebras que subiam e desciam devagar sobre eles.
– Bumbão!!! – berrou Lise.
O ressonar parou imediatamente. Ela ouviu alguns grunhidos, depois um sonolento:
– O que está acontecendo?
A voz que respondeu não foi a de Lise, mas uma voz esganiçada e sussurrante, que ceceava:
– O que está acontecendo – hic! – é que logo vocês vão ser comidos!
Era a voz de Gregor Galvanius.
Lise sentiu uma coisa fria e grudenta enrolar-se em seu pescoço e apertá-lo. Uma mão. Mas não uma mão humana.
– Socorro! – gritou Lise, sacudindo os braços, porém a mão simplesmente apertou com mais força.
– Socorro duplo!! – gritou Bumbão.
– Não existe socorro para – hic! – ladrões. – O senhor Galvanius soltou uma risada esganiçada e agourenta.
Naquele exato momento, a luz foi acesa.
– Existe socorro, sim – disse uma voz familiar. E, no vestíbulo, encontrava-se uma figura alta e magra bastante familiar.
– Doutor Proktor! – exclamou Lise aliviada.
– Mestre! – exclamou Bumbão entusiasmado.
– Vic – hic! – tor? – disse Gregor Galvanius, ajeitando o cinto do roupão de banho.
– Depressa! – gritou Bumbão, pulando do sofá sobre os ombros do senhor Galvanius e colocando as pernas em torno do pescoço dele. – Não deixe que ele se camufle e escape.
– Hic! – O senhor Galvanius se pôs a rodopiar, tentando agarrar o pestinha que lhe apertava a nuca feito um torno.
– Pare, Bumbão – disse o doutor Proktor.
– Temos de salvar o mundo dos camaleões lunares – gritou Bumbão, esmurrando a cabeça de Gregor Galvanius com seu punho minúsculo.
– Ai! Hic! Ai!
– Eu lhe disse para parar – gritou o doutor Proktor. – Gregor não é um camaleão lunar!
Tanto Gregor Galvanius quanto Bumbão pararam imediatamente.
– O que você disse – hic! – que eu não sou? – perguntou Galvanius.
– Um camaleão lunar – disse o doutor Proktor.
– Se ele não for um camaleão lunar, então o que ele é? – perguntou Bumbão.
– Vocês dois detetives ainda não descobriram? – o professor perguntou, aproximando-se de Galvanius e tirando Bumbão de seus ombros.
– Talvez não – disse Lise, piscando o olho direito. – Mas está começando a ficar evidente.
– Exatamente! – disse Bumbão. – Ou... ahn... está mesmo?
– Sim – disse Lise. – Ele dorme numa banheira e, na verdade, agora deveria estar hibernando. Ele saltou cinquenta metros no declive de esqui, sem nenhuma rampa para tomar impulso. Ele tem uma sala cheia de insetos. E tem também essa coisa dos soluços, que, na verdade, são coaxos. Ele é – disse Lise, apontando o indicador para Gregor Galvanius, que a olhou aterrorizado – uma rã!
– Uma rã?! – repetiu Bumbão.
– Um tipo de rã – disse o doutor Proktor, concordando com um aceno de cabeça.
– Uma rã bobona, pega em flagrante – disse Gregor Galvanius, abaixando a cabeça.
– Vocês estão brincando! – disse Bumbão rindo, olhando em volta para os demais. – Ou será que não estão?
Em resposta, Gregor Galvanius abriu a boca e começou a esticar a língua para fora. E a esticou cada vez mais, até que ela se estendeu por todo o comprimento da sala como um tapete vermelho – bem..., um tapete vermelho-azulado –, chegando até a ponta do nariz de Bumbão. E lá, na pontinha da língua de Galvanius, estava Perry, lutando para soltar suas sete pernas, que estavam, todas elas, presas no muco grudento da língua da rã.
– Eu soube que era você quando vi esse sujeito junto de minha campainha – disse o senhor Galvanius ceceando. – Tirem-no daí antes que eu o coma. Ele é um petisco tentador!
Com cara de nojo, usando o polegar e o indicador, Bumbão arrancou cuidadosamente sua amiga aranha da comprida língua. Perry subiu correndo pelo braço e pelo pescoço de Bumbão e se enfiou debaixo do chapéu, em busca de segurança. O senhor Galvanius recolheu a língua e fechou a boca com um ruidoso estalo.
– E agora – disse o doutor Proktor, batendo palmas com um estalo que nem de longe era tão barulhento – sugiro que todos nos sentemos para discutir a fundo algumas coisas. Isto é, precisamos fazer outras coisas. E não temos muito tempo.
– Que outras coisas? – perguntou Galvanius.
– O de sempre – disse Bumbão, reprimindo um bocejo. – Temos de salvar o mundo.
Capítulo 12.
A rainha dançarina e a rã
QUANDO TODOS ESTAVAM SENTADOS em volta da mesinha de centro da sala de estar – o doutor Proktor, Lise, Bumbão e Gregor Galvanius –, o doutor Proktor explicou como os encontrara.
Ele estava trabalhando em seus sapatos equilibristas e ouvindo o noticiário local pelo rádio quando Eva, a irmã de Bumbão, ligou e lhe perguntou se Bumbão estava lá. Porque ninguém o tinha visto desde que ele fora para a escola naquela manhã, e a mãe dele estava esperando que ele lhe levasse o jantar na cama, como costumava fazer. O doutor Proktor sugeriu que ela consultasse Lise e só voltou a pensar no assunto quando ouviu a voz alta e autoritária do pai de Lise gritando da entrada da casa dela.
Pelo que o furioso comandante estava dizendo, o doutor Proktor entendeu que a cama de Lise estava vazia, que ela tinha desaparecido. No mesmo instante, o radialista comunicou que os moradores da casa de número 24 da Rua Andedam tinham relatado terem ouvido uma explosão que sacudira as janelas de todo o bairro. E que, além disso, eles tinham visto uma menina e algo que bem podia ser um anão deslocando-se em altíssima velocidade num par de miniesquis. E como o doutor Proktor sabia que seu antigo companheiro de quarto na faculdade em Paris morava no número 25 da Rua Andedam, e que, havia pouco tempo, Lise e Bumbão tinham falado sobre Gregor, ele juntou uma coisa com a outra e supôs que eles tinham usado o pó de soltar pum. Então ele resolvera ir até lá e ver o que estava acontecendo.
– Temos de ir para casa e dizer a nossas famílias que estamos bem – disse Lise. – Eles devem estar preocupados.
– Oh, com certeza eles podem esperar mais um pouco – disse o doutor Proktor. – Temos coisas mais importantes a fazer do que pensar em pais aflitos.
– É isso mesmo – concordou Bumbão. – Mas primeiro temos de descobrir como uma pessoa se transforma numa rã.
– Um tipo de rã – disse o doutor Proktor. – Por que você não nos explica, Gregor?
– Meu Deus! – gemeu Gregor. – Vocês querem a versão completa ou a versão abreviada?
– A versão completa – disseram Bumbão e Lise ao mesmo tempo.
Gregor levou quase dez minutos para falar sobre sua infância no extremo sul da Noruega, sobre seu pai temperamental, que queria que ele se tornasse um jogador de voleibol profissional, e sobre como ele desafiara os desejos de sua família e fora para Paris estudar Biologia.
– Foi lá que conheci Agnetha – disse Gregor. – A mais bela criatura bípede.
– Esquisita? – perguntou Bumbão. Não que ele quisesse saber se ela era um pouco excêntrica, mas porque é difícil dizer “bonita” com a boca atulhada de biscoitos. Bumbão estendeu a mão com o pacote de biscoitos, a única comida que havia em toda a casa, a menos que se comessem insetos.
– Não, obrigado – disse Gregor. – Onde eu estava?
– Em Paris.
– Certo. É isso mesmo, então eu estava caidinho por ela, como se diz. E enfim criei coragem para convidar Agnetha para um concerto da banda De Beetels. E vocês acreditam que ela aceitou?! E, quando eles estavam tocando uma canção chamada “She Luvs Ya”, ela se voltou para mim e disse em austríaco: “É ferdad o que elis stam cantanto, Gregor.” Aí ela me beijou na boca, enquanto De Beetels cantavam “She luvs ya, nah, nah, nah”. Aquele foi o momento mais feliz de minha vida. O minuto seguinte também foi ótimo. E o que veio depois. Na verdade, foi uma longa sucessão de momentos maravilhosos, até que fiquei tão distraído que tomei do líquido que havia naquele jarro.
– Um trágico engano – disse o doutor Proktor.
– Engano?! – escarneceu Gregor, o rosto afogueando-se de raiva. – Victor, você tinha guardado uma bebida potencialmente letal em nossa geladeira! Hic!
– E sinto muito por isso – disse o doutor Proktor. – Mas você a roubou de minha prateleira, Gregor!
Gregor e o doutor Proktor olharam um para o outro. Então Gregor abaixou a cabeça novamente e reconheceu.
– Você tem razão, eu não devia ter feito o que fiz.
– Bem, seja como for, você aprendeu – disse Bumbão. – Você não comeu Perry.
– Oh, não como animais de estimação de ninguém – disse Gregor. – Isso seria ultrapassar os limites.
– Mas o que aconteceu quando você bebeu do jarro? – perguntou Lise.
– Pois é, o que aconteceu? – disse Gregor. – Acordei naquela mesma noite coberto de uma substância viscosa, que saía de minha própria pele. Eu sentia o pomo de adão em minha garganta movendo-se para dentro e para fora. Além disso, sentia um estranho e irresistível desejo de buscar mariposas, mosquitos e formigas. A princípio, as mudanças não foram tão grandes. Mas então fiquei mais forte. Passei a ser capaz de dar saltos de nove metros de altura, sem nem ao menos tomar impulso. Eu conseguia limpar a parte externa das vidraças de minhas janelas no terceiro andar dando saltos sucessivos. Eu me transformara num super-homem! Eu tinha certeza de que Agnetha haveria de gostar de mim ainda mais. Mas então, certa noite... oh, aquela noite fatal...
Gregor fez uma pausa.
– O quê? O que aconteceu naquela noite? – perguntou Lise ansiosamente.
Gregor cobriu o rosto com as mãos.
– Tínhamos ido ao cinema e eu a acompanhava até sua casa. Eu estava pensando em beijá-la. Haveria de ser um belo b...
– Argh – fez Bumbão, estremecendo.
Gregor respirou fundo e continuou.
– Ela gritou quando abri a boca e estendi minha língua. Na verdade, eu não tinha me dado conta de quanto ela crescera. Além disso, ela estava horrivelmente grudenta. Agnetha guinchou feito um porco ferido de morte. Depois entrou correndo em seu apartamento e fechou a porta por dentro. Achei que provavelmente ela precisava de um tempo para se acostumar a beijar um cara com uma língua tão maior do que a média. Mas no dia seguinte o senhorio dela disse que ela fizera as malas e voltara para Salzburgo, na Áustria.
Gregor silenciou. Ficou olhando fixamente para a frente, engolindo em seco, o pomo de adão avançando e recuando como se ele estivesse tentando engolir sua triste realidade mais uma vez.
– O que aconteceu então? – perguntou Lise quase num sussurro.
– Passaram-se alguns meses, nos quais eu alimentei a esperança de que ela voltasse. Até o dia em que liguei a TV e lá estava ela. Com Bruno. Eles estavam cantando juntos. E pareciam apaixonadíssimos. A banda deles chamava-se BABA, e a canção era “Waltzing King”.
– Ah, essa é o máximo – disse Lise, e começou a cantar “Você é o rei da valsa...”.
– Pare! – gritou Gregor, tapando os ouvidos.
– Hum – fez Lise, ofendida, fazendo beicinho. – Eu não canto tão mal assim...
– Bem... – disse Bumbão.
– O problema não é a sua forma de cantar – disse Gregor, cujo rosto de repente ficou pálido. – Ela partiu meu coração. Fiquei de cama durante três semanas depois daquele programa de televisão. Fiquei como um trapo, mole, sem forças, mal conseguindo coaxar. E sempre que eu começava a me recuperar tocavam aquela canção do BABA no rádio e eu tinha de voltar para a cama. Fiquei assim até o dia em que Victor veio ao meu quarto.
O doutor Proktor deu de ombros.
– Tudo o que fiz foi colocar uma canção para ele se animar.
– Mas foi a canção certa, Victor.
– Pelo visto, sim – disse o doutor Proktor. – Porque ele pulou da cama. E quando eu digo “pulou” estou dizendo que ele ficou quicando feito uma bola de borracha no chão, nas paredes e no teto.
– A canção era “She Luvs Ya”, dos Beetels – disse Gregor.
– Entendo – disse Lise.
– Entende? – perguntou Bumbão, olhando para ela surpreso.
– Isso mesmo – disse Lise. – “She Luvs Ya” lembrou-lhe o momento mais feliz de sua vida. Quando Agnetha o beijou. E você recuperou seus superpoderes.
Gregor balançou a cabeça com expressão de desânimo.
– E ainda é assim.
– Aha! – exclamou Bumbão. – Foi por isso que você pulou cinquenta metros na pista de esqui! Porque estava ouvindo “She Luvs Ya”.
– Isso mesmo. E, infelizmente, toda vez que ouço o BABA ainda fico mole feito gelatina e não consigo fazer nada.
– Mas ainda há uma coisa que eu gostaria de saber – disse Bumbão. – O que você estava fazendo no esgoto?
Gregor deu de ombros.
– Às vezes, sinto-me um pouco solitário aqui em cima, visto que sou uma rã. Principalmente agora, no inverno, quando a maioria das rãs da Noruega está hibernando sob o gelo, em algum lugar. Por isso, às vezes, gosto de ficar um tempinho com as rãs dos esgotos.
– As rãs dos esgotos?
– Lá embaixo é quentinho.
– O que é que vocês fazem?
– Batemos papo. Comemos uma barata ou uma aranha. Divertimo-nos.
– Argh! Duas vezes argh! – exclamou Bumbão.
– Rãs falam? – perguntou Lise.
– Sim, claro – disse Galvanius.
– Que língua elas falam, hein?
– Rãnês, é claro.
– E como é essa língua?
– Hic! – disse Gregor. – Hic, hic, hic.
– E o que significa isso?
– Por favor, pode me trazer uma cerveja?
– Impressionante! – exclamou Bumbão, morrendo de rir.
– Sobre o que as rãs gostam de conversar? – perguntou o doutor Proktor.
– Sobre todo tipo de coisa – disse Gregor. – Esta noite a maioria estava falando sobre alguns estranhos macacos comedores de waffles que se mudaram para os esgotos.
– Diga mais alguma coisa em rãnês – pediu Bumbão, os olhos cheios de lágrimas de tanto rir.
– Hic – disse Gregor, que agora também estava rindo. – Hic, hic, hic, hic, hiiiiiiiiic.
– O que significa? – Bumbão perguntou.
– Significa: “Meu rãnês é muito fraco, por isso fale beeeem devagar.”
E isso fez Bumbão e Gregor caírem para trás, no chão, num acesso de riso. E o doutor Proktor também se pôs a rir.
– O que eu gostaria de saber – disse Lise, a única pessoa que não estava rindo – é por que você estava sentado no trenó no declive de esquis dizendo: “Eu sou invisível.” Foi isso que nos convenceu de que você era um camaleão lunar.
– Oh, você ouviu isso? – disse Gregor. – Eu... ahn... estava falando comigo mesmo sobre determinada pessoa para quem... bem, acho que sou invisível.
– Gregor, você está enrubescendo! – provocou o doutor Proktor. – Você não está querendo dizer que está apaixonado novamente, está? Se sim, bem... acho que já era tempo.
– Apaixonado? – riu Gregor, com um riso anormalmente leviano. – Não, não. Hic! Eu... bem... sim, talvez eu goste de alguém, mas – hic! – apaixonado? Ha, ha, ha... bem, nunca mais!
Os outros três fitaram Gregor. E se existia uma coisa sobre a qual não havia mais a menor dúvida era o fato de que Gregor Galvanius estava apaixonado. Mas, por ter lido a carta, Lise era a única que sabia por quem ele estava apaixonado. E sabia que era por Rosemarie. Mas, naturalmente, ela não disse nada.
– Seja como for – disse o doutor Proktor –, agora que concluímos que Gregor não é um camaleão lunar e que ele também não foi hipnotizado, acho que devemos pedir-lhe que nos ajude a salvar o mundo.
– Sim! – concordaram Lise e Bumbão.
– Que diabos de história é essa de camaleões lunares? – perguntou Gregor.
Eles lhe explicaram todo o caso dos camaleões lunares. No final, Gregor resumiu:
– Quer dizer que um camaleão pode se disfarçar para se parecer com uma pessoa e com qualquer tipo de lugar em que ele estiver, ou seja, basicamente, para se parecer com qualquer coisa. Eles comem carne humana mais ou menos da forma como nós escandinavos comemos almôndegas. Eles confundem certos sons de nossa língua, roubam meias e hipnotizam pessoas para que digam coisas como “queso plato”, em vez de “queijo prato”. E nesse livro que vocês mencionaram também se afirma que se alguém avistar um camaleão lunar à luz do dia é sinal de que algo horrível está para acontecer.
– Uma coisa absolutamente horrível e inexprimível – corrigiu Bumbão.
– E vocês me dizem que viram pegadas de camaleões lunares em plena luz do dia, e que isso significa que o fim do mundo está próximo?
Bumbão e Lise confirmaram com um aceno de cabeça. Gregor riu.
– Essa história toda parece ridícula, não acham?
Lise refletiu um pouco e achou que Gregor tinha razão. Agora ela já não tinha tanta certeza. Na verdade, examinadas bem as coisas, não tinha acontecido nada que anunciasse o fim do mundo. Nem terremotos nem erupções vulcânicas ou mesmo uma mera chuva de meteoros.
Mas foi o doutor Proktor quem respondeu:
– Acho que já é hora de vocês tomarem conhecimento do resto da história.
Todos se voltaram para olhá-lo.
– A parte que não está no livro – disse o doutor Proktor com uma expressão sombria no rosto –, mas de que se falava nos boatos que ouvi em Paris.
– É uma coisa as-as-assustadora? – sussurrou Lise.
– Na verdade, vocês deveriam ter 18 anos para ouvir isso – disse o doutor Proktor. – Por isso, talvez tenhamos de ter mais alguns esclarecimentos antes que eu continue a contar.
Capítulo 13.
Terrível. Notícias realmente
muito ruins
O DOUTOR PROKTOR OLHOU SOMBRIAMENTE para os demais, reunidos em torno da mesinha de centro na sala de estar de Gregor.
– Eu evitei o mais que pude falar a vocês sobre isso. Afinal de contas, trata-se apenas de boatos.
– E quais são os boatos? – perguntou Lise.
– Que os camaleões lunares vieram para nos comer – disse o doutor Proktor.
– Nos comer? – perguntaram Lise, Bumbão e Gregor ao mesmo tempo.
Com um semblante sombrio, o doutor Proktor fez que sim.
– Era isso o que diziam os boatos em Paris: Marte era habitado por marcianos... – principiou ele.
– Faz sentido – disse Bumbão. – Quer dizer, se houvesse alguém vivendo lá, seria assim que deveria ser chamado.
– Ninguém vive lá – disse o doutor Proktor. – Os camaleões lunares comeram todos eles, porque é isso o que eles costumam fazer. Eles vão de planeta em planeta devorando toda vida inteligente que encontram pela frente. E a vida mais inteligente da Terra é... bem, nós.
– Concordo – disse Bumbão, que parecia não se dar conta do quanto Lise e Gregor estavam apavorados.
– Quando digo “nós”, refiro-me a todas as pessoas – disse o doutor Proktor.
– Mas... mas... – gaguejou Lise – por que ainda não ouvimos falar de ninguém que tenha sido comido?
– Se eu estiver certo, é porque os camaleões lunares são seres muito inteligentes – disse o doutor Proktor. – Eles estão planejando alguma coisa, algo que nos impeça de descobrir o que está acontecendo até que seja tarde demais.
– Se o que você diz está certo, precisamos descobrir qual é o plano deles – falou Gregor.
– E aqueles de nós que não foram hipnotizados pelos camaleões lunares precisam organizar algum tipo de movimento de resistência – disse o doutor Proktor.
– Um movimento de resistência! – exclamou Lise. – Como o que organizaram na Segunda Guerra Mundial!
– Bem, estamos sem biscoitos – disse Bumbão, sacudindo o pacote vazio diante dos outros.
Todos se mantiveram em silêncio. O único som que se ouvia era o de Bumbão mastigando o último biscoito, enquanto eles tentavam bolar alguma coisa genial. E, como todos sabemos, não é fácil conseguir isso obedecendo a uma ordem ou a uma recomendação. inalmente se estabeleceu completo silêncio na sala de estar de Galvanius. O silêncio era tão grande que se podiam ouvir o leve zumbido dos insetos, vindo do quarto, os distantes sons de coral das casas vizinhas, onde todos estavam colados às suas TVs, e um carro solitário passando lá fora.
– Já sei! – exclamou Lise, que teve uma ideia.
Todos olharam para ela.
– Eu sei como as pessoas estão sendo hipnotizadas!
Capítulo 14.
Como as pessoas estão
sendo hipnotizadas.
E duas janelas quebradas
A MÃE E A IRMÃ DE BUMBÃO estavam gritando a plenos pulmões. Elas tinham se esquecido de que Bumbão desaparecera porque Hallvard Tenoresen estava ali. Na TV. Ele estava regendo com um largo e luminoso sorriso, e elas seguiam sua batuta com os olhos, fazendo o que ele mandava. Elas estavam no meio do segundo verso de “Noruega em Vermelho, Branco e Azul”, uma canção patriótica que se popularizara durante a Segunda Guerra Mundial, quando a Noruega estava sob ocupação da Alemanha nazista. Elas também estavam quase acabando de comer seu terceiro saquinho de Cheetos quando ouviram um súbito tinir de vidro quebrando.
E, como já era muito tarde da noite, e elas estavam em casa, na segurança de sua sala de estar, Eva e sua mãe saltaram feito loucas. Elas fitaram a grande bola de neve coberta de gelo que jazia no piso da sala de estar, rodeada de estilhaços da vidraça quebrada.
– Bumbão, seu anão estúpido! – gritou sua mãe, furiosa, pelo buraco da vidraça da janela. – Agora você começou a destruir janelas também?
Em resposta, outra bola de neve coberta de gelo chegou, destruindo o resto da vidraça da janela.
A mãe de Bumbão e Eva levantaram-se e cambalearam até a janela. E lá, do outro lado da cerca de estacas pontiagudas, elas viram seis figuras.
– Quem está aí? – gritou a mãe de Bumbão.
– A Juventude da Noruega! – gritou uma voz que a mãe de Bumbão reconheceu imediatamente.
– Truls e Trym Thrane! – ela gritou. – A mãe de vocês vai saber disso agora mesmo, estão me entendendo?
– Mandem esse anão aqui fora! – respondeu Trym aos gritos. – Nóis queremos Bumbão! Senão nóis vai quebrar o resto de suas janelas. Isso é uma recomendação presidencial!
A mãe de Bumbão lançou um olhar interrogativo a Eva, mas a garota limitou-se a dar de ombros.
– O que vocês querem com Bumbão? – gritou a mãe.
– Nóis apenas precisamos levá-lo ao presidente, senhora Bumbão! – gritou uma voz em altos brados.
– Meu Deus – disse Eva à mãe. – Essa é a voz da Beatrize. Eu não sabia que ela estava nessa de quebrar vidraças e coisas desse tipo.
– O que o presidente quer com Bumbão? – berrou a mãe de Bumbão.
– Vocês não estavam ouvindo o descorso do presidente no começo da noite, senhora Bumbão?
– Todos os que são muito pequenos ou têm muito boa pronúncia devem ir ao encontro do presidente.
– Por quê? – gritou Eva da janela.
– Porque, como diz aquela canção de libação do século XVIII que se tornou nosso primeiro hino nacional, somos o “Berço dos Champeões”, o que significa que ninguém aqui pode ter baixa estatura. Tenho certeza de que vocês o terão de volta depois que o presidente tiver uma séria cunversa com ele.
– E que história é essa de pronúncia?
– O presidente não quer um pando de sabichões arrogantes implicando com as pessoas que, de vez em quando, pronunciam palavras de forma incorreta. É sério, senhora Bumbão!
A senhora Bumbão pensou sobre o assunto e então gritou:
– Tudo isso me parece bastante razoável. Bumbão é preguiçoso, e eu teria o maior prazer em entregá-lo a vocês, com os pés e as mãos amarrados se vocês quisessem. Mas vocês precisam dizer ao presidente que, infelizmente, Bumbão não está em casa.
– Está bem! – gritou Beatrize. – Lamento muito ter quebrado a vidraça, senhora Bumbão, mas disseram pra nóis que deveríamos fazer assim. Nóis voltaremos mais tarde.
Eva e a mãe voltaram para a TV a tempo de acompanhar e cantar o último verso.
– Que diabo de confusão! Bumbão vai ter de pagar por isso com sua mesada – disse a mãe dele estremecendo.
– Bumbão não tem mesada, mamãe – disse Eva, apressando-se a devorar o último dos Cheetos.
Bumbão, o doutor Proktor e Gregor estavam todos sentados em volta da mesinha de centro olhando ansiosamente para Lise. Isso porque ela acabara de dizer: “Eu sei como as pessoas estão sendo hipnotizadas!”
– Você não perguntou o que nós, que não fomos hipnotizados, temos em comum? – principiou Lise.
– Sim – disse o doutor Proktor. – Se soubermos o que temos em comum, podemos descobrir como isso está acontecendo.
– A coisa estava diante de nós o tempo todo – disse Lise. – Bem diante de nossos olhos. Nós simplesmente não vimos acontecer, sabe-se lá por quê. Além disso, trata-se de uma coisa boa.
– Do que ela está falando? – sussurrou Gregor ao doutor Proktor.
– Shh! – fez o doutor Proktor.
– Mas todos os demais estavam olhando – continuou Lise. – Minha mãe e meu pai. A mãe e a irmã de Bumbão. Beatrize, Trym, Truls. Todo o mundo na Noruega!
– Claro, é óbvio! – disse Bumbão, batendo a mão na própria testa.
– Eureca! – exclamou o doutor Proktor quando entendeu o que era. – É isso o que temos em comum. Nós não estávamos assistindo!
– Ahn? Assistindo a quê? – exclamou Gregor, agitado.
Lise, Bumbão e o doutor Proktor responderam a uma só voz:
– Ao Concurso de Corais NoroVision!
– Eu não estava assistindo porque estava fazendo meu dever de casa e ensaiando para a banda – disse Lise.
– Eu não estava assistindo porque estava lendo sobre animais horríveis e apresentando espetáculos de teatro de sombras – falou Bumbão.
– Eu não estava assistindo porque minha antena não estava funcionando – disse o doutor Proktor.
– E você, Gregor – explicou Lise –, você não estava assistindo porque não tem aparelho de TV.
Na tela da TV da casa de Lise, Tenoresen estava no sétimo verso de “Noruega em Vermelho, Branco e Azul” quando a vidraça da janela da frente se estilhaçou. O pai de Lise, que era comandante, olhou espantado para os cacos de vidro, para o vaso de flores quebrado e para a bola de neve que jazia no assoalho diante da poltrona. Primeiro, Lise tinha desaparecido. E agora isto!
– Meu pai do céu, o que está acontecendo? – disse a mãe autoritária de Lise.
Uma voz vinda da rua gritou:
– Mandem a Lise-Peidorreira aqui fora!
O pai comandante de Lise foi até a janela.
– Que diabo de vandalismo é esse? – rugiu. – O que vocês acabaram de dizer sobre minha filha?
– Que ela tem uma pronúncia excelente!
– Claro que ela tem uma boa pronúncia! E agora vou lhes mostrar como eu sou bom em dar tapões na cabeça de creanças desobedientes!
E, com isso, aquele homem corpulento foi saindo devagar de sua sala de estar e soltando um urro medonho, que se propagou para o corredor de entrada da casa, saiu pela porta da frente para a alameda do jardim e chegou à rua, de onde a Juventude da Noruega havia já muito tempo tinha fugido apavorada.
O pai comandante de Lise parou ali, tomou fôlego e murmurou a si mesmo:
– Mas onde estará ela?
– É Hallvard Tenoresen – disse Lise. – O quiroprático cantor. Ele está hipnotizando todo o mundo.
– Ele é tão quiroprático quanto eu sou um camaleão lunar – falou Bumbão.
– Isso é terrível – disse o doutor Proktor. – Temos como presidente um camaleão antropófago. E ele está pretendendo começar uma guerra contra a Dinamarca!
Em silêncio, eles refletiram sobre esse triste e deplorável fato por alguns minutos.
– Tudo bem, tudo bem – disse Lise. – Acho que a gente devia bolar um plano com um pouco mais de rapidez. Tenho de ir para casa fazer minhas tarefas escolares.
Quando Lise chegou em casa, encontrou seu pai comandante esperando no alpendre.
– Aí está você, finalmente.
Ele cruzou os braços e tentou esconder o alívio que sentia por trás de uma cara feia.
– Você faz ideia do quanto sua mãe estava preocupada?
– Sim – ela disse, sabendo que seu pai também devia estar, no mínimo, igualmente preocupado. – Mas eu tinha um bom motivo para me atrasar, pai.
– Ah, sim? E que motivo era esse?
– Não posso contar nem a você nem à mamãe. Vocês, simplesmente, precisam confiar em mim, pai.
O pai comandante de Lise ficou olhando estupefato quando ela passou por ele, entrou em casa e subiu ao andar superior. Sua mãe foi ao encontro do pai no alpendre e perguntou:
– Bem, o que ela disse?
– Que nóis devemos confiar nela.
A autoritária mãe de Lise olhou estupefata para o autoritário pai de Lise. Então o pai de Lise envolveu com os braços os ombros da esposa e pigarreou.
– Tenho a impressão de que nossa garotinha já não é tão pequena, querida.
Quando Bumbão chegou em casa, ela estava completamente escura.
Bumbão abriu um pouquinho a porta do quarto da irmã e espiou o quarto de sua mãe para se certificar de que nenhuma das duas ainda tinha sido comida por camaleões lunares. Mas ambas estavam dormindo – pelo menos a julgar pelos roncos – tranquilas e em segurança. Ele estava prestes a fechar a porta do quarto de sua mãe quando ouviu a voz dela.
– Aí está você, seu preguiçoso. Agora estou cansada demais, mas lembre-me de que amanhã bem cedo devo amarrá-lo e entregá-lo à Juventude da Noruega, está bem?
– Está bem, mamãe.
– Mas não antes de você trazer meu café da manhã na cama!
– Claro. Durma bem.
– Ora!
E a última coisa que aconteceu naquela noite foi que Bumbão fez um pequeno espetáculo de sombras para Lise. Não um espetáculo assustador, porque aquele dia já tivera muitas coisas assustadoras. Foi o mais longo salto de esqui do mundo, um gracioso arco que se prolongava indefinidamente, até que o saltador se transformou num pássaro que, com asas amplas e seguras, planou sob a Lua e mergulhou na noite e na terra dos sonhos, só aterrissando quando Lise e Bumbão já tinham adormecido.
Capítulo 15.
Chamariz e trenó leve
A CONFEITARIA DE SYVERTSEN fica em pleno centro de Oslo, vizinha do edifício do Parlamento, de três lojas de roupas, de um salão de beleza e de uma loja maçônica. Mulheres afetadas de bairros afetados sentam-se em volta de pequenas mesas redondas, em pequenas cadeiras redondas. Afetadamente, elas comem, em pequenos bocados, minúsculos petiscos assados com nomes de cidades europeias, como Berlim, Viena e Paris, e bebericam, em minúsculas xícaras, chás vindos de lugares remotos da Ásia, enquanto tagarelam sobre filhos grandes, netos pequenos e acontecimentos minúsculos nas redondezas. Mas naquele dia três delas estavam discutindo assuntos um pouco mais importantes.
