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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FOGO DO CÉU / César Vidal
O FOGO DO CÉU / César Vidal

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O FOGO DO CÉU

 

         IMPERIUM

 

                   CORNÉLIO

       O rapaz observou o cabrito branco, imaculado, sereno. Noutras circunstâncias, teria sorrido, satisfeito, chegaria a bater palmas de entusiasmo. Contudo, a ocasião não lhe permitia comportar-se de semelhan­te modo. De facto, a solenidade era tão óbvia, tão pesada e tan­gível que uma careta não seria admissível, nem um sorriso ou um gesto. E, não obstante, tudo decorria por forma a merecer as mais calorosas felicitações. Por exemplo, dificilmente teria podido encontrar vítima mais adequada, e flautista mais capaz de arrancar notas tão delicadas daquele conjunto de canas presas por uma fita de cor vermelha.

O animal era macho, o que era imprescindível num sacrifício dedicado a uma divindade masculina como Júpiter. Ninguém duvidaria tratar-se de um animal perfeito, sem qualquer man­cha ou marca. Contudo - e esse era o pormenor que mais o comovia - tinha o pêlo branco, isto é, da cor apropriada a uma vítima de uma divindade benevolente como o deus óptimo e máximo. Não conseguiu reprimir um tremor ao pensar nisso, mas preferiu atribuí-lo ao frio, levando, de modo instintivo, a mão à parte superior da capa, estreitando-a contra o pescoço. Mas a verdade era que o motivo do seu leve estremecimento fora a recordação de divindades maléficas, que se compraziam a beber o sangue quente dos animais escuros, que habitavam as trevas dos infernos e que descarregavam o mal sobre os homens que não o haviam previamente aplacado. Era melhor nem pen­sar nisso.

O animal não era muito grande. Parecia dotado de uma sereni­dade especial. Avançara, até ao momento, com um movimento suave das patas brancas, como que dirigindo-se para pastos verdes, tenros e suculentos. Quase poderia dizer-se que as fitas multicores, que levava atadas aos cornos cinzentos, se moviam acompanhando o ritmo cadenciado dos seus pequenos passos. Claro que toda a gente sabia que esse comportamento da vítima era um excelente augúrio. Tratava-se de um sinal indiscutível de que o calmo animalzinho branco estava encantado por derramar o seu sangue para satisfação do deus.

Dobraram mais uma esquina e encaminharam-se para o tem­plo. Não tardou a distinguir o pequeno altar, forjado num metal polido e situado frente às portas de madeira. Ao lado, aguarda­vam-no duas pessoas ataviadas com hábitos talares. A mais baixa e rotunda, era já sua conhecida. Tratava-se do velho Máximo, um pontifex amigo do seu pai. O que se encontrava ao seu lado, devia ser o assistente, um cultrarius. Dirigiu a vista para o cabrito, mas de modo discreto, pelo canto do olho. Com espanto, viu como o animal sacudia o cachaço num gesto brusco do seu pescoço robusto. Só quando viu que tentava apenas sacudir uma das fitas que lhe caíam sobre os olhos, respirou tranquilo. E a alegria que lhe inundava o coração esteve quase a saltar-lhe pela boca, ao ver que o animal puxava a corda que o prendia para chegar quanto antes ao altar.

A distância era realmente curta, mas pareceu-lhe enorme. Receava que o cabrito se arrependesse, que se assustasse e fugisse. Não o fez. Pelo contrário, encetou um trotezinho alegre até à ara.

- Magnífico - disse o pontifex com um trejeito que não destoava da sua solenidade.

O rapaz reprimiu um sorriso de satisfação ao ouvir o elogio feito ao cabrito e, de imediato, voltou o olhar para o pai. Também ele estava satisfeito, mas comprimia os lábios, evitando que o seu orgulho se manifestasse de modo inoportuno. Num gesto tranquilo, talvez devido aos longos anos de prática, o seu pai estendeu a corda que rodeava o pescoço do cabrito ao homem que estava ao lado do pontifex. Depois, voltou a cabeça para o rapaz e fez-lhe um aceno com o queixo.

Sabia muitíssimo bem o que o pai pretendia dizer-lhe. Reprimindo a emoção, subiu os escassos degraus que elevavam o templo acima do nível do chão e entrou. Tomado de um senti­mento de grande responsabilidade, que o envolvia como um pesado manto, dispôs-se a cumprir a parte que se seguia naquela cerimónia transcendente. Atravessou a curta distância que sepa­rava as portas e penetrou na sala.

Tratava-se de um espaço oval e fechado onde a atmosfera se achava poderosamente impregnada pelo aroma adocicado do incenso. No centro, podia ver-se uma imagem dourada de Júpiter adornada com jóias. O jovem parou, respirou fundo e fixou o olhar na estátua. Não que esperasse vê-la mover-se - embora lhe tivessem contado que, em certas ocasiões, os deuses se manifestavam dessas formas e de outras ainda mais prodigiosas -, mas não pôde evitar ser percorrido uma incó­moda sensação de frieza. Pestanejou, tentando desembaraçar­-se, voltou a respirar fundo e levou a mão à bolsa de couro que trazia ao pescoço. Não foi preciso vasculhar muito para dar com uma tábua de cera. Tentou lê-la, mas a luz era escassa e em gran­de parte a leitura efectuou-se mais apoiada na memória do que na vista. O conteúdo era um voto, uma promessa vinculada a um pedido, que motivara toda a cerimónia.

Com temor e devoção, estendeu a mão direita para a imagem e nela pendurou a tábua de cera. Aí deveria permanecer para que o deus não se esquecesse daquilo que desejava e lhe implo­rava. Em seguida, tocou com reverência no metal gélido e, de imediato, retrocedeu uns passos. Fixou então o olhar nos olhos imóveis da imagem, estendeu as mãos num humilde gesto de súplica e invocou a poderosa graça do deus. Não falou durante muito tempo. Apenas o suficiente para que Júpiter pudesse ouvir que ia sacrificar um cabrito em sua honra, que contava com ele para o acompanhar na viagem que iria empreender no dia seguinte e, sobretudo, para que o protegesse durante os próxi­mos meses, tempo que duraria a sua missão. Se o deus o ouvisse - e confiava na sua benevolência para acreditar que sim -, estava pronto a oferecer-lhe outras dádivas como a que, humilde­mente, lhe entregaria em seguida. Bem sabia que Júpiter - bem, não só Júpiter, todos os deuses benevolentes - dava sempre de acordo com o que recebia. E ele daria para receber. Era o que faria, se regressasse ileso da sua missão. Finalmente inclinou a cabeça e, recuando, abandonou o espaço sagrado.

O frio que sentiu quando se encontrou de novo no exterior foi-lhe bastante agradável. Era um alívio, depois da atmosfera abafada e carregada de incenso. Ao vê-lo, o pai contraiu os lábios num gesto de apoio quase involuntário, mas seguro. O roliço pontifex também se apercebeu da sua presença, lançando um olhar ao homem que estava ao seu lado. Não foi preciso mais para que este se aproximasse com um pequeno jarro de ouro e vertesse água sobre as suas mãos estendidas. Reparou no modo como o pontifex deixava o líquido purificador espalhar-se para, logo a seguir, esfregar as palmas e os dedos. Um a um. Final­mente, estendeu a mão direita e aceitou um pano de linho branco que o seu assistente lhe oferecia. Secou as mãos meticulosamente, devolveu o tecido ao outro pontifex e estendeu os dedos separados para os examinar. O rapaz achou-os extraordinariamente limpos, quase translúcidos, como se tivessem sido esculpidos nalgum tipo de alabastro claro.

Um silêncio - apenas arranhado pelo tanger agudo da flauta de cana - impôs-se sobre todo o lugar como se o deus contem­plasse satisfeito a cerimónia solene. Com um temor reveren­cioso, o assistente retirou dos cornos cinzentos do cabrito as fitas coloridas. A seguir percorreu com a ponta de uma navalha afiada o espaço que ia da nuca do animal à rabadilha. Foi então que o pontifex se voltou para o templo. Fê-lo com destreza, com habilidade, até mesmo com graça, o que constituía um exce­lente presságio. E, frente ao santuário, começou a oração.

Apesar da boa disposição do animal que iria ser objecto do sacrifício, apesar de o rapaz ter cumprido correctamente a sua função no interior do templo, apesar de tudo o que fora meti­culosamente realizado até àquele momento, o êxito da cerimónia dependia agora de o pontifex recitar a prece da maneira apropriada. Não se tratava de demonstrar entusiasmo, alegria, ou mesmo devoção. Era uma questão de escrupulosa exactidão. As fórmulas pronunciadas com exactidão garantiam a bene­volência do deus. Um erro, uma palavra mal dita, um termo passado por alto podiam invalidar o ritual, obrigando a repetir tudo desde o princípio. Mas isso não aconteceu. O pontifex cum­priu o preceito com admirável correcção e, em seguida, olhou para o rapaz.

- Agone? (nota 1) - perguntou, solicitando a aquiescência do oferente.

- Agi (nota 2) - respondeu o jovem.

O pontifex estendeu a mão para o assistente, que depositou nela um martelo de dimensões médias. De modo rápido, seguro, experiente, descarregou um golpe seco e contundente sobre a cabeça do cabrito. Os joelhos do animal dobraram-se, mas não caiu. Na verdade, dir-se-ia que não sentia dor, que não sofria, que o animalzinho apenas se entregava a uma suave genuflexão em honra do poderoso deus.

O cultrarius ergueu a cabeça do quadrúpede numa atitude firme, como cabia a uma vítima oferecida a um deus que morava no céu. Em seguida, num movimento rápido, degolou-o. O san­gue, tão quente que dele se desprendia vapor, caiu sobre um alguidar limpo, enquanto o pobre animal fechava os olhos, como se o seu corpo estivesse possuído não pela morte, mas por uma doce sonolência. Foram precisos três recipientes como aquele para conter o líquido avermelhado que brotava ininterrupta­mente do pescoço seccionado do cabrito.

O rapaz ergueu os olhos para o pai. Claro que estava satisfeito. Um animal que tivesse resistido, que tivesse sangrado pouco, ou que demorasse a morrer teria sido um péssimo presságio. Nada daquilo sucedera. Como se fosse um odre de vinho meio vazio ou uma almofada leve, o cultrarius ergueu pelas patas o cabrito exangue. Foi um movimento rápido, preciso, que por certo ele já executara dezenas, direi mesmo centenas de vezes. O pequeno animal ficou por instantes suspenso no vazio - como se um ser imortal e invisível o segurasse, ou como se estivesse preso apenas pelas notas que brotavam do instrumento do flautista - e, por fim, caiu sobre o altar.

Mais tarde, o cultrarius executou um corte desde o pescoço até à virilha do animal. Logo a seguir, mergulhou a mão direita no ventre do animal sacrificado, deixando o fígado a descoberto. Uma expressão de aprovação surgiu imediata e simultaneamen­te nos rostos do pontifex e do pai. Sim, a víscera apresentava um aspecto magnífico. Não estava ferida, nem lesionada, nem doente. A sua cor era óptima. Com tal augúrio, ninguém poria em dúvida que a missão do rapaz, de Cornélio, decorreria sob os melhores auspícios.

O pontifex fez com a cabeça um gesto carregado de autori­dade, e o cultrarius começou a esfolar o alvo e despido cabrito com uma celeridade magistral. Em seguida, numa sucessão rápi­da de cortes, esquartejou-o, colocando os pedaços sobre o fogo do altar. Em poucos momentos, todos os presentes - o pontifex, o cultrarius, o flautista, o jovem e o seu pai - começariam a comer a carne do sacrifício. Assim, participariam das bençãos antecipa­das de Júpiter.

 

         ARNÚFIS

 

O PASSAGEIRO disfarçou com dificuldade uma sensação de nojo que lhe desceu, pesada, das narinas até à boca do estômago. Era um facto: o cheiro quase tangível do porto de Óstia dificilmente poderia ser pior. Os corpos suados, chacinados e sujos, que se amontoavam no molhe como se constituíssem um formigueiro humano, desprendiam os odores mais diversos e qual deles o mais repugnante!

- Por Ísis! - ouviu o criado praguejar. - Que pestilência! Terá de se fazer alguma coisa para remediar isto.

Sim, pensou o passageiro, algo deveria ser feito se não queriam morrer com aquela emanação asfixiante.

- E estás à espera de quê? - exclamou num tom desabrido.

O servo deu um salto como se tivesse visto uma víbora mortal atravessando o seu caminho.

- Sim, meu senhor Arnúfis - balbuciou, enquanto tirava da bolsa um pequeno incensório de metal e o acendia. - Imediata­mente, meu senhor, imediatamente.

No primeiro instante, não pareceu ter-se dado qualquer mudança. Mas, quando o servo agitou o incensório, uma nuvem cinzenta espalhou um aroma adocicado e penetrante.

- Deixai passar o meu senhor Arnúfis - proclamou o servo numa voz tosca e solene. - Deixai passar.

Gritava em grego e era óbvio que se tratava de uma língua ignorada pela maioria, mas o modo como pronunciava as pala­vras era convincente. Terrivelmente convincente. Apesar de tudo, não foi a advertência enérgica e sim o movimento pen­dular do incensório arremessando fumo e algumas chispas que conseguiu que os transeuntes se afastassem perante o escravo e o seu amo. Ao fim, e ao cabo, e por muito bem ataviado que esti­vesse, no seu impecável linho branco e precedido por um atento escravo, o anunciado Arnúfis não deixava de ser um estrangeiro, e não eram poucos, em Roma. O egípcio sorriu ao pensar nisso. É claro que noutras épocas as ruas de Roma haviam sido romanas. Nem para as gentes da península italiana fora simples chegar àquelas colinas e permanecer, mais ou menos às escondidas, numa das ruelas sem luz. É certo que fora há muito tempo. Tudo começara a mudar com o grande César - Caio Júlio César -, que dera o seu nome à dinastia que agora reinava em Roma. Arnúfis dominou um sorriso amargo. Reinava. Não, segundo os romanos, não reinava. Eles - diziam, a transbordar de soberba - não tinham reis. Tinham uma república. Vontade de se enganar. A república morrera ainda antes de Júlio César ter caído crivado de punhaladas. E o que agora tinham... era puro despotismo. A prova era os césares serem deuses. Bem, é verdade que em Roma demoravam algum tempo a transformar-se em tal, mas no oriente, no seu Egipto, eram logo a partir do momento da coroa­ção, deuses e faraós. Não era mau, para alguém que não chegava a ser rei.

O criado aplicou um bofetão num transeunte de pele escura. Bem feito. Nesta vida - e ninguém podia assegurar que existisse outra - era preciso ir afastando quem se interpunha, com ener­gia, segurança e, sobretudo, com eficácia. Não havia outra maneira.

Nenhuma. Pelo menos, havia que reconhecer que Demétrio o fazia muito bem.

Lançou um olhar desdenhoso ao indivíduo que fora objecto da diligência do criado. Devia ser um desses mauri que, atraves­sando as Colunas de Hércules, tinham subido pela Hispânia até chegar a Roma. Havia-os por todos os lados. As suas mulheres não se cansavam de parir e, depois de deambularem durante algum tempo pelos diversos territórios do império, acabavam pegando nas trouxas e chegando à urbe. O que não era mau de todo.

- Abri caminho! Abri caminho ao meu senhor Arnúfis! Abri caminho! - gritou Demétrio, ao mesmo tempo que agitava o recipiente como se fosse uma maça.

Não tardaram a vislumbrar o sítio onde se agrupavam meia dúzia de cadeiras transportadas em braços. Arnúfis não conse­guiu evitar uma expressão de desagrado. Os escravos que as transportavam tinham o cabelo despenteado, a barba hirsuta e era visível uma desagradável penugem debaixo das suas axilas. Ou muito se enganava ou teriam péssimo cheiro. Isso sem contar com os parasitas que deviam albergar em todo aquele pêlo. Os romanos seriam os donos do mundo, mas mostravam continuamente que não passavam de novos-ricos. Sim, domina­riam o cosmos desde o mar a que chamavam seu até à terra dos setentrionais, mas não chegavam sequer à mediocridade grega. Dos gregos, não se podia dizer que fossem sofisticados, mas, pelo menos, aprendiam. Alexandre fora um raio da guerra e, além do mais, alguém disposto a deixar-se ensinar. Quando chegou ao templo de Amón não passava de um metediço beli­coso. Mas saiu de lá transformado num verdadeiro homem. Um homem? Não se transformara num deus. Corno Júlio César. Antes de conhecer Cleópatra, antes de se instalar em Alexandria. Era o quê? Um romano corno outros, embora falasse grego.

Depois de pisar a terra do Egipto, de beber a água do Nilo, de amar uma egípcia... ah, depois... depois tudo tinha sido diferen­te... talvez por isso o tivessem assassinado. Os romanos não suportavam a presença de alguém superior.

Demétrio chegara perto das liteiras e discutia acaloradamente com os escravos. Regateava e sabia fazê-lo. Agitava os braços como se o deus Éolo os movesse e mostrava, com os dedos da mão, aquilo que estava disposto a pagar. Arnúfis desejou que ele terminasse quanto antes. Mais que não fosse porque, enquanto discutia a tarifa, deixara de agitar o incensório e aquele pavo­roso cheiro romano voltara a sufocá-lo.

O escravo percorreu a distância que o separava do seu senhor numa pequena corrida.

- Kyrie, cheguei a um acordo - disse ocultando um leve sor­riso. - O melhor, sem dúvida.

Arnúfis nada disse. Limitou-se a erguer mais ainda o queixo já empinado, ao mesmo tempo que se encaminhava para a liteira. Dentro do veículo, acomodou-se o melhor possível. A liteira era um pouco mais espaçosa do que as que podiam encontrar-se nas ruas de Heliópolis ou de Alexandria. Contudo... Ah! Grande estirão para começar a caminhar.

Os escravos que levavam o veículo demonstraram uma habili­dade prodigiosa para se moverem no meio da multidão. Foi assim que conseguiram sair do porto, indo dar a uma calçada. Ouvira falar daquele tipo de caminho, mas não pôde evitar a sur­presa ao contemplá-lo com os seus próprios olhos. Com uma extraordinária - verdadeiramente extraordinária - amplidão e uma sólida base de pedras cortadas e encaixadas como se fossem as tesselas de um mosaico, a calçada prendeu o olhar do egípcio. Muito mais do que as árvores e os matagais e a verdura que se erguiam de ambos os lados do caminho. Tudo parecia muito... muito bem cuidado.

O espanto de Arnúfis aumentou ao constatar a segurança do trajecto. Os guardas não interrompiam os viajantes, embora mostrassem que vigiavam qualquer eventualidade que pudesse apresentar-se. Naturalmente, para alguém tentar um assalto naquelas paragens teria de ser muito audaz, ou de estar muito desesperado. Lançou um olhar a Demétrio. O escravo grego estava igualmente admirado com o que contemplava. Bem, que importância tinha? Ao fim, e ao cabo, não passava de um escravo.

Uma sensação de indefinido mal-estar, estranho, nunca antes experimentado, foi-se apoderando do coração de Arnúfis à medida que a sua viagem prosseguia. Não teria sabido explicar a causa dessa mágoa, mas ela nascia directamente da estranheza perante algo que o ultrapassava e que, acima de tudo, não conse­guia explicar. Por mais voltas que desse não conseguia respon­der a uma pergunta cada vez mais angustiante. Como é que aqueles selvagens, que nem sequer se depilavam, tinham sido capazes de fazer aqueles caminhos?

 

         VALÉRIO

 

VALÉRIO não conseguiu evitar uma expressão de desagrado ao ver que o legionário se despojava do capacete de metal para, logo a seguir, passar pela testa as costas peludas da mão enrugada.

- Marco, cobre-te - disse, num tom de voz que não admitia discussões.

Os olhos encovados do soldado endureceram ao ouvir aque­las palavras, mas não respondeu. Limitou-se a colocar o elmo sem abrir a boca.

- Já sei que está muito calor - gritou Valério -, mas é melhor suar do que ficar com a cabeça partida por causa de um pedre­gulho. Não a destapes.

Um ligeiro murmúrio, quase imperceptível, percorreu as fileiras, mas foi tudo. Encontravam-se em território hostil e tinham suficiente experiência para saber que as suas vidas dependiam de um fio subtil e quebradiço a que se dava o nome de disciplina. Se conseguissem mantê-la, avançariam no longo percurso de vinte e seis anos, que lhes permitiria reformarem-se, transformando-se em cidadãos com um pecúlio. Se, em algum momento, se quebrasse, o longo caminho para a aposentação poderia ficar cortado - pelo sangue.

Valério parou para verificar a marcha da sua centúria. Tinha motivos para se sentir satisfeito. Os oitenta homens marchavam a bom ritmo, apesar do peso do equipamento. As sandálias levantavam uma pequena nuvem de pó, mas nem sequer essa incómoda circunstância velava o brilho que o sol arrancava aos escudos, aos elmos e aos pila, as temíveis e incomparáveis aza­gaias romanas.

- Tudo em ordem?

Valério voltou-se para o lugar de onde vinha a voz e observou o rosto de Grato, o centurião. Uma cicatriz - que se tornava púr­pura quando ele se irritava - atravessava-lhe o rosto da testa ao queixo, dividindo ao meio a barba grisalha e hirsuta. Fora provo­cada pela espada de um bárbaro de origem germânica. Mas, na verdade, o bárbaro ficara em pior estado. Valério fora teste­munha de como, sem limpar o sangue que, semelhante a uma torrente vermelha, lhe jorrava da ferida, Grato trespassara o outro com o pilum, num corte oblíquo e certeiro.

- Os homens ressentem-se do calor - respondeu Valério.

- Quando não é o calor, queixam-se do frio - disse o centu­rião a sorrir. - É preciso é protestar.

- Portam-se bem - Valério defendeu os seus homens.

O centurião não respondeu. Constava que assim era. Naquela situação, o mérito era ainda maior: estavam em território hostil e, ainda por cima, desconhecido. Semanas antes, estavam concen­trados numa cidade do império, entregues a tarefas próprias da paz, rodeados muito provavelmente dos seus entes queridos. Chegara então a notícia. Tinham de partir para a guerra. A nova provocara uma verdadeira agitação. Combater significava aban­donar a família, regressar à dureza dos castra, arriscar a vida, talvez não regressar, e jazer debaixo de um solo estranho. Apenas o sistema das vexillationes suavizava, de certo modo, aque­les dramas. Graças a ele, uma parte dos legionários partia para a luta, enquanto a outra ficava na base. A legião era transferida, sim, mas apenas em parte. Dispensavam-se primeiro os mais velhos, os veteranos, os que tinham uma hérnia ou vestígios de ferimentos que não tinham sido ultrapassados com o passar do tempo. Em seguida vinham - caso fosse possível, o que nem sempre acontecia - os que, de modo bastante irregular, tinham contraído matrimónio, e que eventualmente teriam filhos. Na verdade, entre os seus homens, não eram poucos os que tinham deixado na cidade uma criança, uma mulher, uma con­cubina. Ele não ficara isento. Demasiado jovem, solteiro, sem concubina sequer. Tinha consciência de que se houvesse guerra, seria sempre dos primeiros a serem enviados. E agora... agora tinham de enfrentar os partos. Quem eram aqueles partos? Bárbaros, sim, mas que tipo de bárbaros? Seriam como os mauri que moravam junto das areias de África e que enchiam, agora, como um ovo as casas de Roma? Seriam como os germanos, altos e de longos cabelos, resistindo a aceitar o imperium de Roma? Parecer-se-iam com tantos outros povos - gauleses, iberos, gregos - que tinham acabado por aceitar que não havia nada melhor do que serem governados pelo imperador? Ignorava e, de qualquer modo, que importância tinha?

- Optia, não te distraias.

Observou o tribunal activalio que acabava de lhe dirigir a pala­vra. Que idade poderia ter? Vinte? Vinte e um anos? Certamente não fizera ainda os vinte e cinco. Era precisamente o tipo de ofi­cial que mais lhe custava suportar. Não provinha do exército nem tinha experiência castrense. Tratava-se apenas de um dos filhos da classe senatorial. Quando os outros romanos já estavam fartos de penar, eles saíam das suas villas, abandonavam os seus banhos luxuosos, renunciavam - pelo menos em parte - aos pratos requintados e recebiam um cargo de tribuna sem mexer um dedo. No fim, nunca ficavam nas legiões. Passavam por elas com a maior rapidez possível e, logo a seguir, apresentavam-se a uma das muitas eleições que se realizavam em Roma. Gabavam­-se da defesa que haviam feito das fronteiras, do seu amor à Pátria, da sua lealdade ao imperador. A verdade, contudo, era que não se lembravam de nenhum seu antigo companheiro de armas. Nem sequer estavam dispostos a dar-lhe uma pequena ajuda para uma transferência de destino ou para que lhes fosse outorgada alguma recompensa mais do que merecida. Não. Para eles tinham sido apenas degraus a trepar na sua subida para o poder. E este não era dos piores...

- Vigiava os homens, domine - respondeu Valério com uma voz impregnada de respeito, um respeito de imposição, não sentido.

- Como é tua obrigação, optio - disse com displicência o tribuno laticlavio. - Cobras paga e meia.

Não esperou pela resposta. Cravou as esporas na ilharga do cavalo e afastou-se de Valério com um trote suave.

Paga e meia. Sim, estava certo. Se os legionários recebiam tre­zentos dinheiros de prata por ano, distribuídos em quatro pagas, ele, um optio, o homem que mantinha a ordem nas fileiras, que se valia de um bastão para lhes bater quando quebravam a disci­plina no meio da batalha, e substituía o centurião caso este caísse, tinha direito a quatrocentos e cinquenta. O facto de ter recebido já uma menção honrosa não lhe acrescentava nem um dinheiro à paga. E não lhe parecia mal cobrá-los porque nem sempre isto sucedia. E faltavam ainda duas longas décadas para poder retirar-se...

Nisto meditava quando os viu. Não eram como os mauri, embora a sua pele estivesse longe de ser clara. Também não se pareciam com os germanos. Vestiam roupas de cores vivas e montavam em corcéis de aspecto invejável. Quanto aos arcos que exibiam, eram estranhos, sim, estranhos era a palavra que melhor os definia.

- Centurião! - gritou Valério, enquanto corria em direcção ao seu superior imediato.

- Acabei de os ver. Diga aos homens que se preparem.

Não sabemos se serão hostis.

- Trazem arcos - comentou Valério sem afastar a vista dos cavaleiros e procurando que as suas palavras não parecessem desrespeitosas.

- Sim, isso salta à vista, optio. Mas não nos precipitemos.

- Sabemos onde andam os exploradores? - indagou cautelo­samente Valério.

O centurião fez uma careta. Sim, era estranho que não os tivessem alertado sobre os intrusos. Afinal de contas não eram vendedores ambulantes nem prostitutas e sim homens armados       e a cavalo.

- Vou informar o legado. Tu continua atento, optio.

Foram as suas últimas palavras. As que pronunciou antes de uma flecha parta lhe ter atravessado a garganta, arrancando-o do mundo dos mortais.

 

         RODE

 

O CARRO parou com uma travagem brusca e o corpo de Rode foi projectado para a frente, por um triz não provocando a sua queda.

         - Tem mais cuidado! - guinchou uma prostituta gorda que esta­va sentada atrás de Rode. - Não vais deixar-nos um osso inteiro.

         - Os teus de certeza que não se partem - respondeu o con­dutor. - Estão bem embrulhados em toucinho.

         - Achas, cão... - exclamou a mulher. - Não estarás a confundir-me com a tua mãe?

O condutor voltou o rosto para a rameira. A julgar pela sua expressão, não lhe agradara a referência à mulher que lhe dera a vida.

         - Olha que és capaz de ter razão, ainda chegas ao quartel comos ossinhos partidos... - disse, mastigando as palavras.

         - Ah, sim? - respondeu a prostituta, pondo as mãos nas ancas num gesto de desafio. - E quem mos vai partir? Tu, meu eunuco?

         - Já vais saber, puta - gritou o homem, enquanto saltava do assento.

- Vá lá, vá lá, não fiques assim. É como tem de ser. Não te vais zangar com uma velha? - gritaram as mulheres que iam dentro do carro.

- A quem estás a chamar velha, sua asquerosa? - perguntou a prostituta com as veias do pescoço inchadas da cólera.

- Calma, asquerosa será a...

- Basta!

A ordem concisa soou como uma chicotada no meio da alga­raviada desencadeada pelas mulheres.

- Aqui - continuou a mesma voz - viestes para servir.

Entendeis? Servir!

O silêncio, verdadeiramente sepulcral, estendeu-se com a rapidez do azeite sobre o linho, mal soaram aquelas frases, vindas da boca de um legionário constrangido com a missão de que fora incumbido. Nada mais, nada menos do que proteger as prostitutas que iriam integrar os bordéis dos castra. Ele, que ser­vira sob as ordens do glorioso Trajano, sob as do prudente Adriano, via-se agora reduzido à mera tarefa de acompanhar aquelas mulherzinhas. Tratava-se - quem poderia dizer o con­trário? - de uma mercadoria necessária, quase indispensável, mas demasiado perecível. O trigo, o vinho, até mesmo o azeite aguentavam bem uma viagem como aquela, mas as rameiras... adoeciam, contagiavam-se umas às outras, morriam por tudo e por nada e, como substituí-las? Não podia fazer-se uma requi­sição...

Dos seus primeiros anos Rode nada sabia. Imaginava que, certamente, fora abandonada por uma mãe que não desejava ter mais filhos, talvez por uma escrava que preferia que a criatura que parira morresse a ter de a condenar à perpétua servidão. Esse espaço negro dos primeiros tempos começava a ficar mais nítido quando atingia a idade dos seis ou sete anos. Do seu cora­ção subiam então algumas imagens difusas nas quais se reco­nhecia a comer com outras meninas à volta de uma mesa comum. Não lhe tinham faltado nessas lembranças - tinha a certeza - as pescoçadas, as palmadas, os gritos, os bofetões.

Contudo, eram as únicas memórias que acendiam no seu coração uma débil chama de nostalgia. Rode não sabia o que era a felicidade, mas se tivesse de procurar em toda a sua vida um momento que dela se aproximasse, estaria certamente relacio­nada com essas refeições em comum.

Não deviam ter durado muito tempo, e aí sim, a sua memó­ria era exacta. Que idade poderia ter? Não sabia ao certo, mas devia andar pelos onze ou doze anos. De facto, tivera a sua primeira menstruação poucos meses antes. Nessa altura, Mar­cela, a velha que lhe dera de comer durante os anos anteriores, depois da refeição, chamou-a à parte.

Disse-lhe que muito em breve iria conhecer os homens, que deveria ser amável com eles, que a princípio era difícil, mas que depois se tornava muito simples, quase divertido. Disse-lhe tudo, enquanto lhe dava banho, a penteava e lhe pintava - pela primeira vez na vida - os lábios e os olhos. Tinha querido que fosse diferente, mas naquela altura não entendeu nada. Absolutamente nada.

Nessa noite, Marcela conduziu-a, entre sombras sem lua, a uma domus situada fora de Roma. Foram recebidas por um escravo magro a quem faltava grande parte dos dentes do maxilar superior. Aquilo amedrontou-a, mas apenas durante alguns ins­tantes. O sentimento foi rapidamente abafado por outras sensa­ções. O cheiro desconhecido de flores nunca vistas, o som de uma fonte diferente dos tanques sujos de onde retirava água todos os dias, a largura de um pátio extenso como nunca tinha contem­plado, a amplidão dos corredores diferentes de tudo o que até então tinha visto... Erguia os olhos para as paredes quando com um puxão enérgico e vigoroso, reconduziram os seus passos trémulos em direcção a uma luz situada ao fundo do corredor.

Durante alguns instantes, ficou deslumbrada com a passagem da semipenumbra para um quarto iluminado com mais lâm­padas do que as que Rode alguma vez vira. Estava ainda confusa com aquela mudança quando sentiu o hálito de Marcela aproxi­mando-se do seu ouvido.

- Lembra-te de tudo o que te disse.

Teria desejado perguntar-lhe nesse momento, a que se referia, ouvir as explicações, sair daquele lugar que, de repente, lhe pare­ceu inundado de perigos desconhecidos e, por serem desconhe­cidos, mais terríveis ainda. Não teve essa possibilidade. Um homem, vestido com uma túnica impecável, simples, mas limpa e bem cingida, ergueu-se do triclínio em que estava recostado e deu alguns passos na sua direcção.

- É esta a rapariga de que me falaste, Marcela? – perguntou sem afastar o olhar de Rode.

- Assim é. Domine - respondeu a velha com um leve tremor na voz.

- Chama-se Rode e...

O homem fez um gesto com a mão e Marcela guardou silêncio. Em seguida moveu suavemente os dedos e Rode ouviu a velha e o escravo abandonarem o local. Tentou voltar a cabeça e chegou a abrir a boca para dizer alguma coisa, algo que agora já não recordava. Não conseguiu. Os dedos magros e férreos agarra­ram-lhe o queixo e voltaram-lhe o olhar.

- Com que então Rode, hem? - disse por dizer.

Tinha assentido com a cabeça, enquanto o homem dava alguns passos à retaguarda, olhando-a de cima abaixo. Não soube nessa altura qual o motivo, mas aquela atitude causou-lhe uma insuportável perturbação. Foi como um sobressalto acompa­nhado de um calor repentino nas orelhas, um tremor incómodo que fez com que os seus joelhos se entrechocassem, ao mesmo tempo que sentia uma carga pungente na boca do estômago.

- Bem - disse o homem, enquanto lançava a mão a um cacho de uvas gordas e vermelhas que repousava numa fonte. - Bem. Um bocadinho magra, mas está bem.

Sem afastar dela aquele olhar que tanto nervosismo lhe provocava, introduziu uma das uvas na boca, mastigando-a pausadamente.

- Bom, não percamos mais tempo, Rode - disse com a boca meio cheia.

- Tira a roupa.

Ao ouvir aquelas palavras, o sufoco que lhe inundava as carnes estendeu-se como uma mancha de azeite por todo o corpo. Que estava aquele homem a dizer? Que... que pretendia?

- Vamos, ouviste muito bem, Rode. Despe-te... não posso ficar à espera toda a noite.

À espera... à espera, que esperava aquele homem? Ninguém respondeu à pergunta que lhe martelava a alma com tanta força como o coração que chocava contra a tábua do peito.

- Pronto, está bem - disse o homem, atravessando com uma passada larga o espaço que os separava.

Rode viu como o desconhecido a agarrava pelo pulso, a puxava e a empurrava para cima do triclínio. Antes de poder aperceber­-se completamente do que estava a acontecer, sentiu que as mãos do homem desciam pelas suas coxas e começavam a levan­tar-lhe a roupa. Ignorava o que pretendia, mas no seu íntimo despertou um instinto primário, elementar, aprendido, que a preveniu de um perigo pelo qual jamais tinha passado. Resistiu, esperneou, mas não valeu de nada. Aquelas mãos mais fortes do que quaisquer outras que conhecera até então, começaram a rasgar-lhe a roupa, uma roupa que, como se tivesse vida própria, começou a subir acima dos seus joelhos, das coxas, das ancas.

- Não, não, nãaaaaao...

Não conseguiu dizer mais nada. Escarranchado sobre ela, o homem aplicou-lhe uma bofetada, e outra e ainda outra. Depois, quando a menina deixou de resistir, ergueu-lhe a túnica sobre o rosto e, com um gesto irresistível e doloroso, meteu-lhe uma parte da roupa na boca. Desejou guinchar, gritar, morder quando sentiu que lhe afastavam as pernas, mas a túnica trans­formara-se numa mordaça que a asfixiava. Depois disso, tudo decorreu com rapidez, embora lhe tivesse parecido eterno. A dor aguda, feroz, incontida, no ventre; as lágrimas que desciam, quentes, copiosas sobre o seu rosto; os arquejos do homem ao mesmo tempo que investia contra a sua pélvis; e a sensação de que tinha urinado, porque um líquido quente começara a escor­rer-lhe pelas virilhas, chegando às nádegas.

Quando saiu de cima dela, ouviu algo relacionado com o facto de Marcela não ter mentido. Mas nem entendeu a que se referia nem lhe importou. Pelo contrário, sem se atrever a reali­zar o menor movimento, começou a soluçar, primeiro baixinho, depois de modo continuado e já irreprimível. Ficou assim, quase paralisada, sem se atrever a fazer qualquer movimento até que ouviu o que lhe pareceu ser um grunhido. Deixou de respirar, receosa de um novo ataque, mas uns roncos breves, compas­sados, satisfeitos, avisaram-na de que, pelo menos de momento, nada havia a temer.

Com mãos trémulas, tirou da cara os restos de túnica e tentou recompor-se. Uma dor aguda voltou a dar sinal, na pélvis, ao mesmo tempo que sentia uma humidade, agora pegajosa, nas coxas e nas nádegas. Uma náusea subiu-lhe, vinda da boca do estômago ao ver a mancha vermelha que empapava toda a parte central do triclínio. Apoiou as duas mãos nos rebordos do móvel para evitar cair ao chão e em seguida, procurando não fazer o menor ruído, moveu os pés para os retirar daquele amontoado de tecidos sujos. Pousou-os num chão que lhe pareceu extraor­dinariamente frio, mas não conseguiu dar um passo. Caiu de joelhos e, não podendo impedi-lo, começou a vomitar.

 

         CORNÉLIO

 

ROMA produziu uma impressão incontrolável na alma juvenil de Cornélio. Durante as suas duas décadas de vida mal abandonara a villa do seu pai e agora, de repente, de modo inesperado, sem uma adaptação, via-se mergu­lhado na cidade mais importante da urbe. As ruas afiguravam-se­-lhe imensas vias que recordavam mais as calçadas que sulcavam o território do império do que as da sua terra. Contudo, ao con­trário daquelas, as vias romanas estavam sempre atulhadas de gente, da gente mais diversa que imaginar se podia. Agrupavam­-se nelas homens altos de cabelos dourados, mulheres pequenas de pele escura e bigode hirsuto, meninos de cabelo encrespado incapazes de pronunciar uma única palavra em latim. Era uma multidão desarmoniosa que se acotovelava, que se insultava aos gritos e que fazia todos os possíveis para não ser atropelada pelos carros que circulavam durante a noite a grande velocidade. Sim, essa era uma das características de Roma que lhe eram mais insuportáveis. Para não tornar as ruas ainda mais intransitáveis, desde a época de Júlio César, a circulação de veículos era proi­bida durante o dia. A consequência directa era que as lojas, as tendas, os armazéns, as casas particulares eram abastecidas durante a noite. E, precisamente quando se aproximava o amanhecer, os condutores dos carros esforçavam-se por apro­veitar os últimos instantes de escuridão, pois sabiam que se a luz do dia os surpreendesse enquanto se deslocavam, o seu veículo ficaria imobilizado e ainda teriam de pagar uma avultada multa.

Habituado a dormir sem ouvir mais ruídos que não fossem o de um pássaro ou de um grilo, Cornélio descobriu que Roma era uma cidade invadida pelo bulício maio sol começava a ocultar­-se e que, precisamente por isso, era inaprazível. Desejara poder conciliar o sono mas constatou que era impedido pelas vis gros­serias dos condutores, o incansável estrépito dos carros sobre as pedras da calçada e toda uma gama de ruídos insuportáveis que iam desde o grasnar das aves aos cascos dos cavalos. Os romanos - isso era indubitável - pareciam habituados àquele insuportável somatório de estrondos, e Cornélio tentou naturalmente adqui­rir esse mesmo hábito. Não o conseguiu.

Ao fim de alguns dias, a chegada da noite provocava-lhe ape­nas uma desagradável ansiedade. Estendia-se na cama, sabendo que muito em breve estaria às voltas, a suar, irritado, que teria de lançar mão a toda a sua força para não praguejar e que, ao fim e ao cabo, não conseguiria dormir. Em boa verdade, só quando os primeiros raios de sol apareciam no céu, cessava o ruído intole­rável dos transportes e só então Cornélio, esgotado da noite infindável, conseguia dormir. Conseguia, mas pouco, porque quase de imediato a claridade aguda do dia caía sobre as suas pálpebras rasgando-lhe o sono, e os gritos dos habitantes de Roma - romanos ou não - feriam-lhe os ouvidos como impie­dosos atletas.

Numa dessas noites insuportáveis, Cornélio não conseguiu aguentar o tormento nocturno e decidiu sair um pouco para entreter aquela insónia forçada. Desceu as escadas estreitas que ligavam o seu quarto andar à rua, procurando não tropeçar. Dos archotes colocados nas paredes soltava-se um fumo que se agarrava ao nariz e arrancava lágrimas, mas a sua luz era dema­siado fraca para saber ao certo onde colocava os pés. E havia que dar graças aos céus por haver alguma luz. A partir do seu andar, à medida que se subia para os pisos superiores, os que eram habitados por gente proveniente do Norte de África, os archotes desapareciam. Acontecia assim porque os inquilinos se apoderavam dos mesmos para se alumiarem. A situação de incómoda penumbra sofria uma mudança notável com a aproximação ao primeiro andar. Como era habitual nas casas romanas, esta era habitada por gente abastada que desejava estar perto da rua e não ter de subir e descer escadas. Por isso, em vez de archotes raquíticos, havia lâmpadas de azeite, protegidas, essas sim, por um par de escravos talvez não muito fortes, mas dotados de um péssimo temperamento.

Cornélio deteve-se precisamente ao chegar ao primeiro piso e, por instantes, desfrutou daquela rara luminosidade que lhe pareceu quase divina. Não olhou muito para as lâmpadas porque o olhar que lhe lançou um dos escravos que as guardavam parecia dizer que à mínima suspeita não hesitaria em partir-lhe a cabeça.

Saiu e descobriu de imediato que a noite estava realmente desconfortável. Não chovia, não nevava, era certo, mas de repen­te, teve a sensação de que o melhor seria voltar para a cama. E certamente o teria feito não fora ter ouvido os gritos de uns condutores que lhe recordaram que não tinha a mais leve hipó­tese de conciliar o sono. Sim, o melhor era andar, andar até que Morfeu aceitasse tomá-lo nos braços e outorgar-lhe o descanso que lhe vinha negando desde há vários dias.

Empreendeu o seu passeio nocturno sem rumo fixo, ainda que procurando a todo o momento não se perder em nenhuma das ruas perpendiculares. Um descuido e regressar a casa pode­ria transformar-se numa dificuldade intransponível.

Durante um bom bocado conseguiu passear sem se extraviar e tal circuns­tância foi motivo de tanta alegria que decidiu arriscar-se no passeio da frente. Esperou até chegar à fileira de pedras altas que atravessava a via e que, em caso de chuva, permitia às pessoas colocarem-se acima do nível do chão para não ensopar os pés.

Chegar ao outro lado da rua provocou em Cornélio uma imensa alegria. Conseguira. Sem companhia, sem guia e, ainda por cima, de noite. Quando voltou os olhos para a casa onde vivia e descobriu que a via ainda melhor, a sua satisfação quase lhe saltava pelos poros. Estava tão eufórico que nem reparou em dois homens que vinham na sua direcção e que pararam a poucos passos de distância.

- Podes emprestar-nos uma moeda, rapaz?

O pedido apanhou Cornélio de surpresa. Não era tanto que o outro quisesse o seu dinheiro, era mais ele ter-lhe falado com uma pronúncia estranha. Arrastara as palavras, obscurecendo-as, como se tivesse a boca cheia. De onde viriam? Seriam macedó­nios? Mauri? Não teve tempo para pensar mais. O companheiro do desconhecido que lhe fizera a pergunta encostara-se ao muro, travando-lhe a passagem.

- Estás surdo, rapaz?

Não, não estava. Naquele momento via e ouvia melhor do que nunca. Tanto que não lhe escapou o movimento do indivíduo que falava. Foi rápido, subtil, silencioso e, sobretudo prático, porque no extremo da mão surgiu uma lâmina de metal larga e curta. Ou muito se enganava ou de um momento para o outro tentaria esventrá-Io para em seguida o roubar.

- Vá. Dá-me o que tens contigo.

Cornélio nem abriu a boca. Nunca em toda a sua vida se encontrara em tal situação. Contudo, algo no seu interior lhe dizia que o mais provável era que não voltasse a repetir-se porque aquela ia ser a primeira e a última vez.

Guiado por um instinto superior a qualquer advertência que tivesse ouvido ao seu pai ou ao seu pedagogo, Cornélio fingiu rebuscar nas pregas da toga. O gesto arrancou um sorriso, ama­relo e melado, ao homem do punhal. Foi precisamente no momento que antecedeu o murro que Cornélio lhe deu na boca do estômago, ladeando o seu sequaz com uma finta inesperada e desatando a correr.

Enquanto ouvia os gritos dos seus assaltantes, o jovem teve a sensação de que não era ele quem se dirigia a um lugar, e sim as portas, as colunas, os ladrilhos que avançavam a uma velocidade vertiginosa, como se, aterradas, viessem ao seu encontro. Um daqueles objectos empenhados em vir ao seu encontro foi um muro. Não era muito alto nem de construção muito sólida, mas se Cornélio não tivesse reparado nele uns passos antes de o alcançar, a pancada tê-lo ia deitado ao chão transformando-o numa presa inerte.

Arrancando um chiado à rua, virou para a direita em busca de um refúgio, mas, para angustiar ainda mais o seu acelerado coração, descobriu apenas uma encosta íngreme que parecia desembocar no próprio Hades. Noutras circunstâncias ter-se-ia questionado se seria prudente descê-la. Naquele momento não podia permitir-se tal luxo. Iniciou a descida sentindo que os pés se enchiam de pedrinhas e que as pernas se arranhavam nuns silvados inoportunos. Estava quase a chegar ao fim da encosta quando ouviu uma pancada, uma algazarra e o roçar de algo sólido contra a costa. Não abrandou nem olhou para trás, mas ficou convencido de que um dos seus perseguidores caíra. Isso tranquilizava-o, mas não muito, e nem por um breve instante se permitiu parar de correr.

