CAPÍTULO 20
A JOGADA DE DRAX
Havia três diferentes fontes de dores no corpo de Gala. A dor latejante atrás da orelha esquerda, a carne mordida nos pulsos, e o queimar das correias em torno de seus tornozelos.
Cada saliência do terreno, cada desvio, cada pressão repentina do pé de Drax nos freios ou no acelerador, despertava uma dessas dores e lhe irritava os nervos. Se ao menos tivesse sido colocada mais presa ao assento de trás. Mas só havia lugar para seu corpo rolar alguns centímetros no assento, de modo que se via obrigada a contorcer constantemente o rosto machucado para evitar o contato com as paredes de brilhante couro de porco.
O ar que respirava era abafado, com um cheiro de forração nova de couro, fumaça do cano de descarga e, de quando em quando, o mais acentuado de borracha queimada, cada vez que Drax raspava os pneumáticos numa esquina de curva acentuada.
No entanto, o desconforto e a dor não eram nada. Krebs! Curioso como seu temor e repulsa por Krebs a atormentava mais que tudo. As outras coisas eram grandes demais. O mistério de Drax e seu ódio pela Inglaterra. O enigma do seu perfeito domínio da língua alemã. O “Explorador da Lua”. O segredo da cápsula atômica. Como salvar Londres. Eram assuntos que há muito tempo ela afastara para um recanto do cérebro como coisas insolúveis.
Mas a tarde passada a sós com Krebs estava presente e terrível em seu espírito, e este voltava sempre e sempre aos detalhes da mesma, como uma língua em cima de um dente dolorido.
Muito tempo depois de Drax ter partido, ela continuara a fingir inconsciência. A princípio, Krebs se ocupara com as máquinas, conversando com elas em alemão, numa falinha de bebê, toda carinhosa.
— Pronto, minha Liebchen. Agora está melhor, não está? Uma gota de óleo para você, minha Pupperl? Como não? Vai já. Não, não sua preguiçosa. Eu disse mil voltas. Não novecentas. Vamos ver agora. Nós podemos fazer coisa melhor, não podemos? Sim, minha Schatz. É isto. Rodando, rodando, lá vamos nós. Para cima e para baixo. Rodando, rodando. Deixe eu limpar sua carinha bonita, para você, para nós podermos ver o que o pequenino mostrador está dizendo. Jesus Maria, bist du ein braves Kind!
E assim continuara, ora ficando em pé, diante de Gala, ora esgaravatando o nariz e chupando os dentes, numa atitude horrível de ruminante. Até que foi permanecendo cada vez mais tempo diante dela, esquecendo as máquinas, conjeturando, tomando uma resolução.
E então sentira a mão dele desabotoar o botão de cima de seu vestido, e o recuo (automático de seu corpo teve de ser disfarçado por um grunhido realístico e uma pantomima de volta de consciência.
Pedira água, e ele fora buscar no banheiro, trazendo um pouco num copo de escova de dentes. Depois puxara uma cadeira de cozinha para a frente dela e sentara-se atravessado, de costas para o assento, o queixo descansando na última travessa do encosto. Ficara então a fitá-la especulativamente, por baixo das pálpebras caídas, com aqueles olhos desbotados.
Ela fora a primeira a romper o silêncio.
— Por que me trouxeram aqui? Para que são todas essas máquinas?
Krebs lambera os lábios de sua boquinha vermelha e bicuda, aberta sob a mancha de bigode amarelo, e foi formando lentamente um sorriso em forma romboide.
— Isto é um engodo para passarinhos. Dentro em breve atrairá um passarinho para seu ninho quente. Então o passarinho porá um ôvo. Oh, um ôvo tão grande, redondo! Um ôvo lindo!
A parte inferior de seu rosto ria encantada, enquanto seus olhos divagavam.
— A mocinha bonita está aqui porque, de outro modo, poderia assustar o passarinho, e este ir embora. E isto seria tão triste, não é mesmo? — o homem cuspiu as três palavras seguintes: — Cadela inglesa e suja!
Seus olhos tornaram-se atentos, cheios de resolução. Puxou a cadeira mais para perto, de modo que seu rosto ficou muito próximo ao dela, e ela se viu envolvida pelo miasma de sua respiração.
— E agora, cadela inglesa, diga para quem você está trabalhando? — Esperou. — Você precisa me responder, sabe? — avisou suavemente. — Nós estamos sozinhos aqui. Não há ninguém para lhe ouvir gritar.
— Não seja estúpido — disse Gala em desespero de causa. — Como eu poderia estar trabalhando para outra pessoa que não fosse Sir Hugo? (Krebs sorriu ao ouvir o nome).
— Eu só estava curiosa a respeito do plano de voo...
Gala iniciou uma explicação arrastada, a respeito de seus números e os de Drax, e de como desejara partilhar do sucesso do “Explorador da Lua”.
— Tente novamente — sussurrou Krebs, quando ela terminou. — Você deve sair-se melhor que isso — e, subitamente, seus olhos haviam-se tornado chispantes de crueldade, e suas mãos se estenderam para ela, por trás do encosto da cadeira. . .
No assento de trás do veloz Mercedes, Gala rangeu os dentes e choramingou com a lembrança dos dedos leves se arrastando pelo seu corpo, tateando, beliscando, puxando, enquanto seus olhos, durante o tempo todo, fitavam curiosamente os dela, até que, finalmente, ela juntou saliva na boca e deu uma cusparada bem no meio da cara do homem.
Este nem se dera o trabalho de parar para limpar o rosto, mas, de repente, aplicara-lhe um golpe violento, e ela gritara uma só vez, para em seguida desmaiar.
E então se vira sendo empurrada para a parte traseira do carro, com um tapete atirado em cima dela, e eles partiram velozmente pelas ruas de Londres. Gala ouvia outros carros perto deles, o campainhar frenético de uma bicicleta, um grito de vez em quando, o grunhido animalesco de uma velha klaxon, o ronronar de uma lambreta, um rangir de freios, e compreendeu que voltara ao mundo real, que pessoas inglesas, amigos, estavam em volta dela. Lutara para se pôr de joelhos e gritar, mas Krebs devia ter-lhe pressentido os movimentos, porque as mãos dele se encontraram repentinamente em seus tornozelos, prendendo-os à barra de descanso para os pés, no chão. Compreendeu que estava perdida, e as lágrimas lhe correram pelas faces, enquanto rezava para que alguém, de um jeito ou de outro, chegasse a tempo.
Isto acontecera há menos de uma hora, e agora ela podia garantir que haviam chegado a uma cidade grande — Maidstone, se estava sendo levada de volta para a base.
No relativo silêncio do avanço do Mercedes por dentro da cidade, ela ouviu, subitamente, a voz de Krebs. Havia nela um quê de ansioso.
— Mein Kapitän, tenho estado a observar um carro já há algum tempo. Não resta dúvida de que está nos seguindo. Raramente usa os faróis. Está apenas a uns cem metros de distância, atrás de nós agora. Eu acho que é o carro do Comandante Bond.
Drax grunhiu de surpresa, e ela ouviu seu corpanzil virar-se todo para dar uma rápida olhada.
Praguejou violentamente, e depois veio o silêncio, dentro do qual ela pôde sentir o carro grande se movimentando em curvas e se esforçando por ganhar terreno dentro do trânsito.
— Ja, sowas! — disse finalmente Drax. Sua voz parecia preocupada. — Quer dizer que aquela velha peça de museu ainda pode movimentar-se. Tanto melhor, meu caro Krebs. Parece que ele está sozinho.
Deu uma risada desagradável:
— Deixe que ele fique por nossa conta, porque se sobreviver, nós o meteremos no mesmo saco com a mulher. Ligue o rádio. Estação local. Logo saberemos se existe algum obstáculo.
Ouviu-se um rápido estalido da estática e depois Gala escutou a voz do Primeiro-Ministro, a voz das grandes ocasiões de sua vida, vinda em fragmentos entrecortados, enquanto Drax punha o carro em terceira e acelerava para sair da cidade: “. . . arma criada pela engenhosidade do homem. . . mil milhas acima no firmamento. . . área patrulhada pelos navios de Sua Majestade. . . planejado exclusivamente para a defesa de nossa amada ilha. . . uma longa era de paz... desenvolvimento para a grande viagem do homem além dos limites deste planeta. . . Sir Hugo Drax, esse grande patriota e benfeitor do nosso País...”
Gala ouviu o estrondear da gargalhada acima do uivar dos ventos, um vasto latido de desprezo e triunfo e, em seguida, o rádio foi desligado.
— James — sussurrou Gala consigo mesmo. — Só resta você. Tenha cuidado. Mas ande depressa.
O rosto de Bond era uma máscara de poeira e imundície com o sangue das moscas e outros insetos que se haviam esmagado contra ele. Muitas vezes tivera de retirar uma das mãos com câimbra do volante, para limpar os óculos, mas o Bentley ia portando-se muito bem, e ele tinha certeza de que pegaria o Mercedes.
Estava quase alcançando noventa e cinco na linha reta, pouco antes da entrada para Leed Castle, quando luzes possantes foram emitidas por trás dele, e uma buzina de quatro tons executou seu ousado “pam-pim-pim-pam” quase dentro de seu ouvido.
A aparição de um terceiro carro na corrida era quíase inacreditável. Bond mal se dera o trabalho de olhar no espelho retrovisor, desde que havia saído de Londres. Ninguém, a não ser um corredor de automóvel ou um homem desesperado, poderia ter emparelhado com eles, e seu espírito se encontrava numa confusão quando, automaticamente, afastou-se para a esquerda e viu, com o rabo dos olhos, um carro baixo, vermelho como os dos bombeiros, emparelhar com ele e afastar-se com uma diferença de umas dez milhas, uma hora extra em seu relógio.
Vislumbrou o famoso radiador Alfa e, na borda do capô, escrito em letras grandes, brancas, as palavras: Attaboy II. Em seguida, viu o rosto sorridente de um rapazinho em mangas de camisa, que espetou dois dedos vermelhos no ar antes de desaparecer na mistura de sons que um Alfa em disparada compõe com o gemido de seu escape, o espooar do cano de descarga e o uivo trovejante do transmissor.
Bond sorriu cheio de admiração ao levantar a mão para o chofer. Alfa Romeu, oito cilindradas, com surpercarburadores, pensou consigo mesmo. Deve ser quase tão velho quanto o meu. ‘32 ou ‘33, provavelmente. E só a metade de meus cc. Targa Florio, em 1931, e depois disso fez bonito em toda a parte. Com certeza era um tipo desses de cabeça quente, ouvindo uma das estações da RAF dos arredores. Tentando voltar de alguma festa a tempo de assinar o ponto antes de ser citado num relatório. Observou benèvolamente quando o Alfa balançou a cauda na curva em S ao lado de Leeds Ctostle e, em seguida, passou uivando pelo longo caminho largo em direção à distante bifurcação de Charing.
Bond bem podia imaginar o sorriso de satisfação do rapaz, quando este alcançou Drax: “Ôba. É uma Merc!” E a raiva de Drax, ao ouvir a música impudente da buzina. Deve estar fazendo 105, pensou Bond. Espero que esse maluquinho não saia da estrada. Ficou a olhar os dois jogos de luzes traseiras se aproximando, o rapaz do Alfa se preparando para o truque de surgir por trás e, de repente, acelerar ao máximo, assim que tivesse uma oportunidade para passar.
Pronto. Quatrocentas jardas adiante o Mercedes apareceu, branco, iluminado pelas luzes duplas do Alfa. Havia uma milha de estrada livre na frente, completamente reta. Bond quase sentia os pés do rapaz pisando o pedal mais fundo ainda. Ôba rapaz!
Lá na frente, no Mercedes, Krebs tinha a boca colada ao ouvido de Drax.
— Outro deles — gritou aflito. — Não consigo ver o rosto. Vem vindo para nos passar agora.
Drax deixou escapar uma obscenidade a meia voz. Seus dentes branquejaram no pálido reflexo do painel.
— Vou dar uma lição a esse canalha — falou, endireitando os ombros e agarrando o volante com firmeza com as grandes luvas de couro. Com o canto dos olhos viu o capô da Alfa surgir a estibordo. ‘Tam-pim-pim-pim”, cantava a buzina, suave, delicadamente. Drax virou rápido o volante do Mercedes para a direita e, depois do horrível chocalhar dos metais, trouxe-o novamente para o centro, a fim de corrigir a posição.
— Bravo! Bravo! — gritou Krebs, fora de si com a excitação, ao ajoelhar-se no assento do carro e olhar para trás.
— Dupla capotagem. Passou por cima da cerca de cabeça para baixo. Acho que já está se incendiando. Sim. Estou vendo as chamas.
— Isto dará ao nosso caro Sr. Bond qualquer coisa para refletir — rosnou Drax, respirando pesadamente.
Bond, porém, o rosto impassível, mal examinara o velocímetro, e nada havia a não ser vingança em seu espírito, quando partiu veloz atrás do Mercedes que voava.
Vira tudo. O voo grotesco do carro vermelho, ao virar de rodas para o ar, e tornar a virar, a figura do rapaz projetada para o alto, os braços e as pernas abertos, ao ser cuspido para fora do volante, e o estrondo final, quando o carro saltou a cerca de cabeça para baixo e foi desmoronar-se no campo.
Quando passou disparado, observando as marcas horríveis de grafita deixadas pela derrapagem, seu espírito anotou um toque macabro final. Saindo, não se sabe como, incólume do holocausto, a buzina ainda dava contato, e seu ulular subia para o céu, abrindo estridentemente estradas imaginárias para a passagem do Attaboy II: “Pam-pim-pim-pam. Pam-pim-pim-pam.”
Com que então um homicídio tivera lugar bem debaixo de seus olhos. Ou, pelo menos, uma tentativa de homicídio. Assim, fossem quais fossem seus motivos, Sir Hugo Drax era um criminoso e, provavelmente, um maníaco. Isto, acima de tudo, significava perigo certo para o “Explorador da Lua”. Era o bastante para Bond. Meteu a mão debaixo do painel e, de seu coldre escondido, tirou o Colt Especial do Exército, calibre 45 de cano longo, e colocou-o no assento ao seu lado. A batalha agora era em campo aberto e, de um jeito ou de outro, o Mercedes teria de ser parado.
Usando a estrada como se fosse Donington, Bond pisou o acelerador e ali conservou o pé. Pouco a pouco, com o ponteiro oscilando de cada lado do número cem, começou a diminuir a diferença.
Drax entrou pelo lado esquerdo da bifurcação em Charing e subiu embalado a longa colina. Na frente, dentro do raio gigante de seus faróis, um grande caminhão de transporte, desses de oito rodas, um AEC Diesel, ia subindo a primeira curva do caminho, lutando sob o peso de quatorze toneladas de notícias impressas que levava numa viagem noturna para um dos jornais do East Kent.
Drax praguejou baixinho, ao ver o longo transporte de vinte rolos gigantescos, cada um deles contendo cinco milhas de papel impresso com notícias, amarradas lá em cima. Logo ali, no meio daquela curva traiçoeira em S, no alto da colina.
Olhou no espelho retrovisor e viu o Bentley chegando à bifurcação.
Foi então que teve uma ideia.
— Krebs — o nome saiu como um tiro de pistola. — Tire sua faca.
Um estalido agudo, e o estilete já estava na mão de Krebs. Ninguém perdia tempo, quando havia aquela nota na voz do mestre.
— Vou diminuir a marcha e seguir atrás do caminhão. Tire os sapatos e as meias, suba no capo, e quando eu vier por detrás dele, pule em cima. Eu irei na maior vagareza. Não haverá perigo. Corte as cordas e segure os rolos de papel. Primeiro os da esquerda. Depois os da direita. Nessa altura eu já terei colocado o carro no mesmo nível do caminhão, e quando você tiver cortado o segundo lote, pule no carro. Tenha cuidado para não ser levado com o papel. Verstanden? Also. Hals und Beinbruch!
Drax apagou as luzes dos faróis e contornou a curva a oitenta quilômetros por hora. O caminhão ia vinte jardas adiante, e ele teve de frear com força, a fim de não abalroá-lo. O Mercedes executou uma derrapagem, até o radiador ficar quase debaixo do chassi do caminhão.
Drax fez a mudança para segunda:
— Agora!
Manteve o carro firme como uma rocha, quando Krebs, descalço, passou por cima do para-brisa e foi-se arrastando ao longo do brilhante capo, com a faca na mão.
Num salto, atingiu o ponto visado e começou a cortar as cordas do lado esquerdo. Drax afastou-se para a direita e foi deslizando até ficar paralelo às rodas traseiras do Diesel, a fumaça do óleo vinda do cano de descarga subindo-lhe aos olhos e às narinas.
As luzes do carro de Bond começavam a aparecer no início da curva.
Houve uma série de baques fortes, quando os rolos do lado esquerdo caíram do caminhão para a estrada e foram rolando velozes pela escuridão. Depois, mais baques, ao partirem-se as cordas do lado direito. Um dos rolos arrebentou ao cair, e Drax ouviu um barulho de coisas dilaceradas, quando o papel, desenrolando-se tombou pesadamente num ponto da subida.
Aliviado de sua carga, o caminhão quase pulou para a frente, e Drax teve de acelerar um pouco para alcançar a figura esvoaçante de Krebs, que aterrisou, metade em cima das costas de Gala e metade no assento da frente. Drax pisou até embaixo o acelerador e subiu a colina como um raio, ignorando o grito do chofer do caminhão, que se sobrepôs ao clamor dos pistões, quando ele disparou em frente.
Ao contornar velozmente a curva seguinte, viu o cilindro de dois faróis desenharem-se em curva no céu, acima do topo das árvores, até se tornarem quase verticais. Tremularam ali por um instante, e depois os raios de luz giraram através do espaço e desapareceram.
Uma grande risada, semelhante a um latido de cão, escapou de Drax, e durante a fração de um segundo, tirou os olhos da estrada e levantou o rosto triunfalmente para as estrelas.
CAPITULO 21
“O PERSUASOR”
Krebs ecoou a risada maníaca com outra estridente.
— Um golpe de mestre, mein Kapitän. O senhor precisava ver como eles desciam pela colina. O tal que arrebentou. Wunderschön! Parecia o papel higiênico de um gigante. Este deve ter feito um belo pacote dele. Ele vinha chegando bem na curva. E o segundo foi tão bom quanto o primeiro. Viu a cara do motorista? Zum Kotzen! E a firma Bowater! Um belo negócio foi o que fizeram.
— Você trabalhou bem — observou Drax, conciso, o pensamento noutra coisa.
De repente, levou o carro para o lado da estrada, com um grito de protesto dos pneus.
— Donnerwetter — disse, zangado, quando começou a virar o carro. — Mas nós não podemos deixar o homem ali. Precisamos pegá-lo.
O carro já ia roncando pela estrada abaixo.
— A arma — ordenou Drax, secamente.
Passaram o caminhão no alto da colina. Estava parado, e não se via sinal de motorista. Provavelmente telefonando para a companhia, pensou Drax, diminuindo a marcha ao contornarem a primeira curva. Viam-se luzes em duas ou três casas, e um grupo de pessoas rodeava um dos rolos de papel que ali estava por entre as ruínas do portão da frente de suas casas. Havia mais rolos na borda do lado direito da estrada. À esquerda, um poste telegráfico se inclinava como bêbedo, partido ao meio. Na curva seguinte, via-se o princípio de uma grande confusão de papel estendendo-se para baixo, ao longo da colina, formando guirlandas nas cercas e na estrada, como se fossem os babados de um vestido de baile à fantasia, elefantíaco.
O Bentley tinha quase se espatifado contra as grades que guarneciam o lado direito da curva, protegendo-o de um barranco profundo. Por entre a confusão de ferro retorcido dos mourões, pendia, de capo para baixo, com uma das rodas ainda presa ao eixo quebrado de trás e ali pousada de esguelha como um guarda-chuva surrealista.
Drax se aproximou e, acompanhado de Krebs, saiu do carro e ficou quieto, à escuta.
Não se ouvia o menor som, exceto o do motor de um carro distante, seguindo rápido pela estrada de Ashford, e o trilar de um grilo insone.
Com as armas na mão, eles caminharam cautelosamente por cima dos restos do Bentley, os pés esmagando o vidro partido na estrada. Sulcos profundos haviam sido marcados na margem de grama, e sentia-se o cheiro forte de gasolina, misturado ao de borracha queimada. O metal quente do carro estalava e partia baixinho. O vapor ainda jorrava do radiador espatifado.
Bond estava caído de bruços no fundo do barranco, a uns seis metros de distância do carro. Krebs virou-o. O rosto estava coberto de sangue, mas ele respirava. Revistaram-no completamente, e Drax meteu no bolso a fina Beretta. Depois, juntos, arrastaram-no até a estrada, jogando-o, em seguida, no assento traseiro do Mercedes, com a metade do corpo em cima do de Gala.
Quando ela percebeu quem era, deu um grito de horror.
— Halt’s Maul — rosnou Drax. Foi para o assento da frente e, enquanto ligava o motor, Krebs inclinou-se e se ocupou com um longo pedaço de arame flexível.
— Faça o negócio direito — disse Drax. — Não quero que haja erros. — Refletiu melhor. — Volte depois para junto dos destroços e retire as placas. Depressa. Eu tomo conta da estrada.
Krebs puxou o tapete para cima dos dois corpos inertes e pulou fora do carro. Usando a faca como chave de parafuso, dentro em breve estava de volta com as placas, e o enorme carro começou a se movimentar no momento exato em que um grupo de habitantes do local apareceu caminhando nervosamente pela descida da montanha, focalizando as lanternas sobre a cena de devastação.
Krebs riu feliz consigo mesmo à ideia de que os estúpidos ingleses teriam de limpar e pôr tudo aquilo em ordem. Acomodou-se no assento, a fim de apreciar o trecho do caminho que sempre fora seu predileto: os bosques primaveris, cheios de florzinhas azuis e rosa, que iam até Chilham.
Eles tinham-no tornado particularmente feliz à noite. Iluminados por entre as tochas verdes das árvores novas pelos grandes faróis do Mercedes, tinham-no feito pensar nas lindas florestas de Ardennes, no grupo dedicado onde servira e na viagem que fizera num jipe capturado aos americanos, tal como naquela noite, ao lado de seu adorado líder, que ia ao volante. Der Tag custara a chegar, mas agora ali estava. Com o jovem Krebs no caminhão. Finalmente veria as multidões dando vivas, as medalhas, as mulheres, as flores. Lançou um olhar aos exércitos de flores azuis que passavam voando e sentiu-se feliz e confortado.
Gala sentia na boca o gosto do sangue de Bond. O rosto dele estava ao lado do dela, no assento de couro, e ela se mexeu para lhe dar mais lugar. A respiração do rapaz era pesada e irregular. Ela perguntava a si mesma quanto estaria ferido. Experimentou sussurrar-lhe ao ouvido. Depois falou mais alto. Ele deu um grunhido e acelerou a respiração.
— James — cochichou. — James.
Bond resmungou qualquer coisa, e ela encostou-se com força contra ele. Depois, soltou uma série de palavrões, e seu corpo se mexeu.
Tornou a ficar imóvel, e ela quase pôde senti-lo explorando as próprias sensações.
— Sou eu, Gala.
Ela sentiu o corpo dele enrijecer.
— Deus do céu. Que diabo de confusão — falou Bond.
— Você está bem? Tem algum osso quebrado?
Sentiu que ele experimentava os braços e as pernas.
— Parece que está tudo bem. Uma brecha na cabeça. Estou falando coisas que fazem sentido?
— Claro que sim — respondeu Gala. — Agora ouça.
Rapidamente, contou-lhe tudo que sabia, começando pelo caderninho de notas preto.
O corpo dele estava rígido como uma tábua contra o dela, e ele mal respirava, ouvindo a história inacreditável.
Logo depois corriam para Canterbury, e Bond colocou a boca em seu ouvido.
— Vou tentar jogar-me por trás — sussurrou. — Ver se arranjo um telefone. É a única esperança.
Começou a se erguer sobre os joelhos, o peso de seu corpo quase sufocando a respiração da moça.
Ouviu-se uma forte pancada, e ele tornou a cair em cima dela.
— Outro movimento que você faça e estará morto — disse a voz de Krebs, vindo baixinho por entre os assentos da frente.
Faltavam só vinte minutos para chegar à base! Gala rangeu os dentes e tratou de reanimar Bond, que perdera os sentidos novamente.
Acabara de conseguir, quando o carro chegou à porta da cúpula de lançamento, e Krebs, com um revólver na mão, já ia desfazendo os nós em torno dos tornozelos de ambos.
Vislumbraram o cimento familiar, iluminado pela lua, e o semicírculo de guardas a uma certa distância, antes de serem empurrados pela porta. Depois, quando Krebs lhes arrancou os sapatos, seguiram pela passagem estreita, de ferro, dentro da cúpula de lançamento.
Ali estava o cintilante foguete, lindo, inocente, qual um novo brinquedo para ciclopes.
Mas havia um cheiro horrível de produtos químicos no ar, e para Bond, o “Explorador da Lua” parecia uma gigantesca agulha hipodérmica pronta para ser enterrada no coração da Inglaterra. Apesar de um resmungo de Krebs, ele parou na escada e levantou os olhos para seu nariz faiscante. Um milhão de mortes. Um milhão. Um milhão. Um milhão.
E tudo dependia dele? Pelo amor de Deus! Tudo dependia dele?
Com o revólver de Krebs cutucando-o, desceu lentamente os degraus, atrás de Gala.
Quando entrou pela porta do escritório de Drax, controlou-se. De repente, seu espírito tornou-se claro, e toda a letargia e a dor haviam-lhe deixado o corpo. Alguma coisa, qualquer coisa, precisava ser feita. De um jeito ou de outro, ele havia de descobrir um meio. O corpo inteiro e a mente tornaram-se-lhe concentrados e agudos como uma lâmina. Seus olhos ganharam vida, novamente, e a derrota abandonou-o, como a pele de uma serpente.
Drax seguira na frente e se sentara à escrivaninha. Trazia uma Luger na mão. Este apontava um lugar entre Gala e Bond e era firme como uma rocha.
Por trás dele, Bond escutou as portas duplas se fecharem, batendo.
— Eu era um dos melhores atiradores na Divisão Branderburg — disse Drax, entabulando conversa.
— Amarre a moça nessa cadeira, Krebs. Depois o homem .
Gala olhou desesperadamente para Bond. Este disse:
— Você não vai atirar. Teria receio de atingir o combustível.
Encaminhou-se lentamente para a escrivaninha. Drax sorriu alegremente e, seguindo a trajetória do cano do revólver, mirou o estômago de Bond.
— Sua memória é ruim, inglês. Eu lhe disse que esta sala é inteiramente separada da cúpula por meio das portas duplas. Dê mais um passo e ficará sem estômago.
Bond olhou os olhos apertados e confiantes do outro e parou.
— Vamos, Krebs.
Quando os dois ficaram bem amarrados, e dolorosamente, às pernas e braços das duas cadeiras de aço tubular, pouco distante um do outro, por baixo do mapa de vidro, Krebs saiu da sala. Voltou um momento depois com uma espécie de maçarico mecânico.
Colocou a feia máquina sobre a escrivaninha, introduziu o ar com algumas breves bombadas e riscou um fósforo. Uma chama azul sibilou, elevando-se a alguns centímetros. Ele pegou o instrumento e acercou-se de Gala. Parou a pouca distância da moça.
Drax ordenou, severo:
— Vejamos agora. Vamos tratar desse caso, sem criar complicações. Nós costumávamos chamá-lo Der Zwagsman — O Persuasor. Nunca me esquecerei de como lidou com o último espião que pegamos juntos. Bem ao sul do Reno, não foi, Krebs?
Bond era todo ouvidos.
— Foi sim, mein Kapitän. — Krebs riu, recordando-se. — Era um porco de um belga.
— Pois bem. Vocês dois aí não se esqueçam. Aqui não temos esse negócio de fair play. Nada de atitudes esportivas e toda essa história. Isto aqui é negócio.
A voz estalava como um chicote, a cada palavra.
— Você — lançava um olhar a Gala Brand — para quem está trabalhando?
Gala se conservou em silêncio.
— Onde você quiser, Krebs.
A boca de Krebs estava entreaberta. Sua língua percorria o lábio, para cima e para baixo. Parecia ter dificuldade em respirar, quando deu um passo em direção à moça.
A pequenina chama roncava gulosamente.
— Pare — disse Bond, frio. — Ela trabalha para a Scotland Yard. E eu também.
Essias coisas agora não tinham mais propósito. Não podia ser de nenhuma utilidade imaginável para Drax. De qualquer maneira, amanhã de tarde, talvez não existisse mais nenhuma Scotland Yard.
— Assim está melhor — disse Drax. — Agora responda: Alguém sabe que vocês estão prisioneiros? Vocês pararam para telefonar a alguém?
Se eu disser que sim, pensou Bond, ele atirará em nós dois e se livrará dos corpos. Dessa forma, a última chance de impedir o lançamento do “Explorador da Lua” terá desaparecido. E se a Yard sabe, por que ainda não chegaram aqui? Não. Nossa oportunidade ainda pode vir. O Bentley será encontrado. Vallance ficará preocupado quando não tiver notícias minhas.
Não — respondeu. — Se eu tivesse telefonado, eles já estariam por aqui a esta hora.
— Isto é verdade — disse Drax, refletindo.
— Neste caso, não estou mais interessado em vocês e felicito-os por terem tornado a entrevista tão harmoniosa. Poderia ter sido mais difícil, se você estivesse sozinho. Uma moça é sempre útil nessas ocasiões. Krebs largue isso. Pode ir. Diga aos outros o que é necessário. Eles devem estar fazendo conjeturas. Eu vou entreter nossos hóspedes durante algum tempo e depois subirei até a casamata. Providencie para que o carro seja bem lavado. O assento de trás. E faça desaparecer as marcas no lado direito. Diga para tirarem o painel inteiro, se fôr necessário. Ou então podem tocar fogo na maldita coisa. Nós não vamos mais precisar dela. — Riu abruptamente. — Verstanden?
— Sim, mein Kapitän...
Krebs, colocou com relutância o maçarico, que roncava de leve, na escrivaninha ao lado de Drax.
— Para o caso de lhe ser necessário — disse, olhando esperançoso para Gala e Bond. Saiu depois pelas portas duplas.
Drax pôs a Luger também na escrivaninha em frente a ele. Abriu uma gaveta, tirou um charuto e acendeu-o com um isqueiro Ronson. Depois, acomodou-se confortàvelmente. O silêncio reinou na sala durante vários minutos, enquanto Drax puxava fumaçadas do charuto, todo satisfeito. Em seguida, pareceu tomar uma resolução. Fitou Bond com benevolência.
— Você nem sabe quanto eu desejei um auditório inglês — declarou como se estivesse dando uma entrevista à imprensa. — Você nem sabe como estava ansioso por contar minha história. Aliás, um relatório completo de minhas atividades encontra-se em poder de um escritório muito respeitável de advogados de Edinburgo. — Tabeliães, aliás. Bem salvo de qualquer perigo.
Drax sorriu abertamente para um e para outro:
— Essa boa gente recebeu instruções para abrir o envelope no final do primeiro voo bem sucedido do “Explorador da Lua”. Mas vocês, seus felizardos, terão uma, antecipação do que eu escrevi e então, quando amanhã às doze horas, virem através destas portas abertas — fez um gesto para a direita — o primeiro vapor saindo das turbinas e souberem que devem ser queimados vivos dentro de meio segundo, terão a satisfação momentânea de saber com quantos paus se faz uma canoa.
— Você poderá nos dispensar as piadas — interrompeu Bond, com aspereza. — Continue com sua história, Kraut.
Os olhos de Drax fuzilaram momentaneamente.
— Um Kraut. Sim eu sou realmente um Reichsdeutscher — a boca, por baixo do bigode vermelho, saboreava a linda palavra — e até a própria Inglaterra terá de concordar, dentro em breve, que foram liquidados por um único alemão. E então talvez parem de nos chamar de Krauts — POR ORDEM! — As palavras foram gritadas, e todo militarismo prussiano entrou em desfile lá embaixo.
Drax exultou do outro lado da escrivaninha, olhando Bond, os dentes grandes, espalhados e salientes sob o bigode vermelho, roendo nervosamente uma unha, depois da outra. Em seguida, enfiou com esforço a mão direita no bolso da calça, como para colocá-la a salvo da tentação, e pegou o charuto com a esquerda. Puxou umas tragadas durante alguns instantes e, depois, com a voz ainda tensa, começou.
CAPITULO 22
A CAIXA DE PANDORA
Meu verdadeiro nome — disse Drax dirigindo-se a Bond — é Graf Hugo von der Drache. Minha mãe era inglesa, e por causa dela fui educado na Inglaterra até a idade de doze anos. Depois, não pude mais suportar este país imundo e completei minha educação em Berlim e Leipzig.
Bond calculava facilmente que aquele brutamontes com cara de bicho-papão e dentes de bruxo não havia sido muito bem recebido numa escola particular inglesa. O fato de ser um conde estrangeiro com um mundo de nomes não teria ajudado muito.
Os olhos de Drax brilharam, cheios de reminiscências: — Quando fiz vinte anos, comecei a trabalhar no ramo de negócio da família. Era uma filial do grande truste de aço Rheinmetal Bórsig. Nunca ouviu falar dele, suponho. Pois bem, se foi ferido por uma bomba de 88mm. durante a guerra, provavelmente foi uma das de lá. Nossas filiais eram peritas em aços especiais, e eu aprendi a respeito deles, e muita coisa sobre a indústria aviatória. Nossos melhores fregueses. Foi quando ouvi, pela primeira vez, falar em columbita. Valendo o que valem os brilhantes naqueles dias. Liguei-me à firma, e quase imediatamente depois disso arrebentou a guerra. Uma época maravilhosa. Eu tinha vinte e oito anos e era tenente da 140a do Regimento Panzer. Nós investimos contra o Exército britânico, na França, e o atravessamos como uma faca por dentro da manteiga. Simplesmente embriagador.
Durante alguns instantes, Drax sugou o charuto, e Bond calculou que ele estava vendo as aldeias incendiadas da Bélgica através da fumaça.
— Aqueles dias eram formidáveis, meu caro Bond. — Drax esticou um braço comprido e bateu a cinza do charuto para o chão. — Mas aí fui escolhido para a Divisão Brandenburg e tive de deixar as pequenas e o champanha para voltar à Alemanha e começar o adestramento, a fim de executar o vasto pulo na água para a Inglaterra. Precisavam de meu in-glês na Divisão. Todos nós devíamos trajar uniformes ingleses. Teria sido engraçado, porém os malditos generais disseram que não podia ser, e eu fui transferido para o Serviço Secreto Estrangeiro do SS. O RSHA, era como se chamava. SS Obergruppenfuhrer Kaltenbrunner acabava de assumir o comando depois que Heydrich foi assassinado em 42. Ele era um bom homem, e eu estava sob as ordens diretas de um ainda melhor, Obersturmbannfuhrer — Drax enrolava na boca o título delicioso com prazer. — Otto Skorzeny. Sua tarefa na RSHA era o terrorismo e a sabotagem. Um agradável interlúdio, meu caro Bond, durante o qual eu pude registrar o nome de muitos ingleses, coisa que me deu muito prazer. Mas então — o punho de Drax esmagou a escrivaninha — Hitler foi novamente traído por aqueles miseráveis generais, e os ingleses e norte-americanos tiveram oportunidade de desembarcar na França.
— Foi uma pena — disse Bond, friamente.
— Sim, meu caro Bond, foi de fato uma pena. — Drax preferiu ignorar a ironia. — Mas para mim foi o ponto alto da guerra. Skorzeny transformou todos os seus sabotadores e terroristas em SS Jagdverbände, para usá-los na retaguarda das linhas inimigas. Cada Jagdverbände era dividida em Streifkorps, e depois em Kommandos, cada um deles levando os nomes de seus oficiais-comandantes. Com o posto de Oberleutnant — Drax encheu-se visivelmente de empáfia — à testa do Kommando “Drache”, eu penetrei diretamente nas linhas americianas com a famosa Brigada Panzer 150a na penetração de Ardennes, em dezembro de 44. Você se lembra, sem dúvida, do efeito causado por esta brigada em seus uniformes americanos e nos tanques e veículos americanos capturados. Kolossal! Quando a Brigada teve de se retirar, eu fiquei onde estiava e fui estabelecer-me nas Florestas de Ardennes, cinquenta milhas à retaguarda das linhas aliadas. Havia vinte rapazes, dez homens bons e dez Hitlerjugend Lobishomens. Todos com menos de vinte anos, mas todos bons rapazes. Por coincidência, o chefe deles era um jovem chamado Krebs, que demonstrou possuir determinados dons que o qualificaram para o pôsto de executor e “persuasor” de nosso alegre pequeno bando. Drax deu uma risadinha gostosa.
Bond lambeu os lábios, ao lembrar-se da brecha que Krebs fizera na cabeça batendo de encontro à cômoda. Ter-lhe-ia dado o pontapé com tanta força quanto lhe era possível dar? Sim, sua memória o tranquilizava, com cada grama de força que ele podia pôr no sapato.
— Ficamos naqueles bosques durante seis meses — continuou Drax, orgulhoso — e durante todo esse tempo dávamos notícias nossas à nossa Pátria por meio do rádio. Os caminhões de busca nunca deram conosco. E então aconteceu um desastre. — Drax sacudiu ia cabeça àquela lembrança. — Existia uma grande fazenda a uma milha de distância de nosso esconderijo na floresta. Uma porção de cabanas haviam sido construídas em torno dela, e eram usadas como quartel-general de retaguarda para um grupo de ligação. Ingleses e norte-americanos. Um lugar incrível. Sem disciplina, sem segurança, cheio de vadios e desertores vindos de todos os lugares da vizinhança. Nós vínhamos observando o grupo há muito tempo, e um dia eu resolvi fazer tudo aquilo voar pelos ares. O plano era simples. À noite, dois dos meus homens, um vestido num uniforme americano, e outro de uniforme britânico, deviam dirigir-se para lá num carro-patrulha capturado, contendo duas toneladas de explosivos. Havia um ponto de estacionamento para os carros — nenhuma sentinela, naturalmente — próximo à sala de refeitório, e eles deviam trazer o carro tão perto dela quanto possível, regular a explosão para a hora do jantar, às sete, e depois se afastarem. Tudo muito fácil, de modo que eu saí naquela manhã para tratar de negócios e deixei a missão para ser cumprida por meu segundo em comando. Eu estava vestido com o uniforme de Corpo de Sinaleiros britânicos, e parti numa motocicleta inglesa capturada por nós para enviar um despacho da mesma unidade que fazia o percurso diário num caminho ali perto. Está claro que ele veio pontualmente na hora, de modo que eu lhe segui atrás, saindo de um caminho lateral. Emparelhei com ele ei dei-lhe um tiro nas costas, tomei-lhe os documentos e, depois de colocá-lo em cima de sua própria motocicleta, levei-o para os bosques e toquei-lhe fogo.
Drax viu a fúria nos olhos de Bond e levantou a mão.
— Não foi muito esportivo? Meu caro, o homem já estava morto. Entretanto, prossigamos. Fui seguindo meu caminho, e então o que haveria de acontecer? Um dos aviões de vocês, voltando de um voo de reconhecimento, veio atrás de mim pela estrada com uma metralhadora. Um de seus próprios aviões! Jogou-me para longe da estrada. Só Deus sabe quanto tempo fiquei ali, caído no fosso. Em certo momento, durante a tarde, voltei a mim a tive o bom senso de esconder o boné e o dólmã com os despachos. Na cerca. Provavelmente ainda estão lá. Preciso ir buscá-los um dia. Lembranças interessantes. Depois toquei fogo nos restos da motocicleta e devo ter desmaiado novamente, porque quando tornei a dar por mim, tinha sido recolhido por um veículo britânico e estávamos seguindo para o maldito quartel-general de ligação! Acredite-se ou não! Lá estava o carro-patrulha, bem ao lado da sala do rancho! Era demais para mim. Eu estava cheio de estilhaços de bomba e minha perna estava quebrada. Pois bem, desmaiei, e quando voltei a mim, vi que metade do hospital se debruçava sobre mim, e eu só tinha a metade da cara.
Drax levantou a mão e alisou a pele lustrosa da têmpora e da face esquerda:
— Depois disso, tudo se resumiu numa questão de representar um papel. Eles não tinham ideia de quem eu era. O carro que me apanhara havia sido reduzido a simples fragmentos. Eu era apenas um inglês, vestido numa camisa e calças inglesas que quase morrera.
Drax fez uma pausa, tirou outro charuto e acendeu-o. Na sala reinou o silêncio, quebrado apenas pelo roncar atenuado do maçarico. Sua voz ameaçadora tornara-se mais baixa. A pressão está cedendo, pensou Bond.
Virou a cabeça e olhou Gala. Pela primeira vez, viu a lesão feia atrás de sua orelha esquerda. Endereçou-lhe um sorriso de encorajamento, e ela retorceu os lábios num sorriso de resposta.
Drax falava por dentro da fumaça do charuto:
— Não há muito mais coisa para contar. Durante o ano em que eu passei sendo enviado de um para outro hospital, elaborei meus planos sem omitir os mínimos detalhes. Consistiam muito simplesmente em vingar-me da Inglaterra pelo que me tinha feito e ao meu país. Confesso que, pouco a pouco, foi-se tornando uma obsessão. Cada dia que se passava no ano em que a destruição e a rapina campearam em meu país, meu ódio e desprezo pelos ingleses iam-se tornando cada vez mais amargos.
As veias do rosto de Drax começaram a inchar e, de repente, ele se pôs a desferir socos na mesa e a gritar para seus prisioneiros, fitando com olhos esbugalhados ora um, ora outro:
— Abomino e desprezo vocês todos. Seus porcos! Idiotas inúteis, ociosos, decadentes, escondendo-se por trás de seus malditos penhascos brancos, enquanto os outros povos travam batalhas por vocês. Fracos demais para defenderem suas colônias, bajulando a América com os chapéus nas mãos. Esnobes malcheirosos, que são capazes de fazer qualquer coisa por dinheiro. Ah! — Drax estava triunfante. — Eu sabia que precisava apenas de dinheiro e a aparência de um gentleman. Um gentleman! Pfui Teufel! Para mim um gentleman é apenas alguém de quem eu posso tirar vantagem. Aqueles malditos imbecis no Blades, por exemplo. Cretinos endinheirados. Durante meses a fio tirei milhares de libras deles, tapeei-os bem debaixo de seus narizes, até que você apareceu e estragou o brinquedo.
Os olhos de Drax se apertaram.
— Como foi que descobriu o truque da cigarreira — perguntou incisivo.
Bond deu de ombros.
— Com os olhos — respondeu indiferente.
— Ah, bem. Talvez eu estivesse um tanto descuidado naquela noite. Mas onde é mesmo que eu estava? Ah, sim, no hospital. Os bons médicos mostravam-se tão ansiosos por me ajudarem a descobrir quem eu era realmente. — Soltou uma gargalhada. — Foi fácil. Muito fácil. Dentre as identidades que eles me ofereciam com tanta boa vontade, topei com o nome de Hugo Drax. Que coincidência! De Drache para Drax! Como quem hesita, pensei que podia ser eu. Eles sentiram-se muito orgulhosos. Sim, afirmaram, naturalmente que é você. Triunfalmente, fizeram-me entrar-lhe na pele. Saí do hospital dentro dela, começando a rodar por Londres à cata de alguém para matar e roubar. Até que um dia, num pequeno escritório acima de Piccadilly, encontrei um agiota judeu. (Drax agora falava muito depressa. As palavras jorravam-lhe excitadamente dos lábios. Bond reparou num aglomerado de espuma que se formava num canto de sua boca e crescia.) — Ah, foi fácil. Uma bordoada em seu crânio nu. Quinze mil libras no cofre. Então tratei de me afastar do País. Fui para Tânger — onde se podia fazer qualquer coisa, comprar qualquer coisa, arranjar qualquer coisa que se desejasse. Columbita. Mais rara que a platina, e todos prontos a adquiri-la. A Era do Jato. Eu conhecia essas coisas. Não me havia esquecido de minha profissão. Então, por Deus, lhe digo que trabalhei. Durante cinco anos vivi para o dinheiro. Fui valente como um leão. Corri riscos tremendos. E eis que, de repente, o primeiro milhão me chega às mãos. Depois o segundo. Em seguida o quinto. Depois o vigésimo. Voltei para a Inglaterra. Gastei um milhão aqui, e Londres estava no papo. Depois voltei à Alemanha. Encontrei Krebs. Encontrei cinquenta deles. Alemães leais. Técnicos brilhantes. Todos vivendo sob nomes falsos, como tantos outros de meus antigos camaradas. Dei-lhes minhas ordens, e eles esperaram, pacificamente, inocentemente. E onde estava eu?
Drax fitou Bond, com os olhos arregalados:
— Eu estava em Moscou! Moscou! Um homem que tem columbita para vender pode ir a qualquer lugar. Encontrei as pessoas indicadas para meu caso. Ouviram meus planos. Deram-me Walter, o novo gênio de seus mísseis teleguiados da estação de Peenemunde, e os bons dos russos começaram a construir a cápsula dos instrumentos e explosivos, a cápsula atômica — apontou para o teto — que está agora nos esperando ali. Então tornei a regressar para Londres. — Fez uma pausa. — A Coroação. Minha carta para o Palácio. Triunfo. Hurras para Drax. — O homem estourou numa gargalhada. — A Inglaterra estava aos meus pés. Todos os malditos cretinos do país! Foi quando meus homens chegaram, e nós começamos. Bem juntos das saias da Grã-Bretanha. No alto de seus famosos penhascos. Trabalhamos como loucos. Construímos um cais no seu Canal inglês. Para receber fornecimentos! Suprimentos vindos de meus bons amigos os russos, que chegaram na hora exata, segunda-feira à noite. Mas foi aí que Tallon teve de ouvir alguma coisa. O velho imbecil. Falou com o Ministério. Mas Krebs estava ouvindo. Apareceram cinquenta voluntários para matar o homem. Tiramos a sorte, e Bartsch morreu como um herói. — Drax fez nova pausa. Depois continuou. — A nova cápsula foi içada para o lugar. Deu certo. Uma perfeita peça de encomenda. O mesmo peso. Tudo perfeito, como a antiga, a caneca de folha, cheia dos queridos instrumentos do Ministério, está agora em Stettin — atrás da Cortina de Ferro. O fiel submarino está de viagem de volta para aqui, e dentro em breve — olhou o relógio — estará navegando sob as águas do Canal inglês para nos levar a todos para longe, quando passar um minuto de meio-dia amanhã.
Drax limpou a boca com as costas da mão e recostou-se de novo na cadeira fitando o teto, os olhos povoados de visões. De repente, riu e olhou interrogativamente para Bond, passando o olhar pelo próprio nariz:
— Quer saber qual será a primeira coisa que nós faremos quando estivermos a bordo? Rasparemos esses famosos bigodes nos quais você estava tão interessado. Você cheirou um camundongo, meu caro Bond, onde devia ter cheirado um rato. Aquelas cabeças raspadas e aqueles bigodes: que nós cultivávamos tão assiduamente. Apenas uma precaução, meu caro. Experimente raspar a própria dabeça e deixar crescer um bigodão preto. Nem mesmo sua mãe o reconheceria. É a combinação das duas coisas que produz o efeito. Apenas um mínimo refinamento. Precisão, meu caro. Precisão, em cada detalhe. Foi esta a minha palavra de passe. — Drax deu uma risadinha sem graça e puxou uma boa fumarada do charuto. Súbito, olhou incisivamente, desconfiado, para Bond. — Então? Diga alguma coisa. Não fique aí sentado como uma múmia. Que pensa de minha história? Não acha que é extraordinária? Notável? Um homem ter feito tudo isto? Vamos, vamos, fale.
Uma das mãos foi levada até a boca, e Drax começou a roer as unhas furiosamente. Mas, em seguida, meteu-a no bolso, e seus olhos tornaram-se frios e cruéis.
— Ou quer que mande buscar Krebs — fez um gesto para o telefone em cima da escrivaninha. — O Persuasor. Pobre Krebs! É como uma criança a quem tivessem arrebatado os brinquedos. Ou talvez Walter. Eles lhes dariam uma lembrança para toda a vida. Esse aí não tem um pingo de moleza. Então?
Bond começou a falar, olhando a caraça vermelha, do outro lado da escrivaninha:
— Não resta dúvida, é um caso notável. Paranoia galopante. Ilusões de ciúme e perseguição. Ódio megalomaníaco e desejo de vingança. Fato bastante curioso — continuou dizendo, em tom de conversação — poderá ter alguma relação com seus dentes. Diastema, é como chamam isto. Acontece quando a criança chupa o dedo na infância. Sim. Tenho a impressão de que será isto o que dirão os psicólogos, assim que lhe puserem no hospício. “Dentes de bicho-papão.” Foi atormentado na escola etc. É extraordinário o efeito produzido numa criança. Então o nazismo ajudou a soprar as flamas, e ainda aconteceu você levar aquela pancada feia na sua feia cabeça. A pancada que você mesmo engendrou. Acho que foi o que estava faltando. Dali por diante, você passou a ser realmente louco. Do mesmo gênero desses que acreditam serem Deus. É extraordinário observar como são tenazes. Completamente fanáticos. Você é quase um gênio. Lombroso teria ficado encantado com você. No ponto em que estão as coisas, você não passa de um cão danado que precisa ser morto. Ou então você se suicida. Os paranoicos geralmente se matam. É uma pena. Coisa triste, mesmo.
Bond fez uma pausa e pôs todo o desprezo que pôde acumular na voz:
— E agora, continuemos com esta farsa, vamos, seu lunático cabeludo.
Deu resultado. A cada palavra de Bond, a cara de Drax ia se contorcendo de raiva cadia vez maior, os olhos estavam vermelhos de cólera, o suor da fúria pingava de suas mandíbulas para a camisa, os lábios se afastariam dos dentes irregulares, e um fio de saliva saíra-lhe da boca e lhe escorria pelo queixo. Agora, com o último insulto sobre a escola particular, que devia ter-lhe despertado sabe Deus que espécie de lembranças dolorosas, ele pulou da cadeira, rodeou a escrivaninha, investiu contra Bond, os punhos cabeludos martelando. Bond rangeu os dentes e aguentou.
Quando Drax teve de pegar a cadeira do chão pela segunda vez, com Bond em cima dela, a tempestade de raiva passou subitamente. Tirou do bolso o lenço de seda e limpou o rosto e as mãos. Depois, encaminhou-se calmamente para a porta e falou, olhando por cima da cabeça pendente de Bond e dirigindo-se à pequena.
— Não creio que vocês dois me deem mais trabalho — declarou com a voz perfeitamente calma e segura. — Krebs nunca comete enganos com seus nós.
Gesticulou em direção à figura ensanguentada da outra cadeira:
— Quando ele acordar, pode dizer-lhe que estas portas ainda se abrirão mais uma vez, pouco antes do meio-dia de amanhã. Alguns minutos mais tarde, não sobrará nada de nenhum de vocês dois. Nem mesmo — acrescentou, ao escancarar a porta de dentro — as obturações de seus dentes.
A porta externa bateu.
Bond levantou lentamente a cabeça e sorriu dolorosamente para sua companheira com os lábios manchados de sangue. Explicou com dificuldade:
— Tive de deixá-lo louco. Não quis que ele tivesse tempo para pensar. Tive de provocar aquela tempestade cerebral.
Gala olhava-o sem compreender, os olhos arregalados para a máscara terrível de seu rosto.
— Está tudo bem. Não se preocupe. Londres está O.K. Tenho um plano.
Sobre a escrivaninha, o maçarico fez um “pleft” baixinho e apagou.
CAPÍTULO 23
MENOS ZERO
Por entre os olhos entreabertos, Bond fitou demoradamente o maçarico, enquanto por alguns preciosos segundos permanecia sentado e deixava a vida voltar-lhe lentamente ao corpo. Tinha a impressão de que sua cabeça fora usada como bola de futebol, mas não tinha nada quebrado. Drax batera-lhe sem nenhuma ciência e com a confusão de golpes de um homem embriagado.
Gala observava-o ansiosamente. Os olhos, no rosto sanguinolento, estavam quase fechados, mas a linha do queixo aparecia tensa de concentração, e ela percebia o esforço de vontade que ele fazia.
Bond sacudiu a cabeça, e quando se voltou para ela, Gala viu que seus olhos estavam febris pelo triunfo.
Fez um gesto na direção do isqueiro.
— O isqueiro. Eu tive de tentar fazê-lo esquecer-se dele. Siga-me. Vou-lhe mostrar como.
Começou a balançar a leve cadeira de aço, polegada por polegada, em direção à escrivaninha:
— Pelo amor de Deus, não vá virar de pernas para cima, do contrário estará tudo perdido. Mas procure apressar-se senão o maçarico esfria.
Sem compreender, sentindo-se quase como se tomasse parte em algum fantástico brinquedo infantil, Gala, cautelosamente, foi balançando a cadeira pelo chão atrás dele.
Segundos depois, Bond lhe disse que parasse ao lado da escrivaninha, enquanto ele continuava o balanço até a cadeira de Drax. Depois, manobrou de modo a tomar posição em frente ao seu alvo e, com uma súbita guinada, suspendeu-se com a cadeira, de forma que sua cabeça ficou para baixo.
Ouviu-se um estalo, quando o isqueiro Ronson, de escrivaninha, prendeu-se-lhe nos dentes, mas seus lábios sustiveram-no, e a parte superior ficou-lhe na boca, assim que ele impulsionou a cadeira para a primeira posição, apenas com a força suficiente para impedir que saltasse fora. Em seguida, recomeçou sua paciente viagem de volta para o ponto onde Gala se encontrava sentada, no canto da escrivaninha onde Krebs deixara a lâmpada.
Bond descansou até sua respiração tornar-se novamente regular.
— Chegamos agora à parte difícil — avisou, severo. — Enquanto eu tento fazer este maçarico funcionar, você vai rodando sua cadeira, de modo que seu braço direito fique tanto quanto possível defronte de mim.
Obedientemente, a moça foi executando os movimentos, enquanto Bond balançava sua cadeira, de forma que esta se encostou a beira da escrivaninha e permitiu que sua boca alcançasse e agarrasse o cabo do maçarico entre os dentes.
Em seguida, foi trazendo o maçarico para perto e, depois de alguns minutos de trabalho paciente, conseguiu colocar o maçarico e o isqueiro como desejava, na borda da escrivaninha.
Após outro descanso, curvou-se, fechou a válvula da tocha com os dentes, e começou a fazer voltar a pressão, puxando lenta e repetidamente o pistão com os lábios e apertando-o de volta com o queixo. Sentia no rosto o calor do aquecedor e sentia o cheiro dos restos de gás no pequeno instrumento. Se ao menos não tivesse esfriado demais.
Endireitou o corpo.
— Ultima etapa, Gala — disse sorrindo quase com esforço para ela. — Talvez eu tenha de lhe machucar um pouco. Não faz mal?
— Claro que não — respondeu a moça.
— Então lá vai — disse Bond, e curvou-se para a frente, soltando a válvula de segurança à esquerda do depósito.
Depois debruçou-se rapidamente sobre o Ronson, que estava no ângulo direito e bem debaixo do tubo da tocha. Com os dois dentes incisivos apertou para baixo a trave de ignição.
Era uma manobra horrível e, apesar de ele sacudir a cabeça para trás com a rapidez de uma serpente, deixou escapar um leve gemido de dor, quando o jato de fogo azul do maçarico subiu-lhe pela face machucada e pela ponta do nariz.
Mas a parafina vaporizada sibilava sua língua vital de chama, e ele sacudiu as lágrimas dos olhos, curvando a cabeça quase até o ângulo direito e novamente prendeu a haste do maçarico nos dentes.
Teve a impressão de que seu queixo se partiria com o peso da coisa, e os nervos dos dentes da frente reclamaram, mas ele balançou a cadeira cautelosamente até colocá-la em posição vertical, afastada da escrivaninha, e então forçou o pescoço a curvar-se para a frente, até que a ponta da chama azul da tocha mordeu o ponto que ligava o pulso direito de Gala ao braço da cadeira.
Bond tentou desesperadamente conservar a chama firme, contudo a respiração da moça raspou-lhe entre os dentes, angustiada, quando o cabo se movia entre suas mandíbulas, e o maçarico queimou-lhe o antebraço.
Então tudo acabou. Derretido pelo forte calor, as tiras de cobre foram-se partindo uma por uma e, de repente, o braço direito de Gala ficou livre, e ela o estendeu para tomar o maçarico da boca de Bond.
A cabeça do rapaz caiu novamente para trás, entre os ombros, e ele torceu-a para todos os lados, a fim de conseguir fazer o sangue circular pelos músculos doloridos.
Antes mesmo que ele se desse conta, Gala já se inclinava sobre seus braços e pernas, e ele também estava livre.
Ao sentar-se imóvel por um momento, os olhos fechados, esperando que a vida lhe voltasse ao corpo, sentiu de repente, encantado, os lábios macios de Gala sobre os seus.
Abriu os olhos. Ela estava de pé, diante dele, os olhos brilhando.
— Isto é pelo que você fez — falou, muito séria.
— Você é uma garota maravilhosa — disse Bond. Depois, porém, sabendo o que ia fazer, sabendo que era bem concebível que ela sobrevivesse, mas que ele só tinha mais alguns minutos de vida, fechou os olhos para que ela não visse a desesperança neles.
Gala observou-lhe a expressão do rosto e virou de costas. Pensou que fosse apenas exaustão e o efeito do que seu corpo tinha sofrido. Lembrou-se aí, de repente, da água oxigenada no banheiro pegado ao seu escritório.
Passou pela porta de comunicação. Como era extraordinário ver suas coisas familiares novamente. Devia ser outra pessoa que se sentara naquela escrivaninha e batera na máquina a correspondência, outra moça a que ali empoara o nariz. Sacudiu os ombros e foi para o toalete. Meu Deus, que cara, e só Deus sabe como se sentia cansada! Mas primeiro pegou uma toalha molhada, um pouco de água oxigenada, e voltou. Durante dez minutos tratou do campo de batalha que era a cara de Bond.
Este permanecia sentado em silêncio, uma das mãos descansando na cintura dela e observando-a agradecido. Depois, quando ela voltou para o escritório e fechou a porta do banheiro após entrar, ele se levantou, apagou o maçarico que ainda silvava, e encaminhou-se para o chuveiro de Drax, tirou a roupa e permaneceu durante cinco minutos debaixo da água gelada. “Preparando o corpo”, pensou melancòlicamente, ao examinar o rosto maltratado no espelho.
Vestiu as roupas e voltou para a escrivaninha de Drax, que revistou metòdicamente. Esta lhe proporcionou apenas um prêmio, a “garrafa do escritório”, cheia até a metade de Haig and Haig. Foi buscar dois copos, um pouco de água e chamou Gala.
Ouviu-a abrir a porta do banheiro.
— O que é? — Uísque.
— Vá tomando o seu. Estarei pronta daqui a um minuto.
Bond olhou a garrafa, serviu três quartos de um copo de escovas de dentes e tomou-o de uma vez, em dois goles. Em seguida, acendeu meio trêmulo um abençoado cigarro e sentou-se na borda da escrivaninha, sentindo o álcool queimá-lo no estômago, descendo-lhe até as pernas.
Pegou a garrafa novamente e olhou-a. Ainda havia muito para Gala e um copo inteiro para ele, antes de sair por aquela porta. Era melhor que nada. Não seria tão difícil com aquilo dentro de si, contanto que saísse em passos rápidos o fechasse a porta depois. Nada de olhar para trás.
Gala entrou, uma Gala transformada, parecendo tão bela quanto na noite em que a vira pela primeira vez, exceto as linhas de exaustão sob os olhos, que o pó não disfarçava totalmente, e os feios vincos nos pulsos e tornozelos.
Bond deu-lhe um drinque e tomou outro. Os olhos de ambos sorriam por cima da orla dos copos.
Depois Bond se ergueu.
— Escute, Gala — começou num tom de voz bem natural . — Nós temos de enfrentar o que está por vir e terminar com a história, de modo que serei breve e depois tomaremos outra dose.
Bond ouviu quando ela prendeu a respiração, mas continuou:
— Dentro de dez minutos, mais ou menos, eu vou fechá-la no banheiro de Drax, pôr você debaixo do chuveiro, e abri-lo completamente.
A moça gritou, aproximando-se dele:
— James. Não continue. Eu sei que você vai dizer qualquer coisa horrível. Pare, por favor, James.
— Deixe disso, Gala — disse Bond com aspereza. — Que diabo adianta tudo isto. É um milagre maldito, se é que posso dizer assim, e nós temos a oportunidade.
Afastou-se dela. Encaminhou-se então para as portas que conduziam ao foguete.
— Depois então — prosseguiu, segurando o precioso isqueiro na mão direita — eu sairei daqui, fecharei as portas e acenderei um último cigarro debaixo da cauda do “Explorador da Lua”.
Meu Deus! — sussurrou a moça. — Que é que você está dizendo? Você está louco.
Fitou-o com os olhos arregalados de horror.
— Não seja ridícula — disse Bond impaciente. — Que diabo nos resta fazer? A explosão será tão pavorosa, que ninguém sentirá nada. Deve dar resultado, com todo esse combustível em vapor circulando em redor. Trata-se de mim ou de um milhão de pessoas em Londres. A cápsula não se soltará. As bombas atômicas não explodem assim. Com certeza derreterá. Só há uma chance de você escapar. A maior parte da explosão se encaminhará para a linha de menor resistência através do telhado — e por baixo, pela cavidade exaustora, se eu conseguir fazer funcionar o maquinismo que abre o chão.
Bond sorriu.
— Ânimo — pediu, caminhando para ela e pegando-lhe uma das mãos. — O rapaz ficou de pé no tombadilho incendiado. Eu quis imitá-lo desde os cinco anos de idade.
Gala puxou a mão.
— Não me importa o que você está dizendo — declarou encolerizada. — Temos de pensar em outra coisa qualquer. Você não me acha capaz de ter nenhuma ideia. Vai só me dizendo o que pensa e o que temos de fazer.
Dirigiu-se para o mapa da parede e apertou o interruptor.
— Naturalmente, se tivermos de usar o isqueiro, usá-lo-emos. — Olhou o mapa do falso plano de voo, mal vendo o que tinha diante dos olhos. — Mas a ideia de você caminhar ali sozinho e ficar no meio daqueles horríveis vapores do combustível e calmamente acender essa coisa para depois ser reduzido a pó... Entretanto, se tivermos de agir assim, agiremos juntos. É preferível, melhor do que ser queimada até morrer aqui dentro. De qualquer maneira — fez uma pausa — eu gostaria de ir com você. Nós entramos juntos nesse negócio.
Os olhos de Bond estavam cheios de ternura, quando caminhou em direção à moça, passou-lhe um braço em volta da cintura e abraçou-a bem junto a si.
— Gala, você é um amor — disse com simplicidade. — Se houver outro meio, nós o tentaremos. Mas — olhou o relógio — já passa de meia-noite, e nós precisamos tomar uma resolução rápida. A qualquer momento pode ocorrer a Drax a ideia de mandar guardas para ver sé nós estamos em ordem, e só Deus sabe a que horas ele virá aqui acertar o giroscópio.
Gala torceu o corpo como uma gata. Fitou-o com a boca aberta, o rosto tenso de excitação. Sussurrou:
— O giroscópio, para acertar o giroscópio. Encostou-se novamente de leve contra a parede, os. olhos procurando o rosto de Bond.
— Você não compreende? — sua voz estava beirando a histeria. — Depois que ele sair, nós poderíamos alterar o giroscópio para onde estava, de acordo com o antigo plano de voo, e então o foguete cairia simplesmente no Mar do Norte, onde se julga que irá cair.
Gala afastou-se da parede e agarrou a camisa de Bond com as duas mãos, fitando-o com um olhar que implorava:
— Não poderíamos? Não poderíamos?
— Você conhece as outras direções? — perguntou Bond, ansioso.
— Claro que sim. Convivo com eles há um ano. Nós não teremos uma previsão do tempo, mas teremos de nos arriscar. A previsão desta manhã dizia que nós teríamos as mesmas condições de hoje.
— Por Deus — disse Bond. — Nós poderíamos fazer isto. Se conseguirmos esconder-nos nalgum lugar e fazer Drax imaginar que escapamos. Que tal o túnel exaustor, se eu conseguir fazer funcionar a máquina que abre o assoalho?
— São trinta e tantos metros de queda em linha reta — disse Gala, sacudindo a cabeça. — E as paredes são de aço polido. Como vidro. Além do mais, não há corda ou coisa alguma aqui. Eles tiraram tudo da oficina ontem. Sem contar com os guardas na praia.
Bond refletiu. Depois seus olhos tornaram-se brilhantes:
— Tenho uma ideia. Mas em primeiro lugar, que me diz você do radar, o radar de retorno de Londres? Ele não empurrará o foguete para fora do seu curso e de volta para Londres?
Gala sacudiu a cabeça:
— Ele só trabalha dentro de um raio de cem milhas, mais ou menos. O foguete nem sequer pegará seu sinal. Se estiver apontando para o Mar do Norte, entrará na órbita do transmissor da jangada. Não há nada de errado nos meus planos. Mas onde nos poderemos esconder?
— Num dos tubos de ventilação — respondeu Bond. — Vamos.
Lançou um último olhar à sala. O isqueiro estava em seu bolso. Aquilo seria o último recurso. Não havia mais nada que eles fossem precisar. Seguiu Gala para o cintilante cilindro e dirigiu-se ao painel de instrumentos que controlava a capa de aço da cavidade exaustora.
Após um rápido exame, moveu uma pesada barra de Zu a Auf. Ouviu-se um leve sibilo da máquina hidráulica atrás da parede, e os dois semicírculos de aço se abriram sob a cauda do foguete, deslizando depois novamente para o lugar. Bond seguiu em frente e olhou para baixo.
Os arcos no telhado lá em cima cintilavam em resposta ao seu olhar, de lá das paredes polidas do largo funil de aço, até se curvarem desaparecendo de suas vistas, em direção ao distante clamor ôco do mar.
Bond voltou ao escritório de Drax e puxou para baixo a cortina do boxe do chuveiro. Depois, Gala e ele rasgaram em tiras a cortina e ligaram umas às outras. Deu um rasgão em feitio de um V no fim da última tira para dar a impressão de que a corda da fuga tinha-se partido. Amarrou então a outra extremidade firmemente em torno da ponta aguda de uma das três barbatanas do “Explorador da Lua” e deixou cair o resto de modo que descesse pelo cilindro.
Não era lá grande coisa como falsa pista, mas podia servir para ganhar um pouco de tempo.
As bocarras redondas dos ventiladores tubulares tinham o espaço de umas dez jardas entre si e ficavam a cerca de 1.50m do chão. Bond contou. Havia cinquenta delas. Abriu cautelosamente a grade presa em gonzos que cobria uma delas e olhou para cima. A uma distância de doze metros via-se um leve brilho vindo do luar lá fora. — Chegou à conclusão de que estavam emparedados bem dentro do túnel formado pelo muro da base, até que viraram para os ângulos direitos, em direção aos gradeados das paredes exteriores.
Bond estendeu o braço e correu a mão pela superfície. Era de um concreto rústico, inacabado, e ele grunhiu de satisfação, quando sentiu primeiro uma forte protuberância, e depois outra. Eram as extremidades bifurcadas das varas de aço que reforçavam as paredes, cortadas onde os cilindros começavam.
Ia ser uma coisa dolorosa, mas não havia dúvida de que poderiam ir-se arrastando, centímetro por centímetro, por um desses cilindros, tal como alpinistas numa chaminé rocha acima e, na curva do topo, ficarem ocultos de tudo, menos da busca complicada que seria difícil de manhã com todos os oficiais de Londres em redor da base.
Bond se ajoelhou, e a moça montou-lhe às costas, depois do que começaram a subir.
Uma hora depois, com os pés e os ombros machucados e cortados, deitaram-se exaustos, apertados bem fortemente nos braços um do outro, as cabeças afastadas alguns centímetros do gradeado circular, situado diretamente acima da porta externa, e puseram-se a ouvir os guardas mexendo os pés incessantemente dentro da escuridão, cem jardas distante deles.
Cinco horas, seis, sete.
Lentamente o sol apareceu por trás da cúpula, e as gaivotas começaram a gritar nos penhascos. Então, surgiram de súbito as três figuras caminhando para eles na distância, passaram por um novo pelotão de guardas, os queixos levantados, os joelhos erguidos, vindos para render a ronda noturna.
As figuras foram-se aproximando, e os olhos apertados, exaustos, do casal oculto puderam ver todos os detalhes da cara vermelho-alaranjada de Drax, o pálido focinho de raposa do Dr. Walter, a nédia e balofa cara de sono de Krebs.
Os três homens caminhavam como se fossem executores de um fuzilamento, sem dizer nada. Drax tirou a chave, e eles, silenciosamente, entraram pela porta, alguns pés abaixo dos corpos tensos de Bond e Gala.
Depois, durante dez minutos, reinou o silêncio, quebrado apenas pelo som ocasional de vozes que subiam pelo cilindro do ventilador, quando os três homens se movimentavam pelo chão de aço em torno da cavidade exaustara. Bond sorriu consigo mesmo à ideia do ódio e da consternação que deveriam estampar-se no rosto de Drax; do infeliz Krebs, encolhendo-se sob as chicotadas da língua de Drax; a amarga acusação nos olhos de Walter. Foi então que a porta se escancarou abaixo dele, e Krebs chamou, imperioso, o chefe dos guardas.
— Die Engländer — a voz de Krebs era quase histérica. —Escaparam. O Herr Kapitän pensa que possam estar num dos tubos de ventilação. Vamos arriscar. A cúpula será aberta novamente, e nós vamos eliminar os vapores do combustível. Depois então o Herr Doktor passará a mangueira de vapor quente em cada um dos tubos. Se eles estiverem num deles, isto os liquidará. Escolha quatro homens. As luvas de borracha e as vestimentas para incêndio estão lá embaixo. Nós vamos tirar a pressão do aquecimento. Diga aos outros que prestem atenção para ver se escutam os gritos. Verstanden?
— Zu Befehl!
O homem voltou diligentemente para junto de seu grupo, e Krebs, com o suor da ansiedade no rosto, voltou-se e desapareceu novamente pela porta.
Por um momento Bond permaneceu imóvel.
Ouviram rumores pesados acima de suas cabeças, quando a cúpula se dividiu em dois e se abriu. A mangueira de vapor quente!
Bond ouvira contar de motins em navios sendo combatidos com isto. Desordens em fábricas. Será que alcançará doze metros? A pressão durará? Quantas caldeiras alimentavam o aquecimento? Entre os cinquenta tubos de ventilação, qual seria o escolhido para começarem? Teria Bond ou Gala deixado qualquer indício, com relação àquele que haviam subido?
Bond sentia que Gala esperava que ele explicasse. Que fisesse alguma coisa. Que protegesse a ambos.
Cinco homens vieram aproximando-se do semicírculo de guardas. Passaram por baixo e desapareceram.
Bond pôs a boca no ouvido de Gala.
— Isto poderá machucar — avisou. — Não posso prever quanto. Não pode ser evitado. Teremos de aguentar. Sem fazer barulho.
Sentiu logo a pressão dos braços dela, à guisa de resposta:
— Levante os joelhos. Não fique acanhada. A hora não é para pudores virginais.
— Cale a boca — sussurrou Gala, zangada. Ele sentiu um joelho subir e ficar trancado entre suas coxas. Seu próprio joelho seguiu por ali até não conseguir estender-se mais. A moça se remexia furiosamente.
— Não seja idiota — cochichou Bond, puxando-lhe a cabeça para junto do peito, até que ficou meio encoberta pela sua camisa aberta.
Bond encobriu-a tanto quanto possível. Não podiam fazer nada com relação aos tornozelos e as mãos. Levantou a gola da camisa, o mais que pôde por cima das cabeças. Apertavam-se um contra o outro.
Quentes, cheios de câimbras, sem respirar. Esperando — de repente a ideia ocorreu a Bond, como dois namorados debaixo de arbustos, ocultos. Esperando que as pisadas se afastassem, de modo a poderem principiar tudo novamente. Sorriu amargamente consigo mesmo e pôs-se à escuta.
O silêncio reinava lá embaixo, no foguete. Deviam estar na sala das máquinas. Walter devia estar assistindo à instalação da mangueira na válvula externa. Agora ouviam-se ruídos distantes. Por onde começariam?
Num ponto qualquer, não muito longe, havia um sussurro leve, bem arrancado do fundo, como o apito ineficiente de um trem distante.
Bond dobrou para trás o colarinho da camisa e arriscou um olhar por entre as grades, até os guardas. Os que conseguiu ver, olhavam em frente para a cúpula do lançamento, um pouco à sua esquerda.
Novamente o longo sussurro áspero. E mais uma vez se repetiu.
Ia ficando mais alto. Viu as cabeças dos guardas rodando para o lado das grades das paredes que ocultavam Gala e ele. Deviam estar observando, fascinados, enquanto os jatos brancos e espessos de vapor subiam pelas grades até lá em cima ha parede de cimento, conjeturando: “— Será esta, ou aquela, ou aquela outra, qual será que virá acompanhada de um duplo grito.”
Sentia o coração de Gala batendo de encontro ao seu. Ela não sabia o que estava por acontecer. Confiava nele.
— Pode machucar — sussurrou-lhe novamente. — Pode queimar. Não nos matará. Tenha coragem. Não emita um som.
— Eu estou bem — cochichou a moça, encolerizada. Mas ele percebeu que seu corpo se colava mais ao dele. Chuá! Estava chegando mais perto.
Chuá! A diferença era de dois tubos.
CHUÁ! Pegado a eles. Sentiu um leve cheiro do vapor.
— “Fique bem firme”, ordenou Bond a si mesmo. Esmagou a companheira de encontro ao próprio corpo e prendeu a respiração.
— “Agora. Depressa. Acabem com isso, desgraçados.”
E eis que, subitamente, houve uma grande pressão; o calor e um barulho infernal chegou-lhes aos ouvidos, seguidos de um instante de dor intolerável.
Depois um silêncio mortal, uma mistura de frio intenso e fogo nos tornozelos e nas mãos, uma sensação de estarem ensopados, e um esforço desesperado, sufocante, de fazer o ar puro penetrar nos pulmões.
Seus corpos lutaram automaticamente para se separarem um do outro, para conseguir alguns centímetros de espaço e ar para as áreas da pele que já começavam a cobrir-se de bolhas. A respiração rasgava-lhes as gargantas, e a água porejava do cimento para dentro de suas bocas abertas, até que ambos se curvaram para um lado e atiraram-na fora, e ela foi juntar-se ao riachinho que corria por baixo de seus corpos ensopados, descendo pelos tornozelos escaldantes e dali para as paredes verticais do tubo pelo qual haviam subido.
O uivo da mangueira a vapor afastou-se deles até se tornar um sussurro e, finalmente, cessar. Reinou então o silêncio na estreita prisão de cimento de ambos, ouvindo-se apenas suas teimosas respirações e o tique-taque do relógio de Bond.
Os dois corpos continuavam deitados e à espera, aguentando a dor.
Meia hora — meio ano — mais tarde, Walter, Krebs e Drax seguiram em fila por baixo deles.
No entanto, como medida de precaução, os guardas tinham sido deixados para trás na cúpula do lançamento.
CAPITULO 24
ZERO
Então estamos combinados?
— Sim, Sir Hugo — era o Ministro do Abastecimento quem falava. Bond reconheceu a figura espigada, segura de si. — As direções são aquelas. Meu pessoal verificou-as, independentemente, com o Ministério da Aeronáutica esta manhã.
— Neste caso, se me permite o privilégio — Drax levantou o pedacinho de papel e ia virando em direção à cúpula.
— Segure-a, Sir Hugo. Assim mesmo, por favor. O braço esticado no ar.
As lâmpadas dos flashes se acenderam, e o conjunto de câmaras zumbiu e estalou pela última vez. Drax voltou-se e andou os poucos metros que o separavam da cúpula, quase, assim pareceu a Bond, fitando-o diretamente nos olhos através do gradeado acima da porta da casamata.
A pequena turba de repórteres e fotógrafos dissolveu-se e encaminhou-se para o caminho de concreto, deixando para trás apenas um grupinho de oficiais que conversavam nervosamente, à espera de que Drax surgisse em cena.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e cinco. “Depressa, seu danado”, pensou.
Pela centésima vez repetiu para si mesmo os números qus Gala lhe ensinara durante as horas de dor e câimbras que se seguiram à provação do vapor, e pela centésima vez movimentou os membros para preservar a circulação.
— Apronte-se — cochichou no ouvido de Gala. — Está se sentindo bem?
Sentiu que a moça sorria.
— Ótimo.
Ela fechou a mente à ideia de suas pernas todas cheias de bolhas e da rápida descida, raspando-as pelo tubo de ventilação .
A porta fechou-se com um baque abaixo deles, seguindo-se o estalido da fechadura, e então, precedida por cinco guardas, a figura de Drax apareceu lá embaixo, marchando solene para o grupo de oficiais, a tira de papel com os números na mão.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e sete. — Agora — sussurrou.
— Boa sorte — respondeu Gala, também num sussurro. Escorregando, arranhando-se, rasgando-se. Seus ombros, cautelosamente, se expandiam e contraíam; os pés, cheios de bolhas, de sangue, procurando as saliências agudas do ferro; com o corpo dilacerado abrindo caminho através do tubo de um metro, rezava para que a pequena encontrasse forças para suportar tudo aquilo, quando o seguisse.
Finalmente, o pulo de três metros, que lhe repercutia na espinha, um pontapé nas grades, e ele galgava o chão de aço, corria para as escadas, deixando uma trilha de pegadas vermelhas e um borrifo de gotas de sangue caídas de seus ombros feridos.
Os arcos de luz haviam sido apagados, mas o clarão do dia penetrava pelo telhado aberto, e o azul do céu misturado ao fulgor da luz do sol davam a Bond a impressão de que estava correndo dentro de uma enorme safira.
A grande e mortal agulha no centro parecia ser feita de vidro. Olhando para cima, enquanto suava e arfava no percurso das infindáveis curvas da escada de ferro, era difícil para ele ver onde o nariz do foguete, afinando na ponta, terminava, e começava o céu.
Por trás do pesado silêncio que envolvia a bala esplendente, Bond ouvia um ruído apavorante e regular, o caminhar de minúsculos pés de metal num ponto qualquer do corpo do “Explorador da Lua”. Enchia o vasto compartimento de aço, como as batidas do coração na história de Poe, e Bond compreendeu que Drax, diretamente do ponto do tiro, apertara o interruptor que mandava a faixa radiofônica, disparando a mais de duzentas jardas até o foguete ali à espera. O tique-tique cessaria dentro em breve, ouvir-se-ia o suave gemido do catavento aceso, uma pequena porção de vapor das turbinas, e depois o rugido do jato de flama no qual o foguete se ergueria lentamente e se curvaria majestoso no início de sua gigantesca curva de aceleração.
E então, diante dele, viu o braço retorcido do guindaste dobrado novamente contra a parede, e sua mão alcançou a barra. O braço foi-se esticando para baixo e para fora em direção à linha fina e quadrada, na pele brilhante do foguete, que era a porta do compartimento do giroscópio.
Caminhando apoiado nas mãos e nos joelhos, Bond alcançou-o bem antes de as almofadas de borracha virem descansar contra o cromo polido. Encontrou o disco de descarga, do tamanho de um xelim, exatamente como Gala havia descrito. Apertar, estalar, e a pequenina porta se abria, girando no parafuso duro. Dentro. Cuidado para não ferir a cabeça. Os cabos cintilantes embaixo dos ponteiros da bússola. Virar. Torcer. Firme. Isto é para o rolamento. Agora o topo e o pior. Virar. Lento. Bem delicadamente. Mas firme. Um último olhar. Uma olhada no relógio. Quatro minutos para ir. Não fique em pânico. Volte. Estalido da porta. Uma fugida rápida de gato. Não olhe para baixo. O guindaste se ergueu. Bateu contra a parede. E agora as escadas.
Tique-tique-tique-tique.
Ao descer, Bond vislumbrou o rosto de Gala, branco, tenso, enquanto ela permanecia segurando a porta exterior aberta, a porta do escritório de Drax. Oh, Deus! Como seu corpo doía! Um último salto e uma reviravolta desajeitada para a direita. Pam! Quando bateu com força a porta de fora. Nova pancada, e ei-los atravessando a sala em direção ao chuveiro. A água jorrando sobre seus corpos pegajosos e doloridos.
Por dentro de todo aquele barulho, acima das batidas do próprio coração, Bond ouviu o súbito estalar da estática e, em seguida, a voz do locutor da BBC vinda do enorme aparelho da sala de Drax, poucos centímetros distante da parede fina do banheiro. Fora novamente Gala quem se lembrara do aparelho de rádio de Drax e que encontrara tempo para pô-lo a funcionar enquanto Bond trabalhava no giroscópio.
“... cinco minutos de atraso” — dizia a voz excitada, leve, ao microfone. — Bond fechou o chuveiro, e a voz chegou até eles mais claramente. — “Sir Hugo foi persuadido a dizer algumas palavras. Parece muito confiante. Está dizendo qualquer coisa no ouvido do Ministro. Estão ambos rindo. Gostaria de saber o que estão dizendo. Ah, eis o meu colega que chega com as últimas notícias a respeito do tempo, vindas do Ministério da Aeronáutica. Que dizem elas? Perfeito em todas as altitudes. Bom espetáculo. Não há dúvida de que temos um dia maravilhoso aqui, Ah! A multidão reunida à distância, perto da estação de guardas-costeiros, vai apanhar uma boa queimadura de sol. Deve haver milhares de pessoas ali. Que foi que você disse? Vinte mil? Bem, a impressão que dá é essa mesmo. Walmer Beach também está apinhada de gente. Toda a população de Kent parece estar na rua. Todo mundo vai ficar com mau jeito no pescoço. Vai ser pior que em Wimbledon. Alô, que é que está se passando ali no cais? Puxa, é um submarino que acaba de subir à superfície. Que espetáculo! É um dos maiores que existem, creio eu. E a equipe de Sir Hugo está lá embaixo também. Alinhados no cais, como se estivessem numa parada. Magnífica corporação. Agora entram a bordo em fila. Disciplina perfeita. Deve ser uma ideia do Almirantado. Oferecer-lhes uma recepção especial na entrada do Canal. Maravilhoso espetáculo. Gostaria que você estivesse aqui para ver. Agora Sir Hugo vem vindo em nossa direção. Dentro em pouco estará falando com vocês. Bela figura de homem! Todos os que se encontram no ponto de tiro o estão aclamando. Tenho certeza de que todos nós nos sentimos inclinados a aclamá-lo hoje. Ele vem vindo para o ponto de tiro. Daqui vejo o sol brilhando no nariz do “Explorador da Lua”, lá adiante, por trás dele. Começa a sair por trás do alto da cúpula de lançamento. Espero que alguém tenha uma máquina fotográfica. Ei-lo que chega aqui agora — uma pausa. — Sir Hugo Drax.
Bond olhou o rosto gotejante de Gala. Ensopados e sangrando, ficaram nos braços um do outro, sem falar e tremendo ligeiramente sob o impacto de suas emoções. Seus olhos nada exprimiam e eram insondáveis quando se fitaram.
A voz que se ergueu era aveludado rosnar:
— Vossa Majestade, homens e mulheres da Inglaterra. Estou prestes a modificar o curso da história da Inglaterra. — Uma pausa. — Dentro de poucos minutos todas as vossas vidas estarão alteradas, em alguns casos drasticamente, pelo — hum — impacto do “Explorador da Lua”. Sinto-me muito orgulhoso e feliz porque o destino me elegeu, dentre todos os meus compatriotas, para lançar esta grande flecha de vingança nos céus e assim proclamar para sempre e para que todo o mundo presencie, o poderio de minha Pátria. Espero que esta oportunidade seja para sempre um aviso de que o destino dos inimigos de meu País estará escrito em poeira, em cinzas, em lágrimas e — uma pausa — em sangue. E agora muito obrigado por me terem ouvido, e eu, sinceramente, faço votos para que aqueles dentre vós que puderem, repitam as minhas palavras aos seus filhos, se os tiverem, hoje à noite.
Uma onda um tanto hesitante de aplausos ecoou através do microfone. Em seguida, ouviu-se a voz animada do locutor.
— Acabamos de ouvir Sir Hugo Drax, dirigindo-lhes algumas palavras antes de atravessar o ponto de tiro que leva ao interruptor na parede que lançará o “Explorador da Lua”. É a primeira vez que fala em público. Muito — hum — incisivo. Não faz rodeios para falar. Entretanto, muita gente achará que não há nenhum mal nisto. E agora chegou o momento de eu passar o microfone ao técnico, Capitão-Chefe de Grupo Tandy, do Ministério do Abastecimento, que descreverá para vocês o lançamento do “Explorador da Lua”. Em seguida, ouvirão a palavra de Peter Trimble, numa das embarcações da patrulha de segurança naval, o HMS Merganzer, que descreverá a cena da área compreendida pelo alvo. O Capitão Tandy.
Bond lançou um olhar ao relógio.