– Você ficou sabendo? O rei foi exilado para o estrangeiro – disse uma delas.
– Sim, para Trøndelag do Sul – informou outra.
– Dizem que Trøndelag do Sul é muito bonita – disse a terceira.
– Tenoresen mudou-se para o Palácio Real – disse a segunda.
– Bem, nada mais justo – comentou a primeira. – Ele é o presidente.
– Mas é desastroso que ele tenha declarado guerra contra a Dinamarca – disse a terceira. – Meu marido e eu, nóis temos passagens para um cruzeiro na Dinamarca, por um curto período de férias, e agora, naturalmente, não poderemos viajar.
– Não faça comentários como esse – disse a primeira. – Nosso presidente sabe o que está fazendo.
Mas as três senhoras não eram as únicas que estavam discutindo assuntos importantes na Confeitaria de Syvertsen. Quatro pessoas, sentadas em volta de uma mesa bem no fundo do estabelecimento, discutiam sobre nada menos que o fim do mundo, camaleões lunares antropófagos e roubo de meias. As quatro pessoas eram ninguém menos que o doutor Proktor, Lise, Bumbão e Gregor Galvanius. Três dias tinham se passado desde que Lise e Bumbão descobriram que Gregor era um homem-rã.
– Você acha que ela – hic! – vem? – perguntou Gregor, consultando o relógio de pulso.
– Claro que ela vem – disse Bumbão.
Ele tinha acabado de dizer isso quando a porta se abriu. Por ela entrou uma mulher rechonchuda, que caminhou resoluta e confiantemente até a mesa deles. Ela parou, deixou seus óculos escorregarem até a ponta do nariz, examinou os quatro e perguntou:
– E vocês quatro é que vão salvar o mundo da destruição?
– Teremos mais uma pessoa conosco, senhora Strobe – disse Lise.
– Ah, é? – retrucou a senhora Strobe. – Isso não me impressiona nem um pouco. E, não posso deixar de dizer, isto aqui é um lugar bem estranho para a reunião de um grupo de resistência.
– Foi justamente por isso que o escolhemos, senhora Strobe – disse Bumbão. – Se nos reuníssemos em algum dos lugares que movimentos de resistência costumam usar, logo seríamos descobertos.
– Não estamos forçando ninguém a aderir ao nosso movimento, senhora Strobe – disse o doutor Proktor. – Afinal de contas, participar deste movimento implica um risco considerável.
A senhora Strobe lançou um olhar impassível ao professor.
– Refleti sobre tudo o que me contou – disse ela. – E acho que você tem razão. Quase todos os meus alunos começaram a apresentar dificuldades de fala da noite para o dia, meias andam desaparecendo por toda parte e, agora, pelo visto, vamos invadir a Dinamarca. Algo muito errado está acontecendo. – Ela pôs sua bolsa bem no meio da mesa. – Eu vou participar. Alguém pode me arranjar uma xícara de chá?
Gregor levantou-se de um salto. Seu rosto estava afogueado, e ele, como um cavalheiro, aproximou dela uma das cadeiras vazias.
– Mara – hic! – vilha!
A senhora Strobe ergueu uma sobrancelha e fez um gracioso aceno de cabeça para o colega.
– Acho que vocês disseram que há mais um participante, não?
– A esta altura ele já devia estar aqui – disse Bumbão, consultando o relógio.
No mesmo instante a sineta da porta tocou. Eles se voltaram para o homem que entrou. Sua calça de poliéster era tão justa que ele mal podia dobrar os joelhos, e seus óculos de aviador eram tão escuros que ele por pouco não esbarrou na garçonete que passava, levando uma bandeja cheia de bules e xícaras de chá. O homem ficou parado junto à porta, esperando que seus olhos se acostumassem à fraca iluminação do ambiente.
– Quer dizer então que vocês convidaram Madsen, o regente da banda – disse a senhora Strobe. – Como vocês imaginam que ele evitou ser hipnotizado, ao contrário de todos os demais?
– Simples – disse Bumbão, fazendo um aceno para o senhor Madsen. – Ele não suporta corais de música. Tenho certeza de que ele não assistiu a nenhum segundo da apresentação do Concurso de Corais NoroVision.
O homem junto à porta finalmente percebeu o aceno de Bumbão e apressou-se a aproximar-se da mesa deles. Ele avançou meio que tateando até a cadeira disponível, mas não se sentou.
– Desculpem-me pelo atraso, mas os ônibus não estão circulando mais. Eles os estão fundindo para fazer balas de canhão, sabiam?
– Que bom que você tenha conseguido vir mesmo assim – disse o doutor Proktor.
– Mas foi só isso – disse o senhor Madsen, mexendo nervosamente nos óculos. – Eu... ahn... não posso. – Então ele fungou ruidosamente e apresentou um pedaço de papel branco. A senhora Strobe o pegou e leu em voz alta: “Infelizmente, o senhor Madsen está resfriado e não vai poder participar do movimento de resistência hoje. Cordialmente, mãe do senhor Madsen.”
– Hum – fez o doutor Proktor. – Péssima notícia. E amanhã?
O senhor Madsen balançou a cabeça, negando.
– Talvez depois de amanhã?
O senhor Madsen deu uma tossidela.
– É um resfriado muito forte mesmo – disse ele, olhando para o chão.
O doutor Proktor deu um suspiro.
– Então imagino que o melhor a fazer é desejar que você fique bom logo do resfriado.
– Obrigado – sussurrou o senhor Madsen, tão baixo que quase não se pôde ouvir, pegando o papel de volta. E, com passos rápidos e curtos, ele andou atabalhoadamente até a porta e, assim como tinha entrado, saiu.
– Bem, podemos dizer então que somos cinco – disse o doutor Proktor, tentando sorrir de modo encorajador.
– Quanto menos cozinheiros, menos confusão na cozinha – falou a senhora Strobe. – Qual é o plano?
– A primeira coisa a fazer é descobrir onde os camaleões lunares estão vivendo. Depois disso, poderemos traçar os planos – disse o doutor Proktor. – E Lise teve uma brilhante ideia.
– Qual?
– Temos de preparar uma espécie de isca – disse Lise.
– E usar isto – disse o doutor Proktor. Ele pegou uma caixa de papelão amarelado com uma etiqueta em letras maiúsculas: CORANTE FD&C E-18. APENAS PARA USO EXTERNO!
– Ei! – rosnou Gregor. – Esse troço é que fez seu tônico fortificante parecer suco de laranja! Esse troço é perigoso!
– Calma, Gregor – disse o doutor Proktor. – Eu ainda tinha um pouco no porão de casa.
– Ah, entendi. Esse troço deve matar os camaleões lunares – disse a senhora Strobe. – Mas como vamos fazer com que eles comam isso?
– Oh, eles não vão comer – disse Lise.
– Bem, então o que...
– Espere, que esta noite você vai ver – disse Lise com um sorriso e uma piscadela de quem sabia o que estava dizendo.
– Ho, ho, ho! – fez Bumbão todo animado. – Estou tão ansioso por isso que até sinto o estômago doer! Imaginem: nós somos como guerrilheiros de verdade! – Ele não conseguiu mais ficar quieto e deu um pulo na cadeira. – Precisamos de um nome! E, para a sorte de vocês, já bolei um. Vamos nos chamar... – Bumbão fez uma pausa para causar suspense, enquanto olhava em volta, observando todos os rostos esperançosos, ou nem tanto – ... Os Cinco Vencíveis!
– Ahn, você quis dizer “Invencíveis”, não? – perguntou a senhora Strobe.
– Os Vencíveis, essa é boa! – riu Gregor. – Ah, Ah.
– Não, eu quis dizer “Vencíveis” – disse Bumbão. – Aí é que está. Nós podemos ser vencidos. Não somos indestrutíveis. Mas, assim mesmo, vamos lutar. E aí é que está a nossa grandeza!
Os outros ficaram em silêncio enquanto refletiam sobre isso. E, um após outro, eles balançaram a cabeça concordando.
– É um bom nome – disse a senhora Strobe.
– Um nome perfeito – falou o doutor Proktor.
– Vamos começar – disse Lise.
– Sim, mas antes temos de comemorar – disse Bumbão.
– Comemorar o quê?
– O fato de termos um nome e de que vamos salvar o mundo de algo absolutamente terrível. Amanhã podemos ser abatidos numa grande batalha e, aí, será tarde demais para comemorarmos.
E, depois de refletir um pouco sobre isso, todos concordaram que era preciso fazer uma pequena comemoração, e Bumbão, saracoteando na cadeira, chamou a garçonete.
– Mais chá, Merete! Chá para os Cinco Vencíveis!
A escuridão e o silêncio dominavam a Avenida Cannon.
As casas alinhavam-se umas junto às outras, silenciosas e mergulhadas na escuridão, mas, se você apurasse bem os ouvidos, poderia ouvir sons que vinham de três delas: da casa vermelha, da casa amarela e da casa azul meio torta que ficava na parte mais alta da rua. E o som que vinha das três era exatamente igual: o de uma máquina de lavar funcionando sem parar. Mas, então, na casa vermelha, o som cessou. Depois, cessou também na casa azul. E, finalmente, na casa amarela.
Seguiram-se momentos de silêncio absoluto. Então na casa azul houve um estalo que mal se podia ouvir, como o de uma janela sendo aberta. Logo depois, o mesmo estalo, como o de uma janela sendo fechada novamente. Em seguida, a luz de uma lanterna numa janela da casa azul piscou três vezes, tendo como resposta imediata três piscadelas de lanterna vindas da casa amarela e da casa vermelha. Logo depois disso, as portas da frente da casa amarela e da casa vermelha foram cuidadosamente abertas e logo fechadas. E Lise e Bumbão correram para a casa do doutor Proktor, onde entraram sorrateiramente.
– Aqui embaixo! – chamou o doutor Proktor.
Eles desceram ao porão, onde o doutor Proktor e Gregor estavam debruçados sobre a máquina de lavar.
– Um deles esteve aqui! – disse o professor. – Eu ouvi a janela do porão se abrir. – Então ele apontou a luz da lanterna para o chão. – E aconteceu justamente o que esperávamos: o camaleão abriu a máquina e tirou um par de meias.
Era verdade: pegadas úmidas iam da máquina de lavar até a janela do porão, cujo ferrolho do lado interno estava aberto. Eles correram para fora e encontraram rastros na neve profunda do lado de fora da janela do porão. Eles atravessavam o jardim, passavam pelo portão e saíam para a rua. No gelo compacto, naturalmente, as pegadas do ladrão de meias desapareciam. Mas não o rastro. Numa primeira olhada à luz do poste da rua, tinha-se a impressão de que alguém acabara de mijar na neve. Porém, em um exame mais atento, era possível perceber que se tratava de pegadas. Pegadas amareladas, de cor semelhante à de suco de laranja.
– Isso, sim, é que se pode chamar de isca – sussurrou Bumbão. – Borrifar em nossas meias cores que não saem com a lavagem, colocá-las na máquina de lavar e, então, esperar que um camaleão lunar viesse atrás delas. Você é um gênio, Lise!
A menina sorriu. Ela também estava muito satisfeita consigo mesma.
– Agora só precisamos seguir as pegadas para descobrir onde eles estão vivendo – disse ela.
O doutor Proktor pegou o trenó de impulsão que ele já tinha deixado na neve do lado de dentro de seu portão, pois eles tinham concordado que seria melhor usar o meio de transporte mais silencioso possível.
– Vamos – disse Gregor, subindo nos patins do trenó junto às alças.
Bumbão sentou-se no banco e apontou a luz da lanterna para as pegadas, enquanto o professor e Lise subiam nos patins atrás de Gregor.
Gregor deu um impulso fortíssimo com suas poderosas pernas de rã.
– Vamos com calma, Gregor – disse o doutor Proktor. – Não tão rápido. Não podemos deixá-los perceber que estão sendo seguidos.
Gregor diminuiu um pouco a velocidade e eles deslizaram para a frente, impulso a impulso de rã, entrando e saindo dos focos de luz das lâmpadas dos postes de rua, sem nenhum barulho que não fosse a suave música dos patins do trenó na neve. Bumbão iluminava o caminho com sua lanterna e dava ordens sucintas toda vez que eles precisavam dobrar à esquerda ou à direita.
Em um jardim, um boneco de neve, com olhos redondos e pretos feito carvão e olhar surpreso, acompanhou o deslizamento do trenó superlotado.
– Parem – sussurrou Bumbão algum tempo depois. – Não há mais rastros.
Gregor parou de impulsionar o trenó e eles ficaram ali, em completo silêncio, olhando em volta e apurando os ouvidos.
– Talvez eles tenham se camuflado como aquela árvore ali adiante – sussurrou Bumbão.
– Ou como aquela casinha de cachorro ali – sugeriu o doutor Proktor.
– Ou então se fazem confundir com a neve – sussurrou Lise. – Mas por que suas pegadas sumiram?
– Espere – disse Gregor, sem se preocupar em cochichar. Ele desceu do trenó e os outros o viram voltar pelo caminho por onde eles tinham vindo.
Depois de percorrer uns sessenta metros, Gregor parou e apontou para baixo.
– A última pegada está aqui, bem junto da tampa do bueiro. Ele entrou na rede de esgoto.
Todos os outros o rodearam. Ele se inclinou para a frente e levantou a tampa do bueiro.
Bumbão apontou a luz da lanterna para o buraco escuro feito breu. A única coisa que eles ouviram foi um eco de água gotejando.
– O que vamos fazer agora? – perguntou Lise.
– Simples – disse Bumbão. – Precisamos de voluntários. Quem quiser descer lá e continuar a perseguição levante a mão.
Ele fez a contagem. Não demorou muito.
– Nenhum voluntário – disse Bumbão. – Bem, então, determino que o voluntário será... – Bumbão girou o indicador no ar e depois o apontou para si mesmo – eu!
– Você sozinho? – perguntou Lise. – Não acha que devíamos ir todos juntos?
– Negativo – disse Bumbão. – Um cara pequeno faz muito menos barulho na água do que quatro pessoas. Além disso, consigo rastejar mesmo por dentro dos canos de esgoto mais estreitos. Cuidem do Perry para mim.
Bumbão levantou o chapéu, pôs a aranha no dedo e entregou-a a Lise, que a pegou com todo cuidado.
– Bumbão, isso é inadmissível – disse o doutor Proktor com firmeza.
– É admissível, sim – disse Bumbão, dando mais uma volta de seu cachecol no pescoço e limpando a garganta duas vezes antes da despedida final.
– Meus companheiros de resistência, não temam. Não deixem que meu sacrifício seja em vão. Em vez disso, vocês devem continuar a lutar contra essa ameaça funesta. Se eu não voltar, por favor, transmitam minhas mais afetuosas saudações às minhas centenas de adoráveis admiradoras. Digam-lhes que Bumbão pediu que não chorem. Em todo caso, não muito.
Bumbão apertou o polegar contra o indicador, tampando seu narizinho sardento e arrebitado, e disse um “Adeus!” anasalado. E, com isso, ele deu um pulinho e – zupt! – desapareceu no buraco escuro.
– Ele é louco! – disse Lise.
– Na verdade – resmungou o doutor Proktor –, nunca houve dúvidas quanto a isso.
Vindo lá de baixo, do esgoto, chegou até eles o som de um pequeno espadanar de água.
– Por outro lado – disse o doutor Proktor –, ele tem razão ao dizer que uma pessoa de sua estatura faz menos barulho do que quatro pessoas. Mas ele podia fazer isso com alguém que conhece o ambiente lá de baixo. Ou... o que é que você acha disso, Gregor?
Gregor levantou os olhos, que estavam fixos no bueiro, e enrijeceu o corpo.
– Por que... por que você está olhando para mim? Hic!
– Você nada como uma rã – disse o doutor Proktor. – Você enxerga no escuro como uma rã. E, o mais importante, você conhece gente lá embaixo que poderia nos ajudar.
– Você está sendo tremendamente liberal ao usar o termo “gente” – disse Gregor. – Trata-se de rãs. Rãs não são especialmente espertas, tampouco prestativas. Não o bastante para fazer diferença. Para ser franco, rãs não têm lá grande importância.
– Escute – disse o professor, tirando um pequeno frasco do bolso –, acho que você podia tomar uns goles disto se entrar em alguma enrascada.
Gregor pegou o frasco, olhou para o rótulo e leu em voz alta: Tônico Fortificante do Doutor Proktor com Pimentas Mexicanas Trovejantes. Medianamente picante. Ele olhou espantado para o doutor Proktor.
– Victor, você quer que eu fique ainda mais parecido com uma rã? Este é o veneno que arruinou a minha vida!
– Eu... bem... eu o alterei um pouco, Gregor. Agora ele tem menos extrato de rã-rinoceronte, por isso não haverá muitos efeitos colaterais.
– Não! – gritou Gregor, tão vermelho de raiva que parecia prestes a explodir. Ele jogou o frasco no chão, e ele se quebrou.
– Humm – fez o doutor Proktor. – Talvez eu devesse ter diminuído também a quantidade do extrato de lemingue norueguês do tipo A.
– Ei, pessoal! – gritou Lise. – Enquanto vocês ficam aqui discutindo, Bumbão está sozinho lá embaixo, tentando salvar o mundo de um destino horrível.
Os dois adultos – ou, pelo menos, as duas pessoas que eram mais velhas do que Lise – olharam para ela.
– O que você vai achar – perguntou Lise, inclinando-se e chegando mais perto de Gregor – se os outros membros dos Cinco Vencíveis concluírem que você foi covarde demais para ajudar Bumbão a lutar contra os camaleões lunares, Gregor?
Gregor bufou de tal forma que pequenas nuvens de vapor saíram de seu nariz.
– Nada poderia me importar menos do que esse regente de banda e a senhora... – Ele parou de repente, enrijecendo as faces. – Hic!
– A senhora Strobe? – perguntou Lise inocentemente. – De todos nós, a pessoa com que você mais se importaria seria com a senhora Rosemarie Strobe, não acha?
Gregor olhou teimosamente nos olhos de Lise e não recuou. Depois, um pouco menos teimosamente. E, finalmente, ele resmungou um irritado:
– Tudo bem, tudo bem. Eu vou lá!
E, com isso, sem dizer mais nada, ele também desapareceu dentro do bueiro.
Capítulo 16.
O esgoto e uma arma
secreta
BUMBÃO ESTAVA MERGULHADO ATÉ A CINTURA na água fedida, apontando a lanterna para a escuridão quase impenetrável. A luz da lanterna iluminava a água marrom-escura e o interior do cano de esgoto, onde as sombras dos ratos em fuga mostravam-se muitas vezes maiores do que eles de fato eram. Pelo menos Bumbão esperava que não fossem tão grandes. Quando ele sentiu uma mão em seu ombro, ficou tão sobressaltado que deu um pulo no ar.
– Sou eu – disse Gregor. – Desligue a lanterna.
– Você está louco? – disse Bumbão. – Sem ela não poderemos ver merda nenhuma.
Ele olhou para Gregor, que simplesmente lhe lançou um olhar inexpressivo.
Bumbão soltou um suspiro.
– Você não entendeu, não é? Não poderemos ver merda nenhuma. Esgoto? Merda? Entendeu? Ahn... você estava brincando?
– Eu consigo enxergar perfeitamente sem luz – disse Gregor. – Além disso, seja como for, não poderemos ver um camaleão lunar se ele estiver camuflado. A vantagem da escuridão é que o camaleão lunar também não poderá nos ver.
– Bem pensado – disse Bumbão, desligando a lanterna. Ele piscou os olhos na escuridão. – Você está aí?
– Agarre-se com firmeza.
Bumbão sentiu duas mãos viscosas agarrá-lo e um segundo depois ele estava de cavalinho em Gregor. Ou seria melhor dizer que ele estava de rãzinha?
Bumbão sentiu um solavanco quando eles partiram. E então os dois passaram a deslizar silenciosamente na água e na escuridão. Bumbão fechou os olhos. Ele experimentava a mesma sensação que experimentara no trenó: era como se ele estivesse voando.
– Hic! – Um coaxo veio de algum lugar da escuridão.
– Hic! – respondeu Gregor. – Hic, hi, hichic?
– Hickety-hi.
– Obrigado! Ops... hic!
– O que ele disse? – perguntou Bumbão.
– Era ela – respondeu Gregor.
– Atraente?
– Mais ou menos. Ela disse que ouviu um som de água espadanando por aqui, mas não viu nada. O que é mesmo muito esquisito, pois...
– Rãs enxergam superbem – disse Bumbão.
Eles continuaram sua exploração a nado e, enquanto isso, Gregor perguntava às rãs que eles encontravam sobre a misteriosa criatura que podia ser ouvida mas não era vista. E as rãs sempre indicavam que ele devia seguir em frente, internando-se cada vez mais profundamente na rede de esgotos que se estende, cada vez mais emaranhada, nas profundezas do centro de Oslo.
Bumbão bocejou. Aquela escuridão toda o deixava com sono.
– E o que é que suas amigas rãs dizem sobre os boatos de que uma sucuri de dezoito metros de comprimento vive aqui embaixo?
– Você não acredita nessa antiga lenda urbana, não é? – zombou Gregor. – Ali. Foi ali que as senhoras rãs disseram que a criatura desapareceu.
Bumbão olhou. Gregor tinha parado bem embaixo de um cano de esgoto que levava direto para a superfície. E uma delgada faixa de luz amarelada fazia a água em volta brilhar.
– Onde nós estamos? – perguntou Bumbão.
– Você acha que tenho cara de GPS? – retrucou Gregor.
– Olhe. Ali tem uma escada. Vamos!
– Você tem certeza absoluta de que devemos – hic! – arriscar?
– Bem, seja como for, eu estou indo – disse Bumbão, saltando das costas de Gregor e começando a subir. Depois de subir alguns degraus, ele parou. – Você não vem?
Bumbão ouviu alguns coaxos que ele supôs tratar-se de resmungos e pragas. Depois, ouviu Gregor subindo atrás dele.
A escada ia dar numa tampa de bueiro com pequenos orifícios que deixavam a luz passar. Bumbão tentou empurrar a tampa para cima, mas ela não se mexeu.
– Deixe comigo – disse Gregor. Ele foi subindo, passou por Bumbão e levantou a tampa como se ela fosse a parte de cima de uma caixa de passas.
Com todo cuidado, Bumbão espiou por cima da borda do bueiro, pronto para se deixar cair de volta na água do esgoto, caso eles fossem atacados. Mas não foi preciso fazer isso. Pelo menos, não naquele momento.
Eles estavam rodeados por altas paredes de tijolos, com amplas janelas, através das quais Bumbão pôde ver brilhantes lustres de cristal e tetos profusamente pintados. Bandeiras pendiam de cada uma das quatro sacadas, uma em cada parede do edifício. E Bumbão viu que o pátio interno quadrado e pavimentado com pedras onde eles estavam tinha apenas uma saída: um portão alto e preto, feito de barras de ferro fundido, que se elevavam até a parede de tijolos. Do outro lado, à luz trêmula de quatro tochas, ele viu dois guardas de uniforme preto e um chapéu esquisito, com destaque para a borla de aspecto ainda mais esquisito.
Gregor pôs a cabeça para fora, ao lado da de Bumbão.
– Onde diabos – hic! – nós estamos?
Àquela altura, Bumbão poderia muito bem ter respondido: “Tenho cara de guia turístico de Oslo?” Mas ele não o fez, em parte porque, de fato, sabia exatamente onde eles se encontravam.
– Está vendo aqueles guardas lá, com uma borla esquisita no chapéu? – Bumbão sussurrou.
Gregor fez que sim.
– Eles são guardas do Palácio Real. Aqui é o Palácio Real.
– Você quer dizer que...
– Os camaleões lunares mudaram-se para o Palácio Real. E nós estamos dentro dele. Você não percebe? Estamos perto do próprio presidente Hallvard Tenoresen.
– Hic!
– Depressa, temos de ir entrando! – exclamou Bumbão.
– Hic! Hic!
Mas Bumbão já tinha saído do bueiro, disparara a correr e se colocara à sombra da parede do Palácio. Então ele parou e olhou em volta. A única porta que havia era justamente dentro do portão, porém ali estava claro e os guardas logo os apanhariam. Ele examinou as janelas. Todas elas pareciam muito bem fechadas. Mas que som seria aquele? Música? Em uma das sacadas, havia uma porta entreaberta, e podia-se ouvir uma voz metálica que vinha lá de dentro:
Señorita, você não quer saber...
– A sacada – Bumbão sussurrou para Gregor que, sem o menor entusiasmo, correu ao seu encontro. – Precisamos subir lá!
– Precisamos mesmo? – disse Gregor, ofegante.
– O quê? Você está cansado? – perguntou Bumbão. – Pensei que você fosse uma super-rã.
Gregor enrubesceu lentamente e sibilou o mais baixo que pôde.
– Escute aqui, seu tampinha ingrato! Eu nadei por metade de Oslo com você às minhas costas e você ainda me pergunta se eu estou cansado? De quanta energia você acha que sua super-rã dispõe?
– Eu esperava que você fosse capaz de pular até ali – disse Bumbão, apontando para a sacada de onde pendia o estandarte real da Noruega: uma bandeira vermelha em cujo centro havia um leão heráldico amarelo empunhando um machado.
– Pois bem, agora me ouça...
– Faça o que estou dizendo! Vamos, Gregor, você sabe que é capaz de fazer isso. Você pulou cinquenta metros no declive de esquiagem, mesmo sem a rampa. Eu vi.
– De repente fiquei muito fraco. Na verdade, nem sei por quê...
Bumbão começou a entoar, devagar e ritmicamente, bem baixinho:
– Gregor, Gregor, Gregor!...
Gregor suspirou fundo. Depois, agachou-se, dobrando os joelhos o mais que podia, e deu um salto. E elevou-se bem alto no ar. Quase cinco metros de altura, sem nem ao menos tomar impulso. Um novo recorde mundial. Mas exatamente trinta centímetros abaixo da sacada.
Ele voltou ao chão e tentou novamente.
Quatro metros e meio.
Ele caiu no chão novamente, soltando um grunhido desesperado.
Quatro metros e uns quebrados.
Então ele caiu na escuridão, exausto, esforçando-se para recuperar o fôlego. Tentou levantar-se, mas permaneceu deitado de costas.
Bumbão inclinou-se sobre ele.
– Há algo errado, Gregor?
– É essa música! – engrolou ele. – É ela!
– Do que você está falando? – perguntou Bumbão.
– É uma canção do BABA. Quem está cantando é Agnetha. É por isso que não posso fazer nada.
Bumbão apurou os ouvidos. A voz que vinha da sacada parecia fria e indiferente, e Bumbão reconheceu o sotaque austríaco da mulher.
“Cantarolar uma velha melodia, Señorita...”
– Você precisa fazer alguma coisa – disse Bumbão.
– Não consigo fazer nada – sussurrou fracamente Gregor Galvanius, enrolando o corpo em uma bola, tremendo feito uma máquina de lavar no modo centrifugação.
– Hum – disse Bumbão, remoendo as coisas na cabeça, matutando uma solução. E finalmente achou uma.
– Você gosta de Perry, não gosta? – Bumbão perguntou.
– É, gosto...
– OK. Está vendo aquele leão amarelo na bandeira ali no alto da sacada? – perguntou Bumbão. – Bem, aquilo não é um leão. É uma aranha. Uma aranha grande, gorda, amarela, suculenta...
– Aranha-manteiga – disse Gregor.
– Sim! Sim, é uma aranha-manteiga, Gregor! Não parece deliciosa? Não lhe dá água na boca?
– Sim, sim. Agora estou vendo. Ou seria apenas uma alucinação? Estou tão fraco, Bumbão.
– Você não está tendo alucinações, Gregor. Gregor! Mantenha os olhos abertos. Não me deixe, Gregor! – Bumbão esbofeteou-o e Gregor abriu os olhos novamente. – Quero que você coma aquela deliciosa aranha, Gregor! Você deve pegá-la e... espere, espere!
A boca de Gregor já estava aberta, e sua língua que parecia um tapete vermelho estava começando a desenrolar. Bumbão agarrou-se com braços e pernas à língua de Gregor.
– Agora, Gregor! Agora!
E, então, a língua disparou para cima, com Bumbão agarrado a ela. Em um instante a língua atingiu a bandeira, e a cabeça de Bumbão alcançou o parapeito da sacada atrás da bandeira. Bumbão ergueu-se e, mal tivera tempo de agarrar-se ao parapeito, quando sentiu a língua grudenta recuar, descendo sob seus pés, que, de repente, ficaram balançando no ar. Seus ouvidos zumbiam e ele via estrelas, mas não desistiu. Lutando com todas as suas forças, ele conseguiu pôr um pé sobre o parapeito. Depois, pôs o outro. Então, de pé sobre o parapeito, virou-se e pulou para dentro. Após recuperar o fôlego, Bumbão dirigiu-se sorrateiramente à porta da sacada e ergueu-se apenas o bastante para dar uma espiada pela janela.
A sala estava vazia.
A não ser que houvesse uma dúzia de camaleões lunares sentados ou de pé por ali, camuflados para parecerem escrivaninha, cadeiras, estante de livros, globo, sofá rococó, lâmpada, papel de parede ou o grande retrato de um poodle pendurado acima da escrivaninha.
Não havia dúvida de que a música vinha do quarto vizinho, cuja porta estava entreaberta. Bumbão ouviu vozes e um riso suave. Como nenhum dos móveis se mexeu nem o atacou, Bumbão concluiu que se tratava mesmo de móveis, e entrou na sala na ponta dos pés. No mesmo instante, ele ouviu uma voz que vinha da sala ao lado dizendo em alto e bom som:
– Está frio, Göran.
E uma voz aguda e esganiçada:
– Está mesmo, meu amo.
Um som de arranhado, como o de garras roçando madeira, aproximava-se cada vez mais. Bumbão correu para a escrivaninha e arrastou-se para baixo dela.
No mesmo instante a porta se abriu.
Do lugar onde estava, Bumbão só conseguia ver as pernas de quem tinha entrado, fosse lá quem fosse. Elas eram cobertas de pelos levemente grisalhos e acabavam num par de pés que explicavam o som de arranhar. Pois duas fileiras de dedos com as mais compridas, desagradáveis e grosseiras unhas que Bumbão já vira em toda a sua vida apontavam de um par de andrajosas meias de tênis brancas. As unhas, recurvadas em torno da extremidade dos dedos, raspavam o piso de madeira, enquanto as pernas arqueadas avançavam para a porta da sacada num passo oscilante, que pendia para um lado e para outro. A porta se fechou violentamente. A criatura cheia de unhas nos dedos dos pés inclinou-se para abrir o ferrolho na parte de baixo da porta e, quando ela fez isso, Bumbão viu algo ainda mais feio do que as unhas dos pés. Sob uma comprida e arqueada cauda, ele viu um traseiro despido e peludo com uma coisa no meio, que, em comparação com as unhas dos pés, fazia com que estas parecessem belas e atraentes. Era um aglomerado de protuberâncias rosadas que só podiam ser uma coisa: hemorroidas. Monstruosas hemorroidas externas, que dificilmente permitiriam à criatura se sentar e deviam coçar tremendamente.
A criatura, cujo nome era Göran, arrancou algo da soleira da porta da sacada e emitiu uma série de sons de fungadas. Em seguida, resmungou de maneira esganiçada e irritada:
– Merda! Que fedor! A faxineira devia ser torturada por isso!
