Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FOGO E O GELO / Paul Garrison
O FOGO E O GELO / Paul Garrison

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O FOGO E O GELO

 

Apontou o sextante ao céu.

A noite terminava bruscamente no Pacífico equatorial. Nos breves momentos em que a claridade começava a revelar o horizonte e os céus ainda brilhavam, ele baixou os pontos no espelho de Júpiter, Antares e Capela para beijarem a orla do mar. e, com uma olhadela cautelosa em volta, desceu para verificar onde se encontrava entre eles.

Ela dormia num beliche duplo, o quadril soerguido e membros longos estendidos luxuriosamente. Ele marcou a posição celeste numa carta polvilhada de recifes e atóis e prolongou o traço do lápis da sua passagem desde as ilhas Marshall.

Ainda estava fresco na cabina, pelo que se arrastou no beliche para cobrir os ombros de Sarah. Ela sorria a dormir e, quando arqueou o corpo convidativamente, beijou-a e fez deslizar a barba suavemente ao longo da sua coluna vertebral.

O alarme de colisão começou a uivar.

Sarah acordou instantaneamente e desembaraçou-se dos lençóis para comandar o barco. Michael Stone segurou-a nos braços e sentiu-lhe o coração assustado contra o seu peito.

- Eu trato disso. Se precisar de ti, dou um berro.

Precipitou-se para a coberta, com o coração também a martelar.

O Sol nascera, já intenso.

Não viu terra, nem qualquer outra embarcação. No entanto, singravam num vale profundo entre duas vagas provocadas pelos alísios e situavam-se muito abaixo das cristas. Antes que pudesse ver o que activara o alarme, tinha de aguardar que a montanha que se seguia alcançasse e levantasse o barco.

O Verónica, um Nautor Swan de treze metros, uma certa idade e escamado pelos raios solares, podia considerar-se pequeno segundo as normas marítimas modernas. Stone reequipara-o como um cúter e era conservado inventivamente onde o engenho podia substituir o dinheiro. O único elemento de alta tecnologia era um mastro invulgarmente alto de fibra de carbono canibalizado de um barco de corridas que, à semelhança de um avião de guerra Stealth, tornava o Verónica virtualmente invisível ao radar.

A sua filha de dez anos, de pijama e descalça, apareceu na escada.

- Que foi! - perguntou por entre um bocejo.

- Alguma coisa assustou o radar.

- O quê?

- É o que vamos ver.

Ronnie oscilou sonolentamente com o movimento do barco e colocou o braço em redor da cintura dele, enquanto com o outro se agarrava ao coçado Snoopy em que guardava as suas coisas. Stone inclinou-se para a beijar.

- Bom dia, querida. Talvez seja melhor pores o colete salva-vidas.

Ela esboçou o protesto habitual: a rede infantil presa ao cabo que circundava a coberta já era suficientemente insultuosa para uma pessoa da sua idade.

- Só até vermos o que há lá fora.

Ele tinha a profunda desconfiança do marinheiro do mar largo em relação a todo o equipamento. Embora tivesse montado o sistema de alarme, estava razoavelmente convencido de que o radar se limitara a captar um alvo a muitas milhas de distância, quando o Verónica se situara no topo da crista anterior, não se surpreenderia totalmente se descobrisse a Terceira Armada no lado mais distante da próxima onda.

Retirou o colete salva-vidas de Ronnie de um cacifo na cabina, colocou-lho e ponderou se devia chamar Sarah à coberta. O que corresse mal ao largo não se alteraria com isso.

O mar acumulou-se à popa, erguendo-se ao céu e exercendo pressão no casco de fibra de vidro. O barco elevou-se como uma gaivota ao vento, pairou até à crista e, de repente, o oceano Pacífico espraiou-se ao longo de milhas ante os olhos de Stone.

Este descreveu um círculo rápido para esquadrinhar o horizonte. A neblina pouco densa à popa ameaçava mudança de tempo e uma imprecisão a norte sugeria o enorme alcance da monção de Inverno da China, mas para já o mar apresentava-se benigno e tão completamente vazio, que ele, Ronnie e Sarah pareciam ser os únicos navegantes do planeta.

As entranhas segredavam-lhe que o sistema de alarme detectara um navio de grande calado. Tornou a descrever um círculo antes de a onda se interpor e o Verónica mergulhar no seu cavado. Um lugar estranho para procurar um navio. No entanto, o radar não podia ter indicado terra. Pelo menos, para já, embora a observação a que ele procedera de bordo de um barco em movimento estivesse exposta a algum erro, sobretudo quando a hora era tão crítica, com o planeta Júpiter a deslocar-se independentemente das estrelas.

Uma andorinha-do-mar branca que roçava a água indicava que se encontravam a vinte e cinco milhas de terra. Mas a coberta e o casco ainda não transmitiam a Michael a sensação de ondas reflectidas pela costa. Por conseguinte, os atóis encontravam-se algures entre dezasseis e vinte e cinco milhas adiante.

- Ouve cá, cara de dorminhoca. Onde estamos?

- Aqui - articulou Ronnie, com novo bocejo.

- Aqui, onde?

Ela extraiu o receptor do satélite de posicionamento global do ventre de Snoopy. O SPG fora oferecido por um navegador solitário japonês cujo apêndice Sarah extraíra.

- Pulo Helena, mesmo em frente. Excelente navegação, dinossauro.

«Dinossauro» porque Stone ainda navegava obstinadamente orientado pelas estrelas. Recordava a Ronnie que as baterias se extinguiam e a maioria dos veleiros que se despedaçavam nos recifes e topos das montanhas submersas que povoavam a superfície do oceano Pacífico encalhava graças à cortesia dos últimos inventos electrónicos.

O que não invalidava que a pequena maravilha de Ronnie tivesse a sua utilidade.

- Mesmo em frente exactamente onde, querida?

- «Exactamente» a dezanove vírgula cinco milhas. - Ela mostrou-lhe o ecrã.

Ele esboçou um sorriso de satisfação. Quase mesmo em cheio. Mas, atendendo a que o pequeno grupo de atóis de areia e coral dificilmente irrompia à superfície, ainda se encontrava fora do alcance do radar. Tinha de ser um navio. Um navio enorme, que se erguia, altaneiro, da água.

- Onde vais?

- Dar uma olhadela ao radar. Queres sumo de laranja? Ronnie reflectiu por um longo momento e concluiu:

- Não sei.

- Eu trago-to, em todo o caso.

À direita da escada, havia uma cozinha minúscula, com um fogareiro a petróleo, um lava-loiça servido por bombas de água doce e do mar e um frigorífico. A esquerda, fixada a um anteparo de teca, encontrava-se a unidade de navegação: radar, rádios de curto alcance de VHF e de longo SSB e uma mesa onde estavam as cartas. As cabinas para dormir - de Ronnie à frente e dele e Sarah à ré - eram revestidas de teca, porém a principal estava pintada de branco anti-séptico.

Abastecidos como os de uma clínica médica e sala de operações, os armários e prateleiras continham parte do equipamento de emergência que se encontraria numa ambulância moderna: uma unidade de intubação, um desfibrilhador, tubos, cateteres e ligaduras, assim como água salina e glucose, plasma congelado no frigorífico, um conjunto de anestesia primitivo, uma bandeja com instrumentos cirúrgicos, gesso para imobilizar ossos fracturados e um esconderijo com antibióticos, analgésicos, vasoconstrutores, anestésicos, adrenalina e insulina. A máscara respiratória havia muitos anos que servia, mas, em comparação com ela, o ecrã de radar de Stone era uma autêntica antiguidade.

Um blip verde anémico fosforescente quinze milhas adiante quase se perdia nos raios solares que penetravam pela escotilha aberta. As entranhas do sistema de impedimento de colisão - a unidade de rastreio na sua redoma, os circuitos de transmissão e recepção e os geradores eólico e solar que o alimentavam - eram quase tão velhas, adquiridas há muito tempo em mercados nocturnos chineses para serviços médicos de natureza não indagada.

Ele estudou o eco com a familiaridade da longa experiência e concluiu que um navio enorme cruzava a sua rota em ângulo recto, deslizando lentamente de norte para sul. Havia muito espaço - duas horas antes de atravessarem a sua esteira, altura em que o navio já se encontraria longe. Excelente. Stone descontraiu-se um pouco, satisfeito por voltarem a ficar com todo o oceano por sua conta.

Porém, quando voltou a olhar - depois de encher uma garrafa-termo de café acabado de fazer, verter o sumo para Ronnie num copo e inscrever o contacto de radar e a descida da pressão no diário de bordo -, o navio mudara de rumo. Retrocedia e deslocava-se devagar entre os atóis Helena.

Stone considerou que o seu comportamento era tão estranho como a sua presença.

Pulo Helena - algumas línguas de areia e coral entre as Carolinas Ocidentais e a costa da Nova Guiné - situava-se a sul das rotas de navegação transpacíficas Panamá-Filipinas e muito longe da Austrália-Tóquio. Figurava entre as paragens mais remotas do circuito do hospital flutuante dos Stone. Eles fundeavam uma vez por ano na lagoa para cuidar alguma da meia dúzia de famílias de pescadores nómadas que de momento viviam lá e, de quando em quando, um barco-patrulha de pesca da República de Palau vinha da distante Koror, a capital. Mas não havia lá nada susceptível de interessar a um navio de grande calado.

Ele levou o aparelho portátil de VHF, a garrafa-termo e o sumo para Ronnie para a cabina superior. A garota ingeriu um centímetro e meio do conteúdo do copo e consultou Snoopy.

- Treze vírgula oito milhas para Pulo Helena... - Stone pegou numa manivela de guincho e encaminhou-se para a frente do barco. - Onde vais agora?. Quero abraços.

O Swan deslocava-se sob o impulso de duas bujarronas iguais que se estendiam em ambos os lados da proa como um par de asas. A disposição da enxárcia de ventos alísios clássica era autodireccional, mas tornava-se impossível ver directamente em frente sem se agachar para espreitar por baixo das velas ou alterar a rota. Stone ergueu a vela grande, afastou-a para bombordo e fixou o botaló com uma boca. Em seguida, enrolou a vela grande de estibordo. Reduziu um pouco a velocidade, o que era excelente - sempre dava mais tempo àquela coisa para se distanciar - e agora, com ambas as velas por cima do lado esquerdo do barco e o direito desimpedido, podia ver claramente em frente.

Entretanto, Ronnie aguardava na cabina principal com impaciência. Terminou o sumo por insistência de Stone, anichou-se nos seus braços e adormeceu com a cabeça pousada no peito.

O sol já escaldante da manhã contribuía para que o perfume se libertasse do cabelo dela. Ele aspirava-o e duvidava de que em alguma outra ocasião se tivesse sentido tão feliz. Talvez uma ocasião, noutro oceano. Exerceu um pouco mais de pressão com os braços em torno do pequeno corpo e esquadrinhou o mar.

Poderia esperar-se ver surgir palmeiras de vinte e cinco metros de altura a alterar o horizonte a cerca de doze milhas da coberta de um veleiro. A casa de um navio grande talvez sobressaísse mais, assim como um cargueiro cheio de contentores. Por conseguinte, não tardaria a avistar alguma coisa.

As velas do Verónica, cada uma marcada com uma larga cruz vermelha visível a milhas de distância, achavam-se dilatadas devido ao uso prolongado e persistente e amarelecidas a um estado de perigosa fragilidade pelo sol. Mas o admirável casco e o mastro imponente de fibra de carbono compensavam as deficiências, além de que era veloz.

Em menos de meia hora, galopou no topo de uma crista e revelou a Stone uma mancha imprecisa no horizonte. Ele pegou no seu Fujinons lentamente, ansioso por prolongar o momento em que Ronnie despertaria, retirou as coberturas das lentes e apontou e focou o binóculo a um navio imenso, anguloso, cor de areia.

Uma tonalidade estranha, quase camuflagem, e surgia e desaparecia de vista como uma miragem. As linhas quadrangulares de um cargueiro moderno. O seu amigo australiano Kerry McGlynn, comandante de um rebocador de salvamento, que costumava contar histórias excitantes de encalhes, afundamentos e incêndios no mar, jurava que havia navios no Pacífico remoto adquiridos com cartões do American Express. O que os orgulhosos donos viam como uma superauto-estrada na carta não passava na realidade de uma teia de recifes para os eliminar da superfície.

Ronnie acordou a falar:

- A mamã continuou a dormir durante o alarme de colisão.

Sarah fora educada na Grã-Bretanha, e a filha ecoava o seu sotaque inglês, inflexões e até os gestos. A intensa similaridade com a mãe bastava para levar um homem a pensar que o seu gene havia sido afectado. Stone era atarracado, de olhos azuis e louro, permanentemente bronzeado. A pele de Ronnie apresentava um aspecto misto de café com leite, em contraste com a cor de café de Sarah. No entanto, os malares eram tão proeminentes como os da progenitora, e o nariz e porte não menos perfeitos e altivos.

Ocasionalmente, ele vislumbrava traços do olhar firme do pai nos olhos negros da garota, que herdara as mãos e dedos hábeis dele próprio. Não obstante, assistia ao seu crescimento com todo o prazer e respeito de um estranho num jardim de esculturas.

- A mamã esteve de vigia toda a noite - recordou-lhe ele. - Para que tu e eu pudéssemos pôr o sono em dia. Ou em noite, se preferires. Agora, é a sua vez.

- Mas...

- Mas quê?

Ele sabia aproximadamente o que se seguiria. Na véspera, as duas mulheres da sua vida tinham travado uma acesa discussão acerca do trabalho escolar - um relatório escrito sobre um conto de Wole Soyinka da Nigéria pós-colonial, que Ronnie costumava achar menos interessante do que a terra da Coca-Cola e Hollywood a que chamava «pátria do papá». No entanto, não tinham chegado a uma conclusão definida.

- A mamã às vezes consegue ser um pouco chata, não achas?

- Até hoje, nunca tive motivo para pensar assim. - Stone fez uma pausa, enquanto a filha fazia rolar os olhos. - E conheço-a há muito mais tempo que tu.

- Assim espero.

- Suponho que puseste mesmo o sono em dia, hem? Ou seja: não ficaste acordada metade da noite a ler a revista People. Decerto não foi por isso que te custou a acordar? É claro que não.

Na sua última visita a terra, a Rampa de Mísseis de Kwaja-lein, a enfermeira do Exército dos Estados Unidos, que lhes fornecera, à socapa, caixas de seringas esterilizadas e uma quantidade generosa de insulina, oferecera a Ronnie um maço de People antigas - um mundo deslumbrante de edifícios, ruas, artistas de cinema, o que levara Sarah a comentar: «Americanas sorridentes a empurrar carrinhos de bebés nos seus jardins.»

Ronnie soltou-se dos braços dele e olhou em volta.

- Um navio! Um navio, papá! - Pegou no binóculo e apontou-o habilmente. - E é grande. Enorme, mesmo. Posso trepar ao mastro para ver melhor?

- Até ao primeiro nó. E de que te recordas?

- As duas mãos para o marinheiro.

- Deixa ficar o binóculo.

Trepou como um macaco, uma mão adiante da outra ao longo de uma adriça, com os dedos dos pés bem fincados no mastro, que se inclinava apenas ligeiramente. Dez metros acima de uma coberta sulcada de manivelas de aço, deteve-se numa posição firme, protegeu os olhos do sol com a mão e fixou-os no navio. «Uma deusa africana pré-pubescente», reflectiu Stone, com um sorriso. Fora como lhe chamara Godette, a marinheira japonesa.

- As duas mãos! - advertiu.

- Desculpa. Olha, mamã, um navio!

Sarah acabava de emergir da cabina, com uma mirada instintiva às velas, um trejeito de desagrado à nebulosidade que se ia acumulando à popa e um sorriso íntimo para o marido.

- Bom dia.

A progenitora da minideusa empoleirada era alta e atraente, de ascendência nigeriana, cujo nariz estreito e lábios delicados sugeriam os caçadores de escravos árabes e portugueses que pairavam no passado africano.

Mantinha-se bem erecta, uma figura quase nobre, de momento um pouco mais alta devido à toalha com que rodeara a cabeça como um turbante, pois lavara o cabelo como preparativo para uma visita a terra. Tinha um lava-lava amarelo da ilha de Yap em redor do tronco, com os ombros expostos, e uma cruz de ouro num cordão pendia do pescoço.

- Porque sorris? - perguntou.

Stone amava-a profundamente, por vezes selvaticamente. Acabava de lhe ocorrer que naquela manhã a paixão era mesmo selvagem, enquanto se levantava e a beijava.

- Um único castelo, o da popa - anunciou Ronnie. - Julgo ver postos contra incêndios e canalização. É um velho petroleiro.

- A miúda tem uma vista surpreendente - observou Stone.

Sarah volveu o olhar para a silhueta.

- Parece sobressair demasiado da água para um transporte de crude. Acho mais provável que seja de gás natural liquefeito. Que dizes?

Ele ainda não conseguia ver o navio com clareza. Pegou no binóculo, corrigiu a focagem e concordou que se tratava provavelmente de um transporte de GNL.

- Dos grandes. Aí Umas cinquenta mil toneladas.

- Que demónio fará um navio de GNL nestas paragens? - Os cargueiros de tanques fortemente isolados assemelhavam-se a garrafas-termos gigantescas que transportavam gás, comprimido e superarrefecido em líquido, de campos petrolíferos para centrais eléctricas. Autênticas frotas deles abasteciam o Japão. - Terá encalhado?

- Segundo o radar, está em movimento.

Ambos se recordaram da observação do seu amigo australiano de que o segundo erro que os comandantes de navios perdidos cometiam com frequência consistia em retroceder do pico da montanha submersa que acabavam de descobrir com a quilha e mergulhavam em duas milhas de água.

Sarah examinou o navio com o binóculo.

- Sim, está em segurança - concordou. - Graças a Deus. - Com efeito, congelada no convés de um transporte de GNL totalmente carregado, havia mais energia térmica do que numa bomba nuclear. - Vem tomar o pequeno-almoço, Ronnie.

- Mas é um navio, mamã.

- Verónica...

- Está bem, mamã.

Stone reflectiu que a filha capitulara demasiado cedo. No instante imediato, compreendeu porquê, ao ver Ronnie despir o casaco do pijama.

- Que está ela a fazer? - exclamou Sarah. - Impede-a, Michael!

- É tarde de mais.

Ronnie oscilou no espaço, enrolou o casaco do pijama no estai da mezena e começou a deslizar para baixo com relativa rapidez, que atenuou pouco antes de pousar na coberta.

- Aprendeu isto contigo.

- Há anos que não executo esta proeza.

Ronnie correu para a entrada da cabina principal e bradou:

- Viste, mamã?

- Hás-de fazer-me cabelos brancos antes de me ofereceres netos.

- Viste, papá?

- Estou impressionado - admitiu ele. - Quando aprendeste isso?

- Imaginei-o a noite passada, na cama. Como todos os pormenores me pareceram claros, compreendi que era capaz de o fazer.

- Não deixes de me informar, se as asas também te parecerem claras. Antes de experimentares.

- Por favor, papá... Viste o navio, mamã? É maior que Pulo Helena. Eles talvez nos convidem a bordo, ofereçam lanche e... e mostrem filmes, tenham uma piscina, jogos de vídeo e televisão e... e parabólica!

- Talvez - concedeu Sarah, com um olhar de inteligência a Stone. - Mas não confies muito nisso, querida.

Acho que estão à nossa espera - aventurou a garota, que passou a abraçar a teoria com vigor. - Aposto que têm alguém doente e estão à espera que o vão tratar.

Na Primavera anterior, no mar das Filipinas, tinham acostado a um transporte de carros dinamarquês para prestar assistência a um maquinista que sofrera queimaduras na explosão de uma bomba. As confortáveis instalações da tripulação tinham parecido palacianas a Ronnie e o navio um armazém flutuante de tesouros modernos para uma criança que via gelados duas vezes por ano. Desde então, ansiava como um corsário,que aparecesse um. Stone trabalhava actualmente na construção de um descodifícador para lhe oferecer pelo Natal, a fim de poder ver televisão por satélite.

- Bem, se for o caso... e mesmo que não seja... em breve desembarcaremos. Agora, fazes o favor de ir lá para baixo e tomar o pequeno-almoço. Depois, tomas banho de chuveiro e lavas o cabelo. Meteremos água em Pulo Helena. Como vês, o papá aparou a barba e eu estou espampanante. Quando acabares chama-me para que to escove

Ronnie dirigiu um olhar de ansiedade ao navio e desapareceu na escada.

Os três atóis que formavam o grupo Pulo Helena tornaram-se visíveis. O navio encontrava-se no meio deles, a sotavento da ilha principal, protegido da ondulação, que as ilhas fragmentavam. O seu castelo situava-se mais alto que as copas das palmeiras.

O VHF entrou em actividade, com o sotaque arrastado do Sul do Texas:

- Olá, veleiro da cruz vermelha !! . Veleiro da cruz vermelha !! Vocês são por acaso o barco-hospital?

- Estão à nossa espera - disse Sarah.

Stone premiu a tecla «Transmitir».

- Fala do Verónica. Em que os podemos ajudar?

- Ainda bem que os encontramos. Somos o Dallas Belle. Vimos de Surabaia e rumamos a Tóquio. O velhote está ferido. Sofreu uma queda. Precisamos de um médico com urgência. Querem que vamos ao vosso encontro?

Stone consultou Sarah com o olhar. A rota Surabaia-Tóquio estendia-se centenas de milhas a oeste de Helena.

- Com esta ondulação, nem pensar. Nós abordá-los-emos a sotavento do atol. Aguardem aí quietinhos. Contamos chegar dentro de quarenta e cinco minutos.

- Obedecemos às suas ordens, doutor. Sarah pegou no rádio.

- Quando se feriu o vosso comandante?

- Ontem, minha senhora.

- Está consciente?

- Por vezes.

- Tem vómitos?

- Não, minha senhora. Os tipos da rádio oficial disseram que vocês passariam por aqui. Graças a Deus que os encontrámos.

Stone cortou a comunicação, desligou o piloto automático e alterou o rumo para contornar a parte sul do atol principal. A água estava a tornar-se confusa, enquanto a terra dividia a ondulação, e ele julgou ouvir o primeiro murmúrio da rebentação no recife da vanguarda.

Sarah tocou-lhe no braço, enquanto singravam na direcção do som, e abordou o assunto que haviam debatido nos últimos dias.

- Já pensaste em Timor Leste?

Stone desviou o olhar para a ondulação, os atóis, os recifes e o navio cor de areia, de cuja chaminé se desprendia uma pequena coluna de fumo.

- Parece que ainda não consegui convencer-te de que é muito perigoso.

Os Indonésios tinham invadido Timor Leste quando os colonizadores portugueses partiram, e havia anos que fomentavam uma guerra de terror contra os Timorenses, que se insurgiram com a sua presença. Sarah queria levar o Verónica para lá, a fim de cuidar dos feridos.

- Aqueles desgraçados não têm quem os ajude. O mundo não quer saber deles. O mínimo...

- E que faço quando um barco-patrulha indonésio nos apanhar a brincar aos médicos num ancoradouro dos rebeldes? Não lhes podemos escapar num simples veleiro.

- O barco está cheio de cruzes vermelhas. Como saberão que não procedemos em missão «oficial»? De resto, a Ronnie não virá connosco. Vamos enviá-la para o colégio, como combinámos.

- Pois combinámos.

Hiroshi, marinheiro japonês a quem Sarah salvara a vida, era membro de uma família de industriais abastados, e o pai oferecera-se para enviar Ronnie para o colégio suíço que as filhas haviam frequentado.

Trocaram sorrisos amargurados. Aquilo tinha de ser feito, antes que a garota fosse separada de amigas para sempre. E, na verdade, ela parecia ansiar por um mundo mais vasto; quando não devaneava sobre navios, estendia-se na coberta durante horas a observar os aviões e, à noite, satélites nas suas rotas fixas através das estrelas.

- Sinto a obrigação de ir a Timor - declarou Sarah, com firmeza. - Somos médicos.

Stone tornou a desviar o olhar para o oceano. Quer fosse por complacência de meia-idade ou aversão masculina à mudança, receava que estivesse mais satisfeito com a vida que levavam do que ela. Apegava-se com satisfação a uma existência quotidiana que lhe agradava pela sua coerência. Quando sentia a necessidade de excitação adicional, o mar costumava proporcionar-lha com uma tempestade que sugava a adrenalina e queimava o excesso de energia. As reparações intermináveis exigidas por uma embarcação velha mantinham-no ocupado, assim como as tarefas simples, porém vitais, da navegação e pilotagem. No entanto, Sarah tornava-se cada vez mais impaciente, quase ansiosa por outras actividades.

- Conservemos a Ronnie mais um ano connosco... por favor - rogou ele.

Ela levantou-se.

- Prometi ajudá-la com o cabelo.

Stone pegou no binóculo e estudou a lagoa vítrea e esverdeada de Pulo Helena. Aglomerada na praia de areia branca, sob elevados coqueiros, havia uma minúscula aldeia de meia dúzia de fales - cabanas abertas com tecto de colmo.

- Não está cá ninguém - anunciou para a abertura da escada. - Não se vêem barcos na praia... Não, espera... - Imobilizando o leme com o joelho, focou melhor o espaço à sombra debaixo de um telhado de colmo. - Há alguém sentado numa das fales.

No instante imediato, o Verónica monopolizou-lhe a atenção, ao penetrar na caótica intercepção, onde ondas do Pacífico com nove mil milhas de extensão se desfaziam para além do atol e prosseguiam em direcção às Filipinas. Para sotavento, havia uma abertura no recife, a passagem que Stone costumava aproveitar para procurar abrigo na lagoa, ao contrário do que acontecia agora que rumava em direcção ao navio.

Ultrapassado o recife, voltou a pegar no binóculo e focou-o. A aldeia estava. de facto deserta, mas havia uma pequena canoa encalhada de lado na periferia da lagoa. A única pessoa presente, agachada na cabana aberta, tentou endireitar-se, mas caiu para trás e a cabeça pousou no peito.

Stone apressou-se a efectuar uma série de pequenas manobras, atento à localização da ponta de coral submerso citada enfaticamente no Sailing Directions, evitou-a por menos de um metro e desembocou na profunda lagoa.

Sarah acudiu à coberta com ansiedade.

- O que aconteceu?

- Há um velho pescador sozinho na praia. Creio que está ferido ou doente.

- E o comandante do navio? - Volveram os olhos para o navio cor de areia, que se erguia da água com a força anónima de uma cidade industrial. - Tem um aspecto horrível, não achas? - articulou ela, estremecendo. - Hediondo como o pecado.

- Lembra-me uma daquelas refinarias isoladas num deserto.

- Receio bem que sim.

- E se eu fosse ver o comandante? - sugeriu Michael. - Entretanto, tu ficavas aqui no atol com este tipo. Que te parece?

- Seria o mais conveniente, mas a Ronnie está tão ansiosa... Ainda há pouco me disse: «E como se fôssemos às compras num centro comercial.»

Naquele momento, a garota surgiu ao lado dela.

- Estás pronta, mamã? - Usava um lava-lava vermelho, acompanhado da mochila do Snoopy, para a esperançosa possibilidade de presentes, e fitas no cabelo. Cravava os olhos no navio e, quando viu que tinham entrado na lagoa e se aproximavam do velho molhe junto das fales, bradou: - Onde vamos?

- Deixa-me estudar o navio, primeiro - aventurou Michael.

- Não! Quero ir com a mamã. Está aperaltada e toda bonita e também quer ir. Não é verdade, mamã?

- Bem, o papá talvez tenha razão.

- Nããáo! Vamos apanhar calor e suar as estopinhas no atol.

- Pronto, está bem. - Stone soltou uma gargalhada. - Vais ao navio com a tua mãe e eu ocupo-me deste tipo. Toma conta do leme, querida. Tenho de ir buscar o meu saco.

- Ele deve estar desidratado - advertiu Sarah, voltando-se para a escada, que o marido já começava a descer. - Não te esqueças da glucose e de água salina.

Stone introduziu os produtos mencionados no saco impermeável que exercia as funções de mala de médico, além de plasma, que retirou do frigorífico, e pegou igualmente no aparelho de VHF. De novo na coberta, indicou:

- Vão acostar o navio a sotavento. Comunica para lá pela rádio para que haja marinheiros em número suficiente para executar a manobra.

- Entendido, querido.

- Ronnie, vai lá abaixo buscar o saco da mamã e depois coloca defensas em ambos os lados. Sarah, não te esqueças de roçar o coral o mais perto possível, no lado sul.

- Sem dúvida, querido.

- Tenho direito a um beijo?

- Logo.

- Cuidado na abordagem. Põe o colete salva-vidas. E tu também, minha menina.

- Com certeza, papá.

- Se forem pessoas agradáveis, tentarei provocar um convite para jantar.

- Diz-lhes que o preço de uma consulta ao domicílio é um radar de vigilância.

- Muito bem. Aí vamos nós!

O Swan aproximava-se rapidamente do molhe. Stone avançou para a amurada e hesitou. O mar estava agitado. De súbito, retrocedeu para a cabina principal, onde Sarah tomava conta do leme.

- Afinal, prefiro o beijo já. - Segurou-lhe o rosto entre as mãos. - Amo-te.

Os lábios dela estavam frios e os olhos negros insondáveis.

- Quero ir para casa, Michael.

- Para casa? Referes-te à Nigéria?

- A África!

- Então... e Timor Leste? - perguntou ele, consciencializando-se tardiamente de que Timor Leste era uma história passada e ela se inclinava gradualmente para uma decisão de importância capital nas últimas semanas.

- Há muito que fazer em África - murmurou, com um olhar de desafio.

- Não podemos ir para lá.

- Estou perfeitamente ciente de que somos fugitivos, muito obrigada.

- Rigorosamente, o fugitivo sou eu.

- Não sejas tonto. Acompanho-te sempre. Em todo o caso, já pensaste que o facto de seres fugitivo te fornece o pretexto para te ocultares de tudo?

- O molhe! - informou Ronnie, em tom urgente. Stone aproximou-se novamente da amurada com a mochila.

- Depois conversamos.

Sarah segurou-o pelo braço, puxou-o para si e beijou-o.

- Também te amo. Agora e sempre.

Ele saltou para o areal, correu alguns metros devido ao impulso que trazia de bordo, voltou-se para trás e acenou.

O Verónica oscilava na lagoa, com Sarah empertigada ao leme e Ronnie atarefada a colocar as defensas, ambas demasiado concentradas no que faziam para retribuir a saudação. Stone deteve-se por um momento para absorver o cenário que tinha o seu veleiro como figura central e passou diante da canoa voltada para a areia.

No cimo do areal inclinado, no interior da fale, o pescador jazia com um lava-lava em torno da cintura e as mãos pousadas no ventre. As pernas estavam inchadas com cortes infectados produzidos pelo coral. Quando se apercebeu da aproximação de Stone, olhou por entre cataratas leitosas.

Aqueles ilhéus do Pacífico, que comiam a sua dieta tradicional e evitavam o álcool, cereais açucarados ao pequeno- almoço e o envenenamento por radiações de testes nucleares, tinham vida longa. Stone por vezes via-se impossibilitado de lhes determinar a idade aproximada, mas aquele que de momento tinha na sua frente devia rondar os oitenta anos.

As coxas estavam tatuadas com golfinhos - símbolo altivo dos navegadores micronésios - e, à semelhança de muitos da sua geração, apresentava um sol-nascente japonês tatuado no abdómen. Sobre o peito crestado brilhava um crucifixo. Tratava-se, pois, de um convertido pelos missionários, o que significava que talvez falasse inglês. Achava-se muito afastado do seu meio habitual, nas ilhas do Sul, mas eles deslocavam-se aonde lhes apetecia.

- Olá. Como se sente?

O velho fixou o olhar no mar, sem responder. Stone notou o odor suave de copra a secar e sentia o chão oscilar, pois tratava-se do seu primeiro momento fora do veleiro em movimento em cerca de três semanas. A rebentação ecoava nas proximidades e o alísio soprava com intensidade no seu corpo e sacudia as ramagens das palmeiras.

- Disse alguma coisa? - insistiu.

Inclinou-se para a frente e sorriu, numa tentativa para o por a vontade. Considerava-se um médico razoavelmente competente - não perito em cirurgia como Sarah -, melhor a cuidar de coisas do que de pessoas.

- Muito velho...

O homem abriu as mãos e expôs uma navalha de pescador cravada no corpo.

- Santo Deus! - exclamou Stone. - O que lhe aconteceu?

O suicídio constituía uma das pragas que imperavam naquela área do Pacífico, juntamente com a bebida e a diabetes, embora a maior percentagem de casos se registasse entre os jovens.

- O barco é seu? - perguntou, numa tentativa para o distrair, a fim de poder examinar o ferimento. - O que se passou? Chegou a casa e não encontrou ninguém?

- Não é a minha casa. Tentei chegar a Tobi. Velho estúpido.

Tobi situava-se duzentos e cinquenta quilómetros a sudoeste.

- De onde?

- Puluwat.

- Puluwat ?. - Encontrava-se mil e seiscentos quilómetros a leste.

Os navegadores das Carolinas não hesitavam em transpor quinhentas milhas sem bússola para comprar um maço de Marlboro ou ir a uma festa animada. No entanto, o ancião perdera-se e tentara neutralizar a sua vergonha embatendo no recife.

- Porque viaja só?

- Enterramento suave.

A morte do navegador no mar.

Enquanto observava os olhos aguados que só podiam ter visto as estrelas mais brilhantes, Stone calculou que aquela derradeira viagem constituíra um teste decisivo.

- Deixe-me mover-lhe as mãos.

O velho perdera muito sangue e no momento em que ele lhe tocou desmaiou com um suspiro. Stone apressou-se a introduzir-lhe um tubo de água salina no braço e outro de glucose. A navalha teria de ficar a cargo de Sarah, que montaria uma sala de operações ali mesmo, na fale. Preparou-se para aplicar o tubo Levine, a fim de aspirar os fluidos do estômago que se vertiam no abdómen, mas foi demasiado tarde.

O navegador descerrou as pálpebras e acudiu-lhe um sorriso sereno aos lábios, quando Stone os humedeceu com água.

- Quem é? - perguntou num murmúrio rouco, ao mesmo tempo que inclinava o pescoço para poder tornar a ver o mar.

- Um navegador domingueiro, comparado consigo. - O rosto encarquilhado rejeitou o cumprimento, enquanto os olhos assumiam um aspecto vítreo. - Demónio... - grunhiu Stone, esperançado em que Sarah estivesse a ter mais sorte.

Percorreu as fales mais próximas em busca de uma pá, sem resultado. Os últimos que tinham estado ali haviam levado tudo. Teria de ir buscar uma ao Swan. Ou então colocar o velho na sua embarcação e enviá-lo para o pôr do Sol.

Uma coluna de fumo despertou-lhe a atenção, brotando, negra como um tição da chaminé maciça do Dállas Belle. O vento envolvia-a e arrastava-a para oeste. Água branca fervilhava atrás do navio, que começou a mover-se.

- Foi rápido.

Encaminhou-se para o molhe, à procura do Verónica. Mas quando o Dállas Belle percorrera cerca de trezentos metros - o seu próprio comprimento - continuava a não o avistar.

- Meu Deus!

Acabava de lhe ocorrer um pensamento terrível. Teria o navio abalroado o Verónica?. Ou a sua gigantesca hélice arrastara-o para o fundo?

Correu para a canoa do velho. Ao mesmo tempo, reflectia que Sarah e Ronnie deviam ter os coletes salva-vidas postos. Podiam ter sido projectadas na água. Mas entretanto o navio mudara de posição, com um novo ângulo de perspectiva, e Stone abrandou o andamento, deteve-se e arregalou os olhos de incredulidade.

Viu o veleiro suspenso vinte metros acima da água no cabo de uma grua, que transferiu a chalupa para bordo, por cima da coberta principal do transporte de gás. Em seguida, um grupo de marinheiros orientou-a para uma espécie de estrado e o Dálias Belle completou a rotação e começou a distanciar-se.

 

- Estamos em movimento, mamã!

- Caluda.

Sarah debruçava-se sobre o estetoscópio, inteiramente concentrada no coração do ancião.

Não se tratava do resultado de uma queda, como se referira pela rádio. Ele fora atingido com um tiro.

Do ponto de vista médico, isso era o menor dos problemas do ferido. Dispostos a remover a bala, os marinheiros haviam-no anestesiado com morfina, e agora achava-se inconsciente, mergulhado numa depressão narcótica, com a tensão arterial a descer rapidamente e a respiração tão ténue que os pulmões quase não conseguiam elevar as costelas.

Sarah injectou-lhe meio miligrama de Narcan nas veias e aguardou com ansiedade a fibrilhação que lhe indicaria que o antagónico narcótico agravara alguma enfermidade cardíaca já existente. Tratava-se de um indivíduo idoso. O Narcan tanto o poderia matar como salvar com facilidade, mas não havia qualquer alternativa. Ela precisava de o pôr a respirar com regularidade e aumentar a tensão arterial.

- Mamã...

- Narcan !

Ronnie colocou-lhe outra seringa na mão enluvada. Sarah cravou a agulha numa veia, introduziu meio miligrama, massajou o coração debilitado e tornou a apurar os ouvidos

- Narcan !

À terceira dose, o ancião acordou a vomitar

- Depressa !

Ronnie ajudou-a a soerguê-lo para que não sufocasse com o vómito. No entanto, quando tinham conseguido manter o tronco erecto, ele desmaiou, engoliu e começou a sufocar. Sarah apressou-se a libertar-lhe as vias respiratórias.

- Comandante ! – chamou, voltando-se para os homens que assistiam, à entrada da enfermaria. – Preciso do ventilador que está no meu barco. E do intubador.

O texano bradou algumas palavras para o corredor e, momentos depois, o rapaz da messe aparecia com os objectos pedidos. O companheiro do comandante, um negro americano, de compleição física impressionante, perguntou :

- E a respeito da bala ?

- Importam-se de sair e fechar a porta, por favor ?

- Vamos esclarecer um ponto, doutora. Nos lados de onde venho, todos os homens da minha idade são mortos ou presos. Mister Jack é o único motivo por que não estou uma coisa nem outra.

- Se eu não conseguir estabilizar o seu Amigo, ele não escapa. Fora, por favor.

A avaliar pelo que conseguia determinar sem o recurso a raios X, uma bala de pequeno calibre entrara em diagonal, ricocheteara na parte média do esterno, abrira caminho ao longo da quarta costela em direcção ao ombro, rasgara o subclávio e alojara-se profundamente nos músculos peitorais inferiores.

Felizmente. Até que os cabeças quadradas dos marinheiros em pânico, decidiram extrair o projéctil. Um moço de messe que trabalhara como enfermeiro num hospital fora o escolhido, para efectuar a totalmente desnecessária operação. Tinha sido prescrita morfina para anestesiar a já inconsciente vítima. Extremamente generosos, haviam inoculado toda a reserva de bordo nas veias do ancião, e começado a carnificina no que restava do ombro. Mas, como a bala se achava embebida a uma certa profundidade, acabaram por desistir, como deviam ter feito ao princípio.

O facto de a dose exagerada não o ter matado instantaneamente devia ser encarado como um milagre, ou o testemunho de uma constituição física de liga de titânio. A avaliar pelas feições duras do paciente, Sarah inclinava-se para a segunda hipótese. Com efeito, o semblante poderia ter sido esculpido de rocha ígnea: sobrancelhas hirsutas, nariz aquilino, queixo quadrangular, cabelo branco curto eriçado e nem uma única ruga ou bolsa na pele. E exibia os sinais de tortura antiga: as costas eram cruzadas por cicatrizes antigas e as unhas das mãos e dos pés encontravam-se ausentes.

No entanto, a sorte que então o mantivera vivo e agora desviara a bala da trajectória letal persistia. A tripulação soubera através de um radioamador que o veleiro-hospital Verónica rumava a Pulo Helena, e quem havia de pairar no horizonte senão o Dr. Mike ou a Dra. Sarah?

- Estamos a andar, mamã...

Na verdade, a vibração era inequívoca. O navio movia-se e descrevia uma rotação.

- Bem sei - murmurou Sarah.

- Onde está o papá?

- Ignoro-o. Ajuda-me com isto.

- Mas...

- Primeiro, o que é prioritário: o nosso paciente. Não chores, querida, pois preciso de ti.

Procedeu à colocação do respirador e voltou a auscultar o coração. Parecia estável, o que indicava que o Narcan exercia um efeito pelo menos temporário.

- Muito bem, querida. Vamos então ver o que se passa aqui.

Chamou o comandante, que acudiu acompanhado do negro americano.

- Como está ele, doutora?

- Onde se encontra o meu marido?

- Na praia - informou o negro.

- Hem? Deixaram-no na praia? E o nosso barco?

- Está pousado em segurança na coberta principal.

- Trouxeram-no para bordo? Não podem...

- E um facto consumado, doutora.

Sarah tentou abarcar o impossível, enquanto Ronnie parecia na iminência de começar a chorar; rodeou-a imediatamente com o braço. Tinha plena consciência de que, no fundo, haviam sido raptadas, mas só conseguia pensar em Michael e nas milhas que as hélices do navio iam acumulando entre eles.

- Abandonaram-no num local isolado - proferiu, revoltada. - Deve estar aflito connosco. Não o podem deixar ali!

- Poderá ir recolhê-lo, assim que o velhote se levantar.

- Levantar? Mas tem de ser levado ao hospital. O negro abanou a cabeça com veemência.

- Quanto mais depressa o deixarem lá, maiores as probabilidades de sobreviver.

- Não irá para o hospital.

- Fiz tudo o que era possível. Neutralizei a dose excessiva de morfina. Agora, precisa de assistência hospitalar. Nada mais posso fazer. Por conseguinte, retiramo-nos.

- Não pode ser. É a única entidade médica ao dispor dele.

- Quando nos deixarão partir?

- Assim que Mister Jack o permitir.

- E o meu marido?

- Não irá a parte alguma. Poderão retroceder e recolhê-lo, quando Mister Jack o decidir. - Ele percorreu-a com o olhar. - Celebrem uma reunião.

Sarah volveu o seu olhar para o paciente, pálido como a neve e de respiração quase inexistente, cujos dedos mutilados se crispavam sobre o lençol.

- Não está a compreender. Tem de ser levado para o hospital.

- Nem pensar, doutora.

- E se morrer?

- Não pode. Arranjámos-lhe uma médica e uma enfermeirazinha muito simpática.

 

A maré encalhara a canoa do velho ilhéu.

Foram necessários minutos brutais e todo o vigor de Stone para arrastar a pesada embarcação para a lagoa. Apercebeu-se então dos estragos: as travessas que ligavam o flutuador à canoa tinham-se partido quando esta colidira com o recife.

Procurou freneticamente e encontrou um rolo de corda, que utilizou para as reparar, após o que saltou para bordo.

O Dálias Belle deslocava-se lentamente, a fim de se afastar do atol a norte. Stone içou a pequena vela, baixou o remo que exercia as funções de leme e conduziu a canoa para o estreito canal aberto no recife de sotavento.

Conforme foi avançando pela lagoa, começou a perder velocidade. Stone, que não desviava os olhos do navio, acabou por baixá-los e viu que a água principiava a entrar por uma longa fenda entre as pranchas do fundo, à proa.

Apressou-se a despir a camisa, enrolou-a e introduziu-a na abertura. Em seguida, transferiu o peso do corpo para a popa, no intuito de aliviar a área da proa, recuperou o domínio da embarcação e transpôs a barreira do recife.

Uma vez no oceano, a canoa trepou com aparente relutância à primeira onda, oscilou sob o efeito da segunda e a terceira fê-la regressar à lagoa.

O vento incidiu fortemente na vela e, ao ver que a embarcação começava a voltar-se, já com o flutuador fora da água, Stone tratou de cortar um dos cabos com o canivete e o mastro tombou pesadamente. Antes que o afundamento inevitável se consumasse, pegou no remo e utilizou-o para alcançar a área de pequena profundidade, onde saltou para a água e arrastou a canoa para o areal.

Entretanto, o navio parecia cada vez mais pequeno ao longe, como um brinquedo numa banheira. Fora pouco menos que loucura supor que conseguiria alcançá-lo com uma simples canoa. Entrara em pânico e quase se afogara em resultado do acto irreflectido a que se entregara.

Pegou no rádio de VHF, como devia ter feito imediatamente, e chamou no canal 16:

- Dállas Belle. Dállas Belle. Dállas Belle. Escuto, Dállas Belle. - Não obteve resposta, pelo que tornou a chamar. - Dállas Belle. Dállas Belle. Escuto, Dállas Belle.

Aproximou o rádio do ouvido. «Atmosféricos» do meio do oceano, um eco e um ruído vazio, quase inaudível devido ao rugido intenso da rebentação.

Ligou ao canal 5, através do qual ele e Sarah costumavam comunicar quando um dos dois se ausentava do veleiro.

- Ouves-me,   Sarah querida? Sarah!   Ouves-me,   Sarah? Continuou a chamar, até que o Dálias Belle desapareceu no horizonte, deixando uma nuvem de fumo que o vento não tardou a dispersar.

Ele era um homem de ciência - médico, navegador e engenheiro de electrónica autodidacta - que acreditava em Deus. Mas tanto a fé como a ciência não podiam explicar o que acontecera à sua família. O navio cor de areia afastara-se, com a esposa e a filha a bordo, o que se lhe afigurava impossível. Seria mais plausível que uma cortina negra tivesse nascido do céu ou que vinte hectares de terra lavrada que se tivessem erguido do mar.

Que estariam eles a fazer à sua filha e à sua encantadora esposa? Tentou reescrever os eventos no espírito. Tinham rumado ao mar alto para imobilizar o navio, enquanto Sarah executava uma operação difícil. Ou rumavam a um hospital das Filipinas para uma intervenção de emergência. Tudo isto fazia ainda menos sentido do que aquilo que lhe custava a aceitar. Mas não havia qualquer explicação razoável ou facto que lograsse entender.

A expressão encantadora esposa começou a cruzar-lhe repetidamente a mente. Por um instante fugaz, pareceu-lhe ouvir Ronnie gritar: «Papá» Era um som tão real, tão parecido com o uivo que soltara a última vez que caíra ao mar, que volveu a cabeça para a procurar.

Os seus olhos incrédulos varreram a lagoa deserta, o círculo de praia vazio que a circundava parcialmente. O vento sacudia as ramagens das palmeiras. O oceano Pacífico estendia-se interminavelmente em todas as direcções.

Stone encontrava-se duzentos e cinquenta quilómetros a nordeste de Tobi, que tinha uma estação de rádio. O Dálias Belle desaparecera no sentido oposto. As Sonsoroles, Merir e Pulo Anna situavam-se longe, a oeste. Mas em qualquer das ilhas com rádio o gerador podia estar avariado ou sem combustível e ter de esperar um mês pela visita do próximo cargueiro.

Angaur, por outro lado, a mais a sul das ilhas Palaus, dispunha de uma pista da Segunda Guerra Mundial, onde ele poderia tomar um avião para a cidade capital, Koror. E aí residia um amigo: Marcus Salinis, presidente da pequena República de Palau. Mas Angaur situava-se a uns quatrocentos quilómetros, do outro lado do oceano.

Esgotado com a luta que travara para colocar a canoa a seco, sentou-se no talabardão e fixou os olhos no espaço. A nebulosidade que notara antes enchia agora todo o horizonte a leste. Em seguida, virou-se para norte, na esperança vaga de avistar Dálias Belle de regresso, com uma explicação perfeitamente plausível a bordo.

Um ponto negro ao longe acelerou-lhe as palpitações do coração. Aumentou, demasiado depressa, e materializou-se num bando de andorinhas-do-mar que procuravam peixe. Tornou a baixar o olhar para a lagoa. Uma centena de metros abaixo, algo grande e branco flutuava em direcção à praia. Um tubarão morto? Observou-o, intrigado, enquanto se voltava com a corrente. Uma fragata espiralou na sua direcção e descreveu círculos, hesitando em se acercar mais.

Um corpo humano? O navegador teria vindo acompanhado?

Ele pôs-se a correr e a ave bateu as asas quase freneticamente para se afastar, com um grito de irritação. Stone pegou numa mão fria e puxou o corpo.

Era um homem. Não se tratava de um ilhéu do Pacífico, mas de um pálido europeu de raça branca, que vestia apenas os boxers e calçava uma sandália. Usava uma aliança de casamento e relógio de pulso. O rosto quase ficara desfigurado ao embater no recife. No entanto, Stone descobriu que não fora só isso que o matara quando voltou o corpo e viu os três orifícios de balas nas costas.

- Oh, Sarah...

Lançou uma olhadela profissional aos ferimentos: uma arma de pequeno calibre, as balas ainda lá estavam, nenhum dos tiros fora imediatamente fatal. Podia ter sido lançado do Dálias Belle ainda vivo ou ter saltado. Jovem, de constituição possante, podia ter-se afogado antes de sangrar até à morte.

Naquele momento, apegou-se a uma só verdade, o único facto que conhecia: tinha de sair do atol.

Os mantimentos do velho navegador, que tinham ficado a flutuar quando a canoa naufragara, pairavam agora na superfície da lagoa.

Stone entrou na água, que não ia acima dos seus joelhos, e recolheu o que lhe pareceu aproveitável, formou vários montes e abanou a cabeça. A pequena embarcação tinha a bordo tudo aquilo de que um navegador micronésio necessitava para se fazer ao mar: comida e água, artigos para se proteger do sol tropical durante o dia e da humidade nocturna e materiais para reparações. Mas, ao contrário dele, o ilhéu não necessitava de se fazer ao mar com uma bússola, um sextante, almanaques ou uma carta. Tinha a trajectória das estrelas gravada na memória, assim como as correntes e aspecto da ondulação, e enriquecera os seus instintos de localização de terras com uma vida inteira de observação minuciosa de aves, peixes e nuvens.

Stone teria sacrificado um braço pelo SPG de Ronnie, naquele momento.

Talvez à noite, com o que sabia das posições das estrelas e constelações, conseguisse elaborar um rumo, além de que aprendera alguns truques durante a permanência de dez anos naquelas águas. De súbito, experimentou um sobressalto ao recordar-se da minibússola que guardava no saco de instrumentos médicos para se orientar se fosse surpreendido pelo nevoeiro no bote insuflável.

Olhou o Sol e consultou o relógio. Mais uma ponta de sorte. Incrivelmente, eram apenas duas horas. «A minha encantadora mulher... Papá!» Refugiando-se nas coisas que sabia, esperava largar dali antes de anoitecer.

O remendo das travessas do flutuador estava quase desfeito, enquanto a abertura no casco se alargara durante as sacudidelas na passagem do recife. Stone imaginou imediatamente uma maneira melhor para fixar o flutuador, pelo que deixou essa tarefa para mais tarde e concentrou-se na reparação das fendas entre as pranchas do fundo da canoa. Estas não eram pregadas, mas unidas por um cabo de fibras de coco, que passava por uma série de buracos. Fora este cabo que rebentara, e Stone começou a retirá-lo, rezando para que nenhuma prancha se tivesse rachado.

No entanto, quando chegou à zona que sofrera o embate com o recife, verificou que as pranchas se haviam partido pela linha de buracos, pelo que precisaria de um berbequim – que não tinha - para as reparar.

Com uma recordação de saudade de todas as ferramentas que havia a bordo do Verónica, compreendeu que as únicas de momento à sua disposição se encontravam no saco de artigos médicos. Continha bisturis e lâminas sobresselentes para cortar os cabos de fibras de coco, um canivete do Exército suíço, com inúmeras utilidades, alguns isqueiros descartáveis, mas nada que se parecesse com um berbequim ou sequer uma verruma. Se conseguisse descobrir um prego, poderia cravá-lo na madeira com uma pedra e puxá-lo com o alicate de dentista. No entanto, um prego era um objecto muito improvável numa ilha onde o coco constituía a fonte de todo o material de construção.

Percorreu o espaço entre a lagoa e o recife de barlavento, à procura de destroços arrojados pelo mar em que houvesse um prego cravado. Não encontrou nada, à parte um velho tronco de árvore que talvez tivesse sido arrastado por contracorrentes equatoriais de uma praia do arquipélago de Mindanau ou impelido ao longo de mais de quatro mil milhas pelos alísios desde a ilha de Natal.

Retrocedeu, enquanto esquadrinhava tudo com o olhar, ao mesmo tempo que se perguntava se poderia partir sem consolidar as tábuas da canoa no sítio onde estas se tinham partido. Dois orifícios. Não precisava de mais nada para as amarrar com fibra de coco e vedar a abertura com qualquer coisa. Ainda não considerara a calafetagem, mas, sem isso, a água não teria dificuldade em entrar. Talvez a casca de uma palmeira... Arrancou um troço com o canivete, mas verificou que era demasiado fina.

Voltou à fale, onde deixara o saco. Só então se deu conta de que o cabide em que o pendurara não era de madeira. Tratava-se de um gancho de latão, que alguém decerto encontrara cravado em algum destroço arrojado pelo mar e o enroscara no poste em que agora estava. Pegou no alicate de dentista e arrancou-o com a maior precaução. Em seguida, dirigiu-se ao local onde a canoa se encontrava e começou a enroscar o gancho numa das tábuas. Necessitou de cerca de uma hora para abrir dois furos e quase outro tanto para improvisar a calafetagem com a seiva de fruta-pão que entretanto descobrira, e que o velhote trouxera com ele exactamente para esse fim.

Era uma canoa muito pequena, com menos de cinco metros de comprimento, prevista para navegar nas águas protegidas das lagoas no interior de recifes ou, quando muito, um dia de viagem entre atóis próximos. O facto de o velho se haver aventurado a empreender um percurso de mais de mil milhas constituía uma prova inequívoca da sua coragem, e a circunstância de quase o ter conseguido demonstrava mais a sua perícia do que as condições do seu transporte. Não obstante, quando Stone a viu reparada, carregada e prestes a partir, experimentou uma sensação de esperança e um pouco de amor-próprio pela proeza conseguida.

A canoa podia parecer pequena em comparação com o Verónica e minúscula com o transporte de gás, mas apenas comparativamente, pois estava completa: auto-suficiente, rápida e manobrável. Nas mãos de alguém com experiência.

Ele começou por efectuar algumas manobras na lagoa, para se familiarizar com o seu manejo e, ao mesmo tempo, certificar-se de que a reparação que realizara resistiria.

Tomou nota da hora - o pôr do Sol aproximava-se - e apontou a embarcação à estreita abertura no recife, que lhe permitiria transferir-se para o mar aberto.

A manobra desenrolou-se sem qualquer contratempo, e ele dirigiu uma derradeira olhadela ao atol que acabava de abandonar. Várias andorinhas-do-mar começavam a sobrevoar o cadáver na praia. Por fim, quase repentinamente, como acontecia naquelas latitudes, o Sol pairou momentaneamente no horizonte e desapareceu.

O vento arrefeceu e a espuma fria começou a varrer a coberta desprotegida. Stone procurou um pedaço de fruta-pão entre os mantimentos, que se pôs a mastigar mecanicamente, e mitigou a sede com o líquido de um coco, que perfurou com o canivete enquanto aguardava que surgissem as primeiras estrelas. No entanto, as nuvens obstruíam totalmente a metade oriental do firmamento e comprometiam qualquer esperança de avistar o cinturão de Orion em ascensão. À frente, a norte, as estrelas da Ursa Maior principiavam a brilhar, mas as nuvens não tardaram a invadir igualmente esse sector. Ele voltou-se para trás e vislumbrou o Cruzeiro do Sul, porém a nebulosidade em breve também aí chegou. Em seguida, puxou de uma lanterna-lapiseira para consultar a bússola.

Entretanto, a ondulação acentuara-se e Stone viu-se obrigado a concentrar a atenção no remo que exercia as funções de leme, ao mesmo tempo que amaldiçoava intimamente a impossibilidade de se orientar pelas estrelas.

Se se encontrasse a bordo do Verónica, restar-lhe-iam outros meios para determinar a rota sem margem para erros. No momento em que ergueu a bússola, a fim de a consultar à luz da lanterna, uma onda transpôs a amurada e arrancou-lha da mão.

Ele precipitou-se para a frente, numa tentativa desesperada para recuperar a sua última ligação com o mundo moderno. Todavia, o instrumento desaparecera para sempre, o que lhe provocou uma profunda sensação de amargura.

Sentia-se perdido, a visão ofuscada pelas nuvens, sacudido fortemente pelo mar agitado. O vento mudava repetidamente de direcção e punha à prova a resistência da vela. Stone pôs-se de pé, segurou-se a um ovém e semicerrou os olhos para tentar perscrutar a escuridão. Ouvia as ondas colidir junto dele, mas não conseguia avistar as cristas espumosas. «Santo Deus», murmurou, mas apressou-se a acrescentar «Sarah!», ao aperceber-se de que havia uma década que não navegava sozinho.

Respirava com dificuldade. Sentia o peito contrair-se como uma mão estrangulada em volta da garganta e um murmúrio nos ouvidos que se avolumava gradualmente até se converter num rugido. Quando lhe acudiu aos lábios uma espécie de formigueiro, preparou-se para uma dor intensa, receando que se tratasse dos primeiros sintomas de um ataque cardíaco. De súbito, porém, apercebeu-se de que não era o corpo que estava a ser assaltado, mas a mente, dominada pelo pânico.

Uma rajada sacudiu a canoa e projectou-o na água, mas conseguiu regressar a bordo graças ao cabo salva-vidas que lhe rodeava o corpo. Encolheu-se junto do leme e fez o possível por dominar os tremores que a combinação do vento frio e da água que o encharcava lhe produziam.

Não tardou a chover torrencialmente. Tratou de recolher a vela, que os elementos ameaçavam rasgar, procurou meio coco vazio e começou a vazar a água que se acumulava à sua volta. Os minutos imediatos foram de uma actividade esgotante, enquanto a canoa cavalgava as cristas das ondas, por entre o vento sibilante.

Os trovões e relâmpagos não tardaram a surgir e o oceano ficava por momentos iluminado como em pleno dia. Uma vaga apoderou-se do mastro como uma mão e incutiu-lhe uma inclinação quase inverosímil, enquanto Stone transferia o peso do corpo para o flutuador. Depois, registou-se um pouco de equilíbrio, e ele reatou a operação destinada não a esvaziar, mas pelo menos a reduzir a quantidade de água na pequena embarcação.

De súbito, compreendeu como o velho procedera para ter resistido à longa permanência no oceano, que decerto embravecera por mais de uma vez durante o longo trajecto. Não combatera o mar. Pelo contrário, aliara-se-lhe. Baixara o mastro para evitar o vento e submergira a canoa para a proteger das vagas.

Mais fácil de imaginar do que de pôr em prática, quando todos os instintos indicavam que flutuar equivalia a sobreviver. Stone reflectiu por breves instantes, ponderou as escassas opções e reconheceu que não lhe restava qualquer alternativa. Com uma sensação não muito diferente da de repulsa, parou de despejar água no mar, certificou-se de que os alimentos e apetrechos se achavam bem atados e passou a inverter a manobra que até então efectuara, como que alucinadamente empenhado em encher o convés. Quando irrompeu uma possante vaga da escuridão, arrastou a embarcação e impeliu Stone mais uma vez para a água.

De repente, encontrou-se só no oceano. Naquele momento, todos os pensamentos sobre Ronnie, Sarah e o Dálias Belle foram varridos do seu espírito. O Pacífico tinha quilómetros de profundidade e achava-se infestado de tubarões. E o cabo a que se encontrava preso quebrara-se, o que o deixara verdadeiramente à deriva.

Algo lhe roçou a mão. O medo indicou-lhe que o repelisse, enquanto o instinto de sobrevivência recomendava que o agarrasse.

Rodeou-o firmemente com os dedos e descobriu que era uma gaxeta da canoa, à qual se mantinha presa uma das extremidades da corda. Atou-a em torno da cintura e puxou-se para a coberta parcialmente submersa, esforçando-se por conservar o queixo acima da superfície.

Acordou a tremer de frio, surpreendido por ter conseguido dormir. Entretanto, o vento mudara. E abrandara. Porém, mais importante que tudo, soprava firmemente de uma única direcção. E, a avaliar pelo aspecto uniforme da ondulação, havia algum tempo que tal acontecia.

E já não era tão escuro, pois ele conseguia ver a rebentação das cristas. Acima da sua cabeça, uma estrela ocasional cintilava vagamente através das nuvens agora transparentes.

Acudiu-lhe o primeiro vislumbre de esperança. As tempestades de Dezembro no Oeste do Pacífico equatorial costumavam ser de breve duração, e os ventos alísios não tardavam a restabelecer a ordem nos mares. Na esteira da esperança, surgiu a voz da razão, que tornou a perda da bússola menos catastrófica. A carta nocturna das estrelas no céu ajudá-lo-ia a navegar. Já se achavam visíveis três que decerto constituíam o cinturão de Orion na sua trajectória para ocidente. Depois, o Cruzeiro do Sul pairou no horizonte. Um pouco mais tarde, surgiu Vera, que se erguia a norte e apontava o caminho para Angaur.

Stone abandonou a coberta, mergulhou até à cintura na água cálida e começou a esvaziar a canoa, até que, por volta das três horas da madrugada, esta flutuou normalmente. Às quatro, encontrava-se em condições de o admitir a bordo. Ele endireitou o mastro e içou a vela. Agora, o céu aclarara o suficiente para que visse a Ursa Maior a apontar para a Estrela Polar.

Receando ter sido desviado demasiado para ocidente pela tempestade, rumou a oriente. Comeu um pouco de fruta-pão ensopada e dormitou, para acordar com o sol a incidir-lhe nos olhos. O céu apresentava-se limpo, excepto num pequeno sector a ocidente, onde ainda havia resíduos da tempestade. Levantou-se, enregelado até à medula, congratulando-se com o calor dos raios solares, e estudou o firmamento. A parte aquela área, havia apenas vestígios de nuvens.

Rodou lentamente sobre si próprio, esperançado em avistar um navio, algo em movimento ao longe, a que se pudesse dirigir através do rádio de VHF. Julgou detectar algo de indefinido a leste, pelo que se apressou a trepar ao mastro.

Sim, tratava-se de uma espécie de mancha imprecisa, mas não de um navio, como se viu forçado a admitir. Talvez uma vela. Mas não. Afinal, era terra e nada menos que os atóis de Pulo Helena, de onde partira na noite anterior.

 

- Para onde estás a olhar, mamã?

- Vê se dormes, querida. A mamã está a pensar.

- Em quê?

Sarah avistara uma jangada na coberta da ré, muito abaixo da escotilha de onde assistia ao nascer do novo dia, enquanto a sua mente analisava as possiblidades. Parecia o escaler típico para abandonar um navio numa emergência, feito de fibra de vidro branca, com cerca de um metro e vinte de comprimento e sessenta centímetros de diâmetro, previsto para se abrir automaticamente quando lançado à água. A jangada fora prevista para conter quatro homens, sob uma canópia alaranjada reflectora de radar. Se ela e Ronnie conseguissem descer à coberta principal, poderiam lançá-la por cima da elevada amurada e atirar-se em seguida?

De uma altura de vinte metros? De bordo de um navio que se deslocava a vinte e dois nós? Dispunham ambas de excelente condição física e eram óptimas nadadoras. Mas e se fossem separadas? Ou o impacte as fizesse perder os sentidos? Ou a água deslocada pelo navio as sugasse para o fundo?

Podiam saltar da ré. Apoderar-se de coletes salva-vidas. Sarah trataria de os atar um ao outro. Não haveria o perigo de se ferirem, se as cabeças colidissem?

Mas, depois de se acharem em segurança na jangada, que fariam?

Seguir à deriva. Rezar para que o desaparecimento delas não fosse notado imediatamente. Acalentar a esperança de que as recolhessem noutro navio.

Sarah voltou para a cama e puxou Ronnie para o seu lado.

A fuga seria demasiado arriscada. Só em último recurso. Uma esperança que não se devia esquecer por completo. Primeiro, convinha tentar pedir auxílio pelo rádio.

Ela traçara mentalmente cinco caminhos possíveis para chegar à cabina de transmissões: o elevador central do navio, a escada central, a escada privada proveniente do camarote do comandante, a que comunicava com a suíte do proprietário e uma passagem estreita à ré, que conduzia à escada ascendente no exterior da casa de seis pisos.

Mas quem se encontraria no topo dessa escada, admitindo que conseguiriam subi-la sem ser vistas? Nas dependências em que lhes fora permitido entrar, havia espaços de onde haviam sido retirados telefones via satélite. E o assíduo criado chinês, sempre disposto a servir-lhe chá e Coca-Colas a Ronnie, conservava os olhos bem abertos.

- Mamã...

- Dorme.

Sarah recordava-se do pai - um homem enorme, de aspecto possante, negro como o carvão, tão britânico como a Universidade de Eton e Sandhurst podiam tornar um africano, Josiah Soditan fora sargento-ajudante na Royal West African Frontier Force antes da independência e mais tarde brigadeiro. Uma ocasião dissera-lhe que, durante a guerra, as mulheres eram «excelentes escuteiras».

E olhara para a sua amante, concedendo-lhe a mesma honra. Ela fumava irritavelmente, ansiava por que Sarah lhes agradecesse o jantar e regressasse a casa.

- Os seus homens são caçadores naturais. Entram a matar. As mulheres preferem colocar-se na defensiva: vêem tudo, tanto as ameaças como as oportunidades.

Chupando o havano, observara-a por cima do cálice de brande, à espera de uma resposta. Sarah lembrava-se de lhe devolver o olhar como uma tímida gazela, sem saber com exactidão o que ele esperava em troca do aparente cumprimento ao seu sexo.

- É claro que não se trata da opinião generalizada na tropa - acrescentou ele, em tom confidencial. - Aqui para nós, as mulheres são tão competentes como os homens nos jogos para matar.

- Obrigada, pai - respondeu ela, com ironia apenas parcial, porque todos os elogios dele eram preciosos devido à sua raridade.

- Não estou a incluir-te, claro! Tu és médica. O ponto que pretendo focar é que vocês observam melhor aquilo que as rodeia. Dão, de facto, excelentes escuteiras.

- Sim, pai - murmurou.

Ronnie moveu-se e soergueu-se para poder fazer girar as hélices dos modelos de aviões da Segunda Guerra Mundial suspensos do tecto. Havia dezenas deles, que oscilavam com o movimento veloz do navio, e a garota sabia os nomes de todos. Filha do Pacífico, debruçara-se numerosas vezes sobre as descrições de batalhas de cinquenta anos atrás.

A alvorada começava a iluminar o camarote através das cortinas, e Sarah observava a filha através das pálpebras semi-cerradas. Tinha a idade dela quando eclodira a guerra civil nigeriana, e o pai enviara-a e à mãe para Inglaterra, onde esta morrera com uma pneumonia e Sarah fora internada na escola de um convento.

Ronnie parecia mais madura do que ela fora em alguns aspectos, mais à vontade em companhia de adultos, mas noutros aspectos era muito juvenil, muito menos sofisticada do que os filhos de turistas americanos e japoneses que encontravam ocasionalmente. Durante a guerra civil, Sarah vira o pai matar com a espada dois homens que tinham atacado a mãe. Sentia-se revoltada por a filha ter de suportar aquele cativeiro, o veleiro que constituía o seu lar arrancado da água, o pai desterrado num atol deserto e o terror de não saber o que lhes fariam a seguir. Necessitava de dominar a fúria. Temia-a tanto como aos homens que as retinham, pois tinha de se deslocar ao longo de uma linha fina na periferia da violência.

- Tenho estado a pensar - disse Ronnie, acariciando o ventre de um bombardeiro bimotor. - O papá está bem.

- Com certeza que está.

- Não, a sério, mamã. Tem peixe para comer, além de caranguejos e mexilhão. Cocos para matar a sede, embora isso lhe possa afectar o colesterol.

- Quando recuperarmos, havemos de o pôr a dieta rigorosa.

- Absolutamente. Pode dormir numa fale. Oxalá os mosquitos não o incomodem muito.

- Há poucos em Pulo Helena.

- Aposto que se sente só.

- Bem, o papá nunca sente realmente a solidão.

E era verdade, pois mostrava-se loucamente auto-suficiente, embora nos anos recentes se revelasse cada vez mais dependente de Sarah. A medida que o matrimónio amadurecia e ela se tornava menos a jovem protegida e mais mulher.

- Mas deve ter saudades nossas.

- Ah, isso com certeza.

- E não deixará de estar preocupado.

- Mas sabe que podemos cuidar de nós.

- Eu sei que podemos. No entanto, duvido que ele... O que estará a fazer neste momento, meu Deus! Oxalá ele não se magoe. Sabemos como é desajeitado.

- Deve estar bem - afirmou Sarah, embora no fundo estivesse apreensiva, pois conhecia um Michael Stone que a filha nunca vira.

Ronnie aplicou um impulso a um Zero japonês para que rodopiasse, e ajoelhou-se subitamente ao lado da mãe.

- Mamã, achas que ele tentará reparar?...

Sarah cobriu-lhe a boca com a mão e murmurou:

- Cuidado, que eles podem estar à escuta.

- Filhos da mãe...

- Não tolero expressões dessas.

- O papá emprega-as.

- É muito raro.

- Mamã... - A garota baixou a voz até a tornar quase inaudível. - Não estás mesmo nada preocupada?

- Connosco? - Sarah e o marido sempre tinham sido sinceros com Ronnie, mas ela devia censurar todos os temores. - Eles deixam-nos partir assim que o velho melhorar.

Mr. Jack, como chamavam ao ancião, jazia na cama junto das delas, unido ao respirador que a tripulação do navio fora buscar ao Verónica. A sua respiração ainda permanecia fortemente deprimida e a tensão arterial tão baixa que se encontrava, como Michael diria, dois graus a norte da morte.

- Quem te parece que o atingiu, mamã?

- Não faço a mais remota ideia.

- Mas o que estão eles a fazer? É tudo muito estranho. Porque não o levam para um hospital?

- Porque nos têm a nós.

- Não somos um hospital. Apenas uma clínica, quanto muito.

- Sim, tenho de os convencer disso - reconheceu Sarah, com uma expressão sombria. Em seguida, vendo que a filha ficava algo impressionada com as suas palavras, censurou-se intimamente e exibiu um largo sorriso. - Escuta à porta. Tenho de averiguar onde estamos.

Elas tinham um grande segredo: o SPG de Ronnie escondido na mochila de Snoopy. Utilizá-lo tornava a situação um pouco menos asssustadora. Movendo-se em torno do camarote e levando o indicador aos lábios, escutaram à porta com o estetoscópio de Sarah, após o que se certificaram de que o ancião continuava a dormir e abriram uma escotilha.

Ronnie debruçou-se sobre o estetoscópio, enquanto a mãe ligava o SPG e o mantinha no exterior durante os momentos necessários para contactar com os satélites.

Sarah experimentou uma sensação de desolação quando leu a distância a que se encontravam do ponto de referência de Pulo Helena. O navio deslocava-se agora a vinte e três nós, mais de quatrocentas milhas em dezoito horas desde que tinham deixado Michael para trás.

- Vem aí gente! - anunciou Ronnie.

Apressou-se a guardar o SPG na mochila, que colocou na cadeira onde estava antes e fechou a escotilha no momento em que soava uma leve pancada na porta. Sarah trocou um olhar de inteligência com a filha e inclinou a cabeça, pelo que esta foi abrir. Era apenas Ah Lee. O criado chinês, com chá, sumo de laranja e o pequeno-almoço num tabuleiro.

- Bom dia, senhoras.

- Bom dia, Ah Lee.

Ele pôs a mesa como um funcionário do serviço de quartos no Hotel Península.

Era muito jovem, pouco mais do que um rapaz, apenas ligeiramente mais alto do que Ronnie, que se sentia fascinada por ele. Apesar de quase não terem qualquer linguagem em comum, à parte de «bom dia», «chá» e «Coca-Cola», ela inteirara-se de que era de Xangai, não tinha irmãos nem irmãs e economizava dinheiro para um dia abrir um café para turistas. Agora, porém, retirou-se apressadamente, após uma olhadela apreensiva ao ferido.

- Não tenho vontade de comer - disse Ronnie.

- Finjamos que se aproxima uma tempestade - indicou a mãe, com firmeza. - É melhor comer, enquanto o podemos fazer.

Sentaram-se frente a frente na pequena mesa. O aroma fresco da maresia, que entrava pelo ar condicionado, sabão e verniz dos móveis, os raios solares reflectidos no tecto e a presença distante dos motores muitos pisos abaixo quase a induziam a crer que viajavam num navio de cruzeiros de luxo.

De repente, viu as reflexões interrompidas por uma pancada seca na porta.

- Quando dispuser de um minuto, doutora...

- Estamos ocupadas - grunhiu Ronnie. - Volte amanhã.

- Não os provoques.

Sarah colocou o estetoscópio em torno do pescoço, a fim de assumir uma atitude profissional, pegou na mão da filha e entraram no incongruentemente luxuoso salão principal da suíte do dono do Dálias Belle, que proporcionava uma vista espectacular da esteira do navio.

Reparou imediatamente que a bússola na bitácula metálica indicava os mesmos 330 graus NNW das últimas dezoito horas, após o que concentrou a atenção nos dois homens de calças de ganga e camisas de trabalho de caqui, que haviam assumido o poder de vida e de morte sobre ela e Ronnie.

O comandante do Dálias Belle era um texano de compleição física impressionante, que aparentava pouco mais de trinta anos. Embora quando falara pela rádio empregasse um inflexão arrastada, própria de uma pessoa despreocupada, movia-se agora com ar autoritário e enérgico, como se fosse dono do navio, senão de todas as pessoas a bordo.

No entanto, esse poder pertencia realmente ao negro de estatura elevada, Moss.

- Quando tenciona extrair a bala? - perguntou este último.

- Preferia não o fazer.

- Estou-me nas tintas para as suas preferências - retorquiu,   imitando jocosamente o sotaque britânico de Sarah.

- Receio que tenha visto demasiados filmes na televisão, Mister Moss. A bala é o mais pequeno dos problemas de Mister Jack. Ele precisa muito mais dos cuidados de um hospital.

- Dispomos do seu hospital, doutora.

- Considere-o uma ambulância. E minimamente equipada. Ele necessita de um respirador. O nosso é antiquado e velho e pode deixar de funcionar a todo o momento.

- O chefe dos maquinistas pode repará-lo. Sarah ignorou a interrupção.

- Mister Jack tem setenta e oito anos. Se não conseguir encher os pulmões devidamente, contrairá uma pneumonia e morrerá, a menos, claro, que sucumba primeiro à morfina que lhe administraram.

- Mas a doutora afirmou que estava a cuidar disso.

- Não reage ao Narcan como eu desejaria. Em todo o caso, vai recuperando o conhecimento.

- Portanto, quando acordar respirará normalmente.

- Não só tem a respiração deprimida pelo narcótico, como, quando os seus efeitos se dissiparem, vai enfrentar as dores do ferimento da bala e da perícia cirúrgica do vosso moço de messe cada vez que tentar respirar.

- Então, pode extrair a bala.

- Não. Ele não pode suportar mais complicações fora do hospital. Se tivesse sido baleado um homem mais jovem, eu não hesitaria em operar...

- Sem anestesia - murmurou Ronnie.

Sarah beliscou-a com tanta intensidade que a garota quase sentiu as unhas a contactar com o osso.

A boca de Moss formou um sorriso glacial.

- Talvez queiras ver-me cuidar da tua mãe sem anestesia. Ronnie baixou os olhos para a carpete, enquanto Sarah procurava dissimular a apreensão crescente. Moss parecia ressentido com o abismo de classes entre eles, como se ela tivesse traído a herança africana comum não sofrendo a pobreza.

- Devo dizer, Mister Moss, que entre as muitas coisas que não compreendo em tudo isto é o motivo pelo qual o senhor, que parece sinceramente dedicado a Mister Jack, está disposto a arriscar-lhe a vida não o conduzindo a um hospital. Decerto conceberia uma história plausível qualquer para explicar a razão do tiro. Pode dizer, por exemplo, que foram abordados por piratas indonésios ou que a sua arma se disparou quando a limpava. Ninguém duvidará da palavra do comandante de um navio e do seu proprietário. Como médica, devo insistir...

Ele cruzou o espaço que os separava, segurou-lhe o braço e olhou-a com intensidade, enquanto o comandante tentava intervir.

- Deixe-se disso, Moss. Não merece a pena...

No entanto, o negro ignorou-o.

- Devo muitos favores àquele homem. Se ele morrer, a doutora também. Assim como a sua filha.

Com estas palavras, largou-a bruscamente e encaminhou-se para a porta.

Os lábios de Ronnie começaram a tremer e Sarah abraçou-a com firmeza.

- Não há novidade, querida. A mamã está bem.

- É o seguinte - disse o comandante, tentando sorrir. - Quanto mais depressa a tua mãe curar Mister Jack, mais cedo poderão voltar para junto do teu pai.

- A minha filha e eu estamos sob a sua protecção, comandante?

O interpelado mostrou-se embaraçado, o que não surpreendeu Sarah, a qual acrescentou:

- Qual é o papel do Moss a bordo?

- Bem, cuida de Mister Jack.

- É o seu guarda-costas?

- Entre outras coisas.

- Gosta de impor a sua autoridade, hem?

- No seu lugar, eu evitaria provocá-lo.

- O senhor não tem o menor controlo sobre ele?

- Só tem de prestar contas a Mister Jack. Com ele, porta-se como um autêntico cordeiro. Portanto, doutora, se entendeu bem as minhas palavras, reconhecerá que o mais conveniente para todos é cuidar do nosso doente o mais eficaz e rapidamente possível.

- Tudo isto é insensato, comandante. Dentro de dia e meio, vocês estarão ao alcance de Manila por helicóptero. E se não confiam nos hospitais filipinos, encontram-se apenas a mil e oitocentas milhas de Hong Kong. Três dias para a possível evacuação por helicóptero. Ou, dentro de quatro, podem deixar Mister Jack em Tóquio, embora eu recomende antes Manila, pois quanto mais depressa for internado melhor.

Entretanto, ele exibia uma expressão apreensiva. Por um momento, desviou os olhos para a bitácula e voltou a fixá-los em Sarah, a qual comprendeu, demasiado tarde, que revelara irreflectidamente que sabia de mais.

- Tenho sido marinheira durante muitos anos, comandante. Não é preciso ter conhecimentos geniais para estar consciente da nossa posição.

- Como sabe a nossa velocidade? - perguntou ele, friamente.

- Este navio é um transporte de gás. Ora, todos os dessa natureza são velozes. - Ela indicou, com um movimento de cabeça, a esteira produzida no oceano. - Calculo-a em cerca de vinte e dois nós.

- Mais ou menos. Tem a vista muito apurada, doutora.

- Deixe-nos partir. Já me afastou do meu marido a distância correspondente a mais de uma semana de navegação por veleiro. Leve Mister Jack para Manila.

- Lamento, mas não pode ser.

- O Moss é um imbecil. A bala não significa nada. Neutralizei a dose excessiva de morfina. Agora, Mister Jack necessita de cuidados hospitalares. Não posso fazer mais nada. Deixe-nos partir.

- E impossível - persistiu o comandante. - A senhora é a única pessoa com conhecimentos médicos de que ele dispõe.

- Nesse caso, quando nos libertarão?

- No momento em que ele estiver a pé a dar ordens.

De súbito, começou a soar o alarme de incêndio, e o apito do navio sacudiu a coberta com uma série de toques breves que fizeram vibrar os copos do bar a um canto.

- Santo Deus! - bradou o comandante.

Acto contínuo, precipitou-se para a escada, ao mesmo tempo que puxava o rádio do bolso de trás das calças. Em seguida, a porta no topo fechou-se com um suspiro pneumático.

- Que aconteceu? - perguntou Ronnie.

- Há qualquer problema, mas não sei de que se trata. Os ruídos aumentaram de intensidade, ao mesmo tempo que o som intermitente do apito persistia. Era óbvio que corriam todos para a popa. No entanto, não havia nada a arder no convés desse lado ou a flutuar na esteira. As escotilhas laterais mostravam o Pacífico deserto, o caos da tempestade da véspera varrido pela ondulação provocada pelos ventos alísios.

- Verónica. - Sarah ajoelhou-se diante da filha e segurou-lhe o rosto firmemente entre as mãos. - Quero que entres e fiques sentada ao lado de Mister Jack.

- E tu?

- Faz o que te digo. Fica junto dele até eu voltar. Ronnie volveu os olhos para a escada e depois para a porta.

- E se o Ah Lee aparecer?

- Dizes-lhe que a tua mãe foi à casa de banho e quer que ele traga chá acabado de fazer.

- E se for o Moss?

- Esse não vem. Está a contas com uma emergência.

- Quero ir contigo.

- És a minha vigilante. Para poder ter acesso a um telefone de satélite, deves proteger-me a retaguarda. - Vendo a garota assumir uma expressão aterrorizada, Sarah apressou-se a acrescentar: - Lembra-te do que o papá costuma dizer nos ensaios de salvação numa jangada. O que é?

Despontou um pequeno sorriso nos lábios de Ronnie:

- Sejamos britânicos!

«Sejamos britânicos» fora supostamente a derradeira ordem do comandante do Titanic à tripulação, e a maneira como Mi-chael a proferia costumava ser apropriada para convulsões, sobretudo quando acompanhada de uma saudação solene.

- Mas nada de risadas! De contrário, ouvem-nos ser britânicas!

Sarah acompanhou a filha ao camarote de Mr. Jack, onde verificou que este mudara ligeiramente de posição, com os dedos a contraírem-se, enquanto o Narcan exercia os seus efeitos. Na verdade, podia acordar a qualquer momento.

- Tem cuidado, mamã.

- Não te preocupes. Terei muito.

Ela beijou Ronnie, fechou a porta atrás de si e subiu a escada, com o coração a palpitar aceleradamente. O apito grave e intenso sacudia os degraus. Os alarmes de incêndio alteraram-se. A cacofonia de sons tornava o raciocínio impossível. No entanto, proporcionava-lhe a estranha sensação de ser quase invisível.

Baseada no que recordava das visitas a vários navios ao longo dos anos, deduziu que aquela escada não terminava na ponte directamente, mas um pouco atrás, pois a luz de uma entrada ofuscaria a vigilância durante a noite. No patamar, entreabriu a pesada porta uma nesga, espreitou cautelosamente e avistou, com alívio, uma espécie de combinação de vestíbulo e corredor, que servia as escadas do comandante e do dono do navio, assim como a principal que se erguia a toda a altura da casa, e o elevador.

