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O FIO DA NAVALHA - Parte II
Willian Somerset Maugham
5
Tínhamos combinado o encontro no apartamento, para um coquetel. Cheguei antes de Larry. Eu ia levá-los a um restaurante elegantíssimo e esperei encontrar Isabel ataviada para a ocasião; como todas as mulheres esmerando-se ao máximo, achei que ela não havia de querer ser ofuscada. Mas encontrei-a com um vestido de lã muito simples.
– Gray está com uma das suas terríveis dores de cabeça – disse ela. – Está sofrendo horrores. Não posso absolutamente deixá-lo. Disse à cozinheira que podia sair assim que desse o jantar das crianças, de modo que tenho que fazer qualquer coisa para ele, e ver se o obrigo a comer. É melhor você e Larry irem sozinhos.
– Gray está deitado?
– Não; nunca quer ir para a cama quando tem uma dessas enxaquecas. Só Deus sabe que é onde deveria estar, mas não adianta a gente insistir. Está na biblioteca.
A biblioteca era uma sala com lambris, toda em marrom e ouro, que Elliott descobrira num velho castelo. Um gradil dourado, sempre fechado, resguardava os livros de quem os quisesse ler; mas talvez fosse melhor assim, uma vez que, pela maior parte, consistiam em obras pornográficas, ilustradas, do século xviii. Modernamente encadernadas de marroquim, conseguiram, no entanto, um belíssimo efeito. Isabel levou-me até lá. Gray estava todo dobrado na cadeira; notei várias revistas espalhadas no chão, a seus pés. Tinha os olhos fechados e seu rosto habitualmente vermelho estava lívido. Via-se claramente que sofria muito. Procurou levantar-se, mas detive-o.
– Já lhe deu uma aspirina? – perguntei a Isabel.
– Não adianta nada. Tenho uma receita americana, mas também pouco serve.
– Oh! não se incomode, meu bem – disse Gray. – Amanhã estarei bom. – Tentou sorrir e, virando-se para mim, acrescentou: – Sinto muito ser um desmancha-prazeres. Vão vocês ao Bois.
– Nem se cogita disso – exclamou Isabel. – Acha então que eu me divertiria sabendo que você estava sofrendo horrores?
– Coitada da sujeitinha, acho que ela gosta mesmo de mim – disse Gray, de olhos fechados.
Nisto seu rosto se contraiu; quase se podia ver a dor lancinante que lhe atravessou a cabeça. A porta abriu-se e Larry apareceu. Isabel contou-lhe o que havia.
– Oh! sinto muito – disse ele, lançando a Gray um olhar de comiseração. – Não se pode fazer alguma coisa para aliviá-lo?
– Nada – respondeu Gray, ainda de olhos fechados. – A única coisá que podem fazer é deixar-me só; vão vocês e divirtam-se bastante.
Por mim achei que era a única coisa sensata a fazer, mas talvez a consciência de Isabel não lhe permitisse agir assim.
– Quer que eu veja se posso ajudá-lo? – perguntou Larry.
– Ninguém pode ajudar-me – disse Gray em voz cansada. – Isto está me matando e, por Deus, às vezes chego a desejar que me mate mesmo.
– Enganei-me ao dizer que talvez pudesse ajudá-la. Minha intenção era dizer que talvez eu pudesse ajudá-lo a ajudar-se a si próprio.
Gray abriu lentamente as pálpebras e fitou Larry.
– Como é que você pode fazer isso?
Larry tirou do bolso uma moeda de prata e entregou-a a Gray.
– Feche bem os dedos e conserve a mão de palma para baixo. Não lute contra mim. Não faça esforço, mas segure a moeda no punho fechado. Antes de eu ter contado vinte, sua mão se abrirá e a moeda cairá no chão.
Gray fez o que lhe diziam. Larry sentou-se à escrivaninha e começou a contar. Isabel e eu continuamos de pé. Um, dois, três, quatro. Até ele chegar a quinze, não houve movimento por parte de Gray; depois a mão tremeu ligeiramente e, não posso dizer que tenha visto, mas pareceu-me que os dedos se afrouxavam. O polegar separou-se do punho. Vi distintamente os dedos moverem-se. Quando Larry chegou a dezenove, a moeda soltou-se da mão de Gray e rolou pelo chão, vindo parar a meus pés. Apanhei-a e examinei-a. Era pesada e malfeita, tendo de um lado, em relevo, uma cabeça jovem que reconheci como sendo de Alexandre, o Grande. Gray olhou perplexo para a sua mão.
– Não soltei a moeda – disse ele. – Caiu por si mesma. Estava sentado com o braço direito apoiado no braço da poltrona de couro.
– Você se sente confortável nesta cadeira? – perguntou Larry.
– O mais confortável possível para quem tem a enxaqueca que eu tenho.
– Pois bem, relaxe os músculos. Fique à vontade. Não faça coisa alguma. Não resista. Antes de eu ter contado vinte, seu braço direito se levantará da cadeira até chegar em cima da cabeça. Um, dois, três, quatro.
Ele dizia os números lentamente, naquela sua voz argentina, melodiosa; quando chegou ao número nove, vimos a mão de Gray erguer-se, de maneira apenas perceptível, mais ou menos três centímetros acima da superfície de couro onde descansava, aí parando pelo espaço de um segundo.
– Dez, onze, doze.
Um repuxãozinho e então, lentamente, todo o braço começou a erguer-se. Já não estava apoiado na poltrona. Um tanto atemorizada, Isabel agarrou a minha mão. Curioso, aquilo. Não se parecia absolutamente com um movimento voluntário. Nunca vi um sonâmbulo em ação, mas imagino que seus movimentos se assemelham aos movimentos do braço de Gray naquele momento. Não se tinha a impressão de que a vontade fosse a força motriz. Achei que, por um esforço consciente, devia ser difícil erguer um braço tão devagar e assim gradualmente. Era como se uma força subconsciente, independente da vontade, o levantasse. Movimento semelhante ao do pistão que se move lentamente num cilindro.
– Quinze, dezesseis, dezessete.
As palavras caíam, lentas, lentas, lentas, como gotas-d’água numa bacia, provindo de uma torneira defeituosa. O braço de Gray subiu, subiu, até a mão pairar acima da cabeça; e, quando Larry atingiu o número determinado, caiu pesadamente sobre a poltrona.
– Não levantei o braço – afirmou Gray. – Não pude evitar que subisse daquele jeito. Ergueu-se por si mesmo.
Um sorriso esboçou-se nos lábios de Larry.
– Não tem importância. Achei que isto faria com que você tivesse confiança em mim. Onde está aquela moeda grega?
Entreguei-a a Larry e ele virou-se para Gray.
– Segure-a com força. – Gray fez o que lhe mandavam e Larry consultou o seu relógio. – São oito horas e treze minutos. Daqui a sessenta segundos, suas pálpebras se tornarão tão pesadas que você será obrigado a fechá-las. Você vai dormir durante seis minutos. Às oito e vinte acordará e não sentirá mais dor alguma.
Nem eu nem Isabel falamos. Nossos olhos estavam fixos em Larry. Ele nada mais disse. Fitou Gray, mas não parecia vê-lo; parecia mesmo estar olhando através e além dele. Havia qualquer coisa de sobrenatural no silêncio que caiu sobre nós; tal o silêncio das flores num jardim, ao cair da noite. Subitamente senti a mão de Isabel contrair-se; olhei então para Gray. Suas pálpebras estavam cerradas; respirava com facilidade e regularmente; dormia. Ali ficamos por um tempo que pareceu interminável. Eu estava louco por um cigarro, mas não quis acender um. Larry estava imóvel, de olhos perdidos não sei em que distância. A não ser pelo fato de estarem abertos, ele parecia em transe. De repente pareceu relaxar-se; os olhos adquiriram a expressão normal e ele consultou o relógio. Nisto Gray abriu os olhos.
– Céus, creio que cochilei – disse ele. Depois teve um sobressalto. Notei que seu rosto perdera a lividez. – Minha dor de cabeça passou.
– Ótimo – disse Larry. – Fume um cigarro e vamos depois jantar.
– É um milagre. Sinto-me perfeitamente bem. Como é que você conseguiu isso?
– Não fui eu. Foi você mesmo.
Isabel foi trocar de vestido e enquanto isso Gray e eu tomamos um coquetel. Evidentemente Larry não queria discutir o fato, mas Gray insistiu em comentá-lo. Não podia compreender o que se passara.
– Sabe, não pensei que você pudesse conseguir coisa alguma – disse ele. – Concordei porque estava indisposto demais para resistir.
Começou a descrever o princípio das enxaquecas, seu horroroso sofrimento e o estado de inutilidade em que ficava depois que elas passavam. Achava incompreensível sentir-se agora tão disposto. Isabel voltou. Pusera um vestido que eu ainda não conhecia; chegava até o chão e era de uma fazenda branca chamada marocain, levemente enfeitada de tule preto. Não pude deixar de pensar que ela nos iria fazer honra.
O Château de Madrid estava muito alegre, e nós de ótimo humor. Larry conversou com uma espirituosa vivacidade que eu não estava habituado a ver-lhe, dizendo tolices que muito nos fizeram rir. Tive a impressão de que assim agia para que nos esquecêssemos da demonstração que dera do seu extraordinário poder. Mas Isabel era uma mulher decidida. Estava disposta a brincar enquanto isso lhe conviesse, mas não iria deixar insatisfeita a sua curiosidade. Terminado o jantar, quando nos serviram café e licores, achando talvez que a conversa íntima, a comida gostosa e o copo de vinho que Larry tomara lhe tinham enfraquecido a resistência, Isabel fitou-o com olhos brilhantes.
– Conte-nos agora como foi que você curou a dor de cabeça de Gray.
– Você viu com seus próprios olhos – respondeu ele sorrindo.
– Foi na Índia que você aprendeu isso?
– Foi.
– Gray sofre horrores. Você acha que poderia curá-lo definitivamente?
– Não sei. É possível que sim.
– Isto faria uma diferença enorme na vida dele. Gray não pode pretender um bom emprego, sabendo que é capaz de ficar incapacitado para o trabalho durante quarenta e oito horas ou mais. E nunca será feliz, a não ser que volte a trabalhar.
– Bom, eu não posso fazer milagres.
– Mas foi um milagre. Vi-o com meus próprios olhos.
– Não, não foi. Apenas enfiei uma ideia na cabeça do velho Gray e ele fez o resto. – Larry virou-se para Gray e perguntou: – Que é que você vai fazer amanhã?
– Jogar golfe.
– Aparecerei então ali pelas seis horas e daremos uma prosinha. – Depois, virando-se para Isabel com seu sorriso insinuante, acrescentou: – Há dez anos que não danço com você, Isabel. Quer ver se ainda sei?...
6
Depois disso vimos Larry muitas vezes. Na semana seguinte ele veio ao apartamento todos os dias, fechando-se durante meia hora com Gray na biblioteca. Parece que queria persuadi-lo – era assim que ele se exprimia, sorrindo – a não ter aquelas pavorosas enxaquecas. Gray ficou com uma confiança cega nele. Pelo pouco que me contou, percebi que Larry estava também procurando fazer com que readquirisse confiança em si. Dez dias depois Gray teve outra enxaqueca, mas aconteceu que Larry só ficara de aparecer à tarde. Não foi muito forte, mas Gray tinha agora tanta confiança no estranho poder de Larry que achava que, se pudessem encontrá-lo, em poucos minutos ele o curaria. Mas nem eu, a quem Isabel telefonou, nem eles sabíamos onde procurá-lo. Quando finalmente Larry apareceu, dando alívio a Gray, este lhe pediu o seu endereço, para o caso de novamente precisar dele com urgência. Larry sorriu.
– Telefone para o American Express e deixe o recado. Telefonarei para lá todas as manhãs.
Mais tarde Isabel me perguntou por que motivo Larry fazia tanto segredo de sua residência. Isto já acontecera antes, e depois se verificara que ele estivera morando, sem mistério algum, num hotel de terceira classe do Quartier Latin.
– Não tenho a mínima ideia – respondi. – Só posso apresentar uma hipótese fantástica, e que talvez não tenha fundamento algum. Mas é possível que algum estranho instinto provoque nele o desejo de ter em sua residência certo isolamento espiritual.
– Pelo amor de Deus, que quer dizer com isso? – exclamou Isabel um tanto irritada.
– Você não acha que, por mais acessível, camarada e sociável que Larry se mostre quando está conosco, a gente sente nele uma espécie de desprendimento, como se ele não se entregasse completamente, como se retivesse em algum ponto oculto da alma algo que não sei definir – uma tensão, um segredo, uma aspiração, um conhecimento – que faz dele uma criatura à parte?
– Conheço Larry desde menina – replicou Isabel com impaciência.
– Às vezes ele me faz lembrar um grande ator que representasse à perfeição o seu papel, numa peça espalhafatosa, mas medíocre. Como Eleanora Ouse, em La Locandira.
Isabel refletiu um momento sobre isso.
– Creio que percebo o que você quer dizer. A gente está se divertindo – e pensa que Larry é como um de nós, como todo mundo –, mas de repente sente que ele foge, como um rolo de fumaça que a gente tenta capturar com as mãos. Que será que o torna assim esquisito?
– Talvez uma coisa tão corriqueira que a gente nem mesmo dela se apercebe.
– E isto é?...
– Pois bem, bondade, por exemplo. Isabel franziu as sobrancelhas.
– Gostaria que você não dissesse essas coisas. Sinto uma sensação desagradável na boca do estômago.
– Ou será uma dorzinha no fundo do coração?
Isabel olhou-me longamente, como se pretendesse ler-me os pensamentos. Apanhou um cigarro do maço sobre a mesa, acendeu-o e reclinou-se na cadeira. Ficou a observar a fumaça que se contorcia no ar.
– Quer que eu vá embora? – perguntei.
– Não.
Fiquei em silêncio durante alguns momentos, a observá-la, sentindo prazer em contemplar o nariz benfeito e a bonita linha do queixo.
– Você está muito apaixonada por Larry?
– Vá para o inferno, nunca amei outro homem na minha vida.
– Por que se casou com Gray?
– Eu tinha que me casar com alguém. Ele estava louco por mim e mamãe queria o casamento. Todo mundo me dizia que fora uma sorte eu ter-me livrado de Larry. Eu gostava de Gray; ainda gosto muito dele. Você não imagina como é meigo; não há ninguém que seja mais bondoso e delicado. Ele dá a impressão de ter um gênio violentíssimo, não dá? Pois comigo sempre foi angelical. Quando tínhamos dinheiro, queria que eu manifestasse desejos para ter o prazer de satisfazê-los. Certa vez eu disse que seria divertido ter um iate, para darmos a volta ao mundo; e, se não fosse a crise, ele teria comprado um.
– Parece impossível que tal perfeição exista – murmurei.
– Divertimo-nos imensamente. Sempre lhe ficarei grata por isso. Fui muito feliz com ele.
Fitei-a, mas nada disse.
– Com certeza eu não o amava realmente, mas a gente pode muito bem passar sem amor. No fundo do coração eu suspirava por Larry, mas enquanto ele estava longe isso não me preocupava. Você se lembra de ter me dito que, com cinco mil quilômetros de oceano de permeio, as penas de amor se tornam perfeitamente toleráveis? Naquela época achei a observação de um cinismo revoltante, mas é, naturalmente, verdadeira.
– Se é sofrimento ver Larry, não seria mais acertado deixar de vê-lo?
– Mas é um sofrimento delicioso. Além do mais, você sabe como ele é. A qualquer momento pode desaparecer, como sombra quando o sol se esconde, e talvez fiquemos anos sem vê-lo.
– Você nunca pensou em se divorciar de Gray?
– Não tenho motivo para me divorciar dele.
– Isso não impede que suas compatriotas se separem dos maridos quando a tal se sentem inclinadas.
Isabel riu.
– Por que será que fazem isso? – perguntou.
– Não sabe, então? Porque as mulheres americanas esperam encontrar nos maridos a perfeição que as inglesas só exigem dos seus mordomos.
Isabel fez um gesto tão brusco com a cabeça que não sei como não ficou com torcicolo.
– Só porque Gray não tem facilidade de expressão você acha que ele não vale nada.
– Engana-se – protestei vivamente. – Acho mesmo que há em Gray qualquer coisa de muito comovente. Ele tem uma grande capacidade para amar. Basta a gente observá-lo, quando ele olha para você, para ver como o seu amor é profundo e absorvente. Ele gosta muito mais das filhas do que você.
– Com certeza você vai agora dizer que não sou boa mãe.
– Pelo contrário, acho que é uma ótima mãe. Você zela pelo conforto e pela felicidade delas, cuida da sua alimentação e faz com que seus intestinos funcionem regularmente. Ensina-lhes boas maneiras, lê para elas e obriga-as a rezar todas as noites. Se ficam doentes, chama imediatamente o médico e é muito dedicada durante toda a moléstia. Mas você não está obcecada por elas, como Gray.
– Isso não é necessário. Sou um ser humano e trato-as como seres humanos. A mãe só prejudica os filhos quando faz deles a razão única da existência.
– Estou de pleno acordo com você.
– E ninguém pode negar que elas me adoram.
– Já percebi isso. Você é para elas o símbolo de tudo que é belo, encantador, maravilhoso. Mas não se sentem à vontade com você como com Gray. A você, elas adoram; a Gray, amam.
– Ele merece ser amado.
Gostei de ouvi-la dizer isto. Uma das maiores qualidades de Isabel era nunca se ofender com a verdade nua e crua.
– Depois da crise, Gray ficou em mísero estado – continuou ela. – Durante semanas trabalhou até meia-noite, no escritório. Eu ficava em casa, morta de medo, temendo que ele desse um tiro na cabeça, tão envergonhado se sentia. Gray e o pai tinham imenso orgulho da firma. E orgulho também da própria integridade e de sua clareza de visão. Não foi tanto por termos perdido todo nosso dinheiro; Gray achava ainda mais difícil conformar-se com os prejuízos de toda aquela gente que confiara nele. Achava que devia ter tido mais previsão. Não me foi possível convencê-lo de que a culpa não era sua.
Isabel tirou um batom da bolsa e pintou os lábios.
– Mas não era isso que eu queria lhe contar. Só o que nos restava era a fazenda; achei que a única salvação para Gray era sair de Chicago. Tocamos para lá, com mamãe e as crianças. Gray sempre gostara da plantação, mas nunca tínhamos ido sós; levávamos sempre um grupo grande e nos divertíamos a valer. Gray atira bem, mas naquela ocasião não tinha a mínima vontade de caçar. Costumava pegar o barco e saía pelo pântano, sozinho, durante horas, a observar os pássaros. Descia e subia os canais, vendo os pálidos caniços de cada lado e somente o céu sobre sua cabeça. Em certos dias os canais são azuis como o Mediterrâneo. Ele não falava muito quando voltava. Dizia que o passeio fora ótimo. Mas eu sabia o que ele sentia. Sabia que seu coração se comovia com a beleza, e a vastidão e o silêncio. Há um determinado momento, antes do pôr do sol, em que a luz sobre os pântanos é realmente maravilhosa. Ele ficava de pé, em contemplação, deliciado. Embrenhava-se durante horas pelas florestas misteriosas; florestas como as de uma peça de Maeterlinck, cinzentas, silenciosas, quase sobrenaturais. Há uma ocasião, na primavera – não dura mais que quinze dias –, em que os novelos florescem e os abrunheiros vicejam; o verde tenro e fresco, contra o acinzentado do musgo espanhol, é um verdadeiro cântico de júbilo. O chão fica que é um tapete de lírios brancos e azaleias silvestres. Gray não sabia dizer o que isso significava para ele, mas significava a felicidade. Aquela beleza o intoxicava. Oh! sei que não me exprimo bem, mas gostaria que você compreendesse como era comovente ver aquele vasto homem empolgado por tão pura e bela emoção, a ponto de me dar vontade de chorar. Se há um Deus no céu, Gray esteve então muito perto dele.
Isabel ficara um tanto comovida ao dizer isto e, tirando o lenço, enxugou cuidadosamente duas lágrimas que lhe brilhavam no canto dos olhos.
– Você não estará romantizando? – perguntei sorrindo. – Acho que está atribuindo a Gray pensamentos e emoções que gostaria que ele tivesse.
– Como poderia eu notá-los se não existissem? Você me conhece. A não ser que eu sinta o cimento de uma calçada sob os pés, e veja por toda a rua largas vitrinas exibindo chapéus, pulseiras de brilhantes e estojos montados em ouro, nunca sou realmente feliz.
Ri-me e ficamos em silêncio durante alguns minutos. Depois ela voltou ao assunto que tínhamos discutido antes.
– Nunca me divorciarei de Gray. Passamos por muita coisa juntos. E ele depende demais de mim. Isto é bastante lisonjeiro, você sabe, e dá à gente um senso de responsabilidade. Além do mais...
– Sim?
Ela me olhou de soslaio e havia nesse olhar um brilhozinho malicioso. Tive a impressão de que não sabia muito bem qual seria a minha reação ao que ia dizer-me.
– Ele é formidável na cama. Estamos casados há dez anos e Gray é tão ardente hoje como no princípio. Não foi você que disse numa peça que não há homem que queira uma mulher por mais de cinco anos? Pois bem, você não sabia o que dizia. Gray me deseja tanto como nos primeiros tempos de casados. Fez-me muito feliz, neste sentido. Embora você talvez não tenha essa impressão, sou uma mulher muito sensual.
– Engana-se redondamente. Tenho essa impressão.
– Pois bem, não é muito má qualidade, é?
– Pelo contrário. – Lancei a Isabel um olhar perscrutador e continuei: – Você se arrepende de não se ter casado com Larry há dez anos?
– Não. Teria sido loucura. Mas, naturalmente, se naquela época eu soubesse o que sei hoje, teria vivido com ele durante três meses, ficando assim definitivamente livre da obsessão da sua pessoa.
– Acho que você teve sorte em não tentar a experiência; talvez se visse presa a ele por laços inquebrantáveis.
– Não o creio. Era apenas uma atração física. Sabe, geralmente a melhor maneira de vencer o desejo é satisfazê-lo.
– Já lhe ocorreu que você é uma mulher muito dominadora? Você me disse que Gray tem um temperamento poético e que é um amante fogoso; não duvido que você dê muita importância a essas duas qualidades, mas não me falou sobre aquilo que significa mais que as duas coisas juntas – a certeza de que o tem preso no côncavo desta sua mão bonita, mas não muito pequenina. Larry sempre lhe teria escapado. Lembra-se da Ode de Keats? Por mais que te aproximes, nunca a beijarás.
– Você muitas vezes pensa que sabe mais do que real mente sabe – disse ela secamente. – Só há uma maneira de uma mulher prender um homem e você bem sabe qual é. E deixe que eu lhe diga uma coisa: não é a primeira vez que ela dorme com ele que vale, é a segunda. Se ela aí consegue prendê-lo, então ele está preso para sempre.
– Não sei onde você obtém tão extraordinárias informações.
– Não nasci ontem e ando de olhos e ouvidos abertos.
– Posso perguntar quem foi que lhe disse isso?
Isabel atirou-me o mais zombeteiro dos seus sorrisos.
– Uma mulher com quem fiz amizade numa exposição de modelos. A vendeuse me contou que ela era a mundana mais elegante de Paris; tomei então a resolução de não sair da loja sem conhecê-la. Adrienne de Troye. Já ouviu falar nela?
– Nunca.
– Então você está atrasado. Tem quarenta e cinco anos e nem mesmo bonita é, mas sua aparência é mais distinta do que a de qualquer uma das duquesas do tio Elliott. Sentei-me ao seu lado e entrei com a minha representação de impulsiva americanazinha. Disse-lhe que não pudera resistir à tentação de falar-lhe, pois ela era a pessoa mais formidável que eu jamais vira na vida. Disse-lhe que seu rosto tinha a perfeição de um camafeu grego.
– Que topete você tem!
– A princípio ela se manteve fria e reservada, mas continuei com a minha atitude ingênua e ela degelou-se.
Tivemos então uma prosinha muito agradável. Terminado o desfile, perguntei-lhe se não queria almoçar um dia comigo no Ritz, acrescentando que sempre fora admiradora de sua incomparável elegância.
– Já a vira antes?
– Nunca. Ela não aceitou, dizendo que, com tantas más línguas em Paris, eu iria ficar comprometida, mas que estava satisfeita por eu a ter convidado. Quando percebeu a minha decepção, perguntou se eu não queria ir almoçar em sua casa, dando uns tapinhas na minha mão ao ver como fiquei impressionada com a sua amabilidade.
– E você foi?
– Claro que fui. Ela tem um amor de casa, logo depois da Avenue Foch, e fomos servidas por um mordomo que é o retrato de George Washington. Fiquei até as quatro horas. Soltamos os cabelos, tiramos as cintas e tivemos uma prosinha de amigas íntimas. O que aprendi naquele dia daria para eu escrever um livro.
– Por que não escreve? É exatamente o assunto que agradaria ao Ladie’s Home Journal.
– “Seu” bobo – disse ela rindo.
Fiquei em silêncio durante alguns segundos, refletindo.
– Não sei se Larry a amou realmente – disse eu dali a pouco. Isabel empertigou-se na cadeira. Sua expressão tornou-se dura, os olhos chisparam de cólera.
– Que é que você está dizendo? Claro que ele me amou. amou. Pensa que uma moça não percebe quando um homem gosta dela?
– Oh! não digo que não gostasse, de certo modo. Com nenhuma outra moça tinha a intimidade que tinha com você. Desde pequenos vocês brincaram juntos. Ele achava natural gostar de você. Possuía um instinto sexual normal. Nada mais lógico do que aquele casamento. Não haveria grande modificação nas relações entre vocês; só que iriam viver sob o mesmo teto e dormir na mesma cama.
Um pouco mais mansa, Isabel esperou que eu prosseguisse. Sabendo que as mulheres estão sempre dispostas a ouvir uma dissertação sobre o amor, continuei:
– Os moralistas tentam convencer-nos de que o instinto sexual não tem muita relação com o amor. Referem-se a isso como se fosse um epifenômeno.
– Que diabo de história é essa?
– Pois bem, há psicólogos que acham que o estado consciente acompanha o trabalho do cérebro e é por ele determinado, sem no entanto exercer nenhuma influência sobre ele. Mais ou menos como o reflexo de uma árvore sobre a água; não poderia existir sem a árvore, mas em nada afeta essa árvore. Acho uma grandíssima tolice dizer que pode existir amor sem paixão; as pessoas que afirmam que o amor pode perdurar depois de esgotada a paixão referem-se a outro sentimento, afeição, bondade, comunhão de gostos e interesses, hábito. Principalmente hábito. Duas pessoas podem continuar a ter relações sexuais por hábito, assim como têm fome à hora em que costumam fazer suas refeições. Claro que pode haver desejo sem amor. Desejo não é paixão. O desejo é a consequência natural do instinto sexual e não tem maior importância do que qualquer outra função animal. É por isso que as mulheres são umas tolas de fazer um escarcéu quando os maridos de vez em quando pulam a cerca, quando a ocasião e o lugar são propícios.
– Isto se aplica somente aos homens? Sorri.
– Se você insistir, serei obrigado a confessar que o que serve para um serve para outro. O único argumento contra é que, para o homem, uma ligação passageira não tem nenhuma significação sentimental, ao passo que, para a mulher, tem.
– Depende da mulher.
Eu não ia consentir em ser interrompido.
– A não ser que o amor seja paixão, não é amor, é outro sentimento; e a paixão não aumenta com a satisfação e sim com a dificuldade. O que pensa você que Keats queria dizer quando aconselha o amante, na urna grega, a não se lamentar? Serão eternos o teu amor e a formosura dela! Por quê? Porque ela era inatingível e, por mais loucamente que o amante a perseguisse, ainda lhe escapava – pois estavam ambos aprisionados no mármore daquilo que julgo ter sido má obra de arte. Seu amor por Larry, e o dele por você, era simples e natural como o amor de Paulo e Francisca, de Romeu e Julieta. Felizmente não teve mau resultado. Você fez um casamento rico e Larry vagueou pelo mundo, atrás do canto que entoam as sereias. Paixão foi elemento que nele não entrou.
– Como é que você sabe?
– A paixão não mede as consequências. Pascal disse que o coração tem razões que a razão desconhece. Se é que o interpretei bem, ele queria dizer que, quando a paixão se apodera de um coração, este inventa, para provar que por amor todo sacrifício é pouco, razões não somente plausíveis, mas conclusivas. Ficamos convencidos de que vale a pena aceitar a desonra, e que a vergonha não é preço exagerado para se pagar por ele. A paixão é destruidora. Destruiu Antônio e Cleópatra, Tristão e Isolda, Parnell e Kitty O’Shea. E, quando não destrói, morre. É possível que então a pessoa se veja na amarga contingência de reconhecer que desperdiçou anos de vida, que se desgraçou inutilmente, que sofreu a tortura do ciúme, engoliu toda espécie de humilhações, tendo dado a sua ternura, as riquezas da sua alma a um ser insignificante, idiota, uma estaca onde dependurou seus sonhos, e que não valia dois tostões de mel coado.
Antes de ter terminado esse discurso, eu sabia que Isabel já não me ouvia, toda atenta aos próprios pensamentos. Mas sua observação seguinte me surpreendeu.
– Você acha que Larry é virgem?
– Minha querida, ele está com trinta e dois anos.
– Tenho certeza que é.
– Como é que você pode ter certeza?
– É o tipo de coisa que uma mulher sabe instintivamente.
– Conheci um rapaz que durante anos teve um sucesso louco só pelo fato de convencer beldade após beldade de que nunca possuíra outra mulher. Dizia ele que dava um resultado maravilhoso.
– Pouco me importo com o que você diz. Acredito na minha intuição.
Estava ficando tarde; Gray e Isabel iam jantar com alguns amigos e ela ainda precisava vestir-se. Não tendo nada que fazer, subi pelo Boulevard Raspail, sentindo prazer em caminhar por aquela agradável tarde de primavera. Eu nunca tivera muita fé na intuição das mulheres; geralmente coincide demais com os desejos delas, para poder inspirar-me confiança; e agora, ao recordar o fim da minha prosa com Isabel, não pude deixar de rir. Lembrei-me de Suzanne Rouvier e ocorreu-me que fazia muitos dias que não a via. Estaria comprometida para aquela noite? Se não estivesse, talvez quisesse jantar comigo, para irmos depois a um cinema. Chamei o primeiro táxi que passou vazio e dei ao chofer o endereço do seu apartamento.
7
Mencionei Suzanne Rouvier no início deste livro. No atual ponto da minha narrativa, fazia dez ou doze anos que eu a conhecia e ela não devia estar longe dos quarenta.
Não era bonita. Para ser franco, era mesmo feia, mais alta do que o comum das francesas, corpo curto, pernas e braços longos, atitude desajeitada, como se não soubesse o que fazer de membros tão compridos. A cor dos cabelos variava de acordo com o seu capricho, mas era geralmente de um castanho-avermelhado. Rosto pequeno e quadrado, maçãs muito salientes com duas manchas de carmim, boca larga com lábios vivamente acentuados pelo batom. Nada disso parece muito atraente, mas era; é verdade que tinha boa pele, dentes brancos e fortes, e olhos azuis, de um azul vivíssimo. Eram eles o seu ponto forte e Suzanne procurava realçá-los pintando as pestanas e as pálpebras. Tinha um ar perspicaz volúvel e simpático, e combinava um ótimo gênio com uma dose necessária de dureza. Na vida que levara tivera que ser dura. Sua mãe, viúva de um pequeno funcionário do governo, depois da morte do marido regressara à sua vila natal em Anjou, tendo que viver de sua pensão; quando Suzanne completara quinze anos, pusera-a como aprendiz de costureira numa cidade vizinha, bastante próxima para permitir que a menina viesse para casa aos domingos. Durante as férias de quinze dias, quando já estava com dezessete anos, Suzanne fora seduzida por um artista que viera passar o verão na aldeia para pintar umas paisagens. Ela já percebera que, sem a vantagem de um dote, suas probabilidades de casamento eram quase nulas; e assim, quando no fim do verão o pintor sugeriu que ela fosse com ele para Paris, Suzanne aceitou alacremente. Ele levou-a para uma colmeia de estúdios em Montmartre, e Suzanne passou um ano muito agradável em sua companhia.
Terminado esse prazo, o pintor lhe disse que não vendera uma única tela e que não podia mais dar-se ao luxo de uma amante. Ela estivera esperando por isso e não ficou decepcionada. O homem perguntou-lhe se queria voltar para casa e, ante resposta negativa, disse que havia no mesmo quarteirão outro pintor que gostaria de ficar com ela. Essa pessoa tentara duas ou três vezes tomar certas liberdades com Suzanne, mas, embora o tivesse repelido, ela o fizera de tão bom humor que o homem não se melindrara. Ele não lhe desagradava, de modo que Suzanne aceitou a proposta com placidez. Era uma vantagem não ter que tomar táxi para a mudança. Seu segundo amante, bem mais velho que o primeiro, mas ainda apresentável, pintou-a em todas as posições possíveis e imagináveis, vestida e nua; Suzanne passou dois anos felizes ao lado dele. Ficava orgulhosa ao pensar que, com ela a servir-lhe de modelo, conseguira ele o seu primeiro verdadeiro sucesso. Fez questão de me mostrar a reprodução, recortada de uma revista ilustrada, do quadro responsável por tal sucesso. Fora comprado por uma galeria norte-americana. Um nu, tamanho natural; e Suzanne estava mais ou menos na mesma posição da Olympe de Manet. O artista não tardara a perceber que havia algo de moderno e engraçado nas suas proporções e, afinando-lhe o corpo magro até a emaciação, alongara pernas e braços, acentuando as maçãs salientes e tornando enormes os olhos azuis. Pela reprodução eu não podia, naturalmente, julgar o colorido, mas a elegância da composição não me passou despercebida. O quadro deu ao artista bastante nome para permitir-lhe casar-se com uma admiradora, certa viúva endinheirada; quanto a Suzanne, sabendo perfeitamente que um homem tem que pensar no seu futuro, aceitou o rompimento de tão cordiais relações com certo azedume.
Sim, pois agora já conhecia o seu valor. Gostava da vida de artista, sentia prazer em posar e, terminado o trabalho do dia, achava agradável ir ao café sentar-se ao lado de pintores, suas esposas e amantes, enquanto eles discutiam arte, injuriavam os intermediários e contavam piadas obscenas. Nessa ocasião, tendo previsto o rompimento, ela fizera seus planos. Escolheu um rapaz que estava disponível e que, assim o julgava ela, tinha talento. Procurou-o numa hora em que ele estava só, no café, explicou-lhe as circunstâncias e sem mais preâmbulos sugeriu que fossem viver juntos.
– Tenho vinte anos e sou boa dona de casa. Por esse lado você fará economia e ainda ficará livre da despesa de um modelo. Olhe a sua camisa; que vergonha! E o seu estúdio está numa desordem incrível. Você precisa de uma mulher para cuidar de tudo isso.
O rapaz sabia que ela era boa pessoa. Achou graça da proposta e Suzanne percebeu que ele estava inclinado a aceitar.
– Afinal de contas, não há mal em tentar – disse ela.
– Se não der certo, não estaremos pior do que estamos agora.
Ele era um pintor modernista e fez dela retratos em quadrados e oblongos. Pintou-a com um olho só e sem boca. Pintou-a como figura geométrica, em preto, marrom e cinza. Pintou-a em linhas cruzadas através das quais a gente distinguia vagamente um rosto humano. Suzanne viveu com ele um ano e tanto, deixando-o depois por livre e espontânea vontade.
– Por quê? – perguntei. – Não gostava dele?
– Gostava; era um bom rapaz. Mas achei que não estava fazendo progresso. Estava se repetindo demais.
Não encontrara dificuldades em arranjar um sucessor, continuando fiel aos artistas.
– Sempre estive na pintura – é como dizia ela. – Vivi com um escultor durante seis meses, mas, não sei por quê, aquilo não me disse nada.
Sentia prazer em pensar que jamais se separara desagradavelmente de um amante. Era não somente boa modelo, mas boa dona de casa. Gostava de trabalhar no estúdio onde vivia, e sentia orgulho em mantê-lo em perfeita ordem. Era boa cozinheira e conseguia fazer um jantar gostoso com a maior economia possível. Cerzia as meias e pregava botões nas camisas dos amantes.
– Nunca achei que pelo fato de ser artista um homem deva ser desmazelado.
Contava apenas com um fracasso, e isso com um inglês que tinha carro e mais dinheiro do que qualquer outro que ela conhecera.
– Mas não durou muito – contou-me. – Ele costumava beber e tornava-se então enfadonho. Eu não teria me importado com isso, se ele fosse um bom pintor, mas, meu caro, era grotesco. Quando eu lhe disse que ia deixá-lo ele começou a chorar, jurando que me amava.
“Meu pobre amigo, que você me ame ou não, é coisa sem a mínima importância”, declarei. “Importante é o fato de você não ter talento. Volte para o seu país e vá ser negociante de secos e molhados. É só para isso que você serve.”
– O que foi que ele respondeu? – perguntei a Suzanne.
– Ficou furioso e me ordenou que sumisse. Mas garanto-lhe que o conselho que lhe dei foi acertado. Espero que o tenha seguido; não era mau rapaz, apenas mau artista.
Bom senso e gênio agradável facilitam a peregrinação de uma mundana por este mundo afora, mas, assim como qualquer outra, a profissão que Suzanne adotara tinha seus altos e baixos. Houve, por exemplo, o caso do escandinavo. Teve a imprudência de se apaixonar por ele.
– Era um deus, meu caro – disse-me ela. – Altíssimo, da altura da Torre Eiffel, com ombros largos e tórax magnífico, uma criatura que a gente quase podia abranger com as mãos, ventre chato, tão chato como a palma da minha mão, e músculos de atleta profissional. Tinha cabelos loiros e ondulados e pele de criança. E não pintava mal. Eu gostava do seu trabalho com os pincéis: era atrevido e brilhante, de um rico colorido.
Resolvera ter um filho com ele. O pintor manifestou-se contra, mas Suzanne disse que assumiria a responsabilidade.
– Bem que ficou satisfeito quando o bebê nasceu. Uma criança rosada, de cabelos loiros e olhos azuis como o seu papá. Uma menina.
Suzanne vivera com ele três anos.
– Não era muito inteligente e às vezes me entediava, mas era tão meigo e tão bonito que isso não tinha grande importância.
Nisto ele recebeu um telegrama da Suécia, avisando que o pai estava à morte e que sua imediata presença era necessária. Prometeu voltar, mas Suzanne teve o pressentimento de que tal não se daria. O rapaz deixou-lhe todo o dinheiro que tinha. Durante um mês não deu notícias, mas depois escreveu contando que o pai morrera, tendo deixado os negócios em confusão, e que ele achava dever seu ficar ao lado da mãe e ingressar no comércio madeireiro. Mandou um cheque de dez mil francos. Suzanne não era mulher de se desesperar. Depressa chegou à conclusão de que uma criança seria um empecilho às suas atividades; levou, portanto, a menina para casa de sua mãe e deixou-a aos cuidados dela, entregando-lhe também os dez mil francos.
– Foi de partir o coração, pois eu adorava a menina; mas na vida a gente tem que ser prática.
– O que aconteceu então? – perguntei.
– Oh! eu me arranjei. Encontrei um amigo.
Nisto ela tivera o seu tifo. Suzanne sempre dizia “o meu tifo” como um milionário diria “a minha propriedade em Palm Beach”. Quase morrera, tendo ficado no hospital durante três meses. Ao sair, estava que era só pele e ossos, fraquíssima e tão nervosa que só sabia chorar. Não serviria para ninguém, nessas condições, não estava bastante forte para posar e tinha muito pouco dinheiro.
– Oh la, la – disse ela. – Passei por uma época dura. Felizmente eu tinha bons amigos. Mas você sabe o que é a vida dos artistas, uma luta para fazer o dinheiro render. Nunca fui bonita, eu tinha certa atração, é lógico, mas já não estava com vinte anos. Encontrei por acaso o cubista com quem eu vivera; ele se casara e divorciara, desistira do cubismo, tendo-se tornado surrealista. Disse-me que eu podia servir-lhe, que se sentia só; que me daria casa e comida; e, garanto-lhe, foi com prazer que aceitei.
Suzanne ficara com ele até encontrar o industrial. Um amigo trouxe-o ao estúdio, pois talvez ele viesse a comprar um dos quadros do ex-cubista; ansiosa por efetuar a venda, Suzanne esforçou-se por lhe ser agradável, com o talento que para isso possuía. O homem não quis decidir-se no momento, mas declarou que gostaria de vir examinar novamente os quadros. E voltou, quinze dias mais tarde, só que dessa vez Suzanne teve a impressão de que ele viera mais para vê-la do que por amor aos objetos de arte.
Quando saiu, ainda sem comprar, apertou a mão de Suzanne com exagerado calor. No dia seguinte o amigo que o trouxera ao estúdio chamou Suzanne de lado, quando ela se dirigia ao mercado para comprar as provisões do dia, e contou-lhe que o industrial se engraçara com ela e mandava convidá-la para jantarem juntos, da próxima vez que ele viesse a Paris, pois tinha uma proposta a fazer-lhe.
“O que acha você que o homem viu em mim?”, perguntou Suzanne.
“Ele é apaixonado da arte moderna. Tem visto retratos seus. Você o fascina. Ele é da província e homem de negócios. Você representa Paris para ele, arte, romance, tudo aquilo de que sente falta em Lille.”
“Ele tem dinheiro?”, perguntou Suzanne com o seu habitual espírito prático.
“Muito.”
“Está certo. Jantarei com ele. Não há mal em ouvir a sua proposta.”
O homem levou-a ao Maxim, fato que a impressionou. Ela se vestira discretamente e, observando as mulheres à sua volta, achou que poderia muito bem passar por uma respeitável senhora casada. Ele encomendou champanhe e isso a convenceu de que estava lidando com um cavalheiro. Quando chegaram ao café, ele fez a sua proposta. Suzanne achou-a muito generosa. O homem disse-lhe que vinha de quinze em quinze dias a Paris, a uma assembleia, e que achava enfadonho à noite ter que jantar sozinho, vendo-se compelido, quando sentia necessidade de companhia feminina, a procurar um bordel. Sendo casado, e com dois filhos, achava o arranjo pouco satisfatório para um homem da sua posição. O amigo comum lhe contara tudo sobre Suzanne, e ele tinha certeza de estar lidando com uma mulher discreta. Já não era moço e não tinha o menor desejo de se ver envolvido com uma mocinha leviana. Era mais ou menos colecionador da escola moderna e agradava-lhe saber que Suzanne estava ligada a ela. Em seguida pôs as cartas na mesa. Estava pronto a tomar para ela um apartamento e mobiliá-lo, garantindo-lhe ao mesmo tempo uma mesada de dois mil francos por mês. Em troca desejava poder contar com o prazer de sua companhia de quinze em quinze dias. Suzanne nunca tivera tanto dinheiro e imediatamente compreendeu que, com tal soma, não somente poderia viver e divertir-se de acordo com as exigências da sua nova posição, mas ainda sustentar a filha e guardar um pouco para os maus dias. Mas hesitou por um momento. Sempre estivera “na pintura”, como se exprimia ela, e no íntimo achava que se tornar amante de um negociante era decair.
– C’est à prendre ou à laisser – disse ele. – Pode aceitar ou recusar.
Ele não lhe era repulsivo, e a roseta da Legião de Honra na sua lapela indicava que era um homem distinto. Suzanne sorriu.
– Je prends – respondeu. – Aceito.
8
Embora tivesse sempre vivido em Montmartre, ela achou que devia romper com o passado e tomou, portanto, um apartamento em Montparnasse, num prédio logo depois do boulevard. Constava de dois quartos, uma cozinha pequena e banheiro; ficava no sexto andar, mas havia elevador. Para Suzanne, um banheiro particular e um elevador – embora este só comportasse duas pessoas de cada vez, e se movesse como uma lesma, e a gente tivesse que descer pelas escadas – representavam não somente luxo, mas estilo.
Nos primeiros meses de ligação, monsieur Achille Gauvain, pois assim se chamava ele, hospedava-se num hotel, quando vinha para as suas visitas quinzenais; depois de passar com Suzanne a parte da noite exigida pelas suas inclinações amorosas, regressava ao hotel para dormir sozinho, até ver chegada a hora de se levantar e tomar o trem que o levaria de volta aos seus negócios e sóbrios prazeres da vida de família; mas depois Suzanne chamou a sua atenção para o fato de estar gastando dinheiro inutilmente, dizendo que seria mais econômico e mais confortável ele ficar no apartamento até o dia seguinte. O industrial não pôde deixar de sentir a força do argumento. Ficou lisonjeado com o interesse de Suzanne pelo seu conforto – não havia dúvida de que não era nada agradável sair para a rua e ter que procurar um táxi numa fria noite de inverno – e aprovou o espírito econômico de que ela estava dando prova. Boa mulher, a que zelava não somente pelo seu dinheiro mas pelo do amante.
Monsieur Achille tinha mais do que motivo para estar satisfeito com sua escolha. Em geral iam jantar num dos melhores restaurantes de Montparnasse, mas de vez em quando Suzanne preparava um jantar no apartamento. A comida benfeita que ela lhe oferecia era muito do seu gosto. Nas noites quentes ele jantava em mangas de camisa, sentia-se deliciosamente boêmio e dissoluto. Sempre gostara de comprar quadros, mas Suzanne não o deixava adquirir um que fosse sem a sua prévia aprovação, e ele não tardou a verificar que podia confiar no seu discernimento. Ela não queria saber de intermediários, levando-o diretamente aos estúdios dos pintores e permitindo-lhe assim adquirir a obra pela metade do preço que, de outra forma, teria sido obrigado a pagar. Monsieur Achille sabia que ela estava guardando umas economiazinhas, e experimentou uma sensação de orgulho quando Suzanne lhe contou que de ano em ano ia comprando um pedacinho de terra na sua aldeia. Conhecia esse desejo de possuir terras, existente no coração de todos aqueles que têm sangue francês, e sua estima por Suzanne cresceu ao verificar que também ela abrigava tal sentimento.
E, pelo seu lado, Suzanne estava satisfeita. Não era fiel ao amante, nem tampouco infiel; isto é, tinha o cuidado de não formar nenhuma ligação permanente, mas quando um homem lhe agradava não tinha má vontade em dormir com ele. Mas era para ela uma questão de honra não permitir que ficasse a noite toda. Achava que devia isso ao homem de dinheiro e posição que lhe tornara possível uma vida tão segura e respeitável.
Eu conhecera Suzanne na época em que ela vivia com um pintor com quem eu me dava, e muitas vezes ficava no estúdio enquanto ela posava; continuei a vê-la a intervalos irregulares, mas só chegamos a ter intimidade depois que ela se mudou para Montparnasse. Parece que monsieur Achille, pois era assim que ela o tratava e sempre se referia a ele, lera uma ou duas traduções de livros meus, e certa noite convidou-me para jantar com eles num restaurante. Era um homem pequeno, meia cabeça mais baixo que Suzanne, com cabelos de um cinzento bronzeado e bigodinho grisalho. Era meio gorducho e tinha uma barriguinha, mas somente até o ponto de lhe dar um ar de prosperidade. Tinha o andarzinho empertigado dos homens baixos, e via-se claramente que não estava em nada descontente consigo mesmo. Ofereceu-me um ótimo jantar. Foi delicadíssimo. Disse-me que estava contente por eu ser amigo de Suzanne, pois de relance podia ver que eu era comme il faut; que teria prazer em saber que eu a veria de vez em quando. Seus negócios muito só; seria para ele um consolo saber que ela estava em contato com uma pessoa educada. Era negociante, mas sempre admirara os artistas.
– Ah! mon cher monsieur, a arte e a literatura sempre foram as glórias gêmeas da França. Ao lado de suas proezas militares, é lógico. E eu, fabricante de casimiras, não hesito em declarar que coloco o pintor e o escritor no mesmo plano do general e do estadista.
Ninguém poderia ter-se exprimido com maior elegância.
Suzanne não queria ouvir falar de ter empregada, em parte por economia, e em parte (por razões que ninguém melhor do que ela conhecia) por não querer que viesse alguém meter o nariz naquilo que só a ela dizia respeito, e a mais ninguém. Mantinha em perfeita ordem o apartamentozinho, que fora mobiliado no mais moderno estilo do momento, e fazia também suas roupas de baixo. Mas, mesmo assim, agora que deixara de posar, o tempo às vezes lhe custava a passar, pois ela era uma mulherzinha laboriosa. Ocorreu-lhe então que, tendo posado para tantos pintores, não haveria motivo para também não pintar. Comprou telas, pincéis e tintas e, mãos à obra! Às vezes, quando ia levá-la para jantar, eu chegava mais cedo, indo encontrá-la de avental a trabalhar animadamente. Assim como no ventre materno o embrião relembra a evolução das espécies, Suzanne relembrou os estilos de todos os seus amantes. Pintou paisagens como o seu paisagista; abstrações como o cubista; e, com o auxílio de cartões-postais, barcos no ancoradouro, como o escandinavo. Não sabia desenhar, mas tinha boa noção de colorido e, se seus quadros não valiam grande coisa, era para ela um prazer pintá-los.
Monsieur Achille encorajava-a; agradava-lhe ter por amante uma artista. Foi por sua insistência que Suzanne mandou uma tela para o salão de outono, sentindo-se ambos muito orgulhosos quando a viram dependurada. Ele deu-lhe um bom conselho.
– Não procure pintar como homem, querida. Pinte como mulher. Não queira ser forte; contente-se em agradar. E seja sincera. Em negócios às vezes a esperteza dá bom resultado, mas na arte a sinceridade é, não somente a melhor política, mas a única.
Na ocasião a que me refiro, a ligação durava havia cinco anos, com ampla satisfação de ambas as partes.
– Claro que ele não me faz vibrar – disse Suzanne.
– Mas é um homem inteligente e de posição. Cheguei a uma época da vida em que tenho que pensar na minha situação.
Ela era bondosa e compreensiva, e monsieur Achille tinha em alto preço a sua opinião. Suzanne ouvia-o de boa vontade quando ele discutia seus negócios, ou assuntos de família, entristecendo-se com ele quando sua filha foi reprovada num exame, rejubilando-se quando seu filho ficou noivo de uma moça rica. Monsieur Achille se casara com a única filha de um homem do seu ramo de negócios, e a fusão das duas firmas fora uma fonte de lucros para ambos os lados. Era, naturalmente, uma satisfação para ele verificar que seu filho tinha bastante senso para compreender que a melhor base para um casamento feliz é a comunhão de interesses financeiros. Confiou a Suzanne sua ambição de casar a filha na aristocracia.
“E por que não, com sua fortuna?”, disse Suzanne. A generosidade de monsieur Achille tornou possível a Suzanne mandar sua filha para um convento, onde a menina receberia esmerada educação, e ele prometeu que mais tarde, quando chegasse o momento oportuno, pagaria por lições de datilografia e estenografia, para que ela pudesse ganhar a vida com o seu trabalho.
– Ela vai ser linda – disse-me Suzanne. – Mas não lhe fará mal ter instrução e saber lidar com a máquina de escrever. Claro que, sendo ainda tão criança, é cedo para se fazer predições, mas pode acontecer que ela não tenha temperamento.
Suzanne era delicada. Deixou que a minha inteligência interpretasse as suas palavras. Interpretei perfeitamente.
9
Uma semana, ou pouco mais, depois de eu ter tão inesperadamente topado com Larry, estávamos Suzanne e eu sentados no Sélect, no Boulevard du Montparnasse tomando uma cerveja depois de termos jantado juntos e ido ao cinema, quando de repente ele apareceu. Suzanne abafou uma exclamação e, com grande surpresa minha, chamou-o para a nossa mesa. Larry aproximou-se, beijou-a e me apertou a mão. Percebi que ela mal podia acreditar nos próprios olhos.
– Dão licença que eu me sente? – perguntou Larry. – Ainda não jantei e pretendo comer alguma coisa.
– Oh! mas que prazer em vê-lo novamente, mon petit
– disse ela, de olhos luzentes. – De onde está surgindo? E por que não deu sinal de vida durante todos estes anos? Meu Deus, como está magro! Pelo que sabíamos de você, tanto poderia estar morto como vivo.
– Pois bem, estou vivo – respondeu ele com um brilhozinho no olhar. – Como vai Odette?
Era assim que se chamava a filha de Suzanne.
– Oh! está uma meninona. E bonita. Ainda se lembra de você.
Interrompi-a:
– Você nunca me contou que conhecia Larry.
– Por que haveria de contar-lhe? Nunca soube que você o conhecia. Somos velhos amigos.
Larry encomendou ovos com toucinho. Suzanne contou-lhe tudo sobre a filha e depois sobre si própria. Ele ouvia com aquele seu jeito sorridente, simpático, enquanto ela tagarelava. Suzanne contou-lhe que tinha sossegado e que estava agora pintando. Virou-se em seguida para mim:
– Estou progredindo, não estou? Não tenho pretensões a gênio, mas possuo tanto talento como muitos pintores que conheci.
– Você vende seus quadros? – perguntou Larry.
– Não preciso vendê-los – respondeu ela displicentemente. – Tenho meios.
– Felizarda.
– Felizarda, não; sabida. Você precisa vir ver meus quadros.
Escreveu o endereço num pedaço de papel e obrigou-o a prometer que iria. Excitada, Suzanne continuou a falar por paus e por pedras. Dali a pouco, Larry pediu a sua conta.
– Você não vai já? – exclamou Suzanne.
– Vou – respondeu ele sorrindo.
Pagou a conta e com um aceno despediu-se. Não pude deixar de rir. Ele tinha um jeito engraçado de estar com a gente num momento e desaparecer no seguinte, sem a menor explicação. Bruscamente; como quem se evapora no ar.
– Por que haveria ele de querer fugir tão depressa? – perguntou Suzanne, vexada.
– Talvez tenha alguma pequena à sua espera – repliquei, troçando.
– É uma ideia como qualquer outra. – Ela tirou o porta-pó da bolsa e retocou a pintura do rosto. – Tenho pena da mulher que se apaixonar por ele – Oh la la.
– Por que diz isto?
Ela fitou-me com uma seriedade que eu raramente lhe via.
– Quase me apaixonei por ele há tempos. Tanto faria a gente se apaixonar por um reflexo na água, ou um raio de sol, ou uma nuvem no céu. Escapei por um triz. Mesmo hoje, quando penso nisso, estremeço só de me lembrar do perigo que corri.
A reserva que vá para o diabo. Não teria sido humano resistir à tentação de querer conhecer o caso todo. Dei-me por feliz por Suzanne ser uma mulher que não tinha a menor noção de discrição.
– Mas como foi que você chegou a conhecê-lo? – perguntei.
– Oh! isto foi há anos. Seis, sete, não sei ao certo. Odette só tinha cinco anos. Larry conhecia Marcel, quando eu estava vivendo com ele. Costumava aparecer no estúdio e ali ficava enquanto eu posava. Às vezes nos levava para jantar. A gente nunca sabia quando ele viria. Havia ocasiões em que sumia durante semanas, depois aparecia três ou quatro dias em seguida. Marcel gostava de vê-lo; dizia que pintava melhor quando Larry estava presente. Nisso tive o “meu tifo”. Passei por uma época dura, depois que saí do hospital. – Suzanne encolheu os ombros e continuou: – Mas já lhe contei isto. Pois bem, certo dia, depois de ter percorrido os estúdios à procura de trabalho, sem nada encontrar, tendo comido apenas um croissant com um copo de leite, sem saber como iria pagar o aluguel do quarto, de repente me encontrei com Larry no Boulevard Clichy. Ele me fez parar e perguntou como eu ia indo; contei-lhe sobre o “meu tifo” e ele disse: “Você está com cara de quem precisa de uma refeição”. Havia qualquer coisa na sua voz e na expressão dos seus olhos que me fez fraquejar; desatei no choro.
Estávamos perto de La Mére Mariette e ele me segurou o braço e me fez sentar a uma mesa. Eu estava com tanta fome que teria sido capaz de comer uma sola velha de sapato, mas quando veio a omelete senti que meu estômago não aceitava nada. Ele me obrigou a comer um bocadinho e me deu um cálice de burgundy. Senti-me um pouco melhor e comi alguns aspargos. Contei-lhe então os meus males; estava fraca demais para fazer fita. Eu era só pele e ossos e estava com uma aparência horrível; não podia ter esperanças de arranjar um homem. Pedi-lhe que me emprestasse dinheiro para voltar para a minha aldeia. Pelo menos ali eu teria a minha filhinha. Larry perguntou-me se eu tinha vontade de ir e respondi que naturalmente não tinha; mamãe não havia de me querer, pois a pensão mal dava para ela viver, com os preços altos como estavam, e o dinheiro que eu mandara para Odette já se acabara; mas, se eu lhe aparecesse à porta, ela não poderia deixar de me receber, no estado em que eu estava. Ele fitou-me longamente e pensei que fosse dizer que não me emprestava coisa alguma. Depois perguntou:
‘’Você gostaria que eu a levasse para um lugarzinho que conheço no campo, você e a menina? Estou precisando de umas férias.”
– Mal pude acreditar nos meus ouvidos. Fazia tantos anos que eu o conhecia e ele nunca tentara tomar liberdades comigo.
“No estado em que estou?”, perguntei. Não pude deixar de rir. “Meu pobre amigo, no momento atual não presto para homem nenhum.”
– Larry sorriu. Você já notou que sorriso maravilhoso ele tem? Doce como mel. “Não seja tola”, replicou. “Não estou pensando nisso.”
– Nesta altura eu chorava tanto que mal podia falar. Ele me deu dinheiro para ir buscar a menina e fomos todos juntos para o campo. Oh! o lugar para onde nos levou era um encanto.
Suzanne o descreveu. Ficava a quase cinco quilômetros de uma cidade cujo nome agora não me ocorre; tomaram um carro para ir até a estalagem. Prédio meio em ruínas, à beira de um rio; gramado que descambava para a margem, e onde havia plátanos, a cuja sombra eles se habituaram a tomar as refeições. No verão ali apareciam artistas, para pintar; mas ainda era cedo, de modo que agora tinham o hotel à sua disposição. A comida era célebre e aos domingos vinha muita gente de carro, para um almoço bem à vontade, mas durante a semana a paz era raramente perturbada. Graças ao descanso, boa comida e bom vinho, Suzanne ficou mais forte, sentindo-se feliz por ter a filha a seu lado.
– Ele era um anjo para Odette e a menina o adorava. Eu procurava impedir que ela o aborrecesse, mas Larry não fazia caso das suas travessuras. Pareciam duas crianças, a ponto de eu não poder deixar de rir.
– Que faziam vocês o tempo todo? – perguntei.
– Oh! sempre se tinha o que fazer. Tomávamos o barco e íamos pescar; às vezes conseguíamos que o patron nos emprestasse o seu Citroën e íamos até a cidade, Larry gostava disso. As casas eram antigas e a place tão silenciosa que a única coisa que se ouvia era o som dos nossos próprios passos sobre as pedras. Havia um hôtel de ville Luís xv, uma velha igreja e, à entrada da cidade, um castelo com um jardim por Le Notre. Quem se sentasse no café da place tinha a impressão de estar vivendo numa época remota de trezentos anos – e o Citroën na esquina não parecia absolutamente pertencer a este mundo.
Fora depois de um desses passeios que Larry lhe contara a história do jovem aviador, que narrei no princípio deste livro.
– Por que será que ele lhe contou? – perguntei.
– Não tenho a mínima ideia. Durante a guerra existira ali um hospital e havia fileiras e fileiras de cruzes no cemitério. Fomos até lá. Eu não quis ficar durante muito tempo
– deu-me arrepios pensar em todos aqueles rapazes que ali jaziam. Larry manteve-se muito silencioso durante toda a viagem de volta. Nunca comia muito, mas ao jantar quase não tocou em nada. Lembro-me perfeitamente... Noite bonita, estrelada; sentamo-nos à beira do rio e ficamos a apreciar a silhueta dos álamos contra a escuridão. Larry acendeu o cachimbo. E de repente, à propos de bottes falou-me do amigo que morrera para lhe salvar a vida. – Suzanne tomou um gole de cerveja e continuou: – Ele é uma criatura estranha. Nunca cheguei a compreendê-lo. Costumava ler para mim, às vezes de dia, enquanto eu costurava para a pequena, e à noite, depois que eu a punha na cama.
– O que ele lia?
– Oh! toda espécie de livros. Cartas de madame de Sévigné e trechos de Saint-Simon. Imagine-toi, eu que até então nunca lera nada, a não ser os jornais, e de vez em quando um romance, quando falavam dele nos estúdios e eu não queria passar por tola!... Nunca pensei que a leitura pudesse ser coisa tão interessante. Aqueles escritores antigos não são tão patetas como a gente pensa.
– Quem é que pensa? – perguntei, rindo.
– Depois líamos juntos. Lemos Phèdre e Bérénice. Ele ficava com a parte masculina e eu com a feminina. Você não pode imaginar como era divertido – acrescentou Suzanne ingenuamente. – Larry me olhava com expressão tão estranha quando eu chorava nas partes tristes! Claro que isto só acontecia porque eu não recuperara ainda a saúde. E, você sabe, ainda conservo os livros. Mesmo hoje, não posso ler algumas das cartas de madame de Sévigné sem ouvir a voz melodiosa de Larry, sem ver o rio que corria de mansinho e os álamos da margem oposta; e às vezes tenho que parar, tal a dor que me dá no coração. Hoje sei que foram aquelas as semanas mais felizes da minha vida. Esse rapaz é um anjo de candura.
Suzanne percebeu que estava ficando sentimental e teve medo (erradamente) de que eu me risse dela. Encolheu os ombros e sorriu.
– Sabe de uma coisa, sempre tive a firme intenção de, quando chegar à idade canônica e nenhum homem quiser mais dormir comigo, fazer as pazes com a Igreja e arrepender-me dos meus pecados. Mas dos pecados que cometi com Larry nada no mundo me fará arrepender. Nunca, nunca, nunca!
– Mas, pela sua narrativa, não vejo que motivo possa haver para arrependimentos.
– Ainda não lhe contei nem a metade. Você sabe, tenho uma boa constituição e depois de três ou quatro semanas de ar livre, boa comida e bom sono, sem uma única preocupação, senti-me tão forte quanto antes. E estava com boa aparência, corada, e meu cabelo recuperara o brilho natural. Sentia-me como se tivesse vinte anos. Larry nadava no rio todas as manhãs e eu costumava observá-lo. Tem um corpo bonito; não de atleta, como o do meu escandinavo, mas forte e de uma graça infinita.
Suzanne fez uma pequena pausa e continuou:
– Ele tivera muita paciência enquanto eu estava tão fraca, mas agora que me sentia perfeitamente bem não vi razão para deixá-lo esperar por mais tempo. Dei-lhe uma ou duas indiretas, que estava pronta para tudo, mas ele não pareceu compreender. Naturalmente vocês anglo-saxões são esquisitos, brutos e sentimentais ao mesmo tempo; e não há dúvida de que não são bons amantes. Pensei comigo mesma: ‘Talvez seja delicadeza da parte dele; fez tanto por mim, permitiu que eu trouxesse a menina; é possível que não tenha coragem de me pedir a paga a que tem direito”. E, portanto, certa noite, quando íamos para a cama, perguntei-lhe: “Você quer que eu vá ao seu quarto mais tarde?”.
Não pude deixar de rir.
– Você foi um tanto brusca, não foi?
– Bom, eu não podia convidá-lo para vir ao meu, pois
Odette dormia comigo – respondeu ingenuamente Suzanne. – Lany fitou-me por um momento com aqueles seus olhos bondosos, depois sorriu.
‘’Você quer vir?”, perguntou-me.
“Que é que você pensa – com este belo corpo que você tem?” “Está certo; venha então.”
– Subi, despi-me e esgueirei-me pelo corredor até o quarto dele. Larry estava na cama lendo e fumando. Largou o livre o cachimbo e moveu-se na cama para me dar lugar.
Suzanne ficou em silêncio durante alguns momentos e não tive vontade de lhe fazer perguntas. Mas dali a pouco ela prosseguiu:
– Era um amante esquisito. Muito meigo, afetuoso e até mesmo terno, viril sem ser apaixonado, se é que você compreende o que quero dizer, e completamente sem vício. Amava como um fogoso colegial. Engraçado e ao mesmo tempo comovente... Saí com a impressão de que eu é que lhe devia estar grata, e não ele a mim. Quando fechei a porta, vi-o apanhar de novo o livro e continuar a leitura do ponto onde parara.
Comecei a rir.
– Ainda bem que você acha engraçado – disse ela um tanto secamente. Mas Suzanne não deixava de ter o senso de humor. Riu também e continuou: – Logo percebi que, se fosse esperar convite, talvez tivesse que esperar eternamente; e, portanto, todas as vezes que tinha vontade, eu ia ao quarto dele e entrava na cama. Foi sempre muito gentil. Em resumo, tinha instintos naturais, mas era como esses homens abstratos que se esquecem de comer, mas que, quando a gente lhes põe um prato à frente, comem com apetite. Conheço perfeitamente quando um homem está apaixonado por mim e eu teria sido idiota se pensasse que Larry me amava, mas achei que ele se habituaria à minha pessoa. A gente tem que ser prática na vida; pensei com os meus botões que me conviria muito se, quando voltássemos a Paris, Larry me levasse para morar com ele. Sei que me deixaria ficar com a menina e isso me teria causado prazer. Instintivamente eu sentia que seria tolice apaixonar-me por ele; você sabe como as mulheres não têm sorte: muitas vezes, quando amam, deixam de ser amadas; tomei, portanto, a resolução de ficar em guarda.
Suzanne tragou a fumaça e soltou-a depois pelo nariz. Estava ficando tarde e havia agora muitas mesas vagas, mas via-se ainda um grupo em volta do bar.
– Certa manhã, depois do café, estava eu costurando à beira do rio e Odette brincando a meu lado, quando vi Larry aproximar-se.
“Vim despedir-me de você”, disse ele.
“Vai a algum lugar?”, perguntei, admirada. “Vou.”
“Mas não de uma vez?”
‘’Você já está boa. Aqui tem dinheiro para sustentá-la até o fim do verão e durante os primeiros tempos após a sua volta para Paris.”
No primeiro momento fiquei tão desconcertada que não soube o que dizer. Ele continuou de pé, de frente para mim, sorrindo com aquele seu ar cândido.
“Fiz alguma coisa que lhe desagradasse?”, perguntei. “Nem por um momento julgue isso. Tenho um trabalho a fazer. Passamos uns tempos muito agradáveis aqui. Odette, venha dizer adeus ao seu tio.”
– Ela era pequena demais para compreender. Larry tomou-a nos braços e beijou-a; depois me beijou também e voltou para o hotel; dali a minutos ouvi o ruído do carro que se afastava. Olhei para as notas que tinha na mão: doze mil francos. Aconteceu tão depressa que não tive tempo de reagir. “Zut alors”, disse de mim para mim. De uma coisa pelo menos eu podia estar satisfeita: de não ter permitido que meu coração ficasse por demais preso a ele.
Mas para mim tudo aquilo era um mistério. Vi-me obrigado a rir.
– Sabe de uma coisa, houve época em que adquiri certa reputação como humorista pelo simples método de dizer a verdade. Para muitas pessoas foi uma tal surpresa que pensaram que eu estava querendo ser engraçado.
– Não vejo relação.
– Pois bem, Larry é, creio, a única criatura completamente desinteressada que conheço. Isto faz com que seus atos pareçam singulares. Não estamos habituados a pessoas que fazem certas coisas simplesmente pelo amor de um Deus em quem elas não acreditam.
Suzanne encarou-me.
– Meu pobre amigo, voce bebeu demais.
Cinco
Cinco
1
Não me dediquei grandemente ao meu trabalho em Paris. Era muito agradável, na primavera, com os castanheiros nos Champs Elysées em plena florescência, e quando, nas ruas, tão alegres eram as luzes. Havia prazer na atmosfera: prazer leve e fugaz, sensual sem vulgaridade, que avivava o passo e alertava a inteligência. Sentia-me feliz na companhia dos meus inúmeros amigos e, repleto o coração de amenas recordações do passado, pelo menos espiritualmente consegui recapturar parte do fulgor da mocidade. Achei que seria tolice permitir que o trabalho perturbasse a delícia do momento atual que talvez nunca mais me fosse dado gozar tão plenamente.
Isabel, Gray, Larry e eu fazíamos excursões a lugares interessantes e não muito afastados. Visitamos Chantilly e Versailles, St. Germain e Fontainebleau. Aonde quer que fôssemos, almoçávamos bem e fartamente. Gray comia bastante para satisfazer o seu vasto corpo e talvez se excedesse um pouco na bebida. Não havia dúvida de que sua saúde melhorara, não sei se devido ao tratamento de Larry ou à ação do tempo. Tinham cessado as pavorosas enxaquecas e seus olhos iam perdendo a expressão perplexa que tanto me confrangera da primeira vez que o vira, logo após a minha chegada a Paris. Pouco falava, a não ser para de vez em quando contar uma longa história, mas ria em altas gargalhadas das tolices que Isabel e eu dizíamos. Apreciava aqueles passeios. Embora não fosse um sujeito divertido, era tão bem-humorado e fácil de contentar que era impossível a gente não gostar dele. Tipo de homem com quem uma pessoa hesitaria em ficar uma noite a sós; e no entanto a perspectiva de passar com ele seis meses não seria absolutamente desagradável.
Era um prazer notar o seu amor por Isabel; encantava-se com a beleza dela e achava-a a mais inteligente e sedutora criatura deste mundo. Comovente, também, a sua dedicação por Larry. Cega dedicação. Também Larry parecia estar se divertindo; quero crer que considerava aquela época como uma espécie de férias roubadas aos projetos que por acaso abrigasse, procurando calmamente aproveitá-las ao máximo. Nem ele, tampouco, era grande conversador, mas isso não tinha importância, pois bastava a sua companhia; era tão natural, de uma alegria tão sã que a gente não lhe pedia mais do que ele dava; e eu sabia perfeitamente que, se aqueles dias decorriam tão felizes, era pelo fato de Larry estar entre nós. Embora nunca dissesse uma frase brilhante ou espirituosa, essas reuniões teriam sido insípidas sem ele.
Certa vez, quando regressávamos de um desses passeios, presenciei uma cena que de certo modo me sobressaltou. Tínhamos ido a Chartres e voltávamos para Paris. Gray à direção e Larry sentado ao seu lado; Isabel e eu atrás. Cansados, depois do longo dia.
Larry estava com o braço estendido na parte superior do assento da frente. Pela posição erguera-se-lhe o punho da camisa, deixando à mostra o pulso fino, forte, e também a parte inferior do braço trigueiro, coberto por uma penugem que o sol dourava. Qualquer coisa na imobilidade de Isabel atraiu-me a atenção e me fez olhar para ela. Estava tão quieta que parecia hipnotizada. Respiração ofegante. Tinha os olhos fixos no pulso nervoso com seus cabelinhos dourados e na mão longa e delicada, mas forte, e jamais vi num semblante humano tão faminta concupiscência como no de Isabel naquele momento. Verdadeira máscara de luxúria. Nunca pensei que suas belas feições pudessem assumir expressão de tão desenfreada sensualidade. Mais animal que humana. A beleza desaparecera do seu rosto; a expressão que nele havia tornava-o medonho e assustador. Lembrava, horrorosamente, uma cadela no cio; quase me senti mal. Ela não tinha noção da minha presença; não tinha noção de coisa alguma a não ser daquela mão, tão despreocupada, que lhe despertara o frenético desejo. Nisso um espasmo contorceu-lhe o rosto, ela estremeceu e, fechando os olhos, recostou-se no canto do carro.
– Dê-me um cigarro – disse-me, em voz irreconhecível de tão rouca.
Tirei um cigarro da cigarreira e acendi-o para ela. Isabel fumou-o avidamente. Durante o resto do trajeto ficou a olhar para fora da janela sem uma palavra.
Chegando ao apartamento, Gray pediu a Larry que me levasse até o hotel e fosse depois guardar o carro na garagem. Larry passou para a direção e eu me sentei ao seu lado. Ao atravessar a calçada, Isabel segurou o braço de Gray e, aconchegando-se a ele, lançou-lhe um olhar que não cheguei a ver, mas cuja significação não me foi difícil adivinhar. Ocorreu-me que ele iria ter uma companheira apaixonada na cama, aquela noite, embora provavelmente nunca viesse a saber a que dor de consciência devia tal ardor. Junho chegava ao termo e eu tinha que voltar para a Riviera. Alguns amigos de Elliott, de partida para a América, haviam emprestado aos Maturin sua vila em Dinard, e estes pretendiam para lá seguir assim que começassem as férias das crianças. Larry ia ficar em Paris, para trabalhar, mas estava pensando em comprar um Citroën de segunda mão e prometeu ir em agosto passar uns dias com eles. Na minha última noite em Paris, convidei os três para jantarem comigo.
Foi nesta noite que encontramos Sophie Macdonald.
2
Isabel estava com vontade de percorrer os cabarés desacreditados e, como eu conhecia alguns, pediu-me que lhes servisse de guia. A ideia não me agradou, pois os frequentadores desses lugares, em Paris, não fazem cerimônia em manifestar seu desprazer ante a visita de curiosos de outra classe. Mas Isabel insistiu. Preveni-a de que iria achar enfadonho e supliquei-lhe que se vestisse simplesmente. Jantamos tarde, fomos ao Follies Bergères por uma hora e depois nos pusemos em campo. Levei-os primeiramente a um portão preto de Notre-Dame, frequentado por bandidos e suas concubinas; eu conhecia o proprietário e ele nos arranjou lugares a uma longa mesa, ocupada por pessoas da pior aparência possível; mas encomendei vinho para todos e bebemos à saúde uns dos outros. Estava quente, enfumaçado e sujo. Levei-os depois ao Sphynx onde, sentadas em dois bancos opostos, vimos mulheres nuas sob os vestidos vistosos, exibindo os seios, mamilos e tudo o mais; quando a orquestra começou a tocar, puseram-se a dançar indiferentemente umas com as outras, de olho nos homens sentados à volta das mesas de mármore que rodeavam o salão. Encomendamos uma garrafa de champanhe. Algumas das mulheres namoraram Isabel ao passar por nossa mesa, mas não sei se ela terá compreendido o significado de tais olhares.
Fomos depois à Rue de Lappe. É uma rua suja e estreita e assim que se entra nela tem-se impressão de sórdida luxúria. Fomos a um café. Lá estava, ao piano, o rapazinho de sempre, pálido e dissoluto; outro homem, velho e cansado, arranhava um violino, enquanto um terceiro tirava de um saxofone acordes dissonantes. O café estava repleto e não parecia haver uma mesa vaga, mas, ao perceber que éramos fregueses com dinheiro, sem a menor cerimônia o patron nos deu a mesa de um casal, mandando-os para outra já ocupada. As pessoas assim desalojadas não ficaram lá muito satisfeitas e fizeram a nosso respeito comentários bem pouco lisonjeiros. Muita gente dançando, marinheiros com o pompom vermelho no chapéu; homens na maioria de gorro na cabeça e lenço em volta do pescoço; mulheres maduras, e também algumas moças, todas elas pintadas até os olhos, sem chapéu, metidas em saias curtas e blusas de tons vivos. Homens dançando com rechonchudos rapazinhos de olhos pintados; mulheres emaciadas, de expressão dura, dançando com mulheres gordas de cabelo tinto; homens dançando com mulheres. Ar pesado de fumaça, vapores alcoólicos e transpiração. A música parecia não ter fim e a desagradável multidão de rostos suarentos continuava a rodar pela sala, com uma solene persistência em que havia algo de macabro. Vi alguns homens de aspecto brutal, mas na maioria eram raquíticos e anêmicos. Pus-me a observar os músicos. Pareciam robôs, tão maquinal a sua execução, e fiquei a conjecturar se, no início da carreira, teriam eles alimentado sonhos de glória, pensando que de longe viria gente para os ouvir e aplaudir. Mesmo para tocar mal violino, uma pessoa precisa tomar lições e estudar; teria aquele rabequista tido todo esse trabalho só para tocar foxtrote até altas horas da madrugada em tão sórdido lugar? A música parou e o pianista enxugou o rosto com um lenço enxovalhado. Os pares voltaram para suas mesas, arrastando-se uns, outros bamboleando-se. Subitamente ouvimos uma voz americana:
– Mas será possível?...
De uma mesa do lado oposto levantou-se uma mulher. O homem que a acompanhava tentou detê-la, mas ela empurrou-o para um lado e atravessou, cambaleante, a sala. Estava completamente embriagada. Veio até nossa mesa e ficou de pé, pouco firme nas pernas e sorrindo tolamente. Parecia achar o nosso grupo muito divertido. Olhei de relance para os meus companheiros. Isabel encarava-a com ar parado, Gray estava taciturno e Larry fitava-a como se não pudesse acreditar nos próprios olhos.
– Alô! – exclamou ela.
– Sophie – disse Isabel.
– Que raio de pessoa pensou você que eu fosse? – gorgolejou a outra. Agarrou o braço de um garçom que ia passando e disse: – Vincent, vá me buscar uma cadeira.
– Vá você – disse o homem, libertando-se.
– Salaud – gritou ela, cuspindo-lhe.
– T’en fais pas, Sophie – disse um sujeito alto e gordo, de cabeça grande e cabelos gordurosos, que estava sentado perto de nós, em mangas de camisa. – Aqui tens uma cadeira.
– Imagine encontrar vocês assim – exclamou a mulher, ainda cambaleante. – Alô, Larry. Alô, Gray. – Caiu na cadeira que o homem gordo colocara atrás dela e continuou: – Vamos beber alguma coisa. Patron – gritou.
Eu notara que o proprietário nos observava; agora ele se aproximou.
– Conheces essas pessoas, Sophie? – perguntou dirigindo-se familiarmente a ela na segunda pessoa do singular.
– Ta gueule – replicou ela com uma risada de bêbada. – São amigos da infância. Vou oferecer-lhes uma garrafa de champanhe. E não me apareças com nenhuma urine de cheval. Que venha alguma coisa que a gente possa tomar sem vomitar.
– Tu estás bêbada, Sophie – disse ele.
– Vai para o inferno.
Ele afastou-se, satisfeito por poder vender uma garrafa de champanhe – por precauções só tínhamos bebido conhaque com soda – e Sophie fitou-me durante alguns segundos com ar perplexo.
– Quem é o seu amigo, Isabel?
Isabel disse-lhe o meu nome.
– Ah! sim. Agora me lembro; você veio uma vez a
Chicago. Todo alinhadão, não é?
– Talvez – respondi sorrindo.
Não me lembrava dela, mas isto não era de admirar, pois fazia mais de dez anos que eu fora a Chicago e conhecera muita gente lá, e também depois.
Ela era alta e, por ser muito magra, de pé parecera ainda mais alta. Estava com uma blusa de seda de um verde forte, amarrotada e manchada; saia preta, curta. Cabelos cortados e levemente ondulados, mas em desordem e tintos de um tom vivíssimo. Escandalosamente pintada, com carmim até os olhos, pálpebras azuladas, pestanas e sobrancelhas acentuadas pelo lápis, e lábios escarlates. Mãos sujas, de unhas pintadas. Seu aspecto era mais ordinário do que o de qualquer outra mulher ali presente, e pareceu-me que estava não somente embriagada, mas sob a ação de algum narcótico. E no entanto possuía, inegavelmente, certa corrupta atração; mantinha a cabeça com uma inclinação arrogante e a pintura realçava mais ainda o extraordinário tom esverdeado dos olhos. Apesar de bêbada como estava, tinha um franco sem-vergonhismo que, imaginei, devia atrair o que havia de mais baixo nos homens. Ela nos envolveu com um irônico sorriso e disse:
– Não creio que vocês estejam muito satisfeitos por me ver.
– Eu sabia que você estava em Paris – disse desajeitadamente Isabel, com um gélido sorriso nos lábios.
– Você podia ter me telefonado. Meu nome está na lista.
– Não faz muito que chegamos. Gray veio em socorro de Isabel.
– Está se divertindo bastante, Sophie?
– Muito. Você faliu, não é verdade, Gray?
O rosto de Gray tornou-se ainda mais rubro.
– É.
– Pouca sorte! Chicago deve estar agora muito triste. Felizmente saí de lá a tempo. Com os diabos, será que aquele cafajeste não nos vai trazer alguma coisa para beber?
– Vem vindo – disse eu, notando que um garçom procurava passar por entre as mesas, carregando uma bandeja com copos e uma garrafa de vinho.
Minha observação chamou a atenção de Sophie sobre a minha pessoa.
– Meus queridos parentes por afinidade expulsaram-me de Chicago. Disseram que eu estava estragando a sua... reputação. Deu uma risada selvagem e continuou:
– Sou desses expatriados que vivem de mesada.
O champanhe veio e foi servido. Sophie ergueu o copo com mão trêmula.
– Para o diabo os alinhadões! – exclamou. Esvaziou o copo e olhou de relance Larry. – Você está calado, Larry.
Ele estivera fitando Sophie com ar impassível. Não tirara dela os olhos, desde que ela aparecera. Sorriu amavelmente e replicou:
– Não sou um sujeito muito prosa.
A música recomeçou a tocar e um homem se aproximou de nossa mesa. Era alto e bem proporcionado; grande nariz aquilino, vasta cabeleira negra e luzidia, lábios grossos e sensuais. Parecia um sinistro Savonarola. Como quase todos os homens ali presentes, não usava colarinho, e o paletó justo estava abotoado de maneira a lhe marcar a cintura.
– Vem, Sophie. Vamos dançar.
– Vai-te embora. Estou ocupada. Não vês que estou com amigos?
– J’m en fous de tes amis. Teus amigos que vão para o inferno. Tu vais dançar.
Segurou-lhe o braço, mas Sophie desvencilhou-se.
– Fous moi la paix, espece de con – gritou ela com súbita veemência.
– Merde.
– Mange.
Gray não compreendia o que eles diziam, mas percebi que, com o estranho conhecimento de obscenidades que muitas mulheres virtuosas parecem ter, Isabel entendia perfeitamente; seu rosto enrijeceu numa expressão de nojo. O homem ergueu o braço, de mão aberta – mão calosa de operário – e ia esbofetear Sophie quando Gray se ergueu a meio na cadeira.
– Allaiz vous ong – gritou ele com a sua execrável pronúncia.
O homem susteve o gesto, lançando a Gray um olhar furioso.
– Cuidado, Coco – recomendou Sophie com uma risada amarga. – Olha que ele te põe a nocaute.
O homem avaliou a altura, peso e força de Gray; depois, encolhendo taciturnamente os ombros, atirou-nos um palavrão e safou-se. Sophie riu baixinho, num gorgolejar de bêbada. O resto do grupo permaneceu em silêncio. Enchi de novo o seu copo.
– Você está morando em Paris, Larry? – perguntou ela, depois de ter bebido até o fim.
– Por enquanto.
É sempre difícil conversar com um bêbado, e não há dúvida de que os sóbrios levam desvantagem. Continuamos a falar durante alguns minutos, de maneira monótona e constrangida. Depois Sophie afastou a sua cadeira.
– Se eu não voltar para perto do meu amiguinho ele ficará furioso. É um sujeito emburrado, mas céus! é um macho e tanto. – Ergueu-se, cambaleante, e continuou:
– Até logo, pessoal. Apareçam novamente. Estou aqui todas as noites.
Foi abrindo caminho por entre os pares que dançavam e a perdemos de vista na multidão. Quase cheguei a rir do gélido desprezo expresso nas feições clássicas de Isabel. Nenhum de nós disse uma palavra.
– Este lugar é imundo – exclamou de repente Isabel. – Vamos embora.
Paguei as bebidas e a garrafa de champanhe que Sophie encomendara e nos levantamos. Quase todos dançavam, de modo que conseguimos sair sem que houvesse comentários. Já eram duas horas e na minha opinião mais que tempo de ir para a cama, mas Gray disse que estava com fome, de modo que sugeri irmos ao Graf, em Montmartre. Fizemos o trajeto em silêncio; eu me sentara ao lado de Gray para indicar-lhe o caminho. Chegamos ao alegre restaurante. Ainda havia gente no terraço. Entramos e pedimos ovos com toucinho e cerveja. Pelo menos aparentemente Isabel recuperara o sangue-frio. Felicitou-me, talvez com certa ironia, pelo fato de eu conhecer os lugares mais desacreditados de Paris.
– A ideia foi sua – repliquei.
– Diverti-me imensamente. Foi uma noite formidável.
– Droga! – disse Gray. – Uma imundície. E Sophie!... Isabel encolheu com indiferença os ombros.
– Não se lembra dela? – perguntou-me. – Sentou-se ao seu lado, quando você veio jantar conosco pela primeira vez. Naquele tempo não tinha esse pavoroso cabelo vermelho. Sua cor natural é um bege sujo.
Voltei em pensamentos ao passado. Lembrei-me de uma mocinha de olhos de um azul quase verde e jeitinho atraente de manter de lado a cabeça. Bonita, não; mas fresca e ingênua, com um misto de timidez e petulância que eu achara interessante.
– Claro que me lembro. Gostei do nome dela. Tive uma tia que se chamava Sophie.
– Casou-se com um rapaz chamado Bob Macdonald.
– Bom sujeito – disse Gray.
– Era um dos rapazes mais bonitos que conheci. Nunca pude compreender o que ele viu em Sophie. Ela casou-se logo depois de mim. Seus pais eram divorciados; a mãe casou-se de novo com um empregado da Standard Oil na China. Ela morava com os parentes do pai, em Marvin, e naquela época nos víamos muito, mas depois de casada abandonou quase que completamente o nosso grupo. Bob Macdonald era advogado, mas não ganhava muito, e eles tinham um apartamento sem elevador, na parte norte. Mas não era por isso. Não queriam saber de ninguém. Nunca vi duas pessoas tão loucas uma pela outra. Mesmo depois de dois ou três anos de casados, já com um filho, quando iam ao cinema Bob passava o braço à volta da cintura de Sophie e ela punha a cabeça no ombro dele, como dois namorados. Eram a maior pilhéria de Chicago.
Larry ouvia o que Isabel dizia, mas não fez comentário. A expressão do seu rosto era inescrutável.
– O que aconteceu, então? – perguntei.
– Certa noite, vinham eles voltando para Chicago num cupezinho, que tinham, e a criança estava junto.
Eram obrigados a levá-la por toda parte, pois não tinham empregada – era Sophie quem fazia todo serviço – e, além do mais, a adoravam. Nisto um vasto sedan, onde vinha um grupo de bêbados, a cento e trinta quilômetros por hora, bateu em cheio contra eles. Bob e a criança morreram instantaneamente, mas Sophie só teve concussão e uma ou duas costelas quebradas. Esconderam dela o máximo possível a morte de Bob e do filho, mas finalmente tiveram que contar-lhe. Dizem que foi horrível. Ficou como louca. Gritou como uma desesperada. Tinham que vigiá-la noite e dia e uma vez ela quase chegou a atirar-se pela janela. Naturalmente fizemos o que pudemos, mas ela parecia odiar-nos. Depois que saiu do hospital, puseram-na num sanatório, onde ficou durante meses.
– Coitadinha.
– Quando a soltaram ela começou a beber e, quando estava bêbada, entregava-se a qualquer um. Horrível para a família. Gente muito boa e pacata, que detestava escândalo. A princípio todos nós tentamos ajudá-la, mas foi inútil; se alguém a convidava para jantar, já chegava meio tocada e era muito provável que ficasse inconsciente antes de terminar a noite. Depois começou a misturar-se com um grupo péssimo e fomos obrigados a abandoná-la. Certa vez foi presa por estar guiando um carro em estado de embriaguez. Estava com um mestiço que arranjara num bar qualquer, e aconteceu que a polícia andava atrás dele.
– Mas tinha dinheiro? – perguntei.
– Tinha o seguro de vida de Bob; o carro que se chocara com o deles estava no seguro e creio que os donos lhe deram uma indenização qualquer. Mas não durou muito. Gastou tudo como um marinheiro bêbado e dali a dois anos estava quebrada. Sua avó não quis saber dela em Marvin. E então os parentes do marido disseram que lhe dariam uma mesada se fosse morar no estrangeiro. Creio que é disso que vive agora.
– O mundo é um círculo vicioso – observei. – Antigamente mandavam, da minha pátria para a América, a ovelha negra da família; pelo que vejo, mandam-na hoje da América para a Europa.
– Não posso deixar de ter pena dela – disse Gray.
– Não pode? – perguntou friamente Isabel. – Pois eu posso. Claro que foi um choque e ninguém teve mais pena de Sophie do que eu. Conhecíamo-nos desde crianças. Mas uma pessoa normal reage diante de uma coisa dessas. Se ela se entregou por completo foi porque tinha um fundo mau. Era naturalmente desequilibrada; mesmo o seu amor por Bob era exagerado. Se tivesse mais fibra, teria conseguido fazer alguma coisa da vida.
– Se isto, se aquilo... Você não estará sendo severa demais, Isabel? – murmurei.
– Não o creio. Tenho bom senso e não vejo razão para sentimentalismos a respeito de Sophie. Deus sabe que ninguém poderia ser mais dedicada a Gray e às crianças do que eu, e se eles morressem num desastre de automóvel eu ficaria alucinada, mas cedo ou tarde acabaria reagindo. Não é isto que você gostaria que eu fizesse, Gray, ou preferiria que eu ficasse bêbada todas as noites e me entregasse a todos os apaches de Paris?
Desde que eu conhecia Gray, foi aí que ele mais próximo chegou de fazer uma observação espirituosa.
– Claro que eu preferiria que você se atirasse na minha pira, metida num vestido de Molyneaux, mas, como isto está fora de moda, acho que a melhor solução seria você dedicar-se ao bridge. E gostaria que se lembrasse de nunca abrir o jogo, em sem-trunfo, com menos de três e meia a quatro vazas de honra na mão.
A ocasião não era propícia para eu dizer a Isabel que, embora sincero, seu amor pelo marido e filhas estava longe de ser apaixonado; mas talvez ela me tivesse lido o pensamento, pois se virou para mim com certa virulência:
– Que diz você a isso?
– Sou como Gray; tenho pena da menina.
– Ela não é nenhuma menina: está com trinta anos.
– Provavelmente para ela o mundo acabou quando o marido e o filho morreram. Com certeza pouco se importou com o que viesse a acontecer-lhe, caindo na horrível degradação do alcoolismo e da copulação promíscua para se vingar da vida que tão cruelmente a tratara. Vivera no céu e, ao perdê-lo, não se conformou em viver na terra comum dos homens comuns; em desespero, mergulhou no inferno. Quero crer que, não podendo mais beber o néctar dos deuses, achou preferível beber gim ordinário.
– Isso é o tipo de coisa que a gente lê em romances. É tolice, e você sabe que é tolice. Sophie chafurda na lama porque sente prazer nisso. Outras mulheres têm perdido maridos e filhos. Não foi isto que a tornou má. O mal não pode brotar do bem. O mal sempre esteve ali, latente. Quando o acidente de automóvel rompeu as suas defesas, libertou-a para ela se mostrar tal qual era. Não desperdice com Sophie a sua piedade; ela é agora o que no fundo sempre foi.
Durante todo este tempo Larry permanecia calado, parecendo imerso nos próprios pensamentos; creio que mal ouvia o que dizíamos. Breve silêncio seguiu-se às palavras de Isabel. Depois Larry começou a falar, mas em voz estranha, incolor, como se não se dirigisse a nós, e sim a si próprio; seus olhos pareciam perdidos na névoa do passado.
– Lembro-me dela quando tinha catorze anos, com seus cabelos compridos afastados da testa e laço preto atrás, rosto sério, cheio de sardas. Menina modesta, idealista. Lia tudo que lhe chegava às mãos e costumávamos falar sobre livros.
– Quando? – perguntou Isabel franzindo de leve as sobrancelhas.
– Oh! quando você saía para fazer visitas com sua mãe. Eu ia até a casa do avô dela e nos sentávamos sob um grande olmo que lá havia. Líamos em voz alta. Ela adorava poesia; chegou mesmo a compor.
– Muitas meninas dessa idade fazem o mesmo. Geralmente são versos que não valem nada.
– Verdade que isso aconteceu há muito tempo e provavelmente eu não tinha competência para julgar.
– Você não podia ter tido mais de dezesseis anos.
– Claro que era mais ou menos plágio. Havia muito de Robert Frost. Mas, mesmo assim, creio que eram extraordinários para pessoa tão moça. Sophie tinha bom ouvido e noção de ritmo. Sentia-se inspirada com os sons e perfumes do campo, com o prenúncio da primavera no ar, com o cheiro da terra úmida após uma chuva estival.
– Eu nunca soube que ela fazia versos – disse Isabel.
– Guardava segredo disso, pois tinha medo que vocês rissem dela. Era muito tímida.
– Tímida é que ela não é hoje.
– Quando voltei da guerra, encontrei-a quase moça. Lera muito sobre as condições das classes operárias e vira alguma coisa deste lado da vida de Chicago. Interessara-se por Carl Sandburg e estava escrevendo furiosamente, em versos livres, sobre a mísera condição da pobreza e a exploração das classes trabalhistas. Talvez fossem um pouco corriqueiros, mas eram sinceros, e neles havia piedade, aspiração. Naquela época ela queria ser assistente social. Comovente, esse seu desejo de sacrifício. Acho que seria capaz de muita coisa. Não era boba, nem melosa, mas dava a impressão de uma suave pureza e estranha elevação de alma. Estávamos sempre juntos, naquele ano.
Percebi que Isabel ouvia com crescente exaspero. Larry nem de longe suspeitava que estava enfiando no coração dela um punhal, e que cada uma de suas despreocupadas palavras avivava mais ainda a ferida. Mas, quando Isabel falou, foi com um leve sorriso nos lábios.
– Como é que ela chegou a escolhê-lo por confidente? Larry fitou-a com seu olhar confiante.
– Não sei. Era pobre, no meio de todas vocês que tinham bastante dinheiro, e eu não pertencia ao grupo; estava lá apenas porque o tio Bob clinicava em Marvin. Com certeza achou que isso era um traço que tínhamos em comum.
Larry não tinha parentes. Quase todos nós temos, pelo menos, primos que às vezes mal conhecemos, mas que em todo caso nos fazem sentir que estamos dentro da família humana. Os pais de Larry tinham sido filhos únicos; um de seus avós, o Quaker, morrera no mar, ainda moço, e seu outro avô não tinha irmãos. Ninguém poderia estar mais só no mundo do que Larry.
– Você nunca percebeu que Sophie estava apaixonada por você? – perguntou Isabel.
– Nunca – respondeu ele sorrindo.
– Pois bem, estava.
– Quando ele voltou da guerra, como herói ferido, quase todas as moças de Chicago ficaram com uma quedinha por Larry – disse Gray com o seu jeitão despachado.
– Aquilo era mais do que uma quedinha. Sophie tinha adoração por você, meu pobre Larry. Não me diga que não sabia?
– Claro que não sabia, nem acredito nisso.
– Com certeza você achou que ela era demasiadamente espiritual.
– Ainda vejo aquela menina magrinha, de fita no cabelo e rosto grave, que lia com voz trêmula de emoção aquela belíssima ode de Keats. Gostaria de saber onde está essa menina, agora...
Isabel teve um sobressalto e lançou a Larry um olhar curioso e desconfiado.
– Já é tardíssimo, e estou que não me aguento mais. Vamos embora.
3
Na noite seguinte tomei o Trem Azul para a Riviera e dois ou três dias depois fui a Antibes, visitar Elliott e dar-lhe notícias de Paris. Achei-o com má aparência. A cura em Montecatini não lograra o resultado esperado e suas subsequentes peregrinações o tinham fatigado excessivamente. Encontrara em Veneza uma pia batismal, e fora depois a Florença comprar o tríptico que tivera em vista. Ansioso por ver esses dois objetos devidamente colocados, fora aos Pântanos Pontinos e descera numa miserável estalagenzinha, onde achara o calor difícil de suportar. Suas preciosas compras levaram tempo a chegar, mas ele ali continuou, firme, decidido a ver cumprida a sua missão. Mas, depois de estar tudo em ordem, encantouse com o efeito e foi com orgulho que me mostrou as fotografias que tirara. Embora pequena, a igreja tinha imponência, e a discreta riqueza do interior era prova do bom gosto de Elliott.
– Vi, em Roma, um sarcófago dos primeiros tempos do cristianismo, que muito me agradou; levei muito tempo refletindo sobre a vantagem de comprá-lo, mas acabei desistindo.
– Mas, Santo Deus, para que queria você um sarcófago, Elliott?
– Para me pôr dentro dele, caro amigo. Era de um belo modelo e achei que, do outro lado da entrada, combinaria com a pia; mas aqueles primeiros cristãos eram uns sujeitinhos atarracados e eu não caberia dentro dele. E não ia ali ficar até o dia do Juízo Final, com os joelhos dobrados até o queixo, como um feto. Teria sido pouquíssimo confortável.
Ri, mas Elliott continuou sério.
– Tive melhor ideia. Arranjei tudo, com certa dificuldade, como era de esperar, para ser sepultado em frente ao altar, ao pé dos degraus do coro; e assim, quando os pobres camponeses dos Pântanos Pontinos vierem receber a sagrada comunhão, com suas pesadas botas pisarão sobre os meus ossos. Bem chie, não acha você? Apenas uma laje, com meu nome e duas datas. Si monumentum quoeris, circumspice. Se buscas o seu monumento, olha à volta, você sabe.
– Conheço bastante latim para entender uma citação corriqueira, Elliott – respondi secamente.
– Perdoe-me, caro amigo. Estou tão habituado à ignorância das classes elevadas que por um momento me esqueci que estava conversando com um escritor.
Ele venceu.
– Mas o que eu queria dizer-lhe era o seguinte – continuou Elliott. – Deixei tudo explicado no meu testamento, mas desejo que você faça com que as minhas determinações sejam cumpridas. Não quero ser enterrado na Riviera ao lado de coronéis aposentados e franceses da burguesia.
– Claro que farei o que deseja, Elliott, mas não creio que seja necessário pensarmos nisso durante muito tempo ainda.
– Estou caminhando em anos, você sabe, e, para ser franco, não sentirei muito quando chegar a minha hora. Como são mesmo aqueles versos de Landor? Aqueci ambas as mãos...
Embora eu não tenha boa memória para decorar palavra por palavra, a poesia era curta e consegui recitá-la.
I strove with none, for none was worth my strofe. Nature
I loved, and, next, to Nature, Art;
I warmed both hands before the fire of Life;
It sinks, and I am ready to depart.
– Isto mesmo – disse, ele.
Achei que só com imensa boa vontade se poderia aplicar a estância a Elliott. E no entanto ele continuou:
– Exprime exatamente os meus sentimentos. Nada mais poderia eu acrescentar, a não ser que sempre frequentei a melhor sociedade da Europa.
– Seria difícil encaixar isso numa quadra.
– A sociedade acabou-se. Houve época em que esperei que a América pudesse substituir a Europa, e criar uma aristocracia que o hoi polloi respeitaria, mas a depressão destruiu toda e qualquer esperança nesse sentido. Meu pobre país está se tornando incrivelmente burguês. Talvez você não me acredite, mas da última vez que estive na América um chofer de táxi me chamou de amigo.
Mesmo assim, embora a Riviera já não fosse a mesma depois do abalo de 29, Elliott continuava a dar recepções e a ir a recepções. Nunca frequentara os meios judeus, com exceção apenas da família Rothschild, mas as mais deslumbrantes festas eram agora dadas por membros da raça eleita, e quando havia uma festa Elliott não tinha forças para ficar em casa. Vagueava por essas reuniões, cortesmente apertando a mão de uma pessoa ou beijando a mão de outra, mas com uma espécie de tristonho desprendimento, qual exilado monarca que se sentisse ligeiramente constrangido por se ver em tal companhia. Os nobres exilados, no entanto, divertiam-se à grande e pareciam não ter maior ambição na vida que a de conhecer uma estrela de cinema. Nem tampouco aprovava Elliott o hábito moderno de tratar os artistas de teatro como pessoas com quem se possa ter relações sociais, mas justamente uma atriz aposentada construíra na vizinhança uma suntuosa residência, mantendo a casa aberta. Ministros, duques, damas da nobreza vinham passar semanas e semanas com ela. Elliott tornou-se assíduo visitante.
– Claro que é um grupo muito misturado – disse-me ele. – Mas a gente não precisa falar com quem não quer. Trata-se de uma compatriota e acho que é minha obrigação ajudá-la. Deve ser um alívio para seus hóspedes encontrarem alguém que fale a língua deles.
Às vezes eu achava Elliott tão abatido que lhe perguntava por que não levava as coisas mais na calma.
– Caro amigo, na minha idade ninguém pode dar-se ao luxo de ficar afastado. Depois de ter durante quase cinquenta anos frequentado a mais alta sociedade, sei perfeitamente que a pessoa que não é vista em toda parte logo fica esquecida.
Compreenderia ele que lamentável confissão fazia? Eu já não tinha coragem de rir de Elliott; achava-o agora profundamente patético. Vivera exclusivamente para a sociedade; as festas eram o seu pão-de-cada-dia; não ser convidado a uma delas era uma afronta; ficar só, uma humilhação – e, velho, agora, sentia-se terrivelmente amedrontado.
Chegamos ao fim do verão. Elliott passou-o correndo de uma ponta da Riviera a outra, almoçando em Cannes, jantando em Monte Carlo, empregando toda a sua arte para ser convidado a um chá aqui, a um coquetel ali; esforçando-se sempre, por mais cansado que estivesse, para ser amável, conversador e espirituoso. Sabia de todas as novidades e podia-se ter certeza de que ele seria o primeiro a conhecer todos os detalhes do último escândalo, excetuando-se, naturalmente, os que nele estavam envolvidos. Teria fitado com ar de franca estupefação qualquer pessoa que lhe dissesse que levava uma vida inútil. Teria considerado essa pessoa desoladoramente plebeia.
4
Quando chegou o outono, Elliott resolveu ir passar uns tempos em Paris, em parte para ver como iam indo Isabel, Gray e as crianças, e também para fazer o que ele chamava de acte de présence na capital. Pretendia seguir depois para Londres, a fim de encomendar algumas roupas, e aproveitaria a ocasião para visitar uns amigos. Eu tencionava ir diretamente para Londres, mas Elliott me pediu para fazer com ele a viagem de automóvel até Paris; não me sendo isso desagradável, consenti, achando depois que, já que lá estava, não havia motivo para também eu não passar uns dias na capital. Fizemos a viagem por etapas, parando nos lugares onde a comida era boa. Elliott estava sofrendo dos rins e só bebia água de Vichy, mas sempre insistia em escolher para mim meia garrafa de um bom vinho; e, excessivamente bondoso para me invejar um gosto que lhe não era permitido, tinha sincero prazer em me ver saboreá-lo. Era tão generoso que tive dificuldade em convencê-lo a me deixar repartir com ele as despesas. Embora eu me cansasse de ouvir casos a respeito das altas personagens que Elliott conhecera no passado, apreciei a viagem. Pitorescos, muitos dos lugares por onde passamos, assim coloridos pelas tintas do princípio de outono. Tendo almoçado em Fontainebleau, só chegamos a Paris à tarde. Elliott deixou-me à porta do meu modesto e antiquado hotel e virou a esquina, para ir ao Ritz.
Tínhamos prevenido Isabel da nossa chegada, de modo que não me admirei de encontrar um bilhete seu à minha espera; mas o conteúdo me surpreendeu.
“Venha ver-me assim que chegar. Aconteceu uma coisa horrível. Não traga o tio Elliott. Pelo amor de Deus, venha logo que puder.”
Não sou menos curioso que o comum dos mortais, mas eu tinha que me lavar e trocar de camisa; tomei depois um táxi e mandei tocar para o apartamento da Rue St. Guillaume. Fizeram-me entrar na sala de visitas. Isabel ergueu-se de um salto.
– Onde é que você esteve este tempo todo? Há séculos que estou esperando.
Eram cinco horas e, antes que eu pudesse responder, entrou o criado com a bandeja de chá. Isabel observou-o com impaciência, contorcendo as mãos. Não atinei com o motivo daquele chamado urgente.
– Acabo de chegar. Almoçamos folgadamente em Fontainebleau.
– Céus, como ele é vagaroso. Incrível! – murmurou Isabel.
O homem colocou sobre a mesa a salva com o bule, o açucareiro e as xícaras e, com calma realmente exasperante, dispôs à volta os pratos de pão com manteiga, bolos e pãezinhos. Depois saiu, fechando a porta.
– Larry vai casar-se com Sophie Macdonald.
– Quem é ela?
– Não seja tão idiota – exclamou Isabel, de olhos chispantes de cólera. – Aquela sujeita bêbada que encontramos naquele café imundo onde você nos levou. Só Deus sabe para que escolheu um lugar daqueles. Gray ficou enojado.
– Oh! você se refere à sua amiguinha de Chicago? – repliquei, ignorando a injusta censura. – Como é que você sabe?
– Como é que eu haveria de saber? Ele mesmo veio participar-me ontem à tarde. Tenho estado como louca desde então.
– Talvez seja melhor você sentar-se, dar-me uma xícara de chá e contar-me tudo direitinho.
– Sirva-se.
Ela estava sentada à mesinha de chá e observou-me, irritada, enquanto eu me servia. Instalei-me confortavelmente num sofazinho perto da lareira.
– Quase não temos visto Larry ultimamente; isto é, depois que chegamos de Dinard. Ele passou lá uns dias, mas não quis hospedar-se conosco, tendo ficado num hotel. Costumava ir à praia brincar com as crianças. Elas são loucas por ele. Íamos jogar golfe em St. Briac. Um dia Gray lhe perguntou se ele tornara a ver Sophie. “Sim, muitas vezes”, disse ele.
“Por quê?”, perguntei.
“É uma velha amiga”, respondeu.
“Se eu fosse você não perderia tempo com ela.”
– Nisto Larry sorriu. Você conhece o sorriso dele, como se a gente tivesse dito uma coisa engraçada, embora não haja graça nenhuma.
“Mas eu não sou você”, replicou.
– Encolhi os ombros e mudei de assunto. Não pensei mais nisso. Você bem pode imaginar o meu horror quando ele me aparece aqui e me participa que vai casar-se com Sophie.
‘Você não pode fazer isso, Larry”, disse eu. “Não pode.” “Mas vou fazer”, declarou ele tão calmamente como se estivesse repetindo um prato à mesa. “E quero que você seja muito boazinha para ela, Isabel.”
“É querer demais”, repliquei. “Você está louco. Ela é má, má, má.”
– Por que é que você diz isso? – perguntei, interrompendo-a.
Isabel fitou-me com olhos chamejantes.
– Ela está no pileque desde manhã até a noite. Entrega-se a qualquer sujeito que a convida.
– Isto não quer dizer que seja má. Muitos cidadãos altamente respeitáveis se embriagam e gostam de frequentar os meios baixos. São maus hábitos, como roer as unhas, por exemplo, mas não acho que passe disso. Chamo de má a pessoa que mente, e trapaceia, e é mesquinha.
– Se você tomar o partido de Sophie, sou capaz de matá-lo.
– Como foi que Larry se encontrou de novo com ela?
– Achou o número do telefone na lista e foi visitá-la.
Ela estava doente, o que não é para admirar, com a vida que leva. Larry chamou um médico e arranjou alguém para tratar dela. Foi assim que começou. Diz ele que Sophie deixou de beber; o idiota acha que ela está curada.
– Você se esqueceu do que Larry fez por Gray? Curou-o, não é verdade?
– Isto é outra coisa. Gray queria sarar. Ela não.
– Como é que você sabe?
– Porque conheço as mulheres. Quando uma mulher se rebaixa a esse ponto, está perdida; nunca mais poderá reabilitar-se. Se Sophie é hoje assim, é porque sempre foi assim. Pensa que ela será fiel a Larry? Claro que não. Cedo ou tarde há de estourar. Está no sangue. É dos brutos que ela gosta; são eles que a excitam, e é atrás dos brutos que ela irá. Fará da vida de Larry um inferno.
– É muito provável, mas não vejo o que você possa fazer.
– Larry está agindo de caso pensado.
– Eu nada posso fazer, mas você pode.
– Eu?
– Larry gosta de você e acata a sua opinião. Você é a única pessoa que tem um pouco de influência sobre ele. Você conhece a vida. Vá procurá-lo e diga-lhe que ele não pode cometer tão grande tolice. Diga-lhe que isso será a sua desgraça.
– Ele apenas me responderá que não é da minha conta, e com toda a razão.
– Mas você gosta dele, ou pelo menos sente certo interesse por ele; não pode ficar de braços cruzados e permitir que estrague sua vida dessa forma.
– Gray é o seu maior e mais velho amigo. Não creio que adiante muito, mas acho que Gray seria a pessoa indicada para falar com Larry.
– Oh! Gray... – replicou ela com impaciência.
– Sabe, talvez não tenha tão mau resultado como você pensa. Conheci dois ou três sujeitos, um na Espanha e dois no Oriente, que se casaram com prostitutas, e elas deram muito boas esposas. Sentiam-se gratas aos maridos, isto é, pela segurança que eles lhes deram; e, naturalmente, sabiam o que agrada a um homem.
– Você me faz perder a paciência. Acha então que me sacrifiquei para deixar Larry cair nas garras de uma ninfômana furiosa?
– Como foi que você se sacrificou?
– Renunciei a Larry pela única razão de não querer ser um estorvo na sua vida.
– Deixe de fita, Isabel. Você renunciou a ele por um brilhante quadrado e um casaco de marta.
Nem bem eu pronunciara essas palavras, um prato de pão com manteiga quase me pegou em cheio na cabeça. Por sorte consegui agarrar o prato, mas o conteúdo espalhou-se pelo chão. Levantei-me e coloquei de novo o prato sobre a mesa.
– Seu tio Elliott não teria ficado nada satisfeito se você tivesse quebrado um dos seus pratos Crown Derby. Foram feitos para o terceiro duque de Dorset e têm um valor inestimável.
– Apanhe as fatias de pão – ordenou-me Isabel.
– Apanhe-as você – repliquei sentando-me de novo no sofá.
– E você se diz um cavalheiro inglês – exclamou ela furiosa.
– Absolutamente; está aí uma coisa que eu nunca disse.
– Dê o fora daqui. Nunca mais quero vê-lo. Detesto a sua presença.
– É pena, pois a sua sempre me causou enorme prazer. Nunca lhe disseram que o seu nariz é exatamente como o de Psiquê do museu de Nápoles, que é considerada a representação máxima da beleza virginal? Você tem pernas bonitas, longas e benfeitas, fato que jamais me canso de admirar, pois quando era moça você as tinha curtas e grossas. Não sei como conseguiu essa transformação.
– Com uma vontade de ferro e pela graça de Deus – replicou ela colericamente.
– Mas, naturalmente, suas mãos são o seu traço mais sedutor. Tão finas e elegantes.
– Sempre tive impressão de que você as considerava grandes demais.
– Não para o seu tamanho. Acho admirável a graça com que você se serve delas. Que deva isso à natureza, ou à arte, você nunca faz um gesto sem beleza. São às vezes como flores, às vezes como pássaros em voo. Mais expressivas do que quaisquer palavras que você possa pronunciar. São como as mãos de um retrato por El Greco; em resumo, quando as vejo, quase chego a acreditar na pouco provável história de Elliott, que vocês tiveram por antepassado um nobre espanhol.
Isabel fitou-me, zangada.
– O que está dizendo? É a primeira vez que ouço semelhante coisa.
Contei-lhe a história do conde de Lauria e da dama de honra da rainha Maria, de quem Elliott dizia descender pelo lado materno. Enquanto isso, Isabel contemplava com benevolência seus dedos longos e unhas esmaltadas.
– A gente tem que descender de alguém – disse ela. Depois, com uma risadinha, lançando-me um olhar maroto em que não havia vestígio de rancor, acrescentou:
– Sujeitinho ordinário que é você!
É assim fácil fazer uma mulher ver onde está a razão;
basta que a gente lhe diga a verdade.
– Há momentos em que não desgosto nada de você
– disse-me Isabel.
Veio sentar-se no sofá ao meu lado e, passando o braço pelo meu, inclinou-se para beijar-me. Esquivei-me.
– Não quero saber de ficar com o rosto todo manchado de batom – disse eu. – Se você quer beijar-me, beije-me nos lábios, pois para esse fim foram eles criados por uma misericordiosa Providência.
Ela deu uma risadinha e, virando com a mão a minha cabeça para o seu lado, depositou sobre os meus lábios uma leve camada de batom. A sensação estava longe de ser desagradável.
– Agora que você fez isso, talvez esteja disposta a dizer o que deseja de mim.
– Conselho.
– Estou às suas ordens, mas nem por um momento acalento a ilusão de que você vai segui-lo. Só tem uma coisa a fazer, e é conformar-se de cara alegre.
Inflamando-se novamente, ela arrancou o seu braço do meu e, levantando-se, atirou-se numa poltrona do outro lado da lareira.
– Não vou ficar de braços cruzados vendo Larry estragar a sua vida. Não há o que eu não esteja disposta a fazer para impedir que ele se case com aquela vagabunda.
– De nada adiantará. Sabe, ele está dominado por uma das mais fortes emoções que podem agitar um peito humano.
– Você não me vai agora dizer que acha que ele está apaixonado?
– Não; isto seria relativamente uma insignificância.
– Então?...
– Você nunca leu o Novo Testamento?
– Creio que sim.
– Não lembra que Jesus foi para o deserto e jejuou durante quarenta dias? E então, quando ele estava esfaimado, o tentador lhe apareceu e disse: “Se és filho de Deus, ordena a estas pedras que se façam pães”. Mas Jesus resistiu à tentação. Então o demônio o colocou sobre o pináculo do templo e disse: “Se és filho de Deus, lança-te daí abaixo”. Pois ele estava sob a proteção dos anjos, e estes o teriam amparado. Mas Jesus resistiu. E então o diabo o conduziu a um monte muito alto e mostrou-lhe os reinos do mundo, dizendo: “Todas estas coisas te darei se, prostrado, me adorares”. Mas Jesus respondeu: “Vai-te, Satanás”. De acordo com o bom e simples são Mateus, foi este o fim da história. Mas não foi, não. O demônio era astucioso e de novo veio a Jesus: “Se aceitares a vergonha e a ignomínia, a flagelação, uma coroa de espinhos e a morte na cruz, salvarás a humanidade, pois maior amor não existe no mundo que o amor do homem que dá a vida por um amigo”. E Jesus sucumbiu. O diabo riu a mais não poder, pois bem sabia que pecados iriam os homens cometer em nome do seu redentor.
Isabel fitou-me indignada.
– Mas onde foi você buscar uma coisa dessas?
– Em parte alguma. Foi inspiração do momento.
– Acho que é idiotice e uma blasfêmia.
– Eu só queria dizer-lhe que a abnegação é uma paixão tão avassaladora que, a seu lado, até mesmo a luxúria e a fome pareceram insignificantes. Impele a vítima à destruição, na mais alta afirmação da personalidade. O objeto não tem importância; pode ser ou não ser merecedor do sacrifício. Nenhum vinho é tão intoxicante, nenhum amor tão destruidor, nenhum vício tão subjugante. Quando um homem se sacrifica, ele é maior que Deus. Pois como poderia Deus, infinito e onipotente, sacrificar-se? Quando muito pode sacrificar seu filho unigênito.
– Oh! céus, como você me enfada! – exclamou Isabel. Não liguei ao comentário.
– Como pode você achar que bom senso ou prudência influenciarão Larry, quando ele se encontra sob o domínio de tal paixão? Você não sabe que coisa esteve ele buscando durante todos esses anos. Também não sei, mas desconfio. Todo seu trabalho, todos os conhecimentos que ele armazenou não pesam na balança agora que se opõem ao seu desejo – oh! é mais que um desejo, a imperiosa necessidade de salvar a alma de uma mulher dissoluta que ele conheceu como criança inocente. Estou de pleno acordo com você, acho que ele está empreendendo inútil tarefa; com sua fina sensibilidade, vai sofrer torturas; o trabalho de sua vida, seja ele qual for, deixará de ser feito. O ignóbil Páris matou Aquiles atirando-lhe uma flecha no calcanhar. A Larry falta esta pequena nota de crueldade, que mesmo os santos precisam ter para conseguir a sua auréola.
– Eu o amo – disse Isabel. – Deus é testemunha que nada quero dele. Nada espero. Não existe amor mais desinteressado do que o meu, ele vai ser tão infeliz!...
Começou a chorar; achando que isso lhe faria bem, deixei-a em paz. Distraí-me com a ideia que tão inesperadamente me ocorrera. Brinquei com ela. Não pude deixar de refletir que, ao ver as cruéis garras desencadeadas pela cristandade, as perseguições, as torturas que cristãos inflingiram em cristãos, a maldade, a hipocrisia, a intolerância, ao ver essas coisas o demônio deve examinar o balanço com certa satisfação. E, ao lembrar-se de que tudo isto fez cair sobre a humanidade o pesado fardo da noção do pecado – noção que obscureceu a beleza da noite estrelada e atirou funesta sombra sobre as fugazes alegrias de um mundo feito para ser apreciado –, o diabo há de rir lá no seu íntimo, murmurando: “Dai ao Demo o seu quinhão”.
Dali a pouco Isabel tirou da bolsa um lenço e um espelhinho e enxugou com cuidado o canto dos olhos.
– Você é muito compreensivo, não é? – disse secamente.
Fitei-a, pensativo, mas não respondi. Ela empoou o rosto e pintou os lábios.
– Agora há pouco você disse que tinha uma ideia do que foi que Larry esteve procurando durante todos estes anos. O que quis dizer com isso?
– Bom, é apenas uma suposição, e talvez eu esteja redondamente enganado, mas acho que ele esteve procurando uma filosofia, ou talvez uma religião, e uma norma de vida que lhe satisfaça tanto o cérebro como o coração.
Isabel refletiu durante alguns momentos. Depois suspirou.
– Não acha estranho que um rapaz do interior criado em Marvin, Illinois, tenha dessas ideias?
– Não mais estranhável do que o fato de ter Luther Burbank, que nasceu numa fazenda de Massachusetts, conseguido produzir uma laranja sem semente, ou de ter Henry Ford, que nasceu numa fazenda de Michigan, inventado uma Tin Lizzie.
– Mas essas coisas são práticas. Isto está na tradição americana.
Ri-me.
– Acha você que pode haver no mundo coisa mais prática do que aprender a viver da melhor maneira possível?
Isabel fez um gesto de lassidão.
– O que acha então que devo fazer? – perguntou-me.
– Você não quer perder Larry completamente, quer? Ela sacudiu a cabeça.
– Pois bem, você sabe como ele é leal. Se uma pessoa não quiser saber da mulher dele, ele não quererá saber desta pessoa. Se você tiver um pouco de inteligência, trate de fazer amizade com Sophie. Esqueça o passado e procure ser gentil, como você sabe ser, quando se dispõe a isso. Ela vai casar-se e com certeza terá que comprar algumas roupas. Por que não se oferece para acompanhá-la? Creio que ficaria encantada com a proposta.
Isabel ouvia de sobrancelhas contraídas, parecendo muito atenta ao que eu dizia. Refletiu durante alguns minutos, mas não pude adivinhar seus pensamentos. Fiquei surpreso com o que em seguida me disse.
– Você quer convidá-la para almoçar? Ficaria esquisito eu fazê-lo, depois de tudo o que ontem disse a Larry.
– Você se comportará se eu a convidar?
– Como um anjinho – respondeu Isabel com o mais insinuante dos seus sorrisos.
– Então vamos decidir isso agora mesmo.
Havia um telefone na sala. Não me foi difícil encontrar o número de Sophie; após a demora que aqueles que usam o telefone na França aprendem a suportar com paciência, consegui falar-lhe. Dei-lhe o meu nome.
– Acabo de chegar a Paris e ouvi dizer que você e Larry vão casar-se – disse eu. – Meus parabéns. Desejo que sejam muito felizes. – Tive que conter um grito, pois Isabel, que estava a meu lado, me deu um violento beliscão no braço. – Vou ficar muito pouco tempo aqui e gostaria que você e Larry viessem almoçar comigo depois de amanhã, no Ritz. Vou também convidar Gray, Isabel e Elliott Templeton.
– Vou perguntar a Larry. Ele está aqui – disse Sophie. Houve uma pausa. – Sim, iremos com muito prazer.
Marquei a hora, fiz uma observação delicada qualquer e coloquei o fone no gancho. Notei nos olhos de Isabel uma expressão que me causou certa apreensão.
– Em que está pensando? – perguntei. – Não gosto nada de seu jeito.
– Sinto muito; pensei que fosse em mim uma das coisas que você apreciasse.
– Você não está maquinando nenhum plano nefasto, Isabel?
Ela arregalou os olhos.
– Juro-lhe que não. Para ser franca, estou curiosíssima para ver como está Sophie, agora que Larry a converteu. Só peço a Deus que ela não apareça no Ritz com uma máscara de pintura no rosto.
5
Minha reuniãozinha não correu assim tão mal. Gray e Isabel foram os primeiros; Larry e Sophie chegaram cinco minutos depois. Isabel e Sophie beijaram-se afetuosamente; Isabel e Gray felicitaram a noiva. Notei o olhar avaliador que Isabel lançou a Sophie. Sua aparência chocou-me. Quando eu a vira naquela espelunca da Rue de Lappe escandalosamente pintada, com seus cabelos tintos e vistosa jaqueta verde, embora estivesse com aparência atroz, e muito bêbada, havia nela um quê de provocante e até mesmo de vilmente sedutor; mas agora não tinha a mínima graça e, embora fosse um ano ou dois mais moça que Isabel, parecia bem mais velha. Ainda tinha aquela airosa inclinação de cabeça, mas, não sei por quê, isso agora me pareceu patético. Estava deixando o cabelo voltar à cor natural, e notei aquele ar de desmazelo que tem todo cabelo tinto quando começa a crescer. A não ser por um traço rubro nos lábios, estava sem pintura alguma. Pele áspera e de palidez doentia. Lembrei-me do verde vivíssimo dos olhos, agora desbotados e cinzentos. Estava de vestido vermelho, evidentemente novo em folha, com chapéu, sapatos e bolsa combinando. Não tenho a pretensão de entender de trajes femininos, mas pareceram-me exagerados e complicados demais para a ocasião. Ostentava na blusa uma vistosa joia de fantasia, como as que a gente compra na Rue Rivoli. Ao lado de Isabel – de vestido de seda preto, colar de pérolas cultivadas e chapéu elegantíssimo – tinha uma aparência vulgar e desalinhada.
Encomendei coquetéis, mas Larry e Sophie recusaram. Nisso Elliottt chegou. Sua passagem pelo vasto foyer foi, no entanto, perturbada pelas mãos que ele teve que apertar e as mãos que teve de beijar, à medida que, uma após outra, ia vendo pessoas suas conhecidas. Agia como se o Ritz fosse sua residência particular e ele estivesse agradecendo aos hóspedes por lhe terem aceito o convite. Isabel nada lhe contara sobre Sophie, a não ser que perdera o marido e o filho num desastre de automóvel e estava noiva de Larry. Quando finalmente chegou à nossa mesa, ele felicitou-os com a complicada afabilidade em que era mestre. Fomos para o salão de jantar. Como éramos quatro homens e duas senhoras, coloquei Isabel e Sophie em frente uma da outra, na mesa redonda, ficando Sophie entre Gray e eu – mas o tamanho da mesa permitia uma conversa geral. Eu já encomendara o almoço e o sommelier apareceu com a lista dos vinhos.
– Você não entende patavina de vinhos, caro amigo – disse Elliott. – Dê-me a lista, Albert. – Virou as folhas e continuou: – Só bebo água de Vichy, mas não suporto ver uma pessoa tomando um vinho que não seja perfeito.
Ele e Albert eram velhos amigos e depois de animada discussão decidiram que vinho devia eu oferecer aos meus convidados. Elliott virou-se para Sophie.
– E onde vai passar a lua de mel, minha querida? Olhou de relance para o vestido dela, e pelo quase imperceptível erguer das sobrancelhas percebi que a impressão não fora favorável.
– Na Grécia.
– Há dez anos que estou querendo fazer essa viagem
– disse Larry. – Mas, não sei por quê, até hoje não foi possível.
– Deve ser lindo, nesta época do ano... – disse Isabel com certo entusiasmo.
Lembrou-se, como eu me lembrei, de que fora para lá que Larry pensara em levá-la, quando quisera casar-se com ela. Ir para a Grécia na lua de mel parecia uma ideia fixa de Larry.
A conversa não era fácil e eu teria me visto em apuros se não fosse por Isabel. Ela estava se comportando admiravelmente. Todas as vezes que a ameaça de um silêncio pairava sobre nós, e eu quebrava a cabeça à procura de um tópico novo para introduzir na conversa, lá vinha ela com o seu espontâneo tagarelar. Fiquei-lhe grato. Sophie quase não falou, a não ser quando lhe dirigiam a palavra, e mesmo isso parecia ser-lhe um esforço. Perdera completamente a vivacidade. Era como se alguma coisa tivesse morrido dentro dela, e perguntei a mim mesmo se Larry não a estaria obrigando a uma tensão exagerada. Se eu acertara ao supor que, além de beber, ela fazia uso de entorpecentes, a repentina privação devia ter deixado seus nervos em mísero estado. Às vezes eu interceptava um olhar entre eles. No de Larry eu via ternura e estímulo, mas no dela uma súplica que achei patética. É possível que, com sua bondade, Gray tenha instintivamente sentido aquilo que eu julguei ver, pois começou a contar-lhe como Larry lhe curara as enxaquecas que o tinham inutilizado, explicando-lhe como se tornara dependente dele e quanto lhe ficara grato.
– Agora estou novo em folha – continuou. – Assim que arranjar emprego, vou recomeçar a trabalhar. Estou trançando os meus pauzinhos e tenho esperança de conseguir alguma coisa dentro em breve. Céus, como vai ser bom voltar para a América!
Gray era bem-intencionado, mas dava mostras de pouco tato se, como eu supunha, Larry estava tentando curar Sophie do seu adiantado alcoolismo pelo mesmo método de sugestão (pois era assim que eu considerava) que tanto resultado dera com Gray.
– Acabaram-se as enxaquecas, Gray? – perguntou Elliott.
– Há três meses que não tenho uma dor de cabeça e, quando acho que uma se anuncia, agarro o meu talismã e não sinto mais nada – respondeu ele. Procurou no bolso a moeda antiga que Larry lhe dera e acrescentou: – Não o venderia nem por um milhão de dólares.
Acabamos o almoço. Serviram-nos o café. O sommelier apareceu de novo e perguntou se queríamos licores. Recusamos, com exceção de Gray, que aceitou um conhaque. Quando veio a garrafa, Elliott fez questão de examiná-la.
– Sim, recomendo este aqui. Não lhe fará mal nenhum.
– Um calicezinho para monsieur? – perguntou o sommelier.
– Infelizmente não. Estou proibido.
Elliott contou-lhe um tanto extensamente que estava sofrendo dos rins e que o médico lhe proibira bebidas alcoólicas.
– Uma gota de zubrovka não fará mal a monsieur. Não há quem não saiba que é bom para os rins. Acabamos de receber uma remessa da Polônia.
– Verdade? É artigo difícil de se obter hoje em dia. Deixe-me ver a garrafa.
O sommelier, um sujeito imponente e circunspecto, com uma longa corrente de prata em volta do pescoço, foi buscar a garrafa, e Elliott explicou-nos que se tratava do tipo polonês de vodca, se bem que infinitamente superior.
– Costumávamos tomá-lo na casa dos Radziwill, quando eu me hospedava com eles na estação de caça. Vocês precisavam ver como o tomavam aqueles príncipes poloneses; não exagero ao dizer que bebiam aos copos, e absolutamente não se alteravam. Sangue bom, naturalmente; aristocratas até a ponta dos dedos. Sophie, você precisa experimentar, e você também, Isabel. É uma oportunidade que ninguém tem o direito de desprezar.
Veio a garrafa. Larry, Sophie e eu resistimos à tentação, mas Isabel disse que gostaria de experimentar. Admirei-me, pois em geral bebia pouco, e naquele dia já tomara dois coquetéis e dois ou três copos de vinho. O garçom serviu-lhe um cálice de um líquido verde-claro, Isabel cheirou-o.
– Oh! que perfume delicioso!
– Não é mesmo? – exclamou Elliott. – É devido às ervas que entram na composição; são elas que lhe dão tão delicado paladar. Vou tomar uma gota, só para lhe fazer companhia. Por uma vez não me fará mal.
– É adorável – disse Isabel. – É como leite materno. Nunca tomei coisa mais deliciosa.
Elliott levou o cálice aos lábios.
