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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FOGO E O VENTO / Susanna Tamaro
O FOGO E O VENTO / Susanna Tamaro

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O FOGO E O VENTO

 

Adaptar-se à mediocridade?

26 de Setembro

Ontem, ao receber a tua carta, lembrei-me do nosso último passeio nos bosques que rodeiam a casa. Tive de insistir, lembras-te? Tu terias preferido ficar sentada na relva. "Estou triste", dizias, "sinto-me cansada de mais para dar um passo." Mesmo assim, saímos. Para uma simples conversa, a relva ou uma poltrona servem perfeitamente, mas, se os pensamentos são muitos e as emoções ainda mais, mais vale caminhar. Caminhar ajuda-nos a ver tudo mais claro, a sentir com maior nitidez.

O ar ainda estava fresco, os campos estavam verdes, cheios de flores, os ramos dos castanheiros já começavam a florir. Caminhámos durante algum tempo em silêncio, mas, mal chegámos à sombra do bosque, paraste e soltaste um suspiro. "Já não aguento mais." Olhaste em redor com um ar confuso. "Mas que sentido tem tudo isto?" O teu pai tinha morrido de repente, seis meses antes, e o diploma de licenciatura que tinhas acabado de obter parecia-te um papel inútil. "Percebes?", perguntaste-me, "passei anos a estudar, a lutar, a fazer sacrifícios para ser feliz e agora não sei o que fazer. Levanto-me de manhã e choro, e, à noite, quando me vou deitar, continuo a chorar. Durante o dia, de repente, sinto uma raiva enorme, uma enorme vontade de acabar com tudo."

A conselho de uma amiga, foste consultar um psicólogo. Duas vezes por semana, ias falar-lhe dos teus problemas.

- Como te sentes depois? - perguntei-te.

- Durante algum tempo, sinto-me melhor. Saio e tenho a sensação de que me libertei, de que deixei alguns pesos naquele consultório. Mas, no dia seguinte, os pesos voltam a fazer-se sentir, como pedras no estômago.

Chegámos ao cimo da colina. Sentámo-nos numa pedra. Lá ao fundo, viam-se os perfis escuros dos montes e o espelho mais claro do lago de Corbara. Soprava uma ligeira brisa.

- Outro dia, falei-lhe nisso - continuaste tu - e ele explicou-me o que é que as pedras significam. As pedras são as nossas limitações. Quando os sonhos da adolescência se esfumam, vemo-nos perante o que somos realmente. É por isso que ficamos tristes. Crescer é aprender a aceitarmo-nos, a aceitar esta condição...

- Que condição?

- A da monotonia, da mediocridade.

- E por que é que temos de nos adaptar?

- Ora, porque a vida é tão... tão monótona, tão inacessível...

À nossa frente, as colinas estavam cobertas de trigo, cevada, papoilas e flores-de-lis, e ondulavam docemente como um mar verde. Sobre esse mar, voavam calhandras, cantando. Por uns instantes, ficámos em silêncio, depois perguntei-te:

- Achas tudo isto medíocre? Monótono?

- Não, não, isto aqui é belíssimo.

- Então, por que é que queres renunciar à beleza?

- Eu não quero, mas não sou capaz...

- De quê?

Havia confusão nos teus olhos quando respondeste: - Não sei.

Há muitas pessoas que querem fazer-nos acreditar que a nossa vida não é muito diferente da vida dos ratos nos laboratórios. A água e a comida são-nos fornecidas diariamente, podemos cheirar os nossos semelhantes das jaulas vizinhas, a luz acende-se e apaga-se regularmente, temos aquecimento e temos de nos contentar com isso porque há com certeza ratos que vivem com mais perigos e menos conforto. Ai de quem imagina uma flor, ou se emociona com as suas cores!

Num mundo onde os únicos sonhos permitidos são os que se podem comprar, a felicidade passou a ser apenas um atributo da posse. A realização pessoal, que é - ou deveria ser - o caminho de qualquer vida, já só consiste perversamente na resignação e na sujeição. Realizo-me adaptando-me, executando os gestos dos outros sem nunca me interrogar. Realizo-me não me realizando, porque a sociedade não me permite mais nada, porque só tenho duas pernas, curtas, e não vejo asas a despontar em parte alguma do meu corpo. Mas será mesmo assim ou será apenas um álibi, uma forma de preguiça mental?

Basta parar por um instante e observar o mundo da natureza que nos rodeia para se ver que tudo fala da gratuitidade inquietante, da fragilidade e da beleza das formas vivas.

Embora tentemos viver em caixas hermeticamente fechadas, o mistério resplandece à nossa volta e sugere-nos o caminho a percorrer. Não existe mediocridade, monotonia. O que existe é apenas o nosso medo. Medo de crescer, medo de nos abrirmos às emoções. Medo de descobrirmos que não há nenhuma jaula à nossa volta, que o que existe é apenas liberdade, ar. E se erguermos levemente os olhos, o espaço infinito do céu.

 

A inquietação não é fuga, é procura

3 de Outubro

Na tua última carta, dizes-me que sentes cada vez mais fundo o desejo de partir. Não tens destino nem objectivo, só desejas deixar para trás tudo o que conheces e que agora te parece vazio.

A inquietação também foi a companheira da minha vida, uma companhia por vezes discreta, outras vezes muito pesada, e é por isso que compreendo perfeitamente o teu estado de espírito. Aos dez, doze anos, já não tolerava nada: se estava num determinado lugar, apetecia-me estar noutro, se fazia uma coisa, só pensava noutra que gostaria de ter feito. Sentia-me sempre deslocada. Durante muito tempo, pensei que era uma espécie de doença. Só à medida que ia crescendo é que percebi que a inquietação é um sinal de saúde e que, como todos os sinais de saúde, gera energia. Uma energia que pode ser negativa, se a voltamos contra nós mesmos, ou positiva, se nos obriga a sair de nós, a abrir-nos, a procurar respostas.

Por natureza, tenho um temperamento oposto ao do viajante, mas, em certos momentos da minha vida, também senti um mal-estar tão profundo que me incitava a partir. Nessa época, parecia que tinha dentro de mim um novelo de fios. Não eram fios de lã, eram fios eléctricos, com extremidades que se contorciam como serpentes e se tocavam, provocando curtos-circuitos. A minha esperança era que, se partisse, se saísse do sítio onde estava, o nó começasse a desenredar-se, deixando-me na mão a ponta do fio por onde lhe pudesse pegar.

Se te dissesse que essas viagens foram boas experiências, ment ir-te-ia. Foram autênticas descidas ao Inferno. Enquanto vives a inquietação no mundo que conheces, consegues, de certa forma, refreá-la; quando o que te é familiar desaparece, vês-te apenas diante da tua nudez, das tuas perguntas, dos teus medos. Deixas de poder distrair-te, ninguém te pode consolar, não podes fugir.

Durante estes últimos anos, disseram-me muitas vezes o seguinte: "Feliz de ti, que tens as ideias tão claras, que sabes sempre o que hás-de fazer!" Na maioria dos casos, as pessoas que invejam a minha suposta segurança nunca deram um passo que não tivesse sido traçado por outros. Entraram no autocarro, encontraram um banco vazio e instalaram-se indolentemente. Todavia, à medida que os quilómetros foram passando, repararam que o banco não era tão confortável como parecia e que a paisagem, vista sempre do mesmo ângulo, era bastante monótona. E olharam em volta, à procura de uma alternativa. O que haviam de fazer? Levantar-se? Procurar outro banco? Sair do autocarro? Sim, seria possível, mas... O segundo banco seria de facto mais confortável? E se alguém chegasse primeiro e o ocupasse? Viajar de pé não é nada desejável... já para não falar da hipótese terrível de se ficar sozinho no meio de uma rua desconhecida, sem saber para onde ir. Assim, o que há a fazer é contentarmo-nos e ficarmos sentados no mesmo sítio. É desconfortável, mas, paciência, uma pessoa habitua-se. A paisagem é monótona, mas basta fechar os olhos e dormir um sono. Entre o risco e o tédio, o tédio acaba por ser mais tranquilizador.

Todavia, a natureza fala-nos ininterruptamente de evoluções, crescimentos, amadurecimentos. Se assim é, por que haveremos de fugir a essa lei, sentarmo-nos e esperar que o nosso destino de morte chegue, inelutável? Portanto, o desejo de partir que sentimos aos dezoito, vinte, vinte e quatro anos, não é uma fuga, é uma fundação. Porque não há vida verdadeira sem procura de nós mesmos, do nosso rosto profundo, transcendente, sem a recusa da máscara que nos foi imposta.

 

O homem nobre

10 de Outubro

O fim do Verão traz sempre consigo uma espécie de esgotamento. Na horta, os tomateiros sofrem o ataque dos percevejos, das abóboras só restam algumas folhas amarelecidas, os poucos pés de alface estão murchos. A horta está desolada e a casa está virada do avesso. À minha desorganização e à desorganização das pessoas que vivem comigo veio juntar-se, nos últimos meses, a desorganização dos hóspedes. Os objectos estão espalhados pela casa toda sem qualquer sentido lógico, lápis de cor e álbuns surgem um pouco por todo o lado, a par de jogos de sociedade, raquetas desirmanadas, livros, chapéus, sapatos, luvas de jardineiro e almofaças dos cavalos. Confesso que, de tempos a tempos, tenho ataques de fúria: "Será possível que, nesta casa, não haja ninguém que seja organizado?" Mas é assim, os parecidos atraem-se e talvez seja preferível porque a convivência entre uma pessoa organizada e outra desorganizada não deve ser coisa muito diferente do Inferno.

O Verão deixa atrás dele o esgotamento das casas, das coisas e das pessoas. Houve muitos encontros, muitas histórias, muitos almoços, jantares, piqueniques, momentos passados a conversar, a rir, a falar de coisas profundas. Mas, de repente, a partir de meados de Agosto, começo a sentir uma sede absoluta de silêncio. Só desejo a penumbra, o ar fresco, os dias silenciosos, o telefone que não toca, as longas horas de estudo, os passeios no bosque com o cão. No início de Setembro, costumo ir passar uns dias à montanha, e, quando regresso, começo a preparar a casa para o Inverno. Mudo de estação, deito fora os jornais velhos, arrumo as gavetas.

Foi justamente ao arrumar umas gavetas que encontrei o presente que a Shen Mei me deixou, antes de partir. Já te falei dela? Quando eu ainda vivia em Roma, a Shen Mei foi a minha professora de caligrafia chinesa e, pouco tempo depois, passou também a ser uma grande amiga. Este ano, ao passar por Itália, esteve uns dias cá em casa. Antes de partir, desenhou um enorme ideograma e ofereceu-mo. "O que significa?", perguntei-lhe. "Não consegues imaginar? Significa nobreza...."

Nobreza! Foi com esta palavra que nasceu a nossa amizade!

Acho que foi no nosso segundo encontro que falámos disso. Na véspera, a Shen Mei tinha tido uma discussão muito acesa com um amigo. "Porque não és mais nobre?", perguntara-lhe. "Ser nobre?", respondera ele, desdenhoso. "Para quê? Não vivemos no mundo das fábulas!"

Quando me contou este episódio, o meu coração estremeceu. Nobreza. Finalmente, alguém pronunciara a palavra que há tantos anos germinava dentro de mim, e não a pronunciara com sarcasmo ou arrogância, mas com admiração, afecto, com a certeza de que a nobreza deveria - e poderia - ser um programa de vida. Expliquei-lhe que, entre nós, a nobreza costuma ter um aspecto bastante concreto, feito de brasões e partículas nos nomes de família. Os outros aspectos, os que estão associados à alma humana, são ignorados.

Numa sociedade em que o princípio da matéria impera indiscutível, a única nobreza que é reconhecida é a do sangue. A outra, a que está ao alcance de todos, a nobreza da alma, desapareceu dos nossos horizontes. Já nem a Igreja se atreve a falar do homem nobre, embora, tanto no Antigo como no Novo Testamento, o homem nobre surja com uma certa frequência. Não surge montado em brancos corcéis, nem é seguido por cortejos de donzelas, é apenas um homem que abriu o seu coração à Sabedoria, deixando atrás de si os trajos confusos do ego e dos desejos, das ideias e das vontades, é um ser que não age, que se deixa agir. Que, em vez de insultar, perdoa. Não rouba, cede.

A alma nobre gera perturbação à sua volta e é essa a sua enorme e involuntária missão. Ser, fermento, pólen. Destruir o que era conhecido, fazer crescer o que era desconhecido.

 

O corpo e a alma

17 de Outubro

Finalmente, a temperatura desceu e pude acender a salamandra. De todas as estações, o Outono é a que prefiro. Quando chega, sinto sempre uma felicidade muito subtil. Já perguntei muitas vezes a mim mesma a que se deverá esta preferência. Será por ter crescido no Norte, ou será por ter nascido no Outono? Talvez seja isso, talvez tenhamos tendência para preferir a estação em que viemos ao mundo. Se o ar, a luz, a água, a lua influenciam o crescimento das plantas, por que não poderão influenciar também as nossas essências mais profundas? A nossa civilização ocidental fica horrorizada perante tais hipóteses, mas há outras culturas, como, por exemplo, a chinesa, que se basearam nesse factor impalpável para construírem todo o seu saber.

Na tua última carta, falas-me das terríveis insónias que começaram a atormentar-te pouco depois da morte do teu pai. "É estranho", dizes tu, "mas, durante quase um mês, dormi como uma pedra. Depois, de um dia para o outro, deixei de pregar olho. De dia, sinto-me cansada, exausta, e o mau humor, que está sempre presente, aumenta e de que forma!"

Havia, por acaso, alguém que te possa explicar melhor do que eu? As insónias foram das primeiras companhias da minha vida. Andava no jardim-escola e já não dormia. E foram justamente as insónias que me fizeram descobrir a acupunctura, já lá vão vinte e seis anos. O médico que me indicaram vivia numa casinha de campo cercada de flores. Não era santão nem bruxo, era o médico municipal de uma terra que ficava perto da minha. Lembro-me de que era muito velho e que o consultório estava mergulhado numa penumbra agradável. Fiquei deitada durante vinte minutos com as agulhas espetadas, e depois vim-me embora, convencida de que não tinha acontecido absolutamente nada. Duas horas mais tarde - estava numa casa de gelados com uma amiga -, comecei a bocejar como nunca tinha bocejado e por pouco não adormeci mesmo ali, em cima da mesa.

O Oriente oferece-nos uma sabedoria enorme porque sabe curar o homem a partir da sua totalidade, das subtis e poderosas energias que o ligam ao céu e à terra, ao universo com o qual foi criado. Todavia, apesar dessa riqueza, é um mundo que ainda provoca desconfiança, ou mesmo terror, a muita gente. Quantas vezes já ouvi dizer: "Tens a certeza de que não é apenas sugestão? Como é que concilias essas práticas com a fé? Quer dizer, um crente não deveria..." Sempre que ouço estas palavras, sinto um certo mal-estar. O que significam esses medos?

Há muitas pessoas que pensam que a vida é feita de compartimentos estanques. Há coisas que são adequadas a certos tipos de pessoas e outras que o não são. Coisas apropriadas e coisas que são dignas de troça. E essas pessoas não compreendem que este tipo de atitude só lhes aprisiona a vida, só as fixa teimosamente numa única dimensão. Mas o homem é uno, a sua natureza é, ao mesmo tempo, extraordinariamente universal e extraordinariamente individual. O Espírito Santo não actua apenas para os católicos ou para os cristãos. O Espírito actua na criação, lançando constantemente as sementes da sua sabedoria. Tudo o que ajuda um ser humano a ser melhor é dele que provém. Tudo o que nos faz ser mais fortes, mais sábios, mais sãos, é dádiva sua. Quem se entrega ao Espírito não pode saber o que é o medo, e não recua perante nada, não fecha os olhos, não volta a cabeça, porque, para ele, todas as coisas, mesmo as que, aparentemente, são as mais inaceitáveis, têm um sentido. Já há muitos anos que pratico ioga e recorro à acupunctura e à homeopatia. E essa prática não gerou em mim qualquer confusão, nem me fez aturdir com "paraísos artificiais", antes me deu uma extraordinária lucidez, uma energia e um equilíbrio psicofísico que me permitem encarar sempre com serenidade tudo o que tenho de fazer. Trabalhar com o lado mais oculto do corpo é entrar em contacto com a espiritualidade mais autêntica. com a espiritualidade que não nasce da cabeça para ir descendo frouxamente até ao coração, mas que nasce no ponto misterioso que se situa por baixo do umbigo e a que os japoneses chamam Hara.

Segundo as técnicas orientais, foi justamente aí que as nossas células começaram a multiplicar-se para formarem o indivíduo que viemos a ser. Em suma, esse ponto minúsculo é a nossa origem. E é precisamente nessa origem que devemos mergulhar, se queremos abrir a mente e o corpo a uma dimensão maior. Quantos falsos problemas, quantas neuroses, quantas perguntas inúteis se desvaneceriam, se as pessoas fossem habituadas a fazer falar o Espírito através do corpo!

 

O amor exige força

24 de Outubro

Embora já há vários anos tenha deixado de ter idade para andar na escola, continuo a ter a sensação de que o início do novo ano não é em Dezembro, mas em Outubro. De facto, quando era miúda, as aulas não começavam em Setembro, como agora, mas no dia 1 de Outubro. Ainda me lembro da excitação que sentia quando me entregavam o novo manual. Folheava-o com delicadeza, para não o estragar, espiando as figuras coloridas que o cobriam. Os Horácios e os Curiácios; Cornélia, a mãe dos Gracos; os Alpes Grayos, as Cozie, os Apeninos... Havia lá dentro tantas coisas a aprender!

Tinha sempre imensas perguntas a fazer e esperava que a escola me ajudasse a encontrar as respostas. Mas, à felicidade ansiosa dos primeiros dias seguia-se sempre a desilusão. A escola não era o lugar do exercício da consciência, era o lugar do tédio e do terror. Tínhamos de aprender poucas coisas e nada interessantes. Quanto bolo posso comer, se lhe como quatro quintos? Por que teria de aprender coisas tão complicadas para uma simples merenda? Se alguém me tivesse dito: "Come seis oitavos de bolo", ter-me-ia limitado a responder: "Obrigada, não tenho fome..."

Agora, se uma criança não consegue aprender, começa-se por consultar pais e psicólogos, fazem-se testes e provas alérgicas, mas, no meu tempo, não era assim. Não saber, não querer e não conseguir responder eram fontes de vexames dificilmente suportáveis para uma alma sensível.

Nestes trinta anos, quantas coisas mudaram no mundo da educação! A criança deixou de ser um animalzinho que precisava de ser forjado e passou a ser uma criatura a quem se tributa, pelo menos segundo se diz, um respeito que raia frequentemente a adulação. Tudo lhe é devido, tudo lhe é justificado, os dias giram em torno da sua satisfação. Entre o     desejo e a sua realização deve mediar um tempo mínimo. Qualquer erro que cometa não passa de um suposto erro porque, na realidade, é apenas fruto de um sofrimento inson"     dável que não fomos capazes de entender. Assim, qualquer falha sua, por mais pequena que seja, é culpa nossa, ou melhor, um sentimento de culpa para nós.

Respeitar a criança é um grande passo em frente na dimensão salvadora da história. Todavia, o respeito deve ser respeito autêntico. Para ser autêntico, deve ter em conta a identidade e as diversidades que queremos salvaguardar. Quando o respeito se transforma num caldo com ingredientes a mais, é porque houve qualquer coisa que falhou.

Não intervir, servir incondicionalmente, culpar constantemente um factor externo, privilegiar sempre, e seja como for, o indivíduo em detrimento da comunidade não é proceder a uma revolução pedagógica, é atolarmo-nos no pântano da indolência educativa.

"O amor exige força." Na primeira carta que me escreveste, quando ainda não te conhecia pessoalmente, citavas esta frase de Vai aonde te leva o coração como uma das que mais te fez reflectir. Nessa altura, contei-te que uma das pessoas que lera a versão dactilografada ficou tão impressionada com essa frase que me sugeriu que a retirasse antes de entregar a obra ao editor. "É uma frase fascista, não podes deixá-la ficar..." "Não percebo", respondeste-me tu. "Não percebo. O que é que o amor tem a ver com o fascismo?"

De facto, não tem nada a ver. Mas tem a ver, e muito, com a confusão cultural que se criou a partir dos anos 70. Foi então que começou a erguer-se o grande e obtuso muro entro o que é bom e o que não o é. A "força" é negativa porque pertence ao horizonte cultural da direita, tal como a nobreza deve ser desprezada por ser símbolo de um privilégio.

Passaram quase trinta anos e estes clichés ainda perduram na mente de muitas pessoas. Expurgando um termo a seguir ao outro, conseguiu-se banir a essencialidade mais profunda do homem. Recorrendo a um processo notável de autodestruição, esvaziámo-nos e encolhemo-nos e exaltámos esse nosso vazio e essa nossa pequenez como se fosse o melhor dos estados possíveis. É uma loucura, não achas? No entanto, passa por ser a mais sábia das normalidades.

 

O medo do silêncio

31 de Outubro

Esta manhã, ao ir dar de comer às cabras, passei por baixo do velho castanheiro. O tronco já está roído e partido em vários sítios, e muitos dos ramos estão totalmente despidos. Não sei quantos anos poderá ter, penso que deve andar pelos cem anos, ou talvez mais. Não foi com a idade que ficou assim, foi por causa do cancro que atingiu todos os castanheiros dos Apeninos. Aqui há uns anos, ouvi dizer que a doença proveio dos caixotes de munições que os Aliados trouxeram para cá durante a última guerra. Eram de castanho, a madeira estava doente e o cancro propagou-se. Será verdade? O que sei é que a minha árvore, como todas as que existem em redor, já só existe por metade, ou talvez menos, e um dia que, infelizmente, não deve vir longe, vou ter de a abater. Mas, entretanto, a parte viva está perfeitamente viva, produz folhas abundantes e sãs e, no início de Agosto, cobre-se daquelas bolinhas peludas que agora se transformaram em castanhas.

O castanheiro e o carvalho são as minhas árvores preferidas. Se o carvalho é austero, o castanheiro é cordialmente familiar. Por mais velho que seja, mantém sempre os ramos baixos e, no ar tórrido de Agosto, oferece uma cúpula verde e fresca sob a qual se pode descansar.

Durante os últimos anos, muitas pessoas que me vinham visitar perguntaram-me: "Não te aborreces por viver sempre aqui?"

O aborrecimento, juntamente com o espantalho do tempo livre, é uma das obsessões do nosso tempo. Para o provar, basta pernoitar num hotel qualquer de uma qualquer estância de férias. Quer seja na praia ou na montanha, no Norte ou no Sul, de cinco estrelas ou de três, somos obrigados a suportar o flagelo da animação. Discoteca, aeróbica, concursos demenciais, jogos goliárdicos; para quem quiser viver tranquilamente o repouso, não há um segundo de paz. Quem se pode dar a esse luxo, vai para a praia em Abril, Maio ou Outubro, altura em que os animadores já estão a descansar nas suas tocas. Aos outros só resta suportar.

Noventa por cento das pessoas que encontrei durante estes últimos anos nos locais de férias confessaram-me que não sentiam qualquer necessidade de animação e que a toleravam como uma espécie de castigo inevitável. Como contraprova, conheço um pequeno parque de campismo, um dos quatro ou cinco que, em toda a Itália, ainda não praticam esse costume bárbaro, e em que se tem de reservar lugar com, pelo menos, um ano de antecedência.

Um dos primeiros "teóricos" do aborrecimento, em tempos muito afastados dos telemóveis, computadores e animação, foi Theilhard de Chardin. Segundo ele, o grande "Moloch" que o homem moderno teria de enfrentar seria justamente o aborrecimento. Depois de as necessidades primárias, secundárias e terciárias da vida estarem satisfeitas, deixa de haver qualquer tipo de tensão. Está tudo visto, sabido, provado. Por que haveremos de nos mexer? Por que haveremos de procurar outros estímulos, se todos os horizontes estão já saturados?

Então, para destruir o sortilégio do torpor, temos de ir ao encontro de estímulos mais fortes e de emoções mais perturbadoras. Mas esses sobressaltos também acabam por não ser muito diferentes de seixos lançados num charco. Ouve-se um baque, a água encrespa-se, os círculos vão-se alargando, cada vez mais amplos, cada vez mais finos e, por fim, a superfície volta a imobilizar-se. Lançar um seixo num riacho é muito diferente. A água corre impetuosa, alegre, por entre saltos e salpicos. E é difícil ver o sítio exacto onde o seixo caiu.

O antídoto para o aborrecimento é a curiosidade. Um espírito aberto, sempre em movimento. Quem segue o caminho do conhecimento nunca se debate com o aborrecimento.

O aborrecimento é a bagagem que leva consigo quem se contenta com a superficialidade, a exterioridade. Quem acredita que existir é estar na plateia a assistir a um espectáculo sem sequer se dar ao trabalho de aplaudir. O aborrecimento não mata, mas envenena subtilmente, torna-nos inquietos, faz de nós vítimas de um movimento que não conduz a lado nenhum. Então, transformamo-nos em borboletas dos finais do Verão que se precipitam para qualquer fonte de luz como se fosse o sol e dançam à sua volta até morrerem, queimadas ou exaustas.

 

A relação com os mortos muda com a idade

7 de Novembro

Escreveste-me ainda perturbada com a discussão que tiveste com a tua mãe. Tanto tu como ela têm um temperamento calmo e não é costume discutirem com tanta violência. Além disso, a discussão não te levou a lado nenhum. Ela fez o que queria fazer e tu não fizeste o que ela queria que fizesses. Que rico jogo de palavras para dizer que ela foi ao cemitério e tu, não. Quando ela te disse: "Toda a gente lá vai, no dia dos defuntos!" respondeste com um raivoso "Fazer o quê?"