À direita, havia uma porta aberta de acesso a uma ampla sala de computadores, com várias máquinas e prateleiras de peças electrónicas. À esquerda, situava-se a sala das cartas, onde ela entrou. A popa, avistou a sala de transmissões e, mais adiante uma entrada com uma cortina. Afastou um pouco esta última e espreitou.

Conseguiu ver cerca de metade da ponte, incluindo o leme, firme em poder do piloto automático, e, para além das janelas da frente, o comandante, de olhos arregalados para uma fina coluna de gás que se escapava de uma válvula na coberta da proa.

De repente, ele deu meia volta e disparou ordens que Sarah não conseguiu ouvir, devido ao ruído geral. Tinha o rosto tenso numa expressão que combinava comando e apreensão. Os sopros graves do apito interromperam-se bruscamente.

Um oficial surgiu no campo visual dela e accionou um interruptor numa consola de comando que desligou o alarme de incêndio. No silêncio que se estabeleceu, Sarah ouviu o comandante bradar:

- Venham à coberta e ajudem-nos!

Ela retrocedeu para a sala de transmissões e escondeu-se atrás de um anteparo, no instante em que o telegrafista surgiu por entre a cortina e desceu a escada a correr. Sarah não teve dificuldade em localizar um telefone de satélite e pousou os olhos no interruptor de Mayday1 automático de banda única. Mas um pedido de socorro poderia ser explicado como um mero engano muito antes de qualquer elemento de salvação surgir no horizonte, e ela veria certamente atribuírem-lhe a culpa.

Voltou para trás e atravessou a sala das cartas, enquanto parecia que o navio começava a abrandar a velocidade. Entretanto, o comandante bradava para o seu walkie-talkie:

- Vão buscar alguns cobertores e embebam-nos bem em água!... Para onde vão aqueles tipos? Mandem os filhos da mãe voltar para trás! Aguentem, que eu vou já aí abaixo. Aquele que for apanhado fora do seu posto, sofrerá as consequências!

Sarah voltou à sala de transmissões e ocultou-se, quando ouviu o comandante correr pela escada abaixo. Ainda antes de os seus passos e imprecações se extinguirem, ela puxou da algibeira de um pedaço de papel no qual anotara um número das ilhas Palau e marcou-o no telefone de satélite. Mantendo o aparelho colado ao ouvido enquanto aguardava a ligação, transpôs a cortina e emergiu na ponte deserta.

A semelhança da sala de computadores e material electrónico elaborado e a luxuosa suíte do proprietário, a ponte parecia pertencer a um navio muito mais sofisticado e de técnica mais avançada que o Dálias Belle.

O equipamento de navegação, repetidores de radar, monitores e comandos das máquinas recordaram-lhe uma fragata de mísseis australiana a bordo da qual ela e o marido haviam

 

1 Deturpação no idioma inglês da expressão francesa «m'aider!», utilizada para pedir socorro pela rádio. (n. do T.)

 

almoçado com o respectivo comandante, irmão de Kerry McGlynn. Este, porém, era ainda mais moderno, a última palavra da tecnologia, pois o Dálias Belle figurava na categoria dos navios de CPI - comando da ponte individual.

O indício elucidativo consistia numa pequena cabina de comando circundada por paredes de vidro, elevada para melhor visibilidade, e um posto de computador diante do leme. O CPI constituía uma experiência que reduzia os custos e permitia que um único oficial vigiasse as operações, enquanto o navio de cinquenta mil toneladas se deslocava a toda a velocidade, dia e noite, com bom tempo ou sob uma intensa tempestade.

No leme, o monitor de setenta e cinco centímetros indicava o rumo, velocidade, posição, estado do tempo e condições do mar. O Dálias Belle achava-se representado por um ícone de um navio que singrava num pálido mar azul-eléctrico. Se algum vírus atingisse todos os seres vivos a bordo, o transporte de gás automatizado navegaria eternamente segundo uma rota que mãos mortas haviam introduzido no computador.

Assim que se inteirara da existência do CPI, Michael começara a imaginar maneiras de substituir o alarme de colisão de fabrico caseiro do Verónica por um radar de vigilância moderno.

O telefone produziu um estalido, calou-se e depois emitiu o zumbido característico de linha aberta.

Sarah voltou a marcar o número e aproximou-se de um dos lados da ponte para que os homens que se encontravam vinte metros abaixo não a vissem. O veleiro capturado estava amarrado a uma cesta de salvamento directamente em frente da casa.

Duzentos metros adiante do iate, alguns marinheiros lançavam espuma na coberta, enquanto dois outros com máscaras antigas e fatos de borracha lutavam com a válvula avariada. Os restantes membros da tripulação - meia dúzia de homens, entre os quais o criado chinês - observavam receosamente a alguma distância, ignorando os gritos do contramestre.

O mar, como sempre, encontrava-se deserto.

Directamente abaixo dela, viu o comandante e Moss irromper da casa, carregados de cobertores. Em seguida, subiram para um passadiço e começaram a correr, largando-os na coberta perto da fuga de gás.

Um dos cobertores foi colocado sobre a válvula e, ante assombro de Sarah, solidificou instantaneamente, como uma lupa metálica. O jacto de gás soprou-o a grande altura e fê-lo voar como uma ave de metal. No entanto, ela compreendeu imediatamente que o gás para ser comprimido até passar ao estado líquido, tinha de ser superarrefecido, muitos graus abaixo de zero.

Moss e o comandante conferenciaram por um momento, precipitaram-se através da espuma e depositaram cobertores na base da fuga de gás, enquanto o contramestre acudia com um mangueira e os embebia.

O gás superarrefecido congelava os cobertores e a água da mangueira. A coluna que brotava da válvula oscilou, curvou-Se sobre si própria como um ponto de interrogação e dissipou-se A válvula não tardou a ficar encerrada num bloco de gelo

Moss e o comandante felicitaram-se mutuamente e encaminharam-se para a casa, no momento em que o telefone estabelecia a ligação para a linha que Sarah marcara. Um toque. Dois. Três. Ao quarto, uma máquina atendedora ofereceu-se para registar uma mensagem.

 

A ondulação fazia oscilar a canoa. O sol evaporara a neblina matinal e a atmosfera apresentava-se cristalina. As copas de três palmeiras no horizonte eram indiscutivelmente de Pulo Helena. Stone amaldiçoou as milhas perdidas e o tempo que desperdiçara.

Que distância teria percorrido o Dálias Belle em dezoito horas? Os transportes de gás eram muito mais velozes do que a maioria dos cargueiros. Uma velocidade de serviço de vinte nós? Vinte e dois? Conjurou a carta na mente e traçou nela um trajecto de trezentas e sessenta milhas. Se o navio continuasse a rumar ao Norte, já devia ter deixado as ilhas Palaus para trás, com Angaur, objectivo de Michael, uma centena de milhas na sua esteira.

Então, rapaz! Em que pé estamos?

Praticamente no ponto de partida, com certeza.

Não adianta chorar sobre o leite derramado.

Voltou as costas aos atóis e tornou a rumar a norte.

Porém, quando lançou uma casca de coco à água para calcular a velocidade, o livro de bordo do holandês confirmou que a canoa era um porco a singrar contra o vento. Por cada milha que avançava para norte, deslizava uma distância igual para oeste. Teria muita sorte se conseguisse progredir vinte por dia.

Construída para navegar à frente dos ventos alísios, a embarcação oferecia demasiada vela para se deslocar com maior eficiência. O vento não parava de desviar a proa do rumo.

Stone decidiu desmontar a enxárcia e construí-la de novo, servindo-se do Swan como modelo. Derrubou o mastro, removeu a vela de saca de arroz do botaló e cortou um longo triângulo com a tesoura cirúrgica.

O resultado das diversas operações a que se dedicou pareceu-lhe razoavelmente satisfatório. Agora, com o novo mastro ( respectiva vela menos exposta a desvios, embora não totalmente livre deles, a canoa passou a progredir num rumo mais definido. Quando procedeu a nova determinação da velocidade, verificou que consistia em quatro nós. Cerca de uma centena de milhas por dia.

O Sol tropical aproximava-se do zénite e enviava para baixo uma luz brutal que lhe queimava a pele e ofuscava a vista. Procurou entre os vários objectos que restavam e improvisou uma protecção dos raios solares. Depois, bebeu de um coco e Comeu algum peixe salgado que o ancião armazenara entre folhas de fruta-pão.

Tornou a comer e beber antes de anoitecer. Uma onda que não conseguiu ver derrubou o leme primitivo que confeccionara, o que fez a embarcação mudar de rumo. No instante imediato, o vento encheu a vela do lado oposto e ele agachou-se com prontidão, antes que fosse atingido.

A canoa parecia mais pequena e vulnerável na escuridão claustrofóbica. Mas, à medida que as trevas se intensificavam, a Via Láctea tornava-se mais nítida, até que iluminou o oceano com o luar. Quando conseguiu ver os contornos da vela e o brilho da crista das ondas, Stone sentiu a esperança renascer. Se conseguisse fazer uma média de três nós para norte, cobriria setenta milhas por dia e alcançaria Angaur dentro de três.

A esperança ou, pelo menos, a atenuação do desespero, abriu-lhe a mente a avenidas mais sombrias que ainda não explorara: a horrível oportunidade de ponderar a razão pela qual eles tinham levado Sarah e Ronnie. Se receassem meramente a perseguição, a acção da rádio, bastaria que rebocassem o Verónica ou o afundassem. Ora, em vez disso, haviam-se dado ao trabalho de o içar para bordo e depositá-lo numa cesta de salvamento. No entanto, não se tratava de uma embarcação qualquer. Era um hospital móvel, com sala de operações e tudo, de longe superior ao dispensário de um navio mercante. O homem morto teria atingido alguém impossibilitado de ser transportado a um verdadeiro hospital?

Se o seu raciocínio correspondia à realidade, Sarah não corria perigo. E, por conseguinte, Ronnie tão-pouco. A sua segurança manter-se-ia, enquanto se ocupasse do paciente. Enquanto ele vivesse.

Uma frágil esperança que lhe permitiu descansar. Passou pelo sono em fragmentos de cinco minutos. De súbito, foi acordado pelo vento frio, que aumentava de intensidade. Contudo, enquanto se endireitava, estremunhado, para corrigir o rumo mantido pelo leme improvisado, uma explicação inconcebível sacudiu-o até à medula.

Tê-lo-ia ela abandonado? Dar-se-ia o caso de Sarah ter levado Ronnie para estabelecer um acordo com o comandante do navio para aumentar a velocidade e levá-las? Admitia que se tratava de uma ideia alucinada, mas não podia esquecer que ela dissera que queria voltar para casa.

«Deixa-te de imbecilidades», reflectiu. «Lembra-te do homem morto.»

Todavia, não lograva afastar do pensamento o interesse crescente de Sarah pelas mudanças que ocorriam em África e a obsessão pelos estudos da filha. Não havia uma única nação no mundo fustigado por guerras, doenças e fome que não suplicasse a presença de médicos. Ela acusara-o de se ocultar da vida. De ser um fugitivo nato.

Loucuras... Começou a verificar a vela para se certificar da resistência a uma eventual tempestade. Não podia esquecer o homem morto. Com três balas nas costas. Isso sim, era real. Real, porém tão inexplicável como o céu, agora branco de estrelas.

Todos os seus guias ocupavam os respectivos lugares: Orion e Betelgeuse, a Ursa Maior, o Cruzeiro do Sul, Altair, a Estrela Polar... Ele planeava seguir para norte até à latitude de Angaur e depois para oeste, na direcção do vento, até cortar à esquerda. A parte mais difícil era saber quando deveria cortar à esquerda.

Angaur situava-se sete graus a norte do equador, normalmente algures na vizinhança dos três graus norte. Cada grau eram sessenta milhas. Cerca de duzentas separavam-no da latitude de Angaur. Mas tornava-se impossível determiná-las com exactidão, pelo que havia necessidade de encontrar um sinal de referência no zénite de uma estrela cujo ponto mais elevado correspondesse àquela latitude. Uma estrela fanakenga, como lhe chamavam os navegadores do Pacífico, quando, no seu zénite, apontava directamente para baixo, para o seu alvo.

O velho que naufragara com a canoa provavelmente memorizara os zénites de uma centena de estrelas e ilhas correspondentes. Stone sabia algumas de cor: Altair a nove graus norte prometia Kwajalein, nas Marshall, e Yap, nas Carolinas Ocidentais; o ponto elevado de Hamal, em Aries, o Carneiro, situava-se perto da latitude de Hong Kong.

E havia Betelgeuse, avermelhada e intensa. Ele avistava-a agora a nordeste do cinturão de Orion - uma das primeiras que ensinara Sarah a identificar e sob cujo clarão tinham «namorado», muitos anos atrás, ao largo da costa africana. Graças a alguma dádiva de Deus ou de Neptuno, o zénite de Betelgeuse quase coincidia com a latitude de Angaur.

Em teoria, Michael podia estabelecer essa latitude quando se encontrasse directamente sob o ponto mais elevado que Bel-tegeuse cruzava no céu nocturno. Quando tentava exercitar-se na observação, o oceano sacudiu a canoa e pareceu impossível determinar o zénite daquela estrela deitado de costas a ver o mastro oscilar como um pêndulo demente.

Ouviu um ruído. Era como um estranho som urbano, similar aos que se registam numa plataforma do metropolitano ou num encontro de basebol, tão diferente dos suaves sons das ondas e do vento que julgou que se tratava de um produto da sua imaginação. Um som fanhoso, como o produzido por um japonês a gritar num altifalante.

Soergueu-se, intrigado. Aproximava-se um barco iluminado a menos de um quarto de milha à sua direita. Um arrastão. Deslocava-se rapidamente, com marinheiros atarefados sob luzes de trabalho intensas.

Stone extraiu o rádio do saco e bradou:

- Mayday! Mayday! Mayday!

Não obteve resposta. Levou as mãos em forma de concha à boca e gritou. O vento apoderou-se da voz prontamente, sem melhor resultado. Abriu a mochila, puxou da lanterna-lapiseira, acendeu-a e agitou-a no espaço.

Como a situação não se alterava, mudou a posição da vela, a fim de modificar o rumo e cruzar-se com o arrastão.

- Socorro! - gritou repetidamente.

Todavia os tripulantes continuavam concentrados no trabalho. O barco passou suficientemente perto para ele ouvir as máquinas. De súbito, uma rajada de vento inesperada fez a vela descrever um semicírculo.

Antes que tivesse tempo de se esquivar, o botaló atingiu-o numa das têmporas.

Tombou de bruços, aturdido. Tornou a gritar a pedir auxílio. Pelo menos, a intenção era essa, pois apenas conseguiu emitir um murmúrio. A última coisa que viu antes de perder os sentidos foi as luzes da popa do arrastão, que se afastavam rapidamente.

 

No sonho de Stone, as luzes do arrastão misturavam-se com as estrelas que via do Verónica, nas noites em que fazia amor com Sarah, deitados nas almofadas da cabina principal. Agora, sacudiu a cabeça, sem a noção exacta de onde se encontrava, e avistou as luzes do barco cada vez mais distantes.

Tornou a fechar os olhos por alguns minutos e quando se soergueu de novo o oceano achava-se deserto, mas Sarah voltava a estar a seu lado.

- Adormeceste.

- Não é verdade. Quem adormeceu foste tu.

- Destruí-te. - Ele soltou uma gargalhada. - Agora, já não se pode remedir...

Ela debruçou-se-lhe em cima e Stone sentiu o coração como que prestes a explodir.

Um navio enorme no horizonte avançava directamente para a canoa. Quando se encontrava mais próximo, ele pôde ler o nome no casco e reconheceu as principais características. Era o Dálias Belle, mas, curiosamente, ao mesmo tempo parecia ter sido convertido numa escuna.

Ele corrigiu o rumo da canoa para a perseguir.

Sarah assomou na amurada e chamou-o, enquanto lhe acenava e sorria. Ronnie dava saltos de alegria a seu lado e acabou por se suspender de uma corda no espaço.

- Podes largar-te, que eu recolho-te! - exclamou Stone.

- Mamã? - A garota volveu a cabeça para Sarah, com uma expressão interrogativa.

- Diz-lhe que se solte! - indicou ele. - E tu também podes saltar.

Sarah subiu à amurada e começou a despir-se, expondo os seios e as pernas longas e esbeltas. Em seguida, preparou-se para mergulhar. Surgiram várias pessoas atrás dela, marinheiros, que lhe agarraram as pernas e a puxaram para a coberta.

Stone pôs-se de pé para subir pela corda e acudir em seu auxílio, mas naquele momento o navio aumentou a velocidade e não tardou a desaparecer no horizonte.

Ele acordou preocupado com a ideia de que era um pai horrível. Afigurava-se-lhe que devia falar mais a sério com Ronnie, em vez de se limitar a brincar com ela e sustentar conversas desprovidas de sentido. Sim, tinha decididamente de passar a proceder de uma forma mais formal.

Entretanto, o Verónica parecia balouçar de um modo pouco vulgar.

Stone tinha a boca seca e sentia uma dor aguda na cabeça. De repente, reconheceu o seu primeiro pensamento racional desde que o botaló o atingira: estava perigosamente desidratado.

Segundo o seu relógio, estivera semiconsciente vinte e quatro horas; ficara a tostar todo o dia ao sol tropical, numa embarcação sacudida pelas ondas, e passara da sede intensa para um estado de letargia surda.

Demasiado ofuscado para extrair algum sentido da posição da vela, tacteou em volta em busca do saco que continha cocos e feriu a mão ao tentar abrir um furo num dos frutos.

Sugou o seu próprio sangue com avidez. Por fim, conseguiu perfurar a casca do coco e absorveu o leite adocicado.

O líquido não era suficiente para a sede que o assolava. Contou quantos cocos restavam e, depois de se certificar de que eram dois, abriu um e ponderou se devia fazer o mesmo ao último. O céu estrelado significava que não choveria nas horas mais próximas. Teria de utilizar os anzóis do ancião e acalentar a esperança de que algum peixe se deixasse capturar.

Resolveu inspeccionar a mochila e, com uma exclamação de triunfo, descobriu uma das saquetas de salino de que se fizera acompanhar. Atou-a ao mastro, aplicou-lhe um tubo e, com a agulha da outra extremidade, procurou uma veia. Errou o alvo, lambeu o sangue, voltou a falhar a tentativa seguinte e tornou a lamber, ao mesmo tempo que amaldiçoava a dor produzida.

Acudiu-lhe a vaga recordação do arrastão japonês, entremeada com imagens alucinadas de Sarah e Ronnie e do Dálias Belle, convertido em escuna. Entretanto, acalentava a esperança de que o traumatismo fosse de escassa gravidade.

Desprendeu a agulha, que deixou cravada no braço, da saqueta de salino e ergueu-se nas pernas débeis para fixar melhor a vela e rectificar o rumo da canoa, enquanto sentia os raios solares intensos incidir-lhe nas costas.

Mastigou uma batata-doce e voltou a deitar-se para permitir que mais líquido se lhe introduzisse nas veias. Encostou o relógio ao ouvido e escutou atentamente. O rápido ping levantou-lhe o ânimo como um segundo coração.

Mas a cabeça ainda lhe doía e uma ténue neblina vermelha persistia diante do olho esquerdo, como uma janela suja. Os sonhos incoerentes persistiam. Sarah nos braços de marinheiros. Ronnie surda às recomendações dele. O Dálias Belle fora do alcance da canoa.

Volveu os olhos para o botaló que quase o matara. Mais uma rajada inesperada, um novo engano, e voltaria a varrer a coberta como uma foice embotada.

Sempre se orgulhara da vida simples que levava a bordo do Swan, com todos os seus bens acondicionados no interior de um casco de menos de vinte metros de comprimento. Mas, em comparação com o velho pescador de quem herdara a canoa, nadava, por assim dizer, em equipamento. Três dispositivos de direcção automática. Um gerador diesel, outro de vento, bombas, motor, gruas, iluminação, material de combate a incêndios.

Um peixe mordeu a linha que ele mergulhara na água. Stone sacudiu a cabeça para melhorar a lucidez e começou a puxá-la devagar. Deparou-se-lhe um pequeno atum que se debatia com vigor, e surpreendeu-se ao ver que conseguia trazê-lo para bordo sem partir a linha. Matou-o com um bisturi cravado no cérebro e cortou algumas postas, que inspeccionou minuciosamente em busca de eventuais parasitas, antes de as tragar cruas.

Determinar a sua posição sem cartas nem instrumentos era como tentar preencher um cheque na montanha-russa de um parque de diversões. Não obstante, precisava de saber exactamente onde se encontrava, antes de rumar a oeste. A decisão foi momentânea - o fulcro de qualquer esperança de recuperar Sarah e Ronnie - porque no instante em que enveredasse nessa direcção não poderia voltar para trás.

Se efectuasse a manobra demasiado cedo - excessivamente para sul - o vento e o rolar das ondas arrastariam a canoa para além de Angaur nas profundezas do mar das Filipinas, onde enfrentaria uma viagem impossível de cerca de quinhentas milhas solitárias até à costa de Mindanau. Se o fizesse demasiado tarde, seria arrastado entre Angaur e o grupo setentrional das ilhas Palaus ou esmagado contra os recifes.

Procurou referências grosseiras, seguindo a trajectória do Sol durante o dia e as estrelas à noite, ao mesmo tempo que estimava o rumo pelo vento e o sentido da ondulação.

A única constante era o zénite da Betelgeuse, se conseguisse vê-la. Na quarta noite - quando o atum apodrecera e Stone ingerira o líquido do último coco e quase esgotara a reserva de taro -, atreveu-se a acalentar a esperança de que a brilhante estrela avermelhada se situasse directamente na vertical. E provavelmente achava-se vários milhares de anos-luz acima do banco de nuvens que surgira ao anoitecer, como o tecto rolante de um estádio próprio para suportar todos os tipos de tempo.

A meia-noite, Deus favoreceu-o com um pálido sorriso. Registou-se uma pequena aberta, e a Betelgeuse brilhou através dela, alaranjada como uma abóbora. Ele, que estava deitado na coberta, observou a nova situação. O pequeno ponto cor de laranja parecia encontrar-se sobre a sua cabeça, mas as nuvens voltaram a unir-se antes que tivesse tempo de se certificar.

Amargurado, receoso de assumir uma atitude irrevogável, fixou o olhar no mar. Havia luz na água. Ergueu os olhos, mas continuava a não existir qualquer estrela para se reflectir. Em seguida, com excitação crescente, compreendeu que o clarão era mais profundo do que meros reflexos. Faixas de ondulação reflectida - longas faixas de luz verde que apontavam para oeste como setas.

Os ilhéus chamavam-lhe «a glória dos mares». Fosforescência produzida por ondas reflectidas, o que só acontecia entre oitenta e cem milhas de distância de um atol.

Stone apressou-se a proceder às alterações de rumo necessárias para apontar a oeste. Gradualmente, começou a incorporar-se na corrente contra-equatorial, no longo percurso ao sabor do vento para Angaur.

 

Sarah espreitou pela escotilha da cabina para se certificar de que ninguém se achava de vigilância na ponta ou na coberta principal antes de expor o SPG de Ronnie ao céu. A distância, em baixo, avistou a jangada salva-vidas na coberta da popa. Emitia um brilho esbranquiçado ao sol matinal, como se lhe acenasse convidativamente. Podia utilizá-la para empreender a fuga, se se atravesse. No entanto, constituiria um gesto suicida até que obtivesse algum indício seguro de que se encontravam perto das rotas habituais.

- Vêm aí!

O SPG não estivera suficientemente exposto para captar sinais do satélite, pelo que o seu ecrã constituía uma confusão de números em movimento constante. Um dia e meio depois de a fuga de gás ter sido dominada, Sarah só podia determinar pelo Sol que o navio continuava a rumar em direcção a Xangai. A única esperança era de que não tardassem a entrar em águas de tráfego regular.

- Depressa!

Tratou de guardar o SPG na mochila do Snoopy de Ronnie, e fechava a escotilha quando o comandante do Dálias Belle abriu a porta de rompante sem bater. Os seus olhos em movimento constante abarcaram Sarah e Ronnie, que retrocedia da porta, após o que os fixou em Mr. Jack, imóvel como uma pedra na cama.

- A sua presença é necessária na enfermaria, doutora. Temos um ferido.

Sarah pegou no saco dos instrumentos e estendeu a mão para a filha.

- A garota fica - advertiu o homem.

- Vem comigo - retorquiu ela.

- A enfermaria, não.

- A Ronnie ajuda-me desde os seus oito anos - persistiu, com firmeza. - Éa enfermeira mais bem qualificada de bordo.

No entanto, o comandante bloqueou a porta.

- Acredite no que digo, doutora. Não lhe interessa que ela a acompanhe. Pelo menos, desta vez.

Sarah hesitou. Algo de grave e apreensivo no rosto dele sugeria que acreditasse no que dizia.

- Muito bem. Ficas aqui com Mister Jack, Ronnie. Voltarei o mais depressa possível.

- Mas...

- Não há novidade, querida. A mamã não corre perigo. Vai apenas tratar de alguém.

- Tenho fome.

- O cozinheiro não tardará a trazer-te o pequeno-almoço. Vamos, doutora.

Intrigada, Sarah seguiu o comandante através da suíte do proprietário, em direcção ao elevador, no qual desceram quatro pisos até à enfermaria.

- Como está o velhote?

- Devia encontrar-se no hospital - replicou ela automaticamente.

Na realidade, o enfermo parecia estar a recuperar as forças, mas convinha-lhe convencê-los de que não sobreviveria, se continuasse a bordo.

- Nem pensar, doutora. Mais vale que se habitue à ideia.

Sarah estava extremamente preocupada com o destino de Michael e sentia a sua falta a cada instante. Os três dias escoados até agora afiguravam-se-lhe semanas. Por viverem juntos na pequena embarcação, tinham criado hábitos ao longo dos anos que garantiam a privacidade mútua. No entanto, a presença dele, ainda que não passasse de uma silhueta ao canto do olho, era uma constante que ela encarava como um dado adquirido. Agora, parecia-lhe que a atmosfera se tornara rarefeita.

Mas ao menos tinha Ronnie - uma presença activa e parte dele -, ao passo que o marido se achava desesperadamente só. Admitindo que reparara a pequena canoa, encontrava-se distante no mar, porventura a mais de cento e cinquenta milhas de Pulo Helena. Ela tentou isolar a mente do perigo. Cada vez que a filha lhe perguntava como julgava que ele se encontrava, murmurava que se tratava de um excelente marinheiro, e se alguém podia pôr a navegar uma canoa de madeira através de mais de duzentas e cinquenta milhas ao longo do Pacífico era sem dúvida Michael Stone. Ronnie assentia com uma breve inclinação de cabeça, mas reconhecia como a mãe que se tratava de um se enorme, num oceano implacável.

A enfermaria continha os instrumentos médicos e medicamentos e uma única cama de hospital de um navio previsto para outros objectivos. Nesta última, jazia Ah Lee, de rosto desfigurado, olhos enegrecidos, lábios cobertos de sangue, o nariz com todo o aspecto de fracturado e a bochecha perfurada por um dente. Quando Sarah se debruçou sobre ele, o rapaz estremeceu.

Pousou os dedos frios no dorso da mão e baixou a voz para o tranquilizar.

- Não te apoquentes, Ah Lee. Sou apenas eu, a doutora Stone, e pretendo ajudar-te. - Irritada, chamou o comandante para que a acompanhasse ao corredor. - Quem o pôs neste estado?

- Caiu na escada.

- O   tanas é que caiu.   Foi espancado.   Quem o fez? O Moss?

- Quando mais depressa o tratar, mais depressa voltará para junto da miúda, doutora.

Ela começou por examinar os olhos. Quando apontou a lanterna ao esquerdo, ambas as pupilas se contraíram simultaneamente. Óptimo. Dava a impressão de que não sofrera qualquer traumatismo craniano.

- Isto vai doer um pouco - preveniu a meia voz, pegando numa seringa descartável para injectar anestésico em torno do nariz e da bochecha perfurada, enquanto Ah Lee lhe seguia os movimentos com os olhos marejados de lágrimas.

Sarah coseu a face, extraiu um dente partido, vendou o nariz e aplicou gelo triturado em torno deste e dos olhos. A seguir, deu-lhe uma injecção antitetânica e penicilina.

- Encarregue alguém de colocar mais gelo, quando este se derreter. Mais tarde, voltarei para o observar.

Com estas palavras, pousou os dedos na mão do ferido, em despedida.

O comandante, que assistira da porta, declarou:

- Portou-se muito bem, doutora. Tem classe. - Começaram a encaminhar-se para o elevador. - Reparei que vocês, africanos, sabem quem são. O problema dos nossos pretos é não fazerem a menor ideia e estarem-se nas tintas.

Não era a sua primeira declaração do género. A princípio, custara-lhe acreditar que ela era aquilo a que chamava uma «médica a sério» e dir-se-ia que lhe admirava os poderes como se fosse alguma coisa que adquirira numa selva.

- Discutiu as suas opiniões racistas com Mister Moss?

- O Moss é diferente.

- Quer dizer que tem medo dele?

Ele não se mostrou perturbado com a ideia.

- Sou um homem do mar, doutora. Estou habituado a suportar as tempestades. E não há nenhuma de duração eterna.

Sarah perguntou-se se estaria ali um potencial aliado e esboçou um sorriso.

O comandante acercou-se um pouco mais.

- É uma moça muito jeitosa.

- Obrigada, comandante. Mas, como já disse ao Moss, sou casada.

- Que tem isso? Também o sou.

Ela pousou os dedos no crucifixo que pendia do cordão.

- Fiz os meus votos na Igreja.

- O Moss quer falar consigo - informou ele, premindo o botão de chamada do elevador.

O homem encontrava-se ao leme, debruçado sobre o enorme monitor do CPI.

- Deixe-nos sós - ordenou ao comandante.

- Nada de brutalidades - comentou este último.

- Ela obterá o que merecer. - O negro endireitou-se e aproximou-se de Sarah. - Deixe-nos - repetiu, e o comandante transpôs a cortina da saída.

Sarah ouviu os passos afastarem-se na escada, plenamente consciente da proximidade de Moss, e recuou um passo.

- O que pretende?

- O que pretendo? - ecoou ele, imitando o sotaque britânico. - Julga-se melhor do que eu, doutoral Pensa que, pelo facto de o ricaço do seu papá africano a ter enviado para a universidade, vale mais? Supõe que a bata de médica a torna branca?

Puxou o tecido e alguns botões soltaram-se e expuseram o ombro. Em seguida, fez deslizar a pesada mão até ao seio.

- É toda preta - murmurou. - Preta como eu.

Ela estremeceu. O contacto provocou-lhe um arrepio, mas ele era demasiado possante para que pudesse resistir-lhe fisicamente. Tentou conter o pânico e procurou desesperadamente alguma maneira de lhe refrear o ímpeto. Pressentia uma profunda amargura, que tinha potencial para avolumar uma fúria incontrolável. Se fosse um homem, ele espancá-la-ia até a deixar às portas da morte. Neste caso, porém, explodiria sob a forma de um brutal ataque sexual.

- O seu amigo precisa de mim - articulou ela. - Sou a sua única esperança.

- Não lhe vejo nenhumas melhoras.

Baixou os olhos para a mão que lhe beliscava o corpo, enquanto o medo se convertia em cólera, imaginando um bisturi com que lhe amputaria os dedos. A visão foi tão nítida durante um segundo que até lhe pareceu ver sangue. De súbito, compreendeu que tinha a bata salpicada de vermelho.

- Está a sangrar.

- Cortei uma articulação. - Ele cerrou o punho para mostrar o corte profundo. - Dê-me uma injecção antitetânica.

- No seu lugar, eu orava para que Ah Lee não fosse sero-positivo.

- Que quer dizer com isso? - balbuciou, recuando um passo.

- Misturou o seu sangue com o dele - explicou Sarah, que experimentou um estremecimento de satisfação ao ver o terror assomar aos olhos do negro.

- Onde é que um miúdo chinês podia?... - Moss interrompeu-se ao abarcar as possibilidades.

- A próxima vez que espancar alguém, use luvas de látex aconselhou ela.

O outro dominou o medo com uma firmeza fria que a impressionou tanto como o contacto.

- Não me esquecerei. Na próxima vez que tiver de o fazer.

- Ele não passa de um garoto. Porque lhe bateu? Quis demonstrar a sua autoridade? Já me consciencializei do seu poder sobre mim e a minha filha. Faço tudo ao meu alcance para cuidar de Mister Jack. O que mais quer?

- O Ah Lee abandonou o seu posto. Não permitimos que o pessoal se ausente, quando está de quarto. - Moss fez uma pausa, enquanto a olhava com curiosidade. - Há muito tempo que é casada?

- Doze anos.

- O tipo da ilha é o pai da Ronnie?

- Com certeza.

- Ela é quase tão preta como nós.

- Mistérios da genética. Sim, o meu marido é o pai da Ronnie. E agora, se me permite, gostava de voltar para junto de Mister Jack.

- Como aconteceu envolver-se com um branco?

- Não é um «branco». Trata-se do meu marido.

- De momento, não é. Nem você lhe pertence.

- De momento - retorquiu Sarah em voz neutra -, sou a médica de Mister Jack.

- E mãe daquela criança. Quero dar-lhe um conselho, - mamã». Porte-se da forma conveniente, se não quer que a cara dela fique como a do Ah Lee.

Sentiu a coragem esvair-se. O coração contraiu-se ao reconhecer que ele estava ao corrente do telefone via satélite. No entanto, antes que pudesse dominar o terror, Moss perguntou:

- É passadora, doutora?

- Perdão?...

- É traficante?

- Não estou a compreender.

Ele aproximou-se do largo pára-brisas e olhou para o Verónica em baixo.

- Mastro de fibra de carbono, doutora. Uma substância estranha naquela velha embarcação. Segundo o comandante me explicou, trata-se de um produto totalmente técnico. Assim, o radar da alfândega não o pode captar. Vocês os dois estão metidos no negócio da droga? - E voltou-se para observar a reacção dela.

Sarah não conseguiu dominar o sorriso de alívio.

- Estou a entender. Não, não somos passadores de droga.

- Porque sorri?

- O meu marido recuperou o mastro de um naufrágio. O dono do barco despedaçado disse que podíamos ficar com ele, mas não acreditava que conseguíssemos separá-lo do casco e transplantá-lo, por assim dizer, para o nosso.

- Como o efectuou o seu marido?

- Francamente, não sei. É uma pessoa muito engenhosa.

Moss, que o observara pelo binóculo, não ficara muito impressionado: um indivíduo de estatura abaixo da mediana, atarracado, de barba grisalha e pernas escanzeladas. Pouco mais corpulento que Mr. Jack, embora de ombros largos.

- Ele decerto quis o mastro para se dedicar ao contrabando. Peças de arte chinesa? Órgãos? Consta que a procura de rins para transplantes é enorme, este ano.

- Asseguro-lhe que não somos contrabandistas. Visitamos as ilhas exteriores com a nossa clínica ambulante. Colamos ossos fracturados, examinamos os velhos e distribuímos escovas de dentes às crianças.

- Alto aí. Não pretendo julgá-la ou ao seu marido. Talvez se dediquem a uns borrifos de contrabando para custear o hospital.

- Não. Temos benfeitores.

- Dos Estados Unidos?

- Na sua maioria, japoneses. Como deve saber, estão muito implantados nas ilhas.

- Novamente... É curioso: não encontrámos qualquer arma japonesa a bordo.

Sarah insurgiu-se.

- Não lhes assiste o direito de nos revistar o lar.

- Nem armas.

- Nunca andamos armados.

Ao contrário da maioria dos pescadores, devido à pirataria que grassa por aí.

- Não acreditamos nas vantagens do armamento.

- Doutora ! – bradou o comandante, que acabara de assomar à entrada. – O velhote acordou !

 

Moss ficou para trás, consciente de que se limitaria a servir de empecilho. Era preferível aguardar que a médica o pusesse fino. Então, ele e o velho teriam oportunidade de conversar a sós. Curioso. Ele tivera uma avó que costumava arrastá-lo à igreja para o obrigar a rezar. Na noite anterior, receando que não sobrevivesse, tentara evocar algumas das palavras que pronunciara naquelas ocasiões. E Mr. Jack acabara por acordar !

Voltou-se para o monitor do CPI e pôs os auscultadores. Certa vez, o velho, com aquele sorriso prometedor de que podiam percorrer o inferno e emergir irmãos, dissera-lhe :

- Não pescas nada de tecnologia, mas sabes do que gostas.

E era verdade. Os computadores de bordo eram mágicos. Não acontecia nada no navio que não ficasse registado. Todas as funções eram gravadas, arquivadas e disponíveis para qualquer reprodução. Cada rotação das hélices, cada soluço dos compressores, cada mudança de temperatura, cada alteração de rumo, cada uma das palavras pronunciada em todas as cobertas da casa, cada sinal recebido e transmitido.

- Não precisas de perceber nada de tecnologia – dissera Mr. Jack, com uma gargalhada. – Basta que vejas a oportunidade. E isso consegues tu.

Moss sentiu todo o corpo inchar de orgulho ao recordar o momento. Mr. Jack contratara um rebanho de entendidos em mputadores, que lhe ensinaram como as máquinas produziam a magia. Mas a verdade era que ele possuía um instinto para os utilizar, o que se podia considerar muito mais importante.

Premiu a tecla de áudio.

Começou a passar de novo uma gravação que escutara noutra ocasião.

«... oxalá ele não se magoe. Sabemos como é desajeitado... Mamã, achas que ele tentará reparar?...»

Devia ter abatido o filho da mãe quando o tinha na mira da sua arma. Passou a gravação até ao fim, mas o que ela murmurara depois de calar a filha perdera-se. No entanto, era óbvio que esperavam que o «papá» as viesse salvar. Moss discutira o assunto com o comandante, o qual lhe garantira que mesmo que tal acontecesse, graças a algum milagre, chegaria demasiado tarde.

Ligou o quadrante da velocidade a um telefone de satélite e activou o codificador, pelo que se a Agência da Segurança Nacional estivesse à escuta teria grande dificuldade em se inteirar do conteúdo de qualquer mensagem.

Atendeu uma mulher, como se tivesse assomado à porta, e ele informou:

- Tenho um número de telefone para investigar. Quero saber a quem pertence.

Enquanto aguardava, puxou do menu no monitor do CPI, escolheu «Portos» do primeiro conjunto de opções e indicou Tóquio. A máquina começou por mostrar uma vista geral, que continha uma carta ampliada do mar de Sagami.

Ele activou o comando do simulador.

O ícone do navio apareceu no ecrã. Deslocando-se a sessenta vezes o tempo real, passou por Oshima, ilha à entrada do golfo e cruzou o mar de Sagami em dois minutos. Em seguida, entrou nas faixas de separação do tráfego e enveredou por Uraga-suido, canal de acesso à baía de Tóquio, através dos estreitos, para além de Kimitsu, Yokosuka, Iocoama, em torno do farol de Tóquio, para finalmente entrar no porto.

As alterações das rotas eram expostas numericamente em cada um dos muitos pontos, à medida que o navio electrónico percorria os diversos lugares intermédios e se entranhava no coração da cidade. Alarmes de profundidade começaram a piscar ao aproximar-se do Terminal de Passageiros de Takeshiba.

- Banzai! - articulou Moss. O telefone começou a tocar.

- Sim?

A mulher tinha um nome e um dossier referentes ao número do telefone que a doutora marcara. Um político das ilhas Palaus.

Surpreendido e algo aliviado, ele indicou:

- Quero inteirar-me de todos os telefonemas efectuados e recebidos de cada telefone que o tipo possui. Do escritório, residência, carro, barco, avião... tudo o que houver. O que me interessa sobretudo é qualquer chamada para a marinha, companhias de aviação ou agências de viagens dos Estados Unidos... O quê?... Até ordem em contrário.

Cortou a ligação e espreguiçou-se, enquanto se entregava a reflexões.

Dispondo apenas de uma oportunidade para pedir auxílio, porque escolhera ela um número particular nas ilhas Palaus? Para quê deixar uma mensagem num atendedor de chamadas? Porque não mencionar o nome do atol onde o marido ficara isolado?

Porque não se limitara a chamar a Polícia?

Parecia conhecer os meandros do oceano, pelo que sem dúvida sabia que, se enviasse um sinal de perigo vulgar ou accionasse o Mayday automático, de bordo do Dálias Belle cancelariam a mensagem, quando as autoridades tentassem obter confirmação.

Mas o veleiro estava registado nos Estados Unidos. Porque não recorrer à marinha daquele país? Ou à Interpol? Era uma boa pergunta, e Moss tencionava interrogar a doutora assim que o velho deixasse de necessitar dela definitivamente.

 

Uma ave bombardeou Stone na manhã do quinto dia, sinal inequívoco da proximidade de terra. Por volta do meio-dia, bandos de andorinhas-do-mar voavam junto da superfície para capturar peixes. A água começou a assumir um aspecto peculiar entre as ondas, as quais, por seu turno, iam mudando de configuração e avolumando-se, e ele pressentiu uma certa hesitação na atmosfera, como se o ar e a água enfrentassem um obstáculo.

A ondulação agravou-se e assumiu uma qualidade particularmente caótica, a qual, devido à exaustão, só agora compreendia que se devia a uma corrente rápida, que há várias horas o arrastava para sul.

A canoa começou a sofrer solavancos cada vez mais intensos, e Stone surpreendeu-se ao avistar de súbito Angaur - verde e arborizada, com um depósito de água vermelho no meio. Um grupo de construções na extremidade norte assinalava um posto da Guarda Costeira abandonado.

Sentiu o peito dilatar-se de alegria. Encontrava-se a menos de duas milhas de distância. Todavia, a satisfação não tardou a ser neutralizada pela realidade de que estava a ser arrastado para uma costa rochosa.

Em breve detectou a rebentação e descortinou erupções brancas, quando as ondas se desfaziam nas rochas. A medida que se acercava daquilo que parecia o canto da ilha, avistou o recife. Mas tratava-se apenas de uma pequena formação e não da massa compacta que protegia o porto.

Um avião proveniente do Norte descreveu um círculo e alinhou-se com a ilha. Era o voo de Koror. Tinha de ser, pois sem dúvida não havia mais de uma carreira num espaço de vários dias para uma população de cerca de duzentas almas. Quando Stone tivesse entrado pela estreita passagem do recife, o aparelho há muito que teria partido. E só Deus sabia quando chegaria outro.

Pousou a menos de dois quilómetros dele - um minúsculo bimotor que utilizava uma pista construída durante a Segunda Guerra Mundial para bombardeiros quadrimotores -, descreveu uma rotação de cento e oitenta graus e rolou em direcção ao barracão do terminal. Stone apontou a canoa ao pequeno recife, colocando-se de pé na plataforma do flutuador, para tentar localizar a passagem.

A rebentação lembrava um banco de neve de espuma. De súbito, avistou uma pequena zona mais escura e rumou para lá. A passagem - era disso que se tratava - parecia ter cerca de dois metros de largura, e a embarcação foi arrastada para lá sem que ele tivesse possibilidade de a controlar, esmagando-se contra o recife.

Stone saltou uma fracção de segundo mais tarde do que lhe convinha. O mastro estalou, oscilou e tombou-lhe em cima, atingindo o ombro com um impacte que o projectou na água, enquanto o mar voltava a apoderar-se da canoa e completava a obra de destruição.

Foi envolvido pela água, mas começou a nadar desespera-damente, até que sentiu a areia sob os pés e tombou na praia atordoado e a sangrar.

Um casal de jovens com mochilas às costas acudiu a correr da estrada próxima e a primeira coisa de que se lembraram foi de apontar uma máquina fotográfica a Stone, que os olhava boquiaberto.

- Podemos tirar uma foto, senhor? - disse o jovem, em inglês de turista, aparentemente convencido de que o homem tostado pelo sol que tinha à sua frente era um nativo e o acidente com a canoa uma ocorrência banal.

No entanto, a companheira apercebeu-se da realidade e obervou:

- Está ferido.

Stone rompeu em frenética correria, que se prolongou por cerca de um quilómetro, até que, por entre as árvores que ladeavam a estrada, avistou a pista e ouviu o ruído dos motores de um avião.

- Nããão!

Pouco depois, deparava-se-lhe uma espécie de barracão, em cujo telhado havia uma manga indicativa do rumo do vento, e um homem de T-shirt e calças de ganga sentado num ferrugento jipe com os dizeres paradise air pintados no capo. O homem virou-se e fixou o olhar em Stone, com curiosidade. Naquele momento, o som das hélices atingiu o auge e o avião começou a mover-se.

- Detenha-o! - bradou Michael, numa voz aguda que quase não reconheceu.

O outro levou as mãos à boca em forma de concha e perguntou:

- Onde tenciona ir, homem?

- A Koror. Mande-o parar. - Stone saltou para dentro do jipe. - Aproxime-se dele!

O interpelado encolheu os ombros, ligou o motor e enveredou pela pista atrás do avião.

- Acenda os faróis!

- Não tenho.

O aparelho começava a distanciar-se. O nariz principiou a elevar-se. De repente, porém, reduziu a velocidade e imobilizou-se. O jipe alcançou-o e Stone saltou para o chão, enquanto o piloto assomava à janela.

- Que se passa?

- Koror! - articulou Stone.

- Tem dinheiro?

Subitamente, viu-se nos olhos do outro: o sangue a escorrer de vários ferimentos nos braços, encharcado até aos ossos e com a camisa e os calções em farrapos.

- Sim, tenho - replicou, erguendo a mochila significativamente.

- E passaporte? - insistiu o piloto. - Em Koror, vão crivá-lo de perguntas.

Michael acenou afirmativamente. Na verdade, dispunha de vários.

- De onde vem? - quis saber o homem do jipe. - Não vejo nenhum barco novo no porto.

Os naturais de Angaur eram produtores de marijuana famosos e desconfiavam de todos os estranhos.

Stone ignorou a pergunta e apontou para o livro de talões de bilhetes no sobrado do veículo.

- Quanto custa a passagem para Koror?

Tendo alcançado e mandado parar o avião, o agente de bilhetes da Paradise Air regressou à realidade e tratou de preencher um dos talões. Stone extraiu a carteira da mochila impermeável, entregou-lhe três notas de cinco dólares americanos e subiu para bordo. A velha pista para bombardeiros era tão extensa que o piloto descolou do ponto em que parara.

O aparelho incorporou-se nos ventos alísios como um cachorro amestrado e rumou a norte. Stone voltou-se para trás, a fim de contemplar o porto, onde se encontravam ancorados alguns barcos de pesca, sem, contudo, conseguir avistar o recife onde a canoa se desfizera. Na vertical, havia o canal azulado entre Angaur e o principal arquipélago das Palaus, que parecia uma adaga verde com jóias incrustadas na filigrana do recife. A sua direita, estendia-se o sombrio Pacífico, enquanto à esquerda se situava o mar das Filipinas, sarapintadas por nuvens pouco espessas.   Procurou, em vão, um navio cor de areia.

O piloto estabilizou o aparelho a duzentos e cinquenta metros, tirou os óculos escuros e perguntou:

- Sente-se bem, amigo?

Stone passou a mão pelo cabelo empapado em água salgada, abriu a mochila e limpou o sangue do braço, após o que aplicou água oxigenada. Ardeu-lhe intensamente, mas quase não se deu conta. Uma antiga frase do escritor Conrad cruzava-lhe o espírito: O mar deu-te a oportunidade de avaliar a tua resistência. Na verdade, sentia-se invencível.

 

- O rádio funciona? - gritou Stone para sobrepor a voz ao ruído dos motores.

- Com certeza - replicou o piloto, indignado, apesar de a terça parte dos mostradores do painel dos instrumentos estar coberta com fita isoladora e o motor de estibordo expelir óleo para as janelas.

- Importa-se de contactar com o seu expedidor para que ligue ao presidente Salinis a fim de me ir esperar ao aeroporto?

O homem soltou uma gargalhada: com uma população total de quinze mil almas, o presidente da República de Palau não se podia considerar uma figura remota, mas Stone não se achava actualizado com o panorama local.

- Voltou a ser senador. As últimas eleições apearam-no do cargo.

Quando Michael partira de Kwajalein, um exemplar com oito dias de existência do Pacific Daily News da ilha de Guam previa a vitória de Salinis. Mas a política de Palau era volátil - por vezes violenta - e Marcus, um empresário voluntarioso, efectuara vários percursos ascendentes e descendentes no declive escorregadio.

- Quem digo que lhe faz o pedido? Stone resolveu indicar o nome fundamental.

- O doutor Michael Samuels.

- E o médico do veleiro?

- Acertou à primeira.

- Ainda não vi o seu barco, este ano.

- Está na revisão nas Marshall.

- Como se deslocou a Angaur?

- Pode transmitir o que lhe pedi, por favor?

Fechou os olhos e, quando voltou a dar acordo de si, o piloto sacudia-o com insistência.

- Estamos em Koror.

Olhou em volta, ainda estremunhado.

- Sirva-se disto.

O homem entregou-lhe um pente, que ele passou mecanicamente pelo cabelo salinizado, após o que desfez alguns nós na barba e devolveu-o com um murmúrio de agradecimento, antes de sair para a atmosfera carregada de humidade, quase escaldante da tarde em Palau. Uma mulher esbelta, de cor, emergiu do terminal e interceptou-o.

- É o doutor Mike?

- O próprio.

- Não se recorda de mim? - Sorria, como se tivesse um segredo. - Joanna Salinis.

A última vez que Stone a vira, ela chegara a casa para uma breve visita, quando frequentava um internato havaiano.

- O meu pai pediu-me que o viesse buscar. Encontra-se em Bobang e não estará em casa antes da hora de jantar... Não se sente bem?

Com efeito, o rosto dele assumira repentinamente uma expressão de amargura.

Sentia-se completamente destruído. Esperara ver o arcaboi-ço possante de Marcus Salinis, todo sorrisos, e, ao invés, deparava-se-lhe aquela mulher-criança, cuja compleição física lhe lembrava Sarah e sorria como quem não tinha a mínima preocupação, nem qualquer massa cinzenta na cabeça.

- Vê-se que está a precisar de um banho de chuveiro, roupa decente e duas semanas de sono. Onde está a doutora Sarah?

- No barco. Pode levar-me a um hotel?

- O meu pai disse que o levasse para a nossa casa.

- Preciso de fazer um telefonema internacional.

Havia um posto da Comsat na ilha e ligações internacionais nos hotéis mais importantes.

- Sirva-se do nosso telefone. O meu pai comprou um telemóvel.

Joanna conduzia um Lexus vermelho novinho em folha, com o guarda-lama da frente amolgado, já a caminho da oxidação. Fazia-o com a mesma arrojada inocência com que escoltara Stone através das formalidades da Imigração - os sorrisos confiantes e impaciência natural da elite da república. Ele recordou que a mãe era de uma classe elevada, filha de um chefe. Marcus Salinis superara origens mais baixas e escavara um nicho seguro na hierarquia, tornando-se num dos membros do pequeno grupo que se esmerava por canalizar o auxílio americano e o investimento japonês para os seus bolsos. Construíra uma base popular de apoio lutando pela soberania de Palau do Fundo de Territórios do Pacífico dos Estados Unidos e partilhava a riqueza com apoiantes sagazmente escolhidos.

Stone conhecia outros homens de Palau, alguns de estatura não inferior, mas nenhum com as várias ligações de Salinis aos diferentes mundos da navegação, construção, política e turismo japonês que dominavam no extremo do Pacífico.

- Tem fome, doutor Mike?

- Estou faminto.

- Há cerveja e Coca-Cola, aí atrás. - Na verdade, havia uma geleira no banco da retaguarda, e ele tirou uma Coca-Cola e ingeriu-a de um longo trago. - Está com um aspecto mesmo horrível.

Ela olhou-o de través no momento em que teve de parar para dar prioridade a um camião carregado de toros.

- Oiça, Joanna. Vim para falar de negócios com o seu pai e agradecia-lhe que...

- Ele explicou-me tudo, mas prometi guardar silêncio, pelo sim pelo não. Limitei-me a dizer que estava com um aspecto horrível. - O camião afastou-se finalmente da frente e ela seguiu por um piso de terra batida na encosta de uma colina, com os consequentes e inevitáveis solavancos. - Desculpe o estado das nossas estradas. Segundo o meu pai, é isto que afugenta os estrangeiros.

Stone tinha a impressão de que os seus olhos e ouvidos

desenvolviam uma actividade muito para além da sua capacidade de resistência.

- O que foi que ele lhe explicou?

- Telefonou-me e disse que o doutor tinha um problema, o viesse buscar discretamente e levasse para longe do aeroporto. Contactou com a Imigração para nos deixar seguir.

- Como soube ele que eu tinha um problema? Não nos falámos.

Joanna mordeu o lábio.

- No outro dia, apareceu uma mensagem tão estranha no atendedor de chamadas dele, que ele se apressou a retirar a gravação.

- Uma mensagem? De quem?

- Não sei. Pensou que talvez se tratasse de uma brincadeira.

- Onde está?

- Tem-na ele.

- Quando regressa?

- Em breve. Não se preocupe.

A casa, uma construção moderna de teca, vidro e chão de pedra, situava-se na encosta íngreme de uma colina sobranceira ao mar das Filipinas. A humidade já atacara o mobiliário com bolor e empenara as portas, além de que o sistema de ar condicionado se avariara, vítima, segundo Joanna, das frequentes interrupções do fornecimento de energia eléctrica. No entanto, a vista era espectacular: a oeste, para o mar e, a sul, para as ilhas Rochosas, o que fazia com que parecesse que uma mão generosa lançara esmeraldas à lagoa.

- O telemóvel?...

- Não prefere o chuveiro, em primeiro lugar?

- Onde está ele?

Com um suspiro de resignação, a jovem conduziu Stone a um confortável quarto de hóspedes percorrido por uma brisa melhor que ar condicionado, e indicou-lhe onde o telefone e o chuveiro se encontravam. Ele aguardou que ela se retirasse, pegou no aparelho e marcou um número.

- Kerry McGlynn, por favor. Diga-lhe que é o doutor Mike.

A secretária informou que McGlynn se encontrava no mar.

- Não me pode ligar para ele?

Ela disse que não.

- Não tem telemóvel a bordo? - insistiu Stone, reflectindo que a rapidez de comunicação constituíam a chave do jogo de salvamento.

- Receio que esteja muito ocupado, de momento. Um dos nossos clientes descobriu mais uma ilha nova para ele. Posso ajudá-lo?

- Sou um amigo. Preciso do auxílio do Kerry.

- E se eu lhe der o seu número, quando ele comunicar pela rádio? Depois, ligava para o senhor.

Stone indicou o número dos Salinis e perguntou:

- Onde é que ele está a trabalhar?

- É uma coisa que só ele lhe poderá dizer - declarou a secretária friamente, como se um amigo devesse saber perfeitamente que o sigilo constituía um dos ingredientes vitais do êxito no negócio do salvamento.

- Trata-se de um assunto pessoal e muito urgente. Há algum lugar onde me possa encontrar com ele?

- Receio que...

- Por favor. Não tenho mais ninguém a quem recorrer.

- Um momento.

Stone aguardou pacientemente, enquanto esquadrinhava o cérebro com ansiedade em busca de mais alguém com quem pudesse contactar. Talvez Lydia Chin, proprietária de navios, em Hong Kong. Ou alguém dos seus dias na marinha. Alguém que entretanto ascendera a almirante, com autoridade para ordenar uma investigação. Alguém que não via havia vinte e cinco anos? Alguém cujo dever o obrigaria a detê-lo...

- Doutor Mike.

- Continuo a aguardar.

- Não sei se isto o pode ajudar, mas é o melhor que se pode arranjar. Antes de recebermos este encargo, o Kerry tinha reuniões marcadas em Hong Kong. E possível que passe por lá nos próximos dias.

- Onde ficará?

- Não posso dizer.

- Diga-lhe que estarei no Iate Clube de Hong Kong. Mas se ele telefonar antes, continuarei neste número até amanhã.

Ele telefonou para o Iate Clube e a Lydia Chin. No entanto, do escritório dela informaram que se encontrava em viagem na China e que regressaria no dia seguinte.

Conservou-se sentado, com o telefone na mão, enquanto tentava recordar-se de mais alguém a quem ligar. Finalmente, desistiu e entrou na casa de banho, onde se desembaraçou da andrajosa indumentária. O que viu no espelho provocou-lhe um choque. Perdera cinco quilos. As costelas distinguiam-se claramente e os ossos dos braços pareciam querer perfurar a pele através dos reduzidos músculos. O rosto tinha uma tonalidade avermelhada, a barba dir-se-ia pender das faces encovadas e os olhos, normalmente azul-escuros, apresentavam a cor

prateada de rolamentos de esferas.

Meteu-se sob a água quente, abafou um grito no momento em que lhe escaldou as queimaduras solares, reduziu a temperatura e lavou o sal e sangue coagulado com sabonete e champô. Quando finalmente fechou as torneiras, ouviu Joanna informar:

- Há uma navalha no armário dos medicamentos e vou enfiar um roupão pela porta.

Uma mão bem moldada e um braço alongado penetraram na abertura para pendurar a peça de vestuário no cabide.

- Tem café, Coca-Cola e sushi à sua disposição, quando terminar. Quer uma cerveja?

- Prefiro o café.

- Assim está muito melhor! - exclamou ela. - Mas falta-lhe barbear-se.

- O seu pai já chegou?

- Não deve tardar.

Stone sentou-se à mesa de café que a jovem preparara e fixou o olhar na comida, enquanto se perguntava que mais podia fazer ou a quem telefonar.

- Qual é o caminho mais rápido para Hong Kong?

- Siga na Air Mike até Manila e depois na Air Philippi-nes - explicou Joanna, sentando-se e traçando a perna diante dele.

- E para Tóquio?

- Na Air Mike, por Guam.

- Quando há o próximo voo para Manila?

Um amigo dele - ou melhor, conhecido -, Patrick, encontrava-se lá. Este, um mercenário na pré-reforma, tinha conhecimentos!

- Realizam-se às terças, quintas e sábados.

- Que dia é hoje?

- Hem?

- O dia da semana, que diabo! - Michael fez uma pausa. - Desculpe, estou um pouco confuso.

- Segunda-feira - informou ela, em tom algo afectado. - Mas coma. E convém que também beba. Não quer mesmo uma cerveja?

- Não, obrigado.

Ele devia estar faminto, mas a única coisa em que conseguia concentrar-se era no passo seguinte a dar. O alívio por ter podido voltar a pisar terra já se dissipara, e o pânico provocado pelo destino de Sarah e Ronnie dominava-o por completo. Para onde as levaria o navio? Comeu algumas talhadas de manga e ingeriu café. Hong Kong proporcionava acesso a mais mundos do que Tóquio, onde os seus amigos eram homens de negócios mais convencionais.

Um carro deteve-se ruidosamente no caminho de acesso. Uma porta bateu, fazendo abalar a casa, e no instante imediato Marcus Salinis fazia a sua aparição. Era um indivíduo entroncado de cerca de um metro e sessenta e cinco, quase tão largo como alto, de rosto acastanhado rasgado por um sorriso de orelha a orelha. Um abdómen dilatado pela cerveja micronésia punha à prova a resistência dos botões da camisa decorada com flores, e o tecido esticado revelava os contornos de uma arma à cintura.

- Doutor Michael! A Joanna tem cuidado bem de si? - Apertou a mão de Stone entre as suas. - Vai buscar duas Buds, filha. O homem está a tomar café, e o Sol já quase desapareceu. - Enquanto ela se afastava para a cozinha, acrescentou: - Parece derreado.

- Preciso de ajuda. - Michael julgou conveniente não perder tempo com rodeios.

- Bateu à porta certa. - Salinis largou as mãos do amigo extraiu um gravador portátil do bolso da camisa. - Retirei a Pita do meu atendedor de chamadas.

Joanna reapareceu com duas latas de Budweiser cobertas de gotas de condensação.

O pai pegou em ambas com uma das mãos e explicou:

- Comprei um peixe excelente. Porque não ligas o grelhador para proporcionarmos um pitéu ao doutor Mike? - A jovem retirou-se com uma ponta de relutância e ele concentrou-se de novo na gravação. - Não sei se isto é ou não uma brincadeira, Michael. Você dirá.

Stone estremeceu ao ouvir a voz de Sarah, tensa de nervosismo e frustração:

«Marcus. Marcus. Ouve-me?... Inferno maldito!...»

- Isto foi gravado na minha ausência - esclareceu Salinis. - Tinha ido à pesca.

«É a Sarah, Marcus. Faça chegar esta mensagem às mãos do Michael, por favor...»

Stone sentiu as lágrimas a arder nos olhos. Depois de tantos anos juntos, funcionavam como uma única pessoa. Ela sabia que, custasse o que custasse, ele conseguiria sair do atol e se dirigiria para Palau, onde procuraria imediatamente Marcus Salinis.

«Escuta, Michael. Estamos a nove graus norte e cento e trinta e dois leste, rumo a noroeste, à velocidade média de vinte e três nós. Encontramo-nos bem. Tenho um paciente idoso atingido por uma bala. Calculo que seguimos para Taiwan ou Xangai, se a rota não for alterada. Não faço a menor ideia do destino que nos darão, quando deixarem de precisar de mim. Por outro lado, hão-de necessitar-me durante algum tempo, pois recusam-se a interná-lo num hospital. Segundo depreendi, é o dono deste navio chamado Dálias Belle, e a isto se resume o que te posso revelar. Confesso que não faço a menor ideia de quem há-de ajudar-nos, que marinha, que governo... Vem aí alguém. Portanto, vou desligar. Saudades.»

Registou-se um estalido e a gravação reproduziu o sinal de linha livre e mergulhou em silêncio. Vinte e três nós, 550 milhas por dia, 2750 em cinco dias: ontem Taiwan e Xangai naquela noite. Mas se o navio mudara de rumo, podia encontrar-se em qualquer lugar, de Guam à Austrália ou Singapura, nesse dia, e nos confins do oceano Indico, no seguinte.

- Pensei que se podia tratar de uma brincadeira devido à calma com que ela se exprime - esclareceu Salinis.

- Em pleno bombardeamento, consegue manter a serenidade.

- Mas que diabo se passa?

- Estávamos em Pulo Helena, a semana passada, quando captámos uma mensagem pelo rádio de um transporte de gás. Segundo parecia, precisavam de auxílio, pois o comandante sofrera uma queda e ferira-se. A Sarah e a Ronnie foram lá e eu fiquei no atol, onde havia um pescador moribundo. Antes que tivesse plena noção do que sucedia, a tripulação içou o Swan para bordo e o navio partiu a toda a velocidade.

- Enquanto você ficava só?

- Em companhia de um pobre diabo morto, na praia. Atingido por balas.

- Não faz sentido.

- Foi o que eu disse. Custava-me a crer que...

- Como veio parar a Angaur?

- Numa canoa de pesca.

- Desde Helena?.   Saiu-me um marinheiro excepcional, Michael.

Entretanto, Stone sentia a cabeça vibrar com intensidade e as pálpebras pesadas.

- Preciso de localizar o navio.

- Só não percebo por que razão a Sarah me telefonou, em vez de emitir um pedido de socorro generalizado. - Salinis aproximou-se da porta para se certificar de que continuavam sós. - E agora você está alojado em minha casa, em vez de no Consulado dos Estados Unidos a chamar pela marinha.

Stone não replicou, hesitante.

- Sempre supus que andava foragido. Muitos americanos destas paragens estão nessa situação. Mas até que ponto? A Sarah tem um marido furibundo que pretende ajustar contas consigo?

- Não, mas estou de facto em apuros.

- Matou alguém?

- Não... mas sou procurado por homicídio. Entre outras coisas.

- Não foi você?

- Não matei ninguém, garanto-lhe.

- Quais são as «outras coisas»? Drogas?

- Não.

- Então, o que resta?

- Suponha que lhe dizia que era pirataria.

Marcus Salinis assumiu uma expressão de contrariedade, o que, num oriundo de Palau, constituía um sintoma ameaçador. O rosto acastanhado tornou-se hermético, o sorriso extinguiu-se e os olhos pareceram mais pequenos e hostis.

- Muito bem, doutor. Não é da minha conta.

- Aconteceu há muito tempo, noutro oceano.

- Há muito tempo, noutro oceano? Parece o início de A Guerra das Estrelas. Pode ser um pouco mais explícito?

- Prescindindo dos pormenores, posso dizer que há muita gente interessada em me abater.

- Quem? Que gente?

- Não o posso revelar a ninguém.

- Se não mo pode revelar, talvez não tenha acontecido. O político olhou Stone com intensidade, porém este nem pestanejou.

- Perdi então alguém que amava tanto como a Sarah actualmente. Nada mais lhe posso dizer de momento, meu amigo.

- E quer a minha ajuda?

- Exacto.

- Lamento, doutor. Se não sei do que ou de quem foge, como lhe posso valer?

- Essa parte do meu passado não tem nada a ver com o caso actual.

- Pois eu acho que tem tudo, se o impede de recorrer às vias de auxílio normais.

- Não posso ser mais explícito.

- Ao menos, forneça-me uma ideia geral. Não preciso de nomes, mas de saber o que tenho de enfrentar. Deve confiar em alguém, Mike, ou pode despedir-se definitivamente da sua mulher e filha.

Stone apertou a cabeça entre as mãos, desejando encontrar-se de novo só no mar, a bordo da periclitante canoa, onde nunca duvidara da acção que devia tomar a seguir. Agora, ali, receoso de dizer alguma coisa susceptível de comprometer o seu futuro com Sarah e Ronnie, sentia-se paralisado pela indecisão.

- Quem raio é você? - inquiriu Marcus. - De onde vem? Que fez?

- A que vêm repentinamente essas perguntas?

- Porque é tão paranóico? Limito-me a perguntar o mesmo que qualquer outra pessoa, mal lhe ouça dizer que não pode recorrer às autoridades. Que se ergue entre você e pegar no telefone e bradar «Socorro!»?

- Nada de nomes - propôs Stone. - Nenhum pormenor que possa investigar. De acordo?

- Decidirei o que me parecer aceitável, depois de o ouvir.

Voltou a apertar a cabeça nas mãos e principiou:

- Há anos, fui parar ao meio de uma querela política. Houve um homicídio de que me acusaram graças a uma maquinação. Tive de me apoderar de um barco para fugir. Daí a pirataria. Está bem assim?

- Quem o procura?

- Dois governos e a CIA - informou, arrependendo-se quase imediatamente.

- Como conseguiu atiçar a CIA?

- O barco era deles.

Aguardou ansiosamente, enquanto o interlocutor digeria a história. Conhecia uma dúzia de homens como ele no Pacífico, agitadores e oportunistas nas sociedades, onde a agitação e o oportunismo eram considerados peculiares, se não suspeitos. Tratava-se de uma existência solitária para pessoas que tinham visitado parte do mundo mais vasto em viagens de negócios ao Japão e Estados Unidos, cheias de conflitos, enquanto lutavam para construir versões em miniatura de superpotências numa região que muitos forasteiros e uma grande parte dos locais já consideravam uma versão do Paraíso.

As pessoas como Salinis sempre o tinham encarado, a Sarah e à sua obra com perplexidade, perguntando-se abertamente o que pretendiam em troca, num mundo em que se esperavam actos louváveis dos missionários que ardiam de ansiedade por converter os nativos e os membros do Corpo da Paz que se instalavam na área passado pouco tempo. Stone apenas podia acalentar a esperança de que a pirataria noutro oceano não tivesse a menor relação com os jogos de poder e rivalidades de latifundiários que mantinham as actividades bem acesas nas ilhas de Salinis.

O antigo presidente soltou uma risada seca.

- Sim, sempre pressenti que a Sarah tinha um marido ultrajado à sua procura, Mike. Um casal tão inflamado havia de se pôr à distância. - Fez uma pausa. - Bem, dá-me a impressão de que a sua situação lhe limita as opções. Os Estados Unidos enviaram-nos um novo cônsul ainda mais cretino que o anterior. Posso falar com ele, se o desejar. No entanto, encolherá os ombros, e você usará um belo e sólido par de algemas ainda antes de eles começarem a procurar esse navio porque o diplomata se estará nas tintas para o que acontecer à sua mulher. As coisas estão a aquecer nestas paragens, se porventura ainda não reparou.

- Reparei, por exemplo- que você usa um revólver por baixo da camisa.

- E outro debaixo do banco do carro. Além de uma enorme chave-inglesa no quarto. Tenho sido seguido e os telefones estão sob escuta. Os desta casa, do escritório e até o telemóvel. Não faço a menor ideia do que procuram. Já perdi as eleições.

- Onde está a Amélia? - Stone referia-se à esposa de Salinis, filha do chefe.

- Pegou nos filhos e foi para casa do pai, onde ficarão até tudo isto se esclarecer.

- Que faz Joanna aqui?

- Confesso que não entendo essa garota. Ou é tão estúpida que não compreende o que se passa ou tão esperta que a desejo a meu lado. Provavelmente não se trata de nada de importância excepcional. Já lá vai o tempo em que matávamos mesmo alguém pela política, para não falar dos «suicídios» e carros armadilhados. Quer ver uma coisa? - Conduziu Stone ao terraço e indicou um telescópio montado num tripé. - Espreite.

Michael debruçou-se sobre o ocular. Deparou-se-lhe um iate motorizado de vinte e um metros, ancorado nas águas calmas abaixo da colina, com uma cúpula de satélite. Dois casais tomavam cocktails na popa. Pareciam jovens e prósperos, as mulheres de biquini e eles de calções tipo bermudas e camisas brancas. Naquele momento, aproximou-se um criado uniformizado com um tabuleiro de canapés. Eram claramente veraneantes, que se descontraíam depois de um dia de pesca submarina.

- Têm estado sentados aí há três dias - informou Marcus. - Observe o tipo de binóculo.

Stone não conseguia destinguir as feições, mas o homem indicado tinha o aspecto bronzeado do mergulhador de Verão e esquiador de Inverno. Um brinco de diamantes ou ouro brilhava, enquanto ele esquadrinhava o mar e as colinas entre goles de uma taça de champanhe. Em dado momento, volveu o binóculo para terra e apontou-o ao topo da colina de Marcus. Por um instante, imobilizou-o no telescópio.

O homem, que tinha cabelos loiros, acenou.

Stone encolheu os ombros. Estava tão cansado que quase não se aguentava de pé.

- Tenho de localizar o Dálias Belle - disse a Marcus. - Seja como for.

O outro meneou a cabeça.

- Duvido que o consiga. Já andei por aí a perguntar. Há um Dálias Belle, transporte de produtos químicos, que opera no golfo do México, de onde não sai há anos. Deve ter um registo falso.

- Irei a Hong Kong - decidiu Stone. - Se for necessário, tentarei a sorte junto do cônsul americano.

- Como vão eles localizar um navio?

- A marinha costumava ter um sistema de rastreio acústico para estar a par dos movimentos dos soviéticos durante a Guerra Fria: bóias hidrófonas, submarinos e satélites para registar ruídos de navios. Os sons da esteira da hélice, das máquinas e do eixo motor são característicos de cada navio, e tudo   o   que   era registado ficava arquivado numa biblioteca. Como fichas de impressões digitais. Supõe-se que podem consultar a «ficha» de um determinado navio referenciado nesse dia nas extremidades de Pulo Helena. Em seguida, o computador tratará de o identificar. E os dados armazenados para os dias desde então revelarão o rumo que seguiu.

- Admitindo que o sistema ainda funciona e não pregam consigo numa cela por pirataria.

- O comandante McGlynn, meu amigo, tem um irmão na Marinha australiana. É óbvio que as armadas permutam dados. Talvez me ajude. Sempre teve um fraco pela Sarah.

- Muito interessante. - Marcus esboçou um sorriso.

- Espero conseguir descobri-lo. Para já, também tenho amigos donos de navios em Hong Kong. Em qualquer dos casos, aposto mais em Hong Kong. Além disso, há um tipo em Manila, que posso procurar.

Stone rebobinou a gravação e tornou a passá-la. Afundou-se em semi-sonolência ao som da voz de Sarah e da sua linguagem desapaixonada: «São estes os factos. É isto tudo o que sei. O resto não passa de especulação vazia...» Estremeceu. Não constituía novidade para ele que a esposa era uma mulher voluntariosa, mas aquilo representava a prova de uma força que o assustava, uma qualidade cruel que ele evitava deliberadamente aceitar. Se alguma vez decidisse que já não era próprio para ela, abandoná-lo-ia e nunca olharia para trás.

- Está a cair de sono, Michael. Vamos saborear o peixe, para que se meta em seguida na cama.

- O McGlynn vai telefonar-me da Austrália.

- Dá-me uma ajuda, Joanna.

Stone estava vagamente consciente da proximidade do corpo possante de Marcus.

- Se ele ligar, chamem-me.

- Abre a cama, Joanna.

- E reservem-me passagem de Manila para Hong Kong. Notou que Marcus o erguia do sofá como se fosse uma saca

de batatas, aspirou o perfume de Joanna e perdeu todo o contacto com o mundo que o rodeava.

 

Sonhou que a canoa se afundava. Sentiu um peso no peito e, quando soergueu a cabeça para respirar, uma mão cobriu-lhe a boca. Cheiro a sabonete de alfazema. Despertou por completo e notou o roçar dos seios de Joanna na pele, enquanto as pernas se entrelaçavam nas suas. Os lábios deslizaram ao longo da orelha.

- O meu pai diz que não se mexa - sussurrou. - Entrou alguém em casa. - O corpo tremia.

Ao ténue clarão da lâmpada de segurança do exterior, ele viu-lhe os olhos negros detectar movimento. Uma sombra deslocou-se através da cortina. A porta de correr deslizou suavemente na calha, abrindo-se centímetro a centímetro, até que a sombra entrou no quarto.

Alguma coisa de aço reflectiu na escuridão.

Agora totalmente acordado, com a adrenalina a circular plenamente, Stone moveu-se em cima de Joanna, atirou a almofada e apressou-se a pegar no candeeiro de cima da mesa-de-cabeceira.

O intruso estava coberto da cabeça aos pés por um fato de mergulhador preto reluzente. Quando ele se esquivou à almofada, Stone achava-se preparado e atingiu-o com o candeeiro. O vulto cambaleou.

Do vestíbulo veio o som de uma caçadeira a ser engatilhada. Stone atirou o candeeiro, voltando a acertar no alvo, e o intruso deu meia volta e precipitou-se pela janela, no momento em que Marcus Salinis irrompia pela porta e «varria» o quarto com o cano da espingarda.

- Abaixem-se!

Stone imobilizou Joanna debaixo dele. A arma rugiu e vomitou fogo. Marcus ejectou a cápsula e espreitou pela janela.

- Errei o alvo...

- Afaste-se daí! - advertiu Stone.

- Não. Ele continua a correr.

- Devias ter assistido, pai! O doutor Mike começou por atirar a almofada e depois foi o candeeiro. Estupendo, Michael!

Marcus volveu o olhar para a filha, debaixo do médico.

- Sai daí e vai vestir qualquer coisa. Quanto a você... - Virou-se para Stone, que parecia indiferente à mulher desnuda, enquanto se levantava da cama para contemplar o mar escuro. - Pode explicar-me por que motivo um tipo disposto a matar-me se dirigiu ao quarto de hóspedes?

 

- Mamã!... Estou preparada para o teste.

- Qual teste?

Sarah voltou-se da janela, que emoldurava o mesmo cenário monótono do mar fustigado pela chuva desde que Mr. Jack mandara parar as máquinas.

À deriva, o Dálias Belle oscilava levemente na ondulação do mar da China Oriental, num movimento regular que fazia bailar os pequenos moldes de aviões. Mr. Jack não fornecera a menor indicação da causa da paragem e a pequena tripulação não parecia envolvida em qualquer reparação. Nessa manhã, o comandante lançara à água uma lancha Zodiak insuflável e contornara o casco. No entanto, Sarah não atribuíra significado especial ao facto, pois os comandantes de navios costumavam aproveitar todas as oportunidades para inspeccionar o exterior do costado.

Os olhos dela não se desviavam da jangada de emergência no convés da ré. Segundo a última leitura do seu SPG, o navio, pesadamente carregado, movia-se ao sabor da corrente a dois nós diários. No entanto, uma jangada salva-vidas, que flutuava como uma pena, seria arrastada pelo vento. E as cristas das ondas indicavam que este começava a mudar de rumo, no sentido oposto à corrente. A noite poderia colocar trinta ou quarenta milhas entre elas e o navio, se Sarah encontrasse a oportunidade e coragem necessárias.

O seu paciente estava sentado na cama, com um roupão de caxemira a cobrir o peito e ombro envoltos em ligaduras e os dedos mutilados em torno da omnipresente caneca de café. Moss movia-se de um lado para o outro na suíte, ameaçador como um leopardo, com miradas sombrias a Ronnie, que se sentava de pernas cruzadas aos pés de Mr. Jack, o qual lhe ensinava os nomes das partes de um dos pequenos aviões.

- Mister Jack vai perguntar-me os nomes das partes dos aviões.

- E o que acontece se acertares todas?

- Ganho um prémio.

- Qual é o prémio, Mister Jack?

A voz dele ainda era débil. Tinha um sotaque peculiar que Sarah associava aos dos actores americanos de origem irlandesa de filmes a preto e branco sobre a cidade de Nova Iorque.

- Fica com os modelos cujos nomes acertar.

- Sim? Posso, mamã?

Sarah assentiu com uma inclinação de cabeça, consciente de que a filha exibia os sinais clássicos da síndrome de Estocolmo, em que a cativa se enamorava do captor. Ao mesmo tempo, porém, dava-se conta de que quanto mais a filha encantasse Mr. Jack, menores as probabilidades de o ancião a magoar. Ou, pelo menos, assim supunha.

- Segundo prémio: se só acertares os nomes de alguns, conto-te uma história acerca do aparelho em causa. Verdadeira. Estás preparada?

- Estou.

Mas antes que Mr. Jack pudesse fazer a pergunta, Moss entrou de rompante.

- São horas de dormir um pouco, Mister Jack.

- Não, sinto-me bem.

- Não acha, doutora? Não é verdade que ele precisa de dormir?

- Desde que respire fundo, pode continuar acordado mais algum tempo.

- Quando terminarmos, a Ronnie ficará a saber mais sobre a Segunda Guerra Mundial que a maioria das crianças da sua idade. Não é verdade, minha menina?

O negro cruzou os braços sobre o peito e ficou a um canto a observar a cena.

- Bem, vamos começar com uma coisa fácil. - Mr. Jack pegou no avião e ergueu-o à sua frente. - Que nome tem este?

Ronnie espetou o queixo com ares de entendida e disse:

- E um B-vinte e cinco norte-americano.

- Tem outro nome.

- Um Mitchell.

- E que tipo de aparelho é?

- Um bombardeiro médio.

- Bem,   esta foi muito simples.   Espera pela pancada. A pouco e pouco, isto vai tornar-se dificílimo. - Ele inclinou o modelo na direcção da garota. - Que nome têm estas coisas na asa?

- Eliminadores do gelo.

- Que velocidade pode atingir?

- Quinhentos quilómetros à hora.

- E quanto aos motores?

- São Wright Cyclone de fila dupla.

Sarah escutava com meio ouvido, por assim dizer, enquanto a filha ia respondendo às perguntas com aparente facilidade.

- Quem se senta aqui?

- O bombardeiro.

- E aqui?

- O senhor.

- Que disseste? - perguntou Sarah.

- Mister Jack foi artilheiro operador de rádio - explicou Ronnie. - Lutou contra os Japoneses.

- Sim? Devia ser muito jovem, Mister Jack.

- Todos nós o éramos.

Ronnie continuou a desbobinar os nomes que ele lhe ensinara. Por fim, o ancião reconheceu:

- Portaste-te muito bem. Talvez te afastasses um pouco da realidade quanto à carga das bombas.

- Não acho.

- Disseste doze toneladas.

- Bem, queria dizer duas. Doze é a carga total, peso bruto. Sabe perfeitamente ao que me referia.

- Regras são regras.

- Fico com o segundo prémio.

- Não és nada divertida.   Renuncias muito facilmente.

- As regras são para...

- Mas queres mesmo o avião?

- É claro que quero. Mas errei uma resposta. Fica para a próxima.

Mr. Jack voltou-se para Sarah.

- Ela sai à mãe?

- E ao pai.

Dirigiu-se de novo a Ronnie.

- A história que ganhaste refere-se à ocasião em que descolei naquele aparelho de um porta-aviões.

- Não - redarguiu a garota, com firmeza. - É da Força Aérea do Exército e não da Marinha. Lembra-se, Mister Jack?

- Tens toda a razão, minha menina. Mas descolei de uma unidade da marinha. Queres saber como?

Ronnie aproximou-se, apertando o modelo entre os dedos, os olhos negros arregalados e fixos no rosto do ancião.

Sarah reflectia. Parecia que Mr. Jack personificava, para a filha, os esqueletos desaparecidos dos aviões da Segunda Guerra Mundial. Ou como se um gladiador tivesse emergido das ruínas romanas que ela, em criança, explorara no Sul de Inglaterra.

- Muito bem - disse Mr. Jack. - Como antes referi, concluí os estudos básicos pouco antes de Pearl Harbor e enviaram-me para uma escola de telegrafia. Fui o primeiro classificado e recebi ordem para me incorporar numa esquadrilha estacionada no estado de Washington, onde recebi treino intensivo. Até que, uma noite, voei para uma base isolada no meio de parte alguma. Segundo o meu companheiro, o bombardeiro, era em Wisconsin.

«Devia ter adivinhado imediatamente que havia algo de especial porque a segurança era apertadíssima. Não podíamos receber nem enviar correspondência, utilizar o telefone ou sair em gozo de licença. Exercitámo-nos em descolagens curtas. Muito curtas, mesmo. Havia um oficial da marinha que nos instruía. O que nos faltava era mesmo o raio da marinha para ensinar o que devíamos fazer! Não tardámos a descolar como foguetes. A seguir, carregámos pesos enormes, mais ou menos equivalentes aos das bombas e depósito do combustível atestado. «Um dia, voámos para oeste. Descemos para reabastecimento no Arizona e efectuámos a descolagem curta. Gostava que tivessem ouvido o homem da torre: "Vocês estão malucos?" Prosseguimos até à costa ocidental. Quando nos aproximávamos para aterrar, sobrevoámos um porto, onde se encontrava o porta-aviões Hornet, imóvel na água como num bilhete-postal, e o meu companheiro, o bombardeiro, disse: "É o nosso navio." Navio? - Os olhos do ancião arregalaram-se, e Ronnie soltou uma gargalhada. - E eu a julgar que havia assentado praça no exército! Bem, ele tinha razão e quase antes que nos déssemos conta havia dezasseis bombardeiros B-vinte e cinco na coberta como um bando de aves estúpidas. Agora, toda a gente sabia que havia moiro na costa.