— Só mais um minuto — disse a Gala. — Oh, meu Deus, como eu gostaria de pôr as mãos em Drax. Tome aqui — estendeu a mão para o sabonete e arrancou-lhe alguns pedaços. — Ponha isto nos ouvidos, quando chegar a hora. O barulho vai ser tremendo, não sei dizer como será o calor. Não durará muito, e as paredes de aço talvez aguentem bem. Gala olhou para ele. Sorriu.
— Se você me segurar, não vai ser assim tão ruim — falou.
— E agora Sir Hugo está com a mão no interruptor e olha o cronômetro.
— DEZ — disse outra voz, forte e sonora como o toque de um sino.
Bond abriu o chuveiro, e a água jorrou sobre seus corpos apertados um contra o outro.
— NOVE — reboou a voz do que controlava o tempo.
— Os operadores do radar estão olhando as telas. Nada, exceto uma massa de linhas onduladas. . .
— OITO.
— Todos estão usando tampões nos ouvidos. A casamata deve ser indestrutível. As paredes de concreto têm três metros e meio de espessura. O teto em pirâmide tem sete metros e pouco de espessura na ponta.. .
— SETE.
— Primeiro o rádio sustará o mecanismo do tempo nas turbinas. Porá em movimento o cata-vento. Uma coisa flamejante como uma rodinha de fogo de artifício. . .
— SEIS.
— As válvulas se abrirão. Combustível líquido, Fórmula secreta. Coisa formidável. Dinamite. Cai dos tanques de combustível ...
— CINCO.
— Aceso pelo pino giratório, quando o combustível chega ao motor do foguete. . .
— QUATRO.
— enquanto que a água oxigenada e o permaganato já se misturaram, tornaram-se vapor, e as bombas das turbinas começam a girar.. .
— TRÊS.
— bombeando o combustível inflamável, através do motor, na cauda do foguete, para a cavidade exaustora. Calor gigantesco. . . 3500 graus...
— DOIS.
— Sir Hugo está prestes a apertar o botão. Está olhando pela abertura. O suor lhe umedece a fronte. Completa tensão aqui. Tremenda tensão.
— UM.
Nada senão o ruído da água, caindo incessantemente nos dois corpos agarrados.
— FOGO!
O coração de Bond pulou para a garganta ao ouvir o grito. Sentiu Gala estremecer. Silêncio. Nada, senão o sibilar da água...
— Sir Hugo deixou a casamata. Vai caminhando calmamente para a borda dos penhascos. Tão confiante! Passou agora para o elevador. Vai descer. Naturalmente. Deve ir até o submarino. As telas de televisão mostram um pouco de vapor vindo da cauda do foguete. Mais alguns segundos. Sim, ele se encontra no cais. Olhou para trás e levantou o braço no ar. Bom velho Sir Hu...
Um troar longínquo chegou até Bond e Gala. Mais alto. Mais alto. O chão ladrilhado começou a tremer debaixo dos pés deles. Um clamor de furacão!! Seriam pulverizados. As paredes tremiam, queimavam. As pernas de ambos começaram a descontrolar-se sob seus corpos oscilantes. Segure-a bem. Segure-a bem. Pare com isso! Pare com isso!! PARE COM ESSE BARULHO.
Cristo, ele ia desmaiar. A água estava fervendo. Era preciso fechá-la. Encontrei. Não. O cano arrebentou. Vapor, cheiro, ferro, tinta.
Tire-a daqui para fora! Tire-a daqui para fora!! Tire-a daqui para fora!!!
Depois o silêncio. Silêncio que se podia sentir, apalpar, apertar. E eles estavam no chão do escritório de Drax. Só a luz do banheiro ainda brilhava. A fumaça ia dissipando-se. Assim como o cheiro horrível de ferro queimado e tinta. Estavam sendo sugados pelo ar condicionado. A parede de aço inclina-se para eles qual bolha gigantesca. Os olhos de Gala estão abertos, e ela está sorrindo. Mas o foguete? Que foi que aconteceu? Londres? Mar do Norte? O rádio. Parece em ordem. Sacudiu a cabeça, e a surdez foi lentamente desaparecendo. Lembrou-se do sabão. Retirou-o das orelhas.
— Atravessando a barreira do som. Viajando perfeitamente bem no centro da tela do radar. Um lançamento perfeito. Receio que não tenham ouvido nada por causa do barulho. Tremendo. Primeiro todo aquele grande lençol de chamas vindo do penhasco, saindo da cavidade exaustora, e depois vocês deveriam ter visto o nariz lentamente surgir da cúpula. Ei-lo que sobe como um enorme lápis de prata. Mantendo-se em posição vertical nesta imensa coluna de chamas e vagarosamente subindo no ar. A flama se espalhando por centenas de quilômetros sobre o concreto. O uivo da coisa deve ter ameaçado seriamente arrebentar nossos microfones. Grandes fragmentos caíram do penhasco, e o concreto parece uma teia de aranha. Tremenda vibração. E a agulha subindo cada vez mais rápida. Cem milhas por hora. Mil. E — o locutor interrompeu o que ia dizendo — o que é que você disse? Ah, sim? Agora está percorrendo o espaço numa velocidade de dez mil milhas horárias! Encontra-se a uma altura de trezentas milhas. Não posso ouvir mais, naturalmente. Só vimos a flama durante alguns segundos. Como uma estrela. Sir Hugo deve estar muito orgulhoso. Encontra-se, no momento, no Canal. O submarino partiu como um foguete. Deve estar fazendo mais de trinta nós. Atirando para cima um colosso de espuma. Já alcançou o East Goodwins agora. Viaja para o norte. Dentro em breve chegará até os navios patrulheiros. Presenciarão o lançamento e a aterrissagem. Mas esse itinerário foi meio surpreendente. Ninguém aqui tinha a menor indicação. Até mesmo as autoridades navais parecem um tanto mistificadas. O Comandante-em-Chefe Nore foi ao telefone. Mas agora é só o que eu lhes posso informar daqui e vou passar a palavra a Peter Trimble, a bordo do HMS Merganzer, num ponto qualquer da Costa Oriental.
Nada, exceto os pulmões funcionando, indicava que os dois corpos largados na lagoa sempre crescente do chão ainda estivessem vivos. Mas seus tímpanos avariados pendiam desesperadamente do ruído de estática que veio durante alguns instantes do gabinete de metal todo empipocado. Agora teriam o veredicto do seu trabalho.
— Aqui fala Peter Trimble. Temos uma linda manhã — retifico — tarde, aqui. Um pouco ao norte de Goodwin Sands. Calmo como um lago. Não há vento. O sol brilha alegremente. A área compreendida pelo alvo foi declarada limpa, sem nenhuma embarcação. Não é assim, Comandante Edwards? Sim, o Capitão diz que está tudo inteiramente limpo. Por enquanto nada se vê na tela do radar. Não me é permitido informar o raio em que o pegaremos. Por motivos de segurança, e essa coisa toda. Mas nós só pegaremos o foguete por uma fração de segundo. Não está certo o que digo, Capitão? Mas o alvo começa a aparecer na tela. Não se pode vê-lo da ponte, naturalmente. Deve estar a setenta milhas daqui, na direção do norte. Vimos o “Explorador da Lua” subindo. Espetáculo assombroso! O barulho semelhante a um trovão. Uma longa chama saía da cauda. Devia estar já a dez milhas de distância, mas não era possível deixar de ver a luz. Não é isto, Capitão? Ah, sim, compreendo. Bom, isto é muito interessante. O enorme submarino se aproxima rapidamente. Está apenas a uma milha de distância. Suponho que seja aquele onde se encontra Sir Hugo com seus homens. Nenhum de nós aqui foi informado de coisa alguma a seu respeito. O Capitão Edwards diz que não responde à lâmpada Aldis. Não traz distintivo de navegação. Muito misterioso. Peguei-o agora mesmo. Está bem nítido em meus binóculos. Mudamos de rumo para tentar a intercepção. O Comandante diz que não é um dos nossos. Acha que deve ser estrangeiro. Atenção! Mostrou agora suas cores. O que vem a ser isto? Santo Deus! O capitão diz que é um submarino russo. Puxa! Agora está arriando as bandeiras e submergindo. Bang! Ouviram? Atiramos visando a proa, mas já desapareceu. Que é isto? Ah, o operador do asdic informa que está acelerando cada vez mais, debaixo da água. Vinte e cinco nós. Puxa! De qualquer modo, o submarino não poderá ver muita coisa debaixo da água, porém encontra-se agora bem na área do alvo. Passam vinte minutos das doze horas. O “Explorador” deve ter mudado seu rumo e prepara agora a descida. A umas mil milhas. Velocidade de descida, dez mil milhas horárias. Estará aqui dentro de segundos. Espero que não se verifique tragédia alguma. O submarino russo encontra-se bem dentro da zona perigosa. O operador do radar está acenando para nós. É o sinal para avisar que está na hora. Vem chegando. Vem chegando! . . . Não se ouve o mais leve ruído! deus do céu! Que é isto? Cuidado! Cuidado! Uma terrível explosão.. . Uma nuvem negra se eleva no ar. Uma gigantesca vaga, como a de um maremoto, aproxima-se rapidamente de nós. Uma vaga enorme! O submarino! Santo Deus... vimo-lo agora saltar fora da água e voltar a mergulhar, de quilha para o ar! Vem chegando. . .! Vem chegando! ...
CAPÍTULO 25
ZERO MAIS
Duzentos mortos confirmados, até agora, e aproximadamente o mesmo número de pessoas desaparecidas — informou M.
— Ainda estão chegando notícias da costa oriental, e as informações da Holanda não são das melhores. Foram inutilizadas muitas milhas de suas defesas navais. A maioria de nossas perdas ocorreu nas unidades patrulheiras. Duas delas viraram, incluindo o Merganzer. O Comandante desapareceu. O camarada da B. B. C. também. Os navios-faróis de Good-win partiram as amarras. Ainda não recebemos notícias da Bélgica e da França. Haverá contas bem pesadas a pagar, quando tudo isto ficar em ordem...
Era na tarde seguinte, e Bond, com uma bengala de ponta de borracha ao lado da cadeira, voltava a sentar-se onde tudo havia começado: do outro lado da escrivaninha daquele homem calmo, de frios olhos cinzentos, que o convidara para jantar e jogar bridge, há cem anos atrás.
Por baixo da roupa, Bond era uma perfeita e entrelaçada teia de esparadrapo. A dor queimava-lhe as pernas, sempre que tentava mexer os pés. Um traço vermelho cortava-lhe a face esquerda e a parte superior do nariz. O linimento, feito à base de ácido pícrico, cintilava à luz que entrava pela janela. Segurava um cigarro, como podia, na mão enluvada. Inacreditavelmente, M. tinha-o convidado a fumar.
— Algumas notícias do submarino, chefe? — perguntou Bond.
— Já o localizaram — disse M. com satisfação. — Adernado a cerca de trinta braças de profundidade. O navio de salvamento que deveria localizar os restos do foguete encontra-se agora por cima dele. Os mergulhadores já estiveram no fundo, e não houve resposta aos sinais feitos no casco. O embaixador soviético esteve no Foreign Office esta manhã. Parece ter declarado vir a caminho um navio salva-vidas, proveniente do Báltico, mas respondemos que não podíamos esperar, visto que, tratando-se de um navio naufragado, constitui um perigo para a navegação, no local onde está. — M. riu. — Com efeito, seria um perigo se alguém se dispusesse a navegar a trinta braças de profundidade, em pleno Canal. Contudo, estou satisfeito por não ser membro do Ministério — acrescentou friamente. — Tem estado em sessão permanente, desde o final da transmissão radiofônica. Vallance conseguiu entrar em contato com os tais advogados de Edinburgh, antes de eles abrirem a mensagem de Drax para o mundo. Parece ser um documento terrível, como se tivesse sido escrito pelo próprio Jeová. Vallance levou-o ao Governo, na noite passada, e ficou no 10, Downing Street, para esclarecer pontos ainda não averiguados.
— Eu sei — disse Bond. — Ele esteve telefonando constantemente para o hospital, procurando saber detalhes, até depois da meia-noite. Eu mal podia raciocinar direito, devido aos entorpecentes que me aplicaram. E que vai acontecer agora?
— Vão tentar abafar a coisa, com a maior embromação de que se teve notícia até hoje em toda a História. Uma quantidade enorme de lero-lero científico, explicando que o combustível foi usado só pela metade. Deu-se uma inesperada e potente explosão. Serão pagas indenizações. Perda trágica de Sir Hugo Drax e sua valiosa equipe. Grande patriota. Perda trágica de um dos submarinos de Sua Majestade. Último modelo experimental, ordens mal compreendidas. Tudo muito triste. Felizmente, perdeu-se uma tripulação mínima. Os parentes mais próximos serão informados. Trágica perda de um radialista da B.B.C. Inacreditável erro ao confundir a insígnia branca com as cores navais soviéticas. O desenho é muito semelhante. A bandeira branca foi recuperada no naufrágio.
— Mas que me diz da explosão atômica? — indagou Bond. — Radiações, poeiras radioativas e tudo isso. . . A famosa nuvem em forma de cogumelo. Com certeza isso vai ser um problema para explicar.
— Aparentemente, não estão muito preocupados com a questão — disse M. — A nuvem vai passar como formação normal, após uma explosão daquela envergadura. O Ministério do Abastecimento conhece toda a história. Foi preciso contar-lhes. Seus homens andaram percorrendo ontem à noite toda a costa oriental, com contadores Geiger, e ainda não houve qualquer notícia positiva. — M. sorriu friamente. — A nuvem terá de descer em algum lugar, claro, mas por uma feliz circunstância, o vento está empurrando-a para o norte. De volta a casa, como se poderia dizer. . .
Bond esboçou um sorriso, com dificuldade.
— Compreendo. Que coisa apropriada.
— Evidentemente — prosseguiu M., enchendo o cachimbo — haverá por aí uma série de boatos desagradáveis. Já começaram, aliás. Muita gente viu você e Miss Brand, serem retirados em padiolas. Depois, há o caso da Bowaters contra Drax, pela perda de todo aquele material de impressão. Haverá também inquérito sobre o rapaz que foi morto no Alfa Romeo. E alguém terá de explicar como se encontraram os restos de seu automóvel, entre os quais, — e nesta altura, M. olhou acusadoramente para Bond — foi encontrado um Colt de cano longo. E temos ainda o Ministério de Abastecimento. Vallance teve de chamar alguns de seus homens, ontem, para limpar aquela casa da Ebury Street. Mas essa gente está treinada em guardar segredo. Não será por aí que se descobrirá alguma coisa. Naturalmente, será um negócio arriscado. Mas a mentira de grandes proporções sempre o foi. E qual seria a alternativa? Encrencas com a Alemanha? Guerra com a Rússia? Muita gente, dos dois lados do Atlântico, ficaria mais do que satisfeita se lhe déssemos um motivo para agir.
M. fez uma pausa e chegou um fósforo ao cachimbo. Depois continuou:
— Se a história fôr engolida, não sairemos muito mal de tudo isto. Quisemos um de seus submarinos ultravelozes e ficaremos satisfeitos com as pistas que conseguimos descobrir a respeito de suas bombas atômicas. Os russos sabem que nós sabemos que o jogo deles fracassou. Malenkov não está muito firme no poder, e isto pode muito bem significar outra rebelião entre os senhores do Kremlin. Quanto aos alemães, bem... todos nós sabemos que ainda ficou muito nazismo espalhado por aí, e isto servirá para que o Ministério seja um pouco mais cauteloso, no tocante ao rearmamento da Alemanha. Entre as consequências de menor vulto — disse com um sorriso — destaca-se a de que o trabalho de segurança de Vallance, e o meu também, aliás, vão ficar um pouco mais fáceis para o futuro. Esses políticos não veem que a era atômica criou o mais letal sabotador da história da humanidade: o homenzinho com a valise pesada.
— E a imprensa vai engolir essa história? — perguntou Bond, duvidoso.
M. sacudiu os ombros.
— O Primeiro-Ministro teve esta manhã um encontro com os jornalistas — respondeu M., chegando outro fósforo ao cachimbo — e creio que conseguiu tudo da melhor maneira. Se os boatos se intensificarem mais tarde, ele terá, provavelmente, de convocá-los novamente e dizer-lhes parte da verdade. Então, eles se portarão bem. Sempre se portaram, quando o negócio é importante de verdade. O principal é ganhar tempo e manter afastados os boateiros. No momento, todos estão de tal maneira orgulhosos do “Explorador da Lua”, que não indagarão muito minuciosamente que foi que não deu certo.
Ouviu-se um leve zumbido no intercomunicador da escrivaninha de M., e uma luzinha vermelha piscou repetidas vezes. M. pegou no fone e curvou-se. — Alô. — Houve uma pausa. — Atenderei na linha do Ministério. — Apanhou o receptor branco, na mesa onde havia quatro telefones. — Sim. Está falando. — Nova pausa. — Pronto, sir? Escuto. — M. premiu o botão do misturador de sons. Segurou o fone junto ao ouvido, e nem um som chegou até aos ouvidos de Bond. Houve uma longa pausa, durante a qual M. ia puxando uma ou outra baforada do cachimbo, com a mão esquerda, enquanto escutava. Depois, tirou-o da boca. — De acordo, sir. É isso mesmo, sir. — Outra pausa. — Estou certo de que o meu homem teria ficado extremamente orgulhoso, sir. Mas, naturalmente, como Vossa Excelência sabe, é uma regra aqui no serviço. — M. franziu a testa. — Se me permite dar uma opinião, sir, creio que não seria nada aconselhável. — Uma pausa e a fisionomia de M. se desanuviou. — Obrigado, sir. Claro, Vallance não tem o mesmo problema. É o mínimo que ela merece, sir. — Outra pausa. — Compreendo. Assim será feito, sir. — Nova pausa. — É muita bondade sua, sir.
Depois de mais alguns cumprimentos, M. colocou o telefone branco no gancho, e o botão do misturador voltou à sua posição inicial de “livre”.
Por uns instantes, M. continuou fitando o telefone, como se em dúvida a respeito do que fora dito. Depois rodou a cadeira para longe da escrivaninha e olhou pela janela, pensativo.
Reinou o silêncio na sala, e Bond remexeu-se na cadeira, para aliviar a dor que lhe invadia novamente o corpo.
O mesmo pombo de segunda-feira, ou talvez outro, veio descansar no peitoril da janela, com o mesmo ruflar de asas. Caminhava para um e outro lado, baixando a cabeça e arruinando. Depois, voou para as árvores do parque. O tráfego murmurava, sonolento, na distância.
Como estivera perto, pensou Bond, de embarcar desta para melhor. Quão perto estivera de não haver nada mais do que a sirena distante da ambulância sob um sinistro céu negro e alaranjado, o cheiro de queimado, os gritos das pessoas ainda presas nos edifícios. O suave bater do coração de Londres, silenciado por uma geração. E toda uma geração de sua gente, morta nas ruas, entre as ruínas fumegantes de uma civilização que talvez não se erguesse de novo senão daí a muitos séculos.
Tudo isso teria acontecido por causa de um homem que fazia trapaça nas cartas, desdenhosamente, para alimentar o fogo devorador de seu ego maníaco; teria acontecido, se não fosse o presidente do clube Blades que o descobriu; se não fosse M., que concordara em ajudar um velho amigo; se não fosse a lição meio recordada por Bond e aprendida com um perito em trapaças; se não fossem as precauções de Vallance; se não fosse a boa cabeça de Gala para cálculos; se não fosse por uma série completa de circunstâncias fortuitas, de oportunidades .
E quem preparou a série?
Ouviu-se um ranger agudo, quando a cadeira de M. girou. Bond, cautelosamente, voltou a focalizar sua atenção nos olhos cinzentos do outro lado da escrivaninha.
— Era o Primeiro-Ministro — explicou M., em voz agridoce. — Diz que deseja que tanto você como Miss Brand saiam do País. — M. baixou os olhos e pousou-os, impassível, no fornilho do cachimbo. — Vocês dois têm de dar o fora até amanhã à tarde. Há muitas pessoas, neste caso, que lhes conhecem as caras. Poderão somar dois e dois e saberem que são quatro, quando virem em que estado lamentável se encontram. Vão para qualquer lugar que lhes agrade. Despesas sem limite de verba para ambos. Qualquer importância que precisarem. Vou falar com o Tesoureiro. Fique fora por um mês. Mas completamente fora de circulação, entendeu? Vocês dois já deveriam ter partido esta tarde, mas a moça tem um compromisso amanhã às onze horas. No Palácio. Foi-lhe concedida a George Cross. Mas isso não será divulgado até ao novo ano, claro. Gostaria de encontrá-la, qualquer dia. Deve ser uma excelente moça. Aliás — a expressão de M., quando levantou os olhos, era indecifrável — o Primeiro-Ministro tinha na ideia qualquer coisa para você, também. Esquecera que nós, aqui, não admitimos essas coisas. De modo que me pediu para lhe agradecer em nome dele. Disse algumas palavras simpáticas a respeito de nosso serviço. É muito gentil.
M. esboçou um daqueles raros sorrisos que iluminavam seu rosto com uma vivacidade e calor imediatos. Bond retribuiu o sorriso. Eles compreendiam bem as coisas que não chegavam a ser ditas.
Bond percebeu que era tempo de sair. Levantou-se e disse:
— Muito obrigado, chefe. Estou muito satisfeito pela moça.
— Bom, então está tudo combinado — disse M., com uma nota de despedida na voz. — Por hoje basta. Vê-lo-emos aqui dentro de um mês. Ah, é verdade — acrescentou com naturalidade — passe pelo seu escritório antes de sair. Encontrará uma coisa que eu lhe deixei lá. Uma pequena lembrança .
James Bond desceu pelo elevador e foi mancando pelo corredor, até seu gabinete. Quando cruzou a porta interior, encontrou sua secretária arrumando alguns papéis na escrivaninha ao lado da dele.
— 008 já está de volta? — perguntou.
— Sim — respondeu ela, sorrindo feliz. — Deve voar esta noite para cá.
— Ótimo, fico alegre por saber que você terá companhia — disse Bond. — Vou partir novamente.
— Oh! — exclamou a moça. Olhou rapidamente para ele e depois desviou o olhar. — Você está mesmo com cara de quem precisa de um bom descanso.
— Pois vou tê-lo mesmo. Um mês de exílio. — Pensou em Gala. — Vai ser um período de puras férias. Nada mais. Alguma coisa para mim?
— Seu novo carro está lá embaixo. Já o examinei. O homem disse que você lhe tinha dado ordens para que o trouxessem para experiência esta manhã. É lindo! Ah, é verdade. E tem ainda o pacote que veio do gabinete de M. Quer que o desembrulhe?
— Sim, por favor. . .
Bond sentou-se à escrivaninha e olhou o relógio. Cinco horas. Sentia-se fatigado. Sabia que iria sentir o mesmo durante alguns dias. Sempre tinha essas reações, no final de uma difícil missão. Era a consequência dos dias de nervos em tensão, dos temores, do medo.
Sua secretária voltou ao escritório, com duas caixas de papelão, de aspecto pesado. Colocou-as sobre a escrivaninha, e ele abriu a de cima. Quando viu a espécie de papel que envolvia o objeto, percebeu logo o que estava para vir.
Havia um cartão dentro da caixa. Bond pegou-o e leu. Na tinta verde usada por M., este dizia: “Você pode precisar destas coisas.” Não havia assinatura.
Bond desembrulhou o papel impermeável e sopesou a nova e refulgente Beretta em sua mão. Um lembrete. Não. Uma recordação. Bond sacudiu os ombros e fez a arma deslizar por baixo do casaco, para o coldre vazio. Levantou-se com alguma dificuldade.
— No outro embrulho, você encontrará um Colt de cano longo — disse ele à secretária. — Guarde até eu regressar. Então, eu o levarei ao fogão da cantina e jogá-lo-ei lá dentro.
Caminhou para a porta:
— Adeus, Lil. Lembranças a 008, e diga-lhe que tome cuidado com você. Eu estarei na França. Estação F terá meu endereço. Mas só em caso de emergência.
A moça sorriu.
— Que deverei considerar uma emergência? — perguntou.
Bond soltou uma pequena risada.
— Qualquer convite para um tranquilo jogo de bridge, por exemplo — respondeu ele.
Saiu mancando e fechou a porta.
O Mark VI, modelo 1953, tinha uma carroçaria esportiva e elegante, cor cinza de navio de guerra como o velho quatro litros e meio que fora para a sepultura numa garagem de Maidstone. O estofamento de couro azul-marinho deu um luxuoso gemido de coisa nova, quando Bond subiu, desajeitadamente, para o assento ao lado do motorista de provas.
Meia hora depois, o motorista ajudou-o a descer na esquina de Birdcage Walk com Queen Anne’s Gate.
— Se o senhor quisesse, poderíamos ter feito maior velocidade — disse o motorista. — E se nos autorizar a ficar com ele por mais uns quinze dias, poderemos prepará-lo para chegar aos cento e sessenta horários.
— Mais tarde — respondeu Bond. — Está comprado. Mas com uma condição. De que você o leve à terminal do ferry-boat na estação de Calais, amanhã à tarde.
O motorista sorriu:
— O.K. Eu o levarei. Verei o senhor no cais, está bem?
— Combinado. Siga com cuidado pela A-20. A estrada de Dover está muito perigosa, estes últimos dias.
— Não se preocupe, sir — respondeu o motorista, pensando que aquele homem devia ser um tanto medroso, apesar de tudo o que parecia conhecer a respeito de automóveis. — Não acontecerá nada.
— Nem todos os dias — advertiu ainda Bond, sorrindo. — Vê-lo-ei em Calais.
Sem esperar a resposta, saiu mancando, apoiado à bengala, por entre os raios de luz poeirenta do crepúsculo, filtrados através das árvores do parque.
Sentou-se defronte da ilha, no lago, e puxou da cigarreira, acendendo um cigarro. Olhou o relógio. Cinco para as seis. Lembrou-se de que ela não era o tipo de pequena que não seria pontual num encontro. Reservara a mesa de um canto parar o jantar. E depois? Mas, primeiro, haveria o longo e requintado planejar. De que gostaria ela? Onde gostaria de ir? Onde já teria estado? Alemanha, com certeza. França? Deixaria Paris de lado. Poderiam visitar a cidade no regresso. Mas, na primeira noite, iriam o mais longe que pudessem, bem longe do Pas de Galais. Havia aquela casa de campo, com uma comida maravilhosa, entre Montreuil e Étaples. Depois, a descida ao longo do Loire. Os pequenos lugares perto do rio, para alguns dias. As cidades dos castelos, não. Lugares como Beaugency, por exemplo. Depois, vagarosamente, para o sul, sempre seguindo pelas estradas do Oeste, evitando a vida em lugares mundanos e hotéis de cinco estrelas. Explorando lentamente o caminho. Bond teve um sobressalto. Explorar o quê? Um ao outro? Seria que ele estava levando a pequena a sério, demasiado a sério?
— James.
Era uma voz clara, bem timbrada, um pouco nervosa. Não a voz que ele esperava.
Levantou os olhos. Ela estava de pé, a poucos metros de distância. Bond reparou que usava uma boina preta, colocada num ângulo brejeiro. Tinha um ar excitante, misterioso, como alguém que vemos, em terra estranha, conduzindo sozinha um carro aberto. Alguém inatingível e mais desejável do que qualquer outra pessoa que já se conheceu até hoje. Alguém que está a caminho de um encontro amoroso com outro. Alguém que não é para você.
Bond ergueu-se, e deram-se as mãos.
Foi ela quem soltou a sua. Não se sentou.
— Gostaria muito que você fosse amanhã, James — disse Gala.
Seus olhos eram ternos quando o fitou. Ternos e suaves, mas, pensou ele, algo evasivos. Bond sorriu.
— Amanhã de manhã? Ou amanhã à noite? — disse ele.
— Não seja ridículo — respondeu Gala, rindo e corando. — Amanhã no Palácio.
— E depois? Que tenciona você fazer?
Gala encarou-o, cautelosamente. Que seria que esse olhar lembrava a ele? O olhar de Morphy? O olhar com que fitara Drax, na derradeira mão do jogo no Blades? Também não. Havia algo mais. Ternura? Pena?
A moça olhou por cima do ombro. Bond deu meia volta. Mais adiante viu a figura de um rapaz alto, de cabelos louros e cortados curtos. Estava de costas para ambos, sem fazer qualquer movimento. Matando o tempo.
Bond voltou a cabeça para Gala, e os olhos dela encontraram os seus.
— Vou-me casar com aquele homem — declarou ela, simplesmente. — Amanhã de tarde. — E então, como se não houvesse necessidade de outra explicação, acrescentou: — O nome dele é Vivian, Detetive-Inspetor.
— Ah, sim — disse Bond — compreendo. — Sorriu, um tanto amargo.
Houve um momento de silêncio, durante o qual seus olhos se desviaram para longe.
Entretanto, por que motivo deveria ele esperar outra coisa diferente? Um beijo. O contato de dois corpos assustados, agarrando-se no meio do perigo. Nada mais houvera. Depois, o anel de noivado sempre estivera no dedo dela, para que Bond não tivesse dúvidas. Por que supusera ele, automaticamente, que a moça o usara apenas como estratagema para que Drax não excedesse os limites? Por que imaginara que ela compartilhava de seus desejos e de seus planos?
E agora? conjeturava Bond. Sacudiu os ombros para expulsar a dor do fracasso... essa dor que é bem maior do que o prazer do sucesso. Afastar-se, era agora a única saída. Sair do caminho dessas duas vidas jovens e levar seu frio coração para qualquer outro lugar. Nada de penas. Nada de falsos sentimentos. Tinha de representar o papel que ela esperava dele. O homem duro, mundano. O Agente Secreto. O homem que era apenas uma silhueta.
Gala fitava-o, bastante nervosa, esperando ver-se desligada do estranho que tentara penetrar no átrio de seu coração.
Bond sorriu, com calor.
— Estou com ciúme — disse ele. — Tinha outros planos para você amanhã à noite.
Gala retribuiu o sorriso, grata por ter sido quebrado o silêncio.
— Quais eram esses planos? — indagou.
— Ia levá-la a uma casa de campo na França. E, depois de um jantar maravilhoso, pretendia verificar se é verdade o que dizem a respeito do grito de uma rosa.
A moça riu.
— Lamento muito não poder participar desses planos. Mas existem tantas outras, esperando serem colhidas.
— Sim, creio que sim — disse Bond. — Então, adeus, Gala.
Estendeu-lhe a mão.
— Adeus, James.
Bond tocou em Gala Brand pela derradeira vez e, depois, separaram-se, caminhando cada qual ao encontro de suas tão diferentes vidas.
CAPÍTULO 20
A JOGADA DE DRAX
Havia três diferentes fontes de dores no corpo de Gala. A dor latejante atrás da orelha esquerda, a carne mordida nos pulsos, e o queimar das correias em torno de seus tornozelos.
Cada saliência do terreno, cada desvio, cada pressão repentina do pé de Drax nos freios ou no acelerador, despertava uma dessas dores e lhe irritava os nervos. Se ao menos tivesse sido colocada mais presa ao assento de trás. Mas só havia lugar para seu corpo rolar alguns centímetros no assento, de modo que se via obrigada a contorcer constantemente o rosto machucado para evitar o contato com as paredes de brilhante couro de porco.
O ar que respirava era abafado, com um cheiro de forração nova de couro, fumaça do cano de descarga e, de quando em quando, o mais acentuado de borracha queimada, cada vez que Drax raspava os pneumáticos numa esquina de curva acentuada.
No entanto, o desconforto e a dor não eram nada. Krebs! Curioso como seu temor e repulsa por Krebs a atormentava mais que tudo. As outras coisas eram grandes demais. O mistério de Drax e seu ódio pela Inglaterra. O enigma do seu perfeito domínio da língua alemã. O “Explorador da Lua”. O segredo da cápsula atômica. Como salvar Londres. Eram assuntos que há muito tempo ela afastara para um recanto do cérebro como coisas insolúveis.
Mas a tarde passada a sós com Krebs estava presente e terrível em seu espírito, e este voltava sempre e sempre aos detalhes da mesma, como uma língua em cima de um dente dolorido.
Muito tempo depois de Drax ter partido, ela continuara a fingir inconsciência. A princípio, Krebs se ocupara com as máquinas, conversando com elas em alemão, numa falinha de bebê, toda carinhosa.
— Pronto, minha Liebchen. Agora está melhor, não está? Uma gota de óleo para você, minha Pupperl? Como não? Vai já. Não, não sua preguiçosa. Eu disse mil voltas. Não novecentas. Vamos ver agora. Nós podemos fazer coisa melhor, não podemos? Sim, minha Schatz. É isto. Rodando, rodando, lá vamos nós. Para cima e para baixo. Rodando, rodando. Deixe eu limpar sua carinha bonita, para você, para nós podermos ver o que o pequenino mostrador está dizendo. Jesus Maria, bist du ein braves Kind!
E assim continuara, ora ficando em pé, diante de Gala, ora esgaravatando o nariz e chupando os dentes, numa atitude horrível de ruminante. Até que foi permanecendo cada vez mais tempo diante dela, esquecendo as máquinas, conjeturando, tomando uma resolução.
E então sentira a mão dele desabotoar o botão de cima de seu vestido, e o recuo (automático de seu corpo teve de ser disfarçado por um grunhido realístico e uma pantomima de volta de consciência.
Pedira água, e ele fora buscar no banheiro, trazendo um pouco num copo de escova de dentes. Depois puxara uma cadeira de cozinha para a frente dela e sentara-se atravessado, de costas para o assento, o queixo descansando na última travessa do encosto. Ficara então a fitá-la especulativamente, por baixo das pálpebras caídas, com aqueles olhos desbotados.
Ela fora a primeira a romper o silêncio.
— Por que me trouxeram aqui? Para que são todas essas máquinas?
Krebs lambera os lábios de sua boquinha vermelha e bicuda, aberta sob a mancha de bigode amarelo, e foi formando lentamente um sorriso em forma romboide.
— Isto é um engodo para passarinhos. Dentro em breve atrairá um passarinho para seu ninho quente. Então o passarinho porá um ôvo. Oh, um ôvo tão grande, redondo! Um ôvo lindo!
A parte inferior de seu rosto ria encantada, enquanto seus olhos divagavam.
— A mocinha bonita está aqui porque, de outro modo, poderia assustar o passarinho, e este ir embora. E isto seria tão triste, não é mesmo? — o homem cuspiu as três palavras seguintes: — Cadela inglesa e suja!
Seus olhos tornaram-se atentos, cheios de resolução. Puxou a cadeira mais para perto, de modo que seu rosto ficou muito próximo ao dela, e ela se viu envolvida pelo miasma de sua respiração.
— E agora, cadela inglesa, diga para quem você está trabalhando? — Esperou. — Você precisa me responder, sabe? — avisou suavemente. — Nós estamos sozinhos aqui. Não há ninguém para lhe ouvir gritar.
— Não seja estúpido — disse Gala em desespero de causa. — Como eu poderia estar trabalhando para outra pessoa que não fosse Sir Hugo? (Krebs sorriu ao ouvir o nome).
— Eu só estava curiosa a respeito do plano de voo...
Gala iniciou uma explicação arrastada, a respeito de seus números e os de Drax, e de como desejara partilhar do sucesso do “Explorador da Lua”.
— Tente novamente — sussurrou Krebs, quando ela terminou. — Você deve sair-se melhor que isso — e, subitamente, seus olhos haviam-se tornado chispantes de crueldade, e suas mãos se estenderam para ela, por trás do encosto da cadeira. . .
No assento de trás do veloz Mercedes, Gala rangeu os dentes e choramingou com a lembrança dos dedos leves se arrastando pelo seu corpo, tateando, beliscando, puxando, enquanto seus olhos, durante o tempo todo, fitavam curiosamente os dela, até que, finalmente, ela juntou saliva na boca e deu uma cusparada bem no meio da cara do homem.
Este nem se dera o trabalho de parar para limpar o rosto, mas, de repente, aplicara-lhe um golpe violento, e ela gritara uma só vez, para em seguida desmaiar.
E então se vira sendo empurrada para a parte traseira do carro, com um tapete atirado em cima dela, e eles partiram velozmente pelas ruas de Londres. Gala ouvia outros carros perto deles, o campainhar frenético de uma bicicleta, um grito de vez em quando, o grunhido animalesco de uma velha klaxon, o ronronar de uma lambreta, um rangir de freios, e compreendeu que voltara ao mundo real, que pessoas inglesas, amigos, estavam em volta dela. Lutara para se pôr de joelhos e gritar, mas Krebs devia ter-lhe pressentido os movimentos, porque as mãos dele se encontraram repentinamente em seus tornozelos, prendendo-os à barra de descanso para os pés, no chão. Compreendeu que estava perdida, e as lágrimas lhe correram pelas faces, enquanto rezava para que alguém, de um jeito ou de outro, chegasse a tempo.
Isto acontecera há menos de uma hora, e agora ela podia garantir que haviam chegado a uma cidade grande — Maidstone, se estava sendo levada de volta para a base.
No relativo silêncio do avanço do Mercedes por dentro da cidade, ela ouviu, subitamente, a voz de Krebs. Havia nela um quê de ansioso.
— Mein Kapitän, tenho estado a observar um carro já há algum tempo. Não resta dúvida de que está nos seguindo. Raramente usa os faróis. Está apenas a uns cem metros de distância, atrás de nós agora. Eu acho que é o carro do Comandante Bond.
Drax grunhiu de surpresa, e ela ouviu seu corpanzil virar-se todo para dar uma rápida olhada.
Praguejou violentamente, e depois veio o silêncio, dentro do qual ela pôde sentir o carro grande se movimentando em curvas e se esforçando por ganhar terreno dentro do trânsito.
— Ja, sowas! — disse finalmente Drax. Sua voz parecia preocupada. — Quer dizer que aquela velha peça de museu ainda pode movimentar-se. Tanto melhor, meu caro Krebs. Parece que ele está sozinho.
Deu uma risada desagradável:
— Deixe que ele fique por nossa conta, porque se sobreviver, nós o meteremos no mesmo saco com a mulher. Ligue o rádio. Estação local. Logo saberemos se existe algum obstáculo.
Ouviu-se um rápido estalido da estática e depois Gala escutou a voz do Primeiro-Ministro, a voz das grandes ocasiões de sua vida, vinda em fragmentos entrecortados, enquanto Drax punha o carro em terceira e acelerava para sair da cidade: “. . . arma criada pela engenhosidade do homem. . . mil milhas acima no firmamento. . . área patrulhada pelos navios de Sua Majestade. . . planejado exclusivamente para a defesa de nossa amada ilha. . . uma longa era de paz... desenvolvimento para a grande viagem do homem além dos limites deste planeta. . . Sir Hugo Drax, esse grande patriota e benfeitor do nosso País...”
Gala ouviu o estrondear da gargalhada acima do uivar dos ventos, um vasto latido de desprezo e triunfo e, em seguida, o rádio foi desligado.
— James — sussurrou Gala consigo mesmo. — Só resta você. Tenha cuidado. Mas ande depressa.
O rosto de Bond era uma máscara de poeira e imundície com o sangue das moscas e outros insetos que se haviam esmagado contra ele. Muitas vezes tivera de retirar uma das mãos com câimbra do volante, para limpar os óculos, mas o Bentley ia portando-se muito bem, e ele tinha certeza de que pegaria o Mercedes.
Estava quase alcançando noventa e cinco na linha reta, pouco antes da entrada para Leed Castle, quando luzes possantes foram emitidas por trás dele, e uma buzina de quatro tons executou seu ousado “pam-pim-pim-pam” quase dentro de seu ouvido.
A aparição de um terceiro carro na corrida era quíase inacreditável. Bond mal se dera o trabalho de olhar no espelho retrovisor, desde que havia saído de Londres. Ninguém, a não ser um corredor de automóvel ou um homem desesperado, poderia ter emparelhado com eles, e seu espírito se encontrava numa confusão quando, automaticamente, afastou-se para a esquerda e viu, com o rabo dos olhos, um carro baixo, vermelho como os dos bombeiros, emparelhar com ele e afastar-se com uma diferença de umas dez milhas, uma hora extra em seu relógio.
Vislumbrou o famoso radiador Alfa e, na borda do capô, escrito em letras grandes, brancas, as palavras: Attaboy II. Em seguida, viu o rosto sorridente de um rapazinho em mangas de camisa, que espetou dois dedos vermelhos no ar antes de desaparecer na mistura de sons que um Alfa em disparada compõe com o gemido de seu escape, o espooar do cano de descarga e o uivo trovejante do transmissor.
Bond sorriu cheio de admiração ao levantar a mão para o chofer. Alfa Romeu, oito cilindradas, com surpercarburadores, pensou consigo mesmo. Deve ser quase tão velho quanto o meu. ‘32 ou ‘33, provavelmente. E só a metade de meus cc. Targa Florio, em 1931, e depois disso fez bonito em toda a parte. Com certeza era um tipo desses de cabeça quente, ouvindo uma das estações da RAF dos arredores. Tentando voltar de alguma festa a tempo de assinar o ponto antes de ser citado num relatório. Observou benèvolamente quando o Alfa balançou a cauda na curva em S ao lado de Leeds Ctostle e, em seguida, passou uivando pelo longo caminho largo em direção à distante bifurcação de Charing.
Bond bem podia imaginar o sorriso de satisfação do rapaz, quando este alcançou Drax: “Ôba. É uma Merc!” E a raiva de Drax, ao ouvir a música impudente da buzina. Deve estar fazendo 105, pensou Bond. Espero que esse maluquinho não saia da estrada. Ficou a olhar os dois jogos de luzes traseiras se aproximando, o rapaz do Alfa se preparando para o truque de surgir por trás e, de repente, acelerar ao máximo, assim que tivesse uma oportunidade para passar.
Pronto. Quatrocentas jardas adiante o Mercedes apareceu, branco, iluminado pelas luzes duplas do Alfa. Havia uma milha de estrada livre na frente, completamente reta. Bond quase sentia os pés do rapaz pisando o pedal mais fundo ainda. Ôba rapaz!
Lá na frente, no Mercedes, Krebs tinha a boca colada ao ouvido de Drax.
— Outro deles — gritou aflito. — Não consigo ver o rosto. Vem vindo para nos passar agora.
Drax deixou escapar uma obscenidade a meia voz. Seus dentes branquejaram no pálido reflexo do painel.
— Vou dar uma lição a esse canalha — falou, endireitando os ombros e agarrando o volante com firmeza com as grandes luvas de couro. Com o canto dos olhos viu o capô da Alfa surgir a estibordo. ‘Tam-pim-pim-pim”, cantava a buzina, suave, delicadamente. Drax virou rápido o volante do Mercedes para a direita e, depois do horrível chocalhar dos metais, trouxe-o novamente para o centro, a fim de corrigir a posição.
— Bravo! Bravo! — gritou Krebs, fora de si com a excitação, ao ajoelhar-se no assento do carro e olhar para trás.
— Dupla capotagem. Passou por cima da cerca de cabeça para baixo. Acho que já está se incendiando. Sim. Estou vendo as chamas.
— Isto dará ao nosso caro Sr. Bond qualquer coisa para refletir — rosnou Drax, respirando pesadamente.
Bond, porém, o rosto impassível, mal examinara o velocímetro, e nada havia a não ser vingança em seu espírito, quando partiu veloz atrás do Mercedes que voava.
Vira tudo. O voo grotesco do carro vermelho, ao virar de rodas para o ar, e tornar a virar, a figura do rapaz projetada para o alto, os braços e as pernas abertos, ao ser cuspido para fora do volante, e o estrondo final, quando o carro saltou a cerca de cabeça para baixo e foi desmoronar-se no campo.
Quando passou disparado, observando as marcas horríveis de grafita deixadas pela derrapagem, seu espírito anotou um toque macabro final. Saindo, não se sabe como, incólume do holocausto, a buzina ainda dava contato, e seu ulular subia para o céu, abrindo estridentemente estradas imaginárias para a passagem do Attaboy II: “Pam-pim-pim-pam. Pam-pim-pim-pam.”
Com que então um homicídio tivera lugar bem debaixo de seus olhos. Ou, pelo menos, uma tentativa de homicídio. Assim, fossem quais fossem seus motivos, Sir Hugo Drax era um criminoso e, provavelmente, um maníaco. Isto, acima de tudo, significava perigo certo para o “Explorador da Lua”. Era o bastante para Bond. Meteu a mão debaixo do painel e, de seu coldre escondido, tirou o Colt Especial do Exército, calibre 45 de cano longo, e colocou-o no assento ao seu lado. A batalha agora era em campo aberto e, de um jeito ou de outro, o Mercedes teria de ser parado.
Usando a estrada como se fosse Donington, Bond pisou o acelerador e ali conservou o pé. Pouco a pouco, com o ponteiro oscilando de cada lado do número cem, começou a diminuir a diferença.
Drax entrou pelo lado esquerdo da bifurcação em Charing e subiu embalado a longa colina. Na frente, dentro do raio gigante de seus faróis, um grande caminhão de transporte, desses de oito rodas, um AEC Diesel, ia subindo a primeira curva do caminho, lutando sob o peso de quatorze toneladas de notícias impressas que levava numa viagem noturna para um dos jornais do East Kent.
Drax praguejou baixinho, ao ver o longo transporte de vinte rolos gigantescos, cada um deles contendo cinco milhas de papel impresso com notícias, amarradas lá em cima. Logo ali, no meio daquela curva traiçoeira em S, no alto da colina.
Olhou no espelho retrovisor e viu o Bentley chegando à bifurcação.
Foi então que teve uma ideia.
— Krebs — o nome saiu como um tiro de pistola. — Tire sua faca.
Um estalido agudo, e o estilete já estava na mão de Krebs. Ninguém perdia tempo, quando havia aquela nota na voz do mestre.
— Vou diminuir a marcha e seguir atrás do caminhão. Tire os sapatos e as meias, suba no capo, e quando eu vier por detrás dele, pule em cima. Eu irei na maior vagareza. Não haverá perigo. Corte as cordas e segure os rolos de papel. Primeiro os da esquerda. Depois os da direita. Nessa altura eu já terei colocado o carro no mesmo nível do caminhão, e quando você tiver cortado o segundo lote, pule no carro. Tenha cuidado para não ser levado com o papel. Verstanden? Also. Hals und Beinbruch!
Drax apagou as luzes dos faróis e contornou a curva a oitenta quilômetros por hora. O caminhão ia vinte jardas adiante, e ele teve de frear com força, a fim de não abalroá-lo. O Mercedes executou uma derrapagem, até o radiador ficar quase debaixo do chassi do caminhão.
Drax fez a mudança para segunda:
— Agora!
Manteve o carro firme como uma rocha, quando Krebs, descalço, passou por cima do para-brisa e foi-se arrastando ao longo do brilhante capo, com a faca na mão.
Num salto, atingiu o ponto visado e começou a cortar as cordas do lado esquerdo. Drax afastou-se para a direita e foi deslizando até ficar paralelo às rodas traseiras do Diesel, a fumaça do óleo vinda do cano de descarga subindo-lhe aos olhos e às narinas.
As luzes do carro de Bond começavam a aparecer no início da curva.
Houve uma série de baques fortes, quando os rolos do lado esquerdo caíram do caminhão para a estrada e foram rolando velozes pela escuridão. Depois, mais baques, ao partirem-se as cordas do lado direito. Um dos rolos arrebentou ao cair, e Drax ouviu um barulho de coisas dilaceradas, quando o papel, desenrolando-se tombou pesadamente num ponto da subida.
Aliviado de sua carga, o caminhão quase pulou para a frente, e Drax teve de acelerar um pouco para alcançar a figura esvoaçante de Krebs, que aterrisou, metade em cima das costas de Gala e metade no assento da frente. Drax pisou até embaixo o acelerador e subiu a colina como um raio, ignorando o grito do chofer do caminhão, que se sobrepôs ao clamor dos pistões, quando ele disparou em frente.
Ao contornar velozmente a curva seguinte, viu o cilindro de dois faróis desenharem-se em curva no céu, acima do topo das árvores, até se tornarem quase verticais. Tremularam ali por um instante, e depois os raios de luz giraram através do espaço e desapareceram.
Uma grande risada, semelhante a um latido de cão, escapou de Drax, e durante a fração de um segundo, tirou os olhos da estrada e levantou o rosto triunfalmente para as estrelas.
CAPITULO 21
“O PERSUASOR”
Krebs ecoou a risada maníaca com outra estridente.
— Um golpe de mestre, mein Kapitän. O senhor precisava ver como eles desciam pela colina. O tal que arrebentou. Wunderschön! Parecia o papel higiênico de um gigante. Este deve ter feito um belo pacote dele. Ele vinha chegando bem na curva. E o segundo foi tão bom quanto o primeiro. Viu a cara do motorista? Zum Kotzen! E a firma Bowater! Um belo negócio foi o que fizeram.
— Você trabalhou bem — observou Drax, conciso, o pensamento noutra coisa.
De repente, levou o carro para o lado da estrada, com um grito de protesto dos pneus.
— Donnerwetter — disse, zangado, quando começou a virar o carro. — Mas nós não podemos deixar o homem ali. Precisamos pegá-lo.
O carro já ia roncando pela estrada abaixo.
— A arma — ordenou Drax, secamente.
Passaram o caminhão no alto da colina. Estava parado, e não se via sinal de motorista. Provavelmente telefonando para a companhia, pensou Drax, diminuindo a marcha ao contornarem a primeira curva. Viam-se luzes em duas ou três casas, e um grupo de pessoas rodeava um dos rolos de papel que ali estava por entre as ruínas do portão da frente de suas casas. Havia mais rolos na borda do lado direito da estrada. À esquerda, um poste telegráfico se inclinava como bêbedo, partido ao meio. Na curva seguinte, via-se o princípio de uma grande confusão de papel estendendo-se para baixo, ao longo da colina, formando guirlandas nas cercas e na estrada, como se fossem os babados de um vestido de baile à fantasia, elefantíaco.
O Bentley tinha quase se espatifado contra as grades que guarneciam o lado direito da curva, protegendo-o de um barranco profundo. Por entre a confusão de ferro retorcido dos mourões, pendia, de capo para baixo, com uma das rodas ainda presa ao eixo quebrado de trás e ali pousada de esguelha como um guarda-chuva surrealista.
Drax se aproximou e, acompanhado de Krebs, saiu do carro e ficou quieto, à escuta.
Não se ouvia o menor som, exceto o do motor de um carro distante, seguindo rápido pela estrada de Ashford, e o trilar de um grilo insone.
Com as armas na mão, eles caminharam cautelosamente por cima dos restos do Bentley, os pés esmagando o vidro partido na estrada. Sulcos profundos haviam sido marcados na margem de grama, e sentia-se o cheiro forte de gasolina, misturado ao de borracha queimada. O metal quente do carro estalava e partia baixinho. O vapor ainda jorrava do radiador espatifado.
Bond estava caído de bruços no fundo do barranco, a uns seis metros de distância do carro. Krebs virou-o. O rosto estava coberto de sangue, mas ele respirava. Revistaram-no completamente, e Drax meteu no bolso a fina Beretta. Depois, juntos, arrastaram-no até a estrada, jogando-o, em seguida, no assento traseiro do Mercedes, com a metade do corpo em cima do de Gala.
Quando ela percebeu quem era, deu um grito de horror.
— Halt’s Maul — rosnou Drax. Foi para o assento da frente e, enquanto ligava o motor, Krebs inclinou-se e se ocupou com um longo pedaço de arame flexível.
— Faça o negócio direito — disse Drax. — Não quero que haja erros. — Refletiu melhor. — Volte depois para junto dos destroços e retire as placas. Depressa. Eu tomo conta da estrada.
Krebs puxou o tapete para cima dos dois corpos inertes e pulou fora do carro. Usando a faca como chave de parafuso, dentro em breve estava de volta com as placas, e o enorme carro começou a se movimentar no momento exato em que um grupo de habitantes do local apareceu caminhando nervosamente pela descida da montanha, focalizando as lanternas sobre a cena de devastação.
Krebs riu feliz consigo mesmo à ideia de que os estúpidos ingleses teriam de limpar e pôr tudo aquilo em ordem. Acomodou-se no assento, a fim de apreciar o trecho do caminho que sempre fora seu predileto: os bosques primaveris, cheios de florzinhas azuis e rosa, que iam até Chilham.
Eles tinham-no tornado particularmente feliz à noite. Iluminados por entre as tochas verdes das árvores novas pelos grandes faróis do Mercedes, tinham-no feito pensar nas lindas florestas de Ardennes, no grupo dedicado onde servira e na viagem que fizera num jipe capturado aos americanos, tal como naquela noite, ao lado de seu adorado líder, que ia ao volante. Der Tag custara a chegar, mas agora ali estava. Com o jovem Krebs no caminhão. Finalmente veria as multidões dando vivas, as medalhas, as mulheres, as flores. Lançou um olhar aos exércitos de flores azuis que passavam voando e sentiu-se feliz e confortado.
Gala sentia na boca o gosto do sangue de Bond. O rosto dele estava ao lado do dela, no assento de couro, e ela se mexeu para lhe dar mais lugar. A respiração do rapaz era pesada e irregular. Ela perguntava a si mesma quanto estaria ferido. Experimentou sussurrar-lhe ao ouvido. Depois falou mais alto. Ele deu um grunhido e acelerou a respiração.
— James — cochichou. — James.
Bond resmungou qualquer coisa, e ela encostou-se com força contra ele. Depois, soltou uma série de palavrões, e seu corpo se mexeu.
Tornou a ficar imóvel, e ela quase pôde senti-lo explorando as próprias sensações.
— Sou eu, Gala.
Ela sentiu o corpo dele enrijecer.
— Deus do céu. Que diabo de confusão — falou Bond.
— Você está bem? Tem algum osso quebrado?
Sentiu que ele experimentava os braços e as pernas.
— Parece que está tudo bem. Uma brecha na cabeça. Estou falando coisas que fazem sentido?
— Claro que sim — respondeu Gala. — Agora ouça.
Rapidamente, contou-lhe tudo que sabia, começando pelo caderninho de notas preto.
O corpo dele estava rígido como uma tábua contra o dela, e ele mal respirava, ouvindo a história inacreditável.
Logo depois corriam para Canterbury, e Bond colocou a boca em seu ouvido.
— Vou tentar jogar-me por trás — sussurrou. — Ver se arranjo um telefone. É a única esperança.
Começou a se erguer sobre os joelhos, o peso de seu corpo quase sufocando a respiração da moça.
Ouviu-se uma forte pancada, e ele tornou a cair em cima dela.
— Outro movimento que você faça e estará morto — disse a voz de Krebs, vindo baixinho por entre os assentos da frente.
Faltavam só vinte minutos para chegar à base! Gala rangeu os dentes e tratou de reanimar Bond, que perdera os sentidos novamente.
Acabara de conseguir, quando o carro chegou à porta da cúpula de lançamento, e Krebs, com um revólver na mão, já ia desfazendo os nós em torno dos tornozelos de ambos.
Vislumbraram o cimento familiar, iluminado pela lua, e o semicírculo de guardas a uma certa distância, antes de serem empurrados pela porta. Depois, quando Krebs lhes arrancou os sapatos, seguiram pela passagem estreita, de ferro, dentro da cúpula de lançamento.
Ali estava o cintilante foguete, lindo, inocente, qual um novo brinquedo para ciclopes.
Mas havia um cheiro horrível de produtos químicos no ar, e para Bond, o “Explorador da Lua” parecia uma gigantesca agulha hipodérmica pronta para ser enterrada no coração da Inglaterra. Apesar de um resmungo de Krebs, ele parou na escada e levantou os olhos para seu nariz faiscante. Um milhão de mortes. Um milhão. Um milhão. Um milhão.
E tudo dependia dele? Pelo amor de Deus! Tudo dependia dele?
Com o revólver de Krebs cutucando-o, desceu lentamente os degraus, atrás de Gala.
Quando entrou pela porta do escritório de Drax, controlou-se. De repente, seu espírito tornou-se claro, e toda a letargia e a dor haviam-lhe deixado o corpo. Alguma coisa, qualquer coisa, precisava ser feita. De um jeito ou de outro, ele havia de descobrir um meio. O corpo inteiro e a mente tornaram-se-lhe concentrados e agudos como uma lâmina. Seus olhos ganharam vida, novamente, e a derrota abandonou-o, como a pele de uma serpente.
Drax seguira na frente e se sentara à escrivaninha. Trazia uma Luger na mão. Este apontava um lugar entre Gala e Bond e era firme como uma rocha.
Por trás dele, Bond escutou as portas duplas se fecharem, batendo.
— Eu era um dos melhores atiradores na Divisão Branderburg — disse Drax, entabulando conversa.
— Amarre a moça nessa cadeira, Krebs. Depois o homem .
Gala olhou desesperadamente para Bond. Este disse:
— Você não vai atirar. Teria receio de atingir o combustível.
Encaminhou-se lentamente para a escrivaninha. Drax sorriu alegremente e, seguindo a trajetória do cano do revólver, mirou o estômago de Bond.
— Sua memória é ruim, inglês. Eu lhe disse que esta sala é inteiramente separada da cúpula por meio das portas duplas. Dê mais um passo e ficará sem estômago.
Bond olhou os olhos apertados e confiantes do outro e parou.
— Vamos, Krebs.
Quando os dois ficaram bem amarrados, e dolorosamente, às pernas e braços das duas cadeiras de aço tubular, pouco distante um do outro, por baixo do mapa de vidro, Krebs saiu da sala. Voltou um momento depois com uma espécie de maçarico mecânico.
Colocou a feia máquina sobre a escrivaninha, introduziu o ar com algumas breves bombadas e riscou um fósforo. Uma chama azul sibilou, elevando-se a alguns centímetros. Ele pegou o instrumento e acercou-se de Gala. Parou a pouca distância da moça.
Drax ordenou, severo:
— Vejamos agora. Vamos tratar desse caso, sem criar complicações. Nós costumávamos chamá-lo Der Zwagsman — O Persuasor. Nunca me esquecerei de como lidou com o último espião que pegamos juntos. Bem ao sul do Reno, não foi, Krebs?
Bond era todo ouvidos.
— Foi sim, mein Kapitän. — Krebs riu, recordando-se. — Era um porco de um belga.
— Pois bem. Vocês dois aí não se esqueçam. Aqui não temos esse negócio de fair play. Nada de atitudes esportivas e toda essa história. Isto aqui é negócio.
A voz estalava como um chicote, a cada palavra.
— Você — lançava um olhar a Gala Brand — para quem está trabalhando?
Gala se conservou em silêncio.
— Onde você quiser, Krebs.
A boca de Krebs estava entreaberta. Sua língua percorria o lábio, para cima e para baixo. Parecia ter dificuldade em respirar, quando deu um passo em direção à moça.
A pequenina chama roncava gulosamente.
— Pare — disse Bond, frio. — Ela trabalha para a Scotland Yard. E eu também.
Essias coisas agora não tinham mais propósito. Não podia ser de nenhuma utilidade imaginável para Drax. De qualquer maneira, amanhã de tarde, talvez não existisse mais nenhuma Scotland Yard.
— Assim está melhor — disse Drax. — Agora responda: Alguém sabe que vocês estão prisioneiros? Vocês pararam para telefonar a alguém?
Se eu disser que sim, pensou Bond, ele atirará em nós dois e se livrará dos corpos. Dessa forma, a última chance de impedir o lançamento do “Explorador da Lua” terá desaparecido. E se a Yard sabe, por que ainda não chegaram aqui? Não. Nossa oportunidade ainda pode vir. O Bentley será encontrado. Vallance ficará preocupado quando não tiver notícias minhas.
Não — respondeu. — Se eu tivesse telefonado, eles já estariam por aqui a esta hora.
— Isto é verdade — disse Drax, refletindo.
— Neste caso, não estou mais interessado em vocês e felicito-os por terem tornado a entrevista tão harmoniosa. Poderia ter sido mais difícil, se você estivesse sozinho. Uma moça é sempre útil nessas ocasiões. Krebs largue isso. Pode ir. Diga aos outros o que é necessário. Eles devem estar fazendo conjeturas. Eu vou entreter nossos hóspedes durante algum tempo e depois subirei até a casamata. Providencie para que o carro seja bem lavado. O assento de trás. E faça desaparecer as marcas no lado direito. Diga para tirarem o painel inteiro, se fôr necessário. Ou então podem tocar fogo na maldita coisa. Nós não vamos mais precisar dela. — Riu abruptamente. — Verstanden?
— Sim, mein Kapitän...
Krebs, colocou com relutância o maçarico, que roncava de leve, na escrivaninha ao lado de Drax.
— Para o caso de lhe ser necessário — disse, olhando esperançoso para Gala e Bond. Saiu depois pelas portas duplas.
Drax pôs a Luger também na escrivaninha em frente a ele. Abriu uma gaveta, tirou um charuto e acendeu-o com um isqueiro Ronson. Depois, acomodou-se confortàvelmente. O silêncio reinou na sala durante vários minutos, enquanto Drax puxava fumaçadas do charuto, todo satisfeito. Em seguida, pareceu tomar uma resolução. Fitou Bond com benevolência.
— Você nem sabe quanto eu desejei um auditório inglês — declarou como se estivesse dando uma entrevista à imprensa. — Você nem sabe como estava ansioso por contar minha história. Aliás, um relatório completo de minhas atividades encontra-se em poder de um escritório muito respeitável de advogados de Edinburgo. — Tabeliães, aliás. Bem salvo de qualquer perigo.
Drax sorriu abertamente para um e para outro:
— Essa boa gente recebeu instruções para abrir o envelope no final do primeiro voo bem sucedido do “Explorador da Lua”. Mas vocês, seus felizardos, terão uma, antecipação do que eu escrevi e então, quando amanhã às doze horas, virem através destas portas abertas — fez um gesto para a direita — o primeiro vapor saindo das turbinas e souberem que devem ser queimados vivos dentro de meio segundo, terão a satisfação momentânea de saber com quantos paus se faz uma canoa.
— Você poderá nos dispensar as piadas — interrompeu Bond, com aspereza. — Continue com sua história, Kraut.
Os olhos de Drax fuzilaram momentaneamente.
— Um Kraut. Sim eu sou realmente um Reichsdeutscher — a boca, por baixo do bigode vermelho, saboreava a linda palavra — e até a própria Inglaterra terá de concordar, dentro em breve, que foram liquidados por um único alemão. E então talvez parem de nos chamar de Krauts — POR ORDEM! — As palavras foram gritadas, e todo militarismo prussiano entrou em desfile lá embaixo.
Drax exultou do outro lado da escrivaninha, olhando Bond, os dentes grandes, espalhados e salientes sob o bigode vermelho, roendo nervosamente uma unha, depois da outra. Em seguida, enfiou com esforço a mão direita no bolso da calça, como para colocá-la a salvo da tentação, e pegou o charuto com a esquerda. Puxou umas tragadas durante alguns instantes e, depois, com a voz ainda tensa, começou.
CAPITULO 22
A CAIXA DE PANDORA
Meu verdadeiro nome — disse Drax dirigindo-se a Bond — é Graf Hugo von der Drache. Minha mãe era inglesa, e por causa dela fui educado na Inglaterra até a idade de doze anos. Depois, não pude mais suportar este país imundo e completei minha educação em Berlim e Leipzig.
Bond calculava facilmente que aquele brutamontes com cara de bicho-papão e dentes de bruxo não havia sido muito bem recebido numa escola particular inglesa. O fato de ser um conde estrangeiro com um mundo de nomes não teria ajudado muito.
Os olhos de Drax brilharam, cheios de reminiscências: — Quando fiz vinte anos, comecei a trabalhar no ramo de negócio da família. Era uma filial do grande truste de aço Rheinmetal Bórsig. Nunca ouviu falar dele, suponho. Pois bem, se foi ferido por uma bomba de 88mm. durante a guerra, provavelmente foi uma das de lá. Nossas filiais eram peritas em aços especiais, e eu aprendi a respeito deles, e muita coisa sobre a indústria aviatória. Nossos melhores fregueses. Foi quando ouvi, pela primeira vez, falar em columbita. Valendo o que valem os brilhantes naqueles dias. Liguei-me à firma, e quase imediatamente depois disso arrebentou a guerra. Uma época maravilhosa. Eu tinha vinte e oito anos e era tenente da 140a do Regimento Panzer. Nós investimos contra o Exército britânico, na França, e o atravessamos como uma faca por dentro da manteiga. Simplesmente embriagador.
Durante alguns instantes, Drax sugou o charuto, e Bond calculou que ele estava vendo as aldeias incendiadas da Bélgica através da fumaça.
— Aqueles dias eram formidáveis, meu caro Bond. — Drax esticou um braço comprido e bateu a cinza do charuto para o chão. — Mas aí fui escolhido para a Divisão Brandenburg e tive de deixar as pequenas e o champanha para voltar à Alemanha e começar o adestramento, a fim de executar o vasto pulo na água para a Inglaterra. Precisavam de meu in-glês na Divisão. Todos nós devíamos trajar uniformes ingleses. Teria sido engraçado, porém os malditos generais disseram que não podia ser, e eu fui transferido para o Serviço Secreto Estrangeiro do SS. O RSHA, era como se chamava. SS Obergruppenfuhrer Kaltenbrunner acabava de assumir o comando depois que Heydrich foi assassinado em 42. Ele era um bom homem, e eu estava sob as ordens diretas de um ainda melhor, Obersturmbannfuhrer — Drax enrolava na boca o título delicioso com prazer. — Otto Skorzeny. Sua tarefa na RSHA era o terrorismo e a sabotagem. Um agradável interlúdio, meu caro Bond, durante o qual eu pude registrar o nome de muitos ingleses, coisa que me deu muito prazer. Mas então — o punho de Drax esmagou a escrivaninha — Hitler foi novamente traído por aqueles miseráveis generais, e os ingleses e norte-americanos tiveram oportunidade de desembarcar na França.
— Foi uma pena — disse Bond, friamente.
— Sim, meu caro Bond, foi de fato uma pena. — Drax preferiu ignorar a ironia. — Mas para mim foi o ponto alto da guerra. Skorzeny transformou todos os seus sabotadores e terroristas em SS Jagdverbände, para usá-los na retaguarda das linhas inimigas. Cada Jagdverbände era dividida em Streifkorps, e depois em Kommandos, cada um deles levando os nomes de seus oficiais-comandantes. Com o posto de Oberleutnant — Drax encheu-se visivelmente de empáfia — à testa do Kommando “Drache”, eu penetrei diretamente nas linhas americianas com a famosa Brigada Panzer 150a na penetração de Ardennes, em dezembro de 44. Você se lembra, sem dúvida, do efeito causado por esta brigada em seus uniformes americanos e nos tanques e veículos americanos capturados. Kolossal! Quando a Brigada teve de se retirar, eu fiquei onde estiava e fui estabelecer-me nas Florestas de Ardennes, cinquenta milhas à retaguarda das linhas aliadas. Havia vinte rapazes, dez homens bons e dez Hitlerjugend Lobishomens. Todos com menos de vinte anos, mas todos bons rapazes. Por coincidência, o chefe deles era um jovem chamado Krebs, que demonstrou possuir determinados dons que o qualificaram para o pôsto de executor e “persuasor” de nosso alegre pequeno bando. Drax deu uma risadinha gostosa.
Bond lambeu os lábios, ao lembrar-se da brecha que Krebs fizera na cabeça batendo de encontro à cômoda. Ter-lhe-ia dado o pontapé com tanta força quanto lhe era possível dar? Sim, sua memória o tranquilizava, com cada grama de força que ele podia pôr no sapato.
— Ficamos naqueles bosques durante seis meses — continuou Drax, orgulhoso — e durante todo esse tempo dávamos notícias nossas à nossa Pátria por meio do rádio. Os caminhões de busca nunca deram conosco. E então aconteceu um desastre. — Drax sacudiu ia cabeça àquela lembrança. — Existia uma grande fazenda a uma milha de distância de nosso esconderijo na floresta. Uma porção de cabanas haviam sido construídas em torno dela, e eram usadas como quartel-general de retaguarda para um grupo de ligação. Ingleses e norte-americanos. Um lugar incrível. Sem disciplina, sem segurança, cheio de vadios e desertores vindos de todos os lugares da vizinhança. Nós vínhamos observando o grupo há muito tempo, e um dia eu resolvi fazer tudo aquilo voar pelos ares. O plano era simples. À noite, dois dos meus homens, um vestido num uniforme americano, e outro de uniforme britânico, deviam dirigir-se para lá num carro-patrulha capturado, contendo duas toneladas de explosivos. Havia um ponto de estacionamento para os carros — nenhuma sentinela, naturalmente — próximo à sala de refeitório, e eles deviam trazer o carro tão perto dela quanto possível, regular a explosão para a hora do jantar, às sete, e depois se afastarem. Tudo muito fácil, de modo que eu saí naquela manhã para tratar de negócios e deixei a missão para ser cumprida por meu segundo em comando. Eu estava vestido com o uniforme de Corpo de Sinaleiros britânicos, e parti numa motocicleta inglesa capturada por nós para enviar um despacho da mesma unidade que fazia o percurso diário num caminho ali perto. Está claro que ele veio pontualmente na hora, de modo que eu lhe segui atrás, saindo de um caminho lateral. Emparelhei com ele ei dei-lhe um tiro nas costas, tomei-lhe os documentos e, depois de colocá-lo em cima de sua própria motocicleta, levei-o para os bosques e toquei-lhe fogo.
Drax viu a fúria nos olhos de Bond e levantou a mão.
— Não foi muito esportivo? Meu caro, o homem já estava morto. Entretanto, prossigamos. Fui seguindo meu caminho, e então o que haveria de acontecer? Um dos aviões de vocês, voltando de um voo de reconhecimento, veio atrás de mim pela estrada com uma metralhadora. Um de seus próprios aviões! Jogou-me para longe da estrada. Só Deus sabe quanto tempo fiquei ali, caído no fosso. Em certo momento, durante a tarde, voltei a mim a tive o bom senso de esconder o boné e o dólmã com os despachos. Na cerca. Provavelmente ainda estão lá. Preciso ir buscá-los um dia. Lembranças interessantes. Depois toquei fogo nos restos da motocicleta e devo ter desmaiado novamente, porque quando tornei a dar por mim, tinha sido recolhido por um veículo britânico e estávamos seguindo para o maldito quartel-general de ligação! Acredite-se ou não! Lá estava o carro-patrulha, bem ao lado da sala do rancho! Era demais para mim. Eu estava cheio de estilhaços de bomba e minha perna estava quebrada. Pois bem, desmaiei, e quando voltei a mim, vi que metade do hospital se debruçava sobre mim, e eu só tinha a metade da cara.
Drax levantou a mão e alisou a pele lustrosa da têmpora e da face esquerda:
— Depois disso, tudo se resumiu numa questão de representar um papel. Eles não tinham ideia de quem eu era. O carro que me apanhara havia sido reduzido a simples fragmentos. Eu era apenas um inglês, vestido numa camisa e calças inglesas que quase morrera.
Drax fez uma pausa, tirou outro charuto e acendeu-o. Na sala reinou o silêncio, quebrado apenas pelo roncar atenuado do maçarico. Sua voz ameaçadora tornara-se mais baixa. A pressão está cedendo, pensou Bond.
Virou a cabeça e olhou Gala. Pela primeira vez, viu a lesão feia atrás de sua orelha esquerda. Endereçou-lhe um sorriso de encorajamento, e ela retorceu os lábios num sorriso de resposta.
Drax falava por dentro da fumaça do charuto:
— Não há muito mais coisa para contar. Durante o ano em que eu passei sendo enviado de um para outro hospital, elaborei meus planos sem omitir os mínimos detalhes. Consistiam muito simplesmente em vingar-me da Inglaterra pelo que me tinha feito e ao meu país. Confesso que, pouco a pouco, foi-se tornando uma obsessão. Cada dia que se passava no ano em que a destruição e a rapina campearam em meu país, meu ódio e desprezo pelos ingleses iam-se tornando cada vez mais amargos.
As veias do rosto de Drax começaram a inchar e, de repente, ele se pôs a desferir socos na mesa e a gritar para seus prisioneiros, fitando com olhos esbugalhados ora um, ora outro:
— Abomino e desprezo vocês todos. Seus porcos! Idiotas inúteis, ociosos, decadentes, escondendo-se por trás de seus malditos penhascos brancos, enquanto os outros povos travam batalhas por vocês. Fracos demais para defenderem suas colônias, bajulando a América com os chapéus nas mãos. Esnobes malcheirosos, que são capazes de fazer qualquer coisa por dinheiro. Ah! — Drax estava triunfante. — Eu sabia que precisava apenas de dinheiro e a aparência de um gentleman. Um gentleman! Pfui Teufel! Para mim um gentleman é apenas alguém de quem eu posso tirar vantagem. Aqueles malditos imbecis no Blades, por exemplo. Cretinos endinheirados. Durante meses a fio tirei milhares de libras deles, tapeei-os bem debaixo de seus narizes, até que você apareceu e estragou o brinquedo.
Os olhos de Drax se apertaram.
— Como foi que descobriu o truque da cigarreira — perguntou incisivo.
Bond deu de ombros.
— Com os olhos — respondeu indiferente.
— Ah, bem. Talvez eu estivesse um tanto descuidado naquela noite. Mas onde é mesmo que eu estava? Ah, sim, no hospital. Os bons médicos mostravam-se tão ansiosos por me ajudarem a descobrir quem eu era realmente. — Soltou uma gargalhada. — Foi fácil. Muito fácil. Dentre as identidades que eles me ofereciam com tanta boa vontade, topei com o nome de Hugo Drax. Que coincidência! De Drache para Drax! Como quem hesita, pensei que podia ser eu. Eles sentiram-se muito orgulhosos. Sim, afirmaram, naturalmente que é você. Triunfalmente, fizeram-me entrar-lhe na pele. Saí do hospital dentro dela, começando a rodar por Londres à cata de alguém para matar e roubar. Até que um dia, num pequeno escritório acima de Piccadilly, encontrei um agiota judeu. (Drax agora falava muito depressa. As palavras jorravam-lhe excitadamente dos lábios. Bond reparou num aglomerado de espuma que se formava num canto de sua boca e crescia.) — Ah, foi fácil. Uma bordoada em seu crânio nu. Quinze mil libras no cofre. Então tratei de me afastar do País. Fui para Tânger — onde se podia fazer qualquer coisa, comprar qualquer coisa, arranjar qualquer coisa que se desejasse. Columbita. Mais rara que a platina, e todos prontos a adquiri-la. A Era do Jato. Eu conhecia essas coisas. Não me havia esquecido de minha profissão. Então, por Deus, lhe digo que trabalhei. Durante cinco anos vivi para o dinheiro. Fui valente como um leão. Corri riscos tremendos. E eis que, de repente, o primeiro milhão me chega às mãos. Depois o segundo. Em seguida o quinto. Depois o vigésimo. Voltei para a Inglaterra. Gastei um milhão aqui, e Londres estava no papo. Depois voltei à Alemanha. Encontrei Krebs. Encontrei cinquenta deles. Alemães leais. Técnicos brilhantes. Todos vivendo sob nomes falsos, como tantos outros de meus antigos camaradas. Dei-lhes minhas ordens, e eles esperaram, pacificamente, inocentemente. E onde estava eu?
Drax fitou Bond, com os olhos arregalados:
— Eu estava em Moscou! Moscou! Um homem que tem columbita para vender pode ir a qualquer lugar. Encontrei as pessoas indicadas para meu caso. Ouviram meus planos. Deram-me Walter, o novo gênio de seus mísseis teleguiados da estação de Peenemunde, e os bons dos russos começaram a construir a cápsula dos instrumentos e explosivos, a cápsula atômica — apontou para o teto — que está agora nos esperando ali. Então tornei a regressar para Londres. — Fez uma pausa. — A Coroação. Minha carta para o Palácio. Triunfo. Hurras para Drax. — O homem estourou numa gargalhada. — A Inglaterra estava aos meus pés. Todos os malditos cretinos do país! Foi quando meus homens chegaram, e nós começamos. Bem juntos das saias da Grã-Bretanha. No alto de seus famosos penhascos. Trabalhamos como loucos. Construímos um cais no seu Canal inglês. Para receber fornecimentos! Suprimentos vindos de meus bons amigos os russos, que chegaram na hora exata, segunda-feira à noite. Mas foi aí que Tallon teve de ouvir alguma coisa. O velho imbecil. Falou com o Ministério. Mas Krebs estava ouvindo. Apareceram cinquenta voluntários para matar o homem. Tiramos a sorte, e Bartsch morreu como um herói. — Drax fez nova pausa. Depois continuou. — A nova cápsula foi içada para o lugar. Deu certo. Uma perfeita peça de encomenda. O mesmo peso. Tudo perfeito, como a antiga, a caneca de folha, cheia dos queridos instrumentos do Ministério, está agora em Stettin — atrás da Cortina de Ferro. O fiel submarino está de viagem de volta para aqui, e dentro em breve — olhou o relógio — estará navegando sob as águas do Canal inglês para nos levar a todos para longe, quando passar um minuto de meio-dia amanhã.
Drax limpou a boca com as costas da mão e recostou-se de novo na cadeira fitando o teto, os olhos povoados de visões. De repente, riu e olhou interrogativamente para Bond, passando o olhar pelo próprio nariz:
— Quer saber qual será a primeira coisa que nós faremos quando estivermos a bordo? Rasparemos esses famosos bigodes nos quais você estava tão interessado. Você cheirou um camundongo, meu caro Bond, onde devia ter cheirado um rato. Aquelas cabeças raspadas e aqueles bigodes: que nós cultivávamos tão assiduamente. Apenas uma precaução, meu caro. Experimente raspar a própria dabeça e deixar crescer um bigodão preto. Nem mesmo sua mãe o reconheceria. É a combinação das duas coisas que produz o efeito. Apenas um mínimo refinamento. Precisão, meu caro. Precisão, em cada detalhe. Foi esta a minha palavra de passe. — Drax deu uma risadinha sem graça e puxou uma boa fumarada do charuto. Súbito, olhou incisivamente, desconfiado, para Bond. — Então? Diga alguma coisa. Não fique aí sentado como uma múmia. Que pensa de minha história? Não acha que é extraordinária? Notável? Um homem ter feito tudo isto? Vamos, vamos, fale.
Uma das mãos foi levada até a boca, e Drax começou a roer as unhas furiosamente. Mas, em seguida, meteu-a no bolso, e seus olhos tornaram-se frios e cruéis.
— Ou quer que mande buscar Krebs — fez um gesto para o telefone em cima da escrivaninha. — O Persuasor. Pobre Krebs! É como uma criança a quem tivessem arrebatado os brinquedos. Ou talvez Walter. Eles lhes dariam uma lembrança para toda a vida. Esse aí não tem um pingo de moleza. Então?
Bond começou a falar, olhando a caraça vermelha, do outro lado da escrivaninha:
— Não resta dúvida, é um caso notável. Paranoia galopante. Ilusões de ciúme e perseguição. Ódio megalomaníaco e desejo de vingança. Fato bastante curioso — continuou dizendo, em tom de conversação — poderá ter alguma relação com seus dentes. Diastema, é como chamam isto. Acontece quando a criança chupa o dedo na infância. Sim. Tenho a impressão de que será isto o que dirão os psicólogos, assim que lhe puserem no hospício. “Dentes de bicho-papão.” Foi atormentado na escola etc. É extraordinário o efeito produzido numa criança. Então o nazismo ajudou a soprar as flamas, e ainda aconteceu você levar aquela pancada feia na sua feia cabeça. A pancada que você mesmo engendrou. Acho que foi o que estava faltando. Dali por diante, você passou a ser realmente louco. Do mesmo gênero desses que acreditam serem Deus. É extraordinário observar como são tenazes. Completamente fanáticos. Você é quase um gênio. Lombroso teria ficado encantado com você. No ponto em que estão as coisas, você não passa de um cão danado que precisa ser morto. Ou então você se suicida. Os paranoicos geralmente se matam. É uma pena. Coisa triste, mesmo.
Bond fez uma pausa e pôs todo o desprezo que pôde acumular na voz:
— E agora, continuemos com esta farsa, vamos, seu lunático cabeludo.
Deu resultado. A cada palavra de Bond, a cara de Drax ia se contorcendo de raiva cadia vez maior, os olhos estavam vermelhos de cólera, o suor da fúria pingava de suas mandíbulas para a camisa, os lábios se afastariam dos dentes irregulares, e um fio de saliva saíra-lhe da boca e lhe escorria pelo queixo. Agora, com o último insulto sobre a escola particular, que devia ter-lhe despertado sabe Deus que espécie de lembranças dolorosas, ele pulou da cadeira, rodeou a escrivaninha, investiu contra Bond, os punhos cabeludos martelando. Bond rangeu os dentes e aguentou.
Quando Drax teve de pegar a cadeira do chão pela segunda vez, com Bond em cima dela, a tempestade de raiva passou subitamente. Tirou do bolso o lenço de seda e limpou o rosto e as mãos. Depois, encaminhou-se calmamente para a porta e falou, olhando por cima da cabeça pendente de Bond e dirigindo-se à pequena.
— Não creio que vocês dois me deem mais trabalho — declarou com a voz perfeitamente calma e segura. — Krebs nunca comete enganos com seus nós.
Gesticulou em direção à figura ensanguentada da outra cadeira:
— Quando ele acordar, pode dizer-lhe que estas portas ainda se abrirão mais uma vez, pouco antes do meio-dia de amanhã. Alguns minutos mais tarde, não sobrará nada de nenhum de vocês dois. Nem mesmo — acrescentou, ao escancarar a porta de dentro — as obturações de seus dentes.
A porta externa bateu.
Bond levantou lentamente a cabeça e sorriu dolorosamente para sua companheira com os lábios manchados de sangue. Explicou com dificuldade:
— Tive de deixá-lo louco. Não quis que ele tivesse tempo para pensar. Tive de provocar aquela tempestade cerebral.
Gala olhava-o sem compreender, os olhos arregalados para a máscara terrível de seu rosto.
— Está tudo bem. Não se preocupe. Londres está O.K. Tenho um plano.
Sobre a escrivaninha, o maçarico fez um “pleft” baixinho e apagou.
CAPÍTULO 23
MENOS ZERO
Por entre os olhos entreabertos, Bond fitou demoradamente o maçarico, enquanto por alguns preciosos segundos permanecia sentado e deixava a vida voltar-lhe lentamente ao corpo. Tinha a impressão de que sua cabeça fora usada como bola de futebol, mas não tinha nada quebrado. Drax batera-lhe sem nenhuma ciência e com a confusão de golpes de um homem embriagado.
Gala observava-o ansiosamente. Os olhos, no rosto sanguinolento, estavam quase fechados, mas a linha do queixo aparecia tensa de concentração, e ela percebia o esforço de vontade que ele fazia.
Bond sacudiu a cabeça, e quando se voltou para ela, Gala viu que seus olhos estavam febris pelo triunfo.
Fez um gesto na direção do isqueiro.
— O isqueiro. Eu tive de tentar fazê-lo esquecer-se dele. Siga-me. Vou-lhe mostrar como.
Começou a balançar a leve cadeira de aço, polegada por polegada, em direção à escrivaninha:
— Pelo amor de Deus, não vá virar de pernas para cima, do contrário estará tudo perdido. Mas procure apressar-se senão o maçarico esfria.
Sem compreender, sentindo-se quase como se tomasse parte em algum fantástico brinquedo infantil, Gala, cautelosamente, foi balançando a cadeira pelo chão atrás dele.
Segundos depois, Bond lhe disse que parasse ao lado da escrivaninha, enquanto ele continuava o balanço até a cadeira de Drax. Depois, manobrou de modo a tomar posição em frente ao seu alvo e, com uma súbita guinada, suspendeu-se com a cadeira, de forma que sua cabeça ficou para baixo.
Ouviu-se um estalo, quando o isqueiro Ronson, de escrivaninha, prendeu-se-lhe nos dentes, mas seus lábios sustiveram-no, e a parte superior ficou-lhe na boca, assim que ele impulsionou a cadeira para a primeira posição, apenas com a força suficiente para impedir que saltasse fora. Em seguida, recomeçou sua paciente viagem de volta para o ponto onde Gala se encontrava sentada, no canto da escrivaninha onde Krebs deixara a lâmpada.
Bond descansou até sua respiração tornar-se novamente regular.
— Chegamos agora à parte difícil — avisou, severo. — Enquanto eu tento fazer este maçarico funcionar, você vai rodando sua cadeira, de modo que seu braço direito fique tanto quanto possível defronte de mim.
Obedientemente, a moça foi executando os movimentos, enquanto Bond balançava sua cadeira, de forma que esta se encostou a beira da escrivaninha e permitiu que sua boca alcançasse e agarrasse o cabo do maçarico entre os dentes.
Em seguida, foi trazendo o maçarico para perto e, depois de alguns minutos de trabalho paciente, conseguiu colocar o maçarico e o isqueiro como desejava, na borda da escrivaninha.
Após outro descanso, curvou-se, fechou a válvula da tocha com os dentes, e começou a fazer voltar a pressão, puxando lenta e repetidamente o pistão com os lábios e apertando-o de volta com o queixo. Sentia no rosto o calor do aquecedor e sentia o cheiro dos restos de gás no pequeno instrumento. Se ao menos não tivesse esfriado demais.
Endireitou o corpo.
— Ultima etapa, Gala — disse sorrindo quase com esforço para ela. — Talvez eu tenha de lhe machucar um pouco. Não faz mal?
— Claro que não — respondeu a moça.
— Então lá vai — disse Bond, e curvou-se para a frente, soltando a válvula de segurança à esquerda do depósito.