Merda? Fezes? Assustado, Bumbão examinou os próprios sapatos e descobriu uma pelota marrom amassada, grudada na sola. Ele devia ter pisado num monte de cocô na rede de esgotos!
Ouviram-se outras fungadelas. Depois, o som de unhas raspando no piso foi chegando mais perto. Bumbão prendeu a respiração, mas o som se afastou. O tal Göran voltara para a sala contígua. Trêmulo, Bumbão soltou o ar preso nos pulmões por um bom tempo. Porque ele não tinha nenhuma dúvida. Ele acabara de ver algo que muito poucas pessoas já tinham visto: um pavoroso camaleão lunar.
Bumbão levantou-se para sair imediatamente. Sua missão fora cumprida; eles tinham descoberto onde estavam os camaleões lunares! Agora era só uma questão de sair dali são e salvo. Mas bem naquela hora ele notou alguma coisa sobre a escrivaninha. Próximo a uma foto emoldurada de um grupo de grotescos babuínos, havia um massudo documento. Bumbão parou no meio do caminho. Na capa do documento havia uma etiqueta onde se lia, em grandes letras vermelhas:
ALTAMENTE CONFIDENCIAL
– A etiqueta estava logo acima do título do documento, que era:
PLANOS PARA INVADIR A DINAMARCA
(esse paisinho desprezível)
E O RESTO DO MUNDO
Um plano elaborado por Göran Clason, coronel da Luftwaffle*.
Traduzido do sueco pelo tenente Tandoora Hansen.
Bumbão sabia que devia fugir, mas aquele era exatamente o tipo de documento que fazia um superespião como ele babar, o tipo de coisa que espiões sonhavam encontrar, o que podia jamais acontecer em uma vida inteira devotada ao trabalho de espionagem! Bumbão olhou para a porta da sacada. Gregor estava esperando por ele. Bumbão olhou para o documento: ALTAMENTE CONFIDENCIAL. Ele virou a página. E leu:
RESUMO DO PLANO
O plano é basicamente este: vamos invadir a Dinamarca (esse paisinho desprezível!). Mas o primeiro passo (ver capítulo 1) é atingir seu centro nevrálgico, o lugar onde o estrago será maior para eles. Uma bomba no meio da Legolândia (essa cidadezinha desprezível!), que haverá de destruir toda aquela coleção sem graça de blocos Lego!
Depois disso, daremos aos dinamarqueses uma oportunidade de se render antes que as coisas piorem para eles (ver capítulo 2). Alternativa 1: Eles se rendem, concordam em se integrar à Noruega Maior e, juntos, declaramos guerra à Islândia (esse paisinho desprezível e ainda menor!) (ver capítulo 3). Alternativa 2: As coisas ficam piores. Nós esmagamos esses estúpidos dinamarqueses deixando que os noruegueses, ainda mais estúpidos, os despedacem. Nós os levaremos a isso fazendo com que nosso pai e benfeitor, Yodolf Staler, disfarçado de um idiota chamado Hallvard Tenoresen, aprofunde o estado hipnótico deles por meio de seu ritual diário de canto coral, que terá lugar por volta da hora de dormir, melhor dizendo, do horário nobre (ver capítulo 4). Logo a população da Noruega (toda a sua desprezível e mesquinha população, que, de todo modo, não é muito grande!) estará disposta a atirar nas próprias avós se Yodolf o ordenar! Os que não matarem a tiros suas próprias avós – ou pelo menos um dinamarquês – terminarão seus dias em uma forma de waffle, ver capítulo 5.
“Forma de waffle?”, pensou Bumbão, apressando-se a consultar o capítulo V, cujo título era: CAPÍTULO V. NOVA ARMA SECRETA PARA USO NA POPULAÇÃO CIVIL. FORMA DE WAFFLE (V1). A forma de waffle parecia uma forma comum. Só que era supergrande. Parecia grande o bastante para que fosse possível fazer waffles de seres humanos.
Bumbão ficou folheando e lendo. E lendo. E sentiu os cabelos da nuca se eriçarem. O livro de seu avô, certamente, dizia que alguma coisa supertenebrosa iria acontecer quando os camaleões lunares começassem a manifestar sua presença, mas aquilo... aquilo não era apenas supertenebroso. Era teragigamegatenebroso. Aquilo era tenebroso além de todos os limites da tenebrosidade. Tão tenebroso que ele teve de esfregar os olhos e ler novamente. E a segunda leitura foi tão chocante quanto a primeira.
De repente, ele percebeu que as vozes da sala ao lado aumentavam de volume e que os passos que arranhavam o piso aproximavam-se. Bumbão se enfiou embaixo da escrivaninha no exato instante em que a porta se abriu.
– Agarrem-no! – ele ouviu uma voz estranhamente familiar rosnar. Era o camaleão lunar Göran, a quem chamavam de “amo”.
– Não deixem esse humano desgraçado escapulir – disse uma voz de mulher.
Em seguida uma voz aguda de homem:
– Tortura! Sim! Provocar dor, vou fazer isso! Vou fazer!
Então, novamente a voz familiar:
– Cale a boca, Göran.
Bumbão encolheu-se. Simplesmente não havia para onde correr. E se o que ele acabara de ler fosse mesmo verdade, o destino que o esperava era pior do que fazer tarefas escolares suplementares, levar cascudos ou tomar broncas. Ele fechou os olhos.
Então tornou a abri-los quando sentiu uma corrente de ar frio e ouviu as três vozes se acalmarem um pouco. Bumbão espiou por baixo da escrivaninha. E lá, do outro lado, onde ficavam as portas da sacada, que agora estavam abertas, ele viu três traseiros cor-de-rosa com os mais repulsivos cachos de hemorroidas que já tinha visto desde... bem, desde três minutos atrás.
– Lá está ele! – gritou a voz da mulher. – Guarda, pegue esse ser humano antes que ele chegue à tampa do bueiro!
Bumbão ouviu várias vozes vindas do pátio lá embaixo e uma barulheira que o fez pensar em correntes, sabres e ranger de dentes. Depois um claro “Hic!”. “Oh, não... eles descobriram Gregor.”
– Aguente essa, cara! – a voz aguda guinchou. – Apertem o nó! Mais dor! Vou torturar você, eu vou, eu vou!
– Cale a boca, Göran. Metam-no na forma de waffle. Você não pode encarregar-se disso, Tandoora?
– Sim, sim, General Staler.
As três criaturas na sacada se ergueram, deram meia-volta e retornaram para a sala. Mais do que depressa, Bumbão tornou a se esconder.
– Onde estávamos, Göran?
– O senhor queria pular o primeiro passo de meu plano – bombardear a Legolândia.
– É verdade, não estamos aqui para nos divertir. Vamos simplesmente invadir a Dinamarca. Na próxima quarta-feira. Entendeu?
– Sim, sim, General Staler.
Depois que os três voltaram à sala adjacente e fecharam a porta, Bumbão ainda conseguia ouvir a própria respiração ofegante zumbindo em seus ouvidos, como se ele tivesse acabado de completar dez mil metros de uma competição de velocidade sobre patins usando patins não afiados.
Ele mal tivera tempo de dar uma olhada na cara do camaleão lunar de voz grave. Mas Bumbão sabia de três coisas:
Ele vira a própria face do mal.
Gregor estava numa enrascada. Em uma teragigamegaenrascada.
O fim do mundo estava próximo.
– Você acha que aconteceu alguma coisa? – perguntou Lise, batendo os dentes enquanto consultava o relógio de pulso.
– Espero que não – murmurou o doutor Proktor, ajoelhado junto ao bueiro, ouvindo os sons que vinham do esgoto lá de baixo.
– O que você acha, Perry? – perguntou Lise, voltando a cabeça para o ombro, onde ela o tinha visto pela última vez. Mas agora a aranha peruana sugadora de sete pernas também tinha desaparecido. Então ela viu Perry. Ele estava no chão, junto ao vidro quebrado do frasco que contivera a bebida fortificante do doutor Proktor.
Lise o pegou.
– Se você não desaparecer novamente esta noite, vou ficar muito agradecida – disse ela, colocando-o em segurança sob o seu chapéu.
– Vá para casa e se enfie com Perry sob um cobertor quentinho – disse o doutor Proktor. – Vou esperar sozinho, está bem?
– Não quero ouvir mais nenhuma palavra sobre isso – disse Lise. – Vou ficar aqui até Bumbão voltar.
O doutor Proktor deu um suspiro.
– Mas e se ele...
– Não diga uma coisa dessas! – interrompeu Lise. – Sei que Bumbão vai voltar. Ele me garantiu que sempre voltará. E, ainda que Bumbão às vezes não cumpra as promessas que faz, ele sempre cumpre as importantes.
O professor olhou para ela e não disse nada. E Lise sentiu alguma coisa surgindo-lhe no canto do olho. Uma coisa que sempre aparecia quando ela estava muito cansada e um pouco desanimada.
– Ora, ora – disse o doutor Proktor.
– Você acha... – principiou Lise, sentindo as lágrimas lhe embargarem as cordas vocais. – Você acha que nós... ainda – ela engoliu e engoliu, mas a massa de lágrimas estava tentando abrir caminho para sair – ... o veremos novamente?
Lise sabia que iria começar a gritar se pronunciasse de novo o nome dele, mas, mesmo assim, respirou fundo. E naquele exato momento uma voz chamou de lá de dentro do bueiro.
– Você está falando do Atiladíssimo Espião de Camaleões?
– Bumbão! – exclamaram Lise e o doutor Proktor ao mesmo tempo.
* Luftwaffle: trocadilho com o nome da Força Aérea Alemã Luftwaffe. (N. do T.)
Capítulo 17.
Capítulo curto
A MANHÃ JÁ IA AVANÇADA e o sol estava brilhando. As pessoas estavam sentadas nos bancos dos parques ao longo do logradouro mais importante de Oslo, usando casacos de inverno e com seus rostos pálidos e sorridentes voltados para o sol, os olhos fechados, talvez sonhando com a primavera e o verão. E com a nova Noruega Maior. Mas Lise, o doutor Proktor e a senhora Strobe estavam sentados no escurinho dos fundos da Confeitaria de Syvertsen, ouvidos atentos e olhares apavorados enquanto ouviam.
– Dentes afiados feito navalhas – sussurrava Bumbão, mostrando seus próprios dentinhos mais que normais. – Focinho espichado – disse ele, fazendo avançar o maxilar inferior. – E olhos fundos, escuros, inexpressivos, sob sobrancelhas espessas. Assim. – Ele abaixou a testa o mais que pôde e franziu o cenho, quase fazendo Lise rir. Afinal de contas, na noite anterior ela já ouvira a descrição que Bumbão fizera do camaleão lunar.
– Em outras palavras – sussurrou Bumbão, ainda com o maxilar inferior projetado para a frente, eles se assemelham exatamente a babuínos. Mas falam sueco.
– E isso corresponde aos boatos de que os camaleões lunares foram para a Suécia para começar uma guerra a partir de lá – disse o doutor Proktor. – Pelo visto, eles tentaram durante anos, mas os suecos simplesmente não quiseram lutar contra ninguém; essa coisa de neutralidade. Porque os suecos odeiam disputas e têm o maior medo de desentender-se com alguém, independentemente do quanto alguém os hipnotize. Esses camaleões lunares passaram seus anos de formação na Suécia.
– Eles eram pelo menos três. E eu reconheci a voz de um deles – disse Bumbão. – Era a voz de Hallvard Tenoresen. Ele está no comando.
– Todos na mesa ficaram em silêncio por um instante, observando Bumbão, que continuava ostentando sua expressão de babuíno, para que os outros tivessem tempo de estudá-la.
– A questão – disse o doutor Proktor – não é de onde os camaleões lunares vieram ou a sua aparência, embora, naturalmente, isso seja, em si mesmo, apavorante. O que é realmente apavorante é que eles vieram para cá para ver se seu super-horripilante plano funciona melhor na Noruega.
Ouviu-se um som, que parecia um pequeno soluço, vindo de debaixo do chapéu de Bumbão.
– Pobre, pobre, pobre... – principiou a senhora Strobe, e Lise contou mais quatro “pobres” antes que a professora (que em geral era conhecida por sua sobriedade e firmeza) finalmente terminasse com um “Gregor”, praticamente sufocado por soluços.
– Sim – disse o doutor Proktor. – E pobre, pobre, pobre do mundo inteiro. Conte a eles, Bumbão.
– Bem – disse Bumbão, limpando a garganta, eles elaboraram o seguinte plano. A Noruega Maior começa uma guerra contra a Dinamarca na próxima quarta-feira, e aí essa guerra vai se expandir, via Islândia, Irlanda, e da Índia para o Irã, Istambul, península Ibérica, Israel, Iraque, Indonésia...
– Olhe, dê-nos uma versão resumida, está bem? – pediu o doutor Proktor.
– OK – disse Bumbão. – Os camaleões lunares vão começar uma guerra mundial e querem que morra o maior número de pessoas possível.
– P... por... por quê? – perguntou a senhora Strobe depois de uma pausa.
– Porque é disso que eles vivem – disse Bumbão. – Eles comem gente.
– Comem gente?
– Um monte de animais faz isso, não é? – disse Bumbão. – Crocodilos marinhos, serpentes, ursos-polares e pelo menos metade dos animais do livro A.Q.G.Q.N.E. Não passamos de proteínas, sabem? Hambúrgueres vivos. O problema é que em breve os camaleões lunares vão precisar de um monte de carne. É por isso que agora está acontecendo tudo isso.
– Por que agora eles precisam de mais carne?
Bumbão apontou para a Lua.
– Os parentes deles lá em cima. A Lua está começando a sofrer escassez de alimentos. Por isso eles estão planejando vir para cá, todos eles. Pode-se dizer que vão parar aqui para jantar. E nós seremos o jantar.
– Mas isso é horrível!
– É, é sim – confirmou Bumbão. – Mas para eles é exatamente como quando a gente reúne a família para comer uma galinhada. Quer dizer... nós só pensamos nas galinhas como comida.
– Exceto que neste caso eles planejam fazer com que a comida se mate entre si, em vez de eles mesmos matarem – disse Lise.
– Acho que essa é a maneira mais prática – falou Bumbão.
– E como eles pretendem – a senhora Strobe procurou as palavras mais adequadas – preparar a comida?
– Eu vi desenhos de formas de waffle – disse Bumbão. – Enormes formas de waffle. Parecidas com os equipamentos usados para grelhar...
– ... hambúrgueres – completou o doutor Proktor.
– Oh, meu Deus! – exclamou a senhora Strobe. Então ela sussurrou de modo quase inaudível: – Pobre Gregor!
A mesa ficou em silêncio por um bom tempo, e a única coisa que se ouvia eram carros e bondes passando lá fora e um rádio em que se ouvia uma canção enaltecendo a luz do sol, a primavera e o canto dos pássaros.
Quatro integrantes dos Cinco Vencíveis estavam parados na calçada movimentada, olhando para o Palácio Real da Noruega, enquanto pessoas apressadas passavam à direita e à esquerda deles. Bumbão voltou-se para o doutor Proktor.
– Por que você não inventa um tanque que possa atravessar as paredes daquele Palácio e resgatar Gregor?
– Inventar coisas desse tipo leva tempo – disse o doutor Proktor. – E custa caro. Você sabe quanto custariam apenas as esteiras para neve de um tanque desses? Para não falar na correia da ventoinha do motor e...
– Ele não estaria pronto na próxima quarta-feira – disse Lise, interrompendo-o.
– Exatamente – disse o doutor Proktor. – O que temos de fazer é usar a mesma arma que os camaleões lunares estão usando.
– Que arma? – perguntou Bumbão.
– Influência. Yodolf Staler, disfarçado de Hallvard Tenoresen, hipnotiza as pessoas para que elas pensem como ele quer e façam o que ele deseja, certo? Temos de arranjar alguém que diga às pessoas que o que ele diz não é verdade, que não temos motivos para atacar a Dinamarca.
– Temos de procurar alguém capaz de hipnotizar? – perguntou Bumbão. – Legal!
– Não, alguém a quem todos deem ouvidos.
– As pessoas só querem ouvir Tenoresen – disse Lise com um suspiro.
– Não, há outra pessoa – disse o doutor Proktor.
– Acho que sei de quem você está falando – disse a senhora Strobe, balançando a cabeça devagar.
– Quem? Quem é? – perguntou Bumbão entusiasmado.
A senhora Strobe fez um gesto de cabeça em direção ao Palácio Real.
– Vocês não se lembram de que aprenderam nas aulas de História sobre a pessoa a quem os noruegueses davam ouvidos nos dias sombrios da Segunda Guerra Mundial?
– O rei! – disse Lise.
– Exatamente – afirmou o doutor Proktor. – Temos de ir a Trøndelag do Sul e persuadir o rei a persuadir o povo a não dar ouvidos a Yodolf! – O doutor Proktor farejou o ar. – E o tempo urge!
Lise farejou também. E, naturalmente, podia ser apenas sua imaginação, mas ela teve a impressão de sentir cheiro de waffle.
– E quando o tempo urge isso significa uma coisa – disse o doutor Proktor. – Vamos precisar de uma MCCL.
– MCCL? – repetiu a senhora Strobe. – Mas isso não é...
– A Motocicleta com Carrinho Lateral – disse o doutor Proktor. – Vamos partir para Trøndelag do Sul imediatamente.
– Mas não vamos caber todos numa Motocicleta com Carrinho Lateral – argumentou a senhora Strobe.
– A senhora ainda não viu esse carrinho lateral, senhora Strobe – disse o doutor Proktor. – Vamos!
Capítulo 18.
O carrinho lateral e o
atravessador de fronteira
SÓ DEPOIS DE TEREM ESCAVADO durante vinte minutos no monte de neve do jardim da frente da casa do doutor Proktor é que Lise, Bumbão, o doutor Proktor e a senhora Strobe finalmente conseguiram ver os guidons da motocicleta.
– Agora já dá – disse o doutor Proktor. Então ele começou a abrir uma caverna no monte de neve e logo ficou totalmente fora de vista, escondido em algum lugar sob a neve. O silêncio era total, salvo por algo que se parecia com um soluço e vinha de dentro do chapéu de Bumbão. Três minutos depois, eles ouviram um estrondo vindo de dentro do monte de neve. Depois outro. Em seguida, começou a sair fumaça pela abertura. Ouviram-se, então, vários outros barulhos fortes, que se transformaram no som gorgolejante de um motor, e uma velha motocicleta com o pior barulho de motor que já se ouvira saiu estrondosamente do monte de neve com o maior e mais simpático carrinho lateral jamais visto. Ele era redondo, como a metade de uma abóbora, pintado de dourado, e tinha os mais extravagantes entalhes na madeira. Dentro dele estavam dispostas dez cadeiras de veludo vermelho, o suficiente para comportar todos os integrantes de uma pequena orquestra.
– Santo Deus! – exclamou a senhora Strobe, fazendo-se ouvir em meio a todo aquele barulho. – O que é isso?
– É um conjunto de assentos de um camarote de um antigo teatro! – gritou o doutor Proktor todo orgulhoso. – Eu adquiri todo o camarote quando iam demolir Das Goethe Volkstheater, em Leipzig. Eles não me cobraram nada.
– Bem, aqui há lugar para toda uma pequena orquestra! – gritou a senhora Strobe. – Mas que barulheira dos diabos!
– Não se trata de barulheira – disse Bumbão, de olhos fechados e estalando os lábios sonhadoramente. – É um perfeito Lá maior. Trata-se de um verdadeiro motor musical.
– O motor é da Alemanha Oriental, e o chassi é mexicano! – gritou o doutor Proktor, alto o bastante para suplantar o barulho estridente dos dois cilindros. Ele tirou um punhado de óculos de natação das bolsas laterais. – Ponham estes óculos e pulem para dentro do carrinho!
– Eu já estou aqui dentro! – exclamou Bumbão, que já tinha pulado.
E quando todos estavam acomodados, cada um com seus óculos no lugar, que faziam o mundo parecer um pouco mais amarelo, mais azul ou mais vermelho do que de fato era, o doutor Proktor girou o acelerador no guidom. E, assim, eles partiram acelerados, deixando um redemoinho de neve atrás de si.
– Oba, oba, oba! – gritou um deles.
Você provavelmente sabe quem foi.
Avançando sem parar, eles saíram da área metropolitana de Oslo, atravessaram uma pequena cidade ao norte e passaram em seguida por uma cidade ainda menor. E, logo depois de passarem por uma aldeia minúscula, de repente, encontraram uma placa em que se lia “Alfândega”. O que era estranho, porque, não importava o que dissessem, Trøndelag do Sul, na verdade, não era outro país, era apenas um dos dezenove condados da Noruega. E eles acharam ainda mais estranho quando leram “alfaindega” numa segunda placa, porque, embora os montanheses das pequenas aldeias daquela região pronunciassem a palavra assim, ninguém nunca tinha escrito daquela maneira.
– Isso significa que chegamos à fronteira de Trøndelag do Sul – gritou o doutor Proktor, voltando-se para olhar para os demais, que estavam sentados nas cadeiras forradas de veludo do teatro, as mãos enfiadas debaixo dos braços, cantando em três vozes para se manter aquecidos.
– Pare! – gritou Lise apontando.
E, com efeito, eles viram duas placas bem à sua frente que diziam exatamente isto: pare. Dois homens de uniforme acenaram para que eles parassem. Um deles tinha a mandíbula inferior bastante proeminente e uma bola de cabelos anelados sob o chapéu do uniforme. O outro tinha bochechas vermelhas, um rosto redondo com olhos esbugalhados de peixe e precisamente quatro longas mechas de cabelo penteadas em forma de S no meio da testa.
– Eles são naturais de Trøndelag do Sul? – sussurrou Lise.
– Eles estão usando uniformes noruegueses, portanto devem ser noruegueses de Trøndelag do Sul – disse o doutor Proktor. – Deixem que eu falo com eles, OK?
Lise e a senhora Strobe acenaram com a cabeça, concordando.
– Você ouviu o que eu falei, Bumbão? – disse o doutor Proktor, depois de limpar a garganta.
Bumbão soltou um grande suspiro.
– Tudo bem. Ótimo.
O doutor Proktor freou a motocicleta. Os guardas se aproximaram deles.
– Aonde vocês pensam que vão? – perguntou o homem dos incisivos num carregado dialeto trøndesiano.
– Vamos para Trøndelag do Sul – respondeu o doutor Proktor.
– Vocês não estão vendo que a fronteira está fechada? – disse o guarda com cara de peixe, apontando para a barreira de vigas de madeira em cruz diante deles.
– Ah, sim, agora estamos vendo – disse o professor. – Qual seria o problema?
– Não há nenhum problema – disse Mandíbula Proeminente. – Isto é, a não ser que vocês estejam querendo passar da Noruega para Trøndelag do Sul.
– E, se for o caso, vocês é que terão problemas, não nós – alertou Cara de Peixe.
– Muito bem falado, seu maroto de Trønde – disse Mandíbula Proeminente.
– Obrigado, Cara de Trønde – disse Cara de Peixe, afastando levemente as pernas e enfiando os polegares no vão do cinto.
– Bem, o que vocês querem dizer com isso? – perguntou o doutor Proktor, levantando os óculos de natação.
– Vocês não estão sabendo? – perguntou Cara de Peixe. – O presidente Tenoresen resolveu proibir estritamente qualquer viagem para fora da Noruega. Quem tentar sair será condenado por traição e receberá a pena de morte como punição. Possivelmente, por decapitação.
– Se não for coisa pior – disse Mandíbula Proeminente. – E, se vocês estiverem à frente de um movimento de resistência que facilita a entrada clandestina em Trøndelag do Sul, a pena por isso é a morte.
– Se não for coisa pior – acrescentou Cara de Peixe.
– E onde podemos encontrar um membro desse movimento de resistência que possa nos ajudar a fazer isso? – perguntou o doutor Proktor.
– Na terceira estrada florestal à direita daquele pinheiro ali adiante. Uma casa vermelha com uma caixa de correio verde. Deem lembranças nossas a ele e digam-lhe que ele também receberá pena de morte.
– Pode ter certeza de que faremos isso – disse o doutor Proktor, virando a motocicleta e arrancando com tal ímpeto que levantou nuvens de neve.
– Que carrinho lateral, hein? – disse Mandíbula Proeminente, limpando a neve do queixo.
– Ali deve ter lugar para uma pequena orquestra – disse Cara de Peixe, limpando a neve de sua cara de peixe.
– Ao que parece, eles entraram na terceira estrada florestal à direita – disse Mandíbula Proeminente.
– Exatamente como você esperava, seu maroto.
O nome do homem que atravessava ilegalmente as pessoas pela fronteira era Guksi, e ele era tão velho que seu rosto, de tão enrugado, parecia uma pilha de panquecas. E seu corpo decrépito rangia alto e claramente enquanto ele avançava de maneira penosa pela neve, conduzindo-os através da floresta. Depois que o doutor Proktor e Guksi acertaram o preço, eles estacionaram a motocicleta em seu celeiro e partiram imediatamente a pé.
– Foi muito legal da parte do senhor nos conduzir a Trøndelag do Sul, senhor Guksi – disse o doutor Proktor.
– Fique quieto – sussurrou Guksi. Ele cuspiu na neve e deu uma olhada para os fios de alta-tensão que passavam acima das copas das árvores. – Precisamos manter silêncio. Essa história de facilitar a entrada de clandestinos tem seus riscos, sabe? Se eles nos avistarem, nos matarão a tiros.
– Deus do céu – murmurou a senhora Strobe. – Q-Q-Quem fará isso?
– Os trøndesianos do Sul. Psst!
Eles pararam de repente, prendendo a respiração enquanto Guksi punha uma mão atrás da orelha.
Do fundo da floresta, veio um som: cuco, cuco.
– É um cuco – sussurrou Lise.
– Parece um cuco de Trøndelag do Sul, não? – disse Guksi.
Eles ouviram novamente.
Cuco, cuco.
– Para mim, esse canto é igualzinho ao do cuco norueguês – sussurrou Lise.
– Bem, para ouvidos pouco aguçados, talvez – disse Guksi. – Mas aqueles de nós que têm habilidades inatas são capazes de notar a diferença. Vamos, estamos no caminho certo.
Guksi empertigou o corpo e continuou andando, suas pernas e juntas rangendo e vergando enquanto ele avançava com seu passo vacilante.
– Que tipo de habilidades inatas você tem, de verdade? – perguntou Bumbão.
– Oh! – disse Guksi. – Um pouquinho de uma coisa, um pouquinho de outra. Um pouco de clarividência, que nos permite adivinhar o que vai acontecer. Mãos capazes de curar todos os tipos de doença. Artrite, que me avisa sobre toda espécie de condições atmosféricas, desde tempo bom até riscos de avalanche. Na verdade, nada muito especial.
– Então o que você está prevendo agora? – perguntou Lise.
– Estou prevendo... – disse Guksi, fechando os olhos. – Estou prevendo... que o sol vai nascer amanhã de manhã exatamente às 7 horas e 53 minutos. E prevejo também que logo vocês vão encontrar uma pessoa que terá grande importância para o seu futuro.
– Deve ser o rei! – exclamou Lise.
– Isso! Está vendo? Eu tenho o dom – disse Guksi, satisfeito.
– O que você acha do fim do mundo? – perguntou Bumbão. – Nos últimos tempos você viu algum sinal de que ele está próximo?
– Oh, o fim do mundo vem e vai – disse Guksi. – Aí está Trøndelag do Sul para vocês.
Eles emergiram da floresta e, à sua frente, estendia-se o campo aberto. E todos logo perceberam que se tratava de Trøndelag do Sul porque, diante deles, havia um rio; do outro lado do rio, havia uma estrada; perto da estrada, sob as linhas de alta-tensão, havia uma casa; e, junto da casa, havia uma faixa, na qual se lia:
A MAIOR OFERTA DE ASAS-DELTA DE TRØNDELAG DO SUL. COMPRE AGORA! (ESTÃO VENDO QUANTO OS PREÇOS BAIXARAM?)
– Ótimo – disse o doutor Proktor. – Mas como vamos atravessar isso aí? – disse ele apontando o rio, que era extraordinariamente largo, esverdeado-escuro e, certamente, muitíssimo frio e profundo. E, até onde a vista podia alcançar, não havia nenhuma ponte nem rio abaixo nem rio acima.
– Receio não poder ajudá-los nesse caso – disse Guksi, cutucando o nariz de tal forma que sua narina rangeu.
– Mas meu caro senhor – disse a senhora Strobe. – Nós o pagamos para que nos conduzisse até Trøndelag do Sul.
– É isso aí, e agora já lhes mostrei o caminho. Quer dizer... não é tão difícil assim. Vocês só têm de acompanhar as linhas de alta-tensão.
Eles olharam para os fios de alta-tensão que passavam por cima do rio até o poste seguinte e, então, desapareciam no interior da República de Trøndelag do Sul. E, naturalmente, havia um barco a remo, com os remos na margem do rio do lado de Trøndelag do Sul, só para zombar deles, por eles estarem na margem errada.
– Não se desesperem – disse Guksi –, porque terei o maior prazer em conduzi-los de volta até sua motocicleta pela metade do valor que vocês me pagaram para trazê-los até aqui.
– Não, muito obrigado! – disseram os quatro Vencíveis praticamente a uma só voz.
– Não? Bem – disse Guksi –, boa sorte na empreitada.
Então ele deu meia-volta e entrou na floresta, voltando pelo mesmo caminho pelo qual eles tinham vindo.
– E agora, o que vamos fazer? – perguntou a senhora Strobe com um suspiro. Eles tinham sentado na neve e estavam olhando para a outra margem do rio.
– Talvez a gente possa nadar até o outro lado – sugeriu Lise.
O doutor Proktor negou com um gesto de cabeça.
– A corrente é forte demais e a água é muito fria. Temos de seguir as linhas de alta-tensão para voltar até a casa de Guksi. O que você está fazendo, Bumbão?
– Procurando... – murmurou Bumbão, que estava com a cabeça enfiada em sua minúscula mochila – ... isto!
Ele ergueu o rosto com um sorriso triunfante, levantando no ar um par de sapatos vermelhos e alaranjados.
– Ei! – disse asperamente o doutor Proktor. – Esses são meus sapatos equilibristas!
– Eu os trouxe comigo – disse Bumbão. – Achei que talvez eles pudessem nos ser úteis.
Ele começou a calçá-los enquanto os outros três o observavam com o rosto inexpressivo, sem entender o que ele estava fazendo. De repente, dois deles pareceram ter compreendido de um estalo. Lise viu o doutor Proktor voltar-se e olhar para os fios de alta-tensão que cruzavam o rio.
– Não... – principiou Lise.
– Você... você não pode estar pensando seriamente em... – disse o doutor Proktor.
– Você está pretendendo... pretendendo... – disse Lise.
– Desculpem-me, mas do que vocês estão falando? – perguntou a senhora Strobe. – E o que aqueles esquisitos calçados de boxe têm a ver com tudo isso?
– Estes – disse Bumbão – são os Sapatos Equilibristas do doutor Proktor. E eles vão me levar até a outra margem do rio, assim vou poder trazer o barco remando até aqui.
– Nesse caso, eu é que terei de fazer isso – disse o doutor Proktor.
Bumbão lambeu o indicador e, em seguida, ergueu-o no ar.
– Estão sentindo? O vento está aumentando. O que significa que pessoas altas seriam atiradas para fora dos fios. O que é necessário aqui é um sujeito pequeno. De preferência, ruivo.
– Hum – fez o professor, examinando as copas das árvores. E, com efeito, elas estavam sendo sacudidas pelo vento.