Desde o dia do funeral do teu pai, nunca mais foste ao cemitério. "Já não te lembras dele!" disse, em tom agressivo, a tua mãe e tu, em vez de responderes o que tinhas no coração - "lembro-me de mais" - saíste, batendo com a porta. E agora, naturalmente, sentes-te culpada.

O dia dos defuntos, como praticamente todos os aniversários oficiais, costuma provocar rebeliões, faz vir à superfície bubões que já supuravam há muito tempo. "Tem de se fazer." Mas tem de se fazer para quem? Porquê? Multidões que se encaminham para os cemitérios, provocando gigantescos engarrafamentos de trânsito, os quiosques de flores que são tomados de assalto, os preços que sobem desmedidamente, as alamedas dos cemitérios que parecem um centro comercial, ao sábado à tarde. Depois, a festa termina, as flores murcham nas jarras, curvam as corolas coloridas, enchendo o ar com o seu perfume desagradavelmente adocicado. Passado algum tempo, uma mão piedosa, ou paga para o fazer, tira-as das jarras, e as jarras ficam para ali, como bocas vazias, desdentadas; quando muito, ficam por lá a dançar algumas flores de plástico, de caule rijo, pétalas desbotadas pelo sol de muitos anos. Era isto que te horrorizava, ou estou enganada? Uma espécie de consumismo da memória, uma obrigação social a cumprir no dia determinado para depois se descansar durante o resto do ano. Tu não te satisfazes e, com toda a razão, queres que na tua vida haja verdade e coerência, e não fraqueza e conformismo acrítico. Também nunca tolerei a obrigação de celebrar, seja o que for.

Na semana passada, recebi uma carta do meu amigo Mauro, aquele que vive na montanha. Em poucos meses, perdeu, i     em ocorrências diferentes, a mãe e a irmã, e só agora, passado um período de profunda depressão, está a começar a recompôr-se. "Lembras-te", escreveu ele "de como nos aborrecíamos de morte, na escola, com os Sepulcros de Fosco/o? Não percebíamos como era possível dedicar um poema a alguns túmulos. Mas agora percebo.

Mal saio do trabalho, vou ao cemitério. Os momentos mais serenos do dia é lá que os passo."

A relação com os mortos precisa de tempo para crescer. Aos vinte anos, revoltamo-nos, não queremos ver. É compreensível, as coisas da nossa vida ainda não assentaram, não se pode pensar que a nossa vida, ou a vida das pessoas que amamos, tem um fim. Aos quarenta e cinco anos, esse pensamento torna-se muito mais natural. Depois da morte do meu pai, í'   durante um ano, fui quase todos os dias ao cemitério. Ficava por lá e continuava o diálogo que se tinha bruscamente interrompido.

É preciso tempo, de facto, mas o passar dos dias não tem em si qualquer poder, se não é acompanhado por um percurso espiritual. Crescer significa "metabolizar" a ideia da morte. É este o único caminho para se viver totalmente cada instante da nossa existência. Horrorizam-te os cemitérios com as suas estátuas alquebradas ou ameaçadoras, os mármores tristes, sinistros ? Também não gosto deles e, naquele cinzento, naquele desespero, não vejo sinal da fé no Ressuscitado.

Se queres recordar o teu pai, recorda-o no silêncio do teu quarto, com uma fotografia, uma flor, uma vela. Porque, embora "não acredites em nada", como dizes, tenho a certeza de que acreditas no seu amor, que te permitiu vir a este mundo.

 

O pai espiritual

14 de Novembro

Ontem, fiz as covas para plantar mais árvores de fruto. Embora o meu pomar já tenha aí umas vinte árvores, tenho sempre curiosidade em cultivar outras espécies. Há anos que tento fazer crescer uma ameixoeira que veio do Carso e que aqui, na Umbria, não existe. A minha mãe trouxe-me duas, mas não aguentaram a longa viagem de automóvel e morreram, mal as transplantei. Agora tenho outra que, milagrosamente, criou raízes. Contudo, desconfio que nunca dará frutos porque lhe falta um parceiro para a polinização. Não sei qual é o nome dessa qualidade de ameixas, mas o seu sabor é uma das recordações mais nítidas da minha infância.

Aqui há tempos, falava eu com um amigo médico, natural de Xangai, acerca da loucura dos regimes alimentares que invadiram o Ocidente. No vazio das observâncias de fé, o respeito pela dieta passou a ser a única religião. Uma religião tirânica, obsessiva, anti-social, em que a "terra prometida" é a felicidade de uma saúde perfeita. "Não farão mal", perguntei-lhe, "essas dietas "devocionais" que, de um dia para o outro, levam as pessoas a comer coisas que nem sequer sabiam que existiam, privando-se de sabores deliciosos?"

"Mal?" respondeu ele. "Fazem pessimamente. A boa comida, a comida que nos faz sentir bem, é a que comemos em crianças e nos fez crescer. Graças à sua memória, o corpo procura sempre esses sabores."

Aí tens a razão da espasmódica procura das ameixas! Seja como for, as novas árvores não serão ameixoeiras, mas macieiras, pereiras e pessegueiros cá do sítio, ou seja, das colinas da Itália central. Porque, para além da memória individual, também há a memória "histórica", que deve ser salva.

Um dia, disseste-me que admiravas a minha capacidade para cuidar das coisas, a constância com que o fazia. Efectivamente, sem constância, sem dedicação, não se consegue nada, seja em que domínio for. Não se pode estudar uma língua, plantar um pomar, cultivar uma amizade, construir uma casa. A perseverança, a atenção não são dons inatos, são um caminho que se aprende a percorrer.

Quando tinha a tua idade, era inconstante e desorganizada nos meus projectos, tal como tu és agora. Para sermos constantes, temos de conhecer bem o nosso próprio centro. Sermos estáveis connosco é o requisito fundamental para pousarmos o olhar no que nos rodeia. Mas como se pode atingir essa estabilidade?

Não sabes quantas pessoas me fizeram esta pergunta desde que escrevi Vai aonde te leva o coração. Claro que não há nenhuma regra, nenhum percurso preestabelecido, porque cada ser humano vive da riqueza da sua diversidade. O que está bem para um pode ser extremamente negativo para outro. Muitos, convencidos de que têm dentro de si um "não sei quê" obscuro, confiam no saber dos psicólogos, mas, em muitos casos, esse "inimigo misterioso" é apenas a saudável inquietação existencial de que já falámos, e cobri-la com teorias, complexos ou traumas pode mesmo agravar a situação.

Pessoalmente, penso que, salvo no caso de problemas psíquicos particularmente graves, seria preferível recorrer a um pai ou a uma mãe espirituais. É muito provável que nunca tenhas ouvido falar destas figuras porque desapareceram do horizonte. Não são gurus, nem terapeutas, são apenas pessoas que, com esforço e humildade, foram progredindo no caminho da sabedoria e estão disponíveis para acompanhar quem o quiser percorrer. Não o fazem por dinheiro ou fama pessoal, e muito menos para favorecerem um grupo. A sua acção tem um único motivo: ajudarem a pessoa que está a seu lado a crescer na luz e na sabedoria, a ser dócil face à acção do Espírito Santo.

O seu trabalho não é muito diferente daquilo que todos os dias faço no meu pomar. Ando por entre as árvores e observo com paciência: há azoto a mais, falta ferro, naquela fenda talvez haja o ninho de algum cóssio. Reparo nos desequilíbrios e corrijo-os, respeitando sempre a planta e a harmonia do ambiente. E se uma árvore que seja acompanhada com atenção pode atingir toda a sua plenitude, por que não haveria de acontecer o mesmo com o ser humano?

 

Aceitar o tempo que passa

21 de Novembro

Há três semanas atrás, fui passar uns dias a uma aldeia nas montanhas.

Embora com os anos tenha aprendido a gostar do mar, continuo a ser uma amante da montanha. A paisagem corresponde ao meu estado íntimo. Repousa-me sobretudo a presença maciça do verde em todas as suas tonalidades, muito diferentes das que temos no campo.

Gosto de caminhar no silêncio, observando os inúmeros sinais da vida do bosque: as avelaneiras ocultas entre os pinheiros, os piscos, os chapins de poupa, os rabilongos, o voo inesperado de um pica-pau que corta o ar, o ventre amarelo dos girinos nas poças de água. Gosto de subir mais ainda, ir até onde voam as gralhas, e as marmotas assobiam. Lá em cima, as flores, para se protegerem do frio e do vento, crescem rasteiras e compactas, rodeadas de musgo.

Antigamente, quando era mais nova, pegava na tenda e passava dias e dias na alta montanha, sem nunca descer. Agora, tenho de me contentar com aventuras menos épicas.

Sorris por eu dizer "quando era mais nova"? Penso que sim, porque, no fundo, embora seja vinte anos mais velha do que tu, o meu comportamento não difere muito do teu, uso jeans e ténis, e ando de motorizada e de bicicleta, exactamente como tu. No entanto, há muitas coisas que, nestes últimos anos, não digo que tenha deixado de fazer, mas que comecei a fazer de forma diferente.

com o passar do tempo, as energias não desaparecem, mas modificam-se, diminuem, e essa mudança leva naturalmente à moderação. Já não posso andar a pé durante dez horas, com uma mochila monstruosa às costas, cobrindo mil metros de desnível. Posso fazê-lo, no máximo, durante quatro ou cinco horas, avançando com a calma quieta de quem se delicia com a paisagem. Disse "não posso", mas não é verdade. Claro que poderia, mas seria uma forma grave de violência contra o meu físico.

De acordo com os clássicos do pensamento tauista, é justamente por volta dos quarenta anos que nos retiramos do mundo e começamos a praticar a moderação e a distanciarmo-nos das paixões.

No entanto, na nossa sociedade, tão profundamente narcisista e aterrada com a ideia da morte, nunca ninguém se retira do "mundo", porque a juventude é o único estado concedido ao homem. A alma já não existe e, no seu esquecimento, levou consigo a capacidade de fazer perguntas.

Como já não se é capaz de ouvir o amadurecimento do nosso corpo, vive-se num presente eterno e artificial, seguindo uma imagem de nós mesmos que é a imagem envernizada das fotografias dos jornais. Temos de ser eficientes ao máximo, magros, ágeis, sem rugas. Depois, quando chega a doença, ou pior, a morte, sentimo-nos traídos. Como é possível, logo agora que o filtro da eterna juventude estava prestes a ser inventado?

O homem moderno - o homem ocidental -, já saciado e longe do mistério, parece uma criatura privada de memória. A sua vida é como um carro vazio que vai empurrando distrai damente entre as prateleiras do supermercado. Como não tem memória, não sabe o que há-de escolher e por isso enche-o com o que lhe aparece à frente. Só quando chega à caixa e atira o conteúdo para o balcão, é que repara que se limitou a açambarcar coisas totalmente inúteis. Não há pão. Não há vinho. Mas há desodorizante de manga para os sapatos.

 

A árvore-guia

28 de Novembro

Como nunca foste à velha casa no alto da colina onde vivi antes, não podes partilhar a dor que senti com o abate do enorme carvalho que havia à frente da minha janela. Escrevi Vai aonde te leva o coração a olhar para os seus ramos que, em dias de vento forte, quase roçavam pelo vidro. No Verão, dava sombra. No Inverno, via os chapins e os pica-paus a perseguirem-se no tronco. Muitas das metáforas do livro é a ele que as devo. A metáfora da planta infestante, por exemplo, e naturalmente, a última, a da árvore que, na estação própria, oferece sombra e repouso. Infelizmente, o carvalho tinha crescido de mais e a posição em que continuava a crescer, mesmo à beira da colina, começava a torná-lo perigoso. Por isso, uma manhã apareceram aí com uma serra eléctrica e reduziram-no a uma pilha de cepos, bons para a lareira.

Aqui há tempos, veio visitar-me uma amiga que eu já não via há muitos anos. Passámos a tarde juntas, a falar das coisas que nos tinham acontecido. No entanto, já ao pôr do Sol, ela começou a olhar em volta, com um ar inquieto.

- Precisas de alguma coisa? - perguntei-lhe.

- Por acaso sabes se aqui perto há alguma avelaneira?

- Há uma, à entrada do bosque - respondi -, mas já não é tempo de avelãs.

- Oh, não te preocupes - respondeu ela com um vago sorriso de bazófia. Levantou-se e desapareceu.

À hora de jantar, como ela ainda não tinha regressado, fui até ao cimo da colina e vi-a. Estava sentada à frente da avelaneira, tinha uns paus de incenso acesos na mão e balouçava-se para a frente e para trás, cantarolando qualquer coisa que eu não percebia.

Mais tarde, já à mesa, com os olhos cheios de um brilho estranho, disse-me:

- Não sabes que cada pessoa tem uma árvore-guia?

- Ah, sim? E o que é que ela faz?

- Ora, em primeiro lugar, tens de saber qual é a tua árvore-guia. A minha é a avelaneira, mas tu poderás ter outra, o pilriteiro, por exemplo. O teu xamã é quem poderá dizer. Logo que saibas qual é, tens de te pôr em sintonia com ela, reconhecer que é tua dona, entrar na sua aura e depois...

- Depois?

- Depois, ela conduzir-te-á à iluminação, à paz.

Não sei se, em criança, foste alguma vez para a beira-mar fazer buracos na areia. Começas a cavar com todo o entusiasmo, tentas cavar ainda mais fundo, mas, por mais areia que tires, o buraco mantém-se sempre na mesma, devido à infiltração da água. Cavas, cavas e, como Sísifo, estás sempre no mesmo sítio. A natureza não gosta do vazio, mal o vazio se cria, volta a enchê-lo. Enche-o com areia, folhas, microrganismos, água, ou entulho, porque o vazio não faz parte dos seus projectos.

Também o homem, nos últimos três séculos de história, começou com grande empenho a esvaziar o céu da presença do Criador e, como a criança da praia, teve, durante alguns instantes, a certeza de que conseguira. O céu está vazio, o homem é finalmente livre. Livre do preconceito, livre de terrores ancestrais e da escravidão. Será mesmo assim? Ou será que o céu vazio se encheu imediatamente de outras coisas? De venusianos, marcianos, árvores-guia e animais-guia, minerais e palavras mágicas?

Como deixou de acreditar no Criador, o homem está disposto a acreditar em tudo o que lhe possa restituir a dimensão do sobrenatural. Mal se supera o sentido do ridículo, surge uma grande tristeza. O que é feito da árvore do primeiro Salmo, "cujo fruto amadurece em cada estação e cujas folhas não vedes murchar?" Como é que se chegou a este nível de regressão e de pobreza interior?

 

Que valores oferecemos aos jovens?

5 de Dezembro

Um destes dias, em Roma, julguei que estava a ter uma alucinação. Tinha apanhado o autocarro na estação e ia a caminho de casa quando alguém ao meu lado começou a recitar os famosos versos do canto de Paolo e Francesca, de Dante.

Amor a amado algum amar perdoa, tomou-me a seu prazer assim tão forte que como vês ainda se apregoa...

As vozes alternavam-se, em tom alegre. Quem seria? Voltei-me e vi, atrás de mim, duas raparigas de quinze anos, dezasseis no máximo, vestidas à moda: blusão preto, minipull, sapatos de quatro quilos cada um. Era ao fim da tarde, provavelmente iam para o centro fazer compras e, através dos versos de Dante, iam confessando as suas simpatias sentimentais. A certa altura, uma delas tirou do bolso um papel escrito à mão. Não era um sms, ou um e-mail, era uma carta. Quando a amiga, curiosa, lhe pediu para a ler, ela corou de repente: "Oh, não. Não posso..."

Desde que o mundo tem memória de si mesmo, as gerações maduras sempre se queixaram da impossibilidade de compreender os jovens, da sua insensibilidade para com os valores, da sua degradação intelectual e moral. "Não há futuro para a sociedade", vocifera-se há alguns milhares de anos, mas, tanto no bem como no mal, a sociedade não deixa de avançar.

A parte a inveja fisiológica por quem ainda é jovem e tem a vida à sua frente, não sei de onde pode provir tal atitude. Sempre que ouço as costumadas generalizações acerca dos jovens, irrito-me. O que significa "ser jovem"? Ter poucos anos às costas, claro, mas para além disso? A juventude, a maturidade ou a velhice são vernizes superficiais. Por baixo desse verniz, há a unicidade do ser humano e do seu destino. Irrito-me com isso e também porque estou convencida de que deveriam ser vocês, os jovens, a enraivecer-se, a indignar-se, a dizer: "Agora, basta!", e a irem-se embora, batendo com a porta.

O mundo em que vivemos está reduzido ao estado de lixeira a céu aberto, não somos muito diferentes dos insectos que tentam manter-se à superfície nesse universo fedorento. As únicas vias de realização que nos são oferecidas, ao crescermos, são as da vulgaridade, do egoísmo, da mesquinhez. A vida é uma corrida por pontos, há coisas que te fazem ganhar pontos, há outras que tos fazem perder. Quando tens demasiados pontos negativos, sais do jogo.

Oferecemo-vos um mundo de roubos, explorações, carnificinas. Um mundo dominado pelos espertos e pelos desonestos, pelos violentos. Subtilmente, escolhemos como valores as mais horrendas aberrações do homem. Não há jornal, televisão, jogo virtual que não vo-lo repita diariamente. Para contrabalançar esse horror é-vos oferecido um número infinito de objectos para comprar. Todos ali, a brilhar, ao alcance da mão, generosos na dádiva de um sentido sempre novo aos vossos dias.

"Os jovens são mal-educados, insaciáveis, violentos", repete-se constantemente. Mas ninguém diz: "Por que serão assim? O que pretenderão?" Desde o berço que os cobrimos de lixo e agora queixamo-nos por cheirarem mal. Ninguém se envergonha, ninguém pede desculpa. O cancro do cinismo também devorou qualquer sentimento mais profundo.

No entanto, apesar deste extermínio, as raparigas apaixonadas continuam a repetir os versos de Paolo e Francesca, continuam a corar ao ouvirem um nome ou ao lerem uma carta de amor. Porque o coração do homem está sedento de beleza, de poesia, de partilha. Porque, no mais fundo de cada coração, embora sepultada entre os detritos, frouxa e vacilante, continua a agitar-se a chama da verdade.

E é essa chama que aterroriza.

 

A liberdade de escolher

12 de Dezembro

Obrigada pelo cartão de Boas-Festas. Nunca me importei muito com essas coisas, mas tenho o dobro da tua idade. Todavia, só este ano é que poderemos brincar com os números: dois e dois, quatro e quatro. No próximo ano, já estaremos distantes, tu com dois e três, eu, com quatro e cinco. Quando era miúda e tinha pressa de crescer, imaginava sempre a reduplicação. Aos oito anos, pensava: estou só a meio caminho dos dezasseis, aos dezasseis imaginava-me nos trinta e dois. Como serei com essa idade, o que farei? Ainda não tinha qualquer ideia do que faria quando fosse grande, se me casaria ou não, se teria ou não filhos. Também não tinha a mínima ideia de que viria a escrever livros e, se me tivessem dito que seria famosa, daria uma grande gargalhada.

A vida reserva-nos sempre surpresas extraordinárias. Pensamos ir para um lado, e ela, com movimentos imperceptíveis, leva-nos para outro. Quanto mais os anos vão passando, mais se desconfia de que, em qualquer sítio, se esboçou um objectivo ou, pelo menos, a trama das nossas vidas.

Lembro-me de um episódio que me aconteceu quando tinha mais ou menos a tua idade. Um apaixonado por disciplinas esotéricas, que conheci em casa de uns amigos, insistira em saber a data do meu nascimento. Uns dias depois, voltámos a encontrar-nos e ele disse-me: "Vais ser uma artista e, por volta dos quarenta anos, a tua vida sofrerá uma mudança drástica." Não o levei a sério. Que tipo de artista poderia vir a ser? Não sabia tocar nenhum instrumento, nem pintar, nem dançar. Não tinha imaginação suficiente nem para escrever uma frase. E a mudança? Que poderia ser? Uma doença, uma morte precoce? A decisão de entrar para um convento? "Não me podes dizer mais nada?", perguntei-lhe. "Não, são coisas que irás compreendendo com a vida", respondeu ele.

Uns dias depois, já as suas palavras me tinham desaparecido da memória. Mas quando chegou o retumbante sucesso de Vai aonde te leva o coração, voltaram-me, de repente, à ideia. Lá está! Era escritora e a mudança drástica de que ele falava era o sucesso! Coincidência feliz? Talvez... O que é certo é que, nas nossas vidas, na sua evolução, está encerrado um grande enigma.

Mas, se já está tudo determinado, escrito, onde é que está a nossa liberdade, a nossa possibilidade de escolher? Será verdade que eu só poderia vir a ser aquilo que sou hoje, ou tinha outros caminhos à minha frente?

Passaste anos a estudar Economia, convencida de que esse seria o teu destino, e agora percebeste que esses estudos não te interessam para nada.

Porque será que, de repente, surge o descontentamento? Seremos fantoches, ou criaturas que agem pela sua própria cabeça?

O grande dom que nos é dado é o livre-arbítrio, ou seja, a possibilidade de escolher. Escolher significa apenas que há dois caminhos à nossa frente e que temos de decidir se seguimos por um ou pelo outro. Não sei o que havia no outro caminho, nem nunca saberei porque o deixei para trás e já não posso retroceder.

Lembras-te do final de Vai aonde te leva o coração? "E quando à tua frente se abrirem muita estradas, {...} não metas por uma ao acaso, senta-te e espera. Espera e volta a esperar..."

Sentarmo-nos, esperar. Duas palavras tão distantes do nosso consumo frenético do tempo! E já nem falamos de estar em silêncio. Mas são justamente estas três condições que nos ajudam a escolher o melhor caminho.

A imobilidade, a paciência, o silêncio.

Porque, para se escolher, há que eliminar toda a tagarelice que nos rodeia, as formas correntes, banais, de pensar, os lugares e os modos da conveniência. Há que ir ao fundo de nós mesmos e escutar. Temos de ser capazes de esperar com paciência e humildade, porque a consciência profunda é tão esquiva como um animal selvagem e, muitas vezes, há outros apelos - vozes, conselhos, oráculos - que tentam abafá-la. E mais ainda, fazer uma escolha consciente - como já notaste com o teu "é tremendo recomeçar tudo do zero" - torna a vida mais difícil.

Porque as escolhas constróem um percurso. Um percurso que se revela cada vez mais duro do que deixarmo-nos simplesmente levar pela corrente.

 

A luz que irrompe

19 de Dezembro

Não sei onde estarás quando receberes esta carta. Eu vim a Trieste passar a quadra de Natal com as minhas sobrinhas. As filhas do meu irmão mais velho vivem em Hong Kong, e, por isso, quando chegam a Itália, tento passar o máximo de tempo com elas.

Desde que passei a ser tia, redescobri o prazer de festejar o Natal. É bom ouvir muitas crianças à nossa volta, a sua excitação, a magia da espera, do mistério. Mas compreendo perfeitamente o teu mal-estar só de pensares que vais passar a Consoada sozinha com a tua mãe, à frente da televisão. Por outro lado, perguntas-me o que farás, se não ficares com ela. E ela, sozinha, o que fará?

De acordo com os psicólogos, a celebração do Natal é um dos acontecimentos que mais perturba as camadas profundas da psique. Tudo o que, ao longo do ano, está tranquilo, explode com a aproximação da festa. Fobias, neuroses, solidões, ansiedades, sensação de fracasso e desejos de fuga invadem, de repente, toda a gente.

Como é sobretudo uma celebração da família, o Natal também funciona como papel de tornassol. Rancores, ódios e incompreensões voltam a surgir violentamente nas semanas anteriores. "Eu, passar o Natal com a minha sogra? Prefiro fugir para o Pólo." "O meu primo? Pelo amor de Deus, não o suporto!"; "Quero lá saber de Belem e de Jesus. Por que haveria de festejará" Depois, magicamente, dois dias antes da festa, tudo se acalma e, na noite de vinte e quatro ou no dia vinte e cinco, ao almoço, segundo as tradições, estamos todos sentados à mesa decorada a rigor.

Disse "tudo se acalma" mas, de facto, deveria ter dito "tudo se cala". É um armistício de algumas horas, e depois, os resmungos e os sibilos voltam a sair. "Uff, felizmente, já acabou...", diz-se, já no patamar.

Que sentido tem o Natal, perguntas-me tu, se não fazer sentir-se só e desesperado quem, como eu e muitos outros, não tem uma mesa bonita à volta da qual se pode sentar? Que sentido tem essa corrida desvairada às compras, esse falar de bondade como se se tivesse a boca empastada de açúcar em fio? Visto nessa perspectiva, nenhum, a não ser para o estômago que se empanturra, para a carteira que fica mais magra, para o ansiolítico que somos obrigados a engolir. Mas nem tu nem eu - como ficou claro logo nos primeiros encontros - nos interessamos pela fachada, mas pelo que a mantém de pé. O que está por detrás, por baixo - afogada nas barrigas gordas dos Pais Natal - é uma celebração do calendário cristão. Muitos cristãos, e com certeza também tu, estão convencidos de que é a data mais importante do ano, mas não é assim. Embora a missa do galo esteja cheia de gente e a vigília do Sábado de Aleluia esteja meio vazia, a Páscoa é que é a celebração fulcral da nossa fé.