O que nesse momento via não era propriamente animador. Em vez de descortinar mais ruas, com mais casas, com mais luga­res onde fosse possível esconder-se, avistou um campo aberto, com uma série de elevações achatadas. Aquilo seriam certa­mente os arredores de Roma, mas não lhe serviam de nada.

Trepou já com dificuldade uma encosta baixa e larga, desejando com todas as suas forças que do outro lado se encontrasse um bosque, uma rua, talvez um templo onde esconder-se. Não tinha ainda completado a subida quando um cheiro penetrante e salino lhe invadiu as fossas nasais. Era um misto de putrefacção antiga, de sujidade acumulada, de uma inacreditável decomposição. A sensação, envolvente como se tivesse acabado de entrar numa fumarada, tomou-se quase insuportável quando começou a des­cer. Foi então que deu por um frio gelado à volta dos tornozelos.

Água. Sim, devia ser, porque detectou um líquido que lhe batia nas barrigas das pernas. Não se tratava de um fluido limpo. Na verdade, reparou que alguns objectos indefinidos, viscosos e impossíveis de identificar chocavam contra ele, chegando mesmo a colar-se-lhe ao corpo. Susteve com grande esforço um vómito e começou a avançar numa corrente que lhe empapava os joelhos e as coxas até lhe chegar à cintura. A inquietação chegou quando se apercebeu de que os pés se afundavam no lodo. Aquilo não devia ser um riacho. Sim, quase de certeza tratava-se do rio Tibre. O Tibre! Sabia muito bem o que era um rio e quais os perigos que, como tal, representava uma fossa ou um remoi­nho. Um passo em falso e livrar-se-ia dos seus perseguidores, mas apenas para morrer afogado.

Suavemente, deu meia volta e cravou os tacões no fundo. Depois, muito devagar, com prudência, agachou-se até que a água lhe chegasse à barba. Não tardou a descobrir os ladrões nocturnos. Os seus olhos habituados à escuridão, captaram as silhuetas que viravam as cabeças para a direita e para a esquerda. Sim, de momento, não o viam.

Apenas com os olhos e o nariz fora da água observou os objectos mais inesperados que flutuavam na superfície imunda.

Ramos caídos de uma pequena árvore, uma fruta mordiscada, um peixe voltado de barriga para cima... Reprimiu uma expres­são de repugnância ao ver o corpo hirto e rígido de uma rata­zana. Devia estar perto de um esgoto. Mas isso de momento carecia de importância, desde que conseguisse fugir daqueles homens. Durante alguns momentos discutiram num idioma que Cornélio desconhecia - certamente não era latim, mas também não era grego - e, por fim, deram meia volta e tomaram o cami­nho que conduzia à encosta.

Cornélio só retirou o corpo daquela água repugnante quando os dois ladrões desapareceram do outro lado da colina. Mesmo assim, contou até duzentos antes de iniciar o caminho em direc­ção à margem. Alcançou-a a tiritar e emanando um fedor que o envergonhou, como se fosse devido à sua própria negligência e falta de higiene. Respirou fundo, tentando que o ar que entrava nos pulmões lhe devolvesse o ânimo que perdera por completo. E agora, como iria regressar a casa? Se não estivesse encharcado, a cheirar tão mal, teria esperado que o Sol nascesse, mas agora a simples ideia de que pudessem vê-lo naquelas condições nas ruas próximo da sua casa provocava-lhe um insuportável calor nas orelhas.

- Não cheiras a perfume...

Deu um salto ao ouvir a voz, mas quando viu o indivíduo que falava sentiu-se mais tranquilo. Tratava-se de um velho muito magro, calvo, com umas madeixas de cabelo ralas e sujas coladas às fontes. Apoiava-se num bastão, mas dificilmente poderia ser considerado perigoso.

- O rio... - tentou justificar-se Cornélio.

- O caminho para o esgoto, queres tu dizer? - corrigiu o recém-chegado. - Porque te meteste aí? Fugias de quem?

- De uns ladrões - respondeu o jovem, tentando controlar os arrepios.

- Sim, claro - comentou com um aceno compreensivo de cabeça. - Se não fosse por isso não seria possível entender.

Cornélio levou as mãos aos braços e começou a esfregá-los. A sensação de frio deixara de ser apenas desagradável para se tornar pouco menos do que insuportável. Teria preferido não ter à sua frente aquela incómoda testemunha do seu lamentável estado, mas as coisas eram como eram.

- Preciso de voltar para casa... - disse Cornélio num fio de voz.

- Claro - concordou o velhote. - Onde vives?

- Perto do templo de Flora...

- Junto da Rua dos Barbeiros? - indagou o ancião. Cornélio assentiu com a cabeça.

- Então já deste um bom passeio... - exclamou o homenzinho

enquanto agitava a mão direita. - E vieste a correr até aqui? Cornélio voltou a responder afirmativamente.

- Estás a ver o que é a juventude... Se eu resolvesse fazer essa corrida, queimavam-me na pira funerária nesse mesmo dia.

- Pago-te dois sestércios se me ajudares a voltar a casa – disse o jovem cada vez mais enregelado.

- Cinco - respondeu com inesperada energia o seu interlo­cutor.

- Três - gaguejou o gelado Cornélio.

- Adeus, meu filho - respondeu o ancião dando a volta.

- Quo vadis (nota 3) - gritou. Espera! Espera! Dar-te-ei os cinco sestércios.

As palavras de Cornélio foram acolhidas por um sorriso desdentado, curtido nas lutas quotidianas que se haviam prolon­gado durante décadas.

- Vem. Não percamos mais tempo.

 

           ARNÚFIS

 

DURANTE os tempos que se seguiram, Arnúfis recordaria o quão decepcionante fora o seu encontro com a cidade de Roma. Para falar verdade, quando o carro alugado por Demétrio entrou na urbe, não sabia ao certo o que iria encontrar. Contudo, ainda que de modo difuso, espe­rava que a capital do império superasse Alexandria, Antioquia ou Éfeso, três cidades onde passara alguns anos.

A desilusão apoderara-se dele quase desde o primeiro momento. No início, Roma parecera-lhe uma urbe desagrada­velmente apinhada de não romanos. É claro que não era invulgar ver estrangeiros nas outras cidades, mas tratava-se de gente muito diferente. Em Éfeso, havia um romano ou outro encarre­gados de manter a ordem, gregos provenientes de outras poleis, e um fluxo constante de peregrinos que vinham adorar Artemisa, a deusa com dezenas de seios, virgem e mãe de deuses e, naturalmente de alguns judeus barbudos e desagradáveis como costumavam ser as pessoas da sua raça. Contudo, era ape­nas isso. Ao fim e ao cabo, tratava-se de uma cidade grega encai­xada na omnipresente ordem romana. O mesmo, com levíssimas variantes, se poderia dizer de Alexandria e de Antioquia. Afinal de contas, os naturais dessas cidades eram gente que acorria temporariamente para comerciar ou deixar dinheiro, ou peque­nas colónias que viviam em bairros especiais, sem se misturar com ninguém nem criar problemas. Mas Roma... ah! Roma! Em Roma não existia qualquer separação. Por todo o lado podia encontrar-se aquela gentalha. Sim, gentalha. Não exagerava nem um pouco.

A populaça que deambulava pelas ruas de Roma, misturada numa proximidade repulsiva, não viera para comerciar e partir, nem para ficar sem se misturar. Havia alguns, claro, mas eram francamente poucos. A esmagadora, a imensa, a pesada maioria viera até às margens do Tibre para lançar raízes e viver à custa do império. E como se multiplicavam! Como ratos! Estavam em toda a parte! Em cima, em baixo, à esquerda, à direita...

Bastava lançar uma vista de olhos ao prédio onde vivia. Era caro. Exorbitante, impossível, intoleravelmente caro. Se os seus cálculos estavam certos, em poucos meses veria as suas pou­panças dilapidadas, caso não encontrasse outra fonte de rendi­mentos. E que se pagava com tão elevado aluguer? Comodidade? Não. Limpeza? Por Ísis, nem pensar nisso. A casa estava coberta por umas carpetes que se enchiam de piolhos e lêndeas com a mesma rapidez com que se esvazia um copo, goela abaixo. Tranquilidade? Isso então! Os romanos não tinham a mais vaga ideia do que essa palavra significava. Não, não e mil vezes não. A única coisa que conseguia por um montante que era um verda­deiro roubo era um cubículo no interior da cidade. Mas que interior... Por Osíris, que interior!

Os romanos - tanto quanto até agora lhe tinha sido dado ver - desconheciam o que era uma casa em condições. Preferiam apinhar-se em edifícios de vários andares, aos quais iam acres­centando um por ano. Ele só encontrara um alojamento um pouco menos repulsivo numa parte de casa em frente de um rapaz da província de ar boçal, e com os andares por cima cheios de africanos barulhentos e desagradáveis, que o olhavam com uma expressão de desafio. Séculos atrás, esses povos tinham sido tratados como mereciam pelos antigos monarcas do Egipto, mas fora há muito tempo. Na verdade, os reis do Nilo estavam extintos, e aqueles bárbaros continuavam a multiplicar-se e a multiplicar-se e a multiplicar-se.

Arnúfis passou a primeira noite mergulhado em terríveis pesadelos, sonhos nos quais um exército de mauri lhe caía sobre o peito, vindo de cima, dos pisos superiores. No fim, o seu peso acumulado - um peso composto em partes iguais de miséria e carne - perfurava os soalhos, destruindo-os por completo. Acordou angustiando voltando a adormecer pouco depois para voltar a emergir do sonho com o coração a bater como se qui­sesse saltar-lhe do peito. Aquilo repetiu-se seis vezes. Nunca tivera um sofrimento assim.

Depois havia a questão da comunicação. Arnúfis conhecia o egípcio como sua língua materna, mas o seu domínio do grego era absoluto. Para falar verdade, usava-o desde a infância. O seu latim também não era mau. Parecia-lhe uma língua bárbara, de sonoridade áspera e de estrutura arrevesada, uma estrutura que atribuía ao sentimento de inferioridade que - tinha a certeza ­os romanos transportavam no seu miserável interior. Contudo, apesar de tudo, não podia fechar os olhos ao facto de que conhecê-lo se revestia de uma enorme utilidade. Aprendera-o e permitira-se inclusivamente ler alguns dos seus escritores para o dominar melhor. Ora bem, nenhum desses conhecimentos lhe servira de muito em Roma. Os estranhos tagarelavam nas suas respectivas línguas com um desembaraço deplorável, como se não vissem a menor utilidade em aprender a língua do império, pelo menos na sua parte ocidental. Quanto aos romanos... que falavam exactamente os romanos? Custava-lhe a crer que fosse latim. Não respeitavam as declinações, conjugavam os verbos de tal modo que era impossível compreendê-los e sobretudo, utili­zavam um vocabulário que muito dificilmente alguém conseguia identificar.

a problema não era de somenos. Se a sua ocupação consis­tisse em vender laranja, ter-lhe-ia bastado assinalar a mercadoria e fazer espavento na altura de regatear; se fosse carne, dispunha de pelo menos uma dúzia de palavras para apregoar, mas como se anuncia um mago? Como se apregoa que se possui os arcanos mais ignotos do universo? Como se indica por meio de gestos que se tem nas mãos a capacidade de curar as mais terríveis e mortais doenças? Como se mostra que se detém o poder de interromper tempestades, acabar com a peste ou dominar os demónios per­versos? Não existia outro modo a não ser recorrendo às palavras e se não se tinham as palavras não aparecia ninguém, e se ninguém aparecia, o resultado era uma carteira cada vez mais despojada e a tenebrosa perspectiva da fome do despejo... Ao fim de uma semana, a situação começou a apresentar um aspecto verdadeira­mente inquietante; ao fim de duas, constatou que seria prudente eliminar o consumo de alguns produtos relativamente onerosos; ao fim de um mês, disse a si próprio que talvez não tivesse sido muito sensato vir até Roma no intuito de fazer fortuna.

E então uma manhã, de modo inesperado, Demétrio, o escravo grego, anunciou-lhe que um grupo de pessoas estava à espera de ser recebido. Por instantes, Arnúfis receou o pior. Pensou que um arrendatário irritado, um comerciante ao qual não pagava as contas há semanas, ou um agente da ordem, vinham encostá-lo à parede, causando-lhe uma humilhação maior do que todas as que sentira desde a sua chegada ao porto de Óstia. A surpresa foi enorme quando lhe apareceu um homem alto e de cabelo negro e abundante.

Exprimia-se com um estranho sotaque - não era, obviamente, um romano culto -, mas conseguiu entender o seu latim.

Assim ficou a saber que este tinha problemas de impotência - ocasio­nais, segundo ele -, que não tinha a certeza se o seu filho seria mesmo seu e que, acima de tudo, desejava saber se a mulher lhe era infiel Arnúfis desenrolou então perante o visitante um ritual desordenado de palavras pronunciadas em egípcio, com gestos solenes executados com as suas mãos longas e estilizadas, incenso queimado e espalhado pela sala. Para terminar a cerimónia, deixou cair uma gema de ovo numa taça cheia de água. Nessa altura, Arnúfis estava mais do que convencido de que o homem em questão tinha dificuldades na cama porque desbaratava as suas energias para além dos limites do casamento, de que o filho era bastardo e de que a mulher lhe era infiel, o que, diga-se de passagem, lhe parecia compreensível, por se tratar de um vai­doso estúpido. Por tudo isso, disse-lhe que não devia derramar a sua semente em mulheres que não mereciam a sua pujante viri­lidade, que a esposa lhe era rigorosamente fiel, que o adorava, e que ninguém poria em dúvida a filiação do menino. O sorriso de arrogante ignorância com que o indivíduo recebeu tais pala­vras levou Arnúfis a prever que ele não regatearia o pagamento. Efectivamente não o fez.

Nesse dia, Arnúfis teve oportunidade de atender uma mulher estéril- à qual assegurou que, no ano seguinte, pariria um filho varão -, uma matrona convencida que a vizinha lhe lançara um mau olhado - que libertou desse perigo tão incómodo quanto falso - e meia dúzia de outras pessoas inquietas com problemas mais imaginários do que reais. Tagarelavam pessimamente na língua de Virgílio e de César, mas ninguém seria capaz de negar que o entusiasmo que punham no discurso era tanto que permi­tia a qualquer pessoa entendê-los.

Ser-lhes-iam úteis os remédios? Não. Arnúfis não pertencia ao género de magos que se engana. Não, claro que não, salvo erro, casualidade ou sorte. Reclamariam? Também não. A experiência dizia-lhe que, por auto-sugestão ou ignorância, era muito improvável que um só daqueles homens aparecesse de novo a queixar-se. Quem gosta de reconhecer que é pateta, uma vítima ideal para um vigarista? Ninguém. Quem é que quer que os vizi­nhos saibam que caiu na esparrela? Há-de haver alguém, sem dúvida, mas são tão poucos que não chegam para constituir um grupo de risco.

Quando as sombras se tomaram mais longas e Demétrio come­çou a acender as lâmpadas de azeite no interior da casa, Arnúfis recolhera uma quantia nada desprezível. Sentia-se um pouco can­sado, era verdade, mas com aquele cansaço agradável que quase atinge a categoria de satisfatório quando é seguida de um bom repouso. Só então o mago egípcio se deu conta de que ignorava o motivo daquela repentina alteração da sua sorte. Reflectia ainda sobre o assunto quando Demétrio lhe trouxe um copo a trans­bordar de vinho, daquele vinho áspero que, pelos vistos, tanto agradava aos romanos. Claro que, comparado com aquela porca­ria a que chamavam garum e que punham em todas as comidas - absolutamente todas -, era quase tolerável. Saboreou a bebida enquanto o escravo lhe massajava os pés com invejável destreza. Fechou os olhos, encostou a cabeça à parede e por alguns instan­tes sentiu a corrente de alívio que lhe subia pelos tornozelos, joelhos e coxas até pousar sobre o seu ventre. E então...

- Demétrio, sabes a que se deveram as nossas visitas de hoje?

- disse sem abrir os olhos.

O escravo continuou o trabalho com a mesma meticulosi­dade de antes, mas não deixou de responder ao seu amo.

- Kyrie, um mago atrai sempre gente.

- Sei que um mago atrai as pessoas, mas como souberam que eu era um mago?

Fez uma pausa e acrescentou:

- Anunciaste isso, de algum modo?

Demétrio começou a massajar-lhe os músculos das barrigas das pernas. Conhecia na perfeição a técnica e Arnúfis moveu a coluna vertebral, como se assim facilitasse a passagem do fluxo     de prazer que a massagem lhe proporcionava.

- Kyrie, coloquei um cartaz na nossa janela.

Arnúfis abriu os olhos. O seu olhar chocou com a cabeça baixa do escravo, nada disposto a que um interrogatório o distraísse da sua obrigação imediata.

- Um cartaz? Em que idioma?

- Em nenhum, Kyrie - respondeu uma voz vinda da nuca incli­nada de Demétrio.

- Não me faças perder tempo e explica-te melhor – ordenou incomodado o mago.

- Kyrie - começou Demétrio -, algumas vezes as pessoas que cá vêem dão-me dinheiro. É pouco e guardo-o porque me dás licença para isso.

- Já sei - interrompeu bruscamente o egípcio. - Não te percas e responde-me.

- Pois bem, Kyrie, em certas ocasiões, poucas, uma ou outra, empreguei esse dinheiro em comércio carnal com mulheres.

Aborrecido, Arnúfis passou a mão direita pelo queixo. A últi­ma coisa que queria ouvir eram as aventuras do seu escravo com prostitutas.

- Nos bordéis, as raparigas nem sempre conhecem o grego ou o latim. Muitas vezes são escravas de guerra ou até mudas que não entendem os clientes. Para solucionar esse problema...

-... recorrem aos desenhos de paredes - disse Arnúfis que começava a compreender.

- Sim, Kyrie - comentou Demétrio com entusiasmo. – Basta apontar para uma gravura e a prostituta sabe o que tem de fazer.

- Estás a dizer-me que desenhaste no cartaz o que eu poderia fazer?

- Sim, Kyrie, foi o que fiz - respondeu Demétrio entregue a    relaxar os músculos das coxas de Arnúfis.

- Traz-mo cá, quero vê-lo.

O escravo não discutiu a ordem. Pôs-se de pé rapidamente e abandonou a sala. Demorou apenas alguns instantes, regressando com um cartaz que segurava com ambas as mãos.

- Dá-mo - disse o egípcio, acompanhando o seu desejo com um imperioso gesto de mão.

Arnúfis fixou o olhar na obra de Demétrio. Era sem dúvida uma obra tosca e de gosto duvidoso, e não obstante... não obs­tante, daqueles desenhos feitos a tinta negra desprendia-se uma força primária e tão vigorosa como a dentada de um animal faminto. Muito juntas, perante os seus olhos, apareciam as figu­ras de uma mulher que chorava ao ver os filhos de outra, de um homem encolerizado porque a sua esposa beijava um amante, de um doente com ar de moribundo e à direita, com um tamanho muito superior, erguia-se poderosa e imponente, uma figura que só podia corresponder a Arnúfis. Ataviado como um mago egíp­cio, ou algo semelhante, brandia um bastão com o qual tocava num cadáver conseguindo que este se levantasse. Debaixo de tudo, em letras grandes podia ler-se «ariolus». Mago! Logo, o que levara aquela gente a ir até ao prédio e subir quatro anda­res era a convicção de que ele poderia ver o futuro! Claro que se era capaz de ler algo tão etéreo como o futuro, que haveria de estranho em que conhecesse o passado ou pudesse embrenhar­-se pelo presente mais imediato? Como poderia ser estranho que além disso possuísse as outras virtudes anunciadas por Demétrio no cartaz?

Sem afastar o olhar do anúncio, Arnúfis franziu os lábios e coçou o queixo. Ao fim e ao cabo fizera uma boa compra ao adquirir Demétrio...

 

         VALÉRIO

 

O OPTIO calou-se e obedeceu, mal ouviu a ordem de perseguir os guerreiros armados com arcos. Inicialmente, os cavaleiros não pareciam reagir perante aquela avalanche de legionários que se dirigia a grande velocidade ao seu encontro. Pelo contrário, observaram-nos e só cravaram as esporas nas ilhargas dos cavalos quando se encontravam a poucos passos de distância. Se a retirada tivesse sido rápida, medrosa, desesperada, tudo teria decorrido de acordo com o esperado. Contudo, os cavaleiros detiveram-se e, das garupas dos cavalos, voltaram a contemplar os seus perseguidores.

- Que estão a fazer? - Valério ouviu o centurião murmurar. - Não pareis - soou a voz do legado. - É preciso capturá-los.

Vamos. Apressai-vos.

- Domine - disse Grato. - Talvez se trate de uma emboscada.

Não fogem e...

- Centurião, se fugirem, terás de responder-me pessoal­mente - atalhou o legado.

O subalterno bateu com o punho no peito indicando que a ordem recebida seria executada.

- Que te disse o legado? - perguntou-lhe Valério quando o centurião chegou junto dele.

- Que os persigamos - respondeu sublinhando cada pala­vra.

- Pode ser uma armadilha...

- Não sei se é uma armadilha, mas tu és um optio - atalhou o centurião.

- Que não nos escapem! - gritou Valério, que entendera perfeitamente as palavras do seu superior. - Se conseguirem, dizimar-vos-ão.

Os legionários suavam por todos os poros após a corrida, mas a ideia de sofrer o castigo mais severo arrancou-lhes dos corpos novas forças. O que não conseguiu foi que capturassem os cavaleiros que os esperavam a várias centenas de passos de distância.

Sem os perder de vista, Valério disse a si próprio que aquele legado novato podia conduzi-los a uma catástrofe. Se havia algo que caracterizava o exército romano era a sua sensatez, a sua prudência, a sua inteligência nascidas da experiência apurada em mil combates ao longo de uma centena de guerras. Ao con­trário do que acontecia entre outros povos, eles, os legionários do senado e do povo de Roma, lutavam seguindo uma ordem extraordinariamente precisa. A legião contava com um número considerável de combatentes - entre os quatro mil e quinhentos e os seis mil homens -, mas o seu êxito espectacular não se devia tanto ao seu número quanto à sua técnica de luta. Escolhia sem­pre o local de combate no terreno mais favorável, conservava sempre a ordem na batalha e seguia uma táctica concreta. Ini­ciava a batalha recorrendo aos vélites, os soldados de infantaria ligeira, cuja principal função consistia em cobrir o avanço da infantaria pesada. Esta achava-se formada em três linhas, regra geral de seis homens de fundo, a primeira, e apenas de três a terceira. A primeira linha recebia o nome de hastati, dado que originalmente estava armada com a lança denominada hasta; a segunda era conhecida como princepes porque tempos antes tinham sido os primeiros a entrar em combate, e a terceira deno­minava-se triarii. As duas primeira linhas estavam armadas com uma espada e um ou dois pila, uma lança curta que podia arre­messar-se a uma distância de poucos menos de cem passos e que se retirava com facilidade dos objectivos alcançados, podendo ser reutilizada. Uma vez entabulada a luta, tanto os hasta ri como os princepes tinham sido treinados para se retirarem depois de combater durante um certo tempo, sendo imediatamente subs­tituídos pelos triarii. Esta forma de luta - aparentemente com­plicada - tinha consequências demolidoras sobre a capacidade de resistência do inimigo. A substituição contínua das linhas romanas servia para esgotar os adversários que não contavam com uma estrutura que se assemelhasse. Quando se chegava a esse ponto do combate, procedia-se à realização de uma carga dos hastati, que lançavam uma ou duas nuvens de pila para que­brar a resistência de um inimigo já muito cansado. Na luta com espadas que vinha a seguir, as linhas da legião continuavam a revezar-se, desgastando o adversário que, a maior parte das vezes, estava prestes a cair de exaustão. Na sua simplicidade, aquele sistema era imbatível. De facto, ao longo dos séculos, as derrotas deveram-se sempre ao seu abandono, à surpresa ou ao descuido. Ou muito se enganava Valério ou era essa precisa­mente a conduta em que aquele legado de vinte e poucos anos estava agora a incorrer.

Grato contemplou com desalento os cavaleiros que subiam uma encosta nua e escarpada. Faziam-no com grande à vontade, quase a trote, levantando nuvens de poeira amarela, uma poeira que iam ter de engolir para os capturar de uma vez.

- Vamos, não vos atraseis! Que ninguém fique para trás!

O optio olhou rapidamente para os seus homens antes de atin­gir o topo da colina. Tinham um aspecto lamentável, como se acabassem de sair de um combate. Não sangravam, mas estavam cobertos de pó e até mesmo os rostos se achavam cobertos por uma máscara que lhes ocultava as feições, dando-lhes um ar mais ridículo do que deplorável.

- Continuai! - gritou o centurião, cujo penacho transversal vermelho havia adquirido uma tonalidade azul-violeta.

Subiram, arquejantes, a encosta e então... então Grato e Valério compreenderam perfeitamente o que estava a acontecer. Aos seus pés encontrava-se posicionada a força de cavalaria mais numerosa e imponente que alguma vez lhes fora dado ver. Como era possível uma tal massa de cavaleiros ter-se concentrado naquele vaIado? Quantos seriam ao todo?

- Quantos serão? - disse uma voz ao lado do tribuno.

- Quantos são! - disse como um eco ainda mais sinistro um dos legionários de vanguarda.

Às suas palavras seguiu-se uma gritaria ensurdecedora, um estrepitoso bradar saído de milhares de gargantas, num fragor semelhante àquele com que as almas dos condenados enchem as cavernas de Hades. Durou apenas um instante, porque, de ime­diato, as filas de cavaleiros lançaram-se sobre a encosta. Alcan­çaram-na logo mas, nesse momento, apenas o corpo central subiu a galope. As duas alas abriram-se como se fossem os cor­nos da lua e contornaram a base da montanha.

- Vão cercar-nos... - murmurou Grato, de rosto lívido sob a camada de suor e pó que o cobria.

Sim, assim era de facto. Os cavaleiros, ataviados com a roupa mais diversa e armados de arcos grandes e curvos estavam a cercá-los.

- Firmar posições - gritou Valério. - Que ninguém saia do seu posto.

O importante era manter a calma, o sangue frio, os nervos controlados. Eram bárbaros. Tratava-se apenas de bárbaros.

- Temos que formar em testud (nota 4) - disse Grato ao legado. - Assim poderemos aguentar até que cheguem reforços.

O jovem ouviu-os, com os olhos desorbitados e o rosto desfi­gurado. Era bastante óbvio que se tratava da primeira vez que entrava em combate. Dificilmente o poderia ter feito em piores condições. Espalhadas sobre aquela elevação, as várias secções tinham perdido a sua flexibilidade habitual e pareciam quebra­das, partidas, deslocadas. Se ao menos fossem capazes de manter a coesão...

- Domine, o testudo - insistiu Grato.

- O testudo... - balbuciou o legado, como se não soubesse a que se referia o centurião.

- Formai em tartaruga! - gritou Valério antes de receber a ordem. Mas não o fez por pânico, nem por insubordinação. Era apenas um impulso nascido da experiência.

Os homens começaram a constituir aquela formação específi­ca, que tornara as legiões famosas. Como que accionados por uma mola, os escudos da frente uniram-se formando uma mura­lha de metal. Ao mesmo tempo, as fileiras que apareciam a seguir ergueram também os escudos, formando um tecto de metal con­tra os dardos e flechas. Não podiam tê-lo feito em melhor momento. Sobre as protecções dos legionários caiu a primeira salva de flechas, e Valério captou alguns gritos isolados. Eram os primeiros feridos, os piores, os que provocavam maior desânimo.

- Posições firmes! Posições firmes! - gritaram ao mesmo tempo o optio e o centurião. Ambos sabiam que se conseguissem conservar calma nesse momento, metade da batalha estaria ganha. Uma vez que tivessem travado combate com o inimigo, ninguém pensaria nas baixas nem no medo. Estariam demasiado ocupados a salvar a vida para se deixarem arrastar por reflexões.

Contudo, os partos não tinham a menor intenção de se con­frontar num combate corpo a corpo com a coorte (nota 5). Um coro de gritos advertiu Valério de que o cerco acabava de se consumar. Tinham conseguido. Bem, havia que resistir. Resistir, sim, resis­tir até que se esgotassem e então... então destroçá-los em rudes golpes.

- Cercaram-nos... - ouviu a voz desanimada do legado. - Vamos morrer todos.

Pela primeira vez desde que tinham visto os cavaleiros, Valério sentiu-se inquieto. A experiência dizia-lhe que se a chefia aguentasse, as tropas resistiriam, mas que se perdesse a calma...

- Centurião, ordena a retirada!

Grato pestanejou surpreendido ao ouvir a ordem do legado.

Que estava aquele jovenzinho a dizer? Perdera o juízo?

- Domine, não é possível. Para onde?

Não obteve resposta. Na verdade, não poderia ser de outra maneira. O legado parecia preso à sela como se nalgum lugar perdido, um lugar que só ele podia vislumbrar, um deus longín­quo lhe dirigisse palavras inefáveis. Subitamente, virou a cabeça como se uma abelha lhe tivesse picado o pescoço. Pestanejou com força, como se precisasse de aclarar a visão, e abriu a boca. Mas não se ouviu uma única palavra. Repetiu o movimento de lábios e continuou mudo. Então, de repente, arrancado de um qualquer lugar perdido nas profundezas da sua alma, nasceu     um grito primal, quase animalesco.

- Retirada! Retirada!

A ordem do legado agiu sobre os corações dos seus homens como a poderosa conjura de um mago perverso. Um após outro, os legionários arremessaram ao chão os escudos para poderem correr com mais agilidade, e correram alvoroçados em busca de uma vida que sentiam em perigo.

Depararam com algo bem diferente. Estavam ainda a uma dezena de passos da planície quando um enxame de projécteis se abateu sobre eles, atingindo-os nos pescoços, pernas e rostos. Eram disparos certeiros, realizados pelos mais hábeis arqueiros da urbe. Os mortos contavam-se às dezenas quando, apressados pela desordem e pelo pânico decidiram fazer marcha atrás e empreender uma nova retirada, desta vez para o topo da encosta.

- Quietos! Quietos! - gritava Valério que dificilmente conse­guia manter em ordem uma dúzia de legionários. - Temos que resistir! Ai daquele que der um passo que seja, eu mato-o!

Valério e Grato acompanhavam as suas ordens, descarregan­do furiosas bastonadas sobre os seus homens. Não o faziam com um rigor feroz por estarem cegos pela ira. Pelo contrário, movia­

-os a certeza de que só a disciplina poderia salvá-los da tragédia.

         - Tu, não te mexas... não te mexas, digo-te - gritou o optio

brandindo o bastão. - Tu, aí, fica aí onde estás.

- Quantos homens nos restam? - perguntou Grato sem dei­xar de olhar para os companheiros que tombavam trespassados pelos projécteis partos apenas a alguns passos de distância.

- Uns trinta - respondeu Valério ao mesmo tempo que dava um forte empurrão a um dos legionários para o colocar no seu posto.

         Grato reprimiu uma expressão de contrariedade. Eram muito

poucos, não havia dúvida.

- Formai em tartaruga - disse com um tom de voz firme, mas sereno, como quem procura infundir nos seus homens a tran­quilidade indispensável à sobrevivência. - Já.

A formação ficou constituída no momento preciso em que os cavaleiros partos, fartos de matar legionários, chegaram junto dele. Com um domínio absoluto dos seus cavalos e armas, os bárbaros voltaram a disparar. Contudo, desta vez o que encontraram pela frente não foi um rebanho atemorizado, pron­to a ser dizimado. Pelo contrário, os seus projécteis chocaram com a experiência decantada numa infinidade de combates.

- Quietos - disse o optio. - Nem um passo, nem um passo. - O meu pé! O meu pé! - gritou um legionário atingido por uma flecha.

- De joelhos! De joelhos e com os pés tapados!

Os homens obedeceram sem ripostar enquanto as flechas continuavam a chover de todos os lados.

- Aguentar! Passai palavra!

Aguentaram. Uma, duas, três, quatro salvas de projécteis caíram sobre eles sem provocar uma única baixa.

- Não se aguentam connosco... - murmurou um homem ajoelhado ao lado de Grato.

- Claro que não - disse o centurião. - Claro que não,

Durante alguns instantes, desceu sobre os legionários um silêncio apenas rasgado por um ou outro relincho ocasional.

- Que pretenderão estes bárbaros? - disse a voz de outro homem.

Valério olhou o legionário que acabava de falar. Era jovem, muito jovem. Talvez ainda mais do que o legado... o legado, pobre novato. Que imbecil teria concebido o costume de nomear para aqueles cargos meninos de boas famílias que nunca haviam entrado em combate? Sim, é verdade que alguns se saíam bem, mas este... Que lhe teria acontecido? Só Júpiter sabia, mas o mais certo é que estivesse morto ao pé da colina. Fraco destino para o filho de um senador. Se tudo tivesse corrido bem - se não tivesse perdido a cabeça -, teria regressado a Roma coberto de glória, a suficiente para se apresentar a uma das múltiplas eleições que se realizam na capital. Edil, questor, censor, cônsul... Poderia ter sido tudo isso. Tudo, sem dúvida, mas agora, provavelmente

estaria reduzido à condição de cadáver e o seu espírito atraves­sando o rio Estígio na barca de Caronte. Se os deuses não reme­diassem as coisas, também eles iriam jantar nessa noite ao Hades.

- Loquerisne língua Latina? (nota 6) - ouviu uma voz, com um sotaque carregado, do outro lado da muralha metálica formada pelos escudos.

Um murmúrio de espanto disseminou-se entre os homens que formavam em tartaruga. Quem se lhes dirigia na língua do império?

- Scisne Latine? (nota 7) - insistiu o estrangeiro.

- Haud... haud multum Scio... (nota 8) - respondeu um dos legionários, um sírio alistado meses atrás, atraído pela promessa de um bom pagamento.

- Quem é esse idiota? - perguntou Grato. - Quem te disse para falares com o inimigo?

Sobre o rosto pálido e suado do centurião desenhara-se uma expressão de surpresa. Que pretendia aquele bárbaro que se dirigia a eles num latim tosco?

- Pauci estis (nota 9) - prosseguiu a voz.

- Grande novidade - balbuciou outro legionário. - Achas que se fôssemos muitos estávamos aqui de joelhos, bárbaro?!

O parto continuou a dirigir-se aos homens de Grato. Falava num latim claro, como se tivesse aprendido com um professor. Mas o mais importante não era a profundidade dos seus conhe­cimentos gramaticais, e sim o que dizia. Disse-lhes que não restava um só dos seus companheiros, que tinham morrido todos, que a resistência era inútil, que ao fim e ao cabo, o mais prudente seria renderem-se.

- Nunca, bárbaro, nunca! - gritou um dos legionários.

Mas o parto não pareceu impressionado com aquela resposta.

Continuou a referir-se à falta de água, à escassez de alimentos, à impossibilidade de continuar a lutar, à sensatez de se entregarem. Se o fizessem, acabariam os seus problemas; se o fizessem, seria negociado o seu resgate; se o fizessem, em resumo, salvariam a vida.

Grato procurou Valério com o olhar. Ignorava se o que o parto lhes dizia era verdade ou se apenas tentava enganá-los. Constava-lhe, não obstante, que a sua capacidade de resistência era mínima. Poderiam ficar de joelhos durante algumas horas, talvez até mesmo um dia, mas a pouco e pouco, os homens cai­riam sob aquele sol, mortos de calor, sequiosos e no momento em que o testudo se desfizesse... então, sabia perfeitamente, seriam dizimados até que não restasse um único a respirar.

- Que te parece, optio? - perguntou Grato.

Valério não disse palavra, mas nos seus olhos, castanhos e serenos, Grato viu com nitidez uma réplica exacta dos seus pró­prios pensamentos.

- Vou sair - gritou o centurião.

As escamas metálicas do testudo abriram-se apenas o indispensável para que Grato pudesse sair sem colocar em perigo os legionários. Sentiu a dor das pernas, que finalmente podia esti­car, e foi obrigado a um grande esforço para não as dobrar enquanto se encaminhava para o bárbaro. Este era um homem alto, de barba e bigode cuidados, olhar altivo e profundo.

Valério viu-os falar. Falavam e falavam sem que o ar lhe trouxesse uma só das suas palavras. No fim, Grato atravessou a escassa distância que mediava entre o cavaleiro e o testudo e desapareceu no seu interior.

- Que te disse? - indagou Valério?

- São muitos e... não... não creio que continue vivo um único dos nossos...

Um novo murmúrio percorreu a formação.

- Que vamos fazer? - indagou num fio de voz o jovem legio­nário.

- O que o centurião mandar - cortou Valério.

- Sim, claro, optio - murmurou o rapaz num tom receoso.

- O centurião - começou a dizer Grato com amargura -, acha que o melhor é entregarmos as armas.

Os legionários sustiveram a respiração. Sabiam que da deci­são daquele homem - o único comando vivo - dependia o seu futuro.

- Não podemos continuar a resistir - prosseguiu Grato. - Não temos a certeza de que nos respeitem. Não quero enga­nar-vos. Mas... mas temos uma oportunidade.

- E a honra do senado e do povo de Roma?

Fora o legionário jovem quem formulara a pergunta.

Grato manteve um instante de silêncio. Em seguida, olhou bem nos olhos o rapaz e respondeu.

- Morto não serás de nenhuma utilidade ao senado nem ao povo de Roma.

Depois, olhou de um lado para o outro e acrescentou:

- De pé. Largai as armas.

 

         RODE

 

AQUELA noite de pancadaria e violações foi o limiar que, depois de transposto, tomou uma me­nina abandonada numa meretriz. Rode deixou de ser uma garota que ignorava o que o futuro poderia trazer-lhe para se transfor­mar numa jovem que sabia demasiado bem o que a esperava. Vendida a um traficante de mulheres, foi transportada para um dos cubículos diminutos onde devia entregar-se a homens de condição vil a troco de um valor que o seu novo dono recebia. Tratava-se de um tugúrio situado nas proximidades do Circo Máximo. Aí trabalhou noite e dia, porque os homens, quando acabavam de ver os jogos, eram presa da excitação mais animal. Ao que parece, a visão do sangue e da morte impulsionava-os para aquele acto com que a Natureza resolvera perpetuar a espécie.

Mas a vida de Rode não ficou por esses quartos em que uma pintura obscena colocada no dintel indicava o que cada cliente poderia esperar da meretriz. Pelo contrário, à medida ia cres­cendo e deixava de ser jovem, ao mesmo tempo que apareciam as rugas, os seus donos sucessivos foram-na vendendo - ou melhor, foram-se desfazendo dela - para se ocuparem de outros ofícios. Se Rode tivesse alguma instrução, se se tratasse de uma actriz ou de uma bailarina, ou se fosse uma mulher livre, com o passar do tempo teria acumulado um pecúlio para se retirar um dia. O mesmo se aplicava às prostitutas que trabalhavam nas tabernas, estalagens ou padarias. Algumas - poucas, mas algu­mas - acabavam por se tornar amantes dos seus donos velhos, que precisavam de um corpo quente à noite, e de uma governanta competente durante o dia. Até as bustuariae, que se colocavam junto dos túmulos em busca de clientes ou as ambulantes que percorriam as ruas tinham possibilidades, embora poucas, de sair daquela sórdida servidão. Não era o caso de Rode, que nem sabia fazer nada além de deixar que os homens a usassem, nem era livre. Assim, durante os anos que se seguiram, foi percorrendo diversos prostíbulos e bordéis onde, de forma mais experimental do que didáctica, se adaptou à escravatura da sua ocupação.

Nunca aprendeu a ler, mas sabia acelerar a consumação do desejo dos seus clientes. Jamais soube escrever, nem o seu nome, mas conseguiu chegar a regatear a tarifa e as gratificações com grande habilidade. Tudo isso aconteceu ao mesmo tempo que aprendia os rudimentos da arte de autodefesa. Ensinou-lhos um legionário velho que trocou o relato das suas experiências por alguns coitos gratuitos. O homem - a quem a idade também não permitiu tirar grande proveito desse acordo - indicou-lhe os pontos nevrálgicos no corpo de um homem. Assim, Rode apren­deu onde deveria atacar se a prendessem, onde cravar o estilete que levava sempre consigo para o caso de a ameaçarem, e até onde provocar uma dor enorme sem deixar uma marca que pudesse custar-lhe a flagelação ou outra pena pior. Não era mau homem, aquele militar veterano. Chegara a falar em comprá-la e fazer dela sua concubina. Não pôde ser. Os filhos eram demasia­do ambiciosos e não desejavam uma madrasta, fosse ela virgem ou meretriz, nova ou velha.

Nessa altura, Rode era uma mulher suficientemente conhece­dora do seu ofício. Nunca chegaria a tornar-se famosa pelo seu domínio da ars amatoria, mas os clientes costumavam ficar satis­feitos. Sabia quando ouvi-los, quando interromper a sua verbor­reia, e quando era prudente chamar o encarregado para evitar que tudo acabasse à pancada. Talvez por isso mesmo, conseguiu passar todos aqueles anos só com uma ou duas sovas - uma de um vendedor de hortaliça embriagado, outra de um bandido do Norte de África - e uma cicatriz que só se via a determinada luz.

Ao cruzar a linha que assinalava as duas décadas de existência, Rode sabia que cada novo dia em que contemplava a luz do sol era tocado de modo extraordinário por um deus. Saber qual seria a divindade constituía um assunto mais complicado. Sem família, Rode não tinha os deuses manes, lares e penates que eram objecto de culto em todas as casas de família romanas. Não conhecia os seus antepassados nem sequer possuía um lugar que necessitasse de protecção especial dos deuses. Os seus amos contavam, claro, com os lares, mas, pensava ela, esses já tinham bastante trabalho a protegê-los, não iam ocupar-se de uma das meretrizes deles. Quanto às suas companheiras, todas elas eram mulheres que acreditavam neste ou naquele deus ou deusa que as preservasse das doenças ou das sovas, que fosse capaz de evi­tar que engravidassem, e que numa extraordinária prova de favor, poder e graça, conseguisse arrancá-las daquela existência.

Rode não sabia, mas, noutra época, Genita Mana, Acca Larentia ou Cama teriam sido divindades capazes de se oferecer para a ajudar a confrontar-se com o medo da doença, da infeli­cidade ou da miséria. Os seus seguidores eram, agora, muito poucos, e Deméter, Dionísio, Hécate ou Cibele gozavam de mais devotos. Contudo, não escolheu nenhum desses deuses. O objecto da sua eleição acabou por ser determinado por um episódio peculiar.

Numa manhã em que o número de clientes era fraco e dispu­nha de algum tempo livre, aproximou-se do cubículo vizinho para conversar um pouco com Albina, uma escrava um pouco mais velha do que ela. Para sua grande surpresa, encontrou-a a lavar-se com muitíssimo esmero, como se fosse arranjar-se para sair. Não era estranho uma prostituta lavar-se, mas, regra geral, esperavam pelo fim do dia de trabalho para o fazer. Além disso, que sentido faria limpar algo que ia voltar a sujar-se logo a seguir?

- Já acabaste? - perguntara Rode surpreendida.

Albina voltara-se para a porta e sorrira. Teria, sem dúvida, um bonito sorriso, se não lhe faltassem dois dentes no maxilar superior.

- Não - respondeu com um alegre timbre de voz. - Estou à espera do Júlio.

Rode tinha uma ideia vaga da pessoa a quem a sua compa­nheira se referia.

- E que tem isso de especial? - perguntou, apontando para a bacia que Albina utilizava para se lavar.

- Ah, Rode, Rode - fingiu protestar a meretriz. - O que o Júlio tem de especial é ser um presente de Glykon.

         - De quem? - perguntou Rode surpreendida.

Albina abandonou no chão o pano com que se limpava, afas­tou o alguidar e atravessou a escassa distância que a separava de uma cesta. Rebuscou lá dentro e, finalmente, retirou algo que mostrou à amiga com uma expressão radiante.

Rode esforçou-se por entender o que a sua companheira lhe mostrava, mas a luz era tão fraca e o objecto tão pequeno que não conseguiu.

- Não vejo, Albina. Só se o aproximares um pouco...

- Sim, claro, tens razão - disse a outra, ao mesmo tempo que se aproximava da porta. - Aqui está.

Rode observou o que Albina tinha na mão direita. Era uma pequena figura, muito bem feita. Devia ser confeccionada em pedra e a sua forma era, sem sombra de dúvida, peculiar. Tratava-se de uma serpente cuja cabeça aparecia de pé, enquan­to a maior parte do corpo se enrolava em novelo. Contudo... contudo, tratava-se de um animal estranho. Os olhos pareciam quase humanos, embora desprovidos de pupilas, e focados na contemplação de algo ao longe. Além disso, tinha orelhas como as dos homens, ainda que muito maiores, tanto que desciam sobre o início do pescoço, juntamente com os cabelos longos semelhantes aos de uma mulher. Que era aquilo?

- É algum génio? - perguntou Rode.

- Non genius, sed deus (nota 10) - respondeu Albina num tom solene. - Um... um deus?

- Sim, Rode, e que deus... não imaginas. Tem cuidado de mim durante anos. Devo-lhe o nunca ter tido qualquer doença.

Chama-se Glykon.

-Glykon... - repetiu Rode.

- Não são muitos os que o conhecem, mas nunca me falhou ­

insistiu Albina. - Há poucos meses, disse-lhe o quanto lhe esta­va grata por tudo o que faz por mim, mas que... bem, que estava cansada de tanto me deitar com porcos. Quero sair daqui.

Rode olhou surpreendida para a companheira. Nunca lhe passara pela cabeça que os deuses pudessem ouvir aquele tipo de pedidos.

- Bem - respondeu Albina. - Os deuses são como os homens. Se tu lhes dás, dão-te, se não lhes ofereces nada, nada podes esperar em troca.

- Que lhe ofereceste? - perguntou Rode profundamente interessada.

- Olha, tens de ter uma coisa bem presente. Se perceberes bem, não haverá problemas. Todos os deuses querem mais ou menos o mesmo - respondeu Albina com um ar erudito. - Em primeiro lugar, gostam de ser adorados. Claro que podes ir aos templos, mas isso... bem, sabes perfeitamente que nem sempre é fácil. Se não podes ir tanto quanto desejarias, o melhor será teres uma imagem em casa. Assim, podes falar com o deus sem­pre que quiseres, podes pedir-lhe coisas...