– Isso pode dar certo – disse Lise.
A senhora Strobe olhou para o professor, para Lise, para Bumbão e, em seguida, para os fios de alta-tensão.
– Eu acho – ela disse devagar – que vocês três são perfeitamente desequilibrados, totalmente perturbados e completamente loucos.
– Na verdade... – disse o doutor Proktor, rindo.
– ... nunca houve... – disse Lise, rindo.
– ... nenhuma dúvida quanto a isso! – completou Bumbão.
Capítulo 19.
Dançando no fio e um
trøndesiano chamado Petter
O VENTO ZUMBIA NOS OUVIDOS DE BUMBÃO. Com os lábios contraídos, em profunda concentração, e os braços estendidos para os lados, ele olhava direto para a frente, colocando um pé adiante do outro com o maior cuidado. Uma rajada de vento quase o jogou de cabeça para baixo para um lado, mas os sapatos meio que o puxaram e o prenderam firmemente ao fio de metal.
Quando ele recuperou o equilíbrio, seu chapéu deu um pequeno salto.
– Pare de soluçar, Perry! – sussurrou Bumbão. – Estou tentando me concentrar.
Ele olhou de relance para baixo.
– E não olhe para baixo, Bumbão! – ele logo sussurrou a si mesmo, levantando os olhos novamente.
Mas tarde demais. Ele já tinha visto quão vertiginosamente distante se encontrava da superfície da água lá embaixo. Que, além do mais, era escura. Escura como asfalto. E, provavelmente, tão dura quanto, pelo menos, se você despencasse de uma altura de centenas de metros.
Bumbão se lembrou de uma história de seu avô, da época em que ele era marinheiro. Ele tinha desembarcado em San Francisco junto com o terceiro-piloto do navio e, como estava muito quente, eles resolveram nadar um pouco e pular da ponte Golden Gate. Mas eles só tinham um calção de banho, que era azul e muito folgado. Então eles disputaram o calção no jogo Pedra-Papel-Tesoura e o avô dele mostrou pedra, enquanto o terceiro-piloto mostrara papel, e isso ainda foi no tempo em que o papel ganhava da pedra. Então o terceiro-piloto retirou triunfantemente seu chapéu de piloto, vestiu o folgado calção de banho, subiu no parapeito e saltou. E o avô de Bumbão ficou olhando, vendo o terceiro-piloto ficar cada vez menor, e ainda menor, até que ele se deu conta de que eles estavam muito mais alto do que parecia. E quando o terceiro-piloto atingiu a água, o avô de Bumbão percebeu que a superfície era muito mais dura do que se poderia imaginar. Em suma, aquilo foi o fim do terceiro-piloto. A única coisa que sobrara tinha sido o calção azul, meio folgado, que subira à tona. E Bumbão sempre se perguntava: o que teria acontecido se seu avô não tivesse escolhido pedra naquela ocasião, se ele é quem tivesse pulado? Então ele não teria conhecido a avó de Bumbão e não teria tido o pai de Bumbão como filho, de modo que Bumbão poderia nunca ter nascido. Se bem que, naquele exato momento, Bumbão se perguntava se aquilo realmente teria alguma importância. Isso porque outra rajada de vento atingiu as linhas de alta-tensão. Aquilo fez Bumbão balançar tão violentamente que, por um segundo, ele ficou olhando lá para baixo, para a água escura, que naquela altura estava cheia de pequenas cristas brancas de espuma.
Bumbão dobrou os joelhos, lutou para manter o equilíbrio e esperou que o fio parasse de balançar. Mas ainda faltava muito para chegar ao outro lado e o vento continuava forte. Ele não tinha como saber ao certo se iria conseguir atravessar, com ou sem sapatos equilibristas. Mas ele simplesmente tinha de conseguir. Então pôs o pé esquerdo adiante do direito. Depois, pôs o direito adiante do esquerdo. A coisa não ia tão mal. Será que o vento amainara um pouco? Sim, a força do vento tinha diminuído. Bumbão ouviu uma voz gritar alguma coisa ao longe. Era Lise, um pouco atrás dele, lá embaixo, junto à margem. Mas ele não queria se voltar, queria seguir o mais depressa possível. Ele moveu o pé com mais rapidez. Depois um pouquinho mais rápido.
Bem, agora não estava ventando nem um pouco. Será que, afinal de contas, iria dar certo? Foi então que ele ouviu aquilo. Um repentino som trovejante vindo da floresta. Pelo canto do olho, ele via a copa dos enormes abetos lá embaixo, ao longo da margem do rio. Eles estavam se sacudindo de um lado para outro, inclinando-se lateralmente sob o fortíssimo vendaval. E Bumbão soube que estava perdido. Era como se o vento tivesse estado apenas ganhando impulso, juntando todas as suas forças para arrancar aquele atrevido ruivinho de um lugar ao qual ele não pertencia. E agora ele estava soprando com sua força máxima. Bumbão agachou-se sob a primeira rajada de vento que o atingiu e arrancou seu chapéu laranja. Ele o viu sair voando, primeiro para cima, depois para baixo, girando continuamente até se transformar em uma manchinha minúscula. A segunda rajada fez Bumbão girar duas vezes em torno do fio de alta-tensão e, finalmente, a terceira o jogou para o alto.
– Uaaaaaaai! – Bumbão gritou, caindo.
– Hic – soluçou Perry.
Eles foram girando lentamente no ar, de forma que, primeiro, Bumbão viu o fio de alta-tensão, acima deles, afastando-se cada vez mais, depois viu a superfície da água abaixo dele, ficando cada vez mais perto.
– Aiaaaaaii! E, mais uma vez, aaaaaaii! – gritou Bumbão.
– Hic, hic! – soluçou Perry.
Porque, naturalmente, ambos sabiam qual seria o desfecho daquilo. Eles ficariam achatados feito panquecas com geleia de morango.
Bumbão fechou os olhos.
Manteve-os fechados.
Esperou.
E esperou.
E esperou.
Eles não iriam se estatelar logo?
Sim, sim, quanto mais longa fosse a queda, mais forte seria o impacto quando ele finalmente acontecesse.
Ele apertou os olhos ainda mais.
“Vamos logo, depressa com isso!”
Mas... nada. Nada.
Quão alto eles estariam antes da queda? Porque, falando sério, aquilo estava começando a ficar um pouco chato. Ou será que ele já estava morto?
Com todo cuidado, Bumbão abriu um olho. Ele ainda conseguia ver o rio lá embaixo, bem longe, mas não estava ficando mais perto, nem um pouco. Na verdade, acontecia o contrário. Ele parecia estar ficando um pouco mais longe. E alguma coisa em torno de seus quadris estava lhe dando puxões, como se ele estivesse usando uma cadeirinha de segurança.
Bumbão virou-se para o lado e olhou para cima.
E mal pôde acreditar no que viu.
Um delgado filamento subia dele e, pelo visto, ia direto para um ponto no ar. Perry estava postado sobre o filamento bem acima dele. Lentamente, ficou claro para Bumbão o que era aquilo: uma teia de aranha.
– Ei? – perguntou Bumbão. – Será que estou sonhando?
– Hic! – fez Perry.
– Estou pendurado em uma teia de aranha? Isso é possível, Perry?
Mas, antes que ele tivesse alguma resposta, o vento soprou com força novamente, fazendo os dois balançarem de um lado para outro, como se eles estivessem sentados num enorme balanço lá no alto, bem sobre o rio. E a teia de aranha resistia! Bumbão se deixou ficar ali, totalmente feliz da vida. Até se lembrar de que, ainda assim, o mundo iria se acabar. Ele precisava agir. Ele não tinha ideia de como a teia de uma aranha sugadora peruana de sete pernas absolutamente comum podia sustentar um cara com tanta massa muscular e um enorme cérebro, mas podia pensar nisso depois.
– Perry! – gritou Bumbão. – Você pode fazer esse fio ficar ainda mais comprido?
Perry podia, sim. E logo eles estavam pendurados diretamente acima da superfície do rio. Bumbão esticou suas pequenas pernas e inclinou-se para trás em sua cadeirinha de teia de aranha. Eles balançaram um pouco para a frente. Ele se inclinou e dobrou os joelhos sob o corpo. Eles balançaram para trás. Ele esticou bem as pernas, tornando a impulsionar o corpo. A velocidade deles aumentou um pouco, e o arco que eles descreviam em seu balanço ia ficando cada vez maior. No meio do arco, os pés de Bumbão quase encostavam na água, ao passo que dos lados ainda havia uma grande distância até a superfície, e o ar zumbia em seus ouvidos. Então veio uma rajada de vento de trás, e o balanço, levando Bumbão e Perry, deslocou-se até a margem.
– Deixe que a teia se rompa! – gritou Bumbão.
Com isso, Perry desenrolou um pouco mais de teia e Bumbão caiu no chão.
– Oobaa! – gritou Bumbão ao aterrissar suavemente na neve da margem do rio.
Ele deu um puxão no fio da teia. Perry devia tê-lo partido com uma mordida, porque a ponta dele logo desceu flutuando.
Bumbão correu até o barco a remo, empurrou-o, afastando-o da margem, pulou dentro dele e ajustou os remos em seus lugares. Enquanto remava, o garoto percebeu que Perry estava no banco diante dele.
– Muito bem-feito! – exclamou o doutor Proktor quando o barco se aproximou, enquanto ajudava os outros a embarcar.
– Fantástico! – disse a senhora Strobe, beliscando a bochecha de Bumbão.
– Mas o que é que aconteceu mesmo? – perguntou Lise depois de abraçar Bumbão.
– Meu chapéu voou de minha cabeça e nós caímos – disse Bumbão, deixando o trabalho de remar para o doutor Proktor e a senhora Strobe, que tinham pego um remo cada um. – É realmente inacreditável, mas Perry deve ter disparado um fio da teia em volta do fio de alta-tensão e depois amarrou a outra ponta em volta de meu corpo. Foi como cair amarrado a uma tira de borracha. Nem percebi que tínhamos parado. Mas realmente não entendo como isso é possível.
– Hic! – fez Perry.
– Hum – fez o doutor Proktor. – Mas eu acho que sei. Você se lembra do frasco que Gregor quebrou no asfalto? O que continha o Tônico Fortificante do Doutor Proktor com Pimentas Mexicanas Trovejantes Medianamente Pic...
– Sim, sim! – exclamaram Lise e Bumbão com impaciência.
– Vocês também se lembram de que apanhamos Perry do chão e de que ele estava no meio dos estilhaços de vidro?
– Ah! – fez Lise.
– Ah! – fez a senhora Strobe.
– Ah! – fez Bumbão. – Perry, sua aranha manhosa! Você experimentou o tônico, não é?
Perry não deu resposta.
– Com um corpo tão pequeno, bastariam algumas gotas para deixá-lo superforte – disse o professor.
– E torná-lo capaz de fiar teias superfortes – acrescentou Bumbão.
– E começar a soluçar – disse Lise.
Eles tinham atravessado o rio e arrastado o barco para a margem. Em seguida, andaram até a estrada que passava em frente à casa com a faixa anunciando preços de liquidação.
– Podíamos tentar pegar uma carona para Trøndelag do Sul propriamente dita – disse o doutor Proktor.
– Ou quem sabe logo não vai passar um ônibus – disse Lise.
Eles ficaram ali parados por algum tempo, olhando para os dois lados da estrada, mas não apareceu ninguém: nem carros, nem ônibus, nem motocicletas com carrinhos laterais, nem trenós, nem coisa alguma.
– Isto aqui parece bem deserto – disse Bumbão.
– Talvez alguém nessa loja possa nos ajudar – disse o doutor Proktor.
A loja não parecia um estabelecimento comercial comum, era mais um grande salão. Eles se aproximaram de um balcão muito vazio, muito abandonado.
– Olá? – chamou o doutor Proktor, mas a única resposta foi um eco.
– O que é aquilo? – perguntou Lise, apontando com a cabeça para uns aparelhos estranhos, espalhados no chão. Eles eram do tamanho de uma cama elástica e eram feitos de lona de vela de barco colorida esticada em molduras, às quais estavam ligados barras e cordéis. Na parte inferior de cada uma dessas lonas emolduradas havia algo que parecia um saco de dormir.
– Parece que alguém não leu as instruções sobre como armar sua barraca – disse Bumbão.
– São asas-delta – disse o doutor Proktor. – Se você levar uma dessas até o alto de uma montanha, pode correr, tomar impulso, decolar e, simplesmente, ficar deitado nesse saco sob as asas enquanto voa. Por centenas de milhas se o vento e as condições atmosféricas forem favoráveis. OLÁ?
– OLÁ! – gritou Bumbão.
Nada aconteceu.
– Parece que não tem ninguém aqui – disse Lise.
Naquele mesmo instante ouviu-se um barulho que fez vibrar o ar do salão.
– O-o-o-que é isso? – perguntou o doutor Proktor.
Bumbão indicou com a cabeça a mão da senhora Strobe, que ainda estava sobre o balcão.
– É o movimento que é a marca registrada da senhora Strobe – sussurrou ele. – Um tapão na mesa na sala de aula.
– Você não poderia pedir-lhe que não repita isso? – disse o doutor Proktor, esticando o queixo e balançando a cabeça, tentando fazer os ouvidos pararem de zumbir.
Eles ouviram um ruído em algum lugar, uma porta se abriu e entrou um jovem com uma malha vermelha muito justa, com manchas escuras de óleo bem visíveis, sob a qual se podia notar uma barriguinha. Ele dava a impressão de ter acabado de sair da cama, porque seus cabelos loiros e bastos eriçavam-se em todas as direções, e por trás das lentes de óculos mais grossas que Lise já vira um par de olhos apertados os observava atentamente.
– Vocês me assustaram! – disse ele, com uma mistura de medo e entusiasmo. – Temos gente aqui! Nunca mais se viu ninguém por aqui desde a última Páscoa!
– Olá, senhor...
– Petter! Eu sou Petter! Eu sou o primeiro e único Petter, e que danado de Petter eu sou!
– Entendo. Eu sou o doutor Proktor, e estes são Lise, Bumbão e a senhora Strobe.
Petter inclinou-se para a frente e olhou para Bumbão mais de perto.
– Tem certeza de que seu nome não é Petter, meu filho?
– Absoluta – disse Bumbão.
– Você parece um Petter.
Bumbão deu de ombros.
– Você é o único Petter aqui, Petter.
– Não tenha a menor dúvida quanto a isso! – disse Petter, endireitando o corpo novamente.
– O que vocês estão fazendo aqui?
– Viemos procurar o rei – falou Lise. – Quer dizer... o rei da Noruega.
– Ele tem uma cabana na cidade grande – disse Petter.
– Na cidade grande?
– Klæbu, população, três mil e sessenta e três. Mas é longe daqui. Noventa e cinco quilômetros. Vocês estão de carro?
– Não – disse Lise. – Mas não há, por acaso, uma linha de ônibus para lá?
Petter negou balançando a cabeça.
– Todos se mudaram para a Noruega. Ou para Klæbu. Sou o único que ficou aqui. – Ele estendeu os braços para ambos os lados, inclinou a cabeça para trás e gritou: – Eu sou Petter! Petter! Não existe ninguém melhor!
– Bem, você tem um carro, Petter? – perguntou o doutor Proktor. – Teríamos o maior prazer em pagar por uma carona até Klæbu.
Petter balançou a cabeça e ajeitou os óculos.
– Miopia forte. Aqueles covardes do Departamento de Trânsito não quiseram me dar uma carta de motorista. É por isso que nunca irei para Klæbu. Nunca sairei deste buraco sem uma carta de motorista. – Ele levantou a cabeça em direção ao teto e gritou novamente. – Covardes! Eu sou Petter, ora! – Ele parou de repente e olhou para os demais. – Imagino que tivessem medo que eu atropelasse alguém. Mas agora que esta única e última pessoa pode dirigir para onde quiser, pois não sobraram pedestres para serem atropelados, por que não posso ter uma carta de motorista? Por que estão todos contra mim?
– E quanto a seu barco? – disse Lise. – Você pode nos emprestar?
Petter deu de ombros.
– Klæbu fica rio acima daqui. E na outra direção o rio é cheio de cachoeiras e fortes corredeiras.
Os Quatro Vencíveis se entreolharam desanimados.
Então, de repente, o rosto de Petter se iluminou.
– Esperem! Eu tenho chocolate quente! Eu fiz uma participação num comercial de chocolate quente nos tempos em que eu andava de asa-delta, sabem? Eu era bom. Venci todos os outros com a maior facilidade. Eu sou Petter! Querem que eu lhes prepare chocolate quente? Tenho um armário cheio!
– Eu não sei – disse o doutor Proktor, consultando o relógio de pulso. – A invasão da Dinamarca começará dentro de quarenta e oito horas.
Petter lançou-lhes um olhar suplicante.
– Vocês não podem ficar só um pouquinho? Poderíamos jogar xadrez chinês. Sou bom nisso, sabem? Eu sou Petter!
– Desculpe – disse o doutor Proktor.
– Não vão! Vou pôr chantili no chocolate quente.
O doutor Proktor olhou para os outros três.
– Acho que ele se sente um pouco sozinho – sussurrou Lise. – Acho que podíamos ficar um pouquinho aqui.
O doutor Proktor voltou-se para Petter com um largo sorriso.
– Vamos adorar tomar um pouco de chocolate quente.
Lise e Bumbão ajudaram Petter a fazer o chocolate quente na minúscula cozinha ao longo de uma parede.
– Qualquer dia vou embora daqui, sabem? – disse Petter. – Se ao menos eu conseguisse vender o resto dessas asas-delta, poderia sair daqui. Sim, talvez eu vá a Oslo e faça-lhes uma visita. Isto é, se vocês desejarem uma visita.
– Nós adoraríamos – disse Lise.
– Em todo caso, como estão as vendas de asas-delta atualmente, já que ninguém mais mora aqui? – perguntou Bumbão.
– As coisas não vão nada bem – disse Petter com tristeza. – A liquidação já dura quase três anos, mas os clientes são raros. – Ele de repente se animou. – Mas quem sabe vocês não estariam interessados em uma?
– Acho que nós realmente não precisamos de nenhuma... asa-delta, Petter – riu Lise.
A esperança por trás daquelas espessas lentes de correção de dezessete graus murchou novamente.
– Não, claro que não. O que vocês fariam com uma asa-delta?
Por um instante, pairou um silêncio na cozinha enquanto eles ouviam o barulho da panela, de olho no chocolate quente para evitar que ele fervesse e transbordasse.
– Se bem que, na verdade... – disse Bumbão. – Eu acho... eu acho que tive uma ideia.
“Oh, não”, pensou Lise.
Capítulo 20.
Decolagem com uma
pitada de canela
COMO É QUE VOCÊ PODE até mesmo pensar que poderíamos voar numa asa-delta para Klæbu? – perguntou o doutor Proktor balançando a cabeça. – Quer dizer... pra começar, nenhum de nós sabe pilotar uma asa-delta.
– Petter tem uma asa-delta tamanho família – disse Bumbão, que se pôs a saltitar como costumava fazer sempre que achava que algo divertido iria acontecer. – E você sabe voar de asa-delta, não sabe, Petter?
Petter fez que sim.
– Claro, claro. Mas só há lugar para quatro, e nós somos cinco.
– Lise e eu cabemos no mesmo saco de dormir – disse Bumbão. – E o doutor Proktor não passa de uma varetinha. Tenho certeza de que vai haver lugar de sobra.
O professor olhou para Petter, que balançou a cabeça com expressão de tristeza.
– O lançamento – disse Petter, e o doutor Proktor concordou com um gesto de cabeça.
– O quê? – perguntou Bumbão. – O que você quer dizer com isso?
O doutor Proktor suspirou:
– O lançamento, a decolagem. É ótimo que você pense de forma tão criativa, Bumbão, mas olhe em volta. Você está vendo alguma montanha de onde pudéssemos decolar? Hein?
Pela janela do salão, Bumbão olhou para o campo, plano feito uma panqueca, que se estendia até se perder de vista.
– Nós poderíamos simplesmente começar a andar rumo a Klæbu – disse o professor.
– Oh, mas ainda tem mais chocolate quente – disse Petter, com certo desespero na voz. – Eu poderia acrescentar uma pitada de canela. Que acham? E nem ao menos começamos a jogar xadrez chinês.
O doutor Proktor, a senhora Strobe e Lise balançaram a cabeça, agradeceram a Petter pelo chocolate quente, abotoaram seus casacos e estavam prestes a sair quando ouviram a voz de Bumbão exclamar:
– Achei uma saída!
Eles se voltaram. Bumbão continuava sentado à mesa, olhando para sua caneca de chocolate quente vazia.
– Que saída, Bumbão?
– Ponha mais uma rodada de chocolate quente para todo o mundo, Petter.
Petter se animou.
– Com uma pitada de canela?
– Não exatamente canela – disse o menino.
– De que você está falando? – perguntou Lise.
– Estou falando de uma decolagem – disse Bumbão.
– Vocês têm certeza de que isso vai dar certo? – perguntou Petter. Ele estava inclinado para a frente, segurando a barra de controle da enorme asa-delta tamanho família.
– Não – disse o doutor Proktor, que estava atrás dele. – Você ainda pode desistir, se quiser.
– Não, obrigado. Eu estou nessa – disse Petter, segurando a barra com mais força. – Eu quero ir para Klæbu.
– Ótimo – disse o doutor Proktor, erguendo sua caneca de chocolate quente. – Todos prontos?
– Prontos! – gritaram Lise e Bumbão, que tinham se acomodado num saco de dormir de um lado.
– Estou pronta! – exclamou a senhora Strobe, deitada em seu saco de dormir do outro lado.
– Então vamos beber – disse o doutor Proktor.
E, com isso, todos esvaziaram suas canecas de chocolate quente de um único e longo gole.
– Quatro – disse Bumbão.
– Humm – fez Petter, aprovando o sabor. – Considerando que não se tratava de canela, não estava ruim. Como é mesmo que vocês chamam esse pó?
– Pó de Soltar Pum Náutico do Doutor Proktor – disse o professor, estalando os lábios de pura satisfação. – A essência de pera realmente faz uma bela diferença, não acha?
– Três – disse Bumbão.
– E vocês acham mesmo que um pó pode nos levar até Klæbu?
– Bem... – disse o doutor Proktor.
– Dois – falou Bumbão. – Um.
– Está fazendo cócegas – disse Petter rindo e passando a mão em sua barriguinha.
– Zero – anunciou Bumbão.
Então tudo ficou branco.
E depois que o eco do barulho reverberou de um lado para o outro do rio algumas vezes, e que a neve assentou novamente, não sobrou nada no jardim em frente ao salão. Apenas um poste com uma faixa tremulante anunciando a maior seleção de asas-delta de Trøndelag do Sul. Mais uma vez o silêncio imperou, mas, se você apurasse bem os ouvidos, poderia ouvir um grito vindo de lá do alto do céu.
– Isto muito me espanta. Eu sou Petter! Sou o primeiro e único Petter, e que danado de Petter eu sou!
Lise olhou fixamente para o campo lá embaixo, que parecia um mapa deslizando lentamente. Ali em cima era ainda mais frio, ela podia sentir na ponta do nariz. Mas dentro do saco de dormir era gostoso e quentinho.
E era tão silencioso! Ouviam-se apenas o sussurro da larga asa vermelha, um leve estalar dos cabos esticando-se e afrouxando, o tiquetaquear do altímetro enquanto eles subiam e o quase inaudível ressonar de Bumbão, que caíra no sono ao lado dela.
De vez em quando, o doutor Proktor dizia alguma coisa a Petter e apontava para o mapa que eles tinham retirado da parede do salão. E finalmente o doutor Proktor foi autorizado a pilotar, enquanto Petter lhe mostrava como tudo aquilo funcionava.
O sol mergulhara no mar lá para o lado do oeste, onde o céu aos poucos passou de azul para laranja e, depois, para vermelho e, na parte mais baixa, para roxo-esverdeado. De vez em quando, eles sobrevoavam uma casa com luzes brilhando nas janelas e, outras vezes, uma estrada iluminada, cujas lâmpadas acesas davam a impressão de pirilampos na meia-luz do crepúsculo, que começava a tomar conta de tudo.
Era tão bonito que Lise só podia pensar em uma coisa: “Este mundo é tão maravilhoso que temos de salvá-lo.”
Uma hora mais tarde, quando tudo em volta deles estava escuro, o doutor Proktor apontou para um tapete de luzes que surgiu de repente lá embaixo.
– Klæbu – disse ele.
Mas àquela altura Lise já tinha caído no sono.
Capítulo 21.
Uma audiência e
código Morse
– VOSSA ALTEZA REAL TEM VISITAS.
– O quê? – O rei levantou os olhos das palavras cruzadas que estava fazendo no Trøndelag do Sul Times e olhou para o relógio. Eram 11 horas da noite. Visitantes a esta hora?
Ele olhou para seu mordomo, Åke, que estava diante dele, na soleira da porta da sala de estar. Åke era um homem alto, que parecia ter sido passado num apontador de lápis. Ele tinha um nariz afilado, lábios franzidos, queixo pontudo e dentes afiados. E uma casaca pontiaguda, que lhe descia pelo corpo e terminava em duas pontas abaixo de suas nádegas. E, muitas vezes, fazia comentários afiados sobre o que o rei estava ou não estava fazendo. Mas ele os fazia em sueco, por isso o rei nem sempre entendia muito bem as nuanças do que ele dizia e não percebia quão afiados eles eram. O rei vez por outra se perguntava por que ele tinha contratado o mordomo Åke, mas aí se lembrava de que era relativamente barato contratar empregados temporários da Suécia e, além disso, de que eles pareciam gostar de trabalhar para noruegueses em funções servis e mal pagas. E mais uma coisa: o mordomo Åke tinha aparecido à sua porta pedindo um emprego no mesmo dia em que o rei ali chegara, depois que aquele presidente imbecil o expulsara de seu Palácio Real.
Às vezes, porém, o rei tinha a impressão de que o mordomo Åke estava rindo dele pelas costas. Não que aquilo importasse em circunstâncias como aquelas, em que ele não tinha acesso aos seus recursos reais para despesas domésticas, visto que vivia no exílio no estrangeiro. O rei só podia se dar ao luxo de contratar um criado sueco barato, por isso só lhe restava tolerar os espúrios comentários suecos do mordomo Åke.
– Eles aterrissaram com uma asa-delta aí fora – disse Åke. – Dizem ter atravessado a fronteira clandestinamente para falar com Vossa Alteza Real e solicitaram uma audiência. Devo fazê-los entrar?
– Hum – fez o rei, olhando de novo para o jornal. Aquelas palavras cruzadas de Trøndelag do Sul eram tremendamente difíceis.
Åke deu um suspiro daquele seu jeito irritante e disse:
– Um horizontal: Oona.
O rei contou as letras nas palavras cruzadas e concluiu que estava certo. Afinal de contas, ele era o rei.
– Vamos ver – continuou ele, com o dedo na linha seguinte. – Seis horizontal, cinco letras. Se você tem isso, é capaz de pensar racionalmente.
– Eles estão esperando, Majestade.
O rei notara que o mordomo Åke estava cada vez mais propenso a encurtar seu título e não gostou daquilo. Mas receou que, se exigisse que ele o tratasse sempre pelo título completo, o mordomo Åke talvez lhe pedisse um aumento.
– Sim, sim, faça-os entrar – disse o rei, abanando a mão num gesto de irritação.
Åke saiu depressa e voltou em seguida, mantendo a porta aberta. Então entrou um insólito grupo. Primeiro, um homem que mais parecia um varapau, usando óculos de natação; depois, um menino minúsculo, sardento e ruivo, trazendo na cabeça o que parecia ser um inseto; em seguida, uma garota de tranças, de aparência normal. Mas foi a última pessoa que fez o rei arregalar os olhos: uma senhora voluptuosa, com um rosto grave e um nariz que parecia não ter fim. Ela era, pura e simplesmente, uma das mais belas mulheres que o rei já tinha visto em toda a sua vida.
– Vossa Alteza Real – disse o varapau com óculos de natação. – Eu sou o doutor Proktor, e viemos aqui para dizer que o senhor precisa dirigir-se ao povo da Noruega para que ele recupere a razão.
– É isso! – disse o rei animadíssimo, completando os quadrinhos das palavras cruzadas. R-A-Z-Ã-O.
– Quer dizer que vossa majestade vai fazer isso? – perguntou o varapau, que se chamava doutor Sei Lá o Quê.
– Bem, existe fazer e fazer – disse o rei. – Eu diria que já tenho muito o que fazer. – Ele indicou com a cabeça a pilha de palavras cruzadas de um metro de altura no chão, ao seu lado.
– Seu país precisa do senhor, rei – disse o menininho ruivo. – Senão o mundo vai cair... bem... numa enrascada. O senhor precisa voltar conosco para a Noruega.
– Voltar? Para aquele presidente que me expulsou? – disse o rei com um riso rápido e amargo.
– É preciso deter Hallvard Tenoresen! – disse a garota. – Aliás, seu verdadeiro nome nem é esse. Ele se chama Yodolf Staler e é um camaleão lunar.
– Não me diga – falou o rei. – Ahn... um camaleão lunar? O que é isso?
– Eles se parecem com babuínos e seus traseiros são cheios de hemorroidas – disse o menino.
– Sim, bem... que traseiros não as têm? – murmurou o rei, examinando suas palavras cruzadas. Ele tinha visto em algum lugar uma definição que falava em “macaco”. Talvez a resposta fosse “babuíno”.
– Tenoresen hipnotizou toda a população – disse a garota. – Ele simplesmente olha para a câmera e, então, todos os que olham nos seus olhos por muito tempo passam a apresentar problemas de pronúncia e a fazer exatamente o que ele manda.
– Isso não me impressiona – disse o rei. – Eu aprendi a hipnotizar as pessoas quando fui coroado príncipe. É o que faço no meu tradicional discurso real de Ano-Novo na TV, sabem? Hipnotizo as pessoas para que elas desejem manter a monarquia em vez de terem um presidente modernoso e toda essa besteirada. – Ele levantou os olhos das palavras cruzadas. – Na verdade, vocês gostariam que eu os hipnotizasse um pouco agora mesmo? Meus caros campatriotas...
– Não, obrigada – disse a garotinha. – Tenoresen quer cozinhar o senhor Galvanius e invadir a Dinamarca na próxima quarta-feira, isto é, depois de amanhã. O senhor precisa vir conosco, Vossa Alteza Real.
– Isso não, nem pensar – disse o rei. – Estou muitíssimo bem aqui: TV por satélite, nenhuma estrada com pedágio, gasolina barata, nada de estrangeiros... isto é, exceto eu e Åke. E os cachorros-quentes de Trøndelag do Sul são muito melhores do que...
No momento seguinte, foi como se a sala tivesse explodido. O rei pulou de sua cadeira e, quando caiu nela novamente, estava olhando, apavorado, para a mão que batera com força na mesa à sua frente. Um tapão assustador e infernal, que fez seu coração parar por um segundo para, logo em seguida, recomeçar a bater num ritmo três vezes mais acelerado do que de costume. Os olhos do rei deslocaram-se da mão para o braço e dali para o ombro. E para o rosto, para o nariz comprido, para os óculos, para os olhos penetrantes, que pareciam estar olhando através dele.
– Escute aqui – disse a voz, que era, no mínimo, igualmente penetrante. – Você, meu rapaz, vai nos ajudar a salvar o mundo, entendeu?
– Qu-qu-quem é você? – o rei finalmente gaguejou.
Mas não houve resposta, apenas aqueles olhos fixados nos dele, impedindo-os de se desviar.