Fé! Palavra complexa, tantas vezes mistificada, manipulada, aviltada! "O pouco de fé que me ficou da infância", escreves-me tu, "já desapareceu. E um dos motivos mais fortes que a fez desaparecer foi exactamente a missa do galo. Olhava à minha volta para a multidão agasalhada, distraída, que acabava de se levantar das mesas bem decoradas e nem sequer sabia responder às palavras do celebrante, e perguntei a mim mesma: que Deus é este que se contenta com um povo destes?"

Devolvo-te a pergunta. E se formos nós que nos contentamos, que vamos vivendo, pendurados em poucas noções confusas e numa observância rasteira ? Se formos nós mesmos, com o nosso medo, o nosso conformismo, a nossa superficialidade, que nos limitamos a dar apenas uns trocos àquilo que, de facto, exige a adesão de toda a profundidade da nossa pessoa?

O Natal é a festa "da luz verdadeira, da luz que ilumina todos os homens", que chegou ao mundo. Por isso, tenta apagar tudo o que há à tua volta e pensa só nisto.

Na Luz que irrompe. Na Luz que é salvação.

Abre-te a essa Luz, dispõe-te a acolhê-la. Talvez só assim, com o tempo e com a Graça, possas perceber que a fé é, em primeiro lugar, enamoramento.

O olhar de um enamorado é diferente do olhar de quem cumpre uma obrigação vazia. Num há alegria, desejo de encontrar. No outro, a espera passiva que se tributa aos ídolos.

 

A fé é abertura, interrogação e dúvida

26 de Dezembro

A bonança depois da tempestade!

A excitação das crianças acalmou, os presentes recebidos foram entupir os poucos espaços vazios que havia na arrecadação, a cozinha foi limpa, nos cinzeiros, espalhados pela casa toda, há ainda restos de nozes e avelãs, como se a casa tivesse sido invadida por um exército de esquilos, das velas só restam os cotos. O abeto, massacrado pelo calor, já começa a deixar cair as agulhas. O gato é o único que ainda se diverte, esparrama-se no chão e depois dá um salto para apanhar alguma bola.

É assim dentro de casa, mas, lá fora, não é muito diferente. Se vou à janela, só vejo dois ou três barcos que sulcam indolentemente o mar e, na estrada principal, passam poucos carros. No dia 26 de Dezembro, há um ar de derrota. Comem-se os restos. A trégua vai durar até dia 31. Há que recobrar forças, desobstruir o estômago, limpar o fígado.

Sempre comi moderadamente, e nestes dias de banquetes, tenho um acesso de solidão alimentar. Por isso, esta manhã, neste clima de "digestão", peguei no casaco e fui dar um passeio à beira-mar. Ainda não havia muita gente. Descobri um rochedo confortável e sentei-me.

Foi justamente enquanto estava a olhar para o horizonte que percebi até que ponto as tuas perguntas me obrigam a fazer-me ao largo e a mergulhar. A tua sede? uma sede absoluta. Um desejo imperioso de água pura, quando tudo o que te foi oferecido até agora foram, quando muito, bebidas, em frasco ou em lata, com um nome ou outro, mais ou menos sedutor, mas apenas bebidas, substitutos que não matam a sede.

"O pouco que resta da minha fé infantil", dizias-me na tua última carta. Foi uma frase que me impressionou, porque revela uma situação muito corrente. As pessoas fazem a primeira comunhão, algumas também fazem o crisma, e depois querem viver a vida toda dos rendimentos. As poucas noções, muitas vezes mal aprendidas, distraidamente, aquelas emoções quase nulas, terão de nos bastar durante o tempo todo que ainda está para vir. Terão de nos satisfazer e de serem capazes de responder a todas as nossas perguntas. Se não são, atiramos tudo ao mar, dizendo: "Já não tenho fé, não há ninguém no céu. E mesmo que haja, é-me indiferente."

Anos e anos de lugares-comuns obtusamente repetidos levaram-nos a acreditar que a fé é uma espécie de molde rígido graças ao qual somos capazes de ter todos os tipos de certeza acerca do mundo. "Feliz de ti, que tens fé!" Quantas vezes ouvi dizer esta frase em tom ligeiramente trocista! "Feliz porquê?" "Ora, porque consegues acreditar em todas essas coisas..."

Mas a fé é exactamente o oposto! É abertura, é interrogação e é também, naturalmente, dúvida. E não é uma espécie de meia-calça que colamos ao corpo durante a infância e vai crescendo connosco, alongando-se e alargando-se, para se adaptar indolentemente a todas as circunstâncias. É, isso, sim, uma criatura viva. Algo que se move, se modifica, mas que, para o fazer, necessita de uma atenção constante.

É uma criatura e é também um elemento. É um fogo, que ilumina e aquece, mas que também pode queimar, e que, para existir, necessita de ser constantemente alimentado. Todavia, nós temos na mão um isqueiro apagado e dizemos: "Já não tenho fé."

Mas será que alguma vez a tivemos?

Por isso, se queres mesmo pôr-te a caminho, primeiro tens de pegar num grande saco e meter lá dentro tudo o que não serve :os lugares-comuns, as frases feitas, as imagens óbvias. Depois, vai para a varanda da tua casa. Lá em cima, muito lá em cima, no meio das antenas e dos prédios, é provável que vejas brilhar as estrelas. Interroga-as. Quem é que vos pôs aí em cima? Porquê? O que se esconde por detrás da escuridão profunda do céu? E por detrás dos buracos negros?

É esse o primeiro passo do caminho. Contemplar o mistério em estado puro.

 

Libertarmo-nos dos pesos inúteis

3 de Janeiro

Escrevo-te de uma aldeia na montanha. Vim com as minhas sobrinhas ver a neve. Para elas, que vivem o ano todo enfiadas num arranha-céus de Hong Kong, são momentos verdadeiramente extraordinários. Podem correr sem qualquer perigo em espaços abertos, longe do frenesim da vida da cidade, tal como fazem no Verão, em minha casa, no campo. Acho que, durante estas breves "pausas", as fazemos viver de rendimentos para o resto do ano.

A mais velha já sabe esquiar e vai com os pais para as pistas de descida, mas eu já deixei de praticar esse desporto. Em primeiro lugar, porque as vertigens me impedem de subir sem qualquer receio para qualquer tipo de teleférico ou funicular, e depois porque a proliferação dos temerários praticantes de snowboard tornam cada descida não muito diferente de uma roleta-russa. Um amigo meu passou meses no hospital depois de ter sido atropelado por um desses "bólides da neve". Por isso, há cerca de dois anos, peguei nos esquis de descida, ofereci-os a uma amiga e dediquei-me de corpo e alma ao esqui de fundo.

O esqui de fundo talvez seja, de facto, o desporto que mais gosto de praticar porque junta imensas coisas. O silêncio, a neve, a solidão, os bosques, o esforço físico das subidas e a fantástica recompensa das descidas. Imaginei muitos dos meus livros em cima dos esquis porque o oxigénio e o movimento favorecem o deslizar das imagens e dos pensamentos.

Na semana passada, para iniciares o teu caminho pessoal em busca do tal "vislumbre de fé" que te ficou da infância, sugeri que pegasses num grande saco e metesses lá dentro tudo o que pudesse ser um empecilho no teu caminho. Isso não significa libertarmo-nos dos pesos, pelo contrário. Vais levar contigo pesos terríveis. Significa apenas que terás eliminado os pesos inúteis. O que não serve é o que seria, para ti, um obstáculo, ou seja, todas as definições acerca da fé, do Criador, da religião que se apinham na tua cabeça, te impedem de prosseguir, te levam a dizer: "Não, assim não pode ser."

A tua viagem, como qualquer percurso espiritual, é um caminho que te leva ao encontro de Alguém que ainda não conheces. Não podes saber quando acontecerá, ou se acontecerá. Caminhando, ofereces simplesmente a tua disponibilidade. Mas não podes ditar regras, nem marcar um encontro preestabelecido, assim como não podes saber qual o Rosto que irá surgir na tua frente.

A busca coloca-te numa situação de fragilidade, de despojamento, precisamente o oposto daquilo que pensa quem se mantém longe dessa riqueza. Não assumas certezas, põe antes de parte as que possuis.

Tem de se ter muita coragem para o fazer, não achas? É muito mais fácil continuar a repetir como um papagaio as verdades que temos na cabeça, embora já comecem a esboroar-se, embora sejam opacas. É muito mais simples defendermo-nos com frases feitas.

Lembras-te de quando falámos da inquietação? Embora seja um tormento, é também um grande dom, comparável ao húmus de um terreno. Quanto mais inquietação há, mais as culturas serão luxuriantes. Mas a nossa sociedade não gosta da inquietação, considera-a um mal-estar e trata-a como um fardo. Os sociólogos expedem-na para os psicólogos, os psicólogos para os políticos, os políticos para as famílias, as famílias para a escola. Como as malas antigas, cada "especialista", ao vê-la passar, cola-lhe uma etiqueta. "É isto!"; "Não, é aquilo!"; "Não, é isto!"; "Tome as gotas!"; "Tome as pílulas!"; "Prenda-a!"; "Detenha-a!"; "Psicanalise-a!"

E se, em vez disso, começássemos a pensar que a inquietação é o sinal que a nostalgia da Graça deixou no nosso coração?

 

O toque misterioso do sagrado

10 de Janeiro

Fiquei feliz por saber como resolveste o problema das festas de Natal. Imaginar-te sozinha com a tua mãe, à frente da televisão, a gramar todos os programas natalícios, causava-me uma certa tristeza.

A viagem de automóvel foi uma óptima ideia. Vocês as duas, sozinhas, a viajar por toda a Itália, sem um destino preciso, que depois acabaram por encontrar. Ou melhor, como tu própria escreves: "É provável que aquele lugar nos tenha atraído desde o início, como um íman. Era para lá que devíamos ir, e foi para lá que acabámos por ir, quase sem sabermos. Para as rudes encostas do Monte Sant'Angelo. A minha mãe já tinha ouvido falar, mas eu nem sabia que existia. Nunca simpatizei com os anjos e coisas desse género. No entanto, devo dizer que, ao descer para aquela gruta, senti uma coisa estranha. Uma coisa muito parecida com uma perturbação."

Que giro! Também lá fui, no Verão passado, com a minha mãe, só que eu fui lá de propósito, para satisfazer um desejo antigo. À medida que nos íamos aproximando, não podia deixar de pensar em Jerusalém. A mesma terra ressequida, as mesmas pedras de calcário branco, as oliveiras, os burros, a mesma longa subida para se chegar ao lugar santo. Se bem te lembras, mal se chega à igreja, tem de se começar a descer, no meio de arcos e curvas, até à famosa gruta cavada na rocha e iluminada pela luz frouxa das velas. A emoção que provoca é difícil de descrever. As igrejas raramente me fazem sentir tão perturbada. Ou melhor, quanto mais espectaculares e mais repletas de decorações, estátuas, dourados e frescos, mais me afastam do sentido do sagrado. Claro que sou capaz de apreciar a beleza das pinturas e dos frescos, o talento dos artesãos, a riqueza da história que se reflecte naquelas obras, mas é sempre qualquer coisa que faz parte do meu domínio cultural, da minha mente estética e racional, da minha cultura.

As poucas vezes que me emocionei realmente, foi em certas capelas abandonadas na montanha ou no campo. Lembro-me sobretudo de uma: paredes nuas, altar nu, uma simples cruz de madeira, ao fundo. De repente, alguns pássaros entraram por um vidro partido, com palhas no bico, e fizeram o ninho no baixo-relevo da sétima estação da Via Sacra.

As basílicas, as catedrais, as igrejas são sempre projectos concebidos por homens para outros homens, e como tal, apesar da boa vontade dos seus artífices, dificilmente conseguem tocar as camadas mais profundas e mais secretas da nossa alma. E, no entanto, esse "toque" - o toque do sagrado, do mistério - é tão importante para o nosso caminho! É como o diapasão, que permite afinar todo o nosso ser por uma frequência diferente.

Tenta imaginar o coração como um instrumento musical. Há cordas que tocam habitualmente: a corda da tristeza, da alegria, da raiva, da dor, da distância, do enamoramento. E, por fim, há uma, mais escondida e profunda, que costuma ser difícil de descobrir, mas é justamente aquela que, ao vibrar, torna harmónico e potente o som de todas as outras. É essa corda que nos faz deixar de ser um ser-fragmento para sermos um ser-unidade.

A perturbação que sentiste na gruta é, de certa forma, o despertar da tua corda profunda. De repente, sem o teres imaginado antes, viste-te diante do mistério da Presença. Como não estavas preparada, não te defendeste e foi por isso que o espanto te perturbou. Espanto por causa de quem, por causa de quê? Será possível dizer. Não há nada mais inexprimível, mais secreto, do que esses encontros. O que se continua a sentir é o coração a bater ao de leve, a impressão de que, dentro de nós, se levantou um vento, uma força desconhecida, nova, capaz de baralhar as cartas todas.

 

A minha geração e a tua

17 de Janeiro

Para o campo, Janeiro é ainda um mês de repouso. Não se lavra, não se estruma, não se semeia. A horta está coberta com uma espessa camada de palha, as árvores de fruto não têm folhas e, felizmente, as futuras ervas daninhas dormem debaixo da terra.

Os dias ainda são curtos e, embora a temperatura possa tornar-se amena durante o dia à noite desce abaixo de zero. Seja como for, são os últimos restos de paz porque, em Fevereiro, a intensidade da luz já começa a mudar. Dura mais, mas é sobretudo mais quente. E é precisamente esse calor quase imperceptível que volta a fazer girar o motor do ciclo da vida. Nos ramos, os rebentos começam a inchar, as tulipas e os outros bolbos perfuram a terra. Os pássaros cantam de uma forma diferente, porque a luz atingiu-lhes a hipófise. Assim, dão início às grandes manobras do acasalamento.

Quando vivia na cidade, a Primavera fazia-me sofrer. Da única janela da minha casa via apenas uma parede de cimento. Nem uma árvore, uma planta, o voo de um pássaro. Nunca como nesses dias a minha vida me pareceu inútil, vazia, desprovida de sentido. Ao domingo, ia passear para um parque. Eram os únicos instantes de alívio. E gostaria de armar a minha tenda nesse parque e ficar lá a viver, escondida entre os ramos como um Robinson Crusoé citadino. Vivendo no cimento, sempre a correr entre o autocarro, o trabalho e o supermercado, sentia-me gravemente mutilada. Como sabes, vim viver para aqui há doze anos atrás, muito antes do grande sucesso dos meus livros. Fi-lo porque, a certa altura, senti que, se continuasse assim, acabaria certamente por adoecer.

Demasiada tristeza, demasiado desespero, demasiada sensação de nada. Foi por isso que saí de Roma e me transferi para a casa velha, húmida e espartana de que já te falei. Foi um salto no escuro. Não sabia se seria capaz. Mas, como acontece muitas vezes quando uma pessoa se arrisca, a opção acabou por resultar. De novo em contacto com o meu mundo, comecei a escrever e, passado pouco tempo, comecei a ganhar a vida com os meus livros.

Para o meu temperamento contemplativo, a natureza é mais importante do que a água ou o oxigénio. Não é assim para toda a gente. Conheço pessoas que vivem na cidade e que por nada neste mundo sairiam de lá. Felizmente, somos todos diferentes. E é justamente essa diferença que é o antídoto mais eficaz contra o cancro das generalizações. Os "jovens", os "velhos", os "padres", os "muçulmanos", os "judeus"... ; As categorias que sempre me horrorizaram. Perante cada rosto, vejo apenas a unicidade de cada ser humano.

Perguntas-me em que é que a minha geração era diferente da tua. Lembro-me logo de uma coisa. Se nós vivemos na desconfiança e no risco, vocês tendem a viver na calma e na ausência de conflito. Para nós, que crescemos nos dias sombrios do terrorismo e da ideologia, existia apenas o dever. O dever de transgredir, de tomar partido, de mudar o mundo de acordo com as regras purificadoras da imposição violenta.

Durante todos os anos da adolescência e da juventude, respirámos o puro veneno do ódio, da discriminação, da certeza de que o bem estava todo num lado, e o mal, no outro. Nesses dias, não havia alegria, não havia leveza, não havia liberdade. A sociedade devia mudar e era a nós que competia mudá-la. Não era possível distrairmo-nos, tirar umas férias.

Os meus mestres encontraram alunos extremamente zelosos. Muitos dos meus contemporâneos entraram para as fileiras do terrorismo, outros acabaram nos braços da heroína.

Na base dessa destruição, não havia maldade, malignidade, mas uma enorme dose de idealismo. O desejo de fazer triunfar a verdade. Todavia, quando a verdade se torna uma cor, tudo o que dela provém é destruição. Porque a verdade não é uma cor, é uma luz. E só essa luz ilumina de facto as trevas dos nossos corações.

 

As máscaras e os rostos

24 de Janeiro

Partilho da tua aversão ao Carnaval. "Ainda nem sequer se apagaram os ecos da noite de S. Silvestre", escreves tu, "e já se estão a preparar novas festas. Recebi vários convites, mas não me apetece fazer nada. A minha mãe diz que não é normal, que, na minha idade, precisamos de sair e de nos divertirmos. "Pode ser que encontres alguém", acrescenta ela, fazendo-me irritar ainda mais. Respondo-lhe que, se sair, em vez de me divertir, fico deprimida, mas ela não acredita. Continua a dizer que o que eu tenho é medo, e que sair mascarada de fada seria a solução para os meus problemas..."

Não sou bom juiz nesse vosso conflito. De entre todas as festividades, o Carnaval é a que menos suporto. Talvez por causa das máscaras. Desde miúda que sinto um verdadeiro horror às máscaras. Ainda me lembro das máscaras vermelhas, brancas e pretas, que um dos meus parentes trouxe do Japão numa caixinha de madeira. Agora sei que eram exemplares clássicos do teatro No, mas, nessa altura, não sabia. Os seus esgares não me deixavam dormir de noite.

Nunca quis mascarar-me de princesa, odalisca, dama antiga. O único fato que poderia ter vestido de boa vontade era o de índio da América: colete de pele, arco, flechas e longas plumas coloridas na cabeça. Preferiria galopar livre como o vento pelas pradarias a arrastar-me entre um baile e um sofá em busca de um eventual príncipe azul.

Só fui a um baile. Era mais nova do que tu es agora, mas ainda me lembro da sensação de intolerância, de aborrecimento e de mal-estar que senti enquanto a festa durou. Era tudo forçado, estava tudo tenso, frenético. Como vês, não és a única que sentes horror perante a obrigação de te divertires.

Mas por que será que a máscara pode provocar em alguns de nós esse sentimento de angústia? Alguma vez pensaste nisso? Eu, sim. A máscara é uma coisa que colocamos no rosto. Uma coisa que nos esconde, dando-nos uma identidade diferente. Vendo bem, as máscaras do Carnaval, dada a sua evidente falsidade, talvez sejam as mais inócuas. Riscos bem diferentes escondem as máscaras quotidianas, aquelas que colocamos no rosto para nos aceitarmos, para sermos aceites, para ocultarmos a nossa natureza mais profunda.

À medida que os anos forem passando, hás-de reparar que a qualidade da vida tem uma incidência surpreendente nos traços do nosso rosto. Para isso contribuem certamente a alimentação, o stresse, a dureza das provas, mas tudo isto continua a ser leves sinais. O que cria sulcos impossíveis de apagar é a intensidade da vida interior.

Aos vinte anos, somos todos "belos", mas, aos quarenta, o nosso rosto já começa a falar de um modo eloquente. Que sentimentos cultivámos? A raiva, a inveja, a competição, o egoísmo, a preguiça? Ou a força, o amor, a generosidade? Entre a vida do justo e a do ímpio, qual escolhemos? O nosso olhar fala da plenitude do coração ou só os nossos lábios é que falam?

O nosso coração pode afogar-se na confusão, na escuridão, mas a nossa boca pode falar de sentimentos elevados, de amor, de fé, de justiça. É uma das piores máscaras. A máscara do homem recto. A máscara do devoto, que é a que mais desorienta quem, com honestidade, com nudez, procura o seu caminho. Então, há que desligar o "áudio" e ver o que ainda resta. O que nos dizem aqueles olhos, aqueles lábios? O que exprimem aquelas mãos? Que luz irradia aquela pessoa? A luz da liberdade, da fraternidade, ou a luz sinistra do interesse e da manipulação ? Há fogo que queima dentro dela ou há apenas uma lâmpada de bronzear ?

Sempre que tenhas dúvidas acerca de uma pessoa, pensa no sorriso de Madre Teresa, no olhar de Gandhi, na expressão de Frère Roger de Tazié. Pensa neles e em todos os rostos que, ao longo do caminho do sofrimento e da Graça, se transformaram no reflexo do rosto amoroso do Pai, à face da Terra.

 

Direitos e deveres

31 de Janeiro

A tua decisão de arranjares um emprego que te permita ser independente parece-me muito oportuna. Ainda não sabes o que farás no próximo ano, mas, pelo menos, decidiste não continuar a depender da tua mãe para tudo.

"De repente, percebi", escreves tu, "que, na minha idade, continuar a pedir dinheiro à mãe para ir comer piza é uma coisa humilhante. Não me interessa servir-me do meu diploma, basta-me um trabalho menor. Uma coisa que me dê um mínimo de independência. "

No país onde os filhos vivem em casa dos pais até muito depois de terem atingido a maioridade, esta afirmação só te honra. Sai da imobilidade, da espera. A vida é tua e tens toda a legitimidade para começares a cuidar dela. Embora se trate de uma opção perigosa, é uma opção contra a corrente. Foi por isso que a tua amiga caiu das nuvens.

- Porquê? - perguntou-te. - Não te falta nada.

- Para ser livre.

- Como poderás ser livre, se tens de trabalhar? Não vais ter tempo para fazer nada!

Dizes-me que não soubeste o que responder.

Acho que uma parte de ti pensou que ela podia ter razão. Afinal, porque se há-de trabalhar quando não se tem uma necessidade urgente de o fazer? E porque se há-de aceitar um trabalho social e economicamente inferior àquele para que se está preparado ? Não será melhor viver a nossa juventude?

Nestes últimos anos, ao ouvir as conversas das pessoas, ao ler os jornais, ao ver televisão, cada vez mais dou por mim a pensar que a coisa mais urgente a fazer nos tempos de hoje é uma nova alfabetização. Já não se trata, naturalmente, de ensinar a ler e a escrever, mas de voltar a revelar os fundamentos morais e éticos da vida do homem.

Lembras-te dos velhos baús que há em quase todas as caves ou em quase todos os sótãos? Conservam dentro deles as recordações de quem nos antecedeu, roupas, papéis, cartas, objectos já obsoletos.

Gosto de imaginar que existe em qualquer parte, conservada na memória de cada família, um baú desses que, em vez de guardar objectos, conserva valores e sentimentos que já não estão na moda. Numa enfadonha tarde de chuva, vão todos ao sótão. As crianças, ao verem o baú cheio de pó, começam a saltitar à volta dele, pedindo para alguém o abrir. Levanta-se a tampa e, de repente, uma data de mãos infantis enfia-se lá dentro. Silêncio estupefacto e, depois, gritos de espanto. "Mamã, o que é esta coisa tão bonita?"; "E esta, papá, para que serve? Nunca a tinha visto..." É provável que os pais tenham de fazer uma busca na memória. "Deixa-me ver. Ah, sim, é o sentido da honra."; "Olha! Isto aqui é o esforço! O sentido do sacrifício, sim, sim, os bisavós usavam-no sempre... E ali, no fundo, olha, a vergonha!"; "O que é isso?"; "É aquela coisa que nos faz corar."; "Por causa do calor?"; "Não. Porque fizemos uma coisa errada, uma coisa contrária à consciência."; "E o que é a consciência?"

Já vivemos há demasiado tempo numa sociedade que reconhece o direito como única lei. Toda a gente está pronta a erguer a voz e a recorrer a todos os meios para fazer respeitar os seus direitos. No entanto, ninguém parece já lembrar-se de que os direitos existem na medida em que primeiro se cumpriram os deveres. O dever converteu-se num espantalho horrendo capaz de minar a liberdade de qualquer existência. Dever e escravidão parecem ser o mesmo. E se fosse exactamente o contrário ? E se os deveres fossem a estrutura que sustém o sentido da nossa vida?

Não se pode colocar o telhado em cima da casa se primeiro não se construíram as infra-estruturas. Mas é exactamente isso o que muitos querem, hoje em dia. Viverem protegidos, sem terem feito nada para construir as paredes.

 

Um rio que brota da alma

7 de Fevereiro

A horta descansa sob um manto de palha e o grande bosque já está totalmente despido. As árvores de fruto repousam, embora por pouco tempo. Está a chegar o tempo ansioso da poda. Ansioso para mim, naturalmente, não para elas. Sobretudo nos primeiros anos, era um autêntico pesadelo. Como cortar, o que cortar, quanto cortar? Sempre que pousava a tesoura num ramo, convencia-me de que tinha feito um gesto irreparável.

com o passar das estações e um pouco de experiência, todas as árvores sobreviveram e produziram até uma discreta quantidade de frutos, e o meu comportamento mudou. No dia da lua certa e se as condições meteorológica são as adequadas, em vez de consultar manuais ou podar a eito, ponho-me à frente da árvore e espero que ela fale comigo.

Não tenhas medo! Não é nenhum culto neopagão como o da minha amiga, é uma grande fé na sintonia. Olhando para a árvore, olhando-a sem ideias preconcebidas, sem esquemas, vou compreendendo lentamente as suas necessidades. Não são macieiras, pereiras, pessegueiros, é, isso sim, aquela macieira, aquela pereira, aquele pessegueiro. Cada qual tem uma energia diferente, uma capacidade diferente de se desenvolver, de resistir às doenças. Tenho macieiras de óptima saúde e outras que lá vão vivendo entre uma infecção de fungos e um ataque de cóssio. Mas estão ali, lado a lado. Mesma terra, mesma exposição á luz, mesmo alimento, mesma irrigação. E depois?