- É o que tu fazes com...?

- Com Glykon? Claro que sim. Em segundo lugar, tens de saber o deus que escolhes. Nem todos servem para o mesmo. Eu, queria ter saúde... por isso escolhi Glykon, porque cuida muito bem dos seus devotos.

- Sim...

- E o mais importante - Albina prosseguiu com a sua lição de religião - é saber do que ele gosta. Eu prometi-lhe sacrifícios de animais, que lhe agradam, e olha que não são nada baratos; as orações, que o satisfazem; e alguma dor...

- Que queres dizer com isso de dor? - perguntou Rode um tanto confusa.

- Bem, naturalmente, os deuses gostam que lhes sacrifiquem animais. Uns preferem os cães, outros as cabras... Cada um tem as suas preferências. Mas também é bom prometer-lhes algo que nos custe. Por exemplo, não comer tortas de mel para agradar ao deus, ou ir de joelhos até ao seu santuário ou não tomar mulher durante alguns dias. Privarmo-nos de algo de que gostamos agrada muito aos deuses.

Rode não compreendeu tudo o que acabava de ouvir, mas pensou que não tinha importância de maior. O que era verda­deiramente importante era se o que a sua amiga Albina lhe contava era ou não verdade, se de facto os deuses podiam intervir até na vida de uma escrava dedicada à prostituição. Teve a certeza um mês depois, quando o tal Júlio levou con­sigo Albina.

- Faz todos os possíveis, Rode - disse-lhe Albina ao despedir­-se - para que alguém te construa ou te ofereça uma imagem de Glykon. Esse deus é muito poderoso e proteger-te-á.

Nisso se aplicou Rode com verdadeira diligência. Por fim, um artesão prometeu construir-lhe um oratório do deus com corpo de serpente e orelhas humanas, a troco de alguns serviços espe­ciais.

- Não quero um relicário, Caio - respondeu a escrava. - Na verdade, sonho com uma pequena imagem, que possa trazer sempre comigo...

- Sim, claro, para poderes estar sempre a rezar - disse o arte­são, embora Rode não captasse a ironia oculta nas suas pala­vras. - Não te preocupes. Eu faço.

Pagou adiantado, com alguma desconfiança, não sabendo se aquele homem - como tantos outros - iria aproveitar-se dela sem lhe entregar mais tarde o prometido. Contudo, ele cumpriu. Entregou-lhe a imagem exactamente no dia anterior ao da sua partida para um novo destino, um bordel situado na fronteira.

As outras prostitutas choraram quando se despediram dela. Em parte, porque temiam o pior naquele novo destino; em parte, porque viam em Rode um reflexo das suas próprias vidas e, ao chorar pela companheira, choravam por si próprias tam­bém. Apesar de tudo, aquele lugar estava longe de ser mau. Rode depressa percebeu que os soldados eram fáceis de satisfazer. Na verdade, sozinhos e isolados num ponto distante do império, costumavam mostrar-se mais atentos - ou menos brutais - do que os habitantes da cidade de Roma. Qualquer mulher lhes agradava, com qualquer uma ficavam contentes e não eram pou­cas as ocasiões em que tentavam obter os favores de uma ou outra prostituta levando-lhe vinho, comida e até mesmo doces. Não era estranho dar-se o caso de os mais abastados acabarem por tornar sua concubina uma das mulheres que vendiam o corpo, desde que não fossem escravas e conseguissem emanci­par-se. É verdade que ninguém sabia quanto tempo poderia durar esse concubinato, mas não eram poucas as que mais cedo ou mais tarde acabavam por se retirar para serem matronas num qualquer estabelecimento erguido perto do velho acampa­mento de uma legião.

Rode não veio a conhecer nenhum homem assim. Talvez não fosse suficientemente bela para poder aspirar a tanto ou, mais provavelmente, nenhum terá considerado que ela valesse o preço da sua liberdade. Apesar de tudo, não se queixava. Todos os dias quando se levantava, todas as noites ao deitar, dirigia uma prece simples, que ninguém lhe ensinara, a Glykon. Pedia-lhe que ninguém lhe batesse, que não lhe roubassem o dinheiro do seu trabalho, que o seu amo não a humilhasse e, sobretudo, que nenhuma doença se abatesse sobre ela. Temia especialmente esta última parte, pois pudera ver em várias oca­siões como uma meretriz que padecia de uma doença era desprezada, tornando-se numa coisa que todos consideravam poder maltratar.

Aquele castra não foi, nem de perto nem de longe, a pior expe­riência de Rode. Muito pelo contrário. Apesar do ardor dos legionários, trabalhava muito menos do que em Roma. Uma grande parte dos contingentes estava sempre entregue a tarefas da guarnição, em vigilância ou até mesmo em combate. Submetidas a uma disciplina rigorosa, as mulheres constituíam uma pequeníssima parte do seu quotidiano.

Foi precisamente nessas terras que Rode conheceu a única pessoa com quem travou algo semelhante a uma amizade. Chamava-se Plácida e era uma mulher mais jovem do que ela, ainda que muito pouco atraente. Nem sempre fora assim. Quando à sua passagem ainda se viravam as cabeças dos homens na rua, um cliente queimara-lhe o rosto. Talvez não desejasse fazê-lo, talvez estivesse apenas um pouco ébrio, mas fosse como fosse, ficou terrivelmente deformada. A lei castigou-o, obri­gando-o a pagar uma compensação ao dono de Plácida. Afinal, danificara uma propriedade que poderia render alguns sestér­cios. O seu amo pensou que perderia menos se baixasse um pouco a tarifa. Ou seja, ganharia menos por cópula, mas mais no seu conjunto. A mulher - obviamente - teria de se esforçar, mas que mais poderia ela fazer, com aquela cara monstruosa? Contudo, os cálculos do seu dono não estavam certos. Era mais barata, sim, mas os homens sentiam uma certa repulsa perante aquele corpo jovem coroado por um rosto retorcido e anima­lesco. No fim, o seu proprietário chegou à conclusão de que ela seria apenas aceite pelos homens que não podiam saciar-se com outras mulheres. E assim, Plácida acabou num prostíbulo para legionários, onde veio a conhecer Rode.

A experiência de Plácida era pouca e agradecia os conselhos que Rode lhe dava. Na sua infelicidade, chegara a pensar que o simples facto de saber satisfazer um legionário lhe dava um valor especial e que podia sentir um certo orgulho, totalmente per­dido desde o dia em que o bêbado a transformara num ser defor­mado. Durante os três anos que se seguiram, percorreram alguns castra. Dirigiam-se agora para o terceiro. A única diferença era que, em relação a este, tinham-lhes dito que fazia muito frio.

 

         CORNÉLIO

 

- NÃO ACREDITAS? - Cornélio não res­pondeu. Em boa ver­dade, não acreditava nem deixava de acreditar. Limitava-se a achar chocante.

- Pois é a pura verdade, rapazinho, a pura verdade - conti­nuou o velhote sem deixar de andar. - Entopem-se e depois é este cheiro... baaah, cheiro horrendo!

O jovem ficou calado. Tinha de reconhecer que Roma não correspondia nem um pouco às ideias, bem confusas diga-se de passagem, que formara sobre a capital. E por mais distante que a realidade estivesse das suas expectativas não passava certamente por aqueles terrenos. Era verdade que esperava ver mais ruas do que na sua terra, mas jamais imaginara aquelas casas de cinco e seis andares, cheias de gente ruidosa, que falava outras línguas. Imaginara vias mais amplas do que os caminhos de cabras que conhecia, é certo, mas nunca teria pensado que estivessem cheias de lojas, de carros, de cheiros totalmente desconhecidos. Calculara naturalmente que na imensa urbe poderiam existir ladrões, assaltantes e até homicidas, mas que tentassem assaltá­-lo em plena noite, que se salvasse da morte, enfiado num esgoto e que pudesse ver tudo o que tinha visto... não, isso não.

E eis que o que acabava de se oferecer aos seus olhos lhe chamava a atenção de uma maneira totalmente inesperada, até mesmo naquela urbe de impensáveis prodígios. Tratava-se de uma vintena de bebés recém-nascidos. O mais peculiar não era o facto de terem poucas horas de vida - certamente nenhum chegaria ao fim do dia -, e sim o de estarem abandonados na margem daquele pedaço de traçado de esgoto que emergia à luz, tornando difícil distinguir o próprio rio Tibre. Havia uns que choravam, é certo, mas quase todos estavam quietos e calados, emitindo quando muito gemidos fracos, como um cachorrinho prestes a morrer. Perguntou o que era aquilo, o velhote respon­dera-lhe com a mesma indiferença com que se teria referido a um arbusto colocado à beira do caminho. Eram crianças aban­donadas pelos pais. Estavam expostos à morte. Claro que também lhe explicara que nem todos morriam. Alguns, os que ainda respiravam quando as mulheres chegavam, eram reco­lhidos para serem vendidos como escravos. BordeI para elas e minas para eles. A maioria - acrescentara em seguida- eram meninas. Sim, rara era a família romana que desejava ter mais de uma em casa. As que vinham a seguir dessa primeira fêmea - a não ser que morressem - eram carne de exposição.

Até então o velhote referira-se a tudo com calma, com sossego, da maneira mais natural possível, mas ao chegar àquele ponto da sua entediante exposição, recordara-se de um por­menor. Precisamente aquele que mais chamara a atenção de Cornélio. Havia dias em que chovia, ou em que os habitantes de Roma tinham urinado mais do que o habitual, ou em que o rio recebia um impulso da água das torrentes. Havia dias, afinal de contas, em que o caudal do Tibre aumentava e com ele o con­teúdo dos esgotos. Quando tal sucedia, as águas levavam os bebés - ainda vivos ou já cadáveres - antes de os animais pode­rem fazê-lo, ou os ladrões de criaturas. O que em princípio não teria importância de maior, mas a verdade é que aqueles cadá­veres diminutos conseguiam entupir os serviços de limpeza da capital. Excrementos, urina, detritos da mais diversa proce­dência atravancavam-se, provocando um mau cheiro, um fedor verdadeiramente asfixiante, na zona das ruas afectadas por aquela obstrução de carne e osso.

- Não te preocupes, rapaz - disse o velhote como se adivi­nhasse o conteúdo dos pensamentos do seu acompanhante. - Acabam sempre por solucionar o problema. Cheira mal, lá isso é verdade, e quando retiram os corpitos é repugnante, mas tudo se arranja. Olha, isso é que deves recordar sempre, em Roma. Problemas não faltam, mas acabam sempre, estás a ouvir-me?, sempre, por se resolver. Não é por acaso que somos o centro do mundo.

Sim, pensou Cornélio para se consolar, eram o centro do mundo, o lugar para onde convergiam todos aqueles que dese­javam encontrar a glória ou servir o império ou fazer fortuna. E, não obstante... não obstante, a única coisa que o jovem queria naquele momento era poder tirar toda a imundície que tinha em cima e sentir-se limpo. Não havia nada que desejasse mais ardentemente.

 

         ARNÚFIS

 

O DESENHO áspero mas eloquente, de Demé­trio, salvou Arnúfis de morrer à fome ou de acabar condenado por dívidas perante um tribunal romano. Não era pouco. Contudo, o mago não navegara até Roma para se conformar com aquilo. Durante alguns meses subsistiu à custa de mulheres que pretendiam saber se tinham possibilidade de engravidar, de mulheres ansiosas por conhecer as infidelidades - reais ou imaginárias - dos maridos ou amantes, e de mulheres que morriam por se vingar das vizinhas que consideravam odiosas ou das sogras não menos incómodas. Sim, os seus clientes eram, na sua imensa maioria, mulheres. Ocasionalmente aparecia um ou outro homem, como aquele negro, aflito com a sua impotência, que chorava apontando para o membro viril como um cozinheiro apontaria para um guisado queimado e intragável. Mas tratava-se de uma excepção à regra. Mulheres, mulheres e mulheres eram quem vinha pedir ajuda e, naturalmente, o seu pecúlio revelava-se limitado e, muitas vezes, até mesmo ridículo. A única diferente - e de que maneira! ­foi Lélia. Apareceu uma tarde a acompanhar Antónia, uma das suas clientes mais assíduas, uma mulher de péssimo hálito e dentes encavalitados à qual dava pródigos conselhos para man­ter ao seu lado um amante que poderia quase ser seu neto.

- Kyrie - disse-lhe Antónia com um sorriso de cumplicidade que Arnúfis achava repugnante. - Trago uma amiga de con­fiança. Chama-se Lélia.

A frieza do rosto do mago não mudou nada ao aperceber-se que se lhe dirigiam num péssimo grego. Em boa verdade, ficava pior do que estragado com a insistência de alguns romanos em aparentar uma cultura da qual careciam por completo. Como bom egípcio que era, sabia grego desde criança. Aquela harpia, contudo, não sabia mais de meia dúzia de palavras, que empre­gava a torto e a direito. Kyrie para se referir a ele, dule para falar com Demétrio, kalon, kalon, para indicar que gostava de alguma coisa. Que personagem deplorável! Até onde ia a estupidez!

- Em que posso ajudar? - disse, por fim, Arnúfis.

- O meu marido... - respondeu Lélia. - Tenho a certeza que me engana com uma mulher mais nova.

Com uma mulher mais nova!, pensou Arnúfis. Que extraor­dinário! Naturalmente seria mais nova. Mais velha do que ela, só uma anciã.

- Permite-me que veja a sua mão - disse o egípcio, esten­dendo a sua com a palma voltada para cima.

Lélia esticou a mão direita no intuito de a pousar sobre a do mago. Mas não foi capaz. Como se fossem as fauces de um crocodilo, os dedos do egípcio lançaram-se sobre a mão da mulher fechando-se sobre ela.

- Não tenha medo - sussurrou, apercebendo-se do temor que percorria o corpo da recém-chegada. - Acalme-se.

Lélia respirou fundo e tentou serenar. Não conseguiu. Na ver­dade, o contacto com aquele homem provocava-lhe uma pertur­bação que era incapaz de dominar.

Sem deixar de a olhar bem nos olhos, Arnúfis abriu-lhe a mão e começou a deslizar o dedo do meio sobre a palma. Sabia muito bem que não havia nada que pudesse ler naquela superfície branca, agora transpirada de ansiedade. Assim, nem se deu ao trabalho de olhar. Não: os olhos tinham de estar cravados na presa, para ver como ela reagia. Algo tão simples - e, ao mesmo tempo, tão complicado - como pescar.

- O seu esposo é infiel- disse, com a certeza de acertar. Jamais conhecera um marido romano fiel à mulher, e seria demasiada pouca sorte que o de Lélia constituísse uma excepção.

O rosto da romana contraiu-se debilmente em volta dos olhos. Pronto, pronto, afinal não lhe custava muito... bem, era um pormenor a considerar.

- Mas não vejo nenhum divórcio - prosseguiu Arnúfis sem deixar de a observar por um único instante.

- Eu não quero o divórcio... - interveio Lélia. - Se ele deseja fazer isso... que...

- Cede à insistência desse homem jovem - cortou o mago.

Lélia deu um salto, como se tivesse tocado num electrão carregado. Bem, bem, bem... então ela tinha um pretendente...

- Como... como sabe? - balbuciou a mulher, de olhos muito abertos.

- Leio na sua mão - respondeu o egípcio com autoridade... e no seu coração.

- E no teu futuro - interveio a velha. - Não sabes como é este homem... ele vê tudo, tudo.

Lélia manteve-se calada. Nesse momento, sentia-se esma­gada, surpreendida, estupefacta. Seria verdade? Poderia mesmo ser verdade? Então...

- E se...se eu eu deixasse... - interrompeu-se por um ins­tante. - Não... não quer dizer que as coisas sejam como diz... mas se fossem...

- Não tente esconder-me o quer que seja - cortou o egípcio. - Não serve de nada, porque não é possível ocultar-me seja o que for.

Lélia engoliu em seco. Agora sentia o corpo todo a tremer e não conseguia disfarçar.

- E... irá tratar-me bem?

- Muito melhor do que o teu marido - respondeu Arnúfis.

- Ele deseja-te. Muito. Está ansioso por mergulhar em ti.

- Eu bem te dizia - sussurrou a velha ao ouvido da mulher. Lélia puxou e libertou a mão que o mago aprisionara.

- Como... como sei que não está a enganar-me?

O movimento fizera soltar o tecido com que Lélia cobria o pescoço, deixando a descoberto um colar de dimensões conside­ráveis. Desta vez Arnúfis teve dificuldade em se manter impassí­vel. Era bastante óbvio que aquela mulher era pessoa de posses. Muitas. Certamente porque o era o seu marido. O que andava com outras. Sim, muito provavelmente tentara distraí-la com presentes assim e, se fosse esse o caso...

- Poderia pô-la na rua por duvidar de mim - disse o egípcio num tom de voz gélido. - Era o que merecia pela sua falta de confiança, por vir insultar-me à minha própria casa.

- Kyrie, a minha amiga... - começou a velha, numa tentativa de interceder.

Arnúfis levantou a mão direita, impondo silêncio.

- Sabe que está nas minhas mãos desencadear sobre si a mais terrível das maldições?

- Eu... eu...

- Não diga nem mais uma palavra. Pediu uma prova e uma prova terá. Convide-me para a sua domus e mostrar-Ihe-ei a minha força.

Lélia empalideceu ao ouvir as palavras do egípcio. Era óbvio que a proposta, longe de lhe parecer tentadora, a intimidava. Por instantes, Arnúfis pensou que se precipitara e levara a aposta longe demais. Amaldiçoou-se interiormente. Era evi­dente que estava a ir por bom caminho e conseguira estragar tudo.

Não pôde evitar recordar Sísifo, aquele indivíduo que os deuses haviam castigado, obrigando-o a empurrar um pedre­gulho pela encosta de uma montanha acima, para cair sempre que estava prestes a alcançar o cume. Como pudera ser tão tolo? Oh, e ainda por cima com uma mulher tão abastada...

- Quando... quando quer vir à minha casa? - disse com voz calma Lélia, arrancando-o dos seus tenebrosos pensamentos.

Por instantes, Arnúfis não teve a certeza de ter ouvido bem.

Então... então ela rendia-se, entregava-se, submetia-se.

- Depois de amanhã - respondeu com a maior autoridade que foi capaz de expressar. - De noite. Convide os seus conhe­cidos e familiares.

Quando Lélia e a sua antiga cliente saíram, Arnúfis não esta­va certo de ter atingido os seus objectivos. A mulher recusara-se, ao fim, e ao cabo, a dar-lhe a morada, alegando que antes preci­sava de falar com o marido. É verdade que repetira até à exaus­tão que considerava um privilégio que ele desejasse visitar a sua domus, mas...

O dia seguinte pareceu-lhe interminável. Enquanto atendia uma vendedora de hortaliça, uma padeira e duas prostitutas, não parava de perguntar a si próprio quando apareceria Lélia, se é que se dignaria a voltar ali. Não apareceu. Contudo, enviou um escravo com um bilhete. Esperava por ele no dia seguinte à tarde - dia que o mago havia sugerido - na sua domus. Convidara tam­bém as amigas e, embora não pudesse dizer ao certo quantas se achariam presentes, estava convencida de que não seriam menos de uma dezena.

Arnúfis deixou a missiva sobre a mesinha e, em seguida, instintivamente, esfregou as mãos de satisfação.

A domus de Lélia situava-se numa zona confortável da cidade. Não excessivamente rica, mas desafogada e próspera. Era uma daquelas zonas nas quais se encontravam famílias da classe sena­torial,

mas onde abundavam os équites (nota 11) e os homines navio Por outras palavras, os que haviam prosperado economicamente apesar de não pertencerem à classe mais elevada, e para quem o esforço de integração era praticamente diário. A que poderia dedicar-se o marido de Lélia? Trigo do Egipto? Azeite e garum da Hispânia? Especiarias da Ásia? Talvez tudo aquilo, ou talvez nada daquilo. De qualquer modo, os seus escravos não eram poucos nem mal-educados. Limpos, correctamente penteados e adequa­damente vestidos, conduziram Arnúfis e Demétrio, através de um pluvium e várias galerias, até chegarem a uma sala espaçosa.

- Eeee est! Eeee est! (nota 12) - disse Lélia, dando um salto do seu tri­clínio e dirigindo-se para o lugar onde Arnúfis se encontrava. - Disse-vos que ele viria.

O mago apercebeu-se da enorme excitação da mulher quan­do esta o agarrou pela mão direita e o conduziu até ao salão. Sabia que não seria prudente observar demasiado o local, mas ainda assim não escaparam ao seu olhar inquisitorial a abun­dância de comida, a ostentação com que a quase totalidade dos presentes se vestia e o aspecto de enriquecidos dos homens. Sobre as mulheres... bem, era melhor nem pensar no que pareciam.

- Então, este é o ariolus egípcio de quem nos falavas? - disse, vinda do fundo do salão uma voz empastada pelo álcool.

- Claro que sim, Marco, claro que sim - respondeu outra voz, cansada e incrédula.

- Bem, e que sabe fazer este homem? - indagou um terceiro.

- Lê o futuro nas tripas das galinhas?

- Oh, por favor, chega! Basta! Queremos divertir-nos...

Sim, não havia dúvida. O que queriam era divertir-se. Acaso os habitantes de Roma tinham outro anseio, desde o mais presu­mido senador até ao último dos miseráveis vindo do Norte de África em busca de uma côdea de pão? Bom, se o que ambicio­navam era entretenimento, não iriam sentir-se defraudados.

- Kyrie, rogo-te que perdoes os meus convidados - disse um homem de olhos quase oblíquos e cabelo ralo que se aproxi­mara do lugar onde o mago se encontrava.

Arnúfis olhou para ele. Sim, devia ser o marido de Lélia. Um plebeu que havia enriquecido e que agora se dedicava a arranjar amantes jovenzinhas, a comprar uma domus de grandes dimen­sões e sabe-se lá a que outras imbecilidades.

- Apetece-te um copo de vinho? - continuou o calvo. - É exce­lente. Da Hispânia, nem mais, nem menos.

O egípcio não respondeu à oferta. Limitou-se a olhar o homem, dizendo:

- Há com que escrever nesta casa?

- Com que escrever?.. Mas claro, julgo que sim...

Arnúfis abriu os braços como se pretendesse abarcar com eles todo o salão e disse:

- Todos vós desejais saber se o que Lélia vos contou é verdade. Um murmúrio de protesto seguiu-se à declaração do egípcio. - É inútil negá-lo - disse, sem baixar os braços. - Sei perfeita­mente que assim é. Pois bem, quero dizer-vos que o ireis veri­ficar já a seguir. Dar-vos-ão agora com que escrever.

Observou os escravos que acabavam de chegar com as tábuas de cera e os estiletes. Pelo menos havia que reconhecer que o pater familiae da domus se estava a esforçar. Esperou até todos disporem do material para escrever e só então prosseguiu.

- Escrevei agora na tábua o vosso nome e o problema que vos angustia.

Os convidados trocaram entre si olhares interrogativos, mas o pater familiae resolveu a questão.

- Vamos! Fazei o que ele vos pede!

- Sim, sim, fazei - secundou-o Lélia.

- Recolhei-as - disse Arnúfis quando se apercebeu de que todos tinham acabado de escrever.

Os escravos obedeceram sem perda de tempo. Era óbvio que estavam habituados àquilo.

- Colocai-as nesta mesa, mas voltadas ao contrário – ordenou o egípcio. - De modo que eu não possa lê-las.

Uma vez mais, os servos seguiram as ordens que lhes eram dadas. Arnúfis fingiu observá-los, enquanto o seu olhar percor­ria os rostos dos presentes. De momento, estavam, pelo menos, expectantes.

Esperou alguns instantes até todas as tábuas terem sido colo­cadas à sua frente e, em seguida, deu um passo em direcção à mesa. Respirou fundo, fechou os olhos e ergueu as mãos até que os braços adquirissem uma posição quase paralela ao seu corpo. Guardou silêncio durante uns instantes e então, da maneira mais inesperada, começou aos gritos. Os guinchos de sobres­salto que ouviu confirmaram-lhe que havia alcançado o seu objectivo: desconcertar aqueles pacóvios. Depois, com as pálpe­bras cerradas, estendeu a mão até os seus dedos tocarem numa das tábuas. Com um gesto solene, elevou-a sobre a sua cabeça e descreveu três círculos sobre a parte superior da sua cabeça.

- Lúcio - disse num tom firme e faustoso, como se fosse um sacerdote através do qual um deus se dirigia aos simples mortais. - O teu ventre atormenta-te.

- É verdade! É verdade! - soou uma voz lá ao fundo.

- Não te preocupes. Vai passar daqui por dois dias - e cortou o entusiasmo do homem, ao mesmo tempo que lançava uma breve vista de olhos à tábua, a depositava sobre a mesa e pegava noutra.

Voltou a repetir o ritual de elevar a tábua até à cabeça e traçar com ela três círculos. Sem a baixar, disse:

- Pórcia. Desejas satisfazer o teu esposo. Bem, haverá algo melhor que uma boa esposa possa desejar?

Um murmúrio de risinhos percorreu o salão. Uma jovem de cabelos avermelhados e tez corada baixava os olhos. Sim, devia ser ela. Arnúfis depositou a tábua sobre a mesa e pegou numa ter­ceira, repetindo todo o processo usado para as tábuas anteriores.

- Vitélio - disse. - Não fiques apreensivo com esse negócio. Tudo correrá bem ou, se assim não acontecer, os deuses, que te são muito favoráveis, fazem-te lucrar ainda mais num outro.

- Por Júpiter, vai valer a pena ter vindo aqui! - comentou, sorridente, um homem de cerca de quarenta anos, de cabelo encrespado e olhos irrequietos.

Arnúfis lançou um olhar rápido à tábua, pousou-a sobre a mesa e pegou noutra. Repetiu o ritual até chegar ao fim do monte de tábuas. Não se enganou uma única vez. Acertou sem­pre no nome do interessado e no problema que este havia escrito. Em todos os casos referiu uma possível solução, ou proferiu um prognóstico favorável. Em todos os casos incutiu nos presentes a convicção de que estavam a presenciar algo que ultrapassava em muito os limites da conduta normal entre os mortais. Aquele homem estava possuído - quem duvidaria? - por um poder abso­lutamente sobrenatural, indescritível, surpreendente. Era esse poder que lhe permitia adivinhar o que aparecia em cada tábua com absoluta exactidão, e acrescentar em seguida um prognós­tico ou um remédio.

Arnúfis abandonou a domus seguido de Demétrio que a custo conseguia transportar todos os presentes que havia recebido. Contudo, além das moedas, do presunto, do vinho, do azeite, o mago egípcio levava consigo algo de uma importância muitís­simo maior. A satisfação que advinha da certeza de que os dias da fortuna - verdadeira, real, que ultrapassava a mera sobrevi­vência, mesmo que desafogada - tinham chegado.

 

         VALÉRIO

 

AO RENDEREM-SE, os homens do cen­turião Grato salva­ram a vida. Durante os meses que se seguiram, tiveram muitas ocasiões para lamentar o facto de não terem morrido em com­bate. Apesar de terem exigido, pedido, suplicado, os partos não lhes deram de comer nem de beber durante dois dias. Dois dias em que caminharam debaixo de um sol que se abatia sobre eles como chumbo derretido, dois dias em que não deixaram de receber pancada dos seus captores, dois dias durante os quais não deixaram de se perguntar o que iria suceder-lhes quando chegassem ao seu destino. Chegaram por fim a uma povoação cinzenta e cheia de pó, perdida no meio do nada.

- Dar-nos-ão água aqui? - ouviu Valéria um dos legionários mais veteranos murmurar. O corpo desse soldado parecia ter mirrado nas últimas horas, como um odre que se esvaziasse.

Ninguém se atreveu a responder à pergunta. Ansiavam por uma resposta afirmativa, mas não tinham qualquer certeza de que assim fosse.

Nesse dia, em que o sol abrasador foi coberto por nuvens finas e esbranquiçadas, deixaram-nos beber uns goles antes de os fecharem dentro de algo que se assemelhava a uma pocilga.

Puderam até dormitar umas horas, deitados num chão sujo, cheirando a esterco.

Foram arrancados aos sonhos com pontapés de alguns cava­leiros partos. Penetraram no recinto imundo e escolheram três presos. Certamente foi uma selecção ao acaso, sem qualquer motivo determinado, mas com um propósito bem óbvio. Valério, exausto e adormecido, apercebeu-se de tudo quando já os levavam aos empurrões.

- Mas... mas para onde os levais?

- Que vão fazer-lhes?

- Bárbaros! Miseráveis! Bárbaros!

Os partos não deram qualquer resposta aos prisioneiros.

Apenas um deles, antes de fechar a porta da pocilga, apontou para uma das janelinhas efectuando, a seguir, um gesto obsceno.

Por um segundo, os homens de Grato permaneceram imó­veis, sem entender coisa alguma, mas, de repente, um pressenti­mento empurrou-os contra a parede vazia. Apinharam-se como moscas que, gulosas, ansiassem por mel. O que viram tinha um sabor amargo.

Os legionários deram alguns passos com as mãos sobre o rosto, a fim de protegerem os olhos cansados e vermelhos. Por isso, demoraram a perceber que estavam a ser conduzidos a uma praça vazia, situada a umas centenas de passos da pocilga e onde se erguiam três postes. Só quando ouviram os rugidos da multi­dão, colocada em semicírculo, começaram a suspeitar de qual ia ser o seu destino. Tentaram resistir, mas foi inútil. Algumas bastonadas, aplicadas com energia, acabaram com a fraca resis­tência dos infelizes. Arrancar-lhes os farrapos, amarrá-los e prendê-los aos postes foi só o que os partos tiveram de fazer.

- Que se passa, optio? - perguntou um dos legionários a Valério.

- Não me maces - cortou Grato, que era juntamente com o optio, o único que podia assomar a cabeça pela minúscula jane­linha.

O legionário deu alguns passos à retaguarda e murmurou: - Bem... mas diz-nos o que se passa...

O que se passava não puderam vê-lo, mas ouviram-no.

Ouviram com toda a nitidez os gritos horrendos de alguns homens que os partos esfolavam com habilidade e deleite; e as aclamações de uma multidão ávida de assistir ao sofrimento dos seus inimigos. Deixaram-nos pendurados dos postes para que as suas últimas horas de agonia fossem agitadas pelo bater dos excrementos e das frutas podres que os partos lhes arremes­savam; pelas picadas cruéis e gulosas dos insectos; pela incle­mência do sol.

- Não saias da janelinha, optio - disse Grato pouco depois de começar o pesadelo.

- Não - respondeu Valério em voz baixa, consciente de que o centurião desejava poupar os seus homens da contemplação do horror.

Após aquela manifestação de crueldade, os sobreviventes às ordens de Grato ficaram reduzidos exactamente a vinte e dois. A baixa que se seguiu foi a do legionário mais jovem. A sua morte não se deveu, desta vez, ao desejo de entreter os especta­dores; fora ele que decidira resistir ao desejo que um oficial parto tinha de dormir com ele. Depois da negativa, o bárbaro insistira e o rapaz acabara por lhe puxar a barba e por lhe bater no rosto. Esfolaram-no. Lentamente. Para lhe causar maior sofrimento.

Morreram mais três homens um mês depois, nas minas para onde os enviaram e onde se encontraram com outros prisio­neiros romanos; foi por causa de um desabamento que os encur­ralou. Suplicaram, choraram, gritaram para que lhes fosse permitido resgatá-los, mas o chefe dos partos considerou que não valia a pena correr o risco de novos acidentes para salvar três escravos que tão pouco lhes haviam custado.

Não morreu mais nenhum homem nas minas, mas dois ficaram cegos em consequência do pó que se desprendia das pare­des quando as picavam. Como precaução frente àquela eventua­lidade, haviam recorrido ao expediente de tapar a cara com um pedaço de tecido para se protegerem daquele material que lhes enchia o peito, a boca e os olhos. A medida, só por si, não garan­tia a sobrevivência, mas tornava mais lento um processo inegável de envenenamento. No entanto, ocasionalmente, diminutas partículas daquele material acabavam por chegar ao rosto dos homens. Talvez com um pouco de água, um pouco de limpeza, um pouco de higiene, os efeitos tivessem sido nulos. Não foi o que sucedeu, e muito rapidamente a infecção manifestou-se sob a forma de lágrimas e inchaço. Grato, Valério e os restantes legionários tentaram esconder aos guardas o que acontecia. Agarravam os companheiros quando tinham de andar, coloca­vam-nos dissimuladamente no local de trabalho, tinham todos os cuidados para que não perdessem água nem comida. Acabaram por descobri-los, mas, desta vez, os partos foram invulgarmente clementes. Limitaram-se a degolar os que esta­vam cegos.

A partir desse episódio, Grato, Valério e os restantes homens decidiram manter-se juntos a qualquer preço. Juntos continua­riam a ser escravos ou juntos fugiriam; juntos morreriam de fome ou juntos repartiriam a miserável esmola que lhes davam os partos; juntos, em última instância, se salvariam ou se conde­nariam. Quando a debilidade, o desânimo, a dor pareciam insu­portáveis, diziam uns aos outros que não eram bárbaros como aqueles que os exploravam e sim romanos, filhos de um povo que submetera o mundo e civilizara mil nações. Outros podiam vergar-se, mas eles não. Assim, cada dia, cada hora, cada instante que passava significava uma pequena vitória na luta contra uma morte que nunca se apresentaria plácida nem tranquila. E quem sabia se, no fim de tudo, não conseguiriam vencer aquele con­fronto, se os deuses não lhes permitiriam regressar a Roma? Havia que sobreviver, e essa sobrevivência outorgava, em si mesma, um sentido às suas vidas miseráveis. Foi precisamente essa decisão, marcada por um misto de disciplina e do sacrifício, que conseguiu que, ao contrário das outras unidades que haviam sido feitas prisioneiras dos partos, aquele resíduo não perecesse. E, no fim de tudo, quando já quase estavam habituados à misé­ria e à fome, parecia que os deuses, caprichosos e esquecidos, se tinham apercebido deles: o reino dos partos, num gesto de boa vontade, decidiu devolver ao senado e ao povo romano os escassos sobreviventes de uma derrota histórica. Desse modo, os homens de Grato regressaram a Roma, pensando que tinham conseguido tomar a vida entre as mãos, quando na verdade, os corpos de alguns deles só albergavam a morte.

 

         RODE

 

- TENS A CERTEZA? - Plácida assentiu, e, no olho semicer­rado por efeito da queimadura, surgiu uma pequena lágrima brilhante.

- Mas... mas não puseste o pano com vinagre?

- Pus sim - choramingou Plácida. - Como sempre.

- E era um vinagre bom? - indagou Rode surpreendida.

- Quero dizer, não se trataria de uma mistela, de vinagre mistu­rado com água?

- Era vinagre do melhor, Rode. Do melhor. E o pano estava muito limpo. Eu mesma tive o cuidado de o lavar.

- E colocaste-o bem? - perguntou cada vez mais estupefacta Rode.

- Mulher, já fiz isso centenas de vezes - respondeu Plácida, enquanto limpava as lágrimas com a mão. - Achas que não sei fazer as coisas depois de tanto tempo...

Rode guardou silêncio enquanto começava a morder os lábios. Não queria acreditar no que estava a acontecer à sua amiga. Não podia ser e não podia ser não só porque se tratava de uma verdadeira desgraça, mas também porque essa desdita podia cair sobre ela como um milhafre que agarra a presa, lan­çando-se sobre a mesma em voo picado.

- Então - disse por fim - não tens a menor dúvida de que estás grávida?

Um soluço mal contido foi a resposta de Plácida. Rode aproximou-se dela e abraçou-a.

- O que será desta criatura? - balbuciou Plácida. - Será uma escrava como nós... como nós...

- Pode ser que nasça um rapaz... - tentou consolá-la a amiga. - Ainda é cedo para nos preocuparmos.

- Ainda seria pior - disse a meretriz, erguendo a voz. - Nós, ao fim e ao cabo, sempre podemos dar uma volta às coisas, ir em frente, sobreviver, mas um homem... mandam-nos para as guer­ras, para as minas, para qualquer lugar, e a eles atacam-nos sem receio de que fiquem estropiados.

Não deixava de ser peculiar que uma mulher com o rosto deformado por uma queimadura fizesse tais observações e, não obstante, Rode era obrigada a reconhecer que o que ela dizia correspondia, sem sombra de dúvida, à verdade. Aquela criatura que ia nascer dentro de alguns meses seria submetida à escrava­tura. Se fosse uma mulher, o seu destino seria tornar-se uma meretriz como elas; se fosse homem...

- Talvez não nasça... - disse Rode, tentando dar algum consolo à amiga.

- Talvez, mas se nascer... se nascer... que vai ser dele se nascer?

 

         CORNÉLIO

 

O COSTUME romano exigia que se lavassem todos os dias as mãos e as pernas por questões de trabalho, mas salientava que o banho completo - se possível em água quente - devia ter lugar de nove em nove dias. Isto, claro, pensou Cornélio, era mais do que suficiente, mas, no estado em que chegou a casa depois do incidente do esgoto, não lhe pareceu que devesse esperar tanto tempo. Pensava em quem poderia indicar-lhe o lugar mais próximo - e mais adequado - para tirar aquela camada de porcaria, quan­do a sorte lhe bateu à porta. Uma missiva de um tal Lúcio Sexto Calvo convidava-o a comer nos banhos. O normal teria sido con­vidá-lo para a sua domus, mas era possível que Calvo desejasse manter segredo sobre o encontro. Sim, era uma boa ideia, no meio do vapor das termas, o contacto pareceria a todos mera­mente casual.

Quando os banhos abriram as suas portas ao meio-dia, já Cornélio estava à espera. Tentando moderar a pressa, entrou no apodyterium. Aí, retirou toda a roupa e, mediante uma generosa gorjeta - um conselho do pai -, certificou-se não só de que o , empregado guardava os seus pertences com verdadeira devoção, mas também que lhe proporcionaria uma certa intimidade.

Noutras circunstâncias, Cornélioa teria feito um pouco de exer­cício, mas, depois da experiência do esgoto e do esgotante regresso a casa, decidiu que seria melhor que o seu corpo desfrutasse da sucessão de banhos a diferentes temperaturas que a experiência de séculos inculcara nos costumes romanos. Assim, começou por entrar no frigidarium, a sala alta, pequena e escura rematada numa cúpula, com uma abertura no meio onde se tomava o banho frio. Apesar de a maioria das mulheres se quei­xarem desta parte do ritual termal, e de alguns homens sentirem um profundo desagrado no contacto da água semigelada sobre a pele, Camélia experimentou um curioso prazer ao ver-se sub­merso no líquido gélido. Procurando regularizar a respiração que era cortada pela baixíssima temperatura, deu algumas bra­çadas e disse a si próprio que tinha de resistir. Tratava-se de um comportamento típico de um jovem, que consiste em experi­mentar circunstâncias incómodas e até mesmo desagradáveis pelo simples prazer de se sentir forte; o género de comporta­mento que os mais experientes evitam, por mera comodidade ou porque já não faz sentido para eles passar um mau bocado sem qualquer necessidade. Camélia aguentou muito bem, talvez porque enquanto nadava deixava que a sua imaginação diva­gasse, pensando como seria atravessar um rio gelado na fron­teira e como se achava mais do que preparado para enfrentar tal dificuldade. Dificilmente poderia ter-se sentido mais satisfeito do que quando abandonou a sala em direcção ao tepidarium.

Como todas as dependências termais que recebiam este nome, o tepidarium era uma sala de passagem. Os seus bancos de mármore e o seu ambiente ameno, serviam para que os banhis­tas se adaptassem melhor à diferença de temperaturas existente entre o frigidarium e a sala seguinte, o caldarium. Camélia teve uma sensação agradável naquela sala. Através dos braços, das pernas, dos pés e até nas faces, parecia estender-se um fluido agradável e revigorante, capaz de arrancar o cansaço que se agar­rara aos seus ossos durante a noite do esgoto.

Estava há um bom bocado no caldarium quando avistou um homem que se aproximava dos mais jovens. Viu-o pronunciar algumas palavras e receber o que lhe pareceu ser uma negativa. Logo a seguir, verificou que se dirigia a outro rapaz. Cornélio franziu a testa. Nunca conhecera um sodomita, mas o seu pai advertira -o para a presença destes em Roma, referindo as suas preferências pelos mais jovens. A tratar-se de um desses degene­rados, era melhor que não se enganasse, aproximando-se dele... Estava nesse ponto do seu raciocínio quando viu que o homem vinha na sua direcção. Conteve a respiração Se não o incomo­dasse, nada aconteceria, mas se lhe fizesse alguma proposta, se se lembrasse de, se...

- Sou Dionísio, escravo de Lúcio Sexto Calvo. Estás à espera do meu amo?

Cornélio abriu a boca uma ou duas vezes antes de conseguir dar uma resposta. Imaginara tanto aquele momento que agora, não sabia que responder.

- Sim - acabou por dizer num fio de voz.

- O meu amo, Lúcio Sexto Calvo, espera-te para comer.

Rogo-te que me sigas.       

Um pouco confuso com aquela surpresa, Cornélio pôs-se de pé e seguiu o escravo. A distância era de poucos passos, apenas os que mediavam entre a piscina onde se encontrava e um cubí­culo afastado dos olhares de todos graças a uma cortina.

- Cornélio! Cornélio! - disse uma voz mal ele entrou na sala. - Que alegria ver-te!

O homem que veio ao seu encontro teria a idade do seu pai, mas não se parecia com ele. Em boa verdade, tinha um aspecto 'peculiar. O cabelo, não mais abundante do que o do seu progeni­tor, era encaracolado e apresentava um tom demasiado escuro.

Quanto ao resto, bem, não teria sabido descrevê-lo, mas tinha a impressão de observar algo de totalmente artificial.

- Bem-vindo, Cornélio - disse enquanto lhe dava palmada_ nos braços. - És igual ao teu pai quando tinha a tua idade. Bem, igual, não. Não, és mais alto. E resolveste tentar a tua sorte em Roma, certo?

- O meu desejo é...

- Não, Cornélio - atalhou Lúcio com um sorriso. - Não come­ces nunca uma frase dizendo «o meu desejo é» ou «quero» ou algo do género. Nada disso. Causa má impressão. Tens de con­vencer os outros de que procuras o melhor para eles. À pessoa de quem pretendes algo, por exemplo. Entendeste?

O rapaz assentiu, embora não tivesse a certeza de ter enten­dido o que Lúcio dizia.

- Bem - prosseguiu -, e agora conta-me por que vieste a Roma.

Cornélio engoliu em seco, respirou fundo e em seguida, pausadamente, disse:

- Roma precisa de soldados. Quero servi-la com as armas.

Lúcio abriu mais os olhos, surpreendido pelo modo como o rapaz assimilara o seu conselho.

- Bem, bem... lá espevitado és tu. Certamente que se arranja alguma coisa. Mas antes de tratarmos dos teus assuntos, que tal se comêssemos alguma coisa, parece-te bem?

- Sim, domine, claro que sim - respondeu Cornélio.

Lúcio fez um sinal de mão para que se encostasse no triclínio e, em seguida, bateu as palmas.

- Verás, Cornélio - começou a dizer. - Ao contrário do que muitos pensam, aqui em Roma não se come bem. Até há pouco tempo, ninguém conhecia o pão e o trigo era utilizado para pre­parar a puls, uma sopa viscosa. I

O rapaz calou-se. Não achava a puls tão má como isso. Além disso, pensava que era mais prudente não falar demasiado.

- Aqui - prosseguiu Lúcio - quase ninguém come quando se levanta de manhã. Um sumo, um simples bocado de pão, ou mesmo um pouco de água. Para compensar, o almoço, ao meio­, -dia, é uma refeição forte. Olha, ordenei aos meus escravos que se esmerassem.

Não era possível saber se se tinham esmerado ou não, ainda que fosse realmente inegável que haviam posto todo o seu empenho em transmitir um imenso cuidado na colocação das várias mesas. Estavam cobertas por toalhas brancas feitas à mão, mas era possível ver-se, pelo número de pés, que não eram menos de quatro mesas repletas de comida. Os conhecedores da boa cozinha afirmavam que a comida tinha de ir ab ovo usque ad mala (nota 13), isto é, do aperitivo às sobremesas. Lúcio tinha dado ordem para que lhes servissem três tipos de pratos. O primeiro - a gus­tatio ou promulsis - deveria ser ligeiro, por isso na mesa diante da qual se achava Lúcio estava disposta uma enorme quantidade de ovos, legumes, peixe e marisco. De qualquer modo, eram ali­mentos preparados de modo muito simples.

Sobre a segunda mesa, um pouco mais larga e mais longa do que as outras, agrupavam-se travessas e recipientes contendo o prato principal ou forte, a denominada primamensa. A profusão de legumes e carnes cozinhados numa quantidade e qualidade excepcionais teria satisfeito o mais sofisticado comensal. Refogados, fritos, cozidos ou com molho, os produtos da terra rivalizavam no sabor com as codornizes, os pombos, as costele­tas de porco, os pedaços de carne de vaca guisada e os presuntos envoltos em farinha e mel.

Os pratos da segunda mesa não ficavam a dever nada aos que estavam colocados sobre o móvel anterior. Azeitonas, frutas, pastéis e doces acumulavam-se, impregnando o ar com os seus aromas suaves e tentadores. Contudo, o mais especial, o mais delicado, o mais sugestivo era o manjar que estava escondido num recipiente cilíndrico. No seu interior, fundiam-se, numa deliciosa mistura, a neve trazida de longas distâncias e o líquido meloso de pêssegos cuidadosamente escolhidos. O sorvete de fruta era a verdadeira pérola daquela refeição.

Enquanto os escravos começavam a passar à frente deles as bandejas da primeira mesa, Lúcio decidiu ir directo à questão.

- Como te deste por cá durante todos estes dias?