– Oh! como isto me faz lembrar os velhos tempos! Vocês, que nunca se hospedaram com os Radziwill, não sabem o que é viver. Aquilo, sim, era estilo. Feudal, saibam vocês. A gente poderia julgar-se na Idade Média. Na estação, à espera, uma carruagem com seis cavalos e lacaios. E, ao jantar, um criado de libré atrás de cada pessoa.
Continuou a descrever a magnificência e o luxo do castelo, e a suntuosidade das festas; a tal ponto que desconfiei, talvez sem razão, de que tudo aquilo fosse combinação entre ele e o sommelier, para Elliott ter oportunidade de discursar sobre a grandiosidade dessa principesca família e dos aristocratas poloneses com quem convivera em seus próprios castelos. Ele estava agora a todo pano.
– Mais um cálice, Isabel?
– Oh! não me atrevo. Mas é adorável. Estou contentíssima por ter ficado conhecendo esta bebida. Gray, você precisa arranjar-me uma garrafa.
– Mandarei uma para o apartamento.
– Oh! tio Elliott, manda mesmo? – exclamou Isabel entusiasmada. – O senhor é tão bom para nós! Você precisa experimentar, Gray; tem um perfume de feno recém-cortado e flores primaveris, de tomilho e alfazema; e é tão agradável ao paladar! É como ouvir música numa noite enluarada.
Era contra o feitio de Isabel falar por paus e por pedras, e fiquei a cogitar se não estaria um pouquinho “alegre”. A reunião chegou ao fim. Apertei a mão de Sophie.
– Para quando é o casamento?
– Sem ser na próxima semana, na outra. Espero que nos dê o prazer de comparecer.
– Infelizmente creio que não estarei em Paris. Parto amanhã para Londres.
Enquanto eu me despedia dos meus outros convidados, Isabel chamou Sophie à parte e conversou com ela durante alguns segundos; virou-se em seguida para Gray.
– Oh! Gray, não vou já para casa. Há uma exposição em Molyneux, e Sophie precisa ver os modelos novos.
– Com muito prazer – disse Sophie.
Separamo-nos. Nesta noite levei Suzanne Rouvier para jantar e na manhã seguinte parti para a Inglaterra.
6
Elliott chegou ao Claridge quinze dias mais tarde; pouco depois passei por lá, para vê-lo. Ele encomendara inúmeros ternos e, com uma verbosidade que me pareceu excessiva, contou-me detalhadamente tudo que escolhera, e por quê. Quando finalmente tive oportunidade de dizer alguma coisa, perguntei-lhe que tal fora o casamento.
– Não houve casamento – respondeu lugubremente.
– O que me diz?!
– Três dias antes da data marcada, Sophie desapareceu. Larry procurou-a por toda parte.
– Que coisa esquisita! Tinham brigado?
– Não. Pelo contrário. Estava tudo combinado. Eu ia levá-la à igreja. Pretendiam tomar o Expresso do Oriente logo depois da cerimônia. Se quer que lhe fale com franqueza, acho que Larry se livrou de boa.
Julgando que Isabel teria contado tudo a Elliott, perguntei:
– Que foi exatamente que aconteceu?
– Pois bem, lembra-se daquele dia do seu almoço, no Ritz?
Isabel foi com ela até Molyneux. Reparou no vestido de Sophie? Deplorável. Que ombros... É pela linha dos ombros que a gente conhece se o vestido está benfeito ou não. A coitadinha, é lógico, não podia pagar os preços de Molyneux, mas você sabe como Isabel é generosa, e afinal de contas elas se conhecem desde meninas, de modo que Isabel lhe ofereceu um vestido, para ela ter pelo menos alguma coisa decente para usar no dia do casamento.
Sophie, naturalmente, pegou no ar. Pois bem, para encurtar uma longa história, Isabel convidou-a para vir ao apartamento, em determinado dia, às três horas, para irem juntas à última prova. Ela veio, mas infelizmente Isabel tivera que sair para levar uma das crianças ao dentista e só voltou depois das quatro horas, não encontrando mais Sophie no apartamento. Pensando que ela se cansara de esperar e fora para Molyneux, Isabel dirigiu-se imediatamente para lá; mas nem sinal de Sophie! Finalmente Isabel desistiu e voltou para casa. Tinham combinado jantar todos juntos e, quando Larry apareceu, a primeira coisa que Isabel lhe perguntou foi onde estava Sophie.
Larry não sabia de nada. Telefonou para o apartamento dela e, não obtendo resposta, disse que iria até lá. Atrasaram o jantar o máximo possível, mas, como nenhum dos dois apareceu, Gray e Isabel jantaram sozinhos. Você sabe, naturalmente, que tipo de vida Sophie levava quando vocês a encontraram na Rue de Lappe; foi muito infeliz aquela sua ideia de levá-los lá. Pois bem, Larry passou a noite toda percorrendo os antros que ela frequentara, mas não a encontrou em parte alguma. Foi várias vezes ao apartamento, e a concierge disse que ela não aparecera. Evaporara-se, pura e simplesmente. Larry passou três dias procurando-a; no quarto dia voltou novamente ao apartamento e a concierge lhe disse que ela viera, fizera a mala e fora-se num táxi.
– Larry ficou muito abalado?
– Não o vi. Isabel disse-me que sim.
– Sophie não escreveu, ou deixou recado?
– Nada.
Refleti sobre o assunto.
– O que pensa você de tudo isso? – perguntei.
– Caro amigo, exatamente o que você pensa. Ela não aguentou; e caiu de novo na bebedeira.
Isto era claro, mas mesmo assim estranho. Não pude compreender por que escolhera justamente aquele momento para fugir.
– E que me diz de Isabel?
– Naturalmente sentiu o que se passou, mas é uma pequena sensata e disse-me que sempre achara que seria um desastre Larry casar-se com uma mulher dessas.
– E Larry?
– Isabel tem sido muito boa para ele. Diz que o que dificulta a situação é o fato de ele não querer discutir o caso. Larry se conformará, pode ficar certo; diz Isabel que ele nunca esteve apaixonado por Sophie. Ia casar-se com ela apenas por um sentimento de mal compreendido cavalheirismo.
Imaginei Isabel fazendo-se de forte diante de um acontecimento que no íntimo lhe causara viva satisfação. Sabia perfeitamente que da próxima vez que nos víssemos ela não deixaria de me dizer que soubera perfeitamente o que iria acontecer.
Mas passou-se quase um ano sem que eu a visse e, embora nesta ocasião eu pudesse contar-lhe a respeito de Sophie certas coisas que lhe teriam dado que pensar, não achei a ocasião propícia. Fiquei em Londres até as vésperas do Natal e depois, desejando voltar para casa, fui diretamente para a Riviera, sem parar em Paris. Comecei a escrever um romance e nos meses seguintes vivi recluso. De vez em quando via Elliott. Seu estado de saúde piorava visivelmente e fiquei penalizado ao verificar que persistia em levar vida social. Aborrecia-se comigo por eu não querer viajar cinquenta quilômetros para comparecer às reuniões que continuava a dar frequentemente em sua casa. Achava que era muita pretensão da minha parte preferir ficar em casa trabalhando.
– A estação está excepcionalmente elegante, caro amigo – disse-me ele. – É um crime você fechar-se em casa, sem nada ver do que se passa pelo mundo. E, mesmo que eu chegue aos cem anos de idade, jamais poderei compreender como é que você foi escolher, para morar, uma parte da Riviera completamente fora de moda
Pobre tolo e bondoso Elliott! Aos cem anos é que ele não chegaria.
Em junho eu já terminara o esboço geral do meu romance e achei que merecia umas férias. Enfiei, portanto, umas roupas numa maleta e entrei no naviozinho de vela de onde, no verão, costumávamos nos atirar na Baie des Fosses, para o banho, e seguimos pela costa, em direção a Marselha. Havia apenas uma viração inconstante, de modo que a maior parte do tempo tínhamos que nos valer do motor auxiliar. Passamos uma noite na baía, em Cannes, outra em Sainte Maxime e uma terceira em Sanary. Chegamos depois a Toulon, porto que sempre amei. Os vapores da esquadra francesa dão-lhe um ar ao mesmo tempo romântico e amigo, e nunca me canso de vaguear por aquelas velhas ruas. Posso demorar-me horas no cais, a observar os marinheiros de folga, que passam aos pares ou com suas namoradas, ou os civis que vão de lá para cá como se não tivessem outra preocupação na vida a não ser gozar as delícias do sol. Devido a todos esses navios e às balsas que levam a inquieta multidão aos diversos lugares da baía, Toulon dá a impressão de um ponto terminal para onde convergem todos os caminhos do vasto mundo; e, quando você se senta num café, de olhos ligeiramente ofuscados pelo fulgor do mar e do céu, a imaginação empreende maravilhosas viagens às mais remotas partes do globo. Você pula de uma chalupa para uma praia de coral debruada de coqueiros, no Pacífico; passa da escada de bordo para o cais de Rangoon e entra num jinriquixá; observa, do mais alto tombadilho, a ruidosa e gesticulante multidão de negros, quando o seu vapor atraca em Porto Príncipe.
Quando chegamos, a manhã já ia alta; no meio da tarde desembarquei e andei pelo cais, olhando as lojas, as pessoas gue passavam por mim e as que estavam sentadas sob o toldo dos cafés. De repente vi Sophie e ao mesmo tempo ela me viu. Cumprimentou-me sorrindo. Parei para apertar-lhe a mão. Estava sozinha a uma mesa, com um copo vazio à frente.
– Sente-se e tome alguma coisa comigo – disse-me ela.
– Tome você comigo – repliquei, puxando uma cadeira.
Ela usava a blusa de listas azuis e brancas dos marinheiros franceses, calça vermelha e sandálias que deixavam à mostra as unhas pintadas dos seus dedos grandes. Estava sem chapéu; os cabelos curtíssimos e ondulados eram de um dourado tão pálido que tinham um fulgor de prata. Estava pintada com o mesmo exagero de quando a tínhamos visto na Rue de Lappe. Já tomara um ou dois drinques, a julgar pelo pires na mesa, mas estava sóbria. Minha presença não pareceu desagradar-lhe.
– Como vão todos em Paris? – perguntou-me.
– Creio que vão bem. Não vi nenhum deles desde aquele dia em que almoçamos no Ritz.
Ela soltou uma nuvem de fumaça pelo nariz e começou a rir.
– Não me casei com Larry, afinal de contas.
– Sei disso. Por que não?
– Querido, quando chegou a hora, não pude ver-me no papel de Maria Madalena em relação ao seu Jesus Cristo. Não, senhor!
– Que foi que a fez mudar de ideia no último momento?
Ela fitou-me com ar zombeteiro. Assim vestida, com aquela ousada inclinação de cabeça, seios pequeninos e ancas finas, parecia um perverso rapazinho; mas confesso que a achei muito mais atraente do que no Ritz, de vestido vermelho com o seu lúgubre ar de elegância provinciana. Tinha o rosto e o pescoço bem queimados de sol; e, embora o marrom da pele tornasse mais agressivos o carmim das faces e o rímel das pestanas, na sua vulgaridade o efeito não deixava de ter certo encanto.
– Quer que lhe conte?
Inclinei afirmativamente a cabeça. O garçom trouxe a cerveja que eu pedira para mim e um conhaque com seltzer para Sophie. Ela acendeu um caporal em outro que acabara de fumar e disse:
– Fazia três meses que eu não tomava uma gota de álcool. Que não fumava. – Ao notar minha expressão de surpresa, riu e continuou: – Não me refiro a cigarros. Ópio. Sentia-me pessimamente. Às vezes, quando estava só, eu gritava como uma desesperada. Dizia: “Não posso continuar, não posso continuar”. Quando Larry estava presente não era tão duro, mas quando ele se ausentava era um inferno.
Eu tinha os olhos nela e, quando falou em ópio, observei-a mais atentamente; notei as pupilas como cabecinhas de alfinete, que indicavam que se entregara novamente ao vício. Olhos assustadoramente verdes.
– Isabel ia me fazer presente do vestido de casamento. Que fim terá levado? Era um amor. Tínhamos combinado ir juntas a Molyneux, devendo eu pegá-la em sua casa. Nisto faço justiça a Isabel: o que ela não entende de roupas ninguém entende. Quando cheguei ao apartamento, aquele criado que eles têm lá me disse que Isabel fora levar Joan ao dentista e deixara recado que voltaria logo. Entrei na sala. A bandeja do café ainda ali estava e perguntei ao criado se eu podia tomar uma xícara. Café era a única coisa que me animava. Ele disse que me traria café fresco e levou embora as xícaras e o bule. Deixou uma garrafa na bandeja. Vi que se tratava daquele negócio polonês que vocês tanto tinham comentado no Ritz.
– Zubrovka. Lembro-me de Elliott ter dito que mandaria um pouco para Isabel.
– Vocês todos tinham feito um estardalhaço sobre o perfume delicioso e fiquei curiosa. Tirei a rolha e cheirei. Tinham razão; cheirava bem, de fato. Acendi um cigarro; dali a pouco o criado chegou com o café. Também isto achei bom. Falam tanto do café francês; que fiquem com ele! Para mim não há como o americano. É a única coisa de que sinto falta aqui. Mas o café de Isabel não era mau; eu estava desanimadíssima e depois de uma xícara me senti melhor. Olhei a garrafa, ali à mostra. Terrível tentação. Mas disse a mim mesma: “Com os diabos, não vou pensar nisto”, e acendi outro cigarro. Achei que Isabel não poderia tardar; e no entanto não chegava. Fiquei nervosíssima; detesto ter que esperar e não havia na sala nada para se ler. Andei de lá para cá, a examinar os quadros, mas o tempo todo via aquela maldita garrafa. Depois resolvi encher um cálice e olhar. Tinha uma linda cor.
– Verde-claro.
– Isso mesmo. Esquisito, a cor era exatamente como o perfume. Talo verde que às vezes a gente vê no coração de uma rosa branca... Eu tinha que experimentar se o gosto era igual, e achei que só experimentar não me faria mal. Pretendia tomar apenas um gole; nisso ouvi um ruído, pensei que fosse Isabel e engoli tudo, pois não queria que ela me apanhasse em flagrante. Mas afinal de contas não era Isabel. Céus, como aquilo me reanimou! Não me sentia tão bem desde que aderira à Lei Seca. Criei alma nova. Se Isabel tivesse aparecido nesse momento, com certeza eu estaria hoje casada com Larry. Não sei qual teria sido o resultado.
– E ela não apareceu?
– Não. Fiquei furiosa. Quem pensava ela que era fazendo-me esperar daquele jeito? E então vi que o cálice estava cheio outra vez; com certeza eu o enchera sem pensar; mas, acredite-me você ou não, eu o fizera inconscientemente. Pareceu-me tolice deitar de novo o líquido na garrafa; bebi-o. Delicioso; disso não há dúvida. Sentia-me outra; tinha vontade de rir, coisa que não me acontecera em três meses. Lembra-se de ter ouvido aquele velho mariquinhas dizer que vira sujeitos na Polônia beberem aos copos, sem se alterar? Pois bem, achei que eu podia aguentar aquilo que qualquer polonês filho da mãe aguentava; além do mais, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos! De modo que atirei na lareira o resto do meu café e enchi a xícara até a borda. Falar de leite materno... uma ova! Não sei exatamente o que aconteceu depois, mas não creio que tivesse sobrado muito na garrafa. Achei então melhor fugir antes de Isabel voltar. Quase que ela me apanha. Assim que saí pela porta da frente ouvi a voz de Joanie. Subi a correr as escadas e esperei até elas entrarem no apartamento; disparei depois para baixo e meti-me num táxi. Disse ao chofer que fosse a toda; quando ele me perguntou para onde, desatei a rir na cara dele. Estava no auge da alegria.
– Você voltou para o seu apartamento? – perguntei, embora soubesse que ela não voltara.
– Por que espécie de idiota me toma você? Eu tinha certeza de que Larry viria procurar-me. Não ousei ir a nenhum dos lugares que costumava frequentar e, portanto, fui ao Hakim. Sabia que ali Larry nunca me encontraria. Além do mais, estava querendo fumar.
– O que é Hakim?
– Hakim. Hakim é um argelino que sempre arranja ópio para quem tem os cobres para pagá-lo. Era muito meu amigo. Ele arranja o que a gente quer: um rapaz, um homem, uma mulher, um negro. Tem sempre uma meia dúzia de argelinos à disposição. Ali passei três dias. Não sei com quantos homens dormi. – Sophie começou a rir. – De todos os feitios, tamanhos e cores. Se recuperei o tempo perdido! Mas, sabe, eu tinha medo. Não me sentia segura em Paris, receando que Larry chegasse a encontrar-me; além do mais, não tinha dinheiro; a gente tem que pagar aqueles cafajestes para dormir com a gente. Saí, portanto, de lá; voltei ao apartamento e dei à concierge cem francos, recomendando-lhe que, se viesse alguém perguntar por mim, dissesse que eu fora embora. Fiz minha mala e naquela noite tomei o trem para Toulon. Só me senti segura depois que cheguei aqui.
– E ficou aqui, desde então?
– Ora se!... e aqui vou continuar. A gente tem ópio à vontade, que os marinheiros trazem do Oriente; e é coisa boa, não aquela droga que vendiam em Paris. Tenho um quarto no hotel. Você conhece, o Commerce et la Marine. Quando a gente entra ali, de noite, os corredores recendem a ópio. – Sophie aspirou voluptuosamente. – Doce e acre; a gente sabe que os outros estão fumando nos seus quartos e isto dá uma gostosa sensação de intimidade. E ali não se importam que a gente traga esta ou aquela pessoa. Às cinco da manhã vêm bater à porta do quarto, para que os marinheiros possam voltar aos seus navios, de modo que ninguém precisa preocupar-se com isso. – Imediatamente, sem uma pausa, Sophie disse: – Vi um livro seu numa loja aqui do cais; se soubesse deste encontro, tê-lo-ia comprado e trazido para você autografá-lo.
Ao passar pela livraria eu parara para examinar a vitrina e vira realmente, entre outros livros novos, a tradução recém-publicada de um romance meu.
– Não creio que a interessasse muito – declarei.
– Por que não? Comunico-lhe que sei ler.
– E escrever também, creio.
Ela lançou-me um rápido olhar e desatou a rir.
– Sim, eu fazia poesias quando menina. Provavelmente eram péssimas, mas eu as achava muito bonitas. Com certeza foi Larry quem lhe contou. – Sophie hesitou por um momento. E depois:
Seja como for, a vida é um inferno, mas, se há nela alguma coisa para se gozar, trouxa é aquele que não se aproveita. – Atirou a cabeça para trás em atitude desafiadora e perguntou-me: – Se eu comprar aquele livro, você escreve nele alguma coisa?
– Devo partir amanhã. Se você quer mesmo o livro, arranjo-lhe um exemplar e deixo-o no seu hotel.
– Ótimo.
Nesse momento uma lancha da Marinha chegou ao cais; desceram vários marinheiros. Sophie examinou-os com o olhar.
– Lá vem meu amiguinho. – Acenou para alguém e continuou: – Você pode oferecer-lhe um trago e depois é melhor dar o fora. Ele é corso, e ciumento como o nosso velho amigo Jeová.
Um rapaz dirigiu-se para o nosso lado, hesitou ao ver-me, mas a um aceno de Sophie aproximou-se. Era alto, trigueiro; barba feita, maravilhosos olhos pretos, nariz aquilino e cabelos ondulados, negros como carvão. Não parecia ter mais de vinte anos.
Sophie apresentou-me como amigo de infância, americano.
– Pouco inteligente, mas bonito – disse-me ela.
– Você gosta dos brutos, não gosta?
– Quanto mais, melhor.
– Um destes dias alguém lhe corta o pescoço.
– Não duvido – replicou ela sorrindo. – Não se perderá grande coisa.
– Vamos falar francês, não vamos? – disse asperamente o marinheiro.
Sophie virou-se para ele com um sorriso em que havia um quê de zombaria. Falava corretamente o francês, empregando a gíria e com carregada pronúncia americana; mas isso dava aos termos vulgares e obscenos que ela usava uma nota picante e cômica, que provocava o riso.
– Estava dizendo que você é belo, mas, para não constrangê-lo, disse-o em inglês. – E virando-se para mim:
– E é forte. Tem músculos de boxeador. Experimente.
A lisonja dissipou a taciturnidade do marinheiro; com um sorriso condescendente ele dobrou o braço para exibir a musculatura.
– Apalpe – disse. – Vamos, apalpe.
Obedeci, exprimindo a devida admiração. Conversamos durante alguns minutos; depois paguei a conta e levantei-me.
– Já vou indo.
– Tive muito prazer em vê-lo. Não se esqueça do livro.
– Não me esquecerei.
Apertei a mão de ambos e afastei-me. No caminho parei na livraria, comprei o romance e nele escrevi o nome de Sophie e o meu. Depois, por ter a ideia me ocorrido de repente e por falta de melhor inspiração, escrevi o primeiro verso da linda poesia de Ronsard que se encontra em todas as antologias:
“Mignonne, allons voir si la rase...”
Deixei o livro no hotel. Fica ele no cais, e muitas vezes ali me hospedei, pois de madrugada, quando o toque do clarim chama ao dever os homens que tiveram folga durante a noite, é lindo a gente ver o sol erguer-se nubladamente sobre as macias águas da baía, emprestando aos navios espetrais uma beleza amortalhada. No dia seguinte rumamos para Cassis, onde eu queria comprar alguns vela nova que tínhamos encomendado. Uma semana mais tarde voltei para casa.
7
Encontrei recado de Joseph, criado de Elliott: seu patrão estava de cama e desejava ver-me. Assim sendo, no dia seguinte fui de automóvel para Antibes. Antes de me levar para cima, Joseph contou-me que Elliott tivera um ataque de uremia e que o médico considerava grave o seu estado. Passada a crise ele melhorara, mas os rins estavam atacadíssimos e não se podia absolutamente esperar um completo restabelecimento. Fazia quarenta anos que Joseph estava a serviço de Elliott e sua dedicação era inegável; mas, embora se mostrasse compungido, notava-se-lhe a satisfação com que – como geralmente acontece com membros da sua classe – ele recebia a catástrofe em casa.
– Ce pauvre monsieur – suspirou ele. – Sem dúvida alguma tinha as suas manias, mas no fundo era boa pessoa. Cedo ou tarde o nosso dia chega mesmo. Falava como se Elliott estivesse exalando o último suspiro.
– Tenho certeza de que ele garantiu o seu futuro, Joseph – disse eu em tom grave.
– Esperamos – respondeu ele lugubremente.
Ao entrar no quarto, admirei-me por encontrar Elliott todo lépido. Estava pálido e envelhecido, mas animado.
Barba feita, cabelo bem penteado. Usava pijamas de seda de um azul pálido; no bolso, suas iniciais, encimadas pela coroa de conde. Em ponto muito maior, e novamente com a coroa, notei as iniciais bordadas na dobra do lençol de cima.
Perguntei-lhe como ia passando.
– Muitíssimo bem – respondeu-me alegremente. – Trata-se de uma indisposição passageira. Espero estar de pé e novamente em circulação dentro de poucos dias. No domingo o grão-duque Oimitri vem almoçar comigo e eu disse ao meu médico que, custe o que custar, tem que me pôr bom até lá.
Passei meia hora em sua companhia e, ao sair, pedi a Joseph que me avisasse caso ele tivesse uma recaída. Fiquei admirado quando, uma semana mais tarde, ao ir almoçar com uns vizinhos, dei com Elliott. Assim em trajes de passeio estava com péssima aparência.
– Você não devia ter saído de casa, Elliott – disse-lhe eu.
– Oh! tolice, caro amigo. Frieda está esperando a princesa Mafalda. Conheço a família real da Itália há anos, desde que a coitada da Louisa estava en poste em Roma, e eu não podia deixar a pobre Frieda em apuros.
Fiquei sem saber se deveria admirar sua indômita coragem, ou lamentar o fato de, na sua idade e gravemente enfermo, conservar ainda aquela paixão pela vida social. Ninguém o julgaria um homem doente. A exemplo do ator agonizante que, de rosto pintado, se esquece no palco de suas dores e seus males, Elliott representava o papel de fino cortesão com a costumeira segurança. Era extraordinariamente amável, lisonjeiramente atencioso para com as pessoas que mereciam tal tratamento, divertindo os convidados com aquela requintada ironia que era o seu forte. Brilhou como nunca. Quando Sua Alteza Real partiu (e foi um gozo observar a graça com que Elliott se inclinou diante dela, conseguindo aliar respeito por sua alta posição à admiração de um velho por uma moça bonita) não me causou surpresa ouvir a dona da casa dizer que ele fora a alma da festa.
Dias depois se viu obrigado a recolher-se ao leito, com expressa proibição do médico de sair do quarto. Elliott ficou exasperado.
– Pena isto ter acontecido justamente agora. A estação está excepcionalmente elegante – disse ele.
E me veio com uma longa lista de pessoas importantes que estavam passando o verão na Riviera.
Com intervalos de três ou quatro dias eu ia sempre visitá-lo. Às vezes o encontrava na cama, de outras estendido na chaise longue, metido num deslumbrante roupão. Parecia ter deles um estoque inesgotável e não me lembro de o ter visto duas vezes com o mesmo. Numa dessas ocasiões – estávamos no começo de agosto – encontrei Elliott muito pensativo. Joseph me dissera, embaixo, que ele estava um pouco melhor; fiquei, portanto, admirado por vê-lo tão quieto. Procurei distraí-lo, repetindo os comentários sociais que ouvira ultimamente, mas vi perfeitamente que não estava interessado. Tinha o sobrolho carregado e expressão taciturna, coisa rara nele.
– Você vai à festa de Edna Novemali? – perguntou-me afinal.
– Não; claro que não.
– Foi convidado?
– Não há quem não tenha sido convidado na Riviera. A princesa Novemali era uma americana riquíssima que se casara com um príncipe romano, mas não um príncipe qualquer, desses de dois por um tostão que a gente encontra na Itália, e sim o chefe de uma família importante, descendente de um condottiere que no século xvi cavara para si próprio um principado. Era mulher de sessenta anos, viúva; quando o regime fascista começou a exigir uma parte muito gorda de suas rendas americanas, ela achou preferível abandonar a Itália e construir, num ótimo terreno atrás de Cannes, uma vila florentina. Mandara vir da Itália mármore para as paredes de seus vastos salões de recepção e pintores para decorarem o teto. Seus quadros e estátuas eram belíssimos e até mesmo Elliott, que não apreciava móveis italianos, se via obrigado a confessar que os dela eram magníficos. Lindo parque; a piscina devia ter custado uma fortuna. Ela recebia muito e à sua mesa nunca se sentavam menos de vinte pessoas. Resolvera dar um baile à fantasia em agosto, na noite de lua cheia, e, embora ainda faltassem três semanas, não se falava de outra coisa na Riviera. Haveria fogos, viria de Paris uma orquestra de pretos. Com invejosa admiração, os nobres exilados comentavam entre si que a festa ia custar mais do que eles tinham para gastar em um ano.
“Principesco”, diziam uns. “Loucura”, comentavam outros.
“Denota mau gosto”, rosnavam terceiros.
– O que é que você vai usar? – perguntou-me Elliott.
– Mas, Elliott, já lhe disse que não vou. Acha então que, na minha idade, vou me fantasiar?
– Ela não me convidou – disse ele em voz rouca, fitando-me com olhar angustiado.
– Oh! ela o convidará – respondi serenamente. – Com certeza nem todos os convites foram expedidos.
– Ela não me vai convidar – disse ele, com um soluço. – É um insulto propositado.
– Oh! Elliott, não creio. Garanto que foi esquecimento.
– Não sou pessoa de quem se esqueçam.
– Além do mais, você não estaria em condições de ir.
– Claro que estaria. A melhor festa da temporada! Mesmo que estivesse no meu leito de morte, eu me levantaria para ir. Vestiria o traje do meu antepassado, o conde de Lauria.
Fiquei em silêncio, por não saber o que dizer.
– Paul Barton veio ver-me pouco antes de você chegar – disse Elliott de repente.
Não posso esperar que o leitor se lembre de quem se trata, pois mesmo eu tive que virar essas páginas para ver que nome lhe dei. Paul Barton era o jovem americano que Elliott introduzira na sociedade inglesa, e que depois suscitara o seu ódio, por desdenhá-lo quando achara que Elliott não lhe poderia mais ser útil. Ultimamente Barton estivera em evidência, em primeiro lugar por ter-se naturalizado inglês, e depois por ter-se casado com a filha de um magnata da imprensa recentemente elevado a par do Reino. Com sua habilidade e a proteção de pessoa tão influente, com toda a certeza iria longe. Elliott estava amargado.
– Todas as vezes que acordo de noite e ouço um rato arranhando as paredes, digo: “Lá está Paul Barton, subindo”. Acredite-me, caro amigo, ele ainda acabará na Câmara dos Lordes. Graças a Deus não estarei vivo para ver urna coisa dessas.
– O que queria ele? – perguntei, pois tanto quanto Elliott eu sabia que aquele rapaz não fazia nada sem segunda intenção.
– Eu lhe conto o que ele queria! – rosnou Elliott. – Queria que eu lhe emprestasse a minha fantasia de conde de Lauria.
– Que topete!
– Não vê o que isso significa? Significa que ele sabia que Edna não me convidou, nem me ia convidar. Foi ela quem o instigou. Aquela vaca velha. Se não fosse por mim, ela nunca teria conseguido coisa alguma. Organizei suas festas. Apresentei-a a todas as pessoas com quem hoje se dá. Ela dorme com o chofer; você sabia disso, naturalmente. Revoltante! Paul Barton sentou-se aí nessa cadeira e me contou que ela vai mandar iluminar todo o jardim; que haverá fogos. Adoro fogos. E disse-me que Edna estava sendo a todo momento importunada por pessoas que queriam convites, mas que os negou, por querer que a festa seja excepcionalmente brilhante. Falou como se não houvesse a mínima probabilidade de eu ser convidado.
– Você vai lhe emprestar a fantasia?
– Prefiro vê-lo morto e no inferno. Quero ser enterrado com ela. – Elliott sentou-se na cama, balançando-se de um lado para outro, como uma mulher desatinada. – Oh! que maldade! – exclamou. – Odeio-os, odeio todos eles. Bem que me agradavam quando eu dava as minhas festas, mas agora que estou velho e doente não fazem mais caso de mim. Nem dez pessoas se deram ao trabalho de vir pedir notícias minhas, desde que caí de cama; e esta semana apenas um miserável ramalhete de flores! Fiz tudo por eles. Sentaram-se à minha mesa e beberam do meu vinho. Incumbi-me dos seus recados. Organizei suas festas. Sacrifiquei-me para lhes prestar favores. E o que lucrei com tudo isso? Nada, nada, nada.
Não há um deles que se importe que eu viva ou morra. Oh! que crueldade! – Elliott se pôs a chorar. Lágrimas grandes e pesadas correram-lhe pelas faces murchas. – Antes eu nunca tivesse saído da América!
Lamentável ver aquele velho, já com um pé na sepultura, chorar como uma criança por não ter sido convidado a uma festa; chocante, e ao mesmo tempo profundamente patético.
– Não se incomode, Elliott – disse eu. – Talvez chova na noite da festa. Isto escangalhará tudo.
Ele se agarrou às minhas palavras como o náufrago, de quem todos ouvimos falar, se agarrou à tabua de salvação. Começou a rir por entre as lágrimas.
– Não tinha pensado nisso. Rezarei para que chova, como até hoje não rezei. Você tem razão; escangalharia com tudo!
Falando de outros assuntos, consegui distrair sua mente frívola; quando parti, deixei-o, se não alegre, pelo menos bem mais sereno. Mas eu estava decidido a não permitir que a coisa ficasse nisso, de modo que, assim que cheguei em casa, telefonei a Edna Novemali, dizendo que tinha que ir a Cannes no dia seguinte e perguntando se podia ir almoçar em sua casa. Respondeu que teria muito prazer, mas que não haveria reunião. Apesar disso, quando lá cheguei encontrei dez pessoas, além da dona da casa. Não se podia dizer que Edna fosse má; era mesmo generosa e hospitaleira e seu único defeito grave era a sua língua venenosa. Não podia deixar de fazer comentários horríveis, mesmo a respeito de seus mais íntimos amigos, mas assim agia por ser muito pouco inteligente. Como suas frases venenosas eram geralmente repetidas, frequentemente ela estava de relações cortadas com as pessoas que tinham sido alvo de sua malícia; mas, como dava boas festas, depois de algum tempo quase todos achavam mais vantajoso perdoá-la. Eu não queria expor Elliott à humilhação de pedir a Edna que o convidasse à festa e esperei, portanto, para sondar o terreno. Ela estava animada com a perspectiva, e ao almoço não se falou em outra coisa.
– Elliott vai ficar encantado com a oportunidade de vestir sua fantasia de Filipe ii – disse eu com a maior despreocupação que me foi possível assumir.
– Não o convidei – disse ela.
– Por que não? – perguntei, fingindo surpresa.
– Por que havia eu de convidá-lo? Socialmente ele já não tem importância. E é um cacete, um esnobe, um linguarudo.
Uma vez que os qualificativos podiam igualmente ser aplicados a ela, achei aquilo um pouco forte. Idiota!
– Além disso, quero que Paul Barton use a fantasia de Elliott – continuou ela. – Há de lhe assentar divinamente.
Fiquei em silêncio, mas tomei a resolução de, custasse o que custasse, arranjar o convite pelo qual tanto suspirava o pobre Elliott. Depois do almoço Edna levou seus amigos para o jardim e tive assim a oportunidade desejada. Em certa ocasião eu ali me hospedara durante alguns dias e conhecia a disposição dos aposentos. Achei que deviam ter sobrado alguns convites e que estariam na sala da secretária. Escapuli para aquele lado, pretendendo enfiar um no bolso, escrever no envelope o nome de Elliott e mandá-lo em seguida pelo correio. Sabia que Elliott estava doente demais para comparecer, mas o fato de ser convidado teria suma importância para ele. Levei um choque quando, ao abrir a porta, dei com a secretária de Edna sentada à escrivaninha, pois a julgara ainda ao almoço. Era uma escocesa de meia-idade, chamada miss Keith, de cabelos cor de areia, rosto sardento, pincenê e ar de resoluta virgindade. Dominei-me.
– A princesa levou o grupo todo para o jardim, de modo que tive a ideia de vir fumar um cigarro com a senhora.
– À vontade.
Miss Keith falava com acentuada pronúncia escocesa e, quando condescendia em fazer uso do humor seco que reservava para os seus prediletos, chegava a fazer observações sumamente espirituosas; mas, quando a pessoa desatava a rir, ela a fitava com ar de consternada surpresa, como se a considerasse idiota por achar graça nos seus ditos.
– Com certeza a festa lhe está dando um trabalhão, miss Keith – disse eu.
– De fato. Nem sei para onde me virar.
Certo de que podia confiar nela, fui direto ao assunto.
– Por que é que a velha não convidou mr. Templeton? Miss Keith permitiu que um sorriso lhe abrandasse as feições.
– O senhor sabe como ela é. Tem uma queixa contra mr. Templeton. Ela mesma riscou o nome dele na lista.
– Elliott está morrendo, sabe. Não se levantará mais. Ficou sentidíssimo por ter sido excluído.
– Se ele queria continuar em bons termos de amizade com a princesa, devia ter tido a inteligência de não andar dizendo a todo mundo que ela dorme com o chofer. Ainda mais tendo ele mulher e três filhos.
– E ela dorme?
Miss Keith fitou-me por cima do pincenê.
– Sou secretária há vinte e um anos, prezado senhor, e sempre tive como norma acreditar que meus chefes são puros como a neve. Confesso que, quando uma de minhas patroas se viu grávida de três meses, tendo o lorde seu marido partido seis meses antes para caçar leões na África, minha fé sofreu rude golpe; mas ela fez uma viagenzinha a Paris, e uma viagenzinha bem cara, e tudo entrou nos eixos. Minha patroa e eu soltamos juntas um profundo suspiro de alívio.
– Miss Keith, não vim aqui para fumar um cigarro com a senhora. Vim surripiar um convite para mr. Templeton.
– Teria sido muito pouco escrupuloso da sua parte.
– De acordo. Seja camarada, miss Keith. Dê-me um convite.
Ele não virá, e isto irá causar enorme prazer ao pobre velho. A senhora não tem nada contra ele, tem?
– Não; sempre foi muito delicado comigo. É um cavalheiro; esta verdade eu digo dele – e é mais do que se pode dizer da maioria das pessoas que aqui vêm encher a pança à custa da princesa.
Todas as pessoas importantes têm, em sua companhia, um subordinado de confiança. Estes dependentes são muito susceptíveis e, quando não são tratados com a consideração a que se julgam com direito, com constantes e oportunas indiretas envenenam o espírito dos patrões contra as pessoas que incorreram no seu desagrado. Vale a pena a gente estar de bem com eles. Mais do que ninguém, Elliott sabia disso e sempre tinha uma palavra amável ou um sorriso cordial para o parente pobre, a velha ama, a secretária de confiança. Eu tinha certeza de que muitas vezes ele tagarelara agradavelmente com miss Keith, e que no Natal não se esquecera de lhe mandar uma caixa de chocolates, um porta-pó ou uma bolsa.
– Vamos lá, miss Keith, seja boazinha.
Miss Keith firmou mais ainda o pincenê no nariz proeminente.
– Tenho certeza de que o senhor não deseja que eu proceda deslealmente para com a minha patroa, mr. Maugham; além do mais, aquela vaca velha me despediria se descobrisse que lhe desobedeci. Os convites estão na escrivaninha, dentro dos envelopes. Vou até a janela, em parte para espichar as pernas, ameaçadas de câimbra pelo fato de eu estar sentada há muito tempo, e em parte para admirar a beleza do panorama. Pelo que acontecer enquanto eu estiver de costas, nem Deus nem as criaturas poderão responsabilizar-me.
Quando miss Keith voltou ao seu lugar, o convite estava no meu bolso.
– Tive muito prazer em vê-la, miss Keith – disse eu estendendo-lhe a mão. – De que pretende fantasiar-se na noite da festa?
– Sou filha de um ministro, prezado senhor – replicou ela. – Deixo essas futilidades para as classes elevadas. Depois de certificar-me de que aos representantes do Herald e do Mail foi servida uma boa ceia e uma garrafa do nosso champanhe de segunda, meu dever estará cumprido e procurarei o refúgio do meu quarto, para gozar as delícias de um romance policial.
8
Dois dias mais tarde, quando fui visitar Elliott, encontrei-o todo sorridente.
– Olhe aqui – disse ele. – Chegou o meu convite. Recebi-o hoje de manhã. – Tirou o cartão debaixo do travesseiro e mostrou-mo.
– Vê que eu tinha razão – repliquei. – Seu nome começa com T. Com certeza só agora a secretária chegou a esta letra.
– Ainda não respondi. Vou responder amanhã. Experimentei urna sensação de pânico ao ouvi-lo dizer isto.
– Não quer que eu responda por você? Posso pôr no correio, quando sair daqui.
– Não; que ideia foi esta? Sou muito capaz de responder eu mesmo aos meus convites.
Felizmente, pensei, os envelopes seriam abertos por miss Keith e ela teria a inteligência de dar um sumiço naquele. Elliott tocou a campainha e disse:
– Quero mostrar-lhe a minha fantasia.
– Você não pretende ir, Elliott?
– Claro que pretendo. Não a usei desde o baile dos Beaumont.
Joseph apareceu e Elliott lhe disse que trouxesse a fantasia. Veio em papel de seda, dentro de uma caixa larga e chata. Meias compridas de seda branca, calções acolchoados, em lamê dourado com listras de cetim branco, gibão combinando, uma capa, um rufo para ser usado à volta do pescoço, gorro chato de veludo, e uma longa corrente de ouro de onde pendia a ordem do Tosão de Ouro. Percebi que fora copiada da suntuosa vestimenta de Filipe 11, no retrato por Ticiano, que está no Museu do Prado; e, quando Elliott me disse que era exatamente o traje que o conde de Lauria usara no casamento do rei da Espanha com a rainha da Inglaterra, não pude deixar de refletir que ele estava dando asas à imaginação.
Na manhã seguinte, quando eu estava tomando o meu café, chamaram-me ao telefone. Era Joseph, para me avisar que Elliott tivera outro ataque durante a noite. O médico, chamado às pressas, duvidava de que ele passasse daquele dia. Pedi o carro e fui para Antibes. Encontrei Elliott inconsciente. Ele se opusera terminantemente a que chamassem uma enfermeira, mas fiquei satisfeito por encontrar uma a seu lado. Fora mandada pelo médico e viera do hospital inglês que havia entre Nice e Beaulieu. Saí para telefonar a Isabel; com Gray e as crianças, ela fora passar o verão na modesta praia de La Baule. A distância era grande e receei que eles não chegassem a tempo. A não ser pelos dois irmãos de Isabel, que fazia anos Elliott não via, era ela sua única parenta viva.
Mas o desejo de viver era intenso nele, ou talvez os remédios do médico tivessem produzido efeito – o fato foi que melhorou durante o dia. Apesar de profundamente abatido, procurou fazer-se de forte e divertiu-se importunando a enfermeira com perguntas indecentes sobre sua vida sexual. Passei com ele grande parte da tarde; no dia seguinte, ao voltar, encontrei-o bem mais alegre, se bem que bastante fraco. A enfermeira não me permitiu ficar muito tempo a seu lado. Eu estava aborrecido por não ter recebido resposta ao meu telegrama. Não sabendo qual o endereço de Isabel em La Baule, mandara-o para Paris e receei que a concierge tivesse demorado a reexpedi-lo. Somente dois dias mais tarde me veio a resposta: eles iam embarcar imediatamente. Por cúmulo do azar Isabel e Gray tinham ido fazer uma excursão pela Bretanha e só naquele momento tinham recebido o meu telegrama. Examinei o horário dos trens e vi que não poderiam chegar senão dali a trinta e seis horas.
No dia seguinte de manhã Joseph telefonou-me novamente, dizendo que Elliott passara muito mal a noite e desejava ver-me. Dirigi-me para lá apressadamente. Joseph chamou-me de lado.
– Monsieur vai me desculpar por tocar num assunto tão delicado – disse ele. – Sou, naturalmente, livre-pensador, e acho que a religião não passa de uma conspiração por parte dos padres para dominarem o povo, mas monsieur sabe como são as mulheres. Minha esposa e aos últimos sacramentos, e não há dúvida de que o tempo é curto. – Fitou-me, um tanto envergonhado, e continuou: – Além do mais, a gente nunca sabe, talvez seja preferível, antes de morrer, regularizar a situação com a Igreja.
Compreendi-o perfeitamente. Por mais que zombem da Igreja, quando chega a hora da morte geralmente os franceses preferem fazer as pazes com a religião que beberam com o leite materno.
– Deseja que eu lhe fale sobre isso?
– Se monsieur quisesse ter a bondade.
Não era tarefa agradável, mas afinal de contas Elliott fora durante anos fervoroso católico e era natural que se conformasse com os deveres da sua fé. Subi para vê-lo. Estava de costas, pálido e emurchecido, mas perfeitamente lúcido. Pedi à enfermeira que nos deixasse a sós.
– Infelizmente acho que você está muito mal, Elliott – disse-lhe eu. – Estive pensando, estive pensando se você não gostaria de ver um padre?
Ele me fitou em silêncio, durante alguns segundos. E depois:
– Quer dizer que vou morrer?
– Oh! espero que não. Mas é sempre bom a gente se garantir.
– Compreendo.
Ficou em silêncio. Momento terrível esse em que a gente tem que dizer a uma pessoa aquilo que eu acabara de dizer a Elliott. Não tive coragem de olhar para ele. Cerrei os dentes, pois tive medo de chorar. Estava sentado na beira da cama, de frente para ele, com o braço estendido para ampará-lo.
Ele deu-me um tapinha na mão.
– Não fique perturbado, caro amigo. Noblesse oblige, você sabe.
Ri histericamente.
– Você é uma criatura ridícula, Elliott.
– Agora sim. Chame o bispo e diga-lhe que quero confessar-me e receber a extrema-unção. Eu ficaria grato se ele me mandasse o abade Charles, que é meu amigo.
O abade Charles era o vigário-geral que já tive ocasião de mencionar. Desci e telefonei. Falei com o próprio bispo.
– É urgente? – perguntou ele.
– Muito.
– Providenciarei imediatamente.
O médico chegou e contei-lhe o sucedido. Ele subiu com a enfermeira para o quarto de Elliott e eu fiquei esperando no andar debaixo, na sala de jantar. Leva-se mais ou menos vinte minutos, de automóvel, de Nice a Antibes; dali a meia hora e pouco um sedan preto parou à porta. Joseph veio procurar-me.
– C’est monseigneur en personne, monsieur – disse ele, todo afobado. – É o próprio bispo.
Saí para recebê-lo. Não vinha, como de costume, acompanhado pelo vigário-geral e sim, não sei por quê, por um jovem padre que carregava um estojo que continha, creio eu, os objetos necessários à administração dos sacramentos. O chofer vinha em seguida, com uma surrada valise preta. O bispo me apertou a mão, apresentando o seu companheiro.
– Como vai o nosso pobre amigo?
– Infelizmente creio que está muito mal, monsenhor.
– Tenha a bondade de nos indicar um quarto, para nos paramentarmos.
– A sala de jantar fica aqui, monsenhor, e a sala de visitas no andar de cima.
– A sala de jantar servirá perfeitamente.
Levei-os até lá; Joseph e eu ficamos esperando no hall. Dali a pouco a porta abriu-se e o bispo apareceu, seguido pelo padre que segurava em ambas as mãos o cálice onde estava a pátena com a hóstia consagrada, coberta com um pano de cambraia tão fino que chegava a ser transparente. Eu nunca vira o bispo a não ser em algum almoço ou jantar, e ótimo garfo era ele, sabendo apreciar um petisco e um bom vinho, e contando com muito espírito histórias engraçadas e às vezes até mesmo imorais. Então me parecera um homem forte, atarracado, de estatura mediana. Mas agora, de sobrepeliz e estola, achei-o não somente alto, mas imponente. O rosto vermelho, em geral enrugado por um riso malicioso, mas afável, tinha agora uma expressão grave. Nada na sua aparência lembrava o oficial de cavalaria que ele fora; dava impressão de ser aquilo que realmente era, um dos grandes dignitários da Igreja. Não me admirei de ver Joseph fazer o sinal da cruz. O bispo inclinou ligeiramente a cabeça.
– Conduzam-me ao quarto do doente – disse.
Afastei-me para lhe dar passagem, mas ele fez sinal para que eu o precedesse. Subimos em solene silêncio. Entrei no quarto de Elliott.
– Foi o próprio bispo quem veio, Elliott. Ele fez um esforço para sentar-se.
– Monsenhor, não ousei esperar tão grande honra.
– Fique à vontade, meu amigo – disse o bispo. Virou-se para a enfermeira e para mim: – Deixe-nos. – E dirigindo-se ao padre: – Eu o chamarei quando estiver pronto.
O padre olhou à volta e percebi que estava procurando um lugar para depositar o cálice. Empurrei para um lado as escovas de tartaruga que estavam sobre o penteador. A enfermeira desceu e eu levei o padre para o quarto contíguo, que Elliott usava como escritório. As janelas ali estavam abertas para o céu azul; ele aproximou-se de uma delas. Sentei-me. Havia uma corrida de barcos e o branco das velas rebrilhava ao sol. Uma grande escuna de casco negro e velas vermelhas lutava contra a brisa, em direção à baía. Vi que era um barco de lagostas, trazendo um carregamento da Sardenha, para que os jantares de gala, nos cassinos, tivessem o seu prato de peixe. Através da porta fechada, eu distinguia um abafado murmúrio de vozes. Elliott confessava-se. Eu estava louco por um cigarro, mas fiquei com medo de escandalizar o padre. Ele continuava imóvel, olhando para fora. Rapaz delgado, de grossos e ondulados cabelos negros que lhe traíam a origem italiana. Havia no seu aspecto a vivacidade da gente do Sul, e fiquei a imaginar que fé poderosa, que intenso desejo o tinham induzido a abandonar as alegrias da vida cotidiana, os prazeres próprios da sua idade e a satisfação dos sentidos para dedicar-se ao serviço de Deus.
Subitamentet as vozes do quarto contíguo calaram-se; a porta abriu-se e o bispo apareceu.
– Venha – disse ele ao padre.
Fiquei só. De novo ouvi a voz do bispo e percebi que ele estava recitando as orações que a Igreja ordena sejam ditas à cabeceira dos agonizantes. Depois, novo silêncio; compreendi que Elliott estava recebendo o Corpo e o Sangue de Jesus. Devido a não sei que sentimento, herança talvez dos meus antepassados, embora não seja católico nunca posso assistir à missa sem experimentar, ao ouvir a campainha que anuncia a Elevação da Hóstia, uma trêmula sensação de temor; e também agora estremeci, como se tivesse sentido um calafrio – estremeci de medo e admiração. De novo a porta abriu-se.
– Pode entrar – disse-me o bispo.
Entrei. O padre estava cobrindo, com a pala, o cálice e a pátena onde estivera a hóstia consagrada. Os olhos de Elliott luziam.
– Acompanhe o monsenhor até o carro – disse ele. Descemos as escadas. Joseph e as criadas esperavam no hall.
As mulheres choravam. Eram três; adiantaram-se, cada uma por sua vez e, caindo de joelhos, beijaram o anel do bispo. Ele as abençoou com dois dedos. A mulher de Joseph deu no marido uma cotovelada e também ele deu um passo à frente, ajoelhou-se e beijou o anel. O bispo sorriu levemente.
– Você é livre-pensador, meu filho?
Percebi que Joseph fazia um esforço sobre si mesmo.
– Sim, monsenhor.
– Não se perturbe por isso. Você foi um bom e fiel servo.
Deus relevará os erros do seu modo de pensar. Acompanhei o bispo até a rua e abri a porta do seu carro. Ele inclinou a cabeça e, ao entrar, sorriu com indulgência.
– Nosso pobre amigo está muito mal. Seus defeitos eram superficiais; tinha um coração generoso e foi bom para seus semelhantes.
9
Achando que, depois da cerimônia, Elliott havia de preferir ficar só, dirigi-me para a sala de visitas e comecei a ler; mas, nem bem me instalara, apareceu a enfermeira dizendo que ele desejava ver-me. Subi até o seu quarto. Não sei se graças a uma injeção que o médico lhe dera para ajudá-lo na provação por que teria de passar, ou se devido à excitação, encontrei-o calmo, alegre e de olhos cintilantes.
– Uma grande honra, caro amigo, uma grande honra – disse ele. – Entrarei no reino dos céus com uma carta de apresentação de um príncipe da Igreja. Creio que todas as portas se me abrirão.
– Receio que você vá encontrar ali certa mistura –
repliquei sorrindo.
– Não tenha essa ilusão, caro amigo. Diz a Sagrada Escritura que, assim como na terra, existem distinções de classe no céu. Há serafins e querubins, anjos e arcanjos. Sempre frequentei a melhor sociedade da Europa e tenho certeza de que o mesmo se dará no céu. Nosso Senhor disse: “A Casa de meu Pai tem muitas mansões”. Não seria nada correto alojar o hoi polloi num estilo a que não está habituado.
Desconfiei que Elliott considerava as habitações celestiais como uma espécie de castelo de algum barão de Rothschild, com painéis do século xviii nas paredes, mesas Buhl, cômodas entalhadas e apartamentos em estilo Luís xv cobertos com legítimo petit-point. Depois de uma pausa ele continuou:
– Acredite-me, caro amigo, não haverá nenhuma dessa maldita igualdade no céu.
Caiu em repentina sonolência. Sentei-me e comecei a ler. Ele continuou dormindo. À uma hora a enfermeira apareceu para me avisar que Joseph ia servir o meu almoço. Encontrei Joseph muito humilde.
– Imagine, monsenhor vir em pessoa. Grande honra conferida ao nosso pobre patrão. O senhor me viu beijar o anel?
– Vi.
– Por mim não o teria beijado: fiz isso para contentar minha pobre esposa.
Passei a tarde no quarto de Elliott. Veio telegrama de Isabel, avisando que ela e Gray chegariam na manhã seguinte, pelo Trem Azul. Não tive esperança de que chegassem a tempo. O médico apareceu. Sacudiu a cabeça. Lá pelo cair da tarde, Elliott acordou e conseguiu comer alguma coisa, parecendo com isto criar momentânea força. Fez sinal para que eu me aproximasse da cama.
– Ainda não respondi ao convite de Edna – disse em voz sumida.
– Oh! não se incomode com isso agora, Elliott.
– Por que não? Sempre fui mundano; não há motivo para esquecer as boas maneiras só porque vou deixar o mundo. Onde está o convite?
Estava sobre a lareira; coloquei-o na mão de Elliott, mas não creio que o pudesse ver.
– Você encontrará um bloco no escritório. Se quiser ir buscá-lo, poderei ditar-lhe a minha resposta.
Fui ao quarto e voltei com o bloco e um lápis. Sentei-me na beirada da cama.
– Está pronto?
– Estou.
Elliott tinha os olhos fechados, mas havia nos seus lábios um sorriso malicioso. O que iria ele dizer?
– Mr. Elliott Templeton lamenta não poder aceitar o amável convite da princesa Novemali, devido a um prévio compromisso com o seu Bem-Amado Senhor.
Deu uma risada rouca, espetral. Seu rosto tinha uma cor azulada, horrível de se ver, e ele exalava o odor nauseabundo próprio da sua moléstia. Pobre Elliott, que tanto gostava de se borrifar com os perfumes de Chanel e Molyneux! Ainda tinha na mão o convite furtado; temendo que o estivesse incomodando, tentei retirá-lo, mas Elliott segurou-o com mais força ainda. Sobressaltei-me ao ouvi-lo falar em voz alta.
– Aquela vaca velha.
Foram as últimas palavras que pronunciou. Caiu em estado de coma. A enfermeira permanecera a seu lado durante toda a noite anterior e parecia muito cansada; mandei-a para a cama, dizendo que ficaria com Elliott e prometendo chamá-la caso fosse necessário. Não havia realmente nada que se pudesse fazer. Acendi um abajur e li até meus olhos arderem; apaguei-o depois e fiquei sentado no escuro. Era uma noite quente e as janelas estavam completamente abertas. Com intervalos regulares a luz do farol varria o quarto com passageiro brilho. A lua – que dias mais tarde, quando cheia, iria iluminar a ruidosa e fátua alegria do baile de Edna Novemali – firmou-se no céu de um azul profundo, profundíssimo, onde inúmeras estrelas brilhavam com seu terrífico fulgor. Devo ter cochilado, mas meus sentidos continuaram atentos; subitamente acordei por completo ao ouvir um som apressado, raivoso, o mais apavorante som que uma pessoa possa ouvir: o estertor da morte. Aproximei-me da cama e à luz do farol tomei o pulso de Elliott. Estava morto. Acendi o abajur da cabeceira e olhei-o. O maxilar caíra. Os olhos estavam abertos e, antes de fechá-los, observei-os por alguns instantes. Eu estava comovido e creio que algumas lágrimas me correram pelas faces. Velho e bom amigo. Entristeci-me ao pensar como sua vida fora tola, vazia e inútil. Pouca importância tinha agora o fato de ter ele ido a tantas festas e convivido com todos aqueles príncipes, duques e condes. Já se tinham esquecido dele por completo.
Não achei necessário acordar a enfermeira e voltei, portanto, para a minha cadeira perto da janela. Quando ela apareceu, às sete da manhã, encontrou-me dormindo. Deixei-a, para que fizesse aquilo que achasse necessário e depois de tomar o meu café fui à estação, esperar Gray e Isabel. Contei-lhes que Elliott morrera e, como não havia lugar em sua casa, convidei-os para se hospedarem comigo, mas eles preferiram ir para um hotel. Voltei para minha casa, para tomar banho, fazer a barba e trocar de roupa.
No período da manhã Gray me telefonou, dizendo que Joseph lhe entregara uma carta a mim endereçada, que Elliott lhe confiara. Como podia haver nela algo de confidencial, respondi que iria imediatamente para lá. Fui. No envelope estava escrito: Para ser entregue logo após a minha morte, e a carta dava instruções sobre o enterro. Eu sabia que Elliott desejava ardentemente ser sepultado na igrejinha por ele construída, e já prevenira Isabel disso. Ele queria ser embalsamado e indicava que firma devia encarregar-se do serviço. “Indaguei a respeito”, continuava ele, “e informaram-me que eles trabalham muito bem. Confio em você, para verificar que tudo saia benfeito. Desejo que me vistam o traje do meu antepassado, o conde de Lauria, com a espada do lado e a Ordem do Tosão de Ouro no meu peito. Deixo a seu gosto a escolha do caixão. Deverá ser simples, mas adequado à minha posição. A fim de não causar desnecessário incômodo, desejo que Thomas Coock and Son se encarreguem do transporte do meu caixão, e que um dos seus empregados acompanhe meus restos mortais à sua derradeira morada.”
Lembrei-me de que Elliott dissera que desejava ser enterrado naquela sua fantasia, mas julguei tratar-se de capricho passageiro e nunca pensei que falasse seriamente. Joseph insistia em que seus desejos fossem cumpridos à risca e não vi motivo para agirmos contrariamente a eles. O corpo foi devidamente embalsamado; depois fui com Joseph vesti-lo com aqueles trajes absurdos. Lúgubre tarefa. Calçamos nas pernas compridas as meias de seda branca, puxando sobre elas os calções dourados. Foi com grande dificuldade que lhe enfiamos o gibão. Colocamos no pescoço o rufo engomado, ajeitamos a capa de cetim em volta dos ombros. Finalmente, na cabeça, o barrete de veludo, e em volta do pescoço o colar do Tosão de Ouro. O embalsamador lhe pintara as faces e os lábios. Naqueles trajes, agora grandes demais para o seu corpo emaciado, Elliott parecia um corista de uma das primeiras óperas de Verdi. Pobre Dom Quixote com o seu ideal vazio! Depois que os homens da agência funerária o puseram no caixão, coloquei entre as pernas, ao longo do corpo, a espada e no punho da espada as mãos de Elliott, a exemplo do que eu vira no túmulo esculpido de um cruzado.
Gray e Isabel foram para a Itália, assistir ao enterro.
Seis
Seis
1
Acho justo avisar o leitor que pode perfeitamente pular este capítulo sem perder o fio do pouco de romance que tenho para contar, pois na maior parte ele não passa da repetição de uma conversa que tive com Larry. Devo no entanto acrescentar que, não fosse por essa conversa, talvez eu não tivesse achado que valesse a pena escrever este livro.
2
No outono, alguns meses depois da morte de Elliott, passei uma semana em Paris, antes de ir para a Inglaterra. Depois da lúgubre viagem à Itália, Gray e Isabel tinham voltado para a Bretanha, mas estavam agora novamente instalados no apartamento da Rue St. Guillaume. Isabel contou-me os termos do testamento. Elliott determinara que reservassem certa quantia para que fossem ditas missas em prol de sua alma, na igrejinha por ele construída, e outra soma para a conservação da referida igreja. Deixara ao bispo de Nice um belíssimo legado, para ser aplicado em obras de caridade. Quanto a mim, deixou-me a duvidosa herança de sua biblioteca pornográfica do século xviii, e um belo desenho de Fragonard, representando um sátiro e uma ninfa entretidos num ato que é geralmente feito na intimidade. Era indecente demais para eu pendurar numa das paredes de minha casa, e não sou homem de me deleitar com obscenidades clandestinamente. Fora generosíssimo com os criados. Quanto aos sobrinhos, herdavam dez mil dólares cada um; o resto da fortuna ia para Isabel. Ela não me disse quanto era, nem lhe perguntei, mas pela sua atitude complacente percebi que devia ser muito dinheiro.
Já fazia tempo, desde que recuperara a saúde, que Gray estava ansioso por voltar para a América e recomeçar a trabalhar; embora Isabel se sentisse bem em Paris, a inquietação de Gray acabara por afetá-la. Durante meses mantivera ele correspondência a esse respeito com amigos, mas o melhor negócio que lhe fora oferecido dependia de grande entrada de capital. Ele não dispunha desse dinheiro, mas, com a morte de Elliott, Isabel herdara muito mais do que era necessário, e com o seu consentimento Gray entabulara o negócio, pretendendo, se tudo corresse como esperava, ir pessoalmente à América estudar de perto o assunto. Mas antes disso havia muito que fazer. Tinham chegado a um acordo razoável com o governo francês sobre os impostos de transmissão causa mortis. Precisavam dispor da casa de Antibes e do apartamento da Rue St. Guillaume. Tinham de providenciar a venda, no Hotel Drouot, da mobília, quadros e desenhos de Elliott. Como eram valiosos, seria preferível esperar até a primavera, quando havia a probabilidade de os grandes colecionadores se acharem em Paris. Isabel não desgostou de ter que passar mais um inverno ali; suas filhas falavam, agora, o francês tão corretamente quanto o inglês, e agradava-lhe a ideia de vê-las frequentar durante mais alguns meses uma escola francesa. As duas meninas tinham crescido em três anos e eram agora duas criaturas magras, muito vivas, de pernas compridas, que no presente nada tinham da beleza da mãe; bem-educadas e de uma insaciável curiosidade.
Por enquanto, é só.
3
Encontrei-me com Larry por acaso. Pedira notícias suas a Isabel e ela me contara que pouco o tinham visto depois de voltar de La Baule. Isabel e Gray tinham agora um bom círculo de relações, gente da sua idade, e estavam muito mais comprometidos do que naquelas agradáveis semanas em que nós quatro saíamos tanto juntos. Certa noite fui ao Théâtre Français ver Bérénice. Já lera a peça, naturalmente, mas nunca a vira representada; e como é raramente levada ao palco não quis perder essa oportunidade. Não é das melhores peças de Racine, pois o assunto é fraco para se aguentar durante cinco atos; mas é comovente e há nela certos trechos merecidamente famosos. A história baseia-se numa breve passagem de Tácito: – Tito, que amava loucamente Bérénice, rainha da Palestina, tendo mesmo, segundo se julgava, chegado a prometer-lhe casamento, por razões de estado mandara-a embora de Roma nos primeiros dias do seu reinado, e isto contra o desejo de ambos. O Senado e o povo de Roma opunham-se violentamente à união do seu imperador com uma rainha estrangeira. A peça descreve a luta travada no coração do homem entre o amor e o dever e, quando no fim ele fraqueja, é Bérénice quem, certa de que é amada, reforça a resolução do imperador, separando-se dele para sempre.
Creio que somente um francês pode apreciar devidamente a graça e a grandeza de Racine, a música dos seus versos; mas, mesmo um estrangeiro, depois que se habitua à formalidade artificial do estilo, não pode deixar de se comover com a sua apaixonada ternura e a nobreza do seu modo de sentir. Racine conhecia, como poucos, o poder dramático da voz humana. Para mim, pelo menos, o som daqueles melífluos alexandrinos é suficiente substituto da ação; acho os longos discursos, elevando-se com infinita habilidade até o esperado ponto culminante, tão emocionantes como qualquer arrepiadora fita de aventuras.
No intervalo, depois do terceiro ato, saí para fumar um cigarro no foyer onde se vê o Voltaire de Houdon, com seu desdentado e sardônico sorriso. Alguém me bateu no ombro. Virei-me, talvez com ligeiro movimento de desagrado, pois desejava ficar só para gozar a exaltação que me tinham causado os versos sonoros, e dei com Larry. Senti, como sempre, prazer em vê-lo. Fazia um ano que não nos encontrávamos e sugeri tomarmos uma cerveja juntos, depois do espetáculo. Larry disse que estava com fome, pois não jantara, e propôs irmos a Montmartre. Conseguimos nos encontrar sem grande dificuldade e saímos para o ar livre. O Théâtre Français tem um odor de mofo que lhe é peculiar, impregnado do cheiro daquelas incontá-veis gerações de mulheres de rosto azedo e pouco asseio, chamadas ouvreuses, que nos mostram o nosso lugar e ficam imperiosamente à espera da gorjeta. Foi um alívio sair dali; como estava fresco, fomos a pé. As lâmpadas da Avenue de l’Opéra brilhavam tão desafiadoramente que as estrelas lá em cima, orgulhosas demais para entrarem em competição, embaçaram seu brilho, protegidas pela infinita distância. Enquanto caminhávamos, fomos discutindo a peça a que acabávamos de assistir. Larry mostrou-se decepcionado. Gostaria que tivessem sido mais naturais os versos recitados em tom habitual, os gestos menos teatrais. Não concordei. Tratava-se de retórica, magnífica retórica, e eu era de opinião que devia ser recitada retoricamente. Agradava-me a cadência regular das rimas; e o apuro dos gestos, conservados pela tradição, parecia de acordo com aquela arte formal. Não pude deixar de refletir que era assim que Racine desejaria que sua peça fosse representada. Eu admirara a maneira com que os atores tinham conseguido ser humanos, apaixonados e sinceros, dentro dos limites em que se viam encerrados. A arte triunfa quando consegue servir-se do convencionalismo em benefício próprio.
Chegamos à Avenue de Clichy e entramos na Brasserie Graf. Já passava de meia-noite e o restaurante estava repleto, mas conseguimos arranjar uma mesa e encomendamos ovos com toucinho. Contei a Larry que vira Isabel.
– Gray vai ficar satisfeito de poder voltar para a América – disse ele. – Aqui é como um peixe fora d’água. E não se sentirá feliz, a não ser que recomece a trabalhar. Garanto que ainda vai ganhar muito dinheiro.
– Será então graças a você, que não somente o curou no físico, mas no espírito também. Fez com que tivesse de novo confiança em si.
– Fiz muito pouco. Apenas lhe mostrei como poderia curar-se a si próprio.
– Como aprendeu esse “pouco”?
– Acidentalmente. Na Índia. Estava sofrendo de insônia e por acaso mencionei o fato a um iogue meu conhecido e ele me disse que logo daria um jeito nisso. Fez exatamente o que você me viu fazer com Gray; naquela noite dormi como havia meses não dormia.
E então, um ano mais tarde, creio, estava eu no Himalaia com um meu amigo, um hindu, quando ele torceu o tornozelo. Impossível conseguir-se médico e ele estava sofrendo muito. Lembrei-me de experimentar aquilo que o iogue fizera comigo. Deu resultado. Acredite-me você ou não, a dor lhe passou por completo. – Larry riu e continuou: – Garanto que ninguém ficou mais admirado do que eu. Não é nada de extraordinário; basta meter a ideia na cabeça da pessoa que está sofrendo.
– É mais fácil dizer do que fazer.
– Você estranharia se o seu braço se erguesse da mesa sem nenhuma intervenção da sua vontade?
– Muitíssimo.
– Pois vai levantar-se. Quando voltamos aos meios civilizados, meu amigo hindu contou o sucedido e trouxe muita gente para ver-me. Era-me suavemente desagradável fazer aquilo, pois eu não entendia muito bem o que se passava, mas eles insistiam. De um jeito ou de outro consegui ajudá-los. Verifiquei que podia livrá-los não somente da dor, mas do medo. Esquisito quanta gente sofre disso! Não me refiro somente a medo de espaços fechados e medo das alturas, mas medo da morte e, mais grave ainda, medo da vida. Às vezes encontramos pessoas que parecem de ótimo estado de saúde, prósperas, sem nenhuma preocupação, e que no entanto se acham torturadas por esse medo. Cheguei mesmo a acreditar que era a coisa mais comum nas criaturas, e certa vez perguntei a mim mesmo se não teria origem em algum profundo instinto animal, que o homem herdou daquele “não-sei-quê” primevo que pela primeira vez sentiu a vibração da vida.
Eu ouvia interessado e em expectativa, pois era raro Larry estender-se sobre um assunto, e pareceu-me que, pelo menos por sua vez, estava de humor expansivo. É possível que a peça que acabáramos de ver tivesse libertado alguma inibição e que, assim como acontece com a música, as cadências sonoras lhe tivessem vencido a instintiva reserva. Subitamente percebi que alguma coisa estava acontecendo com a minha mão. Não dera importância à pergunta meio brincalhona de Larry, mas agora senti que minha mão já não estava apoiada na mesa, tendo-se erguido uma polegada acima dela, sem interferência da minha vontade. Sobressaltei-me. Baixei os olhos e vi que ela estava ligeiramente trêmula. Senti um estranho formigueiro nos nervos do braço, um leve tranco, e minha mão e antebraço se ergueram por si mesmos, sem que, pelo menos foi o que pensei, eu ajudasse ou resistisse, ficando várias polegadas acima da mesa. Depois senti erguer-se todo braço, desde o ombro.
– Que coisa esquisita! – comentei.
Larry riu. Fiz um pequeno esforço de vontade e meu braço caiu de novo sobre a mesa.
– Não é nada – disse ele. – Não dê a menor importância ao fato.
– Aprendeu isto com o iogue de quem nos falou ao voltar da Índia?
– Oh! não; ele não tinha paciência com essas coisas. Não sei se se julgava possuidor dos poderes que alguns iogues garantem ter, mas teria achado pueril usá-los.
Os ovos com toucinho chegaram. Comemos com apetite. Tomamos a nossa cerveja. Nenhum de nós dois falou. Larry pensava não sei em quê, e eu pensava nele. Acabamos. Acendi um cigarro e Larry o seu cachimbo.
– Por que foi que, em primeiro lugar, pensou em ir à Índia? – perguntei à queima-roupa.
– Por acaso. Pelo menos assim o julguei na ocasião. Agora estou achando que foi o inevitável resultado dos anos que passei na Europa. Parece-me que conheci por acaso quase todas as pessoas que mais me interessavam, e no entanto, olhando o passado, tenho a impressão de que tais encontros tinham que se dar. Como se essas pessoas estivessem esperando a minha visita quando precisei delas. Fui à Índia porque queria descansar. Trabalhara muito e desejava coordenar meus pensamentos. Arranjei um lugar de marujo num desses navios de recreio que fazem a volta ao mundo. Íamos para o Oriente e depois para Nova York, pelo Canal do Panamá. Fazia cinco anos que não ia à América e estava com saudade. Sentia-me deprimido. Você se lembra de como eu era ignorante, quando nos conhecemos em Chicago, há tantos anos ja... Eu lera muito, na Europa, e vira muita coisa, mas em nada me achava mais próximo daquilo que buscava.
Tive vontade de perguntar a Larry o que buscava ele, mas achei que daria uma risada, encolheria os ombros e diria que era coisa sem importância.
– Mas por que motivo foi como marujo? – perguntei. – Você tinha dinheiro.
– Pela experiência. Todas as vezes que me senti saturado espiritualmente, todas as vezes que assimilei tudo o que me foi possível assimilar na ocasião, achei útil fazer qualquer coisa nesse gênero. No inverno seguinte ao rompimento do meu noivado com Isabel, trabalhei durante seis meses numa mina de carvão, perto de Lens.
Foi aí que me contou aqueles fatos que narrei num capítulo anterior.
– Ficou desgostoso quando Isabel desmanchou o noivado?
Antes de responder, Larry me fitou com aqueles seus estranhos olhos negros, que neste momento tinham uma expressão introspectiva.
– Fiquei. Era muito moço. Estava resolvido a casar-me com ela. Tinha planejado a vida que íamos levar juntos. Achava que ia ser ótima. – Ele riu de mansinho. – Mas são precisos dois para um casamento, assim como são precisos dois para uma briga. Nunca me ocorreu que a vida que eu oferecia a Isabel fosse uma vida que a enchesse de consternação. Se eu tivesse um pouco de perspicácia, nunca teria feito tal proposta. Ela era moça demais e muito ardente. Não me era possível culpá-la. Não me era possível ceder.
Talvez o leitor se lembre que, ao fugir da fazenda, depois do grotesco encontro com a nora-viúva, Larry fora para Bonn. Eu estava ansioso por ouvir o resto, mas sabia que, na medida do possível, devia evitar perguntas diretas.
– Nunca estive em Bonn – comentei. – Quando rapazinho estudei durante algum tempo em Heidelberg. Creio que foi a época mais feliz da minha vida.
– Gostei de Bonn – disse Larry. – Passei lá um ano. Arranjei quarto na casa da viúva de um dos professores da Universidade, que tomava dois pensionistas. Ela e as duas filhas, ambas já maduras, cozinhavam e faziam todo o serviço. A princípio fiquei decepcionado ao ver que o outro pensionista era francês, pois eu só queria falar alemão; mas ele era alsaciano e falava o alemão, se não correntemente, pelo menos com melhor pronúncia do que o francês. Vestia-se como um pastor alemão e fiquei admirado quando, dias mais tarde, soube que era um monge beneditino. Obtivera licença para sair do mosteiro para fazer certas pesquisas na biblioteca da universidade. Era muito culto, mas não se julgaria isso pela sua aparência, a qual também não correspondia à ideia que eu fazia de um monge. Era um sujeito alto, forte, com cabelos cor de areia, olhos azuis meio saltados, rosto redondo e vermelho. Era tímido e reservado e parecia não querer saber de amizade comigo, mas era muito cortês, num estilo um tanto complicado; à mesa tomava civilmente parte na conversa. Era onde eu o via; assim que acabávamos de jantar ele voltava ao seu trabalho, na biblioteca; depois da ceia, enquanto eu ficava na sala a praticar o meu alemão com qualquer das filhas que estivesse livre no momento, ele se retirava para o quarto.
Fiquei admirado quando, mais ou menos um mês depois de eu ter chegado a Bonn, certa tarde ele me convidou para um passeio a pé. Disse que me poderia mostrar na vizinhança lugares que provavelmente eu nunca viria a descobrir sozinho. Sou bom andarilho, mas o monge ganharia de mim a qualquer hora. Creio que caminhamos no mínimo vinte e cinco quilômetros naquele primeiro dia. Perguntou-me que fazia eu em Bonn e respondi que viera para aprender alemão e um pouco da literatura alemã. Ele conversava inteligentemente. Disse que teria prazer em ajudar-me no que lhe fosse possível. Depois disso, saíamos duas ou três vezes por semana para passeios a pé. Fiquei sabendo que ele ensinara filosofia durante alguns anos. Em Paris eu lera um pouco sobre isto, Spinoza, Platão e Descartes, mas nada acerca dos grandes filósofos alemães; era pois com prazer que o ouvia discorrer sobre eles. Certo dia, depois de termos feito urna excursão ao outro lado do Reno, enquanto tomávamos uma cerveja num bar ao ar livre ele me perguntou se eu era protestante.
– Creio que sim – respondi.
O monge me atirou um rápido olhar onde distingui a sombra de um sorriso. Começou a falar de Ésquilo; eu estudara grego e vi que ele conhecia os grandes trágicos como jamais tive esperança de os conhecer. Que prazer ouvi-la! Por que me teria feito aquela pergunta? Meu tutor, o tio Bob Nelson, era agnóstico, mas ia regularmente à igreja, pois seus clientes esperavam isso dele; pela mesma razão mandava-me no domingo à aula de religião. Martha, a nossa empregada, era uma rígida batista e costumava amedrontar-me, quando criança, falando do fogo do inferno a que os pecadores seriam condenados por toda a eternidade. Sentia verdadeiro prazer em descrever-me os sofrimentos reservados a várias pessoas da aldeia que, por um motivo ou outro, tinham incorrido no seu desagrado.
Quando chegou o inverno eu já conhecia bem o padre Ensheim. Creio que era um homem extraordinário. Nunca o vi de mau humor. Tinha bom gênio, era afável, de ideias muito mais largas do que se podia supor, e infinitamente tolerante. Sua erudição era prodigiosa e ele devia ter percebido como eu era ignorante, mas conversava comigo como se minha cultura fosse igual à sua. Muito paciente; parecia não ter outro desejo que o de me ser útil. Certo dia, não sei por quê, tive um ataque de lumbago; frau Grabau, a dona da casa, insistiu em mandar-me para a cama, rodeado de bolsas de água quente. Tendo sabido que eu estava deitado, depois da ceia o padre Ensheim subiu para ver-me. A não ser pela dor, eu me sentia bem. Você sabe como são essas pessoas muito lidas – curiosas, em se tratando de livros; quando larguei o meu, ao ver entrar o padre, este apanhou-o para olhar o título. Era uma obra de Meister Eckhart, que eu encontrara numa das livrarias da cidade. Perguntou-me por que estava eu lendo aquela obra; contei-lhe então que andava interessado em literatura mística, e falei-lhe de Kosti, que despertara a minha curiosidade sobre o assunto. Ele me fitou com seus olhos saltados, e havia neles uma expressão que só posso descrever como ternura divertida. Pareceu-me que me achava um tanto ridículo, mas que a afeição que sentia por mim era tão grande que isto em nada a alterava. Além do mais, nunca me importei que os outros me achassem meio tolo.
“O que está procurando nesses livros?”, perguntou-me.
“Se eu soubesse, estaria pelo menos no meio do caminho.” “Lembra-se de que lhe perguntei se você era protestante? Você respondeu que achava que sim. Que queria dizer com isto?” “Fui educado na religião protestante”, respondi.
“Você acredita em Deus?”
– Não gosto de perguntas pessoais e meu primeiro impulso foi dizer que isso não era da sua conta. Mas ele irradiava tanta bondade que não tive coragem de ofendê-lo. Fiquei sem saber o que responder. Não queria dizer “não” nem tampouco “sim”. Não sei se devido à dor que eu sentia, ou porque havia nele qualquer coisa, comecei a falar... Contei-lhe tudo a meu respeito.
Larry hesitou por um momento e, quando continuou, percebi que não se dirigia a mim e sim ao monge beneditino. Esquecera-se da minha presença. Não sei se devido à ocasião ou ao ambiente, sua reserva natural quebrou-se, permitindo-lhe falar, sem que eu o atiçasse, de coisas que até então guardara só para si.
– O tio Nelson era muito democrata e me pôs na escola pública de Marvin. Somente por insistência de Louisa Bradley foi que, quando completei catorze anos, me deixou ir para St. Paul. Eu não sobressaía nem nos estudos nem no esporte, mas dei-me muito bem lá. Creio que era um menino perfeitamente normal. Louco por aviação. Voava-se pouco, naqueles primeiros tempos, e o tio Bob estava tão entusiasmado quanto eu. Conhecia alguns dos aviadores e disse-me que, se eu quisesse aprender a voar, ele daria um jeito. Eu era alto para a idade; aos dezesseis anos podia perfeitamente passar por dezoito. O tio Bob me fez prometer segredo, pois sabia que todo mundo o criticaria, mas ajudou-me a ir para o Canadá, entregando-me uma carta de apresentação para um seu conhecido. O resultado foi que, aos dezessete anos, eu estava voando na França.
Os aviões que pilotávamos eram muito frágeis e cada vez que subíamos arriscávamos, por assim dizer, a vida. Comparadas com as de hoje, as alturas que atingíamos eram absurdas, mas naquele tempo era assim, e achávamos uma maravilha. Eu gostava de voar. Não teria sido capaz de descrever a sensação que me causava; sabia apenas que me sentia orgulhoso e feliz. No ar, bem alto, eu sentia que fazia parte de alguma coisa muito grande e muito bela. Não sabia do que se tratava; sabia apenas que, a seiscentos metros de altura, não estava mais só, embora desacompanhado, sentia que estava no meu elemento. Não é culpa minha se isto parece tolice. Quando voava sobre as nuvens, que lá embaixo pareciam enormes rebanhos de ovelhas, eu me sentia em casa com a imensidade.
Larry fez uma pausa. Olhou-me lá das covas dos seus olhos impenetráveis, mas não sei se me teria visto.
– Sabia que centenas de milhares de homens haviam morrido, mas eu não os vira morrer. Isto não me atingia grandemente. Depois vi um morto, com meus próprios olhos. Aquilo me encheu de vergonha.
– Vergonha? – exclamei involuntariamente.
– Vergonha, sim, porque aquele rapaz, apenas três ou quatro anos mais velho do que eu, que tivera tanta energia e coragem, que momentos antes dera provas de tão grande vitalidade, que fora tão bom, não passava agora de carne lacerada que parecia nunca ter vivido.
Fiquei calado. Quando estudante de medicina eu vira muitos cadáveres, e durante a guerra mais ainda. O que mais me consternara fora notar como eles pareciam insignificantes. Não tinham dignidade. Fantoches que o dono do espetáculo atirara fora.
– Aquela noite não dormi. Chorei. Não estava com medo, e sim indignado; o que mais me abateu foi a maldade de tudo aquilo. A guerra acabou e voltei para casa. Sempre gostara de mecânica e, se não houvesse lugar para mim na aviação, pretendia ir trabalhar numa fábrica de automóveis. Fora ferido e tinha que levar tudo na calma durante algum tempo. Depois eles quiseram que eu arranjasse emprego. Impossível aceitar o tipo de trabalho que me ofereciam. Parecia-me inútil. Eu tivera muito tempo para refletir; perguntava frequentemente a mim mesmo qual seria a finalidade da vida. Pensando bem, era por acaso que eu estava vivo; queria fazer alguma coisa da minha em Deus; agora ele começou a preocupar-me. Não podia compreender a razão da existência do mal no mundo. Sabia que eu era muito ignorante; queria aprender, mas não tinha a quem recorrer, de modo que comecei a ler ao acaso.
Quando contei tudo isto ao padre Ensheim, ele me perguntou: “Está então lendo há quatro anos? Aonde chegou?”.
“A parte alguma”, respondi.
– Ele me fitou com ar de tão radiante benevolência que fiquei desconcertado. Que fizera eu para provocar tão intensa maneira de sentir? Ele tamborilou de mansinho na mesa, como se refletisse sobre alguma coisa. Depois disse:
“Nossa sábia Igreja ensina que, se você agir como se tivesse fé, a fé lhe será concedida; se você rezar duvidando mas sinceramente, suas dúvidas se dissiparão; se você se submeter à beleza da liturgia, cujo poder sobre o espírito humano foi provado pela experiência de séculos, a paz descerá sobre sua alma. Logo regressarei ao mosteiro. Por que não vem passar umas semanas conosco? Poderá trabalhar nos campos, com os nossos irmãos conversos; poderá ler na nossa biblioteca. Não será experiência menos interessante do que trabalhar numa mina de carvão ou numa fazenda da Alemanha.”
“Por que me faz essa sugestão?”, perguntei-lhe.
“Há três meses que o estou observando”, respondeu o padre.
“Talvez eu o conheça melhor do que você se conhece a si próprio. A distância que o separa da fé não é maior que a espessura do papel de um cigarro.”
– Fiquei calado. Experimentei uma sensação esquisita, como se alguém tivesse dado um repuxão nas cordas do meu coração. Finalmente respondi que ia refletir. Ele não tocou mais no assunto. Durante o resto da estada do padre Ensheim em Bonn, nunca mais falamos de coisa que se relacionasse com religião, mas ao despedir-se ele me deu o endereço do mosteiro, dizendo que, se eu resolvesse ir visitá-los, bastava escrever-lhe, que se encarregaria de tudo. Ele me fez mais falta do que eu pensara. Acabou-se o ano; estávamos em pleno verão. Eu gostava de Bonn. Li Goethe, Schiller, Heine. Li Hölderlin e Rilke. Mesmo assim, não chegara a parte alguma. Refleti muito sobre o que me dissera o padre Ensheim e finalmente resolvi aceitar-lhe o convite.
Ele me esperava na estação. O mosteiro ficava na Alsácia. Bela região. O padre Ensheim apresentou-me ao abade e levou-me depois à cela que me fora designada. Tinha uma estreita cama de ferro, um crucifixo na parede e, como mobília, as coisas estritamente necessárias. Soou a sineta do jantar; dirigi-me para o refeitório. À porta estava o abade com dois monges, um dos quais segurava uma bacia e o outro uma toalha; o abade borrifou algumas gotas de água nas mãos dos hóspedes, como a lavá-las, e enxugou-as depois na toalha que um dos monges lhe entregou. Havia mais três hóspedes, dois padres que tinham passado por ali e parado para jantar, e um francês velho e rabugento que estava fazendo retiro.
O abade e os dois priores sentaram-se na ponta do refeitório, cada qual à sua mesa; os padres, ao longo das duas paredes; ao passo que os noviços, os irmãos conversos e os hóspedes sentaram-se no meio. Dita a ação de graças, iniciamos a refeição. Um noviço foi para o seu lugar perto da porta e em voz monótona recitou algumas páginas de uma leitura edificante. Quando acabamos, foi novamente dita a ação de graças. O abade, o padre Ensheim e outro monge encarregado de nós, os hóspedes, fomos para uma salinha, onde tomamos café e conversamos sobre coisas banais. Depois voltei para a minha cela.
Fiquei três meses no mosteiro. Sentia-me muito feliz ali. Era exatamente a vida que me convinha. A biblioteca era boa e eu lia muito. Nenhum dos padres tentou influenciar-me, mas tinham prazer em conversar comigo. Fiquei profundamente impressionado com sua erudição, piedade e desprendimento das coisas deste mundo. Não pense que levavam vida ociosa. Estavam ocupados o tempo todo. Eles mesmos lavraram a terra, aceitando, satisfeitos, o meu auxílio. Apreciei a magnificência dos serviços religiosos, mas o que mais me encantou foram as Matinas. Às quatro da manhã. Emocionantíssimo ficar sentado na igreja quando ainda era noite, enquanto os monges, misteriosos nos seus hábitos e de capuz na cabeça, cantavam com vozes fortes e viris os singelos cantos da liturgia. Havia qualquer coisa de tranquilizador na rotina diária e, apesar de toda a energia desprendida, apesar da atividade de pensamento, a gente tinha uma permanente sensação de repouso.
Larry teve um sorriso meio melancólico.
– Como Rolla, nasci muito tarde num mundo velho demais. Devia ter nascido na Idade Média, quando a fé era aceita naturalmente; teria então visto claramente o meu caminho e entrado para o convento. Mas eu não podia crer. Tinha esse desejo, mas não podia acreditar num Deus que não era melhor do que um homem bom. Os padres me disseram que Deus criara o mundo para sua própria glória. Não me pareceu um objetivo muito apreciável. Teria Beethoven criado suas sinfonias para sua própria glória? Não acho possível. Na minha opinião criou-as porque a música em sua alma exigia expressão e, depois, só o que tentara fora torná-las perfeitas, na medida do possível.
Eu ficava a ouvir os monges quando recitavam o padre-nosso. Como podiam eles, sem apreensão, continuar a pedir ao Pai Celestial que lhes desse o pão de cada dia? Por acaso as crianças pedem ao seu pai terrestre que as alimente? Esperam isto dele; não sentem, nem precisam sentir gratidão; e não há quem não censure o homem que põe filhos no mundo quando não pode ou não quer sustentá-los. A mim me parecia que, se um criador onipotente não podia prover às necessidades materiais e espirituais das criaturas, teria então sido preferível não criá-las.
– Caro Larry, acho que foi bem melhor você não ter nascido na Idade Média – disse eu. – Provavelmente teria sido queimado.
Ele sorriu e continuou:
– Você teve bastante sucesso como escritor. Mas gostaria de ser elogiado na sua cara?
– Isto apenas me constrangeria.
– Foi o que imaginei. Não achei crível que Deus desejasse tal coisa. Na aviação não prezávamos grandemente o sujeito que conseguia um emprego macio pelo fato de adular seus superiores. Era-me difícil acreditar que Deus tivesse em grande conta o homem que tentasse conseguir a salvação por meio de tão vil lisonja. Na minha opinião, a mais agradável forma de adoração seria cada um agir da melhor maneira possível, de acordo com o seu código de honra.
Mas não era isso o que mais me incomodava. Eu não podia concordar com aquela preocupação do pecado que, ao que me parecia, estava sempre presente no pensamento dos padres. Conheci muitos sujeitos na aviação. Claro que se embriagavam quando se apresentava a oportunidade, e estavam com mulheres sempre que podiam, e usavam palavrões; tivemos um ou dois que não prestavam; um deles foi preso por tentar passar cheques sem fundo e condenado a seis meses de prisão.
Mas não era tanto por sua culpa; nunca tivera dinheiro e, quando se viu com mais do que sonhara ter, perdeu a cabeça. Eu conhecera homens maus, em Paris, e fiquei conhecendo outros depois que voltei para Chicago; mas geralmente a maldade tinha por causa a hereditariedade, de que eles não tinham culpa, ou o ambiente, que eles não haviam escolhido – não sei mesmo se a sociedade não seria mais responsável pelos crimes desses homens do que eles próprios. Se eu fosse Deus, não teria coragem de condenar ao fogo eterno nem mesmo o pior deles. O padre Ensheim tinha ideias largas; achava que o inferno era privação da presença de Deus. Mas se isto é castigo tão intolerável, a ponto de ser chamado inferno, pode alguém conceber que seja infligido por Deus? Afinal de contas foi ele quem criou os homens e, se os criou susceptíveis de pecar, foi porque assim o quis. Se eu ensinasse um cachorro a pular no pescoço de qualquer desconhecido que entrasse no meu quintal, não seria justo bater-lhe por fazer isso.
Se foi um Deus bom e todo-poderoso que criou o mundo, por que motivo criou o mal? Diziam os frades: Para que o homem, dominando os instintos maus, resistindo à tentação, aceitando a dor, a tristeza e a infelicidade, como provações enviadas por Deus como instrumentos de purificação, se tornasse finalmente merecedor da graça. Isto me parecia o mesmo que mandar um sujeito com um recado a determinado lugar e depois, para dificultar-lhe a tarefa, construir um labirinto por onde se veria forçado a passar, cavar um fosso que ele teria que atravessar a nado, e finalmente erguer um muro que ele seria obrigado a escalar. Não estava em mim acreditar num Deus sábio que não tinha senso prático. Não vi razão para não se acreditar num Deus que não tivesse criado o mundo, mas que procurasse corrigir, na medida do possível, aquele que encontrara; um ser infinitamente melhor, mais sábio e maior que o homem, que lutava contra o mal que não fora criado por ele, podendo-se esperar que no fim chegasse a vencê-lo. Mas, por outro lado, não vi também razão para se acreditar em tal Deus.
As respostas que os bons padres davam às perguntas que me deixavam perplexo não me satisfaziam o cérebro nem tampouco o coração. Meu lugar não era ao lado deles.
Quando fui despedir-me do padre Ensheim, ele não me perguntou se eu tirara da experiência o proveito que ele esperava que eu tirasse. Fitou-me com ar bondoso.
“Infelizmente creio que o decepcionei, padre”, disse eu. “Não”, respondeu ele. ‘’Você é um homem profundamente religioso que não acredita em Deus. Deus o procurará. Você voltará. Se para cá, ou para outro lugar, só Deus poderá dizer.”
4
– Instalei-me em Paris para o resto do inverno – continuou Larry. – Não entendia coisa alguma de ciência e achei que era tempo de adquirir pelo menos algumas noções. Li muito. Não sei se fiquei sabendo grande coisa, a não ser que a minha ignorância era incomensurável. Mas isso não era novidade para mim. Quando chegou a primavera fui para o campo; hospedei-me numa estalagenzinha à beira de um rio, perto de uma dessas lindas e antigas cidades francesas que em duzentos anos não parecem ter progredido.
Calculei que devia ser esse o verão que Larry passara com Suzanne Rouvier, mas não o interrompi.
– Depois fui para a Espanha. Queria ver as obras de Velásquez e El Greco. Imaginei que talvez a arte me mostrasse o caminho que a religião não pudera indicar-me. Vaguei durante algum tempo e voltei para Sevilha. Gostei da cidade e resolvi passar o inverno.
Também eu visitara Sevilha, quando tinha vinte e três anos, tendo gostado de lá. Gostei das ruas brancas e tortuosas, da catedral, da larga planície de Guadalquivir; mas gostei também das moças andaluzas com sua graça e alegria, brilhantes olhos negros, de cravo nos cabelos a acentuar-lhes o negror e, por contraste, parecendo ainda mais vivo; gostei do rico colorido da pele e da provocante sensualidade dos lábios. Aí, sim, ser moço era uma felicidade. Larry fora para lá apenas um pouco mais velho do que eu, quando lá estivera, e fiquei a conjeturar se seria possível que tivesse permanecido insensível à fascinação de tão encantadoras criaturas. Ele respondeu à pergunta que eu não formulara.
– Lá encontrei um pintor francês que eu conhecera em Paris, um sujeito chamado Auguste Cottet, que durante algum tempo vivera com Suzanne Rouvier. Viera a Sevilha para pintar e estava vivendo com uma moça que ali ficara conhecendo. Certa noite convidou-me para ir com eles a Eretania ouvir um cantor flamenco, e trouxeram uma amiga. Era a coisinha mais linda deste mundo. Tinha apenas dezoito anos. Perdera-se com um rapaz da sua aldeia e vira-se obrigada a sair de lá, porque ficara grávida. O rapaz estava fazendo o serviço militar. Quando a criança nascera ela a entregara aos cuidados de uma ama; arranjara depois emprego na fábrica de cigarros. Levei-a comigo para casa. Era muito alegre e muito meiga; dali a alguns dias perguntei se não queria vir morar comigo. Respondeu que sim, de modo que tomamos dois quartos numa casa de huéspedes: um dormitório e uma saleta. Disse-lhe que podia deixar o emprego, mas a pequena não quis; aliás isso me convinha, porque eu ficava assim com os dias livres. Tínhamos o direito de usar a cozinha, de modo que ela preparava o meu café da manhã antes de sair para o trabalho; ao meio-dia voltava e fazia o meu almoço; à noite jantávamos num restaurante e íamos depois a um cinema ou dançar em algum lugar. Parecia considerar-me maluco só pelo fato de eu ter uma banheira de borracha e insistir em tomar banho frio todas as manhãs. O bebê estava numa fazenda a alguns quilômetros de Sevilha e aos domingos costumávamos ir visitá-lo. Ela não fazia segredo do fato de estar morando comigo para ganhar bastante dinheiro para poder mobiliar o apartamento que iam tomar quando o seu namorado acabasse o serviço militar. Era um amor de criatura e não duvido que tenha dado uma boa mulherzinha para o seu Paco. Alegre, bem-humorada e afetuosa. Considerava aquilo que nós delicadamente chamamos relações sexuais como qualquer outra função natural do corpo. Sentia nisso prazer e ficava satisfeita de causar prazer. Era, naturalmente, um animalzinho; mas um animal encantador, atraente, domesticado.
E então, certa tarde ela me disse que recebera carta de Paco, do Marrocos espanhol onde ele fazia o serviço, dizendo-lhe que o terminara e que dali a dois dias chegaria a Madri. Na manhã seguinte ela empacotou suas coisas, enfiou o dinheiro na meia, e eu acompanhei-a à estação. Deu-me um beijo ruidoso quando a instalei no vagão, mas estava por demais excitada com a perspectiva de tornar a ver o amante para pensar em mim, e tenho certeza de que nem bem o trem saíra da estação já ela se esquecera da minha existência.
Continuei em Sevilha e no outono iniciei a viagem que me levou à Índia.
5
Estava ficando tarde. A frequência diminuíra no café e havia somente algumas mesas ocupadas. As pessoas que estavam ali sentadas por falta de melhor distração já haviam voltado para casa. E também aqueles que depois do teatro ou do cinema tinham vindo comer ou beber qualquer coisa. De vez em quando aparecia um retardatário. Vi um sujeito alto, indubitavelmente um inglês, entrar com um moço valentão. Tinha o rosto comprido, desanimado, e os cabelos ondulados e escassos do intelectual inglês, e provavelmente mantinha a ilusão, comum a tantos, de não ser reconhecido pelo fato de estar no estrangeiro. O valentão comeu gulosamente um prato de sanduíches, enquanto seu companheiro o observava com divertida benevolência. Que apetite! Vi um sujeito que eu conhecia de vista, por frequentarmos o mesmo barbeiro, em Nice. Atarracado, idoso e grisalho, com um túmido rosto vermelho e olhos empapuçados. Era um banqueiro americano que, depois da crise, preferira deixar sua cidade natal a sujeitar-se a uma investigação. Não sei se cometera algum crime; se tal acontecera, com certeza era muito pouco importante para que as autoridades se dessem ao trabalho de lhe pedir a extradição. Tinha o ar pomposo e a falsa cordialidade do político barato, mas a expressão dos seus olhos era amedrontada e infeliz. Nunca estava completamente bêbado, nem completamente sóbrio. Sempre em companhia de alguma rameira que evidentemente procurava arrancar dele o que podia; estava agora com duas mulheres pintadas, já maduras, que o tratavam com acintosa zombaria, ao passo que ele, mal entendendo o que elas diziam, ria tolamente. A vida alegre!... Fiquei a conjeturar se não teria sido preferível ele ter ficado na sua terra e aceito o castigo. Chegaria o dia em que as mulheres o teriam depenado por completo, e nada mais lhe restaria a não ser o rio, ou uma dose excessiva de veronal.
Entre as duas e três horas houve um aumento na frequência; com certeza os cabarés estavam-se fechando. Surgiu um grupo de americanos, barulhentos e embriagados, mas não se demoraram. Não muito longe de nós, duas mulheres gordas e taciturnas, metidas em roupas de corte masculino, bebiam uísque com soda, em lúgubre silêncio. Apareceu um grupo em trajes a rigor, pessoas que os franceses chamam de gens du monde; evidentemente tinham dado uma volta pelos cabarés e queriam agora terminar a noitada com uma ceia. Entraram e saíram. Minha curiosidade se aguçara com a presença de um homem pequeno, discretamente vestido, ali sentado havia mais de uma hora, a ler o jornal com um copo de cerveja à frente. Tinha uma barba preta, bem aparada, e usava pincenê. Finalmente chegou uma mulher e sentou-se à sua mesa. Ele cumprimentou-a com a cabeça, sem cordialidade; provavelmente estava aborrecido porque ela o fizera esperar. Era moça, malvestida, mas exageradamente pintada e parecia muito fatigada. Dali a segundos vi-a abrir a bolsa e entregar ao homem qualquer coisa. Dinheiro. O homem olhou e seu rosto tornou-se taciturno. Dirigiu-lhe palavras que não pude ouvir, mas que julguei insultuosas, pela atitude dela, que me pareceu estar a desculpar-se. Subitamente o homem inclinou-se e deu-lhe um ressonante tapa na cara. A moça soltou um grito e começou a chorar. Atraído pelo barulho, o gerente veio saber do que se tratava. Tive a impressão de que lhes dizia que fossem embora, se não soubessem comportar-se. A moça virou-se para ele e em voz alta, a ponto de se poder ouvir cada palavra, em linguagem obscena lhe disse que não se metesse no que não era da sua conta.
– Se ele me esbofeteou foi porque mereci ser esbofeteada – gritou ela.
Mulheres!... Sempre pensei que, para viver à custa do dinheiro imoralmente ganho por uma mulher, fosse preciso um sujeito vistoso e forte, com sex-appeal, ágil com a faca ou com o revólver; extraordinário que aquele sujeitinho raquítico, que a julgar pela aparência poderia ser empregadinho de algum escritório de advocacia, tivesse conseguido lugar numa profissão onde era tão grande a concorrência!
6
O garçom que nos servira ia sair e para receber sua gorjeta veio apresentar-nos a conta. Pagamos e pedimos café.
– Então? – disse eu.
Senti que Larry estava disposto a falar, e eu estava disposto a ouvir.
– Não o estou chateando?
– Não.
– Pois bem, chegamos a Bombaim. O navio ia ficar ali três dias, para os turistas terem oportunidade de admirar as vistas e fazer excursões. Como tinha folga na tarde do terceiro dia, fui para terra. Andei durante algum tempo, observando a multidão. Que miscelânea! Chineses, maometanos, hindus, tamues negros como carvão; e aqueles enormes bois de bossa e longos chifres, que puxam as carroças! Fui depois a Elefanta, ver as grutas. Um hindu se juntara a nós em Alexandria, para vir até Bombaim, e os turistas sentiam certo desprezo por ele. Era um homem gordo e baixo, de rosto trigueiro e redondo; usava um terno grosso de casimira, de xadrez preto e verde, e colarinho eclesiástico. Certa noite eu estava no tombadilho, tomando ar, quando ele se aproximou e me dirigiu a palavra. Naquele momento eu não queria conversar com ninguém, queria ficar só; ele me fez várias perguntas e creio que respondi um tanto bruscamente. Em todo caso, contei-lhe que era um estudante que estava trabalhando para ganhar a minha passagem para a América.
“Você devia ficar na Índia”, disse ele. “O Oriente pode ensinar ao Ocidente mais do que o Ocidente julga.”
“Não diga!”, repliquei.
“Em todo caso não deixe de ir ver as grutas em Elefanta”, continuou ele. “Garanto-lhe que não se arrependerá.”
Larry interrompeu-se para me fazer uma pergunta:
– Já esteve na Índia?
– Nunca.
– Pois bem, eu estava contemplando a colossal imagem, com suas três cabeças, a maior atração de Elefanta, e procurando imaginar que significação tinha, quando ouvi alguém dizer atrás de mim: ‘’Vejo que seguiu o meu conselho”. Virei-me e levei alguns segundos para reconhecer a pessoa que me dirigia a palavra. Era o homenzinho de pesado terno xadrez e colarinho eclesiástico; só que, agora, usava a longa túnica açafrão que mais tarde vim a saber que era a túnica dos swamis de Ramakrishna; e em vez do sujeitinho engraçado, gaguejando, que eu conhecera, ele era agora imponente e deslumbrante. Ambos examinamos o busto colossal.
“Brama, o Criador”, disse ele. “Vichnu, o Conservador, e Siva, o Destruidor. As três manifestações da Realidade Final.”
“Creio que não entendo muito bem”, disse eu.
“Não é de admirar”, respondeu ele com um sorrizinho nos lábios e um brilho nos olhos, como se zombasse levemente de mim. “O Deus que pode ser compreendido não é Deus. Quem poderá explicar, por palavras, o Infinito?”
– Juntou as palmas das mãos e, com uma apenas perceptível inclinação de cabeça, afastou-se. Continuei ali, a contemplar as três misteriosas cabeças. Talvez por estar em disposição receptiva, sentia-me estranhamente emocionado. Você sabe como às vezes a gente tenta relembrar um nome; está na ponta da língua, mas não vem; foi justamente o que senti na ocasião. Quando saí das cavernas, sentei-me por muito tempo nos degraus e fiquei a contemplar o mar. Do bramanismo eu só conhecia aqueles versos de Emerson; procurei relembrá-los. Fiquei exasperado por fracassar e, quando voltei para Bombaim, entrei numa livraria, a ver se encontrava o livro de poesias onde os lera. Estão no Oxford Book of English Verse. Lembra-se?
They reckon ill who leave me out;
When me they fly, I am he wings;
I am the doubter and the doubt,
And I the hymn the Brahmin sings.
Jantei numa tasca nativa e depois, como não precisava voltar para o navio antes das dez horas, fui para o Maidan e fiquei apreciando o mar. Nunca vira tantas estrelas no céu; depois do calor que fizera durante o dia, o frescor da noite era delicioso. Encontrei um jardim público e sentei-me num dos bancos. Muito escuro ali; silenciosos vultos brancos agitavam-se para lá e para cá. O maravilhoso dia de sol ardente, a multidão ruidosa, colorida, o cheiro acre e aromático do Oriente encantaram-me; e, como se fosse um complemento, mancha de cor que o pintor acrescentasse à sua obra para finalizá-la, aquelas três misteriosas cabeças de Brama, Vichnu e Siva, davam ao todo misteriosa significação. Meu coração pôs-se a bater descompassadamente, pois de repente eu adquirira a intensa convicção de que a Índia tinha, para dar-me, algo que eu precisava ter. Pareceu-me que me era oferecida uma oportunidade e que eu precisava agarrá-la ali mesmo, ou nunca mais se me depararia. Tomei rápida decisão. Não voltaria para bordo. Nada deixara ali, a não ser algumas coisas numa maleta. Voltei lentamente para o bairro nativo e procurei um hotel. Não tardei a encontrá-lo; tomei um quarto. Tinha as roupas do corpo; no bolso uns miúdos, meu passaporte e minha letra de câmbio; experimentei tal sensação de liberdade que cheguei a rir alto.
O navio partia às onze e por precaução fiquei no quarto até essa hora. Fui depois para o cais e vi-o desatracar. Dirigi-me então para a Missão Ramakrishna e procurei o swami que falara comigo em Elefanta. Não sabendo o seu nome, disse que desejava ver o swami que acabara de chegar de Alexandria. Contei-lhe, então, que desejava ficar na Índia e perguntei o que me aconselhava a ver. Tivemos uma longa conversa e afinal ele me contou que partia aquela noite para Benares, perguntando-me se queria ir com ele. Peguei no ar. Fomos de terceira classe. O vagão estava repleto de pessoas que comiam, bebiam, falavam. Calor insuportável. Não consegui pregar o olho e na manhã seguinte me sentia exausto, mas o swami estava fresco como um botão de rosa. Perguntei-lhe como conseguira conservar-se assim e ele respondeu:
“Meditando sobre aquele que não tem forma; encontrei descanso no Absoluto”. Fiquei sem saber o que pensar, mas podia ver com meus próprios olhos que ele estava lépido e animado, como se tivesse dormido a noite toda num leito confortável.
Quando chegamos a Benares, um rapaz da minha idade veio ao encontro do meu companheiro e este lhe pediu que me arranjasse um quarto. Chamava-se Mahendra e era professor da universidade. Sujeito afável, bom, inteligente; pareceu simpatizar comigo tanto quanto eu com ele. Levou-me naquela noite a passear de barco pelo Ganges. Que emoção! Muito bonito, ver a cidade amontoada até quase a margem do rio; bonito e impressionante. Mas na manhã seguinte tinha coisa melhor para me mostrar. Veio buscar-me no meu hotel e levou-me de novo para o rio. Vi um espetáculo que nunca julgara possível; milhares e milhares de pessoas vindo tomar seu banho lustral e rezar. Vi um sujeito alto e emaciado, com uma massa de cabelos emaranhados e barba desalinhada, tendo apenas uma tanga a lhe cobrir a nudez, permanecer de pé com seus longos braços estendidos, de cabeça erguida, e em voz alta orar ao sol nascente. Não sei dizer-lhe que impressão isso me causou. Passei seis meses em Benares e voltei inúmeras vezes ao Ganges, de madrugada, para apreciar o estranho espetáculo. Nunca me cansei de admirá-lo. Aquela gente não acreditava tibiamente, com restrições ou dúvida inquietante, e sim com todas as fibras do seu ser.
Foram todos muito bons para mim. Quando perceberam que eu não viera para caçar tigres, comprar ou vender alguma coisa, tudo fizeram para ajudar-me. Ficaram satisfeitos de eu querer aprender hindustani e me arranjaram professores. Emprestaram-me livros. Jamais se cansaram de responder às minhas perguntas.
“Conhece alguma coisa de hinduísmo?”
– Muito pouco – respondi.
– Acho que lhe interessaria. Poderá haver coisa mais estupenda do que a concepção de um mundo que não tem princípio nem fim, mas que passa indefinidamente do desenvolvimento ao equilíbrio, do equilíbrio à decadência, da decadência à dissolução, da dissolução ao desenvolvimento, e assim por diante, por toda eternidade?
– E qual é, na opinião dos hindus, o objetivo dessa perpétua repetição?
– Parece-me que dizem ser esta a natureza do Absoluto. Compreenda-me, eles acham que a finalidade da criação é servir de palco para o castigo ou recompensa dos atos cometidos pelas almas em existências anteriores.
– Isto pressupõe crença na transmigração das almas.
– É uma crença compartilhada por dois terços da humanidade.
– O fato de muita gente acreditar numa coisa não é garantia de sua veracidade.
– Realmente: mas pelo menos torna-a digna de consideração. A cristandade assimilou tanto do neoplatonismo que poderia facilmente ter assimilado isto também; para ser exato, houve mesmo nos primeiros tempos do cristianismo uma seita que tinha essa crença, mas foi declarada herética. Não fosse por esse motivo, os cristãos acreditariam nisso tão piamente como acreditam na ressurreição de Cristo.
– Significa então que a alma passa de um corpo ao outro, numa sucessiva desigualdade de condições humanas, conforme o mérito ou demérito de trabalhos anteriores?
– Creio que sim.
– Mas, você vê, não sou somente espírito, mas também corpo; e quem pode determinar até que ponto eu, o meu eu individual, estou subordinado ao acidente do meu físico? Teria Byron sido Byron sem o seu pé torto, ou Dostoievski sido Dostoievski sem a sua epilepsia?
– Os hindus não chamariam isto de acidente. Responderiam que foram seus atos, em vidas anteriores, que fizeram com que sua alma habitasse um corpo imperfeito. – Larry tamborilou distraidamente na mesa, imerso nos próprios pensamentos, o olhar perdido no espaço. Depois, com um leve sorriso nos lábios e expressão pensativa no olhar, continuou: – Alguma vez lhe ocorreu que a reencarnação explica e ao mesmo tempo justifica o mal existente no mundo? Se os males que sofremos são consequência de pecados cometidos em vidas passadas, podemos aceitá-los com resignação – e esperança de melhor vida futura, se nesta nos esforçamos por ser virtuosos. Mas não é assim tão difícil suportar os nossos próprios males – para isso basta um pouco de energia; o que é intolerável é o mal, às vezes aparentemente tão imerecido, que se abate sobre os outros. Se nos convencermos de que é a inevitável consequência do passado, poderemos sentir pena, fazer o possível para aliviar, e é esta a nossa obrigação, mas não haverá motivo para ficarmos indignados.
– Mas por que não criou Deus um mundo livre de sofrimentos e de tristezas, no princípio, quando não havia no indivíduo mérito nem demérito para determinarem seus atos?
– Os hindus diriam que não houve princípio. A alma individual, coexistente com o universo, sempre existiu e deve sua natureza a alguma existência precedente.
– E essa teoria da transmigração das almas tem algum resultado prático na vida daqueles que acreditam nela? Afinal de contas, é este o teste.
– Creio que tem. Vou lhe falar de um homem que conheci pessoalmente e em cuja vida teve resultado prático. Nos primeiros dois ou três anos que passei na Índia, vivi a maior parte do tempo em hotéis nativos, mas de vez em quando alguém me convidava para me hospedar em sua casa, e uma ou duas vezes vivi esplendorosamente como hóspede de um marajá. Por intermédio de um dos meus amigos de Benares, fui convidado para passar uns tempos num dos menores estados do norte. A capital era linda; “cidade cor-de-rosa quase tão velha quanto o mundo”. Eu fora recomendado ao ministro das Finanças. Educara-se ele na Europa e cursara Oxford. Ao conversar com ele a gente tinha a impressão de um homem progressista, inteligente e esclarecido; tinha fama de ser ministro muito eficiente e político hábil, astucioso. Vestia-se à moda europeia; sempre muito elegante. Sujeito bonitão, mais para gordo – tendência que têm todos os hindus quando chegam à maturidade –, com um bigodinho curto, benfeito. Frequentemente me convidava à sua casa. Havia ali um grande jardim; sentávamo-nos à sombra das árvores copadas e conversávamos. Era casado e tinha dois filhos crescidos. Qualquer um o tomaria pelo tipo comum, inglesado, de hindu, e fiquei atônito ao saber que dali a um ano, quando chegasse aos cinquenta anos, ia demitir-se do seu ótimo emprego, dividir seus bens entre a esposa e os filhos e sair pelo mundo afora, como mendigo errante. Mas o mais extraordinário era que seus amigos, assim considerando-a naturalíssima.
Certo dia eu lhe disse:
“Você, que é tão liberal, que conhece o mundo, que leu tanto sobre ciência, filosofia, arte, literatura, diga-me com toda a sinceridade: Acredita mesmo na reencarnação?”.
– Seu rosto transformou-se, adquirindo expressão de um visionário.
“Caro amigo, se não acreditasse, a vida para mim não teria significação.”
– E você acredita, Larry? – perguntei-lhe.
– Pergunta difícil de responder. Não creio que seja possível para nós, ocidentais, acreditar tão implicitamente como acreditam os orientais. Para eles está no sangue. No nosso caso pode ser apenas uma opinião. Não creio nem descreio.
Fez uma pausa, o rosto apoiado na mão, e olhou a mesa. Depois se recostou na cadeira.
– Gostaria de lhe contar um estranho fato que se deu comigo. Certa noite eu estava praticando meditação, no meu quartinho do ashrama, como meus amigos hindus me haviam ensinado. Acendera uma vela e concentrava minha atenção na chama; depois de algum tempo vi, através da flama, mas distintamente, uma longa fila de pessoas, uma atrás da outra. A da frente era uma senhora idosa, com touca de renda e cachos grisalhos que lhe caíam sobre as orelhas. Usava corpete justo e saia preta, rodada – tipo de roupa, creio, que se usava em 1870, e me olhava de frente, numa atitude graciosa, tímida, os braços caídos contra o corpo, de palmas viradas para mim. A expressão do seu rosto enrugado era amável, meiga, suave. Imediatamente atrás dela, mas de lado, de modo que eu lhe podia ver o perfil, estava um judeu magro, de nariz adunco e lábios grossos, metido numa capa amarela e com um solidéu amarelo sobre os grossos cabelos negros. Tinha um aspecto de homem erudito, e um ar de dura e ao mesmo tempo apaixonada austeridade. Atrás dele, mas de frente para mim, de modo que eu o podia ver tão distintamente como se não houvesse ninguém entre nós, estava um rapaz de alegre semblante vermelho, que ninguém podia deixar de reconhecer como sendo um inglês do século xvi. Estava bem firme nos pés, de pernas ligeiramente entreabertas e tinha uma expressão atrevida, temerária e dissoluta. Todo vestido de vermelho, ricamente, como se fossem trajes da corte, com sapatos de veludo, de bico largo, e gorro chato na cabeça. Atrás desses três, em interminável procissão, como fila à porta de um cinema, vi inúmeras pessoas, vagamente, sem poder julgar de sua aparência. Percebia apenas os vultos imprecisos e seus movimentos, como trigo ao sopro de uma brisa de verão. Dali a pouco, não sei se dentro de um minuto, ou cinco, ou dez, eles foram-se perdendo gradualmente na escuridão da noite e nada restou, a não ser a contínua luz da vela.
Larry sorriu de leve.
– Claro que existe a possibilidade de eu ter cochilado e sonhado. É possível que a minha concentração naquela débil chama tenha determinado uma espécie de estado hipnótico, e que os três vultos que eu vira tão claramente como estou agora vendo você fossem lembranças de quadros, retidas pelo meu subconsciente. Mas é possível que fossem eu, em vidas anteriores. É possível que, em passado não muito remoto, eu tenha sido uma velha senhora da Nova Inglaterra, e antes disso um judeu levantino e, tempos antes, logo depois de Sebastian Cabot ter saído de Bristol, algum elegante da corte de Henrique, príncipe de Gales.
– O que aconteceu com o seu amigo da cidade cor-de-rosa?
– Dois anos mais tarde, estava eu num lugar do sul, chamado Madura, quando certa noite no templo alguém me tocou no braço. Virei-me e vi um homem de barba e longos cabelos pretos, só de tanga, com o cajado e a tigela de esmolas dos homens santos. Mas só quando me dirigiu a palavra foi que o reconheci. Era o meu amigo. Fiquei tão admirado que não soube o que dizer. Perguntou-me que andava eu fazendo. Contei-lhe. Quis saber para onde eu ia, e respondi que ia para Travancore. Disse-me, então, que fosse ver Shri Ganesha. “Ele lhe dará aquilo que você procura”, declarou. Pedi-lhe que me descrevesse Shri Ganesha, mas ele sorriu, dizendo que eu descobriria tudo que fosse necessário quando viesse a conhecê-la. Tendo voltado a mim da minha surpresa, perguntei-lhe o que estava ele fazendo em Madura. Respondeu-me que estava numa peregrinação a pé pelos lugares santos da Índia. Perguntei-lhe como comia e dormia. Contou-me que, quando alguém lhe oferecia abrigo, dormia na varanda; caso contrário, embaixo de uma árvore, nas imediações de algum templo. Quanto à comida, se alguém lhe oferecia um prato, ele comia; se não, ficava sem comer. Fitei-o. “Você emagreceu”, comentei. Riu-se, dizendo que se sentia melhor assim. Despediu-se em seguida – e era cômico ouvir aquele sujeito de tanga dizer “Bom, até logo, meu velho”, e entrou no recinto do templo onde não me seria permitido acompanhá-la.
Fiquei durante algum tempo em Madura. Creio que é o único templo na Índia onde o homem branco pode movimentar-se livremente, contanto que não penetre no santo dos santos. À noite ficava repleto. Homens, mulheres, crianças. Os homens, nus até a cintura, usavam dhoties; tinham a testa, e às vezes também o peito e os braços cobertos com a cinza esbranquiçada de estrume de vaca queimado. A gente os via em atitudes reverentes neste ou naquele altar, deitando-se às vezes ao comprido no chão, de rosto para baixo, na posição ritual de prostração. Oravam e recitavam ladainhas. Cumprimentavam-se, brigavam, discutiam calorosamente uns com os outros. Havia uma balbúrdia ímpia, e no entanto Deus parecia próximo e real.
A gente vai passando por longas naves, com colunas esculpidas que suportam o teto, vendo-se ao pé de cada coluna, sentado, um mendigo religioso; cada qual tem à sua frente uma tigela de esmolas, ou um tapetinho onde de vez em quando os fiéis atiram uma moeda de cobre. Alguns estão vestidos, outros quase que completamente nus. Alguns olham vagamente para a pessoa que passa; outros leem, silenciosamente ou em voz alta, parecendo alheios à ondulante multidão. Procurei entre eles o meu amigo: nunca mais o vi. Creio que continuou a jornada, para alcançar o seu objetivo.
– E isso era?...
– Libertar-se do cativeiro da reencarnação. De acordo com os vedantistas, a identidade pessoal, que eles chamam de atman e nós de alma, é distinta do corpo e seus sentidos, distinta do cérebro e sua inteligência; não faz parte do Absoluto, pois o Absoluto, sendo infinito, não pode ter partes, é o próprio Absoluto. É incriada; sempre existiu e, quando finalmente despir os sete véus da ignorância, voltará à imensidade de onde veio. É como uma gota-d’água que subiu do mar e num aguaceiro caiu numa poça, resvalando depois para um regato, e dali para um rio, passando por desfiladeiros e vastas planícies, insinuando-se aqui e ali, malgrado o obstáculo de rochas e árvores caídas, até chegar aos ilimitados mares de onde proveio.
– Mas, depois de ter-se unido novamente ao oceano, esta pobre gotinha-d’água certamente perdeu a sua individualidade.
Larry sorriu.
– A gente quer provar açúcar, não quer transformar-se em açúcar. O que é a individualidade, senão a expressão do nosso egoísmo? Enquanto a alma não se libertar disso por completo, não poderá unificar-se com o Absoluto.
– Você fala com muita naturalidade do Absoluto, Larry, e é palavra imponente. O que significa para você?
– Realidade. A gente não pode dizer o que ele é; só pode dizer o que não é. É indefinível. Os hindus chamam-no de Brama. Não está em parte alguma e está em toda parte. Todas as coisas estão ligadas a ele e dependem dele. Não é pessoa, não é coisa, não é causa. Não tem atributos. Transcende perpetuidade e alteração; todo e parte, finito e infinito. É eterno porque seu acabamento e perfeição não têm relação com o tempo. É a verdade e a liberdade.
“Puxa”, pensei com os meus botões. E dirigindo-me a Larry:
– Mas como pode uma concepção puramente intelectual ser um conforto para a sofredora raça humana? Os homens sempre desejaram um Deus pessoal, a quem possam, na desgraça, pedir consolo e coragem.
– É possível que, num futuro mais longínquo, um maior discernimento os ensine a procurar consolo e coragem em suas próprias almas. Por mim acho que a necessidade de adoração não passa de uma reminiscência dos velhos tempos em que deuses cruéis tinham que ser propiciados. Creio que Deus está dentro de mim, ou não está em parte alguma. Sendo isso verdade, a quem devo então adorar? A mim mesmo? Os homens estão em planos diferentes de desenvolvimento espiritual e, portanto, a imaginação dos hindus ampliou as manifestações do Absoluto, que é conhecido por Brama, Vichnu, Siva e centenas de outros nomes. O Absoluto tanto está em Isvara, criador e senhor do mundo, como no humilde fetiche diante do qual o camponês, no seu campo batido de sol, coloca a oferenda de uma flor. Os inúmeros deuses da Índia não passam de meios para se chegar à compreensão de que a identidade pessoal está unificada com a identidade suprema.
Olhei pensativo para Larry.
– O que será que o atraiu para essa fé austera? –perguntei-lhe.
– Creio que poderei dizer-lhe. Sempre achei que havia algo de patético nos fundadores de religiões que impunham, como condição para a salvação, a crença na doutrina que pregavam. É como se tivessem necessidade da nossa fé para ter fé em si próprios. Fazem a gente lembrar-se daqueles antigos deuses pagãos que ficavam lânguidos e desfalecentes quando não os sustentavam as oferendas dos devotos. Advaita não nos pede que aceitemos coisa alguma em confiança; pede-nos apenas que tenhamos o desejo ardente de conhecer a Realidade; afirma que podemos sentir a Deus da mesma maneira que sentimos a dor ou a alegria. E há hoje na Índia centenas de homens que têm certeza de que isto aconteceu com eles. Pareceu-me maravilhosamente satisfatória a ideia de se poder alcançar a Realidade pelo conhecimento. Mais tarde, reconhecendo a fraqueza humana, os sábios da Índia admitiram a possibilidade de se conseguir a salvação pelo caminho do amor e do trabalho, mas jamais negaram que o caminho mais nobre, se bem que o mais árduo, é o do conhecimento, pois o seu instrumento é a mais preciosa faculdade do homem: a razão.
7
Faço uma pausa para declarar que não estou absolutamente tentando descrever o sistema filosófico conhecido como Vedanta. Não tenho competência para isso e, mesmo que a tivesse, não seria este o lugar apropriado. Nossa conversa foi longa e Larry me disse muito mais do que achei possível registrar nesta obra que, afinal de contas, pretende passar por romance. É Larry quem me interessa. Eu não teria tocado em assunto tão complicado se não tivesse achado que, sem dar pelo menos uma ideia de suas especulações e dos singulares acontecimentos que talvez tenham sido por elas ocasionados, eu não poderia tornar plausível a linha de conduta que Larry adotou, e da qual o leitor logo ficará ciente. Irrita-me não poder descrever o tom agradável da sua voz, que tornara convincentes as frases menos importantes, ou dar uma ideia da sua constante mudança de expressão, que ia de grave para suavemente alegre, de pensativa para brincalhona, acompanhando-lhe os pensamentos como o murmurar do piano quando os violinos, em movimento majestoso, entoam os vários temas de um concerto. Embora falasse de assuntos sérios, exprimia-se com naturalidade, em tom de conversa, com certa timidez, mas sem constrangimento, como se estivesse a discutir o tempo ou as próximas colheitas. Se dei a entender que havia na sua atitude algo de didático, a culpa é inteiramente minha. Sua modéstia era tão evidente quanto a sua sinceridade.
Havia agora muito pouca gente no café. Fazia tempo que os turbulentos tinham desaparecido. As pobres criaturas que traficam com o amor tinham ido para suas sórdidas moradas. De vez em quando um homem de ar cansado entrava e encomendava um copo de cerveja e um sanduíche, ao passo que outro, que mal parecia acordado, vinha tomar um café. Operários de colarinho branco. Um trabalhara na turma da noite e voltava para casa, para dormir; o outro, arrancado ao leito pelo ruído estridente do despertador, ia enfrentar de má vontade um longo dia de trabalho. Larry não parecia ter noção da hora, nem do ambiente. No decorrer da minha existência tenho-me visto em estranhas situações. Mais de uma vez estive bem próximo da morte. Em inúmeras ocasiões respirei uma atmosfera de romance, tendo disto certeza no momento. Viajei a cavalo através da Ásia Central, pela estrada que Marco Polo tomou para chegar às fabulosas terras de Catay; tomei um copo de chá russo num correto salão de Petrogrado, enquanto um homenzinho de paletó preto e calças listradas me contava, na sua voz macia, como assassinara um grão-duque; sentado numa sala de visitas de Westminster, ouvi a serena perfeição de um trio de Haydn, ao piano, enquanto as bombas explodiam lá fora; mas não creio que me tenha encontrado em mais estranha situação do que naquele momento, sentado numa das cadeiras de estofamento vermelho do alegre restaurante, durante horas a fio, enquanto Larry falava de Deus e da eternidade, do Absoluto e das cansadas rodas de interminável reprodução.
8
Larry ficou em silêncio durante alguns minutos. Não desejando apressá-lo, esperei. Dali a pouco ele me atirou um sorrizinho amigo, como se novamente se tivesse apercebido da minha presença.
– Quando cheguei a Travancore, vi que não precisava ter pedido informações a respeito de Shri Ganesha. Não havia quem não o conhecesse. Vivera durante anos numa gruta das montanhas, mas finalmente o tinham convencido a mudar-se para a planície, onde uma pessoa caridosa lhe dera um pedaço de terra, construindo para ele uma casinha de adobe. Ficava longe da capital, Trivandrum; levei o dia inteiro, primeiro de trem, depois de carro de boi, para chegar ao ashrama. Encontrei um rapaz, na entrada, e perguntei-lhe se podia falar com o iogue. Eu levara uma cesta de frutas, a oferenda habitual. Dali a minutos o rapaz voltou e me conduziu para uma longa sala com janelas em toda a volta. Shri Ganesha estava sentado a um canto, num estrado coberto por uma pele de tigre, em atitude de meditação. “Eu o esperava”, disse-me ele. Admirei-me, mas provavelmente o meu amigo de Madura lhe falara sobre mim. Mas, quando mencionei o seu nome, Shri Ganesha sacudiu a cabeça. Ofereci minha cesta de frutas e ele disse ao rapaz que a levasse. Ficamos sós. Fitou-me sem nada dizer. Não sei quanto durou o silêncio. Meia hora, talvez. Eu já lhe descrevi o seu aspecto, assim que voltei da Índia, mas não lhe falei da serenidade que ele irradiava, bondade, paz, desprendimento. Eu estava fatigado e encalorado depois da viagem, mas pouco a pouco comecei a me sentir maravilhosamente descansado. Antes de ele dizer qualquer outra coisa, compreendi que era o homem que eu estava procurando.
– Ele falava inglês? – perguntei a Larry.
– Não. Mas, você sabe, tenho aptidão para línguas; além do mais, adquirira suficiente conhecimento de tamul para poder entender e me fazer entender no sul. Finalmente ele falou.
“Para que veio aqui?”, perguntou-me.
– Comecei a contar-lhe como viera parar na Índia, onde estava havia três anos; como, ouvindo falar da santidade e sabedoria deste e daquele homem santo, eu visitara um e outro, não encontrando quem me desse aquilo que eu buscava. Ele interrompeu-me.
“Tudo isto eu sei. Não precisa dizer-me. Para que veio aqui?” “Para que o senhor seja o meu guru”, respondi.
“Somente Brama é o guru”, disse ele.
– Continuou a fitar-me com estranha fixidez e de repente seu corpo tornou-se rígido, os olhos pareceram virar para dentro e vi que ele caíra em transe, naquilo que os hindus chamam samadhi e em que eles adquirem a dualidade de sujeito e o objeto desaparece e a pessoa se torna Saber Absoluto. Eu estava sentado no chão, de pernas cruzadas, diante dele, e meu coração começou a pulsar violentamente. Depois de não sei quanto tempo ele suspirou e percebi que voltara ao seu normal. Atirou-me um olhar meigo e afetuoso.
“Fique”, disse-me. “Eles lhe dirão onde você deve dormir.”
– Deram-me a choça onde Shri Ganesha morara quando viera para a planície. A sala onde ele agora passava os dias e as noites fora construída depois que os discípulos o rodearam e que muita gente, atraída por sua fama, começou a visitá-lo. Para não chamar atenção, adotei o confortável traje indiano e fiquei tão queimado que, a não ser que me observassem por qualquer motivo, eu poderia ter passado por um dos nativos. Eu lia muito. Meditava. Ouvia Shri Ganesha, quando ele estava disposto a expandir-se; não falava muito, mas estava sempre pronto a responder a qualquer pergunta, e era uma maravilha ouvi-lo. Suas palavras eram música para os ouvidos. Embora na mocidade tivesse praticado toda espécie de mortificações, não as impunha aos seus discípulos. Procurava livrá-los da escravidão da individualidade, paixão e sentimento, dizendo-lhes que a libertação poderia ser conseguida pela tranquilidade, repressão, renúncia, resignação, pela constância e um ardente desejo de liberdade. Vinham vê-lo da cidade vizinha, a cinco ou seis quilômetros de distância, onde havia um templo para onde uma vez por ano acorria muita gente, na ocasião do festival; vinham de Trivandrum e de outros lugares longínquos, para contar-lhe suas mágoas, pedir-lhe conselho, ouvir-lhe os ensinamentos; e não havia quem não partisse com ânimo mais forte e em paz consigo mesmo. Era muito simples o que ele ensinava. Dizia que somos maiores do que pensamos, e que a sabedoria é o caminho da liberdade. Dizia que para se salvar não é necessário a pessoa retirar-se do mundo, mas apenas renunciar à individualidade. Dizia que o trabalho feito desinteressadamente purifica o espírito, e que os deveres são oportunidades dadas ao homem para abafar a própria individualidade e identificar-se com a individualidade universal. Mas o que mais impressionava não era a doutrina, e sim o homem, sua benevolência, grandeza de alma, santidade. Sua presença era uma bênção. Sentia-me muito feliz em sua companhia. Compreendi que finalmente encontrara o que queria. As semanas, os meses passaram-se com incrível rapidez. Eu tinha intenção de ficar até ele morrer (e Shri Ganesha nos dissera que não pretendia habitar por muito tempo o seu corpo perecível) ou até me sentir iluminado – e por isso se entende aquele estado em que finalmente o homem quebra os grilhões da ignorância e sabe com indiscutível certeza que se uniu ao Absoluto.