Tudo o que existe neste mundo - árvores, plantas, animais e minerais - é testemunha do mistério, do esplendor e da comunhão da criação. E o homem também o é, naturalmente. Estamos todos ligados num abraço invisível que, todavia, se pode muitas vezes transformar em abraço fatal, por estarmos demasiado absorvidos na luta por uma coisa qualquer ou contra qualquer coisa. Tenho uma ideia e estou convencido de que é melhor do que a tua, e luto para te impor essa ideia, e tu fazes o mesmo porque também tens a certeza de que, se eu acabar por pensar como tu, o mundo será melhor. Mas será, de facto, melhor? O século que passou mostra-nos exactamente o contrário.

Em nome de boas ideias foram exterminados dezenas e dezenas de milhões de pessoas e o mundo não melhorou, pelo contrário. Quanto mais os anos vão passando, mais vejo acontecer coisas terríveis, e mais penso que o futuro, para existir, necessitará de pessoas piedosas.

Penso que esta expressão te fará sorrir, ou mesmo rir. "Pessoas piedosas", coisa de velhos folhetos de paróquia, de romancezitos edificantes de quarta categoria. Num mundo dominado pelo cinismo, há palavras que parecem pastilhas elásticas que se colam às solas dos sapatos.

Mas, na verdade, o que é uma pessoa piedosa? É uma pessoa que vive de acordo com essa extraordinária dilatação da alma que é a piedade. E a piedade não é, como provavelmente pensas, a nota que se deixa cair na mão do mendigo ou o genuflexório gasto pela presunção de se estar no bom caminho. A piedade é, isso sim, o sentimento que nasce da abertura constante do coração à sacralidade do mistério. A piedade nasce da fé, como os rios nascem da montanha, e altera a minúscula economia interior das nossas vidas.

Possuir torna-se, então, dar, a ânsia de poder converte-se em serviço, a vitória transforma-se em derrota, o medo passa a ser coragem inesperada. A vida que pensávamos ser a nossa é perturbada, arrastada pe1a água, bem como as suas opiniões, as suas ambições, os seus esquemas. Só nos resta caminhar e escutar, só nos resta acolher. Acolher o desvario e a solidão dos nossos irmãos. Acolher o sofrimento da criação. Acolher a alegria que, no silêncio e na penumbra, canta no nosso coração.

 

Sexto: não fornicar

14 de Fevereiro

Dizes-me que as coisas, nos últimos tempos, parecem estar a correr pelo melhor. Gostas do teu trabalho como baby-sitter e a pequena independência económica faz-te sentir o prazer adulto da autonomia.

É justamente por isso, acrescentas tu, que, quando um dia é negro, é mesmo negro. "Quando se está mal, não há diferença entre um dia e o outro, mas, quando se melhora, as quedas são cada vez mais amargas. Fevereiro é o mês dos namorados, e eu sinto-me sozinha como uma alcachofra no meio do campo. Ninguém olha para mim, ninguém me dirige a palavra. Os rapazes que me interessam nem sequer dão pela minha presença. com as minhas amigas, é diferente. Algumas já tiveram seis, sete casos, ao passo que eu estou ao nível de uma miúda da escola primária. "Para mim, também foi difícil, no início", disse-me uma delas, "sentia-me insossa, incapaz. Mas depois ganhei coragem. Nas festas, comecei a beber uns copos e tudo se tornou mais fácil. Via um que me agradava, filava-o e posso dizer-te que até agora nenhum se recusou. O bloqueio é teu, tu é que tens de o vencer. Vais ver que depois descarregas logo o telemóvel com tantas mensagens." Tentei pôr em prática o seu conselho, mas o único resultado foi uma enorme dor de cabeça no dia seguinte. Durante a festa toda, estive enterrada numa poltrona, de copo na mão. Só reparavam em mim quando tropeçavam nos meus pés. Ainda por cima, o dia dos namorados está a chegar. Achas que virei um dia a saber o que é o amor?"

Aqui há uns tempos, uma amiga catequista disse-me que o único mandamento de que os miúdos querem falar é o sexto: "não fornicar". Em miúda, também me sentia fascinada por

esse mandamento. Não conseguia perceber se tinha a ver com fornos ou com formigas. De facto, tanto os fornos como as formigas eram perigosos, as formigas por causa do ácido fomico, o forno por causa do gás e do calor. Passava horas a matutar à procura de uma resposta plausível.

Agora, infelizmente, as crianças sabem perfeitamente o que significa "fornicar" e é precisamente disso que querem falar. "Basta de rezas", disse um dia um miúdo de nove anos à minha amiga, "já sou grande. Quero fazer amor." E como poderia ser diferente? A contínua, obsessiva, trasbordante, hiper-realista e obscena oferta de corpos nus e de acasalamentos que nos é proposta pelos mass media surtiu os seus efeitos.

O sexo passou a ser o motor da nossa vida. Faz-se sempre primeiro, sem se estabelecer limites. Se não fazes, ou és maricas ou tens alguma tara. Não sou nenhuma moralista, não me escandalizo, mas sinto uma grande tristeza. Tristeza pela grande mistificação que é imposta a quem não é capaz de pensar pela sua própria cabeça. De facto, o que é o sexo desligado da totalidade do ser humano? É uma actividade gímnica capaz de fazer sentir uns arrepios de prazer e, aparentemente - mas só aparentemente - inócua.

Achas que a tua amiga é mais feliz do que tu porque já teve muitas experiências. Eu, pelo contrário, acho que a tua amiga só tenta preencher um vazio, e fá-lo da forma mais simples. Mas, um dia, esse vazio vai escancarar-se à sua frente, como a boca da baleia diante do Pinóquio. Por mais voltas que dermos, temos sempre dois caminhos à escolha, um que nos conduz à realização da nossa unicidade de criaturas, e o outro que nos leva a separar-nos do nosso destino.

Por isso, em primeiro lugar, deves pensar bem no tipo de amor que queres conhecer na tua vida. O da confusão ou o da comunhão? O anatómico, mecânico, epidérmico ou o que implica a profundidade do coração?

 

O caminho do coração

21 de Fevereiro

Há já muitos anos que o Inverno não era tão frio, tão inesperadamente gelado. Em finais de Novembro, fiz massa com beringelas acabadas de colher na minha horta e, só duas semanas depois, a neve me bloqueou dentro de casa! Neve que continuou a cair a intervalos regulares, sempre acompanhada por um vento forte e temperaturas dignas da Sibéria.

Quando o tempo está assim, sinto-me bem, cheia de energia. Adoro andar com o vento a bater-me na cara, a neve derretida nos olhos. Adoro o rumor da neve debaixo dos pés e o silêncio mágico que desce sobre a paisagem branca, mal o vento amaina. No Verão, pelo contrário, sinto-me um boneco partido. Tudo o que faço me cansa, não me apetece mexer e a capacidade de me concentrar fica reduzida ao mínimo. Se tivesse de estar estendida a apanhar sol, como muita gente faz, acho que não demoraria meia hora a enlouquecer.

A neve aparece com frequência nos meus livros. Lembras-te do final de Anima mundfi Quando a irmã Irene morre, começa a nevar. A neve que cai lentamente faz-nos sentir em paz, e a brancura luminosa com que cobre o mundo que nos rodeia lembra-nos a pureza para que deveríamos tender constantemente.

A pureza do coração, dos sentimentos, do olhar.

Fala-se muito de água pura e de ar puro, mas nunca desta condição ligada à nossa condição de seres humanos. Tudo o que o termo "pureza" nos recorda é uma *** espeYit- tlr rrprrssflo de tipo sexual. Não cometo actos impuros, portanto sou puro. Mas até que ponto a pureza está ligada à sujidade, e como é que se pode definir um coração sujo? O que é que suja realmente um coração?

É frequente encontrar pessoas que se queixam porque, nos meus livros, as histórias são demasiado duras. Será possível, perguntam-me, que veja todo esse mal à sua volta? Será possível que não acredite na bondade do coração? É verdade, tive sempre uma grande predisposição para me aperceber do mal, da malvadez, dos maus caminhos do coração. Sinto e vejo o mal à minha volta com uma lucidez sofrida. Reconheço-o mesmo quando, para nos enganar, se disfarça de bem. Já na escola, Rousseau fazia-me sorrir. Como se pode acreditar na bondade inata do homem? A Bíblia é muito mais realista: "O coração do homem está cheio de mal desde a adolescência" (Gén. 8, 21).

Em cada um de nós dorme um pequeno assassino. Alguns têm um sono profundo, outros limitam-se a dormitar. A história do passado - e as notícias dos nossos dias - falam-nos quase monotonamente da banalidade do mal. Lembro-me, por exemplo, da história de duas famílias amigas e vizinhas da ex-Jugoslávia. Filhos da mesma idade, aniversários festejados em conjunto, idas à praia, as portas das duas casas sempre abertas, um grande entendimento. Depois, rebenta a guerra e, de repente, descobrem que pertencem a duas fés e a duas etnias diferentes. E então, uma das famílias pega na metralhadora e extermina a outra.

Acho que o primeiro passo para se começar a trilhar o caminho da purificação do coração é apercebermo-nos da nossa extraordinária tendência para o mal. Sei que as minhas mãos podem sujar-se de sangue, sei que a minha boca pode derramar um veneno igualmente letal. Quem está convencido de que "isso nunca me acontecerá a mim", parte com o pé errado. O que o guia é a presunção, não é a humildade. Como posso, de facto, opor-me a um inimigo cuja existência ignoro? O caminho do coração nasce da sua visão real, não da sua mistificação.

 

O demónio da pressa

28 de Fevereiro

A ideia que me expões na tua última carta parece-me óptima. Queres tentar entrar para a escola de fisioterapeutas porque, como dizes, "percebi finalmente que gosto mais de tratar de seres humanos do que de contas-correntes." É já um grande passo em frente, não achas? No início, só sabias o que não querias fazer, ou seja, servires-te da tua licenciatura em Economia. Agora, sabes o que gostarias de fazer: tratar das pessoas que sofrem.

Tenho vários amigos fisioterapeutas e também acho que é um trabalho muito interessante. Conhecer o corpo, escutá-lo, para se conseguir vencer a dor. Acho que é um domínio muito adequado aos curiosos como tu, porque há certamente muitas coisas a descobrir acerca da enigmática relação entre a alma e o corpo. O desenvolvimento da nossa civilização nunca favoreceu esse tipo de conhecimento.

O "penso, logo existo" de cartesiana memória foi um marco na negação da totalidade do homem. Existe a cabeça, e o resto é apenas um apêndice que estorva. É o que vemos todos os dias nas salas de espera dos médicos, nos autocarros, na rua, onde estamos rodeados de corpos jovens e já estranhos a si mesmos.

É um erro enorme acreditar que o nosso pensamento é capaz de decifrar a realidade, torná-la inteligível, justificada.

Podemos dar definições, naturalmente, e essas definições podem passar a ser a ideia que temos da vida. Mas nunca serão a vida, nunca abarcaremos a sua misteriosa e fascinante e dolorosa totalidade.

Seja como for, viste que para tomares uma decisão tiveste de deixar passar algum tempo, e é provável que passe muito mais antes de o teu desejo se concretizar. Nos dias de hoje, é difícil não nos deixarmos assaltar por essa febre malsã que é a pressa. Todos têm pressa, todos correm, como se fossem perseguidos por um bando de hienas selvagens.

Mas o que é essa pressa constante? É medo, impaciência, não querer escutar. Em vez de enfrentar o vazio, corro. Em vez de enfrentar o silêncio, salto. Para não estar imóvel a tentar perceber qual é o melhor caminho, meto pela primeira rua que encontro. Onde vai ter? Não importa. O que importa é não se estar parado, não sentir o desconforto de não se estar em lado nenhum.

Fujo da grande escuridão, do negro país que se abre para lá dos dias. Fujo da grande pergunta que a morte faz a quem pára. Haverá um sentido em tudo isto, ou será que a existência é apenas a sombra de um sonho, o delírio de uma mente tresloucada? "Senta-te e espera" - escreve a avó à neta, na última página de Vai aonde te leva o coração? - "Respira com a mesma profundidade confiante com que respiraste no dia em que vieste ao mundo, e sem deixares que nada te distraia, espera e volta a esperar."

Como uma planta que, para crescer viçosa, necessita da quantidade adequada de luz e de água, também a vida interior, para prosseguir na verdade, necessita da imobilidade e da paciência. Uma decisão tomada à pressa não tarda a cortar as pernas a si mesma. Uma resposta apanhada aqui e ali é diferente de uma resposta que se escolhe depois de se ter rejeitado muitas outras, porque a nossa mente, ao contrário do que se julga, não é fonte de verdade, mas de confusão.

Para começares a perceber tudo isto, só tens de tentar interrogar os teus pensamentos. De onde vens? Quem és?

Onde me queres levar ? Verás que os teus pensamentos se irão esvaziando, uns a seguir aos outros, como os sufflés mal se tiram do forno. Um provinha do medo, outro da inveja, o terceiro era o desejo de vingança. Sujeito a interrogatório, cada um mostrará o seu rosto frágil.

E quando a verdade surgir diante dos teus olhos na sua perfeita definição intelectual, passa um dedo por ela e fá-la rebentar como uma bola de sabão, porque a verdade é esplendor, não é definição. E a sua força não é a compreensão, é a amorosa energia libertada pelo espírito.

 

Um mal inevitável e um mal que vem de nós

14 de Março

Este ano, na Páscoa, o grande bosque de carvalhos que vejo das minhas janelas está ainda despido. Os carvalhos são as últimas árvores a perder as folhas e são também as últimas a cobrir-se de novo, oferecendo ao nosso olhar o verde-claro dos rebentos. Na Primavera e no Verão, esqueço-me sempre de como é triste a nudez outonal das plantas. Os ramos densos e escuros parecem arranhadelas no céu, por baixo a erva está amarela, misturada com a lama. São poucas as notas de cor: as bagas da roseira-brava, o barrete-de-padre, as penas dos pintassilgos.

Se volto atrás, à Páscoa da minha memória infantil, lembro-me de dias mornos, cheios de sol. As árvores já tinham folhas e os pássaros andavam afadigados entre os ninhos. Já não se vestiam casacos compridos e o piquenique da segunda-feira de Páscoa era um prelúdio do Verão.

Será que a memória me trai, ou as mudanças climáticas destes últimos anos subverteram mesmo o ritual "meteorológico" das festas? No ano passado, na Páscoa, nevou muito e, nos anos anteriores, não foi muito melhor. Páscoas sombrias, invernais, em certo sentido contraditórias, porque a Páscoa é a festa da vida que triunfa e vence a morte.

"Quando passo uma tarde inteira em casa a ver televisão", escreves tu, "acabo sempre por ficar angustiada. Sinto-me deprimida, e é por isso que fico para ali, imóvel. Mas quanto mais imóvel estou, à frente do ecrã, mais deprimida fico. É como um gato às voltas com a cauda. Vejo coisas aborrecidas, estúpidas, grosseiras, mas não consigo revoltar-me. E mal, apenas mal. Cada telejornal é como um dique que se abre e te atira com toneladas de dor, desespero, crueldade, morte. Como se pode pensar que há Alguém que se preocupa com o nosso destino, se o mundo é o que é ? Por que não intervém ? Se calhar, não há ninguém. Ou então, é preguiçoso, ou medroso. Alguém que não quer ou não pode intervir. E só apetece enterrar-me ainda mais na minha poltrona."

O que tu dizes é o baluarte a que muitas pessoas se agarram para evitarem dar um passo que seja no terreno minado da fé. Se o mal existe, dizem elas, Deus não pode existir, porque Deus é, por definição, bom. Portanto, a religião não passa de uma história para as crianças e os ingénuos dormirem sossegados.

Perante esta afirmação, vêm-me à ideia outras perguntas. Como seria, por exemplo, um mundo onde só existisse o bem? Qual seria o destino do homem, num universo já perfeito? E mais, o mal só cai do céu, ou provém também de nós próprios? com efeito, se olhares com mais atenção, podes perceber que há um mal inevitável e um mal que se pode remediar. Há um mal "interrogação" e um mal "resposta". O mal "interrogação" é o mal das grandes catástrofes, das doenças, da corrupção dos corpos inocentes. Esse mal, realmente, não tem resposta. Pelo menos, neste mundo. Agora. Não com a nossa pequena mente de homens. O mal "resposta" é o que vem da nossa cegueira, dos corações que se embebedam com eles mesmos, narcisistas, arrogantes. Ajo de acordo com o meu interesse, de acordo com o meu privilégio, para a minha realização pessoal, ajo passando por cima dos outros, ignorando-os, usando-os. O coração fechado em si mesmo como uma fortaleza depressa exala venenos, intoxica-se e inquina o ambiente que o rodeia.

Mas, felizmente, os venenos têm um antídoto. Posso reagir ao meu egoísmo, à minha maldade, ao meu desleixo, escolhendo o caminho do despojamento. Acolhendo a humildade e a palavra d'Aquele que, mais do que qualquer outro, no-la ensinou.

 

O medo perdido e as necessidades supérfluas

21 de Março

A carta em que me perguntas qual é a coisa de que tenho mais medo chegou precisamente hoje, primeiro dia da Primavera. É uma pergunta que me fazem muitas vezes, mesmo nas entrevistas. "De que tem medo?"; "Tem alguma fobia?" Tenho sempre de os desiludir. Embora tenha elegido o coelho para símbolo do meu temperamento, não tenho fobias ou terrores que paralisem a minha vida. Na realidade, o que sinto é mais temor do que medo. Ando devagar, olhando em volta, e antes de fazer seja o que for, penso muito.

Há, porém, muitas coisas que me preocupam. A primeira de todas é o estado actual do Universo.

Como vivo no campo, vejo coisas que não gostaria de ver. As macieiras e os lilases a florescer em Novembro. As toupeiras a virem à superfície e a morrerem envenenadas pelos herbicidas. Os pássaros a perderem a altura certa para a migração. O mundo natural está em perene mutação, mas, até ao século passado, cada mudança era sempre devida a uma energia libertada pela própria natureza. Só em 1900 é que surgiu também, e de uma forma cada vez mais determinante, a intervenção do homem. Todavia, o espírito com que o fez não foi de comunhão, mas de predação.

Presunção, ignorância e ambição são os critérios por que se rege a relação dos seres humanos com o ambiente. Que importa se os bosques morrem ? Que importa se os animais enlouquecem, se as plantas já não conhecem as estações ? O importante é ter sempre o último modelo de telemóvel, mudar de carro todos os anos, passar férias no outro lado do mundo.

Infelizmente, a própria Igreja abdicou durante muito tempo do seu papel profético. O importante é a salvação do homem! Mas os seres humanos não se salvam, se não se salva também o Universo. Não se salvam, se não redescobrem o espanto, a surpresa por tudo o que vive à sua volta. Se não redescobrem o temor e, com ele, a vontade de guardar, em vez de destruir.

Outra coisa que me preocupa é o "liberalismo interior", isto é, acreditar que o único objectivo das acções é aumentar o nosso bem-estar pessoal. Tenho de ser feliz, tenho de me realizar. Não importa se o faço em detrimento de outros valores. Já não há um Juiz, já não há uma consciência. Há dezenas de anos de psicanálise e de psicologia mal mastigadas

e mal digeridas e, agora, a asneira está feita. Ajo por mim mesmo, ando na vida como as amibas, numa constante e frenética procura de alimento. Mas o movimento frenético das amibas não conduz, de facto, a lado nenhum. Se quero fazer realmente alguma coisa, não posso ter apenas um projecto, tenho também de ter vontade de o seguir.

Vontade! Por vezes, quando ouço esta palavra, penso em certos moluscos bivalves que existem nas praias. A concha é muito bonita mas, se os abres, não encontras nada lá dentro.

A única vontade que nos é concedida é a que visa a satisfação das necessidades supérfluas. Da verdadeira vontade, aquela que constrói, já se perdeu o rasto. Porque a vontade é uma atitude severa, e prospera nos terrenos mais ingratos. Murcha na fertilidade mole da indolência, mas cresce viçosa no trabalho e no esforço. A vontade exige renúncia, vigilância e exercício constante da escolha. A cada encruzilhada, a cada cruzamento, escolho uma estrada e rejeito a outra. Rejeito-a embora seja mais atraente, mais plana, mais soalheira, embora todos me censurem por não a ter escolhido.

Senso comum e caminho espiritual nem sempre se conciliam, porque, se um tenta adequar-se ao mundo, o outro exige distanciamento. Se um deseja a vantagem da sobrevivência, o outro deseja a alegria da vida sem tempo. Uma alegria vivida já aqui, na intimidade de cada dia.

 

O verdadeiro significado da Páscoa

28 de Março

Dizes-me que estás indecisa acerca do que farás nas férias da Páscoa. Três dias em Paris com uma amiga, ou um sol antecipado na Sicília, com os teus primos? "Vai acabar por ser como sempre", escreves tu, "entre uma hesitação e outra, perderei o comboio e ficarei em casa com um humor cada vez mais negro. Mas por que será que, mesmo na Páscoa, temos de pagar um tributo à ansiedade? Temos de nos mexer, ir, partir. Se assim não for, sentimo-nos idiotas. Ainda por cima, a festa religiosa não induz àquele estado benéfico de descontracção que o Natal provoca. No dia 25 de Dezembro, festeja-se uma criança recém-nascida, mas, na Páscoa, os nossos pensamentos vão todos para um homem que morre torturado. Não será caso para se ter vontade de fugir para milhares de quilómetros de distância?"

Também já pensei muitas vezes no porquê da ansiedade cinética que a ponte da Páscoa provoca nas pessoas. Será culpa do provérbio "Natal com os teus, Páscoa com quem tu quiseres"? Ou será por ser o primeiro fim-de-semana prolongado que procura o sol do Verão? Se se tiver sorte, pode começar a ficar-se bronzeado.

Na nossa sociedade, o tempo está dividido em dois grandes sectores: o período do trabalho e o período do lazer. Ambos se perseguem como lajes de gelo na época do degelo e não deixam espaço para o outro. E é assim que a ansiedade invade as nossas vidas: já terei visto, viajado, comprado o suficiente ? Já me terei divertido o suficiente ? Ou poderia ter feito mais ? E o que vou inventar para a próxima ponte, para as ferias que estão aí à porta?

Então, o tempo passa a ser um monstro que se devora a si mesmo e acaba mesmo por engolir as nossas vidas, desapossando-as da única dimensão verdadeira: a da estabilidade e do aprofundamento.

Foi há uns vinte anos que percebi que a nossa relação com o tempo está muito doente. Foi na primeira vez que fui a Israel. Aí conheci o respeito do sábado e apaixonei-me logo. No meu livro Para uma voz só, o pai da protagonista explica assim o motivo: "Olha, vês, é tudo duplo", diz ele à filha. "Sabes porquê? Porque hoje, só hoje, vês com dois olhos, com os teus olhos e com os olhos da alma."

Ver com os olhos da alma! Que necessidade desesperada temos de um olhar assim, de um olhar que passe por cima da evidência dos dias para mergulhar no espanto, de um olhar livre do consumo do tempo e apaixonado pelo mistério.

com um olhar assim, poderias enfrentar até a Páscoa, estar diante do sepulcro - que dizes ser frio - e descobrir que, afinal, está muito quente, ou melhor, incandescente, e que dele emana uma luz única, vitoriosa, capaz de subverter a economia do mundo. A Páscoa não é o que tu pensas - a punitiva e macabra celebração de um homem que morre na cruz -, mas a transformação da morte em vida. E não diz apenas respeito a um homem justiciado há dois mil anos atrás, mas a cada homem, no preciso instante em que abre os olhos.

Muitas pessoas, embora baptizadas e crismadas, estão convencidas de que o ponto fulcral do cristianismo, o que o distingue, é o imperativo da bondade. Temos de amar, perdoar. Mas isso é o que todas as fés dizem, mesmo a fé laica da consciência.

A palavra-chave do nosso credo não é um substantivo ou um adjectivo, é um verbo suspenso entre o infinito e o particípio. O Ressuscitado, o ressuscitar.

O Ressuscitado pede-nos para renascer, todos os dias, para nos distanciarmos do nosso pequeno e prepotente eu, para fazermos viver em nós um Tu maior, para morrermos para os nossos apegos, as nossas certezas, para darmos lugar ao deserto e esperarmos pela chuva. Pela água que desce do céu e faz florescer até a areia.

 

A cultura será capaz de enfrentar a barbárie?

4 de Abril

Hoje, ao olhar para o calendário, lembrei-me da minha bisavó. Nasceu em Marselha, nos princípios de Abril, acho que em 1882. Como morreu quase com cem anos, pôde assistir a todas as mudanças do século XX. Conheceu o mundo lento dos peões e das carruagens e o mundo frenético dos automóveis, ouviu pela primeira vez grasnar um disco num gramofone e viu as primeiras imagens a preto e branco da televisão. Demorou muito a convencer-se de que se podia ver televisão sem se ser visto, recusava-se a ligá-la quando a sala estava desarrumada, ou ela estava de roupão. Sempre que a locutora dizia "boa noite", ela respondia-lhe delicadamente: "Boa noite para si."

Em pouco mais de um século, o acelerador da história foi premido ao máximo. Basta pensar nos meios de locomoção: desde os tempos pré-históricos até meados do século XIX, o ser humano deslocou-se recorrendo às suas forças e às forças dos animais por ele domesticados. com a descoberta do motor de explosão, tudo se modificou Nasceu a velocidade, e o homem começou a deslocar-se cada vez mais velozmente. Esse movimento, como acontece no redemoinho de uma tromba-d'água, sugou todos os outros aspectos da vida.