Lúcio falara com o rapaz em grego, em vez de o fazer em latim. Aquela mudança de língua - normal entre gente de posi­ção elevada - estava carregada de sentido. Por um lado, era um sinal de que Lúcio considerava o seu convidado um homem de cultura. Tratava-se de uma cortesia, tendo em conta que aquela era a primeira vez que punha os pés em Roma. Mas, por acrés­cimo, deixava bem claro que o assunto que iam tratar não era de escassa importância. Muito pelo contrário. Deveria ser abor­dado noutro idioma, para que os escravos não pudessem contá­-lo noutro lugar.

Cornélio não era, naturalmente, um erudito, mas sabia o sufi­ciente de grego para o falar com fluência. Era um idioma que não agradava a muitos romanos, mas era a língua dos negócios e, nas casas de qualquer família que se considerasse importante, era normal que os filhos homens tivessem um preceptor que, se não fosse grego, pelo menos estava habilitado a ensinar o idioma de Platão e Aristóteles.

- Bem, bem... - respondeu Cornélio, que não pudera evitar um calafrio ao recordar a experiência da noite anterior. - Roma é muito interessante.

- Se é... - sublinhou Lúcio, com um sorriso. - E não sabes tu I como mudou nos últimos tempos. Os Antoninos estão a revelar­-se césares extraordinários. Quem diria? Afinal, são uns provin­cianos da Hispânia. A propósito de Hispânia, quero que proves este vinho.

Fez um aceno e um escravo, magro e calvo, aproximou-se com um jarro refulgente. Contudo, Lúcio não deixou que ele o ser­visse. Pelo contrário, ele mesmo deitou o vinho do recipiente dourado para uma das taças bojudas, estendendo-a a Cornélio. Depois, observou o recém-chegado a saborear com prazer o líquido avermelhado.

- Que tal? - perguntou Lúcio, não conseguindo ocultar um sorriso de satisfação.

- Não... percebo muito de vinhos, mas este parece ser muito bom.

Lúcio deixou escapar uma gargalhada. Cornélio divertia-o. As suas respostas, os seus olhares, o seu tom de voz, principal­mente o seu desejo de agradar, transportavam-no a uma época em que tinha sido muito mais jovem e as suas ilusões tinham um sentido. Agora, os sentimentos que o seu coração abrigava eram talvez mais maduros, mas sem dúvida muito diferentes.

- Alguma vez provaste os caracóis à romana? – perguntou Lúcio.

- Não... - respondeu Cornélio, que tinha dificuldade em acompanhar o ritmo daquelas novidades.

- São excelentes - disse Lúcio, enquanto pegava na colher­zinha pontiaguda de metal que se achava sobre a mesa, e que permitia esgravatar no interior da casca dos caracóis - mas têm de ser comidos com isto.

Como referira o anfitrião, os caracóis eram magníficos. Com efeito, Lúcio permitiu que o seu convidado engolisse meia dúzia de moluscos picantes antes de voltar a dirigir-lhe a palavra.

- Tens mesmo a certeza de que queres entrar nas legiões? - Sim - respondeu Cornélio com uma firmeza que contras­tava com a sua pouca idade.

- Bem - assentiu Lúcio. - Que sabes da situação na fronteira? - A situação na fronteira... - repetiu Camélia como que num eco.

- Sim, foi o que eu disse - confirmou o anfitrião antes de beber outro copo de vinho. - Que sabes dela?

Camélia mastigou pensativo os últimos restos de comida que tinha na boca, engoliu e disse:

- Tanto quanto sei, é tranquila. O César Marco Aurélio é um homem sábio, um filósofo...

Lúcio levantou a mão direita, agitando-a no ar como se qui­   sesse afugentar uma nuvem de insectos agressivos.

- Receio bem, Camélia - disse por fim -, que não saibas nada.

O rapaz baixou a cabeça envergonhado. Decerto o que o amigo do seu pai acabava de dizer era absolutamente correcto.

- Olha, rapaz - começou a explicar Lúcio. - Nesta vida, tudo é fácil de entender se souberes como. Roma não é excepção.

Estás a acompanhar-me?

Cornélio assentiu.

- Bem - prosseguiu Lúcio. - Olha para esta mesa. Porque motivo não cai ao chão? Muito simples, porque se apoia em qua­tro pés. Também Roma está apoiada sobre os seus... chamemos­-lhe pilares. O primeiro é o respeito pela lei. A jus, nosso direito incomparável, assegura ordem e civilização e fá-lo em qualquer ponto do império. O mesmo acontece quer estejas em Cápua ou em Alexandria, em Atenas ou em Éfeso. Em todo e cada um des­tes lugares, encontrarás lei e ordem. Lei e ordem. Os criminosos são rigorosamente castigados, as dívidas cobram-se e os escravos          fugitivos são entregues. Estás a entender?

- Julgo que sim.

- Bem - disse Lúcio, sorrindo. - O segundo pilar que sus- , tenta Roma é a religião. Naturalmente, cada romano e cada estrangeiro que viva dentro das nossas fronteiras pode adorar o deus que desejar. Levantámos até altares ao deus desconhecido porque não queremos que nenhuma divindade se sinta ofen­dida por não lhe rendermos culto. Contudo, adore-se quem se adorar, temos presentes duas coisas: a primeira, que nunca se pode desprezar outro deus, e a segunda, que também não é possível desconsiderar César. César é adorado e esse facto não admite discussão de qualquer espécie. Continuo?

- Por favor.

- O terceiro pilar é o exército - continuou Lúcio - e trata-se

de um pilar indispensável, mais ainda do que os outros se possí­vel, porque sem ele nada seria sustentável. O exército assegura a ordem e a aplicação da lei, o exército protege o culto dos blasfe­mos e dos irreverentes, que poderiam fazer com que fôssemos vítimas do castigo dos deuses, e o exército defende as nossas fronteiras dos bárbaros. A pergunta agora é: como e porquê?

- Como e porquê? - disse Cornélio.

Lúcio esboçou um sorriso de satisfação enquanto aproximava dos lábios um bocado de pão.

- Comecemos pelo porquê. Roma é o centro da História. Superámos os persas de Ciro, os gregos de Alexandre, todos os povos, em todas as épocas. Tal facto provocou inveja e cobiça. Invejam o nosso progresso, os nossos avanços, a nossa riqueza e anseiam por eles. É assim desde o tempo em que éramos uma modesta república. Se não fossem as nossas legiões, os mauri do Norte de África, os germanos das florestas do norte, os gauleses agora submetidos, teriam acabado connosco há muitos séculos. As nossas legiões contiveram-nos, derrotaram-nos e, quando necessário, submeteram-nos e civilizaram-nos. Se as nossas legiões não puderem um dia - os deuses não permitam que tal aconteça - defender as fronteiras, os bárbaros arrasarão séculos de cultura. Todo o território do império ficaria reduzido à bar­bárie. Compreendes até aqui?

Cornélio assentiu sem abrir os lábios.

- Perfeitamente - disse Lúcio, satisfeito. - Agora passemos ao como. É claro que não é fácil manter a ordem no maior império que o homem conheceu até hoje. Conseguimo-lo, em parte, por­que aquilo que oferecemos aos povos submetidos é melhor do que o que eles tinham antes. Contudo, o mais importante é arti­cular um corpo de legiões que nos permita defendermo-nos dos ataques, ainda que estes sejam poderosos, diversos e se produ­zam ao mesmo tempo. Durante as últimas décadas, não foi uma tarefa simples. Primeiro Trajano, um hispano, conseguiu esten­der os nossos limites até à Dácia e à Mesopotâmia. Não foram guerras fáceis, mas proporcionaram-nos uma quantidade sufi­ciente de terra entre nós e os bárbaros, permitindo que nos protejamos de uma surpresa desagradável. O seu sucessor, Adriano, naturalmente também hispano, decidiu evacuar um desses territórios, mas reagiu com força contra os judeus que decidiram sublevar-se durante o seu principado. Ah, foi um grande césar! Pena que sentisse inclinação por jovenzinhos e no fim da vida andasse a chorar pelos cantos ou a executar pessoas! Quanto ao actual césar... Olha, Cornélio, vamos esclarecer as coisas desde o princípio. Diz-se que é um filósofo, que admira esses gregos que gostam de perder tempo a discutir patetices, isto e aquilo... A verdade é que demonstrou ter uma mão de ferro. Há uns anos, esmagou os arménios, que perturbavam as nossas fronteiras, e não me parece que tenha escrito nenhum tratado de filosofia para justificar a sua dureza. Há poucas sema­nas, os cuados, os sármatas e os marcomanos começaram a agitar a nossa fronteira no rio Íster. Que pensas que fará Marco Aurélio perante tal ameaça?

- O mesmo - respondeu Cornélio, que experimentava a sensação de estar a ser esclarecido, de forma excepcional, sobre o funcionamento do império.

- Exacto, rapaz, exacto - disse Lúcio, divertido. - É isso mesmo que ele fará.

Fez um sinal e um escravo aproximou-se para lhe encher novamente o copo.

- Diz-me, Camélia, que acharias de servir o senado e o povo de Roma, participando nessa campanha?

- Acharia... acharia extraordinário... - foi tudo o que o jovem conseguiu responder.

Lúcio sorriu, ao mesmo tempo que um brilho estranho, astu­to, divertido, espreitava nas suas pupilas negras.

- Alegra-me que assim seja - disse. - Consegui-te um lugar de tribuna laticlavio nas legiões que irão defender a fronteira junto ao rio Íster.

O jovem abriu a boca surpreendido. É claro que sabia que o amigo do seu pai poderia ajudá-lo a encontrar o seu destino. Ouvira dezenas de vezes que se tratava de um homem influente, poderoso, mas mesmo assim, seria normal agir com tamanha rapidez? Lúcio abriu as mãos, estendendo-as como se desejasse deixar bem claro que não escondia coisa alguma.

- Roma é assim, querido Camélia. Na verdade, é assim.

 

         ARNÚFIS

 

A CORNUCÓPIA da abundância verteu as suas dádivas, generosa­mente, sobre a vida de Arnúfis durante os meses que se segui­ram. Como se uma divindade benévola tivesse resolvido aben­çoá-lo, começaram a chegar verdadeiras procissões de cidadãos interessados em que ele lhes anunciasse o que o futuro lhes reservava, que lhes fornecesse remédios para dores reais ou ima­ginárias, que lhes resolvesse os problemas mais diversos. Ficou apenas mais duas semanas na vivenda que habitava. Era dema­siado miserável - sim, miserável, não modesta - para acolher aquelas pessoas que se apinhavam à sua porta como moscas em volta do mel. Mudou-se para outro edifício não muito distante onde, depois de um forte regateio, conseguiu ficar com o pri­meiro andar. Só quando tomou posse da sua nova morada se apercebeu inteiramente das diferenças. Não dispunha - teria sido impossível em Roma - de mais silêncio ou de maior sos­sego. Contudo, havia água corrente e, sobretudo, havia um mecanismo que lhe permitia desviar os detritos para os esgotos sem que Demétrio tivesse de transportar urina e excrementos em baldes repugnantes e malcheirosos. Talvez não fosse muito, mas, depois de várias semanas num piso mais elevado, pareceu­-lhe extraordinário não ter de subir escadas, nem passar pela escuridão dos andares, cortada apenas pelos archotes fume­gantes do corredor, e não ser obrigado a ouvir os cantares e o ala­rido dos norte-africanos dos andares de cima.

A Fortuna batera-lhe à porta e não parecia disposta a abando­ná-lo. Arnúfis permaneceu apenas mês e meio naquele andar baixo. As pessoas continuavam a afluir. Começaram a aparecer liteiras de cidadãos abastados e a casa que pouco antes lhe pare­cera luxuosa parecia-lhe agora escandalosamente humilde. Na tarde em que partiu, acompanhado de Demétrio, para uma domus que ocuparia em gratificante solidão, era acompanhado por dois carros que carregavam os utensílios e móveis compra­dos durante esses poucos dias. E não se tratava apenas das suas aquisições. Havia que considerar também os presentes das pes­soas agradecidas pelo modo como ele interviera nas suas vidas.

Essa era sem dúvida a circunstância que mais satisfação dava a Arnúfis. Estava absolutamente consciente de que ganhava dinheiro a enganar incautos. Até aí nada a assinalar. Os esperta­lhões desde sempre se tinham aproveitado dos espíritos simples. O que não conseguia assimilar completamente era que os vigari­zados ainda por cima lhe agradecessem. A qualquer momento, regressavam para o gratificar pelo modo como lhes anunciara o futuro e - maravilha das maravilhas - contavam-lhe como se realizara algo que era exactamente o contrário do que ele havia previsto. Oh, as profundezas da necessidade humana! Oh, a inescrutável estupidez dos mortais! Oh, a insondável idiotice dos romanos e bárbaros!

Foi Demétrio quem encontrou a domus, e havia que fazer-lhe justiça, pois o achado valia a pena. Dividida em duas partes, o centro da primeira era um atrium e o da segunda um peristylum, um jardinzinho com colunas que dava para as diversas divisões. Segundo lhe tinham dito, essa segunda parte da casa era uma inovação na arquitectura romana, inspirada nas construções gregas. Arnúfis conhecera certamente vivendas desse tipo no Oriente, onde o grande Alexandre deixara a sua marca.

Mas, o que o mago mais agradeceu naquela nova casa, foi o facto de estar voltada para o interior e não, como os andares das insulae, para a rua. Dentro da domus era possível isolar-se, não ouvir gritos nem vozes, ficar a salvo do estrépito das carruagens. Cada dependência tinha ali uma finalidade concreta. Não eram divisões aleatórias, onde era indiferente que dormisse um escravo ou que se armazenasse comida, ou materiais da mais diversa espécie. Não, o cubiculum servia apenas para dormir; o triclinium, para comer, e assim sucessivamente.

Naquele ambiente de ordem e tranquilidade, havia manhãs em que Arnúfis se permitia a satisfação de se entreter no peris­tylum usufruindo do ar impregnado pelo aroma das flores. Naturalmente, fingia - as paredes tinham ouvidos e não podia baixar a guarda perante qualquer bisbilhoteiro - dedicar-se a práticas sérias e a rituais ocultos. Queimava incenso, esma­gava os mais diversos materiais no almofariz e balbuciava frases ininteligíveis, que os incautos tomavam por fórmulas mágicas. No entanto, a sua intenção era bem diferente: desfrutar da vida como em tempos o havia feito nas margens do rio Nilo.

Arnúfis sentia-se tão afortunado e os seus rendimentos eram tão significativos que chegou à conclusão que o melhor que tinha a fazer era comprar a domus e pensar na aquisição de uma villa rústica onde passar as temporadas de Verão. Sim, começou então a dizer a si próprio que Roma possuía efectivamente algo de especial. Não era a sua grandeza, porque havia outras cidades de magnitude semelhante. Também não se tratava da beleza porque Atenas ou Antioquia conseguiam ultrapassá-la nesse aspecto. Menos ainda se tratava dos seus habitantes, que Arnúfis considerava imensamente desagradáveis. Na verdade, a singularidade de Roma estava nas oportunidades de prospe­rar que a cidade oferecia. É claro que a maioria dos que chega­vam às suas ruas arrastados pelo oceano da vida não desembar­cavam, naufragavam. Contudo, os que tinham talento... Ah, isso era, sem dúvida, bem diferente! Exemplos era o que não faltava. Se os gregos tinham aberto escolas de filosofia, os hispanos dominavam as de retórica, nas quais ensinavam a falar o latim com elegância e correcção. Gente peculiar, os hispanos. Nos últimos tempos, até os imperadores provinham da Hispânia... e o azeite era magnífico. Assim, divagando sobre umas coisas e outras, a manhã decorria grata para o mago, que, de tarde e até bem depois do Sol se pôr, oferecia os seus remédios à socie­dade romana. E foi então, quando tudo decorria da melhor maneira, quando as coisas iam de vento em popa, que se deu a mudança.

A ocorrência deveu-se a algo de totalmente inesperado. Em boa verdade, a uma combinação verdadeiramente fatal de acon­tecimentos. Em primeiro lugar, alguns dos legionários que, perdidos entre as brumas e chuvas constantes, defendiam aquele estranho império, receberam licença para regressar a casa durante alguns dias. Não havia notícia de que algo seme­lhante tivesse ocorrido alguma vez, mas, pelos vistos, o césar acordara uma manhã tocado pela generosidade, e chegara à conclusão de que não lhes faria mal um pouco de sol antes de continuarem a bater-se com aqueles tipos loiros de aspecto repugnante. É claro que se o que desejava era unicamente expô­-los às radiações clementes de Hélios, poderia tê-los enviado para as costas da Dalmácia, para o Egipto ou para a Síria... qual­quer lugar, menos Roma.

A esta circunstância - talvez indiferente - veio juntar-se o facto de um, apenas um, mas apesar de tudo um, daqueles legio­nários veteranos conhecer Arnúfis. Certamente que este facto não teria interferido no seu destino se não se lhe juntasse um terceiro: o legionário em questão encontrou-se um dia no mer­cado com uma das escravas de Lélia. Não era muito formosa, nem muito limpa, mas vinha reunindo, desde há vários anos, um modesto pecúlio, graças ao expediente de se entregar à prática da prostituição nas suas horas livres. Como actuava à margem da lei não pagava impostos, e nunca lhe faltavam clientes, porque ninguém a consideraria, strictu sensu, uma rameira. Era, antes, uma escrava honrada, uma rapariga que não se dedicava à pros­tituição - aqui, seria legítima a pergunta sobre o que era isso -, apenas outorgava os seus favores com uma certa liberdade, acei­tando em troca não pagamentos, mas presentinhos. Que esses presentinhos fossem, a maior parte das vezes, dinheiro sonante, pelos vistos, não alterava a situação.

Talvez o encadeado de factos prejudiciais pudesse ainda ter sido contido se a escrava e o legionário se tivessem limitado à prática da fornicação, a comerem juntos e mais umas actividades prazenteiras. Não foi assim. A dado momento, a mulher certa­mente chegou à conclusão de que poderia acelerar o seu proces­so de emancipação, ou o veterano pensou que encontrara uma fêmea com quem se retirar quando chegasse à idade de se refor­mar. Chegados a este ponto, começaram a falar. Demasiado. A escrava pôs-se a dar pormenores sobre os senhores e, especial­mente, sobre Lélia. Falou demais. Apesar de tudo... apesar de tudo, talvez a história pudesse ter um final feliz para ele, não fosse a infeliz lembrar-se de referir os prodígios que um ariolus, que a sua dona tinha conhecido, conseguia realizar.

Pelos vistos, o legionário não tinha qualquer interesse naquela história e tentou inclusivamente mudar de conversa - decerto esse foi o último instante em que tudo poderia ter-se evitado -, mas, a dada altura, a rameira contou como ele deslumbrara o seu senhor e uma dezena de famílias abastadas de Roma.

- Mandou-lhes, portanto escreverem tudo isso em tábuas de cera... - disse, segundo parece, o legionário.

- Sim - deve ter respondido a intrometida -, e foi surpreen­dente. Incrível. Maravilhoso.

- Pois, a verdade é que... não vais acreditar, Marcela (ou Valéria, ou Antónia, ou como Júpiter quisesse que se chamasse a tagarela), mas há uns anos conheci um egípcio que fazia o mesmo.

- Um egípcio? Este também é egípcio - terá dito a lingua­ruda, provavelmente aplaudindo, satisfeita.

- Sim, era tudo mentira. Teve de se pôr rapidamente a milhas de Alexandria para que não o matassem.

- Mas... mas aquilo não se pode fingir - dizia certamente a coscuvilheira. - Como podes fingir que adivinhas e ainda por cima acertar?

E, nesse momento, a corrente que o arrastava, sem que ele soubesse, para a perdição, a vergonha e a ruína, recebeu o impul­so definitivo.

- Oh, é facílimo! - diria, enchendo-se de importância, o homem que nunca deveria ter abandonado as florestas da Germânia. - Queres que te explique?

E a patetinha, em vez de acrescentar uma moeda ao pecúlio e evitar criar-lhe problemas, dissera que sim! Claro, ao fim e ao cabo era mulher, isto é, padecia daquela curiosidade pelo desne­cessário que as caracteriza.

Nunca aparecia uma mulher empenhada na investigação das estrelas, ou da composição das esferas celestes, ou na arte de construir, ou no estudo a origem do cosmos. Tudo isso lhes era indiferente. No entanto, se a filha da vizinha ficasse grávida do vendedor de hortaliça, se o marido de uma irmã fosse infiel ou se uma prima tivesse um marido que ganhasse mais do que o seu próprio marido... esse tipo de questões punha-as loucas.

Porquê, Ísis refulgente, por que se teria aquela néscia lembrado de contar o que sucedera em casa da sua ama? Não saberia o que era ser discreto? Que iria ser de Roma se já nem o que os escra­vos diziam era controlado? Império que se preze tem de saber, antes de mais nada, o que não se diz...

- Revelou-lhe o truque, Kyrie - disse mais tarde Demétrio, com a preocupação estampada nos olhos, quando acabou de lhe relatar o sucedido. - Imagino que ficou a sabê-lo em Alexandria. Quando...

- Sei muito bem quando - atalhou Arnúfis com um movi­mento cortante da mão esquerda.

Sim, sabia perfeitamente. Recordava-o como se tivesse acon­tecido na véspera. Naquela altura, estava ele estabelecido havia três anos em Alexandria. Não, as coisas não estavam a correr-lhes tão bem como agora. Sim, apesar de tudo iam-se defendendo. Não, nada parecia indicar um progresso. Sim, contavam ficar mais algum tempo, pelo menos até saberem para onde ir. E então chegara à sua pequena casa - porque era sua, tinha con­seguido comprá-la graças à estupidez das pessoas - aquele grego com aspecto espertalhão. Agesilau. Isso mesmo, Agesilau. Quem se teria lembrado de dar o nome de um rei grego àquele mise­rável? Era alto, magro, com os cabelos grisalhos, caindo em cara­cóis largos. Noutras circunstâncias, tê-lo-ia tomado por um sodo­mita, mas, naquela altura não tinha tempo para pormenores.

- Preciso de sair de Alexandria - disse-lhe, num tom miste­rioso. - Não quero morrer sem regressar à Grécia.

- A viagem será calma - respondera-lhe.

- Será, certamente, mago - disse-lhe com um sorriso. - Tu vais dar-me um milhar de moedas de ouro para que possa fazê-la.

A princípio, nem conseguira reagir. Seria louco? Estaria a gozá-lo? A pedir-lhe um empréstimo?

- Acontece que sei como fazes o truque dos nomes e dos problemas, como adivinhas, tudo isso. Sei tudo. E o que eu sei vai custar-te mil moedas de ouro.

Arnúfis não disse palavra enquanto pensava na melhor maneira de resolver aquilo. Talvez o outro estivesse a tentar amedrontá-lo...

- O truque é muito fácil. Infantil - prosseguira o grego. - Basta ter um cúmplice entre os presentes. Tu pegas na primei­ra tábua e dizes qualquer coisa, o primeiro disparate que te vier à cabeça. Por exemplo, Androcles, os pés estão a dar cabo de ti. Nessa altura, o teu cúmplice grita: «Sim, é verdade. É isso mesmo.» E enquanto toda a gente se maravilha com os teus poderes recém-descobertos, tu lês a primeira tábua, onde está escrito, por exemplo, «Marco, não sei se devo divorciar-me». Nessa altura, levantas aquela tábua e dizes: «Marco, não penses duas vezes» e, logo a seguir, lês a outra tábua e coloca-la sobre a mesa. Deste modo, já sabes que na terceira aparece escrito: «Helena, gostaria de tirar as rugas.» A verdade é que, com este procedimento, estás sempre com uma tábua de avanço. Leste-as previamente. Sabes o que está escrito, mas os idiotas, que te observam com os olhos esbugalhados, julgam que estás a adivi­nhar segundo a ordem que lhes indicas. Quem te deu a primeira, mago? Alguma rameira? Um tendeiro?.. deixa-me pensar. Não, não, foi esse teu escravo chamado Demétrio. Ou não foi?

Sim, era sempre Demétrio quem fazia aquilo. Aquilo e o resto. Fora ele, por exemplo, quem dera uma tremenda coça, capaz de o matar, ao seu compatriota Agesilau. Deitou-o em seguida ao Nilo e regressou a casa com a boa notícia. Na verdade, era o que poderia ter acontecido, se Demétrio fosse mais cuida­doso. Por exemplo, pisando o pescoço de Agesilau até o partir. Não teve tal cuidado. Limitou-se a espancá-lo, chegando à con­clusão de que matara, e atirando-o às ondas do deus a quem o Egipto devia a sua existência. Infelizmente, aquela inoportuna e insolente criatura sobrevivera.

Salvaram-se porque Demétrio - desta vez, sim - estava atento e apercebeu-se de que uma multidão se aproximava da casa. Eram os legionários que vinham prendê-lo. Ao que parece vinham a antecipar os gritos que iriam arrancar-lhe depois de o crucificarem. Havia mesmo um que dizia algo acerca de uma bolsinha para os dados que tencionava fazer com os seus testí­culos. Fugiram a grande velocidade e, novamente graças a Demétrio, convenceram alguns vendedores de fruta a arremes­sarem a sua carga para o meio da rua, dificultando-lhes deste modo a passagem.

Nessa mesma tarde abandonaram Alexandria numa falua sem rumo certo. Para trás ficaram a casa - uma magnífica casa com quintal, e com um terraço de onde se via o Nilo, magnífico ao entardecer -, os móveis de marfim, as estatuetas de Bastet, Ísis e Osíris em ouro e pedras preciosas, e muitas outras coisas. Conservaram apenas o dinheiro amealhado e o ushebti de lápis­-lazúli, o valioso amuleto que garantia a vida no outro mundo. Não era pouco, mas havia que reconhecer que não chegava nem à vigésima parte dos seus bens.

Chegar à Síria foi uma experiência que Arnúfis jurou não vol­tar a repetir. Viajar de noite e dormir de dia, fugir dos lugares povoados e abastecer-se nos descampados, recear o mínimo ruído e assustar-se com a proximidade dos cavaleiros foram ape­nas algumas das delícias daqueles dias intermináveis. Só quando chegaram à Antioquia lhes ocorreu que talvez tivessem ultrapas­sado a parte pior da fuga. Não era engano. Mas o que veio depois... é melhor nem lembrar. Mais uma vez Arnúfis se viu obrigado a predizer o futuro a escravos ambiciosos, a aconselhar sobre os respectivos amantes a mulheres que já passavam dos quarenta, a advertir mercadores carentes de escrúpulos e carre­gados de receios. Assim foi conhecendo os portos, os ancora­douros, os lugares onde eram deitadas as redes naquele mar que os romanos denominavam orgulhosamente Nostrum. Até que um belo dia, decidira rumar até à capital do império...

- A casa está rodeada, Kyrie.

As palavras de Demétrio arrancaram-no das suas irritantes recordações. Porque tivera aquele legionário de vir até Roma, por que tivera encontro carnal com aquela escrava, por que motivo essa prostituta ocasional tinha de pertencer a Lélia, por­que tinham conversado sobre as suas vidas em vez de forni­carem, e, sobretudo, por que motivo tinham aquelas criaturas ao serviço do imperador estado em Alexandria ao mesmo tempo que aí vivia outro ser sinistro de nome Agesilau? Não sabia. Talvez nem sequer houvesse uma razão para tudo aquilo, mas o que havia, efectivamente era uma consequência, uma conse­quência clara e evidente. Uma vez mais era obrigado a fugir, e teria muita sorte se não acabasse a remar numa galera, ou pen­durado numa cruz romana.

 

           VALÉRIO

 

PEGARAM no ancião como se se tratasse de um fardo malcheiroso do qual era preciso verem-se livres quanto antes. Com cuidado, com repugnância, com medo, agarraram-no pelas axilas e pelos tornozelos e deixa­ram-no cair na valeta. É verdade que não o tinham deitado ao chão, nem amaldiçoado, nem pareciam odiá-lo. Apenas se livra­vam do velho porque estava doente e ninguém - nem mesmo os seus mais próximos - estavam dispostos a correr o risco de ser con­tagiados por aquele mal desconhecido e irremediavelmente letal.

Valéria observara a cena quando se dirigia para a casa de Grato e tapara logo o nariz e a boca, desviando-se rapidamente por uma rua lateral. Sabia que se os miasmas daquele conde­nado à morte o alcançassem, muito em breve seria outro morto a ser abandonado na valeta. De onde viria aquela praga que estava a causar centenas de mortes por dia? Ouvira dizer que se tratava de um castigo divino, algo semelhante às flechas que ApoIo lançara sobre os gregos durante a guerra de Tróia. Sim, talvez. A verdade é que as explicações sobre as origens daquele mal tinham sido bem variadas. Contudo, nenhuma delas conse­guira convencê-lo. Inclinava-se mais para pensar que era prove­niente daquela região perdida no Oriente, onde tanto sofrera.

Chegara a essa conclusão não por estar obcecado com aque­les anos - embora suasse das mãos sempre que recordava alguns episódios ocorridos no país dos partos - mas sim pelo que tinha visto. Durante o regresso, vários dos legionários libertados tinham sucumbido às doenças, e não tinham sido poucos os mortos lançados ao mar. Não sabia quando, de um modo que não podia sequer imaginar, aquela estranha maleita entrara nos seus corpos famintos, que certamente não tinham oferecido grande resistência. E não se limitara a corroê-los por dentro, arrancando-lhes a possibilidade de respirarem tranquilamente, inchando-lhes os ventres. Não, certamente a força que se achava por trás daquele mal considerara as presas de reduzido valor. Por isso, daqueles seus corpos saltara para os que estavam perto, sem atender à sua condição de escravos ou livres, homens ou mulhe­res, cidadãos romanos ou bárbaros. Nunca se vira poder tão cego e tão pouco limitado pelas diferenças humanas. A todos atacava por igual.

E foi então que Valéria descobriu duas circunstâncias que nunca antes pudera imaginar. A primeira foi que os médicos se haviam apressado a abandonar Roma mal se aperceberam de que existia uma epidemia. Isso surpreendeu o optio, porque, até então, todos os físicos que conhecera eram homens que serviam nas legiões. Tinham passado frio, calor, fome e sede, trabalhos e cansaços, do mesmo modo que qualquer outro homem que combatesse sob as águias de césar. Quando havia feridos ou membros fracturados, quando arrancavam a mão a um legio­nário ou partiam a cabeça a um centurião, acorriam, para repa­rar o mal. Raramente o conseguiam - era verdade -, mas, pelo menos, tentavam remediar a desgraça, curar a maleita e reduzir a dor. Como era óbvio, não fugiam do sofrimento. Contudo, os médicos de Roma eram bem diferentes. Cobravam aos clientes quantias elevadas, compravam vilas nos arredores, reconstruíam os ossos dos gladiadores ou vendiam pomadas de rejuvenes­cimento a damas vaidosas e, com efeito, quando chegava a hora da verdade, fugiam. Afinal, porque iriam prescindir de desfrutar das suas fortunas, amealhados no exercício da medicina, pelo risco de atender uns infelizes atingidos por uma estranha praga?

Valéria sentiu-se indignado com aquela conduta, mas o que o fez arder em cólera foi algo de, se possível, ainda pior. Descobriu que as famílias romanas não eram mais compassivas do que os médicos. Na verdade, estes limitavam-se a guardar distância de desconhecidos perigosos, mas as senhoras honradas, os pater famílias e os filhos, que estavam obrigados à piedade pelos deu­ses, deixavam de tratar os que eram da sua carne e do seu sangue. A filha abandonava a mãe que a amamentara, a esposa expulsava o marido e o pai bania o filho de casa. Regra geral, levavam-nos até às valetas e aí os deixavam. Vendo bem, tratava-se de uma prova de civismo. Deixavam os contaminados nos lugares onde não pudessem ser mais nocivos.

De nada servira afinal tanta precaução. Apesar das advertên­cias, dos insultos, dos escarros, das pancadas, os moribundos arrastavam-se até às fontes, ansiosos por aplacar a sede ardente com umas gotas de água, defecavam em qualquer parte, caíam no meio das ruas, onde a morte os surpreendia na tentativa de regressarem às suas casas.

Quando teria a doença cravado as suas garras em Grato? Com toda a certeza, depois de ele ter chegado a Roma. Durante a viagem de regresso nem ele, nem Valéria, nem qualquer um dos seus homens mostrara sintomas da praga. Na verdade, a chegada à capital infundira neles uma nova força que quase, quase pare­cia jovial. À espera de um novo destino, enquanto discutiam se iriam receber uma promoção, ou pelo menos alguma recom­pensa económica, chegaram a acreditar que o que havia suce­dido na Partia fora apenas uma experiência má, terrível, mas não definitiva nem irreparável. Mais cedo ou mais tarde, as legiões de Roma regressariam e recuperariam as suas águias e, se fosse essa a vontade dos deuses, estariam entre os que iriam esmagar aque­les bárbaros altivos. E foi então que tudo aconteceu.

Uma manhã, Grato informou-o de que um centurião perten­cente a outra das coortes derrotadas na Partia estava doente. Valério conhecia-o apenas de vista, mas Grato combatera ao seu lado no passado, e disse-lhe que pensava visitá-lo para lhe levar alguma fruta e vinho. O aspecto do homem, de pele translúcida e, ao mesmo tempo, escura, causou uma péssima impressão em Valério. Com efeito, pouco depois de ter chegado, balbuciou uma desculpa para se ir embora. O que talvez lhe tenha salvo a vida. Grato não tardou a adoecer e, em apenas uma semana, o mal alastrou como uma mancha de azeite em pano branco, e Roma viu as suas ruas transbordarem de mortos, essas mesmas ruas nas quais era impossível encontrar um único médico e onde as famílias abandonavam os seus seres mais próximos e mais queridos.

Quando tudo aquilo aconteceu, Valério lembrou-se do pacto feito na Partia, aquele em que dezenas de legionários se comprometiam a tratar uns dos outros no meio das maiores difi­culdades. Procurou então os seus antigos companheiros de cati­veiro. Não conseguiu encontrar nenhum. Os que tinham sido promovidos à categoria de optio estavam enquadrados em novas unidades, e os que continuavam simples legionários tinham sido os primeiros a sair da capital rumo a outro destino. Nem sequer tinha a certeza de que ainda estivessem vivos. Quer lhe agra­dasse ou não - e devia confessar que tinha algum medo da estra­nha doença que dizimava Roma -, era seu dever permanecer junto de Grato.

Tratou dele, embora o seu antigo superior não o quisesse ali, e quando a doença o derrubou no único leito que podia permitir-se um centurião à espera do destino, Valério sentou-se ao seu lado para o lavar, alimentar e animar. Como respirava o mesmo ar viciado que Grato, depressa começou a recear ter o mesmo fim, principalmente o seu próprio encontro, muito em breve, com Caronte, o barqueiro que o conduziria ao Hades. Só quando Grato caía num sono profundo, semeado de inquie­tos pesadelos, Valério se permitia levantar-se, e até sair por alguns momentos, para respirar um ar um pouco menos viciado que o daquele quarto.

Nessa mesma manhã, não tinha só observado o pobre velho abandonado pela família. Descobrira também, entre os olhares fugidios dos transeuntes, no seu caminhar acelerado, nos seus cochichos nervosos, que o seu rosto já não era o de um legio­nário de pele queimada e sim o de alguém tocado pelos dedos gélidos e nodosos das Parcas. Pensou, no mais profundo do seu coração, que não podia ser, que estavam enganados, que se tratava de um erro provocado pelo medo. Contudo, apressando o passo, fez a aposta mágica, já anteriormente feita por milhões de homens, e que mais milhões fariam depois. Disse a si próprio que, se conseguisse chegar a casa de Grato, não morreria, que bastaria chegar ao umbral da sua porta para salvar a vida, que só tinha de reter a alma no interior do peito até chegar àquela domus.

Quando dobrou a esquina, um suor espesso como soro come­çara a descer-lhe pelas costas como se lhe tivessem arremessado um balde de água. Mas não parou. Não podia parar. Se o fizesse - repetia a si mesmo uma e outra vez -, não se salvaria, não vive­ria, não voltaria a servir nas legiões.

Chegou sem fôlego à esquina irregular de um edifício de cinco pisos. Respirava com dificuldade. Apoiou-se na parede rugosa e pensou que lhe bastava dar mais alguns passos para alcançar a domus onde residia Grato. Só uns passos. Só umas passadas largas. Inspirou com força um ar que lhe pareceu mais viciado do que nunca, cerrou os punhos e começou a andar. Conseguiu dar seis, oito, dez passos e então, com se alguém lhe tivesse ceifado as pernas com uma foice gigantesca, viu-se pri­vado de toda a força, e viu as pedras da rua aproximarem-se rapidamente do seu rosto e sentiu uma pancada seca e surda. Tentou pôr-se de pé, mas não conseguiu. Com um enorme esforço conseguiu apenas afastar o rosto do chão e ver que sobre este caíam grossas gotas de sangue. Mas... mas não podia ser.. tinha que alcançar a domus...

Estendeu a mão direita como se pudesse agarrá-la e puxá-la para si. Mas foi apenas um movimento fútil em direcção a um objectivo inatingível. E então, tudo ficou escuro e a última coisa que sentiu foi a sua mão a ferir-se contra as pedras tão frias como o manto da Morte que viera à sua procura.

 

         RODE

 

CONTEMPLOU o corpinho. Era pequeno, avermelhado e dotado de um tufo abundante de cabelo negro. O parto não fora nada fácil, e além disso Plácida não tivera a sorte de a criatura morrer à nas­cença. Teria sido bom demais. Lançou uma vista de olhos a Plácida. Dormia um sono agitado, assaltado sabe-se lá por que pesadelos. A droga conseguira adormecê-la, mas não lhe propor­cionara paz. O cabelo, transformado em pasta suada colada àtesta, testemunhava aquela luta que, noutros seres, era prelúdio de alegria, mas nela significava apenas uma preocupação nova e angustiante.

Voltou a olhar o menino. Era bem constituído. Não entendia muito do assunto, mas quase parecia forte. Sim, não restavam dúvidas de que fariam dele um trabalhador mal completasse cinco ou seis anos. Primeiro, pô-lo-iam a acarretar lenha e água. Depois... só os deuses sabiam o que poderia acontecer depois.

Apertou-o contra o peito e mal pôde reprimir um espasmo ao aperceber-se do palpitar daquele corpo pequenino. Por um breve instante, sentiu, numa pulsão animal, o desejo de abando­nar os seus propósitos, de depositar o menino ao lado do corpo adormecido da mãe, e ficar a vê-lo procurar, ansioso, o peito de Plácida. Sim, teria sido muito... como dizer? Bonito, sim, bonito. Mas não havia espaço para a beleza naquela vida. Respirou fundo e abandonou o cubículo onde nascera o pequeno ser. Uma bofe­tada de ar frio, coalhada de flocos de neve, chicoteou-lhe o rosto. O calafrio foi inevitável, mas, ao mesmo tempo, o ar gélido pare­ceu aliviar um pouco o seu mal-estar.

No escuro, farrapos de luz prateada tinham começado a deslizar, vagarosos, à beira do castra. Tapou a cabeça com um manto e apressou o passo. Apenas a viram dois ou três legioná­rios que massacravam o chão para suportar a mordedura do frio. Nenhum deles disse o quer que fosse. Aquela meretriz limitava­-se, certamente, a cumprir o seu dever, apesar de ser ainda tão cedo.

O caminho serpenteante que acabava no bosque escuro estava quase coberto por uma neve dura e espessa. Apenas aqui e ali sobressaíam algumas pedras que, mesmo com a mortalha branca, indicavam a estrada construída com a maior competência pelos legionários.

Quando chegou perto das primeiras árvores, levava já os pés gelados e o frio começara a subir-lhe pelos tornozelos até alcan­çar as barrigas das pernas. Iam bem cobertas, mas apercebia-se agora de que a lã era insuficiente como protecção contra tama­nha friagem. Lançou uma vista de olhos à pequenina criatura. O calor que se desprendia do seu peito tivera o efeito de o ador­mecer e parecia desfrutar de um sono plácido e tranquilo.

Teria avançado uma centena de passos no bosque quando parou. Estava numa clareira quase redonda cujos rebordos eram delimitados por árvores tão altas que mal permitiam a trémula passagem de uns envergonhados raios de sol. Suavemente, como se tentasse não lhe perturbar o sono, ajoelhou-se e depositou o recém-nascido no chão. Ia muito bem embrulhado e não deu por nada. Observou durante alguns instantes, e logo a seguir, a meretriz levou a mão ao peito de onde retirou uma faca comprida, de lâmina larga e afiada. Fora buscá-la a uma das cozi­nhas e tinha a certeza de que ninguém daria pela sua falta. Devolvê-Ia-ia logo que possível. Agarrou o objecto com ambas as mãos e com toda a sua força espetou-a na terra. Foi um golpe vigoroso, mas o chão, endurecido pelo frio até alcançar a consis­tência da pedra, absorveu-o sem sofrer o mais leve arranhão.

Sem largar a faca, Rode observou a superfície que se estendia à sua frente. Seria rocha? Depositou a faca ao lado dos joelhos e passou a mão pela neve. Afastando-a pôde perceber o leito de folhas e terra oculto sob a alva coberta. Não, não se tratava de uma rocha. Era terra, uma terra negra e húmida, mas também de consistência pétrea. Esgravatou apenas para descobrir que não conseguia fazer uma cova nem mesmo com a ajuda da faca. Talvez se contasse com fogo para a amolecer, se dispusesse de uma daquelas enxadas que os legionários levavam sempre con­sigo... Sim, com uma dessas ajudas poderia fazer alguma coisa. Mas não tinha ali nada.

Um gemido, semelhante a um ronronar, obrigou-a a voltar o olhar para o menino. Agitava-se suavemente. Devia estar quase a despertar e quando assim fosse, romperia num choro assustado e faminto. Não, não devia regressar do sono. Pelo contrário, tinha que passar do que agora atravessava para aquele outro, eterno, do qual ninguém voltava. Por um instante, pensou em descarregar a faca sobre o peito ou sobre o pescoço da pequena criatura. Contudo, afastou a ideia, horrorizada. Não, tinha a cer­teza de que não seria capaz de derramar o sangue de um recém­-nascido.

Angustiada, olhou em volta, procurando algo que pudesse ajudá-la. Mas, o quê? Até onde a vista se perdia havia apenas árvores e neve. Árvores e... neve. Pegou no menino e sentiu aquele calor terno. Alguns instantes mais com ele nos braços e teria sido levada a abandonar os seus propósitos. Por isso, preci­samente, pô-lo no chão à sua frente. Inclinou-se para o beijar e então, como que emergindo de um qualquer lugar secreto surgiu a imagenzinha de Glykon. Usava-a pendurada ao pescoço durante a noite, para se proteger de algum ataque, e nessa manhã não se lembrara de a tirar. Agora, a sombra do deus com corpo de serpente e orelhas de homem caía sobre a carinha aver­melhada da pequena criatura. Contudo, não se tratava de uma presença amável. Pelo contrário, Rode teve a sensação de que o deus a incitava a não se distrair e a levar a cabo o seu propósito. Respirou fundo, Sim, certamente era assim. Então, tudo se tor­nou claro.

A terra era dura como pedra, mas havia outras maneiras de cumprir a sua missão. Agarrou com ambas as mãos um monte de neve e depositou-a sobre o peito do recém-nascido. Não lhe pareceu que o menino se tivesse apercebido do que estava a acontecer. Melhor assim. Rapidamente, como que impulsionada por uma força invisível, Rode voltou a repetir o gesto uma, duas, três vezes. Foi então que o menino de Plácida reagiu. Em con­tacto com o seu corpinho, a parte inferior da neve fundira-se e a água atravessara as faixas que o envolviam. Primeiro, ouviu-se um gemido suave, depois o início de um soluço que congelou dentro da boca.

Os olhos de Rode dilataram-se ao descobrir o que sucedia. E uma urgência ainda maior, ainda mais poderosa, ainda mais invencível, apoderou-se dela. Arquejando, babando-se, con­tendo as lágrimas, tapou o rosto do menino com neve. Depois, cobriu-lhe o peito, a barriga, as pernas. A ausência total de movi­mentos na criatura não deteve Rode. Continuou a acumular neve sobre aquele corpo pequenino, até que, no meio da cla­reira, ficou um minúsculo montículo.

Com as pupilas presas na elevação, Rode teria desejado elevar uma prece a um deus bom e compassivo, um deus que pudesse ouvi-la e proteger o filhinho de Plácida no seu caminho para as obscuras moradas do Hades. Mas não foi capaz. Glykon dispen­sava o seu amparo nesta terra, mas teria alguma força quando as almas abandonavam o corpo e empreendiam o caminho para o rio Estigio? Poderia ele sussurrar alguma recomendação a Caronte, o barqueiro impiedoso? Colocou as palmas das mãos na terra gelada e, num impulso pôs-se de pé. Com rapidez, deu a volta e retomou o caminho de saída do bosque. Não olhou para trás. Nem uma única vez.

Das cozinhas, saíam finas colunas de fumo acinzentado quando Rode voltou a entrar no castra. Os legionários acordavam com apetites primários e, com os olhos colados pelo sono, rom­piam as finas camadas de gelo dos recipientes para lavarem a cara. Um novo dia começava. Disso não havia dúvida.

Uma sensação de vapor e um ar quase irrespirável envolve­ram-na quando entrou no cubículo apertado que partilhava com Plácida. A amiga ainda dormia. Parecia até mais tranquila, como se tivesse conseguido livrar-se do negro mar dos pesadelos. Sem deixar de a olhar, Rode sentou-se ao seu lado e, procurando fazer o menor ruído possível, tentando não perturbar o seu repouso, começou a chorar muda e silenciosamente.

 

         FRONTEIRAS

 

REPRIMIU com raiva um gesto de repugnância.