- Como os transferiram para a coberta do hangar? - perguntou a garota.

- Tens uma memória de elefante. - Virou-se para Sarah, que continuava com o olhar fixo na água em baixo. - Ouviu, mamã?

Esta ponderava que haveria menos risco de ferimentos se saltassem de um navio estacionário, mas mais hipótese de alguém na coberta ouvir o mergulho na água. Depois, projectores, armas de fogo e um barco de perseguição, lançado ao mar em poucos segundos: o Zodiakl Com um motor fora de borda perto da porta do armazém, vários pisos acima da casa das máquinas. Conseguiriam elas?...

- Mamã! - chamou Moss. - Mister Jack está a falar consigo!

- Sim, Mister Jack?

- A sua filha recorda-se de que as asas dos aviões da marinha se dobravam, pelo que cabiam no elevador para a coberta ilo hangar. As nossas não, e tínhamos de os fazer descer na posição vertical. A marinha adorou isso porque não podiam utilizar os seus aparelhos com os nossos a bloquear a pista. Assim, o Hornet era um alvo fácil para os «japões» que nos avistassem.

Ronnie olhou para Sarah com desconforto e esta última observou:

- Na nossa família, dizemos japoneses e não «japões». Temos amigos em Tóquio que foram muito atenciosos para connosco, muito generosos. Houve mesmo um que se ofereceu para enviar a Ronnie para estudar na Suíça.

- Cada um chama-lhes o que quer - retrucou Mr. Jack, com um encolher de ombros. - Eu, que lutei contra eles, continuarei a tratá-los sempre por «japões». Entrámos no Pacífico debaixo do tempo mais horrível que jamais vi. Silêncio da rádio. Totalmente às escuras, durante a noite. Dezoito dias no mar, por vezes tão embravecido que não conseguíamos ver a nossa escolta. Enjoei como uma mulher nos primeiros meses de gravidez. Alguma vez enjoaste no mar?

- Não.

- Que sorte a tua! E a mamã?

- Nos últimos anos, também não - informou Sarah.

- O papá às vezes enjoa, depois de ter estado muito tempo em terra.

O rosto de Ronnie voltou a enevoar-se. E, enquanto Mister Jack reatava a sua história, com a miríade de problemas técnicos dos aviões, começou a deixar transparecer sinais de impaciência. Mister Jack deu-se conta e o semblante endureceu de forma desagradável.

- Já falou de mais para um dia - determinou Sarah. - Precisa de repousar. E tu, Ronnie, são horas dos trabalhos de casa.

- Não, mamã. Por favor.

O ancião achou graça, mas de súbito empalideceu e soltou uma exclamação de dor abafada, resultante da dor no peito.

- Tudo isto é verdadeiro - articulou, quando recuperou o alento. - Repete as palavras do Bob Marley à mamã, Moss.

- «Quem sabe a sua história, conhece claramente a sua procedência» - murmurou o negro, não sem relutância.

- Exacto. Como vê, doutora, também tenho um aluno atento. Raspa-te daqui, Moss! Agitas-te de um lado para o outro como um chimpanzé enjaulado.

Ronnie emitiu uma breve risada e Moss olhou-a com animosidade, mas tratou de obedecer e retirou-se.

«Santo Deus!», reflectiu Sarah. «Tem ciúmes da Ronnie.»

E esta, com a intuição da dinâmica dos seus dez anos, tornou a sentar-se aos pés da cama, considerando-se claramente vencedora.

- E depois, o que aconteceu, Mister Jack?

- Aos dezoito dias de viagem, a maioria da escolta afas-tou-se... para que não nos descobrissem, e continuámos em frente, um alvo fácil para o inimigo. Entretanto, o estado do oceano foi-se agravando e recebemos ordens para verificar a segurança dos depósitos de combustível e das amarras dos aviões.

O coração de Sarah palpitava tão intensamente que receava que o ancião se apercebesse. «Conseguiriam ela e Ronnie apoderar-se do Zodiak ? Era mais seguro do que saltar da coberta principal e maior o risco de serem apanhadas. No entanto, a tripulação do Dálias Belle era escassa, pois somente doze marinheiros haviam acudido quando ocorrera a fuga de gás. Depois de se encontrarem na água, ela deixaria a embarcação afastar-se ao sabor da corrente e utilizaria o SPG para se orientar em direcção à costa.»

- De repente, de bordo de um navio-vigia do inimigo, fomos avistados. O contratorpedeiro e o cruzador que ainda se encontravam connosco abriram fogo e varreram-no da superfície, mas não antes de os filhos da mãe enviarem um aviso. Eis-nos, pois, ali, umas quatrocentas milhas mais longe do alvo do que deveríamos estar. Os altos poderes ordenaram-nos que batêssemos asas imediatamente, antes que toda a armada dos japões» nos caísse em cima.

«Pusemos os motores a aquecer e o coronel descolou em primeiro lugar, esforçando-se por sincronizar a ondulação da pista com a elevação da proa, enquanto contínhamos a respira-ção. Por fim, alcançou o espaço, perdeu altitude, e posso jurar que molhou o trem de aterragem antes de começar a subir. O segundo que descolou não se espatifou por uma unha negra. Depois o terceiro, até que foi a nossa vez.

- Tinha medo?

- Se tinha... Se fosse eu o piloto, talvez não tivesse, mas o facto de estar sentado em cima de mil quilos de bombas e combustível suficiente para incendiar uma cidade dava-me vontade de rezar. Infelizmente, ignorava por completo como se fazia.

Jurei então que, se saísse dali com vida, nunca voltaria a colocar a minha salvação nas mãos de outros. O aparelho estremecia de forma incontrolável, sobretudo por causa do peso. E, entretanto, a extremidade do porta-aviões aproximava-se velozmente. «Bem, depois de abandonarmos a pista e uns segundos em que não sabíamos se levantaríamos voo ou iríamos directamente para o fundo, conseguimos começar a ganhar altitude, com setecentas milhas de mar vigiadas pelos "japões" na nossa frente, antes de alcançarmos o alvo. Quanto tempo tardaríamos, Ronnie?

- Hum... Duas horas e meia.

- A uma velocidade de trezentos nós, sim. Mas tentávamos poupar combustível, pelo que abrandámos para dois e vinte e cinco, quase a acariciar as ondas.

- Umas quatro horas.

- Apanhámos os «japões» de calças na mão. Estavam convencidos de que os aparelhos da marinha que tinham visto no porta-aviões não dispunham de um raio de acção superior a trezentas milhas. Portanto, enquanto os filhos da mãe procuravam o navio na marca das trezentas milhas, nós já nos encontrávamos no ar e avançávamos a baixa altitude. Apanhámo-los totalmente desprevenidos. Acercámo-nos de terra, sobrevoámos as aldeias de pescadores e ilhas da área e depois o nosso comandante fez-nos subir algumas centenas de metros e avistámos então o alvo. A esquadrilha devia atingir alguns cais, que se situavam exactamente onde o navegador dissera.

«O aparelho sofreu um violento solavanco, quando começámos a lançar as bombas.

Mister Jack sacudiu o modelo entre os dedos e estremeceu de dor devido ao movimento repentino.

- Um autêntico salto - prosseguiu. - Vi as bombas explodir como flores ensanguentadas e os cais voarem em pedaços. De repente, em frente, surgiu um largo depósito de combustível. Se poupássemos as bombas e atingíssemos aquilo, toda a cidade arderia. Naqueles tempos, era feita de cartão.

- Qual cidade? - quis saber Sarah.

- Tóquio! Qual havia de ser?

Sentiu-se confusa. Perto do final da guerra, Tóquio fora virtualmente varrida do mapa por bombas incendiárias. Mas Ronnie abarcou a situação imediatamente.

- O Raid Doolittle! Lembras-te, mamã? Logo a seguir ao ataque de surpresa. Trinta segundos sobre Tóquio? Foram vocês que fizeram isso, Mister Jack?

- Sim, eu e os meus camaradas - admitiu o interpelado, modestamente. - A réplica a Pearl Harbor. Para que aprendessem. Quem ataca os Estados Unidos, pode contar com a retaliação. Mas se tivéssemos atingido o depósito de combustível, torrávamo-los todos até à medula.

- Fantástico. Como regressaram?

- Foi o mais difícil. Não dispúnhamos de carburante suficiente para voltar para o Hornet, pois seguia para Pearl Harbor à velocidade máxima, com a tripulação aliviada por se ter livrado de nós. Portanto, seguimos em frente, rumo à China, esperançados em aterrar algures que não fosse ocupado pelos «japões». O pior era que ocupavam quase todo o território chinês.

- O que aconteceu?

Mr. Jack depositou o modelo nas mãos de Ronnie.

- Coloca-o no seu lugar, por favor.

A garota pôs-se de pé na cama e tornou a prender a miniatura no arame.

- Mas o que se passou a seguir?

O ancião assumiu uma expressão sombria. Ronnie observou-o solenemente e depois ajoelhou-se a seu lado e rodeou-lhe os ombros com o braço.

- Já chega - interveio Sarah. - Vai ler para a sala, Ron-nie. Preciso de examinar Mister Jack.

A garota encarou-a com ar de desafio, mas, quando viu a gravidade desenhada no semblante da mãe, retirou-se da cama e do camarote, detendo-se antes de transpor a porta para se certificar de que Moss não estava visível.

Sarah também espreitou, após o que fechou a porta.

- Cinco minutos.

Entretanto, Mr. Jack reclinara-se nas almofadas e fixava os olhos nas mãos, enquanto o rosto se tornara lívido.

- Parece que exagerei, doutora.

- Espero que agora compreenda por que razão o quero no hospital.

- Porque mandou a Ronnie sair?

- Como acaba de dizer, exagerou.

- Escute, doutora. Tenho praticado muitos actos que a senhora decerto considera maus e tenho planos para muitos mais. Mas abusar de crianças nunca figurou na minha agenda. Posso garantir-lhe que a sua filha não corre perigo comigo.

- Não hesita em invocar a vida dela como ameaça sobre mim.

- Preciso de si, doutora. Recorrerei a todo o meu peso, mas asseguro-lhe que não puxarei dos galões. Mantenha-me forte, e nenhuma das duas terá nada a temer.

- Essa atitude aplica-se igualmente ao Moss?

- Sem dúvida.

- E se ele decidir actuar por sua conta?

- Não o fará... a menos que a doutora o provoque. Tenciona provocá-lo?

- Sabe perfeitamente que não estou em condições de o fazer.

- Desde que o reconheça...

Ele olhou Sarah com intensidade, porém ela verificou que estava cansado, fraco e assolado por dores, e perguntou-se, com uma repentina ponta de esperança, se a síndrome de Estocolmo poderia funcionar no sentido inverso, sendo a cativa médica e o captor seu paciente. Sempre a surpreendera, quando tirocinava em Londres, o facto de até os médicos mais incompetentes exigirem uma lealdade quase irracional a um paciente dominado pelo sofrimento.

Sentou-se na borda da cama e pousou os dedos frios no dorso da mão mutilada de Mr. Jack, cujas pálpebras pareciam manter-se abertas com dificuldade.

- Diga-me - murmurou.

- O quê? - inquiriu ele, galvanizado pela suspeita.

- O que não pôde dizer à Ronnie. O seu avião aterrou na China?

- Na província de Chekiang. Pousámos num campo de arroz.

- E salvaram-se?

- Todos menos o bombardeiro, que se afogou.

- A província de Chekiang era território ocupado?

- Nessa altura, não. Ainda estava em poder dos nacionalistas. A aldeia promoveu uma festa de arromba em nossa homenagem e depois seguimos para Chongqing, a capital do general Chang Kai-Chek.

- Não chegaram lá, pois não? - perguntou Sarah, a meia voz.

Ele conservou-se imóvel e silencioso durante tanto tempo que ela supôs que tinha adormecido.

- Quer que chame uma manicura? - perguntou de repente.

- Perdão?...

- Foi o que a Kempeitai me perguntou.

- Cada vez compreendo menos, Mister Jack.

- Kempeitai. é um termo dos «japões» que significa polícia secreta.

- Estou a entender.

- Está a ver? - Ergueu a mão. - Era a isto que os membros da kempeitai se referiam ao perguntar se queria que chamassem uma manicura. Mas a senhora não gosta que lhes chame «japões».

- O Japão foi destruído no final da guerra, graças à bravura de militares como o senhor. Mas, derrotados, os Japoneses fizeram tudo o que os Aliados lhes exigiram.

- Devo perdoar-lhes porque perderam?

- Seria um gesto cristão.

- Ah, sim? Onde raio estava Cristo, quando eu gritava para que me acudisse?

Ela estremeceu ao ver a intensidade do ódio desenhado nos olhos do interlocutor.

- Onde o meu marido e eu vivemos, os ilhéus ainda chamam à guerra «A Grande Luta». E foi uma grande luta, em que a crueldade abundou. O que interessa, hoje, é que o povo japonês renasceu no último meio século como um dos mais pacíficos da Terra.

Mr. Jack exibiu um sorriso sardónico.

- Porque tem contado com os velhos e bondosos Estados Unidos da América para executar os seus morticínios, enquanto aplica o autocolante do Sol-Nascente em tudo. É cega, doutora? Vencemo-los com limpeza por violarem e assassinarem ao longo de metade da Ásia e, mal voltámos as costas, recomeçaram a fazê-lo. Só que desta vez nós fornecemos os músculos para manter os comunistas em respeito... que os refreariam como fizeram da última vez. Os Japoneses são um povo perigoso, doutora. Não os conhece como eu.

- Talvez tenha sido mais afortunada nos meus conhecimentos.

- «Talvez tenha sido mais afortunada nos meus conhecimentos» - mimou ele, com novo sorriso escarninho. - Mostre-me os seus dedos, doutora... Sim, tem sido «mais afortunada».

- Não nego que o senhor sofreu.

- Julga que é só de mim que falo? Por amor de Deus, doutora. E os duzentos e cinquenta mil chineses que eles mataram? Pessoas chacinadas! São autênticos monstros.

- Os seus filhos e netos não o são.

- Monstros com novos rostos. Estão a apoderar-se do mundo. E, quando terminarem de o fazer, descalçarão as luvas e oferecerão unhas arrancadas a toda a gente.

- Não podemos condenar todo um povo pelos actos hediondos de alguns.

Mr. Jack soltou uma gargalhada.

- Quer ouvir uma coisa engraçada? Esbarrei no tipo.

- Qual tipo?

- O agente da kempeitai.

- O homem que o torturou?

- Foi há uns cinco ou seis anos. Eu estava em Singapura a negociar transportes de gás com os Indonésios e notei uma pressão exterior, como se alguém pretendesse comprometer o acordo. Como calculei imediatamente que só podiam ser os «Japões», propus que nos encontrássemos em Hong Kong, um terreno neutro. Eles enviaram uns tipos de nível médio, num insulto deliberado. Em face disso, puxei alguns cordelinhos para torpedear um negócio que eles tinham com Pequim, o que lhes despertou a atenção e convidaram-me para almoçar em Tóquio. Uma refeição à base de sushi. Alguma vez comeu sushi ?

- Com certeza.

- Vivo? Duvido, doutora. Esses tipos... indivíduos importantes... comem lagostas vivas. Os pobres crustáceos ainda se contorcem, quando os separam da casca. Um espectáculo horrível. E quem estava presente? O filho da mãe que me tinha arrancado as unhas, depois de se divertir a introduzir lascas de bambu por baixo delas. De fato azul e gravata vermelha, como um empresário importante.

- Tem a certeza de que era o mesmo homem?

- Absoluta. Tal como ele a meu respeito. Eu calçava luvas, mas o patife sabia perfeitamente quem eu era. - Mr. Jack emitiu uma risada seca. - A lagosta viva dele escorregava pela garganta com visível dificuldade. Deixei o filho da mãe cozer no seu próprio suco. Não fiz a mínima alusão ao assunto, enquanto firmávamos o negócio. No final, descalcei a luva para o tradicional aperto de mão.

Os dedos crisparam-se no lençol, enquanto os olhos brilhavam ao recordar a cena.

- Aconteceu-lhe uma coisa curiosa. Um mês mais tarde, foi raptado em Jacarta. Uns alucinados fundamentalistas muçulmanos tiveram a estranha ideia de que ele dispunha de acesso às reservas de plutónio japonesas.

- Mas os Japoneses não armazenam plutónio.

- Isso é que armazenam, minha cara doutora. O suficiente para um arsenal, sem dúvida para uma emergência. De qualquer modo, os raptores queriam plutónio. Na realidade, tinham sido mal informados e ele era totalmente alheio ao assunto. No entanto, fartaram-se de o interrogar, com o recurso a alguns «incentivos», até que o coração cedeu. - Fez uma pausa e olhou Sarah com intensidade. - Aguentou duas semanas.

Ela necessitou de recorrer a toda a sua força de vontade para não estremecer visivelmente.

- Ficou satisfeito? - perguntou com naturalidade. O sorriso escarninho voltou a aparecer.

- Que lhe parece?

 

O shuttle da tarde da Air Philippines para Hong Kong transportava mulheres com classe que falavam o espanhol das classes elevadas. Algumas dirigiam olhares levemente especulativos ao macilento americano que se encaminhava para a classe económica, quase superlotada com empregadas domésticas de expressão amargurada que regressavam ao trabalho após uma visita a casa. Stone instalou-se no lugar junto da janela, exausto, mas ansioso por dormir, e pousou o rosto no plástico para esquadrinhar o mar da China Meridional em busca de um navio cor de areia.

Não tivera sorte em Manila: Patrick desaparecera «no campo», segundo a sua amiguinha, a qual não fazia a menor ideia de quando o mercenário regressaria.

O comandante McGlynn ainda não tinha telefonado quando Stone se despedira de Marcus, no aeroporto de Koror. E Lydia Chin tão-pouco.

- Tenha cuidado - recomendara-lhe Salinis. - Continuo convencido de que aquele tipo não era a mim que queria matar.

Não obstante, Stone tinha a certeza de que o quarto de hóspedes proporcionava um acesso mais fácil à casa e o verdadeiro alvo do intruso era na realidade Marcus, pois ninguém sabia que ele se encontrava em Koror.

Esvaziara o seu cofre do banco e pagara as passagens em dinheiro. Este constituiria um problema, se tivesse de gastar muito mais em viagens e obtenção de informações.

Acalentava a esperança de que houvesse mensagens à sua espera no Iate Clube de Hong Kong. Algures nos círculos marítimos tinha de figurar a indicação de um navio desaparecido, uma alusão, ainda que vaga, ao motivo pelo qual a tripulação raptara uma médica.

A sua melhor especulação consistia em que o transporte de gás tivesse sido assaltado pela sua preciosa carga. Comprimido em líquido por superarrefecimento, o seu volume era enorme e valia milhões. E como a corrupção constituía um modo de vida na costa sul da China antes de a República Popular da China a institucionalizar, os assaltantes provavelmente tinham tomado as providências necessárias para vender o gás a uma central eléctrica do governo, que actuaria como unidade receptora, por metade do preço.

Marcus discordava. Como se explicava que nenhum dos seus «contactos», espalhados por toda a Micronésia, estivesse ao corrente do assalto? E porque não circulavam rumores através da rede dos radioamadores?

- Refere-se a pirataria. Onde está a tripulação? Onde se encontra o navio que deixou de dar notícias e há muito que devia ter chegado a um porto? Como se explica que ninguém saiba que desapareceu?

- O oceano é enorme.

- Alguém é esperado algures.

Stone suspeitava de uma sofisticada troca de documentos. Navios, arrendamentos e cargueiros de petróleo eram vendidos e permutados quase de um modo rotineiro. Os responsáveis decerto teriam coberto o seu rasto com a falsificação da papelada de vendas, revendas e registos imaginários, cobertos com in-lormações fictícias pela rádio. Um comandante no lado menos confortável de uma arma de fogo transmitiria exactamente o que qualquer assaltante lhe ordenasse. Tal como procederia uma médica acompanhada de uma criança.

Enquanto aperfeiçoava a sua teoria a bordo do aparelho da Air Mike a caminho de Manila, Stone especulava que o «velho» ferido era na realidade o chefe dos assaltantes, que fora atingido durante a operação. Como não o podiam levar a terra para receber cuidados médicos, haviam recorrido a Sarah para o tratar até venderem o gás e abandonarem o navio.

Neste ponto, o seu raciocínio tornou-se obscuro. E assustador.

Como se esquivariam às autoridades, depois de receberem o dinheiro? Não podiam deixar o navio ancorado no porto da central eléctrica que lhes pagara a carga. Nem vendê-lo. O que significava que tinham de o levar para o largo e inundar os porões para que se afundasse.

Nessa eventualidade, que fariam a Sarah e Ronnie?

O jacto iniciou a descida para Hong Kong. Era a primeira chegada dele por via aérea. Vinte e cinco anos atrás efectuara a mesma viagem por mar, quando era um jovem médico da marinha interno a bordo de um vaso de guerra. Todas as visitas subsequentes tinham sido efectuadas com Sarah, no Verónica.

Uma neblina escura no horizonte foi-se solidificando, até se converter nas colinas azuladas da província de Guangdong, que se prolongavam para norte, entranhando-se no continente. Os picos e ilhas da cidade polvilhavam o mar e dominavam uma costa sem qualquer outro ponto de referência. Stone orientou-se pelas colinas da ilha e pela profunda incisão de Tai Pang, e, durante a aproximação final de sueste, apercebeu-se do altamente concorrido abrigo de tufões de Causeway Bay, a superfície coberta de juncos e sampanas, com o Iate Clube de Hong Kong a ocupar a extremidade ocidental.

O terminal de Cheklapkok era um manicómio. Nenhum dos voos nem a breve paragem em Manila o haviam preparado para aquela babilónia de gente e ruído, a que se achava extremamente sensível depois de semanas no mar. Canalizado para a Imigração e Alfândega, segurava o passaporte com a estranha sensação de percorrer território inimigo completamente despido.

Era a sua primeira visita desde que a China substituíra o domínio britânico. Os comunistas tinham prometido deixar o capitalismo florescer na cidade da quinta-essência capitalista nos próximos cinquenta anos, porém a República Popular era uma ditadura, e Deus sabia que computorização os dirigentes de Pequim haviam acrescentado aos controlos de imigração britânicos ou o rigor com que lhe inspeccionariam os documentos.

Descortinou o seu reflexo numa divisória de vidro e achou que tinha um aspecto inofensivo. Joanna Salinis cortara-lhe o cabelo e ele aparara a barba, e a pele bronzeada não diferia muito da dos turistas demasiado expostos aos raios solares. Ela também lhe proporcionara roupa lavada: calças de caqui, uma camisa de meia manga e um impermeável de aspecto dispendioso, que, durante o mês de Dezembro em Hong Kong, lhe seria útil.

A mochila algo coçada lembrava um pouco a imagem do «médico aposentado», que Stone inscrevera à frente de ocupação, no cartão de entrada. Resolveu retirá-la de cima das costas e segurá-la pela correia. Embora Hong Kong desse as boas-vindas a toda a gente, era essencialmente uma cidade de negócios, onde um fato azul e gravata impunham um certo respeito. Adiante de motivo da visita escrevera «Recolher o iate».

Hesitara antes de decidir qual dos passaportes apresentaria. O dos Estados Unidos constituía uma falsificação excelente, mas teve relutância em o utilizar num lugar onde um sistema sofisticado poderia detectar o número falso. Resultava mais seguro nas ilhas remotas, onde ele e Sarah costumavam ser recebidos como convidados de honra e as entidades oficiais podiam considerar-se afortunadas se dispunham de uma esferográfica que funcionasse.

Ao invés, resolveu apresentar um passaporte mais ou menos genuíno da República de Palau, que Marcus lhe fornecera, quatro ou cinco anos atrás, e confirmava o disfarce geral de médico americano aposentado no paraíso. O funcionário chinês da imigração examinou-o, juntamente com o cartão de desembarque, em que Stone indicara o Iate Clube de Hong Kong como seu endereço local, e apôs o carimbo.

Retirou o passaporte norte-americano do compartimento oculto na mochila e guardou-o na algibeira para a eventualidade de a alfândega a revistar. No entanto, foi mandado seguir sem qualquer exame especial e arrastado por uma vaga de compradores, empregadas domésticas, turistas e homens de negócios asiáticos para uma caótica sala de chegada, onde representantes de hotéis de cinco estrelas escoltavam os clientes para as suas limusinas. Um agricultor do interior que segurava uma mala de cartão embateu em Stone e desfez-se em desculpas. Um burocrata de Pequim passou apressadamente entre ambos. Michael desembaraçou-se deles quase com brusquidão e dirigiu-se para a porta.

- Importa-se de nos acompanhar, por favor?

A voz provinha de trás, eriçada de autoridade. Ele voltou-se e depararam-se-lhe dois polícias uniformizados - um alto e louro britânico ao lado de um chinês.

 

O britânico era mais alto do que Stone, de dedos firmes, quando lhe pousou a mão no ombro para o orientar através da multidão, a qual abria alas em face dos uniformes. Surpreendido por ver um guarda ocidental, ele refreou o andamento.

- Quem é você?

- Um ornamento de montra - foi a resposta, com desprendimento. - Os Chineses ficaram com alguns de nós... despromovidos a sargentos... porque a visão de bobbies sorridentes põe os homens de negócios ocidentais mais confortáveis perante o novo governo de Hong Kong. Acompanhe-nos, por favor.

- Qual é o problema?

- Uma mera formalidade. Estou certo de que poderá seguir o seu caminho dentro de momentos.

- Que espécie de formalidade? Acabo de passar pela Imigração.

- Cujos funcionários nos informaram. - Os dedos firmes tornaram a exercer pressão e o polícia chinês avançou um passo.

- Calma - recomendou Stone. - Não fujo. Limitei-me a perguntar qual era o problema.

Tentou abrandar o andamento, mas o polícia chinês pegou-lhe no outro braço e a multidão começou a arregalar os olhos perante o que parecia ser uma detenção. Dois guardas uniformizados abriram a porta e saudaram o britânico, que, luntamente com o colega chinês, conduziu Stone para um Rover sem qualquer insígnia estacionado junto do passeio.

- Um momento. Que significa isto?

Sem lhe soltar o braço, o oriental abriu a porta de trás do carro, enquanto o sargento dizia:

- Não agravemos a situação. Suba e conversaremos na central.

No entanto, ele não se moveu.

- Quero saber que raio significa isto.

- Assim que chegarmos, poderá contactar com o Consulado americano - informou o outro, com uma expressão dura. - A menos que me obrigue a pedir ajuda - continuou, indicando com um movimento de cabeça os guardas postados junto da porta. - Em cuja eventualidade lhe garanto que passará uma noite desagradável numa cela imunda. E, agora que nos entendemos, suba para o carro.

A última coisa que Stone se podia permitir era perder tempo. Se se tratava de uma diligência de rotina, o seu passaporte de Palau servia perfeitamente. Já passara sem novidade através da Imigração, e o senador - ex-presidente - Salinis poderia confirmar a sua autenticidade pelo telefone. Além disso, tinha amigos no iate clube. E podia contactar com os advogados de Lydia Chin.

- Muito bem.

O sargento sentou-se a seu lado. Em seguida, o até então mudo polícia chinês conduziu o Rover para fora do recinto do aeroporto, através da Ponte Kowloon e ruas estreitas, exibindo os dentes num leve sorriso cada vez que fazia soar a sirene. Stone perdeu-se imediatamente, enquanto passavam diante de fábricas e bairros miseráveis, com artérias sinuosas. Não obstante, tinha a impressão de que se dirigiam para o interior, mais para o centro da península de Kowloon do que rumo ao porto.

- Escusa de insistir tanto no apito, cabo Fong - indicou o sargento. - Não é como se acabássemos de capturar os assaltantes do comboio-correio.

E piscou o olho a Stone, como se pretendesse dizer: os nativos nunca serão outra coisa. No entanto, em vez de o tranquilizar, algo que dissera no terminal começava a percorrer-lhe a coluna vertebral como um fio de gelo.

- Acha mesmo que vou precisar do cônsul americano?

- Duvido - foi a resposta, proferida com naturalidade. - Em todo o caso, é sempre conveniente não esquecer que existe, hem?

- Sim, se eu fosse súbdito dos Estados Unidos.

- Perdão?... - O sargento fitou-o com estranheza.

- Na Imigração, deviam ter-lhe dito.

- O quê?

- Que sou de Palau.

O cabo Fong desviou momentaneamente os olhos para o espelho retrovisor e calcou o pedal do acelerador, enquanto o sargento introduzia a mão na túnica. Demasiado tarde, Stone compreendeu que não fora detido, mas raptado.

- Quem diabo?... - começou, enfurecido. Percorrera duzentas e cinquenta milhas através do Pacífico

numa simples canoa para tentar localizar Sarah e quase perdera a vida nos recifes de Angaur, pelo que não estava disposto a permitir que tudo terminasse numa viela de Hong Kong.

De súbito, afundou os ombros no espaldar do banco, estendeu as pernas com todo o vigor de que dispunha e atingiu uma das orelhas do condutor com os calcanhares. Impelido com força contra a janela, os olhos do cabo Fong rolaram nas órbitas. O Rover atingiu um camião de raspão, derrapou no pavimento molhado e embateu num posto de venda de peixe, cujas caixas de madeira voaram em todas as direcções, ao mesmo tempo que os clientes fugiam espavoridos.

Quando o veículo atingiu a parede de tijolo, o seu air bag explodiu no rosto do cabo Fong, e o sargento foi projectado para o chão. Este último aplicou um pontapé em Stone, que o atingiu com um dos punhos e introduziu a outra mão na túnica do homem, numa tentativa para se apoderar da arma. Era uma pequena pistola automática de calibre 22 - um instrumento de assassino -, cujo cano pousou na fronte do britânico.

- Quem os enviou?

- Vá-se lixar!

No banco da frente, Fong debatia-se em torno do air bag esvaziado, que lhe lacerara o rosto, e tentava abrir a porta. Stone transferiu o cano da pistola da fronte para um dos olhos.

- Quem os enviou? - repetiu.

- Não sei - replicou o britânico, friamente. - Só sei que você não tem tomates para disparar.

Os fechos das portas abriram-se e Fong saltou para fora. Entretanto, formara-se uma pequena multidão de curiosos, que apontavam para o lugar de venda de peixe, destroçado, e dois carros estacionados que tinham sido atingidos. O britânico tentou desembaraçar-se de Stone e alcançar a porta, e a única maneira de o impedir consistia em o alvejar. Todavia, a multidão cercara o Rover e a Polícia não tardaria a aparecer. Ou porventura ele fora médico demasiado tempo para suprimir uma vida, por muito provocado que fosse?

- Espere. Diga a quem os enviou que só exijo a minha mulher e filha.

-Venha comigo. Eu levo-o à presença deles.

- Onde?

- Não é longe. Vamos.

Era mentira. Ele desejava acreditar, daria tudo por acreditar. No entanto, eles não teriam armado o estratagema da polícia se conservassem Sarah e Ronnie em seu poder. O britânico não passava de um assassino contratado, o que provou no instante em que viu que Stone não tragara o seu estratagema.

- Vá rezando para que os verdadeiros polícias o prendam primeiro - ameaçou.

Saltou do carro e fez dispersar os curiosos que se achavam na frente, o cabelo louro como um farol em contraste com o negro do chinês.

Stone guardou a pistola na mochila e partiu no sentido oposto. Dois polícias uniformizados emergiram da esquina e ele começou a correr. Se encontrassem a automática em seu poder... Avistaram-no quase imediatamente e, por instantes, entrou em pânico. De repente, porém, sentiu-se alerta, com a adrenalina a circular velozmente no organismo. Correu para eles, ao mesmo tempo que agitava os braços e dizia:

- Podem indicar-me como se vai para o Hotel Península? Cruzaram-se com ele sem parar e um apontou com o polegar para a rua de onde vinham.

Voltando-se para trás repetidamente, continuou a correr

até que as ruas se apresentaram mais largas. Subiu então para Um autocarro e apeou-se onde a Nathan Road estava repleta de hotéis e torres de escritórios. Quem teria contratado o britânico? Como soubera ele onde o encontraria?

Uma estação do metropolitano pareceu-lhe um lugar seguro. desceu a escada apressadamente e entrou para uma composição que se dirigia para o centro.

A realidade afigurava-se-lhe arrepiante. Quem levara Sarah e Ronnie no Dálias Belle dispunha de meios para poder atacar fora do navio.

Marcus não se equivocara. Era ele, Stone, que os desconhecidos procuravam em Palau. Mas como sabiam que se encontrava lá? Teriam obrigado Sarah a revelar-lhes para onde seguiria, se conseguisse safar-se do atol? Até que ponto a teriam torturado para que falasse? Ela era corajosa. Ele tentou fechar o espírito a essa parte da situação. Contudo, não o conseguiu e suplicou aos deuses que a preocupação com a segurança de Ronnie a houvesse impedido de manifestar coragem excessiva.

Uma explicação diferente começou a assumir forma. Uma possibilidade muito mais agradável, a que se apegou desesperadamente. Dar-se-ia o caso de os raptores terem descoberto o destino do telefonema de Sarah para Marcus Salinis? Depois, haviam colocado o telefone dele sob escuta, para a eventualidade de Stone recorrer à mesma fonte.

Com certeza. Fora assim que o tinham localizado. O próprio Marcus admitira que os seus telefones estavam sob escuta. No entanto, em Koror, ele achava-se demasiado cansado e confuso para discordar de que os seus inimigos políticos eram os causadores. Eles decerto haviam determinado o destino da chamada de Sarah. O assalto à casa e a tentativa de rapto no aeroporto eram resultantes disso.

O iate ancorado diante da casa de Marcus e os falsos polícias em Cheklapkok eram operações complicadas e dispendiosas, o que significava que não ficariam por aí. Stone precisava de se inteirar de tudo o possível em Hong Kong e sair dali, antes que o encontrassem.

Da estação central do metropolitano, telefonou a Lydia Chin, mas a secretária informou que ainda não regressara do continente.

- Volte a ligar mais tarde.

- Diga-lhe que estou no Iate Clube.

Tomou outra composição para Causeway Bay e caminhou em direcção à água e ao longo da Gloucester Road, paralela a uma auto-estrada que bloqueava o litoral. Um pouco adiante do Hotel Excelsior, abriu uma porta metálica sem qualquer indicação, esquadrinhou a rua com o olhar, à procura do loiro britânico, desceu apressadamente um lanço de degraus, percorreu um túnel subterrâneo por baixo da auto-estrada e emergiu junto do abrigo de tufões. O Iate Clube situava-se no extremo da península. Para chegar lá, havia necessidade de cruzar primeiro o parque de estacionamento do Clube dos Oficiais da Polícia de Hong Kong.

Não havia qualquer mensagem para ele.

O Iate Clube era sobranceiro ao abrigo e a Victoria Harbour. Brilhavam centenas de luzes a bordo de iates, juncos e sampanas fundeados quase em contacto uns com os outros, enquanto, do outro lado da água, milhões delas iluminavam a costa de Kowloon.

O bar era típico de um clube daquela natureza, menos atraente que a maioria, mas rico em história. Numa parede de insígnias de clubes de todo o mundo pendia um colete salva-vidas com os dizeres: «Este clube foi reaberto pela guarnição do HMS Vengeance em 8 de Setembro de 1945», em comemoração do final da ocupação japonesa de Hong Kong durante a Segunda Guerra Mundial. Stone e Sarah sentiam-se enaltecidos com a categoria de membros honorários que lhes tinha sido concedida, quando constara que possuíam uma clínica flutuante.

A hora dos cocktails aproximava-se do fim e a maioria dos presentes começava a transferir-se para a sala de jantar. Entre os bebedores mais ferrenhos que restavam, havia um possante australiano conhecido por «A Fera», como Stone recordava perfeitamente.

Quando se acercou dele, o homem olhou-o com um clarão de reconhecimento e exclamou:

- Conheço essa cara! É o doutor Mike. - Apertou a mão de Stone com a pressão de uma tenaz. - Sou o Bob Simmons. Acaba de chegar?

- Vim de avião, de Manila.

Exibiu uma expressão maliciosa.

- Deixou o barco a cargo da patroa e veio a Hong Kong para um pouco de distracção clandestina? - Fez sinal ao bar-man chinês para que servisse uma bebida a Stone. - Parece um pouco em baixo, amigo.

Michael recordava-se de que, quando não se achava no mar, o interlocutor exercia a actividade de corretor da bolsa e de outros valores. Por conseguinte, podia conhecer alguém que lhe fosse útil.

- Ouviu falar do assalto?

- Toda a gente diz que foi a Marinha chinesa.

- Hem? Um transporte de gás enorme? Comandado por um americano?

«A Fera» enrugou a fronte e meneou a cabeça.

- Não, julgava que se referia ao palácio de gim flutuante de que se apoderaram ao largo de Tai Pang. Lançaram os tripulantes aos tubarões e fugiram para as ilhas San-Men.

- Refiro-me a um navio. Os Filipinos não falavam de outra coisa. Ninguém sabe do seu paradeiro. Aparentemente, desapareceu pura e simplesmente.

- Ter-se-á afundado?

- Não houve qualquer pedido de socorro. Consta que foi tomado por alguém.

Encolheu os ombros.

- A nossa maior dor de cabeça são as canhoneiras chinesas. As lanchas torpedeiras do Exército de Libertação Popular. Converteram-se em piratas... A colónia transformou-se num inferno, em noventa e sete, com as tríades à rédea solta. Juntaram-se ao Exército de Libertação e agora não há quem os segure.

Entre as suas tenebrosas actividades figuram o rapto de estrelas de cinema importantes, tráfico de órgãos, roubo de Benzes, que despacham para o continente, etc.

- De facto, estou um pouco em baixo, como referiu há pouco. - Stone pousou a mão na fronte. - Tive um dia esgotante.

Naquele momento, um jovem uniformizado entrou no bar exibindo um rectângulo de cartolina com «dr. michael» garatujado.

Stone precipitou-se para o telefone.

- Folgo imenso em ouvi-lo, Michael - disse a voz de Lydia Chin. - Como está a Sarah?

- Nada bem. Preciso da sua ajuda.

- Já jantou?

Lydia vivia por cima da central. Stone pediu ao porteiro que chamasse um táxi e aguardou à saída do clube. Várias sampanas acudiam ao abrigo de tufões. O vento leste transportava um nevoeiro frio e o som de televisões dos juncos ancorados. A distância, ele descortinou as luzes imprecisas de um enorme iate de luxo fundeado.

Soou uma buzina e surgiu um táxi à entrada da passagem de acesso.

- Foi o senhor que chamou um táxi?

No entanto, uma voz atrás de Stone advertiu:

- Um momento, amigo.

Era «A Fera», que oscilava um pouco no topo dos degraus.

- Vou para a central. Se quer boleia...

Fez-lhe sinal para que se aproximasse e em seguida pousou o indicador nos lábios teatralmente, enquanto murmurava:

- Uma palavrinha, doutor.

- Tenho pressa.

- Este não é o seu táxi.

- Acabo de o mandar chamar... ou é o seu?

- Ou muito me engano ou o condutor vai puxar de um revólver e exigir-lhe a carteira, assim que dobrarem a esquina.

Stone observou melhor o veículo. O motorista usava uma camisa branca e óculos de plástico. Dar-se-ia o caso de eles o terem localizado?

- Pensava que só faziam isso em Manila.

- A moda começou a pegar também aqui. - «A Fera» enfiou a cabeça na janela do táxi e disparou: - Fora daqui, ou chamo a Polícia!

O homem não esperou pela repetição da ordem e obedeceu.

- Tem a certeza? - perguntou Stone.

- Ele raspou-se, não foi?

Olhou para o gigantesco indivíduo, impressionante como um penedo, beligerante, e reflectiu: «Não entremos em pânico.» Na verdade, o motorista do táxi podia ter-se limitado a ficar fora do alcance do enorme australiano.

- Vem aí o seu transporte - indicou «A Fera».

- Sim, talvez tenha razão - admitiu Stone. - Com efeito, o outro apareceu demasiado cedo.

- De facto, uma boleia para a central dava-me jeito.

A presença do possante indivíduo foi tranquilizadora no percurso para a central, mas, depois de o deixar no Hotel Mandarim, Michael passou a manter os olhos bem abertos.

O prédio de apartamentos de Lydia tinha um pequeno jardim à entrada e um repuxo cuja água brotava com uma suavidade quase musical. Situava-se a meio de Victoria Peak, numa secção que, na primeira visita dele a Hong Kong, se compunha de residências privadas que se erguiam em socalcos.

A segurança era apertada. Dois porteiros confirmaram o nome de Stone numa lista. Depois, um ajudante acompanhou-o através de um átrio de mármore italiano até ao elevador particular de Lydia e premiu o único botão.

A cabina subiu trinta andares e a porta abriu-se para um vestíbulo, onde um serviçal chinês de meia-idade o saudou e conduziu a uma sala com vista para a cidade, cujas luzes se espraiavam para norte em direcção à escuridão da China.

Lydia Chin era uma chinesa de Hong Kong. Fora aqui educada e lançada inesperadamente para o negócio da família, quando o irmão demonstrara que tinha menos inclinação para essa actividade do que para praticar ténis. O pai, um homem prático que construíra uma fortuna substancial como armador de pesca durante a Guerra da Coreia, preferira colocar a jovem à testa da empresa, em vez de um desconhecido. O marido trabalhava para um dos entrepostos que a República Popular da China comprara aos Ingleses e visitava Tóquio em meses alternados.

Era baixa, atraente sem espavento e exprimia-se com sotaque britânico.

- O Robert vai ter pena de não se encontrar cá. Seja bem-vindo, Michael, seja bem-vindo. - Saudou-o de mãos estendidas, mas quando ele se aproximou enrugou a fronte com perplexidade. - Está com um aspecto... Não se sente bem?

Ele explicou o que sucedera a Sarah e Ronnie, o que lhe acentuou a estranheza.

- Custa-me a crer...

- Mas aconteceu.   Constou-lhe alguma coisa sobre um transporte de gás assaltado?

- Não.

- Nada? Tem a certeza? Algum rumor ou...

- Absolutamente nada, Michael. Apenas me chegaram aos ouvidos as habituais abordagens no estreito de Malaca. Vários navios nas proximidades de Hong Kong têm sido inspeccionados em busca de divisas e tabaco de contrabando. Assassinaram um comandante no rio das Pérolas. Enfim, as ocorrências do costume, mas nada à escala do que sugere.

- Não «sugiro». Assisti com os meus próprios olhos.

- Com certeza. Não era minha intenção... Tivemos um transporte de carros hondurenho levado em plenas águas de Hong Kong, mas foi a marinha chinesa que acabou por devolvê-lo... menos alguns Mercedes, claro. - Ela abanou a cabeça. - Mas não me constou nada sobre qualquer transporte de gás. Tem a certeza absoluta?

- Repito que vi com os meus próprios olhos. Além disso, a Sarah deixou aquela mensagem que referi.

- Bem, se o navio se dirigiu para Xangai, é onde ela se deve encontrar agora.

- Tem lá amigos de confiança?

- Rivais - explicou, com um sorriso. - Somos canto-neses.

- Eu sei. Pensei apenas...

A maior parte dos grandes armadores de Hong Kong chegara como refugiados de Xangai, após a revolução de 1949, e a família de Lydia não pertencia à sua classe.

- Tem a certeza de que ela não contactou pela rádio com as autoridades?

- Quais autoridades?

- A Marinha dos Estados Unidos, por exemplo - explicou Lydia, olhando-o com intensidade.

- Tenho.

- Porquê?

Stone queria inventar mentiras - não confiava na marinha ao ponto de acreditarem na sua palavra e iniciarem buscas, pelo que não o ajudariam -, mas Lydia era demasiado inteligente e experiente para se deixar convencer, pelo que ele se encontrou na mesma posição de quando procurara Marcus Salinis, receoso de que tudo o que agora revelasse viesse a comprometer o seu futuro.

- Você conhece-nos há muito tempo. Tenho de lhe pedir que acredite, quando digo que existe algo no nosso passado... no meu passado... que me impede de recorrer à autoridades. Contenta-se com isto?

- Bem... - Lydia pareceu hesitar. - Tratarei de indagar, mas...

Entrou uma serviçal, que se lhe dirigiu em chinês.

- Desculpe-me, Michael. Volto já. Vá-se entretendo com isto.

Stone tragou alguns dos variados biscoitos na sua frente. Não comia nada desde o pequeno-almoço com Marcus e Joan-na, mas não tinha apetite. Sobretudo agora que começavam a regressar-lhe ao espírito imagens da situação crítica em que se vira em Hong Kong.

Pouco depois, Lydia reapareceu, com uma expressão grave, e, quando falou, havia um ar de desafio na sua atitude.

- Tem a certeza de que me contou tudo, Mike?

- Tudo o que sei.

- Sabia que foi seguido até aqui?

- O quê?

- Um dos porteiros acaba de me informar de que dois gangsters da Chiu Chau seguiram o seu táxi e agora encontram-se do outro lado da rua a vigiar esta casa.

Quem quer que fossem, as pessoas que controlavam o navio e tinham Sarah e Ronnie em seu poder perseguiam-no como se se tratasse de um animal. Chiu Chau? Pertenceriam à Tríade? Stone quase desejava encontrar-se de novo a bordo da canoa do velho.

Devia entregar-se à mercê do cônsul americano? Não lhe seria minimamente útil para evitar a morte de Sarah. E que invocaria? «Os tripulantes de um navio misterioso apoderaram-se da minha família e do meu barco. E agora assassinos contratados e membros da Tríade perseguem-me.» Se não o prendessem, voltar-lhe-iam as costas.

- Volto a perguntar-lhe como amiga, Michael. Revelou-me tudo?

Stone aproximou-se da janela, mas a rua encontrava-se muito em baixo para que pudesse enxergar com clareza. Se informasse Lydia do indivíduo que o atacara em Koror, dos falsos polícias no aeroporto e do suposto motorista de táxi, ela ficaria ainda mais mal impressionada do que já estava.

- Sem dúvida - replicou, após uma pausa. - Estou a pedir-lhe que me ajude.

- Então, porque o seguem os Chiu Chau?

- Chiu Chau? Como quer que o saiba? Toda a gente tem mais ou menos ligações com a Tríade, nesta cidade. Um tipo no clube garantiu-me que existem até nas altas esferas.

- E capaz de ter razão.

- O porteiro não estará a imaginar coisas? Como sabe que os homens lá fora pertencem à Chiu Chau? Você não estará também relacionada com a Tríade?

As sociedades secretas haviam-se infiltrado em todos os sectores da vida dos Chineses. Stone recordava-se de uma fotografia de Lydia no Ásia Week e ter comentado com Sarah a maneira curiosa como cruzava os dedos e se se trataria de um sinal secreto da Tríade.

- Não diga disparates, Michael. Somos donos do prédio e recorremos à protecção de pessoas de confiança.

- Quer dizer que o porteiro pertence a um gang diferente?

- Quero dizer é que ele sabe reconhecer os membros da Chiu Chau - retorquiu ela, friamente.

- Asseguro-lhe que não faço a menor ideia do que está a suceder.

- E aquela «coisa» no seu passado?

- Não tem nada a ver com tudo isto. Absolutamente nada. Já lá vai muito tempo.

- Então, a que se dedica agora?

- Sabe-lo perfeitamente. Ocupo-me de uma clínica flutuante.

- Também sei que não vira a cara a tratar de uma navalhada sem informar a Polícia. Se se recorda, quando convenci o jóquei clube a apoiá-lo, foi com a garantia de que você não teria de fazer coisas dessa natureza para pagar as suas contas.

- Eu e a Sarah fazemos o que devemos, e não sei absolutamente nada sobre a Chiu Chau. Mas não lhe tomo mais tempo. Até à próxima.

- Onde vai?

- Procurar a Sarah e a Ronnie.

- Escute, Michael. Eles seguiram-no até aqui. Se o apanham a jeito, por assim dizer, tratam-lhe da saúde. Portanto, aguarde aí sentadinho e deixe-me raciocinar.

Ele obedeceu e tentou igualmente reflectir.

- O Salinis terá informado alguém da sua vinda aqui?

- Não. Está do meu lado.

- Nesse caso, como se inteiraram?

- Suponho que eles lhe colocaram os telefones sob escuta e...

Stone interrompeu-se ao ver que Lydia o olhava com uma expressão tão estranha como ele temera.

- Eles?

- Não.   Nada disto faz sentido.   Estou muito confuso. Ela pegou-lhe na mão enorme entre as suas, delicadas como o alabastro, e meneou a cabeça tristemente.

- Está como um peixe fora de água.

- Que diabo quer dizer com isso?

- Efectua um trabalho maravilhoso aqui. - Fez um gesto largo, como se pretendesse abarcar o vasto Pacífico. - Trata de pessoas que nenhum hospital receberia...

- Não sou um bom médico - cortou ele. - Nada que se compare com a Sarah.

- Leva-a aonde quer que seja necessária. O Verónica é o primeiro barco a surgir após um tufão, o primeiro a transportar uma criança ao hospital, o último a bater em retirada antes de a tempestade seguinte se desencadear. Nada o perturba no mar. Mas não passa de um marujo em terra, como se costuma dizer. Fica perdido num meio que lhe não é familiar.

Estas palavras impressionaram-no. Correspondiam à verdade, muito mais do que ele desejava admitir. Se não tivesse sido a intervenção de «A Fera», partiria no táxi que não chamara, com as inevitáveis consequências subsequentes.

A própria Sarah já observara que estava a perder o hábito de funcionar em terra firme, e Ronnie, como gracejo, costumava dizer que «o papá parece uma tartaruga na praia». Não se tratava de uma característica invulgar num marinheiro que permanecia embarcado a maior parte do tempo, mas, se queria recuperar a esposa e a filha, devia tornar-se tão observador em terra como no mar. Tão rápido, arguto e arrojado.

- Preciso apenas de assentar bem os pés - declarou. - É uma coisa passageira.

Lydia levantou-se.

- Vou mandar escoltá-lo ao Iate Clube.

- Não quero envolver inocentes no perigo que me espreita.

- Não   se preocupe - insistiu,   com um sorriso. - O meu pessoal sabe cuidar de si. De manhã, pegarei no telefone e verei o que consigo apurar sobre esse transporte de gás.

Mas não acalento grandes esperanças. Há muito que eu teria ouvido falar de uma coisa tão espectacular.

Vinte minutos mais tarde, a serviçal fez a sua aparição e trocou algumas palavras com Lydia, que em seguida se voltou para Stone.

- Meta-se no elevador de carga e saia no parque de estacionamento da garagem.

- Não acredita em mim, pois não?

- Quero acreditar, mas é tudo tão forçado...

- Que outra coisa lhes podia ter acontecido?

- Não sei, Michael. Preste atenção ao seguinte. Em circunstância alguma deixe escapar uma única palavra sobre isto à sua «escolta».

- Não compreendo.

- E não lhes peça ajuda. Promete?

- Cada vez entendo menos.

- Os chacais roubam as presas aos leões. À parte isso, são muito capazes de matar.

- Continuo na mesma.

- Limite-se a prometer o que lhe pedi.

 

Uma carrinha fechada aguardava na garagem e dois cantoneses de calças pretas e T-shirts brancas mantinham aberta a porta da retaguarda sem janelas, e indicaram uma caixa de cartão de altifalantes Radio Shack para Stone se sentar.

Um cantonês bem trajado desceu de uma limusina BMW estacionada atrás da carrinha, aproximou-se, olhou para o interior da carrinha como se ponderasse a compra do conteúdo e acabou por saltar para dentro.

- Chamo-me Ronald.

Um relógio de pulso cravejado de diamantes emitia reflexos ocasionais e usava gravata de seda. Contemplou Stone com ar divertido e, segundo este suspeitou, algum desdém pela sua modesta indumentária, barba e Rolex de aço sem pedras preciosas.

- E eu Michael.

Os outros homens subiram para a cabina da frente e puxaram a cortina que os separava da área de carga.

- Descontraia-se e aprecie o passeio.

- O que é que eles vêem? - quis saber Stone, enquanto a viatura se punha em marcha e passava diante do prédio de apartamentos.

O seu companheiro de viagem proferiu algumas palavras em cantonês através da cortina, escutou a resposta e riram-se os três,   após o que Ronald disse a Stone:

- Candidatos a Bruce Lee.

- Conhecem-nos?

- São tipos ordinários. Insignificantes. Que tem a Chiu Chau contra si?

- Não faço a menor ideia.

- Deve-lhes dinheiro?

- Não.

- Tem a certeza?   São   uns rapazes muito gananciosos.

- Nunca me cruzei com um único membro dessa organização. E. tenho a certeza absoluta de que não lhes devo nada. Agora ou nunca. Acabo de chegar a Hong Kong.

- Nunca confie num desses tipos. São capazes de tudo por dinheiro e trabalham sempre para quem oferece mais.

- Deve tratar-se de algum engano.

- Como queira, amigo - assentiu Ronald, com um encolher de ombros.

A recomendação de Lydia tivera o efeito precisamente contrário ao pretendido - acabava de lhe inspirar uma ideia. Cortar as voltas aos filhos da mãe e «contratar» a sua própria Tríade.

- Trabalha para a Lydia Chin?

- Ms.(1) Chin é uma excelente senhora. Toda a família dos Chin é merecedora do maior respeito.

- A minha mulher e eu temos um hospital flutuante, num barco, e a Lydia contribui nas despesas.

- Uma senhora admirável, Ms. Chin.

- Sou médico - prosseguiu Stone. - Se alguma vez lhe puder ser útil... para retribuir esta atenção... é só pedir. Estou alojado no Iate Clube de Hong Kong.

 

(1) - Forma de tratamento de uma mulher que não deseja o de Miss ou Mrs. (N. do T.)

 

- Um clube de tarifas elevadas.

- Temos uma secção de sócios honorários.

- Ms. Chin diz que é muito competente, doutor.

- Bem, faz-se o possível. Mas dizia eu que estou muito grato por esta gentileza e...

- A gentileza é dela.

- De qualquer modo, gostava de lhe poder ser útil. Tudo o que estiver ao meu alcance.

Ronald mediu-o da cabeça aos pés e perguntou:

- Que espécie de médico é?

- Para emergências.

- Do género de... acidentes?

- De qualquer tipo.

- Resultantes de tiros, por exemplo?

- Exactamente.

- Ou de navalhadas?

- Também.

- E quanto a um acidente sofrido por uma amiguinha?

Stone hesitou.

- Nesse caso, é preferível ir para uma clínica. - Vendo o semblante do interlocutor toldar-se, apressou-se a acrescentar:

- Se, por qualquer motivo, não tiver possibilidade de ingressar numa clínica, estará em segurança comigo. E com a minha mulher.

- Por quanto?

- Nesses casos, não cobramos nada.

- Então, o quê?

- Informação.

- Acerca de quê?

- Um navio desaparecido.

- De navios, não sei nada.

- Então, Ronald! Estamos em Hong Kong, o maior porto do mundo, e você trabalha para a Lydia Chin, pelo que deve estar ao corrente do assunto.

- Não convém que se saiba que trabalho para Ms. Chin.

- Refiro-me a um enorme transporte de gás natural lique-Icito que desapareceu.

- Qual é o seu valor?

- O navio vale muito, mas a carga muitíssimo mais.

- Quanto?

- Milhões.

Os ombros de Ronald ergueram-se com elegância.

- Ms. Chin é uma senhora admirável. Que mais quer?

- Transporte.

- Utilize o avião.

- Transporte privado.

- Para onde?

- Xangai.

- O navio do gás está aí?

- Talvez.

- Xangai é uma cidade enorme. Que mais quer?

- «Velhos amigos» em Xangai - disse Stone, referindo-se a apresentações.

- «Velhos amigos?» Bem, que mais?

- Um visto para Xangai.

- Agência de Viagens China. Entregam-no em dois dias.

- Gostava de manter os meus passaportes fora do raio de acção dos computadores.

- Fala grosso, doutor.

 

Ronald trocou algumas palavras com o porteiro do Iate Clube, antes de acompanhar Stone ao seu quarto. Até se certificou de que se encontrava deserto antes de apresentar as despedidas.

Michael apoiou uma cadeira à porta por baixo do puxador, meteu-se na cama e permaneceu acordado, enquanto se perguntava como seguiria para Xangai. Tinha medo - por Sarah e Ronnie e, naquela noite, por si próprio. Finalmente, acendeu a luz, extraiu a arma do britânico da mochila e colocou-a debaixo da almofada.

 

Quando o telefone tocou, Stone pousou instintivamente a mão na pistola. O sol penetrava pela janela e o relógio indicava que eram dez horas. Recordou-se finalmente de que se encontrava no Iate Clube.

- Estou...

- É o Kerry. Estou com pressa. Apareça no Shit and Feat-hers à uma.

O selvagem comandante cortou a ligação antes que ele pudesse protestar, pois não lhe convinha vaguear pela cidade. Ao menos o Eagle's Nest situava-se no Hotel Hilton, num lugar tão público quanto possível. Para jogar pelo seguro, Stone passou pelo Clube de Oficiais da Polícia e partilhou um táxi que ia para a central.

O Eagles Nest ocupava o último andar. As outrora magníficas vistas do colossal porto achavam-se algo reduzidas pela interposição de novos edifícios, mais elevados. Não obstante, conservava a sua popularidade como local ideal para almoços de trabalho de europeus e chineses indistintamente.

Stone depreendeu que um dos importantes clientes de Kerry reservara a espectacular mesa à janela. O estreito entre a ilha de Hong Kong e Kowloon e o vasto ancoradouro estava repleto de navios fundeados e circundado por cais para paquetes e espaço para grandes quantidades de contentores. Ele conseguia avistar a ilha de Lantau, a norte do lado do continente, apesar das novas edificações das proximidades.

Kerry chegou à uma em ponto.

O australiano era baixo para patrão de um rebocador, além de magro, decerto não pesando mais de setenta quilos. Stone reflectiu que só podia ter superado a aprendizagem a bordo graças a uma agressividade que rondava a ferocidade e lhe fora útil nas suas actividades agitadas.

- E a sua linda esposa?

- Vim só.

Até o ver surgir à entrada da sala, tencionara explicar-lhe o motivo por que necessitava dele. No entanto, se Lydia não acreditara na sua história, porque reagiria Kerry de maneira diferente?

- O que se passa?

- Antes de mais, ouviu alguma coisa sobre o assalto a um transporte de gás?

- Assalto? Assalto como?

- Apresamento.

- Não.

- Nada?

- Nem um suspiro.

- Você ocupa-se dos pedidos de socorro.

- Todos os sinais de rádio transmitidos através do Pacífico Ocidental. Clientes a chamar. O que aconteceu?

- Digamos que eles não transmitiram um pedido.

- E óbvio que não.

- Constou-lhe o atraso de chegada de algum navio?

- Não. A excepção do meu actual cliente, claro, que se atrasará muitíssimo mais se não entregar algum dinheiro dentro em breve. Mas não. Nada... Espere aí. - As faces bronzeadas contraíram-se e ele passou a mão crestada pelo queixo. - Conhece as Molucas?

- Não vamos para esses lados.

O mar de Banda roçava o Timor Leste de Sarah.

- Eu também não iria. Pelo menos, sem uma rampa de lançamento de mísseis.

- Porquê?

McGlynn comprimiu os lábios e fixou o olhar no porto, como se a sua memória ecoasse algures nas colinas azuladas da China.

- De quando estamos a falar? Recentemente?

- A semana passada. Terça-feira ou quarta de manhã.

- Bem, a primeira parte da semana passada. Alguém emitiu um sinal a vinte e um oitenta e dois. Tenho um barco ancorado em Surabaia, que o captou e respondeu. Afinal, tinha sido engano. Alguém se desequilibrou e ligou o interruptor.

Stone inclinou a cabeça. A maioria dos rádios de longo alcance dispunha de um interruptor de emergência, como o botão de pânico de um alarme contra ladrões.

- Voltaram a transmitir?

- Exacto. «Nenhum problema, obrigado por responderem, desculpem o incómodo. Terminado.»

- Como souberam vocês que se encontrava no mar de Banda?

- Não sabíamos, mas acaba de me ocorrer que, dois dias mais tarde, outra das minhas unidades entrou em Surabaia a rebocar um barco de abastecimento. O respectivo comandante informou que tinha captado um pedido de socorro mais ou menos na mesma altura, proveniente do mar de Banda. Só que recebeu o sinal no canal dezasseis de VHF.

Stone crispou os dedos na toalha da mesa e inclinou-se para a frente. O alcance do transmissor de VHF não podia ser superior a quarenta milhas, para um rebocador de baixa envergadura.

- O que disseram do navio, quando responderam?

- Nada. Houve apenas aquela chamada, e todas as tentativas para obter qualquer sinal de resposta foram baldadas.

- O que fez o comandante?

- Que raio podia fazer? Ordenou ao radiotelegrafista que mantivesse os ouvidos apurados, mas não se registou qualquer outro sinal, repito.

Ele conservava os ouvidos bem abertos, em busca de algum elemento elucidativo. No entanto, Kerry interpretou erradamente a sua intenção e assumiu uma atitude defensiva.

- O comandante da minha unidade não podia iniciar pesquisas num oceano virtualmente infinito. Talvez se tratasse na verdade de um erro. Ou do último sinal antes de o navio se afundar. Nada mais. Apenas um Mayday. Nenhum nome, sinal ulterior ou indicação da posição.

- Como por exemplo, se o autor da chamada tivesse sido abatido a tiro por resistir a um assalto, mas dispusesse de energias suficientes para se arrastar até à sala de transmissões.

- Parece-me uma hipótese muito forçada.

- Talvez - concedeu, reflectindo que não fora o interlocutor que encontrara um corpo crivado de balas na lagoa de Pulo Helena. - Onde poderia ser isso? Seiscentas ou setecentas milhas a sudoeste de Pulo Helena?

- Com a Nova Guiné no meio. O que se passa, Michael? Trinta e quatro horas de viagem para um navio rápido.

- Mas nenhum nome, hem?

- O que está acontecer? - insistiu Keriy. - Onde está a Sarah?

- Não vai acreditar nisto.

Stone descreveu o que sucedera em Pulo Helena, sem que o outro o interrompesse. No final, reconheceu:

- É uma história dos diabos. Eles vão ficar muito surpreendidos quando descobrirem que você está em Hong Kong.

- A verdade é que os pedidos de socorro não me revelam nada, além de reforçarem a minha suspeita de assalto.

- Pois a mim indicam que é possível que você não sonhasse tudo isso.

- Possível?

Kerry assumiu uma expressão grave.

- Na minha actividade, assisto às ocorrências mais extraordinárias. Sabe quantos pedidos de socorro recebo por semana? Contactam-me pela rádio para que pareçam autênticos. «Foi horrível! Os rebocadores apareceram, mas demasiado tarde. Por sorte chegaram a tempo de recolher os sobreviventes refugiados num escaler.» Às vezes, sinto-me chefe de uma organização de salvamento de piratas. - Fez uma pausa. - A sua papelada é de confiança?

- O quê?

- A documentação do Verónica é de confiança?

- Está registado em Los Angeles.

- Os papéis resistem a um exame minucioso?

- Não compreendo.

- Creio que sabe a que me refiro. Que diabo, Mike! Toda

a gente está ao corrente de que há algo de estranho em vocês os dois.

- Sim, tenho ouvido comentários a esse respeito. Pensa-se que a Sarah e eu fugimos de um marido ultrajado.

- Eu não.

- Então, o que lhe constou?

- A única razão pela qual nunca o crivei de perguntas foi porque na primeira vez que o vi você conduzia o Verónica através de uma passagem nos recifes que nem os nativos se atreveriam a desafiar para salvar um rapazinho. Imaginei que, quaisquer que fossem os seus crimes no passado, estava a expiá-los. Mas discutíamos os documentos do seu veleiro.

- Estão em ordem. Mudou de nome algumas vezes ao longo dos anos. Quando o comprámos, chamava-se Ashante, que substituímos por Sarah. Após o nascimento de Ronnie, passámo-lo para Verónica.

- Compraram-no?

- O contrato de aquisição foi pela borda fora durante o tufão Mary.

- Juntamente com o cheque cancelado? - McGlynn permitiu-se um leve sorriso.

- Pagámos em dinheiro.   Isto é, quem o pagou foi a Sarah.

- E o vendedor?

- Um homem do rio Congo.

- Que por casualidade, possuía uma iate de construção linlandesa. Conseguiram um bom preço, por ser a pronto pagamento?

- Ele recomendou a mudança imediata do nome e uma viagem em águas estrangeiras.

- E, de caminho, igualmente a alteração dos vossos nomes? Stone considerou justo responder à pergunta enigmaticamente:

- Você conhece-nos como quem somos.

- Não estão em fuga por causa de um iate roubado. - A expressão de Kerry endureceu. - O que fez, camarada? Porque precisa de mim? Porque não se limita a recorrer à Marinha dos Estados Unidos?

Se havia alguém em quem Michael podia confiar, era naquele amigo que tanto se preocupava com Sarah. Todavia, ele tinha estado a ocultar o seu passado tanto a si próprio como ao mundo, e o hábito torna-se difícil de perder. Via-se forçado a admitir que não lhe restava qualquer alternativa.

- Vou elucidá-lo em poucas palavras, Kerry. Procuram-me por um duplo homicídio que não cometi e pirataria, de que me considero culpado.

- Se pretende a minha ajuda, tem de ser um pouco mais explícito. Quer que acredite? Muito bem: convença-me.

Encheu os pulmões de ar e começou:

- Nunca o dissemos a ninguém e compreenderá porquê. O pai da Sarah... o general... foi assassinado numa tentativa de golpe de Estado. Quando este abortou, eles resolveram encobrir as suas responsabilidades atribuindo-me o homicídio.

A reacção de Kerry à revelação consistiu em perguntar friamente:

- Que fazia você na Nigéria?

Stone tentava arquitectar uma resposta cautelosa, quando, de súbito, sentiu a velha dor reaparecer, tão intensa como uma explosão no rosto, e necessitou de um momento para se recompor.

- A minha primeira mulher chamava-se Katherine. Recebemos o dinheiro correspondente à nossa parte no desenvolvimento de uma sonda médica de ultra-sons e partimos em viagem pelo mar. Uma espécie de segunda lua-de-mel, pois o trabalho não nos deixara gozar a primeira. Comprámos uma galeota Halberg-Rassy, a primeira embarcação básica de quem tem mais dinheiro que sensatez. Sofremos as estopinhas na travessia do Atlântico e finalmente ancorámos em Londres. Foi aí que conheci Sarah, que era interna no King's Hospital.

- Encontrou um novo imediato, hem? - observou Kerry, com um sorriso malicioso, que se dissipou quando viu o olhar do interlocutor assumir um brilho estranho.

- Não há um único momento que não me amargure pelo sucedido à Katherine. Ou deixe de pensar que raio poderia ter feito de diferente para salvar-lhe a vida.

- Até parece que ainda a ama.

- E é verdade.

- Mais do que a Sarah?

- Não. É claro que não. Mesmo que tivesse mil vidas, nunca voltaria a experimentar o que tem sido a minha existência com ela.

- Desculpe, camarada.

- A Katherine e a Sarah davam-se bem e tornámo-nos excelentes amigos. A Sarah era mais jovem que nós, recém-saída do trabalho esgotante da escola médica, muito entusiasmada por regressar à vida. Quando o pai a mandou regressar a casa, em Lagos, prometemos passar por lá numa visita demorada.

chegámos mesmo em pleno golpe de Estado, por sinal de curta duração. Um bando de oficiais subalternos financiados pela gente local da CIA.

Kerry desviou os olhos para um velho cargueiro da República Popular da China que cruzava o porto, enquanto Stone respirava fundo e tentava reunir os pormenores mais importantes.

- O pai da Sarah estava totalmente comprometido com o regime civil, o que o tornava o alvo principal dos revoltosos. Só que eles não previram que as suas unidades se manteriam leais. Treinara-as como se fossem militares britânicos e ensinara-as a manter-se fora da política. Quando o golpe abortou, os filhos da mãe tiveram a brilhante ideia de fazer com que a morte parecesse homicídio... um crime passional... como se eu tivesse surpreendido o general a fazer amor com a Katherine e os matasse num acesso de cólera de ciúmes.

- Também assassinaram a sua mulher?

- Por uma questão de verosimilhança. Mataram-na na cama e colocaram-lhe o general em cima. Totalmente despidos. Foi assim que os encontrámos... o pai de Sarah e a minha bela Katherine... - Outros pormenores, mais amargos, tornavam a evocação extremamente penosa. - O pior de tudo era a expressão de terror do rosto dela. Deve ter sido acordada e visto que invadiam o quarto. Não consigo afastar do pensamento o medo que decerto experimentou antes de morrer. Faria tudo no mundo para o alterar.

- Resultou? - quis saber Kerry. - Levaram a sua avante?

- Com certeza. Se não fosse a Sarah, eu teria sido abatido por «resistir à prisão». De qualquer modo, tive de me pôr em fuga para conservar a vida.

- Porque não recorreu à Embaixada americana?

- Foi o representante da CIA que indicou aos nigerianos que incriminassem o americano branco.

Kerry deixou transparecer algum cepticismo durante um momento. Por fim, perguntou:

- Como se converteu isso em pirataria?

- A polícia e o exército confiscaram-me o veleiro e vasculharam Lagos à minha procura. Montaram barreiras nas estradas e o acesso ao aeroporto era impossível. A Sarah estava convencida de que me abateriam, mas isso não me apoquentava. Com a Katherine morta, queria também morrer. Mas ela não o permitiu. - Stone abanou a acabeça. - Parece que ainda a oiço a gritar, a exigir que sobrevivesse. Entretanto, tínhamos chegado à conclusão de que os agentes da CIA em Lagos se dedicavam a acordos ilícitos com companhias petrolíferas, através de transportes que ficavam ao largo. Por conseguinte, safei-me com um dos seus rebocadores.

- Daí a acusação de pirataria?

- Exacto. Mas os tipos da CIA perseguiram-me num barco-patrulha a umas cem milhas da costa...

- E ? ...

- Abalroei-o.

- Afundou-se?

- Bem, da última vez que o vi, a proa dirigia-se para África e a popa para o Brasil.

- Quantos tipos meteu no fundo?

- Nenhum.

- Como o sabe?

- Em ambas as metades havia metralhadoras que não paravam de me alvejar.

- Como se safou?

- A Sarah... que estava totalmente livre de suspeitas e podia ter ficado lá... arriscou a vida para esvaziar um dos cofres do pai no banco e contratar um contrabandista para me recolher. Ela também ficou no barco, para cuidar de mim, pois tinha sido ferido. O homem levou-nos a Moanda, no rio Congo, onde vivia um amigo, e ela comprou o Swan. Eles continuavam a perseguir-nos, mas insistiu em me acompanhar. A situação chegou a ficar muito difícil.

Stone fez uma pausa, enquanto Kerry meneava a cabeça. Numa tentativa para deixar bem vincada a natureza dos actos abnegados de Sarah, o facto realmente importante, acrescentou:

- Tente compreender o seguinte, Kerry. Eu estava numa condição lastimosa. Quando não sangrava, chorava. Por conseguinte, não estamos a falar do calor da paixão. Isso veio depois.

- Amor?

- Não está a assimilar a realidade. Apaixonámo-nos a primeira vez que nos vimos. À distância. Mas nenhum dos dois teria tentado sequer explorar o facto, pois eu amava sinceramente a Katherine. Uma pessoa com um matrimónio feliz aceita que Deus lhe pregue uma partida ocasional. Um homem conhece alguém... a alma gémea do momento... continua a honrar o seu amor e compromissos.

«Mas não trace conclusões erradas. Não sou nobre a esse ponto. Não me deteria apenas por causa dos compromissos, mas amava realmente a Katherine. Não obstante, a Sarah e eu licámos sincronizados, por assim dizer, desde o princípio. Sem que, porém, tivesse acontecido coisa alguma.

- Nunca se perguntou por que razão mereceu uma mulher assim?

- Todos os dias. - Stone sorriu. - Mas nunca a largarei. Nunca.

- Em todo o caso, a sua história soaria mais sincera, se ela ficasse para vingar o pai.

- Mais sincera? Então, não acredita em mim?

- E você a sua mulher.

- Não pense que me faltava a vontade de os matar a todos. Cheguei mesmo a conceber um plano para me ocupar dos oficiais responsáveis, mas a Sarah nem queria ouvir falar disso. É cristã no sentido mais profundo.

- Ofereceu a outra face?

- Não se lhe pode chamar isso. No entanto, ajudou-me a

compreender que nem todas as mortes do mundo me devolveriam a Katherine. E, claro, os nigerianos e a CIA continuavam a perseguir-nos.

Continuou com o relato até à sua conclusão natural.

Seguiram até à Antárctida, depois atravessaram o estreito de Drake, dobraram o cabo Horn e desapareceram entre as ilhas da Micronésia, dispersas como pó no vasto oceano. Aludiu às visitas à «civilização» para se abastecerem, com paragens breves e imprevisíveis. Sentiam-se razoavelmente seguros, embora procurassem evitar os contactos com a legião crescente de cruzadores americanos. Os japoneses e chineses de Hong Kong que ajudavam a sustentar o barco-hospital não tinham motivos para questionar o seu passado, e a situação decerto se manteria para sempre, se não sucedesse o Dálias Belle surgir em cena, com necessidade de um médico.

- Uma história levada da breca - reconheceu Kerry.

- O essencial é que, embora tudo isso acontecesse há vários anos e a quinze mil milhas daqui, a Marinha dos Estados Unidos não nos ajudaria. Segundo vejo as coisas, quem raptou a Sarah apoderou-se do navio por causa da carga. Alguém ficou ferido durante a abordagem e levaram-na para o tratar. O Mayday que você referiu ajusta-se ao tipo morto na praia.

- Talvez...

- O sistema de rastreio acústico da Marinha dos Estados Unidos ainda funciona?

- O SOSUS? Sistema de vigilância do som. (1)

- Se pudessem procurar nos seus ficheiros o material correspondente às imediações de Pulo Helena, identificariam o navio e tratariam de o localizar neste momento.

- É possível - concedeu Kerry.

- Não posso contactar com a Marinha dos Estados Unidos, mas aposto que você não teria qualquer dificuldade. Não me surpreenderia que a Armada australiana conseguisse consultar o sistema deles. - Stone deteve-se ao ver o outro abanar a cabeça. - Porquê?

 

( 1 ) - SOund SUrveillance System. ( N. do T.)

 

- Está a pedir-me que comprometa a carreira naval de alguém.

- Peço-lhe é que me ajude a recuperar a Sarah.

- Não estou a ver como o conseguirá sem limpar o seu passado.

- Há dois problemas que se opõem a que me coloque à mercê do Consulado dos Estados Unidos. Temos uma filha. Se o preço da libertação de minha mulher consiste em irmos ambos para a cadeia, que sucederá a Ronnie?

McGlynn não respondeu.

- Mas mesmo que me expusesse a esse risco, não existe a menor garantia de que efectuariam pesquisas. Reconheço que esta história tem laivos de loucura. A minha amiga Lydia Chin olhou-me como se estivesse alucinado. E agora você reage do mesmo modo. Que lhe parece tentar convencer um grupo de burocratas a recorrer à marinha? Tardaria dias,   semanas. E , entretanto, onde diabo se encontram elas? O que estarão a fazer-lhe?

- Tente encarar a situação da minha posição.

- Não compreendo.

- Parece mesmo loucura. Ainda mais do que a sua história de pirataria.

- Loucura, ou não acredita em mim?

- Bem gostava de acreditar. - Kerry suspirou. - Desejava mesmo, pois conheço-o e à Sarah desde longa data.

- Se minto, onde está ela?

- Ocorrem-me duas possibilidades. Fez as malas e abandonou-o ou foi você que a largou.

- Nesse caso, onde está o meu barco?

- Aguardo que mo diga.

Naquele instante, Stone descortinou o preço oculto do isolamento. Um verdadeiro amigo não conseguiria conceber semelhante mentira, porém ele nunca considerara Kerry como tal, mas apenas um conhecimento, como Marcus Salinis, como os outros oficiais no seu circuito do Pacífico, ou Lydia Chin. Dispunha de uma pessoa realmente amiga, e apenas essa: Sarah. As restantes ocupavam a periferia da sua vida. Onde, via-se forçado a reconhecê-lo, as colocara deliberadamente... ou permitira que se distanciassem gradualmente, o que vinha a dar no mesmo. Com Sarah a seu lado, o facto nunca o apoquentara. Sem ela, achava-se totalmente só.

- Por que razão, se a tivesse abandonado, o procuraria com esta história de que um transporte de gás se apoderou de minha mulher e filha e do veleiro?

Kerry voltou a suspirar. Apesar da atitude normalmente indiferente, parecia desconfortável com as implicações contidas na pergunta.

- Porquê? - insistiu Stone. - Agora, é você que parece louco. Se a tivesse abandonado, porque estaria com todo este trabalho?

- Talvez precise da história.

- Hem? Para quê?

- Para explicar...

- Explicar o quê?

- A razão pela qual ela e a filha desapareceram.

- Agora é que não estou a perceber.

- Se ela o abandonasse, você precisaria de uma história com a qual pudesse viver. Ou pelo menos para contar aos seus amigos.

- Juro que não me abandonou.

- Escute, Michael. Não sei se a abandonou, vice-versa ou o que aconteceu. - Kerry fez uma pausa e baixou os olhos para o copo na sua frente. Quando voltou a falar, fê-lo num tom mais suave. - As pessoas fazem coisas loucas, no mar. Aposto que, uma vez por mês, um marinheiro pega num machado de extinção de incêndios e racha a cabeça de um colega. O ano passado, um tripulante de um superpetroleiro desejava voltar para casa, pelo que aproximou um maçarico oxiacetilénico da saída de uma válvula, convencido de que um incêndio a bordo lhe valeria o transporte urgente de helicóptero para Sydney. E não se enganou... dentro de um caixão. Toda a área da proa foi pelos ares.

- Santo Deus! Julga que fiz alguma coisa à Sarah?

- São coisas que acontecem.

- Expliquei-lhe o que ela significa para mim. Amo-a.

- Já tinha ouvido.

- E à minha filha?

- São coisas que também acontecem.

- E depois afundei o Sawn.

- As palavras são suas, não minhas.

- Mas eu amo-as! À parte isso, sou incapaz de fazer mal a .alguém, de contrário a maior parte dos seus dentes estaria espalhada pelo chão.

O rosto do australiano mudou de cor.

- Experimente, amigo.

- Ao diabo para tudo isto. Vejo que não acredita em mim.

Stone inclinou-se para pegar na mochila e um impacte violento atingiu-o na nuca e obrigou-o a deslizar da cadeira e tombar debaixo da mesa. No primeiro momento, supôs que Kerry o atingira. No entanto, a janela quebrara-se e o vento frio penetrava com impetuosidade. Uma mulher gritou. O amigo abandonara a cadeira e arrastara a toalha e os pratos, enquanto o sangue brotava do ombro.

Uma garrafa de vinho explodiu musicalmente na mesa vizinha e um balde estilhaçou-se, cobrindo Stone de fragmentos de gelo.

- Baixem-se! - gritou alguém. - Eles continuam a disparar!

Stone precipitou-se para Kerry e cobriu o ferimento com um guardanapo.

O australiano estava lívido como a toalha da mesa e respirava com dificuldade.

- O que aconteceu?

- Não acertaram em mim.

Em toda a sala do restaurante as pessoas gritavam e lançavam-se ao chão. Algumas mantinham-se de pé, petrificadas, e apontavam para os furos na janela. Um americano de meia-idade afastou Stone da sua frente, enquanto bradava:

- Deixe-me passar! Sou médico.

- Fuja, amigo - murmurou Kerry.

Stone correu para a porta. A chefe dos empregados de mesa gritava ao telefone e pedia o envio urgente de uma ambulância. Ele continuou em direcção aos elevadores, considerou-os repentinamente como ratoeiras e preferiu a escada.

Quinze pisos abaixo, ouviu os passos pesados de polícias que começavam a subir. Acto contínuo, Michael transpôs uma porta de incêndio, penetrou num corredor, seguiu para os elevadores e aguardou ansiosamente que aparecesse uma cabina, ao mesmo tempo que rezava para que a Polícia não tivesse entrado em pânico e desligado o sistema. Entretanto, ouviam-se alguns na escada.

A cabina imobilizou-se e a porta abriu-se para a multidão que fugia, virtualmente, do restaurante, e Stone aproveitou a confusão para entrar. Uma inglesa olhou-o com estranheza e perguntou:

- Oiça cá. Não estava com o homem que foi alvejado? Embaraçado, ele abanou a cabeça e desviou o olhar.

No átrio, o conhecimento dos tiros levara as pessoas a acudir às janelas para observar a rua, onde se viam viaturas da polícia e ambulâncias junto da entrada e a bloquear o trânsito.

Stone dirigiu-se a um telefone e ligou para o apartamento de Lydia Chin, mas ela encontrava-se em reunião.

- Chame-a, por favor. É muito urgente...

A voz da proprietária de navios não tardou a surgir na linha e, antes que Stone pudesse dizer algo, informou:

- Ninguém sabe nada de um transporte de gás desaparecido. Nenhum está atrasado na data de chegada prevista. Em parte alguma do mundo.

- Diga ao seu amigo Ronald que preciso de falar com ele.

- Não, Michael. Brinca com o fogo.

Do outro lado do átrio, ele avistou a mulher que o increpara no elevador, de momento a falar com um polícia.

- No fogo já eu estou metido, Lydia. Diga-lhe o que pedi. Ou então, dê-me um número de telefone que me permita falar com ele.

- Eles acabarão por consumi-lo.

- Não tenho outro lado para onde me voltar. São a minha última esperança.

- Não - persistiu ela. - Não quero participar num...

- Não merece a pena. - Stone preparou-se para desligar. - O seu amigo acaba de me encontrar.

O homem da Tríade estava sentado numa poltrona, ignorando o caos em volta e observando Michael com uma expressão calculista no rosto esguio. Lydia chamara-lhe chacais. Queriam o navio assaltado. Desejavam roubá-lo aos assaltantes e vender a carga. Estupendo. Ele acompanhá-los-ia e trataria de salvar Sarah e Ronnie antes que o tiroteio principiasse.