Pouco tempo passou até a tecnologia nos projectar num mundo onde tudo é possível, ou, pelo menos, assim parece.

Isso provoca alterações profundas à nossa volta, no ambiente, nas relações, e mesmo no nosso sistema perceptivo. As mãos são mais velozes, os olhos mais movediços, mudou a capacidade de coordenação entre a mente e o corpo. Mas em nós, na nossa parte mais profunda, o que é que mudou?

No século em que minha bisavó viveu, houve duas guerras mundiais, para além de um grande número de conflitos menores. O milénio que acaba de começar foi também sombreado pelo silvar das bombas e pelas explosões: longas filas de seres humanos desesperados tentando pôr-se a salvo com os seus poucos haveres e, no outro lado do mundo, milhares de pessoas presas em duas torres de fogo, arrasadas pela loucura terrorista.

O século XX também foi o século em que o nazismo foi concebido e posto em prática. Não nasceu num qualquer país perdido no centro da África, fruto de vinganças tribais, ou entre populações habituadas ao canibalismo. Não, o nazismo nasceu e cresceu na Alemanha, no país da filosofia, da música, da poesia. No início dos anos 20, a grande cultura europeia já tinha atingido o seu auge, mas isso não impediu que o horror se propagasse. Antes pelo contrário. Uma vez, perguntei a um amigo alemão como é que o pai tinha reagido à imposição de tal loucura. Nessa época, era professor de Filosofia na universidade. "Como querias que reagisse?"

- respondeu ele. "Como os outros todos. Seguindo em frente." "Como?" "Ele e uns amigos tinham um quarteto de arcos. Um deles era judeu. Um dia, o judeu deixou de aparecer." "E depois?", perguntei, apreensiva. "Depois, nada. Modificaram o repertório. Em vez de quartetos, começaram a tocar trios. Que mais podiam fazer? Corria-se risco de vida."

Esta cena dos três homens a tocar com uma estante vazia ao lado ficou-me por muito tempo no espírito. Aqueles professores, tão concentrados nas suas partituras, conheciam a beleza expressa pela música, pela arte, a complexidade da filosofia, mas humanamente estavam prisioneiros da mesma fraqueza de Pedro que, por três vezes, após a prisão de Jesus, negou ser um dos seus discípulos.

Surge então, espontaneamente, uma pergunta. Até que ponto a arte e a filosofia são capazes de modificar o comportamento humano? A cultura será, de facto, capaz de enfrentar as barbáries? Ou será apenas um frágil baluarte?

 

Um indivíduo poderá opor-se ao mal da História?

11 de Abril

Retomo a reflexão da semana passada. Estes tempos tão contraditórios levam-nos a interrogar-nos acerca das nossas responsabilidades individuais, porque a História é feita não só pelos grandes, pelos chefes, pelas nações, mas também por nós, indivíduos, pelas nossas opções, pela vontade, ou não, de aderirmos aos loucos desejos de destruição.

Volto ao discurso do nazismo porque foi o leitmotiv obsessivo da minha infância. Tinha eu pouco mais de dez anos, o meu irmão mais velho, leitor apaixonado de "Storia illustrata", fez-me acreditar, não sem um certo sadismo, que o corpo de Hitler nunca tinha sido encontrado no bunker e que, por conseguinte, havia todas as probabilidades não só de estar ainda vivo, mas também de estar a organizar, num país qualquer da América do Sul, o grande renascimento mundial do seu partido. Esta notícia aterrorizou-me. Estava convencida de que, por baixo da terra, havia uma rede de galerias e que, a um sinal combinado, os nazis, de patas com garras e focinhos raivosos, arrancariam as tampas dos esgotos e voltariam para devastar o mundo.

Se leste o meu livro Para uma voz só, deves ter notado que atribuí esta fantasia à filha do protagonista. Passava o tempo a pensar: como teremos de nos comportar, se eles voltarem? Escondermo-nos? Fingir que estamos com eles, para salvarmos a pele ? Opormo-nos? E se levam uma pessoa que nos é querida ? Optar por morrermos com ela, ou tentarmos salvar-nos? Chegava mesmo a massacrar a minha companheira de carteira. "O que é tu pensas? O que é que se deve fazer?"

Um dia, a professora interrompeu-nos. "Do que é que estão a falar?" Depois da minha breve explicação, comentou: "Que tolices! Tenho a certeza de que estavam a falar de trapos." Por que será tão difícil aceitar a profundidade das crianças? Seja como for, essa obsessão infantil deixou em mim uma pergunta: onde se encontrará o antídoto eficaz contra o mal externo, esse mal da História, que surge inesperadamente e nos transtorna?

Na minha terra, durante o piquenique de segunda-feira de Páscoa, é costume haver lutas com ovos cozidos. Pega-se no ovo e atira-se contra o ovo do adversário. Vence quem tem o ovo que não se parte.

Há muita gente que pensa que o recontro entre o bem e o mal é um recontro directo, como o dos ovos pascais. O impacto é frontal e quem vence é a dureza da casca, aliada à força e à velocidade do impacto. Basta portarmo-nos bem, termos bons sentimentos, amarmos e compreendermos as coisas belas para sermos capazes de nos opor à subida da fera que dormita em nós e na História. Em resumo, o mal combate-se com a assiduidade do bem, coisa que já te escrevi por várias vezes. O mal combate-se, escolhendo, a cada instante, o bem.

Mas a quem se refere esse bem, em que é que se baseia? Se se baseia exclusivamente na correcção dos princípios éticos, na reflexão filosófica, parece-se muitas vezes com a fina camada de gelo que, de noite, se forma sobre as folhas: aos primeiros raios de sol, desaparece.

Para resistir aos choques e aos saltos, o bem tem de enterrar as suas raízes nas alturas, num mundo que nos transcende e que, com a sua sobrenaturalidade, ilumina a escuridão do nosso mundo. Só então talvez seja possível passarmos do papel de espectadores para o de testemunhas da esperança. Penso, por exemplo, em Josef Mayr-Nusser, o jovem pai de família do Alto Ádige, que preferiu ser executado a jurar fidelidade a Hitler, e nos muitos outros como ele que, nas pregas silenciosas da História, com serenidade e firmeza, se opuseram à propagação das barbáries assassinas.

 

A busca da felicidade

18 de Abril

Escreveste-me uma carta no regresso de um longo passeio pelo parque perto de tua casa. "Como que por magia", dizes, "a mochila de tristeza que levo sempre comigo desapareceu. O dia estava muito bonito. As crianças brincavam nos relvados, os velhos, sentados nos bancos, saboreavam os primeiros raios quentes da estação. Nos canteiros, já despontavam as prímulas e os mágicos candelabros brancos e cor-de-rosa dos castanheiros-da-índia. Ao andar pelas alamedas, quase sem dar conta, comecei a respirar mais profundamente. Durante alguns momentos preciosos, senti-me parte activa do grande processo da vida. Tudo resplandecia em redor e também eu tinha vontade de cantar. Mas, quando saí do parque, passou-me a vontade. O ar era irrespirável e o ruído das buzinas ensurdecia. Dois automobilistas começaram a discutir ferozmente. Por que será tão breve o sentimento da felicidade? Mas será que a felicidade existe realmente?"

A felicidade! Que mítica, extraordinária, inacessível palavra! Não há ser humano que a não deseje, mas é tão difícil de alcançar e de definir. No entanto, sabe-se bem o que é a infelicidade. É o estado em que, em média, se passa uma grande parte da vida.

Num livro de Lina Schwartz, Mais um pouco e basta, que costumava ler em miúda, havia uma lengalenga de que ainda me lembro.

 

" E se eu fosse padeiro ?

Não, que o forno queima muito.

E se eu fosse pedreiro?

Não, que é ofício muito duro!

E se fosse marinheiro?

Não, que tenho medo do mar..."

 

O "se" parece ser o prelúdio indispensável da felicidade. "Se fosse mais alto, mais magro... Se tivesse um amor... Se fosse um campeão, um deus da televisão... Se tivesse um emprego, uma casa... Se ganhasse na lotaria..." O mundo dos "se" é um turbilhão, um abismo, um buraco negro. Basta perder o equilíbrio por um instante e acaba-se lá dentro.

Mas a felicidade estará realmente ligada apenas às coisas que não possuímos?

Quando penso na felicidade total, sem condições, lembro-me logo dos cães. Cá em casa, como sabes, tenho sete, e cada um deles se comporta de maneira diferente. O cão pastor fica satisfeito quando, à tardinha, vai buscar as cabras ao pasto e as traz de volta para o curral. O cão de caça fica radiante quando o levo comigo para o bosque, ele que é só faro e cujos olhos brilham quando fareja a pista. O fox-terrier fica feliz quando ladra estridentemente para me avisar da chegada de alguém, ao passo que o cruzado de Terra Nova atinge o auge da alegria quando pode mergulhar na água do lago. E o lobo maluco? Esse é a expressão viva da felicidade quando, nem que seja por um instante, pode correr como os outros. Em suma, o cão fica satisfeito quando pode cumprir a missão para que nasceu.

Connosco também deveria ser assim, não achas? O que é grave é que já não nos lembramos. Apagámos a nossa essência mais profunda e substituímo-la pela obrigação de sermos servidos. Estamos neste mundo para obter, para que as coisas nos sejam dadas.

E se, pelo contrário, o caminho da realização dos seres humanos fosse de sinal exactamente oposto? Se a palavra de ordem não fosse "posse", mas "perda"? Se a plenitude não consistisse no domínio, mas na humildade do serviço. Se em vez de sermos máquinas quase perfeitas imersas num mundo sem objectivo, fôssemos apenas filhos à procura do caminho que conduz de novo à casa do Pai? E se a felicidade fosse o regresso a essa casa?

 

O nosso país

25 de Abril

Estamos já no dia 25 de Abril, a festa da Libertação! O Verão está praticamente à porta. Quando era criança, adorava esta época. A partir da Páscoa, eram só festas, o vento boreal adormecia, enroscando-se como um gato diante da lareira, e, finalmente, deixava-nos em paz. Podia pôr-se de lado os abafos, os cachecóis. Não tardaria muito que o cheiro salobre do mar chegasse até nós, vindo do porto. À porta dos bares, apareceriam os maravilhosos cartazes de metal com as fotografias dos gelados e, à saída da escola, poderíamos finalmente apanhar o autocarro para irmos para a praia.

De lá, via os barcos zarpar, observava as lentas manobras das gruas nos estaleiros. A água estava escura, turva, estriada pelos rastos irisados dos carburantes. Era capaz de passar horas e horas a observar-lhes os reflexos por entre as pranchas do pontão.

Páscoa, 25 de Abril, 1.° de Maio, Pentecostes e Festa da República eram como pérolas luminosas enfiadas no fio invisível que unia a prisão escolar do Inverno à liberdade de movimentos do Verão.

Não sabia que tipo de festas eram. Só sabia que o meu avô, nos dias 25 de Abril e 2 de Junho, ia ao cimo do armário buscar uma caixa de madeira - que um dia devia ter contido um licor - e tirava de lá a bandeira. Nesse tempo, nós, os netos, não percebíamos bem o sentido daquele pedaço de pano. Lembro-me da fúria inesperada do meu avô quando nos foi apanhar em cima da cadeira, prontos para nos apoderarmos dele, para uma brincadeira qualquer. "Por esta", disse ele, "já morreram muitas pessoas! Não é nenhum trapo, é um símbolo a que se deve o máximo respeito!" Ele tinha estado em duas guerras, tinha sido ferido por várias vezes, tinha recebido medalhas. Como se poderia não acreditar nas suas palavras? A partir desse dia, passámos a olhar para a bandeira com um temor reverencial.

Desprezar o seu país é uma actividade muito em voga entre os intelectuais. Quantas vezes, nestes últimos anos, ouvi dizer: "Mas como é que podes viver aqui? É em Paris que se deve viver! Há cultura, civilização. Em Paris ou em Nova Iorque! Não neste país atrasado, corrupto, mafioso, profundamente fascista." Pareceu-me sempre uma afirmação eivada de provincianismo.

Amo o meu país. Não há outro país no mundo onde gostaria de viver. Amo-o e sofro, porque o amor não faz fechar os olhos às lacunas, pelo contrário, abre-os ainda mais. Sofro e fico furiosa. Como se pode confiar numa classe política cujos

representantes passam o tempo a insultar-se uns aos outros, assim ofendendo também a inteligência e a paciência de quem os ouve? Ingenuamente, pensava que, para governarem a coisa pública, deviam ser escolhidas as pessoas mais avisadas, mais equilibradas, mais competentes na matéria. Pelos mesmos motivos, considerava que a carreira política era uma carreira estreitamente associada à paixão, ao sacrifício, ao amor pelo país, e não à vontade de denegrir sistematicamente mesmo o que há de bom e de construtivo na parte adversa.

Neste triste contexto, as poucas pessoas sinceramente apaixonadas pela sua missão

- que, felizmente, existem - arriscam-se a ter o fim das ânforas de barro entre vasos de ferro. O nosso país avança como um lagostim, mal dá um pequeno passo em frente na estrada da civilização, dá logo dois atrás, com medo de desagradar aos eleitores.

A moeda única levou-nos para a Europa, mas a fumosidade burocrática das nossas leis torna-nos muito semelhantes aos países do Terceiro Mundo. Para se ver que assim é, basta pensar na situação real dos velhos, das pessoas doentes ou portadoras de deficiências, dos estrangeiros, dos sem-abrigo, das mães solteiras, obrigados a mendigar - por entre maus funcionamentos, abusos e clientelismos - o mínimo de dignidade garantida, em geral, pelas sociedades civilizadas.

Porque a civilização não se avalia com moedas, belos discursos, número de canais de televisão e promessas eleitorais, mas pelo nível de dignidade de vida que é capaz de oferecer a cada cidadão.

 

A presumível superioridade do desencanto

5 de Maio

"Foi-se. Como imóveis / depois de dado o mortal suspiro / ficaram os imémores despojos / privados de toda a alma, / tão ferida, atónita / ficou a terra ao saber a notícia / muda pensando na derradeira / e fatal hora do homem; / e também não sabe quando / marca de pé mortal, o seu cruel pó / virá pisar."

Tenho a certeza de que também és capaz, e sem grande esforço, de continuar as estrofes de Manzoni. Não há italiano alfabetizado que, no dia 5 de Maio, não desate a recitar automaticamente estes versos. Nestes últimos anos, fiz algumas sondagens. "Recitas-me

O Infinito de Leopardi?", perguntava aos meus amigos. E eles começavam logo, todos vaidosos: "Sempre cara me foi esta erma colina e... e..." e, com a mesma rapidez, paravam, murmuravam umas palavras confusas e depois, com um suspiro de alívio, concluíam "e é tão bom naufragar neste mar." No entanto, se os provocava com o Cinco de Maio, soavam logo os tambores e, sem sequer tomarem fôlego, chegavam direitinhos até ao "muuuta" modulado com o mesmo vigor com que uivam os cães de caça.

A memória é misteriosa, estranha, guarda o que não te interessa e rejeita o que gostarias de guardar. Já tive a prova disso, com uma amiga holandesa. Como estava a chover e não sabíamos o que havíamos de fazer, pusemo-nos a olhar para os livros da minha biblioteca. Depressa descobrimos que tínhamos lido uma grande quantidade de livros em comum, e de que não nos lembrávamos de quase nada. Nem de uma intriga, nem de uma personagem, a única sensação vaga tinha a ver com o nível de prazer: se nos tinha emocionado, aborreci- do ou irritado. Por fim, olhámo-nos bem nos olhos, com as chávenas de chá a fumegar nas mãos, e desatámos a rir. De que serviu termos lido aqueles livros todos?

Uma vez, no fim de uma entrevista, uma jornalista disse-me: "Agora percebo porque há tanta gente que a detesta. Você fala de arte, de beleza, de poesia como se fossem coisas verdadeiras, coisas em que se deve acreditar." "E por que não?", perguntei-lhe. "Porque são convenções", respondeu ela, com toda a calma.

Uma das maiores violências que o pensamento moderno impôs ao homem é justamente a sugestão de que não existem fundamentos credíveis. As coisas não existem pelo sentido que possuem, mas apenas para serem "signo" de qualquer outra coisa. Tudo é ficção e, portanto, facilmente desmontável e reconstituível. É o que faz o homem de cultura. Desmonta e volta a montar, divertido com a sua habilidade. Não passa de um jogo e, como tal, para além dele, não há mais nada.

Separada do sentimento espiritual, a prática da inteligência facilmente se converte em exercício do vazio e da crueldade. Graças à minha sabedoria, coloco-me num pedestal, exercendo a superioridade do desencanto. Conheço as regras e sei que são filhas da mente e do acaso. Quando muito, posso divertir-me como um gato se diverte com um rato. Deixo para os outros, para a multidão dos cegos, dos ignorantes, desses outros a que Sartre chamava "o inferno", as crenças, as superstições, as ilusões e os sentimentalismos.

Em toda esta cegueira, os cantores do desencanto nunca são sequer roçados ao de leve por uma dúvida. Vivem mergulhados num tédio claustrofóbico e estão convencidos de que é a essência da vida. O seu tédio gera o sarcasmo, o seu pensamento gera o cinismo. Usam-nos constantemente para arrasar, humilhar, ridicularizar tudo o que escapa à sua visão do mundo. São os assassinos do espanto, da gratidão, da alegria. E também umas pobres moscas que caíram na armadilha, e estão presas numa teia de fios invisíveis em que eles próprios se enredaram. E quanto mais se mexem, mais condenados estão. A aranha está a chegar. Já não há tempo para contemplar o céu, nem para escutar o vento.

 

Os olhos da alma

12 de Maio

Recebi ontem a tua carta em que falas da primeira comunhão de uma das tuas primas. "O dia estava esplêndido, e passei horas agradáveis com a minha mãe e alguns parentes que já não via há muito tempo. No entanto, à noite, voltei para casa inquieta. Houve um rico almoço ao ar livre, as crianças andaram a correr à volta das mesas, as festejadas exibiram, todas vaidosas, os seus vestidos brancos, mas que sentido tinha aquilo tudo? Era uma festa religiosa e, portanto, de certa forma, como tu dizes, devia ter a ver com o Espírito, mas eu não O senti. Só vi barrigas cheias, copos vazios e a actividade incansável das máquinas fotográficas e das câmaras de vídeo."

A minha sobrinha também fez a primeira comunhão, no domingo passado, na igreja da comunidade alemã de Hong Kong. Infelizmente, por causa da distância e dos meus compromissos, não pude estar com ela, mas, nos curtos períodos que passa em Itália, já tinha começado a prepará-la para a ocasião, levando-a comigo à missa. Na primeira vez, ficou literalmente fulminada: era tudo novo, o ambiente, os gestos, as pessoas. Em vez de não parar quieta, como acontece muitas vezes com as crianças, estava absorta, silenciosa. Só no momento da comunhão é que me puxou pela manga, sussurrando, atónita: "Tia! O padre está a comer as batatas fritas!"

Num mundo totalmente alfabetizado, que espaço fica para as festas que acompanham o caminho da fé? Quem se lembra de que existe uma dimensão "outra" que não se esgota num facto mundano, e que é sinal de um mistério? Um mistério que exige atenção, silêncio, surpresa e dá sentido, alegria, realização à nossa vida?

Baptismos, comunhões e casamentos transformaram-se em acontecimentos sociais e são vividos mais como passagens obrigatórias, uma espécie de forcas caudinas sob as quais se tem de passar para sermos aceites na normalidade da nossa vida. Mas, como todos os ritos obrigatórios, podem provocar sentimentos contraditórios nas pessoas mais sensíveis. "Porquê?", pergunta-se. "Por que motivo somos obrigados a fazer tudo isto? Há algum sentido? E se há, onde é que está?"

Lembras-te de quando falámos do sábado judaico e do olhar duplo? Pois é, acho que, para compreendermos os sacramentos e nos aproximarmos da sua verdade, temos de reabrir os olhos que já estão fechados há muito tempo, ou que talvez nunca se tenham aberto. Os olhos da alma. Andamos sempre com os olhos da definição, da compreensão racional, bem abertos. Olhamos para as coisas e pensamos: "Não, não é possível acreditar nisto."

Mas a fé não é o mundo do possível! É, isso sim, o mundo do impossível, um impossível que, de repente, se torna muitíssimo possível. Sem esta dimensão, o baptismo é apenas água fria derramada sobre a testa, a comunhão é uma espécie de merenda de crianças bem vestidas, e o casamento é a troca luxuosa de dois anéis que depressa passarão a ser duas cadeias.

Para se converter em tempo da maturidade, o tempo linear das nossas vidas precisa de ser atravessado em filigrana por uma dimensão diferente, que age e nos transforma por meio dos sacramentos, da Graça que deles provém. E a Graça, felizmente, desce sempre, mesmo se, em vez de nos recolhermos em oração, andamos em patuscadas e a tirar fotografias.

Às vezes, penso até que a Graça é como o caruncho, e entra em nós sem darmos conta. Enquanto fazemos a mesma vida de sempre, vai escavando, lentamente, vai trabalhando dentro de nós, túnel após túnel, no silêncio e na escuridão, e devora todas as nossas certezas. Estamos convencidos de que continuamos a ser fortes, mas já não o somos, basta uma rajada de vento e tudo se desmorona, e descobrimos que estamos nus, sem casa, nem horizonte. E, de repente, estamos realmente despertos.

 

O teu Mestre interior

19 de Maio

E já estamos no Pentecostes, a gata-borralheira das celebrações cristãs! com efeito, se a Páscoa e o Natal são os eixos do ano temporal, mesmo para quem não acredita, o Pentecostes passa totalmente despercebido no nosso mundo secularizado. Como é sempre a um domingo, não é acumulável como bónus para o prolongamento de um fim-de-semana, e como não promove nenhum ritual consumista, não aparece nos media. Quando muito, lembramo-nos de que o Verão anda por perto e que já é tempo de organizar as férias. Além disso, como afirmas com toda a razão: "Não se percebe qual é o papel daquela pomba branca e enfezada. Para que serve? Quem é? Deverá dizer-nos alguma coisa, ou é apenas cenografia?"

Quando eu era miúda, sentia a mesma perturbação. Agora não sei, mas, naquele tempo, os manuais da escola primária representavam a Trindade como um triângulo de contornos dourados suspensa no meio do céu. No vértice superior, estava o "Chefe", ou seja, Deus Pai, e, por baixo dele, em ambos os vértices, Jesus Cristo e uma pomba branca. Às vezes, ao centro, também aparecia o olho enorme de um velho de sobrancelhas brancas, nada tranquilizador. Sabíamos que o Chefe era Omnipotente, e, pessoalmente, considerava esse seu poder infinito um tanto ou quanto sinistro, dado que ordenava a pais apaixonados que degolassem os filhos, como se fossem cabritos. Conhecíamos todo o percurso da história de Jesus, desde o Natal até à Páscoa, mas da tal pomba, à parte o nome - Espírito Santo - já repetido no sinal da cruz, não sabíamos nada. O que é que aquela mansa criatura, representante de outra categoria de vida, teria a ver com as histórias terríveis de dor, morte, poder e sofrimento?

Agora, creio que o catecismo é dado de uma forma muito diferente, mas, naquele tempo, não se tinha em grande conta a capacidade de entendimento das crianças. Tinha de se aprender as histórias de cor e saber responder às perguntas. O facto de essas histórias, salvo poucas excepções, provocarem um estado de espírito que era um misto de aborrecimento e angústia não interessava a ninguém. Na minha mente infantil, já tinha sentido o mistério e a graça da existência, mas, durante as intermináveis horas de catecismo, nunca ouvi dizer uma palavra que fosse acerca desse Mistério e dessa Graça. Havia as leis, os deveres e coisas pouco credíveis à luz da razão, mas em que se tinha forçosamente de acreditar porque eram dogmas. E era tudo.

Felizmente, há o Espírito Santo! É ele quem corrige os erros, elimina as confusões, dissipa a neblina. E ele quem, seja como for e sempre, impele cada criatura para a verdade da sua vida. Não é nos livros que deves procurar a sua definição porque, por mais fascinante e perfeita que seja, nunca poderá comparar-se com a realidade vivificante que dará à tua existência, se souberes acolhê-lo. Naturalmente, ele já está em ti, embora o ignores ou o rejeites. Vive no teu coração, como Mestre interior. Nunca reparaste? Alguma vez tentaste caminhar num bosque na montanha quando está a nevar? Enquanto vais andando e ouvindo o rumor dos teus passos, da tua respiração, o que vês à tua volta é apenas uma bela paisagem, ,

e para que a beleza se converta em algo diferente, tens de parar. Só então, no silêncio inesperado, sentirás que o bosque tem uma voz. Um apelo feito de leves rumores diferentes, frufrus, tiquetaques, quedas. É como um hálito, imenso, a que juntas o teu, mais pequeno. A voz do Espírito assemelha-se à do bosque, é doce, contínua e profunda.

O Espírito dá-nos a vida e vive em nós. É ele quem nos dá um coração vivo, um olhar atento e o dom das lágrimas, as grandes exiladas do nosso tempo. De repente, os olhos ganham vida, vêem! O coração amolece, sente! E então, choramos de alegria, arrependimento, emoção. Choramos porque pensávamos que estávamos prisioneiros e, pelo contrário, estamos livres, porque, finalmente, em vez de os recusarmos, aceitamos o esplendor e a plenitude da vida que, a cada instante, nos são oferecidos.