Depois debruçou-se rapidamente sobre o Ronson, que estava no ângulo direito e bem debaixo do tubo da tocha. Com os dois dentes incisivos apertou para baixo a trave de ignição.
Era uma manobra horrível e, apesar de ele sacudir a cabeça para trás com a rapidez de uma serpente, deixou escapar um leve gemido de dor, quando o jato de fogo azul do maçarico subiu-lhe pela face machucada e pela ponta do nariz.
Mas a parafina vaporizada sibilava sua língua vital de chama, e ele sacudiu as lágrimas dos olhos, curvando a cabeça quase até o ângulo direito e novamente prendeu a haste do maçarico nos dentes.
Teve a impressão de que seu queixo se partiria com o peso da coisa, e os nervos dos dentes da frente reclamaram, mas ele balançou a cadeira cautelosamente até colocá-la em posição vertical, afastada da escrivaninha, e então forçou o pescoço a curvar-se para a frente, até que a ponta da chama azul da tocha mordeu o ponto que ligava o pulso direito de Gala ao braço da cadeira.
Bond tentou desesperadamente conservar a chama firme, contudo a respiração da moça raspou-lhe entre os dentes, angustiada, quando o cabo se movia entre suas mandíbulas, e o maçarico queimou-lhe o antebraço.
Então tudo acabou. Derretido pelo forte calor, as tiras de cobre foram-se partindo uma por uma e, de repente, o braço direito de Gala ficou livre, e ela o estendeu para tomar o maçarico da boca de Bond.
A cabeça do rapaz caiu novamente para trás, entre os ombros, e ele torceu-a para todos os lados, a fim de conseguir fazer o sangue circular pelos músculos doloridos.
Antes mesmo que ele se desse conta, Gala já se inclinava sobre seus braços e pernas, e ele também estava livre.
Ao sentar-se imóvel por um momento, os olhos fechados, esperando que a vida lhe voltasse ao corpo, sentiu de repente, encantado, os lábios macios de Gala sobre os seus.
Abriu os olhos. Ela estava de pé, diante dele, os olhos brilhando.
— Isto é pelo que você fez — falou, muito séria.
— Você é uma garota maravilhosa — disse Bond. Depois, porém, sabendo o que ia fazer, sabendo que era bem concebível que ela sobrevivesse, mas que ele só tinha mais alguns minutos de vida, fechou os olhos para que ela não visse a desesperança neles.
Gala observou-lhe a expressão do rosto e virou de costas. Pensou que fosse apenas exaustão e o efeito do que seu corpo tinha sofrido. Lembrou-se aí, de repente, da água oxigenada no banheiro pegado ao seu escritório.
Passou pela porta de comunicação. Como era extraordinário ver suas coisas familiares novamente. Devia ser outra pessoa que se sentara naquela escrivaninha e batera na máquina a correspondência, outra moça a que ali empoara o nariz. Sacudiu os ombros e foi para o toalete. Meu Deus, que cara, e só Deus sabe como se sentia cansada! Mas primeiro pegou uma toalha molhada, um pouco de água oxigenada, e voltou. Durante dez minutos tratou do campo de batalha que era a cara de Bond.
Este permanecia sentado em silêncio, uma das mãos descansando na cintura dela e observando-a agradecido. Depois, quando ela voltou para o escritório e fechou a porta do banheiro após entrar, ele se levantou, apagou o maçarico que ainda silvava, e encaminhou-se para o chuveiro de Drax, tirou a roupa e permaneceu durante cinco minutos debaixo da água gelada. “Preparando o corpo”, pensou melancòlicamente, ao examinar o rosto maltratado no espelho.
Vestiu as roupas e voltou para a escrivaninha de Drax, que revistou metòdicamente. Esta lhe proporcionou apenas um prêmio, a “garrafa do escritório”, cheia até a metade de Haig and Haig. Foi buscar dois copos, um pouco de água e chamou Gala.
Ouviu-a abrir a porta do banheiro.
— O que é? — Uísque.
— Vá tomando o seu. Estarei pronta daqui a um minuto.
Bond olhou a garrafa, serviu três quartos de um copo de escovas de dentes e tomou-o de uma vez, em dois goles. Em seguida, acendeu meio trêmulo um abençoado cigarro e sentou-se na borda da escrivaninha, sentindo o álcool queimá-lo no estômago, descendo-lhe até as pernas.
Pegou a garrafa novamente e olhou-a. Ainda havia muito para Gala e um copo inteiro para ele, antes de sair por aquela porta. Era melhor que nada. Não seria tão difícil com aquilo dentro de si, contanto que saísse em passos rápidos o fechasse a porta depois. Nada de olhar para trás.
Gala entrou, uma Gala transformada, parecendo tão bela quanto na noite em que a vira pela primeira vez, exceto as linhas de exaustão sob os olhos, que o pó não disfarçava totalmente, e os feios vincos nos pulsos e tornozelos.
Bond deu-lhe um drinque e tomou outro. Os olhos de ambos sorriam por cima da orla dos copos.
Depois Bond se ergueu.
— Escute, Gala — começou num tom de voz bem natural . — Nós temos de enfrentar o que está por vir e terminar com a história, de modo que serei breve e depois tomaremos outra dose.
Bond ouviu quando ela prendeu a respiração, mas continuou:
— Dentro de dez minutos, mais ou menos, eu vou fechá-la no banheiro de Drax, pôr você debaixo do chuveiro, e abri-lo completamente.
A moça gritou, aproximando-se dele:
— James. Não continue. Eu sei que você vai dizer qualquer coisa horrível. Pare, por favor, James.
— Deixe disso, Gala — disse Bond com aspereza. — Que diabo adianta tudo isto. É um milagre maldito, se é que posso dizer assim, e nós temos a oportunidade.
Afastou-se dela. Encaminhou-se então para as portas que conduziam ao foguete.
— Depois então — prosseguiu, segurando o precioso isqueiro na mão direita — eu sairei daqui, fecharei as portas e acenderei um último cigarro debaixo da cauda do “Explorador da Lua”.
Meu Deus! — sussurrou a moça. — Que é que você está dizendo? Você está louco.
Fitou-o com os olhos arregalados de horror.
— Não seja ridícula — disse Bond impaciente. — Que diabo nos resta fazer? A explosão será tão pavorosa, que ninguém sentirá nada. Deve dar resultado, com todo esse combustível em vapor circulando em redor. Trata-se de mim ou de um milhão de pessoas em Londres. A cápsula não se soltará. As bombas atômicas não explodem assim. Com certeza derreterá. Só há uma chance de você escapar. A maior parte da explosão se encaminhará para a linha de menor resistência através do telhado — e por baixo, pela cavidade exaustora, se eu conseguir fazer funcionar o maquinismo que abre o chão.
Bond sorriu.
— Ânimo — pediu, caminhando para ela e pegando-lhe uma das mãos. — O rapaz ficou de pé no tombadilho incendiado. Eu quis imitá-lo desde os cinco anos de idade.
Gala puxou a mão.
— Não me importa o que você está dizendo — declarou encolerizada. — Temos de pensar em outra coisa qualquer. Você não me acha capaz de ter nenhuma ideia. Vai só me dizendo o que pensa e o que temos de fazer.
Dirigiu-se para o mapa da parede e apertou o interruptor.
— Naturalmente, se tivermos de usar o isqueiro, usá-lo-emos. — Olhou o mapa do falso plano de voo, mal vendo o que tinha diante dos olhos. — Mas a ideia de você caminhar ali sozinho e ficar no meio daqueles horríveis vapores do combustível e calmamente acender essa coisa para depois ser reduzido a pó... Entretanto, se tivermos de agir assim, agiremos juntos. É preferível, melhor do que ser queimada até morrer aqui dentro. De qualquer maneira — fez uma pausa — eu gostaria de ir com você. Nós entramos juntos nesse negócio.
Os olhos de Bond estavam cheios de ternura, quando caminhou em direção à moça, passou-lhe um braço em volta da cintura e abraçou-a bem junto a si.
— Gala, você é um amor — disse com simplicidade. — Se houver outro meio, nós o tentaremos. Mas — olhou o relógio — já passa de meia-noite, e nós precisamos tomar uma resolução rápida. A qualquer momento pode ocorrer a Drax a ideia de mandar guardas para ver sé nós estamos em ordem, e só Deus sabe a que horas ele virá aqui acertar o giroscópio.
Gala torceu o corpo como uma gata. Fitou-o com a boca aberta, o rosto tenso de excitação. Sussurrou:
— O giroscópio, para acertar o giroscópio. Encostou-se novamente de leve contra a parede, os. olhos procurando o rosto de Bond.
— Você não compreende? — sua voz estava beirando a histeria. — Depois que ele sair, nós poderíamos alterar o giroscópio para onde estava, de acordo com o antigo plano de voo, e então o foguete cairia simplesmente no Mar do Norte, onde se julga que irá cair.
Gala afastou-se da parede e agarrou a camisa de Bond com as duas mãos, fitando-o com um olhar que implorava:
— Não poderíamos? Não poderíamos?
— Você conhece as outras direções? — perguntou Bond, ansioso.
— Claro que sim. Convivo com eles há um ano. Nós não teremos uma previsão do tempo, mas teremos de nos arriscar. A previsão desta manhã dizia que nós teríamos as mesmas condições de hoje.
— Por Deus — disse Bond. — Nós poderíamos fazer isto. Se conseguirmos esconder-nos nalgum lugar e fazer Drax imaginar que escapamos. Que tal o túnel exaustor, se eu conseguir fazer funcionar a máquina que abre o assoalho?
— São trinta e tantos metros de queda em linha reta — disse Gala, sacudindo a cabeça. — E as paredes são de aço polido. Como vidro. Além do mais, não há corda ou coisa alguma aqui. Eles tiraram tudo da oficina ontem. Sem contar com os guardas na praia.
Bond refletiu. Depois seus olhos tornaram-se brilhantes:
— Tenho uma ideia. Mas em primeiro lugar, que me diz você do radar, o radar de retorno de Londres? Ele não empurrará o foguete para fora do seu curso e de volta para Londres?
Gala sacudiu a cabeça:
— Ele só trabalha dentro de um raio de cem milhas, mais ou menos. O foguete nem sequer pegará seu sinal. Se estiver apontando para o Mar do Norte, entrará na órbita do transmissor da jangada. Não há nada de errado nos meus planos. Mas onde nos poderemos esconder?
— Num dos tubos de ventilação — respondeu Bond. — Vamos.
Lançou um último olhar à sala. O isqueiro estava em seu bolso. Aquilo seria o último recurso. Não havia mais nada que eles fossem precisar. Seguiu Gala para o cintilante cilindro e dirigiu-se ao painel de instrumentos que controlava a capa de aço da cavidade exaustora.
Após um rápido exame, moveu uma pesada barra de Zu a Auf. Ouviu-se um leve sibilo da máquina hidráulica atrás da parede, e os dois semicírculos de aço se abriram sob a cauda do foguete, deslizando depois novamente para o lugar. Bond seguiu em frente e olhou para baixo.
Os arcos no telhado lá em cima cintilavam em resposta ao seu olhar, de lá das paredes polidas do largo funil de aço, até se curvarem desaparecendo de suas vistas, em direção ao distante clamor ôco do mar.
Bond voltou ao escritório de Drax e puxou para baixo a cortina do boxe do chuveiro. Depois, Gala e ele rasgaram em tiras a cortina e ligaram umas às outras. Deu um rasgão em feitio de um V no fim da última tira para dar a impressão de que a corda da fuga tinha-se partido. Amarrou então a outra extremidade firmemente em torno da ponta aguda de uma das três barbatanas do “Explorador da Lua” e deixou cair o resto de modo que descesse pelo cilindro.
Não era lá grande coisa como falsa pista, mas podia servir para ganhar um pouco de tempo.
As bocarras redondas dos ventiladores tubulares tinham o espaço de umas dez jardas entre si e ficavam a cerca de 1.50m do chão. Bond contou. Havia cinquenta delas. Abriu cautelosamente a grade presa em gonzos que cobria uma delas e olhou para cima. A uma distância de doze metros via-se um leve brilho vindo do luar lá fora. — Chegou à conclusão de que estavam emparedados bem dentro do túnel formado pelo muro da base, até que viraram para os ângulos direitos, em direção aos gradeados das paredes exteriores.
Bond estendeu o braço e correu a mão pela superfície. Era de um concreto rústico, inacabado, e ele grunhiu de satisfação, quando sentiu primeiro uma forte protuberância, e depois outra. Eram as extremidades bifurcadas das varas de aço que reforçavam as paredes, cortadas onde os cilindros começavam.
Ia ser uma coisa dolorosa, mas não havia dúvida de que poderiam ir-se arrastando, centímetro por centímetro, por um desses cilindros, tal como alpinistas numa chaminé rocha acima e, na curva do topo, ficarem ocultos de tudo, menos da busca complicada que seria difícil de manhã com todos os oficiais de Londres em redor da base.
Bond se ajoelhou, e a moça montou-lhe às costas, depois do que começaram a subir.
Uma hora depois, com os pés e os ombros machucados e cortados, deitaram-se exaustos, apertados bem fortemente nos braços um do outro, as cabeças afastadas alguns centímetros do gradeado circular, situado diretamente acima da porta externa, e puseram-se a ouvir os guardas mexendo os pés incessantemente dentro da escuridão, cem jardas distante deles.
Cinco horas, seis, sete.
Lentamente o sol apareceu por trás da cúpula, e as gaivotas começaram a gritar nos penhascos. Então, surgiram de súbito as três figuras caminhando para eles na distância, passaram por um novo pelotão de guardas, os queixos levantados, os joelhos erguidos, vindos para render a ronda noturna.
As figuras foram-se aproximando, e os olhos apertados, exaustos, do casal oculto puderam ver todos os detalhes da cara vermelho-alaranjada de Drax, o pálido focinho de raposa do Dr. Walter, a nédia e balofa cara de sono de Krebs.
Os três homens caminhavam como se fossem executores de um fuzilamento, sem dizer nada. Drax tirou a chave, e eles, silenciosamente, entraram pela porta, alguns pés abaixo dos corpos tensos de Bond e Gala.
Depois, durante dez minutos, reinou o silêncio, quebrado apenas pelo som ocasional de vozes que subiam pelo cilindro do ventilador, quando os três homens se movimentavam pelo chão de aço em torno da cavidade exaustara. Bond sorriu consigo mesmo à ideia do ódio e da consternação que deveriam estampar-se no rosto de Drax; do infeliz Krebs, encolhendo-se sob as chicotadas da língua de Drax; a amarga acusação nos olhos de Walter. Foi então que a porta se escancarou abaixo dele, e Krebs chamou, imperioso, o chefe dos guardas.
— Die Engländer — a voz de Krebs era quase histérica. —Escaparam. O Herr Kapitän pensa que possam estar num dos tubos de ventilação. Vamos arriscar. A cúpula será aberta novamente, e nós vamos eliminar os vapores do combustível. Depois então o Herr Doktor passará a mangueira de vapor quente em cada um dos tubos. Se eles estiverem num deles, isto os liquidará. Escolha quatro homens. As luvas de borracha e as vestimentas para incêndio estão lá embaixo. Nós vamos tirar a pressão do aquecimento. Diga aos outros que prestem atenção para ver se escutam os gritos. Verstanden?
— Zu Befehl!
O homem voltou diligentemente para junto de seu grupo, e Krebs, com o suor da ansiedade no rosto, voltou-se e desapareceu novamente pela porta.
Por um momento Bond permaneceu imóvel.
Ouviram rumores pesados acima de suas cabeças, quando a cúpula se dividiu em dois e se abriu. A mangueira de vapor quente!
Bond ouvira contar de motins em navios sendo combatidos com isto. Desordens em fábricas. Será que alcançará doze metros? A pressão durará? Quantas caldeiras alimentavam o aquecimento? Entre os cinquenta tubos de ventilação, qual seria o escolhido para começarem? Teria Bond ou Gala deixado qualquer indício, com relação àquele que haviam subido?
Bond sentia que Gala esperava que ele explicasse. Que fisesse alguma coisa. Que protegesse a ambos.
Cinco homens vieram aproximando-se do semicírculo de guardas. Passaram por baixo e desapareceram.
Bond pôs a boca no ouvido de Gala.
— Isto poderá machucar — avisou. — Não posso prever quanto. Não pode ser evitado. Teremos de aguentar. Sem fazer barulho.
Sentiu logo a pressão dos braços dela, à guisa de resposta:
— Levante os joelhos. Não fique acanhada. A hora não é para pudores virginais.
— Cale a boca — sussurrou Gala, zangada. Ele sentiu um joelho subir e ficar trancado entre suas coxas. Seu próprio joelho seguiu por ali até não conseguir estender-se mais. A moça se remexia furiosamente.
— Não seja idiota — cochichou Bond, puxando-lhe a cabeça para junto do peito, até que ficou meio encoberta pela sua camisa aberta.
Bond encobriu-a tanto quanto possível. Não podiam fazer nada com relação aos tornozelos e as mãos. Levantou a gola da camisa, o mais que pôde por cima das cabeças. Apertavam-se um contra o outro.
Quentes, cheios de câimbras, sem respirar. Esperando — de repente a ideia ocorreu a Bond, como dois namorados debaixo de arbustos, ocultos. Esperando que as pisadas se afastassem, de modo a poderem principiar tudo novamente. Sorriu amargamente consigo mesmo e pôs-se à escuta.
O silêncio reinava lá embaixo, no foguete. Deviam estar na sala das máquinas. Walter devia estar assistindo à instalação da mangueira na válvula externa. Agora ouviam-se ruídos distantes. Por onde começariam?
Num ponto qualquer, não muito longe, havia um sussurro leve, bem arrancado do fundo, como o apito ineficiente de um trem distante.
Bond dobrou para trás o colarinho da camisa e arriscou um olhar por entre as grades, até os guardas. Os que conseguiu ver, olhavam em frente para a cúpula do lançamento, um pouco à sua esquerda.
Novamente o longo sussurro áspero. E mais uma vez se repetiu.
Ia ficando mais alto. Viu as cabeças dos guardas rodando para o lado das grades das paredes que ocultavam Gala e ele. Deviam estar observando, fascinados, enquanto os jatos brancos e espessos de vapor subiam pelas grades até lá em cima ha parede de cimento, conjeturando: “— Será esta, ou aquela, ou aquela outra, qual será que virá acompanhada de um duplo grito.”
Sentia o coração de Gala batendo de encontro ao seu. Ela não sabia o que estava por acontecer. Confiava nele.
— Pode machucar — sussurrou-lhe novamente. — Pode queimar. Não nos matará. Tenha coragem. Não emita um som.
— Eu estou bem — cochichou a moça, encolerizada. Mas ele percebeu que seu corpo se colava mais ao dele. Chuá! Estava chegando mais perto.
Chuá! A diferença era de dois tubos.
CHUÁ! Pegado a eles. Sentiu um leve cheiro do vapor.
— “Fique bem firme”, ordenou Bond a si mesmo. Esmagou a companheira de encontro ao próprio corpo e prendeu a respiração.
— “Agora. Depressa. Acabem com isso, desgraçados.”
E eis que, subitamente, houve uma grande pressão; o calor e um barulho infernal chegou-lhes aos ouvidos, seguidos de um instante de dor intolerável.
Depois um silêncio mortal, uma mistura de frio intenso e fogo nos tornozelos e nas mãos, uma sensação de estarem ensopados, e um esforço desesperado, sufocante, de fazer o ar puro penetrar nos pulmões.
Seus corpos lutaram automaticamente para se separarem um do outro, para conseguir alguns centímetros de espaço e ar para as áreas da pele que já começavam a cobrir-se de bolhas. A respiração rasgava-lhes as gargantas, e a água porejava do cimento para dentro de suas bocas abertas, até que ambos se curvaram para um lado e atiraram-na fora, e ela foi juntar-se ao riachinho que corria por baixo de seus corpos ensopados, descendo pelos tornozelos escaldantes e dali para as paredes verticais do tubo pelo qual haviam subido.
O uivo da mangueira a vapor afastou-se deles até se tornar um sussurro e, finalmente, cessar. Reinou então o silêncio na estreita prisão de cimento de ambos, ouvindo-se apenas suas teimosas respirações e o tique-taque do relógio de Bond.
Os dois corpos continuavam deitados e à espera, aguentando a dor.
Meia hora — meio ano — mais tarde, Walter, Krebs e Drax seguiram em fila por baixo deles.
No entanto, como medida de precaução, os guardas tinham sido deixados para trás na cúpula do lançamento.
CAPITULO 24
ZERO
Então estamos combinados?
— Sim, Sir Hugo — era o Ministro do Abastecimento quem falava. Bond reconheceu a figura espigada, segura de si. — As direções são aquelas. Meu pessoal verificou-as, independentemente, com o Ministério da Aeronáutica esta manhã.
— Neste caso, se me permite o privilégio — Drax levantou o pedacinho de papel e ia virando em direção à cúpula.
— Segure-a, Sir Hugo. Assim mesmo, por favor. O braço esticado no ar.
As lâmpadas dos flashes se acenderam, e o conjunto de câmaras zumbiu e estalou pela última vez. Drax voltou-se e andou os poucos metros que o separavam da cúpula, quase, assim pareceu a Bond, fitando-o diretamente nos olhos através do gradeado acima da porta da casamata.
A pequena turba de repórteres e fotógrafos dissolveu-se e encaminhou-se para o caminho de concreto, deixando para trás apenas um grupinho de oficiais que conversavam nervosamente, à espera de que Drax surgisse em cena.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e cinco. “Depressa, seu danado”, pensou.
Pela centésima vez repetiu para si mesmo os números qus Gala lhe ensinara durante as horas de dor e câimbras que se seguiram à provação do vapor, e pela centésima vez movimentou os membros para preservar a circulação.
— Apronte-se — cochichou no ouvido de Gala. — Está se sentindo bem?
Sentiu que a moça sorria.
— Ótimo.
Ela fechou a mente à ideia de suas pernas todas cheias de bolhas e da rápida descida, raspando-as pelo tubo de ventilação .
A porta fechou-se com um baque abaixo deles, seguindo-se o estalido da fechadura, e então, precedida por cinco guardas, a figura de Drax apareceu lá embaixo, marchando solene para o grupo de oficiais, a tira de papel com os números na mão.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e sete. — Agora — sussurrou.
— Boa sorte — respondeu Gala, também num sussurro. Escorregando, arranhando-se, rasgando-se. Seus ombros, cautelosamente, se expandiam e contraíam; os pés, cheios de bolhas, de sangue, procurando as saliências agudas do ferro; com o corpo dilacerado abrindo caminho através do tubo de um metro, rezava para que a pequena encontrasse forças para suportar tudo aquilo, quando o seguisse.
Finalmente, o pulo de três metros, que lhe repercutia na espinha, um pontapé nas grades, e ele galgava o chão de aço, corria para as escadas, deixando uma trilha de pegadas vermelhas e um borrifo de gotas de sangue caídas de seus ombros feridos.
Os arcos de luz haviam sido apagados, mas o clarão do dia penetrava pelo telhado aberto, e o azul do céu misturado ao fulgor da luz do sol davam a Bond a impressão de que estava correndo dentro de uma enorme safira.
A grande e mortal agulha no centro parecia ser feita de vidro. Olhando para cima, enquanto suava e arfava no percurso das infindáveis curvas da escada de ferro, era difícil para ele ver onde o nariz do foguete, afinando na ponta, terminava, e começava o céu.
Por trás do pesado silêncio que envolvia a bala esplendente, Bond ouvia um ruído apavorante e regular, o caminhar de minúsculos pés de metal num ponto qualquer do corpo do “Explorador da Lua”. Enchia o vasto compartimento de aço, como as batidas do coração na história de Poe, e Bond compreendeu que Drax, diretamente do ponto do tiro, apertara o interruptor que mandava a faixa radiofônica, disparando a mais de duzentas jardas até o foguete ali à espera. O tique-tique cessaria dentro em breve, ouvir-se-ia o suave gemido do catavento aceso, uma pequena porção de vapor das turbinas, e depois o rugido do jato de flama no qual o foguete se ergueria lentamente e se curvaria majestoso no início de sua gigantesca curva de aceleração.
E então, diante dele, viu o braço retorcido do guindaste dobrado novamente contra a parede, e sua mão alcançou a barra. O braço foi-se esticando para baixo e para fora em direção à linha fina e quadrada, na pele brilhante do foguete, que era a porta do compartimento do giroscópio.
Caminhando apoiado nas mãos e nos joelhos, Bond alcançou-o bem antes de as almofadas de borracha virem descansar contra o cromo polido. Encontrou o disco de descarga, do tamanho de um xelim, exatamente como Gala havia descrito. Apertar, estalar, e a pequenina porta se abria, girando no parafuso duro. Dentro. Cuidado para não ferir a cabeça. Os cabos cintilantes embaixo dos ponteiros da bússola. Virar. Torcer. Firme. Isto é para o rolamento. Agora o topo e o pior. Virar. Lento. Bem delicadamente. Mas firme. Um último olhar. Uma olhada no relógio. Quatro minutos para ir. Não fique em pânico. Volte. Estalido da porta. Uma fugida rápida de gato. Não olhe para baixo. O guindaste se ergueu. Bateu contra a parede. E agora as escadas.
Tique-tique-tique-tique.
Ao descer, Bond vislumbrou o rosto de Gala, branco, tenso, enquanto ela permanecia segurando a porta exterior aberta, a porta do escritório de Drax. Oh, Deus! Como seu corpo doía! Um último salto e uma reviravolta desajeitada para a direita. Pam! Quando bateu com força a porta de fora. Nova pancada, e ei-los atravessando a sala em direção ao chuveiro. A água jorrando sobre seus corpos pegajosos e doloridos.
Por dentro de todo aquele barulho, acima das batidas do próprio coração, Bond ouviu o súbito estalar da estática e, em seguida, a voz do locutor da BBC vinda do enorme aparelho da sala de Drax, poucos centímetros distante da parede fina do banheiro. Fora novamente Gala quem se lembrara do aparelho de rádio de Drax e que encontrara tempo para pô-lo a funcionar enquanto Bond trabalhava no giroscópio.
“... cinco minutos de atraso” — dizia a voz excitada, leve, ao microfone. — Bond fechou o chuveiro, e a voz chegou até eles mais claramente. — “Sir Hugo foi persuadido a dizer algumas palavras. Parece muito confiante. Está dizendo qualquer coisa no ouvido do Ministro. Estão ambos rindo. Gostaria de saber o que estão dizendo. Ah, eis o meu colega que chega com as últimas notícias a respeito do tempo, vindas do Ministério da Aeronáutica. Que dizem elas? Perfeito em todas as altitudes. Bom espetáculo. Não há dúvida de que temos um dia maravilhoso aqui, Ah! A multidão reunida à distância, perto da estação de guardas-costeiros, vai apanhar uma boa queimadura de sol. Deve haver milhares de pessoas ali. Que foi que você disse? Vinte mil? Bem, a impressão que dá é essa mesmo. Walmer Beach também está apinhada de gente. Toda a população de Kent parece estar na rua. Todo mundo vai ficar com mau jeito no pescoço. Vai ser pior que em Wimbledon. Alô, que é que está se passando ali no cais? Puxa, é um submarino que acaba de subir à superfície. Que espetáculo! É um dos maiores que existem, creio eu. E a equipe de Sir Hugo está lá embaixo também. Alinhados no cais, como se estivessem numa parada. Magnífica corporação. Agora entram a bordo em fila. Disciplina perfeita. Deve ser uma ideia do Almirantado. Oferecer-lhes uma recepção especial na entrada do Canal. Maravilhoso espetáculo. Gostaria que você estivesse aqui para ver. Agora Sir Hugo vem vindo em nossa direção. Dentro em pouco estará falando com vocês. Bela figura de homem! Todos os que se encontram no ponto de tiro o estão aclamando. Tenho certeza de que todos nós nos sentimos inclinados a aclamá-lo hoje. Ele vem vindo para o ponto de tiro. Daqui vejo o sol brilhando no nariz do “Explorador da Lua”, lá adiante, por trás dele. Começa a sair por trás do alto da cúpula de lançamento. Espero que alguém tenha uma máquina fotográfica. Ei-lo que chega aqui agora — uma pausa. — Sir Hugo Drax.
Bond olhou o rosto gotejante de Gala. Ensopados e sangrando, ficaram nos braços um do outro, sem falar e tremendo ligeiramente sob o impacto de suas emoções. Seus olhos nada exprimiam e eram insondáveis quando se fitaram.
A voz que se ergueu era aveludado rosnar:
— Vossa Majestade, homens e mulheres da Inglaterra. Estou prestes a modificar o curso da história da Inglaterra. — Uma pausa. — Dentro de poucos minutos todas as vossas vidas estarão alteradas, em alguns casos drasticamente, pelo — hum — impacto do “Explorador da Lua”. Sinto-me muito orgulhoso e feliz porque o destino me elegeu, dentre todos os meus compatriotas, para lançar esta grande flecha de vingança nos céus e assim proclamar para sempre e para que todo o mundo presencie, o poderio de minha Pátria. Espero que esta oportunidade seja para sempre um aviso de que o destino dos inimigos de meu País estará escrito em poeira, em cinzas, em lágrimas e — uma pausa — em sangue. E agora muito obrigado por me terem ouvido, e eu, sinceramente, faço votos para que aqueles dentre vós que puderem, repitam as minhas palavras aos seus filhos, se os tiverem, hoje à noite.
Uma onda um tanto hesitante de aplausos ecoou através do microfone. Em seguida, ouviu-se a voz animada do locutor.
— Acabamos de ouvir Sir Hugo Drax, dirigindo-lhes algumas palavras antes de atravessar o ponto de tiro que leva ao interruptor na parede que lançará o “Explorador da Lua”. É a primeira vez que fala em público. Muito — hum — incisivo. Não faz rodeios para falar. Entretanto, muita gente achará que não há nenhum mal nisto. E agora chegou o momento de eu passar o microfone ao técnico, Capitão-Chefe de Grupo Tandy, do Ministério do Abastecimento, que descreverá para vocês o lançamento do “Explorador da Lua”. Em seguida, ouvirão a palavra de Peter Trimble, numa das embarcações da patrulha de segurança naval, o HMS Merganzer, que descreverá a cena da área compreendida pelo alvo. O Capitão Tandy.
Bond lançou um olhar ao relógio.
— Só mais um minuto — disse a Gala. — Oh, meu Deus, como eu gostaria de pôr as mãos em Drax. Tome aqui — estendeu a mão para o sabonete e arrancou-lhe alguns pedaços. — Ponha isto nos ouvidos, quando chegar a hora. O barulho vai ser tremendo, não sei dizer como será o calor. Não durará muito, e as paredes de aço talvez aguentem bem. Gala olhou para ele. Sorriu.
— Se você me segurar, não vai ser assim tão ruim — falou.
— E agora Sir Hugo está com a mão no interruptor e olha o cronômetro.
— DEZ — disse outra voz, forte e sonora como o toque de um sino.
Bond abriu o chuveiro, e a água jorrou sobre seus corpos apertados um contra o outro.
— NOVE — reboou a voz do que controlava o tempo.
— Os operadores do radar estão olhando as telas. Nada, exceto uma massa de linhas onduladas. . .
— OITO.
— Todos estão usando tampões nos ouvidos. A casamata deve ser indestrutível. As paredes de concreto têm três metros e meio de espessura. O teto em pirâmide tem sete metros e pouco de espessura na ponta.. .
— SETE.
— Primeiro o rádio sustará o mecanismo do tempo nas turbinas. Porá em movimento o cata-vento. Uma coisa flamejante como uma rodinha de fogo de artifício. . .
— SEIS.
— As válvulas se abrirão. Combustível líquido, Fórmula secreta. Coisa formidável. Dinamite. Cai dos tanques de combustível ...
— CINCO.
— Aceso pelo pino giratório, quando o combustível chega ao motor do foguete. . .
— QUATRO.
— enquanto que a água oxigenada e o permaganato já se misturaram, tornaram-se vapor, e as bombas das turbinas começam a girar.. .
— TRÊS.
— bombeando o combustível inflamável, através do motor, na cauda do foguete, para a cavidade exaustora. Calor gigantesco. . . 3500 graus...
— DOIS.
— Sir Hugo está prestes a apertar o botão. Está olhando pela abertura. O suor lhe umedece a fronte. Completa tensão aqui. Tremenda tensão.
— UM.
Nada senão o ruído da água, caindo incessantemente nos dois corpos agarrados.
— FOGO!
O coração de Bond pulou para a garganta ao ouvir o grito. Sentiu Gala estremecer. Silêncio. Nada, senão o sibilar da água...
— Sir Hugo deixou a casamata. Vai caminhando calmamente para a borda dos penhascos. Tão confiante! Passou agora para o elevador. Vai descer. Naturalmente. Deve ir até o submarino. As telas de televisão mostram um pouco de vapor vindo da cauda do foguete. Mais alguns segundos. Sim, ele se encontra no cais. Olhou para trás e levantou o braço no ar. Bom velho Sir Hu...
Um troar longínquo chegou até Bond e Gala. Mais alto. Mais alto. O chão ladrilhado começou a tremer debaixo dos pés deles. Um clamor de furacão!! Seriam pulverizados. As paredes tremiam, queimavam. As pernas de ambos começaram a descontrolar-se sob seus corpos oscilantes. Segure-a bem. Segure-a bem. Pare com isso! Pare com isso!! PARE COM ESSE BARULHO.
Cristo, ele ia desmaiar. A água estava fervendo. Era preciso fechá-la. Encontrei. Não. O cano arrebentou. Vapor, cheiro, ferro, tinta.
Tire-a daqui para fora! Tire-a daqui para fora!! Tire-a daqui para fora!!!
Depois o silêncio. Silêncio que se podia sentir, apalpar, apertar. E eles estavam no chão do escritório de Drax. Só a luz do banheiro ainda brilhava. A fumaça ia dissipando-se. Assim como o cheiro horrível de ferro queimado e tinta. Estavam sendo sugados pelo ar condicionado. A parede de aço inclina-se para eles qual bolha gigantesca. Os olhos de Gala estão abertos, e ela está sorrindo. Mas o foguete? Que foi que aconteceu? Londres? Mar do Norte? O rádio. Parece em ordem. Sacudiu a cabeça, e a surdez foi lentamente desaparecendo. Lembrou-se do sabão. Retirou-o das orelhas.
— Atravessando a barreira do som. Viajando perfeitamente bem no centro da tela do radar. Um lançamento perfeito. Receio que não tenham ouvido nada por causa do barulho. Tremendo. Primeiro todo aquele grande lençol de chamas vindo do penhasco, saindo da cavidade exaustora, e depois vocês deveriam ter visto o nariz lentamente surgir da cúpula. Ei-lo que sobe como um enorme lápis de prata. Mantendo-se em posição vertical nesta imensa coluna de chamas e vagarosamente subindo no ar. A flama se espalhando por centenas de quilômetros sobre o concreto. O uivo da coisa deve ter ameaçado seriamente arrebentar nossos microfones. Grandes fragmentos caíram do penhasco, e o concreto parece uma teia de aranha. Tremenda vibração. E a agulha subindo cada vez mais rápida. Cem milhas por hora. Mil. E — o locutor interrompeu o que ia dizendo — o que é que você disse? Ah, sim? Agora está percorrendo o espaço numa velocidade de dez mil milhas horárias! Encontra-se a uma altura de trezentas milhas. Não posso ouvir mais, naturalmente. Só vimos a flama durante alguns segundos. Como uma estrela. Sir Hugo deve estar muito orgulhoso. Encontra-se, no momento, no Canal. O submarino partiu como um foguete. Deve estar fazendo mais de trinta nós. Atirando para cima um colosso de espuma. Já alcançou o East Goodwins agora. Viaja para o norte. Dentro em breve chegará até os navios patrulheiros. Presenciarão o lançamento e a aterrissagem. Mas esse itinerário foi meio surpreendente. Ninguém aqui tinha a menor indicação. Até mesmo as autoridades navais parecem um tanto mistificadas. O Comandante-em-Chefe Nore foi ao telefone. Mas agora é só o que eu lhes posso informar daqui e vou passar a palavra a Peter Trimble, a bordo do HMS Merganzer, num ponto qualquer da Costa Oriental.
Nada, exceto os pulmões funcionando, indicava que os dois corpos largados na lagoa sempre crescente do chão ainda estivessem vivos. Mas seus tímpanos avariados pendiam desesperadamente do ruído de estática que veio durante alguns instantes do gabinete de metal todo empipocado. Agora teriam o veredicto do seu trabalho.
— Aqui fala Peter Trimble. Temos uma linda manhã — retifico — tarde, aqui. Um pouco ao norte de Goodwin Sands. Calmo como um lago. Não há vento. O sol brilha alegremente. A área compreendida pelo alvo foi declarada limpa, sem nenhuma embarcação. Não é assim, Comandante Edwards? Sim, o Capitão diz que está tudo inteiramente limpo. Por enquanto nada se vê na tela do radar. Não me é permitido informar o raio em que o pegaremos. Por motivos de segurança, e essa coisa toda. Mas nós só pegaremos o foguete por uma fração de segundo. Não está certo o que digo, Capitão? Mas o alvo começa a aparecer na tela. Não se pode vê-lo da ponte, naturalmente. Deve estar a setenta milhas daqui, na direção do norte. Vimos o “Explorador da Lua” subindo. Espetáculo assombroso! O barulho semelhante a um trovão. Uma longa chama saía da cauda. Devia estar já a dez milhas de distância, mas não era possível deixar de ver a luz. Não é isto, Capitão? Ah, sim, compreendo. Bom, isto é muito interessante. O enorme submarino se aproxima rapidamente. Está apenas a uma milha de distância. Suponho que seja aquele onde se encontra Sir Hugo com seus homens. Nenhum de nós aqui foi informado de coisa alguma a seu respeito. O Capitão Edwards diz que não responde à lâmpada Aldis. Não traz distintivo de navegação. Muito misterioso. Peguei-o agora mesmo. Está bem nítido em meus binóculos. Mudamos de rumo para tentar a intercepção. O Comandante diz que não é um dos nossos. Acha que deve ser estrangeiro. Atenção! Mostrou agora suas cores. O que vem a ser isto? Santo Deus! O capitão diz que é um submarino russo. Puxa! Agora está arriando as bandeiras e submergindo. Bang! Ouviram? Atiramos visando a proa, mas já desapareceu. Que é isto? Ah, o operador do asdic informa que está acelerando cada vez mais, debaixo da água. Vinte e cinco nós. Puxa! De qualquer modo, o submarino não poderá ver muita coisa debaixo da água, porém encontra-se agora bem na área do alvo. Passam vinte minutos das doze horas. O “Explorador” deve ter mudado seu rumo e prepara agora a descida. A umas mil milhas. Velocidade de descida, dez mil milhas horárias. Estará aqui dentro de segundos. Espero que não se verifique tragédia alguma. O submarino russo encontra-se bem dentro da zona perigosa. O operador do radar está acenando para nós. É o sinal para avisar que está na hora. Vem chegando. Vem chegando! . . . Não se ouve o mais leve ruído! deus do céu! Que é isto? Cuidado! Cuidado! Uma terrível explosão.. . Uma nuvem negra se eleva no ar. Uma gigantesca vaga, como a de um maremoto, aproxima-se rapidamente de nós. Uma vaga enorme! O submarino! Santo Deus... vimo-lo agora saltar fora da água e voltar a mergulhar, de quilha para o ar! Vem chegando. . .! Vem chegando! ...
CAPÍTULO 25
ZERO MAIS
Duzentos mortos confirmados, até agora, e aproximadamente o mesmo número de pessoas desaparecidas — informou M.
— Ainda estão chegando notícias da costa oriental, e as informações da Holanda não são das melhores. Foram inutilizadas muitas milhas de suas defesas navais. A maioria de nossas perdas ocorreu nas unidades patrulheiras. Duas delas viraram, incluindo o Merganzer. O Comandante desapareceu. O camarada da B. B. C. também. Os navios-faróis de Good-win partiram as amarras. Ainda não recebemos notícias da Bélgica e da França. Haverá contas bem pesadas a pagar, quando tudo isto ficar em ordem...
Era na tarde seguinte, e Bond, com uma bengala de ponta de borracha ao lado da cadeira, voltava a sentar-se onde tudo havia começado: do outro lado da escrivaninha daquele homem calmo, de frios olhos cinzentos, que o convidara para jantar e jogar bridge, há cem anos atrás.
Por baixo da roupa, Bond era uma perfeita e entrelaçada teia de esparadrapo. A dor queimava-lhe as pernas, sempre que tentava mexer os pés. Um traço vermelho cortava-lhe a face esquerda e a parte superior do nariz. O linimento, feito à base de ácido pícrico, cintilava à luz que entrava pela janela. Segurava um cigarro, como podia, na mão enluvada. Inacreditavelmente, M. tinha-o convidado a fumar.
— Algumas notícias do submarino, chefe? — perguntou Bond.
— Já o localizaram — disse M. com satisfação. — Adernado a cerca de trinta braças de profundidade. O navio de salvamento que deveria localizar os restos do foguete encontra-se agora por cima dele. Os mergulhadores já estiveram no fundo, e não houve resposta aos sinais feitos no casco. O embaixador soviético esteve no Foreign Office esta manhã. Parece ter declarado vir a caminho um navio salva-vidas, proveniente do Báltico, mas respondemos que não podíamos esperar, visto que, tratando-se de um navio naufragado, constitui um perigo para a navegação, no local onde está. — M. riu. — Com efeito, seria um perigo se alguém se dispusesse a navegar a trinta braças de profundidade, em pleno Canal. Contudo, estou satisfeito por não ser membro do Ministério — acrescentou friamente. — Tem estado em sessão permanente, desde o final da transmissão radiofônica. Vallance conseguiu entrar em contato com os tais advogados de Edinburgh, antes de eles abrirem a mensagem de Drax para o mundo. Parece ser um documento terrível, como se tivesse sido escrito pelo próprio Jeová. Vallance levou-o ao Governo, na noite passada, e ficou no 10, Downing Street, para esclarecer pontos ainda não averiguados.
— Eu sei — disse Bond. — Ele esteve telefonando constantemente para o hospital, procurando saber detalhes, até depois da meia-noite. Eu mal podia raciocinar direito, devido aos entorpecentes que me aplicaram. E que vai acontecer agora?
— Vão tentar abafar a coisa, com a maior embromação de que se teve notícia até hoje em toda a História. Uma quantidade enorme de lero-lero científico, explicando que o combustível foi usado só pela metade. Deu-se uma inesperada e potente explosão. Serão pagas indenizações. Perda trágica de Sir Hugo Drax e sua valiosa equipe. Grande patriota. Perda trágica de um dos submarinos de Sua Majestade. Último modelo experimental, ordens mal compreendidas. Tudo muito triste. Felizmente, perdeu-se uma tripulação mínima. Os parentes mais próximos serão informados. Trágica perda de um radialista da B.B.C. Inacreditável erro ao confundir a insígnia branca com as cores navais soviéticas. O desenho é muito semelhante. A bandeira branca foi recuperada no naufrágio.
— Mas que me diz da explosão atômica? — indagou Bond. — Radiações, poeiras radioativas e tudo isso. . . A famosa nuvem em forma de cogumelo. Com certeza isso vai ser um problema para explicar.
— Aparentemente, não estão muito preocupados com a questão — disse M. — A nuvem vai passar como formação normal, após uma explosão daquela envergadura. O Ministério do Abastecimento conhece toda a história. Foi preciso contar-lhes. Seus homens andaram percorrendo ontem à noite toda a costa oriental, com contadores Geiger, e ainda não houve qualquer notícia positiva. — M. sorriu friamente. — A nuvem terá de descer em algum lugar, claro, mas por uma feliz circunstância, o vento está empurrando-a para o norte. De volta a casa, como se poderia dizer. . .
Bond esboçou um sorriso, com dificuldade.
— Compreendo. Que coisa apropriada.
— Evidentemente — prosseguiu M., enchendo o cachimbo — haverá por aí uma série de boatos desagradáveis. Já começaram, aliás. Muita gente viu você e Miss Brand, serem retirados em padiolas. Depois, há o caso da Bowaters contra Drax, pela perda de todo aquele material de impressão. Haverá também inquérito sobre o rapaz que foi morto no Alfa Romeo. E alguém terá de explicar como se encontraram os restos de seu automóvel, entre os quais, — e nesta altura, M. olhou acusadoramente para Bond — foi encontrado um Colt de cano longo. E temos ainda o Ministério de Abastecimento. Vallance teve de chamar alguns de seus homens, ontem, para limpar aquela casa da Ebury Street. Mas essa gente está treinada em guardar segredo. Não será por aí que se descobrirá alguma coisa. Naturalmente, será um negócio arriscado. Mas a mentira de grandes proporções sempre o foi. E qual seria a alternativa? Encrencas com a Alemanha? Guerra com a Rússia? Muita gente, dos dois lados do Atlântico, ficaria mais do que satisfeita se lhe déssemos um motivo para agir.
M. fez uma pausa e chegou um fósforo ao cachimbo. Depois continuou:
— Se a história fôr engolida, não sairemos muito mal de tudo isto. Quisemos um de seus submarinos ultravelozes e ficaremos satisfeitos com as pistas que conseguimos descobrir a respeito de suas bombas atômicas. Os russos sabem que nós sabemos que o jogo deles fracassou. Malenkov não está muito firme no poder, e isto pode muito bem significar outra rebelião entre os senhores do Kremlin. Quanto aos alemães, bem... todos nós sabemos que ainda ficou muito nazismo espalhado por aí, e isto servirá para que o Ministério seja um pouco mais cauteloso, no tocante ao rearmamento da Alemanha. Entre as consequências de menor vulto — disse com um sorriso — destaca-se a de que o trabalho de segurança de Vallance, e o meu também, aliás, vão ficar um pouco mais fáceis para o futuro. Esses políticos não veem que a era atômica criou o mais letal sabotador da história da humanidade: o homenzinho com a valise pesada.
— E a imprensa vai engolir essa história? — perguntou Bond, duvidoso.
M. sacudiu os ombros.
— O Primeiro-Ministro teve esta manhã um encontro com os jornalistas — respondeu M., chegando outro fósforo ao cachimbo — e creio que conseguiu tudo da melhor maneira. Se os boatos se intensificarem mais tarde, ele terá, provavelmente, de convocá-los novamente e dizer-lhes parte da verdade. Então, eles se portarão bem. Sempre se portaram, quando o negócio é importante de verdade. O principal é ganhar tempo e manter afastados os boateiros. No momento, todos estão de tal maneira orgulhosos do “Explorador da Lua”, que não indagarão muito minuciosamente que foi que não deu certo.
Ouviu-se um leve zumbido no intercomunicador da escrivaninha de M., e uma luzinha vermelha piscou repetidas vezes. M. pegou no fone e curvou-se. — Alô. — Houve uma pausa. — Atenderei na linha do Ministério. — Apanhou o receptor branco, na mesa onde havia quatro telefones. — Sim. Está falando. — Nova pausa. — Pronto, sir? Escuto. — M. premiu o botão do misturador de sons. Segurou o fone junto ao ouvido, e nem um som chegou até aos ouvidos de Bond. Houve uma longa pausa, durante a qual M. ia puxando uma ou outra baforada do cachimbo, com a mão esquerda, enquanto escutava. Depois, tirou-o da boca. — De acordo, sir. É isso mesmo, sir. — Outra pausa. — Estou certo de que o meu homem teria ficado extremamente orgulhoso, sir. Mas, naturalmente, como Vossa Excelência sabe, é uma regra aqui no serviço. — M. franziu a testa. — Se me permite dar uma opinião, sir, creio que não seria nada aconselhável. — Uma pausa e a fisionomia de M. se desanuviou. — Obrigado, sir. Claro, Vallance não tem o mesmo problema. É o mínimo que ela merece, sir. — Outra pausa. — Compreendo. Assim será feito, sir. — Nova pausa. — É muita bondade sua, sir.
Depois de mais alguns cumprimentos, M. colocou o telefone branco no gancho, e o botão do misturador voltou à sua posição inicial de “livre”.
Por uns instantes, M. continuou fitando o telefone, como se em dúvida a respeito do que fora dito. Depois rodou a cadeira para longe da escrivaninha e olhou pela janela, pensativo.
Reinou o silêncio na sala, e Bond remexeu-se na cadeira, para aliviar a dor que lhe invadia novamente o corpo.
O mesmo pombo de segunda-feira, ou talvez outro, veio descansar no peitoril da janela, com o mesmo ruflar de asas. Caminhava para um e outro lado, baixando a cabeça e arruinando. Depois, voou para as árvores do parque. O tráfego murmurava, sonolento, na distância.
Como estivera perto, pensou Bond, de embarcar desta para melhor. Quão perto estivera de não haver nada mais do que a sirena distante da ambulância sob um sinistro céu negro e alaranjado, o cheiro de queimado, os gritos das pessoas ainda presas nos edifícios. O suave bater do coração de Londres, silenciado por uma geração. E toda uma geração de sua gente, morta nas ruas, entre as ruínas fumegantes de uma civilização que talvez não se erguesse de novo senão daí a muitos séculos.
Tudo isso teria acontecido por causa de um homem que fazia trapaça nas cartas, desdenhosamente, para alimentar o fogo devorador de seu ego maníaco; teria acontecido, se não fosse o presidente do clube Blades que o descobriu; se não fosse M., que concordara em ajudar um velho amigo; se não fosse a lição meio recordada por Bond e aprendida com um perito em trapaças; se não fossem as precauções de Vallance; se não fosse a boa cabeça de Gala para cálculos; se não fosse por uma série completa de circunstâncias fortuitas, de oportunidades .
E quem preparou a série?
Ouviu-se um ranger agudo, quando a cadeira de M. girou. Bond, cautelosamente, voltou a focalizar sua atenção nos olhos cinzentos do outro lado da escrivaninha.
— Era o Primeiro-Ministro — explicou M., em voz agridoce. — Diz que deseja que tanto você como Miss Brand saiam do País. — M. baixou os olhos e pousou-os, impassível, no fornilho do cachimbo. — Vocês dois têm de dar o fora até amanhã à tarde. Há muitas pessoas, neste caso, que lhes conhecem as caras. Poderão somar dois e dois e saberem que são quatro, quando virem em que estado lamentável se encontram. Vão para qualquer lugar que lhes agrade. Despesas sem limite de verba para ambos. Qualquer importância que precisarem. Vou falar com o Tesoureiro. Fique fora por um mês. Mas completamente fora de circulação, entendeu? Vocês dois já deveriam ter partido esta tarde, mas a moça tem um compromisso amanhã às onze horas. No Palácio. Foi-lhe concedida a George Cross. Mas isso não será divulgado até ao novo ano, claro. Gostaria de encontrá-la, qualquer dia. Deve ser uma excelente moça. Aliás — a expressão de M., quando levantou os olhos, era indecifrável — o Primeiro-Ministro tinha na ideia qualquer coisa para você, também. Esquecera que nós, aqui, não admitimos essas coisas. De modo que me pediu para lhe agradecer em nome dele. Disse algumas palavras simpáticas a respeito de nosso serviço. É muito gentil.
M. esboçou um daqueles raros sorrisos que iluminavam seu rosto com uma vivacidade e calor imediatos. Bond retribuiu o sorriso. Eles compreendiam bem as coisas que não chegavam a ser ditas.
Bond percebeu que era tempo de sair. Levantou-se e disse:
— Muito obrigado, chefe. Estou muito satisfeito pela moça.
— Bom, então está tudo combinado — disse M., com uma nota de despedida na voz. — Por hoje basta. Vê-lo-emos aqui dentro de um mês. Ah, é verdade — acrescentou com naturalidade — passe pelo seu escritório antes de sair. Encontrará uma coisa que eu lhe deixei lá. Uma pequena lembrança .
James Bond desceu pelo elevador e foi mancando pelo corredor, até seu gabinete. Quando cruzou a porta interior, encontrou sua secretária arrumando alguns papéis na escrivaninha ao lado da dele.
— 008 já está de volta? — perguntou.
— Sim — respondeu ela, sorrindo feliz. — Deve voar esta noite para cá.
— Ótimo, fico alegre por saber que você terá companhia — disse Bond. — Vou partir novamente.
— Oh! — exclamou a moça. Olhou rapidamente para ele e depois desviou o olhar. — Você está mesmo com cara de quem precisa de um bom descanso.
— Pois vou tê-lo mesmo. Um mês de exílio. — Pensou em Gala. — Vai ser um período de puras férias. Nada mais. Alguma coisa para mim?
— Seu novo carro está lá embaixo. Já o examinei. O homem disse que você lhe tinha dado ordens para que o trouxessem para experiência esta manhã. É lindo! Ah, é verdade. E tem ainda o pacote que veio do gabinete de M. Quer que o desembrulhe?
— Sim, por favor. . .
Bond sentou-se à escrivaninha e olhou o relógio. Cinco horas. Sentia-se fatigado. Sabia que iria sentir o mesmo durante alguns dias. Sempre tinha essas reações, no final de uma difícil missão. Era a consequência dos dias de nervos em tensão, dos temores, do medo.
Sua secretária voltou ao escritório, com duas caixas de papelão, de aspecto pesado. Colocou-as sobre a escrivaninha, e ele abriu a de cima. Quando viu a espécie de papel que envolvia o objeto, percebeu logo o que estava para vir.
Havia um cartão dentro da caixa. Bond pegou-o e leu. Na tinta verde usada por M., este dizia: “Você pode precisar destas coisas.” Não havia assinatura.
Bond desembrulhou o papel impermeável e sopesou a nova e refulgente Beretta em sua mão. Um lembrete. Não. Uma recordação. Bond sacudiu os ombros e fez a arma deslizar por baixo do casaco, para o coldre vazio. Levantou-se com alguma dificuldade.
— No outro embrulho, você encontrará um Colt de cano longo — disse ele à secretária. — Guarde até eu regressar. Então, eu o levarei ao fogão da cantina e jogá-lo-ei lá dentro.
Caminhou para a porta:
— Adeus, Lil. Lembranças a 008, e diga-lhe que tome cuidado com você. Eu estarei na França. Estação F terá meu endereço. Mas só em caso de emergência.
A moça sorriu.
— Que deverei considerar uma emergência? — perguntou.
Bond soltou uma pequena risada.
— Qualquer convite para um tranquilo jogo de bridge, por exemplo — respondeu ele.
Saiu mancando e fechou a porta.
O Mark VI, modelo 1953, tinha uma carroçaria esportiva e elegante, cor cinza de navio de guerra como o velho quatro litros e meio que fora para a sepultura numa garagem de Maidstone. O estofamento de couro azul-marinho deu um luxuoso gemido de coisa nova, quando Bond subiu, desajeitadamente, para o assento ao lado do motorista de provas.
Meia hora depois, o motorista ajudou-o a descer na esquina de Birdcage Walk com Queen Anne’s Gate.
— Se o senhor quisesse, poderíamos ter feito maior velocidade — disse o motorista. — E se nos autorizar a ficar com ele por mais uns quinze dias, poderemos prepará-lo para chegar aos cento e sessenta horários.
— Mais tarde — respondeu Bond. — Está comprado. Mas com uma condição. De que você o leve à terminal do ferry-boat na estação de Calais, amanhã à tarde.
O motorista sorriu:
— O.K. Eu o levarei. Verei o senhor no cais, está bem?
— Combinado. Siga com cuidado pela A-20. A estrada de Dover está muito perigosa, estes últimos dias.
— Não se preocupe, sir — respondeu o motorista, pensando que aquele homem devia ser um tanto medroso, apesar de tudo o que parecia conhecer a respeito de automóveis. — Não acontecerá nada.
— Nem todos os dias — advertiu ainda Bond, sorrindo. — Vê-lo-ei em Calais.
Sem esperar a resposta, saiu mancando, apoiado à bengala, por entre os raios de luz poeirenta do crepúsculo, filtrados através das árvores do parque.
Sentou-se defronte da ilha, no lago, e puxou da cigarreira, acendendo um cigarro. Olhou o relógio. Cinco para as seis. Lembrou-se de que ela não era o tipo de pequena que não seria pontual num encontro. Reservara a mesa de um canto parar o jantar. E depois? Mas, primeiro, haveria o longo e requintado planejar. De que gostaria ela? Onde gostaria de ir? Onde já teria estado? Alemanha, com certeza. França? Deixaria Paris de lado. Poderiam visitar a cidade no regresso. Mas, na primeira noite, iriam o mais longe que pudessem, bem longe do Pas de Galais. Havia aquela casa de campo, com uma comida maravilhosa, entre Montreuil e Étaples. Depois, a descida ao longo do Loire. Os pequenos lugares perto do rio, para alguns dias. As cidades dos castelos, não. Lugares como Beaugency, por exemplo. Depois, vagarosamente, para o sul, sempre seguindo pelas estradas do Oeste, evitando a vida em lugares mundanos e hotéis de cinco estrelas. Explorando lentamente o caminho. Bond teve um sobressalto. Explorar o quê? Um ao outro? Seria que ele estava levando a pequena a sério, demasiado a sério?
— James.
Era uma voz clara, bem timbrada, um pouco nervosa. Não a voz que ele esperava.
Levantou os olhos. Ela estava de pé, a poucos metros de distância. Bond reparou que usava uma boina preta, colocada num ângulo brejeiro. Tinha um ar excitante, misterioso, como alguém que vemos, em terra estranha, conduzindo sozinha um carro aberto. Alguém inatingível e mais desejável do que qualquer outra pessoa que já se conheceu até hoje. Alguém que está a caminho de um encontro amoroso com outro. Alguém que não é para você.
Bond ergueu-se, e deram-se as mãos.
Foi ela quem soltou a sua. Não se sentou.
— Gostaria muito que você fosse amanhã, James — disse Gala.
Seus olhos eram ternos quando o fitou. Ternos e suaves, mas, pensou ele, algo evasivos. Bond sorriu.
— Amanhã de manhã? Ou amanhã à noite? — disse ele.
— Não seja ridículo — respondeu Gala, rindo e corando. — Amanhã no Palácio.
— E depois? Que tenciona você fazer?
Gala encarou-o, cautelosamente. Que seria que esse olhar lembrava a ele? O olhar de Morphy? O olhar com que fitara Drax, na derradeira mão do jogo no Blades? Também não. Havia algo mais. Ternura? Pena?
A moça olhou por cima do ombro. Bond deu meia volta. Mais adiante viu a figura de um rapaz alto, de cabelos louros e cortados curtos. Estava de costas para ambos, sem fazer qualquer movimento. Matando o tempo.
Bond voltou a cabeça para Gala, e os olhos dela encontraram os seus.
— Vou-me casar com aquele homem — declarou ela, simplesmente. — Amanhã de tarde. — E então, como se não houvesse necessidade de outra explicação, acrescentou: — O nome dele é Vivian, Detetive-Inspetor.
— Ah, sim — disse Bond — compreendo. — Sorriu, um tanto amargo.
Houve um momento de silêncio, durante o qual seus olhos se desviaram para longe.
Entretanto, por que motivo deveria ele esperar outra coisa diferente? Um beijo. O contato de dois corpos assustados, agarrando-se no meio do perigo. Nada mais houvera. Depois, o anel de noivado sempre estivera no dedo dela, para que Bond não tivesse dúvidas. Por que supusera ele, automaticamente, que a moça o usara apenas como estratagema para que Drax não excedesse os limites? Por que imaginara que ela compartilhava de seus desejos e de seus planos?
E agora? conjeturava Bond. Sacudiu os ombros para expulsar a dor do fracasso... essa dor que é bem maior do que o prazer do sucesso. Afastar-se, era agora a única saída. Sair do caminho dessas duas vidas jovens e levar seu frio coração para qualquer outro lugar. Nada de penas. Nada de falsos sentimentos. Tinha de representar o papel que ela esperava dele. O homem duro, mundano. O Agente Secreto. O homem que era apenas uma silhueta.
Gala fitava-o, bastante nervosa, esperando ver-se desligada do estranho que tentara penetrar no átrio de seu coração.
Bond sorriu, com calor.
— Estou com ciúme — disse ele. — Tinha outros planos para você amanhã à noite.
Gala retribuiu o sorriso, grata por ter sido quebrado o silêncio.
— Quais eram esses planos? — indagou.
— Ia levá-la a uma casa de campo na França. E, depois de um jantar maravilhoso, pretendia verificar se é verdade o que dizem a respeito do grito de uma rosa.
A moça riu.
— Lamento muito não poder participar desses planos. Mas existem tantas outras, esperando serem colhidas.
— Sim, creio que sim — disse Bond. — Então, adeus, Gala.
Estendeu-lhe a mão.
— Adeus, James.
Bond tocou em Gala Brand pela derradeira vez e, depois, separaram-se, caminhando cada qual ao encontro de suas tão diferentes vidas.
CAPÍTULO 20
A JOGADA DE DRAX
Havia três diferentes fontes de dores no corpo de Gala. A dor latejante atrás da orelha esquerda, a carne mordida nos pulsos, e o queimar das correias em torno de seus tornozelos.
Cada saliência do terreno, cada desvio, cada pressão repentina do pé de Drax nos freios ou no acelerador, despertava uma dessas dores e lhe irritava os nervos. Se ao menos tivesse sido colocada mais presa ao assento de trás. Mas só havia lugar para seu corpo rolar alguns centímetros no assento, de modo que se via obrigada a contorcer constantemente o rosto machucado para evitar o contato com as paredes de brilhante couro de porco.
O ar que respirava era abafado, com um cheiro de forração nova de couro, fumaça do cano de descarga e, de quando em quando, o mais acentuado de borracha queimada, cada vez que Drax raspava os pneumáticos numa esquina de curva acentuada.
No entanto, o desconforto e a dor não eram nada. Krebs! Curioso como seu temor e repulsa por Krebs a atormentava mais que tudo. As outras coisas eram grandes demais. O mistério de Drax e seu ódio pela Inglaterra. O enigma do seu perfeito domínio da língua alemã. O “Explorador da Lua”. O segredo da cápsula atômica. Como salvar Londres. Eram assuntos que há muito tempo ela afastara para um recanto do cérebro como coisas insolúveis.
Mas a tarde passada a sós com Krebs estava presente e terrível em seu espírito, e este voltava sempre e sempre aos detalhes da mesma, como uma língua em cima de um dente dolorido.
Muito tempo depois de Drax ter partido, ela continuara a fingir inconsciência. A princípio, Krebs se ocupara com as máquinas, conversando com elas em alemão, numa falinha de bebê, toda carinhosa.
— Pronto, minha Liebchen. Agora está melhor, não está? Uma gota de óleo para você, minha Pupperl? Como não? Vai já. Não, não sua preguiçosa. Eu disse mil voltas. Não novecentas. Vamos ver agora. Nós podemos fazer coisa melhor, não podemos? Sim, minha Schatz. É isto. Rodando, rodando, lá vamos nós. Para cima e para baixo. Rodando, rodando. Deixe eu limpar sua carinha bonita, para você, para nós podermos ver o que o pequenino mostrador está dizendo. Jesus Maria, bist du ein braves Kind!
E assim continuara, ora ficando em pé, diante de Gala, ora esgaravatando o nariz e chupando os dentes, numa atitude horrível de ruminante. Até que foi permanecendo cada vez mais tempo diante dela, esquecendo as máquinas, conjeturando, tomando uma resolução.
E então sentira a mão dele desabotoar o botão de cima de seu vestido, e o recuo (automático de seu corpo teve de ser disfarçado por um grunhido realístico e uma pantomima de volta de consciência.
Pedira água, e ele fora buscar no banheiro, trazendo um pouco num copo de escova de dentes. Depois puxara uma cadeira de cozinha para a frente dela e sentara-se atravessado, de costas para o assento, o queixo descansando na última travessa do encosto. Ficara então a fitá-la especulativamente, por baixo das pálpebras caídas, com aqueles olhos desbotados.
Ela fora a primeira a romper o silêncio.
— Por que me trouxeram aqui? Para que são todas essas máquinas?
Krebs lambera os lábios de sua boquinha vermelha e bicuda, aberta sob a mancha de bigode amarelo, e foi formando lentamente um sorriso em forma romboide.
— Isto é um engodo para passarinhos. Dentro em breve atrairá um passarinho para seu ninho quente. Então o passarinho porá um ôvo. Oh, um ôvo tão grande, redondo! Um ôvo lindo!
A parte inferior de seu rosto ria encantada, enquanto seus olhos divagavam.
— A mocinha bonita está aqui porque, de outro modo, poderia assustar o passarinho, e este ir embora. E isto seria tão triste, não é mesmo? — o homem cuspiu as três palavras seguintes: — Cadela inglesa e suja!
Seus olhos tornaram-se atentos, cheios de resolução. Puxou a cadeira mais para perto, de modo que seu rosto ficou muito próximo ao dela, e ela se viu envolvida pelo miasma de sua respiração.
— E agora, cadela inglesa, diga para quem você está trabalhando? — Esperou. — Você precisa me responder, sabe? — avisou suavemente. — Nós estamos sozinhos aqui. Não há ninguém para lhe ouvir gritar.
— Não seja estúpido — disse Gala em desespero de causa. — Como eu poderia estar trabalhando para outra pessoa que não fosse Sir Hugo? (Krebs sorriu ao ouvir o nome).
— Eu só estava curiosa a respeito do plano de voo...
Gala iniciou uma explicação arrastada, a respeito de seus números e os de Drax, e de como desejara partilhar do sucesso do “Explorador da Lua”.
— Tente novamente — sussurrou Krebs, quando ela terminou. — Você deve sair-se melhor que isso — e, subitamente, seus olhos haviam-se tornado chispantes de crueldade, e suas mãos se estenderam para ela, por trás do encosto da cadeira. . .
No assento de trás do veloz Mercedes, Gala rangeu os dentes e choramingou com a lembrança dos dedos leves se arrastando pelo seu corpo, tateando, beliscando, puxando, enquanto seus olhos, durante o tempo todo, fitavam curiosamente os dela, até que, finalmente, ela juntou saliva na boca e deu uma cusparada bem no meio da cara do homem.
Este nem se dera o trabalho de parar para limpar o rosto, mas, de repente, aplicara-lhe um golpe violento, e ela gritara uma só vez, para em seguida desmaiar.
E então se vira sendo empurrada para a parte traseira do carro, com um tapete atirado em cima dela, e eles partiram velozmente pelas ruas de Londres. Gala ouvia outros carros perto deles, o campainhar frenético de uma bicicleta, um grito de vez em quando, o grunhido animalesco de uma velha klaxon, o ronronar de uma lambreta, um rangir de freios, e compreendeu que voltara ao mundo real, que pessoas inglesas, amigos, estavam em volta dela. Lutara para se pôr de joelhos e gritar, mas Krebs devia ter-lhe pressentido os movimentos, porque as mãos dele se encontraram repentinamente em seus tornozelos, prendendo-os à barra de descanso para os pés, no chão. Compreendeu que estava perdida, e as lágrimas lhe correram pelas faces, enquanto rezava para que alguém, de um jeito ou de outro, chegasse a tempo.
Isto acontecera há menos de uma hora, e agora ela podia garantir que haviam chegado a uma cidade grande — Maidstone, se estava sendo levada de volta para a base.
No relativo silêncio do avanço do Mercedes por dentro da cidade, ela ouviu, subitamente, a voz de Krebs. Havia nela um quê de ansioso.
— Mein Kapitän, tenho estado a observar um carro já há algum tempo. Não resta dúvida de que está nos seguindo. Raramente usa os faróis. Está apenas a uns cem metros de distância, atrás de nós agora. Eu acho que é o carro do Comandante Bond.
Drax grunhiu de surpresa, e ela ouviu seu corpanzil virar-se todo para dar uma rápida olhada.
Praguejou violentamente, e depois veio o silêncio, dentro do qual ela pôde sentir o carro grande se movimentando em curvas e se esforçando por ganhar terreno dentro do trânsito.
— Ja, sowas! — disse finalmente Drax. Sua voz parecia preocupada. — Quer dizer que aquela velha peça de museu ainda pode movimentar-se. Tanto melhor, meu caro Krebs. Parece que ele está sozinho.
Deu uma risada desagradável:
— Deixe que ele fique por nossa conta, porque se sobreviver, nós o meteremos no mesmo saco com a mulher. Ligue o rádio. Estação local. Logo saberemos se existe algum obstáculo.
Ouviu-se um rápido estalido da estática e depois Gala escutou a voz do Primeiro-Ministro, a voz das grandes ocasiões de sua vida, vinda em fragmentos entrecortados, enquanto Drax punha o carro em terceira e acelerava para sair da cidade: “. . . arma criada pela engenhosidade do homem. . . mil milhas acima no firmamento. . . área patrulhada pelos navios de Sua Majestade. . . planejado exclusivamente para a defesa de nossa amada ilha. . . uma longa era de paz... desenvolvimento para a grande viagem do homem além dos limites deste planeta. . . Sir Hugo Drax, esse grande patriota e benfeitor do nosso País...”
Gala ouviu o estrondear da gargalhada acima do uivar dos ventos, um vasto latido de desprezo e triunfo e, em seguida, o rádio foi desligado.
— James — sussurrou Gala consigo mesmo. — Só resta você. Tenha cuidado. Mas ande depressa.
O rosto de Bond era uma máscara de poeira e imundície com o sangue das moscas e outros insetos que se haviam esmagado contra ele. Muitas vezes tivera de retirar uma das mãos com câimbra do volante, para limpar os óculos, mas o Bentley ia portando-se muito bem, e ele tinha certeza de que pegaria o Mercedes.
Estava quase alcançando noventa e cinco na linha reta, pouco antes da entrada para Leed Castle, quando luzes possantes foram emitidas por trás dele, e uma buzina de quatro tons executou seu ousado “pam-pim-pim-pam” quase dentro de seu ouvido.
A aparição de um terceiro carro na corrida era quíase inacreditável. Bond mal se dera o trabalho de olhar no espelho retrovisor, desde que havia saído de Londres. Ninguém, a não ser um corredor de automóvel ou um homem desesperado, poderia ter emparelhado com eles, e seu espírito se encontrava numa confusão quando, automaticamente, afastou-se para a esquerda e viu, com o rabo dos olhos, um carro baixo, vermelho como os dos bombeiros, emparelhar com ele e afastar-se com uma diferença de umas dez milhas, uma hora extra em seu relógio.
Vislumbrou o famoso radiador Alfa e, na borda do capô, escrito em letras grandes, brancas, as palavras: Attaboy II. Em seguida, viu o rosto sorridente de um rapazinho em mangas de camisa, que espetou dois dedos vermelhos no ar antes de desaparecer na mistura de sons que um Alfa em disparada compõe com o gemido de seu escape, o espooar do cano de descarga e o uivo trovejante do transmissor.
Bond sorriu cheio de admiração ao levantar a mão para o chofer. Alfa Romeu, oito cilindradas, com surpercarburadores, pensou consigo mesmo. Deve ser quase tão velho quanto o meu. ‘32 ou ‘33, provavelmente. E só a metade de meus cc. Targa Florio, em 1931, e depois disso fez bonito em toda a parte. Com certeza era um tipo desses de cabeça quente, ouvindo uma das estações da RAF dos arredores. Tentando voltar de alguma festa a tempo de assinar o ponto antes de ser citado num relatório. Observou benèvolamente quando o Alfa balançou a cauda na curva em S ao lado de Leeds Ctostle e, em seguida, passou uivando pelo longo caminho largo em direção à distante bifurcação de Charing.
Bond bem podia imaginar o sorriso de satisfação do rapaz, quando este alcançou Drax: “Ôba. É uma Merc!” E a raiva de Drax, ao ouvir a música impudente da buzina. Deve estar fazendo 105, pensou Bond. Espero que esse maluquinho não saia da estrada. Ficou a olhar os dois jogos de luzes traseiras se aproximando, o rapaz do Alfa se preparando para o truque de surgir por trás e, de repente, acelerar ao máximo, assim que tivesse uma oportunidade para passar.
Pronto. Quatrocentas jardas adiante o Mercedes apareceu, branco, iluminado pelas luzes duplas do Alfa. Havia uma milha de estrada livre na frente, completamente reta. Bond quase sentia os pés do rapaz pisando o pedal mais fundo ainda. Ôba rapaz!
Lá na frente, no Mercedes, Krebs tinha a boca colada ao ouvido de Drax.
— Outro deles — gritou aflito. — Não consigo ver o rosto. Vem vindo para nos passar agora.
Drax deixou escapar uma obscenidade a meia voz. Seus dentes branquejaram no pálido reflexo do painel.
— Vou dar uma lição a esse canalha — falou, endireitando os ombros e agarrando o volante com firmeza com as grandes luvas de couro. Com o canto dos olhos viu o capô da Alfa surgir a estibordo. ‘Tam-pim-pim-pim”, cantava a buzina, suave, delicadamente. Drax virou rápido o volante do Mercedes para a direita e, depois do horrível chocalhar dos metais, trouxe-o novamente para o centro, a fim de corrigir a posição.
— Bravo! Bravo! — gritou Krebs, fora de si com a excitação, ao ajoelhar-se no assento do carro e olhar para trás.
— Dupla capotagem. Passou por cima da cerca de cabeça para baixo. Acho que já está se incendiando. Sim. Estou vendo as chamas.
— Isto dará ao nosso caro Sr. Bond qualquer coisa para refletir — rosnou Drax, respirando pesadamente.
Bond, porém, o rosto impassível, mal examinara o velocímetro, e nada havia a não ser vingança em seu espírito, quando partiu veloz atrás do Mercedes que voava.
Vira tudo. O voo grotesco do carro vermelho, ao virar de rodas para o ar, e tornar a virar, a figura do rapaz projetada para o alto, os braços e as pernas abertos, ao ser cuspido para fora do volante, e o estrondo final, quando o carro saltou a cerca de cabeça para baixo e foi desmoronar-se no campo.
Quando passou disparado, observando as marcas horríveis de grafita deixadas pela derrapagem, seu espírito anotou um toque macabro final. Saindo, não se sabe como, incólume do holocausto, a buzina ainda dava contato, e seu ulular subia para o céu, abrindo estridentemente estradas imaginárias para a passagem do Attaboy II: “Pam-pim-pim-pam. Pam-pim-pim-pam.”
Com que então um homicídio tivera lugar bem debaixo de seus olhos. Ou, pelo menos, uma tentativa de homicídio. Assim, fossem quais fossem seus motivos, Sir Hugo Drax era um criminoso e, provavelmente, um maníaco. Isto, acima de tudo, significava perigo certo para o “Explorador da Lua”. Era o bastante para Bond. Meteu a mão debaixo do painel e, de seu coldre escondido, tirou o Colt Especial do Exército, calibre 45 de cano longo, e colocou-o no assento ao seu lado. A batalha agora era em campo aberto e, de um jeito ou de outro, o Mercedes teria de ser parado.
Usando a estrada como se fosse Donington, Bond pisou o acelerador e ali conservou o pé. Pouco a pouco, com o ponteiro oscilando de cada lado do número cem, começou a diminuir a diferença.
Drax entrou pelo lado esquerdo da bifurcação em Charing e subiu embalado a longa colina. Na frente, dentro do raio gigante de seus faróis, um grande caminhão de transporte, desses de oito rodas, um AEC Diesel, ia subindo a primeira curva do caminho, lutando sob o peso de quatorze toneladas de notícias impressas que levava numa viagem noturna para um dos jornais do East Kent.
Drax praguejou baixinho, ao ver o longo transporte de vinte rolos gigantescos, cada um deles contendo cinco milhas de papel impresso com notícias, amarradas lá em cima. Logo ali, no meio daquela curva traiçoeira em S, no alto da colina.
Olhou no espelho retrovisor e viu o Bentley chegando à bifurcação.
Foi então que teve uma ideia.
— Krebs — o nome saiu como um tiro de pistola. — Tire sua faca.
Um estalido agudo, e o estilete já estava na mão de Krebs. Ninguém perdia tempo, quando havia aquela nota na voz do mestre.
— Vou diminuir a marcha e seguir atrás do caminhão. Tire os sapatos e as meias, suba no capo, e quando eu vier por detrás dele, pule em cima. Eu irei na maior vagareza. Não haverá perigo. Corte as cordas e segure os rolos de papel. Primeiro os da esquerda. Depois os da direita. Nessa altura eu já terei colocado o carro no mesmo nível do caminhão, e quando você tiver cortado o segundo lote, pule no carro. Tenha cuidado para não ser levado com o papel. Verstanden? Also. Hals und Beinbruch!
Drax apagou as luzes dos faróis e contornou a curva a oitenta quilômetros por hora. O caminhão ia vinte jardas adiante, e ele teve de frear com força, a fim de não abalroá-lo. O Mercedes executou uma derrapagem, até o radiador ficar quase debaixo do chassi do caminhão.
Drax fez a mudança para segunda:
— Agora!
Manteve o carro firme como uma rocha, quando Krebs, descalço, passou por cima do para-brisa e foi-se arrastando ao longo do brilhante capo, com a faca na mão.
Num salto, atingiu o ponto visado e começou a cortar as cordas do lado esquerdo. Drax afastou-se para a direita e foi deslizando até ficar paralelo às rodas traseiras do Diesel, a fumaça do óleo vinda do cano de descarga subindo-lhe aos olhos e às narinas.
As luzes do carro de Bond começavam a aparecer no início da curva.
Houve uma série de baques fortes, quando os rolos do lado esquerdo caíram do caminhão para a estrada e foram rolando velozes pela escuridão. Depois, mais baques, ao partirem-se as cordas do lado direito. Um dos rolos arrebentou ao cair, e Drax ouviu um barulho de coisas dilaceradas, quando o papel, desenrolando-se tombou pesadamente num ponto da subida.
Aliviado de sua carga, o caminhão quase pulou para a frente, e Drax teve de acelerar um pouco para alcançar a figura esvoaçante de Krebs, que aterrisou, metade em cima das costas de Gala e metade no assento da frente. Drax pisou até embaixo o acelerador e subiu a colina como um raio, ignorando o grito do chofer do caminhão, que se sobrepôs ao clamor dos pistões, quando ele disparou em frente.
Ao contornar velozmente a curva seguinte, viu o cilindro de dois faróis desenharem-se em curva no céu, acima do topo das árvores, até se tornarem quase verticais. Tremularam ali por um instante, e depois os raios de luz giraram através do espaço e desapareceram.
Uma grande risada, semelhante a um latido de cão, escapou de Drax, e durante a fração de um segundo, tirou os olhos da estrada e levantou o rosto triunfalmente para as estrelas.
CAPITULO 21
“O PERSUASOR”
Krebs ecoou a risada maníaca com outra estridente.
— Um golpe de mestre, mein Kapitän. O senhor precisava ver como eles desciam pela colina. O tal que arrebentou. Wunderschön! Parecia o papel higiênico de um gigante. Este deve ter feito um belo pacote dele. Ele vinha chegando bem na curva. E o segundo foi tão bom quanto o primeiro. Viu a cara do motorista? Zum Kotzen! E a firma Bowater! Um belo negócio foi o que fizeram.
— Você trabalhou bem — observou Drax, conciso, o pensamento noutra coisa.
De repente, levou o carro para o lado da estrada, com um grito de protesto dos pneus.
— Donnerwetter — disse, zangado, quando começou a virar o carro. — Mas nós não podemos deixar o homem ali. Precisamos pegá-lo.
O carro já ia roncando pela estrada abaixo.
— A arma — ordenou Drax, secamente.
Passaram o caminhão no alto da colina. Estava parado, e não se via sinal de motorista. Provavelmente telefonando para a companhia, pensou Drax, diminuindo a marcha ao contornarem a primeira curva. Viam-se luzes em duas ou três casas, e um grupo de pessoas rodeava um dos rolos de papel que ali estava por entre as ruínas do portão da frente de suas casas. Havia mais rolos na borda do lado direito da estrada. À esquerda, um poste telegráfico se inclinava como bêbedo, partido ao meio. Na curva seguinte, via-se o princípio de uma grande confusão de papel estendendo-se para baixo, ao longo da colina, formando guirlandas nas cercas e na estrada, como se fossem os babados de um vestido de baile à fantasia, elefantíaco.
O Bentley tinha quase se espatifado contra as grades que guarneciam o lado direito da curva, protegendo-o de um barranco profundo. Por entre a confusão de ferro retorcido dos mourões, pendia, de capo para baixo, com uma das rodas ainda presa ao eixo quebrado de trás e ali pousada de esguelha como um guarda-chuva surrealista.
Drax se aproximou e, acompanhado de Krebs, saiu do carro e ficou quieto, à escuta.
Não se ouvia o menor som, exceto o do motor de um carro distante, seguindo rápido pela estrada de Ashford, e o trilar de um grilo insone.
Com as armas na mão, eles caminharam cautelosamente por cima dos restos do Bentley, os pés esmagando o vidro partido na estrada. Sulcos profundos haviam sido marcados na margem de grama, e sentia-se o cheiro forte de gasolina, misturado ao de borracha queimada. O metal quente do carro estalava e partia baixinho. O vapor ainda jorrava do radiador espatifado.
Bond estava caído de bruços no fundo do barranco, a uns seis metros de distância do carro. Krebs virou-o. O rosto estava coberto de sangue, mas ele respirava. Revistaram-no completamente, e Drax meteu no bolso a fina Beretta. Depois, juntos, arrastaram-no até a estrada, jogando-o, em seguida, no assento traseiro do Mercedes, com a metade do corpo em cima do de Gala.
Quando ela percebeu quem era, deu um grito de horror.
— Halt’s Maul — rosnou Drax. Foi para o assento da frente e, enquanto ligava o motor, Krebs inclinou-se e se ocupou com um longo pedaço de arame flexível.
— Faça o negócio direito — disse Drax. — Não quero que haja erros. — Refletiu melhor. — Volte depois para junto dos destroços e retire as placas. Depressa. Eu tomo conta da estrada.
Krebs puxou o tapete para cima dos dois corpos inertes e pulou fora do carro. Usando a faca como chave de parafuso, dentro em breve estava de volta com as placas, e o enorme carro começou a se movimentar no momento exato em que um grupo de habitantes do local apareceu caminhando nervosamente pela descida da montanha, focalizando as lanternas sobre a cena de devastação.
Krebs riu feliz consigo mesmo à ideia de que os estúpidos ingleses teriam de limpar e pôr tudo aquilo em ordem. Acomodou-se no assento, a fim de apreciar o trecho do caminho que sempre fora seu predileto: os bosques primaveris, cheios de florzinhas azuis e rosa, que iam até Chilham.
Eles tinham-no tornado particularmente feliz à noite. Iluminados por entre as tochas verdes das árvores novas pelos grandes faróis do Mercedes, tinham-no feito pensar nas lindas florestas de Ardennes, no grupo dedicado onde servira e na viagem que fizera num jipe capturado aos americanos, tal como naquela noite, ao lado de seu adorado líder, que ia ao volante. Der Tag custara a chegar, mas agora ali estava. Com o jovem Krebs no caminhão. Finalmente veria as multidões dando vivas, as medalhas, as mulheres, as flores. Lançou um olhar aos exércitos de flores azuis que passavam voando e sentiu-se feliz e confortado.
Gala sentia na boca o gosto do sangue de Bond. O rosto dele estava ao lado do dela, no assento de couro, e ela se mexeu para lhe dar mais lugar. A respiração do rapaz era pesada e irregular. Ela perguntava a si mesma quanto estaria ferido. Experimentou sussurrar-lhe ao ouvido. Depois falou mais alto. Ele deu um grunhido e acelerou a respiração.
— James — cochichou. — James.
Bond resmungou qualquer coisa, e ela encostou-se com força contra ele. Depois, soltou uma série de palavrões, e seu corpo se mexeu.
Tornou a ficar imóvel, e ela quase pôde senti-lo explorando as próprias sensações.
— Sou eu, Gala.
Ela sentiu o corpo dele enrijecer.
— Deus do céu. Que diabo de confusão — falou Bond.
— Você está bem? Tem algum osso quebrado?
Sentiu que ele experimentava os braços e as pernas.
— Parece que está tudo bem. Uma brecha na cabeça. Estou falando coisas que fazem sentido?
— Claro que sim — respondeu Gala. — Agora ouça.
Rapidamente, contou-lhe tudo que sabia, começando pelo caderninho de notas preto.
O corpo dele estava rígido como uma tábua contra o dela, e ele mal respirava, ouvindo a história inacreditável.
Logo depois corriam para Canterbury, e Bond colocou a boca em seu ouvido.
— Vou tentar jogar-me por trás — sussurrou. — Ver se arranjo um telefone. É a única esperança.
Começou a se erguer sobre os joelhos, o peso de seu corpo quase sufocando a respiração da moça.
Ouviu-se uma forte pancada, e ele tornou a cair em cima dela.
— Outro movimento que você faça e estará morto — disse a voz de Krebs, vindo baixinho por entre os assentos da frente.
Faltavam só vinte minutos para chegar à base! Gala rangeu os dentes e tratou de reanimar Bond, que perdera os sentidos novamente.
Acabara de conseguir, quando o carro chegou à porta da cúpula de lançamento, e Krebs, com um revólver na mão, já ia desfazendo os nós em torno dos tornozelos de ambos.
Vislumbraram o cimento familiar, iluminado pela lua, e o semicírculo de guardas a uma certa distância, antes de serem empurrados pela porta. Depois, quando Krebs lhes arrancou os sapatos, seguiram pela passagem estreita, de ferro, dentro da cúpula de lançamento.
Ali estava o cintilante foguete, lindo, inocente, qual um novo brinquedo para ciclopes.