Quando Stone começou a encaminhar-se para o homem, a inglesa apontou-o ao polícia. Ronald apercebeu-se, levantou-se com prontidão e dirigiu-se apressadamente para o elevador de acesso à garagem de estacionamento. Stone correu atrás dele, enquanto dois cantoneses que tinham estado sentados perto se puseram de pé rapidamente e bloquearam a passagem ao polícia. Ronald desviou-se para uma porta de incêndio e fez sinal a Stone para lhe indicar que seguisse por aí.

- Que diabo faz você aqui?

- Olá, marinheiro. A Chiu Chau ainda o procura.

- Eles acabam de atingir a tiro o meu amigo.

- Mas não acertaram em si.

- Ainda não me disse o que faz aqui.

- Os rapazes seguiram-no. O meu chefe quer conversar consigo.

- Acerca de quê?

- Explico-lhe no carro.

Um Toyota já se encontrava à espera, com o motorista e outro homem no banco da frente. Ambos usavam camisas folgadas, com espaço suficiente para armas e respectivos coldres. Stone e Ronald subiram e puseram-se em marcha sem uma única palavra em direcção a Causeway Bay.

- Desafiou a Chiu Chan? - perguntou finalmente Ronald.

- Já lhe respondi a isso, não faço a menor ideia. Que quer o seu chefe?

- Será por causa do navio? Talvez lhe pisasse os calos. Quem o compra?

- O quê?

- Refiro-me ao navio com a sua família. Quem compra o gás?

- Uma fábrica de energia eléctrica. Uma central motriz. Puxou de um telemóvel, proferiu algumas palavras em cantonês e escutou atentamente, sem desviar os olhos de Stone.

- Os chuis procuram o atirador furtivo - informou, enquanto desligava e guardava o aparelho. - Um britânico alto. De cabelo loiro. - Esboçou um sorriso. - São os sinais do tipo que se apoderou do carro da polícia no aeroporto, ontem... Ouviu falar disso?

Stone volveu o olhar para a janela. Para onde quer que fosse, desconhecidos sabiam mais do que ele. Em Causeway Bay, o carro enveredou por uma rede de túneis subterrâneos e rampas e acabou por se imobilizar à entrada de um hotel elevado a menos de trezentos metros do Iate Clube.

Ronald escoltou Stone através do sumptuoso átrio em direcção a um elevador.

- Afinal, que pretende o seu chefe?

- Que não o chateie.

- Como se chama?

- Pode tratá-lo por Mister Chang.

Entraram numa suíte com paredes de vidro sobranceira ao abrigo contra tufões.

Sentado num sofá encontrava-se um cantonês corpulento de meia-idade, cuja indumentária conservadora - fato azul-escuro de executivo - e escassez de artigos de joalharia - apenas um anel com sinete de ouro e aliança de casamento fina do mesmo metal - contrastava nitidamente com o vestuário de gangster de Ronald.

Ronald procedeu às apresentações. As lentes dos óculos de Mr. Chang reflectiram a luz, quando inclinou a cabeça, mas não se levantou nem estendeu a mão. Havia uma chávena de chá coberta em cima da mesinha à sua frente. Do outro lado da sala encontrava-se uma mesa de conferências sobre a qual estava estendido um mapa, com cinzeiros de vidro pousados nos cantos.

- Quer chá, doutor? - perguntou Ronald.

- Não.

Chang exprimiu-se em voz estentórica:

- Procura um navio?

- Procuro a minha mulher e filha, que estão no navio.

- Onde se encontra?

- Em Xangai, suponho. - Ao mesmo tempo que respondia, Stone tentava penetrar nos óculos reluzentes. - Quero ir para lá sem que se saiba. E preciso de apoio documentado para cobertura da minha história.

- Cobertura de qual história?

- Direi que procuro locais para investidores estrangeiros construírem uma marina para iates do estilo ocidental.

O cantonês mostrou-se interessado. Ou, pelo menos, o seu olhar tornou-se mais intenso.

Após um olhar prudente ao chefe, Ronald aventurou:

- É uma boa ideia.

- Quero um guia. Um tradutor que conheça a área do porto.

- Como referi antes, exige muito, doutor.

- E um barco para o rio... além de algum dinheiro.

- Ontem à noite, disse que não precisava de dinheiro.

- Para as despesas correntes. Para subornar. Estou disposto a dar tudo o que puder em troca.

Chang mantinha-se inexpressivo, porém Ronald arriscou um sorriso.

- Não pede pouco, doutor, que espécie de acordo pretende?

- Sabe perfeitamente que não tenho tempo para negociar - replicou Stone. - Está ao corrente do que necessito.

Não ignora que ando fugido. Sou médico. Prontifico-me a fazer tudo o que quiserem, dentro dos meus conhecimentos.

Chang voltou a falar:

- A China tem médicos que cheguem.

- Então por que raio me trouxeram aqui? Ronald aproximou-se das janelas e disse:

- Chegue aqui, doutor. - Em seguida, num murmúrio,

acrescentou: - Quem se atreve a falar assim a Mister Chang arrisca-se a voar pela janela.

Vinte e sete pisos abaixo, o abrigo contra tufões da baía parecia implantado no meio de um cenário tranquilo, como se a babilónia de navios e embarcações não existisse.

- Vê o que há lá em baixo?

- Sim. E daí?

Ronald apontou para a extremidade ocidental.

- E acolá?

- O Iate Clube.

- O Iate Clube de Hong Kong.

- Sim, vejo-o.

- O seu clube. Honorário.

- E depois?

Apontou para o lado oposto do abrigo, cerca de oitocentos metros a leste.

- Vê o iate?

- Com área de aterragem para helicópteros?

Um círculo perto da popa estava marcado com um largo H.

- É um iate motorizado.

- E daí?

Stone vira-o chegar na véspera, quando aguardava o táxi. Era o maior no abrigo, com mais de trinta metros de comprimento e repleto de antenas. Cúpulas brancas cobriam pratos de comunicação por satélite.

- Tin Hau.

- A deusa do mar.

Era uma designação muito comum em Hong Kong, para uma embarcação.

- É enorme. Pode ir a qualquer parte.

Talvez Chang planeasse utilizar o iate para o tráfico de órgãos humanos ao longo do rio das Pérolas, desde Cantão. O problema era que o dirigente da Tríade tinha uma opinião exagerada dos conhecimentos médicos de Stone.

- Expliquei-lho ontem, Ronald. Ocupo-me de emergências. Não entendo absolutamente nada de transplantes.

- Isso é o menos, doutor. Como Mister Chang diz, temos muitos médicos.

- Então, para que me querem?

Em vez de responder, Ronald consultou o cantonês com o olhar e este abanou a cabeça, o que lhe motivou uma expressão de desapontamento. Fez menção de protestar, mas Chang voltou a sacudir a cabeça, após o que grunhiu uma palavra no seu idioma e pôs-se de pé. Dois guarda-costas, trajados de uma forma tão conservadora como ele, surgiram do aposento contíguo e escoltaram-no em direcção à saída.

Ronald aguardou que a porta se fechasse, para declarar:

- Mister Chang simpatizou consigo.

Stone surpreendeu-se, pois supusera que o diálogo mudo entre os dois homens significava que o detestava.

- O suficiente para me ajudar?

- Ele tem um excelente amigo em Xangai. Um homem de negócios. Era uma entidade oficial elevada na República Popular da China. Dirigia uma fábrica de algodão do governo. Na véspera da aposentação, vendeu-a a uma companhia «privada» pertencente a sua esposa. No dia seguinte, essa fábrica passava a pertencer-lhe. Sim, é um homem muito importante o amigo de Mister Chang. Extremamente rico. Aprecia as coisas boas da vida. Mister Chang crê que ele gosta daquele iate.

- O quê? - Stone arregalou os olhos de espanto.

- Não há memória de um membro da Tríade se apoderar de um iate num abrigo contra tufões. Os turiferários de Tanka odeiam-nos. São como cães de guarda. Se me vissem aproximar, punham-se a ladrar. Mas não ladram a um gweilo membro honorário do Iate Clube de Hong Kong.

- Você não regula bem.

- Vai tornar-me um gangster famoso, doutor. Famoso e rico. E Mister Chang será meu particular amigo.

- Não sou ladrão - retorquiu Stone. No entanto, limitava-se a ganhar tempo. Roubar um barco era diferente de se apoderar de órgãos do corpo humano. A única dificuldade consistia na sua impossibilidade.

- Não tem qualquer alternativa, marinheiro. Constou-me que estão a alvejar pessoas no Hilton.

- Como o retiro daqui, admitindo que consigo sequer subir a bordo?

- Investiguei-o, doutor. Toda a gente diz que é um marinheiro experiente. Acha aquele iate demasiado grande?

- Posso controlá-lo. Mas, e a respeito dos tripulantes? Deve haver dois, pelo menos, que dormem a bordo.

- O doutor pode ocupar-se deles.

- Não mato pessoas.

- Não é preciso matá-los. Ate-os. Nós soltamo-los, mais tarde.

- Imagino... E quanto à Polícia? Mesmo que eu consiga levar o iate para fora do abrigo, suponha que a patrulha do porto me aborda?

- Vai haver nevoeiro, amanhã à noite. Não o verão.

- Dispõem de radar.

- E nós de CME.

- Deixe-se de brincadeiras.

- Mister Ronald não brinca.

- Contramedidas Electrónicas?

- Ele possui o sistema de interferência mais moderno.

Podemos neutralizar facilmente o radar da polícia. A única coisa que doutor tem de fazer é esquivar-se à patrulha do porto e encontrar-se com a patrulha da RPC.

- A que distância?

- Treze milhas.

Ronald levou Stone até à mesa. O mapa representava o porto de Hong Kong e as suas águas imediatas. Traçou uma rota para leste do abrigo, depois para sul em torno da ilha de Hong Kong em direcção ao estreito de Tathong e de novo para leste entre a baía de Joss House e a ilha de Tung Lung. A partir daí, era um percurso rectilíneo para leste, quase totalmente através do mar aberto, rumo a uma linha tracejada que representava a antiga fronteira entre «Hong Kong (Reino Unido)», do lado mais próximo, e «Guangdong Sheng, China», do mais afastado.

- Os nossos amigos aguardarão aí. Depois de cruzar essa linha, fica com os movimentos livres.

Pareciam mais dezasseis do que treze milhas, e Stone replicou:

- Os movimentos livres como? Então, e a patrulha do porto? Os polícias do mar não passaram também a ser da RPC?

- Talvez alguns pertençam à Chiu Chau. É possível que haja amigos de Mister Chang entre eles - explicou Ronald. Com paciência exagerada, acrescentou: - Conhece Los Angeles, marinheiro?

Stone hesitou e ele continuou:

- O seu barco está registado em LA, recorda-se? Sucedem aí muitos casos como o que nos preocupa agora. Mais alguma pergunta?

- Receio bem que sim. Pede-me que acredite que, quando eu entregar o iate em pleno mar, vocês cumprirão a vossa parte do acordo?

- Porque não? É um velho amigo da Lydia Chin. De resto, talvez nos ajude em Xangai.

- Como? - quis saber Stone, desconfiado.

- Esta é a sua maior oportunidade, marinheiro.

Compreendeu que cada vez se afundava mais. A dúvida consistia em saber se se aproximava de Sarah e Ronnie. Como resposta, sentiu um sorriso malicioso aflorar aos lábios. Era uma maneira de restituir o peixe à água.

- Onde vai? - perguntou Ronald, ao vê-lo encaminhar-se para a porta.

- Quero observá-lo de perto.

- Eu levo-o. Há gente da Chiu Chau em toda a parte.

 

- Acorda, querida - murmurou Sarah, depois de ver que o navio continuava à deriva e a oscilar levemente com a ondulação.

Ronnie despertou estremunhada.

- O que... o que foi?

- Fala mais baixo. Vamos evadir-nos.

- Palavra! - Pestanejou repetidamente. - Quando?

- Já. Veste o blusão para o mau tempo. Tens de deixar ficar a mochila.

- Tenho lá todas as minhas coisas.

- Não podemos levar a bagagem. Assim, se nos interceptarem, diremos que estamos a dar uma volta. Lamento. Também tenho de abandonar tudo. Toma. - Sarah entregou o SPG à filha. - Esconde-o na algibeira. Eu levo uma garrafa de água e o rádio.

- E se nos virem?

- Duvido. Está um nevoeiro cerradíssimo. Espreita. Com ar desconfiado, a garota assomou à escotilha.

- Tenho medo.

- Eu também.

- E Mister Jack? - murmurou, com uma mirada receosa ao ancião deitado na cama.

- Dei-lhe um sonífero. Vamos.

- Onde está o Moss?

- Na ponte.

- Tens a certeza?

- Anda lá.

Sarah pegou na mão da filha, que percorreu a cabina com um olhar quase de saudades antecipadas, abarcando em especial as miniaturas de aviões e a sua mochila do Snoopy. A mãe conduziu-a para a sala deserta, transpuseram a porta e começaram a descer a escada principal.

- Vem alguém a subir.

- Estamos apenas a passear, lembras-te?

Sarah pousou o braço em torno dos ombros da filha e sorriu ao marinheiro chinês que subia em direcção ao refeitório da tripulação e inclinou levemente a cabeça. Elas continuaram a descer os degraus espiralados, para além da coberta principal, em direcção ao casco. Imperava um silêncio sinistro, com as máquinas paradas e, mesmo quando ela abriu a porta de acesso à coberta das instalações do pessoal, os únicos sons mecânicos que se ouviam eram murmúrios distantes do gerador auxiliar que alimentava a iluminação e o ritmo dos compressores de arrefecimento da carga. O panorama parecia demasiado fácil. Ou talvez elas tivessem simplesmente sorte.

- Olha!

O Zodiak, um batel de quatro metros semi-rígido, insuflável, com motor fora de borda, estava encostado de pé a um lado para poupar espaço. O motor ainda se encontrava montado, ligado a um único bidão de combustível de vinte litros.

Ao contrário do escaler de emergência, não dispunha de canópia, nem abrigo de qualquer espécie. No entanto, elas tinham os blusões contra a intempérie, embora demasiado leves para os ventos fortes que predominavam a uma latitude tanto para norte. Sarah aproximou-se da escotilha e começou a soltar os ganchos que prendiam a embarcação.

- Dá-me uma ajuda.

Todavia, Ronnie pousou um joelho na coberta e pareceu preocupada com um dos sapatos.

- Ajuda-me tu aqui, mamã. Exasperada, Sarah baixou-se a seu lado.

- Que diabo te aconteceu?

- Não olhes para cima.

- Porquê?

- Há uma câmara de vídeo apontada à escotilha.

- Meu Deus! Que fui eu fazer?

- A culpa não é tua - sussurrou Ronnie. - Está parcialmente escondida. Finge que me ajudas.

Sarah tentou analisar a situação rapidamente.

- Depois, levantamo-nos e começamos a andar.

- Não podemos. Eles viram que me dei conta.

- Raios de!...

- Dancemos.

- O quê?!

Antes que a mãe a pudesse impedir, Ronnie endireitou-se e acenou para a objectiva, que estava parcialmente oculta numa coluna de aço.

- Olá, Mister Jack! Está a observar-nos? Olá, Moss! - Voltou-se para Sarah. - Vamos, mamã. É Mister Jack. Olá, Mister Jack! Olá, Moss! Anda daí, mamã. - Puxou-a para que se levantasse, rodeou-lhe a cintura com o braço e começou a saltitar ao pé cochinho. - Um, dois três. Um, dois, três. Aprendemos o cancan no clube dos oficiais, em Kwajalein! - gritou, como se nenhuma das duas soubesse que se encontrava drogado na cama. - Lamento, Mister Jack, mas a mamã não é capaz. Adeusinho! - Puxou a mãe para a escada. - Um, dois, três!

Três cobertas acima, cruzaram-se com Ah Lee, com um tabuleiro em que se via uma garrafa de uísque, copos e cubos de gelo.

- Não é permitido - advertiu ele, abanando a cabeça. - Não é permitido.

- Não há novidade. Somos só nós. Afasta-te.

- Não é permitido.

- Afasta-te.

- Voltem para trás.

- Afasta-te.

- Vou dizer ao Moss.

- Não, por favor.

No entanto, Ah Lee partiu disparado, escada acima. Sarah acercou-se da porta de acesso ao convés da ré. O nevoeiro era tão denso que não se conseguia ver a amurada. A jangada salva-vidas achava-se reduzida a uma mancha nebulosa.

- Depressa!

Correram para lá e Sarah começou a tentar soltar os cabos que a prendiam, tarefa que não se apresentava fácil.

- Endireita-te, mamã! Vem aí alguém.

Apressou-se a obedecer e começava a afastar-se da jangada quando Moss emergiu do nevoeiro.

- Que porra fazem cá fora?

Sarah ergueu-se a toda a sua altura e retorquiu:

- Importa-se de moderar a linguagem diante da minha filha?

No entanto, o negro agarrou-a pelo braço e ordenou:

- Para dentro!

Impeliu-a para o camarote de Mr. Jack com tanta violência que ela colidiu com a cama. Em seguida, obrigou Ronnie a imitá-la. O ancião acordou, entontecido, mas, ao ver a expressão no rosto de Moss, ficou imediatamente alerta e austero, como se superasse o efeito do sonífero graças à força de vontade Ou seria medo? Na realidade, dir-se-ia receoso de algo.

- Que fizeram elas! Emitiram alguma mensagem?

- Surpreendi-as a vaguear na coberta principal. Visivelmente aliviado, Mr. Jack fez um esforço para se

soerguer e repeliu Sarah, quando esta pretendeu ajudá-lo.

- Que diabo faziam aí?

- Fomos dar uma volta.

- Estavam junto de uma jangada salva-vidas - informou o gigante.

- Não estávamos nada - desmentiu Ronnie. - Fomos tomar ar.

- Foi depois de o vídeo as captar noutro ponto da coberta. E o rapaz da messe cruzou-se com elas na escada.

- Ele assustou-nos - acusou a garota. - E agora é você que me assusta. - Exibiu uma expressão pesarosa. - Mister Jack, porque não?...

- Bico calado, miúda. Já vi uma porca representar de maneira mais convincente.

- O rapaz da messe diz que tentaram convencê-lo a ajudá-las a lançar ao mar o escaler insuflável.

- É mentira! Não pode ter dito nada disso.

- Ele garantiu-mo, Mister Jack.

- Isso foi porque o espancou! - bradou Ronnie.

- Caluda!

- Ele diria tudo para que não voltasse a maltratá-lo.

Soou o apito de um navio e Sarah voltou-se para a escotilha de bombordo.

Um casco escuro e alongado acabava de se materializar através do nevoeiro e avançava directamente para o Dálias Belle. Depois outro. E um terceiro. Eram rebocadores, maltratados pelo mar e imundos, cujas chaminés vomitavam fumo espesso para a densa atmosfera. Marinheiros de negro acumulavam-se nas cobertas. Bandeiras vermelhas ondulavam, com as estrelas amarelas da República Popular da China.

Ela ainda orava intimamente para que representassem a salvação, quando o comandante se precipitou no camarote.

- Há rebocadores à nossa volta, Mister Jack.

Este tentou endireitar-se mais, apoiado ao cotovelo são, de olhos ardentes.

- A protecção mantém-se?

- Como foi combinado. Mas o nevoeiro está a levantar. Não dispomos de muito tempo.

- Vai buscar um gelado, Ronnie.

- Não me apetece.

- Silêncio! Leva-a lá abaixo à cozinha, Moss.

A garota mostrou-se melindrada, pois o ancião nunca lhe tinha gritado. Mas Sarah apenas pôde assentir com uma inclinação de cabeça.

- Vai lá, querida. Entretanto, eu falo com Mister Jack.

Moss apontou para a porta, com um gesto brusco do polegar e Ronnie tratou de correr à sua frente. Em seguida, Mr. Jack concentrou-se em Sarah.

- Cabra estúpida! - vociferou. - Arriscar a vida e a de sua filha...

- Fomos dar uma volta - persistiu ela. - O Ah Lee estava assustado. Não compreendeu. Ou, o mais provável, o Moss mentiu.

- Está a candidatar-se a um destino terrível, doutora.

- Não sei ao que se refere. Fomos apenas espairecer.

- Pare de mentir. Tentaram evadir-se.

Preparou-se para protestar mais uma vez, mas perdeu a coragem e abanou a cabeça, amargurada.

- Não é verdade. Mas o senhor não o faria?

- Parece que tenho a cabeça cheia de lama. Deu-me um mickey ? ( 1 )

- Um mickey ? - repetiu, embora soubesse perfeitamente ao que ele se referia.

- Um comprimido. Drogou-me?

- Sim, dei-lhe um sonífero para lhe acalmar a actividade, que só o pode prejudicar.

- Não torne a fazer isso sem me prevenir.

- Como queira.

O ancião suspirou.

- Está mesmo a esgotar-me a paciência.

- Apenas pretendo...

No entanto, interrompeu-a com um gesto brusco.

- Vou conceder-lhe mais uma oportunidade. Se torna a pisar o risco, sofrerá as consequências. Será castigada.

- Castigada. Como se atreve a falar-me assim? Esquece que lhe salvei a vida? Ousa ameaçar-me?

Apontou-lhe um dos dedos mutilados.

- Quando o Moss a puser de rastos na coberta, a implorar compaixão, não diga que não a preveni. E não espere qualquer misericórdia de minha parte porque estarei presente para me certificar de que ele a tratará de uma maneira que nunca esquecerá.

- Considerando o seu estado de saúde, de modo algum lhe convém que a sua médica baixe à enfermaria.

- Não sou estúpido, doutora. O Moss mandava em prostitutas quando tinha dezasseis anos. Pode provocar dores a uma mulher que a obrigue a desejar a morte. E mandá-la fazer negócio na rua na mesma noite. Quer uma pequena demonstração, quando ele voltar?

Sarah baixou os olhos antes que ele pudesse ver a expressão mista de medo e indignação.

- Responda! Quer uma demonstração?

- Não... - As lágrimas toldaram-lhe a visão.

O telefone tocou. Mr. Jack estendeu a mão para a mesa-de-cabeceira e pegou no auscultador.

 

( Nota – 1 ) - Bebida alcoólica a que foi adicionado um soporífero. (N. do T.)

 

- O quê?... Bem, recebo-o na sala. Manda vir café muito forte em grandes quantidades. Preciso das ideias bem claras para enfrentar esse tipo. - Moveu os pés para fora da cama, deixou Sarah ajudá-lo a levantar-se e enfiou o roupão. - Não esqueça. É a última oportunidade.

- Onde está a Ronnie?

- Vem a subir. - E transpôs a porta.

Cinco minutos que se escoaram tão lentamente como dias. Por fim, a garota reapareceu, incólume e ainda abalada, mas afortunadamente distraída por algo a que assistira.

- Foi a coisa mais engraçada que vi até hoje, mamã! Um chinês que veio para falar com Mister Jack caiu pela borda fora.

- O quê? Do navio?

- Não. Do rebocador, quando tentava subir para bordo. Os marinheiros agarraram-no, mas ficou encharcado até à cintura. E os sapatos largavam água como esponjas. Devias tê-lo visto, com a pasta a gotejar.

Começou a rir, mas de súbito a realidade da situação acudiu-lhe plenamente e pôs-se a chorar. Sarah tentou consolá-la, até que a viu mais calma e disse:

- Acho que são horas de irmos para a cama. - Enquanto ajudava a filha a despir-se, perguntou: - Alguém disse quem ele era?

- Quem?

- Esse chinês.

O bocejo que Ronnie esboçava converteu-se num sorriso divertido.

- Chama-se Ah Wet. (1)

- Que nome tão patusco! - Sarah também achou graça. - Bem, agora toca a dormir.

Sentou-se a seu lado, até que a respiração compassada lhe indicou que o sono chegara. Depois, pegou no estetoscópio e escutou através da porta.

Não conseguiu ouvir todas as palavras e depreendeu que eles se encontravam no lado mais afastado da sala. «Ah Wet»

 

( Nota – 1 ) - Encharcado. (N. do T.)

 

exprimia-se em voz baixa, enquanto a de Mr. Jack denotava os eleitos do sonífero - arrastada e rouca -, porém o tema eram as finanças: uma discussão altamente técnica de um esquema em marcha para adquirir acções de bolsa em mercados de todo o mundo. No entanto, ela entendia pouco do assunto, à parte que se tratava de quantias enormes e o projecto a longo prazo estava perto do termo.

Ronnie surgiu a seu lado e Sarah experimentou um sobressalto, pois não a ouvira abandonar a cama.

- Tem cuidado, mamã - murmurou. - O Moss disse que te sovava, se tentássemos alguma coisa.

Sarah puxou-a para si, consciente de que necessitava de a tranquilizar, embora tivesse forçosamente de tentar salvar-lhe a vida.

- Não te preocupes, querida - proferiu no mesmo tom. - Mister Jack não o permitiria. Gosta muito de ti.

 

Quando Michael Stone foi alugar uma embarcação, o tiroteio ocorrido no Hilton à hora do almoço constituía o tema predominante de todas as conversas no clube. Constava que Kerry McGlynn fora atingido no ombro, e Stone telefonou para o Hospital Matilda, de onde confirmaram que o ferimento se revestia de certa gravidade.

Algumas crianças observaram-no com curiosidade de uma jangada improvisada, quando saltou para dentro da embarcação e começou a conduzi-la por entre o labirinto de canais estreitos do abrigo contra os tufões. Cruzou-se com mulheres a bordo de sampanas motorizadas, que transportavam mercadorias e pessoas para os juncos e iates. A água estava suja, de um cinzento mortiço, e cheirava mal apesar da aragem fria de Dezembro, lar de milhares de almas, que nasciam, viviam e morriam nos seus barcos.

Não obstante, a cidade flutuante era uma povoação de carácter rural, e Stone compreendia que um intruso da Tríade seria reconhecido instantaneamente. Provocava olhares de curiosidade enquanto remava e depois rostos inexpressivos, quando o catalogavam: um gweilo, um fantasma branco do Ocidente, à procura de exercício no que as pessoas normais consideravam trabalho. Excêntrico, inofensivo e vagamente absurdo, embora porventura uma fonte de rendimento.

Chamaram-no de uma sampana que vendia croquetes de peixe. Ele comprou uma cesta da condimentada comida e tragou-a, enquanto deixava a embarcação à deriva. No instante em que terminou, materializou-se outra sampana para lhe vender chá quente. E, quando acabou de o tomar, nova embarcação acostou à sua, pilotada por uma sorridente mulher de meia-idade, que apontou para um colchão sob o toldo de lona da popa e sugeriu:

- Vai uma pinocada?

Stone abanou a cabeça em silêncio, por não confiar no seu cantonês para se fazer entender com mais clareza, após o que recomeçou a remar para a área um pouco menos caótica onde se reuniam os iates.

Surpreendeu-se com o número elevado de barcos de linhas admiráveis - grandes, modernos e possuidores de alta tecnologia. Tornou a imobilizar os remos e pousou os braços neles, enquanto fingia que admirava uma corveta nas proximidades, a fim de poder observar pela primeira vez o Tin Hau, fundeado no final da próxima fila de barcos. Um vigia da corveta acudiu imediatamente à amurada e olhou Stone com curiosidade.

- Posso ajudá-lo?

- É um navio admirável - foi a seca resposta de Stone, que tornou a mergulhar os remos na água e foi ocupar outro posto de observação.

O Tin Hau salientava-se dentre uma floresta de mastros de alumínio e fibra de carbono. O volume do seu casco azul-marinho era habilmente disfarçado por uma superstrutura ultra-moderna, que, embora muito alta, fora construída para parecer de aspecto corrente.

Enquanto continuava a remar para se acercar mais, um helicóptero cruzou o porto e pousou na coberta da popa. Surgiram prontamente dois marinheiros, que ajudaram o piloto a fixar as amarras do aparelho e a descarregar caixotes de bebidas. Stone remou ao longo do comprimento do iate, em direcção à passagem de acesso ao porto. Deteve a embarcação aí, enquanto uma sampana recolhia o piloto do helicóptero, e estudou o sistema de amarração.

Não havia qualquer âncora mergulhada, felizmente. Ambas estavam pousadas no lado da proa coberta e o iate encontrava-se amarrado a uma fixação permanente. Passados uns minutos, ele remou no sentido contrário. A popa achava-se presa a outra bóia permanente. Excelente.

Imaginou uma sequência: quando a maré inundasse a passagem, ele começaria por soltar as amarras laterais e depois a da popa. A seguir, ligaria os motores, deslocar-se-ia para a frente e cortaria o cabo da proa. Depois, retrocederia para a ponte e tentaria afastar-se sem acordar metade do abrigo contra tufões.

Mas primeiro precisava de subir a bordo e ocupar-se dos marinheiros, que eram inocentes absolutos. E possivelmente estavam armados. A posse de armas era muito limitada em Hong Kong, mas quem sabia o que acontecia num iate privado?

Stone pensou em tornar a remar para fora, à noite, e trepar pelo cabo da popa. Mas nesse caso teria de esquadrinhar um iate que não conhecia e encontrar a tripulação. Por fim, mergulhou os remos e rumou lentamente de regresso ao Iate Clube.

Anoitecia e as encostas das colinas começavam a iluminar-se. Não tardou a soprar um vento frio e húmido de leste e, apesar do exercício com os remos, ele puxou o fecho do impermeável. Passou junto de uma sampana-restaurante, com um casal de turistas europeus reclinado em almofadas na popa, enquanto uma chinesa idosa servia o jantar. Apareceu outra embarcação, com um trio desafinado que interpretava Moon River.

Continuando a remar devagar, Stone desviou-se um pouco para que a sampana-restaurante cruzasse o espaço à sua frente. Viu que acostava a um iate de grandes dimensões e a chinesa batia no casco. Surgiu quase imediatamente um marinheiro, que baixou uma escada para que a mulher subisse.

Ele deixou a sua embarcação à deriva por uns momentos. Ela não tardou a reaparecer, entregou algum dinheiro ao marinheiro e regressou ao restaurante flutuante.

- Gostava que o tivesses visto - disse ao companheiro. - Até tinha um bidé. De mármore. Com torneiras de ouro.

Meia hora mais tarde, Stone encontrava-se de novo no quarto do hotel, com uma chávena de chá na mão e Ronald ao lado, com o olhar cravado no abrigo contra tufões em baixo.

Stone aguardou pacientemente, em silêncio, até que o homem da Tríade perguntou:

- Tudo em ordem?

- Fale-me dessas CME.

O outro encolheu os ombros.

- Só sei que basta carregar num botão para que o radar da polícia da água dê o badagaio.

- Vai accioná-las você?

- Não. Tenho um miúdo... engenheiro... para isso. Digo-lhe quando deve carregar no botão. Não se enerve. Vem directamente do Exército de Libertação do Povo.

- De onde vão proceder à activação?

- Basta de perguntas. - Ronald extraiu dois rádios de VHF de uma pasta e entregou um a Stone. - Garanto-lhe que quando me comunicar que obstrua o radar, emudecerei os polícias aquáticos.

- Podem ouvir-nos utilizar isto.

- Julga-nos amadores? A interferência é total. Ninguém ouve nada além de nós os dois. Mais algum problema?

Stone estudou o mapa durante alguns minutos. Em seguida, aproximou-se da janela e baixou os olhos para o abrigo.

- Vou precisar de uma mulher.

- Conte com ela.

- Mas não uma prostituta. Apenas uma ocidental de aspecto vulgar. De preferência loira.

O cantonês reflectiu por um momento.

- Conte com ela.

- Vai precisar de uma arma e saber manejá-la.

- Conte com isso.

- Vamos necessitar de algemas para os marinheiros.

- Já as temos.

- Recomende-lhe que convém evitar os tiros. Ela deve ser atraente e vulgar, até que puxe da arma. Nessa altura, tem de parecer dura.

- E é.

- O suficiente para convencer os marinheiros a não oferecer resistência.

- Entendido. Que mais?

Stone voltou a inspeccionar o mapa e regressou à janela, para observar o percurso através do estreito entre Hong Kong e Kowloon.

- Vai ser esta noite.

- Está previsto nevoeiro para amanhã à noite.

- E para hoje também.

- O boletim meteorológico só fala de amanhã. Quando estivera no abrigo, ele cheirara-o no vento.

- Confie no que digo - insistiu. - A maré muda às dez. Diga à mulher para se encontrar comigo no bar do Iate clube às nove e meia.

- Mais alguma coisa?

- Como se chama ela? Ronald encolheu os ombros.

- Que nome lhe interessa?

- Katherine.

- Então, será esse.

- É americana?

- É.

- Diga-lhe que deve proceder como se fosse uma professora do Dacota do Norte em gozo de férias do Natal.

- Fixe.

 

Na biblioteca do clube, Stone leu a secção de Xangai de Sailing Directions referente à costa oriental da China e estudou os mapas. A cidade era imensa. Ao longo de mais de trinta quilómetros, as margens do rio Huangpu estavam repletas de cinturas industriais de fábricas, terminais de caminho-de-ferro, refinarias, centrais eléctricas e cais de embarque e desembarque. Parecia o lugar ideal para ocultar um navio e terrível para o procurar.

Telefonou à Falconer Nautical na central para a entrega dos mapas 94 219 e 94 218 da Agência de Cartas de Defesa de Xangai e um exemplar das Sailing Directions. Em seguida, dirigiu-se ao bar e comprou uma embalagem de dez maços de Marlboro. Sarah matá-lo-ia, se soubesse, porém os cigarros americanos podiam comprar muitas amizades no continente.

Quando «Katherine» entrou no bar do clube às nove e meia em ponto, Stone verificou imediatamente que Ronald cumprira a promessa. Ela tinha todo o aspecto de uma professora do Dacota do Norte - alta, de expressão agradável, sem ser irresistível, e pouco mais de trinta anos. Usava o cabelo em rabo-de-cavalo, um sorriso cordial aberto e o ar levemente impressionado de quem acabava de chegar ao Oriente.

- Katherine! - chamou ele, com um aceno, e foi ao seu encontro.

Ela era meia cabeça mais alta e saudou-o com a ponta de hesitação própria de quem se encontra com um novo amigo.

Stone apresentou-a a «A Fera», com o qual tinha estado a beber, e vários amigos de Simmons. A sala estava cheia de gente, pois haviam chegado muitas pessoas para jantar. Stone pediu para Katherine o Seven and Seven que ela mencionou e, enquanto trocava impressões com os outros, «A Fera» perguntou a meia voz:

- Uma velha amiga?

- Conheci-a no Tram.

- Não deixa escapar uma, hem, espertalhão? Mas é muito alta para si. Precisa de um australiano possante e simpático como eu.

- Ela confidenciou-me que lhe interessa mais a potência do que o aspecto.

Algumas pessoas saíram para o terraço e, quando abriram as portas de correr, entrou uma corrente de ar húmido que agitou o fumo dos cigarros. As luzes do abrigo começavam a toldar-se, à medida que o nevoeiro avançava do porto. Às dez horas, as de Kowloon tinham deixado de se ver e agora, cada vez que as portas se abriam, Stone ouvia sirenes e os apitos de embarcações que passavam.

Katherine parecia perfeitamente integrada no papel que representava.

- Como vai isso? - perguntou ela.

- O melhor' possível. E se fôssemos dar uma volta?

- Agora? Muito bem. Onde?

- Iremos num barco a remos. Vou mostrar-lhe o abrigo. Stone pediu ao empregado uma garrafa de champanhe e duas taças.

- Tive muito gosto em conhecê-los - disse Katherine, deslizando do banco alto e colocando a enorme sacola a tiracolo. - Até à próxima. Simpatizo com os seus amigos - revelou a Stone, em tom suficientemente elevado para que os mais próximos ouvissem.

Ele foi buscar a mochila à recepção e conduziu-a ao local onde se encontrava o batel que alugara. Uma vez no cais, ela descalçou-se, saltou para dentro da embarcação e sentou-se à popa, voltada para Stone, que começou a remar.

A uma centena de metros do cais, cujas luzes se atenuavam devido ao nevoeiro, ele sugeriu:

- É boa altura de desarrolhar a garrafa.

- Aguarde só um momento.

Katherine procurou na sacola e ele descortinou o brilho metálico de uma pistola-metralhadora e ouviu o tilintar de algemas. No entanto, ela limitou-se a extrair uma cápsula, que, num gesto suave, abriu debaixo do nariz, inspirou o conteúdo e lançou o invólucro vazio ao mar.

- O que é isso? - protestou Stone. - Preciso de si bem lúcida.

- Vá-se lixar. - Vendo-o alterar o rumo do batel, perguntou: - Onde vamos?

Tenciono largá-la no cais - explicou ele, recomeçando a remar.

- Não, espere - articulou ela, com uma expressão de terror.

- Se pensa que vou abordar o iate com uma toxicómana de pistola em punho, ainda é mais louca do que parece.

- Não, espere - insistiu a mulher. - Escute o que tenho para lhe dizer.

- Faz-se acompanhar de uma arma automática. É muito capaz de puxar o gatilho e conservar lá o dedo.

- Sei utilizá-la. Sou polícia.

- Polícia?

- Bem, ex-polícia.

- É ex-polícia? Como deu nisto?

- Quer realmente saber como saltei de Minneapolis para Hong Kong? Sigamos para lá, por favor. Eles são capazes de me matar, se não cumprir a minha obrigação. Farei tudo o que me mandar. Por favor...

Com um suspiro de resignação, Stone tornou a alterar o rumo da embarcação e indicou:

- Abra a garrafa.

Katherine obedeceu e encheu as taças até ao topo. Em seguida, esvaziou a sua de um trago e apressou-se a voltar a enchê-la e tornar a fazer desaparecer o conteúdo quase por completo. Finalmente, inclinou-se para a frente e perguntou:

- Em que consiste a missão?

- Vê aquela sampana em que está um casal a comer? Se, durante o jantar, a mulher precisar de «empoar o nariz», o barqueiro leva-a a um iate, onde, em troca de uma gratificação, os tripulantes a deixam servir-se da casa de banho.

- «Empoar o nariz»? De onde vem você? Marte?

- O nosso trabalho consiste em bater no casco do Tin Hau, mostrar vinte dólares aos homens e pedir para utilizar a sua casa de banho.

- E eles deixam-me subir para bordo com essa facilidade?

- Como a qualquer turista que precise de fazer chichi.

- E se não deixarem?

- Recorremos a outro método.

Ela conservou-se silenciosa, enquanto Stone remava por entre as passagens que separavam os juncos. Ouviam-se televisões e música de todos os lados. Passavam sampanas, que transportavam famílias visitantes, turistas e prostitutas. Katherine dirigiu um olhar turvo a uma e murmurou:

- É onde me colocarão, se eu comprometer o golpe.

- Então, evite comprometê-lo.

- Vá-se lixar. Porque faz isto? Por dinheiro?

- Não interessa.

Um leve sorriso tornou-lhe a boca atraente, e voltou a imergir em silêncio. Quando se achavam perto do Tin Hau, Stone recolheu os remos, pegou na sua taça e voltou a encher a de Katherine.

- É - me permitido? - perguntou ela, com um trejeito cómico.

- Finja que está a divertir-se.

- Afinal, não tenho de pedir para fazer chichi?

A embarcação enveredou pelo canal onde o iate se encon-trava fundeado e Stone esvaziou a taça com um aparato exagerado.

- Preciso de ver quem está a bordo - esclareceu a meia voz.

A coberta estava deserta, com as luzes apagadas, à excepção das de presença na popa e das instalações da tripulação. As âncoras continuavam recolhidas e as amarras mantinham-se na mesma posição.

- Tenha cuidado! - advertiu Katherine.

- É para os acordar - explicou Stone, enquanto fazia o batel embater no casco do iate, já com algumas notas de banco na mão.

Não aconteceu nada e ele repetiu a operação. E, enquanto aguardavam, prendeu a amarra da embarcação a uma escora da amurada do Tin Hau.

- Parece que oiço passos - murmurou Katherine.

Por fim, surgiu um rosto, e ele apressou-se a perguntar:

- A senhora pode servir-se da vossa casa de banho?

O marinheiro baixou meia dúzia de degraus articulados e ofereceu a mão a Katherine para a ajudar.

- Volto já, querido - proferiu ela, e desapareceu no iate, acompanhada por um segundo tripulante, enquanto o outro permanecia junto de Stone.

O homem aparentava pouco mais de vinte anos, de constituição física impecável. Olhava para a embarcação inexpressivamente, até que avistou a mochila impermeável de Stone debaixo do banco central - um equipamento estranho, para um passeio com champanhe e uma companheira. De súbito, arregalou os olhos e assumiu uma expressão alerta. Stone viu o brilho do cano da arma pousado na nuca e ouviu o estalido de algemas a fecharem-se.

- Bem-vindo a bordo - disse Katherine, assomando à amurada.

Ele subiu os degraus e seguiu-a e ao prisioneiro por um

corredor em direcção à proa, onde ela já prendera o outro marinheiro a um prumo, não sem o amordaçar.

Stone voltou-se para o homem que a admitira a bordo.

- Fala inglês? - O interpelado assentiu, com um movimento de cabeça. - Muito bem. Quanto mais depressa nos despacharmos, melhor. Compreende?

Nova inclinação de cabeça.

- Tenho de ligar o combustível e as bombas do óleo na casa das máquinas ou posso efectuar tudo isso da ponte? Tire a mordaça a esse, Katherine.

- Da ponte.

- Basta ligar os interruptores e põem-se em marcha?

- Sim.

Stone aproximou-se dele e fitou-o com intensidade.

- Ela é uma toxicómana alucinada. Se houver algum problema, desata aos tiros, sem que eu a possa dominar. Vou, portanto, repetir a pergunta. Posso ligar as máquinas da ponte?

- Pode fazer tudo daí.

- Óptimo. As únicas amarras são a da proa e da popa?

- Sim.

- Não há outras?

- Não.

- Muito bem. Não os perca de vista, Katherine.

- Ele está a mentir ou a ocultar seja o que for.

Stone tornou a concentrar-se no marinheiro.

- Alguma outra coisa que eu deva saber? Só para que ninguém se magoe.

Os dois homens entreolharam-se.

- O que se passa? - insistiu. - Olhem que não lhes convém que tentem capturar-nos.

- O motor de bombordo.

- O que quer dizer com isso?

- Tem a bomba de óleo avariada.

- Com a breca! - Amaldiçoou entre dentes a inteligência embotada de Ronald. - Que velocidade pode atingir o iate só com esse?

- Doze nós.

- É pouco? - quis saber Katherine.

- Até um veleiro nos pode alcançar.

 

- Muito bem. Leve-os lá para baixo, para a casa das máquinas. Vocês vão reparar a bomba de óleo, e não me digam que não são capazes. Não os deixamos partir no escaler até o motor voltar a funcionar normalmente.

Os dois marinheiros entreolharam-se, e o que falava inglês declarou:

- Falta a peça.

- A que se refere? - Mas Stone não o ignorava. Quando procediam à reparação, tinham sido obrigados a interrompê-la porque faltava uma peça. Uma junta, naquele caso. Sem ela, o óleo não atingiria a pressão indispensável. - Você vai ficar com eles - indicou a Katherine.

- E o motor?

- Se conseguirmos raspar-nos sem acordar metade das tripulações alojadas no abrigo contra tufões, talvez corra tudo bem.

- Talvez...

- Você deve-o ao Ronald, e a minha família conta comigo.

Uma vez na coberta, mantendo-se de preferência nas áreas imersas na sombra, tratou de cortar as amarras, para o que se serviu de um machado para incêndios.

Da ponte de comando, avistava o topo dos barcos mais pequenos. O abrigo parecia calmo, apenas com o movimento da luz de uma sampana ocasional. O porto achava-se imerso em denso nevoeiro. No entanto, quando procurava o interruptor para iluminar a consola de comando, descortinou um clarão azulado que piscava em aproximação da passagem do quebra-mar.

Estremeceu, com o olhar fixo naquele ponto. Era um barco-patrulha, que emergia do nevoeiro. Havia dois polícias a bordo - um ao leme e o outro ocupado com o rádio. Teria activado um alarme silencioso?

O barco entrou na passagem lentamente e circundou a pequena bacia rodeada por embarcações fundeadas. Tratava-se de um insuflável semi-rígido accionado por dois potentes motores fora de borda, capaz de atingir trinta nós. Em seguida, saiu de novo para o porto, acelerou e desapareceu.

Stone apontou a lanterna-lapiseira à consola e, com dedos trémulos, premiu uma cavilha. O mostrador do motor de estibordo emitiu um leve clarão avermelhado. Fez rodar a chave e o alarme do combustível zumbiu discretamente. Accionou o motor de arranque.

Moveram-se vários ponteiros e das entranhas do iate brotou um ronco abafado. Em seguida, ligou o radar, a sonda de profundidade e as luzes de percurso.

O barco começou a retroceder em direcção à fila imediata de embarcações. Uma olhadela para a popa revelou que esta se encontrava a metros da proa de uma pesada escuna. Acto contínuo, engrenou a hélice de estibordo. A coberta estremeceu e o tacómetro indicou valores rapidamente decrescentes, enquanto o motor frio ameaçava parar.

Introduziu-lhe combustível lentamente. O ponteiro do tacómetro hesitou. Ele voltou a olhar para trás e verificou que a escuna se distanciava gradualmente.

Apontou a proa do Tin Hau à passagem de saída, bruscamente consciente de que se tratava de um barco muito longo, o triplo do comprimento do Verónica e uma envergadura quinze vezes superior. Com apenas um motor, necessitaria de actuar no leme com extrema subtileza para atravessar o quebra-mar sem roçar nas rochas.

Alinhou a proa e voltou-se para trás, a fim de verificar a popa. Havia alguém na coberta da escuna a agitar o punho cerrado - um marinheiro acordado repentinamente pela forte ondulação que o iate provocara.

Mais tarde, não conseguiu descrever o que fez a seguir, porque estava demasiado concentrado em fixar o rumo do volumoso casco. Só se recordava de ter travado uma dura luta com o espaço reduzido que necessitava de transpor, até que finalmente se encontrou no porto.

As luzes deste não tardaram a atenuar-se e desaparecer por completo. Em frente, havia o denso nevoeiro e uma escuridão como no interior de um barril.

O radar era o último modelo comercial da Furuno, uma unidade que ele desejaria ter a bordo do Verónica, com todas as campainhas, apitos e um monitor colorido que revelava a costa e os barcos no porto com a clareza límpida de um ecrã de cinema gigantesco.

O caminho em frente achava-se desimpedido e ele acelerou um pouco mais. Foi necessário percorrer duas longas milhas para fixar a velocidade em catorze nós, mais dois do que os marinheiros haviam previsto. Mas, com apenas um motor, seria inútil tentar aumentá-la.

Ligou o piloto automático e aplicou as correcções necessárias para compensar o impulso descentrado de um só motor. Depois, consultou o ecrã do radar, em busca de obstruções em frente e perseguições na retaguarda.

De súbito, surgiu a voz de Ronald no rádio de VHF, com nitidez absoluta:

- Olá, doutor. Porque não vai mais depressa?

- Porque, seu filho da mãe, não me disse que um dos motores estava avariado.

- Avariado?

- Estavam a reparar a bomba do óleo.

- Não tem importância. Seguimo-lo pelo radar. Pode deslocar-se livremente.

- Uma gaita é que posso!

Com efeito, o Tin Hau ainda se encontrava a treze milhas da fronteira da República Popular da China. E aproximavam-se as cinco piores: canais estreitos e águas muito frequentadas.

Um sinal em forma de losango começou a piscar no ecrã do radar. Tratava-se de um aviso de que o barco da polícia, que se dirigia para Kowloon, mudara de rumo. Stone apressou-se a contactar de novo com Ronald.

- Creio que a polícia marítima me captou no radar.

- Não se preocupe. Eu despisto-a.

O ecrã assumiu uma tonalidade vermelha brilhante, ao mesmo tempo que Stone ouvia o cantonês rir pela rádio.

- Ficaram cegos!

- E eu também. Desligue essa porcaria! Tenho um navio mesmo na minha frente.

O membro da Tríade cortou o sinal do CME. O radar de Stone piscou e, de repente, o porto reapareceu, expondo a costa do canal Tathong de cada lado e um navio a cerca de um oitavo de milha. Doze milhas atrás, o barco da polícia alterou a rota e apontou ao iate como um raio laser.

Ele tentou indicar a Ronald que voltasse a interferir, mas não obteve resposta.

- Ronald! - insistiu.

O mesmo silêncio.

Tornou a fixar o leme e veio à coberta para inspeccionar o panorama. O vento húmido quase o derrubou, tresandando a carburante de petroleiro. Fixava o olhar no nevoeiro, quando pressentiu um navio nas cercanias e o volumoso casco de um cargueiro irrompeu como um arranha-céus.

Voltou a pegar no leme e apressou-se a corrigir a direcção, até que se cruzaram a uma distância confortável.

Quando soou a voz de Katherine sobressaltou-se, pois não a ouvira entrar e não fazia a menor ideia sobre desde quando se encontrava ali a observá-lo.

- Como vão as coisas?

- O nevoeiro é tão denso que a polícia não consegue ver sem o radar. Acabo de pôr um navio enorme entre nós. Durante alguns minutos, não nos poderão referenciar.

- Ronald disse-me que dispunha de todas as inovações de alta tecnologia.

- Ele está mais imerso no ciberespaço do que na realidade. Mais uma milha e poderemos voltar a rumar a leste. Diga aos rapazes que se preparem para saltar para o escaler. Leve este rádio portátil e dê um berro quando estiver tudo a postos. Nessa altura, pararei o iate para que se transfiram.

- Para quê estar com esse trabalho?

- Os meus problemas... e os seus, cara amiga... não são da conta deles.

Quatro minutos mais tarde, quando estava preparado para alterar o rumo entre a baía Joss House e a ilha Tung Lung, tentou de novo indicar a Ronald que interferisse no radar, mas o ecrã permaneceu inalterado. À medida que aumentasse a distância entre eles, o navio deixaria de o proteger do radar da polícia.

Por fim, fixou o piloto automático e desceu ao convés. Katherine, que ele temia que assassinasse os dois marinheiros, estava muito atarefada, enquanto tentava abrir os fechos das algemas e, ao mesmo tempo, controlá-los.

Stone foi buscar uma jangada insuflável de borracha e, conservando a amarra na mão, lançou-a à água. Em seguida, muniu-se de dois cobertores da arrecadação, que entregou aos homens, e, depois de se certificar de que colocavam os coletes salva-vidas, mandou-os saltar para a embarcação, o que fizeram com prontidão e profundo alívio desenhado nos rostos. Finalmente, largou a extremidade da amarra e a jangada não tardou a ser tragada pelo nevoeiro.

Ele e Katherine subiram à ponte e Stone desligou o piloto automático e rectificou o rumo. O iate começou a apontar a leste, enquanto deixava para trás o sinal bem nítido da jangada no ecrã do radar.

- Tenho a forte esperança de que quando a polícia recolher os dois rapazes e se inteirar dos pormenores já nos encontremos do outro lado de Tung Lung.

À velocidade de catorze nós, foram necessários quatro minutos para delizar entre a ilha e as luzes brilhantes da baía Joss House. Transcorridos mais dez, Stone conduzia o Tin Hau por entre um grupo de ilhotas e começava a acreditar que conseguira o que pretendia. Chegara quase ao mar aberto.

- O que é aquilo? - perguntou Katherine, inclinando-se por cima do ombro dele, para indicar um conjunto de novos ecos que tinham aparecido repentinamente no ecrã.

A princípio, o radar não os distinguira do alvo brilhante do farol de Waglon. Stone premiu o botão de Aquisição e moveu o cursor para os seguir. O aparelho necessitou de dois minutos para traçar o vector sobre os novos alvos. Deslocavam-se a quarenta nós, numa rota de intercepção.

Tentou imediatamente contactar com Ronald para que interferisse no radar deles, mas continuou a não receber resposta. Insistiu várias vezes com o mesmo resultado.

- O que se passa? - quis saber Katherine.

- O Ronald mantém-se mudo.

- O que tenciona fazer?

Stone ligou o motor de bombordo. Talvez arrancasse na presente condição, mas não funcionaria muito tempo. Soou o alarme do combustível e ele accionou o motor de arranque. O diesel reagiu instantaneamente.

O Tin Hau pareceu sofrer um forte impulso repentino na ré.

Katherine apontou para o medidor da pressão do óleo. O ponteiro imobilizara-se no zero.

- O novo dono vai precisar de substituir o motor.

- Quanto tempo pode funcionar sem óleo?

- Se forem cinco minutos, podemos dar-nos por felizes.

O medidor da velocidade acendeu-se, enquanto o largo casco se erguia ao longo da ondulação. Vinte... vinte e cinco... trinta e cinco nós.

Mas o medidor da temperatura do motor de bombordo aproximava-se perigosamente do vermelho. Soou um alarme. O motor parou tão repentinamente como arrancara. O iate perdeu velocidade de um modo tão brusco que Stone e a mulher foram projectados contra a consola de comando.

- Corte do combustível para proteger o motor. Filho da mãe!

Katherine extraiu a pistola da sacola e dirigiu-se para a porta.

- O que vai fazer?

- Mantê-los à distância.

- Deixe-se disso. - Ele recordava-se de, uma ocasião, ter espreitado para um armário de um barco-patrulha de Hong Kong, que interceptara o Verónica para uma inspecção em busca de droga. Continha espingardas Remington e outras armas automáticas. - Guarde isso - acrescentou. - Eles são-nos muito superiores.

- Não tenciono malhar com os ossos numa prisão chinesa - replicou ela, engatilhando a pistola e impelindo a porta. Stone voltou a tentar comunicar pela rádio.

- Ronald? Ronald?

O ecrã do radar exibia diversos pontos luminosos intermitentes, enquanto os barcos-patrulha avançavam para a zona de ameaça. Dois piscavam à popa e, de repente, outros tantos adiante, numa rota de convergência.

 

- Eles vêm de ambos os lados - anunciou a Katherine. - Vamos raspar-nos a nado.

O vento trouxe a voz dela do tombadilho.

- Vá-se lixar!

Ele muniu-se de um colete salva-vidas, colocou-o, atenuou as luzes e abriu a porta sobranceira à água, cerca de dois metros abaixo da amurada. Quanto mais tardasse a saltar, mais perto da costa o iate o transportaria, mas maiores seriam as probabilidades de os barcos-patrulha o avistarem.

Uma forma assumiu repentinamente contornos ao longo do casco e um projector incidiu em cheio nele, que dobrou as pernas para saltar.

- Siga-me! - A voz amplificada de Ronald ecoou sobre a água. - Siga-me!

Um cúter rápido, que ostentava a bandeira iluminada do Exército de Libertação Popular, acostou ao iate. O próprio membro da Tríade gesticulava na coberta, fustigado pelo vento.

Stone retrocedeu rapidamente para o leme, enquanto o cúter se deslocava para junto da proa e alterava o rumo. Ele fez o mesmo e em seguida consultou o radar. Meia dúzia de pontos luminosos principiaram a ficar para trás.

Katherine entrou de rompante e inquiriu:

- O que aconteceu?

- É o Ronald que vai à nossa frente, com os seus compinchas do ELP. E estes - Stone apontou para o ecrã - são os sinais de canhoneiras do ELP a informar os desesperados polícias que a presa lhes pertence.

- E agora, o que sucede?

- Veremos se o Ronald é um gangster honrado.

 

A sotavento das ilhas San-Men, Ronald indicou a Stone pela rádio que parasse o iate e acendesse os projectores. As luzes do cúter iluminavam metralhadoras pesadas na proa e casa do leme. Alguns marinheiros mantinham os dois barcos unidos, e Ronald saltou para a coberta do iate e aproximou-se, sorridente.

- Excelente trabalho, marinheiro! - Percorreu a ponte para examinar os instrumentos e pousou as mãos no leme orgulhosamente. - Não podia ser melhor.

Stone indicou Katherine com um movimento de cabeça.

- A sua jovem ajudou muito.

- Mister Chang está muito grato.

Um junco de pesca de dez metros irrompeu do nevoeiro e colocou-se junto dos dois barcos.

- Muito bem, marinheiro. Chegou o seu transporte. Stone colocou a mochila às costas, enquanto Katherine perguntava:

- E eu?

- Tu ficas.

- O quê?

Ronald fez um gesto largo que abarcava o elegante iate.

- Segundo Mister Chang, um barco tão belo exige uma anfitriã igualmente atraente.

- Alto lá! Está a dizer-me que tenho de ir para o continente.

- É o combinado. O novo dono recebe material de luxo.

- Não quero ir para lá!

- Ninguém te pediu a opinião. Ela voltou-se para Stone.

- Não é justo. Cumpri a minha missão. Convença-o disso.

- É verdade. Nada disto teria sido possível sem ela. Ronald exibiu um sorriso glacial.

- Meti-me em grandes trabalhos por sua causa, marinheiro. Xangai. Documentos. Hotel. Guia. Tudo o necessário por causa do seu transporte de gás.

- Apenas peço que lhe conceda uma oportunidade de melhorar de vida.

- Quer ir para Xangai, ou armar-se em cavaleiro de armadura reluzente?

- Sem ela, vocês não teriam o barco.

O cantonês fez uma pausa e fingiu ponderar o assunto. Por fim, declarou:

- Muito bem, cavaleiro reluzente. Você entregará o iate.

Demasiado tarde, Stone compreendeu que tinha sido ludibriado. A Tríade pretendia outro serviço e contara com o insensato americano para o efectuar.

- Em Xangai?

- Esses tipos talvez mo roubassem e a Mister Chang - volveu Ronald, indicando os barcos do ELP com um gesto. - Confiamos mais em você.

- Disse que me colocaria a bordo de um vapor.

- Ligue o piloto automático. São oitocentas milhas. Nada mais fácil.

- Mas não só com um motor.

Assomou à porta da ponte e disparou uma torrente de palavras em cantonês. Quatro homens e um rapaz saltaram para bordo e encaminharam-se para a casa das máquinas.

- Eles reparam-no.

- Há necessidade de uma gaxeta. Soltou uma gargalhada.

- Os mecânicos do continente são gente pobre. Reparam tudo. Fazem uma gaxeta da própria pele do ajudante, se for preciso.

- E quanto à alfândega de Xangai?

- Um pesqueiro do Yangtze traz novos documentos.

- Também vem?

- Não posso. Se a Polícia me apanha, corta-me os tomates rentes. E os dela, também. Por assim dizer... Negócio fechado?

Stone consultou Katherine com o olhar e esta admitiu:

- É preferível à oferta anterior.

- De Xangai, ela pode ir para casa?

- Em primeira classe - prometeu Ronald. - E você poderá utilizar o iate para procurar o transporte de gás.

- Em Xangai? Deve dar nas vistas como um Maserati.

- Qualquer barco que quiser - concedeu, com um encolher de ombros. - Mas nada de mudar de ideias, de alterações de última hora. Mister Chang ia aos arames e mandava especialistas cortarem-me as mãos. E, antes de me apanharem, apanhava-o eu a si, marinheiro. Corro grandes riscos consigo.

Esgotado pela fuga de Hong Kong, Stone compreendeu subitamente que confiara o seu destino a uma malabarista com demasiadas bolas no ar.

- Você quer o transporte de gás, mas não conseguiu convencer o Chang porque a ele só interessava este barco.

Assomou um clarão de animosidade aos olhos de Ronald.

- Mister Chang está grato pelo transporte de gás.

- Tretas. Ele sabe que pisa gelo quebradiço, em Xangai. Talvez receie que você desencadeie uma guerra com os locais.

Stone não insistiu na tecla. Sabia que tinha razão, mas era tarde para mudar de aliados quanto ao iate roubado.

- Tem de me ceder um mecânico. Se o barco se vai abaixo no estreito de Taiwan, estamos ambos tramados.

- Pronto, está bem. Pode contar com ele.

- Mais vale que sejam dois, para o caso de precisarmos de mais pele - interpôs Katherine.

Ronald transpôs a distância que os separava e esbofeteou-a. Ela levou a mão ao rosto, viu-a manchada de sangue e puxou da pistola-metralhadora.

- Eras capaz de alvejar um membro da Tríade? - perguntou ele, olhando a arma com uma expressão de desdém.

Stone, já arrependido de se haver pronunciado, colocou-se entre ambos.

- Guarde isso, Katherine.

- Vou matar este palhaço.

- Está em dívida para comigo.

- Ambos estão, para comigo - salientou Ronald.

O sistema de comunicações do Tin Hau incluía unidades de SPG, radar, sonda de profundidade e outros requintes, o que convertia a navegação numa mera questão de determinar uma rota e ligar o piloto automático. No entanto, Stone não confiava em nada daquilo, pelo menos em águas costeiras densamente frequentadas por arrastões de pesca com cascos de madeira.

Estendeu uma rede na ponte, mas, pouco depois de explicar a Katherine como devia utilizar o sistema, passou a confiar nas suas decisões e dormia com relativa tranquilidade, quando era a vez de ela se ocupar do comando.

- Estou em dívida consigo - admitiu a mulher, na primeira noite. - Mas não pense que isso me alegra.

- Tenho problemas mais importantes.

Havia oito dias que Sarah e Ronnie se encontravam prisioneiras a bordo do navio. Tempo mais do que suficiente para percorrer duas vezes a distância até Xangai. Podiam encontrar-se em qualquer de cinquenta portos. Ou no fundo do mar.

 

- Não é precisamente Xangai, hem, doutora? - disse Mr. Jack, da cama, com ironia. A sua voz tornara-se mais forte o sotaque de Nova Iorque mais nítido.

Entretanto, Sarah assomara à escotilha para observar os rebocadores.

Expelindo vapor e fumo de carvão, os pequenos barcos conduziam o Dálias Belle para junto de um cais, sob chuva fria e intensa. Mas, em vez da atmosfera europeia dos anos vinte da área portuária de Xangai, ela apenas conseguia descortinar edifícios sombrios e zonas enlameadas que se prolongavam até ao horizonte.

O cais estendia-se cerca de oitocentos metros até uma baía quase deserta. Ao longe, um espaço arborizado era interrompido momentaneamente por quatro chaminés altas, a cujos pés se erguia o alojamento de uma turbina. Estendiam-se colunas para o interior do território, enquanto um pipeline unia a central eléctrica aos elevados tanques de gás natural líquido que se salientavam como iglus gigantescos ao longo da costa.

Embora a mente do ancião fosse labiríntica, Sarah chegara a uma conclusão desde que o seu paciente recuperara as faculdades: não dizia nada sem um objectivo em vista. Cada pergunta era um teste.

Por conseguinte, respondeu:

- Nunca estive em Xangai.

Na realidade, graças aos SPG de Ronnie, conhecia a posição do navio até à última fracção de grau. Se a sua recordação das coordenadas de Xangai era correcta, estavam muito perto, talvez numa enseada do rio Huangpu ou algures na baía de Hangchou. Os pilares de energia que se estendiam para nordeste decerto abasteciam uma cidade.

Ela sentia-se afundar cada vez mais numa depressão, drogada pelo seu efeito, incapaz de raciocinar com clareza. Os longos dias e noites de cativeiro tinham-se fundido gradualmente uns nos outros desde que os rebocadores se haviam acercado do navio.

Dias sem conta à deriva, com as máquinas paradas, ao nevoeiro e à chuva, até à terrível tarde em que ela e Ronnie se haviam aventurado através das entranhas do Dálias Belle: Moss materializara-se como uma criatura do inferno e Mr. Jack ameaçara mandar «castigá-la» pelo negro. O termo fazia-a sentir-se tão desamparada como uma escrava.

A ameaça coincidira com a aparição súbita e dramática do trio de rebocadores que ostentavam bandeiras vermelhas e vomitavam fumo como uma paisagem marítima de Turner. E persistira durante o longo reboque à velocidade de quatro nós. Sarah não se atrevia a imaginar sequer as consequências de tudo aquilo para ela e Ronnie.

Agora, contava o tempo pelas melhoras que Mr. Jack registava e pelo amarelecimento gradual das escoriações de Ah Lee. Quase não se recordava da fuga de gás - a nuvem ascendente no céu - e da sua correria precipitada para o telemóvel, quando ainda se sentia corajosa.

- Ouve cá, miúda!

Ronnie ergueu os olhos do livro que ele lhe oferecera.

- Sim, Mister Jack?

- Vai lá abaixo e diz ao cozinheiro que queremos gelados de fruta com creme.

A garota consultou Sarah com o olhar e esta inclinou a cabeça para indicar que não via inconveniente. Assim que ela transpôs a porta, Mr. Jack disse:

- A sua filha falou-me de ter sido criada num veleiro. E a doutora? De onde é? Da Grã-Bretanha?

- Sou nigeriana - informou Sarah, intrigada com o súbito interesse.

- Fala como uma britânica.

- Meu pai foi militar e enviou-me, com a minha mãe, para a Inglaterra, durante a guerra civil. Quando ela faleceu, internaram-me no colégio de um convento.

- O seu pai foi militar britânico?

- Até à independência. Depois, colaborou na formação do Exército nigeriano.

- Como se chamava?

- Soditan. Josiah Soditan.

- Não me diga! Eu conheci-o.

- Está a brincar.

- Fique sabendo uma coisa, minha cara. Quem está metido no negócio do petróleo na Nigéria tem toda a conveniência em conhecer os generais.

- O meu pai não era corrupto.

O velho encolheu os ombros e contraiu as faces num trejeito de dor.

- Isso não sei. Raspei-me de lá há vinte anos, quando vi tudo começar a ir por água abaixo. Em que babilónia converteram aquele país! A Nigéria podia ter dado cartas em África. O seu pai esteve envolvido nos diferentes golpes?

- Não.

- Era um grandalhão, se a memória não me atraiçoa. Mais que o Moss?

- Muito mais - assentiu Sarah, que, ante a sua própria surpresa, começou a chorar.

- O que é isso? A que vêm essas lágrimas? Garanti-lhe que não corria o menor perigo, se não pisasse o risco.

- Estou muito preocupada com o meu marido.

Os traços graníticos do rosto de Mr. Jack suavizaram-se e contemplou-a com uma expressão quase afável.

- Tranquilize-se, doutora, que ele está bem.

- Não o sabe!

- Alojou-se no Iate Clube de Hong Kong.

Ela não se atrevia a acreditar. Devia tratar-se de qualquer ardil. No entanto... Foi com esperança crescente que viu o ancião tentar pegar num largo sobrescrito que se encontrava em cima da mesa-de-cabeceira. Incapaz de o segurar entre os dedos sem unhas, aplicou-lhe um piparote que o transferiu para cima dos lençóis. Sarah recolheu-o, sem saber precisamente com o que contar.

- Abra-o.

Obedeceu e extraiu um fax de uma fotografia. Acto contínuo, experimentou um sobressalto. Fora tirada de longe através de uma janela, mas a configuração dos ombros e a inclinação da cabeça só podiam ser de Michael Stone.

- Foi tirada no Hilton.

Ela sentiu-se repentinamente tão leve que quase se julgou capaz de flutuar. Em seguida, voltou-se para Mr. Jack com alegria por saber o marido vivo e uma profunda sensação de gratidão.

- Obrigada.

Todavia, no instante imediato, a crueldade atordoou-a: agradecia ao monstro por lhe infligir menos dor. Ronnie não era a única pessoa susceptível à síndrome de Estocolmo.

- Como... como conseguiu esta fotografia? Como o localizaram em Hong Kong?

- Então, doutora! Quem pensa que está a enfrentar? Vigiamos tudo o que entra ou sai. A senhora telefonou a Marcus Salinis, em Koror. O Moss indicou aos meus... chamemos-lhes associados... que colocassem o telefone sob escuta, e o seu marido ligou para lá. Quando chegou de avião, estávamos à sua espera.

Sarah sentia-se chocada. Receara que eles estivessem ao corrente da chamada através do telemóvel, mas nunca lhe passara pela cabeça que o poder de Mr. Jack se estendia até tão longe... que fazia parte de alguma organização de âmbito gigantesco.

- Quem é o homem que está com ele? - inquiriu o ancião.

O instinto impunha a Sarah que negasse conhecer Kerry, porém ele decerto já estava ao corrente da sua identidade. Mr. Jack era um intriguista. E aquilo constituía, sob a capa da bondade, mais um teste à sua honestidade.

- O capitão McGlynn - informou. - Possui uma empresa de salvamento.

- Boa resposta, doutora. De que estarão a falar?

- Suponho que deve calcular, Mister Jack.

- Sim, bem...

- Quando foi obtido este instantâneo?

- Há alguns dias. Como diabo conseguiu ele safar-se do atol?

Ela esboçou um sorriso, enaltecida pelo alívio e orgulho.

- A navegar, sem dúvida.

- Que lhe parece que fará a seguir?

- Só Deus o sabe.

- Como não o podemos consultar, importa-se de aventar uma hipótese? - Mr. Jack fez uma pausa, todavia Sarah abanou a cabeça. - É mera curiosidade de minha parte. Ele não representa uma ameaça. Nem por sombras. Espero apenas, no seu interesse e no dele, que não efectue alguma tentativa imprudente.

Ela baixou os olhos para as mãos. Conhecia Michael suficientemente bem para supor que não permaneceria no Iate Clube de Hong Kong muito tempo.

Mr. Jack soltou uma risada.

- Aqui para nós, minha querida, se eu estivesse funcional no dia em que a conheci, tinha-o trazido também para bordo. Quais serão as intenções dele? A doutora disse-lhe que seguíamos para Xangai ou Taiwan. Para onde acha que se dirigirá?

- Asseguro-lhe que não faço a menor ideia.

- Recorrerá às autoridades?

- Não sei.

- Mas supõe que não.

Sarah tornou a desviar a vista, compreendendo demasiado tarde que a conversa inicial constituíra o prelúdio daquele interrogatório.

- Há outra foto nesse sobrescrito - acrescentou ele.

Desta vez tratava-se de um grande plano que expunha os pêlos da barba de Michael, as pequenas rugas em torno dos olhos e as várias cicatrizes que assinalavam os acidentes de uma vida no mar. Inclinava-se para Kerry e parecia mais magro. Sarah ficou impressionada ao aperceber-se de que a barba se tornara mais grisalha e da expressão tensa que exprimia a idade de um homem desesperado e exausto.

Pousou as pontas dos dedos na cicatriz em forma de crescente sob o olho esquerdo. Nunca se bronzeava e cada vez que ela lhe contemplava o rosto recordava-lhe o demónio no seu próprio coração.

- O que é isso? - perguntou Mr. Jack, tocando no dedo dela. - Uma marca de nascença?

- Uma cicatriz. - Sarah hesitou por um segundo e resolveu arriscar-se. - Atingi-o com o binóculo.

- A doutora? Miss Doçura e Ternura? Porquê?

- Ele disse que já não me amava.

- Então, porque me mortifica a paciência para que a deixe voltar para ele?

- Estava a mentir.

- Porquê?

- Para me proteger.

- De quê?

- Foi há muitos anos. Eu era então muito jovem. Nunca tinha estado apaixonada.

- O casamento curou-a disso?

Olhou-o fixamente.

- Ele é o ar que respiro.

Michael tentara de facto protegê-la, insultando o seu amor numa tentativa desajeitada para a afastar. Ainda agora ela sentia o peso do binóculo na mão e recordava o rosnar que lhe separara os lábios para expor os dentes como um animal. Reflectiu com amargura que seria sempre a filha do militar, incapaz de neutralizar os efeitos do sangue paterno com ideais elevados e a sua fé em Deus.

- O Moss pensa que vocês andam fugidos. De quê? Assaltaram algum banco?

Custava-lhe concentrar-se, inebriada pela felicidade que lhe causara saber que o marido estava vivo.

- Não é que isso me interesse minimamente - continuou o ancião. - Estou-me nas tintas para quem ele pede ajuda. Nunca encontrará o Dálias Belle. Nós não existimos...

- Foi isso que planearam?

- Aconselho-a a acreditar. Tivemos de traçar planos minuciosos para deixarmos de existir. Planos minuciosos e despesas elevadas.

- Porquê?

- Preocupe-se apenas em me conservar vivo.

- É precisamente por isso que o quero internado num hospital. - Ao mesmo tempo, ela moveu a mão automaticamente para o estetoscópio, enquanto introduzia a outra na algibeira do casaco branco de criado de bordo que decidira usar como bata de médico. - Receio uma infecção. E uma eventual pneumonia.

- Pois eu sei de muitas pessoas que contraíram tudo isso no hospital.   Estou muito melhor no navio do que numa imunda enfermaria chinesa.

- De Xangai para Hong Kong são duas horas de voo.

- Não pode ser, doutora. De resto, eu não vejo Xangai. E a senhora?

No entanto, Sarah ignorou o sarcasmo.

- Estou particularmente apreensiva com o potencial que existe para um enfarte.

- Um enfarte? - Ele olhou-a com perplexidade. - De que está para aí a falar?

- Segundo tudo o que me constou e observei, é óbvio que se pode considerar um homem activo.

- Há uma sala cheia de máquinas Nautilus no Convés C. Tenho mantido a forma física. É por esse motivo que me estou a recompor rapidamente.

- Sim, mas, na minha experiência, as recuperações rápidas como a sua originam enfartes. Permanecer imóvel, dia após dia, é perigoso para um homem de certa idade normalmente activo.

- Não estou a contar com qualquer enfarte.

- De resto, não disponho de meios para esse tipo de tratamento. E o tratamento nas primeiras vinte e quatro horas é (racial para minimizar os estragos e garantir a recuperação. Um homem da sua idade decerto viu amigos afectados por essa situação. E conhece bem os resultados.

- Nada disso figura no meu futuro. Pensa que me devia submeter a fisioterapia, por exemplo?

- Talvez o Moss o possa levar a dar uma volta pela coberta todos os dias. Ou um pouco de exercício com as suas máquinas. Quanto tempo continuaremos aqui?

- Pouco.

- E depois?

- Uma coisa de cada vez, doutora. - Ele exibiu um sorriso. - De resto, não acreditaria, se eu a elucidasse.

Sarah aproximou-se da janela. Cada vez chovia com mais intensidade. O navio deixara de se mover tão gradualmente que ela não se apercebera e estava agora amarrado ao cais. Os três rebocadores começavam a afastar-se, as bandeiras agitadas pelo vento, empestando a atmosfera com o fedor acre do carvão que consumiam.

Só Deus sabia o que Mr. Jack ocultava na manga, mas ao menos conseguira assustá-lo com a alusão a um enfarte.

- Escute uma coisa, doutora - disse ele, subitamente. - Se pratica alguma espécie de telepatia mental de vudu africano com o seu marido, diga-lhe que em Xangai não terá tanta sorte como em Hong Kong.

- O que quer dizer? - perguntou Sarah, alarmada com a perspectiva de ele tentar de novo prejudicar Michael.

- Xangai é a minha cidade.

 

Um piloto de Xangai pegou no leme do Tin Hau e Stone sentiu a sua noção do tempo retroceder, enquanto comparava as margens do rio com os dados da carta 94219. A atmosfera fria e húmida abafava o ruído dos motores, enquanto gemiam buzinas e apitos. O fumo de carvão pairava pesadamente no ar sem o mínimo vento. Pungente nas suas narinas e fazendo-lhe arder os olhos, espelhava-se na planície e misturava-se indistintamente com o céu.

A visão de três rebocadores antigos que precediam o iate ao longo do canal - fonte imediata do fumo - intensificava a impressão de se encontrar muito longe, noutra época, assim como as barcaças de madeira, batelões e sampanas motorizadas, além de legiões de homens do mar que executavam o trabalho de máquinas. A Londres de Dickens teria cheirado da mesma maneira.

Stone transferiu a atenção para um enorme estaleiro de Wusong, que se aproximava de estibordo. A chuva glacial inundava a coberta. Resolveu entrar na cabina, com a água a gotejar do impermeável que o pesqueiro do Yangtze de Ronald trouxera, juntamente com os seus «vistos».

Depois de estudar a carta durante dois dias, ficara a conhecer de cor as duas margens do rio. Mas o Huangpu serpenteava através da maior cidade do mundo, e o que se encontrava representado no papel não preparara Stone para as enormes dimensões do porto, a amplitude do rio ou a extensão interminável das planícies de lama.

O estaleiro de Donghai começou a erguer-se na margem do rio. Ele ficou abismado com a imensidão das pesquisas a que se propusera. Só aí, uma floresta de gruas e guindastes elevava-se em torno de uma dezena de cascos. Alguns achavam-se praticamente ocultos por andaimes de bambu, enquanto numa rampa se via o telhado de um alpendre suficientemente grande para conter um couraçado.

Segundo a carta e o Sailing Directions, havia nove estaleiros daqueles nas quinze milhas de água navegável referida, seis docas secas, uma refinaria e noventa e oito cais ao longo de terminais e fábricas. Quinze ribeiros, canais e rios deslizavam para o interior, alguns possivelmente com profundidade suficiente para admitir o Dálias Belle. E, segundo o Sailing Directions datado de 1979, quando o desenvolvimento do porto principiara, agora, o seu número podia já ter duplicado.

O estaleiro seguinte tinha as suas rampas cobertas por dois barracões tão largos e altos que as gruas se encontravam sob os seus tectos. Um dos ancoradouros achava-se vazio. O outro continha um paquete. A claridade cinzenta da manhã, Stone avistou o clarão intermitente de maçaricos oxiacetilénicos, juntamente com cascatas de faúlhas, enquanto numerosos operários procediam a soldaduras.

A chuva glacial aumentou de intensidade, e ele reflectiu que as coisas se podiam agravar. Dezembro era um dos meses em que mais abundavam os nevoeiros matinais. De súbito, a precipitação converteu-se numa cortina tão densa como o próprio nevoeiro, que obscureceu as margens do rio, tornando quase invisível a multidão de trabalhadores e impermeáveis de plástico que se acumulavam no cais de uma carreira de ferryboats.

- Olhe para toda aquela gente! - exclamou Katherine, repentinamente. - Parecem formigas. Como anseio por regressar ao meu país!

Stone conservou-se silencioso. Ela revelava-se uma boa tripulante, sempre pronta para colaborar em todas as tarefas e apresentando-se com dez minutos de antecedência para os quartos de serviço. Sabia sempre quando devia falar ou estar calada e, apesar dos seus numerosos problemas, movia-se com uma corajosa segurança que ele achava atraente.

No entanto, o regresso ao seu país não constituía uma opção para uma polícia que fora surpreendida a defender a tiro o seu amiguinho passador de droga. Ela descrevera tudo a Stone na segunda noite, enquanto o Tin Hau percorria o estreito de Taiwan. Um ajudante do promotor público prevenira-a a tempo de se esquivar ao processo que lhe moveriam inevitavelmente.

Quando, por fim, o nevoeiro se atenuou, ele descortinou vagamente um cais de descarga de gás líquido onde o Dálias Belle poderia estar acostado e assinalou-o na carta. Mais adiante, em ambas as margens do rio, havia outros ferryboats, cujos passageiros chegavam de bicicleta. Depois, mais um estaleiro, e de novo deixou de ver a mais de cem metros. Pôs-se a percorrer a coberta em impaciente vaivém, frustrado e confuso, com o binóculo tornado inútil pelos elementos e a carta encharcada. Após um compasso de espera interminável, enquanto os estaleiros e cais continuavam a desfilar em ambos os lados, invisíveis, a chuva abrandou ligeiramente e Stone vislumbrou um depósito de carvão, centenas de sampanas reunidas nas suas docas e depois, na margem leste, o enorme Estaleiro de Xangai, onde procurou em vão o Dálias Belle cor de areia.

A chuva tornou a intensificar-se e a visibilidade reduziu-se praticamente a zero. Quando por fim se atenuou mais uma vez, o Bund erguia-se a cerca de dois quilómetros, salientando-se do caos do rio como. uma visão de O Feiticeiro de Oz de imponentes margens coloniais e sociedades comerciais, arranha-céus de pedra e um campanário do século dezanove. Stone voltou-se para trás. Para além da popa, havia quilómetros de margens que não tinha visto.

O iate deteve-se e o piloto conduziu-o para um cais. Stone atirou amarras a trabalhadores do porto, que as fixaram, após o que colocaram uma prancha de desembarque. Soldados do Exército de Libertação Popular de uniformes verdes postaram-se junto da parte inferior e um funcionário alfandegário subiu a bordo, onde carimbou os «vistos» de Stone e Katherine, o que lhes permitia a permanência na China durante três meses.

Stone vestia roupa seca - fato claro formal enviado por Konald, com um bilhete: «Traja como um desleixado, marinheiro.» Adaptava-se à sua história de cobertura de que procurava um local apropriado para uma marina de luxo. Katherine teve de o ajudar a fazer o nó da primeira gravata que ele usava desde longa data.

- Acho que devo esperar aqui - decidiu. - Talvez voltemos a encontrar-nos, mais tarde.

Ele recolheu os seus documentos, cartas de apresentação e cartões-de-visita e pegou na mochila.

- Obrigado por tudo.

Tê-la-ia abraçado com cordialidade, mas tinha todas as defesas abertas, pelo que se limitou a estender-lhe a mão.

- Boa sorte com a sua família - desejou ela.

Um navio de passageiros acostara adiante deles e o cais estava cheio de familiares que os esperavam, observados impassi-velmente pelos soldados do ELP. Entretanto, Stone reflectia que as coisas pareciam demasiado fáceis.

Cinco soldados. Dois polícias vestidos à civil. E um habitante de Xangai trajado irrepreensivelmente na periferia da multidão, de onde acenava. Stone avançou para este último e apresentou-se.

- Sou William Sit - informou o outro, com um sorriso tímido. - Exerço a profissão de professor de Inglês e serei o seu intérprete. A sua visita vai ajudar-me muito a aprender os termos modernos da língua.

- A maneira como se exprime parece-me impecável.

- Talvez tenha alguma dificuldade em compreender as frases idiomáticas e o calão. A sua presença vai incutir-me mais coragem.

- Muito bem - disse Stone com impaciência, pegando na mochila. - Estou ao seu dispor.

Sit mostrou-se confuso e em seguida embaraçado.

- Dispor?...

- Para irmos andando. Vamos?

- Vamos, claro. Sim, sim. O meu amigo tem um táxi e vai conduzir-nos.

O amigo, que usava fato preto e boné de motorista, chama-se Wang. Mr. Wang. O táxi era também preto, reluzente e bem cuidado e, pelo caminho, Sit explicou que Mr. Wang trabalhava para uma fábrica do Estado, mas tirara algumas horas de folga para executar aquele serviço.

- Vamos? - perguntou, por fim. - Vamos andando...

- Tem alguma mensagem para mim?

- Não.

- O hotel é longe?