Não havia dúvida de que os romanos estavam muito orgulhosos dos castra que salpicavam as suas fron­teiras, mas, qualquer que fosse o ponto de vista, a verdade é que aquilo era o anus mundi (nota 14). Para começar havia o cheiro. A milhares de passos, podia sentir-se aquela mistura nojenta de cheiro a suor, couro, animais, excrementos, urina. Bela prova de civili­zação! E pensar que fora acabar ali quando as coisas iam melhor... Bem, havia que olhar as coisas pelo lado positivo. Com aquilo a que os romanos chamavam virtus. Ao fim e ao cabo, se ali estava, com algum dinheiro escondido nos alforges e, o que era mais importante, são e salvo, devia-o a um dos incautos que lhe haviam passado pelas mãos durante os últimos meses. Ainda recordava a expressão de surpresa do homem quando, a altas horas da noite, fora à sua domus e lhe comunicara que se ia embora e ficaria grato se pudesse proporcionar-lhe algumas cartas de recomendação.

Como era de esperar, não entendera por que motivo abando­nava a capital no seu período áureo. Razão naturalmente não lhe faltava, mas não ia ser ele a dar explicações sobre a sua fuga. O pior é que nem sequer era o seu cliente mais poderoso, nem o mais influente. Ao fim e ao cabo, conseguira apenas sacar-lhe uma carta na qual o recomendava a um tal Pompeiano, legado do exército que se batia com os bárbaros nas margens do Íster e, sobretudo, genro do césar. Nessas poucas linhas garatujadas por um dos escribas da domus, insistia que se tratava de um ariolus extraordinário, de um verdadeiro mestre das artes mágicas, de um prodígio vindo do distante Egipto com a mesma pujança com que o Sol se levanta todos os dias no Oriente. Bem pensado, não estava mal, mas e agora?

Respirou fundo, cerrou os punhos para suportar o nojo que lhe causava aquele cheiro e deixou que o seu olhar passeasse por entre a barafunda de armas, animais e legionários. Ainda não tinha chegado ao extremo do ângulo esquerdo de visão quando reparou num dos homens da guarnição. Caminhava devagar, demasiado devagar, mas... Não, aquela situação não podia atri­buir-se à idade. Também não lhe passaria pela cabeça atribuí-la ao cansaço. Não, o que lhe provocava aquela maneira peculiar de andar não era a fadiga. Tratava-se de outra coisa, de...

Um sorriso felino, semelhante ao do animal que acaba de descobrir uma presa desprevenida, aflorou ao rosto de Arnú­fis. Talvez Ísis estivesse de novo a dar-lhe a mão. Com um gesto de autoridade estalou os dedos, médio e polegar, da mão direita.

- Kyrie - disse Demétrio, no tom de quem esperava ordens. - Vês aquele homem? - perguntou erguendo ligeiramente o queixo.

- O calvo?

- Não - respondeu irritado o egípcio. - Não é o calvo, o...

- O que coxeia um pouco, tão pouco que quase não se dá por isso. - Sim, esse mesmo. Diz-lhe que venha ter comigo. Os deuses decidiram libertá-lo dos seus males.

Demétrio sorriu maliciosamente enquanto se encaminhava para o homem, cumprindo a ordem do seu amo, o incomparável Arnúfis.

 

Acabou a prece e abriu os olhos. Adoptara aquele costume pouco tempo antes, ao aperceber-se de que aquele gesto sim­ples lhe permitia concentrar-se melhor. Precisava de o fazer. Nunca recorria a fórmulas repetidas nem a textos decorados quando rezava. Pelo contrário, valia-se do que, em cada momento, brotava do seu coração. E nos instantes anteriores, o que saíra aos borbotões, como água de uma fonte impetuosa, era o desejo de chegar, de uma vez por todas, ao fim do seu tempo de serviço, para poder estabelecer-se num qualquer lugar tranquilo, o mais longe possível das fronteiras. Chegara àquela conclusão muito tempo atrás, quando uma doença ter­rível se agarrara ao seu corpo com a nítida intenção de lhe arrancar o espírito e de o levar para o Hades. Se assim tivesse acontecido, possivelmente a ideia nem lhe teria passado pela cabeça. Contudo, fora nessa altura que nascera de novo. Tinha estado morto - não havia a menor dúvida - e daquela penum­bra emergira vivo. Essa convicção de estar a desfrutar de uma nova vida fora tão forte que o compelira a ir modificando aos poucos o seu comportamento.

A primeira vontade que abrigara no seu coração fora a de ser um legionário diferente. Na medida do possível, recusou-se a praticar extorsão, evitou caluniar ou adular e conformou-se com

a sua paga. A princípio, isto incomodou os companheiros - já para não falar dos seus subordinados -, que não entendiam por que motivo comportamentos tão habituais deveriam ser reprimidos. Contudo, ao fim de muito pouco tempo, chamou a atenção dos seus superiores directos. Daquele homem - um veterano - ninguém viria certamente queixar-se de ter sido obri­gado a desfazer-se do seu dinheiro, não se esperava que ele aparecesse na tenda de um legado ou um tribuno a criticar um companheiro, sabia-se que não organizaria motins nem os olharia de modo complacente quando se atrasavam a pagar-lhe o salário. Resumindo, transformara-se numa pessoa de confian­ça, com a qual qualquer oficial poderia estar descansado sem receio de ser defraudado quando menos espera. A proposta de ser promovido a centurião foi unanimemente aplaudida pelos seus superiores, embora não fosse fácil conjurar a inveja de alguns legionários.

Aquela mudança não lhe exacerbou a ambição. Muito pelo contrário. Levou-o a pensar que o melhor que lhe podia aconte­cer era chegar ao fim do tempo de serviço e, muito em breve, concebeu a esperança de que o deus em que acreditava, a quem se dirigia várias vezes ao longo do dia, que adorava com especial fervor nas primeiras horas do dia, lhe salvaria a vida permitindo que se retirasse tranquilamente. E, precisamente quando começava a acalentar essa tentadora ideia, deu-se o primeiro de uma série de sonhos que se repetiriam durante anos.

 

Na verdade, aquilo que via era sempre muito semelhante. Tanto que parecia mais uma única experiência onírica com ligeiras variações do que sonhos diferentes. Via-se sempre a caminhar por uma rua especial em direcção a casa. Era, natural­mente, bem diferente das que tinha conhecido em Roma ou nos lugares onde tinha servido. As vivendas - não tinha a certeza de se tratarem de domus - estavam separadas entre si por jardinzi­nhos e hortas, e não faltavam árvores ladeando a via e lançando sobre ele uma grata sombra. Caminhava, portanto, em direcção

a casa. Embora nem sempre conseguisse ver-se, levava vestida roupa quentinha, o que o levava a crer que o clima daquele lugar desconhecido devia ser suavemente frio, embora com sol, preci­samente o tipo de clima que mais lhe agradava. Era também habitual trazer na mão esquerda ou debaixo do braço um rolo escrito, ainda que não soubesse de que poderia tratar-se.

De repente, quando menos esperava, chegava a uma domus que era sua. Então, a porta abria-se e duas crianças de não mais de quatro ou cinco anos, um menino e uma menina, vinham a correr ao seu encontro. Abraçavam-se às suas pernas, sorrindo felizes por o verem chegar, chamavam-lhe «pai» e, precisamente nesse momento, na ombreira da porta, aparecia uma mulher a limpar as mãos. Nunca lhe conseguia ver o rosto. Uma luz, uma sombra, uma pequena nuvem tapavam-lhe as feições, mas o legionário sabia perfeitamente que era a sua mulher e uma ale­gria serena, uma satisfação tranquila, uma felicidade indescri­tível, inundava-lhe o coração. Era o preciso instante antes de despertar e constatar que estava a dormir num castra, ao lado de dezenas de legionários.

Aquele sonho teria algum significado? Nem ousava pensar nisso. Dizia a si próprio que era demasiado belo para constituir um vaticínio e que, por outro lado, talvez expressasse apenas um desejo que nunca se tornaria realidade. Mas... mas e se não fosse assim? Se assim não fosse, estava tranquilo. Experimentava uma paz que nunca antes tinha conhecido.

Pôs-se de pé. Com um gesto brusco, limpou a terra dos joe­lhos e cobriu-os com o uniforme. Não gostaria de sujar as suas roupas de legionário nem mesmo para rezar. Ajeitou o subarmi­tis, mas não colocou a to rica segmentata. A sua utilidade era inquestionável na batalha. Contudo, para o trabalho do acampa­mento, era um estorvo. O mesmo poderia dizer-se da espada. Ali, uma adaga e um bastão chegavam. Até poderia prescindir do elmo.

Matutava sobre se iria ou não utilizá-lo, quando lhe che­gou um ruído de difícil identificação. Pareceu-lhe um gemido, acompanhado de passos apressados, forçados. E então, enquan­to se perguntava qual seria a origem daqueles sons estranhos, feriu-lhe os ouvidos um grito desesperado, animal, e - coisa sur­preendente - feminino.

 

COM RAIVA, descarregou a manápula sobre o rosto da meretriz. De facto, não precisaria de tanta força para deitar ao chão a pobre mulher. Célio era, aliás, conhecido na coorte por permitir frequente­mente que a sua mão desabasse sobre qualquer infeliz que esti­vesse por perto. Não o fazia com força, nem impulso. Limitava­-se a deixá-la cair. Raro era o legionário que suportava aquele impacto de um simples peso morto. O mais provável era que a pobre tivesse naquela altura um osso partido.

- Ei, Célio! - gritou o centurião, ao mesmo tempo que corria para o legionário. - Deixa a mulher!

Mas Célio não ouviu a ordem ou se a ouviu, não manifestou a mais leve intenção de a seguir. Levantou a meretriz do chão contra o qual a havia arremessado. Foi como se erguesse um farrapo, mas ela não se manteve de pé mais do que um instante. Só enquanto a mão esquerda de Célio a segurou, antes de lhe aplicar um novo murro.

O centurião observou o rosto da prostituta, de novo lançada ao chão. Não passava de uma massa sanguinolenta. Com o san­gue e o inchaço, era quase impossível distinguir-lhe as feições.

- Célio! o novo grito do centurião ecoou apenas um momento antes de o legionário ter cravado o tacão direito nas costas da mulher. Não chegou a repetir o gesto. O canto da mão do seu superior acertou-lhe à altura da maçã de Adão. Cambaleando, Célio deu   dois passos para trás.

- Enlouqueceste, legionário? - repreendeu-o.

Mas Célio não lhe deu resposta. Tossia e estendia as mãos, como se pudesse alcançar com as pontas dos dedos o ar que lhe faltava. Foram necessários alguns instantes para que recupe­rasse o fôlego. O golpe que o atingira teria sido mortal se o centurião assim o tivesse desejado. Contudo, dominava suficien­temente a arte do pugilato para poder neutralizar parcialmente o adversário, sem lhe provocar qualquer lesão.

- Que estás a fazer? Isto vai sair-te caro - disse o centurião num tom de autoridade capaz de refrear Célio.

O legionário respirou fundo, pestanejou e então, como que movido por uma mola, lançou-se de novo sobre a mulher. Desta vez, não chegou a atingi-la: o centurião traçou um semicírculo com o bastão. Foi um movimento certeiro, seguindo uma linha paralela à sua perna até chegar ao escroto de Célio. O gemido que ele lançou desta vez teria sido o suficiente para convencer qualquer um de que as suas manifestações de indisciplina tinham chegado ao fim. Com as duas mãos nas virilhas, o homem abria a boca de dor.

- Bem - disse o centurião. - Agora quero saber porque espan­cavas esta mulher.

A meretriz emitiu um gemido quase inaudível, como o de um gatinho a morrer. Não havia dúvida de que lhe dera com força.

- Vamos! Responde. Vá.

Mas o legionário não estava disposto a responder às pergun­tas do seu superior. Mastou as mãos do baixo ventre, soltou um grito selvagem e estendeu a mão para agarrar a mulher que jazia a meia dúzia de passos. Conseguiu agarrar-lhe um tornozelo, e puxou-o como se fosse a pata de uma galinha assustada ou uma boneca de trapos.

- Não, não, nãaaaaao...! - começou a soluçar a mulher mal sentiu a presa que acabava de se lançar sobre ela.

O centurião rodou o pulso para trás e, logo a seguir, lançou o punho do seu bastão contra a testa de Célio. Foi uma pancada seca, contundente, certeira. Suficientemente forte para que, soando como se tivesse chocado com um muro, o homem ter posto os olhos em alvo antes de cair redondo no chão.

 

Cornélio contemplou o legionário. Apesar de ter sido nomeado tribuno laticlavio, o seu conhecimento das legiões não tinha variado muito durante os últimos tempos. Naturalmente, sabia mais sobre o funcionamento de um castra, mas pouco. Apesar de tudo, tinha a sensação de que o preso era um homem impo­nente. À vista desarmada podia constatar-se que tinha mais um ou dois palmos de altura do que a maioria dos seus compa­nheiros; contava, ao que parecia, com uma vasta experiência na Germânia e apresentava até um cabelo negro e abundante pouco habitual num veterano. Dir-se-ia que era a imagem viva de um legionário triunfante. Custava-lhe ter de o castigar, mas, sobretudo, causava-lhe um profundo desagrado iniciar daquele modo as suas tarefas de comando. Felizmente um centurião e um optio acompanhavam-no na sua missão.

- É verdade que, ontem à noite, foste a uma das canabae do acampamento? - perguntou, tentando imprimir à sua voz uma força, que realmente não acreditava possuir.

O legionário, que tinha na testa uma mancha vermelha, como se o tivessem marcado a ferro e fogo com uma moeda, engoliu em seco, antes de responder. Achava o tribuno um intrometido,

mas a experiência dizia-lhe que, precisamente pela sua juven­tude e inexperiência, poderia ser particularmente severo nas sanções.

- Sim, domine - respondeu, com o maior respeito possível.

Cornélio reexaminou as suas notas, não tanto porque o considerasse necessário, mas sobretudo para dar uma nota de solenidade ao acto.

- Numa dessas canabae, conheceste a meretriz que dá pelo nome de Plácida, certo?

- Sim, domine - admitiu Célio com algum nervosismo.

- Em seguida, chegaste a um acordo com ela e contrataste os seus serviços, não foi?

- Sim, domine.

- E esta manhã, pouco antes da hora em que deverias entrar ao serviço, espancaste-a... - concluiu Cornélio, desta vez sem pedir a confirmação do legionário. Essa parte estava mais do que clarificada.

- Danificaste muito uma propriedade alheia - disse Cornélio. - Essa meretriz fornece rendimentos regulares ao seu dono. Não é bonita, claro. Até se pode dizer que tem cara de monstro, mas, pelo que me é dado ver, alguns legionários não são excessiva­mente exigentes e nunca lhe falta com quem deitar-se. Agora, depois da sova que lhe deste, essa mulher fica sem valor. Não é fácil saber se recuperará, mas mesmo que assim seja, demorará muito tempo até poder prestar serviços. Trata-se de uma enor­me perda, de qualquer ponto de vista.

Cornélio calou-se por instantes e observou, de modo dissi­mulado, os presentes. Sim, tinha a sensação de estar a agir ade­quadamente. A verdade é que se esforçava bastante para tal. Bem, havia que continuar. Até ao fim.

- O que tens a alegar em tua defesa? - perguntou, impri­mindo à sua pergunta a maior severidade possível.

Célio engoliu em seco. Naturalmente, a situação não era cómoda e era lógico que não o fosse.

- Essa cadela... essa meretriz insultou-me... - interrompeu-se para respirar fundo e prosseguiu:

- Ao insultar-me a mim, ofendia a minha coorte, a legião na qual presto serviço, o... o senado e o povo de Roma.

Cornélio levou a mão ao queixo num gesto pensativo. Claro que o prejuízo causado ao proprietário da escrava era indis­cutível, mas se a mulher se tornara atrevida... bem, então a coisa mudava de figura. Talvez se pudesse até perdoar ao legionário.

- Insultou-te, hã? - disse Cornélio.

- Assim foi, domine - corroborou o acusado com um meio sor­riso, nascido da esperança de se ver livre da acusação. De facto, até   se permitiu lançar olhares de satisfação ao centurião e ao optio.

- Que foi que te disse?

A pergunta do tribuno foi um balde de água fria sobre o espí­rito renovado do legionário. De facto, pestanejou incomodado.

- In... insultou-me, tribuno - respondeu com o constrangi­mento na voz. - De modo torpe, grosseiro, intolerável para o decoro da legião.

- Sim... - disse Cornélio. - Quais foram os insultos? Repete­

-os com exactidão.

- Domine... domine... - começou Cornélio, agitando-se como que tomado de uma comichão insuportável. - Não devo...

- É uma ordem, legionário - atalhou Cornélio, cuja curiosi­dade era cada vez mais difícil de conter, uma curiosidade que, lamentavelmente, ultrapassava o seu desejo de fazer justiça.

- Disse que... que... - Célio não terminou a frase.

- O meu tempo é precioso, legionário - insistiu o tribuno. - O suficiente para usar o chicote em quem for responsável pela sua perda.

Célio baixou os olhos. Era óbvio que aquilo estava a ser, para ele, muito difícil. Mas era um ponto de honra, visto que a ofensa se estendia à magnitude de Roma.

- Disse que... que... que a minha verga era muito pequena - respondeu de uma tirada o legionário.

Os olhos do tribuno esbugalharam-se ao ouvir aquelas pala­vras. Seria possível aquilo que acabava de ouvir? Quer dizer que ele danificara assim a propriedade de um homem livre - uma propriedade que, por acréscimo, prestava um serviço ao impé­rio - porque se tinham rido do tamanho do seu pénis. Incrível, parecia-lhe absolutamente incrível.

- Isso não é desculpa, legionário - disse num tom cortante. - Aliás, é vergonhoso que por causa disso tenhas prejudicado tanto um proprietário.

- Mas... - tentou protestar Célio.

O tribuno ergueu a mão esquerda, impondo silêncio. Aquele assunto já estava a exigir demasiada atenção, não ia permitir que um idiota o complicasse ainda mais.

- Vou ditar a sentença - afirmou, num tom que não deixava margem para dúvidas. - Pagas ao proprietário da meretriz o seu valor de mercado no último ano, e passa a ser propriedade tua a partir daí... ou então, pagas o dinheiro que ela teria podido ganhar durante o tempo em que não puder exercer a sua ocupa­ção. Que preferes?

Célio nunca brilhara pela habilidade para fazer contas, mas percebeu imediatamente que a segunda opção era muito menos onerosa. A primeira só viria lançar sobre a sua vida uma carga difícil de suportar. Ao pagamento da meretriz, teria tido de acrescentar a sua alimentação, os cuidados médicos, o aloja­mento adicional e tudo isso sem saber se ela iria sobreviver para o reembolsar de todos esses gastos.

- Pagarei o que ela poderia ganhar com saúde - respondeu por fim.

- É uma decisão sensata, legionário - disse Cornélio. - Do teu próximo pagamento será descontado esse montante. Agora podes retirar-te.

O homem adoptou uma atitude disciplinada, fez uma sau­dação marcial e saiu da tenda. Já se tinha afastado quando o tribuno fez um gesto, chamando o centurião.

         - Quero saber uma coisa - disse em voz baixa, mal este che­gou junto dele. - A acusação... o que...

- Sim, é verdade domine - respondeu o centurião, cortando o embaraço do tribuno. - Parece mentira, mas é assim, e a verdade é que ele lida muito mal com aquilo.

Cornélio arqueou as sobrancelhas e começou a acariciar o queixo. Não havia dúvida, estava sempre a aprender.

 

- VAIS PARECER Príapo-disse Demétrio ao legionário, convencido de que ele ficaria radiante por se assemelhar ao deus da fertilidade. - Não tenho a menor dúvida.

O veterano contemplou, incrédulo, o unguento que o escravo de Arnúfis tinha na mão direita. Seria verdade o que dissera aquele egípcio? Seria possível corrigir aquela deficiência que lhe provocava tão grande sofrimento? Seria mesmo?

- Quanto? - perguntou num fio de voz que ligava mal com a sua estatura.

- Por ser para ti, e tendo em conta que terás de comprar algu­mas doses mais... quinze dinheiros.

- Quinze dinheiros! - exclamou o legionário, recuando e levando as mãos à cabeça. - Mas... mas isso é mais do que a paga de metade do mês.

- Se não quiseres comprá-lo... - murmurou Demétrio, simu­lando dar meia volta.

- Não, não... - disse, angustiado, o veterano. - Não foi isso que eu disse. Mas... bem, é muito caro. É muito caro.

- Deuses! Deuses! - exclamou Demétrio, imprimindo às suas palavras um tom pesaroso, como se estivesse quase a começar a chorar.

- Será possível o que acabo de ouvir? Oferecem a este homem a solução total do seu... defeito. Custa uma ninharia, uma insignificância, e qual é resposta dele? Responde com ingratidão, com queixas, é mesquinho... Oh deuses! Porque não o fulminais aqui mesmo? Nada se perderia com este idiota.

O legionário esfregou, inquieto, o sinal em forma de moeda que tinha na testa. A verdade é que aquelas palavras lhe provo­cavam grande inquietação, mas quinze dinheiros...

- É que... - começou a dizer com o olhar posto no chão.

- Bem, vamos ver, não poderá ficar por cinco dinheiros?

- Doze - respondeu, com uma expressão de profundo desprezo o escravo grego.

- Dez... - sussurrou amedrontado o legionário.

Demétrio estendeu a mão com displicência, aproximando do veterano o remédio que fora objecto do regateio. Contudo, quando este aproximou os seus dedos ávidos, o escravo afastou o tão desejado unguento, dizendo num tom imperioso:

- Primeiro, os dinheiros.

O legionário, satisfeito por ter conseguido o que supunha ser um bálsamo prodigioso, contou rapidamente o dinheiro e dei­xou-o tombar, moeda a moeda, sobre a palma da mão do escravo. Só quando este confirmou o total, esticou a mão, entregando-lhe a causa de toda aquela discussão. Em seguida, reprimindo um sorriso de alegria, abandonou a tenda. Mas dissimular não era o seu forte. Mal chegou ao exterior, deu um salto e cortou o ar com a mão livre, como se desejasse reafirmar o seu triunfo.

- Quanto pagou afinal? - perguntou Arnúfis quando Demé­trio entrou na parte da tenda onde se encontrava.

- Dez dinheiros - respondeu o escravo, escondendo a custo a sua satisfação.

- Dez? - repetiu o egípcio. - Lembro-me de te dizer que lhe pedisses sete.

- Kyrie, lembras-te correctamente - assentiu Demétrio -, mas, acredita, ele estava ansioso por entregar o dinheiro.

- A sério?

- Sem dúvida - respondeu o escravo. - Talvez fosse um desejo inconsciente, mas era real. Não havia nada no mundo que qui­sesse mais do que conseguir o teu remédio.

Remédio. Arnúfis conteve um sorriso. Não passava de uma mistura de ervas que provocava comichão e acumulava o sangue no lugar onde se esfregava. E era tudo. Mas uma pessoa deses­perada ao ponto de pagar aqueles sestércios interpretaria a circunstância como um indício prometedor. Naturalmente, voltaria para protestar alguns dias mais tarde. Nesse momento, bastaria dizer-lhe que a dose tinha de ser aumentada sob pena de se perderem os efeitos positivos já visíveis. Todos, absoluta­mente todos, reincidiam uma segunda, uma terceira e até mesmo uma quarta vez. A partir desse momento, as coisas muda­vam de figura. Ou muito se enganava ou aquele legionário cré­dulo já tinha começado a dar-lhe dinheiro.

Qualquer que fosse o ponto de vista, os desejos dos homens eram sempre os mesmos. Com as fêmeas, queriam ter mais pra­zer do que os animais mais vigorosos; pretendiam assegurar um futuro no qual o mais importante era acumularem coisas, nem sempre atraentes; angustiavam-se perante a possibilidade de a mulher que lhes interessava nesse momento - e que podia dei­xar de lhes interessar no momento seguinte - não lhes ser fiel, e pretendiam que uma instância superior qualquer lhes assegu­rasse a vingança que eles mesmos não podiam consumar. Em resumo, concupiscência, medo, falta de confiança em si pró­prios e ressentimento. Era o panorama na imensa maioria dos homens. Nas mulheres, não havia muitas variantes. O medo da infidelidade e o desejo de vingança eram semelhantes, mas a procura insensata de um poder desmedido e a acumulação de coisas eram substituídos pela certeza de poderem ficar grávidas - ou não - quando lhes fosse conveniente, e a capacidade de provocar a inveja das outras mulheres. Com estes dados adquiri­dos, não precisava de grande habilidade para conseguir o que queria. E, de facto, não podia queixar-se do que lhe estava a acontecer, nas últimas semanas, naquele castra. Pelo menos em relação ao êxito, porque, de resto, o vinho dificilmente poderia ser mais ácido e a comida mais repugnante. Mas não era pessimista. Se tudo continuasse como até ali, talvez pudesse pensar em partir antes do Verão. Essa seria talvez a época ideal para procurar um novo lugar onde se instalar. Ao fim e ao cabo, o império era grande.

 

Rode inclinou-se sobre o corpo imóvel de Plácida. A sua respi­ração era entre cortada e difícil, mas, pelo menos, não se interrom­pia. Realmente, tudo parecia indicar que aquela massa esquálida de pele amarelenta, ossos finos e músculos esgotados absorvia os efeitos da sova com uma rapidez inusitada. E não eram poucos. O rosto, deformado pelas queimaduras, parecia agora coberto por uma gigantesca mancha amarelada que, nalguns pontos, como o olho e a maçã direita do rosto, passava a um tom violeta azulado, como se fosse uma estranha doença. Não tinha nada partido, mas a Rode parecia-lhe que o nariz da companheira estava torto, defor­mando ainda mais um rosto já demasiado massacrado pela des­dita. E ainda pior era o aspecto das costas de Plácida. A pisadela do veterano da Germânia fizera-lhe uma mancha roxa à altura dos rins. Também ali não parecia ter quebrado nenhum osso, mas urinava sangue, desde o dia do espancamento. A princípio, expul­sava um líquido sujo e avermelhado que, aos poucos, se transfor­mara em urina sulcada por fios sanguinolentos. Era assim que estava e não dava ideia de estar a melhorar.

Uma tosse repentina apoderou-se do corpo de Plácida, provocando-lhe uma sensação de angústia. Rode inclinou-se rapidamente sobre ela, passou-lhe o braço esquerdo pelos ombros e abraçou-a. Efectuara vezes sem conta esse mesmo movimento e nunca deixava de se surpreender com a magreza extrema da amiga. Naquele momento pareceu-lhe semelhante a um passarinho frágil e desprotegido.

- Bebe um pouco de água - disse-lhe, ao mesmo tempo que lhe aproximava dos lábios uma taça.

A meretriz sorveu com ânsia, sem sequer abrir os olhos nem, decerto, recuperar a consciência. Só quando o seu rosto pareceu serenar um pouco Rode voltou a deitá-la na cama. Sim, agora parecia mais tranquila, mas a que se deveriam aqueles acessos de tosse? Conseguiriam evitar que parasse de expulsar sangue na urina? Haveria possibilidade de se recuperar? Todas aquelas per­guntas lhe provocavam um imenso cansaço, porque desejava de todo o coração que Plácida se curasse e, para isso, chegara a colo­car a sua imagem de Glykon junto da cabeceira da cama. Queria acreditar que a presença do deus com corpo de serpente e ore­lhas e cabelos de homem afastaria as parcas, e até poderia devol­ver-lhe, se assim o desejasse, a saúde. Quando chegava a este ponto da sua reflexão, tentava consolar-se pensando que, afinal, a outra por enquanto estava viva. Porque o legionário podia         tê-la estropiado, ou cegado, ou até ter-lhe causado a morte.

- Como vai a doente?

Rode deu um salto ao ouvir a pergunta e voltou a cara para a porta do quarto da canaba. A silhueta que se recortava contra a escassa luz que provinha do interior era a de um legionário.

A meretriz pestanejou para ver melhor a figura, que se tornou mais nítida quando ele entrou no quarto. Tratava-se de um cen­turião, precisamente aquele que impedira que o legionário de nome Célio matasse Plácida.

- Como vai ela? - indagou de novo.

Um espasmo de feroz desconfiança estendeu-se pelo peito de Rode, como uma mancha de azeite sobre um pano. Por que se interessava o centurião por uma simples prostituta, que não era nem sua concubina nem propriedade sua? Que desejaria? A experiência dizia-lhe que, certamente, teria a intenção de cobrar o favor. Afinal, ninguém ajuda uma meretriz sem o firme propósito de receber algum pagamento em carne ou em metal. Bem, era justo. Tinha salvo a sua amiga, ela teria o maior prazer em saldar a dívida.

- Um pouco melhor - respondeu, fingindo acreditar que o centurião sentia algum interesse por Plácida -, mas ainda não recuperou.

- Quantos dias mais poderá continuar assim? - indagou o veterano.

- Quantos dias...? Não sei. Uma semana, duas... Só os deuses poderiam responder a essa pergunta.

O centurião arqueou as sobrancelhas, contrariado. Era claro que ficara insatisfeito com a resposta.

- Quanto cobrava a tua amiga pelo trabalho?

Rode ficou surpreendida com a nova questão. Onde quereria chegar o indivíduo? Ah, sim, claro, tentava determinar o valor da pobre Plácida para calcular quanto poderia sacar pela sua inter­venção. Não havia dúvida de que os homens eram todos iguais.          Uns verdadeiros porcos.

- O habitual - respondeu secamente.

- O habitual - repetiu o centurião. - Sim... Quanto é o habitual?

Rode olhou surpreendida para o legionário. Estaria a fazer pouco dela? Não teria outra maneira de se divertir que não fosse zombar de uma meretriz? Estava-lhe grata por ter salvo Plácida, mas isso não lhe dava o direito de...

- Ignoro o que cobra uma mulher como ela - disse o legio­nário, interrompendo os pensamentos enraivecidos de Rode. - Nunca venho à canaba.

A meretriz franziu as sobrancelhas. Por momentos, tentou lembrar-se se tinha visto alguma vez aquele homem. Não, com ela não se deitara, e também não era nenhum dos que tinham uma concubina entre as prostitutas. Esses conhecia-os bem, porque apareciam nas canabae, fazendo balbúrdia e pedindo o dinheiro que as suas mulheres tinham conseguido na cama. Bem. Talvez fosse verdade que não sabia nada. De modo breve, mas pormenorizado, Rode explicou ao centurião os serviços que uma mulher como Plácida prestava diariamente e quanto cobrava por eles.

- Será preciso descontar os dias em que está menstruada - referiu o legionário. - Calculo.

- Sim, claro. Não é usual trabalhar-se nesses dias.

- Bem - disse o centurião enquanto pegava numa tábua e num estilete. - Portanto... se contarmos com cinco dias a menos     por mês... São uns cinco dias, certo?

- Mais ou menos.

- Bem, então... - prosseguiu com os seus cálculos. - Não é   pequena a perda que aquele asno causou ao amo desta mulher.

- Não - reconheceu Rode. - Não é.

- De qualquer modo - acrescentou -, quem mais ficou a per­der foi essa infeliz. Sabe-se lá se recupera, e como.

Rode olhou fixamente para o seu interlocutor, como se qui­sesse ler os pensamentos que se ocultavam por trás dos seus olhos castanhos profundos. Que significaria aquele comentário? Sentiria realmente o que Plácida estava a sofrer? Abanou a cabeça, afastando tal possibilidade. Não, devia tratar-se de um estra­tagema. Sim, uma treta para lhe facilitar o que queria. E que era o mesmo que todos os homens.

- Tenho muito que fazer - disse Rode num tom áspero, enquanto levava a mão à pregadeira que lhe prendia a túnica, no intuito de a soltar. - Por isso, será melhor não perdermos mais tempo.

Mas não chegou a despir-se. Antes de ter tido tempo de começar a fazê-lo já o centurião abandonara o quarto.

 

- AS ORDENS são estas, portanto. Está entendido?

Os oficiais assentiram. Com excepção do tribuno Cornélio, todos eram veteranos e não era a primeira vez que recebiam ins­truções. Além disso, era apenas uma expedição de reconheci­mento. Procurar o inimigo, localizá-lo, dar-lhe um correctivo e, logo a seguir, impor-lhe condições de paz. Um procedimento rotineiro, afinal de contas.

- Nesse caso, podeis retirar-vos - disse o legado Pompeiano. Os homens fizeram a saudação militar e começaram a aban­donar a tenda.

- Cornélio, fica um momento - ordenou o legado.

O jovem deteve-se e atravessou a distância que o separava do seu superior.

- Domine -disse. - Quid vis?(nota 15)

- É a tua primeira campanha - começou a dizer Pompeiano.

- Sei o que isso significa. Tinha mais ou menos a tua idade durante a primeira em que tomei parte. Não sei se sabes que o fiz sob as ordens do teu pai.

- Não, domine - respondeu Cornélio. - Não sabia.

O legado sorriu e deu uma palmada amigável no ombro do Jovem.

- Foi há muito tempo - continuou, enquanto deitava vinho numa das taças e a estendia a Cornélio. - Numa ocasião semelhante a esta. Os bárbaros eram outros, claro. Nenhum povo pode lutar connosco durante tantos anos...

- Excepto Cartago - disse o jovem.

- Sim - sorriu o legado. - Excepto Cartago, mas isso foi há muitos séculos. Agora Cartago não suportaria mais do que duas campanhas. Talvez naquela altura também assim pudesse ter sido se tivessem ouvido o velho Catão, mas não nos desviemos do assunto. Vou dizer-te o mesmo que o teu pai me disse a mim. Mas bebe, bebe.

Cornélio aproximou a taça dos lábios. Nunca gostara muito de vinho, e não era decerto a mistura repugnante dos castra que o iria transformar em seguidor do deus Baco.

- Não vou alongar-me quanto à importância da defesa do império. Tenho a certeza de que sabes muito bem qual é a nossa missão - continuou Pompeiano -, mas desejo efectivamente deter-me nalguns aspectos... chamemo-lhe práticos, acerca do modo como devemos cumprir o nosso dever. Suponho que conheces as Doze Tábuas.

- Sim, domine - respondeu Cornélio, um pouco confuso com a referência à lei milenar.

- Lembras-te como era punido quem mata um agressor que pretende atentar contra a vida, ou contra a honestidade?

- Não era punido - respondeu o tribuno.

- Exacto - corroborou satisfeito o legado. - Não merece ser punido. E porquê? Muito simplesmente porque existe um direi­to de legítima defesa para proteger a vida e a honestidade. Esse direito, como sabes, estende-se inclusivamente aos ataques contra a propriedade quando efectuados durante a noite, ou quando o agressor é descoberto de armas na mão. Pois bem, aqueles que atacam as fronteiras do império ou ameaçam a nossa segurança, ou se permitem realizar incursões no nosso ter­ritório para matar ou roubar, não merecem melhor tratamento do que os incursores. Por outras palavras, o hostis está sempre fora da protecção do nosso direito. É possível - e geralmente deve-se - matá-lo, mesmo que não tenha armas nem lute. Quer ele esteja dentro da nossa fronteira, quer esteja fora. Isso nunca é homicídio, é defesa pessoal, entendeste?

- Sim, domine - respondeu Cornélio.

- Excelente. Agora vem a segunda questão. Enquanto esta­mos no interior do castra, a disciplina é indispensável. Sem ela, a tropa relaxar-se-ia e a sua capacidade de obedecer e combater diminuiria perigosamente. Apesar de tudo, em algumas ocasiões não é demais fazer uso da benevolência. O modo como agiste no outro dia com o legionário que espancou a meretriz foi, deve dizer-se, exemplar. Poderias ter ordenado que o moessem à pau­lada, mas preferiste solucionar a questão com uma acção por danos. Foi uma saída engenhosa, até brilhante, pela qual te feli­cito. Contudo... contudo, esse comportamento seria inaceitável fora do castra.

Cornélio abriu a boca para responder àquela alegação, mas o legado ergueu a mão direita, impondo silêncio.

- Fora do vallum, dos muros deste castra - disse Pompeiano -, deves ter sempre em conta que a menor indisciplina, a menor desordem, a menor falta de harmonia pode custar a vida a dezenas de homens. Nunca hesites no momento de aplicar o castigo. Uma bastonada bem dada por um optio ou por um centurião, uma ordem de flagelação proferida por ti ou o próprio facto de dizimar as tropas caso elas retirem sem justificação, perante as hostes, podem parecer castigos demasiado severos. Mas acredita quando te digo que deles dependem a tua vida e a dos teus homens. Nunca, ouve bem o que te digo, nunca hesites no momento de aplicar uma sanção. Aquilo que está em jogo é demasiado impor­tante para que te possas dar a esse luxo. Compreendeste?

- Sim, domine - respondeu o tribuno, que sentia alguma inquie­tação face aos termos que o seu superior empregara para se referir ao modo como julgara o assunto do legionário Célio.

- Uma última coisa - continuou o legado. - Desejaria colocar­-te uma questão prática. Vês algum inconveniente nisso?

- De modo algum - respondeu o tribuno, surpreendido com aquela prova de deferência.

- Bem, imaginemos que te aproximas de uma aldeia e que desconheces qual vai ser o comportamento dos seus habitantes para com as tuas tropas. Pode ser amistoso, mas também pode ser hostil. Nessa altura, avistas numa colina próxima uns homens parados. Podem ser pastores ou lavradores... ou arqueiros. Que deves fazer?

- Verifico quem são? - respondeu, um pouco confuso, o tri­buno. - Envio batedores.

- Não. Não pode ser - cortou Pompeiano. - Os teus homens, ao aproximarem-se, poderiam ser trespassados por flechas, antes de conseguirem descobrir o quer que fosse.

- Mas se forem pastores...

- E se forem arqueiros, tribuno?

         Cornélio guardou silêncio. Era bastante óbvio que o seu superior pretendia ensinar-lhe alguma coisa, e não fazia sentido continuar a debitar possibilidade atrás de possibilidade.

- Não - disse Pompeiano. - Nunca, ouves bem, nunca te per­mitas uma dúvida como essa. Se houver alguma possibilidade, por mínima que seja, de se tratar de inimigos, ataca-os antes de seres atacado.

Cornélio ficou calado durante um instante. Tinha a sensação de que lhe escapava algo em todo aquele raciocínio e que, como nos truques dos ilusionistas, havia um passo qualquer que não conseguia entender e que era fundamental para tudo.

- Compreendo - disse por fim -, mas se me permites, domine, desejaria colocar-te uma questão.

Pompeiano abriu a mão direita, convidando-o a formular a pergunta.

- Continuando com o exemplo anterior - começou a dizer Cornélio -, face à dúvida, resolvo que não me arrisco a perder, digamos, dois ou três dos meus homens, e ordeno a morte dos bárbaros. Mas pouco depois descubro que a aldeia era amiga. Não será uma grande perda?

O legado calou-se por instantes, e, em seguida, como se aca­basse de ouvir o comentário inocente de um menino convencido de que é capaz de tapar a lua com um dedo, soltou uma garga­lhada sonora e incontida.

- Ah, tribuno! Tribuno! - declarou por fim com um sorriso que quase lhe dividia ao meio o rosto. - A tua missão não con­siste em proteger as aldeias bárbaras por muito amistosas que elas possam ser. Não, o teu dever é defender os teus homens do perigo. Lembra-te sempre deste princípio e nunca, nunca come­terás um erro. Se, nalgum momento, te assaltar a dúvida, seja ela qual for, resolve-a sempre a favor dos teus homens. É isso que caracteriza um bom oficial. O resto são palavras inúteis dos que nunca tiveram de lutar para salvar a vida.

 

Durante os dias que se seguira, Rode não foi capaz de tirar da cabeça o que sucedera com o centurião. Quando se lembrava que estivera à beira de se despojar das suas roupas e de lhe agra­decer o que fizera, e que aquele homem estranho se tinha ido embora, assaltava-a uma desagradável mistura de sentimentos.

Por um lado, fora desconcertante estar pela primeira vez na vida perante um homem que não só não pretendera deitar-se com ela, como nem sequer a olhara com lascívia. A vida de Rode não era fácil, acerca disso não havia a menor dúvida, mas era pelo menos tolerável desde que não houvesse imprevistos e todos cumprissem as suas rotinas, desde que não aparecessem pessoas a agir de forma inesperada e estranha como aquele centurião. Mas à confusão, quase estupefacção que sentira, vinha juntar-se outro sentimento muito mais pungente. Por mais que tentasse, Rode não conseguia afastar a sensação de ter sido desprezada, de que aquele homem a achara tão abjecta que nem sequer con­siderara a possibilidade de a possuir. Chegar a uma tal conclusão e começar a sentir pena de si própria foi um ápice. De repente, a meretriz perguntava-se se não teria perdido a juventude, se não teria iniciado a decadência, aliada à perda dos encantos carnais, se não estaria já a entrar na velhice, que imaginava pavo­rosa. Chegada a esse ponto, os seus pensamentos tornavam-se sombrios. Que aconteceria a uma meretriz como ela quando envelhecesse? Até àquele momento tinha sido sucessivamente vendida de prostíbulo em prostíbulo, até acabar na canaba de uma guarnição junto da fronteira. Mas, e depois? Que viria a seguir? O concubinato com um legionário que não hesitaria em espancá-la quando se não se sentisse satisfeito? Uma lenta deca­dência, até ser abandonada numa valeta pelo dono que já não conseguia retirar dela o suficiente para a alimentar?

Acariciou Plácida com o olhar. Sobre o seu rosto, apenas ilu­minado pela luz trémula de uma tocha, o deus serpente com cabelos e orelhas de homem lançava a sua sombra. De momen­to, Glykon parecia protegê-la, mas quanto tempo conseguiria viver mergulhada naquele sono do qual apenas emergia para sor­ver pequenos goles de água? Talvez... talvez fosse melhor que não voltasse a despertar.

 

AO CONTRÁRIO do que Rode imaginara, a visita daquele centurião repetiu-se. Aliás passou a ter uma curiosa regularidade: de manhã, imediatamente antes de os legionários se levantarem e começar um novo dia na vida do castra. Da primeira vez que ele reapareceu, Rode suspirou, aliviada. Pensou que, ao fim e ao cabo, o homem decidira apenas atrasar por uns dias a cobrança da sua ajuda. Fora uma atitude de delicadeza que, claro, valia o que valia. Contudo, depressa se apercebeu de que aquele indi­víduo, com uma incomparável experiência de batalha, não queria nada. Interessava-se apenas pela recuperação da sua amiga. Por vezes, chegava a trazer alguma comida. Coisas modestas, sem luxos, mas boas. Tanto que quase poderia pensar­-se que as escolhia com um cuidado especial de entre os produ­tos que se vendiam na canaba. O que a meretriz mais lamentava era que um homem tão atencioso - tanto corno não conhecera mais nenhum - não se interessasse por ela. E pensando nisso, Rode começou a imaginar possíveis causas que salvaguardassem o seu amor próprio. Assim, pensou que talvez um projéctil bár­baro o tivesse transformado em eunuco, ou que, por doença, não sentisse desejo, ou até que gostasse de miúdos. Afastou, de imediato, esta última possibilidade pois nada naquele legio­nário parecia indicar atracção por outros homens. Nem no olhar, nem nos gestos, foi capaz de detectar um sinal qualquer desse comportamento que, em boa verdade, nunca Rode obser­vara, mas do qual as suas companheiras de ofício falavam.

Chegou assim à conclusão de que sobre ele se abatera uma desgraça qualquer e sentiu um profundo pesar pelo legionário, dado que, parecendo um homem justo e considerado, se via privado daquilo que todos consideravam ser um dos prazeres indispensáveis nesta existência. E, quando chegou a este ponto das suas conjecturas, Rode, no intervalo entre serviços prestados a um palafreneiro e depois a um signiftr, elevou uma prece a Glykon, rogando-lhe que curasse aquele homem estranho mas nobre ou, pelo menos, que lhe dissesse como poderia ela ajudá­-lo na sua infelicidade.

Apesar dos milhares de homens que haviam passado pelo seu corpo, apesar das experiências repetidas até à exaustão em todas as variantes possíveis, apesar dos anos decorridos às mãos de todos os tipos de homens, apesar do conhecimento acumulado através de pancada, cuspo e regateios, faltava a Rode capacidade para entender o que se passava no espírito do centurião. Porque, apesar também dos seus temores e ansiedades e angústias, a ver­dade é que aquele homem se interessava por ela. Em boa verda­de, experimentava uma atracção pela meretriz como nunca sentira por qualquer outra mulher.

É verdade que as mulheres nunca tinham ocupado grande espaço na sua vida. Quando era pequeno, a sua presença limi­tara-se à de uma mãe e uma avó sempre aflitas, não fosse ele constipar-se, comer pouco ou ficar doente. Depois disso, as mulheres tinham desaparecido.

Se desejou algo com todas as suas forças, quando tinha apenas catorze anos foi não se parecer com o pai. As opções eram escassas. Fora da lei, havia o furto em todas as suas manifestações; torneando a lei, a compra e venda de escravos; dentro da lei, a legião. A escolha não foi, ao fim e ao cabo, assim tão difí­cil. A pancada do pai e as ladainhas da mãe tinham implantado nele a firme resolução de respeitar a autoridade e a lei. Não tinha particular aptidão, e, menos ainda, talento, para traficar com seres vivos: fossem homens, mulheres ou carneiros, provocava­-lhe uma sensação de mal-estar. Apresentou-se num castra da legião antes mesmo de o chamarem.

A princípio foi difícil. Os veteranos não perdiam oportuni­dade de abusar dos recém-chegados e a comida era inquestiona­velmente má. Contudo, depressa se adaptou à disciplina. E não só. Descobriu que lhe agradava. Gostava daquela ordem meti­culosa que marcava cada hora do dia com ocupações concretas e precisas. E quando a disciplina passou a fazer parte dele, do seu trabalho, do seu horizonte, da sua respiração, foi descobrindo que não o incomodava. Descobriu que o frio do acampamento não era superior ao que existia na casa paterna, que o calor não era mais insuportável do que aquele outro que o fazia suar em bica durante o Verão ao lado dos seus progenitores, e que as marchas não eram mais esgotantes do que quando, pequenino e com os cotovelos pouco acima do chão, era obrigado a seguir o seu apressado pai pelas ruas fora sem o perder de vista nem um instante. Não, nada era pior e muitas coisas eram bem melhores.