 

O vírus da mumificação

26 de Maio

Passados tantos anos de dedicação, esta é a primeira vez que não cuido da minha horta. Não houve as grandes manobras de sempre, em vez de andar de um lado para o outro, já em Fevereiro, com as sementes na mão, cobri-a com uma espessa camada da palha e deixei-a descansar. Para falar verdade, causa-me uma certa impressão vê-la assim tão calma, enquanto, a toda a volta - e sobretudo nas hortas dos vizinhos, cada vez mais viçosas -, a vegetação explode. Para preencher o vazio, semeei aqui e ali algumas flores, malmequeres, alguns tufos de barbas-de-velho, os girassóis monstruosamente grandes que uma amiga me trouxe de Jerusalém. Um ano sabático não faz mal nenhum à terra, até parece que, depois, as culturas crescem com mais vigor. Não é por sabedoria, mas por necessidade. Como já sabes, aceitei realizar um filme e, portanto, vou passar uns meses longe de casa. As filmagens vão prolongar-se por vários meses. Depois, haverá a montagem, a dobragem, a edição. Quando regressar a casa, já a Primavera terá começado. E será a minha vez de ter um ano sabático!

Para ser franca, ainda tudo me parece um tanto irreal. Não me parece possível que, dentro de alguns dias, vá subir para o set e dizer: "Claquete! Motor! Acção!" Passei tantos anos de trabalho fechada na solidão da minha sala, que me sinto feliz por passar para outra dimensão da criatividade, mais colcvtiva, de movimento. Desde que, já há uns meses e após demoradas reflexões, aceitei assumir este encargo, houve muitas pessoas que me perguntaram: "Não tens medo? E se estragas tudo? E se arruinas a tua carreira?" O fantoche terrífico que estas perguntas agitam paralisa o nosso tempo. Tenho medo, não me apetece, não estou preparado. Quantas vezes ouvimos pronunciar estas palavras à nossa volta?

A mim, aconteceu-me há umas semanas, numa pizaria, ao ouvir a conversa de uma mulher de uns quarenta anos que estava sentada na mesa ao lado. "Gostava tanto de ter um filho", dizia ela a uns amigos, "mas não me sinto preparada... (longo suspiro). Para me habituar à responsabilidade, pensei em arranjar um cão... Mas (outro suspiro) também não me sinto preparada para isso."

É como se a Terra tivesse sido invadida por uma nova epidemia, pelo vírus da mumificação. Envolvemo-nos nas ligaduras, fechamo-nos no sarcófago e esperamos que a vida passe. Mantemo-nos imóveis, não arriscamos. Agarro bem aquilo que tenho, calibro os passos, assim, pelo menos, tenho a certeza de que sobreviverei. Mas que sentido tem isso? Mesmo que se flutue sobre a vida, a morte acaba sempre por chegar. Tenho a impressão de que o terreno onde nasce a mumificação é justamente este: sei que o fim existe, mas não quero preocupar-me com isso, não me interessa perceber porque vim ao mundo e o que estou a fazer na Terra. vou vivendo, assim não sou obrigado a debruçar-me para o abismo, até porque tenho a certeza de que, para além dele, é o nada. E se a morte é nada e não enigma, tudo é vão, vazio, sem significado. Que importância tem fazer uma coisa em vez de outra? Para quê esforçarmo-nos, arriscar, darmo-nos? É melhor, muito melhor, viver imerso na atonia do sentimento.

O que importa não é negar o medo, em nome de uma superioridade qualquer, mas aceitá-lo como fermento. Precisamente porque tenho medo, aceito o desafio. Só assim redescubro e faço frutificar os talentos que me foram dados.

A profilaxia para o vírus da mumificação é a oração. Por isso, envio-te uma, escrita há mais de dois séculos pelo Rabi Nachman ti e Brazlav. "Ensina-me a começar de novo, a destruir os esquemas de ontem, a deixar de dizer a mim mesmo "não posso", quando posso, "não sou", quando sou, "estou bloqueado", quando estou totalmente livre."

 

Servos e filhos

2 de Junho

Como todos os anos, nesta época, ficamos envoltos numa espécie de indolência. Talvez a culpa seja da herança escolar

- os primeiros dias de Junho eram a sentinela do descanso estival iminente -, ou talvez a causa esteja nas mudanças climatéricas, capazes de influenciar profundamente o nosso físico e o nosso espírito. Para a natureza, Maio e Junho são os meses do triunfo. As espigas de trigo ondulam nos campos como um único mar, as copas das árvores estão carregadas, os pássaros andam num vaivém à volta dos ninhos e a luz tem uma intensidade extraordinária, cristalina, muito diferente da fúria ardente do Verão. Basta de livros, de esforços, de compromissos! O único desejo é estendermo-nos num prado, mergulhar na erva e perdermo-nos atrás do voo das andorinhas e dos gaivões.

Ficaste admirada por te ter enviado, juntamente com a carta, uma oração. Mais do que admirada, inquieta. "As palavras são bonitas", dizes tu, "mas que faço com elas? É quase como ter um jogo na mão e não saber as instruções. A última vez que rezei foi por uma colega de escola que apanhou uma doença grave. Todas as tardes, ajoelhava-me no chão do meu quarto e suplicava: "Peço-te, faz com que ela se cure." Para ser mais credível, até renunciei a comer gelados durante o Verão todo. Mas foi inútil. No seu funeral, todos choravam, mas eu só tinha vontade de gritar. Aquelas palavras, aqueles cânticos pareciam-me uma encenação ridícula. Ela só queria viver, não ser recordada com frases inúteis. E o que tinham sido as orações de quem gostava dela senão palavras vazias, palavras não ouvidas?"

Num mundo tão distraído, tão longe da contemplação do mistério, o caminho que conduz à oração é, muitas vezes, o caminho de um sofrimento inesperado e imprevisto. De repente, apercebemo-nos de que nem tudo está nas nossas mãos, e, no pânico que daí deriva, erguemos o olhar para as alturas. Afinal de contas, deve haver alguém lá em cima. E já que se diz que é omnipotente, terá de o demonstrar. Nós fazemos os nossos deveres, suplicamos-te, mas tu faz os teus, atende-nos! Se assim não for, é porque és um impostor, não és omnipotente ou, pior ainda, não te importas nada com o nosso sofrimento. Se assim é, por que deveremos importar-nos contigo? Que coração pequenino, que noz seca e minúscula trazemos no peito! O nosso caminho é o do regateio, da troca. Queremos uma coisa em troca de outra, andamos sempre com todas as cautelas, receando ser "enganados". O Chefe não nos obedece? Então, não obedecemos ao Chefe. Deixamos de olhar para as alturas, deixamos de olhar à nossa volta. Olhamos apenas para os nossos pés, ruminando pensamentos de raiva.

Após uma experiência idêntica à tua, a maior parte das pessoas afasta-se definitivamente de qualquer relação com o transcendente. Não serve de nada, portanto é inútil perder mais tempo. Mas o verbo "servir" está tremendamente próximo do substantivo "servo". E o servo, ao contrário do filho, não é capaz de compreender o valor da gratuitidade, de erguer os olhos e ficar maravilhado, porque o seu espírito e o seu coração estão constantemente imersos no cálculo do lucro.

Assim, antes de pronunciarmos qualquer palavra, antes de fazermos qualquer gesto, devemos perguntar a nós próprios o que queremos ser. Queremos ser filhos ou servos? Aceitamos o risco da abertura, ou preferimos a luz fria do espaço fechado? Sabes uma boa maneira de o sabermos? Estendermo-nos num prado, estende-te e observa tudo o que te rodeia, os insectos, as flores, as árvores, os pássaros. Há uma profusão de belexa à tua volta, de harmonia, de mistério. Que sentimento nasce no teu coração? Indiferença, rancor ou alegria? O que vês é um desperdício ou é um dom? Dentro de ti, há protesto ou gratidão? Olhas para o céu e estás convencida de que estás a perder tempo, mas o que se passa é que já estás a rezar.

 

A nossa sociedade foge ao trabalho

6 de Junho

Passas horas agarrada aos livros, mas dizes-me que, ao fim do dia, pouco ou nada te fica na cabeça. Aproxima-se o exame de acesso à escola de fisioterapeutas e sentes-te mais insegura do que nunca. "É como se tivesse sempre um diabinho ao meu lado a sussurrar-me ao ouvido: "O que é que estás a fazer? Por que perdes o teu tempo? A vida está cheia de coisas mais interessantes!""

A tua descrição fez-me lembrar de certos desenhos do meu manual da escola primária. Lembro-me sobretudo da figura de um miúdo que, de repente, se vê numa encruzilhada. Um anjo e um diabinho esvoaçam por cima dele, um de um lado, o outro, do outro. Enquanto o diabinho lhe sussurra qualquer coisa ao ouvido, o anjo aponta, com mão firme, o caminho que ele deve escolher.

Por mais que, nos últimos vinte, trinta anos, a psicanálise nos tenha vindo a explicar nos mínimos pormenores a origem de todos os nossos comportamentos, a representação do diabinho continua a ser muito eficaz. com toda a nossa vontade e todo o nosso desejo, decidimos meter por um caminho, mas, de repente, há uma voz interior que instila em nós a dúvida. Será mesmo seguro? Não seria melhor se...? E o problema é que não diz asneiras, mas coisas sensatas, equilibradas, apropriadas. Será possível não lhe dar razão? Temos de possuir uma grande capacidade de discernimento para percebermos que as observações dessa voz só são aparentemente justas e razoáveis. Quando essa capacidade crítica não existe, facilmente cedemos à sua insistência, e, à parte uma remotíssima sensação de mal-estar, convencemo-nos de que escolhemos o melhor caminho, porque é o mais fácil, o mais rápido.

Lembro-me de um episódio ligado ao mundo das artes marciais. Um dia, um mestre ia numa rua e viu um dos seus melhores alunos sair da estação do metropolitano pelas escadas rolantes. A dor e a indignação foram grandes. O que é que ele tinha ensinado àquela pessoa, durante todos aqueles anos de treino? Só o tinha ensinado a repetir formas, técnicas. Repetia-as bem, muito bem até, mas eram formas vazias, sem espírito, sem poder verdadeiro.

Percebes onde está o problema, o motivo de escândalo? Nas escadas! Se o aluno tivesse o espírito adequado, teria subido as escadas, porque a atitude correcta é a que vê a dificuldade e a enfrenta, sem escolher a via mais cómoda.

As grandes conquistas da vida interior começam com pequenas conquistas na vida prática. vou pelas escadas e não pelo elevador, levanto-me da mesa ainda com uma sensação de fome e não me empanturro, não ligo o ar condicionado ou o aquecimento no máximo, suporto algum calor ou algum frio. Satisfazer o corpo no seu desejo de comodidade é impelir o espírito para a névoa da confusão. Até podemos ter grandes palavras na ponta dos lábios, mas, por detrás dessas palavras, haverá apenas o esqueleto de arame de um manequim. O corpo adora ser mimado e quantas mais coisas se lhe dá, mais coisas deseja.

A nossa sociedade foge do cansaço como do mais terrível dos espectros. Facilidade e imediatismo são as únicas vias escolhidas, e os resultados, infelizmente, são bem visíveis. A sociedade que vemos à nossa volta é uma sociedade frágil, doente, inerte, em decadência profunda. Uma sociedade que cede a todas as tentações, excepto à do cansaço. No entanto, o cansaço é a própria essência da nossa vida, da vida de todas as criaturas. Sem cansaço, não há construção. Sem construção, não há sentido. E surge o desespero, a depressão, surgem os ataques de pânico. Entre nós e as garrafas que se deixam arrastar pela corrente não há qualquer diferença.

 

Entre os pirilampos e as estrelas

13 de Junho

Vim para a montanha fazer os últimos estudos dos locais para o meu filme. Passo o dia todo a andar e, quando regresso a casa, estou literalmente exausta. Só depois do jantar é que consigo redescobrir um mínimo de vitalidade, e é dela que me sirvo para te responder.

Estou a escrever-te na pequena varanda do meu quarto. A toda a volta, o silêncio. No ar, cheiro a erva, a coníferas, a vacas. À minha frente, erguem-se, como um enorme icebergue de pedra, as paredes de um cume dos Dolomitas. Antigamente, em vez das casas e do bosque, havia um oceano tropical, e, em redor, nadavam os primeiros crustáceos e todos os microrganismos a partir dos quais se desenvolveram depois todas as formas de vida.

Agora, a noite está límpida. As caudas luminosas dos aviões perseguem-se no mesmo rasto invisível, e, mais lá em cima, as estrelas tremulam tanto como, nesta altura, os pirilampos nos prados. O que existe cá em baixo e lá em cima reflecte-se, testemunhas mudas do mistério que nos rodeia.

O meu pai costumava dizer que a criação se podia comparar a um grande livro a que tinham arrancado as duas páginas mais importantes: a primeira e a última. Como é que tudo começou? Podemos avançar hipóteses mais ou menos credíveis, mas nunca teremos a certeza. E como irá acabar? Não sabemos. O mesmo se passa com as nossas existências. Onde estava a nossa alma, antes de nascer? E para onde irá, depois da morte? Podemos ter esperanças, sonhos, mas, se formos honestos, nunca poderemos dizer: "Tenho a certeza de que será assim."

Estamos aqui, no escuro, suspensos entre a poesia dos pirilampos e o fogo ardente das estrelas. É a elas que nos agarramos quando sonhamos com qualquer coisa. Cai uma estrela, e os desejos concretizam-se. Não foi precisamente um cometa que nos anunciou a vinda do Salvador?

Há umas semanas atrás, antes de vir para aqui, passei por Trieste e dei um grande passeio com um velho amigo. Estávamos no carreiro que nos leva dos bosques de pinheiro negro

do Carso até aos rochedos onde Rilke escreveu as Elegias de Duíno. Como já não nos víamos há algum tempo, passámos as primeiras horas a contar as últimas novidades. Só quando já se ouvia o rumor do mar contra os rochedos, é que ele parou e me disse: "Na tua vida só há uma coisa que desejo, e não é a criatividade, nem o sucesso, é a fé."

É ridículo, mas quase que parece que quem possui o dom de acreditar tem de conhecer a receita secreta para revelar aos cépticos. Esquece-se, ou ignora-se, que a fé é mistério.

Lembras-te do que dizia o padre Thomas em Vai aonde te leva o coração?, quando a protagonista lhe perguntava a mesma coisa? "Como se faz para se ter fé?" "Não se faz nada", respondia ele,   "acontece." Todavia, para que a fé aconteça, não há que fazer projectos, programas, planos de batalha. O que há a fazer é não resistir, entregar-se.   "Sentada debaixo do carvalho, não seja você, mas o carvalho, no bosque, seja o bosque, no meio dos homens, esteja com os homens."

A nossa fúria racionalista afasta muitas vezes os dons generosos do Espírito Santo. Quero, quero, quero. Esta atitude, embora seja tão importante na nossa vida, facilmente se torna

um obstáculo no nosso caminho espiritual.

É precisamente quando deixei de desejar que Ele chega. Só então é que compreendo que o Seu caminho é a única via que quero percorrer. É o caminho que traçou para mim enquanto eu ainda estava no útero materno, que abre a finitude dos meus dias para dimensões de uma grandeza inimaginável. É o mistério que me acolhe. Não o mistério dos fantasmas, mas o mistério, concreto, do amor. Essa energia que concebeu tanto os pirilampos como as estrelas, e a surpresa dos homens, suspensos entre os pirilampos e as estrelas. Essa força que não é neutralidade não expressa, mas relato. O relato de um olhar que se transforma em Nome.

 

Desconfia de quem não tem dúvidas

20 de Junho

O Verão está aí e, com ele, a chegada dos meus sobrinhos e dos muitos amigos que, entre uma viagem de férias e outra, vêm visitar-me. Mais dia menos dia, também espero ir passar uns dias à praia. Quando era mais nova, detestava a praia. Agora, estranhamente, sinto necessidade dela. O corpo deseja o sol, o calor, talvez para fazer evaporar dos ossos a humidade do Inverno. E tu, o que vais fazer? Espero que não fiques a entristecer aí em casa, com a desculpa do estudo!

Dizes-me que a questão da fé te lembra certas roupas que compraste nas bancas dos trapos usados. À primeira vista, tiradas do monte, pareciam-te perfeitas, mas, mal chegaste a casa, reparaste que as mangas eram curtas de mais, as ancas estreitas, o colarinho largo. Em suma, o tamanho era o teu, mas aquele trapo tinha sido usado por outra pessoa e, com o passar do tempo, ficara parecido com ela. "Assim", dizes tu, "viemos ao mundo e, mesmo antes de os nossos olhos saberem distinguir nitidamente as formas, somos "obrigados" a uma fé. Quando crescemos, temos de continuar, quer queiramos quer não, a percorrer o mesmo caminho. Talvez seja por isso que, a certa altura, reparamos que o fato nos fica justo, a manga repuxa e seria melhor pregar mais um botão na cintura. Em suma, sentimo-nos mal. Mas será possível, será justo associar a fé ao mal-estar? Já vi muita gente fazê-lo, mas eu não caio nessa."

Esta tua pergunta alegra-me porque revela a sã inquietação de que já falámos. Poder-se-á acreditar por via "hereditária", por hábito social? Claro que não. Não se pode e não se deve. A fé é fermento, agitação, não acomodação. Cada um de nós tem um percurso à sua frente para chegar à compreensão da Verdade. E esse percurso está muitas vezes cheio de obstáculos, quedas, desvios, é quase como escalar uma parede de rocha sem pontos de apoio e sem cinturão.

Quando tinha a tua idade, também invejava as pessoas que nunca eram assaltadas pela dúvida. com o passar do tempo, compreendi que, na maioria das vezes, essa atitude escondia uma forma de fraqueza, de perigosa fragilidade. De facto, quem julga que tem sempre razão tende a sentir-se superior, acha-se no dever de julgar e rotular os outros, apresentando-se como modelo a seguir. Pelo contrário, bastaria ler a vida de um santo qualquer para se perceber que o sentimento de quem, com o passar do tempo, virá a converter-se em verdadeiro modelo de vida se baseia exactamente no oposto: inadequação, vulnerabilidade, humildade. Muitos santos demonstraram que o céu só se atinge depois de se ter enfrentado a queda no abismo, e que a plenitude se atinge aceitando a nulidade mais absoluta.

Sentires-te obrigada e recusares essa sensação honra a tua sede de verdade. Não sabes onde te conduzirá essa tua inquietação, essa sede de um alicerce verdadeiro. Talvez te conduza muito longe, para regiões desconhecidas, lugares de solidão, confusão, desespero. Para as terras do mal e das suas tentações. O fracasso estará à tua frente como um monstro pré-histórico, mas nunca conseguirá devorar-te, porque os teus' passos, as tuas ansiedades, os teus medos, terão remexido o solo. Deixará de ser duro, compacto, e passará a ser macio. Na terra mole, as raízes espalham-se, tornam-se mais profundas. É delas que depende a estabilidade da árvore, que faz com que o alimento suba até às folhas, e só então é que as flores e os frutos podem surgir à luz do dia.

 

A inveja é como a grama

27 de Junho

Finalmente, consegui ir passar três dias à praia, aqui perto de casa. Para mim, as férias verdadeiras e absolutas são assim. Grandes sonos e muitas horas passadas a ler, deitada na rede.

Entre os vinte e os trinta e cinco anos, a leitura foi a actividade que preencheu todos os momentos livres da minha vida. Depois, os compromissos e as responsabilidades passaram a ser tantos que o tempo para esse passatempo se reduziu drasticamente. É certo que ainda leio muitas coisas que me interessam, mas faço-o sobretudo "por dever", não "por prazer". No tempo em que ainda trabalhava na cidade e não tinha muito dinheiro, requisitava livros na biblioteca do bairro. Ia lá às sextas-feiras, ao final da tarde, ou no sábado de manhã, e depois de ter percorrido as estantes com uma excitação alegre, tirava os que escolhera antecipadamente, pedia para os registarem e levava-os para casa.

Tenho algumas saudades desses tempos ainda despreocupados, do meu vaivém frenético à procura de uma jóia escondida. Quando queria alguma coisa realmente aliciante, jogava pelo seguro: escolhia o livro mais usado, aquele que estava quase sempre requisitado. Agora, se vou a uma biblioteca, já não é para ir buscar livros, mas para oferecer os que vão enchendo cada vez mais as minhas estantes.

Escreveste-me a dizer que tinhas descoberto dentro de ti o sentimento da inveja e que estavas preocupada. Tens inveja, dizes tu, daqueles que já conseguiram fazer o que tu ainda estás a tentar, das pessoas que têm dinheiro para ir para férias, da tua amiga que se apaixonou, é correspondida, e tem os olhos brilhantes como estrelas. "Este sentimento não existia em mim", dizes tu, "ou, se existia, não tinha notado. Mas, agora, como o grisu, o gás que invade as minas, espalhou-se por todos os meus pensamentos, intoxicando-os. Nas minas, morriam os canários. Em mim, morreu a espontaneidade, a já rara vontade de sorrir. Sinto-me como um rato preso, que passa o tempo a escavar numa toca cada vez mais acanhado."

A tua descrição é perfeita, mas horroriza. A inveja não nasce nos pensamentos, mas no coração, de onde depois sai para inquinar todas as coisas. Não sei se alguma vez arrancaste as ervas daninhas de um canteiro ou de uma horta. Se já o fizeste, deves ter reparado que as suas raízes são muito diferentes das raízes das árvores. Há algumas que consegues arrancar só de lhes tocares ao de leve, outras têm uma raiz muito comprida, e outras ainda, como a grama, invadem e destroem tudo.

Pois é, a inveja é como a grama, basta que a deixes estender uma ponta para ela colonizar totalmente o coração. Não o envolve como a hera, perfura-o com pontas aguçadas. Infelizmente, é ela que guia as nossas palavras, os nossos actos. Tudo o que está compreendido entre a pequena calúnia, aparentemente inocente, e o assassínio, é fruto da inveja.

Tem o poder de um veneno devastante e o talento transformista de um vírus igualmente mortal. Destrói o que nos rodeia, mas também nos destrói a nós, impondo-nos uma tristeza perpétua. E não basta a fé, não bastam as boas intenções. Para a manter longe de nós, temos de estar sempre imersos numa vigilância constante. Temos de nos interrogar a nós mesmos, aos nossos pensamentos, aos arroubos do coração, mesmo os que, aparentemente, são os mais inocentes. A inveja atinge indistintamente. Pode ter-se inveja de um amigo muito querido, da pessoa amada. Pode sofrer-se de inveja mesmo cultivando as mais nobres atitudes íntimas. A Bíblia define-a como "um caruncho que rói os ossos". Haverá imagem mais eficaz? Os ossos são os que nos ampara, portanto a inveja mina os alicerces do nosso ser. E fá-lo, devorando às escondidas, lentamente. Só quando tudo se desmorona é que ela, como um diabrete mágico, sai da caixa. Mas já é demasiado tarde. Antes disso, deveríamos ter mantido sob controlo a pureza dos nossos pensamentos.

 

A armadilha dos lugares-comuns

4 de Julho

A tua resposta chegou muito depressa. Terá sido por um zelo inesperado dos Correios, ou, sentindo-te atingida em cheio, tiveste logo necessidade de me comunicar as tuas reflexões? Penso que a segunda hipótese é a mais válida. De facto, as tuas linhas deixam transparecer uma certa irritação. "Por que dás tanta importância à inveja?", perguntas-me, e depois acrescentas: "Sabes, quando ouço falar de pureza, tenho como que uma reacção alérgica. Parece-me que, no século que acaba de terminar, houve bastantes tentativas para instaurar mundos cheios de pureza, com resultados, digamos assim, catastróficos. Os nazis não queriam a "pura raça ariana"? E os comunistas não queriam a "pura ditadura do proletariado"? E a um nível menos trágico, mas, talvez por isso mesmo, mais irritante ainda, vêm-me à ideia as purezas ou as impurezas cochichadas nos confessionários. Não te sentes embaraçada ao pronunciar essa palavra?"

Como poderemos compreender-nos, entender-nos, dialogar, se o uso das palavras não é o mesmo? Também me horroriza a palavra "pureza" e o adjectivo "puro", se se referem ao mundo. A pureza ligada ao que é material, ao que é físico, contém implicitamente a ideia de superioridade. Um ser humano qualquer decide que existem fronteiras, parâmetros, e que só quem está dentro dessas fronteiras ou desses parâmetros é que merece viver com todos os privilégios. Quem está fora pertence a formas seguramente inferiores. Parte-se da ideia da raça ariana e chega-se às seitas dos nossos dias, às equipas de futebol, aos fanáticos das dietas como vias de salvação. "Puro" acaba por ser tudo o que pertence ao meu grupo, que está de acordo com a minha visão do mundo. A partir deste pressuposto, não tarda muito a estar-se convencido de que a vida de quem está excluído desse grupo não tem o mesmo valor que a vida de quem faz parte dele.

A partir do Iluminismo, a ideia que dominou - e continua a dominar - na nossa sociedade é a ideia de que a religião, com todas as suas referências, é apenas uma função do homem, uma necessidade do homem. Como a vida não tem sentido e a morte aterroriza, tem de se olhar com uma certa benevolência para quem tenta confortar-se com historietas. Portanto, a dimensão do mundo, aquela a que nos referimos, é só uma, a da realidade e da sua finitude. As palavras e os conceitos, com os seus significados mais profundos, são restringidos a essa minúscula divisão. Apesar de o espaço ser claustrofóbico, movemo-nos lá dentro, convencidos de que estamos a definir o universo.