Mas havia um cheiro horrível de produtos químicos no ar, e para Bond, o “Explorador da Lua” parecia uma gigantesca agulha hipodérmica pronta para ser enterrada no coração da Inglaterra. Apesar de um resmungo de Krebs, ele parou na escada e levantou os olhos para seu nariz faiscante. Um milhão de mortes. Um milhão. Um milhão. Um milhão.
E tudo dependia dele? Pelo amor de Deus! Tudo dependia dele?
Com o revólver de Krebs cutucando-o, desceu lentamente os degraus, atrás de Gala.
Quando entrou pela porta do escritório de Drax, controlou-se. De repente, seu espírito tornou-se claro, e toda a letargia e a dor haviam-lhe deixado o corpo. Alguma coisa, qualquer coisa, precisava ser feita. De um jeito ou de outro, ele havia de descobrir um meio. O corpo inteiro e a mente tornaram-se-lhe concentrados e agudos como uma lâmina. Seus olhos ganharam vida, novamente, e a derrota abandonou-o, como a pele de uma serpente.
Drax seguira na frente e se sentara à escrivaninha. Trazia uma Luger na mão. Este apontava um lugar entre Gala e Bond e era firme como uma rocha.
Por trás dele, Bond escutou as portas duplas se fecharem, batendo.
— Eu era um dos melhores atiradores na Divisão Branderburg — disse Drax, entabulando conversa.
— Amarre a moça nessa cadeira, Krebs. Depois o homem .
Gala olhou desesperadamente para Bond. Este disse:
— Você não vai atirar. Teria receio de atingir o combustível.
Encaminhou-se lentamente para a escrivaninha. Drax sorriu alegremente e, seguindo a trajetória do cano do revólver, mirou o estômago de Bond.
— Sua memória é ruim, inglês. Eu lhe disse que esta sala é inteiramente separada da cúpula por meio das portas duplas. Dê mais um passo e ficará sem estômago.
Bond olhou os olhos apertados e confiantes do outro e parou.
— Vamos, Krebs.
Quando os dois ficaram bem amarrados, e dolorosamente, às pernas e braços das duas cadeiras de aço tubular, pouco distante um do outro, por baixo do mapa de vidro, Krebs saiu da sala. Voltou um momento depois com uma espécie de maçarico mecânico.
Colocou a feia máquina sobre a escrivaninha, introduziu o ar com algumas breves bombadas e riscou um fósforo. Uma chama azul sibilou, elevando-se a alguns centímetros. Ele pegou o instrumento e acercou-se de Gala. Parou a pouca distância da moça.
Drax ordenou, severo:
— Vejamos agora. Vamos tratar desse caso, sem criar complicações. Nós costumávamos chamá-lo Der Zwagsman — O Persuasor. Nunca me esquecerei de como lidou com o último espião que pegamos juntos. Bem ao sul do Reno, não foi, Krebs?
Bond era todo ouvidos.
— Foi sim, mein Kapitän. — Krebs riu, recordando-se. — Era um porco de um belga.
— Pois bem. Vocês dois aí não se esqueçam. Aqui não temos esse negócio de fair play. Nada de atitudes esportivas e toda essa história. Isto aqui é negócio.
A voz estalava como um chicote, a cada palavra.
— Você — lançava um olhar a Gala Brand — para quem está trabalhando?
Gala se conservou em silêncio.
— Onde você quiser, Krebs.
A boca de Krebs estava entreaberta. Sua língua percorria o lábio, para cima e para baixo. Parecia ter dificuldade em respirar, quando deu um passo em direção à moça.
A pequenina chama roncava gulosamente.
— Pare — disse Bond, frio. — Ela trabalha para a Scotland Yard. E eu também.
Essias coisas agora não tinham mais propósito. Não podia ser de nenhuma utilidade imaginável para Drax. De qualquer maneira, amanhã de tarde, talvez não existisse mais nenhuma Scotland Yard.
— Assim está melhor — disse Drax. — Agora responda: Alguém sabe que vocês estão prisioneiros? Vocês pararam para telefonar a alguém?
Se eu disser que sim, pensou Bond, ele atirará em nós dois e se livrará dos corpos. Dessa forma, a última chance de impedir o lançamento do “Explorador da Lua” terá desaparecido. E se a Yard sabe, por que ainda não chegaram aqui? Não. Nossa oportunidade ainda pode vir. O Bentley será encontrado. Vallance ficará preocupado quando não tiver notícias minhas.
Não — respondeu. — Se eu tivesse telefonado, eles já estariam por aqui a esta hora.
— Isto é verdade — disse Drax, refletindo.
— Neste caso, não estou mais interessado em vocês e felicito-os por terem tornado a entrevista tão harmoniosa. Poderia ter sido mais difícil, se você estivesse sozinho. Uma moça é sempre útil nessas ocasiões. Krebs largue isso. Pode ir. Diga aos outros o que é necessário. Eles devem estar fazendo conjeturas. Eu vou entreter nossos hóspedes durante algum tempo e depois subirei até a casamata. Providencie para que o carro seja bem lavado. O assento de trás. E faça desaparecer as marcas no lado direito. Diga para tirarem o painel inteiro, se fôr necessário. Ou então podem tocar fogo na maldita coisa. Nós não vamos mais precisar dela. — Riu abruptamente. — Verstanden?
— Sim, mein Kapitän...
Krebs, colocou com relutância o maçarico, que roncava de leve, na escrivaninha ao lado de Drax.
— Para o caso de lhe ser necessário — disse, olhando esperançoso para Gala e Bond. Saiu depois pelas portas duplas.
Drax pôs a Luger também na escrivaninha em frente a ele. Abriu uma gaveta, tirou um charuto e acendeu-o com um isqueiro Ronson. Depois, acomodou-se confortàvelmente. O silêncio reinou na sala durante vários minutos, enquanto Drax puxava fumaçadas do charuto, todo satisfeito. Em seguida, pareceu tomar uma resolução. Fitou Bond com benevolência.
— Você nem sabe quanto eu desejei um auditório inglês — declarou como se estivesse dando uma entrevista à imprensa. — Você nem sabe como estava ansioso por contar minha história. Aliás, um relatório completo de minhas atividades encontra-se em poder de um escritório muito respeitável de advogados de Edinburgo. — Tabeliães, aliás. Bem salvo de qualquer perigo.
Drax sorriu abertamente para um e para outro:
— Essa boa gente recebeu instruções para abrir o envelope no final do primeiro voo bem sucedido do “Explorador da Lua”. Mas vocês, seus felizardos, terão uma, antecipação do que eu escrevi e então, quando amanhã às doze horas, virem através destas portas abertas — fez um gesto para a direita — o primeiro vapor saindo das turbinas e souberem que devem ser queimados vivos dentro de meio segundo, terão a satisfação momentânea de saber com quantos paus se faz uma canoa.
— Você poderá nos dispensar as piadas — interrompeu Bond, com aspereza. — Continue com sua história, Kraut.
Os olhos de Drax fuzilaram momentaneamente.
— Um Kraut. Sim eu sou realmente um Reichsdeutscher — a boca, por baixo do bigode vermelho, saboreava a linda palavra — e até a própria Inglaterra terá de concordar, dentro em breve, que foram liquidados por um único alemão. E então talvez parem de nos chamar de Krauts — POR ORDEM! — As palavras foram gritadas, e todo militarismo prussiano entrou em desfile lá embaixo.
Drax exultou do outro lado da escrivaninha, olhando Bond, os dentes grandes, espalhados e salientes sob o bigode vermelho, roendo nervosamente uma unha, depois da outra. Em seguida, enfiou com esforço a mão direita no bolso da calça, como para colocá-la a salvo da tentação, e pegou o charuto com a esquerda. Puxou umas tragadas durante alguns instantes e, depois, com a voz ainda tensa, começou.
CAPITULO 22
A CAIXA DE PANDORA
Meu verdadeiro nome — disse Drax dirigindo-se a Bond — é Graf Hugo von der Drache. Minha mãe era inglesa, e por causa dela fui educado na Inglaterra até a idade de doze anos. Depois, não pude mais suportar este país imundo e completei minha educação em Berlim e Leipzig.
Bond calculava facilmente que aquele brutamontes com cara de bicho-papão e dentes de bruxo não havia sido muito bem recebido numa escola particular inglesa. O fato de ser um conde estrangeiro com um mundo de nomes não teria ajudado muito.
Os olhos de Drax brilharam, cheios de reminiscências: — Quando fiz vinte anos, comecei a trabalhar no ramo de negócio da família. Era uma filial do grande truste de aço Rheinmetal Bórsig. Nunca ouviu falar dele, suponho. Pois bem, se foi ferido por uma bomba de 88mm. durante a guerra, provavelmente foi uma das de lá. Nossas filiais eram peritas em aços especiais, e eu aprendi a respeito deles, e muita coisa sobre a indústria aviatória. Nossos melhores fregueses. Foi quando ouvi, pela primeira vez, falar em columbita. Valendo o que valem os brilhantes naqueles dias. Liguei-me à firma, e quase imediatamente depois disso arrebentou a guerra. Uma época maravilhosa. Eu tinha vinte e oito anos e era tenente da 140a do Regimento Panzer. Nós investimos contra o Exército britânico, na França, e o atravessamos como uma faca por dentro da manteiga. Simplesmente embriagador.
Durante alguns instantes, Drax sugou o charuto, e Bond calculou que ele estava vendo as aldeias incendiadas da Bélgica através da fumaça.
— Aqueles dias eram formidáveis, meu caro Bond. — Drax esticou um braço comprido e bateu a cinza do charuto para o chão. — Mas aí fui escolhido para a Divisão Brandenburg e tive de deixar as pequenas e o champanha para voltar à Alemanha e começar o adestramento, a fim de executar o vasto pulo na água para a Inglaterra. Precisavam de meu in-glês na Divisão. Todos nós devíamos trajar uniformes ingleses. Teria sido engraçado, porém os malditos generais disseram que não podia ser, e eu fui transferido para o Serviço Secreto Estrangeiro do SS. O RSHA, era como se chamava. SS Obergruppenfuhrer Kaltenbrunner acabava de assumir o comando depois que Heydrich foi assassinado em 42. Ele era um bom homem, e eu estava sob as ordens diretas de um ainda melhor, Obersturmbannfuhrer — Drax enrolava na boca o título delicioso com prazer. — Otto Skorzeny. Sua tarefa na RSHA era o terrorismo e a sabotagem. Um agradável interlúdio, meu caro Bond, durante o qual eu pude registrar o nome de muitos ingleses, coisa que me deu muito prazer. Mas então — o punho de Drax esmagou a escrivaninha — Hitler foi novamente traído por aqueles miseráveis generais, e os ingleses e norte-americanos tiveram oportunidade de desembarcar na França.
— Foi uma pena — disse Bond, friamente.
— Sim, meu caro Bond, foi de fato uma pena. — Drax preferiu ignorar a ironia. — Mas para mim foi o ponto alto da guerra. Skorzeny transformou todos os seus sabotadores e terroristas em SS Jagdverbände, para usá-los na retaguarda das linhas inimigas. Cada Jagdverbände era dividida em Streifkorps, e depois em Kommandos, cada um deles levando os nomes de seus oficiais-comandantes. Com o posto de Oberleutnant — Drax encheu-se visivelmente de empáfia — à testa do Kommando “Drache”, eu penetrei diretamente nas linhas americianas com a famosa Brigada Panzer 150a na penetração de Ardennes, em dezembro de 44. Você se lembra, sem dúvida, do efeito causado por esta brigada em seus uniformes americanos e nos tanques e veículos americanos capturados. Kolossal! Quando a Brigada teve de se retirar, eu fiquei onde estiava e fui estabelecer-me nas Florestas de Ardennes, cinquenta milhas à retaguarda das linhas aliadas. Havia vinte rapazes, dez homens bons e dez Hitlerjugend Lobishomens. Todos com menos de vinte anos, mas todos bons rapazes. Por coincidência, o chefe deles era um jovem chamado Krebs, que demonstrou possuir determinados dons que o qualificaram para o pôsto de executor e “persuasor” de nosso alegre pequeno bando. Drax deu uma risadinha gostosa.
Bond lambeu os lábios, ao lembrar-se da brecha que Krebs fizera na cabeça batendo de encontro à cômoda. Ter-lhe-ia dado o pontapé com tanta força quanto lhe era possível dar? Sim, sua memória o tranquilizava, com cada grama de força que ele podia pôr no sapato.
— Ficamos naqueles bosques durante seis meses — continuou Drax, orgulhoso — e durante todo esse tempo dávamos notícias nossas à nossa Pátria por meio do rádio. Os caminhões de busca nunca deram conosco. E então aconteceu um desastre. — Drax sacudiu ia cabeça àquela lembrança. — Existia uma grande fazenda a uma milha de distância de nosso esconderijo na floresta. Uma porção de cabanas haviam sido construídas em torno dela, e eram usadas como quartel-general de retaguarda para um grupo de ligação. Ingleses e norte-americanos. Um lugar incrível. Sem disciplina, sem segurança, cheio de vadios e desertores vindos de todos os lugares da vizinhança. Nós vínhamos observando o grupo há muito tempo, e um dia eu resolvi fazer tudo aquilo voar pelos ares. O plano era simples. À noite, dois dos meus homens, um vestido num uniforme americano, e outro de uniforme britânico, deviam dirigir-se para lá num carro-patrulha capturado, contendo duas toneladas de explosivos. Havia um ponto de estacionamento para os carros — nenhuma sentinela, naturalmente — próximo à sala de refeitório, e eles deviam trazer o carro tão perto dela quanto possível, regular a explosão para a hora do jantar, às sete, e depois se afastarem. Tudo muito fácil, de modo que eu saí naquela manhã para tratar de negócios e deixei a missão para ser cumprida por meu segundo em comando. Eu estava vestido com o uniforme de Corpo de Sinaleiros britânicos, e parti numa motocicleta inglesa capturada por nós para enviar um despacho da mesma unidade que fazia o percurso diário num caminho ali perto. Está claro que ele veio pontualmente na hora, de modo que eu lhe segui atrás, saindo de um caminho lateral. Emparelhei com ele ei dei-lhe um tiro nas costas, tomei-lhe os documentos e, depois de colocá-lo em cima de sua própria motocicleta, levei-o para os bosques e toquei-lhe fogo.
Drax viu a fúria nos olhos de Bond e levantou a mão.
— Não foi muito esportivo? Meu caro, o homem já estava morto. Entretanto, prossigamos. Fui seguindo meu caminho, e então o que haveria de acontecer? Um dos aviões de vocês, voltando de um voo de reconhecimento, veio atrás de mim pela estrada com uma metralhadora. Um de seus próprios aviões! Jogou-me para longe da estrada. Só Deus sabe quanto tempo fiquei ali, caído no fosso. Em certo momento, durante a tarde, voltei a mim a tive o bom senso de esconder o boné e o dólmã com os despachos. Na cerca. Provavelmente ainda estão lá. Preciso ir buscá-los um dia. Lembranças interessantes. Depois toquei fogo nos restos da motocicleta e devo ter desmaiado novamente, porque quando tornei a dar por mim, tinha sido recolhido por um veículo britânico e estávamos seguindo para o maldito quartel-general de ligação! Acredite-se ou não! Lá estava o carro-patrulha, bem ao lado da sala do rancho! Era demais para mim. Eu estava cheio de estilhaços de bomba e minha perna estava quebrada. Pois bem, desmaiei, e quando voltei a mim, vi que metade do hospital se debruçava sobre mim, e eu só tinha a metade da cara.
Drax levantou a mão e alisou a pele lustrosa da têmpora e da face esquerda:
— Depois disso, tudo se resumiu numa questão de representar um papel. Eles não tinham ideia de quem eu era. O carro que me apanhara havia sido reduzido a simples fragmentos. Eu era apenas um inglês, vestido numa camisa e calças inglesas que quase morrera.
Drax fez uma pausa, tirou outro charuto e acendeu-o. Na sala reinou o silêncio, quebrado apenas pelo roncar atenuado do maçarico. Sua voz ameaçadora tornara-se mais baixa. A pressão está cedendo, pensou Bond.
Virou a cabeça e olhou Gala. Pela primeira vez, viu a lesão feia atrás de sua orelha esquerda. Endereçou-lhe um sorriso de encorajamento, e ela retorceu os lábios num sorriso de resposta.
Drax falava por dentro da fumaça do charuto:
— Não há muito mais coisa para contar. Durante o ano em que eu passei sendo enviado de um para outro hospital, elaborei meus planos sem omitir os mínimos detalhes. Consistiam muito simplesmente em vingar-me da Inglaterra pelo que me tinha feito e ao meu país. Confesso que, pouco a pouco, foi-se tornando uma obsessão. Cada dia que se passava no ano em que a destruição e a rapina campearam em meu país, meu ódio e desprezo pelos ingleses iam-se tornando cada vez mais amargos.
As veias do rosto de Drax começaram a inchar e, de repente, ele se pôs a desferir socos na mesa e a gritar para seus prisioneiros, fitando com olhos esbugalhados ora um, ora outro:
— Abomino e desprezo vocês todos. Seus porcos! Idiotas inúteis, ociosos, decadentes, escondendo-se por trás de seus malditos penhascos brancos, enquanto os outros povos travam batalhas por vocês. Fracos demais para defenderem suas colônias, bajulando a América com os chapéus nas mãos. Esnobes malcheirosos, que são capazes de fazer qualquer coisa por dinheiro. Ah! — Drax estava triunfante. — Eu sabia que precisava apenas de dinheiro e a aparência de um gentleman. Um gentleman! Pfui Teufel! Para mim um gentleman é apenas alguém de quem eu posso tirar vantagem. Aqueles malditos imbecis no Blades, por exemplo. Cretinos endinheirados. Durante meses a fio tirei milhares de libras deles, tapeei-os bem debaixo de seus narizes, até que você apareceu e estragou o brinquedo.
Os olhos de Drax se apertaram.
— Como foi que descobriu o truque da cigarreira — perguntou incisivo.
Bond deu de ombros.
— Com os olhos — respondeu indiferente.
— Ah, bem. Talvez eu estivesse um tanto descuidado naquela noite. Mas onde é mesmo que eu estava? Ah, sim, no hospital. Os bons médicos mostravam-se tão ansiosos por me ajudarem a descobrir quem eu era realmente. — Soltou uma gargalhada. — Foi fácil. Muito fácil. Dentre as identidades que eles me ofereciam com tanta boa vontade, topei com o nome de Hugo Drax. Que coincidência! De Drache para Drax! Como quem hesita, pensei que podia ser eu. Eles sentiram-se muito orgulhosos. Sim, afirmaram, naturalmente que é você. Triunfalmente, fizeram-me entrar-lhe na pele. Saí do hospital dentro dela, começando a rodar por Londres à cata de alguém para matar e roubar. Até que um dia, num pequeno escritório acima de Piccadilly, encontrei um agiota judeu. (Drax agora falava muito depressa. As palavras jorravam-lhe excitadamente dos lábios. Bond reparou num aglomerado de espuma que se formava num canto de sua boca e crescia.) — Ah, foi fácil. Uma bordoada em seu crânio nu. Quinze mil libras no cofre. Então tratei de me afastar do País. Fui para Tânger — onde se podia fazer qualquer coisa, comprar qualquer coisa, arranjar qualquer coisa que se desejasse. Columbita. Mais rara que a platina, e todos prontos a adquiri-la. A Era do Jato. Eu conhecia essas coisas. Não me havia esquecido de minha profissão. Então, por Deus, lhe digo que trabalhei. Durante cinco anos vivi para o dinheiro. Fui valente como um leão. Corri riscos tremendos. E eis que, de repente, o primeiro milhão me chega às mãos. Depois o segundo. Em seguida o quinto. Depois o vigésimo. Voltei para a Inglaterra. Gastei um milhão aqui, e Londres estava no papo. Depois voltei à Alemanha. Encontrei Krebs. Encontrei cinquenta deles. Alemães leais. Técnicos brilhantes. Todos vivendo sob nomes falsos, como tantos outros de meus antigos camaradas. Dei-lhes minhas ordens, e eles esperaram, pacificamente, inocentemente. E onde estava eu?
Drax fitou Bond, com os olhos arregalados:
— Eu estava em Moscou! Moscou! Um homem que tem columbita para vender pode ir a qualquer lugar. Encontrei as pessoas indicadas para meu caso. Ouviram meus planos. Deram-me Walter, o novo gênio de seus mísseis teleguiados da estação de Peenemunde, e os bons dos russos começaram a construir a cápsula dos instrumentos e explosivos, a cápsula atômica — apontou para o teto — que está agora nos esperando ali. Então tornei a regressar para Londres. — Fez uma pausa. — A Coroação. Minha carta para o Palácio. Triunfo. Hurras para Drax. — O homem estourou numa gargalhada. — A Inglaterra estava aos meus pés. Todos os malditos cretinos do país! Foi quando meus homens chegaram, e nós começamos. Bem juntos das saias da Grã-Bretanha. No alto de seus famosos penhascos. Trabalhamos como loucos. Construímos um cais no seu Canal inglês. Para receber fornecimentos! Suprimentos vindos de meus bons amigos os russos, que chegaram na hora exata, segunda-feira à noite. Mas foi aí que Tallon teve de ouvir alguma coisa. O velho imbecil. Falou com o Ministério. Mas Krebs estava ouvindo. Apareceram cinquenta voluntários para matar o homem. Tiramos a sorte, e Bartsch morreu como um herói. — Drax fez nova pausa. Depois continuou. — A nova cápsula foi içada para o lugar. Deu certo. Uma perfeita peça de encomenda. O mesmo peso. Tudo perfeito, como a antiga, a caneca de folha, cheia dos queridos instrumentos do Ministério, está agora em Stettin — atrás da Cortina de Ferro. O fiel submarino está de viagem de volta para aqui, e dentro em breve — olhou o relógio — estará navegando sob as águas do Canal inglês para nos levar a todos para longe, quando passar um minuto de meio-dia amanhã.
Drax limpou a boca com as costas da mão e recostou-se de novo na cadeira fitando o teto, os olhos povoados de visões. De repente, riu e olhou interrogativamente para Bond, passando o olhar pelo próprio nariz:
— Quer saber qual será a primeira coisa que nós faremos quando estivermos a bordo? Rasparemos esses famosos bigodes nos quais você estava tão interessado. Você cheirou um camundongo, meu caro Bond, onde devia ter cheirado um rato. Aquelas cabeças raspadas e aqueles bigodes: que nós cultivávamos tão assiduamente. Apenas uma precaução, meu caro. Experimente raspar a própria dabeça e deixar crescer um bigodão preto. Nem mesmo sua mãe o reconheceria. É a combinação das duas coisas que produz o efeito. Apenas um mínimo refinamento. Precisão, meu caro. Precisão, em cada detalhe. Foi esta a minha palavra de passe. — Drax deu uma risadinha sem graça e puxou uma boa fumarada do charuto. Súbito, olhou incisivamente, desconfiado, para Bond. — Então? Diga alguma coisa. Não fique aí sentado como uma múmia. Que pensa de minha história? Não acha que é extraordinária? Notável? Um homem ter feito tudo isto? Vamos, vamos, fale.
Uma das mãos foi levada até a boca, e Drax começou a roer as unhas furiosamente. Mas, em seguida, meteu-a no bolso, e seus olhos tornaram-se frios e cruéis.
— Ou quer que mande buscar Krebs — fez um gesto para o telefone em cima da escrivaninha. — O Persuasor. Pobre Krebs! É como uma criança a quem tivessem arrebatado os brinquedos. Ou talvez Walter. Eles lhes dariam uma lembrança para toda a vida. Esse aí não tem um pingo de moleza. Então?
Bond começou a falar, olhando a caraça vermelha, do outro lado da escrivaninha:
— Não resta dúvida, é um caso notável. Paranoia galopante. Ilusões de ciúme e perseguição. Ódio megalomaníaco e desejo de vingança. Fato bastante curioso — continuou dizendo, em tom de conversação — poderá ter alguma relação com seus dentes. Diastema, é como chamam isto. Acontece quando a criança chupa o dedo na infância. Sim. Tenho a impressão de que será isto o que dirão os psicólogos, assim que lhe puserem no hospício. “Dentes de bicho-papão.” Foi atormentado na escola etc. É extraordinário o efeito produzido numa criança. Então o nazismo ajudou a soprar as flamas, e ainda aconteceu você levar aquela pancada feia na sua feia cabeça. A pancada que você mesmo engendrou. Acho que foi o que estava faltando. Dali por diante, você passou a ser realmente louco. Do mesmo gênero desses que acreditam serem Deus. É extraordinário observar como são tenazes. Completamente fanáticos. Você é quase um gênio. Lombroso teria ficado encantado com você. No ponto em que estão as coisas, você não passa de um cão danado que precisa ser morto. Ou então você se suicida. Os paranoicos geralmente se matam. É uma pena. Coisa triste, mesmo.
Bond fez uma pausa e pôs todo o desprezo que pôde acumular na voz:
— E agora, continuemos com esta farsa, vamos, seu lunático cabeludo.
Deu resultado. A cada palavra de Bond, a cara de Drax ia se contorcendo de raiva cadia vez maior, os olhos estavam vermelhos de cólera, o suor da fúria pingava de suas mandíbulas para a camisa, os lábios se afastariam dos dentes irregulares, e um fio de saliva saíra-lhe da boca e lhe escorria pelo queixo. Agora, com o último insulto sobre a escola particular, que devia ter-lhe despertado sabe Deus que espécie de lembranças dolorosas, ele pulou da cadeira, rodeou a escrivaninha, investiu contra Bond, os punhos cabeludos martelando. Bond rangeu os dentes e aguentou.
Quando Drax teve de pegar a cadeira do chão pela segunda vez, com Bond em cima dela, a tempestade de raiva passou subitamente. Tirou do bolso o lenço de seda e limpou o rosto e as mãos. Depois, encaminhou-se calmamente para a porta e falou, olhando por cima da cabeça pendente de Bond e dirigindo-se à pequena.
— Não creio que vocês dois me deem mais trabalho — declarou com a voz perfeitamente calma e segura. — Krebs nunca comete enganos com seus nós.
Gesticulou em direção à figura ensanguentada da outra cadeira:
— Quando ele acordar, pode dizer-lhe que estas portas ainda se abrirão mais uma vez, pouco antes do meio-dia de amanhã. Alguns minutos mais tarde, não sobrará nada de nenhum de vocês dois. Nem mesmo — acrescentou, ao escancarar a porta de dentro — as obturações de seus dentes.
A porta externa bateu.
Bond levantou lentamente a cabeça e sorriu dolorosamente para sua companheira com os lábios manchados de sangue. Explicou com dificuldade:
— Tive de deixá-lo louco. Não quis que ele tivesse tempo para pensar. Tive de provocar aquela tempestade cerebral.
Gala olhava-o sem compreender, os olhos arregalados para a máscara terrível de seu rosto.
— Está tudo bem. Não se preocupe. Londres está O.K. Tenho um plano.
Sobre a escrivaninha, o maçarico fez um “pleft” baixinho e apagou.
CAPÍTULO 23
MENOS ZERO
Por entre os olhos entreabertos, Bond fitou demoradamente o maçarico, enquanto por alguns preciosos segundos permanecia sentado e deixava a vida voltar-lhe lentamente ao corpo. Tinha a impressão de que sua cabeça fora usada como bola de futebol, mas não tinha nada quebrado. Drax batera-lhe sem nenhuma ciência e com a confusão de golpes de um homem embriagado.
Gala observava-o ansiosamente. Os olhos, no rosto sanguinolento, estavam quase fechados, mas a linha do queixo aparecia tensa de concentração, e ela percebia o esforço de vontade que ele fazia.
Bond sacudiu a cabeça, e quando se voltou para ela, Gala viu que seus olhos estavam febris pelo triunfo.
Fez um gesto na direção do isqueiro.
— O isqueiro. Eu tive de tentar fazê-lo esquecer-se dele. Siga-me. Vou-lhe mostrar como.
Começou a balançar a leve cadeira de aço, polegada por polegada, em direção à escrivaninha:
— Pelo amor de Deus, não vá virar de pernas para cima, do contrário estará tudo perdido. Mas procure apressar-se senão o maçarico esfria.
Sem compreender, sentindo-se quase como se tomasse parte em algum fantástico brinquedo infantil, Gala, cautelosamente, foi balançando a cadeira pelo chão atrás dele.
Segundos depois, Bond lhe disse que parasse ao lado da escrivaninha, enquanto ele continuava o balanço até a cadeira de Drax. Depois, manobrou de modo a tomar posição em frente ao seu alvo e, com uma súbita guinada, suspendeu-se com a cadeira, de forma que sua cabeça ficou para baixo.
Ouviu-se um estalo, quando o isqueiro Ronson, de escrivaninha, prendeu-se-lhe nos dentes, mas seus lábios sustiveram-no, e a parte superior ficou-lhe na boca, assim que ele impulsionou a cadeira para a primeira posição, apenas com a força suficiente para impedir que saltasse fora. Em seguida, recomeçou sua paciente viagem de volta para o ponto onde Gala se encontrava sentada, no canto da escrivaninha onde Krebs deixara a lâmpada.
Bond descansou até sua respiração tornar-se novamente regular.
— Chegamos agora à parte difícil — avisou, severo. — Enquanto eu tento fazer este maçarico funcionar, você vai rodando sua cadeira, de modo que seu braço direito fique tanto quanto possível defronte de mim.
Obedientemente, a moça foi executando os movimentos, enquanto Bond balançava sua cadeira, de forma que esta se encostou a beira da escrivaninha e permitiu que sua boca alcançasse e agarrasse o cabo do maçarico entre os dentes.
Em seguida, foi trazendo o maçarico para perto e, depois de alguns minutos de trabalho paciente, conseguiu colocar o maçarico e o isqueiro como desejava, na borda da escrivaninha.
Após outro descanso, curvou-se, fechou a válvula da tocha com os dentes, e começou a fazer voltar a pressão, puxando lenta e repetidamente o pistão com os lábios e apertando-o de volta com o queixo. Sentia no rosto o calor do aquecedor e sentia o cheiro dos restos de gás no pequeno instrumento. Se ao menos não tivesse esfriado demais.
Endireitou o corpo.
— Ultima etapa, Gala — disse sorrindo quase com esforço para ela. — Talvez eu tenha de lhe machucar um pouco. Não faz mal?
— Claro que não — respondeu a moça.
— Então lá vai — disse Bond, e curvou-se para a frente, soltando a válvula de segurança à esquerda do depósito.
Depois debruçou-se rapidamente sobre o Ronson, que estava no ângulo direito e bem debaixo do tubo da tocha. Com os dois dentes incisivos apertou para baixo a trave de ignição.
Era uma manobra horrível e, apesar de ele sacudir a cabeça para trás com a rapidez de uma serpente, deixou escapar um leve gemido de dor, quando o jato de fogo azul do maçarico subiu-lhe pela face machucada e pela ponta do nariz.
Mas a parafina vaporizada sibilava sua língua vital de chama, e ele sacudiu as lágrimas dos olhos, curvando a cabeça quase até o ângulo direito e novamente prendeu a haste do maçarico nos dentes.
Teve a impressão de que seu queixo se partiria com o peso da coisa, e os nervos dos dentes da frente reclamaram, mas ele balançou a cadeira cautelosamente até colocá-la em posição vertical, afastada da escrivaninha, e então forçou o pescoço a curvar-se para a frente, até que a ponta da chama azul da tocha mordeu o ponto que ligava o pulso direito de Gala ao braço da cadeira.
Bond tentou desesperadamente conservar a chama firme, contudo a respiração da moça raspou-lhe entre os dentes, angustiada, quando o cabo se movia entre suas mandíbulas, e o maçarico queimou-lhe o antebraço.
Então tudo acabou. Derretido pelo forte calor, as tiras de cobre foram-se partindo uma por uma e, de repente, o braço direito de Gala ficou livre, e ela o estendeu para tomar o maçarico da boca de Bond.
A cabeça do rapaz caiu novamente para trás, entre os ombros, e ele torceu-a para todos os lados, a fim de conseguir fazer o sangue circular pelos músculos doloridos.
Antes mesmo que ele se desse conta, Gala já se inclinava sobre seus braços e pernas, e ele também estava livre.
Ao sentar-se imóvel por um momento, os olhos fechados, esperando que a vida lhe voltasse ao corpo, sentiu de repente, encantado, os lábios macios de Gala sobre os seus.
Abriu os olhos. Ela estava de pé, diante dele, os olhos brilhando.
— Isto é pelo que você fez — falou, muito séria.
— Você é uma garota maravilhosa — disse Bond. Depois, porém, sabendo o que ia fazer, sabendo que era bem concebível que ela sobrevivesse, mas que ele só tinha mais alguns minutos de vida, fechou os olhos para que ela não visse a desesperança neles.
Gala observou-lhe a expressão do rosto e virou de costas. Pensou que fosse apenas exaustão e o efeito do que seu corpo tinha sofrido. Lembrou-se aí, de repente, da água oxigenada no banheiro pegado ao seu escritório.
Passou pela porta de comunicação. Como era extraordinário ver suas coisas familiares novamente. Devia ser outra pessoa que se sentara naquela escrivaninha e batera na máquina a correspondência, outra moça a que ali empoara o nariz. Sacudiu os ombros e foi para o toalete. Meu Deus, que cara, e só Deus sabe como se sentia cansada! Mas primeiro pegou uma toalha molhada, um pouco de água oxigenada, e voltou. Durante dez minutos tratou do campo de batalha que era a cara de Bond.
Este permanecia sentado em silêncio, uma das mãos descansando na cintura dela e observando-a agradecido. Depois, quando ela voltou para o escritório e fechou a porta do banheiro após entrar, ele se levantou, apagou o maçarico que ainda silvava, e encaminhou-se para o chuveiro de Drax, tirou a roupa e permaneceu durante cinco minutos debaixo da água gelada. “Preparando o corpo”, pensou melancòlicamente, ao examinar o rosto maltratado no espelho.
Vestiu as roupas e voltou para a escrivaninha de Drax, que revistou metòdicamente. Esta lhe proporcionou apenas um prêmio, a “garrafa do escritório”, cheia até a metade de Haig and Haig. Foi buscar dois copos, um pouco de água e chamou Gala.
Ouviu-a abrir a porta do banheiro.
— O que é? — Uísque.
— Vá tomando o seu. Estarei pronta daqui a um minuto.
Bond olhou a garrafa, serviu três quartos de um copo de escovas de dentes e tomou-o de uma vez, em dois goles. Em seguida, acendeu meio trêmulo um abençoado cigarro e sentou-se na borda da escrivaninha, sentindo o álcool queimá-lo no estômago, descendo-lhe até as pernas.
Pegou a garrafa novamente e olhou-a. Ainda havia muito para Gala e um copo inteiro para ele, antes de sair por aquela porta. Era melhor que nada. Não seria tão difícil com aquilo dentro de si, contanto que saísse em passos rápidos o fechasse a porta depois. Nada de olhar para trás.
Gala entrou, uma Gala transformada, parecendo tão bela quanto na noite em que a vira pela primeira vez, exceto as linhas de exaustão sob os olhos, que o pó não disfarçava totalmente, e os feios vincos nos pulsos e tornozelos.
Bond deu-lhe um drinque e tomou outro. Os olhos de ambos sorriam por cima da orla dos copos.
Depois Bond se ergueu.
— Escute, Gala — começou num tom de voz bem natural . — Nós temos de enfrentar o que está por vir e terminar com a história, de modo que serei breve e depois tomaremos outra dose.
Bond ouviu quando ela prendeu a respiração, mas continuou:
— Dentro de dez minutos, mais ou menos, eu vou fechá-la no banheiro de Drax, pôr você debaixo do chuveiro, e abri-lo completamente.
A moça gritou, aproximando-se dele:
— James. Não continue. Eu sei que você vai dizer qualquer coisa horrível. Pare, por favor, James.
— Deixe disso, Gala — disse Bond com aspereza. — Que diabo adianta tudo isto. É um milagre maldito, se é que posso dizer assim, e nós temos a oportunidade.
Afastou-se dela. Encaminhou-se então para as portas que conduziam ao foguete.
— Depois então — prosseguiu, segurando o precioso isqueiro na mão direita — eu sairei daqui, fecharei as portas e acenderei um último cigarro debaixo da cauda do “Explorador da Lua”.
Meu Deus! — sussurrou a moça. — Que é que você está dizendo? Você está louco.
Fitou-o com os olhos arregalados de horror.
— Não seja ridícula — disse Bond impaciente. — Que diabo nos resta fazer? A explosão será tão pavorosa, que ninguém sentirá nada. Deve dar resultado, com todo esse combustível em vapor circulando em redor. Trata-se de mim ou de um milhão de pessoas em Londres. A cápsula não se soltará. As bombas atômicas não explodem assim. Com certeza derreterá. Só há uma chance de você escapar. A maior parte da explosão se encaminhará para a linha de menor resistência através do telhado — e por baixo, pela cavidade exaustora, se eu conseguir fazer funcionar o maquinismo que abre o chão.
Bond sorriu.
— Ânimo — pediu, caminhando para ela e pegando-lhe uma das mãos. — O rapaz ficou de pé no tombadilho incendiado. Eu quis imitá-lo desde os cinco anos de idade.
Gala puxou a mão.
— Não me importa o que você está dizendo — declarou encolerizada. — Temos de pensar em outra coisa qualquer. Você não me acha capaz de ter nenhuma ideia. Vai só me dizendo o que pensa e o que temos de fazer.
Dirigiu-se para o mapa da parede e apertou o interruptor.
— Naturalmente, se tivermos de usar o isqueiro, usá-lo-emos. — Olhou o mapa do falso plano de voo, mal vendo o que tinha diante dos olhos. — Mas a ideia de você caminhar ali sozinho e ficar no meio daqueles horríveis vapores do combustível e calmamente acender essa coisa para depois ser reduzido a pó... Entretanto, se tivermos de agir assim, agiremos juntos. É preferível, melhor do que ser queimada até morrer aqui dentro. De qualquer maneira — fez uma pausa — eu gostaria de ir com você. Nós entramos juntos nesse negócio.
Os olhos de Bond estavam cheios de ternura, quando caminhou em direção à moça, passou-lhe um braço em volta da cintura e abraçou-a bem junto a si.
— Gala, você é um amor — disse com simplicidade. — Se houver outro meio, nós o tentaremos. Mas — olhou o relógio — já passa de meia-noite, e nós precisamos tomar uma resolução rápida. A qualquer momento pode ocorrer a Drax a ideia de mandar guardas para ver sé nós estamos em ordem, e só Deus sabe a que horas ele virá aqui acertar o giroscópio.
Gala torceu o corpo como uma gata. Fitou-o com a boca aberta, o rosto tenso de excitação. Sussurrou:
— O giroscópio, para acertar o giroscópio. Encostou-se novamente de leve contra a parede, os. olhos procurando o rosto de Bond.
— Você não compreende? — sua voz estava beirando a histeria. — Depois que ele sair, nós poderíamos alterar o giroscópio para onde estava, de acordo com o antigo plano de voo, e então o foguete cairia simplesmente no Mar do Norte, onde se julga que irá cair.
Gala afastou-se da parede e agarrou a camisa de Bond com as duas mãos, fitando-o com um olhar que implorava:
— Não poderíamos? Não poderíamos?
— Você conhece as outras direções? — perguntou Bond, ansioso.
— Claro que sim. Convivo com eles há um ano. Nós não teremos uma previsão do tempo, mas teremos de nos arriscar. A previsão desta manhã dizia que nós teríamos as mesmas condições de hoje.
— Por Deus — disse Bond. — Nós poderíamos fazer isto. Se conseguirmos esconder-nos nalgum lugar e fazer Drax imaginar que escapamos. Que tal o túnel exaustor, se eu conseguir fazer funcionar a máquina que abre o assoalho?
— São trinta e tantos metros de queda em linha reta — disse Gala, sacudindo a cabeça. — E as paredes são de aço polido. Como vidro. Além do mais, não há corda ou coisa alguma aqui. Eles tiraram tudo da oficina ontem. Sem contar com os guardas na praia.
Bond refletiu. Depois seus olhos tornaram-se brilhantes:
— Tenho uma ideia. Mas em primeiro lugar, que me diz você do radar, o radar de retorno de Londres? Ele não empurrará o foguete para fora do seu curso e de volta para Londres?
Gala sacudiu a cabeça:
— Ele só trabalha dentro de um raio de cem milhas, mais ou menos. O foguete nem sequer pegará seu sinal. Se estiver apontando para o Mar do Norte, entrará na órbita do transmissor da jangada. Não há nada de errado nos meus planos. Mas onde nos poderemos esconder?
— Num dos tubos de ventilação — respondeu Bond. — Vamos.
Lançou um último olhar à sala. O isqueiro estava em seu bolso. Aquilo seria o último recurso. Não havia mais nada que eles fossem precisar. Seguiu Gala para o cintilante cilindro e dirigiu-se ao painel de instrumentos que controlava a capa de aço da cavidade exaustora.
Após um rápido exame, moveu uma pesada barra de Zu a Auf. Ouviu-se um leve sibilo da máquina hidráulica atrás da parede, e os dois semicírculos de aço se abriram sob a cauda do foguete, deslizando depois novamente para o lugar. Bond seguiu em frente e olhou para baixo.
Os arcos no telhado lá em cima cintilavam em resposta ao seu olhar, de lá das paredes polidas do largo funil de aço, até se curvarem desaparecendo de suas vistas, em direção ao distante clamor ôco do mar.
Bond voltou ao escritório de Drax e puxou para baixo a cortina do boxe do chuveiro. Depois, Gala e ele rasgaram em tiras a cortina e ligaram umas às outras. Deu um rasgão em feitio de um V no fim da última tira para dar a impressão de que a corda da fuga tinha-se partido. Amarrou então a outra extremidade firmemente em torno da ponta aguda de uma das três barbatanas do “Explorador da Lua” e deixou cair o resto de modo que descesse pelo cilindro.
Não era lá grande coisa como falsa pista, mas podia servir para ganhar um pouco de tempo.
As bocarras redondas dos ventiladores tubulares tinham o espaço de umas dez jardas entre si e ficavam a cerca de 1.50m do chão. Bond contou. Havia cinquenta delas. Abriu cautelosamente a grade presa em gonzos que cobria uma delas e olhou para cima. A uma distância de doze metros via-se um leve brilho vindo do luar lá fora. — Chegou à conclusão de que estavam emparedados bem dentro do túnel formado pelo muro da base, até que viraram para os ângulos direitos, em direção aos gradeados das paredes exteriores.
Bond estendeu o braço e correu a mão pela superfície. Era de um concreto rústico, inacabado, e ele grunhiu de satisfação, quando sentiu primeiro uma forte protuberância, e depois outra. Eram as extremidades bifurcadas das varas de aço que reforçavam as paredes, cortadas onde os cilindros começavam.
Ia ser uma coisa dolorosa, mas não havia dúvida de que poderiam ir-se arrastando, centímetro por centímetro, por um desses cilindros, tal como alpinistas numa chaminé rocha acima e, na curva do topo, ficarem ocultos de tudo, menos da busca complicada que seria difícil de manhã com todos os oficiais de Londres em redor da base.
Bond se ajoelhou, e a moça montou-lhe às costas, depois do que começaram a subir.
Uma hora depois, com os pés e os ombros machucados e cortados, deitaram-se exaustos, apertados bem fortemente nos braços um do outro, as cabeças afastadas alguns centímetros do gradeado circular, situado diretamente acima da porta externa, e puseram-se a ouvir os guardas mexendo os pés incessantemente dentro da escuridão, cem jardas distante deles.
Cinco horas, seis, sete.
Lentamente o sol apareceu por trás da cúpula, e as gaivotas começaram a gritar nos penhascos. Então, surgiram de súbito as três figuras caminhando para eles na distância, passaram por um novo pelotão de guardas, os queixos levantados, os joelhos erguidos, vindos para render a ronda noturna.
As figuras foram-se aproximando, e os olhos apertados, exaustos, do casal oculto puderam ver todos os detalhes da cara vermelho-alaranjada de Drax, o pálido focinho de raposa do Dr. Walter, a nédia e balofa cara de sono de Krebs.
Os três homens caminhavam como se fossem executores de um fuzilamento, sem dizer nada. Drax tirou a chave, e eles, silenciosamente, entraram pela porta, alguns pés abaixo dos corpos tensos de Bond e Gala.
Depois, durante dez minutos, reinou o silêncio, quebrado apenas pelo som ocasional de vozes que subiam pelo cilindro do ventilador, quando os três homens se movimentavam pelo chão de aço em torno da cavidade exaustara. Bond sorriu consigo mesmo à ideia do ódio e da consternação que deveriam estampar-se no rosto de Drax; do infeliz Krebs, encolhendo-se sob as chicotadas da língua de Drax; a amarga acusação nos olhos de Walter. Foi então que a porta se escancarou abaixo dele, e Krebs chamou, imperioso, o chefe dos guardas.
— Die Engländer — a voz de Krebs era quase histérica. —Escaparam. O Herr Kapitän pensa que possam estar num dos tubos de ventilação. Vamos arriscar. A cúpula será aberta novamente, e nós vamos eliminar os vapores do combustível. Depois então o Herr Doktor passará a mangueira de vapor quente em cada um dos tubos. Se eles estiverem num deles, isto os liquidará. Escolha quatro homens. As luvas de borracha e as vestimentas para incêndio estão lá embaixo. Nós vamos tirar a pressão do aquecimento. Diga aos outros que prestem atenção para ver se escutam os gritos. Verstanden?
— Zu Befehl!
O homem voltou diligentemente para junto de seu grupo, e Krebs, com o suor da ansiedade no rosto, voltou-se e desapareceu novamente pela porta.
Por um momento Bond permaneceu imóvel.
Ouviram rumores pesados acima de suas cabeças, quando a cúpula se dividiu em dois e se abriu. A mangueira de vapor quente!
Bond ouvira contar de motins em navios sendo combatidos com isto. Desordens em fábricas. Será que alcançará doze metros? A pressão durará? Quantas caldeiras alimentavam o aquecimento? Entre os cinquenta tubos de ventilação, qual seria o escolhido para começarem? Teria Bond ou Gala deixado qualquer indício, com relação àquele que haviam subido?
Bond sentia que Gala esperava que ele explicasse. Que fisesse alguma coisa. Que protegesse a ambos.
Cinco homens vieram aproximando-se do semicírculo de guardas. Passaram por baixo e desapareceram.
Bond pôs a boca no ouvido de Gala.
— Isto poderá machucar — avisou. — Não posso prever quanto. Não pode ser evitado. Teremos de aguentar. Sem fazer barulho.
Sentiu logo a pressão dos braços dela, à guisa de resposta:
— Levante os joelhos. Não fique acanhada. A hora não é para pudores virginais.
— Cale a boca — sussurrou Gala, zangada. Ele sentiu um joelho subir e ficar trancado entre suas coxas. Seu próprio joelho seguiu por ali até não conseguir estender-se mais. A moça se remexia furiosamente.
— Não seja idiota — cochichou Bond, puxando-lhe a cabeça para junto do peito, até que ficou meio encoberta pela sua camisa aberta.
Bond encobriu-a tanto quanto possível. Não podiam fazer nada com relação aos tornozelos e as mãos. Levantou a gola da camisa, o mais que pôde por cima das cabeças. Apertavam-se um contra o outro.
Quentes, cheios de câimbras, sem respirar. Esperando — de repente a ideia ocorreu a Bond, como dois namorados debaixo de arbustos, ocultos. Esperando que as pisadas se afastassem, de modo a poderem principiar tudo novamente. Sorriu amargamente consigo mesmo e pôs-se à escuta.
O silêncio reinava lá embaixo, no foguete. Deviam estar na sala das máquinas. Walter devia estar assistindo à instalação da mangueira na válvula externa. Agora ouviam-se ruídos distantes. Por onde começariam?
Num ponto qualquer, não muito longe, havia um sussurro leve, bem arrancado do fundo, como o apito ineficiente de um trem distante.
Bond dobrou para trás o colarinho da camisa e arriscou um olhar por entre as grades, até os guardas. Os que conseguiu ver, olhavam em frente para a cúpula do lançamento, um pouco à sua esquerda.
Novamente o longo sussurro áspero. E mais uma vez se repetiu.
Ia ficando mais alto. Viu as cabeças dos guardas rodando para o lado das grades das paredes que ocultavam Gala e ele. Deviam estar observando, fascinados, enquanto os jatos brancos e espessos de vapor subiam pelas grades até lá em cima ha parede de cimento, conjeturando: “— Será esta, ou aquela, ou aquela outra, qual será que virá acompanhada de um duplo grito.”
Sentia o coração de Gala batendo de encontro ao seu. Ela não sabia o que estava por acontecer. Confiava nele.
— Pode machucar — sussurrou-lhe novamente. — Pode queimar. Não nos matará. Tenha coragem. Não emita um som.
— Eu estou bem — cochichou a moça, encolerizada. Mas ele percebeu que seu corpo se colava mais ao dele. Chuá! Estava chegando mais perto.
Chuá! A diferença era de dois tubos.
CHUÁ! Pegado a eles. Sentiu um leve cheiro do vapor.
— “Fique bem firme”, ordenou Bond a si mesmo. Esmagou a companheira de encontro ao próprio corpo e prendeu a respiração.
— “Agora. Depressa. Acabem com isso, desgraçados.”
E eis que, subitamente, houve uma grande pressão; o calor e um barulho infernal chegou-lhes aos ouvidos, seguidos de um instante de dor intolerável.
Depois um silêncio mortal, uma mistura de frio intenso e fogo nos tornozelos e nas mãos, uma sensação de estarem ensopados, e um esforço desesperado, sufocante, de fazer o ar puro penetrar nos pulmões.
Seus corpos lutaram automaticamente para se separarem um do outro, para conseguir alguns centímetros de espaço e ar para as áreas da pele que já começavam a cobrir-se de bolhas. A respiração rasgava-lhes as gargantas, e a água porejava do cimento para dentro de suas bocas abertas, até que ambos se curvaram para um lado e atiraram-na fora, e ela foi juntar-se ao riachinho que corria por baixo de seus corpos ensopados, descendo pelos tornozelos escaldantes e dali para as paredes verticais do tubo pelo qual haviam subido.
O uivo da mangueira a vapor afastou-se deles até se tornar um sussurro e, finalmente, cessar. Reinou então o silêncio na estreita prisão de cimento de ambos, ouvindo-se apenas suas teimosas respirações e o tique-taque do relógio de Bond.
Os dois corpos continuavam deitados e à espera, aguentando a dor.
Meia hora — meio ano — mais tarde, Walter, Krebs e Drax seguiram em fila por baixo deles.
No entanto, como medida de precaução, os guardas tinham sido deixados para trás na cúpula do lançamento.
CAPITULO 24
ZERO
Então estamos combinados?
— Sim, Sir Hugo — era o Ministro do Abastecimento quem falava. Bond reconheceu a figura espigada, segura de si. — As direções são aquelas. Meu pessoal verificou-as, independentemente, com o Ministério da Aeronáutica esta manhã.
— Neste caso, se me permite o privilégio — Drax levantou o pedacinho de papel e ia virando em direção à cúpula.
— Segure-a, Sir Hugo. Assim mesmo, por favor. O braço esticado no ar.
As lâmpadas dos flashes se acenderam, e o conjunto de câmaras zumbiu e estalou pela última vez. Drax voltou-se e andou os poucos metros que o separavam da cúpula, quase, assim pareceu a Bond, fitando-o diretamente nos olhos através do gradeado acima da porta da casamata.
A pequena turba de repórteres e fotógrafos dissolveu-se e encaminhou-se para o caminho de concreto, deixando para trás apenas um grupinho de oficiais que conversavam nervosamente, à espera de que Drax surgisse em cena.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e cinco. “Depressa, seu danado”, pensou.
Pela centésima vez repetiu para si mesmo os números qus Gala lhe ensinara durante as horas de dor e câimbras que se seguiram à provação do vapor, e pela centésima vez movimentou os membros para preservar a circulação.
— Apronte-se — cochichou no ouvido de Gala. — Está se sentindo bem?
Sentiu que a moça sorria.
— Ótimo.
Ela fechou a mente à ideia de suas pernas todas cheias de bolhas e da rápida descida, raspando-as pelo tubo de ventilação .
A porta fechou-se com um baque abaixo deles, seguindo-se o estalido da fechadura, e então, precedida por cinco guardas, a figura de Drax apareceu lá embaixo, marchando solene para o grupo de oficiais, a tira de papel com os números na mão.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e sete. — Agora — sussurrou.
— Boa sorte — respondeu Gala, também num sussurro. Escorregando, arranhando-se, rasgando-se. Seus ombros, cautelosamente, se expandiam e contraíam; os pés, cheios de bolhas, de sangue, procurando as saliências agudas do ferro; com o corpo dilacerado abrindo caminho através do tubo de um metro, rezava para que a pequena encontrasse forças para suportar tudo aquilo, quando o seguisse.
Finalmente, o pulo de três metros, que lhe repercutia na espinha, um pontapé nas grades, e ele galgava o chão de aço, corria para as escadas, deixando uma trilha de pegadas vermelhas e um borrifo de gotas de sangue caídas de seus ombros feridos.
Os arcos de luz haviam sido apagados, mas o clarão do dia penetrava pelo telhado aberto, e o azul do céu misturado ao fulgor da luz do sol davam a Bond a impressão de que estava correndo dentro de uma enorme safira.
A grande e mortal agulha no centro parecia ser feita de vidro. Olhando para cima, enquanto suava e arfava no percurso das infindáveis curvas da escada de ferro, era difícil para ele ver onde o nariz do foguete, afinando na ponta, terminava, e começava o céu.
Por trás do pesado silêncio que envolvia a bala esplendente, Bond ouvia um ruído apavorante e regular, o caminhar de minúsculos pés de metal num ponto qualquer do corpo do “Explorador da Lua”. Enchia o vasto compartimento de aço, como as batidas do coração na história de Poe, e Bond compreendeu que Drax, diretamente do ponto do tiro, apertara o interruptor que mandava a faixa radiofônica, disparando a mais de duzentas jardas até o foguete ali à espera. O tique-tique cessaria dentro em breve, ouvir-se-ia o suave gemido do catavento aceso, uma pequena porção de vapor das turbinas, e depois o rugido do jato de flama no qual o foguete se ergueria lentamente e se curvaria majestoso no início de sua gigantesca curva de aceleração.
E então, diante dele, viu o braço retorcido do guindaste dobrado novamente contra a parede, e sua mão alcançou a barra. O braço foi-se esticando para baixo e para fora em direção à linha fina e quadrada, na pele brilhante do foguete, que era a porta do compartimento do giroscópio.
Caminhando apoiado nas mãos e nos joelhos, Bond alcançou-o bem antes de as almofadas de borracha virem descansar contra o cromo polido. Encontrou o disco de descarga, do tamanho de um xelim, exatamente como Gala havia descrito. Apertar, estalar, e a pequenina porta se abria, girando no parafuso duro. Dentro. Cuidado para não ferir a cabeça. Os cabos cintilantes embaixo dos ponteiros da bússola. Virar. Torcer. Firme. Isto é para o rolamento. Agora o topo e o pior. Virar. Lento. Bem delicadamente. Mas firme. Um último olhar. Uma olhada no relógio. Quatro minutos para ir. Não fique em pânico. Volte. Estalido da porta. Uma fugida rápida de gato. Não olhe para baixo. O guindaste se ergueu. Bateu contra a parede. E agora as escadas.
Tique-tique-tique-tique.
Ao descer, Bond vislumbrou o rosto de Gala, branco, tenso, enquanto ela permanecia segurando a porta exterior aberta, a porta do escritório de Drax. Oh, Deus! Como seu corpo doía! Um último salto e uma reviravolta desajeitada para a direita. Pam! Quando bateu com força a porta de fora. Nova pancada, e ei-los atravessando a sala em direção ao chuveiro. A água jorrando sobre seus corpos pegajosos e doloridos.
Por dentro de todo aquele barulho, acima das batidas do próprio coração, Bond ouviu o súbito estalar da estática e, em seguida, a voz do locutor da BBC vinda do enorme aparelho da sala de Drax, poucos centímetros distante da parede fina do banheiro. Fora novamente Gala quem se lembrara do aparelho de rádio de Drax e que encontrara tempo para pô-lo a funcionar enquanto Bond trabalhava no giroscópio.
“... cinco minutos de atraso” — dizia a voz excitada, leve, ao microfone. — Bond fechou o chuveiro, e a voz chegou até eles mais claramente. — “Sir Hugo foi persuadido a dizer algumas palavras. Parece muito confiante. Está dizendo qualquer coisa no ouvido do Ministro. Estão ambos rindo. Gostaria de saber o que estão dizendo. Ah, eis o meu colega que chega com as últimas notícias a respeito do tempo, vindas do Ministério da Aeronáutica. Que dizem elas? Perfeito em todas as altitudes. Bom espetáculo. Não há dúvida de que temos um dia maravilhoso aqui, Ah! A multidão reunida à distância, perto da estação de guardas-costeiros, vai apanhar uma boa queimadura de sol. Deve haver milhares de pessoas ali. Que foi que você disse? Vinte mil? Bem, a impressão que dá é essa mesmo. Walmer Beach também está apinhada de gente. Toda a população de Kent parece estar na rua. Todo mundo vai ficar com mau jeito no pescoço. Vai ser pior que em Wimbledon. Alô, que é que está se passando ali no cais? Puxa, é um submarino que acaba de subir à superfície. Que espetáculo! É um dos maiores que existem, creio eu. E a equipe de Sir Hugo está lá embaixo também. Alinhados no cais, como se estivessem numa parada. Magnífica corporação. Agora entram a bordo em fila. Disciplina perfeita. Deve ser uma ideia do Almirantado. Oferecer-lhes uma recepção especial na entrada do Canal. Maravilhoso espetáculo. Gostaria que você estivesse aqui para ver. Agora Sir Hugo vem vindo em nossa direção. Dentro em pouco estará falando com vocês. Bela figura de homem! Todos os que se encontram no ponto de tiro o estão aclamando. Tenho certeza de que todos nós nos sentimos inclinados a aclamá-lo hoje. Ele vem vindo para o ponto de tiro. Daqui vejo o sol brilhando no nariz do “Explorador da Lua”, lá adiante, por trás dele. Começa a sair por trás do alto da cúpula de lançamento. Espero que alguém tenha uma máquina fotográfica. Ei-lo que chega aqui agora — uma pausa. — Sir Hugo Drax.
Bond olhou o rosto gotejante de Gala. Ensopados e sangrando, ficaram nos braços um do outro, sem falar e tremendo ligeiramente sob o impacto de suas emoções. Seus olhos nada exprimiam e eram insondáveis quando se fitaram.
A voz que se ergueu era aveludado rosnar:
— Vossa Majestade, homens e mulheres da Inglaterra. Estou prestes a modificar o curso da história da Inglaterra. — Uma pausa. — Dentro de poucos minutos todas as vossas vidas estarão alteradas, em alguns casos drasticamente, pelo — hum — impacto do “Explorador da Lua”. Sinto-me muito orgulhoso e feliz porque o destino me elegeu, dentre todos os meus compatriotas, para lançar esta grande flecha de vingança nos céus e assim proclamar para sempre e para que todo o mundo presencie, o poderio de minha Pátria. Espero que esta oportunidade seja para sempre um aviso de que o destino dos inimigos de meu País estará escrito em poeira, em cinzas, em lágrimas e — uma pausa — em sangue. E agora muito obrigado por me terem ouvido, e eu, sinceramente, faço votos para que aqueles dentre vós que puderem, repitam as minhas palavras aos seus filhos, se os tiverem, hoje à noite.
Uma onda um tanto hesitante de aplausos ecoou através do microfone. Em seguida, ouviu-se a voz animada do locutor.
— Acabamos de ouvir Sir Hugo Drax, dirigindo-lhes algumas palavras antes de atravessar o ponto de tiro que leva ao interruptor na parede que lançará o “Explorador da Lua”. É a primeira vez que fala em público. Muito — hum — incisivo. Não faz rodeios para falar. Entretanto, muita gente achará que não há nenhum mal nisto. E agora chegou o momento de eu passar o microfone ao técnico, Capitão-Chefe de Grupo Tandy, do Ministério do Abastecimento, que descreverá para vocês o lançamento do “Explorador da Lua”. Em seguida, ouvirão a palavra de Peter Trimble, numa das embarcações da patrulha de segurança naval, o HMS Merganzer, que descreverá a cena da área compreendida pelo alvo. O Capitão Tandy.
Bond lançou um olhar ao relógio.
— Só mais um minuto — disse a Gala. — Oh, meu Deus, como eu gostaria de pôr as mãos em Drax. Tome aqui — estendeu a mão para o sabonete e arrancou-lhe alguns pedaços. — Ponha isto nos ouvidos, quando chegar a hora. O barulho vai ser tremendo, não sei dizer como será o calor. Não durará muito, e as paredes de aço talvez aguentem bem. Gala olhou para ele. Sorriu.
— Se você me segurar, não vai ser assim tão ruim — falou.
— E agora Sir Hugo está com a mão no interruptor e olha o cronômetro.
— DEZ — disse outra voz, forte e sonora como o toque de um sino.
Bond abriu o chuveiro, e a água jorrou sobre seus corpos apertados um contra o outro.
— NOVE — reboou a voz do que controlava o tempo.
— Os operadores do radar estão olhando as telas. Nada, exceto uma massa de linhas onduladas. . .
— OITO.
— Todos estão usando tampões nos ouvidos. A casamata deve ser indestrutível. As paredes de concreto têm três metros e meio de espessura. O teto em pirâmide tem sete metros e pouco de espessura na ponta.. .
— SETE.
— Primeiro o rádio sustará o mecanismo do tempo nas turbinas. Porá em movimento o cata-vento. Uma coisa flamejante como uma rodinha de fogo de artifício. . .
— SEIS.
— As válvulas se abrirão. Combustível líquido, Fórmula secreta. Coisa formidável. Dinamite. Cai dos tanques de combustível ...
— CINCO.
— Aceso pelo pino giratório, quando o combustível chega ao motor do foguete. . .
— QUATRO.
— enquanto que a água oxigenada e o permaganato já se misturaram, tornaram-se vapor, e as bombas das turbinas começam a girar.. .
— TRÊS.
— bombeando o combustível inflamável, através do motor, na cauda do foguete, para a cavidade exaustora. Calor gigantesco. . . 3500 graus...
— DOIS.
— Sir Hugo está prestes a apertar o botão. Está olhando pela abertura. O suor lhe umedece a fronte. Completa tensão aqui. Tremenda tensão.
— UM.
Nada senão o ruído da água, caindo incessantemente nos dois corpos agarrados.
— FOGO!
O coração de Bond pulou para a garganta ao ouvir o grito. Sentiu Gala estremecer. Silêncio. Nada, senão o sibilar da água...
— Sir Hugo deixou a casamata. Vai caminhando calmamente para a borda dos penhascos. Tão confiante! Passou agora para o elevador. Vai descer. Naturalmente. Deve ir até o submarino. As telas de televisão mostram um pouco de vapor vindo da cauda do foguete. Mais alguns segundos. Sim, ele se encontra no cais. Olhou para trás e levantou o braço no ar. Bom velho Sir Hu...
Um troar longínquo chegou até Bond e Gala. Mais alto. Mais alto. O chão ladrilhado começou a tremer debaixo dos pés deles. Um clamor de furacão!! Seriam pulverizados. As paredes tremiam, queimavam. As pernas de ambos começaram a descontrolar-se sob seus corpos oscilantes. Segure-a bem. Segure-a bem. Pare com isso! Pare com isso!! PARE COM ESSE BARULHO.
Cristo, ele ia desmaiar. A água estava fervendo. Era preciso fechá-la. Encontrei. Não. O cano arrebentou. Vapor, cheiro, ferro, tinta.
Tire-a daqui para fora! Tire-a daqui para fora!! Tire-a daqui para fora!!!
Depois o silêncio. Silêncio que se podia sentir, apalpar, apertar. E eles estavam no chão do escritório de Drax. Só a luz do banheiro ainda brilhava. A fumaça ia dissipando-se. Assim como o cheiro horrível de ferro queimado e tinta. Estavam sendo sugados pelo ar condicionado. A parede de aço inclina-se para eles qual bolha gigantesca. Os olhos de Gala estão abertos, e ela está sorrindo. Mas o foguete? Que foi que aconteceu? Londres? Mar do Norte? O rádio. Parece em ordem. Sacudiu a cabeça, e a surdez foi lentamente desaparecendo. Lembrou-se do sabão. Retirou-o das orelhas.
— Atravessando a barreira do som. Viajando perfeitamente bem no centro da tela do radar. Um lançamento perfeito. Receio que não tenham ouvido nada por causa do barulho. Tremendo. Primeiro todo aquele grande lençol de chamas vindo do penhasco, saindo da cavidade exaustora, e depois vocês deveriam ter visto o nariz lentamente surgir da cúpula. Ei-lo que sobe como um enorme lápis de prata. Mantendo-se em posição vertical nesta imensa coluna de chamas e vagarosamente subindo no ar. A flama se espalhando por centenas de quilômetros sobre o concreto. O uivo da coisa deve ter ameaçado seriamente arrebentar nossos microfones. Grandes fragmentos caíram do penhasco, e o concreto parece uma teia de aranha. Tremenda vibração. E a agulha subindo cada vez mais rápida. Cem milhas por hora. Mil. E — o locutor interrompeu o que ia dizendo — o que é que você disse? Ah, sim? Agora está percorrendo o espaço numa velocidade de dez mil milhas horárias! Encontra-se a uma altura de trezentas milhas. Não posso ouvir mais, naturalmente. Só vimos a flama durante alguns segundos. Como uma estrela. Sir Hugo deve estar muito orgulhoso. Encontra-se, no momento, no Canal. O submarino partiu como um foguete. Deve estar fazendo mais de trinta nós. Atirando para cima um colosso de espuma. Já alcançou o East Goodwins agora. Viaja para o norte. Dentro em breve chegará até os navios patrulheiros. Presenciarão o lançamento e a aterrissagem. Mas esse itinerário foi meio surpreendente. Ninguém aqui tinha a menor indicação. Até mesmo as autoridades navais parecem um tanto mistificadas. O Comandante-em-Chefe Nore foi ao telefone. Mas agora é só o que eu lhes posso informar daqui e vou passar a palavra a Peter Trimble, a bordo do HMS Merganzer, num ponto qualquer da Costa Oriental.
Nada, exceto os pulmões funcionando, indicava que os dois corpos largados na lagoa sempre crescente do chão ainda estivessem vivos. Mas seus tímpanos avariados pendiam desesperadamente do ruído de estática que veio durante alguns instantes do gabinete de metal todo empipocado. Agora teriam o veredicto do seu trabalho.
— Aqui fala Peter Trimble. Temos uma linda manhã — retifico — tarde, aqui. Um pouco ao norte de Goodwin Sands. Calmo como um lago. Não há vento. O sol brilha alegremente. A área compreendida pelo alvo foi declarada limpa, sem nenhuma embarcação. Não é assim, Comandante Edwards? Sim, o Capitão diz que está tudo inteiramente limpo. Por enquanto nada se vê na tela do radar. Não me é permitido informar o raio em que o pegaremos. Por motivos de segurança, e essa coisa toda. Mas nós só pegaremos o foguete por uma fração de segundo. Não está certo o que digo, Capitão? Mas o alvo começa a aparecer na tela. Não se pode vê-lo da ponte, naturalmente. Deve estar a setenta milhas daqui, na direção do norte. Vimos o “Explorador da Lua” subindo. Espetáculo assombroso! O barulho semelhante a um trovão. Uma longa chama saía da cauda. Devia estar já a dez milhas de distância, mas não era possível deixar de ver a luz. Não é isto, Capitão? Ah, sim, compreendo. Bom, isto é muito interessante. O enorme submarino se aproxima rapidamente. Está apenas a uma milha de distância. Suponho que seja aquele onde se encontra Sir Hugo com seus homens. Nenhum de nós aqui foi informado de coisa alguma a seu respeito. O Capitão Edwards diz que não responde à lâmpada Aldis. Não traz distintivo de navegação. Muito misterioso. Peguei-o agora mesmo. Está bem nítido em meus binóculos. Mudamos de rumo para tentar a intercepção. O Comandante diz que não é um dos nossos. Acha que deve ser estrangeiro. Atenção! Mostrou agora suas cores. O que vem a ser isto? Santo Deus! O capitão diz que é um submarino russo. Puxa! Agora está arriando as bandeiras e submergindo. Bang! Ouviram? Atiramos visando a proa, mas já desapareceu. Que é isto? Ah, o operador do asdic informa que está acelerando cada vez mais, debaixo da água. Vinte e cinco nós. Puxa! De qualquer modo, o submarino não poderá ver muita coisa debaixo da água, porém encontra-se agora bem na área do alvo. Passam vinte minutos das doze horas. O “Explorador” deve ter mudado seu rumo e prepara agora a descida. A umas mil milhas. Velocidade de descida, dez mil milhas horárias. Estará aqui dentro de segundos. Espero que não se verifique tragédia alguma. O submarino russo encontra-se bem dentro da zona perigosa. O operador do radar está acenando para nós. É o sinal para avisar que está na hora. Vem chegando. Vem chegando! . . . Não se ouve o mais leve ruído! deus do céu! Que é isto? Cuidado! Cuidado! Uma terrível explosão.. . Uma nuvem negra se eleva no ar. Uma gigantesca vaga, como a de um maremoto, aproxima-se rapidamente de nós. Uma vaga enorme! O submarino! Santo Deus... vimo-lo agora saltar fora da água e voltar a mergulhar, de quilha para o ar! Vem chegando. . .! Vem chegando! ...
CAPÍTULO 25
ZERO MAIS
Duzentos mortos confirmados, até agora, e aproximadamente o mesmo número de pessoas desaparecidas — informou M.
— Ainda estão chegando notícias da costa oriental, e as informações da Holanda não são das melhores. Foram inutilizadas muitas milhas de suas defesas navais. A maioria de nossas perdas ocorreu nas unidades patrulheiras. Duas delas viraram, incluindo o Merganzer. O Comandante desapareceu. O camarada da B. B. C. também. Os navios-faróis de Good-win partiram as amarras. Ainda não recebemos notícias da Bélgica e da França. Haverá contas bem pesadas a pagar, quando tudo isto ficar em ordem...
Era na tarde seguinte, e Bond, com uma bengala de ponta de borracha ao lado da cadeira, voltava a sentar-se onde tudo havia começado: do outro lado da escrivaninha daquele homem calmo, de frios olhos cinzentos, que o convidara para jantar e jogar bridge, há cem anos atrás.
Por baixo da roupa, Bond era uma perfeita e entrelaçada teia de esparadrapo. A dor queimava-lhe as pernas, sempre que tentava mexer os pés. Um traço vermelho cortava-lhe a face esquerda e a parte superior do nariz. O linimento, feito à base de ácido pícrico, cintilava à luz que entrava pela janela. Segurava um cigarro, como podia, na mão enluvada. Inacreditavelmente, M. tinha-o convidado a fumar.
— Algumas notícias do submarino, chefe? — perguntou Bond.
— Já o localizaram — disse M. com satisfação. — Adernado a cerca de trinta braças de profundidade. O navio de salvamento que deveria localizar os restos do foguete encontra-se agora por cima dele. Os mergulhadores já estiveram no fundo, e não houve resposta aos sinais feitos no casco. O embaixador soviético esteve no Foreign Office esta manhã. Parece ter declarado vir a caminho um navio salva-vidas, proveniente do Báltico, mas respondemos que não podíamos esperar, visto que, tratando-se de um navio naufragado, constitui um perigo para a navegação, no local onde está. — M. riu. — Com efeito, seria um perigo se alguém se dispusesse a navegar a trinta braças de profundidade, em pleno Canal. Contudo, estou satisfeito por não ser membro do Ministério — acrescentou friamente. — Tem estado em sessão permanente, desde o final da transmissão radiofônica. Vallance conseguiu entrar em contato com os tais advogados de Edinburgh, antes de eles abrirem a mensagem de Drax para o mundo. Parece ser um documento terrível, como se tivesse sido escrito pelo próprio Jeová. Vallance levou-o ao Governo, na noite passada, e ficou no 10, Downing Street, para esclarecer pontos ainda não averiguados.
— Eu sei — disse Bond. — Ele esteve telefonando constantemente para o hospital, procurando saber detalhes, até depois da meia-noite. Eu mal podia raciocinar direito, devido aos entorpecentes que me aplicaram. E que vai acontecer agora?
— Vão tentar abafar a coisa, com a maior embromação de que se teve notícia até hoje em toda a História. Uma quantidade enorme de lero-lero científico, explicando que o combustível foi usado só pela metade. Deu-se uma inesperada e potente explosão. Serão pagas indenizações. Perda trágica de Sir Hugo Drax e sua valiosa equipe. Grande patriota. Perda trágica de um dos submarinos de Sua Majestade. Último modelo experimental, ordens mal compreendidas. Tudo muito triste. Felizmente, perdeu-se uma tripulação mínima. Os parentes mais próximos serão informados. Trágica perda de um radialista da B.B.C. Inacreditável erro ao confundir a insígnia branca com as cores navais soviéticas. O desenho é muito semelhante. A bandeira branca foi recuperada no naufrágio.
— Mas que me diz da explosão atômica? — indagou Bond. — Radiações, poeiras radioativas e tudo isso. . . A famosa nuvem em forma de cogumelo. Com certeza isso vai ser um problema para explicar.
— Aparentemente, não estão muito preocupados com a questão — disse M. — A nuvem vai passar como formação normal, após uma explosão daquela envergadura. O Ministério do Abastecimento conhece toda a história. Foi preciso contar-lhes. Seus homens andaram percorrendo ontem à noite toda a costa oriental, com contadores Geiger, e ainda não houve qualquer notícia positiva. — M. sorriu friamente. — A nuvem terá de descer em algum lugar, claro, mas por uma feliz circunstância, o vento está empurrando-a para o norte. De volta a casa, como se poderia dizer. . .
Bond esboçou um sorriso, com dificuldade.
— Compreendo. Que coisa apropriada.
— Evidentemente — prosseguiu M., enchendo o cachimbo — haverá por aí uma série de boatos desagradáveis. Já começaram, aliás. Muita gente viu você e Miss Brand, serem retirados em padiolas. Depois, há o caso da Bowaters contra Drax, pela perda de todo aquele material de impressão. Haverá também inquérito sobre o rapaz que foi morto no Alfa Romeo. E alguém terá de explicar como se encontraram os restos de seu automóvel, entre os quais, — e nesta altura, M. olhou acusadoramente para Bond — foi encontrado um Colt de cano longo. E temos ainda o Ministério de Abastecimento. Vallance teve de chamar alguns de seus homens, ontem, para limpar aquela casa da Ebury Street. Mas essa gente está treinada em guardar segredo. Não será por aí que se descobrirá alguma coisa. Naturalmente, será um negócio arriscado. Mas a mentira de grandes proporções sempre o foi. E qual seria a alternativa? Encrencas com a Alemanha? Guerra com a Rússia? Muita gente, dos dois lados do Atlântico, ficaria mais do que satisfeita se lhe déssemos um motivo para agir.
M. fez uma pausa e chegou um fósforo ao cachimbo. Depois continuou:
— Se a história fôr engolida, não sairemos muito mal de tudo isto. Quisemos um de seus submarinos ultravelozes e ficaremos satisfeitos com as pistas que conseguimos descobrir a respeito de suas bombas atômicas. Os russos sabem que nós sabemos que o jogo deles fracassou. Malenkov não está muito firme no poder, e isto pode muito bem significar outra rebelião entre os senhores do Kremlin. Quanto aos alemães, bem... todos nós sabemos que ainda ficou muito nazismo espalhado por aí, e isto servirá para que o Ministério seja um pouco mais cauteloso, no tocante ao rearmamento da Alemanha. Entre as consequências de menor vulto — disse com um sorriso — destaca-se a de que o trabalho de segurança de Vallance, e o meu também, aliás, vão ficar um pouco mais fáceis para o futuro. Esses políticos não veem que a era atômica criou o mais letal sabotador da história da humanidade: o homenzinho com a valise pesada.
— E a imprensa vai engolir essa história? — perguntou Bond, duvidoso.
M. sacudiu os ombros.
— O Primeiro-Ministro teve esta manhã um encontro com os jornalistas — respondeu M., chegando outro fósforo ao cachimbo — e creio que conseguiu tudo da melhor maneira. Se os boatos se intensificarem mais tarde, ele terá, provavelmente, de convocá-los novamente e dizer-lhes parte da verdade. Então, eles se portarão bem. Sempre se portaram, quando o negócio é importante de verdade. O principal é ganhar tempo e manter afastados os boateiros. No momento, todos estão de tal maneira orgulhosos do “Explorador da Lua”, que não indagarão muito minuciosamente que foi que não deu certo.
Ouviu-se um leve zumbido no intercomunicador da escrivaninha de M., e uma luzinha vermelha piscou repetidas vezes. M. pegou no fone e curvou-se. — Alô. — Houve uma pausa. — Atenderei na linha do Ministério. — Apanhou o receptor branco, na mesa onde havia quatro telefones. — Sim. Está falando. — Nova pausa. — Pronto, sir? Escuto. — M. premiu o botão do misturador de sons. Segurou o fone junto ao ouvido, e nem um som chegou até aos ouvidos de Bond. Houve uma longa pausa, durante a qual M. ia puxando uma ou outra baforada do cachimbo, com a mão esquerda, enquanto escutava. Depois, tirou-o da boca. — De acordo, sir. É isso mesmo, sir. — Outra pausa. — Estou certo de que o meu homem teria ficado extremamente orgulhoso, sir. Mas, naturalmente, como Vossa Excelência sabe, é uma regra aqui no serviço. — M. franziu a testa. — Se me permite dar uma opinião, sir, creio que não seria nada aconselhável. — Uma pausa e a fisionomia de M. se desanuviou. — Obrigado, sir. Claro, Vallance não tem o mesmo problema. É o mínimo que ela merece, sir. — Outra pausa. — Compreendo. Assim será feito, sir. — Nova pausa. — É muita bondade sua, sir.
Depois de mais alguns cumprimentos, M. colocou o telefone branco no gancho, e o botão do misturador voltou à sua posição inicial de “livre”.
Por uns instantes, M. continuou fitando o telefone, como se em dúvida a respeito do que fora dito. Depois rodou a cadeira para longe da escrivaninha e olhou pela janela, pensativo.
Reinou o silêncio na sala, e Bond remexeu-se na cadeira, para aliviar a dor que lhe invadia novamente o corpo.
O mesmo pombo de segunda-feira, ou talvez outro, veio descansar no peitoril da janela, com o mesmo ruflar de asas. Caminhava para um e outro lado, baixando a cabeça e arruinando. Depois, voou para as árvores do parque. O tráfego murmurava, sonolento, na distância.
Como estivera perto, pensou Bond, de embarcar desta para melhor. Quão perto estivera de não haver nada mais do que a sirena distante da ambulância sob um sinistro céu negro e alaranjado, o cheiro de queimado, os gritos das pessoas ainda presas nos edifícios. O suave bater do coração de Londres, silenciado por uma geração. E toda uma geração de sua gente, morta nas ruas, entre as ruínas fumegantes de uma civilização que talvez não se erguesse de novo senão daí a muitos séculos.
Tudo isso teria acontecido por causa de um homem que fazia trapaça nas cartas, desdenhosamente, para alimentar o fogo devorador de seu ego maníaco; teria acontecido, se não fosse o presidente do clube Blades que o descobriu; se não fosse M., que concordara em ajudar um velho amigo; se não fosse a lição meio recordada por Bond e aprendida com um perito em trapaças; se não fossem as precauções de Vallance; se não fosse a boa cabeça de Gala para cálculos; se não fosse por uma série completa de circunstâncias fortuitas, de oportunidades .
E quem preparou a série?
Ouviu-se um ranger agudo, quando a cadeira de M. girou. Bond, cautelosamente, voltou a focalizar sua atenção nos olhos cinzentos do outro lado da escrivaninha.
— Era o Primeiro-Ministro — explicou M., em voz agridoce. — Diz que deseja que tanto você como Miss Brand saiam do País. — M. baixou os olhos e pousou-os, impassível, no fornilho do cachimbo. — Vocês dois têm de dar o fora até amanhã à tarde. Há muitas pessoas, neste caso, que lhes conhecem as caras. Poderão somar dois e dois e saberem que são quatro, quando virem em que estado lamentável se encontram. Vão para qualquer lugar que lhes agrade. Despesas sem limite de verba para ambos. Qualquer importância que precisarem. Vou falar com o Tesoureiro. Fique fora por um mês. Mas completamente fora de circulação, entendeu? Vocês dois já deveriam ter partido esta tarde, mas a moça tem um compromisso amanhã às onze horas. No Palácio. Foi-lhe concedida a George Cross. Mas isso não será divulgado até ao novo ano, claro. Gostaria de encontrá-la, qualquer dia. Deve ser uma excelente moça. Aliás — a expressão de M., quando levantou os olhos, era indecifrável — o Primeiro-Ministro tinha na ideia qualquer coisa para você, também. Esquecera que nós, aqui, não admitimos essas coisas. De modo que me pediu para lhe agradecer em nome dele. Disse algumas palavras simpáticas a respeito de nosso serviço. É muito gentil.
M. esboçou um daqueles raros sorrisos que iluminavam seu rosto com uma vivacidade e calor imediatos. Bond retribuiu o sorriso. Eles compreendiam bem as coisas que não chegavam a ser ditas.
Bond percebeu que era tempo de sair. Levantou-se e disse:
— Muito obrigado, chefe. Estou muito satisfeito pela moça.
— Bom, então está tudo combinado — disse M., com uma nota de despedida na voz. — Por hoje basta. Vê-lo-emos aqui dentro de um mês. Ah, é verdade — acrescentou com naturalidade — passe pelo seu escritório antes de sair. Encontrará uma coisa que eu lhe deixei lá. Uma pequena lembrança .
James Bond desceu pelo elevador e foi mancando pelo corredor, até seu gabinete. Quando cruzou a porta interior, encontrou sua secretária arrumando alguns papéis na escrivaninha ao lado da dele.
— 008 já está de volta? — perguntou.
— Sim — respondeu ela, sorrindo feliz. — Deve voar esta noite para cá.
— Ótimo, fico alegre por saber que você terá companhia — disse Bond. — Vou partir novamente.
— Oh! — exclamou a moça. Olhou rapidamente para ele e depois desviou o olhar. — Você está mesmo com cara de quem precisa de um bom descanso.
— Pois vou tê-lo mesmo. Um mês de exílio. — Pensou em Gala. — Vai ser um período de puras férias. Nada mais. Alguma coisa para mim?
— Seu novo carro está lá embaixo. Já o examinei. O homem disse que você lhe tinha dado ordens para que o trouxessem para experiência esta manhã. É lindo! Ah, é verdade. E tem ainda o pacote que veio do gabinete de M. Quer que o desembrulhe?
— Sim, por favor. . .
Bond sentou-se à escrivaninha e olhou o relógio. Cinco horas. Sentia-se fatigado. Sabia que iria sentir o mesmo durante alguns dias. Sempre tinha essas reações, no final de uma difícil missão. Era a consequência dos dias de nervos em tensão, dos temores, do medo.
Sua secretária voltou ao escritório, com duas caixas de papelão, de aspecto pesado. Colocou-as sobre a escrivaninha, e ele abriu a de cima. Quando viu a espécie de papel que envolvia o objeto, percebeu logo o que estava para vir.
Havia um cartão dentro da caixa. Bond pegou-o e leu. Na tinta verde usada por M., este dizia: “Você pode precisar destas coisas.” Não havia assinatura.
Bond desembrulhou o papel impermeável e sopesou a nova e refulgente Beretta em sua mão. Um lembrete. Não. Uma recordação. Bond sacudiu os ombros e fez a arma deslizar por baixo do casaco, para o coldre vazio. Levantou-se com alguma dificuldade.
— No outro embrulho, você encontrará um Colt de cano longo — disse ele à secretária. — Guarde até eu regressar. Então, eu o levarei ao fogão da cantina e jogá-lo-ei lá dentro.
Caminhou para a porta:
— Adeus, Lil. Lembranças a 008, e diga-lhe que tome cuidado com você. Eu estarei na França. Estação F terá meu endereço. Mas só em caso de emergência.
A moça sorriu.
— Que deverei considerar uma emergência? — perguntou.
Bond soltou uma pequena risada.
— Qualquer convite para um tranquilo jogo de bridge, por exemplo — respondeu ele.
Saiu mancando e fechou a porta.
O Mark VI, modelo 1953, tinha uma carroçaria esportiva e elegante, cor cinza de navio de guerra como o velho quatro litros e meio que fora para a sepultura numa garagem de Maidstone. O estofamento de couro azul-marinho deu um luxuoso gemido de coisa nova, quando Bond subiu, desajeitadamente, para o assento ao lado do motorista de provas.
Meia hora depois, o motorista ajudou-o a descer na esquina de Birdcage Walk com Queen Anne’s Gate.
— Se o senhor quisesse, poderíamos ter feito maior velocidade — disse o motorista. — E se nos autorizar a ficar com ele por mais uns quinze dias, poderemos prepará-lo para chegar aos cento e sessenta horários.
— Mais tarde — respondeu Bond. — Está comprado. Mas com uma condição. De que você o leve à terminal do ferry-boat na estação de Calais, amanhã à tarde.
O motorista sorriu:
— O.K. Eu o levarei. Verei o senhor no cais, está bem?