- Menos de dois quilómetros.

- Óptimo. - Stone recordou-se de que, segundo a carta de Ronald, talvez fosse contactado por alguém no hotel. - depois percorreremos a área portuária.

- Mister Wang poderá conduzi-lo, se preferir, mas os seus amigos prepararam um barco.

- Muito bem. Para já, vamos descobrir o hotel e...

- Descobrir? - Sit parecia desesperado com as dificuldades linguísticas que se lhe deparavam.

- Quero registar-me, recolher algum recado que haja, e seguiremos então para o barco.

- Vamos? - aventurou Sit, com um sorriso.

Dirigiu-se a Mr. Wang - não sem explicar a Stone que o fazia no dialecto wu de Xangai - e o táxi rolou na direcção da doca de Waihongqiau, de onde seguiu por uma artéria estreita particularmente concorrida.

- Xangai sofreu modificações profundas - explicou, enquanto o táxi deixava a zona do porto para trás e cruzava o ribeiro de Suzhou.

A chuva voltara a diminuir de intensidade e da ponte arqueada eles avistavam em todas as direcções centenas de torres de escritórios em construção e muitos outros edifícios de habitação em segundo plano. Entretanto, Stone conservava os olhos bem abertos em busca do Dálias Belle, mas apenas via navios de passageiros e de excursionistas.

- Xangai mudou muito da velha cidade e talvez não tarde a suplantar Hong Kong.

Havia anos que ele ouvia aquele género de comentário no Pacífico. Só que primeiro seria necessário instalar sistemas de comunicação actualizados, modernizar o porto, inventando uma maneira de aprofundar a embocadura do Huangpu para que os navios não tivessem de se aliviar da carga ao largo, permitir uma circulação monetária livre, estabelecer um sistema legal para resolver as divergências de negócios e eliminar os Invernos tenebrosos e húmidos.

- O tráfego tem melhorado muito - persistiu William Sit.

O Hotel Peace, uma estrutura velha e imensa, era sobranceiro ao parque e ao rio. A grandiosidade de outrora, actualmente mortiça, era frequentada por uma clientela de vendedores de Hong Kong na fase ascendente da sua carreira.

O registo desenrolou-se sem problemas. Um ajudante de recepcionista que falava inglês afastou Stone da fila de espera e inscreveu-o pessoalmente. Uma vez mais, tudo se desenrolou com demasiada facilidade, e ele preocupou-se com o preço final de tudo aquilo.

Algures entre Hong Kong e Xangai, Stone iniciara uma transição de marinheiro fugitivo para o homem da cidade que fora durante muitos anos em Nova Iorque, onde vivera com Katherine. Enquanto percorria o átrio do hotel com o olhar, admitia que quase se sentia confortável. Parecia que o terreno parara de lhe fugir debaixo dos pés e os seus sentidos haviam tornado a focar-se numa escala mais humana e agressiva do que quando se limitava a navegar com serenidade com a esposa e a filha.

- Há uma mensagem. Deseja que a traduza? William Sit, que não se afastava dele, arrancou o talão da mão do ajudante de recepcionista.

- Eu traduzo. Vejamos... É convidado a tomar o pequeno-almoço no Salão de Chá Huxingting. - Dir-se-ia inchar de orgulho. - Mister Wang conduzir-nos-á.

- Quem me convida?

- Mister Yu. Consultor do terminal de contentores da ilhota de Fuxing. Ele está ao corrente de muitos locais apropriados para a sua marina.

- Não tenho tempo. Preciso de estar no barco.

- Diz aqui na mensagem que o barco não está preparado. A expressão de Stone endureceu. Era menos um convite e mais uma ordem.

- Está bem. Vamos.

- Não quer ver o quarto? - perguntou o ajudante de recepcionista.

- Mais tarde. - Stone pegou na mochila e dirigiu-se para a rua, com William Sit no seu encalço. - Mister Yu é da Tríade?

O interpelado ficou boquiaberto e acabou por soltar uma gargalhada, cobrindo os lábios com a mão, à boa maneira chinesa.

- Porque faz essa pergunta?

- Na terra de onde venho, os «consultores» das docas são todos gangsters.

Sit indicou a Mr. Wang o destino que pretendia e sentou-se ao lado de Stone, claramente apreensivo.

- Como conseguiu o cargo de meu intérprete? - perguntou este último.

- Por um amigo de um primo de minha mulher. Havia uma elegância no chinês que sugeria que procedia

de uma família educada, que sofrera profundamente com a Libertação, o Grande Salto em Frente e a Revolução Cultural de Mao. Agora, num período de prosperidade, o professor oprimido pela inflação aproveitava todas as oportunidades para aumentar os seus rendimentos.

Wang conduziu-os através do Bund e parou numa das ruas estreitas da Cidade Velha. Transpuseram a curta distância que os separava do Jardim Yu. Logo a seguir ao portão de acesso, Sit escoltou Stone por uma ponte sobre um lago e entraram num salão de chá de madeira de dois pisos e tectos decorados com vários tipos de dragões. As mesas estavam ocupadas por chineses de meia-idade e alguns turistas ocidentais. Empregadas também de meia-idade movimentavam-se de um lado para o outro com tabuleiros.

- O vosso Presidente Richard Nixon tomou chá aqui - informou William Sit.

- Impressionante. Aquele é Mister Yu?

A uma mesa junto do lago, sentava-se um nativo de Xangai de fato conservador. Tinha o olhar duro e expressão granítica de quem vencia as lutas nas ruas e correspondia mais ou menos ao que Stone esperava:   uma versão asiática de um gangster irlandês ou italiano de maus fígados da área de Brooklyn. O companheiro, de costas para a entrada, ergueu-se quase de um salto e cruzou a sala de mão estendida.

- Bem-vindo a Xangai, marinheiro.

- Quem é o seu amigo, Ronald?

- O meu novo «velho amigo», Mister Yu. Ele não fala inglês, nem wu. O William Sit traduz.

Stone não acreditou nem por um instante que um «consultor» tão abastado como aquele não dominava o idioma universal dos embarques e desembarques internacionais.

- Vou dar-lhe uma «novidade», Ronald. Esse tipo fala inglês tão bem como você ou eu. Porque não conversamos cara a cara e poupamos tempo?

O cantonês olhou de forma penetrante William Sit, que se afastou para uma distância prudente. Em seguida, o membro da Tríade exprimiu-se com suavidade:

- Agora, estamos em terra, marinheiro. E em terra não ventilamos tudo o que sabemos. Talvez consigamos que Mister Yu nos ajude.

- Muito bem. Desculpe.

- Xangai é a sua cidade. Acha que consegue atirar areia aos olhos do estúpido nativo de Hong Kong e ao bárbaro estúpido. Deixemo-lo convencer-se.

- Compreendo.

Sentaram-se com Mr. Yu, que suportou as apresentações com impaciência, após o que perorou demoradamente. William Sit traduziu:

- Mister Yu dá-lhe as boas-vindas a Xangai e deseja felicidades nas suas diligências para encontrar um local satisfatório para a marina. Tem a certeza de que a cidade dispõe de muitos desses lugares e a sua dificuldade consistirá apenas na escolha. Dispõe de sugestões, que revelou ao seu marinheiro, e cartas de apresentação para mostrar às patrulhas...

Foi servido o chá e apareceram pequenas cestas com minúsculos pudins de maçã translúcidos.

Yu pegou em pauzinhos, serviu-se de um dos doces e recomeçou a falar.

- Mister Yu acrescenta que o terminal de contentores de Fuxing, embora impossibilitado de oferecer frontaria para o rio para uma marina de iates, gostaria de investir em semelhante empreendimento e...

Mr. Yu agitou-se na cadeira, ominosamente.

William Sit hesitou e disse:

- Talvez eu não empregasse o termo apropriado. Por investir, quero dizer que a Fuxing procederia às apresentações apropriadas para facilitar o acesso a terrenos que a sua empresa poderia alugar.

- Uma mera confusão de palavras - interpôs Ronald, com um sorriso condescendente.

Stone retribuiu-o e declarou:

- Diga a Mister Yu que agradeço profundamente a amabilidade e quanto mais depressa subir para o barco que ele tão .imavelmente obteve, maior a rapidez com que poderemos chegar a um acordo lucrativo. Transmita-lhe a minha gratidão pelas cartas, embarcação e delicioso pequeno-almoço, mas acho chegado o momento de começarmos a trabalhar.

William Sit traduziu e Mr. Yu emitiu um grunhido.

- Gostava de lhe pedir uma coisa - Stone começou a levantar-se.

- Sim.

- Diga-lhe que é óbvio que se trata de um perito com profundos conhecimentos do porto de Xangai. Pode dizer-me qual das centrais de energia eléctrica queima gás natural?

Sit fez a pergunta e o outro emitiu novo grunhido como única resposta.

- Não há nenhuma.

- Nenhuma? Que raio de... Tem a certeza de que foi o que ele disse?

- Disse que não é permitido o armazenamento de substâncias tão perigosas no porto.

- Nenhuma? - repetiu Stone, estupefacto.

Ronald interveio com um sorriso desagradável.

- Importa-se de explicar a Mister Yu que ignoramos por completo os hábitos em Xangai, pelo que gostaríamos de saber se porventura há uma central eléctrica nas proximidades?

Os elegantes traços fisionómicos contraíram-se num trejeito que sugeria que preferia não interrogar o consultor com demasiada insistência e perguntou a Ronald:

- Que tem o gás natural a ver com marinas?

Stone viu que o interpelado fora apanhado desprevenido pela inesperada temeridade do intérprete. Apressou-se, pois, a intervir, encolhendo os ombros para Yu, enquanto dizia a William:

- Pergunte-lhe. Só sei que os banqueiros querem inteirar-se.

A resposta de Yu foi:

- Centrais eléctricas queimam gás natural na baía de Hangchou. A cinquenta quilómetros daqui.

- Em Jianshan?

O Sailing Directions indicava um terminal de petroleiros aí.

- Ele diz que sim. Um pouco a norte do terminal.

As despedidas foram superficiais e, momentos depois, Stone e Ronald, seguidos de Sit a uma distância respeitosa, voltavam a cruzar o lago.

- Bom trabalho, marinheiro. Você lê com rapidez.

- O que acontecerá quando o novo «velho amigo» Yu descobrir que estas manobras são uma cobertura para encontrar o transporte de gás?

- Qual cobertura? Está a correr tudo sobre rodas.

- Vocês querem mesmo construir uma marina?

- Com capital estrangeiro em território do Estado? Nem se pergunta, marinheiro. Fico com um local privado para carregar barcos.

- Mas o cabeçalho que imprimiu para mim é falso.

- Não, não. Mister Chang tornou-o uma empresa real. Marina de Iates Oriente-Ocidente, Lda. Registada em Hong Kong. Você é representante do vice-presidente.

- Então, não querem o navio?

- Eu não disse isso, pelo contrário, interessa-me muito. Tanto como a você. Mas graças à história de cobertura, não estou tão desprotegido no ambiente de Xangai... A propósito, a Katherine fica até você encontrar o navio. Serve-lhe de guarda-costas. Cuidado com o britânico.

- Aqui?

- Eu estou aqui. Você também. Porque não ele?

- Que pretendem eles de mim?

- Tudo indica que é a vida, marinheiro.

- Mas porquê? Apenas me interessa recuperar a Sarah e a Ronnie.

- Descontraia-se. O Wang levá-lo-á ao navio.

- Não estou a entender - confessou Stone. - Quais são as suas intenções?

Mas Ronald já se incorporara na multidão que convergia para o Jardim Yu e desaparecera. William Sit alcançou-o no carro.

- Peça a Mister Wang um mapa da área em volta da cidade - indicou Stone. Depois de o obter, estudou-o durante uns momentos e acabou por apontar para uma estrada que se estendia ao longo do litoral da baía de Hangchou. - Quanto tempo?

- Uma hora.

- Que vá o mais rapidamente possível.

 

Tinham sido levados jornais chineses para bordo do navio, e, quando Sarah e Ronnie se juntaram a Mr. Jack para um pequeno-almoço tardio, encontraram-no a insurgir-se contra os Naponeses. Estendeu o jornal sobre os pratos e disse:

- Olhe para isto!

Entre as longas colunas de caracteres, havia uma fotografia do serviço noticioso Nova China de um vaso de guerra que ostentava a bandeira do Sol Nascente nipónica.

- Os filhos da mãe estão a rearmar-se. Acabam de lançar ao mar um novo porta-helicópteros. Lá se vai a sua convicção de que se trata da gente mais pacífica do planeta, doutora. - cravou o olhar em Sarah. - Para que precisarão eles de um transporte de ataque?

- Os helicópteros não são empregados para operações de salvamento?

- Com certeza. Mas também servem para atacar as principais cidades das suas antigas colónias no Sueste asiático.

- Parece-me uma ideia muito forçada, Mister Jack.

- Então, para que os querem?

- Parece-me inevitável, com a Marinha dos Estados Unidos a reduzir a sua presença.

- Não passam de cobardes.

Sarah pousou o dedo no jornal.

- Que dizem os Chineses a esse respeito?

- Sim, leio chinês. - O interpelado assumiu uma expressão dura. - Não exagere a sua curiosidade. Eu preveni-a sobre os perigos de pisar o risco. Curiosidade incluída.

Ronnie encolheu-se, assustada com o tom do homem, e Sarah pediu desculpa, numa tentativa para normalizar a situação.

- Desejava apenas saber o que os Chineses pensam, sobre o assunto.

Mr. Jack olhou-a com intensidade por um momento e explicou:

- Diz aqui que os movimentos dos «japões» são, e passo a citar, «provocatórios e uma ameaça ao equilíbrio do poder na Ásia». Fim de citação. - Levantou-se, aproximou-se da janela com dificuldade e pegou no walkie-talkie. - Onde diabo se meteram esses rebocadores, comandante?

A resposta surgiu imediatamente:

- O radar acaba de os localizar na baía. Tudo indica que se dirigem para aqui.

- Diga-lhes que se apressem. As nuvens estão a abrir. Quanto mais depressa contarmos com protecção, melhor.

- Acabam de chegar ao cais mais alguns visitantes.

- Que venham. Diga-lhes que vamos levantar ferro, mas podem regressar no barco do piloto. E insista para que os rebocadores se despachem.

 

O motorista de Stone conhecia atalhos que evitavam a área mais congestionada da cidade. E como a Cidade Velha se situava relativamente perto dos subúrbios ocidentais, vinte minutos depois de cruzarem o rio avançavam rapidamente através de terrenos agrícolas com diques em que o trabalho de construção se desenrolava a ritmo elevado.

- Camponeses ricos - explicou William Sit. - Actualmente, os agricultores constróem as suas «choças» com pedra e cal.

Wang conduzia o táxi em volta daquilo que a Stone pareciam tractores que rebocavam transportes de material de construção.

Adiante, numa planície ao longe, avistou linhas de alta tensão nos seus inconfundíveis postes. Quando alcançaram a área, fez sinal ao motorista para que enveredasse pela estrada de terra batida que seguia ao longo deles.

- Não - disse William Sit, secamente.

- Vai dar directamente à central eléctrica.

Wang e Sit abanaram a cabeça com veemência, e o segundo apontou para os enormes caracteres chineses numa tabuleta afixada no poste mais próximo.

- Área de acesso limitado. Proibida a entrada.

Wang disse algo e Sit advertiu:

- É mais seguro pela estrada costeira.

Transcorridos mais vinte minutos, atingiram-na e rolaram para sul ao longo de uma larga planície de aluvião que se estendia até ao litoral indistinto da baía. Pela segunda vez naquele dia, Stone teve a sinistra impressão de navegar em terra seca. Recordou-se da Holanda, a uma escala enorme e solitária. O tráfego na estrada era reduzido, e a baía, embora polvilhada de pequenas embarcações, não continha um único navio.

- Acolá! - exclamou de súbito.

Quatro chaminés imensamente altas e estreitas acabavam de se materializar, no momento em que um forte aguaceiro se extinguia. Mais perto, conseguiu distinguir os contornos de uma construção própria para um gerador e, à esquerda, à beira da água, uma área com cisternas. Retirou o binóculo da mochila e acompanhou o percurso da canalização que as abastecia até um cais, cuja extremidade mais distante se perdia por interposição de novo aguaceiro que acabava de se desencadear.

Mais adiante, a estrada afundava-se sob a canalização maciça que transportava combustível das cisternas para a central eléctrica. Quando se encontravam a duzentos metros do estaleiro, o aguaceiro terminou e foi possível ver que o cais estava vazio.

Stone indicou a Wang que parasse, mas este e o intérprete entreolharam-se.

- Pare, que diabo! - insistiu.

Saltou para o chão e focou o binóculo na água além do cais. Os seus sentidos pareciam singularmente activos. Notava a intensidade do vento frio e húmido e tinha a impressão de que o observavam. William Sit apressou-se a segui-lo e murmurou:

- Soldados. No oleoduto.

Havia um passadiço acima deste último, de onde membros da milícia uniformizados olhavam na sua direcção.

- Isto não é bom - disse Sit. - Nada bom, mesmo. Vamos embora.

No entanto, Stone não arredou pé de onde se encontrava, com o olhar fixo nas chaminés. Como queimava gás natural, a central eléctrica emitia fumo invisível. Nesse caso, porque lhe cheirava a fumo de carvão?

Tornou a apontar o binóculo à água. Uma forma quadrangular, menos uma forma do que uma sugestão de presença, parecia pairar à distância. Um navio envolto num aguaceiro?

Wang chamou-o em tom urgente e a voz de Sit tornou-se aguda ao suplicar:

- Temos de ir, senhor.

Wang não aguardou resposta. Fez o táxi avançar bruscamente algums metros e inverteu a marcha a meio da estrada, sem perder de vista os soldados, que tinham começado a descer do passadiço.

O aguaceiro tornou-se mais intenso a uma milha de terra e o vulto que Stone descortinara deixou de estar visível.

- Vamos!

- Pronto, está bem. Diga a Mister Wang que regressamos a Xangai. Ao barco.

O motorista segurou o volante com ambas as mãos, enquanto quase voavam ao longo da costa e depois para o interior, por entre os terrenos agrícolas, com bicicletas, tractores, peões, camiões e porcos que se esquivavam com a prontidão possível. William Sit encolhia-se no banco, as mãos unidas sobre os joelhos, como que receoso de olhar para fora e verem-se interceptados pelo Exército de Libertação Popular. Stone, que urgia Wang para que aumentasse a velocidade, duvidava de que qualquer dos dois comparecesse ao seu serviço no dia seguinte.

Entretanto, tentava ganhar coragem. Não se podia dar ao luxo de entrar em pânico com considerações derrotistas, como, por exemplo, a de que o Dálias Belle, depois de vender a sua carga, se fizera ao mar e já se encontrava a uma distância apreciável, ou, pior de tudo, que as vidas de Sarah e Ronnie haviam terminado dias atrás.

Precisava de esquadrinhar o porto de Xangai como se estivesse convencido de que o navio cor de areia permanecia fundeado num dos numerosos cais. A experiência no mar ensinara-lhe que era quase impossível ver aquilo que não acreditava que existia. Um barco, ou mesmo um navio, mantinha-se persistentemente invisível até que o observador aceitava a possibilidade de se encontrar presente, pois um aguaceiro inesperado surgia com surpreendente prontidão.

Consultou o relógio. Ainda era cedo - apenas uma hora da tarde. Pegou na carta, desdobrou-a em cima do banco de trás e indicou a William Sit:

- Pergunte a Mister Wang onde se encontra o barco. O outro obedeceu, voltou-se de novo para trás e, depois de examinar a carta por um momento, apontou para um estaleiro de carvão na margem mais próxima do rio, três quilómetros a montante do Bund. Como o táxi se achava perto do local, acrescentou:

- Chegaremos dentro de vinte minutos.

Wang conseguiu-o em quinze e transpôs os portões de um vasto estaleiro de carvão, em direcção ao cais. Centenas de sampanas achavam-se amarradas às docas de descarga e unidas umas às outras. O carvão estava a ser transferido para terra por métodos quase primitivos.

Mr. Wang apeou-se com um gesto brusco para que o seguissem, pondo assim termo a quaisquer dúvidas ainda existentes de que trabalhava para a Tríade e recrutara o amigo William Sit, em vez do inverso. O professor manteve-se no táxi.

Stone estendeu a mão, a fim de o puxar pelo braço, mas recordou-se a tempo de que os Chineses não gostavam que estrangeiros lhes tocassem. Ao invés, disse:

- Estou-lhe muito grato pela ajuda, William. Sem ela, estaria perdido.

- De modo algum. O meu inglês já melhorou muito. Eu é que lhe agradeço.

- A situação foi um pouco inquietante, quando encontrámos os soldados. Não deixei de apreciar o facto de se manter a meu lado.

William pareceu entre a espada e a parede, que era precisamente o que Stone pretendia, para a eventualidade de o pobre homem pensar em se escapulir. Naquele momento, Wang chamou com impaciência.

- Vamos? - perguntou Stone.

William assentiu com uma inclinação de cabeça relutante e apressaram-se a seguir o motorista, o qual os conduziu ao longo do cais, para além da operação de descarga, a uma área onde estava acostada uma sampana de transporte de carvão vazia. A tripulação - um homem de meia-idade, com a esposa e três adolescentes, varriam pó de carvão da coberta, com vassouras que mergulhavam em baldes de água do rio.

Wang saltou para dentro e gesticulou na direcção de Stone e William para que o imitassem. A embarcação tinha cerca de vinte metros de comprimento, com a casa do leme à ré e um porão aberto com capacidade para uma carga substancial de carvão. Perfeito, pois assim evitava-se o recurso a cartas de apresentação. A sampana não se distinguia dos milhares de outras que sulcavam o rio e a casa do leme ocultaria um americano barbudo, que, de outro modo, se tornaria bem visível de bordo dos barcos-patrulha da marinha que vigiavam a área.

O patrão do barco saudou Wang quase bruscamente, mas tanto ele como a esposa e os filhos e filha abstinham-se de olhar directamente para Stone e William. O espaço na casa do leme era reduzido. Alguns degraus conduziam ao lugar onde o motor se achava instalado, que Stone reconheceu como sendo um General Motors 4-71, o qual decerto não tinha menos de quarenta ou cinquenta anos de existência. A seguir à escada, havia uma cortina e, no momento em que a jovem, sem dúvida dois ou três anos, quando muito, mais velha do que Ronnie, a afastou para passar, ele descortinou colchões e uma panela num fogão de carvão.

- Tantos filhos... - comentou William a meia voz, claramente surpreendido por o patrão da sampana ter excedido duas vezes a lei que só permitia um descendente por família.

A filha tornou a cruzar a casa do leme e desta vez dirigiu um olhar de través a Stone. A uma ordem brusca do pai, seguiu para o convés, a fim de ajudar os irmãos, enquanto ele ligava o motor diesel, que fez estremecer as janelas, e a sampana começou a dirigir-se para a corrente.

Stone puxou da carta, que desdobrou para expor apenas a secção superior do rio, e indicou ao patrão duas docas secas que pretendia visitar - a vizinha imediata do cais do carvão e outra cerca de dois quilómetros a montante.

No entanto, em nenhuma se encontrava o Dálias Belle.

- Muito bem - decidiu. - Agora, rio abaixo.

Depois de passarem diante do Bund e do hotel, pediu ao homem que cruzasse o rio e continuasse ao longo da margem esquerda, num de cujos cais o Tin Hau ainda se encontrava ancorado, parecendo, como Stone predissera, um Maserati num cemitério de viaturas.

Entretanto, a meteorologia colaborava. Parara de chover e as nuvens baixas atenuavam-se, vendo-se já algumas abertas. Com o binóculo, ele podia enxergar a seis ou sete quilómetros. No entanto, o céu continuava ameaçador e apenas restavam mais duas horas de luz, no máximo.

Logo a seguir ao molhe Huangpu, havia a doca seca do Estaleiro Ocidental de Xangai e, nele, um navio cor de areia. Estava rodeado por um andaime, e foi com mãos trémulas que Stone focou o binóculo. Pelo que se recordava, afigurava-se-lhe que tinha a configuração do Dálias Belle. Emitiu um grunhido, e William Sit perguntou:

- Sente-se mal?

Ele abanou a cabeça, ao mesmo tempo que emitia um leve suspiro de desespero. Não era o transporte de gás que procurava, mas apenas um navio de contentores com as linhas típicas dos cargueiros modernos.

- Voltemos à outra margem - indicou.

A sampana tornou a cruzar o rio e o patrão passou a acompanhar a margem durante vários quilómetros, até que reduziu a velocidade para mais um falso alarme. Entretanto, anoitecia e começavam a acender-se luzes no cais, estaleiros e fábricas ao longo do rio.

O até então silencioso patrão pronunciou algumas palavras, que William traduziu.

- Já não se vê quase nada.

- Que continue em frente.

A embarcação fixou a velocidade nos oito nós e transpôs mais seis quilómetros na meia hora imediata. Stone observou bem a refinaria, que antes lhe escapara devido à chuva, mas não havia qualquer transporte de gás visível.

- A outra margem!

Nova travessia do canal, com as precauções necessárias para evitar os navios e rebocadores. Acercavam-se de Wusong, quando ele avistou o navio que vira de bordo do iate, naquela manhã, e fez sinal ao patrão para que se aproximasse. O espaço ao lado do paquete mantinha-se vazio. A sampana continuou em frente, agora noite cerrada.

- Bem, vamos dar a volta a subir por este lado.

Passaram de novo diante do estaleiro, onde navios fora de utilização eram desmantelados para sucata. Atrás dele, em terra, havia linhas férreas em que circulavam locomotivas eléctricas que puxavam vagões carregados com numerosas peças. Stone queria ver de mais perto, porém o patrão sacudiu a cabeça, e a esposa, que assomara à porta da cortina, exibiu uma expressão sombria e gritou:

- Aaaiiyaa!

- O que se passa? - inquiriu Stone.

William pareceu relutante em o elucidar, porém ele insistiu.

- É o terreno de execução. Onde os prisioneiros são fuzilados depois de... condenados.

Olhou para onde o homem apontava. Um espaço escuro no meio de parte alguma, para além da via-férrea. O cenário apropriado para semelhantes actividades.

Transferiu-se da casa do leme para a coberta e fixou o olhar nas margens envoltas na escuridão, ao mesmo tempo que admitia que percorrera uma larga fatia do território. E vira numerosos locais que a chuva o impedira de observar anteriormente, ao mesmo tempo que combatia o desapontamento e exaustão. Precisava de dormir e levantar-se cedo no dia seguinte para reatar as pesquisas. Ao mesmo tempo, rogava aos deuses que não houvesse nevoeiro.

O Bund - as fachadas das construções profusamente iluminadas - começou a desenhar-se uma hora mais tarde. Sen-(indo frio até aos ossos e aturdido de fome, pois não comia desde o pequeno-almoço, Stone indicou a William que pedisse ao patrão da sampana que o deixasse no parque diante do ho-tel, e a embarcação encostou aos escorregadios degraus de pedra. Deu instruções para que o fossem buscar ao amanhecer e, depois de garantir ao protestante William Sit que sabia o caminho para o hotel, começou a atravessar o parque intensamente iluminado.

Katherine aguardava-o no átrio, as faces dominadas pela tensão. Tinha uma das mãos afundada na sacola e a primeira coisa que disse foi:

- Venha ao meu quarto.

- Há alguma novidade?

- Medidas de segurança.

Ela pedira à recepção do hotel que a transferisse do quarto para uma suíte com duas saídas. Antes de deixar Stone comer ou dormir, descreveu-lhe minuciosamente um plano de fuga e exigiu que memorizasse os acessos à escada de incêndio mais próxima. Embutira fragmentos de espelho na parede oposta à porta para poder esquadrinhar o corredor através do postigo. Quando um empregado do hotel foi entregar o que tinha sido pedido ao serviço de quartos, ela abriu a porta com a pistola oculta atrás das costas.

Ele acordou à meia-noite, e viu-a sentada na borda da cama envergando uma camisa folgada, a olhá-lo com curiosidade.

- Sente-se bem? - perguntou Stone.

- Sim. Óptima.

- Quer conversar?

- Não. Tenho trinta e três anos de idade, nunca conservei um tipo mais de seis meses, só sei fornicar e ser polícia e não me autorizam a ser polícia. Não consigo imaginar o que acontecerá a seguir.

- Bem...

- Vai dizer-me que tudo se resolverá pelo melhor?

- Não, mas tenho antidepressivos na mochila.

- Obrigada. - Ela soltou uma gargalhada desprovida de significado. - Passo. Sou uma mulher de altos e baixos.

Ele fechou os olhos.

- Se mudar de ideias...

- Como consegue dormir, preocupado com a Sarah?

- Um velho hábito do barco. Durmo quando posso. Isso não quer dizer que não esteja preocupado até à raiz dos cabelos. Cada dia que passa sem que a encontre e à minha filha, o navio pode distanciar-se cada vez mais ou ir ao fundo com elas dentro.

 

O Dálias Belle recomeçara a mover-se, puxado por rebocadores sufocantemente fumegantes. A atmosfera densa tragara os contornos de terra momentos depois de o navio abandonar a central eléctrica e, quando a noite desceu sobre a água, Sarah sentiu-se totalmente desorientada. Passariam muitas horas antes que Mr. Jack adormecesse e ela pudesse então determinar a sua posição e a rota com o SPG de Ronnie.

Ele permanecia encolhido na poltrona habitual da luxuosa sala principal, entretido a beber Canadian Club. Os seus visitantes tinham-lhe entregado uma brochura, que fingia ler enquanto observava os movimentos de Sarah.

Ela tornou a encher o seu copo de água Pellegrino no balcão do bar e ingeria-a distraidamente enquanto espreitava pelas várias janelas. Reflectidos nos vidros negros, Sarah e o seu captor pareciam tão mortos como estátuas.

Por fim, o ancião largou a brochura em cima da mesinha de café e ela pegou-lhe. A capa mostrava um transatlântico preto e branco, o Asian Princess, registado nas Baamas. Parecia similar ao QE-2, que vira recentemente em Singapura. O livro tinha quatro fotos coloridas de viagens no Japão e o texto era sedutor, destinado a passageiros abastados que preferiam o conforto à realidade.

 

Os paquetes vulgares fazem escala em Iocoama, a duzentos e cinquenta quilómetros do centro de Tóquio. O Asian Princess atraca ao Cais de Takeshiba, no coração da capital, onde se mantém como hotel de luxo perto de Ground Zero da dinamicamente moderna metrópole a que doze milhões de habitantes de Tóquio chamam lar.

A poucos passos, existe o famoso Ginza, com os seus numerosos pisos de lojas, o bairro de Marunouchi, que contém grande parte da riqueza mundial, os jardins do Palácio Imperial, residência da venerável realeza do país, e a Torre de Tóquio, a estrutura mais elevada do Japão, que ultrapassa a Torre Eiffel de Paris.

Tem os pés fatigados? Basta activar o seu pager pessoal para contactar com a frota de limusinas privadas do Asian Princess à sua disposição, as quais conduzem os passageiros aos destinos escolhidos.

Nada de hotéis de preços exorbitantes. Ou de tarifas de táxis inconcebíveis. Ou confusões no aeroporto. Ou cotoveladas para apanhar transportes públicos. Veja Tóquio como nunca foi vista do seu camarote de luxo a bordo do hotel flutuante de primeira classe do Asian Princess.

 

- Planeia efectuar um cruzeiro, Mister Jack?

- Comprei a companhia. Que lhe parece o meu novo navio?

- Na verdade, dá a impressão de que garante aos seus clientes a ausência de todo e qualquer contacto com a Tóquio real.

- É nessa base que o negócio dos cruzeiros funciona. Nunca participou num?

- Receio que os de luxo estejam um pouco acima das minhas posses.

- Vamos fazer uma coisa. Quando tudo isto terminar, oferecer-lhe-ei e ao seu marido um cruzeiro de lua-de-mel.

- Talvez pudéssemos embarcar esta noite mesmo.

- Lamento, doutora. - Ele esvaziou o copo e gesticulou para que a dose fosse renovada. - Antes que me esqueça: diga à miúda que tenho uma surpresa para ambas, amanhã.

A pequena e escura suíte de tecto alto que Stone partilhava com Katherine tinha um telefone antigo que estridulava como os grilos. Ela atendeu e passou o aparelho ao companheiro. Era Ronald.

- Olá, marinheiro. O nosso amigo de Hong Kong diz que contacte com o amigo no hospital.

- Essa agora!

- Entendeu?

- Obrigado.

A telefonista do Hospital Matilda ligou ao quarto de Kerry, que atendeu com um:

- Onde diabo se encontra, amigo?

- Na China - respondeu Stone cautelosamente, sentado na cama. - Como está o seu ombro?

- Espero sobreviver.

O outro parecia cordial, mas exprimia-se com o vigor autoritário habitual, e Stone quase lhe via o olhar inquiridor.

- Enquanto estou imerso em ociosidade forçada, tenho-me entregado a reflexões. Sobre a sua história.

Levantou-se e segurou o auscultador com ansiedade.

- Falou com o seu?...

- Não interessa como. Consultei as entidades competentes, mas não dispõem de muita coisa em termos de aparelhagem de sonar no Pacífico Ocidental. Destinava-se a localizar submarinos soviéticos que entrassem no mar alto.

- É o que eu receava.

- Mas os submarinos e helicópteros ainda estão à escuta. E parte do que captam vai para a biblioteca daquilo a que chamam ruído de navios.

- Óptimo.

- Está com sorte, amigo. Duas vezes. Tanto quanto me foi possível depreender, aconteceu o seguinte: um dos nossos submarinos em cruzeiro de treino estava perto das ilhas do Sudoeste, quando um novo recruta qualquer que aprendia a lidar com o sonar captou um navio. «O que é isto?» «Não sei, senhor.» «Então, averiguemo-lo.»

«Compararam os elementos recebidos com o material existente na biblioteca e nada. Portanto, não podia ser um vaso de guerra. Mas o instrutor provavelmente disse. "Trata-se de um navio extremamente pesado para essas paragens. Encontra-se a duzentas milhas das rotas habituais." O comandante observou: "Consultemos o quartel-general em Brisbane." A Biblioteca de Brisbane entrou em contacto com o Pentágono e surgiu uma indicação. Um navio de cinquenta mil toneladas de registo li-beriano chamado Amy Bodman.

- Bodman?

- Das Linhas Bodman. Uma velha frota de petróleo, adquirida há anos, conglomerada catorze vezes deste então. Mas quando as informações chegaram, o navio há muito que havia desaparecido, e o submarino tinha assuntos mais prementes de que se ocupar. E o assunto ficaria por aí...

- Se não?...

- Se não se desse o caso de, no mar da China Oriental, as marinhas japonesa e australiana procederem a manobras em conjunto, com submarinos desta última e navios da Força de Defesa Nipónica. Helicópteros lançaram material de sonar, e que se lhes deparou senão o Amy Bodmarú

- Onde?

- A umas quatrocentas milhas de Xangai.

- Com que rota?

- Noroeste.

Stone sentiu as palpitações do coração acelerarem-se. O navio tinha estado ali!

- Em direcção a Xangai. Exactamente como a Sarah disse.

- Mas há mais.

- Hem? Desembuche de uma vez, homem.

- Eles ouviram um transporte de gás mais ou menos onde esperavam detectar vários, pelo que não houve grandes exclamações de assombro. Mas, com todos os exercícios de comunicações, a informação foi transmitida para Brisbane e automaticamente para o Pentágono. O Amy figura na biblioteca.

- Por conseguinte, encontra-se em Xangai - concluiu Stone com uma sensação de alívio.

- Não forçosamente.

- Porquê?

- O navio parou.

- Parou? O que quer dizer com isso?

- Ficou imóvel na água. A meio caminho entre Okinawa c Xangai. As máquinas pararam todas. Pedi a um amigo que procurasse eventuais imagens via satélite, sem resultado. Havia três dias que o céu estava encoberto e chovia. Impossível cap-tar o que quer que fosse.

- E com raios infravermelhos?

- Nada.

Stone sentiu-se percorrido por um calafrio. Atordoado.

- Meteram-no no fundo.

- É possível - admitiu Kerry. - Ou talvez não. Quatro dias depois de o captarem, um dos helicópteros procedia a novo rastreio e registou um som estranho. Uma espécie de batimento surdo.

- Não estou a compreender.

- Pense.

- Deixe-se de rodeios.

- Não lhe quero pôr palavras na boca, Michael. Estou apenas a conjecturar. A marinha não se deu ao trabalho de o analisar. Tratava-se de um navio comercial, e eles preocupam-se é com vasos de guerra. Creio que sei o que foi que ouvimos. Veja se chega à mesma conclusão.

Stone fechou os olhos e afundou-se na cama, enquanto tentava organizar os pensamentos que fervilhavam no cérebro. Katherine ajoelhou-se a seu lado e começou a massajar-lhe os ombros.

- Uma pista - acrescentou Kerry. - Não esqueça que se trata de um transporte de gás.

- Um compressor?

- Exacto!

- O sistema de arrefecimento para manter a temperatura do gás baixa.

- Consultei os registos. O Amy Bodman é suficientemente moderno para dispor desse tipo de equipamento. Por conseguinte, o som que detectaram era de um compressor, enquanto o navio permanecia imóvel à chuva durante quatro dias.

- Porque parou?

- Provavelmente, para reparações.

- Recomeçou a deslocar-se?

- Não sei. Terminados os exercícios, todas as unidades regressaram à procedência.

- Foi comunicado o desaparecimento do Amy Bodman .

- Nem o desaparecimento, nem qualquer atraso de chegada a um porto.

- A quem pertence?

- É difícil de determinar, pois tem sido alugado diversas vezes. Incumbi o meu advogado no almirantado de se debruçar sobre o assunto durante dois dias. Há toda uma rede de companhias intermediárias. A única certeza é que recolheu a carga em Surabaia.

- Contávamos com isso.

- O nome de Jack Powell diz-lhe alguma coisa?

- Não.

- É um importante armador dedicado ao transporte de petróleo. Americano. Principiou a actuar nos dias de Ludwig e Aristóteles Onassis. Era do tipo do primeiro, muito reservado. A minha gente pensa que o navio que nos interessa lhe pode pertencer.

- Mas porque não comunicaria o seu desaparecimento?

- Talvez o alugasse alguém.

- Não deve ser difícil averiguá-lo.

- Não responde a mensagens. Tem escritórios em Nova Iorque, mas duvido que replicasse a uma chamada de um obscuro oficial de salvamento.

- E à minha ainda menos. Falou com a Lydia Chin?

- Também tentou. Sem resultado. Chegou mesmo a recorrer a um dos seus importantes amigos do meio.

- Quem sabe se o Jack Powell se encontra a bordo?

- Duvido. - Kerry McGlynn fez uma pausa. - Desejo-lhe sorte, amigo. Pode não passar tudo de coincidências, mas se eles tentavam ocultar o navio do rastreio dos satélites, cometeram o lapso crasso de se esquecer do compressor. Continuarei a tentar averiguar a quem pertence, assim como a contactar com Mister Powell.

- Quem me dera estar a bordo.

- Porquê?

- O meu maior receio é que eles vendam a carga e afundem o navio, com a Sarah e a Ronnie dentro.

- Que teria um tipo desses contra a sua mulher e filha? Stone cortou a ligação e entregou-se a frenéticas reflexões, isolando as boas notícias e ignorando as perguntas até agora sem resposta, as dúvidas e até o mistério das intenções dos raptores. O navio detivera-se perto de Xangai, oculto sob as nuvens. Ele estava convencido de que havia reatado a marcha. Não o afundariam com a carga a bordo. E sabia que esta se mantinha lá porque os arrefecedores do gás se mantinham em actividade.

Entretanto, Katherine continuava a massajar-lhe os ombros. Tinha mãos mais vigorosas do que qualquer mulher que Stone conhecera até então.

- Não posso esperar que amanheça - decidiu ele. - Têm de estar aqui.

Soou uma pancada na porta e Katherine apressou-se a pegar na pistola-metralhadora. Em seguida, aproximou-se e espreitou pelo postigo que improvisara. Por fim, mais tranquila, abriu.

Ronald entrou quase de rompante.

- O que há de novo?

Convencido de que a Tríade subornara a telefonista do hotel, Stone revelou-lhe o que soubera. No final, o cantonês quase deu pulos de satisfação.

- Boas notícias, hem, marinheiro?

- Parece que sim.

- Tem manchas de sangue na bainha das calças - interpôs Katherine.

- Um dos meus homens feriu-se. Nada de importância.

- O Michael está seguro aqui?

- Sem dúvida.

- Não estou a gostar disto.

- Não?

- Ele é a minha garantia de segurança aqui. - Ela continuava a empunhar a arma. - Não corre perigo?

Ronald avançou um passo para a esbofetear e a pistola deixou de estar apontada ao chão, agora na direcção-geral da virilha dele, que, ante a admiração de Stone, retrocedeu. Em seguida, encaminhou-se para a porta, ao mesmo tempo que dizia:

- Não se preocupe, marinheiro. Encarrego-me de tudo. Quando ficaram sós, Stone perguntou:

- O que acha?

- Está assustado - opinou Katherine. - Aposto que o Chang lhe voltou as costas.

- É melhor pormo-nos em marcha.

- Se eles sabem que nos encontramos aqui, também não devem ignorar o nosso destino.

- Recomenda que fiquemos?

- Recomendo que procure o navio amanhã.

 

- Traga a miúda, doutora! É altura da surpresa! Ronnie ergueu os olhos do livro que lia.

- Surpresa? - Saltou da cama. - Vamos, mamã! Vários passos atrás, Sarah ouviu-a soltar uma exclamação abafada.

- Que bonito, Mister Jack!

Deteve-se à entrada e arregalou os olhos de incredulidade. No canto oposto à poltrona do ancião, erguia-se uma árvore de Natal quase da altura do tecto, com luzes que piscavam e ornamentos reluzentes. O odor intenso de pinho inundava a atmosfera. Ronnie aproximou-se, com uma expressão extasiada.

- Nunca tinhas visto uma árvore de Natal? - perguntou M r. Jack, que continuava a beber, apesar das ordens de Sarah, e tinha as faces congestionadas.

- Só em fotografias. A mamã e o papá costumam fazer uma pequena, mas esta é tão verde. Não notas o cheiro, mamã?

- Costumamos decorar uma palmeira pequena - explicou Sarah, impressionada com a oferta do ancião, apesar do sorriso saturado de uísque que o fazia parecer-se com um Pai Natal infernal. - Onde obteve esta?

- Como referi, doutora, Xangai é a minha cidade. Naquele momento, o comandante fez a sua aparição, de expressão alterada, depois de três dias a manobrar o navio nas águas costeiras.

- Há alguma novidade? - inquiriu Mr. Jack.

- Wusong Kou, Mister Jack. Estamos quase no rio. Ancoraremos até à praia-mar e entraremos depois.

«O Huangpu», reflectiu Sarah. «Ou referir-se-á ao Yangtze?»

- Quanto tempo?

- Para a acostar, três horas.

Xangai. Uma cidade gigantesca, onde podiam fugir e esconder-se.

- Então, que te parece a árvore, miúda?

- É linda.

- O que queres pelo Natal? - Antes que Ronnie pudesse responder, bradou: - Vamos ter uma festa de arromba! Espera e verás.

Sarah estava estupefacta.

- Mas ainda faltam dez dias, Mister Jack. Tenciona reter-nos aqui mais todo esse tempo?

- Com certeza, doutora. Mas garanto-lhe que será um Natal para recordar.

- O papá continua em Hong Kong? - quis saber Ronnie.

- Tanto quanto sei.

A fotografia eliminara virtualmente os temores da garota, e agora reagia como se ela e a mãe estivessem em gozo de férias. Ronnie sempre permanecera perfeitamente sintonizada com as emoções dos pais, resultado de uma vida desenrolada num ambiente restrito, e era uma criança generosa, rápida a conceder. Demasiado generosa, na opinião de Sarah.

Ah Lee apareceu com o jantar, uma tigela enorme de caranguejos de Xangai. Sarah ajudou Mr. Jack a levantar-se da poltrona. Ele sentia-se mais forte, mas as dores no peito e ombro dificultavam-lhe os movimentos. Quando o instalou à mesa, onde Ah Lee quebrava as cascas e ensinava Ronnie a retirar o conteúdo, ele pediu a sua bebida usual.

Moss entrou quando eles iniciavam a sobremesa, com o gelado de café preferido da garota. Enquanto ele contemplava a cena, Sarah reflectiu que deviam parecer uma família de uma série cómica da televisão: mãe, filha e avô a jantar, enquanto o pai fazia serão no emprego. Ou o chefe e as escravas.

- Há alguma novidade, Moss?

- Visitas. Um barco-patrulha trouxe-as.

- Senhoras!   E se desaparecessem? Trouxemos   alguns DVD da Disney. Vão ao cinema.

Era uma ordem, e elas recolheram ao camarote onde dormiam. Entretanto, Sarah perguntava-se se Mr. Jack as afastara para que não fossem vistas ou para que elas não vissem as visitas.

Ah Lee apareceu com chá, biscoitos e os filmes e retirou-se com prontidão. Ronnie colocou a Branca de Neve e os Sete Anões no leitor de DVD e pôs o som quase em surdina. Por seu turno, Sarah pegou no estetoscópio e aplicou-o à porta.

- O que estão a dizer? - perguntou a filha, a meia voz.

- Falam em chinês.

- Mister Jack também?

- Caluda!

- Deixa-me ouvir, mamã.

Com um suspiro de resignação, Sarah entregou-lhe o estetoscópio.

- Fartam-se de dizer «velho amigo» - sussurrou Ronnie. De súbito, informou: - Espera, ele fala em inglês. Toma, escuta tu, mamã.

Entregou o estetoscópio à mãe e foi sentar-se na cama com a Branca de Neve.

Sarah tornou a aplicar o diafragma à porta e ouviu Mr. Jack gracejar:

- Nem os próprios comunistas conseguem efectuar uma operação vantajosa, quando sabem com antecedência que o índice Nikkei... - E completou a frase em chinês, após o que soaram gargalhadas.

Ela aguardou em vão que surgissem outros fragmentos em inglês. Ouvia o tilintar de copos e trocas de palavras em voz baixa, até que Ah Lee reapareceu com comida e mais bebidas. Filtrava-se fumo de cigarro por baixo da porta. Se não fosse a ausência de vozes femininas, dir-se-ia que escutava dissimuladamente a um canto de um bar.

O filme terminou e Ronnie adormeceu. A mãe colocou-lhe mais um cobertor em cima e preparava-se para se deitar quando as máquinas pararam.

Ela aproximou-se da escotilha e espreitou. Projectores potentes iluminavam um cais e a estrutura de uma grua maciça. Para além do clarão, pressentiu mais do que viu um muro. Acudiu-lhe a sinistra sensação de que o navio entrara num imenso barracão.

Quando se acercou da porta, verificou que a conversa terminara. Bateu levemente, para não acordar Ronnie, e a voz de Mr. Jack proferiu:

- Pode entrar, doutora.

Encontrava-se só, afundado na poltrona. Os olhos apresentavam um véu de exaustão e movia a língua pesadamente, resultado óbvio do excesso de bebida.

- São horas de ir para a caminha?

- Esteve a pé demasiado tempo. Não lhe convém. - Sarah moveu a mão à sua frente, como que para desanuviar a atmosfera. - Posso depreender que não fumou?

- Sem dúvida. Foram os meus amigos. Esses é que fumam como chaminés. Os filhos da mãe eram capazes de armar uma emboscada a uma coluna de blindados dos «japões» só para lhes roubar cigarros. - De repente, ele mudou de tom. - O que ouviu, doutora?

Demasiado tarde, ela verificou que se esquecera de retirar o estetoscópio do pescoço. Acto contínuo, avançou para o ancião, abriu-lhe o roupão e aplicou o disco frio ao peito. O coração palpitava com vigor e os pulmões pareciam menos congestionados.

- Pare com a comédia. Perguntei-lhe o que ouviu.

- Censura-me?

- Brinca com o fogo, doutora.

- Repito: censura-me? Tem-nos prisioneiras e o meu infortunado marido anda só Deus sabe por onde.

- Acaba de ganhar uma sessão com o Moss.

Mr. Jack premiu um dos muitos botões que activavam o pager de Moss e enfrentou o olhar apreensivo dela com uma expressão glacial.

- Eu preveni-a. Não espere misericórdia.

Sarah considerou importante não deixar transparecer medo. No entanto, sentia os lábios tremer.

- Posso perguntar-lhe uma coisa?

- Estou farto de ser o seu bobo. Foi longe de mais.

- Como se explica que um homem como o senhor contrate os serviços de um indivíduo daqueles?

- É muito reinadia, doutora. - Ele soltou uma risada seca. - Se tivesse conhecido uma mulher com os seus tomates, passe a impossibilidade anatómica, há quarenta anos... Sabe o que é um homem do primeiro andar?

- Não.

- Um assaltante felino. Entra pela janela do primeiro andar. Só que, numa cidade como Nova Iorque, onde o Moss se criou, é o vigésimo. Um «tio», amiguinho da mãe ou outra pessoa qualquer lançou o miúdo no mercado do trabalho, pondo-o a escalar prédios, no que se especializou. Podia ter ido para equilibrista da corda bamba, se dispusesse de uma oportunidade. Mas acabou por ser apanhado e enviado para um centro de reabilitação juvenil.

- Que idade tinha?

- Dez, onze anos. Um pele e osso, aparentemente.

O pensamento de Sarah transferiu-se para Ronnie a deslizar pelo estar de traquete do veleiro.

- Quando o libertaram,   tinha dezasseis - prosseguiu Mr. Jack. - Cresceu depressa, a levantar pesos para sobreviver. Encontrou um trabalho lucrativo como proxeneta e foi promovido de disciplinador de prostitutas para um cargo equivalente, mas mais bem remunerado, num cartel de droga. As suas actividades foram de vento em popa, até que tornou a ser apanhado. Homicídio, etc. Vinte anos em Attica, uma penitenciária hermética no estado de Nova Iorque, onde passou uns tempos duros. Na altura, eu financiava um programa de reabilitação. Sabe como é a história: o mundo dos negócios proporciona uma segunda oportunidade ao delinquente.

- Parece uma contribuição estupenda.

- Uma maneira óptima de recrutar pessoal. Vi imediatamente que o Moss estava acima da média, recolhi-o e contratei tutores que o ensinaram a ler, matemática e electrónica. Mandei-o para a Califórnia a fim de estudar tudo o indispensável sobre computadores, para depois se me reunir de novo e receber treino de armas de fogo. Sim, era um jovem brilhante, embora um pouco retorcido.

- Parece agradecido por isso.

Encolheu os ombros.

- Só se fosse um rematado imbecil não mostraria gratidão. E aqui tem a história do nosso comum amigo Moss... Podes entrar. Aqui a nossa doutora está a pisar o risco.

- Ah, sim?

- Magoa-a. Mas sem marcas.

Sarah não acreditava que aquilo estava a acontecer, até que o gigante se debruçou sobre ela e passou a preocupar-se com o ponto do corpo que começaria a molestar.

- Espera um instante, Moss. Uma coisa, doutora.

- O quê, Mister Jack? - articulou ela, quase sem conseguir dominar a voz.

- Faça o possível por não gritar. Decerto não quer que a miúda acorde e assista. - Sarah exibiu uma expressão de incredulidade. - Entende?

- Sim.

- Está preparada?

Entretanto, continuava a não acreditar que Mr. Jack presenciaria tudo calmamente. As mãos do negro começaram a mover-se, desviando-lhe o cabelo da fronte, ao mesmo tempo que comprimia os lábios num sorriso divertido.

As mãos deslocavam-se mais depressa do que os olhos dela podiam acompanhar. Um impacte seco atrás de uma das orelhas deixou-a a vibrar demoradamente. Quando a cobriu com ambas as mãos, expôs a cintura e os seios. Uma série de pancadas obrigou-a a dobrar-se para a frente e deslizar para o chão, ofegante.

Agora, as dores invadiam-na como fogo, e Sarah esforçou-se denodadamente para abafar o grito que tentava brotar da garganta. Um gemido que não conseguiu impedir suscitou uma advertência de Mr. Jack:

- Evite acordar a Ronnie, pois não estará em condições de entoar canções de embalar.

Uma sensação pungente como a produzida pela lâmina de uma navalha em brasa pareceu perfurar o rim esquerdo, e ela receou que Moss a matasse acidentalmente. A dor transferiu-se do rim para o peito e depois para o cérebro, e afigurou-se-lhe que mergulhava em espiral nas trevas.

Por fim, ele verteu-lhe a água glacial do gelo derretido do balde e Sarah acordou a cuspir, enquanto tentava equilibrar o corpo e soltava gemidos.

- Silêncio.

Ela mordeu os lábios.

- Está bem?

Assentiu com uma inclinação de cabeça. Afinal, Moss não a matara. Tinha apenas essa sensação.

- Mais - determinou Mr. Jack.

Sarah rezou para que surgisse a inconsciência de novo. Mas o negro passou a ser mais cuidadoso e diabolicamente mais subtil e chegou um momento em que Mr. Jack ordenou uma pausa para a amordaçar, «no interesse do sono tranquilo da Ronnie», segundo alegou. Utilizou uma toalha do bar e fixou-a com o seu cinto.

Sarah teve a consciência de que se encontrava no chão da casa de banho, com uma mancha vaga de dor ante os seus olhos, a cabeça a rodopiar e o corpo a tremer incontrolavel-mente. Assolada por náuseas, arrastou-se até à sanita e vomitou, após o que se estendeu sobre os azulejos frios, mordendo os lábios para que Ronnie não a ouvisse.

Cada vez que respirava era invadida por uma variedade de dores.

Concentrou-se durante longos momentos a fim de reunir energias suficientes para se pôr de pé. Quando finalmente o conseguiu, viu-se ao espelho. Parecia uma selvagem. E aterrorizada. Surpreendentemente, não havia o menor sinal de violência, à parte do facto de as faces estarem levemente inchadas. Diria a Ronnie que era a reacção do corpo ao excesso de comida chinesa.

Ronnie! Arrastou-se virtualmente até à porta, entreabriu-a e espreitou. A garota permanecia enroscada na cama, sob o cobertor, profundamente adormecida. «Como tinham eles conseguido trazê-la sem lhe perturbar o sono?»

Trancou a porta e sentou-se no chão frio. A filha costumava ter o sono pesado, mas porque a poupara Mr. Jack à agressão implacável? Seria para lhe incutir um fragmento de esperança?

A esperança de que, se se concentrasse na recuperação dos ferimentos, Ronnie seria poupada?

Ponderou a situação e concluiu que não havia a menor esperança. A tareia constituía a prova de que as matariam, quando ele concluísse os seus misteriosos negócios com os generais chineses e pudesse então ingressar num hospital ocidental. Por conseguinte, mais do que nunca, a fuga tornava-se imperiosa.

Estavam muito perto de terra. O cais situava-se vinte metros abaixo do nível da coberta. Moss constituía o principal obstáculo. Ela sabia, sem margem para qualquer dúvida, que, apesar do cruel espancamento, não poderia alterar os medicamentos para o matar. Mas conseguiria incapacitá-lo?

Com mãos trémulas de medo, abriu a mala onde guardava os produtos farmacêuticos. A quetamina era utilizada em anestesia para conseguir paralisar os músculos. A sua acção, embora lenta, poderia proporcionar o efeito pretendido. No entanto, tentar aplicar uma seringa a um indivíduo poderoso como aquele dependia do factor sorte. Precisava de agir com rapidez e eficiência, apenas uma vez.

Ela dispunha de auto-injectores de epinefrina para tratamento de emergência de reacções alérgicas graves. A vítima de uma picada de abelha limitava-se a cravar a agulha na coxa e a dose era injectada automaticamente. Examinou o tubo de plástico atentamente, enquanto ponderava se conseguiria substituir a epinefrina pela quetamina, e reconheceu que precisaria de empregar uma dose de cinco ou seis centímetros cúbicos para neutralizar um indivíduo da envergadura de Moss.

Cada vez tinha maior dificuldade em se manter de pé. A cama parecia a quilómetros de distância. Tornou a deitar-se no chão frio e enroscou-se como uma bola. Sentia os dentes bater irresistivelmente. O peito arfava de dor e revolta. O pior de tudo era o receio de lhe faltar a coragem no último momento.

Enregelado até aos ossos, após mais um dia infrutífero no lio, Stone tomou um banho quente e arrastou-se para a cama. Katherine passara o tempo todo escondida sobre um tecto falso a observar o átrio do hotel. Não avistava qualquer «executor». Todavia, Ronald não estabelecera contacto, e ela ansiava por abandonar Xangai.

- Mais um dia - prometeu-lhe ele. - Só mais um. Ela ofereceu-se para partilhar o seu vinho.

- Ajuda-o a dormir - garantiu-lhe, estendendo um copo da casa de banho meio cheio.

Stone levou-o aos lábios, ingeriu um longo sorvo, apoiou a cabeça à almofada e começou a deixar-se dominar pelo sono.

- Nunca traiu a sua mulher?

- Nunca.

- Nem uma única vez, ao menos?

- Não houve necessidade.

- Está bem. Mas suponha que alguém o excitava ainda mais do que ela. Muito mais do que ela.

- Uma excitação dessa natureza seria banida segundo os termos do pacto de não-proliferação nuclear.

Katherine esboçou um sorriso.

- Permitira que um tratado se interpusesse entre você e a maior promessa de sexo da sua vida?

- É o meu sacrifício pela Humanidade.

- Que sorte a sua!

- Sem dúvida. É por isso que a quero recuperar. Olhou-o em silêncio por um momento e disse:

- Não, desejaria recuperá-la de qualquer modo. Você é um daqueles tipos que cuidam das pessoas.

- E a minha filha, também.

- Nunca terei filhos.

- Não diga isso. É jovem e...

- Cuidado! - bradou, precipitando-se para a sacola.

O britânico acabava de surgir à entrada da sala. A pistola estava munida de silenciador. Stone ouviu as balas embeberem-se no peito de Katherine.

 

Katherine tombou pesadamente na cama, enquanto o britânico entrava no quarto, de pistola apontada.

- Safa, que você não perde tempo! - observou, com um sorriso sardónico.

- Onde está a minha mulher? - rugiu Stone.

- Não faço a mais remota ideia, camarada. Bem, tenho de terminar a tarefa.

De súbito, soaram dois estampidos consecutivos atrás dele. Era Katherine, que conseguira apoderar-se da sua pistola-metralhadora. Stone viu o sangue brotar-lhe da boca, enquanto uma das balas atingia o braço do britânico e o projectava através da porta atrás dele e a segunda se perdia, ao mesmo tempo que ela se afundava na cama, cuja colcha se achava empapada em sangue.

- Fuja! - murmurou, entregando a arma a Stone. - Fique com isto.

- E você?

- Já ninguém me pode valer. Fuja! Lembre-se da sua mulher e filha. - O sangue irrompia cada vez em maior quantidade. - Acabe com esse patife, de contrário há-de persegui-lo toda a vida. - Fez uma pausa, enquanto Stone pegava na pistola. - A mola de segurança está solta. Basta puxar o gatilho.

Ele abandonou a cama e precipitou-se para a sala contígua. O britânico jazia na carpete e arrastava-se penosamente para tentar recuperar a arma, que largara junto da porta.

- Quieto - ordenou Stone.

O outro voltou-se e viu-o à entrada, com a pistola de Katherine na mão.

- Não tem tomates para disparar, camarada.

Stone volveu momentaneamente os olhos para ela. Permanecia imóvel, de olhar arregalado. Entretanto, o britânico ras-lejava apressadamente. Era a terceira vez que tentava matá-lo. Se o atingisse nas costas, tratar-se-ia de uma execução, mas Katherine tinha razão: o assassino profissional continuaria a persegui-lo até que pudesse cumprir a sua missão.

Aproximou-se e pousou o cano da arma na nuca do homem.

- Vou matá-lo ou incapacitá-lo por um ano. Escolha. O britânico voltou a cabeça e, quando viu a expressão de

Stone, a sua mudou de desdém para respeito. Ou medo. Este último não o conseguia determinar, nem lhe interessava.

- Escolha - repetiu.

- Porque não se contenta com confiscar-me a arma? Com o braço assim, vou passar pelo menos um mês no hospital.

- Não é suficiente.

Ouviram-se sirenes ao longe. Stone transferiu o cano da pistola para a coxa esquerda do britânico e puxou o gatilho, fragmentando o fémur. O outro soltou um grito agudo e desmaiou. Ele tornou a disparar, agora visando a outra perna.

Em seguida, pegou na mochila, a sua roupa e o impermeável e assomou ao corredor. Um japonês de meia-idade acudira a porta do seu quarto. Stone correu para a escada, onde se vestiu apressadamente, e prosseguiu para baixo, enquanto as sirenes soavam mais perto.

Membros da milícia uniformizados invadiam o átrio e vociferavam ordens aos recepcionistas, que replicavam no mesmo tom. Stone retrocedeu para a escada de incêndio, desceu à cave e, orientando-se pelo odor do lixo, localizou uma plataforma de cargas e descargas, por onde saiu.

O ruído das sirenes saturava a noite iluminada por néon. ele cruzou arrojadamente a rua e impeliu a porta do primeiro estabelecimento que se lhe deparou - um clube de jazz. Turistas americanos de meia-idade escutavam música em volta de mesas.   Uma empregada dirigiu-se a Stone, que pediu um scotch. Quando o ingeriu de um trago, as mãos tremiam de tal modo que a mulher arregalou os olhos.

Em seguida, ele gesticulou para pedir nova dose.

O número musical chegou ao fim. Entretanto, levaram-lhe mais bebidas e comida que não conseguiria tragar. Conservou-se sentado até ao final do espectáculo e à uma hora começaram a registar-se movimentos indicativos de que chegara o momento do encerramento. Se ficasse mais tempo, despertaria suspeitas ou, pelo menos, a atenção.

Aventurou-se a regressar à rua e enveredou por artérias movimentadas, na direcção da Cidade Velha.

Um clarão à sua frente anunciava um mercado nocturno, no qual entrou, para desfilar entre os locais de venda de bilhetes-postais, bonecas da Ópera de Pequim, pandas em miniatura, lenços bordados e peças de joalharia de jade. Decidiu comprar um panda para Ronnie e um lenço para Sarah.

No entanto, aproximava-se igualmente a hora de encerramento e os vendedores começavam a fechar os locais de venda.

- Ianque? - bradou um velho que vendia bolas metálicas de várias cores cuja finalidade não era clara. - Ianque? Força Aérea?

- O quê?

Um largo sorriso expôs meia dúzia de dentes amarelados.

- Força Aérea Dez, mil novecentos e quarenta e cinco. Mecânico. Mecânico de aviões. Força Aérea Dez. Bomba esfrangalhou japoneses.

Stone deteve-se, o que constituía todo o encorajamento de que o velho necessitava.

- Experimente! - insistiu, e colocou-lhe as esferas metálicas na mão. - Mecânico de aviões. Bomba esfrangalhou japoneses.

Baixou os olhos para elas e, no mesmo instante, o clarão alaranjado de um candeeiro público reflectiu-se em cada uma como minúsculas Betelgeuses. Introduziu a mão na algibeira em busca de dinheiro. Tinha de ser um bom presságio. Depositou as moedas na mão do velho e guardou as esferas no bolso.

- Não, não. Leve-as. - O vendedor devolveu-lhe o dinheiro. - Força Aérea Dez. Mil novecentos e quarenta e cinco. Mecânico de aviões. Platt and Whitney. Bomba esfrangalhou japoneses.

- Obrigado,   amigo. Muitíssimo obrigado. Aceite isto. Procurou um maço de Marlboro na mochila e entregou-o ao vendedor.

O sorriso alargou-se mais.

- Muito bom. Lucky Strike.

Stone esquadrinhou as ruas quase desertas do mercado, antes de perguntar:

- Onde era a sua base?

O outro apontou para leste.

- Ultra-secreta.   Muitíssimo secreta. - E repetiu   mais uma vez: - Força Aérea Dez. Amigo ianque - concluiu, batendo no peito com a mão espalmada, para reforçar a ênfase das suas palavras.

- Oxalá encontrasse um neste momento.

O corpo de Sarah era um poço insondável de dores, quando ela acordou ao som distante e persistente de maquinaria pesada. Os rins ardiam-lhe e julgou detectar o sabor de sangue. Com um suspiro abafado para não acordar Ronnie, arrastou-se em direcção à porta e entrou na sala deserta. Espreitou para ver o que havia a bombordo do navio. Para sua surpresa, avistou outro imediatamente ao lado, um paquete de passageiros que parecia das dimensões do Dálias Belle.

A superstrutura estava rodeada por um andaime de bambu. Através de escotilhas e janelas, Sarah descortinou o clarão intermitente de maçaricos oxiacetilénicos utilizados por operários de capacete e fato-macaco.

Como ela depreendera na véspera, o Dálias Belle achava-se sob a cobertura de um alpendre gigantesco. Do lado da popa, o rio estava imerso em denso nevoeiro.

Sarah ansiava por subir a escada que conduzia à ponte, mas tinha bem presente a sova recente, pelo que reconheceu .1 prudência de refrear o ímpeto. Agora, mais do que nunca, a sua vida e a de Ronnie dependiam da sua coragem. Ela tinha de actuar.

Quando finalmente conseguiu subir, encontrou o corredor deserto, assim como as salas das cartas e do computador. Aventurou-se a prosseguir e afastou a cortina de acesso à ponte. Não havia qualquer oficial de quarto, mas apenas um marinheiro, que dormia na cadeira de couro do comandante diante do pára-brisas, do qual se acercou. A frente, pouco mais havia para ver do que já observara: os tripulantes a trabalhar no navio vizinho, o vasto barracão e a proa do Dálias Belle, que quase desaparecia nas sombras.

No entanto, à medida que rompia o dia, conseguiu ver que o lado oposto do barracão se abria para uma área de cami-nho-de-ferro em que circulavam comboios de mercadorias. Se ela e Ronnie lograssem chegar a um deles, seguiriam para o centro da cidade e perder-se-iam nas ruas. Talvez fosse possível alcançar o Consulado britânico. De súbito, ocorreu-lhe um pormenor desencorajador: uma negra de estatura elevada e respectiva companheira salientar-se-iam na cidade chinesa como um exército invasor.

Divisou movimento na coberta principal. O contramestre conduzia um grupo de trabalho para fora da casa. Encaminharam-se para o Swan e começaram a soltar as amarras que o prendiam. Ela desceu a escada apressadamente e acordou Mr. Jack.

- Que estão a fazer ao meu barco?

- Calma... Ah Lee! Ah Lee! Onde diabo estás? Traz café. Quanto à doutora, sempre pensei que, depois de dançar com o Moss durante grande parte da noite, se levantaria tarde.

- Estão a mexer no meu barco.

- Tranquilize-se. Vamos lançá-lo à água e conduzi-lo para o outro lado do navio.

- Deixe-me fazer isso.

- Lá está a doutora a enxofrar-me de novo.

- Por favor. Chame o comandante. - Sarah estendeu o telefone ao ancião. - Diga-lhe que vou dirigir o meu barco. Por favor. É o nosso lar. Eles vão destruir tudo.

Ele encolheu os ombros e marcou um número.

- Não se exalte, doutora... Comandante? Deixe a nossa doutora dirigir o seu barco. Receia que vocês lhe abram alguma brecha. Exacto. Ela vai já para aí. - Cortou a ligação. - Pronto, corra para a coberta principal. Mas atenção! Nada de cspertalhices, hem? Leve o barco para onde eles disserem e volte para aqui. Entretanto, a Ronnie fica a aguardá-la.

Sarah seguiu para a coberta principal no elevador, abriu uma pesada porta de aço e saiu para o ambiente frio. A humidade era elevada e o ruído produzido pelos operários no navio de passageiros quase ensurdecedor. Um marinheiro estendera uma escada de corda e ela subiu ao convés do Verónica.

A coberta estava escorregadia, com sal e pó de carvão. No entanto, como observara na semana anterior, tinham arrumado tudo devidamente. Ligou o motor para se certificar de que funcionava, e parou-o em seguida, pois o sistema de arrefecimento exigia que se encontrasse na água. Depois, pendurou as defensas, que os tripulantes do navio haviam amontoado na uibina.

Naquele momento, Moss surgiu na coberta, e o coração de Sarah começou a palpitar desordenadamente ao vê-lo dirigir-se para a escada de corda. Com um movimento repentino, ela soltou-a e o negro desviou-se para não ser atingido.

- Diga ao homem da grua que tenha cuidado com o meu mastro - indicou-lhe Sarah.

Apontou para o telhado e ficou satisfeita ao vê-lo confuso, como também lhe acontecera, devido à ilusão de óptica. Na realidade, havia espaço mais do que suficiente para o mastro, que quase nem chegava às janelas da ponte, enquanto o telhado irrompia mais alto que a chaminé e o mastro da rádio.

As eslingas da grua tornaram-se tensas e o Verónica começou a oscilar.

- Atenção à quilha! - indicou ela a Moss. - Certifique-se de que não roça a amurada.

Olhou para baixo e viu-o colocar-se sob o casco, enquanto a grua fazia o Verónica passar lentamente sobre a amurada do navio, após o que o baixou, oscilando como um pêndulo, entre o Dálias Belle e a outra embarcação.

Quando olhou para cima, Sarah avistou Ronnie que lhe acenava da ponte, acompanhada pelo comandante, o qual emi-tia ordens através do tvalkie-talkie. Por fim, o casco contactou com a água. A tensão das eslingas atenuou-se, e ela ligou o motor. A grua recolheu as eslingas e o   Verónica ficou livre.

Não havia espaço suficiente para inverter a direcção no canal entre os dois navios, pelo que teve de retroceder, operação desaconselhável para um veleiro. O truque, segundo Michael explicara a Sarah, consistia em projectar um abundante jacto de água sobre o leme acelerando o motor, que era precisamente o que todos os instintos aconselhavam a não fazer num espaço reduzido. E funcionou. O barco começou a recuar em direcção ao rio e, após um momento de tensão em que a proa ameaçou virar subitamente de bordo e embater no paquete, ela adquiriu o controlo da situação e deslizou lentamente entre as rés dos dois navios.

A maré vazava e a corrente do rio era forte. O Huangpu estendia-se impressionantemente na sua frente, com cerca de oitocentos metros de largura, repleto de juncos, sampanas, rebocadores costeiros e navios de longo curso.

Moss deslizou por uma das amarras e saltou para o cais como um gato gigantesco. Pousou graciosamente, descalçou as luvas de trabalho com a dignidade de um aristocrata de regresso da ópera e apontou para onde Sarah devia acostar o barco.

- Mamã! - chamou Ronnie, alegremente, da ponte do navio.

A corrente arrastava o Verónica na direcção do cais. Sarah inverteu a marcha do motor e actuou no leme, desviando a ré para o lado da corrente.

- Aí mesmo! - bradou Moss.

Ela contemplou o rio com uma expressão de pesar. A cidade erguia-se a montante. A jusante, havia o mar e a liberdade. Reflexões insensatas, pois não podia separar-se da filha. A menos que encontrasse ajuda imediatamente. Enquanto hesitava, ponderando o impossível, uma pequena embarcação de patrulha da marinha avançou na sua direcção, com as luzes vermelhas a piscar.

O coração de Sarah sobressaltou-se e sentiu uma alegria imensa irromper-lhe nas veias como adrenalina. Soou uma sirene e ela viu um oficial de meia-idade apoiar-se à amurada. O uniforme parecia brilhar como escamas de peixes e, à medida que o barco se aproximava, viu que o peito estava coberto de medalhas e condecorações. O boné exibia as estrelas de general. Gesticulou e, de cima, na varanda atrás da cabina, brotou um grito. Sarah ergueu os olhos e avistou Mr. Jack de roupão, sorrindo de orelha a orelha e acenando com o braço são.

- Olá, amigo. Onde tem estado? O general mostrou uma garrafa.

- Raspe-se daqui, doutora - ordenou Moss. Acabrunhada,   Sarah pôs o motor em marcha avante e apontou o Verónica ao cais. O barco-patrulha acostou um pouco adiante, deixando espaço suficiente para aquele. Os tripulantes ajudaram o general a subir a escada com deferência solene e dois oficiais seguiram-no na prancha de portaló de acesso ao Dálias Belle.

- Atire-me uma amarra, doutora - pediu Moss, visivelmente satisfeito.

Sarah não sabia se ele a colocara numa situação de desafio ou se ela estava dominada pelo instinto da sobrevivência, mas, sem se deter a raciocinar, imprimiu uma rotação de cento e oitenta graus ao barco. As suas mãos moviam-se com firmeza no leme e no regulador da velocidade. Aproveitando a corrente, introduziu o Verónica no espaço entre o navio e o cais, pelo que, quando finalmente atirou a amarra a Moss, o barco tinha a proa virada para o rio.

- Que maneira de acostar, mamã! - exclamou Ronnie. - O papá devia ter visto.

Sarah atirou o laço da amarra à abita do cais e fixou a outra extremidade a bordo. Em seguida, saltou para terra, desprendeu a que Moss utilizara e levou-a para o Verónica. Ele observava-a com desconfiança, enquanto Sarah ia buscar outra amarra, que utilizou para fixar à ré.

Depois, transferiu todas as defensas para o lado do cais. Finalmente, pegou em duas âncoras, que suspendeu de lados opostos do costado.

- Para a maré - explicou.

- Terminou?

Fechou a comporta e dirigiu mais uma olhadela ao rio. Atara cada amarra de modo a poder soltar todas de bordo do barco. Mesmo nas barbas dele.

- Vou precisar de dar uma vista de olhos à hora da maré

vazia.

- Vamos para cima. Estou enregelado.

Na realidade, fazia frio. Estivera tão atarefada que não se dera conta e esquecera mesmo as dores. Até agora, quando ambos lhe penetraram nos ossos. Ainda tremia, quando subiam no elevador para a coberta da suíte do proprietário.

- Gozou muito, ontem à noite?

- Estou cheia de dores, se é a isso que se refere. Cumpriu a sua missão.

Moss pareceu surpreendido por ela lhe ter respondido e limitou-se a informar:

- Mister Jack quer que conheça o seu amigo.

Os oficiais chineses guardavam a porta, mas o negro ignorou-os e bateu. Mr. Jack gritou para que entrasse. Ele e o general sentavam-se diante de uma garrafa de mai-tai, no meio de uma atmosfera saturada de fumo, e o visitante acendia novo cigarro no momento em que Sarah entrou.

- Ah, até que enfim, cara doutora! Notei que amarrou o barco com a proa para fora. Preparativos para uma fuga precipitada?

- Pareceu-me mais seguro assim.

- Pois, pois, - Mr. Jack voltou-se para o general. - Aqui tem o motivo por que não preciso de ser internado no hospital. Tenho cuidados médicos privativos. O que lhe parece?

O chinês tinha um rosto chupado, com olhos brilhantes e sorriso fácil, e inspeccionou Sarah da cabeça aos pés, enquanto murmurava algo no seu idioma. Mr. Jack soltou uma gargalhada e disse:

- Sim, é espampanante. A língua do meu ajudante Moss pende da boca até à braguilha.

O general perguntou a Sarah:

- A saúde do meu amigo está a melhorar?

- Devia ir para o hospital - foi a resposta sem rodeios.

- É um homem muito casmurro - volveu o outro, e desinteressou-se dela com um leve sorriso.

- Tenho conseguido algumas proezas na minha vida - admitiu Mr. Jack naquela noite, depois de Ronnie adormecer. - Mas sou um principiante em comparação com os meus amigos. Pense só nisto: um punhado de velhos guerrilheiros governou mil milhões de pessoas durante cinquenta anos.

Sarah não tinha qualquer possibilidade de saber se ele exagerava o poder do amigo, embora o facto de barcos-patrulha e soldados do ELP passarem constantemente ao lado do navio pelo mar e em terra indicar que o general estava bem relacionado em Xangai, se porventura não se achava também envolvido nos planos de Mr. Jack.

- Como se conheceram?

- Se se recorda de lho ter dito, invadi a província de Che-kiang.

- Com certeza.

Sarah tomava chá, enquanto o ancião, como sempre, preferia uísque, embora com água, por insistência dela. Na algibeira do casaco de criado de bordo que vestia, envoltas em lenços, havia duas seringas hipodérmicas, que aprendera a segurar na palma da mão como se fossem armas - uma para Mr. Jack e .1 outra para Moss. Parte do que aconteceria dependia do momento em que surgisse o nevoeiro que envolvia o rio na maioria das manhãs.

- Aterragem de emergência num arrozal.   Bombardeiro afundado. Um tipo levado dos diabos. Os restantes... safámo-nos sem problemas: o piloto, o piloto auxiliar, o artilheiro e eu. Kaspámo-nos da água e encontrámos mais de uma centena de camponeses chineses, que nos aguardavam, sorridentes. Apareceu a aldeia em peso. Foi uma festa de arromba.

«Havia dois que falavam inglês... os missionários tinham passado por lá... e informaram-nos de que se encontravam muitos «japões» entre nós e Chongqing. Por fim, apareceu o general. Um garoto, como eu então. Mas com uns olhos que trespassavam uma pessoa. E estatura. Mantinha-se empertigado, um verdadeiro lutador, como o Moss. Só que... - Mr. Jack baixou a voz - ... com mais por que lutar.

«E que, doutora, os camponeses tinham sido espezinhados durante dois mil anos. O general era comunista. Um rebelde. dispunha de uma unidade de guerrilheiros que combatera contra Kai-Chek e agora enfrentava os "japões". "Terminou a festa", disse ele.

«Os "japões" procuravam-nos e os habitantes da aldeia esconderam-nos nas suas casas e ajudaram-nos a seguir para Chongqing. Soldados e camponeses em cadeirinhas, embarcações e carroças. Uma ocasião, viajámos num autocarro que queimava carvão de lenha. Sempre com os "japões" no nosso encalço.

«Eles enlouqueceram, doutora. Esquadrinharam a província de Chekiang com cinquenta batalhões de infantaria. Chacinaram civis, destruíram aldeias inteiras, matavam os camponeses que nos ajudavam e todos os chineses que conseguiam apanhar. Provavelmente, dizimaram um quarto de milhão deles em dois meses. Duzentos e cinquenta mil pessoas.

Levou o copo aos lábios e gesticulou para que Sarah voltasse a enchê-lo.

- Dá a impressão de que os Chineses pagaram um preço terrível pelo bombardeamento a Tóquio.

- Sim, terrível é o termo apropriado - concordou. - Mas nós conseguimos o que pretendíamos e mais alguma coisa. Um verdadeiro impulso ao moral americano. Abalámos Yamamoto, ferimos-lhe o amor-próprio, levámo-lo a precipitar os acontecimentos em Midway e imobilizámos metade da força aérea que protegia o palácio do imperador.

«Obrigámo-los a abandonar a ofensiva. E quando as coisas lhes correram mal em Midway, foi o princípio do fim. O Sol Nascente deixou de nascer, depois disso. - Soltou uma gargalhada amarga. - Pelo menos, até ao final da guerra.

- Penso que tem de sentir alguma culpa, Mister Jack.

- Eu? Isso sim! Paguei. Fui punido. Os filhos da mãi apanharam-me, lembra-se? - Ergueu os dedos sem unhas.

E isto foi apenas o começo. Decerto reparou nas cicatrizes q tenho nas costas.

- Revelou-lhes o que queriam saber?

- Não interessava.

- Porquê?

- Já lho expliquei. Eles mataram toda a gente, tanto se nos tinham ajudado como não. Dizimaram todos os habitantes das aldeias.

- Porque o pouparam?

O ancião desviou os olhos da interlocutora e, após uma pausa, explicou:

- Fui salvo pelo meu velho amigo, o general. Atacou a maldita esquadra da polícia de que os «japões» se tinham apoderado.

- Ah, agora compreendo...

- O quê?

- Os Chineses costumam dizer: Se salvas a vida a um homem, és responsável por ela.

- Ah, isso... Sim, mas eu equilibrei a situação. Combati na unidade dele durante dois anos. Nunca cheguei a Chong-i]ing. Depois, apoderámo-nos de alguns aviões e passei a voar também para ele. Tornámo-nos amigos desde então.

Sarah pressentiu que ele estivera na iminência de dizer mais. Tinha a curiosa sensação de que continuara lá, depois de os Japoneses terem sido derrotados, e passara a lutar contra as forças de Chang Kai-Chek até à libertação. Isso explicaria as suas extraordinárias relações com a República Popular.

- Mamã...

Ronnie acabava de assomar à porta, meio adormecida.

- Minha querida. - Sarah abraçou-a. - Não consegues dormir?

- Tive um pesadelo.

- Estava a contar umas coisas à tua mãe, miúda. Sobre a china e a guerra. Sabe como carregávamos os aviões, doutora?

- Não.

- Servíamo-nos de elefantes.

- Não é possível, Mister Jack.

- Julga que não falo a sério? Transportávamos gasolina. Eles levantavam bidões de duzentos litros com as presas. Vi com os meus próprios olhos. Sim, elefantes.

- Quando nos vai deixar voltar para junto do meu papá, Mister Jack?

- Se todos nos portarmos bem, estaremos em casa pelo Natal.

Após o pequeno-almoço, enquanto o nevoeiro cobria o rio, Mr. Jack teve outra visita.

- Desapareçam, minhas senhoras. Subam à ponte. Quando me despachar, mando-as chamar. E nada de utilizar o estetoscópio, doutora.

Quando Moss lhe foi comunicar que elas se encontravam no lugar indicado, fora do raio de acção do estetoscópio, e todos os telefones e rádios estavam protegidos, Mr. Jack disse:

- Espera um momento.

- Sim?

- Antes de ires buscar o nosso convidado, devo dizer-te que o teu buldogue britânico tornou a meter a pata na poça.

O negro assumiu uma expressão embaraçada. «Como demónio se inteirara ele?»

- Lamento profundamente, Mister Jack. Não voltará a acontecer.

- Podes dizê-lo.

Enquanto continuava intrigado, o ancião ordenou-lhe que fosse buscar o «convidado» e aguardasse atrás da sua cadeira.

Ao contrário dos generais que chegavam de barco, Mister Yu subiu do cais. Era um indivíduo de constituição possante, como um mafioso chinês. E assumia um ar arrogante, até que Mr. Jack lhe disparou uma série de palavras contundentes no seu idioma.

De um modo geral, os Chineses exibiam expressões impenetráveis, mas o rosto daquele era revelador. Passou da arrogância à irritação e depois apreensão em trinta segundos.