Mas os conceitos e as palavras da fé não estão separados da nossa vida. Pelo contrário, são a totalidade e a riqueza da nossa existência. Para percebermos isso, temos de varrer uma enorme quantidade de lugares-comuns, as inúmeras lentes cada vez mais espessas, que, desde o dia em que nascemos, nos vão colocando em cima do nariz. Os óculos são cómodos porque nos permitem ver com clareza, ou, pelo menos, assim julgamos. Só se os tirarmos é que nos apercebemos de que essa clareza era apenas mesquinhez, de que as ideias que julgávamos nossas eram apenas um escafandro que alguém nos tinha enfiado. Para percebermos que não existimos nós, de um lado, e a fé, do outro, como um sobretudo que podemos vestir ou despir quando nos apetecer, temos de compreender que a fé somos nós mesmos, que a fé está dentro de nós desde o momento em que viemos ao mundo. Em mim, em ti, como em qualquer ser humano. Todos irmãos, filhos. Não frutos estéreis do nada ou do acaso, mas concretização de um sonho que é relação, e relação de amor. Então, deixará de haver termos que nos irritem, porque teremos compreendido que o único escândalo verdadeiro - a abominação que mercantiliza os nossos dias e os tritura - não é o uso de uma palavra em vez de outra, mas a transformação da essência viva e aberta da criatura humana na reclusão diligente de um robô.

 

"O meu espaço!"

11 de Julho

A tua mãe foi para Riccione com as amigas, e tu ficaste em casa. Se estás cansada, como dizes, se já não consegues estudar, por que não tiras também uns dias de férias? É inútil estar-se agarrado aos livros se já não há cabeça para isso. Uma das tuas colegas convidou-te para ires acampar durante uns dias, mas tu não sabes se hás-de aceitar. "O que faço das plantas que há cá em casa? Conseguirei dormir numa tenda? Nunca dormi. Tenho medo da humidade, do desconforto, de não ter o meu espaço..."

O meu espaço! Que expressão tão extraordinariamente moderna! "Ainda não tivemos um filho porque precisamos dos nossos espaços..."; "Não mudo de emprego porque terei de deixar o meu espaço..."; "Não aceito uma nova relação porque tenho medo de perder o meu espaço!" O espaço deixou de existir, mas existem os "nossos" espaços. O espaço verdadeiro, aquele que uma pessoa leva sempre consigo - o espaço da reflexão profunda, da oração, do confronto e da relação com uma dimensão "outra" - já quase desapareceu. Em vez dele, como fungos parasitas, apareceram "os espaços". Os espaços não passam de uma dimensão da existência desprovida de deveres. Nos "espaços" há liberdade e é, precisamente, por isso que se podem preencher com tudo o que mais nos agrada. Posso dançar, conviver com os amigos, aprender a jogar brídege, fazer um curso de telepatia e outro de papel mâché. Posso, finalmente, realizar-me.

Realizar-se! Outra palavra mágica cujo nome parece ser capaz de mover montanhas. Temos de nos realizar, imperativo que é filho desse terrível, embora extremamente necessário, abanão que foi o "Maio de 68". Os nossos bisavós e os nossos avós não pensavam certamente em realizar-se. A sua realização era apenas a satisfação, da melhor forma possível, das exigências da vida quotidiana. Pelo contrário, a realização que nós procuramos nos "espaços" está ligada a uma forma qualquer de criatividade. Teoricamente, é muito bonito, mas, na vida real, torna-se muitas vezes uma armadilha.

Quando penso nesses tais "espaços", lembro-me das pequenas estufas. É certo que, nesses locais protegidos, as plantas crescem mais depressa e melhor do que ao ar livre, mas só até certo ponto. Quando a temperatura sobe, temos de as levar lá para fora, para o ar livre. E mesmo quando estão lá dentro, temos de abrir as janelas, renovar o ar, para elas não adoecerem.

O espaço, assim entendido, é um lugar-tempo mítico onde deveriam cumprir-se processos de libertação igualmente míticos. Libertação da monotonia, da repetição, da ausência de sentido. Mas será assim que surge a libertação? Será realmente possível que eu me liberte e me realize graças apenas aos meus esforços, à minha vontade?

Todas as manhãs acordo cheia de alegria e de curiosidade. O que me irá acontecer hoje?, pergunto a mim mesma. Que encontros terei? Que emoções tocarão o meu coração? Como poderei tocar o coração dos outros? Relegar a realização para a frequência de um espaço limitado da nossa vida é condená-la à anorexia dos sentimentos, dar-lhe um crescimento penoso, enfermiço, de breve duração. Não se pode impor limites a uma coisa que, por princípio, é a destruição do limite.

O espaço que nos é dado para nos realizarmos é o que está compreendido entre o primeiro hálito e o último. Cada dia, cada hora, cada segundo deve estar sujeito a este princípio. Cada instante da nossa vida contém em si tanto a luminosidade puríssima de um diamante como o cinzento impenetrável da grafite. Tanto o diamante como a grafite são compostos por átomos de carbono, só a disposição é que é diferente.

Como é que disponho os meus "átomos" na realização? No plano horizontal ou no plano vertical? Deixo-me atravessar pela luz ou baixo os olhos? E se danço, danço para quem? Para gratificar o meu ego ou porque todo o meu ser já dança, extasiado pela alegria da comunhão?

 

A síndroma do falso problema

18 de Julho

Se o problema das plantas é o único que te impede de partir, é um impedimento de pouca monta. Podes pedir a uma vizinha simpática para as ir regar, ou, se não arranjares ninguém que esteja disposto a fazê-lo, podes pegar em garrafas de água mineral vazias, enchê-las e enfiá-las na terra com a embocadura para baixo. Assim construirás um autêntico self service para a planta.

Os falsos problemas são aqueles a que mais nos afeiçoamos. Usados como escudos, permitem que evitemos as incógnitas que nos metem medo. Estás preocupada com a ideia de partir com pessoas que não conheces e, por isso, vens-me com essa história das plantas. "Como é que posso deixá-las? A minha mãe adora-as. Se morresse uma só que fosse, para ela seria um autêntico trauma. Gostava muito de ir, mas não posso..."

Quantas vezes nos agarramos a desculpas destas? Mais vale enfrentar uma obrigação fingida do que correr o risco de uma pequena liberdade. Falo com algum conhecimento de causa, porque também tenho um temperamento extremamente receoso e, durante anos e anos, sofri da síndroma do falso problema. Depois, um dia, uma amiga disse-me: "Mas por que é que vives com o travão de mão puxado?" A partir desse momento, perante qualquer situação, pergunto a mim mesma: "Como está o meu travão ? Está puxado ou não ?l" E quando descubro que está puxado, baixo-o logo.

Mesmo quando se começa a falar de transcendência, a tendência é puxar o travão. Para falar verdade, são poucas as pessoas que afirmam, sem sombra de dúvida, que o céu está vazio. A maioria desenrasca-se com afirmações bastante vagas. "Claro que alguma coisa deve existir... O céu é demasiado grande para estar vazio... e depois, mesmo que seja verdade, ao olhar para as estrelas sente-se sempre uma grande emoção..." A imagem que surge é a de uma entidade perfeitíssima e distante, fria e indiferente ao que ela própria criou. "O mundo está a desmoronar-se e Ele não se importa nada. Se assim é, por que haveríamos nós de nos importar com Ele? Ofereceu-nos o grande espectáculo da natureza, e mais nada. Um óptimo relojoeiro, um óptimo contabilista, de acordo, mas, infelizmente, as nossas vidas de homens não têm a precisão das contas ou dos relógios. Somos imprevisto, fragilidade, tragédia. Onde é que está, então, o seu sinal, a sua marca? Não existe. Por isso, estamos sozinhos à face da Terra, loucos com a nossa dor."

Quando tentas falar a essas pessoas da existência de outra dimensão do transcendente - a da revelação e da redenção puxam imediatamente o travão de mão, ou melhor, puxam dois, um para cada mão. "Detesto a Igreja", dizem, "não suporto os padres. Se o Papa se limita a estabelecer limites e a decretar proibições nas nossas vidas, por que haveríamos de o seguir?"

Ora aí está o falso problema. Porque o núcleo da revelação não tem a ver com a fidelidade a uma instituição, mas com a conversão do coração, com a sua passagem do estado de pedra para o de carne. Por conseguinte, a vida de qualquer ser humano é algo que nos toca, na sua profundidade. Não são, portanto, coisas de católicos ou de padres, de fracos ou de ingénuos, são apenas coisas de homens, de pessoas que querem estar nesta terra de olhos abertos, ou de olhos fechados, de seres humanos que gostam de viver, ou que preferem sobreviver.

O coração vivo distingue com sabedoria e, graças a essa sabedoria, introduz o dinamismo criativo nos seus dias. Pelo contrário, o coração de pedra prefere a imobilidade, o fatalismo. O mal existe? Só nos resta chorar e blasfemar. Mas, para o coração vivo, o próprio mal tem um sentido. Impõe o dever do testemunho, a vigilância constante e atenta a cada escolha.

 

Os santos verdadeiros

25 de Julho

Já é noite e escrevo-te sentada à mesa de madeira, debaixo da parreira. O ar está morno, o céu salpicado de estrelas. O silêncio em redor é por instantes interrompido pelo ladrar dos cães e o ruído de algum carro que passa na estrada, que não fica longe. Para sul, na trajectória invisível dos aviões que descem para Roma, calou-se há pouco o estralejar do fogo-de-artifício.

É um ritual quase obrigatório, nesta altura do ano. Não há fim-de-semana em que o planalto fronteiro à minha casa não seja massacrado por essas explosões de luz e de cores. É o tributo estival ao santo de serviço, que é festejado nas diferentes aldeias com patuscadas à base de leitão, salsichas, fritos ou gnoahi. À noite, está calor, é óptimo passear, come-se, bebe-se, dança-se, encontram-se amigos. Por vezes, também o amor. Que mal há em festejar assim os santos? Absolutamente nenhum!

Todavia, não sei porquê, lembro-me sempre das palavras de um amigo indiano de Kerala. Fui buscá-lo à estação e, a caminho de casa, fomos obrigados a parar por causa da procissão da minha aldeia, com a estátua do santo e tudo. Não faltava nada, nem as flores, nem os cânticos, nem as baforadas de incenso. O meu amigo sorriu: "Que bonito! Parece que estou em casa! Entre nós, fazem-se muitas procissões como esta, para festejar as nossas divindades." Depois, com ar matreiro, acrescentou: "Desculpa lá, mas o Cristianismo não é uma religião monoteísta?"

Lembra um tanto a reflexão que fizeste aqui há tempos, lembras-te? "Não consigo perceber", escreveste-me tu, "quem são esses santos. Na escola primária, tinha uma colega de carteira que coleccionava santinhos, como os outros miúdos coleccionavam os cromas dos jogadores de futebol. De vez em quando, por baixo da carteira, mostrava-mos. "Gostas mais da Santa Luzia ou da Santa Rita?", perguntava, e eu não sabia o que havia de responder. Não gostava de nenhuma. Sem saber porquê, irritavam-me aqueles olhares, aquela moleza, aquele aspecto de vítima de um sacrifício. Agora que já sou crescida, parecem-me sobretudo uns testimonial do marketing, já que nas páginas dos jornais abundam as ofertas especiais, patrocinadas pelos santos mais em voga. Mas quem são realmente os santos?"

Pergunta aterradoramente enorme, que nos remete para outra ainda maior. O que é a santidade? Comecemos por esclarecer uma coisa. No temperamento dos santos, não há nada de mole ou de piegas, porque o santo é, acima de tudo, uma pessoa que luta, uma pessoa que "enfrenta", e, portanto, não pode ser um fraco. Infelizmente, as imagens da devoção popular dão muitas vezes uma imagem falsa dos santos. Temos de ler as suas histórias, para nos apercebermos da sua unicidade, do seu anticonformismo, da solidão total e do desespero profundo que por vezes os atormenta. Os santos não são os melhores alunos da turma, pessoas bafejadas por uma espécie de superioridade, graças à qual conseguem proteger-se do mundo. Pelo contrário, vivem com o máximo esforço e na maior entrega. Esforço e entrega parecem contradizer-se, mas não é verdade. O esforço está na luta contra o mal, a entrega é à caridade, ao amor que a gerou.

Os santos, naturalmente, não são só os do calendário, são também muitas pessoas que vivem ao nosso lado, no anonimato, na humildade do dia-a-dia. É a sua comunhão que torna viva e palpável a presença da eucaristia, do agradecimento, na monotonia e na ausência de esperança das nossas vidas. Há santos no autocarro, no centro comercial, no metropolitano, nas estações, nos comboios, nas fábricas, nos escritórios. Não os distinguirás pela auréola, mas pelo olhar, pela atenção delicada com que tocam todas as coisas.

Ao observares essas pessoas, é provável que penses que gostarias de ser como elas. Gostarias de ter a mesma graça, a mesma intensidade, a mesma ligeireza. É esse o fermento do Evangelho. Misturado com a farinha, transforma-a em pão, em alimento. De repente, deixas de pensar nos santos "lá de cima", nas estatuetas, nos anúncios publicitários, e só pensas em vir a ser como eles. Também tu, testemunha da esperança.

 

É tempo de palavras fortes

1 de Agosto

Hoje à noite, chegam as minhas duas sobrinhas que vivem em Hong Kong. Desde que foram para o Oriente, eram ainda muito pequeninas, Agosto é o mês que lhes dedico. Um mês cansativo, porque, como todas as crianças, exigem uma atenção constante. É também a única altura do ano em que estamos de facto juntas e, portanto, não se deve desperdiçar nem um minuto. Claro que tive de estabelecer pequenos limites, do tipo: "Não se entra no quarto da tia antes das sete da manhã", para não ter o destino de uma espiga de trigo devorada pelos gafanhotos. Mas o resto do dia é uma sequência contínua de aventuras, jogos, descobertas. Construímos cabanas com ramos de árvores, lançamos papagaios de papel, domamos os meus potros "selvagens", vamos ao lago e, com a pequena canoa amarela, enfrentamos dragões e tempestades. Quando chega a véspera da partida, sempre cedo de mais, ficam de repente silenciosas e tristes. Abraçam-me em todos os cantos da casa, sussurrando: "Quando formos crescidas, tia, viveremos sempre contigo. Tu já serás velhota e nós ajudar-te-emos a tratar dos animais e das árvores."

Às vezes, da janela do meu quarto, vejo-as brincar no relvado. Andam às voltas, com os vestidinhos floridos, trocam panelinhas, pratinhos, fazem de conta que estão a cozinhar. De vez em quando, ouve-se uma discussão, um choro. São ainda tão pequenas, tão frágeis! No entanto, enquanto o diabo esfrega um olho, também chegarão para elas as forcas caudinas da adolescência, o caminho incerto rumo à descoberta da sua vocação adulta.

Quando olho para as minhas sobrinhas, para os filhos das minhas amigas ou para as crianças que passam por mim, sinto muitas vezes um aperto no coração. Pergunto a mim mesma qual será o seu futuro, como será o amanhã que estamos a preparar-lhes. Há que cultivar a esperança, claro. Mas, antes da esperança, há que praticar a lucidez. Uma esperança construída sobre ilusões é uma esperança que acabará por se afundar, como uma palafita construída com madeira podre. O panorama oferecido pelo homem - e pelas sociedades que ele construiu - é absolutamente desolador.

As recentes comemorações do final do milénio já só parecem ser uma fábula longínqua. "O novo milénio será o milénio da paz laboriosa, da justiça em todo o mundo!", profetizavam alguns. Bastaram dois anos para pulverizarem esses bons propósitos. Vinte e quatro meses de devastações, de guerras, de triunfo da morte nos campos de batalha, nas metrópoles aparentemente inocentes, mas também nos laboratórios científicos, onde se programam novas e monstruosas formas de vida, de acordo com a nossa vontade e não a d'Ele, com o álibi, moralisticamente chantagista, de um benefício para os mais pobres da terra.

Sinto horror, um horror verdadeiro e total, por esse orgulho cego, por essa hybris que está a conduzir a nossa pequena e luminosa Terra para o aniquilamento. Quanto mais olho para as crianças e penso no seu futuro, mais me convenço de que já não é tempo de meias-palavras, de distinções, de camuflagens. Tempos fortes exigem palavras ainda mais fortes, e opções consequentes que as confirmem. O tempo em que triunfa a total ausência do temor a Deus é o tempo em que deve surgir, prepotente, o sinal da profecia. E profecia não significa juntar-se ao conforto da opinião pública, por medo da impopularidade.

Se assim é, de que lado queremos estar? Do lado do Deus da vida, ou do lado do homem que quer ser deus? Do lado da popularidade, ou do lado da impopularidade? O que estamos dispostos a arriscar pela profecia? Estamos convencidos de que, no fundo, com alguns pequenos ajustamentos, o mundo pode seguir em frente, ou acreditamos no radicalismo da mudança?

E que tipo de mudança é a nossa? Uma ideia que triunfa sobre as outras, talvez mesmo com a ajuda da violência, ou uma conversão, um percurso que tem mesmo a coragem de se interromper, para recomeçar em sentido inverso?

 

A destruição do gratuito

8 de Agosto

Não fiquei surpreendida por saber que, apesar das dúvidas e das hesitações, as tuas férias no parque de campismo foram um sucesso. "Era tudo muito desconfortável", escreves tu, "mas, todas as manhãs, acordava de bom humor e, à noite, diante das tremuras do candeeiro, apetecia-me continuar a conversar por muito tempo. Senti uma enorme sintonia com o grupo e cheguei mesmo a fazer novas amizades, duas raparigas alemãs e um casal de espanhóis. Já decidimos visitar-nos. No Natal, se for possível, vamos todos a Espanha e, na Páscoa, encontrar-nos-emos em Itália. Gostaríamos muito de visitar juntos a Sicília, acampando sempre, naturalmente. "

Como sabes, também vou sempre acampar, nas férias. Este ano, depois de o ter desejado por muito tempo, passei a ser proprietária de uma daquelas carrinhas alemãs que estavam muito na moda na época dos "Filhos das flores". Quando acabar o filme, quero ter um ano sabático e dar a volta à Europa.

Há muita gente que se admira com a minha predilecção pela vida ao ar livre. Como é possível - perguntam eles que tu, que és tão famosa, tu, que poderias ir para um hotel e estar sossegada em sítios caros, suportes o desconforto e a vizinhança de tantos desconhecidos que estão sempre de olho em tudo o que tu fazes?

A privacy e o conforto são dois tótemes idolátricos dos nossos dias. Pensando bem, a privacy é como uma tenda. Uma protecção que cobre a área sagrada do templo. O espaço sagrado do meu ego e do esforço titânico que eu faço para o tornar hipertrófico.

Que profundamente doente está a nossa sociedade, que bafio, que sensação de morte há ao considerar sempre o outro como um risco, um perigo, uma ameaça! Eu possuo. Sou proprietário do meu tempo, da minha casa, da minha conta no banco, dos meus afectos privilegiados, dos meus êxitos, e não tenho nenhuma intenção de os partilhar com os outros. "Onde está o teu tesouro, está o teu coração", diz o Evangelho. Onde é que está o coração do Ocidente? De que matéria é feito?

Lenta e inexoravelmente, o ser humano foi alterando o pólo do seu interesse. A vida já não visa a relação com o outro, mas com as coisas. O objecto que se deseja, o bem de que se precisa, a meta a atingir. A gratuitidade, que está na própria base da vida, já não existe e, quando surge aqui e ali, como sinal de testemunho, é olhada com desconfiança. O que haverá por baixo? Por que será que fulano se comporta assim? Terá qualquer coisa a expiar, ou quererá alcançar o paraíso? Ou será que nos quer desprezar, fazer-nos sentir inferiores?

Temos de nos defender, de nos defender com todas as forças desse vírus que pode destruir todas as nossas convicções, destruir o sentido das nossas propriedades. Nos dias de hoje, não há nada que seja mais subversivo do que a gratuitidade. Não há nada que seja mais cristão.

O desejo torna o homem escravo, era o que me dizia o meu pai, na sua filosofia do desapego. "As coisas existem para tu te servires delas, se tiveres necessidade, não para passares o tempo a correr atrás delas. Os desejos têm outra característica. Mal se satisfaz um, surge logo outro. Como uma sede que nunca se poderá saciar."

É dessa sede que o Ocidente padece. Uma sede que eliminou todos os outros impulsos. O desejo de sentido, de partilha, de amor. Vivo entre as paredes estáveis das minhas certezas, dos meus bens. Se um estranho se aproxima da minha porta, fecho-a, não quero olhares, rostos, perguntas. Não penso no instante da morte. Se pensasse, talvez substituísse as certezas pelas dúvidas, a posse pela entrega. Se pensasse, já teria deixado a casa pela tenda, teria aceitado o dom da vida e o mistério da sua fragilidade. Saberia então que somos todos nómadas nesta terra e que a força não vem de se fechar as portas, mas de as escancarar, de receber quem bate à precariedade do meu refúgio.

 

Conversão

15 de Agosto

Nas horas mais quentes, a paisagem à volta de minha casa parece ser vítima de um sortilégio. Tudo fica perfeitamente imóvel. Os cães, os coelhos, os gatos, os cavalos, as cabras estão todos reunidos, aninhados nos sítios onde há sombra. As crianças são as únicas que se atrevem a desafiar o calor. Munidas de fatos-de-banho e de máscaras, mergulham na pequena piscina insuflável. Após dois dias de assaltos, a água fica suja de lama, folhas, insectos mortos, mas isso pouco lhes importa. À sombra do alpendre, os adultos, refastelados nas cadeiras de vime, suspiram: "Ah, se houvesse também uma piscina para nós..."

Só ao anoitecer é que a vida na herdade se reanima. Começam os ferozes e ruidosos jogos de matraquilhos e as brincadeiras com as sobrinhas, à base de: "Vamos fazer de conta que..."

Vamos fazer de conta que a inocência regressa aos corações, que os olhares voltam a ser luminosos. Vamos fazer de conta que volta a haver dentro de nós o espanto e a admiração, e que, em vez do desprezo, surge a misericórdia. Vamos fazer de conta que a virtude, e não a negligência, é o caminho mais percorrido. Vamos fazer de conta que o homem deixa de se sentir um boneco sem alma, prisioneiro do deserto, ou um robô programado para acompanhar a escravidão molecular do ácido desoxirribonucleico. Vamos fazer de conta que o ser humano sabe revoltar-se contra a claustrofobia cínica do seu tempo para se abrir à alegria, à liberdade interior, à criatividade do amor que, humildemente e em silêncio, vivem ocultos no seu coração. Vamos fazer de conta que o orgulho - que mumifica as nossas vidas - se estilhaça como o molde onde se forjam os sinos, e que o seu som - o som da vida viva e realizada - se propaga, contagiando tudo o que há à nossa volta. Vamos fazer de conta que o homem compreende que, sem conversão, não pode ter um grande futuro à sua frente.

Lembras-te de termos falado das palavras fortes? Pois é, "conversão" é a rainha das palavras fortes, aquela que poucos têm a coragem de pronunciar, aquela que contém em si todas as outras.

O que é a conversão? Não é, como muitos pensam, uma mudança de caminho - o que tenho à minha frente já não me convém e, por isso, escolho outro -, mas de olhar. Continuo a percorrer o mesmo caminho, mas vejo o que antes era invisível, ouço sons que dantes não ouvia.

Na base de qualquer conversão verdadeira não há o tédio ou o receio de um castigo, mas o sentimento, hoje em dia tão raro e antiquado, que se chama arrependimento. De repente, por obra da Graça, do Espírito, da dor que, como um fermento, vai agindo ao longo dos dias, reparo que vivi de olhos fechados, sem ouvidos, com um coração de aço. Apercebo-me de que, em cada hora, cada minuto, cada segundo, me foi oferecida a plenitude do Reino. Bastaria ter olhado, ouvido, estendido a mão. Para isso, deveria ter tido em mim a humildade, a simplicidade, o sentimento da estupefacção. Então, choro, e as minhas lágrimas são a água do baptismo, a água do renascimento. Choro por toda a alegria que não senti, por todo o amor que não dei, por aquele que não quis receber. Choro pela paciência com que o Reino esperou pelo meu olhar. Choro porque o olhar existe para a Luz e a Luz para o olhar. Não podem viver um sem o outro. Choro porque pensava que Jesus era uma estátua, uma história de há dois mil anos, e, de repente, descobri que Cristo vive dentro de mim e em tudo o que me rodeia. Sopro no sopro. Olhar no olhar. Reconhecimento do rosto e, a cada instante, aqui e agora, construção do Reino.

 

As crianças e a morte

22 de Agosto

As poupas estão a juntar-se para regressarem a África. O relvado está amarelo, definhou com o Verão. Os percevejos começaram a atacar os tomateiros. E as minhas sobrinhas já devem estar no avião que as levará para o seu país longínquo. Nos dias que antecederam a partida, o humor delas degradou-se, inesperadamente. Deixou de haver gargalhadas e corridas. Em vez disso, passou a haver amuos, silêncios repentinos, choros num canto qualquer do jardim. A mais velha passou o tempo a acariciar os animais. É a sua forma de se despedir deles. Receia sempre que algum possa morrer enquanto ela está longe, e previne-se com demorados rituais de abraços e beijos. Nos longos meses de Inverno, em cada telefonema dominical, nunca deixa de me perguntar: "Está tudo bem?" Só quando eu respondo "tudo bem", é que sossega.

A estação que passou foi uma das melhores, só houve duas grandes carpas japonesas que partiram para os "lagos celestiais". De início, ela receava que eu lhe mentisse, que lhe dissesse que estava tudo bem, quando não estava. Mas, agora, acredita, sabe que lhe digo sempre a verdade, que não afasto a morte, nem receio falar dela.