– E depois?
– Depois, se o que eles dizem é verdade, não existe mais nada. Está terminado o curso da alma no mundo, e a ele não voltará.
– E Shri Ganesha morreu?
– Não que eu saiba.
Ao responder, Larry percebeu o que estava subentendido na minha pergunta e deu uma risadinha. Continuou depois de um momento de hesitação, mas de tal maneira que no princípio cheguei a supor que queria evitar que eu fizesse a segunda pergunta que ele sentira na ponta da minha língua – e a pergunta era, naturalmente, se ele tinha recebido iluminação.
– Eu não ficava todo tempo no ashrama. Tive a sorte de travar conhecimento com um guarda-florestal nativo, cuja residência permanente era nos arredores de uma aldeia na base da montanha. Era devoto de Shri Ganesha e quando podia deixar o trabalho vinha passar dois ou três dias conosco. Bom sujeito; conversávamos muito. Gostava de praticar comigo o seu inglês. Tempos depois ele me contou que o serviço de silvicultura tinha um bangalô no alto da montanha, e que se algum dia eu desejasse ir lá sozinho ele me daria a chave. De vez em quando eu me valia do convite. Levava dois dias para chegar lá. Primeiro eu tinha que tomar o ônibus até a aldeia do guarda; o resto do trajeto era feito a pé. Mas, depois que chegava lá, era uma maravilha – tal a grandeza e a solidão. Eu enfiava o que podia num saco e tomava um carregador para levar algumas provisões, lá ficando até elas se acabarem. Nada mais era que uma cabana de madeira com cozinha atrás; como mobiliário só havia uma cama de armar onde a gente atirava a manta de dormir, uma mesa e duas cadeiras. Fazia frio, naquelas alturas, e era agradável acender o fogo à noite. Era para mim uma sensação maravilhosa saber que não havia viva alma numa distância de trinta quilômetros. À noite, muitas vezes ouvia o rugido do tigre ou o barulho dos elefantes que iam abrindo caminho na floresta. Fazia longos passeios através da mata. Havia um lugar onde eu gostava de ficar sentado, porque de lá podia ver as montanhas estenderem-se à minha frente e, baixando o olhar, um lago onde de tardezinha os animais selvagens vinham beber – veados, javalis, bisões, elefantes e leopardos.
Dois anos depois de estar no ashrama, fui para o meu retiro da floresta, por uma razão de que você vai sorrir. Queria passar lá o meu aniversário. Cheguei na véspera. Ainda estava escuro quando acordei no dia seguinte, e tive vontade de ir ver o nascer do sol, lá daquele lugar que lhe acabo de descrever. Conhecia o caminho de olhos fechados. Sentei-me embaixo de uma árvore e esperei. Ainda era noite, mas as estrelas brilhavam palidamente no céu; o dia estava próximo. Experimentei uma estranha sensação de expectativa. Tão gradualmente, que mal a percebi, a luz começou a filtrar-se pela escuridão; de mansinho, como um vulto misterioso a insinuar-se por entre as árvores. Meu coração começou a bater como se pressentisse a aproximação do perigo. Nasceu o sol.
Larry fez uma pausa e um sorriso desajeitado brincou-lhe nos lábios.
– Não tenho talento descritivo, não sei que palavras usar para pintar um quadro, e não posso portanto fazer com que você veja a beleza do espetáculo ante meus olhos. Aquelas montanhas, com suas densas selvas; a neblina ainda emaranhada na copa das árvores; o lago profundo, lá embaixo, bem longe. O sol refletiu-se no lago, através de uma fenda nas montanhas, e este teve um brilho de aço polido. Fiquei maravilhado com a beleza do universo; nunca sentira tanto júbilo, nem tão grande êxtase. Experimentei estranha sensação, um formigueiro que me subiu dos pés à cabeça; pareceu-me que de repente eu me libertara da matéria, compartilhando, como espírito puro, de uma beleza com que jamais sonhara. Tinha a impressão de ser possuidor de uma sabedoria sobrenatural, de modo que tudo que me parecera confuso se aclarou, tudo que me deixara perplexo se explicou. Felicidade tão intensa que chegava a ser dolorosa; procurei libertar-me dela, pois sentia que, se durasse mais um momento, eu morreria; e no entanto era um êxtase tão grande que seria preferível morrer a ter que renunciar a ele. Como explicar tal sensação? Não há palavras para descrever a minha bem-aventurança. Quando voltei a mim, estava exausto e trêmulo. Adormeci.
Era dia ia alto quando acordei. Voltei para o bangalô, sentindo-me tão leve que tinha a impressão de que mal tocava o solo. Preparei uma refeição – Céus, se estava com fome! – e acendi o cachimbo.
Larry acendeu neste momento o seu cachimbo e continuou: – Não ousei acreditar que eu, Larry Darrell, de Marvin, Illinois, recebera a iluminação pela qual, apesar de uma vida austera e mortificada, outros ainda esperavam.
– Por que julga você que foi isso, e não um estado hipnótico, produzido pela sua disposição de espírito, aliada à solidão, ao mistério da madrugada e ao aço polido do seu lago?
– Devido à minha sensação de intensa realidade. Afinal de contas, era uma sensação igual a que os místicos têm tido em todo mundo, através dos séculos. Brâmanes na Índia, sufis na Pérsia, católicos na Espanha, protestantes na Nova Inglaterra; e, ao descreverem da melhor maneira possível aquilo que é indescritível, fizeram-no em termos semelhantes. Não se pode negar a existência do fenômeno; a dificuldade está em explicá-lo. Se por um momento me unifiquei com o Absoluto, ou se foi uma irrupção do subconsciente, ou uma afinidade com o espírito universal, latente em todos nós, é coisa que não sei dizer.
Larry fez uma pausa e me atirou um olhar indagador.
– Por pensar nisso, você consegue fazer o polegar tocar no mínimo? – perguntou-me.
– Claro – respondi rindo e provando-o com o gesto apropriado.
– Sabe que é uma coisa que somente o homem e os primatas conseguem fazer? É devido ao fato de ser o polegar oposto aos outros dedos que a mão é um instrumento tão admirável. Você não acha possível que o polegar, provavelmente em forma rudimentar, tenha se desenvolvido em alguns indivíduos entre os remotos antepassados do homem e do gorila, e que era uma característica que só se tornou comum a todos depois de inúmeras gerações? Não acha também possível que esses fenômenos de união com a Realidade, que tenha acontecido a pessoas tão diversas, indiquem o desenvolvimento de um sexto sentido que no futuro, num futuro muito distante, será comum a todos os homens, a ponto de permitir que eles tenham tão direta percepção do Absoluto como temos agora dos objetos materiais?
– E de que maneira acha você que isto os afetaria?
– Quanto a isso, não estou em condições de lhe dizer nada mais do que a primeira criatura que descobriu que podia tocar o mínimo com o polegar poderia ter dito das inumeráveis consequências de ato tão insignificante. Só o que posso garantir-lhe é que ainda perdura em mim a intensa sensação de paz, alegria e segurança, de que me senti possuído naquele momento de exaltação, e que o espetáculo da beleza do universo está tão vívido na minha lembrança como na ocasião em que meus olhos ficaram por ele ofuscados:
– Mas, Larry, certamente a sua concepção do Abso luto o obriga a acreditar que o mundo e sua beleza não passam de uma ilusão – criação de Maya.
– É um erro acreditar que os hindus consideram o mundo uma ilusão; não dizem isso; acham apenas que não é real no sentido em que o é o Absoluto. Maya é apenas uma invenção daqueles ardentes pensadores, para explicarem como o Infinito pode produzir o Finito. Samkara, o mais sábio de todos eles, declarou que era mistério insolúvel. Você vê, a dificuldade está em explicar por que haveria Brama – que é Ser, Bem-aventurança e Inteligência, que é imutável, que é eterno, que está perpetuamente em repouso, a quem nada falta e que não tem necessidade de coisa alguma, não conhecendo portanto nem alteração nem luta, que é perfeito –, por que haveria Brama de criar o mundo. Pois bem, se alguém faz esta pergunta, em geral lhe respondem que o Absoluto criou o mundo por esporte, sem objetivo de espécie alguma. Mas, ao pensar em inundações, fome, terremotos, furacões e todos os males a que está sujeita a humanidade, a gente se revolta com a ideia de que tanta coisa má tenha sido criada por divertimento. Shri Ganesha era bom demais para apoiar essa teoria; considerava o mundo como a expressão do Absoluto e o transbordamento de sua perfeição. Ensinava ele que Deus não pode deixar de criar, e que o mundo é a manifestação da sua natureza. Quando lhe perguntei por que motivo – uma vez que era a manifestação da natureza de um ser perfeito – o mundo era tão odioso, a ponto de fazer com que o melhor objetivo do homem fosse libertar-se de seus grilhões, Shri Ganesha me respondeu que as alegrias do mundo são transitórias e que somente o Infinito proporciona felicidade duradoura. Mas perpetuidade não faz com que o bom se torne melhor, nem faz o branco ficar mais branco. Mesmo que ao meio-dia a rosa perca a beleza que teve de madrugada, sua beleza naquele momento foi real. Nada no mundo é permanente, e somos tolos em desejar que uma coisa perdure, mas mais tolos ainda seríamos se não a apreciássemos enquanto a temos. Se mutabilidade é da essência da existência, nada mais natural do que fazer dela a premissa da nossa filosofia. Não podemos pisar duas vezes as mesmas águas de um rio, mas o rio corre continuamente e as outras águas que pisamos são também frescas e agradáveis.
Quando entraram na Índia pela primeira vez, os árias viram que o mundo que conhecemos não passa de uma semelhança do mundo que desconhecemos, mas souberam apreciar a sua beleza e encanto; somente séculos mais tarde, quando o esforço da conquista e o clima debilitante lhes sugaram a vitalidade, tornando-os vítimas das hordas invasoras, foi que viram apenas mal na vida, desejando ardentemente libertar-se do jugo da reencarnação. Por que motivo nós, ocidentais, e principalmente nós, americanos, havemos de temer a decadência e a morte, a fome e a sede, a velhice, a tristeza, a desilusão? É forte em nós o instinto de viver. Ali sentado na cabana de madeira, a fumar o meu cachimbo, mais do que em qualquer outra ocasião senti que vivia. Fervia em mim uma energia que queria ser despendida. Não era minha vocação abandonar o mundo e retirar-me ao claustro, e sim viver no mundo e amar as coisas do mundo, não por causa delas e sim por causa do Infinito que está nelas. Se naqueles momentos de êxtase eu realmente me unificara com o Absoluto, então, se fosse verdade o que eles diziam, nada poderia atingir-me e, depois de ter cumprido o karma da minha existência atual, eu não voltaria ao mundo. Tal pensamento consternou-me. Eu desejava viver, e tornar a viver. Estava disposto a aceitar fosse que vida fosse, com suas tristezas e dores; meu ardor, energia e curiosidade só poderiam satisfazer-se com uma vida após outra, e outra após outra.
Na manhã seguinte desci a montanha e no outro dia cheguei ao ashrama. Shri Ganesha admirou-se ao ver-me em trajes europeus. Eu os vestira no bangalã do guarda-florestal, antes de galgar a montanha, porque lá era fresco, e não pensara em trocá-los.
“Vim dizer-lhe adeus, mestre”, declarei. “Vou voltar para a minha gente.”
– Ele nada disse. Estava, como sempre, sentado de pernas cruzadas, na pele de tigre, sobre o estrado. Havia no ar um leve perfume de incenso, que se queimava no braseiro em frente dele. Estava só, como da primeira vez em que eu o vira. Fitou-me com expressão tão penetrante que me pareceu que podia ler o mais íntimo dos meus pensamentos. Vi que estava ciente do que acontecera.
“Está certo”, disse ele. “Você já esteve fora bastante tempo.”
– Ajoelhei-me e ele me deu a bênção. Quando me levantei, meus olhos estavam cheios de lágrimas. Homem nobre e santo.
Hei de sempre considerar um privilégio o fato de tê-lo conhecido. Despedi-me dos devotos. Alguns estavam lá havia anos; outros tinham chegado depois de mim. Deixei meus livros e outros objetos, achando que poderiam ser úteis a alguém e, com o meu saco de viagem às costas, vestindo as mesmas velhas calças e o paletó marrom com que chegara, com um topee amassado na cabeça, regressei à cidade. Uma semana mais tarde tomei o vapor em Bombaim e fui parar em Marselha.
Ficamos em silêncio, cada um de nós preocupado com os próprios pensamentos. Embora eu estivesse muito cansado, ainda havia uma coisa que queria saber. Fui, portanto, o primeiro a falar.
– Larry, meu velho, essa sua longa pesquisa começou com o problema do mal. Foi o problema do mal que o incitou. Até agora, nada do que você disse indica que tenha chegado nem mesmo perto de uma solução.
– Talvez não haja solução, ou talvez eu não seja bastante inteligente para encontrá-la. Ramakrishna considerava o mundo um esporte de Deus. “É como um jogo”, disse ele. “Nesse jogo há alegria e tristeza, virtude e vício, saber e ignorância, bem e mal... O jogo não poderá continuar se o pecado e a tristeza forem completamente banidos da criação.” Não concordo com tal teoria. A melhor sugestão que posso fazer é que, quando o Absoluto se manifestou no mundo, o mal era a natural correlação do bem. Sem o incalculável horror de uma convulsão na crosta terrestre, jamais teríamos tido a maravilhosa beleza do Himalaia. O artífice chinês que faz um vaso de porcelana finíssima pode dar-lhe um elegante formato, ornamentá-lo com belíssimos desenhos, colori-lo de lindos tons e dar-lhe lustre perfeito, mas, devido à própria natureza do vaso, não pode impedir que seja frágil. Se cair no chão, quebrar-se-á em inúmeros pedaços. Não acha você possível que, da mesma forma, os valores que prezamos neste mundo só possam existir combinados com o mal?
– É uma ideia engenhosa, Larry. Mas não creio que seja muito satisfatória.
– Nem eu – replicou sorrindo. – Mas quando a gente chega à conclusão de que uma coisa é inevitável, o melhor é conformar-se de cara alegre.
– Quais são, atualmente, os seus planos?
– Tenho que terminar um trabalho aqui e voltarei depois para a América.
– Para fazer o quê?
– Viver.
– Como?
Ele respondeu serenamente, mas com um brilho travesso no olhar, pois calculava perfeitamente a surpresa que sua resposta iria causar-me.
– Com calma, paciência, compaixão, abnegação e continência.
– Quanta coisa! – disse eu. – Mas por que continência? Você é moço, Larry; acha acertado abafar aquilo que, conjuntamente com a fome, é o mais forte instinto animal?
– Felizmente sou pessoa para quem o ato sexual é mais um prazer do que uma necessidade. Sei por experiência própria que nunca os sábios da Índia acertam tanto como quando afirmam que a castidade intensifica extraordinariamente o poder do espírito.
– Pensei que a sabedoria estivesse em estabelecer um equilíbrio entre as necessidades do corpo e as do espírito.
– Isto é justamente o que os hindus afirmam que nós, ocidentais, não fizemos. Acham que com nossas inúmeras invenções, fábricas, máquinas, e tudo o que elas produzem, procuramos a felicidade em coisas materiais, mas que a felicidade não está na matéria e sim nas coisas espirituais. E acham que o caminho que escolhemos conduz à destruição.
– E você acha que a América é lugar apropriado para pôr em prática as virtudes que acaba de mencionar?
– Não sei por que não. Vocês, europeus, nada conhecem da América. Pelo fato de amontoarmos grandes fortunas, acham que é só dinheiro que nos interessa. Pouco ligamos a ele; assim que o possuímos tratamos logo de gastá-lo, às vezes bem, às vezes mal, mas em todo caso o gastamos. Dinheiro nada significa para nós; é apenas o símbolo do sucesso. Somos os maiores idealistas do mundo; só que, no meu modo de pensar, pusemos o nosso ideal onde não devia estar; acho que o maior ideal que um homem possa ter é o seu próprio aperfeiçoamento.
– É um nobre ideal, Larry.
– Não acha que vale a pena tentar viver de acordo com ele?
– Mas por acaso acredita que você, um homem só, possa ter influência sobre um povo irrequieto, independente, intensamente individualista como é o povo americano? Seria mais fácil tentar deter com as mãos as águas do Mississippi.
– Não há mal em tentar. Foi um homem que inventou a roda; foi um homem que descobriu a lei da gravidade. Nada do que acontece deixa de ter consequência. Quando a gente atira uma pedra num tanque, o mundo não é exatamente o mesmo que era antes. É um erro pensar que aqueles homens santos da Índia levam vidas inúteis. São como luz a brilhar na escuridão. Representam um ideal que é um conforto para seus semelhantes; o vulgo pode não alcançar esse ideal, mas todos o respeitam e ele afeta a vida para sempre. A influência de um homem que se tornou puro e perfeito é tão grande, espalha-se de tal forma, que aqueles que buscam a verdade se sentem naturalmente atraídos para esse homem. É possível que a vida que pretendo levar afete a de outras pessoas; o resultado talvez não seja maior que a borbulha causada pela pedra atirada no tanque, mas uma borbulha produz outra, e esta uma terceira, e é possível que algumas pessoas vejam que o meu modo de viver proporciona felicidade e paz, e que por sua vez ensinem a outros o que aprenderam.
– Será que você imagina as dificuldades que terá que enfrentar, Larry? Faz muito tempo que, para abafar as opiniões que temiam, os filistinos abandonaram os instrumentos de tortura; descobriram muito mais perigosa arma de destruição – a zombaria.
– Sou um sujeito duro – sorriu Larry.
– Bom, só me resta dizer que é uma sorte você ter fortuna particular.
– Sim, tem me valido muito. Do contrário, eu não teria podido fazer o que fiz. Mas o meu aprendizado está findo. Daqui por diante ela será apenas um estorvo. Vou dispor dela.
– Seria uma leviandade. Independência financeira é a única coisa que pode tornar possível a vida que você pretende levar.
– Pelo contrário; independência financeira tiraria a essa vida toda a significação.
Não pude conter um gesto de impaciência.
– Isto talvez dê certo com o mendigo errante da Índia; pode dormir sob uma árvore, e é de boa vontade que, para adquirir mérito, os piedosos lhe enchem de comida a tigela de esmolas. Mas o clima da América está longe de ser favorável a noites ao ar livre e, embora eu não tenha a pretensão de conhecer bem a América, de uma coisa estou certo: seus compatriotas são unânimes em achar que quem quer comer tem que trabalhar. Meu pobre Larry, antes de você tomar impulso, já o teriam mandado como vagabundo para o asilo.
Ele riu.
– Sei disso. A gente tem de se adaptar ao ambiente e naturalmente pretendo trabalhar. Quando chegar à América, procurarei arranjar emprego em alguma garagem. Sou bom mecânico e não creio que isso seja difícil.
– Você não estaria despendendo energia que poderia ser mais utilmente aproveitada?
– Gosto do trabalho manual. Depois de temporadas em que me fartei de estudar, tenho sempre experimentado isto por algum tempo e achado que revigora o espírito. Lembro-me de que, ao ler uma biografia de Spinoza, achei tolice do autor considerar uma pena Spinoza ter que polir lentes para ganhar seu sustento. Garanto que isso auxiliava sua atividade intelectual; quando menos, distraía a sua atenção do árduo trabalho de pesquisa. Quando estou lavando um carro ou lidando com um carburador, tenho o espírito livre e, ao terminar, experimento a agradável sensação de ter feito alguma coisa. Claro que não quero ficar indefinidamente numa garagem. Faz muito tempo que saí emprego como chofer de caminhão; assim poderei, com o tempo, viajar de um lado ao outro do país.
– Talvez você se tenha esquecido da maior vantagem do dinheiro: economiza tempo. A vida é curta e há tanto para fazer que não podemos perder um só minuto. Pense no tempo desperdiçado para você ir a pé de um lugar a outro, em vez de ir de ônibus, ou indo de ônibus em vez de ir de táxi.
Larry sorriu.
– Tem razão; não tinha pensado nisso. Mas posso aparar a dificuldade tendo o meu próprio táxi.
– O que quer dizer com isso?
– Pretendo, mais tarde, fixar residência em Nova York, principalmente por causa das bibliotecas; não preciso de muito para viver, não faço questão de dormir aqui ou acolá e contento-me com uma refeição por dia; quando tiver visto da América tudo o que pretendo ver, provavelmente terei juntado bastante dinheiro para comprar um táxi e trabalhar como chofer.
– Você devia ser internado, Larry. Está louco varrido.
– Absolutamente. Sou muito sensato e muito prático. Como chofer de táxi não precisarei trabalhar mais que um certo número de horas, para ter cama e comida e me prevenir contra a depreciação do carro. Poderei dedicar o resto do tempo a outros trabalhos e, quando tiver pressa de ir a um ou outro lugar, sempre poderei ir no meu táxi.
– Mas, Larry, tanto quanto uma apólice do governo, um táxi é uma posse – disse eu para troçar com ele. – Como chofer de táxi você seria um capitalista.
Ele riu.
– Não; o meu táxi seria apenas um instrumento de trabalho, equivalente ao cajado ou à tigela de esmolas do mendigo errante.
Com essa nota de gracejo ficou encerrada a nossa conversa. Nos últimos momentos eu notara que ia chegando gente com mais frequência. Um homem em traje a rigor sentou-se não muito longe de nós e encomendou um pequeno almoço substancial. Tinha a expressão cansada, mas satisfeita, de quem relembra complacentemente uma noite entregue a passatempos amorosos. Alguns senhores idosos, madrugadores porque a velhice não carece de muito sono, tomavam o seu café au lait vagarosamente, lendo, através das grossas lentes dos óculos, o jornal da manhã. Moços, uns lépidos e bem-vestidos, outros metidos em surrados paletós, entravam apressados para devorar um pãozinho e engolir uma xícara de café, a caminho de uma loja ou de um escritório. Uma velha de rosto encarquilhado entrou com uma pilha de jornais e ofereceu-os de mesa em mesa, aparentemente sem resultado. Olhei pelas largas vitrinas da frente e vi que já era dia. Um ou dois minutos mais tarde alguém apagou as luzes elétricas do restaurante, com exceção da parte traseira. Olhei o meu relógio. Mais de sete horas!
– Que tal encomendarmos o nosso café da manhã? – sugeri a Larry.
Comemos croissants quentinhos e quebradiços, recém-saídos do forno, e tomamos café au lait. Eu estava cansado e sem energia e tinha certeza de que parecia um trapo, mas Larry estava mais animado do que nunca. Seus olhos brilhavam, não havia uma ruga no seu rosto, e ele não parecia ter mais de vinte e cinco anos. O café me reanimou.
– Permite que lhe dê um conselho, Larry? É coisa que raramente faço.
– É coisa que raramente aceito – replicou ele sorrindo.
– Promete refletir bastante antes de dispor dos poucos bens que possui? Quando os tiver perdido, estarão perdidos para sempre. Talvez chegue o dia em que você precise de dinheiro, ou para você ou para outras pessoas, e então se arrependerá de ter sido tão idiota.
Quando ele respondeu havia nos seus olhos um brilho de zombaria, mas sem malícia.
– Você dá mais importância ao dinheiro do que eu.
– Não duvido – respondi azedamente. – Você sempre o teve, e eu não. O dinheiro me deu aquilo que mais prezo no mundo: independência. Não imagina que prazer sinto em pensar que, se me desse na veneta, eu poderia mandar todo mundo às favas.
– Mas a questão é que não desejo mandar ninguém às favas – replicou Larry. – E, se o desejasse, não seria a falta de uma conta no banco que me impediria. O dinheiro para você significa liberdade; para mim significa escravidão.
– Você é um sujeito teimoso, Larry.
– Sei disso. Não é minha culpa. Em todo caso, terei bastante tempo para refletir, pois não vou para a América antes da primavera. O pintor Auguste Cottet, que é meu amigo, emprestou-me o seu bangalô, em Sanary, e pretendo lá passar o inverno.
Sanary é uma despretenciosa praia da Riviera, entre Bandol e Toulon, bastante frequentada por artistas e escritores que não apreciam a vistosa artificialidade de Saint-Tropez.
– Você gostará de lá, se não se importar de ficar num lugar triste como um cemitério.
– Terei bastante trabalho. Estive coligindo várias notas e vou escrever um livro.
– Sobre quê?
– Você verá quando for publicado – replicou ele sorrindo. – Se quiser mandar-me depois de terminado, creio que lhe poderei arranjar um editor.
– Não se incomode. Uns amigos meus, americanos, têm uma tipografiazinha em Paris e vão me imprimir o livro.
– Mas você não pode esperar que um livro publicado desta forma tenha saída, nem que os críticos se ocupem dele.
– Não faço questão de crítica e não espero que tenha saída. Vou mandar imprimir apenas o número suficiente para mandar aos meus amigos da Índia, e algumas pessoas aqui na França, a quem julgo que poderá interessar. Nada de muito importante. Vou escrevê-lo apenas para me livrar daquelas notas, e publicá-lo porque acho que a gente só pode julgar uma coisa depois de vê-la impressa.
– Acho que o seu ponto de vista está certo. Terminamos a refeição e pedi a nota ao garçom. Entreguei-a em seguida a Larry.
– Já que você vai atirar o seu dinheiro no lixo, pode perfeitamente pagar o meu café.
Ele riu e pagou. Eu estava com os membros duros de ficar sentado durante tanto tempo; doíam-me os lados quando saí do restaurante. Agradável respirar o ar puro daquela manhã de outono. Céu azul. A Avenue Clichy, sórdida à noite, tinha agora um ar garboso, lembrando a mulher pintada, abatida, que caminhasse com o passo vivo de uma moça – e a impressão nada tinha de desagradável. Fiz sinal a um táxi que passava.
– Quer que o deixe em algum lugar? – perguntei a Larry.
– Não. Vou descer até o Sena, para nadar numa daquelas casas de banho; irei depois até a Bibliothèque, pois tenho que colher uns dados.
Apertei-lhe a mão e observei-o quando atravessou a rua com seus passos largos, despreocupados. Quanto a voltei para o hotel. Quando entrei na minha saleta, vi que eram mais de oito horas.
“Bonita hora para um senhor idoso entrar em casa”, disse eu, em tom de censura, para a dama nua (sob a redoma) que desde o ano de 1813 estava deitada em cima do relógio, em posição que sempre considerei extremamente incômoda.
Ela continuou a contemplar, num espelho de bronze, o seu rosto de bronze, e só o que o relógio dizia era “tique, tique, tique”. Fui ao banheiro e abri a torneira de água quente. Depois de ter ficado no banho até a água amornar, enxuguei-me, tomei um comprimido para dormir e, levando para a cama Le Cimitière Marin de Valéry, que aconteceu estar no criado-mudo, li até pegar no sono.
Sete
Sete
4
Quando de novo passei por Paris, os Maturin já tinham partido e outras pessoas residiam no apartamento de Elliott. Sentia falta de Isabel. Ela agradava à vista e era pessoa com quem se tinha prazer em conversar. Pronta na resposta, e não levava nada a mal. Nunca mais a vi. Não sou amigo de escrever cartas nem Isabel era dada a isso. Quando não podia comunicar-se com uma pessoa por telefone ou telegrama, não se comunicava com ela. No Natal daquele ano recebi um cartão seu – uma bela casa com pórtico colonial, cercada por carvalhos, que tomei como sendo a casa da fazenda que eles tinham desejado vender quando precisavam do dinheiro, e que provavelmente agora tinham prazer de conservar. O carimbo indicava que viera de Dallas, de modo que deduzi que o negócio se concluíra satisfatoriamente e que estavam lá instalados.
Nunca estive em Dallas, mas não duvido que, a exemplo de outras cidades americanas que conheço, tenha o seu bairro residencial – a cômoda distância, de automóvel, do centro comercial e do country club – onde no meio de vastos jardins as famílias abastadas constroem seus lares, podendo-se apreciar, das janelas do living, a bela vista de um morro ou de um vale. Em tal bairro, e em tal casa, mobiliada à última moda, do porão ao sótão, pelo mais elegante decorador de Nova York, certamente vive Isabel. Desejo apenas que o seu Renoir, suas flores de Manet, sua paisagem de Monet e seu Gauguin não pareçam ali muito antiquados. A sala de jantar é provavelmente de tamanho adequado aos almoços que senhoras como ela dão frequentemente, e onde o vinho é bom e a comida excelente. Isabel aprendeu muito em Paris. Não se instalaria na casa, a não ser que de relance tivesse visto que o living serviria perfeitamente para as festas de debutantes que ela teria prazer em dar quando suas filhas ficassem mais velhas. Hoje Joan e Priscilla já devem estar em idade de casar. Tenho certeza de que receberam esmerada educação; frequentaram as melhores escolas, e Isabel fez questão de que não lhes faltassem as prendas que as tornariam desejáveis aos olhos dos moços casadoiros. Embora eu suponha que Gray deva estar mais vermelho, com maior papada, mais calvo e mais pesadão, não posso acreditar que Isabel tenha mudado. Ainda é mais bonita que as filhas. Os Maturin devem ser um dos orgulhos da comunidade e não duvido que gozem de merecida popularidade. Isabel é divertida, gentil, condescendente e fina; e Gray é, naturalmente, o tipo perfeito do Sujeito Igual.
1
Seis meses mais tarde, em abril, estava eu certa manhã escrevendo no meu escritório, no sótão da minha casa, em Cap Ferrat, quando uma criada veio me avisar que a polícia de St. Jean (a aldeia vizinha) estava embaixo e desejava ver-me. Fiquei aborrecido com a interrupção e sem poder atinar com o motivo da visita. Tinha a consciência tranquila e já assinara na sua lista de caridade. Recebera por isso um cartão, que eu guardava no carro para que, se me fizessem parar por excesso de velocidade ou me encontrassem estacionado em lugar proibido, eu pudesse disfarçadamente fazer com que o vissem, ao apresentar minha carta de chofer, escapando assim com uma indulgente recomendação de cautela. Achei mais provável que um de meus empregados tivesse sido vítima de uma carta anônima – um dos prazeres da vida na França! – por não ter os documentos em ordem; mas, estando eu em bons termos com os polícias do lugar, que nunca tinham saído de minha casa sem o reconforto de um copo de vinho, não previ grandes dificuldades. Mas os dois policiais, pois trabalhavam aos pares, tinham vindo por motivo bem diverso.
Depois de nos termos apertado a mão, indagando quem chamavam brigadier e que tinha um dos mais respeitáveis bigodes que jamais vi, tirou do bolso um caderno de notas, virando as páginas com o sujo polegar.
– O nome de Sophie Macdonald significa alguma coisa para o senhor? – indagou ele.
– Conheço uma pessoa com este nome – respondi cautelosamente.
– Acabamos de nos comunicar por telefone com a delegacia de Toulon, e o inspetor-chefe lhe pede para ali comparecer (vaus prie de vaus y rendre) sem demora.
– Por que motivo? – perguntei. – Conheci mrs. Macdonald muito ligeiramente.
Conclui que Sophie estava metida em alguma complicação, provavelmente relacionada com ópio, mas não vi razão para me envolver no caso.
– Isto não é comigo – replicou o polícia. – Está provado que o senhor conheceu esta mulher. Parece que fez cinco dias que ela desapareceu de casa e agora tiraram da baía um corpo que a polícia julga ser o dela. Querem que o senhor o identifique.
Um calafrio percorreu-me a espinha. Não fiquei, no entanto, excessivamente admirado. Nada mais natural que, com a vida que levava, num momento de desespero Sophie tivesse desejado a morte.
– Mas com toda a certeza poderão identificá-la por suas roupas e documentos.
– Santo Deus! – exclamei horrorizado. Refleti durante alguns segundos. Provavelmente a polícia poderia obrigar-me a ir e era preferível aceder de boa vontade. – Está certo, tomarei o primeiro trem que puder – acrescentei.
Examinei o horário dos trens e vi que havia um que me faria chegar a Toulon entre cinco e seis horas. O brigadier disse que avisaria o inspetor-chefe e pediu-me que da estação fosse diretamente para a delegacia. Não trabalhei mais naquela manhã. Enfiei algumas roupas numa maleta e depois do almoço fui para a estação.
2
Quando me apresentei na delegacia central, em Toulon, fizeram-me entrar imediatamente para o gabinete do inspetor-chefe. Estava sentado a uma mesa: sujeito pesado, moreno, de aparência taciturna. Corso, pensei. Feriu-me, talvez pela força do hábito, com um olhar suspeitoso, mas ao notar a fita da Legião de Honra que eu tivera a precaução de colocar na lapela, com um sorriso untuoso convidou-me a sentar, desculpando-se profusamente por ter sido obrigado a incomodar pessoa tão distinta. Adotando o mesmo tom, asseverei-lhe de que nada me causava maior prazer do que o fato de lhe poder ser útil. Chegamos então ao que importava e ele reassumiu a sua atitude brusca, insolente mesmo. Olhando os documentos à sua frente, disse:
– Negócio sórdido. Parece que esta tal Macdonald tinha péssima reputação. Era bêbada, viciada em drogas e ninfômana. Costumava dormir não somente com os marinheiros que chegavam ao porto mas com a ralé da cidade. Como se explica que uma pessoa como o senhor, de sua idade e respeitabilidade, conhecesse um tipo desses?
Tive vontade de dizer-lhe que não era da sua conta, mas graças à paciente leitura de centenas de romances policiais aprendi que vale a pena a gente estar de bem com a polícia.
– Conheci-a muito ligeiramente – respondi. – Foi-me apresentada em Chicago, quando era ainda mocinha, tendo depois casado com um rapaz de boa posição. Encontrei-a de novo em Paris, no ano passado, por intermédio de amigos comuns.
Estivera procurando adivinhar de que maneira chegara o inspetor a me associar com Sophie, mas nisto ele empurrou um livro para a frente.
– Este livro foi encontrado no quarto dela. Se tiver a bondade de examinar a dedicatória, verá que absolutamente não indica que suas relações com a morta fossem tão superficiais como o senhor quer dar a entender.
Vi que se tratava da tradução do meu romance que Sophie vira na vitrina de uma livraria, pedindo-me para autografá-la. Sob o meu nome eu escrevera: “Mignonne, allons voir si la rase”, por ter sido a primeira coisa a me ocorrer. Parecia realmente um tanto íntimo...
– Se o senhor está insinuando que fui seu amante, engana-se redondamente.
– Não seria da minha conta – replicou o inspetor. E depois, com um brilho nos olhos: – E, sem querer absolutamente ofendê-lo, devo acrescentar que, pelo que ouvi dela, não creio que o senhor fosse o seu tipo. Mas é evidente que não iria dizer mignonne a uma desconhecida.
– Esta frase, monsieur le commissaire, é a primeira de uma célebre poesia de Ronsard, cujas obras garanto que um homem da sua educação e cultura não desconhece. Escrevi-a por ter quase certeza de que ela já lera a poesia e se lembraria dos versos seguintes, que lhe dariam a entender que a vida que levava era, no mínimo, indiscreta.
– Claro que li Ronsard no colégio, mas com todo trabalho que tenho, confesso que os versos a que se refere me fogem à memória.
Recitei a primeira estrofe, certo de que ele nunca ouvira o nome do poeta até o momento em que eu o citara, e não receando, portanto, que se lembrasse da última, que está longe de poder ser considerada como um estímulo à virtude.
– Aparentemente ela era mulher de certa educação. Encontramos inúmeros romances policiais no seu quarto e dois ou três livros de poesia. Havia um de Baudelaire e outro de Rimbaud e um terceiro de um inglês chamado Elliott. É conhecido?
– Muito.
– Não tenho tempo para ler poesia. Além do mais, não leio em inglês. Se ele é bom poeta, é pena que não escreva em francês, para que as pessoas instruídas possam lê-lo.
A ideia de ver o meu inspetor-chefe lendo The Waste Land encheu-me de gozo. De repente ele empurrou um instantâneo para o meu lado e perguntou:
– Sabe por acaso quem é esta pessoa?
Reconheci Larry imediatamente. Estava em traje de banho e creio que a fotografia, bem recente, fora tirada em Dinard, naquele verão em que ele lá estivera ao mesmo tempo que Isabel e Gray. Meu primeiro impulso foi dizer que não sabia quem era, pois nada me seria mais desagradável do que envolver Larry naquele detestável incidente; mas refleti que, se a polícia lhe descobrisse a identidade, a minha negativa faria parecer que eu achava que havia alguma coisa a ocultar.
– É um cidadão americano chamado Laurence Darrell.
– Foi a única fotografia encontrada entre os objetos da mulher. Qual a ligação entre eles?
– Eram ambos da mesma cidade, perto de Chicago. Foram companheiros de infância.
– Mas esta fotografia foi tirada, relativamente há pouco tempo, numa praia no norte ou oeste da França, creio eu. Quem é este indivíduo?
– Um escritor – respondi ousadamente. O inspetor ergueu levemente as sobrancelhas e percebi que não tinha em grande conta a moralidade dos membros da minha profissão. – Com fortuna própria – acrescentei, para dar um ar mais respeitável.
– Onde está ele agora?
Tive novamente a tentação de dizer que não sabia, mas achei que isto só serviria para piorar a situação. A polícia francesa pode ter muitas falhas, mas seu sistema lhe permite encontrar sem demora seja lá quem for.
– Está morando em Sanary – respondi.
O inspetor ergueu o olhar, visivelmente interessado.
– Onde?
Eu me lembrara que Larry me dissera que Auguste Cottet lhe emprestara o bangalô, e no Natal, ao voltar, escrevi-lhe convidando-o para passar uns dias comigo; mas, aliás como eu previra, ele recusou. Dei ao inspetor o seu endereço.
– Telefonarei para Sanary, para que o tragam aqui. Talvez valha a pena interrogá-lo.
Ocorreu-me que o inspetor julgara ter encontrado um suspeito. Tive vontade de rir; estava convencido de que não seria difícil a Larry provar que nada tivera com o caso. Estava aflito por saber mais alguma coisa do fim trágico de Sophie, mas o inspetor apenas me contou, um pouco mais detalhadamente, aquilo que eu já sabia. Dois pescadores tinham trazido o corpo. O policial da minha aldeia exagerara romanticamente ao afirmar que ela estava completamente nua. O assassino lhe deixara a cinta e a brassière. Se Sophie estivera vestida da mesma maneira em que eu a vira da última vez, bastara ao assassino tirar-lhe a calça comprida e o suéter. Não havendo coisa alguma que a identificasse, a polícia pusera uma notícia no jornal. Isto provocara o comparecimento, na delegacia, de uma mulher que tinha, numa ruela escusa, uma espécie de pensão, que os franceses chamam de maison de passe, onde os homens podem levar mulheres ou rapazinhos. Ela era paga pela polícia, que queria saber quem lhe frequentara a casa, e para quê. Sophie fora expulsa do hotel do cais onde morava quando eu a encontrara, pois o seu procedimento acabara por escandalizar até mesmo o tolerante proprietário. Propusera alugar um quarto e uma saleta na casa da mulher a que me referi. Era mais vantajoso alugá-los duas ou três vezes por noite, pelo espaço de algumas horas, mas Sophie oferecera preço tão alto que a mulher consentira em alugar por mês. A dona da casa compareceu na polícia para avisar que fazia cinco dias que sua inquilina desaparecera; não se preocupava com isso, pensando que ela fora a Marselha ou Villefranche, onde ultimamente tinham chegado navios da esquadra inglesa, acontecimento que sempre atraía as mulheres, velhas e moças, de todo litoral; mas depois lera a descrição da morta, no jornal, e achara que podia aplicar-se à sua inquilina. Tinham-na levado para identificar o cadáver e depois de ligeira hesitação ela afirmara tratar-se de Sophie Macdonald.
– Mas, se o cadáver foi identificado, para que então precisam de mim? – perguntei.
– Madame Bellet é uma mulher muito respeitável e de ótimo caráter, mas talvez tenha, para identificar o cadáver, razões que desconhecemos; em todo caso acho que a morta deva ser vista por pessoa com quem tenha tido contato mais íntimo, para que haja confirmação.
– Há probabilidade de encontrar o assassino? O inspetor encolheu os ombros maciços.
– Estamos, naturalmente, investigando. Interrogamos inúmeras pessoas, nos bares que ela costumava frequentar. É possível que tenha sido assassinada por algum marinheiro ciumento cujo navio já deixou o porto, ou por algum bandido que quisesse roubar o que ela tivesse consigo. Pelo que ouvi dizer, sempre carregava uma quantia que pareceria importante a um homem dessa classe. É possível que algumas pessoas desconfiem de quem é o culpado, mas nos círculos em que ela se movia é pouco provável que alguém fale, a não ser que veja nisso vantagem. Convivendo com o tipo de gente com quem convivia, não é de admirar que tenha tido tal fim.
A isso nada pude responder. O inspetor pediu-me que voltasse na manhã seguinte às nove horas, pois até lá já teria conversado com o “cavalheiro da fotografia”; depois um policial nos conduziria ao necrotério, para vermos o cadáver.
– E quanto ao enterro?
– Se, depois de identificarem o corpo, os senhores o reclamarem como amigos da morta, estando dispostos a fazer frente às despesas do enterro, a necessária autorização lhes será dada.
– Posso garantir-lhe que mr. Darrell e eu gostaríamos de ter essa autorização o mais depressa possível.
– Compreendo perfeitamente. É um fato muito triste, e é preferível que a pobre mulher descanse em paz sem demora. Isto me faz lembrar que tenho aqui o cartão de um agente funerário que arranjará tudo com presteza e a preços razoáveis. Vou escrever uma linha, para que ele lhes dê o máximo de atenção.
Tinha eu certeza de que o digno inspetor ia ganhar sobre isso uma comissão, mas agradeci-lhe calorosamente e, depois de ele me ter acompanhado até a porta com mostras de grande consideração, fui procurar o endereço indicado. O agente era vivo e eficiente. Escolhi um caixão, nem o mais barato nem o mais caro, e aceitei o seu oferecimento de me encomendar duas ou três coroas num florista seu conhecido – “para poupar a monsieur um dever penoso e em homenagem à morta”, disse ele – e combinei para o carro fúnebre estar no necrotério no dia seguinte, às duas horas. Não pude deixar de admirar a eficiência do homem quando me assegurou que não precisaria ter trabalho de procurar uma sepultura; ele faria tudo que fosse necessário; e “provavelmente madame era protestante”, de modo que, se eu assim o desejasse, providenciaria para que um pastor estivesse à espera no cemitério, para ler o ofício dos mortos. Mas, sendo eu um desconhecido, e estrangeiro, tinha ele certeza de que eu não me ofenderia se me pedisse um cheque adiantado. Disse uma cifra maior do que eu esperara, pensando naturalmente que eu iria pechinchar, mas percebi no seu rosto uma expressão de surpresa, talvez mesmo de decepção, quando puxei meu livro de cheques e enchi um, sem hesitar.
Tomei quarto num hotel e no dia seguinte voltei à delegacia. Fizeram-me esperar durante algum tempo; vieram depois dizer-me que podia entrar no gabinete do chefe. Vi Larry, sério e tristonho na cadeira onde eu me sentara na véspera. O inspetor cumprimentou-me alegremente, como se fôssemos velhos companheiros.
– Bom, mon cher monsieur, seu amigo respondeu a todas as perguntas que era de meu dever fazer-lhe. Não tenho motivo para duvidar de sua afirmação, que há dezoito meses não vê a pobre mulher. Prestou conta, de maneira que me satisfez, dos seus atos na semana passada, tendo também explicado a razão de ter sido a sua fotografia encontrada no quarto da vítima. Foi tirada em Dinard e aconteceu tê-la no bolso, num dia em que almoçaram juntos. De Sanary deram-me ótimas informações desse rapaz; além do mais, digo-o sem vaidade, considero-me bom juiz das criaturas; estou convencido de que seria incapaz de cometer um crime dessa natureza. Ousei dar-lhe os meus pêsames pelo fato de ter uma sua companheira de infância, educada com todas as vantagens de uma sadia vida de família, tido fim tão lamentável. Mas é assim a vida. E agora, prezados senhores, um dos meus homens os acompanhará ao necrotério; depois de terem identificado o cadáver, poderão dispor do seu tempo à vontade. Desejo-lhes um bom almoço. Tenho aqui um cartão do melhor restaurante de Toulon; vou apenas escrever uma linha, para que o patron os trate com a máxima consideração. Uma garrafa de vinho lhe fará bem, depois de tão desagradável acontecimento.
O homem desmanchava-se agora em amabilidades. Fomos a pé até o necrotério, acompanhados de um polícia. O movimento ali era dos maiores. Apenas um corpo, numa das mesas. Aproximamo-nos e o encarregado lhe descobriu a cabeça. Espetáculo em nada agradável. A água do mar alisara os cabelos platinados agora colados ao crânio. Rosto terrivelmente intumescido, horrível de se ver; mas não havia dúvida de que era Sophie. O empregado abaixou o lençol para exibir aquilo que teríamos preferido não ter visto, o pavoroso corte no pescoço, indo de orelha a orelha.
Voltamos para a delegacia. O inspetor-chefe estava ocupado, mas dissemos ao seu auxiliar o que tínhamos que dizer; ele nos deixou na sala, voltando dali a pouco com os documentos necessários, que fomos levar ao agente funerário.
– Vamos agora tomar qualquer coisa – sugeri.
Larry não pronunciara uma palavra desde que tínhamos saído da delegacia para o necrotério, a não ser quando lá voltamos, para declarar que identificava o corpo como sendo o de Sophie Macdonald. Levei-o para o cais e sentei-me no café onde me sentara com ela. Soprava um forte mistral e a baía em geral tão lisa estava salpicada de espuma branca. Os barcos de pesca baloiçavam-se suavemente. O sol brilhava esplendorosamente e, como sempre acontece quando há mistral, todos os objetos pareciam mais nítidos, como se fossem vistos através de lentes admiravelmente focalizadas. Emprestava uma vitalidade latejante, enervante, a tudo que a gente via. Tomei conhaque com soda, mas Larry não tocou no que eu encomendara para ele. Continuou em tristonho silêncio, que eu não quis perturbar.
Mais tarde consultei o relógio.
– É melhor irmos comer qualquer coisa – disse eu. – Temos que estar no necrotério às duas horas.
– Estou com fome; não tomei nada de manhã. Achando, pela aparência do inspetor, que ele devia saber onde se comia bem, levei Larry ao restaurante por ele indicado.
Como Larry raramente provava carne, encomendei uma omelete e lagosta grelhada; pedi em seguida a lista dos vinhos, escolhendo, ainda a conselho do inspetor, um vinho velho de boa qualidade.
Quando veio a garrafa, enchi o copo de Larry.
– Com os diabos, beba um pouco – disse eu. – Talvez lhe dê um pouco mais de assunto.
Ele me atendeu obedientemente.
– Shri Ganesha costumava dizer que o silêncio também é conversa – murmurou.
– Isto faz lembrar uma alegre reunião social dos mui intelectuais lentes da Universidade de Cambridge.
– Infelizmente acho que você terá que aguentar sozinho as despesas do enterro – disse Larry. – Não tenho dinheiro.
– Estou de pleno acordo – respondi. Nisso percebi o verdadeiro significado de suas palavras. – Não me diga que você fez mesmo o que disse que ia fazer?
Ele não respondeu imediatamente. Notei o brilho caçoísta do seu olhar.
– Você não dispôs de sua fortuna? – perguntei.
– Até o último níquel, com exceção do necessário para me aguentar até o meu vapor chegar.
– Que vapor?
– O dono do bangalô pegado ao meu, em Sanary, é agente, em Marselha, de uma linha de vapores de carga, que vão do Oriente Próximo para Nova York. Mandaram-lhe um cabograma, de Alexandria, dizendo que tinham sido obrigados a deixar lá dois marinheiros doentes, que vinham para Marselha, e pediram-lhe que arranjasse dois substitutos. Ele é meu camarada e me prometeu que eu seria um deles. Vou dar-lhe o meu velho Citroën, como presente de despedida. Ao chegar a bordo não terei nada mais que as roupas do corpo e algumas coisas que vou levar numa maleta.
– Bom, o dinheiro é seu. Você é maior e livre.
– Livre exprime bem. Nunca me senti mais feliz nem mais independente em toda a vida. Ao chegar a Nova York terei o meu ordenado, viverei com isso até arranjar emprego.
– E o seu livro?
– Oh! está pronto e impresso. Fiz uma lista das pessoas a quem quero que sejam enviados exemplares, e você deve receber um deles dentro de um ou dois dias.
– Obrigado.
Não tínhamos muita coisa para dizer e terminamos a refeição em agradável silêncio. Pedi café. Larry acendeu o cachimbo e eu um cigarro. Fitei-o, pensativo. Ele sentiu o meu olhar e me relanceou o seu, onde havia um fulgor brejeiro.
– Se está com vontade de dizer que sou um idiota, não faça cerimônia. Não me importo, absolutamente.
– Não, não tenho essa vontade. Estou apenas imaginando se sua vida não teria seguido um curso mais normal se você se tivesse casado e tido filhos como todo mundo.
Ele sorriu. Devo ter comentado pelo menos vinte vezes a beleza do seu sorriso, tão natural, confiante e doce, refletindo a candura, a sinceridade de sua ótima índole; mas faço-o novamente, pois agora, além de tudo isso, havia nele um quê de terno e melancólico.
– É tarde demais para isso. A única mulher com quem poderia ter me casado foi a coitada da Sophie.
Fitei-o, atônito.
– Você ainda diz isso, depois de tudo o que aconteceu?
– Sophie tinha uma bela alma – ardente, sonhadora e generosa. Seus ideais eram sinceros. Houve mesmo uma trágica nobreza na maneira com que procurou a destruição.
Fiquei em silêncio, sem saber o que dizer a tão estranhas afirmações.
– Por que motivo não se casou com ela?
– Era uma criança. Para ser franco, quando eu ia até a casa do seu avô para lermos poesia, juntos, sob o olmo, nunca me ocorreu que naquela menina magricela existisse a semente da beleza espiritual.
Estranhei que neste momento ele não mencionasse Isabel. Afinal de contas, tinham sido noivos. Mas talvez considerasse o episódio como tolice, sem consequência, de duas crianças que não tinham sabido o que queriam. Estava eu certo de que nunca lhe passara pela cabeça que Isabel se consumia de amor por ele.
Estava na hora. Fomos a pé até o largo onde Larry deixara o seu carro, agora bem surrado, e dirigimo-nos para o necrotério. O agente funerário cumpriu a sua palavra. A eficiência com que tudo foi feito, sob aquele céu brilhante, com o vento forte a dobrar os ciprestes no cemitério, acrescentou uma nota ainda mais trágica aos acontecimentos. Depois de tudo terminado, o homem nos apertou cordialmente a mão.
– Bom, cavalheiros, espero que estejam satisfeitos. Correu tudo muito bem.
– Muito bem – concordei.
– Monsieur não se esqueça de que estou sempre à sua disposição, se precisar dos meus serviços. Distância não é obstáculo.
Agradeci-lhe. Ao chegarmos ao portão do cemitério, Larry perguntou-me se eu precisava dele para mais alguma coisa.
– Não.
– Gostaria de voltar para Sanary o mais depressa possível.
– Deixe-me no meu hotel, sim?
Não trocamos uma palavra durante o trajeto. Quando chegamos, desci. Apertei-lhe a mão e ele seguiu o seu caminho. Paguei a conta, apanhei minha maleta e tomei um táxi até a estação. Também eu desejava partir.
3
Dias mais tarde segui para a Inglaterra. Minha intenção era ir diretamente, mas depois do que acontecera eu fazia questão de ver Isabel; resolvi, portanto, passar vinte e quatro horas em Paris. Telegrafei perguntando se poderia vê-la de tarde e ficar para o jantar. Ao chegar a meu hotel encontrei um bilhete seu, dizendo que ela e Gray iam jantar fora, mas que teria muito prazer em receber-me se eu não fosse antes das cinco e meia, pois tinha hora marcada na costureira.
Fazia frio e de vez em quando caía uma pancada forte, de modo que achei que Gray não teria ido jogar golfe em Mortefontaine. Isso não me convinha, pois desejava ver Isabel a sós; mas assim que cheguei ao apartamento ela me contou que Gray fora jogar bridge no clube.
– Disse-lhe que não viesse muito tarde, se quisesse estar com você. Só vamos jantar às nove, o que quer dizer que não precisamos chegar lá antes de nove e meia, de modo que temos bastante tempo para conversar. Tenho muita coisa para lhe contar.
Eles tinham sublocado o apartamento, e a venda dos objetos de Elliott devia realizar-se dali a quinze dias. Querendo estar presente, iam passar alguns dias no Ritz.
Embarcariam depois para a América. Isabel pretendia vender tudo, a não ser os quadros modernos que Elliott tivera em sua casa de Antibes. Embora não os apreciasse grandemente, achava, e com razão, que iriam dar valor ao seu futuro lar.
– Pena o coitado do tio Elliott não ter sido mais adiantado. Picasso, Matisse e Ronault, você sabe. Creio que seus quadros são bons, até certo ponto, mas receio que vão parecer um tanto fora de moda.
– Se eu fosse você, não me preocuparia com isso, Isabel. Outros pintores daqui a alguns anos, e Picasso e Matisse não parecerão mais modernos do que os seus impressionistas.
As negociações de Gray estavam quase concluídas; com o capital fornecido por Isabel ele ia entrar, como vice-presidente, num negócio que estava em pleno desenvolvimento – qualquer coisa relacionada com petróleo. Iam morar em Dallas.
– A primeira coisa que faremos será procurar uma casa. Quero um bom jardim, para Gray ter com que se distrair quando voltar do trabalho, e eu preciso de uma sala bem grande para poder receber.
– Não sei por que não leva a mobília de Elliott.
– Não creio que ficasse bem. Quero tudo moderno, talvez com qualquer coisa de mexicano aqui e ali, para dar uma nota diferente. Assim que chegar a Nova York, vou procurar saber quem é o decorador da moda.
Antoine, o criado, entrou com uma bandeja cheia de garrafas. Com o seu tato habitual, não ignorando que quase todos os homens estão convencidos de que sabem preparar um coquetel melhor do que qualquer mulher (e com razão), Isabel me pediu que fizesse a mistura. Verti o gim e o Noilly-Prat, e acrescentei uma gota de absinto que transforma o corriqueiro martíni seco em bebida pela qual os deuses do Olimpo indubitavelmente teriam abandonado o néctar do seu fabrico – bebida essa que sempre imaginei muito parecida com Coca-Cola. Ao entregar a Isabel o seu coquetel, notei um livro sobre a mesa.
– Olá, o livro de Larry – exclamei.
– Sim, chegou hoje de manhã. Mas tenho andado tão ocupada, tinha mil coisas para fazer antes do almoço, e ainda ia almoçar fora, e à tarde tinha que experimentar o meu vestido em Molyneux, que não sei quando poderei lê-lo.
Pensei com amargura que um escritor passa meses escrevendo um livro, pondo talvez nele seu coração e seu sangue, e depois ele fica jogado sobre uma mesa, para ser lido quando a pessoa não tiverem nada de melhor para fazer. Era um volume de trezentas páginas, bem impresso e bem encadernado.
– Com certeza você sabe que Larry passou em Sanary todo inverno? Viu-o, por acaso? – perguntou-me Isabel.
– Sim, estivemos juntos, um dia destes, em Toulon.
– Verdade? O que foram fazer lá?
– Enterrar Sophie.
– Ela morreu? – exclamou Isabel.
– Se não tivesse morrido, não haveria razão para a enterrarmos.
– Não acho graça. – Isabel fez uma pequena pausa. E depois:
– Não vou fingir que sinto a sua morte. Resultado de álcool e drogas, com certeza.
– Não; foi degolada e atirada no mar completamente nua.
Assim como o brigadier de St. Jean, não resisti à tentação de exagerar um pouco a sua nudez.
– Que horror! Coitadinha. Claro que com a vida que levava tinha que acabar mal.
– Foi o que o comissaire de police de Toulon disse.
– Sabem quem é o culpado?
– Não; mas eu sei. Acho que foi você quem a matou. Isabel lançou-me um olhar admirado.
– O que é que você está dizendo? – Depois, com a sombra de um sorriso: – Adivinhe novamente; tenho um ótimo álibi.
– Encontrei-me com ela, em Toulon, no verão passado. Tivemos uma longa conversa.
– Estava sóbria?
– Mais ou menos. Contou-me como fora que desaparecera tão estranhamente dias antes da data marcada para o casamento.
Notei que o rosto de Isabel enrijeceu. Continuei a falar, contando-lhe exatamente o que Sophie me contara. Ela ouvia com ar cauteloso.
– Tenho refletido muito sobre essa história e, quanto mais reflito, mais convencido fico de que há nela qualquer coisa de esquisito. Almocei aqui vinte vezes, e ao almoço nunca você serviu licores. Você almoçara sozinha naquele dia. Por que motivo estaria uma garrafa de zubrovka na bandeja do café?
– O tio Elliott acabara de mandar-me. Eu queria ver se era mesmo tão gostoso como me parecera no Ritz.
– Sim, agora me lembro do seu entusiasmo. Fiquei admirado; e mais ainda porque você nunca toma licor
– zela demais pela sua silhueta para arriscar-se a isso. Minha impressão foi que você estava tentando Sophie. Achei que era pura maldade.
– Agradecida.
– Em geral você é muito pontual. Por que teria saído de casa quando estava esperando Sophie para uma coisa tão importante para ela, e tão interessante para você, como a última prova de um vestido de casamento?
– Ela mesma lhe disse. Eu estava preocupada com os dentes de Joan. Nosso dentista tem enorme clientela e tive que aceitar a hora que ele me deu.
– Quando uma pessoa vai ao dentista, em geral já marca hora para a próxima vez.
– Realmente. Mas ele me telefonou de manhã, dizendo que precisava mudar minha hora e perguntando se eupoderia ir naquela tarde, às três; e eu, naturalmente, não quis perder a ocasião.
– A governanta não poderia ter levado Joan?
– Ela estava com medo, a coitadinha; eu sabia que ficaria mais contente se eu fosse.
– E você não ficou admirada quando voltou e viu a garrafa de zubrovka pela metade, tendo Sophie desaparecido?
– Julguei que se cansara de esperar e fora sozinha a Molyneux. Fiquei sem saber o que pensar, quando lá me disseram que ela não aparecera.
– E o zubrovka?
– Pois bem, notei que grande parte sumira; pensei que Antoine o tivesse bebido e quase lhe falei sobre isso, mas ele era pago pelo tio Elliott e era amigo de Joseph, de modo que achei melhor ignorar o fato. É um ótimo empregado e, se de vez em quando toma um traguinho, que mal há nisso?
– Como você é mentirosa, Isabel.
– Não acredita em mim?
– Absolutamente.
Isabel levantou-se e foi para perto da lareira. O fogo estava aceso, o que era agradável em dia tão sombrio. Ela apoiou o braço no beiral, numa atitude graciosa, que um dos seus maiores dons lhe permitia assumir sem que parecesse intencional. Como muitas senhoras francesas para o seu tipo, e naquela ocasião estava com um vestido de elegante simplicidade que realçava a elegância da sua silhueta. Tirou uma baforada do cigarro.
– Não há motivo para eu não ser franca com você – disse ela. – Foi uma pena eu ter que sair e naturalmente Antoine não devia ter deixado o licor e o café na sala. Quando voltei e vi a garrafa quase vazia, percebi naturalmente o que acontecera; e quando Sophie não apareceu mais, achei que tinha caído na farra. Não disse nada a Larry porque ele já estava preocupado e isso iria aborrecê-lo mais ainda.
– Tem certeza de que a garrafa não ficou ali por expressa ordem sua?
– Tenho.
– Não acredito.
– Pois então não acredite! – Isabel atirou furiosamente o cigarro no fogo; seus olhos estavam negros de cólera.
– Pois bem, se quer saber a verdade, saiba-a e vá para o inferno! Fiz de propósito e tornaria a fazê-lo. Não se lembra então que eu disse que estava disposta a tudo para impedir que ela se casasse com Larry? Você não queria fazer nada, nem tampouco Gray. Apenas encolhiam os ombros e diziam que era um grande erro. Vocês não ligavam a mínima. Eu ligava.
– Se você a tivesse deixado em paz ela ainda estaria viva.
– E casada com Larry, que seria profundamente infeliz. Ele pensou que pudesse regenerá-la. Que idiotas são os homens! Eu sabia que cedo ou tarde ela cairia novamente. Isto saltava aos olhos. Você mesmo deve ter notado como estava nervosa no almoço do Ritz. Percebi que você a observava, quando ela tomou o café; estava tão trêmula que teve que segurar a xícara com as duas mãos. Viu como olhava o vinho, quando o garçom nos servia? Seguia a garrafa com aqueles seus pavorosos olhos aguados, como uma serpente a acompanhar os movimentos de uma franguinha nova; e eu teria jurado que ela venderia a alma por um trago.
Isabel estava agora de frente para mim; seus olhos chispavam de cólera, sua voz era dura, áspera. As palavras não lhe saíam com a rapidez desejada.
– A ideia me ocorreu quando o tio Elliott fez tamanho escarcéu sobre aquela maldita bebida polonesa. Achei-a péssima, mas fingi que era a coisa mais deliciosa deste mundo. Tinha certeza de que, se Sophie pilhasse uma oportunidade, não saberia resistir-lhe. Foi por isso que a levei ao desfile de modelos. Foi por isso que lhe ofereci o vestido de casamento. Naquele dia da última prova eu disse a Antoine que queria tomar zubrovka depois do almoço. Avisei-o que estava esperando uma senhora, recomendando-lhe que lhe pedisse que esperasse por mim e lhe oferecesse café e, caso ela tivesse vontade, um cálice de licor. Levei realmente Joan ao dentista, mas claro que não tínhamos hora marcada e ele não pôde atender-nos, de modo que fomos a um cinema. Eu estava resolvida, se Sophie não tivesse tocado na bebida, a me conformar e procurar ser sua amiga. Juro que é verdade. Mas, quando cheguei em casa e vi a garrafa, compenetrei-me de que agira acertadamente. Ela sumira e eu estava pronta a apostar fosse o que fosse que sumira de uma vez.
Isabel parou, ofegante.
– Foi mais ou menos o que imaginei – disse eu. – Vê, pois, que eu tinha razão; você é tão responsável pela sua morte como se tivesse empunhado a faca que lhe cortou o pescoço.
– Ela era má, má, má. Estou contente por saber que morreu. – Isabel atirou-se numa cadeira. – Dê-me um coquetel, e vá para o inferno.
Levantei-me e preparei outro coquetel.
– Você é um miserável – disse ela ao agarrar o copo. Depois permitiu que um sorriso lhe aflorasse aos lábios. Sorriso de criança que sabe que foi travessa, mas que acha que com o seu encanto pode desarmar qualquer um. – Você não contará a Larry, não é mesmo?
– É coisa que nunca me passaria pela cabeça.
– Jura? Os homens são tão pouco dignos de confiança!
– Prometo-lhe que não. Mas, mesmo que quisesse contar, não teria oportunidade, pois creio que nunca mais tornarei a vê-lo.
Ela endireitou-se na cadeira.
– O que está dizendo?
– Neste momento Larry está num cargueiro, como marujo ou como estivador, a caminho de Nova York.
– Não me diga! Estranha criatura! Esteve aqui há algumas semanas, para ver na Biblioteca Pública qualquer coisa que se relacionava com o seu livro, mas nada disse sobre a ida à América. Boa notícia; quer dizer que podemos vê-lo de vez em quando.
– Duvido. A América de Larry estará tão distante da sua como o deserto de Gobi.
Contei-lhe então o que havia ele feito e o que pretendia ainda fazer. Isabel ouviu-me boquiaberta. Na sua fisionomia estava estampada a consternação. De vez em quando me interrompia com uma exclamação: “Ele está louco. Ele está louco”. Quando terminei ela abaixou a cabeça e duas lágrimas correram-lhe pelas faces.
– Agora, sim, de fato o perdi.
Virou a cabeça e, encostando a face no espaldar da cadeira, chorou. Seu belo rosto estava contorcido por uma dor que ela não se dava ao trabalho de ocultar. Eu nada podia fazer. Não sei que vãs, que contrastantes esperanças ela acalentara, que as minhas notícias vinham agora esfacelar. Ocorreu-me vagamente que o fato de vê-lo de vez em quando, de saber que ele pertencia ao seu mundo, fora para Isabel um elo, embora frágil, que com o seu procedimento Larry finalmente quebrara, de modo que ela agora se sentia para sempre despojada. Que vão arrependimento a afligiria? Far-lhe-ia bem chorar. Apanhei o livro de Larry e examinei o índice. Meu exemplar não havia ainda chegado quando eu saíra da Riviera e só me seria dado vê-lo dali a muitos dias. Não era absolutamente o tipo de livro que eu esperara. Coleção de ensaios mais ou menos do mesmo tamanho dos de Lytton Strachey em Eminent Victorians, sobre pessoas famosas. A escolha de Larry deixou-me perplexo. Havia um de Sila, ditador romano que, tendo conseguido o poder absoluto, abdicou para levar vida retirada; um de Akbar, conquistador mongol, que obteve um império; um de Rubens, um de Goethe e um sobre Lord Chesterfield das Cartas. Claro que cada um desses ensaios o obrigara a enorme esforço de leitura e não me admirei de Larry ter levado tanto tempo para escrever o seu livro, mas não vi razão para ter achado que valia a pena dedicar-lhe tanto tempo, nem para estudar especialmente aqueles homens. Depois me ocorreu que à sua maneira cada um deles tinha tido imenso sucesso na vida e pareceu-me que fora isso que interessara Larry. Ele ficara curioso para ver qual fora, no fim, o resultado.
Virei uma página para ver como escrevia. Estilo caprichado, mas claro e fluente. Nada da pretensão e pedantismo que tantas vezes caracterizam a obra do amador. Via-se que frequentara os melhores autores com a mesma assiduidade com que Elliott frequentara a alta sociedade. Um suspiro de Isabel interrompeu-me. Ela endireitou-se na cadeira e com uma careta terminou o coquetel, agora morno.
– Se eu não parar de chorar, meus olhos vão ficar pavorosos, e hoje temos que jantar fora. – Tirou um espelho da bolsa e examinou ansiosamente o rosto. – Sim, meia hora de descanso com uma bolsa de gelo sobre os olhos é do que estou precisando. – Empoou o rosto e avivou os lábios. Depois me fitou pensativa. – Você vai ficar com pior opinião de mim por causa disto?
– Você se importaria?
– Por mais estranho que lhe pareça, sim, eu me importaria. Quero que você pense bem de mim.
Dei uma risada.
– Querida, sou uma criatura muito imoral – respondi.
– Quando gosto realmente de uma pessoa, embora deplore seus atos maus, nem por isso deixo de gostar dela. Você no fundo não é má, e é graciosa e sedutora. Não aprecio menos a sua beleza pelo fato de saber quanto ela deve à feliz combinação de um gosto perfeito e uma vontade de ferro. Você só carece de uma coisa para ser com pletamente encantadora.
Ela sorriu e esperou.
– Meiguice – terminei.
O sorriso gelou nos seus lábios e ela me atirou um olhar que nada tinha de suave; mas, antes que pudesse voltar a si e dar-me uma resposta, Gray entrou pesadamente na sala. Naqueles três anos vividos em Paris, Gray engordara consideravelmente, seu rosto tornara-se mais vermelho, os cabelos mais raros, mas ele estava muito bem de saúde e deveras animado. Mostrou sincero prazer ao ver-me. A conversa de Gray era composta de clichês. Por mais surrados que fossem, pronunciava-os com a evidente convicção de que era a primeira pessoa a pensar neles. Gray nunca ia para a cama, e sim para os braços de Morfeu, onde pretendia dormir o sono dos justos; se estava chovendo, chovia canivetes; e até o fim Paris foi para ele a Cidade-Luz. Mas era tão bondoso, desprendido, correto e digno de confiança, tão simples, que era impossível a gente não gostar dele. Eu sentia verdadeira afeição por Gray. Estava excitado com a próxima partida.
– Céus, vai ser bom recomeçar a trabalhar – disse ele.
– Já estou de novo sentindo o gostinho da luta.
– Está então tudo decidido?
– Ainda não assinei na linha de pontinhos, mas está no papo. O rapaz com quem vou entrar foi meu companheiro de quarto no colégio, e é um sujeito igual; tenho certeza de que não me faria uma ursada. Mas, assim que chegar a Nova York, vou de avião para o Texas, para examinar de perto o negócio; ficarei de olhos abertos, antes de espirrar os cobres de Isabel, para ter certeza de que ali não há dente de coelho.
– Saiba que Gray é um bom negociante – disse-me Isabel.
– Não nasci ontem – sorriu ele.
Começou a falar, um tanto longamente, sobre o negócio em que ia entrar; mas pouco entendo desses assuntos e o único fato concreto que percebi foi que ia ter oportunidade de ganhar muito dinheiro. Interessou-se tanto pelo que dizia, que dali a pouco se voltou para Isabel:
– Escute aqui, por que não damos o fora nessa droga de festa e não vamos a um jantar correto, nós três, no Tour d’Argent?
– Oh! meu bem, não podemos fazer uma coisa dessas. A festa é em nossa honra.
– Além do mais, agora já eu não poderia ir – interrompi. – Quando soube que vocês estavam comprometidos para esta noite, telefonei a Suzanne Rouvier e combinamos sair juntos.
– Quem é Suzanne Rouvier? – perguntou Isabel.
– Uma das garotas de Larry – respondi para troçar com ela.
– Sempre desconfiei que Larry tivesse uma loirinha escondida em algum canto – disse Gray com a risada gostosa dos gordos.
– Tolice – disse bruscamente Isabel. – Conheço toda a vida sexual de Larry. Não existe.
– Bom, vamos então tomar mais um drinque, antes de nos separarmos – sugeriu Gray.
Foi o que fizemos; depois me despedi. Acompanharam-me até o vestíbulo; enquanto eu vestia o sobretudo, Isabel enfiou o braço no do marido e, aconchegando-se a ele, fitou-o com expressão que imitava perfeitamente a meiguice que eu a acusara de não ter.
– Diga-me, Gray – com toda a franqueza –, acha que sou dura?
– Não, querida, pelo contrário. Por quê? Alguém andou dizendo isso?
– Não.
Isabel virou o rosto de forma a não ser vista por ele e, em mímica que Elliott teria certamente achado muito pouco elegante, mostrou-me a língua.
– Não é a mesma coisa – murmurei quando saí, fechando a porta atrás de mim.
5
Continuei a ver Suzanne Rouvier de tempos em tempos, até que uma inesperada mudança na sua condição de vida a obrigou a sair de Paris, e também ela desapareceu da minha vida. Certa tarde, mais ou menos dois anos depois dos acontecimentos que acabo de relatar, após ter passado uma hora agradável examinando livros nas galerias do Odéon, não tendo nada que fazer no momento, resolvi visitar Suzanne. Fazia seis meses que não a via. Ela abriu a porta, de palheta na mão e pincel entre os dentes, metida num avental manchado de tinta.
– Ah, c‘est vous, cher ami. Entrez, je vous en prie. Fiquei admirado com essa cerimoniosa maneira de me receber, pois geralmente nos tratávamos por tu e não por vous, mas entrei no aposento que servia tanto de sala como de estúdio. Vi uma tela no cavalete.
– Estou tão ocupada que nem sei para onde me virar; mas sente-se, que continuarei a trabalhar. Não posso perder um só momento. Você talvez não acredite, mas vou fazer, sozinha, uma exposição em Meyerheim e preciso aprontar trinta quadros.
– Em Meyerheim? Ótimo! Mas como foi que o conseguiu? Minha surpresa era justificada, pois Meyerheim não é um desses intermediários da Rue de Seine que têm uma lojinha sempre na iminência de fechar, por falta de dinheiro para o aluguel. Meyerheim tem uma bela galeria do lado endinheirado do Sena e sua reputação é internacional. O artista que conta com sua proteção está a caminho da fortuna.
– Monsieur Achille trouxe-o para ver os meus trabalhos e ele acha que tenho muito talento.
– À d’autres, ma vieille – repliquei, e creio que para isso a melhor tradução seria: “Vá contar isso ao bispo, menina”.
Ela me olhou de soslaio e riu baixinho.
– Vou casar-me.
– Com Meyerheim?
– Não seja idiota. – Suzanne largou da palheta e dos pincéis e disse: – Trabalhei o dia todo e mereço descansar um pouco. Vamos tomar um cálice de Porto que lhe contarei tudo como foi.
Uma das características menos agradáveis da vida na França é a gente correr o risco de ter que aceitar um avinagrado vinho do Porto nas horas mais impróprias. A gente tem que se resignar. Suzanne foi buscar uma garrafa e dois cálices, encheu-os e sentou-se com um suspiro de alívio.
– Estou de pé há horas e minhas varizes estão doendo. Pois bem, eis o que aconteceu. A esposa de monsieur Achille morreu no princípio deste ano. Era boa mulher e boa católica, mas não foi um casamento de amor, e sim de interesse; embora a estimasse e respeitasse, seria exagero dizer que a viuvez o deixou inconsolável. Seu filho está casado e vai indo bem na firma; agora a filha ficou noiva de um conde, belga, é verdade, mas autêntico, que tem um belo castelo nas vizinhanças de Namur. Monsieur Achille achou que sua pobre esposa não havia de querer que a felicidade de duas pessoas fosse adiada por sua causa, de modo que, apesar do luto, o casamento se realizará assim que terminarem os arranjos financeiros. Claro que monsieur Achille vai sentir-se muito só naquela casa de Lille, e precisará de uma mulher, não somente para zelar pelo seu conforto, como para dirigir a casa de acordo com a sua posição. Em resumo, pediu-me para tomar o lugar de sua pobre esposa, pois, como ele muito bem disse, “Casei-me da primeira vez para eliminar a competição entre duas firmas rivais e disso não me arrependo, mas não vejo razão para não me casar da segunda pelo meu prazer pessoal”.
– Parabéns – disse eu.
– Claro que vou sentir falta da minha liberdade; aproveitei-a bastante. Mas a gente tem que pensar no futuro. Cá entre nós, não me importo de lhe confessar que já passei dos quarenta. Monsieur Achille está numa idade perigosa; onde iria eu parar se de repente ele se lembrasse de correr atrás de uma mocinha de vinte anos? Além do mais, tenho que pensar na minha filha. Está com dezesseis anos e promete ser tão bonita como o pai. Dei-lhe uma boa educação, mas não adianta a gente querer tapar o sol com uma peneira; ela não tem talento para ser artista, nem temperamento para ser uma mundana como sua pobre mãe. Diga-me, então: qual o seu futuro? Um lugar de secretária ou um empreguinho no Correio. Generosamente, monsieur Achille concordou em que ela venha morar conosco e prometeu dar-lhe um belo dote, para que possa fazer um bom casamento. Creia-me, amigo, os outros podem dizer o que quiserem, mas o casamento continua sendo a melhor profissão para a mulher. Claro que, estando em jogo o futuro de minha filha, eu não podia deixar de aceitar a proposta, muito embora sacrificando certos prazeres que, à medida que os anos forem passando, terei mais dificuldade em obter. Sim, senhor, pois faço questão de lhe dizer que depois de casada pretendo ser de uma virtude a toda prova (d’une vertu farouche), pois a longa experiência me ensinou que a melhor garantia de felicidade, no casamento, é a fidelidade mútua.
– Sentimento muito nobre, minha bela – disse eu. – E monsieur Achille continuará fazendo suas visitas quinzenais a Paris?
– Oh la la, por quem me toma, queridinho? A primeira coisa que eu disse a monsieur Achille, quando pediu a minha mão, foi: “Escute aqui, meu bem, quando você vier a Paris, para as suas reuniões de diretoria, fica desde já assentado que eu também virei. Não vou deixá-lo solto aqui sozinho”. E ele respondeu: “Espero que você não pense que vou fazer loucuras na minha idade”. “Monsieur Achille”, repliquei, “você é um homem ainda em pleno vigor, e ninguém melhor do que eu conhece o seu temperamento apaixonado. Você tem um belo físico e um ar distinto; tem tudo para agradar a uma mulher. Em resumo, acho preferível que não se exponha à tentação.” Finalmente ele concordou em dar seu lugar na diretoria ao filho que virá a Paris no lugar do pai. Monsieur Achille fingiu que me achava desarrazoada, mas na realidade ficou muitíssimo lisonjeado. – Suzanne soltou um suspiro satisfeito. – A vida seria dura para nós, pobres mulheres, se não fosse a incrível vaidade dos homens.
– Tudo isto é muito bonito, mas qual a relação com a sua exposição em Meyerheim?
– Você está hoje um pouco obtuso, amigo. Não lhe estou dizendo, há anos, que monsieur Achille é um homem muito inteligente? Tem que pensar em sua posição, e o povo de Lille é exigente. Monsieur Achille quer que eu tome na sociedade o lugar que, como esposa de um homem importante, terei o direito de ocupar. Você sabe como são esses provincianos; gostam de meter o nariz nos negócios dos outros e a primeira coisa que vão perguntar será: Quem é Suzanne Rouvier? Pois bem, terão a sua resposta. É a distinta pintora que, em recente exposição na Galeria Meyerheim, obteve extraordinário e merecido sucesso. “Com a coragem que caracteriza nossas mulheres francesas, madame Suzanne Rouvier, viúva de um oficial do Exército colonial, com o seu talento durante anos sustentou-se a si e à sua encantadora filha prematuramente privada da proteção do pai, e é com prazer que anunciamos que breve o público terá ocasião de apreciar a delicadeza das suas pinceladas, e a firmeza da sua técnica, nas galerias do sempre perspicaz monsieur Meyerheim.”
– Que baboseira é essa? – perguntei, subitamente alerta.
– Isto, meu caro, é a antecipada propaganda que monsieur Achille está fazendo. Aparecerá em todos os jornais importantes da França. Ele foi admirável. Os termos de Meyerheim são onerosos, mas monsieur Achille aceitou-os como se fossem uma bagatela. Haverá champagne d’honneur no vernissage e o ministro da Educação, que deve favores a monsieur Achille, inaugurará a exposição com um eloquente discurso, no qual fará elogiosas referências às minhas virtudes como mulher e ao meu talento como artista, e terminará participando que o estado, cujo dever e privilégio é recompensar o mérito, comprou um de meus quadros para a coleção nacional. Toda Paris comparecerá; Meyerheim se encarregou pessoalmente dos críticos. Garantiu-me que as notícias serão não somente favoráveis, mas extensas. Os pobres coitados são tão mal remunerados que é uma caridade dar-lhes oportunidade de ganhar um pouco por fora.
– Você merece tudo isso, querida. Sempre foi boa pessoa.
– Et ta soeur – replicou ela, que é intraduzível. – Mas ainda não acabei. Monsieur Achille comprou em meu nome uma vila na costa de St. Rafael, de modo que tomarei meu lugar na sociedade de Lille não somente como conhecida artista, mas como pessoa de recursos. Daqui a dois ou três anos ele pretende aposentar-se; iremos então viver na Riviera como gente fina (comme des gens bien). Ele poderá remar no mar e pescar camarões, ao passo que eu me dedicarei à minha arte. Venha agora ver os meus quadros.
Havia anos que Suzanne estava pintando, tendo-se servido nas escolas de todos os seus amantes para chegar a um estilo próprio. Continuava não sabendo desenhar, mas adquirira boa noção de colorido. Mostrou-me paisagens que pintara durante as visitas feitas à mãe, na província de Anjou, trechos dos jardins de Versailles e da floresta de Fontainebleau, cenas de rua que lhe tinham chamado a atenção nos subúrbios de Paris. Sua pintura era vaporosa e impalpável, mas tinha uma graça leve e até mesmo uma certa despreocupada elegância. Houve um quadro que me agradou e, achando que ela ia ficar satisfeita, ofereci-me para comprá-la. Não me lembro se se chamava Clareira na Floresta ou Echarpe Branca e um exame posterior me deixou até hoje na incerteza. Perguntei o preço, que achei razoável, e disse que ficaria com o quadro.
– Você é um anjo! – exclamou Suzanne. – Minha primeira venda. Claro que só poderá retirá-lo depois da exposição, mas farei com que os jornais deem a notícia de que foi comprado por você. Afinal de contas, um pouco de publicidade não lhe fará mal. Estou satisfeita por você ter escolhido este; acho que é um dos melhores. – Apanhou um espelho e examinou o reflexo do quadro. – Tem encanto – continuou, apertando os olhos. – Isso ninguém pode negar. E esses verdes... que riqueza e que delicadeza! E aquela nota branca no meio, um verdadeiro achado; finaliza a obra, dá-lhe distinção. Ali há talento, disso não há dúvida; verdadeiro talento.
Vi que Suzanne estava bem adiantada no caminho que trilham os pintores profissionais.
– E agora, queridinho, já tagarelamos bastante; tenho que continuar a trabalhar.
– E eu tenho que ir caminhando.
– A propósito, o coitado do Larry ainda está lá no meio dos peles-vermelhas?
Sim, era dessa maneira desrespeitosa que habitualmente ela se referia aos habitantes do País Dileto de Deus.
– Sim, pelo que me consta.
– Deve ser duro para pessoa tão meiga e delicada como ele. Se formos acreditar no cinema, a vida lá deve ser terrível, com todos aqueles gangsters e cowboys e mexicanos. Não digo que os cowboys não tenham certa atração física que bole com a gente. Oh la la! Mas parece que é perigosíssimo uma pessoa aventurar-se nas ruas de Nova York sem um revólver no bolso.
Ela me acompanhou até a porta e beijou-me em ambas as faces.
– Passamos horas agradáveis juntos. Guarde de mim uma boa recordação.
6
Aqui termina a minha história. Não tive mais notícias de Larry nem esperei tê-las. Já que geralmente ele cumpria o que dizia, acho provável que, ao chegar à América, tenha arranjado emprego numa garagem, indo depois guiar um caminhão até ficar conhecendo, como queria, a pátria da qual se ausentara durante tantos anos. É bem possível que tenha, depois, posto em prática a louca ideia de se tornar chofer de táxi; verdade que foi apenas uma sugestão atirada a esmo através de uma mesa de café, mas não me admiraria se a levasse a cabo – e em Nova York nunca tomei um táxi sem relancear o olhar para o chofer, na esperança de encontrar o sorriso grave e os olhos encovados de Larry. Rebentou a guerra. Ele já não estaria em idade de voar, mas é provável que se pusesse de novo a guiar um caminhão, em sua pátria ou fora dela; ou talvez esteja trabalhando numa fábrica. Apraz-me supor que, nas horas de lazer, ele esteja escrevendo um livro, no qual procurará registrar seja o que for que a vida lhe ensinou, e também a mensagem que deseja transmitir a seus semelhantes: assim sendo, talvez ainda demore a terminá-lo. Tem muito tempo, pois nele os anos não deixaram marca, e para todos os efeitos Larry ainda é um moço.
Não tem ambição, nem desejo de se tornar célebre; distinguir-se aos olhos do público lhe seria sumamente desagradável; é, portanto, admissível que se contente em levar a vida que escolheu e ser apenas ele mesmo. É excessivamente modesto para se patentear como exemplo aos olhos dos outros: mas é possível que julgue que algumas almas indecisas – para ele atraídas como mariposas para a chama – chegarão, com o tempo, a compartilhar de sua maravilhosa crença de que a verdadeira felicidade só pode ser encontrada nas coisas do espírito, e que esteja convencido de que, trilhando com abnegação e renúncia o caminho da perfeição, está praticando o bem tão positivamente como se estivesse escrevendo livros ou discursando a multidões.
Mas tudo isso são hipóteses. Sou desta terra, e terrestre; é-me apenas dado admirar o esplendor de tão rara criatura; não posso assumir-lhe a personalidade e devassar-lhe a alma, como às vezes creio poder fazer com pessoas mais parecidas com o comum dos homens. Conforme o seu desejo, Larry incorporou-se naquela tumultuosa conglomeração de criaturas entregues a interesses tão contraditórios, perdidas na confusão do mundo, tão amantes do bem, tão arrogantes na aparência, tão tímidas no íntimo, tão boas, tão duras, tão confiantes e tão desconfiadas, tão mesquinhas e tão generosas, que formam o povo dos Estados Unidos. É só o que posso dizer dele; reconheço que é muito pouco satisfatório; o que posso eu fazer?... Mas, ao terminar este livro com a incômoda sensação de que tenho que deixar o meu leitor no ar, e não vendo maneira de evitar o mal, percorri com os olhos do espírito esta minha longa narrativa, a ver se poderia ter inventado melhor fim, e com surpresa verifiquei que, sem a menor intenção, eu não escrevera nada mais nada menos que uma história de sucessos. Sim, pois todas as pessoas de quem me ocupei conseguiram o que almejaram: Elliott, prestígio social; Isabel, boa posição, garantida por sólida fortuna, numa comunidade ativa e culta; Gray, um emprego certo e bem remunerado, com um escritório onde pode trabalhar das nove às seis, todos os dias; Suzanne Rouvier, segurança; Sophie, a morte; e Larry, a felicidade. E, por mais desdenhosas que sejam as críticas dos intelectuais, nós, o público, no fundo do coração, amamos uma história que acaba bem. Donde se conclui que talvez o meu final não seja assim tão pouco satisfatório.
5
Tínhamos combinado o encontro no apartamento, para um coquetel. Cheguei antes de Larry. Eu ia levá-los a um restaurante elegantíssimo e esperei encontrar Isabel ataviada para a ocasião; como todas as mulheres esmerando-se ao máximo, achei que ela não havia de querer ser ofuscada. Mas encontrei-a com um vestido de lã muito simples.
– Gray está com uma das suas terríveis dores de cabeça – disse ela. – Está sofrendo horrores. Não posso absolutamente deixá-lo. Disse à cozinheira que podia sair assim que desse o jantar das crianças, de modo que tenho que fazer qualquer coisa para ele, e ver se o obrigo a comer. É melhor você e Larry irem sozinhos.
– Gray está deitado?
– Não; nunca quer ir para a cama quando tem uma dessas enxaquecas. Só Deus sabe que é onde deveria estar, mas não adianta a gente insistir. Está na biblioteca.
A biblioteca era uma sala com lambris, toda em marrom e ouro, que Elliott descobrira num velho castelo. Um gradil dourado, sempre fechado, resguardava os livros de quem os quisesse ler; mas talvez fosse melhor assim, uma vez que, pela maior parte, consistiam em obras pornográficas, ilustradas, do século xviii. Modernamente encadernadas de marroquim, conseguiram, no entanto, um belíssimo efeito. Isabel levou-me até lá. Gray estava todo dobrado na cadeira; notei várias revistas espalhadas no chão, a seus pés. Tinha os olhos fechados e seu rosto habitualmente vermelho estava lívido. Via-se claramente que sofria muito. Procurou levantar-se, mas detive-o.
– Já lhe deu uma aspirina? – perguntei a Isabel.
– Não adianta nada. Tenho uma receita americana, mas também pouco serve.
– Oh! não se incomode, meu bem – disse Gray. – Amanhã estarei bom. – Tentou sorrir e, virando-se para mim, acrescentou: – Sinto muito ser um desmancha-prazeres. Vão vocês ao Bois.
– Nem se cogita disso – exclamou Isabel. – Acha então que eu me divertiria sabendo que você estava sofrendo horrores?
– Coitada da sujeitinha, acho que ela gosta mesmo de mim – disse Gray, de olhos fechados.
Nisto seu rosto se contraiu; quase se podia ver a dor lancinante que lhe atravessou a cabeça. A porta abriu-se e Larry apareceu. Isabel contou-lhe o que havia.
– Oh! sinto muito – disse ele, lançando a Gray um olhar de comiseração. – Não se pode fazer alguma coisa para aliviá-lo?
– Nada – respondeu Gray, ainda de olhos fechados. – A única coisá que podem fazer é deixar-me só; vão vocês e divirtam-se bastante.
Por mim achei que era a única coisa sensata a fazer, mas talvez a consciência de Isabel não lhe permitisse agir assim.
– Quer que eu veja se posso ajudá-lo? – perguntou Larry.
– Ninguém pode ajudar-me – disse Gray em voz cansada. – Isto está me matando e, por Deus, às vezes chego a desejar que me mate mesmo.
– Enganei-me ao dizer que talvez pudesse ajudá-la. Minha intenção era dizer que talvez eu pudesse ajudá-lo a ajudar-se a si próprio.
Gray abriu lentamente as pálpebras e fitou Larry.
– Como é que você pode fazer isso?
Larry tirou do bolso uma moeda de prata e entregou-a a Gray.
– Feche bem os dedos e conserve a mão de palma para baixo. Não lute contra mim. Não faça esforço, mas segure a moeda no punho fechado. Antes de eu ter contado vinte, sua mão se abrirá e a moeda cairá no chão.
Gray fez o que lhe diziam. Larry sentou-se à escrivaninha e começou a contar. Isabel e eu continuamos de pé. Um, dois, três, quatro. Até ele chegar a quinze, não houve movimento por parte de Gray; depois a mão tremeu ligeiramente e, não posso dizer que tenha visto, mas pareceu-me que os dedos se afrouxavam. O polegar separou-se do punho. Vi distintamente os dedos moverem-se. Quando Larry chegou a dezenove, a moeda soltou-se da mão de Gray e rolou pelo chão, vindo parar a meus pés. Apanhei-a e examinei-a. Era pesada e malfeita, tendo de um lado, em relevo, uma cabeça jovem que reconheci como sendo de Alexandre, o Grande. Gray olhou perplexo para a sua mão.
– Não soltei a moeda – disse ele. – Caiu por si mesma. Estava sentado com o braço direito apoiado no braço da poltrona de couro.
– Você se sente confortável nesta cadeira? – perguntou Larry.
– O mais confortável possível para quem tem a enxaqueca que eu tenho.
– Pois bem, relaxe os músculos. Fique à vontade. Não faça coisa alguma. Não resista. Antes de eu ter contado vinte, seu braço direito se levantará da cadeira até chegar em cima da cabeça. Um, dois, três, quatro.
Ele dizia os números lentamente, naquela sua voz argentina, melodiosa; quando chegou ao número nove, vimos a mão de Gray erguer-se, de maneira apenas perceptível, mais ou menos três centímetros acima da superfície de couro onde descansava, aí parando pelo espaço de um segundo.
– Dez, onze, doze.
Um repuxãozinho e então, lentamente, todo o braço começou a erguer-se. Já não estava apoiado na poltrona. Um tanto atemorizada, Isabel agarrou a minha mão. Curioso, aquilo. Não se parecia absolutamente com um movimento voluntário. Nunca vi um sonâmbulo em ação, mas imagino que seus movimentos se assemelham aos movimentos do braço de Gray naquele momento. Não se tinha a impressão de que a vontade fosse a força motriz. Achei que, por um esforço consciente, devia ser difícil erguer um braço tão devagar e assim gradualmente. Era como se uma força subconsciente, independente da vontade, o levantasse. Movimento semelhante ao do pistão que se move lentamente num cilindro.
– Quinze, dezesseis, dezessete.
As palavras caíam, lentas, lentas, lentas, como gotas-d’água numa bacia, provindo de uma torneira defeituosa. O braço de Gray subiu, subiu, até a mão pairar acima da cabeça; e, quando Larry atingiu o número determinado, caiu pesadamente sobre a poltrona.
– Não levantei o braço – afirmou Gray. – Não pude evitar que subisse daquele jeito. Ergueu-se por si mesmo.
Um sorriso esboçou-se nos lábios de Larry.
– Não tem importância. Achei que isto faria com que você tivesse confiança em mim. Onde está aquela moeda grega?
Entreguei-a a Larry e ele virou-se para Gray.
– Segure-a com força. – Gray fez o que lhe mandavam e Larry consultou o seu relógio. – São oito horas e treze minutos. Daqui a sessenta segundos, suas pálpebras se tornarão tão pesadas que você será obrigado a fechá-las. Você vai dormir durante seis minutos. Às oito e vinte acordará e não sentirá mais dor alguma.
Nem eu nem Isabel falamos. Nossos olhos estavam fixos em Larry. Ele nada mais disse. Fitou Gray, mas não parecia vê-lo; parecia mesmo estar olhando através e além dele. Havia qualquer coisa de sobrenatural no silêncio que caiu sobre nós; tal o silêncio das flores num jardim, ao cair da noite. Subitamente senti a mão de Isabel contrair-se; olhei então para Gray. Suas pálpebras estavam cerradas; respirava com facilidade e regularmente; dormia. Ali ficamos por um tempo que pareceu interminável. Eu estava louco por um cigarro, mas não quis acender um. Larry estava imóvel, de olhos perdidos não sei em que distância. A não ser pelo fato de estarem abertos, ele parecia em transe. De repente pareceu relaxar-se; os olhos adquiriram a expressão normal e ele consultou o relógio. Nisto Gray abriu os olhos.
– Céus, creio que cochilei – disse ele. Depois teve um sobressalto. Notei que seu rosto perdera a lividez. – Minha dor de cabeça passou.
– Ótimo – disse Larry. – Fume um cigarro e vamos depois jantar.
– É um milagre. Sinto-me perfeitamente bem. Como é que você conseguiu isso?
– Não fui eu. Foi você mesmo.
Isabel foi trocar de vestido e enquanto isso Gray e eu tomamos um coquetel. Evidentemente Larry não queria discutir o fato, mas Gray insistiu em comentá-lo. Não podia compreender o que se passara.
– Sabe, não pensei que você pudesse conseguir coisa alguma – disse ele. – Concordei porque estava indisposto demais para resistir.
Começou a descrever o princípio das enxaquecas, seu horroroso sofrimento e o estado de inutilidade em que ficava depois que elas passavam. Achava incompreensível sentir-se agora tão disposto. Isabel voltou. Pusera um vestido que eu ainda não conhecia; chegava até o chão e era de uma fazenda branca chamada marocain, levemente enfeitada de tule preto. Não pude deixar de pensar que ela nos iria fazer honra.
O Château de Madrid estava muito alegre, e nós de ótimo humor. Larry conversou com uma espirituosa vivacidade que eu não estava habituado a ver-lhe, dizendo tolices que muito nos fizeram rir. Tive a impressão de que assim agia para que nos esquecêssemos da demonstração que dera do seu extraordinário poder. Mas Isabel era uma mulher decidida. Estava disposta a brincar enquanto isso lhe conviesse, mas não iria deixar insatisfeita a sua curiosidade. Terminado o jantar, quando nos serviram café e licores, achando talvez que a conversa íntima, a comida gostosa e o copo de vinho que Larry tomara lhe tinham enfraquecido a resistência, Isabel fitou-o com olhos brilhantes.
– Conte-nos agora como foi que você curou a dor de cabeça de Gray.
– Você viu com seus próprios olhos – respondeu ele sorrindo.
– Foi na Índia que você aprendeu isso?
– Foi.
– Gray sofre horrores. Você acha que poderia curá-lo definitivamente?
– Não sei. É possível que sim.
– Isto faria uma diferença enorme na vida dele. Gray não pode pretender um bom emprego, sabendo que é capaz de ficar incapacitado para o trabalho durante quarenta e oito horas ou mais. E nunca será feliz, a não ser que volte a trabalhar.
– Bom, eu não posso fazer milagres.
– Mas foi um milagre. Vi-o com meus próprios olhos.
– Não, não foi. Apenas enfiei uma ideia na cabeça do velho Gray e ele fez o resto. – Larry virou-se para Gray e perguntou: – Que é que você vai fazer amanhã?
– Jogar golfe.
– Aparecerei então ali pelas seis horas e daremos uma prosinha. – Depois, virando-se para Isabel com seu sorriso insinuante, acrescentou: – Há dez anos que não danço com você, Isabel. Quer ver se ainda sei?...
6
Depois disso vimos Larry muitas vezes. Na semana seguinte ele veio ao apartamento todos os dias, fechando-se durante meia hora com Gray na biblioteca. Parece que queria persuadi-lo – era assim que ele se exprimia, sorrindo – a não ter aquelas pavorosas enxaquecas. Gray ficou com uma confiança cega nele. Pelo pouco que me contou, percebi que Larry estava também procurando fazer com que readquirisse confiança em si. Dez dias depois Gray teve outra enxaqueca, mas aconteceu que Larry só ficara de aparecer à tarde. Não foi muito forte, mas Gray tinha agora tanta confiança no estranho poder de Larry que achava que, se pudessem encontrá-lo, em poucos minutos ele o curaria. Mas nem eu, a quem Isabel telefonou, nem eles sabíamos onde procurá-lo. Quando finalmente Larry apareceu, dando alívio a Gray, este lhe pediu o seu endereço, para o caso de novamente precisar dele com urgência. Larry sorriu.
– Telefone para o American Express e deixe o recado. Telefonarei para lá todas as manhãs.
Mais tarde Isabel me perguntou por que motivo Larry fazia tanto segredo de sua residência. Isto já acontecera antes, e depois se verificara que ele estivera morando, sem mistério algum, num hotel de terceira classe do Quartier Latin.
– Não tenho a mínima ideia – respondi. – Só posso apresentar uma hipótese fantástica, e que talvez não tenha fundamento algum. Mas é possível que algum estranho instinto provoque nele o desejo de ter em sua residência certo isolamento espiritual.
– Pelo amor de Deus, que quer dizer com isso? – exclamou Isabel um tanto irritada.
– Você não acha que, por mais acessível, camarada e sociável que Larry se mostre quando está conosco, a gente sente nele uma espécie de desprendimento, como se ele não se entregasse completamente, como se retivesse em algum ponto oculto da alma algo que não sei definir – uma tensão, um segredo, uma aspiração, um conhecimento – que faz dele uma criatura à parte?
– Conheço Larry desde menina – replicou Isabel com impaciência.
– Às vezes ele me faz lembrar um grande ator que representasse à perfeição o seu papel, numa peça espalhafatosa, mas medíocre. Como Eleanora Ouse, em La Locandira.
Isabel refletiu um momento sobre isso.
– Creio que percebo o que você quer dizer. A gente está se divertindo – e pensa que Larry é como um de nós, como todo mundo –, mas de repente sente que ele foge, como um rolo de fumaça que a gente tenta capturar com as mãos. Que será que o torna assim esquisito?
– Talvez uma coisa tão corriqueira que a gente nem mesmo dela se apercebe.
– E isto é?...
– Pois bem, bondade, por exemplo. Isabel franziu as sobrancelhas.
– Gostaria que você não dissesse essas coisas. Sinto uma sensação desagradável na boca do estômago.
– Ou será uma dorzinha no fundo do coração?
Isabel olhou-me longamente, como se pretendesse ler-me os pensamentos. Apanhou um cigarro do maço sobre a mesa, acendeu-o e reclinou-se na cadeira. Ficou a observar a fumaça que se contorcia no ar.
– Quer que eu vá embora? – perguntei.
– Não.
Fiquei em silêncio durante alguns momentos, a observá-la, sentindo prazer em contemplar o nariz benfeito e a bonita linha do queixo.
– Você está muito apaixonada por Larry?
– Vá para o inferno, nunca amei outro homem na minha vida.
– Por que se casou com Gray?
– Eu tinha que me casar com alguém. Ele estava louco por mim e mamãe queria o casamento. Todo mundo me dizia que fora uma sorte eu ter-me livrado de Larry. Eu gostava de Gray; ainda gosto muito dele. Você não imagina como é meigo; não há ninguém que seja mais bondoso e delicado. Ele dá a impressão de ter um gênio violentíssimo, não dá? Pois comigo sempre foi angelical. Quando tínhamos dinheiro, queria que eu manifestasse desejos para ter o prazer de satisfazê-los. Certa vez eu disse que seria divertido ter um iate, para darmos a volta ao mundo; e, se não fosse a crise, ele teria comprado um.
– Parece impossível que tal perfeição exista – murmurei.
– Divertimo-nos imensamente. Sempre lhe ficarei grata por isso. Fui muito feliz com ele.
Fitei-a, mas nada disse.
– Com certeza eu não o amava realmente, mas a gente pode muito bem passar sem amor. No fundo do coração eu suspirava por Larry, mas enquanto ele estava longe isso não me preocupava. Você se lembra de ter me dito que, com cinco mil quilômetros de oceano de permeio, as penas de amor se tornam perfeitamente toleráveis? Naquela época achei a observação de um cinismo revoltante, mas é, naturalmente, verdadeira.
– Se é sofrimento ver Larry, não seria mais acertado deixar de vê-lo?
– Mas é um sofrimento delicioso. Além do mais, você sabe como ele é. A qualquer momento pode desaparecer, como sombra quando o sol se esconde, e talvez fiquemos anos sem vê-lo.
– Você nunca pensou em se divorciar de Gray?
– Não tenho motivo para me divorciar dele.
– Isso não impede que suas compatriotas se separem dos maridos quando a tal se sentem inclinadas.
Isabel riu.
– Por que será que fazem isso? – perguntou.
– Não sabe, então? Porque as mulheres americanas esperam encontrar nos maridos a perfeição que as inglesas só exigem dos seus mordomos.
Isabel fez um gesto tão brusco com a cabeça que não sei como não ficou com torcicolo.
– Só porque Gray não tem facilidade de expressão você acha que ele não vale nada.
– Engana-se – protestei vivamente. – Acho mesmo que há em Gray qualquer coisa de muito comovente. Ele tem uma grande capacidade para amar. Basta a gente observá-lo, quando ele olha para você, para ver como o seu amor é profundo e absorvente. Ele gosta muito mais das filhas do que você.
– Com certeza você vai agora dizer que não sou boa mãe.
– Pelo contrário, acho que é uma ótima mãe. Você zela pelo conforto e pela felicidade delas, cuida da sua alimentação e faz com que seus intestinos funcionem regularmente. Ensina-lhes boas maneiras, lê para elas e obriga-as a rezar todas as noites. Se ficam doentes, chama imediatamente o médico e é muito dedicada durante toda a moléstia. Mas você não está obcecada por elas, como Gray.
– Isso não é necessário. Sou um ser humano e trato-as como seres humanos. A mãe só prejudica os filhos quando faz deles a razão única da existência.
– Estou de pleno acordo com você.
– E ninguém pode negar que elas me adoram.
– Já percebi isso. Você é para elas o símbolo de tudo que é belo, encantador, maravilhoso. Mas não se sentem à vontade com você como com Gray. A você, elas adoram; a Gray, amam.
– Ele merece ser amado.
Gostei de ouvi-la dizer isto. Uma das maiores qualidades de Isabel era nunca se ofender com a verdade nua e crua.
– Depois da crise, Gray ficou em mísero estado – continuou ela. – Durante semanas trabalhou até meia-noite, no escritório. Eu ficava em casa, morta de medo, temendo que ele desse um tiro na cabeça, tão envergonhado se sentia. Gray e o pai tinham imenso orgulho da firma. E orgulho também da própria integridade e de sua clareza de visão. Não foi tanto por termos perdido todo nosso dinheiro; Gray achava ainda mais difícil conformar-se com os prejuízos de toda aquela gente que confiara nele. Achava que devia ter tido mais previsão. Não me foi possível convencê-lo de que a culpa não era sua.
Isabel tirou um batom da bolsa e pintou os lábios.
– Mas não era isso que eu queria lhe contar. Só o que nos restava era a fazenda; achei que a única salvação para Gray era sair de Chicago. Tocamos para lá, com mamãe e as crianças. Gray sempre gostara da plantação, mas nunca tínhamos ido sós; levávamos sempre um grupo grande e nos divertíamos a valer. Gray atira bem, mas naquela ocasião não tinha a mínima vontade de caçar. Costumava pegar o barco e saía pelo pântano, sozinho, durante horas, a observar os pássaros. Descia e subia os canais, vendo os pálidos caniços de cada lado e somente o céu sobre sua cabeça. Em certos dias os canais são azuis como o Mediterrâneo. Ele não falava muito quando voltava. Dizia que o passeio fora ótimo. Mas eu sabia o que ele sentia. Sabia que seu coração se comovia com a beleza, e a vastidão e o silêncio. Há um determinado momento, antes do pôr do sol, em que a luz sobre os pântanos é realmente maravilhosa. Ele ficava de pé, em contemplação, deliciado. Embrenhava-se durante horas pelas florestas misteriosas; florestas como as de uma peça de Maeterlinck, cinzentas, silenciosas, quase sobrenaturais. Há uma ocasião, na primavera – não dura mais que quinze dias –, em que os novelos florescem e os abrunheiros vicejam; o verde tenro e fresco, contra o acinzentado do musgo espanhol, é um verdadeiro cântico de júbilo. O chão fica que é um tapete de lírios brancos e azaleias silvestres. Gray não sabia dizer o que isso significava para ele, mas significava a felicidade. Aquela beleza o intoxicava. Oh! sei que não me exprimo bem, mas gostaria que você compreendesse como era comovente ver aquele vasto homem empolgado por tão pura e bela emoção, a ponto de me dar vontade de chorar. Se há um Deus no céu, Gray esteve então muito perto dele.
Isabel ficara um tanto comovida ao dizer isto e, tirando o lenço, enxugou cuidadosamente duas lágrimas que lhe brilhavam no canto dos olhos.
– Você não estará romantizando? – perguntei sorrindo. – Acho que está atribuindo a Gray pensamentos e emoções que gostaria que ele tivesse.
– Como poderia eu notá-los se não existissem? Você me conhece. A não ser que eu sinta o cimento de uma calçada sob os pés, e veja por toda a rua largas vitrinas exibindo chapéus, pulseiras de brilhantes e estojos montados em ouro, nunca sou realmente feliz.
Ri-me e ficamos em silêncio durante alguns minutos. Depois ela voltou ao assunto que tínhamos discutido antes.
– Nunca me divorciarei de Gray. Passamos por muita coisa juntos. E ele depende demais de mim. Isto é bastante lisonjeiro, você sabe, e dá à gente um senso de responsabilidade. Além do mais...
– Sim?
Ela me olhou de soslaio e havia nesse olhar um brilhozinho malicioso. Tive a impressão de que não sabia muito bem qual seria a minha reação ao que ia dizer-me.
– Ele é formidável na cama. Estamos casados há dez anos e Gray é tão ardente hoje como no princípio. Não foi você que disse numa peça que não há homem que queira uma mulher por mais de cinco anos? Pois bem, você não sabia o que dizia. Gray me deseja tanto como nos primeiros tempos de casados. Fez-me muito feliz, neste sentido. Embora você talvez não tenha essa impressão, sou uma mulher muito sensual.
– Engana-se redondamente. Tenho essa impressão.
– Pois bem, não é muito má qualidade, é?
– Pelo contrário. – Lancei a Isabel um olhar perscrutador e continuei: – Você se arrepende de não se ter casado com Larry há dez anos?
– Não. Teria sido loucura. Mas, naturalmente, se naquela época eu soubesse o que sei hoje, teria vivido com ele durante três meses, ficando assim definitivamente livre da obsessão da sua pessoa.
– Acho que você teve sorte em não tentar a experiência; talvez se visse presa a ele por laços inquebrantáveis.
– Não o creio. Era apenas uma atração física. Sabe, geralmente a melhor maneira de vencer o desejo é satisfazê-lo.
– Já lhe ocorreu que você é uma mulher muito dominadora? Você me disse que Gray tem um temperamento poético e que é um amante fogoso; não duvido que você dê muita importância a essas duas qualidades, mas não me falou sobre aquilo que significa mais que as duas coisas juntas – a certeza de que o tem preso no côncavo desta sua mão bonita, mas não muito pequenina. Larry sempre lhe teria escapado. Lembra-se da Ode de Keats? Por mais que te aproximes, nunca a beijarás.
– Você muitas vezes pensa que sabe mais do que real mente sabe – disse ela secamente. – Só há uma maneira de uma mulher prender um homem e você bem sabe qual é. E deixe que eu lhe diga uma coisa: não é a primeira vez que ela dorme com ele que vale, é a segunda. Se ela aí consegue prendê-lo, então ele está preso para sempre.
– Não sei onde você obtém tão extraordinárias informações.
– Não nasci ontem e ando de olhos e ouvidos abertos.
– Posso perguntar quem foi que lhe disse isso?
Isabel atirou-me o mais zombeteiro dos seus sorrisos.
– Uma mulher com quem fiz amizade numa exposição de modelos. A vendeuse me contou que ela era a mundana mais elegante de Paris; tomei então a resolução de não sair da loja sem conhecê-la. Adrienne de Troye. Já ouviu falar nela?
– Nunca.
– Então você está atrasado. Tem quarenta e cinco anos e nem mesmo bonita é, mas sua aparência é mais distinta do que a de qualquer uma das duquesas do tio Elliott. Sentei-me ao seu lado e entrei com a minha representação de impulsiva americanazinha. Disse-lhe que não pudera resistir à tentação de falar-lhe, pois ela era a pessoa mais formidável que eu jamais vira na vida. Disse-lhe que seu rosto tinha a perfeição de um camafeu grego.
– Que topete você tem!
– A princípio ela se manteve fria e reservada, mas continuei com a minha atitude ingênua e ela degelou-se.
Tivemos então uma prosinha muito agradável. Terminado o desfile, perguntei-lhe se não queria almoçar um dia comigo no Ritz, acrescentando que sempre fora admiradora de sua incomparável elegância.
– Já a vira antes?
– Nunca. Ela não aceitou, dizendo que, com tantas más línguas em Paris, eu iria ficar comprometida, mas que estava satisfeita por eu a ter convidado. Quando percebeu a minha decepção, perguntou se eu não queria ir almoçar em sua casa, dando uns tapinhas na minha mão ao ver como fiquei impressionada com a sua amabilidade.
– E você foi?
– Claro que fui. Ela tem um amor de casa, logo depois da Avenue Foch, e fomos servidas por um mordomo que é o retrato de George Washington. Fiquei até as quatro horas. Soltamos os cabelos, tiramos as cintas e tivemos uma prosinha de amigas íntimas. O que aprendi naquele dia daria para eu escrever um livro.
– Por que não escreve? É exatamente o assunto que agradaria ao Ladie’s Home Journal.
– “Seu” bobo – disse ela rindo.
Fiquei em silêncio durante alguns segundos, refletindo.
– Não sei se Larry a amou realmente – disse eu dali a pouco. Isabel empertigou-se na cadeira. Sua expressão tornou-se dura, os olhos chisparam de cólera.
– Que é que você está dizendo? Claro que ele me amou. amou. Pensa que uma moça não percebe quando um homem gosta dela?
– Oh! não digo que não gostasse, de certo modo. Com nenhuma outra moça tinha a intimidade que tinha com você. Desde pequenos vocês brincaram juntos. Ele achava natural gostar de você. Possuía um instinto sexual normal. Nada mais lógico do que aquele casamento. Não haveria grande modificação nas relações entre vocês; só que iriam viver sob o mesmo teto e dormir na mesma cama.
Um pouco mais mansa, Isabel esperou que eu prosseguisse. Sabendo que as mulheres estão sempre dispostas a ouvir uma dissertação sobre o amor, continuei:
– Os moralistas tentam convencer-nos de que o instinto sexual não tem muita relação com o amor. Referem-se a isso como se fosse um epifenômeno.
– Que diabo de história é essa?
– Pois bem, há psicólogos que acham que o estado consciente acompanha o trabalho do cérebro e é por ele determinado, sem no entanto exercer nenhuma influência sobre ele. Mais ou menos como o reflexo de uma árvore sobre a água; não poderia existir sem a árvore, mas em nada afeta essa árvore. Acho uma grandíssima tolice dizer que pode existir amor sem paixão; as pessoas que afirmam que o amor pode perdurar depois de esgotada a paixão referem-se a outro sentimento, afeição, bondade, comunhão de gostos e interesses, hábito. Principalmente hábito. Duas pessoas podem continuar a ter relações sexuais por hábito, assim como têm fome à hora em que costumam fazer suas refeições. Claro que pode haver desejo sem amor. Desejo não é paixão. O desejo é a consequência natural do instinto sexual e não tem maior importância do que qualquer outra função animal. É por isso que as mulheres são umas tolas de fazer um escarcéu quando os maridos de vez em quando pulam a cerca, quando a ocasião e o lugar são propícios.
– Isto se aplica somente aos homens? Sorri.
– Se você insistir, serei obrigado a confessar que o que serve para um serve para outro. O único argumento contra é que, para o homem, uma ligação passageira não tem nenhuma significação sentimental, ao passo que, para a mulher, tem.
– Depende da mulher.
Eu não ia consentir em ser interrompido.
– A não ser que o amor seja paixão, não é amor, é outro sentimento; e a paixão não aumenta com a satisfação e sim com a dificuldade. O que pensa você que Keats queria dizer quando aconselha o amante, na urna grega, a não se lamentar? Serão eternos o teu amor e a formosura dela! Por quê? Porque ela era inatingível e, por mais loucamente que o amante a perseguisse, ainda lhe escapava – pois estavam ambos aprisionados no mármore daquilo que julgo ter sido má obra de arte. Seu amor por Larry, e o dele por você, era simples e natural como o amor de Paulo e Francisca, de Romeu e Julieta. Felizmente não teve mau resultado. Você fez um casamento rico e Larry vagueou pelo mundo, atrás do canto que entoam as sereias. Paixão foi elemento que nele não entrou.
– Como é que você sabe?
– A paixão não mede as consequências. Pascal disse que o coração tem razões que a razão desconhece. Se é que o interpretei bem, ele queria dizer que, quando a paixão se apodera de um coração, este inventa, para provar que por amor todo sacrifício é pouco, razões não somente plausíveis, mas conclusivas. Ficamos convencidos de que vale a pena aceitar a desonra, e que a vergonha não é preço exagerado para se pagar por ele. A paixão é destruidora. Destruiu Antônio e Cleópatra, Tristão e Isolda, Parnell e Kitty O’Shea. E, quando não destrói, morre. É possível que então a pessoa se veja na amarga contingência de reconhecer que desperdiçou anos de vida, que se desgraçou inutilmente, que sofreu a tortura do ciúme, engoliu toda espécie de humilhações, tendo dado a sua ternura, as riquezas da sua alma a um ser insignificante, idiota, uma estaca onde dependurou seus sonhos, e que não valia dois tostões de mel coado.
Antes de ter terminado esse discurso, eu sabia que Isabel já não me ouvia, toda atenta aos próprios pensamentos. Mas sua observação seguinte me surpreendeu.
– Você acha que Larry é virgem?
– Minha querida, ele está com trinta e dois anos.
– Tenho certeza que é.
– Como é que você pode ter certeza?
– É o tipo de coisa que uma mulher sabe instintivamente.
– Conheci um rapaz que durante anos teve um sucesso louco só pelo fato de convencer beldade após beldade de que nunca possuíra outra mulher. Dizia ele que dava um resultado maravilhoso.
– Pouco me importo com o que você diz. Acredito na minha intuição.
Estava ficando tarde; Gray e Isabel iam jantar com alguns amigos e ela ainda precisava vestir-se. Não tendo nada que fazer, subi pelo Boulevard Raspail, sentindo prazer em caminhar por aquela agradável tarde de primavera. Eu nunca tivera muita fé na intuição das mulheres; geralmente coincide demais com os desejos delas, para poder inspirar-me confiança; e agora, ao recordar o fim da minha prosa com Isabel, não pude deixar de rir. Lembrei-me de Suzanne Rouvier e ocorreu-me que fazia muitos dias que não a via. Estaria comprometida para aquela noite? Se não estivesse, talvez quisesse jantar comigo, para irmos depois a um cinema. Chamei o primeiro táxi que passou vazio e dei ao chofer o endereço do seu apartamento.
7
Mencionei Suzanne Rouvier no início deste livro. No atual ponto da minha narrativa, fazia dez ou doze anos que eu a conhecia e ela não devia estar longe dos quarenta.
Não era bonita. Para ser franco, era mesmo feia, mais alta do que o comum das francesas, corpo curto, pernas e braços longos, atitude desajeitada, como se não soubesse o que fazer de membros tão compridos. A cor dos cabelos variava de acordo com o seu capricho, mas era geralmente de um castanho-avermelhado. Rosto pequeno e quadrado, maçãs muito salientes com duas manchas de carmim, boca larga com lábios vivamente acentuados pelo batom. Nada disso parece muito atraente, mas era; é verdade que tinha boa pele, dentes brancos e fortes, e olhos azuis, de um azul vivíssimo. Eram eles o seu ponto forte e Suzanne procurava realçá-los pintando as pestanas e as pálpebras. Tinha um ar perspicaz volúvel e simpático, e combinava um ótimo gênio com uma dose necessária de dureza. Na vida que levara tivera que ser dura. Sua mãe, viúva de um pequeno funcionário do governo, depois da morte do marido regressara à sua vila natal em Anjou, tendo que viver de sua pensão; quando Suzanne completara quinze anos, pusera-a como aprendiz de costureira numa cidade vizinha, bastante próxima para permitir que a menina viesse para casa aos domingos. Durante as férias de quinze dias, quando já estava com dezessete anos, Suzanne fora seduzida por um artista que viera passar o verão na aldeia para pintar umas paisagens. Ela já percebera que, sem a vantagem de um dote, suas probabilidades de casamento eram quase nulas; e assim, quando no fim do verão o pintor sugeriu que ela fosse com ele para Paris, Suzanne aceitou alacremente. Ele levou-a para uma colmeia de estúdios em Montmartre, e Suzanne passou um ano muito agradável em sua companhia.
Terminado esse prazo, o pintor lhe disse que não vendera uma única tela e que não podia mais dar-se ao luxo de uma amante. Ela estivera esperando por isso e não ficou decepcionada. O homem perguntou-lhe se queria voltar para casa e, ante resposta negativa, disse que havia no mesmo quarteirão outro pintor que gostaria de ficar com ela. Essa pessoa tentara duas ou três vezes tomar certas liberdades com Suzanne, mas, embora o tivesse repelido, ela o fizera de tão bom humor que o homem não se melindrara. Ele não lhe desagradava, de modo que Suzanne aceitou a proposta com placidez. Era uma vantagem não ter que tomar táxi para a mudança. Seu segundo amante, bem mais velho que o primeiro, mas ainda apresentável, pintou-a em todas as posições possíveis e imagináveis, vestida e nua; Suzanne passou dois anos felizes ao lado dele. Ficava orgulhosa ao pensar que, com ela a servir-lhe de modelo, conseguira ele o seu primeiro verdadeiro sucesso. Fez questão de me mostrar a reprodução, recortada de uma revista ilustrada, do quadro responsável por tal sucesso. Fora comprado por uma galeria norte-americana. Um nu, tamanho natural; e Suzanne estava mais ou menos na mesma posição da Olympe de Manet. O artista não tardara a perceber que havia algo de moderno e engraçado nas suas proporções e, afinando-lhe o corpo magro até a emaciação, alongara pernas e braços, acentuando as maçãs salientes e tornando enormes os olhos azuis. Pela reprodução eu não podia, naturalmente, julgar o colorido, mas a elegância da composição não me passou despercebida. O quadro deu ao artista bastante nome para permitir-lhe casar-se com uma admiradora, certa viúva endinheirada; quanto a Suzanne, sabendo perfeitamente que um homem tem que pensar no seu futuro, aceitou o rompimento de tão cordiais relações com certo azedume.
Sim, pois agora já conhecia o seu valor. Gostava da vida de artista, sentia prazer em posar e, terminado o trabalho do dia, achava agradável ir ao café sentar-se ao lado de pintores, suas esposas e amantes, enquanto eles discutiam arte, injuriavam os intermediários e contavam piadas obscenas. Nessa ocasião, tendo previsto o rompimento, ela fizera seus planos. Escolheu um rapaz que estava disponível e que, assim o julgava ela, tinha talento. Procurou-o numa hora em que ele estava só, no café, explicou-lhe as circunstâncias e sem mais preâmbulos sugeriu que fossem viver juntos.
– Tenho vinte anos e sou boa dona de casa. Por esse lado você fará economia e ainda ficará livre da despesa de um modelo. Olhe a sua camisa; que vergonha! E o seu estúdio está numa desordem incrível. Você precisa de uma mulher para cuidar de tudo isso.
O rapaz sabia que ela era boa pessoa. Achou graça da proposta e Suzanne percebeu que ele estava inclinado a aceitar.
– Afinal de contas, não há mal em tentar – disse ela.
– Se não der certo, não estaremos pior do que estamos agora.
Ele era um pintor modernista e fez dela retratos em quadrados e oblongos. Pintou-a com um olho só e sem boca. Pintou-a como figura geométrica, em preto, marrom e cinza. Pintou-a em linhas cruzadas através das quais a gente distinguia vagamente um rosto humano. Suzanne viveu com ele um ano e tanto, deixando-o depois por livre e espontânea vontade.
– Por quê? – perguntei. – Não gostava dele?
– Gostava; era um bom rapaz. Mas achei que não estava fazendo progresso. Estava se repetindo demais.
Não encontrara dificuldades em arranjar um sucessor, continuando fiel aos artistas.
– Sempre estive na pintura – é como dizia ela. – Vivi com um escultor durante seis meses, mas, não sei por quê, aquilo não me disse nada.
Sentia prazer em pensar que jamais se separara desagradavelmente de um amante. Era não somente boa modelo, mas boa dona de casa. Gostava de trabalhar no estúdio onde vivia, e sentia orgulho em mantê-lo em perfeita ordem. Era boa cozinheira e conseguia fazer um jantar gostoso com a maior economia possível. Cerzia as meias e pregava botões nas camisas dos amantes.
– Nunca achei que pelo fato de ser artista um homem deva ser desmazelado.
Contava apenas com um fracasso, e isso com um inglês que tinha carro e mais dinheiro do que qualquer outro que ela conhecera.
– Mas não durou muito – contou-me. – Ele costumava beber e tornava-se então enfadonho. Eu não teria me importado com isso, se ele fosse um bom pintor, mas, meu caro, era grotesco. Quando eu lhe disse que ia deixá-lo ele começou a chorar, jurando que me amava.
“Meu pobre amigo, que você me ame ou não, é coisa sem a mínima importância”, declarei. “Importante é o fato de você não ter talento. Volte para o seu país e vá ser negociante de secos e molhados. É só para isso que você serve.”
– O que foi que ele respondeu? – perguntei a Suzanne.
– Ficou furioso e me ordenou que sumisse. Mas garanto-lhe que o conselho que lhe dei foi acertado. Espero que o tenha seguido; não era mau rapaz, apenas mau artista.
Bom senso e gênio agradável facilitam a peregrinação de uma mundana por este mundo afora, mas, assim como qualquer outra, a profissão que Suzanne adotara tinha seus altos e baixos. Houve, por exemplo, o caso do escandinavo. Teve a imprudência de se apaixonar por ele.
– Era um deus, meu caro – disse-me ela. – Altíssimo, da altura da Torre Eiffel, com ombros largos e tórax magnífico, uma criatura que a gente quase podia abranger com as mãos, ventre chato, tão chato como a palma da minha mão, e músculos de atleta profissional. Tinha cabelos loiros e ondulados e pele de criança. E não pintava mal. Eu gostava do seu trabalho com os pincéis: era atrevido e brilhante, de um rico colorido.
Resolvera ter um filho com ele. O pintor manifestou-se contra, mas Suzanne disse que assumiria a responsabilidade.
– Bem que ficou satisfeito quando o bebê nasceu. Uma criança rosada, de cabelos loiros e olhos azuis como o seu papá. Uma menina.
Suzanne vivera com ele três anos.
– Não era muito inteligente e às vezes me entediava, mas era tão meigo e tão bonito que isso não tinha grande importância.
Nisto ele recebeu um telegrama da Suécia, avisando que o pai estava à morte e que sua imediata presença era necessária. Prometeu voltar, mas Suzanne teve o pressentimento de que tal não se daria. O rapaz deixou-lhe todo o dinheiro que tinha. Durante um mês não deu notícias, mas depois escreveu contando que o pai morrera, tendo deixado os negócios em confusão, e que ele achava dever seu ficar ao lado da mãe e ingressar no comércio madeireiro. Mandou um cheque de dez mil francos. Suzanne não era mulher de se desesperar. Depressa chegou à conclusão de que uma criança seria um empecilho às suas atividades; levou, portanto, a menina para casa de sua mãe e deixou-a aos cuidados dela, entregando-lhe também os dez mil francos.
– Foi de partir o coração, pois eu adorava a menina; mas na vida a gente tem que ser prática.
– O que aconteceu então? – perguntei.
– Oh! eu me arranjei. Encontrei um amigo.
Nisto ela tivera o seu tifo. Suzanne sempre dizia “o meu tifo” como um milionário diria “a minha propriedade em Palm Beach”. Quase morrera, tendo ficado no hospital durante três meses. Ao sair, estava que era só pele e ossos, fraquíssima e tão nervosa que só sabia chorar. Não serviria para ninguém, nessas condições, não estava bastante forte para posar e tinha muito pouco dinheiro.
– Oh la, la – disse ela. – Passei por uma época dura. Felizmente eu tinha bons amigos. Mas você sabe o que é a vida dos artistas, uma luta para fazer o dinheiro render. Nunca fui bonita, eu tinha certa atração, é lógico, mas já não estava com vinte anos. Encontrei por acaso o cubista com quem eu vivera; ele se casara e divorciara, desistira do cubismo, tendo-se tornado surrealista. Disse-me que eu podia servir-lhe, que se sentia só; que me daria casa e comida; e, garanto-lhe, foi com prazer que aceitei.
Suzanne ficara com ele até encontrar o industrial. Um amigo trouxe-o ao estúdio, pois talvez ele viesse a comprar um dos quadros do ex-cubista; ansiosa por efetuar a venda, Suzanne esforçou-se por lhe ser agradável, com o talento que para isso possuía. O homem não quis decidir-se no momento, mas declarou que gostaria de vir examinar novamente os quadros. E voltou, quinze dias mais tarde, só que dessa vez Suzanne teve a impressão de que ele viera mais para vê-la do que por amor aos objetos de arte.
Quando saiu, ainda sem comprar, apertou a mão de Suzanne com exagerado calor. No dia seguinte o amigo que o trouxera ao estúdio chamou Suzanne de lado, quando ela se dirigia ao mercado para comprar as provisões do dia, e contou-lhe que o industrial se engraçara com ela e mandava convidá-la para jantarem juntos, da próxima vez que ele viesse a Paris, pois tinha uma proposta a fazer-lhe.
“O que acha você que o homem viu em mim?”, perguntou Suzanne.
“Ele é apaixonado da arte moderna. Tem visto retratos seus. Você o fascina. Ele é da província e homem de negócios. Você representa Paris para ele, arte, romance, tudo aquilo de que sente falta em Lille.”
“Ele tem dinheiro?”, perguntou Suzanne com o seu habitual espírito prático.
“Muito.”
“Está certo. Jantarei com ele. Não há mal em ouvir a sua proposta.”
O homem levou-a ao Maxim, fato que a impressionou. Ela se vestira discretamente e, observando as mulheres à sua volta, achou que poderia muito bem passar por uma respeitável senhora casada. Ele encomendou champanhe e isso a convenceu de que estava lidando com um cavalheiro. Quando chegaram ao café, ele fez a sua proposta. Suzanne achou-a muito generosa. O homem disse-lhe que vinha de quinze em quinze dias a Paris, a uma assembleia, e que achava enfadonho à noite ter que jantar sozinho, vendo-se compelido, quando sentia necessidade de companhia feminina, a procurar um bordel. Sendo casado, e com dois filhos, achava o arranjo pouco satisfatório para um homem da sua posição. O amigo comum lhe contara tudo sobre Suzanne, e ele tinha certeza de estar lidando com uma mulher discreta. Já não era moço e não tinha o menor desejo de se ver envolvido com uma mocinha leviana. Era mais ou menos colecionador da escola moderna e agradava-lhe saber que Suzanne estava ligada a ela. Em seguida pôs as cartas na mesa. Estava pronto a tomar para ela um apartamento e mobiliá-lo, garantindo-lhe ao mesmo tempo uma mesada de dois mil francos por mês. Em troca desejava poder contar com o prazer de sua companhia de quinze em quinze dias. Suzanne nunca tivera tanto dinheiro e imediatamente compreendeu que, com tal soma, não somente poderia viver e divertir-se de acordo com as exigências da sua nova posição, mas ainda sustentar a filha e guardar um pouco para os maus dias. Mas hesitou por um momento. Sempre estivera “na pintura”, como se exprimia ela, e no íntimo achava que se tornar amante de um negociante era decair.