– É a senhora Strobe – ele ouviu o menininho dizer. – O que o senhor acabou de ouvir foi o Tapão na Mesa de Strobe, e o que você está vendo agora é o Olhar Strobe.
– O-o-o-lhar Strobe?
– É isso mesmo. O senhor não sente como ele penetra em seu cérebro, que dentro de poucos segundos vai começar a borbulhar e ferver?
– Dei-dei-xe meu cérebro em paz.
– Com uma condição – disse a mulher chamada senhora Strobe. – Que você faça o seu dever de rei.
– Exatamente, ahn... bem, o que eu devo fazer?
– Dizer aos noruegueses que Yodolf Staler é uma fraude e que eles não devem fazer o que ele ordenar – interveio a garotinha de tranças. – Eles devem expulsá-lo da presidência. E devem fazer isso imediatamente!
– Oh, meu Deus – disse o rei. – E vocês acham que eu consigo isso simplesmente... ahn... fazendo um discurso?
Toda a delegação à sua frente confirmou com um gesto de cabeça.
– Então é isso? – perguntou o rei. – Fazer um discurso?
– É isso mesmo. Basicamente isso – disse o varapau com óculos de natação. – Igualzinho ao que o seu ancestral, o rei Haakon VII, fez, de Londres, na Segunda Guerra Mundial. Ele falou ao povo, estimulando-o a lutar contra uma força mais poderosa.
– Hum – fez o rei. – E deu certo? O povo lutou?
– Bem, talvez não tanto quanto se desejava, mas mais do que se ele não tivesse dito absolutamente nada.
– Entendo – disse o rei, que olhou para eles pensativamente, pesando os prós e os contras. Aquele seu ancestral fizera alguns breves pronunciamentos no rádio, de forma que ele pudera ficar reclinado em sua confortável poltrona junto à lareira, fazendo suas palavras cruzadas. E, naturalmente, o melhor de tudo, mais tarde ele conseguira voltar para o Palácio Real. Por outro lado, escrever um discurso como aquele dava um trabalho tremendo.
– Nós confiamos em Vossa Alteza Real – disse delicadamente a senhora Strobe, sorrindo para ele.
E ele apenas pensou: “Puxa vida, como ela é atraente!” Então se inclinou para ela.
– Entre nós dois, senhora Strobe, acho que essa história de se dirigir a mim como Vossa Alteza Real é um pouco pomposo demais. Se você me chamasse apenas de Majestade, seria ótimo.
– Oh, muitíssimo obrigada, Majestade – disse a senhora Strobe, piscando os olhos. – E você pode me chamar de Rosemarie.
– Eh-eh – fez o rei.
– Então você vai fazer o que estamos pedindo?
– Bem... – disse o rei. – Está tarde, por isso vamos dormir e refletir sobre isso. Åke, prepare camas principescas para nossos hóspedes.
Åke fez uma cara de reprovação.
– Nós só temos beliches comuns.
– O quê...?
– O senhor está vivendo em uma cabana rústica nas montanhas, não num palácio, Majestade.
– Alteza, Åke.
– O que disse?
– Vossa Alteza Rea... Esqueça. Ótimo, beliches, então. E o jantar. – Ele se voltou novamente para a senhora Strobe. – Tenho cachorros-quentes, Rosemarie. Comprados no Seven-Eleven. Muito bons, muito baratos.
– Oh, obrigada, obrigada, Majestade.
– Eh-eh – fez o rei.
– E tem mais uma coisa – disse o menino ruivo.
– Ah, é? – o rei perguntou ceticamente. Porque sempre havia só mais uma coisa. E, em geral, essa história de “só” era uma das coisas que ele mais detestava.
– O senhor precisa nos pedir para salvar Gregor – disse o menininho. – E o país. E, por falar nisso, o resto do mundo também.
– Preciso mesmo?
– Sim, precisa.
– Mas por quê?
– Porque o senhor é o rei – disse o menino. – E se nós vamos morrer, queremos que seja pelo rei e pelo país, entende? Isso dá mais disposição de ânimo, entende?
O rei refletiu sobre aquilo.
– Tudo bem – disse ele, coçando a nádega direita. – Então eu lhes peço que salvem Gregor Galvanius. E o país. E, por falar nisso, o resto do mundo também.
– Oba, é isso aí! – gritou o garoto.
– Obrigada – disse a garota, fazendo uma mesura.
Lise não conseguia dormir. E não por ter comido um exagero de cachorros-quentes de Trøndelag do Sul. Nem por estar pensando em seu pai autoritário e em sua mãe autoritária, em Gregor, em camaleões lunares e no fim do mundo. Nem por causa do barulho de respiração e dos roncos e chiados que vinham dos beliches à sua volta. Era o outro som. Não o som do vento assobiando na asa-delta estacionada no gramado lá fora, onde Petter havia dito que eles podiam deixá-la, antes de ir a toda pressa para o centro de Klæbu para tomar chocolate quente e jogar pôquer. Era outro som, uma espécie de tinido.
Ela não conseguia adivinhar o que era, mas parecia vir de algum lugar dentro da cabana.
– Bumbão – ela sussurrou.
Porém a única resposta de Bumbão foi um sonoro ronco.
Lise afastou as cobertas com os pés, foi sorrateiramente até a porta e saiu para o corredor. Ela ficou ali por algum tempo, apurando os ouvidos, o piso frio feito gelo fazendo-lhe doer a planta dos pés.
O som vinha de uma porta que estava entreaberta no fim do corredor.
Ela foi até lá de mansinho e espiou.
A primeira coisa que viu foi um casaco pendurado nas costas de uma cadeira. Era a casaca do mordomo Åke. Alguém estava sentado na cadeira, de costas para Lise, batendo de leve e ritmadamente em algo que parecia um grampeador, mas que Lise identificou como um aparelho de telégrafo que usava o código Morse. Seu pai, que era comandante, tinha um igualzinho àquele no castelo de Akershus. Eles o tinham usado durante a guerra para transmitir mensagens, da mesma forma que as pessoas mandam mensagens de texto atualmente. Seu pai até lhe tinha ensinado o alfabeto do código Morse. Três sinais curtos, três longos e três curtos, por exemplo, significavam “SOS”. E “hi!”, que é “olá” em inglês, eram quatro sinais curtos e, em seguida, mais dois curtos. Mas para quem diabos o mordomo Åke estava mandando mensagens àquela hora da noite? Lise ficou paralisada ao ver a mão de Åke. Se é que era sua mão. Tinha dedos extraordinariamente compridos, que eram cobertos com pelos grisalhos e terminavam em unhas escuras.
Os olhos de Lise desceram para as costas da cadeira. E ali, através da parte de cima da abertura entre as pontas da casaca, ela viu alguma coisa pendendo entre as tábuas do encosto da cadeira. Uma coisa cor-de-rosa, em cachos salientes. E, embora ela nunca tivesse visto aquilo, Lise percebeu, instintivamente, que eram hemorroidas.
De repente o tinido parou. Mais do que depressa, Lise se escondeu atrás da porta. Ela prendeu a respiração e ficou à escuta, o coração pulando em seu peito. O mordomo Åke era um camaleão lunar! Será que ele a tinha ouvido? O medo lhe ordenava que corresse. Mas sua coragem lhe dizia que, se ela corresse naquele momento, ele a ouviria. Sua coragem levou a melhor. Ela esperou, implorando ao seu coração que batesse um pouquinho mais devagar. Segundos se passaram. Nada. Então o código Morse voltou a soar.
Lise soltou o ar dos pulmões. E contou. E se pôs a soletrar:
– S-A-B-O-T-A-D-O-R-E-S V-I-E-R-A-M V-I-S-I-T-A-R O R-E-I PONTO E-L-E-S Q-U-E-R-E-M S-A-L-V-A-R A R-Ã PONTO Q-U-E D-E-V-O F-A-Z-E-R? PONTO
Lise esperou. Então ela ouviu sinais de resposta:
– D-E-S-G-R-A-Ç-A-D-O-S! Y-O-D-O-L-F D-I-Z C-O-R-T-E-L-H-E-S A C-A-B-E-Ç-A E C-O-M-A-O-S N-O C-A-F-É D-A M-A-N-H-Ã PONTO G-O-R-A-N.
Coma-os no café da manhã!
Não havia tempo a perder; eles tinham de dar o fora dali!
Lise esgueirou-se para o corredor com o máximo cuidado. Uma tábua do assoalho rangeu. Ela teve a impressão de que a porta atrás dela se abrira, mas não se preocupou em se voltar para ver. “Comandante Papai”, ela pensou. “Comandante Papai, SOS, SOS!”
Capítulo 22.
Os Vencíveis vão virar
picadinho. Talvez
O REI ESTAVA SONHANDO que havia um jantar de gala no Palácio Real. Havia pompa e glamour e membros do gabinete do governo fazendo mesuras e salamaleques. Ele vestia seu uniforme com a faixa de seda em diagonal e o peito cheio de medalhas e acabara de explicar à sua acompanhante no jantar, a senhora Strobe, que uma das medalhas era chamada de “pequeno cavalo-marinho” quando sentiu alguma coisa sacudindo sua cadeira. E ao olhar para cima viu que era aquele quiroprático, Tenoresen. Aquele que cantava. Hallvard Tenoresen.
– Você está em minha cadeira – disse Tenoresen. – Fora daí!
O rei ficou no mesmo lugar, mas Tenoresen não parava de sacudir a cadeira.
– Acorde, Vossa Majestade!
O rei abriu os olhos e viu a cara do mordomo Åke.
– O senhor precisa vir, Vossa Majestade. Seus hóspedes se trancaram no quarto. Preciso das chaves.
– Trancaram-se no quarto? Por que diabos...
– Eu não sei, mas eles não querem abrir a porta. Estão planejando alguma coisa. Acho que eles foram enviados por Tenoresen.
“Tenoresen!” O rei pulou da cama, vestiu o roupão de banho, enfiou a mão no urinol ao lado de sua cama e tirou um molho de chaves.
– Ahá! – disse Åke, estendendo a mão para pegar as chaves.
– Eu também vou – disse o rei.
Só quando eles estavam atravessando o corredor, dirigindo-se ao quarto de hóspedes, é que o rei notou a grande espada enferrujada que Åke carregava consigo.
– Para que é isso? – ele perguntou.
– Para decapitá-los. Isto é, caso eles resistam.
– Isso não será necessário – disse o rei, batendo na porta. – Tenho certeza de que existe algum mal-entendido. Rosemarie! Quem está aqui é Sua Majestade! O que está acontecendo?
Nenhuma resposta.
O rei voltou-se para Åke.
– De todo modo, para que você precisou vir ao quarto deles no meio da noite?
– Para cortar-lhes... ahn... bem, para ver se seus penicos precisam ser esvaziados.
– Ah, bom – disse o rei. Ele achou a chave certa no molho e a enfiou na fechadura.
– Rosemarie! Eu estou entrando!
Ele girou a maçaneta e mal tinha aberto a porta quando o mordomo Åke passou depressa por ele e entrou no quarto com a espada erguida acima da cabeça.
– Não faça... – disse o rei, mas era tarde demais. Houve um som de pano rasgando-se quando a espada cortou o tecido de um dos colchões, e uma nuvem de penas ergueu-se no ar. Depois outro colchão. Depois outro.
– Mordomo Åke! – gritou o rei.
– Mordomo rei! – zombou Åke, e soltou uma risada alta e sonora, continuando a golpear incessantemente. – Estou preparando o café da manhã, Vossa Alteza Real – suspirou Åke.
O rei mal conseguia vê-lo em meio à tempestade de penas. Mas ele conseguiu ver a janela aberta perto dos beliches. Åke tinha parado de desferir seus golpes e berrava, furioso:
– Onde estão aqueles seres humanos covardes?
No silêncio que se seguiu, o rei ouviu a voz do ruivinho.
– Três, dois, um.
O mordomo Åke precipitou-se para a janela.
– Aí estão vocês!
– Zero!
– Eu vou fazer carpacci...
Houve uma explosão. A cabana tremeu.
– O-o-que foi isso? – gaguejou o rei.
Åke virou-se devagar para encarar o rei. Seu rosto estava polvilhado com uma camada de neve.
– Isso – disse ele, enquanto a neve lhe caía da boca – foi o barulho dos rebeldes fugindo. Mas você não vai conseguir fugir.
– Vossa Alteza Real – lembrou o rei.
– O quê? – perguntou Åke, e mais neve lhe caiu do rosto.
– Você se esqueceu de dizer Vossa Alteza... – O rei fitava o rosto de Åke, que estava completamente irreconhecível. Estava escuro, com cabelos grisalhos, queixo pontudo e, na boca aberta, minúsculos dentes afiados.
– Puxa vida, é isto que eu chamo de esperar até o último minuto – disse o doutor Proktor, tirando sua touca de dormir, colocando os óculos de natação e manejando a asa-delta em volta de uma pequena nuvem, um cúmulo solitário. – Estão todos aqui?
– Eu estou – disse a senhora Strobe.
– Eu também – respondeu Lise.
– E eu estou aqui – disse Bumbão.
Bumbão colocou a cabeça para fora do saco de dormir e olhou para baixo. Trøndelag do Sul estava desaparecendo atrás deles e, lá embaixo, o luar brilhava sobre picos cobertos de neve e lagos tomados pelo gelo. Tudo acontecera tão depressa que ele nem tinha tido tempo de acordar. Ele mal tivera tempo de vestir as calças e calçar um sapato. O outro estava no bolso de seu casaco. Bumbão apalpou-o para ter certeza de que ele estava lá. Ele achou as luvas e o cachecol. E...
– Perry!
– O que está havendo, Bumbão?
– Eu me esqueci de Perry! Ele ainda está na cabana!
– Puxa! – exclamou o doutor Proktor. – Agora é tarde demais para voltar. Mas, se eu conheço Perry, tenho certeza de que ele conseguiu se esconder.
Bumbão puxou os cabelos e gemeu:
– Mas o que ele vai fazer sem nós?
– Pegar moscas e manter-se longe daquele babuíno até isso tudo acabar – disse Lise. – Prometo que vamos voltar para levá-lo conosco, Bumbão.
– Lise tem razão – disse o doutor Proktor. – O que precisamos fazer agora é voltar para Oslo. Salvar Gregor. E o mundo. E, em seguida, se a essa altura não tivermos sido degustados num café da manhã, Perry.
– Pobre Perry – disse a senhora Strobe. – E pobre, pobre Bumbão.
Bumbão enfiou a cabeça de novo no saco de dormir e ficou apático todo o tempo, até que Lise gritou:
– Elverum! Estamos chegando! – e ele esticou a cabeça novamente e olhou para a pequena cidade sobre a qual eles planavam. No leste, uma faixa vermelha apareceu sob toda a escuridão. Um novo dia estava nascendo. Bumbão resolveu livrar-se do desânimo. Afinal de contas, eles não podiam fazer nada. A gente sempre perde alguma coisa numa guerra, mas a vida continua. Deve continuar. E a paisagem à sua volta era tão bonita que quem amava a vida não tinha tempo a perder.
Capítulo 23.
Soluços e aterrissagens
difíceis
QUANDO O CÉU NASCEU EM TRØNDELAG DO SUL, o rei estava deitado de costas no beliche, olhando para uma teia de aranha no teto. E como ele era um rei que morria de vontade de ter companhia e estava completamente só, lamentavelmente confinado atrás de janelas fechadas e uma porta fechada, e sem ninguém com quem conversar, ele concluiu que podia muito bem falar com a aranha que estava no meio da teia.
– Um babuíno... quem haveria de imaginar? Quem haveria de acreditar que meu mordomo é um infame babuíno que fala.
– Hic! – disse a aranha.
– Exatamente – falou o rei. – Talvez eu esteja louco, porque agora mesmo tive a impressão de ouvir uma aranha soluçar.
– Hic! – disse a aranha.
– Obrigado – disse o rei. – Você também parece muito solitária e desamparada. Você ouviu o que o babuíno disse? Que ele esteve me enganando o tempo todo, que ele é um espião encarregado de vigiar o que eu estava fazendo e veio me procurar. Você já tinha ouvido uma coisa dessas?
– Hic-hic!
– O que você acha que o babuíno vai fazer conosco agora?
Mas pelo visto a aranha não tinha uma resposta para essa pergunta. Pelo menos ela não soluçou.
– Sim, sim – disse o rei espreguiçando-se. Ele achava que se a gente examinasse bem as coisas sempre haveria um lado bom. Pelo menos ninguém poderia censurá-lo por ficar na cama, e não havia nada de que ele mais gostasse do que se deixar ficar molemente na cama. Bem, exceto fazer palavras cruzadas, claro. E agora ele não teria tampouco de escrever aqueles pronunciamentos. Puxa, ele era um rei folgado. Mas não se podia fazer nada quanto a isso. O rei fechou os olhos, já se sentindo um pouco mais à vontade agora que se entregara a esses pensamentos. Ele procurava não pensar na espada que Åke enfiara debaixo de seu nariz nem no som da chave girando na fechadura quando ele tinha sido trancado. Durante o resto da noite, ele ouviu Åke usando o aparelho de telégrafo que ele mantinha no fim do corredor. “Clac, clac, ponto. Clakety, clac, ponto, clac.” Mas, quando o rei tentou espiar pelo buraco da fechadura, para ver o que estava acontecendo, notou que a chave fora deixada no buraco, do outro lado da porta, e o impedia de ver. Ele farejou o ar. Que cheiro era aquele? Waffles? Não, não eram waffles, era o cheiro da gordura de uma forma de waffle que estava sendo aquecida. Bem, bem, pelo menos ele teria waffles no café da manhã.
Esse pensamento fez com que o rei se sentisse um pouco melhor e adormecesse.
– Ai!
Seus olhos se abriram instantaneamente. A aranha estava em cima de seu nariz, olhando para ele com seus oito olhos pretos.
– Vo-vo-você me mordeu?
– Hic!
– O que significa isso?
Sem dar um soluço como resposta, a aranha saiu em disparada pelo colchão, desceu pela coluna da cama, cruzou o quarto, subiu pela porta e desapareceu no buraco da fechadura.
– Que animal estranho – murmurou o rei, fechando os olhos. E, então, ele ouviu novamente o som de uma chave girando no buraco da fechadura. O café da manhã! Ele esperou a porta se abrir, mas nada aconteceu. Em vez disso, a aranha reapareceu no buraco da fechadura. Ela estava puxando atrás de si um lustroso fio de teia de aranha.
– Hic!
– Hic pra cá, hic pra lá – disse o rei, rolando na cama e virando a cara para a parede. Ele bocejou, fechou os olhos e sonhou com bombas de chocolate e pãezinhos recheados com creme que já estavam a caminho. Mas será que aquilo tinha sido mesmo o barulho de uma chave girando na fechadura? O rei abriu os olhos de novo. E o que aquilo tinha a ver com a aranha? Aquele fio de teia... não podia ser. O rei levantou da cama e foi até a porta na ponta dos pés. Com todo cuidado, ele girou a maçaneta. E... abriu a porta! A porta estava aberta! Ele olhou para a chave, que estava do lado de fora, e para as teias de aranha enroladas na ponta da chave. Será que aquela aranha tinha mesmo conseguido girar aquela chave grande usando sua teia?
Da porta entreaberta no fim do corredor vinham os sons do código Morse. “Clac, clac, ponto.” E o rei percebeu que aquela era sua chance, sua chance de fugir!
Ele calçou os sapatos e amarrou os cadarços. Mas então ele pensou: “Fugir de quê?” De waffles no café da manhã? Ele tinha de pensar sobre aquilo. Ele não via motivo para fugir. Ainda assim, alguma coisa o incomodava, alguma coisa que o menino ruivo dissera. Sobre ser rei. E, para falar a verdade, ele não sentia o cheiro da massa de waffle, só o da forma. Ele andou na ponta dos pés em direção à porta da frente da cabana, mas parou de repente. Seus sapatos estavam fazendo muito barulho. Ele apurou os ouvidos, mas o aparelho de telégrafo da sala ao lado continuava funcionando. Ele se concentrou para fazer seus passos coincidirem com os estalidos da máquina do telégrafo. Não era fácil. “Clac, clac, ponto. Clict, clac, ponto, clac.” Aquilo virou uma dança esquisita, mas finalmente ele chegou à porta. Ele apanhou as chaves de seu carro, que estavam penduradas no chaveiro na parede, agarrou seu casaco de arminho, que estava pendurado no cabideiro, e estava quase saindo sorrateiramente quando sentiu alguma coisa cutucar sua nuca. Ele ficou paralisado até descobrir que não se tratava da espada de Åke: era a aranha! Ela lhe subira pelo corpo e agora estava acomodada na gola branca de arminho de seu casaco.
– Você está contratada, companheira – sussurrou o rei. – E o mordomo Åke está despedido.
E com isso ele se foi, o mais rápido que pôde, pelo caminho que levava ao velho Rolls-Royce preto que tinha sido dado ao seu bisavô como presente do rei da Inglaterra e do Império Britânico. Ele entrou atrás do volante e pôs a chave na ignição. De repente ele desejou ter um daqueles confiáveis carrinhos japoneses que sempre davam a partida sem problemas, mas a única coisa que eles podiam fazer era cruzar os dedos e torcer para que o carro pegasse. Ele puxou o afogador, pôs o pé no acelerador e girou a chave de ignição.
O motor gemeu: “Oink, oink, oink.”
No mesmo instante ouviu-se um berro na cabana.
– Ei! Pare! Que droga, Vossa Majestade!
O rei tentou novamente. “Oink, oink” e, mais uma vez, “Oink, oink.”
– Vou meter você na forma de waffle! Preciso de meu café da manhã!
O rei enfiava o pé desesperadamente no acelerador porque viu pelo retrovisor um enorme babuíno macho, pelado, aproximando-se rapidamente.
– Ligue já, sua miserável carroça britânica! – exclamou o rei freneticamente.
A imagem do babuíno já ocupava todo o espelho retrovisor quando o motor finalmente se pôs a funcionar. O rei tirou o pé da embreagem, avançou pela estradinha de acesso e entrou na estrada principal.
– Puxa! Essa foi por pouco, companheira – disse o rei, olhando pelo retrovisor. E tudo o que ele viu foi a cabana. Nem sinal do babuíno.
– Hic! – fez a aranha, que subira no painel de instrumentos do carro.
– O que é isso, companheira? – perguntou o rei, olhando de novo pelo retrovisor. E praguejou baixinho e regiamente. Acima do porta-malas, quase imperceptíveis, ele viu duas orelhas pontudas, peludas e algumas mechas grisalhas. O babuíno estava no para-choque traseiro do carro. Será que aquele macaco não sabia que as regras de trânsito de Trøndelag do Sul proibiam estritamente que alguém viajasse daquela forma? O rei tornou a olhar para a frente. Ele avistou alguma coisa lá adiante e percebeu que um sorriso de esperança tomava conta de seu rosto. Então ele abriu sua janela, meteu o pé no acelerador e gritou a plenos pulmões:
– É hora de você se estatelar na estrada, Åke!
Ouviu-se um barulhão quando a lombada bateu embaixo da carroceria do Rolls-Royce, levantando no ar a traseira do carro, como um cavalo escoiceando. Eles ouviram o guincho de um macaco enlouquecido, que logo sumiu na distância.
O rei olhou pelo espelho retrovisor e riu. Ele perguntou à aranha:
– Ei, companheira, quer ver um babuíno voando?
E ali – em algum ponto entre Trøndelag do Sul e o céu – um babuíno grisalho pôde ser visto suspenso no ar por um instante, antes que ele começasse a despencar rumo ao chão.
– Vamos para a Noruega – disse o rei acelerando.
Durante a última meia hora os Quatro Vencíveis quase só tinham visto florestas lá embaixo. Um ou outro lago, vez por outra uma estrada, mas quase nenhuma casa. Eles tinham perdido altura aos poucos e, agora, a asa-delta estava voando perigosamente, quase roçando o topo das árvores.
– Receio que a gente não consiga chegar a Oslo – disse o doutor Proktor.
– Há uma clareira logo ali na frente! – gritou Bumbão.
Com efeito, a escuridão das árvores de repente desapareceu e abaixo deles havia um lago congelado. O doutor Proktor manobrou para aterrissar e balançou suas pernas compridas fora de seu saco de dormir.
– Apertem seus cintos de segurança! – gritou ele.
E então eles chegaram ao chão. O professor fincou o salto dos sapatos no gelo, mas a asa-delta tamanho família estava tão sobrecarregada que ele não conseguiu fazê-la parar. O veículo tombou para a frente e, um segundo depois, estavam todos estirados num monte de gelo.
– Todos estão bem? – gritou o doutor Proktor, ajudando a senhora Strobe a levantar-se.
– Temos uma baixa – disse Bumbão, olhando aflito para a parte dianteira despedaçada da asa-delta.
– O que vamos fazer agora? – perguntou Lise tão logo ela conseguiu limpar as roupas e olhar para a floresta sombria que os rodeava, cercando o lago congelado por todos os lados.
– Vamos usar a maior invenção do mundo para viajar – disse o doutor Proktor.
– E o que é? – perguntou Bumbão, entusiasmado.
– As pernas – disse o doutor Proktor, pondo-se a andar.
Eles entraram na floresta, patinhando na neve até chegar sob as árvores, onde a neve não era tão profunda. E continuaram a andar.
Depois de algum tempo, fizeram uma pausa para descansar na encosta de uma colina.
– Não que eu esteja reclamando, não é nada disso – disse a senhora Strobe, que se sentou num cepo de árvore. – Mas eu perdi meu sapato na aterrissagem. E não sei se vou conseguir andar por muito mais tempo.
Ela não disse uma palavra sobre seu pé machucado, mas agora, que ela estava sem meias, eles viram que ele estava sangrando e inchado.
Foi então que eles ouviram um barulho familiar. Um carro.
Em seguida o barulho desapareceu.
Bumbão correu na direção de onde tinha vindo o barulho, depois correu de volta imediatamente.
– Há uma estrada logo ali adiante – disse ele.
Eles ampararam a senhora Strobe para que ela pudesse andar e logo chegaram a uma estreita estrada de cascalho.
– Se um carro passou por aqui, certamente passará mais algum – disse o doutor Proktor. Então eles começaram a esperar. E esperaram um pouco mais. E continuaram esperando.
– Não vem ninguém – suspirou Lise depois de um bom tempo de espera.
– Bobagem – disse Bumbão. – Isto é exatamente como ficar esperando que a água de uma panela comece a ferver. Você tem de parar de olhar porque aí ela logo começa a ferver. Vamos voltar para a floresta.
Com certa hesitação, os outros seguiram Bumbão. E no mesmo instante em que chegaram à orla da floresta ouviram o ronco de um motor aproximando-se pela estrada.
– O que é que eu lhes disse? – gritou Bumbão, correndo de volta para a estrada. E, com efeito, vinha vindo um carro.
– Então vamos pedir uma carona – disse o doutor Proktor, estendendo o polegar.
– Bem, há caronas e caronas – disse Bumbão, posicionando-se no meio da estrada estreita e sacudindo ambos os braços.
Dez segundos depois, eles estavam acomodados num carro quentinho.
– Foi muita gentileza de sua parte – disse a senhora Strobe, e então espirrou.
– Sem problema – disse o motorista. – Então, por que estão indo para Oslo?
– Vamos resgatar Gregor Galvanius – disse Bumbão. – E a Noruega. E o resto do mundo, por falar nisso. E quanto a você?
– Eu? Recebi uma carta do exército dizendo para me apresentar no Palácio Real. Eles vão nos dar uniformes e rifles e nos mandar para a Dinamarca.
– Você tem certeza de que é uma... boa ideia? – perguntou Lise, de onde se encontrava, apertada no banco traseiro.
O motorista olhou-a pelo retrovisor.
– É uma grande ideia. Se nóis não os conquistarmos, eles virão nos conquistar. Você não tem ouvido os pronunciamentos do presidente?
– Ah, agora que você falou nisso – disse o doutor Proktor –, será que podemos ligar o rádio?
– Claro – disse o homem, ligando o rádio. Dos alto-falantes, jorrou música de coral. O doutor Proktor mudou para outra estação. Canto coral. E para outra. Mais canto coral. O doutor Proktor continuou mudando de estações, mas de nada adiantou. Havia música de coral em todas as estações.
– Que estação vocês querem ouvir? – perguntou o motorista.
– Nós queremos ouvir o pronunciamento do rei – disse o doutor Proktor.
O motorista lançou um olhar esquisito ao professor.
– Que rei?
– O rei.
– Não sei de nenhum rei.
Os outros passageiros ficaram paralisados.
O doutor Proktor limpou a garganta.
– Tenho certeza de que você reconheceria a voz do rei se a ouvisse. E entenderia que suas recomendações para não ouvir Hallvard Tenoresen são razoáveis.
O professor praticamente bateu a testa contra o para-brisa quando o motorista pisou no freio. Eles pararam de repente no meio da pista.
– Acho que é aqui que vocês devem descer – disse o motorista, fazendo um sinal para que o doutor Proktor abrisse a porta.
– Mas...
– Fora! Não quero traidores em meu carro.
– Bem, bem – suspirou o doutor Proktor enquanto ele e os outros três Vencíveis olhavam o carro desaparecer sob a pesada nevasca. Então eles começaram a avançar com dificuldade pela estrada. Mas a cada curva eles viam mais árvores, mais neve, mais curvas.
Eles andavam. E tremiam de frio. Andavam e tremiam. Eles tentaram algumas vezes se afastar da estrada e entrar na floresta, mas não funcionou, não apareceu nenhum carro. Então eles continuaram a andar. E a tremer.
– Será que não vai passar um ônibus logo? – perguntou Lise com um suspiro.
– Será que não teremos o café da manhã logo? – perguntou Bumbão, cuspindo as agulhas de pinheiro que estava mastigando.
– Tec-tec-tec – na boca da senhora Strobe, os dentes batiam de frio. – Será que o verão não vai chegar logo?
E então, depois de todo esse tempo, eles finalmente ouviram um barulho. Em seguida, um pouco mais de barulho. E, depois, um verdadeiro barulhão.
– O-o-o que pode ser isso? – perguntou a senhora Strobe, e espirrou.
– Hum – fez o doutor Proktor, olhando para o céu. – Esse tipo de barulho pode ser produzido por uma esquadrilha de bombardeiros. Talvez eles já estejam a caminho da Dinamarca.
– Oh, não! – queixou-se Lise, desesperada. – Não vamos conseguir salvar coisa nenhuma!
O barulho estava cada vez mais perto.
– Vamos sair deste descampado! – disse o doutor Proktor. – Vamos nos esconder no meio das árvores!
– Espere – disse Bumbão. – Não são bombardeiros. É um lá maior. Um perfeito lá maior, de fato.
Eles pararam e voltaram os olhos para a última curva da estrada.
E então a coisa surgiu diante de seus olhos: uma motocicleta ensurdecedora, com o maior carrinho lateral já visto neste mundo. Na verdade, tratava-se de um camarote de teatro com espaço para acomodar uma pequena orquestra inteira.
E quem conduzia a motocicleta era um cara que eles reconheceram. Apesar de ele estar usando um antiquado casaco vermelho com gola de pelos brancos.
– V-V-Vossa Alteza Real! – exclamou a senhora Strobe, batendo os dentes.
Mesmo a grande distância, eles perceberam que o cara que conduzia a motocicleta se animou e começou a frear. A motocicleta deslizou para um lado, depois, um pouco para trás, em seguida, um pouco para o lado e, então, decididamente para a frente, antes de, por fim, parar diante deles.
– Perry! – exclamou Bumbão ao avistar seu amigo de sete pernas na gola branca do homem.