— Combinado. Siga com cuidado pela A-20. A estrada de Dover está muito perigosa, estes últimos dias.
— Não se preocupe, sir — respondeu o motorista, pensando que aquele homem devia ser um tanto medroso, apesar de tudo o que parecia conhecer a respeito de automóveis. — Não acontecerá nada.
— Nem todos os dias — advertiu ainda Bond, sorrindo. — Vê-lo-ei em Calais.
Sem esperar a resposta, saiu mancando, apoiado à bengala, por entre os raios de luz poeirenta do crepúsculo, filtrados através das árvores do parque.
Sentou-se defronte da ilha, no lago, e puxou da cigarreira, acendendo um cigarro. Olhou o relógio. Cinco para as seis. Lembrou-se de que ela não era o tipo de pequena que não seria pontual num encontro. Reservara a mesa de um canto parar o jantar. E depois? Mas, primeiro, haveria o longo e requintado planejar. De que gostaria ela? Onde gostaria de ir? Onde já teria estado? Alemanha, com certeza. França? Deixaria Paris de lado. Poderiam visitar a cidade no regresso. Mas, na primeira noite, iriam o mais longe que pudessem, bem longe do Pas de Galais. Havia aquela casa de campo, com uma comida maravilhosa, entre Montreuil e Étaples. Depois, a descida ao longo do Loire. Os pequenos lugares perto do rio, para alguns dias. As cidades dos castelos, não. Lugares como Beaugency, por exemplo. Depois, vagarosamente, para o sul, sempre seguindo pelas estradas do Oeste, evitando a vida em lugares mundanos e hotéis de cinco estrelas. Explorando lentamente o caminho. Bond teve um sobressalto. Explorar o quê? Um ao outro? Seria que ele estava levando a pequena a sério, demasiado a sério?
— James.
Era uma voz clara, bem timbrada, um pouco nervosa. Não a voz que ele esperava.
Levantou os olhos. Ela estava de pé, a poucos metros de distância. Bond reparou que usava uma boina preta, colocada num ângulo brejeiro. Tinha um ar excitante, misterioso, como alguém que vemos, em terra estranha, conduzindo sozinha um carro aberto. Alguém inatingível e mais desejável do que qualquer outra pessoa que já se conheceu até hoje. Alguém que está a caminho de um encontro amoroso com outro. Alguém que não é para você.
Bond ergueu-se, e deram-se as mãos.
Foi ela quem soltou a sua. Não se sentou.
— Gostaria muito que você fosse amanhã, James — disse Gala.
Seus olhos eram ternos quando o fitou. Ternos e suaves, mas, pensou ele, algo evasivos. Bond sorriu.
— Amanhã de manhã? Ou amanhã à noite? — disse ele.
— Não seja ridículo — respondeu Gala, rindo e corando. — Amanhã no Palácio.
— E depois? Que tenciona você fazer?
Gala encarou-o, cautelosamente. Que seria que esse olhar lembrava a ele? O olhar de Morphy? O olhar com que fitara Drax, na derradeira mão do jogo no Blades? Também não. Havia algo mais. Ternura? Pena?
A moça olhou por cima do ombro. Bond deu meia volta. Mais adiante viu a figura de um rapaz alto, de cabelos louros e cortados curtos. Estava de costas para ambos, sem fazer qualquer movimento. Matando o tempo.
Bond voltou a cabeça para Gala, e os olhos dela encontraram os seus.
— Vou-me casar com aquele homem — declarou ela, simplesmente. — Amanhã de tarde. — E então, como se não houvesse necessidade de outra explicação, acrescentou: — O nome dele é Vivian, Detetive-Inspetor.
— Ah, sim — disse Bond — compreendo. — Sorriu, um tanto amargo.
Houve um momento de silêncio, durante o qual seus olhos se desviaram para longe.
Entretanto, por que motivo deveria ele esperar outra coisa diferente? Um beijo. O contato de dois corpos assustados, agarrando-se no meio do perigo. Nada mais houvera. Depois, o anel de noivado sempre estivera no dedo dela, para que Bond não tivesse dúvidas. Por que supusera ele, automaticamente, que a moça o usara apenas como estratagema para que Drax não excedesse os limites? Por que imaginara que ela compartilhava de seus desejos e de seus planos?
E agora? conjeturava Bond. Sacudiu os ombros para expulsar a dor do fracasso... essa dor que é bem maior do que o prazer do sucesso. Afastar-se, era agora a única saída. Sair do caminho dessas duas vidas jovens e levar seu frio coração para qualquer outro lugar. Nada de penas. Nada de falsos sentimentos. Tinha de representar o papel que ela esperava dele. O homem duro, mundano. O Agente Secreto. O homem que era apenas uma silhueta.
Gala fitava-o, bastante nervosa, esperando ver-se desligada do estranho que tentara penetrar no átrio de seu coração.
Bond sorriu, com calor.
— Estou com ciúme — disse ele. — Tinha outros planos para você amanhã à noite.
Gala retribuiu o sorriso, grata por ter sido quebrado o silêncio.
— Quais eram esses planos? — indagou.
— Ia levá-la a uma casa de campo na França. E, depois de um jantar maravilhoso, pretendia verificar se é verdade o que dizem a respeito do grito de uma rosa.
A moça riu.
— Lamento muito não poder participar desses planos. Mas existem tantas outras, esperando serem colhidas.
— Sim, creio que sim — disse Bond. — Então, adeus, Gala.
Estendeu-lhe a mão.
— Adeus, James.
Bond tocou em Gala Brand pela derradeira vez e, depois, separaram-se, caminhando cada qual ao encontro de suas tão diferentes vidas.
CAPÍTULO 20
A JOGADA DE DRAX
Havia três diferentes fontes de dores no corpo de Gala. A dor latejante atrás da orelha esquerda, a carne mordida nos pulsos, e o queimar das correias em torno de seus tornozelos.
Cada saliência do terreno, cada desvio, cada pressão repentina do pé de Drax nos freios ou no acelerador, despertava uma dessas dores e lhe irritava os nervos. Se ao menos tivesse sido colocada mais presa ao assento de trás. Mas só havia lugar para seu corpo rolar alguns centímetros no assento, de modo que se via obrigada a contorcer constantemente o rosto machucado para evitar o contato com as paredes de brilhante couro de porco.
O ar que respirava era abafado, com um cheiro de forração nova de couro, fumaça do cano de descarga e, de quando em quando, o mais acentuado de borracha queimada, cada vez que Drax raspava os pneumáticos numa esquina de curva acentuada.
No entanto, o desconforto e a dor não eram nada. Krebs! Curioso como seu temor e repulsa por Krebs a atormentava mais que tudo. As outras coisas eram grandes demais. O mistério de Drax e seu ódio pela Inglaterra. O enigma do seu perfeito domínio da língua alemã. O “Explorador da Lua”. O segredo da cápsula atômica. Como salvar Londres. Eram assuntos que há muito tempo ela afastara para um recanto do cérebro como coisas insolúveis.
Mas a tarde passada a sós com Krebs estava presente e terrível em seu espírito, e este voltava sempre e sempre aos detalhes da mesma, como uma língua em cima de um dente dolorido.
Muito tempo depois de Drax ter partido, ela continuara a fingir inconsciência. A princípio, Krebs se ocupara com as máquinas, conversando com elas em alemão, numa falinha de bebê, toda carinhosa.
— Pronto, minha Liebchen. Agora está melhor, não está? Uma gota de óleo para você, minha Pupperl? Como não? Vai já. Não, não sua preguiçosa. Eu disse mil voltas. Não novecentas. Vamos ver agora. Nós podemos fazer coisa melhor, não podemos? Sim, minha Schatz. É isto. Rodando, rodando, lá vamos nós. Para cima e para baixo. Rodando, rodando. Deixe eu limpar sua carinha bonita, para você, para nós podermos ver o que o pequenino mostrador está dizendo. Jesus Maria, bist du ein braves Kind!
E assim continuara, ora ficando em pé, diante de Gala, ora esgaravatando o nariz e chupando os dentes, numa atitude horrível de ruminante. Até que foi permanecendo cada vez mais tempo diante dela, esquecendo as máquinas, conjeturando, tomando uma resolução.
E então sentira a mão dele desabotoar o botão de cima de seu vestido, e o recuo (automático de seu corpo teve de ser disfarçado por um grunhido realístico e uma pantomima de volta de consciência.
Pedira água, e ele fora buscar no banheiro, trazendo um pouco num copo de escova de dentes. Depois puxara uma cadeira de cozinha para a frente dela e sentara-se atravessado, de costas para o assento, o queixo descansando na última travessa do encosto. Ficara então a fitá-la especulativamente, por baixo das pálpebras caídas, com aqueles olhos desbotados.
Ela fora a primeira a romper o silêncio.
— Por que me trouxeram aqui? Para que são todas essas máquinas?
Krebs lambera os lábios de sua boquinha vermelha e bicuda, aberta sob a mancha de bigode amarelo, e foi formando lentamente um sorriso em forma romboide.
— Isto é um engodo para passarinhos. Dentro em breve atrairá um passarinho para seu ninho quente. Então o passarinho porá um ôvo. Oh, um ôvo tão grande, redondo! Um ôvo lindo!
A parte inferior de seu rosto ria encantada, enquanto seus olhos divagavam.
— A mocinha bonita está aqui porque, de outro modo, poderia assustar o passarinho, e este ir embora. E isto seria tão triste, não é mesmo? — o homem cuspiu as três palavras seguintes: — Cadela inglesa e suja!
Seus olhos tornaram-se atentos, cheios de resolução. Puxou a cadeira mais para perto, de modo que seu rosto ficou muito próximo ao dela, e ela se viu envolvida pelo miasma de sua respiração.
— E agora, cadela inglesa, diga para quem você está trabalhando? — Esperou. — Você precisa me responder, sabe? — avisou suavemente. — Nós estamos sozinhos aqui. Não há ninguém para lhe ouvir gritar.
— Não seja estúpido — disse Gala em desespero de causa. — Como eu poderia estar trabalhando para outra pessoa que não fosse Sir Hugo? (Krebs sorriu ao ouvir o nome).
— Eu só estava curiosa a respeito do plano de voo...
Gala iniciou uma explicação arrastada, a respeito de seus números e os de Drax, e de como desejara partilhar do sucesso do “Explorador da Lua”.
— Tente novamente — sussurrou Krebs, quando ela terminou. — Você deve sair-se melhor que isso — e, subitamente, seus olhos haviam-se tornado chispantes de crueldade, e suas mãos se estenderam para ela, por trás do encosto da cadeira. . .
No assento de trás do veloz Mercedes, Gala rangeu os dentes e choramingou com a lembrança dos dedos leves se arrastando pelo seu corpo, tateando, beliscando, puxando, enquanto seus olhos, durante o tempo todo, fitavam curiosamente os dela, até que, finalmente, ela juntou saliva na boca e deu uma cusparada bem no meio da cara do homem.
Este nem se dera o trabalho de parar para limpar o rosto, mas, de repente, aplicara-lhe um golpe violento, e ela gritara uma só vez, para em seguida desmaiar.
E então se vira sendo empurrada para a parte traseira do carro, com um tapete atirado em cima dela, e eles partiram velozmente pelas ruas de Londres. Gala ouvia outros carros perto deles, o campainhar frenético de uma bicicleta, um grito de vez em quando, o grunhido animalesco de uma velha klaxon, o ronronar de uma lambreta, um rangir de freios, e compreendeu que voltara ao mundo real, que pessoas inglesas, amigos, estavam em volta dela. Lutara para se pôr de joelhos e gritar, mas Krebs devia ter-lhe pressentido os movimentos, porque as mãos dele se encontraram repentinamente em seus tornozelos, prendendo-os à barra de descanso para os pés, no chão. Compreendeu que estava perdida, e as lágrimas lhe correram pelas faces, enquanto rezava para que alguém, de um jeito ou de outro, chegasse a tempo.
Isto acontecera há menos de uma hora, e agora ela podia garantir que haviam chegado a uma cidade grande — Maidstone, se estava sendo levada de volta para a base.
No relativo silêncio do avanço do Mercedes por dentro da cidade, ela ouviu, subitamente, a voz de Krebs. Havia nela um quê de ansioso.
— Mein Kapitän, tenho estado a observar um carro já há algum tempo. Não resta dúvida de que está nos seguindo. Raramente usa os faróis. Está apenas a uns cem metros de distância, atrás de nós agora. Eu acho que é o carro do Comandante Bond.
Drax grunhiu de surpresa, e ela ouviu seu corpanzil virar-se todo para dar uma rápida olhada.
Praguejou violentamente, e depois veio o silêncio, dentro do qual ela pôde sentir o carro grande se movimentando em curvas e se esforçando por ganhar terreno dentro do trânsito.
— Ja, sowas! — disse finalmente Drax. Sua voz parecia preocupada. — Quer dizer que aquela velha peça de museu ainda pode movimentar-se. Tanto melhor, meu caro Krebs. Parece que ele está sozinho.
Deu uma risada desagradável:
— Deixe que ele fique por nossa conta, porque se sobreviver, nós o meteremos no mesmo saco com a mulher. Ligue o rádio. Estação local. Logo saberemos se existe algum obstáculo.
Ouviu-se um rápido estalido da estática e depois Gala escutou a voz do Primeiro-Ministro, a voz das grandes ocasiões de sua vida, vinda em fragmentos entrecortados, enquanto Drax punha o carro em terceira e acelerava para sair da cidade: “. . . arma criada pela engenhosidade do homem. . . mil milhas acima no firmamento. . . área patrulhada pelos navios de Sua Majestade. . . planejado exclusivamente para a defesa de nossa amada ilha. . . uma longa era de paz... desenvolvimento para a grande viagem do homem além dos limites deste planeta. . . Sir Hugo Drax, esse grande patriota e benfeitor do nosso País...”
Gala ouviu o estrondear da gargalhada acima do uivar dos ventos, um vasto latido de desprezo e triunfo e, em seguida, o rádio foi desligado.
— James — sussurrou Gala consigo mesmo. — Só resta você. Tenha cuidado. Mas ande depressa.
O rosto de Bond era uma máscara de poeira e imundície com o sangue das moscas e outros insetos que se haviam esmagado contra ele. Muitas vezes tivera de retirar uma das mãos com câimbra do volante, para limpar os óculos, mas o Bentley ia portando-se muito bem, e ele tinha certeza de que pegaria o Mercedes.
Estava quase alcançando noventa e cinco na linha reta, pouco antes da entrada para Leed Castle, quando luzes possantes foram emitidas por trás dele, e uma buzina de quatro tons executou seu ousado “pam-pim-pim-pam” quase dentro de seu ouvido.
A aparição de um terceiro carro na corrida era quíase inacreditável. Bond mal se dera o trabalho de olhar no espelho retrovisor, desde que havia saído de Londres. Ninguém, a não ser um corredor de automóvel ou um homem desesperado, poderia ter emparelhado com eles, e seu espírito se encontrava numa confusão quando, automaticamente, afastou-se para a esquerda e viu, com o rabo dos olhos, um carro baixo, vermelho como os dos bombeiros, emparelhar com ele e afastar-se com uma diferença de umas dez milhas, uma hora extra em seu relógio.
Vislumbrou o famoso radiador Alfa e, na borda do capô, escrito em letras grandes, brancas, as palavras: Attaboy II. Em seguida, viu o rosto sorridente de um rapazinho em mangas de camisa, que espetou dois dedos vermelhos no ar antes de desaparecer na mistura de sons que um Alfa em disparada compõe com o gemido de seu escape, o espooar do cano de descarga e o uivo trovejante do transmissor.
Bond sorriu cheio de admiração ao levantar a mão para o chofer. Alfa Romeu, oito cilindradas, com surpercarburadores, pensou consigo mesmo. Deve ser quase tão velho quanto o meu. ‘32 ou ‘33, provavelmente. E só a metade de meus cc. Targa Florio, em 1931, e depois disso fez bonito em toda a parte. Com certeza era um tipo desses de cabeça quente, ouvindo uma das estações da RAF dos arredores. Tentando voltar de alguma festa a tempo de assinar o ponto antes de ser citado num relatório. Observou benèvolamente quando o Alfa balançou a cauda na curva em S ao lado de Leeds Ctostle e, em seguida, passou uivando pelo longo caminho largo em direção à distante bifurcação de Charing.
Bond bem podia imaginar o sorriso de satisfação do rapaz, quando este alcançou Drax: “Ôba. É uma Merc!” E a raiva de Drax, ao ouvir a música impudente da buzina. Deve estar fazendo 105, pensou Bond. Espero que esse maluquinho não saia da estrada. Ficou a olhar os dois jogos de luzes traseiras se aproximando, o rapaz do Alfa se preparando para o truque de surgir por trás e, de repente, acelerar ao máximo, assim que tivesse uma oportunidade para passar.
Pronto. Quatrocentas jardas adiante o Mercedes apareceu, branco, iluminado pelas luzes duplas do Alfa. Havia uma milha de estrada livre na frente, completamente reta. Bond quase sentia os pés do rapaz pisando o pedal mais fundo ainda. Ôba rapaz!
Lá na frente, no Mercedes, Krebs tinha a boca colada ao ouvido de Drax.
— Outro deles — gritou aflito. — Não consigo ver o rosto. Vem vindo para nos passar agora.
Drax deixou escapar uma obscenidade a meia voz. Seus dentes branquejaram no pálido reflexo do painel.
— Vou dar uma lição a esse canalha — falou, endireitando os ombros e agarrando o volante com firmeza com as grandes luvas de couro. Com o canto dos olhos viu o capô da Alfa surgir a estibordo. ‘Tam-pim-pim-pim”, cantava a buzina, suave, delicadamente. Drax virou rápido o volante do Mercedes para a direita e, depois do horrível chocalhar dos metais, trouxe-o novamente para o centro, a fim de corrigir a posição.
— Bravo! Bravo! — gritou Krebs, fora de si com a excitação, ao ajoelhar-se no assento do carro e olhar para trás.
— Dupla capotagem. Passou por cima da cerca de cabeça para baixo. Acho que já está se incendiando. Sim. Estou vendo as chamas.
— Isto dará ao nosso caro Sr. Bond qualquer coisa para refletir — rosnou Drax, respirando pesadamente.
Bond, porém, o rosto impassível, mal examinara o velocímetro, e nada havia a não ser vingança em seu espírito, quando partiu veloz atrás do Mercedes que voava.
Vira tudo. O voo grotesco do carro vermelho, ao virar de rodas para o ar, e tornar a virar, a figura do rapaz projetada para o alto, os braços e as pernas abertos, ao ser cuspido para fora do volante, e o estrondo final, quando o carro saltou a cerca de cabeça para baixo e foi desmoronar-se no campo.
Quando passou disparado, observando as marcas horríveis de grafita deixadas pela derrapagem, seu espírito anotou um toque macabro final. Saindo, não se sabe como, incólume do holocausto, a buzina ainda dava contato, e seu ulular subia para o céu, abrindo estridentemente estradas imaginárias para a passagem do Attaboy II: “Pam-pim-pim-pam. Pam-pim-pim-pam.”
Com que então um homicídio tivera lugar bem debaixo de seus olhos. Ou, pelo menos, uma tentativa de homicídio. Assim, fossem quais fossem seus motivos, Sir Hugo Drax era um criminoso e, provavelmente, um maníaco. Isto, acima de tudo, significava perigo certo para o “Explorador da Lua”. Era o bastante para Bond. Meteu a mão debaixo do painel e, de seu coldre escondido, tirou o Colt Especial do Exército, calibre 45 de cano longo, e colocou-o no assento ao seu lado. A batalha agora era em campo aberto e, de um jeito ou de outro, o Mercedes teria de ser parado.
Usando a estrada como se fosse Donington, Bond pisou o acelerador e ali conservou o pé. Pouco a pouco, com o ponteiro oscilando de cada lado do número cem, começou a diminuir a diferença.
Drax entrou pelo lado esquerdo da bifurcação em Charing e subiu embalado a longa colina. Na frente, dentro do raio gigante de seus faróis, um grande caminhão de transporte, desses de oito rodas, um AEC Diesel, ia subindo a primeira curva do caminho, lutando sob o peso de quatorze toneladas de notícias impressas que levava numa viagem noturna para um dos jornais do East Kent.
Drax praguejou baixinho, ao ver o longo transporte de vinte rolos gigantescos, cada um deles contendo cinco milhas de papel impresso com notícias, amarradas lá em cima. Logo ali, no meio daquela curva traiçoeira em S, no alto da colina.
Olhou no espelho retrovisor e viu o Bentley chegando à bifurcação.
Foi então que teve uma ideia.
— Krebs — o nome saiu como um tiro de pistola. — Tire sua faca.
Um estalido agudo, e o estilete já estava na mão de Krebs. Ninguém perdia tempo, quando havia aquela nota na voz do mestre.
— Vou diminuir a marcha e seguir atrás do caminhão. Tire os sapatos e as meias, suba no capo, e quando eu vier por detrás dele, pule em cima. Eu irei na maior vagareza. Não haverá perigo. Corte as cordas e segure os rolos de papel. Primeiro os da esquerda. Depois os da direita. Nessa altura eu já terei colocado o carro no mesmo nível do caminhão, e quando você tiver cortado o segundo lote, pule no carro. Tenha cuidado para não ser levado com o papel. Verstanden? Also. Hals und Beinbruch!
Drax apagou as luzes dos faróis e contornou a curva a oitenta quilômetros por hora. O caminhão ia vinte jardas adiante, e ele teve de frear com força, a fim de não abalroá-lo. O Mercedes executou uma derrapagem, até o radiador ficar quase debaixo do chassi do caminhão.
Drax fez a mudança para segunda:
— Agora!
Manteve o carro firme como uma rocha, quando Krebs, descalço, passou por cima do para-brisa e foi-se arrastando ao longo do brilhante capo, com a faca na mão.
Num salto, atingiu o ponto visado e começou a cortar as cordas do lado esquerdo. Drax afastou-se para a direita e foi deslizando até ficar paralelo às rodas traseiras do Diesel, a fumaça do óleo vinda do cano de descarga subindo-lhe aos olhos e às narinas.
As luzes do carro de Bond começavam a aparecer no início da curva.
Houve uma série de baques fortes, quando os rolos do lado esquerdo caíram do caminhão para a estrada e foram rolando velozes pela escuridão. Depois, mais baques, ao partirem-se as cordas do lado direito. Um dos rolos arrebentou ao cair, e Drax ouviu um barulho de coisas dilaceradas, quando o papel, desenrolando-se tombou pesadamente num ponto da subida.
Aliviado de sua carga, o caminhão quase pulou para a frente, e Drax teve de acelerar um pouco para alcançar a figura esvoaçante de Krebs, que aterrisou, metade em cima das costas de Gala e metade no assento da frente. Drax pisou até embaixo o acelerador e subiu a colina como um raio, ignorando o grito do chofer do caminhão, que se sobrepôs ao clamor dos pistões, quando ele disparou em frente.
Ao contornar velozmente a curva seguinte, viu o cilindro de dois faróis desenharem-se em curva no céu, acima do topo das árvores, até se tornarem quase verticais. Tremularam ali por um instante, e depois os raios de luz giraram através do espaço e desapareceram.
Uma grande risada, semelhante a um latido de cão, escapou de Drax, e durante a fração de um segundo, tirou os olhos da estrada e levantou o rosto triunfalmente para as estrelas.
CAPITULO 21
“O PERSUASOR”
Krebs ecoou a risada maníaca com outra estridente.
— Um golpe de mestre, mein Kapitän. O senhor precisava ver como eles desciam pela colina. O tal que arrebentou. Wunderschön! Parecia o papel higiênico de um gigante. Este deve ter feito um belo pacote dele. Ele vinha chegando bem na curva. E o segundo foi tão bom quanto o primeiro. Viu a cara do motorista? Zum Kotzen! E a firma Bowater! Um belo negócio foi o que fizeram.
— Você trabalhou bem — observou Drax, conciso, o pensamento noutra coisa.
De repente, levou o carro para o lado da estrada, com um grito de protesto dos pneus.
— Donnerwetter — disse, zangado, quando começou a virar o carro. — Mas nós não podemos deixar o homem ali. Precisamos pegá-lo.
O carro já ia roncando pela estrada abaixo.
— A arma — ordenou Drax, secamente.
Passaram o caminhão no alto da colina. Estava parado, e não se via sinal de motorista. Provavelmente telefonando para a companhia, pensou Drax, diminuindo a marcha ao contornarem a primeira curva. Viam-se luzes em duas ou três casas, e um grupo de pessoas rodeava um dos rolos de papel que ali estava por entre as ruínas do portão da frente de suas casas. Havia mais rolos na borda do lado direito da estrada. À esquerda, um poste telegráfico se inclinava como bêbedo, partido ao meio. Na curva seguinte, via-se o princípio de uma grande confusão de papel estendendo-se para baixo, ao longo da colina, formando guirlandas nas cercas e na estrada, como se fossem os babados de um vestido de baile à fantasia, elefantíaco.
O Bentley tinha quase se espatifado contra as grades que guarneciam o lado direito da curva, protegendo-o de um barranco profundo. Por entre a confusão de ferro retorcido dos mourões, pendia, de capo para baixo, com uma das rodas ainda presa ao eixo quebrado de trás e ali pousada de esguelha como um guarda-chuva surrealista.
Drax se aproximou e, acompanhado de Krebs, saiu do carro e ficou quieto, à escuta.
Não se ouvia o menor som, exceto o do motor de um carro distante, seguindo rápido pela estrada de Ashford, e o trilar de um grilo insone.
Com as armas na mão, eles caminharam cautelosamente por cima dos restos do Bentley, os pés esmagando o vidro partido na estrada. Sulcos profundos haviam sido marcados na margem de grama, e sentia-se o cheiro forte de gasolina, misturado ao de borracha queimada. O metal quente do carro estalava e partia baixinho. O vapor ainda jorrava do radiador espatifado.
Bond estava caído de bruços no fundo do barranco, a uns seis metros de distância do carro. Krebs virou-o. O rosto estava coberto de sangue, mas ele respirava. Revistaram-no completamente, e Drax meteu no bolso a fina Beretta. Depois, juntos, arrastaram-no até a estrada, jogando-o, em seguida, no assento traseiro do Mercedes, com a metade do corpo em cima do de Gala.
Quando ela percebeu quem era, deu um grito de horror.
— Halt’s Maul — rosnou Drax. Foi para o assento da frente e, enquanto ligava o motor, Krebs inclinou-se e se ocupou com um longo pedaço de arame flexível.
— Faça o negócio direito — disse Drax. — Não quero que haja erros. — Refletiu melhor. — Volte depois para junto dos destroços e retire as placas. Depressa. Eu tomo conta da estrada.
Krebs puxou o tapete para cima dos dois corpos inertes e pulou fora do carro. Usando a faca como chave de parafuso, dentro em breve estava de volta com as placas, e o enorme carro começou a se movimentar no momento exato em que um grupo de habitantes do local apareceu caminhando nervosamente pela descida da montanha, focalizando as lanternas sobre a cena de devastação.
Krebs riu feliz consigo mesmo à ideia de que os estúpidos ingleses teriam de limpar e pôr tudo aquilo em ordem. Acomodou-se no assento, a fim de apreciar o trecho do caminho que sempre fora seu predileto: os bosques primaveris, cheios de florzinhas azuis e rosa, que iam até Chilham.
Eles tinham-no tornado particularmente feliz à noite. Iluminados por entre as tochas verdes das árvores novas pelos grandes faróis do Mercedes, tinham-no feito pensar nas lindas florestas de Ardennes, no grupo dedicado onde servira e na viagem que fizera num jipe capturado aos americanos, tal como naquela noite, ao lado de seu adorado líder, que ia ao volante. Der Tag custara a chegar, mas agora ali estava. Com o jovem Krebs no caminhão. Finalmente veria as multidões dando vivas, as medalhas, as mulheres, as flores. Lançou um olhar aos exércitos de flores azuis que passavam voando e sentiu-se feliz e confortado.
Gala sentia na boca o gosto do sangue de Bond. O rosto dele estava ao lado do dela, no assento de couro, e ela se mexeu para lhe dar mais lugar. A respiração do rapaz era pesada e irregular. Ela perguntava a si mesma quanto estaria ferido. Experimentou sussurrar-lhe ao ouvido. Depois falou mais alto. Ele deu um grunhido e acelerou a respiração.
— James — cochichou. — James.
Bond resmungou qualquer coisa, e ela encostou-se com força contra ele. Depois, soltou uma série de palavrões, e seu corpo se mexeu.
Tornou a ficar imóvel, e ela quase pôde senti-lo explorando as próprias sensações.
— Sou eu, Gala.
Ela sentiu o corpo dele enrijecer.
— Deus do céu. Que diabo de confusão — falou Bond.
— Você está bem? Tem algum osso quebrado?
Sentiu que ele experimentava os braços e as pernas.
— Parece que está tudo bem. Uma brecha na cabeça. Estou falando coisas que fazem sentido?
— Claro que sim — respondeu Gala. — Agora ouça.
Rapidamente, contou-lhe tudo que sabia, começando pelo caderninho de notas preto.
O corpo dele estava rígido como uma tábua contra o dela, e ele mal respirava, ouvindo a história inacreditável.
Logo depois corriam para Canterbury, e Bond colocou a boca em seu ouvido.
— Vou tentar jogar-me por trás — sussurrou. — Ver se arranjo um telefone. É a única esperança.
Começou a se erguer sobre os joelhos, o peso de seu corpo quase sufocando a respiração da moça.
Ouviu-se uma forte pancada, e ele tornou a cair em cima dela.
— Outro movimento que você faça e estará morto — disse a voz de Krebs, vindo baixinho por entre os assentos da frente.
Faltavam só vinte minutos para chegar à base! Gala rangeu os dentes e tratou de reanimar Bond, que perdera os sentidos novamente.
Acabara de conseguir, quando o carro chegou à porta da cúpula de lançamento, e Krebs, com um revólver na mão, já ia desfazendo os nós em torno dos tornozelos de ambos.
Vislumbraram o cimento familiar, iluminado pela lua, e o semicírculo de guardas a uma certa distância, antes de serem empurrados pela porta. Depois, quando Krebs lhes arrancou os sapatos, seguiram pela passagem estreita, de ferro, dentro da cúpula de lançamento.
Ali estava o cintilante foguete, lindo, inocente, qual um novo brinquedo para ciclopes.
Mas havia um cheiro horrível de produtos químicos no ar, e para Bond, o “Explorador da Lua” parecia uma gigantesca agulha hipodérmica pronta para ser enterrada no coração da Inglaterra. Apesar de um resmungo de Krebs, ele parou na escada e levantou os olhos para seu nariz faiscante. Um milhão de mortes. Um milhão. Um milhão. Um milhão.
E tudo dependia dele? Pelo amor de Deus! Tudo dependia dele?
Com o revólver de Krebs cutucando-o, desceu lentamente os degraus, atrás de Gala.
Quando entrou pela porta do escritório de Drax, controlou-se. De repente, seu espírito tornou-se claro, e toda a letargia e a dor haviam-lhe deixado o corpo. Alguma coisa, qualquer coisa, precisava ser feita. De um jeito ou de outro, ele havia de descobrir um meio. O corpo inteiro e a mente tornaram-se-lhe concentrados e agudos como uma lâmina. Seus olhos ganharam vida, novamente, e a derrota abandonou-o, como a pele de uma serpente.
Drax seguira na frente e se sentara à escrivaninha. Trazia uma Luger na mão. Este apontava um lugar entre Gala e Bond e era firme como uma rocha.
Por trás dele, Bond escutou as portas duplas se fecharem, batendo.
— Eu era um dos melhores atiradores na Divisão Branderburg — disse Drax, entabulando conversa.
— Amarre a moça nessa cadeira, Krebs. Depois o homem .
Gala olhou desesperadamente para Bond. Este disse:
— Você não vai atirar. Teria receio de atingir o combustível.
Encaminhou-se lentamente para a escrivaninha. Drax sorriu alegremente e, seguindo a trajetória do cano do revólver, mirou o estômago de Bond.
— Sua memória é ruim, inglês. Eu lhe disse que esta sala é inteiramente separada da cúpula por meio das portas duplas. Dê mais um passo e ficará sem estômago.
Bond olhou os olhos apertados e confiantes do outro e parou.
— Vamos, Krebs.
Quando os dois ficaram bem amarrados, e dolorosamente, às pernas e braços das duas cadeiras de aço tubular, pouco distante um do outro, por baixo do mapa de vidro, Krebs saiu da sala. Voltou um momento depois com uma espécie de maçarico mecânico.
Colocou a feia máquina sobre a escrivaninha, introduziu o ar com algumas breves bombadas e riscou um fósforo. Uma chama azul sibilou, elevando-se a alguns centímetros. Ele pegou o instrumento e acercou-se de Gala. Parou a pouca distância da moça.
Drax ordenou, severo:
— Vejamos agora. Vamos tratar desse caso, sem criar complicações. Nós costumávamos chamá-lo Der Zwagsman — O Persuasor. Nunca me esquecerei de como lidou com o último espião que pegamos juntos. Bem ao sul do Reno, não foi, Krebs?
Bond era todo ouvidos.
— Foi sim, mein Kapitän. — Krebs riu, recordando-se. — Era um porco de um belga.
— Pois bem. Vocês dois aí não se esqueçam. Aqui não temos esse negócio de fair play. Nada de atitudes esportivas e toda essa história. Isto aqui é negócio.
A voz estalava como um chicote, a cada palavra.
— Você — lançava um olhar a Gala Brand — para quem está trabalhando?
Gala se conservou em silêncio.
— Onde você quiser, Krebs.
A boca de Krebs estava entreaberta. Sua língua percorria o lábio, para cima e para baixo. Parecia ter dificuldade em respirar, quando deu um passo em direção à moça.
A pequenina chama roncava gulosamente.
— Pare — disse Bond, frio. — Ela trabalha para a Scotland Yard. E eu também.
Essias coisas agora não tinham mais propósito. Não podia ser de nenhuma utilidade imaginável para Drax. De qualquer maneira, amanhã de tarde, talvez não existisse mais nenhuma Scotland Yard.
— Assim está melhor — disse Drax. — Agora responda: Alguém sabe que vocês estão prisioneiros? Vocês pararam para telefonar a alguém?
Se eu disser que sim, pensou Bond, ele atirará em nós dois e se livrará dos corpos. Dessa forma, a última chance de impedir o lançamento do “Explorador da Lua” terá desaparecido. E se a Yard sabe, por que ainda não chegaram aqui? Não. Nossa oportunidade ainda pode vir. O Bentley será encontrado. Vallance ficará preocupado quando não tiver notícias minhas.
Não — respondeu. — Se eu tivesse telefonado, eles já estariam por aqui a esta hora.
— Isto é verdade — disse Drax, refletindo.
— Neste caso, não estou mais interessado em vocês e felicito-os por terem tornado a entrevista tão harmoniosa. Poderia ter sido mais difícil, se você estivesse sozinho. Uma moça é sempre útil nessas ocasiões. Krebs largue isso. Pode ir. Diga aos outros o que é necessário. Eles devem estar fazendo conjeturas. Eu vou entreter nossos hóspedes durante algum tempo e depois subirei até a casamata. Providencie para que o carro seja bem lavado. O assento de trás. E faça desaparecer as marcas no lado direito. Diga para tirarem o painel inteiro, se fôr necessário. Ou então podem tocar fogo na maldita coisa. Nós não vamos mais precisar dela. — Riu abruptamente. — Verstanden?
— Sim, mein Kapitän...
Krebs, colocou com relutância o maçarico, que roncava de leve, na escrivaninha ao lado de Drax.
— Para o caso de lhe ser necessário — disse, olhando esperançoso para Gala e Bond. Saiu depois pelas portas duplas.
Drax pôs a Luger também na escrivaninha em frente a ele. Abriu uma gaveta, tirou um charuto e acendeu-o com um isqueiro Ronson. Depois, acomodou-se confortàvelmente. O silêncio reinou na sala durante vários minutos, enquanto Drax puxava fumaçadas do charuto, todo satisfeito. Em seguida, pareceu tomar uma resolução. Fitou Bond com benevolência.
— Você nem sabe quanto eu desejei um auditório inglês — declarou como se estivesse dando uma entrevista à imprensa. — Você nem sabe como estava ansioso por contar minha história. Aliás, um relatório completo de minhas atividades encontra-se em poder de um escritório muito respeitável de advogados de Edinburgo. — Tabeliães, aliás. Bem salvo de qualquer perigo.
Drax sorriu abertamente para um e para outro:
— Essa boa gente recebeu instruções para abrir o envelope no final do primeiro voo bem sucedido do “Explorador da Lua”. Mas vocês, seus felizardos, terão uma, antecipação do que eu escrevi e então, quando amanhã às doze horas, virem através destas portas abertas — fez um gesto para a direita — o primeiro vapor saindo das turbinas e souberem que devem ser queimados vivos dentro de meio segundo, terão a satisfação momentânea de saber com quantos paus se faz uma canoa.
— Você poderá nos dispensar as piadas — interrompeu Bond, com aspereza. — Continue com sua história, Kraut.
Os olhos de Drax fuzilaram momentaneamente.
— Um Kraut. Sim eu sou realmente um Reichsdeutscher — a boca, por baixo do bigode vermelho, saboreava a linda palavra — e até a própria Inglaterra terá de concordar, dentro em breve, que foram liquidados por um único alemão. E então talvez parem de nos chamar de Krauts — POR ORDEM! — As palavras foram gritadas, e todo militarismo prussiano entrou em desfile lá embaixo.
Drax exultou do outro lado da escrivaninha, olhando Bond, os dentes grandes, espalhados e salientes sob o bigode vermelho, roendo nervosamente uma unha, depois da outra. Em seguida, enfiou com esforço a mão direita no bolso da calça, como para colocá-la a salvo da tentação, e pegou o charuto com a esquerda. Puxou umas tragadas durante alguns instantes e, depois, com a voz ainda tensa, começou.
CAPITULO 22
A CAIXA DE PANDORA
Meu verdadeiro nome — disse Drax dirigindo-se a Bond — é Graf Hugo von der Drache. Minha mãe era inglesa, e por causa dela fui educado na Inglaterra até a idade de doze anos. Depois, não pude mais suportar este país imundo e completei minha educação em Berlim e Leipzig.
Bond calculava facilmente que aquele brutamontes com cara de bicho-papão e dentes de bruxo não havia sido muito bem recebido numa escola particular inglesa. O fato de ser um conde estrangeiro com um mundo de nomes não teria ajudado muito.
Os olhos de Drax brilharam, cheios de reminiscências: — Quando fiz vinte anos, comecei a trabalhar no ramo de negócio da família. Era uma filial do grande truste de aço Rheinmetal Bórsig. Nunca ouviu falar dele, suponho. Pois bem, se foi ferido por uma bomba de 88mm. durante a guerra, provavelmente foi uma das de lá. Nossas filiais eram peritas em aços especiais, e eu aprendi a respeito deles, e muita coisa sobre a indústria aviatória. Nossos melhores fregueses. Foi quando ouvi, pela primeira vez, falar em columbita. Valendo o que valem os brilhantes naqueles dias. Liguei-me à firma, e quase imediatamente depois disso arrebentou a guerra. Uma época maravilhosa. Eu tinha vinte e oito anos e era tenente da 140a do Regimento Panzer. Nós investimos contra o Exército britânico, na França, e o atravessamos como uma faca por dentro da manteiga. Simplesmente embriagador.
Durante alguns instantes, Drax sugou o charuto, e Bond calculou que ele estava vendo as aldeias incendiadas da Bélgica através da fumaça.
— Aqueles dias eram formidáveis, meu caro Bond. — Drax esticou um braço comprido e bateu a cinza do charuto para o chão. — Mas aí fui escolhido para a Divisão Brandenburg e tive de deixar as pequenas e o champanha para voltar à Alemanha e começar o adestramento, a fim de executar o vasto pulo na água para a Inglaterra. Precisavam de meu in-glês na Divisão. Todos nós devíamos trajar uniformes ingleses. Teria sido engraçado, porém os malditos generais disseram que não podia ser, e eu fui transferido para o Serviço Secreto Estrangeiro do SS. O RSHA, era como se chamava. SS Obergruppenfuhrer Kaltenbrunner acabava de assumir o comando depois que Heydrich foi assassinado em 42. Ele era um bom homem, e eu estava sob as ordens diretas de um ainda melhor, Obersturmbannfuhrer — Drax enrolava na boca o título delicioso com prazer. — Otto Skorzeny. Sua tarefa na RSHA era o terrorismo e a sabotagem. Um agradável interlúdio, meu caro Bond, durante o qual eu pude registrar o nome de muitos ingleses, coisa que me deu muito prazer. Mas então — o punho de Drax esmagou a escrivaninha — Hitler foi novamente traído por aqueles miseráveis generais, e os ingleses e norte-americanos tiveram oportunidade de desembarcar na França.
— Foi uma pena — disse Bond, friamente.
— Sim, meu caro Bond, foi de fato uma pena. — Drax preferiu ignorar a ironia. — Mas para mim foi o ponto alto da guerra. Skorzeny transformou todos os seus sabotadores e terroristas em SS Jagdverbände, para usá-los na retaguarda das linhas inimigas. Cada Jagdverbände era dividida em Streifkorps, e depois em Kommandos, cada um deles levando os nomes de seus oficiais-comandantes. Com o posto de Oberleutnant — Drax encheu-se visivelmente de empáfia — à testa do Kommando “Drache”, eu penetrei diretamente nas linhas americianas com a famosa Brigada Panzer 150a na penetração de Ardennes, em dezembro de 44. Você se lembra, sem dúvida, do efeito causado por esta brigada em seus uniformes americanos e nos tanques e veículos americanos capturados. Kolossal! Quando a Brigada teve de se retirar, eu fiquei onde estiava e fui estabelecer-me nas Florestas de Ardennes, cinquenta milhas à retaguarda das linhas aliadas. Havia vinte rapazes, dez homens bons e dez Hitlerjugend Lobishomens. Todos com menos de vinte anos, mas todos bons rapazes. Por coincidência, o chefe deles era um jovem chamado Krebs, que demonstrou possuir determinados dons que o qualificaram para o pôsto de executor e “persuasor” de nosso alegre pequeno bando. Drax deu uma risadinha gostosa.
Bond lambeu os lábios, ao lembrar-se da brecha que Krebs fizera na cabeça batendo de encontro à cômoda. Ter-lhe-ia dado o pontapé com tanta força quanto lhe era possível dar? Sim, sua memória o tranquilizava, com cada grama de força que ele podia pôr no sapato.
— Ficamos naqueles bosques durante seis meses — continuou Drax, orgulhoso — e durante todo esse tempo dávamos notícias nossas à nossa Pátria por meio do rádio. Os caminhões de busca nunca deram conosco. E então aconteceu um desastre. — Drax sacudiu ia cabeça àquela lembrança. — Existia uma grande fazenda a uma milha de distância de nosso esconderijo na floresta. Uma porção de cabanas haviam sido construídas em torno dela, e eram usadas como quartel-general de retaguarda para um grupo de ligação. Ingleses e norte-americanos. Um lugar incrível. Sem disciplina, sem segurança, cheio de vadios e desertores vindos de todos os lugares da vizinhança. Nós vínhamos observando o grupo há muito tempo, e um dia eu resolvi fazer tudo aquilo voar pelos ares. O plano era simples. À noite, dois dos meus homens, um vestido num uniforme americano, e outro de uniforme britânico, deviam dirigir-se para lá num carro-patrulha capturado, contendo duas toneladas de explosivos. Havia um ponto de estacionamento para os carros — nenhuma sentinela, naturalmente — próximo à sala de refeitório, e eles deviam trazer o carro tão perto dela quanto possível, regular a explosão para a hora do jantar, às sete, e depois se afastarem. Tudo muito fácil, de modo que eu saí naquela manhã para tratar de negócios e deixei a missão para ser cumprida por meu segundo em comando. Eu estava vestido com o uniforme de Corpo de Sinaleiros britânicos, e parti numa motocicleta inglesa capturada por nós para enviar um despacho da mesma unidade que fazia o percurso diário num caminho ali perto. Está claro que ele veio pontualmente na hora, de modo que eu lhe segui atrás, saindo de um caminho lateral. Emparelhei com ele ei dei-lhe um tiro nas costas, tomei-lhe os documentos e, depois de colocá-lo em cima de sua própria motocicleta, levei-o para os bosques e toquei-lhe fogo.
Drax viu a fúria nos olhos de Bond e levantou a mão.
— Não foi muito esportivo? Meu caro, o homem já estava morto. Entretanto, prossigamos. Fui seguindo meu caminho, e então o que haveria de acontecer? Um dos aviões de vocês, voltando de um voo de reconhecimento, veio atrás de mim pela estrada com uma metralhadora. Um de seus próprios aviões! Jogou-me para longe da estrada. Só Deus sabe quanto tempo fiquei ali, caído no fosso. Em certo momento, durante a tarde, voltei a mim a tive o bom senso de esconder o boné e o dólmã com os despachos. Na cerca. Provavelmente ainda estão lá. Preciso ir buscá-los um dia. Lembranças interessantes. Depois toquei fogo nos restos da motocicleta e devo ter desmaiado novamente, porque quando tornei a dar por mim, tinha sido recolhido por um veículo britânico e estávamos seguindo para o maldito quartel-general de ligação! Acredite-se ou não! Lá estava o carro-patrulha, bem ao lado da sala do rancho! Era demais para mim. Eu estava cheio de estilhaços de bomba e minha perna estava quebrada. Pois bem, desmaiei, e quando voltei a mim, vi que metade do hospital se debruçava sobre mim, e eu só tinha a metade da cara.
Drax levantou a mão e alisou a pele lustrosa da têmpora e da face esquerda:
— Depois disso, tudo se resumiu numa questão de representar um papel. Eles não tinham ideia de quem eu era. O carro que me apanhara havia sido reduzido a simples fragmentos. Eu era apenas um inglês, vestido numa camisa e calças inglesas que quase morrera.
Drax fez uma pausa, tirou outro charuto e acendeu-o. Na sala reinou o silêncio, quebrado apenas pelo roncar atenuado do maçarico. Sua voz ameaçadora tornara-se mais baixa. A pressão está cedendo, pensou Bond.
Virou a cabeça e olhou Gala. Pela primeira vez, viu a lesão feia atrás de sua orelha esquerda. Endereçou-lhe um sorriso de encorajamento, e ela retorceu os lábios num sorriso de resposta.
Drax falava por dentro da fumaça do charuto:
— Não há muito mais coisa para contar. Durante o ano em que eu passei sendo enviado de um para outro hospital, elaborei meus planos sem omitir os mínimos detalhes. Consistiam muito simplesmente em vingar-me da Inglaterra pelo que me tinha feito e ao meu país. Confesso que, pouco a pouco, foi-se tornando uma obsessão. Cada dia que se passava no ano em que a destruição e a rapina campearam em meu país, meu ódio e desprezo pelos ingleses iam-se tornando cada vez mais amargos.
As veias do rosto de Drax começaram a inchar e, de repente, ele se pôs a desferir socos na mesa e a gritar para seus prisioneiros, fitando com olhos esbugalhados ora um, ora outro:
— Abomino e desprezo vocês todos. Seus porcos! Idiotas inúteis, ociosos, decadentes, escondendo-se por trás de seus malditos penhascos brancos, enquanto os outros povos travam batalhas por vocês. Fracos demais para defenderem suas colônias, bajulando a América com os chapéus nas mãos. Esnobes malcheirosos, que são capazes de fazer qualquer coisa por dinheiro. Ah! — Drax estava triunfante. — Eu sabia que precisava apenas de dinheiro e a aparência de um gentleman. Um gentleman! Pfui Teufel! Para mim um gentleman é apenas alguém de quem eu posso tirar vantagem. Aqueles malditos imbecis no Blades, por exemplo. Cretinos endinheirados. Durante meses a fio tirei milhares de libras deles, tapeei-os bem debaixo de seus narizes, até que você apareceu e estragou o brinquedo.
Os olhos de Drax se apertaram.
— Como foi que descobriu o truque da cigarreira — perguntou incisivo.
Bond deu de ombros.
— Com os olhos — respondeu indiferente.
— Ah, bem. Talvez eu estivesse um tanto descuidado naquela noite. Mas onde é mesmo que eu estava? Ah, sim, no hospital. Os bons médicos mostravam-se tão ansiosos por me ajudarem a descobrir quem eu era realmente. — Soltou uma gargalhada. — Foi fácil. Muito fácil. Dentre as identidades que eles me ofereciam com tanta boa vontade, topei com o nome de Hugo Drax. Que coincidência! De Drache para Drax! Como quem hesita, pensei que podia ser eu. Eles sentiram-se muito orgulhosos. Sim, afirmaram, naturalmente que é você. Triunfalmente, fizeram-me entrar-lhe na pele. Saí do hospital dentro dela, começando a rodar por Londres à cata de alguém para matar e roubar. Até que um dia, num pequeno escritório acima de Piccadilly, encontrei um agiota judeu. (Drax agora falava muito depressa. As palavras jorravam-lhe excitadamente dos lábios. Bond reparou num aglomerado de espuma que se formava num canto de sua boca e crescia.) — Ah, foi fácil. Uma bordoada em seu crânio nu. Quinze mil libras no cofre. Então tratei de me afastar do País. Fui para Tânger — onde se podia fazer qualquer coisa, comprar qualquer coisa, arranjar qualquer coisa que se desejasse. Columbita. Mais rara que a platina, e todos prontos a adquiri-la. A Era do Jato. Eu conhecia essas coisas. Não me havia esquecido de minha profissão. Então, por Deus, lhe digo que trabalhei. Durante cinco anos vivi para o dinheiro. Fui valente como um leão. Corri riscos tremendos. E eis que, de repente, o primeiro milhão me chega às mãos. Depois o segundo. Em seguida o quinto. Depois o vigésimo. Voltei para a Inglaterra. Gastei um milhão aqui, e Londres estava no papo. Depois voltei à Alemanha. Encontrei Krebs. Encontrei cinquenta deles. Alemães leais. Técnicos brilhantes. Todos vivendo sob nomes falsos, como tantos outros de meus antigos camaradas. Dei-lhes minhas ordens, e eles esperaram, pacificamente, inocentemente. E onde estava eu?
Drax fitou Bond, com os olhos arregalados:
— Eu estava em Moscou! Moscou! Um homem que tem columbita para vender pode ir a qualquer lugar. Encontrei as pessoas indicadas para meu caso. Ouviram meus planos. Deram-me Walter, o novo gênio de seus mísseis teleguiados da estação de Peenemunde, e os bons dos russos começaram a construir a cápsula dos instrumentos e explosivos, a cápsula atômica — apontou para o teto — que está agora nos esperando ali. Então tornei a regressar para Londres. — Fez uma pausa. — A Coroação. Minha carta para o Palácio. Triunfo. Hurras para Drax. — O homem estourou numa gargalhada. — A Inglaterra estava aos meus pés. Todos os malditos cretinos do país! Foi quando meus homens chegaram, e nós começamos. Bem juntos das saias da Grã-Bretanha. No alto de seus famosos penhascos. Trabalhamos como loucos. Construímos um cais no seu Canal inglês. Para receber fornecimentos! Suprimentos vindos de meus bons amigos os russos, que chegaram na hora exata, segunda-feira à noite. Mas foi aí que Tallon teve de ouvir alguma coisa. O velho imbecil. Falou com o Ministério. Mas Krebs estava ouvindo. Apareceram cinquenta voluntários para matar o homem. Tiramos a sorte, e Bartsch morreu como um herói. — Drax fez nova pausa. Depois continuou. — A nova cápsula foi içada para o lugar. Deu certo. Uma perfeita peça de encomenda. O mesmo peso. Tudo perfeito, como a antiga, a caneca de folha, cheia dos queridos instrumentos do Ministério, está agora em Stettin — atrás da Cortina de Ferro. O fiel submarino está de viagem de volta para aqui, e dentro em breve — olhou o relógio — estará navegando sob as águas do Canal inglês para nos levar a todos para longe, quando passar um minuto de meio-dia amanhã.
Drax limpou a boca com as costas da mão e recostou-se de novo na cadeira fitando o teto, os olhos povoados de visões. De repente, riu e olhou interrogativamente para Bond, passando o olhar pelo próprio nariz:
— Quer saber qual será a primeira coisa que nós faremos quando estivermos a bordo? Rasparemos esses famosos bigodes nos quais você estava tão interessado. Você cheirou um camundongo, meu caro Bond, onde devia ter cheirado um rato. Aquelas cabeças raspadas e aqueles bigodes: que nós cultivávamos tão assiduamente. Apenas uma precaução, meu caro. Experimente raspar a própria dabeça e deixar crescer um bigodão preto. Nem mesmo sua mãe o reconheceria. É a combinação das duas coisas que produz o efeito. Apenas um mínimo refinamento. Precisão, meu caro. Precisão, em cada detalhe. Foi esta a minha palavra de passe. — Drax deu uma risadinha sem graça e puxou uma boa fumarada do charuto. Súbito, olhou incisivamente, desconfiado, para Bond. — Então? Diga alguma coisa. Não fique aí sentado como uma múmia. Que pensa de minha história? Não acha que é extraordinária? Notável? Um homem ter feito tudo isto? Vamos, vamos, fale.
Uma das mãos foi levada até a boca, e Drax começou a roer as unhas furiosamente. Mas, em seguida, meteu-a no bolso, e seus olhos tornaram-se frios e cruéis.
— Ou quer que mande buscar Krebs — fez um gesto para o telefone em cima da escrivaninha. — O Persuasor. Pobre Krebs! É como uma criança a quem tivessem arrebatado os brinquedos. Ou talvez Walter. Eles lhes dariam uma lembrança para toda a vida. Esse aí não tem um pingo de moleza. Então?
Bond começou a falar, olhando a caraça vermelha, do outro lado da escrivaninha:
— Não resta dúvida, é um caso notável. Paranoia galopante. Ilusões de ciúme e perseguição. Ódio megalomaníaco e desejo de vingança. Fato bastante curioso — continuou dizendo, em tom de conversação — poderá ter alguma relação com seus dentes. Diastema, é como chamam isto. Acontece quando a criança chupa o dedo na infância. Sim. Tenho a impressão de que será isto o que dirão os psicólogos, assim que lhe puserem no hospício. “Dentes de bicho-papão.” Foi atormentado na escola etc. É extraordinário o efeito produzido numa criança. Então o nazismo ajudou a soprar as flamas, e ainda aconteceu você levar aquela pancada feia na sua feia cabeça. A pancada que você mesmo engendrou. Acho que foi o que estava faltando. Dali por diante, você passou a ser realmente louco. Do mesmo gênero desses que acreditam serem Deus. É extraordinário observar como são tenazes. Completamente fanáticos. Você é quase um gênio. Lombroso teria ficado encantado com você. No ponto em que estão as coisas, você não passa de um cão danado que precisa ser morto. Ou então você se suicida. Os paranoicos geralmente se matam. É uma pena. Coisa triste, mesmo.
Bond fez uma pausa e pôs todo o desprezo que pôde acumular na voz:
— E agora, continuemos com esta farsa, vamos, seu lunático cabeludo.
Deu resultado. A cada palavra de Bond, a cara de Drax ia se contorcendo de raiva cadia vez maior, os olhos estavam vermelhos de cólera, o suor da fúria pingava de suas mandíbulas para a camisa, os lábios se afastariam dos dentes irregulares, e um fio de saliva saíra-lhe da boca e lhe escorria pelo queixo. Agora, com o último insulto sobre a escola particular, que devia ter-lhe despertado sabe Deus que espécie de lembranças dolorosas, ele pulou da cadeira, rodeou a escrivaninha, investiu contra Bond, os punhos cabeludos martelando. Bond rangeu os dentes e aguentou.
Quando Drax teve de pegar a cadeira do chão pela segunda vez, com Bond em cima dela, a tempestade de raiva passou subitamente. Tirou do bolso o lenço de seda e limpou o rosto e as mãos. Depois, encaminhou-se calmamente para a porta e falou, olhando por cima da cabeça pendente de Bond e dirigindo-se à pequena.
— Não creio que vocês dois me deem mais trabalho — declarou com a voz perfeitamente calma e segura. — Krebs nunca comete enganos com seus nós.
Gesticulou em direção à figura ensanguentada da outra cadeira:
— Quando ele acordar, pode dizer-lhe que estas portas ainda se abrirão mais uma vez, pouco antes do meio-dia de amanhã. Alguns minutos mais tarde, não sobrará nada de nenhum de vocês dois. Nem mesmo — acrescentou, ao escancarar a porta de dentro — as obturações de seus dentes.
A porta externa bateu.
Bond levantou lentamente a cabeça e sorriu dolorosamente para sua companheira com os lábios manchados de sangue. Explicou com dificuldade:
— Tive de deixá-lo louco. Não quis que ele tivesse tempo para pensar. Tive de provocar aquela tempestade cerebral.
Gala olhava-o sem compreender, os olhos arregalados para a máscara terrível de seu rosto.
— Está tudo bem. Não se preocupe. Londres está O.K. Tenho um plano.
Sobre a escrivaninha, o maçarico fez um “pleft” baixinho e apagou.
CAPÍTULO 23
MENOS ZERO
Por entre os olhos entreabertos, Bond fitou demoradamente o maçarico, enquanto por alguns preciosos segundos permanecia sentado e deixava a vida voltar-lhe lentamente ao corpo. Tinha a impressão de que sua cabeça fora usada como bola de futebol, mas não tinha nada quebrado. Drax batera-lhe sem nenhuma ciência e com a confusão de golpes de um homem embriagado.
Gala observava-o ansiosamente. Os olhos, no rosto sanguinolento, estavam quase fechados, mas a linha do queixo aparecia tensa de concentração, e ela percebia o esforço de vontade que ele fazia.
Bond sacudiu a cabeça, e quando se voltou para ela, Gala viu que seus olhos estavam febris pelo triunfo.
Fez um gesto na direção do isqueiro.
— O isqueiro. Eu tive de tentar fazê-lo esquecer-se dele. Siga-me. Vou-lhe mostrar como.
Começou a balançar a leve cadeira de aço, polegada por polegada, em direção à escrivaninha:
— Pelo amor de Deus, não vá virar de pernas para cima, do contrário estará tudo perdido. Mas procure apressar-se senão o maçarico esfria.
Sem compreender, sentindo-se quase como se tomasse parte em algum fantástico brinquedo infantil, Gala, cautelosamente, foi balançando a cadeira pelo chão atrás dele.
Segundos depois, Bond lhe disse que parasse ao lado da escrivaninha, enquanto ele continuava o balanço até a cadeira de Drax. Depois, manobrou de modo a tomar posição em frente ao seu alvo e, com uma súbita guinada, suspendeu-se com a cadeira, de forma que sua cabeça ficou para baixo.
Ouviu-se um estalo, quando o isqueiro Ronson, de escrivaninha, prendeu-se-lhe nos dentes, mas seus lábios sustiveram-no, e a parte superior ficou-lhe na boca, assim que ele impulsionou a cadeira para a primeira posição, apenas com a força suficiente para impedir que saltasse fora. Em seguida, recomeçou sua paciente viagem de volta para o ponto onde Gala se encontrava sentada, no canto da escrivaninha onde Krebs deixara a lâmpada.
Bond descansou até sua respiração tornar-se novamente regular.
— Chegamos agora à parte difícil — avisou, severo. — Enquanto eu tento fazer este maçarico funcionar, você vai rodando sua cadeira, de modo que seu braço direito fique tanto quanto possível defronte de mim.
Obedientemente, a moça foi executando os movimentos, enquanto Bond balançava sua cadeira, de forma que esta se encostou a beira da escrivaninha e permitiu que sua boca alcançasse e agarrasse o cabo do maçarico entre os dentes.
Em seguida, foi trazendo o maçarico para perto e, depois de alguns minutos de trabalho paciente, conseguiu colocar o maçarico e o isqueiro como desejava, na borda da escrivaninha.
Após outro descanso, curvou-se, fechou a válvula da tocha com os dentes, e começou a fazer voltar a pressão, puxando lenta e repetidamente o pistão com os lábios e apertando-o de volta com o queixo. Sentia no rosto o calor do aquecedor e sentia o cheiro dos restos de gás no pequeno instrumento. Se ao menos não tivesse esfriado demais.
Endireitou o corpo.
— Ultima etapa, Gala — disse sorrindo quase com esforço para ela. — Talvez eu tenha de lhe machucar um pouco. Não faz mal?
— Claro que não — respondeu a moça.
— Então lá vai — disse Bond, e curvou-se para a frente, soltando a válvula de segurança à esquerda do depósito.
Depois debruçou-se rapidamente sobre o Ronson, que estava no ângulo direito e bem debaixo do tubo da tocha. Com os dois dentes incisivos apertou para baixo a trave de ignição.
Era uma manobra horrível e, apesar de ele sacudir a cabeça para trás com a rapidez de uma serpente, deixou escapar um leve gemido de dor, quando o jato de fogo azul do maçarico subiu-lhe pela face machucada e pela ponta do nariz.
Mas a parafina vaporizada sibilava sua língua vital de chama, e ele sacudiu as lágrimas dos olhos, curvando a cabeça quase até o ângulo direito e novamente prendeu a haste do maçarico nos dentes.
Teve a impressão de que seu queixo se partiria com o peso da coisa, e os nervos dos dentes da frente reclamaram, mas ele balançou a cadeira cautelosamente até colocá-la em posição vertical, afastada da escrivaninha, e então forçou o pescoço a curvar-se para a frente, até que a ponta da chama azul da tocha mordeu o ponto que ligava o pulso direito de Gala ao braço da cadeira.
Bond tentou desesperadamente conservar a chama firme, contudo a respiração da moça raspou-lhe entre os dentes, angustiada, quando o cabo se movia entre suas mandíbulas, e o maçarico queimou-lhe o antebraço.
Então tudo acabou. Derretido pelo forte calor, as tiras de cobre foram-se partindo uma por uma e, de repente, o braço direito de Gala ficou livre, e ela o estendeu para tomar o maçarico da boca de Bond.
A cabeça do rapaz caiu novamente para trás, entre os ombros, e ele torceu-a para todos os lados, a fim de conseguir fazer o sangue circular pelos músculos doloridos.
Antes mesmo que ele se desse conta, Gala já se inclinava sobre seus braços e pernas, e ele também estava livre.
Ao sentar-se imóvel por um momento, os olhos fechados, esperando que a vida lhe voltasse ao corpo, sentiu de repente, encantado, os lábios macios de Gala sobre os seus.
Abriu os olhos. Ela estava de pé, diante dele, os olhos brilhando.
— Isto é pelo que você fez — falou, muito séria.
— Você é uma garota maravilhosa — disse Bond. Depois, porém, sabendo o que ia fazer, sabendo que era bem concebível que ela sobrevivesse, mas que ele só tinha mais alguns minutos de vida, fechou os olhos para que ela não visse a desesperança neles.
Gala observou-lhe a expressão do rosto e virou de costas. Pensou que fosse apenas exaustão e o efeito do que seu corpo tinha sofrido. Lembrou-se aí, de repente, da água oxigenada no banheiro pegado ao seu escritório.
Passou pela porta de comunicação. Como era extraordinário ver suas coisas familiares novamente. Devia ser outra pessoa que se sentara naquela escrivaninha e batera na máquina a correspondência, outra moça a que ali empoara o nariz. Sacudiu os ombros e foi para o toalete. Meu Deus, que cara, e só Deus sabe como se sentia cansada! Mas primeiro pegou uma toalha molhada, um pouco de água oxigenada, e voltou. Durante dez minutos tratou do campo de batalha que era a cara de Bond.
Este permanecia sentado em silêncio, uma das mãos descansando na cintura dela e observando-a agradecido. Depois, quando ela voltou para o escritório e fechou a porta do banheiro após entrar, ele se levantou, apagou o maçarico que ainda silvava, e encaminhou-se para o chuveiro de Drax, tirou a roupa e permaneceu durante cinco minutos debaixo da água gelada. “Preparando o corpo”, pensou melancòlicamente, ao examinar o rosto maltratado no espelho.
Vestiu as roupas e voltou para a escrivaninha de Drax, que revistou metòdicamente. Esta lhe proporcionou apenas um prêmio, a “garrafa do escritório”, cheia até a metade de Haig and Haig. Foi buscar dois copos, um pouco de água e chamou Gala.
Ouviu-a abrir a porta do banheiro.
— O que é? — Uísque.
— Vá tomando o seu. Estarei pronta daqui a um minuto.
Bond olhou a garrafa, serviu três quartos de um copo de escovas de dentes e tomou-o de uma vez, em dois goles. Em seguida, acendeu meio trêmulo um abençoado cigarro e sentou-se na borda da escrivaninha, sentindo o álcool queimá-lo no estômago, descendo-lhe até as pernas.
Pegou a garrafa novamente e olhou-a. Ainda havia muito para Gala e um copo inteiro para ele, antes de sair por aquela porta. Era melhor que nada. Não seria tão difícil com aquilo dentro de si, contanto que saísse em passos rápidos o fechasse a porta depois. Nada de olhar para trás.
Gala entrou, uma Gala transformada, parecendo tão bela quanto na noite em que a vira pela primeira vez, exceto as linhas de exaustão sob os olhos, que o pó não disfarçava totalmente, e os feios vincos nos pulsos e tornozelos.
Bond deu-lhe um drinque e tomou outro. Os olhos de ambos sorriam por cima da orla dos copos.
Depois Bond se ergueu.
— Escute, Gala — começou num tom de voz bem natural . — Nós temos de enfrentar o que está por vir e terminar com a história, de modo que serei breve e depois tomaremos outra dose.
Bond ouviu quando ela prendeu a respiração, mas continuou:
— Dentro de dez minutos, mais ou menos, eu vou fechá-la no banheiro de Drax, pôr você debaixo do chuveiro, e abri-lo completamente.
A moça gritou, aproximando-se dele:
— James. Não continue. Eu sei que você vai dizer qualquer coisa horrível. Pare, por favor, James.
— Deixe disso, Gala — disse Bond com aspereza. — Que diabo adianta tudo isto. É um milagre maldito, se é que posso dizer assim, e nós temos a oportunidade.
Afastou-se dela. Encaminhou-se então para as portas que conduziam ao foguete.
— Depois então — prosseguiu, segurando o precioso isqueiro na mão direita — eu sairei daqui, fecharei as portas e acenderei um último cigarro debaixo da cauda do “Explorador da Lua”.
Meu Deus! — sussurrou a moça. — Que é que você está dizendo? Você está louco.
Fitou-o com os olhos arregalados de horror.
— Não seja ridícula — disse Bond impaciente. — Que diabo nos resta fazer? A explosão será tão pavorosa, que ninguém sentirá nada. Deve dar resultado, com todo esse combustível em vapor circulando em redor. Trata-se de mim ou de um milhão de pessoas em Londres. A cápsula não se soltará. As bombas atômicas não explodem assim. Com certeza derreterá. Só há uma chance de você escapar. A maior parte da explosão se encaminhará para a linha de menor resistência através do telhado — e por baixo, pela cavidade exaustora, se eu conseguir fazer funcionar o maquinismo que abre o chão.
Bond sorriu.
— Ânimo — pediu, caminhando para ela e pegando-lhe uma das mãos. — O rapaz ficou de pé no tombadilho incendiado. Eu quis imitá-lo desde os cinco anos de idade.
Gala puxou a mão.
— Não me importa o que você está dizendo — declarou encolerizada. — Temos de pensar em outra coisa qualquer. Você não me acha capaz de ter nenhuma ideia. Vai só me dizendo o que pensa e o que temos de fazer.
Dirigiu-se para o mapa da parede e apertou o interruptor.
— Naturalmente, se tivermos de usar o isqueiro, usá-lo-emos. — Olhou o mapa do falso plano de voo, mal vendo o que tinha diante dos olhos. — Mas a ideia de você caminhar ali sozinho e ficar no meio daqueles horríveis vapores do combustível e calmamente acender essa coisa para depois ser reduzido a pó... Entretanto, se tivermos de agir assim, agiremos juntos. É preferível, melhor do que ser queimada até morrer aqui dentro. De qualquer maneira — fez uma pausa — eu gostaria de ir com você. Nós entramos juntos nesse negócio.
Os olhos de Bond estavam cheios de ternura, quando caminhou em direção à moça, passou-lhe um braço em volta da cintura e abraçou-a bem junto a si.
— Gala, você é um amor — disse com simplicidade. — Se houver outro meio, nós o tentaremos. Mas — olhou o relógio — já passa de meia-noite, e nós precisamos tomar uma resolução rápida. A qualquer momento pode ocorrer a Drax a ideia de mandar guardas para ver sé nós estamos em ordem, e só Deus sabe a que horas ele virá aqui acertar o giroscópio.
Gala torceu o corpo como uma gata. Fitou-o com a boca aberta, o rosto tenso de excitação. Sussurrou:
— O giroscópio, para acertar o giroscópio. Encostou-se novamente de leve contra a parede, os. olhos procurando o rosto de Bond.
— Você não compreende? — sua voz estava beirando a histeria. — Depois que ele sair, nós poderíamos alterar o giroscópio para onde estava, de acordo com o antigo plano de voo, e então o foguete cairia simplesmente no Mar do Norte, onde se julga que irá cair.
Gala afastou-se da parede e agarrou a camisa de Bond com as duas mãos, fitando-o com um olhar que implorava:
— Não poderíamos? Não poderíamos?
— Você conhece as outras direções? — perguntou Bond, ansioso.
— Claro que sim. Convivo com eles há um ano. Nós não teremos uma previsão do tempo, mas teremos de nos arriscar. A previsão desta manhã dizia que nós teríamos as mesmas condições de hoje.
— Por Deus — disse Bond. — Nós poderíamos fazer isto. Se conseguirmos esconder-nos nalgum lugar e fazer Drax imaginar que escapamos. Que tal o túnel exaustor, se eu conseguir fazer funcionar a máquina que abre o assoalho?
— São trinta e tantos metros de queda em linha reta — disse Gala, sacudindo a cabeça. — E as paredes são de aço polido. Como vidro. Além do mais, não há corda ou coisa alguma aqui. Eles tiraram tudo da oficina ontem. Sem contar com os guardas na praia.
Bond refletiu. Depois seus olhos tornaram-se brilhantes:
— Tenho uma ideia. Mas em primeiro lugar, que me diz você do radar, o radar de retorno de Londres? Ele não empurrará o foguete para fora do seu curso e de volta para Londres?
Gala sacudiu a cabeça:
— Ele só trabalha dentro de um raio de cem milhas, mais ou menos. O foguete nem sequer pegará seu sinal. Se estiver apontando para o Mar do Norte, entrará na órbita do transmissor da jangada. Não há nada de errado nos meus planos. Mas onde nos poderemos esconder?
— Num dos tubos de ventilação — respondeu Bond. — Vamos.
Lançou um último olhar à sala. O isqueiro estava em seu bolso. Aquilo seria o último recurso. Não havia mais nada que eles fossem precisar. Seguiu Gala para o cintilante cilindro e dirigiu-se ao painel de instrumentos que controlava a capa de aço da cavidade exaustora.
Após um rápido exame, moveu uma pesada barra de Zu a Auf. Ouviu-se um leve sibilo da máquina hidráulica atrás da parede, e os dois semicírculos de aço se abriram sob a cauda do foguete, deslizando depois novamente para o lugar. Bond seguiu em frente e olhou para baixo.
Os arcos no telhado lá em cima cintilavam em resposta ao seu olhar, de lá das paredes polidas do largo funil de aço, até se curvarem desaparecendo de suas vistas, em direção ao distante clamor ôco do mar.
Bond voltou ao escritório de Drax e puxou para baixo a cortina do boxe do chuveiro. Depois, Gala e ele rasgaram em tiras a cortina e ligaram umas às outras. Deu um rasgão em feitio de um V no fim da última tira para dar a impressão de que a corda da fuga tinha-se partido. Amarrou então a outra extremidade firmemente em torno da ponta aguda de uma das três barbatanas do “Explorador da Lua” e deixou cair o resto de modo que descesse pelo cilindro.
Não era lá grande coisa como falsa pista, mas podia servir para ganhar um pouco de tempo.
As bocarras redondas dos ventiladores tubulares tinham o espaço de umas dez jardas entre si e ficavam a cerca de 1.50m do chão. Bond contou. Havia cinquenta delas. Abriu cautelosamente a grade presa em gonzos que cobria uma delas e olhou para cima. A uma distância de doze metros via-se um leve brilho vindo do luar lá fora. — Chegou à conclusão de que estavam emparedados bem dentro do túnel formado pelo muro da base, até que viraram para os ângulos direitos, em direção aos gradeados das paredes exteriores.
Bond estendeu o braço e correu a mão pela superfície. Era de um concreto rústico, inacabado, e ele grunhiu de satisfação, quando sentiu primeiro uma forte protuberância, e depois outra. Eram as extremidades bifurcadas das varas de aço que reforçavam as paredes, cortadas onde os cilindros começavam.
Ia ser uma coisa dolorosa, mas não havia dúvida de que poderiam ir-se arrastando, centímetro por centímetro, por um desses cilindros, tal como alpinistas numa chaminé rocha acima e, na curva do topo, ficarem ocultos de tudo, menos da busca complicada que seria difícil de manhã com todos os oficiais de Londres em redor da base.
Bond se ajoelhou, e a moça montou-lhe às costas, depois do que começaram a subir.
Uma hora depois, com os pés e os ombros machucados e cortados, deitaram-se exaustos, apertados bem fortemente nos braços um do outro, as cabeças afastadas alguns centímetros do gradeado circular, situado diretamente acima da porta externa, e puseram-se a ouvir os guardas mexendo os pés incessantemente dentro da escuridão, cem jardas distante deles.
Cinco horas, seis, sete.
Lentamente o sol apareceu por trás da cúpula, e as gaivotas começaram a gritar nos penhascos. Então, surgiram de súbito as três figuras caminhando para eles na distância, passaram por um novo pelotão de guardas, os queixos levantados, os joelhos erguidos, vindos para render a ronda noturna.
As figuras foram-se aproximando, e os olhos apertados, exaustos, do casal oculto puderam ver todos os detalhes da cara vermelho-alaranjada de Drax, o pálido focinho de raposa do Dr. Walter, a nédia e balofa cara de sono de Krebs.
Os três homens caminhavam como se fossem executores de um fuzilamento, sem dizer nada. Drax tirou a chave, e eles, silenciosamente, entraram pela porta, alguns pés abaixo dos corpos tensos de Bond e Gala.
Depois, durante dez minutos, reinou o silêncio, quebrado apenas pelo som ocasional de vozes que subiam pelo cilindro do ventilador, quando os três homens se movimentavam pelo chão de aço em torno da cavidade exaustara. Bond sorriu consigo mesmo à ideia do ódio e da consternação que deveriam estampar-se no rosto de Drax; do infeliz Krebs, encolhendo-se sob as chicotadas da língua de Drax; a amarga acusação nos olhos de Walter. Foi então que a porta se escancarou abaixo dele, e Krebs chamou, imperioso, o chefe dos guardas.
— Die Engländer — a voz de Krebs era quase histérica. —Escaparam. O Herr Kapitän pensa que possam estar num dos tubos de ventilação. Vamos arriscar. A cúpula será aberta novamente, e nós vamos eliminar os vapores do combustível. Depois então o Herr Doktor passará a mangueira de vapor quente em cada um dos tubos. Se eles estiverem num deles, isto os liquidará. Escolha quatro homens. As luvas de borracha e as vestimentas para incêndio estão lá embaixo. Nós vamos tirar a pressão do aquecimento. Diga aos outros que prestem atenção para ver se escutam os gritos. Verstanden?
— Zu Befehl!
O homem voltou diligentemente para junto de seu grupo, e Krebs, com o suor da ansiedade no rosto, voltou-se e desapareceu novamente pela porta.
Por um momento Bond permaneceu imóvel.
Ouviram rumores pesados acima de suas cabeças, quando a cúpula se dividiu em dois e se abriu. A mangueira de vapor quente!
Bond ouvira contar de motins em navios sendo combatidos com isto. Desordens em fábricas. Será que alcançará doze metros? A pressão durará? Quantas caldeiras alimentavam o aquecimento? Entre os cinquenta tubos de ventilação, qual seria o escolhido para começarem? Teria Bond ou Gala deixado qualquer indício, com relação àquele que haviam subido?
Bond sentia que Gala esperava que ele explicasse. Que fisesse alguma coisa. Que protegesse a ambos.
Cinco homens vieram aproximando-se do semicírculo de guardas. Passaram por baixo e desapareceram.
Bond pôs a boca no ouvido de Gala.
— Isto poderá machucar — avisou. — Não posso prever quanto. Não pode ser evitado. Teremos de aguentar. Sem fazer barulho.
Sentiu logo a pressão dos braços dela, à guisa de resposta:
— Levante os joelhos. Não fique acanhada. A hora não é para pudores virginais.
— Cale a boca — sussurrou Gala, zangada. Ele sentiu um joelho subir e ficar trancado entre suas coxas. Seu próprio joelho seguiu por ali até não conseguir estender-se mais. A moça se remexia furiosamente.
— Não seja idiota — cochichou Bond, puxando-lhe a cabeça para junto do peito, até que ficou meio encoberta pela sua camisa aberta.
Bond encobriu-a tanto quanto possível. Não podiam fazer nada com relação aos tornozelos e as mãos. Levantou a gola da camisa, o mais que pôde por cima das cabeças. Apertavam-se um contra o outro.
Quentes, cheios de câimbras, sem respirar. Esperando — de repente a ideia ocorreu a Bond, como dois namorados debaixo de arbustos, ocultos. Esperando que as pisadas se afastassem, de modo a poderem principiar tudo novamente. Sorriu amargamente consigo mesmo e pôs-se à escuta.
O silêncio reinava lá embaixo, no foguete. Deviam estar na sala das máquinas. Walter devia estar assistindo à instalação da mangueira na válvula externa. Agora ouviam-se ruídos distantes. Por onde começariam?
Num ponto qualquer, não muito longe, havia um sussurro leve, bem arrancado do fundo, como o apito ineficiente de um trem distante.
Bond dobrou para trás o colarinho da camisa e arriscou um olhar por entre as grades, até os guardas. Os que conseguiu ver, olhavam em frente para a cúpula do lançamento, um pouco à sua esquerda.
Novamente o longo sussurro áspero. E mais uma vez se repetiu.
Ia ficando mais alto. Viu as cabeças dos guardas rodando para o lado das grades das paredes que ocultavam Gala e ele. Deviam estar observando, fascinados, enquanto os jatos brancos e espessos de vapor subiam pelas grades até lá em cima ha parede de cimento, conjeturando: “— Será esta, ou aquela, ou aquela outra, qual será que virá acompanhada de um duplo grito.”
Sentia o coração de Gala batendo de encontro ao seu. Ela não sabia o que estava por acontecer. Confiava nele.
— Pode machucar — sussurrou-lhe novamente. — Pode queimar. Não nos matará. Tenha coragem. Não emita um som.
— Eu estou bem — cochichou a moça, encolerizada. Mas ele percebeu que seu corpo se colava mais ao dele. Chuá! Estava chegando mais perto.
Chuá! A diferença era de dois tubos.
CHUÁ! Pegado a eles. Sentiu um leve cheiro do vapor.
— “Fique bem firme”, ordenou Bond a si mesmo. Esmagou a companheira de encontro ao próprio corpo e prendeu a respiração.
— “Agora. Depressa. Acabem com isso, desgraçados.”
E eis que, subitamente, houve uma grande pressão; o calor e um barulho infernal chegou-lhes aos ouvidos, seguidos de um instante de dor intolerável.
Depois um silêncio mortal, uma mistura de frio intenso e fogo nos tornozelos e nas mãos, uma sensação de estarem ensopados, e um esforço desesperado, sufocante, de fazer o ar puro penetrar nos pulmões.
Seus corpos lutaram automaticamente para se separarem um do outro, para conseguir alguns centímetros de espaço e ar para as áreas da pele que já começavam a cobrir-se de bolhas. A respiração rasgava-lhes as gargantas, e a água porejava do cimento para dentro de suas bocas abertas, até que ambos se curvaram para um lado e atiraram-na fora, e ela foi juntar-se ao riachinho que corria por baixo de seus corpos ensopados, descendo pelos tornozelos escaldantes e dali para as paredes verticais do tubo pelo qual haviam subido.
O uivo da mangueira a vapor afastou-se deles até se tornar um sussurro e, finalmente, cessar. Reinou então o silêncio na estreita prisão de cimento de ambos, ouvindo-se apenas suas teimosas respirações e o tique-taque do relógio de Bond.
Os dois corpos continuavam deitados e à espera, aguentando a dor.
Meia hora — meio ano — mais tarde, Walter, Krebs e Drax seguiram em fila por baixo deles.
No entanto, como medida de precaução, os guardas tinham sido deixados para trás na cúpula do lançamento.
CAPITULO 24
ZERO
Então estamos combinados?
— Sim, Sir Hugo — era o Ministro do Abastecimento quem falava. Bond reconheceu a figura espigada, segura de si. — As direções são aquelas. Meu pessoal verificou-as, independentemente, com o Ministério da Aeronáutica esta manhã.
— Neste caso, se me permite o privilégio — Drax levantou o pedacinho de papel e ia virando em direção à cúpula.
— Segure-a, Sir Hugo. Assim mesmo, por favor. O braço esticado no ar.
As lâmpadas dos flashes se acenderam, e o conjunto de câmaras zumbiu e estalou pela última vez. Drax voltou-se e andou os poucos metros que o separavam da cúpula, quase, assim pareceu a Bond, fitando-o diretamente nos olhos através do gradeado acima da porta da casamata.
A pequena turba de repórteres e fotógrafos dissolveu-se e encaminhou-se para o caminho de concreto, deixando para trás apenas um grupinho de oficiais que conversavam nervosamente, à espera de que Drax surgisse em cena.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e cinco. “Depressa, seu danado”, pensou.
Pela centésima vez repetiu para si mesmo os números qus Gala lhe ensinara durante as horas de dor e câimbras que se seguiram à provação do vapor, e pela centésima vez movimentou os membros para preservar a circulação.
— Apronte-se — cochichou no ouvido de Gala. — Está se sentindo bem?
Sentiu que a moça sorria.
— Ótimo.
Ela fechou a mente à ideia de suas pernas todas cheias de bolhas e da rápida descida, raspando-as pelo tubo de ventilação .
A porta fechou-se com um baque abaixo deles, seguindo-se o estalido da fechadura, e então, precedida por cinco guardas, a figura de Drax apareceu lá embaixo, marchando solene para o grupo de oficiais, a tira de papel com os números na mão.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e sete. — Agora — sussurrou.
— Boa sorte — respondeu Gala, também num sussurro. Escorregando, arranhando-se, rasgando-se. Seus ombros, cautelosamente, se expandiam e contraíam; os pés, cheios de bolhas, de sangue, procurando as saliências agudas do ferro; com o corpo dilacerado abrindo caminho através do tubo de um metro, rezava para que a pequena encontrasse forças para suportar tudo aquilo, quando o seguisse.
Finalmente, o pulo de três metros, que lhe repercutia na espinha, um pontapé nas grades, e ele galgava o chão de aço, corria para as escadas, deixando uma trilha de pegadas vermelhas e um borrifo de gotas de sangue caídas de seus ombros feridos.
Os arcos de luz haviam sido apagados, mas o clarão do dia penetrava pelo telhado aberto, e o azul do céu misturado ao fulgor da luz do sol davam a Bond a impressão de que estava correndo dentro de uma enorme safira.
A grande e mortal agulha no centro parecia ser feita de vidro. Olhando para cima, enquanto suava e arfava no percurso das infindáveis curvas da escada de ferro, era difícil para ele ver onde o nariz do foguete, afinando na ponta, terminava, e começava o céu.
Por trás do pesado silêncio que envolvia a bala esplendente, Bond ouvia um ruído apavorante e regular, o caminhar de minúsculos pés de metal num ponto qualquer do corpo do “Explorador da Lua”. Enchia o vasto compartimento de aço, como as batidas do coração na história de Poe, e Bond compreendeu que Drax, diretamente do ponto do tiro, apertara o interruptor que mandava a faixa radiofônica, disparando a mais de duzentas jardas até o foguete ali à espera. O tique-tique cessaria dentro em breve, ouvir-se-ia o suave gemido do catavento aceso, uma pequena porção de vapor das turbinas, e depois o rugido do jato de flama no qual o foguete se ergueria lentamente e se curvaria majestoso no início de sua gigantesca curva de aceleração.
E então, diante dele, viu o braço retorcido do guindaste dobrado novamente contra a parede, e sua mão alcançou a barra. O braço foi-se esticando para baixo e para fora em direção à linha fina e quadrada, na pele brilhante do foguete, que era a porta do compartimento do giroscópio.
Caminhando apoiado nas mãos e nos joelhos, Bond alcançou-o bem antes de as almofadas de borracha virem descansar contra o cromo polido. Encontrou o disco de descarga, do tamanho de um xelim, exatamente como Gala havia descrito. Apertar, estalar, e a pequenina porta se abria, girando no parafuso duro. Dentro. Cuidado para não ferir a cabeça. Os cabos cintilantes embaixo dos ponteiros da bússola. Virar. Torcer. Firme. Isto é para o rolamento. Agora o topo e o pior. Virar. Lento. Bem delicadamente. Mas firme. Um último olhar. Uma olhada no relógio. Quatro minutos para ir. Não fique em pânico. Volte. Estalido da porta. Uma fugida rápida de gato. Não olhe para baixo. O guindaste se ergueu. Bateu contra a parede. E agora as escadas.