– C’est à prendre ou à laisser – disse ele. – Pode aceitar ou recusar.
Ele não lhe era repulsivo, e a roseta da Legião de Honra na sua lapela indicava que era um homem distinto. Suzanne sorriu.
– Je prends – respondeu. – Aceito.
8
Embora tivesse sempre vivido em Montmartre, ela achou que devia romper com o passado e tomou, portanto, um apartamento em Montparnasse, num prédio logo depois do boulevard. Constava de dois quartos, uma cozinha pequena e banheiro; ficava no sexto andar, mas havia elevador. Para Suzanne, um banheiro particular e um elevador – embora este só comportasse duas pessoas de cada vez, e se movesse como uma lesma, e a gente tivesse que descer pelas escadas – representavam não somente luxo, mas estilo.
Nos primeiros meses de ligação, monsieur Achille Gauvain, pois assim se chamava ele, hospedava-se num hotel, quando vinha para as suas visitas quinzenais; depois de passar com Suzanne a parte da noite exigida pelas suas inclinações amorosas, regressava ao hotel para dormir sozinho, até ver chegada a hora de se levantar e tomar o trem que o levaria de volta aos seus negócios e sóbrios prazeres da vida de família; mas depois Suzanne chamou a sua atenção para o fato de estar gastando dinheiro inutilmente, dizendo que seria mais econômico e mais confortável ele ficar no apartamento até o dia seguinte. O industrial não pôde deixar de sentir a força do argumento. Ficou lisonjeado com o interesse de Suzanne pelo seu conforto – não havia dúvida de que não era nada agradável sair para a rua e ter que procurar um táxi numa fria noite de inverno – e aprovou o espírito econômico de que ela estava dando prova. Boa mulher, a que zelava não somente pelo seu dinheiro mas pelo do amante.
Monsieur Achille tinha mais do que motivo para estar satisfeito com sua escolha. Em geral iam jantar num dos melhores restaurantes de Montparnasse, mas de vez em quando Suzanne preparava um jantar no apartamento. A comida benfeita que ela lhe oferecia era muito do seu gosto. Nas noites quentes ele jantava em mangas de camisa, sentia-se deliciosamente boêmio e dissoluto. Sempre gostara de comprar quadros, mas Suzanne não o deixava adquirir um que fosse sem a sua prévia aprovação, e ele não tardou a verificar que podia confiar no seu discernimento. Ela não queria saber de intermediários, levando-o diretamente aos estúdios dos pintores e permitindo-lhe assim adquirir a obra pela metade do preço que, de outra forma, teria sido obrigado a pagar. Monsieur Achille sabia que ela estava guardando umas economiazinhas, e experimentou uma sensação de orgulho quando Suzanne lhe contou que de ano em ano ia comprando um pedacinho de terra na sua aldeia. Conhecia esse desejo de possuir terras, existente no coração de todos aqueles que têm sangue francês, e sua estima por Suzanne cresceu ao verificar que também ela abrigava tal sentimento.
E, pelo seu lado, Suzanne estava satisfeita. Não era fiel ao amante, nem tampouco infiel; isto é, tinha o cuidado de não formar nenhuma ligação permanente, mas quando um homem lhe agradava não tinha má vontade em dormir com ele. Mas era para ela uma questão de honra não permitir que ficasse a noite toda. Achava que devia isso ao homem de dinheiro e posição que lhe tornara possível uma vida tão segura e respeitável.
Eu conhecera Suzanne na época em que ela vivia com um pintor com quem eu me dava, e muitas vezes ficava no estúdio enquanto ela posava; continuei a vê-la a intervalos irregulares, mas só chegamos a ter intimidade depois que ela se mudou para Montparnasse. Parece que monsieur Achille, pois era assim que ela o tratava e sempre se referia a ele, lera uma ou duas traduções de livros meus, e certa noite convidou-me para jantar com eles num restaurante. Era um homem pequeno, meia cabeça mais baixo que Suzanne, com cabelos de um cinzento bronzeado e bigodinho grisalho. Era meio gorducho e tinha uma barriguinha, mas somente até o ponto de lhe dar um ar de prosperidade. Tinha o andarzinho empertigado dos homens baixos, e via-se claramente que não estava em nada descontente consigo mesmo. Ofereceu-me um ótimo jantar. Foi delicadíssimo. Disse-me que estava contente por eu ser amigo de Suzanne, pois de relance podia ver que eu era comme il faut; que teria prazer em saber que eu a veria de vez em quando. Seus negócios muito só; seria para ele um consolo saber que ela estava em contato com uma pessoa educada. Era negociante, mas sempre admirara os artistas.
– Ah! mon cher monsieur, a arte e a literatura sempre foram as glórias gêmeas da França. Ao lado de suas proezas militares, é lógico. E eu, fabricante de casimiras, não hesito em declarar que coloco o pintor e o escritor no mesmo plano do general e do estadista.
Ninguém poderia ter-se exprimido com maior elegância.
Suzanne não queria ouvir falar de ter empregada, em parte por economia, e em parte (por razões que ninguém melhor do que ela conhecia) por não querer que viesse alguém meter o nariz naquilo que só a ela dizia respeito, e a mais ninguém. Mantinha em perfeita ordem o apartamentozinho, que fora mobiliado no mais moderno estilo do momento, e fazia também suas roupas de baixo. Mas, mesmo assim, agora que deixara de posar, o tempo às vezes lhe custava a passar, pois ela era uma mulherzinha laboriosa. Ocorreu-lhe então que, tendo posado para tantos pintores, não haveria motivo para também não pintar. Comprou telas, pincéis e tintas e, mãos à obra! Às vezes, quando ia levá-la para jantar, eu chegava mais cedo, indo encontrá-la de avental a trabalhar animadamente. Assim como no ventre materno o embrião relembra a evolução das espécies, Suzanne relembrou os estilos de todos os seus amantes. Pintou paisagens como o seu paisagista; abstrações como o cubista; e, com o auxílio de cartões-postais, barcos no ancoradouro, como o escandinavo. Não sabia desenhar, mas tinha boa noção de colorido e, se seus quadros não valiam grande coisa, era para ela um prazer pintá-los.
Monsieur Achille encorajava-a; agradava-lhe ter por amante uma artista. Foi por sua insistência que Suzanne mandou uma tela para o salão de outono, sentindo-se ambos muito orgulhosos quando a viram dependurada. Ele deu-lhe um bom conselho.
– Não procure pintar como homem, querida. Pinte como mulher. Não queira ser forte; contente-se em agradar. E seja sincera. Em negócios às vezes a esperteza dá bom resultado, mas na arte a sinceridade é, não somente a melhor política, mas a única.
Na ocasião a que me refiro, a ligação durava havia cinco anos, com ampla satisfação de ambas as partes.
– Claro que ele não me faz vibrar – disse Suzanne.
– Mas é um homem inteligente e de posição. Cheguei a uma época da vida em que tenho que pensar na minha situação.
Ela era bondosa e compreensiva, e monsieur Achille tinha em alto preço a sua opinião. Suzanne ouvia-o de boa vontade quando ele discutia seus negócios, ou assuntos de família, entristecendo-se com ele quando sua filha foi reprovada num exame, rejubilando-se quando seu filho ficou noivo de uma moça rica. Monsieur Achille se casara com a única filha de um homem do seu ramo de negócios, e a fusão das duas firmas fora uma fonte de lucros para ambos os lados. Era, naturalmente, uma satisfação para ele verificar que seu filho tinha bastante senso para compreender que a melhor base para um casamento feliz é a comunhão de interesses financeiros. Confiou a Suzanne sua ambição de casar a filha na aristocracia.
“E por que não, com sua fortuna?”, disse Suzanne. A generosidade de monsieur Achille tornou possível a Suzanne mandar sua filha para um convento, onde a menina receberia esmerada educação, e ele prometeu que mais tarde, quando chegasse o momento oportuno, pagaria por lições de datilografia e estenografia, para que ela pudesse ganhar a vida com o seu trabalho.
– Ela vai ser linda – disse-me Suzanne. – Mas não lhe fará mal ter instrução e saber lidar com a máquina de escrever. Claro que, sendo ainda tão criança, é cedo para se fazer predições, mas pode acontecer que ela não tenha temperamento.
Suzanne era delicada. Deixou que a minha inteligência interpretasse as suas palavras. Interpretei perfeitamente.
9
Uma semana, ou pouco mais, depois de eu ter tão inesperadamente topado com Larry, estávamos Suzanne e eu sentados no Sélect, no Boulevard du Montparnasse tomando uma cerveja depois de termos jantado juntos e ido ao cinema, quando de repente ele apareceu. Suzanne abafou uma exclamação e, com grande surpresa minha, chamou-o para a nossa mesa. Larry aproximou-se, beijou-a e me apertou a mão. Percebi que ela mal podia acreditar nos próprios olhos.
– Dão licença que eu me sente? – perguntou Larry. – Ainda não jantei e pretendo comer alguma coisa.
– Oh! mas que prazer em vê-lo novamente, mon petit
– disse ela, de olhos luzentes. – De onde está surgindo? E por que não deu sinal de vida durante todos estes anos? Meu Deus, como está magro! Pelo que sabíamos de você, tanto poderia estar morto como vivo.
– Pois bem, estou vivo – respondeu ele com um brilhozinho no olhar. – Como vai Odette?
Era assim que se chamava a filha de Suzanne.
– Oh! está uma meninona. E bonita. Ainda se lembra de você.
Interrompi-a:
– Você nunca me contou que conhecia Larry.
– Por que haveria de contar-lhe? Nunca soube que você o conhecia. Somos velhos amigos.
Larry encomendou ovos com toucinho. Suzanne contou-lhe tudo sobre a filha e depois sobre si própria. Ele ouvia com aquele seu jeito sorridente, simpático, enquanto ela tagarelava. Suzanne contou-lhe que tinha sossegado e que estava agora pintando. Virou-se em seguida para mim:
– Estou progredindo, não estou? Não tenho pretensões a gênio, mas possuo tanto talento como muitos pintores que conheci.
– Você vende seus quadros? – perguntou Larry.
– Não preciso vendê-los – respondeu ela displicentemente. – Tenho meios.
– Felizarda.
– Felizarda, não; sabida. Você precisa vir ver meus quadros.
Escreveu o endereço num pedaço de papel e obrigou-o a prometer que iria. Excitada, Suzanne continuou a falar por paus e por pedras. Dali a pouco, Larry pediu a sua conta.
– Você não vai já? – exclamou Suzanne.
– Vou – respondeu ele sorrindo.
Pagou a conta e com um aceno despediu-se. Não pude deixar de rir. Ele tinha um jeito engraçado de estar com a gente num momento e desaparecer no seguinte, sem a menor explicação. Bruscamente; como quem se evapora no ar.
– Por que haveria ele de querer fugir tão depressa? – perguntou Suzanne, vexada.
– Talvez tenha alguma pequena à sua espera – repliquei, troçando.
– É uma ideia como qualquer outra. – Ela tirou o porta-pó da bolsa e retocou a pintura do rosto. – Tenho pena da mulher que se apaixonar por ele – Oh la la.
– Por que diz isto?
Ela fitou-me com uma seriedade que eu raramente lhe via.
– Quase me apaixonei por ele há tempos. Tanto faria a gente se apaixonar por um reflexo na água, ou um raio de sol, ou uma nuvem no céu. Escapei por um triz. Mesmo hoje, quando penso nisso, estremeço só de me lembrar do perigo que corri.
A reserva que vá para o diabo. Não teria sido humano resistir à tentação de querer conhecer o caso todo. Dei-me por feliz por Suzanne ser uma mulher que não tinha a menor noção de discrição.
– Mas como foi que você chegou a conhecê-lo? – perguntei.
– Oh! isto foi há anos. Seis, sete, não sei ao certo. Odette só tinha cinco anos. Larry conhecia Marcel, quando eu estava vivendo com ele. Costumava aparecer no estúdio e ali ficava enquanto eu posava. Às vezes nos levava para jantar. A gente nunca sabia quando ele viria. Havia ocasiões em que sumia durante semanas, depois aparecia três ou quatro dias em seguida. Marcel gostava de vê-lo; dizia que pintava melhor quando Larry estava presente. Nisso tive o “meu tifo”. Passei por uma época dura, depois que saí do hospital. – Suzanne encolheu os ombros e continuou: – Mas já lhe contei isto. Pois bem, certo dia, depois de ter percorrido os estúdios à procura de trabalho, sem nada encontrar, tendo comido apenas um croissant com um copo de leite, sem saber como iria pagar o aluguel do quarto, de repente me encontrei com Larry no Boulevard Clichy. Ele me fez parar e perguntou como eu ia indo; contei-lhe sobre o “meu tifo” e ele disse: “Você está com cara de quem precisa de uma refeição”. Havia qualquer coisa na sua voz e na expressão dos seus olhos que me fez fraquejar; desatei no choro.
Estávamos perto de La Mére Mariette e ele me segurou o braço e me fez sentar a uma mesa. Eu estava com tanta fome que teria sido capaz de comer uma sola velha de sapato, mas quando veio a omelete senti que meu estômago não aceitava nada. Ele me obrigou a comer um bocadinho e me deu um cálice de burgundy. Senti-me um pouco melhor e comi alguns aspargos. Contei-lhe então os meus males; estava fraca demais para fazer fita. Eu era só pele e ossos e estava com uma aparência horrível; não podia ter esperanças de arranjar um homem. Pedi-lhe que me emprestasse dinheiro para voltar para a minha aldeia. Pelo menos ali eu teria a minha filhinha. Larry perguntou-me se eu tinha vontade de ir e respondi que naturalmente não tinha; mamãe não havia de me querer, pois a pensão mal dava para ela viver, com os preços altos como estavam, e o dinheiro que eu mandara para Odette já se acabara; mas, se eu lhe aparecesse à porta, ela não poderia deixar de me receber, no estado em que eu estava. Ele fitou-me longamente e pensei que fosse dizer que não me emprestava coisa alguma. Depois perguntou:
‘’Você gostaria que eu a levasse para um lugarzinho que conheço no campo, você e a menina? Estou precisando de umas férias.”
– Mal pude acreditar nos meus ouvidos. Fazia tantos anos que eu o conhecia e ele nunca tentara tomar liberdades comigo.
“No estado em que estou?”, perguntei. Não pude deixar de rir. “Meu pobre amigo, no momento atual não presto para homem nenhum.”
– Larry sorriu. Você já notou que sorriso maravilhoso ele tem? Doce como mel. “Não seja tola”, replicou. “Não estou pensando nisso.”
– Nesta altura eu chorava tanto que mal podia falar. Ele me deu dinheiro para ir buscar a menina e fomos todos juntos para o campo. Oh! o lugar para onde nos levou era um encanto.
Suzanne o descreveu. Ficava a quase cinco quilômetros de uma cidade cujo nome agora não me ocorre; tomaram um carro para ir até a estalagem. Prédio meio em ruínas, à beira de um rio; gramado que descambava para a margem, e onde havia plátanos, a cuja sombra eles se habituaram a tomar as refeições. No verão ali apareciam artistas, para pintar; mas ainda era cedo, de modo que agora tinham o hotel à sua disposição. A comida era célebre e aos domingos vinha muita gente de carro, para um almoço bem à vontade, mas durante a semana a paz era raramente perturbada. Graças ao descanso, boa comida e bom vinho, Suzanne ficou mais forte, sentindo-se feliz por ter a filha a seu lado.
– Ele era um anjo para Odette e a menina o adorava. Eu procurava impedir que ela o aborrecesse, mas Larry não fazia caso das suas travessuras. Pareciam duas crianças, a ponto de eu não poder deixar de rir.
– Que faziam vocês o tempo todo? – perguntei.
– Oh! sempre se tinha o que fazer. Tomávamos o barco e íamos pescar; às vezes conseguíamos que o patron nos emprestasse o seu Citroën e íamos até a cidade, Larry gostava disso. As casas eram antigas e a place tão silenciosa que a única coisa que se ouvia era o som dos nossos próprios passos sobre as pedras. Havia um hôtel de ville Luís xv, uma velha igreja e, à entrada da cidade, um castelo com um jardim por Le Notre. Quem se sentasse no café da place tinha a impressão de estar vivendo numa época remota de trezentos anos – e o Citroën na esquina não parecia absolutamente pertencer a este mundo.
Fora depois de um desses passeios que Larry lhe contara a história do jovem aviador, que narrei no princípio deste livro.
– Por que será que ele lhe contou? – perguntei.
– Não tenho a mínima ideia. Durante a guerra existira ali um hospital e havia fileiras e fileiras de cruzes no cemitério. Fomos até lá. Eu não quis ficar durante muito tempo
– deu-me arrepios pensar em todos aqueles rapazes que ali jaziam. Larry manteve-se muito silencioso durante toda a viagem de volta. Nunca comia muito, mas ao jantar quase não tocou em nada. Lembro-me perfeitamente... Noite bonita, estrelada; sentamo-nos à beira do rio e ficamos a apreciar a silhueta dos álamos contra a escuridão. Larry acendeu o cachimbo. E de repente, à propos de bottes falou-me do amigo que morrera para lhe salvar a vida. – Suzanne tomou um gole de cerveja e continuou: – Ele é uma criatura estranha. Nunca cheguei a compreendê-lo. Costumava ler para mim, às vezes de dia, enquanto eu costurava para a pequena, e à noite, depois que eu a punha na cama.
– O que ele lia?
– Oh! toda espécie de livros. Cartas de madame de Sévigné e trechos de Saint-Simon. Imagine-toi, eu que até então nunca lera nada, a não ser os jornais, e de vez em quando um romance, quando falavam dele nos estúdios e eu não queria passar por tola!... Nunca pensei que a leitura pudesse ser coisa tão interessante. Aqueles escritores antigos não são tão patetas como a gente pensa.
– Quem é que pensa? – perguntei, rindo.
– Depois líamos juntos. Lemos Phèdre e Bérénice. Ele ficava com a parte masculina e eu com a feminina. Você não pode imaginar como era divertido – acrescentou Suzanne ingenuamente. – Larry me olhava com expressão tão estranha quando eu chorava nas partes tristes! Claro que isto só acontecia porque eu não recuperara ainda a saúde. E, você sabe, ainda conservo os livros. Mesmo hoje, não posso ler algumas das cartas de madame de Sévigné sem ouvir a voz melodiosa de Larry, sem ver o rio que corria de mansinho e os álamos da margem oposta; e às vezes tenho que parar, tal a dor que me dá no coração. Hoje sei que foram aquelas as semanas mais felizes da minha vida. Esse rapaz é um anjo de candura.
Suzanne percebeu que estava ficando sentimental e teve medo (erradamente) de que eu me risse dela. Encolheu os ombros e sorriu.
– Sabe de uma coisa, sempre tive a firme intenção de, quando chegar à idade canônica e nenhum homem quiser mais dormir comigo, fazer as pazes com a Igreja e arrepender-me dos meus pecados. Mas dos pecados que cometi com Larry nada no mundo me fará arrepender. Nunca, nunca, nunca!
– Mas, pela sua narrativa, não vejo que motivo possa haver para arrependimentos.
– Ainda não lhe contei nem a metade. Você sabe, tenho uma boa constituição e depois de três ou quatro semanas de ar livre, boa comida e bom sono, sem uma única preocupação, senti-me tão forte quanto antes. E estava com boa aparência, corada, e meu cabelo recuperara o brilho natural. Sentia-me como se tivesse vinte anos. Larry nadava no rio todas as manhãs e eu costumava observá-lo. Tem um corpo bonito; não de atleta, como o do meu escandinavo, mas forte e de uma graça infinita.
Suzanne fez uma pequena pausa e continuou:
– Ele tivera muita paciência enquanto eu estava tão fraca, mas agora que me sentia perfeitamente bem não vi razão para deixá-lo esperar por mais tempo. Dei-lhe uma ou duas indiretas, que estava pronta para tudo, mas ele não pareceu compreender. Naturalmente vocês anglo-saxões são esquisitos, brutos e sentimentais ao mesmo tempo; e não há dúvida de que não são bons amantes. Pensei comigo mesma: ‘Talvez seja delicadeza da parte dele; fez tanto por mim, permitiu que eu trouxesse a menina; é possível que não tenha coragem de me pedir a paga a que tem direito”. E, portanto, certa noite, quando íamos para a cama, perguntei-lhe: “Você quer que eu vá ao seu quarto mais tarde?”.
Não pude deixar de rir.
– Você foi um tanto brusca, não foi?
– Bom, eu não podia convidá-lo para vir ao meu, pois
Odette dormia comigo – respondeu ingenuamente Suzanne. – Lany fitou-me por um momento com aqueles seus olhos bondosos, depois sorriu.
‘’Você quer vir?”, perguntou-me.
“Que é que você pensa – com este belo corpo que você tem?” “Está certo; venha então.”
– Subi, despi-me e esgueirei-me pelo corredor até o quarto dele. Larry estava na cama lendo e fumando. Largou o livre o cachimbo e moveu-se na cama para me dar lugar.
Suzanne ficou em silêncio durante alguns momentos e não tive vontade de lhe fazer perguntas. Mas dali a pouco ela prosseguiu:
– Era um amante esquisito. Muito meigo, afetuoso e até mesmo terno, viril sem ser apaixonado, se é que você compreende o que quero dizer, e completamente sem vício. Amava como um fogoso colegial. Engraçado e ao mesmo tempo comovente... Saí com a impressão de que eu é que lhe devia estar grata, e não ele a mim. Quando fechei a porta, vi-o apanhar de novo o livro e continuar a leitura do ponto onde parara.
Comecei a rir.
– Ainda bem que você acha engraçado – disse ela um tanto secamente. Mas Suzanne não deixava de ter o senso de humor. Riu também e continuou: – Logo percebi que, se fosse esperar convite, talvez tivesse que esperar eternamente; e, portanto, todas as vezes que tinha vontade, eu ia ao quarto dele e entrava na cama. Foi sempre muito gentil. Em resumo, tinha instintos naturais, mas era como esses homens abstratos que se esquecem de comer, mas que, quando a gente lhes põe um prato à frente, comem com apetite. Conheço perfeitamente quando um homem está apaixonado por mim e eu teria sido idiota se pensasse que Larry me amava, mas achei que ele se habituaria à minha pessoa. A gente tem que ser prática na vida; pensei com os meus botões que me conviria muito se, quando voltássemos a Paris, Larry me levasse para morar com ele. Sei que me deixaria ficar com a menina e isso me teria causado prazer. Instintivamente eu sentia que seria tolice apaixonar-me por ele; você sabe como as mulheres não têm sorte: muitas vezes, quando amam, deixam de ser amadas; tomei, portanto, a resolução de ficar em guarda.
Suzanne tragou a fumaça e soltou-a depois pelo nariz. Estava ficando tarde e havia agora muitas mesas vagas, mas via-se ainda um grupo em volta do bar.
– Certa manhã, depois do café, estava eu costurando à beira do rio e Odette brincando a meu lado, quando vi Larry aproximar-se.
“Vim despedir-me de você”, disse ele.
“Vai a algum lugar?”, perguntei, admirada. “Vou.”
“Mas não de uma vez?”
‘’Você já está boa. Aqui tem dinheiro para sustentá-la até o fim do verão e durante os primeiros tempos após a sua volta para Paris.”
No primeiro momento fiquei tão desconcertada que não soube o que dizer. Ele continuou de pé, de frente para mim, sorrindo com aquele seu ar cândido.
“Fiz alguma coisa que lhe desagradasse?”, perguntei. “Nem por um momento julgue isso. Tenho um trabalho a fazer. Passamos uns tempos muito agradáveis aqui. Odette, venha dizer adeus ao seu tio.”
– Ela era pequena demais para compreender. Larry tomou-a nos braços e beijou-a; depois me beijou também e voltou para o hotel; dali a minutos ouvi o ruído do carro que se afastava. Olhei para as notas que tinha na mão: doze mil francos. Aconteceu tão depressa que não tive tempo de reagir. “Zut alors”, disse de mim para mim. De uma coisa pelo menos eu podia estar satisfeita: de não ter permitido que meu coração ficasse por demais preso a ele.
Mas para mim tudo aquilo era um mistério. Vi-me obrigado a rir.
– Sabe de uma coisa, houve época em que adquiri certa reputação como humorista pelo simples método de dizer a verdade. Para muitas pessoas foi uma tal surpresa que pensaram que eu estava querendo ser engraçado.
– Não vejo relação.
– Pois bem, Larry é, creio, a única criatura completamente desinteressada que conheço. Isto faz com que seus atos pareçam singulares. Não estamos habituados a pessoas que fazem certas coisas simplesmente pelo amor de um Deus em quem elas não acreditam.
Suzanne encarou-me.
– Meu pobre amigo, voce bebeu demais.
Cinco
Cinco
1
Não me dediquei grandemente ao meu trabalho em Paris. Era muito agradável, na primavera, com os castanheiros nos Champs Elysées em plena florescência, e quando, nas ruas, tão alegres eram as luzes. Havia prazer na atmosfera: prazer leve e fugaz, sensual sem vulgaridade, que avivava o passo e alertava a inteligência. Sentia-me feliz na companhia dos meus inúmeros amigos e, repleto o coração de amenas recordações do passado, pelo menos espiritualmente consegui recapturar parte do fulgor da mocidade. Achei que seria tolice permitir que o trabalho perturbasse a delícia do momento atual que talvez nunca mais me fosse dado gozar tão plenamente.
Isabel, Gray, Larry e eu fazíamos excursões a lugares interessantes e não muito afastados. Visitamos Chantilly e Versailles, St. Germain e Fontainebleau. Aonde quer que fôssemos, almoçávamos bem e fartamente. Gray comia bastante para satisfazer o seu vasto corpo e talvez se excedesse um pouco na bebida. Não havia dúvida de que sua saúde melhorara, não sei se devido ao tratamento de Larry ou à ação do tempo. Tinham cessado as pavorosas enxaquecas e seus olhos iam perdendo a expressão perplexa que tanto me confrangera da primeira vez que o vira, logo após a minha chegada a Paris. Pouco falava, a não ser para de vez em quando contar uma longa história, mas ria em altas gargalhadas das tolices que Isabel e eu dizíamos. Apreciava aqueles passeios. Embora não fosse um sujeito divertido, era tão bem-humorado e fácil de contentar que era impossível a gente não gostar dele. Tipo de homem com quem uma pessoa hesitaria em ficar uma noite a sós; e no entanto a perspectiva de passar com ele seis meses não seria absolutamente desagradável.
Era um prazer notar o seu amor por Isabel; encantava-se com a beleza dela e achava-a a mais inteligente e sedutora criatura deste mundo. Comovente, também, a sua dedicação por Larry. Cega dedicação. Também Larry parecia estar se divertindo; quero crer que considerava aquela época como uma espécie de férias roubadas aos projetos que por acaso abrigasse, procurando calmamente aproveitá-las ao máximo. Nem ele, tampouco, era grande conversador, mas isso não tinha importância, pois bastava a sua companhia; era tão natural, de uma alegria tão sã que a gente não lhe pedia mais do que ele dava; e eu sabia perfeitamente que, se aqueles dias decorriam tão felizes, era pelo fato de Larry estar entre nós. Embora nunca dissesse uma frase brilhante ou espirituosa, essas reuniões teriam sido insípidas sem ele.
Certa vez, quando regressávamos de um desses passeios, presenciei uma cena que de certo modo me sobressaltou. Tínhamos ido a Chartres e voltávamos para Paris. Gray à direção e Larry sentado ao seu lado; Isabel e eu atrás. Cansados, depois do longo dia.
Larry estava com o braço estendido na parte superior do assento da frente. Pela posição erguera-se-lhe o punho da camisa, deixando à mostra o pulso fino, forte, e também a parte inferior do braço trigueiro, coberto por uma penugem que o sol dourava. Qualquer coisa na imobilidade de Isabel atraiu-me a atenção e me fez olhar para ela. Estava tão quieta que parecia hipnotizada. Respiração ofegante. Tinha os olhos fixos no pulso nervoso com seus cabelinhos dourados e na mão longa e delicada, mas forte, e jamais vi num semblante humano tão faminta concupiscência como no de Isabel naquele momento. Verdadeira máscara de luxúria. Nunca pensei que suas belas feições pudessem assumir expressão de tão desenfreada sensualidade. Mais animal que humana. A beleza desaparecera do seu rosto; a expressão que nele havia tornava-o medonho e assustador. Lembrava, horrorosamente, uma cadela no cio; quase me senti mal. Ela não tinha noção da minha presença; não tinha noção de coisa alguma a não ser daquela mão, tão despreocupada, que lhe despertara o frenético desejo. Nisso um espasmo contorceu-lhe o rosto, ela estremeceu e, fechando os olhos, recostou-se no canto do carro.
– Dê-me um cigarro – disse-me, em voz irreconhecível de tão rouca.
Tirei um cigarro da cigarreira e acendi-o para ela. Isabel fumou-o avidamente. Durante o resto do trajeto ficou a olhar para fora da janela sem uma palavra.
Chegando ao apartamento, Gray pediu a Larry que me levasse até o hotel e fosse depois guardar o carro na garagem. Larry passou para a direção e eu me sentei ao seu lado. Ao atravessar a calçada, Isabel segurou o braço de Gray e, aconchegando-se a ele, lançou-lhe um olhar que não cheguei a ver, mas cuja significação não me foi difícil adivinhar. Ocorreu-me que ele iria ter uma companheira apaixonada na cama, aquela noite, embora provavelmente nunca viesse a saber a que dor de consciência devia tal ardor. Junho chegava ao termo e eu tinha que voltar para a Riviera. Alguns amigos de Elliott, de partida para a América, haviam emprestado aos Maturin sua vila em Dinard, e estes pretendiam para lá seguir assim que começassem as férias das crianças. Larry ia ficar em Paris, para trabalhar, mas estava pensando em comprar um Citroën de segunda mão e prometeu ir em agosto passar uns dias com eles. Na minha última noite em Paris, convidei os três para jantarem comigo.
Foi nesta noite que encontramos Sophie Macdonald.
2
Isabel estava com vontade de percorrer os cabarés desacreditados e, como eu conhecia alguns, pediu-me que lhes servisse de guia. A ideia não me agradou, pois os frequentadores desses lugares, em Paris, não fazem cerimônia em manifestar seu desprazer ante a visita de curiosos de outra classe. Mas Isabel insistiu. Preveni-a de que iria achar enfadonho e supliquei-lhe que se vestisse simplesmente. Jantamos tarde, fomos ao Follies Bergères por uma hora e depois nos pusemos em campo. Levei-os primeiramente a um portão preto de Notre-Dame, frequentado por bandidos e suas concubinas; eu conhecia o proprietário e ele nos arranjou lugares a uma longa mesa, ocupada por pessoas da pior aparência possível; mas encomendei vinho para todos e bebemos à saúde uns dos outros. Estava quente, enfumaçado e sujo. Levei-os depois ao Sphynx onde, sentadas em dois bancos opostos, vimos mulheres nuas sob os vestidos vistosos, exibindo os seios, mamilos e tudo o mais; quando a orquestra começou a tocar, puseram-se a dançar indiferentemente umas com as outras, de olho nos homens sentados à volta das mesas de mármore que rodeavam o salão. Encomendamos uma garrafa de champanhe. Algumas das mulheres namoraram Isabel ao passar por nossa mesa, mas não sei se ela terá compreendido o significado de tais olhares.
Fomos depois à Rue de Lappe. É uma rua suja e estreita e assim que se entra nela tem-se impressão de sórdida luxúria. Fomos a um café. Lá estava, ao piano, o rapazinho de sempre, pálido e dissoluto; outro homem, velho e cansado, arranhava um violino, enquanto um terceiro tirava de um saxofone acordes dissonantes. O café estava repleto e não parecia haver uma mesa vaga, mas, ao perceber que éramos fregueses com dinheiro, sem a menor cerimônia o patron nos deu a mesa de um casal, mandando-os para outra já ocupada. As pessoas assim desalojadas não ficaram lá muito satisfeitas e fizeram a nosso respeito comentários bem pouco lisonjeiros. Muita gente dançando, marinheiros com o pompom vermelho no chapéu; homens na maioria de gorro na cabeça e lenço em volta do pescoço; mulheres maduras, e também algumas moças, todas elas pintadas até os olhos, sem chapéu, metidas em saias curtas e blusas de tons vivos. Homens dançando com rechonchudos rapazinhos de olhos pintados; mulheres emaciadas, de expressão dura, dançando com mulheres gordas de cabelo tinto; homens dançando com mulheres. Ar pesado de fumaça, vapores alcoólicos e transpiração. A música parecia não ter fim e a desagradável multidão de rostos suarentos continuava a rodar pela sala, com uma solene persistência em que havia algo de macabro. Vi alguns homens de aspecto brutal, mas na maioria eram raquíticos e anêmicos. Pus-me a observar os músicos. Pareciam robôs, tão maquinal a sua execução, e fiquei a conjecturar se, no início da carreira, teriam eles alimentado sonhos de glória, pensando que de longe viria gente para os ouvir e aplaudir. Mesmo para tocar mal violino, uma pessoa precisa tomar lições e estudar; teria aquele rabequista tido todo esse trabalho só para tocar foxtrote até altas horas da madrugada em tão sórdido lugar? A música parou e o pianista enxugou o rosto com um lenço enxovalhado. Os pares voltaram para suas mesas, arrastando-se uns, outros bamboleando-se. Subitamente ouvimos uma voz americana:
– Mas será possível?...
De uma mesa do lado oposto levantou-se uma mulher. O homem que a acompanhava tentou detê-la, mas ela empurrou-o para um lado e atravessou, cambaleante, a sala. Estava completamente embriagada. Veio até nossa mesa e ficou de pé, pouco firme nas pernas e sorrindo tolamente. Parecia achar o nosso grupo muito divertido. Olhei de relance para os meus companheiros. Isabel encarava-a com ar parado, Gray estava taciturno e Larry fitava-a como se não pudesse acreditar nos próprios olhos.
– Alô! – exclamou ela.
– Sophie – disse Isabel.
– Que raio de pessoa pensou você que eu fosse? – gorgolejou a outra. Agarrou o braço de um garçom que ia passando e disse: – Vincent, vá me buscar uma cadeira.
– Vá você – disse o homem, libertando-se.
– Salaud – gritou ela, cuspindo-lhe.
– T’en fais pas, Sophie – disse um sujeito alto e gordo, de cabeça grande e cabelos gordurosos, que estava sentado perto de nós, em mangas de camisa. – Aqui tens uma cadeira.
– Imagine encontrar vocês assim – exclamou a mulher, ainda cambaleante. – Alô, Larry. Alô, Gray. – Caiu na cadeira que o homem gordo colocara atrás dela e continuou: – Vamos beber alguma coisa. Patron – gritou.
Eu notara que o proprietário nos observava; agora ele se aproximou.
– Conheces essas pessoas, Sophie? – perguntou dirigindo-se familiarmente a ela na segunda pessoa do singular.
– Ta gueule – replicou ela com uma risada de bêbada. – São amigos da infância. Vou oferecer-lhes uma garrafa de champanhe. E não me apareças com nenhuma urine de cheval. Que venha alguma coisa que a gente possa tomar sem vomitar.
– Tu estás bêbada, Sophie – disse ele.
– Vai para o inferno.
Ele afastou-se, satisfeito por poder vender uma garrafa de champanhe – por precauções só tínhamos bebido conhaque com soda – e Sophie fitou-me durante alguns segundos com ar perplexo.
– Quem é o seu amigo, Isabel?
Isabel disse-lhe o meu nome.
– Ah! sim. Agora me lembro; você veio uma vez a
Chicago. Todo alinhadão, não é?
– Talvez – respondi sorrindo.
Não me lembrava dela, mas isto não era de admirar, pois fazia mais de dez anos que eu fora a Chicago e conhecera muita gente lá, e também depois.
Ela era alta e, por ser muito magra, de pé parecera ainda mais alta. Estava com uma blusa de seda de um verde forte, amarrotada e manchada; saia preta, curta. Cabelos cortados e levemente ondulados, mas em desordem e tintos de um tom vivíssimo. Escandalosamente pintada, com carmim até os olhos, pálpebras azuladas, pestanas e sobrancelhas acentuadas pelo lápis, e lábios escarlates. Mãos sujas, de unhas pintadas. Seu aspecto era mais ordinário do que o de qualquer outra mulher ali presente, e pareceu-me que estava não somente embriagada, mas sob a ação de algum narcótico. E no entanto possuía, inegavelmente, certa corrupta atração; mantinha a cabeça com uma inclinação arrogante e a pintura realçava mais ainda o extraordinário tom esverdeado dos olhos. Apesar de bêbada como estava, tinha um franco sem-vergonhismo que, imaginei, devia atrair o que havia de mais baixo nos homens. Ela nos envolveu com um irônico sorriso e disse:
– Não creio que vocês estejam muito satisfeitos por me ver.
– Eu sabia que você estava em Paris – disse desajeitadamente Isabel, com um gélido sorriso nos lábios.
– Você podia ter me telefonado. Meu nome está na lista.
– Não faz muito que chegamos. Gray veio em socorro de Isabel.
– Está se divertindo bastante, Sophie?
– Muito. Você faliu, não é verdade, Gray?
O rosto de Gray tornou-se ainda mais rubro.
– É.
– Pouca sorte! Chicago deve estar agora muito triste. Felizmente saí de lá a tempo. Com os diabos, será que aquele cafajeste não nos vai trazer alguma coisa para beber?
– Vem vindo – disse eu, notando que um garçom procurava passar por entre as mesas, carregando uma bandeja com copos e uma garrafa de vinho.
Minha observação chamou a atenção de Sophie sobre a minha pessoa.
– Meus queridos parentes por afinidade expulsaram-me de Chicago. Disseram que eu estava estragando a sua... reputação. Deu uma risada selvagem e continuou:
– Sou desses expatriados que vivem de mesada.
O champanhe veio e foi servido. Sophie ergueu o copo com mão trêmula.
– Para o diabo os alinhadões! – exclamou. Esvaziou o copo e olhou de relance Larry. – Você está calado, Larry.
Ele estivera fitando Sophie com ar impassível. Não tirara dela os olhos, desde que ela aparecera. Sorriu amavelmente e replicou:
– Não sou um sujeito muito prosa.
A música recomeçou a tocar e um homem se aproximou de nossa mesa. Era alto e bem proporcionado; grande nariz aquilino, vasta cabeleira negra e luzidia, lábios grossos e sensuais. Parecia um sinistro Savonarola. Como quase todos os homens ali presentes, não usava colarinho, e o paletó justo estava abotoado de maneira a lhe marcar a cintura.
– Vem, Sophie. Vamos dançar.
– Vai-te embora. Estou ocupada. Não vês que estou com amigos?
– J’m en fous de tes amis. Teus amigos que vão para o inferno. Tu vais dançar.
Segurou-lhe o braço, mas Sophie desvencilhou-se.
– Fous moi la paix, espece de con – gritou ela com súbita veemência.
– Merde.
– Mange.
Gray não compreendia o que eles diziam, mas percebi que, com o estranho conhecimento de obscenidades que muitas mulheres virtuosas parecem ter, Isabel entendia perfeitamente; seu rosto enrijeceu numa expressão de nojo. O homem ergueu o braço, de mão aberta – mão calosa de operário – e ia esbofetear Sophie quando Gray se ergueu a meio na cadeira.
– Allaiz vous ong – gritou ele com a sua execrável pronúncia.
O homem susteve o gesto, lançando a Gray um olhar furioso.
– Cuidado, Coco – recomendou Sophie com uma risada amarga. – Olha que ele te põe a nocaute.
O homem avaliou a altura, peso e força de Gray; depois, encolhendo taciturnamente os ombros, atirou-nos um palavrão e safou-se. Sophie riu baixinho, num gorgolejar de bêbada. O resto do grupo permaneceu em silêncio. Enchi de novo o seu copo.
– Você está morando em Paris, Larry? – perguntou ela, depois de ter bebido até o fim.
– Por enquanto.
É sempre difícil conversar com um bêbado, e não há dúvida de que os sóbrios levam desvantagem. Continuamos a falar durante alguns minutos, de maneira monótona e constrangida. Depois Sophie afastou a sua cadeira.
– Se eu não voltar para perto do meu amiguinho ele ficará furioso. É um sujeito emburrado, mas céus! é um macho e tanto. – Ergueu-se, cambaleante, e continuou:
– Até logo, pessoal. Apareçam novamente. Estou aqui todas as noites.
Foi abrindo caminho por entre os pares que dançavam e a perdemos de vista na multidão. Quase cheguei a rir do gélido desprezo expresso nas feições clássicas de Isabel. Nenhum de nós disse uma palavra.
– Este lugar é imundo – exclamou de repente Isabel. – Vamos embora.
Paguei as bebidas e a garrafa de champanhe que Sophie encomendara e nos levantamos. Quase todos dançavam, de modo que conseguimos sair sem que houvesse comentários. Já eram duas horas e na minha opinião mais que tempo de ir para a cama, mas Gray disse que estava com fome, de modo que sugeri irmos ao Graf, em Montmartre. Fizemos o trajeto em silêncio; eu me sentara ao lado de Gray para indicar-lhe o caminho. Chegamos ao alegre restaurante. Ainda havia gente no terraço. Entramos e pedimos ovos com toucinho e cerveja. Pelo menos aparentemente Isabel recuperara o sangue-frio. Felicitou-me, talvez com certa ironia, pelo fato de eu conhecer os lugares mais desacreditados de Paris.
– A ideia foi sua – repliquei.
– Diverti-me imensamente. Foi uma noite formidável.
– Droga! – disse Gray. – Uma imundície. E Sophie!... Isabel encolheu com indiferença os ombros.
– Não se lembra dela? – perguntou-me. – Sentou-se ao seu lado, quando você veio jantar conosco pela primeira vez. Naquele tempo não tinha esse pavoroso cabelo vermelho. Sua cor natural é um bege sujo.
Voltei em pensamentos ao passado. Lembrei-me de uma mocinha de olhos de um azul quase verde e jeitinho atraente de manter de lado a cabeça. Bonita, não; mas fresca e ingênua, com um misto de timidez e petulância que eu achara interessante.
– Claro que me lembro. Gostei do nome dela. Tive uma tia que se chamava Sophie.
– Casou-se com um rapaz chamado Bob Macdonald.
– Bom sujeito – disse Gray.
– Era um dos rapazes mais bonitos que conheci. Nunca pude compreender o que ele viu em Sophie. Ela casou-se logo depois de mim. Seus pais eram divorciados; a mãe casou-se de novo com um empregado da Standard Oil na China. Ela morava com os parentes do pai, em Marvin, e naquela época nos víamos muito, mas depois de casada abandonou quase que completamente o nosso grupo. Bob Macdonald era advogado, mas não ganhava muito, e eles tinham um apartamento sem elevador, na parte norte. Mas não era por isso. Não queriam saber de ninguém. Nunca vi duas pessoas tão loucas uma pela outra. Mesmo depois de dois ou três anos de casados, já com um filho, quando iam ao cinema Bob passava o braço à volta da cintura de Sophie e ela punha a cabeça no ombro dele, como dois namorados. Eram a maior pilhéria de Chicago.
Larry ouvia o que Isabel dizia, mas não fez comentário. A expressão do seu rosto era inescrutável.
– O que aconteceu, então? – perguntei.
– Certa noite, vinham eles voltando para Chicago num cupezinho, que tinham, e a criança estava junto.
Eram obrigados a levá-la por toda parte, pois não tinham empregada – era Sophie quem fazia todo serviço – e, além do mais, a adoravam. Nisto um vasto sedan, onde vinha um grupo de bêbados, a cento e trinta quilômetros por hora, bateu em cheio contra eles. Bob e a criança morreram instantaneamente, mas Sophie só teve concussão e uma ou duas costelas quebradas. Esconderam dela o máximo possível a morte de Bob e do filho, mas finalmente tiveram que contar-lhe. Dizem que foi horrível. Ficou como louca. Gritou como uma desesperada. Tinham que vigiá-la noite e dia e uma vez ela quase chegou a atirar-se pela janela. Naturalmente fizemos o que pudemos, mas ela parecia odiar-nos. Depois que saiu do hospital, puseram-na num sanatório, onde ficou durante meses.
– Coitadinha.
– Quando a soltaram ela começou a beber e, quando estava bêbada, entregava-se a qualquer um. Horrível para a família. Gente muito boa e pacata, que detestava escândalo. A princípio todos nós tentamos ajudá-la, mas foi inútil; se alguém a convidava para jantar, já chegava meio tocada e era muito provável que ficasse inconsciente antes de terminar a noite. Depois começou a misturar-se com um grupo péssimo e fomos obrigados a abandoná-la. Certa vez foi presa por estar guiando um carro em estado de embriaguez. Estava com um mestiço que arranjara num bar qualquer, e aconteceu que a polícia andava atrás dele.
– Mas tinha dinheiro? – perguntei.
– Tinha o seguro de vida de Bob; o carro que se chocara com o deles estava no seguro e creio que os donos lhe deram uma indenização qualquer. Mas não durou muito. Gastou tudo como um marinheiro bêbado e dali a dois anos estava quebrada. Sua avó não quis saber dela em Marvin. E então os parentes do marido disseram que lhe dariam uma mesada se fosse morar no estrangeiro. Creio que é disso que vive agora.
– O mundo é um círculo vicioso – observei. – Antigamente mandavam, da minha pátria para a América, a ovelha negra da família; pelo que vejo, mandam-na hoje da América para a Europa.
– Não posso deixar de ter pena dela – disse Gray.
– Não pode? – perguntou friamente Isabel. – Pois eu posso. Claro que foi um choque e ninguém teve mais pena de Sophie do que eu. Conhecíamo-nos desde crianças. Mas uma pessoa normal reage diante de uma coisa dessas. Se ela se entregou por completo foi porque tinha um fundo mau. Era naturalmente desequilibrada; mesmo o seu amor por Bob era exagerado. Se tivesse mais fibra, teria conseguido fazer alguma coisa da vida.
– Se isto, se aquilo... Você não estará sendo severa demais, Isabel? – murmurei.
– Não o creio. Tenho bom senso e não vejo razão para sentimentalismos a respeito de Sophie. Deus sabe que ninguém poderia ser mais dedicada a Gray e às crianças do que eu, e se eles morressem num desastre de automóvel eu ficaria alucinada, mas cedo ou tarde acabaria reagindo. Não é isto que você gostaria que eu fizesse, Gray, ou preferiria que eu ficasse bêbada todas as noites e me entregasse a todos os apaches de Paris?
Desde que eu conhecia Gray, foi aí que ele mais próximo chegou de fazer uma observação espirituosa.
– Claro que eu preferiria que você se atirasse na minha pira, metida num vestido de Molyneaux, mas, como isto está fora de moda, acho que a melhor solução seria você dedicar-se ao bridge. E gostaria que se lembrasse de nunca abrir o jogo, em sem-trunfo, com menos de três e meia a quatro vazas de honra na mão.
A ocasião não era propícia para eu dizer a Isabel que, embora sincero, seu amor pelo marido e filhas estava longe de ser apaixonado; mas talvez ela me tivesse lido o pensamento, pois se virou para mim com certa virulência:
– Que diz você a isso?
– Sou como Gray; tenho pena da menina.
– Ela não é nenhuma menina: está com trinta anos.
– Provavelmente para ela o mundo acabou quando o marido e o filho morreram. Com certeza pouco se importou com o que viesse a acontecer-lhe, caindo na horrível degradação do alcoolismo e da copulação promíscua para se vingar da vida que tão cruelmente a tratara. Vivera no céu e, ao perdê-lo, não se conformou em viver na terra comum dos homens comuns; em desespero, mergulhou no inferno. Quero crer que, não podendo mais beber o néctar dos deuses, achou preferível beber gim ordinário.
– Isso é o tipo de coisa que a gente lê em romances. É tolice, e você sabe que é tolice. Sophie chafurda na lama porque sente prazer nisso. Outras mulheres têm perdido maridos e filhos. Não foi isto que a tornou má. O mal não pode brotar do bem. O mal sempre esteve ali, latente. Quando o acidente de automóvel rompeu as suas defesas, libertou-a para ela se mostrar tal qual era. Não desperdice com Sophie a sua piedade; ela é agora o que no fundo sempre foi.
Durante todo este tempo Larry permanecia calado, parecendo imerso nos próprios pensamentos; creio que mal ouvia o que dizíamos. Breve silêncio seguiu-se às palavras de Isabel. Depois Larry começou a falar, mas em voz estranha, incolor, como se não se dirigisse a nós, e sim a si próprio; seus olhos pareciam perdidos na névoa do passado.
– Lembro-me dela quando tinha catorze anos, com seus cabelos compridos afastados da testa e laço preto atrás, rosto sério, cheio de sardas. Menina modesta, idealista. Lia tudo que lhe chegava às mãos e costumávamos falar sobre livros.
– Quando? – perguntou Isabel franzindo de leve as sobrancelhas.
– Oh! quando você saía para fazer visitas com sua mãe. Eu ia até a casa do avô dela e nos sentávamos sob um grande olmo que lá havia. Líamos em voz alta. Ela adorava poesia; chegou mesmo a compor.
– Muitas meninas dessa idade fazem o mesmo. Geralmente são versos que não valem nada.
– Verdade que isso aconteceu há muito tempo e provavelmente eu não tinha competência para julgar.
– Você não podia ter tido mais de dezesseis anos.
– Claro que era mais ou menos plágio. Havia muito de Robert Frost. Mas, mesmo assim, creio que eram extraordinários para pessoa tão moça. Sophie tinha bom ouvido e noção de ritmo. Sentia-se inspirada com os sons e perfumes do campo, com o prenúncio da primavera no ar, com o cheiro da terra úmida após uma chuva estival.
– Eu nunca soube que ela fazia versos – disse Isabel.
– Guardava segredo disso, pois tinha medo que vocês rissem dela. Era muito tímida.
– Tímida é que ela não é hoje.
– Quando voltei da guerra, encontrei-a quase moça. Lera muito sobre as condições das classes operárias e vira alguma coisa deste lado da vida de Chicago. Interessara-se por Carl Sandburg e estava escrevendo furiosamente, em versos livres, sobre a mísera condição da pobreza e a exploração das classes trabalhistas. Talvez fossem um pouco corriqueiros, mas eram sinceros, e neles havia piedade, aspiração. Naquela época ela queria ser assistente social. Comovente, esse seu desejo de sacrifício. Acho que seria capaz de muita coisa. Não era boba, nem melosa, mas dava a impressão de uma suave pureza e estranha elevação de alma. Estávamos sempre juntos, naquele ano.
Percebi que Isabel ouvia com crescente exaspero. Larry nem de longe suspeitava que estava enfiando no coração dela um punhal, e que cada uma de suas despreocupadas palavras avivava mais ainda a ferida. Mas, quando Isabel falou, foi com um leve sorriso nos lábios.
– Como é que ela chegou a escolhê-lo por confidente? Larry fitou-a com seu olhar confiante.
– Não sei. Era pobre, no meio de todas vocês que tinham bastante dinheiro, e eu não pertencia ao grupo; estava lá apenas porque o tio Bob clinicava em Marvin. Com certeza achou que isso era um traço que tínhamos em comum.
Larry não tinha parentes. Quase todos nós temos, pelo menos, primos que às vezes mal conhecemos, mas que em todo caso nos fazem sentir que estamos dentro da família humana. Os pais de Larry tinham sido filhos únicos; um de seus avós, o Quaker, morrera no mar, ainda moço, e seu outro avô não tinha irmãos. Ninguém poderia estar mais só no mundo do que Larry.
– Você nunca percebeu que Sophie estava apaixonada por você? – perguntou Isabel.
– Nunca – respondeu ele sorrindo.
– Pois bem, estava.
– Quando ele voltou da guerra, como herói ferido, quase todas as moças de Chicago ficaram com uma quedinha por Larry – disse Gray com o seu jeitão despachado.
– Aquilo era mais do que uma quedinha. Sophie tinha adoração por você, meu pobre Larry. Não me diga que não sabia?
– Claro que não sabia, nem acredito nisso.
– Com certeza você achou que ela era demasiadamente espiritual.
– Ainda vejo aquela menina magrinha, de fita no cabelo e rosto grave, que lia com voz trêmula de emoção aquela belíssima ode de Keats. Gostaria de saber onde está essa menina, agora...
Isabel teve um sobressalto e lançou a Larry um olhar curioso e desconfiado.
– Já é tardíssimo, e estou que não me aguento mais. Vamos embora.
3
Na noite seguinte tomei o Trem Azul para a Riviera e dois ou três dias depois fui a Antibes, visitar Elliott e dar-lhe notícias de Paris. Achei-o com má aparência. A cura em Montecatini não lograra o resultado esperado e suas subsequentes peregrinações o tinham fatigado excessivamente. Encontrara em Veneza uma pia batismal, e fora depois a Florença comprar o tríptico que tivera em vista. Ansioso por ver esses dois objetos devidamente colocados, fora aos Pântanos Pontinos e descera numa miserável estalagenzinha, onde achara o calor difícil de suportar. Suas preciosas compras levaram tempo a chegar, mas ele ali continuou, firme, decidido a ver cumprida a sua missão. Mas, depois de estar tudo em ordem, encantouse com o efeito e foi com orgulho que me mostrou as fotografias que tirara. Embora pequena, a igreja tinha imponência, e a discreta riqueza do interior era prova do bom gosto de Elliott.
– Vi, em Roma, um sarcófago dos primeiros tempos do cristianismo, que muito me agradou; levei muito tempo refletindo sobre a vantagem de comprá-lo, mas acabei desistindo.
– Mas, Santo Deus, para que queria você um sarcófago, Elliott?
– Para me pôr dentro dele, caro amigo. Era de um belo modelo e achei que, do outro lado da entrada, combinaria com a pia; mas aqueles primeiros cristãos eram uns sujeitinhos atarracados e eu não caberia dentro dele. E não ia ali ficar até o dia do Juízo Final, com os joelhos dobrados até o queixo, como um feto. Teria sido pouquíssimo confortável.
Ri, mas Elliott continuou sério.
– Tive melhor ideia. Arranjei tudo, com certa dificuldade, como era de esperar, para ser sepultado em frente ao altar, ao pé dos degraus do coro; e assim, quando os pobres camponeses dos Pântanos Pontinos vierem receber a sagrada comunhão, com suas pesadas botas pisarão sobre os meus ossos. Bem chie, não acha você? Apenas uma laje, com meu nome e duas datas. Si monumentum quoeris, circumspice. Se buscas o seu monumento, olha à volta, você sabe.
– Conheço bastante latim para entender uma citação corriqueira, Elliott – respondi secamente.
– Perdoe-me, caro amigo. Estou tão habituado à ignorância das classes elevadas que por um momento me esqueci que estava conversando com um escritor.
Ele venceu.
– Mas o que eu queria dizer-lhe era o seguinte – continuou Elliott. – Deixei tudo explicado no meu testamento, mas desejo que você faça com que as minhas determinações sejam cumpridas. Não quero ser enterrado na Riviera ao lado de coronéis aposentados e franceses da burguesia.
– Claro que farei o que deseja, Elliott, mas não creio que seja necessário pensarmos nisso durante muito tempo ainda.
– Estou caminhando em anos, você sabe, e, para ser franco, não sentirei muito quando chegar a minha hora. Como são mesmo aqueles versos de Landor? Aqueci ambas as mãos...
Embora eu não tenha boa memória para decorar palavra por palavra, a poesia era curta e consegui recitá-la.
I strove with none, for none was worth my strofe. Nature
I loved, and, next, to Nature, Art;
I warmed both hands before the fire of Life;
It sinks, and I am ready to depart.
– Isto mesmo – disse, ele.
Achei que só com imensa boa vontade se poderia aplicar a estância a Elliott. E no entanto ele continuou:
– Exprime exatamente os meus sentimentos. Nada mais poderia eu acrescentar, a não ser que sempre frequentei a melhor sociedade da Europa.
– Seria difícil encaixar isso numa quadra.
– A sociedade acabou-se. Houve época em que esperei que a América pudesse substituir a Europa, e criar uma aristocracia que o hoi polloi respeitaria, mas a depressão destruiu toda e qualquer esperança nesse sentido. Meu pobre país está se tornando incrivelmente burguês. Talvez você não me acredite, mas da última vez que estive na América um chofer de táxi me chamou de amigo.
Mesmo assim, embora a Riviera já não fosse a mesma depois do abalo de 29, Elliott continuava a dar recepções e a ir a recepções. Nunca frequentara os meios judeus, com exceção apenas da família Rothschild, mas as mais deslumbrantes festas eram agora dadas por membros da raça eleita, e quando havia uma festa Elliott não tinha forças para ficar em casa. Vagueava por essas reuniões, cortesmente apertando a mão de uma pessoa ou beijando a mão de outra, mas com uma espécie de tristonho desprendimento, qual exilado monarca que se sentisse ligeiramente constrangido por se ver em tal companhia. Os nobres exilados, no entanto, divertiam-se à grande e pareciam não ter maior ambição na vida que a de conhecer uma estrela de cinema. Nem tampouco aprovava Elliott o hábito moderno de tratar os artistas de teatro como pessoas com quem se possa ter relações sociais, mas justamente uma atriz aposentada construíra na vizinhança uma suntuosa residência, mantendo a casa aberta. Ministros, duques, damas da nobreza vinham passar semanas e semanas com ela. Elliott tornou-se assíduo visitante.
– Claro que é um grupo muito misturado – disse-me ele. – Mas a gente não precisa falar com quem não quer. Trata-se de uma compatriota e acho que é minha obrigação ajudá-la. Deve ser um alívio para seus hóspedes encontrarem alguém que fale a língua deles.
Às vezes eu achava Elliott tão abatido que lhe perguntava por que não levava as coisas mais na calma.
– Caro amigo, na minha idade ninguém pode dar-se ao luxo de ficar afastado. Depois de ter durante quase cinquenta anos frequentado a mais alta sociedade, sei perfeitamente que a pessoa que não é vista em toda parte logo fica esquecida.
Compreenderia ele que lamentável confissão fazia? Eu já não tinha coragem de rir de Elliott; achava-o agora profundamente patético. Vivera exclusivamente para a sociedade; as festas eram o seu pão-de-cada-dia; não ser convidado a uma delas era uma afronta; ficar só, uma humilhação – e, velho, agora, sentia-se terrivelmente amedrontado.
Chegamos ao fim do verão. Elliott passou-o correndo de uma ponta da Riviera a outra, almoçando em Cannes, jantando em Monte Carlo, empregando toda a sua arte para ser convidado a um chá aqui, a um coquetel ali; esforçando-se sempre, por mais cansado que estivesse, para ser amável, conversador e espirituoso. Sabia de todas as novidades e podia-se ter certeza de que ele seria o primeiro a conhecer todos os detalhes do último escândalo, excetuando-se, naturalmente, os que nele estavam envolvidos. Teria fitado com ar de franca estupefação qualquer pessoa que lhe dissesse que levava uma vida inútil. Teria considerado essa pessoa desoladoramente plebeia.
4
Quando chegou o outono, Elliott resolveu ir passar uns tempos em Paris, em parte para ver como iam indo Isabel, Gray e as crianças, e também para fazer o que ele chamava de acte de présence na capital. Pretendia seguir depois para Londres, a fim de encomendar algumas roupas, e aproveitaria a ocasião para visitar uns amigos. Eu tencionava ir diretamente para Londres, mas Elliott me pediu para fazer com ele a viagem de automóvel até Paris; não me sendo isso desagradável, consenti, achando depois que, já que lá estava, não havia motivo para também eu não passar uns dias na capital. Fizemos a viagem por etapas, parando nos lugares onde a comida era boa. Elliott estava sofrendo dos rins e só bebia água de Vichy, mas sempre insistia em escolher para mim meia garrafa de um bom vinho; e, excessivamente bondoso para me invejar um gosto que lhe não era permitido, tinha sincero prazer em me ver saboreá-lo. Era tão generoso que tive dificuldade em convencê-lo a me deixar repartir com ele as despesas. Embora eu me cansasse de ouvir casos a respeito das altas personagens que Elliott conhecera no passado, apreciei a viagem. Pitorescos, muitos dos lugares por onde passamos, assim coloridos pelas tintas do princípio de outono. Tendo almoçado em Fontainebleau, só chegamos a Paris à tarde. Elliott deixou-me à porta do meu modesto e antiquado hotel e virou a esquina, para ir ao Ritz.
Tínhamos prevenido Isabel da nossa chegada, de modo que não me admirei de encontrar um bilhete seu à minha espera; mas o conteúdo me surpreendeu.
“Venha ver-me assim que chegar. Aconteceu uma coisa horrível. Não traga o tio Elliott. Pelo amor de Deus, venha logo que puder.”
Não sou menos curioso que o comum dos mortais, mas eu tinha que me lavar e trocar de camisa; tomei depois um táxi e mandei tocar para o apartamento da Rue St. Guillaume. Fizeram-me entrar na sala de visitas. Isabel ergueu-se de um salto.
– Onde é que você esteve este tempo todo? Há séculos que estou esperando.
Eram cinco horas e, antes que eu pudesse responder, entrou o criado com a bandeja de chá. Isabel observou-o com impaciência, contorcendo as mãos. Não atinei com o motivo daquele chamado urgente.
– Acabo de chegar. Almoçamos folgadamente em Fontainebleau.
– Céus, como ele é vagaroso. Incrível! – murmurou Isabel.
O homem colocou sobre a mesa a salva com o bule, o açucareiro e as xícaras e, com calma realmente exasperante, dispôs à volta os pratos de pão com manteiga, bolos e pãezinhos. Depois saiu, fechando a porta.
– Larry vai casar-se com Sophie Macdonald.
– Quem é ela?
– Não seja tão idiota – exclamou Isabel, de olhos chispantes de cólera. – Aquela sujeita bêbada que encontramos naquele café imundo onde você nos levou. Só Deus sabe para que escolheu um lugar daqueles. Gray ficou enojado.
– Oh! você se refere à sua amiguinha de Chicago? – repliquei, ignorando a injusta censura. – Como é que você sabe?
– Como é que eu haveria de saber? Ele mesmo veio participar-me ontem à tarde. Tenho estado como louca desde então.
– Talvez seja melhor você sentar-se, dar-me uma xícara de chá e contar-me tudo direitinho.
– Sirva-se.
Ela estava sentada à mesinha de chá e observou-me, irritada, enquanto eu me servia. Instalei-me confortavelmente num sofazinho perto da lareira.
– Quase não temos visto Larry ultimamente; isto é, depois que chegamos de Dinard. Ele passou lá uns dias, mas não quis hospedar-se conosco, tendo ficado num hotel. Costumava ir à praia brincar com as crianças. Elas são loucas por ele. Íamos jogar golfe em St. Briac. Um dia Gray lhe perguntou se ele tornara a ver Sophie. “Sim, muitas vezes”, disse ele.
“Por quê?”, perguntei.
“É uma velha amiga”, respondeu.
“Se eu fosse você não perderia tempo com ela.”
– Nisto Larry sorriu. Você conhece o sorriso dele, como se a gente tivesse dito uma coisa engraçada, embora não haja graça nenhuma.
“Mas eu não sou você”, replicou.
– Encolhi os ombros e mudei de assunto. Não pensei mais nisso. Você bem pode imaginar o meu horror quando ele me aparece aqui e me participa que vai casar-se com Sophie.
‘Você não pode fazer isso, Larry”, disse eu. “Não pode.” “Mas vou fazer”, declarou ele tão calmamente como se estivesse repetindo um prato à mesa. “E quero que você seja muito boazinha para ela, Isabel.”
“É querer demais”, repliquei. “Você está louco. Ela é má, má, má.”
– Por que é que você diz isso? – perguntei, interrompendo-a.
Isabel fitou-me com olhos chamejantes.
– Ela está no pileque desde manhã até a noite. Entrega-se a qualquer sujeito que a convida.
– Isto não quer dizer que seja má. Muitos cidadãos altamente respeitáveis se embriagam e gostam de frequentar os meios baixos. São maus hábitos, como roer as unhas, por exemplo, mas não acho que passe disso. Chamo de má a pessoa que mente, e trapaceia, e é mesquinha.
– Se você tomar o partido de Sophie, sou capaz de matá-lo.
– Como foi que Larry se encontrou de novo com ela?
– Achou o número do telefone na lista e foi visitá-la.
Ela estava doente, o que não é para admirar, com a vida que leva. Larry chamou um médico e arranjou alguém para tratar dela. Foi assim que começou. Diz ele que Sophie deixou de beber; o idiota acha que ela está curada.
– Você se esqueceu do que Larry fez por Gray? Curou-o, não é verdade?
– Isto é outra coisa. Gray queria sarar. Ela não.
– Como é que você sabe?
– Porque conheço as mulheres. Quando uma mulher se rebaixa a esse ponto, está perdida; nunca mais poderá reabilitar-se. Se Sophie é hoje assim, é porque sempre foi assim. Pensa que ela será fiel a Larry? Claro que não. Cedo ou tarde há de estourar. Está no sangue. É dos brutos que ela gosta; são eles que a excitam, e é atrás dos brutos que ela irá. Fará da vida de Larry um inferno.
– É muito provável, mas não vejo o que você possa fazer.
– Larry está agindo de caso pensado.
– Eu nada posso fazer, mas você pode.
– Eu?
– Larry gosta de você e acata a sua opinião. Você é a única pessoa que tem um pouco de influência sobre ele. Você conhece a vida. Vá procurá-lo e diga-lhe que ele não pode cometer tão grande tolice. Diga-lhe que isso será a sua desgraça.
– Ele apenas me responderá que não é da minha conta, e com toda a razão.
– Mas você gosta dele, ou pelo menos sente certo interesse por ele; não pode ficar de braços cruzados e permitir que estrague sua vida dessa forma.
– Gray é o seu maior e mais velho amigo. Não creio que adiante muito, mas acho que Gray seria a pessoa indicada para falar com Larry.
– Oh! Gray... – replicou ela com impaciência.
– Sabe, talvez não tenha tão mau resultado como você pensa. Conheci dois ou três sujeitos, um na Espanha e dois no Oriente, que se casaram com prostitutas, e elas deram muito boas esposas. Sentiam-se gratas aos maridos, isto é, pela segurança que eles lhes deram; e, naturalmente, sabiam o que agrada a um homem.
– Você me faz perder a paciência. Acha então que me sacrifiquei para deixar Larry cair nas garras de uma ninfômana furiosa?
– Como foi que você se sacrificou?
– Renunciei a Larry pela única razão de não querer ser um estorvo na sua vida.
– Deixe de fita, Isabel. Você renunciou a ele por um brilhante quadrado e um casaco de marta.
Nem bem eu pronunciara essas palavras, um prato de pão com manteiga quase me pegou em cheio na cabeça. Por sorte consegui agarrar o prato, mas o conteúdo espalhou-se pelo chão. Levantei-me e coloquei de novo o prato sobre a mesa.
– Seu tio Elliott não teria ficado nada satisfeito se você tivesse quebrado um dos seus pratos Crown Derby. Foram feitos para o terceiro duque de Dorset e têm um valor inestimável.
– Apanhe as fatias de pão – ordenou-me Isabel.
– Apanhe-as você – repliquei sentando-me de novo no sofá.
– E você se diz um cavalheiro inglês – exclamou ela furiosa.
– Absolutamente; está aí uma coisa que eu nunca disse.
– Dê o fora daqui. Nunca mais quero vê-lo. Detesto a sua presença.
– É pena, pois a sua sempre me causou enorme prazer. Nunca lhe disseram que o seu nariz é exatamente como o de Psiquê do museu de Nápoles, que é considerada a representação máxima da beleza virginal? Você tem pernas bonitas, longas e benfeitas, fato que jamais me canso de admirar, pois quando era moça você as tinha curtas e grossas. Não sei como conseguiu essa transformação.
– Com uma vontade de ferro e pela graça de Deus – replicou ela colericamente.
– Mas, naturalmente, suas mãos são o seu traço mais sedutor. Tão finas e elegantes.
– Sempre tive impressão de que você as considerava grandes demais.
– Não para o seu tamanho. Acho admirável a graça com que você se serve delas. Que deva isso à natureza, ou à arte, você nunca faz um gesto sem beleza. São às vezes como flores, às vezes como pássaros em voo. Mais expressivas do que quaisquer palavras que você possa pronunciar. São como as mãos de um retrato por El Greco; em resumo, quando as vejo, quase chego a acreditar na pouco provável história de Elliott, que vocês tiveram por antepassado um nobre espanhol.
Isabel fitou-me, zangada.
– O que está dizendo? É a primeira vez que ouço semelhante coisa.
Contei-lhe a história do conde de Lauria e da dama de honra da rainha Maria, de quem Elliott dizia descender pelo lado materno. Enquanto isso, Isabel contemplava com benevolência seus dedos longos e unhas esmaltadas.
– A gente tem que descender de alguém – disse ela. Depois, com uma risadinha, lançando-me um olhar maroto em que não havia vestígio de rancor, acrescentou:
– Sujeitinho ordinário que é você!
É assim fácil fazer uma mulher ver onde está a razão;
basta que a gente lhe diga a verdade.
– Há momentos em que não desgosto nada de você
– disse-me Isabel.
Veio sentar-se no sofá ao meu lado e, passando o braço pelo meu, inclinou-se para beijar-me. Esquivei-me.
– Não quero saber de ficar com o rosto todo manchado de batom – disse eu. – Se você quer beijar-me, beije-me nos lábios, pois para esse fim foram eles criados por uma misericordiosa Providência.
Ela deu uma risadinha e, virando com a mão a minha cabeça para o seu lado, depositou sobre os meus lábios uma leve camada de batom. A sensação estava longe de ser desagradável.
– Agora que você fez isso, talvez esteja disposta a dizer o que deseja de mim.
– Conselho.
– Estou às suas ordens, mas nem por um momento acalento a ilusão de que você vai segui-lo. Só tem uma coisa a fazer, e é conformar-se de cara alegre.
Inflamando-se novamente, ela arrancou o seu braço do meu e, levantando-se, atirou-se numa poltrona do outro lado da lareira.
– Não vou ficar de braços cruzados vendo Larry estragar a sua vida. Não há o que eu não esteja disposta a fazer para impedir que ele se case com aquela vagabunda.
– De nada adiantará. Sabe, ele está dominado por uma das mais fortes emoções que podem agitar um peito humano.
– Você não me vai agora dizer que acha que ele está apaixonado?
– Não; isto seria relativamente uma insignificância.
– Então?...
– Você nunca leu o Novo Testamento?
– Creio que sim.
– Não lembra que Jesus foi para o deserto e jejuou durante quarenta dias? E então, quando ele estava esfaimado, o tentador lhe apareceu e disse: “Se és filho de Deus, ordena a estas pedras que se façam pães”. Mas Jesus resistiu à tentação. Então o demônio o colocou sobre o pináculo do templo e disse: “Se és filho de Deus, lança-te daí abaixo”. Pois ele estava sob a proteção dos anjos, e estes o teriam amparado. Mas Jesus resistiu. E então o diabo o conduziu a um monte muito alto e mostrou-lhe os reinos do mundo, dizendo: “Todas estas coisas te darei se, prostrado, me adorares”. Mas Jesus respondeu: “Vai-te, Satanás”. De acordo com o bom e simples são Mateus, foi este o fim da história. Mas não foi, não. O demônio era astucioso e de novo veio a Jesus: “Se aceitares a vergonha e a ignomínia, a flagelação, uma coroa de espinhos e a morte na cruz, salvarás a humanidade, pois maior amor não existe no mundo que o amor do homem que dá a vida por um amigo”. E Jesus sucumbiu. O diabo riu a mais não poder, pois bem sabia que pecados iriam os homens cometer em nome do seu redentor.
Isabel fitou-me indignada.
– Mas onde foi você buscar uma coisa dessas?
– Em parte alguma. Foi inspiração do momento.
– Acho que é idiotice e uma blasfêmia.
– Eu só queria dizer-lhe que a abnegação é uma paixão tão avassaladora que, a seu lado, até mesmo a luxúria e a fome pareceram insignificantes. Impele a vítima à destruição, na mais alta afirmação da personalidade. O objeto não tem importância; pode ser ou não ser merecedor do sacrifício. Nenhum vinho é tão intoxicante, nenhum amor tão destruidor, nenhum vício tão subjugante. Quando um homem se sacrifica, ele é maior que Deus. Pois como poderia Deus, infinito e onipotente, sacrificar-se? Quando muito pode sacrificar seu filho unigênito.
– Oh! céus, como você me enfada! – exclamou Isabel. Não liguei ao comentário.
– Como pode você achar que bom senso ou prudência influenciarão Larry, quando ele se encontra sob o domínio de tal paixão? Você não sabe que coisa esteve ele buscando durante todos esses anos. Também não sei, mas desconfio. Todo seu trabalho, todos os conhecimentos que ele armazenou não pesam na balança agora que se opõem ao seu desejo – oh! é mais que um desejo, a imperiosa necessidade de salvar a alma de uma mulher dissoluta que ele conheceu como criança inocente. Estou de pleno acordo com você, acho que ele está empreendendo inútil tarefa; com sua fina sensibilidade, vai sofrer torturas; o trabalho de sua vida, seja ele qual for, deixará de ser feito. O ignóbil Páris matou Aquiles atirando-lhe uma flecha no calcanhar. A Larry falta esta pequena nota de crueldade, que mesmo os santos precisam ter para conseguir a sua auréola.
– Eu o amo – disse Isabel. – Deus é testemunha que nada quero dele. Nada espero. Não existe amor mais desinteressado do que o meu, ele vai ser tão infeliz!...
Começou a chorar; achando que isso lhe faria bem, deixei-a em paz. Distraí-me com a ideia que tão inesperadamente me ocorrera. Brinquei com ela. Não pude deixar de refletir que, ao ver as cruéis garras desencadeadas pela cristandade, as perseguições, as torturas que cristãos inflingiram em cristãos, a maldade, a hipocrisia, a intolerância, ao ver essas coisas o demônio deve examinar o balanço com certa satisfação. E, ao lembrar-se de que tudo isto fez cair sobre a humanidade o pesado fardo da noção do pecado – noção que obscureceu a beleza da noite estrelada e atirou funesta sombra sobre as fugazes alegrias de um mundo feito para ser apreciado –, o diabo há de rir lá no seu íntimo, murmurando: “Dai ao Demo o seu quinhão”.
Dali a pouco Isabel tirou da bolsa um lenço e um espelhinho e enxugou com cuidado o canto dos olhos.
– Você é muito compreensivo, não é? – disse secamente.
Fitei-a, pensativo, mas não respondi. Ela empoou o rosto e pintou os lábios.
– Agora há pouco você disse que tinha uma ideia do que foi que Larry esteve procurando durante todos estes anos. O que quis dizer com isso?
– Bom, é apenas uma suposição, e talvez eu esteja redondamente enganado, mas acho que ele esteve procurando uma filosofia, ou talvez uma religião, e uma norma de vida que lhe satisfaça tanto o cérebro como o coração.
Isabel refletiu durante alguns momentos. Depois suspirou.
– Não acha estranho que um rapaz do interior criado em Marvin, Illinois, tenha dessas ideias?
– Não mais estranhável do que o fato de ter Luther Burbank, que nasceu numa fazenda de Massachusetts, conseguido produzir uma laranja sem semente, ou de ter Henry Ford, que nasceu numa fazenda de Michigan, inventado uma Tin Lizzie.
– Mas essas coisas são práticas. Isto está na tradição americana.
Ri-me.
– Acha você que pode haver no mundo coisa mais prática do que aprender a viver da melhor maneira possível?
Isabel fez um gesto de lassidão.
– O que acha então que devo fazer? – perguntou-me.
– Você não quer perder Larry completamente, quer? Ela sacudiu a cabeça.
– Pois bem, você sabe como ele é leal. Se uma pessoa não quiser saber da mulher dele, ele não quererá saber desta pessoa. Se você tiver um pouco de inteligência, trate de fazer amizade com Sophie. Esqueça o passado e procure ser gentil, como você sabe ser, quando se dispõe a isso. Ela vai casar-se e com certeza terá que comprar algumas roupas. Por que não se oferece para acompanhá-la? Creio que ficaria encantada com a proposta.
Isabel ouvia de sobrancelhas contraídas, parecendo muito atenta ao que eu dizia. Refletiu durante alguns minutos, mas não pude adivinhar seus pensamentos. Fiquei surpreso com o que em seguida me disse.
– Você quer convidá-la para almoçar? Ficaria esquisito eu fazê-lo, depois de tudo o que ontem disse a Larry.
– Você se comportará se eu a convidar?
– Como um anjinho – respondeu Isabel com o mais insinuante dos seus sorrisos.
– Então vamos decidir isso agora mesmo.
Havia um telefone na sala. Não me foi difícil encontrar o número de Sophie; após a demora que aqueles que usam o telefone na França aprendem a suportar com paciência, consegui falar-lhe. Dei-lhe o meu nome.
– Acabo de chegar a Paris e ouvi dizer que você e Larry vão casar-se – disse eu. – Meus parabéns. Desejo que sejam muito felizes. – Tive que conter um grito, pois Isabel, que estava a meu lado, me deu um violento beliscão no braço. – Vou ficar muito pouco tempo aqui e gostaria que você e Larry viessem almoçar comigo depois de amanhã, no Ritz. Vou também convidar Gray, Isabel e Elliott Templeton.
– Vou perguntar a Larry. Ele está aqui – disse Sophie. Houve uma pausa. – Sim, iremos com muito prazer.
Marquei a hora, fiz uma observação delicada qualquer e coloquei o fone no gancho. Notei nos olhos de Isabel uma expressão que me causou certa apreensão.
– Em que está pensando? – perguntei. – Não gosto nada de seu jeito.
– Sinto muito; pensei que fosse em mim uma das coisas que você apreciasse.
– Você não está maquinando nenhum plano nefasto, Isabel?
Ela arregalou os olhos.
– Juro-lhe que não. Para ser franca, estou curiosíssima para ver como está Sophie, agora que Larry a converteu. Só peço a Deus que ela não apareça no Ritz com uma máscara de pintura no rosto.
5
Minha reuniãozinha não correu assim tão mal. Gray e Isabel foram os primeiros; Larry e Sophie chegaram cinco minutos depois. Isabel e Sophie beijaram-se afetuosamente; Isabel e Gray felicitaram a noiva. Notei o olhar avaliador que Isabel lançou a Sophie. Sua aparência chocou-me. Quando eu a vira naquela espelunca da Rue de Lappe escandalosamente pintada, com seus cabelos tintos e vistosa jaqueta verde, embora estivesse com aparência atroz, e muito bêbada, havia nela um quê de provocante e até mesmo de vilmente sedutor; mas agora não tinha a mínima graça e, embora fosse um ano ou dois mais moça que Isabel, parecia bem mais velha. Ainda tinha aquela airosa inclinação de cabeça, mas, não sei por quê, isso agora me pareceu patético. Estava deixando o cabelo voltar à cor natural, e notei aquele ar de desmazelo que tem todo cabelo tinto quando começa a crescer. A não ser por um traço rubro nos lábios, estava sem pintura alguma. Pele áspera e de palidez doentia. Lembrei-me do verde vivíssimo dos olhos, agora desbotados e cinzentos. Estava de vestido vermelho, evidentemente novo em folha, com chapéu, sapatos e bolsa combinando. Não tenho a pretensão de entender de trajes femininos, mas pareceram-me exagerados e complicados demais para a ocasião. Ostentava na blusa uma vistosa joia de fantasia, como as que a gente compra na Rue Rivoli. Ao lado de Isabel – de vestido de seda preto, colar de pérolas cultivadas e chapéu elegantíssimo – tinha uma aparência vulgar e desalinhada.
Encomendei coquetéis, mas Larry e Sophie recusaram. Nisso Elliottt chegou. Sua passagem pelo vasto foyer foi, no entanto, perturbada pelas mãos que ele teve que apertar e as mãos que teve de beijar, à medida que, uma após outra, ia vendo pessoas suas conhecidas. Agia como se o Ritz fosse sua residência particular e ele estivesse agradecendo aos hóspedes por lhe terem aceito o convite. Isabel nada lhe contara sobre Sophie, a não ser que perdera o marido e o filho num desastre de automóvel e estava noiva de Larry. Quando finalmente chegou à nossa mesa, ele felicitou-os com a complicada afabilidade em que era mestre. Fomos para o salão de jantar. Como éramos quatro homens e duas senhoras, coloquei Isabel e Sophie em frente uma da outra, na mesa redonda, ficando Sophie entre Gray e eu – mas o tamanho da mesa permitia uma conversa geral. Eu já encomendara o almoço e o sommelier apareceu com a lista dos vinhos.
– Você não entende patavina de vinhos, caro amigo – disse Elliott. – Dê-me a lista, Albert. – Virou as folhas e continuou: – Só bebo água de Vichy, mas não suporto ver uma pessoa tomando um vinho que não seja perfeito.
Ele e Albert eram velhos amigos e depois de animada discussão decidiram que vinho devia eu oferecer aos meus convidados. Elliott virou-se para Sophie.
– E onde vai passar a lua de mel, minha querida? Olhou de relance para o vestido dela, e pelo quase imperceptível erguer das sobrancelhas percebi que a impressão não fora favorável.
– Na Grécia.
– Há dez anos que estou querendo fazer essa viagem
– disse Larry. – Mas, não sei por quê, até hoje não foi possível.
– Deve ser lindo, nesta época do ano... – disse Isabel com certo entusiasmo.
Lembrou-se, como eu me lembrei, de que fora para lá que Larry pensara em levá-la, quando quisera casar-se com ela. Ir para a Grécia na lua de mel parecia uma ideia fixa de Larry.
A conversa não era fácil e eu teria me visto em apuros se não fosse por Isabel. Ela estava se comportando admiravelmente. Todas as vezes que a ameaça de um silêncio pairava sobre nós, e eu quebrava a cabeça à procura de um tópico novo para introduzir na conversa, lá vinha ela com o seu espontâneo tagarelar. Fiquei-lhe grato. Sophie quase não falou, a não ser quando lhe dirigiam a palavra, e mesmo isso parecia ser-lhe um esforço. Perdera completamente a vivacidade. Era como se alguma coisa tivesse morrido dentro dela, e perguntei a mim mesmo se Larry não a estaria obrigando a uma tensão exagerada. Se eu acertara ao supor que, além de beber, ela fazia uso de entorpecentes, a repentina privação devia ter deixado seus nervos em mísero estado. Às vezes eu interceptava um olhar entre eles. No de Larry eu via ternura e estímulo, mas no dela uma súplica que achei patética. É possível que, com sua bondade, Gray tenha instintivamente sentido aquilo que eu julguei ver, pois começou a contar-lhe como Larry lhe curara as enxaquecas que o tinham inutilizado, explicando-lhe como se tornara dependente dele e quanto lhe ficara grato.
– Agora estou novo em folha – continuou. – Assim que arranjar emprego, vou recomeçar a trabalhar. Estou trançando os meus pauzinhos e tenho esperança de conseguir alguma coisa dentro em breve. Céus, como vai ser bom voltar para a América!
Gray era bem-intencionado, mas dava mostras de pouco tato se, como eu supunha, Larry estava tentando curar Sophie do seu adiantado alcoolismo pelo mesmo método de sugestão (pois era assim que eu considerava) que tanto resultado dera com Gray.
– Acabaram-se as enxaquecas, Gray? – perguntou Elliott.
– Há três meses que não tenho uma dor de cabeça e, quando acho que uma se anuncia, agarro o meu talismã e não sinto mais nada – respondeu ele. Procurou no bolso a moeda antiga que Larry lhe dera e acrescentou: – Não o venderia nem por um milhão de dólares.
Acabamos o almoço. Serviram-nos o café. O sommelier apareceu de novo e perguntou se queríamos licores. Recusamos, com exceção de Gray, que aceitou um conhaque. Quando veio a garrafa, Elliott fez questão de examiná-la.
– Sim, recomendo este aqui. Não lhe fará mal nenhum.
– Um calicezinho para monsieur? – perguntou o sommelier.
– Infelizmente não. Estou proibido.
Elliott contou-lhe um tanto extensamente que estava sofrendo dos rins e que o médico lhe proibira bebidas alcoólicas.
– Uma gota de zubrovka não fará mal a monsieur. Não há quem não saiba que é bom para os rins. Acabamos de receber uma remessa da Polônia.
– Verdade? É artigo difícil de se obter hoje em dia. Deixe-me ver a garrafa.
O sommelier, um sujeito imponente e circunspecto, com uma longa corrente de prata em volta do pescoço, foi buscar a garrafa, e Elliott explicou-nos que se tratava do tipo polonês de vodca, se bem que infinitamente superior.
– Costumávamos tomá-lo na casa dos Radziwill, quando eu me hospedava com eles na estação de caça. Vocês precisavam ver como o tomavam aqueles príncipes poloneses; não exagero ao dizer que bebiam aos copos, e absolutamente não se alteravam. Sangue bom, naturalmente; aristocratas até a ponta dos dedos. Sophie, você precisa experimentar, e você também, Isabel. É uma oportunidade que ninguém tem o direito de desprezar.
Veio a garrafa. Larry, Sophie e eu resistimos à tentação, mas Isabel disse que gostaria de experimentar. Admirei-me, pois em geral bebia pouco, e naquele dia já tomara dois coquetéis e dois ou três copos de vinho. O garçom serviu-lhe um cálice de um líquido verde-claro, Isabel cheirou-o.
– Oh! que perfume delicioso!
– Não é mesmo? – exclamou Elliott. – É devido às ervas que entram na composição; são elas que lhe dão tão delicado paladar. Vou tomar uma gota, só para lhe fazer companhia. Por uma vez não me fará mal.
– É adorável – disse Isabel. – É como leite materno. Nunca tomei coisa mais deliciosa.
Elliott levou o cálice aos lábios.
– Oh! como isto me faz lembrar os velhos tempos! Vocês, que nunca se hospedaram com os Radziwill, não sabem o que é viver. Aquilo, sim, era estilo. Feudal, saibam vocês. A gente poderia julgar-se na Idade Média. Na estação, à espera, uma carruagem com seis cavalos e lacaios. E, ao jantar, um criado de libré atrás de cada pessoa.
Continuou a descrever a magnificência e o luxo do castelo, e a suntuosidade das festas; a tal ponto que desconfiei, talvez sem razão, de que tudo aquilo fosse combinação entre ele e o sommelier, para Elliott ter oportunidade de discursar sobre a grandiosidade dessa principesca família e dos aristocratas poloneses com quem convivera em seus próprios castelos. Ele estava agora a todo pano.
– Mais um cálice, Isabel?
– Oh! não me atrevo. Mas é adorável. Estou contentíssima por ter ficado conhecendo esta bebida. Gray, você precisa arranjar-me uma garrafa.
– Mandarei uma para o apartamento.
– Oh! tio Elliott, manda mesmo? – exclamou Isabel entusiasmada. – O senhor é tão bom para nós! Você precisa experimentar, Gray; tem um perfume de feno recém-cortado e flores primaveris, de tomilho e alfazema; e é tão agradável ao paladar! É como ouvir música numa noite enluarada.
Era contra o feitio de Isabel falar por paus e por pedras, e fiquei a cogitar se não estaria um pouquinho “alegre”. A reunião chegou ao fim. Apertei a mão de Sophie.
– Para quando é o casamento?
– Sem ser na próxima semana, na outra. Espero que nos dê o prazer de comparecer.
– Infelizmente creio que não estarei em Paris. Parto amanhã para Londres.
Enquanto eu me despedia dos meus outros convidados, Isabel chamou Sophie à parte e conversou com ela durante alguns segundos; virou-se em seguida para Gray.
– Oh! Gray, não vou já para casa. Há uma exposição em Molyneux, e Sophie precisa ver os modelos novos.
– Com muito prazer – disse Sophie.
Separamo-nos. Nesta noite levei Suzanne Rouvier para jantar e na manhã seguinte parti para a Inglaterra.
6
Elliott chegou ao Claridge quinze dias mais tarde; pouco depois passei por lá, para vê-lo. Ele encomendara inúmeros ternos e, com uma verbosidade que me pareceu excessiva, contou-me detalhadamente tudo que escolhera, e por quê. Quando finalmente tive oportunidade de dizer alguma coisa, perguntei-lhe que tal fora o casamento.
– Não houve casamento – respondeu lugubremente.
– O que me diz?!
– Três dias antes da data marcada, Sophie desapareceu. Larry procurou-a por toda parte.
– Que coisa esquisita! Tinham brigado?
– Não. Pelo contrário. Estava tudo combinado. Eu ia levá-la à igreja. Pretendiam tomar o Expresso do Oriente logo depois da cerimônia. Se quer que lhe fale com franqueza, acho que Larry se livrou de boa.
Julgando que Isabel teria contado tudo a Elliott, perguntei:
– Que foi exatamente que aconteceu?
– Pois bem, lembra-se daquele dia do seu almoço, no Ritz?
Isabel foi com ela até Molyneux. Reparou no vestido de Sophie? Deplorável. Que ombros... É pela linha dos ombros que a gente conhece se o vestido está benfeito ou não. A coitadinha, é lógico, não podia pagar os preços de Molyneux, mas você sabe como Isabel é generosa, e afinal de contas elas se conhecem desde meninas, de modo que Isabel lhe ofereceu um vestido, para ela ter pelo menos alguma coisa decente para usar no dia do casamento.
Sophie, naturalmente, pegou no ar. Pois bem, para encurtar uma longa história, Isabel convidou-a para vir ao apartamento, em determinado dia, às três horas, para irem juntas à última prova. Ela veio, mas infelizmente Isabel tivera que sair para levar uma das crianças ao dentista e só voltou depois das quatro horas, não encontrando mais Sophie no apartamento. Pensando que ela se cansara de esperar e fora para Molyneux, Isabel dirigiu-se imediatamente para lá; mas nem sinal de Sophie! Finalmente Isabel desistiu e voltou para casa. Tinham combinado jantar todos juntos e, quando Larry apareceu, a primeira coisa que Isabel lhe perguntou foi onde estava Sophie.
Larry não sabia de nada. Telefonou para o apartamento dela e, não obtendo resposta, disse que iria até lá. Atrasaram o jantar o máximo possível, mas, como nenhum dos dois apareceu, Gray e Isabel jantaram sozinhos. Você sabe, naturalmente, que tipo de vida Sophie levava quando vocês a encontraram na Rue de Lappe; foi muito infeliz aquela sua ideia de levá-los lá. Pois bem, Larry passou a noite toda percorrendo os antros que ela frequentara, mas não a encontrou em parte alguma. Foi várias vezes ao apartamento, e a concierge disse que ela não aparecera. Evaporara-se, pura e simplesmente. Larry passou três dias procurando-a; no quarto dia voltou novamente ao apartamento e a concierge lhe disse que ela viera, fizera a mala e fora-se num táxi.
– Larry ficou muito abalado?
– Não o vi. Isabel disse-me que sim.
– Sophie não escreveu, ou deixou recado?
– Nada.
Refleti sobre o assunto.
– O que pensa você de tudo isso? – perguntei.
– Caro amigo, exatamente o que você pensa. Ela não aguentou; e caiu de novo na bebedeira.
Isto era claro, mas mesmo assim estranho. Não pude compreender por que escolhera justamente aquele momento para fugir.
– E que me diz de Isabel?
– Naturalmente sentiu o que se passou, mas é uma pequena sensata e disse-me que sempre achara que seria um desastre Larry casar-se com uma mulher dessas.
– E Larry?
– Isabel tem sido muito boa para ele. Diz que o que dificulta a situação é o fato de ele não querer discutir o caso. Larry se conformará, pode ficar certo; diz Isabel que ele nunca esteve apaixonado por Sophie. Ia casar-se com ela apenas por um sentimento de mal compreendido cavalheirismo.
Imaginei Isabel fazendo-se de forte diante de um acontecimento que no íntimo lhe causara viva satisfação. Sabia perfeitamente que da próxima vez que nos víssemos ela não deixaria de me dizer que soubera perfeitamente o que iria acontecer.
Mas passou-se quase um ano sem que eu a visse e, embora nesta ocasião eu pudesse contar-lhe a respeito de Sophie certas coisas que lhe teriam dado que pensar, não achei a ocasião propícia. Fiquei em Londres até as vésperas do Natal e depois, desejando voltar para casa, fui diretamente para a Riviera, sem parar em Paris. Comecei a escrever um romance e nos meses seguintes vivi recluso. De vez em quando via Elliott. Seu estado de saúde piorava visivelmente e fiquei penalizado ao verificar que persistia em levar vida social. Aborrecia-se comigo por eu não querer viajar cinquenta quilômetros para comparecer às reuniões que continuava a dar frequentemente em sua casa. Achava que era muita pretensão da minha parte preferir ficar em casa trabalhando.
– A estação está excepcionalmente elegante, caro amigo – disse-me ele. – É um crime você fechar-se em casa, sem nada ver do que se passa pelo mundo. E, mesmo que eu chegue aos cem anos de idade, jamais poderei compreender como é que você foi escolher, para morar, uma parte da Riviera completamente fora de moda
Pobre tolo e bondoso Elliott! Aos cem anos é que ele não chegaria.
Em junho eu já terminara o esboço geral do meu romance e achei que merecia umas férias. Enfiei, portanto, umas roupas numa maleta e entrei no naviozinho de vela de onde, no verão, costumávamos nos atirar na Baie des Fosses, para o banho, e seguimos pela costa, em direção a Marselha. Havia apenas uma viração inconstante, de modo que a maior parte do tempo tínhamos que nos valer do motor auxiliar. Passamos uma noite na baía, em Cannes, outra em Sainte Maxime e uma terceira em Sanary. Chegamos depois a Toulon, porto que sempre amei. Os vapores da esquadra francesa dão-lhe um ar ao mesmo tempo romântico e amigo, e nunca me canso de vaguear por aquelas velhas ruas. Posso demorar-me horas no cais, a observar os marinheiros de folga, que passam aos pares ou com suas namoradas, ou os civis que vão de lá para cá como se não tivessem outra preocupação na vida a não ser gozar as delícias do sol. Devido a todos esses navios e às balsas que levam a inquieta multidão aos diversos lugares da baía, Toulon dá a impressão de um ponto terminal para onde convergem todos os caminhos do vasto mundo; e, quando você se senta num café, de olhos ligeiramente ofuscados pelo fulgor do mar e do céu, a imaginação empreende maravilhosas viagens às mais remotas partes do globo. Você pula de uma chalupa para uma praia de coral debruada de coqueiros, no Pacífico; passa da escada de bordo para o cais de Rangoon e entra num jinriquixá; observa, do mais alto tombadilho, a ruidosa e gesticulante multidão de negros, quando o seu vapor atraca em Porto Príncipe.
Quando chegamos, a manhã já ia alta; no meio da tarde desembarquei e andei pelo cais, olhando as lojas, as pessoas gue passavam por mim e as que estavam sentadas sob o toldo dos cafés. De repente vi Sophie e ao mesmo tempo ela me viu. Cumprimentou-me sorrindo. Parei para apertar-lhe a mão. Estava sozinha a uma mesa, com um copo vazio à frente.
– Sente-se e tome alguma coisa comigo – disse-me ela.
– Tome você comigo – repliquei, puxando uma cadeira.
Ela usava a blusa de listas azuis e brancas dos marinheiros franceses, calça vermelha e sandálias que deixavam à mostra as unhas pintadas dos seus dedos grandes. Estava sem chapéu; os cabelos curtíssimos e ondulados eram de um dourado tão pálido que tinham um fulgor de prata. Estava pintada com o mesmo exagero de quando a tínhamos visto na Rue de Lappe. Já tomara um ou dois drinques, a julgar pelo pires na mesa, mas estava sóbria. Minha presença não pareceu desagradar-lhe.
– Como vão todos em Paris? – perguntou-me.
– Creio que vão bem. Não vi nenhum deles desde aquele dia em que almoçamos no Ritz.
Ela soltou uma nuvem de fumaça pelo nariz e começou a rir.
– Não me casei com Larry, afinal de contas.
– Sei disso. Por que não?
– Querido, quando chegou a hora, não pude ver-me no papel de Maria Madalena em relação ao seu Jesus Cristo. Não, senhor!
– Que foi que a fez mudar de ideia no último momento?
Ela fitou-me com ar zombeteiro. Assim vestida, com aquela ousada inclinação de cabeça, seios pequeninos e ancas finas, parecia um perverso rapazinho; mas confesso que a achei muito mais atraente do que no Ritz, de vestido vermelho com o seu lúgubre ar de elegância provinciana. Tinha o rosto e o pescoço bem queimados de sol; e, embora o marrom da pele tornasse mais agressivos o carmim das faces e o rímel das pestanas, na sua vulgaridade o efeito não deixava de ter certo encanto.
– Quer que lhe conte?
Inclinei afirmativamente a cabeça. O garçom trouxe a cerveja que eu pedira para mim e um conhaque com seltzer para Sophie. Ela acendeu um caporal em outro que acabara de fumar e disse:
– Fazia três meses que eu não tomava uma gota de álcool. Que não fumava. – Ao notar minha expressão de surpresa, riu e continuou: – Não me refiro a cigarros. Ópio. Sentia-me pessimamente. Às vezes, quando estava só, eu gritava como uma desesperada. Dizia: “Não posso continuar, não posso continuar”. Quando Larry estava presente não era tão duro, mas quando ele se ausentava era um inferno.
Eu tinha os olhos nela e, quando falou em ópio, observei-a mais atentamente; notei as pupilas como cabecinhas de alfinete, que indicavam que se entregara novamente ao vício. Olhos assustadoramente verdes.
– Isabel ia me fazer presente do vestido de casamento. Que fim terá levado? Era um amor. Tínhamos combinado ir juntas a Molyneux, devendo eu pegá-la em sua casa. Nisto faço justiça a Isabel: o que ela não entende de roupas ninguém entende. Quando cheguei ao apartamento, aquele criado que eles têm lá me disse que Isabel fora levar Joan ao dentista e deixara recado que voltaria logo. Entrei na sala. A bandeja do café ainda ali estava e perguntei ao criado se eu podia tomar uma xícara. Café era a única coisa que me animava. Ele disse que me traria café fresco e levou embora as xícaras e o bule. Deixou uma garrafa na bandeja. Vi que se tratava daquele negócio polonês que vocês tanto tinham comentado no Ritz.
– Zubrovka. Lembro-me de Elliott ter dito que mandaria um pouco para Isabel.
– Vocês todos tinham feito um estardalhaço sobre o perfume delicioso e fiquei curiosa. Tirei a rolha e cheirei. Tinham razão; cheirava bem, de fato. Acendi um cigarro; dali a pouco o criado chegou com o café. Também isto achei bom. Falam tanto do café francês; que fiquem com ele! Para mim não há como o americano. É a única coisa de que sinto falta aqui. Mas o café de Isabel não era mau; eu estava desanimadíssima e depois de uma xícara me senti melhor. Olhei a garrafa, ali à mostra. Terrível tentação. Mas disse a mim mesma: “Com os diabos, não vou pensar nisto”, e acendi outro cigarro. Achei que Isabel não poderia tardar; e no entanto não chegava. Fiquei nervosíssima; detesto ter que esperar e não havia na sala nada para se ler. Andei de lá para cá, a examinar os quadros, mas o tempo todo via aquela maldita garrafa. Depois resolvi encher um cálice e olhar. Tinha uma linda cor.
– Verde-claro.
– Isso mesmo. Esquisito, a cor era exatamente como o perfume. Talo verde que às vezes a gente vê no coração de uma rosa branca... Eu tinha que experimentar se o gosto era igual, e achei que só experimentar não me faria mal. Pretendia tomar apenas um gole; nisso ouvi um ruído, pensei que fosse Isabel e engoli tudo, pois não queria que ela me apanhasse em flagrante. Mas afinal de contas não era Isabel. Céus, como aquilo me reanimou! Não me sentia tão bem desde que aderira à Lei Seca. Criei alma nova. Se Isabel tivesse aparecido nesse momento, com certeza eu estaria hoje casada com Larry. Não sei qual teria sido o resultado.
– E ela não apareceu?
– Não. Fiquei furiosa. Quem pensava ela que era fazendo-me esperar daquele jeito? E então vi que o cálice estava cheio outra vez; com certeza eu o enchera sem pensar; mas, acredite-me você ou não, eu o fizera inconscientemente. Pareceu-me tolice deitar de novo o líquido na garrafa; bebi-o. Delicioso; disso não há dúvida. Sentia-me outra; tinha vontade de rir, coisa que não me acontecera em três meses. Lembra-se de ter ouvido aquele velho mariquinhas dizer que vira sujeitos na Polônia beberem aos copos, sem se alterar? Pois bem, achei que eu podia aguentar aquilo que qualquer polonês filho da mãe aguentava; além do mais, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos! De modo que atirei na lareira o resto do meu café e enchi a xícara até a borda. Falar de leite materno... uma ova! Não sei exatamente o que aconteceu depois, mas não creio que tivesse sobrado muito na garrafa. Achei então melhor fugir antes de Isabel voltar. Quase que ela me apanha. Assim que saí pela porta da frente ouvi a voz de Joanie. Subi a correr as escadas e esperei até elas entrarem no apartamento; disparei depois para baixo e meti-me num táxi. Disse ao chofer que fosse a toda; quando ele me perguntou para onde, desatei a rir na cara dele. Estava no auge da alegria.
– Você voltou para o seu apartamento? – perguntei, embora soubesse que ela não voltara.
– Por que espécie de idiota me toma você? Eu tinha certeza de que Larry viria procurar-me. Não ousei ir a nenhum dos lugares que costumava frequentar e, portanto, fui ao Hakim. Sabia que ali Larry nunca me encontraria. Além do mais, estava querendo fumar.
– O que é Hakim?
– Hakim. Hakim é um argelino que sempre arranja ópio para quem tem os cobres para pagá-lo. Era muito meu amigo. Ele arranja o que a gente quer: um rapaz, um homem, uma mulher, um negro. Tem sempre uma meia dúzia de argelinos à disposição. Ali passei três dias. Não sei com quantos homens dormi. – Sophie começou a rir. – De todos os feitios, tamanhos e cores. Se recuperei o tempo perdido! Mas, sabe, eu tinha medo. Não me sentia segura em Paris, receando que Larry chegasse a encontrar-me; além do mais, não tinha dinheiro; a gente tem que pagar aqueles cafajestes para dormir com a gente. Saí, portanto, de lá; voltei ao apartamento e dei à concierge cem francos, recomendando-lhe que, se viesse alguém perguntar por mim, dissesse que eu fora embora. Fiz minha mala e naquela noite tomei o trem para Toulon. Só me senti segura depois que cheguei aqui.
– E ficou aqui, desde então?
– Ora se!... e aqui vou continuar. A gente tem ópio à vontade, que os marinheiros trazem do Oriente; e é coisa boa, não aquela droga que vendiam em Paris. Tenho um quarto no hotel. Você conhece, o Commerce et la Marine. Quando a gente entra ali, de noite, os corredores recendem a ópio. – Sophie aspirou voluptuosamente. – Doce e acre; a gente sabe que os outros estão fumando nos seus quartos e isto dá uma gostosa sensação de intimidade. E ali não se importam que a gente traga esta ou aquela pessoa. Às cinco da manhã vêm bater à porta do quarto, para que os marinheiros possam voltar aos seus navios, de modo que ninguém precisa preocupar-se com isso. – Imediatamente, sem uma pausa, Sophie disse: – Vi um livro seu numa loja aqui do cais; se soubesse deste encontro, tê-lo-ia comprado e trazido para você autografá-lo.
Ao passar pela livraria eu parara para examinar a vitrina e vira realmente, entre outros livros novos, a tradução recém-publicada de um romance meu.
– Não creio que a interessasse muito – declarei.
– Por que não? Comunico-lhe que sei ler.
– E escrever também, creio.
Ela lançou-me um rápido olhar e desatou a rir.
– Sim, eu fazia poesias quando menina. Provavelmente eram péssimas, mas eu as achava muito bonitas. Com certeza foi Larry quem lhe contou. – Sophie hesitou por um momento. E depois:
Seja como for, a vida é um inferno, mas, se há nela alguma coisa para se gozar, trouxa é aquele que não se aproveita. – Atirou a cabeça para trás em atitude desafiadora e perguntou-me: – Se eu comprar aquele livro, você escreve nele alguma coisa?
– Devo partir amanhã. Se você quer mesmo o livro, arranjo-lhe um exemplar e deixo-o no seu hotel.
– Ótimo.
Nesse momento uma lancha da Marinha chegou ao cais; desceram vários marinheiros. Sophie examinou-os com o olhar.
– Lá vem meu amiguinho. – Acenou para alguém e continuou: – Você pode oferecer-lhe um trago e depois é melhor dar o fora. Ele é corso, e ciumento como o nosso velho amigo Jeová.
Um rapaz dirigiu-se para o nosso lado, hesitou ao ver-me, mas a um aceno de Sophie aproximou-se. Era alto, trigueiro; barba feita, maravilhosos olhos pretos, nariz aquilino e cabelos ondulados, negros como carvão. Não parecia ter mais de vinte anos.
Sophie apresentou-me como amigo de infância, americano.
– Pouco inteligente, mas bonito – disse-me ela.
– Você gosta dos brutos, não gosta?
– Quanto mais, melhor.
– Um destes dias alguém lhe corta o pescoço.
– Não duvido – replicou ela sorrindo. – Não se perderá grande coisa.
– Vamos falar francês, não vamos? – disse asperamente o marinheiro.
Sophie virou-se para ele com um sorriso em que havia um quê de zombaria. Falava corretamente o francês, empregando a gíria e com carregada pronúncia americana; mas isso dava aos termos vulgares e obscenos que ela usava uma nota picante e cômica, que provocava o riso.
– Estava dizendo que você é belo, mas, para não constrangê-lo, disse-o em inglês. – E virando-se para mim:
– E é forte. Tem músculos de boxeador. Experimente.
A lisonja dissipou a taciturnidade do marinheiro; com um sorriso condescendente ele dobrou o braço para exibir a musculatura.
– Apalpe – disse. – Vamos, apalpe.
Obedeci, exprimindo a devida admiração. Conversamos durante alguns minutos; depois paguei a conta e levantei-me.
– Já vou indo.
– Tive muito prazer em vê-lo. Não se esqueça do livro.
– Não me esquecerei.
Apertei a mão de ambos e afastei-me. No caminho parei na livraria, comprei o romance e nele escrevi o nome de Sophie e o meu. Depois, por ter a ideia me ocorrido de repente e por falta de melhor inspiração, escrevi o primeiro verso da linda poesia de Ronsard que se encontra em todas as antologias:
“Mignonne, allons voir si la rase...”
Deixei o livro no hotel. Fica ele no cais, e muitas vezes ali me hospedei, pois de madrugada, quando o toque do clarim chama ao dever os homens que tiveram folga durante a noite, é lindo a gente ver o sol erguer-se nubladamente sobre as macias águas da baía, emprestando aos navios espetrais uma beleza amortalhada. No dia seguinte rumamos para Cassis, onde eu queria comprar alguns vela nova que tínhamos encomendado. Uma semana mais tarde voltei para casa.
7
Encontrei recado de Joseph, criado de Elliott: seu patrão estava de cama e desejava ver-me. Assim sendo, no dia seguinte fui de automóvel para Antibes. Antes de me levar para cima, Joseph contou-me que Elliott tivera um ataque de uremia e que o médico considerava grave o seu estado. Passada a crise ele melhorara, mas os rins estavam atacadíssimos e não se podia absolutamente esperar um completo restabelecimento. Fazia quarenta anos que Joseph estava a serviço de Elliott e sua dedicação era inegável; mas, embora se mostrasse compungido, notava-se-lhe a satisfação com que – como geralmente acontece com membros da sua classe – ele recebia a catástrofe em casa.
– Ce pauvre monsieur – suspirou ele. – Sem dúvida alguma tinha as suas manias, mas no fundo era boa pessoa. Cedo ou tarde o nosso dia chega mesmo. Falava como se Elliott estivesse exalando o último suspiro.
– Tenho certeza de que ele garantiu o seu futuro, Joseph – disse eu em tom grave.
– Esperamos – respondeu ele lugubremente.
Ao entrar no quarto, admirei-me por encontrar Elliott todo lépido. Estava pálido e envelhecido, mas animado.
Barba feita, cabelo bem penteado. Usava pijamas de seda de um azul pálido; no bolso, suas iniciais, encimadas pela coroa de conde. Em ponto muito maior, e novamente com a coroa, notei as iniciais bordadas na dobra do lençol de cima.
Perguntei-lhe como ia passando.
– Muitíssimo bem – respondeu-me alegremente. – Trata-se de uma indisposição passageira. Espero estar de pé e novamente em circulação dentro de poucos dias. No domingo o grão-duque Oimitri vem almoçar comigo e eu disse ao meu médico que, custe o que custar, tem que me pôr bom até lá.
Passei meia hora em sua companhia e, ao sair, pedi a Joseph que me avisasse caso ele tivesse uma recaída. Fiquei admirado quando, uma semana mais tarde, ao ir almoçar com uns vizinhos, dei com Elliott. Assim em trajes de passeio estava com péssima aparência.
– Você não devia ter saído de casa, Elliott – disse-lhe eu.
– Oh! tolice, caro amigo. Frieda está esperando a princesa Mafalda. Conheço a família real da Itália há anos, desde que a coitada da Louisa estava en poste em Roma, e eu não podia deixar a pobre Frieda em apuros.
Fiquei sem saber se deveria admirar sua indômita coragem, ou lamentar o fato de, na sua idade e gravemente enfermo, conservar ainda aquela paixão pela vida social. Ninguém o julgaria um homem doente. A exemplo do ator agonizante que, de rosto pintado, se esquece no palco de suas dores e seus males, Elliott representava o papel de fino cortesão com a costumeira segurança. Era extraordinariamente amável, lisonjeiramente atencioso para com as pessoas que mereciam tal tratamento, divertindo os convidados com aquela requintada ironia que era o seu forte. Brilhou como nunca. Quando Sua Alteza Real partiu (e foi um gozo observar a graça com que Elliott se inclinou diante dela, conseguindo aliar respeito por sua alta posição à admiração de um velho por uma moça bonita) não me causou surpresa ouvir a dona da casa dizer que ele fora a alma da festa.
Dias depois se viu obrigado a recolher-se ao leito, com expressa proibição do médico de sair do quarto. Elliott ficou exasperado.
– Pena isto ter acontecido justamente agora. A estação está excepcionalmente elegante – disse ele.
E me veio com uma longa lista de pessoas importantes que estavam passando o verão na Riviera.
Com intervalos de três ou quatro dias eu ia sempre visitá-lo. Às vezes o encontrava na cama, de outras estendido na chaise longue, metido num deslumbrante roupão. Parecia ter deles um estoque inesgotável e não me lembro de o ter visto duas vezes com o mesmo. Numa dessas ocasiões – estávamos no começo de agosto – encontrei Elliott muito pensativo. Joseph me dissera, embaixo, que ele estava um pouco melhor; fiquei, portanto, admirado por vê-lo tão quieto. Procurei distraí-lo, repetindo os comentários sociais que ouvira ultimamente, mas vi perfeitamente que não estava interessado. Tinha o sobrolho carregado e expressão taciturna, coisa rara nele.
– Você vai à festa de Edna Novemali? – perguntou-me afinal.
– Não; claro que não.
– Foi convidado?
– Não há quem não tenha sido convidado na Riviera. A princesa Novemali era uma americana riquíssima que se casara com um príncipe romano, mas não um príncipe qualquer, desses de dois por um tostão que a gente encontra na Itália, e sim o chefe de uma família importante, descendente de um condottiere que no século xvi cavara para si próprio um principado. Era mulher de sessenta anos, viúva; quando o regime fascista começou a exigir uma parte muito gorda de suas rendas americanas, ela achou preferível abandonar a Itália e construir, num ótimo terreno atrás de Cannes, uma vila florentina. Mandara vir da Itália mármore para as paredes de seus vastos salões de recepção e pintores para decorarem o teto. Seus quadros e estátuas eram belíssimos e até mesmo Elliott, que não apreciava móveis italianos, se via obrigado a confessar que os dela eram magníficos. Lindo parque; a piscina devia ter custado uma fortuna. Ela recebia muito e à sua mesa nunca se sentavam menos de vinte pessoas. Resolvera dar um baile à fantasia em agosto, na noite de lua cheia, e, embora ainda faltassem três semanas, não se falava de outra coisa na Riviera. Haveria fogos, viria de Paris uma orquestra de pretos. Com invejosa admiração, os nobres exilados comentavam entre si que a festa ia custar mais do que eles tinham para gastar em um ano.
“Principesco”, diziam uns. “Loucura”, comentavam outros.
“Denota mau gosto”, rosnavam terceiros.
– O que é que você vai usar? – perguntou-me Elliott.
– Mas, Elliott, já lhe disse que não vou. Acha então que, na minha idade, vou me fantasiar?
– Ela não me convidou – disse ele em voz rouca, fitando-me com olhar angustiado.
– Oh! ela o convidará – respondi serenamente. – Com certeza nem todos os convites foram expedidos.
– Ela não me vai convidar – disse ele, com um soluço. – É um insulto propositado.
– Oh! Elliott, não creio. Garanto que foi esquecimento.
– Não sou pessoa de quem se esqueçam.
– Além do mais, você não estaria em condições de ir.
– Claro que estaria. A melhor festa da temporada! Mesmo que estivesse no meu leito de morte, eu me levantaria para ir. Vestiria o traje do meu antepassado, o conde de Lauria.
Fiquei em silêncio, por não saber o que dizer.
– Paul Barton veio ver-me pouco antes de você chegar – disse Elliott de repente.
Não posso esperar que o leitor se lembre de quem se trata, pois mesmo eu tive que virar essas páginas para ver que nome lhe dei. Paul Barton era o jovem americano que Elliott introduzira na sociedade inglesa, e que depois suscitara o seu ódio, por desdenhá-lo quando achara que Elliott não lhe poderia mais ser útil. Ultimamente Barton estivera em evidência, em primeiro lugar por ter-se naturalizado inglês, e depois por ter-se casado com a filha de um magnata da imprensa recentemente elevado a par do Reino. Com sua habilidade e a proteção de pessoa tão influente, com toda a certeza iria longe. Elliott estava amargado.
– Todas as vezes que acordo de noite e ouço um rato arranhando as paredes, digo: “Lá está Paul Barton, subindo”. Acredite-me, caro amigo, ele ainda acabará na Câmara dos Lordes. Graças a Deus não estarei vivo para ver urna coisa dessas.
– O que queria ele? – perguntei, pois tanto quanto Elliott eu sabia que aquele rapaz não fazia nada sem segunda intenção.
– Eu lhe conto o que ele queria! – rosnou Elliott. – Queria que eu lhe emprestasse a minha fantasia de conde de Lauria.
– Que topete!
– Não vê o que isso significa? Significa que ele sabia que Edna não me convidou, nem me ia convidar. Foi ela quem o instigou. Aquela vaca velha. Se não fosse por mim, ela nunca teria conseguido coisa alguma. Organizei suas festas. Apresentei-a a todas as pessoas com quem hoje se dá. Ela dorme com o chofer; você sabia disso, naturalmente. Revoltante! Paul Barton sentou-se aí nessa cadeira e me contou que ela vai mandar iluminar todo o jardim; que haverá fogos. Adoro fogos. E disse-me que Edna estava sendo a todo momento importunada por pessoas que queriam convites, mas que os negou, por querer que a festa seja excepcionalmente brilhante. Falou como se não houvesse a mínima probabilidade de eu ser convidado.
– Você vai lhe emprestar a fantasia?
– Prefiro vê-lo morto e no inferno. Quero ser enterrado com ela. – Elliott sentou-se na cama, balançando-se de um lado para outro, como uma mulher desatinada. – Oh! que maldade! – exclamou. – Odeio-os, odeio todos eles. Bem que me agradavam quando eu dava as minhas festas, mas agora que estou velho e doente não fazem mais caso de mim. Nem dez pessoas se deram ao trabalho de vir pedir notícias minhas, desde que caí de cama; e esta semana apenas um miserável ramalhete de flores! Fiz tudo por eles. Sentaram-se à minha mesa e beberam do meu vinho. Incumbi-me dos seus recados. Organizei suas festas. Sacrifiquei-me para lhes prestar favores. E o que lucrei com tudo isso? Nada, nada, nada.
Não há um deles que se importe que eu viva ou morra. Oh! que crueldade! – Elliott se pôs a chorar. Lágrimas grandes e pesadas correram-lhe pelas faces murchas. – Antes eu nunca tivesse saído da América!
Lamentável ver aquele velho, já com um pé na sepultura, chorar como uma criança por não ter sido convidado a uma festa; chocante, e ao mesmo tempo profundamente patético.
– Não se incomode, Elliott – disse eu. – Talvez chova na noite da festa. Isto escangalhará tudo.
Ele se agarrou às minhas palavras como o náufrago, de quem todos ouvimos falar, se agarrou à tabua de salvação. Começou a rir por entre as lágrimas.
– Não tinha pensado nisso. Rezarei para que chova, como até hoje não rezei. Você tem razão; escangalharia com tudo!
Falando de outros assuntos, consegui distrair sua mente frívola; quando parti, deixei-o, se não alegre, pelo menos bem mais sereno. Mas eu estava decidido a não permitir que a coisa ficasse nisso, de modo que, assim que cheguei em casa, telefonei a Edna Novemali, dizendo que tinha que ir a Cannes no dia seguinte e perguntando se podia ir almoçar em sua casa. Respondeu que teria muito prazer, mas que não haveria reunião. Apesar disso, quando lá cheguei encontrei dez pessoas, além da dona da casa. Não se podia dizer que Edna fosse má; era mesmo generosa e hospitaleira e seu único defeito grave era a sua língua venenosa. Não podia deixar de fazer comentários horríveis, mesmo a respeito de seus mais íntimos amigos, mas assim agia por ser muito pouco inteligente. Como suas frases venenosas eram geralmente repetidas, frequentemente ela estava de relações cortadas com as pessoas que tinham sido alvo de sua malícia; mas, como dava boas festas, depois de algum tempo quase todos achavam mais vantajoso perdoá-la. Eu não queria expor Elliott à humilhação de pedir a Edna que o convidasse à festa e esperei, portanto, para sondar o terreno. Ela estava animada com a perspectiva, e ao almoço não se falou em outra coisa.
– Elliott vai ficar encantado com a oportunidade de vestir sua fantasia de Filipe ii – disse eu com a maior despreocupação que me foi possível assumir.
– Não o convidei – disse ela.
– Por que não? – perguntei, fingindo surpresa.
– Por que havia eu de convidá-lo? Socialmente ele já não tem importância. E é um cacete, um esnobe, um linguarudo.
Uma vez que os qualificativos podiam igualmente ser aplicados a ela, achei aquilo um pouco forte. Idiota!
– Além disso, quero que Paul Barton use a fantasia de Elliott – continuou ela. – Há de lhe assentar divinamente.
Fiquei em silêncio, mas tomei a resolução de, custasse o que custasse, arranjar o convite pelo qual tanto suspirava o pobre Elliott. Depois do almoço Edna levou seus amigos para o jardim e tive assim a oportunidade desejada. Em certa ocasião eu ali me hospedara durante alguns dias e conhecia a disposição dos aposentos. Achei que deviam ter sobrado alguns convites e que estariam na sala da secretária. Escapuli para aquele lado, pretendendo enfiar um no bolso, escrever no envelope o nome de Elliott e mandá-lo em seguida pelo correio. Sabia que Elliott estava doente demais para comparecer, mas o fato de ser convidado teria suma importância para ele. Levei um choque quando, ao abrir a porta, dei com a secretária de Edna sentada à escrivaninha, pois a julgara ainda ao almoço. Era uma escocesa de meia-idade, chamada miss Keith, de cabelos cor de areia, rosto sardento, pincenê e ar de resoluta virgindade. Dominei-me.
– A princesa levou o grupo todo para o jardim, de modo que tive a ideia de vir fumar um cigarro com a senhora.
– À vontade.
Miss Keith falava com acentuada pronúncia escocesa e, quando condescendia em fazer uso do humor seco que reservava para os seus prediletos, chegava a fazer observações sumamente espirituosas; mas, quando a pessoa desatava a rir, ela a fitava com ar de consternada surpresa, como se a considerasse idiota por achar graça nos seus ditos.
– Com certeza a festa lhe está dando um trabalhão, miss Keith – disse eu.
– De fato. Nem sei para onde me virar.
Certo de que podia confiar nela, fui direto ao assunto.
– Por que é que a velha não convidou mr. Templeton? Miss Keith permitiu que um sorriso lhe abrandasse as feições.
– O senhor sabe como ela é. Tem uma queixa contra mr. Templeton. Ela mesma riscou o nome dele na lista.
– Elliott está morrendo, sabe. Não se levantará mais. Ficou sentidíssimo por ter sido excluído.
– Se ele queria continuar em bons termos de amizade com a princesa, devia ter tido a inteligência de não andar dizendo a todo mundo que ela dorme com o chofer. Ainda mais tendo ele mulher e três filhos.
– E ela dorme?
Miss Keith fitou-me por cima do pincenê.
– Sou secretária há vinte e um anos, prezado senhor, e sempre tive como norma acreditar que meus chefes são puros como a neve. Confesso que, quando uma de minhas patroas se viu grávida de três meses, tendo o lorde seu marido partido seis meses antes para caçar leões na África, minha fé sofreu rude golpe; mas ela fez uma viagenzinha a Paris, e uma viagenzinha bem cara, e tudo entrou nos eixos. Minha patroa e eu soltamos juntas um profundo suspiro de alívio.
– Miss Keith, não vim aqui para fumar um cigarro com a senhora. Vim surripiar um convite para mr. Templeton.
– Teria sido muito pouco escrupuloso da sua parte.
– De acordo. Seja camarada, miss Keith. Dê-me um convite.
Ele não virá, e isto irá causar enorme prazer ao pobre velho. A senhora não tem nada contra ele, tem?
– Não; sempre foi muito delicado comigo. É um cavalheiro; esta verdade eu digo dele – e é mais do que se pode dizer da maioria das pessoas que aqui vêm encher a pança à custa da princesa.
Todas as pessoas importantes têm, em sua companhia, um subordinado de confiança. Estes dependentes são muito susceptíveis e, quando não são tratados com a consideração a que se julgam com direito, com constantes e oportunas indiretas envenenam o espírito dos patrões contra as pessoas que incorreram no seu desagrado. Vale a pena a gente estar de bem com eles. Mais do que ninguém, Elliott sabia disso e sempre tinha uma palavra amável ou um sorriso cordial para o parente pobre, a velha ama, a secretária de confiança. Eu tinha certeza de que muitas vezes ele tagarelara agradavelmente com miss Keith, e que no Natal não se esquecera de lhe mandar uma caixa de chocolates, um porta-pó ou uma bolsa.
– Vamos lá, miss Keith, seja boazinha.
Miss Keith firmou mais ainda o pincenê no nariz proeminente.
– Tenho certeza de que o senhor não deseja que eu proceda deslealmente para com a minha patroa, mr. Maugham; além do mais, aquela vaca velha me despediria se descobrisse que lhe desobedeci. Os convites estão na escrivaninha, dentro dos envelopes. Vou até a janela, em parte para espichar as pernas, ameaçadas de câimbra pelo fato de eu estar sentada há muito tempo, e em parte para admirar a beleza do panorama. Pelo que acontecer enquanto eu estiver de costas, nem Deus nem as criaturas poderão responsabilizar-me.
Quando miss Keith voltou ao seu lugar, o convite estava no meu bolso.
– Tive muito prazer em vê-la, miss Keith – disse eu estendendo-lhe a mão. – De que pretende fantasiar-se na noite da festa?
– Sou filha de um ministro, prezado senhor – replicou ela. – Deixo essas futilidades para as classes elevadas. Depois de certificar-me de que aos representantes do Herald e do Mail foi servida uma boa ceia e uma garrafa do nosso champanhe de segunda, meu dever estará cumprido e procurarei o refúgio do meu quarto, para gozar as delícias de um romance policial.
8
Dois dias mais tarde, quando fui visitar Elliott, encontrei-o todo sorridente.
– Olhe aqui – disse ele. – Chegou o meu convite. Recebi-o hoje de manhã. – Tirou o cartão debaixo do travesseiro e mostrou-mo.
– Vê que eu tinha razão – repliquei. – Seu nome começa com T. Com certeza só agora a secretária chegou a esta letra.
– Ainda não respondi. Vou responder amanhã. Experimentei urna sensação de pânico ao ouvi-lo dizer isto.
– Não quer que eu responda por você? Posso pôr no correio, quando sair daqui.
– Não; que ideia foi esta? Sou muito capaz de responder eu mesmo aos meus convites.
Felizmente, pensei, os envelopes seriam abertos por miss Keith e ela teria a inteligência de dar um sumiço naquele. Elliott tocou a campainha e disse:
– Quero mostrar-lhe a minha fantasia.
– Você não pretende ir, Elliott?
– Claro que pretendo. Não a usei desde o baile dos Beaumont.
Joseph apareceu e Elliott lhe disse que trouxesse a fantasia. Veio em papel de seda, dentro de uma caixa larga e chata. Meias compridas de seda branca, calções acolchoados, em lamê dourado com listras de cetim branco, gibão combinando, uma capa, um rufo para ser usado à volta do pescoço, gorro chato de veludo, e uma longa corrente de ouro de onde pendia a ordem do Tosão de Ouro. Percebi que fora copiada da suntuosa vestimenta de Filipe 11, no retrato por Ticiano, que está no Museu do Prado; e, quando Elliott me disse que era exatamente o traje que o conde de Lauria usara no casamento do rei da Espanha com a rainha da Inglaterra, não pude deixar de refletir que ele estava dando asas à imaginação.
Na manhã seguinte, quando eu estava tomando o meu café, chamaram-me ao telefone. Era Joseph, para me avisar que Elliott tivera outro ataque durante a noite. O médico, chamado às pressas, duvidava de que ele passasse daquele dia. Pedi o carro e fui para Antibes. Encontrei Elliott inconsciente. Ele se opusera terminantemente a que chamassem uma enfermeira, mas fiquei satisfeito por encontrar uma a seu lado. Fora mandada pelo médico e viera do hospital inglês que havia entre Nice e Beaulieu. Saí para telefonar a Isabel; com Gray e as crianças, ela fora passar o verão na modesta praia de La Baule. A distância era grande e receei que eles não chegassem a tempo. A não ser pelos dois irmãos de Isabel, que fazia anos Elliott não via, era ela sua única parenta viva.
Mas o desejo de viver era intenso nele, ou talvez os remédios do médico tivessem produzido efeito – o fato foi que melhorou durante o dia. Apesar de profundamente abatido, procurou fazer-se de forte e divertiu-se importunando a enfermeira com perguntas indecentes sobre sua vida sexual. Passei com ele grande parte da tarde; no dia seguinte, ao voltar, encontrei-o bem mais alegre, se bem que bastante fraco. A enfermeira não me permitiu ficar muito tempo a seu lado. Eu estava aborrecido por não ter recebido resposta ao meu telegrama. Não sabendo qual o endereço de Isabel em La Baule, mandara-o para Paris e receei que a concierge tivesse demorado a reexpedi-lo. Somente dois dias mais tarde me veio a resposta: eles iam embarcar imediatamente. Por cúmulo do azar Isabel e Gray tinham ido fazer uma excursão pela Bretanha e só naquele momento tinham recebido o meu telegrama. Examinei o horário dos trens e vi que não poderiam chegar senão dali a trinta e seis horas.
No dia seguinte de manhã Joseph telefonou-me novamente, dizendo que Elliott passara muito mal a noite e desejava ver-me. Dirigi-me para lá apressadamente. Joseph chamou-me de lado.
– Monsieur vai me desculpar por tocar num assunto tão delicado – disse ele. – Sou, naturalmente, livre-pensador, e acho que a religião não passa de uma conspiração por parte dos padres para dominarem o povo, mas monsieur sabe como são as mulheres. Minha esposa e aos últimos sacramentos, e não há dúvida de que o tempo é curto. – Fitou-me, um tanto envergonhado, e continuou: – Além do mais, a gente nunca sabe, talvez seja preferível, antes de morrer, regularizar a situação com a Igreja.
Compreendi-o perfeitamente. Por mais que zombem da Igreja, quando chega a hora da morte geralmente os franceses preferem fazer as pazes com a religião que beberam com o leite materno.
– Deseja que eu lhe fale sobre isso?
– Se monsieur quisesse ter a bondade.
Não era tarefa agradável, mas afinal de contas Elliott fora durante anos fervoroso católico e era natural que se conformasse com os deveres da sua fé. Subi para vê-lo. Estava de costas, pálido e emurchecido, mas perfeitamente lúcido. Pedi à enfermeira que nos deixasse a sós.
– Infelizmente acho que você está muito mal, Elliott – disse-lhe eu. – Estive pensando, estive pensando se você não gostaria de ver um padre?