Lembro-me de como o silêncio me preocupava, quando era miúda, e de como os adultos eram evasivos acerca deste assunto. Sentia a morte à minha volta com um poder extraordinário, mas não tinha ninguém com quem falar dela. Intuía a complementaridade, a continuidade e a contiguidade da vida e da morte, e percebia que era nessa contiguidade que estava contido o sentido de cada gesto. Nunca pensei na morte como num fim obscuro e inelutável, mas o silêncio dos adultos era apenas uma forma de me fazerem acreditar que o era. Se bem te lembras, falei desse sentimento em Vai aonde te leva o coração, ao contar a história do cão Argo e da sua morte, que toda a gente escondeu da pequena Olga, com todos os sofrimentos e sentimentos de culpa que se lhe seguiram.

É por isso que falo sempre com grande honestidade com as minhas sobrinhas e com todas as crianças. "O corpo está a dormir e a alma vai para o céu. Um dia, voltaremos a encontrar-nos lá em cima e viveremos felizes para sempre." À noite, costumamos deitar-nos em cima da relva, a olhar para as estrelas. O concerto ensurdecedor dos grilos é constantemente interrompido pelas suas vozinhas. "Olha, lá em cima, naquela estrela! Vi o avô, estava a sorrir e a fumar cachimbo!"; "Olha, tia! Um pouco mais além está o gato Setembro! Está a abanar o rabo e a fazer ronrom." Estas "visões" continuam em Hong Kong e são-me comunicadas ao telefone. "Acordei durante a noite e sabes quem eu vi no parapeito? O coelho Tobias! Tinha descido da estrela para me vir dar um beijo!"

Conto-te estas coisas porque, aqui há tempos, num dos semanários italianos de maior tiragem, li os conselhos que uma psicóloga famosa dava a certos pais que perguntavam qual o comportamento que deviam ter com os filhos pequenos a respeito do provável desaparecimento dos avós. "Por favor", dizia ela, "nunca digam a uma criança que o avô foi para o céu, ou que ainda está num sítio qualquer, só que não se vê, porque isso iria fazê-la sentir ansiosa e aterrorizada. É melhor contarem-lhe como será o funeral, quem vai tratar da sepultura e de todos os aspectos concretos da questão. Isso habituá-la-á a ficar presa à realidade e a superar o luto."

Quando digo que a nossa sociedade se está a encaminhar velozmente para a loucura total, não faço grandes esforços para ter a confirmação. Negar os mistério cia morte é, evidentemente, negar o mistério da vida. O que é, então, viver? Obedecer diligentemente a um programa? O programa do meu código genético, da família, da sociedade em que o acaso, na sua infinita e trapalhona fatalidade, me fez nascer? Será que já está tudo escrito e só tem uma dimensão? Será que o meu destino não é diferente do destino de um burro que anda à roda da nora, sem nunca levantar os olhos do chão? E se, por acaso, levanto os olhos e vejo o céu, que não sabia que existia, o que deverei fazer da ansiedade que poderá invadir-me? Nada de medos. Há dezenas de pílulas e de terapias capazes de me curar, de me fazerem voltar a firmar os pés na terra.

Ainda guardo o bilhetinho que a minha madrinha de baptismo, já com noventa anos, me entregou pouco antes de morrer. Tinha tido três filhos e tinham morrido todos: o mais velho, na Rússia, o segundo, ao ir à procura do irmão mais velho, e o terceiro, ainda menor, atingido por uma bala perdida, nos últimos dias da guerra. Três filhos, três cruzes. Mas no seu olhar nunca li raiva, imprecações, reclusão, mas uma serenidade luminosa, aberta à aceitação da dor. "Não tardarei a ser uma nuvenzinha", escreveu-me ela numa letra trémula, "e três nuvenzinhas virão logo a correr ao meu encontro. A minha vida toda foi só isto: a espera alegre do nosso novo encontro."

 

Crescer é arriscar

29 de Agosto

Passaste as últimas semanas a estudar para o exame de admissão e, agora, naturalmente, parece-te que não te lembras de nada. "Sinto que vou falhar", escreves tu, "e atrás desse falhanço não consigo ver nenhum futuro. Acabarei por fazer aquilo que sempre detestei: estagiária no escritório de um economista, e depois, já de cabelos grisalhos e proprietária de um escritório só meu, aparecer-me-á uma úlcera, mas, socialmente, terei aquilo com que os meus pais sempre sonharam: uma boa situação. Só agora reparo que deveria ter-me revoltado desde o início, deveria ter-lhes dito logo: "Se a Economia não me interessa para nada, por que hei-de perder este tempo todo? Para vos fazer felizes? Mas a felicidade dos pais não deveria estar subordinada à felicidade dos filhos?""

Revolta! Palavra importante, perigosa, necessária. De facto, sem revolta, não há construção verdadeira, autónoma, da nossa vida. No entanto, se essa revolta não contém em si a procura do sentido, também pode transformar-se num escorrega que nos leva cada vez mais para baixo, cada vez mais para longe da nossa realização. Infelizmente, há muitos pais que, devido a um instinto mal interpretado de protecção, ou a ambições frustradas, traçam "carris protegidos" para o futuro dos filhos. "Primeiro, vais fazer isto, depois farás aquilo." É difícil escapar a esse laço, sobretudo quando se mantém não com ameaças e violência, mas com persuasão amorosa. Amorosa, digo eu, mas não sugerida por amor verdadeiro. Porque, na relação com um filho ou com qualquer ser humano, o amor verdadeiro respeita sempre a liberdade e aceita o risco contido nessa liberdade. O amor que decide pelo outro é um amor egoísta, imaturo. Um amor de relatórios, que receia o fracasso. E um laço que, por sua vez, gera amores pequeninos, de estufa, amores bonsai.

A persuasão amorosa, aliada à comodidade e ao desejo de uma vida tranquila, anestesiam qualquer sentimento de revolta. Claro que, no momento de te matriculares na universidade, poderias ter-te revoltado, mas, nessa época, é provável que os "prós" fossem mais do que os "contras". Irias fazer feliz o teu pai, evitando discussões desagradáveis e divergências, terias um automóvel de presente, e, mal te licenciasses, um amigo do teu pai arranjar-te-ia um lugar no seu escritório, para te iniciar na profissão. com o mundo de tubarões que há cá fora, por que haverias de renunciar a tudo isso? E em nome de quê, ainda por cima?

Lembras-te da parábola do filho pródigo, no Evangelho? O filho mais velho fica em casa, não por amor, mas por motivos iguais aos teus. A amargura e o rancor surgem mais tarde, quando se apercebe de que o seu sacrifício não serviu para nada. O irmão mais novo, ao regressar das suas viagens, recebeu do pai um tratamento melhor do que o que lhe foi destinado a ele. Essa desilusão, aliada ao arrependimento, tanto pode ser o veneno que aniquila os nossos dias como o fermento que os faz ascender a uma dimensão diferente.

Quando decidiste matricular-te na escola de fisioterapeutas, aceitaste a inquietação como fermento. Por que te sentes agora tentada a fazer marcha atrás? Deves combater essa tentação de te instalares. Quem te sussurra intimamente essas incertezas não é um amigo do teu crescimento. Deves reparar que, quanto mais te aproximas da realização do teu caminho, mais vozes e vozinhas ouvirás a sugerirem-te que desistas. Dentro do nosso corpo, ocorrem, a cada instante, milhares, provavelmente milhões, de processos químicos, e, quando se interrompem, deixa de haver vida. Por que será assim tão difícil aceitar o mesmo princípio para a nossa vida íntima ?

Toda a nossa existência é um processo contínuo de transformação que age em duas frentes: dentro e fora de nós. Por agora, deves fazer a ti própria uma pergunta fundamental. O que, e quem, governa esse processo? O acaso será realmente o senhor dos nossos dias? Se assim é, fazemos bem em fecharmo-nos, em protegermo-nos, em criarmos percursos privilegiados para chegarmos, com o menor dano possível, ao fim da nossa existência.

E se quem age nos bastidores for a providência, e não o acaso? Se a palavra-chave não for "proteger-se" mas "aceitar"? Aceitar o desafio, o imprevisto, o risco, o encontro com o outro, mas também o fracasso, a queda, o mal. Esse mal e esse fracasso, tão difíceis de aceitar, mas tão dolorosamente necessários para o dinamismo do nosso crescimento interior.

 

O peixe podre e a maionese

5 de Setembro

O exame está feito e agora só resta esperar pelo resultado. São os piores dias, eu sei. E natural que te pareça que respondeste pessimamente, mas isso poderá ser bom sinal. Embora tenha invejado sempre as pessoas "seguras", categoria a que, infelizmente, não pertenço, estou convencida de que a insegurança também tem um lado positivo. Quando não é patológica, é como um postigo sempre aberto na nossa personalidade, permite-nos aceitar sugestões e críticas, ver os nossos actos com os olhos de outrem, sem afirmarmos que temos nas nossas mãos a solução perfeita do problema.

Já quando era miúda as pessoas fanfarronas me punham num estado de submissão inquieta. Como não possuía nenhuma das suas qualidades, tinha a certeza de que a minha vida iria ser um fracasso completo. A realidade, porém, foi bem diferente. Embora colocando a dúvida e a perplexidade à frente de tudo, alguma coisa fui capaz de construir, ao longo destes anos.

Portanto, não fiques demasiado deprimida e sobretudo não dês ouvidos àquilo a que já chamámos "a tirania da opinião pública". Deixa-os inventar pílulas contra a timidez e contra a insegurança. Deixa-os remexer no ADN à procura da sequência da fragilidade ou da ansiedade. Deixa-os cortar e colar os fragmentos do código genético para construírem um homem realmente feliz.

Se decidiste percorrer o caminho interior, nada disso tem a ver contigo. És o comandante e o barco que deve ser levado até ao porto. Quando começas a navegar, não sabes que tipo de mar vais encontrar, poderá estar chão ou ser atravessado por ondas mais altas do que o próprio barco, poderás ver o Sol e as estrelas, ou estar envolta na neblina móvel e violenta da tempestade. Seja como for, estarás sempre só. Não poderás voltar-te para ninguém e dizer: "amaina as ondas", ou "restitui-me o Sol".

É essa solidão total do homem que busca - essa ausência total de apoios e amparos - que é constantemente negada pelo mundo que nos rodeia. Claro que um certo interesse pelas coisas do espírito e pela melhoria da nossa vida psíquica é legítimo e até aplaudido. Se a ansiedade se pode curar com as vibrações xamânicas em vez de pílulas, por que não fazê-lo? E por que não vencer a insegurança com um bom grupo de terapia afectiva? Aí te será dado aquele amor que os teus pais te negaram. Nessas sessões serão corrigidos os seus erros e poderás, finalmente, encarar a vida com a segurança que sempre sonhaste ter.

Conheço pessoas que seguem há anos terapias analíticas e, em vez de se parecerem com os girassóis que, com alegre prepotência, se oferecem à luz, parecem plantas atacadas pela cuscuta, prisioneiras, fracas, esgotadas, totalmente enroscadas em si mesmas. Conheço pessoas que deram cabo dos joelhos de tanto se esforçarem por estar sentadas na posição do lótus, convencidas de que essa prática as levaria à iluminação total, e o que lhes levou foi apenas a conta do ortopedista. Conheço pessoas que passam noites e noites a estudar as disciplinas orientais do corpo e que, depois, quando regressam a casa, fumam charros, sem terem a mais pequena dúvida de que cada charro anula tudo o que, com tanta devoção mística, praticaram. Conheço pessoas que gastaram fortunas para seguirem ora um guru, ora outro, e a sua vida parece-se cada vez mais com a dos náufragos entre os destroços do navio, nadam para um lado e para o outro, em busca de uma prancha a que possam agarrar-se. Todas essas pessoas aceitaram a inquietação como uma dimensão mundana e, com mundanismo, tentaram responder.

Mundanismo significa superficialidade. É como cobrir com maionese um peixe que começa a não estar fresco. Que bonito fica, com aquelas ondas de um amarelo dourado, e os tufos de salsa a toda a volta! E por baixo? Quem poderá comê-lo sem ficar intoxicado?

O caminho espiritual autêntico não conhece o conforto da companhia, nem a tepidez do consolo. É nudez, solidão, aspereza, desespero na tempestade, sem faróis no horizonte. É a madeira do teu barco que se afunda no abismo, o nada que o tritura, juntamente com os teus ossos. Mas esse nada não é o nada dos filósofos. Quanto mais o enfrentares, mais descobrirás que é um alimento, uma rocha. A rocha que há tanto tempo procuravas para construíres a tua casa.

 

A profundidade das entranhas

12 de Setembro

Ficaste um tanto perturbada com a minha última carta. Tinhas acabado de te inscrever num curso de meditação, para tentares dar um pouco de paz à tua vida, e, de repente, enchi-te de incertezas. "A ideia de ter pela frente um período de dificuldades e de solidão aterrorizou-me muito. E não só me aterrorizou como me levou a fazer a mim mesma uma pergunta, talvez um tanto brutal, mas sincera: "Quem me obriga a fazê-lo?" Pensando bem, embora me queixe, a minha vida não é assim tão má. Se chumbar neste exame, como tu disseste, mais dia menos dia encontrarei outra coisa qualquer para fazer. Até me posso apaixonar, a minha vida passará a ser uma alternância de altos e de baixos, como todas as outras. Que mal há nisso?"

Que mal há nisso? Absolutamente nenhum, mas por que havemos de restringir o campo quando existe em nós a possibilidade de o alargar? O que não significa, como muitas vezes se pensa, hoje em dia, enchê-lo de experiências, noções, coisas, mas restringi-lo, para depois o expandir.

Foi isso que estabelecemos desde o início, lembras-te? Por que haveremos de nos adaptar à mediocridade? Por que não escolher o caminho do homem nobre, do homem piedoso? E no fim, embora esta palavra aterrorize toda a gente, por que não escolher o caminho da santidade? Não será esta a única realização verdadeira da nossa vida, aquela que nos permite introduzir a esperança, imaginar um futuro diferente do presente: Por acaso pensas que a nossa terra, tão depauperada, tão carregada de ódio, sangue, vinganças, tão fechada numa teia de poder tecnológico e destrutivo, poderá curar-se graças a outras revoluções, graças a outras carnificinas, mesmo mais nobres do que as outras? Pensas que a morte gera amor, que a prepotência em nome de um ideal mais justo gera harmonia? Quantas tragédias, desde que o homem, acreditando que o céu está vazio, se convenceu de que o paraíso deve ser construído neste mundo, e que quem o deve instaurar, impondo-o aos outros, são os mais inteligentes, os mais corajosos, os mais fortes! E quantas tragédias mesmo antes disso, sempre que um grupo de homens julgou possuir "a exclusividade" acerca de Deus!

Há um ditado japonês que diz o seguinte: "Quando uma criança morre, os conhecidos sofrem com a cabeça, os amigos sofrem com o coração, a mãe sofre com toda a profundidade das entranhas." Acho que esta frase encerra uma verdade profunda. De facto, cada vez mais dou por mim a pensar que o que devemos activar não é a cabeça ou o coração - que, infelizmente, já activámos demasiado e erradamente -, mas as entranhas, esse termo que nos horroriza, a nós, ocidentais, helenistas, escolásticos, cartesianos. A visceralidade deve começar a existir como assunção de maternidade e, portanto, de atenção, de vigilância amorosa para com a vida interior e para com tudo o .

que nos rodeia. Devemos ter como modelo a Mãe que aceita o Filho e o gera e assim dá vida à "Luz verdadeira, a luz que ilumina todos os homens". É essa Luz que devemos deixar viver dentro de nós, aceitar. É essa luz que devemos irradiar à nossa volta, inspirando e expirando com um único ritmo, o ritmo do amor.

É claro que podes rejeitar tudo isto ou mantê-lo como pano de fundo, para não importunar demasiado, quase como a maionese em cima do peixe de que te falei. Em suma, podes fazer de tudo isto uma guarnição ou toda a tua vida. Depende mais uma vez das tuas opções, da tua coragem, da tua vontade de correr o risco e encarar a derrota.

Depende também da humildade e do orgulho, da graça de saber ouvir a porta a bater, essa porta a que Alguém bate desde sempre. Graças ao Céu, todas as vidas são diferentes, cada qual tem a sua partitura. Há vidas lentas, animadas, solenes.

Pediste-me para te falar com sinceridade, sem hipocrisias, e foi o que fiz, de acordo com o meu temperamento que, tanto no bem como no mal, não conhece meios-termos. Sinto a urgência dos tempos, a sua dramaticidade. Sinto a prioridade do renascer. "Vós que dormis, despertai!", era assim que Santa Catarina terminava as suas cartas.

 

Crescer

20 de Setembro

Acabei de chegar de Trieste, onde fui passar uns dias por causa do aniversário da minha sobrinha "italiana". Cinco anos e uma enorme vontade de crescer. Um dia, fui dar com ela sentada no chão do seu quarto, com um livro aberto no colo e um dedinho enfiado na haste dos óculos. "O que estás a fazer?", perguntei-lhe. "Estou a estudar para ser crescida."

Enquanto o comboio passava velozmente pelos contrafortes do Carso, voltei a pensar no poder ingénuo das suas palavras. Quantos de nós nunca são sequer tocados ao de leve por esse sábio propósito, e quantos, nesse estudo, se detêm satisfeitos nas primeiras letras, convencidos de que já sabem o alfabeto todo! E para quantas pessoas o saber se transforma numa caixa cada vez maior onde se fecham, ou num microscópio em que podem observar sempre o mesmo centímetro de vidro!

Quanto saber e quão pouca Sabedoria no mundo que nos rodeia! Todos sabem como adquirir saber, basta abrir uns livros e decorar-lhes o conteúdo, mas, para se chegar à Sabedoria, o caminho é muito mais difícil. "Comoveram-se-me as entranhas ao procurá-la. Por isso, adquiri a sua preciosa posse", recita o Siracida (51, 21). Falámos há pouco das entranhas, e cá estão elas de novo. Mais uma vez são elas que devem ter fome e sede. Sede de Luz, fome de Verdade. Medita nestas duas linhas. Não está escrito: entusiasmaram-se, teimaram, excitaram-se, mas "comoveram-se".

Lembras-te de quando falámos da oração? A oração também brota de um impulso emotivo. A comoção vai às raízes do ser e agita-o, projectando-o para uma dimensão fisiologicamente diferente. Tudo me pertence e me envolve. Tudo me toca no mais fundo da minha humanidade, no ponto em que me torno estrangeiro a mim mesmo e me transformo no mistério que contempla o mistério e, ao contemplá-lo, o aceita.

Comoção e oração são duas faces da mesma medalha, a comoção faz-me rezar, a oração comove-me. E esse gesto não é sentimental, de abandono, de infantilismo, mas de extrema força, de incisão duradoira da realidade.

Se me tivessem dito, quando tinha a tua idade, que quem escorava o mundo era a oração, talvez tivesse encolhido os ombros, incrédula. Agora sei que é verdade. É essa bênção contínua e invisível que sustém tudo o que nos rodeia, que o modifica.

Lembras-te das palavras de S. João?: "Não te admires se te disse; deveis renascer das alturas." Compreendes? Vem-se ao mundo da carne, mas, depois, deve nascer-se outra vez. E esse nascimento pela água e pelo Espírito - através do Baptismo - não é um acontecimento relegado para a idade da nossa inconsciência, mas algo que deve acontecer todos os dias, a cada instante, a cada respirar, para que, neste tempo finito, eu possa lançar a semente do Reino.

É essa semente que deve converter-se em rebento, planta, árvore. É desse fruto futuro que deves cuidar, se queres uma vida verdadeira. Cuidando dele, lentamente, irás sentindo nascer dentro de ti uma dimensão diferente, a que, no início, talvez não saibas que nome dar porque não se parecerá com mais nenhuma. Como num caleidoscópio, onde os pedaços de vidro vão girando e alterando constantemente as figuras, parecer-te-á que sentes felicidade e leveza, tormento e dor, solidão e desespero. Esses estados de espírito estarão constantemente vivos e presentes dentro de ti, mas não te modificarão, não te farão desviar, porque a tua casa terá sido construída na rocha. Um dia, acordarás e, ao abrires os olhos, notarás que dentro de ti vive finalmente a paz - não como a imaginaste durante muito tempo e desejaste, a tranquilidade que o mundo dá - mas uma paz diferente, a paz do renascimento constante. A paz da Páscoa.

 

A revolução do coração

27 de Setembro

Chegou a altura da separação. Regressa o Outono e, com o Outono, os novos compromissos que temos pela frente.

Ao longo deste ano que, pelo menos para mim, voou, percorremos juntas um bom pedaço de caminho. Enquanto íamos andando devagar, falando da alma, o mundo à nossa volta fervia e assobiava como uma panela de pressão prestes a explodir. Pode ter-te perturbado. Se calhar, por vezes, deve ter-te parecido uma fuga às responsabilidades, uma reclusão num paraíso de bonitas palavras e bons sentimentos para escapar ao horror que nos rodeia.

É verdade, o sangue jorra na nossa terra. O sangue do homem sobre o homem e o sangue, menos visível, mas não menos cruelmente louco, que nós mesmos fazemos jorrar do universo que nos foi confiado. Enquanto um pequeno número de pessoas se rodeia de objectos cada vez mais inúteis, consome os recursos de todos e inunda o mundo de detritos, desaparecem os pirilampos e as toupeiras, secam os campos e as florestas, envenenam-se os mares e os rios e morrem de doenças e de fome todos os que não estão em condições de participar no banquete. Se assim é, que sentido tem falar dos nossos impulsos íntimos? Não será perder tempo, exercer uma forma de egoísmo actualmente inaceitável?

O milénio de paz e de prosperidade que nos tinham anunciado abriu com cenários mais próximos do apocalipse do que de uma nova idade do ouro. Raiva, ódio, orgulho, defesa, vingança são palavras que andam na boca de muitos, e não são palavras inocentes. São palavras-paliçada, palavras-arma, palavras-medo. Palavras que transformam a vida de quem as pronuncia em algo minúsculo, não muito diferente do baluarte de que te falei na primeira carta. Este espaço é meu, esta manjedoura pertence-me, e estou disposto a impedir com unhas e dentes a entrada a um estranho. Em tempos tão duros, é fácil entorpecer numa existência de medo e de ataque, e também é fácil ouvir as sirenes, infelizmente ainda vivas, do sentimento de culpa. O mundo vai mal e eu sinto-me responsável por isso, portanto decido opor-me, adoptando uma ideologia oposta à ideologia dominante. vou a manifestações, participo nos debates, talvez chegue mesmo a pintar a cara para mostrar o meu desacordo.

Tudo coisas legítimas, naturalmente, porque a indiferença perante o mal talvez seja pior do que o próprio mal, mas são opções que podem transformar-se em perigosos atalhos. Alio-me aos justos contra os injustos, aos bons contra os maus. Por conseguinte, tudo o que faço é automaticamente bom, automaticamente justo. Mas será mesmo assim?

Lembras-te da última página de Vai aonde te leva o coração? "Sempre que, à medida que fores crescendo, tiveres vontade de converter as coisas erradas em coisas certas, lembra-te de que a primeira revolução a fazer é dentro de nós próprios, a primeira e a mais importante. Lutar por uma ideia sem se ter uma ideia de si próprio é uma das coisas mais perigosas que se pode fazer." Adoptar uma ideologia alivia os meus sentimentos de culpa e faz-me sentir de bem com a minha consciência, mas manifestarmos o nosso desacordo exteriormente, sem mudarmos nada na nossa vida, é mais uma vez ter uma vida de rato de laboratório.

Não é opondo-nos que iniciamos o caminho da paz, é pondo-nos em marcha. Só no momento em que decido atravessar as trevas do meu coração, é que posso enfrentar a profundidade da mudança porque, de repente, descubro que o mal não está do outro lado da barricada, num inimigo invisível, mas em mim, respira comigo, move-se comigo, dorme e acorda comigo. Por isso, não posso gritar slogans, persegui-lo, atirar-lhe pedras.

Para desalojar o mal do coração deve usar-se o bem. Não a ideia do bem - o bem filosófico, ético - mas o bem que desce das alturas. O bem-centelha, o bem-realização oculto nas profundezas das nossas entranhas.

Qualquer transformação é um movimento que parte do interior para o exterior. Se consigo modificar-me em profundidade, mudo também o mundo que me rodeia. Se mudo apenas as palavras, as ideias, os hábitos mentais, à minha volta fica tudo como dantes. A História aguarda a redenção do coração, para se cumprir.

É por isto que falámos sempre daquilo que acontecia dentro de nós e nunca do que acontecia fora de nós. Nas nossas cartas, não entraram as guerras e os atentados, as destruições e as prepotências, não por não me terem tocado ou ferido, mas porque ainda não tinha chegado o momento de os enfrentar. Tratámos do coração e das entranhas, para fazer nascer um sentimento de espanto e de vigilância.

Para não nos deixarmos arrastar pela corrente e não sermos sugados pela banalidade do mal, temos de vigiar os pensamentos e os sentimentos como um pastor que, à noite, mete o rebanho no estábulo. Para evitar a paralisia do tédio, do cinismo e as inevitáveis depressões que provocam, é necessário viver de acordo com o princípio da curiosidade e do espanto. Curiosidade pelo que acontece e que nunca é óbvio, espanto com a criatividade de tudo o que nos rodeia.

O caminho interior lembra o trabalho que os homens antigos tinham para acender o fogo. Bate-se repetidamente com uma pedra noutra pedra, sem parar, até jorrar uma faísca. Para nascer, o fogo precisa de madeira, mas para alastrar, tem de esperar pelo vento. Na tua vida, procura sempre o fogo, espera pelo vento porque, sem o fogo - o fogo do Amor - e sem o vento - o vento do Espírito - os nossos dias não diferem muito de uma prisão medíocre.

 

                                                                                Susanna Tamaro  

 

                      

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