Tique-tique-tique-tique.
Ao descer, Bond vislumbrou o rosto de Gala, branco, tenso, enquanto ela permanecia segurando a porta exterior aberta, a porta do escritório de Drax. Oh, Deus! Como seu corpo doía! Um último salto e uma reviravolta desajeitada para a direita. Pam! Quando bateu com força a porta de fora. Nova pancada, e ei-los atravessando a sala em direção ao chuveiro. A água jorrando sobre seus corpos pegajosos e doloridos.
Por dentro de todo aquele barulho, acima das batidas do próprio coração, Bond ouviu o súbito estalar da estática e, em seguida, a voz do locutor da BBC vinda do enorme aparelho da sala de Drax, poucos centímetros distante da parede fina do banheiro. Fora novamente Gala quem se lembrara do aparelho de rádio de Drax e que encontrara tempo para pô-lo a funcionar enquanto Bond trabalhava no giroscópio.
“... cinco minutos de atraso” — dizia a voz excitada, leve, ao microfone. — Bond fechou o chuveiro, e a voz chegou até eles mais claramente. — “Sir Hugo foi persuadido a dizer algumas palavras. Parece muito confiante. Está dizendo qualquer coisa no ouvido do Ministro. Estão ambos rindo. Gostaria de saber o que estão dizendo. Ah, eis o meu colega que chega com as últimas notícias a respeito do tempo, vindas do Ministério da Aeronáutica. Que dizem elas? Perfeito em todas as altitudes. Bom espetáculo. Não há dúvida de que temos um dia maravilhoso aqui, Ah! A multidão reunida à distância, perto da estação de guardas-costeiros, vai apanhar uma boa queimadura de sol. Deve haver milhares de pessoas ali. Que foi que você disse? Vinte mil? Bem, a impressão que dá é essa mesmo. Walmer Beach também está apinhada de gente. Toda a população de Kent parece estar na rua. Todo mundo vai ficar com mau jeito no pescoço. Vai ser pior que em Wimbledon. Alô, que é que está se passando ali no cais? Puxa, é um submarino que acaba de subir à superfície. Que espetáculo! É um dos maiores que existem, creio eu. E a equipe de Sir Hugo está lá embaixo também. Alinhados no cais, como se estivessem numa parada. Magnífica corporação. Agora entram a bordo em fila. Disciplina perfeita. Deve ser uma ideia do Almirantado. Oferecer-lhes uma recepção especial na entrada do Canal. Maravilhoso espetáculo. Gostaria que você estivesse aqui para ver. Agora Sir Hugo vem vindo em nossa direção. Dentro em pouco estará falando com vocês. Bela figura de homem! Todos os que se encontram no ponto de tiro o estão aclamando. Tenho certeza de que todos nós nos sentimos inclinados a aclamá-lo hoje. Ele vem vindo para o ponto de tiro. Daqui vejo o sol brilhando no nariz do “Explorador da Lua”, lá adiante, por trás dele. Começa a sair por trás do alto da cúpula de lançamento. Espero que alguém tenha uma máquina fotográfica. Ei-lo que chega aqui agora — uma pausa. — Sir Hugo Drax.
Bond olhou o rosto gotejante de Gala. Ensopados e sangrando, ficaram nos braços um do outro, sem falar e tremendo ligeiramente sob o impacto de suas emoções. Seus olhos nada exprimiam e eram insondáveis quando se fitaram.
A voz que se ergueu era aveludado rosnar:
— Vossa Majestade, homens e mulheres da Inglaterra. Estou prestes a modificar o curso da história da Inglaterra. — Uma pausa. — Dentro de poucos minutos todas as vossas vidas estarão alteradas, em alguns casos drasticamente, pelo — hum — impacto do “Explorador da Lua”. Sinto-me muito orgulhoso e feliz porque o destino me elegeu, dentre todos os meus compatriotas, para lançar esta grande flecha de vingança nos céus e assim proclamar para sempre e para que todo o mundo presencie, o poderio de minha Pátria. Espero que esta oportunidade seja para sempre um aviso de que o destino dos inimigos de meu País estará escrito em poeira, em cinzas, em lágrimas e — uma pausa — em sangue. E agora muito obrigado por me terem ouvido, e eu, sinceramente, faço votos para que aqueles dentre vós que puderem, repitam as minhas palavras aos seus filhos, se os tiverem, hoje à noite.
Uma onda um tanto hesitante de aplausos ecoou através do microfone. Em seguida, ouviu-se a voz animada do locutor.
— Acabamos de ouvir Sir Hugo Drax, dirigindo-lhes algumas palavras antes de atravessar o ponto de tiro que leva ao interruptor na parede que lançará o “Explorador da Lua”. É a primeira vez que fala em público. Muito — hum — incisivo. Não faz rodeios para falar. Entretanto, muita gente achará que não há nenhum mal nisto. E agora chegou o momento de eu passar o microfone ao técnico, Capitão-Chefe de Grupo Tandy, do Ministério do Abastecimento, que descreverá para vocês o lançamento do “Explorador da Lua”. Em seguida, ouvirão a palavra de Peter Trimble, numa das embarcações da patrulha de segurança naval, o HMS Merganzer, que descreverá a cena da área compreendida pelo alvo. O Capitão Tandy.
Bond lançou um olhar ao relógio.
— Só mais um minuto — disse a Gala. — Oh, meu Deus, como eu gostaria de pôr as mãos em Drax. Tome aqui — estendeu a mão para o sabonete e arrancou-lhe alguns pedaços. — Ponha isto nos ouvidos, quando chegar a hora. O barulho vai ser tremendo, não sei dizer como será o calor. Não durará muito, e as paredes de aço talvez aguentem bem. Gala olhou para ele. Sorriu.
— Se você me segurar, não vai ser assim tão ruim — falou.
— E agora Sir Hugo está com a mão no interruptor e olha o cronômetro.
— DEZ — disse outra voz, forte e sonora como o toque de um sino.
Bond abriu o chuveiro, e a água jorrou sobre seus corpos apertados um contra o outro.
— NOVE — reboou a voz do que controlava o tempo.
— Os operadores do radar estão olhando as telas. Nada, exceto uma massa de linhas onduladas. . .
— OITO.
— Todos estão usando tampões nos ouvidos. A casamata deve ser indestrutível. As paredes de concreto têm três metros e meio de espessura. O teto em pirâmide tem sete metros e pouco de espessura na ponta.. .
— SETE.
— Primeiro o rádio sustará o mecanismo do tempo nas turbinas. Porá em movimento o cata-vento. Uma coisa flamejante como uma rodinha de fogo de artifício. . .
— SEIS.
— As válvulas se abrirão. Combustível líquido, Fórmula secreta. Coisa formidável. Dinamite. Cai dos tanques de combustível ...
— CINCO.
— Aceso pelo pino giratório, quando o combustível chega ao motor do foguete. . .
— QUATRO.
— enquanto que a água oxigenada e o permaganato já se misturaram, tornaram-se vapor, e as bombas das turbinas começam a girar.. .
— TRÊS.
— bombeando o combustível inflamável, através do motor, na cauda do foguete, para a cavidade exaustora. Calor gigantesco. . . 3500 graus...
— DOIS.
— Sir Hugo está prestes a apertar o botão. Está olhando pela abertura. O suor lhe umedece a fronte. Completa tensão aqui. Tremenda tensão.
— UM.
Nada senão o ruído da água, caindo incessantemente nos dois corpos agarrados.
— FOGO!
O coração de Bond pulou para a garganta ao ouvir o grito. Sentiu Gala estremecer. Silêncio. Nada, senão o sibilar da água...
— Sir Hugo deixou a casamata. Vai caminhando calmamente para a borda dos penhascos. Tão confiante! Passou agora para o elevador. Vai descer. Naturalmente. Deve ir até o submarino. As telas de televisão mostram um pouco de vapor vindo da cauda do foguete. Mais alguns segundos. Sim, ele se encontra no cais. Olhou para trás e levantou o braço no ar. Bom velho Sir Hu...
Um troar longínquo chegou até Bond e Gala. Mais alto. Mais alto. O chão ladrilhado começou a tremer debaixo dos pés deles. Um clamor de furacão!! Seriam pulverizados. As paredes tremiam, queimavam. As pernas de ambos começaram a descontrolar-se sob seus corpos oscilantes. Segure-a bem. Segure-a bem. Pare com isso! Pare com isso!! PARE COM ESSE BARULHO.
Cristo, ele ia desmaiar. A água estava fervendo. Era preciso fechá-la. Encontrei. Não. O cano arrebentou. Vapor, cheiro, ferro, tinta.
Tire-a daqui para fora! Tire-a daqui para fora!! Tire-a daqui para fora!!!
Depois o silêncio. Silêncio que se podia sentir, apalpar, apertar. E eles estavam no chão do escritório de Drax. Só a luz do banheiro ainda brilhava. A fumaça ia dissipando-se. Assim como o cheiro horrível de ferro queimado e tinta. Estavam sendo sugados pelo ar condicionado. A parede de aço inclina-se para eles qual bolha gigantesca. Os olhos de Gala estão abertos, e ela está sorrindo. Mas o foguete? Que foi que aconteceu? Londres? Mar do Norte? O rádio. Parece em ordem. Sacudiu a cabeça, e a surdez foi lentamente desaparecendo. Lembrou-se do sabão. Retirou-o das orelhas.
— Atravessando a barreira do som. Viajando perfeitamente bem no centro da tela do radar. Um lançamento perfeito. Receio que não tenham ouvido nada por causa do barulho. Tremendo. Primeiro todo aquele grande lençol de chamas vindo do penhasco, saindo da cavidade exaustora, e depois vocês deveriam ter visto o nariz lentamente surgir da cúpula. Ei-lo que sobe como um enorme lápis de prata. Mantendo-se em posição vertical nesta imensa coluna de chamas e vagarosamente subindo no ar. A flama se espalhando por centenas de quilômetros sobre o concreto. O uivo da coisa deve ter ameaçado seriamente arrebentar nossos microfones. Grandes fragmentos caíram do penhasco, e o concreto parece uma teia de aranha. Tremenda vibração. E a agulha subindo cada vez mais rápida. Cem milhas por hora. Mil. E — o locutor interrompeu o que ia dizendo — o que é que você disse? Ah, sim? Agora está percorrendo o espaço numa velocidade de dez mil milhas horárias! Encontra-se a uma altura de trezentas milhas. Não posso ouvir mais, naturalmente. Só vimos a flama durante alguns segundos. Como uma estrela. Sir Hugo deve estar muito orgulhoso. Encontra-se, no momento, no Canal. O submarino partiu como um foguete. Deve estar fazendo mais de trinta nós. Atirando para cima um colosso de espuma. Já alcançou o East Goodwins agora. Viaja para o norte. Dentro em breve chegará até os navios patrulheiros. Presenciarão o lançamento e a aterrissagem. Mas esse itinerário foi meio surpreendente. Ninguém aqui tinha a menor indicação. Até mesmo as autoridades navais parecem um tanto mistificadas. O Comandante-em-Chefe Nore foi ao telefone. Mas agora é só o que eu lhes posso informar daqui e vou passar a palavra a Peter Trimble, a bordo do HMS Merganzer, num ponto qualquer da Costa Oriental.
Nada, exceto os pulmões funcionando, indicava que os dois corpos largados na lagoa sempre crescente do chão ainda estivessem vivos. Mas seus tímpanos avariados pendiam desesperadamente do ruído de estática que veio durante alguns instantes do gabinete de metal todo empipocado. Agora teriam o veredicto do seu trabalho.
— Aqui fala Peter Trimble. Temos uma linda manhã — retifico — tarde, aqui. Um pouco ao norte de Goodwin Sands. Calmo como um lago. Não há vento. O sol brilha alegremente. A área compreendida pelo alvo foi declarada limpa, sem nenhuma embarcação. Não é assim, Comandante Edwards? Sim, o Capitão diz que está tudo inteiramente limpo. Por enquanto nada se vê na tela do radar. Não me é permitido informar o raio em que o pegaremos. Por motivos de segurança, e essa coisa toda. Mas nós só pegaremos o foguete por uma fração de segundo. Não está certo o que digo, Capitão? Mas o alvo começa a aparecer na tela. Não se pode vê-lo da ponte, naturalmente. Deve estar a setenta milhas daqui, na direção do norte. Vimos o “Explorador da Lua” subindo. Espetáculo assombroso! O barulho semelhante a um trovão. Uma longa chama saía da cauda. Devia estar já a dez milhas de distância, mas não era possível deixar de ver a luz. Não é isto, Capitão? Ah, sim, compreendo. Bom, isto é muito interessante. O enorme submarino se aproxima rapidamente. Está apenas a uma milha de distância. Suponho que seja aquele onde se encontra Sir Hugo com seus homens. Nenhum de nós aqui foi informado de coisa alguma a seu respeito. O Capitão Edwards diz que não responde à lâmpada Aldis. Não traz distintivo de navegação. Muito misterioso. Peguei-o agora mesmo. Está bem nítido em meus binóculos. Mudamos de rumo para tentar a intercepção. O Comandante diz que não é um dos nossos. Acha que deve ser estrangeiro. Atenção! Mostrou agora suas cores. O que vem a ser isto? Santo Deus! O capitão diz que é um submarino russo. Puxa! Agora está arriando as bandeiras e submergindo. Bang! Ouviram? Atiramos visando a proa, mas já desapareceu. Que é isto? Ah, o operador do asdic informa que está acelerando cada vez mais, debaixo da água. Vinte e cinco nós. Puxa! De qualquer modo, o submarino não poderá ver muita coisa debaixo da água, porém encontra-se agora bem na área do alvo. Passam vinte minutos das doze horas. O “Explorador” deve ter mudado seu rumo e prepara agora a descida. A umas mil milhas. Velocidade de descida, dez mil milhas horárias. Estará aqui dentro de segundos. Espero que não se verifique tragédia alguma. O submarino russo encontra-se bem dentro da zona perigosa. O operador do radar está acenando para nós. É o sinal para avisar que está na hora. Vem chegando. Vem chegando! . . . Não se ouve o mais leve ruído! deus do céu! Que é isto? Cuidado! Cuidado! Uma terrível explosão.. . Uma nuvem negra se eleva no ar. Uma gigantesca vaga, como a de um maremoto, aproxima-se rapidamente de nós. Uma vaga enorme! O submarino! Santo Deus... vimo-lo agora saltar fora da água e voltar a mergulhar, de quilha para o ar! Vem chegando. . .! Vem chegando! ...
CAPÍTULO 25
ZERO MAIS
Duzentos mortos confirmados, até agora, e aproximadamente o mesmo número de pessoas desaparecidas — informou M.
— Ainda estão chegando notícias da costa oriental, e as informações da Holanda não são das melhores. Foram inutilizadas muitas milhas de suas defesas navais. A maioria de nossas perdas ocorreu nas unidades patrulheiras. Duas delas viraram, incluindo o Merganzer. O Comandante desapareceu. O camarada da B. B. C. também. Os navios-faróis de Good-win partiram as amarras. Ainda não recebemos notícias da Bélgica e da França. Haverá contas bem pesadas a pagar, quando tudo isto ficar em ordem...
Era na tarde seguinte, e Bond, com uma bengala de ponta de borracha ao lado da cadeira, voltava a sentar-se onde tudo havia começado: do outro lado da escrivaninha daquele homem calmo, de frios olhos cinzentos, que o convidara para jantar e jogar bridge, há cem anos atrás.
Por baixo da roupa, Bond era uma perfeita e entrelaçada teia de esparadrapo. A dor queimava-lhe as pernas, sempre que tentava mexer os pés. Um traço vermelho cortava-lhe a face esquerda e a parte superior do nariz. O linimento, feito à base de ácido pícrico, cintilava à luz que entrava pela janela. Segurava um cigarro, como podia, na mão enluvada. Inacreditavelmente, M. tinha-o convidado a fumar.
— Algumas notícias do submarino, chefe? — perguntou Bond.
— Já o localizaram — disse M. com satisfação. — Adernado a cerca de trinta braças de profundidade. O navio de salvamento que deveria localizar os restos do foguete encontra-se agora por cima dele. Os mergulhadores já estiveram no fundo, e não houve resposta aos sinais feitos no casco. O embaixador soviético esteve no Foreign Office esta manhã. Parece ter declarado vir a caminho um navio salva-vidas, proveniente do Báltico, mas respondemos que não podíamos esperar, visto que, tratando-se de um navio naufragado, constitui um perigo para a navegação, no local onde está. — M. riu. — Com efeito, seria um perigo se alguém se dispusesse a navegar a trinta braças de profundidade, em pleno Canal. Contudo, estou satisfeito por não ser membro do Ministério — acrescentou friamente. — Tem estado em sessão permanente, desde o final da transmissão radiofônica. Vallance conseguiu entrar em contato com os tais advogados de Edinburgh, antes de eles abrirem a mensagem de Drax para o mundo. Parece ser um documento terrível, como se tivesse sido escrito pelo próprio Jeová. Vallance levou-o ao Governo, na noite passada, e ficou no 10, Downing Street, para esclarecer pontos ainda não averiguados.
— Eu sei — disse Bond. — Ele esteve telefonando constantemente para o hospital, procurando saber detalhes, até depois da meia-noite. Eu mal podia raciocinar direito, devido aos entorpecentes que me aplicaram. E que vai acontecer agora?
— Vão tentar abafar a coisa, com a maior embromação de que se teve notícia até hoje em toda a História. Uma quantidade enorme de lero-lero científico, explicando que o combustível foi usado só pela metade. Deu-se uma inesperada e potente explosão. Serão pagas indenizações. Perda trágica de Sir Hugo Drax e sua valiosa equipe. Grande patriota. Perda trágica de um dos submarinos de Sua Majestade. Último modelo experimental, ordens mal compreendidas. Tudo muito triste. Felizmente, perdeu-se uma tripulação mínima. Os parentes mais próximos serão informados. Trágica perda de um radialista da B.B.C. Inacreditável erro ao confundir a insígnia branca com as cores navais soviéticas. O desenho é muito semelhante. A bandeira branca foi recuperada no naufrágio.
— Mas que me diz da explosão atômica? — indagou Bond. — Radiações, poeiras radioativas e tudo isso. . . A famosa nuvem em forma de cogumelo. Com certeza isso vai ser um problema para explicar.
— Aparentemente, não estão muito preocupados com a questão — disse M. — A nuvem vai passar como formação normal, após uma explosão daquela envergadura. O Ministério do Abastecimento conhece toda a história. Foi preciso contar-lhes. Seus homens andaram percorrendo ontem à noite toda a costa oriental, com contadores Geiger, e ainda não houve qualquer notícia positiva. — M. sorriu friamente. — A nuvem terá de descer em algum lugar, claro, mas por uma feliz circunstância, o vento está empurrando-a para o norte. De volta a casa, como se poderia dizer. . .
Bond esboçou um sorriso, com dificuldade.
— Compreendo. Que coisa apropriada.
— Evidentemente — prosseguiu M., enchendo o cachimbo — haverá por aí uma série de boatos desagradáveis. Já começaram, aliás. Muita gente viu você e Miss Brand, serem retirados em padiolas. Depois, há o caso da Bowaters contra Drax, pela perda de todo aquele material de impressão. Haverá também inquérito sobre o rapaz que foi morto no Alfa Romeo. E alguém terá de explicar como se encontraram os restos de seu automóvel, entre os quais, — e nesta altura, M. olhou acusadoramente para Bond — foi encontrado um Colt de cano longo. E temos ainda o Ministério de Abastecimento. Vallance teve de chamar alguns de seus homens, ontem, para limpar aquela casa da Ebury Street. Mas essa gente está treinada em guardar segredo. Não será por aí que se descobrirá alguma coisa. Naturalmente, será um negócio arriscado. Mas a mentira de grandes proporções sempre o foi. E qual seria a alternativa? Encrencas com a Alemanha? Guerra com a Rússia? Muita gente, dos dois lados do Atlântico, ficaria mais do que satisfeita se lhe déssemos um motivo para agir.
M. fez uma pausa e chegou um fósforo ao cachimbo. Depois continuou:
— Se a história fôr engolida, não sairemos muito mal de tudo isto. Quisemos um de seus submarinos ultravelozes e ficaremos satisfeitos com as pistas que conseguimos descobrir a respeito de suas bombas atômicas. Os russos sabem que nós sabemos que o jogo deles fracassou. Malenkov não está muito firme no poder, e isto pode muito bem significar outra rebelião entre os senhores do Kremlin. Quanto aos alemães, bem... todos nós sabemos que ainda ficou muito nazismo espalhado por aí, e isto servirá para que o Ministério seja um pouco mais cauteloso, no tocante ao rearmamento da Alemanha. Entre as consequências de menor vulto — disse com um sorriso — destaca-se a de que o trabalho de segurança de Vallance, e o meu também, aliás, vão ficar um pouco mais fáceis para o futuro. Esses políticos não veem que a era atômica criou o mais letal sabotador da história da humanidade: o homenzinho com a valise pesada.
— E a imprensa vai engolir essa história? — perguntou Bond, duvidoso.
M. sacudiu os ombros.
— O Primeiro-Ministro teve esta manhã um encontro com os jornalistas — respondeu M., chegando outro fósforo ao cachimbo — e creio que conseguiu tudo da melhor maneira. Se os boatos se intensificarem mais tarde, ele terá, provavelmente, de convocá-los novamente e dizer-lhes parte da verdade. Então, eles se portarão bem. Sempre se portaram, quando o negócio é importante de verdade. O principal é ganhar tempo e manter afastados os boateiros. No momento, todos estão de tal maneira orgulhosos do “Explorador da Lua”, que não indagarão muito minuciosamente que foi que não deu certo.
Ouviu-se um leve zumbido no intercomunicador da escrivaninha de M., e uma luzinha vermelha piscou repetidas vezes. M. pegou no fone e curvou-se. — Alô. — Houve uma pausa. — Atenderei na linha do Ministério. — Apanhou o receptor branco, na mesa onde havia quatro telefones. — Sim. Está falando. — Nova pausa. — Pronto, sir? Escuto. — M. premiu o botão do misturador de sons. Segurou o fone junto ao ouvido, e nem um som chegou até aos ouvidos de Bond. Houve uma longa pausa, durante a qual M. ia puxando uma ou outra baforada do cachimbo, com a mão esquerda, enquanto escutava. Depois, tirou-o da boca. — De acordo, sir. É isso mesmo, sir. — Outra pausa. — Estou certo de que o meu homem teria ficado extremamente orgulhoso, sir. Mas, naturalmente, como Vossa Excelência sabe, é uma regra aqui no serviço. — M. franziu a testa. — Se me permite dar uma opinião, sir, creio que não seria nada aconselhável. — Uma pausa e a fisionomia de M. se desanuviou. — Obrigado, sir. Claro, Vallance não tem o mesmo problema. É o mínimo que ela merece, sir. — Outra pausa. — Compreendo. Assim será feito, sir. — Nova pausa. — É muita bondade sua, sir.
Depois de mais alguns cumprimentos, M. colocou o telefone branco no gancho, e o botão do misturador voltou à sua posição inicial de “livre”.
Por uns instantes, M. continuou fitando o telefone, como se em dúvida a respeito do que fora dito. Depois rodou a cadeira para longe da escrivaninha e olhou pela janela, pensativo.
Reinou o silêncio na sala, e Bond remexeu-se na cadeira, para aliviar a dor que lhe invadia novamente o corpo.
O mesmo pombo de segunda-feira, ou talvez outro, veio descansar no peitoril da janela, com o mesmo ruflar de asas. Caminhava para um e outro lado, baixando a cabeça e arruinando. Depois, voou para as árvores do parque. O tráfego murmurava, sonolento, na distância.
Como estivera perto, pensou Bond, de embarcar desta para melhor. Quão perto estivera de não haver nada mais do que a sirena distante da ambulância sob um sinistro céu negro e alaranjado, o cheiro de queimado, os gritos das pessoas ainda presas nos edifícios. O suave bater do coração de Londres, silenciado por uma geração. E toda uma geração de sua gente, morta nas ruas, entre as ruínas fumegantes de uma civilização que talvez não se erguesse de novo senão daí a muitos séculos.
Tudo isso teria acontecido por causa de um homem que fazia trapaça nas cartas, desdenhosamente, para alimentar o fogo devorador de seu ego maníaco; teria acontecido, se não fosse o presidente do clube Blades que o descobriu; se não fosse M., que concordara em ajudar um velho amigo; se não fosse a lição meio recordada por Bond e aprendida com um perito em trapaças; se não fossem as precauções de Vallance; se não fosse a boa cabeça de Gala para cálculos; se não fosse por uma série completa de circunstâncias fortuitas, de oportunidades .
E quem preparou a série?
Ouviu-se um ranger agudo, quando a cadeira de M. girou. Bond, cautelosamente, voltou a focalizar sua atenção nos olhos cinzentos do outro lado da escrivaninha.
— Era o Primeiro-Ministro — explicou M., em voz agridoce. — Diz que deseja que tanto você como Miss Brand saiam do País. — M. baixou os olhos e pousou-os, impassível, no fornilho do cachimbo. — Vocês dois têm de dar o fora até amanhã à tarde. Há muitas pessoas, neste caso, que lhes conhecem as caras. Poderão somar dois e dois e saberem que são quatro, quando virem em que estado lamentável se encontram. Vão para qualquer lugar que lhes agrade. Despesas sem limite de verba para ambos. Qualquer importância que precisarem. Vou falar com o Tesoureiro. Fique fora por um mês. Mas completamente fora de circulação, entendeu? Vocês dois já deveriam ter partido esta tarde, mas a moça tem um compromisso amanhã às onze horas. No Palácio. Foi-lhe concedida a George Cross. Mas isso não será divulgado até ao novo ano, claro. Gostaria de encontrá-la, qualquer dia. Deve ser uma excelente moça. Aliás — a expressão de M., quando levantou os olhos, era indecifrável — o Primeiro-Ministro tinha na ideia qualquer coisa para você, também. Esquecera que nós, aqui, não admitimos essas coisas. De modo que me pediu para lhe agradecer em nome dele. Disse algumas palavras simpáticas a respeito de nosso serviço. É muito gentil.
M. esboçou um daqueles raros sorrisos que iluminavam seu rosto com uma vivacidade e calor imediatos. Bond retribuiu o sorriso. Eles compreendiam bem as coisas que não chegavam a ser ditas.
Bond percebeu que era tempo de sair. Levantou-se e disse:
— Muito obrigado, chefe. Estou muito satisfeito pela moça.
— Bom, então está tudo combinado — disse M., com uma nota de despedida na voz. — Por hoje basta. Vê-lo-emos aqui dentro de um mês. Ah, é verdade — acrescentou com naturalidade — passe pelo seu escritório antes de sair. Encontrará uma coisa que eu lhe deixei lá. Uma pequena lembrança .
James Bond desceu pelo elevador e foi mancando pelo corredor, até seu gabinete. Quando cruzou a porta interior, encontrou sua secretária arrumando alguns papéis na escrivaninha ao lado da dele.
— 008 já está de volta? — perguntou.
— Sim — respondeu ela, sorrindo feliz. — Deve voar esta noite para cá.
— Ótimo, fico alegre por saber que você terá companhia — disse Bond. — Vou partir novamente.
— Oh! — exclamou a moça. Olhou rapidamente para ele e depois desviou o olhar. — Você está mesmo com cara de quem precisa de um bom descanso.
— Pois vou tê-lo mesmo. Um mês de exílio. — Pensou em Gala. — Vai ser um período de puras férias. Nada mais. Alguma coisa para mim?
— Seu novo carro está lá embaixo. Já o examinei. O homem disse que você lhe tinha dado ordens para que o trouxessem para experiência esta manhã. É lindo! Ah, é verdade. E tem ainda o pacote que veio do gabinete de M. Quer que o desembrulhe?
— Sim, por favor. . .
Bond sentou-se à escrivaninha e olhou o relógio. Cinco horas. Sentia-se fatigado. Sabia que iria sentir o mesmo durante alguns dias. Sempre tinha essas reações, no final de uma difícil missão. Era a consequência dos dias de nervos em tensão, dos temores, do medo.
Sua secretária voltou ao escritório, com duas caixas de papelão, de aspecto pesado. Colocou-as sobre a escrivaninha, e ele abriu a de cima. Quando viu a espécie de papel que envolvia o objeto, percebeu logo o que estava para vir.
Havia um cartão dentro da caixa. Bond pegou-o e leu. Na tinta verde usada por M., este dizia: “Você pode precisar destas coisas.” Não havia assinatura.
Bond desembrulhou o papel impermeável e sopesou a nova e refulgente Beretta em sua mão. Um lembrete. Não. Uma recordação. Bond sacudiu os ombros e fez a arma deslizar por baixo do casaco, para o coldre vazio. Levantou-se com alguma dificuldade.
— No outro embrulho, você encontrará um Colt de cano longo — disse ele à secretária. — Guarde até eu regressar. Então, eu o levarei ao fogão da cantina e jogá-lo-ei lá dentro.
Caminhou para a porta:
— Adeus, Lil. Lembranças a 008, e diga-lhe que tome cuidado com você. Eu estarei na França. Estação F terá meu endereço. Mas só em caso de emergência.
A moça sorriu.
— Que deverei considerar uma emergência? — perguntou.
Bond soltou uma pequena risada.
— Qualquer convite para um tranquilo jogo de bridge, por exemplo — respondeu ele.
Saiu mancando e fechou a porta.
O Mark VI, modelo 1953, tinha uma carroçaria esportiva e elegante, cor cinza de navio de guerra como o velho quatro litros e meio que fora para a sepultura numa garagem de Maidstone. O estofamento de couro azul-marinho deu um luxuoso gemido de coisa nova, quando Bond subiu, desajeitadamente, para o assento ao lado do motorista de provas.
Meia hora depois, o motorista ajudou-o a descer na esquina de Birdcage Walk com Queen Anne’s Gate.
— Se o senhor quisesse, poderíamos ter feito maior velocidade — disse o motorista. — E se nos autorizar a ficar com ele por mais uns quinze dias, poderemos prepará-lo para chegar aos cento e sessenta horários.
— Mais tarde — respondeu Bond. — Está comprado. Mas com uma condição. De que você o leve à terminal do ferry-boat na estação de Calais, amanhã à tarde.
O motorista sorriu:
— O.K. Eu o levarei. Verei o senhor no cais, está bem?
— Combinado. Siga com cuidado pela A-20. A estrada de Dover está muito perigosa, estes últimos dias.
— Não se preocupe, sir — respondeu o motorista, pensando que aquele homem devia ser um tanto medroso, apesar de tudo o que parecia conhecer a respeito de automóveis. — Não acontecerá nada.
— Nem todos os dias — advertiu ainda Bond, sorrindo. — Vê-lo-ei em Calais.
Sem esperar a resposta, saiu mancando, apoiado à bengala, por entre os raios de luz poeirenta do crepúsculo, filtrados através das árvores do parque.
Sentou-se defronte da ilha, no lago, e puxou da cigarreira, acendendo um cigarro. Olhou o relógio. Cinco para as seis. Lembrou-se de que ela não era o tipo de pequena que não seria pontual num encontro. Reservara a mesa de um canto parar o jantar. E depois? Mas, primeiro, haveria o longo e requintado planejar. De que gostaria ela? Onde gostaria de ir? Onde já teria estado? Alemanha, com certeza. França? Deixaria Paris de lado. Poderiam visitar a cidade no regresso. Mas, na primeira noite, iriam o mais longe que pudessem, bem longe do Pas de Galais. Havia aquela casa de campo, com uma comida maravilhosa, entre Montreuil e Étaples. Depois, a descida ao longo do Loire. Os pequenos lugares perto do rio, para alguns dias. As cidades dos castelos, não. Lugares como Beaugency, por exemplo. Depois, vagarosamente, para o sul, sempre seguindo pelas estradas do Oeste, evitando a vida em lugares mundanos e hotéis de cinco estrelas. Explorando lentamente o caminho. Bond teve um sobressalto. Explorar o quê? Um ao outro? Seria que ele estava levando a pequena a sério, demasiado a sério?
— James.
Era uma voz clara, bem timbrada, um pouco nervosa. Não a voz que ele esperava.
Levantou os olhos. Ela estava de pé, a poucos metros de distância. Bond reparou que usava uma boina preta, colocada num ângulo brejeiro. Tinha um ar excitante, misterioso, como alguém que vemos, em terra estranha, conduzindo sozinha um carro aberto. Alguém inatingível e mais desejável do que qualquer outra pessoa que já se conheceu até hoje. Alguém que está a caminho de um encontro amoroso com outro. Alguém que não é para você.
Bond ergueu-se, e deram-se as mãos.
Foi ela quem soltou a sua. Não se sentou.
— Gostaria muito que você fosse amanhã, James — disse Gala.
Seus olhos eram ternos quando o fitou. Ternos e suaves, mas, pensou ele, algo evasivos. Bond sorriu.
— Amanhã de manhã? Ou amanhã à noite? — disse ele.
— Não seja ridículo — respondeu Gala, rindo e corando. — Amanhã no Palácio.
— E depois? Que tenciona você fazer?
Gala encarou-o, cautelosamente. Que seria que esse olhar lembrava a ele? O olhar de Morphy? O olhar com que fitara Drax, na derradeira mão do jogo no Blades? Também não. Havia algo mais. Ternura? Pena?
A moça olhou por cima do ombro. Bond deu meia volta. Mais adiante viu a figura de um rapaz alto, de cabelos louros e cortados curtos. Estava de costas para ambos, sem fazer qualquer movimento. Matando o tempo.
Bond voltou a cabeça para Gala, e os olhos dela encontraram os seus.
— Vou-me casar com aquele homem — declarou ela, simplesmente. — Amanhã de tarde. — E então, como se não houvesse necessidade de outra explicação, acrescentou: — O nome dele é Vivian, Detetive-Inspetor.
— Ah, sim — disse Bond — compreendo. — Sorriu, um tanto amargo.
Houve um momento de silêncio, durante o qual seus olhos se desviaram para longe.
Entretanto, por que motivo deveria ele esperar outra coisa diferente? Um beijo. O contato de dois corpos assustados, agarrando-se no meio do perigo. Nada mais houvera. Depois, o anel de noivado sempre estivera no dedo dela, para que Bond não tivesse dúvidas. Por que supusera ele, automaticamente, que a moça o usara apenas como estratagema para que Drax não excedesse os limites? Por que imaginara que ela compartilhava de seus desejos e de seus planos?
E agora? conjeturava Bond. Sacudiu os ombros para expulsar a dor do fracasso... essa dor que é bem maior do que o prazer do sucesso. Afastar-se, era agora a única saída. Sair do caminho dessas duas vidas jovens e levar seu frio coração para qualquer outro lugar. Nada de penas. Nada de falsos sentimentos. Tinha de representar o papel que ela esperava dele. O homem duro, mundano. O Agente Secreto. O homem que era apenas uma silhueta.
Gala fitava-o, bastante nervosa, esperando ver-se desligada do estranho que tentara penetrar no átrio de seu coração.
Bond sorriu, com calor.
— Estou com ciúme — disse ele. — Tinha outros planos para você amanhã à noite.
Gala retribuiu o sorriso, grata por ter sido quebrado o silêncio.
— Quais eram esses planos? — indagou.
— Ia levá-la a uma casa de campo na França. E, depois de um jantar maravilhoso, pretendia verificar se é verdade o que dizem a respeito do grito de uma rosa.
A moça riu.
— Lamento muito não poder participar desses planos. Mas existem tantas outras, esperando serem colhidas.
— Sim, creio que sim — disse Bond. — Então, adeus, Gala.
Estendeu-lhe a mão.
— Adeus, James.
Bond tocou em Gala Brand pela derradeira vez e, depois, separaram-se, caminhando cada qual ao encontro de suas tão diferentes vidas.
CAPÍTULO 20
A JOGADA DE DRAX
Havia três diferentes fontes de dores no corpo de Gala. A dor latejante atrás da orelha esquerda, a carne mordida nos pulsos, e o queimar das correias em torno de seus tornozelos.
Cada saliência do terreno, cada desvio, cada pressão repentina do pé de Drax nos freios ou no acelerador, despertava uma dessas dores e lhe irritava os nervos. Se ao menos tivesse sido colocada mais presa ao assento de trás. Mas só havia lugar para seu corpo rolar alguns centímetros no assento, de modo que se via obrigada a contorcer constantemente o rosto machucado para evitar o contato com as paredes de brilhante couro de porco.
O ar que respirava era abafado, com um cheiro de forração nova de couro, fumaça do cano de descarga e, de quando em quando, o mais acentuado de borracha queimada, cada vez que Drax raspava os pneumáticos numa esquina de curva acentuada.
No entanto, o desconforto e a dor não eram nada. Krebs! Curioso como seu temor e repulsa por Krebs a atormentava mais que tudo. As outras coisas eram grandes demais. O mistério de Drax e seu ódio pela Inglaterra. O enigma do seu perfeito domínio da língua alemã. O “Explorador da Lua”. O segredo da cápsula atômica. Como salvar Londres. Eram assuntos que há muito tempo ela afastara para um recanto do cérebro como coisas insolúveis.
Mas a tarde passada a sós com Krebs estava presente e terrível em seu espírito, e este voltava sempre e sempre aos detalhes da mesma, como uma língua em cima de um dente dolorido.
Muito tempo depois de Drax ter partido, ela continuara a fingir inconsciência. A princípio, Krebs se ocupara com as máquinas, conversando com elas em alemão, numa falinha de bebê, toda carinhosa.
— Pronto, minha Liebchen. Agora está melhor, não está? Uma gota de óleo para você, minha Pupperl? Como não? Vai já. Não, não sua preguiçosa. Eu disse mil voltas. Não novecentas. Vamos ver agora. Nós podemos fazer coisa melhor, não podemos? Sim, minha Schatz. É isto. Rodando, rodando, lá vamos nós. Para cima e para baixo. Rodando, rodando. Deixe eu limpar sua carinha bonita, para você, para nós podermos ver o que o pequenino mostrador está dizendo. Jesus Maria, bist du ein braves Kind!
E assim continuara, ora ficando em pé, diante de Gala, ora esgaravatando o nariz e chupando os dentes, numa atitude horrível de ruminante. Até que foi permanecendo cada vez mais tempo diante dela, esquecendo as máquinas, conjeturando, tomando uma resolução.
E então sentira a mão dele desabotoar o botão de cima de seu vestido, e o recuo (automático de seu corpo teve de ser disfarçado por um grunhido realístico e uma pantomima de volta de consciência.
Pedira água, e ele fora buscar no banheiro, trazendo um pouco num copo de escova de dentes. Depois puxara uma cadeira de cozinha para a frente dela e sentara-se atravessado, de costas para o assento, o queixo descansando na última travessa do encosto. Ficara então a fitá-la especulativamente, por baixo das pálpebras caídas, com aqueles olhos desbotados.
Ela fora a primeira a romper o silêncio.
— Por que me trouxeram aqui? Para que são todas essas máquinas?
Krebs lambera os lábios de sua boquinha vermelha e bicuda, aberta sob a mancha de bigode amarelo, e foi formando lentamente um sorriso em forma romboide.
— Isto é um engodo para passarinhos. Dentro em breve atrairá um passarinho para seu ninho quente. Então o passarinho porá um ôvo. Oh, um ôvo tão grande, redondo! Um ôvo lindo!
A parte inferior de seu rosto ria encantada, enquanto seus olhos divagavam.
— A mocinha bonita está aqui porque, de outro modo, poderia assustar o passarinho, e este ir embora. E isto seria tão triste, não é mesmo? — o homem cuspiu as três palavras seguintes: — Cadela inglesa e suja!
Seus olhos tornaram-se atentos, cheios de resolução. Puxou a cadeira mais para perto, de modo que seu rosto ficou muito próximo ao dela, e ela se viu envolvida pelo miasma de sua respiração.
— E agora, cadela inglesa, diga para quem você está trabalhando? — Esperou. — Você precisa me responder, sabe? — avisou suavemente. — Nós estamos sozinhos aqui. Não há ninguém para lhe ouvir gritar.
— Não seja estúpido — disse Gala em desespero de causa. — Como eu poderia estar trabalhando para outra pessoa que não fosse Sir Hugo? (Krebs sorriu ao ouvir o nome).
— Eu só estava curiosa a respeito do plano de voo...
Gala iniciou uma explicação arrastada, a respeito de seus números e os de Drax, e de como desejara partilhar do sucesso do “Explorador da Lua”.
— Tente novamente — sussurrou Krebs, quando ela terminou. — Você deve sair-se melhor que isso — e, subitamente, seus olhos haviam-se tornado chispantes de crueldade, e suas mãos se estenderam para ela, por trás do encosto da cadeira. . .
No assento de trás do veloz Mercedes, Gala rangeu os dentes e choramingou com a lembrança dos dedos leves se arrastando pelo seu corpo, tateando, beliscando, puxando, enquanto seus olhos, durante o tempo todo, fitavam curiosamente os dela, até que, finalmente, ela juntou saliva na boca e deu uma cusparada bem no meio da cara do homem.
Este nem se dera o trabalho de parar para limpar o rosto, mas, de repente, aplicara-lhe um golpe violento, e ela gritara uma só vez, para em seguida desmaiar.
E então se vira sendo empurrada para a parte traseira do carro, com um tapete atirado em cima dela, e eles partiram velozmente pelas ruas de Londres. Gala ouvia outros carros perto deles, o campainhar frenético de uma bicicleta, um grito de vez em quando, o grunhido animalesco de uma velha klaxon, o ronronar de uma lambreta, um rangir de freios, e compreendeu que voltara ao mundo real, que pessoas inglesas, amigos, estavam em volta dela. Lutara para se pôr de joelhos e gritar, mas Krebs devia ter-lhe pressentido os movimentos, porque as mãos dele se encontraram repentinamente em seus tornozelos, prendendo-os à barra de descanso para os pés, no chão. Compreendeu que estava perdida, e as lágrimas lhe correram pelas faces, enquanto rezava para que alguém, de um jeito ou de outro, chegasse a tempo.
Isto acontecera há menos de uma hora, e agora ela podia garantir que haviam chegado a uma cidade grande — Maidstone, se estava sendo levada de volta para a base.
No relativo silêncio do avanço do Mercedes por dentro da cidade, ela ouviu, subitamente, a voz de Krebs. Havia nela um quê de ansioso.
— Mein Kapitän, tenho estado a observar um carro já há algum tempo. Não resta dúvida de que está nos seguindo. Raramente usa os faróis. Está apenas a uns cem metros de distância, atrás de nós agora. Eu acho que é o carro do Comandante Bond.
Drax grunhiu de surpresa, e ela ouviu seu corpanzil virar-se todo para dar uma rápida olhada.
Praguejou violentamente, e depois veio o silêncio, dentro do qual ela pôde sentir o carro grande se movimentando em curvas e se esforçando por ganhar terreno dentro do trânsito.
— Ja, sowas! — disse finalmente Drax. Sua voz parecia preocupada. — Quer dizer que aquela velha peça de museu ainda pode movimentar-se. Tanto melhor, meu caro Krebs. Parece que ele está sozinho.
Deu uma risada desagradável:
— Deixe que ele fique por nossa conta, porque se sobreviver, nós o meteremos no mesmo saco com a mulher. Ligue o rádio. Estação local. Logo saberemos se existe algum obstáculo.
Ouviu-se um rápido estalido da estática e depois Gala escutou a voz do Primeiro-Ministro, a voz das grandes ocasiões de sua vida, vinda em fragmentos entrecortados, enquanto Drax punha o carro em terceira e acelerava para sair da cidade: “. . . arma criada pela engenhosidade do homem. . . mil milhas acima no firmamento. . . área patrulhada pelos navios de Sua Majestade. . . planejado exclusivamente para a defesa de nossa amada ilha. . . uma longa era de paz... desenvolvimento para a grande viagem do homem além dos limites deste planeta. . . Sir Hugo Drax, esse grande patriota e benfeitor do nosso País...”
Gala ouviu o estrondear da gargalhada acima do uivar dos ventos, um vasto latido de desprezo e triunfo e, em seguida, o rádio foi desligado.
— James — sussurrou Gala consigo mesmo. — Só resta você. Tenha cuidado. Mas ande depressa.
O rosto de Bond era uma máscara de poeira e imundície com o sangue das moscas e outros insetos que se haviam esmagado contra ele. Muitas vezes tivera de retirar uma das mãos com câimbra do volante, para limpar os óculos, mas o Bentley ia portando-se muito bem, e ele tinha certeza de que pegaria o Mercedes.
Estava quase alcançando noventa e cinco na linha reta, pouco antes da entrada para Leed Castle, quando luzes possantes foram emitidas por trás dele, e uma buzina de quatro tons executou seu ousado “pam-pim-pim-pam” quase dentro de seu ouvido.
A aparição de um terceiro carro na corrida era quíase inacreditável. Bond mal se dera o trabalho de olhar no espelho retrovisor, desde que havia saído de Londres. Ninguém, a não ser um corredor de automóvel ou um homem desesperado, poderia ter emparelhado com eles, e seu espírito se encontrava numa confusão quando, automaticamente, afastou-se para a esquerda e viu, com o rabo dos olhos, um carro baixo, vermelho como os dos bombeiros, emparelhar com ele e afastar-se com uma diferença de umas dez milhas, uma hora extra em seu relógio.
Vislumbrou o famoso radiador Alfa e, na borda do capô, escrito em letras grandes, brancas, as palavras: Attaboy II. Em seguida, viu o rosto sorridente de um rapazinho em mangas de camisa, que espetou dois dedos vermelhos no ar antes de desaparecer na mistura de sons que um Alfa em disparada compõe com o gemido de seu escape, o espooar do cano de descarga e o uivo trovejante do transmissor.
Bond sorriu cheio de admiração ao levantar a mão para o chofer. Alfa Romeu, oito cilindradas, com surpercarburadores, pensou consigo mesmo. Deve ser quase tão velho quanto o meu. ‘32 ou ‘33, provavelmente. E só a metade de meus cc. Targa Florio, em 1931, e depois disso fez bonito em toda a parte. Com certeza era um tipo desses de cabeça quente, ouvindo uma das estações da RAF dos arredores. Tentando voltar de alguma festa a tempo de assinar o ponto antes de ser citado num relatório. Observou benèvolamente quando o Alfa balançou a cauda na curva em S ao lado de Leeds Ctostle e, em seguida, passou uivando pelo longo caminho largo em direção à distante bifurcação de Charing.
Bond bem podia imaginar o sorriso de satisfação do rapaz, quando este alcançou Drax: “Ôba. É uma Merc!” E a raiva de Drax, ao ouvir a música impudente da buzina. Deve estar fazendo 105, pensou Bond. Espero que esse maluquinho não saia da estrada. Ficou a olhar os dois jogos de luzes traseiras se aproximando, o rapaz do Alfa se preparando para o truque de surgir por trás e, de repente, acelerar ao máximo, assim que tivesse uma oportunidade para passar.
Pronto. Quatrocentas jardas adiante o Mercedes apareceu, branco, iluminado pelas luzes duplas do Alfa. Havia uma milha de estrada livre na frente, completamente reta. Bond quase sentia os pés do rapaz pisando o pedal mais fundo ainda. Ôba rapaz!
Lá na frente, no Mercedes, Krebs tinha a boca colada ao ouvido de Drax.
— Outro deles — gritou aflito. — Não consigo ver o rosto. Vem vindo para nos passar agora.
Drax deixou escapar uma obscenidade a meia voz. Seus dentes branquejaram no pálido reflexo do painel.
— Vou dar uma lição a esse canalha — falou, endireitando os ombros e agarrando o volante com firmeza com as grandes luvas de couro. Com o canto dos olhos viu o capô da Alfa surgir a estibordo. ‘Tam-pim-pim-pim”, cantava a buzina, suave, delicadamente. Drax virou rápido o volante do Mercedes para a direita e, depois do horrível chocalhar dos metais, trouxe-o novamente para o centro, a fim de corrigir a posição.
— Bravo! Bravo! — gritou Krebs, fora de si com a excitação, ao ajoelhar-se no assento do carro e olhar para trás.
— Dupla capotagem. Passou por cima da cerca de cabeça para baixo. Acho que já está se incendiando. Sim. Estou vendo as chamas.
— Isto dará ao nosso caro Sr. Bond qualquer coisa para refletir — rosnou Drax, respirando pesadamente.
Bond, porém, o rosto impassível, mal examinara o velocímetro, e nada havia a não ser vingança em seu espírito, quando partiu veloz atrás do Mercedes que voava.
Vira tudo. O voo grotesco do carro vermelho, ao virar de rodas para o ar, e tornar a virar, a figura do rapaz projetada para o alto, os braços e as pernas abertos, ao ser cuspido para fora do volante, e o estrondo final, quando o carro saltou a cerca de cabeça para baixo e foi desmoronar-se no campo.
Quando passou disparado, observando as marcas horríveis de grafita deixadas pela derrapagem, seu espírito anotou um toque macabro final. Saindo, não se sabe como, incólume do holocausto, a buzina ainda dava contato, e seu ulular subia para o céu, abrindo estridentemente estradas imaginárias para a passagem do Attaboy II: “Pam-pim-pim-pam. Pam-pim-pim-pam.”
Com que então um homicídio tivera lugar bem debaixo de seus olhos. Ou, pelo menos, uma tentativa de homicídio. Assim, fossem quais fossem seus motivos, Sir Hugo Drax era um criminoso e, provavelmente, um maníaco. Isto, acima de tudo, significava perigo certo para o “Explorador da Lua”. Era o bastante para Bond. Meteu a mão debaixo do painel e, de seu coldre escondido, tirou o Colt Especial do Exército, calibre 45 de cano longo, e colocou-o no assento ao seu lado. A batalha agora era em campo aberto e, de um jeito ou de outro, o Mercedes teria de ser parado.
Usando a estrada como se fosse Donington, Bond pisou o acelerador e ali conservou o pé. Pouco a pouco, com o ponteiro oscilando de cada lado do número cem, começou a diminuir a diferença.
Drax entrou pelo lado esquerdo da bifurcação em Charing e subiu embalado a longa colina. Na frente, dentro do raio gigante de seus faróis, um grande caminhão de transporte, desses de oito rodas, um AEC Diesel, ia subindo a primeira curva do caminho, lutando sob o peso de quatorze toneladas de notícias impressas que levava numa viagem noturna para um dos jornais do East Kent.
Drax praguejou baixinho, ao ver o longo transporte de vinte rolos gigantescos, cada um deles contendo cinco milhas de papel impresso com notícias, amarradas lá em cima. Logo ali, no meio daquela curva traiçoeira em S, no alto da colina.
Olhou no espelho retrovisor e viu o Bentley chegando à bifurcação.
Foi então que teve uma ideia.
— Krebs — o nome saiu como um tiro de pistola. — Tire sua faca.
Um estalido agudo, e o estilete já estava na mão de Krebs. Ninguém perdia tempo, quando havia aquela nota na voz do mestre.
— Vou diminuir a marcha e seguir atrás do caminhão. Tire os sapatos e as meias, suba no capo, e quando eu vier por detrás dele, pule em cima. Eu irei na maior vagareza. Não haverá perigo. Corte as cordas e segure os rolos de papel. Primeiro os da esquerda. Depois os da direita. Nessa altura eu já terei colocado o carro no mesmo nível do caminhão, e quando você tiver cortado o segundo lote, pule no carro. Tenha cuidado para não ser levado com o papel. Verstanden? Also. Hals und Beinbruch!
Drax apagou as luzes dos faróis e contornou a curva a oitenta quilômetros por hora. O caminhão ia vinte jardas adiante, e ele teve de frear com força, a fim de não abalroá-lo. O Mercedes executou uma derrapagem, até o radiador ficar quase debaixo do chassi do caminhão.
Drax fez a mudança para segunda:
— Agora!
Manteve o carro firme como uma rocha, quando Krebs, descalço, passou por cima do para-brisa e foi-se arrastando ao longo do brilhante capo, com a faca na mão.
Num salto, atingiu o ponto visado e começou a cortar as cordas do lado esquerdo. Drax afastou-se para a direita e foi deslizando até ficar paralelo às rodas traseiras do Diesel, a fumaça do óleo vinda do cano de descarga subindo-lhe aos olhos e às narinas.
As luzes do carro de Bond começavam a aparecer no início da curva.
Houve uma série de baques fortes, quando os rolos do lado esquerdo caíram do caminhão para a estrada e foram rolando velozes pela escuridão. Depois, mais baques, ao partirem-se as cordas do lado direito. Um dos rolos arrebentou ao cair, e Drax ouviu um barulho de coisas dilaceradas, quando o papel, desenrolando-se tombou pesadamente num ponto da subida.
Aliviado de sua carga, o caminhão quase pulou para a frente, e Drax teve de acelerar um pouco para alcançar a figura esvoaçante de Krebs, que aterrisou, metade em cima das costas de Gala e metade no assento da frente. Drax pisou até embaixo o acelerador e subiu a colina como um raio, ignorando o grito do chofer do caminhão, que se sobrepôs ao clamor dos pistões, quando ele disparou em frente.
Ao contornar velozmente a curva seguinte, viu o cilindro de dois faróis desenharem-se em curva no céu, acima do topo das árvores, até se tornarem quase verticais. Tremularam ali por um instante, e depois os raios de luz giraram através do espaço e desapareceram.
Uma grande risada, semelhante a um latido de cão, escapou de Drax, e durante a fração de um segundo, tirou os olhos da estrada e levantou o rosto triunfalmente para as estrelas.
CAPITULO 21
“O PERSUASOR”
Krebs ecoou a risada maníaca com outra estridente.
— Um golpe de mestre, mein Kapitän. O senhor precisava ver como eles desciam pela colina. O tal que arrebentou. Wunderschön! Parecia o papel higiênico de um gigante. Este deve ter feito um belo pacote dele. Ele vinha chegando bem na curva. E o segundo foi tão bom quanto o primeiro. Viu a cara do motorista? Zum Kotzen! E a firma Bowater! Um belo negócio foi o que fizeram.
— Você trabalhou bem — observou Drax, conciso, o pensamento noutra coisa.
De repente, levou o carro para o lado da estrada, com um grito de protesto dos pneus.
— Donnerwetter — disse, zangado, quando começou a virar o carro. — Mas nós não podemos deixar o homem ali. Precisamos pegá-lo.
O carro já ia roncando pela estrada abaixo.
— A arma — ordenou Drax, secamente.
Passaram o caminhão no alto da colina. Estava parado, e não se via sinal de motorista. Provavelmente telefonando para a companhia, pensou Drax, diminuindo a marcha ao contornarem a primeira curva. Viam-se luzes em duas ou três casas, e um grupo de pessoas rodeava um dos rolos de papel que ali estava por entre as ruínas do portão da frente de suas casas. Havia mais rolos na borda do lado direito da estrada. À esquerda, um poste telegráfico se inclinava como bêbedo, partido ao meio. Na curva seguinte, via-se o princípio de uma grande confusão de papel estendendo-se para baixo, ao longo da colina, formando guirlandas nas cercas e na estrada, como se fossem os babados de um vestido de baile à fantasia, elefantíaco.
O Bentley tinha quase se espatifado contra as grades que guarneciam o lado direito da curva, protegendo-o de um barranco profundo. Por entre a confusão de ferro retorcido dos mourões, pendia, de capo para baixo, com uma das rodas ainda presa ao eixo quebrado de trás e ali pousada de esguelha como um guarda-chuva surrealista.
Drax se aproximou e, acompanhado de Krebs, saiu do carro e ficou quieto, à escuta.
Não se ouvia o menor som, exceto o do motor de um carro distante, seguindo rápido pela estrada de Ashford, e o trilar de um grilo insone.
Com as armas na mão, eles caminharam cautelosamente por cima dos restos do Bentley, os pés esmagando o vidro partido na estrada. Sulcos profundos haviam sido marcados na margem de grama, e sentia-se o cheiro forte de gasolina, misturado ao de borracha queimada. O metal quente do carro estalava e partia baixinho. O vapor ainda jorrava do radiador espatifado.
Bond estava caído de bruços no fundo do barranco, a uns seis metros de distância do carro. Krebs virou-o. O rosto estava coberto de sangue, mas ele respirava. Revistaram-no completamente, e Drax meteu no bolso a fina Beretta. Depois, juntos, arrastaram-no até a estrada, jogando-o, em seguida, no assento traseiro do Mercedes, com a metade do corpo em cima do de Gala.
Quando ela percebeu quem era, deu um grito de horror.
— Halt’s Maul — rosnou Drax. Foi para o assento da frente e, enquanto ligava o motor, Krebs inclinou-se e se ocupou com um longo pedaço de arame flexível.
— Faça o negócio direito — disse Drax. — Não quero que haja erros. — Refletiu melhor. — Volte depois para junto dos destroços e retire as placas. Depressa. Eu tomo conta da estrada.
Krebs puxou o tapete para cima dos dois corpos inertes e pulou fora do carro. Usando a faca como chave de parafuso, dentro em breve estava de volta com as placas, e o enorme carro começou a se movimentar no momento exato em que um grupo de habitantes do local apareceu caminhando nervosamente pela descida da montanha, focalizando as lanternas sobre a cena de devastação.
Krebs riu feliz consigo mesmo à ideia de que os estúpidos ingleses teriam de limpar e pôr tudo aquilo em ordem. Acomodou-se no assento, a fim de apreciar o trecho do caminho que sempre fora seu predileto: os bosques primaveris, cheios de florzinhas azuis e rosa, que iam até Chilham.
Eles tinham-no tornado particularmente feliz à noite. Iluminados por entre as tochas verdes das árvores novas pelos grandes faróis do Mercedes, tinham-no feito pensar nas lindas florestas de Ardennes, no grupo dedicado onde servira e na viagem que fizera num jipe capturado aos americanos, tal como naquela noite, ao lado de seu adorado líder, que ia ao volante. Der Tag custara a chegar, mas agora ali estava. Com o jovem Krebs no caminhão. Finalmente veria as multidões dando vivas, as medalhas, as mulheres, as flores. Lançou um olhar aos exércitos de flores azuis que passavam voando e sentiu-se feliz e confortado.
Gala sentia na boca o gosto do sangue de Bond. O rosto dele estava ao lado do dela, no assento de couro, e ela se mexeu para lhe dar mais lugar. A respiração do rapaz era pesada e irregular. Ela perguntava a si mesma quanto estaria ferido. Experimentou sussurrar-lhe ao ouvido. Depois falou mais alto. Ele deu um grunhido e acelerou a respiração.
— James — cochichou. — James.
Bond resmungou qualquer coisa, e ela encostou-se com força contra ele. Depois, soltou uma série de palavrões, e seu corpo se mexeu.
Tornou a ficar imóvel, e ela quase pôde senti-lo explorando as próprias sensações.
— Sou eu, Gala.
Ela sentiu o corpo dele enrijecer.
— Deus do céu. Que diabo de confusão — falou Bond.
— Você está bem? Tem algum osso quebrado?
Sentiu que ele experimentava os braços e as pernas.
— Parece que está tudo bem. Uma brecha na cabeça. Estou falando coisas que fazem sentido?
— Claro que sim — respondeu Gala. — Agora ouça.
Rapidamente, contou-lhe tudo que sabia, começando pelo caderninho de notas preto.
O corpo dele estava rígido como uma tábua contra o dela, e ele mal respirava, ouvindo a história inacreditável.
Logo depois corriam para Canterbury, e Bond colocou a boca em seu ouvido.
— Vou tentar jogar-me por trás — sussurrou. — Ver se arranjo um telefone. É a única esperança.
Começou a se erguer sobre os joelhos, o peso de seu corpo quase sufocando a respiração da moça.
Ouviu-se uma forte pancada, e ele tornou a cair em cima dela.
— Outro movimento que você faça e estará morto — disse a voz de Krebs, vindo baixinho por entre os assentos da frente.
Faltavam só vinte minutos para chegar à base! Gala rangeu os dentes e tratou de reanimar Bond, que perdera os sentidos novamente.
Acabara de conseguir, quando o carro chegou à porta da cúpula de lançamento, e Krebs, com um revólver na mão, já ia desfazendo os nós em torno dos tornozelos de ambos.
Vislumbraram o cimento familiar, iluminado pela lua, e o semicírculo de guardas a uma certa distância, antes de serem empurrados pela porta. Depois, quando Krebs lhes arrancou os sapatos, seguiram pela passagem estreita, de ferro, dentro da cúpula de lançamento.
Ali estava o cintilante foguete, lindo, inocente, qual um novo brinquedo para ciclopes.
Mas havia um cheiro horrível de produtos químicos no ar, e para Bond, o “Explorador da Lua” parecia uma gigantesca agulha hipodérmica pronta para ser enterrada no coração da Inglaterra. Apesar de um resmungo de Krebs, ele parou na escada e levantou os olhos para seu nariz faiscante. Um milhão de mortes. Um milhão. Um milhão. Um milhão.
E tudo dependia dele? Pelo amor de Deus! Tudo dependia dele?
Com o revólver de Krebs cutucando-o, desceu lentamente os degraus, atrás de Gala.
Quando entrou pela porta do escritório de Drax, controlou-se. De repente, seu espírito tornou-se claro, e toda a letargia e a dor haviam-lhe deixado o corpo. Alguma coisa, qualquer coisa, precisava ser feita. De um jeito ou de outro, ele havia de descobrir um meio. O corpo inteiro e a mente tornaram-se-lhe concentrados e agudos como uma lâmina. Seus olhos ganharam vida, novamente, e a derrota abandonou-o, como a pele de uma serpente.
Drax seguira na frente e se sentara à escrivaninha. Trazia uma Luger na mão. Este apontava um lugar entre Gala e Bond e era firme como uma rocha.
Por trás dele, Bond escutou as portas duplas se fecharem, batendo.
— Eu era um dos melhores atiradores na Divisão Branderburg — disse Drax, entabulando conversa.
— Amarre a moça nessa cadeira, Krebs. Depois o homem .
Gala olhou desesperadamente para Bond. Este disse:
— Você não vai atirar. Teria receio de atingir o combustível.
Encaminhou-se lentamente para a escrivaninha. Drax sorriu alegremente e, seguindo a trajetória do cano do revólver, mirou o estômago de Bond.
— Sua memória é ruim, inglês. Eu lhe disse que esta sala é inteiramente separada da cúpula por meio das portas duplas. Dê mais um passo e ficará sem estômago.
Bond olhou os olhos apertados e confiantes do outro e parou.
— Vamos, Krebs.
Quando os dois ficaram bem amarrados, e dolorosamente, às pernas e braços das duas cadeiras de aço tubular, pouco distante um do outro, por baixo do mapa de vidro, Krebs saiu da sala. Voltou um momento depois com uma espécie de maçarico mecânico.
Colocou a feia máquina sobre a escrivaninha, introduziu o ar com algumas breves bombadas e riscou um fósforo. Uma chama azul sibilou, elevando-se a alguns centímetros. Ele pegou o instrumento e acercou-se de Gala. Parou a pouca distância da moça.
Drax ordenou, severo:
— Vejamos agora. Vamos tratar desse caso, sem criar complicações. Nós costumávamos chamá-lo Der Zwagsman — O Persuasor. Nunca me esquecerei de como lidou com o último espião que pegamos juntos. Bem ao sul do Reno, não foi, Krebs?
Bond era todo ouvidos.
— Foi sim, mein Kapitän. — Krebs riu, recordando-se. — Era um porco de um belga.
— Pois bem. Vocês dois aí não se esqueçam. Aqui não temos esse negócio de fair play. Nada de atitudes esportivas e toda essa história. Isto aqui é negócio.
A voz estalava como um chicote, a cada palavra.
— Você — lançava um olhar a Gala Brand — para quem está trabalhando?
Gala se conservou em silêncio.
— Onde você quiser, Krebs.
A boca de Krebs estava entreaberta. Sua língua percorria o lábio, para cima e para baixo. Parecia ter dificuldade em respirar, quando deu um passo em direção à moça.
A pequenina chama roncava gulosamente.
— Pare — disse Bond, frio. — Ela trabalha para a Scotland Yard. E eu também.
Essias coisas agora não tinham mais propósito. Não podia ser de nenhuma utilidade imaginável para Drax. De qualquer maneira, amanhã de tarde, talvez não existisse mais nenhuma Scotland Yard.
— Assim está melhor — disse Drax. — Agora responda: Alguém sabe que vocês estão prisioneiros? Vocês pararam para telefonar a alguém?
Se eu disser que sim, pensou Bond, ele atirará em nós dois e se livrará dos corpos. Dessa forma, a última chance de impedir o lançamento do “Explorador da Lua” terá desaparecido. E se a Yard sabe, por que ainda não chegaram aqui? Não. Nossa oportunidade ainda pode vir. O Bentley será encontrado. Vallance ficará preocupado quando não tiver notícias minhas.
Não — respondeu. — Se eu tivesse telefonado, eles já estariam por aqui a esta hora.
— Isto é verdade — disse Drax, refletindo.
— Neste caso, não estou mais interessado em vocês e felicito-os por terem tornado a entrevista tão harmoniosa. Poderia ter sido mais difícil, se você estivesse sozinho. Uma moça é sempre útil nessas ocasiões. Krebs largue isso. Pode ir. Diga aos outros o que é necessário. Eles devem estar fazendo conjeturas. Eu vou entreter nossos hóspedes durante algum tempo e depois subirei até a casamata. Providencie para que o carro seja bem lavado. O assento de trás. E faça desaparecer as marcas no lado direito. Diga para tirarem o painel inteiro, se fôr necessário. Ou então podem tocar fogo na maldita coisa. Nós não vamos mais precisar dela. — Riu abruptamente. — Verstanden?
— Sim, mein Kapitän...
Krebs, colocou com relutância o maçarico, que roncava de leve, na escrivaninha ao lado de Drax.
— Para o caso de lhe ser necessário — disse, olhando esperançoso para Gala e Bond. Saiu depois pelas portas duplas.
Drax pôs a Luger também na escrivaninha em frente a ele. Abriu uma gaveta, tirou um charuto e acendeu-o com um isqueiro Ronson. Depois, acomodou-se confortàvelmente. O silêncio reinou na sala durante vários minutos, enquanto Drax puxava fumaçadas do charuto, todo satisfeito. Em seguida, pareceu tomar uma resolução. Fitou Bond com benevolência.
— Você nem sabe quanto eu desejei um auditório inglês — declarou como se estivesse dando uma entrevista à imprensa. — Você nem sabe como estava ansioso por contar minha história. Aliás, um relatório completo de minhas atividades encontra-se em poder de um escritório muito respeitável de advogados de Edinburgo. — Tabeliães, aliás. Bem salvo de qualquer perigo.
Drax sorriu abertamente para um e para outro:
— Essa boa gente recebeu instruções para abrir o envelope no final do primeiro voo bem sucedido do “Explorador da Lua”. Mas vocês, seus felizardos, terão uma, antecipação do que eu escrevi e então, quando amanhã às doze horas, virem através destas portas abertas — fez um gesto para a direita — o primeiro vapor saindo das turbinas e souberem que devem ser queimados vivos dentro de meio segundo, terão a satisfação momentânea de saber com quantos paus se faz uma canoa.
— Você poderá nos dispensar as piadas — interrompeu Bond, com aspereza. — Continue com sua história, Kraut.
Os olhos de Drax fuzilaram momentaneamente.
— Um Kraut. Sim eu sou realmente um Reichsdeutscher — a boca, por baixo do bigode vermelho, saboreava a linda palavra — e até a própria Inglaterra terá de concordar, dentro em breve, que foram liquidados por um único alemão. E então talvez parem de nos chamar de Krauts — POR ORDEM! — As palavras foram gritadas, e todo militarismo prussiano entrou em desfile lá embaixo.
Drax exultou do outro lado da escrivaninha, olhando Bond, os dentes grandes, espalhados e salientes sob o bigode vermelho, roendo nervosamente uma unha, depois da outra. Em seguida, enfiou com esforço a mão direita no bolso da calça, como para colocá-la a salvo da tentação, e pegou o charuto com a esquerda. Puxou umas tragadas durante alguns instantes e, depois, com a voz ainda tensa, começou.
CAPITULO 22
A CAIXA DE PANDORA
Meu verdadeiro nome — disse Drax dirigindo-se a Bond — é Graf Hugo von der Drache. Minha mãe era inglesa, e por causa dela fui educado na Inglaterra até a idade de doze anos. Depois, não pude mais suportar este país imundo e completei minha educação em Berlim e Leipzig.
Bond calculava facilmente que aquele brutamontes com cara de bicho-papão e dentes de bruxo não havia sido muito bem recebido numa escola particular inglesa. O fato de ser um conde estrangeiro com um mundo de nomes não teria ajudado muito.
Os olhos de Drax brilharam, cheios de reminiscências: — Quando fiz vinte anos, comecei a trabalhar no ramo de negócio da família. Era uma filial do grande truste de aço Rheinmetal Bórsig. Nunca ouviu falar dele, suponho. Pois bem, se foi ferido por uma bomba de 88mm. durante a guerra, provavelmente foi uma das de lá. Nossas filiais eram peritas em aços especiais, e eu aprendi a respeito deles, e muita coisa sobre a indústria aviatória. Nossos melhores fregueses. Foi quando ouvi, pela primeira vez, falar em columbita. Valendo o que valem os brilhantes naqueles dias. Liguei-me à firma, e quase imediatamente depois disso arrebentou a guerra. Uma época maravilhosa. Eu tinha vinte e oito anos e era tenente da 140a do Regimento Panzer. Nós investimos contra o Exército britânico, na França, e o atravessamos como uma faca por dentro da manteiga. Simplesmente embriagador.
Durante alguns instantes, Drax sugou o charuto, e Bond calculou que ele estava vendo as aldeias incendiadas da Bélgica através da fumaça.
— Aqueles dias eram formidáveis, meu caro Bond. — Drax esticou um braço comprido e bateu a cinza do charuto para o chão. — Mas aí fui escolhido para a Divisão Brandenburg e tive de deixar as pequenas e o champanha para voltar à Alemanha e começar o adestramento, a fim de executar o vasto pulo na água para a Inglaterra. Precisavam de meu in-glês na Divisão. Todos nós devíamos trajar uniformes ingleses. Teria sido engraçado, porém os malditos generais disseram que não podia ser, e eu fui transferido para o Serviço Secreto Estrangeiro do SS. O RSHA, era como se chamava. SS Obergruppenfuhrer Kaltenbrunner acabava de assumir o comando depois que Heydrich foi assassinado em 42. Ele era um bom homem, e eu estava sob as ordens diretas de um ainda melhor, Obersturmbannfuhrer — Drax enrolava na boca o título delicioso com prazer. — Otto Skorzeny. Sua tarefa na RSHA era o terrorismo e a sabotagem. Um agradável interlúdio, meu caro Bond, durante o qual eu pude registrar o nome de muitos ingleses, coisa que me deu muito prazer. Mas então — o punho de Drax esmagou a escrivaninha — Hitler foi novamente traído por aqueles miseráveis generais, e os ingleses e norte-americanos tiveram oportunidade de desembarcar na França.
— Foi uma pena — disse Bond, friamente.
— Sim, meu caro Bond, foi de fato uma pena. — Drax preferiu ignorar a ironia. — Mas para mim foi o ponto alto da guerra. Skorzeny transformou todos os seus sabotadores e terroristas em SS Jagdverbände, para usá-los na retaguarda das linhas inimigas. Cada Jagdverbände era dividida em Streifkorps, e depois em Kommandos, cada um deles levando os nomes de seus oficiais-comandantes. Com o posto de Oberleutnant — Drax encheu-se visivelmente de empáfia — à testa do Kommando “Drache”, eu penetrei diretamente nas linhas americianas com a famosa Brigada Panzer 150a na penetração de Ardennes, em dezembro de 44. Você se lembra, sem dúvida, do efeito causado por esta brigada em seus uniformes americanos e nos tanques e veículos americanos capturados. Kolossal! Quando a Brigada teve de se retirar, eu fiquei onde estiava e fui estabelecer-me nas Florestas de Ardennes, cinquenta milhas à retaguarda das linhas aliadas. Havia vinte rapazes, dez homens bons e dez Hitlerjugend Lobishomens. Todos com menos de vinte anos, mas todos bons rapazes. Por coincidência, o chefe deles era um jovem chamado Krebs, que demonstrou possuir determinados dons que o qualificaram para o pôsto de executor e “persuasor” de nosso alegre pequeno bando. Drax deu uma risadinha gostosa.
Bond lambeu os lábios, ao lembrar-se da brecha que Krebs fizera na cabeça batendo de encontro à cômoda. Ter-lhe-ia dado o pontapé com tanta força quanto lhe era possível dar? Sim, sua memória o tranquilizava, com cada grama de força que ele podia pôr no sapato.
— Ficamos naqueles bosques durante seis meses — continuou Drax, orgulhoso — e durante todo esse tempo dávamos notícias nossas à nossa Pátria por meio do rádio. Os caminhões de busca nunca deram conosco. E então aconteceu um desastre. — Drax sacudiu ia cabeça àquela lembrança. — Existia uma grande fazenda a uma milha de distância de nosso esconderijo na floresta. Uma porção de cabanas haviam sido construídas em torno dela, e eram usadas como quartel-general de retaguarda para um grupo de ligação. Ingleses e norte-americanos. Um lugar incrível. Sem disciplina, sem segurança, cheio de vadios e desertores vindos de todos os lugares da vizinhança. Nós vínhamos observando o grupo há muito tempo, e um dia eu resolvi fazer tudo aquilo voar pelos ares. O plano era simples. À noite, dois dos meus homens, um vestido num uniforme americano, e outro de uniforme britânico, deviam dirigir-se para lá num carro-patrulha capturado, contendo duas toneladas de explosivos. Havia um ponto de estacionamento para os carros — nenhuma sentinela, naturalmente — próximo à sala de refeitório, e eles deviam trazer o carro tão perto dela quanto possível, regular a explosão para a hora do jantar, às sete, e depois se afastarem. Tudo muito fácil, de modo que eu saí naquela manhã para tratar de negócios e deixei a missão para ser cumprida por meu segundo em comando. Eu estava vestido com o uniforme de Corpo de Sinaleiros britânicos, e parti numa motocicleta inglesa capturada por nós para enviar um despacho da mesma unidade que fazia o percurso diário num caminho ali perto. Está claro que ele veio pontualmente na hora, de modo que eu lhe segui atrás, saindo de um caminho lateral. Emparelhei com ele ei dei-lhe um tiro nas costas, tomei-lhe os documentos e, depois de colocá-lo em cima de sua própria motocicleta, levei-o para os bosques e toquei-lhe fogo.
Drax viu a fúria nos olhos de Bond e levantou a mão.
— Não foi muito esportivo? Meu caro, o homem já estava morto. Entretanto, prossigamos. Fui seguindo meu caminho, e então o que haveria de acontecer? Um dos aviões de vocês, voltando de um voo de reconhecimento, veio atrás de mim pela estrada com uma metralhadora. Um de seus próprios aviões! Jogou-me para longe da estrada. Só Deus sabe quanto tempo fiquei ali, caído no fosso. Em certo momento, durante a tarde, voltei a mim a tive o bom senso de esconder o boné e o dólmã com os despachos. Na cerca. Provavelmente ainda estão lá. Preciso ir buscá-los um dia. Lembranças interessantes. Depois toquei fogo nos restos da motocicleta e devo ter desmaiado novamente, porque quando tornei a dar por mim, tinha sido recolhido por um veículo britânico e estávamos seguindo para o maldito quartel-general de ligação! Acredite-se ou não! Lá estava o carro-patrulha, bem ao lado da sala do rancho! Era demais para mim. Eu estava cheio de estilhaços de bomba e minha perna estava quebrada. Pois bem, desmaiei, e quando voltei a mim, vi que metade do hospital se debruçava sobre mim, e eu só tinha a metade da cara.
Drax levantou a mão e alisou a pele lustrosa da têmpora e da face esquerda:
— Depois disso, tudo se resumiu numa questão de representar um papel. Eles não tinham ideia de quem eu era. O carro que me apanhara havia sido reduzido a simples fragmentos. Eu era apenas um inglês, vestido numa camisa e calças inglesas que quase morrera.
Drax fez uma pausa, tirou outro charuto e acendeu-o. Na sala reinou o silêncio, quebrado apenas pelo roncar atenuado do maçarico. Sua voz ameaçadora tornara-se mais baixa. A pressão está cedendo, pensou Bond.
Virou a cabeça e olhou Gala. Pela primeira vez, viu a lesão feia atrás de sua orelha esquerda. Endereçou-lhe um sorriso de encorajamento, e ela retorceu os lábios num sorriso de resposta.
Drax falava por dentro da fumaça do charuto:
— Não há muito mais coisa para contar. Durante o ano em que eu passei sendo enviado de um para outro hospital, elaborei meus planos sem omitir os mínimos detalhes. Consistiam muito simplesmente em vingar-me da Inglaterra pelo que me tinha feito e ao meu país. Confesso que, pouco a pouco, foi-se tornando uma obsessão. Cada dia que se passava no ano em que a destruição e a rapina campearam em meu país, meu ódio e desprezo pelos ingleses iam-se tornando cada vez mais amargos.
As veias do rosto de Drax começaram a inchar e, de repente, ele se pôs a desferir socos na mesa e a gritar para seus prisioneiros, fitando com olhos esbugalhados ora um, ora outro:
— Abomino e desprezo vocês todos. Seus porcos! Idiotas inúteis, ociosos, decadentes, escondendo-se por trás de seus malditos penhascos brancos, enquanto os outros povos travam batalhas por vocês. Fracos demais para defenderem suas colônias, bajulando a América com os chapéus nas mãos. Esnobes malcheirosos, que são capazes de fazer qualquer coisa por dinheiro. Ah! — Drax estava triunfante. — Eu sabia que precisava apenas de dinheiro e a aparência de um gentleman. Um gentleman! Pfui Teufel! Para mim um gentleman é apenas alguém de quem eu posso tirar vantagem. Aqueles malditos imbecis no Blades, por exemplo. Cretinos endinheirados. Durante meses a fio tirei milhares de libras deles, tapeei-os bem debaixo de seus narizes, até que você apareceu e estragou o brinquedo.
Os olhos de Drax se apertaram.
— Como foi que descobriu o truque da cigarreira — perguntou incisivo.
Bond deu de ombros.
— Com os olhos — respondeu indiferente.
— Ah, bem. Talvez eu estivesse um tanto descuidado naquela noite. Mas onde é mesmo que eu estava? Ah, sim, no hospital. Os bons médicos mostravam-se tão ansiosos por me ajudarem a descobrir quem eu era realmente. — Soltou uma gargalhada. — Foi fácil. Muito fácil. Dentre as identidades que eles me ofereciam com tanta boa vontade, topei com o nome de Hugo Drax. Que coincidência! De Drache para Drax! Como quem hesita, pensei que podia ser eu. Eles sentiram-se muito orgulhosos. Sim, afirmaram, naturalmente que é você. Triunfalmente, fizeram-me entrar-lhe na pele. Saí do hospital dentro dela, começando a rodar por Londres à cata de alguém para matar e roubar. Até que um dia, num pequeno escritório acima de Piccadilly, encontrei um agiota judeu. (Drax agora falava muito depressa. As palavras jorravam-lhe excitadamente dos lábios. Bond reparou num aglomerado de espuma que se formava num canto de sua boca e crescia.) — Ah, foi fácil. Uma bordoada em seu crânio nu. Quinze mil libras no cofre. Então tratei de me afastar do País. Fui para Tânger — onde se podia fazer qualquer coisa, comprar qualquer coisa, arranjar qualquer coisa que se desejasse. Columbita. Mais rara que a platina, e todos prontos a adquiri-la. A Era do Jato. Eu conhecia essas coisas. Não me havia esquecido de minha profissão. Então, por Deus, lhe digo que trabalhei. Durante cinco anos vivi para o dinheiro. Fui valente como um leão. Corri riscos tremendos. E eis que, de repente, o primeiro milhão me chega às mãos. Depois o segundo. Em seguida o quinto. Depois o vigésimo. Voltei para a Inglaterra. Gastei um milhão aqui, e Londres estava no papo. Depois voltei à Alemanha. Encontrei Krebs. Encontrei cinquenta deles. Alemães leais. Técnicos brilhantes. Todos vivendo sob nomes falsos, como tantos outros de meus antigos camaradas. Dei-lhes minhas ordens, e eles esperaram, pacificamente, inocentemente. E onde estava eu?
Drax fitou Bond, com os olhos arregalados:
— Eu estava em Moscou! Moscou! Um homem que tem columbita para vender pode ir a qualquer lugar. Encontrei as pessoas indicadas para meu caso. Ouviram meus planos. Deram-me Walter, o novo gênio de seus mísseis teleguiados da estação de Peenemunde, e os bons dos russos começaram a construir a cápsula dos instrumentos e explosivos, a cápsula atômica — apontou para o teto — que está agora nos esperando ali. Então tornei a regressar para Londres. — Fez uma pausa. — A Coroação. Minha carta para o Palácio. Triunfo. Hurras para Drax. — O homem estourou numa gargalhada. — A Inglaterra estava aos meus pés. Todos os malditos cretinos do país! Foi quando meus homens chegaram, e nós começamos. Bem juntos das saias da Grã-Bretanha. No alto de seus famosos penhascos. Trabalhamos como loucos. Construímos um cais no seu Canal inglês. Para receber fornecimentos! Suprimentos vindos de meus bons amigos os russos, que chegaram na hora exata, segunda-feira à noite. Mas foi aí que Tallon teve de ouvir alguma coisa. O velho imbecil. Falou com o Ministério. Mas Krebs estava ouvindo. Apareceram cinquenta voluntários para matar o homem. Tiramos a sorte, e Bartsch morreu como um herói. — Drax fez nova pausa. Depois continuou. — A nova cápsula foi içada para o lugar. Deu certo. Uma perfeita peça de encomenda. O mesmo peso. Tudo perfeito, como a antiga, a caneca de folha, cheia dos queridos instrumentos do Ministério, está agora em Stettin — atrás da Cortina de Ferro. O fiel submarino está de viagem de volta para aqui, e dentro em breve — olhou o relógio — estará navegando sob as águas do Canal inglês para nos levar a todos para longe, quando passar um minuto de meio-dia amanhã.
Drax limpou a boca com as costas da mão e recostou-se de novo na cadeira fitando o teto, os olhos povoados de visões. De repente, riu e olhou interrogativamente para Bond, passando o olhar pelo próprio nariz:
— Quer saber qual será a primeira coisa que nós faremos quando estivermos a bordo? Rasparemos esses famosos bigodes nos quais você estava tão interessado. Você cheirou um camundongo, meu caro Bond, onde devia ter cheirado um rato. Aquelas cabeças raspadas e aqueles bigodes: que nós cultivávamos tão assiduamente. Apenas uma precaução, meu caro. Experimente raspar a própria dabeça e deixar crescer um bigodão preto. Nem mesmo sua mãe o reconheceria. É a combinação das duas coisas que produz o efeito. Apenas um mínimo refinamento. Precisão, meu caro. Precisão, em cada detalhe. Foi esta a minha palavra de passe. — Drax deu uma risadinha sem graça e puxou uma boa fumarada do charuto. Súbito, olhou incisivamente, desconfiado, para Bond. — Então? Diga alguma coisa. Não fique aí sentado como uma múmia. Que pensa de minha história? Não acha que é extraordinária? Notável? Um homem ter feito tudo isto? Vamos, vamos, fale.
Uma das mãos foi levada até a boca, e Drax começou a roer as unhas furiosamente. Mas, em seguida, meteu-a no bolso, e seus olhos tornaram-se frios e cruéis.
— Ou quer que mande buscar Krebs — fez um gesto para o telefone em cima da escrivaninha. — O Persuasor. Pobre Krebs! É como uma criança a quem tivessem arrebatado os brinquedos. Ou talvez Walter. Eles lhes dariam uma lembrança para toda a vida. Esse aí não tem um pingo de moleza. Então?
Bond começou a falar, olhando a caraça vermelha, do outro lado da escrivaninha:
— Não resta dúvida, é um caso notável. Paranoia galopante. Ilusões de ciúme e perseguição. Ódio megalomaníaco e desejo de vingança. Fato bastante curioso — continuou dizendo, em tom de conversação — poderá ter alguma relação com seus dentes. Diastema, é como chamam isto. Acontece quando a criança chupa o dedo na infância. Sim. Tenho a impressão de que será isto o que dirão os psicólogos, assim que lhe puserem no hospício. “Dentes de bicho-papão.” Foi atormentado na escola etc. É extraordinário o efeito produzido numa criança. Então o nazismo ajudou a soprar as flamas, e ainda aconteceu você levar aquela pancada feia na sua feia cabeça. A pancada que você mesmo engendrou. Acho que foi o que estava faltando. Dali por diante, você passou a ser realmente louco. Do mesmo gênero desses que acreditam serem Deus. É extraordinário observar como são tenazes. Completamente fanáticos. Você é quase um gênio. Lombroso teria ficado encantado com você. No ponto em que estão as coisas, você não passa de um cão danado que precisa ser morto. Ou então você se suicida. Os paranoicos geralmente se matam. É uma pena. Coisa triste, mesmo.
Bond fez uma pausa e pôs todo o desprezo que pôde acumular na voz:
— E agora, continuemos com esta farsa, vamos, seu lunático cabeludo.