Ele me fitou em silêncio, durante alguns segundos. E depois:
– Quer dizer que vou morrer?
– Oh! espero que não. Mas é sempre bom a gente se garantir.
– Compreendo.
Ficou em silêncio. Momento terrível esse em que a gente tem que dizer a uma pessoa aquilo que eu acabara de dizer a Elliott. Não tive coragem de olhar para ele. Cerrei os dentes, pois tive medo de chorar. Estava sentado na beira da cama, de frente para ele, com o braço estendido para ampará-lo.
Ele deu-me um tapinha na mão.
– Não fique perturbado, caro amigo. Noblesse oblige, você sabe.
Ri histericamente.
– Você é uma criatura ridícula, Elliott.
– Agora sim. Chame o bispo e diga-lhe que quero confessar-me e receber a extrema-unção. Eu ficaria grato se ele me mandasse o abade Charles, que é meu amigo.
O abade Charles era o vigário-geral que já tive ocasião de mencionar. Desci e telefonei. Falei com o próprio bispo.
– É urgente? – perguntou ele.
– Muito.
– Providenciarei imediatamente.
O médico chegou e contei-lhe o sucedido. Ele subiu com a enfermeira para o quarto de Elliott e eu fiquei esperando no andar debaixo, na sala de jantar. Leva-se mais ou menos vinte minutos, de automóvel, de Nice a Antibes; dali a meia hora e pouco um sedan preto parou à porta. Joseph veio procurar-me.
– C’est monseigneur en personne, monsieur – disse ele, todo afobado. – É o próprio bispo.
Saí para recebê-lo. Não vinha, como de costume, acompanhado pelo vigário-geral e sim, não sei por quê, por um jovem padre que carregava um estojo que continha, creio eu, os objetos necessários à administração dos sacramentos. O chofer vinha em seguida, com uma surrada valise preta. O bispo me apertou a mão, apresentando o seu companheiro.
– Como vai o nosso pobre amigo?
– Infelizmente creio que está muito mal, monsenhor.
– Tenha a bondade de nos indicar um quarto, para nos paramentarmos.
– A sala de jantar fica aqui, monsenhor, e a sala de visitas no andar de cima.
– A sala de jantar servirá perfeitamente.
Levei-os até lá; Joseph e eu ficamos esperando no hall. Dali a pouco a porta abriu-se e o bispo apareceu, seguido pelo padre que segurava em ambas as mãos o cálice onde estava a pátena com a hóstia consagrada, coberta com um pano de cambraia tão fino que chegava a ser transparente. Eu nunca vira o bispo a não ser em algum almoço ou jantar, e ótimo garfo era ele, sabendo apreciar um petisco e um bom vinho, e contando com muito espírito histórias engraçadas e às vezes até mesmo imorais. Então me parecera um homem forte, atarracado, de estatura mediana. Mas agora, de sobrepeliz e estola, achei-o não somente alto, mas imponente. O rosto vermelho, em geral enrugado por um riso malicioso, mas afável, tinha agora uma expressão grave. Nada na sua aparência lembrava o oficial de cavalaria que ele fora; dava impressão de ser aquilo que realmente era, um dos grandes dignitários da Igreja. Não me admirei de ver Joseph fazer o sinal da cruz. O bispo inclinou ligeiramente a cabeça.
– Conduzam-me ao quarto do doente – disse.
Afastei-me para lhe dar passagem, mas ele fez sinal para que eu o precedesse. Subimos em solene silêncio. Entrei no quarto de Elliott.
– Foi o próprio bispo quem veio, Elliott. Ele fez um esforço para sentar-se.
– Monsenhor, não ousei esperar tão grande honra.
– Fique à vontade, meu amigo – disse o bispo. Virou-se para a enfermeira e para mim: – Deixe-nos. – E dirigindo-se ao padre: – Eu o chamarei quando estiver pronto.
O padre olhou à volta e percebi que estava procurando um lugar para depositar o cálice. Empurrei para um lado as escovas de tartaruga que estavam sobre o penteador. A enfermeira desceu e eu levei o padre para o quarto contíguo, que Elliott usava como escritório. As janelas ali estavam abertas para o céu azul; ele aproximou-se de uma delas. Sentei-me. Havia uma corrida de barcos e o branco das velas rebrilhava ao sol. Uma grande escuna de casco negro e velas vermelhas lutava contra a brisa, em direção à baía. Vi que era um barco de lagostas, trazendo um carregamento da Sardenha, para que os jantares de gala, nos cassinos, tivessem o seu prato de peixe. Através da porta fechada, eu distinguia um abafado murmúrio de vozes. Elliott confessava-se. Eu estava louco por um cigarro, mas fiquei com medo de escandalizar o padre. Ele continuava imóvel, olhando para fora. Rapaz delgado, de grossos e ondulados cabelos negros que lhe traíam a origem italiana. Havia no seu aspecto a vivacidade da gente do Sul, e fiquei a imaginar que fé poderosa, que intenso desejo o tinham induzido a abandonar as alegrias da vida cotidiana, os prazeres próprios da sua idade e a satisfação dos sentidos para dedicar-se ao serviço de Deus.
Subitamentet as vozes do quarto contíguo calaram-se; a porta abriu-se e o bispo apareceu.
– Venha – disse ele ao padre.
Fiquei só. De novo ouvi a voz do bispo e percebi que ele estava recitando as orações que a Igreja ordena sejam ditas à cabeceira dos agonizantes. Depois, novo silêncio; compreendi que Elliott estava recebendo o Corpo e o Sangue de Jesus. Devido a não sei que sentimento, herança talvez dos meus antepassados, embora não seja católico nunca posso assistir à missa sem experimentar, ao ouvir a campainha que anuncia a Elevação da Hóstia, uma trêmula sensação de temor; e também agora estremeci, como se tivesse sentido um calafrio – estremeci de medo e admiração. De novo a porta abriu-se.
– Pode entrar – disse-me o bispo.
Entrei. O padre estava cobrindo, com a pala, o cálice e a pátena onde estivera a hóstia consagrada. Os olhos de Elliott luziam.
– Acompanhe o monsenhor até o carro – disse ele. Descemos as escadas. Joseph e as criadas esperavam no hall.
As mulheres choravam. Eram três; adiantaram-se, cada uma por sua vez e, caindo de joelhos, beijaram o anel do bispo. Ele as abençoou com dois dedos. A mulher de Joseph deu no marido uma cotovelada e também ele deu um passo à frente, ajoelhou-se e beijou o anel. O bispo sorriu levemente.
– Você é livre-pensador, meu filho?
Percebi que Joseph fazia um esforço sobre si mesmo.
– Sim, monsenhor.
– Não se perturbe por isso. Você foi um bom e fiel servo.
Deus relevará os erros do seu modo de pensar. Acompanhei o bispo até a rua e abri a porta do seu carro. Ele inclinou a cabeça e, ao entrar, sorriu com indulgência.
– Nosso pobre amigo está muito mal. Seus defeitos eram superficiais; tinha um coração generoso e foi bom para seus semelhantes.
9
Achando que, depois da cerimônia, Elliott havia de preferir ficar só, dirigi-me para a sala de visitas e comecei a ler; mas, nem bem me instalara, apareceu a enfermeira dizendo que ele desejava ver-me. Subi até o seu quarto. Não sei se graças a uma injeção que o médico lhe dera para ajudá-lo na provação por que teria de passar, ou se devido à excitação, encontrei-o calmo, alegre e de olhos cintilantes.
– Uma grande honra, caro amigo, uma grande honra – disse ele. – Entrarei no reino dos céus com uma carta de apresentação de um príncipe da Igreja. Creio que todas as portas se me abrirão.
– Receio que você vá encontrar ali certa mistura –
repliquei sorrindo.
– Não tenha essa ilusão, caro amigo. Diz a Sagrada Escritura que, assim como na terra, existem distinções de classe no céu. Há serafins e querubins, anjos e arcanjos. Sempre frequentei a melhor sociedade da Europa e tenho certeza de que o mesmo se dará no céu. Nosso Senhor disse: “A Casa de meu Pai tem muitas mansões”. Não seria nada correto alojar o hoi polloi num estilo a que não está habituado.
Desconfiei que Elliott considerava as habitações celestiais como uma espécie de castelo de algum barão de Rothschild, com painéis do século xviii nas paredes, mesas Buhl, cômodas entalhadas e apartamentos em estilo Luís xv cobertos com legítimo petit-point. Depois de uma pausa ele continuou:
– Acredite-me, caro amigo, não haverá nenhuma dessa maldita igualdade no céu.
Caiu em repentina sonolência. Sentei-me e comecei a ler. Ele continuou dormindo. À uma hora a enfermeira apareceu para me avisar que Joseph ia servir o meu almoço. Encontrei Joseph muito humilde.
– Imagine, monsenhor vir em pessoa. Grande honra conferida ao nosso pobre patrão. O senhor me viu beijar o anel?
– Vi.
– Por mim não o teria beijado: fiz isso para contentar minha pobre esposa.
Passei a tarde no quarto de Elliott. Veio telegrama de Isabel, avisando que ela e Gray chegariam na manhã seguinte, pelo Trem Azul. Não tive esperança de que chegassem a tempo. O médico apareceu. Sacudiu a cabeça. Lá pelo cair da tarde, Elliott acordou e conseguiu comer alguma coisa, parecendo com isto criar momentânea força. Fez sinal para que eu me aproximasse da cama.
– Ainda não respondi ao convite de Edna – disse em voz sumida.
– Oh! não se incomode com isso agora, Elliott.
– Por que não? Sempre fui mundano; não há motivo para esquecer as boas maneiras só porque vou deixar o mundo. Onde está o convite?
Estava sobre a lareira; coloquei-o na mão de Elliott, mas não creio que o pudesse ver.
– Você encontrará um bloco no escritório. Se quiser ir buscá-lo, poderei ditar-lhe a minha resposta.
Fui ao quarto e voltei com o bloco e um lápis. Sentei-me na beirada da cama.
– Está pronto?
– Estou.
Elliott tinha os olhos fechados, mas havia nos seus lábios um sorriso malicioso. O que iria ele dizer?
– Mr. Elliott Templeton lamenta não poder aceitar o amável convite da princesa Novemali, devido a um prévio compromisso com o seu Bem-Amado Senhor.
Deu uma risada rouca, espetral. Seu rosto tinha uma cor azulada, horrível de se ver, e ele exalava o odor nauseabundo próprio da sua moléstia. Pobre Elliott, que tanto gostava de se borrifar com os perfumes de Chanel e Molyneux! Ainda tinha na mão o convite furtado; temendo que o estivesse incomodando, tentei retirá-lo, mas Elliott segurou-o com mais força ainda. Sobressaltei-me ao ouvi-lo falar em voz alta.
– Aquela vaca velha.
Foram as últimas palavras que pronunciou. Caiu em estado de coma. A enfermeira permanecera a seu lado durante toda a noite anterior e parecia muito cansada; mandei-a para a cama, dizendo que ficaria com Elliott e prometendo chamá-la caso fosse necessário. Não havia realmente nada que se pudesse fazer. Acendi um abajur e li até meus olhos arderem; apaguei-o depois e fiquei sentado no escuro. Era uma noite quente e as janelas estavam completamente abertas. Com intervalos regulares a luz do farol varria o quarto com passageiro brilho. A lua – que dias mais tarde, quando cheia, iria iluminar a ruidosa e fátua alegria do baile de Edna Novemali – firmou-se no céu de um azul profundo, profundíssimo, onde inúmeras estrelas brilhavam com seu terrífico fulgor. Devo ter cochilado, mas meus sentidos continuaram atentos; subitamente acordei por completo ao ouvir um som apressado, raivoso, o mais apavorante som que uma pessoa possa ouvir: o estertor da morte. Aproximei-me da cama e à luz do farol tomei o pulso de Elliott. Estava morto. Acendi o abajur da cabeceira e olhei-o. O maxilar caíra. Os olhos estavam abertos e, antes de fechá-los, observei-os por alguns instantes. Eu estava comovido e creio que algumas lágrimas me correram pelas faces. Velho e bom amigo. Entristeci-me ao pensar como sua vida fora tola, vazia e inútil. Pouca importância tinha agora o fato de ter ele ido a tantas festas e convivido com todos aqueles príncipes, duques e condes. Já se tinham esquecido dele por completo.
Não achei necessário acordar a enfermeira e voltei, portanto, para a minha cadeira perto da janela. Quando ela apareceu, às sete da manhã, encontrou-me dormindo. Deixei-a, para que fizesse aquilo que achasse necessário e depois de tomar o meu café fui à estação, esperar Gray e Isabel. Contei-lhes que Elliott morrera e, como não havia lugar em sua casa, convidei-os para se hospedarem comigo, mas eles preferiram ir para um hotel. Voltei para minha casa, para tomar banho, fazer a barba e trocar de roupa.
No período da manhã Gray me telefonou, dizendo que Joseph lhe entregara uma carta a mim endereçada, que Elliott lhe confiara. Como podia haver nela algo de confidencial, respondi que iria imediatamente para lá. Fui. No envelope estava escrito: Para ser entregue logo após a minha morte, e a carta dava instruções sobre o enterro. Eu sabia que Elliott desejava ardentemente ser sepultado na igrejinha por ele construída, e já prevenira Isabel disso. Ele queria ser embalsamado e indicava que firma devia encarregar-se do serviço. “Indaguei a respeito”, continuava ele, “e informaram-me que eles trabalham muito bem. Confio em você, para verificar que tudo saia benfeito. Desejo que me vistam o traje do meu antepassado, o conde de Lauria, com a espada do lado e a Ordem do Tosão de Ouro no meu peito. Deixo a seu gosto a escolha do caixão. Deverá ser simples, mas adequado à minha posição. A fim de não causar desnecessário incômodo, desejo que Thomas Coock and Son se encarreguem do transporte do meu caixão, e que um dos seus empregados acompanhe meus restos mortais à sua derradeira morada.”
Lembrei-me de que Elliott dissera que desejava ser enterrado naquela sua fantasia, mas julguei tratar-se de capricho passageiro e nunca pensei que falasse seriamente. Joseph insistia em que seus desejos fossem cumpridos à risca e não vi motivo para agirmos contrariamente a eles. O corpo foi devidamente embalsamado; depois fui com Joseph vesti-lo com aqueles trajes absurdos. Lúgubre tarefa. Calçamos nas pernas compridas as meias de seda branca, puxando sobre elas os calções dourados. Foi com grande dificuldade que lhe enfiamos o gibão. Colocamos no pescoço o rufo engomado, ajeitamos a capa de cetim em volta dos ombros. Finalmente, na cabeça, o barrete de veludo, e em volta do pescoço o colar do Tosão de Ouro. O embalsamador lhe pintara as faces e os lábios. Naqueles trajes, agora grandes demais para o seu corpo emaciado, Elliott parecia um corista de uma das primeiras óperas de Verdi. Pobre Dom Quixote com o seu ideal vazio! Depois que os homens da agência funerária o puseram no caixão, coloquei entre as pernas, ao longo do corpo, a espada e no punho da espada as mãos de Elliott, a exemplo do que eu vira no túmulo esculpido de um cruzado.
Gray e Isabel foram para a Itália, assistir ao enterro.
Seis
Seis
1
Acho justo avisar o leitor que pode perfeitamente pular este capítulo sem perder o fio do pouco de romance que tenho para contar, pois na maior parte ele não passa da repetição de uma conversa que tive com Larry. Devo no entanto acrescentar que, não fosse por essa conversa, talvez eu não tivesse achado que valesse a pena escrever este livro.
2
No outono, alguns meses depois da morte de Elliott, passei uma semana em Paris, antes de ir para a Inglaterra. Depois da lúgubre viagem à Itália, Gray e Isabel tinham voltado para a Bretanha, mas estavam agora novamente instalados no apartamento da Rue St. Guillaume. Isabel contou-me os termos do testamento. Elliott determinara que reservassem certa quantia para que fossem ditas missas em prol de sua alma, na igrejinha por ele construída, e outra soma para a conservação da referida igreja. Deixara ao bispo de Nice um belíssimo legado, para ser aplicado em obras de caridade. Quanto a mim, deixou-me a duvidosa herança de sua biblioteca pornográfica do século xviii, e um belo desenho de Fragonard, representando um sátiro e uma ninfa entretidos num ato que é geralmente feito na intimidade. Era indecente demais para eu pendurar numa das paredes de minha casa, e não sou homem de me deleitar com obscenidades clandestinamente. Fora generosíssimo com os criados. Quanto aos sobrinhos, herdavam dez mil dólares cada um; o resto da fortuna ia para Isabel. Ela não me disse quanto era, nem lhe perguntei, mas pela sua atitude complacente percebi que devia ser muito dinheiro.
Já fazia tempo, desde que recuperara a saúde, que Gray estava ansioso por voltar para a América e recomeçar a trabalhar; embora Isabel se sentisse bem em Paris, a inquietação de Gray acabara por afetá-la. Durante meses mantivera ele correspondência a esse respeito com amigos, mas o melhor negócio que lhe fora oferecido dependia de grande entrada de capital. Ele não dispunha desse dinheiro, mas, com a morte de Elliott, Isabel herdara muito mais do que era necessário, e com o seu consentimento Gray entabulara o negócio, pretendendo, se tudo corresse como esperava, ir pessoalmente à América estudar de perto o assunto. Mas antes disso havia muito que fazer. Tinham chegado a um acordo razoável com o governo francês sobre os impostos de transmissão causa mortis. Precisavam dispor da casa de Antibes e do apartamento da Rue St. Guillaume. Tinham de providenciar a venda, no Hotel Drouot, da mobília, quadros e desenhos de Elliott. Como eram valiosos, seria preferível esperar até a primavera, quando havia a probabilidade de os grandes colecionadores se acharem em Paris. Isabel não desgostou de ter que passar mais um inverno ali; suas filhas falavam, agora, o francês tão corretamente quanto o inglês, e agradava-lhe a ideia de vê-las frequentar durante mais alguns meses uma escola francesa. As duas meninas tinham crescido em três anos e eram agora duas criaturas magras, muito vivas, de pernas compridas, que no presente nada tinham da beleza da mãe; bem-educadas e de uma insaciável curiosidade.
Por enquanto, é só.
3
Encontrei-me com Larry por acaso. Pedira notícias suas a Isabel e ela me contara que pouco o tinham visto depois de voltar de La Baule. Isabel e Gray tinham agora um bom círculo de relações, gente da sua idade, e estavam muito mais comprometidos do que naquelas agradáveis semanas em que nós quatro saíamos tanto juntos. Certa noite fui ao Théâtre Français ver Bérénice. Já lera a peça, naturalmente, mas nunca a vira representada; e como é raramente levada ao palco não quis perder essa oportunidade. Não é das melhores peças de Racine, pois o assunto é fraco para se aguentar durante cinco atos; mas é comovente e há nela certos trechos merecidamente famosos. A história baseia-se numa breve passagem de Tácito: – Tito, que amava loucamente Bérénice, rainha da Palestina, tendo mesmo, segundo se julgava, chegado a prometer-lhe casamento, por razões de estado mandara-a embora de Roma nos primeiros dias do seu reinado, e isto contra o desejo de ambos. O Senado e o povo de Roma opunham-se violentamente à união do seu imperador com uma rainha estrangeira. A peça descreve a luta travada no coração do homem entre o amor e o dever e, quando no fim ele fraqueja, é Bérénice quem, certa de que é amada, reforça a resolução do imperador, separando-se dele para sempre.
Creio que somente um francês pode apreciar devidamente a graça e a grandeza de Racine, a música dos seus versos; mas, mesmo um estrangeiro, depois que se habitua à formalidade artificial do estilo, não pode deixar de se comover com a sua apaixonada ternura e a nobreza do seu modo de sentir. Racine conhecia, como poucos, o poder dramático da voz humana. Para mim, pelo menos, o som daqueles melífluos alexandrinos é suficiente substituto da ação; acho os longos discursos, elevando-se com infinita habilidade até o esperado ponto culminante, tão emocionantes como qualquer arrepiadora fita de aventuras.
No intervalo, depois do terceiro ato, saí para fumar um cigarro no foyer onde se vê o Voltaire de Houdon, com seu desdentado e sardônico sorriso. Alguém me bateu no ombro. Virei-me, talvez com ligeiro movimento de desagrado, pois desejava ficar só para gozar a exaltação que me tinham causado os versos sonoros, e dei com Larry. Senti, como sempre, prazer em vê-lo. Fazia um ano que não nos encontrávamos e sugeri tomarmos uma cerveja juntos, depois do espetáculo. Larry disse que estava com fome, pois não jantara, e propôs irmos a Montmartre. Conseguimos nos encontrar sem grande dificuldade e saímos para o ar livre. O Théâtre Français tem um odor de mofo que lhe é peculiar, impregnado do cheiro daquelas incontá-veis gerações de mulheres de rosto azedo e pouco asseio, chamadas ouvreuses, que nos mostram o nosso lugar e ficam imperiosamente à espera da gorjeta. Foi um alívio sair dali; como estava fresco, fomos a pé. As lâmpadas da Avenue de l’Opéra brilhavam tão desafiadoramente que as estrelas lá em cima, orgulhosas demais para entrarem em competição, embaçaram seu brilho, protegidas pela infinita distância. Enquanto caminhávamos, fomos discutindo a peça a que acabávamos de assistir. Larry mostrou-se decepcionado. Gostaria que tivessem sido mais naturais os versos recitados em tom habitual, os gestos menos teatrais. Não concordei. Tratava-se de retórica, magnífica retórica, e eu era de opinião que devia ser recitada retoricamente. Agradava-me a cadência regular das rimas; e o apuro dos gestos, conservados pela tradição, parecia de acordo com aquela arte formal. Não pude deixar de refletir que era assim que Racine desejaria que sua peça fosse representada. Eu admirara a maneira com que os atores tinham conseguido ser humanos, apaixonados e sinceros, dentro dos limites em que se viam encerrados. A arte triunfa quando consegue servir-se do convencionalismo em benefício próprio.
Chegamos à Avenue de Clichy e entramos na Brasserie Graf. Já passava de meia-noite e o restaurante estava repleto, mas conseguimos arranjar uma mesa e encomendamos ovos com toucinho. Contei a Larry que vira Isabel.
– Gray vai ficar satisfeito de poder voltar para a América – disse ele. – Aqui é como um peixe fora d’água. E não se sentirá feliz, a não ser que recomece a trabalhar. Garanto que ainda vai ganhar muito dinheiro.
– Será então graças a você, que não somente o curou no físico, mas no espírito também. Fez com que tivesse de novo confiança em si.
– Fiz muito pouco. Apenas lhe mostrei como poderia curar-se a si próprio.
– Como aprendeu esse “pouco”?
– Acidentalmente. Na Índia. Estava sofrendo de insônia e por acaso mencionei o fato a um iogue meu conhecido e ele me disse que logo daria um jeito nisso. Fez exatamente o que você me viu fazer com Gray; naquela noite dormi como havia meses não dormia.
E então, um ano mais tarde, creio, estava eu no Himalaia com um meu amigo, um hindu, quando ele torceu o tornozelo. Impossível conseguir-se médico e ele estava sofrendo muito. Lembrei-me de experimentar aquilo que o iogue fizera comigo. Deu resultado. Acredite-me você ou não, a dor lhe passou por completo. – Larry riu e continuou: – Garanto que ninguém ficou mais admirado do que eu. Não é nada de extraordinário; basta meter a ideia na cabeça da pessoa que está sofrendo.
– É mais fácil dizer do que fazer.
– Você estranharia se o seu braço se erguesse da mesa sem nenhuma intervenção da sua vontade?
– Muitíssimo.
– Pois vai levantar-se. Quando voltamos aos meios civilizados, meu amigo hindu contou o sucedido e trouxe muita gente para ver-me. Era-me suavemente desagradável fazer aquilo, pois eu não entendia muito bem o que se passava, mas eles insistiam. De um jeito ou de outro consegui ajudá-los. Verifiquei que podia livrá-los não somente da dor, mas do medo. Esquisito quanta gente sofre disso! Não me refiro somente a medo de espaços fechados e medo das alturas, mas medo da morte e, mais grave ainda, medo da vida. Às vezes encontramos pessoas que parecem de ótimo estado de saúde, prósperas, sem nenhuma preocupação, e que no entanto se acham torturadas por esse medo. Cheguei mesmo a acreditar que era a coisa mais comum nas criaturas, e certa vez perguntei a mim mesmo se não teria origem em algum profundo instinto animal, que o homem herdou daquele “não-sei-quê” primevo que pela primeira vez sentiu a vibração da vida.
Eu ouvia interessado e em expectativa, pois era raro Larry estender-se sobre um assunto, e pareceu-me que, pelo menos por sua vez, estava de humor expansivo. É possível que a peça que acabáramos de ver tivesse libertado alguma inibição e que, assim como acontece com a música, as cadências sonoras lhe tivessem vencido a instintiva reserva. Subitamente percebi que alguma coisa estava acontecendo com a minha mão. Não dera importância à pergunta meio brincalhona de Larry, mas agora senti que minha mão já não estava apoiada na mesa, tendo-se erguido uma polegada acima dela, sem interferência da minha vontade. Sobressaltei-me. Baixei os olhos e vi que ela estava ligeiramente trêmula. Senti um estranho formigueiro nos nervos do braço, um leve tranco, e minha mão e antebraço se ergueram por si mesmos, sem que, pelo menos foi o que pensei, eu ajudasse ou resistisse, ficando várias polegadas acima da mesa. Depois senti erguer-se todo braço, desde o ombro.
– Que coisa esquisita! – comentei.
Larry riu. Fiz um pequeno esforço de vontade e meu braço caiu de novo sobre a mesa.
– Não é nada – disse ele. – Não dê a menor importância ao fato.
– Aprendeu isto com o iogue de quem nos falou ao voltar da Índia?
– Oh! não; ele não tinha paciência com essas coisas. Não sei se se julgava possuidor dos poderes que alguns iogues garantem ter, mas teria achado pueril usá-los.
Os ovos com toucinho chegaram. Comemos com apetite. Tomamos a nossa cerveja. Nenhum de nós dois falou. Larry pensava não sei em quê, e eu pensava nele. Acabamos. Acendi um cigarro e Larry o seu cachimbo.
– Por que foi que, em primeiro lugar, pensou em ir à Índia? – perguntei à queima-roupa.
– Por acaso. Pelo menos assim o julguei na ocasião. Agora estou achando que foi o inevitável resultado dos anos que passei na Europa. Parece-me que conheci por acaso quase todas as pessoas que mais me interessavam, e no entanto, olhando o passado, tenho a impressão de que tais encontros tinham que se dar. Como se essas pessoas estivessem esperando a minha visita quando precisei delas. Fui à Índia porque queria descansar. Trabalhara muito e desejava coordenar meus pensamentos. Arranjei um lugar de marujo num desses navios de recreio que fazem a volta ao mundo. Íamos para o Oriente e depois para Nova York, pelo Canal do Panamá. Fazia cinco anos que não ia à América e estava com saudade. Sentia-me deprimido. Você se lembra de como eu era ignorante, quando nos conhecemos em Chicago, há tantos anos ja... Eu lera muito, na Europa, e vira muita coisa, mas em nada me achava mais próximo daquilo que buscava.
Tive vontade de perguntar a Larry o que buscava ele, mas achei que daria uma risada, encolheria os ombros e diria que era coisa sem importância.
– Mas por que motivo foi como marujo? – perguntei. – Você tinha dinheiro.
– Pela experiência. Todas as vezes que me senti saturado espiritualmente, todas as vezes que assimilei tudo o que me foi possível assimilar na ocasião, achei útil fazer qualquer coisa nesse gênero. No inverno seguinte ao rompimento do meu noivado com Isabel, trabalhei durante seis meses numa mina de carvão, perto de Lens.
Foi aí que me contou aqueles fatos que narrei num capítulo anterior.
– Ficou desgostoso quando Isabel desmanchou o noivado?
Antes de responder, Larry me fitou com aqueles seus estranhos olhos negros, que neste momento tinham uma expressão introspectiva.
– Fiquei. Era muito moço. Estava resolvido a casar-me com ela. Tinha planejado a vida que íamos levar juntos. Achava que ia ser ótima. – Ele riu de mansinho. – Mas são precisos dois para um casamento, assim como são precisos dois para uma briga. Nunca me ocorreu que a vida que eu oferecia a Isabel fosse uma vida que a enchesse de consternação. Se eu tivesse um pouco de perspicácia, nunca teria feito tal proposta. Ela era moça demais e muito ardente. Não me era possível culpá-la. Não me era possível ceder.
Talvez o leitor se lembre que, ao fugir da fazenda, depois do grotesco encontro com a nora-viúva, Larry fora para Bonn. Eu estava ansioso por ouvir o resto, mas sabia que, na medida do possível, devia evitar perguntas diretas.
– Nunca estive em Bonn – comentei. – Quando rapazinho estudei durante algum tempo em Heidelberg. Creio que foi a época mais feliz da minha vida.
– Gostei de Bonn – disse Larry. – Passei lá um ano. Arranjei quarto na casa da viúva de um dos professores da Universidade, que tomava dois pensionistas. Ela e as duas filhas, ambas já maduras, cozinhavam e faziam todo o serviço. A princípio fiquei decepcionado ao ver que o outro pensionista era francês, pois eu só queria falar alemão; mas ele era alsaciano e falava o alemão, se não correntemente, pelo menos com melhor pronúncia do que o francês. Vestia-se como um pastor alemão e fiquei admirado quando, dias mais tarde, soube que era um monge beneditino. Obtivera licença para sair do mosteiro para fazer certas pesquisas na biblioteca da universidade. Era muito culto, mas não se julgaria isso pela sua aparência, a qual também não correspondia à ideia que eu fazia de um monge. Era um sujeito alto, forte, com cabelos cor de areia, olhos azuis meio saltados, rosto redondo e vermelho. Era tímido e reservado e parecia não querer saber de amizade comigo, mas era muito cortês, num estilo um tanto complicado; à mesa tomava civilmente parte na conversa. Era onde eu o via; assim que acabávamos de jantar ele voltava ao seu trabalho, na biblioteca; depois da ceia, enquanto eu ficava na sala a praticar o meu alemão com qualquer das filhas que estivesse livre no momento, ele se retirava para o quarto.
Fiquei admirado quando, mais ou menos um mês depois de eu ter chegado a Bonn, certa tarde ele me convidou para um passeio a pé. Disse que me poderia mostrar na vizinhança lugares que provavelmente eu nunca viria a descobrir sozinho. Sou bom andarilho, mas o monge ganharia de mim a qualquer hora. Creio que caminhamos no mínimo vinte e cinco quilômetros naquele primeiro dia. Perguntou-me que fazia eu em Bonn e respondi que viera para aprender alemão e um pouco da literatura alemã. Ele conversava inteligentemente. Disse que teria prazer em ajudar-me no que lhe fosse possível. Depois disso, saíamos duas ou três vezes por semana para passeios a pé. Fiquei sabendo que ele ensinara filosofia durante alguns anos. Em Paris eu lera um pouco sobre isto, Spinoza, Platão e Descartes, mas nada acerca dos grandes filósofos alemães; era pois com prazer que o ouvia discorrer sobre eles. Certo dia, depois de termos feito urna excursão ao outro lado do Reno, enquanto tomávamos uma cerveja num bar ao ar livre ele me perguntou se eu era protestante.
– Creio que sim – respondi.
O monge me atirou um rápido olhar onde distingui a sombra de um sorriso. Começou a falar de Ésquilo; eu estudara grego e vi que ele conhecia os grandes trágicos como jamais tive esperança de os conhecer. Que prazer ouvi-la! Por que me teria feito aquela pergunta? Meu tutor, o tio Bob Nelson, era agnóstico, mas ia regularmente à igreja, pois seus clientes esperavam isso dele; pela mesma razão mandava-me no domingo à aula de religião. Martha, a nossa empregada, era uma rígida batista e costumava amedrontar-me, quando criança, falando do fogo do inferno a que os pecadores seriam condenados por toda a eternidade. Sentia verdadeiro prazer em descrever-me os sofrimentos reservados a várias pessoas da aldeia que, por um motivo ou outro, tinham incorrido no seu desagrado.
Quando chegou o inverno eu já conhecia bem o padre Ensheim. Creio que era um homem extraordinário. Nunca o vi de mau humor. Tinha bom gênio, era afável, de ideias muito mais largas do que se podia supor, e infinitamente tolerante. Sua erudição era prodigiosa e ele devia ter percebido como eu era ignorante, mas conversava comigo como se minha cultura fosse igual à sua. Muito paciente; parecia não ter outro desejo que o de me ser útil. Certo dia, não sei por quê, tive um ataque de lumbago; frau Grabau, a dona da casa, insistiu em mandar-me para a cama, rodeado de bolsas de água quente. Tendo sabido que eu estava deitado, depois da ceia o padre Ensheim subiu para ver-me. A não ser pela dor, eu me sentia bem. Você sabe como são essas pessoas muito lidas – curiosas, em se tratando de livros; quando larguei o meu, ao ver entrar o padre, este apanhou-o para olhar o título. Era uma obra de Meister Eckhart, que eu encontrara numa das livrarias da cidade. Perguntou-me por que estava eu lendo aquela obra; contei-lhe então que andava interessado em literatura mística, e falei-lhe de Kosti, que despertara a minha curiosidade sobre o assunto. Ele me fitou com seus olhos saltados, e havia neles uma expressão que só posso descrever como ternura divertida. Pareceu-me que me achava um tanto ridículo, mas que a afeição que sentia por mim era tão grande que isto em nada a alterava. Além do mais, nunca me importei que os outros me achassem meio tolo.
“O que está procurando nesses livros?”, perguntou-me.
“Se eu soubesse, estaria pelo menos no meio do caminho.” “Lembra-se de que lhe perguntei se você era protestante? Você respondeu que achava que sim. Que queria dizer com isto?” “Fui educado na religião protestante”, respondi.
“Você acredita em Deus?”
– Não gosto de perguntas pessoais e meu primeiro impulso foi dizer que isso não era da sua conta. Mas ele irradiava tanta bondade que não tive coragem de ofendê-lo. Fiquei sem saber o que responder. Não queria dizer “não” nem tampouco “sim”. Não sei se devido à dor que eu sentia, ou porque havia nele qualquer coisa, comecei a falar... Contei-lhe tudo a meu respeito.
Larry hesitou por um momento e, quando continuou, percebi que não se dirigia a mim e sim ao monge beneditino. Esquecera-se da minha presença. Não sei se devido à ocasião ou ao ambiente, sua reserva natural quebrou-se, permitindo-lhe falar, sem que eu o atiçasse, de coisas que até então guardara só para si.
– O tio Nelson era muito democrata e me pôs na escola pública de Marvin. Somente por insistência de Louisa Bradley foi que, quando completei catorze anos, me deixou ir para St. Paul. Eu não sobressaía nem nos estudos nem no esporte, mas dei-me muito bem lá. Creio que era um menino perfeitamente normal. Louco por aviação. Voava-se pouco, naqueles primeiros tempos, e o tio Bob estava tão entusiasmado quanto eu. Conhecia alguns dos aviadores e disse-me que, se eu quisesse aprender a voar, ele daria um jeito. Eu era alto para a idade; aos dezesseis anos podia perfeitamente passar por dezoito. O tio Bob me fez prometer segredo, pois sabia que todo mundo o criticaria, mas ajudou-me a ir para o Canadá, entregando-me uma carta de apresentação para um seu conhecido. O resultado foi que, aos dezessete anos, eu estava voando na França.
Os aviões que pilotávamos eram muito frágeis e cada vez que subíamos arriscávamos, por assim dizer, a vida. Comparadas com as de hoje, as alturas que atingíamos eram absurdas, mas naquele tempo era assim, e achávamos uma maravilha. Eu gostava de voar. Não teria sido capaz de descrever a sensação que me causava; sabia apenas que me sentia orgulhoso e feliz. No ar, bem alto, eu sentia que fazia parte de alguma coisa muito grande e muito bela. Não sabia do que se tratava; sabia apenas que, a seiscentos metros de altura, não estava mais só, embora desacompanhado, sentia que estava no meu elemento. Não é culpa minha se isto parece tolice. Quando voava sobre as nuvens, que lá embaixo pareciam enormes rebanhos de ovelhas, eu me sentia em casa com a imensidade.
Larry fez uma pausa. Olhou-me lá das covas dos seus olhos impenetráveis, mas não sei se me teria visto.
– Sabia que centenas de milhares de homens haviam morrido, mas eu não os vira morrer. Isto não me atingia grandemente. Depois vi um morto, com meus próprios olhos. Aquilo me encheu de vergonha.
– Vergonha? – exclamei involuntariamente.
– Vergonha, sim, porque aquele rapaz, apenas três ou quatro anos mais velho do que eu, que tivera tanta energia e coragem, que momentos antes dera provas de tão grande vitalidade, que fora tão bom, não passava agora de carne lacerada que parecia nunca ter vivido.
Fiquei calado. Quando estudante de medicina eu vira muitos cadáveres, e durante a guerra mais ainda. O que mais me consternara fora notar como eles pareciam insignificantes. Não tinham dignidade. Fantoches que o dono do espetáculo atirara fora.
– Aquela noite não dormi. Chorei. Não estava com medo, e sim indignado; o que mais me abateu foi a maldade de tudo aquilo. A guerra acabou e voltei para casa. Sempre gostara de mecânica e, se não houvesse lugar para mim na aviação, pretendia ir trabalhar numa fábrica de automóveis. Fora ferido e tinha que levar tudo na calma durante algum tempo. Depois eles quiseram que eu arranjasse emprego. Impossível aceitar o tipo de trabalho que me ofereciam. Parecia-me inútil. Eu tivera muito tempo para refletir; perguntava frequentemente a mim mesmo qual seria a finalidade da vida. Pensando bem, era por acaso que eu estava vivo; queria fazer alguma coisa da minha em Deus; agora ele começou a preocupar-me. Não podia compreender a razão da existência do mal no mundo. Sabia que eu era muito ignorante; queria aprender, mas não tinha a quem recorrer, de modo que comecei a ler ao acaso.
Quando contei tudo isto ao padre Ensheim, ele me perguntou: “Está então lendo há quatro anos? Aonde chegou?”.
“A parte alguma”, respondi.
– Ele me fitou com ar de tão radiante benevolência que fiquei desconcertado. Que fizera eu para provocar tão intensa maneira de sentir? Ele tamborilou de mansinho na mesa, como se refletisse sobre alguma coisa. Depois disse:
“Nossa sábia Igreja ensina que, se você agir como se tivesse fé, a fé lhe será concedida; se você rezar duvidando mas sinceramente, suas dúvidas se dissiparão; se você se submeter à beleza da liturgia, cujo poder sobre o espírito humano foi provado pela experiência de séculos, a paz descerá sobre sua alma. Logo regressarei ao mosteiro. Por que não vem passar umas semanas conosco? Poderá trabalhar nos campos, com os nossos irmãos conversos; poderá ler na nossa biblioteca. Não será experiência menos interessante do que trabalhar numa mina de carvão ou numa fazenda da Alemanha.”
“Por que me faz essa sugestão?”, perguntei-lhe.
“Há três meses que o estou observando”, respondeu o padre.
“Talvez eu o conheça melhor do que você se conhece a si próprio. A distância que o separa da fé não é maior que a espessura do papel de um cigarro.”
– Fiquei calado. Experimentei uma sensação esquisita, como se alguém tivesse dado um repuxão nas cordas do meu coração. Finalmente respondi que ia refletir. Ele não tocou mais no assunto. Durante o resto da estada do padre Ensheim em Bonn, nunca mais falamos de coisa que se relacionasse com religião, mas ao despedir-se ele me deu o endereço do mosteiro, dizendo que, se eu resolvesse ir visitá-los, bastava escrever-lhe, que se encarregaria de tudo. Ele me fez mais falta do que eu pensara. Acabou-se o ano; estávamos em pleno verão. Eu gostava de Bonn. Li Goethe, Schiller, Heine. Li Hölderlin e Rilke. Mesmo assim, não chegara a parte alguma. Refleti muito sobre o que me dissera o padre Ensheim e finalmente resolvi aceitar-lhe o convite.
Ele me esperava na estação. O mosteiro ficava na Alsácia. Bela região. O padre Ensheim apresentou-me ao abade e levou-me depois à cela que me fora designada. Tinha uma estreita cama de ferro, um crucifixo na parede e, como mobília, as coisas estritamente necessárias. Soou a sineta do jantar; dirigi-me para o refeitório. À porta estava o abade com dois monges, um dos quais segurava uma bacia e o outro uma toalha; o abade borrifou algumas gotas de água nas mãos dos hóspedes, como a lavá-las, e enxugou-as depois na toalha que um dos monges lhe entregou. Havia mais três hóspedes, dois padres que tinham passado por ali e parado para jantar, e um francês velho e rabugento que estava fazendo retiro.
O abade e os dois priores sentaram-se na ponta do refeitório, cada qual à sua mesa; os padres, ao longo das duas paredes; ao passo que os noviços, os irmãos conversos e os hóspedes sentaram-se no meio. Dita a ação de graças, iniciamos a refeição. Um noviço foi para o seu lugar perto da porta e em voz monótona recitou algumas páginas de uma leitura edificante. Quando acabamos, foi novamente dita a ação de graças. O abade, o padre Ensheim e outro monge encarregado de nós, os hóspedes, fomos para uma salinha, onde tomamos café e conversamos sobre coisas banais. Depois voltei para a minha cela.
Fiquei três meses no mosteiro. Sentia-me muito feliz ali. Era exatamente a vida que me convinha. A biblioteca era boa e eu lia muito. Nenhum dos padres tentou influenciar-me, mas tinham prazer em conversar comigo. Fiquei profundamente impressionado com sua erudição, piedade e desprendimento das coisas deste mundo. Não pense que levavam vida ociosa. Estavam ocupados o tempo todo. Eles mesmos lavraram a terra, aceitando, satisfeitos, o meu auxílio. Apreciei a magnificência dos serviços religiosos, mas o que mais me encantou foram as Matinas. Às quatro da manhã. Emocionantíssimo ficar sentado na igreja quando ainda era noite, enquanto os monges, misteriosos nos seus hábitos e de capuz na cabeça, cantavam com vozes fortes e viris os singelos cantos da liturgia. Havia qualquer coisa de tranquilizador na rotina diária e, apesar de toda a energia desprendida, apesar da atividade de pensamento, a gente tinha uma permanente sensação de repouso.
Larry teve um sorriso meio melancólico.
– Como Rolla, nasci muito tarde num mundo velho demais. Devia ter nascido na Idade Média, quando a fé era aceita naturalmente; teria então visto claramente o meu caminho e entrado para o convento. Mas eu não podia crer. Tinha esse desejo, mas não podia acreditar num Deus que não era melhor do que um homem bom. Os padres me disseram que Deus criara o mundo para sua própria glória. Não me pareceu um objetivo muito apreciável. Teria Beethoven criado suas sinfonias para sua própria glória? Não acho possível. Na minha opinião criou-as porque a música em sua alma exigia expressão e, depois, só o que tentara fora torná-las perfeitas, na medida do possível.
Eu ficava a ouvir os monges quando recitavam o padre-nosso. Como podiam eles, sem apreensão, continuar a pedir ao Pai Celestial que lhes desse o pão de cada dia? Por acaso as crianças pedem ao seu pai terrestre que as alimente? Esperam isto dele; não sentem, nem precisam sentir gratidão; e não há quem não censure o homem que põe filhos no mundo quando não pode ou não quer sustentá-los. A mim me parecia que, se um criador onipotente não podia prover às necessidades materiais e espirituais das criaturas, teria então sido preferível não criá-las.
– Caro Larry, acho que foi bem melhor você não ter nascido na Idade Média – disse eu. – Provavelmente teria sido queimado.
Ele sorriu e continuou:
– Você teve bastante sucesso como escritor. Mas gostaria de ser elogiado na sua cara?
– Isto apenas me constrangeria.
– Foi o que imaginei. Não achei crível que Deus desejasse tal coisa. Na aviação não prezávamos grandemente o sujeito que conseguia um emprego macio pelo fato de adular seus superiores. Era-me difícil acreditar que Deus tivesse em grande conta o homem que tentasse conseguir a salvação por meio de tão vil lisonja. Na minha opinião, a mais agradável forma de adoração seria cada um agir da melhor maneira possível, de acordo com o seu código de honra.
Mas não era isso o que mais me incomodava. Eu não podia concordar com aquela preocupação do pecado que, ao que me parecia, estava sempre presente no pensamento dos padres. Conheci muitos sujeitos na aviação. Claro que se embriagavam quando se apresentava a oportunidade, e estavam com mulheres sempre que podiam, e usavam palavrões; tivemos um ou dois que não prestavam; um deles foi preso por tentar passar cheques sem fundo e condenado a seis meses de prisão.
Mas não era tanto por sua culpa; nunca tivera dinheiro e, quando se viu com mais do que sonhara ter, perdeu a cabeça. Eu conhecera homens maus, em Paris, e fiquei conhecendo outros depois que voltei para Chicago; mas geralmente a maldade tinha por causa a hereditariedade, de que eles não tinham culpa, ou o ambiente, que eles não haviam escolhido – não sei mesmo se a sociedade não seria mais responsável pelos crimes desses homens do que eles próprios. Se eu fosse Deus, não teria coragem de condenar ao fogo eterno nem mesmo o pior deles. O padre Ensheim tinha ideias largas; achava que o inferno era privação da presença de Deus. Mas se isto é castigo tão intolerável, a ponto de ser chamado inferno, pode alguém conceber que seja infligido por Deus? Afinal de contas foi ele quem criou os homens e, se os criou susceptíveis de pecar, foi porque assim o quis. Se eu ensinasse um cachorro a pular no pescoço de qualquer desconhecido que entrasse no meu quintal, não seria justo bater-lhe por fazer isso.
Se foi um Deus bom e todo-poderoso que criou o mundo, por que motivo criou o mal? Diziam os frades: Para que o homem, dominando os instintos maus, resistindo à tentação, aceitando a dor, a tristeza e a infelicidade, como provações enviadas por Deus como instrumentos de purificação, se tornasse finalmente merecedor da graça. Isto me parecia o mesmo que mandar um sujeito com um recado a determinado lugar e depois, para dificultar-lhe a tarefa, construir um labirinto por onde se veria forçado a passar, cavar um fosso que ele teria que atravessar a nado, e finalmente erguer um muro que ele seria obrigado a escalar. Não estava em mim acreditar num Deus sábio que não tinha senso prático. Não vi razão para não se acreditar num Deus que não tivesse criado o mundo, mas que procurasse corrigir, na medida do possível, aquele que encontrara; um ser infinitamente melhor, mais sábio e maior que o homem, que lutava contra o mal que não fora criado por ele, podendo-se esperar que no fim chegasse a vencê-lo. Mas, por outro lado, não vi também razão para se acreditar em tal Deus.
As respostas que os bons padres davam às perguntas que me deixavam perplexo não me satisfaziam o cérebro nem tampouco o coração. Meu lugar não era ao lado deles.
Quando fui despedir-me do padre Ensheim, ele não me perguntou se eu tirara da experiência o proveito que ele esperava que eu tirasse. Fitou-me com ar bondoso.
“Infelizmente creio que o decepcionei, padre”, disse eu. “Não”, respondeu ele. ‘’Você é um homem profundamente religioso que não acredita em Deus. Deus o procurará. Você voltará. Se para cá, ou para outro lugar, só Deus poderá dizer.”
4
– Instalei-me em Paris para o resto do inverno – continuou Larry. – Não entendia coisa alguma de ciência e achei que era tempo de adquirir pelo menos algumas noções. Li muito. Não sei se fiquei sabendo grande coisa, a não ser que a minha ignorância era incomensurável. Mas isso não era novidade para mim. Quando chegou a primavera fui para o campo; hospedei-me numa estalagenzinha à beira de um rio, perto de uma dessas lindas e antigas cidades francesas que em duzentos anos não parecem ter progredido.
Calculei que devia ser esse o verão que Larry passara com Suzanne Rouvier, mas não o interrompi.
– Depois fui para a Espanha. Queria ver as obras de Velásquez e El Greco. Imaginei que talvez a arte me mostrasse o caminho que a religião não pudera indicar-me. Vaguei durante algum tempo e voltei para Sevilha. Gostei da cidade e resolvi passar o inverno.
Também eu visitara Sevilha, quando tinha vinte e três anos, tendo gostado de lá. Gostei das ruas brancas e tortuosas, da catedral, da larga planície de Guadalquivir; mas gostei também das moças andaluzas com sua graça e alegria, brilhantes olhos negros, de cravo nos cabelos a acentuar-lhes o negror e, por contraste, parecendo ainda mais vivo; gostei do rico colorido da pele e da provocante sensualidade dos lábios. Aí, sim, ser moço era uma felicidade. Larry fora para lá apenas um pouco mais velho do que eu, quando lá estivera, e fiquei a conjeturar se seria possível que tivesse permanecido insensível à fascinação de tão encantadoras criaturas. Ele respondeu à pergunta que eu não formulara.
– Lá encontrei um pintor francês que eu conhecera em Paris, um sujeito chamado Auguste Cottet, que durante algum tempo vivera com Suzanne Rouvier. Viera a Sevilha para pintar e estava vivendo com uma moça que ali ficara conhecendo. Certa noite convidou-me para ir com eles a Eretania ouvir um cantor flamenco, e trouxeram uma amiga. Era a coisinha mais linda deste mundo. Tinha apenas dezoito anos. Perdera-se com um rapaz da sua aldeia e vira-se obrigada a sair de lá, porque ficara grávida. O rapaz estava fazendo o serviço militar. Quando a criança nascera ela a entregara aos cuidados de uma ama; arranjara depois emprego na fábrica de cigarros. Levei-a comigo para casa. Era muito alegre e muito meiga; dali a alguns dias perguntei se não queria vir morar comigo. Respondeu que sim, de modo que tomamos dois quartos numa casa de huéspedes: um dormitório e uma saleta. Disse-lhe que podia deixar o emprego, mas a pequena não quis; aliás isso me convinha, porque eu ficava assim com os dias livres. Tínhamos o direito de usar a cozinha, de modo que ela preparava o meu café da manhã antes de sair para o trabalho; ao meio-dia voltava e fazia o meu almoço; à noite jantávamos num restaurante e íamos depois a um cinema ou dançar em algum lugar. Parecia considerar-me maluco só pelo fato de eu ter uma banheira de borracha e insistir em tomar banho frio todas as manhãs. O bebê estava numa fazenda a alguns quilômetros de Sevilha e aos domingos costumávamos ir visitá-lo. Ela não fazia segredo do fato de estar morando comigo para ganhar bastante dinheiro para poder mobiliar o apartamento que iam tomar quando o seu namorado acabasse o serviço militar. Era um amor de criatura e não duvido que tenha dado uma boa mulherzinha para o seu Paco. Alegre, bem-humorada e afetuosa. Considerava aquilo que nós delicadamente chamamos relações sexuais como qualquer outra função natural do corpo. Sentia nisso prazer e ficava satisfeita de causar prazer. Era, naturalmente, um animalzinho; mas um animal encantador, atraente, domesticado.
E então, certa tarde ela me disse que recebera carta de Paco, do Marrocos espanhol onde ele fazia o serviço, dizendo-lhe que o terminara e que dali a dois dias chegaria a Madri. Na manhã seguinte ela empacotou suas coisas, enfiou o dinheiro na meia, e eu acompanhei-a à estação. Deu-me um beijo ruidoso quando a instalei no vagão, mas estava por demais excitada com a perspectiva de tornar a ver o amante para pensar em mim, e tenho certeza de que nem bem o trem saíra da estação já ela se esquecera da minha existência.
Continuei em Sevilha e no outono iniciei a viagem que me levou à Índia.
5
Estava ficando tarde. A frequência diminuíra no café e havia somente algumas mesas ocupadas. As pessoas que estavam ali sentadas por falta de melhor distração já haviam voltado para casa. E também aqueles que depois do teatro ou do cinema tinham vindo comer ou beber qualquer coisa. De vez em quando aparecia um retardatário. Vi um sujeito alto, indubitavelmente um inglês, entrar com um moço valentão. Tinha o rosto comprido, desanimado, e os cabelos ondulados e escassos do intelectual inglês, e provavelmente mantinha a ilusão, comum a tantos, de não ser reconhecido pelo fato de estar no estrangeiro. O valentão comeu gulosamente um prato de sanduíches, enquanto seu companheiro o observava com divertida benevolência. Que apetite! Vi um sujeito que eu conhecia de vista, por frequentarmos o mesmo barbeiro, em Nice. Atarracado, idoso e grisalho, com um túmido rosto vermelho e olhos empapuçados. Era um banqueiro americano que, depois da crise, preferira deixar sua cidade natal a sujeitar-se a uma investigação. Não sei se cometera algum crime; se tal acontecera, com certeza era muito pouco importante para que as autoridades se dessem ao trabalho de lhe pedir a extradição. Tinha o ar pomposo e a falsa cordialidade do político barato, mas a expressão dos seus olhos era amedrontada e infeliz. Nunca estava completamente bêbado, nem completamente sóbrio. Sempre em companhia de alguma rameira que evidentemente procurava arrancar dele o que podia; estava agora com duas mulheres pintadas, já maduras, que o tratavam com acintosa zombaria, ao passo que ele, mal entendendo o que elas diziam, ria tolamente. A vida alegre!... Fiquei a conjeturar se não teria sido preferível ele ter ficado na sua terra e aceito o castigo. Chegaria o dia em que as mulheres o teriam depenado por completo, e nada mais lhe restaria a não ser o rio, ou uma dose excessiva de veronal.
Entre as duas e três horas houve um aumento na frequência; com certeza os cabarés estavam-se fechando. Surgiu um grupo de americanos, barulhentos e embriagados, mas não se demoraram. Não muito longe de nós, duas mulheres gordas e taciturnas, metidas em roupas de corte masculino, bebiam uísque com soda, em lúgubre silêncio. Apareceu um grupo em trajes a rigor, pessoas que os franceses chamam de gens du monde; evidentemente tinham dado uma volta pelos cabarés e queriam agora terminar a noitada com uma ceia. Entraram e saíram. Minha curiosidade se aguçara com a presença de um homem pequeno, discretamente vestido, ali sentado havia mais de uma hora, a ler o jornal com um copo de cerveja à frente. Tinha uma barba preta, bem aparada, e usava pincenê. Finalmente chegou uma mulher e sentou-se à sua mesa. Ele cumprimentou-a com a cabeça, sem cordialidade; provavelmente estava aborrecido porque ela o fizera esperar. Era moça, malvestida, mas exageradamente pintada e parecia muito fatigada. Dali a segundos vi-a abrir a bolsa e entregar ao homem qualquer coisa. Dinheiro. O homem olhou e seu rosto tornou-se taciturno. Dirigiu-lhe palavras que não pude ouvir, mas que julguei insultuosas, pela atitude dela, que me pareceu estar a desculpar-se. Subitamente o homem inclinou-se e deu-lhe um ressonante tapa na cara. A moça soltou um grito e começou a chorar. Atraído pelo barulho, o gerente veio saber do que se tratava. Tive a impressão de que lhes dizia que fossem embora, se não soubessem comportar-se. A moça virou-se para ele e em voz alta, a ponto de se poder ouvir cada palavra, em linguagem obscena lhe disse que não se metesse no que não era da sua conta.
– Se ele me esbofeteou foi porque mereci ser esbofeteada – gritou ela.
Mulheres!... Sempre pensei que, para viver à custa do dinheiro imoralmente ganho por uma mulher, fosse preciso um sujeito vistoso e forte, com sex-appeal, ágil com a faca ou com o revólver; extraordinário que aquele sujeitinho raquítico, que a julgar pela aparência poderia ser empregadinho de algum escritório de advocacia, tivesse conseguido lugar numa profissão onde era tão grande a concorrência!
6
O garçom que nos servira ia sair e para receber sua gorjeta veio apresentar-nos a conta. Pagamos e pedimos café.
– Então? – disse eu.
Senti que Larry estava disposto a falar, e eu estava disposto a ouvir.
– Não o estou chateando?
– Não.
– Pois bem, chegamos a Bombaim. O navio ia ficar ali três dias, para os turistas terem oportunidade de admirar as vistas e fazer excursões. Como tinha folga na tarde do terceiro dia, fui para terra. Andei durante algum tempo, observando a multidão. Que miscelânea! Chineses, maometanos, hindus, tamues negros como carvão; e aqueles enormes bois de bossa e longos chifres, que puxam as carroças! Fui depois a Elefanta, ver as grutas. Um hindu se juntara a nós em Alexandria, para vir até Bombaim, e os turistas sentiam certo desprezo por ele. Era um homem gordo e baixo, de rosto trigueiro e redondo; usava um terno grosso de casimira, de xadrez preto e verde, e colarinho eclesiástico. Certa noite eu estava no tombadilho, tomando ar, quando ele se aproximou e me dirigiu a palavra. Naquele momento eu não queria conversar com ninguém, queria ficar só; ele me fez várias perguntas e creio que respondi um tanto bruscamente. Em todo caso, contei-lhe que era um estudante que estava trabalhando para ganhar a minha passagem para a América.
“Você devia ficar na Índia”, disse ele. “O Oriente pode ensinar ao Ocidente mais do que o Ocidente julga.”
“Não diga!”, repliquei.
“Em todo caso não deixe de ir ver as grutas em Elefanta”, continuou ele. “Garanto-lhe que não se arrependerá.”
Larry interrompeu-se para me fazer uma pergunta:
– Já esteve na Índia?
– Nunca.
– Pois bem, eu estava contemplando a colossal imagem, com suas três cabeças, a maior atração de Elefanta, e procurando imaginar que significação tinha, quando ouvi alguém dizer atrás de mim: ‘’Vejo que seguiu o meu conselho”. Virei-me e levei alguns segundos para reconhecer a pessoa que me dirigia a palavra. Era o homenzinho de pesado terno xadrez e colarinho eclesiástico; só que, agora, usava a longa túnica açafrão que mais tarde vim a saber que era a túnica dos swamis de Ramakrishna; e em vez do sujeitinho engraçado, gaguejando, que eu conhecera, ele era agora imponente e deslumbrante. Ambos examinamos o busto colossal.
“Brama, o Criador”, disse ele. “Vichnu, o Conservador, e Siva, o Destruidor. As três manifestações da Realidade Final.”
“Creio que não entendo muito bem”, disse eu.
“Não é de admirar”, respondeu ele com um sorrizinho nos lábios e um brilho nos olhos, como se zombasse levemente de mim. “O Deus que pode ser compreendido não é Deus. Quem poderá explicar, por palavras, o Infinito?”
– Juntou as palmas das mãos e, com uma apenas perceptível inclinação de cabeça, afastou-se. Continuei ali, a contemplar as três misteriosas cabeças. Talvez por estar em disposição receptiva, sentia-me estranhamente emocionado. Você sabe como às vezes a gente tenta relembrar um nome; está na ponta da língua, mas não vem; foi justamente o que senti na ocasião. Quando saí das cavernas, sentei-me por muito tempo nos degraus e fiquei a contemplar o mar. Do bramanismo eu só conhecia aqueles versos de Emerson; procurei relembrá-los. Fiquei exasperado por fracassar e, quando voltei para Bombaim, entrei numa livraria, a ver se encontrava o livro de poesias onde os lera. Estão no Oxford Book of English Verse. Lembra-se?
They reckon ill who leave me out;
When me they fly, I am he wings;
I am the doubter and the doubt,
And I the hymn the Brahmin sings.
Jantei numa tasca nativa e depois, como não precisava voltar para o navio antes das dez horas, fui para o Maidan e fiquei apreciando o mar. Nunca vira tantas estrelas no céu; depois do calor que fizera durante o dia, o frescor da noite era delicioso. Encontrei um jardim público e sentei-me num dos bancos. Muito escuro ali; silenciosos vultos brancos agitavam-se para lá e para cá. O maravilhoso dia de sol ardente, a multidão ruidosa, colorida, o cheiro acre e aromático do Oriente encantaram-me; e, como se fosse um complemento, mancha de cor que o pintor acrescentasse à sua obra para finalizá-la, aquelas três misteriosas cabeças de Brama, Vichnu e Siva, davam ao todo misteriosa significação. Meu coração pôs-se a bater descompassadamente, pois de repente eu adquirira a intensa convicção de que a Índia tinha, para dar-me, algo que eu precisava ter. Pareceu-me que me era oferecida uma oportunidade e que eu precisava agarrá-la ali mesmo, ou nunca mais se me depararia. Tomei rápida decisão. Não voltaria para bordo. Nada deixara ali, a não ser algumas coisas numa maleta. Voltei lentamente para o bairro nativo e procurei um hotel. Não tardei a encontrá-lo; tomei um quarto. Tinha as roupas do corpo; no bolso uns miúdos, meu passaporte e minha letra de câmbio; experimentei tal sensação de liberdade que cheguei a rir alto.
O navio partia às onze e por precaução fiquei no quarto até essa hora. Fui depois para o cais e vi-o desatracar. Dirigi-me então para a Missão Ramakrishna e procurei o swami que falara comigo em Elefanta. Não sabendo o seu nome, disse que desejava ver o swami que acabara de chegar de Alexandria. Contei-lhe, então, que desejava ficar na Índia e perguntei o que me aconselhava a ver. Tivemos uma longa conversa e afinal ele me contou que partia aquela noite para Benares, perguntando-me se queria ir com ele. Peguei no ar. Fomos de terceira classe. O vagão estava repleto de pessoas que comiam, bebiam, falavam. Calor insuportável. Não consegui pregar o olho e na manhã seguinte me sentia exausto, mas o swami estava fresco como um botão de rosa. Perguntei-lhe como conseguira conservar-se assim e ele respondeu:
“Meditando sobre aquele que não tem forma; encontrei descanso no Absoluto”. Fiquei sem saber o que pensar, mas podia ver com meus próprios olhos que ele estava lépido e animado, como se tivesse dormido a noite toda num leito confortável.
Quando chegamos a Benares, um rapaz da minha idade veio ao encontro do meu companheiro e este lhe pediu que me arranjasse um quarto. Chamava-se Mahendra e era professor da universidade. Sujeito afável, bom, inteligente; pareceu simpatizar comigo tanto quanto eu com ele. Levou-me naquela noite a passear de barco pelo Ganges. Que emoção! Muito bonito, ver a cidade amontoada até quase a margem do rio; bonito e impressionante. Mas na manhã seguinte tinha coisa melhor para me mostrar. Veio buscar-me no meu hotel e levou-me de novo para o rio. Vi um espetáculo que nunca julgara possível; milhares e milhares de pessoas vindo tomar seu banho lustral e rezar. Vi um sujeito alto e emaciado, com uma massa de cabelos emaranhados e barba desalinhada, tendo apenas uma tanga a lhe cobrir a nudez, permanecer de pé com seus longos braços estendidos, de cabeça erguida, e em voz alta orar ao sol nascente. Não sei dizer-lhe que impressão isso me causou. Passei seis meses em Benares e voltei inúmeras vezes ao Ganges, de madrugada, para apreciar o estranho espetáculo. Nunca me cansei de admirá-lo. Aquela gente não acreditava tibiamente, com restrições ou dúvida inquietante, e sim com todas as fibras do seu ser.
Foram todos muito bons para mim. Quando perceberam que eu não viera para caçar tigres, comprar ou vender alguma coisa, tudo fizeram para ajudar-me. Ficaram satisfeitos de eu querer aprender hindustani e me arranjaram professores. Emprestaram-me livros. Jamais se cansaram de responder às minhas perguntas.
“Conhece alguma coisa de hinduísmo?”
– Muito pouco – respondi.
– Acho que lhe interessaria. Poderá haver coisa mais estupenda do que a concepção de um mundo que não tem princípio nem fim, mas que passa indefinidamente do desenvolvimento ao equilíbrio, do equilíbrio à decadência, da decadência à dissolução, da dissolução ao desenvolvimento, e assim por diante, por toda eternidade?
– E qual é, na opinião dos hindus, o objetivo dessa perpétua repetição?
– Parece-me que dizem ser esta a natureza do Absoluto. Compreenda-me, eles acham que a finalidade da criação é servir de palco para o castigo ou recompensa dos atos cometidos pelas almas em existências anteriores.
– Isto pressupõe crença na transmigração das almas.
– É uma crença compartilhada por dois terços da humanidade.
– O fato de muita gente acreditar numa coisa não é garantia de sua veracidade.
– Realmente: mas pelo menos torna-a digna de consideração. A cristandade assimilou tanto do neoplatonismo que poderia facilmente ter assimilado isto também; para ser exato, houve mesmo nos primeiros tempos do cristianismo uma seita que tinha essa crença, mas foi declarada herética. Não fosse por esse motivo, os cristãos acreditariam nisso tão piamente como acreditam na ressurreição de Cristo.
– Significa então que a alma passa de um corpo ao outro, numa sucessiva desigualdade de condições humanas, conforme o mérito ou demérito de trabalhos anteriores?
– Creio que sim.
– Mas, você vê, não sou somente espírito, mas também corpo; e quem pode determinar até que ponto eu, o meu eu individual, estou subordinado ao acidente do meu físico? Teria Byron sido Byron sem o seu pé torto, ou Dostoievski sido Dostoievski sem a sua epilepsia?
– Os hindus não chamariam isto de acidente. Responderiam que foram seus atos, em vidas anteriores, que fizeram com que sua alma habitasse um corpo imperfeito. – Larry tamborilou distraidamente na mesa, imerso nos próprios pensamentos, o olhar perdido no espaço. Depois, com um leve sorriso nos lábios e expressão pensativa no olhar, continuou: – Alguma vez lhe ocorreu que a reencarnação explica e ao mesmo tempo justifica o mal existente no mundo? Se os males que sofremos são consequência de pecados cometidos em vidas passadas, podemos aceitá-los com resignação – e esperança de melhor vida futura, se nesta nos esforçamos por ser virtuosos. Mas não é assim tão difícil suportar os nossos próprios males – para isso basta um pouco de energia; o que é intolerável é o mal, às vezes aparentemente tão imerecido, que se abate sobre os outros. Se nos convencermos de que é a inevitável consequência do passado, poderemos sentir pena, fazer o possível para aliviar, e é esta a nossa obrigação, mas não haverá motivo para ficarmos indignados.
– Mas por que não criou Deus um mundo livre de sofrimentos e de tristezas, no princípio, quando não havia no indivíduo mérito nem demérito para determinarem seus atos?
– Os hindus diriam que não houve princípio. A alma individual, coexistente com o universo, sempre existiu e deve sua natureza a alguma existência precedente.
– E essa teoria da transmigração das almas tem algum resultado prático na vida daqueles que acreditam nela? Afinal de contas, é este o teste.
– Creio que tem. Vou lhe falar de um homem que conheci pessoalmente e em cuja vida teve resultado prático. Nos primeiros dois ou três anos que passei na Índia, vivi a maior parte do tempo em hotéis nativos, mas de vez em quando alguém me convidava para me hospedar em sua casa, e uma ou duas vezes vivi esplendorosamente como hóspede de um marajá. Por intermédio de um dos meus amigos de Benares, fui convidado para passar uns tempos num dos menores estados do norte. A capital era linda; “cidade cor-de-rosa quase tão velha quanto o mundo”. Eu fora recomendado ao ministro das Finanças. Educara-se ele na Europa e cursara Oxford. Ao conversar com ele a gente tinha a impressão de um homem progressista, inteligente e esclarecido; tinha fama de ser ministro muito eficiente e político hábil, astucioso. Vestia-se à moda europeia; sempre muito elegante. Sujeito bonitão, mais para gordo – tendência que têm todos os hindus quando chegam à maturidade –, com um bigodinho curto, benfeito. Frequentemente me convidava à sua casa. Havia ali um grande jardim; sentávamo-nos à sombra das árvores copadas e conversávamos. Era casado e tinha dois filhos crescidos. Qualquer um o tomaria pelo tipo comum, inglesado, de hindu, e fiquei atônito ao saber que dali a um ano, quando chegasse aos cinquenta anos, ia demitir-se do seu ótimo emprego, dividir seus bens entre a esposa e os filhos e sair pelo mundo afora, como mendigo errante. Mas o mais extraordinário era que seus amigos, assim considerando-a naturalíssima.
Certo dia eu lhe disse:
“Você, que é tão liberal, que conhece o mundo, que leu tanto sobre ciência, filosofia, arte, literatura, diga-me com toda a sinceridade: Acredita mesmo na reencarnação?”.
– Seu rosto transformou-se, adquirindo expressão de um visionário.
“Caro amigo, se não acreditasse, a vida para mim não teria significação.”
– E você acredita, Larry? – perguntei-lhe.
– Pergunta difícil de responder. Não creio que seja possível para nós, ocidentais, acreditar tão implicitamente como acreditam os orientais. Para eles está no sangue. No nosso caso pode ser apenas uma opinião. Não creio nem descreio.
Fez uma pausa, o rosto apoiado na mão, e olhou a mesa. Depois se recostou na cadeira.
– Gostaria de lhe contar um estranho fato que se deu comigo. Certa noite eu estava praticando meditação, no meu quartinho do ashrama, como meus amigos hindus me haviam ensinado. Acendera uma vela e concentrava minha atenção na chama; depois de algum tempo vi, através da flama, mas distintamente, uma longa fila de pessoas, uma atrás da outra. A da frente era uma senhora idosa, com touca de renda e cachos grisalhos que lhe caíam sobre as orelhas. Usava corpete justo e saia preta, rodada – tipo de roupa, creio, que se usava em 1870, e me olhava de frente, numa atitude graciosa, tímida, os braços caídos contra o corpo, de palmas viradas para mim. A expressão do seu rosto enrugado era amável, meiga, suave. Imediatamente atrás dela, mas de lado, de modo que eu lhe podia ver o perfil, estava um judeu magro, de nariz adunco e lábios grossos, metido numa capa amarela e com um solidéu amarelo sobre os grossos cabelos negros. Tinha um aspecto de homem erudito, e um ar de dura e ao mesmo tempo apaixonada austeridade. Atrás dele, mas de frente para mim, de modo que eu o podia ver tão distintamente como se não houvesse ninguém entre nós, estava um rapaz de alegre semblante vermelho, que ninguém podia deixar de reconhecer como sendo um inglês do século xvi. Estava bem firme nos pés, de pernas ligeiramente entreabertas e tinha uma expressão atrevida, temerária e dissoluta. Todo vestido de vermelho, ricamente, como se fossem trajes da corte, com sapatos de veludo, de bico largo, e gorro chato na cabeça. Atrás desses três, em interminável procissão, como fila à porta de um cinema, vi inúmeras pessoas, vagamente, sem poder julgar de sua aparência. Percebia apenas os vultos imprecisos e seus movimentos, como trigo ao sopro de uma brisa de verão. Dali a pouco, não sei se dentro de um minuto, ou cinco, ou dez, eles foram-se perdendo gradualmente na escuridão da noite e nada restou, a não ser a contínua luz da vela.
Larry sorriu de leve.
– Claro que existe a possibilidade de eu ter cochilado e sonhado. É possível que a minha concentração naquela débil chama tenha determinado uma espécie de estado hipnótico, e que os três vultos que eu vira tão claramente como estou agora vendo você fossem lembranças de quadros, retidas pelo meu subconsciente. Mas é possível que fossem eu, em vidas anteriores. É possível que, em passado não muito remoto, eu tenha sido uma velha senhora da Nova Inglaterra, e antes disso um judeu levantino e, tempos antes, logo depois de Sebastian Cabot ter saído de Bristol, algum elegante da corte de Henrique, príncipe de Gales.
– O que aconteceu com o seu amigo da cidade cor-de-rosa?
– Dois anos mais tarde, estava eu num lugar do sul, chamado Madura, quando certa noite no templo alguém me tocou no braço. Virei-me e vi um homem de barba e longos cabelos pretos, só de tanga, com o cajado e a tigela de esmolas dos homens santos. Mas só quando me dirigiu a palavra foi que o reconheci. Era o meu amigo. Fiquei tão admirado que não soube o que dizer. Perguntou-me que andava eu fazendo. Contei-lhe. Quis saber para onde eu ia, e respondi que ia para Travancore. Disse-me, então, que fosse ver Shri Ganesha. “Ele lhe dará aquilo que você procura”, declarou. Pedi-lhe que me descrevesse Shri Ganesha, mas ele sorriu, dizendo que eu descobriria tudo que fosse necessário quando viesse a conhecê-la. Tendo voltado a mim da minha surpresa, perguntei-lhe o que estava ele fazendo em Madura. Respondeu-me que estava numa peregrinação a pé pelos lugares santos da Índia. Perguntei-lhe como comia e dormia. Contou-me que, quando alguém lhe oferecia abrigo, dormia na varanda; caso contrário, embaixo de uma árvore, nas imediações de algum templo. Quanto à comida, se alguém lhe oferecia um prato, ele comia; se não, ficava sem comer. Fitei-o. “Você emagreceu”, comentei. Riu-se, dizendo que se sentia melhor assim. Despediu-se em seguida – e era cômico ouvir aquele sujeito de tanga dizer “Bom, até logo, meu velho”, e entrou no recinto do templo onde não me seria permitido acompanhá-la.
Fiquei durante algum tempo em Madura. Creio que é o único templo na Índia onde o homem branco pode movimentar-se livremente, contanto que não penetre no santo dos santos. À noite ficava repleto. Homens, mulheres, crianças. Os homens, nus até a cintura, usavam dhoties; tinham a testa, e às vezes também o peito e os braços cobertos com a cinza esbranquiçada de estrume de vaca queimado. A gente os via em atitudes reverentes neste ou naquele altar, deitando-se às vezes ao comprido no chão, de rosto para baixo, na posição ritual de prostração. Oravam e recitavam ladainhas. Cumprimentavam-se, brigavam, discutiam calorosamente uns com os outros. Havia uma balbúrdia ímpia, e no entanto Deus parecia próximo e real.
A gente vai passando por longas naves, com colunas esculpidas que suportam o teto, vendo-se ao pé de cada coluna, sentado, um mendigo religioso; cada qual tem à sua frente uma tigela de esmolas, ou um tapetinho onde de vez em quando os fiéis atiram uma moeda de cobre. Alguns estão vestidos, outros quase que completamente nus. Alguns olham vagamente para a pessoa que passa; outros leem, silenciosamente ou em voz alta, parecendo alheios à ondulante multidão. Procurei entre eles o meu amigo: nunca mais o vi. Creio que continuou a jornada, para alcançar o seu objetivo.
– E isso era?...
– Libertar-se do cativeiro da reencarnação. De acordo com os vedantistas, a identidade pessoal, que eles chamam de atman e nós de alma, é distinta do corpo e seus sentidos, distinta do cérebro e sua inteligência; não faz parte do Absoluto, pois o Absoluto, sendo infinito, não pode ter partes, é o próprio Absoluto. É incriada; sempre existiu e, quando finalmente despir os sete véus da ignorância, voltará à imensidade de onde veio. É como uma gota-d’água que subiu do mar e num aguaceiro caiu numa poça, resvalando depois para um regato, e dali para um rio, passando por desfiladeiros e vastas planícies, insinuando-se aqui e ali, malgrado o obstáculo de rochas e árvores caídas, até chegar aos ilimitados mares de onde proveio.
– Mas, depois de ter-se unido novamente ao oceano, esta pobre gotinha-d’água certamente perdeu a sua individualidade.
Larry sorriu.
– A gente quer provar açúcar, não quer transformar-se em açúcar. O que é a individualidade, senão a expressão do nosso egoísmo? Enquanto a alma não se libertar disso por completo, não poderá unificar-se com o Absoluto.
– Você fala com muita naturalidade do Absoluto, Larry, e é palavra imponente. O que significa para você?
– Realidade. A gente não pode dizer o que ele é; só pode dizer o que não é. É indefinível. Os hindus chamam-no de Brama. Não está em parte alguma e está em toda parte. Todas as coisas estão ligadas a ele e dependem dele. Não é pessoa, não é coisa, não é causa. Não tem atributos. Transcende perpetuidade e alteração; todo e parte, finito e infinito. É eterno porque seu acabamento e perfeição não têm relação com o tempo. É a verdade e a liberdade.
“Puxa”, pensei com os meus botões. E dirigindo-me a Larry:
– Mas como pode uma concepção puramente intelectual ser um conforto para a sofredora raça humana? Os homens sempre desejaram um Deus pessoal, a quem possam, na desgraça, pedir consolo e coragem.
– É possível que, num futuro mais longínquo, um maior discernimento os ensine a procurar consolo e coragem em suas próprias almas. Por mim acho que a necessidade de adoração não passa de uma reminiscência dos velhos tempos em que deuses cruéis tinham que ser propiciados. Creio que Deus está dentro de mim, ou não está em parte alguma. Sendo isso verdade, a quem devo então adorar? A mim mesmo? Os homens estão em planos diferentes de desenvolvimento espiritual e, portanto, a imaginação dos hindus ampliou as manifestações do Absoluto, que é conhecido por Brama, Vichnu, Siva e centenas de outros nomes. O Absoluto tanto está em Isvara, criador e senhor do mundo, como no humilde fetiche diante do qual o camponês, no seu campo batido de sol, coloca a oferenda de uma flor. Os inúmeros deuses da Índia não passam de meios para se chegar à compreensão de que a identidade pessoal está unificada com a identidade suprema.
Olhei pensativo para Larry.
– O que será que o atraiu para essa fé austera? –perguntei-lhe.
– Creio que poderei dizer-lhe. Sempre achei que havia algo de patético nos fundadores de religiões que impunham, como condição para a salvação, a crença na doutrina que pregavam. É como se tivessem necessidade da nossa fé para ter fé em si próprios. Fazem a gente lembrar-se daqueles antigos deuses pagãos que ficavam lânguidos e desfalecentes quando não os sustentavam as oferendas dos devotos. Advaita não nos pede que aceitemos coisa alguma em confiança; pede-nos apenas que tenhamos o desejo ardente de conhecer a Realidade; afirma que podemos sentir a Deus da mesma maneira que sentimos a dor ou a alegria. E há hoje na Índia centenas de homens que têm certeza de que isto aconteceu com eles. Pareceu-me maravilhosamente satisfatória a ideia de se poder alcançar a Realidade pelo conhecimento. Mais tarde, reconhecendo a fraqueza humana, os sábios da Índia admitiram a possibilidade de se conseguir a salvação pelo caminho do amor e do trabalho, mas jamais negaram que o caminho mais nobre, se bem que o mais árduo, é o do conhecimento, pois o seu instrumento é a mais preciosa faculdade do homem: a razão.
7
Faço uma pausa para declarar que não estou absolutamente tentando descrever o sistema filosófico conhecido como Vedanta. Não tenho competência para isso e, mesmo que a tivesse, não seria este o lugar apropriado. Nossa conversa foi longa e Larry me disse muito mais do que achei possível registrar nesta obra que, afinal de contas, pretende passar por romance. É Larry quem me interessa. Eu não teria tocado em assunto tão complicado se não tivesse achado que, sem dar pelo menos uma ideia de suas especulações e dos singulares acontecimentos que talvez tenham sido por elas ocasionados, eu não poderia tornar plausível a linha de conduta que Larry adotou, e da qual o leitor logo ficará ciente. Irrita-me não poder descrever o tom agradável da sua voz, que tornara convincentes as frases menos importantes, ou dar uma ideia da sua constante mudança de expressão, que ia de grave para suavemente alegre, de pensativa para brincalhona, acompanhando-lhe os pensamentos como o murmurar do piano quando os violinos, em movimento majestoso, entoam os vários temas de um concerto. Embora falasse de assuntos sérios, exprimia-se com naturalidade, em tom de conversa, com certa timidez, mas sem constrangimento, como se estivesse a discutir o tempo ou as próximas colheitas. Se dei a entender que havia na sua atitude algo de didático, a culpa é inteiramente minha. Sua modéstia era tão evidente quanto a sua sinceridade.
Havia agora muito pouca gente no café. Fazia tempo que os turbulentos tinham desaparecido. As pobres criaturas que traficam com o amor tinham ido para suas sórdidas moradas. De vez em quando um homem de ar cansado entrava e encomendava um copo de cerveja e um sanduíche, ao passo que outro, que mal parecia acordado, vinha tomar um café. Operários de colarinho branco. Um trabalhara na turma da noite e voltava para casa, para dormir; o outro, arrancado ao leito pelo ruído estridente do despertador, ia enfrentar de má vontade um longo dia de trabalho. Larry não parecia ter noção da hora, nem do ambiente. No decorrer da minha existência tenho-me visto em estranhas situações. Mais de uma vez estive bem próximo da morte. Em inúmeras ocasiões respirei uma atmosfera de romance, tendo disto certeza no momento. Viajei a cavalo através da Ásia Central, pela estrada que Marco Polo tomou para chegar às fabulosas terras de Catay; tomei um copo de chá russo num correto salão de Petrogrado, enquanto um homenzinho de paletó preto e calças listradas me contava, na sua voz macia, como assassinara um grão-duque; sentado numa sala de visitas de Westminster, ouvi a serena perfeição de um trio de Haydn, ao piano, enquanto as bombas explodiam lá fora; mas não creio que me tenha encontrado em mais estranha situação do que naquele momento, sentado numa das cadeiras de estofamento vermelho do alegre restaurante, durante horas a fio, enquanto Larry falava de Deus e da eternidade, do Absoluto e das cansadas rodas de interminável reprodução.
8
Larry ficou em silêncio durante alguns minutos. Não desejando apressá-lo, esperei. Dali a pouco ele me atirou um sorrizinho amigo, como se novamente se tivesse apercebido da minha presença.
– Quando cheguei a Travancore, vi que não precisava ter pedido informações a respeito de Shri Ganesha. Não havia quem não o conhecesse. Vivera durante anos numa gruta das montanhas, mas finalmente o tinham convencido a mudar-se para a planície, onde uma pessoa caridosa lhe dera um pedaço de terra, construindo para ele uma casinha de adobe. Ficava longe da capital, Trivandrum; levei o dia inteiro, primeiro de trem, depois de carro de boi, para chegar ao ashrama. Encontrei um rapaz, na entrada, e perguntei-lhe se podia falar com o iogue. Eu levara uma cesta de frutas, a oferenda habitual. Dali a minutos o rapaz voltou e me conduziu para uma longa sala com janelas em toda a volta. Shri Ganesha estava sentado a um canto, num estrado coberto por uma pele de tigre, em atitude de meditação. “Eu o esperava”, disse-me ele. Admirei-me, mas provavelmente o meu amigo de Madura lhe falara sobre mim. Mas, quando mencionei o seu nome, Shri Ganesha sacudiu a cabeça. Ofereci minha cesta de frutas e ele disse ao rapaz que a levasse. Ficamos sós. Fitou-me sem nada dizer. Não sei quanto durou o silêncio. Meia hora, talvez. Eu já lhe descrevi o seu aspecto, assim que voltei da Índia, mas não lhe falei da serenidade que ele irradiava, bondade, paz, desprendimento. Eu estava fatigado e encalorado depois da viagem, mas pouco a pouco comecei a me sentir maravilhosamente descansado. Antes de ele dizer qualquer outra coisa, compreendi que era o homem que eu estava procurando.
– Ele falava inglês? – perguntei a Larry.
– Não. Mas, você sabe, tenho aptidão para línguas; além do mais, adquirira suficiente conhecimento de tamul para poder entender e me fazer entender no sul. Finalmente ele falou.
“Para que veio aqui?”, perguntou-me.
– Comecei a contar-lhe como viera parar na Índia, onde estava havia três anos; como, ouvindo falar da santidade e sabedoria deste e daquele homem santo, eu visitara um e outro, não encontrando quem me desse aquilo que eu buscava. Ele interrompeu-me.
“Tudo isto eu sei. Não precisa dizer-me. Para que veio aqui?” “Para que o senhor seja o meu guru”, respondi.
“Somente Brama é o guru”, disse ele.
– Continuou a fitar-me com estranha fixidez e de repente seu corpo tornou-se rígido, os olhos pareceram virar para dentro e vi que ele caíra em transe, naquilo que os hindus chamam samadhi e em que eles adquirem a dualidade de sujeito e o objeto desaparece e a pessoa se torna Saber Absoluto. Eu estava sentado no chão, de pernas cruzadas, diante dele, e meu coração começou a pulsar violentamente. Depois de não sei quanto tempo ele suspirou e percebi que voltara ao seu normal. Atirou-me um olhar meigo e afetuoso.
“Fique”, disse-me. “Eles lhe dirão onde você deve dormir.”
– Deram-me a choça onde Shri Ganesha morara quando viera para a planície. A sala onde ele agora passava os dias e as noites fora construída depois que os discípulos o rodearam e que muita gente, atraída por sua fama, começou a visitá-lo. Para não chamar atenção, adotei o confortável traje indiano e fiquei tão queimado que, a não ser que me observassem por qualquer motivo, eu poderia ter passado por um dos nativos. Eu lia muito. Meditava. Ouvia Shri Ganesha, quando ele estava disposto a expandir-se; não falava muito, mas estava sempre pronto a responder a qualquer pergunta, e era uma maravilha ouvi-lo. Suas palavras eram música para os ouvidos. Embora na mocidade tivesse praticado toda espécie de mortificações, não as impunha aos seus discípulos. Procurava livrá-los da escravidão da individualidade, paixão e sentimento, dizendo-lhes que a libertação poderia ser conseguida pela tranquilidade, repressão, renúncia, resignação, pela constância e um ardente desejo de liberdade. Vinham vê-lo da cidade vizinha, a cinco ou seis quilômetros de distância, onde havia um templo para onde uma vez por ano acorria muita gente, na ocasião do festival; vinham de Trivandrum e de outros lugares longínquos, para contar-lhe suas mágoas, pedir-lhe conselho, ouvir-lhe os ensinamentos; e não havia quem não partisse com ânimo mais forte e em paz consigo mesmo. Era muito simples o que ele ensinava. Dizia que somos maiores do que pensamos, e que a sabedoria é o caminho da liberdade. Dizia que para se salvar não é necessário a pessoa retirar-se do mundo, mas apenas renunciar à individualidade. Dizia que o trabalho feito desinteressadamente purifica o espírito, e que os deveres são oportunidades dadas ao homem para abafar a própria individualidade e identificar-se com a individualidade universal. Mas o que mais impressionava não era a doutrina, e sim o homem, sua benevolência, grandeza de alma, santidade. Sua presença era uma bênção. Sentia-me muito feliz em sua companhia. Compreendi que finalmente encontrara o que queria. As semanas, os meses passaram-se com incrível rapidez. Eu tinha intenção de ficar até ele morrer (e Shri Ganesha nos dissera que não pretendia habitar por muito tempo o seu corpo perecível) ou até me sentir iluminado – e por isso se entende aquele estado em que finalmente o homem quebra os grilhões da ignorância e sabe com indiscutível certeza que se uniu ao Absoluto.
– E depois?
– Depois, se o que eles dizem é verdade, não existe mais nada. Está terminado o curso da alma no mundo, e a ele não voltará.
– E Shri Ganesha morreu?
– Não que eu saiba.
Ao responder, Larry percebeu o que estava subentendido na minha pergunta e deu uma risadinha. Continuou depois de um momento de hesitação, mas de tal maneira que no princípio cheguei a supor que queria evitar que eu fizesse a segunda pergunta que ele sentira na ponta da minha língua – e a pergunta era, naturalmente, se ele tinha recebido iluminação.
– Eu não ficava todo tempo no ashrama. Tive a sorte de travar conhecimento com um guarda-florestal nativo, cuja residência permanente era nos arredores de uma aldeia na base da montanha. Era devoto de Shri Ganesha e quando podia deixar o trabalho vinha passar dois ou três dias conosco. Bom sujeito; conversávamos muito. Gostava de praticar comigo o seu inglês. Tempos depois ele me contou que o serviço de silvicultura tinha um bangalô no alto da montanha, e que se algum dia eu desejasse ir lá sozinho ele me daria a chave. De vez em quando eu me valia do convite. Levava dois dias para chegar lá. Primeiro eu tinha que tomar o ônibus até a aldeia do guarda; o resto do trajeto era feito a pé. Mas, depois que chegava lá, era uma maravilha – tal a grandeza e a solidão. Eu enfiava o que podia num saco e tomava um carregador para levar algumas provisões, lá ficando até elas se acabarem. Nada mais era que uma cabana de madeira com cozinha atrás; como mobiliário só havia uma cama de armar onde a gente atirava a manta de dormir, uma mesa e duas cadeiras. Fazia frio, naquelas alturas, e era agradável acender o fogo à noite. Era para mim uma sensação maravilhosa saber que não havia viva alma numa distância de trinta quilômetros. À noite, muitas vezes ouvia o rugido do tigre ou o barulho dos elefantes que iam abrindo caminho na floresta. Fazia longos passeios através da mata. Havia um lugar onde eu gostava de ficar sentado, porque de lá podia ver as montanhas estenderem-se à minha frente e, baixando o olhar, um lago onde de tardezinha os animais selvagens vinham beber – veados, javalis, bisões, elefantes e leopardos.
Dois anos depois de estar no ashrama, fui para o meu retiro da floresta, por uma razão de que você vai sorrir. Queria passar lá o meu aniversário. Cheguei na véspera. Ainda estava escuro quando acordei no dia seguinte, e tive vontade de ir ver o nascer do sol, lá daquele lugar que lhe acabo de descrever. Conhecia o caminho de olhos fechados. Sentei-me embaixo de uma árvore e esperei. Ainda era noite, mas as estrelas brilhavam palidamente no céu; o dia estava próximo. Experimentei uma estranha sensação de expectativa. Tão gradualmente, que mal a percebi, a luz começou a filtrar-se pela escuridão; de mansinho, como um vulto misterioso a insinuar-se por entre as árvores. Meu coração começou a bater como se pressentisse a aproximação do perigo. Nasceu o sol.
Larry fez uma pausa e um sorriso desajeitado brincou-lhe nos lábios.
– Não tenho talento descritivo, não sei que palavras usar para pintar um quadro, e não posso portanto fazer com que você veja a beleza do espetáculo ante meus olhos. Aquelas montanhas, com suas densas selvas; a neblina ainda emaranhada na copa das árvores; o lago profundo, lá embaixo, bem longe. O sol refletiu-se no lago, através de uma fenda nas montanhas, e este teve um brilho de aço polido. Fiquei maravilhado com a beleza do universo; nunca sentira tanto júbilo, nem tão grande êxtase. Experimentei estranha sensação, um formigueiro que me subiu dos pés à cabeça; pareceu-me que de repente eu me libertara da matéria, compartilhando, como espírito puro, de uma beleza com que jamais sonhara. Tinha a impressão de ser possuidor de uma sabedoria sobrenatural, de modo que tudo que me parecera confuso se aclarou, tudo que me deixara perplexo se explicou. Felicidade tão intensa que chegava a ser dolorosa; procurei libertar-me dela, pois sentia que, se durasse mais um momento, eu morreria; e no entanto era um êxtase tão grande que seria preferível morrer a ter que renunciar a ele. Como explicar tal sensação? Não há palavras para descrever a minha bem-aventurança. Quando voltei a mim, estava exausto e trêmulo. Adormeci.
Era dia ia alto quando acordei. Voltei para o bangalô, sentindo-me tão leve que tinha a impressão de que mal tocava o solo. Preparei uma refeição – Céus, se estava com fome! – e acendi o cachimbo.
Larry acendeu neste momento o seu cachimbo e continuou: – Não ousei acreditar que eu, Larry Darrell, de Marvin, Illinois, recebera a iluminação pela qual, apesar de uma vida austera e mortificada, outros ainda esperavam.
– Por que julga você que foi isso, e não um estado hipnótico, produzido pela sua disposição de espírito, aliada à solidão, ao mistério da madrugada e ao aço polido do seu lago?
– Devido à minha sensação de intensa realidade. Afinal de contas, era uma sensação igual a que os místicos têm tido em todo mundo, através dos séculos. Brâmanes na Índia, sufis na Pérsia, católicos na Espanha, protestantes na Nova Inglaterra; e, ao descreverem da melhor maneira possível aquilo que é indescritível, fizeram-no em termos semelhantes. Não se pode negar a existência do fenômeno; a dificuldade está em explicá-lo. Se por um momento me unifiquei com o Absoluto, ou se foi uma irrupção do subconsciente, ou uma afinidade com o espírito universal, latente em todos nós, é coisa que não sei dizer.
Larry fez uma pausa e me atirou um olhar indagador.
– Por pensar nisso, você consegue fazer o polegar tocar no mínimo? – perguntou-me.
– Claro – respondi rindo e provando-o com o gesto apropriado.
– Sabe que é uma coisa que somente o homem e os primatas conseguem fazer? É devido ao fato de ser o polegar oposto aos outros dedos que a mão é um instrumento tão admirável. Você não acha possível que o polegar, provavelmente em forma rudimentar, tenha se desenvolvido em alguns indivíduos entre os remotos antepassados do homem e do gorila, e que era uma característica que só se tornou comum a todos depois de inúmeras gerações? Não acha também possível que esses fenômenos de união com a Realidade, que tenha acontecido a pessoas tão diversas, indiquem o desenvolvimento de um sexto sentido que no futuro, num futuro muito distante, será comum a todos os homens, a ponto de permitir que eles tenham tão direta percepção do Absoluto como temos agora dos objetos materiais?
– E de que maneira acha você que isto os afetaria?
– Quanto a isso, não estou em condições de lhe dizer nada mais do que a primeira criatura que descobriu que podia tocar o mínimo com o polegar poderia ter dito das inumeráveis consequências de ato tão insignificante. Só o que posso garantir-lhe é que ainda perdura em mim a intensa sensação de paz, alegria e segurança, de que me senti possuído naquele momento de exaltação, e que o espetáculo da beleza do universo está tão vívido na minha lembrança como na ocasião em que meus olhos ficaram por ele ofuscados:
– Mas, Larry, certamente a sua concepção do Abso luto o obriga a acreditar que o mundo e sua beleza não passam de uma ilusão – criação de Maya.
– É um erro acreditar que os hindus consideram o mundo uma ilusão; não dizem isso; acham apenas que não é real no sentido em que o é o Absoluto. Maya é apenas uma invenção daqueles ardentes pensadores, para explicarem como o Infinito pode produzir o Finito. Samkara, o mais sábio de todos eles, declarou que era mistério insolúvel. Você vê, a dificuldade está em explicar por que haveria Brama – que é Ser, Bem-aventurança e Inteligência, que é imutável, que é eterno, que está perpetuamente em repouso, a quem nada falta e que não tem necessidade de coisa alguma, não conhecendo portanto nem alteração nem luta, que é perfeito –, por que haveria Brama de criar o mundo. Pois bem, se alguém faz esta pergunta, em geral lhe respondem que o Absoluto criou o mundo por esporte, sem objetivo de espécie alguma. Mas, ao pensar em inundações, fome, terremotos, furacões e todos os males a que está sujeita a humanidade, a gente se revolta com a ideia de que tanta coisa má tenha sido criada por divertimento. Shri Ganesha era bom demais para apoiar essa teoria; considerava o mundo como a expressão do Absoluto e o transbordamento de sua perfeição. Ensinava ele que Deus não pode deixar de criar, e que o mundo é a manifestação da sua natureza. Quando lhe perguntei por que motivo – uma vez que era a manifestação da natureza de um ser perfeito – o mundo era tão odioso, a ponto de fazer com que o melhor objetivo do homem fosse libertar-se de seus grilhões, Shri Ganesha me respondeu que as alegrias do mundo são transitórias e que somente o Infinito proporciona felicidade duradoura. Mas perpetuidade não faz com que o bom se torne melhor, nem faz o branco ficar mais branco. Mesmo que ao meio-dia a rosa perca a beleza que teve de madrugada, sua beleza naquele momento foi real. Nada no mundo é permanente, e somos tolos em desejar que uma coisa perdure, mas mais tolos ainda seríamos se não a apreciássemos enquanto a temos. Se mutabilidade é da essência da existência, nada mais natural do que fazer dela a premissa da nossa filosofia. Não podemos pisar duas vezes as mesmas águas de um rio, mas o rio corre continuamente e as outras águas que pisamos são também frescas e agradáveis.
Quando entraram na Índia pela primeira vez, os árias viram que o mundo que conhecemos não passa de uma semelhança do mundo que desconhecemos, mas souberam apreciar a sua beleza e encanto; somente séculos mais tarde, quando o esforço da conquista e o clima debilitante lhes sugaram a vitalidade, tornando-os vítimas das hordas invasoras, foi que viram apenas mal na vida, desejando ardentemente libertar-se do jugo da reencarnação. Por que motivo nós, ocidentais, e principalmente nós, americanos, havemos de temer a decadência e a morte, a fome e a sede, a velhice, a tristeza, a desilusão? É forte em nós o instinto de viver. Ali sentado na cabana de madeira, a fumar o meu cachimbo, mais do que em qualquer outra ocasião senti que vivia. Fervia em mim uma energia que queria ser despendida. Não era minha vocação abandonar o mundo e retirar-me ao claustro, e sim viver no mundo e amar as coisas do mundo, não por causa delas e sim por causa do Infinito que está nelas. Se naqueles momentos de êxtase eu realmente me unificara com o Absoluto, então, se fosse verdade o que eles diziam, nada poderia atingir-me e, depois de ter cumprido o karma da minha existência atual, eu não voltaria ao mundo. Tal pensamento consternou-me. Eu desejava viver, e tornar a viver. Estava disposto a aceitar fosse que vida fosse, com suas tristezas e dores; meu ardor, energia e curiosidade só poderiam satisfazer-se com uma vida após outra, e outra após outra.
Na manhã seguinte desci a montanha e no outro dia cheguei ao ashrama. Shri Ganesha admirou-se ao ver-me em trajes europeus. Eu os vestira no bangalã do guarda-florestal, antes de galgar a montanha, porque lá era fresco, e não pensara em trocá-los.
“Vim dizer-lhe adeus, mestre”, declarei. “Vou voltar para a minha gente.”
– Ele nada disse. Estava, como sempre, sentado de pernas cruzadas, na pele de tigre, sobre o estrado. Havia no ar um leve perfume de incenso, que se queimava no braseiro em frente dele. Estava só, como da primeira vez em que eu o vira. Fitou-me com expressão tão penetrante que me pareceu que podia ler o mais íntimo dos meus pensamentos. Vi que estava ciente do que acontecera.
“Está certo”, disse ele. “Você já esteve fora bastante tempo.”
– Ajoelhei-me e ele me deu a bênção. Quando me levantei, meus olhos estavam cheios de lágrimas. Homem nobre e santo.
Hei de sempre considerar um privilégio o fato de tê-lo conhecido. Despedi-me dos devotos. Alguns estavam lá havia anos; outros tinham chegado depois de mim. Deixei meus livros e outros objetos, achando que poderiam ser úteis a alguém e, com o meu saco de viagem às costas, vestindo as mesmas velhas calças e o paletó marrom com que chegara, com um topee amassado na cabeça, regressei à cidade. Uma semana mais tarde tomei o vapor em Bombaim e fui parar em Marselha.
Ficamos em silêncio, cada um de nós preocupado com os próprios pensamentos. Embora eu estivesse muito cansado, ainda havia uma coisa que queria saber. Fui, portanto, o primeiro a falar.
– Larry, meu velho, essa sua longa pesquisa começou com o problema do mal. Foi o problema do mal que o incitou. Até agora, nada do que você disse indica que tenha chegado nem mesmo perto de uma solução.
– Talvez não haja solução, ou talvez eu não seja bastante inteligente para encontrá-la. Ramakrishna considerava o mundo um esporte de Deus. “É como um jogo”, disse ele. “Nesse jogo há alegria e tristeza, virtude e vício, saber e ignorância, bem e mal... O jogo não poderá continuar se o pecado e a tristeza forem completamente banidos da criação.” Não concordo com tal teoria. A melhor sugestão que posso fazer é que, quando o Absoluto se manifestou no mundo, o mal era a natural correlação do bem. Sem o incalculável horror de uma convulsão na crosta terrestre, jamais teríamos tido a maravilhosa beleza do Himalaia. O artífice chinês que faz um vaso de porcelana finíssima pode dar-lhe um elegante formato, ornamentá-lo com belíssimos desenhos, colori-lo de lindos tons e dar-lhe lustre perfeito, mas, devido à própria natureza do vaso, não pode impedir que seja frágil. Se cair no chão, quebrar-se-á em inúmeros pedaços. Não acha você possível que, da mesma forma, os valores que prezamos neste mundo só possam existir combinados com o mal?
– É uma ideia engenhosa, Larry. Mas não creio que seja muito satisfatória.
– Nem eu – replicou sorrindo. – Mas quando a gente chega à conclusão de que uma coisa é inevitável, o melhor é conformar-se de cara alegre.
– Quais são, atualmente, os seus planos?
– Tenho que terminar um trabalho aqui e voltarei depois para a América.
– Para fazer o quê?
– Viver.
– Como?
Ele respondeu serenamente, mas com um brilho travesso no olhar, pois calculava perfeitamente a surpresa que sua resposta iria causar-me.
– Com calma, paciência, compaixão, abnegação e continência.
– Quanta coisa! – disse eu. – Mas por que continência? Você é moço, Larry; acha acertado abafar aquilo que, conjuntamente com a fome, é o mais forte instinto animal?
– Felizmente sou pessoa para quem o ato sexual é mais um prazer do que uma necessidade. Sei por experiência própria que nunca os sábios da Índia acertam tanto como quando afirmam que a castidade intensifica extraordinariamente o poder do espírito.
– Pensei que a sabedoria estivesse em estabelecer um equilíbrio entre as necessidades do corpo e as do espírito.
– Isto é justamente o que os hindus afirmam que nós, ocidentais, não fizemos. Acham que com nossas inúmeras invenções, fábricas, máquinas, e tudo o que elas produzem, procuramos a felicidade em coisas materiais, mas que a felicidade não está na matéria e sim nas coisas espirituais. E acham que o caminho que escolhemos conduz à destruição.
– E você acha que a América é lugar apropriado para pôr em prática as virtudes que acaba de mencionar?
– Não sei por que não. Vocês, europeus, nada conhecem da América. Pelo fato de amontoarmos grandes fortunas, acham que é só dinheiro que nos interessa. Pouco ligamos a ele; assim que o possuímos tratamos logo de gastá-lo, às vezes bem, às vezes mal, mas em todo caso o gastamos. Dinheiro nada significa para nós; é apenas o símbolo do sucesso. Somos os maiores idealistas do mundo; só que, no meu modo de pensar, pusemos o nosso ideal onde não devia estar; acho que o maior ideal que um homem possa ter é o seu próprio aperfeiçoamento.
– É um nobre ideal, Larry.
– Não acha que vale a pena tentar viver de acordo com ele?
– Mas por acaso acredita que você, um homem só, possa ter influência sobre um povo irrequieto, independente, intensamente individualista como é o povo americano? Seria mais fácil tentar deter com as mãos as águas do Mississippi.
– Não há mal em tentar. Foi um homem que inventou a roda; foi um homem que descobriu a lei da gravidade. Nada do que acontece deixa de ter consequência. Quando a gente atira uma pedra num tanque, o mundo não é exatamente o mesmo que era antes. É um erro pensar que aqueles homens santos da Índia levam vidas inúteis. São como luz a brilhar na escuridão. Representam um ideal que é um conforto para seus semelhantes; o vulgo pode não alcançar esse ideal, mas todos o respeitam e ele afeta a vida para sempre. A influência de um homem que se tornou puro e perfeito é tão grande, espalha-se de tal forma, que aqueles que buscam a verdade se sentem naturalmente atraídos para esse homem. É possível que a vida que pretendo levar afete a de outras pessoas; o resultado talvez não seja maior que a borbulha causada pela pedra atirada no tanque, mas uma borbulha produz outra, e esta uma terceira, e é possível que algumas pessoas vejam que o meu modo de viver proporciona felicidade e paz, e que por sua vez ensinem a outros o que aprenderam.
– Será que você imagina as dificuldades que terá que enfrentar, Larry? Faz muito tempo que, para abafar as opiniões que temiam, os filistinos abandonaram os instrumentos de tortura; descobriram muito mais perigosa arma de destruição – a zombaria.
– Sou um sujeito duro – sorriu Larry.
– Bom, só me resta dizer que é uma sorte você ter fortuna particular.
– Sim, tem me valido muito. Do contrário, eu não teria podido fazer o que fiz. Mas o meu aprendizado está findo. Daqui por diante ela será apenas um estorvo. Vou dispor dela.
– Seria uma leviandade. Independência financeira é a única coisa que pode tornar possível a vida que você pretende levar.
– Pelo contrário; independência financeira tiraria a essa vida toda a significação.
Não pude conter um gesto de impaciência.
– Isto talvez dê certo com o mendigo errante da Índia; pode dormir sob uma árvore, e é de boa vontade que, para adquirir mérito, os piedosos lhe enchem de comida a tigela de esmolas. Mas o clima da América está longe de ser favorável a noites ao ar livre e, embora eu não tenha a pretensão de conhecer bem a América, de uma coisa estou certo: seus compatriotas são unânimes em achar que quem quer comer tem que trabalhar. Meu pobre Larry, antes de você tomar impulso, já o teriam mandado como vagabundo para o asilo.
Ele riu.
– Sei disso. A gente tem de se adaptar ao ambiente e naturalmente pretendo trabalhar. Quando chegar à América, procurarei arranjar emprego em alguma garagem. Sou bom mecânico e não creio que isso seja difícil.
– Você não estaria despendendo energia que poderia ser mais utilmente aproveitada?
– Gosto do trabalho manual. Depois de temporadas em que me fartei de estudar, tenho sempre experimentado isto por algum tempo e achado que revigora o espírito. Lembro-me de que, ao ler uma biografia de Spinoza, achei tolice do autor considerar uma pena Spinoza ter que polir lentes para ganhar seu sustento. Garanto que isso auxiliava sua atividade intelectual; quando menos, distraía a sua atenção do árduo trabalho de pesquisa. Quando estou lavando um carro ou lidando com um carburador, tenho o espírito livre e, ao terminar, experimento a agradável sensação de ter feito alguma coisa. Claro que não quero ficar indefinidamente numa garagem. Faz muito tempo que saí emprego como chofer de caminhão; assim poderei, com o tempo, viajar de um lado ao outro do país.
– Talvez você se tenha esquecido da maior vantagem do dinheiro: economiza tempo. A vida é curta e há tanto para fazer que não podemos perder um só minuto. Pense no tempo desperdiçado para você ir a pé de um lugar a outro, em vez de ir de ônibus, ou indo de ônibus em vez de ir de táxi.
Larry sorriu.
– Tem razão; não tinha pensado nisso. Mas posso aparar a dificuldade tendo o meu próprio táxi.
– O que quer dizer com isso?
– Pretendo, mais tarde, fixar residência em Nova York, principalmente por causa das bibliotecas; não preciso de muito para viver, não faço questão de dormir aqui ou acolá e contento-me com uma refeição por dia; quando tiver visto da América tudo o que pretendo ver, provavelmente terei juntado bastante dinheiro para comprar um táxi e trabalhar como chofer.
– Você devia ser internado, Larry. Está louco varrido.
– Absolutamente. Sou muito sensato e muito prático. Como chofer de táxi não precisarei trabalhar mais que um certo número de horas, para ter cama e comida e me prevenir contra a depreciação do carro. Poderei dedicar o resto do tempo a outros trabalhos e, quando tiver pressa de ir a um ou outro lugar, sempre poderei ir no meu táxi.
– Mas, Larry, tanto quanto uma apólice do governo, um táxi é uma posse – disse eu para troçar com ele. – Como chofer de táxi você seria um capitalista.
Ele riu.
– Não; o meu táxi seria apenas um instrumento de trabalho, equivalente ao cajado ou à tigela de esmolas do mendigo errante.
Com essa nota de gracejo ficou encerrada a nossa conversa. Nos últimos momentos eu notara que ia chegando gente com mais frequência. Um homem em traje a rigor sentou-se não muito longe de nós e encomendou um pequeno almoço substancial. Tinha a expressão cansada, mas satisfeita, de quem relembra complacentemente uma noite entregue a passatempos amorosos. Alguns senhores idosos, madrugadores porque a velhice não carece de muito sono, tomavam o seu café au lait vagarosamente, lendo, através das grossas lentes dos óculos, o jornal da manhã. Moços, uns lépidos e bem-vestidos, outros metidos em surrados paletós, entravam apressados para devorar um pãozinho e engolir uma xícara de café, a caminho de uma loja ou de um escritório. Uma velha de rosto encarquilhado entrou com uma pilha de jornais e ofereceu-os de mesa em mesa, aparentemente sem resultado. Olhei pelas largas vitrinas da frente e vi que já era dia. Um ou dois minutos mais tarde alguém apagou as luzes elétricas do restaurante, com exceção da parte traseira. Olhei o meu relógio. Mais de sete horas!
– Que tal encomendarmos o nosso café da manhã? – sugeri a Larry.
Comemos croissants quentinhos e quebradiços, recém-saídos do forno, e tomamos café au lait. Eu estava cansado e sem energia e tinha certeza de que parecia um trapo, mas Larry estava mais animado do que nunca. Seus olhos brilhavam, não havia uma ruga no seu rosto, e ele não parecia ter mais de vinte e cinco anos. O café me reanimou.
– Permite que lhe dê um conselho, Larry? É coisa que raramente faço.
– É coisa que raramente aceito – replicou ele sorrindo.
– Promete refletir bastante antes de dispor dos poucos bens que possui? Quando os tiver perdido, estarão perdidos para sempre. Talvez chegue o dia em que você precise de dinheiro, ou para você ou para outras pessoas, e então se arrependerá de ter sido tão idiota.
Quando ele respondeu havia nos seus olhos um brilho de zombaria, mas sem malícia.
– Você dá mais importância ao dinheiro do que eu.
– Não duvido – respondi azedamente. – Você sempre o teve, e eu não. O dinheiro me deu aquilo que mais prezo no mundo: independência. Não imagina que prazer sinto em pensar que, se me desse na veneta, eu poderia mandar todo mundo às favas.
– Mas a questão é que não desejo mandar ninguém às favas – replicou Larry. – E, se o desejasse, não seria a falta de uma conta no banco que me impediria. O dinheiro para você significa liberdade; para mim significa escravidão.
– Você é um sujeito teimoso, Larry.
– Sei disso. Não é minha culpa. Em todo caso, terei bastante tempo para refletir, pois não vou para a América antes da primavera. O pintor Auguste Cottet, que é meu amigo, emprestou-me o seu bangalô, em Sanary, e pretendo lá passar o inverno.
Sanary é uma despretenciosa praia da Riviera, entre Bandol e Toulon, bastante frequentada por artistas e escritores que não apreciam a vistosa artificialidade de Saint-Tropez.
– Você gostará de lá, se não se importar de ficar num lugar triste como um cemitério.
– Terei bastante trabalho. Estive coligindo várias notas e vou escrever um livro.
– Sobre quê?
– Você verá quando for publicado – replicou ele sorrindo. – Se quiser mandar-me depois de terminado, creio que lhe poderei arranjar um editor.
– Não se incomode. Uns amigos meus, americanos, têm uma tipografiazinha em Paris e vão me imprimir o livro.
– Mas você não pode esperar que um livro publicado desta forma tenha saída, nem que os críticos se ocupem dele.
– Não faço questão de crítica e não espero que tenha saída. Vou mandar imprimir apenas o número suficiente para mandar aos meus amigos da Índia, e algumas pessoas aqui na França, a quem julgo que poderá interessar. Nada de muito importante. Vou escrevê-lo apenas para me livrar daquelas notas, e publicá-lo porque acho que a gente só pode julgar uma coisa depois de vê-la impressa.
– Acho que o seu ponto de vista está certo. Terminamos a refeição e pedi a nota ao garçom. Entreguei-a em seguida a Larry.
– Já que você vai atirar o seu dinheiro no lixo, pode perfeitamente pagar o meu café.
Ele riu e pagou. Eu estava com os membros duros de ficar sentado durante tanto tempo; doíam-me os lados quando saí do restaurante. Agradável respirar o ar puro daquela manhã de outono. Céu azul. A Avenue Clichy, sórdida à noite, tinha agora um ar garboso, lembrando a mulher pintada, abatida, que caminhasse com o passo vivo de uma moça – e a impressão nada tinha de desagradável. Fiz sinal a um táxi que passava.
– Quer que o deixe em algum lugar? – perguntei a Larry.
– Não. Vou descer até o Sena, para nadar numa daquelas casas de banho; irei depois até a Bibliothèque, pois tenho que colher uns dados.
Apertei-lhe a mão e observei-o quando atravessou a rua com seus passos largos, despreocupados. Quanto a voltei para o hotel. Quando entrei na minha saleta, vi que eram mais de oito horas.
“Bonita hora para um senhor idoso entrar em casa”, disse eu, em tom de censura, para a dama nua (sob a redoma) que desde o ano de 1813 estava deitada em cima do relógio, em posição que sempre considerei extremamente incômoda.
Ela continuou a contemplar, num espelho de bronze, o seu rosto de bronze, e só o que o relógio dizia era “tique, tique, tique”. Fui ao banheiro e abri a torneira de água quente. Depois de ter ficado no banho até a água amornar, enxuguei-me, tomei um comprimido para dormir e, levando para a cama Le Cimitière Marin de Valéry, que aconteceu estar no criado-mudo, li até pegar no sono.
Sete
Sete
4
Quando de novo passei por Paris, os Maturin já tinham partido e outras pessoas residiam no apartamento de Elliott. Sentia falta de Isabel. Ela agradava à vista e era pessoa com quem se tinha prazer em conversar. Pronta na resposta, e não levava nada a mal. Nunca mais a vi. Não sou amigo de escrever cartas nem Isabel era dada a isso. Quando não podia comunicar-se com uma pessoa por telefone ou telegrama, não se comunicava com ela. No Natal daquele ano recebi um cartão seu – uma bela casa com pórtico colonial, cercada por carvalhos, que tomei como sendo a casa da fazenda que eles tinham desejado vender quando precisavam do dinheiro, e que provavelmente agora tinham prazer de conservar. O carimbo indicava que viera de Dallas, de modo que deduzi que o negócio se concluíra satisfatoriamente e que estavam lá instalados.
Nunca estive em Dallas, mas não duvido que, a exemplo de outras cidades americanas que conheço, tenha o seu bairro residencial – a cômoda distância, de automóvel, do centro comercial e do country club – onde no meio de vastos jardins as famílias abastadas constroem seus lares, podendo-se apreciar, das janelas do living, a bela vista de um morro ou de um vale. Em tal bairro, e em tal casa, mobiliada à última moda, do porão ao sótão, pelo mais elegante decorador de Nova York, certamente vive Isabel. Desejo apenas que o seu Renoir, suas flores de Manet, sua paisagem de Monet e seu Gauguin não pareçam ali muito antiquados. A sala de jantar é provavelmente de tamanho adequado aos almoços que senhoras como ela dão frequentemente, e onde o vinho é bom e a comida excelente. Isabel aprendeu muito em Paris. Não se instalaria na casa, a não ser que de relance tivesse visto que o living serviria perfeitamente para as festas de debutantes que ela teria prazer em dar quando suas filhas ficassem mais velhas. Hoje Joan e Priscilla já devem estar em idade de casar. Tenho certeza de que receberam esmerada educação; frequentaram as melhores escolas, e Isabel fez questão de que não lhes faltassem as prendas que as tornariam desejáveis aos olhos dos moços casadoiros. Embora eu suponha que Gray deva estar mais vermelho, com maior papada, mais calvo e mais pesadão, não posso acreditar que Isabel tenha mudado. Ainda é mais bonita que as filhas. Os Maturin devem ser um dos orgulhos da comunidade e não duvido que gozem de merecida popularidade. Isabel é divertida, gentil, condescendente e fina; e Gray é, naturalmente, o tipo perfeito do Sujeito Igual.
1
Seis meses mais tarde, em abril, estava eu certa manhã escrevendo no meu escritório, no sótão da minha casa, em Cap Ferrat, quando uma criada veio me avisar que a polícia de St. Jean (a aldeia vizinha) estava embaixo e desejava ver-me. Fiquei aborrecido com a interrupção e sem poder atinar com o motivo da visita. Tinha a consciência tranquila e já assinara na sua lista de caridade. Recebera por isso um cartão, que eu guardava no carro para que, se me fizessem parar por excesso de velocidade ou me encontrassem estacionado em lugar proibido, eu pudesse disfarçadamente fazer com que o vissem, ao apresentar minha carta de chofer, escapando assim com uma indulgente recomendação de cautela. Achei mais provável que um de meus empregados tivesse sido vítima de uma carta anônima – um dos prazeres da vida na França! – por não ter os documentos em ordem; mas, estando eu em bons termos com os polícias do lugar, que nunca tinham saído de minha casa sem o reconforto de um copo de vinho, não previ grandes dificuldades. Mas os dois policiais, pois trabalhavam aos pares, tinham vindo por motivo bem diverso.
Depois de nos termos apertado a mão, indagando quem chamavam brigadier e que tinha um dos mais respeitáveis bigodes que jamais vi, tirou do bolso um caderno de notas, virando as páginas com o sujo polegar.
– O nome de Sophie Macdonald significa alguma coisa para o senhor? – indagou ele.
– Conheço uma pessoa com este nome – respondi cautelosamente.
– Acabamos de nos comunicar por telefone com a delegacia de Toulon, e o inspetor-chefe lhe pede para ali comparecer (vaus prie de vaus y rendre) sem demora.
– Por que motivo? – perguntei. – Conheci mrs. Macdonald muito ligeiramente.
Conclui que Sophie estava metida em alguma complicação, provavelmente relacionada com ópio, mas não vi razão para me envolver no caso.
– Isto não é comigo – replicou o polícia. – Está provado que o senhor conheceu esta mulher. Parece que fez cinco dias que ela desapareceu de casa e agora tiraram da baía um corpo que a polícia julga ser o dela. Querem que o senhor o identifique.
Um calafrio percorreu-me a espinha. Não fiquei, no entanto, excessivamente admirado. Nada mais natural que, com a vida que levava, num momento de desespero Sophie tivesse desejado a morte.
– Mas com toda a certeza poderão identificá-la por suas roupas e documentos.
– Santo Deus! – exclamei horrorizado. Refleti durante alguns segundos. Provavelmente a polícia poderia obrigar-me a ir e era preferível aceder de boa vontade. – Está certo, tomarei o primeiro trem que puder – acrescentei.
Examinei o horário dos trens e vi que havia um que me faria chegar a Toulon entre cinco e seis horas. O brigadier disse que avisaria o inspetor-chefe e pediu-me que da estação fosse diretamente para a delegacia. Não trabalhei mais naquela manhã. Enfiei algumas roupas numa maleta e depois do almoço fui para a estação.
2
Quando me apresentei na delegacia central, em Toulon, fizeram-me entrar imediatamente para o gabinete do inspetor-chefe. Estava sentado a uma mesa: sujeito pesado, moreno, de aparência taciturna. Corso, pensei. Feriu-me, talvez pela força do hábito, com um olhar suspeitoso, mas ao notar a fita da Legião de Honra que eu tivera a precaução de colocar na lapela, com um sorriso untuoso convidou-me a sentar, desculpando-se profusamente por ter sido obrigado a incomodar pessoa tão distinta. Adotando o mesmo tom, asseverei-lhe de que nada me causava maior prazer do que o fato de lhe poder ser útil. Chegamos então ao que importava e ele reassumiu a sua atitude brusca, insolente mesmo. Olhando os documentos à sua frente, disse:
– Negócio sórdido. Parece que esta tal Macdonald tinha péssima reputação. Era bêbada, viciada em drogas e ninfômana. Costumava dormir não somente com os marinheiros que chegavam ao porto mas com a ralé da cidade. Como se explica que uma pessoa como o senhor, de sua idade e respeitabilidade, conhecesse um tipo desses?
Tive vontade de dizer-lhe que não era da sua conta, mas graças à paciente leitura de centenas de romances policiais aprendi que vale a pena a gente estar de bem com a polícia.
– Conheci-a muito ligeiramente – respondi. – Foi-me apresentada em Chicago, quando era ainda mocinha, tendo depois casado com um rapaz de boa posição. Encontrei-a de novo em Paris, no ano passado, por intermédio de amigos comuns.
Estivera procurando adivinhar de que maneira chegara o inspetor a me associar com Sophie, mas nisto ele empurrou um livro para a frente.
– Este livro foi encontrado no quarto dela. Se tiver a bondade de examinar a dedicatória, verá que absolutamente não indica que suas relações com a morta fossem tão superficiais como o senhor quer dar a entender.
Vi que se tratava da tradução do meu romance que Sophie vira na vitrina de uma livraria, pedindo-me para autografá-la. Sob o meu nome eu escrevera: “Mignonne, allons voir si la rase”, por ter sido a primeira coisa a me ocorrer. Parecia realmente um tanto íntimo...
– Se o senhor está insinuando que fui seu amante, engana-se redondamente.
– Não seria da minha conta – replicou o inspetor. E depois, com um brilho nos olhos: – E, sem querer absolutamente ofendê-lo, devo acrescentar que, pelo que ouvi dela, não creio que o senhor fosse o seu tipo. Mas é evidente que não iria dizer mignonne a uma desconhecida.
– Esta frase, monsieur le commissaire, é a primeira de uma célebre poesia de Ronsard, cujas obras garanto que um homem da sua educação e cultura não desconhece. Escrevi-a por ter quase certeza de que ela já lera a poesia e se lembraria dos versos seguintes, que lhe dariam a entender que a vida que levava era, no mínimo, indiscreta.
– Claro que li Ronsard no colégio, mas com todo trabalho que tenho, confesso que os versos a que se refere me fogem à memória.
Recitei a primeira estrofe, certo de que ele nunca ouvira o nome do poeta até o momento em que eu o citara, e não receando, portanto, que se lembrasse da última, que está longe de poder ser considerada como um estímulo à virtude.
– Aparentemente ela era mulher de certa educação. Encontramos inúmeros romances policiais no seu quarto e dois ou três livros de poesia. Havia um de Baudelaire e outro de Rimbaud e um terceiro de um inglês chamado Elliott. É conhecido?
– Muito.
– Não tenho tempo para ler poesia. Além do mais, não leio em inglês. Se ele é bom poeta, é pena que não escreva em francês, para que as pessoas instruídas possam lê-lo.
A ideia de ver o meu inspetor-chefe lendo The Waste Land encheu-me de gozo. De repente ele empurrou um instantâneo para o meu lado e perguntou:
– Sabe por acaso quem é esta pessoa?
Reconheci Larry imediatamente. Estava em traje de banho e creio que a fotografia, bem recente, fora tirada em Dinard, naquele verão em que ele lá estivera ao mesmo tempo que Isabel e Gray. Meu primeiro impulso foi dizer que não sabia quem era, pois nada me seria mais desagradável do que envolver Larry naquele detestável incidente; mas refleti que, se a polícia lhe descobrisse a identidade, a minha negativa faria parecer que eu achava que havia alguma coisa a ocultar.
– É um cidadão americano chamado Laurence Darrell.
– Foi a única fotografia encontrada entre os objetos da mulher. Qual a ligação entre eles?
– Eram ambos da mesma cidade, perto de Chicago. Foram companheiros de infância.
– Mas esta fotografia foi tirada, relativamente há pouco tempo, numa praia no norte ou oeste da França, creio eu. Quem é este indivíduo?
– Um escritor – respondi ousadamente. O inspetor ergueu levemente as sobrancelhas e percebi que não tinha em grande conta a moralidade dos membros da minha profissão. – Com fortuna própria – acrescentei, para dar um ar mais respeitável.
– Onde está ele agora?
Tive novamente a tentação de dizer que não sabia, mas achei que isto só serviria para piorar a situação. A polícia francesa pode ter muitas falhas, mas seu sistema lhe permite encontrar sem demora seja lá quem for.
– Está morando em Sanary – respondi.
O inspetor ergueu o olhar, visivelmente interessado.
– Onde?
Eu me lembrara que Larry me dissera que Auguste Cottet lhe emprestara o bangalô, e no Natal, ao voltar, escrevi-lhe convidando-o para passar uns dias comigo; mas, aliás como eu previra, ele recusou. Dei ao inspetor o seu endereço.
– Telefonarei para Sanary, para que o tragam aqui. Talvez valha a pena interrogá-lo.
Ocorreu-me que o inspetor julgara ter encontrado um suspeito. Tive vontade de rir; estava convencido de que não seria difícil a Larry provar que nada tivera com o caso. Estava aflito por saber mais alguma coisa do fim trágico de Sophie, mas o inspetor apenas me contou, um pouco mais detalhadamente, aquilo que eu já sabia. Dois pescadores tinham trazido o corpo. O policial da minha aldeia exagerara romanticamente ao afirmar que ela estava completamente nua. O assassino lhe deixara a cinta e a brassière. Se Sophie estivera vestida da mesma maneira em que eu a vira da última vez, bastara ao assassino tirar-lhe a calça comprida e o suéter. Não havendo coisa alguma que a identificasse, a polícia pusera uma notícia no jornal. Isto provocara o comparecimento, na delegacia, de uma mulher que tinha, numa ruela escusa, uma espécie de pensão, que os franceses chamam de maison de passe, onde os homens podem levar mulheres ou rapazinhos. Ela era paga pela polícia, que queria saber quem lhe frequentara a casa, e para quê. Sophie fora expulsa do hotel do cais onde morava quando eu a encontrara, pois o seu procedimento acabara por escandalizar até mesmo o tolerante proprietário. Propusera alugar um quarto e uma saleta na casa da mulher a que me referi. Era mais vantajoso alugá-los duas ou três vezes por noite, pelo espaço de algumas horas, mas Sophie oferecera preço tão alto que a mulher consentira em alugar por mês. A dona da casa compareceu na polícia para avisar que fazia cinco dias que sua inquilina desaparecera; não se preocupava com isso, pensando que ela fora a Marselha ou Villefranche, onde ultimamente tinham chegado navios da esquadra inglesa, acontecimento que sempre atraía as mulheres, velhas e moças, de todo litoral; mas depois lera a descrição da morta, no jornal, e achara que podia aplicar-se à sua inquilina. Tinham-na levado para identificar o cadáver e depois de ligeira hesitação ela afirmara tratar-se de Sophie Macdonald.
– Mas, se o cadáver foi identificado, para que então precisam de mim? – perguntei.
– Madame Bellet é uma mulher muito respeitável e de ótimo caráter, mas talvez tenha, para identificar o cadáver, razões que desconhecemos; em todo caso acho que a morta deva ser vista por pessoa com quem tenha tido contato mais íntimo, para que haja confirmação.
– Há probabilidade de encontrar o assassino? O inspetor encolheu os ombros maciços.
– Estamos, naturalmente, investigando. Interrogamos inúmeras pessoas, nos bares que ela costumava frequentar. É possível que tenha sido assassinada por algum marinheiro ciumento cujo navio já deixou o porto, ou por algum bandido que quisesse roubar o que ela tivesse consigo. Pelo que ouvi dizer, sempre carregava uma quantia que pareceria importante a um homem dessa classe. É possível que algumas pessoas desconfiem de quem é o culpado, mas nos círculos em que ela se movia é pouco provável que alguém fale, a não ser que veja nisso vantagem. Convivendo com o tipo de gente com quem convivia, não é de admirar que tenha tido tal fim.
A isso nada pude responder. O inspetor pediu-me que voltasse na manhã seguinte às nove horas, pois até lá já teria conversado com o “cavalheiro da fotografia”; depois um policial nos conduziria ao necrotério, para vermos o cadáver.
– E quanto ao enterro?
– Se, depois de identificarem o corpo, os senhores o reclamarem como amigos da morta, estando dispostos a fazer frente às despesas do enterro, a necessária autorização lhes será dada.
– Posso garantir-lhe que mr. Darrell e eu gostaríamos de ter essa autorização o mais depressa possível.
– Compreendo perfeitamente. É um fato muito triste, e é preferível que a pobre mulher descanse em paz sem demora. Isto me faz lembrar que tenho aqui o cartão de um agente funerário que arranjará tudo com presteza e a preços razoáveis. Vou escrever uma linha, para que ele lhes dê o máximo de atenção.
Tinha eu certeza de que o digno inspetor ia ganhar sobre isso uma comissão, mas agradeci-lhe calorosamente e, depois de ele me ter acompanhado até a porta com mostras de grande consideração, fui procurar o endereço indicado. O agente era vivo e eficiente. Escolhi um caixão, nem o mais barato nem o mais caro, e aceitei o seu oferecimento de me encomendar duas ou três coroas num florista seu conhecido – “para poupar a monsieur um dever penoso e em homenagem à morta”, disse ele – e combinei para o carro fúnebre estar no necrotério no dia seguinte, às duas horas. Não pude deixar de admirar a eficiência do homem quando me assegurou que não precisaria ter trabalho de procurar uma sepultura; ele faria tudo que fosse necessário; e “provavelmente madame era protestante”, de modo que, se eu assim o desejasse, providenciaria para que um pastor estivesse à espera no cemitério, para ler o ofício dos mortos. Mas, sendo eu um desconhecido, e estrangeiro, tinha ele certeza de que eu não me ofenderia se me pedisse um cheque adiantado. Disse uma cifra maior do que eu esperara, pensando naturalmente que eu iria pechinchar, mas percebi no seu rosto uma expressão de surpresa, talvez mesmo de decepção, quando puxei meu livro de cheques e enchi um, sem hesitar.