Em seguida, Mr. Jack dirigiu-se a Moss, ignorando o mafioso na sua frente.

- Acabo de explicar a Mister Yu... que exerce um comércio movimentado nas docas... que fui informado de que estava a invadir o nosso território. Começou a protestar com veemência, até que lhe expliquei quem são os nossos amigos. Agora, decidiu reconsiderar.

O negro compreendeu a sugestão para contribuir com uma olhadela fulminante ao jovem chinês.

- Vou explicar-lhe como os nossos amigos ficarão desapontados se não tomar providências imediatas para reparar o mal produzido.

Quando Mr. Jack terminou de o increpar, Mr. Yu retirou-se de costas para a porta, ao mesmo tempo que se inclinava como se tentasse esquivar-se a balas.

- Posso fazer uma pergunta? - aventurou Moss.

- É a perguntar que se aprende. De que se trata?

- Que fez o tipo?

- O filho da mãe deu uma sampana ao marido da doutora para nos procurar.

- Como raio conseguiu o marido chegar aqui?

- Recorreu a um insignificante membro da Tríade de

Hong Kong.

- E ordenou a Mister Yu que se ocupasse dele?

- Não, limitei-me a avisá-lo de que não se devia intrometer no assunto. Fica tudo a cargo de velhos amigos.

O negro reflectiu que aquilo não lhe convinha. «Com tantos amigos, para que necessitava dele Mister Jack?»

- Porque   não   o   deixa encontrar-nos?   Liquidávamo-lo, quando nos batesse à porta.

A paciência do ancião começava a esgotar-se.

- Olha para a janela. O que vês? - Fez uma pausa, enquanto o outro obedecia. - O que menos me convém neste inundo é que esse filho da mãe atraia as atenções para o meu navio.

 

Stone abandonou a habitação do velho vendedor ambulante pouco antes da alvorada e incorporou-se na vanguarda dos homens e mulheres que percorriam a Najing Road para praticar tai chi junto ao rio. Os altifalantes do parque ainda não vomitavam música, mas os madrugadores começavam a juntar-se, acompanhados de numerosos turistas ocidentais devidamente equipados para praticar jogging, como ele notara na véspera, e somente os orientais se desviavam dos caminhos para falar com as árvores. Stone escolheu a sua por constituir um posto de observação satisfatório dos degraus da margem, pousou a fronte no tronco e conservou os olhos bem abertos, para a possibilidade de uma emboscada.

Se não conseguisse encontrar o navio nesse dia, ver-se-ia obrigado a admitir que raciocinara mal, Kerry se equivocara e o Dálias Belle/Amy Bodman se achava noutra parte qualquer do mundo. Uma derradeira tentativa. Desde que quem informara o britânico na véspera não tivesse preparado uma armadilha no local onde ele embarcara na sampana de transporte de carvão.

Ficou meio surpreendido quando a viu salientar-se da escuridão e aliviado no momento em que os filhos do patrão da embarcação surgiram junto da proa e esquadrinharam a margem com expressões de expectativa. Ele estivera vigilante durante quinze minutos. A situação não parecia envolver qualquer perigo imediato. Com uma sensação de ardor a percorrer-lhe a coluna vertebral, avançou apressadamente através da multidão e desceu os degraus.

O filho mais velho exibiu um sorriso de boas vindas e ajudou-o a entrar a bordo, coadjuvado pelo irmão mais jovem. Na casa do leme, a irmã aguardava timidamente, com uma caneca de chá, enquanto a mãe afastava a cortina para sorrir e expor a ausência de vários dentes e o patrão da sampana inclinava a cabeça em saudação e começava a afastar a embarcação do cais. Stone apontou para montante do rio e ele acelerou o motor diesel.

Mr. Wang observava da sombra, isolado como um corvo, de fato preto e boné de motorista. No entanto, William Sit saudou Stone efusivamente.

- Temos um tempo excelente para procurar o local ideal para a marina de iates. - Como sempre, ansiava por aperfeiçoar o seu inglês. - Agradam-lhe estas condições?

Com efeito, as condições meteorológicas proporcionavam finalmente uma trégua. Na véspera e no dia anterior, denso nevoeiro envolvera o porto até às dez horas. Agora, o vento rodara para nordeste e a visibilidade era a mais límpida que Stone vira até então na cidade, o que lhe renovava as esperanças depois de uma noite terrível.

Mr. Wang observava-o pensativamente, mas desviou os olhos quando ele o encarou.

Entretanto, desfilavam os cais abaixo dos terminais de passageiros, a doca seca dos estaleiros de Xangai - que continha o navio de contentores que Stone confundira com o transporte de gás líquido -, e a sampana cruzou o rio em direcção ao Estaleiro Oriental de Xangai.

- Peça ao patrão que reduza a velocidade para quatro nós. Os chineses trocaram olhares interrogativos. O americano

decerto sabia que um porto tão movimentado não dispunha de espaço para alugar a desportistas náuticos, a menos, claro, que os seus amigos estivessem extraordinariamente bem relacionados.

Havia navios em movimento, outros acostados e outros ainda fundeados a alguma distância de terra. Ele inspeccionava todos como o binóculo, independentemente da sua cor. Entretanto, houvera tempo mais do que suficiente para camuflar o casco com uma capa de tinta preta. Mas nenhum era o Dálias Belle.

A fábrica de produtos químicos, junto da qual havia numerosos petroleiros, recebeu o mesmo exame minucioso, com idêntico resultado.

A refinaria situava-se a jusante, num enorme conjunto de oleodutos e cisternas. Todas as embarcações aí acostadas eram petroleiros. O local oferecia amplo espaço e camuflagem natural para um transporte de gás. No entanto, Stone já o esquadrinhara por duas vezes.

Não obstante, tornou a atraí-lo, por se tratar de um local tão lógico. A central eléctrica na baía de Hangchou exercera um atractivo similar e ele voltara lá - para nada - no táxi do extremamente relutante Mr. Wang.

Estudou cada um dos navios com o binóculo. Segundo informação do patrão da sampana, os navios mais pequenos de gasolina, diesel e petróleo que transportavam o produto da refinaria seguiriam para o rio Yangtze a fim de abastecerem as diversas unidades ali existentes. Recordou-se de que, observado de um atol do Pacífico, o Dálias Belle apresentava uma envergadura impressionante. Em contrapartida, no porto de Xangai, pouco se distinguiria das centenas de outros.

Quando chegaram a uma área pantanosa da margem, ordenou ao patrão que seguisse para a outra. Interessava-lhe lançar mais uma olhadela a um cais que já inspeccionara. No entanto, a meio do rio, o patrão grunhiu uma versão rouca do grito que a esposa soltara na véspera e mudou de rumo. Stone supôs que receava passar nas proximidades do local de execuções dissimulado algures após a via-férrea.

- Diga-lhe que se aproxime mais, William.

No entanto, o patrão apontou e Stone viu o que lhe escapara quando observava outra área com o binóculo. Barcos-patrulha cruzavam uma espécie de linha de piquete. Deslocando-se em sentidos opostos com lentidão, seguiam paralelamente defronte do enorme alpendre, davam meia volta e retrocediam, numa manobra óbvia de guarda.

- Que se mantenha no meio.

Tornou a pegar no potente binóculo e apontou-o a terra. O paquete tinha companhia: um navio no espaço a seu lado. O novo candidato a converter-se em sucata de metal possuía uma estrutura de bambu em torno do casco. Stone apenas podia descortinar a ré e a parte de trás da casa da ponte. Curiosamente, os homens que se encontravam no andaime pareciam estar a pintar o costado de preto.

Os seus dedos crisparam-se em torno do binóculo.

- Iate! - gritou o patrão da sampana.

- Ele diz que está a ver um iate - traduziu William Sit.

O Verónica encontrava-se na sombra, entre o navio que estava a ser pintado e o cais. Stone tentou focar melhor o binóculo, mas só gradualmente compreendeu que primeiro tinha de secar os olhos.

As velas estavam enroladas e cobertas e o barco tinha sido amarrado com eficiência. Enquanto o examinava, em busca de indícios de Sarah e Ronnie, verificou que quem efectuara o trabalho deixara tudo preparado para uma partida instantânea. Sarah. Só podia ter sido ela.

Subitamente excitado, varreu o cais à sua procura e depois o navio cor de areia que estavam a pintar de preto. Embora não conseguisse ver a coberta principal para além da amurada, podia divisar partes da ponte e uma espécie de varanda na retaguarda na coberta abaixo da ponte.

- Diga ao patrão que aguente a sampana aqui mesmo. O homem replicou, através de William, que despertaria a atenção dos barcos-patrulha, se permanecesse imóvel no canal.

- Recorde-lhe que tenho os documentos em ordem - disse Stone, enquanto iniciava uma inspecção à estrutura do navio.

- Ele refere que não servem para os barcos-patrulha. Acho que deve fazer caso do que ele diz. E Mister Wang é da mesma opinião. Salvo o devido respeito, achamos que devemos sair daqui.

- Está bem, mas devagar - assentiu Stone, sem desviar os olhos do binóculo.

O navio encontrava-se a menos de um quarto de milha, e poderia alcançá-lo a nado.

O patrão acelerou o motor e a sampana recomeçou a descer o rio. Stone ficou a olhar na popa. Tão perto e... Em escassos segundos, a parede do alpendre bloqueou a possibilidade de ver o Dálias Belle. Transcorridos mais alguns momentos, o próprio alpendre começou a distanciar-se e a diminuir de tamanho aparente, até se confundir com a margem e acabar por não se distinguir.

- Voltaremos dentro de uma hora - traduziu William Sit. O patrão confirmou com uma inclinação de cabeça. Era

óbvio que não se poderia construir qualquer marina para iates nas proximidades do estaleiro, mas tudo indicava que o americano estava profundamente interessado em algo que havia aí. Este último desdobrou a carta e tornou a estudar a área. O estaleiro comunicava com o interior do continente por meio do caminho-de-ferro. Um pouco mais para o interior, situava-se o terreno de execuções, que, por razões claras, não figurava na carta. Perguntou a Wang se havia alguma estrada através da área pantanosa que se seguia e obteve resposta afirmativa.

- Mas de passagem proibida - advertiu.

A sampana continuou a descer o rio durante várias milhas, cada uma das quais parecia longa como mil a Stone. A esposa do patrão distribuiu chá, mas o dele arrefeceu-lhe nas mãos. Por fim, o homem concordou em efectuar nova tentativa. No entanto, a maré principiara a vazar, pelo que havia uma forte corrente contrária e a inevitável redução de velocidade.

Por último, o gigantesco alpendre tornou-se visível. Os barcos-patrulha continuavam a vigiar o rio.

Stone ergueu o binóculo. Um canto da casa do Dálias Belle surgiu no seu campo de visão e ele focou o instrumento nas cobertas superiores. As alas da ponte continuavam desertas, assim com a varanda abaixo daquela.

Dirigiu uma breve olhadela ao Swan, claramente desocupado, e reatou a inspecção à casa do convés. Havia luz em várias escotilhas, mas nem vestígios de Sarah ou Ronnie.

Dirigiu um olhar implorativo ao patrão. «Conseguiria convencê-lo a parar?» O homem volveu os olhos para os barcos-patrulha e abanou a cabeça. Ainda não. A sampana continuou a subir o rio e o enorme paquete começou a reduzir a visibilidade do transporte de gás.

Stone notou que o transatlântico se achava muito acima da linha de flutuação, liberto de combustível, água, mantimentos . equipamento. E o Dálias Belle também lhe parecera um pouco leve, como se parte do gás natural liquefeito tivesse sido descarregada.

- William? Pergunte ao patrão se sabe por que razão o transporte de gás se encontra no cais de desmantelamento.

O encolher de ombros do interpelado não carecia de tradução.

- Pergunte-lhe se alguma vez tinha visto transportes de gás ali.

William fez a pergunta, e a resposta foi simultaneamente seca e ríspida:

- Ele diz que tem família, com muitas bocas para alimentar, transporta carvão e não se mete nos assuntos alheios.

- Diga-lhe que me leve para terra.

- Aqui?

- Junto do cais de ferryboats... Não, antes. Naquele velho pontão.

William transmitiu a ordem e a sampana deslizou em direcção a um pontão aparentemente abandonado, quando fora inaugurado outro, mais moderno, duzentos metros a jusante. Os filhos do patrão precipitaram-se para a proa e esquadrinharam a área, após o que o homem se dirigiu a William Sit.

- Ele diz que se prepare para saltar. E que tenha o maior cuidado porque o pontão está muito velho e enferrujado.

- Que me venha buscar dentro de uma hora. Se eu não estiver à espera, que volte a intervalos de sessenta minutos.

- Quer que o acompanhe?

Stone hesitou. Os barcos-patrulha ainda se achavam presentes, mas não pareciam interessados na sampana, e já começavam a retirar-se em direcção ao centro da cidade.

- É melhor. E diga a Mister Wang que também vamos precisar dele.

- Posso perguntar se julga ter encontrado um local apropriado para a marina de iates?

No entanto, ele ignorou a pergunta e, enquanto pegava na mochila, insistiu:

- Vá lá chamá-lo.

Quando se juntaram os três na popa, o patrão acercou a sampana do pontão e eles saltaram, após o que, um a um, transpuseram a ponte pouco segura que estabelecia ligação com terra firme.

Era cerca do meio-dia e o sol de Inverno estava no seu auge enquanto soprava um vento quase glacial. Ao longe, salientava-se o gigantesco alpendre.

William Sit dirigiu uma mirada ansiosa à solidão em redor e aventurou uma rara opinião.

- Não é forçosamente provável que as autoridades acolham com entusiasmo a ideia de construir uma marina aqui porque é muito perto do Projecto do Tribunal Supremo Popular de Xangai.

- Deixarei essa preocupação para as altas patentes - replicou Stone distraidamente, enquanto esquadrinhava o terreno. - Diga a Mister Wang que vamos dar uma olhadela em volta.

Avançou através dos arbustos sem olhar para trás e não tardou a ouvir, com alívio, os passos do outro no seu encalço.

Caminhou durante cerca de um quilómetro. O caminho estendia-se no topo da margem, mais elevada que o terreno interior, devido à acumulação do lodo dragado do rio. Ocasionalmente, fragmentos mais altos permitiam avistar a via-férrea. De um deles, Stone avistou, através do binóculo, um muro de tijolo que parecia encimado por arame farpado. Prolongava-se cerca de dois quilómetros para o interior e oitocentos metros para além dos carris.

Havia um desvio da linha em que se encontrava um comboio de mercadorias imobilizado junto de um enorme monte de sucata de metal. Um guincho procedia à sua transferência para os vagões.

Ele contemplou a cena por uns momentos. Se não conseguissem sair daqui no Verónica, o comboio oferecia a opção de fugirem para Xangai. Uma derradeira hipótese, mas melhor que nenhuma.

O vento transportava o ruído de maquinaria pesada e brocas e martelos pneumáticos, assim como de guindastes. Uma corrente constante de sucata proveniente do alpendre aumentava as dimensões do monte.

- Quero espreitar para o interior daquele alpendre, William. Ver que espécie de vizinhos temos.

- Vizinhos?

- Precisamos de ter as cartas de apresentação preparadas. Mr. Wang disse algo, e William, que já se achava ansioso, mostrou-se aterrorizado.

- Mister Wang recorda-me que os barcos-patrulha se encontravam diante deste estaleiro... a patrulhar. Pergunta respeitosamente se uma carta de apresentação apropriada aos gerentes do estaleiro não constituiria uma maneira mais sensata de efectuar a visita.

Stone compreendeu que aquele grupo chegara ao fim da sua utilidade. Tanto William como o motorista da Tríade não deixavam transparecer a mais remota indicação de que podiam ser persuadidos ou obrigados, diante de uma pistola, a penetrar no estaleiro.

- Muito bem. Então, vai fazer o seguinte, William. Passam poucos minutos do meio-dia. Volte à sampana e diga ao patrão que venha ao pontão a intervalos de uma hora, até eu aparecer. Não deve atracar, se eu não estiver. Entendido?

- Estou preocupado consigo, senhor.

- Não corro perigo. Até dentro de uma hora. Ou duas. ou três.

- Está certo, senhor.

- Informe Mister Wang.

Stone deu meia volta, ignorando os protestos deste último, e encaminhou-se apressadamente para o alpendre, que se salientava como um gigantesco hangar para jumbos. Notou que havia várias portas num dos lados.

Sentiu-se, súbita e profundamente, consciente dos anos que tinham passado desde que a primeira esposa fora morta. Se conseguia evocar alguma das características do homem que então era, salientava-se a compulsão para agir ponderar pouco e avançar sem hesitações. Escolheu uma porta ao acaso. Era meio-dia, não estava trancada.

Desabotoou a parte superior do impermeável para expor a camisa branca e a gravata, pegou na mochila pela correia de suspensão e apurou a vista em busca de um capacete de trabalho. A esse respeito, escolheu bem a porta, pois dava para um cabide com vários pendurados e extintores de incêndio ao lado. Pegou num e viu que lhe servia perfeitamente. Depois, dirigiu-se para a plataforma, convencido de que, com tantos engenheiros ocidentais que trabalhavam em Xangai, um americano barbudo não despertaria a atenção.

Entrara aproximadamente a meio da enorme estrutura e descobriu-se mais ou menos no centro do casco do paquete que estava a ser desmantelado. A espaços de uns trinta metros, erguiam-se elevadores de cabinas de bambu que conduziam à coberta principal. Ele encaminhou-se na direcção da proa, disposto a contorná-la para aceder ao transporte de gás. As poucas pessoas com que se cruzava eram operários que não lhe prestavam atenção, à parte uma olhadela casual. A julgar pelo nível do ruído proveniente de cima, a maioria do pessoal encontrava-se na superstrutura. Resolveu estugar o passo - um chefe na execução de uma missão.

A única coisa que se erguia entre ele e Sarah e Ronnie era o transatlântico. Não descortinava outros obstáculos - apenas a oportunidade. Contornaria a proa, seguiria em frente para além da do transporte de gás e procuraria uma prancha de acesso. Por uns inebriantes momentos, pareceu-lhe tudo muito simples. Mas, à medida que se acercava da proa, avistou um numeroso grupo de operários em redor da base de um dos guindastes. O capataz apercebeu-se da sua presença; berrou para o seu walkie-talkie e avançou para o saudar.

Stone voltou-se repentinamente para subir no elevador de trabalho mais próximo, ao mesmo tempo que agitava o polegar para cima. O maquinista accionou o guindaste e a cabina elevou-se até à coberta principal, de que só se viam as superfícies de aço e estava pejada de homens, que estendiam cabo de um rolo enorme.

Ele afastou-se com naturalidade e o olhar já fixo numa escada do lado da superstrutura, para onde avançou rapidamente. Subiu, transpondo dois degraus a cada passada, vislumbrou uma entrada, certificou-se de que não o seguiam e transpô-la. Descortinou um espaço cavernoso mal iluminado. De súbito, cambaleou para diante e caiu na escuridão.

 

Ecoou-lhe um grito na cabeça, o berro propriamente dito ibafado pelo ruído ensurdecedor dos trabalhos e máquinas que desmantelavam o navio. Em baixo, havia as trevas. Em cima, Uma constelação de luzes, ténues como estrelas num céu parcialmente nublado, movia-se majestosamente à medida que se deslocava diante dos seus olhos em impulsos de câmara lenta.

Parecia que dispunha de todo o tempo do mundo para se compenetrar de que caía. No entanto, o pensamento isolado, «graças a Deus pelo capacete de aço», extinguiu-se subitamente com uma sensação de dor na ilharga e outra na axila. O braço pareceu arrancado do tronco.

Recomeçou a cair, deslizando de um cabo estendido horizontalmente entre anteparos fora de uso. Agarrou-se-lhe com a uma mão, raspando a palma nos duros fios de aço que o compunham, e tentou ver onde se encontrava. As luzes de trabalho achavam-se uns quinze ou vinte metros acima da sua cabeça. O espaço alongava-se até à escuridão. Tivera muita sorte. Embaixo, viu a mochila pousada numa coberta, sem que se recordasse de a ter largado.

Passou o braço dorido por cima do cabo, segurou-o com ambas as mãos e deslizou para a coberta onde se conservou sentado um momento, olhando em volta, enquanto as palpitações do coração se atenuavam e o cérebro parava de rodopiar.

Haviam estripado todo o interior da superstrutura do paquete. Dos diferentes níveis das cabinas e outros compartimentos restavam somente as paredes, repletas de aberturas circulares correspondentes a escotilhas ou portas. Parecia a projecção de um planetário num firmamento artificialmente uniforme.

Cruzou o espaço e espreitou por uma das aberturas, deparando-se-lhe o Dálias Belle, cuja coberta principal era mais alta que a do paquete. Subiu uma escada, até que olhou para baixo e viu vários hectares de tubagem, numerosa aparelhagem de gás e material para combater incêndios. À ré, erguia-se a casa, da qual ele quase conseguia detectar emanações de Sarah.

Os operários tinham montado passadiços entre os dois navios nas áreas da proa, do meio e da ré, que percorriam com ferramentas e material. Na parte da frente, desenrolavam grandes extensões de lona e criavam uma espécie de tenda sobre a coberta. Stone verificou, então, que os postos de combate a incêndios do transporte de gás se achavam devidamente guarnecidos. Concluiu que a lona era um retardador de eventuais incêndios, para o caso de alguma faúlha dos maçaricos oxiace-tilénicos chegar até ali.

Loucos. Brincavam literalmente com o fogo, embora a carga pressurizada, comprimida em cisternas especiais, fosse menos vulnerável a uma explosão acidental do que o petróleo, num petroleiro vulgar. Teoricamente, podiam-se tostar castanhas na coberta principal. Teoricamente. Quanto mais depressa ele conseguisse retirar a família daquela bomba flutuante, melhor.

A ré, grupos de operários reuniam-se na coberta, atrás da casa do transporte de gás. O passadiço da parte central do navio parecia o menos activo, e Stone escolheu esse para atravessar, até que considerou que teria de percorrer cerca de cem metros para retroceder até à casa, bem visível da ponte e das largas janelas na coberta por baixo.

Era preferível cobrir essa distância no interior da estrutura do paquete. Assim, enveredou por entre montes de sucata. Cada quinze ou vinte metros, detinha-se para espreitar a uma janela a fim de se orientar e observar a casa do Dálias Belle.

Uma vez no final da gigantesca superstrutura, olhou para trás. Na verdade, os operários haviam executado um trabalho de desmantelamento muito completo.

Mais ou menos defronte da casa do transporte de gás, a

menos de trinta metros do passadiço da coberta da ré, transpôs uma porta aberta. Ao mesmo tempo, observou que os capatazes usavam os mesmos casacos de xadrez dos operários e estavam munidos de walkie-talkies.

Extraiu o seu rádio de VHF da mochila e cruzou a coberta de aparelho em punho, uma vez mais consciente de que a presença de um ocidental constituía um facto, se não banal, pelo menos natural.

Avançou apressadamente através de uma vaga de operários aos gritos e maquinaria ruidosa em direcção ao passadiço, onde arrastavam mangueiras de ar comprimido de cor rosada em direcção à coberta do Dálias Belle. De súbito, deu meia volta. Poderia iludir os chineses, mas não o nutrido americano que dirigia um grupo de homens na extremidade do passadiço.

- Tu, tu e tu! - proferiu Stone, gesticulando enfaticamente para três orientais. - Sigam-me! Peguem naquilo! - Apontou com o rádio, e dois deles ergueram uma barrica cheia de rebites. - Levem-no para acolá! - E apontou para determinado ponto da coberta do paquete.

Enquanto eles obedeciam, aproximou o rádio dos lábios para camuflagem e ergueu os olhos para a casa do transporte de gás, quase tão elevada como a superstrutura do transatlântico. Percorreu todas as janelas, escotilhas e a coberta. De súbito, avistou-a.

Sarah acabava de passar diante de uma das janelas, cerca de quinze metros acima da coberta principal. Ele pestanejou, receoso de ter sido vítima de uma ilusão de óptica. A janela situava-se do lado de estibordo da retaguarda da casa, um nível abaixo da coberta da ponte.

Aguardou com ansiedade e não tardou a avistá-la de novo. Agora, olhava para baixo da janela contígua.

Quase inconscientemente, Stone acenou, sem que obtivesse qualquer reacção, naturalmente, o que o levou a emitir um suspiro de desalento. Os operários chineses mais próximos entreolharam-se com perplexidade.

Subitamente, consciente do perigo que corria, olhou em volta para verificar se alguém se apercebera do aceno, mas todos se encontravam a trabalhar, e os mais próximos depressa se desinteressaram dele.

Sarah apareceu mais uma vez, com uma expressão rígida. Ele experimentou uma sensação de revolta, pois nunca a vira tão acabrunhada. De súbito, os seus olhares cruzaram-se.

O dela arregalou-se e os dentes brilhavam num sorriso de surpresa, que encobriu no segundo imediato com um gesto de advertência ao levar o indicador aos lábios. Stone ergueu o rádio que tinha na mão e cinco dedos da outra. Canal cinco. Sarah inclinou levemente a cabeça, ainda com o indicador pousado nos lábios, e voltou-se subitamente para dentro.

Pouco depois, era substituída atrás da janela por um negro de ombros largos, o qual olhou para baixo. Stone agachou-se e dirigiu algumas instruções banais aos operários, após o que desapareceu nas entranhas da superstrutura.

Emergiu cautelosamente a meio da coberta, do lado de bombordo, e utilizou um dos elevadores para descer ao cais, após o que abandonou o alpendre gigantesco pela primeira porta que se lhe deparou.

Encontrava-se a cerca de vinte metros do terreno coberto de vegetação rasteira e correu ao longo de uma centena antes de se atrever a olhar para trás. Agora, o alpendre era quase invisível por entre as ramagens de alguns arbustos mais elevados. Apurou os ouvidos, não detectou nada além do ruído dos trabalhos e reatou a marcha.

Prosseguiu a correria até que alcançou a clareira junto do pontão abandonado. Consultou o relógio, que indicava 13.30, retrocedeu para os arbustos, sintonizou o rádio para o canal cinco e ligou-o e desligou-o três vezes consecutivas, mas não obteve qualquer resposta.

Às duas menos cinco, aproximou-se do pontão e esquadrinhou o tráfego do rio com a vista, em busca da sampana de transporte de carvão. Voltou a ver as horas às duas, cinco minutos mais tarde e mais uma vez às duas e dez. Aos trinta minutos, começou a admitir a possibilidade de não o irem bus car. Às três, começou a encaminhar-se para o novo pontão do ferryboat a fim de utilizar um autocarro em direcção ao Bund.

Mas descobriu que não conseguiria abandonar a área. Sanili encontrava-se demasiado perto. Voltou a embrenhar-se nos arbustos para utilizar o rádio mais uma vez. Ela inclinara a cabeça quando ele a elucidara por gestos, o que significava que conseguira conservar a posse do seu rádio, assim como do SPG de Ronnie. Efectuou nova tentativa, com idêntico resultado. Aguardaria. Anoiteceria dentro de menos de duas horas, e nessa altura regressaria ao estaladeiro.

De entre os apitos e buzinas em actividade constante no rio, um soou mais próximo e insistente, e ele espreitou por entre os arbustos. A sampana regressara e os filhos do patrão mantinham-na acostada ao pontão abandonado. William e a rapariga fixavam os olhos na multidão de trabalhadores que aguardavam para embarcar no ferryboat. O patrão permanecia à entrada da casa do leme, com uma expressão grave.

- Desculpe o atraso - disse William. - Houve várias complicações.

- Onde está o Wang?

- Desapareceu.

- O que aconteceu?

- O seu contacto de Hong Kong foi detido pela Polícia Armada do Povo.

- O Ronald? Porquê?

- Tráfico de relíquias culturais.

- Contrabando?

- Trata-se daquilo a que chamam um delito capital. Sem Ronald nem Wang, a quem podia ele recorrer?

- Você está envolvido?

- Bem, não sei. - O chinês meneava a cabeça com uma expressão de amargura.

- Pergunte ao patrão se está.

Em seguida, traduziu a resposta do homem:

- Os membros da Tríade nunca falam.

- Pode contactar com os amigos do Ronald?

- Desapareceram todos.

Uma movimentação a montante do rio despertou a atenção de Stone, que pegou no binóculo e o apontou nessa direcção.

- Uma patrulha da marinha. Diga ao patrão que se raspe para fora daqui. Você siga no ferry.

- E o senhor?

- Vá, não perca tempo!

O patrão já conduzia a sampana para o largo e Stone correu na direcção dos arbustos. Quando olhou para trás, William Sit corria para o cais de embarque do ferryboat e a sampana distanciava-se, rumo ao canal, com o convés deserto e a casa do leme fechada.

Stone continuou até à primeira elevação no terreno, ergueu a cabeça cautelosamente e tornou a olhar para trás. Não conseguiu descortinar William entre a multidão que aguardava para embarcar. Entretanto, o barco-patrulha aproximava-se da sampana, mas seguiu em frente, limitando-se a fazê-la oscilar com a ondulação produzida, enquanto se dirigia para o pontão.

Ele abaixou-se e recomeçou a correr, não sem se aperceber de que a embarcação acostava ao pontão e despejava um pelotão de soldados.

 

- Está positivamente radiante, doutora. Se não soubesse que é impossível, eu diria que fez uma conquista enquanto eu dormia.

- Vim para o levar e ao Moss ao ginásio.

- Ainda tenho dores excruciantes.

- Quero que se mantenha activo - declarou ela, com firmeza, e aguardou de braços cruzados, até que Mr. Jack telefonou ao negro.

- Posso ir? - aventurou Ronnie.

- Se Mister Jack autorizar.

- Com certeza que podes, miúda. Vais ver o velhote rebentar um vaso... Moss, a doutora quer que me exercite com os aparelhos.

O negro entrara na cabina em silêncio, e os músculos dos braços salientavam-se sob a T-shirt apertada que usava, quando os cruzou.

- Ainda é muito cedo, Mister Jack.

- Se se sente qualificado para cuidar de Mister Jack, talvez não se importe de chamar um táxi para que me leve e à minha filha ao aeroporto.

- Vamos, Moss - interveio o ancião. - Alguma coisa a excitou hoje.

Com estas palavras, transferiu os pés ossudos cautelosamente para a carpete, estendeu o braço são a Moss e levantou-se, em seguida, calçou as pantufas e apertou o cinto do roupão.

- Quando quiser, doutora.

- Passarei por lá depois de iniciar os exercícios. - Sarah notou o olhar penetrante do velho que tentava detectar a mentira. - Moss - disse - lembre-se, a regra é: o que ele poder movimentar, faça-o mover ainda mais. Esforce os músculos, sem exagerar e, sobretudo, exercite os pulmões. Muito bem, podem ir. Agarre-se bem ao braço de Moss. Abre a porta, Ronnie.

A garota, envolta como uma cria de urso numa camisola de lã que lhe chegava aos joelhos, obedeceu e conservou-se solenemente junto da porta, após o que correu para abrir a seguinte. Sarah aguardou até ouvir o ruído do elevador e levou a mochila do Snoopy para a casa de banho, onde abriu as torneiras do chuveiro e trancou a porta. Ocultara aí o rádio de VHF, enquanto se afastavam de Pulo Helena, convencida de que os raptores revistariam menos provavelmente os artigos de uma criança. Na verdade, tanto quanto sabia, Moss também nunca inspeccionara a sua sacola.

Regulou o volume do som para o mínimo antes de ligar o aparelho e sintonizou-o para o canal cinco. A luz vermelha avisadora da carga baixa das pilhas acendeu-se imediatamente, o que não a surpreendeu, pois havia mais de uma semana que não eram carregadas. Accionou o interruptor de transmissão várias vezes e aproximou o rádio do ouvido.

Nenhuma resposta.

Tornou a ligar o interruptor e escutou durante mais algum tempo.

- Doutora! Doutora!

Sobressaltou-se, enquanto a porta estremecia sob o efeito de socos.

- Doutora!

Ocultou o rádio e fechou as torneiras do chuveiro.

- Quem está aí?

- Ah Lee, doutora. Mister Jack diz que são horas do chá.

- Deixe-me vestir.

Sarah molhou o cabelo e abriu a porta, enquanto o secava com uma toalha. O rapaz aguardava com um tabuleiro, obviamente enviado por Moss para a vigiar, pois estava ocupado com Mr. Jack. As marcas dos ferimentos atenuavam-se, e ela perguntou-se se o seu medo também estaria a extinguir-se. Haveria alguma possibilidade de ele as ajudar?

- Pode conduzir-me à presença de Mister Jack?

- Quando quiser.

No elevador, Sarah tentou imaginar onde Michael se encontraria naquele momento. Era absolutamente irreal imaginá-lo num raio de uma centena de metros e aterrorizador conceber o risco envolvido. Com efeito, ele não fazia a menor ideia do poder de Mr. Jack em Xangai.

Havia rádios de VHF na ponte de comando, com as pilhas no máximo devido aos carregadores. Ela olhou dissimuladamente para Ah Lee, que fixava o olhar impassível no chão. Que coragem lhe restaria depois do selvagem espancamento que sofrera? E qual a dela, após a tortura a que fora submetida?

Tocou-lhe levemente no ombro e ele estremeceu, como se o tivesse atingido com um atiçador de lareira. Os seus olhos arregalaram-se ao vê-la levar o indicador aos lábios, ao mesmo tempo que apontava para cima, na direcção da ponte. A cabina imobilizou-se e a porta abriu-se. Sarah baixou as mãos, mas esboçou um sorriso interrogativo.

Ah Lee abanou a cabeça e, em vez de aguardar que Sarah abandonasse o elevador em primeiro lugar, como costumava fazer, precedeu-a e correu praticamente para a porta do ginásio.

Sarah foi encontrar Moss a mover pesos com as pernas, alagado em transpiração e grunhindo com o esforço despendido. Mr. Jack e Ronnie sentavam-se diante de latas de Coca-Cola, imersos num diálogo como velhos amigos num bar.

- Olá doutora! Apanhou-me em flagrante.

- Ele parou agora mesmo com os   exercícios,   mamã. é muito bom nisso. Foi pena não teres assistido.

O ancião adquirira alguma cor, e ela pegou-lhe no pulso e mediu as pulsações. Dentro da normalidade.

- Está quase fino, Mister Jack.

- Vai parar de me enxofrar com a ida para o hospital?

- Chegou a altura de nos deixar partir.

Moss parou de emitir grunhidos e Mr. Jack exibiu um sorriso glacial.

- Pelo Natal, doutora. Prometi-lhe uma celebração de arromba.

Ronnie fixou o olhar na mãe, enquanto tentava determinar a reacção.

- Mister Jack quer falar-me dos «japões»...

- Japoneses!

- Mas disse que tinhas de o autorizar.

- Autorizar? Não compreendo.

- A miúda quer saber o que aconteceu às minhas mãos.

- Isso não. Lamento, Mister Jack, mas não me parece conveniente.

- Mamã!

- Ainda és muito pequena, Ronnie.

- Paciência, miúda. A mama decidiu, e não há nada a fazer... Pára lá de chorar! És mais difícil de aturar do que o Moss maldisposto. Vamos fazer uma coisa. Conto tudo à tua mãe e depois ela elucida-te quando achar que o podes saber. Que te parece?

- Não é o que eu preferia.

- Aceita a proposta, pois é a melhor que te farão. - O rosto do ancião endureceu repentinamente. - Põe-te a andar daqui, que quero falar com a tua mãe. Leva-a lá para cima, Ah Lee. Oferece-lhe um gelado. Vá, desapareçam os dois. E tu também, Moss. Rua.

As faces tinham-se tornado rubras e Ah Lee apressou-se a sair com Ronnie, seguidos do negro, que ostentava uma expressão grave. Mr. Jack fez menção de pegar num dos aparelhos, mas Sarah opôs-se.

- Basta por hoje - declarou, intrigada com aquilo que era, mesmo no caso dele, uma mudança invulgarmente abrupta de estado de espírito.

- Cale-se, «mamã»! - O ancião sentou-se no aparelho, rodeou os comandos com as mãos e puxou-os repetidamente. - Precisa de uma manicura?

- Perdão?...

- Ouviu perfeitamente o que eu disse.

- Mas não compreendo.

- Há algo de novo. Ainda não sei ao certo de que se trata, mas não quero nenhuma espertalhice da sua parte.

- Não há nada «de novo».

- Sinto-o na atmosfera. Vejo-lho na cara.

- Não sei de...

- Não me interessa saber se tem tomates de aço, ou talvez goze com a dor. A única coisa que sei é que o Moss não lhe mete medo. Estou a pensar em mandá-lo violá-la.

- Não há nada que...

- Mas creio que nem a violação serviria de nada. Por causa dos tais tomates de aço. Felizmente, conservo um trunfo na manga.

- O que quer dizer?

- Sabia que os habitantes de Xangai fazem muitos negócios com os Árabes?

- Não - respondeu ela, cada vez mais intrigada com o rumo da conversa.

- Começaram por contrabandear afrodisíacos feitos de corno de rinoceronte. Trata-se de um negócio muito lucrativo, mas eles descobriram que os seres humanos dão mais dinheiro. É que, devido à lei que só permite ter um filho, os camponeses chineses vendem as filhas, com a esperança de lhes nascer um filho na tentativa seguinte. Todos o fazem, segundo os meus amigos me garantem, pelo que, naturalmente, as miúdas chinesas não são muito procuradas no mercado. Mas no caso de uma negra...

- O quê? - Sarah sentiu o sangue esvair-se do rosto.

- A Ronnie atingiria um preço exorbitante.

- Não! Não acredito que fale a sério.

- É ainda suficientemente jovem para ser treinada.

- Por favor, Mister Jack.

- Tente alguma artimanha especial e vendo a sua filha a um negreiro.

O coração palpitava com aceleração crescente. Irreflectidamente, introduziu a mão na algibeira para lhe cravar a seringa hipodérmica. Quase não ouvia a voz que lhe indicava que constituiria uma insensatez tentar a fuga sem contactar previamente com Michael.

A voz tremia, quando perguntou:

- A sua amizade com ela é uma falsidade?

- Eu não lhe chamaria isso, doutora. Estimo a garota como se fosse minha filha. Mas não posso ignorar as prioridades. Portanto, muito juizinho.

Stone cobriu o rosto com lodo e aguardou que anoitecesse. Em terra, ouvia os comboios muito mais perto. Na direcção do rio, membros da patrulha do ELP quebravam ramos e pisavam folhas mortas, enquanto revistavam o terreno.

O seu impermeável constituía a única defesa, pois quase se confundia com o cinzento-acastanhado do solo e o aspecto sombrio do céu. Abotoado até ao pescoço, protegera-o enquanto se refugiara na área onde a vegetação era mais densa.

Eles aproximavam-se mais depressa que a noite. Dissimulando a tonalidade alaranjada da mochila com o corpo, refugiou-se mais para o interior, sempre agachado e tentando deslocar-se silenciosamente com escasso êxito. Como a escuridão parecia provir do solo, embora pudesse enxergar os ramos ao nível dos olhos e, de vez em quando, as silhuetas dos militares chineses em contraste com a parte ocidental do firmamento, não conseguia descortinar os seus próprios pés. Tropeçando repetidamente em raízes e ramos baixos, produzia apenas um pouco menos de barulho do que eles. Se se imobilizassem todos simultaneamente, poderiam cair-lhe em cima como uma alcateia de lobos.

O pôr do Sol era assinalado por uma porção do céu ligeiramente menos escura que o resto, circundada por nuvens vindas do mar que pairavam sobre a baía de Hangchou. Um soldado ergueu uma arma a uma centena de metros, e Stone viu a compacta espingarda em silhueta. Pouco depois, começaram a acender-se lanternas.

Escutou atentamente. Os sons pareciam indicar que chegara outro pelotão. Sempre o mais agachado possível, foi-se acercando do estaleiro, com o cuidado de não expor a sua silhueta em contraste com o clarão das luzes.

Um ruído abafado à distância, que ele a princípio supôs produzido por uma máquina, tornou-se subitamente mais intenso. Ergueu os olhos e avistou uma estrela mais brilhante tornar-se cada vez mais intensa, até que se converteu num helicópetro que varria a área com um projector, agora com um som ensurdecedor.

Pôs-se a correr sem perda de um segundo.

O clarão procurava-o como um dedo acusador, e Stone lançou-se ao chão. Durante um segundo, viu o seu próprio braço brilhantemente iluminado ao lado do corpo. Em seguida, o projector continuou em frente, enquanto os soldados gritavam e um apitava com insistência.

O helicóptero distanciou-se repentinamente, para retroce-der com a mesma prontidão e cortar a atmosfera como uma foice. Uma arma pesada principiou a disparar. Registaram-se Cinos e depois vozes iradas contra o aparelho, que voltou a afastar-se.

Stone continuava a correr. Eles haviam disparado sobre os seus próprios homens, mas, quando recuperassem, voltariam a persegui-lo com ferocidade redobrada. Uma plataforma de cargas e descargas de caminho-de-ferro ergueu-se à sua frente, impedindo-lhe a passagem. Ele ouviu os soldados avançar através dos arbustos. Entretanto, o helicóptero aterrara perto de onde disparava.

Após breve hesitação, Stone trepou à plataforma. O helicóptero tornou a descolar, com o projector aceso, mas agora começou a afastar-se na direcção do rio.

Soou um apito. Soldados gritaram. Estendido de bruços, ele continuou a rastejar. Quase no topo, quando ergueu a cabeça receosamente e olhou para trás, avistou uma dezena de clarões de lanternas que esquadrinhavam a escuridão.

Os soldados do ELP avançavam para a plataforma, dispersos ao longo dos cerca de oitocentos metros de largura do terreno. Se Stone não se movesse, acabariam irremediavelmente por capturá-lo. No entanto, se se erguesse no topo para cruzar a via-férrea, não deixariam de o ver em contraste com a iluminação da plataforma.

Se cortasse à sua direita, ao longo da linha em direcção ao estaleiro, ficaria mais perto de Sarah, mas achar-se-ia mais expôsto às luzes intensas do alpendre gigantesco. E se seguisse para a esquerda, no sentido da linha para a cidade, acabaria por alcançar a estrada conducente ao ferryboat. Todavia, ao contrário de William Sit, não se poderia confundir com a multidão de chineses, sobretudo uma multidão que vira o helicóptero e ouvira as detonações.

Considerou a hipótese de retroceder, através da própria linha de perseguidores e rumando para a direita, em direcção ao rio. Seria arriscado e a única vantagem consistia no factor su-presa. Mas, e depois? Mesmo que atravessasse a linha sem ser detectado, então e durante a longa noite, o romper do dia revelá-lo-ia encurralado entre o rio e a plataforma de caminho-de-ferro, o estaleiro e o acesso ao ferryboat.

O vento frio húmido através dos arbustos transportou o ruído do pisar de ramos, Stone tremia de desconforto e um certo receio. Alguns perseguidores haviam-se separado dos restantes e o clarão das lanternas começava a surgir a pouco mais de cem metros do local onde se encontrava.

Colou o rosto ao solo inclinado. A terra principiou a tremer e cascalho miúdo atingiu-o nas faces. Registou-se um som pesado, cuja origem não tardou a materializar-se: aproximava-se uma locomotiva diesel do seu lado direito, lentamente, que iluminava intensamente a linha.

Registaram-se gritos em baixo. Tinham-no visto.

Stone avistou uma escavação na encosta e rolou para lá, enquanto os gritos e apitos se avolumavam. De súbito, quando a locomotiva chegou ao local, com uma série de vagões de mercadorias, ele transpôs a distância que o separava do topo da plataforma e atirou-se para debaixo da composição.

Apercebeu-se de que uma das extremidades da correia da mochila se soltava em virtude do puxão que lhe aplicou e esforçou-se por evitar que se imobilizasse na trajectória de uma das rodas. Na mochila encontrava-se o rádio - a sua única ligação a Sarah.

Tratou de a puxar com prontidão e, ao fazê-lo, levantou ligeiramente a cabeça. Uma massa enorme roçou-lhe o cabelo e projectou-o contra as chulipas. Conservou-se imóvel cautelosamente, até que o último vagão passou.

Verificou então que a mochila se rasgara e a pistola e o rádio tinham caído. Procurou-os freneticamente, mas só conseguiu encontrar o segundo. Em seguida, consciente de que os soldados não tinham abandonado a perseguição, afastou-se a correr através de outros ramais férreos, num dos quais avançava nova composição. Deteve-se, hesitante. «Devia expor-se ao < clarão da luz da locomotiva ou aguardar, enquanto os outros se acercavam no seu encalço? A decisão devia ser tomada sem demora.

Esperou demasiado tempo. A locomotiva passou rapidamente e ficou bloqueado. Puxava uma longa série de vagões fechados que parecia infinita, com uma cauda interminável que desaparecia na noite. Stone tornou a ouvir os apitos. Correu para a frente, junto do comboio em movimento, enquanto tentava determinar a velocidade para decidir se poderia passar entre as rodas. Avistou um vagão aberto, colocou-se ao lado, atirou a mochila para dentro e, pousando as mãos no áspero sobrado, tentou saltar para bordo.

A composição deslocava-se mais depressa do que ele podia correr. Por fim, quando começava a recear que teria de desistir, graças a um derradeiro impulso viu-se de súbito deitado de costas no solo do vagão.

O comboio seguia para Xangai e a sua velocidade aumentava gradualmente, afastando-se dos soldados. Ele espreitou para o lado oposto e verificou que imperava escuridão absoluta. Agora, encontrava-se em segurança, com os soldados, o estaleiro e Sarah cada vez mais distantes.

O comboio continuava a acelerar e Stone sentia o vento da sua passagem começar a tornar-se cortante. Para além da entrada do vagão, a escuridão era total.

Afundou o rosto na suavidade da mochila e saltou. Agora, dispunha de tempo para se arrepender, enquanto voava eternamente através do espaço. O impacte cortou-lhe o fôlego e deixou-o de braços e pernas abertos como um crucifixo. Por fim, sorgueu-se e avistou duas luzes vermelhas da retaguarda do lomboio. Em seguida, sentado numa cova perto da margem, catalogou as mazelas e tentou analisar a situação.

Podia mover os braços e as pernas. Encontrava-se na extremidade mais afastada do estaleiro. Era confortavelmente escuro. Mas, antes de o ruído do comboio se extinguir totalmente, detectou os apitos dos soldados.

Recomeçou a caminhar, não sem coxear um pouco. Conservando o clarão do estaleiro e da plataforma do caminho-de-ferro atrás de si, avançava no terreno irregular, tropeçando e caindo com frequência. A certa altura, pensou que se afastara definitivamente dos soldados, mas, quando parou para escutar, deu-se conta de que gritavam uns aos outros. E, de repente, as trevas foram cortadas pelo clarão de uma lanterna.

Caiu mais uma vez, levantou-se, recomeçou a andar e colidiu com algo duro em que o joelho embateu. Tacteou e descobriu que se tratava de uma parede. Estendeu as mãos para cima e verificou que devia ter cerca de um metro e oitenta de altura e, gradualmente, descobriu arames que cruzavam o topo.

Compreendeu que era o muro do terreno de execuções: o Projecto do Tribunal Popular de Xangai. Atrás de si, ouviu um som persistente familiar - o helicóptero estava de volta, com o projector intenso como um olho enfurecido.

Sem perder um instante, passou a mochila por cima do arame, segurando-a firmemente pela correia, e trepou para saltar para dentro.

 

Sarah conservava o braço em torno de Ronnie, que dormia, e o rádio colado ao ouvido. Baixara o volume do som até ao possível, atenta a algum sinal elucidativo, mas até agora apenas detectara «atmosféricos» e um contacto ocasional de um navio para outro.

O relógio de bordo na sala badalou a meia-noite. Soavam risadas do outro lado da porta. Os amigos de Mr. Jack haviam chegado às dez e, a avaliar pelo que acontecera em noites anteriores, não se retirariam antes das três da madrugada.

Havia um ruído constante de maquinaria fora do navio e guinchos ocasionais de aço torturado. De repente, a cama estremeceu, assim como todo o navio. O facto já se registara duas vezes naquela noite - um abalo súbito e o som abafado de algo de enormemente pesado largado na coberta.

Sarah lamentou não saber onde Moss se encontrava.

O comandante dormia profundamente na sua cabina. Procurara-a antes para que lhe desse um comprimido de Valium ou qualquer coisa do género, segundo as suas palavras, para poder recuperar o sono ausente nas últimas noites. Desta vez, ela alegara que aquele medicamento se lhe esgotara e substituíra-o por outro que o manteria adormecido até ao meio-dia.

Infelizmente, Moss não tomava qualquer tipo de drogas, nem álcool, limitando-se os seus hábitos prementes a venerar M r. Jack, vigiar o funcionamento das máquinas e visitas frequentes à sala dos computadores. Ela receava que se encontrasse lá naquele momento e rogava aos céus que não se entretivesse a escutar as transmissões da rádio.

Armada apenas com conhecimentos básicos dos sistemas de rádio - a parte electrónica era da responsabilidade do marido -, Sarah estava convencida de que o computador de bordo tinha sido alertado para o seu telefonema via satélite, revelando a posição do navio a Marcus, em Palau, por um rastreio de rádio em actividade permanente. Um monitor de sinal dessa natureza funcionaria perfeitamente no mar, mas, no rio Huangpu, no coração do porto mais movimentado do mundo, as centenas e milhares de transmissões absorveriam o sistema. O que, segundo ela esperava, significava que a comunicação passaria despercebida a Moss.

Ah Lee também estava acordado, cinco níveis abaixo, em convívio com os seus primos na sala da tripulação. Aguardavam que o contramestre saísse de serviço para poder visitar a arrecadação em busca de uma corda de nylon de vinte metros de comprimento. Após desesperado debate íntimo, Sarah abordara-o directamente. Embora Ronnie mantivesse relações cordiais com o rapaz e o ajudasse a aperfeiçoar os conhecimentos de inglês, ela não confiava que a filha conseguisse ocultar a informação de que o pai se achava nas proximidades.

Reconhecia que Mr. Jack fora astucioso ao ponto de captar as boas graças da criança.

Click-click. Click-click.

Sarah imobilizou-se e prestou atenção.

Click-click.

Pousou o dedo trémulo no botão de transmissão. On-off. On-off.

- Queridé.

Tornou a premir o botão e transferiu o rádio do ouvido para junto dos lábios, pungentemente consciente de que a pouco espessa porta, fechada apenas no trinco, constituía o único obstáculo entre ela e Mr. Jack, e os microfones de Moss estavam embutidos no tecto.

- Estou a ouvir-te - sussurrou. - Não subas ao navio. - Nós baixaremos uma corda até ao Verónica. Escolhe o momento.

Transcorreu quase   um   minuto,   até que ele respondeu:

- Meia hora após o nevoeiro da manhã. Trinta minutos. Entendeste?

- Trinta minutos depois do nevoeiro.

- Terminado.

Ele teria sacrificado um ano de vida para falar com Sarah mais um minuto. Um ano para a ouvir murmurar que o amava, Ronnie estava bem e em breve reatariam a sua vida juntos. Foi o sussurro dela que o fez encarar a realidade - um som rouco íntimo, mas impregnado do receio do perigo que os espreitava.

Stone estremeceu, em parte de emoção, mas também em virtude da humidade fria emanada do chão e do glacial muro de tijolos. O espaço que envolvia era enorme, com área suficiente para um campo de basebol e espectadores.

A luz a um dos cantos expunha os contornos daquilo que ele tomara, a princípio, por um pelotão de soldados na posição de sentido. No entanto, continuando a observar tudo de longe, chegou à conclusão de que estavam demasiado imóveis. Agora, pareciam troncos serrados de árvores, com cerca de dois metros e meio de comprimento. O resto do espaço era tão escuro como o canto em que ele se ocultara.

De repente, registou-se actividade à entrada e Stone julgou ver uma pessoa passar diante da luz. Em seguida, abriu-se um portão para um clarão em movimento. A equipa de busca. Ouviu trocas de palavras, cujo tom parecia autoritário. Os soldados exigiam que os deixassem entrar. Ele endireitou-se com alguma dificuldade, devido ao esforço a que submetera as pernas, para voltar a transpor o muro. Verificou-se nova troca de palavras, até que o guarda mandou os outros embora e fechou o portão. No entanto, um minuto mais tarde, possivelmente reconsiderando a sua atitude, o homem iniciou pesquisas por sua conta, varrendo o muro com o clarão de uma lanterna.

Stone observava o seu avanço e, quando viu a luz aproximar-se do canto em que se encontrava, descreveu um largo semicírculo e foi colocar-se quase no extremo oposto.

Passou pelo sono e acordou a tremer. Dormitou mais um pouco e despertou estremunhado para consultar o relógio. As horas sucediam-se - duas, três, quatro. Ponderou os riscos a que se devia expor e as dúvidas avolumaram-se. Dormiu das cinco até às cinco e meia e acordou sentindo-se um pouco reanimado, com o estômago ávido de algum alimento, a boca seca e ansiando por um pouco de café.

Amanhecera, por fim, o que lhe permitia ver, mais ou menos claramente, o que o rodeava. Os postes - pois era disso que se tratava e não de meros troncos de árvore - erguiam-se como as sentinelas que ele imaginara na escuridão. De olhos bem abertos, espreguiçou-se, enquanto observava o muro à sua direita e esquerda. A claridade revelava um campo de relva não cuidada e pouca cobertura. Se alguém no lado oposto se lembrasse de esquadrinhar a parte mais distante, não deixaria de o ver.

Entretanto, a claridade aumentava.

Amaldiçoou-se por esperar tanto tempo. Devia ter acordado mais cedo. Por outro lado, ainda havia algum nevoeiro rente ao chão. Seria a mesma coisa do outro lado do muro, ou porventura este bloqueava o que provinha do rio? Sarah agiria meia hora depois de ser intenso. Stone só se poderia certificar se escalasse o muro, em cuja eventualidade não deixariam de o avistar. Todavia, era preferível tentar já, antes que chegasse mais gente.

Apontou o binóculo ao canto mais afastado. Havia uma construção de madeira junto de um largo portão. Tinha uma porta e uma janela e a chaminé de um fogão que emitia uma espiral de fumo branco. O guarda desaparecera. Ele inspeccionou a área pela última vez. Deserta. Nem sequer um rosto na janela. Era a melhor oportunidade que se lhe depararia, e não perdeu um segundo em tentar aproveitá-la.

Sentiu pontadas intensas nos joelhos, que se propagaram em ambos os sentidos, ao longo dos músculos das pernas. Esforçou-se por continuar levantado, mas surgiram igualmente dores agudas nos pés, no momento em que depositou neles o peso do corpo. De repente, os joelhos cederam e o corpo tombou pesadamente, em resultado da actividade quase permanente a que o sujeitava desde a véspera. Encontrou três comprimidos analgésicos na mochila, que engoliu em seco, e começou a massajar os músculos das pernas durante alguns minutos.

 

De repente, a porta da construção de madeira abriu-se ruidosamente. O guarda irrompeu em direcção ao portão, que abriu igualmente para dar passagem a um camião branco, seguido de vários outros com cobertura de lona. O primeiro deteve-se junto dos postes de madeira e os outros estacionaram ao acaso. Acto contínuo, apearam-se soldados, que gritavam e brandiam espingardas.

Stone contou vinte prisioneiros que desciam com relutância dos camiões cobertos de lona. Algemados e com grilhetas, vestiam camisas e calças de algodão, pelo que não admirava que tiritassem.

Os soldados conduziram-nos na direcção dos postes de madeira.

Stone dominou com dificuldade uma exclamação de incredulidade, e o binóculo quase se lhe soltou da mão, ao descortinar um indivíduo que julgou reconhecer. Apesar de ter o dispendioso fato sulcado de rasgões e o rosto cheio de escoriações, não podia haver a mínima dúvida de que se tratava de Ronald.

Obrigaram-no a ajoelhar-se e retiraram-lhe as algemas para o prender a um dos postes, enquanto ele proferia algumas palavras, acompanhadas de um sorriso sardónico. Rodearam-lhe o pescoço com um arame, que depois apertaram firmemente ao poste para que não pudesse falar.

O comandante do pelotão vociferou uma ordem.

Os soldados adiantaram-se, um para cada poste, e apontaram as espingardas. O outro puxou de um apito e soprou-o, seguindo-se uma rajada. O estampido colectivo ecoou no muro em volta. A cabeça de Ronald estremeceu e o corpo entrou em convulsões como um peixe apanhado na rede.

Stone sentiu o seu tornar-se tenso, como que na expectativa do golpe de misericórdia. Viu um fotógrafo apontar a máquina a cada um dos «executados», após o que um oficial de luvas brancas retirava as algemas e o arame. Ao mesmo tempo, um bando - único termo que ele conseguia aplicar aos indivíduos - de pessoal hospitalar de bata branca saltava do camião branco, que na realidade era uma enorme e sinistra ambulância. Os seus componentes aplicaram estetoscópios aos fuzilados e depois começaram a transferi-los para o transporte.

Os próprios verdugos pareciam enojados, enquanto o grupo de carniceiros separava os sobreviventes temporários, cujos órgãos vitais, incluindo os de Ronald, seriam aproveitados para transplantes. Conservavam-se afastados, a fumar e olhar o chão fixamente.

Quando a primeira ambulância ficou cheia, partiu e cedeu o lugar a outra.

Stone correu para o muro, introduziu as biqueiras dos sapatos nos espaços entre tijolos e saltou para fora do campo de execuções.

O nevoeiro envolveu-o enquanto corria, mas, de vez em quando, como um amante inconstante, dissolvia-se inesperadamente, tornando-se uma mera cortina transparente. O alpendre gigantesco do estaleiro erguia-se como uma montanha distante ou uma miragem pouco convincente. Perdendo-se subitamente, quando voltou a tornar-se espesso como algodão, ele tentou determinar a sua posição pelo som do apito de um navio. O vento aumentou de intensidade e viu-se repentinamente só no meio de um largo círculo. Um comboio passou ruidosamente dentro desse círculo. Stone desviou-se e começou a correr na direcção em que julgava ter avistado o estaleiro onde o paquete se encontrava.

 

Às sete menos dez, quando a claridade se tornara suficientemente intensa para Sarah poder ver o tráfego no rio, o nevoeiro invadira o Huangpu e amontoava-se nas margens. A partir do momento em que envolveu inteiramente as embarcações, ela começou a contar a meia hora que Michael indicara.

Se o tempo obedecesse ao padrão habitual da manhã, talvez passassem três ou mesmo quatro horas antes que o nevoeiro levantasse. No entanto, o vento, fraco e de noroeste, começava a aumentar de intensidade, pelo que poderia dispersá-lo mais cedo.

Às sete e um quarto, ela premiu o botão de Transmitir do rádio. Não obteve resposta. Cinco minutos depois, repetiu a operação, com idêntico resultado. Decidiu então que só lhe restava a alternativa de executar o seu plano. Ronnie estava deitada e, enquanto Sarah espreitava de janela em janela, a garota acompanhava-a com a vista.

O ancião ainda não se deitara.

Em seguida debruçou-se sobre Ronnie e murmurou-lhe ao ouvido:

- O papá descobriu-nos.

O rosto da filha iluminou-se como o Sol.

- Está no?...

- Mais baixo!

- Encontra-se aqui? Mas que fará Mister Jack quando?...

- Vamos fugir com o papá no Verónica. Irei agora procurar Mister Jack. Entretanto, começa a vestir-te. A tua roupa mais quente.

Sarah certificou-se de que tinha a seringa hipodérmica na algibeira e abriu a porta da sala, que se tornara silenciosa a partir das cinco e meia. Dois mal encarados generais do Exército de Libertação Popular encontravam-se refastelados em sofás, de colarinhos desabotoados e descalços. Um deles roncava, enquanto o outro permanecia tão imóvel que parecia morto.

Mr. Jack dormia na poltrona habitual, a cabeça inclinada para o lado, lábios finos comprimidos e respiração compassada. No momento em que ela se aproximava, entreabriu os olhos.

- Queria alguma coisa, doutora?

- Vou metê-lo na cama.

- Boa ideia. - Percorreu com o olhar as garrafas vazias e cinzeiros cheios. - Safa! - Levantou-se com pouca firmeza e Sarah segurou-lhe o braço são e começou a conduzi-lo para a porta do quarto. - Vai verificar se os meus compinchas dão sinais de vida?

- São os seus sinais que me preocupam, Mister Jack. Está a tentar matar-se?

- Descanse que não puxarei o gatilho.

Ela já abrira a cama e agora fechou a porta com o pé atrás deles e fê-lo sentar-se na borda, para lhe descalçar os chinelos.

- É boa nisto, doutora. O marido dedica-se à pinga? Sarah ergueu as pernas magras do homem e enfiou-as entre os lençóis.

- O meu pai começou a beber, quando a minha mãe morreu.

- Julgava que tinha ido estudar para Inglaterra.

Fê-lo reclinar-se com suavidade, ajeitou a almofada sob a cabeça e cobriu-o, excepto o braço direito, que pousou cuidadosamente em cima do cobertor.

- Depois da guerra civil, fui a casa durante as férias. Ele sentia-se muito só. Agora, feche os olhos e durma - concluiu, esforçando-se por dissimular o tremor das mãos.

- Não disse que ele tinha uma amante?

- Ao princípio, não. - Sarah sentou-se na borda da cama e deu-lhe uma leve palmada na mão. - Procure dormir e quero que me prometa que parará com essas libações.

- A vida é curta, doutora.

- Assim, ainda a encurta mais.

Ajustou o lençol por cima do cobertor e debaixo do queixo dele, que a observava com curiosidade, apesar de o sono começar a invadi-lo. Ao mesmo tempo, dissimuladamente, ela arregaçava-lhe a manga do pijama até ao cotovelo.

- Acordo-o por volta do meio-dia. Veja se consegue um melhor horário de sono. Mandarei embora os seus amigos, com a recomendação de que se mantenham ausentes durante duas ou três noites. Parece-lhe bem?

Entretanto, sentia o latejar da veia na curva interior do cotovelo.

- Devo obedecer a um novo horário - murmurou ele. - Não tenho nada a dizer a esse respeito.

Com uma das mãos pousada no antebraço, ela extraiu com a outra a seringa hipodérmica da algibeira do casaco.

- Estou derreado - sussurrou Mister Jack. - Boa noite, doutora.

E fechou finalmente os olhos. Sarah permaneceu imóvel com a seringa numa das mãos e a outra pousada no braço dele. Quase conseguia sentir a inconsciência apoderar-se-lhe do corpo.

- Mister Jack?

O peito dele ergueu-se com um suspiro, os traços rudes do rosto atenuaram-se e imergiu em sono profundo. Ela hesitou. Volveu o olhar para Ronnie, que observava da porta da casa de banho e sussurrou:

- Não hesites, mamã!

Se Sarah cravasse a agulha e não acertasse na veia, ele acordaria e chamaria Moss imediatamente. Assim era melhor. Ficaria com uma segunda oportunidade para este último.

Deixou transcorrer mais um momento, após o que se levantou cautelosamente da cama, com a seringa na mão, e apontou para o armário onde se encontrava a bagagem já preparada. Ronnie cruzou a carpete silenciosamente, colocou a mochila às costas e entregou a sacola à mãe. Esta pegou no rádio e dirigiu uma derradeira olhadela a Mister Jack.

Em seguida, entreabriu a porta e espreitou para a sala.

Os generais chineses mantinham exactamente a mesma posição, ébrios como cachos e imersos em sono pesado. Mãe e filha passaram a seu lado em bicos dos pés, a caminho da porta de acesso à coberta da ré. O nevoeiro tornara-se tão denso que não era possível ver nada no rio. As próprias colunas e tecto do alpendre gigantesco achavam-se invisíveis. Poder-se-ia imaginar que a suíte do proprietário do Dálias Belle coroava uma montanha numa nuvem.

Mas, no momento em que ela abriu a porta exterior, ergueu-se do rio uma cacofonia de maquinaria e apitos de embarcações. Um dos generais emitiu um grunhido e mudou de posição, enquanto o outro se soerguia num joelho, pestanejando confuso, enquanto a mão impelida por décadas de instinto, se movia em direcção a uma arma no cinturão. Sarah impeliu Ronnie através da porta, seguiu-a, fechou-a atrás de si e olhou pela janela.

Quando a mão do chinês apenas encontrou tecido dispendioso onde costumava usar a arma, ele tornou a mergulhar no sono, enquanto Sarah recuperava a respiração normal.

- O Ah Lee escondeu um rolo de corda num saco de lixo. Procura-o.

Apressaram-se a esquadrinhar a estreita varanda, mas não havia qualquer corda.

- Talvez o Moss o surpreendesse - aventou Ronnie.

- Não tem importância - mentiu Sarah, exprimentando uma ponta de desencorajamento. - Pode tê-lo deixado na coberta principal.

Caso contrário, prevenira-se com toalhas, que poderiam utilizar para deslizar ao longo da amarra do navio.

- Achas que terão feito mal ao Ah Lee?

- Não. Queres que vá eu à frente?

A garota volveu o olhar para a escada de corda, que desaparecia ao lado da casa e mergulhava no nevoeiro.

- É melhor ir eu.

- Segura-te bem.

- Por favor, mamã!

- Com ambas as mãos. Dá-me a mochila.

- Não é pesada.

Com estas palavras, passou uma perna e depois a outra por cima da amurada e começou a descer a escada. Sarah aguardou uns instantes e, engolindo em seco de medo, voltou as costas ao abismo invisível, transpôs por sua vez a amurada e iniciou a descida, os braços e pernas rígidos devido à tensão.

Enquanto passava por duas fiadas de escotilhas e outras tantas cobertas, sentia os joelhos tremer quase incontrolavel-mente e as energias esgotarem-se. Dir-se-ia que o temor lhe dissolvia os músculos e o nevoeiro penetrara em todas as dolorosas lesões que Moss lhe produzira. Mais duas cobertas e quase ficou impossibilitada de cerrar as mãos em volta dos degraus metálicos da escada.

Em dado momento, Ronnie tocou-lhe no pé.

- Pára.

- Porquê?

- Há gente na coberta.

Olhou para baixo, mas não conseguiu descortinar nada além do nevoeiro.

- Espera... - murmurou a garota,   pouco depois. - Creio que estão a retirar-se.

Sarah ouviu então falar. Em chinês. Alguns dos operários que tinham invadido o navio. Alguém se exprimiu em tom autoritário e começou a afastar-se, arrastando algo que soava como se fossem correntes de ferro. Uma rajada de vento frio e húmido fustigou-lhe o rosto e o nevoeiro abriu-se por uns segundos. Porém, antes que pudesse enxergar mais do que os contornos vagos da amurada, tornou a adensar-se, carregado do cheiro de fumo de carvão. Os numerosos apitos que soavam pareciam mais próximos devido ao nevoeiro, como se as embarcações passassem directamente junto da ré.

Ronnie voltou a tocar-lhe no pé.

- Pronto. Podemos seguir.

Sarah recomeçou a descer, enquanto contava os degraus e as escotilhas. Faltava uma coberta. Apenas mais uma. Ali, a sotavento da amurada, o nevoeiro era menos espesso e ela viu Ronnie chegar ao fim e afastar-se da escada. Em volta, havia vultos escuros e compactos - máquinas e material impossível de identificar. Depois de alcançar o último degrau, começou a procurar o rolo de corda que Ah Lee prometera deixar.

Entretanto, Ronnie fazia o mesmo e as pesquisas prolongaram-se por alguns minutos, até que soou uma voz grave. - É isto que procuram?

Moss emergiu do nevoeiro, segurando numa das mãos à sua frente o saco de lixo que continha o rolo de corda. Havia sangue na sua T-shirt branca e parecia menos irritado do que satisfeito por dispor de novo pretexto para espancar Sarah. O impacte fê-la cambalear para trás, e decerto teria caído, se não colidisse com a amurada, enquanto a sacola a protegia do contacto directo com a superfície de aço. O embate do saco de plástico com a corda dentro foi mais demolidor do que doloroso.

Refeita com prontidão, introduziu a mão na albibeira e os dedos rodearam a seringa hipodérmica. Ronnie apressou-se a interpor-se e ela tentou afastá-la.

Moss ergueu o braço para a agredir de novo. No entanto, antes que o pudesse fazer, voltou a cabeça para trás repentinamente devido a um novo som que penetrava no ruído da maquinaria e apitos das embarcações. Sarah também o ouviu - era o som mais belo imaginável: uma eructação familiar e depois o roncar pesado de um velho motor diesel que entrava em actividade a bordo do Verónica.

Moss viu a alegria iluminar o rosto de Ronnie e, com um sorriso malicioso, observou:

- O papá regressou a casa.

Sarah deu um salto para o interior do espaço abarcado pelo punho do negro e cravou a agulha no maciço bíceps.

- Feriste-me, cadela!

Moss deu um salto para trás, confundindo a agulha da seringa com uma faca, e atingiu-a no rosto, enquanto ela inoculava o resto da droga na mão. Soltou um uivo, quando viu a agulha pender da palma e arrancou-a.

- O que?...

Sarah extraiu outra da algibeira e os olhos dele arregalaram-se.

- O que foi que?...

Cambaleou para trás, enquanto erguia o saco de plástico como se fosse um escudo. Ela saltou para a frente e Moss arrancou-lhe a agulha da mão.

Ronnie precipitou-se para ele, imitou uma arremetida de kungfu e atingiu-lhe o joelho com ambos os pés, porém o gigante repeliu-a como se fosse um mosquito e ela rolou na coberta. Sarah extraiu um canivete de marinheiro de um dos compartimentos da sacola e avançou de novo para ele.

Surpreendido com a ferocidade do ataque, recuou, mas recompôs-se com prontidão e exibiu um sorriso selvagem. A droga parecia não exercer o menor efeito.

- Despeça-se da sua linda cara, doutora.

E avançou para ela, enquanto passava o saco de plástico de uma mão para a outra.

Sarah empunhou a faca junto da ilharga e compreendeu naquele momento, com uma certeza ominosa, que o mataria e passaria o resto da vida numa penitência fútil. Recordou pela enésima vez o momento em que o pai abatera os homens que haviam atacado a mãe. Reviu a espada cerimonial brilhar ao sol e reconheceu finalmente que, no calor da batalha, ele lutara com fria precisão.

Viu com exactidão os segundos imediatos: Moss fingiria que a atacava com o saco de plástico que continha o rolo de corda, ela esquivar-se-ia e ele mergulharia. Estaria preparada e cravar-lhe-ia a lâmina da faca entre as costelas.

A coberta foi sacudida por uma explosão.

Uma luz brilhante irrompeu do telhado do alpendre. Moviam-se sombras como relâmpagos negros. Da distante coberta da proa proveio um rugido como o ruir de uma represa, exclamações e gritos, seguidos das sinetas de incêndio e, um segundo depois, o apito grave.

Moss precipitou-se para a amurada e cravou o olhar na parte da frente do navio. O nevoeiro no interior do alpendre dissipara-se e irrompiam chamas. Acto contínuo, ergueu a cabeça, para fixar os olhos no topo da casa onde Mr. Jack dormia. Apressou-se a largar o saco de plástico e correu para a escada, que começou a subir em largas passadas, ao mesmo tempo que bradava:

- Mister Jack! Mister Jack!

Stone retirou a última amarra do Verónica, correu para a cabina e ligou o motor diesel. A bordo do Dálias Belle soavam os alarmes do incêndio e o apito junto da chaminé, quase tão retumbante como a explosão. Uma coluna de chamas irrompia da coberta da proa até ao telhado do alpendre do estaleiro.

O nevoeiro tornava a adensar-se. O Swan começava a afastar-se do cais.

Dentro de poucos segundos, toda a tripulação do navio acudiria ao incêndio, assim como o pessoal do rio Huangpu, enquanto o Verónica demandaria em direcção ao mar da China Oriental.

Stone conduzia o barco perto da ré do Dálias Belle, tomando a precaução de evitar que o topo do mastro embatesse no casco, ao mesmo tempo que olhava para cima, em busca de Sarah.

Sob a protecção da lona retardadora de incêndio estendida sobre a coberta da popa do navio, ele apontara a chama de um maçarico oxiacetilénico a uma válvula de gás e deixara-a nessa posição. Pouco depois, o aço da cisterna foi perfurado e registou-se a inevitável explosão. Para extinguir o incêndio e vedar o gás, a tripulação teria de trabalhar afanosamente toda a manhã.

- Michael!

O grito de Sarah atravessou a cacofonia das sinetas, apitos e exclamações constantes. Ela estendia um cabo da amurada da ré. Ronnie deslizou pela abertura na base da amurada e colocou uma toalha em redor do cabo para proteger as mãos, ao mesmo tempo que bradava intermitentemente: «Papá! Papá!» A uns dezassete metros da água, o seu rosto sorridente tornou-se visível a Stone, e passou a deslizar segura com uma das mãos, enquanto acenava com a outra.

- As duas mãos! - advertiu ele.

Entretanto, manobrava o Verónica para que permanecesse com a proa contra a corrente, entre os cascos próximos do paquete e do Dálias Belle, de modo que a coberta da frente ficasse por baixo da corda.

Ronnie deslizou suavemente para aí.

No entanto, em vez de correr para o pai, ergueu a cabeça para a amurada do navio.

- Mamã!

Stone encontrava-se a menos de quinze metros da filha e teria dado tudo para a abraçar, mas, se largasse o leme e o acelerador do motor, a corrente afastaria o Verónica da corda pendente.

- Segura-te ao púlpito da proa! - gritou-lhe.

- Mamã!

Só então se apercebeu daquilo que Ronnie já vira. Sarah mergulhara através de uma abertura na amurada, com as pernas a moverem-se freneticamente como uma tesoura para rodear a corda. A princípio, Stone supôs que ficara presa na abertura, mas no segundo imediato verificou que tentava libertar-se de um negro que a segurava pelo braço.

Retido na cabina, vários metros abaixo, achava-se impossibilitado de lhe acudir.

- Ronnie! Vem tomar conta do leme!

Mas a garota começou a trepar à corda para acudir à mãe.

- Não! - vociferou Stone. - Não faças isso! Apressou-se a bloquear a roda do leme e precipitou-se para a frente.

Sarah conseguiu desembaraçar-se do negro. Por um instante, segurou a corda com ambas as mãos, mas no momento seguinte o negro puxou-a através da abertura.

- Salta para o mastro! - bradou Stone.

O Verónica deslocou-se para diante e a extremidade do mastro colidiu com o casco do navio.

De olhos arregalados, ela largou a corda e saltou de braços estendidos, mas não conseguiu alcançar o mastro. No entanto, caiu de pé e, estendendo os braços, segurou-se-lhe então com uma das mãos e a um ovem com a outra.

Stone inverteu a marcha do barco e olhou por cima do ombro em busca de espaço para evitar os dois cascos próximos. Naquele momento, do nevoeiro emergiu um barco-patrulha do ELP.

- Papá! - gritou Ronnie.

Ele detectou uma massa em movimento proveniente de cima. O negro oscilou sobre a proa do Verónica como se tivesse asas, como um pêndulo. De súbito, estendeu o braço e levantou Ronnie como um falcão que capturasse um pardal.

 

Moss apoderou-se da garota tão repentinamente que o Verónica avançara uns trinta metros no rio e Sarah continuava no mastro, quando Stone o conseguiu parar. Viu indistintamente através do nevoeiro a filha, que se debatia como uma desesperada. O negro segurava-a com um braço e sacudia-a brutalmente, ao mesmo tempo que agitava as pernas para aumentar a oscilação.

Stone precipitou o Verónica para a frente.

Moss oscilou na direcção do cais, largou a corda e pousou na extremidade. Após uma pausa para recuperar o equilíbrio, correu para a prancha de portaló do Dálias Belle, sempre com Ronnie nos braços.

Stone conduziu o barco para o cais, enquanto Sarah o advertia:

- Cuidado!

Um barco dos bombeiros cortou o nevoeiro num rumo que seccionaria o Verónica ao meio. Ele corrigiu a direcção um pouco para bombordo. A outra embarcação passou velozmente no espaço acabado de vagar e deteve-se no canal estreito entre os dois navios.

Um segundo barco surgiu de estribordo - um maciço rebocador, com um canhão de água no tecto da ponte, que lançava água do rio num largo arco. O Verónica oscilava nas duas esteiras em colisão.

Soou uma sirene e um novo barco-patrulha do ELP irrompeu do nevoeiro, enquanto Stone se desviava para jusante. De súbito, avistou Moss, que transpunha a prancha de portaló, com Ronnie debaixo do braço, como se fosse um saco de roupa suja. Por entre o rugido dos motores dos barcos, o som grave do apito do navio e a cacafonia das sirenes, ouviu-a gritar:

- Papá!

Voltou a apontar o Verónica ao cais.

Sarah deslizou do mastro e pousou no tejadilho da cabina. Um dos braços sangrava, num vermelho intenso que contrastava com o casaco branco, e contorcia o rosto de dor.

- Não! - exclamou. - Afasta-te!

- Ronnie...

Ele nunca lhe vira o olhar tão duro.

- Não lhe podemos valer. Ele é o dono do exército. Recuai Stone hesitou.   O cais encontrava-se a poucos metros.

Sarah pousou as mãos na roda do leme e tentou fazê-lo girar.

- Só lhe podemos acudir se nos afastarmos. Ninguém conseguirá salvá-la se seguirmos em frente.

Ele recusava-se a deixar a roda deslizar entre as mãos. No entanto, à medida que um quarto e um quinto barco convergiam para o navio, teve de inverter a marcha para não ser abalroado.

- Cuidado! - advertiu ela.

Um objecto brilhante caiu do navio.

Stone ergueu os olhos. Um velho de roupão de banho debruçava-se da varanda abaixo da ponte do Dálias Belle, o braço rígido, como se acabasse de lançar uma granada de mão. O objecto caiu na água junto da cabina e, em vez de explodir, regressou à superfície.

Stone estendeu o braço e pegou num aparelho de VHF Mavico Axis submersível, cujo pequeno altifalante repetia como um corvo enfurecido:

- Doutora! Doutora! Ouve-me, doutora?

Sarah retirou-o das mãos do marido, ao reconhecer a voz do ancião.

- Sim, escuto-o, Mister Jack. Onde está a Ronnie?

- Saiam daqui para fora!

- Restitua-a. Queremo-la de volta, por favor. Prometemos

- Continua a enxofrar-me, doutora. Confiei em si e veja o que fez. Está a ouvir, doutora?

- Quero a minha filha, Mister Jack.

- Nem pensar. Traiu-me, doutora.

- Faremos tudo o que ordenar.

- Levem esse barco daqui para fora.

- Obedece, Michael. Eu falo com ele.

Stone voltou o Verónica para jusante. O seu último vislumbre antes de o nevoeiro envolver os ruidosos navios e barcos foi uma boca enorme do alpendre gigantesco envolto em chamas, que se extinguiram quase repentinamente, embora ainda subsistissem algumas no telhado.

- Mister Jack - insistiu Sarah -, faremos tudo o que ordenar.

- É um pouco tarde para isso. Arranjou uma trapalhada dos diabos. Não sei para que lado me volte. Só vejo polícias e pessoas que não conheço.

- Mister Jack...

- Preste atenção! Quer a sua miúda? Em Tóquio. Para a semana. Se conservar o bico calado, devolvo-lha. Por outro lado, se me provocar mais aborrecimentos, vendo-a como lhe referi.

- Vende-a? - ecoou Stone.

- Aos negreiros - murmurou ela, aproximando-se dele, que lhe rodeou a cintura com o braço. - Fala a sério.

Stone pegou no rádio e perguntou:

- Onde a entregará?

- Mas é o senhor doutor! Foi você que provocou esta invasão de chineses, seu filho da mãe!

- Quero a minha filha.

- Não parem até chegarem a Tóquio. Não voltem a tentar tramar-me. E não se deixem capturar.

- Onde, em Tóquio?

A resposta não surgiu imediatamente. Por fim, veio a informação:

- Na Torre de Tóquio.

- Onde estarão vocês?

- Mesmo em frente. Não se preocupem que não deixarão de nos ver. Se chegarem primeiro, ficam com tempo suficiente para as compras de Natal.

-O homem enlouqueceu - murmurou Sarah.

- Quando, na próxima semana?

- Na véspera do Natal. As quatro da tarde. Dezasseis horas.

- São mais de mil milhas! - protestou Stone. - Não posso cobrir essa distância em sete dias.

- Faça um esforço. O prazo termina às quatro da tarde. Sarah voltou a pegar no rádio.

- Escute, Mister Jack - proferiu em tom conciliador. - Não podemos estudar um plano alternativo, para o caso de não chegarmos a tempo?... Está a ouvir, Mister Jack?

- Temos de voltar - disse Stone. - É-me indiferente o que acontecerá. Ao menos, estaremos com ela.

Sarah abanou a cabeça com veemência.

- Não lhe podemos valer, Michael. O exército e a polícia estão do lado dele.

- Mas não todos. Ele receia ser preso por oficiais que não consegue controlar. - Stone fez girar a roda do leme. - Temos de voltar para trás.

O altifalante do rádio tornou a entrar em actividade:

- Não sei o que fez ao Moss, doutora. Está sonolento, mas ainda consegue disparar a sua espingarda. Se os vir emergir do nevoeiro, alveja-os até à destruição total. E a vossa última oportunidade. Desapareçam daqui antes que os apanhem.

- Deixe-me falar com a Ronnie.

- Pode fazê-lo ao meio-dia, depois de amanhã. Têm telemóvel no barco?

- Apenas o rádio de banda lateral.

- Canal dezoito-vinte. Ao meio-dia.   Depois de amanhã.

- Mister Jack...

- Desapareçam daqui, doutora. Eles vão começar a fazer perguntas assim que extinguirem o incêndio provocado pelo seu marido. Foi uma imprudência incrível. Podíamos ter ido todos pelos ares.

- Não a assustem, por favor.

- Não somos monstros, doutora. Tentamos apenas endireitar as coisas.

- Sobretudo o Moss.

- Ele anseia é por dormir. Mas se morrer devido àquilo que lhe inoculou, arranco o coração à sua preciosa filha.

- Não morre, garanto-lhe.

- Oxalá. Terminado.

Stone sentia-se impotente e recordou involuntariamente as circunstâncias da morte da sua primeira esposa. De repente, porém, compreendeu que não houvera nada a fazer. Nenhum acto humano a poderia salvar. Mas a actual situação era pior. A vida de Ronnie dependia da decisão que ele tomasse. O coração indicava-lhe que ficasse e lutasse, enquanto a coragem e sensatez o impeliam a partir.

Sarah encarou-o com os olhos marejados.

- Tenho a certeza de que ele não lhe fará mal. Sei que gosta dela.