Descobriu, por exemplo, que podia contar com algum dinheiro sem depender da tacanhez do homem que o pusera no mundo ou da eventual generosidade da mãe ou da avó, e enten­deu também que a sua vida lhe pertencia. Era verdade que se achava às ordens - sem dúvida, estritas - de outros homens, mas depressa compreendeu que, regra geral, na legião, tudo tinha um sentido e que esse sentido nascia de um lastro, acumulado durante séculos, de experiência e de sensatez.

Essa circunstância explicava, por exemplo, o papel que as mulheres tinham na legião. O homem que combate - e sobre­tudo aquele que combate longe de casa - está muito limitado pela existência de uma esposa e filhos. Pensando neles, pode decidir entregar as armas em vez de as utilizar num combate renhido; pode agarrar-se à ideia de sobreviver e pô-la acima do interesse da sua coorte, ou pode querer trair, acreditando - erra­damente a maior parte das vezes - que a traição o aproximará da esposa. Era por estes motivos e por outros semelhantes que pesava sobre os legionários a proibição de contraírem matri­mónio. Naturalmente, alguns comandos superiores não eram atingidos, mas a excepção apenas confirmava a regra. A passa­gem desses homens pelas legiões era quase sempre passageira. Estavam empenhados em transformar a sua experiência militar nos patamares sucessivos de uma carreira política. Por outro lado, o mais comum era que aqueles indivíduos não amassem as esposas. Para eles, o casamento não passara de um pacto entre famílias, destinado a somar influências na vida pública. Tratava­-se, ao fim e ao cabo, de outra coisa.

Contudo, na sua imensa prudência, na sua considerável expe­riência de séculos, a legião sabia também que os homens precisam de descarregar os seus impulsos mais primários. Ocasional­mente, era-lhes permitido que saqueassem, arrasassem e pegas­sem fogo e, naturalmente que copulassem. Para tal, era aceite a existência de concubinas, mas sobretudo, eram-lhes proporcio­nadas as canabae, onde tanto podiam ter vinho como meretrizes. Foi justamente num estabelecimento desses que teve a sua primeira relação com uma mulher. Mal falava latim, tinha mau hálito como um bárbaro ou um camponês, cheirava intensa­mente a sovaco, mas, apesar de tudo, esforçara-se bastante para lhe agradar. Não gostara. Não, apesar de tudo, não gostara. Demasiado rápido, demasiado distante, demasiado frio.

E, mesmo assim, acabou por repetir. De repente, necessitava não só de acalmar a pulsão do sangue, mas de sentir uns braços que não lhe batessem nem se aproximassem para lhe passar uma carga. Precisava também - e foi algo que lhe chamou a atenção quando tomou consciência disso - de sentir uma pele suave con­tra a sua. Nunca conseguiu gostar das meretrizes, mas também nunca deixou de as procurar ocasionalmente. Era um pouco como o que lhe acontecia com a religião. Não o entusiasmava, mas considerava-a necessária e útil. Quase, quase imprescindível.

A mudança na sua relação com as mulheres ocorreu após a campanha contra os partos. No cativeiro, terrível cativeiro a que os bárbaros os haviam submetido, era impensável pensar em manter contacto com mulher alguma. Os companheiros tenta­ram enfrentar aquela situação o melhor que puderam. Alguns tornaram-se uns pederastas nojentos; outros chegaram a aceitar as propostas dos carcereiros. Não foi o seu caso e, para falar verdade, preocupado em sobreviver diariamente, nem sequer dedicou os seus pensamentos a recordar mulheres conhecidas ou a pensar noutras desconhecidas. Depois foi a liberdade e o regresso a Roma. Mas, enquanto os seus companheiros se acha­vam ansiosos por beber, fornicar e divertir-se, ele pensava apenas noutro tipo de entretenimentos, como passear sem ter qualquer impedimento ou contemplar sem limites a luz do sol. Mesmo assim, aceitou visitar um prostíbulo especialmente reco­mendado, no dia em que fizeram pagamentos atrasados. Foi atendido por uma mulher loira, originária de um lugar para além do rio Íster, e dotada de um peito enorme. Era limpa e até queria lavá-lo. Lembrava-se de que lhe dissera que ele tinha olhos de solidão e que o convidara a passar por ali com maior frequência para se animar. Não o fez. Na verdade, o contacto com aquela prostituta conseguira apenas provocar nele uma estranha sensação de desamparo, como se no meio da noite tivesse querido abraçar alguém e encontrasse apenas o vazio. E foi então que apareceu a epidemia.

Passaria a ouvir que a doença, aquela terrível doença que levava os médicos a abandonar Roma e ceifava milhares de vidas tinha sido trazida por eles, os legionários libertados de Partia. Talvez fosse verdade, mas quem poderia garanti-lo, sem margem de dúvida, numa urbe cheia de porcaria, onde as urinas e os excrementos eram transportados das casas em baldes que salpi­cavam as escadas, onde as pessoas detestavam lavar-se e onde os que deveriam travar o mal eram os primeiros a fugir? A verdade é que também ele sentira as dentadas da praga e depois... depois houve tantas coisas que, uma vez mais, as mulheres perderam o interesse. A situação alterara-se apenas alguns dias antes, ao ver aquela meretriz que dava pelo nome de Rode.

A que poderia atribuir-se aquele súbito interesse? É claro que podia relacionar-se com o desejo durante tanto tempo privado de via de escape. Mas se assim fosse, não se teria fixado nela quando existiam dezenas de mulheres a exercer as mesmas funções nas canabae. Qualquer uma lhe teria servido, ter-se-ia aproximado de outra qualquer. Não, não era essa a explicação. Sentira-se atraído por ter reparado que ela possuía algo dife­rente, algo que nunca encontrara nas outras mulheres e que lhe chamara poderosamente a atenção. Captara-o pela primeira vez no dia em que Célio espancara a meretriz amiga dela. Rode poderia ter guinchado, insultado, gritado. Poderia ter arrancado os cabelos ou ter tentado urinar sobre o legionário caído no chão. Contudo, não fizera nada disso. Pelo contrário, incli­nara-se sobre a amiga, tratando dela com um cuidado quase maternal.

Talvez, pensou, se tivesse comportado desse modo devido ao espanto que lhe provocara a brutalidade do legionário. Depois... depois é verdade que exibira um comportamento ainda mais chocante. O centurião soube que ela não tinha abandonado - não teria podido fazê-lo - o seu trabalho, mas conseguira arranjar tempo para colocar a cama da amiga num lugar próxi­mo, para poder tratá-la quase ininterruptamente. Como conse­guira aliar o seu trabalho de meretriz àqueles desvelos era algo que lhe escapava por completo, mas que, não obstante, desper­tava a sua curiosidade. Depois de Cêlio ter sido julgado - com bastante benevolência, verdade se diga - ele próprio passara a dispôr de um motivo bastante plausível para se aproximar da mulher. Dado que tinha de averiguar os rendimentos aproxi­mados que obtinha para calcular a indemnização que o legio­nário deveria pagar, a sua primeira visita não poderia despertar suspeitas. Na realidade, essa visita dera azo a outro género de mal-entendido, levando a meretriz a pensar que se tratava de uma tentativa de tirar partido da situação. Quando estava prestes a despedir-se, Rode tivera a intenção de se despir. E ele abandonara o quarto miserável antes que isso acontecesse.

Era óbvio que a escrava era uma mulher mais do que habi­tuada a entregar o seu corpo, e que não o fazia apenas a troco de dinheiro. Contudo, a constatação de tal facto não lhe provo­cara repulsa nem incómodo. Pelo contrário, sentira uma estima ainda maior pela meretriz. Não fora a ela que salvara com a sua intervenção, mas apesar disso tinha querido oferecer-lhe uma recompensa, recorrendo à única coisa de que dispunha como escrava: o seu corpo. Como não constatar que aquela mulher era diferente de todas as outras que tinha conhecido?

 

OBSERVOU a cabeça do mago. Na verdade, era o que mais chamava a atenção. E certo que as suas vestes imaculadamente brancas, o colar de ouro e pedras azuis que lhe envolvia o pescoço ou as mãos longas e finas eram igualmente dignas de admiração. Isso sem contar com a sua maneira de falar, de agir, de se sentar ou de olhar as pessoas. Contudo, tudo parecia desaparecer perante aquele crânio liberto. Claro que já tinha visto muitos homens sem cabelo. Era o caso da maior parte dos legionários ao fim de um certo tempo. Contudo, o egípcio não era careca. Era antes uma pessoa que optara por libertar a cabeça de todo o cabelo. Havia portanto uma diferença. E aquilo que noutro homem teria sido apenas o efeito do tempo, da doença ou da velhice, nele era sinónimo de algo muito especial. Olhando com atenção, emanava da configu­ração da sua cabeça uma sensação de poder, de força, de domí­nio da situação, de qualquer situação. Sim, devia ser por isso que acabara por ir à sua tenda.

Durante aquelas semanas, Rode não deixara de ver o centu­rião. Estava já convencida de que era certamente um pobre impotente ou um infeliz eunuco, mas descobrira também que não se importava nada. Ser o único homem que não pretendera aproveitar-se dela dotava-o de um atractivo muito especial. Por isso, justamente por isso, todos os dias aguardava ansiosa­mente que ele viesse perguntar por Plácida. Mas isso nem sempre acontecia, e então apoderava-se dela uma insuportável ansiedade. Torcia as mãos, temendo que a visita anterior tivesse sido a última, ou atravessava o quarto com passadas largas, ou respondia de forma incoerente às perguntas da amiga. Não obs­tante, ao fim e ao cabo, o centurião voltava a aparecer, apesar de saber perfeitamente a que ocupação ela se dedicava, apesar de ter a certeza de que ela continuava a estar com outros homens, não parecia importar-se de todo. Perguntava pelo estado da sua amiga, deixava um presente e ia-se embora.

Foi precisamente durante uma das suas ausências que Rode se deu conta de que precisava de estar com ele, embora não hou­vesse encontro carnal, embora ele não fosse capaz de a possuir como os outros homens, embora fosse um doente ou um muti­lado. Nada disso tinha a menor importância. O que queria era aquela presença tranquila, serena, quase silenciosa, a presença que terminara logo que Plácida se recuperou. A partir desse momento, vira apenas o centurião duas vezes. A primeira, quan­do acompanhado por três legionários, transportava um bêbado que começara a espancar os outros na canaba; a segunda, quando um veterano insistira para que ela o acompanhasse à saída, e lhe dera um beijo diante dos outros companheiros. Ao longo de toda a sua vida, tinha havido muitos episódios assim, diante de terceiros - e alguns ainda mais humilhantes! - em múltiplas ocasiões. Ela não sentira mal-estar, nem amargura, nem dor. Como se correspondessem a uma parte do seu trabalho que não era particularmente incómoda, suja ou dolorosa. Mas, nessa oca­sião, mal acabou de suportar a pressão daqueles lábios sobre os seus, quando se soltou do abraço suado do legionário, enquanto ouvia os risinhos obscenos dos companheiros, avistou-o.

Foi apenas um instante, mas bastou para que uma força desconhe­cida lhe percorresse o corpo. Foi apenas um instante, mas foi o suficiente para que a vergonha, sentimento até então desco­nhecido, a invadisse até ao mais profundo da sua alma.

Regressou ao cubículo dividida entre a dúvida de tentar arrancar do peito aqueles sentimentos estranhos e a pulsão incontrolável de descobrir a maneira de se apoderar do seu cora­ção. Estremecendo, inquieta e angustiada, ajoelhou perante a imagem de Glykon. Jamais rezara com tamanho fervor, com tanta entrega, com tanta fé. Com as palavras entrecortadas pelo medo e pela esperança, prometeu ao deus serpente que lhe entregaria sacrifícios, que o serviria, que seria a sua escrava mais devota. Em troca, apenas lhe pedia que aquele centurião ficasse amarrado ao seu ser, que nunca se afastasse dela, que permane­cesse ao seu lado acontecesse o que acontecesse. Quando ter­minou a prece, tentou pôr-se de pé, mas não foi capaz. Pelo contrário, sentiu-se exausta, esgotada, como se um estranho e desconhecido poder lhe houvesse absorvido o sangue até à última gota.

Esperou um dia, dois, quatro, uma semana, mas aquela estra­nha divindade à qual se dirigia todas as manhãs e não poucas tardes e noites, não lhe dava resposta. Em boa verdade, parecia ter descarregado sobre ela um pesado manto de silêncio. Foi essa falta de resposta que a levou a pensar em buscar ajuda nou­tro lugar. Mas, onde? A resposta foi-lhe dada, involuntariamen­te, por um legionário que foi vê-la durante três dias seguidos, permitindo-se deixar-lhe uma gorjeta. Não pôde impedir-se de o interrogar, para ver se a sua sorte teria mudado. Mal acabara de formular a pergunta já o veterano louvava os feitos de um mago egípcio que vivia no castra. Na semana anterior fora procurá-lo por questões que não vinham ao caso. Naturalmente, ele dera­-lhe um conselho, mas além disso, de passagem - era uma figura extraordinária aquele egípcio -, aconselhara-o a não perder a oportunidade de jogar quando a lua estivesse amarela. Amarela. Ora bem. Fizera isso mesmo. Ganhou quase o mesmo que num trimestre! Grande figura... lia no futuro e sabia o que se deveria fazer.

O coração de Rode começou a arder desde esse preciso momento. Precisava de falar com aquele homem. Quem sabe... sim, quem sabe se esse homem não lhe poderia dizer algo sobre o seu futuro, sobre o que poderia esperá-la numa curva qualquer da vida, sobre... sobre aquele centurião. E agora encontrava-se em frente daquele indivíduo de crânio sensacional, rotundo, limpo, poderoso como se fosse a própria cabeça de um deus desconhecido, mas transbordante de vigor e poder.

- Estás, portanto, apaixonada... - disse, e a sugestão ecoou como o silvo de uma serpente que tivesse visto um ratinho ingénuo.

- Não... não sei bem - balbuciou Rode, e na verdade assim era.

- Bem - cortou o mago. - Talvez não seja amor, mas gostas muito dele.

- Sim... - respondeu confusa. - Gosto muito.

- Aaah... e porquê?

Rode ficou calada por um instante. Não era que não quisesse falar, na verdade até queria, mas não sabia como. Na verdade, era-lhe impossível definir os motivos que a levavam a gostar daquele legionário.

- Acho... acho que é bom... - respondeu ao fim de alguns instantes.

Arnúfis disfarçou uma sensação de mal-estar na boca do estô­mago. Bom. Bom! Olha-me para a rameira... Quem diria? E que diabo quererá esta prostituta dizer com «bom»? Que ele nunca lhe bateu? Que não regateia?

- Queres dizer que te trata bem? - indagou o egípcio, que necessitava desesperadamente de um fragmento de realidade, por menor que fosse, sobre o qual erguer a sua fantasia.

Rode levou a mão à boca e esfregou os lábios, como se preten­desse limpá-los, para depois utilizar só os termos mais adequados.

- Eu... não sei... - começou a dizer. - A verdade é que não temos grande contacto.

- Deitaste-te com ele muitas vezes? - cortou o mago, que começava sentir-se incomodado com a meretriz.

- Não... nunca.

Uma sobrancelha arqueada foi o único sinal exterior da enor­me surpresa do mago. Ísis! Ao que estava reduzido nos últimos tempos. A ter de enganar uma rameira apaixonada por um legio­nário cujo único mérito era o facto de nunca ter sido seu cliente. As mulheres eram avessas à razão, sobre isso não havia dúvida, mas aquela ultrapassava qualquer classificação.

- Mas já falaste com ele - disse, imprimindo um tom de afirmação ao que, na verdade, era apenas mais uma tentativa de saber qual o terreno que pisava.

- Sim, falar, sim.

Era o cúmulo. Afinal, o que a rameira queria era conversa.

Devia pensar que era uma mulher filósofa...

- Estou a ver - disse Arnúfis, disfarçando a irritação por não conseguir deslindar aquela confusão. - Entendo. É bonito?

Rode pestanejou. Seria bonito? Para falar verdade, não se detivera na questão. Era... outra coisa.

- Bem... - começou a dizer. - Penso que não. É... é forte.

- Forte - repetiu Arnúfis. - Alto? Jovem?

- Não - respondeu Rode, que tinha a sensação de estar a ouvir outra pessoa diferente a responder por si às perguntas do egípcio. - Não é alto. Nem baixo, mas não, não creio que possa considerá-lo alto. Nem jovem. Na verdade, deve ser mais velho que o senhor. Tem cabelos brancos nas frontes e, quando não tem a barba feita, são muitos os pêlos brancos.

Era o que lhe faltava ouvir. A rameira estava excitada com um centurião velho, que nem sequer se aproximava dela. Conhecia um sujeito assim no castra. Por sinal, bastante antipático. E estra­nho. Um verdadeiro indesejável.

- Vejo uma imagem... - exclamou o mago com a respiração subitamente alterada. - Sim, é a figura de um centurião. Não é jovem, mas é forte. Está a tirar o elmo. Tem as frentes... tem as frentes com cãs. Parece forte.

- Foi o que eu lhe disse - corroborou Rode cada vez mais admirada com os dons do ariolus.

- O teu homem trabalha sob as ordens do tribuno Cornélio... - disse Arnúfis num tom mais de afirmação do que de pergunta.

Rode, totalmente surpreendida, assentiu com a cabeça. Tudo aquilo lhe parecia absolutamente prodigioso. Que mais conse­guiria aquele homem ver?

Arnúfis respirou fundo e estendeu a mão direita, agarrando a mão de Rode. Tinha a pele suave, muito suave, coisa rara numa mulher que se dedicava àquele tipo de trabalho numa canaba. Que vantagem traria a uma meretriz aquela pele? O seu dono não devia fazer grande despesa com a roupa dela - ela nem sem­pre andava vestida - nem com a alimentação. Lucro puro, quase puro. Bem, não podia perder agora tempo com isso. Tentaria um truque que raramente falhava.

- Tens um coração muito especial - sussurrou num tom de voz untuoso. - Não exagero quanto te digo que poucas vezes, ou na verdade, nunca, vi um espírito tão belo como o teu.

Rode abriu os olhos e observou com enorme atenção o mago. Ouvira milhares de palavras ditas por homens, mas aquelas tinham uma característica muito particular, tanto que se sentia ultrapassada, esmagada, aflita.

- Esse espírito belo, que está em ti, procura a elevação. É possível que tu própria não saibas, mas ele anseia por ir além daquilo que te rodeia.

Rode deixou escapar um suspiro. Nunca lhe ocorrera pensar que as suas aspirações eram elevadas, mas agora, ouvindo o egíp­cio, não tinha qualquer dúvida de que o que ele dizia era a pura verdade, uma verdade que sempre ali estivera sem que ela a visse. Sim, o que ela desejava era estar acima da existência que vivia. E talvez, talvez...

- Esse centurião... vai interessar-se por mim?

Arnúfis mordeu ao de leve o lábio inferior. A rameirinha esta­va a revelar-se mais resistente do que parecia à primeira vista. Talvez tivesse de seguir por outro caminho.

- Deixa-me ver a tua mão - disse, enquanto a agarrava, dando-lhe a volta e começando a fazer deslizar a ponta dos dedos sobre a palma. - Poderia recorrer a outros métodos, mas julgo que este será o mais adequado.

Abriu a mão da rapariga, como se ali pudesse estar realmente escrita alguma coisa, e depois passou os seus dedos sobre a palma da mão aberta. Sim, era uma pele deliciosa. Subiu pelo pulso e avançou pelo antebraço. Que desperdício. Teria singra­do, num lugar diferente. Talvez ainda conseguisse fazê-lo.

- Isso com o centurião não vai dar em nada - disse num sussurro, mas não o suficiente para evitar que ela, instintiva­mente, recuasse.

O mago segurou-a com força pelo pulso mantendo-lhe a mão aberta. Como se nada tivesse acontecido. Como se a reacção dela fosse absolutamente normal.

- Talvez acabes por te deitar com ele - prosseguiu num tom de voz suave, quase sussurrante. - Não deixa de ser possível, mas... mas não vai dar em nada. Não tens qualquer futuro com esse centurião.

A mulher baixou a cabeça. As últimas palavras do egípcio tinham-na decepcionado tremendamente, e sentia uma dor insuportável, como se por dentro se tivesse quebrado um jarro de mágoa e o seu conteúdo estivesse agora espalhado por todo o seu ser.

- Mas vejo mais coisas - prosseguiu o egípcio sem libertar a mão de Rode. - Aqui aparece outro homem.

A meretriz não reagiu. Sentia-se tão desiludida que tudo o que o mago agora dizia lhe parecia distante e sem sentido.

- Trata-se de um homem sábio e poderoso, um homem que poderá mudar a tua vida. Poderá dar-te...

- Não preciso de saber mais nada - cortou Rode, que dificil­mente conseguia conter as lágrimas. - Diga-me quanto devo.

Um espasmo de indignação subiu pela garganta do egípcio, ao ouvir tais palavras. Mas quem se julgava aquela prostituta? Achava que podia ir-se embora assim quando lhe desse na vene­ta? Trataria assim os seus clientes?

- Ainda não acabei - disse num tom que não dava margem para réplicas.

- Acabou, sim - respondeu Rode, levando as costas da mão ao rosto para limpar as lágrimas. - Diga-me quanto lhe devo. Tenho de ir.

Aquela segunda negativa aumentou a raiva que, aos poucos, se fora apoderando do mago. Por instantes, pensou dizer-lhe que teria de se deitar com ele para lhe pagar tudo o que vira no seu futuro. O contacto com a pele da rapariga e o facto de amar outro homem faziam dela um ser digno de cobiça. O que real­mente o atraía naquela mulher era o facto de ela não se subme­ter com facilidade. É claro que acabaria por fazê-lo, mas, por enquanto, escolhera resistir. Negava-se a ouvir as suas premoni­ções, recusava-se a tirar aquele centurião do peito, a entregar-se nas suas mãos. Uma mulher assim era digna de ser possuída, mas não apenas de modo carnal.

- Não te apresses, rapariga - disse com um sorriso untuoso. - Possuo meios que te permitirão ganhar o coração desse homem.

Tinha arrastado as últimas palavras, para maior efeito, mas o resultado foi nulo. Rode captara já no mago aquela antipatia que alguns homens sentem pelos indivíduos que consideram ser injustamente felizes, e a desconfiança apoderara-se dela. Não saberia explicar nem justificar aquele sentimento, mas dentro de si tudo gritava que Arnúfis se tornara inimigo do centurião e que jamais faria o que quer que fosse no sentido de os aproximar. Pelo contrário, dele tinha que esperar que habilmente tentasse cavar um abismo entre os dois.

- Tenho de trabalhar - desculpou-se Rode, desprendendo-se da garra do mago e pondo-se de pé.

Com inesperada agilidade, Arnúfis abandonou o assento e colocou-se ao lado da rameira. Aparentemente, estava muito sereno. Mas, por dentro, fervia de cólera, a cólera que o tomava sempre que era incapaz de controlar as situações.

- Não tenhas pressa - disse, num tom suave. - Fica um pouco mais. O teu futuro tem coisas muito... interessantes.

Rode levou a mão ao peito, onde tinha pendurado um saqui­nho. Era ali que guardava algumas moedas, precisamente as que tencionava entregar ao mago antes de abandonar a sua tenda.

- Tome. Se faltar alguma coisa...

Não chegou ao fim da frase. Arnúfis voltara a agarrar-lhe a mão, que agora ela apertava com força contra os seios.

- Se faltar alguma coisa - prosseguiu Rode como se nada esti­vesse a acontecer -, a minha amiga Plácida depois traz.

Sem largar a presa, o egípcio soltou uma gargalhada.

- Há outras formas de pagamento... - sussurrou, aproxi­mando a boca da face de Rode.

A rameira apoiou a palma da mão no peito do egípcio e com um gesto que ao longo da vida repetira milhares de vezes, afastou-o de si.

- Com isso, eu não pago. Cobro.

Quando Arnúfis tentou aproximar-se de novo da mulher, esta, um gato experiente em mil fugas, já desaparecera pela entrada da tenda.

 

CORNÉLIO olhou com desagrado a pessoa que tinha à sua frente. Não lhe passara pela cabeça dizê-lo em voz alta, mas cada vez suportava menos os bárbaros, principalmente aqueles que viviam no interior do império recusando-se a sofrer a influência civilizadora de Roma. Na capital, tinham-lhe parecido um enxame de parasitas que se aproveitavam da generosidade do império para seu próprio benefício e não para o bem de Roma; no castra, não eram melho­res. Entendiam o latim - ou o grego - na altura de regatear e sacar dinheiro aos legionários, mas quando se tratava de pagar, de contribuir, de dar o litro... Por Júpiter! Era impressionante a velocidade com que se escudavam na sua língua, parecendo não entender nem compreender para não terem de colaborar. Talvez fosse inevitável as meretrizes não serem romanas, e o mesmo podia dizer-se daqueles sírios ou judeus que acompanhavam as legiões como modestos vendedores ambulantes. Mas em que contribuiria para o bem estar do império a presença daquele mago egípcio? As legiões já tinham os seus harúspices, os seus pontífices, os seus leitores de vísceras. Por que teriam também de suportar o africano? Pois, em boa verdade, Cornélio sentia-se especialmente incomodado com aquela gente originária do Norte de África. Talvez por ter vivido num edifício onde estavam sempre presentes com os seus ruídos, gritos e cânticos, eram de todos os bárbaros aqueles que lhe provocavam maior repulsa. Estava convencido de que a mentira fazia parte da sua verda­deira natureza, mas acima de tudo, dava-lhe asco a maneira como olhavam para as mulheres, e o modo como tentavam conseguir dinheiro através do logro e da burla. E agora, como se ainda fosse pouco, vinha um deles importuná-lo à sua própria tenda. Supostamente para lhe fazer um favor...

- Tens então uma informação importante para fornecer ao comando... - repetiu Cornélio, tentando reprimir a repulsa que o invadia.

- É verdade, Kyrie - respondeu com falsa submissão Arnúfis. - Conheces a pena por falsa delação? - perguntou o tribuno, olhando o egípcio nos olhos.

Nem um único músculo do rosto do ariolus se moveu. Dir-se­-ia que graças a uma magia desconhecida, acabava de se trans­formar numa das estátuas de pedra tão frequentes no seu país de origem.

- Desejo apenas servir Roma - respondeu, sereno.

Servir Roma? Que descaramento! Servir-se de Roma! Era isso que pretendia aquele aldrabão africano.

- Bem - disse Cornélio com uma nota de aspereza e autori­dade na voz. - Estou a ouvir.

Arnúfis dominou o sorriso velhaco que insistia em assomar aos seus lábios. Precisara de duas semanas - duas semanas, nada mais, nada menos! - para chegar ao lugar onde agora se encontrava, mas não havia dúvida de que seguira o melhor caminho.

- Um dos teus homens - começou a dizer pausadamente. - Um dos teus homens, que ainda por cima faz parte do coman­do, é culpado de perduellio.

- Perduellio? - repetiu Cornélio ao ver que o mago utilizava um termo legal.

- Sim, Kyrie, o delito de asebeia - frisou Arnúfis com uma satis­fação que já não conseguia ocultar.

- Vamos lá ver, egípcio - atalhou o tribuno com evidente mal­-estar. - Pretendes dizer-me que sob as minhas ordens serve um      homem que é culpado de trair o imperador?

- Um centurião - respondeu, diligente, o mago.

- Um centurião! - Cornélio ergueu os braços prestes a lançar sobre ele a sua cólera. Mas, quem pensava aquele ariolus que era para insultar assim um dos seus oficiais? O descaramento ultrapassava os limites.

- Sim, Kyrie - prosseguiu Arnúfis. - Aquele que deteve o legionário Célio há algumas semanas por bater numa prostituta de nome Plácida. Chama-se...

- Sei perfeitamente como se chama - cortou o tribuno -, mas há uma coisa que deves saber. A acusação por perduellio é extre­mamente grave. Talvez a mais grave que é possível lançar sobre alguém. Se as tuas palavras não corresponderem à verdade, farei com que te crucifiquem às portas do castra.

O egípcio tentou abrir a boca, mas Cornélio não lho permitiu. - Mais do que isso. Como certamente sabes, os tormentos do crucificado são parcialmente suavizados através da aplicação do cru rifragium, a fractura das pernas. Quero que saibas que, se estiveres a mentir-me, nem sequer terás direito a esse privi­légio.

Uma camada de suor fina e brilhante surgiu sobre o crânio raspado do mago. Soubera desde o princípio que apostava muito alto, mas reconhecia agora que o tribuno estava muitíssimo longe de ser uma criatura fácil de manobrar.

Sem deixar de olhar para o mago, Cornélio dirigiu-se a um dos três soldados que se encontravam na sala:

- Lúcio, vai chamar o primeiro centurião da coorte. Que deixe o que está a fazer e se apresente porque é urgente.

O legionário fez a saudação e preparou-se para sair. Estava a uns passos da entrada da tenda quando a voz do tribuno se ouviu de novo.

- Espera... - disse Cornélio como se acabasse de ter uma ideia. - Depois de acompanhares o centurião à minha presença, vais buscar o legado Pompeiano. Diz-lhe que necessito do seu auxílio num assunto de especial relevância.

Arnúfis teria gostado de continuar a conversa com o tribuna e abriu a boca, disposto a fazê-lo, mas não chegou a pronunciar uma só palavra. Cornélio ergueu a mão direita, impondo silên­cio, estalou os dedos para que um secretário se aproximasse e começou a ler os seus documentos como se estivesse sozinho na tenda. Não levantou os olhos. Claro que não conseguia con­centrar-se nas linhas que tinha à sua frente, mas não estava a fazer aquilo para poupar tempo, fazia-o, essencialmente, para humilhar o egípcio. De boa vontade o teria expulso a pontapés da tenda, do castra, de qualquer território onde se erguessem, orgulhosas, as águias romanas. Não, um verme como aquele não tinha lugar - não deveria tê-lo - à sombra do poder romano. A não ser que fosse para o condenar às galeras ou à crucifi­cação.

A espera não foi grande, mas foi tensa. Por isso, quando o legionário regressou com o centurião, sentiu-se aliviado. Resolveria aquele assunto desagradável rapidamente, e, se Júpiter lhe fosse propício, antes de o Sol se pôr aquele mago estaria aos gritos na cruz.

- Centurião - disse, esboçando um sorriso. - Chamei-te para te interrogar sobre uns assuntos. Não será por muito tempo. Sei que tens muitas ocupações e gostas de as desempenhar com o maior cuidado.

O oficial manteve o silêncio. A experiência dizia-lhe que não era habitual receber elogios de um superior, e ainda menos que este o convocasse por ninharias. Que desejaria o tribuno e, sobretudo, o que faria o egípcio naquele lugar?

- Como estava a dizer - prosseguiu o tribuno - vou ser breve.

Sabes em que consiste o delito de perduellio?

- Sim, domine - respondeu o centurião. - Consiste em trair o imperador.

- Exacto, exacto. Poderias explicitar alguma conduta que merecesse a classificação de perduellio?

O oficial hesitou um instante. Ao longo dos seus muitos anos de serviço, nunca um superior lhe fizera perguntas sobre ques­tões legais. Que estaria a passar-se?

- Várias, domine - começou a responder, de modo sereno e respeitoso. - Entregar uma praça sem ter recebido ordens para tal, a capitulação sem estar autorizada por um superior, a coni­vência com o inimigo em prejuízo das legiões, conspirar para matar o césar...

- Sim, claro - disse o tribuno com a cólera a espreitar-lhe nos olhos. - Tudo isso é perduellio.

Fez uma pausa, voltou-se para o ariolus e disse:

- E agora, egípcio, quererás dizer-nos em qual desses com­portamentos repugnantes incorreu este centurião?

Se Cornélio esperara intimidar o mago com aquela pergunta, depressa descobriu que não o conseguira. Arnúfis permanecia tranquilo, fazendo até alguns esforços para impedir que um sorriso lhe aflorasse aos lábios escuros e grossos.

- Em nenhum deles - respondeu prontamente.

- Em nenhum deles - repetiu o tribuno com uma nota de triunfo na voz. - Efectivamente. Em nenhum. E isso faz de ti... - A sua culpa é ainda maior - afirmou o mago.

O tribuno abriu a boca, mas dela não saiu um único som.

Estava demasiado surpreendido, demasiado confuso, dema­siado estupefacto para continuar aquele interrogatório.

- Este homem nega ao césar a honra que ele merece - prosse­guiu o egípcio com a segurança que só possui aquele que tem a certeza de se encontrar numa posição de superioridade. - Jamais, ouve-me bem, tribuno, jamais lhe oferecerá um sacri­fício. Não o fará porque nega que ele seja um deus.

Cornélio atravessou a distância que o separava de Arnúfis, e ergueu a mão disposto a esbofetear aquele africano burlão. Aquela fraude fora demasiado longe. Definitivamente. Mas o egípcio não se calou perante a ira do tribuno. Nem sequer recuou. Olhou-o bem nos olhos e disse:

- Esse homem é um ateu. Não crê em deuses. É... um cristão. O tribuno deteve-se como que fui minado por um raio. Um cristão? O seguidor de uma religião ilícita nas legiões?

Mas que disparate estava aquele africano a dizer? Até que ponto estaria disposto a chegar na sua ousadia?

- Ultrapassaste todos os limites da minha paciência - excla­mou Cornélio enfurecido. - Esta tarde serás crucificado.

- Não, domine. O que ele diz é verdade.

O rosto do tribuno contraiu-se como se acabasse de receber um golpe de extraordinária violência. Quem acabava de se lhe dirigir não era Arnúfis, o mago egípcio, e sim o centurião acusado. O veterano Valério.

 

CENTURIÃO, tens a certeza do que dizes? - perguntou o tribuna con­fuso e surpreendido.

Arnúfis observou, satisfeito, o rosto de Cornélio. Estúpido! Não passava de um desses oficiais jovens que os romanos tanto gostavam de enaltecer. O império estava cheio deles. Achavam que sabiam tudo só porque vinham de uma família abastada, porque os avós se tinham sentado nos bancos do senado e por­que em crianças, os seus pedagogos fingiam-se satisfeitos por eles terem aprendido três ou quatro disparates em grego. Observara dezenas de vezes o seu orgulho, a sua soberba, a sua displicência e, sobretudo, a sua insaciável ânsia de enfrentar dificuldades. Eles! Os que nunca tinham sofrido! Os que até dis­punham de escravos para lhes limparem o traseiro! Ora bem, agora teriam de se confrontar com uma situação bem espinhosa. Nada mais, nada menos do que a presença, naquela coorte impoluta, imaculada, gloriosa, de um réu de perduellio.

Vendo bem as coisas, tudo fora extraordinariamente fácil. Há muito tempo que conhecia gente corno Valéria. Vira-os no Egipto, na Síria, em todos os locais habitados. Aquela gentinha afirmava a existência de um único deus. É claro que os judeus também acreditavam nessa baboseira, mas esses pelo menos eram um povo antigo, ao qual não faltavam conhecedores de grego nem, embora de modo excepcional, gente de bens e influência. Agora os cristãos... Os cristãos eram figurinhas insigni­ficantes que manifestavam a intolerável insolência de querer saber tudo, e quem eram efectivamente? Modestos sapateiros, carniceiros tagarelas, curti dores malcheirosos, pescadores sujos. E não só. Havia muitas mulheres. E escravos. Que loucura!

Quanto à sua doutrina, dificilmente poderia ser mais asque­rosa. Essa crença num deus transformado em homem, não para fecundar as belas fêmeas mortais, mas para viver como um servo e morrer no patíbulo era mais do que suficiente para provocar a rejeição de qualquer ser sensato. O mesmo se poderia dizer dos seus ensinamentos éticos. Insistiam em viver modestamente, mas não como Diógenes, o cínico, e sim para mostrar aos outros que os bens careciam de valor quando não eram partilhados com os demais. Faziam questão de condenar o adultério, não só nas mulheres - isso ninguém lhes levava a mal -, mas também nos maridos. Davam esperanças aos escravos, desde que fossem bons e diligentes, não roubassem os seus amos e obedecessem sem abrir a boca. E, como se fosse pouco, juntavam a tudo isto a extravagante afirmação de que nenhum dos seus actos lhes garantia uma existência feliz para além da morte, visto que isso era um bónus! - um bónus. Aquele delinquente da Galileia em boa hora fora executado por um procurador romano. De facto,

o último lugar onde se esperaria encontrar gente dessa seita era no interior de um castra. Mas também ali os havia.

Começara a suspeitar de tudo quando aquela meretriz de pele suave o procurara para lhe pedir ajuda. Num primeiro momento, pensou que o veterano pura e simplesmente não queria deitar-se com ela. Não era muito normal, claro, nas tam­bém não era motivo de grande estranheza. Uma doença, um voto religioso, um ferimento nas partes pudendas, uma atracção por miúdos, qualquer dessas possibilidades explicaria perfeita­mente a sua conduta. Contudo, algo lhe disse que tinha de haver mais alguma coisa. Sim, mais, mas o quê? Por fim, a curiosidade levou-o a vigiá-lo e as descobertas que fizera esclareceram muitas coisas. Levantava-se antes de todos os outros para rezar, de joelhos, num lugar afastado e longe de qualquer represen­tação divina. Não podia perder o seu precioso tempo naquilo, mas, logo depois da primeira suspeita, dera ordem a Demétrio para que não o perdesse de vista. Os resultados não poderiam ter sido mais eloquentes. Não fazia sacrifícios aos deuses, afastava­-se das celebrações, não venerava as imagens e, principalmente, não acendia incenso em honra do génio de césar. Era, natural­mente, discreto. Cedia essas honras aos seus homens, como se fossem recompensas - era astucioso, não podia dizer-se o contrário-, mas, na verdade, o que procurava era manter-se à margem dessas cerimónias que abominava. A tudo aquilo vinha somar-se a recusa de se deitar com uma rameira e a sua defesa da prostituta que dava pelo nome de Plácida... sim, não havia qual­quer dúvida. Aquele homem era um ateu, um indivíduo que renegava os deuses, um cristão.

Alcançar aquela certeza provocou em Arnúfis uma onda quente de satisfação que lhe alegrou o coração e o espírito. Até se permitiu oferecer, num gesto de generosidade, alguns sestércios a Demétrio, para que ele os gastasse em vinho e mere­trizes. De modo inesperado, Ísis abrira-lhe inesperadas oportu­nidades. Em primeiro lugar, a de se vingar daquela tonta com o coração a transbordar de sonhos patetas. Certamente iria adorar ver o centurião ser chicoteado e executado. Isso sem dúvida. Mas a segunda era ainda mais importante. Sabia que não era bem visto, que muitos romanos o olhavam de esguelha, preferindo que ele não estivesse no castra. Pois bem, a sua posição ficaria agora definitivamente assegurada. Fora ele, um africano, um egípcio, um bárbaro quem apontara o autor da pior ofensa ima­ginável, a de perduellio. E agora restava ver o que aquele tribuno novato e imberbe iria fazer.

- Centurião - repetiu Cornélio. - Tens a certeza de que compreendes de que estás a ser acusado?

- Domine - respondeu Valério-, não sou culpado de perduellio. Nunca faltei aos meus deveres como soldado e nunca o farei.

- Mas... mas és cristão - disse o tribuno num tom de desalento.

- Sim, domine, sou- reconheceu Valério -, mas isso não me impede de ser leal a Roma e ao césar.

Arnúfis esteve quase a deixar escapar uma gargalhada, mas controlou-se. Tendo em conta o estado de espírito do tribuno, não era prudente arriscar. Bastaria deixar que as coisas seguis­sem o seu rumo.

- Ah, não? - exclamou o tribuno. - Então... então, se eu te ordenasse, oferecerias incenso...

- Não, domine - respondeu Valério, pesaroso. - Isso não poderia fazer.

- Que falta de disciplina intolerável... - disse Arnúfis, como se tivesse deixado escapar um pensamento, mas num tom de voz bastante audível.

Cornélio olhou para o chão. Sentia-se verdadeiramente exausto. Como se de repente tivessem descarregado sobre as suas costas um fardo pesado que era incapaz de transportar. Sim, aquilo constituía, ao fim e ao cabo, uma falta de disciplina. Essa era a questão essencial. O mais importante não era se o centurião adorava um deus servil, ou se inclinava perante a tríade capitolina, ou prestava culto a uma divindade com cabeça de animal. Não, o que era relevante era que Roma não podia admitir a desobediência no seio das suas legiões. É certo que a opinião que tinha daquele homem era boa. Até mesmo exce­lente.

Contudo, era totalmente inaceitável o facto de pôr em perigo a coorte para cumprir os preceitos da sua religião. Sobretudo naquele momento.

- Domine.

Cornélio ergueu os olhos. Estava lívido e os seus lábios redu­ziam-se a uma linha arroxeada e horizontal, como se tivesse entrado em processo de agonia. Quem se lhe dirigia era um dos assistentes pessoais de Pompeiano. Claro, o legado. Esquecera­-se por completo dele no meio daquela conversa desagradável. Mas... mas, como fora possível? Sim, passar-lhe-ia a questão e ele certamente a resolveria da maneira mais adequada.

- O legado vem? - perguntou com a mesma ansiedade com que um náufrago se agarraria a um cabo que pudesse salvá-lo das águas.

- Domine - respondeu o legionário. - O legado ordena-te que compareças na sua tenda.

O tribuno franziu o sobrolho. Pompeiano não só não atendia o seu pedido, como ainda o mandava reunir-se a ele. Mas, por­quê? Tal decisão teria algo a ver com o maldito egípcio? Naquele momento já estava pronto a acreditar em qualquer coisa.

- Informa-o de que assim o farei - respondeu Cornélio, adop­tando uma postura marcial.

- Domine - disse o legionário. - O legado deseja que vás falar com ele agora. Os cuados, os sármatas e os marcomanos acabam de atravessar o rio Íster e a tua coorte deve ir de imediato ao seu encontro. Ele próprio te dará indicações pormenorizadas.

Cornélio manteve o silêncio. Parecia que naquele dia os deuses se empenhavam em se divertir à custa dele. Era difícil que lhe tivessem mostrado com mais clareza como era fraco, inexpe­riente e limitado. Que mais lhe estaria reservado, e, sobretudo, em que poderia tê-los ofendido para que agissem daquela maneira? Estariam encolerizados com aquele cristão?

- Está bem - disse. - Anuncia ao legado que irei agora mesmo à sua tenda.

Camélia viu o emissário fazer a saudação militar antes de abandonar a tenda. Bem, de momento, era bastante claro que Pompeiano não iria ajudá-lo a sair daquela confusão. Os assun­tos que tinha entre mãos eram prioritários, e seria totalmente indecoroso importuná-lo com aquilo. Sim, aquilo. Que fazer? Levou a mão ao queixo e começou a acariciá-lo, como se assim pudesse levar o espírito a pensar melhor e com maior rapidez. O legado estava à sua espera e, como qualquer superior, não gostava de atrasos por parte dos seus subordinados. Bem, como dissera o velho Júlio, alea jacta est (nota 16).

- Centurião - disse por fim. - A acusação formulada contra ti é de uma tremenda gravidade. Poderia, até, tratar-se de um delito de perduellio...

Arnúfis deu um salto ao ouvir aquelas palavras. Que quereria aquele tribuna imberbe dizer com «poderia»? Não lhe pareceria suficientemente claro? Mas se existia até uma confissão por parte...

- Não seria justo ditar uma sentença apressada quando pode estar em jogo a vida de um cidadão romano - continuou o tribu­na. - Recolhe o que te pertence e ordena aos homens que se preparem. Vamos marchar ao encontro dos bárbaros.

- Mas... mas... - tentou protestar Arnúfis.

- Quando regressarmos - prosseguiu Camélia como se não

tivesse ouvido o mago - este assunto ficará resolvido. Agora, o nosso dever primeiro, sacrossanto, é defender a fronteira. Podes retirar-te.

O egípcio viu, estupefacto, Valéria saudar o tribuna e, logo a seguir, abandonar a tenda. Não iria jurar, mas tivera a clara sensação de que o seu rosto não revelava o menor sinal de inquietação. Parecera-lhe até... que os seus olhos brilhavam. Não, aquilo não podia ficar assim.

- Egípcio - disse Cornélio com uma voz tão áspera que lhe cortou os pensamentos. - Prestaste um grande serviço a Roma...

Arnúfis respirou aliviado ao ouvir aquelas palavras. Bem, talvez Valério se tivesse safado de momento, mas ele... ele, certamente, ganharia alguma coisa com aquela delação. Sim, talvez tudo acabasse por se resolver de acordo com o que havia planeado.

- Precisamente por isso - continuou o tribuno - não posso permitir que te aconteça qualquer imprevisto. A tua vida é demasiado preciosa para nós...

Excelente, sim, excelente, pensou satisfeito o ariolus. Finalmente alguém ia dispensar-lhe protecção, a protecção de que necessitava havia anos, e quem lha ia proporcionar era, nada mais, nada menos, do que um tribuno. Que pena não ter desco­berto antes aquele cristão.

- ... e, por ser tão valiosa, não quero que fiques desprotegido.

Vai à tua tenda e prepara tudo. Virás com a minha coorte ao encontro dos bárbaros.

Uma palidez de cera cobriu as feições do mago. Não podia ter ouvido bem. Ele não era um legionário. Nem um auxiliar. Nem sequer um romano. Aquele imberbe não podia dar semelhante ordem. Não tinha o direito de o fazer.

- Ah, Arnúfis! - acrescentou Cornélio com uma voz carrega­da de autoridade. - A partir deste momento, estás às minhas ordens, como qualquer dos meus homens. Deves saber, portan­to, que considerarei qualquer acto de desobediência, mesmo o mais ínfimo, como um delito de perduellio, e que assim o casti­garei. Com a máxima severidade. Agora retira-te.

O mago saiu da tenda, controlando com dificuldade o tremor que fazia com que os joelhos se entrechocassem. Estava tão abismado com o que acabara de ouvir que nem se apercebeu de que, a uns passos de distância, era observado por uma meretriz chamada Rode.

 

         IGNIS EX CAELIS

 

ESTAVA calor, muito calor, um calor opressivo.