– Rosemarie! – o rei exclamou. – E... e... – Não obstante, dava para ver que ele não se lembrava do nome de nenhum dos outros, então ele desistiu. – E todos os demais! Vocês não fazem ideia do que aconteceu depois que partiram. Eu...
– Espere – disse o doutor Proktor. – Não temos muito tempo. Conte-nos a história durante a viagem. Todos para o carrinho lateral! – O professor olhou para o rei e acrescentou: – E quem vai dirigir sou eu.
– Mas... mas eu sou o rei!
– A motocicleta é minha – disse o doutor Proktor, passando a perna por cima da motocicleta na frente do rei e usando o traseiro para empurrá-lo mais para trás no banco. – Todo o mundo a bordo?
A resposta foi um uníssono “Sim!”, vindo do carrinho lateral. O doutor Proktor acelerou o motor e eles partiram em velocidade.
Capítulo 24.
Um plano B para Bumbão
E, ENQUANTO ELES AVANÇAVAM, o rei contou sua história, falando o mais alto que conseguia, de forma que os outros pudessem ouvi-lo em meio ao barulho do motor.
Ele contou como fora sua fuga no Rolls-Royce. E que, quando chegara à fronteira, a barreira estava fechada, e que dois estranhos guardas de fronteira lhe tinham dito que ninguém podia entrar, principalmente reis. E que ele tinha feito meia-volta e, no caminho, dera carona a um sujeito vestido com uma malha vermelha.
– Ele gritou que seu nome era Petter, que tinha perdido todo o seu dinheiro jogando pôquer em Klæbu e que estava ansioso para voltar para casa e para todas as suas asas-delta.
Então o rei tinha levado Petter de volta para casa. E, depois de servir-lhe um pouco de chocolate quente e vencê-lo quatro vezes no xadrez chinês (e a cada vez que ganhava ele gritava: “Eu sou o primeiro e único Petter, e que danado de Petter eu sou!”), Petter o conduzira em seu barco a remo até o outro lado do rio e lhe dissera que acompanhasse as linhas de alta-tensão. Assim, ele entraria na Noruega sem ser visto. Então o rei seguira algumas pegadas na neve, que o tinham levado a uma casa vermelha, onde morava um senhor idoso. Este lhe dissera que fazia as pessoas atravessarem clandestinamente a fronteira e também era capaz de realizar curas pela imposição das mãos.
– E foi ele quem me vendeu esta motocicleta – disse o rei.
– Vendeu? – exclamou o doutor Proktor. – Ele vendeu minha motocicleta ao senhor?
– É isso mesmo. Por 1.111 dólares. A motocicleta mais a imposição das mãos. Na verdade, ele curou minha artrite do fígado e minha bronquite retal. Sujeito esperto. Eu nem sabia que sofria dessas doenças!
Eles avançaram zunindo pela floresta e, depois de alguns cruzamentos, chegaram a uma estrada um pouco mais larga com menos cruzamentos. Aos poucos, eles começaram a ver um maior número de carros. Depois, um pouco mais. E, finalmente, eles avistaram uma placa onde se lia:
OSLO 11 quilômetros
Quando o relógio da torre da Prefeitura de Oslo bateu 3 horas, a motocicleta estava estacionada na frente da Confeitaria do Syvertsen. E depois que a mulher cujo nome não era Marete serviu-lhes mais chá, que os dentes da senhora Strobe pararam de bater e Bumbão comeu o equivalente a dois cafés da manhã e meio, o doutor Proktor limpou a garganta e disse:
– Bem, o que sabemos é que, se vamos resgatar Gregor e, por falar nisso, o país e o mundo, precisamos agir logo. Infelizmente, não sabemos onde está Gregor nem quais são os planos de Yodolf para atacar a Dinamarca. E sem essa informação vai ser difícil salvar quem quer ou o que quer que seja.
– Pena que o senhor não saiba código Morse – disse Lise ao rei. – Se soubesse, poderia nos dizer o que o mordomo Åke estava dizendo.
– Eu só me lembro de que estava tentando sair de mansinho da cabana, sincronizando os passos com o barulho do aparelho – disse o rei com um suspiro, a boca cheia de waffle. – Era algo como “clict” e “clic-clic-clic-clic”, ou coisa assim.
– Bem, poderia ser um “E” e depois um “S” – disse Lise. – Mas isso não adianta nada.
– Você conhece código Morse? – perguntou o rei, muitíssimo impressionado.
Lise fez que sim.
– O senhor não se lembra de nem um pouquinho mais?
– Deixe-me espremer meu cérebro – disse o rei, começando a fazer caretas.
– Hic-hic-hic, hi-hi-hi!
– Isso significa um “S” e um “E” – disse Lise.
– Eu não disse nada – protestou o rei, deixando de espremer o cérebro com um gemido.
– Hic. Hic-Hiic-hi-hi-hi hic-hi hic-hi-hic hic-hic-hic-hic-hic-hic.
Cinco pares de pupilas fitavam Bumbão. E as duas pupilas de Bumbão estavam voltadas para cima, tentando ver o alto da própria cabeça, onde Perry estava empoleirado, soluçando.
– Hic-Hiic-hi-hi-hi hic-hi hic-hi-hic hic-hic-hic-hic-hic-hic.
– Mais um “S” – disse Lise. – E, depois, BOBALHÕES.
– ESSES BOBALHÕES! – gritou Bumbão ansiosamente. – Perry se lembra do código Morse! Você se lembra de mais alguma coisa, Perry?
E Perry se lembrava. Finalmente, Lise pegou uma caneta para anotar as letras. E quando Perry por fim terminou, ela leu o que escrevera em seu guardanapo.
– Esses bobalhões vão para Oslo para resgatar aquela rã maluca.
A senhora Strobe assoou o nariz com um grande lenço.
– Esgatar aguela rã maluca? – ela falou, cuspindo saliva, com o nariz bastante congestionado e já levantando a mão no ar.
– E tem mais – disse Lise. – Com certeza, trata-se da resposta de Oslo. Os bobalhões chegarão tarde, ha, ha. Porque nós o prendemos na masmorra da torre do Palácio e a primeira coisa que vamos fazer amanhã é assá-lo para o café da manhã. Estamos tocando a canção do BABA para mantê-lo submisso. Esperamos um belo waffle no café da manhã antes de invadir a Dinamarca. Fique de olho no rei Bobão.
– Rei Bobão?! – escarneceu o rei, também levantando os braços.
– Temos de salvar o senhor Galvanius antes que eles o transformem em waffle – disse Bumbão.
– Eles perceberam que ele não pode ouvir a canção do BABA, pois isso exaure suas forças – disse Lise.
– Bobre, bobre, bobre guerido, guerido e doce Gregor – disse a senhora Strobe, enxugando uma lágrima do olho. O rei olhou para ela espantado.
– Vossa Alteza Real – disse o doutor Proktor. – O senhor tem de fazer um pronunciamento na TV. Agora, imediatamente! O senhor tem de usar toda a sua influência real para que o povo invada o Palácio Real antes que se façam os waffles amanhã de manhã!
– Ah, é? – perguntou o rei, que ainda estava olhando para a senhora Strobe, que se desfazia em soluços. O rosto dele assumira um tom esverdeado. – Salvar aquele pobre, pobre, querido, querido, DOCE cara? Como se um rei não tivesse nada mais importante para fazer?
– Oh, mas Bossa Alteza Eal – fungou a senhora Strobe, pegando o guardanapo em que Lise estivera escrevendo. – O senhor tem de fazer isso.
– Tenho, Rosemarie? – perguntou o rei, cruzando os braços. – E se eu não fizer?
Rosemarie fitou o rei por um bocado de tempo. Então ela respirou fundo. E meio que resfolegou antes de pôr o guardanapo sob o comprido nariz e soltar o ar num longo barrido de elefante, numa explosão que fez suas narinas vibrarem, os lustres tilintarem, e todos os que estavam na Confeitaria do Syvertsen olharem em volta de suas mesas, assustados. Então ela fitou o rei com seu Olhar Strobe.
Mas o rei balançou a cabeça resolutamente.
– Pode continuar com essa sua azucrinação. Eu não vou salvar nenhum cara bobalhão, que eu nem ao menos conheço, mas por quem você está tão caída de amores que está disposta a fazer qualquer coisa por ele.
A senhora Strobe ficou boquiaberta e perdeu completamente seu olhar Strobe.
– Você acha... você acha que eu estou apaixonada por...
– Isso é óbvio para todos nós – disse o rei. – E isso me magoa, Rosemarie. – Sua voz estava, de repente, à beira das lágrimas. – Isso me magoa profundamente. Quero que você saiba. Quer dizer... eu sou o rei, não sou? E quem é ele? Uma rã? Sinto muito, Rosemarie, mas isto é terrivelmente humilhante. Você tem de se livrar dessa trapalhada em que se meteu.
A senhora Strobe e os demais olharam estupefatos para o rei, que se levantou, sacudiu de seu casaco os farelos de bolo, saiu e bateu a porta atrás de si com tamanha força que a sinetinha balançou e tilintou.
– Bem, a coisa não funcionou muito bem, não é? – disse o doutor Proktor.
– O que vamos fazer agora? – suspirou Lise.
– Simples – disse Bumbão, saltando em cima da mesa. – Agora, os Vencíveis recorrem ao plano B, é claro.
– Existe um plano B?
– Bem, há, existe e existe – disse Bumbão. – Naturalmente, primeiro temos de bolar o plano. Mas ele será estupendo. O plano B de Bumbão. Um planozinho maravilhoso e sardento. Tão engenhoso quanto elegante e simples. Em resumo: um plano B tão bom que ninguém haverá de acreditar que não era o nosso plano A!
O doutor Proktor limpou a garganta.
– Se você estiver disposto a nos explicar seu plano, talvez possamos colocá-lo em prática.
– Claro – disse Bumbão, pulando da mesa de volta para o chão. – Alguém tem alguma ideia?
Por um bom tempo, fez-se silêncio em torno da mesa.
Finalmente a senhora Strobe tomou a palavra:
– Que tal se dós forbos à dorre do gárcere, abrirmos a borta e... bem, libertarbos Gregor?
– Bem, isso certamente é muito simples, senhora Strobe – disse Bumbão. – Mas, com o devido respeito, não é nada engenhoso nem elegante. Isto é, a menos que a senhora deseje ardentemente se ver transformada em waffles. A torre é muito mais bem vigiada do que o Banco da Noruega. Além disso, eles sabem que estamos pretendendo resgatar Gregor. Temos de passar a perna neles de alguma forma. Alguma outra sugestão?
O silêncio pairou por tanto tempo que se podia ouvir o ponteiro dos minutos no relógio da parede. O ponteiro avançava para o que eles sabiam que ia acontecer se não bolassem alguma coisa engenhosa e astuciosa.
– Acho que tenho uma ideia – disse Lise.
– Que ideia? – perguntaram todos ao mesmo tempo.
– Vamos para um hotel – disse Lise.
Capítulo 25.
O hotel e a grande
tentativa de fuga
ERA NOITE EM OSLO, e a Lua, pairando em um céu sem nuvens e cheio de estrelas, lembrava uma lanterna de papel amarelado. O luar banhava o Radisson Hotel, com seus vinte andares de altura e próximo ao Parque do Palácio, a não tão alta torre da masmorra do Palácio Real e também o grande e brilhante aparelho que se encontrava bem perto do portão, um aparelho que tinha uma sinistra e assustadora semelhança com uma forma de waffle, só que cem vezes maior. E a Lua iluminava também a estradinha de acesso ao pátio traseiro do Palácio Real, que estava sendo vigiado por dois homens de bigodes, usando o uniforme preto da guarda real, com chapéus amarfanhados com grandes borlas toscas.
– Nóis temos um céu realmente muito bonito aqui na Noruega – disse o guarda de bigode de pontas viradas. – Você não acha, Gunnar?
– Tenho de reconhecer que sim, Rolf – disse o homem com bigode de Fu Manchu. – Ninguém tem estrelas mais belas que as nossas, da Noruega.
– Sim, eu me comovo só em pensar que Deus iscolheu exatamente o nosso país para brindar com um céu tão fromoso, sabe?
– Não é surpresa nenhuma que os dinamarqueses queiram roubar a nós um céu desses.
– Roubar a nós, uma terra de Champeães, isso é um insulto! Devo dizer que estou ansioso para esliminá-los.
– Acho que o certo é dizer “eliminá-los”, Rolf.
– Sim, você tem toda razão, Gunnar. E, é claro, também estou ansioso para a execução, amanhã cedinho.
– Aposto com você que sei o que o camarada rã está pensando exatamente agora – disse Gunnar, o de bigode de Fu Manchu.
Os dois lançaram um rápido olhar à torre da masmorra, cuja silhueta se desenhava contra o céu estrelado.
– Que estranho – disse Fu Manchu, batendo o pé no chão. – Por um segundo tive a impressão de ver um menininho suspenso no céu ali em cima.
– Ho, ho, ho! – fez o Bigodes de Guidão.
Bumbão ficou absolutamente parado, mantendo o equilíbrio. Ele parara de repente, quando os dois guardas lá embaixo olharam para cima. Será que eles o tinham visto? Tomara que não.
Ele sentiu uma pequena vibração na teia de aranha quase invisível e esticada sob os sapatos equilibristas. Com todo cuidado, voltou-se para o outro lado e olhou para o Radisson Hotel. Mais especificamente para o quarto 1146, onde o fio de teia de aranha desaparecia janela adentro e se fixava em volta do frigobar a um canto. E, na escuridão, ele divisou as silhuetas de Lise, do doutor Proktor e da senhora Strobe na janela. Então ele se voltou novamente para olhar para a torre da masmorra. Sempre ventava muito mais naquelas alturas do que poderia imaginar quem estivesse lá embaixo, no chão firme. Mas naquela noite o vento o tinha ajudado.
Já haviam se passado vinte minutos desde que os cinco tinham entrado às pressas no hotel e pedido um quarto bem no alto, com vista para o Palácio Real. E, felizmente, o quarto 1146 estava livre. Então o recepcionista lhes dera um cartão que servia de chave e eles tinham pegado o elevador para o 11º. andar. De lá, eles puseram em prática o plano de Lise. A menina lera em algum lugar que, quando as aranhas querem cobrir longas distâncias, elas simplesmente tecem para si mesmas uma teia que lhes serve de vela e usam-na para se deixar levar pelo vento. E a senhora Strobe balançara a cabeça confirmando que, de fato, era assim. E Perry tinha feito exatamente isso. Enquanto o doutor Proktor verificava se o vento estava soprando mais ou menos na direção certa, a ativa e esperta aranha tecera sua pequena asa-delta, prendera-a no frigobar e pulara da janela. E, em vez de despencar para o chão, onze andares abaixo, transformando-se em geleia de aranha, Perry voara na direção do parque do Palácio e, com um pequeno soluço, sumira na escuridão da noite.
Eles tinham esperado por quase dez minutos até que finalmente receberam o sinal: três puxões no fio, o que significava que Perry tinha conseguido chegar à torre da masmorra do Palácio Real e nela fixara o fio.
Então foi a vez de Bumbão. Isso porque, naturalmente, era Bumbão quem teria de ir: quem mais poderia ser? Daquela vez os outros logo reconheceram que ele era o único que eles sabiam ser leve o bastante para ser sustentado pela teia de Perry e que talvez até fosse pequeno o bastante para se enfiar por entre as barras da cela de Gregor.
Então Bumbão amarrara os cadarços dos sapatos equilibristas e, cuidadosamente, pisara no delicado fio de teia de aranha.
– Aqui está – tinha dito o doutor Proktor, passando-lhe os Protetores de Ouvido cor-de-rosa e uma pequena garrafa com o rótulo “Tônico Fortificante do Doutor Proktor com Pimentas Mexicanas Trovejantes. Potência Máxima”.
Então Bumbão tinha começado a andar. E continuara andando até o momento em que vira os dois guardas, no portão, olharem para cima de repente. Então ele tinha parado.
E assim voltamos para o ponto onde estávamos, com Bumbão imóvel sobre o fio e o guarda com bigodes de guidão rindo do guarda com bigodes de Fu Manchu porque este, por um segundo, pensara ter visto um menininho pairando lá em cima, em pleno ar.
Bumbão respirou aliviado quando percebeu que, afinal de contas, ele não tinha sido visto, e, então, continuou a equilibrar-se, dirigindo-se para a torre da masmorra.
Ele ouviu música. E uma voz conhecida de mulher cantando:
“Mamma mia, lá vou eu de novo
Meu Deus, como posso resistir a você...”
E ali, na escuridão, através de uma estreita fresta, ele viu cintilarem os oito olhos pretos de Perry.
Bumbão percorreu o último pedaço do trajeto, pulou para a sacada que circundava o alto da torre e esperou que Perry se arrastasse para o alto de seus cabelos, antes de enfiar a cabeça por entre as barras da abertura da janela.
Era uma cela escura com paredes nuas de pedra. Mas ali, à luz do luar e de uma vela bruxuleante, ele viu Gregor Galvanius. Ele estava preso à parede por meio de grilhões de ferro em volta dos pulsos e dos tornozelos. Exceto por um par de ceroulas brancas, ou, pelo menos, quase brancas, ele estava nu. A parte superior de seu corpo magricela tinha a mesma coloração branco-azulada do leite, e seu rosto, já de si triste, parecia ainda mais triste com a barba rala castanho-aloirada e as olheiras arroxeadas sob os olhos.
– Senhor Galvanius – sussurrou Bumbão.
Nenhuma resposta.
– Gregor, estamos aqui para resgatar você.
O pobre Gregor levantou o rosto de forma muito lenta e, a princípio, limitou-se a olhar inexpressivamente para Bumbão. Então, como se aos poucos ele se desse conta de que aquele era realmente Bumbão e não apenas um sonho, seu semblante se iluminou.
Bumbão enfiou-se por entre as barras e – shazam! – encontrou-se lá dentro.
– Olhe aqui – disse ele, segurando os protetores de ouvido cor-de-rosa. – Vamos colocar em você estes protetores de ouvidos e você não vai mais ouvir a música. Aí você toma um gole disto... – Ele girou a tampa da garrafa do tônico. – Potência máxima. Forte o bastante para que você possa quebrar os grilhões de ferro e aquela porta. Mas precisamos nos apressar, os outros estão esperando.
Ele estava colocando os protetores de ouvido em Gregor quando notou uma súbita mudança em sua expressão. Ou, antes, uma transformação. Porque ali, diante dos olhos de Bumbão, o rosto de Gregor Galvanius, inesperadamente, diminuiu. E ficou mais redondo. Em seguida, desapareceram a barba rala e as bolsas sob os olhos, e o rosto, de repente, encheu-se de sardas e ganhou um nariz arrebitado. E, finalmente, cabelos tão ruivos que só poderiam pertencer a um único menino que Bumbão conhecia.
Ele mesmo.
Bumbão ficou ali parado, fitando sua própria imagem no espelho. Então sua imagem especular começou a rir. Ela abriu a boca e dentes afiados apareceram, e uma língua cor-de-rosa ficou se agitando lá dentro, enquanto a risada explodia, abafando o canto de Agnetha. E quando olhou para baixo Bumbão viu dois pares de meias furadas, atravessadas pelas unhas dos pés, escuras e retorcidas. E uma longa cauda grisalha, que balançava para um lado e para o outro acima do piso de pedra.
– Aaaaaaah! – gritou Bumbão.
– Hic! – fez Perry.
– Duas vezes aaaaaaah! – gritou Bumbão.
– Hic, hic! – eles ouviram soluços que vinham de algum outro lugar.
A imagem especular de Bumbão, que ria e tinha uma cauda, afastou-se para um lado, e lá estava ele, o verdadeiro Gregor. Seus olhos estavam semicerrados, como se ele estivesse meio desmaiado.
– Eu estava esperando ansiosamente por esta visita – disse a imagem especular de Bumbão, e o menino reconheceu a voz que ouvira no Palácio Real. Era o próprio chefe. Yodolf Staler. E então o rosto e o corpo da criatura mudaram. E ele se transformou em Hallvard Tenoresen, que, em seguida, assumiu uma expressão de pesar. – Mas também estou um pouco triste porque nosso relacionamento logo acabará. Infelizmente, amanhã vocês dois vão ser transformados em waffles.
No mesmo instante a porta se abriu e quatro babuínos lunares saltaram para dentro. Tudo aconteceu tão rápido que Bumbão não teria tido tempo nem mesmo de dizer “bolo”, se ele tivesse vontade de fazer isso. Bem, trata-se de um exagero, ele poderia muito bem ter dito “bolo”. Mas talvez não “bolo com cobertura”. E, certamente, não diria “bolo gelado com cobertura”. Porque, antes que ele tivesse tempo de dizer “bolo gelado com cobertura” – se ele estivesse querendo dizer isso –, os babuínos agarraram o menino e o prenderam à parede junto a Gregor. Assim, agora os dois estavam dependurados lá, como goivos.
Yodolf aproximou-se de Bumbão, inclinou a cabeça e o examinou atentamente como se estivesse se perguntando que espécie de criatura estranha seria aquela. Então ele arrancou Perry dos cabelos de Bumbão, segurou a aranha entre o polegar e o indicador e olhou como se estivesse pensando em esmagar aquele troço de sete pernas. Mas mudou de ideia e, em vez disso, esvaziou a garrafa do tônico fortificante do doutor Proktor e colocou a aranha dentro dela, enroscou a tampa novamente e pôs a garrafa na beira da janela.
– Agora vocês poderão ver seu amigo sufocar lentamente ali dentro – disse Yodolf.
Em seguida ele estendeu a mão por entre as barras, agarrou o fio de teia e o puxou em sua direção.
– Hum – fez ele pensativamente. – Tandoora, você pode ir lá fora para ver de onde vem esse fio de teia de aranha? Se não estou enganado, aposto como os outros cúmplices estão na outra ponta.
– Vou verificar isso imediatamente, Yodolf – disse o menor dos babuínos lunares e, em seguida, desapareceu, afastando-se mais do que depressa.
Com um sonoro “snap”, Yodolf rompeu com os dentes o fio de teia de aranha e deixou-o cair para o lado de fora da janela. Então ele pôs os protetores de ouvido cor-de-rosa e ouviu o silêncio, mas, pelo visto, achou que o silêncio era chato, porque logo tirou os protetores e os lançou a um dos outros babuínos, que também os experimentou. Yodolf espreguiçou-se de satisfação, os braços erguidos no ar, e bocejou, mostrando arcadas dentárias tão grandes que poderiam facilmente acomodar uma melancia.
– Hora de dormir. Amanhã teremos um longo dia pela frente – disse Yodolf. – Não, esperem, ha, ha! Eu tinha me esquecido. Na verdade, vocês vão ter um dia muito curto.
– Essa foi boa! – exclamou um dos babuínos com uma voz esganiçada que Bumbão reconheceu. Então os três babuínos caíram na risada.
– Você fica de guarda, Göran – disse Yodolf.
– Eu? Mas eu sou o...
– Comandante da Luftwaffle, eu sei. Mas quem toma as decisões aqui ainda sou eu, certo? Vamos com isso, já! Vamos ver o que Tandoora descobriu.
E, com isso, Yodolf expulsou os outros babuínos lunares pela porta à sua frente, fechou-a e passou a chave para Göran.
– Estaria tudo bem se eu apenas... – principiou Göran.
– Não! – rugiu Yodolf. – Você não vai torturá-los. O sabor deles é melhor quando não são torturados.
Göran murmurou um quase inaudível “bundas sujas”, apanhou o molho de chaves e, então, os outros babuínos foram embora. Bumbão ouviu o ranger de pernas de cadeira quando Göran se sentou em algum lugar lá fora, no corredor, e aumentou o volume da música.
– Pois é – disse Bumbão. – Às vezes é assim que as coisas acontecem.
– Eu acho que as coisas acontecem assim o tempo todo, se você quer saber – fungou Gregor. – Ah, se ao menos eles desligassem essa música!
– Tenho certeza de que os outros logo virão nos resgatar – disse Bumbão, tentando animá-lo, mas Gregor interrompeu-o com irritação.
– Você viu os guardas em volta do Palácio, não viu? Eles têm cinquenta camaleões lunares e uma centena de noruegueses hipnotizados, armados de rifles, fazendo ronda com tradicionais botas norueguesas à prova d´água. Esqueça! Estamos fritos!
Bumbão soltou um profundo suspiro e mordeu a língua, pois era óbvio que Gregor não estava a fim de conversa. Depois de algum tempo, ele ouviu o guarda do corredor começar a roncar.
– Ei! – sussurrou Bumbão. – Tive uma ideia!
– Oh, não – gemeu Gregor. – Não aguento mais.
– É simples – disse Bumbão. – Você só precisa desenrolar a língua.
Capítulo 26.
Corrimão e cocô de camelo
– OH, NÃO! – DISSE LISE. – Eles foram capturados!
– O doutor Proktor e a senhora Strobe, que estavam ao lado de Lise, à janela do quarto 1146 do Radisson Hotel, perscrutavam a escuridão. A mão do doutor Proktor ainda estava segurando o fio de teia de aranha solto, que eles tinham puxado para dentro do quarto quando perceberam que a outra ponta tinha sido rompida com uma dentada.
– E eles logo nos capturarão também – disse o doutor Proktor. – Com toda certeza, Yodolf percebeu que o fio vinha daqui. Temos de sair daqui. E já!
E então ele largou o fio de teia e saiu correndo do quarto 1146, seguido de perto pelos demais. Eles pararam no fim do corredor para esperar o elevador.
– Estabos com sorte! – disse a senhora Strobe, apontando para os números iluminados acima da porta do elevador. – O elevator está subido.
– E se ele estiver cheio de camaleões lunares vindo para cá? – perguntou Lise.
– Bobagem, eles dão são dão rábidos assim – disse a senhora Strobe.
Fez-se silêncio. O painel luminoso mostrava que o elevador estava subindo do sétimo para o oitavo andar.
– Por outro lado – disse o doutor Proktor –, é mais saudável ir pelas escadas.
O elevador estava no nono andar.
– Subir escadas faz muito bem – disse Lise.
Décimo andar.
– Usar as escatas ajuta você a viver bais – disse a senhora Strobe.
– Vamos! – apressou o doutor Proktor.
E todos correram para a porta com a palavra “SAÍDA” em verde brilhante acima dela e saíram em disparada.
A porta se fechou com um “clic” atrás deles no mesmo instante em que eles ouviram um sonoro e claro pling!, indicando a abertura das portas do elevador.
– O corrimão – disse Lise, olhando para baixo, para o poço da escada, onde o corrimão descia em círculos, parecendo cada vez menor, até, finalmente, terminar lá embaixo, no térreo. – Se Bumbão estivesse aqui, ele desceria pelo corrimão.
Então ela passou a perna por cima do corrimão para acomodar-se a cavalo sobre ele, soltou o corpo e começou a inclinar-se para trás. E antes mesmo de alcançar a primeira curva ela viu o doutor Proktor ajudando a senhora Strobe a subir no corrimão.
Eles foram descendo dando voltas, cada vez mais rápido. Paredes, escadas e saídas de emergência passavam girando rapidamente por eles. E Lise estava tão tonta quando caiu no chão do térreo que, quando conseguiu se levantar, ficou parada no mesmo lugar, balançando de um lado para outro. Então a senhora Strobe chegou. Plop!
– O que aconteceu com o doutor Proktor? – perguntou Lise, olhando para o alto do poço da escada.
Então ele apareceu. Deslizando devagar, apertando com força o corrimão entre as pernas e gemendo de dor.
– Não aperte com tanta força! – gritou a senhora Strobe.
E o professor deve ter feito o que ela recomendou porque, de repente, ele veio zunindo corrimão abaixo e – plop! – lá estava ele também, enquanto o cheiro de pano de calça queimado se espalhava no ar, e ele tentava, freneticamente, soprar as próprias coxas.
Lise ouviu bater a porta acima deles e olhou para o alto do poço da escada. E lá, bem no alto, ela viu as silhuetas de caras olhando para ela. Caras escuras, emolduradas por cabelos grisalhos. E então uma voz ecoou através do poço da escada, uma voz que disse:
– Traseiros sujos! Lá estão eles. Vamos voltar para o elevador, depressa!
– Vamos – disse Lise, correndo para a única porta que conseguiu ver.
Do outro lado da porta estava o saguão, cheio de gente. Lise não parou: seguiu em frente, passou pela porta giratória, seguida de perto pelo professor e pela senhora Strobe.
Eles atravessaram o cruzamento da Praça Holberg em direção ao ponto do bonde.
– Eles esdão adrás de nós! – Lise ouviu a senhora Strobe arquejar atrás dela.
– E estão nos alcançando – ela ouviu o doutor Proktor, ofegante, ainda mais atrás. Lise corria o mais rápido que podia. Ela sabia o que precisava fazer para evitar ser transformada em um waffle.
Então ela deu um salto, voou pelo ar, caiu no assento da MCCL – Motocicleta Com Carrinho Lateral –, ligou a ignição e pisou no pedal de arranque com a maior força possível, enquanto girava o afogador. O motor não ligou.
Ela tentou novamente.
Nada.
Mais uma vez.
Niente.
Ela ouviu a senhora Strobe cair no carrinho lateral. E viu o doutor Proktor. Ela olhou para trás. Não viu ninguém, mas os ouvia, ouvia os passos apressados de pés com unhas dos pés compridas e inacreditavelmente feias arrastando-se no asfalto. E, camufladas, as feras estavam invisíveis, mas, obviamente, continuavam na cola deles.
Lise deu um salto e se deixou cair com todo o seu peso para acionar o motor de arranque.
Vruuum!
Ela conseguira ligar o motor, mas... e agora? Lise nunca na vida tinha pilotado uma motocicleta.
– Acione a embreagem e engate a marcha! – gritou o doutor Proktor. – Embreagem e marcha!
“Acione isso, acione aquilo”, pensou Lise, atrapalhando-se com as alavancas.
Os passos já os tinham alcançado. Lise se desdobrava para impulsionar a motocicleta. Ela percebeu que algo se sentara no banco atrás dela e colocara os braços sobre seus ombros.
– Assim. – Era o doutor Proktor.
A motocicleta afastou-se da calçada e entrou no leito da rua.
– Estique sua língua agora mesmo – sussurrou Bumbão, que tinha virado a cabeça para poder ver a língua azulada de rã de Gregor, que ele tinha esticado e passado através das barras da cela.
Bara que lado? – gemeu Gregor, de boca aberta.
– Para a direita. Você deve contornar o canto da parede com a língua. Göran está sentado em algum ponto do corredor aí fora.
Dãum é dão fácil assim – gemeu Gregor.
– Mas você tem de fazer isso – disse Bumbão. – É a nossa única chance.
Gregor deu um pequeno gemido, mas conseguiu esticar um pouco mais a língua. Além disso, ele conseguiu dobrá-la para contornar o ângulo da parede, onde ela desapareceu da vista deles.
– E agora vá avançando a língua para a frente – sussurrou Bumbão. – O molho de chaves deve estar no colo dele.
– Ai!
– O que voi? Quer dizer, o que foi? – perguntou Bumbão.
– Minha língua esxá plesa nas bachas.
– Ahn? – fez Bumbão.
– Ai! Ai! – gemeu Gregor.
– Shh! Você vai acordar Göran – advertiu Bumbão. Mas no mesmo instante ele viu a língua de Gregor e entendeu o que seu companheiro estava tentando lhe dizer. A língua dele estava presa a uma das barras de ferro geladas! Bumbão estremeceu, lembrando-se de todas as ocasiões em que garotos o tinham desafiado a tocar com a língua postes de metal gelados! Ele tinha feito isso e sua língua ficara grudada. E ele conseguira desgrudá-la à custa de uma dor inimaginável. Dilacerando sua língua para soltá-la. E então era apenas uma linguinha pequenina, ao passo que a língua de Gregor era...