Tomei quarto num hotel e no dia seguinte voltei à delegacia. Fizeram-me esperar durante algum tempo; vieram depois dizer-me que podia entrar no gabinete do chefe. Vi Larry, sério e tristonho na cadeira onde eu me sentara na véspera. O inspetor cumprimentou-me alegremente, como se fôssemos velhos companheiros.
– Bom, mon cher monsieur, seu amigo respondeu a todas as perguntas que era de meu dever fazer-lhe. Não tenho motivo para duvidar de sua afirmação, que há dezoito meses não vê a pobre mulher. Prestou conta, de maneira que me satisfez, dos seus atos na semana passada, tendo também explicado a razão de ter sido a sua fotografia encontrada no quarto da vítima. Foi tirada em Dinard e aconteceu tê-la no bolso, num dia em que almoçaram juntos. De Sanary deram-me ótimas informações desse rapaz; além do mais, digo-o sem vaidade, considero-me bom juiz das criaturas; estou convencido de que seria incapaz de cometer um crime dessa natureza. Ousei dar-lhe os meus pêsames pelo fato de ter uma sua companheira de infância, educada com todas as vantagens de uma sadia vida de família, tido fim tão lamentável. Mas é assim a vida. E agora, prezados senhores, um dos meus homens os acompanhará ao necrotério; depois de terem identificado o cadáver, poderão dispor do seu tempo à vontade. Desejo-lhes um bom almoço. Tenho aqui um cartão do melhor restaurante de Toulon; vou apenas escrever uma linha, para que o patron os trate com a máxima consideração. Uma garrafa de vinho lhe fará bem, depois de tão desagradável acontecimento.
O homem desmanchava-se agora em amabilidades. Fomos a pé até o necrotério, acompanhados de um polícia. O movimento ali era dos maiores. Apenas um corpo, numa das mesas. Aproximamo-nos e o encarregado lhe descobriu a cabeça. Espetáculo em nada agradável. A água do mar alisara os cabelos platinados agora colados ao crânio. Rosto terrivelmente intumescido, horrível de se ver; mas não havia dúvida de que era Sophie. O empregado abaixou o lençol para exibir aquilo que teríamos preferido não ter visto, o pavoroso corte no pescoço, indo de orelha a orelha.
Voltamos para a delegacia. O inspetor-chefe estava ocupado, mas dissemos ao seu auxiliar o que tínhamos que dizer; ele nos deixou na sala, voltando dali a pouco com os documentos necessários, que fomos levar ao agente funerário.
– Vamos agora tomar qualquer coisa – sugeri.
Larry não pronunciara uma palavra desde que tínhamos saído da delegacia para o necrotério, a não ser quando lá voltamos, para declarar que identificava o corpo como sendo o de Sophie Macdonald. Levei-o para o cais e sentei-me no café onde me sentara com ela. Soprava um forte mistral e a baía em geral tão lisa estava salpicada de espuma branca. Os barcos de pesca baloiçavam-se suavemente. O sol brilhava esplendorosamente e, como sempre acontece quando há mistral, todos os objetos pareciam mais nítidos, como se fossem vistos através de lentes admiravelmente focalizadas. Emprestava uma vitalidade latejante, enervante, a tudo que a gente via. Tomei conhaque com soda, mas Larry não tocou no que eu encomendara para ele. Continuou em tristonho silêncio, que eu não quis perturbar.
Mais tarde consultei o relógio.
– É melhor irmos comer qualquer coisa – disse eu. – Temos que estar no necrotério às duas horas.
– Estou com fome; não tomei nada de manhã. Achando, pela aparência do inspetor, que ele devia saber onde se comia bem, levei Larry ao restaurante por ele indicado.
Como Larry raramente provava carne, encomendei uma omelete e lagosta grelhada; pedi em seguida a lista dos vinhos, escolhendo, ainda a conselho do inspetor, um vinho velho de boa qualidade.
Quando veio a garrafa, enchi o copo de Larry.
– Com os diabos, beba um pouco – disse eu. – Talvez lhe dê um pouco mais de assunto.
Ele me atendeu obedientemente.
– Shri Ganesha costumava dizer que o silêncio também é conversa – murmurou.
– Isto faz lembrar uma alegre reunião social dos mui intelectuais lentes da Universidade de Cambridge.
– Infelizmente acho que você terá que aguentar sozinho as despesas do enterro – disse Larry. – Não tenho dinheiro.
– Estou de pleno acordo – respondi. Nisso percebi o verdadeiro significado de suas palavras. – Não me diga que você fez mesmo o que disse que ia fazer?
Ele não respondeu imediatamente. Notei o brilho caçoísta do seu olhar.
– Você não dispôs de sua fortuna? – perguntei.
– Até o último níquel, com exceção do necessário para me aguentar até o meu vapor chegar.
– Que vapor?
– O dono do bangalô pegado ao meu, em Sanary, é agente, em Marselha, de uma linha de vapores de carga, que vão do Oriente Próximo para Nova York. Mandaram-lhe um cabograma, de Alexandria, dizendo que tinham sido obrigados a deixar lá dois marinheiros doentes, que vinham para Marselha, e pediram-lhe que arranjasse dois substitutos. Ele é meu camarada e me prometeu que eu seria um deles. Vou dar-lhe o meu velho Citroën, como presente de despedida. Ao chegar a bordo não terei nada mais que as roupas do corpo e algumas coisas que vou levar numa maleta.
– Bom, o dinheiro é seu. Você é maior e livre.
– Livre exprime bem. Nunca me senti mais feliz nem mais independente em toda a vida. Ao chegar a Nova York terei o meu ordenado, viverei com isso até arranjar emprego.
– E o seu livro?
– Oh! está pronto e impresso. Fiz uma lista das pessoas a quem quero que sejam enviados exemplares, e você deve receber um deles dentro de um ou dois dias.
– Obrigado.
Não tínhamos muita coisa para dizer e terminamos a refeição em agradável silêncio. Pedi café. Larry acendeu o cachimbo e eu um cigarro. Fitei-o, pensativo. Ele sentiu o meu olhar e me relanceou o seu, onde havia um fulgor brejeiro.
– Se está com vontade de dizer que sou um idiota, não faça cerimônia. Não me importo, absolutamente.
– Não, não tenho essa vontade. Estou apenas imaginando se sua vida não teria seguido um curso mais normal se você se tivesse casado e tido filhos como todo mundo.
Ele sorriu. Devo ter comentado pelo menos vinte vezes a beleza do seu sorriso, tão natural, confiante e doce, refletindo a candura, a sinceridade de sua ótima índole; mas faço-o novamente, pois agora, além de tudo isso, havia nele um quê de terno e melancólico.
– É tarde demais para isso. A única mulher com quem poderia ter me casado foi a coitada da Sophie.
Fitei-o, atônito.
– Você ainda diz isso, depois de tudo o que aconteceu?
– Sophie tinha uma bela alma – ardente, sonhadora e generosa. Seus ideais eram sinceros. Houve mesmo uma trágica nobreza na maneira com que procurou a destruição.
Fiquei em silêncio, sem saber o que dizer a tão estranhas afirmações.
– Por que motivo não se casou com ela?
– Era uma criança. Para ser franco, quando eu ia até a casa do seu avô para lermos poesia, juntos, sob o olmo, nunca me ocorreu que naquela menina magricela existisse a semente da beleza espiritual.
Estranhei que neste momento ele não mencionasse Isabel. Afinal de contas, tinham sido noivos. Mas talvez considerasse o episódio como tolice, sem consequência, de duas crianças que não tinham sabido o que queriam. Estava eu certo de que nunca lhe passara pela cabeça que Isabel se consumia de amor por ele.
Estava na hora. Fomos a pé até o largo onde Larry deixara o seu carro, agora bem surrado, e dirigimo-nos para o necrotério. O agente funerário cumpriu a sua palavra. A eficiência com que tudo foi feito, sob aquele céu brilhante, com o vento forte a dobrar os ciprestes no cemitério, acrescentou uma nota ainda mais trágica aos acontecimentos. Depois de tudo terminado, o homem nos apertou cordialmente a mão.
– Bom, cavalheiros, espero que estejam satisfeitos. Correu tudo muito bem.
– Muito bem – concordei.
– Monsieur não se esqueça de que estou sempre à sua disposição, se precisar dos meus serviços. Distância não é obstáculo.
Agradeci-lhe. Ao chegarmos ao portão do cemitério, Larry perguntou-me se eu precisava dele para mais alguma coisa.
– Não.
– Gostaria de voltar para Sanary o mais depressa possível.
– Deixe-me no meu hotel, sim?
Não trocamos uma palavra durante o trajeto. Quando chegamos, desci. Apertei-lhe a mão e ele seguiu o seu caminho. Paguei a conta, apanhei minha maleta e tomei um táxi até a estação. Também eu desejava partir.
3
Dias mais tarde segui para a Inglaterra. Minha intenção era ir diretamente, mas depois do que acontecera eu fazia questão de ver Isabel; resolvi, portanto, passar vinte e quatro horas em Paris. Telegrafei perguntando se poderia vê-la de tarde e ficar para o jantar. Ao chegar a meu hotel encontrei um bilhete seu, dizendo que ela e Gray iam jantar fora, mas que teria muito prazer em receber-me se eu não fosse antes das cinco e meia, pois tinha hora marcada na costureira.
Fazia frio e de vez em quando caía uma pancada forte, de modo que achei que Gray não teria ido jogar golfe em Mortefontaine. Isso não me convinha, pois desejava ver Isabel a sós; mas assim que cheguei ao apartamento ela me contou que Gray fora jogar bridge no clube.
– Disse-lhe que não viesse muito tarde, se quisesse estar com você. Só vamos jantar às nove, o que quer dizer que não precisamos chegar lá antes de nove e meia, de modo que temos bastante tempo para conversar. Tenho muita coisa para lhe contar.
Eles tinham sublocado o apartamento, e a venda dos objetos de Elliott devia realizar-se dali a quinze dias. Querendo estar presente, iam passar alguns dias no Ritz.
Embarcariam depois para a América. Isabel pretendia vender tudo, a não ser os quadros modernos que Elliott tivera em sua casa de Antibes. Embora não os apreciasse grandemente, achava, e com razão, que iriam dar valor ao seu futuro lar.
– Pena o coitado do tio Elliott não ter sido mais adiantado. Picasso, Matisse e Ronault, você sabe. Creio que seus quadros são bons, até certo ponto, mas receio que vão parecer um tanto fora de moda.
– Se eu fosse você, não me preocuparia com isso, Isabel. Outros pintores daqui a alguns anos, e Picasso e Matisse não parecerão mais modernos do que os seus impressionistas.
As negociações de Gray estavam quase concluídas; com o capital fornecido por Isabel ele ia entrar, como vice-presidente, num negócio que estava em pleno desenvolvimento – qualquer coisa relacionada com petróleo. Iam morar em Dallas.
– A primeira coisa que faremos será procurar uma casa. Quero um bom jardim, para Gray ter com que se distrair quando voltar do trabalho, e eu preciso de uma sala bem grande para poder receber.
– Não sei por que não leva a mobília de Elliott.
– Não creio que ficasse bem. Quero tudo moderno, talvez com qualquer coisa de mexicano aqui e ali, para dar uma nota diferente. Assim que chegar a Nova York, vou procurar saber quem é o decorador da moda.
Antoine, o criado, entrou com uma bandeja cheia de garrafas. Com o seu tato habitual, não ignorando que quase todos os homens estão convencidos de que sabem preparar um coquetel melhor do que qualquer mulher (e com razão), Isabel me pediu que fizesse a mistura. Verti o gim e o Noilly-Prat, e acrescentei uma gota de absinto que transforma o corriqueiro martíni seco em bebida pela qual os deuses do Olimpo indubitavelmente teriam abandonado o néctar do seu fabrico – bebida essa que sempre imaginei muito parecida com Coca-Cola. Ao entregar a Isabel o seu coquetel, notei um livro sobre a mesa.
– Olá, o livro de Larry – exclamei.
– Sim, chegou hoje de manhã. Mas tenho andado tão ocupada, tinha mil coisas para fazer antes do almoço, e ainda ia almoçar fora, e à tarde tinha que experimentar o meu vestido em Molyneux, que não sei quando poderei lê-lo.
Pensei com amargura que um escritor passa meses escrevendo um livro, pondo talvez nele seu coração e seu sangue, e depois ele fica jogado sobre uma mesa, para ser lido quando a pessoa não tiverem nada de melhor para fazer. Era um volume de trezentas páginas, bem impresso e bem encadernado.
– Com certeza você sabe que Larry passou em Sanary todo inverno? Viu-o, por acaso? – perguntou-me Isabel.
– Sim, estivemos juntos, um dia destes, em Toulon.
– Verdade? O que foram fazer lá?
– Enterrar Sophie.
– Ela morreu? – exclamou Isabel.
– Se não tivesse morrido, não haveria razão para a enterrarmos.
– Não acho graça. – Isabel fez uma pequena pausa. E depois:
– Não vou fingir que sinto a sua morte. Resultado de álcool e drogas, com certeza.
– Não; foi degolada e atirada no mar completamente nua.
Assim como o brigadier de St. Jean, não resisti à tentação de exagerar um pouco a sua nudez.
– Que horror! Coitadinha. Claro que com a vida que levava tinha que acabar mal.
– Foi o que o comissaire de police de Toulon disse.
– Sabem quem é o culpado?
– Não; mas eu sei. Acho que foi você quem a matou. Isabel lançou-me um olhar admirado.
– O que é que você está dizendo? – Depois, com a sombra de um sorriso: – Adivinhe novamente; tenho um ótimo álibi.
– Encontrei-me com ela, em Toulon, no verão passado. Tivemos uma longa conversa.
– Estava sóbria?
– Mais ou menos. Contou-me como fora que desaparecera tão estranhamente dias antes da data marcada para o casamento.
Notei que o rosto de Isabel enrijeceu. Continuei a falar, contando-lhe exatamente o que Sophie me contara. Ela ouvia com ar cauteloso.
– Tenho refletido muito sobre essa história e, quanto mais reflito, mais convencido fico de que há nela qualquer coisa de esquisito. Almocei aqui vinte vezes, e ao almoço nunca você serviu licores. Você almoçara sozinha naquele dia. Por que motivo estaria uma garrafa de zubrovka na bandeja do café?
– O tio Elliott acabara de mandar-me. Eu queria ver se era mesmo tão gostoso como me parecera no Ritz.
– Sim, agora me lembro do seu entusiasmo. Fiquei admirado; e mais ainda porque você nunca toma licor
– zela demais pela sua silhueta para arriscar-se a isso. Minha impressão foi que você estava tentando Sophie. Achei que era pura maldade.
– Agradecida.
– Em geral você é muito pontual. Por que teria saído de casa quando estava esperando Sophie para uma coisa tão importante para ela, e tão interessante para você, como a última prova de um vestido de casamento?
– Ela mesma lhe disse. Eu estava preocupada com os dentes de Joan. Nosso dentista tem enorme clientela e tive que aceitar a hora que ele me deu.
– Quando uma pessoa vai ao dentista, em geral já marca hora para a próxima vez.
– Realmente. Mas ele me telefonou de manhã, dizendo que precisava mudar minha hora e perguntando se eupoderia ir naquela tarde, às três; e eu, naturalmente, não quis perder a ocasião.
– A governanta não poderia ter levado Joan?
– Ela estava com medo, a coitadinha; eu sabia que ficaria mais contente se eu fosse.
– E você não ficou admirada quando voltou e viu a garrafa de zubrovka pela metade, tendo Sophie desaparecido?
– Julguei que se cansara de esperar e fora sozinha a Molyneux. Fiquei sem saber o que pensar, quando lá me disseram que ela não aparecera.
– E o zubrovka?
– Pois bem, notei que grande parte sumira; pensei que Antoine o tivesse bebido e quase lhe falei sobre isso, mas ele era pago pelo tio Elliott e era amigo de Joseph, de modo que achei melhor ignorar o fato. É um ótimo empregado e, se de vez em quando toma um traguinho, que mal há nisso?
– Como você é mentirosa, Isabel.
– Não acredita em mim?
– Absolutamente.
Isabel levantou-se e foi para perto da lareira. O fogo estava aceso, o que era agradável em dia tão sombrio. Ela apoiou o braço no beiral, numa atitude graciosa, que um dos seus maiores dons lhe permitia assumir sem que parecesse intencional. Como muitas senhoras francesas para o seu tipo, e naquela ocasião estava com um vestido de elegante simplicidade que realçava a elegância da sua silhueta. Tirou uma baforada do cigarro.
– Não há motivo para eu não ser franca com você – disse ela. – Foi uma pena eu ter que sair e naturalmente Antoine não devia ter deixado o licor e o café na sala. Quando voltei e vi a garrafa quase vazia, percebi naturalmente o que acontecera; e quando Sophie não apareceu mais, achei que tinha caído na farra. Não disse nada a Larry porque ele já estava preocupado e isso iria aborrecê-lo mais ainda.
– Tem certeza de que a garrafa não ficou ali por expressa ordem sua?
– Tenho.
– Não acredito.
– Pois então não acredite! – Isabel atirou furiosamente o cigarro no fogo; seus olhos estavam negros de cólera.
– Pois bem, se quer saber a verdade, saiba-a e vá para o inferno! Fiz de propósito e tornaria a fazê-lo. Não se lembra então que eu disse que estava disposta a tudo para impedir que ela se casasse com Larry? Você não queria fazer nada, nem tampouco Gray. Apenas encolhiam os ombros e diziam que era um grande erro. Vocês não ligavam a mínima. Eu ligava.
– Se você a tivesse deixado em paz ela ainda estaria viva.
– E casada com Larry, que seria profundamente infeliz. Ele pensou que pudesse regenerá-la. Que idiotas são os homens! Eu sabia que cedo ou tarde ela cairia novamente. Isto saltava aos olhos. Você mesmo deve ter notado como estava nervosa no almoço do Ritz. Percebi que você a observava, quando ela tomou o café; estava tão trêmula que teve que segurar a xícara com as duas mãos. Viu como olhava o vinho, quando o garçom nos servia? Seguia a garrafa com aqueles seus pavorosos olhos aguados, como uma serpente a acompanhar os movimentos de uma franguinha nova; e eu teria jurado que ela venderia a alma por um trago.
Isabel estava agora de frente para mim; seus olhos chispavam de cólera, sua voz era dura, áspera. As palavras não lhe saíam com a rapidez desejada.
– A ideia me ocorreu quando o tio Elliott fez tamanho escarcéu sobre aquela maldita bebida polonesa. Achei-a péssima, mas fingi que era a coisa mais deliciosa deste mundo. Tinha certeza de que, se Sophie pilhasse uma oportunidade, não saberia resistir-lhe. Foi por isso que a levei ao desfile de modelos. Foi por isso que lhe ofereci o vestido de casamento. Naquele dia da última prova eu disse a Antoine que queria tomar zubrovka depois do almoço. Avisei-o que estava esperando uma senhora, recomendando-lhe que lhe pedisse que esperasse por mim e lhe oferecesse café e, caso ela tivesse vontade, um cálice de licor. Levei realmente Joan ao dentista, mas claro que não tínhamos hora marcada e ele não pôde atender-nos, de modo que fomos a um cinema. Eu estava resolvida, se Sophie não tivesse tocado na bebida, a me conformar e procurar ser sua amiga. Juro que é verdade. Mas, quando cheguei em casa e vi a garrafa, compenetrei-me de que agira acertadamente. Ela sumira e eu estava pronta a apostar fosse o que fosse que sumira de uma vez.
Isabel parou, ofegante.
– Foi mais ou menos o que imaginei – disse eu. – Vê, pois, que eu tinha razão; você é tão responsável pela sua morte como se tivesse empunhado a faca que lhe cortou o pescoço.
– Ela era má, má, má. Estou contente por saber que morreu. – Isabel atirou-se numa cadeira. – Dê-me um coquetel, e vá para o inferno.
Levantei-me e preparei outro coquetel.
– Você é um miserável – disse ela ao agarrar o copo. Depois permitiu que um sorriso lhe aflorasse aos lábios. Sorriso de criança que sabe que foi travessa, mas que acha que com o seu encanto pode desarmar qualquer um. – Você não contará a Larry, não é mesmo?
– É coisa que nunca me passaria pela cabeça.
– Jura? Os homens são tão pouco dignos de confiança!
– Prometo-lhe que não. Mas, mesmo que quisesse contar, não teria oportunidade, pois creio que nunca mais tornarei a vê-lo.
Ela endireitou-se na cadeira.
– O que está dizendo?
– Neste momento Larry está num cargueiro, como marujo ou como estivador, a caminho de Nova York.
– Não me diga! Estranha criatura! Esteve aqui há algumas semanas, para ver na Biblioteca Pública qualquer coisa que se relacionava com o seu livro, mas nada disse sobre a ida à América. Boa notícia; quer dizer que podemos vê-lo de vez em quando.
– Duvido. A América de Larry estará tão distante da sua como o deserto de Gobi.
Contei-lhe então o que havia ele feito e o que pretendia ainda fazer. Isabel ouviu-me boquiaberta. Na sua fisionomia estava estampada a consternação. De vez em quando me interrompia com uma exclamação: “Ele está louco. Ele está louco”. Quando terminei ela abaixou a cabeça e duas lágrimas correram-lhe pelas faces.
– Agora, sim, de fato o perdi.
Virou a cabeça e, encostando a face no espaldar da cadeira, chorou. Seu belo rosto estava contorcido por uma dor que ela não se dava ao trabalho de ocultar. Eu nada podia fazer. Não sei que vãs, que contrastantes esperanças ela acalentara, que as minhas notícias vinham agora esfacelar. Ocorreu-me vagamente que o fato de vê-lo de vez em quando, de saber que ele pertencia ao seu mundo, fora para Isabel um elo, embora frágil, que com o seu procedimento Larry finalmente quebrara, de modo que ela agora se sentia para sempre despojada. Que vão arrependimento a afligiria? Far-lhe-ia bem chorar. Apanhei o livro de Larry e examinei o índice. Meu exemplar não havia ainda chegado quando eu saíra da Riviera e só me seria dado vê-lo dali a muitos dias. Não era absolutamente o tipo de livro que eu esperara. Coleção de ensaios mais ou menos do mesmo tamanho dos de Lytton Strachey em Eminent Victorians, sobre pessoas famosas. A escolha de Larry deixou-me perplexo. Havia um de Sila, ditador romano que, tendo conseguido o poder absoluto, abdicou para levar vida retirada; um de Akbar, conquistador mongol, que obteve um império; um de Rubens, um de Goethe e um sobre Lord Chesterfield das Cartas. Claro que cada um desses ensaios o obrigara a enorme esforço de leitura e não me admirei de Larry ter levado tanto tempo para escrever o seu livro, mas não vi razão para ter achado que valia a pena dedicar-lhe tanto tempo, nem para estudar especialmente aqueles homens. Depois me ocorreu que à sua maneira cada um deles tinha tido imenso sucesso na vida e pareceu-me que fora isso que interessara Larry. Ele ficara curioso para ver qual fora, no fim, o resultado.
Virei uma página para ver como escrevia. Estilo caprichado, mas claro e fluente. Nada da pretensão e pedantismo que tantas vezes caracterizam a obra do amador. Via-se que frequentara os melhores autores com a mesma assiduidade com que Elliott frequentara a alta sociedade. Um suspiro de Isabel interrompeu-me. Ela endireitou-se na cadeira e com uma careta terminou o coquetel, agora morno.
– Se eu não parar de chorar, meus olhos vão ficar pavorosos, e hoje temos que jantar fora. – Tirou um espelho da bolsa e examinou ansiosamente o rosto. – Sim, meia hora de descanso com uma bolsa de gelo sobre os olhos é do que estou precisando. – Empoou o rosto e avivou os lábios. Depois me fitou pensativa. – Você vai ficar com pior opinião de mim por causa disto?
– Você se importaria?
– Por mais estranho que lhe pareça, sim, eu me importaria. Quero que você pense bem de mim.
Dei uma risada.
– Querida, sou uma criatura muito imoral – respondi.
– Quando gosto realmente de uma pessoa, embora deplore seus atos maus, nem por isso deixo de gostar dela. Você no fundo não é má, e é graciosa e sedutora. Não aprecio menos a sua beleza pelo fato de saber quanto ela deve à feliz combinação de um gosto perfeito e uma vontade de ferro. Você só carece de uma coisa para ser com pletamente encantadora.
Ela sorriu e esperou.
– Meiguice – terminei.
O sorriso gelou nos seus lábios e ela me atirou um olhar que nada tinha de suave; mas, antes que pudesse voltar a si e dar-me uma resposta, Gray entrou pesadamente na sala. Naqueles três anos vividos em Paris, Gray engordara consideravelmente, seu rosto tornara-se mais vermelho, os cabelos mais raros, mas ele estava muito bem de saúde e deveras animado. Mostrou sincero prazer ao ver-me. A conversa de Gray era composta de clichês. Por mais surrados que fossem, pronunciava-os com a evidente convicção de que era a primeira pessoa a pensar neles. Gray nunca ia para a cama, e sim para os braços de Morfeu, onde pretendia dormir o sono dos justos; se estava chovendo, chovia canivetes; e até o fim Paris foi para ele a Cidade-Luz. Mas era tão bondoso, desprendido, correto e digno de confiança, tão simples, que era impossível a gente não gostar dele. Eu sentia verdadeira afeição por Gray. Estava excitado com a próxima partida.
– Céus, vai ser bom recomeçar a trabalhar – disse ele.
– Já estou de novo sentindo o gostinho da luta.
– Está então tudo decidido?
– Ainda não assinei na linha de pontinhos, mas está no papo. O rapaz com quem vou entrar foi meu companheiro de quarto no colégio, e é um sujeito igual; tenho certeza de que não me faria uma ursada. Mas, assim que chegar a Nova York, vou de avião para o Texas, para examinar de perto o negócio; ficarei de olhos abertos, antes de espirrar os cobres de Isabel, para ter certeza de que ali não há dente de coelho.
– Saiba que Gray é um bom negociante – disse-me Isabel.
– Não nasci ontem – sorriu ele.
Começou a falar, um tanto longamente, sobre o negócio em que ia entrar; mas pouco entendo desses assuntos e o único fato concreto que percebi foi que ia ter oportunidade de ganhar muito dinheiro. Interessou-se tanto pelo que dizia, que dali a pouco se voltou para Isabel:
– Escute aqui, por que não damos o fora nessa droga de festa e não vamos a um jantar correto, nós três, no Tour d’Argent?
– Oh! meu bem, não podemos fazer uma coisa dessas. A festa é em nossa honra.
– Além do mais, agora já eu não poderia ir – interrompi. – Quando soube que vocês estavam comprometidos para esta noite, telefonei a Suzanne Rouvier e combinamos sair juntos.
– Quem é Suzanne Rouvier? – perguntou Isabel.
– Uma das garotas de Larry – respondi para troçar com ela.
– Sempre desconfiei que Larry tivesse uma loirinha escondida em algum canto – disse Gray com a risada gostosa dos gordos.
– Tolice – disse bruscamente Isabel. – Conheço toda a vida sexual de Larry. Não existe.
– Bom, vamos então tomar mais um drinque, antes de nos separarmos – sugeriu Gray.
Foi o que fizemos; depois me despedi. Acompanharam-me até o vestíbulo; enquanto eu vestia o sobretudo, Isabel enfiou o braço no do marido e, aconchegando-se a ele, fitou-o com expressão que imitava perfeitamente a meiguice que eu a acusara de não ter.
– Diga-me, Gray – com toda a franqueza –, acha que sou dura?
– Não, querida, pelo contrário. Por quê? Alguém andou dizendo isso?
– Não.
Isabel virou o rosto de forma a não ser vista por ele e, em mímica que Elliott teria certamente achado muito pouco elegante, mostrou-me a língua.
– Não é a mesma coisa – murmurei quando saí, fechando a porta atrás de mim.
5
Continuei a ver Suzanne Rouvier de tempos em tempos, até que uma inesperada mudança na sua condição de vida a obrigou a sair de Paris, e também ela desapareceu da minha vida. Certa tarde, mais ou menos dois anos depois dos acontecimentos que acabo de relatar, após ter passado uma hora agradável examinando livros nas galerias do Odéon, não tendo nada que fazer no momento, resolvi visitar Suzanne. Fazia seis meses que não a via. Ela abriu a porta, de palheta na mão e pincel entre os dentes, metida num avental manchado de tinta.
– Ah, c‘est vous, cher ami. Entrez, je vous en prie. Fiquei admirado com essa cerimoniosa maneira de me receber, pois geralmente nos tratávamos por tu e não por vous, mas entrei no aposento que servia tanto de sala como de estúdio. Vi uma tela no cavalete.
– Estou tão ocupada que nem sei para onde me virar; mas sente-se, que continuarei a trabalhar. Não posso perder um só momento. Você talvez não acredite, mas vou fazer, sozinha, uma exposição em Meyerheim e preciso aprontar trinta quadros.
– Em Meyerheim? Ótimo! Mas como foi que o conseguiu? Minha surpresa era justificada, pois Meyerheim não é um desses intermediários da Rue de Seine que têm uma lojinha sempre na iminência de fechar, por falta de dinheiro para o aluguel. Meyerheim tem uma bela galeria do lado endinheirado do Sena e sua reputação é internacional. O artista que conta com sua proteção está a caminho da fortuna.
– Monsieur Achille trouxe-o para ver os meus trabalhos e ele acha que tenho muito talento.
– À d’autres, ma vieille – repliquei, e creio que para isso a melhor tradução seria: “Vá contar isso ao bispo, menina”.
Ela me olhou de soslaio e riu baixinho.
– Vou casar-me.
– Com Meyerheim?
– Não seja idiota. – Suzanne largou da palheta e dos pincéis e disse: – Trabalhei o dia todo e mereço descansar um pouco. Vamos tomar um cálice de Porto que lhe contarei tudo como foi.
Uma das características menos agradáveis da vida na França é a gente correr o risco de ter que aceitar um avinagrado vinho do Porto nas horas mais impróprias. A gente tem que se resignar. Suzanne foi buscar uma garrafa e dois cálices, encheu-os e sentou-se com um suspiro de alívio.
– Estou de pé há horas e minhas varizes estão doendo. Pois bem, eis o que aconteceu. A esposa de monsieur Achille morreu no princípio deste ano. Era boa mulher e boa católica, mas não foi um casamento de amor, e sim de interesse; embora a estimasse e respeitasse, seria exagero dizer que a viuvez o deixou inconsolável. Seu filho está casado e vai indo bem na firma; agora a filha ficou noiva de um conde, belga, é verdade, mas autêntico, que tem um belo castelo nas vizinhanças de Namur. Monsieur Achille achou que sua pobre esposa não havia de querer que a felicidade de duas pessoas fosse adiada por sua causa, de modo que, apesar do luto, o casamento se realizará assim que terminarem os arranjos financeiros. Claro que monsieur Achille vai sentir-se muito só naquela casa de Lille, e precisará de uma mulher, não somente para zelar pelo seu conforto, como para dirigir a casa de acordo com a sua posição. Em resumo, pediu-me para tomar o lugar de sua pobre esposa, pois, como ele muito bem disse, “Casei-me da primeira vez para eliminar a competição entre duas firmas rivais e disso não me arrependo, mas não vejo razão para não me casar da segunda pelo meu prazer pessoal”.
– Parabéns – disse eu.
– Claro que vou sentir falta da minha liberdade; aproveitei-a bastante. Mas a gente tem que pensar no futuro. Cá entre nós, não me importo de lhe confessar que já passei dos quarenta. Monsieur Achille está numa idade perigosa; onde iria eu parar se de repente ele se lembrasse de correr atrás de uma mocinha de vinte anos? Além do mais, tenho que pensar na minha filha. Está com dezesseis anos e promete ser tão bonita como o pai. Dei-lhe uma boa educação, mas não adianta a gente querer tapar o sol com uma peneira; ela não tem talento para ser artista, nem temperamento para ser uma mundana como sua pobre mãe. Diga-me, então: qual o seu futuro? Um lugar de secretária ou um empreguinho no Correio. Generosamente, monsieur Achille concordou em que ela venha morar conosco e prometeu dar-lhe um belo dote, para que possa fazer um bom casamento. Creia-me, amigo, os outros podem dizer o que quiserem, mas o casamento continua sendo a melhor profissão para a mulher. Claro que, estando em jogo o futuro de minha filha, eu não podia deixar de aceitar a proposta, muito embora sacrificando certos prazeres que, à medida que os anos forem passando, terei mais dificuldade em obter. Sim, senhor, pois faço questão de lhe dizer que depois de casada pretendo ser de uma virtude a toda prova (d’une vertu farouche), pois a longa experiência me ensinou que a melhor garantia de felicidade, no casamento, é a fidelidade mútua.
– Sentimento muito nobre, minha bela – disse eu. – E monsieur Achille continuará fazendo suas visitas quinzenais a Paris?
– Oh la la, por quem me toma, queridinho? A primeira coisa que eu disse a monsieur Achille, quando pediu a minha mão, foi: “Escute aqui, meu bem, quando você vier a Paris, para as suas reuniões de diretoria, fica desde já assentado que eu também virei. Não vou deixá-lo solto aqui sozinho”. E ele respondeu: “Espero que você não pense que vou fazer loucuras na minha idade”. “Monsieur Achille”, repliquei, “você é um homem ainda em pleno vigor, e ninguém melhor do que eu conhece o seu temperamento apaixonado. Você tem um belo físico e um ar distinto; tem tudo para agradar a uma mulher. Em resumo, acho preferível que não se exponha à tentação.” Finalmente ele concordou em dar seu lugar na diretoria ao filho que virá a Paris no lugar do pai. Monsieur Achille fingiu que me achava desarrazoada, mas na realidade ficou muitíssimo lisonjeado. – Suzanne soltou um suspiro satisfeito. – A vida seria dura para nós, pobres mulheres, se não fosse a incrível vaidade dos homens.
– Tudo isto é muito bonito, mas qual a relação com a sua exposição em Meyerheim?
– Você está hoje um pouco obtuso, amigo. Não lhe estou dizendo, há anos, que monsieur Achille é um homem muito inteligente? Tem que pensar em sua posição, e o povo de Lille é exigente. Monsieur Achille quer que eu tome na sociedade o lugar que, como esposa de um homem importante, terei o direito de ocupar. Você sabe como são esses provincianos; gostam de meter o nariz nos negócios dos outros e a primeira coisa que vão perguntar será: Quem é Suzanne Rouvier? Pois bem, terão a sua resposta. É a distinta pintora que, em recente exposição na Galeria Meyerheim, obteve extraordinário e merecido sucesso. “Com a coragem que caracteriza nossas mulheres francesas, madame Suzanne Rouvier, viúva de um oficial do Exército colonial, com o seu talento durante anos sustentou-se a si e à sua encantadora filha prematuramente privada da proteção do pai, e é com prazer que anunciamos que breve o público terá ocasião de apreciar a delicadeza das suas pinceladas, e a firmeza da sua técnica, nas galerias do sempre perspicaz monsieur Meyerheim.”
– Que baboseira é essa? – perguntei, subitamente alerta.
– Isto, meu caro, é a antecipada propaganda que monsieur Achille está fazendo. Aparecerá em todos os jornais importantes da França. Ele foi admirável. Os termos de Meyerheim são onerosos, mas monsieur Achille aceitou-os como se fossem uma bagatela. Haverá champagne d’honneur no vernissage e o ministro da Educação, que deve favores a monsieur Achille, inaugurará a exposição com um eloquente discurso, no qual fará elogiosas referências às minhas virtudes como mulher e ao meu talento como artista, e terminará participando que o estado, cujo dever e privilégio é recompensar o mérito, comprou um de meus quadros para a coleção nacional. Toda Paris comparecerá; Meyerheim se encarregou pessoalmente dos críticos. Garantiu-me que as notícias serão não somente favoráveis, mas extensas. Os pobres coitados são tão mal remunerados que é uma caridade dar-lhes oportunidade de ganhar um pouco por fora.
– Você merece tudo isso, querida. Sempre foi boa pessoa.
– Et ta soeur – replicou ela, que é intraduzível. – Mas ainda não acabei. Monsieur Achille comprou em meu nome uma vila na costa de St. Rafael, de modo que tomarei meu lugar na sociedade de Lille não somente como conhecida artista, mas como pessoa de recursos. Daqui a dois ou três anos ele pretende aposentar-se; iremos então viver na Riviera como gente fina (comme des gens bien). Ele poderá remar no mar e pescar camarões, ao passo que eu me dedicarei à minha arte. Venha agora ver os meus quadros.
Havia anos que Suzanne estava pintando, tendo-se servido nas escolas de todos os seus amantes para chegar a um estilo próprio. Continuava não sabendo desenhar, mas adquirira boa noção de colorido. Mostrou-me paisagens que pintara durante as visitas feitas à mãe, na província de Anjou, trechos dos jardins de Versailles e da floresta de Fontainebleau, cenas de rua que lhe tinham chamado a atenção nos subúrbios de Paris. Sua pintura era vaporosa e impalpável, mas tinha uma graça leve e até mesmo uma certa despreocupada elegância. Houve um quadro que me agradou e, achando que ela ia ficar satisfeita, ofereci-me para comprá-la. Não me lembro se se chamava Clareira na Floresta ou Echarpe Branca e um exame posterior me deixou até hoje na incerteza. Perguntei o preço, que achei razoável, e disse que ficaria com o quadro.
– Você é um anjo! – exclamou Suzanne. – Minha primeira venda. Claro que só poderá retirá-lo depois da exposição, mas farei com que os jornais deem a notícia de que foi comprado por você. Afinal de contas, um pouco de publicidade não lhe fará mal. Estou satisfeita por você ter escolhido este; acho que é um dos melhores. – Apanhou um espelho e examinou o reflexo do quadro. – Tem encanto – continuou, apertando os olhos. – Isso ninguém pode negar. E esses verdes... que riqueza e que delicadeza! E aquela nota branca no meio, um verdadeiro achado; finaliza a obra, dá-lhe distinção. Ali há talento, disso não há dúvida; verdadeiro talento.
Vi que Suzanne estava bem adiantada no caminho que trilham os pintores profissionais.
– E agora, queridinho, já tagarelamos bastante; tenho que continuar a trabalhar.
– E eu tenho que ir caminhando.
– A propósito, o coitado do Larry ainda está lá no meio dos peles-vermelhas?
Sim, era dessa maneira desrespeitosa que habitualmente ela se referia aos habitantes do País Dileto de Deus.
– Sim, pelo que me consta.
– Deve ser duro para pessoa tão meiga e delicada como ele. Se formos acreditar no cinema, a vida lá deve ser terrível, com todos aqueles gangsters e cowboys e mexicanos. Não digo que os cowboys não tenham certa atração física que bole com a gente. Oh la la! Mas parece que é perigosíssimo uma pessoa aventurar-se nas ruas de Nova York sem um revólver no bolso.
Ela me acompanhou até a porta e beijou-me em ambas as faces.
– Passamos horas agradáveis juntos. Guarde de mim uma boa recordação.
6
Aqui termina a minha história. Não tive mais notícias de Larry nem esperei tê-las. Já que geralmente ele cumpria o que dizia, acho provável que, ao chegar à América, tenha arranjado emprego numa garagem, indo depois guiar um caminhão até ficar conhecendo, como queria, a pátria da qual se ausentara durante tantos anos. É bem possível que tenha, depois, posto em prática a louca ideia de se tornar chofer de táxi; verdade que foi apenas uma sugestão atirada a esmo através de uma mesa de café, mas não me admiraria se a levasse a cabo – e em Nova York nunca tomei um táxi sem relancear o olhar para o chofer, na esperança de encontrar o sorriso grave e os olhos encovados de Larry. Rebentou a guerra. Ele já não estaria em idade de voar, mas é provável que se pusesse de novo a guiar um caminhão, em sua pátria ou fora dela; ou talvez esteja trabalhando numa fábrica. Apraz-me supor que, nas horas de lazer, ele esteja escrevendo um livro, no qual procurará registrar seja o que for que a vida lhe ensinou, e também a mensagem que deseja transmitir a seus semelhantes: assim sendo, talvez ainda demore a terminá-lo. Tem muito tempo, pois nele os anos não deixaram marca, e para todos os efeitos Larry ainda é um moço.
Não tem ambição, nem desejo de se tornar célebre; distinguir-se aos olhos do público lhe seria sumamente desagradável; é, portanto, admissível que se contente em levar a vida que escolheu e ser apenas ele mesmo. É excessivamente modesto para se patentear como exemplo aos olhos dos outros: mas é possível que julgue que algumas almas indecisas – para ele atraídas como mariposas para a chama – chegarão, com o tempo, a compartilhar de sua maravilhosa crença de que a verdadeira felicidade só pode ser encontrada nas coisas do espírito, e que esteja convencido de que, trilhando com abnegação e renúncia o caminho da perfeição, está praticando o bem tão positivamente como se estivesse escrevendo livros ou discursando a multidões.
Mas tudo isso são hipóteses. Sou desta terra, e terrestre; é-me apenas dado admirar o esplendor de tão rara criatura; não posso assumir-lhe a personalidade e devassar-lhe a alma, como às vezes creio poder fazer com pessoas mais parecidas com o comum dos homens. Conforme o seu desejo, Larry incorporou-se naquela tumultuosa conglomeração de criaturas entregues a interesses tão contraditórios, perdidas na confusão do mundo, tão amantes do bem, tão arrogantes na aparência, tão tímidas no íntimo, tão boas, tão duras, tão confiantes e tão desconfiadas, tão mesquinhas e tão generosas, que formam o povo dos Estados Unidos. É só o que posso dizer dele; reconheço que é muito pouco satisfatório; o que posso eu fazer?... Mas, ao terminar este livro com a incômoda sensação de que tenho que deixar o meu leitor no ar, e não vendo maneira de evitar o mal, percorri com os olhos do espírito esta minha longa narrativa, a ver se poderia ter inventado melhor fim, e com surpresa verifiquei que, sem a menor intenção, eu não escrevera nada mais nada menos que uma história de sucessos. Sim, pois todas as pessoas de quem me ocupei conseguiram o que almejaram: Elliott, prestígio social; Isabel, boa posição, garantida por sólida fortuna, numa comunidade ativa e culta; Gray, um emprego certo e bem remunerado, com um escritório onde pode trabalhar das nove às seis, todos os dias; Suzanne Rouvier, segurança; Sophie, a morte; e Larry, a felicidade. E, por mais desdenhosas que sejam as críticas dos intelectuais, nós, o público, no fundo do coração, amamos uma história que acaba bem. Donde se conclui que talvez o meu final não seja assim tão pouco satisfatório.
5
Tínhamos combinado o encontro no apartamento, para um coquetel. Cheguei antes de Larry. Eu ia levá-los a um restaurante elegantíssimo e esperei encontrar Isabel ataviada para a ocasião; como todas as mulheres esmerando-se ao máximo, achei que ela não havia de querer ser ofuscada. Mas encontrei-a com um vestido de lã muito simples.
– Gray está com uma das suas terríveis dores de cabeça – disse ela. – Está sofrendo horrores. Não posso absolutamente deixá-lo. Disse à cozinheira que podia sair assim que desse o jantar das crianças, de modo que tenho que fazer qualquer coisa para ele, e ver se o obrigo a comer. É melhor você e Larry irem sozinhos.
– Gray está deitado?
– Não; nunca quer ir para a cama quando tem uma dessas enxaquecas. Só Deus sabe que é onde deveria estar, mas não adianta a gente insistir. Está na biblioteca.
A biblioteca era uma sala com lambris, toda em marrom e ouro, que Elliott descobrira num velho castelo. Um gradil dourado, sempre fechado, resguardava os livros de quem os quisesse ler; mas talvez fosse melhor assim, uma vez que, pela maior parte, consistiam em obras pornográficas, ilustradas, do século xviii. Modernamente encadernadas de marroquim, conseguiram, no entanto, um belíssimo efeito. Isabel levou-me até lá. Gray estava todo dobrado na cadeira; notei várias revistas espalhadas no chão, a seus pés. Tinha os olhos fechados e seu rosto habitualmente vermelho estava lívido. Via-se claramente que sofria muito. Procurou levantar-se, mas detive-o.
– Já lhe deu uma aspirina? – perguntei a Isabel.
– Não adianta nada. Tenho uma receita americana, mas também pouco serve.
– Oh! não se incomode, meu bem – disse Gray. – Amanhã estarei bom. – Tentou sorrir e, virando-se para mim, acrescentou: – Sinto muito ser um desmancha-prazeres. Vão vocês ao Bois.
– Nem se cogita disso – exclamou Isabel. – Acha então que eu me divertiria sabendo que você estava sofrendo horrores?
– Coitada da sujeitinha, acho que ela gosta mesmo de mim – disse Gray, de olhos fechados.
Nisto seu rosto se contraiu; quase se podia ver a dor lancinante que lhe atravessou a cabeça. A porta abriu-se e Larry apareceu. Isabel contou-lhe o que havia.
– Oh! sinto muito – disse ele, lançando a Gray um olhar de comiseração. – Não se pode fazer alguma coisa para aliviá-lo?
– Nada – respondeu Gray, ainda de olhos fechados. – A única coisá que podem fazer é deixar-me só; vão vocês e divirtam-se bastante.
Por mim achei que era a única coisa sensata a fazer, mas talvez a consciência de Isabel não lhe permitisse agir assim.
– Quer que eu veja se posso ajudá-lo? – perguntou Larry.
– Ninguém pode ajudar-me – disse Gray em voz cansada. – Isto está me matando e, por Deus, às vezes chego a desejar que me mate mesmo.
– Enganei-me ao dizer que talvez pudesse ajudá-la. Minha intenção era dizer que talvez eu pudesse ajudá-lo a ajudar-se a si próprio.
Gray abriu lentamente as pálpebras e fitou Larry.
– Como é que você pode fazer isso?
Larry tirou do bolso uma moeda de prata e entregou-a a Gray.
– Feche bem os dedos e conserve a mão de palma para baixo. Não lute contra mim. Não faça esforço, mas segure a moeda no punho fechado. Antes de eu ter contado vinte, sua mão se abrirá e a moeda cairá no chão.
Gray fez o que lhe diziam. Larry sentou-se à escrivaninha e começou a contar. Isabel e eu continuamos de pé. Um, dois, três, quatro. Até ele chegar a quinze, não houve movimento por parte de Gray; depois a mão tremeu ligeiramente e, não posso dizer que tenha visto, mas pareceu-me que os dedos se afrouxavam. O polegar separou-se do punho. Vi distintamente os dedos moverem-se. Quando Larry chegou a dezenove, a moeda soltou-se da mão de Gray e rolou pelo chão, vindo parar a meus pés. Apanhei-a e examinei-a. Era pesada e malfeita, tendo de um lado, em relevo, uma cabeça jovem que reconheci como sendo de Alexandre, o Grande. Gray olhou perplexo para a sua mão.
– Não soltei a moeda – disse ele. – Caiu por si mesma. Estava sentado com o braço direito apoiado no braço da poltrona de couro.
– Você se sente confortável nesta cadeira? – perguntou Larry.
– O mais confortável possível para quem tem a enxaqueca que eu tenho.
– Pois bem, relaxe os músculos. Fique à vontade. Não faça coisa alguma. Não resista. Antes de eu ter contado vinte, seu braço direito se levantará da cadeira até chegar em cima da cabeça. Um, dois, três, quatro.
Ele dizia os números lentamente, naquela sua voz argentina, melodiosa; quando chegou ao número nove, vimos a mão de Gray erguer-se, de maneira apenas perceptível, mais ou menos três centímetros acima da superfície de couro onde descansava, aí parando pelo espaço de um segundo.
– Dez, onze, doze.
Um repuxãozinho e então, lentamente, todo o braço começou a erguer-se. Já não estava apoiado na poltrona. Um tanto atemorizada, Isabel agarrou a minha mão. Curioso, aquilo. Não se parecia absolutamente com um movimento voluntário. Nunca vi um sonâmbulo em ação, mas imagino que seus movimentos se assemelham aos movimentos do braço de Gray naquele momento. Não se tinha a impressão de que a vontade fosse a força motriz. Achei que, por um esforço consciente, devia ser difícil erguer um braço tão devagar e assim gradualmente. Era como se uma força subconsciente, independente da vontade, o levantasse. Movimento semelhante ao do pistão que se move lentamente num cilindro.
– Quinze, dezesseis, dezessete.
As palavras caíam, lentas, lentas, lentas, como gotas-d’água numa bacia, provindo de uma torneira defeituosa. O braço de Gray subiu, subiu, até a mão pairar acima da cabeça; e, quando Larry atingiu o número determinado, caiu pesadamente sobre a poltrona.
– Não levantei o braço – afirmou Gray. – Não pude evitar que subisse daquele jeito. Ergueu-se por si mesmo.
Um sorriso esboçou-se nos lábios de Larry.
– Não tem importância. Achei que isto faria com que você tivesse confiança em mim. Onde está aquela moeda grega?
Entreguei-a a Larry e ele virou-se para Gray.
– Segure-a com força. – Gray fez o que lhe mandavam e Larry consultou o seu relógio. – São oito horas e treze minutos. Daqui a sessenta segundos, suas pálpebras se tornarão tão pesadas que você será obrigado a fechá-las. Você vai dormir durante seis minutos. Às oito e vinte acordará e não sentirá mais dor alguma.
Nem eu nem Isabel falamos. Nossos olhos estavam fixos em Larry. Ele nada mais disse. Fitou Gray, mas não parecia vê-lo; parecia mesmo estar olhando através e além dele. Havia qualquer coisa de sobrenatural no silêncio que caiu sobre nós; tal o silêncio das flores num jardim, ao cair da noite. Subitamente senti a mão de Isabel contrair-se; olhei então para Gray. Suas pálpebras estavam cerradas; respirava com facilidade e regularmente; dormia. Ali ficamos por um tempo que pareceu interminável. Eu estava louco por um cigarro, mas não quis acender um. Larry estava imóvel, de olhos perdidos não sei em que distância. A não ser pelo fato de estarem abertos, ele parecia em transe. De repente pareceu relaxar-se; os olhos adquiriram a expressão normal e ele consultou o relógio. Nisto Gray abriu os olhos.
– Céus, creio que cochilei – disse ele. Depois teve um sobressalto. Notei que seu rosto perdera a lividez. – Minha dor de cabeça passou.
– Ótimo – disse Larry. – Fume um cigarro e vamos depois jantar.
– É um milagre. Sinto-me perfeitamente bem. Como é que você conseguiu isso?
– Não fui eu. Foi você mesmo.
Isabel foi trocar de vestido e enquanto isso Gray e eu tomamos um coquetel. Evidentemente Larry não queria discutir o fato, mas Gray insistiu em comentá-lo. Não podia compreender o que se passara.
– Sabe, não pensei que você pudesse conseguir coisa alguma – disse ele. – Concordei porque estava indisposto demais para resistir.
Começou a descrever o princípio das enxaquecas, seu horroroso sofrimento e o estado de inutilidade em que ficava depois que elas passavam. Achava incompreensível sentir-se agora tão disposto. Isabel voltou. Pusera um vestido que eu ainda não conhecia; chegava até o chão e era de uma fazenda branca chamada marocain, levemente enfeitada de tule preto. Não pude deixar de pensar que ela nos iria fazer honra.
O Château de Madrid estava muito alegre, e nós de ótimo humor. Larry conversou com uma espirituosa vivacidade que eu não estava habituado a ver-lhe, dizendo tolices que muito nos fizeram rir. Tive a impressão de que assim agia para que nos esquecêssemos da demonstração que dera do seu extraordinário poder. Mas Isabel era uma mulher decidida. Estava disposta a brincar enquanto isso lhe conviesse, mas não iria deixar insatisfeita a sua curiosidade. Terminado o jantar, quando nos serviram café e licores, achando talvez que a conversa íntima, a comida gostosa e o copo de vinho que Larry tomara lhe tinham enfraquecido a resistência, Isabel fitou-o com olhos brilhantes.
– Conte-nos agora como foi que você curou a dor de cabeça de Gray.
– Você viu com seus próprios olhos – respondeu ele sorrindo.
– Foi na Índia que você aprendeu isso?
– Foi.
– Gray sofre horrores. Você acha que poderia curá-lo definitivamente?
– Não sei. É possível que sim.
– Isto faria uma diferença enorme na vida dele. Gray não pode pretender um bom emprego, sabendo que é capaz de ficar incapacitado para o trabalho durante quarenta e oito horas ou mais. E nunca será feliz, a não ser que volte a trabalhar.
– Bom, eu não posso fazer milagres.
– Mas foi um milagre. Vi-o com meus próprios olhos.
– Não, não foi. Apenas enfiei uma ideia na cabeça do velho Gray e ele fez o resto. – Larry virou-se para Gray e perguntou: – Que é que você vai fazer amanhã?
– Jogar golfe.
– Aparecerei então ali pelas seis horas e daremos uma prosinha. – Depois, virando-se para Isabel com seu sorriso insinuante, acrescentou: – Há dez anos que não danço com você, Isabel. Quer ver se ainda sei?...
6
Depois disso vimos Larry muitas vezes. Na semana seguinte ele veio ao apartamento todos os dias, fechando-se durante meia hora com Gray na biblioteca. Parece que queria persuadi-lo – era assim que ele se exprimia, sorrindo – a não ter aquelas pavorosas enxaquecas. Gray ficou com uma confiança cega nele. Pelo pouco que me contou, percebi que Larry estava também procurando fazer com que readquirisse confiança em si. Dez dias depois Gray teve outra enxaqueca, mas aconteceu que Larry só ficara de aparecer à tarde. Não foi muito forte, mas Gray tinha agora tanta confiança no estranho poder de Larry que achava que, se pudessem encontrá-lo, em poucos minutos ele o curaria. Mas nem eu, a quem Isabel telefonou, nem eles sabíamos onde procurá-lo. Quando finalmente Larry apareceu, dando alívio a Gray, este lhe pediu o seu endereço, para o caso de novamente precisar dele com urgência. Larry sorriu.
– Telefone para o American Express e deixe o recado. Telefonarei para lá todas as manhãs.
Mais tarde Isabel me perguntou por que motivo Larry fazia tanto segredo de sua residência. Isto já acontecera antes, e depois se verificara que ele estivera morando, sem mistério algum, num hotel de terceira classe do Quartier Latin.
– Não tenho a mínima ideia – respondi. – Só posso apresentar uma hipótese fantástica, e que talvez não tenha fundamento algum. Mas é possível que algum estranho instinto provoque nele o desejo de ter em sua residência certo isolamento espiritual.
– Pelo amor de Deus, que quer dizer com isso? – exclamou Isabel um tanto irritada.
– Você não acha que, por mais acessível, camarada e sociável que Larry se mostre quando está conosco, a gente sente nele uma espécie de desprendimento, como se ele não se entregasse completamente, como se retivesse em algum ponto oculto da alma algo que não sei definir – uma tensão, um segredo, uma aspiração, um conhecimento – que faz dele uma criatura à parte?
– Conheço Larry desde menina – replicou Isabel com impaciência.
– Às vezes ele me faz lembrar um grande ator que representasse à perfeição o seu papel, numa peça espalhafatosa, mas medíocre. Como Eleanora Ouse, em La Locandira.
Isabel refletiu um momento sobre isso.
– Creio que percebo o que você quer dizer. A gente está se divertindo – e pensa que Larry é como um de nós, como todo mundo –, mas de repente sente que ele foge, como um rolo de fumaça que a gente tenta capturar com as mãos. Que será que o torna assim esquisito?
– Talvez uma coisa tão corriqueira que a gente nem mesmo dela se apercebe.
– E isto é?...
– Pois bem, bondade, por exemplo. Isabel franziu as sobrancelhas.
– Gostaria que você não dissesse essas coisas. Sinto uma sensação desagradável na boca do estômago.
– Ou será uma dorzinha no fundo do coração?
Isabel olhou-me longamente, como se pretendesse ler-me os pensamentos. Apanhou um cigarro do maço sobre a mesa, acendeu-o e reclinou-se na cadeira. Ficou a observar a fumaça que se contorcia no ar.
– Quer que eu vá embora? – perguntei.
– Não.
Fiquei em silêncio durante alguns momentos, a observá-la, sentindo prazer em contemplar o nariz benfeito e a bonita linha do queixo.
– Você está muito apaixonada por Larry?
– Vá para o inferno, nunca amei outro homem na minha vida.
– Por que se casou com Gray?
– Eu tinha que me casar com alguém. Ele estava louco por mim e mamãe queria o casamento. Todo mundo me dizia que fora uma sorte eu ter-me livrado de Larry. Eu gostava de Gray; ainda gosto muito dele. Você não imagina como é meigo; não há ninguém que seja mais bondoso e delicado. Ele dá a impressão de ter um gênio violentíssimo, não dá? Pois comigo sempre foi angelical. Quando tínhamos dinheiro, queria que eu manifestasse desejos para ter o prazer de satisfazê-los. Certa vez eu disse que seria divertido ter um iate, para darmos a volta ao mundo; e, se não fosse a crise, ele teria comprado um.
– Parece impossível que tal perfeição exista – murmurei.
– Divertimo-nos imensamente. Sempre lhe ficarei grata por isso. Fui muito feliz com ele.
Fitei-a, mas nada disse.
– Com certeza eu não o amava realmente, mas a gente pode muito bem passar sem amor. No fundo do coração eu suspirava por Larry, mas enquanto ele estava longe isso não me preocupava. Você se lembra de ter me dito que, com cinco mil quilômetros de oceano de permeio, as penas de amor se tornam perfeitamente toleráveis? Naquela época achei a observação de um cinismo revoltante, mas é, naturalmente, verdadeira.
– Se é sofrimento ver Larry, não seria mais acertado deixar de vê-lo?
– Mas é um sofrimento delicioso. Além do mais, você sabe como ele é. A qualquer momento pode desaparecer, como sombra quando o sol se esconde, e talvez fiquemos anos sem vê-lo.
– Você nunca pensou em se divorciar de Gray?
– Não tenho motivo para me divorciar dele.
– Isso não impede que suas compatriotas se separem dos maridos quando a tal se sentem inclinadas.
Isabel riu.
– Por que será que fazem isso? – perguntou.
– Não sabe, então? Porque as mulheres americanas esperam encontrar nos maridos a perfeição que as inglesas só exigem dos seus mordomos.
Isabel fez um gesto tão brusco com a cabeça que não sei como não ficou com torcicolo.
– Só porque Gray não tem facilidade de expressão você acha que ele não vale nada.
– Engana-se – protestei vivamente. – Acho mesmo que há em Gray qualquer coisa de muito comovente. Ele tem uma grande capacidade para amar. Basta a gente observá-lo, quando ele olha para você, para ver como o seu amor é profundo e absorvente. Ele gosta muito mais das filhas do que você.
– Com certeza você vai agora dizer que não sou boa mãe.
– Pelo contrário, acho que é uma ótima mãe. Você zela pelo conforto e pela felicidade delas, cuida da sua alimentação e faz com que seus intestinos funcionem regularmente. Ensina-lhes boas maneiras, lê para elas e obriga-as a rezar todas as noites. Se ficam doentes, chama imediatamente o médico e é muito dedicada durante toda a moléstia. Mas você não está obcecada por elas, como Gray.
– Isso não é necessário. Sou um ser humano e trato-as como seres humanos. A mãe só prejudica os filhos quando faz deles a razão única da existência.
– Estou de pleno acordo com você.
– E ninguém pode negar que elas me adoram.
– Já percebi isso. Você é para elas o símbolo de tudo que é belo, encantador, maravilhoso. Mas não se sentem à vontade com você como com Gray. A você, elas adoram; a Gray, amam.
– Ele merece ser amado.
Gostei de ouvi-la dizer isto. Uma das maiores qualidades de Isabel era nunca se ofender com a verdade nua e crua.
– Depois da crise, Gray ficou em mísero estado – continuou ela. – Durante semanas trabalhou até meia-noite, no escritório. Eu ficava em casa, morta de medo, temendo que ele desse um tiro na cabeça, tão envergonhado se sentia. Gray e o pai tinham imenso orgulho da firma. E orgulho também da própria integridade e de sua clareza de visão. Não foi tanto por termos perdido todo nosso dinheiro; Gray achava ainda mais difícil conformar-se com os prejuízos de toda aquela gente que confiara nele. Achava que devia ter tido mais previsão. Não me foi possível convencê-lo de que a culpa não era sua.
Isabel tirou um batom da bolsa e pintou os lábios.
– Mas não era isso que eu queria lhe contar. Só o que nos restava era a fazenda; achei que a única salvação para Gray era sair de Chicago. Tocamos para lá, com mamãe e as crianças. Gray sempre gostara da plantação, mas nunca tínhamos ido sós; levávamos sempre um grupo grande e nos divertíamos a valer. Gray atira bem, mas naquela ocasião não tinha a mínima vontade de caçar. Costumava pegar o barco e saía pelo pântano, sozinho, durante horas, a observar os pássaros. Descia e subia os canais, vendo os pálidos caniços de cada lado e somente o céu sobre sua cabeça. Em certos dias os canais são azuis como o Mediterrâneo. Ele não falava muito quando voltava. Dizia que o passeio fora ótimo. Mas eu sabia o que ele sentia. Sabia que seu coração se comovia com a beleza, e a vastidão e o silêncio. Há um determinado momento, antes do pôr do sol, em que a luz sobre os pântanos é realmente maravilhosa. Ele ficava de pé, em contemplação, deliciado. Embrenhava-se durante horas pelas florestas misteriosas; florestas como as de uma peça de Maeterlinck, cinzentas, silenciosas, quase sobrenaturais. Há uma ocasião, na primavera – não dura mais que quinze dias –, em que os novelos florescem e os abrunheiros vicejam; o verde tenro e fresco, contra o acinzentado do musgo espanhol, é um verdadeiro cântico de júbilo. O chão fica que é um tapete de lírios brancos e azaleias silvestres. Gray não sabia dizer o que isso significava para ele, mas significava a felicidade. Aquela beleza o intoxicava. Oh! sei que não me exprimo bem, mas gostaria que você compreendesse como era comovente ver aquele vasto homem empolgado por tão pura e bela emoção, a ponto de me dar vontade de chorar. Se há um Deus no céu, Gray esteve então muito perto dele.
Isabel ficara um tanto comovida ao dizer isto e, tirando o lenço, enxugou cuidadosamente duas lágrimas que lhe brilhavam no canto dos olhos.
– Você não estará romantizando? – perguntei sorrindo. – Acho que está atribuindo a Gray pensamentos e emoções que gostaria que ele tivesse.
– Como poderia eu notá-los se não existissem? Você me conhece. A não ser que eu sinta o cimento de uma calçada sob os pés, e veja por toda a rua largas vitrinas exibindo chapéus, pulseiras de brilhantes e estojos montados em ouro, nunca sou realmente feliz.
Ri-me e ficamos em silêncio durante alguns minutos. Depois ela voltou ao assunto que tínhamos discutido antes.
– Nunca me divorciarei de Gray. Passamos por muita coisa juntos. E ele depende demais de mim. Isto é bastante lisonjeiro, você sabe, e dá à gente um senso de responsabilidade. Além do mais...
– Sim?
Ela me olhou de soslaio e havia nesse olhar um brilhozinho malicioso. Tive a impressão de que não sabia muito bem qual seria a minha reação ao que ia dizer-me.
– Ele é formidável na cama. Estamos casados há dez anos e Gray é tão ardente hoje como no princípio. Não foi você que disse numa peça que não há homem que queira uma mulher por mais de cinco anos? Pois bem, você não sabia o que dizia. Gray me deseja tanto como nos primeiros tempos de casados. Fez-me muito feliz, neste sentido. Embora você talvez não tenha essa impressão, sou uma mulher muito sensual.
– Engana-se redondamente. Tenho essa impressão.
– Pois bem, não é muito má qualidade, é?
– Pelo contrário. – Lancei a Isabel um olhar perscrutador e continuei: – Você se arrepende de não se ter casado com Larry há dez anos?
– Não. Teria sido loucura. Mas, naturalmente, se naquela época eu soubesse o que sei hoje, teria vivido com ele durante três meses, ficando assim definitivamente livre da obsessão da sua pessoa.
– Acho que você teve sorte em não tentar a experiência; talvez se visse presa a ele por laços inquebrantáveis.
– Não o creio. Era apenas uma atração física. Sabe, geralmente a melhor maneira de vencer o desejo é satisfazê-lo.
– Já lhe ocorreu que você é uma mulher muito dominadora? Você me disse que Gray tem um temperamento poético e que é um amante fogoso; não duvido que você dê muita importância a essas duas qualidades, mas não me falou sobre aquilo que significa mais que as duas coisas juntas – a certeza de que o tem preso no côncavo desta sua mão bonita, mas não muito pequenina. Larry sempre lhe teria escapado. Lembra-se da Ode de Keats? Por mais que te aproximes, nunca a beijarás.
– Você muitas vezes pensa que sabe mais do que real mente sabe – disse ela secamente. – Só há uma maneira de uma mulher prender um homem e você bem sabe qual é. E deixe que eu lhe diga uma coisa: não é a primeira vez que ela dorme com ele que vale, é a segunda. Se ela aí consegue prendê-lo, então ele está preso para sempre.
– Não sei onde você obtém tão extraordinárias informações.
– Não nasci ontem e ando de olhos e ouvidos abertos.
– Posso perguntar quem foi que lhe disse isso?
Isabel atirou-me o mais zombeteiro dos seus sorrisos.
– Uma mulher com quem fiz amizade numa exposição de modelos. A vendeuse me contou que ela era a mundana mais elegante de Paris; tomei então a resolução de não sair da loja sem conhecê-la. Adrienne de Troye. Já ouviu falar nela?
– Nunca.
– Então você está atrasado. Tem quarenta e cinco anos e nem mesmo bonita é, mas sua aparência é mais distinta do que a de qualquer uma das duquesas do tio Elliott. Sentei-me ao seu lado e entrei com a minha representação de impulsiva americanazinha. Disse-lhe que não pudera resistir à tentação de falar-lhe, pois ela era a pessoa mais formidável que eu jamais vira na vida. Disse-lhe que seu rosto tinha a perfeição de um camafeu grego.
– Que topete você tem!
– A princípio ela se manteve fria e reservada, mas continuei com a minha atitude ingênua e ela degelou-se.
Tivemos então uma prosinha muito agradável. Terminado o desfile, perguntei-lhe se não queria almoçar um dia comigo no Ritz, acrescentando que sempre fora admiradora de sua incomparável elegância.
– Já a vira antes?
– Nunca. Ela não aceitou, dizendo que, com tantas más línguas em Paris, eu iria ficar comprometida, mas que estava satisfeita por eu a ter convidado. Quando percebeu a minha decepção, perguntou se eu não queria ir almoçar em sua casa, dando uns tapinhas na minha mão ao ver como fiquei impressionada com a sua amabilidade.
– E você foi?
– Claro que fui. Ela tem um amor de casa, logo depois da Avenue Foch, e fomos servidas por um mordomo que é o retrato de George Washington. Fiquei até as quatro horas. Soltamos os cabelos, tiramos as cintas e tivemos uma prosinha de amigas íntimas. O que aprendi naquele dia daria para eu escrever um livro.
– Por que não escreve? É exatamente o assunto que agradaria ao Ladie’s Home Journal.
– “Seu” bobo – disse ela rindo.
Fiquei em silêncio durante alguns segundos, refletindo.
– Não sei se Larry a amou realmente – disse eu dali a pouco. Isabel empertigou-se na cadeira. Sua expressão tornou-se dura, os olhos chisparam de cólera.
– Que é que você está dizendo? Claro que ele me amou. amou. Pensa que uma moça não percebe quando um homem gosta dela?
– Oh! não digo que não gostasse, de certo modo. Com nenhuma outra moça tinha a intimidade que tinha com você. Desde pequenos vocês brincaram juntos. Ele achava natural gostar de você. Possuía um instinto sexual normal. Nada mais lógico do que aquele casamento. Não haveria grande modificação nas relações entre vocês; só que iriam viver sob o mesmo teto e dormir na mesma cama.
Um pouco mais mansa, Isabel esperou que eu prosseguisse. Sabendo que as mulheres estão sempre dispostas a ouvir uma dissertação sobre o amor, continuei:
– Os moralistas tentam convencer-nos de que o instinto sexual não tem muita relação com o amor. Referem-se a isso como se fosse um epifenômeno.
– Que diabo de história é essa?
– Pois bem, há psicólogos que acham que o estado consciente acompanha o trabalho do cérebro e é por ele determinado, sem no entanto exercer nenhuma influência sobre ele. Mais ou menos como o reflexo de uma árvore sobre a água; não poderia existir sem a árvore, mas em nada afeta essa árvore. Acho uma grandíssima tolice dizer que pode existir amor sem paixão; as pessoas que afirmam que o amor pode perdurar depois de esgotada a paixão referem-se a outro sentimento, afeição, bondade, comunhão de gostos e interesses, hábito. Principalmente hábito. Duas pessoas podem continuar a ter relações sexuais por hábito, assim como têm fome à hora em que costumam fazer suas refeições. Claro que pode haver desejo sem amor. Desejo não é paixão. O desejo é a consequência natural do instinto sexual e não tem maior importância do que qualquer outra função animal. É por isso que as mulheres são umas tolas de fazer um escarcéu quando os maridos de vez em quando pulam a cerca, quando a ocasião e o lugar são propícios.
– Isto se aplica somente aos homens? Sorri.
– Se você insistir, serei obrigado a confessar que o que serve para um serve para outro. O único argumento contra é que, para o homem, uma ligação passageira não tem nenhuma significação sentimental, ao passo que, para a mulher, tem.
– Depende da mulher.
Eu não ia consentir em ser interrompido.
– A não ser que o amor seja paixão, não é amor, é outro sentimento; e a paixão não aumenta com a satisfação e sim com a dificuldade. O que pensa você que Keats queria dizer quando aconselha o amante, na urna grega, a não se lamentar? Serão eternos o teu amor e a formosura dela! Por quê? Porque ela era inatingível e, por mais loucamente que o amante a perseguisse, ainda lhe escapava – pois estavam ambos aprisionados no mármore daquilo que julgo ter sido má obra de arte. Seu amor por Larry, e o dele por você, era simples e natural como o amor de Paulo e Francisca, de Romeu e Julieta. Felizmente não teve mau resultado. Você fez um casamento rico e Larry vagueou pelo mundo, atrás do canto que entoam as sereias. Paixão foi elemento que nele não entrou.
– Como é que você sabe?
– A paixão não mede as consequências. Pascal disse que o coração tem razões que a razão desconhece. Se é que o interpretei bem, ele queria dizer que, quando a paixão se apodera de um coração, este inventa, para provar que por amor todo sacrifício é pouco, razões não somente plausíveis, mas conclusivas. Ficamos convencidos de que vale a pena aceitar a desonra, e que a vergonha não é preço exagerado para se pagar por ele. A paixão é destruidora. Destruiu Antônio e Cleópatra, Tristão e Isolda, Parnell e Kitty O’Shea. E, quando não destrói, morre. É possível que então a pessoa se veja na amarga contingência de reconhecer que desperdiçou anos de vida, que se desgraçou inutilmente, que sofreu a tortura do ciúme, engoliu toda espécie de humilhações, tendo dado a sua ternura, as riquezas da sua alma a um ser insignificante, idiota, uma estaca onde dependurou seus sonhos, e que não valia dois tostões de mel coado.
Antes de ter terminado esse discurso, eu sabia que Isabel já não me ouvia, toda atenta aos próprios pensamentos. Mas sua observação seguinte me surpreendeu.
– Você acha que Larry é virgem?
– Minha querida, ele está com trinta e dois anos.
– Tenho certeza que é.
– Como é que você pode ter certeza?
– É o tipo de coisa que uma mulher sabe instintivamente.
– Conheci um rapaz que durante anos teve um sucesso louco só pelo fato de convencer beldade após beldade de que nunca possuíra outra mulher. Dizia ele que dava um resultado maravilhoso.
– Pouco me importo com o que você diz. Acredito na minha intuição.
Estava ficando tarde; Gray e Isabel iam jantar com alguns amigos e ela ainda precisava vestir-se. Não tendo nada que fazer, subi pelo Boulevard Raspail, sentindo prazer em caminhar por aquela agradável tarde de primavera. Eu nunca tivera muita fé na intuição das mulheres; geralmente coincide demais com os desejos delas, para poder inspirar-me confiança; e agora, ao recordar o fim da minha prosa com Isabel, não pude deixar de rir. Lembrei-me de Suzanne Rouvier e ocorreu-me que fazia muitos dias que não a via. Estaria comprometida para aquela noite? Se não estivesse, talvez quisesse jantar comigo, para irmos depois a um cinema. Chamei o primeiro táxi que passou vazio e dei ao chofer o endereço do seu apartamento.
7
Mencionei Suzanne Rouvier no início deste livro. No atual ponto da minha narrativa, fazia dez ou doze anos que eu a conhecia e ela não devia estar longe dos quarenta.
Não era bonita. Para ser franco, era mesmo feia, mais alta do que o comum das francesas, corpo curto, pernas e braços longos, atitude desajeitada, como se não soubesse o que fazer de membros tão compridos. A cor dos cabelos variava de acordo com o seu capricho, mas era geralmente de um castanho-avermelhado. Rosto pequeno e quadrado, maçãs muito salientes com duas manchas de carmim, boca larga com lábios vivamente acentuados pelo batom. Nada disso parece muito atraente, mas era; é verdade que tinha boa pele, dentes brancos e fortes, e olhos azuis, de um azul vivíssimo. Eram eles o seu ponto forte e Suzanne procurava realçá-los pintando as pestanas e as pálpebras. Tinha um ar perspicaz volúvel e simpático, e combinava um ótimo gênio com uma dose necessária de dureza. Na vida que levara tivera que ser dura. Sua mãe, viúva de um pequeno funcionário do governo, depois da morte do marido regressara à sua vila natal em Anjou, tendo que viver de sua pensão; quando Suzanne completara quinze anos, pusera-a como aprendiz de costureira numa cidade vizinha, bastante próxima para permitir que a menina viesse para casa aos domingos. Durante as férias de quinze dias, quando já estava com dezessete anos, Suzanne fora seduzida por um artista que viera passar o verão na aldeia para pintar umas paisagens. Ela já percebera que, sem a vantagem de um dote, suas probabilidades de casamento eram quase nulas; e assim, quando no fim do verão o pintor sugeriu que ela fosse com ele para Paris, Suzanne aceitou alacremente. Ele levou-a para uma colmeia de estúdios em Montmartre, e Suzanne passou um ano muito agradável em sua companhia.
Terminado esse prazo, o pintor lhe disse que não vendera uma única tela e que não podia mais dar-se ao luxo de uma amante. Ela estivera esperando por isso e não ficou decepcionada. O homem perguntou-lhe se queria voltar para casa e, ante resposta negativa, disse que havia no mesmo quarteirão outro pintor que gostaria de ficar com ela. Essa pessoa tentara duas ou três vezes tomar certas liberdades com Suzanne, mas, embora o tivesse repelido, ela o fizera de tão bom humor que o homem não se melindrara. Ele não lhe desagradava, de modo que Suzanne aceitou a proposta com placidez. Era uma vantagem não ter que tomar táxi para a mudança. Seu segundo amante, bem mais velho que o primeiro, mas ainda apresentável, pintou-a em todas as posições possíveis e imagináveis, vestida e nua; Suzanne passou dois anos felizes ao lado dele. Ficava orgulhosa ao pensar que, com ela a servir-lhe de modelo, conseguira ele o seu primeiro verdadeiro sucesso. Fez questão de me mostrar a reprodução, recortada de uma revista ilustrada, do quadro responsável por tal sucesso. Fora comprado por uma galeria norte-americana. Um nu, tamanho natural; e Suzanne estava mais ou menos na mesma posição da Olympe de Manet. O artista não tardara a perceber que havia algo de moderno e engraçado nas suas proporções e, afinando-lhe o corpo magro até a emaciação, alongara pernas e braços, acentuando as maçãs salientes e tornando enormes os olhos azuis. Pela reprodução eu não podia, naturalmente, julgar o colorido, mas a elegância da composição não me passou despercebida. O quadro deu ao artista bastante nome para permitir-lhe casar-se com uma admiradora, certa viúva endinheirada; quanto a Suzanne, sabendo perfeitamente que um homem tem que pensar no seu futuro, aceitou o rompimento de tão cordiais relações com certo azedume.
Sim, pois agora já conhecia o seu valor. Gostava da vida de artista, sentia prazer em posar e, terminado o trabalho do dia, achava agradável ir ao café sentar-se ao lado de pintores, suas esposas e amantes, enquanto eles discutiam arte, injuriavam os intermediários e contavam piadas obscenas. Nessa ocasião, tendo previsto o rompimento, ela fizera seus planos. Escolheu um rapaz que estava disponível e que, assim o julgava ela, tinha talento. Procurou-o numa hora em que ele estava só, no café, explicou-lhe as circunstâncias e sem mais preâmbulos sugeriu que fossem viver juntos.
– Tenho vinte anos e sou boa dona de casa. Por esse lado você fará economia e ainda ficará livre da despesa de um modelo. Olhe a sua camisa; que vergonha! E o seu estúdio está numa desordem incrível. Você precisa de uma mulher para cuidar de tudo isso.
O rapaz sabia que ela era boa pessoa. Achou graça da proposta e Suzanne percebeu que ele estava inclinado a aceitar.
– Afinal de contas, não há mal em tentar – disse ela.
– Se não der certo, não estaremos pior do que estamos agora.
Ele era um pintor modernista e fez dela retratos em quadrados e oblongos. Pintou-a com um olho só e sem boca. Pintou-a como figura geométrica, em preto, marrom e cinza. Pintou-a em linhas cruzadas através das quais a gente distinguia vagamente um rosto humano. Suzanne viveu com ele um ano e tanto, deixando-o depois por livre e espontânea vontade.
– Por quê? – perguntei. – Não gostava dele?
– Gostava; era um bom rapaz. Mas achei que não estava fazendo progresso. Estava se repetindo demais.
Não encontrara dificuldades em arranjar um sucessor, continuando fiel aos artistas.
– Sempre estive na pintura – é como dizia ela. – Vivi com um escultor durante seis meses, mas, não sei por quê, aquilo não me disse nada.
Sentia prazer em pensar que jamais se separara desagradavelmente de um amante. Era não somente boa modelo, mas boa dona de casa. Gostava de trabalhar no estúdio onde vivia, e sentia orgulho em mantê-lo em perfeita ordem. Era boa cozinheira e conseguia fazer um jantar gostoso com a maior economia possível. Cerzia as meias e pregava botões nas camisas dos amantes.
– Nunca achei que pelo fato de ser artista um homem deva ser desmazelado.
Contava apenas com um fracasso, e isso com um inglês que tinha carro e mais dinheiro do que qualquer outro que ela conhecera.
– Mas não durou muito – contou-me. – Ele costumava beber e tornava-se então enfadonho. Eu não teria me importado com isso, se ele fosse um bom pintor, mas, meu caro, era grotesco. Quando eu lhe disse que ia deixá-lo ele começou a chorar, jurando que me amava.
“Meu pobre amigo, que você me ame ou não, é coisa sem a mínima importância”, declarei. “Importante é o fato de você não ter talento. Volte para o seu país e vá ser negociante de secos e molhados. É só para isso que você serve.”
– O que foi que ele respondeu? – perguntei a Suzanne.
– Ficou furioso e me ordenou que sumisse. Mas garanto-lhe que o conselho que lhe dei foi acertado. Espero que o tenha seguido; não era mau rapaz, apenas mau artista.
Bom senso e gênio agradável facilitam a peregrinação de uma mundana por este mundo afora, mas, assim como qualquer outra, a profissão que Suzanne adotara tinha seus altos e baixos. Houve, por exemplo, o caso do escandinavo. Teve a imprudência de se apaixonar por ele.
– Era um deus, meu caro – disse-me ela. – Altíssimo, da altura da Torre Eiffel, com ombros largos e tórax magnífico, uma criatura que a gente quase podia abranger com as mãos, ventre chato, tão chato como a palma da minha mão, e músculos de atleta profissional. Tinha cabelos loiros e ondulados e pele de criança. E não pintava mal. Eu gostava do seu trabalho com os pincéis: era atrevido e brilhante, de um rico colorido.
Resolvera ter um filho com ele. O pintor manifestou-se contra, mas Suzanne disse que assumiria a responsabilidade.
– Bem que ficou satisfeito quando o bebê nasceu. Uma criança rosada, de cabelos loiros e olhos azuis como o seu papá. Uma menina.
Suzanne vivera com ele três anos.
– Não era muito inteligente e às vezes me entediava, mas era tão meigo e tão bonito que isso não tinha grande importância.
Nisto ele recebeu um telegrama da Suécia, avisando que o pai estava à morte e que sua imediata presença era necessária. Prometeu voltar, mas Suzanne teve o pressentimento de que tal não se daria. O rapaz deixou-lhe todo o dinheiro que tinha. Durante um mês não deu notícias, mas depois escreveu contando que o pai morrera, tendo deixado os negócios em confusão, e que ele achava dever seu ficar ao lado da mãe e ingressar no comércio madeireiro. Mandou um cheque de dez mil francos. Suzanne não era mulher de se desesperar. Depressa chegou à conclusão de que uma criança seria um empecilho às suas atividades; levou, portanto, a menina para casa de sua mãe e deixou-a aos cuidados dela, entregando-lhe também os dez mil francos.
– Foi de partir o coração, pois eu adorava a menina; mas na vida a gente tem que ser prática.
– O que aconteceu então? – perguntei.
– Oh! eu me arranjei. Encontrei um amigo.
Nisto ela tivera o seu tifo. Suzanne sempre dizia “o meu tifo” como um milionário diria “a minha propriedade em Palm Beach”. Quase morrera, tendo ficado no hospital durante três meses. Ao sair, estava que era só pele e ossos, fraquíssima e tão nervosa que só sabia chorar. Não serviria para ninguém, nessas condições, não estava bastante forte para posar e tinha muito pouco dinheiro.
– Oh la, la – disse ela. – Passei por uma época dura. Felizmente eu tinha bons amigos. Mas você sabe o que é a vida dos artistas, uma luta para fazer o dinheiro render. Nunca fui bonita, eu tinha certa atração, é lógico, mas já não estava com vinte anos. Encontrei por acaso o cubista com quem eu vivera; ele se casara e divorciara, desistira do cubismo, tendo-se tornado surrealista. Disse-me que eu podia servir-lhe, que se sentia só; que me daria casa e comida; e, garanto-lhe, foi com prazer que aceitei.
Suzanne ficara com ele até encontrar o industrial. Um amigo trouxe-o ao estúdio, pois talvez ele viesse a comprar um dos quadros do ex-cubista; ansiosa por efetuar a venda, Suzanne esforçou-se por lhe ser agradável, com o talento que para isso possuía. O homem não quis decidir-se no momento, mas declarou que gostaria de vir examinar novamente os quadros. E voltou, quinze dias mais tarde, só que dessa vez Suzanne teve a impressão de que ele viera mais para vê-la do que por amor aos objetos de arte.
Quando saiu, ainda sem comprar, apertou a mão de Suzanne com exagerado calor. No dia seguinte o amigo que o trouxera ao estúdio chamou Suzanne de lado, quando ela se dirigia ao mercado para comprar as provisões do dia, e contou-lhe que o industrial se engraçara com ela e mandava convidá-la para jantarem juntos, da próxima vez que ele viesse a Paris, pois tinha uma proposta a fazer-lhe.
“O que acha você que o homem viu em mim?”, perguntou Suzanne.
“Ele é apaixonado da arte moderna. Tem visto retratos seus. Você o fascina. Ele é da província e homem de negócios. Você representa Paris para ele, arte, romance, tudo aquilo de que sente falta em Lille.”
“Ele tem dinheiro?”, perguntou Suzanne com o seu habitual espírito prático.
“Muito.”
“Está certo. Jantarei com ele. Não há mal em ouvir a sua proposta.”
O homem levou-a ao Maxim, fato que a impressionou. Ela se vestira discretamente e, observando as mulheres à sua volta, achou que poderia muito bem passar por uma respeitável senhora casada. Ele encomendou champanhe e isso a convenceu de que estava lidando com um cavalheiro. Quando chegaram ao café, ele fez a sua proposta. Suzanne achou-a muito generosa. O homem disse-lhe que vinha de quinze em quinze dias a Paris, a uma assembleia, e que achava enfadonho à noite ter que jantar sozinho, vendo-se compelido, quando sentia necessidade de companhia feminina, a procurar um bordel. Sendo casado, e com dois filhos, achava o arranjo pouco satisfatório para um homem da sua posição. O amigo comum lhe contara tudo sobre Suzanne, e ele tinha certeza de estar lidando com uma mulher discreta. Já não era moço e não tinha o menor desejo de se ver envolvido com uma mocinha leviana. Era mais ou menos colecionador da escola moderna e agradava-lhe saber que Suzanne estava ligada a ela. Em seguida pôs as cartas na mesa. Estava pronto a tomar para ela um apartamento e mobiliá-lo, garantindo-lhe ao mesmo tempo uma mesada de dois mil francos por mês. Em troca desejava poder contar com o prazer de sua companhia de quinze em quinze dias. Suzanne nunca tivera tanto dinheiro e imediatamente compreendeu que, com tal soma, não somente poderia viver e divertir-se de acordo com as exigências da sua nova posição, mas ainda sustentar a filha e guardar um pouco para os maus dias. Mas hesitou por um momento. Sempre estivera “na pintura”, como se exprimia ela, e no íntimo achava que se tornar amante de um negociante era decair.
– C’est à prendre ou à laisser – disse ele. – Pode aceitar ou recusar.
Ele não lhe era repulsivo, e a roseta da Legião de Honra na sua lapela indicava que era um homem distinto. Suzanne sorriu.
– Je prends – respondeu. – Aceito.
8
Embora tivesse sempre vivido em Montmartre, ela achou que devia romper com o passado e tomou, portanto, um apartamento em Montparnasse, num prédio logo depois do boulevard. Constava de dois quartos, uma cozinha pequena e banheiro; ficava no sexto andar, mas havia elevador. Para Suzanne, um banheiro particular e um elevador – embora este só comportasse duas pessoas de cada vez, e se movesse como uma lesma, e a gente tivesse que descer pelas escadas – representavam não somente luxo, mas estilo.
Nos primeiros meses de ligação, monsieur Achille Gauvain, pois assim se chamava ele, hospedava-se num hotel, quando vinha para as suas visitas quinzenais; depois de passar com Suzanne a parte da noite exigida pelas suas inclinações amorosas, regressava ao hotel para dormir sozinho, até ver chegada a hora de se levantar e tomar o trem que o levaria de volta aos seus negócios e sóbrios prazeres da vida de família; mas depois Suzanne chamou a sua atenção para o fato de estar gastando dinheiro inutilmente, dizendo que seria mais econômico e mais confortável ele ficar no apartamento até o dia seguinte. O industrial não pôde deixar de sentir a força do argumento. Ficou lisonjeado com o interesse de Suzanne pelo seu conforto – não havia dúvida de que não era nada agradável sair para a rua e ter que procurar um táxi numa fria noite de inverno – e aprovou o espírito econômico de que ela estava dando prova. Boa mulher, a que zelava não somente pelo seu dinheiro mas pelo do amante.
Monsieur Achille tinha mais do que motivo para estar satisfeito com sua escolha. Em geral iam jantar num dos melhores restaurantes de Montparnasse, mas de vez em quando Suzanne preparava um jantar no apartamento. A comida benfeita que ela lhe oferecia era muito do seu gosto. Nas noites quentes ele jantava em mangas de camisa, sentia-se deliciosamente boêmio e dissoluto. Sempre gostara de comprar quadros, mas Suzanne não o deixava adquirir um que fosse sem a sua prévia aprovação, e ele não tardou a verificar que podia confiar no seu discernimento. Ela não queria saber de intermediários, levando-o diretamente aos estúdios dos pintores e permitindo-lhe assim adquirir a obra pela metade do preço que, de outra forma, teria sido obrigado a pagar. Monsieur Achille sabia que ela estava guardando umas economiazinhas, e experimentou uma sensação de orgulho quando Suzanne lhe contou que de ano em ano ia comprando um pedacinho de terra na sua aldeia. Conhecia esse desejo de possuir terras, existente no coração de todos aqueles que têm sangue francês, e sua estima por Suzanne cresceu ao verificar que também ela abrigava tal sentimento.
E, pelo seu lado, Suzanne estava satisfeita. Não era fiel ao amante, nem tampouco infiel; isto é, tinha o cuidado de não formar nenhuma ligação permanente, mas quando um homem lhe agradava não tinha má vontade em dormir com ele. Mas era para ela uma questão de honra não permitir que ficasse a noite toda. Achava que devia isso ao homem de dinheiro e posição que lhe tornara possível uma vida tão segura e respeitável.
Eu conhecera Suzanne na época em que ela vivia com um pintor com quem eu me dava, e muitas vezes ficava no estúdio enquanto ela posava; continuei a vê-la a intervalos irregulares, mas só chegamos a ter intimidade depois que ela se mudou para Montparnasse. Parece que monsieur Achille, pois era assim que ela o tratava e sempre se referia a ele, lera uma ou duas traduções de livros meus, e certa noite convidou-me para jantar com eles num restaurante. Era um homem pequeno, meia cabeça mais baixo que Suzanne, com cabelos de um cinzento bronzeado e bigodinho grisalho. Era meio gorducho e tinha uma barriguinha, mas somente até o ponto de lhe dar um ar de prosperidade. Tinha o andarzinho empertigado dos homens baixos, e via-se claramente que não estava em nada descontente consigo mesmo. Ofereceu-me um ótimo jantar. Foi delicadíssimo. Disse-me que estava contente por eu ser amigo de Suzanne, pois de relance podia ver que eu era comme il faut; que teria prazer em saber que eu a veria de vez em quando. Seus negócios muito só; seria para ele um consolo saber que ela estava em contato com uma pessoa educada. Era negociante, mas sempre admirara os artistas.
– Ah! mon cher monsieur, a arte e a literatura sempre foram as glórias gêmeas da França. Ao lado de suas proezas militares, é lógico. E eu, fabricante de casimiras, não hesito em declarar que coloco o pintor e o escritor no mesmo plano do general e do estadista.
Ninguém poderia ter-se exprimido com maior elegância.
Suzanne não queria ouvir falar de ter empregada, em parte por economia, e em parte (por razões que ninguém melhor do que ela conhecia) por não querer que viesse alguém meter o nariz naquilo que só a ela dizia respeito, e a mais ninguém. Mantinha em perfeita ordem o apartamentozinho, que fora mobiliado no mais moderno estilo do momento, e fazia também suas roupas de baixo. Mas, mesmo assim, agora que deixara de posar, o tempo às vezes lhe custava a passar, pois ela era uma mulherzinha laboriosa. Ocorreu-lhe então que, tendo posado para tantos pintores, não haveria motivo para também não pintar. Comprou telas, pincéis e tintas e, mãos à obra! Às vezes, quando ia levá-la para jantar, eu chegava mais cedo, indo encontrá-la de avental a trabalhar animadamente. Assim como no ventre materno o embrião relembra a evolução das espécies, Suzanne relembrou os estilos de todos os seus amantes. Pintou paisagens como o seu paisagista; abstrações como o cubista; e, com o auxílio de cartões-postais, barcos no ancoradouro, como o escandinavo. Não sabia desenhar, mas tinha boa noção de colorido e, se seus quadros não valiam grande coisa, era para ela um prazer pintá-los.
Monsieur Achille encorajava-a; agradava-lhe ter por amante uma artista. Foi por sua insistência que Suzanne mandou uma tela para o salão de outono, sentindo-se ambos muito orgulhosos quando a viram dependurada. Ele deu-lhe um bom conselho.
– Não procure pintar como homem, querida. Pinte como mulher. Não queira ser forte; contente-se em agradar. E seja sincera. Em negócios às vezes a esperteza dá bom resultado, mas na arte a sinceridade é, não somente a melhor política, mas a única.
Na ocasião a que me refiro, a ligação durava havia cinco anos, com ampla satisfação de ambas as partes.
– Claro que ele não me faz vibrar – disse Suzanne.
– Mas é um homem inteligente e de posição. Cheguei a uma época da vida em que tenho que pensar na minha situação.
Ela era bondosa e compreensiva, e monsieur Achille tinha em alto preço a sua opinião. Suzanne ouvia-o de boa vontade quando ele discutia seus negócios, ou assuntos de família, entristecendo-se com ele quando sua filha foi reprovada num exame, rejubilando-se quando seu filho ficou noivo de uma moça rica. Monsieur Achille se casara com a única filha de um homem do seu ramo de negócios, e a fusão das duas firmas fora uma fonte de lucros para ambos os lados. Era, naturalmente, uma satisfação para ele verificar que seu filho tinha bastante senso para compreender que a melhor base para um casamento feliz é a comunhão de interesses financeiros. Confiou a Suzanne sua ambição de casar a filha na aristocracia.
“E por que não, com sua fortuna?”, disse Suzanne. A generosidade de monsieur Achille tornou possível a Suzanne mandar sua filha para um convento, onde a menina receberia esmerada educação, e ele prometeu que mais tarde, quando chegasse o momento oportuno, pagaria por lições de datilografia e estenografia, para que ela pudesse ganhar a vida com o seu trabalho.
– Ela vai ser linda – disse-me Suzanne. – Mas não lhe fará mal ter instrução e saber lidar com a máquina de escrever. Claro que, sendo ainda tão criança, é cedo para se fazer predições, mas pode acontecer que ela não tenha temperamento.
Suzanne era delicada. Deixou que a minha inteligência interpretasse as suas palavras. Interpretei perfeitamente.
9
Uma semana, ou pouco mais, depois de eu ter tão inesperadamente topado com Larry, estávamos Suzanne e eu sentados no Sélect, no Boulevard du Montparnasse tomando uma cerveja depois de termos jantado juntos e ido ao cinema, quando de repente ele apareceu. Suzanne abafou uma exclamação e, com grande surpresa minha, chamou-o para a nossa mesa. Larry aproximou-se, beijou-a e me apertou a mão. Percebi que ela mal podia acreditar nos próprios olhos.
– Dão licença que eu me sente? – perguntou Larry. – Ainda não jantei e pretendo comer alguma coisa.
– Oh! mas que prazer em vê-lo novamente, mon petit
– disse ela, de olhos luzentes. – De onde está surgindo? E por que não deu sinal de vida durante todos estes anos? Meu Deus, como está magro! Pelo que sabíamos de você, tanto poderia estar morto como vivo.
– Pois bem, estou vivo – respondeu ele com um brilhozinho no olhar. – Como vai Odette?
Era assim que se chamava a filha de Suzanne.
– Oh! está uma meninona. E bonita. Ainda se lembra de você.
Interrompi-a:
– Você nunca me contou que conhecia Larry.
– Por que haveria de contar-lhe? Nunca soube que você o conhecia. Somos velhos amigos.
Larry encomendou ovos com toucinho. Suzanne contou-lhe tudo sobre a filha e depois sobre si própria. Ele ouvia com aquele seu jeito sorridente, simpático, enquanto ela tagarelava. Suzanne contou-lhe que tinha sossegado e que estava agora pintando. Virou-se em seguida para mim:
– Estou progredindo, não estou? Não tenho pretensões a gênio, mas possuo tanto talento como muitos pintores que conheci.
– Você vende seus quadros? – perguntou Larry.
– Não preciso vendê-los – respondeu ela displicentemente. – Tenho meios.
– Felizarda.
– Felizarda, não; sabida. Você precisa vir ver meus quadros.
Escreveu o endereço num pedaço de papel e obrigou-o a prometer que iria. Excitada, Suzanne continuou a falar por paus e por pedras. Dali a pouco, Larry pediu a sua conta.
– Você não vai já? – exclamou Suzanne.
– Vou – respondeu ele sorrindo.
Pagou a conta e com um aceno despediu-se. Não pude deixar de rir. Ele tinha um jeito engraçado de estar com a gente num momento e desaparecer no seguinte, sem a menor explicação. Bruscamente; como quem se evapora no ar.
– Por que haveria ele de querer fugir tão depressa? – perguntou Suzanne, vexada.
– Talvez tenha alguma pequena à sua espera – repliquei, troçando.
– É uma ideia como qualquer outra. – Ela tirou o porta-pó da bolsa e retocou a pintura do rosto. – Tenho pena da mulher que se apaixonar por ele – Oh la la.
– Por que diz isto?
Ela fitou-me com uma seriedade que eu raramente lhe via.
– Quase me apaixonei por ele há tempos. Tanto faria a gente se apaixonar por um reflexo na água, ou um raio de sol, ou uma nuvem no céu. Escapei por um triz. Mesmo hoje, quando penso nisso, estremeço só de me lembrar do perigo que corri.
A reserva que vá para o diabo. Não teria sido humano resistir à tentação de querer conhecer o caso todo. Dei-me por feliz por Suzanne ser uma mulher que não tinha a menor noção de discrição.
– Mas como foi que você chegou a conhecê-lo? – perguntei.
– Oh! isto foi há anos. Seis, sete, não sei ao certo. Odette só tinha cinco anos. Larry conhecia Marcel, quando eu estava vivendo com ele. Costumava aparecer no estúdio e ali ficava enquanto eu posava. Às vezes nos levava para jantar. A gente nunca sabia quando ele viria. Havia ocasiões em que sumia durante semanas, depois aparecia três ou quatro dias em seguida. Marcel gostava de vê-lo; dizia que pintava melhor quando Larry estava presente. Nisso tive o “meu tifo”. Passei por uma época dura, depois que saí do hospital. – Suzanne encolheu os ombros e continuou: – Mas já lhe contei isto. Pois bem, certo dia, depois de ter percorrido os estúdios à procura de trabalho, sem nada encontrar, tendo comido apenas um croissant com um copo de leite, sem saber como iria pagar o aluguel do quarto, de repente me encontrei com Larry no Boulevard Clichy. Ele me fez parar e perguntou como eu ia indo; contei-lhe sobre o “meu tifo” e ele disse: “Você está com cara de quem precisa de uma refeição”. Havia qualquer coisa na sua voz e na expressão dos seus olhos que me fez fraquejar; desatei no choro.
Estávamos perto de La Mére Mariette e ele me segurou o braço e me fez sentar a uma mesa. Eu estava com tanta fome que teria sido capaz de comer uma sola velha de sapato, mas quando veio a omelete senti que meu estômago não aceitava nada. Ele me obrigou a comer um bocadinho e me deu um cálice de burgundy. Senti-me um pouco melhor e comi alguns aspargos. Contei-lhe então os meus males; estava fraca demais para fazer fita. Eu era só pele e ossos e estava com uma aparência horrível; não podia ter esperanças de arranjar um homem. Pedi-lhe que me emprestasse dinheiro para voltar para a minha aldeia. Pelo menos ali eu teria a minha filhinha. Larry perguntou-me se eu tinha vontade de ir e respondi que naturalmente não tinha; mamãe não havia de me querer, pois a pensão mal dava para ela viver, com os preços altos como estavam, e o dinheiro que eu mandara para Odette já se acabara; mas, se eu lhe aparecesse à porta, ela não poderia deixar de me receber, no estado em que eu estava. Ele fitou-me longamente e pensei que fosse dizer que não me emprestava coisa alguma. Depois perguntou:
‘’Você gostaria que eu a levasse para um lugarzinho que conheço no campo, você e a menina? Estou precisando de umas férias.”
– Mal pude acreditar nos meus ouvidos. Fazia tantos anos que eu o conhecia e ele nunca tentara tomar liberdades comigo.
“No estado em que estou?”, perguntei. Não pude deixar de rir. “Meu pobre amigo, no momento atual não presto para homem nenhum.”
– Larry sorriu. Você já notou que sorriso maravilhoso ele tem? Doce como mel. “Não seja tola”, replicou. “Não estou pensando nisso.”
– Nesta altura eu chorava tanto que mal podia falar. Ele me deu dinheiro para ir buscar a menina e fomos todos juntos para o campo. Oh! o lugar para onde nos levou era um encanto.
Suzanne o descreveu. Ficava a quase cinco quilômetros de uma cidade cujo nome agora não me ocorre; tomaram um carro para ir até a estalagem. Prédio meio em ruínas, à beira de um rio; gramado que descambava para a margem, e onde havia plátanos, a cuja sombra eles se habituaram a tomar as refeições. No verão ali apareciam artistas, para pintar; mas ainda era cedo, de modo que agora tinham o hotel à sua disposição. A comida era célebre e aos domingos vinha muita gente de carro, para um almoço bem à vontade, mas durante a semana a paz era raramente perturbada. Graças ao descanso, boa comida e bom vinho, Suzanne ficou mais forte, sentindo-se feliz por ter a filha a seu lado.
– Ele era um anjo para Odette e a menina o adorava. Eu procurava impedir que ela o aborrecesse, mas Larry não fazia caso das suas travessuras. Pareciam duas crianças, a ponto de eu não poder deixar de rir.
– Que faziam vocês o tempo todo? – perguntei.
– Oh! sempre se tinha o que fazer. Tomávamos o barco e íamos pescar; às vezes conseguíamos que o patron nos emprestasse o seu Citroën e íamos até a cidade, Larry gostava disso. As casas eram antigas e a place tão silenciosa que a única coisa que se ouvia era o som dos nossos próprios passos sobre as pedras. Havia um hôtel de ville Luís xv, uma velha igreja e, à entrada da cidade, um castelo com um jardim por Le Notre. Quem se sentasse no café da place tinha a impressão de estar vivendo numa época remota de trezentos anos – e o Citroën na esquina não parecia absolutamente pertencer a este mundo.
Fora depois de um desses passeios que Larry lhe contara a história do jovem aviador, que narrei no princípio deste livro.
– Por que será que ele lhe contou? – perguntei.
– Não tenho a mínima ideia. Durante a guerra existira ali um hospital e havia fileiras e fileiras de cruzes no cemitério. Fomos até lá. Eu não quis ficar durante muito tempo
– deu-me arrepios pensar em todos aqueles rapazes que ali jaziam. Larry manteve-se muito silencioso durante toda a viagem de volta. Nunca comia muito, mas ao jantar quase não tocou em nada. Lembro-me perfeitamente... Noite bonita, estrelada; sentamo-nos à beira do rio e ficamos a apreciar a silhueta dos álamos contra a escuridão. Larry acendeu o cachimbo. E de repente, à propos de bottes falou-me do amigo que morrera para lhe salvar a vida. – Suzanne tomou um gole de cerveja e continuou: – Ele é uma criatura estranha. Nunca cheguei a compreendê-lo. Costumava ler para mim, às vezes de dia, enquanto eu costurava para a pequena, e à noite, depois que eu a punha na cama.
– O que ele lia?
– Oh! toda espécie de livros. Cartas de madame de Sévigné e trechos de Saint-Simon. Imagine-toi, eu que até então nunca lera nada, a não ser os jornais, e de vez em quando um romance, quando falavam dele nos estúdios e eu não queria passar por tola!... Nunca pensei que a leitura pudesse ser coisa tão interessante. Aqueles escritores antigos não são tão patetas como a gente pensa.
– Quem é que pensa? – perguntei, rindo.
– Depois líamos juntos. Lemos Phèdre e Bérénice. Ele ficava com a parte masculina e eu com a feminina. Você não pode imaginar como era divertido – acrescentou Suzanne ingenuamente. – Larry me olhava com expressão tão estranha quando eu chorava nas partes tristes! Claro que isto só acontecia porque eu não recuperara ainda a saúde. E, você sabe, ainda conservo os livros. Mesmo hoje, não posso ler algumas das cartas de madame de Sévigné sem ouvir a voz melodiosa de Larry, sem ver o rio que corria de mansinho e os álamos da margem oposta; e às vezes tenho que parar, tal a dor que me dá no coração. Hoje sei que foram aquelas as semanas mais felizes da minha vida. Esse rapaz é um anjo de candura.
Suzanne percebeu que estava ficando sentimental e teve medo (erradamente) de que eu me risse dela. Encolheu os ombros e sorriu.
– Sabe de uma coisa, sempre tive a firme intenção de, quando chegar à idade canônica e nenhum homem quiser mais dormir comigo, fazer as pazes com a Igreja e arrepender-me dos meus pecados. Mas dos pecados que cometi com Larry nada no mundo me fará arrepender. Nunca, nunca, nunca!
– Mas, pela sua narrativa, não vejo que motivo possa haver para arrependimentos.
– Ainda não lhe contei nem a metade. Você sabe, tenho uma boa constituição e depois de três ou quatro semanas de ar livre, boa comida e bom sono, sem uma única preocupação, senti-me tão forte quanto antes. E estava com boa aparência, corada, e meu cabelo recuperara o brilho natural. Sentia-me como se tivesse vinte anos. Larry nadava no rio todas as manhãs e eu costumava observá-lo. Tem um corpo bonito; não de atleta, como o do meu escandinavo, mas forte e de uma graça infinita.
Suzanne fez uma pequena pausa e continuou:
– Ele tivera muita paciência enquanto eu estava tão fraca, mas agora que me sentia perfeitamente bem não vi razão para deixá-lo esperar por mais tempo. Dei-lhe uma ou duas indiretas, que estava pronta para tudo, mas ele não pareceu compreender. Naturalmente vocês anglo-saxões são esquisitos, brutos e sentimentais ao mesmo tempo; e não há dúvida de que não são bons amantes. Pensei comigo mesma: ‘Talvez seja delicadeza da parte dele; fez tanto por mim, permitiu que eu trouxesse a menina; é possível que não tenha coragem de me pedir a paga a que tem direito”. E, portanto, certa noite, quando íamos para a cama, perguntei-lhe: “Você quer que eu vá ao seu quarto mais tarde?”.
Não pude deixar de rir.
– Você foi um tanto brusca, não foi?
– Bom, eu não podia convidá-lo para vir ao meu, pois
Odette dormia comigo – respondeu ingenuamente Suzanne. – Lany fitou-me por um momento com aqueles seus olhos bondosos, depois sorriu.
‘’Você quer vir?”, perguntou-me.
“Que é que você pensa – com este belo corpo que você tem?” “Está certo; venha então.”
– Subi, despi-me e esgueirei-me pelo corredor até o quarto dele. Larry estava na cama lendo e fumando. Largou o livre o cachimbo e moveu-se na cama para me dar lugar.
Suzanne ficou em silêncio durante alguns momentos e não tive vontade de lhe fazer perguntas. Mas dali a pouco ela prosseguiu:
– Era um amante esquisito. Muito meigo, afetuoso e até mesmo terno, viril sem ser apaixonado, se é que você compreende o que quero dizer, e completamente sem vício. Amava como um fogoso colegial. Engraçado e ao mesmo tempo comovente... Saí com a impressão de que eu é que lhe devia estar grata, e não ele a mim. Quando fechei a porta, vi-o apanhar de novo o livro e continuar a leitura do ponto onde parara.
Comecei a rir.
– Ainda bem que você acha engraçado – disse ela um tanto secamente. Mas Suzanne não deixava de ter o senso de humor. Riu também e continuou: – Logo percebi que, se fosse esperar convite, talvez tivesse que esperar eternamente; e, portanto, todas as vezes que tinha vontade, eu ia ao quarto dele e entrava na cama. Foi sempre muito gentil. Em resumo, tinha instintos naturais, mas era como esses homens abstratos que se esquecem de comer, mas que, quando a gente lhes põe um prato à frente, comem com apetite. Conheço perfeitamente quando um homem está apaixonado por mim e eu teria sido idiota se pensasse que Larry me amava, mas achei que ele se habituaria à minha pessoa. A gente tem que ser prática na vida; pensei com os meus botões que me conviria muito se, quando voltássemos a Paris, Larry me levasse para morar com ele. Sei que me deixaria ficar com a menina e isso me teria causado prazer. Instintivamente eu sentia que seria tolice apaixonar-me por ele; você sabe como as mulheres não têm sorte: muitas vezes, quando amam, deixam de ser amadas; tomei, portanto, a resolução de ficar em guarda.
Suzanne tragou a fumaça e soltou-a depois pelo nariz. Estava ficando tarde e havia agora muitas mesas vagas, mas via-se ainda um grupo em volta do bar.
– Certa manhã, depois do café, estava eu costurando à beira do rio e Odette brincando a meu lado, quando vi Larry aproximar-se.
“Vim despedir-me de você”, disse ele.
“Vai a algum lugar?”, perguntei, admirada. “Vou.”
“Mas não de uma vez?”
‘’Você já está boa. Aqui tem dinheiro para sustentá-la até o fim do verão e durante os primeiros tempos após a sua volta para Paris.”
No primeiro momento fiquei tão desconcertada que não soube o que dizer. Ele continuou de pé, de frente para mim, sorrindo com aquele seu ar cândido.
“Fiz alguma coisa que lhe desagradasse?”, perguntei. “Nem por um momento julgue isso. Tenho um trabalho a fazer. Passamos uns tempos muito agradáveis aqui. Odette, venha dizer adeus ao seu tio.”
– Ela era pequena demais para compreender. Larry tomou-a nos braços e beijou-a; depois me beijou também e voltou para o hotel; dali a minutos ouvi o ruído do carro que se afastava. Olhei para as notas que tinha na mão: doze mil francos. Aconteceu tão depressa que não tive tempo de reagir. “Zut alors”, disse de mim para mim. De uma coisa pelo menos eu podia estar satisfeita: de não ter permitido que meu coração ficasse por demais preso a ele.
Mas para mim tudo aquilo era um mistério. Vi-me obrigado a rir.
– Sabe de uma coisa, houve época em que adquiri certa reputação como humorista pelo simples método de dizer a verdade. Para muitas pessoas foi uma tal surpresa que pensaram que eu estava querendo ser engraçado.
– Não vejo relação.
– Pois bem, Larry é, creio, a única criatura completamente desinteressada que conheço. Isto faz com que seus atos pareçam singulares. Não estamos habituados a pessoas que fazem certas coisas simplesmente pelo amor de um Deus em quem elas não acreditam.
Suzanne encarou-me.
– Meu pobre amigo, voce bebeu demais.
Cinco
Cinco
1
Não me dediquei grandemente ao meu trabalho em Paris. Era muito agradável, na primavera, com os castanheiros nos Champs Elysées em plena florescência, e quando, nas ruas, tão alegres eram as luzes. Havia prazer na atmosfera: prazer leve e fugaz, sensual sem vulgaridade, que avivava o passo e alertava a inteligência. Sentia-me feliz na companhia dos meus inúmeros amigos e, repleto o coração de amenas recordações do passado, pelo menos espiritualmente consegui recapturar parte do fulgor da mocidade. Achei que seria tolice permitir que o trabalho perturbasse a delícia do momento atual que talvez nunca mais me fosse dado gozar tão plenamente.
Isabel, Gray, Larry e eu fazíamos excursões a lugares interessantes e não muito afastados. Visitamos Chantilly e Versailles, St. Germain e Fontainebleau. Aonde quer que fôssemos, almoçávamos bem e fartamente. Gray comia bastante para satisfazer o seu vasto corpo e talvez se excedesse um pouco na bebida. Não havia dúvida de que sua saúde melhorara, não sei se devido ao tratamento de Larry ou à ação do tempo. Tinham cessado as pavorosas enxaquecas e seus olhos iam perdendo a expressão perplexa que tanto me confrangera da primeira vez que o vira, logo após a minha chegada a Paris. Pouco falava, a não ser para de vez em quando contar uma longa história, mas ria em altas gargalhadas das tolices que Isabel e eu dizíamos. Apreciava aqueles passeios. Embora não fosse um sujeito divertido, era tão bem-humorado e fácil de contentar que era impossível a gente não gostar dele. Tipo de homem com quem uma pessoa hesitaria em ficar uma noite a sós; e no entanto a perspectiva de passar com ele seis meses não seria absolutamente desagradável.
Era um prazer notar o seu amor por Isabel; encantava-se com a beleza dela e achava-a a mais inteligente e sedutora criatura deste mundo. Comovente, também, a sua dedicação por Larry. Cega dedicação. Também Larry parecia estar se divertindo; quero crer que considerava aquela época como uma espécie de férias roubadas aos projetos que por acaso abrigasse, procurando calmamente aproveitá-las ao máximo. Nem ele, tampouco, era grande conversador, mas isso não tinha importância, pois bastava a sua companhia; era tão natural, de uma alegria tão sã que a gente não lhe pedia mais do que ele dava; e eu sabia perfeitamente que, se aqueles dias decorriam tão felizes, era pelo fato de Larry estar entre nós. Embora nunca dissesse uma frase brilhante ou espirituosa, essas reuniões teriam sido insípidas sem ele.
Certa vez, quando regressávamos de um desses passeios, presenciei uma cena que de certo modo me sobressaltou. Tínhamos ido a Chartres e voltávamos para Paris. Gray à direção e Larry sentado ao seu lado; Isabel e eu atrás. Cansados, depois do longo dia.
Larry estava com o braço estendido na parte superior do assento da frente. Pela posição erguera-se-lhe o punho da camisa, deixando à mostra o pulso fino, forte, e também a parte inferior do braço trigueiro, coberto por uma penugem que o sol dourava. Qualquer coisa na imobilidade de Isabel atraiu-me a atenção e me fez olhar para ela. Estava tão quieta que parecia hipnotizada. Respiração ofegante. Tinha os olhos fixos no pulso nervoso com seus cabelinhos dourados e na mão longa e delicada, mas forte, e jamais vi num semblante humano tão faminta concupiscência como no de Isabel naquele momento. Verdadeira máscara de luxúria. Nunca pensei que suas belas feições pudessem assumir expressão de tão desenfreada sensualidade. Mais animal que humana. A beleza desaparecera do seu rosto; a expressão que nele havia tornava-o medonho e assustador. Lembrava, horrorosamente, uma cadela no cio; quase me senti mal. Ela não tinha noção da minha presença; não tinha noção de coisa alguma a não ser daquela mão, tão despreocupada, que lhe despertara o frenético desejo. Nisso um espasmo contorceu-lhe o rosto, ela estremeceu e, fechando os olhos, recostou-se no canto do carro.
– Dê-me um cigarro – disse-me, em voz irreconhecível de tão rouca.
Tirei um cigarro da cigarreira e acendi-o para ela. Isabel fumou-o avidamente. Durante o resto do trajeto ficou a olhar para fora da janela sem uma palavra.
Chegando ao apartamento, Gray pediu a Larry que me levasse até o hotel e fosse depois guardar o carro na garagem. Larry passou para a direção e eu me sentei ao seu lado. Ao atravessar a calçada, Isabel segurou o braço de Gray e, aconchegando-se a ele, lançou-lhe um olhar que não cheguei a ver, mas cuja significação não me foi difícil adivinhar. Ocorreu-me que ele iria ter uma companheira apaixonada na cama, aquela noite, embora provavelmente nunca viesse a saber a que dor de consciência devia tal ardor. Junho chegava ao termo e eu tinha que voltar para a Riviera. Alguns amigos de Elliott, de partida para a América, haviam emprestado aos Maturin sua vila em Dinard, e estes pretendiam para lá seguir assim que começassem as férias das crianças. Larry ia ficar em Paris, para trabalhar, mas estava pensando em comprar um Citroën de segunda mão e prometeu ir em agosto passar uns dias com eles. Na minha última noite em Paris, convidei os três para jantarem comigo.
Foi nesta noite que encontramos Sophie Macdonald.
2
Isabel estava com vontade de percorrer os cabarés desacreditados e, como eu conhecia alguns, pediu-me que lhes servisse de guia. A ideia não me agradou, pois os frequentadores desses lugares, em Paris, não fazem cerimônia em manifestar seu desprazer ante a visita de curiosos de outra classe. Mas Isabel insistiu. Preveni-a de que iria achar enfadonho e supliquei-lhe que se vestisse simplesmente. Jantamos tarde, fomos ao Follies Bergères por uma hora e depois nos pusemos em campo. Levei-os primeiramente a um portão preto de Notre-Dame, frequentado por bandidos e suas concubinas; eu conhecia o proprietário e ele nos arranjou lugares a uma longa mesa, ocupada por pessoas da pior aparência possível; mas encomendei vinho para todos e bebemos à saúde uns dos outros. Estava quente, enfumaçado e sujo. Levei-os depois ao Sphynx onde, sentadas em dois bancos opostos, vimos mulheres nuas sob os vestidos vistosos, exibindo os seios, mamilos e tudo o mais; quando a orquestra começou a tocar, puseram-se a dançar indiferentemente umas com as outras, de olho nos homens sentados à volta das mesas de mármore que rodeavam o salão. Encomendamos uma garrafa de champanhe. Algumas das mulheres namoraram Isabel ao passar por nossa mesa, mas não sei se ela terá compreendido o significado de tais olhares.
Fomos depois à Rue de Lappe. É uma rua suja e estreita e assim que se entra nela tem-se impressão de sórdida luxúria. Fomos a um café. Lá estava, ao piano, o rapazinho de sempre, pálido e dissoluto; outro homem, velho e cansado, arranhava um violino, enquanto um terceiro tirava de um saxofone acordes dissonantes. O café estava repleto e não parecia haver uma mesa vaga, mas, ao perceber que éramos fregueses com dinheiro, sem a menor cerimônia o patron nos deu a mesa de um casal, mandando-os para outra já ocupada. As pessoas assim desalojadas não ficaram lá muito satisfeitas e fizeram a nosso respeito comentários bem pouco lisonjeiros. Muita gente dançando, marinheiros com o pompom vermelho no chapéu; homens na maioria de gorro na cabeça e lenço em volta do pescoço; mulheres maduras, e também algumas moças, todas elas pintadas até os olhos, sem chapéu, metidas em saias curtas e blusas de tons vivos. Homens dançando com rechonchudos rapazinhos de olhos pintados; mulheres emaciadas, de expressão dura, dançando com mulheres gordas de cabelo tinto; homens dançando com mulheres. Ar pesado de fumaça, vapores alcoólicos e transpiração. A música parecia não ter fim e a desagradável multidão de rostos suarentos continuava a rodar pela sala, com uma solene persistência em que havia algo de macabro. Vi alguns homens de aspecto brutal, mas na maioria eram raquíticos e anêmicos. Pus-me a observar os músicos. Pareciam robôs, tão maquinal a sua execução, e fiquei a conjecturar se, no início da carreira, teriam eles alimentado sonhos de glória, pensando que de longe viria gente para os ouvir e aplaudir. Mesmo para tocar mal violino, uma pessoa precisa tomar lições e estudar; teria aquele rabequista tido todo esse trabalho só para tocar foxtrote até altas horas da madrugada em tão sórdido lugar? A música parou e o pianista enxugou o rosto com um lenço enxovalhado. Os pares voltaram para suas mesas, arrastando-se uns, outros bamboleando-se. Subitamente ouvimos uma voz americana:
– Mas será possível?...
De uma mesa do lado oposto levantou-se uma mulher. O homem que a acompanhava tentou detê-la, mas ela empurrou-o para um lado e atravessou, cambaleante, a sala. Estava completamente embriagada. Veio até nossa mesa e ficou de pé, pouco firme nas pernas e sorrindo tolamente. Parecia achar o nosso grupo muito divertido. Olhei de relance para os meus companheiros. Isabel encarava-a com ar parado, Gray estava taciturno e Larry fitava-a como se não pudesse acreditar nos próprios olhos.
– Alô! – exclamou ela.
– Sophie – disse Isabel.
– Que raio de pessoa pensou você que eu fosse? – gorgolejou a outra. Agarrou o braço de um garçom que ia passando e disse: – Vincent, vá me buscar uma cadeira.
– Vá você – disse o homem, libertando-se.
– Salaud – gritou ela, cuspindo-lhe.
– T’en fais pas, Sophie – disse um sujeito alto e gordo, de cabeça grande e cabelos gordurosos, que estava sentado perto de nós, em mangas de camisa. – Aqui tens uma cadeira.
– Imagine encontrar vocês assim – exclamou a mulher, ainda cambaleante. – Alô, Larry. Alô, Gray. – Caiu na cadeira que o homem gordo colocara atrás dela e continuou: – Vamos beber alguma coisa. Patron – gritou.
Eu notara que o proprietário nos observava; agora ele se aproximou.
– Conheces essas pessoas, Sophie? – perguntou dirigindo-se familiarmente a ela na segunda pessoa do singular.
– Ta gueule – replicou ela com uma risada de bêbada. – São amigos da infância. Vou oferecer-lhes uma garrafa de champanhe. E não me apareças com nenhuma urine de cheval. Que venha alguma coisa que a gente possa tomar sem vomitar.
– Tu estás bêbada, Sophie – disse ele.
– Vai para o inferno.
Ele afastou-se, satisfeito por poder vender uma garrafa de champanhe – por precauções só tínhamos bebido conhaque com soda – e Sophie fitou-me durante alguns segundos com ar perplexo.
– Quem é o seu amigo, Isabel?
Isabel disse-lhe o meu nome.
– Ah! sim. Agora me lembro; você veio uma vez a
Chicago. Todo alinhadão, não é?
– Talvez – respondi sorrindo.
Não me lembrava dela, mas isto não era de admirar, pois fazia mais de dez anos que eu fora a Chicago e conhecera muita gente lá, e também depois.
Ela era alta e, por ser muito magra, de pé parecera ainda mais alta. Estava com uma blusa de seda de um verde forte, amarrotada e manchada; saia preta, curta. Cabelos cortados e levemente ondulados, mas em desordem e tintos de um tom vivíssimo. Escandalosamente pintada, com carmim até os olhos, pálpebras azuladas, pestanas e sobrancelhas acentuadas pelo lápis, e lábios escarlates. Mãos sujas, de unhas pintadas. Seu aspecto era mais ordinário do que o de qualquer outra mulher ali presente, e pareceu-me que estava não somente embriagada, mas sob a ação de algum narcótico. E no entanto possuía, inegavelmente, certa corrupta atração; mantinha a cabeça com uma inclinação arrogante e a pintura realçava mais ainda o extraordinário tom esverdeado dos olhos. Apesar de bêbada como estava, tinha um franco sem-vergonhismo que, imaginei, devia atrair o que havia de mais baixo nos homens. Ela nos envolveu com um irônico sorriso e disse:
– Não creio que vocês estejam muito satisfeitos por me ver.
– Eu sabia que você estava em Paris – disse desajeitadamente Isabel, com um gélido sorriso nos lábios.
– Você podia ter me telefonado. Meu nome está na lista.
– Não faz muito que chegamos. Gray veio em socorro de Isabel.
– Está se divertindo bastante, Sophie?
– Muito. Você faliu, não é verdade, Gray?
O rosto de Gray tornou-se ainda mais rubro.
– É.
– Pouca sorte! Chicago deve estar agora muito triste. Felizmente saí de lá a tempo. Com os diabos, será que aquele cafajeste não nos vai trazer alguma coisa para beber?
– Vem vindo – disse eu, notando que um garçom procurava passar por entre as mesas, carregando uma bandeja com copos e uma garrafa de vinho.
Minha observação chamou a atenção de Sophie sobre a minha pessoa.
– Meus queridos parentes por afinidade expulsaram-me de Chicago. Disseram que eu estava estragando a sua... reputação. Deu uma risada selvagem e continuou:
– Sou desses expatriados que vivem de mesada.
O champanhe veio e foi servido. Sophie ergueu o copo com mão trêmula.
– Para o diabo os alinhadões! – exclamou. Esvaziou o copo e olhou de relance Larry. – Você está calado, Larry.
Ele estivera fitando Sophie com ar impassível. Não tirara dela os olhos, desde que ela aparecera. Sorriu amavelmente e replicou:
– Não sou um sujeito muito prosa.
A música recomeçou a tocar e um homem se aproximou de nossa mesa. Era alto e bem proporcionado; grande nariz aquilino, vasta cabeleira negra e luzidia, lábios grossos e sensuais. Parecia um sinistro Savonarola. Como quase todos os homens ali presentes, não usava colarinho, e o paletó justo estava abotoado de maneira a lhe marcar a cintura.
– Vem, Sophie. Vamos dançar.
– Vai-te embora. Estou ocupada. Não vês que estou com amigos?
– J’m en fous de tes amis. Teus amigos que vão para o inferno. Tu vais dançar.
Segurou-lhe o braço, mas Sophie desvencilhou-se.
– Fous moi la paix, espece de con – gritou ela com súbita veemência.
– Merde.
– Mange.
Gray não compreendia o que eles diziam, mas percebi que, com o estranho conhecimento de obscenidades que muitas mulheres virtuosas parecem ter, Isabel entendia perfeitamente; seu rosto enrijeceu numa expressão de nojo. O homem ergueu o braço, de mão aberta – mão calosa de operário – e ia esbofetear Sophie quando Gray se ergueu a meio na cadeira.
– Allaiz vous ong – gritou ele com a sua execrável pronúncia.
O homem susteve o gesto, lançando a Gray um olhar furioso.
– Cuidado, Coco – recomendou Sophie com uma risada amarga. – Olha que ele te põe a nocaute.
O homem avaliou a altura, peso e força de Gray; depois, encolhendo taciturnamente os ombros, atirou-nos um palavrão e safou-se. Sophie riu baixinho, num gorgolejar de bêbada. O resto do grupo permaneceu em silêncio. Enchi de novo o seu copo.
– Você está morando em Paris, Larry? – perguntou ela, depois de ter bebido até o fim.
– Por enquanto.
É sempre difícil conversar com um bêbado, e não há dúvida de que os sóbrios levam desvantagem. Continuamos a falar durante alguns minutos, de maneira monótona e constrangida. Depois Sophie afastou a sua cadeira.
– Se eu não voltar para perto do meu amiguinho ele ficará furioso. É um sujeito emburrado, mas céus! é um macho e tanto. – Ergueu-se, cambaleante, e continuou:
– Até logo, pessoal. Apareçam novamente. Estou aqui todas as noites.
Foi abrindo caminho por entre os pares que dançavam e a perdemos de vista na multidão. Quase cheguei a rir do gélido desprezo expresso nas feições clássicas de Isabel. Nenhum de nós disse uma palavra.
– Este lugar é imundo – exclamou de repente Isabel. – Vamos embora.
Paguei as bebidas e a garrafa de champanhe que Sophie encomendara e nos levantamos. Quase todos dançavam, de modo que conseguimos sair sem que houvesse comentários. Já eram duas horas e na minha opinião mais que tempo de ir para a cama, mas Gray disse que estava com fome, de modo que sugeri irmos ao Graf, em Montmartre. Fizemos o trajeto em silêncio; eu me sentara ao lado de Gray para indicar-lhe o caminho. Chegamos ao alegre restaurante. Ainda havia gente no terraço. Entramos e pedimos ovos com toucinho e cerveja. Pelo menos aparentemente Isabel recuperara o sangue-frio. Felicitou-me, talvez com certa ironia, pelo fato de eu conhecer os lugares mais desacreditados de Paris.
– A ideia foi sua – repliquei.
– Diverti-me imensamente. Foi uma noite formidável.
– Droga! – disse Gray. – Uma imundície. E Sophie!... Isabel encolheu com indiferença os ombros.
– Não se lembra dela? – perguntou-me. – Sentou-se ao seu lado, quando você veio jantar conosco pela primeira vez. Naquele tempo não tinha esse pavoroso cabelo vermelho. Sua cor natural é um bege sujo.
Voltei em pensamentos ao passado. Lembrei-me de uma mocinha de olhos de um azul quase verde e jeitinho atraente de manter de lado a cabeça. Bonita, não; mas fresca e ingênua, com um misto de timidez e petulância que eu achara interessante.
– Claro que me lembro. Gostei do nome dela. Tive uma tia que se chamava Sophie.
– Casou-se com um rapaz chamado Bob Macdonald.
– Bom sujeito – disse Gray.
– Era um dos rapazes mais bonitos que conheci. Nunca pude compreender o que ele viu em Sophie. Ela casou-se logo depois de mim. Seus pais eram divorciados; a mãe casou-se de novo com um empregado da Standard Oil na China. Ela morava com os parentes do pai, em Marvin, e naquela época nos víamos muito, mas depois de casada abandonou quase que completamente o nosso grupo. Bob Macdonald era advogado, mas não ganhava muito, e eles tinham um apartamento sem elevador, na parte norte. Mas não era por isso. Não queriam saber de ninguém. Nunca vi duas pessoas tão loucas uma pela outra. Mesmo depois de dois ou três anos de casados, já com um filho, quando iam ao cinema Bob passava o braço à volta da cintura de Sophie e ela punha a cabeça no ombro dele, como dois namorados. Eram a maior pilhéria de Chicago.