Precisamente o tipo de clima que nenhum romano associaria aos territórios situados na outra margem do rio Íster. Em boa verdade, o que esperavam era bosques verde­jantes e pradarias frondosas, auroras geladas e tardes de vento, chuvas intermitentes e longas noites. Contudo, as legiões - a I Adiutrix, a X Gemina - e os seus estandartes - a X Pretensis e a XII - tinham deparado com o oposto. O sol era abrasado r, nin­guém acreditava que chovesse, e o dia acabava por se tornar opressivamente longo. Para a maior parte dos legionários da coorte que, como Célio, tinham experiência na Germânia, era difícil evitar uma forte sensação de angústia. A sua prática de veteranos teria resultado melhor entre bosques e pântanos, no meio de rabanadas de vento e nevões. Ali, sentiam-se exaustos. Suavam e sentiam, como nunca, o peso do equipamento. Não causou estranheza que, durante a deslocação, alguns homens perdessem os sentidos.

Aquelas dificuldades tinham levado Cornélio a tomar a decisão de levar o seu comportamento exemplar a extremos. A cavalo, obrigava-se a não beber uma única gota de água antes de os homens terem saciado a sede, a suportar durante o máximo de tempo possível a dureza da sela, a não deixar que a sua respi­ração se tornasse irregular devido ao cansaço. Estava convencido de que não eram poucos os legionários que ansiavam por ver nele o mais pequeno sinal de fraqueza, e não estava disposto a dar-lhes essa satisfação. Era o tribuno, e, como tal, daria provas da maior resistência.

Com esse objectivo em mente, animava-o a contemplação dos dois homens que lhe tinham angustiado a existência nos últimos dias. O egípcio estava, sem dúvida, habituado à comodi­dade, mas dava mostras de uma enorme resistência. Acostumado a uma temperatura ainda mais rigorosa do que aquela, o calor da outra margem do Íster não o deixava abatido, pelo contrário, conferia-lhe uma vitalidade renovada, como se o transportasse de novo aos tempos da sua vigorosa juventude. Dado que o equi­pamento era transportado por um escravo grego, a expedição não parecia causar-lhe o menor dissabor. Quanto a Valério, havia que reconhecer - e agora era-lhe penoso fazê-lo - que se tratava de um legionário excepcional. Teria sido aceitável espe­rar que um homem com tantos anos de serviço prestado, que ainda por cima suportara o cativeiro e a doença, tivesse os ossos corroídos e a capacidade de resistência praticamente esgotada. Mas, com Valério, não era assim. Pelo contrário, dava a sensação de que as dificuldades sofridas no passado tinham servido para lhe dar estofo, para o endurecer, treinando-o para campanhas como aquela. É claro que era deplorável que abrigasse no seu espírito ideias tão extravagantes, sendo um homem de tão notá­veis qualidades.

Valério, por seu turno, sentia-se feliz. A acusação que o mago egípcio havia formulado contra ele era de uma enorme gravida­de e poderia ter-lhe custado a vida. Mas, ainda que não pudesse prová-lo - e nunca poderia - o facto de terem descoberto que era cristão colocava sobre a sua cabeça a espada do carrasco.

Não, desde o tempo do césar Nero que deixara de ser preciso provar um crime, qualquer que ele fosse, para tirar a vida a um cristão. Bastava lançar essa acusação à cara da pessoa odiada. A situação nem sequer mudara com o césar Marco Aurélio. Bastava perguntar aos familiares dos cristãos assassinados em Lugdunum uns anos atrás. Conhecera alguns e, ao que sabia, quando uma parte da populaça decidira sacrificá-los como se fossem feras, as autoridades do império não só não o tinham impedido, como tinham dado todo o apoio, com verdadeiro entusiasmo. Isso acontecera depois da peste...

Apesar do calor sufocante, Valério não conseguiu evitar um calafrio ao recordar a praga que assolara Roma. Do mais fundo do coração veio-lhe a lembrança da manhã em que, quando se dirigia ao edifício onde morava com Grato, desfalecera, caindo na rua. Poderia ter morrido nesse dia. Bastaria que um dos escas­sos redutos de autoridade que permaneciam em Roma tivesse agarrado no seu corpo exangue e o tivesse lançado na valeta. Aí teria agonizado, respirando cada vez pior, até deixar de exis­tir. Nem médicos, nem soldados, nem cidadãos teriam mexido uma palha para o ajudar.

Contudo, as coisas tinham seguido um rumo bem diferente. Voltando a si, viu em primeiro lugar uma cobertura de palha. Não sabia onde estava e ao tentar sentar-se percebeu que não era capaz. Mas, pelo menos, continuava vivo. Murmurou o nome de Grato e logo um homem se aproximou, humedecendo-lhe a testa com um pano húmido. Nessa altura, ardiam-lhe a garganta, a boca, o nariz, o peito. O simples contacto com o tecido propor­cionara-lhe um alívio extraordinário. E foi o que recebeu antes de voltar a perder os sentidos.

Nunca soubera ao certo por quanto tempo ali permanecera, naquele leito cuja enorme incomodidade não lhe permitira entregar-se à doença. Por esses dias, quando recuperava a consciência, só conseguia perceber pormenores: que a sala era longa e estreita, que tinha tanto vento que se tornava gelada, que havia dois (ou seriam três, talvez quatro) homens que tratavam dos doentes, que estes eram todos do sexo masculino. Em cir­cunstâncias normais, ter-se-ia interrogado sobre o que estava a acontecer, mas, agarrado pelas garras impiedosas da praga, não tinha essa possibilidade. Limitava-se a sair das trevas para voltar a mergulhar nelas de novo. E foi então, numa dessas noites, ou dias, ou tardes, que a escuridão deu lugar a uma série de imagens difíceis de entender. À sua frente apareceram, em angustiantes movimentos circulares, a sua mãe e a sua avó, o seu pai e os seus companheiros de brincadeira, dos primeiros dias na legião e no cativeiro, Grato e os combates contra os bárbaros. Tudo surgia à sua frente e quando, angustiado, tentava tocar nalgum daqueles seres, desapareciam sem deixar rasto. Valério não sabia, mas aqueles pesadelos eram sinal de que estava a sair da doença e de que a esperança iria regressar à sua vida.

Isso aconteceu, finalmente, uma manhã. De repente, abriu os olhos e viu à sua frente um rosto que lhe pareceu familiar. De facto, assim era, tratava-se de um dos homens que tratavam dos doentes, uma dessas figuras que, de modo fugaz, contem­plara sempre que voltava a si. Parecia ocupado, mas, ao reparar que Valério acordava, abandonara o que estava a fazer e olhara­-o atentamente. Tinha olhos castanhos e compassivos, e um sorriso impregnado de um sentimento que o legionário não foi capaz de identificar porque, antes disso, nunca o vira.

-Ubi... ubi sum? (nota 17) - conseguira perguntar.

O homem sorrira-lhe, antes de responder:

- Não te preocupes agora com isso. Descansa.

         Mas Valério não regressara da morte para se conformar com tais palavras.

- Sou optio. Diz-me imediatamente onde estou.

Sobre o rosto do homem pairou uma sombra, ao ouvir a con­dição castrense do doente. Mas só durou um instante. Depressa respondeu, com um sorriso suave:

- Estás no lugar onde se presta ajuda aos doentes e aos indigentes.

Valério deixara cair a cabeça sobre a cama ao ouvir aquelas palavras. O seu sentido prático levara-o a perguntar pelo paga­mento daqueles cuidados. Há quanto tempo o tratavam? Que gastos implicava o tratamento?

- Ajuda-me a levantar - murmurou com a voz entrecortada.

- O custo...

- Não há custo - disse com tranquilidade o homem.

- Não há? Como não há?.. - protestou debilmente o optio

- E então porque fazes isto? És algum filósofo?

- Dorme - foi a única resposta que recebeu.

Valério voltou a mergulhar no sono, mas, daí em diante, esse sono foi-se aproximando aos poucos da normalidade, até ao dia em que conseguiu levantar-se da cama e sentar-se a descansar num pequeno poial perto da casa. Aí sentado, deixava que as horas fossem decorrendo e, mergulhado em profundas refle­xões, observava como se travava uma batalha incansável contra a morte. Em certas ocasiões as Parcas conseguiam cortar o fio que ligava os mortais à vida, mas também não eram poucas as vezes em que aquela soma de cuidados, zelo e limpeza as obrigava a retroceder soltando a sua presa. Quanta gente se teria salvo graças ao trabalho daqueles poucos? Certamente, não mais de algumas dezenas. O resultado era bem escasso, quando compa­rado com o mal que a praga estava a causar nas ruas da urbe e, não obstante, que grande era, em contraste com o exemplo daqueles cidadãos - médicos ou não - que tinham fugido ou lançado na valeta os doentes, para não correrem qualquer perigo.

Uma noite, quando já se sentia francamente melhor, saiu para respirar o ar fresco da rua, e sentou-se no poial. Os seus pensamentos fluíram numa nuvem vaga, desordenada. Grato - que seria feito de Grato? -, os anos passados nas legiões, o cati­veiro, o modo como se havia desenrolado a sua vida, tudo aquilo estava reduzido a presenças espectrais a pairar sobre o seu cora­ção. E então sentiu uma angústia que se manifestou primeiro como uma picada surda, e acabou por se transformar num manto de angústia e tristeza. Em toda a sua existência, não encontrava nada que valesse a pena. Sim, é claro que havia a coragem, a honra, a disciplina, a obediência... tudo isso tinha o seu valor e, certamente não era pouco. Contudo, agora que pen­sava nisso, face às portas do Hades, parecia-lhe ser muito pouco. Eram apenas cinzas de uma vida, consumidas, sim, ao serviço do senado e do povo de Roma, mas cinzas, ainda assim. Sentia-se cada vez mais esmagado por aqueles pensamentos quando, no meio da escuridão, vislumbrou a silhueta conhecida da pessoa que o tratara durante todos aqueles dias. Esperou que se aproxi­masse mais, inclinou-se e agarrou-lhe o braço.

- Preciso de falar contigo - disse com toda a força de que foi capaz.

A figura hesitou um instante, mas, por fim, colocou a sua mão sobre a do legionário, deu-lhe uma palmada suave e deixou-se cair no poial.

- Estou a ouvir-te - disse, mal se sentou.

Valério respirou fundo, como se quisesse encher os pulmões de força antes de dizer:

- Quem és e porque fazes isto? Rogo-te que me respondas a verdade.

Não pôde ver, na escuridão, os olhos do homem, mas pare­ceu-lhe sentir um olhar cravado no seu rosto. Ouviu:

- Não tenhas medo, optio. Somos cristãos.

Cristãos? Que quereria dizer aquele homem? Tanto quanto sabia, os cristãos eram uma estranha crença, uma doutrina de campónios e iletrados, uma religião ilícita de uns crentes que dormiam uns com os outros, violando as mais sagradas leis e costumes. Como que impulsionado por uma mola, Valério tentou pôr-se de pé, mas uma mão obrigou-o, com firmeza, a permanecer sentado.

- Optio - disse o seu interlocutor. - Durante mais de duas semanas, limpei-te, recolhi a tua urina e os teus excrementos, alimentei-te, fiz todos os possíveis para que pudesses viver. Achas que é um preço muito elevado ouvires a resposta à pergunta que tu próprio formulaste?

Valério não respondeu. Limitou-se a guardar silêncio, como se desse modo concedesse permissão tácita ao outro para conti­nuar a falar.

- Sei que as pessoas contam muitas coisas de nós. A maior parte delas são falsas, é bom que se diga. Não bebemos sangue nas nossas reuniões, nem temos relações íntimas entre irmãos, nem fazemos mal ao género humano. Nada disso é verdade. São afirmações nascidas da má-fé ou da pura ignorância. Na verdade, somos gente simples que crê - que sabe - que o único Deus se transformou em homem para nos salvar deste mundo de sofri­mento e de morte. É a gratidão que sentimos por esse Deus único que nos leva a fazer o bem aos outros, independente­mente da sua condição.

         Valério respirou fundo. O que acabava de ouvir dava origem a

mais perguntas do que respostas.

         - Esse... esse deus de que falas... Porque dizes que é único?

Queres dizer que é optimus e maximus como Júpiter? A quem te referes, ao dizer que se fez homem? Não sou capaz de entender. E, sobretudo, que tem tudo isso a ver com o facto de me teres tratado?

- Verás, optio...

- Podes chamar-me Valério - interrompeu.

- Bem, Valério - respondeu, num tom amável, o seu interlo­cutor. - A primeira coisa que te direi é que a nossa doutrina não é nova. Na verdade, existiu sempre um só Deus, um Deus único que criou os céus e a terra e tudo o que neles existe. Esse Deus é Senhor do céu e da terra, e não mora em templos feitos pelas mãos dos homens. Também não precisa de homenagens, nem que se lhe ofereça o quer que seja, pois ele a todos dá vida, a res­piração, tudo. Esse Deus único fez todos os homens de um mesmo sangue, para que habitassem à face da terra, e criou a ordem dos tempos. Esperou sempre que o procurassem, porque a verdade é que não está longe de cada um de nós. Nele vivemos e nos movemos, e somos; como também referiram alguns dos nossos poetas.

O homem fez uma pausa e prosseguiu:

- Valério, esse Deus não é como o ouro, nem como a prata, nem como a pedra, não é como as imagens que os homens são capazes de criar com o seu engenho e imaginação de homens. Esse Deus anuncia agora a todos os homens, em todos os luga­res, que devem mudar de vida. E isto porque estabeleceu um dia, no qual julgará o mundo com justiça, por meio de um homem que se ergueu dos mortos, esse a quem chamamos Cristo e a par­tir do qual recebemos o nosso nome.

- Não... não sei se estou a entender-te - disse Valério, con­fuso. - Referes-te a uma religião sem templos e sem represen­tações dos deuses, falas de todos os homens como se os visses a todos da mesma maneira, contas-me que esse deus irá julgar o mundo... Não sei... Quero dizer... Se o que dizes é verdade, se efectivamente irá julgar o mundo, o que devemos fazer para escapar a esse juízo? Oferecemos-lhe sacrifícios? Ou temos que ser iniciados nalgum mistério, como aqueles que são ensinados em Elêusis?

- O Deus único - disse com voz serena o homem - deseja que todos os homens vivam de acordo com a sua lei, uma lei que ape­nas nos ensina a virtude. Essa lei exige-nos que não matemos, não roubemos, não cometamos adultério, não tenhamos condu­tas vergonhosas, não mintamos, obedeçamos aos pais...

- Essa lei está guardada em Roma há séculos - interrompeu Valério, que se sentia mergulhado numa incómoda mistura de fadiga e confusão.

- Essa lei - corrigiu o homem - certamente é conhecida desde há séculos porque está inscrita no coração dos homens. Contudo, não foi cumprida, optio. Tu sabes, como eu também sei, que todos, num momento ou noutro, infringimos essa lei.

- Bem, claro que ninguém é perfeito - tentou desculpar-se o centurião que sentia uma indisposição cada vez maior.

- Diz antes que ninguém é obediente.

- Sim... certamente tens razão. Ninguém é obediente.

- Exacto. Ora bem, essa desobediência será julgada pelo único Deus, e Ele condenará todos aqueles que nela tenham incorrido.

Valério ficou calado por instantes. Não estava habituado a manter aquele tipo de conversas, e sentia-se transportado para um terreno desconhecido que não pisava com segurança, onde sentia até um estranho temor.

- Se o que tu dizes é verdade, não digo que seja, mas se for, que podemos fazer para escapar a esse julgamento? Quero dizer, segundo dizes, o teu deus não habita templos, nem exige sacri­fícios de animais...

- Esse Deus único enviou o seu Filho ao mundo para que todos os que crêem Nele não se percam, não sejam condenados e tenham, de facto, uma vida eterna. Foi esse Filho quem pagou o preço da nossa desobediência, quem sofreu por nós o castigo que merecemos.

- Como foi que o fez? - indagou Valério surpreendido. - Foi crucificado.

Crucificado. Em mais de uma ocasião, Valério vira crucifi­cações e sabia que era a maneira mais horrível de morrer. a corpo, cravado, exposto aos insectos e animais e às inclemên­cias do tempo, tornava-se cada vez mais tenso, até provocar no indivíduo a sensação de morrer asfixiado. Mas nunca morria. De todas as vezes em que desejava que o seu fim chegasse o con­denado erguia-se sobre o sedile, a almofada de madeira que tinha debaixo dos pés, e aspirava uma golfada de ar que apenas servia para lhe prolongar a dolorosa agonia. Nalguns casos, o oficial apiedava-se dele e ordenava que fosse praticado o cru rifragium, a fractura das pernas às bastonadas. Incapaz de se endireitar, o réu acabava sufocando com falta de ar.

- Como um criminoso, portanto - disse o optio.

- Sim - admitiu o cristão. - Como um criminoso, apesar de estar inocente. a único homem sem pecado que existiu à face da terra. Mas morreu como um delinquente para que nós não tivés­semos de o fazer. Agora basta que recebas o que fiz por ti ou que o ponhas de lado.

- Quanto me custará? - perguntou Valério - Quanto terei de pagar?

- Valério, Valério... - disse o cristão com uma expressão diver­tida. - Não tens de pagar nada. Quem poderia pagar algo assim? Podes apenas recusá-lo ou recebê-lo com gratidão e recomeçar uma nova vida, uma vida que tenha sentido, uma vida de virtude, de uma virtude que vá além daquilo que os filósofos já nos ensi­naram.

O optio remeteu-se ao silêncio. Tudo o que acabava de ouvir provocara dentro de si uma confusão de sentimentos. Não estava seguro de ter entendido o que o cristão dissera. Na verdade, parecia-lhe demasiado complicado e vasto para ser assimilado na totalidade, mas no meio da sua confusão, havia uma pergunta que continuava latente.

- O... o que me disseste... - começou, hesitante. - Tudo isso... tem alguma coisa a ver com a maneira como me trataste?

- É o motivo fundamental- respondeu o homem. - Se o Deus único nos amou dessa maneira, a máxima virtude tem de residir no amar de modo semelhante. Por isso, socorremos aqueles que ninguém quer e servimos aqueles nos quais ninguém se atreve­ria a tocar, aqueles de quem os médicos fogem e que são aban­donados pelas famílias, aqueles que ao nascer são arremes­sados ao esgoto simplesmente porque os pais não os desejavam, aqueles que, como os escravos, nem sequer são considerados homens.

- Também tratais os escravos? - perguntou, surpreendido, o optio.

- Valério, o homem que dorme ao teu lado na sala é um escra­vo abandonado pelos seus donos. Quando recuperar, não só terá saúde, como também liberdade.

O optio não sabia ainda - nem sequer podia suspeitar -, mas antes do fim do ano, desceria às águas do baptismo, como sím­bolo da sua fé no Deus único.

 

O LEGIONÁRIO esporeou os flancos robustos do cavalo. Não tinha a certeza, mas parecera-lhe vislumbrar um movimento estranho, do lado oposto daquela mancha pardacenta de pequenas árvores raquíticas. Avançara apenas uma dezena de passos quando puxou as rédeas. A calma, a imobilidade, o silêncio eram absolu­tos. Excessivos, de certo modo. Não eram sequer perturbados pelo cantar de um pássaro, pelo estalido de um pequeno ramo ou pela corrida de um animalzinho insignificante. Não, nada. Talvez, ao fim e ao cabo, aquilo de que se apercebera não fosse um corpo. Talvez fosse uma sombra projectada contra o tronco de uma das árvores, ou uma luz recortada contra os ramos irre­gulares e as folhas limpas. Acariciou suavemente o flanco do cavalo. O animal parecia nervoso, inquieto, desassossegado. Mas isso podia não ter significado. Tanto poderia dever-se a uma pre­sença humana que estivesse por perto, como ao cheiro da água, ou ao barulho feito por um réptil. De qualquer modo, a expe­riência dizia-lhe que não devia brincar com a sorte. A deusa não iria achar bem e poderia castigá-lo sem dó nem piedade.

Puxou as rédeas e obrigou o cavalo a dar a volta. Sim, o melhor seria regressar ao lugar onde o tribuno se encontrava e avisá-lo do sucedido. Ao fim e ao cabo, era ele quem tinha de tomar uma decisão. O cavalo começou a deslocar-se para ocidente, num trotezinho mais satisfeito, como se estivesse a afastar-se de algum lugar perigoso. O legionário continuou, apesar disso, a olhar para a zona de onde lhe parecera ver o movimento. Não, definitivamente, não havia nada. Virou a cabeça para olhar em frente. Não conseguiu. Antes de a cabeça ter regressado à sua posição normal, foi separada do tronco por uma machadada certeira.

O cavalo mudou de direcção, mas não conseguiu galopar. Dois cuados, saídos de um lugar oculto em espessas sombras, agarraram as rédeas e o pescoço do animal. Acalmaram-no com facilidade. Eram cavaleiros desde a infância, e o animal não lhes causava qualquer problema.

Em poucos instantes, uma dezena de companheiros saíram do meio das árvores e vieram juntar-se a eles. Despir o legioná­rio decapitado e distribuir as suas armas foi simples. Mais difícil foi um dos cuados vestir o uniforme dele e montar o cavalo. Não conseguiu colocar a lo rica segmentata. Decididamente, tratava-se de uma armadura demasiado complicada. Não fazia mal. De um salto, montou a cavalo e enrolou-se na capa para que não perce­bessem que nem era legionário, nem levava armadura completa.

Chegou ao fim do bosque em poucos instantes. A um milhar de passos, avistava-se um grupo de exploradores. Atrás deles, a uma distância que seria, no mínimo, o dobro dessa, encon­trava-se a coorte. Marchava numa ordem correcta, com alguns cavaleiros nos flancos. Voltou a cabeça para o lugar de onde saíra e acenou. Sim. Os romanos estavam formados como seria de esperar. Um cuado pequeno, com o rosto marcado por uma cica­triz de machado, assentiu. Era o sinal aguardado. O cavaleiro ergueu a mão direita para chamar a atenção dos exploradores da coorte e fez um gesto para que se aproximassem do arvoredo.

Tito Vero, o chefe dos exploradores, viu o sinal. Bem. Estavam a começar a ficar fartos do ritmo de marcha que mantinham desde o castra. Em vez da formação em tartaruga, avançavam ao ritmo de uma tartaruga.

- Avisa o tribuno de que não há perigo - disse a um dos seus homens.

- Já não era sem tempo - pensou em voz alta o legionário que acabava de receber a ordem. Caminhou rapidamente uma deze­na de passos, e a seguir desatou a correr.

Quando chegou junto da primeira linha da coorte ainda tinha fôlego. Deteve-se e procurou com o olhar o tribuno. Não lhe foi difícil localizá-lo. Montava um cavalo forte, de fraco aspecto, mas patas robustas e seguras.

- Domine - disse ao chegar junto dele. - O chefe dos explora­dores informa-te de que a coorte pode atravessar sem perigo o arvoredo.

- Examinaram-no bem? - indagou Cornélio.

- Um cavaleiro percorreu-o. Já nos indicou que não há qualquer perigo - respondeu o explorador com entusiasmo.

- Podemos continuar a avançar sem problemas.

- Está bem - disse o tribuno.

- Domine, devo transmitir alguma ordem ao meu superior?

Cornélio hesitou um instante. O mais prudente teria sido dizer-lhe que atravessasse aquela mancha de árvores raquíticas e voltasse para o informar. Mas estavam a avançar com demasiada lentidão. Tanta que até àquele momento ainda não tinham con­   seguido travar combate com o inimigo.

- Espera um pouco - disse por fim.

O tribuno procurou o centurião com o olhar. Estava uma dezena de passos à sua frente, movimentando-se para manter a ordem nas fileiras. Um excelente trabalho, sem dúvida. Por que se teria lembrado aquele homem de ser cristão?

- Centurião, vem cá - gritou.

Valério voltou o rosto para o lugar de onde vinha a voz e aproximou-se a correr.

- Domine - disse quando chegou perto do seu superior.

- O chefe dos exploradores solicita autorização para conti­nuar a avançar. Enviei um cavaleiro até ao arvoredo que se vê lá ao fundo e o homem fez-lhes sinal de que não há qualquer inconveniente em avançarmos.

O tribuno fez uma pausa e acrescentou: - Qual é a tua opinião?

Ao ouvir a pergunta, Valério sentiu o coração bater mais depressa. Desde a saída do castra que tivera a impressão de que o seu superior o evitava. É claro que ouvira as suas informações e, ocasionalmente, dera-lhe uma ou outra ordem, mas sempre com um grande distanciamento, frio, regulamentar e, talvez por isso mesmo, eloquente.

- Penso que deveríamos deter o avanço até o corpo de explo­radores aparecer do outro lado das árvores - disse - ou então, contorná-los. Com uma emboscada à saída, seríamos surpreen­didos, e não poderíamos formar o acies.

Sim, pensou Cornélio, o acies era a chave para neutralizar um ataque dos bárbaros.

- Explorador - disse por fim -, comunica ao teu superior que deve entrar com os seus homens no arvoredo. Que mantenha cá fora uma reserva de tropas de meia dúzia de legionários, para nos avisar da eventualidade de perigo, e que me informe imedia­tamente do que suceder.

- Sim, domine - respondeu o explorador antes de desatar a correr de novo para o lugar de onde tinha partido.

O chefe dos exploradores ouviu, entediado, a ordem do tribu­no. A verdade é que estava farto daqueles jovenzinhos a quem era dado o comando só porque pertenciam a uma família de senadores. Bem, não tinha alternativa a não ser obedecer. Ergueu a mão e deixou-a cair com fastio, indicando que deviam explorar aquele grupo de arvorezinhas onde ninguém poderia esconder-se.

Cornélio viu-os entrar no arvoredo. Se não houvesse ninguém ali no meio, se ninguém os esperasse à saída, juntar-se-iam a eles logo a seguir.

- Centurião - gritou. - Ordena aos homens que parem.

Um murmúrio de alívio percorreu as fileiras. Afinal iriam descansar um pouco sob aquele sol que caía sobre eles como chumbo derretido. Alguns legionários levaram a mão às tiras que pren­diam os elmos, na intenção de os tirar e refrescar a cabeça.

- Que ninguém retire uma só peça de armadura - gritou Valério. - Nem capacete, nem [arica, nem sandálias. Mantenham as posições, vamos seguir caminho.

O som do descanso deu lugar a um burburinho de protesto.

- Se alguém está descontente - acrescentou o centurião - depressa terá motivos a sério para se lamentar. Uma palavra mais e castigarei quem merecer.

Um silêncio tão pesado como o ar quente instalou-se entre as fileiras. As sanções por indisciplina eram extremamente severas no castra, e, em plena campanha, podiam tornar-se insupor­táveis. De qualquer modo, era correr um risco excessivo pelo simples prazer de dar à língua.

- Vês alguma coisa? - perguntou, mal entraram no arvoredo, o primeiro dos exploradores ao companheiro que caminhava ao seu lado.

- Ali ao longe está o Marco. A cavalo. Alguns têm sorte.

- Sim, demasiada. Estou ansioso por que chegue a noite para formar o castra e poder descansar um bocado.

- Não me digas nada. Sinto os pés a derreter do suor.

- Ei, aí adiante. Agora é falar menos e andar mais.

Os dois exploradores fecharam a boca e apressaram o passo. Não puderam avançar muito. Foram trespassados por setas no pescoço, caindo no meio das árvores. Os que iam atrás deles nem sequer chegaram a pegar nas armas, abatidos por novos projécteis dos cuados.

- Aguentai a ordem! - conseguiu gritar o chefe dos explora­dores antes de cair morto. Era a quinta baixa que os cuados cau­savam, mas não a última. Em apenas alguns instantes, os seus homens, um atrás do outro, tiveram a mesma sorte.

- Por Júpiter! - exclamou o optio da coorte. - Estão a atacá­-los... Domine, os cuados estão a matar os nossos exploradores!

Cornélio observou o arvoredo. Meia dúzia de legionários tinham tentado sair de lá a correr, sendo trespassados pela espa­da dos bárbaros.

- Centurião - gritou com voz encolerizada. - Dá ordem de avançar em direcção às árvores. É preciso acabar com essa gentalha.

- Domine, devíamos aguentar esta posição.

Cornélio voltou-se para Valério. Os seus homens estavam a cair a umas centenas de passos e aquele homem atrevia-se a questionar as suas ordens, mas... mas como se atrevia?

- Dei ordem para avançar - disse o tribuno com voz austera.

- Domine, se nos movermos em direcção às árvores não poderemos formar o acies - respondeu Valério, no seu tom de voz mais humilde - e se não o fizermos, seremos facilmente apanha­dos. Nem sequer sabemos quantos são os inimigos que temos de enfrentar.

Cornélio manteve-se calado. Todo o seu ser lhe pedia que corresse a esmagar aqueles que estavam a tirar a vida aos seus homens e, não obstante...

- Formai o acies e não vos movais a não ser que vos dê ordem para tal! - gritou o tribuno.

- Se não nos movermos... - ouviu dizer um legionário que estava a poucos passos - vão ver como nos matam a todos.

- Aguentai posições - gritou o centurião ao mesmo tempo que começava a distribuir bastonadas para que cumprissem as suas ordens. - Que ninguém se mova enquanto eu não disser.

Valério observou um dos cuados, que acabava de emergir do meio das árvores. Segurava na mão direita a cabeça de um legio­nário e agitava-a comicamente. Não era o único a incitá-los à luta. Os outros guinchavam, gritavam, faziam gestos obscenos. Era óbvio que apenas pretendiam provocar o seu avanço.

- Domine - disse a Cornélio. - É óbvio que estão a tentar pro­vocar-nos. Trata-se de uma emboscada.

O tribuno hesitou. Não pareciam mais do que algumas deze­nas, arrogantes, mas apenas algumas dezenas. Como podia a honra de Roma permitir tal ofensa?

- Aguentai o acies - disse Cornélio, enquanto obrigava o cavalo a revolutear. - Aguentai.

Um silvo agudo seguido de um grito de dor foi o sinal de que os cuados tinham passado da provocação ao ataque.

- Um ferido! - disse uma voz na primeira fileira.

- Retirai-o! - gritou o optio - Passai-o para trás.

- Formaaaai... o acies! - gritou o tribuno.

Como se fossem um único homem, os legionários apertaram­-se uns contra os outros, juntando os escudos. Apenas poucos momentos antes, eram uma massa cansada, suada e farta de caminhar. Agora acabavam de se transformar num corpo impe­netrável, num braço de ferro, num invólucro de morte. Eram a manifestação visível de uma 'Roma nada disposta a deixar-se vergar pelos bárbaros.

De repente, Cornélio e os seus homens ouviram um clamor de centenas de gargantas. Era um grito animal e selvagem, a anunciar a morte de quem tivesse a ousadia de se interpor no caminho, um grito feroz e primitivo que deixava bem clara a desumanidade que se esconde no coração dos mortais. E então, aquilo que até esse momento tinha tido o aspecto de um redu­zido contingente de cuados, um grupo de bandidos, um bando de assaltantes, pareceu multiplicar-se como se obedecesse ao exor­cismo misterioso de um mago perverso. De ambos os lados do arvoredo apareceram duas alas de guerreiros, que corriam e guinchavam, dispostos a arrasar tudo à sua passagem.

- Que ninguém se mexa - disse Valério com voz segura. - Aguentai o acies.

Mal tinha acabado de dar a ordem, os bárbaros chegaram junto das primeiras fileiras. Foi um choque brutal, demoníaco, impetuoso. Por um breve instante, quando os primeiros cuados se lançaram em cunha sobre os romanos da frente, parecia que aquela onda acabaria por furar o baluarte de escudos. Tal não aconteceu. Nenhuma falha, espaço, greta, se abriu naquele muro de metal.

Desconcertados, os cuados retrocederam umas dezenas de passos, para recuperarem o fôlego e se reagruparem. Esperavam que os romanos recuassem com as defesas divididas, mas conti­nuavam ali, firmes e incólumes. Repetiriam o ataque, mas desta vez iniciando-o de mais perto.

- Aguentai o acies - ordenou o centurião. - Que ninguém dê um passo.

À distância, os cuados voltaram a gritar, a agitar-se, a fazer gestos obscenos. Em seguida, vendo que os legionários não res­pondiam à sua provocação, correram de novo ao seu encontro. Tinham percorrido uma terça parte do caminho quando Valério gritou:

- Preparai pilum.

Como se fossem um só homem, os legionários obedeceram à ordem.

- Disparai pilum!

Uma nuvem dos terríveis dardos romanos sulcou os ares, penetrando o peito de dezenas de bárbaros. Foi como se um gigantesco corcel formando por centenas de cuados tivesse sido ferido nas pernas, caindo ao chão devido ao impacto. Os guin­chos, brados e gritos deixaram bem claro que a besta fora atin­gida. Atingida, mas não morta. Ensanguentada, suja, furiosa, retrocedeu para recuperar o fôlego.

         - Que ninguém abandone o acies - gritaram quase em uníssono o centurião e o optio. - Aguentai posições.

Mais uma vez os cuados se aproximavam a correr. Agora, corriam evitando os companheiros mortos ou feridos. Saltando como se fossem feras, dando pulos que pressagiavam a destruição.

- Fundeiros preparados! - ordenou Valério.

Cem passos, setenta passos, cinquenta passos... se quisessem, poderiam ter visto as pupilas dos primeiros cuados.

- Disparai!

A nuvem de projécteis sobrevoou apenas um instante o campo, caindo de imediato sobre os atacantes. A visão daqueles corpos que tombavam, que se precipitavam para um dos lados ou para trás, que pareciam ter sido rachados, não permitia dúvi­das acerca da perícia, letal como as flechas de ApoIo, dos legio­nários.

 

O som áspero de uma trombeta rudimentar indicou aos cua­dos o que tinham a fazer. Sem deixar de gritar, de guinchar, de soltar os mais terríveis gemidos de dor, voltaram as costas e desa­taram a correr para um lugar que ficava para lá do arvoredo.

- Aguentai o acies! - insistiu Valério, que tinha consciência de que sabia muito bem quais os desejos que naquele momento pulsavam no peito dos seus homens.

Cornélio, o tribuno da vexillatio da legião XII, observou a terra que tinha à frente dos olhos. Aquilo que pouco antes não passava de um planalto, ante câmara de um pequeno arvoredo, era agora um terreno sulcado de cadáveres. Nos confrontos - ninguém poderia negá-lo - os bárbaros haviam demonstrado uma cora­gem notável. Tinham-se batido realmente bem. Contudo, apesar de toda a sua bravura, haviam sido incapazes de resistir à disciplina das legiões. As suas vagas de guerreiros vociferantes, que se agitavam como que possuídos por diversos demónios, agitando estandartes coloridos, tinham sido impressionantes, mas nada mais. No total, tinham perdido cerca de uma centena de homens, enquanto eles tinham tido perdas pouco significa­tivas. Dificilmente teriam podido sair melhor daquele primeiro confronto.

- Centurião - chamou, sem deixar de olhar para o campo. - Domine.

- Envia um mensageiro a Carnuntum - disse o tribuno.

- É preciso informar imediatamente o césar dos bons resultados deste confronto.

- Só agora começámos, domine - comentou num tom modes­to o centurião.

Cornélio observou Valério. Por instantes, experimentou um sentimento de raiva semelhante ao de um menino caprichoso a quem tiram um doce muito cobiçado. Contudo, nos olhos do centurião não percebeu o mais leve sinal de ironia, de displi­cência, de censura. Não, aquele homem era leal. Estava apenas a chamar-lhe a atenção para uma realidade.

- Obedece às minhas ordens - disse com uma inflexão severa­ e... e que seja uma mensagem breve.

Sim, aquele veterano tinha razão. Infelizmente, aquele episó­dio era o início e não o fim. A questão agora era acabar o que haviam começado sob tão magníficos auspícios.

É claro que não podia desprezar-se o perigo que representava perseguir um inimigo em retirada. Nem sempre era tarefa fácil.

A perseguição dos vencidos podia transformar-se no momento adequado para os aniquilar de modo definitivo, mas a História também mostrava que nem todos os generais eram capazes de o fazer. Por vezes, temiam uma recomposição do ini­migo, que poderia, assim, prosseguir o confronto noutro local; outras vezes, preferiam apoderar-se dos despojos da batalha, abandonados por um adversário vencido. Por fim, em muitos casos simplesmente faltava o talento necessário para transfor­mar uma vitória média num triunfo por aniquilação total. Talvez essa última circunstância fosse aquela que marcava a diferença entre um grande militar e um génio da guerra. Aníbal, o invasor procedente do Norte de África, tinha sido um dos primeiros. Sem dúvida infligira derrota após derrota às legiões para, ao fim e ao cabo, se retirar para Cápua, não se atrevendo a lançar os seus exércitos sobre Roma. O resultado era que - graças aos deu­ses - no fim perdera a guerra contra a república romana. Caio Júlio César, pelo contrário, fora um génio. A forma como actua­ra nas Gálias, na Grécia, na Hispânia deixava bem claro que soubera tirar partido da vitória - em certas ocasiões, até do fra­casso - obtendo o máximo de cada um. Mas, voltando aos aspec­tos práticos: teria que esperar pela chegada de outro vexillatio, ou, pelo contrário, avançar antes de eles puderem fugir?

Examinou o corpo, verdadeiramente gigantesco, de um dos cuados mortos. Aquele homem tinha certamente comido, bebi­do, caçado, até copulado, durante as últimas horas, e com a pujança de um touro. Se agora se via reduzido a uma massa iner­te de carne fragmentada, devia-se única e exclusivamente ao poder de uma coorte. Sim, não restava a menor dúvida. Avançariam.

 

- DOMINE, não esperamos pelo resto das legiões?

Cornélio observou o centurião, incomodado. Portara-se bem no confronto com os cuados. Deveria até agradecer-lhe as suges­tões relativamente a não avançar em direcção às árvores, mas era impossível não se sentir irritado com a pergunta. Não veria que, se avançassem mais devagar, os bárbaros que tinham derrotado dois dias antes acabariam por lhes fugir entre os dedos?

- Por acaso estamos mal de víveres? - respondeu o tribuno, usando outra pergunta.

- Não, domine. Há provisões de sobra.

- Estamos bem equipados?

- Sim, domine.

A resposta tinha sido suave, quase tranquila. O tribuno sentiu a ira aumentar dentro de si.

- Por que deveríamos então esperar por mais coortes? - disse, lançando a Valério um olhar de desafio.

Por um breve instante, o centurião teve dúvidas sobre se deveria ou não responder. A experiência dizia-lhe - e de que maneira - que um superior dominado pela teimosia represen­tava um tremendo perigo. A obsessão não só poderia levá-lo a cometer erros perigosos, como a culpar os subordinados que tivessem a ousadia de o contradizer pelas consequências desse mesmo erro. Ficar calado e assumir que qualquer desgraça que ocorresse tinha a marca do inevitável, ou falar e arcar com as consequências. Optou pela segunda hipótese.

- A primeira razão é não termos água - respondeu Valério. - Noutras circunstâncias, talvez não fosse muito importante, mas agora o calor já é sufocante e não sabemos se iremos encon­trar um rio nos dias mais próximos.

Cornélio franziu o sobrolho, mas não interrompeu o cen­turião.

- Em segundo lugar, domine, não conhecemos o território. Nunca aqui estivemos antes. Teremos à nossa frente os cuados, que derrotámos há uns dias, ou irão juntar-se a eles novos exér­citos, exércitos esses que, ao contrário de nós, conhecem sobeja­mente o chão que pisam?

- É tudo o que tens a dizer? - cortou impaciente o tribuno.

- Domine, não temos nada a perder se esperarmos. As outras legiões não devem estar a mais do que um ou dois dias de mar­cha e...

- Retira-te, centurião - disse o tribuno.

Valério fez a saudação militar e afastou-se. No fundo do seu ser sabia que aquelas eram as últimas palavras do seu superior.

E assim, durante os dias que se seguiram, a vexillatio da XII legião não parou de avançar por território bárbaro. Mas não encontraram os seus inimigos. Nem um cuado foi visto pelos destacamentos de exploradores que incessantemente perscruta­vam o horizonte, na esperança de encontrar os restos das forças derrotadas poucos dias antes. Também não encontraram água, nem um minúsculo regato, nem uma torrente quase a secar, nem uma mísera fonte, e a paisagem, como se os odiasse, como se os olhasse como incómodos invasores, ia sendo cada vez mais agreste.

Primeiro, começaram a rarear as árvores, depois avista­ram apenas um tronco aqui, outro além, e por fim, viam só uma terra árida. Mas nem mesmo nesse momento a paisagem se mos­trou compassiva. No início da expedição o terreno fora plano, mas foi-se transformando em encostas cada vez mais pronuncia­das, depois numa sucessão de montes que desembocavam num território claramente montanhoso. Assim, ao tormento do calor e da sede, juntou-se o de terem de atravessar elevações pedre­gosas e bravias, abrasadoras durante o dia e geladas de noite.

Talvez aquela sucessão de dificuldades não tivesse tido importância de maior, se os legionários não começassem a adoe­cer. Alguns, incapazes de suportar a sede, tinham bebido uns tragos de um charco imundo, outros chuparam a humidade das rochas. O resultado foi uma disenteria. Quando o número de doentes ultrapassou a dúzia, Valério considerou que tinha razões para se dirigir ao tribuno.

- Domine - disse com o maior respeito. - Os homens caem doentes e ainda não avistámos os cuados que perseguimos. Julgo que o mais prudente seria esperarmos pelas outras legiões.

Noutras circunstâncias, Cornélio não hesitaria em aceitar as sugestões do centurião. Agora, contudo, recebeu-as com des­dém. Perseverara durante tanto tempo no seu propósito, recusa­ra-se tão insistentemente a parar e, aos olhos dos seus homens, ficara tão ligado àquela inflexibilidade que, concluiu, qualquer atitude que o desviasse da sua conduta dos últimos dias seria interpretada como um sinal de fraqueza. Conseguiria manter a autoridade se, ao fim e ao cabo, desse razão a um centurião que, ainda por cima, professava uma religião ilícita? Não, de modo algum. O melhor, portanto, seria que continuassem a avançar, na esperança de não encontrarem o inimigo antes de ter che­gado o apoio das legiões, ou, no caso de terem de enfrentar os cuados, que estes não ultrapassassem numericamente aqueles uma

que haviam derrotado dias antes, embora esse tempo lhe pare­cesse agora tão distante como a época em que vivia em casa do seu pai.

Em boa verdade, Cornélio só começou a sentir uma verda­deira inquietação quando, à contrariedade dos legionários doentes, veio juntar-se a da morte do primeiro animal. Antes do fim do dia, mais dois tinham ficado estendidos ao sol. Quando amanheceu novamente, mais seis engrossavam a lista.

- Se continuarem a morrer assim, vamos ficar nós transfor­mados em mulas - ouviu um legionário dizer.

Não deixava de ter razão. Ou abandonavam um equipamento precioso em campanha, ou os combatentes carregavam com ele. Escolheu esta solução, enquanto rezava a Marte para que as mor­tes parassem por ali. Mas apesar de ter orado com um fervor no qual se misturavam promessas de sacrifícios e oferendas, o deus da guerra não ouviu o tribuno e, pelo contrário, as Parcas ceifa­ram a vida de um dos legionários. Não que fosse o primeiro a adoecer de disenteria, mas foi o primeiro caso em que a doença lhe esvaziou o ventre, drenando-o com violência de qualquer alimento e impossibilitando-o de reter qualquer substância que lhe permitisse continuar a viver. Nos últimos momentos de agonia chorava, recordando os pais e maldizendo aquele país bárbaro onde ia morrer.

Foi justamente ao ouvir aquelas palavras, reforçadas com lágrimas e moncos, que Cornélio se deu conta de que era possí­vel que não tivessem honrado convenientemente os deuses que povoavam aquelas paragens inóspitas. Por certo que esse des­cuido - naturalmente desastroso - não tivera consequências no início devido à proximidade da fronteira, mas agora, que eles estavam tão afastados da influência benévola dos seus próprios deuses, aqueles estavam a desencadear uma série de desgraças, que acabaria por se revelar insuportável. Bem, era preciso não se amedrontarem. Bastaria que oferecessem um sacrifício capaz de satisfazer os deuses dos cuados. Era melhor não mencionar os nomes - podia até ser pior se acontecesse serem nefandi, daque­les facilmente irritáveis e ansiosos por descarregar a sua ira sobre os mortais -, e limitarem-se a louvá-los.

A alegria que Cornélio sentiu enquanto se deixava levar por aquele raciocínio, foi bruscamente abalada, ao constatar que não levava consigo pontífices que pudessem realizar o ritual. Naturalmente, deveria havê-los nas legiões, mas os seus homens, uma simples vexillatio da XII, não os tinham. O que era uma fata­lidade. A não ser que... a não ser que...

 

- Kyrie, para mim não há maior satisfação do que poder servir-te - respondeu Arnúfis, quando Cornélio lhe disse que ele tinha de realizar um sacrifício em honra dos deuses daquele ter­ritório.

O egípcio não estava a mentir. Ao longo dos dias anteriores receara adoecer e, se tal acontecesse, que o tribuno o abando­nasse ou lhe cortasse a escassa ração que lhe era destinada. Agora abria-se lhe uma porta para fugir a tal destino.

- Só te peço, Kyrie - prosseguiu num tom humilde -, que me proporciones as condições adequadas.

- Terás tudo - respondeu de imediato o tribuno. - Um altar de pedra... sim, pedras não faltam à nossa volta... uma faca afiada. Temos até animais para sacrificar...

- Tudo isso está muito bem - disse o mago -, mas existe um pormenor que não é possível eludir, que é absolutamente indis­pensável se queremos agradar a estes deuses.

Cornélio franziu o sobrolho. Ficara tão satisfeito com a boa disposição do egípcio que agora, ao ouvi-lo, não pôde evitar que uma desconfiança emergisse no mais fundo do seu coração.

- De que se trata? - disse num tom inesperadamente frio. - Já vais compreender, Kyrie - respondeu Arnúfis. - Tu sabes que tens entre os teus homens um indesejável, que não respeita os deuses, que chega a negar a sua existência...

O rosto do tribuno tornou-se sombrio ao ouvir aquelas pala­vras. Era sua intenção esperar pelo final da campanha para abor­dar aquela questão incómoda. Agora o africano obrigava-o a reconsiderar.