– Dê um puxão na língua para soltá-la – disse Bumbão.
– Max dói – gemeu Gregor, à beira das lágrimas.
– Agora! – disse Bumbão num tom duro, de olhos fechados. E ele ouviu o barulho do rompimento da superfície da língua de Gregor e viu o corpo dele, agrilhoado à parede da cela, estremecer.
– Ai! Ai, ai!
“Três vezes ai!”, pensou Bumbão, abrindo os olhos novamente. A língua de rã de Gregor jazia no frio e sujo piso de pedra da cela, como um pedaço azulado de carne congelada de baleia.
– Foi um feito heroico, Gregor. Lute!
A porção de carne azulada se mexeu e avançou. Mas então tornou a parar.
– Estou tão cansado, Bumbão – suspirou Gregor.
– Lembre-se de que, com isso, estamos salvando o mundo, Gregor.
– Mas eu odeio exe mundo! – gemeu Gregor.
– Então lembre-se de que está salvando a senhora Strobe.
Por um minuto, Gregor ficou calado. Em seguida, sua língua começou a mover-se novamente.
– Estou sentindo uma perna. Canelax – sussurrou Gregor.
– Mais para cima – disse Bumbão.
– Xoelhox – disse Gregor.
– Mais para cima.
– Coxax.
– Mais para cima.
– E ixo é um... um... o que é ixo? Alguma coixa maxia e carnoxa...
– Ih... – fez Bumbão, que imaginava onde se encontrava agora a língua de Gregor, entendendo que era melhor que Gregor não percebesse por si mesmo. Mas, evidentemente, era tarde demais.
– Eca! – Gregor fechou bem os olhos e se pôs a cuspir e tornar a cuspir.
Ouviu-se novamente um ronco forte vindo do corredor, vez por outra combinado com um grunhido de satisfação. E aí Bumbão não conseguiu mais segurar uma gargalhada. Então, lá estava Bumbão, condenado à morte, preso firmemente à parede, sacudindo-se de tanto rir.
– Não desista, Gregor – ele sussurrou, engasgando-se de tanto rir. – Você achou as chaves?
– Extão aqui! – disse Gregor. – Extou com elax. Tirei-ax do colo dele.
– Ótimo, traga-as para cá.
Bumbão viu a língua de Gregor mover-se, enrolando-se lentamente como uma serpentina, até que apenas a ponta da língua ficou visível entre os lábios de Gregor. E, com efeito, um molho de chaves pendia da ponta da língua de Gregor. “Com chaves para abrir qualquer coisa que eles quisessem”, refletiu Bumbão. Os cadeados que fechavam seus grilhões, a porta da cela, a porta principal da torre da masmorra, a porta de trás, por onde poderiam fugir sem serem vistos. Qualquer coisa que tivesse uma fechadura. Mas aí é que estava o problema.
– Como vamox abrir ox cadeadox xe nem podemox uxar noxax mãox?
Mãox? O que seria isso? Oh, mãos! Eles não podiam usar as mãos. Bumbão não tinha previsto isso.
Ele olhou longamente para Perry, que estava parecendo cada vez mais e mais fraco, trancado na garrafa. Ele também não podia ajudá-los.
A liberdade estava tão perto e, contudo, tão longe!
– A liberdade está tão perto – disse uma voz bem ao seu ouvido. – E, contudo, tão longe!
E embora Bumbão já se sentisse congelando havia um bom tempo, aquela voz fez com que se sentisse ainda mais gelado. Yodolf entrara na cela tão de mansinho que eles não o tinham ouvido. Tampouco o tinham visto. Mas, então, algumas partes da parede de pedra diante deles sofreram uma transformação, fazendo surgir um grande camaleão lunar em forma de babuíno.
– Agora vocês vão me dizer quem são os seus cúmplices – disse Yodolf. – E onde eles estão escondidos.
Mesmo naquela situação desesperadora, Bumbão sentiu um pequeno estremecimento de alegria. Porque a pergunta de Yodolf significava que Lise, o doutor Proktor e a senhora Strobe deviam ter escapado!
– Escute aqui, seu babuíno peludo de traseiro cheio de hemorroidas – disse Bumbão. – Você pode fazer o que quiser comigo, porque eu não vou dizer uma palavra. Seja como for, você vai nos transformar em waffles. O que você pode fazer que seja pior do que isso?
– Uma pequena tortura, talvez? – disse Yodolf.
– Então vá em frente – disse Bumbão com um largo sorriso. – Ruivos adoram sentir dores. Você não sabia disso?
– Hmfrh – fez Yodolf, voltando-se para olhar para Gregor. – E quanto a você, rã? Você é chegado numa tortura? E o que você acha de aumentarmos o volume da música?
Bumbão olhou para Gregor nervosamente.
– A única coixa que quero evitach – disse Gregor, com o molho de chaves ainda pendurado na ponta da língua – xão otrax hemorroidax de babuíno. Elas têm goxto de cocô de camelo. Com exexão dixo, podem comexar a torxtura.
E Bumbão não se aguentou mais, teve de começar a rir novamente.
Yodolf olhou para ele sem acreditar, balançou a cabeça devagar e zombou:
– Seres humanos! Vocês não são mesmo normais.
Então ele se aproximou da borda da janela, agarrou a garrafa e sacudiu-a, jogando Perry, já desmaiado, de um lado para outro.
– Bem, em todo caso, este está pronto – disse Yodolf, e, dando uma risadinha, atirou a garrafa pela janela. Bumbão prendeu a respiração. Eles ouviram a garrafa sequebrar no pátio lá embaixo. Yodolf encostou sua cara de babuíno contra o rosto de Bumbão.
– Qual é o problema, anão? Você parou de rir?
Bumbão engoliu em seco.
Yodolf riu, arrancou o molho de chaves da língua de Gregor, andou até a porta, saiu e bateu a porta com força, trancando-a por fora.
Capítulo 27.
Rei é rei
ERA QUASE MEIA-NOITE EM OSLO. Não obstante, a cidade ainda não tinha começado a se acomodar para a noite. Enquanto o rei andava em direção ao Palácio, viu gente disparando para casa com os braços carregados de vasilhames com alimentos e soldados deslocando-se em caminhões com pintura de camuflagem. Eles pareciam estar bastante belicosos, sentados na carroceria do caminhão, olhando diretamente à frente. Belicosos e um tanto hipnotizados. E a coisa mais estranha era que ninguém parecia reconhecê-lo, embora ele fosse o rei. Ele tinha apenas um pequeno copo de cerveja em uma hospedaria para afogar as mágoas provocadas por sua amada – e, infelizmente, perdida – Rosemarie. Mas o garçom lhe tinha exigido pagamento, embora o rei lhe tivesse dito: “Meu Deus, homem, eu sou o rei!” Sim. E não era só isso. Ele era um rei com o coração partido! E quando o garçom percebeu que ele só tinha dinheiro sueco, o homem o jogara na rua! Os próprios súditos do rei não o reconheciam. E ele não os reconhecia. Era triste. E quando você analisa a coisa a fundo vê que ela é assustadora. E agora ele precisava arranjar um lugar onde passar a noite. Ele ligou para algumas pessoas que ele pensava serem suas amigas para perguntar-lhes se podia dormir na casa delas, mas elas logo desligavam quando percebiam quem estava ao telefone. Quem sabe ele devesse procurar o Exército da Salvação. Eles tinham um abrigo para os sem-teto, não tinham?
Enquanto caminhava, ele passou por uma série de edifícios de pedra no meio de um campo. Ele conhecia muito bem todos aqueles edifícios. Era ali a sede do Serviço de Rádio e Teledifusão da Noruega. Era dali que saíam as pessoas que iam ao Palácio Real gravar seus pronunciamentos anuais de Ano-Novo. E, como se suas pernas tivessem vontade própria, elas continuaram a conduzi-lo àqueles edifícios brancos. Passaram pela porta giratória em direção aos estúdios de TV. E foram direto ao balcão de recepção.
– Eu gostaria de falar com Nømsk Ull – disse o rei à guarda de segurança que estava sentada atrás do balcão. Ela o examinou com seus severos olhos de guarda de segurança.
– Acho que não o conheço. Nømsk Ull é um grande astro de TV.
– E eu sou o rei – disse o rei.
A guarda olhou por cima dos óculos e deu um sorriso torto.
– Ah, você é, hein, queridinho? O que você fez, pegou o casaco de arminho emprestado do departamento de vestuário?
O rei fixou os olhos nela. Não um olhar penetrante como o Olhar Strobe, mas um olhar gentil, lânguido, com pálpebras pesadas. E, então, começou a falar. Suas palavras brotavam numa espécie de canto monótono, vagarosas como xarope viscoso num dia muito frio.
– Meus compatriotas. O ano velho agora terminou e nos trouxe muitas coisas em termos de progresso e motivos para comemorar. Por exemplo, nosso peso médio está aumentando firmemente, e a Noruega é um dos países mais felizes do mundo. Ganhamos uma medalha de ouro no campeonato nórdico de esqui na neve e Honningsvåg foi mais uma vez considerada uma das cidades mais setentrionais do mundo.
A guarda de segurança bocejou. E o rei continuou.
– Mas o ano trouxe também novos desafios e problemas que teremos de enfrentar juntos, como povo, neste próximo ano...
A cabeça da guarda de segurança inclinou-se um pouco para a frente, mas o rei se inclinou de modo a poder manter o contato do olhar.
– E neste exato momento há o problema de salvar a Noruega e o mundo da catástrofe. Repitam comigo, catástrofe.
– Catástrofe – repetiu a guarda, com voz de sonâmbulo.
– É por isso – disse o rei – que você deve ligar para Nømsk Ull agora mesmo e pedir-lhe que desça e venha até aqui.
– Ligar para Nømsk Ull – repetiu a guarda. Ela pegou o fone, discou um número, esperou um momento e, então, disse, com voz de sonâmbulo: – Kalle, por favor, desça até o balcão de recepção.
Um minuto depois, Nømsk Ull, o apresentador do Concurso de Corais NoroVision, estava diante deles.
– Eu sempre gosto de me encontrar com fãs – cantarolou ele com aquele sorriso vistoso que todos conheciam muito bem de seu programa, e deu um rápido aperto de mão no rei. – Mas estou com pressa. Nóis estamos fazendo agora um programa ao vivo e...
Ele parou, pois o rei não queria soltar a sua mão.
– Ei, largue-me. As pessoas estão esperando e...
– Meus caros compatriotas– disse o rei, e Nømsk Ull olhou surpreso para ele. – Temos um novo ano diante de nós e, de repente, percebemos que é hora de expressar nossa gratidão pelo ano que passou...
De repente, as pálpebras de Nømsk Ull pareciam ter pesos sobre elas.
– Na transmissão ao vivo que você está apresentando neste exato momento, você vai apresentar o rei, e então ele se dirigirá ao povo da Noruega – disse o rei.
– O rei se dirigirá ao povo da Noruega – repetiu Nømsk Ull.
– Ótimo. Vamos fazer isso – disse o rei.
Lise, o doutor Proktor e a senhora Strobe estavam sentados em volta da mesa de cozinha na casinha azul rodeada de montes de neve no alto da Avenida Cannon.
– Puxa, ezza voi bor bouco – fungou a senhora Strobe com a voz trêmula.
– Estou muito feliz por você ter conseguido controlar a embreagem e as marchas da motocicleta – disse Lise ao doutor Proktor.
– Claro que é uma infelicidade que Bumbão e Perry, juntamente com Gregor, provavelmente sejam transformados em waffles amanhã – respondeu o doutor Proktor, passando ambas as mãos pelos seus cabelos rebeldes e bastos e coçando, com desespero, o couro cabeludo.
– A culpa é principalmente minha – disse Lise. – O plano era meu.
– Eu devia ter me oposto a ele – disse a senhora Strobe. – Por isso, acho que, na verdade, a culpada...
– Basta! – gritou o doutor Proktor, e então gemeu – Por que um de nós sempre vai parar numa masmorra?
– Bem, seja como for, eu sei o que Bumbão diria sobre isso – falou Lise. – Dê-me a liberdade ou dê-me a morte!
Todos eles sorriram diante desse comentário, mas aí todos ficaram ainda mais tristes. Então pensaram um pouco mais e um pouco mais. Até que o doutor Proktor finalmente disse o que todos eles estavam pensando.
– Não há nada que possamos fazer.
A senhora Strobe deu um pequeno soluço, enrolou-se num cobertor de lã e retirou-se para a sala de estar, onde se deixou cair no sofá e ligou a TV. Eles ouviam os espirros dela, que se sobrepunham ao canto coral.
Lise queria soluçar também, mas, em vez disso, calçou as botas.
– Acho que devo ir para casa – disse ela. – É verdade que meus pais estão hipnotizados, mas, ainda assim, talvez estejam preocupados comigo.
O doutor Proktor limitou-se a concordar com um silencioso aceno de cabeça.
Lise foi até a entrada da casa, abriu a porta da frente e, quando estava prestes a sair, ouviu uma voz familiar. Ela parou imediatamente. A voz vinha da sala de estar.
– Meus compatriotas, mais cedo ou mais tarde temos de dizer: Feliz Ano-Novo. Mas deixem-me também acrescentar: obrigado a vocês pelo ano que passou. E agora que ele passou deixem-me desejar uma rápida recuperação a todos os que caírem doentes neste ano. Especialmente os mais velhos, os solitários e todos aqueles que estão no mar. Juntos, estamos saindo de um ano notável aqui na Noruega, no qual a frequência das chuvas variou, os costumes populares se reforçaram, caçaram-se alces...
Lise sentiu que ia bocejar, mas correu de volta à sala de estar onde a senhora Strobe roncava diante da TV. Um cara com uma capa vermelha com gola de peles branca olhava da tela da TV com uma expressão grave, enquanto zumbia num tom monótono:
– Mas vimos também um déspota tomar o poder e proclamar-se presidente.
– É o rei! – gritou Lise. – O rei está fazendo seu pronunciamento de Ano-Novo na TV!
O ronco da senhora Strobe interrompeu-se de repente e Lise ouviu o arrastar de pernas de cadeiras na cozinha. Um segundo depois, os três estavam sentados no sofá, olhando para a TV com os olhos arregalados.
– O objetivo de Hallvard Tenoresen não é criar uma vida melhor para vocês, meus conterrâneos – disse o rei. – O objetivo dele é criar o caos e fornecer café da manhã aos seus babuínos. Esta é a verdade: seu verdadeiro nome é Yodolf Staler e ele veio da Lua. Ele hipnotizou vocês através de programas de canto coral pela televisão, mas agora isso tudo acabou. Agora, nós, meus compatriotas, e todos aqueles que estão no mar vamos deter Yodolf Staler. Os dinamarqueses são nossos amigos e eu os conclamo a largar suas armas imediatamente... Na verdade, vocês devem voltar suas armas contra Yodolf Staler e seus companheiros. E especialmente contra o mordomo Åke, esse mesquinho, traiçoeiro e dissimulado mordomo.
– Excelente! – sussurrou o doutor Proktor. – Ele está fazendo isso! É tão... tão...
– É o rei. Ele simplesmente está fazendo isso – disse Lise, revirando um pouco os olhos para sugerir que raramente o pronunciamento de Ano-Novo do rei era emocionante.
– Mas... mas será que ainda há tempo? – sussurrou a senhora Strobe ansiosamente. – Será que teremos tempo de salvar Gregor e Bumbão? Faltam poucas horas para o amanhecer...
– Tive uma ideia! – disse Lise.
– Que ideia? – perguntou o doutor Proktor.
– Uma banda de música. A solução é uma banda de música.
– É mesmo? – perguntou a senhora Strobe.
– Claro – Lise disse. – Só temos de organizar uma banda. Vocês tocam alguma coisa? Não importa o quê! Depressa!
– Eu toco um pouco de piano – disse a senhora Strobe. – Pelo menos eu tocava.
– Bem... – fez o doutor Proktor – eu sei tocar Frère Jacques no gravador.
– Precisamos de mais músicos – disse Lise. – Precisamos ganhar as ruas e arrebanhar gente. E aí vamos precisar de um regente... Precisamos...
O senhor Madsen acordou sobressaltado. A campainha estava tocando. Ele descobrira ter adormecido em sua poltrona reclinável, diante do aparelho de TV, que apresentava apenas estática. A última coisa de que se lembrava, antes de adormecer, era do canto coral. “A Noruega é boa, a Noruega é a melhor.” Alguma coisa assim. Realmente, bastante interessante. O senhor Madsen enfiou os pés nos chinelos, abotoou o casaco do uniforme de sua banda de música e correu a abrir a porta de seu apartamento.
Havia três pessoas lá fora, na entrada. Uma garota arquejante, um homem ofegante com óculos de natação e uma mulher resfolegante com um nariz muito comprido.
– Precisamos formar uma banda – disse a garota. – E precisamos ensaiar uma canção antes do amanhecer!
O senhor Madsen ajeitou seus óculos de aviador e lhes lançou um olhar inexpressivo.
– Eu a conheço?
– Eu sou Lise.
– Lise?
– Eu toco em sua banda!
– Banda? – O senhor Madsen refletiu por um segundo e disse: – Que horror, muisica de banda é chata.
A garota deu um suspiro e voltou-se para a mulher que estava com uma maleta.
– Ele está hipnotizado. Você não pode...?
A mulher fez que sim, levantou a mão e deu um tapão na porta. O barulho foi tão alto que ecoou até lá embaixo, pelo poço da escada. O senhor Madsen piscou os olhos confuso e viu Lise e a senhora Strobe, professora de sua escola, paradas diante dele.
– On-on-onde estou? – disse ele, voltando-se e olhando para o próprio apartamento. No chão havia um jarro de flores quebrado e, na TV, faixas verticais que indicavam que ele precisava ajustar as imagens.
– Diga “queijo” – disse Lise.
– Queijo – disse o senhor Madsen. – O que está acontecendo?
– O senhor estava hipnotizado – disse Lise, agarrando a mão do regente de sua banda e puxando-o. – E agora vai nos ajudar a tocar todas as campainhas da Avenida Cannon!
O doutor Proktor estava de pé sobre um caixote de peras, olhando para a multidão que se reunia sob a luz do poste de iluminação bem no meio da Avenida Cannon. Todo o mundo estava lá. A comandante Mamãe, o comandante Papai, a mãe e a irmã de Bumbão e também a senhora Thrane, com Trym e Truls. Alguns deles estavam apenas de roupões de banho ou de pijamas, outros usavam compridos casacos de peles, alguns vestiam uniformes usados em apresentações de corais e outros, ainda, vestiam uniforme militar, com rifle, e estavam mais do que dispostos a atirar em alguns dinamarqueses. Mas todos eles tinham ouvido o pronunciamento do rei e, naquele momento, tinham acabado de ouvir o doutor Proktor, que lhes contou o que estava acontecendo. Se eles acreditaram ou não no que ele disse é outra história. Os rostos inexpressivos diante dele nada revelavam.
– Precisamos iniciar uma rebelião – disse o professor. – E precisamos resgatar Gregor e Bumbão.
– Por quê? – gritou alguém da multidão. – Por que deveríamos arriscar nossa saúde e nossas vidas para salvar um anão e uma rã?
– Porque é o que se deve fazer – disse o doutor Proktor, agora parecendo um pouco mais vigoroso. – E porque nós podemos.
– É mesmo? – retrucou alguém em voz alta, parecendo cético. – Então, qual é o plano de vocês?
O doutor Proktor engoliu em seco.
– Meu plano, meus caros amigos... o plano é... agora tenho certeza de que vocês estão ansiosos para ouvi-lo... – Ele mostrou os dentes num sorriso constrangido. – O que é muito razoável, porque se trata de um plano muito bom... um plano brilhante... um plano que, em comparação, põe no chinelo todos os outros planos. É a matriz de todos os outros planos que vocês... bem... eh, eh... entendem o que quero dizer, não?
– Não. O que você quer dizer?
– O plano a que me refiro é o próprio plano que tencionamos pôr em prática para libertar ninguém menos do que Gregor e Bumbão. É um bom plano, vocês não acham?
Fez-se um silêncio tão profundo que se podia ouvir um alfinete cair na neve. E, então, um grito quebrou o silêncio:
– Qual é exatamente esse plano, seu espantalho?
O doutor Proktor deu um sorriso rápido.
– Um segundo, estamos com problemas técnicos. – Ele se inclinou para Lise. – Qual é mesmo o plano?
– Organizar uma banda e ensaiar uma música.
– Um danado de um plano – disse o doutor Proktor, endireitando o corpo, respirando fundo, para gritar em seguida:
– O PLANO, SENHORAS E SENHORES... – De repente, porém, ele parou de falar e se inclinou novamente para Lise.
– Que música e por quê?
– Basta dizer a eles o que eu disse.
O doutor Proktor ergueu o corpo novamente e disse:
– É ORGANIZAR UMA BANDA E ENSAIAR UMA MÚSICA!
Por um segundo, a multidão ficou estupefata. Depois ouviu-se o rumor de uma grande gargalhada. O senhor Madsen limpou a garganta várias vezes e endireitou os óculos.
– Ora, ora, gente. A coisa é muito séria. Eu serei o regente.
– Quem é o general Pateta naquele uniforme militar esquisito? – alguém gritou.
– Ele é cego? – perguntou um menino ao pai.
Mais gargalhadas.
– Oh, meu Deus, que espécie de música é essa de que vocês estão falando? – gritou a mãe de Bumbão.
– Que espécie de música? – repetiu mansamente o doutor Proktor.
– Uma música pop – disse Lise, olhando para o leste. Será que o sol já estava começando a aparecer ali no negro fundo da noite?
– UMA MÚSICA POP! – anunciou o doutor Proktor à multidão, que respondeu com a maior onda de gargalhadas que tinha sido ouvida até então. A senhora Trane, que estava bem na frente dele, com lágrimas nos olhos de tanto rir, conseguiu controlar-se e gritou:
– Você está é maluco. Você não está falando sério quando diz que uma música pop pode salvar o mundo, não é?
– Quem está do nosso lado? – gritou o doutor Proktor.
Lise lançou um olhar sobre a multidão, mas, para sua decepção, viu apenas pessoas balançando a cabeça, e ela quase conseguia ouvir cada uma delas pensando “Eu não acho”. Então houve um pequeno movimento no fundo da multidão. Lise percebeu que duas pessoas abriam caminho com dificuldade em direção ao caixote de peras. Uma delas, que trazia uma grande tuba e tinha manchas nas lentes dos óculos que estava usando, era fácil de reconhecer. Era Janne, a tocadora de tuba da banda. Mas a outra era uma menina pálida, com um olhar assustado no rosto, que mal se podia ver por baixo de tufos de cabelos espetados para cima, num penteado que devia ser um dos mais feios de todos os tempos.
– Beatrize? – disse Lise, com voz entrecortada, sem poder acreditar. Ela mal conseguiu reconhecer aquela garota encurvada, parada ali, na rua cheia de neve, que em nada se parecia com a garota mais atraente da classe. – O que aconteceu com você?
A voz de Beatrize era um mero sussurro:
– Quando o rei livrou as outras garotas da hipnose, elas foram até minha casa. Elas disseram que eu as tinha enganado para que participassem da Juventude da Noruega. Elas me arrastaram para a rua e fizeram isso – disse ela apontando para a própria cabeça.
– Que coisa horrível! Coitada de você! – disse Lise, estarrecida.
– Peço desculpas por todas as coisas bobas e ruins que eu fiz – fungou Beatrize, com os olhos cheios de lágrimas. – Po-pos-posso voltar à banda? Por favor?
Lise olhou para o senhor Madsen, que fez um aceno de aprovação quase imperceptível.
– Qualquer um que quiser – disse Lise – pode entrar na banda. Está entendendo, Beatrize?
Beatrize engoliu em seco, olhou para o chão e balançou a cabeça para dizer que tinha entendido. Lise pôs a mão no ombro daquela que fora a garota mais atraente da classe. – Você trouxe seu saxofone?
Beatrize levantou os olhos, sorriu por entre as lágrimas e mostrou o estojo do instrumento.
– Ei! – gritou alguém da multidão. – Você não respondeu à pergunta! Será que uma música pop pode salvar o mundo?
Lise olhou para o doutor Proktor, para a senhora Strobe e para o senhor Madsen. Então os quatro se voltaram para a multidão e responderam a uma só voz:
– Sim, pode, sim!
Capítulo 28.
Massa de waffle e o canto
das aves migratórias
JÁ NÃO HAVIA NENHUMA DÚVIDA. O dia estava amanhecendo. E quando o sol nasceu era como se ele estivesse curioso de ver o que estava acontecendo naquela pequena grande cidade. Então ele espiou por cima do horizonte e viu que alguma coisa estava ocorrendo no pátio traseiro do Palácio, no meio do Parque Real, coberto de neve, que o circundava. Então o sol subiu mais um pouco para ver. E lá de cima ele brilhou diretamente sobre um rostinho pequeno e sardento. Será que você sabe quem é? Ele estava no pátio traseiro do Palácio Real, e junto dele havia um rosto pálido, esverdeado, fazendo uma careta. Soldados se dispunham à volta deles, e bem diante deles havia uma enorme máquina brilhante que o sol – se ele não fosse lá muito razoável – imaginaria ser uma enorme e monstruosa forma de waffle. E o sol cantarolou a música que vinha do pátio traseiro do Palácio naquela manhã:
Doçura – você é o melão, e eu sonho com você...
Bumbão sentiu no rosto o calor dos raios de sol, que dera uma espiada por cima da borda da parede de pedra.
– Parece que a primavera está chegando mais cedo este ano – disse ele, fechando os olhos.
– Sim. Seria um bom sinal de que o verão talvez venha a ser bom também – fungou Gregor, dando puxões nas algemas que mantinham seus braços atrás das costas.
Bumbão sentiu uma onda de calor no rosto.
– Ah, os raios do sol são tão agradáveis – disse ele sem abrir os olhos.
– O calor não está vindo do sol – disse Gregor em tom suave.
Bumbão abriu os olhos. E do lugar onde estava, numa cadeira, ele viu bem à sua frente a boca escura da forma de waffle, que acabara de ser aberta. Ela chiava com a gordura quente e brilhante que escorria entre seus enormes dentes de aço.
– Não tenham medo – disse uma voz atrás deles. Eles se voltaram. Yodolf Staler assumira a forma de Hallvard Tenoresen e estava usando um uniforme verde e um quepe com uma pala, em torno da qual havia uma fita vermelha. – Há normas internacionais para o tratamento de prisioneiros de guerra. E lá está dito que as formas de waffle só podem ser usadas para preparar waffles. E eu – Yodolf Staler – sou um homem que cumpre regras. É por isso que vocês não vão ser simplesmente jogados em uma forma de waffle à maneira antiga...
Ouviu-se um suspiro de alívio dos soldados.
– Graças a Deus... – suspirou uma voz trêmula.
– Quem disse isso? – rosnou Yodolf, girando em torno. Os soldados se puseram imediatamente em posição de sentido, olhando para a frente, sem mexer sequer um pelo do nariz.
– Alguém aqui tem alguma objeção?
Nenhuma resposta.
– O que foi isso? – berrou Yodolf.
Os soldados se entreolharam hesitantes, e alguns deles balançaram a cabeça sem muita convicção. Depois, mais alguns. E, finalmente, todos estavam balançando a cabeça tão ansiosamente que se podia ouvir o atrito de centenas de cabeças contra a parte interna da gola de centenas de fardas.
Yodolf fitou seus soldados, desconfiado, depois voltou a olhar para Bumbão e Gregor.
– Onde eu estava?
– Não vamos ser transformados em waffles... – disse Bumbão, fazendo um esforço para não perder o equilíbrio sobre a cadeira frágil e cambaleante.
– Eu não disse isso – falou Yodolf. – Eu disse que vocês não iam ser jogados na forma de waffle como se fazia antigamente, pois as normas dizem que formas de waffles só podem ser usadas para fazer waffles. Portanto... Göran!
Um soldado atrás de Yodolf deu um passo à frente. Ele segurava uma mangueira de incêndio. E Göran fora um pouco relaxado em sua camuflagem, porque Bumbão podia ver suas mãos peludas de babuíno saindo da farda de soldado. Bumbão acompanhou a mangueira com o olhar até onde ela desaparecia no interior de uma barraca que se encontrava num canto do pátio, servindo de cozinha de campanha.
– Então primeiro vamos transformar vocês em waffles – disse Yodolf. – Em frente, Göran!
E, imitando movimentos de soldado, Göran ligou a mangueira de incêndio, da qual imediatamente começou a jorrar algo espesso e amarelo. O jorro atingiu Gregor com tal violência que ele saltou dois passos para trás.
Quando Gregor estava coberto de massa amarela e gotejante, foi a vez de Bumbão. O menino fechou os olhos e pôs a língua para fora quando o líquido o atingiu. Tinha gosto de massa de waffle.
– Agora você vai experimentar coisa muito melhor – disse Yodolf, rindo. – Dois soldados poderiam se apresentar como voluntários para atirá-los na forma de waffle?
– Sim, sim – respondeu Göran. – Dor! Eu quero provocar...
– Você não, Göran. Um dos soldados humanos. – Yodolf olhou para os soldados, mas nenhum deles se mexeu. O silêncio era tão profundo que a única coisa que se ouvia era a canção:
Meu docinho – Sabendo que tomarei meu café da manhã com você...
– Está bem – disse Yodolf. – Então nós dois vamos fazer isso, Göran. Virem o rosto para a forma de waffle, prisioneiros.
Bumbão obedeceu, piscando para tirar a massa de waffle dos olhos. Então um pássaro pousou numa árvore acima da forma de waffle incandescente e fumarenta e começou a cantar. “Acho que ele voltou um pouco cedo demais”, pensou Bumbão, olhando para toda aquela neve. Mas o pássaro estava pousado no alto de uma pereira, cantando a primavera que chegava um pouco cedo, e esse canto se mesclava à voz de Agnetha.
– Espero que eles me comam com geleia de morango e chantili – sussurrou Bumbão. – O que você quer que eles ponham em você? Xarope de bordo?
– Isso não faz diferença – disse Gregor. – Até poucos dias atrás eu não imaginaria que seria tão ruim ser cozido e comido. De todo modo, minha vida era muito triste. Mas agora que sei que a senhora Strobe está por aqui, e talvez pensando em mim, e talvez se preocupando comigo...
– Sim – suspirou Bumbão, ouvindo a aproximação dos passos de Göran no cascalho. E foi como se o medo do que estava por vir aguçasse seus sentidos, porque ele ouviu com mais intensidade. Ouviu o zumbido de um motor distante. E, ao longe, uma terceira canção, misturando-se com o canto de Agnetha e o canto do pássaro. Então ele sentiu a respiração ávida de Göran em sua nuca, as garras do babuíno em suas costas e se sentiu empurrado para a frente, para a beira da cadeira. Bumbão fechou os olhos e teve um último pensamento: ele esperava que Lise ficasse bem. E se preparou.
– Espere! – gritou Yodolf. – Tire-lhes as algemas.
– Mas...
– Se, ao mastigá-los, mordermos as algemas, poderemos quebrar um molar e teremos de ir ao dentista, e você sabe como detesto dentistas.
E enquanto Bumbão ouvia Göran vasculhando os bolsos, procurando as chaves das algemas, praguejando o tempo todo, ele ouviu também o som do motor cada vez mais forte. E a mesma coisa acontecia com a terceira canção.
– Ah, cá está ela – disse Göran, e Bumbão ouviu a chave girar primeiro em suas algemas e, em seguida, nas de Gregor. Então ele ouviu o riso cruel de Yodolf.