- Que queria ele dizer com tentar endireitar as coisas?

- Só Deus o pode saber.

Ele procurou atenuar o desejo do coração, relegando Ronnie para um canto da mente, e concentrou-se no nevoeiro que envolvia o rio.

- Baixemos a intensidade do projector para que não nos localizem e liguemos o radar para determinar onde diabo nos encontramos. O teu braço está em condições?

- Não sei ao certo. Achas que conseguimos chegar a Tóquio a tempo?

- Não podemos fazer nada antes de abandonarmos o Huangpu. Regula o projector, enquanto ligo o radar.

Stone desceu a escada de acesso às entranhas do barco, accionou o radar e regressou à cabina com a mochila. Sarah encontrava-se junto do mastro e regulava a adriça. Em seguida, ele parou o motor e escutou.

O movimento da maré e a própria corrente do rio tinham-nos afastado tanto do estaleiro que quase não se ouviam as sirenes dos bombeiros. Por outro lado, o apito de emergência do navio constituía um pedido de socorro e advertência para evitar uma aproximação exagerada.

Mais perto, detectou os som das embarcações de menor calado e as máquinas de pulsar regular que subiam o rio.

Sarah acercou-se,   com o projector apoiado nos braços.

- Michael, não consigo... - Quando ele tentou pegar no projector, apertou-o com mais força. - Ela é... é uma criança.

- Não lhe fazem mal, descansa. Tu própria mo disseste. Se o velho gosta dela...

- Tens a certeza? - perguntou ela, num tom quase inaudível.

- Tenho.

Olharam-se em silêncio através do vazio da esperança que constituía a promessa, cada um em busca da convicção do outro. O barco seguia à deriva e os seus sentidos convergiam no movimento invisível em redor, e separaram-se com prontidão, o espírito apegado a vislumbres de certeza mútua no núcleo do desespero.

«Acredito nele porque devo acreditar», reflectia Sarah.

E Stone: «Uma coisa de cada vez. Para já, abandonar o rio com vida.»

- Julgo conhecer estas paragens razoavelmente - declarou, por fim. - Estamos a cerca de quatro milhas do local em que o Huangpu atinge a embocadura do Yangtze. A capitania do porto dista uma milha daqui, deste lado. Temos de a fintar, assim como o posto de quarentena e as patrulhas que aparecerem. - Apontou para o nevoeiro. - Ouves a sineta? É da torre de um farol na parte mais distante do canal.

Ela levou a mão em forma de concha à orelha, escutou por uns instantes e inclinou a cabeça.

- Conduz o Verónica para aí - acrescentou Stone. - Entretanto, vou ocupar-me do radar.

Apertou-lhe levemente a mão, baixou a cabeça para a beijar e correu para as entranhas do barco. O ecrã do radar estava sulcado de alvos como um pára-brisas durante uma queda de granizo.

- Estibordo! - gritou, no momento em que Sarah ligava o motor.

Um eco começou a aparecer no ecrã, com uma longa cauda fosforescente - uma embarcação pequena que se deslocava rapidamente. Mais um barco-patrulha que se dirigia para o estaleiro.

O Verónica começou a mudar de rumo com lentidão. O ponto fosforescente acercou-se e passou a confundir-se com o centro do ecrã. Stone correu até meio da escada, pôs-se em bicos dos pés nos degraus e fixou o olhar na cortina espessa. Viu passar um casco cinzento, fantasmagórico, suficientemente próximo para poder ser atingido com uma lata de cerveja. A forte ondulação provocada pela popa obrigou o Verónica a oscilar durante alguns minutos.

A torre do farol, que a carta identificava como emitindo um clarão vermelho cada quatro segundos, produzia um eco tão intenso que até o antiquado radar o distinguia da miríade de alvos de navios e pequenas embarcações que polvilhavam o ecrã. Quando o veleiro se encontrou bem no interior da rota, ele regressou à cabina.

Sarah pilotava o Verónica orientada por um ponto que estimara com a bússula a partir do som do sinal do farol e apurava os ouvidos para detectar indícios relacionados com a natureza do tráfego.

- Desvia-te um pouco para bombordo - indicou ele. - Temos um obstáculo grande pela frente.

Acelerou exercendo pressão no pedal com o pé e o barco aumentou a velocidade para seis nós.

Um apito soou pesadamente nas proximidades.

- Cuidado com o bicho. Entretanto, presta atenção a sampanas que venham do outro lado.

- Não era preferível aguardar e depois segui-lo?

- Prefiro não parar aqui e despertar a curiosidade dos bar-cos-patrulha. Já não posso confiar nos meus documentos. Supõe que aquele filho da mãe muda de ideias?

A curta distância, o radar poderia captar o aço do motor do veleiro e mesmo a quilha de chumbo.

- Aponta a norte - advertiu Stone, da escada. - Cruzaremos a passagem de saída.

Tentou distinguir as sampanas das embarcações de maior calado, porém o radar apresentava ecos inconcebíveis. Quando o espaço imediato em torno do Verónica se apresentou aberto por um momento, subiu de novo à cabina com um blusão impermeável para Sarah, que tiritava ao leme.

Agora, o nevoeiro era tão denso que ele quase não conseguia distinguir a proa.

A sirene soava muito perto em frente e um pouco à direita.

Stone tomou conta do leme, enquanto Sarah vestia e puxava o fecho de correr do blusão. Entretanto, o som continuava a intensificar-se, até que se tornou quase ensurdecedor. Ele conduziu o barco a uma distância prudente e ao longo do rio, na periferia da faixa de passagem do tráfego, após o que desligou o motor.

- Escuta - murmurou. O ruído atenuara-se.

- O que aconteceu? - perguntou Sarah, no mesmo tom.

- Um navio enorme a descer a corrente. Vamos utilizá-lo para bloquear o radar principal do porto.

Ele tornou a ligar o motor. Uma rajada de vento frio e húmido atingiu-lhe subitamente o rosto e o navio tornou-se visível a uma centena de metros - um transporte de contentores de envergadura considerável que proporcionava uma parede móvel de quase trinta metros de altura entre o Verónica e a capitania do porto.

- Eles estão a ver-nos - disse Sarah.

Com efeito, o vento repentino atenuara o nevoeiro a tal ponto que qualquer tripulante postado na coberta do navio podia ver a embarcação ocidental, algo de insólito naquelas paragens.

- O raio do vento está a rondar para leste - grunhiu Stone. - Vai dissipar o nevoeiro.

- Não podemos ocultar-nos até à noite?

- Há dois ou três pequenos afluentes do lado do Pudong, mas seríamos alvos privilegiados para os barcos-patrulha.

O transporte de contentores não tardou a desaparecer e, na sua esteira, havia agora uma sampana de amurada elevada, que ele observou com desconfiança. Segundo o Sailing Directions, que conservavam aberto na sua frente, na cabina, um petroleiro de grande capacidade fora afundado à entrada da embocadura do rio para aliviar os navios cujo calado fosse excessivo para a profundidade do rio. A sampana que acabavam de avistar ia buscar minério ou trigo.

- Vamos acompanhá-la - decidiu Stone, pousando o braço em torno da cintura de Sarah. - Se é como aquela a bordo da qual estive, tem rádio.

- O que é aquilo?

Graças à visão invulgarmente apurada, ela avistou algo que escapara ao marido.

Mantinha-se imóvel no canal, envolto no nevoeiro e, durante breves, porém angustiantes, momentos, Stone pensou que se tratava de um barco-patrulha que tivesse preparado uma emboscada. Uma rajada dissipou o nevoeiro por um instante. Uma bandeira vermelha cravada num triângulo preto. Consultou o Sailing Directions e certificou-se:

- Uma draga.

Continuaram a avançar na companhia da sampana, em direcção à foz do rio. As rajadas tornaram-se mais frequentes, ao ponto de permitir uma extensa visibilidade. Ele conduziu o Verónica suficientemente perto para distinguir cavilhas no topo do casco contíguo. Um marinheiro emergiu da casa do piloto e debruçou-se na amurada para observar o veleiro. Pouco depois, juntou-se-lhe outro. Stone extraiu da algibeira um maço de Marlboro.

- Para que são esses cigarros?

- Para fazer amizades.

Manobrou o barco para acostar ao outro e entregou o maço. Instantes depois, ambos os marinheiros expeliam densas baforadas e desfaziam-se em agradecimentos.

- Devias ter vergonha - murmurou Sarah, e partilharam o seu primeiro sorriso.

Longas muralhas estendiam-se das margens e seguiam para leste para formar a embocadura do rio Huangpu. A maré começava a subir quando o Verónica emergiu na área. Navios oceânicos aguardavam para entrar quando o nível da água fosse suficientemente elevado. Os chineses acenaram, com a advertência de que a sua sampana rumaria à plataforma de carga.

O nevoeiro era agora tão ténue que Stone podia avistar a muralha contrária, a cerca de um quilómetro.

- Estão a hastear uma bandeira vermelha - informou Sarah, que começou a folhear o Sailing Directions. - Número elevado de pequenas embarcações. Navegar com extremas precauções.

À medida que a visibilidade aumentava, surgiam sampanas, barcaças e barcos de pesca em todos os pontos da água calma. Raios solares tímidos perfuravam a atmosfera, mas não permitiam distinguir com clareza as muralhas, o céu e a natureza exacta dos navios que aguardavam.

Stone desdobrou a carta que comprara em Hong Kong referente ao estuário do Yangtze. O rio, que alimentava metade da China, estendia-se ociosamente na direcção do mar da China Oriental, banhando ilhotas lodosas e inundando um canal ladeado por taludes de areia e destroços de embarcações. Ele ansiava por cortar a leste e singrar entre as ilhas longe do movimentado canal e das patrulhas do ELP. Mas o Verónica tinha um calado de quase três metros, e o Sailing Directions ameaçava com o encalhe quem se aventurasse ali sem os conhecimentos indispensáveis da área.

Teria de percorrer cerca de trinta milhas, antes que pudesse arriscar-se a enveredar para leste - cinco horas de tracção do motor antes de se aventurarem a içar as velas -, tendo como únicos aliados o nevoeiro cada vez menos espesso e o denso tráfego marítimo. O combustível, pelo menos, não constituía o mínimo problema, pois ele atestara os depósitos nas ilhas Marshall. De momento, conduzia o veleiro com um olho na bússola e o outro na sonda de profundidade, enquanto Sarah, sentada a seu lado, observava as diferentes embarcações e navios. Ilhotas baixas salientavam-se ocasionalmente a bombordo e, dispersos entre elas, havia bancos de areia quase invisíveis.

Era uma condução quase de arrasar os nervos. Sempre que a sonda indicava que a profundidade diminuía, Stone deslocava-se na direcção da proa e prestava atenção à aparição de alguma coisa. Evitava as embarcações de pesca e sampanas e procurava seguir no encalço de barcos que pareciam conhecer o caminho. Por fim, detectou no radar a torre de navegação que assinalava o início de um canal dragado de dez milhas. Quando Sarah localizou o ponto de início, alteraram a rota para 110 graus e avançaram ao longo da margem da estreita passagem, que estava repleta de navios oceânicos.

Conversavam lenta e intermitentemente, como conhecidos numa festa, para descrever as suas diferentes experiências desde que o Dálias Belle zarpara de Pulo Helena. A água enegrecida pelo lodo e o frio húmido constituíam um contraste tão pronunciado com as cores brilhantes e calor tropical do Pacífico que os eventos pareciam datar de muito tempo.

- Estive a pensar numa coisa - aventurou Stone. - E se seguíssemos até Taiwan e chegássemos primeiro a Tóquio de avião?

- Impossível - asseverou ela. - Ele deve ter pensado nisso.

E descreveu Mr. Jack e as suas relações com os velhos camaradas do Exército chinês.

- Tratará de prevenir todos os aeroportos que pudéssemos alcançar para nos prenderem ou abaterem a tiro sem aviso prévio - acrescentou. - Além disso, tem a Ronnie em seu poder. Não nos podemos desviar um milímetro do que ordenou.

Ele concordou, não sem relutância.

- Quem julgará que somos? Descreveste-lhe a história do golpe de Estado?

- Não foi preciso. O Moss deduziu que «andávamos a monte». Mas, na realidade, Mister Jack não se importava com isso, totalmente convencido de que nunca nos encontrarias.

Referiu como Kerry o ajudara e explicou a intervenção de Ronald, o britânico assassino e Katherine, além do roubo do iate.

Entretanto, evitavam a mais remota alusão ao medo que os assolava pela sorte de Ronnie. Era indispensável, para que tudo funcionasse da melhor maneira, enquanto fugiam à sombra da China. No entanto, o acordo tácito custava o preço da intimidade, pelo que se sentiam estranhos um para o outro. A única coisa que agora tinham em comum consistia no comando do barco, no que não eram desconhecidos, mas membros de uma campanha.

Uma torre vermelha com um sinalizador de seis segundos e uma sineta marcava o final do canal dragado, onde singraram para leste, em direcção ao estuário do Grande Yangtze. Com trinta milhas transpostas sem problemas e o Verónica a afastar-se para o largo, Stone começou a ter a esperança de haverem deixado o pior para trás. O nevoeiro levantara, mas o céu apresentava-se encoberto e a visibilidade continuava inferior a uma milha. O local estava pejado de embarcações de pesca.

A ondulação proveniente do mar da China Oriental obrigava o veleiro a oscilar com desconforto e Stone experimentou os primeiros sinais de enjoo. As velas estabilizariam o Verónica, mas sentia relutância em oferecer um alvo tão grande. Arrancaram a cobertura do mastro principal e colocaram uma vela de estai no traquete e uma bujarrona. A claridade do dia começava a esvair-se do firmamento. Dentro de uma hora, seria suficientemente escuro para içar as outras velas.

- Vou indagar as condições meteorológicas.

Stone desceu a escada, ligou o rádio e aguardou a versão em inglês, enquanto consultava as cartas. A ampliação do Norte do oceano Pacífico, parte ocidental, era a melhor que tinha a bordo para a área do Japão, até que alcançassem o arquipélago nipónico. Para a baía de Tóquio e seu acesso, dispunha das que utilizara na visita de ambos ao pai de Hiroshi.

Tragou algumas pastilha de Saltine para acalmar o estômago, enquanto marcava os dois troços do percurso: 480 milhas leste até ao mar da China Oriental, através do estreito de Osu a sul de Kyushu, o ponto mais remoto da grande ilha do Japão - e depois 540 ao longo do mar das Filipinas até Tóquio.

Teriam de enfrentar o vento nordeste da monção na maior parte do caminho, o que significava que as velas leves do Verónica teriam de ser substituídas. No primeiro troço, o mar chão da China Oriental geraria uma ondulação forte que retardaria a marcha. Mais adiante, a poderosa Juroshio, a «corrente negra», proporcionar-lhes-ia um impulso.

O boletim meteorológico surgiu finalmente na versão inglesa. Stone colocou uma folha de plástico transparente sobre a carta e marcou nela a situação geral, com os pormenores locais que lhe interessavam e brotavam do altifalante do rádio. Havia uma frente, que, depois de se manter sobre determinada área, recomeçara a progredir e o vento forte poderia alcançar o Verónica na manhã seguinte. Uma olhadela ao barómetro indicou-lhe que a pressão atmosférica baixava com regularidade. Convinha mudar a vela grande imediatamente.

Dirigiu-se à cabina de Ronnie, evitou olhar os posters nas paredes e animais empalhados dispersos na cama e retirou uma vela grande de um compartimento. Era extremamente leve, estabilizaria o barco, reduzindo o peso na área do mastro e abriria um rumo próximo do vento.

- Michael!

Largou a vela e correu em direcção à coberta. Sarah apontava para a ré e estendia-lhe o binóculo. Da penumbra, emergia um casco pontiagudo em que piscavam luzes vermelhas e cortava a água, com uma ondulação volumosa. Era um barco-patrulha do Exército de Libertação Popular.

 

Stone sentiu a coragem dissolver-se. Os eventos das últimas vinte horas sucediam-se-lhe na mente como passagens semi-recordadas de livros folheados apressadamente: a primeira visão de Sarah, os soldados chineses que o perseguiram entre os arbustos, os comboios, a execução de Ronald e o negro que parecera brotar do céu.

Ergueu os olhos vítreos para a embarcação que se acercava e conservou-se paralisado ao leme. Uivou uma sirene, num ruído incongruente das entranhas de uma cidade.

Sarah correu para o mastro e içou a vela da bujarrona, que o vento de nordeste tentou encher.

- Não podemos fugir, querida - articulou Stone, desalentado.

- Uma simples vela parece inocente - replicou ela, sem se deter.

A sirene tornou-se mais intensa e, momentos depois, o barco-patrulha encontrava-se ao lado do Verónica, cuja velocidade, porém, se mantinha. Sarah colocou as mãos em torno da boca para perguntar:

- Falam inglês?

- Parem o motor - foi a resposta seca.

Eles dispunham de uma metralhadora montada na proa e outra no tejadilho da ponte. Além disso, o casco era a última palavra em fibra de vidro e a propulsão devia-se a um motor diesel. Stone reconheceu o som agudo dos turbocarregadores, mas o que o surpreendia era a atitude polida da tripulação.

- Vamos parar - assentiu ele. - Temos de nos voltar para bombordo.                  

O cano da metralhadora acompanhou o movimento, enquanto Sarah colocava pneus pára-choques desse lado do casco. O barco-patrulha imobilizou-se então

ao lado e alguns marinheiros lançaram amarras, que Stone e ela fixaram.

O oficial saltou para bordo, precedido de dois homens, munidos de pistolas automáticas.

- Que fazem nestas águas? - inquiriu o primeiro.

- Somos hóspedes do Governo de Xangai.

- Documentos.

Stone entregou-lhos. O rosto do oficial encontrava-se na sombra do boné de pala longa e os olhos invisíveis atrás de óculos escuros. Leu as cartas em chinês e depois as traduções em inglês e fez delizar os dedos sub-repticiamente sobre o beçalho em relevo.  

- Uma marina para iates?

- Um lugar para iates de cruzeiro se reabastecerem.

- Sei perfeitamente o que é uma marina. Vivi numa, quando estudava na Califórnia. Marina del Ray. Seria para turistas ocidentais?  

- Exactamente.

- E agora partem?

- Vamos regressar a Hong Kong para conversar com os nossos investidores.

- Não vejo o carimbo de saída nos passaportes

- Esperámos na capitania, mas estavam todos ocupados com o grande incêndio, pelo que decidimos partir. Como éramos convidados do governo...

- E o seu passaporte, minha senhora?

- A minha mulher feriu-se - explicou Stone. Fomos atingidos pela esteira de um barco dos bombeiros. Quase caiu à água, e perdeu nessa altura a bolsa com o passaporte.

Sarah arregaçou a manga para expor o braço envolto em ligaduras, manchadas de sangue.

O oficial enrugou a fronte.

- Têm armas a bordo?

- Não.

Transmitiu uma ordem e dois homens desceram a escada para proceder à busca.

- Drogas?

- Apenas as medicinais. Somos médicos.

- Porque incumbem médicos de procurar locais para marinas ?

- Há muitos que possuem iates - esclareceu Stone, sem se desconcertar. - Como decerto observou em Marina del Ray.

- Seguem para leste, mas Hong Kong fica a sudoeste.

- Por uma questão de prudência. Segundo as últimas informações meteorológicas, aproxima-se uma frente e tentamos tanto quanto possível evitá-la.

O oficial inclinou a cabeça em sinal de compreensão e perguntou:

- Encontraram um local apropriado para a marina?

- Vários.

- Onde?

- É um assunto confidencial, até informarmos os investidores.

- Consideraram um lugar de divertimento militar? Stone trocou um olhar de dúvida com Sarah.

- Não sabemos o que isso é.

- Trata-se de uma coisa nova. O turista é convidado a utilizar armas verdadeiras: espingardas de assalto, morteiros e até lança-mísseis. Talvez os proprietários de iates pudessem experimentar fazê-lo de um submarino. É uma ideia nova, como disse, digna de consideração. Aqui têm o meu cartão. - O chinês desabotoou o bolso da camisa e extraiu dois cartões-de-visita: um para Stone e o outro para Sarah. No verso do nome, dizia «sectores de actividade: bens imobiliários,

TRANSACÇÕES   COM   O   ESTRANGEIRO,   ETC.»   -   O Exército   de Libertação Popular incorporou-se na marcha para a prosperidade. Talvez até encabecemos o esforço para uma abertura ao mundo exterior.

- Excelente - disse Stone, polidamente.

- Se as entidades oficiais de Xangai levantarem dificuldades, lembrem-se do meu cartão.

- Com certeza - assentiu, e apresentou o que Ronald lhe fornecera.

- É óbvio que as Forças Navais Populares dispõem de fontes de propriedade marginal excelentes e nós podemos fornecer o que há de melhor em material e dragagem. Na verdade, pensando bem, é difícil imaginar semelhante empreendimento sem nós.

- Tivemos muita sorte em encontrá-lo - concedeu, sem se desconcertar. - Bem, se nada mais necessita de nós, ansiamos por nos colocar a coberto da frente que se aproxima.

- Sem dúvida. - O oficial vociferou uma ordem e os dois homens que procediam à busca reapareceram de mãos vazias. Em seguida, estendeu a mão a Stone. - Bon voyage.

As amarras foram soltas e abriu-se um canal de água entre os dois barcos, após o que o do ELP se distanciou gradualmente. Stone continha o alento. Podia chegar a todo o momento a ordem pelo rádio para capturar um determinado veleiro.

Por fim, ele e Sarah recolheram os pneus pára-choques, enquanto o vento começava a aumentar de intensidade; porém, o Verónica estava preparado para enfrentar situações que obrigariam outros veleiros a refugiar-se no cais mais próximo.

Stone acelerou o motor e começaram a ultrapassar alguns dos barcos pesqueiros possuidores de motores diesel. De súbito, o sonar indicou que a profundidade duplicava e depois triplicava. Os rios haviam ficado para trás e eles entravam na vasta área do estuário do Grande Yangtze. Com vinte ou trinta metros de água sob a quilha e nada entre o Verónica e o Japão além das luzes dos barcos de pesca que regressavam com a noite, podiam navegar durante dias orientados somente pela bússola.

- O que achas que ele fará, se não chegarmos a Tóquio a tempo?

- É um homem totalmente imprevisível - reconheceu Sarah.

- Bem, se se limitar a abandoná-la, a Ronnie sabe como contactar com o pai do Hiroshi. Que diabo pretenderá?

Uma rajada repentina agitou as velas, porém o Verónica seguiu em frente, sem se desviar do rumo.

- Vamos colocar rizes na vela principal. Ou melhor, retiremo-la e icemos a Technora.

- Tens energias para tanto? Pareces arrasado, Michael. Devias tentar recuperar o sono.

- Há tempo para isso. Vamos, enquanto ainda há claridade.

A operação da substituição e reforço das velas decorreu sem qualquer anormalidade. O barco continuou a resistir satisfatoriamente à ondulação crescente.

No final, o conjunto diferia quase totalmente do anterior.

- Que coisa mais horrenda - observou Stone, com um leve sorriso.

A vela principal era negra e a sua configuração aerodinâmica moldava o vento como uma chapa de aço.

Entretanto, o vento continuava a aumentar de intensidade e as rajadas de nordeste sucediam-se cada vez com maior frequência.

Enquanto Sarah se ocupava da condução, Stone colocou uma protecção de lona para que a cabina da ponte não fosse atingida tão directamente pela força dos elementos. Depois, aqueceu sopa enlatada, que levou em tigelas cobertas à casa do leme. Havia anos que não navegavam com tempo frio, e tiritavam irresistivelmente.

- Pareces derreado - disse ela. - Tenta dormir.

E fez deslizar os dedos pelo rosto dele, sulcado de rugas como o de um homem vinte anos mais velho.

- Tu estás bem?

- Pelo menos, melhor do que tu neste momento. Vai deitar-te, por favor.

Com efeito, Stone sentia-se tão fatigado que as coisas começavam a oscilar à sua volta.

- Michael?

- Sim.

- Primeiro, importas-te de me abraçar?

- De modo algum - concedeu, com um sorriso.

- Foi um salvamento maravilhoso.

- Semi-salvamento.

- Havemos de recuperar a Ronnie.

- Com certeza. - Ele olhou para a frente, onde o horizonte estava a escurecer. - Se as condições se agravarem, acorda-me. - Começou a descer a escada, mas de súbito deteve-se. - Porque nos deixaria ele partir?

- O único motivo que me ocorre é que não tinha qualquer autoridade sobre as tripulações dos barcos de bombeiros.

- Teria podido esclarecer tudo mais tarde, recorrendo aos amigos que referiste.

- Talvez não em tempo útil.

- Em tempo útil de quê? De vender a carga?

- Não sei - admitiu Sarah. - Mas planeia alguma coisa e receia que falemos.

- Conversaremos com a Ronnie,   depois de amanhã. E obrigá-lo-emos a prometer novo contacto. O filho da mãe não lhe pode fazer mal, enquanto estivermos à solta e com um rádio.

Stone quase cambaleou ao longo da escada e em seguida fechou a porta. Reinava um silêncio relativo nas entranhas do barco e o ruído do vento e da água soavam à distância. Ele estava contrariado por se separar de Sarah, que não parecia muito menos fatigada.

O Verónica sofria solavancos constantes, e Stone necessitou de alguns minutos em equilíbrio instável para descalçar as botas. Parecendo-lhe desnecessário despir-se, procurou um cobertor e deixou-se virtualmente cair num dos beliches. O ângulo do extremo inferior do mastaréu obrigou-o a exercer pressão com o corpo no anteparo. Por último, fechou os olhos e puxou o cobertor para a cabeça. Sabia que precisava imperiosamente de dormir. Não poderia actuar com eficiência até repousar, mas não se lhe apagava do espírito a imagem de Ronnie a debater-se como uma gata.

Por fim, acendeu o candeeiro de leitura, transferiu os pés para o chão, cobriu a distância que o separava do posto de navegação, procurou o Sailing Directions e o Ocean Passages for lhe World, da Marinha Real, que levou para o beliche, e consultou as descrições do mar da China Oriental, estreito de Osumi e da área do Pacífico Norte entre ele e Tóquio, espaço mais conhecido por mar das Filipinas.

Em Dezembro, o tempo era dominado pela monção de Inverno da China - ventos secos e frios gerados por um vasto sistema de altas pressões sobre os territórios da Mongólia e do Leste da Sibéria. No primeiro troço - de Xangai até à ponta sul do Japão -, eles podiam contar com uma circulação de nordeste e noroeste. De vinte nós em pleno mar, capaz de passar a qualquer momento para trinta e três, uma velocidade moderada que limitaria o Verónica a uma vela principal com três rizes e uma de estai.

Porém, quando tivessem cruzado o estreito de Osumi, a alta pressão continental produziria ventos de oeste violentos. A baixa que se deslocava para leste retardaria a monção que precedia a depressão e deixaria rajadas fortes na sua esteira. As tempestades eram frequentes.

Stone ligou o rádio para escutar o último boletim meteorológico. No entanto, antes que conseguisse traçar a situação na folha de plástico, o sono venceu-o finalmente.

Quando desceu para um momento de descanso, Sarah recolheu os livros e protegeu o corpo do marido com mais um cobertor. Enquanto a chaleira aquecia no fogareiro de petróleo, foi acender a luz no porão da frente. As ondas ressoavam contra a popa. Esforçando-se por não reparar nos diversos objectos que recordavam Ronnie, retrocedeu pensativamente.

Afigurava-se-lhe que o Dálias Belle transportava uma maldição de Deus. Os inocentes não estavam imunes a bordo do navio. Tentou imaginar a filha a dormir no camarote de Mr. Jack. Ou deitada acordada, aterrorizada. O medo ameaçava dominar Sarah. Sentia-o avolumar-se gradualmente. Volveu o olhar para Michael, em busca de encorajamento, mas o seu rosto parecia ainda mais envelhecido.

 

Stone acordou em fases lentas - primeiro, o corpo dorido e a mente confusa, mas com uma sensação de bem-estar. Regressara ao barco, com a água cortada pela proa do casco e o ranger familiar do conjunto do leme inundado de recordações pacíficas. A velocidade parecia agora estabilizada em sete nós e meio. O mar continuava agitado, mas muito menos, e a proa enfrentava por vezes uma onda mais alterosa, sem, todavia, afectar o rumo.

No entanto, nem tudo estava certo: tinha hasteado velame excessivo e o barco perdia velocidade, quando a ondulação se intensificava. Consultou o relógio. Uma hora. Devia ter parado. Todavia, quando o acercou do ouvido, distinguiu perfeitamente o tiquetaque. Soergueu-se com prontidão, enquanto a memória recomeçava a funcionar gradualmente. Havia oito horas que Sarah se encontrava ao leme. Naquele momento, avistou entre o beliche e o anteparo uma garrafa-termo com café e um bilhete ao lado: «bebe-me.»

Dormira como uma pedra, pelo que não a ouvira entrar. A recordação de Ronnie acudiu-lhe imediatamente e acordou então por completo. Pegou na garrafa-termo e levou-a para a coberta, subindo a escada com alguma dificuldade, provocada por dores nos músculos das pernas.

- Desculpa...

Sarah era uma sombra na noite. O céu estava encoberto e reflectia um ténue clarão - um halo emitido por Xangai, sessenta milhas atrás. Havia numerosas cristas nas ondas que circundavam o barco.

- Não te preocupes - replicou ela. - Sinto-me bem e contente por estar de novo em liberdade.

Entretanto, retirara um dos rizes, porém o vento continuava com rajadas de mais de vinte nós e o Verónica por vezes inclinava-se de forma notável. Em regra, costumava ser mais cautelosa.

- Deves estar esgotada. - Stone encheu uma chávena de café.

- O bloqueio do leme não se mantém. A água está muito agitada.

- Creio que temos um velame excessivo.

- O vento abrandou.

- Mas pode aumentar de novo. - Foi aliviar a tensão da vela principal. - Quanto eu disser, puxa a carregadeira.

Moveu-se para a frente, segurando-se aos cabos, e soltou o guardim de botaló, após o que baixou a ostaga principal, que fixou num ponto mais abaixo.

- Agora!

Sarah serviu-se de um guincho para baixar parte da vela e depois ajustou a escota grande. Stone soltou a parte superior e fez descer o botaló com o guardim. A seguir, passou algumas amarras através do garruncho e em torno do botaló, com que fixou as extremidades da vela.

A pouco e pouco, o Verónica assumiu uma posição mais equilibrada.

- Oito nós! - informou Sarah, enquanto, intimamente, se congratulava com o regresso do marido à coberta com o café.

- Muito bem - assentiu ele, tomando conta do leme.

- Zero-nove-três - acrescentou ela, indicando a bússola iluminada.

O velocímetro oscilava entre os 7,9 e 8,1 nós, enquanto o sonar marcava quarenta e cinco metros. Tinham ultrapassado a periferia sul do estuário do Yangtze, e a água decerto não tardaria a serenar mais um pouco na profundidade mais pronunciada.

- Onde está o SPG?

- Tem-no a Ronnie.

Não tinha importância. Se o céu não limpasse, Stone poderia contactar pela rádio com um navio que passasse para determinar a posição. Entretanto, não haveria qualquer obstáculo incomodativo entre aquele ponto e o Japão, nos três dias seguintes.

- Vai descansar - recomendou ele, ansioso por trabalhar com as velas.

- Comeste alguma coisa?

- Não, limitei-me ao café, mas não morro de fome.

- Vou arranjar-te qualquer coisa.

- Como queiras.

Sarah deixou-lhe uma lanterna eléctrica, acabada de carregar, que Stone apontou às velas para ver como se comportavam. Quase com perfeição. O contacto com a roda do leme permitia-lhe verificar que o barco se achava bem equilibrado, mas, se o vento aumentasse de intensidade, colocaria uma bujarrona mais pequena e içaria a estai interior da mezena.

Embora não fosse um corredor por natureza, depois de perseguido em três oceanos no Verónica, aprendera a fazê-lo virtualmente voar. E, com o mastro mais alto e a Technora principal, agora ainda era mais rápido. No entanto, ele já não tinha um corpo a que pudesse exigir muito, as mãos perdiam força com o rolar dos anos e agora eram as pernas que cediam. E não se preocupava menos com o espírito - na fuga à perseguição, utilizara o medo como combustível. O amor seria tão poderoso?

A resposta a esta pergunta surgiria com centenas de pequenos testes: a prontidão para mudar de vela dois minutos depois de acabar de o fazer ou, drogado pela exaustão, a energia para permanecer de pé e imprimir meia volta do comando de um guincho, quando o instinto lhe indicava que ajudaria a aumentar a velocidade do barco, mas a mente grunhia «para quê estar com esse trabalho?».

Quando regressou à coberta, com flocos de aveia e mel, Sarah entrou em pânico. A cabina encontrava-se deserta. Contornou-a e avistou Stone junto do mastro, a actuar num guincho. Experimentou uma sensação de alívio pela primeira vez desde a captura de Ronnie. Ele voltara a dominar o Verónica, de regresso ao seu elemento. Por um instante fugaz, perguntou-se o que lhe aconteceria, se fossem viver para África. Viu-o regressar à cabina, com uma expressão de alívio.

- Navega como um cisne num lago. Mas com maior velocidade, claro.

- Tencionas introduzir mais alterações?

- Para já, não. Mas que bem que isso cheira! Come também um pouco. Ajuda-te a dormir melhor.

Ronnie fixava o olhar no seu pequeno-almoço, de lábios comprimidos e ouvidos moucos às súplicas de Ah Lee para que comesse. Na verdade, recusara o almoço e jantar da véspera e apenas parcialmente consumira a pizza que o cozinheiro de bordo confeccionara já durante o serão para a sua tripulante favorita.

Ela estava faminta e sentia um vazio doloroso no estômago. Ao princípio, depois de Moss a capturar, não conseguia mesmo comer, mas agora tinha apetite e necessitava de se concentrar firmemente nos pais para evitar que a mão se apoderasse de um dos quase irresistíveis biscoitos e o devorasse.

Ah Lee efectuou nova tentativa, saltando ao acaso do inglês para o chinês de Xangai, mas ela afastou o prato com a mão.

O rapaz acercou-se um pouco mais e sussurrou-lhe ao ouvido:

- Se não come, Mister Moss bate-me.

- Isso é bluff dele - retrucou Ronnie.

No entanto, não podia ignorar as escoriações da outra vez e os pontos que a mãe lhe removera recentemente da bochecha.

- É verdade? - perguntou.

- Muito verdade.

- Muito verdadeiro, Ah Lee. Ou «verdade». Nunca «muito verdade».

- Coma, por favor. Vá, faça um esforço.

- Pronto, está bem.

Ele cruzou os braços e viu-a tragar dois biscoitos com o copo de leite.

- Agora, os ovos, missy.

- Não me chames missy.

- Está bem, Miss Ronnie.

- Nem Miss Ronnie. Já te disse um milhão de vezes. Só Ronnie. Ronnie. Ronnie.                                       .

- Sim, Ronnie. Obrigado por ter comido.

Mr. Jack entrou na sala de roupão e chinelos, e a expressão de Ronnie tornou-se hermética como o granito. Ele aceitou a chávena de café que Ah Lee se apressou a oferecer-lhe, ingeriu algo ruidosamente e ergueu os olhos para o outro lado da mesa.

- Anima-te, miúda. Aproxima-se o grande dia. Vou mostrar-te uma coisa que te fará saltar os olhos das órbitas.

Todavia, ela conservava o olhar fixo no prato. Sentia-se muito confusa com a atitude dele - mais concretamente, traída. Nunca podia prever quando irromperia aos gritos, e agora, sem a mãe para lhe acudir, o que aconteceria se ele explodisse?

- Que diabo tens?

- Quero ir para casa.

- E hás-de ir. Já to garanti. Na véspera do Natal. Uma festa de arromba com a família. - O ancião piscou o olho, fazendo duplicar as pequenas rugas em torno dos olhos, e cantarolou em voz fanhosa: - «Estarei em casa pelo Natal, podem contar comigo...» Não comeces agora a chorar, que diabo!

- Não estou a chorar.

Ronnie tinha a impressão de que a garganta inchava e sentia os lábios tremer de um modo que não conseguia dominar.

- Que culpa tenho de que fugissem sem ti?

- Assustou-os.

Ele arregalou os olhos e a cara endureceu como se fosse de metal. Por fim, soltou uma gargalhada.

- Se se portaram como ratinhos acagaçados, não me responsabilizes por isso. Vá, coração ao alto. Quero mostrar-te uma coisa extraordinária, hoje. E amanhã falarás com eles pelo rádio. Ou já te esqueceste?

- Com certeza que não. Ao meio-dia.

- Exacto. Amanhã ao meio-dia. Uma longa e terna conversa pelo rádio. Só que, claro, precisas de ter cuidado com o que dizes. Não vais falar de mim, de Xangai ou seja do que for. Apenas de ti e deles e do que te divertirás pelo Natal. - Aproximou-se da árvore e acendeu as luzes de várias cores. - Se chegarmos a Tóquio com alguma antecedência, talvez te leve às compras ao Ginza. Presentes para os teus pais. Queres, pois, saber o que acontecerá hoje?

Na realidade, não lhe interessava nada. Contudo, recordava-se de que a mãe tinha sempre o cuidado de dizer a Mr. Jack o que desejava ouvir, pelo que perguntou:

- O que é?

- Vai-te vestir, enquanto tomo o pequeno-almoço, e depois verás.

Mais tarde, quando reapareceu de sobretudo comprido, trazia igualmente um agasalho para Ronnie, de um vermelho-vivo, que lhe assentava perfeitamente. Nas algibeiras, havia luvas de lã com dinossauros bordados, e um gorro com uma borla dourada.

- Está frio, lá fora. Abotoa-te.

Começou a subir a escada apressadamente e ela seguiu-o, em direcção à ponte, onde a temperatura era baixa e reinava o silêncio, com as largas janelas a admitir a claridade cinzenta através da abertura que as chamas tinham produzido no tecto do alpendre.

O incêndio provocado pelo papá. Ronnie esforçou-se por dissimular o sorriso. Mr. Jack enfurecera-se e chamara-lhe «maldito filho da mãe» e outros epítetos que ela aprendera com os garotos do cruzeiro americano, em Samoa.

- Vem cá!

Ronnie seguiu-o a um dos lados da ponte. À distância, na área da proa, havia centenas de operários, as cabeças levantadas para as gruas sobre as suas cabeças. Ele estendeu-lhe o binóculo, porém ela recusou-o.

- Não preciso, obrigada.

Com efeito, podia enxergar com nitidez. Os binóculos costumavam limitar o campo visual, e ela pressentia que ia acontecer algo de importante e não queria perder um único pormenor.

Mr. Jack pegou no telefone e disse: Quando quiseres, C. B.

Soou um apito e todos os operários se perfilaram, empunhando as ferramentas, em atitude de expectativa.

 

- Ena!

Quatro gruas de cavalete - duas a estibordo do transporte de gás e as outras a bombordo do paquete - moveram-se em sincronia. Ronnie distinguiu claramente o rugido dos respectivos motores, cuja intensidade aumentou no momento em que pegaram na carga. Os cabos tornaram-se tensos e toda a superstrutura da parte da frente do paquete - as cabinas e a ponte por cima - começou a erguer-se.

Ronnie conteve o alento.

A secção que as gruas levantavam parecia corresponder a todo o comprimento do Verónica e era tão larga como o navio. Entretanto, as máquinas erguiam-na cada vez mais. De súbito, passaram a manobrá-la como uma peça de Lego para a direita.

- Ena!

- Espera pelo melhor, miúda - recomendou Mr. Jack, com uma risada divertida.

Lentamente, as gruas deslocaram a parte da frente da superstrutura por cima do lado do paquete, sobre a água entre os dois navios, até ao transporte de gás. Ela observou que os operários seguravam cabos, às centenas, para evitar que a enorme peça oscilasse.

Tornou a dizer «Ena!», mas compreendeu que estava a repetir-se e optou por:

- Filhos da mãe!

- Apoiado! - exclamou Mr. Jack. - A mamã não pode ouvir, pelo que a filha não tem papas na língua. Foi o papá que te ensinou essa expressão?

- O que estão eles a fazer, Mister Jack?

- Praticam uma erecção.

- Não compreendo.

- Pois, ainda és muito jovem para isso. Estão a transferir a superstrutura daquele velho paquete de cruzeiros para o meu navio.

- Para quê?

- Para podermos efectuar cruzeiros.

- Hem?

- Estava a brincar, miúda.

- Mas porquê?

- Porque não?

Ele olhava para cima, eufórico como o homem mais feliz do mundo, enquanto a gigantesca peça de aço de seis pisos se deslocava lentamente sobre a coberta da popa do transporte de gás. Soou o apito e as gruas imobilizaram-se, ficando a peça a oscilar ligeiramente. Quando os homens que comandavam os cabos pararam o movimento, tornou a ouvir-se o apito e a peça começou a descer. Ronnie viu que tinha sido assente uma espécie de base de aço, que as gruas agora alinhavam com a peça suspensa que se aproximava.

- Orientação por laser - explicou Mr. Jack. - Sabes como funciona?

- Com certeza.

- Agora, é a parte mais delicada.

A peça estabeleceu contacto com um boom abafado, e Ronnie sentiu a coberta mover-se sob os seus pés. Novo boom. Agora, os cabos da grua afrouxaram a tensão e avançaram numerosos operários munidos de brocas pneumáticas.

Em poucos minutos, as gruas retrocederam para o paquete, a fim de alinhar a peça seguinte. A garota pôde então observar que todo o comprimento da superstrutura tinha sido cortado a intervalos de sete metros e eles transfeririam-nos individualmente para o Dálias Belle.

- O que achas?

- Parece uma máscara.

- Em que sentido? - inquiriu o ancião, em tom incisivo.

- Quando está virado para nós, parece que pôs uma máscara.

Soltou uma gargalhada divertida. «Na verdade, a miúda tinha espírito.» Inclinou a cabeça na direcção das gruas, que naquele momento transferiam uma segunda secção de seis pisos da superstrutura de aço.

- Deste lado também.

- Porquê?

- Vê se o descobres, espertalhona.

E observou-a atentamente. Ela ainda não se inteirara. Não obstante, era uma criança atilada e acabaria por o conseguir. Os seus olhos fixavam-se em tudo. No entanto, acabou por encolher os ombros e perguntar:

308

- Os meus pais sempre vão comunicar, amanhã?        

- Chamá-los-emos nós.

- Estou ansiosa por que isso aconteça.

Moss surgiu repentinamente na ponte, ofegante, e indicou Ronnie com um movimento de cabeça.

- Vai para dentro, miúda - ordenou Mr. Jack. - Chamar-te-ei dentro de instantes.

Ela obedeceu e o negro entregou ao ancião uma mensagem de correio electrónico.

- Dos cartolas - explicou, empregando a expressão atribuída aos executivos que dirigiam as empresas do ancião na sua ausência.

- Recomendei-te a suspensão de comunicações.

- Desculpe, Mister Jack, mas tinha de estabelecer uma ligação de emergência, para o caso de alguma coisa dar para o torto. Eles consideraram isto uma excepção. E sou da mesma opinião.

Mr. Jack pôs os óculos e leu a única linha da mensagem: Recebidas perguntas de Hong Kong e Austrália.

- O filho da mãe do médico!

Jack Powell sentia-se velho, pela primeira vez nos seus setenta e oito anos de vida. «Porque deixara os pais partir?», questionou-se. Acordado por sinetas e apitos de um sono profundo depois de uma noite de libação com os generais, ficara desorientado, assustado mesmo, com o incêndio. Recompusera-se com prontidão, sem dúvida, mas os malditos barcos dos bombeiros voltaram a preocupá-lo.

Estava familiarizado com a situação em Xangai - sabia com quem devia contactar -, mas os burocratas eram isso mesmo, quer fosse em Washington, Houston, Lagos ou China, e vira subitamente tudo escapar-se-lhe das mãos.

Eram arquivados relatórios às centenas: uma construção não autorizada, um transporte de gás onde não tinha nada que estar no Huangpu, a segurança da cidade, etc, etc.

As coisas começavam a ficar controladas. Os burocratas poderiam ser induzidos a sentir terror, se fossem encontrados os apropriados, e os seus velhos amigos não teriam dificuldades nesse sentido. Todavia, no pandemónio da batalha, só conseguira pensar em como demónio lograria explicar a presença do casal de médicos a exigir que lhes restituíssem a filha.

Agora, enquanto contemplava o rosto escuro de Ronnie na iminência de se desfazer em lágrimas para regressar ao convívio dos pais, lamentava não os ter eliminado de uma vez por todas. Mas o incêndio dominara todas as prioridades, e os chineses haviam ficado tão alarmados como ele, naqueles primeiros segundos.

O filho da mãe do médico sabia o que fazia. Seria necessário muito mais do que aquilo para atingir directamente as cisternas fortemente isoladas. O navio fora construído para sobreviver ao fogo, a um encalhe e mesmo a uma colisão. Para o fazer ir pelos ares, havia necessidade de recorrer a numerosas cargas de dinamite colocadas em diferentes pontos estratégicos.

Mas como o sabia o filho da mãe? Segundo a doutora, o marido era um engenheiro autodidacta. Em acústica, electrónica e várias outras especialidades. Talvez o amigo... Kerry, salvo erro... lhe houvesse fornecido indicações sobre transportes de gás. Ou tivesse consultado o Professional Mariner. Ou o Safety At Sea.

- Filho de uma cabra!

- O quê, Mister Jack?

- Como te chamas, miúda?

- Perdão?

- O teu nome.

- Já o sabe. Ronnie.

- Não, o nome completo.

Os olhos da garota semicerraram-se apenas por um segundo, antes de responder:

- Verónica Margaret Soditan Samuels.

- De onde vem a Margaret?

- Era o nome das mães da mamã e do papá. E ambas morreram muito jovens.

- Uma coincidência conveniente. E Soditan?

- Era o de solteira da mamã. Da parte do pai.

- Inventaste o Samuels?

- Foram a mamã e o papá... digo, é o apelido do papá.

- Muito bem, miúda.

Ela sentia-se impressionada. Ele deixou-a reflectir por um momento e perguntou:

- Viste o suficiente?

- Sim, senhor.

- Então, desce à cabina e pede ao Ah Lee que te sirva cacau quente.

No entanto, ela conservava-se enraizada na coberta como um pequeno arbusto.

«Velho e estúpido», reflectiu ele. «Estou a ficar velho e estúpido.»

- Moss! - bradou. - À frente e no centro. De súbito, compadeceu-se.

- Não chores, miúda. Não denunciarei o teu pai. Também sou mau.

- Ele não é mau.

- Bem, no fundo, eu também não.

Mas estúpido, em todo o caso. Devia ter estabelecido a ligação imediatamente, todavia acontecera depois de partir da Nigéria, pouco antes de esta se converter num manicómio gigantesco. Foi assassinado um general. O pai da doutora? A Polícia atribuíra o crime a um americano branco. Ao papá médico? Scuttlebutt dissera que não passava de uma cortina de fumo para encobrir um desaire da CIA. Qualquer que fosse a explicação, as autoridades nunca conseguiram capturar o branco. Logrou escapar-se. Seria o mesmo tipo perigoso que se dirigia agora para Tóquio? Mr. Jack encolheu os ombros. Só Deus sabia. Havia tantas histórias fantásticas provenientes de África...

- Vai lá para baixo, miúda. Preciso de conversar com o Moss.

Este último entrou, procedente da sala dos computadores.

- Há alguma novidade, Mister Jack?

Ronnie contornou-o como um coelho em torno de uma serpente e afastou-se pelo corredor.

Jack Powell aguardou até ouvir os passos dela na escada.

- Contacta com o comandante.

Este respondeu no minuto imediato.

- Mister Jack exige a sua presença. Já.          

- Mas estou cheio de trabalho...

- Na ponte. Imediatamente.

Os dois homens aguardaram em silêncio. Moss tinha vontade de perguntar o que se passava, mas a prudência aconselhava-o a não o fazer, enquanto o ancião ruminava sobre as suas insuficiências.

- Comandante - declarou, quando o texano entrou, com ar contrariado -, quero que determine a rota que a doutora Sarah e o marido seguem em direcção a Tóquio.

- Pelo mar da China Oriental. Estreito de Osumi. Mar das Filipinas. Percurso da esquerda na baía de Tóquio.

- Isso posso eu calcular sem ajuda. O que interessa é o vento. Trata-se de um veleiro. Quero a rota exacta.

- Importa-se que o meu imediato calcule os números? Tenho as mãos cheias de trabalho. Se aqueles cabeçudos das gruas efectuarem uma manobra errada, vamos todos pelos ares.

A expressão de Jack Powell tornou-se granítica.

- Escute, comandante, e emprego a designação literalmente porque lhe cassaram a licença por enviar o seu último navio para o inferno...

- A culpa não foi minha.

- Descanse, que eu acredito no senhor. Que diabo, pago-lhe honorários superiores aos de um ano por uma única viagem! A menos que queira que promova o seu imediato...

- É claro que não.

- Então, debruce-se sobre os computadores e o raio do boletim meteorológico e diga-me por onde o homem vai passar. E tu - voltou-se para Moss, que sorria com o desconforto do outro -, determina onde os vamos interceptar... O que se passa?

- Vai deixar a miúda contactar com eles pela rádio, amanhã?

- Decerto.

- Talvez possamos triangular o sinal deles.

- Devia ter pensado nisto, comandante - observou, com um largo sorriso.

- Não é necessário. Tenho estado a observar o tempo.

O comandante aproximou-se da máquina de fac-símile das condições meteorológicas e retirou a última carta registada.

- Há uma frente fria que se desloca do continente para o mar da China Oriental. - Agitou a folha de papel diante do rosto de Moss. - E temos aqui uma depressão muito cavada. A pressão está a descer um milibar por hora. Se a situação continuar assim, criará aquilo a que os homens do tempo chamam «bomba», suficiente para eliminar os nossos doutores da superfície do mar. Com um pouco de sorte, mete-os no fundo antes da hora do almoço.

 

Um céu com algumas abertas prometia a Stone ocasionais períodos de sol. Mas enquanto levava o sextante para a cabina, estudava-o menos em termos de navegação do que de tempo propriamente dito. Sabia aproximadamente onde se encontravam - umas respeitáveis cento e quarenta milhas a leste do Huangpu, à média de sete nós e meio, com a corrente de leste a compensar o atraso devido à ondulação. E, como a carta não indicava coisa alguma em que embater até ao Japão, podiam contactar com a orientação celeste.

- Estou arrependida de não o ter liquidado, quando o podia fazer - admitiu Sarah, sem grande convicção.

Ele quase não lhe prestava a atenção. Percisava de traçar uma rota que aproveitasse o melhor vento - que rondava para oeste e diminuía de intensidade - e evitasse a tempestade que avançava na sua direcção. Não só os retardaria, como, no pouco profundo mar da China Oriental, a ondulação poderia voltar o Verónica. O barómetro e os boletins de outros navios chegados pela rádio pintavam o panorama geral. Stone precisava de saber com exactidão o que se passava no raio de noventa milhas em que o veleiro navegaria nas próximas doze horas.

Havia anos que lançara pela borda fora o seu fax meteorológico, vítima da humidade do Pacífico. Como não dispunha das cartas das camadas superiores da atmosfera que os postos transmitiam quatro vezes por dia, aprendera com extrema dificuldade a ler o céu como um monitor de três dimensões.

Nuvens altas começavam a invadir o firmamento, transportando faixas de cristais de gelo que se espessavam em largas manchas. Costumava ser difícil calcular a sua velocidade sem pontos de referência fixos no mar vazio, mas deslocavam-se rapidamente entre os dois horizontes, o que indicava grandes diferenças de temperatura entre a frente quente que se afastava e a fria, cada vez mais próxima.

Jactos fortes prenunciavam um tempo drástico.

Assim como o seu rumo, de noroeste para sueste.

E os cúmulos, a um nível mais baixo, que se moviam num sentido diferente, provenientes de oeste. Segundo a regra dos «ventos cruzados» de Watts, se uma pessoa se colocava de costas para o vento da superfície e o das camadas superiores vinha da esquerda, as coisas piorariam antes de melhorar. «Tempo baixo do lado esquerdo.»

Para situar o «vento certo» no seu lado direito, bastava que se voltasse e seguisse no sentido contrário. E, se o factor tempo e a velocidade se revestissem de menos importância, seria exactamente o que ele faria. Mas agora o tempo era essencial e a única dúvida consistia em saber se queria fugir à frente da tempestade ou cruzar o seu trajecto e tentar deslizar através do canyon entre os dois sistemas.

O Ocean Passages assinalava uma peculiaridade da monção de nordeste - atenuava-se à frente de uma depressão. Stone já estava a notar o efeito, pois o vento abrandava de intensidade, e ponderou se lhes poderia retirar a velocidade de que precisavam para atravessar a tempestade. A única boa notícia consistia em que o céu se encobria cada vez mais, e as nuvens espessas sugeriam uma pequena baixa. E, segundo o Ocean Passages prometia, a monção retrocederia assim que a baixa se distanciasse.

Ele desceu a escada mais uma vez para observar a carta que traçara. A frente fria encontrava-se relativamente perto do ponto de origem, jovem e activa, e talvez conseguisse afastar a depressão rapidamente. Talvez. Voltou a esquadrinhar o céu e imaginou a densa camada de nuvens que a precederia.

Decidiu arriscar-se. Em vez de atravessar a baixa transversalmente ou retirar-se atrás dela, seguiria ao seu sabor e acalentaria a esperança de que tudo se solucionasse da melhor maneira.

Sarah concordou, o que o tornou um pouco apreensivo, pois nunca se mostrara partidária de correr riscos dessa natureza. Mas, desde que estavam separados de Ronnie, comportava-se sem a prudência usual.

- É o meu quarto - anunciou Stone. - Aproveita para dormir.

Ela desceu a escada obedientemente, mas, em vez de se deitar, começou a limpar a cozinha, apenas vagamente consciente de que já o fizera cerca de duas horas atrás. Nunca se sentira tão encurralada a bordo. Era como afogar-se numa jaula. Por cada sopro de vento que os impelia para a frente, havia uma onda de sinal contrário. Por cada duas horas ao leme, outras duas eternas na cabina, incapaz de dormir.

Sarah não parava de tentar convencer-se de que Mr. Jack estava encantado com Ronnie, como todas as pessoas que a conheciam. Mas o ancião era imprevisível. E totalmente impossível de refrear.

Quem o desafiaria? Moss? Nem por sombras. Quanto ao comandante, carecia do mínimo poder e a tripulação achava-se isolada da sala do trono de Mr. Jack.

Passava o esfregão de aço pela superfície do fogareiro pela enésima vez quando se deu conta de que o barco oscilava menos. O ruído da proa ao cortar a água atenuara-se, reduzido a pouco mais que um murmúrio e o vento quase parara. Impossível, pois rogavam ao sabor dos alísios e da monção.

Precipitou-se para a base da escada e abriu a porta.

- Michael!

Ele parecia ter reforçado as precauções no velame e exibia uma expressão algo apreensiva.

- O que fazes?

Sem a olhar, Stone inclinou a cabeça para a ré.

Agora, Sarah viu em pormenor aquilo que a vista registara apenas como escuridão, quando assomara à coberta. O horizonte aproximara-se. Assemelhava-se a um conjunto de velhos edifícios de uma cidade de pedra. A nebulosidade formara aquela aparição, nuvens que se acumulavam num céu cinzento e escureciam à medida que constituíam uma espécie de tecto que quase tocava na superfície do mar.

A área branca era água levantada por uma linha de borrasca que precedia a frente como dragões que galopassem diante de um esquadrão de infantaria para produzir o primeiro sangue. Stone soltou a vela da bujarrona.

- Vai buscar a de carangueja! - gritou.

Ela já começara a descer a escada e correu para o lado da proa da cabina, onde se situava a arrecadação.

Assim que encontrou a vela pedida, regressou apressadamente à coberta, onde, nos minutos imediatos, ambos concentraram os esforços para enfrentar os elementos com a maior segurança possível.

Entretanto, o vento aumentava de intensidade. O Verónica inclinou-se para a frente e afundou a proa na ondulação, mas o velame acabado de rectificar não tardou a resistir ao ímpeto e permitiu o reequilíbrio.

Pouco depois, uma vaga mais impetuosa sacudiu o barco de estibordo para bombordo e Stone viu-se projectado contra uma das escoras. Ouviu um estalido seco e Sarah, que se encontrava perto, caiu igualmente. Ela conseguiu erguer-se com prontidão, porém o marido lutava na periferia da inconsciência. De súbito, a boca e nariz encheram-se de água salgada glacial e ele foi abalado por convulsões para tentar respirar.

O barco endireitou-se com brusquidão, o que os fez rolar na coberta em direcção à cabina. Sarah recompôs-se primeiro e gritou:

- Consegues tomar conta do leme?

- Estou bem, não te preocupes.

- Então,   aguenta-te,   que vou buscar os primeiros-socorros.

Desceu a escada com a maior rapidez possível e reapareceu no momento imediato com pensos e ligaduras.

- Magoaste-te? - quis saber Stone, segurando a roda do leme com todo o vigor possível.

O mar apresentava-se agora agitado e irregular como uma

série de serrilhas de facas e a espuma que o vento lhe soprava

para os olhos tornava quase impossível distinguir a ondulação

da proa do Verónica.

Sarah voltou-se para ele, firmou-se rodeando o suporte da bitácula com as pernas e passou-lhe pelo rosto uma toalha de mãos, que ficou manchada de vermelho.

- Que te parece? - perguntou Michael.

- Deves escapar - admitiu ela, numa tentativa para aliviar a tensão.

Ele conseguia enxergar melhor, agora que o sangue tinha sido retirado dos olhos. O barco não se mostrava particularmente afectado pelo temporal. No entanto, o mar da China era uma massa de água que se agitava fortemente. O céu enegrecera e as velas mantinham-se tensas, rangendo cada vez que se verificava uma rajada.

- Vai lá para baixo! - indicou Stone. - Não adianta nada que sejamos espancados pelos elementos ao mesmo tempo... Para onde estás a olhar?

Sarah inclinara a cabeça para trás e fixava a vista no calcês. Ele teve uma estranha sensação de alarme. «O que lhe escapara?»

- A antena está em ordem?

Ela referia-se à do rádio, que permitiria a comunicação do dia seguinte com Ronnie.

- Vai lá para baixo - insistiu o marido. - Experimenta o rádio e depois tenta dormir.

Sarah desviou os olhos do calcês e contemplou o mar embravecido com uma expressão de rancor.

Uma hora de vento forte converteu o mar pouco profundo num ambiente caótico. Ao leme, Stone quase se limitava a impedir que o rumo sofresse alguma alteração mais radical, pois as vagas avolumavam-se e arremetiam como touros, alagando a coberta, que, por sorte, devido ao perfeito sistema de escoamento, não tardava a ficar liberta da água.

Outro barco menos assistido há muito que teria sido destruído. Mas o Verónica nascera no Báltico - outro mar malevolamente pouco profundo -, pelo que o casco podia sujeitar-se a uma punição violenta.

O anemómetro registava rajadas de quarenta nós, com um temporal de força 8 e tendência para 9. As cristas das vagas desfaziam-se e espalhavam longas linhas de espuma densa. O tumulto tornara-se tão agitado que, durante longos momentos, Stone tinha dificuldade em respirar.

Sarah entreabriu a porta de protecção da cabina inferior, rastejou ao longo dos degraus da escada e estendeu a Michael uns óculos de mergulhador. Segurou o leme, enquanto ele os punha, e voltou para baixo. Quando tornou a aparecer, fazia-se acompanhar de uma garrafa que continha cacau.

Stone pressentiu uma sombra atrás de si, quando pegava na garrafa, enquanto os olhos dela se inundavam de incredulidade. Ele voltou-se e avistou uma massa de água densa e elevada como uma muralha, que perseguia o barco como um edifício de dois pisos. Acto contínuo, tentou colocar a ré na perpendicular do monstro que avançava.

Toneladas de água, pesada como chumbo e negra como a noite, derrubaram-no contra o anteparo, obrigando-o a largar a roda do leme e rastejar. No instante seguinte, os dedos da mão direita rodearam a suavidade escorregadia da bota de Sarah.

A ré pareceu cravar-se no mar, enquanto a proa apontava ao céu. A água inundou-lhe as calças, blusão e botas e, de repente, o chão faltou-lhes debaixo dos pés, quando o Verónica recuperou a posição relativamente horizontal. Durante um longo momento, a cabina pareceu uma banheira. Por fim, a água foi-se escoando, enquanto Stone continuava a segurar o pé de Sarah.

Esta jazia de costas, os olhos arregalados cravados no mastro.

- Estás bem? - vociferou ele. Entretanto, uma das luvas soltara-se de uma mão.

- E a antena? - proferiu ela no mesmo tom, apontando.

Stone retirou os óculos e colocou a mão sobre a fronte, para evitar que a espuma lhe dificultasse a visão. Continuava no seu lugar.

A cabina era um ninho de víboras de corda encharcada. As velas tinham sido arrancadas parcialmente. No entanto, as principais permaneciam intactas. Stone reforçou as amarras e corrigiu o rumo.

- Conduz tu - indicou. - Tenho de aliviar um pouco a bujarrona porque estamos a ir demasiado depressa.

Procedeu à correcção, não sem partir algumas unhas da mão desprotegida.

O barco começou a emitir uma espécie de gemido surdo e o vento tornava a soprar com intensidade. Apesar do alívio da bujarrona, o Verónica voltava a aumentar de velocidade e a mergulhar a proa de onda para onda. A atmosfera estava positivamente líquida, numa mistura de espuma e água da chuva torrencial.

Stone dirigiu um olhar fatigado à vela de carangueja. A manobra a que se dedicara com a bujarrona deixara-o quase sem forças. Todavia, a carangueja, um minúsculo triângulo de tecido espesso, contribuía para a velocidade excessiva. Sarah assentiu com uma inclinação de cabeça. Tinha de ser retirada. Colocou-se mais uma vez atrás da roda do leme, enquanto Stone rastejava para a frente.

Passara uma hora desde que ele regressara à cabina.

Ela tentou mandá-lo para baixo, mas o marido achava-se impossibilitado de a comprazer, embora quase não se aguentasse de pé. Entretanto, o Verónica, apesar da destruição que imperava no velame, singrava a oito nós horários. E as entranhas de Stone segredavam-lhe que, se o vento aumentasse de intensidade ou a ondulação se acentuasse, o barco teria de lutar para conservar a existência.

O gemido na enxárcia converteu-se num guincho.

Era um som que ele apenas ouvira duas vezes, no passado: a primeira numa zona a mil milhas da cidade do Cabo, e a outra durante um tufão que varrera metade das Filipinas.

Stone estava abismado com a forma errónea como avaliara a depressão. O tempo parecia ter parado. Ele tornou-se vagamente consciente de que deixara de se preocupar e a exaustão e hipotermia incipiente separavam a mente do corpo. Nada lhe interessava. Talvez sentisse um pouco menos de frio. Precisava apenas de umas boas horas de sono. Fecharia os olhos e dormiria.

- Michael!

- Hem? - Tinha um ardor intenso nos lábios. - O que foi?

- Bebe isto. Acorda!

Chá quente e doce, espessado pelo açúcar, como um xarope aquecido. Como Sarah o conseguira preparar com o barco a ser sacudido implacavelmente era uma coisa de que talvez nunca viesse a inteirar-se.

- Não morras! - exclamou ela. - Olha para mim! Ele bebeu e Sarah foi buscar mais chá. Michael ingeriu

metade e ofereceu-lhe o resto.

- Pronto, estou bem.

Em seguida, gradualmente, começou a compreender que voltava a preocupar-se com Ronnie. Dir-se-ia que a sua mente registara uma pequena alteração na tempestade, um abrandamento do perigo. Apurou os ouvidos. O uivo do vento baixara um decibel. O mar mantinha-se caótico e continuaria a sacudi-los durante horas, porém o vento rondava para noroeste, norte, nordeste e, finalmente, ele e Sarah permitiram-se trocar um olhar de esperança.

Alvorada, dois dias a leste de Xangai - ondas cavadas moviam-se sob um céu sombrio e a chuva fria alagava as velas.

O Verónica singrava corajosamente, agora com outro velame. O mar da China Oriental era cinzento, o horizonte obscuro, opressivamente próximo e o firmamento tão carregado que, quando Sarah emergiu das entranhas do barco para o substituir, às oito horas, Stone ainda se guiava pelo clarão avermelhado do mostrador da bússola.

- Estou arrependida de não o ter liquidado, quando o podia fazer - voltou ela a dizer.

Exprimia-se como se a ideia fosse recente. No entanto, proferia a frase em cada mudança de quarto - única ocasião em que se viam - e acontecia com frequência serem as suas únicas palavras. Ele estendeu o braço para lhe pegar na mão, mas ela opôs-se.

- Não adiantavas nada com isso. Foi o outro que se apoderou da Ronnie.

- O Moss é uma máquina. Sem o velho, não vale nada. Stone não podia concordar que o negro não valia nada. Não

lhe abandonava o espírito a imagem do gigantesco indivíduo a pairar suspenso da corda como uma ave de rapina.

- Faltam quatro horas - lembrou, esperançado em acalmar Sarah ou pelo menos distraí-la com pensamentos mais alegres.

Ela ergueu os olhos para a antena de rádio no calcês.

- Inspeccionaste o rádio?

- Faço-o assim que descer.

Ele sintonizara-o para captar o boletim meteorológico de duas em duas horas e certificara-se de que funcionava perfeitamente.

Sarah tomou conta do leme e Stone disse:

- Vou ver se passo pelas brasas. Se o vento aumentar, chama-me.

Acordou uma hora mais tarde e sentiu que o barco se deslocava com demasiado velame. Subiu à coberta e viu que parara de chover, mas o vento e a espuma que saltava para bordo eram mais frios. Sarah acompanhou-o com o olhar, enquanto inspeccionava as velas e introduzia algumas pequenas alterações.

Entretanto, ela sofria em silêncio e ele procurava tratá-la com a ternura que a sua própria ansiedade permitia. No entanto, o sono interrompido e o frio que sentia com intensidade estimulavam-lhe a revolta.

- Também a amo! - articulou entre dentes. - Verás que tudo se resolverá pelo melhor.

- Estás bem, comandante - assentiu Sarah, com um vislumbre de sorriso. Não pôde, porém, conter-se de acrescentar: - A minha filha precisa de mim.

- Tenhamos fé num final feliz - insistiu ele, encorajadoramente.

Stone preparou o piloto automático para o utilizar e poder reunir-se a Sarah no momento em que Ronnie comunicasse pelo rádio. Aquele sistema de condução não era o mais seguro num mar ainda encapelado. As ondas não paravam de imprimir desvios à popa, o que retardava a velocidade. Ele acabou por ligar o gerador, a fim de conseguir uma maior segurança no piloto automático.

Quando faltavam cinco minutos para o meio-dia, esquadrinhou o horizonte atentamente e em seguida desceu a escada para o calor relativo da cabina. Sarah permanecia sentada diante do rádio, com o microfone na mão.

De súbito, a voz de Ronnie brotou do altifalante:

- Ronnie chama o Verónica. Ronnie chama o Verónica.

- Meu Deus, Michael! - balbuciou Sarah. - É ela! - Aproximou o microfone dos lábios. - Escutamos-te, querida. Adiante.

- Mamã! Estão bem?

- Sim, querida. E tu?

- E o papá?

- Eu também, querida. Estamos ambos bem.

- Estava muito preocupada por causa da tempestade.

- Não tivemos problemas especiais - assegurou-lhe Stone. - O Verónica portou-se à altura dos seus pergaminhos.

- Escuta, papá. Mamã. Sabem a quem me refiro por Pai Natal?

- Sim, querida.    

- Prometeu presentes valiosos, quando chegarmos.

- Achas que cumprirá a promessa?

Seguiu-se uma breve pausa. A mão de Sarah apertou a de Stone instintivamente. Este imaginou o velho, de roupão, debruçado sobre Ronnie de um lado e o possante Moss do outro. Por fim, a voz da garota reapareceu em parte de uma frase:

- ... cumpre-as sempre.

Stone volveu o olhar para Sarah, cujo rosto deixava transparecer uma tensão controlada. Ronnie não parecia receosa de coisa alguma. Contudo, ela cobriu o microfone com a mão e murmurou:

- Há alguma coisa que ela nos oculta.

- Mas acredita que ele a libertará.

- Sim, dá essa impressão. - Retirou a mão. - Estás a alimentar-te convenientemente, Ronnie?

- Sim, mamã. Mister... O Pai Natal disse ao cozinheiro que fritasse batatas aos palitos. E a Coca-Cola não falta. Antes de partirmos, haverá um lauto jantar chinês, que se mandará vir do melhor restaurante da cidade.

- O que vais comer?

- Pato à Pequim.

- Demónio... - grunhiu Stone, enquanto Sarah se mostrava impressionada.

Com efeito, Ronnie detestava pato. Uma ocasião, na Nova Zelândia, ficara indisposta e vomitara, depois de o comer. Não havia dúvida: ela tentava dizer-lhes algo.

Ele pegou no microfone e proferiu:

- Querida? - Como formularia a pergunta? - Escuta: Quando tenciona o Pai Natal partir?

Após uma breve pausa, surgiu a resposta:

- O Pai Natal diz que nos afastaremos muito a tempo.

- Perdeste uma grande tempestade.

- Sim?

- Ventos de cinquenta nós.

- Estás a brincar.

- Não, era mesmo cinquenta. Havias de te divertir, se estivesses presente.

- Está a ouvir, Mister... Pai Natal? A mamã e o papá superaram

Ventos de cinquenta nós. O quê ? ... Papá: o Pai Natal pergunta se precisam de velas novas para o Natal.

Diz-lhe que a única coisa que quero é o meu pequeno imediato.

- Bem, tenho de me retirar. 0 Pai Natal diz que voltaremos a falar depois de manhã às dezasseis horas.

- Adeus, querida! - quase gritou Sarah, embora consciente de que a sua voz se perdia no éter.

Stone mastigou uma imprecação.

- Voltaremos a falar depois de amanhã – murmurou ela. V Valha-nos isso.

- A Ronnie pareceu-me bem.

- Sim, atendendo às circunstâncias.

- O que te parece que tentava dizer-nos?

- Não faço a menor ideia.

O Verónica sofreu nova guinada. Quando Stone subiu à cabina da coberta, desviara-se noventa graus de rota. Apressou-se a rectificar a direcção, desligou o gerador e o piloto automatico e esquadrinhou o céu em busca de uma aberta pela qual o sol pudesse penetrar. A nebulosidade, cuja altura se elevava à medida que a depressão se afastava, ainda era muito espessa. Ele não determinava a localização desde que se haviam distanciado da bóia de Yangtze. Os primeiros cálculos situavam-nos a um dia e meio do estreito de Osumi, mas a ondulação podia tê-los desviado milhas do rumo pretendido.

Entretanto, reflectia: «Porquê às dezasseis horas, e não ao meio-dia, como hoje?»          

Sarah acudiu à coberta, pois era a hora de iniciar mais um quarto de serviço.

- Creio que pretendia prevenir-nos – opinou.

- De quê ?

- Não sei. E acho que ela tão – pouco o sabe ... Em todo o caso, sinto-me muito mais descansada, agora que lhe ouvimos a voz.

- Ele terá descarregado algum gás naquela central eléctrica ?

- Apenas o suficiente para aliviar o peso para entrar no rio.

- Porque não venderia toda a carga?

- Compreendo.                  

 

Moss sorria de orelha a orelha, quando Mr. Jack entrou na ponte. O monitor do CPI expunha uma carta da área oriental do mar da China. Quiuxu, a maior ilha a sul do Japão, penetrava nele como uma língua e formava a costa norte do estreito de Osumi. Moss premiu duas teclas e surgiram linhas de posição no ecrã. A segunda cruzava a primeira e a terceira interceptava-as perto do ponto de cruzamento, para formar um triângulo apertado.

- Cá estão eles.

Mr. Jack estudou o ecrã e inclinou a cabeça.

- Muito bem. Segue para o aeroporto. Mas não subestimes aqueles dois. O comandante ainda não se convenceu de que saíram incólumes da tempestade.

- Nunca enfrentaram uma como eu - observou Moss, com um sorriso.

- E faz o possível para não te deixares apanhar pelos «japões».

- Sabe que pode confiar inteiramente em mim.

O ancião estendeu o braço e pousou a mão mutilada no ombro do negro.

- Eu sei, com efeito. Mas não queria perder-te. Entendes? O outro quase chorou de gratidão. E Mr. Jack pensou, não pela primeira vez, que era necessário fazer muito pouco para tomar posse da alma de um homem solitário.

 

- Para quê vender o gás em Tóquio, quando tem tantos conhecimentos na China?

- Talvez algum japonês lhe oferecesse mais dinheiro. Os raios solares irromperam ao princípio da tarde do dia

seguinte ao da comunicação com Ronnie, 360 milhas a leste de Xangai, 130 a sudoeste de Nagasáqui e a menos de 120 do estreito de Osumi. Com um pouco de sorte, se o tempo calmo se mantivesse, ao anoitecer talvez avistassem os primeiros clarões do farol de Kusakaki.

A monção de nordeste ainda se mostrava ameaçadora - ventos de cerca de vinte e cinco nós -, pelo que o velame do Verónica continuava reforçado. Contudo, o mar, em comparação com o que haviam suportado, achava-se quase calmo. Uma tonalidade azul-marinho demarcava as águas do Pacífico japonês do mar da China Oriental.

Uma hora depois dos cálculos de Stone do princípio da tarde, eles avistaram os primeiros navios. Um cargueiro que transportava veículos provinha de leste, rumo a Xangai ou Hong Kong. Outro, aparentemente mais leve, ultrapassou-os a vinte nós, em direcção ao estreito de Osumi, e não tardou a distanciar-se.

O céu quase limpo estava sulcado de esteiras de «jactos» que convergiam para Tóquio. Embora Sarah e Stone ainda se encontrassem a umas seiscentas milhas e quatro duros dias de navegação da cidade, algo que se relacionasse com a aproximação do estreito e das primeiras ilhas principais do Japão levava-os a sentir que o objectivo estava ao seu alcance e o pior já passara.

Quando ele a substituiu às duas horas, ela ficou na cabina a seu lado. Conversaram calmamente, ponderando os méritos relativos de ficar em Tóquio para visitar a família de Hiroshi ou navegar para sul, em direcção a águas mais quentes. Animava-os um pouco simularem que não se levantaria qualquer obstáculo ao regresso de Ronnie e a vida regressaria à normalidade dentro de poucos dias.

A claridade de Inverno desapareceu do céu e começaram a cintilar algumas estrelas. Enquanto percorriam a coberta para inspeccionar mais uma vez as velas, começaram a notar um clarão intermitente no horizonte. Ilusório, a princípio, materializou-se como um vago halo - o farol de Kusakaki, cuja luz brilhava a intervalos de vinte segundos.

A marcha de aproximação começou cerca de vinte e cinco milhas adiante. Sessenta milhas depois, entrariam no estreito de Osumi. Depois, um desvio de trinta graus para a esquerda - se o vento o permitisse - e nordeste, rumo à baía de Tóquio.

Oito horas mais tarde, à uma da madrugada, Stone encontrava-se em baixo, depois de manter uma conversa pelo rádio VHF com o terceiro-imediato de um transporte de minério coreano que seguia para Iocoama e os ultrapassara a dezasseis nós a meia milha de bombordo.

- Farol branco de dezasseis segundos ao largo de estibordo - anunciou Sarah, do topo da escada.

Ele consultou a carta, onde marcara a posição que o coreano lhe dera, e a lista de faróis.

- E o de Satã Misaki, na ponta sul de Quiuxu - informou. - Procura um de quinze segundos, vermelho, a estibordo. Duvido que o consigas avistar por enquanto, pois encontra-se a cerca de vinte milhas.

Passados uns momentos, Sarah comunicou:

- Estou a vê-lo! Vermelho, de quinze segundos de intervalo.

Stone levou-lhe uma caneca de chá quente e informou:

- É o Kisika Saki. O idioma japonês dá comigo em louco. Saki significa ponto. Zaki também. Assim como misaki, hana, kaku e pii.

- Nós dizemos ponta, cabo, promontório. Porque não hão-de eles fazê-lo também de várias maneiras?

- Porque se supõe que são mais eficientes. Mas por que raio, se é tão rico como se diz, anda Mister Jack a roubar gás natural? Para quê estar com tanto trabalho por dez ou vinte milhões de dólares, se possui mais de cem vezes essa quantia?

- Talvez entrasse em bancarrota.

Ele pegou no binóculo e esquadrinhou uma massa confusa de luzes entre o barco e Quiuxu, a dez milhas de bombordo. Tornava-se difícil distinguir os pesqueiros, barcos de cabotagem e navios dos edifícios em terra.

- Um autêntico carnaval - comentou.

Alterou a focagem. As luzes de terra dissolveram-se em linhas de minúsculos pontos e as lentes revelaram o pulsar da corrente alterna. As luzes do mar, que funcionavam a corrente contínua, brilhavam firmemente.

- Bem, aguardamos até nos encontrarmos mesmo entre Satã e Kisika e rumamos a este-nordeste, zero-seis-zero.

Passaram toda a noite na cabina da coberta, dois pares de olhos para observar as embarcações. O vento norte começou a rondar para leste. Na escuridão das quatro da madrugada, o barco parecia encontrar-se entre o clarão de Satã Misaki à distância de bombordo e o de Kisika Saki do lado de estibordo, o que indicava que estavam a meio do estreito de Osumi. Ao mesmo tempo, o vento rondara para o rumo de 060 graus.

O mais perto que podiam navegar era a 075, o que os levaria cada vez mais para o largo, pois o arquipélago japonês alongava-se para nordeste. Sarah mostrava-se apreensiva e Stone, animado pelo chá e pelas barras de chocolate que ingerira e pela alvorada iminente, mantinha uma atitude mais filosófica, e, brandindo a carta, disse:

- Não te preocupes. O que perdermos distanciando-nos da costa recuperaremos com o impulso da corrente de Kuroshio.

Kisika Sali atenuou-se até ficar reduzido a um ténue clarão atrás deles, enquanto à frente o céu cada vez mais nítido revelava o mar das Filipinas.

Era profundo, um braço do Pacífico, com água escura e ondulação larga e regular. A monção soprava vento de velocidade uniforme, procedente do Norte.

Ao meio-dia, Stone levou a Sarah massa e queijo e tomou conta do leme, enquanto ela comia.

- Lembrei-me de uma coisa - declarou ele. - Podia ter vendido o gás à China, antes de seguir para Tóquio.

- É possível. - Ela bocejou. - Parece utilizar o Dálias Belle como seu iate privativo.

- Precisas de dormir. Não há ninguém por aqui além de nós, as galinhas1. Eu acordo-te à hora de falar com a Ronnie.

Às três e meia da tarde, desceu a escada para a chamar e ligar o rádio de banda lateral. Às quatro menos cinco, activou o gerador e o piloto automático. Às quatro em ponto - dezasseis horas -, a voz de Ronnie surgiu, forte e clara.

- Ronnie chama o Verónica. Ronnie chama o Verónica.

- Estamos a ouvir-te, querida. Como estás?

- Como estás, mama?

- Óptima. E tu?

- E o papá?

Stone inclinou-se para o microfone.

- Muito bem, querida. E tu?

- Estupenda.

Eles aguardaram, mas «Estupenda» foi a única coisa que obtiveram.

- Tens comido bem?

- A comida é excelente, mamã. Comi tanto pato que ainda acabo por grasnar... Como estás?

- Que diabo estará a querer dizer-nos? - murmurou Stone.

- Estamos a navegar em condições muito satisfatórias. Com vento favorável. Um tempo límpido como o vidro durante toda a tarde.

Stone resolveu entrar mais directamente no assunto:

- Sempre te vamos tornar a ver pelo Natal?

 

1 Alusão a uma composição popular nos anos quarenta intitulada Ain 't Nobody Here but Us Chickens. (n. do T.)

 

- Com certeza, papá!

- O Pai Natal promete?... Repito: o Pai Natal promete?

- Sim. Ele diz que sim.

- Podemos falar com ele por um momento? Novo silêncio e, por fim:

- O Pai Natal diz que só fala com as crianças.

- Filho da mãe.

Stone entregou o microfone a Sarah e afastou-se para a escada.

- Quando partem? - ouviu Sarah perguntar.     "

- Hoje mesmo.

«É curioso», reflectiu ele. «Se tencionam partir hoje, um navio que faz vinte e dois nós pode chegar a Tóquio vinte e quatro horas antes do Verónica.»

- O Pai Natal diz que temos de nos despedir. Adeus, mamã. Adeus, papá.

- Espera! Pergunta-lhe se continua a vigorar o combinado de à mesma hora, no mesmo sítio.

- O Pai Natal diz que sim.

- Voltaremos a falar pela rádio?

- Ele diz que não.

Sarah conservou-se imóvel por uns instantes, imersa em reflexões, e ele pousou-lhe a mão no ombro.

- Oh, Michael...

- Que tentava ela dizer-nos? Comeu pato? Vomitava à primeira dentada.

Procuraram reconstituir as palavras trocadas, numa tentativa para encontrar mais elementos de código. O Pai Natal era obviamente Jack Powell, que não a autorizara a dizer muito. Apenas que o Dálias Belle estava prestes a zarpar.

- Disse: «Comi tanto pato que ainda acabo por grasnar.»1

- Os patos grasnam.

- Lembras-te de quando era pequena?

- «Walkie-squawkie.» O rádio! Ela tem o meu portátil... Estava a querer lembrar-nos precisamente isso!

- Mas teríamos de estar a uma distância máxima de

 

1 Squawk. (N. do T.)

 

quarenta, quarenta e cinco quilómetros para captar o sinal de um VHF.

- Ela sabe isso.

- Que raio quererá aquele velho lunático? Não conduziu o Dálias Belle a Xangai só para se embebedar com os generais. Foi efectuada uma readaptação naquele estaleiro.

Sarah estremeceu e sentiu-se como se o tremor se propagasse à mente.

- Temo-nos preocupado tanto com a Ronnie que nunca nos concentrámos no que diabo pretende o homem - observou Stone.

Ela tornou a tremer. De súbito, fazia-se-lhe luz no espírito, sem margem para qualquer dúvida.

- Quer o mesmo que tu querias,   quando perdeste a Katherine.

- Eu queria os monstros eliminados do planeta.

- Por outras palavras, vingança. É o que o velho pretende.