Deu resultado. A cada palavra de Bond, a cara de Drax ia se contorcendo de raiva cadia vez maior, os olhos estavam vermelhos de cólera, o suor da fúria pingava de suas mandíbulas para a camisa, os lábios se afastariam dos dentes irregulares, e um fio de saliva saíra-lhe da boca e lhe escorria pelo queixo. Agora, com o último insulto sobre a escola particular, que devia ter-lhe despertado sabe Deus que espécie de lembranças dolorosas, ele pulou da cadeira, rodeou a escrivaninha, investiu contra Bond, os punhos cabeludos martelando. Bond rangeu os dentes e aguentou.
Quando Drax teve de pegar a cadeira do chão pela segunda vez, com Bond em cima dela, a tempestade de raiva passou subitamente. Tirou do bolso o lenço de seda e limpou o rosto e as mãos. Depois, encaminhou-se calmamente para a porta e falou, olhando por cima da cabeça pendente de Bond e dirigindo-se à pequena.
— Não creio que vocês dois me deem mais trabalho — declarou com a voz perfeitamente calma e segura. — Krebs nunca comete enganos com seus nós.
Gesticulou em direção à figura ensanguentada da outra cadeira:
— Quando ele acordar, pode dizer-lhe que estas portas ainda se abrirão mais uma vez, pouco antes do meio-dia de amanhã. Alguns minutos mais tarde, não sobrará nada de nenhum de vocês dois. Nem mesmo — acrescentou, ao escancarar a porta de dentro — as obturações de seus dentes.
A porta externa bateu.
Bond levantou lentamente a cabeça e sorriu dolorosamente para sua companheira com os lábios manchados de sangue. Explicou com dificuldade:
— Tive de deixá-lo louco. Não quis que ele tivesse tempo para pensar. Tive de provocar aquela tempestade cerebral.
Gala olhava-o sem compreender, os olhos arregalados para a máscara terrível de seu rosto.
— Está tudo bem. Não se preocupe. Londres está O.K. Tenho um plano.
Sobre a escrivaninha, o maçarico fez um “pleft” baixinho e apagou.
CAPÍTULO 23
MENOS ZERO
Por entre os olhos entreabertos, Bond fitou demoradamente o maçarico, enquanto por alguns preciosos segundos permanecia sentado e deixava a vida voltar-lhe lentamente ao corpo. Tinha a impressão de que sua cabeça fora usada como bola de futebol, mas não tinha nada quebrado. Drax batera-lhe sem nenhuma ciência e com a confusão de golpes de um homem embriagado.
Gala observava-o ansiosamente. Os olhos, no rosto sanguinolento, estavam quase fechados, mas a linha do queixo aparecia tensa de concentração, e ela percebia o esforço de vontade que ele fazia.
Bond sacudiu a cabeça, e quando se voltou para ela, Gala viu que seus olhos estavam febris pelo triunfo.
Fez um gesto na direção do isqueiro.
— O isqueiro. Eu tive de tentar fazê-lo esquecer-se dele. Siga-me. Vou-lhe mostrar como.
Começou a balançar a leve cadeira de aço, polegada por polegada, em direção à escrivaninha:
— Pelo amor de Deus, não vá virar de pernas para cima, do contrário estará tudo perdido. Mas procure apressar-se senão o maçarico esfria.
Sem compreender, sentindo-se quase como se tomasse parte em algum fantástico brinquedo infantil, Gala, cautelosamente, foi balançando a cadeira pelo chão atrás dele.
Segundos depois, Bond lhe disse que parasse ao lado da escrivaninha, enquanto ele continuava o balanço até a cadeira de Drax. Depois, manobrou de modo a tomar posição em frente ao seu alvo e, com uma súbita guinada, suspendeu-se com a cadeira, de forma que sua cabeça ficou para baixo.
Ouviu-se um estalo, quando o isqueiro Ronson, de escrivaninha, prendeu-se-lhe nos dentes, mas seus lábios sustiveram-no, e a parte superior ficou-lhe na boca, assim que ele impulsionou a cadeira para a primeira posição, apenas com a força suficiente para impedir que saltasse fora. Em seguida, recomeçou sua paciente viagem de volta para o ponto onde Gala se encontrava sentada, no canto da escrivaninha onde Krebs deixara a lâmpada.
Bond descansou até sua respiração tornar-se novamente regular.
— Chegamos agora à parte difícil — avisou, severo. — Enquanto eu tento fazer este maçarico funcionar, você vai rodando sua cadeira, de modo que seu braço direito fique tanto quanto possível defronte de mim.
Obedientemente, a moça foi executando os movimentos, enquanto Bond balançava sua cadeira, de forma que esta se encostou a beira da escrivaninha e permitiu que sua boca alcançasse e agarrasse o cabo do maçarico entre os dentes.
Em seguida, foi trazendo o maçarico para perto e, depois de alguns minutos de trabalho paciente, conseguiu colocar o maçarico e o isqueiro como desejava, na borda da escrivaninha.
Após outro descanso, curvou-se, fechou a válvula da tocha com os dentes, e começou a fazer voltar a pressão, puxando lenta e repetidamente o pistão com os lábios e apertando-o de volta com o queixo. Sentia no rosto o calor do aquecedor e sentia o cheiro dos restos de gás no pequeno instrumento. Se ao menos não tivesse esfriado demais.
Endireitou o corpo.
— Ultima etapa, Gala — disse sorrindo quase com esforço para ela. — Talvez eu tenha de lhe machucar um pouco. Não faz mal?
— Claro que não — respondeu a moça.
— Então lá vai — disse Bond, e curvou-se para a frente, soltando a válvula de segurança à esquerda do depósito.
Depois debruçou-se rapidamente sobre o Ronson, que estava no ângulo direito e bem debaixo do tubo da tocha. Com os dois dentes incisivos apertou para baixo a trave de ignição.
Era uma manobra horrível e, apesar de ele sacudir a cabeça para trás com a rapidez de uma serpente, deixou escapar um leve gemido de dor, quando o jato de fogo azul do maçarico subiu-lhe pela face machucada e pela ponta do nariz.
Mas a parafina vaporizada sibilava sua língua vital de chama, e ele sacudiu as lágrimas dos olhos, curvando a cabeça quase até o ângulo direito e novamente prendeu a haste do maçarico nos dentes.
Teve a impressão de que seu queixo se partiria com o peso da coisa, e os nervos dos dentes da frente reclamaram, mas ele balançou a cadeira cautelosamente até colocá-la em posição vertical, afastada da escrivaninha, e então forçou o pescoço a curvar-se para a frente, até que a ponta da chama azul da tocha mordeu o ponto que ligava o pulso direito de Gala ao braço da cadeira.
Bond tentou desesperadamente conservar a chama firme, contudo a respiração da moça raspou-lhe entre os dentes, angustiada, quando o cabo se movia entre suas mandíbulas, e o maçarico queimou-lhe o antebraço.
Então tudo acabou. Derretido pelo forte calor, as tiras de cobre foram-se partindo uma por uma e, de repente, o braço direito de Gala ficou livre, e ela o estendeu para tomar o maçarico da boca de Bond.
A cabeça do rapaz caiu novamente para trás, entre os ombros, e ele torceu-a para todos os lados, a fim de conseguir fazer o sangue circular pelos músculos doloridos.
Antes mesmo que ele se desse conta, Gala já se inclinava sobre seus braços e pernas, e ele também estava livre.
Ao sentar-se imóvel por um momento, os olhos fechados, esperando que a vida lhe voltasse ao corpo, sentiu de repente, encantado, os lábios macios de Gala sobre os seus.
Abriu os olhos. Ela estava de pé, diante dele, os olhos brilhando.
— Isto é pelo que você fez — falou, muito séria.
— Você é uma garota maravilhosa — disse Bond. Depois, porém, sabendo o que ia fazer, sabendo que era bem concebível que ela sobrevivesse, mas que ele só tinha mais alguns minutos de vida, fechou os olhos para que ela não visse a desesperança neles.
Gala observou-lhe a expressão do rosto e virou de costas. Pensou que fosse apenas exaustão e o efeito do que seu corpo tinha sofrido. Lembrou-se aí, de repente, da água oxigenada no banheiro pegado ao seu escritório.
Passou pela porta de comunicação. Como era extraordinário ver suas coisas familiares novamente. Devia ser outra pessoa que se sentara naquela escrivaninha e batera na máquina a correspondência, outra moça a que ali empoara o nariz. Sacudiu os ombros e foi para o toalete. Meu Deus, que cara, e só Deus sabe como se sentia cansada! Mas primeiro pegou uma toalha molhada, um pouco de água oxigenada, e voltou. Durante dez minutos tratou do campo de batalha que era a cara de Bond.
Este permanecia sentado em silêncio, uma das mãos descansando na cintura dela e observando-a agradecido. Depois, quando ela voltou para o escritório e fechou a porta do banheiro após entrar, ele se levantou, apagou o maçarico que ainda silvava, e encaminhou-se para o chuveiro de Drax, tirou a roupa e permaneceu durante cinco minutos debaixo da água gelada. “Preparando o corpo”, pensou melancòlicamente, ao examinar o rosto maltratado no espelho.
Vestiu as roupas e voltou para a escrivaninha de Drax, que revistou metòdicamente. Esta lhe proporcionou apenas um prêmio, a “garrafa do escritório”, cheia até a metade de Haig and Haig. Foi buscar dois copos, um pouco de água e chamou Gala.
Ouviu-a abrir a porta do banheiro.
— O que é? — Uísque.
— Vá tomando o seu. Estarei pronta daqui a um minuto.
Bond olhou a garrafa, serviu três quartos de um copo de escovas de dentes e tomou-o de uma vez, em dois goles. Em seguida, acendeu meio trêmulo um abençoado cigarro e sentou-se na borda da escrivaninha, sentindo o álcool queimá-lo no estômago, descendo-lhe até as pernas.
Pegou a garrafa novamente e olhou-a. Ainda havia muito para Gala e um copo inteiro para ele, antes de sair por aquela porta. Era melhor que nada. Não seria tão difícil com aquilo dentro de si, contanto que saísse em passos rápidos o fechasse a porta depois. Nada de olhar para trás.
Gala entrou, uma Gala transformada, parecendo tão bela quanto na noite em que a vira pela primeira vez, exceto as linhas de exaustão sob os olhos, que o pó não disfarçava totalmente, e os feios vincos nos pulsos e tornozelos.
Bond deu-lhe um drinque e tomou outro. Os olhos de ambos sorriam por cima da orla dos copos.
Depois Bond se ergueu.
— Escute, Gala — começou num tom de voz bem natural . — Nós temos de enfrentar o que está por vir e terminar com a história, de modo que serei breve e depois tomaremos outra dose.
Bond ouviu quando ela prendeu a respiração, mas continuou:
— Dentro de dez minutos, mais ou menos, eu vou fechá-la no banheiro de Drax, pôr você debaixo do chuveiro, e abri-lo completamente.
A moça gritou, aproximando-se dele:
— James. Não continue. Eu sei que você vai dizer qualquer coisa horrível. Pare, por favor, James.
— Deixe disso, Gala — disse Bond com aspereza. — Que diabo adianta tudo isto. É um milagre maldito, se é que posso dizer assim, e nós temos a oportunidade.
Afastou-se dela. Encaminhou-se então para as portas que conduziam ao foguete.
— Depois então — prosseguiu, segurando o precioso isqueiro na mão direita — eu sairei daqui, fecharei as portas e acenderei um último cigarro debaixo da cauda do “Explorador da Lua”.
Meu Deus! — sussurrou a moça. — Que é que você está dizendo? Você está louco.
Fitou-o com os olhos arregalados de horror.
— Não seja ridícula — disse Bond impaciente. — Que diabo nos resta fazer? A explosão será tão pavorosa, que ninguém sentirá nada. Deve dar resultado, com todo esse combustível em vapor circulando em redor. Trata-se de mim ou de um milhão de pessoas em Londres. A cápsula não se soltará. As bombas atômicas não explodem assim. Com certeza derreterá. Só há uma chance de você escapar. A maior parte da explosão se encaminhará para a linha de menor resistência através do telhado — e por baixo, pela cavidade exaustora, se eu conseguir fazer funcionar o maquinismo que abre o chão.
Bond sorriu.
— Ânimo — pediu, caminhando para ela e pegando-lhe uma das mãos. — O rapaz ficou de pé no tombadilho incendiado. Eu quis imitá-lo desde os cinco anos de idade.
Gala puxou a mão.
— Não me importa o que você está dizendo — declarou encolerizada. — Temos de pensar em outra coisa qualquer. Você não me acha capaz de ter nenhuma ideia. Vai só me dizendo o que pensa e o que temos de fazer.
Dirigiu-se para o mapa da parede e apertou o interruptor.
— Naturalmente, se tivermos de usar o isqueiro, usá-lo-emos. — Olhou o mapa do falso plano de voo, mal vendo o que tinha diante dos olhos. — Mas a ideia de você caminhar ali sozinho e ficar no meio daqueles horríveis vapores do combustível e calmamente acender essa coisa para depois ser reduzido a pó... Entretanto, se tivermos de agir assim, agiremos juntos. É preferível, melhor do que ser queimada até morrer aqui dentro. De qualquer maneira — fez uma pausa — eu gostaria de ir com você. Nós entramos juntos nesse negócio.
Os olhos de Bond estavam cheios de ternura, quando caminhou em direção à moça, passou-lhe um braço em volta da cintura e abraçou-a bem junto a si.
— Gala, você é um amor — disse com simplicidade. — Se houver outro meio, nós o tentaremos. Mas — olhou o relógio — já passa de meia-noite, e nós precisamos tomar uma resolução rápida. A qualquer momento pode ocorrer a Drax a ideia de mandar guardas para ver sé nós estamos em ordem, e só Deus sabe a que horas ele virá aqui acertar o giroscópio.
Gala torceu o corpo como uma gata. Fitou-o com a boca aberta, o rosto tenso de excitação. Sussurrou:
— O giroscópio, para acertar o giroscópio. Encostou-se novamente de leve contra a parede, os. olhos procurando o rosto de Bond.
— Você não compreende? — sua voz estava beirando a histeria. — Depois que ele sair, nós poderíamos alterar o giroscópio para onde estava, de acordo com o antigo plano de voo, e então o foguete cairia simplesmente no Mar do Norte, onde se julga que irá cair.
Gala afastou-se da parede e agarrou a camisa de Bond com as duas mãos, fitando-o com um olhar que implorava:
— Não poderíamos? Não poderíamos?
— Você conhece as outras direções? — perguntou Bond, ansioso.
— Claro que sim. Convivo com eles há um ano. Nós não teremos uma previsão do tempo, mas teremos de nos arriscar. A previsão desta manhã dizia que nós teríamos as mesmas condições de hoje.
— Por Deus — disse Bond. — Nós poderíamos fazer isto. Se conseguirmos esconder-nos nalgum lugar e fazer Drax imaginar que escapamos. Que tal o túnel exaustor, se eu conseguir fazer funcionar a máquina que abre o assoalho?
— São trinta e tantos metros de queda em linha reta — disse Gala, sacudindo a cabeça. — E as paredes são de aço polido. Como vidro. Além do mais, não há corda ou coisa alguma aqui. Eles tiraram tudo da oficina ontem. Sem contar com os guardas na praia.
Bond refletiu. Depois seus olhos tornaram-se brilhantes:
— Tenho uma ideia. Mas em primeiro lugar, que me diz você do radar, o radar de retorno de Londres? Ele não empurrará o foguete para fora do seu curso e de volta para Londres?
Gala sacudiu a cabeça:
— Ele só trabalha dentro de um raio de cem milhas, mais ou menos. O foguete nem sequer pegará seu sinal. Se estiver apontando para o Mar do Norte, entrará na órbita do transmissor da jangada. Não há nada de errado nos meus planos. Mas onde nos poderemos esconder?
— Num dos tubos de ventilação — respondeu Bond. — Vamos.
Lançou um último olhar à sala. O isqueiro estava em seu bolso. Aquilo seria o último recurso. Não havia mais nada que eles fossem precisar. Seguiu Gala para o cintilante cilindro e dirigiu-se ao painel de instrumentos que controlava a capa de aço da cavidade exaustora.
Após um rápido exame, moveu uma pesada barra de Zu a Auf. Ouviu-se um leve sibilo da máquina hidráulica atrás da parede, e os dois semicírculos de aço se abriram sob a cauda do foguete, deslizando depois novamente para o lugar. Bond seguiu em frente e olhou para baixo.
Os arcos no telhado lá em cima cintilavam em resposta ao seu olhar, de lá das paredes polidas do largo funil de aço, até se curvarem desaparecendo de suas vistas, em direção ao distante clamor ôco do mar.
Bond voltou ao escritório de Drax e puxou para baixo a cortina do boxe do chuveiro. Depois, Gala e ele rasgaram em tiras a cortina e ligaram umas às outras. Deu um rasgão em feitio de um V no fim da última tira para dar a impressão de que a corda da fuga tinha-se partido. Amarrou então a outra extremidade firmemente em torno da ponta aguda de uma das três barbatanas do “Explorador da Lua” e deixou cair o resto de modo que descesse pelo cilindro.
Não era lá grande coisa como falsa pista, mas podia servir para ganhar um pouco de tempo.
As bocarras redondas dos ventiladores tubulares tinham o espaço de umas dez jardas entre si e ficavam a cerca de 1.50m do chão. Bond contou. Havia cinquenta delas. Abriu cautelosamente a grade presa em gonzos que cobria uma delas e olhou para cima. A uma distância de doze metros via-se um leve brilho vindo do luar lá fora. — Chegou à conclusão de que estavam emparedados bem dentro do túnel formado pelo muro da base, até que viraram para os ângulos direitos, em direção aos gradeados das paredes exteriores.
Bond estendeu o braço e correu a mão pela superfície. Era de um concreto rústico, inacabado, e ele grunhiu de satisfação, quando sentiu primeiro uma forte protuberância, e depois outra. Eram as extremidades bifurcadas das varas de aço que reforçavam as paredes, cortadas onde os cilindros começavam.
Ia ser uma coisa dolorosa, mas não havia dúvida de que poderiam ir-se arrastando, centímetro por centímetro, por um desses cilindros, tal como alpinistas numa chaminé rocha acima e, na curva do topo, ficarem ocultos de tudo, menos da busca complicada que seria difícil de manhã com todos os oficiais de Londres em redor da base.
Bond se ajoelhou, e a moça montou-lhe às costas, depois do que começaram a subir.
Uma hora depois, com os pés e os ombros machucados e cortados, deitaram-se exaustos, apertados bem fortemente nos braços um do outro, as cabeças afastadas alguns centímetros do gradeado circular, situado diretamente acima da porta externa, e puseram-se a ouvir os guardas mexendo os pés incessantemente dentro da escuridão, cem jardas distante deles.
Cinco horas, seis, sete.
Lentamente o sol apareceu por trás da cúpula, e as gaivotas começaram a gritar nos penhascos. Então, surgiram de súbito as três figuras caminhando para eles na distância, passaram por um novo pelotão de guardas, os queixos levantados, os joelhos erguidos, vindos para render a ronda noturna.
As figuras foram-se aproximando, e os olhos apertados, exaustos, do casal oculto puderam ver todos os detalhes da cara vermelho-alaranjada de Drax, o pálido focinho de raposa do Dr. Walter, a nédia e balofa cara de sono de Krebs.
Os três homens caminhavam como se fossem executores de um fuzilamento, sem dizer nada. Drax tirou a chave, e eles, silenciosamente, entraram pela porta, alguns pés abaixo dos corpos tensos de Bond e Gala.
Depois, durante dez minutos, reinou o silêncio, quebrado apenas pelo som ocasional de vozes que subiam pelo cilindro do ventilador, quando os três homens se movimentavam pelo chão de aço em torno da cavidade exaustara. Bond sorriu consigo mesmo à ideia do ódio e da consternação que deveriam estampar-se no rosto de Drax; do infeliz Krebs, encolhendo-se sob as chicotadas da língua de Drax; a amarga acusação nos olhos de Walter. Foi então que a porta se escancarou abaixo dele, e Krebs chamou, imperioso, o chefe dos guardas.
— Die Engländer — a voz de Krebs era quase histérica. —Escaparam. O Herr Kapitän pensa que possam estar num dos tubos de ventilação. Vamos arriscar. A cúpula será aberta novamente, e nós vamos eliminar os vapores do combustível. Depois então o Herr Doktor passará a mangueira de vapor quente em cada um dos tubos. Se eles estiverem num deles, isto os liquidará. Escolha quatro homens. As luvas de borracha e as vestimentas para incêndio estão lá embaixo. Nós vamos tirar a pressão do aquecimento. Diga aos outros que prestem atenção para ver se escutam os gritos. Verstanden?
— Zu Befehl!
O homem voltou diligentemente para junto de seu grupo, e Krebs, com o suor da ansiedade no rosto, voltou-se e desapareceu novamente pela porta.
Por um momento Bond permaneceu imóvel.
Ouviram rumores pesados acima de suas cabeças, quando a cúpula se dividiu em dois e se abriu. A mangueira de vapor quente!
Bond ouvira contar de motins em navios sendo combatidos com isto. Desordens em fábricas. Será que alcançará doze metros? A pressão durará? Quantas caldeiras alimentavam o aquecimento? Entre os cinquenta tubos de ventilação, qual seria o escolhido para começarem? Teria Bond ou Gala deixado qualquer indício, com relação àquele que haviam subido?
Bond sentia que Gala esperava que ele explicasse. Que fisesse alguma coisa. Que protegesse a ambos.
Cinco homens vieram aproximando-se do semicírculo de guardas. Passaram por baixo e desapareceram.
Bond pôs a boca no ouvido de Gala.
— Isto poderá machucar — avisou. — Não posso prever quanto. Não pode ser evitado. Teremos de aguentar. Sem fazer barulho.
Sentiu logo a pressão dos braços dela, à guisa de resposta:
— Levante os joelhos. Não fique acanhada. A hora não é para pudores virginais.
— Cale a boca — sussurrou Gala, zangada. Ele sentiu um joelho subir e ficar trancado entre suas coxas. Seu próprio joelho seguiu por ali até não conseguir estender-se mais. A moça se remexia furiosamente.
— Não seja idiota — cochichou Bond, puxando-lhe a cabeça para junto do peito, até que ficou meio encoberta pela sua camisa aberta.
Bond encobriu-a tanto quanto possível. Não podiam fazer nada com relação aos tornozelos e as mãos. Levantou a gola da camisa, o mais que pôde por cima das cabeças. Apertavam-se um contra o outro.
Quentes, cheios de câimbras, sem respirar. Esperando — de repente a ideia ocorreu a Bond, como dois namorados debaixo de arbustos, ocultos. Esperando que as pisadas se afastassem, de modo a poderem principiar tudo novamente. Sorriu amargamente consigo mesmo e pôs-se à escuta.
O silêncio reinava lá embaixo, no foguete. Deviam estar na sala das máquinas. Walter devia estar assistindo à instalação da mangueira na válvula externa. Agora ouviam-se ruídos distantes. Por onde começariam?
Num ponto qualquer, não muito longe, havia um sussurro leve, bem arrancado do fundo, como o apito ineficiente de um trem distante.
Bond dobrou para trás o colarinho da camisa e arriscou um olhar por entre as grades, até os guardas. Os que conseguiu ver, olhavam em frente para a cúpula do lançamento, um pouco à sua esquerda.
Novamente o longo sussurro áspero. E mais uma vez se repetiu.
Ia ficando mais alto. Viu as cabeças dos guardas rodando para o lado das grades das paredes que ocultavam Gala e ele. Deviam estar observando, fascinados, enquanto os jatos brancos e espessos de vapor subiam pelas grades até lá em cima ha parede de cimento, conjeturando: “— Será esta, ou aquela, ou aquela outra, qual será que virá acompanhada de um duplo grito.”
Sentia o coração de Gala batendo de encontro ao seu. Ela não sabia o que estava por acontecer. Confiava nele.
— Pode machucar — sussurrou-lhe novamente. — Pode queimar. Não nos matará. Tenha coragem. Não emita um som.
— Eu estou bem — cochichou a moça, encolerizada. Mas ele percebeu que seu corpo se colava mais ao dele. Chuá! Estava chegando mais perto.
Chuá! A diferença era de dois tubos.
CHUÁ! Pegado a eles. Sentiu um leve cheiro do vapor.
— “Fique bem firme”, ordenou Bond a si mesmo. Esmagou a companheira de encontro ao próprio corpo e prendeu a respiração.
— “Agora. Depressa. Acabem com isso, desgraçados.”
E eis que, subitamente, houve uma grande pressão; o calor e um barulho infernal chegou-lhes aos ouvidos, seguidos de um instante de dor intolerável.
Depois um silêncio mortal, uma mistura de frio intenso e fogo nos tornozelos e nas mãos, uma sensação de estarem ensopados, e um esforço desesperado, sufocante, de fazer o ar puro penetrar nos pulmões.
Seus corpos lutaram automaticamente para se separarem um do outro, para conseguir alguns centímetros de espaço e ar para as áreas da pele que já começavam a cobrir-se de bolhas. A respiração rasgava-lhes as gargantas, e a água porejava do cimento para dentro de suas bocas abertas, até que ambos se curvaram para um lado e atiraram-na fora, e ela foi juntar-se ao riachinho que corria por baixo de seus corpos ensopados, descendo pelos tornozelos escaldantes e dali para as paredes verticais do tubo pelo qual haviam subido.
O uivo da mangueira a vapor afastou-se deles até se tornar um sussurro e, finalmente, cessar. Reinou então o silêncio na estreita prisão de cimento de ambos, ouvindo-se apenas suas teimosas respirações e o tique-taque do relógio de Bond.
Os dois corpos continuavam deitados e à espera, aguentando a dor.
Meia hora — meio ano — mais tarde, Walter, Krebs e Drax seguiram em fila por baixo deles.
No entanto, como medida de precaução, os guardas tinham sido deixados para trás na cúpula do lançamento.
CAPITULO 24
ZERO
Então estamos combinados?
— Sim, Sir Hugo — era o Ministro do Abastecimento quem falava. Bond reconheceu a figura espigada, segura de si. — As direções são aquelas. Meu pessoal verificou-as, independentemente, com o Ministério da Aeronáutica esta manhã.
— Neste caso, se me permite o privilégio — Drax levantou o pedacinho de papel e ia virando em direção à cúpula.
— Segure-a, Sir Hugo. Assim mesmo, por favor. O braço esticado no ar.
As lâmpadas dos flashes se acenderam, e o conjunto de câmaras zumbiu e estalou pela última vez. Drax voltou-se e andou os poucos metros que o separavam da cúpula, quase, assim pareceu a Bond, fitando-o diretamente nos olhos através do gradeado acima da porta da casamata.
A pequena turba de repórteres e fotógrafos dissolveu-se e encaminhou-se para o caminho de concreto, deixando para trás apenas um grupinho de oficiais que conversavam nervosamente, à espera de que Drax surgisse em cena.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e cinco. “Depressa, seu danado”, pensou.
Pela centésima vez repetiu para si mesmo os números qus Gala lhe ensinara durante as horas de dor e câimbras que se seguiram à provação do vapor, e pela centésima vez movimentou os membros para preservar a circulação.
— Apronte-se — cochichou no ouvido de Gala. — Está se sentindo bem?
Sentiu que a moça sorria.
— Ótimo.
Ela fechou a mente à ideia de suas pernas todas cheias de bolhas e da rápida descida, raspando-as pelo tubo de ventilação .
A porta fechou-se com um baque abaixo deles, seguindo-se o estalido da fechadura, e então, precedida por cinco guardas, a figura de Drax apareceu lá embaixo, marchando solene para o grupo de oficiais, a tira de papel com os números na mão.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e sete. — Agora — sussurrou.
— Boa sorte — respondeu Gala, também num sussurro. Escorregando, arranhando-se, rasgando-se. Seus ombros, cautelosamente, se expandiam e contraíam; os pés, cheios de bolhas, de sangue, procurando as saliências agudas do ferro; com o corpo dilacerado abrindo caminho através do tubo de um metro, rezava para que a pequena encontrasse forças para suportar tudo aquilo, quando o seguisse.
Finalmente, o pulo de três metros, que lhe repercutia na espinha, um pontapé nas grades, e ele galgava o chão de aço, corria para as escadas, deixando uma trilha de pegadas vermelhas e um borrifo de gotas de sangue caídas de seus ombros feridos.
Os arcos de luz haviam sido apagados, mas o clarão do dia penetrava pelo telhado aberto, e o azul do céu misturado ao fulgor da luz do sol davam a Bond a impressão de que estava correndo dentro de uma enorme safira.
A grande e mortal agulha no centro parecia ser feita de vidro. Olhando para cima, enquanto suava e arfava no percurso das infindáveis curvas da escada de ferro, era difícil para ele ver onde o nariz do foguete, afinando na ponta, terminava, e começava o céu.
Por trás do pesado silêncio que envolvia a bala esplendente, Bond ouvia um ruído apavorante e regular, o caminhar de minúsculos pés de metal num ponto qualquer do corpo do “Explorador da Lua”. Enchia o vasto compartimento de aço, como as batidas do coração na história de Poe, e Bond compreendeu que Drax, diretamente do ponto do tiro, apertara o interruptor que mandava a faixa radiofônica, disparando a mais de duzentas jardas até o foguete ali à espera. O tique-tique cessaria dentro em breve, ouvir-se-ia o suave gemido do catavento aceso, uma pequena porção de vapor das turbinas, e depois o rugido do jato de flama no qual o foguete se ergueria lentamente e se curvaria majestoso no início de sua gigantesca curva de aceleração.
E então, diante dele, viu o braço retorcido do guindaste dobrado novamente contra a parede, e sua mão alcançou a barra. O braço foi-se esticando para baixo e para fora em direção à linha fina e quadrada, na pele brilhante do foguete, que era a porta do compartimento do giroscópio.
Caminhando apoiado nas mãos e nos joelhos, Bond alcançou-o bem antes de as almofadas de borracha virem descansar contra o cromo polido. Encontrou o disco de descarga, do tamanho de um xelim, exatamente como Gala havia descrito. Apertar, estalar, e a pequenina porta se abria, girando no parafuso duro. Dentro. Cuidado para não ferir a cabeça. Os cabos cintilantes embaixo dos ponteiros da bússola. Virar. Torcer. Firme. Isto é para o rolamento. Agora o topo e o pior. Virar. Lento. Bem delicadamente. Mas firme. Um último olhar. Uma olhada no relógio. Quatro minutos para ir. Não fique em pânico. Volte. Estalido da porta. Uma fugida rápida de gato. Não olhe para baixo. O guindaste se ergueu. Bateu contra a parede. E agora as escadas.
Tique-tique-tique-tique.
Ao descer, Bond vislumbrou o rosto de Gala, branco, tenso, enquanto ela permanecia segurando a porta exterior aberta, a porta do escritório de Drax. Oh, Deus! Como seu corpo doía! Um último salto e uma reviravolta desajeitada para a direita. Pam! Quando bateu com força a porta de fora. Nova pancada, e ei-los atravessando a sala em direção ao chuveiro. A água jorrando sobre seus corpos pegajosos e doloridos.
Por dentro de todo aquele barulho, acima das batidas do próprio coração, Bond ouviu o súbito estalar da estática e, em seguida, a voz do locutor da BBC vinda do enorme aparelho da sala de Drax, poucos centímetros distante da parede fina do banheiro. Fora novamente Gala quem se lembrara do aparelho de rádio de Drax e que encontrara tempo para pô-lo a funcionar enquanto Bond trabalhava no giroscópio.
“... cinco minutos de atraso” — dizia a voz excitada, leve, ao microfone. — Bond fechou o chuveiro, e a voz chegou até eles mais claramente. — “Sir Hugo foi persuadido a dizer algumas palavras. Parece muito confiante. Está dizendo qualquer coisa no ouvido do Ministro. Estão ambos rindo. Gostaria de saber o que estão dizendo. Ah, eis o meu colega que chega com as últimas notícias a respeito do tempo, vindas do Ministério da Aeronáutica. Que dizem elas? Perfeito em todas as altitudes. Bom espetáculo. Não há dúvida de que temos um dia maravilhoso aqui, Ah! A multidão reunida à distância, perto da estação de guardas-costeiros, vai apanhar uma boa queimadura de sol. Deve haver milhares de pessoas ali. Que foi que você disse? Vinte mil? Bem, a impressão que dá é essa mesmo. Walmer Beach também está apinhada de gente. Toda a população de Kent parece estar na rua. Todo mundo vai ficar com mau jeito no pescoço. Vai ser pior que em Wimbledon. Alô, que é que está se passando ali no cais? Puxa, é um submarino que acaba de subir à superfície. Que espetáculo! É um dos maiores que existem, creio eu. E a equipe de Sir Hugo está lá embaixo também. Alinhados no cais, como se estivessem numa parada. Magnífica corporação. Agora entram a bordo em fila. Disciplina perfeita. Deve ser uma ideia do Almirantado. Oferecer-lhes uma recepção especial na entrada do Canal. Maravilhoso espetáculo. Gostaria que você estivesse aqui para ver. Agora Sir Hugo vem vindo em nossa direção. Dentro em pouco estará falando com vocês. Bela figura de homem! Todos os que se encontram no ponto de tiro o estão aclamando. Tenho certeza de que todos nós nos sentimos inclinados a aclamá-lo hoje. Ele vem vindo para o ponto de tiro. Daqui vejo o sol brilhando no nariz do “Explorador da Lua”, lá adiante, por trás dele. Começa a sair por trás do alto da cúpula de lançamento. Espero que alguém tenha uma máquina fotográfica. Ei-lo que chega aqui agora — uma pausa. — Sir Hugo Drax.
Bond olhou o rosto gotejante de Gala. Ensopados e sangrando, ficaram nos braços um do outro, sem falar e tremendo ligeiramente sob o impacto de suas emoções. Seus olhos nada exprimiam e eram insondáveis quando se fitaram.
A voz que se ergueu era aveludado rosnar:
— Vossa Majestade, homens e mulheres da Inglaterra. Estou prestes a modificar o curso da história da Inglaterra. — Uma pausa. — Dentro de poucos minutos todas as vossas vidas estarão alteradas, em alguns casos drasticamente, pelo — hum — impacto do “Explorador da Lua”. Sinto-me muito orgulhoso e feliz porque o destino me elegeu, dentre todos os meus compatriotas, para lançar esta grande flecha de vingança nos céus e assim proclamar para sempre e para que todo o mundo presencie, o poderio de minha Pátria. Espero que esta oportunidade seja para sempre um aviso de que o destino dos inimigos de meu País estará escrito em poeira, em cinzas, em lágrimas e — uma pausa — em sangue. E agora muito obrigado por me terem ouvido, e eu, sinceramente, faço votos para que aqueles dentre vós que puderem, repitam as minhas palavras aos seus filhos, se os tiverem, hoje à noite.
Uma onda um tanto hesitante de aplausos ecoou através do microfone. Em seguida, ouviu-se a voz animada do locutor.
— Acabamos de ouvir Sir Hugo Drax, dirigindo-lhes algumas palavras antes de atravessar o ponto de tiro que leva ao interruptor na parede que lançará o “Explorador da Lua”. É a primeira vez que fala em público. Muito — hum — incisivo. Não faz rodeios para falar. Entretanto, muita gente achará que não há nenhum mal nisto. E agora chegou o momento de eu passar o microfone ao técnico, Capitão-Chefe de Grupo Tandy, do Ministério do Abastecimento, que descreverá para vocês o lançamento do “Explorador da Lua”. Em seguida, ouvirão a palavra de Peter Trimble, numa das embarcações da patrulha de segurança naval, o HMS Merganzer, que descreverá a cena da área compreendida pelo alvo. O Capitão Tandy.
Bond lançou um olhar ao relógio.
— Só mais um minuto — disse a Gala. — Oh, meu Deus, como eu gostaria de pôr as mãos em Drax. Tome aqui — estendeu a mão para o sabonete e arrancou-lhe alguns pedaços. — Ponha isto nos ouvidos, quando chegar a hora. O barulho vai ser tremendo, não sei dizer como será o calor. Não durará muito, e as paredes de aço talvez aguentem bem. Gala olhou para ele. Sorriu.
— Se você me segurar, não vai ser assim tão ruim — falou.
— E agora Sir Hugo está com a mão no interruptor e olha o cronômetro.
— DEZ — disse outra voz, forte e sonora como o toque de um sino.
Bond abriu o chuveiro, e a água jorrou sobre seus corpos apertados um contra o outro.
— NOVE — reboou a voz do que controlava o tempo.
— Os operadores do radar estão olhando as telas. Nada, exceto uma massa de linhas onduladas. . .
— OITO.
— Todos estão usando tampões nos ouvidos. A casamata deve ser indestrutível. As paredes de concreto têm três metros e meio de espessura. O teto em pirâmide tem sete metros e pouco de espessura na ponta.. .
— SETE.
— Primeiro o rádio sustará o mecanismo do tempo nas turbinas. Porá em movimento o cata-vento. Uma coisa flamejante como uma rodinha de fogo de artifício. . .
— SEIS.
— As válvulas se abrirão. Combustível líquido, Fórmula secreta. Coisa formidável. Dinamite. Cai dos tanques de combustível ...
— CINCO.
— Aceso pelo pino giratório, quando o combustível chega ao motor do foguete. . .
— QUATRO.
— enquanto que a água oxigenada e o permaganato já se misturaram, tornaram-se vapor, e as bombas das turbinas começam a girar.. .
— TRÊS.
— bombeando o combustível inflamável, através do motor, na cauda do foguete, para a cavidade exaustora. Calor gigantesco. . . 3500 graus...
— DOIS.
— Sir Hugo está prestes a apertar o botão. Está olhando pela abertura. O suor lhe umedece a fronte. Completa tensão aqui. Tremenda tensão.
— UM.
Nada senão o ruído da água, caindo incessantemente nos dois corpos agarrados.
— FOGO!
O coração de Bond pulou para a garganta ao ouvir o grito. Sentiu Gala estremecer. Silêncio. Nada, senão o sibilar da água...
— Sir Hugo deixou a casamata. Vai caminhando calmamente para a borda dos penhascos. Tão confiante! Passou agora para o elevador. Vai descer. Naturalmente. Deve ir até o submarino. As telas de televisão mostram um pouco de vapor vindo da cauda do foguete. Mais alguns segundos. Sim, ele se encontra no cais. Olhou para trás e levantou o braço no ar. Bom velho Sir Hu...
Um troar longínquo chegou até Bond e Gala. Mais alto. Mais alto. O chão ladrilhado começou a tremer debaixo dos pés deles. Um clamor de furacão!! Seriam pulverizados. As paredes tremiam, queimavam. As pernas de ambos começaram a descontrolar-se sob seus corpos oscilantes. Segure-a bem. Segure-a bem. Pare com isso! Pare com isso!! PARE COM ESSE BARULHO.
Cristo, ele ia desmaiar. A água estava fervendo. Era preciso fechá-la. Encontrei. Não. O cano arrebentou. Vapor, cheiro, ferro, tinta.
Tire-a daqui para fora! Tire-a daqui para fora!! Tire-a daqui para fora!!!
Depois o silêncio. Silêncio que se podia sentir, apalpar, apertar. E eles estavam no chão do escritório de Drax. Só a luz do banheiro ainda brilhava. A fumaça ia dissipando-se. Assim como o cheiro horrível de ferro queimado e tinta. Estavam sendo sugados pelo ar condicionado. A parede de aço inclina-se para eles qual bolha gigantesca. Os olhos de Gala estão abertos, e ela está sorrindo. Mas o foguete? Que foi que aconteceu? Londres? Mar do Norte? O rádio. Parece em ordem. Sacudiu a cabeça, e a surdez foi lentamente desaparecendo. Lembrou-se do sabão. Retirou-o das orelhas.
— Atravessando a barreira do som. Viajando perfeitamente bem no centro da tela do radar. Um lançamento perfeito. Receio que não tenham ouvido nada por causa do barulho. Tremendo. Primeiro todo aquele grande lençol de chamas vindo do penhasco, saindo da cavidade exaustora, e depois vocês deveriam ter visto o nariz lentamente surgir da cúpula. Ei-lo que sobe como um enorme lápis de prata. Mantendo-se em posição vertical nesta imensa coluna de chamas e vagarosamente subindo no ar. A flama se espalhando por centenas de quilômetros sobre o concreto. O uivo da coisa deve ter ameaçado seriamente arrebentar nossos microfones. Grandes fragmentos caíram do penhasco, e o concreto parece uma teia de aranha. Tremenda vibração. E a agulha subindo cada vez mais rápida. Cem milhas por hora. Mil. E — o locutor interrompeu o que ia dizendo — o que é que você disse? Ah, sim? Agora está percorrendo o espaço numa velocidade de dez mil milhas horárias! Encontra-se a uma altura de trezentas milhas. Não posso ouvir mais, naturalmente. Só vimos a flama durante alguns segundos. Como uma estrela. Sir Hugo deve estar muito orgulhoso. Encontra-se, no momento, no Canal. O submarino partiu como um foguete. Deve estar fazendo mais de trinta nós. Atirando para cima um colosso de espuma. Já alcançou o East Goodwins agora. Viaja para o norte. Dentro em breve chegará até os navios patrulheiros. Presenciarão o lançamento e a aterrissagem. Mas esse itinerário foi meio surpreendente. Ninguém aqui tinha a menor indicação. Até mesmo as autoridades navais parecem um tanto mistificadas. O Comandante-em-Chefe Nore foi ao telefone. Mas agora é só o que eu lhes posso informar daqui e vou passar a palavra a Peter Trimble, a bordo do HMS Merganzer, num ponto qualquer da Costa Oriental.
Nada, exceto os pulmões funcionando, indicava que os dois corpos largados na lagoa sempre crescente do chão ainda estivessem vivos. Mas seus tímpanos avariados pendiam desesperadamente do ruído de estática que veio durante alguns instantes do gabinete de metal todo empipocado. Agora teriam o veredicto do seu trabalho.
— Aqui fala Peter Trimble. Temos uma linda manhã — retifico — tarde, aqui. Um pouco ao norte de Goodwin Sands. Calmo como um lago. Não há vento. O sol brilha alegremente. A área compreendida pelo alvo foi declarada limpa, sem nenhuma embarcação. Não é assim, Comandante Edwards? Sim, o Capitão diz que está tudo inteiramente limpo. Por enquanto nada se vê na tela do radar. Não me é permitido informar o raio em que o pegaremos. Por motivos de segurança, e essa coisa toda. Mas nós só pegaremos o foguete por uma fração de segundo. Não está certo o que digo, Capitão? Mas o alvo começa a aparecer na tela. Não se pode vê-lo da ponte, naturalmente. Deve estar a setenta milhas daqui, na direção do norte. Vimos o “Explorador da Lua” subindo. Espetáculo assombroso! O barulho semelhante a um trovão. Uma longa chama saía da cauda. Devia estar já a dez milhas de distância, mas não era possível deixar de ver a luz. Não é isto, Capitão? Ah, sim, compreendo. Bom, isto é muito interessante. O enorme submarino se aproxima rapidamente. Está apenas a uma milha de distância. Suponho que seja aquele onde se encontra Sir Hugo com seus homens. Nenhum de nós aqui foi informado de coisa alguma a seu respeito. O Capitão Edwards diz que não responde à lâmpada Aldis. Não traz distintivo de navegação. Muito misterioso. Peguei-o agora mesmo. Está bem nítido em meus binóculos. Mudamos de rumo para tentar a intercepção. O Comandante diz que não é um dos nossos. Acha que deve ser estrangeiro. Atenção! Mostrou agora suas cores. O que vem a ser isto? Santo Deus! O capitão diz que é um submarino russo. Puxa! Agora está arriando as bandeiras e submergindo. Bang! Ouviram? Atiramos visando a proa, mas já desapareceu. Que é isto? Ah, o operador do asdic informa que está acelerando cada vez mais, debaixo da água. Vinte e cinco nós. Puxa! De qualquer modo, o submarino não poderá ver muita coisa debaixo da água, porém encontra-se agora bem na área do alvo. Passam vinte minutos das doze horas. O “Explorador” deve ter mudado seu rumo e prepara agora a descida. A umas mil milhas. Velocidade de descida, dez mil milhas horárias. Estará aqui dentro de segundos. Espero que não se verifique tragédia alguma. O submarino russo encontra-se bem dentro da zona perigosa. O operador do radar está acenando para nós. É o sinal para avisar que está na hora. Vem chegando. Vem chegando! . . . Não se ouve o mais leve ruído! deus do céu! Que é isto? Cuidado! Cuidado! Uma terrível explosão.. . Uma nuvem negra se eleva no ar. Uma gigantesca vaga, como a de um maremoto, aproxima-se rapidamente de nós. Uma vaga enorme! O submarino! Santo Deus... vimo-lo agora saltar fora da água e voltar a mergulhar, de quilha para o ar! Vem chegando. . .! Vem chegando! ...
CAPÍTULO 25
ZERO MAIS
Duzentos mortos confirmados, até agora, e aproximadamente o mesmo número de pessoas desaparecidas — informou M.
— Ainda estão chegando notícias da costa oriental, e as informações da Holanda não são das melhores. Foram inutilizadas muitas milhas de suas defesas navais. A maioria de nossas perdas ocorreu nas unidades patrulheiras. Duas delas viraram, incluindo o Merganzer. O Comandante desapareceu. O camarada da B. B. C. também. Os navios-faróis de Good-win partiram as amarras. Ainda não recebemos notícias da Bélgica e da França. Haverá contas bem pesadas a pagar, quando tudo isto ficar em ordem...
Era na tarde seguinte, e Bond, com uma bengala de ponta de borracha ao lado da cadeira, voltava a sentar-se onde tudo havia começado: do outro lado da escrivaninha daquele homem calmo, de frios olhos cinzentos, que o convidara para jantar e jogar bridge, há cem anos atrás.
Por baixo da roupa, Bond era uma perfeita e entrelaçada teia de esparadrapo. A dor queimava-lhe as pernas, sempre que tentava mexer os pés. Um traço vermelho cortava-lhe a face esquerda e a parte superior do nariz. O linimento, feito à base de ácido pícrico, cintilava à luz que entrava pela janela. Segurava um cigarro, como podia, na mão enluvada. Inacreditavelmente, M. tinha-o convidado a fumar.
— Algumas notícias do submarino, chefe? — perguntou Bond.
— Já o localizaram — disse M. com satisfação. — Adernado a cerca de trinta braças de profundidade. O navio de salvamento que deveria localizar os restos do foguete encontra-se agora por cima dele. Os mergulhadores já estiveram no fundo, e não houve resposta aos sinais feitos no casco. O embaixador soviético esteve no Foreign Office esta manhã. Parece ter declarado vir a caminho um navio salva-vidas, proveniente do Báltico, mas respondemos que não podíamos esperar, visto que, tratando-se de um navio naufragado, constitui um perigo para a navegação, no local onde está. — M. riu. — Com efeito, seria um perigo se alguém se dispusesse a navegar a trinta braças de profundidade, em pleno Canal. Contudo, estou satisfeito por não ser membro do Ministério — acrescentou friamente. — Tem estado em sessão permanente, desde o final da transmissão radiofônica. Vallance conseguiu entrar em contato com os tais advogados de Edinburgh, antes de eles abrirem a mensagem de Drax para o mundo. Parece ser um documento terrível, como se tivesse sido escrito pelo próprio Jeová. Vallance levou-o ao Governo, na noite passada, e ficou no 10, Downing Street, para esclarecer pontos ainda não averiguados.
— Eu sei — disse Bond. — Ele esteve telefonando constantemente para o hospital, procurando saber detalhes, até depois da meia-noite. Eu mal podia raciocinar direito, devido aos entorpecentes que me aplicaram. E que vai acontecer agora?
— Vão tentar abafar a coisa, com a maior embromação de que se teve notícia até hoje em toda a História. Uma quantidade enorme de lero-lero científico, explicando que o combustível foi usado só pela metade. Deu-se uma inesperada e potente explosão. Serão pagas indenizações. Perda trágica de Sir Hugo Drax e sua valiosa equipe. Grande patriota. Perda trágica de um dos submarinos de Sua Majestade. Último modelo experimental, ordens mal compreendidas. Tudo muito triste. Felizmente, perdeu-se uma tripulação mínima. Os parentes mais próximos serão informados. Trágica perda de um radialista da B.B.C. Inacreditável erro ao confundir a insígnia branca com as cores navais soviéticas. O desenho é muito semelhante. A bandeira branca foi recuperada no naufrágio.
— Mas que me diz da explosão atômica? — indagou Bond. — Radiações, poeiras radioativas e tudo isso. . . A famosa nuvem em forma de cogumelo. Com certeza isso vai ser um problema para explicar.
— Aparentemente, não estão muito preocupados com a questão — disse M. — A nuvem vai passar como formação normal, após uma explosão daquela envergadura. O Ministério do Abastecimento conhece toda a história. Foi preciso contar-lhes. Seus homens andaram percorrendo ontem à noite toda a costa oriental, com contadores Geiger, e ainda não houve qualquer notícia positiva. — M. sorriu friamente. — A nuvem terá de descer em algum lugar, claro, mas por uma feliz circunstância, o vento está empurrando-a para o norte. De volta a casa, como se poderia dizer. . .
Bond esboçou um sorriso, com dificuldade.
— Compreendo. Que coisa apropriada.
— Evidentemente — prosseguiu M., enchendo o cachimbo — haverá por aí uma série de boatos desagradáveis. Já começaram, aliás. Muita gente viu você e Miss Brand, serem retirados em padiolas. Depois, há o caso da Bowaters contra Drax, pela perda de todo aquele material de impressão. Haverá também inquérito sobre o rapaz que foi morto no Alfa Romeo. E alguém terá de explicar como se encontraram os restos de seu automóvel, entre os quais, — e nesta altura, M. olhou acusadoramente para Bond — foi encontrado um Colt de cano longo. E temos ainda o Ministério de Abastecimento. Vallance teve de chamar alguns de seus homens, ontem, para limpar aquela casa da Ebury Street. Mas essa gente está treinada em guardar segredo. Não será por aí que se descobrirá alguma coisa. Naturalmente, será um negócio arriscado. Mas a mentira de grandes proporções sempre o foi. E qual seria a alternativa? Encrencas com a Alemanha? Guerra com a Rússia? Muita gente, dos dois lados do Atlântico, ficaria mais do que satisfeita se lhe déssemos um motivo para agir.
M. fez uma pausa e chegou um fósforo ao cachimbo. Depois continuou:
— Se a história fôr engolida, não sairemos muito mal de tudo isto. Quisemos um de seus submarinos ultravelozes e ficaremos satisfeitos com as pistas que conseguimos descobrir a respeito de suas bombas atômicas. Os russos sabem que nós sabemos que o jogo deles fracassou. Malenkov não está muito firme no poder, e isto pode muito bem significar outra rebelião entre os senhores do Kremlin. Quanto aos alemães, bem... todos nós sabemos que ainda ficou muito nazismo espalhado por aí, e isto servirá para que o Ministério seja um pouco mais cauteloso, no tocante ao rearmamento da Alemanha. Entre as consequências de menor vulto — disse com um sorriso — destaca-se a de que o trabalho de segurança de Vallance, e o meu também, aliás, vão ficar um pouco mais fáceis para o futuro. Esses políticos não veem que a era atômica criou o mais letal sabotador da história da humanidade: o homenzinho com a valise pesada.
— E a imprensa vai engolir essa história? — perguntou Bond, duvidoso.
M. sacudiu os ombros.
— O Primeiro-Ministro teve esta manhã um encontro com os jornalistas — respondeu M., chegando outro fósforo ao cachimbo — e creio que conseguiu tudo da melhor maneira. Se os boatos se intensificarem mais tarde, ele terá, provavelmente, de convocá-los novamente e dizer-lhes parte da verdade. Então, eles se portarão bem. Sempre se portaram, quando o negócio é importante de verdade. O principal é ganhar tempo e manter afastados os boateiros. No momento, todos estão de tal maneira orgulhosos do “Explorador da Lua”, que não indagarão muito minuciosamente que foi que não deu certo.
Ouviu-se um leve zumbido no intercomunicador da escrivaninha de M., e uma luzinha vermelha piscou repetidas vezes. M. pegou no fone e curvou-se. — Alô. — Houve uma pausa. — Atenderei na linha do Ministério. — Apanhou o receptor branco, na mesa onde havia quatro telefones. — Sim. Está falando. — Nova pausa. — Pronto, sir? Escuto. — M. premiu o botão do misturador de sons. Segurou o fone junto ao ouvido, e nem um som chegou até aos ouvidos de Bond. Houve uma longa pausa, durante a qual M. ia puxando uma ou outra baforada do cachimbo, com a mão esquerda, enquanto escutava. Depois, tirou-o da boca. — De acordo, sir. É isso mesmo, sir. — Outra pausa. — Estou certo de que o meu homem teria ficado extremamente orgulhoso, sir. Mas, naturalmente, como Vossa Excelência sabe, é uma regra aqui no serviço. — M. franziu a testa. — Se me permite dar uma opinião, sir, creio que não seria nada aconselhável. — Uma pausa e a fisionomia de M. se desanuviou. — Obrigado, sir. Claro, Vallance não tem o mesmo problema. É o mínimo que ela merece, sir. — Outra pausa. — Compreendo. Assim será feito, sir. — Nova pausa. — É muita bondade sua, sir.
Depois de mais alguns cumprimentos, M. colocou o telefone branco no gancho, e o botão do misturador voltou à sua posição inicial de “livre”.
Por uns instantes, M. continuou fitando o telefone, como se em dúvida a respeito do que fora dito. Depois rodou a cadeira para longe da escrivaninha e olhou pela janela, pensativo.
Reinou o silêncio na sala, e Bond remexeu-se na cadeira, para aliviar a dor que lhe invadia novamente o corpo.
O mesmo pombo de segunda-feira, ou talvez outro, veio descansar no peitoril da janela, com o mesmo ruflar de asas. Caminhava para um e outro lado, baixando a cabeça e arruinando. Depois, voou para as árvores do parque. O tráfego murmurava, sonolento, na distância.
Como estivera perto, pensou Bond, de embarcar desta para melhor. Quão perto estivera de não haver nada mais do que a sirena distante da ambulância sob um sinistro céu negro e alaranjado, o cheiro de queimado, os gritos das pessoas ainda presas nos edifícios. O suave bater do coração de Londres, silenciado por uma geração. E toda uma geração de sua gente, morta nas ruas, entre as ruínas fumegantes de uma civilização que talvez não se erguesse de novo senão daí a muitos séculos.
Tudo isso teria acontecido por causa de um homem que fazia trapaça nas cartas, desdenhosamente, para alimentar o fogo devorador de seu ego maníaco; teria acontecido, se não fosse o presidente do clube Blades que o descobriu; se não fosse M., que concordara em ajudar um velho amigo; se não fosse a lição meio recordada por Bond e aprendida com um perito em trapaças; se não fossem as precauções de Vallance; se não fosse a boa cabeça de Gala para cálculos; se não fosse por uma série completa de circunstâncias fortuitas, de oportunidades .
E quem preparou a série?
Ouviu-se um ranger agudo, quando a cadeira de M. girou. Bond, cautelosamente, voltou a focalizar sua atenção nos olhos cinzentos do outro lado da escrivaninha.
— Era o Primeiro-Ministro — explicou M., em voz agridoce. — Diz que deseja que tanto você como Miss Brand saiam do País. — M. baixou os olhos e pousou-os, impassível, no fornilho do cachimbo. — Vocês dois têm de dar o fora até amanhã à tarde. Há muitas pessoas, neste caso, que lhes conhecem as caras. Poderão somar dois e dois e saberem que são quatro, quando virem em que estado lamentável se encontram. Vão para qualquer lugar que lhes agrade. Despesas sem limite de verba para ambos. Qualquer importância que precisarem. Vou falar com o Tesoureiro. Fique fora por um mês. Mas completamente fora de circulação, entendeu? Vocês dois já deveriam ter partido esta tarde, mas a moça tem um compromisso amanhã às onze horas. No Palácio. Foi-lhe concedida a George Cross. Mas isso não será divulgado até ao novo ano, claro. Gostaria de encontrá-la, qualquer dia. Deve ser uma excelente moça. Aliás — a expressão de M., quando levantou os olhos, era indecifrável — o Primeiro-Ministro tinha na ideia qualquer coisa para você, também. Esquecera que nós, aqui, não admitimos essas coisas. De modo que me pediu para lhe agradecer em nome dele. Disse algumas palavras simpáticas a respeito de nosso serviço. É muito gentil.
M. esboçou um daqueles raros sorrisos que iluminavam seu rosto com uma vivacidade e calor imediatos. Bond retribuiu o sorriso. Eles compreendiam bem as coisas que não chegavam a ser ditas.
Bond percebeu que era tempo de sair. Levantou-se e disse:
— Muito obrigado, chefe. Estou muito satisfeito pela moça.
— Bom, então está tudo combinado — disse M., com uma nota de despedida na voz. — Por hoje basta. Vê-lo-emos aqui dentro de um mês. Ah, é verdade — acrescentou com naturalidade — passe pelo seu escritório antes de sair. Encontrará uma coisa que eu lhe deixei lá. Uma pequena lembrança .
James Bond desceu pelo elevador e foi mancando pelo corredor, até seu gabinete. Quando cruzou a porta interior, encontrou sua secretária arrumando alguns papéis na escrivaninha ao lado da dele.
— 008 já está de volta? — perguntou.
— Sim — respondeu ela, sorrindo feliz. — Deve voar esta noite para cá.
— Ótimo, fico alegre por saber que você terá companhia — disse Bond. — Vou partir novamente.
— Oh! — exclamou a moça. Olhou rapidamente para ele e depois desviou o olhar. — Você está mesmo com cara de quem precisa de um bom descanso.
— Pois vou tê-lo mesmo. Um mês de exílio. — Pensou em Gala. — Vai ser um período de puras férias. Nada mais. Alguma coisa para mim?
— Seu novo carro está lá embaixo. Já o examinei. O homem disse que você lhe tinha dado ordens para que o trouxessem para experiência esta manhã. É lindo! Ah, é verdade. E tem ainda o pacote que veio do gabinete de M. Quer que o desembrulhe?
— Sim, por favor. . .
Bond sentou-se à escrivaninha e olhou o relógio. Cinco horas. Sentia-se fatigado. Sabia que iria sentir o mesmo durante alguns dias. Sempre tinha essas reações, no final de uma difícil missão. Era a consequência dos dias de nervos em tensão, dos temores, do medo.
Sua secretária voltou ao escritório, com duas caixas de papelão, de aspecto pesado. Colocou-as sobre a escrivaninha, e ele abriu a de cima. Quando viu a espécie de papel que envolvia o objeto, percebeu logo o que estava para vir.
Havia um cartão dentro da caixa. Bond pegou-o e leu. Na tinta verde usada por M., este dizia: “Você pode precisar destas coisas.” Não havia assinatura.
Bond desembrulhou o papel impermeável e sopesou a nova e refulgente Beretta em sua mão. Um lembrete. Não. Uma recordação. Bond sacudiu os ombros e fez a arma deslizar por baixo do casaco, para o coldre vazio. Levantou-se com alguma dificuldade.
— No outro embrulho, você encontrará um Colt de cano longo — disse ele à secretária. — Guarde até eu regressar. Então, eu o levarei ao fogão da cantina e jogá-lo-ei lá dentro.
Caminhou para a porta:
— Adeus, Lil. Lembranças a 008, e diga-lhe que tome cuidado com você. Eu estarei na França. Estação F terá meu endereço. Mas só em caso de emergência.
A moça sorriu.
— Que deverei considerar uma emergência? — perguntou.
Bond soltou uma pequena risada.
— Qualquer convite para um tranquilo jogo de bridge, por exemplo — respondeu ele.
Saiu mancando e fechou a porta.
O Mark VI, modelo 1953, tinha uma carroçaria esportiva e elegante, cor cinza de navio de guerra como o velho quatro litros e meio que fora para a sepultura numa garagem de Maidstone. O estofamento de couro azul-marinho deu um luxuoso gemido de coisa nova, quando Bond subiu, desajeitadamente, para o assento ao lado do motorista de provas.
Meia hora depois, o motorista ajudou-o a descer na esquina de Birdcage Walk com Queen Anne’s Gate.
— Se o senhor quisesse, poderíamos ter feito maior velocidade — disse o motorista. — E se nos autorizar a ficar com ele por mais uns quinze dias, poderemos prepará-lo para chegar aos cento e sessenta horários.
— Mais tarde — respondeu Bond. — Está comprado. Mas com uma condição. De que você o leve à terminal do ferry-boat na estação de Calais, amanhã à tarde.
O motorista sorriu:
— O.K. Eu o levarei. Verei o senhor no cais, está bem?
— Combinado. Siga com cuidado pela A-20. A estrada de Dover está muito perigosa, estes últimos dias.
— Não se preocupe, sir — respondeu o motorista, pensando que aquele homem devia ser um tanto medroso, apesar de tudo o que parecia conhecer a respeito de automóveis. — Não acontecerá nada.
— Nem todos os dias — advertiu ainda Bond, sorrindo. — Vê-lo-ei em Calais.
Sem esperar a resposta, saiu mancando, apoiado à bengala, por entre os raios de luz poeirenta do crepúsculo, filtrados através das árvores do parque.
Sentou-se defronte da ilha, no lago, e puxou da cigarreira, acendendo um cigarro. Olhou o relógio. Cinco para as seis. Lembrou-se de que ela não era o tipo de pequena que não seria pontual num encontro. Reservara a mesa de um canto parar o jantar. E depois? Mas, primeiro, haveria o longo e requintado planejar. De que gostaria ela? Onde gostaria de ir? Onde já teria estado? Alemanha, com certeza. França? Deixaria Paris de lado. Poderiam visitar a cidade no regresso. Mas, na primeira noite, iriam o mais longe que pudessem, bem longe do Pas de Galais. Havia aquela casa de campo, com uma comida maravilhosa, entre Montreuil e Étaples. Depois, a descida ao longo do Loire. Os pequenos lugares perto do rio, para alguns dias. As cidades dos castelos, não. Lugares como Beaugency, por exemplo. Depois, vagarosamente, para o sul, sempre seguindo pelas estradas do Oeste, evitando a vida em lugares mundanos e hotéis de cinco estrelas. Explorando lentamente o caminho. Bond teve um sobressalto. Explorar o quê? Um ao outro? Seria que ele estava levando a pequena a sério, demasiado a sério?
— James.
Era uma voz clara, bem timbrada, um pouco nervosa. Não a voz que ele esperava.
Levantou os olhos. Ela estava de pé, a poucos metros de distância. Bond reparou que usava uma boina preta, colocada num ângulo brejeiro. Tinha um ar excitante, misterioso, como alguém que vemos, em terra estranha, conduzindo sozinha um carro aberto. Alguém inatingível e mais desejável do que qualquer outra pessoa que já se conheceu até hoje. Alguém que está a caminho de um encontro amoroso com outro. Alguém que não é para você.
Bond ergueu-se, e deram-se as mãos.
Foi ela quem soltou a sua. Não se sentou.
— Gostaria muito que você fosse amanhã, James — disse Gala.
Seus olhos eram ternos quando o fitou. Ternos e suaves, mas, pensou ele, algo evasivos. Bond sorriu.
— Amanhã de manhã? Ou amanhã à noite? — disse ele.
— Não seja ridículo — respondeu Gala, rindo e corando. — Amanhã no Palácio.
— E depois? Que tenciona você fazer?
Gala encarou-o, cautelosamente. Que seria que esse olhar lembrava a ele? O olhar de Morphy? O olhar com que fitara Drax, na derradeira mão do jogo no Blades? Também não. Havia algo mais. Ternura? Pena?
A moça olhou por cima do ombro. Bond deu meia volta. Mais adiante viu a figura de um rapaz alto, de cabelos louros e cortados curtos. Estava de costas para ambos, sem fazer qualquer movimento. Matando o tempo.
Bond voltou a cabeça para Gala, e os olhos dela encontraram os seus.
— Vou-me casar com aquele homem — declarou ela, simplesmente. — Amanhã de tarde. — E então, como se não houvesse necessidade de outra explicação, acrescentou: — O nome dele é Vivian, Detetive-Inspetor.
— Ah, sim — disse Bond — compreendo. — Sorriu, um tanto amargo.
Houve um momento de silêncio, durante o qual seus olhos se desviaram para longe.
Entretanto, por que motivo deveria ele esperar outra coisa diferente? Um beijo. O contato de dois corpos assustados, agarrando-se no meio do perigo. Nada mais houvera. Depois, o anel de noivado sempre estivera no dedo dela, para que Bond não tivesse dúvidas. Por que supusera ele, automaticamente, que a moça o usara apenas como estratagema para que Drax não excedesse os limites? Por que imaginara que ela compartilhava de seus desejos e de seus planos?
E agora? conjeturava Bond. Sacudiu os ombros para expulsar a dor do fracasso... essa dor que é bem maior do que o prazer do sucesso. Afastar-se, era agora a única saída. Sair do caminho dessas duas vidas jovens e levar seu frio coração para qualquer outro lugar. Nada de penas. Nada de falsos sentimentos. Tinha de representar o papel que ela esperava dele. O homem duro, mundano. O Agente Secreto. O homem que era apenas uma silhueta.
Gala fitava-o, bastante nervosa, esperando ver-se desligada do estranho que tentara penetrar no átrio de seu coração.
Bond sorriu, com calor.
— Estou com ciúme — disse ele. — Tinha outros planos para você amanhã à noite.
Gala retribuiu o sorriso, grata por ter sido quebrado o silêncio.
— Quais eram esses planos? — indagou.
— Ia levá-la a uma casa de campo na França. E, depois de um jantar maravilhoso, pretendia verificar se é verdade o que dizem a respeito do grito de uma rosa.
A moça riu.
— Lamento muito não poder participar desses planos. Mas existem tantas outras, esperando serem colhidas.
— Sim, creio que sim — disse Bond. — Então, adeus, Gala.
Estendeu-lhe a mão.
— Adeus, James.
Bond tocou em Gala Brand pela derradeira vez e, depois, separaram-se, caminhando cada qual ao encontro de suas tão diferentes vidas.
CAPÍTULO 20
A JOGADA DE DRAX
Havia três diferentes fontes de dores no corpo de Gala. A dor latejante atrás da orelha esquerda, a carne mordida nos pulsos, e o queimar das correias em torno de seus tornozelos.
Cada saliência do terreno, cada desvio, cada pressão repentina do pé de Drax nos freios ou no acelerador, despertava uma dessas dores e lhe irritava os nervos. Se ao menos tivesse sido colocada mais presa ao assento de trás. Mas só havia lugar para seu corpo rolar alguns centímetros no assento, de modo que se via obrigada a contorcer constantemente o rosto machucado para evitar o contato com as paredes de brilhante couro de porco.
O ar que respirava era abafado, com um cheiro de forração nova de couro, fumaça do cano de descarga e, de quando em quando, o mais acentuado de borracha queimada, cada vez que Drax raspava os pneumáticos numa esquina de curva acentuada.
No entanto, o desconforto e a dor não eram nada. Krebs! Curioso como seu temor e repulsa por Krebs a atormentava mais que tudo. As outras coisas eram grandes demais. O mistério de Drax e seu ódio pela Inglaterra. O enigma do seu perfeito domínio da língua alemã. O “Explorador da Lua”. O segredo da cápsula atômica. Como salvar Londres. Eram assuntos que há muito tempo ela afastara para um recanto do cérebro como coisas insolúveis.
Mas a tarde passada a sós com Krebs estava presente e terrível em seu espírito, e este voltava sempre e sempre aos detalhes da mesma, como uma língua em cima de um dente dolorido.
Muito tempo depois de Drax ter partido, ela continuara a fingir inconsciência. A princípio, Krebs se ocupara com as máquinas, conversando com elas em alemão, numa falinha de bebê, toda carinhosa.
— Pronto, minha Liebchen. Agora está melhor, não está? Uma gota de óleo para você, minha Pupperl? Como não? Vai já. Não, não sua preguiçosa. Eu disse mil voltas. Não novecentas. Vamos ver agora. Nós podemos fazer coisa melhor, não podemos? Sim, minha Schatz. É isto. Rodando, rodando, lá vamos nós. Para cima e para baixo. Rodando, rodando. Deixe eu limpar sua carinha bonita, para você, para nós podermos ver o que o pequenino mostrador está dizendo. Jesus Maria, bist du ein braves Kind!
E assim continuara, ora ficando em pé, diante de Gala, ora esgaravatando o nariz e chupando os dentes, numa atitude horrível de ruminante. Até que foi permanecendo cada vez mais tempo diante dela, esquecendo as máquinas, conjeturando, tomando uma resolução.
E então sentira a mão dele desabotoar o botão de cima de seu vestido, e o recuo (automático de seu corpo teve de ser disfarçado por um grunhido realístico e uma pantomima de volta de consciência.
Pedira água, e ele fora buscar no banheiro, trazendo um pouco num copo de escova de dentes. Depois puxara uma cadeira de cozinha para a frente dela e sentara-se atravessado, de costas para o assento, o queixo descansando na última travessa do encosto. Ficara então a fitá-la especulativamente, por baixo das pálpebras caídas, com aqueles olhos desbotados.
Ela fora a primeira a romper o silêncio.
— Por que me trouxeram aqui? Para que são todas essas máquinas?
Krebs lambera os lábios de sua boquinha vermelha e bicuda, aberta sob a mancha de bigode amarelo, e foi formando lentamente um sorriso em forma romboide.
— Isto é um engodo para passarinhos. Dentro em breve atrairá um passarinho para seu ninho quente. Então o passarinho porá um ôvo. Oh, um ôvo tão grande, redondo! Um ôvo lindo!
A parte inferior de seu rosto ria encantada, enquanto seus olhos divagavam.
— A mocinha bonita está aqui porque, de outro modo, poderia assustar o passarinho, e este ir embora. E isto seria tão triste, não é mesmo? — o homem cuspiu as três palavras seguintes: — Cadela inglesa e suja!
Seus olhos tornaram-se atentos, cheios de resolução. Puxou a cadeira mais para perto, de modo que seu rosto ficou muito próximo ao dela, e ela se viu envolvida pelo miasma de sua respiração.
— E agora, cadela inglesa, diga para quem você está trabalhando? — Esperou. — Você precisa me responder, sabe? — avisou suavemente. — Nós estamos sozinhos aqui. Não há ninguém para lhe ouvir gritar.
— Não seja estúpido — disse Gala em desespero de causa. — Como eu poderia estar trabalhando para outra pessoa que não fosse Sir Hugo? (Krebs sorriu ao ouvir o nome).
— Eu só estava curiosa a respeito do plano de voo...
Gala iniciou uma explicação arrastada, a respeito de seus números e os de Drax, e de como desejara partilhar do sucesso do “Explorador da Lua”.
— Tente novamente — sussurrou Krebs, quando ela terminou. — Você deve sair-se melhor que isso — e, subitamente, seus olhos haviam-se tornado chispantes de crueldade, e suas mãos se estenderam para ela, por trás do encosto da cadeira. . .
No assento de trás do veloz Mercedes, Gala rangeu os dentes e choramingou com a lembrança dos dedos leves se arrastando pelo seu corpo, tateando, beliscando, puxando, enquanto seus olhos, durante o tempo todo, fitavam curiosamente os dela, até que, finalmente, ela juntou saliva na boca e deu uma cusparada bem no meio da cara do homem.
Este nem se dera o trabalho de parar para limpar o rosto, mas, de repente, aplicara-lhe um golpe violento, e ela gritara uma só vez, para em seguida desmaiar.
E então se vira sendo empurrada para a parte traseira do carro, com um tapete atirado em cima dela, e eles partiram velozmente pelas ruas de Londres. Gala ouvia outros carros perto deles, o campainhar frenético de uma bicicleta, um grito de vez em quando, o grunhido animalesco de uma velha klaxon, o ronronar de uma lambreta, um rangir de freios, e compreendeu que voltara ao mundo real, que pessoas inglesas, amigos, estavam em volta dela. Lutara para se pôr de joelhos e gritar, mas Krebs devia ter-lhe pressentido os movimentos, porque as mãos dele se encontraram repentinamente em seus tornozelos, prendendo-os à barra de descanso para os pés, no chão. Compreendeu que estava perdida, e as lágrimas lhe correram pelas faces, enquanto rezava para que alguém, de um jeito ou de outro, chegasse a tempo.
Isto acontecera há menos de uma hora, e agora ela podia garantir que haviam chegado a uma cidade grande — Maidstone, se estava sendo levada de volta para a base.
No relativo silêncio do avanço do Mercedes por dentro da cidade, ela ouviu, subitamente, a voz de Krebs. Havia nela um quê de ansioso.
— Mein Kapitän, tenho estado a observar um carro já há algum tempo. Não resta dúvida de que está nos seguindo. Raramente usa os faróis. Está apenas a uns cem metros de distância, atrás de nós agora. Eu acho que é o carro do Comandante Bond.
Drax grunhiu de surpresa, e ela ouviu seu corpanzil virar-se todo para dar uma rápida olhada.
Praguejou violentamente, e depois veio o silêncio, dentro do qual ela pôde sentir o carro grande se movimentando em curvas e se esforçando por ganhar terreno dentro do trânsito.
— Ja, sowas! — disse finalmente Drax. Sua voz parecia preocupada. — Quer dizer que aquela velha peça de museu ainda pode movimentar-se. Tanto melhor, meu caro Krebs. Parece que ele está sozinho.
Deu uma risada desagradável:
— Deixe que ele fique por nossa conta, porque se sobreviver, nós o meteremos no mesmo saco com a mulher. Ligue o rádio. Estação local. Logo saberemos se existe algum obstáculo.
Ouviu-se um rápido estalido da estática e depois Gala escutou a voz do Primeiro-Ministro, a voz das grandes ocasiões de sua vida, vinda em fragmentos entrecortados, enquanto Drax punha o carro em terceira e acelerava para sair da cidade: “. . . arma criada pela engenhosidade do homem. . . mil milhas acima no firmamento. . . área patrulhada pelos navios de Sua Majestade. . . planejado exclusivamente para a defesa de nossa amada ilha. . . uma longa era de paz... desenvolvimento para a grande viagem do homem além dos limites deste planeta. . . Sir Hugo Drax, esse grande patriota e benfeitor do nosso País...”
Gala ouviu o estrondear da gargalhada acima do uivar dos ventos, um vasto latido de desprezo e triunfo e, em seguida, o rádio foi desligado.
— James — sussurrou Gala consigo mesmo. — Só resta você. Tenha cuidado. Mas ande depressa.
O rosto de Bond era uma máscara de poeira e imundície com o sangue das moscas e outros insetos que se haviam esmagado contra ele. Muitas vezes tivera de retirar uma das mãos com câimbra do volante, para limpar os óculos, mas o Bentley ia portando-se muito bem, e ele tinha certeza de que pegaria o Mercedes.
Estava quase alcançando noventa e cinco na linha reta, pouco antes da entrada para Leed Castle, quando luzes possantes foram emitidas por trás dele, e uma buzina de quatro tons executou seu ousado “pam-pim-pim-pam” quase dentro de seu ouvido.
A aparição de um terceiro carro na corrida era quíase inacreditável. Bond mal se dera o trabalho de olhar no espelho retrovisor, desde que havia saído de Londres. Ninguém, a não ser um corredor de automóvel ou um homem desesperado, poderia ter emparelhado com eles, e seu espírito se encontrava numa confusão quando, automaticamente, afastou-se para a esquerda e viu, com o rabo dos olhos, um carro baixo, vermelho como os dos bombeiros, emparelhar com ele e afastar-se com uma diferença de umas dez milhas, uma hora extra em seu relógio.
Vislumbrou o famoso radiador Alfa e, na borda do capô, escrito em letras grandes, brancas, as palavras: Attaboy II. Em seguida, viu o rosto sorridente de um rapazinho em mangas de camisa, que espetou dois dedos vermelhos no ar antes de desaparecer na mistura de sons que um Alfa em disparada compõe com o gemido de seu escape, o espooar do cano de descarga e o uivo trovejante do transmissor.
Bond sorriu cheio de admiração ao levantar a mão para o chofer. Alfa Romeu, oito cilindradas, com surpercarburadores, pensou consigo mesmo. Deve ser quase tão velho quanto o meu. ‘32 ou ‘33, provavelmente. E só a metade de meus cc. Targa Florio, em 1931, e depois disso fez bonito em toda a parte. Com certeza era um tipo desses de cabeça quente, ouvindo uma das estações da RAF dos arredores. Tentando voltar de alguma festa a tempo de assinar o ponto antes de ser citado num relatório. Observou benèvolamente quando o Alfa balançou a cauda na curva em S ao lado de Leeds Ctostle e, em seguida, passou uivando pelo longo caminho largo em direção à distante bifurcação de Charing.
Bond bem podia imaginar o sorriso de satisfação do rapaz, quando este alcançou Drax: “Ôba. É uma Merc!” E a raiva de Drax, ao ouvir a música impudente da buzina. Deve estar fazendo 105, pensou Bond. Espero que esse maluquinho não saia da estrada. Ficou a olhar os dois jogos de luzes traseiras se aproximando, o rapaz do Alfa se preparando para o truque de surgir por trás e, de repente, acelerar ao máximo, assim que tivesse uma oportunidade para passar.
Pronto. Quatrocentas jardas adiante o Mercedes apareceu, branco, iluminado pelas luzes duplas do Alfa. Havia uma milha de estrada livre na frente, completamente reta. Bond quase sentia os pés do rapaz pisando o pedal mais fundo ainda. Ôba rapaz!
Lá na frente, no Mercedes, Krebs tinha a boca colada ao ouvido de Drax.
— Outro deles — gritou aflito. — Não consigo ver o rosto. Vem vindo para nos passar agora.
Drax deixou escapar uma obscenidade a meia voz. Seus dentes branquejaram no pálido reflexo do painel.
— Vou dar uma lição a esse canalha — falou, endireitando os ombros e agarrando o volante com firmeza com as grandes luvas de couro. Com o canto dos olhos viu o capô da Alfa surgir a estibordo. ‘Tam-pim-pim-pim”, cantava a buzina, suave, delicadamente. Drax virou rápido o volante do Mercedes para a direita e, depois do horrível chocalhar dos metais, trouxe-o novamente para o centro, a fim de corrigir a posição.
— Bravo! Bravo! — gritou Krebs, fora de si com a excitação, ao ajoelhar-se no assento do carro e olhar para trás.
— Dupla capotagem. Passou por cima da cerca de cabeça para baixo. Acho que já está se incendiando. Sim. Estou vendo as chamas.
— Isto dará ao nosso caro Sr. Bond qualquer coisa para refletir — rosnou Drax, respirando pesadamente.
Bond, porém, o rosto impassível, mal examinara o velocímetro, e nada havia a não ser vingança em seu espírito, quando partiu veloz atrás do Mercedes que voava.
Vira tudo. O voo grotesco do carro vermelho, ao virar de rodas para o ar, e tornar a virar, a figura do rapaz projetada para o alto, os braços e as pernas abertos, ao ser cuspido para fora do volante, e o estrondo final, quando o carro saltou a cerca de cabeça para baixo e foi desmoronar-se no campo.
Quando passou disparado, observando as marcas horríveis de grafita deixadas pela derrapagem, seu espírito anotou um toque macabro final. Saindo, não se sabe como, incólume do holocausto, a buzina ainda dava contato, e seu ulular subia para o céu, abrindo estridentemente estradas imaginárias para a passagem do Attaboy II: “Pam-pim-pim-pam. Pam-pim-pim-pam.”
Com que então um homicídio tivera lugar bem debaixo de seus olhos. Ou, pelo menos, uma tentativa de homicídio. Assim, fossem quais fossem seus motivos, Sir Hugo Drax era um criminoso e, provavelmente, um maníaco. Isto, acima de tudo, significava perigo certo para o “Explorador da Lua”. Era o bastante para Bond. Meteu a mão debaixo do painel e, de seu coldre escondido, tirou o Colt Especial do Exército, calibre 45 de cano longo, e colocou-o no assento ao seu lado. A batalha agora era em campo aberto e, de um jeito ou de outro, o Mercedes teria de ser parado.
Usando a estrada como se fosse Donington, Bond pisou o acelerador e ali conservou o pé. Pouco a pouco, com o ponteiro oscilando de cada lado do número cem, começou a diminuir a diferença.
Drax entrou pelo lado esquerdo da bifurcação em Charing e subiu embalado a longa colina. Na frente, dentro do raio gigante de seus faróis, um grande caminhão de transporte, desses de oito rodas, um AEC Diesel, ia subindo a primeira curva do caminho, lutando sob o peso de quatorze toneladas de notícias impressas que levava numa viagem noturna para um dos jornais do East Kent.
Drax praguejou baixinho, ao ver o longo transporte de vinte rolos gigantescos, cada um deles contendo cinco milhas de papel impresso com notícias, amarradas lá em cima. Logo ali, no meio daquela curva traiçoeira em S, no alto da colina.
Olhou no espelho retrovisor e viu o Bentley chegando à bifurcação.
Foi então que teve uma ideia.
— Krebs — o nome saiu como um tiro de pistola. — Tire sua faca.
Um estalido agudo, e o estilete já estava na mão de Krebs. Ninguém perdia tempo, quando havia aquela nota na voz do mestre.
— Vou diminuir a marcha e seguir atrás do caminhão. Tire os sapatos e as meias, suba no capo, e quando eu vier por detrás dele, pule em cima. Eu irei na maior vagareza. Não haverá perigo. Corte as cordas e segure os rolos de papel. Primeiro os da esquerda. Depois os da direita. Nessa altura eu já terei colocado o carro no mesmo nível do caminhão, e quando você tiver cortado o segundo lote, pule no carro. Tenha cuidado para não ser levado com o papel. Verstanden? Also. Hals und Beinbruch!
Drax apagou as luzes dos faróis e contornou a curva a oitenta quilômetros por hora. O caminhão ia vinte jardas adiante, e ele teve de frear com força, a fim de não abalroá-lo. O Mercedes executou uma derrapagem, até o radiador ficar quase debaixo do chassi do caminhão.
Drax fez a mudança para segunda:
— Agora!
Manteve o carro firme como uma rocha, quando Krebs, descalço, passou por cima do para-brisa e foi-se arrastando ao longo do brilhante capo, com a faca na mão.
Num salto, atingiu o ponto visado e começou a cortar as cordas do lado esquerdo. Drax afastou-se para a direita e foi deslizando até ficar paralelo às rodas traseiras do Diesel, a fumaça do óleo vinda do cano de descarga subindo-lhe aos olhos e às narinas.
As luzes do carro de Bond começavam a aparecer no início da curva.
Houve uma série de baques fortes, quando os rolos do lado esquerdo caíram do caminhão para a estrada e foram rolando velozes pela escuridão. Depois, mais baques, ao partirem-se as cordas do lado direito. Um dos rolos arrebentou ao cair, e Drax ouviu um barulho de coisas dilaceradas, quando o papel, desenrolando-se tombou pesadamente num ponto da subida.
Aliviado de sua carga, o caminhão quase pulou para a frente, e Drax teve de acelerar um pouco para alcançar a figura esvoaçante de Krebs, que aterrisou, metade em cima das costas de Gala e metade no assento da frente. Drax pisou até embaixo o acelerador e subiu a colina como um raio, ignorando o grito do chofer do caminhão, que se sobrepôs ao clamor dos pistões, quando ele disparou em frente.
Ao contornar velozmente a curva seguinte, viu o cilindro de dois faróis desenharem-se em curva no céu, acima do topo das árvores, até se tornarem quase verticais. Tremularam ali por um instante, e depois os raios de luz giraram através do espaço e desapareceram.
Uma grande risada, semelhante a um latido de cão, escapou de Drax, e durante a fração de um segundo, tirou os olhos da estrada e levantou o rosto triunfalmente para as estrelas.
CAPITULO 21
“O PERSUASOR”
Krebs ecoou a risada maníaca com outra estridente.
— Um golpe de mestre, mein Kapitän. O senhor precisava ver como eles desciam pela colina. O tal que arrebentou. Wunderschön! Parecia o papel higiênico de um gigante. Este deve ter feito um belo pacote dele. Ele vinha chegando bem na curva. E o segundo foi tão bom quanto o primeiro. Viu a cara do motorista? Zum Kotzen! E a firma Bowater! Um belo negócio foi o que fizeram.
— Você trabalhou bem — observou Drax, conciso, o pensamento noutra coisa.
De repente, levou o carro para o lado da estrada, com um grito de protesto dos pneus.
— Donnerwetter — disse, zangado, quando começou a virar o carro. — Mas nós não podemos deixar o homem ali. Precisamos pegá-lo.
O carro já ia roncando pela estrada abaixo.
— A arma — ordenou Drax, secamente.
Passaram o caminhão no alto da colina. Estava parado, e não se via sinal de motorista. Provavelmente telefonando para a companhia, pensou Drax, diminuindo a marcha ao contornarem a primeira curva. Viam-se luzes em duas ou três casas, e um grupo de pessoas rodeava um dos rolos de papel que ali estava por entre as ruínas do portão da frente de suas casas. Havia mais rolos na borda do lado direito da estrada. À esquerda, um poste telegráfico se inclinava como bêbedo, partido ao meio. Na curva seguinte, via-se o princípio de uma grande confusão de papel estendendo-se para baixo, ao longo da colina, formando guirlandas nas cercas e na estrada, como se fossem os babados de um vestido de baile à fantasia, elefantíaco.