Larry ouvia o que Isabel dizia, mas não fez comentário. A expressão do seu rosto era inescrutável.
– O que aconteceu, então? – perguntei.
– Certa noite, vinham eles voltando para Chicago num cupezinho, que tinham, e a criança estava junto.
Eram obrigados a levá-la por toda parte, pois não tinham empregada – era Sophie quem fazia todo serviço – e, além do mais, a adoravam. Nisto um vasto sedan, onde vinha um grupo de bêbados, a cento e trinta quilômetros por hora, bateu em cheio contra eles. Bob e a criança morreram instantaneamente, mas Sophie só teve concussão e uma ou duas costelas quebradas. Esconderam dela o máximo possível a morte de Bob e do filho, mas finalmente tiveram que contar-lhe. Dizem que foi horrível. Ficou como louca. Gritou como uma desesperada. Tinham que vigiá-la noite e dia e uma vez ela quase chegou a atirar-se pela janela. Naturalmente fizemos o que pudemos, mas ela parecia odiar-nos. Depois que saiu do hospital, puseram-na num sanatório, onde ficou durante meses.
– Coitadinha.
– Quando a soltaram ela começou a beber e, quando estava bêbada, entregava-se a qualquer um. Horrível para a família. Gente muito boa e pacata, que detestava escândalo. A princípio todos nós tentamos ajudá-la, mas foi inútil; se alguém a convidava para jantar, já chegava meio tocada e era muito provável que ficasse inconsciente antes de terminar a noite. Depois começou a misturar-se com um grupo péssimo e fomos obrigados a abandoná-la. Certa vez foi presa por estar guiando um carro em estado de embriaguez. Estava com um mestiço que arranjara num bar qualquer, e aconteceu que a polícia andava atrás dele.
– Mas tinha dinheiro? – perguntei.
– Tinha o seguro de vida de Bob; o carro que se chocara com o deles estava no seguro e creio que os donos lhe deram uma indenização qualquer. Mas não durou muito. Gastou tudo como um marinheiro bêbado e dali a dois anos estava quebrada. Sua avó não quis saber dela em Marvin. E então os parentes do marido disseram que lhe dariam uma mesada se fosse morar no estrangeiro. Creio que é disso que vive agora.
– O mundo é um círculo vicioso – observei. – Antigamente mandavam, da minha pátria para a América, a ovelha negra da família; pelo que vejo, mandam-na hoje da América para a Europa.
– Não posso deixar de ter pena dela – disse Gray.
– Não pode? – perguntou friamente Isabel. – Pois eu posso. Claro que foi um choque e ninguém teve mais pena de Sophie do que eu. Conhecíamo-nos desde crianças. Mas uma pessoa normal reage diante de uma coisa dessas. Se ela se entregou por completo foi porque tinha um fundo mau. Era naturalmente desequilibrada; mesmo o seu amor por Bob era exagerado. Se tivesse mais fibra, teria conseguido fazer alguma coisa da vida.
– Se isto, se aquilo... Você não estará sendo severa demais, Isabel? – murmurei.
– Não o creio. Tenho bom senso e não vejo razão para sentimentalismos a respeito de Sophie. Deus sabe que ninguém poderia ser mais dedicada a Gray e às crianças do que eu, e se eles morressem num desastre de automóvel eu ficaria alucinada, mas cedo ou tarde acabaria reagindo. Não é isto que você gostaria que eu fizesse, Gray, ou preferiria que eu ficasse bêbada todas as noites e me entregasse a todos os apaches de Paris?
Desde que eu conhecia Gray, foi aí que ele mais próximo chegou de fazer uma observação espirituosa.
– Claro que eu preferiria que você se atirasse na minha pira, metida num vestido de Molyneaux, mas, como isto está fora de moda, acho que a melhor solução seria você dedicar-se ao bridge. E gostaria que se lembrasse de nunca abrir o jogo, em sem-trunfo, com menos de três e meia a quatro vazas de honra na mão.
A ocasião não era propícia para eu dizer a Isabel que, embora sincero, seu amor pelo marido e filhas estava longe de ser apaixonado; mas talvez ela me tivesse lido o pensamento, pois se virou para mim com certa virulência:
– Que diz você a isso?
– Sou como Gray; tenho pena da menina.
– Ela não é nenhuma menina: está com trinta anos.
– Provavelmente para ela o mundo acabou quando o marido e o filho morreram. Com certeza pouco se importou com o que viesse a acontecer-lhe, caindo na horrível degradação do alcoolismo e da copulação promíscua para se vingar da vida que tão cruelmente a tratara. Vivera no céu e, ao perdê-lo, não se conformou em viver na terra comum dos homens comuns; em desespero, mergulhou no inferno. Quero crer que, não podendo mais beber o néctar dos deuses, achou preferível beber gim ordinário.
– Isso é o tipo de coisa que a gente lê em romances. É tolice, e você sabe que é tolice. Sophie chafurda na lama porque sente prazer nisso. Outras mulheres têm perdido maridos e filhos. Não foi isto que a tornou má. O mal não pode brotar do bem. O mal sempre esteve ali, latente. Quando o acidente de automóvel rompeu as suas defesas, libertou-a para ela se mostrar tal qual era. Não desperdice com Sophie a sua piedade; ela é agora o que no fundo sempre foi.
Durante todo este tempo Larry permanecia calado, parecendo imerso nos próprios pensamentos; creio que mal ouvia o que dizíamos. Breve silêncio seguiu-se às palavras de Isabel. Depois Larry começou a falar, mas em voz estranha, incolor, como se não se dirigisse a nós, e sim a si próprio; seus olhos pareciam perdidos na névoa do passado.
– Lembro-me dela quando tinha catorze anos, com seus cabelos compridos afastados da testa e laço preto atrás, rosto sério, cheio de sardas. Menina modesta, idealista. Lia tudo que lhe chegava às mãos e costumávamos falar sobre livros.
– Quando? – perguntou Isabel franzindo de leve as sobrancelhas.
– Oh! quando você saía para fazer visitas com sua mãe. Eu ia até a casa do avô dela e nos sentávamos sob um grande olmo que lá havia. Líamos em voz alta. Ela adorava poesia; chegou mesmo a compor.
– Muitas meninas dessa idade fazem o mesmo. Geralmente são versos que não valem nada.
– Verdade que isso aconteceu há muito tempo e provavelmente eu não tinha competência para julgar.
– Você não podia ter tido mais de dezesseis anos.
– Claro que era mais ou menos plágio. Havia muito de Robert Frost. Mas, mesmo assim, creio que eram extraordinários para pessoa tão moça. Sophie tinha bom ouvido e noção de ritmo. Sentia-se inspirada com os sons e perfumes do campo, com o prenúncio da primavera no ar, com o cheiro da terra úmida após uma chuva estival.
– Eu nunca soube que ela fazia versos – disse Isabel.
– Guardava segredo disso, pois tinha medo que vocês rissem dela. Era muito tímida.
– Tímida é que ela não é hoje.
– Quando voltei da guerra, encontrei-a quase moça. Lera muito sobre as condições das classes operárias e vira alguma coisa deste lado da vida de Chicago. Interessara-se por Carl Sandburg e estava escrevendo furiosamente, em versos livres, sobre a mísera condição da pobreza e a exploração das classes trabalhistas. Talvez fossem um pouco corriqueiros, mas eram sinceros, e neles havia piedade, aspiração. Naquela época ela queria ser assistente social. Comovente, esse seu desejo de sacrifício. Acho que seria capaz de muita coisa. Não era boba, nem melosa, mas dava a impressão de uma suave pureza e estranha elevação de alma. Estávamos sempre juntos, naquele ano.
Percebi que Isabel ouvia com crescente exaspero. Larry nem de longe suspeitava que estava enfiando no coração dela um punhal, e que cada uma de suas despreocupadas palavras avivava mais ainda a ferida. Mas, quando Isabel falou, foi com um leve sorriso nos lábios.
– Como é que ela chegou a escolhê-lo por confidente? Larry fitou-a com seu olhar confiante.
– Não sei. Era pobre, no meio de todas vocês que tinham bastante dinheiro, e eu não pertencia ao grupo; estava lá apenas porque o tio Bob clinicava em Marvin. Com certeza achou que isso era um traço que tínhamos em comum.
Larry não tinha parentes. Quase todos nós temos, pelo menos, primos que às vezes mal conhecemos, mas que em todo caso nos fazem sentir que estamos dentro da família humana. Os pais de Larry tinham sido filhos únicos; um de seus avós, o Quaker, morrera no mar, ainda moço, e seu outro avô não tinha irmãos. Ninguém poderia estar mais só no mundo do que Larry.
– Você nunca percebeu que Sophie estava apaixonada por você? – perguntou Isabel.
– Nunca – respondeu ele sorrindo.
– Pois bem, estava.
– Quando ele voltou da guerra, como herói ferido, quase todas as moças de Chicago ficaram com uma quedinha por Larry – disse Gray com o seu jeitão despachado.
– Aquilo era mais do que uma quedinha. Sophie tinha adoração por você, meu pobre Larry. Não me diga que não sabia?
– Claro que não sabia, nem acredito nisso.
– Com certeza você achou que ela era demasiadamente espiritual.
– Ainda vejo aquela menina magrinha, de fita no cabelo e rosto grave, que lia com voz trêmula de emoção aquela belíssima ode de Keats. Gostaria de saber onde está essa menina, agora...
Isabel teve um sobressalto e lançou a Larry um olhar curioso e desconfiado.
– Já é tardíssimo, e estou que não me aguento mais. Vamos embora.
3
Na noite seguinte tomei o Trem Azul para a Riviera e dois ou três dias depois fui a Antibes, visitar Elliott e dar-lhe notícias de Paris. Achei-o com má aparência. A cura em Montecatini não lograra o resultado esperado e suas subsequentes peregrinações o tinham fatigado excessivamente. Encontrara em Veneza uma pia batismal, e fora depois a Florença comprar o tríptico que tivera em vista. Ansioso por ver esses dois objetos devidamente colocados, fora aos Pântanos Pontinos e descera numa miserável estalagenzinha, onde achara o calor difícil de suportar. Suas preciosas compras levaram tempo a chegar, mas ele ali continuou, firme, decidido a ver cumprida a sua missão. Mas, depois de estar tudo em ordem, encantouse com o efeito e foi com orgulho que me mostrou as fotografias que tirara. Embora pequena, a igreja tinha imponência, e a discreta riqueza do interior era prova do bom gosto de Elliott.
– Vi, em Roma, um sarcófago dos primeiros tempos do cristianismo, que muito me agradou; levei muito tempo refletindo sobre a vantagem de comprá-lo, mas acabei desistindo.
– Mas, Santo Deus, para que queria você um sarcófago, Elliott?
– Para me pôr dentro dele, caro amigo. Era de um belo modelo e achei que, do outro lado da entrada, combinaria com a pia; mas aqueles primeiros cristãos eram uns sujeitinhos atarracados e eu não caberia dentro dele. E não ia ali ficar até o dia do Juízo Final, com os joelhos dobrados até o queixo, como um feto. Teria sido pouquíssimo confortável.
Ri, mas Elliott continuou sério.
– Tive melhor ideia. Arranjei tudo, com certa dificuldade, como era de esperar, para ser sepultado em frente ao altar, ao pé dos degraus do coro; e assim, quando os pobres camponeses dos Pântanos Pontinos vierem receber a sagrada comunhão, com suas pesadas botas pisarão sobre os meus ossos. Bem chie, não acha você? Apenas uma laje, com meu nome e duas datas. Si monumentum quoeris, circumspice. Se buscas o seu monumento, olha à volta, você sabe.
– Conheço bastante latim para entender uma citação corriqueira, Elliott – respondi secamente.
– Perdoe-me, caro amigo. Estou tão habituado à ignorância das classes elevadas que por um momento me esqueci que estava conversando com um escritor.
Ele venceu.
– Mas o que eu queria dizer-lhe era o seguinte – continuou Elliott. – Deixei tudo explicado no meu testamento, mas desejo que você faça com que as minhas determinações sejam cumpridas. Não quero ser enterrado na Riviera ao lado de coronéis aposentados e franceses da burguesia.
– Claro que farei o que deseja, Elliott, mas não creio que seja necessário pensarmos nisso durante muito tempo ainda.
– Estou caminhando em anos, você sabe, e, para ser franco, não sentirei muito quando chegar a minha hora. Como são mesmo aqueles versos de Landor? Aqueci ambas as mãos...
Embora eu não tenha boa memória para decorar palavra por palavra, a poesia era curta e consegui recitá-la.
I strove with none, for none was worth my strofe. Nature
I loved, and, next, to Nature, Art;
I warmed both hands before the fire of Life;
It sinks, and I am ready to depart.
– Isto mesmo – disse, ele.
Achei que só com imensa boa vontade se poderia aplicar a estância a Elliott. E no entanto ele continuou:
– Exprime exatamente os meus sentimentos. Nada mais poderia eu acrescentar, a não ser que sempre frequentei a melhor sociedade da Europa.
– Seria difícil encaixar isso numa quadra.
– A sociedade acabou-se. Houve época em que esperei que a América pudesse substituir a Europa, e criar uma aristocracia que o hoi polloi respeitaria, mas a depressão destruiu toda e qualquer esperança nesse sentido. Meu pobre país está se tornando incrivelmente burguês. Talvez você não me acredite, mas da última vez que estive na América um chofer de táxi me chamou de amigo.
Mesmo assim, embora a Riviera já não fosse a mesma depois do abalo de 29, Elliott continuava a dar recepções e a ir a recepções. Nunca frequentara os meios judeus, com exceção apenas da família Rothschild, mas as mais deslumbrantes festas eram agora dadas por membros da raça eleita, e quando havia uma festa Elliott não tinha forças para ficar em casa. Vagueava por essas reuniões, cortesmente apertando a mão de uma pessoa ou beijando a mão de outra, mas com uma espécie de tristonho desprendimento, qual exilado monarca que se sentisse ligeiramente constrangido por se ver em tal companhia. Os nobres exilados, no entanto, divertiam-se à grande e pareciam não ter maior ambição na vida que a de conhecer uma estrela de cinema. Nem tampouco aprovava Elliott o hábito moderno de tratar os artistas de teatro como pessoas com quem se possa ter relações sociais, mas justamente uma atriz aposentada construíra na vizinhança uma suntuosa residência, mantendo a casa aberta. Ministros, duques, damas da nobreza vinham passar semanas e semanas com ela. Elliott tornou-se assíduo visitante.
– Claro que é um grupo muito misturado – disse-me ele. – Mas a gente não precisa falar com quem não quer. Trata-se de uma compatriota e acho que é minha obrigação ajudá-la. Deve ser um alívio para seus hóspedes encontrarem alguém que fale a língua deles.
Às vezes eu achava Elliott tão abatido que lhe perguntava por que não levava as coisas mais na calma.
– Caro amigo, na minha idade ninguém pode dar-se ao luxo de ficar afastado. Depois de ter durante quase cinquenta anos frequentado a mais alta sociedade, sei perfeitamente que a pessoa que não é vista em toda parte logo fica esquecida.
Compreenderia ele que lamentável confissão fazia? Eu já não tinha coragem de rir de Elliott; achava-o agora profundamente patético. Vivera exclusivamente para a sociedade; as festas eram o seu pão-de-cada-dia; não ser convidado a uma delas era uma afronta; ficar só, uma humilhação – e, velho, agora, sentia-se terrivelmente amedrontado.
Chegamos ao fim do verão. Elliott passou-o correndo de uma ponta da Riviera a outra, almoçando em Cannes, jantando em Monte Carlo, empregando toda a sua arte para ser convidado a um chá aqui, a um coquetel ali; esforçando-se sempre, por mais cansado que estivesse, para ser amável, conversador e espirituoso. Sabia de todas as novidades e podia-se ter certeza de que ele seria o primeiro a conhecer todos os detalhes do último escândalo, excetuando-se, naturalmente, os que nele estavam envolvidos. Teria fitado com ar de franca estupefação qualquer pessoa que lhe dissesse que levava uma vida inútil. Teria considerado essa pessoa desoladoramente plebeia.
4
Quando chegou o outono, Elliott resolveu ir passar uns tempos em Paris, em parte para ver como iam indo Isabel, Gray e as crianças, e também para fazer o que ele chamava de acte de présence na capital. Pretendia seguir depois para Londres, a fim de encomendar algumas roupas, e aproveitaria a ocasião para visitar uns amigos. Eu tencionava ir diretamente para Londres, mas Elliott me pediu para fazer com ele a viagem de automóvel até Paris; não me sendo isso desagradável, consenti, achando depois que, já que lá estava, não havia motivo para também eu não passar uns dias na capital. Fizemos a viagem por etapas, parando nos lugares onde a comida era boa. Elliott estava sofrendo dos rins e só bebia água de Vichy, mas sempre insistia em escolher para mim meia garrafa de um bom vinho; e, excessivamente bondoso para me invejar um gosto que lhe não era permitido, tinha sincero prazer em me ver saboreá-lo. Era tão generoso que tive dificuldade em convencê-lo a me deixar repartir com ele as despesas. Embora eu me cansasse de ouvir casos a respeito das altas personagens que Elliott conhecera no passado, apreciei a viagem. Pitorescos, muitos dos lugares por onde passamos, assim coloridos pelas tintas do princípio de outono. Tendo almoçado em Fontainebleau, só chegamos a Paris à tarde. Elliott deixou-me à porta do meu modesto e antiquado hotel e virou a esquina, para ir ao Ritz.
Tínhamos prevenido Isabel da nossa chegada, de modo que não me admirei de encontrar um bilhete seu à minha espera; mas o conteúdo me surpreendeu.
“Venha ver-me assim que chegar. Aconteceu uma coisa horrível. Não traga o tio Elliott. Pelo amor de Deus, venha logo que puder.”
Não sou menos curioso que o comum dos mortais, mas eu tinha que me lavar e trocar de camisa; tomei depois um táxi e mandei tocar para o apartamento da Rue St. Guillaume. Fizeram-me entrar na sala de visitas. Isabel ergueu-se de um salto.
– Onde é que você esteve este tempo todo? Há séculos que estou esperando.
Eram cinco horas e, antes que eu pudesse responder, entrou o criado com a bandeja de chá. Isabel observou-o com impaciência, contorcendo as mãos. Não atinei com o motivo daquele chamado urgente.
– Acabo de chegar. Almoçamos folgadamente em Fontainebleau.
– Céus, como ele é vagaroso. Incrível! – murmurou Isabel.
O homem colocou sobre a mesa a salva com o bule, o açucareiro e as xícaras e, com calma realmente exasperante, dispôs à volta os pratos de pão com manteiga, bolos e pãezinhos. Depois saiu, fechando a porta.
– Larry vai casar-se com Sophie Macdonald.
– Quem é ela?
– Não seja tão idiota – exclamou Isabel, de olhos chispantes de cólera. – Aquela sujeita bêbada que encontramos naquele café imundo onde você nos levou. Só Deus sabe para que escolheu um lugar daqueles. Gray ficou enojado.
– Oh! você se refere à sua amiguinha de Chicago? – repliquei, ignorando a injusta censura. – Como é que você sabe?
– Como é que eu haveria de saber? Ele mesmo veio participar-me ontem à tarde. Tenho estado como louca desde então.
– Talvez seja melhor você sentar-se, dar-me uma xícara de chá e contar-me tudo direitinho.
– Sirva-se.
Ela estava sentada à mesinha de chá e observou-me, irritada, enquanto eu me servia. Instalei-me confortavelmente num sofazinho perto da lareira.
– Quase não temos visto Larry ultimamente; isto é, depois que chegamos de Dinard. Ele passou lá uns dias, mas não quis hospedar-se conosco, tendo ficado num hotel. Costumava ir à praia brincar com as crianças. Elas são loucas por ele. Íamos jogar golfe em St. Briac. Um dia Gray lhe perguntou se ele tornara a ver Sophie. “Sim, muitas vezes”, disse ele.
“Por quê?”, perguntei.
“É uma velha amiga”, respondeu.
“Se eu fosse você não perderia tempo com ela.”
– Nisto Larry sorriu. Você conhece o sorriso dele, como se a gente tivesse dito uma coisa engraçada, embora não haja graça nenhuma.
“Mas eu não sou você”, replicou.
– Encolhi os ombros e mudei de assunto. Não pensei mais nisso. Você bem pode imaginar o meu horror quando ele me aparece aqui e me participa que vai casar-se com Sophie.
‘Você não pode fazer isso, Larry”, disse eu. “Não pode.” “Mas vou fazer”, declarou ele tão calmamente como se estivesse repetindo um prato à mesa. “E quero que você seja muito boazinha para ela, Isabel.”
“É querer demais”, repliquei. “Você está louco. Ela é má, má, má.”
– Por que é que você diz isso? – perguntei, interrompendo-a.
Isabel fitou-me com olhos chamejantes.
– Ela está no pileque desde manhã até a noite. Entrega-se a qualquer sujeito que a convida.
– Isto não quer dizer que seja má. Muitos cidadãos altamente respeitáveis se embriagam e gostam de frequentar os meios baixos. São maus hábitos, como roer as unhas, por exemplo, mas não acho que passe disso. Chamo de má a pessoa que mente, e trapaceia, e é mesquinha.
– Se você tomar o partido de Sophie, sou capaz de matá-lo.
– Como foi que Larry se encontrou de novo com ela?
– Achou o número do telefone na lista e foi visitá-la.
Ela estava doente, o que não é para admirar, com a vida que leva. Larry chamou um médico e arranjou alguém para tratar dela. Foi assim que começou. Diz ele que Sophie deixou de beber; o idiota acha que ela está curada.
– Você se esqueceu do que Larry fez por Gray? Curou-o, não é verdade?
– Isto é outra coisa. Gray queria sarar. Ela não.
– Como é que você sabe?
– Porque conheço as mulheres. Quando uma mulher se rebaixa a esse ponto, está perdida; nunca mais poderá reabilitar-se. Se Sophie é hoje assim, é porque sempre foi assim. Pensa que ela será fiel a Larry? Claro que não. Cedo ou tarde há de estourar. Está no sangue. É dos brutos que ela gosta; são eles que a excitam, e é atrás dos brutos que ela irá. Fará da vida de Larry um inferno.
– É muito provável, mas não vejo o que você possa fazer.
– Larry está agindo de caso pensado.
– Eu nada posso fazer, mas você pode.
– Eu?
– Larry gosta de você e acata a sua opinião. Você é a única pessoa que tem um pouco de influência sobre ele. Você conhece a vida. Vá procurá-lo e diga-lhe que ele não pode cometer tão grande tolice. Diga-lhe que isso será a sua desgraça.
– Ele apenas me responderá que não é da minha conta, e com toda a razão.
– Mas você gosta dele, ou pelo menos sente certo interesse por ele; não pode ficar de braços cruzados e permitir que estrague sua vida dessa forma.
– Gray é o seu maior e mais velho amigo. Não creio que adiante muito, mas acho que Gray seria a pessoa indicada para falar com Larry.
– Oh! Gray... – replicou ela com impaciência.
– Sabe, talvez não tenha tão mau resultado como você pensa. Conheci dois ou três sujeitos, um na Espanha e dois no Oriente, que se casaram com prostitutas, e elas deram muito boas esposas. Sentiam-se gratas aos maridos, isto é, pela segurança que eles lhes deram; e, naturalmente, sabiam o que agrada a um homem.
– Você me faz perder a paciência. Acha então que me sacrifiquei para deixar Larry cair nas garras de uma ninfômana furiosa?
– Como foi que você se sacrificou?
– Renunciei a Larry pela única razão de não querer ser um estorvo na sua vida.
– Deixe de fita, Isabel. Você renunciou a ele por um brilhante quadrado e um casaco de marta.
Nem bem eu pronunciara essas palavras, um prato de pão com manteiga quase me pegou em cheio na cabeça. Por sorte consegui agarrar o prato, mas o conteúdo espalhou-se pelo chão. Levantei-me e coloquei de novo o prato sobre a mesa.
– Seu tio Elliott não teria ficado nada satisfeito se você tivesse quebrado um dos seus pratos Crown Derby. Foram feitos para o terceiro duque de Dorset e têm um valor inestimável.
– Apanhe as fatias de pão – ordenou-me Isabel.
– Apanhe-as você – repliquei sentando-me de novo no sofá.
– E você se diz um cavalheiro inglês – exclamou ela furiosa.
– Absolutamente; está aí uma coisa que eu nunca disse.
– Dê o fora daqui. Nunca mais quero vê-lo. Detesto a sua presença.
– É pena, pois a sua sempre me causou enorme prazer. Nunca lhe disseram que o seu nariz é exatamente como o de Psiquê do museu de Nápoles, que é considerada a representação máxima da beleza virginal? Você tem pernas bonitas, longas e benfeitas, fato que jamais me canso de admirar, pois quando era moça você as tinha curtas e grossas. Não sei como conseguiu essa transformação.
– Com uma vontade de ferro e pela graça de Deus – replicou ela colericamente.
– Mas, naturalmente, suas mãos são o seu traço mais sedutor. Tão finas e elegantes.
– Sempre tive impressão de que você as considerava grandes demais.
– Não para o seu tamanho. Acho admirável a graça com que você se serve delas. Que deva isso à natureza, ou à arte, você nunca faz um gesto sem beleza. São às vezes como flores, às vezes como pássaros em voo. Mais expressivas do que quaisquer palavras que você possa pronunciar. São como as mãos de um retrato por El Greco; em resumo, quando as vejo, quase chego a acreditar na pouco provável história de Elliott, que vocês tiveram por antepassado um nobre espanhol.
Isabel fitou-me, zangada.
– O que está dizendo? É a primeira vez que ouço semelhante coisa.
Contei-lhe a história do conde de Lauria e da dama de honra da rainha Maria, de quem Elliott dizia descender pelo lado materno. Enquanto isso, Isabel contemplava com benevolência seus dedos longos e unhas esmaltadas.
– A gente tem que descender de alguém – disse ela. Depois, com uma risadinha, lançando-me um olhar maroto em que não havia vestígio de rancor, acrescentou:
– Sujeitinho ordinário que é você!
É assim fácil fazer uma mulher ver onde está a razão;
basta que a gente lhe diga a verdade.
– Há momentos em que não desgosto nada de você
– disse-me Isabel.
Veio sentar-se no sofá ao meu lado e, passando o braço pelo meu, inclinou-se para beijar-me. Esquivei-me.
– Não quero saber de ficar com o rosto todo manchado de batom – disse eu. – Se você quer beijar-me, beije-me nos lábios, pois para esse fim foram eles criados por uma misericordiosa Providência.
Ela deu uma risadinha e, virando com a mão a minha cabeça para o seu lado, depositou sobre os meus lábios uma leve camada de batom. A sensação estava longe de ser desagradável.
– Agora que você fez isso, talvez esteja disposta a dizer o que deseja de mim.
– Conselho.
– Estou às suas ordens, mas nem por um momento acalento a ilusão de que você vai segui-lo. Só tem uma coisa a fazer, e é conformar-se de cara alegre.
Inflamando-se novamente, ela arrancou o seu braço do meu e, levantando-se, atirou-se numa poltrona do outro lado da lareira.
– Não vou ficar de braços cruzados vendo Larry estragar a sua vida. Não há o que eu não esteja disposta a fazer para impedir que ele se case com aquela vagabunda.
– De nada adiantará. Sabe, ele está dominado por uma das mais fortes emoções que podem agitar um peito humano.
– Você não me vai agora dizer que acha que ele está apaixonado?
– Não; isto seria relativamente uma insignificância.
– Então?...
– Você nunca leu o Novo Testamento?
– Creio que sim.
– Não lembra que Jesus foi para o deserto e jejuou durante quarenta dias? E então, quando ele estava esfaimado, o tentador lhe apareceu e disse: “Se és filho de Deus, ordena a estas pedras que se façam pães”. Mas Jesus resistiu à tentação. Então o demônio o colocou sobre o pináculo do templo e disse: “Se és filho de Deus, lança-te daí abaixo”. Pois ele estava sob a proteção dos anjos, e estes o teriam amparado. Mas Jesus resistiu. E então o diabo o conduziu a um monte muito alto e mostrou-lhe os reinos do mundo, dizendo: “Todas estas coisas te darei se, prostrado, me adorares”. Mas Jesus respondeu: “Vai-te, Satanás”. De acordo com o bom e simples são Mateus, foi este o fim da história. Mas não foi, não. O demônio era astucioso e de novo veio a Jesus: “Se aceitares a vergonha e a ignomínia, a flagelação, uma coroa de espinhos e a morte na cruz, salvarás a humanidade, pois maior amor não existe no mundo que o amor do homem que dá a vida por um amigo”. E Jesus sucumbiu. O diabo riu a mais não poder, pois bem sabia que pecados iriam os homens cometer em nome do seu redentor.
Isabel fitou-me indignada.
– Mas onde foi você buscar uma coisa dessas?
– Em parte alguma. Foi inspiração do momento.
– Acho que é idiotice e uma blasfêmia.
– Eu só queria dizer-lhe que a abnegação é uma paixão tão avassaladora que, a seu lado, até mesmo a luxúria e a fome pareceram insignificantes. Impele a vítima à destruição, na mais alta afirmação da personalidade. O objeto não tem importância; pode ser ou não ser merecedor do sacrifício. Nenhum vinho é tão intoxicante, nenhum amor tão destruidor, nenhum vício tão subjugante. Quando um homem se sacrifica, ele é maior que Deus. Pois como poderia Deus, infinito e onipotente, sacrificar-se? Quando muito pode sacrificar seu filho unigênito.
– Oh! céus, como você me enfada! – exclamou Isabel. Não liguei ao comentário.
– Como pode você achar que bom senso ou prudência influenciarão Larry, quando ele se encontra sob o domínio de tal paixão? Você não sabe que coisa esteve ele buscando durante todos esses anos. Também não sei, mas desconfio. Todo seu trabalho, todos os conhecimentos que ele armazenou não pesam na balança agora que se opõem ao seu desejo – oh! é mais que um desejo, a imperiosa necessidade de salvar a alma de uma mulher dissoluta que ele conheceu como criança inocente. Estou de pleno acordo com você, acho que ele está empreendendo inútil tarefa; com sua fina sensibilidade, vai sofrer torturas; o trabalho de sua vida, seja ele qual for, deixará de ser feito. O ignóbil Páris matou Aquiles atirando-lhe uma flecha no calcanhar. A Larry falta esta pequena nota de crueldade, que mesmo os santos precisam ter para conseguir a sua auréola.
– Eu o amo – disse Isabel. – Deus é testemunha que nada quero dele. Nada espero. Não existe amor mais desinteressado do que o meu, ele vai ser tão infeliz!...
Começou a chorar; achando que isso lhe faria bem, deixei-a em paz. Distraí-me com a ideia que tão inesperadamente me ocorrera. Brinquei com ela. Não pude deixar de refletir que, ao ver as cruéis garras desencadeadas pela cristandade, as perseguições, as torturas que cristãos inflingiram em cristãos, a maldade, a hipocrisia, a intolerância, ao ver essas coisas o demônio deve examinar o balanço com certa satisfação. E, ao lembrar-se de que tudo isto fez cair sobre a humanidade o pesado fardo da noção do pecado – noção que obscureceu a beleza da noite estrelada e atirou funesta sombra sobre as fugazes alegrias de um mundo feito para ser apreciado –, o diabo há de rir lá no seu íntimo, murmurando: “Dai ao Demo o seu quinhão”.
Dali a pouco Isabel tirou da bolsa um lenço e um espelhinho e enxugou com cuidado o canto dos olhos.
– Você é muito compreensivo, não é? – disse secamente.
Fitei-a, pensativo, mas não respondi. Ela empoou o rosto e pintou os lábios.
– Agora há pouco você disse que tinha uma ideia do que foi que Larry esteve procurando durante todos estes anos. O que quis dizer com isso?
– Bom, é apenas uma suposição, e talvez eu esteja redondamente enganado, mas acho que ele esteve procurando uma filosofia, ou talvez uma religião, e uma norma de vida que lhe satisfaça tanto o cérebro como o coração.
Isabel refletiu durante alguns momentos. Depois suspirou.
– Não acha estranho que um rapaz do interior criado em Marvin, Illinois, tenha dessas ideias?
– Não mais estranhável do que o fato de ter Luther Burbank, que nasceu numa fazenda de Massachusetts, conseguido produzir uma laranja sem semente, ou de ter Henry Ford, que nasceu numa fazenda de Michigan, inventado uma Tin Lizzie.
– Mas essas coisas são práticas. Isto está na tradição americana.
Ri-me.
– Acha você que pode haver no mundo coisa mais prática do que aprender a viver da melhor maneira possível?
Isabel fez um gesto de lassidão.
– O que acha então que devo fazer? – perguntou-me.
– Você não quer perder Larry completamente, quer? Ela sacudiu a cabeça.
– Pois bem, você sabe como ele é leal. Se uma pessoa não quiser saber da mulher dele, ele não quererá saber desta pessoa. Se você tiver um pouco de inteligência, trate de fazer amizade com Sophie. Esqueça o passado e procure ser gentil, como você sabe ser, quando se dispõe a isso. Ela vai casar-se e com certeza terá que comprar algumas roupas. Por que não se oferece para acompanhá-la? Creio que ficaria encantada com a proposta.
Isabel ouvia de sobrancelhas contraídas, parecendo muito atenta ao que eu dizia. Refletiu durante alguns minutos, mas não pude adivinhar seus pensamentos. Fiquei surpreso com o que em seguida me disse.
– Você quer convidá-la para almoçar? Ficaria esquisito eu fazê-lo, depois de tudo o que ontem disse a Larry.
– Você se comportará se eu a convidar?
– Como um anjinho – respondeu Isabel com o mais insinuante dos seus sorrisos.
– Então vamos decidir isso agora mesmo.
Havia um telefone na sala. Não me foi difícil encontrar o número de Sophie; após a demora que aqueles que usam o telefone na França aprendem a suportar com paciência, consegui falar-lhe. Dei-lhe o meu nome.
– Acabo de chegar a Paris e ouvi dizer que você e Larry vão casar-se – disse eu. – Meus parabéns. Desejo que sejam muito felizes. – Tive que conter um grito, pois Isabel, que estava a meu lado, me deu um violento beliscão no braço. – Vou ficar muito pouco tempo aqui e gostaria que você e Larry viessem almoçar comigo depois de amanhã, no Ritz. Vou também convidar Gray, Isabel e Elliott Templeton.
– Vou perguntar a Larry. Ele está aqui – disse Sophie. Houve uma pausa. – Sim, iremos com muito prazer.
Marquei a hora, fiz uma observação delicada qualquer e coloquei o fone no gancho. Notei nos olhos de Isabel uma expressão que me causou certa apreensão.
– Em que está pensando? – perguntei. – Não gosto nada de seu jeito.
– Sinto muito; pensei que fosse em mim uma das coisas que você apreciasse.
– Você não está maquinando nenhum plano nefasto, Isabel?
Ela arregalou os olhos.
– Juro-lhe que não. Para ser franca, estou curiosíssima para ver como está Sophie, agora que Larry a converteu. Só peço a Deus que ela não apareça no Ritz com uma máscara de pintura no rosto.
5
Minha reuniãozinha não correu assim tão mal. Gray e Isabel foram os primeiros; Larry e Sophie chegaram cinco minutos depois. Isabel e Sophie beijaram-se afetuosamente; Isabel e Gray felicitaram a noiva. Notei o olhar avaliador que Isabel lançou a Sophie. Sua aparência chocou-me. Quando eu a vira naquela espelunca da Rue de Lappe escandalosamente pintada, com seus cabelos tintos e vistosa jaqueta verde, embora estivesse com aparência atroz, e muito bêbada, havia nela um quê de provocante e até mesmo de vilmente sedutor; mas agora não tinha a mínima graça e, embora fosse um ano ou dois mais moça que Isabel, parecia bem mais velha. Ainda tinha aquela airosa inclinação de cabeça, mas, não sei por quê, isso agora me pareceu patético. Estava deixando o cabelo voltar à cor natural, e notei aquele ar de desmazelo que tem todo cabelo tinto quando começa a crescer. A não ser por um traço rubro nos lábios, estava sem pintura alguma. Pele áspera e de palidez doentia. Lembrei-me do verde vivíssimo dos olhos, agora desbotados e cinzentos. Estava de vestido vermelho, evidentemente novo em folha, com chapéu, sapatos e bolsa combinando. Não tenho a pretensão de entender de trajes femininos, mas pareceram-me exagerados e complicados demais para a ocasião. Ostentava na blusa uma vistosa joia de fantasia, como as que a gente compra na Rue Rivoli. Ao lado de Isabel – de vestido de seda preto, colar de pérolas cultivadas e chapéu elegantíssimo – tinha uma aparência vulgar e desalinhada.
Encomendei coquetéis, mas Larry e Sophie recusaram. Nisso Elliottt chegou. Sua passagem pelo vasto foyer foi, no entanto, perturbada pelas mãos que ele teve que apertar e as mãos que teve de beijar, à medida que, uma após outra, ia vendo pessoas suas conhecidas. Agia como se o Ritz fosse sua residência particular e ele estivesse agradecendo aos hóspedes por lhe terem aceito o convite. Isabel nada lhe contara sobre Sophie, a não ser que perdera o marido e o filho num desastre de automóvel e estava noiva de Larry. Quando finalmente chegou à nossa mesa, ele felicitou-os com a complicada afabilidade em que era mestre. Fomos para o salão de jantar. Como éramos quatro homens e duas senhoras, coloquei Isabel e Sophie em frente uma da outra, na mesa redonda, ficando Sophie entre Gray e eu – mas o tamanho da mesa permitia uma conversa geral. Eu já encomendara o almoço e o sommelier apareceu com a lista dos vinhos.
– Você não entende patavina de vinhos, caro amigo – disse Elliott. – Dê-me a lista, Albert. – Virou as folhas e continuou: – Só bebo água de Vichy, mas não suporto ver uma pessoa tomando um vinho que não seja perfeito.
Ele e Albert eram velhos amigos e depois de animada discussão decidiram que vinho devia eu oferecer aos meus convidados. Elliott virou-se para Sophie.
– E onde vai passar a lua de mel, minha querida? Olhou de relance para o vestido dela, e pelo quase imperceptível erguer das sobrancelhas percebi que a impressão não fora favorável.
– Na Grécia.
– Há dez anos que estou querendo fazer essa viagem
– disse Larry. – Mas, não sei por quê, até hoje não foi possível.
– Deve ser lindo, nesta época do ano... – disse Isabel com certo entusiasmo.
Lembrou-se, como eu me lembrei, de que fora para lá que Larry pensara em levá-la, quando quisera casar-se com ela. Ir para a Grécia na lua de mel parecia uma ideia fixa de Larry.
A conversa não era fácil e eu teria me visto em apuros se não fosse por Isabel. Ela estava se comportando admiravelmente. Todas as vezes que a ameaça de um silêncio pairava sobre nós, e eu quebrava a cabeça à procura de um tópico novo para introduzir na conversa, lá vinha ela com o seu espontâneo tagarelar. Fiquei-lhe grato. Sophie quase não falou, a não ser quando lhe dirigiam a palavra, e mesmo isso parecia ser-lhe um esforço. Perdera completamente a vivacidade. Era como se alguma coisa tivesse morrido dentro dela, e perguntei a mim mesmo se Larry não a estaria obrigando a uma tensão exagerada. Se eu acertara ao supor que, além de beber, ela fazia uso de entorpecentes, a repentina privação devia ter deixado seus nervos em mísero estado. Às vezes eu interceptava um olhar entre eles. No de Larry eu via ternura e estímulo, mas no dela uma súplica que achei patética. É possível que, com sua bondade, Gray tenha instintivamente sentido aquilo que eu julguei ver, pois começou a contar-lhe como Larry lhe curara as enxaquecas que o tinham inutilizado, explicando-lhe como se tornara dependente dele e quanto lhe ficara grato.
– Agora estou novo em folha – continuou. – Assim que arranjar emprego, vou recomeçar a trabalhar. Estou trançando os meus pauzinhos e tenho esperança de conseguir alguma coisa dentro em breve. Céus, como vai ser bom voltar para a América!
Gray era bem-intencionado, mas dava mostras de pouco tato se, como eu supunha, Larry estava tentando curar Sophie do seu adiantado alcoolismo pelo mesmo método de sugestão (pois era assim que eu considerava) que tanto resultado dera com Gray.
– Acabaram-se as enxaquecas, Gray? – perguntou Elliott.
– Há três meses que não tenho uma dor de cabeça e, quando acho que uma se anuncia, agarro o meu talismã e não sinto mais nada – respondeu ele. Procurou no bolso a moeda antiga que Larry lhe dera e acrescentou: – Não o venderia nem por um milhão de dólares.
Acabamos o almoço. Serviram-nos o café. O sommelier apareceu de novo e perguntou se queríamos licores. Recusamos, com exceção de Gray, que aceitou um conhaque. Quando veio a garrafa, Elliott fez questão de examiná-la.
– Sim, recomendo este aqui. Não lhe fará mal nenhum.
– Um calicezinho para monsieur? – perguntou o sommelier.
– Infelizmente não. Estou proibido.
Elliott contou-lhe um tanto extensamente que estava sofrendo dos rins e que o médico lhe proibira bebidas alcoólicas.
– Uma gota de zubrovka não fará mal a monsieur. Não há quem não saiba que é bom para os rins. Acabamos de receber uma remessa da Polônia.
– Verdade? É artigo difícil de se obter hoje em dia. Deixe-me ver a garrafa.
O sommelier, um sujeito imponente e circunspecto, com uma longa corrente de prata em volta do pescoço, foi buscar a garrafa, e Elliott explicou-nos que se tratava do tipo polonês de vodca, se bem que infinitamente superior.
– Costumávamos tomá-lo na casa dos Radziwill, quando eu me hospedava com eles na estação de caça. Vocês precisavam ver como o tomavam aqueles príncipes poloneses; não exagero ao dizer que bebiam aos copos, e absolutamente não se alteravam. Sangue bom, naturalmente; aristocratas até a ponta dos dedos. Sophie, você precisa experimentar, e você também, Isabel. É uma oportunidade que ninguém tem o direito de desprezar.
Veio a garrafa. Larry, Sophie e eu resistimos à tentação, mas Isabel disse que gostaria de experimentar. Admirei-me, pois em geral bebia pouco, e naquele dia já tomara dois coquetéis e dois ou três copos de vinho. O garçom serviu-lhe um cálice de um líquido verde-claro, Isabel cheirou-o.
– Oh! que perfume delicioso!
– Não é mesmo? – exclamou Elliott. – É devido às ervas que entram na composição; são elas que lhe dão tão delicado paladar. Vou tomar uma gota, só para lhe fazer companhia. Por uma vez não me fará mal.
– É adorável – disse Isabel. – É como leite materno. Nunca tomei coisa mais deliciosa.
Elliott levou o cálice aos lábios.
– Oh! como isto me faz lembrar os velhos tempos! Vocês, que nunca se hospedaram com os Radziwill, não sabem o que é viver. Aquilo, sim, era estilo. Feudal, saibam vocês. A gente poderia julgar-se na Idade Média. Na estação, à espera, uma carruagem com seis cavalos e lacaios. E, ao jantar, um criado de libré atrás de cada pessoa.
Continuou a descrever a magnificência e o luxo do castelo, e a suntuosidade das festas; a tal ponto que desconfiei, talvez sem razão, de que tudo aquilo fosse combinação entre ele e o sommelier, para Elliott ter oportunidade de discursar sobre a grandiosidade dessa principesca família e dos aristocratas poloneses com quem convivera em seus próprios castelos. Ele estava agora a todo pano.
– Mais um cálice, Isabel?
– Oh! não me atrevo. Mas é adorável. Estou contentíssima por ter ficado conhecendo esta bebida. Gray, você precisa arranjar-me uma garrafa.
– Mandarei uma para o apartamento.
– Oh! tio Elliott, manda mesmo? – exclamou Isabel entusiasmada. – O senhor é tão bom para nós! Você precisa experimentar, Gray; tem um perfume de feno recém-cortado e flores primaveris, de tomilho e alfazema; e é tão agradável ao paladar! É como ouvir música numa noite enluarada.
Era contra o feitio de Isabel falar por paus e por pedras, e fiquei a cogitar se não estaria um pouquinho “alegre”. A reunião chegou ao fim. Apertei a mão de Sophie.
– Para quando é o casamento?
– Sem ser na próxima semana, na outra. Espero que nos dê o prazer de comparecer.
– Infelizmente creio que não estarei em Paris. Parto amanhã para Londres.
Enquanto eu me despedia dos meus outros convidados, Isabel chamou Sophie à parte e conversou com ela durante alguns segundos; virou-se em seguida para Gray.
– Oh! Gray, não vou já para casa. Há uma exposição em Molyneux, e Sophie precisa ver os modelos novos.
– Com muito prazer – disse Sophie.
Separamo-nos. Nesta noite levei Suzanne Rouvier para jantar e na manhã seguinte parti para a Inglaterra.
6
Elliott chegou ao Claridge quinze dias mais tarde; pouco depois passei por lá, para vê-lo. Ele encomendara inúmeros ternos e, com uma verbosidade que me pareceu excessiva, contou-me detalhadamente tudo que escolhera, e por quê. Quando finalmente tive oportunidade de dizer alguma coisa, perguntei-lhe que tal fora o casamento.
– Não houve casamento – respondeu lugubremente.
– O que me diz?!
– Três dias antes da data marcada, Sophie desapareceu. Larry procurou-a por toda parte.
– Que coisa esquisita! Tinham brigado?
– Não. Pelo contrário. Estava tudo combinado. Eu ia levá-la à igreja. Pretendiam tomar o Expresso do Oriente logo depois da cerimônia. Se quer que lhe fale com franqueza, acho que Larry se livrou de boa.
Julgando que Isabel teria contado tudo a Elliott, perguntei:
– Que foi exatamente que aconteceu?
– Pois bem, lembra-se daquele dia do seu almoço, no Ritz?
Isabel foi com ela até Molyneux. Reparou no vestido de Sophie? Deplorável. Que ombros... É pela linha dos ombros que a gente conhece se o vestido está benfeito ou não. A coitadinha, é lógico, não podia pagar os preços de Molyneux, mas você sabe como Isabel é generosa, e afinal de contas elas se conhecem desde meninas, de modo que Isabel lhe ofereceu um vestido, para ela ter pelo menos alguma coisa decente para usar no dia do casamento.
Sophie, naturalmente, pegou no ar. Pois bem, para encurtar uma longa história, Isabel convidou-a para vir ao apartamento, em determinado dia, às três horas, para irem juntas à última prova. Ela veio, mas infelizmente Isabel tivera que sair para levar uma das crianças ao dentista e só voltou depois das quatro horas, não encontrando mais Sophie no apartamento. Pensando que ela se cansara de esperar e fora para Molyneux, Isabel dirigiu-se imediatamente para lá; mas nem sinal de Sophie! Finalmente Isabel desistiu e voltou para casa. Tinham combinado jantar todos juntos e, quando Larry apareceu, a primeira coisa que Isabel lhe perguntou foi onde estava Sophie.
Larry não sabia de nada. Telefonou para o apartamento dela e, não obtendo resposta, disse que iria até lá. Atrasaram o jantar o máximo possível, mas, como nenhum dos dois apareceu, Gray e Isabel jantaram sozinhos. Você sabe, naturalmente, que tipo de vida Sophie levava quando vocês a encontraram na Rue de Lappe; foi muito infeliz aquela sua ideia de levá-los lá. Pois bem, Larry passou a noite toda percorrendo os antros que ela frequentara, mas não a encontrou em parte alguma. Foi várias vezes ao apartamento, e a concierge disse que ela não aparecera. Evaporara-se, pura e simplesmente. Larry passou três dias procurando-a; no quarto dia voltou novamente ao apartamento e a concierge lhe disse que ela viera, fizera a mala e fora-se num táxi.
– Larry ficou muito abalado?
– Não o vi. Isabel disse-me que sim.
– Sophie não escreveu, ou deixou recado?
– Nada.
Refleti sobre o assunto.
– O que pensa você de tudo isso? – perguntei.
– Caro amigo, exatamente o que você pensa. Ela não aguentou; e caiu de novo na bebedeira.
Isto era claro, mas mesmo assim estranho. Não pude compreender por que escolhera justamente aquele momento para fugir.
– E que me diz de Isabel?
– Naturalmente sentiu o que se passou, mas é uma pequena sensata e disse-me que sempre achara que seria um desastre Larry casar-se com uma mulher dessas.
– E Larry?
– Isabel tem sido muito boa para ele. Diz que o que dificulta a situação é o fato de ele não querer discutir o caso. Larry se conformará, pode ficar certo; diz Isabel que ele nunca esteve apaixonado por Sophie. Ia casar-se com ela apenas por um sentimento de mal compreendido cavalheirismo.
Imaginei Isabel fazendo-se de forte diante de um acontecimento que no íntimo lhe causara viva satisfação. Sabia perfeitamente que da próxima vez que nos víssemos ela não deixaria de me dizer que soubera perfeitamente o que iria acontecer.
Mas passou-se quase um ano sem que eu a visse e, embora nesta ocasião eu pudesse contar-lhe a respeito de Sophie certas coisas que lhe teriam dado que pensar, não achei a ocasião propícia. Fiquei em Londres até as vésperas do Natal e depois, desejando voltar para casa, fui diretamente para a Riviera, sem parar em Paris. Comecei a escrever um romance e nos meses seguintes vivi recluso. De vez em quando via Elliott. Seu estado de saúde piorava visivelmente e fiquei penalizado ao verificar que persistia em levar vida social. Aborrecia-se comigo por eu não querer viajar cinquenta quilômetros para comparecer às reuniões que continuava a dar frequentemente em sua casa. Achava que era muita pretensão da minha parte preferir ficar em casa trabalhando.
– A estação está excepcionalmente elegante, caro amigo – disse-me ele. – É um crime você fechar-se em casa, sem nada ver do que se passa pelo mundo. E, mesmo que eu chegue aos cem anos de idade, jamais poderei compreender como é que você foi escolher, para morar, uma parte da Riviera completamente fora de moda
Pobre tolo e bondoso Elliott! Aos cem anos é que ele não chegaria.
Em junho eu já terminara o esboço geral do meu romance e achei que merecia umas férias. Enfiei, portanto, umas roupas numa maleta e entrei no naviozinho de vela de onde, no verão, costumávamos nos atirar na Baie des Fosses, para o banho, e seguimos pela costa, em direção a Marselha. Havia apenas uma viração inconstante, de modo que a maior parte do tempo tínhamos que nos valer do motor auxiliar. Passamos uma noite na baía, em Cannes, outra em Sainte Maxime e uma terceira em Sanary. Chegamos depois a Toulon, porto que sempre amei. Os vapores da esquadra francesa dão-lhe um ar ao mesmo tempo romântico e amigo, e nunca me canso de vaguear por aquelas velhas ruas. Posso demorar-me horas no cais, a observar os marinheiros de folga, que passam aos pares ou com suas namoradas, ou os civis que vão de lá para cá como se não tivessem outra preocupação na vida a não ser gozar as delícias do sol. Devido a todos esses navios e às balsas que levam a inquieta multidão aos diversos lugares da baía, Toulon dá a impressão de um ponto terminal para onde convergem todos os caminhos do vasto mundo; e, quando você se senta num café, de olhos ligeiramente ofuscados pelo fulgor do mar e do céu, a imaginação empreende maravilhosas viagens às mais remotas partes do globo. Você pula de uma chalupa para uma praia de coral debruada de coqueiros, no Pacífico; passa da escada de bordo para o cais de Rangoon e entra num jinriquixá; observa, do mais alto tombadilho, a ruidosa e gesticulante multidão de negros, quando o seu vapor atraca em Porto Príncipe.
Quando chegamos, a manhã já ia alta; no meio da tarde desembarquei e andei pelo cais, olhando as lojas, as pessoas gue passavam por mim e as que estavam sentadas sob o toldo dos cafés. De repente vi Sophie e ao mesmo tempo ela me viu. Cumprimentou-me sorrindo. Parei para apertar-lhe a mão. Estava sozinha a uma mesa, com um copo vazio à frente.
– Sente-se e tome alguma coisa comigo – disse-me ela.
– Tome você comigo – repliquei, puxando uma cadeira.
Ela usava a blusa de listas azuis e brancas dos marinheiros franceses, calça vermelha e sandálias que deixavam à mostra as unhas pintadas dos seus dedos grandes. Estava sem chapéu; os cabelos curtíssimos e ondulados eram de um dourado tão pálido que tinham um fulgor de prata. Estava pintada com o mesmo exagero de quando a tínhamos visto na Rue de Lappe. Já tomara um ou dois drinques, a julgar pelo pires na mesa, mas estava sóbria. Minha presença não pareceu desagradar-lhe.
– Como vão todos em Paris? – perguntou-me.
– Creio que vão bem. Não vi nenhum deles desde aquele dia em que almoçamos no Ritz.
Ela soltou uma nuvem de fumaça pelo nariz e começou a rir.
– Não me casei com Larry, afinal de contas.
– Sei disso. Por que não?
– Querido, quando chegou a hora, não pude ver-me no papel de Maria Madalena em relação ao seu Jesus Cristo. Não, senhor!
– Que foi que a fez mudar de ideia no último momento?
Ela fitou-me com ar zombeteiro. Assim vestida, com aquela ousada inclinação de cabeça, seios pequeninos e ancas finas, parecia um perverso rapazinho; mas confesso que a achei muito mais atraente do que no Ritz, de vestido vermelho com o seu lúgubre ar de elegância provinciana. Tinha o rosto e o pescoço bem queimados de sol; e, embora o marrom da pele tornasse mais agressivos o carmim das faces e o rímel das pestanas, na sua vulgaridade o efeito não deixava de ter certo encanto.
– Quer que lhe conte?
Inclinei afirmativamente a cabeça. O garçom trouxe a cerveja que eu pedira para mim e um conhaque com seltzer para Sophie. Ela acendeu um caporal em outro que acabara de fumar e disse:
– Fazia três meses que eu não tomava uma gota de álcool. Que não fumava. – Ao notar minha expressão de surpresa, riu e continuou: – Não me refiro a cigarros. Ópio. Sentia-me pessimamente. Às vezes, quando estava só, eu gritava como uma desesperada. Dizia: “Não posso continuar, não posso continuar”. Quando Larry estava presente não era tão duro, mas quando ele se ausentava era um inferno.
Eu tinha os olhos nela e, quando falou em ópio, observei-a mais atentamente; notei as pupilas como cabecinhas de alfinete, que indicavam que se entregara novamente ao vício. Olhos assustadoramente verdes.
– Isabel ia me fazer presente do vestido de casamento. Que fim terá levado? Era um amor. Tínhamos combinado ir juntas a Molyneux, devendo eu pegá-la em sua casa. Nisto faço justiça a Isabel: o que ela não entende de roupas ninguém entende. Quando cheguei ao apartamento, aquele criado que eles têm lá me disse que Isabel fora levar Joan ao dentista e deixara recado que voltaria logo. Entrei na sala. A bandeja do café ainda ali estava e perguntei ao criado se eu podia tomar uma xícara. Café era a única coisa que me animava. Ele disse que me traria café fresco e levou embora as xícaras e o bule. Deixou uma garrafa na bandeja. Vi que se tratava daquele negócio polonês que vocês tanto tinham comentado no Ritz.
– Zubrovka. Lembro-me de Elliott ter dito que mandaria um pouco para Isabel.
– Vocês todos tinham feito um estardalhaço sobre o perfume delicioso e fiquei curiosa. Tirei a rolha e cheirei. Tinham razão; cheirava bem, de fato. Acendi um cigarro; dali a pouco o criado chegou com o café. Também isto achei bom. Falam tanto do café francês; que fiquem com ele! Para mim não há como o americano. É a única coisa de que sinto falta aqui. Mas o café de Isabel não era mau; eu estava desanimadíssima e depois de uma xícara me senti melhor. Olhei a garrafa, ali à mostra. Terrível tentação. Mas disse a mim mesma: “Com os diabos, não vou pensar nisto”, e acendi outro cigarro. Achei que Isabel não poderia tardar; e no entanto não chegava. Fiquei nervosíssima; detesto ter que esperar e não havia na sala nada para se ler. Andei de lá para cá, a examinar os quadros, mas o tempo todo via aquela maldita garrafa. Depois resolvi encher um cálice e olhar. Tinha uma linda cor.
– Verde-claro.
– Isso mesmo. Esquisito, a cor era exatamente como o perfume. Talo verde que às vezes a gente vê no coração de uma rosa branca... Eu tinha que experimentar se o gosto era igual, e achei que só experimentar não me faria mal. Pretendia tomar apenas um gole; nisso ouvi um ruído, pensei que fosse Isabel e engoli tudo, pois não queria que ela me apanhasse em flagrante. Mas afinal de contas não era Isabel. Céus, como aquilo me reanimou! Não me sentia tão bem desde que aderira à Lei Seca. Criei alma nova. Se Isabel tivesse aparecido nesse momento, com certeza eu estaria hoje casada com Larry. Não sei qual teria sido o resultado.
– E ela não apareceu?
– Não. Fiquei furiosa. Quem pensava ela que era fazendo-me esperar daquele jeito? E então vi que o cálice estava cheio outra vez; com certeza eu o enchera sem pensar; mas, acredite-me você ou não, eu o fizera inconscientemente. Pareceu-me tolice deitar de novo o líquido na garrafa; bebi-o. Delicioso; disso não há dúvida. Sentia-me outra; tinha vontade de rir, coisa que não me acontecera em três meses. Lembra-se de ter ouvido aquele velho mariquinhas dizer que vira sujeitos na Polônia beberem aos copos, sem se alterar? Pois bem, achei que eu podia aguentar aquilo que qualquer polonês filho da mãe aguentava; além do mais, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos! De modo que atirei na lareira o resto do meu café e enchi a xícara até a borda. Falar de leite materno... uma ova! Não sei exatamente o que aconteceu depois, mas não creio que tivesse sobrado muito na garrafa. Achei então melhor fugir antes de Isabel voltar. Quase que ela me apanha. Assim que saí pela porta da frente ouvi a voz de Joanie. Subi a correr as escadas e esperei até elas entrarem no apartamento; disparei depois para baixo e meti-me num táxi. Disse ao chofer que fosse a toda; quando ele me perguntou para onde, desatei a rir na cara dele. Estava no auge da alegria.
– Você voltou para o seu apartamento? – perguntei, embora soubesse que ela não voltara.
– Por que espécie de idiota me toma você? Eu tinha certeza de que Larry viria procurar-me. Não ousei ir a nenhum dos lugares que costumava frequentar e, portanto, fui ao Hakim. Sabia que ali Larry nunca me encontraria. Além do mais, estava querendo fumar.
– O que é Hakim?
– Hakim. Hakim é um argelino que sempre arranja ópio para quem tem os cobres para pagá-lo. Era muito meu amigo. Ele arranja o que a gente quer: um rapaz, um homem, uma mulher, um negro. Tem sempre uma meia dúzia de argelinos à disposição. Ali passei três dias. Não sei com quantos homens dormi. – Sophie começou a rir. – De todos os feitios, tamanhos e cores. Se recuperei o tempo perdido! Mas, sabe, eu tinha medo. Não me sentia segura em Paris, receando que Larry chegasse a encontrar-me; além do mais, não tinha dinheiro; a gente tem que pagar aqueles cafajestes para dormir com a gente. Saí, portanto, de lá; voltei ao apartamento e dei à concierge cem francos, recomendando-lhe que, se viesse alguém perguntar por mim, dissesse que eu fora embora. Fiz minha mala e naquela noite tomei o trem para Toulon. Só me senti segura depois que cheguei aqui.
– E ficou aqui, desde então?
– Ora se!... e aqui vou continuar. A gente tem ópio à vontade, que os marinheiros trazem do Oriente; e é coisa boa, não aquela droga que vendiam em Paris. Tenho um quarto no hotel. Você conhece, o Commerce et la Marine. Quando a gente entra ali, de noite, os corredores recendem a ópio. – Sophie aspirou voluptuosamente. – Doce e acre; a gente sabe que os outros estão fumando nos seus quartos e isto dá uma gostosa sensação de intimidade. E ali não se importam que a gente traga esta ou aquela pessoa. Às cinco da manhã vêm bater à porta do quarto, para que os marinheiros possam voltar aos seus navios, de modo que ninguém precisa preocupar-se com isso. – Imediatamente, sem uma pausa, Sophie disse: – Vi um livro seu numa loja aqui do cais; se soubesse deste encontro, tê-lo-ia comprado e trazido para você autografá-lo.
Ao passar pela livraria eu parara para examinar a vitrina e vira realmente, entre outros livros novos, a tradução recém-publicada de um romance meu.
– Não creio que a interessasse muito – declarei.
– Por que não? Comunico-lhe que sei ler.
– E escrever também, creio.
Ela lançou-me um rápido olhar e desatou a rir.
– Sim, eu fazia poesias quando menina. Provavelmente eram péssimas, mas eu as achava muito bonitas. Com certeza foi Larry quem lhe contou. – Sophie hesitou por um momento. E depois:
Seja como for, a vida é um inferno, mas, se há nela alguma coisa para se gozar, trouxa é aquele que não se aproveita. – Atirou a cabeça para trás em atitude desafiadora e perguntou-me: – Se eu comprar aquele livro, você escreve nele alguma coisa?
– Devo partir amanhã. Se você quer mesmo o livro, arranjo-lhe um exemplar e deixo-o no seu hotel.
– Ótimo.
Nesse momento uma lancha da Marinha chegou ao cais; desceram vários marinheiros. Sophie examinou-os com o olhar.
– Lá vem meu amiguinho. – Acenou para alguém e continuou: – Você pode oferecer-lhe um trago e depois é melhor dar o fora. Ele é corso, e ciumento como o nosso velho amigo Jeová.
Um rapaz dirigiu-se para o nosso lado, hesitou ao ver-me, mas a um aceno de Sophie aproximou-se. Era alto, trigueiro; barba feita, maravilhosos olhos pretos, nariz aquilino e cabelos ondulados, negros como carvão. Não parecia ter mais de vinte anos.
Sophie apresentou-me como amigo de infância, americano.
– Pouco inteligente, mas bonito – disse-me ela.
– Você gosta dos brutos, não gosta?
– Quanto mais, melhor.
– Um destes dias alguém lhe corta o pescoço.
– Não duvido – replicou ela sorrindo. – Não se perderá grande coisa.
– Vamos falar francês, não vamos? – disse asperamente o marinheiro.
Sophie virou-se para ele com um sorriso em que havia um quê de zombaria. Falava corretamente o francês, empregando a gíria e com carregada pronúncia americana; mas isso dava aos termos vulgares e obscenos que ela usava uma nota picante e cômica, que provocava o riso.
– Estava dizendo que você é belo, mas, para não constrangê-lo, disse-o em inglês. – E virando-se para mim:
– E é forte. Tem músculos de boxeador. Experimente.
A lisonja dissipou a taciturnidade do marinheiro; com um sorriso condescendente ele dobrou o braço para exibir a musculatura.
– Apalpe – disse. – Vamos, apalpe.
Obedeci, exprimindo a devida admiração. Conversamos durante alguns minutos; depois paguei a conta e levantei-me.
– Já vou indo.
– Tive muito prazer em vê-lo. Não se esqueça do livro.
– Não me esquecerei.
Apertei a mão de ambos e afastei-me. No caminho parei na livraria, comprei o romance e nele escrevi o nome de Sophie e o meu. Depois, por ter a ideia me ocorrido de repente e por falta de melhor inspiração, escrevi o primeiro verso da linda poesia de Ronsard que se encontra em todas as antologias:
“Mignonne, allons voir si la rase...”
Deixei o livro no hotel. Fica ele no cais, e muitas vezes ali me hospedei, pois de madrugada, quando o toque do clarim chama ao dever os homens que tiveram folga durante a noite, é lindo a gente ver o sol erguer-se nubladamente sobre as macias águas da baía, emprestando aos navios espetrais uma beleza amortalhada. No dia seguinte rumamos para Cassis, onde eu queria comprar alguns vela nova que tínhamos encomendado. Uma semana mais tarde voltei para casa.
7
Encontrei recado de Joseph, criado de Elliott: seu patrão estava de cama e desejava ver-me. Assim sendo, no dia seguinte fui de automóvel para Antibes. Antes de me levar para cima, Joseph contou-me que Elliott tivera um ataque de uremia e que o médico considerava grave o seu estado. Passada a crise ele melhorara, mas os rins estavam atacadíssimos e não se podia absolutamente esperar um completo restabelecimento. Fazia quarenta anos que Joseph estava a serviço de Elliott e sua dedicação era inegável; mas, embora se mostrasse compungido, notava-se-lhe a satisfação com que – como geralmente acontece com membros da sua classe – ele recebia a catástrofe em casa.
– Ce pauvre monsieur – suspirou ele. – Sem dúvida alguma tinha as suas manias, mas no fundo era boa pessoa. Cedo ou tarde o nosso dia chega mesmo. Falava como se Elliott estivesse exalando o último suspiro.
– Tenho certeza de que ele garantiu o seu futuro, Joseph – disse eu em tom grave.
– Esperamos – respondeu ele lugubremente.
Ao entrar no quarto, admirei-me por encontrar Elliott todo lépido. Estava pálido e envelhecido, mas animado.
Barba feita, cabelo bem penteado. Usava pijamas de seda de um azul pálido; no bolso, suas iniciais, encimadas pela coroa de conde. Em ponto muito maior, e novamente com a coroa, notei as iniciais bordadas na dobra do lençol de cima.
Perguntei-lhe como ia passando.
– Muitíssimo bem – respondeu-me alegremente. – Trata-se de uma indisposição passageira. Espero estar de pé e novamente em circulação dentro de poucos dias. No domingo o grão-duque Oimitri vem almoçar comigo e eu disse ao meu médico que, custe o que custar, tem que me pôr bom até lá.
Passei meia hora em sua companhia e, ao sair, pedi a Joseph que me avisasse caso ele tivesse uma recaída. Fiquei admirado quando, uma semana mais tarde, ao ir almoçar com uns vizinhos, dei com Elliott. Assim em trajes de passeio estava com péssima aparência.
– Você não devia ter saído de casa, Elliott – disse-lhe eu.
– Oh! tolice, caro amigo. Frieda está esperando a princesa Mafalda. Conheço a família real da Itália há anos, desde que a coitada da Louisa estava en poste em Roma, e eu não podia deixar a pobre Frieda em apuros.
Fiquei sem saber se deveria admirar sua indômita coragem, ou lamentar o fato de, na sua idade e gravemente enfermo, conservar ainda aquela paixão pela vida social. Ninguém o julgaria um homem doente. A exemplo do ator agonizante que, de rosto pintado, se esquece no palco de suas dores e seus males, Elliott representava o papel de fino cortesão com a costumeira segurança. Era extraordinariamente amável, lisonjeiramente atencioso para com as pessoas que mereciam tal tratamento, divertindo os convidados com aquela requintada ironia que era o seu forte. Brilhou como nunca. Quando Sua Alteza Real partiu (e foi um gozo observar a graça com que Elliott se inclinou diante dela, conseguindo aliar respeito por sua alta posição à admiração de um velho por uma moça bonita) não me causou surpresa ouvir a dona da casa dizer que ele fora a alma da festa.
Dias depois se viu obrigado a recolher-se ao leito, com expressa proibição do médico de sair do quarto. Elliott ficou exasperado.
– Pena isto ter acontecido justamente agora. A estação está excepcionalmente elegante – disse ele.
E me veio com uma longa lista de pessoas importantes que estavam passando o verão na Riviera.
Com intervalos de três ou quatro dias eu ia sempre visitá-lo. Às vezes o encontrava na cama, de outras estendido na chaise longue, metido num deslumbrante roupão. Parecia ter deles um estoque inesgotável e não me lembro de o ter visto duas vezes com o mesmo. Numa dessas ocasiões – estávamos no começo de agosto – encontrei Elliott muito pensativo. Joseph me dissera, embaixo, que ele estava um pouco melhor; fiquei, portanto, admirado por vê-lo tão quieto. Procurei distraí-lo, repetindo os comentários sociais que ouvira ultimamente, mas vi perfeitamente que não estava interessado. Tinha o sobrolho carregado e expressão taciturna, coisa rara nele.
– Você vai à festa de Edna Novemali? – perguntou-me afinal.
– Não; claro que não.
– Foi convidado?
– Não há quem não tenha sido convidado na Riviera. A princesa Novemali era uma americana riquíssima que se casara com um príncipe romano, mas não um príncipe qualquer, desses de dois por um tostão que a gente encontra na Itália, e sim o chefe de uma família importante, descendente de um condottiere que no século xvi cavara para si próprio um principado. Era mulher de sessenta anos, viúva; quando o regime fascista começou a exigir uma parte muito gorda de suas rendas americanas, ela achou preferível abandonar a Itália e construir, num ótimo terreno atrás de Cannes, uma vila florentina. Mandara vir da Itália mármore para as paredes de seus vastos salões de recepção e pintores para decorarem o teto. Seus quadros e estátuas eram belíssimos e até mesmo Elliott, que não apreciava móveis italianos, se via obrigado a confessar que os dela eram magníficos. Lindo parque; a piscina devia ter custado uma fortuna. Ela recebia muito e à sua mesa nunca se sentavam menos de vinte pessoas. Resolvera dar um baile à fantasia em agosto, na noite de lua cheia, e, embora ainda faltassem três semanas, não se falava de outra coisa na Riviera. Haveria fogos, viria de Paris uma orquestra de pretos. Com invejosa admiração, os nobres exilados comentavam entre si que a festa ia custar mais do que eles tinham para gastar em um ano.
“Principesco”, diziam uns. “Loucura”, comentavam outros.
“Denota mau gosto”, rosnavam terceiros.
– O que é que você vai usar? – perguntou-me Elliott.
– Mas, Elliott, já lhe disse que não vou. Acha então que, na minha idade, vou me fantasiar?
– Ela não me convidou – disse ele em voz rouca, fitando-me com olhar angustiado.
– Oh! ela o convidará – respondi serenamente. – Com certeza nem todos os convites foram expedidos.
– Ela não me vai convidar – disse ele, com um soluço. – É um insulto propositado.
– Oh! Elliott, não creio. Garanto que foi esquecimento.
– Não sou pessoa de quem se esqueçam.
– Além do mais, você não estaria em condições de ir.
– Claro que estaria. A melhor festa da temporada! Mesmo que estivesse no meu leito de morte, eu me levantaria para ir. Vestiria o traje do meu antepassado, o conde de Lauria.
Fiquei em silêncio, por não saber o que dizer.
– Paul Barton veio ver-me pouco antes de você chegar – disse Elliott de repente.
Não posso esperar que o leitor se lembre de quem se trata, pois mesmo eu tive que virar essas páginas para ver que nome lhe dei. Paul Barton era o jovem americano que Elliott introduzira na sociedade inglesa, e que depois suscitara o seu ódio, por desdenhá-lo quando achara que Elliott não lhe poderia mais ser útil. Ultimamente Barton estivera em evidência, em primeiro lugar por ter-se naturalizado inglês, e depois por ter-se casado com a filha de um magnata da imprensa recentemente elevado a par do Reino. Com sua habilidade e a proteção de pessoa tão influente, com toda a certeza iria longe. Elliott estava amargado.
– Todas as vezes que acordo de noite e ouço um rato arranhando as paredes, digo: “Lá está Paul Barton, subindo”. Acredite-me, caro amigo, ele ainda acabará na Câmara dos Lordes. Graças a Deus não estarei vivo para ver urna coisa dessas.
– O que queria ele? – perguntei, pois tanto quanto Elliott eu sabia que aquele rapaz não fazia nada sem segunda intenção.
– Eu lhe conto o que ele queria! – rosnou Elliott. – Queria que eu lhe emprestasse a minha fantasia de conde de Lauria.
– Que topete!
– Não vê o que isso significa? Significa que ele sabia que Edna não me convidou, nem me ia convidar. Foi ela quem o instigou. Aquela vaca velha. Se não fosse por mim, ela nunca teria conseguido coisa alguma. Organizei suas festas. Apresentei-a a todas as pessoas com quem hoje se dá. Ela dorme com o chofer; você sabia disso, naturalmente. Revoltante! Paul Barton sentou-se aí nessa cadeira e me contou que ela vai mandar iluminar todo o jardim; que haverá fogos. Adoro fogos. E disse-me que Edna estava sendo a todo momento importunada por pessoas que queriam convites, mas que os negou, por querer que a festa seja excepcionalmente brilhante. Falou como se não houvesse a mínima probabilidade de eu ser convidado.
– Você vai lhe emprestar a fantasia?
– Prefiro vê-lo morto e no inferno. Quero ser enterrado com ela. – Elliott sentou-se na cama, balançando-se de um lado para outro, como uma mulher desatinada. – Oh! que maldade! – exclamou. – Odeio-os, odeio todos eles. Bem que me agradavam quando eu dava as minhas festas, mas agora que estou velho e doente não fazem mais caso de mim. Nem dez pessoas se deram ao trabalho de vir pedir notícias minhas, desde que caí de cama; e esta semana apenas um miserável ramalhete de flores! Fiz tudo por eles. Sentaram-se à minha mesa e beberam do meu vinho. Incumbi-me dos seus recados. Organizei suas festas. Sacrifiquei-me para lhes prestar favores. E o que lucrei com tudo isso? Nada, nada, nada.
Não há um deles que se importe que eu viva ou morra. Oh! que crueldade! – Elliott se pôs a chorar. Lágrimas grandes e pesadas correram-lhe pelas faces murchas. – Antes eu nunca tivesse saído da América!
Lamentável ver aquele velho, já com um pé na sepultura, chorar como uma criança por não ter sido convidado a uma festa; chocante, e ao mesmo tempo profundamente patético.
– Não se incomode, Elliott – disse eu. – Talvez chova na noite da festa. Isto escangalhará tudo.
Ele se agarrou às minhas palavras como o náufrago, de quem todos ouvimos falar, se agarrou à tabua de salvação. Começou a rir por entre as lágrimas.
– Não tinha pensado nisso. Rezarei para que chova, como até hoje não rezei. Você tem razão; escangalharia com tudo!
Falando de outros assuntos, consegui distrair sua mente frívola; quando parti, deixei-o, se não alegre, pelo menos bem mais sereno. Mas eu estava decidido a não permitir que a coisa ficasse nisso, de modo que, assim que cheguei em casa, telefonei a Edna Novemali, dizendo que tinha que ir a Cannes no dia seguinte e perguntando se podia ir almoçar em sua casa. Respondeu que teria muito prazer, mas que não haveria reunião. Apesar disso, quando lá cheguei encontrei dez pessoas, além da dona da casa. Não se podia dizer que Edna fosse má; era mesmo generosa e hospitaleira e seu único defeito grave era a sua língua venenosa. Não podia deixar de fazer comentários horríveis, mesmo a respeito de seus mais íntimos amigos, mas assim agia por ser muito pouco inteligente. Como suas frases venenosas eram geralmente repetidas, frequentemente ela estava de relações cortadas com as pessoas que tinham sido alvo de sua malícia; mas, como dava boas festas, depois de algum tempo quase todos achavam mais vantajoso perdoá-la. Eu não queria expor Elliott à humilhação de pedir a Edna que o convidasse à festa e esperei, portanto, para sondar o terreno. Ela estava animada com a perspectiva, e ao almoço não se falou em outra coisa.
– Elliott vai ficar encantado com a oportunidade de vestir sua fantasia de Filipe ii – disse eu com a maior despreocupação que me foi possível assumir.
– Não o convidei – disse ela.
– Por que não? – perguntei, fingindo surpresa.
– Por que havia eu de convidá-lo? Socialmente ele já não tem importância. E é um cacete, um esnobe, um linguarudo.
Uma vez que os qualificativos podiam igualmente ser aplicados a ela, achei aquilo um pouco forte. Idiota!
– Além disso, quero que Paul Barton use a fantasia de Elliott – continuou ela. – Há de lhe assentar divinamente.
Fiquei em silêncio, mas tomei a resolução de, custasse o que custasse, arranjar o convite pelo qual tanto suspirava o pobre Elliott. Depois do almoço Edna levou seus amigos para o jardim e tive assim a oportunidade desejada. Em certa ocasião eu ali me hospedara durante alguns dias e conhecia a disposição dos aposentos. Achei que deviam ter sobrado alguns convites e que estariam na sala da secretária. Escapuli para aquele lado, pretendendo enfiar um no bolso, escrever no envelope o nome de Elliott e mandá-lo em seguida pelo correio. Sabia que Elliott estava doente demais para comparecer, mas o fato de ser convidado teria suma importância para ele. Levei um choque quando, ao abrir a porta, dei com a secretária de Edna sentada à escrivaninha, pois a julgara ainda ao almoço. Era uma escocesa de meia-idade, chamada miss Keith, de cabelos cor de areia, rosto sardento, pincenê e ar de resoluta virgindade. Dominei-me.
– A princesa levou o grupo todo para o jardim, de modo que tive a ideia de vir fumar um cigarro com a senhora.
– À vontade.
Miss Keith falava com acentuada pronúncia escocesa e, quando condescendia em fazer uso do humor seco que reservava para os seus prediletos, chegava a fazer observações sumamente espirituosas; mas, quando a pessoa desatava a rir, ela a fitava com ar de consternada surpresa, como se a considerasse idiota por achar graça nos seus ditos.
– Com certeza a festa lhe está dando um trabalhão, miss Keith – disse eu.
– De fato. Nem sei para onde me virar.
Certo de que podia confiar nela, fui direto ao assunto.
– Por que é que a velha não convidou mr. Templeton? Miss Keith permitiu que um sorriso lhe abrandasse as feições.
– O senhor sabe como ela é. Tem uma queixa contra mr. Templeton. Ela mesma riscou o nome dele na lista.
– Elliott está morrendo, sabe. Não se levantará mais. Ficou sentidíssimo por ter sido excluído.
– Se ele queria continuar em bons termos de amizade com a princesa, devia ter tido a inteligência de não andar dizendo a todo mundo que ela dorme com o chofer. Ainda mais tendo ele mulher e três filhos.
– E ela dorme?
Miss Keith fitou-me por cima do pincenê.
– Sou secretária há vinte e um anos, prezado senhor, e sempre tive como norma acreditar que meus chefes são puros como a neve. Confesso que, quando uma de minhas patroas se viu grávida de três meses, tendo o lorde seu marido partido seis meses antes para caçar leões na África, minha fé sofreu rude golpe; mas ela fez uma viagenzinha a Paris, e uma viagenzinha bem cara, e tudo entrou nos eixos. Minha patroa e eu soltamos juntas um profundo suspiro de alívio.
– Miss Keith, não vim aqui para fumar um cigarro com a senhora. Vim surripiar um convite para mr. Templeton.
– Teria sido muito pouco escrupuloso da sua parte.
– De acordo. Seja camarada, miss Keith. Dê-me um convite.
Ele não virá, e isto irá causar enorme prazer ao pobre velho. A senhora não tem nada contra ele, tem?
– Não; sempre foi muito delicado comigo. É um cavalheiro; esta verdade eu digo dele – e é mais do que se pode dizer da maioria das pessoas que aqui vêm encher a pança à custa da princesa.
Todas as pessoas importantes têm, em sua companhia, um subordinado de confiança. Estes dependentes são muito susceptíveis e, quando não são tratados com a consideração a que se julgam com direito, com constantes e oportunas indiretas envenenam o espírito dos patrões contra as pessoas que incorreram no seu desagrado. Vale a pena a gente estar de bem com eles. Mais do que ninguém, Elliott sabia disso e sempre tinha uma palavra amável ou um sorriso cordial para o parente pobre, a velha ama, a secretária de confiança. Eu tinha certeza de que muitas vezes ele tagarelara agradavelmente com miss Keith, e que no Natal não se esquecera de lhe mandar uma caixa de chocolates, um porta-pó ou uma bolsa.
– Vamos lá, miss Keith, seja boazinha.
Miss Keith firmou mais ainda o pincenê no nariz proeminente.
– Tenho certeza de que o senhor não deseja que eu proceda deslealmente para com a minha patroa, mr. Maugham; além do mais, aquela vaca velha me despediria se descobrisse que lhe desobedeci. Os convites estão na escrivaninha, dentro dos envelopes. Vou até a janela, em parte para espichar as pernas, ameaçadas de câimbra pelo fato de eu estar sentada há muito tempo, e em parte para admirar a beleza do panorama. Pelo que acontecer enquanto eu estiver de costas, nem Deus nem as criaturas poderão responsabilizar-me.
Quando miss Keith voltou ao seu lugar, o convite estava no meu bolso.
– Tive muito prazer em vê-la, miss Keith – disse eu estendendo-lhe a mão. – De que pretende fantasiar-se na noite da festa?
– Sou filha de um ministro, prezado senhor – replicou ela. – Deixo essas futilidades para as classes elevadas. Depois de certificar-me de que aos representantes do Herald e do Mail foi servida uma boa ceia e uma garrafa do nosso champanhe de segunda, meu dever estará cumprido e procurarei o refúgio do meu quarto, para gozar as delícias de um romance policial.
8
Dois dias mais tarde, quando fui visitar Elliott, encontrei-o todo sorridente.
– Olhe aqui – disse ele. – Chegou o meu convite. Recebi-o hoje de manhã. – Tirou o cartão debaixo do travesseiro e mostrou-mo.
– Vê que eu tinha razão – repliquei. – Seu nome começa com T. Com certeza só agora a secretária chegou a esta letra.
– Ainda não respondi. Vou responder amanhã. Experimentei urna sensação de pânico ao ouvi-lo dizer isto.
– Não quer que eu responda por você? Posso pôr no correio, quando sair daqui.
– Não; que ideia foi esta? Sou muito capaz de responder eu mesmo aos meus convites.
Felizmente, pensei, os envelopes seriam abertos por miss Keith e ela teria a inteligência de dar um sumiço naquele. Elliott tocou a campainha e disse:
– Quero mostrar-lhe a minha fantasia.
– Você não pretende ir, Elliott?
– Claro que pretendo. Não a usei desde o baile dos Beaumont.
Joseph apareceu e Elliott lhe disse que trouxesse a fantasia. Veio em papel de seda, dentro de uma caixa larga e chata. Meias compridas de seda branca, calções acolchoados, em lamê dourado com listras de cetim branco, gibão combinando, uma capa, um rufo para ser usado à volta do pescoço, gorro chato de veludo, e uma longa corrente de ouro de onde pendia a ordem do Tosão de Ouro. Percebi que fora copiada da suntuosa vestimenta de Filipe 11, no retrato por Ticiano, que está no Museu do Prado; e, quando Elliott me disse que era exatamente o traje que o conde de Lauria usara no casamento do rei da Espanha com a rainha da Inglaterra, não pude deixar de refletir que ele estava dando asas à imaginação.
Na manhã seguinte, quando eu estava tomando o meu café, chamaram-me ao telefone. Era Joseph, para me avisar que Elliott tivera outro ataque durante a noite. O médico, chamado às pressas, duvidava de que ele passasse daquele dia. Pedi o carro e fui para Antibes. Encontrei Elliott inconsciente. Ele se opusera terminantemente a que chamassem uma enfermeira, mas fiquei satisfeito por encontrar uma a seu lado. Fora mandada pelo médico e viera do hospital inglês que havia entre Nice e Beaulieu. Saí para telefonar a Isabel; com Gray e as crianças, ela fora passar o verão na modesta praia de La Baule. A distância era grande e receei que eles não chegassem a tempo. A não ser pelos dois irmãos de Isabel, que fazia anos Elliott não via, era ela sua única parenta viva.
Mas o desejo de viver era intenso nele, ou talvez os remédios do médico tivessem produzido efeito – o fato foi que melhorou durante o dia. Apesar de profundamente abatido, procurou fazer-se de forte e divertiu-se importunando a enfermeira com perguntas indecentes sobre sua vida sexual. Passei com ele grande parte da tarde; no dia seguinte, ao voltar, encontrei-o bem mais alegre, se bem que bastante fraco. A enfermeira não me permitiu ficar muito tempo a seu lado. Eu estava aborrecido por não ter recebido resposta ao meu telegrama. Não sabendo qual o endereço de Isabel em La Baule, mandara-o para Paris e receei que a concierge tivesse demorado a reexpedi-lo. Somente dois dias mais tarde me veio a resposta: eles iam embarcar imediatamente. Por cúmulo do azar Isabel e Gray tinham ido fazer uma excursão pela Bretanha e só naquele momento tinham recebido o meu telegrama. Examinei o horário dos trens e vi que não poderiam chegar senão dali a trinta e seis horas.
No dia seguinte de manhã Joseph telefonou-me novamente, dizendo que Elliott passara muito mal a noite e desejava ver-me. Dirigi-me para lá apressadamente. Joseph chamou-me de lado.
– Monsieur vai me desculpar por tocar num assunto tão delicado – disse ele. – Sou, naturalmente, livre-pensador, e acho que a religião não passa de uma conspiração por parte dos padres para dominarem o povo, mas monsieur sabe como são as mulheres. Minha esposa e aos últimos sacramentos, e não há dúvida de que o tempo é curto. – Fitou-me, um tanto envergonhado, e continuou: – Além do mais, a gente nunca sabe, talvez seja preferível, antes de morrer, regularizar a situação com a Igreja.
Compreendi-o perfeitamente. Por mais que zombem da Igreja, quando chega a hora da morte geralmente os franceses preferem fazer as pazes com a religião que beberam com o leite materno.
– Deseja que eu lhe fale sobre isso?
– Se monsieur quisesse ter a bondade.
Não era tarefa agradável, mas afinal de contas Elliott fora durante anos fervoroso católico e era natural que se conformasse com os deveres da sua fé. Subi para vê-lo. Estava de costas, pálido e emurchecido, mas perfeitamente lúcido. Pedi à enfermeira que nos deixasse a sós.
– Infelizmente acho que você está muito mal, Elliott – disse-lhe eu. – Estive pensando, estive pensando se você não gostaria de ver um padre?
Ele me fitou em silêncio, durante alguns segundos. E depois:
– Quer dizer que vou morrer?
– Oh! espero que não. Mas é sempre bom a gente se garantir.
– Compreendo.
Ficou em silêncio. Momento terrível esse em que a gente tem que dizer a uma pessoa aquilo que eu acabara de dizer a Elliott. Não tive coragem de olhar para ele. Cerrei os dentes, pois tive medo de chorar. Estava sentado na beira da cama, de frente para ele, com o braço estendido para ampará-lo.
Ele deu-me um tapinha na mão.
– Não fique perturbado, caro amigo. Noblesse oblige, você sabe.
Ri histericamente.
– Você é uma criatura ridícula, Elliott.
– Agora sim. Chame o bispo e diga-lhe que quero confessar-me e receber a extrema-unção. Eu ficaria grato se ele me mandasse o abade Charles, que é meu amigo.
O abade Charles era o vigário-geral que já tive ocasião de mencionar. Desci e telefonei. Falei com o próprio bispo.
– É urgente? – perguntou ele.
– Muito.
– Providenciarei imediatamente.
O médico chegou e contei-lhe o sucedido. Ele subiu com a enfermeira para o quarto de Elliott e eu fiquei esperando no andar debaixo, na sala de jantar. Leva-se mais ou menos vinte minutos, de automóvel, de Nice a Antibes; dali a meia hora e pouco um sedan preto parou à porta. Joseph veio procurar-me.
– C’est monseigneur en personne, monsieur – disse ele, todo afobado. – É o próprio bispo.
Saí para recebê-lo. Não vinha, como de costume, acompanhado pelo vigário-geral e sim, não sei por quê, por um jovem padre que carregava um estojo que continha, creio eu, os objetos necessários à administração dos sacramentos. O chofer vinha em seguida, com uma surrada valise preta. O bispo me apertou a mão, apresentando o seu companheiro.
– Como vai o nosso pobre amigo?
– Infelizmente creio que está muito mal, monsenhor.
– Tenha a bondade de nos indicar um quarto, para nos paramentarmos.
– A sala de jantar fica aqui, monsenhor, e a sala de visitas no andar de cima.
– A sala de jantar servirá perfeitamente.
Levei-os até lá; Joseph e eu ficamos esperando no hall. Dali a pouco a porta abriu-se e o bispo apareceu, seguido pelo padre que segurava em ambas as mãos o cálice onde estava a pátena com a hóstia consagrada, coberta com um pano de cambraia tão fino que chegava a ser transparente. Eu nunca vira o bispo a não ser em algum almoço ou jantar, e ótimo garfo era ele, sabendo apreciar um petisco e um bom vinho, e contando com muito espírito histórias engraçadas e às vezes até mesmo imorais. Então me parecera um homem forte, atarracado, de estatura mediana. Mas agora, de sobrepeliz e estola, achei-o não somente alto, mas imponente. O rosto vermelho, em geral enrugado por um riso malicioso, mas afável, tinha agora uma expressão grave. Nada na sua aparência lembrava o oficial de cavalaria que ele fora; dava impressão de ser aquilo que realmente era, um dos grandes dignitários da Igreja. Não me admirei de ver Joseph fazer o sinal da cruz. O bispo inclinou ligeiramente a cabeça.
– Conduzam-me ao quarto do doente – disse.
Afastei-me para lhe dar passagem, mas ele fez sinal para que eu o precedesse. Subimos em solene silêncio. Entrei no quarto de Elliott.
– Foi o próprio bispo quem veio, Elliott. Ele fez um esforço para sentar-se.
– Monsenhor, não ousei esperar tão grande honra.
– Fique à vontade, meu amigo – disse o bispo. Virou-se para a enfermeira e para mim: – Deixe-nos. – E dirigindo-se ao padre: – Eu o chamarei quando estiver pronto.
O padre olhou à volta e percebi que estava procurando um lugar para depositar o cálice. Empurrei para um lado as escovas de tartaruga que estavam sobre o penteador. A enfermeira desceu e eu levei o padre para o quarto contíguo, que Elliott usava como escritório. As janelas ali estavam abertas para o céu azul; ele aproximou-se de uma delas. Sentei-me. Havia uma corrida de barcos e o branco das velas rebrilhava ao sol. Uma grande escuna de casco negro e velas vermelhas lutava contra a brisa, em direção à baía. Vi que era um barco de lagostas, trazendo um carregamento da Sardenha, para que os jantares de gala, nos cassinos, tivessem o seu prato de peixe. Através da porta fechada, eu distinguia um abafado murmúrio de vozes. Elliott confessava-se. Eu estava louco por um cigarro, mas fiquei com medo de escandalizar o padre. Ele continuava imóvel, olhando para fora. Rapaz delgado, de grossos e ondulados cabelos negros que lhe traíam a origem italiana. Havia no seu aspecto a vivacidade da gente do Sul, e fiquei a imaginar que fé poderosa, que intenso desejo o tinham induzido a abandonar as alegrias da vida cotidiana, os prazeres próprios da sua idade e a satisfação dos sentidos para dedicar-se ao serviço de Deus.
Subitamentet as vozes do quarto contíguo calaram-se; a porta abriu-se e o bispo apareceu.
– Venha – disse ele ao padre.
Fiquei só. De novo ouvi a voz do bispo e percebi que ele estava recitando as orações que a Igreja ordena sejam ditas à cabeceira dos agonizantes. Depois, novo silêncio; compreendi que Elliott estava recebendo o Corpo e o Sangue de Jesus. Devido a não sei que sentimento, herança talvez dos meus antepassados, embora não seja católico nunca posso assistir à missa sem experimentar, ao ouvir a campainha que anuncia a Elevação da Hóstia, uma trêmula sensação de temor; e também agora estremeci, como se tivesse sentido um calafrio – estremeci de medo e admiração. De novo a porta abriu-se.
– Pode entrar – disse-me o bispo.
Entrei. O padre estava cobrindo, com a pala, o cálice e a pátena onde estivera a hóstia consagrada. Os olhos de Elliott luziam.
– Acompanhe o monsenhor até o carro – disse ele. Descemos as escadas. Joseph e as criadas esperavam no hall.
As mulheres choravam. Eram três; adiantaram-se, cada uma por sua vez e, caindo de joelhos, beijaram o anel do bispo. Ele as abençoou com dois dedos. A mulher de Joseph deu no marido uma cotovelada e também ele deu um passo à frente, ajoelhou-se e beijou o anel. O bispo sorriu levemente.
– Você é livre-pensador, meu filho?
Percebi que Joseph fazia um esforço sobre si mesmo.
– Sim, monsenhor.
– Não se perturbe por isso. Você foi um bom e fiel servo.
Deus relevará os erros do seu modo de pensar. Acompanhei o bispo até a rua e abri a porta do seu carro. Ele inclinou a cabeça e, ao entrar, sorriu com indulgência.
– Nosso pobre amigo está muito mal. Seus defeitos eram superficiais; tinha um coração generoso e foi bom para seus semelhantes.
9
Achando que, depois da cerimônia, Elliott havia de preferir ficar só, dirigi-me para a sala de visitas e comecei a ler; mas, nem bem me instalara, apareceu a enfermeira dizendo que ele desejava ver-me. Subi até o seu quarto. Não sei se graças a uma injeção que o médico lhe dera para ajudá-lo na provação por que teria de passar, ou se devido à excitação, encontrei-o calmo, alegre e de olhos cintilantes.
– Uma grande honra, caro amigo, uma grande honra – disse ele. – Entrarei no reino dos céus com uma carta de apresentação de um príncipe da Igreja. Creio que todas as portas se me abrirão.
– Receio que você vá encontrar ali certa mistura –
repliquei sorrindo.
– Não tenha essa ilusão, caro amigo. Diz a Sagrada Escritura que, assim como na terra, existem distinções de classe no céu. Há serafins e querubins, anjos e arcanjos. Sempre frequentei a melhor sociedade da Europa e tenho certeza de que o mesmo se dará no céu. Nosso Senhor disse: “A Casa de meu Pai tem muitas mansões”. Não seria nada correto alojar o hoi polloi num estilo a que não está habituado.
Desconfiei que Elliott considerava as habitações celestiais como uma espécie de castelo de algum barão de Rothschild, com painéis do século xviii nas paredes, mesas Buhl, cômodas entalhadas e apartamentos em estilo Luís xv cobertos com legítimo petit-point. Depois de uma pausa ele continuou:
– Acredite-me, caro amigo, não haverá nenhuma dessa maldita igualdade no céu.
Caiu em repentina sonolência. Sentei-me e comecei a ler. Ele continuou dormindo. À uma hora a enfermeira apareceu para me avisar que Joseph ia servir o meu almoço. Encontrei Joseph muito humilde.
– Imagine, monsenhor vir em pessoa. Grande honra conferida ao nosso pobre patrão. O senhor me viu beijar o anel?
– Vi.
– Por mim não o teria beijado: fiz isso para contentar minha pobre esposa.
Passei a tarde no quarto de Elliott. Veio telegrama de Isabel, avisando que ela e Gray chegariam na manhã seguinte, pelo Trem Azul. Não tive esperança de que chegassem a tempo. O médico apareceu. Sacudiu a cabeça. Lá pelo cair da tarde, Elliott acordou e conseguiu comer alguma coisa, parecendo com isto criar momentânea força. Fez sinal para que eu me aproximasse da cama.
– Ainda não respondi ao convite de Edna – disse em voz sumida.
– Oh! não se incomode com isso agora, Elliott.
– Por que não? Sempre fui mundano; não há motivo para esquecer as boas maneiras só porque vou deixar o mundo. Onde está o convite?
Estava sobre a lareira; coloquei-o na mão de Elliott, mas não creio que o pudesse ver.
– Você encontrará um bloco no escritório. Se quiser ir buscá-lo, poderei ditar-lhe a minha resposta.
Fui ao quarto e voltei com o bloco e um lápis. Sentei-me na beirada da cama.
– Está pronto?
– Estou.
Elliott tinha os olhos fechados, mas havia nos seus lábios um sorriso malicioso. O que iria ele dizer?
– Mr. Elliott Templeton lamenta não poder aceitar o amável convite da princesa Novemali, devido a um prévio compromisso com o seu Bem-Amado Senhor.
Deu uma risada rouca, espetral. Seu rosto tinha uma cor azulada, horrível de se ver, e ele exalava o odor nauseabundo próprio da sua moléstia. Pobre Elliott, que tanto gostava de se borrifar com os perfumes de Chanel e Molyneux! Ainda tinha na mão o convite furtado; temendo que o estivesse incomodando, tentei retirá-lo, mas Elliott segurou-o com mais força ainda. Sobressaltei-me ao ouvi-lo falar em voz alta.
– Aquela vaca velha.
Foram as últimas palavras que pronunciou. Caiu em estado de coma. A enfermeira permanecera a seu lado durante toda a noite anterior e parecia muito cansada; mandei-a para a cama, dizendo que ficaria com Elliott e prometendo chamá-la caso fosse necessário. Não havia realmente nada que se pudesse fazer. Acendi um abajur e li até meus olhos arderem; apaguei-o depois e fiquei sentado no escuro. Era uma noite quente e as janelas estavam completamente abertas. Com intervalos regulares a luz do farol varria o quarto com passageiro brilho. A lua – que dias mais tarde, quando cheia, iria iluminar a ruidosa e fátua alegria do baile de Edna Novemali – firmou-se no céu de um azul profundo, profundíssimo, onde inúmeras estrelas brilhavam com seu terrífico fulgor. Devo ter cochilado, mas meus sentidos continuaram atentos; subitamente acordei por completo ao ouvir um som apressado, raivoso, o mais apavorante som que uma pessoa possa ouvir: o estertor da morte. Aproximei-me da cama e à luz do farol tomei o pulso de Elliott. Estava morto. Acendi o abajur da cabeceira e olhei-o. O maxilar caíra. Os olhos estavam abertos e, antes de fechá-los, observei-os por alguns instantes. Eu estava comovido e creio que algumas lágrimas me correram pelas faces. Velho e bom amigo. Entristeci-me ao pensar como sua vida fora tola, vazia e inútil. Pouca importância tinha agora o fato de ter ele ido a tantas festas e convivido com todos aqueles príncipes, duques e condes. Já se tinham esquecido dele por completo.
Não achei necessário acordar a enfermeira e voltei, portanto, para a minha cadeira perto da janela. Quando ela apareceu, às sete da manhã, encontrou-me dormindo. Deixei-a, para que fizesse aquilo que achasse necessário e depois de tomar o meu café fui à estação, esperar Gray e Isabel. Contei-lhes que Elliott morrera e, como não havia lugar em sua casa, convidei-os para se hospedarem comigo, mas eles preferiram ir para um hotel. Voltei para minha casa, para tomar banho, fazer a barba e trocar de roupa.
No período da manhã Gray me telefonou, dizendo que Joseph lhe entregara uma carta a mim endereçada, que Elliott lhe confiara. Como podia haver nela algo de confidencial, respondi que iria imediatamente para lá. Fui. No envelope estava escrito: Para ser entregue logo após a minha morte, e a carta dava instruções sobre o enterro. Eu sabia que Elliott desejava ardentemente ser sepultado na igrejinha por ele construída, e já prevenira Isabel disso. Ele queria ser embalsamado e indicava que firma devia encarregar-se do serviço. “Indaguei a respeito”, continuava ele, “e informaram-me que eles trabalham muito bem. Confio em você, para verificar que tudo saia benfeito. Desejo que me vistam o traje do meu antepassado, o conde de Lauria, com a espada do lado e a Ordem do Tosão de Ouro no meu peito. Deixo a seu gosto a escolha do caixão. Deverá ser simples, mas adequado à minha posição. A fim de não causar desnecessário incômodo, desejo que Thomas Coock and Son se encarreguem do transporte do meu caixão, e que um dos seus empregados acompanhe meus restos mortais à sua derradeira morada.”
Lembrei-me de que Elliott dissera que desejava ser enterrado naquela sua fantasia, mas julguei tratar-se de capricho passageiro e nunca pensei que falasse seriamente. Joseph insistia em que seus desejos fossem cumpridos à risca e não vi motivo para agirmos contrariamente a eles. O corpo foi devidamente embalsamado; depois fui com Joseph vesti-lo com aqueles trajes absurdos. Lúgubre tarefa. Calçamos nas pernas compridas as meias de seda branca, puxando sobre elas os calções dourados. Foi com grande dificuldade que lhe enfiamos o gibão. Colocamos no pescoço o rufo engomado, ajeitamos a capa de cetim em volta dos ombros. Finalmente, na cabeça, o barrete de veludo, e em volta do pescoço o colar do Tosão de Ouro. O embalsamador lhe pintara as faces e os lábios. Naqueles trajes, agora grandes demais para o seu corpo emaciado, Elliott parecia um corista de uma das primeiras óperas de Verdi. Pobre Dom Quixote com o seu ideal vazio! Depois que os homens da agência funerária o puseram no caixão, coloquei entre as pernas, ao longo do corpo, a espada e no punho da espada as mãos de Elliott, a exemplo do que eu vira no túmulo esculpido de um cruzado.
Gray e Isabel foram para a Itália, assistir ao enterro.
Seis
Seis
1
Acho justo avisar o leitor que pode perfeitamente pular este capítulo sem perder o fio do pouco de romance que tenho para contar, pois na maior parte ele não passa da repetição de uma conversa que tive com Larry. Devo no entanto acrescentar que, não fosse por essa conversa, talvez eu não tivesse achado que valesse a pena escrever este livro.
2
No outono, alguns meses depois da morte de Elliott, passei uma semana em Paris, antes de ir para a Inglaterra. Depois da lúgubre viagem à Itália, Gray e Isabel tinham voltado para a Bretanha, mas estavam agora novamente instalados no apartamento da Rue St. Guillaume. Isabel contou-me os termos do testamento. Elliott determinara que reservassem certa quantia para que fossem ditas missas em prol de sua alma, na igrejinha por ele construída, e outra soma para a conservação da referida igreja. Deixara ao bispo de Nice um belíssimo legado, para ser aplicado em obras de caridade. Quanto a mim, deixou-me a duvidosa herança de sua biblioteca pornográfica do século xviii, e um belo desenho de Fragonard, representando um sátiro e uma ninfa entretidos num ato que é geralmente feito na intimidade. Era indecente demais para eu pendurar numa das paredes de minha casa, e não sou homem de me deleitar com obscenidades clandestinamente. Fora generosíssimo com os criados. Quanto aos sobrinhos, herdavam dez mil dólares cada um; o resto da fortuna ia para Isabel. Ela não me disse quanto era, nem lhe perguntei, mas pela sua atitude complacente percebi que devia ser muito dinheiro.
Já fazia tempo, desde que recuperara a saúde, que Gray estava ansioso por voltar para a América e recomeçar a trabalhar; embora Isabel se sentisse bem em Paris, a inquietação de Gray acabara por afetá-la. Durante meses mantivera ele correspondência a esse respeito com amigos, mas o melhor negócio que lhe fora oferecido dependia de grande entrada de capital. Ele não dispunha desse dinheiro, mas, com a morte de Elliott, Isabel herdara muito mais do que era necessário, e com o seu consentimento Gray entabulara o negócio, pretendendo, se tudo corresse como esperava, ir pessoalmente à América estudar de perto o assunto. Mas antes disso havia muito que fazer. Tinham chegado a um acordo razoável com o governo francês sobre os impostos de transmissão causa mortis. Precisavam dispor da casa de Antibes e do apartamento da Rue St. Guillaume. Tinham de providenciar a venda, no Hotel Drouot, da mobília, quadros e desenhos de Elliott. Como eram valiosos, seria preferível esperar até a primavera, quando havia a probabilidade de os grandes colecionadores se acharem em Paris. Isabel não desgostou de ter que passar mais um inverno ali; suas filhas falavam, agora, o francês tão corretamente quanto o inglês, e agradava-lhe a ideia de vê-las frequentar durante mais alguns meses uma escola francesa. As duas meninas tinham crescido em três anos e eram agora duas criaturas magras, muito vivas, de pernas compridas, que no presente nada tinham da beleza da mãe; bem-educadas e de uma insaciável curiosidade.
Por enquanto, é só.
3
Encontrei-me com Larry por acaso. Pedira notícias suas a Isabel e ela me contara que pouco o tinham visto depois de voltar de La Baule. Isabel e Gray tinham agora um bom círculo de relações, gente da sua idade, e estavam muito mais comprometidos do que naquelas agradáveis semanas em que nós quatro saíamos tanto juntos. Certa noite fui ao Théâtre Français ver Bérénice. Já lera a peça, naturalmente, mas nunca a vira representada; e como é raramente levada ao palco não quis perder essa oportunidade. Não é das melhores peças de Racine, pois o assunto é fraco para se aguentar durante cinco atos; mas é comovente e há nela certos trechos merecidamente famosos. A história baseia-se numa breve passagem de Tácito: – Tito, que amava loucamente Bérénice, rainha da Palestina, tendo mesmo, segundo se julgava, chegado a prometer-lhe casamento, por razões de estado mandara-a embora de Roma nos primeiros dias do seu reinado, e isto contra o desejo de ambos. O Senado e o povo de Roma opunham-se violentamente à união do seu imperador com uma rainha estrangeira. A peça descreve a luta travada no coração do homem entre o amor e o dever e, quando no fim ele fraqueja, é Bérénice quem, certa de que é amada, reforça a resolução do imperador, separando-se dele para sempre.
Creio que somente um francês pode apreciar devidamente a graça e a grandeza de Racine, a música dos seus versos; mas, mesmo um estrangeiro, depois que se habitua à formalidade artificial do estilo, não pode deixar de se comover com a sua apaixonada ternura e a nobreza do seu modo de sentir. Racine conhecia, como poucos, o poder dramático da voz humana. Para mim, pelo menos, o som daqueles melífluos alexandrinos é suficiente substituto da ação; acho os longos discursos, elevando-se com infinita habilidade até o esperado ponto culminante, tão emocionantes como qualquer arrepiadora fita de aventuras.
No intervalo, depois do terceiro ato, saí para fumar um cigarro no foyer onde se vê o Voltaire de Houdon, com seu desdentado e sardônico sorriso. Alguém me bateu no ombro. Virei-me, talvez com ligeiro movimento de desagrado, pois desejava ficar só para gozar a exaltação que me tinham causado os versos sonoros, e dei com Larry. Senti, como sempre, prazer em vê-lo. Fazia um ano que não nos encontrávamos e sugeri tomarmos uma cerveja juntos, depois do espetáculo. Larry disse que estava com fome, pois não jantara, e propôs irmos a Montmartre. Conseguimos nos encontrar sem grande dificuldade e saímos para o ar livre. O Théâtre Français tem um odor de mofo que lhe é peculiar, impregnado do cheiro daquelas incontá-veis gerações de mulheres de rosto azedo e pouco asseio, chamadas ouvreuses, que nos mostram o nosso lugar e ficam imperiosamente à espera da gorjeta. Foi um alívio sair dali; como estava fresco, fomos a pé. As lâmpadas da Avenue de l’Opéra brilhavam tão desafiadoramente que as estrelas lá em cima, orgulhosas demais para entrarem em competição, embaçaram seu brilho, protegidas pela infinita distância. Enquanto caminhávamos, fomos discutindo a peça a que acabávamos de assistir. Larry mostrou-se decepcionado. Gostaria que tivessem sido mais naturais os versos recitados em tom habitual, os gestos menos teatrais. Não concordei. Tratava-se de retórica, magnífica retórica, e eu era de opinião que devia ser recitada retoricamente. Agradava-me a cadência regular das rimas; e o apuro dos gestos, conservados pela tradição, parecia de acordo com aquela arte formal. Não pude deixar de refletir que era assim que Racine desejaria que sua peça fosse representada. Eu admirara a maneira com que os atores tinham conseguido ser humanos, apaixonados e sinceros, dentro dos limites em que se viam encerrados. A arte triunfa quando consegue servir-se do convencionalismo em benefício próprio.
Chegamos à Avenue de Clichy e entramos na Brasserie Graf. Já passava de meia-noite e o restaurante estava repleto, mas conseguimos arranjar uma mesa e encomendamos ovos com toucinho. Contei a Larry que vira Isabel.
– Gray vai ficar satisfeito de poder voltar para a América – disse ele. – Aqui é como um peixe fora d’água. E não se sentirá feliz, a não ser que recomece a trabalhar. Garanto que ainda vai ganhar muito dinheiro.
– Será então graças a você, que não somente o curou no físico, mas no espírito também. Fez com que tivesse de novo confiança em si.
– Fiz muito pouco. Apenas lhe mostrei como poderia curar-se a si próprio.
– Como aprendeu esse “pouco”?
– Acidentalmente. Na Índia. Estava sofrendo de insônia e por acaso mencionei o fato a um iogue meu conhecido e ele me disse que logo daria um jeito nisso. Fez exatamente o que você me viu fazer com Gray; naquela noite dormi como havia meses não dormia.
E então, um ano mais tarde, creio, estava eu no Himalaia com um meu amigo, um hindu, quando ele torceu o tornozelo. Impossível conseguir-se médico e ele estava sofrendo muito. Lembrei-me de experimentar aquilo que o iogue fizera comigo. Deu resultado. Acredite-me você ou não, a dor lhe passou por completo. – Larry riu e continuou: – Garanto que ninguém ficou mais admirado do que eu. Não é nada de extraordinário; basta meter a ideia na cabeça da pessoa que está sofrendo.
– É mais fácil dizer do que fazer.
– Você estranharia se o seu braço se erguesse da mesa sem nenhuma intervenção da sua vontade?
– Muitíssimo.
– Pois vai levantar-se. Quando voltamos aos meios civilizados, meu amigo hindu contou o sucedido e trouxe muita gente para ver-me. Era-me suavemente desagradável fazer aquilo, pois eu não entendia muito bem o que se passava, mas eles insistiam. De um jeito ou de outro consegui ajudá-los. Verifiquei que podia livrá-los não somente da dor, mas do medo. Esquisito quanta gente sofre disso! Não me refiro somente a medo de espaços fechados e medo das alturas, mas medo da morte e, mais grave ainda, medo da vida. Às vezes encontramos pessoas que parecem de ótimo estado de saúde, prósperas, sem nenhuma preocupação, e que no entanto se acham torturadas por esse medo. Cheguei mesmo a acreditar que era a coisa mais comum nas criaturas, e certa vez perguntei a mim mesmo se não teria origem em algum profundo instinto animal, que o homem herdou daquele “não-sei-quê” primevo que pela primeira vez sentiu a vibração da vida.
Eu ouvia interessado e em expectativa, pois era raro Larry estender-se sobre um assunto, e pareceu-me que, pelo menos por sua vez, estava de humor expansivo. É possível que a peça que acabáramos de ver tivesse libertado alguma inibição e que, assim como acontece com a música, as cadências sonoras lhe tivessem vencido a instintiva reserva. Subitamente percebi que alguma coisa estava acontecendo com a minha mão. Não dera importância à pergunta meio brincalhona de Larry, mas agora senti que minha mão já não estava apoiada na mesa, tendo-se erguido uma polegada acima dela, sem interferência da minha vontade. Sobressaltei-me. Baixei os olhos e vi que ela estava ligeiramente trêmula. Senti um estranho formigueiro nos nervos do braço, um leve tranco, e minha mão e antebraço se ergueram por si mesmos, sem que, pelo menos foi o que pensei, eu ajudasse ou resistisse, ficando várias polegadas acima da mesa. Depois senti erguer-se todo braço, desde o ombro.
– Que coisa esquisita! – comentei.
Larry riu. Fiz um pequeno esforço de vontade e meu braço caiu de novo sobre a mesa.
– Não é nada – disse ele. – Não dê a menor importância ao fato.
– Aprendeu isto com o iogue de quem nos falou ao voltar da Índia?
– Oh! não; ele não tinha paciência com essas coisas. Não sei se se julgava possuidor dos poderes que alguns iogues garantem ter, mas teria achado pueril usá-los.
Os ovos com toucinho chegaram. Comemos com apetite. Tomamos a nossa cerveja. Nenhum de nós dois falou. Larry pensava não sei em quê, e eu pensava nele. Acabamos. Acendi um cigarro e Larry o seu cachimbo.
– Por que foi que, em primeiro lugar, pensou em ir à Índia? – perguntei à queima-roupa.
– Por acaso. Pelo menos assim o julguei na ocasião. Agora estou achando que foi o inevitável resultado dos anos que passei na Europa. Parece-me que conheci por acaso quase todas as pessoas que mais me interessavam, e no entanto, olhando o passado, tenho a impressão de que tais encontros tinham que se dar. Como se essas pessoas estivessem esperando a minha visita quando precisei delas. Fui à Índia porque queria descansar. Trabalhara muito e desejava coordenar meus pensamentos. Arranjei um lugar de marujo num desses navios de recreio que fazem a volta ao mundo. Íamos para o Oriente e depois para Nova York, pelo Canal do Panamá. Fazia cinco anos que não ia à América e estava com saudade. Sentia-me deprimido. Você se lembra de como eu era ignorante, quando nos conhecemos em Chicago, há tantos anos ja... Eu lera muito, na Europa, e vira muita coisa, mas em nada me achava mais próximo daquilo que buscava.
Tive vontade de perguntar a Larry o que buscava ele, mas achei que daria uma risada, encolheria os ombros e diria que era coisa sem importância.
– Mas por que motivo foi como marujo? – perguntei. – Você tinha dinheiro.
– Pela experiência. Todas as vezes que me senti saturado espiritualmente, todas as vezes que assimilei tudo o que me foi possível assimilar na ocasião, achei útil fazer qualquer coisa nesse gênero. No inverno seguinte ao rompimento do meu noivado com Isabel, trabalhei durante seis meses numa mina de carvão, perto de Lens.
Foi aí que me contou aqueles fatos que narrei num capítulo anterior.
– Ficou desgostoso quando Isabel desmanchou o noivado?
Antes de responder, Larry me fitou com aqueles seus estranhos olhos negros, que neste momento tinham uma expressão introspectiva.
– Fiquei. Era muito moço. Estava resolvido a casar-me com ela. Tinha planejado a vida que íamos levar juntos. Achava que ia ser ótima. – Ele riu de mansinho. – Mas são precisos dois para um casamento, assim como são precisos dois para uma briga. Nunca me ocorreu que a vida que eu oferecia a Isabel fosse uma vida que a enchesse de consternação. Se eu tivesse um pouco de perspicácia, nunca teria feito tal proposta. Ela era moça demais e muito ardente. Não me era possível culpá-la. Não me era possível ceder.
Talvez o leitor se lembre que, ao fugir da fazenda, depois do grotesco encontro com a nora-viúva, Larry fora para Bonn. Eu estava ansioso por ouvir o resto, mas sabia que, na medida do possível, devia evitar perguntas diretas.
– Nunca estive em Bonn – comentei. – Quando rapazinho estudei durante algum tempo em Heidelberg. Creio que foi a época mais feliz da minha vida.
– Gostei de Bonn – disse Larry. – Passei lá um ano. Arranjei quarto na casa da viúva de um dos professores da Universidade, que tomava dois pensionistas. Ela e as duas filhas, ambas já maduras, cozinhavam e faziam todo o serviço. A princípio fiquei decepcionado ao ver que o outro pensionista era francês, pois eu só queria falar alemão; mas ele era alsaciano e falava o alemão, se não correntemente, pelo menos com melhor pronúncia do que o francês. Vestia-se como um pastor alemão e fiquei admirado quando, dias mais tarde, soube que era um monge beneditino. Obtivera licença para sair do mosteiro para fazer certas pesquisas na biblioteca da universidade. Era muito culto, mas não se julgaria isso pela sua aparência, a qual também não correspondia à ideia que eu fazia de um monge. Era um sujeito alto, forte, com cabelos cor de areia, olhos azuis meio saltados, rosto redondo e vermelho. Era tímido e reservado e parecia não querer saber de amizade comigo, mas era muito cortês, num estilo um tanto complicado; à mesa tomava civilmente parte na conversa. Era onde eu o via; assim que acabávamos de jantar ele voltava ao seu trabalho, na biblioteca; depois da ceia, enquanto eu ficava na sala a praticar o meu alemão com qualquer das filhas que estivesse livre no momento, ele se retirava para o quarto.
Fiquei admirado quando, mais ou menos um mês depois de eu ter chegado a Bonn, certa tarde ele me convidou para um passeio a pé. Disse que me poderia mostrar na vizinhança lugares que provavelmente eu nunca viria a descobrir sozinho. Sou bom andarilho, mas o monge ganharia de mim a qualquer hora. Creio que caminhamos no mínimo vinte e cinco quilômetros naquele primeiro dia. Perguntou-me que fazia eu em Bonn e respondi que viera para aprender alemão e um pouco da literatura alemã. Ele conversava inteligentemente. Disse que teria prazer em ajudar-me no que lhe fosse possível. Depois disso, saíamos duas ou três vezes por semana para passeios a pé. Fiquei sabendo que ele ensinara filosofia durante alguns anos. Em Paris eu lera um pouco sobre isto, Spinoza, Platão e Descartes, mas nada acerca dos grandes filósofos alemães; era pois com prazer que o ouvia discorrer sobre eles. Certo dia, depois de termos feito urna excursão ao outro lado do Reno, enquanto tomávamos uma cerveja num bar ao ar livre ele me perguntou se eu era protestante.
– Creio que sim – respondi.
O monge me atirou um rápido olhar onde distingui a sombra de um sorriso. Começou a falar de Ésquilo; eu estudara grego e vi que ele conhecia os grandes trágicos como jamais tive esperança de os conhecer. Que prazer ouvi-la! Por que me teria feito aquela pergunta? Meu tutor, o tio Bob Nelson, era agnóstico, mas ia regularmente à igreja, pois seus clientes esperavam isso dele; pela mesma razão mandava-me no domingo à aula de religião. Martha, a nossa empregada, era uma rígida batista e costumava amedrontar-me, quando criança, falando do fogo do inferno a que os pecadores seriam condenados por toda a eternidade. Sentia verdadeiro prazer em descrever-me os sofrimentos reservados a várias pessoas da aldeia que, por um motivo ou outro, tinham incorrido no seu desagrado.
Quando chegou o inverno eu já conhecia bem o padre Ensheim. Creio que era um homem extraordinário. Nunca o vi de mau humor. Tinha bom gênio, era afável, de ideias muito mais largas do que se podia supor, e infinitamente tolerante. Sua erudição era prodigiosa e ele devia ter percebido como eu era ignorante, mas conversava comigo como se minha cultura fosse igual à sua. Muito paciente; parecia não ter outro desejo que o de me ser útil. Certo dia, não sei por quê, tive um ataque de lumbago; frau Grabau, a dona da casa, insistiu em mandar-me para a cama, rodeado de bolsas de água quente. Tendo sabido que eu estava deitado, depois da ceia o padre Ensheim subiu para ver-me. A não ser pela dor, eu me sentia bem. Você sabe como são essas pessoas muito lidas – curiosas, em se tratando de livros; quando larguei o meu, ao ver entrar o padre, este apanhou-o para olhar o título. Era uma obra de Meister Eckhart, que eu encontrara numa das livrarias da cidade. Perguntou-me por que estava eu lendo aquela obra; contei-lhe então que andava interessado em literatura mística, e falei-lhe de Kosti, que despertara a minha curiosidade sobre o assunto. Ele me fitou com seus olhos saltados, e havia neles uma expressão que só posso descrever como ternura divertida. Pareceu-me que me achava um tanto ridículo, mas que a afeição que sentia por mim era tão grande que isto em nada a alterava. Além do mais, nunca me importei que os outros me achassem meio tolo.
“O que está procurando nesses livros?”, perguntou-me.
“Se eu soubesse, estaria pelo menos no meio do caminho.” “Lembra-se de que lhe perguntei se você era protestante? Você respondeu que achava que sim. Que queria dizer com isto?” “Fui educado na religião protestante”, respondi.
“Você acredita em Deus?”
– Não gosto de perguntas pessoais e meu primeiro impulso foi dizer que isso não era da sua conta. Mas ele irradiava tanta bondade que não tive coragem de ofendê-lo. Fiquei sem saber o que responder. Não queria dizer “não” nem tampouco “sim”. Não sei se devido à dor que eu sentia, ou porque havia nele qualquer coisa, comecei a falar... Contei-lhe tudo a meu respeito.
Larry hesitou por um momento e, quando continuou, percebi que não se dirigia a mim e sim ao monge beneditino. Esquecera-se da minha presença. Não sei se devido à ocasião ou ao ambiente, sua reserva natural quebrou-se, permitindo-lhe falar, sem que eu o atiçasse, de coisas que até então guardara só para si.
– O tio Nelson era muito democrata e me pôs na escola pública de Marvin. Somente por insistência de Louisa Bradley foi que, quando completei catorze anos, me deixou ir para St. Paul. Eu não sobressaía nem nos estudos nem no esporte, mas dei-me muito bem lá. Creio que era um menino perfeitamente normal. Louco por aviação. Voava-se pouco, naqueles primeiros tempos, e o tio Bob estava tão entusiasmado quanto eu. Conhecia alguns dos aviadores e disse-me que, se eu quisesse aprender a voar, ele daria um jeito. Eu era alto para a idade; aos dezesseis anos podia perfeitamente passar por dezoito. O tio Bob me fez prometer segredo, pois sabia que todo mundo o criticaria, mas ajudou-me a ir para o Canadá, entregando-me uma carta de apresentação para um seu conhecido. O resultado foi que, aos dezessete anos, eu estava voando na França.
Os aviões que pilotávamos eram muito frágeis e cada vez que subíamos arriscávamos, por assim dizer, a vida. Comparadas com as de hoje, as alturas que atingíamos eram absurdas, mas naquele tempo era assim, e achávamos uma maravilha. Eu gostava de voar. Não teria sido capaz de descrever a sensação que me causava; sabia apenas que me sentia orgulhoso e feliz. No ar, bem alto, eu sentia que fazia parte de alguma coisa muito grande e muito bela. Não sabia do que se tratava; sabia apenas que, a seiscentos metros de altura, não estava mais só, embora desacompanhado, sentia que estava no meu elemento. Não é culpa minha se isto parece tolice. Quando voava sobre as nuvens, que lá embaixo pareciam enormes rebanhos de ovelhas, eu me sentia em casa com a imensidade.
Larry fez uma pausa. Olhou-me lá das covas dos seus olhos impenetráveis, mas não sei se me teria visto.
– Sabia que centenas de milhares de homens haviam morrido, mas eu não os vira morrer. Isto não me atingia grandemente. Depois vi um morto, com meus próprios olhos. Aquilo me encheu de vergonha.
– Vergonha? – exclamei involuntariamente.
– Vergonha, sim, porque aquele rapaz, apenas três ou quatro anos mais velho do que eu, que tivera tanta energia e coragem, que momentos antes dera provas de tão grande vitalidade, que fora tão bom, não passava agora de carne lacerada que parecia nunca ter vivido.
Fiquei calado. Quando estudante de medicina eu vira muitos cadáveres, e durante a guerra mais ainda. O que mais me consternara fora notar como eles pareciam insignificantes. Não tinham dignidade. Fantoches que o dono do espetáculo atirara fora.
– Aquela noite não dormi. Chorei. Não estava com medo, e sim indignado; o que mais me abateu foi a maldade de tudo aquilo. A guerra acabou e voltei para casa. Sempre gostara de mecânica e, se não houvesse lugar para mim na aviação, pretendia ir trabalhar numa fábrica de automóveis. Fora ferido e tinha que levar tudo na calma durante algum tempo. Depois eles quiseram que eu arranjasse emprego. Impossível aceitar o tipo de trabalho que me ofereciam. Parecia-me inútil. Eu tivera muito tempo para refletir; perguntava frequentemente a mim mesmo qual seria a finalidade da vida. Pensando bem, era por acaso que eu estava vivo; queria fazer alguma coisa da minha em Deus; agora ele começou a preocupar-me. Não podia compreender a razão da existência do mal no mundo. Sabia que eu era muito ignorante; queria aprender, mas não tinha a quem recorrer, de modo que comecei a ler ao acaso.
Quando contei tudo isto ao padre Ensheim, ele me perguntou: “Está então lendo há quatro anos? Aonde chegou?”.
“A parte alguma”, respondi.
– Ele me fitou com ar de tão radiante benevolência que fiquei desconcertado. Que fizera eu para provocar tão intensa maneira de sentir? Ele tamborilou de mansinho na mesa, como se refletisse sobre alguma coisa. Depois disse:
“Nossa sábia Igreja ensina que, se você agir como se tivesse fé, a fé lhe será concedida; se você rezar duvidando mas sinceramente, suas dúvidas se dissiparão; se você se submeter à beleza da liturgia, cujo poder sobre o espírito humano foi provado pela experiência de séculos, a paz descerá sobre sua alma. Logo regressarei ao mosteiro. Por que não vem passar umas semanas conosco? Poderá trabalhar nos campos, com os nossos irmãos conversos; poderá ler na nossa biblioteca. Não será experiência menos interessante do que trabalhar numa mina de carvão ou numa fazenda da Alemanha.”
“Por que me faz essa sugestão?”, perguntei-lhe.
“Há três meses que o estou observando”, respondeu o padre.
“Talvez eu o conheça melhor do que você se conhece a si próprio. A distância que o separa da fé não é maior que a espessura do papel de um cigarro.”
– Fiquei calado. Experimentei uma sensação esquisita, como se alguém tivesse dado um repuxão nas cordas do meu coração. Finalmente respondi que ia refletir. Ele não tocou mais no assunto. Durante o resto da estada do padre Ensheim em Bonn, nunca mais falamos de coisa que se relacionasse com religião, mas ao despedir-se ele me deu o endereço do mosteiro, dizendo que, se eu resolvesse ir visitá-los, bastava escrever-lhe, que se encarregaria de tudo. Ele me fez mais falta do que eu pensara. Acabou-se o ano; estávamos em pleno verão. Eu gostava de Bonn. Li Goethe, Schiller, Heine. Li Hölderlin e Rilke. Mesmo assim, não chegara a parte alguma. Refleti muito sobre o que me dissera o padre Ensheim e finalmente resolvi aceitar-lhe o convite.
Ele me esperava na estação. O mosteiro ficava na Alsácia. Bela região. O padre Ensheim apresentou-me ao abade e levou-me depois à cela que me fora designada. Tinha uma estreita cama de ferro, um crucifixo na parede e, como mobília, as coisas estritamente necessárias. Soou a sineta do jantar; dirigi-me para o refeitório. À porta estava o abade com dois monges, um dos quais segurava uma bacia e o outro uma toalha; o abade borrifou algumas gotas de água nas mãos dos hóspedes, como a lavá-las, e enxugou-as depois na toalha que um dos monges lhe entregou. Havia mais três hóspedes, dois padres que tinham passado por ali e parado para jantar, e um francês velho e rabugento que estava fazendo retiro.
O abade e os dois priores sentaram-se na ponta do refeitório, cada qual à sua mesa; os padres, ao longo das duas paredes; ao passo que os noviços, os irmãos conversos e os hóspedes sentaram-se no meio. Dita a ação de graças, iniciamos a refeição. Um noviço foi para o seu lugar perto da porta e em voz monótona recitou algumas páginas de uma leitura edificante. Quando acabamos, foi novamente dita a ação de graças. O abade, o padre Ensheim e outro monge encarregado de nós, os hóspedes, fomos para uma salinha, onde tomamos café e conversamos sobre coisas banais. Depois voltei para a minha cela.
Fiquei três meses no mosteiro. Sentia-me muito feliz ali. Era exatamente a vida que me convinha. A biblioteca era boa e eu lia muito. Nenhum dos padres tentou influenciar-me, mas tinham prazer em conversar comigo. Fiquei profundamente impressionado com sua erudição, piedade e desprendimento das coisas deste mundo. Não pense que levavam vida ociosa. Estavam ocupados o tempo todo. Eles mesmos lavraram a terra, aceitando, satisfeitos, o meu auxílio. Apreciei a magnificência dos serviços religiosos, mas o que mais me encantou foram as Matinas. Às quatro da manhã. Emocionantíssimo ficar sentado na igreja quando ainda era noite, enquanto os monges, misteriosos nos seus hábitos e de capuz na cabeça, cantavam com vozes fortes e viris os singelos cantos da liturgia. Havia qualquer coisa de tranquilizador na rotina diária e, apesar de toda a energia desprendida, apesar da atividade de pensamento, a gente tinha uma permanente sensação de repouso.
Larry teve um sorriso meio melancólico.
– Como Rolla, nasci muito tarde num mundo velho demais. Devia ter nascido na Idade Média, quando a fé era aceita naturalmente; teria então visto claramente o meu caminho e entrado para o convento. Mas eu não podia crer. Tinha esse desejo, mas não podia acreditar num Deus que não era melhor do que um homem bom. Os padres me disseram que Deus criara o mundo para sua própria glória. Não me pareceu um objetivo muito apreciável. Teria Beethoven criado suas sinfonias para sua própria glória? Não acho possível. Na minha opinião criou-as porque a música em sua alma exigia expressão e, depois, só o que tentara fora torná-las perfeitas, na medida do possível.