- Mas disseste-me que apanhou o tipo que o torturou.

- Ele atribui a culpa a todos os japoneses. Acho que deseja reabilitar-se por ter traído os seus amigos. Tenho a certeza de que deu com a língua nos dentes.

- Que espécie de vingança?

- Referiu-se várias vezes ao Natal em Tóquio.

- Quatro horas, véspera de Natal. A Torre de Tóquio... Mas isso faz sentido: um ponto de referência fácil nas proximidades do porto.

- Aludia muito a um Natal excepcional.

- O Dálias Belle transporta mais energia térmica do que uma central nuclear. Quem sabe se o alucinado pretende fazer ir Tóquio pelos ares? Santo Deus!

- E se. for o gás? Só que não o vai vender, mas detoná-lo.

- Não é possível. A explosão seria mil vezes pior que o terramoto de Kobe: destruição dos bancos, do mercado da bolsa, das sedes das grandes empresas, de toda a economia japonesa.

A mente de Sarah voltou a tremer.

- Ele e os chineses estão a comprar acções.

- Se forem vendidas em baixa, ficarão donos do planeta.

- E chacinarão doze milhões de pessoas.

- Juntamente com a Ronnie!

- Já está!

Moss achava-se sentado na cabina da frente de um barco de corrida oceânico de três motores, com telefones, localizadores de sinal e o seu computador portátil. As linhas de intercepção geradas pelo computador cruzaram-se no ecrã.

- Gaita!

Subestimará a velocidade do veleiro. Encontrava-se cinquenta milhas adiante do ponto que ele calculara. Cinquenta milhas de oceano aberto. E eles tinham parado de transmitir. Por fim, abriu a escotilha do tecto. Os mergulhadores olharam para baixo, à espera de ordens.

- Para leste - indicou. - Sigam!

Motores entraram em actividade e o casco começou a vibrar. Moss, que continuava na cabina, explicou a situação a Mr. Jack pelo telefone. Este último disse que contactaria pelo rádio com os médicos e deixá-los-ia falar, até que o negro conseguisse localizar o sinal. Dez minutos mais tarde, anunciou:

- Eles não respondem. Provavelmente, estão na coberta e não ouvem o sinal.

Moss tornou a abrir a escotilha. É claro que não podiam ouvir, se se encontravam na coberta. A humidade era elevada e o frio intenso. Sem um sinal de rádio como ponto de referência, não havia a mínima possibilidade de descobrir o malfadado veleiro antes de anoitecer.

- Temos de contactar pelo rádio com a Segurança Marítima Japonesa.

- Quem nos acreditará? Nós não existimos. E o barco tão-pouco. Até o nosso sinal de chamada é falso.

- E a Marinha dos Estados Unidos?

- Ainda são mais burocratas que os japoneses.

- A CNN? - sugeriu Sarah, que, no entanto, respondeu à sua própria pergunta. - Se provocamos o pânico, as forças de defesa japonesas destroem o navio no mar, e a Ronnie com ele.

- O Kerry McGlynn... não pode ser. A Lydia Chin? Está mais bem relacionada. E o Robert trabalha em Tóquio.

,   - Mas quem nos acreditará?

- De facto, ela não acreditou em mim, mas contigo talvez seja diferente.

Desceram a escada e sintonizaram o transmissor de banda lateral para o canal privado de Lydia Chin.

Moss reflectia que era um oceano enorme. O barco avançava de onda para onda e ele sentia que o estômago denunciava alguma revolta apesar das pastilhas contra o enjoo que tomara, além de que estava a anoitecer. E os médicos continuavam sem se ver.

- Senhor! - proferiu uma voz nos seus auscultadores. Era a do seu escuta de rádio em Kagoshima, na extremidade sul de Quiuxu. Estou a ouvi-los! Transmitem em dezanove-quarenta.

- Fixa o sinal!

- Já o fiz, senhor.

O negro sintonizou o seu aparelho de rastreio e em seguida telefonou ao Dálias Belle para informar Mr. Jack.

Este ficou profundamente encantado, até que ouviu os médicos falar.

Eles conseguiram obter um sinal forte para contactar com Lydia Chin.

- Tens a certeza absoluta? - perguntou ela.

- Sem a mais remota dúvida - assegurou-lhe Sarah, pela terceira vez.

Após um longo silêncio, de tal modo que Stone supôs que tinham perdido o sinal, Lydia anunciou:

- Vou voar para Tóquio.

- Obrigada. Estamos-te muito gratos. A resposta foi arrepiante:

- Mas devem compreender que, do ponto de vista dos Japoneses, as vidas de doze milhões de pessoas terão precedência sobre a de uma criança... desde que eu consiga convencê-los de que não se trata de uma brincadeira de mau gosto.

Os dedos dele crisparam-se em torno do microfone.

- Basta que os convenças a procurar um navio de transporte de gás de cinquenta mil toneladas que se dirige para lá! Diz-lhes que o abordem para uma inspecção de segurança em pleno mar. A última vez que o vimos, estavam a pintá-lo de negro. Um transporte de gás de cinquenta mil toneladas não deve ser muito difícil de localizar.

Restituiu o microfone a Sarah e subiu à coberta para tentar descortinar um navio que reunisse as condições que acabava de mencionar. A água parecia deserta, até que, milhas atrás do barco, a noroeste, onde a noite de Inverno que avançava ainda não escurecera o mar, detectou movimento.

O Verónica descia uma onda que acabara de subir, e Stone perdeu-o de vista, pelo que se apressou a ir buscar o binóculo.

O veleiro atingiu a crista seguinte e tornou a avistá-lo, mais perto.

- Que demónio?... Sarah!

Precisava dos olhos dela. Sentindo uma urgência repentina, passou-lhe o binóculo.

- Olha para o lado da ré. A umas cinco ou seis milhas. Ela obedeceu e, transcorrido um momento, decidiu:

- É um barco pequeno motorizado. E segue directamente para aqui.

- De onde raio virá? Estamos a mais de cem milhas de terra... - Stone desceu a escada apressadamente e proferiu para o microfone: - Aguenta um momento, Lydia.

O binóculo revelou um barco de corrida oceânico da classe Cigarrette, do género preferido pelos traficantes de droga, que avançava à velocidade média de cinquenta nós.

- Será da Alfândega japonesa?

- É impossível de determinar.

- Ou isso ou da Guarda Costeira. Talvez esses nos prestem atenção.

- Não vejo nenhuma bandeira japonesa.

Stone olhou em volta, mas não se achava visível qualquer navio.

A quatro milhas, ouviu os motores, um rumor staccato, surdo, porém a intensificar-se. Também era audível um boom cada vez que o casco deixava de contactar parcialmente com a água e pousava ruidosamente na onda seguinte. Quando se encontrava a meia milha, assumiu uma posição paralela à do Verónica. Sarah moveu-se para junto de Stone, que lhe rodeou a cintura com o braço.

Quando o casco negro se ergueu de novo, foi de súbito iluminado por uma espécie de relâmpago. Ouviram um bang agudo e, incrédulos, viram um cilindro escuro cruzar a água na sua direcção.

- Anima-te, amiga. Vamos a caminho.

Ronnie continuava sentada na cadeira do operador de rádio, agitando os pés e com o olhar fixo no transmissor. Mr. Jack colocou na cabeça um boné coberto com uma insígnia dourada e entregou outro mais pequeno à garota.

- Chegaram os rebocadores, Mister Jack.

- Bem, temos de dar uma ajuda ao comandante.

Ela aceitou o boné e experimentou-o. A semelhança de todas as peças de vestuário que ele lhe dera, servia perfeitamente, e perguntou-se se teria chamado empregados de lojas para lhe tirarem as medidas, enquanto dormia.

- E veste a parka, pois faz frio lá fora. Não, a vermelha não. A do uniforme. Não se pode andar a bordo de um navio sem farda.

E, com efeito, ele trouxera outra parka, azul-marinha, que também lhe assentava com perfeição. Ronnie reparou que o nariz de Mr. Jack estava quase tão avermelhado como a parka que deixara na coberta para que Ah Lee a viesse buscar mais tarde. E tresandava a uísque.

- Bem, vamos. Depressa!

Fez menção de correr ao longo do corredor em direcção à ponte, mas na realidade limitava-se a andar um pouco mais rapidamente porque o ombro ainda lhe doía.

Ronnie seguia-o, com o coração pesado e o espírito alerta. Ao menos, Moss não se achava presente. Na verdade, não o via desde o dia anterior. Talvez tivesse caído ao mar. Não fazia falta, como a mãe reconheceria.

Na ponte, o comandante utilizava um walkie-talkie e viera a bordo um piloto chinês, e um marinheiro que ela nunca vira ocupava-se do leme. Não se podia avistar nada através das janelas da frente, mas os repetidores do radar estavam iluminados e a coberta vibrava em virtude do funcionamento das máquinas. Tudo parecia a postos para a partida.

O ancião abriu a porta para a ponte do lado de bombordo e fez-lhe sinal para que o seguisse. Ela não queria porque o frio era intenso. No entanto, ele já lá se encontrava, apontando e exigindo-lhe que espreitasse.

Os rebocadores emitiam colunas de fumo negro e denso e apitavam como alucinados. Dois puxavam cabos provenientes do Dálias Belle e o terceiro aguardava um pouco afastado. Como ficariam todos surpreendidos quando pudessem observar bem o barco! Com efeito não se parecia nada com o que tinham rebocado para atracar. O casco estripado que restava do velho paquete lembrava um prato de sopa vazio.

- Mister Jack! - chamou o comandante, assomando à porta. - Mensagem do rádio!

- Volto já, amiga. Não saias daqui.

Ronnie acompanhou-o com a vista enquanto desaparecia na ponte e aguardou, enregelada. Desde que Moss partira, tratava-a por «amiga», em vez de miúda. Era como se tivesse um amigo real, o que resultava sinistro porque se tratava de alguém que praticava o mal.

Mr. Jack pegou no supercodificado telemóvel, levou-o para a sala dos computadores, onde se encontrou só, e proferiu:

- O que há de novo?

- O míssil teleguiado acertou em cheio.

- O míssil? Pago-te,   porventura,   para seres estúpido, Moss?

- Não, Mister Jack.

- Porque não se aproximaram e lhe largaram uma granada no regaço? Trata-se de um veleiro, que diabo!

- O seu japonês não tinha nenhuma.

- Mas tinha um míssil. Estupendo!

- Além disso, para quê aproximarmo-nos, se havia esse tipo de projéctil?

- Já tinhas revistado o barco. Eles não dispõem de armas de fogo.

- Suponha que ele conseguiu uma em Xangai? Podia rebentar-me o canastro.

- Sabes perfeitamente que ele teria mais hipóteses de dormir com a filha do governador do que de comprar uma arma automática em Xangai.

- Pronto, está bem, peço desculpa, Mister Jack. Pareceu-me uma boa ideia.

- Alguém viu?

- Não. Estamos numa área totalmente isolada. A centenas de milhas de terra.

- Foram ao fundo?

- Estão a arder.

- Mas estão a afundar-se.

- Estão a arder! - repetiu Moss, irado. - Parece uma imagem de Bagdade na CNN.

- Certifica-te de que vão ao fundo.

O ancião guardou o telemóvel na algibeira e regressou à ponte. Ronnie colava o nariz à vidraça da janela. Talvez a adoptasse, pois tinha pena da garota.

Durante os cinco longos segundos depois de o míssil atingir o Verónica, Stone teve dificuldade em acreditar que continuavam vivos. Gradualmente, o fumo negro começou a irromper de ambos os lados do casco, seguido de chamas surpreendentemente intensas.

O atacante sobrestimara a resistência da fibra de vidro, e a ogiva - provavelmente destinada a perfurar blindagens - não detonara. O míssil atravessara o casco sem explodir, porém a sua cauda ardente provocara um incêndio.

Stone fechou a porta metálica da cabina do porão e correu para a proa, ao mesmo tempo que bradava:

- Os extintores!

Sarah abriu um pequeno compartimento e puxou um cordão vermelho, com o que activou os extintores de Halon que se encontravam na casa das máquinas e na cabina principal e uma cisterna de bicarbonato de sódio na cozinha. Em seguida, desligou o gerador, que consumiria o gás Halon. Por seu turno, Stone impeliu uma escotilha na coberta da frente, abriu a torneira de incêndios e arrastou a mangueira para a cabina de comando, enquanto Sarah aguardava junto da entrada do convés munida de um extintor portátil.

Enquanto esperavam que o Halon começasse a actuar - o ar proveniente da escotilha dissiparia o gás -, despiram os blusões de protecção do mau tempo, os quais eram de um produto sintético que se lhes colaria ao corpo. Entretanto, as chamas e fumo continuavam a irromper dos lados do barco.

Stone inclinou a cabeça e ela abriu a porta da cabina inferior, de que brotou uma nuvem de fumo negro. Em seguida, encheu os pulmões de ar e assomou com a mangueira.

Chamas bailavam em ambos os lados da cabina. Tanto o Halon como o bicarbonato de sódio não tinham conseguido extinguir o incêndio.

No instante imediato, um jacto contínuo de água brotava da mangueira. O míssil atravessara o barco à altura do posto de comunicações, onde, poucos minutos antes, Sarah se debruçava sobre o rádio.

- Agora, a bombordo! - gritou.

O combate ao incêndio prosseguiu até que, quase repentinamente, se estabeleceu a escuridão. As chamas tinham sido apagadas.

Depois, dedicaram-se a inspeccionar o Verónica minuciosamente, a fim de avaliar os estragos produzidos. O míssil abrira um furo de dez centímetros a bombordo e saíra por estibordo, onde a abertura tinha cerca de trinta. A água penetrava em torrentes, quando o barco se inclinava para esse lado.

- Eles aproximam-se! - advertiu Sarah.

Na verdade, Stone ouviu o ruído dos motores intensificar-se.

- Vai buscar o martelo e o cinzel! - indicou, enquanto levantava duas tábuas do chão com as ferramentas abriu um buraco na fibra do casco, revelando um compartimento, de onde extraiu uma caixa estreita com cerca de sessenta centímetros de comprimento.

Retirou a tampa e expôs uma arma de fogo e três carregadores.

- O que é isso? - perguntou Sarah.

Ele não respondeu imediatamente. Ela nascera em casa de um militar. Quer lhe agradasse, quer não, sabia identificar uma pistola semiautomática. E também não ignorava a futilidade de transportar meios de protecção que teria de entregar ao governo de uma ilha antes de cruzar as suas águas remotas e desguarnecidas.

- Uma Bushmaster - explicou. - Obtive-a de um mercenário.

Tecnicamente, tratava-se de uma pistola - talvez um pouco mais alongada que o habitual -, com uma coronha desdobrável, que permitia convertê-la numa espingarda. Patrick, o mercenário em causa, ensinara-o a manejá-la e a proceder à substituição dos carregadores com prontidão, numa emergência.

Stone introduziu um na culatra e desdobrou a coronha, preparado para o que tudo indicava que se seguiria.

Sarah espreitou pelo buraco que o míssil produzira do lado do posto de rádio e informou:

- Há três homens no barco. Dois atrás do pára-brisas, no espaço de condução. O Moss encontra-se de pé, atrás deles. Tem aquilo que parece uma espingarda suspensa do ombro. Não podes matar os três ao mesmo tempo, Michael.

Ele não sabia se se referia à capacidade física ou ao direito moral. Todavia, reconheceu que não podia perder tempo a tentar averiguá-lo e disse:

- Deita-te de bruços na coberta e tapa os ouvidos porque esta coisa faz barulho.

Sarah retirou os tampões dos ouvidos da caixa de ferramentas e aplicou-os, enquanto ele afastava o material electrónico destruído pelo míssil e se preparava para utilizar o orifício como seteira.

O barco encontrava-se mais próximo do que supunha. Duzentos metros, quanto muito. Seguia paralelamente ao Verónica a uma velocidade similar, enquanto Moss inspeccionava o veleiro com os binóculos.

Stone esforçou-se por assumir um desprendimento glacial. A vantagem da surpresa seria breve e, com uma única arma ao seu dispor, as condições não eram as ideais para uma batalha prolongada.

Ajustou a mira para duzentos metros, com dedos tão trémulos que teve de apoiar a arma no rebordo da abertura na fibra de vidro.

O som do disparo foi ensurdecedor, mesmo para Sarah, com os ouvidos obstruídos pelos tampões. Stone viu o projéctil cravar-se na água a curta distância do alvo e disparou cinco vezes, visando o casco.

Os dois homens que ocupavam o comando da embarcação agacharam-se, num movimento instintivo. Moss, porém, conservou-se empertigado e imóvel como uma estátua, puxou de uma arma alongada e apontou-a ao Verónica.

 

Stone premiu o gatilho mais uma vez e manteve o dedo pousado. O carregador ficou vazio em poucos segundos. Foi então a vez de Moss disparar. Uma bala de grande calibre atravessou a cabina, a trinta centímetros do rosto de Stone, que substituiu rapidamente o carregador e emitiu uma nova rajada.

O outro barco arrancou num solavanco que projectou o negro na coberta. Sem perda de um segundo, Stone esboçou um sorriso e disparou para a ré. Os potentes motores pararam imediatamente e o barco ficou a oscilar entre duas ondas.

Quando estas o ergueram mais uma vez, ele observou que se inclinava na ré, onde a tripulação se esforçava freneticamente para reactivar os motores ou extrair a água que penetrava pela abertura produzida pelas balas de Stone.

Mas o Verónica não estava muito melhor nesse aspecto.

- Temos de ligar a bomba sem demora - disse ele.

Enquanto Sarah se encarregava disso, ele pegou nas ferramentas e material. Vendo que o buraco era demasiado grande - mais ou menos do tamanho de uma bola de futebol - para um remendo de madeira cónico, aplicou-lhe um pedaço de vela e cola de secagem rápida, e depois vários remendos de fibra de vidro.

Entretanto, Sarah informava da aparição de numerosas luzes de pesqueiros e um ou outro navio de longo curso. Talvez algum recolhesse os eventuais sobreviventes do outro barco.

Depois de limpar o resíduo corrosivo do bicarbonato de sódio do extintor da cozinha, ele foi sentar-se ao lado de Sarah na cabina de comando.

- A comunicação pelo rádio foi uma armadilha. Ele sabia a hora a que a Ronnie falaria. Uma escuta no Japão, o Moss naquele barco e o velho em Xangai. Por outras palavras, triangulação. Muito simples. Mas porque nos atacaram? Foi tudo preparado muito antes de contactarmos com a Lydia.

- Vingança.

- De quê?

- Provocámos-lhe problemas, em Xangai. É assim que a mente dele funciona. Olho por olho.

Olharam-se em silêncio por um momento e menearam a cabeça com desalento. Stone começou a pronunciar a sua ideia seguinte, porém ela murmurou:

- Não o digas.

Não era necessário. A interrogação oprimia-os como a noite. O que se lhes depararia em Tóquio?

Stone passou pelo sono e acordou vagamente consciente de que Sarah dissera algo na escuridão.

- O quê?

- Onde conseguiste a arma?

- Em Manila. Quando a Lydia te levou e à Ronnie para Singapura.

- Ah... - O céu começava a empalidecer e havia o clarão das estrelas para a ver sorrir. - Ainda bem.

- Era sem dúvida um argumento de peso para andar armado.

- Não me refiro a isso.

- Então, a quê?

- Sabia que me escondias alguma coisa. Quando regressei de Singapura. Era um pressentimento inexplicável.   Pensava que tiveras uma aventura na praia.

- A minha aventura na praia és tu.

- Bem, sabes como as coisas são em Manila. Não era a Semana das Corridas? Supus... bem, sabes como essas coisas são.

- Mas por que diabo não me perguntaste? - Ela não respondeu. - E estás sempre a dizer-me que falo pouco! Porque não perguntaste, repito?

- Não sejas pateta.                                                                   - Não estou a ser pateta. Porquê?    

- Tive medo... Não queria saber.

- Santo Deus! Vem cá. - Stone rodeou-lhe os ombros com o braço e sentiu a rigidez... - Conheces-me bem. Sou um homem de uma só mulher, que és tu.

- Pois, nem sempre o deixas transparecer.

- Estarei na iminência de ser condenado por não ter tido uma aventura na praia?

- Não consigo acreditar que escondeste uma arma sem me dizer.

- Não estava disposto a discutir contigo por causa disso.

- Ou talvez quisesses apenas ter um segredo. Olharam-se em silêncio por uns instantes com empatia - o

seu pólo de atracção mútua -, ampliada naquela noite pelo medo e exaustão.

- E tu tens alimentado o teu. .-Qual?

- A minha aventura imaginária na praia.

- Já te disse que estava com medo.

- Ou querias ter uma coisa para erguer contra mim.

- Mas que ideia tão absurda! Para quê?

- Elucida-me. Tem havido uma certa distância, ultimamente. Eu imaginava que era por causa daquele assunto de Timor Leste... África.

- Falas como não se tratasse de causas legítimas. Os médicos experientes e disponíveis como nós deviam ir para África.

- Talvez não passe de um pretexto.

- Para quê?

- Para quererem abandonar esta vida.

- Eu amo a vida que levamos. Excepto termo-nos de esconder. E tu amas esconder-te.

Depois de continuarem a exprimir-se em círculos durante mais algum tempo, mantiveram-se sentados sós em espirais de silêncio.

Por fim, Sarah respirou fundo para criar coragem e pousou a mão na dele antes de dizer:

- Sabes uma coisa? É a Katherine.    

- O quê?!

- Passados tantos anos, ainda a amas.

O silêncio avolumou-se como um mar encapelado, e Stone fixou o olhar na noite, quase esperando que uma muralha de água se despenhasse na cabina.

- Também te amo - acabou por murmurar.

- O que me magoa é ainda teres saudades dela.

- És a minha vida e o meu amor. Tu e a Ronnie.

- Mas chamaste Katherine à mulher que te ajudou em Hong Kong...

- Foi o segundo nome em que pensei.

Stone receava ter dito demasiado. Ou insuficiente. Pressentia a morte no silêncio...

- O rádio está destruído.

- Não o podes reparar?

- Não resta nada para isso. Voou em pedaços. Assim como o radar.

Sem rádio de longo alcance, seria impossível contactar com Mr. Jack. Ou com Lydia. Sem ele, não haveria alarme de colisão nas concorridas linhas de navegação japonesas.

Sarah pousou-lhe a mão no ombro com firmeza.

- Nem radar, nem alarme de colisão ou rádio. A Ronnie tem o SPG. Conseguiste-o finalmente, Michael!

- Que consegui eu?

- Voltar à estaca zero.

Havia riso na voz dela, e Stone sentiu o coração expandir-se em direcção a esse som.

- O que dizes a levantar a coberta para ficarmos mais perto do mar?

- Emitiste um comentário jocoso, Michael! Não posso acreditar.

Ele abanou a cabeça e sorriu.

- Custa-me a crer que continuemos vivos. Aquele filho da mãe ia-nos matando.

Sarah soltou uma breve risada.

- Quem nos garante que não o conseguiu?

- Talvez estejamos no céu.

- Está muito frio para um lugar desses.

- De resto, ninguém sem vida poderia estar tão cansado.

A exaustão, alívio, medo e histeria reprimida irromperam em hilaridade. Estenderam os braços um para o outro e uniram os lábios no primeiro beijo real desde que haviam fugido de Xangai. As mãos entraram em actividade. Puxaram os fechos dos blusões e baixaram as calças, ansiosos por unir os corpos.

- Oh, meu Deus, Michael!... Cheguei a pensar...

Relutantes em se separar, ainda que por breves segundos, passaram a noite na cabina principal, envoltos em cobertores, revezando-se para passar pelo sono e observar os navios. Sarah sentia finalmente conforto, tanto exteriormente como no íntimo, congratulando-se por se poder impedir de pensar. No entanto, quando rompeu o dia, sentiu o corpo de Michael começar a tornar-se tenso, e o conforto esvaiu-se.

- Para onde vamos?

- Temos de determinar onde podemos estar suficientemente perto do Dálias Belle para falar com a Ronnie através do VHF.

Sarah seguiu Stone às entranhas do barco e debruçou-se sobre o seu ombro, enquanto percorria com o calibrador a carta chamuscada e molhada.

- Admitindo que partiram quando disseram, há quinze horas, e vão a vinte e dois nós, devem encontrar-se aqui, trezentas e trinta milhas a leste de Xangai e através do estreito de Osumi dentro de oito horas. Temos de rumar a norte e cruzar à sua frente. A vinte e dois nós, estarão no nosso encalço dentro de quinze ou dezasseis horas. Talvez nos reunamos aqui.

Tentou traçar um círculo sobre a rota do Dálias Belle, porém o lápis furou o papel molhado.

- E depois? - quis saber Sarah.

- Partindo do princípio de que todas as suposições estão certas, disporemos de um círculo de cerca de cinquenta milhas em que poderemos conversar... se obtivermos resposta... que o navio atravessará dentro de menos de três horas. Se conseguíssemos aproximar-nos o suficiente, talvez a Ronnie pudesse dar o salto.

- É muito perigoso.      

- Descendo por uma corda ou algo do género...

- Pois, directamente na área da hélice.

- Ao menos, poderemos falar com ela.

- Ele voltará a tentar matar-nos.

- Se não nos conseguir ver, duvido. Dentro de quinze horas, será noite.

- Isto é uma loucura, Michael. O que estamos a fazer?

- Ela enviou-nos uma mensagem. Informou-nos de que possui um rádio. Que outra coisa podemos fazer senão tentar aproximar-nos tanto quanto possível?

- E se o navio não estiver lá, que acontecerá?

- Continuaremos a navegar.

- Estudemos ideias melhores.

Mas enquanto a alvorada se esforçava por penetrar no denso nevoeiro que descia do Norte, eles voltavam sempre à mesma conclusão: o melhor que podiam fazer era tentar contactar com Ronnie através do rádio, ao mesmo tempo que seguiam para Tóquio.

Durante trinta horas, observaram, aguardaram e escutaram o VHF, na esperança de detectar a voz de Ronnie.

Stone transmitia na sua frequência de curto alcance através de uma antena de alto ganho, estendida nos estais da popa. A da unidade principal, de arame de aço como a outra de longo alcance, situava-se no topo do calcês, porém o respectivo rádio tinha sido destruído pelo míssil.

Passaram perto do promontório de Shiono Misaki, o extremo mais a sul de Honxu, mantendo-se a cerca de dez milhas de terra, perto da periferia exterior da linha de navegação em direcção a leste. O tráfego de navios era intenso, porém eles não avistaram o Dálias Belle.

A monção de noroeste soprava com intensidade, com um vento seco e frio. A corrente de Kuroshio deslocava-se com impetuosidade, três ou quatro nós a seu favor. Mas continuava a não haver notícias de Ronnie. E o mesmo se aplicava, naturalmente, a Lydia.

Eles especulavam sobre o que podia ter acontecido. Ou o transporte de gás passara durante a noite, quando Ronnie não podia encontrar-se só para utilizar o rádio, ou o navio não se dirigia para Tóquio. Ou ainda - e esta hipótese era a que lhes merecia a preferência - o Dálias Belle sofrera alguma avaria e procedia a reparações. Nessa eventualidade, o vento prodigioso e a «corrente negra» de Kuroshio arrastariam o Verónica para Tóquio, onde seria o primeiro a chegar.

Lydia Chin observava as luzes de Tóquio, que mantinham a noite à distância.

Com o marido, Robert, director principal do seu entreposto comercial no Japão, ela dispunha de um luxuoso apartamento com uma vista a que poucos habitantes da cidade se podiam permitir. Uma das extremidades da sala era sobranceira à Torre de Tóquio, símbolo de aço da recuperação japonesa do pós-guerra, e, na sua similaridade com a Torre Eiffel, um curioso exemplo da antiquada insegurança asiática dos anos cinquenta. Os edifícios eram obrigatoriamente baixos, com receio dos tremores de terra, e, em comparação com Hong Kong, Lydia achava que Tóquio, de muito maior superfície, lembrava um aglomerado maciço de hotéis de aeroporto e centros comerciais suburbanos.

Um singularmente polido cavalheiro, que representava a Agência de Segurança Marítima Japonesa, permanecia como uma estátua na sala, explicando, com um profundo respeito que não conseguia encobrir o desdém absoluto, que todos os temores que ela manifestara tinham sido investigados. Notava-se uma reserva típica dos ilhéus - o seu marido era inglês - e uma antipatia para com os estrangeiros. Ela descobriu-se a dominar a sua vivacidade cantonesa, como faria em Londres: tornar o sorriso hermético e semicerrar os olhos.

Não conseguia ver o porto de Tóquio, mas conservava na memória a vista de bordo do avião: uma vasta extensão de água negra que se afunilava no coração da cidade, brilhante com o clarão de milhares de navios em movimento.

Nos bairros comerciais, muitos escritórios tinham ornamentado as janelas com desenhos de árvores de Natal, flocos de neve, renas nórdicas e rotundos homens de neve quase in-distinguíveis do Pai Natal. Incontáveis janelas iluminadas, e atrás de cada uma um ser humano.

- Agentes representantes do americano Mister Jack Po-well confirmam que possui um transporte de gás natural liquefeito chamado Amy Bodman. Garantiram que se encontrava na doca seca, em Taiwan. Contactámos com as autoridades de lá, as quais nos garantiram a presença do navio.

- Quais são as suas dimensões? - perguntou Lydia.

- Desloca cinquenta mil toneladas.

- Alguém viu Mister Powell?

- De momento, dirige uma expedição de exploração de gás na Antárctida. Eu próprio falei com ele pelo rádio. Embora as condições da transmissão não fossem as melhores, mostrou-se muito atencioso e mencionou vários conhecidos mútuos na navegação de todo o mundo. Creio poder assegurar-lhe de que os seus temores não se confirmam. No entanto, estamos-lhe naturalmente muito gratos por se ter deslocado da China.

- Venho de Hong Kong - corrigiu, secamente. - Agradeço-lhe o incómodo com que esteve. Aceita uma bebida?

O japonês efectuou uma leve mesura.

- Não, obrigado. Prometi aos meus filhos chegar a casa cedo para embrulhar os presentes de Natal.

Lydia premiu um botão, a fim de chamar o empregado para trazer o sobretudo do visitante.

- Posso perguntar-lhe se é cristão?

- É claro que não. Mas trata-se de uma celebração agradável. - O homem fez uma breve pausa. - Posso garantir-lhe que a minha agência inspecciona minuciosamente todos os transportes de gás que entram no porto. E, em virtude da sua... informação, manter-nos-emos particularmente vigilantes nos próximos dias.

- Falaram-me de uma criança a bordo. Espero, pois, que os inspectores sejam cautelosos.

Assumiu uma expressão formal.

- Somos sempre cautelosos, quando se trata de transportes de gás.

- Olha, miúda! Sem mãos!

Mr. Jack ergueu ambas as luvas, enquanto a roda de leme do Dálias Belle, um pouco mais pequena que o volante de um automóvel, começava a girar. Sorria à garota, porém ela estava amuada a um canto da ponte, figindo-se concentrada num livro. Pouco antes, ausentara-se sem o comunicar, vagueando pelo navio durante horas, até que ele a encontrara na coberta principal, imersa em pensamentos junto dos barcos salva-vidas. O ancião alarmara-se com a sua ausência e gritara-lhe, razão pela qual ela amuara.

A boa notícia para ele consistia em que surpreenderia os «japões» com as calças na mão, como da outra vez. A sua história de cobertura não fora posta em causa. O ponto alto consistira no telefonema para a Antárctida, transmitido via satélite por uma operadora de rádio no mar de Weddell, a qual recebera mais dinheiro numa noite do que necessitaria para enviar para internatos de luxo todos os filhos que concebesse.

- Olha, miúda! Sem mãos!

O Amy Bodman/Dallas BellelAsian Princess deslocava-se a quinze nós no mar das Filipinas, com o estreito de Osumi na sua esteira. As toneladas de aço do novo revestimento reduziam a velocidade a um terço e, com o acréscimo de peso na área da popa, havia uma nítida inclinação para esse lado. No entanto, o comandante prometera que chegaria a Tóquio na data prevista, e o computador era da mesma opinião.

- Sem mãos.

- Que grande avaria! - resmungou ela. - Nós também temos um piloto automático.

- Mas não é como este.

Cedendo à sua curiosidade natural, Ronnie levantou-se e aproximou-se do monitor, no qual figurava um rumo irregular em ziguezague, em que o ícone representava o navio. Os seus olhos arregalaram-se. Quando o ícone atingiu o «zigue» seguinte, o Dálias Belle começou a alterar a rota sem que alguém tocasse no leme.

- Sem mãos.

Em mais duas ocasiões, no espaço de duas milhas, o navio mudou de rumo, mas precisamente em conformidade com o estabelecido, como se contornasse bóias de corrida. E, entretanto, Mr. Jack exibia um sorriso sardónico.

- O que te parece?

Ela contraiu as faces num trejeito e disse:

- É um navio OMBO.

Ele olhou-a com curiosidade e uma ponta de apreensão.

- Que sabes tu sobre os OMBO?

- Comandado por um homem na ponte.1 O papá diz que é a pior coisa que apareceu no oceano depois do megacarca-rodão.

- O mega quê?

- É o nome de um tubarão gigante. Com trinta metros de comprimento. Comia tudo, até que foi extinto.

- Foi bem feito. O teu pai explicou-te por que razão construímos navios OMBO?

- Para não ter de pagar a alguém pela condução.

- Exacto. Bem, este é um OMBO especial. Da terceira geração. Nem o espertinho do teu pai terá ouvido falar dele.

Ela fixou o olhar nos seus reflexos nas janelas. A nova superstrutura bloqueava a vista sombria da área da popa. Agora, o mar só se podia ver através das laterais.

- Atenção! - gritou de súbito Mr. Jack. - Volta de emergência.

 

Era uma rotação de noventa graus. Uma sirene emitiu o

One-Man-Bridge-Operated. (N. do T.)

 

Aviso e o transporte de gás inclinou-se para estibordo. Ronnie apressou-se a pousar as mãos no corrimão que antecedia o pára-brisas. Ele imitou-a, mas fê-lo com o braço ferido e soltou um uivo de dor. Ela tentou acudir-lhe, mas, como se soltou, rolaram ambos no chão.

Em seguida, a pouco e pouco, hesitantemente, o navio endireitou-se.

- Está bem, Mister Jack?

- Estou, estou.

Ronnie ofereceu-lhe a mão, depois de se erguer de um salto, no momento em que o comandante irrompia na ponte.

- Que diabo?...

- Estava apenas a demonstrar o sistema - explicou o ancião.

- Ainda acaba por demonstrar um naufrágio. Levamos peso mais do que suficiente para isso.

Por uma vez, Mr. Jack pediu desculpa, quase com timidez.

- Quis apenas mostrar à miúda do que o navio é capaz. Não se preocupe, que não volta a acontecer.

Ronnie baixava os olhos para o chão, enquanto o comandante grunhia algo de ininteligível, até que se retirou.

- Íamo-nos metendo numa grande alhada - admitiu Mr. Jack, com um piscar de olho conspiratório.

- O senhor é que nos ia metendo. Eu não fiz nada.

- O comandante pensa que foste tu e eu tento encobrir-te. - Pousou a mão no monitor. - Então, o que te parece?

- Estupendo - admitiu ela, sem entusiasmo especial.

- Parece que viste um fantasma.

- O Moss vai voltar?

- Não faças essa cara - replicou ele, com desprendimento.

No entanto, o rosto petrificara-se e Ronnie estremeceu. Estava aterrorizada, pois nunca se tinha encontrado só. O negro fizera-a sentir-se insignificante, quando lhe batera... espantara-a como se fosse um mosquito. Mr. Jack não era tão possante, mas mesmo assim impunha respeito. Ou, melhor (pior), medo.

- Posso contactar com a mamã pelo rádio? - aventurou.

- Receio bem que não, miúda.

- Mister Jack?...             >   ,•

- Sim?

- Onde está o Ah Lee?

- Evadiu-se do navio em Xangai.

- Não me disse que não voltava.

- Quando um marinheiro se evade de um navio, não faz propaganda disso, de contrário impediam-no.

- E os outros?

- Que queres dizer?

- Quando fui dar uma volta...

- Mais alguma volta,   minha menina, e entramos em guerra.

- Está bem, mas não vi ninguém.

- Os tripulantes estão ocupados a fazer aquilo para que lhes pago. Ou a dormir.

- Só vi aquele tipo japonês, e estava bêbedo. Quem é? Nunca o tinha visto antes de partirmos de Xangai.

O ancião dedicou-se a uma das suas imitações dos «japões», entrelaçando os dedos e efectuando uma mesura.

- Venerável piloto.

- Quem?

- O comandante Yakamoto é piloto do porto de Tóquio e do canal de Uraga.

- Mas está bêbedo.

- Tem um pequeno problema com os líquidos - assentiu, em tom jovial. - Mas não te preocupes, que o OMBO substitui-o com vantagem.

Ronnie encolheu os ombros, simulando que lhe era indiferente, e ofereceu-se para acompanhar Mr. Jack à enfermaria, para substituir a ligadura.

Sabia que o navio se encontrava deserto.

Quando procurara um lugar para se esconder, à medida que o Dálias Belle se aproximava o suficiente para contactar com os pais pela rádio, aventurara-se para além da coberta principal. Entrara na superstrutura, o que equivalia a estar no interior de um iglu gigantesco, e fazia um frio intenso. Metera-se no elevador até ao nível inferior, onde vigas e colunas de aço

estavam cobertas de uma tinta espessa. A casa das máquinas era o lugar mais ruidoso em que ela jamais se vira e mais quente que Palau ao meio-dia. Visitara igualmente a sala da tripulação, cujas paredes se achavam cobertas por posters da Marlboro. Mas as únicas pessoas que vira tinham sido o piloto japonês embriagado, o comandante e Mr. Jack.

A cozinha estava deserta - desde Xangai que comiam alimentos congelados aquecidos no microndas. Também não havia ninguém na casa das máquinas. A própria sala dos computadores, na casa com ar condicionado, no meio do calor sofocante, achava-se sem ninguém. Na verdade, o navio singrava pelos seus próprios meios.

Mr. Jack era tão ossudo que Ronnie quase tinha a impressão de que aplicava ligaduras a um esqueleto, e estremecia com frequência, quando ela lhe retirava as antigas.

- Dói-lhe?

- Só um poucochinho - concedeu ele, embora fosse visível que mentia.

- Mister Jack?...

- O que é?

- Posso contactar com a mamã?

- Já disse que não! Mas anima-te, que diabo! Amanhã é véspera de Natal.

Ronnie voltou o rosto para o lado, a fim de que ele não visse que pousava o punho nos lábios para pôr termo ao seu tremor. O de Moss era do tamanho de um coco, mas o seu não excedia o de um limão dos pequenos. Fechou os olhos e tentou formar uma imagem do punho enfiado impetuosamente no peito do ancião para lhe atingir aquilo que tinha no lugar do coração. Mas os seus dedos estúpidos pareciam dissolver-se como gelatina.

Ao meio-dia da véspera de Natal, Stone e Sarah encontravam-se em pleno mar de Sagami. Continuavam sem notícias de Ronnie, embora estivessem apenas a dez milhas de Uraga-Suido, o canal de acesso à baía de Tóquio.

A carta indicava terra adiante e de cada lado, além da ilha vulcânica de Oshima, ao longe, do lado da ré, porém uma ténue neblinha de Dezembro envolvia o vasto golfo, que vibrava com a abundância de apitos e buzinas.

O VHF era constantemente inundado por conversas entre navios. Eles mantinham-no sintonizado no canal cinco.

Stone erguera o reflector do radar e tentava abarcar a periferia nas diferentes linhas de navegação. Tinha uma ideia muito aproximada de onde se encontravam, pois localizava o clarão do farol de Oshima cada trinta segundos. Adiante, havia água com cerca de mil e oitocentos metros de profundidade. Conservavam-se ambos na cabina da coberta para observar os navios, que se achavam em todos os lados, particularmente ruidosos em virtude da neblina.

Em dado momento, Stone foi buscar o Sailing Directions e reviu as aproximações a Tóquio, até que os dizeres começaram a bailar diante dos olhos fatigados.

De súbito, acordou por completo, com o cérebro a fervilhar. A neblina atenuara-se ainda mais e agora revelava colinas que pareciam flutuar diante de uma cordilheira de elevações profundas. A cerca de duas milhas da ré, reparou num maciço navio de passageiros. De casco preto e superstrutura branca. Lembrava o velho QE-2, durante um cruzeiro de Inverno em torno do mundo.

- Está a escapar-nos alguma coisa - disse a Sarah. - Não há a menor hipótese de ele conseguir introduzir um transporte de gás no porto. É simplesmente impossível. Recordo-me de ler qualquer coisa a esse respeito no Sailing Directions. - Folheou apressadamente o livro de encarnação azul. - Cá está! «Regulamento: os petroleiros devem entrar num porto com extrema lentidão, precedidos de um barco-patrulha, com um rebocador de cada lado do navio e seguidos por um segundo barco-patrulha.» Isto depois do encontro com o piloto do canal de Uraga-Suido e a seguir com o do porto de Tóquio. Por conseguinte, não se trata exactamente de uma situação em que ele se limitaria a trazer e deixar ficar um transporte de gás preparado para explodir às quatro horas da véspera de Natal.

«Repara na carta do porto. Há alguns cais de descarga de gás junto de centrais eléctricas defronte ao molhe de Takeshiba.

Mas não admitiriam um navio dessa envergadura. Provavelmente limitariam a admissão a navios de cabotagem de dez mil toneladas. A ideia de uma unidade das dimensões do Dálias Belle a uma milha do centro da cidade constituiria uma loucura... Poderia ir até Iocoama...

- Não, não é essa a maneira de proceder dele.

- Que queres dizer?

- Se Mister Jack tenciona destruir Tóquio, não optará por Iocoama.

- Fica somente a quinze milhas de Tóquio e trata-se de uma cidade muito importante.

- Segundo me explicou, depois de largarem as bombas, avistaram um depósito de combustível e, se o tivessem bombardeado, em vez do outro alvo, a explosão teria destruído toda a cidade.

- Nesse caso, tem um problema. Tem de contornar uma mão-cheia de pilotos, observatórios e barcos-patrulha, além de uma base naval. Nem pensar, Mister Jack. Nem conseguirás entrar sem autorização específica do director do porto, para o que terás de preencher numerosos impressos, além de que sabes perfeitamente que serás abordado aqui - Stone indicou uma área de quarentena ao largo do farol de Tóquio - para uma inspecção de segurança minuciosa.

No entanto, Sarah meneava a cabeça com insistência.

- Põe-te no lugar dele, Michael. Como introduzirias esse navio no porto de Tóquio?

- Contratava uma escolta da Terceira Esquadra.

- Imagina que a vida da Katherine está em jogo.

- Limitar-me-ei a pensar na Ronnie - replicou ele, com um olhar sombrio.

- Desculpa. Eu não devia ter dito isso. Não foi com má intenção. Pretendia simplesmente...

- Esquece. Ele está a pôr-nos loucos a todos. Mas tens razão. Pode ser louco, mas não é estúpido. Portanto, como introduzo o transporte de gás em Tóquio?... Fazendo-o parecer outra coisa? Encobrindo a tubagem do gás?... Recordo-me de, no estaleiro de Xangai, terem colocado uma extensa lona sobre a coberta principal.

Lembrava-se igualmente de ter pensado que essa lona se destinava a retardar um eventual incêndio provocado pelos maçaricos oxiacetilénicos que desmantelavam o paquete ao lado. De repente, recordou-se das gruas que rodeavam o navio.

- Ele tinha uma brochura de um transatlântico a acostar ao cais de Takeshiba. Disse que lhe pertencia.

De súbito, o VHF entrou em actividade no canal cinco:

- Mamã, papá! Mamã, papá!

Tratava-se de pouco mais que um sussurro.

- É ela! Chegámos, querida. Onde estão vocês?

A garota devia ter o SPG na outra mão, pois respondeu quase imediatamente.

- Trinta e cinco graus e vinte minutos norte. Cento e trinta e nove e quarenta minutos leste.

Stone traçou a posição ao longo do curso que obtivera através dos cálculos efectuados tendo Oshima como ponto de referência.

- Estão mesmo no nosso encalço.

- Graças a Deus - murmurou Sarah.

- A que velocidade vão, querida?

- Doze ponto cinco nós. Mister Jack modificou o navio, mamã. Agora, parece um transatlântico...

- Que diabo, miúda?...

- Estou a brincar, Mister Jack. Não...

- Ronnie! Ronnie! Mister Jack... - Ele desligou o rádio. - Santo Deus! Quase a denunciei, se ele estava à escuta. - E assomou à coberta para esquadrinhar as imediações.

O paquete que parecia o QE-2 estava a alcançá-los rapidamente.

- Será este? - perguntou Sarah.

Stone recordou-se da superstrutura do navio no estaleiro.

- É a isto que a Ronnie se refere. Ele camuflou o transporte de gás. É o Dálias Bellel

Sarah sintonizou o rádio no canal 16, para lançar um May-day à patrulha do porto, mas ele apressou-se a impedi-la.

- Ele ouviria. Primeiro, deixa-me ver se consigo contactar de novo com a Ronnie.

- Para quê?

- Para subir a bordo.

- O quê?!

Correu à cabina inferior, guardou a arma no interior do blusão contra o mau tempo e reapareceu a calçar as luvas.

- Da mesma maneira que tu te escapaste. Treparei ao mastro.

Entretanto, tu conduzes o barco para junto da proa. Do lado de bombordo e de onde sopra o vento. Subirei pela âncora e entrarei pelo escovem.

- Mas isso é impossível.

- O vento deve soprar mais forte junto do navio - advertiu, ligando o motor. - Assim que me agarrar à âncora, afasta-te. - Estudou a proa do Dálias Belle com o binóculo. - Creio que o conseguirei.

- Se escorregas...

- Usarei colete salva-vidas.

Foi buscá-lo à arrecadação e vestiu-o.

- Podes cair no barco.

- Não há outra solução. - Fez uma pausa. - Eles vão a doze nós e meio. Quase o dobro da nossa velocidade. Disporás de cerca de dez segundos para me largar. Achas que és capaz?

- Creio que sim. - Stone voltou-se para o mastro. - Michael... - O rosto parecia esculpido em ónix. Apenas os lábios eram ternos. - Que Deus te abençoe.

Ele estendeu a mão para a ostaga do lado de que soprava o vento.

 

Havia muitos anos que Stone não trepava ao mastro com o Verónica em movimento.

Sarah alterou o rumo para cruzar à frente do navio e ajustou o velame para imprimir a inclinação apropriada ao barco.

Entretanto, ele firmou-se no topo já perto do casco do Dálias Belle, consciente de que o ruído das máquinas deste se tornava cada vez mais intenso.

Ela observava-o por cima do ombro, mantendo-se empertigada e calma, com uma das mãos pousada na roda do leme e a outra a proteger os olhos da claridade, enquanto tentava determinar a elevação da proa. A âncora encontrava-se mais alta do que Stone supusera. Quando o veleiro transpunha os últimos metros, compreendeu que teria de saltar para a alcançar. Mas não descortinou coisa alguma a que se agarrar na enorme superfície de aço. Uma rajada de vento varreu o costado do navio e as velas do Verónica vibraram, agitando o barco.

Sarah segurou o leme com ambas as mãos, lutando contra as correntes que o Dálias Belle produzia e o vento que fustigava as velas.

Stone viu a pesada âncora a curta distância do rosto. Consciente do pouco tempo de que dispunha, aproveitou o impulso produzido por uma onda mais forte e abraçou virtualmente a maciça massa de aço.

Sentiu o vibrar do navio, como se pretendesse sacudi-lo, e começou a deslizar lenta, porém inexoravelmente, em direcção à extremidade inferior, de onde transitaria para a água.

De súbito, o pé roçou em algo, em que se firmou, e compreendeu que se tratava de uma saliência enferrujada que rodeava a periferia da unha da âncora. Conseguiu pousar igualmente o outro pé e iniciou a penosa e arriscada escalada. Quando finalmente alcançou o topo da âncora, passou a arrastar-se lentamente em direcção ao casco. Reconheceu que precisava de se libertar do colete salva-vidas para maior facilidade de movimentos. Quando terminou de o soltar, o vento arrancou-lho da mão. A passagem através do escovem seria impossível com o blusão vestido. No momento em que abria o fecho de correr, a arma precipitou-se no mar, ante o seu desespero.

Esforçando-se por ignorar a perda que acabava de sofrer, transpôs a abertura e achou-se no convés.

Avançou alguns passos e ergueu os olhos para a gigantesca superstrutura. Ao mesmo tempo, compreendeu a inutilidade de tomar precauções porque não havia vivalma visível. Deslizou ao longo da amurada, espreitou por uma abertura entre duas das secções acrescentadas e penetrou na caverna vazia. A luz do dia filtrava-se por milhares de escotilhas. A tubagem, válvulas e monitores de incêndio do transporte de gás pareciam artefactos fantasmagóricos num museu industrial.

Um conjunto de ferros retorcidos assinalava o local da válvula que ele incendiara em Xangai. Seguiu apressadamente em frente à procura da casa verdadeira, a dezenas de metros na direcção da ré, na penumbra. O vento silvava e o metal solto vibrava em canções de muitos timbres.

Chegou finalmente à casa da coberta do Dálias Belle, procurou uma porta e abriu-a cuidadosamente. Dentro, a temperatura era menos desconfortável. O chão estava imundo. As máquinas murmuravam ao longe. Fechou a porta atrás de si, olhou para cima e avistou uma escada circular central.

Ronnie e Sarah tinham sido mantidas no convés B, exactamente por baixo da ponte. Ele ponderou a conveniência de utilizar o elevador, mas preferiu a escada, ao mesmo tempo que amaldiçoava o infortúnio que o levara a perder a arma. Pegou num machado de incêndio do anteparo e começou a subir os degraus, em silêncio graças às botas de borracha, detendo-se em cada volta, preparado para atingir o rosto surpreendido que surgisse. No entanto, subiu cinco níveis sem qualquer encontro indesejável.

A porta da suíte do proprietário estava trancada, assim como a do comandante.

Stone segurou o machado com firmeza e continuou a subir até à coberta da ponte. Ao fundo de um corredor, havia uma cortina que devia ser o acesso a esta última. Entretanto, inspeccionava os compartimentos ao longo do corredor - dos computadores, das cartas, das comunicações -, todos desertos.

Afastou a cortina com o machado. O velho sentava-se numa pesada poltrona diante do leme, com o olhar fixo num monitor de setenta e cinco centímetros. A superstrutura falsa bloqueava as janelas. Dava a impressão de que Mr. Jack conduzia uma nave espacial.

Ronnie encontrava-se perto dele, à sua esquerda. A direita, como uma cabina telefónica enorme, havia uma espécie de instalações sanitárias rodeadas de paredes de vidro. Dentro, via-se um homem enroscado no chão. A garota voltou-se e o rosto explodiu num largo sorriso.

- Papá!

O ancião deu meia volta na poltrona.

Empunhava uma pistola na mão enluvada, apontada à cabeça de Ronnie, e tinha o pulso esquerdo algemado ao direito dela.

- Largue o machado, doutor.

- O machado!

Stone deixou-o deslizar da mão para o chão.

- Sente-se naquele banco. - A voz do velho soava como uma arma.

Ele esperara ver o frágil lunático no roupão em que se lhe apresentara em Xangai. Ao invés, parecia totalmente recomposto e em plena posse das condições físicas. Perfeitamente escanhoado, de uniforme caqui da Segunda Guerra Mundial, Jack Powell lembrava um pugilista da categoria dos pesos-pluma que nunca perdera um combate.

- A proposta é a seguinte, doutor. Contacte com a sua patroa pelo rádio e diga-lhe que as regras não se alteraram. Deve conservar a boca fechada. Nada de rádio, patrulha portuária ou qualquer tipo de interferência.

- E você entrega-me a Ronnie?

- Às quatro horas. Na Torre de Tóquio.

- Quero-a já.

- Não pode ser.

- E se eu recusar?

- A coitada da miúda apanha um tiro. Mortal. Depois, será a sua vez, doutor. Escute: simpatizo muito com a sua mulher, pelo que me custaria torná-la viúva. Mas, se não tiver qualquer alternativa...

Com estas palavras, Mr. Jack entregou a Stone um rádio portátil sintonizado no canal cinco.

- Querida?                                                       ,

- Conseguiste!

- Não totalmente. Ele continua a dar cartas. Não contactes com ninguém. Limita-te a seguir-nos, e verei o que posso fazer.

- Mas... e...?

Stone apressou-se a interrompê-la.

- Mantém-te à escuta. Voltarei a chamar-te, quando puder. - Desligou o aparelho. - Está bem assim, Mister Jack?

- Perfeito.

Olhou em volta, ao mesmo tempo que se perguntava onde se encontraria a chave das algemas.

- Mister Jack...

- Silêncio, doutor. - O ancião concentrava-se no monitor, e Stone avançou um passo. - Deixe-se estar aí. Sente-se no banco.

Ronnie dirigiu um sorriso de embaraço ao pai, enquanto o navio alterava ligeiramente o rumo. Cinco graus, segundo a bússola que pendia do tecto sobre a roda do leme.

Após um momento, tendo verificado que a ligeira manobra se consumara de modo satisfatório, Mr. Jack desviou os olhos do monitor.

- Que fez ao meu homem, o Moss?

- Abri-lhe um buraco na ré.

- Palavra? - exclamou Ronnie.

- Com quê? - quis saber o ancião.

- Uma Bushmaster.

- Onde diabo a conseguiu? - Stone não respondeu. - Matou-o?

- A última vez que o vi estava vivo e tentava escoar a água de bordo. Com um pouco de sorte, talvez fosse recolhido por um navio.

- Era como um filho para mim.

- Pois o seu «filho» esteve na iminência de nos matar.

- Sim, bem...

- Mister Jack?

Este moveu-se na poltrona e puxou Ronnie para mais perto da arma.

- Sim?

Sarah advertira Stone do temperamento mercuriano do homem, pelo que ele hesitava quanto à maneira mais conveniente de o enfrentar.

- Sim? - repetiu o ancião, enquanto assomava alguma cor ao semblante granítico.

- Tenho a impressão de que introduziu alterações de última hora nos seus planos.

- Quais planos?

Stone lançou uma olhadela a Ronnie, que encolhia os ombros e contemplava o monitor, como qualquer criança na presença de adultos em conflito. Era como se discutissem sobre dinheiro emprestado ou onde passar o Natal.

- Os que se referem a Tóquio - explicou Stone.

- Em que consistem?

- Por favor. Conceda-me ao menos um pouco de crédito.

- Os planos são os mesmos. O meu papel é que se modificou. Já incumbi os meus representantes de vender as minhas acções japonesas.

- Ganha dinheiro com isto?

- É inevitável, desde que se saiba com antecedência que a economia dos «japões» vai desaparecer do mapa. Os meus camaradas chineses hão-de encher-se como nababos. Você e a sua patroa médica suprimiram alguma graça à operação, em todo o caso.

- A minha mulher salvou-lhe a vida.

- Mas não o faria, se a situação se repetisse.

- Quem o feriu?

- Um herói. Um dos oficiais do navio apercebeu-se do plano e tentou salvar o mundo.

- O que lhe aconteceu? - perguntou Ronnie.

Mr. Jack pareceu surpreendido por ainda estarem algemados.

- Mandei-o transferir para outro navio.

- Não acredito.

- Sabes uma coisa, miúda? A única coisa que lamento é que tivesses de crescer tanto junto de mim.

- Vai deixar-nos ir embora?

- Por enquanto, não.

- Então, quando?

Encolheu os ombros e a garota desviou os olhos para o pai, o qual inclinou a cabeça e sorriu, como fazia nas raras ocasiões em que iam a um restaurante e ficava surpreendida com a toalha, guardanapos e loiça da mesa.

- Como estás, querida? - perguntou ele.

- Perfeitamente, papá.

Estabeleceu-se um silêncio, cortado subitamente pelo rádio de VHF:

- Asian Princess! Asian Princess!

- É de Tóquio. - Mr. Jack levantou-se da poltrona e aproximou-se, com Ronnie, do compartimento com paredes de vidro. Sem desviar os olhos de Stone, bateu à porta com o cano da arma. - Acorda, púom-san.

O vulto enroscado no chão ergueu a cabeça e olhou em volta com uma expressão de aturdimento. O ancião abriu a porta e entregou-lhe o rádio.

- Centro de Serviço de Tráfego Wan de Tóquio. É consigo, amigo.

- Asian Princess! Asian Princess! - repetiu a chamada. O piloto respondeu em japonês e falou demoradamente.

- Temos um piloto do canal de Uraga privativo - explicou Mr. Jack. Fez uma pausa, enquanto o japonês terminava a comunicação. - O que há de novo?

- Confirmei que estou a bordo. Era de Xangai.

- Tudo em ordem?

- Sem novidade, no Farol de Tóquio.

- Quando chegarmos, acordo-o - prometeu, e fechou a porta.

O piloto vomitou na sanita e tornou a adormecer. O ancião esclareceu:

- O regulamento exige um piloto qualificado a borde Mandei vir este bimbo de Xangai de avião.

- A Segurança Marítima foi nisso?

- Uma vez que me prontifiquei a pagar, não se opôs E, no caso do comandante Yakamoto, creio que ficaram todos contentes com a sua ausência temporária. É um grande apreciador da pinga.

- Ele está ao corrente dos seus planos?

- Quase nem consegue lembrar-se do seu próprio nome. Mude de ideias, se pensa que pode contar com ele como aliado. Pertence-me inteiramente. Está tudo a postos. O Asian Princess tem o cais de Takeshiba reservado há seis meses. O capitão do porto tenciona dar as boas-vindas aos passageiros pessoalmente.

O Farol de Tóquio situava-se apenas a sete milhas do cais de Takeshiba. Entretanto, o navio deslocava-se a doze nós, limite de velocidade permitido no canal. A partir do momento em que ultrapassasse o farol, nada o poderia deter. O que lhe diria Sarah? «É moralmente errado matar um milhão de pessoas»? Mr. Jack não estava preocupado com isso. A ideia agradava-lhe.

- Mister Jack...

- Sim?

Stone inclinou a cabeça na direcção da roda do leme, que se movia em obediência às ordens invisíveis do piloto automático.

- O que acontece quando surgir alguma coisa à frente do navio?

Era uma boa pergunta, todavia a resposta revestia-se de serenidade e firmeza.

- Tem mais capacidade de radar que o Aeroporto Kennedy. Tudo integrado no computador de curso. Se aparece algum obstáculo, reduz a velocidade ou contorna-o.

- E se não houver espaço para dar a volta?

- O computador avisa.

- Surpreendente - observou Stone, tentando fingir-se impressionado. - Não sabia que tinham levado o OMBO tão longe.

- Isto é de terceira geração. Com este equipamento, pode-se retirar a tripulação de helicóptero e mandar vir outra de terra no porto de escala seguinte.

- É mau para os veleiros.

- A maioria tem reflectores de radar. Na verdade, a tripulação do porto não seria necessária, se não fosse o raio do regulamento da Guarda Costeira.

Entretanto, acalentava a esperança de o distrair com uma conversa mais prolongada. Enquanto Mr. Jack recorria ao computador, trocavam impressões sobre os métodos e burocracia da Guarda Costeira. A certa altura, Stone explicou como obtivera a Bushmaster de um mercenário e o ancião replicou que conseguira convencer terroristas japoneses da ala direita a apoiar a tentativa de Moss para afundar o Verónica.

Por seis vezes, o VHF interrompeu-os e Mr. Jack acordou o piloto para responder a mensagens de outros navios e ao Tráfego de Tóquio. O homem consultou o repetidor de radar e ordenou pequenas alterações no rumo, que o ancião introduziu no computador. Noutros pontos do canal, o piloto automático conduzia o Dálias Belle transformado através de repetidos desvios, enquanto Stone espremia virtualmente o cérebro para descobrir maneiras de obrigar o outro a continuar a falar.

De súbito, Mr. Jack bateu com os dedos no ecrã do radar e vociferou:

- Julga-me louco? Vê o que aquilo é?

- O grande alvo?

- Sem a mínima dúvida. Trata-se do Admirai Yamamoto da Armada japonesa, o maior helicóptero de transporte do mundo. Aposto que dispõem de mísseis tácticos terra-ar... Não sou totalmente chanfrado, sabe?

Stone aproveitou imediatamente a deixa.

- Esperou muito tempo para pôr a vingança em prática.

- Nem por isso. Odeio os «japões» desde a guerra, mas só recentemente compreendi que tinha tudo a postos para a consumar: o navio, o gás, os meus amigos em Xangai, etc. A sua mulher disse-lhe que eu não regulava bem?

O interpelado não sabia o que dizer. O outro olhou-o em silêncio demoradamente e acabou por acrescentar:

- O que ela pensa na realidade é que, em vez de louco, sou um indivíduo maligno.

- A única coisa que a preocupa neste momento é recuperar a Ronnie viva.

Entretanto, esta imergira numa espécie de sonolência, em parte apoiada ao ancião.

- Papá?

- Sim, querida?                

- Há outro barco salva-vidas.                         ,

Olhou Mr. Jack com uma ponta de apreensão, pensando que a mandaria calar, mas, ao invés, ele explicou:

- Eram dois. O comandante levou um, ontem à noite.

- O Ah Lee mostrou-me como funciona, papá. Puxa-se uma alavanca e solta-se do navio.

- Em queda livre - salientou Mr. Jack. - Previsto para cordame de petroleiros. Cai como uma pedra. Um meio de fuga cómodo para incêndios e explosões.

- Que ias dizer, querida?

- Tem de se usar o cinto de segurança. Porque o impacte é grande. Não é verdade, Mister Jack?

- O cinto bem apertado e todas as escotilhas fechadas.

- Papá...

- Sim?

- Foge!

- O quê? O que estás para aí a dizer? O ancião soltou uma gargalhada.

- Que moça esta! Ela tem razão, doutor. Talvez o solte no Farol de Tóquio.

- Solte-a a ela.

- Não.

- Porquê? Não passa de uma criança.

- Como referiu há pouco, doutor, alterei os meus planos. Mas não quero morrer sozinho. Da maneira como as coisas se desenrolaram, ela tornou-se na minha melhor amiga do planeta.

- Então, deixe-a partir.

- Foge, por favor, papá! Diz à mamã que lhe quero muito. Stone olhou-a em silêncio por um momento e replicou:

- Não seria capaz de a enfrentar sem ti.

- Isso não é justo.

- Porque não pedimos à mamã que decida? - interpôs o ancião, ao mesmo tempo que ligava o VHF. Vendo que Stone se levantava, inquiriu: - Onde julga que vai, doutor?

- Não permitirei que a torture.

- Calma, doutor.

Apontou-lhe a pistola e depois pousou o cano na cabeça de Ronnie. Stone, não obstante, começou a avançar.

- O que tenciona fazer?

- O que a minha mulher faria, no meu lugar.

- Que conversa é essa? - articulou Mr. Jack, arregalando os olhos. - Para trás, ou mato-a. - E depois, o quê?

- Mais um passo e ela morre.

- A sua melhor amiga no planeta?

- Não me conhece, doutor. Pegue no rádio e pergunte a sua mulher se não sou capaz de disparar. Ela conhece-me bem.

- Ambos o conhecemos.

Entretanto, Stone continuava a caminhar e encontrava-se agora a menos de um metro da poltrona. Afigurava-se-lhe que conduzia o Verónica através de passagens entre recifes em águas turvas.

- É o meu último aviso. Pare!

- De qualquer modo, tenciona matá-la.

- Foi o doutor que pediu. Lamento, miúda... Ronnie exerceu pressão com os braços, pernas e tronco,

comprimindo-se como uma mola. Mas a mão livre já se cerrara num pequeno punho.

Um grito agudo terminou com o estampido seco da arma.

 

Ronnie caiu debaixo do ancião e tombaram ambos como um monte de ramos e folhas.

Stone precipitou-se prontamente para diante a fim de se apoderar da pistola, mas esta deslocou-se na sua frente, e o lado do cano atingiu-o em pleno rosto.

Ronnie recuou e visou pela segunda vez o ombro ferido do ancião, que arregalou os olhos. Um novo grito, mais intenso que o anterior, brotou-lhe da boca e extinguiu-se num som decrescente. O corpo sofreu uma convulsão e largou a arma, para pousar a mão no ombro e encolher-se como uma bola.

Stone impeliu a pistola no chão e estendeu a mão para a filha.

- Estás bem?

Ela exibia uma expressão excitada e comprimia os lábios.

- Filho da mãe...

- Onde está a chave das algemas?

- Ele atirou-a pela borda fora.

Stone foi buscar o machado, enquanto Mr. Jack gemia, ao mesmo tempo que conservava a mão pousada no ombro.

- Mexe-te - ordenou Stone a Ronnie.

Em seguida, protegeu-lhe a mão com a sua, puxou a corrente do lado do pulso do ancião e desferiu-lhe uma forte pancada com o machado.

- É demasiado tarde - disse Mr. Jack. - Já não pode impedir nada.

- Veremos.

- Reparou na carga alongada junto da linha de água?

- Sim.

- Nem a melhor brigada antiminas do mundo conseguiria arrancá-la a tempo - asseverou, começando a exprimir-se com dificuldade.

- Obrigado pelo aviso.

- E, se imprimir uma rotação de cento e oitenta graus ao navio, a carga está programada para explodir.

Stone continuou a aplicar o machado para cortar a corrente. Talvez houvesse ferramentas mais apropriadas na arrecadação, mas não estava disposto a deixar Ronnie só com aquele velho louco.

- Não conseguirá nada com isso - declarou este último. Agora, a mão pousava no braço, e Stone compreendeu,

tardiamente, que não era apenas o ombro que o incomodava.

- Está com problemas cardíacos, hem?

- Tenho o coração como uma turbina - redarguiu o outro, respirando com dificuldade. - Safa... Dê-me uma injecção de qualquer coisa.

- Que retardador tem a carga explosiva?

- Tem de me dar uma injecção, como médico que é.

- Bateu à porta errada. Sou um péssimo médico.

A corrente das algemas cedeu finalmente e Stone puxou Ronnie para os seus braços. Ela respirava quase com tanta dificuldade como o ancião e os olhos assumiam um leve brilho vítreo. Segurando-a com firmeza, correu para a coberta e cruzou a superstrutura.

O nevoeiro levantara e a visibilidade tornara-se clara. O navio já passara por Iocoama, e Kawasaki situava-se à esquerda, com o Farol de Tóquio mais adiante. Assim que o ultrapassasse, o Dálias Belle ficaria encerrado no canal sem espaço de manobra, até atingir o porto interior. Stone via sem dificuldade a Torre de Tóquio e centenas de prédios de escritórios. As luzes do Ginza brilhavam com intensidade sob o céu de Inverno encoberto.

- Onde está a mamã?

- Não tardaremos a avistá-la - calculou ele, que já esquadrinhara as imediações com os olhos.

- Mas Mister Jack disse que iríamos todos pelos ares.

- Dá-me uma ajuda - indicou, levando-a de novo para a ponte, onde o ancião se reclinava de olhos fechados. - Acorda o piloto, querida. Borrifa-lhe a cara.

Premiu o botão de emergência do apito, que começou a emitir uma série de sete breves sons graves, após o que correu para o leme a fim de observar o monitor. O rumo programado do Dálias Belle estava desenhado numa clara linha azul entre o quebra-mar exterior do porto de acesso à chamada Passagem Ocidental de Tóquio, para além de cais de contentores de gás e da central eléctrica de Toden Oi - que explodiria em ignição secundária para destruir o porto - e do Centro do Comércio Mundial, onde o navio se desviaria para a esquerda do canal principal, pelo qual sairia, junto do Terminal de Passageiros de Takeshiba.

- Ei-lo - anunciou Ronnie.

O piloto não se mantinha de pé com firmeza, molhado e beligerante, ao mesmo tempo que estremecia a cada som rouco do apito. Stone depositou-lhe o VHF na mão e ordenou:

- Contacte com a Junta Consultiva do Tráfego de Tóquio. Comunique que estamos a iniciar uma volta de cento e oitenta graus para bombordo, a fim de entrarmos no canal e na passagem de saída. Todos os navios se devem manter à distância, pois transportamos cinquenta mil toneladas de gás natural liquefeito prestes a explodir. Preste atenção! - vociferou, ao ver o semblante do homem assumir uma expressão neutra. Explodirá às dezasseis horas... dentro de trinta minutos, portanto. Informe que seguimos para o centro da baía.

O piloto pestanejou.

- Faça o que lhe ordeno!

No monitor, o gráfico que representava o Dálias Belle aproximava-se do quebra-mar exterior. Outros navios achavam-se indicados como alvos de radar, com as respectivas velocidades. Stone actuou no leme e viu com alívio que a rotação se iniciava. Receara que o ancião tivesse bloqueado a manobra, mas o navio reagia favoravelmente.

Conteve com dificuldade o impulso para se certificar do exterior. De qualquer modo, tinha tudo na sua frente, no ecrã: uma coluna de navios atrás dele e a coluna no lado oposto, rumo à saída. Enquanto o Dálias Belle rodava, o monitor projectava uma linha azul adiante, que se ia alterando ao sabor da manobra. Dir-se-ia uma foice, que cortava através dos alvos do radar. Os números representados mostravam que mudava de rumo e velocidade, à medida que o sistema de aviso do tráfego transmitia as respectivas correcções.

O piloto começou aos gritos, e Stone ripostou no mesmo tom:

- Diga isso em inglês!

- A Junta Consultiva do Tráfego de Tóquio recusa autorização para permanecer na baía de Tóquio.

- Que querem eles que eu faça?

- Que siga para o mar de Sagami.

- Nem pensar. Às dezasseis horas, estaríamos mesmo no meio dos estreitos. Eliminávamos Iocoama, Yokosuka e Kimitsu. Diga-lhes que continuaremos na baía. - Vendo o homem começar a encaminhar-se para a cortina, ele advertiu a filha: - Depressa, Ronnie! A arma.

Ela correu para onde a pistola fora atirada e levou-a ao pai, que disse ao piloto:

- Volte para o cubículo e feche a porta. Levá-lo-emos ao barco, no momento oportuno.

O piloto continuou em direcção à cortina e Stone puxou o gatilho. O vidro de uma das paredes estilhaçou-se e o japonês protegeu a cabeça com a mão e precipitou-se para o cubículo.

- Como estás, querida?

- Bem. E tu, papá?

- Óptimo. Que horas são?

- Quinze e quarenta e oito.

- Sabes o caminho para o barco salva-vidas?

- Sei.

- Quanto tempo levaremos a chegar lá?

- Quatro minutos.

- Estás preparada?

- Sim. Basta saltar para dentro e actuar na alavanca. Ronnie atravessou a cortina e Stone volveu o olhar para o monitor. Um navio de grande envergadura cruzava o espaço na esteira do Dálias Belle. Ele conservou o apito menos Intenso e permaneceu no rumo.

- Consegue ouvir-me, Mister Jack?

- Sim, oiço-o, filho da mãe.

- Pode andar?

- Não.

- Nós levamo-lo.

- Deixem-me morrer à minha maneira.

Stone baixou os olhos para o rosto ressequido do louco.

- Não o deixarei em parte alguma perto do leme. Naquele momento, Ronnie reapareceu.

- O elevador está cá em cima. São quinze e cinquenta e um, papá.

Stone fez sinal ao piloto, que o observava através da vidraça do cubículo e se apressou a sair.

- Ajude-o - indicou Stone. - Vamos abandonar isto. Mr. Jack apoiou-se num joelho, ao mesmo tempo que gemia de dor.

- Aguente-se - recomendou Stone, bloqueando a roda do leme.

Guinchou uma sirene avisadora. O Dálias Belle virou quase de repente para bombordo e inclinou-se como um contrator-pedeiro. Stone voltou a premir o botão do som de emergência do apito e eles abandonaram a ponte, com as cautelas devidas à inclinação quase íngreme da coberta do navio que descrevia um semicírculo.

Mr. Jack e o piloto entraram como puderam no elevador e Stone e Ronnie seguiram-nos. Quando a porta da cabina se abriu na coberta principal, tiveram de novo de tomar precauções em virtude da inclinação, enquanto se encaminhavam para a ré.

Uma escada de corda pendia sobre o barco salva-vidas, suspenso de turcos. A sua quilha tornava difícil trepar através da escotilha para a canópia, porém o principal problema de Stone consistia em saltar para dentro sem perder o controlo da situação. Ele e Ronnie tinham de ser os primeiros, de contrário o piloto e Mr. Jack podiam partir sem eles. Consultou o relógio. Faltavam três minutos.

- Avança, querida. Irei logo atrás de ti. - Stone voltou-se e embarcou de costas para dentro, sem perder de vista os outros dois, que já utilizavam a escada de corda. - Primeiro, Mister Jack.

O rosto do ancião era uma máscara de dor e frustração. Atrás dele, o piloto empurrava-o e gritava:

- Depressa! Depressa!

- Japonês de uma figa...

- Vá! - bradou por sua vez Stone. - O tempo esgotou-se. Põe o cinto, Ronnie.

O piloto intensificou os empurrões e Mr. Jack voltou-se e aplicou-lhe um pontapé na cabeça, fazendo com que caísse na coberta.

- Eu fico - declarou. - Vão todos para o diabo!

Na verdade, o tempo esgotara-se. Stone fechou a escotilha e sentou-se ao lado da filha. Um clarão alaranjado filtrou-se através da canópia e ela já tinha a mão pousada na alavanca.

- Agora!

Obedeceu com um grito e Stone sentiu uma impressão de vazio no estômago. No instante imediato, a queda terminava no contacto do barco com a superfície da água. Ele notou que a ondulação provocada pela hélice do Dálias Belle afastava a embarcação salva-vidas.

Soltou o cinto de segurança que aplicara pouco antes da queda vertiginosa, precipitou-se para o leme e estendeu a mão para o botão do motor, que arrancou imediatamente. No entanto, antes que a sua acção se pudesse fazer sentir, apercebeu-se de um violento baque através da água e compreendeu que era demasiado tarde. As cargas explosivas aplicadas ao casco de bombordo do navio acabavam de detonar ao longo da linha de água.

Estendeu a mão para Ronnie. Dentro de um ou dois segundos saberia se o facto de imprimir uma inclinação ao casco do Dálias Belle e submergir as cargas abafara a explosão antes que pudesse inflamar o gás superarrefecido.

 

O barco salva-vidas parou de baloiçar subitamente com um forte estalido e permaneceu inclinado, como se tivesse encalhado a meio da baía.

Stone abriu a escotilha.

Atingiu-lhe o rosto um vento glacial. O navio encontrava-se a um quarto de milha de distância, pousado num lado, num campo de gelo.

Este espalhava-se rapidamente.

Envolvia o porta-helicópteros Admirai Yamamoto, que se encontrava entre o Dálias Belle e o barco salva-vidas, e prosseguiu durante mais cerca de mil metros, congelando a água do mar em ondas cristalinas tão duras e brilhantes como o vidro. Desprendia-se da superfície rígida um nevoeiro branco fumoso. Tombavam aves do céu, as penas cobertas de neve.

O nevoeiro era mais denso em torno do navio, onde o gás gelado continuava a brotar do casco danificado. Stone puxou Ronnie para fora da canópia.

- O que aconteceu?

- O gás frio congelou a água. Vamos! Vai explodir a qualquer momento.

Ela arregalou os olhos com uma expressão de incredulidade e fixou-os no Dálias Belle.

- Olha para Mister Jack! Está congelado!

Com efeito, um vulto rígido estava imobilizado numa escada a meio caminho da superstrutura.

Stone ajudou a filha a abandonar o barco salva-vidas e

começaram a correr na baía congelada, de costas para o navio e de rostos para o vento.

- É venenoso?

- Só se absorver todo o ar.

Rodeava-os um estranho silêncio, alterado por uma espécie de tilintar como o produzido por milhares de carrilhões sacudidos pelo vento. De vez em quando, o nevoeiro levantava e eles avistavam luzes em terra e navios a esquivar-se do gelo, que continuava a espalhar-se.

- Está a mover-se! - exclamou Ronnie.

Estavam a meia milha do navio e a camada de gelo tornara-se mais fina, ondulando com o movimento da água. Uma larga abertura avançou subitamente para eles como um animal que os atacasse, e apressaram-se a esquivar-se. Irrompeu água do mar, que os encharcou. Stone escorregou e caiu, para se levantar imediatamente, pegar na mão da filha e reatarem a correria. Virou-se para trás. O navio achava-se amortalhado em nevoeiro e o barco salva-vidas de canópia alaranjada reduzira-se a um ponto visível com dificuldade.

Nova fractura no gelo surgiu no seu caminho, movendo-se ociosamente com a ondulação do mar. A superfície estava a desintegrar-se em numerosos fragmentos. Eles não tardariam a ter de nadar, a milhas de terra e com a noite a adensar-se. No entanto, o regresso ao barco salva-vidas não resultaria menos crítico. A qualquer momento, o aço quebradiço arrefecido estalaria numa chuva de faúlhas, que inflamariam o gás.

- Olha a mamã!

Com efeito, o Verónica avançava para eles. Sarah conduzia-o através do gelo menos compacto da periferia do campo e acostou-o a uma larga placa, enquanto o marido e a filha corriam como desesperados.

Stone viu Sarah segurar Ronnie, que lhe estendia a mão, ao mesmo tempo que o gelo cedia sob os seus pés e mergulhava na água obscura. As botas encheram-se com prontidão e começaram a puxá-lo para baixo. Estendeu instintivamente a mão através da abertura e algo lhe pousou na palma. Ele tratou de o rodear com os dedos imediatamente, consciente de que se tratava do seu único elo com uma possibilidade de sobrevivência.

Conseguiu fazer assomar a cabeça e viu Sarah segura à amurada por meio de um croque, enquanto procurava puxá-lo para dentro. No momento imediato, ela gritou algo a Ronnie, que mexeu no mastro e colocou uma ostaga sobre a linha de segurança, após o que puseram esta em torno dele, por baixo dos braços. Em seguida, Sarah actuou no guincho e Stone sentiu-se elevado lentamente para fora da água e para a coberta do veleiro.

- Volta o barco no sentido contrário.

Ele rastejou na coberta, entrou na cabina de comando e tomou conta do leme. O vento soprava de oeste, enquanto o Dálias Belle se encontrava a leste, no gelo. Stone ligou o motor e utilizou-o para afastar a ré da superfície congelada. Mas, em vez de rumar a sul, em direcção aos estreitos e ao mar de Saga-mi, desviou-se para leste.

- Tenho de colocar aquele porta-helicópteros entre nós, ou a onda de choque varre-nos para fora da água.

- Vem aí uma patrulha da polícia - anunciou Sarah.

- Isso não é problema.

A qualquer momento, as faúlhas dos fragmentos da placa quebradiça de aço inflamariam uma bolsa de gás. O Verónica aproveitou um desvio do vento favorável e ganhou velocidade. Por fim, alcançou o ponto onde o porta-helicópteros bloqueava o Dálias Belle da visibilidade dos seus tripulantes. Stone alterou o rumo e apontou aos estreitos, olhando repetidamente para trás, a fim de se certificar de que se achava em condições de manter a protecção.

De repente, pareceu irromper um pôr do Sol entre as nuvens, acima do transporte de gás. Em seguida, o Dálias Belle explodiu com um clarão intenso e uma bola de fogo ergueu-se em direcção ao firmamento, pintando a baía de Tóquio de rubro de um extremo ao outro.

O mar estremeceu sob o Verónica como um abalo sísmico, e uma onda de choque encheu as velas e fê-lo inclinar perigosamente.

Antes que voltasse a endireitar-se, o céu estava tão iluminado como ao meio-dia.

Navios e barcos afastavam-se do núcleo do incêndio.

Outros, como borboletas perante uma candeia acesa, pareciam atraídos. O vaso de guerra que protegera o Verónica da parte mais perigosa da explosão foi pelos ares e disparou helicópteros em chamas na direcção dos navios em volta.

Alguns começaram a arder na quase superlotada baía, numa série de explosões, em que cada uma desencadeava a seguinte, como sinais de fogo que transmitissem uma mensagem ao porto.

O vento tornou-se escaldante. O gelo desapareceu. Colunas de fogo, contorcendo-se e espiralando como tornados, rolavam em direcção à cidade.

Nos quebra-mares exteriores, edifícios de vidro reflectiam as chamas, para depois se abrirem como papoilas vermelhas que dispersavam as suas pétalas ao vento. Carros e camiões voaram a arder de uma ponte suspensa, para depois caírem como uma chuva luminosa.

Stone focou o binóculo na Torre de Tóquio, sobranceira ao coração da cidade, como um prisioneiro preparado para o castigo. Um comboio de vagões-cisternas num cais explodiu numa longa série de estampidos abafados, como um anúncio do fim do trágico espectáculo. Por cima, as colunas de fogo cintilavam como velas ao vento. Lentamente, com relutância, afundaram-se na água, e, à sua luz que se extinguia, Stone viu que o porto absorvera o peso da destruição. A Torre de Tóquio erguia-se, agora convertida numa sentinela da cidade que sobrevivera.

Manhã de Natal, trinta milhas a sul de Nojima Zaki, Stone dobrou o mapa e direccionou o Verónica para o mar alto. Desceu, então, à cabina.

Sarah e Ronnie sentavam-se debaixo de um cobertor no salão principal, rodeadas pelos pinguins e jacarés empalhados da garota e caixas dos presentes comprados em Kwajalein, seis semanas atrás.

- O meu herói! - chamava-lhe a filha desde que acordara. Stone beijou Ronnie na fronte e Sarah na boca.

- A mamã também foi uma heroína, querida. Sem ela, ainda estaríamos a nadar.

- Ou torrados. Quando vamos ver os presentes, mamã?

- Depois de o teu pai dormir uma soneca. - Sarah levantou o cobertor. - Vem cá.

Ele sentou-se entre ambas e abriu o seu Ocean Passares for the World.

- Onde vamos, papá?

- Bem, o coitado do Verónica precisa de grande parte do casco de estibordo reparado e um remendo permanente no buraco à altura da cozinha, antes que algum tubarão entre por ele para almoçar. Por conseguinte, a primeira paragem será numa praia agradável e quente.

- E depois?

- Depois, a tua mãe gostava imenso de seguir para casa.

Ronnie mostrou-se perplexa e um pouco alarmada. Recolheu os presentes, puxou os animais empalhados para si e proferiu:

- Para casa? Mas em casa estamos nós!

 

                                                                                Paul Garrison  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"