– E, agora, danem-se, eles vão mostrar que são uns traseiros sujos.
Capítulo 29.
Uma música pop pode
salvar o mundo. Talvez
UM DOS DOIS GUARDAS DO PORTÃO da frente do Palácio protegeu os olhos da luz da manhã, semicerrando-os, e voltou-os na direção de onde vinha o barulho do motor.
– Diga-me uma coisa, Gunnar – disse ele, puxando seu bigode de guidão –, aquilo ali não é uma motocicleta tremendamente grande?
– A maior que já vi em minha vida, Rolf – disse o outro guarda, levantando o lábio superior e farejando seu próprio bigode de Fu Manchu. – Dá a impressão de que ela está puxando todo um camarote de teatro. Com... o que é que está dentro dele? Uma banda de metais?
– O que eles estão tocando? Parece algo conhecido...
– Espere! Eles estão mudando de direção. Estão vindo para cá! Olhe, eles estão vindo! O que está acontecendo?
– Alguma coisa vai acontecer!
– Ouça! Eles estão tocando... eles estão tocando...
– She luvs ya, nah, nah, nah?
– Siga direto para o portão da frente, professor – gritou Lise do carrinho lateral.
– É o que vou fazer – gritou o doutor Proktor, que estava debruçado sobre o guidão da motocicleta, acelerando à medida que eles se aproximavam da Praça do Palácio. – Só peço que toquem o mais alto que puderem!
– Vocês ouviram isso? – gritou o senhor Madsen do carrinho lateral, e começou a desenhar arcos cada vez maiores com sua batuta. E a mais estranha banda que já tocou num carrinho lateral não precisava de nenhuma insistência. Lise tocava clarineta, a senhora Strobe martelava as teclas de um piano de brinquedo, Janne estava na tuba, Beatrize tocava saxofone, o comandante, pai de Lise, estava tocando uma guitarra com duas cordas quebradas, a mãe de Lise, esposa do comandante, estava tocando um flautim, Trym e Truls martelavam os tambores, a irmã de Bumbão batia com uma baqueta num tambor, enquanto a mãe de Bumbão gritava: “She luvs ya, nah, nah, nah! She luvs ya, nah, nah, nah!” tão desafinada, desagradável e agudamente que os turistas da Praça do Palácio ficaram de queixo caído e taparam os ouvidos.
Os dois guardas ficaram em posição de sentido, um à esquerda, o outro à direita, quando a motocicleta entrou pelo portão da Praça do Palácio.
Bumbão ouviu a canção “She luvs ya, nah, nah, nah”, do grupo De Beetels, abafando o som de “Waterloo”, do BABA, ouviu a voz de Agnetha ser suplantada pelo estilo barulhento e estapafúrdio do espetáculo da banda do carrinho lateral do doutor Proktor. Bumbão percebeu que eram seus amigos que vinham salvá-lo. Mas como eles poderiam ajudar? Era tarde demais. Göran já lhe dera um empurrão e Bumbão tinha caído da cadeira para o calor terrível da forma de waffle.
Ele viu sua vida passar rapidamente diante de seus olhos. Tinha havido altos e baixos, muita diversão, alguns dias que não poderiam ter sido melhores, mas o melhor de tudo tinham sido as gelatinas, o pó de soltar pum e as aventuras com seus bons amigos. Em suma: uma vida breve demais para um cara que também era pequeno demais. Mas agora tudo estava acabado.
Slorp!
O que tinha sido aquilo?
De repente, havia um cinto azul em volta do ventre de Bumbão. Ele não estava mais caindo. Ou melhor, ele estava caindo... para cima. Ou o contrário de cair – ele estava subindo. Ele viu a parede externa do Palácio passar rapidamente e – plop! – aterrissou. O cinto azul, que não era um cinto, mas uma língua azul de rã, o soltou, e Bumbão viu que estava de volta à mesma sacada onde tinha estado alguns dias antes. Gregor estava perto dele, cuspindo.
– Você pulou até aqui?! – exclamou Bumbão, olhando para o pátio lá embaixo, onde a motocicleta dava voltas em torno da forma de waffle, perseguida por Göran, Yodolf e Tandoora. – E me trouxe em sua língua?!
– Eca! – disse Gregor. – Você tem gosto de grama e de sabão.
– Você me salvou! – disse Bumbão, abraçando Gregor.
– Ei, não precisa de tanta pressa! – disse Gregor, agitando os braços, tentando afastar Bumbão de si. – Ainda não tenho certeza de que estamos salvos.
E ele tinha toda razão quanto a isso, porque agora a motocicleta estava rodeada de soldados, e, de repente, o volume da música do BABA aumentou muitíssimo, atingindo tal intensidade que o som da banda do carrinho lateral da Avenida Cannon foi totalmente abafado pelo som de Agnetha:
OH, DOCINHO!! – FINALMENTE DESFRUTO DO MEU DOCINHO!!
E Bumbão viu Gregor empalidecer novamente, viu seus joelhos tremerem, viu-o encolher-se lentamente. Então, depois de DOCINHO, Agnetha tomou fôlego, e, nessa pausa, ouviu-se um grito desesperado no pátio:
– Gregor! Eu te amo!
– Hic! – fez Gregor. – O que foi isso?
– Isso – respondeu Bumbão – foi alguém dizendo que ama você.
– Ama a m-m-mim? Mas qu-quem...?
– Quem você acha que é, cérebro de rã? A senhora Strobe, claro! Ora bolas!
E Bumbão viu uma saudável cor verde voltar às faces de Gregor. Seus olhos começaram a cintilar e um largo sorriso abriu-se em seu rosto.
– Temos de fazer alguma coisa antes que os soldados os peguem! – disse Bumbão.
Gregor, porém, parecia não ouvir Bumbão; ele estava olhando para o espaço com um sorriso beatífico no rosto.
– Essa é uma boa música, de verdade, não acha? – disse ele.
– Docinho? – perguntou Bumbão, surpreso.
– Sim, quando a gente ouve com atenção – disse Gregor.
– Ei, Gregor! Pés no chão! Acorde! – disse Bumbão, estalando os dedos bem junto do rosto de Gregor. – Ahn, e quanto ao fim do mundo e tudo o mais?
Então se ouviu um zump! Um slorp! Um suoch! Um smack! E um iiiic!
O smack fora um estrondo, o som de três soldados – depois que a língua de Gregor os pegou e os atirou longe – chocando-se contra a parede do edifício. E o iiiiic, o som produzido por um dos três, que tivera o azar de se chocar contra o alto de um janelão e, agora, escorregava para baixo.
Yodolf estava aos saltos, tentando dar ordens aos soldados.
– Atirem neles! Detenham essa diabólica orquestra de brinquedo! Matem todos eles a tiros!
Alguns soldados, um tanto hesitantes, levantaram suas armas, apontaram para o carrinho lateral, mas não atiraram.
– Já! Essa é uma ordem do presidente! E quem desobedecer terá de enfrentar uma corte marcial, a acusação de traição e lesa-pátria... e... e... ATIREM LOGO, ORA!
Mas ninguém atirou.
– Meus caros noruegueses! – gritou Bumbão da sacada, e os soldados se voltaram e olharam para ele, surpresos. – Chegou a hora de mostrar que não vamos nos submeter a ordens de babuínos, bandidos e valentões brutais!!
– Atirem no traidor! – gritou Yodolf, apontando uma trêmula unha preta de indicador para a sacada.
– Não posso lhes garantir que será fácil – disse Bumbão com voz trovejante. – Ao contrário, a única coisa que posso prometer é tremendos pontapés! Mas... – ele levantou a mão num gesto majestoso – posso lhes garantir isto: nada de cantos corais na TV! Portanto, a pergunta a ser feita é: o que vocês preferem? Instrumentos de metal ou canto coral?
– Atirem! – soluçou Yodolf, e então calou-se de repente, ao ouvir o engatilhar das armas e perceber que as armas estavam finalmente apontadas... para ele.
– Uaaaaaa! – fez Yodolf, e desapareceu naquele exato momento. Sumiu no ar.
– Ele se camuflou! – gritou Bumbão. – Depressa, não deixem que ele fuja. Guardas, fechem o portão!
– Você ouviu o que ele disse, Gunnar? – perguntou Bigode de Guidão a Fu Manchu. Eles estavam no portão e tinham acompanhado toda a comoção no pátio com grande expectativa.
– Sim, Rolf. Ele disse que devemos fechar o portão.
– Foi o que pensei. E sabe de uma coisa, Gunnar?
– Não; o que é, Rolf?
– Acho que é hora de os verdadeiros noruegueses mudarem de lado.
– Sim, parece que a maré virou. Devemos virar com ela, Rolf. Então, nós aqui vamos nos tornar heróis da resistência.
– Vamos com isso, Gunnar, vamos com isso.
E, com isso, eles fecharam o maciço portão de ferro. E, no instante em que o portão foi fechado e trancado, eles ouviram um som de pancada, como se alguém tivesse se chocado contra o portão, seguido de um palavrão terrivelmente feio, que não podemos repetir aqui.
No pátio, o doutor Proktor tinha parado a motocicleta e, enquanto a banda de música da Avenida Cannon tocava, a senhora Strobe saltou do carrinho e desapareceu dentro da cozinha de campanha. E lá ela deve ter descoberto o aparelho que estava tocando “Meu Docinho”, porque Lise ouviu a senhora Strobe gritar “Aha!”, seguido do som de um tapão na mesa, e não se ouviu mais a música do BABA pelo resto desta história.
Os soldados estavam correndo em volta do pátio, atrapalhados, procurando camaleões lunares que, àquela altura, tinham se camuflado com a neve e ficado invisíveis. De repente, o doutor Proktor caiu da motocicleta, e alguém tentou dar a partida. Mas o pai comandante de Lise bateu sua guitarra com a maior força possível no banco do motorista, atingindo alguma coisa – embora se tivesse a impressão de que não havia nada ali além de ar –, e a parte central da guitarra se esmigalhou com grande ruído.
– Peguei um deles! – gritou o pai comandante de Lise, segurando com firmeza o braço da guitarra.
Uma voz feminina desesperada gemeu de dentro da guitarra.
– Yodolf, não deixe que eles nos peguem! Salve-me! Yodolf! Yodolf, você é uma grande decepção! Yodo...
Tandoora não teve chance de dizer mais nada, pois logo foi agarrada por soldados e alguém lhe meteu as mesmas algemas que tinham sido usadas em Gregor Galvanius.
Num monte de neve no canto do pátio, dois soldados tinham agarrado alguma coisa, mas ambos levaram murros no nariz e caíram para trás.
– Bem-vindos a um mundo de dor, bando de idiotas! – gritou Göran. – Venham pro titio agora! Venham... umpf!
Ouviu-se o som “umpf” porque Göran acabara de ser atingido por algo grande e pesado, que viera de cima e o enterrara na neve, abafando-lhe a voz.
“Umpf!”
O segundo “umpf” foi porque Göran foi atingido uma segunda vez por algo grande e pesado que veio de cima e o afundou ainda mais na neve.
“Umpf! Umpf!”
O terceiro “umpf”... bem, com certeza você já entendeu o que se passou.
Então, quando Göran, que agora estava mais de um metro enterrado na neve, arquejou e olhou para cima, ele viu algo acima dele, no ar, bem lá no alto, um homem-rã que tinha saltado e já estava a meio caminho da descida para atingi-lo novamente. “Traseiros sujos”, pensou ele, fechando os olhos.
Mas onde estaria Yodolf?
Lise tinha largado a clarineta e estava de pé no carrinho lateral, observando o caos do pátio, mas Yodolf Staler não estava à vista.
O doutor Proktor se aproximou dela e disse exatamente o que ela estava pensando:
– Se Staler fugir, ele vai voltar. Talvez com um plano ainda mais terrível.
Lise olhou para as paredes de pedra que rodeavam o pátio. Elas eram altas, mas provavelmente um babuíno desesperado poderia transpô-las. Não havia tempo a perder. Ela pulou para fora do carrinho lateral e correu em direção à mangueira de incêndio, apanhou-a e destravou a alavanca que impedia o jorro.
– O que você está fazendo? – perguntou o doutor Proktor, olhando para a massa de waffle, amarela e cheia de grumos, que começou a jorrar da mangueira de incêndio.
– Eu vou achar Yodolf – disse Lise, liberando ainda mais o jorro e apontando a mangueira para cima.
O jato amarelo ficou mais forte e subiu em direção ao céu azul da manhã e ao sol, que brilhava consternado sobre as coisas bizarras que as pessoas e os animais de Oslo estavam fazendo. Quando a massa de waffle achou que tinha subido o bastante, ela fez uma volta e começou a descer e esparramar-se no chão. Ela cobriu as pedras do calçamento, antes cobertas de gelo, as sacadas, os chapéus de uniformes, as pontas de narizes sardentos, os homens-rã saltadores e os soldados cambaleantes. Mas, o mais importante de tudo: ela cobriu uma forma que até então estava invisível.
– Lá esdá ele! – exclamou uma forma coberta de massa de waffle que lembrava muito a da senhora Strobe.
E, com efeito, no meio do pátio eles viram uma silhueta que gotejava massa de waffle e tinha a forma de um babuíno. Ela estava inclinada sobre a mesma grade de bueiro por onde Bumbão e Gregor tinham subido alguns dias antes. E no exato momento em que os soldados se precipitavam rumo ao babuíno de waffle, ele ergueu a tampa do bueiro, saltou no buraco e se foi.
Bumbão desceu deslizando pela calha e correu em direção a Lise e ao doutor Proktor, que já estavam junto do bueiro, olhando para baixo.
– Se ele conseguir fugir, vai ser uma catástrofe – disse o doutor Proktor.
– Eu sei – disse Bumbão e murmurou: – E seria uma sorte extraordinária se alguém aqui tivesse uma lanterna, não?
Todos os soldados que estavam à sua volta começaram a vasculhar seus uniformes e, um segundo depois, vinte e quatro lanternas estavam sendo entregues a Bumbão.
– Equipamento-padrão de campanha, Sargento – um deles explicou.
– Como vocês – disse Bumbão, agarrando uma das lanternas e apertando o nariz entre o polegar e o indicador. – Quem vem comigo?
– Eu – disse o professor, verificando se seus óculos de natação estavam bem ajustados no nariz.
– E eu! – gritou Gregor, que parara de pular sobre Göran e agora estava junto à cozinha de campanha, comendo massa de waffle do rosto de uma forma coberta de massa de waffle que se parecia muito com a senhora Strobe.
Lise gemeu, apertou o nariz e disse com voz anasalada:
– Por que a gente SEMPRE termina enfiada em esgotos fedorentos?
– De que outro modo poderíamos... – principiou Bumbão.
– Sair deles novamente? – suspirou Lise e pulou. E presto, ela desapareceu! E, presto, Bumbão desapareceu! E dois “prestos” depois, o professor e Gregor estavam logo atrás deles.
– Bem isto aqui é muito escuro – disse o doutor Proktor, quando todos tinham pulado, provocando grandes e nem tão grandes impactos que espadanaram a água do esgoto.
– Oh, mas como esta água fede! – disse Lise enojada, tentando poupar os cabelos.
– Pelo menos ela tirou a massa de waffle de nós – disse Bumbão, ligando a lanterna.
– Aí é que está o problema – disse o doutor Proktor. – Como vamos encontrar Yodolf se toda a massa de waffle foi levada pela água?
– Nem ao menos sabemos se devemos ir para a direita ou para a esquerda – disse Lise.
Três dos nossos quatro amigos se entreolharam, perplexos.
O quarto, Gregor, começou a soluçar.
– Hic! – fez ele. – Hicketty hick!
– Ora, ora – disse o doutor Proktor para acalmá-lo. – Isso não é hora de se estressar, Gregor.
– Ele está só perguntando para que lado Yodolf foi – explicou Bumbão.
– Perguntando a quem?
Bumbão girou a lanterna em torno deles. A luz atingiu um par de brilhantes olhos de rã.
– Hic! – disse a rã. – Hic-Hiccup!
– Por aqui – disse Gregor, apontando, e Bumbão avançou pelo cano de esgoto com a luz da lanterna à sua frente.
Os outros foram atrás, o doutor Proktor encurvando o corpo para evitar bater a cabeça no alto do cano. De repente, Bumbão parou. Eles estavam num cruzamento onde um cano se dividia em cinco outros.
– Hic! – disse Gregor. – Hicketty hick!
Da escuridão, veio um breve coaxo como resposta.
– Oh não! – disse Gregor.
– O quê? – perguntou Lise.
– Elas não viram ninguém passar por aqui.
– Bem, então é isso – disse o doutor Proktor. – Yodolf deve ter se livrado do resto da massa e agora está camuflado novamente. Não vamos conseguir encontrá-lo.
E os outros perceberam que o professor tinha razão.
– Que droga! – disse Lise. – Eu esperava que tivéssemos um final absolutamente feliz, com Yodolf preso com grilhões e trancado à chave.
– Bem, temos de nos resignar a um final mais ou menos feliz – falou o doutor Proktor. – E torcer para que Yodolf não apareça por aqui novamente tão cedo.
Eles balançaram a cabeça concordando.
– Vamos voltar – disse o doutor Proktor.
– Hic.
Três dos quatro amigos começaram a avançar com dificuldade pelo caminho de volta.
– Bumbão! – gritou Lise. – Você não vem com a gente?
Ela se voltou e olhou para o seu pequeno amigo, que estava ali parado, olhando para a escuridão.
– O que está havendo, Bumbão?
– Este último soluço – disse ele. – Ele me pareceu familiar.
– Tenho certeza de que todas as rãs coaxam da mesma maneira – disse Lise.
– Mas não era uma rã – disse Bumbão, apontando a luz da lanterna para a escuridão de um dos túneis. – Era... era... – gritou ele todo animado.
E os outros o viram estender a mão, porém não sabiam por quê. Mas então eles entenderam.
– Perry! – gritou Bumbão. – Perry, você conseguiu! Você ficou aqui durante todo esse tempo?
– Hic.
Lise e os outros deram meia-volta e se aproximaram de Bumbão.
– Impressionante! – disse o doutor Proktor, sorrindo. – Agora, meus caros amigos, apesar de tudo, não temos alternativa senão nos alegrar com o final desta história!
– Quase – disse Bumbão. – Psst!
Ele inclinou a cabeça para o lado, em direção à aranha sugadora peruana de sete pernas que pusera no ombro.
– Perry quer que sigamos por aqui – disse Bumbão, e começou a correr por um dos túneis. Ali havia menos água, mas, mesmo assim, ela espadanava sob seus pés.
Os outros se puseram a correr atrás dele. E, quando fizeram uma curva, viram Bumbão parado ali, as pernas afastadas. E, diante dele, havia uma grande e bonita teia de aranha que se estendia por todo o túnel do esgoto, os fios brilhando sob a luz da lanterna.
– Olhem! – sussurrou Bumbão.
Eles olharam e viram que a teia de aranha estava se mexendo. Como se alguma coisa grande e invisível estivesse se debatendo desesperadamente na teia de fios tão fortes que só poderiam ter sido produzidos por uma aranha que tivesse ingerido o Tônico Fortificante do Doutor Proktor com Pimentas Mexicanas Trovejantes de Potência Máxima. E quando eles olharam com mais atenção viram que, aqui e ali, a forma ainda tinha manchas de massa de waffle.
Lise se postou ao lado de Bumbão, estendeu a mão e estremeceu ao tocar uma coisa quente e peluda.
– Yodolf Staler – disse Bumbão num tom grave. – Quer dizer, então, que estávamos fadados a nos encontrar novamente?
– Cale a boca, anão! – gritou de dentro da teia de aranha uma voz enfurecida que lhes era familiar. – Tirem-me daqui!
– Teremos muito prazer em fazer isso – disse o doutor Proktor. – Vamos mandar alguns belos soldados aqui para baixo, que colocarão umas belas e brilhantes algemas em você e lhe darão uma carona para uma jaula confortável e quentinha. E, quem sabe? Talvez o exponham no zoológico para provocar um pouco de medo no coração dos visitantes.
– Aaaargh! – ouviu-se o rosnado vindo da teia de aranha. E, aos poucos, ele foi se tornando visível. Yodolf Staler. Lise estremeceu novamente quando viu aqueles dentes afiados, brilhando naquela boca aberta.
E enquanto eles faziam o caminho de volta, Lise torceu para nunca mais ver Yodolf Staler, num zoológico ou em qualquer outro lugar. E ela não mais o veria, mesmo.
Mas, daí por diante, Lise parou de pensar em toda aquela história porque, quando nossos amigos voltaram à luz do dia, no pátio de trás do Palácio, os festejos já estavam a todo vapor. Os soldados estavam dançando e havia gente aglomerada diante do portão, agitando pequenas bandeiras da Noruega e gritando hurras.
– Festa! – gritou Bumbão, e fez uma demonstração do passo moonwalk no meio da multidão. – Que venham as garotas, a gelatina e a música!
E foi exatamente assim que aconteceu.
Capítulo 30.
Um animal que você
gostaria que não existisse.
Exceto agora mesmo
– BEM ISSO TEM LÁ SUA GRAÇA, ROLF – disse Gunnar, algemando os pulsos peludos de Yodolf, que balançava do teto do túnel, enredado na teia de aranha, nas profundezas da rede de esgotos. Eles tinham colado um pedaço de fita adesiva sobre a boca de Yodolf quando se cansaram de ouvi-lo prometer-lhes, primeiro, dinheiro, depois, ouro e até grandes áreas cobertas de florestas verdejantes, se eles o deixassem fugir. Então, depois que eles delicadamente recusaram essas ofertas, ele ameaçara morder suas estúpidas cabeças se não o deixassem fugir imediatamente. Agora o babuíno não conseguia emitir nem um som, e o silêncio ficou tão profundo que Rolf e Gunnar podiam ouvir a música e os aplausos das pessoas que estavam lá em cima. A comemoração se espalhara por toda a cidade de Oslo, sim, e até mesmo por toda a Noruega, onde, agora, as pessoas enchiam as ruas para comemorar e congratular-se por estarem livres do déspota Staler.
Rolf esfregou o rosto no lugar em que uma das garotas da Praça do Palácio o tinha beijado.
– É legal, não é, Gunnar, ter libertado a Noruega? – disse ele rindo.
– Vão escrever poemas épicos sobre nós – disse Gunnar, algemando os repugnantes tornozelos do camaleão lunar.
– Eles vão construir um museu em nossa honra e fazer filmes sobre nossos feitos heroicos – disse Rolf.
Gunnar tentou libertar Yodolf da teia de aranha.
– Devo dizer que ele está muito bem preso a essa teia. Me dá uma mãozinha, Rolf?
– Claro, Gunnar.
No entanto, mesmo juntos eles não conseguiam tirar Yodolf da teia.
– É como cola – gemeu Rolf. – Vamos ter de arranjar alguma podadeira de sebe gigante para tirá-lo da teia.
– Bem passado.
– Acho que você quis dizer “bem pensado”.
– Acho que provavelmente você tem razão, Rolf.
Tiraram a fita adesiva da boca de Yodolf, para que ele não sufocasse enquanto eles estivessem longe, e começaram a voltar pelo mesmo caminho por onde tinham vindo enquanto Yodolf gritava para eles:
– Estúpidos! Traseiros sujos!
De repente, Gunnar parou.
– O que foi? – perguntou Rolf.
– Você viu aquilo?
– Aquilo o quê?
– No escuro, ali adiante. Um clarão branco. Como dentes em uma enorme mandíbula.
– Como assim, enorme?
– Bem, do tamanho de uma boia de natação.
– Pare de brincadeira, Rolf.
– Ora, você é que é o Rolf.
– Quero dizer... Gunnar. Você não acredita nessa velha lenda urbana que anda por aí, de que uma sucuri vive na rede de esgotos de Oslo, uma sucuri que, dizem, tem dezoito metros de fortes músculos constritores e dentes com a forma e o tamanho de cones de sorvete de ponta-cabeça.. Desculpe, mas se você acredita nisso, bem... então, você é mais tolo do que...
Ele foi interrompido por um grito estridente e um barulho ainda mais alto.
– Que barulho foi esse?
– Se eu não estivesse avisado, diria que era uma enorme mandíbula fechando-se de repente e alguém gritando por socorro.
– Pareceu mais meio grito de socorro.
– Sim. Socor...! Foi isso.
– Sim. Socor...! E então parou.
– Como se o grito tivesse sido cortado no meio.
– Hum. Você ouviu mais alguma coisa?
– Não.
– Pois é isso mesmo. Ele ficou terrivelmente calado de repente.
– Você quer dizer...?
Eles se voltaram devagar e apontaram a luz de suas lanternas para a teia de aranha. E lá, no meio da teia, onde um agitado, enrascado e furioso camaleão lunar estivera até alguns segundos atrás, não havia nada. Nem mesmo uma teia de aranha. Como se alguém a tivesse abocanhado em uma grande mordida. Uma mordida do tamanho de... bem... de uma boia de natação.
– R-R-Rolf? – perguntou Gunnar, enquanto eles retomavam o caminho de volta, iluminando todos os cantos com a lanterna. – Vo-você acha que sucuris gostam de camaleões lunares?
– Eu... eu... eu não sei, Gunnar. Eu não diria isso. Mas talvez elas gostem um pouco de massa de waffle.
E, com isso, ambos deram meia-volta e correram o mais rápido que podiam para sair do esgoto e alcançar a luz do dia. E lá estão eles, piscando sob a luz do sol, rodeados de gente dançando, balões voando, fogos de artifício explodindo e bandeiras tremulando. E então garotas se aproximaram deles e beijaram ambos nas bochechas – as bochechas do bigode de guidão e as do bigode de Fu Manchu –, e eles caíram na dança e se esqueceram totalmente de Yodolf e, pelo menos em parte, da história da sucuri.
Capítulo 31.
Garotas, gelatina e música
NA TARDE SEGUINTE, houve uma festa na casa torta do alto da Avenida Cannon. E como o sol estava brilhando ainda mais animadamente do que no dia anterior, o doutor Proktor, Lise e Bumbão levaram as cadeiras da mesa de jantar, o sofá esburacado e a churrasqueira para o quintal. Toda a orquestra-improvisada-no-último-minuto da Avenida Cannon estava lá, mais os vizinhos e amigos. A neve derretida gorgolejava e ria nas sarjetas e nos bueiros, enquanto os convidados comiam seus cachorros-quentes grelhados. E não eram quaisquer cachorros-quentes, eram cachorros-quentes grelhados de Trøndelag do Sul, trazidos para a festa por um convidado especial, que, naquele dia, bem cedinho, aterrissara com sua asa-delta no quintal e agora estava jogando xadrez chinês com outro convidado especial.
– Eu acho, Vossa Alteza Real – dizia Petter, com a boca cheia de cachorro-quente, colocando no lugar a última bolinha de gude azul e amarela –, que acabo de ganhar.
O rei olhou para o xadrez e murmurou:
– Me danei!
Petter inclinou a cabeça para trás e gritou ao céu azul:
– Lute, Petter! Tão maravilhoso, Petter! Três vivas a Petter! Eu sou Petter, o primeiro e único...!
E então Bumbão bateu em seu copo com uma faca para que todos soubessem que ele queria dizer alguma coisa. O silêncio se instalou no quintal coberto de neve. Bumbão subiu na cadeira e limpou a garganta.
– As pessoas são estranhas – principiou ele. – Quando a gente sente vontade de esganar alguém, em geral é a pessoa de quem mais gostamos.
– É mesmo! – gritou a irmã de Bumbão.
– Nós elegemos Yodolf presidente – continuou Bumbão. – Mas nada mais humano do que ser enganado e cometer erros. É isso mesmo, até eu reconheço francamente que errei em duas ocasiões.
Lise, que estava sentada junto de Bumbão, deu-lhe uma cutucada. Ele pigarreou novamente:
– Talvez até três vezes. Mas o importante é ter coragem bastante para admitir um erro. Na verdade, as pessoas devem cometer erros algumas vezes. Porque, do contrário, como teriam a chance de corrigir os próprios erros?
Bumbão fez uma pausa para que todos pudessem refletir sobre aquelas ideias. Então continuou:
– Hoje estamos aqui para comemorar o fato de que lutamos por alguma coisa. Mas, na verdade, por que nós lutamos? Pelo direito de ser pequeno e de saber pronunciar bem as palavras? Isso é importante o bastante para corrermos o risco de uma waffle-zação?
Ele olhou em volta.
– Sim – disse Lise, levantando-se também. – Porque a luta não foi apenas pelo direito de ser pequeno e de pronunciar as palavras corretamente. Foi mais pelo direito de sermos, ao mesmo tempo, iguais e diferentes.
Lise e Bumbão fizeram uma mesura e se sentaram. Os aplausos vieram de todos os lados, e Lise lançou ao seu pai comandante e à sua mãe comandante um olhar de censura, para que os dois entendessem que era embaraçoso eles ficarem batendo palmas por tanto tempo depois que os outros já tinham parado.
– Essa garota um dia vai ser primeira-ministra – o rei sussurrou para Gregor e para a senhora Strobe. Então ele bateu a faca no copo e levantou-se de um salto.
– Meus compatriotas, eu também gostaria de dizer alguma coisa. Este foi um ano cheio de grandes acontecimentos, e mais haverá de vir.
A mãe de Bumbão bocejou tão alto que suas mandíbulas estalaram.
– Mas o mais importante é que quero fazer uma proclamação – disse o rei. – Duas das pessoas que estão aqui hoje decidiram noivar. E me sinto orgulhoso porque eles me perguntaram se eu aceitaria ser o padrinho de casamento. Senhoras e senhores, eu lhes apresento... Rosemarie Strobe e Gregor Galvanius.
Houve uma onda de aplausos e, sorridente, afogueada, a senhora Strobe levantou o copo para um brinde. Então Gregor abraçou-a e perguntou-lhe em voz alta se podia beijá-la.
Todos aplaudiram e Bumbão levantou seu copo de suco de pera.
– Então, com isso, eu declaro a guerra encerrada. Vamos à sobremesa. Porque, como quis o destino, o doutor Proktor e sua noiva, Juliette, que voltou de Paris hoje, fizeram gelatina.
Um longo “Ooooh”, cheio de expectativa, ergueu-se da multidão, e todos se voltaram para a casa azul, de onde o professor e sua noiva acabavam de sair. Sobre suas cabeças, braços levantados, eles estavam trazendo a maior travessa que tinham visto na vida.
– É-é-é uma gelatina gigante... que deve pesar tando quanto uma casa!
Ao som da palavra “tando”, a impressão que se teve foi de que todos no quintal ficaram paralisados. Todos olharam horrorizados para o homem que a pronunciara.
– Bem, he, he – riu o senhor Madsen, embaraçado e constrangido. Então ele ajeitou os óculos e disse: – Eu estava só brincando.
E houve nova onda de aplausos.
E deixamos nossos amigos aqui. Quem sabe a gente decole numa asa-delta, sobrevoe o quintal daquela casa azul, onde eles continuam devorando a maior gelatina que já se viu na vida. Sobrevoe a pereira, onde um pássaro canta uma canção sobre a chegada antecipada da primavera. Sobrevoe também a cidade de Oslo, onde as pessoas continuam dançando nas ruas, com o sol brilhando sobre todas elas. E seguiremos um dos raios solares, aquele que incide sobre a tampa de um bueiro e, através de um buraquinho, desce à selva de canos de esgotos e túneis. E poderemos ouvir alguma coisa estalando os beiços no meio da escuridão. Saciada e contente. Eu sei o que você está pensando, mas na verdade você não acredita nessas histórias antigas, não é?
Jo Nesbo
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