- Que desejas, egípcio? - indagou com aspreza.

Arnúfis apercebeu-se perfeitamente da mudança no tom de voz de Cornélio. Momentos antes estava disposto a conceder­-lhe tudo, agora estava à beira da fúria. Infelizmente, não podia recuar. Tinha de fazer um pedido qualquer relacionado com a desagradável criatura.

- Kyrie - disse com fingida humildade -, a única coisa que desejo, como te disse, é prestar-te o melhor serviço possível e, justamente por isso, devo dizer-te que não poderá estar presen­te numa cerimónia de oferenda aos deuses um homem que nega          a sua existência.

- Não posso prescindir desse centurião - disse Cornélio.

- Nem é preciso - salientou o egípcio. - Basta que o afastes. Que não o vejam.

O tribuno respirou fundo. Sim, tratava-se de um pedido razoável. Não teria de maltratar um centurião respeitado pelos homens e, por outro lado, seria fácil encontrar uma desculpa para o manter à distância.

- Será feito como dizes, egípcio - declarou o tribuno. - Que tudo esteja preparado para amanhã ao romper do dia.

 

VALÉRIO observou o egípcio que se aproximava do altar. Ataviara-se, sem dúvida, com a sua melhor indumentária. As opas grandes e brancas, o pesado colar de ouro, as outras jóias de cor azul, davam à figura imponente uma majestade especial. Mas o centurião não podia deixar de sentir um vago mal-estar com a cerimónia. Perante os seus olhos estendia-se uma coorte faminta, suja, sequiosa, onde os doentes aumentavam de hora para hora. A situação era difícil, mas o tri­buno poderia tê-la resolvido há vários dias, antes de terem começado a morrer animais e legionários. Bastaria que tivesse dado ordens para que parassem e esperassem a chegada dos legionários. Mas o orgulho e a soberba, o desejo de mostrar uma firmeza que na verdade não possuía, estavam a empurrá-los para a catástrofe. E agora, como modo de ocultar a sua falta de sensatez, recorria àquele adorador de imagens que, tendo olhos, não viam, tendo ouvidos, não ouviam, e, tendo boca, não fala­vam. Talvez tudo aquilo tivesse uma grande coerência. Viravam as costas ao único Deus, desprezavam a sabedoria, e por isso acabavam por cair no culto de umas criaturas que tanto podiam ser um pedaço de metal, um pedaço de madeira, ou um animal. Não, realmente, aqueles corações não eram menos áridos que a paisagem que os rodeava.

A cerimónia não durou muito. Nem foi muito diferente das outras que Valério observara ao longo de toda a sua vida. A única diferença, quando muito, estaria no espavento, nos gestos e nos gritos episódicos do egípcio. Noutro tempo, talvez tudo aquilo o tivesse impressionado - certamente era o que sucedia com os legionários -, mas agora causava-lhe apenas um agudo mal-estar. Vendo bem, até devia dar graças a Deus pelo modo como fora poupado àquele ritual. Pesaroso, começou a olhar para o territó­rio quase desértico onde se encontravam. Dificilmente teria podido imaginar algo de tão desolado.

Ia voltar a olhar para os homens quando os seus olhos se aper­ceberam de algo estranho. A princípio, era unicamente um ponto semelhante ao que uma mosca teria deixado num prato, mas, de repente, aquela mancha diminuta viu-se ladeada por outra e outra. Santo Deus, eram dezenas! Pestanejou tentando ver melhor. De que se tratava ao certo? Infantaria? Cavalaria? Sim, eram forças de cavalaria e vinham num galope violento. Cairiam sobre eles em poucos instantes.

Olhou para os legionários. Não iam ter tempo de formar o acies. Iam ser exterminados. Sucederia o mesmo que na terra dos partos. Não, pior. Desta vez, não haveria prisioneiros. Tinha a certeza. Ia ser a segunda derrota da sua carreira castrense e mais uma vez por culpa de um tribuno inexperiente. Não podia ser.

 

Valério desatou a correr em direcção aos seus homens. Fê-lo com todas as suas forças, ao mesmo tempo que gritava avisos que eles, distraídos, não ouviam.

Foi o optio quem o viu primeiro. Não conseguiu ouvir nada do que ele dizia, mas, pelos gestos que fazia com as mãos, pela expressão do seu rosto e pela velocidade com que se dirigia ao seu encontro, percebeu que se tratava de algo importante. O que seria? Teve a resposta antes de Valério ter chegado junto dele, embora não fosse algo que ele lhe tivesse dito. A terra estremeceu subitamente, um tremor irregular e violento que a experiência de anos e anos de combates lhe permitiu identificar de imediato.

-Hostes! Hostes! (nota 18) - gritou, desatando a correr em direcção ao tribuno.

Cornélio ficou surpreendido ao ver o optio, que afastava aos empurrões os legionários para chegar até junto dele. Que triste exibição de irreverência seria aquela? Enlouquecera? Não se daria conta de que podia estar a enfurecer os deuses cuja ira ten­tavam aplacar? As perguntas - formuladas com angústia no seu coração - desvaneceram-se nesse instante. Nem poderia ser de outro modo, pois a cavalaria dos cuados, apesar da distância, era agora perfeitamente visível.

- Formai o acies! Formai o acies! - ouviu, e conseguiu verificar que era Valério quem dava as ordens.

- Formai o acies! - gritou também ele, e o som da sua voz pare­cia saído de outro peito, através de outra garganta.

Mas não havia tempo para constituir a formação que poderia salvá-los do embate dos bárbaros. Os homens pareciam presos ao chão, como se uma divindade perversa tivesse decidido imo­bilizá-los, facilitando assim a vitória dos cuados. Na verdade, só alguns conseguiam refazer-se da surpresa, agarrando o escudo ou desembainhando a espada.

Arnúfis fechou os olhos enquanto resmungava uma terrível maldição. Durante os meses anteriores, principalmente os que passara no castra, arrependera-se por diversas vezes do momen­to em que havia tomado a decisão de ir para Roma. Mas agora não sentia desgosto. O que experimentava era uma cólera acesa que lhe dava vontade de se esbofetear. Porquê, Ísis, porquê? Não era possível - não podia sê-lo - que acabasse degolado por um daqueles bárbaros cabeludos que se aproximavam aos urros.

Cornélio não sentia no seu coração nem desgosto nem ira. Como se a contemplação dos cuados tivesse provocado no seu íntimo uma mudança radical, o único sentimento que o domi­nava era o da aproximação da morte. Essa proximidade, que aumentava de instante para instante, não lhe provocava, con­tudo, medo. Tratava-se de uma sensação quase palpável de responsabilidade. Sim, tinha-se enganado, e esse erro ia custar a vida a todos os seus homens. Por isso, a única coisa que lhe restava era morrer honradamente. A sua existência - e era lamentável que assim fosse - havia sido breve, muito breve. Pelo menos chegaria ao fim com dignidade.

Valério também não tinha medo. Não saberia explicar o que lhe acontecia, mas era como se passeasse por um vale mergu­lhado nas trevas e soubesse - ainda que não pudesse ver - que dos dois lados havia montanhas. Quando, a dada altura, desapa­recia as brumas, contemplava apenas a confirmação daquilo que já sabia. De repente, de modo inesperado, pareceu-lhe que a cortina espessa e invisível que separa este mundo do outro subia e que podia vislumbrar o caminho que levava de uma vida à vida seguinte. Sim, ao cair não se tornaria apenas uma presa fácil para os abutres e outros animais. Muito pelo contrário, o seu espírito partiria ao encontro do Deus único, onde aguardaria pelo dia da ressurreição da carne.

De repente, algo no seu interior lhe disse que, apesar daquilo que se via, não podia saber o que o Deus único desejava. E se... e se... desembainhou a espada, segurou-a com a mão direita e, em seguida, caiu de joelhos.

Cornélio viu o centurião e dirigiu-se para ele com grandes passadas. Que estava a fazer num momento daqueles?

Que pretendia ajoelhando-se? Chegou ao lado dele a tempo de ver como inclinava a cabeça e abria os lábios.

- Pai - ouviu-o murmurar. - Estamos nas tuas mãos. Morre­remos com honra se essa for a tua vontade, mas tu podes mudar o rumo da História, podes abrir os céus, derramar chuva, podes salvar-nos dos nossos inimigos...

O pavoroso estrondo de um trovão desviou o olhar de Cornélio para o firmamento. Pestanejou, tentando aclarar a vista. No céu de fogo que se estendia como uma imensa caldeira de metal ardente sobre aquela zona montanhosa, tinham come­çado a acumular-se nuvens cor de chumbo. Mas, de onde tinham surgido? O segundo trovão, ainda mais violento, provocou uma vaga de relinchos e gritos. Não podia ser... não, não podia ser. Começava a chover.

- Água! Água! - começaram os legionários a gritar, ao mesmo tempo que abriam as bocas e dirigiam os elmos para o céu na tentativa de a recolher e poder beber. - Água!

Sim, pensou, agora entristecido, o tribuno. Pela misericórdia dos deuses, poderiam talvez aplacar a sede que os atormentava há vários dias, instantes antes de morrerem.

- Oh, Pai, tende piedade de nós! - ouviu agora a prece do centurião. - Compadecei-vos destes homens que não te conhe­ceram e que não distinguem a mão direita da mão esquerda. Lembra-te das famílias deles. Mostra o teu poder incomparável. Glorifica-te na magnificência de...

Cornélio não ouviu o final da última frase. Uma luz ofuscan­te, mais branca e mais penetrante do que qualquer outra que alguma vez tivesse visto, acendeu-se a poucos passos dele. Foi apenas um instante, mas enquanto durou, não foi capaz de observar nada à sua volta. Depois, quando pôde ver de novo as silhuetas que o rodeavam, distinguiu um grupo de cavaleiros. Mas já não cavalgavam para os seus homens. Pelo contrário, estavam caídos em estranhíssimas posturas. Mais, pareciam queimados, calcinados. E então, para aumentar mais o seu espanto, como se um Deus extraordinariamente poderoso tivesse decidido participar naquele combate desigual, sobre as filas dos cavaleiros cuados caiu o fogo do céu.

 

- É VERDADEIRAMENTE impressio­nante...

         Arnúfis reprimiu um sorriso de satisfação ao ver o assombro com que o legado Pompeiano o ouvia.

- Os testemunhos não faltam, Kyrie - disse o egípcio, aparen­tando dar pouca importância ao que acabava de referir. - Foram centenas de legionários que o viram com os seus próprios olhos. Naquela manhã, seguindo as ordens do tribuno, que resolvera dar ouvidos às minhas sugestões, celebrei um cerimonial em honra dos deuses daquele território.

- Sem dúvida, foi lamentável que não se cumprisse esse requi­sito - referiu Pompeiano.

- E foi, Kyrie, e foi - concordou Arnúfis - mas deve dizer-se que mal nos apercebemos, corrigimos o erro. De qualquer modo, a questão é que mal havia concluído o ritual e, de forma traiçoeira, fomos atacados pelos bárbaros.

- E não havia tempo para formar o acies... - concluiu Pompeiano como se desejasse ajudar o mago a concluir a narra­tiva.

- Não havia - admitiu o mago. - Naquela manhã poderíamos ter morrido todos. Assim não foi, Kyrie, porque a Zea Epifanes, a Dea Refulgens (nota 19), Ísis, ouvindo a minha súplica, lançou sobre nós o seu manto protector. Certamente que te chegarão aos ouvidos outras histórias. Não quero incomodar-te, mas faço questão de insistir que, de modo inesperado, começou a cair fogo do céu. Os raios fulminaram os bárbaros. Mataram uns, provocaram a fuga dos outros. Não quero exagerar, mas, na minha modesta opinião, nunca as leis romanas foram objecto de uma tão eviden­te protecção dos deuses.

- Bem, mago, bem... - sorriu Pompeiano ao mesmo tempo que levantava as palmas das mãos. - Não foi por tua causa que os deuses começaram a proteger Roma.

- Kyrie, eu não...

- Chega - cortou o legado, que não queria ouvir as desculpas do egípcio. - Roma está muito agradecida pelos teus serviços.

Pompeiano levantou-se da sua cadeira e dirigiu-se a uma pequena mesa sobre a qual repousava uma caixa de madeira de sândalo. Abriu-a e retirou lá de dentro um pequeno saco de couro.

- Torna! - disse atirando-o a Arnúfis. - São moedas de ouro. Não pagam os teus serviços, bem sei, mas é uma pequena gratifi­cação.

- Kyrie, não estava à espera... - exclamou o mago, enquanto apalpava discretamente o saco para calcular o seu conteúdo.

O legado fez um gesto de mãos, corno se quisesse dissipar a adulação, que de resto lhe agradava profundamente.

- Deixemos o passado, Arnúfis - disse sorrindo, Pompeiano -, e falemos do futuro.

 

Ao Meu Senhor Marco Aurélio:

Eu, Cornélio, tribuno lactilavio da vexillatio da XII legião, rece­bi a tua missiva, na qual me ordenas que te informe sobre o sucedido na terra dos cuados, dos sármatas e dos marcomanos, e, em especial, sobre os boatos que circulam acerca de um fogo que caiu do céu aniquilando as suas forças e permitindo que as nossas, sequiosas e em péssima posição, se refizessem. Devo dizer-te, em primeiro lugar, que, com efeito, após vários dias de avançarmos pelo seu território, nos vimos submetidos a uma terrível escassez de água que, juntamente com um calor sufocante, começou a provocar a morte dos animais e a morte dos nossos homens. Pensando que tais males poderiam ser atribuídos ao facto de não ter honrado os deuses do lugar, ordenei que fosse levada a cabo uma cerimónia com essa fina­lidade e, como não dispunha de pontífices para a realizar, entreguei a missão a um mago egípcio, de nome Arnúfis, que viajava connosco. Mal a cerimónia havia terminado quando, de surpresa, caiu sobre nós um contingente de bárbaros munido de avantajadas forças de cavalaria. Fomos avisados pelo centurião Valério, um veterano das nossas guerras na Partia, que esteve durante vários anos no cativeiro e que recentemente regressou a Roma.

Estou certo de que os bárbaros teriam aniquilado as nossas forças - nem sequer tivemos tempo de formar o acies - se não fosse a poderosa tormenta que desabou quando já estavam muito perto de nós. Provocou, no entanto, resultados muito diversos em nós e nos bárbaros. A nós proporcionou-nos a água que tanto desejávamos há vários dias; a eles, feriu-os como um fogo do céu, obrigando-os a recuar. Que esse fogo procedia de algo sobrenatural, é algo que não tem discussão. Na verdade, não havia uma única nuvem no firmamento e, segundo nos informaram diferentes bárbaros, nunca há tempestades naquela época do ano. Eles próprios a enca­raram como uma decisão dos deuses, e esse pavor sagrado contribuiu, certamente, para a sua terrível retirada. Sabendo, portanto, que não houve artifício dos homens em tal prodígio, mas sim uma decisão divina, resta perguntar a que deus ou deuses atribuir semelhante mercê. É aqui que devo confessar-te, senhor, a minha perplexidade, pois inda­guei diligentemente entre os meus homens e em nenhum momento do combate houve súplicas aos deuses, rogando a sua clemência. Contudo, eu mesmo fui testemunha de como o centurião Valério, a quem anteriormente me referi, caía de joelhos e orava ao seu deus. Esse episódio não teria impor­tância e até nos levaria, como homens agradecidos, a ofe­recer sacrifícios a esse deus, mas Valério é praticante de uma religião ilícita. É cristão, e, portanto, eu mesmo aguardava o regresso do combate para tomar uma decisão em relação a ele.

Deveremos deduzir de tudo isto que o ensinamento dos chamados cristãos é verdadeiro? Não me parece, mas deve­mos efectivamente reconhecer que o seu deus é poderoso, que consegue mobilizar as nuvens e fazer com que o céu lance o seu fogo, e que as suas acções não se limitam a um ou outro território como acontece com os nossos deuses. Actuou - sou testemunha - na terra dos bárbaros.

São estes os factos acerca dos quais posso informar-te com absoluta certeza, porque os presenciei.

Agora, oh, meu senhor, deve tomar-se uma decisão quanto ao centurião Valério, e quanto ao modo como dever proceder ao honrar o seu deus, o qual - julgo prudente assinalar - não deverá ser ofendido.

Salvé.

 

- O CÉSAR vai receber-te agora.

O centurião perfilou-se e seguiu o tri­buno que acabava de lhe dar a notícia. Enquanto percorriam o caminho que conduzia à tenda de Marco Aurélio no castra de Camuntum, pensava em como tinha estado envolvido em diver­sas situações inimagináveis nos últimos tempos. Por exemplo, não ser processado como cristão e sobreviver à campanha contra os bárbaros, embora não fosse menos surpreendente que o pró­prio césar quisesse falar com ele. - Trata-se de uma investigação de rotina - dissera-lhe o tribuno Cornélio, ao comunicar-lhe pessoalmente a ordem.

Não conseguiu evitar um sentimento de satisfação ao entrar na tenda do césar. Tratava-se de um local mais amplo do que aquele que era destinado aos legionários, mas, apesar de tudo, era muito mais modesta do que o habitual em muitos comandos. Uma mesa de madeira polida, um cadeirão de braços e alguns livros constituíam todo o luxo de que desfrutava o senhor do império.

Era mais baixo e mais robusto do que imaginara. Apesar de cabelos e barba longos e crespos, não conseguia esconder completamente os sinais de uma crescente calvície. Sim, prova­velmente o seu aspecto correspondia mais ao de um filósofo grego do que ao de um general romano, e no entanto...

- Domine, o centurião que esperavas.

Marco Aurélio ergueu os olhos de um livro que estava apoia­do na mesa, e disse num tom de voz tranquilo:

- Podes retirar-te, tribuno.

O veterano fez a saudação militar e abandonou a tenda, dei­xando Valério e o césar a sós.

- Senta-te - disse Marco Aurélio, fazendo um gesto com a mão. - Nesse banco.

Valério desconfiava de tudo o que lhe parecesse excessiva familiaridade por parte dos superiores, mas obedeceu.

- O tribuno Cornélio - começou o césar enquanto segurava numa carta - enviou-me uma informação sobre o confronto que mantiveste com os bárbaros. Diz coisas notáveis a teu respeito.

Valério ficou calado. Não teria sido de bom-tom interromper o césar com um comentário, mas, sobretudo teria constituído uma imprudência. Ao fim e ao cabo, tratava-se de uma situação delicada, em que se jogava a sua vida.

- Segundo o tribuno sob as ordens de quem serviste, foram as tuas orações que provocaram a queda do fogo do céu que aniqui­lou os bárbaros - continuou o césar, olhando agora fixamente para Valério. Não havia hostilidade no seu olhar, e sim uma expressão de firmeza, que não teria causado surpresa ao centu­rião se repentinamente se transformasse em rispidez.

- Sem dúvida - continuou Marco Aurélio - trata-se de um feito prodigioso, a avaliar pelas referências do tribuno e mais ainda se tivermos em conta que és cristão...

A última frase ficou pendente dos lábios do césar, como se este aguardasse que o seu interlocutor a agarrasse, mas Valério manteve-se silencioso.

- Eu acredito em deuses, sim - disse o césar. - E acho que devem ser honrados. Não se trata apenas de uma boa parte da nossa existência se encontrar nas suas mãos. É claro que assim é, mas não é pouco o que devemos à sua generosidade. Prestamos­-lhes culto, oferecemos-lhes sacrifícios, honramo-los não apenas para termos a sua boa vontade, como julgam as pessoas sem ins­trução, mas também para lhes manifestarmos, uma vez mais, a merecida gratidão, uma gratidão que tu, pelos vistos, não con­sideras importante.

Uma vez mais, Marco Aurélio instava Valério a que inter­viesse, respondendo, falando daquilo em que acreditava. Contudo, o centurião manteve-se calado.

- Sabes que posso ordenar a tua execução de imediato pelo simples facto de seres cristão? - perguntou o césar sem elevar, sequer, a voz.

- Sei, domine - respondeu Valério.

- E isso não te preocupa?

- Só aquele que tem as chaves da morte e do Hades tem auto­ridade sobre a vida e a morte - respondeu o centurião. - Ele devolvia-me a vida, se decidisses tirar-ma.

Marco Aurélio levou a mão ao queixo e acariciou com o indi­cador o espaço de barba situado sob o lábio inferior. A visão que certos cristãos tinham da morte era insuportável. E irritava-o. Não era semelhante à serenidade dos estóicos, que ele procura­va alcançar, nem sequer à coragem cívica, que tivera tantos exemplos nos espartanos, atenienses e romanos. Não, tratava-se de algo muito diferente, de um misto de irresponsabilidade e de confiança numa existência além da terra que lhe desagradava profundamente. É claro que ele também acreditava que o espí­rito continuava a vaguear depois da morte do corpo, mas estava convencido de que essa existência não se prolongava muito. Durante um tempo - necessariamente limitado, como tudo o que é humano - aquela alma voaria até às alturas, aproximar­-se-ia das grandes luzes e dos astros brilhantes para, em seguida, desaparecer para sempre numa cintilação. Viera um dia do nada e ao nada regressaria ao fim e ao cabo.

- Acreditas mesmo no que dizes? - perguntou o césar, mas nas suas palavras não havia o menor indício de chacota ou de animosidade.

- Sim, domine - respondeu Valério.

- E também acreditas que um escravo é igual a um homem livre?

- Sim, domine - respondeu o centurião -, do mesmo sangue e da mesma carne. Os escravos sentem a dor como nós, alegram-se como nós e têm medos e prazeres semelhantes aos nossos.

Sim, talvez assim fosse, pensou o césar. Afinal, Platão conti­nuara a ser Platão no período da sua escravatura, e Séneca, o conselheiro de outro césar, referira também que os escravos eram homens. Mas nem por isso os libertara...

- Portanto não diferencias um escravo de um homem livre.

E um homem de uma mulher? E um bárbaro de um romano?

- Todos nascemos - respondeu Valério -, todos morreremos um dia e todos iremos comparecer perante o juízo do único Deus.

- Do único Deus... - repetiu o césar como que transformado num eco cansado e triste daquelas palavras.

Marco Aurélio desviou o olhar do centurião e dirigiu-o para a entrada da sua tenda. Estava quase fechada, mas não tanto que não permitisse a visão de alguns legionários que cumpriam dili­gentemente o seu dever, aquele dever que, executado com rigor, garantia a continuidade do império.

- Há quanto tempo serves nas legiões? - perguntou o césar, quebrando o seu breve silêncio.

Valério respondeu com um número exacto.

- Em todo esse tempo tiveste alguma menção honrosa?

- Duas, domine. A última pela minha participação na campa­nha dos partos.

- Estou a ver - disse o césar. - Consideras que o teu trabalho em defesa do império foi de alguma utilidade? Deixa-me colocar a questão de outra maneira. Tu não tens qualquer dificuldade em ver nos escravos, nos bárbaros, nas mulheres seres semelhan­tes a um cidadão romano. Imagina agora que esses bárbaros invadiam um dia o império e o arrasavam. Sei que isto é difícil de imaginar, mas tenta. Aconteceu no passado com outros grandes impérios, como o de Ciro, o persa, ou o do macedónio Ale­xandre. Se isso acontecesse, que seria de toda a beleza criada por Roma ao longo de quase mil anos de existência? O que iria perdurar de Virgílio, de Horácio, de Júlio César, de Séneca e de tantos outros? O que ficaria de pé, poderás dizer-me, centurião?

Valério olhou para o césar enquanto do mais profundo do seu coração brotava uma oração dirigida ao único Deus verdadeiro, uma prece que suplicava por sabedoria e sensatez, um pedido para ser capaz de dar a resposta mais adequada naquele momen­to que nunca mais voltaria a repetir-se.

- Se um dia, no futuro - começou Valério a dizer num tom pausado -, o império desaparecesse, se deixasse de existir, sería­mos nós, os cristãos, quem conservaria a língua, a cultura, a sabe­doria de Roma. Assim faríamos, mas juntando-lhe a miseri­córdia, a compaixão e a caridade, as virtudes que nos levam a tratar os doentes que não são dos nossos, que nos levam a reco­lher os meninos abandonados e que nos fazem ver em qualquer homem ou mulher um semelhante.

O césar franziu o sobrolho ao ouvir as palavras do centurião, mas não o interrompeu.

- Os cristãos, domine - continuou Valério -, embora muitos o neguem, desejam apenas o bem do império. Perseguis-nos, mas rezamos por ti, pelos senadores e pelos cônsules, para que governeis o melhor possível e para que tenhamos paz e prospe­ridade. Enquanto contais mentiras a nosso respeito, abençoa­mos-vos, porque sabemos que o bem do império é também o nosso bem. Prendeis-nos e matais-nos, mas não pegamos em armas contra vós nem nos passa pela cabeça desobedecer à lei. Esperamos ter no céu um Reino melhor, que não é obra de mãos humanas, um Reino inalterável, mas serviremos este com lealda­de e justiça enquanto tivermos forças para tal.

Marco Aurélio esfregou os olhos com os dedos da mão direita. Sentia-se cansado e, ao ouvir aquelas palavras, não pudera deixar de se sentir envelhecido, murcho, vazio. De repente, experi­mentara uma sensação de vertigem, de mal-estar, de debilidade. Era como se toda a solidez que quisera injectar no império durante anos, que o levara a quase duas décadas de campanhas contra os bárbaros, que o obrigara a reprimir conjuras e conspi­rações, se revelasse agora frágil e quebradiça. Sim, frágil e quebradiça e, o que era o pior de tudo, estéril e inútil.

- Retira-te, centurião - disse por fim como se emergisse de um sono pesado e doloroso. - No tempo certo serás informado sobre o que for considerado pertinente.

 

Para Minúcio Fundano. Recebi uma carta que me foi dirigida por sua excelência Serénio Graniano, o teu antecessor. Penso que a questão não deverá ficar por investigar, e há que evitar que os homens sejam persegui­dos e que se apoie a baixeza dos delatores. Se os funcionários das provín­cias conseguirem sustentar uma acusação sólida contra os cristãos, de modo a que possa consubstanciar-se nos tribunais, que o façam, mas que a motivação seja essa e não as opiniões ou os boatos. Porque o que real­mente será correcto será examinar o assunto após uma acusação. Portanto, se alguém os acusar, e demonstrar que estão a agir de maneira ilegal, decide a questão de acordo com a natureza do delito, mas, por Hércules, se te levarem uma questão que vise tirar partido da denúncia, investiga rigorosamente e procura impor castigos que sejam adequados ao delito.

 

Marco Aurélio acabou a leitura do texto do seu antecessor e afastou o olhar. Levou a mão direita ao queixo e, durante alguns instantes, brincou com os caracóis da barba. Perguntara-se algu­mas vezes se a decisão dos filósofos gregos de não se barbearem se deveria apenas à possibilidade que tal lhes proporcionava de encontrarem algo com que entreter os dedos, enquanto meditavam e reflectiam. A decisão que tinha de tomar exigia que ponderasse e optasse pela melhor maneira, isto é, a mais justa.

Como pensara com frequência, havia que actuar por forma a beneficiar a sociedade, podendo mais tarde levar a cabo outras acções.

Depois do que sucedera no território dos bárbaros e, princi­palmente, depois da conversa com aquele centurião peculiar que dava pelo nome de Valério, que deveria fazer com os cris­tãos? Procurara responder a tal pergunta informando-se sobre o modo como outros imperadores antes dele tinham actuado, mas as atitudes tinham sido diversas. Cláudio expulsara-os de Roma, mas, fundamentalmente, porque o incomodava a maneira como discutiam com os judeus se o seu fundador, Jesus, era ou não o eleito, aquele que esperavam como rei do mundo. Ao que pare­cia, esse Jesus portara-se com uma notável dignidade na hora da morte - talvez excessiva -, mas não actuara como um rei. Nero, o sucessor de Cláudio, fora muito mais drástico. Culpara-os pelo incêndio de Roma - uma acusação certamente falsa - e infligira­-lhes terríveis castigos. O pior, contudo, não era isso. O mais grave é que Nero decidira que uma simples crença era um delito. Claro que Augusto e Tibério assim tinham feito com os magos, não porque acreditassem nisto ou naquilo, mas sim porque as previsões podiam instigar acções ilícitas. Se alguém convin­cente vaticina que o imperador vai ser apunhalado dentro de seis meses, o mais certo é que acabem por surgir muitos que desejam executar pela sua própria mão o que está escrito nas estrelas. Mas os cristãos... não, os cristãos não eram esse tipo de gente.

Depois de Nero, tinha havido momentos bem difíceis. O pre­cedente imperial permitia que fossem detidos e comparecessem num tribunal para ser executados, caso se recusassem a prestar culto ao césar, ou a realizar outra cerimónia piedosa. Não era difícil perceber que não tinham sido poucos os que tinham feito carreira como delatores.

Marco Aurélio, impaciente, afastou a mão da barba. Odiava delatores. Sim, odiar era o termo. Eram uma gente que vivia da carne putrefacta. Como os abutres. Espreitavam aqui e ali em busca de alguém a quem denunciar, para lucrarem com isso. Mais tarde ou mais cedo colocá-los-ia fora da lei, declarando-os ilícitos, excluindo-os da vida pública. Não podia permitir que num corpo são como se pretendia que fosse o império, existisse lugar para esses miseráveis parasitas. Claro que isso teria de ficar para outro dia, agora a prioridade imediata eram os cristãos.

Tanto quanto sabia, Trajano fora o primeiro a pôr limites à perseguição. Não a impedira, nem lhe passara pela cabeça ilibá­-los. Mas, como grande governante que fora, inclinara-se para a moderação quando Plínio lhe escrevera da Ásia a pedir instru­ções. Pelo que Plínio lhe dizia, os cristãos reuniam-se aos domingos, liam os seus livros sagrados, cantavam hinos ao tal Cristo como se ele fosse deus e em seguida comiam alimentos simples. Gente assim não poderia ser nociva, mas também não era prudente passar por alto o que os imperadores antes de si tinham feito. Trajano decidiu portanto, que os cristãos não fos­sem procurados nem perseguidos. Não fazia sentido perder tempo atrás de gente que não criava problemas a ninguém. As denúncias anónimas também não eram aceites. Só quando as provas eram consistentes e o delator estava disposto a dar a cara em tribunal, seriam os casos julgados. Mas até nessa situação havia que oferecer ao acusado uma saída. Se estivesse disposto a queimar incenso em honra do imperador, ser-lhe-ia dada a liberdade sem encargos. Se assim não fosse... bem, então, e só então, deveria castigar-se o infractor.

Segundo o que acabava de ler, Adriano tratara também a questão seguindo uma via bastante óbvia e que lhe lembrava, sobretudo, as instruções que Trajano havia dado a Plínio. Nada de delatores, nada de castigos por ouvir dizer, nada de forçar a situação ou procurá-los. Embora, efectivamente, caso a acusação ficasse demonstrada, fosse aplicado o mais rigoroso castigo.

O mais rigoroso castigo... Poderia essa directiva ser mudada? Existiria alguma possibilidade de aceitar que aquela gente acre­ditasse no seu deus e, ao mesmo tempo, pudesse respirar? Talvez. Em boa verdade, o que Valério lhe tinha dito era cor­recto. Tanto quanto sabia, os cristãos nunca tinham feito oposi­ção ao césar, rezavam pelo êxito do seu governo e das suas armas, obedeciam meticulosamente às leis e alguns, como aquele cen­turião, eram excelentes soldados. Voltou a levar a mão direita ao queixo e durante alguns instantes puxou suavemente a barba, como se desse modo pudesse contribuir para fazer saltar as ideias que tanta falta lhe faziam.

Não foi muito difícil. Respirou fundo e estendeu a mão para a pena de escrever que dormitava sobre a sua secretária de sol­dado. Avaliou-a, com a ponta do indicador, e verificou que estava perfeitamente afiada. Molhou-a no tinteiro e começou a escre­ver. Em grego, naturalmente. Podia justificar o uso dessa língua pelo destinatário, mas a verdade era que a utilizava por a consi­derar muito superior ao latim, por ser a dos grandes filósofos e, sobretudo, porque a amava de uma forma mais íntima do que alguma vez amara uma mulher. Bem, adiante...

Autokrátor Kaisar Márkos Aurélios Antoninos Sebastós, Armenios, arjiereus méguistos... Sim, o início não estava mal. O imperador e césar, Marco Aurélio António, Augusto, arménico, sumo pontí­fice... Já tinha o início. Agora era continuar. Que viria depois? Sim, era isso.

 

... sumo pontífice, tribuno pela décima quinta vez, cônsul pela terceira vez, para o concílio da Ásia, saudações. Sei que os deuses também se ocupam de que esses homens não passem desapercebidos, visto que castigam quem não deseja adorá-los como vós o fazeis. Mas vós actuais de modo tumultuoso e, assim os acusando, confirmais a crença que têm, por isso, quando são acusados, preferem a morte aparente à vida, e tudo por causa do seu deus. Finalmente, acabam por vencer, porque sacrificam as suas vidas para não de obedecer e não fazer o que lhes mandais.

 

Sem largar a pena, Marco Aurélio leu o texto duas vezes antes de continuar. Sim, até ali, parecia ir bem. Primeiro, referira a vontade dos deuses de castigar aqueles que se recusavam a ado­rá-los. Depois, a decisão dos cristãos de morrer em vez de ceder e, finalmente, o modo como esse comportamento os colocava numa excelente situação filosófica. Não podia descurar esse aspecto, mas como?

Desse modo, os cristãos conseguem... Não, os cristãos não conse­guiam nada a não ser que os executassem. Ou conseguiriam?

Enquanto vós negligenciais os deuses e a adoração dos imortais, eles cada vez confiam mais no seu deus. E então, porque os cristãos o adoram, irritais-vos e acabais por persegui-los até à morte. Sim, desta maneira ficava melhor. Não eram piedosos e ainda por cima implicavam com os cristãos por eles o serem. Bem, continuemos.

 

E muitos dos governadores provinciais escreveram ao nosso divino pai no passado, defendendo essa gente, sendo-lhe respondido que não os inco­modassem, a menos que parecesse que estavam a conspirar contra o governo de Roma. Também a mim me enviaram informações sobre esses homens, e respondi-lhes de acordo com a opinião do meu pai. Mas, se alguém persistir em adoptar alguma acção contra alguma dessas pes­soas, com base no facto de ser um cristão, que o réu seja liberto da acusação...

 

Marco Aurélio voltou a parar. Sabia perfeitamente que acaba­va de introduzir uma modificação substancial nas acções dos imperadores anteriores e, não obstante, não tinha a certeza de ter assegurado a aplicação jurídica da mudança. Seja libertado da acusação... mas... mas como, se continuava em vigor o que Trajano, e mesmo Adriano, haviam decidido? Voltou a puxar a barba, mas desta vez fê-lo com mais suavidade, sossegado, quase com deleite. De repente, um brilho fugaz reflectiu-se nas pupi­las do imperador. Foi um breve instante, um suspiro, um abrir e fechar de olhos, mas deixou bem claro que aquele espírito inte­rior em quem o imperador tanto acreditava, naquele momento, não falhara.

Seja libertado da acusação, ainda que pareça culpado, mas que se cas­tigue o acusador.

Pousou, então, a pena sobre a mesa, e voltou a ler o texto. Teve a sensação de que conseguira o que pretendia, juntando-o a tudo o que amava e respeitava. A autoridade do império reafir­mava-se, os cristãos eram protegidos dos abusos, os delatores eram ameaçados com o merecido castigo e... e, sim, aquele cen­turião a que chamavam optio ficava livre de qualquer perigo. Libertá-lo do serviço seria ainda mais fácil.

Voltou a molhar a pena no tinteiro e escreveu:

 

O imperador e césar, Marco Aurélio António, Augusto, arménico, sumo pontífice para o tribuna Camélia, saudações. Tal como havias ordenado, veio à minha presença o centurião Valéria. Examinei com diligência a sua declaração, assim como o estado em que se encontra pela especial condi­ção que me referiste na tua última missiva. Depois de ponderar todos os factos, decidi que se proceda ao seu licenciamento imediato apesar de não ter ainda cumprido o tempo regulamentar de serviço. A razão para tal é que, segundo as leis dos nossos mais velhos, recebeu três menções hon­rosas. Duas no passado, e a terceira concedida por mim, agora, pela cora­gem demonstrada nesta campanha. Ordeno também que, com carácter imediato, lhe sejam entregues os montantes que o exército lhe deve. Tudo isto deverá ser executado antes da conclusão do próximo mês.

Tenho dito.

Sim, agora tudo ficava solucionado. Com justiça, porque aquele que perpetra a injustiça comete-a, em primeiro lugar, contra si mesmo.

Depositou a pena sobre a mesa e então, inesperadamente, foi assaltado por uma pergunta: em que iria o centurião gastar tanto dinheiro?

 

- AGRADA-TE Kyrie? - perguntou o artesão, com um misto de satisfação e receio. Não era caso para menos. Estava convencido de que con­seguira realizar um trabalho perfeito, mas nunca se podia saber ao certo, com aqueles novos ricos.

O homem que lhe encomendara a obra passou a mão direita pelo monólito de pedra. Sim, era suave, polido, majestoso. Sentia-se satisfeito. O texto também não estava mau:

Arnúfis, perito no Egipto sagrado, e Terêncio Prisco à Deusa manifesta.         A deusa Ísis podia dar-se por satisfeita. Não se tratava apenas de a homenagear. De facto, um dos seus adoradores mais escla­recidos - ele - acabara por triunfar. É claro que aquele bendito episódio da chuva e dos raios fora determinante na mudança definitiva da sua vida. Definitiva e irreversível. A prova estava ali, em como aquele Terêncio Prisco aceitara pagar o monólito, ficando o seu nome colocado a seguir ao dele. Agarrara a sorte com unhas e dentes e não estava disposto a deixá-la fugir. Não, nunca mais. Para isso a deusa descera até si, montada naquele fogo do céu.

Cornélio saúda cordialmente seu pai e dominus. Peço sobretudo que te encontres bem e de saúde, e que tudo corra pelo melhor contigo, com a minha mãe, e com os meus dois irmãos mais novos. Dou graças ao deus óptimo e máximo por me ter conservado a vida quando estive em perigo na terra dos bárbaros.

Peço-te, querido pai, que me envies algumas linhas, primeiro para saber como te encontras, tu e a minha mãe e os meus irmãos, e, em segundo lugar, para poder beijar-te as mãos, por tão bem me teres educado.

Quero que saibas, amado pai, que, logo depois de chegar ao castra de Camuntum, fui recebido pelo césar, que me deu grandes provas de afecto, entregando-me, mesmo, uma recompensa em ouro. Honrou-me também com uma promoção e penso que, devido à sua benevolência, me aguarda uma carreira gloriosa nas nossas legiões. Devo tudo isso ao fogo que caiu do céu, mas sobre tal falar-te-ei longamente noutra ocasião.

Junto um retrato que um grego me pintou. Todos dizem que é muito bom.

Faço votos pela vossa boa saúde.

Tenho dito.

 

Rode saiu da água. Sobre o corpo, tinha uma túnica branca, totalmente encharcada, porque, momentos antes, fora mergu­lhada naquela água corrente que simbolizava uma nova vida.

Observou com um sorriso o grupo de pessoas que a olhava. Pareceu-lhe ver em todos os rostos um reflexo de apreço, de cari­nho, de amor. Na verdade, sentia que todos a olhavam corno sempre desejara ser olhada, embora pouco antes ainda não tives­se consciência disso. Já não era uma escrava, já não era uma meretriz, já não pertencia a um senhor que dispunha dela com o mesmo à vontade com que dispunha de uma galinha ou de um barril de vinho. Era livre e era-o em todos os sentidos. Porque tinham pago o preço da sua emancipação, porque lhe tinham ensinado a Verdade - sim, a Verdade existia - e porque essa ver­dade a tinha libertado.

Procurou Valério, entre os participantes daquela reunião. Ali estava ele. Sorria também, e dir-se-ia que os seus olhos bri­lhavam através das lágrimas. Contudo, não eram lágrimas de dor nem de pesar, e sim de alegria e de gratidão.

Muito em breve seriam marido e mulher. Muito em breve, porque agora o povo dele era dela também e o seu Deus, o Deus único, era também o Deus de Rode. É certo que não possuíam uma única moeda, tudo fora parar aos bolsos cobiçosos do seu antigo dono, e que Valério nem sequer dispunha da possibilida­de de regressar ao exército no qual servira durante tantos anos. Mas nada disso importava agora. Pela primeira vez na sua vida, sentia paz, abrigava no peito uma felicidade que não seria capaz de descrever. E devia tudo isso Àquele que lhe enviara, do modo mais inesperado e prodigioso, o fogo do céu.

 

NOTA DO AUTOR

A narrativa que termina aqui contém - não duvido - muito de chocante para uma mentalidade de início do século XXI. Devo dizer que todos os pormenores relativos à vida religiosa dos romanos, ao seu sistema de sacrifícios, à vida na capital do impé­rio, aos banhos, às comidas, à presença de estrangeiros - e aos sentimentos que estes provocavam - e às legiões são rigorosa­mente exactos.

Correspondem também a documentação histórica - e de que maneira - as referências ao abandono - exposição - de crianças não desejadas, à prática da prostituição, ao abandono de Roma pelos médicos quando ocorria uma epidemia, assim como a acção dos cristãos no apoio aos doentes que eram lançados no esgoto pelas suas próprias famílias. Apesar da imensa distância, quase dois mil anos, que separa a nossa época da época de Marco Aurélio, a verdade é que os mortais se colocavam questões muito semelhantes àquelas que hoje requerem a nossa atenção. Também para eles a segurança internacional, a imigração, a esta­bilidade das instituições ou o consumo eram realidades quoti­dianas, para não falar de pulsões como o prazer, a avidez de poder, o medo da doença, a realidade da morte ou a ânsia do prazer.

Tão histórico como tais circunstâncias é o episódio do fogo caído do céu que permitiu a uma legião - a vexillatio da XlI- sal­var-se, provocando ao mesmo tempo uma terrível derrota dos bárbaros numa data que se estima próxima do ano 173 depois de Cristo. O facto aparece narrado em diversas fontes antigas como, por exemplo, a História Augusta (Marco Aurélio 23, 3-4), Díon Cásio (71, 10, 3-5), Orósio (VII, 15, 10), ou Eusébio (Hist. Eccl. V, 5,3). Do mesmo modo, o que é bastante revelador, está presente nos relevos da coluna de Marco Aurélio em Roma, onde se narram as vitórias obtidas pelo imperador filósofo sobre os bárbaros.

Por muito surpreendente que possa ser na actualidade, tanto pagãos como cristãos se convenceram que foi um prodígio sobrenatural com origem numa divindade. Uma divindade, sim, mas qual? Para os cristãos, obviamente, tratava-se da obra do único Deus verdadeiro que ouvira as preces da alguns legioná­rios cristãos que serviam na unidade envolvida na batalha. Para os pagãos, devia ser uma das suas divindades embora não hou­vesse unanimidade em relação à sua identidade concreta. Nem mesmo a coluna aureliana nos ajuda a saber o que pensava o pró­prio césar a este respeito, embora estivesse certo do carácter sobrenatural do sucedido. Entre as teses pagãs mais difundidas circulou uma que atribuía a ocorrência a um mago egípcio de nome Arnúfis. Dele sabemos, por uma inscrição encontrada em Aquileia - a mesma que é reproduzida neste romance - que era um adorador de Ísis. Impunha-se, portanto, torná-lo um prota­gonista destas páginas.

Não obstante as suas ideias religiosas, os pagãos não conse­guiram libertar-se da ideia de que o Deus dos cristãos poderia ter sido o artífice do milagre. Como vários historiadores referi­ram, a ocorrência levou o próprio Marco Aurélio a pensar mais profundamente nos cristãos, pelos quais não sentia o menor apreço, mas que não podia, contudo, desprezar. Até então, tinham sido um pequeno incómodo. A partir dessa altura passa­vam a constituir uma alternativa espiritual bem notória. É muito possível que algumas medidas tendentes a suavizar a sua situa­ção no império partissem do próprio imperador filósofo, e que tivessem origem no impacto provocado pelo prodigioso fogo do céu. Sobre isso, o testemunho das antigas fontes é igualmente repetitivo.

Em finais do século II depois de Cristo tanto cristãos como pagãos estavam conscientes de viver num mundo pejado de pro­blemas - «era da ansiedade» chamou um historiador britânico a esta época - e estavam também convencidos de que a solução não se encontrava neste mundo, mas numa qualquer instância de carácter sobrenatural. Naturalmente - como o episódio do fogo caído do céu -, as interpretações eram as mais diversas. Nós, ao contrário deles, contamos com uma vantagem: a quase dois milénios de distância, sabemos qual das duas respostas pre­valeceu e, principalmente as consequências que teve sobre os fracos e os bárbaros, sobre os escravos e sobre as mulheres, sobre os doentes e os necessitados.

 

 

(nota 1) Faço-o? (N. do A).

(nota 2) Fá-lo. (N. do A ).

(nota 3) Onde vais? (N. do A.).

(nota 4) Testudo: formação militar em tartaruga. (N. da T.).

(nota 5) Coorte: décima parte de uma legião. (N. da T.).

(nota 6) Falas latim? (N. do A.).

(nota 7) Sabes latim? (N. do A.).

(nota 8) Sei um pouco. (N. do A.).

(nota 9) Sais poucos. (N. do A.).

(nota 10) Não é um génio, mas um deus. (N. do A.).

(nota 11) Équite: cidadão romano. (N. da T.).

(nota 12) Aqui está, aqui está. (N. do A.).

(nota 13) Do ovo às maçãs. (N. do A).

(nota 14) Ânus do mundo. (N. do A.).

(nota 15) Que desejas? (N. do A.).

(nota 16) A sorte está lançada. (N. do A.).

(nota 17) Onde estou? (N. do A).

(nota 18) Inimigos! Inimigos! (N. do A.).

(nota 19) Deusa manifesta, deusa refulgente. (N. do A.).

 

                                                                                César Vidal  

 

                      

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