Eu ficava a ouvir os monges quando recitavam o padre-nosso. Como podiam eles, sem apreensão, continuar a pedir ao Pai Celestial que lhes desse o pão de cada dia? Por acaso as crianças pedem ao seu pai terrestre que as alimente? Esperam isto dele; não sentem, nem precisam sentir gratidão; e não há quem não censure o homem que põe filhos no mundo quando não pode ou não quer sustentá-los. A mim me parecia que, se um criador onipotente não podia prover às necessidades materiais e espirituais das criaturas, teria então sido preferível não criá-las.
– Caro Larry, acho que foi bem melhor você não ter nascido na Idade Média – disse eu. – Provavelmente teria sido queimado.
Ele sorriu e continuou:
– Você teve bastante sucesso como escritor. Mas gostaria de ser elogiado na sua cara?
– Isto apenas me constrangeria.
– Foi o que imaginei. Não achei crível que Deus desejasse tal coisa. Na aviação não prezávamos grandemente o sujeito que conseguia um emprego macio pelo fato de adular seus superiores. Era-me difícil acreditar que Deus tivesse em grande conta o homem que tentasse conseguir a salvação por meio de tão vil lisonja. Na minha opinião, a mais agradável forma de adoração seria cada um agir da melhor maneira possível, de acordo com o seu código de honra.
Mas não era isso o que mais me incomodava. Eu não podia concordar com aquela preocupação do pecado que, ao que me parecia, estava sempre presente no pensamento dos padres. Conheci muitos sujeitos na aviação. Claro que se embriagavam quando se apresentava a oportunidade, e estavam com mulheres sempre que podiam, e usavam palavrões; tivemos um ou dois que não prestavam; um deles foi preso por tentar passar cheques sem fundo e condenado a seis meses de prisão.
Mas não era tanto por sua culpa; nunca tivera dinheiro e, quando se viu com mais do que sonhara ter, perdeu a cabeça. Eu conhecera homens maus, em Paris, e fiquei conhecendo outros depois que voltei para Chicago; mas geralmente a maldade tinha por causa a hereditariedade, de que eles não tinham culpa, ou o ambiente, que eles não haviam escolhido – não sei mesmo se a sociedade não seria mais responsável pelos crimes desses homens do que eles próprios. Se eu fosse Deus, não teria coragem de condenar ao fogo eterno nem mesmo o pior deles. O padre Ensheim tinha ideias largas; achava que o inferno era privação da presença de Deus. Mas se isto é castigo tão intolerável, a ponto de ser chamado inferno, pode alguém conceber que seja infligido por Deus? Afinal de contas foi ele quem criou os homens e, se os criou susceptíveis de pecar, foi porque assim o quis. Se eu ensinasse um cachorro a pular no pescoço de qualquer desconhecido que entrasse no meu quintal, não seria justo bater-lhe por fazer isso.
Se foi um Deus bom e todo-poderoso que criou o mundo, por que motivo criou o mal? Diziam os frades: Para que o homem, dominando os instintos maus, resistindo à tentação, aceitando a dor, a tristeza e a infelicidade, como provações enviadas por Deus como instrumentos de purificação, se tornasse finalmente merecedor da graça. Isto me parecia o mesmo que mandar um sujeito com um recado a determinado lugar e depois, para dificultar-lhe a tarefa, construir um labirinto por onde se veria forçado a passar, cavar um fosso que ele teria que atravessar a nado, e finalmente erguer um muro que ele seria obrigado a escalar. Não estava em mim acreditar num Deus sábio que não tinha senso prático. Não vi razão para não se acreditar num Deus que não tivesse criado o mundo, mas que procurasse corrigir, na medida do possível, aquele que encontrara; um ser infinitamente melhor, mais sábio e maior que o homem, que lutava contra o mal que não fora criado por ele, podendo-se esperar que no fim chegasse a vencê-lo. Mas, por outro lado, não vi também razão para se acreditar em tal Deus.
As respostas que os bons padres davam às perguntas que me deixavam perplexo não me satisfaziam o cérebro nem tampouco o coração. Meu lugar não era ao lado deles.
Quando fui despedir-me do padre Ensheim, ele não me perguntou se eu tirara da experiência o proveito que ele esperava que eu tirasse. Fitou-me com ar bondoso.
“Infelizmente creio que o decepcionei, padre”, disse eu. “Não”, respondeu ele. ‘’Você é um homem profundamente religioso que não acredita em Deus. Deus o procurará. Você voltará. Se para cá, ou para outro lugar, só Deus poderá dizer.”
4
– Instalei-me em Paris para o resto do inverno – continuou Larry. – Não entendia coisa alguma de ciência e achei que era tempo de adquirir pelo menos algumas noções. Li muito. Não sei se fiquei sabendo grande coisa, a não ser que a minha ignorância era incomensurável. Mas isso não era novidade para mim. Quando chegou a primavera fui para o campo; hospedei-me numa estalagenzinha à beira de um rio, perto de uma dessas lindas e antigas cidades francesas que em duzentos anos não parecem ter progredido.
Calculei que devia ser esse o verão que Larry passara com Suzanne Rouvier, mas não o interrompi.
– Depois fui para a Espanha. Queria ver as obras de Velásquez e El Greco. Imaginei que talvez a arte me mostrasse o caminho que a religião não pudera indicar-me. Vaguei durante algum tempo e voltei para Sevilha. Gostei da cidade e resolvi passar o inverno.
Também eu visitara Sevilha, quando tinha vinte e três anos, tendo gostado de lá. Gostei das ruas brancas e tortuosas, da catedral, da larga planície de Guadalquivir; mas gostei também das moças andaluzas com sua graça e alegria, brilhantes olhos negros, de cravo nos cabelos a acentuar-lhes o negror e, por contraste, parecendo ainda mais vivo; gostei do rico colorido da pele e da provocante sensualidade dos lábios. Aí, sim, ser moço era uma felicidade. Larry fora para lá apenas um pouco mais velho do que eu, quando lá estivera, e fiquei a conjeturar se seria possível que tivesse permanecido insensível à fascinação de tão encantadoras criaturas. Ele respondeu à pergunta que eu não formulara.
– Lá encontrei um pintor francês que eu conhecera em Paris, um sujeito chamado Auguste Cottet, que durante algum tempo vivera com Suzanne Rouvier. Viera a Sevilha para pintar e estava vivendo com uma moça que ali ficara conhecendo. Certa noite convidou-me para ir com eles a Eretania ouvir um cantor flamenco, e trouxeram uma amiga. Era a coisinha mais linda deste mundo. Tinha apenas dezoito anos. Perdera-se com um rapaz da sua aldeia e vira-se obrigada a sair de lá, porque ficara grávida. O rapaz estava fazendo o serviço militar. Quando a criança nascera ela a entregara aos cuidados de uma ama; arranjara depois emprego na fábrica de cigarros. Levei-a comigo para casa. Era muito alegre e muito meiga; dali a alguns dias perguntei se não queria vir morar comigo. Respondeu que sim, de modo que tomamos dois quartos numa casa de huéspedes: um dormitório e uma saleta. Disse-lhe que podia deixar o emprego, mas a pequena não quis; aliás isso me convinha, porque eu ficava assim com os dias livres. Tínhamos o direito de usar a cozinha, de modo que ela preparava o meu café da manhã antes de sair para o trabalho; ao meio-dia voltava e fazia o meu almoço; à noite jantávamos num restaurante e íamos depois a um cinema ou dançar em algum lugar. Parecia considerar-me maluco só pelo fato de eu ter uma banheira de borracha e insistir em tomar banho frio todas as manhãs. O bebê estava numa fazenda a alguns quilômetros de Sevilha e aos domingos costumávamos ir visitá-lo. Ela não fazia segredo do fato de estar morando comigo para ganhar bastante dinheiro para poder mobiliar o apartamento que iam tomar quando o seu namorado acabasse o serviço militar. Era um amor de criatura e não duvido que tenha dado uma boa mulherzinha para o seu Paco. Alegre, bem-humorada e afetuosa. Considerava aquilo que nós delicadamente chamamos relações sexuais como qualquer outra função natural do corpo. Sentia nisso prazer e ficava satisfeita de causar prazer. Era, naturalmente, um animalzinho; mas um animal encantador, atraente, domesticado.
E então, certa tarde ela me disse que recebera carta de Paco, do Marrocos espanhol onde ele fazia o serviço, dizendo-lhe que o terminara e que dali a dois dias chegaria a Madri. Na manhã seguinte ela empacotou suas coisas, enfiou o dinheiro na meia, e eu acompanhei-a à estação. Deu-me um beijo ruidoso quando a instalei no vagão, mas estava por demais excitada com a perspectiva de tornar a ver o amante para pensar em mim, e tenho certeza de que nem bem o trem saíra da estação já ela se esquecera da minha existência.
Continuei em Sevilha e no outono iniciei a viagem que me levou à Índia.
5
Estava ficando tarde. A frequência diminuíra no café e havia somente algumas mesas ocupadas. As pessoas que estavam ali sentadas por falta de melhor distração já haviam voltado para casa. E também aqueles que depois do teatro ou do cinema tinham vindo comer ou beber qualquer coisa. De vez em quando aparecia um retardatário. Vi um sujeito alto, indubitavelmente um inglês, entrar com um moço valentão. Tinha o rosto comprido, desanimado, e os cabelos ondulados e escassos do intelectual inglês, e provavelmente mantinha a ilusão, comum a tantos, de não ser reconhecido pelo fato de estar no estrangeiro. O valentão comeu gulosamente um prato de sanduíches, enquanto seu companheiro o observava com divertida benevolência. Que apetite! Vi um sujeito que eu conhecia de vista, por frequentarmos o mesmo barbeiro, em Nice. Atarracado, idoso e grisalho, com um túmido rosto vermelho e olhos empapuçados. Era um banqueiro americano que, depois da crise, preferira deixar sua cidade natal a sujeitar-se a uma investigação. Não sei se cometera algum crime; se tal acontecera, com certeza era muito pouco importante para que as autoridades se dessem ao trabalho de lhe pedir a extradição. Tinha o ar pomposo e a falsa cordialidade do político barato, mas a expressão dos seus olhos era amedrontada e infeliz. Nunca estava completamente bêbado, nem completamente sóbrio. Sempre em companhia de alguma rameira que evidentemente procurava arrancar dele o que podia; estava agora com duas mulheres pintadas, já maduras, que o tratavam com acintosa zombaria, ao passo que ele, mal entendendo o que elas diziam, ria tolamente. A vida alegre!... Fiquei a conjeturar se não teria sido preferível ele ter ficado na sua terra e aceito o castigo. Chegaria o dia em que as mulheres o teriam depenado por completo, e nada mais lhe restaria a não ser o rio, ou uma dose excessiva de veronal.
Entre as duas e três horas houve um aumento na frequência; com certeza os cabarés estavam-se fechando. Surgiu um grupo de americanos, barulhentos e embriagados, mas não se demoraram. Não muito longe de nós, duas mulheres gordas e taciturnas, metidas em roupas de corte masculino, bebiam uísque com soda, em lúgubre silêncio. Apareceu um grupo em trajes a rigor, pessoas que os franceses chamam de gens du monde; evidentemente tinham dado uma volta pelos cabarés e queriam agora terminar a noitada com uma ceia. Entraram e saíram. Minha curiosidade se aguçara com a presença de um homem pequeno, discretamente vestido, ali sentado havia mais de uma hora, a ler o jornal com um copo de cerveja à frente. Tinha uma barba preta, bem aparada, e usava pincenê. Finalmente chegou uma mulher e sentou-se à sua mesa. Ele cumprimentou-a com a cabeça, sem cordialidade; provavelmente estava aborrecido porque ela o fizera esperar. Era moça, malvestida, mas exageradamente pintada e parecia muito fatigada. Dali a segundos vi-a abrir a bolsa e entregar ao homem qualquer coisa. Dinheiro. O homem olhou e seu rosto tornou-se taciturno. Dirigiu-lhe palavras que não pude ouvir, mas que julguei insultuosas, pela atitude dela, que me pareceu estar a desculpar-se. Subitamente o homem inclinou-se e deu-lhe um ressonante tapa na cara. A moça soltou um grito e começou a chorar. Atraído pelo barulho, o gerente veio saber do que se tratava. Tive a impressão de que lhes dizia que fossem embora, se não soubessem comportar-se. A moça virou-se para ele e em voz alta, a ponto de se poder ouvir cada palavra, em linguagem obscena lhe disse que não se metesse no que não era da sua conta.
– Se ele me esbofeteou foi porque mereci ser esbofeteada – gritou ela.
Mulheres!... Sempre pensei que, para viver à custa do dinheiro imoralmente ganho por uma mulher, fosse preciso um sujeito vistoso e forte, com sex-appeal, ágil com a faca ou com o revólver; extraordinário que aquele sujeitinho raquítico, que a julgar pela aparência poderia ser empregadinho de algum escritório de advocacia, tivesse conseguido lugar numa profissão onde era tão grande a concorrência!
6
O garçom que nos servira ia sair e para receber sua gorjeta veio apresentar-nos a conta. Pagamos e pedimos café.
– Então? – disse eu.
Senti que Larry estava disposto a falar, e eu estava disposto a ouvir.
– Não o estou chateando?
– Não.
– Pois bem, chegamos a Bombaim. O navio ia ficar ali três dias, para os turistas terem oportunidade de admirar as vistas e fazer excursões. Como tinha folga na tarde do terceiro dia, fui para terra. Andei durante algum tempo, observando a multidão. Que miscelânea! Chineses, maometanos, hindus, tamues negros como carvão; e aqueles enormes bois de bossa e longos chifres, que puxam as carroças! Fui depois a Elefanta, ver as grutas. Um hindu se juntara a nós em Alexandria, para vir até Bombaim, e os turistas sentiam certo desprezo por ele. Era um homem gordo e baixo, de rosto trigueiro e redondo; usava um terno grosso de casimira, de xadrez preto e verde, e colarinho eclesiástico. Certa noite eu estava no tombadilho, tomando ar, quando ele se aproximou e me dirigiu a palavra. Naquele momento eu não queria conversar com ninguém, queria ficar só; ele me fez várias perguntas e creio que respondi um tanto bruscamente. Em todo caso, contei-lhe que era um estudante que estava trabalhando para ganhar a minha passagem para a América.
“Você devia ficar na Índia”, disse ele. “O Oriente pode ensinar ao Ocidente mais do que o Ocidente julga.”
“Não diga!”, repliquei.
“Em todo caso não deixe de ir ver as grutas em Elefanta”, continuou ele. “Garanto-lhe que não se arrependerá.”
Larry interrompeu-se para me fazer uma pergunta:
– Já esteve na Índia?
– Nunca.
– Pois bem, eu estava contemplando a colossal imagem, com suas três cabeças, a maior atração de Elefanta, e procurando imaginar que significação tinha, quando ouvi alguém dizer atrás de mim: ‘’Vejo que seguiu o meu conselho”. Virei-me e levei alguns segundos para reconhecer a pessoa que me dirigia a palavra. Era o homenzinho de pesado terno xadrez e colarinho eclesiástico; só que, agora, usava a longa túnica açafrão que mais tarde vim a saber que era a túnica dos swamis de Ramakrishna; e em vez do sujeitinho engraçado, gaguejando, que eu conhecera, ele era agora imponente e deslumbrante. Ambos examinamos o busto colossal.
“Brama, o Criador”, disse ele. “Vichnu, o Conservador, e Siva, o Destruidor. As três manifestações da Realidade Final.”
“Creio que não entendo muito bem”, disse eu.
“Não é de admirar”, respondeu ele com um sorrizinho nos lábios e um brilho nos olhos, como se zombasse levemente de mim. “O Deus que pode ser compreendido não é Deus. Quem poderá explicar, por palavras, o Infinito?”
– Juntou as palmas das mãos e, com uma apenas perceptível inclinação de cabeça, afastou-se. Continuei ali, a contemplar as três misteriosas cabeças. Talvez por estar em disposição receptiva, sentia-me estranhamente emocionado. Você sabe como às vezes a gente tenta relembrar um nome; está na ponta da língua, mas não vem; foi justamente o que senti na ocasião. Quando saí das cavernas, sentei-me por muito tempo nos degraus e fiquei a contemplar o mar. Do bramanismo eu só conhecia aqueles versos de Emerson; procurei relembrá-los. Fiquei exasperado por fracassar e, quando voltei para Bombaim, entrei numa livraria, a ver se encontrava o livro de poesias onde os lera. Estão no Oxford Book of English Verse. Lembra-se?
They reckon ill who leave me out;
When me they fly, I am he wings;
I am the doubter and the doubt,
And I the hymn the Brahmin sings.
Jantei numa tasca nativa e depois, como não precisava voltar para o navio antes das dez horas, fui para o Maidan e fiquei apreciando o mar. Nunca vira tantas estrelas no céu; depois do calor que fizera durante o dia, o frescor da noite era delicioso. Encontrei um jardim público e sentei-me num dos bancos. Muito escuro ali; silenciosos vultos brancos agitavam-se para lá e para cá. O maravilhoso dia de sol ardente, a multidão ruidosa, colorida, o cheiro acre e aromático do Oriente encantaram-me; e, como se fosse um complemento, mancha de cor que o pintor acrescentasse à sua obra para finalizá-la, aquelas três misteriosas cabeças de Brama, Vichnu e Siva, davam ao todo misteriosa significação. Meu coração pôs-se a bater descompassadamente, pois de repente eu adquirira a intensa convicção de que a Índia tinha, para dar-me, algo que eu precisava ter. Pareceu-me que me era oferecida uma oportunidade e que eu precisava agarrá-la ali mesmo, ou nunca mais se me depararia. Tomei rápida decisão. Não voltaria para bordo. Nada deixara ali, a não ser algumas coisas numa maleta. Voltei lentamente para o bairro nativo e procurei um hotel. Não tardei a encontrá-lo; tomei um quarto. Tinha as roupas do corpo; no bolso uns miúdos, meu passaporte e minha letra de câmbio; experimentei tal sensação de liberdade que cheguei a rir alto.
O navio partia às onze e por precaução fiquei no quarto até essa hora. Fui depois para o cais e vi-o desatracar. Dirigi-me então para a Missão Ramakrishna e procurei o swami que falara comigo em Elefanta. Não sabendo o seu nome, disse que desejava ver o swami que acabara de chegar de Alexandria. Contei-lhe, então, que desejava ficar na Índia e perguntei o que me aconselhava a ver. Tivemos uma longa conversa e afinal ele me contou que partia aquela noite para Benares, perguntando-me se queria ir com ele. Peguei no ar. Fomos de terceira classe. O vagão estava repleto de pessoas que comiam, bebiam, falavam. Calor insuportável. Não consegui pregar o olho e na manhã seguinte me sentia exausto, mas o swami estava fresco como um botão de rosa. Perguntei-lhe como conseguira conservar-se assim e ele respondeu:
“Meditando sobre aquele que não tem forma; encontrei descanso no Absoluto”. Fiquei sem saber o que pensar, mas podia ver com meus próprios olhos que ele estava lépido e animado, como se tivesse dormido a noite toda num leito confortável.
Quando chegamos a Benares, um rapaz da minha idade veio ao encontro do meu companheiro e este lhe pediu que me arranjasse um quarto. Chamava-se Mahendra e era professor da universidade. Sujeito afável, bom, inteligente; pareceu simpatizar comigo tanto quanto eu com ele. Levou-me naquela noite a passear de barco pelo Ganges. Que emoção! Muito bonito, ver a cidade amontoada até quase a margem do rio; bonito e impressionante. Mas na manhã seguinte tinha coisa melhor para me mostrar. Veio buscar-me no meu hotel e levou-me de novo para o rio. Vi um espetáculo que nunca julgara possível; milhares e milhares de pessoas vindo tomar seu banho lustral e rezar. Vi um sujeito alto e emaciado, com uma massa de cabelos emaranhados e barba desalinhada, tendo apenas uma tanga a lhe cobrir a nudez, permanecer de pé com seus longos braços estendidos, de cabeça erguida, e em voz alta orar ao sol nascente. Não sei dizer-lhe que impressão isso me causou. Passei seis meses em Benares e voltei inúmeras vezes ao Ganges, de madrugada, para apreciar o estranho espetáculo. Nunca me cansei de admirá-lo. Aquela gente não acreditava tibiamente, com restrições ou dúvida inquietante, e sim com todas as fibras do seu ser.
Foram todos muito bons para mim. Quando perceberam que eu não viera para caçar tigres, comprar ou vender alguma coisa, tudo fizeram para ajudar-me. Ficaram satisfeitos de eu querer aprender hindustani e me arranjaram professores. Emprestaram-me livros. Jamais se cansaram de responder às minhas perguntas.
“Conhece alguma coisa de hinduísmo?”
– Muito pouco – respondi.
– Acho que lhe interessaria. Poderá haver coisa mais estupenda do que a concepção de um mundo que não tem princípio nem fim, mas que passa indefinidamente do desenvolvimento ao equilíbrio, do equilíbrio à decadência, da decadência à dissolução, da dissolução ao desenvolvimento, e assim por diante, por toda eternidade?
– E qual é, na opinião dos hindus, o objetivo dessa perpétua repetição?
– Parece-me que dizem ser esta a natureza do Absoluto. Compreenda-me, eles acham que a finalidade da criação é servir de palco para o castigo ou recompensa dos atos cometidos pelas almas em existências anteriores.
– Isto pressupõe crença na transmigração das almas.
– É uma crença compartilhada por dois terços da humanidade.
– O fato de muita gente acreditar numa coisa não é garantia de sua veracidade.
– Realmente: mas pelo menos torna-a digna de consideração. A cristandade assimilou tanto do neoplatonismo que poderia facilmente ter assimilado isto também; para ser exato, houve mesmo nos primeiros tempos do cristianismo uma seita que tinha essa crença, mas foi declarada herética. Não fosse por esse motivo, os cristãos acreditariam nisso tão piamente como acreditam na ressurreição de Cristo.
– Significa então que a alma passa de um corpo ao outro, numa sucessiva desigualdade de condições humanas, conforme o mérito ou demérito de trabalhos anteriores?
– Creio que sim.
– Mas, você vê, não sou somente espírito, mas também corpo; e quem pode determinar até que ponto eu, o meu eu individual, estou subordinado ao acidente do meu físico? Teria Byron sido Byron sem o seu pé torto, ou Dostoievski sido Dostoievski sem a sua epilepsia?
– Os hindus não chamariam isto de acidente. Responderiam que foram seus atos, em vidas anteriores, que fizeram com que sua alma habitasse um corpo imperfeito. – Larry tamborilou distraidamente na mesa, imerso nos próprios pensamentos, o olhar perdido no espaço. Depois, com um leve sorriso nos lábios e expressão pensativa no olhar, continuou: – Alguma vez lhe ocorreu que a reencarnação explica e ao mesmo tempo justifica o mal existente no mundo? Se os males que sofremos são consequência de pecados cometidos em vidas passadas, podemos aceitá-los com resignação – e esperança de melhor vida futura, se nesta nos esforçamos por ser virtuosos. Mas não é assim tão difícil suportar os nossos próprios males – para isso basta um pouco de energia; o que é intolerável é o mal, às vezes aparentemente tão imerecido, que se abate sobre os outros. Se nos convencermos de que é a inevitável consequência do passado, poderemos sentir pena, fazer o possível para aliviar, e é esta a nossa obrigação, mas não haverá motivo para ficarmos indignados.
– Mas por que não criou Deus um mundo livre de sofrimentos e de tristezas, no princípio, quando não havia no indivíduo mérito nem demérito para determinarem seus atos?
– Os hindus diriam que não houve princípio. A alma individual, coexistente com o universo, sempre existiu e deve sua natureza a alguma existência precedente.
– E essa teoria da transmigração das almas tem algum resultado prático na vida daqueles que acreditam nela? Afinal de contas, é este o teste.
– Creio que tem. Vou lhe falar de um homem que conheci pessoalmente e em cuja vida teve resultado prático. Nos primeiros dois ou três anos que passei na Índia, vivi a maior parte do tempo em hotéis nativos, mas de vez em quando alguém me convidava para me hospedar em sua casa, e uma ou duas vezes vivi esplendorosamente como hóspede de um marajá. Por intermédio de um dos meus amigos de Benares, fui convidado para passar uns tempos num dos menores estados do norte. A capital era linda; “cidade cor-de-rosa quase tão velha quanto o mundo”. Eu fora recomendado ao ministro das Finanças. Educara-se ele na Europa e cursara Oxford. Ao conversar com ele a gente tinha a impressão de um homem progressista, inteligente e esclarecido; tinha fama de ser ministro muito eficiente e político hábil, astucioso. Vestia-se à moda europeia; sempre muito elegante. Sujeito bonitão, mais para gordo – tendência que têm todos os hindus quando chegam à maturidade –, com um bigodinho curto, benfeito. Frequentemente me convidava à sua casa. Havia ali um grande jardim; sentávamo-nos à sombra das árvores copadas e conversávamos. Era casado e tinha dois filhos crescidos. Qualquer um o tomaria pelo tipo comum, inglesado, de hindu, e fiquei atônito ao saber que dali a um ano, quando chegasse aos cinquenta anos, ia demitir-se do seu ótimo emprego, dividir seus bens entre a esposa e os filhos e sair pelo mundo afora, como mendigo errante. Mas o mais extraordinário era que seus amigos, assim considerando-a naturalíssima.
Certo dia eu lhe disse:
“Você, que é tão liberal, que conhece o mundo, que leu tanto sobre ciência, filosofia, arte, literatura, diga-me com toda a sinceridade: Acredita mesmo na reencarnação?”.
– Seu rosto transformou-se, adquirindo expressão de um visionário.
“Caro amigo, se não acreditasse, a vida para mim não teria significação.”
– E você acredita, Larry? – perguntei-lhe.
– Pergunta difícil de responder. Não creio que seja possível para nós, ocidentais, acreditar tão implicitamente como acreditam os orientais. Para eles está no sangue. No nosso caso pode ser apenas uma opinião. Não creio nem descreio.
Fez uma pausa, o rosto apoiado na mão, e olhou a mesa. Depois se recostou na cadeira.
– Gostaria de lhe contar um estranho fato que se deu comigo. Certa noite eu estava praticando meditação, no meu quartinho do ashrama, como meus amigos hindus me haviam ensinado. Acendera uma vela e concentrava minha atenção na chama; depois de algum tempo vi, através da flama, mas distintamente, uma longa fila de pessoas, uma atrás da outra. A da frente era uma senhora idosa, com touca de renda e cachos grisalhos que lhe caíam sobre as orelhas. Usava corpete justo e saia preta, rodada – tipo de roupa, creio, que se usava em 1870, e me olhava de frente, numa atitude graciosa, tímida, os braços caídos contra o corpo, de palmas viradas para mim. A expressão do seu rosto enrugado era amável, meiga, suave. Imediatamente atrás dela, mas de lado, de modo que eu lhe podia ver o perfil, estava um judeu magro, de nariz adunco e lábios grossos, metido numa capa amarela e com um solidéu amarelo sobre os grossos cabelos negros. Tinha um aspecto de homem erudito, e um ar de dura e ao mesmo tempo apaixonada austeridade. Atrás dele, mas de frente para mim, de modo que eu o podia ver tão distintamente como se não houvesse ninguém entre nós, estava um rapaz de alegre semblante vermelho, que ninguém podia deixar de reconhecer como sendo um inglês do século xvi. Estava bem firme nos pés, de pernas ligeiramente entreabertas e tinha uma expressão atrevida, temerária e dissoluta. Todo vestido de vermelho, ricamente, como se fossem trajes da corte, com sapatos de veludo, de bico largo, e gorro chato na cabeça. Atrás desses três, em interminável procissão, como fila à porta de um cinema, vi inúmeras pessoas, vagamente, sem poder julgar de sua aparência. Percebia apenas os vultos imprecisos e seus movimentos, como trigo ao sopro de uma brisa de verão. Dali a pouco, não sei se dentro de um minuto, ou cinco, ou dez, eles foram-se perdendo gradualmente na escuridão da noite e nada restou, a não ser a contínua luz da vela.
Larry sorriu de leve.
– Claro que existe a possibilidade de eu ter cochilado e sonhado. É possível que a minha concentração naquela débil chama tenha determinado uma espécie de estado hipnótico, e que os três vultos que eu vira tão claramente como estou agora vendo você fossem lembranças de quadros, retidas pelo meu subconsciente. Mas é possível que fossem eu, em vidas anteriores. É possível que, em passado não muito remoto, eu tenha sido uma velha senhora da Nova Inglaterra, e antes disso um judeu levantino e, tempos antes, logo depois de Sebastian Cabot ter saído de Bristol, algum elegante da corte de Henrique, príncipe de Gales.
– O que aconteceu com o seu amigo da cidade cor-de-rosa?
– Dois anos mais tarde, estava eu num lugar do sul, chamado Madura, quando certa noite no templo alguém me tocou no braço. Virei-me e vi um homem de barba e longos cabelos pretos, só de tanga, com o cajado e a tigela de esmolas dos homens santos. Mas só quando me dirigiu a palavra foi que o reconheci. Era o meu amigo. Fiquei tão admirado que não soube o que dizer. Perguntou-me que andava eu fazendo. Contei-lhe. Quis saber para onde eu ia, e respondi que ia para Travancore. Disse-me, então, que fosse ver Shri Ganesha. “Ele lhe dará aquilo que você procura”, declarou. Pedi-lhe que me descrevesse Shri Ganesha, mas ele sorriu, dizendo que eu descobriria tudo que fosse necessário quando viesse a conhecê-la. Tendo voltado a mim da minha surpresa, perguntei-lhe o que estava ele fazendo em Madura. Respondeu-me que estava numa peregrinação a pé pelos lugares santos da Índia. Perguntei-lhe como comia e dormia. Contou-me que, quando alguém lhe oferecia abrigo, dormia na varanda; caso contrário, embaixo de uma árvore, nas imediações de algum templo. Quanto à comida, se alguém lhe oferecia um prato, ele comia; se não, ficava sem comer. Fitei-o. “Você emagreceu”, comentei. Riu-se, dizendo que se sentia melhor assim. Despediu-se em seguida – e era cômico ouvir aquele sujeito de tanga dizer “Bom, até logo, meu velho”, e entrou no recinto do templo onde não me seria permitido acompanhá-la.
Fiquei durante algum tempo em Madura. Creio que é o único templo na Índia onde o homem branco pode movimentar-se livremente, contanto que não penetre no santo dos santos. À noite ficava repleto. Homens, mulheres, crianças. Os homens, nus até a cintura, usavam dhoties; tinham a testa, e às vezes também o peito e os braços cobertos com a cinza esbranquiçada de estrume de vaca queimado. A gente os via em atitudes reverentes neste ou naquele altar, deitando-se às vezes ao comprido no chão, de rosto para baixo, na posição ritual de prostração. Oravam e recitavam ladainhas. Cumprimentavam-se, brigavam, discutiam calorosamente uns com os outros. Havia uma balbúrdia ímpia, e no entanto Deus parecia próximo e real.
A gente vai passando por longas naves, com colunas esculpidas que suportam o teto, vendo-se ao pé de cada coluna, sentado, um mendigo religioso; cada qual tem à sua frente uma tigela de esmolas, ou um tapetinho onde de vez em quando os fiéis atiram uma moeda de cobre. Alguns estão vestidos, outros quase que completamente nus. Alguns olham vagamente para a pessoa que passa; outros leem, silenciosamente ou em voz alta, parecendo alheios à ondulante multidão. Procurei entre eles o meu amigo: nunca mais o vi. Creio que continuou a jornada, para alcançar o seu objetivo.
– E isso era?...
– Libertar-se do cativeiro da reencarnação. De acordo com os vedantistas, a identidade pessoal, que eles chamam de atman e nós de alma, é distinta do corpo e seus sentidos, distinta do cérebro e sua inteligência; não faz parte do Absoluto, pois o Absoluto, sendo infinito, não pode ter partes, é o próprio Absoluto. É incriada; sempre existiu e, quando finalmente despir os sete véus da ignorância, voltará à imensidade de onde veio. É como uma gota-d’água que subiu do mar e num aguaceiro caiu numa poça, resvalando depois para um regato, e dali para um rio, passando por desfiladeiros e vastas planícies, insinuando-se aqui e ali, malgrado o obstáculo de rochas e árvores caídas, até chegar aos ilimitados mares de onde proveio.
– Mas, depois de ter-se unido novamente ao oceano, esta pobre gotinha-d’água certamente perdeu a sua individualidade.
Larry sorriu.
– A gente quer provar açúcar, não quer transformar-se em açúcar. O que é a individualidade, senão a expressão do nosso egoísmo? Enquanto a alma não se libertar disso por completo, não poderá unificar-se com o Absoluto.
– Você fala com muita naturalidade do Absoluto, Larry, e é palavra imponente. O que significa para você?
– Realidade. A gente não pode dizer o que ele é; só pode dizer o que não é. É indefinível. Os hindus chamam-no de Brama. Não está em parte alguma e está em toda parte. Todas as coisas estão ligadas a ele e dependem dele. Não é pessoa, não é coisa, não é causa. Não tem atributos. Transcende perpetuidade e alteração; todo e parte, finito e infinito. É eterno porque seu acabamento e perfeição não têm relação com o tempo. É a verdade e a liberdade.
“Puxa”, pensei com os meus botões. E dirigindo-me a Larry:
– Mas como pode uma concepção puramente intelectual ser um conforto para a sofredora raça humana? Os homens sempre desejaram um Deus pessoal, a quem possam, na desgraça, pedir consolo e coragem.
– É possível que, num futuro mais longínquo, um maior discernimento os ensine a procurar consolo e coragem em suas próprias almas. Por mim acho que a necessidade de adoração não passa de uma reminiscência dos velhos tempos em que deuses cruéis tinham que ser propiciados. Creio que Deus está dentro de mim, ou não está em parte alguma. Sendo isso verdade, a quem devo então adorar? A mim mesmo? Os homens estão em planos diferentes de desenvolvimento espiritual e, portanto, a imaginação dos hindus ampliou as manifestações do Absoluto, que é conhecido por Brama, Vichnu, Siva e centenas de outros nomes. O Absoluto tanto está em Isvara, criador e senhor do mundo, como no humilde fetiche diante do qual o camponês, no seu campo batido de sol, coloca a oferenda de uma flor. Os inúmeros deuses da Índia não passam de meios para se chegar à compreensão de que a identidade pessoal está unificada com a identidade suprema.
Olhei pensativo para Larry.
– O que será que o atraiu para essa fé austera? –perguntei-lhe.
– Creio que poderei dizer-lhe. Sempre achei que havia algo de patético nos fundadores de religiões que impunham, como condição para a salvação, a crença na doutrina que pregavam. É como se tivessem necessidade da nossa fé para ter fé em si próprios. Fazem a gente lembrar-se daqueles antigos deuses pagãos que ficavam lânguidos e desfalecentes quando não os sustentavam as oferendas dos devotos. Advaita não nos pede que aceitemos coisa alguma em confiança; pede-nos apenas que tenhamos o desejo ardente de conhecer a Realidade; afirma que podemos sentir a Deus da mesma maneira que sentimos a dor ou a alegria. E há hoje na Índia centenas de homens que têm certeza de que isto aconteceu com eles. Pareceu-me maravilhosamente satisfatória a ideia de se poder alcançar a Realidade pelo conhecimento. Mais tarde, reconhecendo a fraqueza humana, os sábios da Índia admitiram a possibilidade de se conseguir a salvação pelo caminho do amor e do trabalho, mas jamais negaram que o caminho mais nobre, se bem que o mais árduo, é o do conhecimento, pois o seu instrumento é a mais preciosa faculdade do homem: a razão.
7
Faço uma pausa para declarar que não estou absolutamente tentando descrever o sistema filosófico conhecido como Vedanta. Não tenho competência para isso e, mesmo que a tivesse, não seria este o lugar apropriado. Nossa conversa foi longa e Larry me disse muito mais do que achei possível registrar nesta obra que, afinal de contas, pretende passar por romance. É Larry quem me interessa. Eu não teria tocado em assunto tão complicado se não tivesse achado que, sem dar pelo menos uma ideia de suas especulações e dos singulares acontecimentos que talvez tenham sido por elas ocasionados, eu não poderia tornar plausível a linha de conduta que Larry adotou, e da qual o leitor logo ficará ciente. Irrita-me não poder descrever o tom agradável da sua voz, que tornara convincentes as frases menos importantes, ou dar uma ideia da sua constante mudança de expressão, que ia de grave para suavemente alegre, de pensativa para brincalhona, acompanhando-lhe os pensamentos como o murmurar do piano quando os violinos, em movimento majestoso, entoam os vários temas de um concerto. Embora falasse de assuntos sérios, exprimia-se com naturalidade, em tom de conversa, com certa timidez, mas sem constrangimento, como se estivesse a discutir o tempo ou as próximas colheitas. Se dei a entender que havia na sua atitude algo de didático, a culpa é inteiramente minha. Sua modéstia era tão evidente quanto a sua sinceridade.
Havia agora muito pouca gente no café. Fazia tempo que os turbulentos tinham desaparecido. As pobres criaturas que traficam com o amor tinham ido para suas sórdidas moradas. De vez em quando um homem de ar cansado entrava e encomendava um copo de cerveja e um sanduíche, ao passo que outro, que mal parecia acordado, vinha tomar um café. Operários de colarinho branco. Um trabalhara na turma da noite e voltava para casa, para dormir; o outro, arrancado ao leito pelo ruído estridente do despertador, ia enfrentar de má vontade um longo dia de trabalho. Larry não parecia ter noção da hora, nem do ambiente. No decorrer da minha existência tenho-me visto em estranhas situações. Mais de uma vez estive bem próximo da morte. Em inúmeras ocasiões respirei uma atmosfera de romance, tendo disto certeza no momento. Viajei a cavalo através da Ásia Central, pela estrada que Marco Polo tomou para chegar às fabulosas terras de Catay; tomei um copo de chá russo num correto salão de Petrogrado, enquanto um homenzinho de paletó preto e calças listradas me contava, na sua voz macia, como assassinara um grão-duque; sentado numa sala de visitas de Westminster, ouvi a serena perfeição de um trio de Haydn, ao piano, enquanto as bombas explodiam lá fora; mas não creio que me tenha encontrado em mais estranha situação do que naquele momento, sentado numa das cadeiras de estofamento vermelho do alegre restaurante, durante horas a fio, enquanto Larry falava de Deus e da eternidade, do Absoluto e das cansadas rodas de interminável reprodução.
8
Larry ficou em silêncio durante alguns minutos. Não desejando apressá-lo, esperei. Dali a pouco ele me atirou um sorrizinho amigo, como se novamente se tivesse apercebido da minha presença.
– Quando cheguei a Travancore, vi que não precisava ter pedido informações a respeito de Shri Ganesha. Não havia quem não o conhecesse. Vivera durante anos numa gruta das montanhas, mas finalmente o tinham convencido a mudar-se para a planície, onde uma pessoa caridosa lhe dera um pedaço de terra, construindo para ele uma casinha de adobe. Ficava longe da capital, Trivandrum; levei o dia inteiro, primeiro de trem, depois de carro de boi, para chegar ao ashrama. Encontrei um rapaz, na entrada, e perguntei-lhe se podia falar com o iogue. Eu levara uma cesta de frutas, a oferenda habitual. Dali a minutos o rapaz voltou e me conduziu para uma longa sala com janelas em toda a volta. Shri Ganesha estava sentado a um canto, num estrado coberto por uma pele de tigre, em atitude de meditação. “Eu o esperava”, disse-me ele. Admirei-me, mas provavelmente o meu amigo de Madura lhe falara sobre mim. Mas, quando mencionei o seu nome, Shri Ganesha sacudiu a cabeça. Ofereci minha cesta de frutas e ele disse ao rapaz que a levasse. Ficamos sós. Fitou-me sem nada dizer. Não sei quanto durou o silêncio. Meia hora, talvez. Eu já lhe descrevi o seu aspecto, assim que voltei da Índia, mas não lhe falei da serenidade que ele irradiava, bondade, paz, desprendimento. Eu estava fatigado e encalorado depois da viagem, mas pouco a pouco comecei a me sentir maravilhosamente descansado. Antes de ele dizer qualquer outra coisa, compreendi que era o homem que eu estava procurando.
– Ele falava inglês? – perguntei a Larry.
– Não. Mas, você sabe, tenho aptidão para línguas; além do mais, adquirira suficiente conhecimento de tamul para poder entender e me fazer entender no sul. Finalmente ele falou.
“Para que veio aqui?”, perguntou-me.
– Comecei a contar-lhe como viera parar na Índia, onde estava havia três anos; como, ouvindo falar da santidade e sabedoria deste e daquele homem santo, eu visitara um e outro, não encontrando quem me desse aquilo que eu buscava. Ele interrompeu-me.
“Tudo isto eu sei. Não precisa dizer-me. Para que veio aqui?” “Para que o senhor seja o meu guru”, respondi.
“Somente Brama é o guru”, disse ele.
– Continuou a fitar-me com estranha fixidez e de repente seu corpo tornou-se rígido, os olhos pareceram virar para dentro e vi que ele caíra em transe, naquilo que os hindus chamam samadhi e em que eles adquirem a dualidade de sujeito e o objeto desaparece e a pessoa se torna Saber Absoluto. Eu estava sentado no chão, de pernas cruzadas, diante dele, e meu coração começou a pulsar violentamente. Depois de não sei quanto tempo ele suspirou e percebi que voltara ao seu normal. Atirou-me um olhar meigo e afetuoso.
“Fique”, disse-me. “Eles lhe dirão onde você deve dormir.”
– Deram-me a choça onde Shri Ganesha morara quando viera para a planície. A sala onde ele agora passava os dias e as noites fora construída depois que os discípulos o rodearam e que muita gente, atraída por sua fama, começou a visitá-lo. Para não chamar atenção, adotei o confortável traje indiano e fiquei tão queimado que, a não ser que me observassem por qualquer motivo, eu poderia ter passado por um dos nativos. Eu lia muito. Meditava. Ouvia Shri Ganesha, quando ele estava disposto a expandir-se; não falava muito, mas estava sempre pronto a responder a qualquer pergunta, e era uma maravilha ouvi-lo. Suas palavras eram música para os ouvidos. Embora na mocidade tivesse praticado toda espécie de mortificações, não as impunha aos seus discípulos. Procurava livrá-los da escravidão da individualidade, paixão e sentimento, dizendo-lhes que a libertação poderia ser conseguida pela tranquilidade, repressão, renúncia, resignação, pela constância e um ardente desejo de liberdade. Vinham vê-lo da cidade vizinha, a cinco ou seis quilômetros de distância, onde havia um templo para onde uma vez por ano acorria muita gente, na ocasião do festival; vinham de Trivandrum e de outros lugares longínquos, para contar-lhe suas mágoas, pedir-lhe conselho, ouvir-lhe os ensinamentos; e não havia quem não partisse com ânimo mais forte e em paz consigo mesmo. Era muito simples o que ele ensinava. Dizia que somos maiores do que pensamos, e que a sabedoria é o caminho da liberdade. Dizia que para se salvar não é necessário a pessoa retirar-se do mundo, mas apenas renunciar à individualidade. Dizia que o trabalho feito desinteressadamente purifica o espírito, e que os deveres são oportunidades dadas ao homem para abafar a própria individualidade e identificar-se com a individualidade universal. Mas o que mais impressionava não era a doutrina, e sim o homem, sua benevolência, grandeza de alma, santidade. Sua presença era uma bênção. Sentia-me muito feliz em sua companhia. Compreendi que finalmente encontrara o que queria. As semanas, os meses passaram-se com incrível rapidez. Eu tinha intenção de ficar até ele morrer (e Shri Ganesha nos dissera que não pretendia habitar por muito tempo o seu corpo perecível) ou até me sentir iluminado – e por isso se entende aquele estado em que finalmente o homem quebra os grilhões da ignorância e sabe com indiscutível certeza que se uniu ao Absoluto.
– E depois?
– Depois, se o que eles dizem é verdade, não existe mais nada. Está terminado o curso da alma no mundo, e a ele não voltará.
– E Shri Ganesha morreu?
– Não que eu saiba.
Ao responder, Larry percebeu o que estava subentendido na minha pergunta e deu uma risadinha. Continuou depois de um momento de hesitação, mas de tal maneira que no princípio cheguei a supor que queria evitar que eu fizesse a segunda pergunta que ele sentira na ponta da minha língua – e a pergunta era, naturalmente, se ele tinha recebido iluminação.
– Eu não ficava todo tempo no ashrama. Tive a sorte de travar conhecimento com um guarda-florestal nativo, cuja residência permanente era nos arredores de uma aldeia na base da montanha. Era devoto de Shri Ganesha e quando podia deixar o trabalho vinha passar dois ou três dias conosco. Bom sujeito; conversávamos muito. Gostava de praticar comigo o seu inglês. Tempos depois ele me contou que o serviço de silvicultura tinha um bangalô no alto da montanha, e que se algum dia eu desejasse ir lá sozinho ele me daria a chave. De vez em quando eu me valia do convite. Levava dois dias para chegar lá. Primeiro eu tinha que tomar o ônibus até a aldeia do guarda; o resto do trajeto era feito a pé. Mas, depois que chegava lá, era uma maravilha – tal a grandeza e a solidão. Eu enfiava o que podia num saco e tomava um carregador para levar algumas provisões, lá ficando até elas se acabarem. Nada mais era que uma cabana de madeira com cozinha atrás; como mobiliário só havia uma cama de armar onde a gente atirava a manta de dormir, uma mesa e duas cadeiras. Fazia frio, naquelas alturas, e era agradável acender o fogo à noite. Era para mim uma sensação maravilhosa saber que não havia viva alma numa distância de trinta quilômetros. À noite, muitas vezes ouvia o rugido do tigre ou o barulho dos elefantes que iam abrindo caminho na floresta. Fazia longos passeios através da mata. Havia um lugar onde eu gostava de ficar sentado, porque de lá podia ver as montanhas estenderem-se à minha frente e, baixando o olhar, um lago onde de tardezinha os animais selvagens vinham beber – veados, javalis, bisões, elefantes e leopardos.
Dois anos depois de estar no ashrama, fui para o meu retiro da floresta, por uma razão de que você vai sorrir. Queria passar lá o meu aniversário. Cheguei na véspera. Ainda estava escuro quando acordei no dia seguinte, e tive vontade de ir ver o nascer do sol, lá daquele lugar que lhe acabo de descrever. Conhecia o caminho de olhos fechados. Sentei-me embaixo de uma árvore e esperei. Ainda era noite, mas as estrelas brilhavam palidamente no céu; o dia estava próximo. Experimentei uma estranha sensação de expectativa. Tão gradualmente, que mal a percebi, a luz começou a filtrar-se pela escuridão; de mansinho, como um vulto misterioso a insinuar-se por entre as árvores. Meu coração começou a bater como se pressentisse a aproximação do perigo. Nasceu o sol.
Larry fez uma pausa e um sorriso desajeitado brincou-lhe nos lábios.
– Não tenho talento descritivo, não sei que palavras usar para pintar um quadro, e não posso portanto fazer com que você veja a beleza do espetáculo ante meus olhos. Aquelas montanhas, com suas densas selvas; a neblina ainda emaranhada na copa das árvores; o lago profundo, lá embaixo, bem longe. O sol refletiu-se no lago, através de uma fenda nas montanhas, e este teve um brilho de aço polido. Fiquei maravilhado com a beleza do universo; nunca sentira tanto júbilo, nem tão grande êxtase. Experimentei estranha sensação, um formigueiro que me subiu dos pés à cabeça; pareceu-me que de repente eu me libertara da matéria, compartilhando, como espírito puro, de uma beleza com que jamais sonhara. Tinha a impressão de ser possuidor de uma sabedoria sobrenatural, de modo que tudo que me parecera confuso se aclarou, tudo que me deixara perplexo se explicou. Felicidade tão intensa que chegava a ser dolorosa; procurei libertar-me dela, pois sentia que, se durasse mais um momento, eu morreria; e no entanto era um êxtase tão grande que seria preferível morrer a ter que renunciar a ele. Como explicar tal sensação? Não há palavras para descrever a minha bem-aventurança. Quando voltei a mim, estava exausto e trêmulo. Adormeci.
Era dia ia alto quando acordei. Voltei para o bangalô, sentindo-me tão leve que tinha a impressão de que mal tocava o solo. Preparei uma refeição – Céus, se estava com fome! – e acendi o cachimbo.
Larry acendeu neste momento o seu cachimbo e continuou: – Não ousei acreditar que eu, Larry Darrell, de Marvin, Illinois, recebera a iluminação pela qual, apesar de uma vida austera e mortificada, outros ainda esperavam.
– Por que julga você que foi isso, e não um estado hipnótico, produzido pela sua disposição de espírito, aliada à solidão, ao mistério da madrugada e ao aço polido do seu lago?
– Devido à minha sensação de intensa realidade. Afinal de contas, era uma sensação igual a que os místicos têm tido em todo mundo, através dos séculos. Brâmanes na Índia, sufis na Pérsia, católicos na Espanha, protestantes na Nova Inglaterra; e, ao descreverem da melhor maneira possível aquilo que é indescritível, fizeram-no em termos semelhantes. Não se pode negar a existência do fenômeno; a dificuldade está em explicá-lo. Se por um momento me unifiquei com o Absoluto, ou se foi uma irrupção do subconsciente, ou uma afinidade com o espírito universal, latente em todos nós, é coisa que não sei dizer.
Larry fez uma pausa e me atirou um olhar indagador.
– Por pensar nisso, você consegue fazer o polegar tocar no mínimo? – perguntou-me.
– Claro – respondi rindo e provando-o com o gesto apropriado.
– Sabe que é uma coisa que somente o homem e os primatas conseguem fazer? É devido ao fato de ser o polegar oposto aos outros dedos que a mão é um instrumento tão admirável. Você não acha possível que o polegar, provavelmente em forma rudimentar, tenha se desenvolvido em alguns indivíduos entre os remotos antepassados do homem e do gorila, e que era uma característica que só se tornou comum a todos depois de inúmeras gerações? Não acha também possível que esses fenômenos de união com a Realidade, que tenha acontecido a pessoas tão diversas, indiquem o desenvolvimento de um sexto sentido que no futuro, num futuro muito distante, será comum a todos os homens, a ponto de permitir que eles tenham tão direta percepção do Absoluto como temos agora dos objetos materiais?
– E de que maneira acha você que isto os afetaria?
– Quanto a isso, não estou em condições de lhe dizer nada mais do que a primeira criatura que descobriu que podia tocar o mínimo com o polegar poderia ter dito das inumeráveis consequências de ato tão insignificante. Só o que posso garantir-lhe é que ainda perdura em mim a intensa sensação de paz, alegria e segurança, de que me senti possuído naquele momento de exaltação, e que o espetáculo da beleza do universo está tão vívido na minha lembrança como na ocasião em que meus olhos ficaram por ele ofuscados:
– Mas, Larry, certamente a sua concepção do Abso luto o obriga a acreditar que o mundo e sua beleza não passam de uma ilusão – criação de Maya.
– É um erro acreditar que os hindus consideram o mundo uma ilusão; não dizem isso; acham apenas que não é real no sentido em que o é o Absoluto. Maya é apenas uma invenção daqueles ardentes pensadores, para explicarem como o Infinito pode produzir o Finito. Samkara, o mais sábio de todos eles, declarou que era mistério insolúvel. Você vê, a dificuldade está em explicar por que haveria Brama – que é Ser, Bem-aventurança e Inteligência, que é imutável, que é eterno, que está perpetuamente em repouso, a quem nada falta e que não tem necessidade de coisa alguma, não conhecendo portanto nem alteração nem luta, que é perfeito –, por que haveria Brama de criar o mundo. Pois bem, se alguém faz esta pergunta, em geral lhe respondem que o Absoluto criou o mundo por esporte, sem objetivo de espécie alguma. Mas, ao pensar em inundações, fome, terremotos, furacões e todos os males a que está sujeita a humanidade, a gente se revolta com a ideia de que tanta coisa má tenha sido criada por divertimento. Shri Ganesha era bom demais para apoiar essa teoria; considerava o mundo como a expressão do Absoluto e o transbordamento de sua perfeição. Ensinava ele que Deus não pode deixar de criar, e que o mundo é a manifestação da sua natureza. Quando lhe perguntei por que motivo – uma vez que era a manifestação da natureza de um ser perfeito – o mundo era tão odioso, a ponto de fazer com que o melhor objetivo do homem fosse libertar-se de seus grilhões, Shri Ganesha me respondeu que as alegrias do mundo são transitórias e que somente o Infinito proporciona felicidade duradoura. Mas perpetuidade não faz com que o bom se torne melhor, nem faz o branco ficar mais branco. Mesmo que ao meio-dia a rosa perca a beleza que teve de madrugada, sua beleza naquele momento foi real. Nada no mundo é permanente, e somos tolos em desejar que uma coisa perdure, mas mais tolos ainda seríamos se não a apreciássemos enquanto a temos. Se mutabilidade é da essência da existência, nada mais natural do que fazer dela a premissa da nossa filosofia. Não podemos pisar duas vezes as mesmas águas de um rio, mas o rio corre continuamente e as outras águas que pisamos são também frescas e agradáveis.
Quando entraram na Índia pela primeira vez, os árias viram que o mundo que conhecemos não passa de uma semelhança do mundo que desconhecemos, mas souberam apreciar a sua beleza e encanto; somente séculos mais tarde, quando o esforço da conquista e o clima debilitante lhes sugaram a vitalidade, tornando-os vítimas das hordas invasoras, foi que viram apenas mal na vida, desejando ardentemente libertar-se do jugo da reencarnação. Por que motivo nós, ocidentais, e principalmente nós, americanos, havemos de temer a decadência e a morte, a fome e a sede, a velhice, a tristeza, a desilusão? É forte em nós o instinto de viver. Ali sentado na cabana de madeira, a fumar o meu cachimbo, mais do que em qualquer outra ocasião senti que vivia. Fervia em mim uma energia que queria ser despendida. Não era minha vocação abandonar o mundo e retirar-me ao claustro, e sim viver no mundo e amar as coisas do mundo, não por causa delas e sim por causa do Infinito que está nelas. Se naqueles momentos de êxtase eu realmente me unificara com o Absoluto, então, se fosse verdade o que eles diziam, nada poderia atingir-me e, depois de ter cumprido o karma da minha existência atual, eu não voltaria ao mundo. Tal pensamento consternou-me. Eu desejava viver, e tornar a viver. Estava disposto a aceitar fosse que vida fosse, com suas tristezas e dores; meu ardor, energia e curiosidade só poderiam satisfazer-se com uma vida após outra, e outra após outra.
Na manhã seguinte desci a montanha e no outro dia cheguei ao ashrama. Shri Ganesha admirou-se ao ver-me em trajes europeus. Eu os vestira no bangalã do guarda-florestal, antes de galgar a montanha, porque lá era fresco, e não pensara em trocá-los.
“Vim dizer-lhe adeus, mestre”, declarei. “Vou voltar para a minha gente.”
– Ele nada disse. Estava, como sempre, sentado de pernas cruzadas, na pele de tigre, sobre o estrado. Havia no ar um leve perfume de incenso, que se queimava no braseiro em frente dele. Estava só, como da primeira vez em que eu o vira. Fitou-me com expressão tão penetrante que me pareceu que podia ler o mais íntimo dos meus pensamentos. Vi que estava ciente do que acontecera.
“Está certo”, disse ele. “Você já esteve fora bastante tempo.”
– Ajoelhei-me e ele me deu a bênção. Quando me levantei, meus olhos estavam cheios de lágrimas. Homem nobre e santo.
Hei de sempre considerar um privilégio o fato de tê-lo conhecido. Despedi-me dos devotos. Alguns estavam lá havia anos; outros tinham chegado depois de mim. Deixei meus livros e outros objetos, achando que poderiam ser úteis a alguém e, com o meu saco de viagem às costas, vestindo as mesmas velhas calças e o paletó marrom com que chegara, com um topee amassado na cabeça, regressei à cidade. Uma semana mais tarde tomei o vapor em Bombaim e fui parar em Marselha.
Ficamos em silêncio, cada um de nós preocupado com os próprios pensamentos. Embora eu estivesse muito cansado, ainda havia uma coisa que queria saber. Fui, portanto, o primeiro a falar.
– Larry, meu velho, essa sua longa pesquisa começou com o problema do mal. Foi o problema do mal que o incitou. Até agora, nada do que você disse indica que tenha chegado nem mesmo perto de uma solução.
– Talvez não haja solução, ou talvez eu não seja bastante inteligente para encontrá-la. Ramakrishna considerava o mundo um esporte de Deus. “É como um jogo”, disse ele. “Nesse jogo há alegria e tristeza, virtude e vício, saber e ignorância, bem e mal... O jogo não poderá continuar se o pecado e a tristeza forem completamente banidos da criação.” Não concordo com tal teoria. A melhor sugestão que posso fazer é que, quando o Absoluto se manifestou no mundo, o mal era a natural correlação do bem. Sem o incalculável horror de uma convulsão na crosta terrestre, jamais teríamos tido a maravilhosa beleza do Himalaia. O artífice chinês que faz um vaso de porcelana finíssima pode dar-lhe um elegante formato, ornamentá-lo com belíssimos desenhos, colori-lo de lindos tons e dar-lhe lustre perfeito, mas, devido à própria natureza do vaso, não pode impedir que seja frágil. Se cair no chão, quebrar-se-á em inúmeros pedaços. Não acha você possível que, da mesma forma, os valores que prezamos neste mundo só possam existir combinados com o mal?
– É uma ideia engenhosa, Larry. Mas não creio que seja muito satisfatória.
– Nem eu – replicou sorrindo. – Mas quando a gente chega à conclusão de que uma coisa é inevitável, o melhor é conformar-se de cara alegre.
– Quais são, atualmente, os seus planos?
– Tenho que terminar um trabalho aqui e voltarei depois para a América.
– Para fazer o quê?
– Viver.
– Como?
Ele respondeu serenamente, mas com um brilho travesso no olhar, pois calculava perfeitamente a surpresa que sua resposta iria causar-me.
– Com calma, paciência, compaixão, abnegação e continência.
– Quanta coisa! – disse eu. – Mas por que continência? Você é moço, Larry; acha acertado abafar aquilo que, conjuntamente com a fome, é o mais forte instinto animal?
– Felizmente sou pessoa para quem o ato sexual é mais um prazer do que uma necessidade. Sei por experiência própria que nunca os sábios da Índia acertam tanto como quando afirmam que a castidade intensifica extraordinariamente o poder do espírito.
– Pensei que a sabedoria estivesse em estabelecer um equilíbrio entre as necessidades do corpo e as do espírito.
– Isto é justamente o que os hindus afirmam que nós, ocidentais, não fizemos. Acham que com nossas inúmeras invenções, fábricas, máquinas, e tudo o que elas produzem, procuramos a felicidade em coisas materiais, mas que a felicidade não está na matéria e sim nas coisas espirituais. E acham que o caminho que escolhemos conduz à destruição.
– E você acha que a América é lugar apropriado para pôr em prática as virtudes que acaba de mencionar?
– Não sei por que não. Vocês, europeus, nada conhecem da América. Pelo fato de amontoarmos grandes fortunas, acham que é só dinheiro que nos interessa. Pouco ligamos a ele; assim que o possuímos tratamos logo de gastá-lo, às vezes bem, às vezes mal, mas em todo caso o gastamos. Dinheiro nada significa para nós; é apenas o símbolo do sucesso. Somos os maiores idealistas do mundo; só que, no meu modo de pensar, pusemos o nosso ideal onde não devia estar; acho que o maior ideal que um homem possa ter é o seu próprio aperfeiçoamento.
– É um nobre ideal, Larry.
– Não acha que vale a pena tentar viver de acordo com ele?
– Mas por acaso acredita que você, um homem só, possa ter influência sobre um povo irrequieto, independente, intensamente individualista como é o povo americano? Seria mais fácil tentar deter com as mãos as águas do Mississippi.
– Não há mal em tentar. Foi um homem que inventou a roda; foi um homem que descobriu a lei da gravidade. Nada do que acontece deixa de ter consequência. Quando a gente atira uma pedra num tanque, o mundo não é exatamente o mesmo que era antes. É um erro pensar que aqueles homens santos da Índia levam vidas inúteis. São como luz a brilhar na escuridão. Representam um ideal que é um conforto para seus semelhantes; o vulgo pode não alcançar esse ideal, mas todos o respeitam e ele afeta a vida para sempre. A influência de um homem que se tornou puro e perfeito é tão grande, espalha-se de tal forma, que aqueles que buscam a verdade se sentem naturalmente atraídos para esse homem. É possível que a vida que pretendo levar afete a de outras pessoas; o resultado talvez não seja maior que a borbulha causada pela pedra atirada no tanque, mas uma borbulha produz outra, e esta uma terceira, e é possível que algumas pessoas vejam que o meu modo de viver proporciona felicidade e paz, e que por sua vez ensinem a outros o que aprenderam.
– Será que você imagina as dificuldades que terá que enfrentar, Larry? Faz muito tempo que, para abafar as opiniões que temiam, os filistinos abandonaram os instrumentos de tortura; descobriram muito mais perigosa arma de destruição – a zombaria.
– Sou um sujeito duro – sorriu Larry.
– Bom, só me resta dizer que é uma sorte você ter fortuna particular.
– Sim, tem me valido muito. Do contrário, eu não teria podido fazer o que fiz. Mas o meu aprendizado está findo. Daqui por diante ela será apenas um estorvo. Vou dispor dela.
– Seria uma leviandade. Independência financeira é a única coisa que pode tornar possível a vida que você pretende levar.
– Pelo contrário; independência financeira tiraria a essa vida toda a significação.
Não pude conter um gesto de impaciência.
– Isto talvez dê certo com o mendigo errante da Índia; pode dormir sob uma árvore, e é de boa vontade que, para adquirir mérito, os piedosos lhe enchem de comida a tigela de esmolas. Mas o clima da América está longe de ser favorável a noites ao ar livre e, embora eu não tenha a pretensão de conhecer bem a América, de uma coisa estou certo: seus compatriotas são unânimes em achar que quem quer comer tem que trabalhar. Meu pobre Larry, antes de você tomar impulso, já o teriam mandado como vagabundo para o asilo.
Ele riu.
– Sei disso. A gente tem de se adaptar ao ambiente e naturalmente pretendo trabalhar. Quando chegar à América, procurarei arranjar emprego em alguma garagem. Sou bom mecânico e não creio que isso seja difícil.
– Você não estaria despendendo energia que poderia ser mais utilmente aproveitada?
– Gosto do trabalho manual. Depois de temporadas em que me fartei de estudar, tenho sempre experimentado isto por algum tempo e achado que revigora o espírito. Lembro-me de que, ao ler uma biografia de Spinoza, achei tolice do autor considerar uma pena Spinoza ter que polir lentes para ganhar seu sustento. Garanto que isso auxiliava sua atividade intelectual; quando menos, distraía a sua atenção do árduo trabalho de pesquisa. Quando estou lavando um carro ou lidando com um carburador, tenho o espírito livre e, ao terminar, experimento a agradável sensação de ter feito alguma coisa. Claro que não quero ficar indefinidamente numa garagem. Faz muito tempo que saí emprego como chofer de caminhão; assim poderei, com o tempo, viajar de um lado ao outro do país.
– Talvez você se tenha esquecido da maior vantagem do dinheiro: economiza tempo. A vida é curta e há tanto para fazer que não podemos perder um só minuto. Pense no tempo desperdiçado para você ir a pé de um lugar a outro, em vez de ir de ônibus, ou indo de ônibus em vez de ir de táxi.
Larry sorriu.
– Tem razão; não tinha pensado nisso. Mas posso aparar a dificuldade tendo o meu próprio táxi.
– O que quer dizer com isso?
– Pretendo, mais tarde, fixar residência em Nova York, principalmente por causa das bibliotecas; não preciso de muito para viver, não faço questão de dormir aqui ou acolá e contento-me com uma refeição por dia; quando tiver visto da América tudo o que pretendo ver, provavelmente terei juntado bastante dinheiro para comprar um táxi e trabalhar como chofer.
– Você devia ser internado, Larry. Está louco varrido.
– Absolutamente. Sou muito sensato e muito prático. Como chofer de táxi não precisarei trabalhar mais que um certo número de horas, para ter cama e comida e me prevenir contra a depreciação do carro. Poderei dedicar o resto do tempo a outros trabalhos e, quando tiver pressa de ir a um ou outro lugar, sempre poderei ir no meu táxi.
– Mas, Larry, tanto quanto uma apólice do governo, um táxi é uma posse – disse eu para troçar com ele. – Como chofer de táxi você seria um capitalista.
Ele riu.
– Não; o meu táxi seria apenas um instrumento de trabalho, equivalente ao cajado ou à tigela de esmolas do mendigo errante.
Com essa nota de gracejo ficou encerrada a nossa conversa. Nos últimos momentos eu notara que ia chegando gente com mais frequência. Um homem em traje a rigor sentou-se não muito longe de nós e encomendou um pequeno almoço substancial. Tinha a expressão cansada, mas satisfeita, de quem relembra complacentemente uma noite entregue a passatempos amorosos. Alguns senhores idosos, madrugadores porque a velhice não carece de muito sono, tomavam o seu café au lait vagarosamente, lendo, através das grossas lentes dos óculos, o jornal da manhã. Moços, uns lépidos e bem-vestidos, outros metidos em surrados paletós, entravam apressados para devorar um pãozinho e engolir uma xícara de café, a caminho de uma loja ou de um escritório. Uma velha de rosto encarquilhado entrou com uma pilha de jornais e ofereceu-os de mesa em mesa, aparentemente sem resultado. Olhei pelas largas vitrinas da frente e vi que já era dia. Um ou dois minutos mais tarde alguém apagou as luzes elétricas do restaurante, com exceção da parte traseira. Olhei o meu relógio. Mais de sete horas!
– Que tal encomendarmos o nosso café da manhã? – sugeri a Larry.
Comemos croissants quentinhos e quebradiços, recém-saídos do forno, e tomamos café au lait. Eu estava cansado e sem energia e tinha certeza de que parecia um trapo, mas Larry estava mais animado do que nunca. Seus olhos brilhavam, não havia uma ruga no seu rosto, e ele não parecia ter mais de vinte e cinco anos. O café me reanimou.
– Permite que lhe dê um conselho, Larry? É coisa que raramente faço.
– É coisa que raramente aceito – replicou ele sorrindo.
– Promete refletir bastante antes de dispor dos poucos bens que possui? Quando os tiver perdido, estarão perdidos para sempre. Talvez chegue o dia em que você precise de dinheiro, ou para você ou para outras pessoas, e então se arrependerá de ter sido tão idiota.
Quando ele respondeu havia nos seus olhos um brilho de zombaria, mas sem malícia.
– Você dá mais importância ao dinheiro do que eu.
– Não duvido – respondi azedamente. – Você sempre o teve, e eu não. O dinheiro me deu aquilo que mais prezo no mundo: independência. Não imagina que prazer sinto em pensar que, se me desse na veneta, eu poderia mandar todo mundo às favas.
– Mas a questão é que não desejo mandar ninguém às favas – replicou Larry. – E, se o desejasse, não seria a falta de uma conta no banco que me impediria. O dinheiro para você significa liberdade; para mim significa escravidão.
– Você é um sujeito teimoso, Larry.
– Sei disso. Não é minha culpa. Em todo caso, terei bastante tempo para refletir, pois não vou para a América antes da primavera. O pintor Auguste Cottet, que é meu amigo, emprestou-me o seu bangalô, em Sanary, e pretendo lá passar o inverno.
Sanary é uma despretenciosa praia da Riviera, entre Bandol e Toulon, bastante frequentada por artistas e escritores que não apreciam a vistosa artificialidade de Saint-Tropez.
– Você gostará de lá, se não se importar de ficar num lugar triste como um cemitério.
– Terei bastante trabalho. Estive coligindo várias notas e vou escrever um livro.
– Sobre quê?
– Você verá quando for publicado – replicou ele sorrindo. – Se quiser mandar-me depois de terminado, creio que lhe poderei arranjar um editor.
– Não se incomode. Uns amigos meus, americanos, têm uma tipografiazinha em Paris e vão me imprimir o livro.
– Mas você não pode esperar que um livro publicado desta forma tenha saída, nem que os críticos se ocupem dele.
– Não faço questão de crítica e não espero que tenha saída. Vou mandar imprimir apenas o número suficiente para mandar aos meus amigos da Índia, e algumas pessoas aqui na França, a quem julgo que poderá interessar. Nada de muito importante. Vou escrevê-lo apenas para me livrar daquelas notas, e publicá-lo porque acho que a gente só pode julgar uma coisa depois de vê-la impressa.
– Acho que o seu ponto de vista está certo. Terminamos a refeição e pedi a nota ao garçom. Entreguei-a em seguida a Larry.
– Já que você vai atirar o seu dinheiro no lixo, pode perfeitamente pagar o meu café.
Ele riu e pagou. Eu estava com os membros duros de ficar sentado durante tanto tempo; doíam-me os lados quando saí do restaurante. Agradável respirar o ar puro daquela manhã de outono. Céu azul. A Avenue Clichy, sórdida à noite, tinha agora um ar garboso, lembrando a mulher pintada, abatida, que caminhasse com o passo vivo de uma moça – e a impressão nada tinha de desagradável. Fiz sinal a um táxi que passava.
– Quer que o deixe em algum lugar? – perguntei a Larry.
– Não. Vou descer até o Sena, para nadar numa daquelas casas de banho; irei depois até a Bibliothèque, pois tenho que colher uns dados.
Apertei-lhe a mão e observei-o quando atravessou a rua com seus passos largos, despreocupados. Quanto a voltei para o hotel. Quando entrei na minha saleta, vi que eram mais de oito horas.
“Bonita hora para um senhor idoso entrar em casa”, disse eu, em tom de censura, para a dama nua (sob a redoma) que desde o ano de 1813 estava deitada em cima do relógio, em posição que sempre considerei extremamente incômoda.
Ela continuou a contemplar, num espelho de bronze, o seu rosto de bronze, e só o que o relógio dizia era “tique, tique, tique”. Fui ao banheiro e abri a torneira de água quente. Depois de ter ficado no banho até a água amornar, enxuguei-me, tomei um comprimido para dormir e, levando para a cama Le Cimitière Marin de Valéry, que aconteceu estar no criado-mudo, li até pegar no sono.
Sete
Sete
4
Quando de novo passei por Paris, os Maturin já tinham partido e outras pessoas residiam no apartamento de Elliott. Sentia falta de Isabel. Ela agradava à vista e era pessoa com quem se tinha prazer em conversar. Pronta na resposta, e não levava nada a mal. Nunca mais a vi. Não sou amigo de escrever cartas nem Isabel era dada a isso. Quando não podia comunicar-se com uma pessoa por telefone ou telegrama, não se comunicava com ela. No Natal daquele ano recebi um cartão seu – uma bela casa com pórtico colonial, cercada por carvalhos, que tomei como sendo a casa da fazenda que eles tinham desejado vender quando precisavam do dinheiro, e que provavelmente agora tinham prazer de conservar. O carimbo indicava que viera de Dallas, de modo que deduzi que o negócio se concluíra satisfatoriamente e que estavam lá instalados.
Nunca estive em Dallas, mas não duvido que, a exemplo de outras cidades americanas que conheço, tenha o seu bairro residencial – a cômoda distância, de automóvel, do centro comercial e do country club – onde no meio de vastos jardins as famílias abastadas constroem seus lares, podendo-se apreciar, das janelas do living, a bela vista de um morro ou de um vale. Em tal bairro, e em tal casa, mobiliada à última moda, do porão ao sótão, pelo mais elegante decorador de Nova York, certamente vive Isabel. Desejo apenas que o seu Renoir, suas flores de Manet, sua paisagem de Monet e seu Gauguin não pareçam ali muito antiquados. A sala de jantar é provavelmente de tamanho adequado aos almoços que senhoras como ela dão frequentemente, e onde o vinho é bom e a comida excelente. Isabel aprendeu muito em Paris. Não se instalaria na casa, a não ser que de relance tivesse visto que o living serviria perfeitamente para as festas de debutantes que ela teria prazer em dar quando suas filhas ficassem mais velhas. Hoje Joan e Priscilla já devem estar em idade de casar. Tenho certeza de que receberam esmerada educação; frequentaram as melhores escolas, e Isabel fez questão de que não lhes faltassem as prendas que as tornariam desejáveis aos olhos dos moços casadoiros. Embora eu suponha que Gray deva estar mais vermelho, com maior papada, mais calvo e mais pesadão, não posso acreditar que Isabel tenha mudado. Ainda é mais bonita que as filhas. Os Maturin devem ser um dos orgulhos da comunidade e não duvido que gozem de merecida popularidade. Isabel é divertida, gentil, condescendente e fina; e Gray é, naturalmente, o tipo perfeito do Sujeito Igual.
1
Seis meses mais tarde, em abril, estava eu certa manhã escrevendo no meu escritório, no sótão da minha casa, em Cap Ferrat, quando uma criada veio me avisar que a polícia de St. Jean (a aldeia vizinha) estava embaixo e desejava ver-me. Fiquei aborrecido com a interrupção e sem poder atinar com o motivo da visita. Tinha a consciência tranquila e já assinara na sua lista de caridade. Recebera por isso um cartão, que eu guardava no carro para que, se me fizessem parar por excesso de velocidade ou me encontrassem estacionado em lugar proibido, eu pudesse disfarçadamente fazer com que o vissem, ao apresentar minha carta de chofer, escapando assim com uma indulgente recomendação de cautela. Achei mais provável que um de meus empregados tivesse sido vítima de uma carta anônima – um dos prazeres da vida na França! – por não ter os documentos em ordem; mas, estando eu em bons termos com os polícias do lugar, que nunca tinham saído de minha casa sem o reconforto de um copo de vinho, não previ grandes dificuldades. Mas os dois policiais, pois trabalhavam aos pares, tinham vindo por motivo bem diverso.
Depois de nos termos apertado a mão, indagando quem chamavam brigadier e que tinha um dos mais respeitáveis bigodes que jamais vi, tirou do bolso um caderno de notas, virando as páginas com o sujo polegar.
– O nome de Sophie Macdonald significa alguma coisa para o senhor? – indagou ele.
– Conheço uma pessoa com este nome – respondi cautelosamente.
– Acabamos de nos comunicar por telefone com a delegacia de Toulon, e o inspetor-chefe lhe pede para ali comparecer (vaus prie de vaus y rendre) sem demora.
– Por que motivo? – perguntei. – Conheci mrs. Macdonald muito ligeiramente.
Conclui que Sophie estava metida em alguma complicação, provavelmente relacionada com ópio, mas não vi razão para me envolver no caso.
– Isto não é comigo – replicou o polícia. – Está provado que o senhor conheceu esta mulher. Parece que fez cinco dias que ela desapareceu de casa e agora tiraram da baía um corpo que a polícia julga ser o dela. Querem que o senhor o identifique.
Um calafrio percorreu-me a espinha. Não fiquei, no entanto, excessivamente admirado. Nada mais natural que, com a vida que levava, num momento de desespero Sophie tivesse desejado a morte.
– Mas com toda a certeza poderão identificá-la por suas roupas e documentos.
– Santo Deus! – exclamei horrorizado. Refleti durante alguns segundos. Provavelmente a polícia poderia obrigar-me a ir e era preferível aceder de boa vontade. – Está certo, tomarei o primeiro trem que puder – acrescentei.
Examinei o horário dos trens e vi que havia um que me faria chegar a Toulon entre cinco e seis horas. O brigadier disse que avisaria o inspetor-chefe e pediu-me que da estação fosse diretamente para a delegacia. Não trabalhei mais naquela manhã. Enfiei algumas roupas numa maleta e depois do almoço fui para a estação.
2
Quando me apresentei na delegacia central, em Toulon, fizeram-me entrar imediatamente para o gabinete do inspetor-chefe. Estava sentado a uma mesa: sujeito pesado, moreno, de aparência taciturna. Corso, pensei. Feriu-me, talvez pela força do hábito, com um olhar suspeitoso, mas ao notar a fita da Legião de Honra que eu tivera a precaução de colocar na lapela, com um sorriso untuoso convidou-me a sentar, desculpando-se profusamente por ter sido obrigado a incomodar pessoa tão distinta. Adotando o mesmo tom, asseverei-lhe de que nada me causava maior prazer do que o fato de lhe poder ser útil. Chegamos então ao que importava e ele reassumiu a sua atitude brusca, insolente mesmo. Olhando os documentos à sua frente, disse:
– Negócio sórdido. Parece que esta tal Macdonald tinha péssima reputação. Era bêbada, viciada em drogas e ninfômana. Costumava dormir não somente com os marinheiros que chegavam ao porto mas com a ralé da cidade. Como se explica que uma pessoa como o senhor, de sua idade e respeitabilidade, conhecesse um tipo desses?
Tive vontade de dizer-lhe que não era da sua conta, mas graças à paciente leitura de centenas de romances policiais aprendi que vale a pena a gente estar de bem com a polícia.
– Conheci-a muito ligeiramente – respondi. – Foi-me apresentada em Chicago, quando era ainda mocinha, tendo depois casado com um rapaz de boa posição. Encontrei-a de novo em Paris, no ano passado, por intermédio de amigos comuns.
Estivera procurando adivinhar de que maneira chegara o inspetor a me associar com Sophie, mas nisto ele empurrou um livro para a frente.
– Este livro foi encontrado no quarto dela. Se tiver a bondade de examinar a dedicatória, verá que absolutamente não indica que suas relações com a morta fossem tão superficiais como o senhor quer dar a entender.
Vi que se tratava da tradução do meu romance que Sophie vira na vitrina de uma livraria, pedindo-me para autografá-la. Sob o meu nome eu escrevera: “Mignonne, allons voir si la rase”, por ter sido a primeira coisa a me ocorrer. Parecia realmente um tanto íntimo...
– Se o senhor está insinuando que fui seu amante, engana-se redondamente.
– Não seria da minha conta – replicou o inspetor. E depois, com um brilho nos olhos: – E, sem querer absolutamente ofendê-lo, devo acrescentar que, pelo que ouvi dela, não creio que o senhor fosse o seu tipo. Mas é evidente que não iria dizer mignonne a uma desconhecida.
– Esta frase, monsieur le commissaire, é a primeira de uma célebre poesia de Ronsard, cujas obras garanto que um homem da sua educação e cultura não desconhece. Escrevi-a por ter quase certeza de que ela já lera a poesia e se lembraria dos versos seguintes, que lhe dariam a entender que a vida que levava era, no mínimo, indiscreta.
– Claro que li Ronsard no colégio, mas com todo trabalho que tenho, confesso que os versos a que se refere me fogem à memória.
Recitei a primeira estrofe, certo de que ele nunca ouvira o nome do poeta até o momento em que eu o citara, e não receando, portanto, que se lembrasse da última, que está longe de poder ser considerada como um estímulo à virtude.
– Aparentemente ela era mulher de certa educação. Encontramos inúmeros romances policiais no seu quarto e dois ou três livros de poesia. Havia um de Baudelaire e outro de Rimbaud e um terceiro de um inglês chamado Elliott. É conhecido?
– Muito.
– Não tenho tempo para ler poesia. Além do mais, não leio em inglês. Se ele é bom poeta, é pena que não escreva em francês, para que as pessoas instruídas possam lê-lo.
A ideia de ver o meu inspetor-chefe lendo The Waste Land encheu-me de gozo. De repente ele empurrou um instantâneo para o meu lado e perguntou:
– Sabe por acaso quem é esta pessoa?
Reconheci Larry imediatamente. Estava em traje de banho e creio que a fotografia, bem recente, fora tirada em Dinard, naquele verão em que ele lá estivera ao mesmo tempo que Isabel e Gray. Meu primeiro impulso foi dizer que não sabia quem era, pois nada me seria mais desagradável do que envolver Larry naquele detestável incidente; mas refleti que, se a polícia lhe descobrisse a identidade, a minha negativa faria parecer que eu achava que havia alguma coisa a ocultar.
– É um cidadão americano chamado Laurence Darrell.
– Foi a única fotografia encontrada entre os objetos da mulher. Qual a ligação entre eles?
– Eram ambos da mesma cidade, perto de Chicago. Foram companheiros de infância.
– Mas esta fotografia foi tirada, relativamente há pouco tempo, numa praia no norte ou oeste da França, creio eu. Quem é este indivíduo?
– Um escritor – respondi ousadamente. O inspetor ergueu levemente as sobrancelhas e percebi que não tinha em grande conta a moralidade dos membros da minha profissão. – Com fortuna própria – acrescentei, para dar um ar mais respeitável.
– Onde está ele agora?
Tive novamente a tentação de dizer que não sabia, mas achei que isto só serviria para piorar a situação. A polícia francesa pode ter muitas falhas, mas seu sistema lhe permite encontrar sem demora seja lá quem for.
– Está morando em Sanary – respondi.
O inspetor ergueu o olhar, visivelmente interessado.
– Onde?
Eu me lembrara que Larry me dissera que Auguste Cottet lhe emprestara o bangalô, e no Natal, ao voltar, escrevi-lhe convidando-o para passar uns dias comigo; mas, aliás como eu previra, ele recusou. Dei ao inspetor o seu endereço.
– Telefonarei para Sanary, para que o tragam aqui. Talvez valha a pena interrogá-lo.
Ocorreu-me que o inspetor julgara ter encontrado um suspeito. Tive vontade de rir; estava convencido de que não seria difícil a Larry provar que nada tivera com o caso. Estava aflito por saber mais alguma coisa do fim trágico de Sophie, mas o inspetor apenas me contou, um pouco mais detalhadamente, aquilo que eu já sabia. Dois pescadores tinham trazido o corpo. O policial da minha aldeia exagerara romanticamente ao afirmar que ela estava completamente nua. O assassino lhe deixara a cinta e a brassière. Se Sophie estivera vestida da mesma maneira em que eu a vira da última vez, bastara ao assassino tirar-lhe a calça comprida e o suéter. Não havendo coisa alguma que a identificasse, a polícia pusera uma notícia no jornal. Isto provocara o comparecimento, na delegacia, de uma mulher que tinha, numa ruela escusa, uma espécie de pensão, que os franceses chamam de maison de passe, onde os homens podem levar mulheres ou rapazinhos. Ela era paga pela polícia, que queria saber quem lhe frequentara a casa, e para quê. Sophie fora expulsa do hotel do cais onde morava quando eu a encontrara, pois o seu procedimento acabara por escandalizar até mesmo o tolerante proprietário. Propusera alugar um quarto e uma saleta na casa da mulher a que me referi. Era mais vantajoso alugá-los duas ou três vezes por noite, pelo espaço de algumas horas, mas Sophie oferecera preço tão alto que a mulher consentira em alugar por mês. A dona da casa compareceu na polícia para avisar que fazia cinco dias que sua inquilina desaparecera; não se preocupava com isso, pensando que ela fora a Marselha ou Villefranche, onde ultimamente tinham chegado navios da esquadra inglesa, acontecimento que sempre atraía as mulheres, velhas e moças, de todo litoral; mas depois lera a descrição da morta, no jornal, e achara que podia aplicar-se à sua inquilina. Tinham-na levado para identificar o cadáver e depois de ligeira hesitação ela afirmara tratar-se de Sophie Macdonald.
– Mas, se o cadáver foi identificado, para que então precisam de mim? – perguntei.
– Madame Bellet é uma mulher muito respeitável e de ótimo caráter, mas talvez tenha, para identificar o cadáver, razões que desconhecemos; em todo caso acho que a morta deva ser vista por pessoa com quem tenha tido contato mais íntimo, para que haja confirmação.
– Há probabilidade de encontrar o assassino? O inspetor encolheu os ombros maciços.
– Estamos, naturalmente, investigando. Interrogamos inúmeras pessoas, nos bares que ela costumava frequentar. É possível que tenha sido assassinada por algum marinheiro ciumento cujo navio já deixou o porto, ou por algum bandido que quisesse roubar o que ela tivesse consigo. Pelo que ouvi dizer, sempre carregava uma quantia que pareceria importante a um homem dessa classe. É possível que algumas pessoas desconfiem de quem é o culpado, mas nos círculos em que ela se movia é pouco provável que alguém fale, a não ser que veja nisso vantagem. Convivendo com o tipo de gente com quem convivia, não é de admirar que tenha tido tal fim.
A isso nada pude responder. O inspetor pediu-me que voltasse na manhã seguinte às nove horas, pois até lá já teria conversado com o “cavalheiro da fotografia”; depois um policial nos conduziria ao necrotério, para vermos o cadáver.
– E quanto ao enterro?
– Se, depois de identificarem o corpo, os senhores o reclamarem como amigos da morta, estando dispostos a fazer frente às despesas do enterro, a necessária autorização lhes será dada.
– Posso garantir-lhe que mr. Darrell e eu gostaríamos de ter essa autorização o mais depressa possível.
– Compreendo perfeitamente. É um fato muito triste, e é preferível que a pobre mulher descanse em paz sem demora. Isto me faz lembrar que tenho aqui o cartão de um agente funerário que arranjará tudo com presteza e a preços razoáveis. Vou escrever uma linha, para que ele lhes dê o máximo de atenção.
Tinha eu certeza de que o digno inspetor ia ganhar sobre isso uma comissão, mas agradeci-lhe calorosamente e, depois de ele me ter acompanhado até a porta com mostras de grande consideração, fui procurar o endereço indicado. O agente era vivo e eficiente. Escolhi um caixão, nem o mais barato nem o mais caro, e aceitei o seu oferecimento de me encomendar duas ou três coroas num florista seu conhecido – “para poupar a monsieur um dever penoso e em homenagem à morta”, disse ele – e combinei para o carro fúnebre estar no necrotério no dia seguinte, às duas horas. Não pude deixar de admirar a eficiência do homem quando me assegurou que não precisaria ter trabalho de procurar uma sepultura; ele faria tudo que fosse necessário; e “provavelmente madame era protestante”, de modo que, se eu assim o desejasse, providenciaria para que um pastor estivesse à espera no cemitério, para ler o ofício dos mortos. Mas, sendo eu um desconhecido, e estrangeiro, tinha ele certeza de que eu não me ofenderia se me pedisse um cheque adiantado. Disse uma cifra maior do que eu esperara, pensando naturalmente que eu iria pechinchar, mas percebi no seu rosto uma expressão de surpresa, talvez mesmo de decepção, quando puxei meu livro de cheques e enchi um, sem hesitar.
Tomei quarto num hotel e no dia seguinte voltei à delegacia. Fizeram-me esperar durante algum tempo; vieram depois dizer-me que podia entrar no gabinete do chefe. Vi Larry, sério e tristonho na cadeira onde eu me sentara na véspera. O inspetor cumprimentou-me alegremente, como se fôssemos velhos companheiros.
– Bom, mon cher monsieur, seu amigo respondeu a todas as perguntas que era de meu dever fazer-lhe. Não tenho motivo para duvidar de sua afirmação, que há dezoito meses não vê a pobre mulher. Prestou conta, de maneira que me satisfez, dos seus atos na semana passada, tendo também explicado a razão de ter sido a sua fotografia encontrada no quarto da vítima. Foi tirada em Dinard e aconteceu tê-la no bolso, num dia em que almoçaram juntos. De Sanary deram-me ótimas informações desse rapaz; além do mais, digo-o sem vaidade, considero-me bom juiz das criaturas; estou convencido de que seria incapaz de cometer um crime dessa natureza. Ousei dar-lhe os meus pêsames pelo fato de ter uma sua companheira de infância, educada com todas as vantagens de uma sadia vida de família, tido fim tão lamentável. Mas é assim a vida. E agora, prezados senhores, um dos meus homens os acompanhará ao necrotério; depois de terem identificado o cadáver, poderão dispor do seu tempo à vontade. Desejo-lhes um bom almoço. Tenho aqui um cartão do melhor restaurante de Toulon; vou apenas escrever uma linha, para que o patron os trate com a máxima consideração. Uma garrafa de vinho lhe fará bem, depois de tão desagradável acontecimento.
O homem desmanchava-se agora em amabilidades. Fomos a pé até o necrotério, acompanhados de um polícia. O movimento ali era dos maiores. Apenas um corpo, numa das mesas. Aproximamo-nos e o encarregado lhe descobriu a cabeça. Espetáculo em nada agradável. A água do mar alisara os cabelos platinados agora colados ao crânio. Rosto terrivelmente intumescido, horrível de se ver; mas não havia dúvida de que era Sophie. O empregado abaixou o lençol para exibir aquilo que teríamos preferido não ter visto, o pavoroso corte no pescoço, indo de orelha a orelha.
Voltamos para a delegacia. O inspetor-chefe estava ocupado, mas dissemos ao seu auxiliar o que tínhamos que dizer; ele nos deixou na sala, voltando dali a pouco com os documentos necessários, que fomos levar ao agente funerário.
– Vamos agora tomar qualquer coisa – sugeri.
Larry não pronunciara uma palavra desde que tínhamos saído da delegacia para o necrotério, a não ser quando lá voltamos, para declarar que identificava o corpo como sendo o de Sophie Macdonald. Levei-o para o cais e sentei-me no café onde me sentara com ela. Soprava um forte mistral e a baía em geral tão lisa estava salpicada de espuma branca. Os barcos de pesca baloiçavam-se suavemente. O sol brilhava esplendorosamente e, como sempre acontece quando há mistral, todos os objetos pareciam mais nítidos, como se fossem vistos através de lentes admiravelmente focalizadas. Emprestava uma vitalidade latejante, enervante, a tudo que a gente via. Tomei conhaque com soda, mas Larry não tocou no que eu encomendara para ele. Continuou em tristonho silêncio, que eu não quis perturbar.
Mais tarde consultei o relógio.
– É melhor irmos comer qualquer coisa – disse eu. – Temos que estar no necrotério às duas horas.
– Estou com fome; não tomei nada de manhã. Achando, pela aparência do inspetor, que ele devia saber onde se comia bem, levei Larry ao restaurante por ele indicado.
Como Larry raramente provava carne, encomendei uma omelete e lagosta grelhada; pedi em seguida a lista dos vinhos, escolhendo, ainda a conselho do inspetor, um vinho velho de boa qualidade.
Quando veio a garrafa, enchi o copo de Larry.
– Com os diabos, beba um pouco – disse eu. – Talvez lhe dê um pouco mais de assunto.
Ele me atendeu obedientemente.
– Shri Ganesha costumava dizer que o silêncio também é conversa – murmurou.
– Isto faz lembrar uma alegre reunião social dos mui intelectuais lentes da Universidade de Cambridge.
– Infelizmente acho que você terá que aguentar sozinho as despesas do enterro – disse Larry. – Não tenho dinheiro.
– Estou de pleno acordo – respondi. Nisso percebi o verdadeiro significado de suas palavras. – Não me diga que você fez mesmo o que disse que ia fazer?
Ele não respondeu imediatamente. Notei o brilho caçoísta do seu olhar.
– Você não dispôs de sua fortuna? – perguntei.
– Até o último níquel, com exceção do necessário para me aguentar até o meu vapor chegar.
– Que vapor?
– O dono do bangalô pegado ao meu, em Sanary, é agente, em Marselha, de uma linha de vapores de carga, que vão do Oriente Próximo para Nova York. Mandaram-lhe um cabograma, de Alexandria, dizendo que tinham sido obrigados a deixar lá dois marinheiros doentes, que vinham para Marselha, e pediram-lhe que arranjasse dois substitutos. Ele é meu camarada e me prometeu que eu seria um deles. Vou dar-lhe o meu velho Citroën, como presente de despedida. Ao chegar a bordo não terei nada mais que as roupas do corpo e algumas coisas que vou levar numa maleta.
– Bom, o dinheiro é seu. Você é maior e livre.
– Livre exprime bem. Nunca me senti mais feliz nem mais independente em toda a vida. Ao chegar a Nova York terei o meu ordenado, viverei com isso até arranjar emprego.
– E o seu livro?
– Oh! está pronto e impresso. Fiz uma lista das pessoas a quem quero que sejam enviados exemplares, e você deve receber um deles dentro de um ou dois dias.
– Obrigado.
Não tínhamos muita coisa para dizer e terminamos a refeição em agradável silêncio. Pedi café. Larry acendeu o cachimbo e eu um cigarro. Fitei-o, pensativo. Ele sentiu o meu olhar e me relanceou o seu, onde havia um fulgor brejeiro.
– Se está com vontade de dizer que sou um idiota, não faça cerimônia. Não me importo, absolutamente.
– Não, não tenho essa vontade. Estou apenas imaginando se sua vida não teria seguido um curso mais normal se você se tivesse casado e tido filhos como todo mundo.
Ele sorriu. Devo ter comentado pelo menos vinte vezes a beleza do seu sorriso, tão natural, confiante e doce, refletindo a candura, a sinceridade de sua ótima índole; mas faço-o novamente, pois agora, além de tudo isso, havia nele um quê de terno e melancólico.
– É tarde demais para isso. A única mulher com quem poderia ter me casado foi a coitada da Sophie.
Fitei-o, atônito.
– Você ainda diz isso, depois de tudo o que aconteceu?
– Sophie tinha uma bela alma – ardente, sonhadora e generosa. Seus ideais eram sinceros. Houve mesmo uma trágica nobreza na maneira com que procurou a destruição.
Fiquei em silêncio, sem saber o que dizer a tão estranhas afirmações.
– Por que motivo não se casou com ela?
– Era uma criança. Para ser franco, quando eu ia até a casa do seu avô para lermos poesia, juntos, sob o olmo, nunca me ocorreu que naquela menina magricela existisse a semente da beleza espiritual.
Estranhei que neste momento ele não mencionasse Isabel. Afinal de contas, tinham sido noivos. Mas talvez considerasse o episódio como tolice, sem consequência, de duas crianças que não tinham sabido o que queriam. Estava eu certo de que nunca lhe passara pela cabeça que Isabel se consumia de amor por ele.
Estava na hora. Fomos a pé até o largo onde Larry deixara o seu carro, agora bem surrado, e dirigimo-nos para o necrotério. O agente funerário cumpriu a sua palavra. A eficiência com que tudo foi feito, sob aquele céu brilhante, com o vento forte a dobrar os ciprestes no cemitério, acrescentou uma nota ainda mais trágica aos acontecimentos. Depois de tudo terminado, o homem nos apertou cordialmente a mão.
– Bom, cavalheiros, espero que estejam satisfeitos. Correu tudo muito bem.
– Muito bem – concordei.
– Monsieur não se esqueça de que estou sempre à sua disposição, se precisar dos meus serviços. Distância não é obstáculo.
Agradeci-lhe. Ao chegarmos ao portão do cemitério, Larry perguntou-me se eu precisava dele para mais alguma coisa.
– Não.
– Gostaria de voltar para Sanary o mais depressa possível.
– Deixe-me no meu hotel, sim?
Não trocamos uma palavra durante o trajeto. Quando chegamos, desci. Apertei-lhe a mão e ele seguiu o seu caminho. Paguei a conta, apanhei minha maleta e tomei um táxi até a estação. Também eu desejava partir.
3
Dias mais tarde segui para a Inglaterra. Minha intenção era ir diretamente, mas depois do que acontecera eu fazia questão de ver Isabel; resolvi, portanto, passar vinte e quatro horas em Paris. Telegrafei perguntando se poderia vê-la de tarde e ficar para o jantar. Ao chegar a meu hotel encontrei um bilhete seu, dizendo que ela e Gray iam jantar fora, mas que teria muito prazer em receber-me se eu não fosse antes das cinco e meia, pois tinha hora marcada na costureira.
Fazia frio e de vez em quando caía uma pancada forte, de modo que achei que Gray não teria ido jogar golfe em Mortefontaine. Isso não me convinha, pois desejava ver Isabel a sós; mas assim que cheguei ao apartamento ela me contou que Gray fora jogar bridge no clube.
– Disse-lhe que não viesse muito tarde, se quisesse estar com você. Só vamos jantar às nove, o que quer dizer que não precisamos chegar lá antes de nove e meia, de modo que temos bastante tempo para conversar. Tenho muita coisa para lhe contar.
Eles tinham sublocado o apartamento, e a venda dos objetos de Elliott devia realizar-se dali a quinze dias. Querendo estar presente, iam passar alguns dias no Ritz.
Embarcariam depois para a América. Isabel pretendia vender tudo, a não ser os quadros modernos que Elliott tivera em sua casa de Antibes. Embora não os apreciasse grandemente, achava, e com razão, que iriam dar valor ao seu futuro lar.
– Pena o coitado do tio Elliott não ter sido mais adiantado. Picasso, Matisse e Ronault, você sabe. Creio que seus quadros são bons, até certo ponto, mas receio que vão parecer um tanto fora de moda.
– Se eu fosse você, não me preocuparia com isso, Isabel. Outros pintores daqui a alguns anos, e Picasso e Matisse não parecerão mais modernos do que os seus impressionistas.
As negociações de Gray estavam quase concluídas; com o capital fornecido por Isabel ele ia entrar, como vice-presidente, num negócio que estava em pleno desenvolvimento – qualquer coisa relacionada com petróleo. Iam morar em Dallas.
– A primeira coisa que faremos será procurar uma casa. Quero um bom jardim, para Gray ter com que se distrair quando voltar do trabalho, e eu preciso de uma sala bem grande para poder receber.
– Não sei por que não leva a mobília de Elliott.
– Não creio que ficasse bem. Quero tudo moderno, talvez com qualquer coisa de mexicano aqui e ali, para dar uma nota diferente. Assim que chegar a Nova York, vou procurar saber quem é o decorador da moda.
Antoine, o criado, entrou com uma bandeja cheia de garrafas. Com o seu tato habitual, não ignorando que quase todos os homens estão convencidos de que sabem preparar um coquetel melhor do que qualquer mulher (e com razão), Isabel me pediu que fizesse a mistura. Verti o gim e o Noilly-Prat, e acrescentei uma gota de absinto que transforma o corriqueiro martíni seco em bebida pela qual os deuses do Olimpo indubitavelmente teriam abandonado o néctar do seu fabrico – bebida essa que sempre imaginei muito parecida com Coca-Cola. Ao entregar a Isabel o seu coquetel, notei um livro sobre a mesa.
– Olá, o livro de Larry – exclamei.
– Sim, chegou hoje de manhã. Mas tenho andado tão ocupada, tinha mil coisas para fazer antes do almoço, e ainda ia almoçar fora, e à tarde tinha que experimentar o meu vestido em Molyneux, que não sei quando poderei lê-lo.
Pensei com amargura que um escritor passa meses escrevendo um livro, pondo talvez nele seu coração e seu sangue, e depois ele fica jogado sobre uma mesa, para ser lido quando a pessoa não tiverem nada de melhor para fazer. Era um volume de trezentas páginas, bem impresso e bem encadernado.
– Com certeza você sabe que Larry passou em Sanary todo inverno? Viu-o, por acaso? – perguntou-me Isabel.
– Sim, estivemos juntos, um dia destes, em Toulon.
– Verdade? O que foram fazer lá?
– Enterrar Sophie.
– Ela morreu? – exclamou Isabel.
– Se não tivesse morrido, não haveria razão para a enterrarmos.
– Não acho graça. – Isabel fez uma pequena pausa. E depois:
– Não vou fingir que sinto a sua morte. Resultado de álcool e drogas, com certeza.
– Não; foi degolada e atirada no mar completamente nua.
Assim como o brigadier de St. Jean, não resisti à tentação de exagerar um pouco a sua nudez.
– Que horror! Coitadinha. Claro que com a vida que levava tinha que acabar mal.
– Foi o que o comissaire de police de Toulon disse.
– Sabem quem é o culpado?
– Não; mas eu sei. Acho que foi você quem a matou. Isabel lançou-me um olhar admirado.
– O que é que você está dizendo? – Depois, com a sombra de um sorriso: – Adivinhe novamente; tenho um ótimo álibi.
– Encontrei-me com ela, em Toulon, no verão passado. Tivemos uma longa conversa.
– Estava sóbria?
– Mais ou menos. Contou-me como fora que desaparecera tão estranhamente dias antes da data marcada para o casamento.
Notei que o rosto de Isabel enrijeceu. Continuei a falar, contando-lhe exatamente o que Sophie me contara. Ela ouvia com ar cauteloso.
– Tenho refletido muito sobre essa história e, quanto mais reflito, mais convencido fico de que há nela qualquer coisa de esquisito. Almocei aqui vinte vezes, e ao almoço nunca você serviu licores. Você almoçara sozinha naquele dia. Por que motivo estaria uma garrafa de zubrovka na bandeja do café?
– O tio Elliott acabara de mandar-me. Eu queria ver se era mesmo tão gostoso como me parecera no Ritz.
– Sim, agora me lembro do seu entusiasmo. Fiquei admirado; e mais ainda porque você nunca toma licor
– zela demais pela sua silhueta para arriscar-se a isso. Minha impressão foi que você estava tentando Sophie. Achei que era pura maldade.
– Agradecida.
– Em geral você é muito pontual. Por que teria saído de casa quando estava esperando Sophie para uma coisa tão importante para ela, e tão interessante para você, como a última prova de um vestido de casamento?
– Ela mesma lhe disse. Eu estava preocupada com os dentes de Joan. Nosso dentista tem enorme clientela e tive que aceitar a hora que ele me deu.
– Quando uma pessoa vai ao dentista, em geral já marca hora para a próxima vez.
– Realmente. Mas ele me telefonou de manhã, dizendo que precisava mudar minha hora e perguntando se eupoderia ir naquela tarde, às três; e eu, naturalmente, não quis perder a ocasião.
– A governanta não poderia ter levado Joan?
– Ela estava com medo, a coitadinha; eu sabia que ficaria mais contente se eu fosse.
– E você não ficou admirada quando voltou e viu a garrafa de zubrovka pela metade, tendo Sophie desaparecido?
– Julguei que se cansara de esperar e fora sozinha a Molyneux. Fiquei sem saber o que pensar, quando lá me disseram que ela não aparecera.
– E o zubrovka?
– Pois bem, notei que grande parte sumira; pensei que Antoine o tivesse bebido e quase lhe falei sobre isso, mas ele era pago pelo tio Elliott e era amigo de Joseph, de modo que achei melhor ignorar o fato. É um ótimo empregado e, se de vez em quando toma um traguinho, que mal há nisso?
– Como você é mentirosa, Isabel.
– Não acredita em mim?
– Absolutamente.
Isabel levantou-se e foi para perto da lareira. O fogo estava aceso, o que era agradável em dia tão sombrio. Ela apoiou o braço no beiral, numa atitude graciosa, que um dos seus maiores dons lhe permitia assumir sem que parecesse intencional. Como muitas senhoras francesas para o seu tipo, e naquela ocasião estava com um vestido de elegante simplicidade que realçava a elegância da sua silhueta. Tirou uma baforada do cigarro.
– Não há motivo para eu não ser franca com você – disse ela. – Foi uma pena eu ter que sair e naturalmente Antoine não devia ter deixado o licor e o café na sala. Quando voltei e vi a garrafa quase vazia, percebi naturalmente o que acontecera; e quando Sophie não apareceu mais, achei que tinha caído na farra. Não disse nada a Larry porque ele já estava preocupado e isso iria aborrecê-lo mais ainda.
– Tem certeza de que a garrafa não ficou ali por expressa ordem sua?
– Tenho.
– Não acredito.
– Pois então não acredite! – Isabel atirou furiosamente o cigarro no fogo; seus olhos estavam negros de cólera.
– Pois bem, se quer saber a verdade, saiba-a e vá para o inferno! Fiz de propósito e tornaria a fazê-lo. Não se lembra então que eu disse que estava disposta a tudo para impedir que ela se casasse com Larry? Você não queria fazer nada, nem tampouco Gray. Apenas encolhiam os ombros e diziam que era um grande erro. Vocês não ligavam a mínima. Eu ligava.
– Se você a tivesse deixado em paz ela ainda estaria viva.
– E casada com Larry, que seria profundamente infeliz. Ele pensou que pudesse regenerá-la. Que idiotas são os homens! Eu sabia que cedo ou tarde ela cairia novamente. Isto saltava aos olhos. Você mesmo deve ter notado como estava nervosa no almoço do Ritz. Percebi que você a observava, quando ela tomou o café; estava tão trêmula que teve que segurar a xícara com as duas mãos. Viu como olhava o vinho, quando o garçom nos servia? Seguia a garrafa com aqueles seus pavorosos olhos aguados, como uma serpente a acompanhar os movimentos de uma franguinha nova; e eu teria jurado que ela venderia a alma por um trago.
Isabel estava agora de frente para mim; seus olhos chispavam de cólera, sua voz era dura, áspera. As palavras não lhe saíam com a rapidez desejada.
– A ideia me ocorreu quando o tio Elliott fez tamanho escarcéu sobre aquela maldita bebida polonesa. Achei-a péssima, mas fingi que era a coisa mais deliciosa deste mundo. Tinha certeza de que, se Sophie pilhasse uma oportunidade, não saberia resistir-lhe. Foi por isso que a levei ao desfile de modelos. Foi por isso que lhe ofereci o vestido de casamento. Naquele dia da última prova eu disse a Antoine que queria tomar zubrovka depois do almoço. Avisei-o que estava esperando uma senhora, recomendando-lhe que lhe pedisse que esperasse por mim e lhe oferecesse café e, caso ela tivesse vontade, um cálice de licor. Levei realmente Joan ao dentista, mas claro que não tínhamos hora marcada e ele não pôde atender-nos, de modo que fomos a um cinema. Eu estava resolvida, se Sophie não tivesse tocado na bebida, a me conformar e procurar ser sua amiga. Juro que é verdade. Mas, quando cheguei em casa e vi a garrafa, compenetrei-me de que agira acertadamente. Ela sumira e eu estava pronta a apostar fosse o que fosse que sumira de uma vez.
Isabel parou, ofegante.
– Foi mais ou menos o que imaginei – disse eu. – Vê, pois, que eu tinha razão; você é tão responsável pela sua morte como se tivesse empunhado a faca que lhe cortou o pescoço.
– Ela era má, má, má. Estou contente por saber que morreu. – Isabel atirou-se numa cadeira. – Dê-me um coquetel, e vá para o inferno.
Levantei-me e preparei outro coquetel.
– Você é um miserável – disse ela ao agarrar o copo. Depois permitiu que um sorriso lhe aflorasse aos lábios. Sorriso de criança que sabe que foi travessa, mas que acha que com o seu encanto pode desarmar qualquer um. – Você não contará a Larry, não é mesmo?
– É coisa que nunca me passaria pela cabeça.
– Jura? Os homens são tão pouco dignos de confiança!
– Prometo-lhe que não. Mas, mesmo que quisesse contar, não teria oportunidade, pois creio que nunca mais tornarei a vê-lo.
Ela endireitou-se na cadeira.
– O que está dizendo?
– Neste momento Larry está num cargueiro, como marujo ou como estivador, a caminho de Nova York.
– Não me diga! Estranha criatura! Esteve aqui há algumas semanas, para ver na Biblioteca Pública qualquer coisa que se relacionava com o seu livro, mas nada disse sobre a ida à América. Boa notícia; quer dizer que podemos vê-lo de vez em quando.
– Duvido. A América de Larry estará tão distante da sua como o deserto de Gobi.
Contei-lhe então o que havia ele feito e o que pretendia ainda fazer. Isabel ouviu-me boquiaberta. Na sua fisionomia estava estampada a consternação. De vez em quando me interrompia com uma exclamação: “Ele está louco. Ele está louco”. Quando terminei ela abaixou a cabeça e duas lágrimas correram-lhe pelas faces.
– Agora, sim, de fato o perdi.
Virou a cabeça e, encostando a face no espaldar da cadeira, chorou. Seu belo rosto estava contorcido por uma dor que ela não se dava ao trabalho de ocultar. Eu nada podia fazer. Não sei que vãs, que contrastantes esperanças ela acalentara, que as minhas notícias vinham agora esfacelar. Ocorreu-me vagamente que o fato de vê-lo de vez em quando, de saber que ele pertencia ao seu mundo, fora para Isabel um elo, embora frágil, que com o seu procedimento Larry finalmente quebrara, de modo que ela agora se sentia para sempre despojada. Que vão arrependimento a afligiria? Far-lhe-ia bem chorar. Apanhei o livro de Larry e examinei o índice. Meu exemplar não havia ainda chegado quando eu saíra da Riviera e só me seria dado vê-lo dali a muitos dias. Não era absolutamente o tipo de livro que eu esperara. Coleção de ensaios mais ou menos do mesmo tamanho dos de Lytton Strachey em Eminent Victorians, sobre pessoas famosas. A escolha de Larry deixou-me perplexo. Havia um de Sila, ditador romano que, tendo conseguido o poder absoluto, abdicou para levar vida retirada; um de Akbar, conquistador mongol, que obteve um império; um de Rubens, um de Goethe e um sobre Lord Chesterfield das Cartas. Claro que cada um desses ensaios o obrigara a enorme esforço de leitura e não me admirei de Larry ter levado tanto tempo para escrever o seu livro, mas não vi razão para ter achado que valia a pena dedicar-lhe tanto tempo, nem para estudar especialmente aqueles homens. Depois me ocorreu que à sua maneira cada um deles tinha tido imenso sucesso na vida e pareceu-me que fora isso que interessara Larry. Ele ficara curioso para ver qual fora, no fim, o resultado.
Virei uma página para ver como escrevia. Estilo caprichado, mas claro e fluente. Nada da pretensão e pedantismo que tantas vezes caracterizam a obra do amador. Via-se que frequentara os melhores autores com a mesma assiduidade com que Elliott frequentara a alta sociedade. Um suspiro de Isabel interrompeu-me. Ela endireitou-se na cadeira e com uma careta terminou o coquetel, agora morno.
– Se eu não parar de chorar, meus olhos vão ficar pavorosos, e hoje temos que jantar fora. – Tirou um espelho da bolsa e examinou ansiosamente o rosto. – Sim, meia hora de descanso com uma bolsa de gelo sobre os olhos é do que estou precisando. – Empoou o rosto e avivou os lábios. Depois me fitou pensativa. – Você vai ficar com pior opinião de mim por causa disto?
– Você se importaria?
– Por mais estranho que lhe pareça, sim, eu me importaria. Quero que você pense bem de mim.
Dei uma risada.
– Querida, sou uma criatura muito imoral – respondi.
– Quando gosto realmente de uma pessoa, embora deplore seus atos maus, nem por isso deixo de gostar dela. Você no fundo não é má, e é graciosa e sedutora. Não aprecio menos a sua beleza pelo fato de saber quanto ela deve à feliz combinação de um gosto perfeito e uma vontade de ferro. Você só carece de uma coisa para ser com pletamente encantadora.
Ela sorriu e esperou.
– Meiguice – terminei.
O sorriso gelou nos seus lábios e ela me atirou um olhar que nada tinha de suave; mas, antes que pudesse voltar a si e dar-me uma resposta, Gray entrou pesadamente na sala. Naqueles três anos vividos em Paris, Gray engordara consideravelmente, seu rosto tornara-se mais vermelho, os cabelos mais raros, mas ele estava muito bem de saúde e deveras animado. Mostrou sincero prazer ao ver-me. A conversa de Gray era composta de clichês. Por mais surrados que fossem, pronunciava-os com a evidente convicção de que era a primeira pessoa a pensar neles. Gray nunca ia para a cama, e sim para os braços de Morfeu, onde pretendia dormir o sono dos justos; se estava chovendo, chovia canivetes; e até o fim Paris foi para ele a Cidade-Luz. Mas era tão bondoso, desprendido, correto e digno de confiança, tão simples, que era impossível a gente não gostar dele. Eu sentia verdadeira afeição por Gray. Estava excitado com a próxima partida.
– Céus, vai ser bom recomeçar a trabalhar – disse ele.
– Já estou de novo sentindo o gostinho da luta.
– Está então tudo decidido?
– Ainda não assinei na linha de pontinhos, mas está no papo. O rapaz com quem vou entrar foi meu companheiro de quarto no colégio, e é um sujeito igual; tenho certeza de que não me faria uma ursada. Mas, assim que chegar a Nova York, vou de avião para o Texas, para examinar de perto o negócio; ficarei de olhos abertos, antes de espirrar os cobres de Isabel, para ter certeza de que ali não há dente de coelho.
– Saiba que Gray é um bom negociante – disse-me Isabel.
– Não nasci ontem – sorriu ele.
Começou a falar, um tanto longamente, sobre o negócio em que ia entrar; mas pouco entendo desses assuntos e o único fato concreto que percebi foi que ia ter oportunidade de ganhar muito dinheiro. Interessou-se tanto pelo que dizia, que dali a pouco se voltou para Isabel:
– Escute aqui, por que não damos o fora nessa droga de festa e não vamos a um jantar correto, nós três, no Tour d’Argent?
– Oh! meu bem, não podemos fazer uma coisa dessas. A festa é em nossa honra.
– Além do mais, agora já eu não poderia ir – interrompi. – Quando soube que vocês estavam comprometidos para esta noite, telefonei a Suzanne Rouvier e combinamos sair juntos.
– Quem é Suzanne Rouvier? – perguntou Isabel.
– Uma das garotas de Larry – respondi para troçar com ela.
– Sempre desconfiei que Larry tivesse uma loirinha escondida em algum canto – disse Gray com a risada gostosa dos gordos.
– Tolice – disse bruscamente Isabel. – Conheço toda a vida sexual de Larry. Não existe.
– Bom, vamos então tomar mais um drinque, antes de nos separarmos – sugeriu Gray.
Foi o que fizemos; depois me despedi. Acompanharam-me até o vestíbulo; enquanto eu vestia o sobretudo, Isabel enfiou o braço no do marido e, aconchegando-se a ele, fitou-o com expressão que imitava perfeitamente a meiguice que eu a acusara de não ter.
– Diga-me, Gray – com toda a franqueza –, acha que sou dura?
– Não, querida, pelo contrário. Por quê? Alguém andou dizendo isso?
– Não.
Isabel virou o rosto de forma a não ser vista por ele e, em mímica que Elliott teria certamente achado muito pouco elegante, mostrou-me a língua.
– Não é a mesma coisa – murmurei quando saí, fechando a porta atrás de mim.
5
Continuei a ver Suzanne Rouvier de tempos em tempos, até que uma inesperada mudança na sua condição de vida a obrigou a sair de Paris, e também ela desapareceu da minha vida. Certa tarde, mais ou menos dois anos depois dos acontecimentos que acabo de relatar, após ter passado uma hora agradável examinando livros nas galerias do Odéon, não tendo nada que fazer no momento, resolvi visitar Suzanne. Fazia seis meses que não a via. Ela abriu a porta, de palheta na mão e pincel entre os dentes, metida num avental manchado de tinta.
– Ah, c‘est vous, cher ami. Entrez, je vous en prie. Fiquei admirado com essa cerimoniosa maneira de me receber, pois geralmente nos tratávamos por tu e não por vous, mas entrei no aposento que servia tanto de sala como de estúdio. Vi uma tela no cavalete.
– Estou tão ocupada que nem sei para onde me virar; mas sente-se, que continuarei a trabalhar. Não posso perder um só momento. Você talvez não acredite, mas vou fazer, sozinha, uma exposição em Meyerheim e preciso aprontar trinta quadros.
– Em Meyerheim? Ótimo! Mas como foi que o conseguiu? Minha surpresa era justificada, pois Meyerheim não é um desses intermediários da Rue de Seine que têm uma lojinha sempre na iminência de fechar, por falta de dinheiro para o aluguel. Meyerheim tem uma bela galeria do lado endinheirado do Sena e sua reputação é internacional. O artista que conta com sua proteção está a caminho da fortuna.
– Monsieur Achille trouxe-o para ver os meus trabalhos e ele acha que tenho muito talento.
– À d’autres, ma vieille – repliquei, e creio que para isso a melhor tradução seria: “Vá contar isso ao bispo, menina”.
Ela me olhou de soslaio e riu baixinho.
– Vou casar-me.
– Com Meyerheim?
– Não seja idiota. – Suzanne largou da palheta e dos pincéis e disse: – Trabalhei o dia todo e mereço descansar um pouco. Vamos tomar um cálice de Porto que lhe contarei tudo como foi.
Uma das características menos agradáveis da vida na França é a gente correr o risco de ter que aceitar um avinagrado vinho do Porto nas horas mais impróprias. A gente tem que se resignar. Suzanne foi buscar uma garrafa e dois cálices, encheu-os e sentou-se com um suspiro de alívio.
– Estou de pé há horas e minhas varizes estão doendo. Pois bem, eis o que aconteceu. A esposa de monsieur Achille morreu no princípio deste ano. Era boa mulher e boa católica, mas não foi um casamento de amor, e sim de interesse; embora a estimasse e respeitasse, seria exagero dizer que a viuvez o deixou inconsolável. Seu filho está casado e vai indo bem na firma; agora a filha ficou noiva de um conde, belga, é verdade, mas autêntico, que tem um belo castelo nas vizinhanças de Namur. Monsieur Achille achou que sua pobre esposa não havia de querer que a felicidade de duas pessoas fosse adiada por sua causa, de modo que, apesar do luto, o casamento se realizará assim que terminarem os arranjos financeiros. Claro que monsieur Achille vai sentir-se muito só naquela casa de Lille, e precisará de uma mulher, não somente para zelar pelo seu conforto, como para dirigir a casa de acordo com a sua posição. Em resumo, pediu-me para tomar o lugar de sua pobre esposa, pois, como ele muito bem disse, “Casei-me da primeira vez para eliminar a competição entre duas firmas rivais e disso não me arrependo, mas não vejo razão para não me casar da segunda pelo meu prazer pessoal”.
– Parabéns – disse eu.
– Claro que vou sentir falta da minha liberdade; aproveitei-a bastante. Mas a gente tem que pensar no futuro. Cá entre nós, não me importo de lhe confessar que já passei dos quarenta. Monsieur Achille está numa idade perigosa; onde iria eu parar se de repente ele se lembrasse de correr atrás de uma mocinha de vinte anos? Além do mais, tenho que pensar na minha filha. Está com dezesseis anos e promete ser tão bonita como o pai. Dei-lhe uma boa educação, mas não adianta a gente querer tapar o sol com uma peneira; ela não tem talento para ser artista, nem temperamento para ser uma mundana como sua pobre mãe. Diga-me, então: qual o seu futuro? Um lugar de secretária ou um empreguinho no Correio. Generosamente, monsieur Achille concordou em que ela venha morar conosco e prometeu dar-lhe um belo dote, para que possa fazer um bom casamento. Creia-me, amigo, os outros podem dizer o que quiserem, mas o casamento continua sendo a melhor profissão para a mulher. Claro que, estando em jogo o futuro de minha filha, eu não podia deixar de aceitar a proposta, muito embora sacrificando certos prazeres que, à medida que os anos forem passando, terei mais dificuldade em obter. Sim, senhor, pois faço questão de lhe dizer que depois de casada pretendo ser de uma virtude a toda prova (d’une vertu farouche), pois a longa experiência me ensinou que a melhor garantia de felicidade, no casamento, é a fidelidade mútua.
– Sentimento muito nobre, minha bela – disse eu. – E monsieur Achille continuará fazendo suas visitas quinzenais a Paris?
– Oh la la, por quem me toma, queridinho? A primeira coisa que eu disse a monsieur Achille, quando pediu a minha mão, foi: “Escute aqui, meu bem, quando você vier a Paris, para as suas reuniões de diretoria, fica desde já assentado que eu também virei. Não vou deixá-lo solto aqui sozinho”. E ele respondeu: “Espero que você não pense que vou fazer loucuras na minha idade”. “Monsieur Achille”, repliquei, “você é um homem ainda em pleno vigor, e ninguém melhor do que eu conhece o seu temperamento apaixonado. Você tem um belo físico e um ar distinto; tem tudo para agradar a uma mulher. Em resumo, acho preferível que não se exponha à tentação.” Finalmente ele concordou em dar seu lugar na diretoria ao filho que virá a Paris no lugar do pai. Monsieur Achille fingiu que me achava desarrazoada, mas na realidade ficou muitíssimo lisonjeado. – Suzanne soltou um suspiro satisfeito. – A vida seria dura para nós, pobres mulheres, se não fosse a incrível vaidade dos homens.
– Tudo isto é muito bonito, mas qual a relação com a sua exposição em Meyerheim?
– Você está hoje um pouco obtuso, amigo. Não lhe estou dizendo, há anos, que monsieur Achille é um homem muito inteligente? Tem que pensar em sua posição, e o povo de Lille é exigente. Monsieur Achille quer que eu tome na sociedade o lugar que, como esposa de um homem importante, terei o direito de ocupar. Você sabe como são esses provincianos; gostam de meter o nariz nos negócios dos outros e a primeira coisa que vão perguntar será: Quem é Suzanne Rouvier? Pois bem, terão a sua resposta. É a distinta pintora que, em recente exposição na Galeria Meyerheim, obteve extraordinário e merecido sucesso. “Com a coragem que caracteriza nossas mulheres francesas, madame Suzanne Rouvier, viúva de um oficial do Exército colonial, com o seu talento durante anos sustentou-se a si e à sua encantadora filha prematuramente privada da proteção do pai, e é com prazer que anunciamos que breve o público terá ocasião de apreciar a delicadeza das suas pinceladas, e a firmeza da sua técnica, nas galerias do sempre perspicaz monsieur Meyerheim.”
– Que baboseira é essa? – perguntei, subitamente alerta.
– Isto, meu caro, é a antecipada propaganda que monsieur Achille está fazendo. Aparecerá em todos os jornais importantes da França. Ele foi admirável. Os termos de Meyerheim são onerosos, mas monsieur Achille aceitou-os como se fossem uma bagatela. Haverá champagne d’honneur no vernissage e o ministro da Educação, que deve favores a monsieur Achille, inaugurará a exposição com um eloquente discurso, no qual fará elogiosas referências às minhas virtudes como mulher e ao meu talento como artista, e terminará participando que o estado, cujo dever e privilégio é recompensar o mérito, comprou um de meus quadros para a coleção nacional. Toda Paris comparecerá; Meyerheim se encarregou pessoalmente dos críticos. Garantiu-me que as notícias serão não somente favoráveis, mas extensas. Os pobres coitados são tão mal remunerados que é uma caridade dar-lhes oportunidade de ganhar um pouco por fora.
– Você merece tudo isso, querida. Sempre foi boa pessoa.
– Et ta soeur – replicou ela, que é intraduzível. – Mas ainda não acabei. Monsieur Achille comprou em meu nome uma vila na costa de St. Rafael, de modo que tomarei meu lugar na sociedade de Lille não somente como conhecida artista, mas como pessoa de recursos. Daqui a dois ou três anos ele pretende aposentar-se; iremos então viver na Riviera como gente fina (comme des gens bien). Ele poderá remar no mar e pescar camarões, ao passo que eu me dedicarei à minha arte. Venha agora ver os meus quadros.
Havia anos que Suzanne estava pintando, tendo-se servido nas escolas de todos os seus amantes para chegar a um estilo próprio. Continuava não sabendo desenhar, mas adquirira boa noção de colorido. Mostrou-me paisagens que pintara durante as visitas feitas à mãe, na província de Anjou, trechos dos jardins de Versailles e da floresta de Fontainebleau, cenas de rua que lhe tinham chamado a atenção nos subúrbios de Paris. Sua pintura era vaporosa e impalpável, mas tinha uma graça leve e até mesmo uma certa despreocupada elegância. Houve um quadro que me agradou e, achando que ela ia ficar satisfeita, ofereci-me para comprá-la. Não me lembro se se chamava Clareira na Floresta ou Echarpe Branca e um exame posterior me deixou até hoje na incerteza. Perguntei o preço, que achei razoável, e disse que ficaria com o quadro.
– Você é um anjo! – exclamou Suzanne. – Minha primeira venda. Claro que só poderá retirá-lo depois da exposição, mas farei com que os jornais deem a notícia de que foi comprado por você. Afinal de contas, um pouco de publicidade não lhe fará mal. Estou satisfeita por você ter escolhido este; acho que é um dos melhores. – Apanhou um espelho e examinou o reflexo do quadro. – Tem encanto – continuou, apertando os olhos. – Isso ninguém pode negar. E esses verdes... que riqueza e que delicadeza! E aquela nota branca no meio, um verdadeiro achado; finaliza a obra, dá-lhe distinção. Ali há talento, disso não há dúvida; verdadeiro talento.
Vi que Suzanne estava bem adiantada no caminho que trilham os pintores profissionais.
– E agora, queridinho, já tagarelamos bastante; tenho que continuar a trabalhar.
– E eu tenho que ir caminhando.
– A propósito, o coitado do Larry ainda está lá no meio dos peles-vermelhas?
Sim, era dessa maneira desrespeitosa que habitualmente ela se referia aos habitantes do País Dileto de Deus.
– Sim, pelo que me consta.
– Deve ser duro para pessoa tão meiga e delicada como ele. Se formos acreditar no cinema, a vida lá deve ser terrível, com todos aqueles gangsters e cowboys e mexicanos. Não digo que os cowboys não tenham certa atração física que bole com a gente. Oh la la! Mas parece que é perigosíssimo uma pessoa aventurar-se nas ruas de Nova York sem um revólver no bolso.
Ela me acompanhou até a porta e beijou-me em ambas as faces.
– Passamos horas agradáveis juntos. Guarde de mim uma boa recordação.
6
Aqui termina a minha história. Não tive mais notícias de Larry nem esperei tê-las. Já que geralmente ele cumpria o que dizia, acho provável que, ao chegar à América, tenha arranjado emprego numa garagem, indo depois guiar um caminhão até ficar conhecendo, como queria, a pátria da qual se ausentara durante tantos anos. É bem possível que tenha, depois, posto em prática a louca ideia de se tornar chofer de táxi; verdade que foi apenas uma sugestão atirada a esmo através de uma mesa de café, mas não me admiraria se a levasse a cabo – e em Nova York nunca tomei um táxi sem relancear o olhar para o chofer, na esperança de encontrar o sorriso grave e os olhos encovados de Larry. Rebentou a guerra. Ele já não estaria em idade de voar, mas é provável que se pusesse de novo a guiar um caminhão, em sua pátria ou fora dela; ou talvez esteja trabalhando numa fábrica. Apraz-me supor que, nas horas de lazer, ele esteja escrevendo um livro, no qual procurará registrar seja o que for que a vida lhe ensinou, e também a mensagem que deseja transmitir a seus semelhantes: assim sendo, talvez ainda demore a terminá-lo. Tem muito tempo, pois nele os anos não deixaram marca, e para todos os efeitos Larry ainda é um moço.
Não tem ambição, nem desejo de se tornar célebre; distinguir-se aos olhos do público lhe seria sumamente desagradável; é, portanto, admissível que se contente em levar a vida que escolheu e ser apenas ele mesmo. É excessivamente modesto para se patentear como exemplo aos olhos dos outros: mas é possível que julgue que algumas almas indecisas – para ele atraídas como mariposas para a chama – chegarão, com o tempo, a compartilhar de sua maravilhosa crença de que a verdadeira felicidade só pode ser encontrada nas coisas do espírito, e que esteja convencido de que, trilhando com abnegação e renúncia o caminho da perfeição, está praticando o bem tão positivamente como se estivesse escrevendo livros ou discursando a multidões.
Mas tudo isso são hipóteses. Sou desta terra, e terrestre; é-me apenas dado admirar o esplendor de tão rara criatura; não posso assumir-lhe a personalidade e devassar-lhe a alma, como às vezes creio poder fazer com pessoas mais parecidas com o comum dos homens. Conforme o seu desejo, Larry incorporou-se naquela tumultuosa conglomeração de criaturas entregues a interesses tão contraditórios, perdidas na confusão do mundo, tão amantes do bem, tão arrogantes na aparência, tão tímidas no íntimo, tão boas, tão duras, tão confiantes e tão desconfiadas, tão mesquinhas e tão generosas, que formam o povo dos Estados Unidos. É só o que posso dizer dele; reconheço que é muito pouco satisfatório; o que posso eu fazer?... Mas, ao terminar este livro com a incômoda sensação de que tenho que deixar o meu leitor no ar, e não vendo maneira de evitar o mal, percorri com os olhos do espírito esta minha longa narrativa, a ver se poderia ter inventado melhor fim, e com surpresa verifiquei que, sem a menor intenção, eu não escrevera nada mais nada menos que uma história de sucessos. Sim, pois todas as pessoas de quem me ocupei conseguiram o que almejaram: Elliott, prestígio social; Isabel, boa posição, garantida por sólida fortuna, numa comunidade ativa e culta; Gray, um emprego certo e bem remunerado, com um escritório onde pode trabalhar das nove às seis, todos os dias; Suzanne Rouvier, segurança; Sophie, a morte; e Larry, a felicidade. E, por mais desdenhosas que sejam as críticas dos intelectuais, nós, o público, no fundo do coração, amamos uma história que acaba bem. Donde se conclui que talvez o meu final não seja assim tão pouco satisfatório.
Willian Somerset Maugham
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