O Bentley tinha quase se espatifado contra as grades que guarneciam o lado direito da curva, protegendo-o de um barranco profundo. Por entre a confusão de ferro retorcido dos mourões, pendia, de capo para baixo, com uma das rodas ainda presa ao eixo quebrado de trás e ali pousada de esguelha como um guarda-chuva surrealista.
Drax se aproximou e, acompanhado de Krebs, saiu do carro e ficou quieto, à escuta.
Não se ouvia o menor som, exceto o do motor de um carro distante, seguindo rápido pela estrada de Ashford, e o trilar de um grilo insone.
Com as armas na mão, eles caminharam cautelosamente por cima dos restos do Bentley, os pés esmagando o vidro partido na estrada. Sulcos profundos haviam sido marcados na margem de grama, e sentia-se o cheiro forte de gasolina, misturado ao de borracha queimada. O metal quente do carro estalava e partia baixinho. O vapor ainda jorrava do radiador espatifado.
Bond estava caído de bruços no fundo do barranco, a uns seis metros de distância do carro. Krebs virou-o. O rosto estava coberto de sangue, mas ele respirava. Revistaram-no completamente, e Drax meteu no bolso a fina Beretta. Depois, juntos, arrastaram-no até a estrada, jogando-o, em seguida, no assento traseiro do Mercedes, com a metade do corpo em cima do de Gala.
Quando ela percebeu quem era, deu um grito de horror.
— Halt’s Maul — rosnou Drax. Foi para o assento da frente e, enquanto ligava o motor, Krebs inclinou-se e se ocupou com um longo pedaço de arame flexível.
— Faça o negócio direito — disse Drax. — Não quero que haja erros. — Refletiu melhor. — Volte depois para junto dos destroços e retire as placas. Depressa. Eu tomo conta da estrada.
Krebs puxou o tapete para cima dos dois corpos inertes e pulou fora do carro. Usando a faca como chave de parafuso, dentro em breve estava de volta com as placas, e o enorme carro começou a se movimentar no momento exato em que um grupo de habitantes do local apareceu caminhando nervosamente pela descida da montanha, focalizando as lanternas sobre a cena de devastação.
Krebs riu feliz consigo mesmo à ideia de que os estúpidos ingleses teriam de limpar e pôr tudo aquilo em ordem. Acomodou-se no assento, a fim de apreciar o trecho do caminho que sempre fora seu predileto: os bosques primaveris, cheios de florzinhas azuis e rosa, que iam até Chilham.
Eles tinham-no tornado particularmente feliz à noite. Iluminados por entre as tochas verdes das árvores novas pelos grandes faróis do Mercedes, tinham-no feito pensar nas lindas florestas de Ardennes, no grupo dedicado onde servira e na viagem que fizera num jipe capturado aos americanos, tal como naquela noite, ao lado de seu adorado líder, que ia ao volante. Der Tag custara a chegar, mas agora ali estava. Com o jovem Krebs no caminhão. Finalmente veria as multidões dando vivas, as medalhas, as mulheres, as flores. Lançou um olhar aos exércitos de flores azuis que passavam voando e sentiu-se feliz e confortado.
Gala sentia na boca o gosto do sangue de Bond. O rosto dele estava ao lado do dela, no assento de couro, e ela se mexeu para lhe dar mais lugar. A respiração do rapaz era pesada e irregular. Ela perguntava a si mesma quanto estaria ferido. Experimentou sussurrar-lhe ao ouvido. Depois falou mais alto. Ele deu um grunhido e acelerou a respiração.
— James — cochichou. — James.
Bond resmungou qualquer coisa, e ela encostou-se com força contra ele. Depois, soltou uma série de palavrões, e seu corpo se mexeu.
Tornou a ficar imóvel, e ela quase pôde senti-lo explorando as próprias sensações.
— Sou eu, Gala.
Ela sentiu o corpo dele enrijecer.
— Deus do céu. Que diabo de confusão — falou Bond.
— Você está bem? Tem algum osso quebrado?
Sentiu que ele experimentava os braços e as pernas.
— Parece que está tudo bem. Uma brecha na cabeça. Estou falando coisas que fazem sentido?
— Claro que sim — respondeu Gala. — Agora ouça.
Rapidamente, contou-lhe tudo que sabia, começando pelo caderninho de notas preto.
O corpo dele estava rígido como uma tábua contra o dela, e ele mal respirava, ouvindo a história inacreditável.
Logo depois corriam para Canterbury, e Bond colocou a boca em seu ouvido.
— Vou tentar jogar-me por trás — sussurrou. — Ver se arranjo um telefone. É a única esperança.
Começou a se erguer sobre os joelhos, o peso de seu corpo quase sufocando a respiração da moça.
Ouviu-se uma forte pancada, e ele tornou a cair em cima dela.
— Outro movimento que você faça e estará morto — disse a voz de Krebs, vindo baixinho por entre os assentos da frente.
Faltavam só vinte minutos para chegar à base! Gala rangeu os dentes e tratou de reanimar Bond, que perdera os sentidos novamente.
Acabara de conseguir, quando o carro chegou à porta da cúpula de lançamento, e Krebs, com um revólver na mão, já ia desfazendo os nós em torno dos tornozelos de ambos.
Vislumbraram o cimento familiar, iluminado pela lua, e o semicírculo de guardas a uma certa distância, antes de serem empurrados pela porta. Depois, quando Krebs lhes arrancou os sapatos, seguiram pela passagem estreita, de ferro, dentro da cúpula de lançamento.
Ali estava o cintilante foguete, lindo, inocente, qual um novo brinquedo para ciclopes.
Mas havia um cheiro horrível de produtos químicos no ar, e para Bond, o “Explorador da Lua” parecia uma gigantesca agulha hipodérmica pronta para ser enterrada no coração da Inglaterra. Apesar de um resmungo de Krebs, ele parou na escada e levantou os olhos para seu nariz faiscante. Um milhão de mortes. Um milhão. Um milhão. Um milhão.
E tudo dependia dele? Pelo amor de Deus! Tudo dependia dele?
Com o revólver de Krebs cutucando-o, desceu lentamente os degraus, atrás de Gala.
Quando entrou pela porta do escritório de Drax, controlou-se. De repente, seu espírito tornou-se claro, e toda a letargia e a dor haviam-lhe deixado o corpo. Alguma coisa, qualquer coisa, precisava ser feita. De um jeito ou de outro, ele havia de descobrir um meio. O corpo inteiro e a mente tornaram-se-lhe concentrados e agudos como uma lâmina. Seus olhos ganharam vida, novamente, e a derrota abandonou-o, como a pele de uma serpente.
Drax seguira na frente e se sentara à escrivaninha. Trazia uma Luger na mão. Este apontava um lugar entre Gala e Bond e era firme como uma rocha.
Por trás dele, Bond escutou as portas duplas se fecharem, batendo.
— Eu era um dos melhores atiradores na Divisão Branderburg — disse Drax, entabulando conversa.
— Amarre a moça nessa cadeira, Krebs. Depois o homem .
Gala olhou desesperadamente para Bond. Este disse:
— Você não vai atirar. Teria receio de atingir o combustível.
Encaminhou-se lentamente para a escrivaninha. Drax sorriu alegremente e, seguindo a trajetória do cano do revólver, mirou o estômago de Bond.
— Sua memória é ruim, inglês. Eu lhe disse que esta sala é inteiramente separada da cúpula por meio das portas duplas. Dê mais um passo e ficará sem estômago.
Bond olhou os olhos apertados e confiantes do outro e parou.
— Vamos, Krebs.
Quando os dois ficaram bem amarrados, e dolorosamente, às pernas e braços das duas cadeiras de aço tubular, pouco distante um do outro, por baixo do mapa de vidro, Krebs saiu da sala. Voltou um momento depois com uma espécie de maçarico mecânico.
Colocou a feia máquina sobre a escrivaninha, introduziu o ar com algumas breves bombadas e riscou um fósforo. Uma chama azul sibilou, elevando-se a alguns centímetros. Ele pegou o instrumento e acercou-se de Gala. Parou a pouca distância da moça.
Drax ordenou, severo:
— Vejamos agora. Vamos tratar desse caso, sem criar complicações. Nós costumávamos chamá-lo Der Zwagsman — O Persuasor. Nunca me esquecerei de como lidou com o último espião que pegamos juntos. Bem ao sul do Reno, não foi, Krebs?
Bond era todo ouvidos.
— Foi sim, mein Kapitän. — Krebs riu, recordando-se. — Era um porco de um belga.
— Pois bem. Vocês dois aí não se esqueçam. Aqui não temos esse negócio de fair play. Nada de atitudes esportivas e toda essa história. Isto aqui é negócio.
A voz estalava como um chicote, a cada palavra.
— Você — lançava um olhar a Gala Brand — para quem está trabalhando?
Gala se conservou em silêncio.
— Onde você quiser, Krebs.
A boca de Krebs estava entreaberta. Sua língua percorria o lábio, para cima e para baixo. Parecia ter dificuldade em respirar, quando deu um passo em direção à moça.
A pequenina chama roncava gulosamente.
— Pare — disse Bond, frio. — Ela trabalha para a Scotland Yard. E eu também.
Essias coisas agora não tinham mais propósito. Não podia ser de nenhuma utilidade imaginável para Drax. De qualquer maneira, amanhã de tarde, talvez não existisse mais nenhuma Scotland Yard.
— Assim está melhor — disse Drax. — Agora responda: Alguém sabe que vocês estão prisioneiros? Vocês pararam para telefonar a alguém?
Se eu disser que sim, pensou Bond, ele atirará em nós dois e se livrará dos corpos. Dessa forma, a última chance de impedir o lançamento do “Explorador da Lua” terá desaparecido. E se a Yard sabe, por que ainda não chegaram aqui? Não. Nossa oportunidade ainda pode vir. O Bentley será encontrado. Vallance ficará preocupado quando não tiver notícias minhas.
Não — respondeu. — Se eu tivesse telefonado, eles já estariam por aqui a esta hora.
— Isto é verdade — disse Drax, refletindo.
— Neste caso, não estou mais interessado em vocês e felicito-os por terem tornado a entrevista tão harmoniosa. Poderia ter sido mais difícil, se você estivesse sozinho. Uma moça é sempre útil nessas ocasiões. Krebs largue isso. Pode ir. Diga aos outros o que é necessário. Eles devem estar fazendo conjeturas. Eu vou entreter nossos hóspedes durante algum tempo e depois subirei até a casamata. Providencie para que o carro seja bem lavado. O assento de trás. E faça desaparecer as marcas no lado direito. Diga para tirarem o painel inteiro, se fôr necessário. Ou então podem tocar fogo na maldita coisa. Nós não vamos mais precisar dela. — Riu abruptamente. — Verstanden?
— Sim, mein Kapitän...
Krebs, colocou com relutância o maçarico, que roncava de leve, na escrivaninha ao lado de Drax.
— Para o caso de lhe ser necessário — disse, olhando esperançoso para Gala e Bond. Saiu depois pelas portas duplas.
Drax pôs a Luger também na escrivaninha em frente a ele. Abriu uma gaveta, tirou um charuto e acendeu-o com um isqueiro Ronson. Depois, acomodou-se confortàvelmente. O silêncio reinou na sala durante vários minutos, enquanto Drax puxava fumaçadas do charuto, todo satisfeito. Em seguida, pareceu tomar uma resolução. Fitou Bond com benevolência.
— Você nem sabe quanto eu desejei um auditório inglês — declarou como se estivesse dando uma entrevista à imprensa. — Você nem sabe como estava ansioso por contar minha história. Aliás, um relatório completo de minhas atividades encontra-se em poder de um escritório muito respeitável de advogados de Edinburgo. — Tabeliães, aliás. Bem salvo de qualquer perigo.
Drax sorriu abertamente para um e para outro:
— Essa boa gente recebeu instruções para abrir o envelope no final do primeiro voo bem sucedido do “Explorador da Lua”. Mas vocês, seus felizardos, terão uma, antecipação do que eu escrevi e então, quando amanhã às doze horas, virem através destas portas abertas — fez um gesto para a direita — o primeiro vapor saindo das turbinas e souberem que devem ser queimados vivos dentro de meio segundo, terão a satisfação momentânea de saber com quantos paus se faz uma canoa.
— Você poderá nos dispensar as piadas — interrompeu Bond, com aspereza. — Continue com sua história, Kraut.
Os olhos de Drax fuzilaram momentaneamente.
— Um Kraut. Sim eu sou realmente um Reichsdeutscher — a boca, por baixo do bigode vermelho, saboreava a linda palavra — e até a própria Inglaterra terá de concordar, dentro em breve, que foram liquidados por um único alemão. E então talvez parem de nos chamar de Krauts — POR ORDEM! — As palavras foram gritadas, e todo militarismo prussiano entrou em desfile lá embaixo.
Drax exultou do outro lado da escrivaninha, olhando Bond, os dentes grandes, espalhados e salientes sob o bigode vermelho, roendo nervosamente uma unha, depois da outra. Em seguida, enfiou com esforço a mão direita no bolso da calça, como para colocá-la a salvo da tentação, e pegou o charuto com a esquerda. Puxou umas tragadas durante alguns instantes e, depois, com a voz ainda tensa, começou.
CAPITULO 22
A CAIXA DE PANDORA
Meu verdadeiro nome — disse Drax dirigindo-se a Bond — é Graf Hugo von der Drache. Minha mãe era inglesa, e por causa dela fui educado na Inglaterra até a idade de doze anos. Depois, não pude mais suportar este país imundo e completei minha educação em Berlim e Leipzig.
Bond calculava facilmente que aquele brutamontes com cara de bicho-papão e dentes de bruxo não havia sido muito bem recebido numa escola particular inglesa. O fato de ser um conde estrangeiro com um mundo de nomes não teria ajudado muito.
Os olhos de Drax brilharam, cheios de reminiscências: — Quando fiz vinte anos, comecei a trabalhar no ramo de negócio da família. Era uma filial do grande truste de aço Rheinmetal Bórsig. Nunca ouviu falar dele, suponho. Pois bem, se foi ferido por uma bomba de 88mm. durante a guerra, provavelmente foi uma das de lá. Nossas filiais eram peritas em aços especiais, e eu aprendi a respeito deles, e muita coisa sobre a indústria aviatória. Nossos melhores fregueses. Foi quando ouvi, pela primeira vez, falar em columbita. Valendo o que valem os brilhantes naqueles dias. Liguei-me à firma, e quase imediatamente depois disso arrebentou a guerra. Uma época maravilhosa. Eu tinha vinte e oito anos e era tenente da 140a do Regimento Panzer. Nós investimos contra o Exército britânico, na França, e o atravessamos como uma faca por dentro da manteiga. Simplesmente embriagador.
Durante alguns instantes, Drax sugou o charuto, e Bond calculou que ele estava vendo as aldeias incendiadas da Bélgica através da fumaça.
— Aqueles dias eram formidáveis, meu caro Bond. — Drax esticou um braço comprido e bateu a cinza do charuto para o chão. — Mas aí fui escolhido para a Divisão Brandenburg e tive de deixar as pequenas e o champanha para voltar à Alemanha e começar o adestramento, a fim de executar o vasto pulo na água para a Inglaterra. Precisavam de meu in-glês na Divisão. Todos nós devíamos trajar uniformes ingleses. Teria sido engraçado, porém os malditos generais disseram que não podia ser, e eu fui transferido para o Serviço Secreto Estrangeiro do SS. O RSHA, era como se chamava. SS Obergruppenfuhrer Kaltenbrunner acabava de assumir o comando depois que Heydrich foi assassinado em 42. Ele era um bom homem, e eu estava sob as ordens diretas de um ainda melhor, Obersturmbannfuhrer — Drax enrolava na boca o título delicioso com prazer. — Otto Skorzeny. Sua tarefa na RSHA era o terrorismo e a sabotagem. Um agradável interlúdio, meu caro Bond, durante o qual eu pude registrar o nome de muitos ingleses, coisa que me deu muito prazer. Mas então — o punho de Drax esmagou a escrivaninha — Hitler foi novamente traído por aqueles miseráveis generais, e os ingleses e norte-americanos tiveram oportunidade de desembarcar na França.
— Foi uma pena — disse Bond, friamente.
— Sim, meu caro Bond, foi de fato uma pena. — Drax preferiu ignorar a ironia. — Mas para mim foi o ponto alto da guerra. Skorzeny transformou todos os seus sabotadores e terroristas em SS Jagdverbände, para usá-los na retaguarda das linhas inimigas. Cada Jagdverbände era dividida em Streifkorps, e depois em Kommandos, cada um deles levando os nomes de seus oficiais-comandantes. Com o posto de Oberleutnant — Drax encheu-se visivelmente de empáfia — à testa do Kommando “Drache”, eu penetrei diretamente nas linhas americianas com a famosa Brigada Panzer 150a na penetração de Ardennes, em dezembro de 44. Você se lembra, sem dúvida, do efeito causado por esta brigada em seus uniformes americanos e nos tanques e veículos americanos capturados. Kolossal! Quando a Brigada teve de se retirar, eu fiquei onde estiava e fui estabelecer-me nas Florestas de Ardennes, cinquenta milhas à retaguarda das linhas aliadas. Havia vinte rapazes, dez homens bons e dez Hitlerjugend Lobishomens. Todos com menos de vinte anos, mas todos bons rapazes. Por coincidência, o chefe deles era um jovem chamado Krebs, que demonstrou possuir determinados dons que o qualificaram para o pôsto de executor e “persuasor” de nosso alegre pequeno bando. Drax deu uma risadinha gostosa.
Bond lambeu os lábios, ao lembrar-se da brecha que Krebs fizera na cabeça batendo de encontro à cômoda. Ter-lhe-ia dado o pontapé com tanta força quanto lhe era possível dar? Sim, sua memória o tranquilizava, com cada grama de força que ele podia pôr no sapato.
— Ficamos naqueles bosques durante seis meses — continuou Drax, orgulhoso — e durante todo esse tempo dávamos notícias nossas à nossa Pátria por meio do rádio. Os caminhões de busca nunca deram conosco. E então aconteceu um desastre. — Drax sacudiu ia cabeça àquela lembrança. — Existia uma grande fazenda a uma milha de distância de nosso esconderijo na floresta. Uma porção de cabanas haviam sido construídas em torno dela, e eram usadas como quartel-general de retaguarda para um grupo de ligação. Ingleses e norte-americanos. Um lugar incrível. Sem disciplina, sem segurança, cheio de vadios e desertores vindos de todos os lugares da vizinhança. Nós vínhamos observando o grupo há muito tempo, e um dia eu resolvi fazer tudo aquilo voar pelos ares. O plano era simples. À noite, dois dos meus homens, um vestido num uniforme americano, e outro de uniforme britânico, deviam dirigir-se para lá num carro-patrulha capturado, contendo duas toneladas de explosivos. Havia um ponto de estacionamento para os carros — nenhuma sentinela, naturalmente — próximo à sala de refeitório, e eles deviam trazer o carro tão perto dela quanto possível, regular a explosão para a hora do jantar, às sete, e depois se afastarem. Tudo muito fácil, de modo que eu saí naquela manhã para tratar de negócios e deixei a missão para ser cumprida por meu segundo em comando. Eu estava vestido com o uniforme de Corpo de Sinaleiros britânicos, e parti numa motocicleta inglesa capturada por nós para enviar um despacho da mesma unidade que fazia o percurso diário num caminho ali perto. Está claro que ele veio pontualmente na hora, de modo que eu lhe segui atrás, saindo de um caminho lateral. Emparelhei com ele ei dei-lhe um tiro nas costas, tomei-lhe os documentos e, depois de colocá-lo em cima de sua própria motocicleta, levei-o para os bosques e toquei-lhe fogo.
Drax viu a fúria nos olhos de Bond e levantou a mão.
— Não foi muito esportivo? Meu caro, o homem já estava morto. Entretanto, prossigamos. Fui seguindo meu caminho, e então o que haveria de acontecer? Um dos aviões de vocês, voltando de um voo de reconhecimento, veio atrás de mim pela estrada com uma metralhadora. Um de seus próprios aviões! Jogou-me para longe da estrada. Só Deus sabe quanto tempo fiquei ali, caído no fosso. Em certo momento, durante a tarde, voltei a mim a tive o bom senso de esconder o boné e o dólmã com os despachos. Na cerca. Provavelmente ainda estão lá. Preciso ir buscá-los um dia. Lembranças interessantes. Depois toquei fogo nos restos da motocicleta e devo ter desmaiado novamente, porque quando tornei a dar por mim, tinha sido recolhido por um veículo britânico e estávamos seguindo para o maldito quartel-general de ligação! Acredite-se ou não! Lá estava o carro-patrulha, bem ao lado da sala do rancho! Era demais para mim. Eu estava cheio de estilhaços de bomba e minha perna estava quebrada. Pois bem, desmaiei, e quando voltei a mim, vi que metade do hospital se debruçava sobre mim, e eu só tinha a metade da cara.
Drax levantou a mão e alisou a pele lustrosa da têmpora e da face esquerda:
— Depois disso, tudo se resumiu numa questão de representar um papel. Eles não tinham ideia de quem eu era. O carro que me apanhara havia sido reduzido a simples fragmentos. Eu era apenas um inglês, vestido numa camisa e calças inglesas que quase morrera.
Drax fez uma pausa, tirou outro charuto e acendeu-o. Na sala reinou o silêncio, quebrado apenas pelo roncar atenuado do maçarico. Sua voz ameaçadora tornara-se mais baixa. A pressão está cedendo, pensou Bond.
Virou a cabeça e olhou Gala. Pela primeira vez, viu a lesão feia atrás de sua orelha esquerda. Endereçou-lhe um sorriso de encorajamento, e ela retorceu os lábios num sorriso de resposta.
Drax falava por dentro da fumaça do charuto:
— Não há muito mais coisa para contar. Durante o ano em que eu passei sendo enviado de um para outro hospital, elaborei meus planos sem omitir os mínimos detalhes. Consistiam muito simplesmente em vingar-me da Inglaterra pelo que me tinha feito e ao meu país. Confesso que, pouco a pouco, foi-se tornando uma obsessão. Cada dia que se passava no ano em que a destruição e a rapina campearam em meu país, meu ódio e desprezo pelos ingleses iam-se tornando cada vez mais amargos.
As veias do rosto de Drax começaram a inchar e, de repente, ele se pôs a desferir socos na mesa e a gritar para seus prisioneiros, fitando com olhos esbugalhados ora um, ora outro:
— Abomino e desprezo vocês todos. Seus porcos! Idiotas inúteis, ociosos, decadentes, escondendo-se por trás de seus malditos penhascos brancos, enquanto os outros povos travam batalhas por vocês. Fracos demais para defenderem suas colônias, bajulando a América com os chapéus nas mãos. Esnobes malcheirosos, que são capazes de fazer qualquer coisa por dinheiro. Ah! — Drax estava triunfante. — Eu sabia que precisava apenas de dinheiro e a aparência de um gentleman. Um gentleman! Pfui Teufel! Para mim um gentleman é apenas alguém de quem eu posso tirar vantagem. Aqueles malditos imbecis no Blades, por exemplo. Cretinos endinheirados. Durante meses a fio tirei milhares de libras deles, tapeei-os bem debaixo de seus narizes, até que você apareceu e estragou o brinquedo.
Os olhos de Drax se apertaram.
— Como foi que descobriu o truque da cigarreira — perguntou incisivo.
Bond deu de ombros.
— Com os olhos — respondeu indiferente.
— Ah, bem. Talvez eu estivesse um tanto descuidado naquela noite. Mas onde é mesmo que eu estava? Ah, sim, no hospital. Os bons médicos mostravam-se tão ansiosos por me ajudarem a descobrir quem eu era realmente. — Soltou uma gargalhada. — Foi fácil. Muito fácil. Dentre as identidades que eles me ofereciam com tanta boa vontade, topei com o nome de Hugo Drax. Que coincidência! De Drache para Drax! Como quem hesita, pensei que podia ser eu. Eles sentiram-se muito orgulhosos. Sim, afirmaram, naturalmente que é você. Triunfalmente, fizeram-me entrar-lhe na pele. Saí do hospital dentro dela, começando a rodar por Londres à cata de alguém para matar e roubar. Até que um dia, num pequeno escritório acima de Piccadilly, encontrei um agiota judeu. (Drax agora falava muito depressa. As palavras jorravam-lhe excitadamente dos lábios. Bond reparou num aglomerado de espuma que se formava num canto de sua boca e crescia.) — Ah, foi fácil. Uma bordoada em seu crânio nu. Quinze mil libras no cofre. Então tratei de me afastar do País. Fui para Tânger — onde se podia fazer qualquer coisa, comprar qualquer coisa, arranjar qualquer coisa que se desejasse. Columbita. Mais rara que a platina, e todos prontos a adquiri-la. A Era do Jato. Eu conhecia essas coisas. Não me havia esquecido de minha profissão. Então, por Deus, lhe digo que trabalhei. Durante cinco anos vivi para o dinheiro. Fui valente como um leão. Corri riscos tremendos. E eis que, de repente, o primeiro milhão me chega às mãos. Depois o segundo. Em seguida o quinto. Depois o vigésimo. Voltei para a Inglaterra. Gastei um milhão aqui, e Londres estava no papo. Depois voltei à Alemanha. Encontrei Krebs. Encontrei cinquenta deles. Alemães leais. Técnicos brilhantes. Todos vivendo sob nomes falsos, como tantos outros de meus antigos camaradas. Dei-lhes minhas ordens, e eles esperaram, pacificamente, inocentemente. E onde estava eu?
Drax fitou Bond, com os olhos arregalados:
— Eu estava em Moscou! Moscou! Um homem que tem columbita para vender pode ir a qualquer lugar. Encontrei as pessoas indicadas para meu caso. Ouviram meus planos. Deram-me Walter, o novo gênio de seus mísseis teleguiados da estação de Peenemunde, e os bons dos russos começaram a construir a cápsula dos instrumentos e explosivos, a cápsula atômica — apontou para o teto — que está agora nos esperando ali. Então tornei a regressar para Londres. — Fez uma pausa. — A Coroação. Minha carta para o Palácio. Triunfo. Hurras para Drax. — O homem estourou numa gargalhada. — A Inglaterra estava aos meus pés. Todos os malditos cretinos do país! Foi quando meus homens chegaram, e nós começamos. Bem juntos das saias da Grã-Bretanha. No alto de seus famosos penhascos. Trabalhamos como loucos. Construímos um cais no seu Canal inglês. Para receber fornecimentos! Suprimentos vindos de meus bons amigos os russos, que chegaram na hora exata, segunda-feira à noite. Mas foi aí que Tallon teve de ouvir alguma coisa. O velho imbecil. Falou com o Ministério. Mas Krebs estava ouvindo. Apareceram cinquenta voluntários para matar o homem. Tiramos a sorte, e Bartsch morreu como um herói. — Drax fez nova pausa. Depois continuou. — A nova cápsula foi içada para o lugar. Deu certo. Uma perfeita peça de encomenda. O mesmo peso. Tudo perfeito, como a antiga, a caneca de folha, cheia dos queridos instrumentos do Ministério, está agora em Stettin — atrás da Cortina de Ferro. O fiel submarino está de viagem de volta para aqui, e dentro em breve — olhou o relógio — estará navegando sob as águas do Canal inglês para nos levar a todos para longe, quando passar um minuto de meio-dia amanhã.
Drax limpou a boca com as costas da mão e recostou-se de novo na cadeira fitando o teto, os olhos povoados de visões. De repente, riu e olhou interrogativamente para Bond, passando o olhar pelo próprio nariz:
— Quer saber qual será a primeira coisa que nós faremos quando estivermos a bordo? Rasparemos esses famosos bigodes nos quais você estava tão interessado. Você cheirou um camundongo, meu caro Bond, onde devia ter cheirado um rato. Aquelas cabeças raspadas e aqueles bigodes: que nós cultivávamos tão assiduamente. Apenas uma precaução, meu caro. Experimente raspar a própria dabeça e deixar crescer um bigodão preto. Nem mesmo sua mãe o reconheceria. É a combinação das duas coisas que produz o efeito. Apenas um mínimo refinamento. Precisão, meu caro. Precisão, em cada detalhe. Foi esta a minha palavra de passe. — Drax deu uma risadinha sem graça e puxou uma boa fumarada do charuto. Súbito, olhou incisivamente, desconfiado, para Bond. — Então? Diga alguma coisa. Não fique aí sentado como uma múmia. Que pensa de minha história? Não acha que é extraordinária? Notável? Um homem ter feito tudo isto? Vamos, vamos, fale.
Uma das mãos foi levada até a boca, e Drax começou a roer as unhas furiosamente. Mas, em seguida, meteu-a no bolso, e seus olhos tornaram-se frios e cruéis.
— Ou quer que mande buscar Krebs — fez um gesto para o telefone em cima da escrivaninha. — O Persuasor. Pobre Krebs! É como uma criança a quem tivessem arrebatado os brinquedos. Ou talvez Walter. Eles lhes dariam uma lembrança para toda a vida. Esse aí não tem um pingo de moleza. Então?
Bond começou a falar, olhando a caraça vermelha, do outro lado da escrivaninha:
— Não resta dúvida, é um caso notável. Paranoia galopante. Ilusões de ciúme e perseguição. Ódio megalomaníaco e desejo de vingança. Fato bastante curioso — continuou dizendo, em tom de conversação — poderá ter alguma relação com seus dentes. Diastema, é como chamam isto. Acontece quando a criança chupa o dedo na infância. Sim. Tenho a impressão de que será isto o que dirão os psicólogos, assim que lhe puserem no hospício. “Dentes de bicho-papão.” Foi atormentado na escola etc. É extraordinário o efeito produzido numa criança. Então o nazismo ajudou a soprar as flamas, e ainda aconteceu você levar aquela pancada feia na sua feia cabeça. A pancada que você mesmo engendrou. Acho que foi o que estava faltando. Dali por diante, você passou a ser realmente louco. Do mesmo gênero desses que acreditam serem Deus. É extraordinário observar como são tenazes. Completamente fanáticos. Você é quase um gênio. Lombroso teria ficado encantado com você. No ponto em que estão as coisas, você não passa de um cão danado que precisa ser morto. Ou então você se suicida. Os paranoicos geralmente se matam. É uma pena. Coisa triste, mesmo.
Bond fez uma pausa e pôs todo o desprezo que pôde acumular na voz:
— E agora, continuemos com esta farsa, vamos, seu lunático cabeludo.
Deu resultado. A cada palavra de Bond, a cara de Drax ia se contorcendo de raiva cadia vez maior, os olhos estavam vermelhos de cólera, o suor da fúria pingava de suas mandíbulas para a camisa, os lábios se afastariam dos dentes irregulares, e um fio de saliva saíra-lhe da boca e lhe escorria pelo queixo. Agora, com o último insulto sobre a escola particular, que devia ter-lhe despertado sabe Deus que espécie de lembranças dolorosas, ele pulou da cadeira, rodeou a escrivaninha, investiu contra Bond, os punhos cabeludos martelando. Bond rangeu os dentes e aguentou.
Quando Drax teve de pegar a cadeira do chão pela segunda vez, com Bond em cima dela, a tempestade de raiva passou subitamente. Tirou do bolso o lenço de seda e limpou o rosto e as mãos. Depois, encaminhou-se calmamente para a porta e falou, olhando por cima da cabeça pendente de Bond e dirigindo-se à pequena.
— Não creio que vocês dois me deem mais trabalho — declarou com a voz perfeitamente calma e segura. — Krebs nunca comete enganos com seus nós.
Gesticulou em direção à figura ensanguentada da outra cadeira:
— Quando ele acordar, pode dizer-lhe que estas portas ainda se abrirão mais uma vez, pouco antes do meio-dia de amanhã. Alguns minutos mais tarde, não sobrará nada de nenhum de vocês dois. Nem mesmo — acrescentou, ao escancarar a porta de dentro — as obturações de seus dentes.
A porta externa bateu.
Bond levantou lentamente a cabeça e sorriu dolorosamente para sua companheira com os lábios manchados de sangue. Explicou com dificuldade:
— Tive de deixá-lo louco. Não quis que ele tivesse tempo para pensar. Tive de provocar aquela tempestade cerebral.
Gala olhava-o sem compreender, os olhos arregalados para a máscara terrível de seu rosto.
— Está tudo bem. Não se preocupe. Londres está O.K. Tenho um plano.
Sobre a escrivaninha, o maçarico fez um “pleft” baixinho e apagou.
CAPÍTULO 23
MENOS ZERO
Por entre os olhos entreabertos, Bond fitou demoradamente o maçarico, enquanto por alguns preciosos segundos permanecia sentado e deixava a vida voltar-lhe lentamente ao corpo. Tinha a impressão de que sua cabeça fora usada como bola de futebol, mas não tinha nada quebrado. Drax batera-lhe sem nenhuma ciência e com a confusão de golpes de um homem embriagado.
Gala observava-o ansiosamente. Os olhos, no rosto sanguinolento, estavam quase fechados, mas a linha do queixo aparecia tensa de concentração, e ela percebia o esforço de vontade que ele fazia.
Bond sacudiu a cabeça, e quando se voltou para ela, Gala viu que seus olhos estavam febris pelo triunfo.
Fez um gesto na direção do isqueiro.
— O isqueiro. Eu tive de tentar fazê-lo esquecer-se dele. Siga-me. Vou-lhe mostrar como.
Começou a balançar a leve cadeira de aço, polegada por polegada, em direção à escrivaninha:
— Pelo amor de Deus, não vá virar de pernas para cima, do contrário estará tudo perdido. Mas procure apressar-se senão o maçarico esfria.
Sem compreender, sentindo-se quase como se tomasse parte em algum fantástico brinquedo infantil, Gala, cautelosamente, foi balançando a cadeira pelo chão atrás dele.
Segundos depois, Bond lhe disse que parasse ao lado da escrivaninha, enquanto ele continuava o balanço até a cadeira de Drax. Depois, manobrou de modo a tomar posição em frente ao seu alvo e, com uma súbita guinada, suspendeu-se com a cadeira, de forma que sua cabeça ficou para baixo.
Ouviu-se um estalo, quando o isqueiro Ronson, de escrivaninha, prendeu-se-lhe nos dentes, mas seus lábios sustiveram-no, e a parte superior ficou-lhe na boca, assim que ele impulsionou a cadeira para a primeira posição, apenas com a força suficiente para impedir que saltasse fora. Em seguida, recomeçou sua paciente viagem de volta para o ponto onde Gala se encontrava sentada, no canto da escrivaninha onde Krebs deixara a lâmpada.
Bond descansou até sua respiração tornar-se novamente regular.
— Chegamos agora à parte difícil — avisou, severo. — Enquanto eu tento fazer este maçarico funcionar, você vai rodando sua cadeira, de modo que seu braço direito fique tanto quanto possível defronte de mim.
Obedientemente, a moça foi executando os movimentos, enquanto Bond balançava sua cadeira, de forma que esta se encostou a beira da escrivaninha e permitiu que sua boca alcançasse e agarrasse o cabo do maçarico entre os dentes.
Em seguida, foi trazendo o maçarico para perto e, depois de alguns minutos de trabalho paciente, conseguiu colocar o maçarico e o isqueiro como desejava, na borda da escrivaninha.
Após outro descanso, curvou-se, fechou a válvula da tocha com os dentes, e começou a fazer voltar a pressão, puxando lenta e repetidamente o pistão com os lábios e apertando-o de volta com o queixo. Sentia no rosto o calor do aquecedor e sentia o cheiro dos restos de gás no pequeno instrumento. Se ao menos não tivesse esfriado demais.
Endireitou o corpo.
— Ultima etapa, Gala — disse sorrindo quase com esforço para ela. — Talvez eu tenha de lhe machucar um pouco. Não faz mal?
— Claro que não — respondeu a moça.
— Então lá vai — disse Bond, e curvou-se para a frente, soltando a válvula de segurança à esquerda do depósito.
Depois debruçou-se rapidamente sobre o Ronson, que estava no ângulo direito e bem debaixo do tubo da tocha. Com os dois dentes incisivos apertou para baixo a trave de ignição.
Era uma manobra horrível e, apesar de ele sacudir a cabeça para trás com a rapidez de uma serpente, deixou escapar um leve gemido de dor, quando o jato de fogo azul do maçarico subiu-lhe pela face machucada e pela ponta do nariz.
Mas a parafina vaporizada sibilava sua língua vital de chama, e ele sacudiu as lágrimas dos olhos, curvando a cabeça quase até o ângulo direito e novamente prendeu a haste do maçarico nos dentes.
Teve a impressão de que seu queixo se partiria com o peso da coisa, e os nervos dos dentes da frente reclamaram, mas ele balançou a cadeira cautelosamente até colocá-la em posição vertical, afastada da escrivaninha, e então forçou o pescoço a curvar-se para a frente, até que a ponta da chama azul da tocha mordeu o ponto que ligava o pulso direito de Gala ao braço da cadeira.
Bond tentou desesperadamente conservar a chama firme, contudo a respiração da moça raspou-lhe entre os dentes, angustiada, quando o cabo se movia entre suas mandíbulas, e o maçarico queimou-lhe o antebraço.
Então tudo acabou. Derretido pelo forte calor, as tiras de cobre foram-se partindo uma por uma e, de repente, o braço direito de Gala ficou livre, e ela o estendeu para tomar o maçarico da boca de Bond.
A cabeça do rapaz caiu novamente para trás, entre os ombros, e ele torceu-a para todos os lados, a fim de conseguir fazer o sangue circular pelos músculos doloridos.
Antes mesmo que ele se desse conta, Gala já se inclinava sobre seus braços e pernas, e ele também estava livre.
Ao sentar-se imóvel por um momento, os olhos fechados, esperando que a vida lhe voltasse ao corpo, sentiu de repente, encantado, os lábios macios de Gala sobre os seus.
Abriu os olhos. Ela estava de pé, diante dele, os olhos brilhando.
— Isto é pelo que você fez — falou, muito séria.
— Você é uma garota maravilhosa — disse Bond. Depois, porém, sabendo o que ia fazer, sabendo que era bem concebível que ela sobrevivesse, mas que ele só tinha mais alguns minutos de vida, fechou os olhos para que ela não visse a desesperança neles.
Gala observou-lhe a expressão do rosto e virou de costas. Pensou que fosse apenas exaustão e o efeito do que seu corpo tinha sofrido. Lembrou-se aí, de repente, da água oxigenada no banheiro pegado ao seu escritório.
Passou pela porta de comunicação. Como era extraordinário ver suas coisas familiares novamente. Devia ser outra pessoa que se sentara naquela escrivaninha e batera na máquina a correspondência, outra moça a que ali empoara o nariz. Sacudiu os ombros e foi para o toalete. Meu Deus, que cara, e só Deus sabe como se sentia cansada! Mas primeiro pegou uma toalha molhada, um pouco de água oxigenada, e voltou. Durante dez minutos tratou do campo de batalha que era a cara de Bond.
Este permanecia sentado em silêncio, uma das mãos descansando na cintura dela e observando-a agradecido. Depois, quando ela voltou para o escritório e fechou a porta do banheiro após entrar, ele se levantou, apagou o maçarico que ainda silvava, e encaminhou-se para o chuveiro de Drax, tirou a roupa e permaneceu durante cinco minutos debaixo da água gelada. “Preparando o corpo”, pensou melancòlicamente, ao examinar o rosto maltratado no espelho.
Vestiu as roupas e voltou para a escrivaninha de Drax, que revistou metòdicamente. Esta lhe proporcionou apenas um prêmio, a “garrafa do escritório”, cheia até a metade de Haig and Haig. Foi buscar dois copos, um pouco de água e chamou Gala.
Ouviu-a abrir a porta do banheiro.
— O que é? — Uísque.
— Vá tomando o seu. Estarei pronta daqui a um minuto.
Bond olhou a garrafa, serviu três quartos de um copo de escovas de dentes e tomou-o de uma vez, em dois goles. Em seguida, acendeu meio trêmulo um abençoado cigarro e sentou-se na borda da escrivaninha, sentindo o álcool queimá-lo no estômago, descendo-lhe até as pernas.
Pegou a garrafa novamente e olhou-a. Ainda havia muito para Gala e um copo inteiro para ele, antes de sair por aquela porta. Era melhor que nada. Não seria tão difícil com aquilo dentro de si, contanto que saísse em passos rápidos o fechasse a porta depois. Nada de olhar para trás.
Gala entrou, uma Gala transformada, parecendo tão bela quanto na noite em que a vira pela primeira vez, exceto as linhas de exaustão sob os olhos, que o pó não disfarçava totalmente, e os feios vincos nos pulsos e tornozelos.
Bond deu-lhe um drinque e tomou outro. Os olhos de ambos sorriam por cima da orla dos copos.
Depois Bond se ergueu.
— Escute, Gala — começou num tom de voz bem natural . — Nós temos de enfrentar o que está por vir e terminar com a história, de modo que serei breve e depois tomaremos outra dose.
Bond ouviu quando ela prendeu a respiração, mas continuou:
— Dentro de dez minutos, mais ou menos, eu vou fechá-la no banheiro de Drax, pôr você debaixo do chuveiro, e abri-lo completamente.
A moça gritou, aproximando-se dele:
— James. Não continue. Eu sei que você vai dizer qualquer coisa horrível. Pare, por favor, James.
— Deixe disso, Gala — disse Bond com aspereza. — Que diabo adianta tudo isto. É um milagre maldito, se é que posso dizer assim, e nós temos a oportunidade.
Afastou-se dela. Encaminhou-se então para as portas que conduziam ao foguete.
— Depois então — prosseguiu, segurando o precioso isqueiro na mão direita — eu sairei daqui, fecharei as portas e acenderei um último cigarro debaixo da cauda do “Explorador da Lua”.
Meu Deus! — sussurrou a moça. — Que é que você está dizendo? Você está louco.
Fitou-o com os olhos arregalados de horror.
— Não seja ridícula — disse Bond impaciente. — Que diabo nos resta fazer? A explosão será tão pavorosa, que ninguém sentirá nada. Deve dar resultado, com todo esse combustível em vapor circulando em redor. Trata-se de mim ou de um milhão de pessoas em Londres. A cápsula não se soltará. As bombas atômicas não explodem assim. Com certeza derreterá. Só há uma chance de você escapar. A maior parte da explosão se encaminhará para a linha de menor resistência através do telhado — e por baixo, pela cavidade exaustora, se eu conseguir fazer funcionar o maquinismo que abre o chão.
Bond sorriu.
— Ânimo — pediu, caminhando para ela e pegando-lhe uma das mãos. — O rapaz ficou de pé no tombadilho incendiado. Eu quis imitá-lo desde os cinco anos de idade.
Gala puxou a mão.
— Não me importa o que você está dizendo — declarou encolerizada. — Temos de pensar em outra coisa qualquer. Você não me acha capaz de ter nenhuma ideia. Vai só me dizendo o que pensa e o que temos de fazer.
Dirigiu-se para o mapa da parede e apertou o interruptor.
— Naturalmente, se tivermos de usar o isqueiro, usá-lo-emos. — Olhou o mapa do falso plano de voo, mal vendo o que tinha diante dos olhos. — Mas a ideia de você caminhar ali sozinho e ficar no meio daqueles horríveis vapores do combustível e calmamente acender essa coisa para depois ser reduzido a pó... Entretanto, se tivermos de agir assim, agiremos juntos. É preferível, melhor do que ser queimada até morrer aqui dentro. De qualquer maneira — fez uma pausa — eu gostaria de ir com você. Nós entramos juntos nesse negócio.
Os olhos de Bond estavam cheios de ternura, quando caminhou em direção à moça, passou-lhe um braço em volta da cintura e abraçou-a bem junto a si.
— Gala, você é um amor — disse com simplicidade. — Se houver outro meio, nós o tentaremos. Mas — olhou o relógio — já passa de meia-noite, e nós precisamos tomar uma resolução rápida. A qualquer momento pode ocorrer a Drax a ideia de mandar guardas para ver sé nós estamos em ordem, e só Deus sabe a que horas ele virá aqui acertar o giroscópio.
Gala torceu o corpo como uma gata. Fitou-o com a boca aberta, o rosto tenso de excitação. Sussurrou:
— O giroscópio, para acertar o giroscópio. Encostou-se novamente de leve contra a parede, os. olhos procurando o rosto de Bond.
— Você não compreende? — sua voz estava beirando a histeria. — Depois que ele sair, nós poderíamos alterar o giroscópio para onde estava, de acordo com o antigo plano de voo, e então o foguete cairia simplesmente no Mar do Norte, onde se julga que irá cair.
Gala afastou-se da parede e agarrou a camisa de Bond com as duas mãos, fitando-o com um olhar que implorava:
— Não poderíamos? Não poderíamos?
— Você conhece as outras direções? — perguntou Bond, ansioso.
— Claro que sim. Convivo com eles há um ano. Nós não teremos uma previsão do tempo, mas teremos de nos arriscar. A previsão desta manhã dizia que nós teríamos as mesmas condições de hoje.
— Por Deus — disse Bond. — Nós poderíamos fazer isto. Se conseguirmos esconder-nos nalgum lugar e fazer Drax imaginar que escapamos. Que tal o túnel exaustor, se eu conseguir fazer funcionar a máquina que abre o assoalho?
— São trinta e tantos metros de queda em linha reta — disse Gala, sacudindo a cabeça. — E as paredes são de aço polido. Como vidro. Além do mais, não há corda ou coisa alguma aqui. Eles tiraram tudo da oficina ontem. Sem contar com os guardas na praia.
Bond refletiu. Depois seus olhos tornaram-se brilhantes:
— Tenho uma ideia. Mas em primeiro lugar, que me diz você do radar, o radar de retorno de Londres? Ele não empurrará o foguete para fora do seu curso e de volta para Londres?
Gala sacudiu a cabeça:
— Ele só trabalha dentro de um raio de cem milhas, mais ou menos. O foguete nem sequer pegará seu sinal. Se estiver apontando para o Mar do Norte, entrará na órbita do transmissor da jangada. Não há nada de errado nos meus planos. Mas onde nos poderemos esconder?
— Num dos tubos de ventilação — respondeu Bond. — Vamos.
Lançou um último olhar à sala. O isqueiro estava em seu bolso. Aquilo seria o último recurso. Não havia mais nada que eles fossem precisar. Seguiu Gala para o cintilante cilindro e dirigiu-se ao painel de instrumentos que controlava a capa de aço da cavidade exaustora.
Após um rápido exame, moveu uma pesada barra de Zu a Auf. Ouviu-se um leve sibilo da máquina hidráulica atrás da parede, e os dois semicírculos de aço se abriram sob a cauda do foguete, deslizando depois novamente para o lugar. Bond seguiu em frente e olhou para baixo.
Os arcos no telhado lá em cima cintilavam em resposta ao seu olhar, de lá das paredes polidas do largo funil de aço, até se curvarem desaparecendo de suas vistas, em direção ao distante clamor ôco do mar.
Bond voltou ao escritório de Drax e puxou para baixo a cortina do boxe do chuveiro. Depois, Gala e ele rasgaram em tiras a cortina e ligaram umas às outras. Deu um rasgão em feitio de um V no fim da última tira para dar a impressão de que a corda da fuga tinha-se partido. Amarrou então a outra extremidade firmemente em torno da ponta aguda de uma das três barbatanas do “Explorador da Lua” e deixou cair o resto de modo que descesse pelo cilindro.
Não era lá grande coisa como falsa pista, mas podia servir para ganhar um pouco de tempo.
As bocarras redondas dos ventiladores tubulares tinham o espaço de umas dez jardas entre si e ficavam a cerca de 1.50m do chão. Bond contou. Havia cinquenta delas. Abriu cautelosamente a grade presa em gonzos que cobria uma delas e olhou para cima. A uma distância de doze metros via-se um leve brilho vindo do luar lá fora. — Chegou à conclusão de que estavam emparedados bem dentro do túnel formado pelo muro da base, até que viraram para os ângulos direitos, em direção aos gradeados das paredes exteriores.
Bond estendeu o braço e correu a mão pela superfície. Era de um concreto rústico, inacabado, e ele grunhiu de satisfação, quando sentiu primeiro uma forte protuberância, e depois outra. Eram as extremidades bifurcadas das varas de aço que reforçavam as paredes, cortadas onde os cilindros começavam.
Ia ser uma coisa dolorosa, mas não havia dúvida de que poderiam ir-se arrastando, centímetro por centímetro, por um desses cilindros, tal como alpinistas numa chaminé rocha acima e, na curva do topo, ficarem ocultos de tudo, menos da busca complicada que seria difícil de manhã com todos os oficiais de Londres em redor da base.
Bond se ajoelhou, e a moça montou-lhe às costas, depois do que começaram a subir.
Uma hora depois, com os pés e os ombros machucados e cortados, deitaram-se exaustos, apertados bem fortemente nos braços um do outro, as cabeças afastadas alguns centímetros do gradeado circular, situado diretamente acima da porta externa, e puseram-se a ouvir os guardas mexendo os pés incessantemente dentro da escuridão, cem jardas distante deles.
Cinco horas, seis, sete.
Lentamente o sol apareceu por trás da cúpula, e as gaivotas começaram a gritar nos penhascos. Então, surgiram de súbito as três figuras caminhando para eles na distância, passaram por um novo pelotão de guardas, os queixos levantados, os joelhos erguidos, vindos para render a ronda noturna.
As figuras foram-se aproximando, e os olhos apertados, exaustos, do casal oculto puderam ver todos os detalhes da cara vermelho-alaranjada de Drax, o pálido focinho de raposa do Dr. Walter, a nédia e balofa cara de sono de Krebs.
Os três homens caminhavam como se fossem executores de um fuzilamento, sem dizer nada. Drax tirou a chave, e eles, silenciosamente, entraram pela porta, alguns pés abaixo dos corpos tensos de Bond e Gala.
Depois, durante dez minutos, reinou o silêncio, quebrado apenas pelo som ocasional de vozes que subiam pelo cilindro do ventilador, quando os três homens se movimentavam pelo chão de aço em torno da cavidade exaustara. Bond sorriu consigo mesmo à ideia do ódio e da consternação que deveriam estampar-se no rosto de Drax; do infeliz Krebs, encolhendo-se sob as chicotadas da língua de Drax; a amarga acusação nos olhos de Walter. Foi então que a porta se escancarou abaixo dele, e Krebs chamou, imperioso, o chefe dos guardas.
— Die Engländer — a voz de Krebs era quase histérica. —Escaparam. O Herr Kapitän pensa que possam estar num dos tubos de ventilação. Vamos arriscar. A cúpula será aberta novamente, e nós vamos eliminar os vapores do combustível. Depois então o Herr Doktor passará a mangueira de vapor quente em cada um dos tubos. Se eles estiverem num deles, isto os liquidará. Escolha quatro homens. As luvas de borracha e as vestimentas para incêndio estão lá embaixo. Nós vamos tirar a pressão do aquecimento. Diga aos outros que prestem atenção para ver se escutam os gritos. Verstanden?
— Zu Befehl!
O homem voltou diligentemente para junto de seu grupo, e Krebs, com o suor da ansiedade no rosto, voltou-se e desapareceu novamente pela porta.
Por um momento Bond permaneceu imóvel.
Ouviram rumores pesados acima de suas cabeças, quando a cúpula se dividiu em dois e se abriu. A mangueira de vapor quente!
Bond ouvira contar de motins em navios sendo combatidos com isto. Desordens em fábricas. Será que alcançará doze metros? A pressão durará? Quantas caldeiras alimentavam o aquecimento? Entre os cinquenta tubos de ventilação, qual seria o escolhido para começarem? Teria Bond ou Gala deixado qualquer indício, com relação àquele que haviam subido?
Bond sentia que Gala esperava que ele explicasse. Que fisesse alguma coisa. Que protegesse a ambos.
Cinco homens vieram aproximando-se do semicírculo de guardas. Passaram por baixo e desapareceram.
Bond pôs a boca no ouvido de Gala.
— Isto poderá machucar — avisou. — Não posso prever quanto. Não pode ser evitado. Teremos de aguentar. Sem fazer barulho.
Sentiu logo a pressão dos braços dela, à guisa de resposta:
— Levante os joelhos. Não fique acanhada. A hora não é para pudores virginais.
— Cale a boca — sussurrou Gala, zangada. Ele sentiu um joelho subir e ficar trancado entre suas coxas. Seu próprio joelho seguiu por ali até não conseguir estender-se mais. A moça se remexia furiosamente.
— Não seja idiota — cochichou Bond, puxando-lhe a cabeça para junto do peito, até que ficou meio encoberta pela sua camisa aberta.
Bond encobriu-a tanto quanto possível. Não podiam fazer nada com relação aos tornozelos e as mãos. Levantou a gola da camisa, o mais que pôde por cima das cabeças. Apertavam-se um contra o outro.
Quentes, cheios de câimbras, sem respirar. Esperando — de repente a ideia ocorreu a Bond, como dois namorados debaixo de arbustos, ocultos. Esperando que as pisadas se afastassem, de modo a poderem principiar tudo novamente. Sorriu amargamente consigo mesmo e pôs-se à escuta.
O silêncio reinava lá embaixo, no foguete. Deviam estar na sala das máquinas. Walter devia estar assistindo à instalação da mangueira na válvula externa. Agora ouviam-se ruídos distantes. Por onde começariam?
Num ponto qualquer, não muito longe, havia um sussurro leve, bem arrancado do fundo, como o apito ineficiente de um trem distante.
Bond dobrou para trás o colarinho da camisa e arriscou um olhar por entre as grades, até os guardas. Os que conseguiu ver, olhavam em frente para a cúpula do lançamento, um pouco à sua esquerda.
Novamente o longo sussurro áspero. E mais uma vez se repetiu.
Ia ficando mais alto. Viu as cabeças dos guardas rodando para o lado das grades das paredes que ocultavam Gala e ele. Deviam estar observando, fascinados, enquanto os jatos brancos e espessos de vapor subiam pelas grades até lá em cima ha parede de cimento, conjeturando: “— Será esta, ou aquela, ou aquela outra, qual será que virá acompanhada de um duplo grito.”
Sentia o coração de Gala batendo de encontro ao seu. Ela não sabia o que estava por acontecer. Confiava nele.
— Pode machucar — sussurrou-lhe novamente. — Pode queimar. Não nos matará. Tenha coragem. Não emita um som.
— Eu estou bem — cochichou a moça, encolerizada. Mas ele percebeu que seu corpo se colava mais ao dele. Chuá! Estava chegando mais perto.
Chuá! A diferença era de dois tubos.
CHUÁ! Pegado a eles. Sentiu um leve cheiro do vapor.
— “Fique bem firme”, ordenou Bond a si mesmo. Esmagou a companheira de encontro ao próprio corpo e prendeu a respiração.
— “Agora. Depressa. Acabem com isso, desgraçados.”
E eis que, subitamente, houve uma grande pressão; o calor e um barulho infernal chegou-lhes aos ouvidos, seguidos de um instante de dor intolerável.
Depois um silêncio mortal, uma mistura de frio intenso e fogo nos tornozelos e nas mãos, uma sensação de estarem ensopados, e um esforço desesperado, sufocante, de fazer o ar puro penetrar nos pulmões.
Seus corpos lutaram automaticamente para se separarem um do outro, para conseguir alguns centímetros de espaço e ar para as áreas da pele que já começavam a cobrir-se de bolhas. A respiração rasgava-lhes as gargantas, e a água porejava do cimento para dentro de suas bocas abertas, até que ambos se curvaram para um lado e atiraram-na fora, e ela foi juntar-se ao riachinho que corria por baixo de seus corpos ensopados, descendo pelos tornozelos escaldantes e dali para as paredes verticais do tubo pelo qual haviam subido.
O uivo da mangueira a vapor afastou-se deles até se tornar um sussurro e, finalmente, cessar. Reinou então o silêncio na estreita prisão de cimento de ambos, ouvindo-se apenas suas teimosas respirações e o tique-taque do relógio de Bond.
Os dois corpos continuavam deitados e à espera, aguentando a dor.
Meia hora — meio ano — mais tarde, Walter, Krebs e Drax seguiram em fila por baixo deles.
No entanto, como medida de precaução, os guardas tinham sido deixados para trás na cúpula do lançamento.
CAPITULO 24
ZERO
Então estamos combinados?
— Sim, Sir Hugo — era o Ministro do Abastecimento quem falava. Bond reconheceu a figura espigada, segura de si. — As direções são aquelas. Meu pessoal verificou-as, independentemente, com o Ministério da Aeronáutica esta manhã.
— Neste caso, se me permite o privilégio — Drax levantou o pedacinho de papel e ia virando em direção à cúpula.
— Segure-a, Sir Hugo. Assim mesmo, por favor. O braço esticado no ar.
As lâmpadas dos flashes se acenderam, e o conjunto de câmaras zumbiu e estalou pela última vez. Drax voltou-se e andou os poucos metros que o separavam da cúpula, quase, assim pareceu a Bond, fitando-o diretamente nos olhos através do gradeado acima da porta da casamata.
A pequena turba de repórteres e fotógrafos dissolveu-se e encaminhou-se para o caminho de concreto, deixando para trás apenas um grupinho de oficiais que conversavam nervosamente, à espera de que Drax surgisse em cena.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e cinco. “Depressa, seu danado”, pensou.
Pela centésima vez repetiu para si mesmo os números qus Gala lhe ensinara durante as horas de dor e câimbras que se seguiram à provação do vapor, e pela centésima vez movimentou os membros para preservar a circulação.
— Apronte-se — cochichou no ouvido de Gala. — Está se sentindo bem?
Sentiu que a moça sorria.
— Ótimo.
Ela fechou a mente à ideia de suas pernas todas cheias de bolhas e da rápida descida, raspando-as pelo tubo de ventilação .
A porta fechou-se com um baque abaixo deles, seguindo-se o estalido da fechadura, e então, precedida por cinco guardas, a figura de Drax apareceu lá embaixo, marchando solene para o grupo de oficiais, a tira de papel com os números na mão.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e sete. — Agora — sussurrou.
— Boa sorte — respondeu Gala, também num sussurro. Escorregando, arranhando-se, rasgando-se. Seus ombros, cautelosamente, se expandiam e contraíam; os pés, cheios de bolhas, de sangue, procurando as saliências agudas do ferro; com o corpo dilacerado abrindo caminho através do tubo de um metro, rezava para que a pequena encontrasse forças para suportar tudo aquilo, quando o seguisse.
Finalmente, o pulo de três metros, que lhe repercutia na espinha, um pontapé nas grades, e ele galgava o chão de aço, corria para as escadas, deixando uma trilha de pegadas vermelhas e um borrifo de gotas de sangue caídas de seus ombros feridos.
Os arcos de luz haviam sido apagados, mas o clarão do dia penetrava pelo telhado aberto, e o azul do céu misturado ao fulgor da luz do sol davam a Bond a impressão de que estava correndo dentro de uma enorme safira.
A grande e mortal agulha no centro parecia ser feita de vidro. Olhando para cima, enquanto suava e arfava no percurso das infindáveis curvas da escada de ferro, era difícil para ele ver onde o nariz do foguete, afinando na ponta, terminava, e começava o céu.
Por trás do pesado silêncio que envolvia a bala esplendente, Bond ouvia um ruído apavorante e regular, o caminhar de minúsculos pés de metal num ponto qualquer do corpo do “Explorador da Lua”. Enchia o vasto compartimento de aço, como as batidas do coração na história de Poe, e Bond compreendeu que Drax, diretamente do ponto do tiro, apertara o interruptor que mandava a faixa radiofônica, disparando a mais de duzentas jardas até o foguete ali à espera. O tique-tique cessaria dentro em breve, ouvir-se-ia o suave gemido do catavento aceso, uma pequena porção de vapor das turbinas, e depois o rugido do jato de flama no qual o foguete se ergueria lentamente e se curvaria majestoso no início de sua gigantesca curva de aceleração.
E então, diante dele, viu o braço retorcido do guindaste dobrado novamente contra a parede, e sua mão alcançou a barra. O braço foi-se esticando para baixo e para fora em direção à linha fina e quadrada, na pele brilhante do foguete, que era a porta do compartimento do giroscópio.
Caminhando apoiado nas mãos e nos joelhos, Bond alcançou-o bem antes de as almofadas de borracha virem descansar contra o cromo polido. Encontrou o disco de descarga, do tamanho de um xelim, exatamente como Gala havia descrito. Apertar, estalar, e a pequenina porta se abria, girando no parafuso duro. Dentro. Cuidado para não ferir a cabeça. Os cabos cintilantes embaixo dos ponteiros da bússola. Virar. Torcer. Firme. Isto é para o rolamento. Agora o topo e o pior. Virar. Lento. Bem delicadamente. Mas firme. Um último olhar. Uma olhada no relógio. Quatro minutos para ir. Não fique em pânico. Volte. Estalido da porta. Uma fugida rápida de gato. Não olhe para baixo. O guindaste se ergueu. Bateu contra a parede. E agora as escadas.
Tique-tique-tique-tique.
Ao descer, Bond vislumbrou o rosto de Gala, branco, tenso, enquanto ela permanecia segurando a porta exterior aberta, a porta do escritório de Drax. Oh, Deus! Como seu corpo doía! Um último salto e uma reviravolta desajeitada para a direita. Pam! Quando bateu com força a porta de fora. Nova pancada, e ei-los atravessando a sala em direção ao chuveiro. A água jorrando sobre seus corpos pegajosos e doloridos.
Por dentro de todo aquele barulho, acima das batidas do próprio coração, Bond ouviu o súbito estalar da estática e, em seguida, a voz do locutor da BBC vinda do enorme aparelho da sala de Drax, poucos centímetros distante da parede fina do banheiro. Fora novamente Gala quem se lembrara do aparelho de rádio de Drax e que encontrara tempo para pô-lo a funcionar enquanto Bond trabalhava no giroscópio.
“... cinco minutos de atraso” — dizia a voz excitada, leve, ao microfone. — Bond fechou o chuveiro, e a voz chegou até eles mais claramente. — “Sir Hugo foi persuadido a dizer algumas palavras. Parece muito confiante. Está dizendo qualquer coisa no ouvido do Ministro. Estão ambos rindo. Gostaria de saber o que estão dizendo. Ah, eis o meu colega que chega com as últimas notícias a respeito do tempo, vindas do Ministério da Aeronáutica. Que dizem elas? Perfeito em todas as altitudes. Bom espetáculo. Não há dúvida de que temos um dia maravilhoso aqui, Ah! A multidão reunida à distância, perto da estação de guardas-costeiros, vai apanhar uma boa queimadura de sol. Deve haver milhares de pessoas ali. Que foi que você disse? Vinte mil? Bem, a impressão que dá é essa mesmo. Walmer Beach também está apinhada de gente. Toda a população de Kent parece estar na rua. Todo mundo vai ficar com mau jeito no pescoço. Vai ser pior que em Wimbledon. Alô, que é que está se passando ali no cais? Puxa, é um submarino que acaba de subir à superfície. Que espetáculo! É um dos maiores que existem, creio eu. E a equipe de Sir Hugo está lá embaixo também. Alinhados no cais, como se estivessem numa parada. Magnífica corporação. Agora entram a bordo em fila. Disciplina perfeita. Deve ser uma ideia do Almirantado. Oferecer-lhes uma recepção especial na entrada do Canal. Maravilhoso espetáculo. Gostaria que você estivesse aqui para ver. Agora Sir Hugo vem vindo em nossa direção. Dentro em pouco estará falando com vocês. Bela figura de homem! Todos os que se encontram no ponto de tiro o estão aclamando. Tenho certeza de que todos nós nos sentimos inclinados a aclamá-lo hoje. Ele vem vindo para o ponto de tiro. Daqui vejo o sol brilhando no nariz do “Explorador da Lua”, lá adiante, por trás dele. Começa a sair por trás do alto da cúpula de lançamento. Espero que alguém tenha uma máquina fotográfica. Ei-lo que chega aqui agora — uma pausa. — Sir Hugo Drax.
Bond olhou o rosto gotejante de Gala. Ensopados e sangrando, ficaram nos braços um do outro, sem falar e tremendo ligeiramente sob o impacto de suas emoções. Seus olhos nada exprimiam e eram insondáveis quando se fitaram.
A voz que se ergueu era aveludado rosnar:
— Vossa Majestade, homens e mulheres da Inglaterra. Estou prestes a modificar o curso da história da Inglaterra. — Uma pausa. — Dentro de poucos minutos todas as vossas vidas estarão alteradas, em alguns casos drasticamente, pelo — hum — impacto do “Explorador da Lua”. Sinto-me muito orgulhoso e feliz porque o destino me elegeu, dentre todos os meus compatriotas, para lançar esta grande flecha de vingança nos céus e assim proclamar para sempre e para que todo o mundo presencie, o poderio de minha Pátria. Espero que esta oportunidade seja para sempre um aviso de que o destino dos inimigos de meu País estará escrito em poeira, em cinzas, em lágrimas e — uma pausa — em sangue. E agora muito obrigado por me terem ouvido, e eu, sinceramente, faço votos para que aqueles dentre vós que puderem, repitam as minhas palavras aos seus filhos, se os tiverem, hoje à noite.
Uma onda um tanto hesitante de aplausos ecoou através do microfone. Em seguida, ouviu-se a voz animada do locutor.
— Acabamos de ouvir Sir Hugo Drax, dirigindo-lhes algumas palavras antes de atravessar o ponto de tiro que leva ao interruptor na parede que lançará o “Explorador da Lua”. É a primeira vez que fala em público. Muito — hum — incisivo. Não faz rodeios para falar. Entretanto, muita gente achará que não há nenhum mal nisto. E agora chegou o momento de eu passar o microfone ao técnico, Capitão-Chefe de Grupo Tandy, do Ministério do Abastecimento, que descreverá para vocês o lançamento do “Explorador da Lua”. Em seguida, ouvirão a palavra de Peter Trimble, numa das embarcações da patrulha de segurança naval, o HMS Merganzer, que descreverá a cena da área compreendida pelo alvo. O Capitão Tandy.
Bond lançou um olhar ao relógio.
— Só mais um minuto — disse a Gala. — Oh, meu Deus, como eu gostaria de pôr as mãos em Drax. Tome aqui — estendeu a mão para o sabonete e arrancou-lhe alguns pedaços. — Ponha isto nos ouvidos, quando chegar a hora. O barulho vai ser tremendo, não sei dizer como será o calor. Não durará muito, e as paredes de aço talvez aguentem bem. Gala olhou para ele. Sorriu.
— Se você me segurar, não vai ser assim tão ruim — falou.
— E agora Sir Hugo está com a mão no interruptor e olha o cronômetro.
— DEZ — disse outra voz, forte e sonora como o toque de um sino.
Bond abriu o chuveiro, e a água jorrou sobre seus corpos apertados um contra o outro.
— NOVE — reboou a voz do que controlava o tempo.
— Os operadores do radar estão olhando as telas. Nada, exceto uma massa de linhas onduladas. . .
— OITO.
— Todos estão usando tampões nos ouvidos. A casamata deve ser indestrutível. As paredes de concreto têm três metros e meio de espessura. O teto em pirâmide tem sete metros e pouco de espessura na ponta.. .
— SETE.
— Primeiro o rádio sustará o mecanismo do tempo nas turbinas. Porá em movimento o cata-vento. Uma coisa flamejante como uma rodinha de fogo de artifício. . .
— SEIS.
— As válvulas se abrirão. Combustível líquido, Fórmula secreta. Coisa formidável. Dinamite. Cai dos tanques de combustível ...
— CINCO.
— Aceso pelo pino giratório, quando o combustível chega ao motor do foguete. . .
— QUATRO.
— enquanto que a água oxigenada e o permaganato já se misturaram, tornaram-se vapor, e as bombas das turbinas começam a girar.. .
— TRÊS.
— bombeando o combustível inflamável, através do motor, na cauda do foguete, para a cavidade exaustora. Calor gigantesco. . . 3500 graus...
— DOIS.
— Sir Hugo está prestes a apertar o botão. Está olhando pela abertura. O suor lhe umedece a fronte. Completa tensão aqui. Tremenda tensão.
— UM.
Nada senão o ruído da água, caindo incessantemente nos dois corpos agarrados.
— FOGO!
O coração de Bond pulou para a garganta ao ouvir o grito. Sentiu Gala estremecer. Silêncio. Nada, senão o sibilar da água...
— Sir Hugo deixou a casamata. Vai caminhando calmamente para a borda dos penhascos. Tão confiante! Passou agora para o elevador. Vai descer. Naturalmente. Deve ir até o submarino. As telas de televisão mostram um pouco de vapor vindo da cauda do foguete. Mais alguns segundos. Sim, ele se encontra no cais. Olhou para trás e levantou o braço no ar. Bom velho Sir Hu...
Um troar longínquo chegou até Bond e Gala. Mais alto. Mais alto. O chão ladrilhado começou a tremer debaixo dos pés deles. Um clamor de furacão!! Seriam pulverizados. As paredes tremiam, queimavam. As pernas de ambos começaram a descontrolar-se sob seus corpos oscilantes. Segure-a bem. Segure-a bem. Pare com isso! Pare com isso!! PARE COM ESSE BARULHO.
Cristo, ele ia desmaiar. A água estava fervendo. Era preciso fechá-la. Encontrei. Não. O cano arrebentou. Vapor, cheiro, ferro, tinta.
Tire-a daqui para fora! Tire-a daqui para fora!! Tire-a daqui para fora!!!
Depois o silêncio. Silêncio que se podia sentir, apalpar, apertar. E eles estavam no chão do escritório de Drax. Só a luz do banheiro ainda brilhava. A fumaça ia dissipando-se. Assim como o cheiro horrível de ferro queimado e tinta. Estavam sendo sugados pelo ar condicionado. A parede de aço inclina-se para eles qual bolha gigantesca. Os olhos de Gala estão abertos, e ela está sorrindo. Mas o foguete? Que foi que aconteceu? Londres? Mar do Norte? O rádio. Parece em ordem. Sacudiu a cabeça, e a surdez foi lentamente desaparecendo. Lembrou-se do sabão. Retirou-o das orelhas.
— Atravessando a barreira do som. Viajando perfeitamente bem no centro da tela do radar. Um lançamento perfeito. Receio que não tenham ouvido nada por causa do barulho. Tremendo. Primeiro todo aquele grande lençol de chamas vindo do penhasco, saindo da cavidade exaustora, e depois vocês deveriam ter visto o nariz lentamente surgir da cúpula. Ei-lo que sobe como um enorme lápis de prata. Mantendo-se em posição vertical nesta imensa coluna de chamas e vagarosamente subindo no ar. A flama se espalhando por centenas de quilômetros sobre o concreto. O uivo da coisa deve ter ameaçado seriamente arrebentar nossos microfones. Grandes fragmentos caíram do penhasco, e o concreto parece uma teia de aranha. Tremenda vibração. E a agulha subindo cada vez mais rápida. Cem milhas por hora. Mil. E — o locutor interrompeu o que ia dizendo — o que é que você disse? Ah, sim? Agora está percorrendo o espaço numa velocidade de dez mil milhas horárias! Encontra-se a uma altura de trezentas milhas. Não posso ouvir mais, naturalmente. Só vimos a flama durante alguns segundos. Como uma estrela. Sir Hugo deve estar muito orgulhoso. Encontra-se, no momento, no Canal. O submarino partiu como um foguete. Deve estar fazendo mais de trinta nós. Atirando para cima um colosso de espuma. Já alcançou o East Goodwins agora. Viaja para o norte. Dentro em breve chegará até os navios patrulheiros. Presenciarão o lançamento e a aterrissagem. Mas esse itinerário foi meio surpreendente. Ninguém aqui tinha a menor indicação. Até mesmo as autoridades navais parecem um tanto mistificadas. O Comandante-em-Chefe Nore foi ao telefone. Mas agora é só o que eu lhes posso informar daqui e vou passar a palavra a Peter Trimble, a bordo do HMS Merganzer, num ponto qualquer da Costa Oriental.
Nada, exceto os pulmões funcionando, indicava que os dois corpos largados na lagoa sempre crescente do chão ainda estivessem vivos. Mas seus tímpanos avariados pendiam desesperadamente do ruído de estática que veio durante alguns instantes do gabinete de metal todo empipocado. Agora teriam o veredicto do seu trabalho.
— Aqui fala Peter Trimble. Temos uma linda manhã — retifico — tarde, aqui. Um pouco ao norte de Goodwin Sands. Calmo como um lago. Não há vento. O sol brilha alegremente. A área compreendida pelo alvo foi declarada limpa, sem nenhuma embarcação. Não é assim, Comandante Edwards? Sim, o Capitão diz que está tudo inteiramente limpo. Por enquanto nada se vê na tela do radar. Não me é permitido informar o raio em que o pegaremos. Por motivos de segurança, e essa coisa toda. Mas nós só pegaremos o foguete por uma fração de segundo. Não está certo o que digo, Capitão? Mas o alvo começa a aparecer na tela. Não se pode vê-lo da ponte, naturalmente. Deve estar a setenta milhas daqui, na direção do norte. Vimos o “Explorador da Lua” subindo. Espetáculo assombroso! O barulho semelhante a um trovão. Uma longa chama saía da cauda. Devia estar já a dez milhas de distância, mas não era possível deixar de ver a luz. Não é isto, Capitão? Ah, sim, compreendo. Bom, isto é muito interessante. O enorme submarino se aproxima rapidamente. Está apenas a uma milha de distância. Suponho que seja aquele onde se encontra Sir Hugo com seus homens. Nenhum de nós aqui foi informado de coisa alguma a seu respeito. O Capitão Edwards diz que não responde à lâmpada Aldis. Não traz distintivo de navegação. Muito misterioso. Peguei-o agora mesmo. Está bem nítido em meus binóculos. Mudamos de rumo para tentar a intercepção. O Comandante diz que não é um dos nossos. Acha que deve ser estrangeiro. Atenção! Mostrou agora suas cores. O que vem a ser isto? Santo Deus! O capitão diz que é um submarino russo. Puxa! Agora está arriando as bandeiras e submergindo. Bang! Ouviram? Atiramos visando a proa, mas já desapareceu. Que é isto? Ah, o operador do asdic informa que está acelerando cada vez mais, debaixo da água. Vinte e cinco nós. Puxa! De qualquer modo, o submarino não poderá ver muita coisa debaixo da água, porém encontra-se agora bem na área do alvo. Passam vinte minutos das doze horas. O “Explorador” deve ter mudado seu rumo e prepara agora a descida. A umas mil milhas. Velocidade de descida, dez mil milhas horárias. Estará aqui dentro de segundos. Espero que não se verifique tragédia alguma. O submarino russo encontra-se bem dentro da zona perigosa. O operador do radar está acenando para nós. É o sinal para avisar que está na hora. Vem chegando. Vem chegando! . . . Não se ouve o mais leve ruído! deus do céu! Que é isto? Cuidado! Cuidado! Uma terrível explosão.. . Uma nuvem negra se eleva no ar. Uma gigantesca vaga, como a de um maremoto, aproxima-se rapidamente de nós. Uma vaga enorme! O submarino! Santo Deus... vimo-lo agora saltar fora da água e voltar a mergulhar, de quilha para o ar! Vem chegando. . .! Vem chegando! ...
CAPÍTULO 25
ZERO MAIS
Duzentos mortos confirmados, até agora, e aproximadamente o mesmo número de pessoas desaparecidas — informou M.
— Ainda estão chegando notícias da costa oriental, e as informações da Holanda não são das melhores. Foram inutilizadas muitas milhas de suas defesas navais. A maioria de nossas perdas ocorreu nas unidades patrulheiras. Duas delas viraram, incluindo o Merganzer. O Comandante desapareceu. O camarada da B. B. C. também. Os navios-faróis de Good-win partiram as amarras. Ainda não recebemos notícias da Bélgica e da França. Haverá contas bem pesadas a pagar, quando tudo isto ficar em ordem...
Era na tarde seguinte, e Bond, com uma bengala de ponta de borracha ao lado da cadeira, voltava a sentar-se onde tudo havia começado: do outro lado da escrivaninha daquele homem calmo, de frios olhos cinzentos, que o convidara para jantar e jogar bridge, há cem anos atrás.
Por baixo da roupa, Bond era uma perfeita e entrelaçada teia de esparadrapo. A dor queimava-lhe as pernas, sempre que tentava mexer os pés. Um traço vermelho cortava-lhe a face esquerda e a parte superior do nariz. O linimento, feito à base de ácido pícrico, cintilava à luz que entrava pela janela. Segurava um cigarro, como podia, na mão enluvada. Inacreditavelmente, M. tinha-o convidado a fumar.
— Algumas notícias do submarino, chefe? — perguntou Bond.
— Já o localizaram — disse M. com satisfação. — Adernado a cerca de trinta braças de profundidade. O navio de salvamento que deveria localizar os restos do foguete encontra-se agora por cima dele. Os mergulhadores já estiveram no fundo, e não houve resposta aos sinais feitos no casco. O embaixador soviético esteve no Foreign Office esta manhã. Parece ter declarado vir a caminho um navio salva-vidas, proveniente do Báltico, mas respondemos que não podíamos esperar, visto que, tratando-se de um navio naufragado, constitui um perigo para a navegação, no local onde está. — M. riu. — Com efeito, seria um perigo se alguém se dispusesse a navegar a trinta braças de profundidade, em pleno Canal. Contudo, estou satisfeito por não ser membro do Ministério — acrescentou friamente. — Tem estado em sessão permanente, desde o final da transmissão radiofônica. Vallance conseguiu entrar em contato com os tais advogados de Edinburgh, antes de eles abrirem a mensagem de Drax para o mundo. Parece ser um documento terrível, como se tivesse sido escrito pelo próprio Jeová. Vallance levou-o ao Governo, na noite passada, e ficou no 10, Downing Street, para esclarecer pontos ainda não averiguados.
— Eu sei — disse Bond. — Ele esteve telefonando constantemente para o hospital, procurando saber detalhes, até depois da meia-noite. Eu mal podia raciocinar direito, devido aos entorpecentes que me aplicaram. E que vai acontecer agora?
— Vão tentar abafar a coisa, com a maior embromação de que se teve notícia até hoje em toda a História. Uma quantidade enorme de lero-lero científico, explicando que o combustível foi usado só pela metade. Deu-se uma inesperada e potente explosão. Serão pagas indenizações. Perda trágica de Sir Hugo Drax e sua valiosa equipe. Grande patriota. Perda trágica de um dos submarinos de Sua Majestade. Último modelo experimental, ordens mal compreendidas. Tudo muito triste. Felizmente, perdeu-se uma tripulação mínima. Os parentes mais próximos serão informados. Trágica perda de um radialista da B.B.C. Inacreditável erro ao confundir a insígnia branca com as cores navais soviéticas. O desenho é muito semelhante. A bandeira branca foi recuperada no naufrágio.
— Mas que me diz da explosão atômica? — indagou Bond. — Radiações, poeiras radioativas e tudo isso. . . A famosa nuvem em forma de cogumelo. Com certeza isso vai ser um problema para explicar.
— Aparentemente, não estão muito preocupados com a questão — disse M. — A nuvem vai passar como formação normal, após uma explosão daquela envergadura. O Ministério do Abastecimento conhece toda a história. Foi preciso contar-lhes. Seus homens andaram percorrendo ontem à noite toda a costa oriental, com contadores Geiger, e ainda não houve qualquer notícia positiva. — M. sorriu friamente. — A nuvem terá de descer em algum lugar, claro, mas por uma feliz circunstância, o vento está empurrando-a para o norte. De volta a casa, como se poderia dizer. . .
Bond esboçou um sorriso, com dificuldade.
— Compreendo. Que coisa apropriada.
— Evidentemente — prosseguiu M., enchendo o cachimbo — haverá por aí uma série de boatos desagradáveis. Já começaram, aliás. Muita gente viu você e Miss Brand, serem retirados em padiolas. Depois, há o caso da Bowaters contra Drax, pela perda de todo aquele material de impressão. Haverá também inquérito sobre o rapaz que foi morto no Alfa Romeo. E alguém terá de explicar como se encontraram os restos de seu automóvel, entre os quais, — e nesta altura, M. olhou acusadoramente para Bond — foi encontrado um Colt de cano longo. E temos ainda o Ministério de Abastecimento. Vallance teve de chamar alguns de seus homens, ontem, para limpar aquela casa da Ebury Street. Mas essa gente está treinada em guardar segredo. Não será por aí que se descobrirá alguma coisa. Naturalmente, será um negócio arriscado. Mas a mentira de grandes proporções sempre o foi. E qual seria a alternativa? Encrencas com a Alemanha? Guerra com a Rússia? Muita gente, dos dois lados do Atlântico, ficaria mais do que satisfeita se lhe déssemos um motivo para agir.
M. fez uma pausa e chegou um fósforo ao cachimbo. Depois continuou:
— Se a história fôr engolida, não sairemos muito mal de tudo isto. Quisemos um de seus submarinos ultravelozes e ficaremos satisfeitos com as pistas que conseguimos descobrir a respeito de suas bombas atômicas. Os russos sabem que nós sabemos que o jogo deles fracassou. Malenkov não está muito firme no poder, e isto pode muito bem significar outra rebelião entre os senhores do Kremlin. Quanto aos alemães, bem... todos nós sabemos que ainda ficou muito nazismo espalhado por aí, e isto servirá para que o Ministério seja um pouco mais cauteloso, no tocante ao rearmamento da Alemanha. Entre as consequências de menor vulto — disse com um sorriso — destaca-se a de que o trabalho de segurança de Vallance, e o meu também, aliás, vão ficar um pouco mais fáceis para o futuro. Esses políticos não veem que a era atômica criou o mais letal sabotador da história da humanidade: o homenzinho com a valise pesada.
— E a imprensa vai engolir essa história? — perguntou Bond, duvidoso.
M. sacudiu os ombros.
— O Primeiro-Ministro teve esta manhã um encontro com os jornalistas — respondeu M., chegando outro fósforo ao cachimbo — e creio que conseguiu tudo da melhor maneira. Se os boatos se intensificarem mais tarde, ele terá, provavelmente, de convocá-los novamente e dizer-lhes parte da verdade. Então, eles se portarão bem. Sempre se portaram, quando o negócio é importante de verdade. O principal é ganhar tempo e manter afastados os boateiros. No momento, todos estão de tal maneira orgulhosos do “Explorador da Lua”, que não indagarão muito minuciosamente que foi que não deu certo.
Ouviu-se um leve zumbido no intercomunicador da escrivaninha de M., e uma luzinha vermelha piscou repetidas vezes. M. pegou no fone e curvou-se. — Alô. — Houve uma pausa. — Atenderei na linha do Ministério. — Apanhou o receptor branco, na mesa onde havia quatro telefones. — Sim. Está falando. — Nova pausa. — Pronto, sir? Escuto. — M. premiu o botão do misturador de sons. Segurou o fone junto ao ouvido, e nem um som chegou até aos ouvidos de Bond. Houve uma longa pausa, durante a qual M. ia puxando uma ou outra baforada do cachimbo, com a mão esquerda, enquanto escutava. Depois, tirou-o da boca. — De acordo, sir. É isso mesmo, sir. — Outra pausa. — Estou certo de que o meu homem teria ficado extremamente orgulhoso, sir. Mas, naturalmente, como Vossa Excelência sabe, é uma regra aqui no serviço. — M. franziu a testa. — Se me permite dar uma opinião, sir, creio que não seria nada aconselhável. — Uma pausa e a fisionomia de M. se desanuviou. — Obrigado, sir. Claro, Vallance não tem o mesmo problema. É o mínimo que ela merece, sir. — Outra pausa. — Compreendo. Assim será feito, sir. — Nova pausa. — É muita bondade sua, sir.
Depois de mais alguns cumprimentos, M. colocou o telefone branco no gancho, e o botão do misturador voltou à sua posição inicial de “livre”.
Por uns instantes, M. continuou fitando o telefone, como se em dúvida a respeito do que fora dito. Depois rodou a cadeira para longe da escrivaninha e olhou pela janela, pensativo.
Reinou o silêncio na sala, e Bond remexeu-se na cadeira, para aliviar a dor que lhe invadia novamente o corpo.
O mesmo pombo de segunda-feira, ou talvez outro, veio descansar no peitoril da janela, com o mesmo ruflar de asas. Caminhava para um e outro lado, baixando a cabeça e arruinando. Depois, voou para as árvores do parque. O tráfego murmurava, sonolento, na distância.
Como estivera perto, pensou Bond, de embarcar desta para melhor. Quão perto estivera de não haver nada mais do que a sirena distante da ambulância sob um sinistro céu negro e alaranjado, o cheiro de queimado, os gritos das pessoas ainda presas nos edifícios. O suave bater do coração de Londres, silenciado por uma geração. E toda uma geração de sua gente, morta nas ruas, entre as ruínas fumegantes de uma civilização que talvez não se erguesse de novo senão daí a muitos séculos.
Tudo isso teria acontecido por causa de um homem que fazia trapaça nas cartas, desdenhosamente, para alimentar o fogo devorador de seu ego maníaco; teria acontecido, se não fosse o presidente do clube Blades que o descobriu; se não fosse M., que concordara em ajudar um velho amigo; se não fosse a lição meio recordada por Bond e aprendida com um perito em trapaças; se não fossem as precauções de Vallance; se não fosse a boa cabeça de Gala para cálculos; se não fosse por uma série completa de circunstâncias fortuitas, de oportunidades .
E quem preparou a série?
Ouviu-se um ranger agudo, quando a cadeira de M. girou. Bond, cautelosamente, voltou a focalizar sua atenção nos olhos cinzentos do outro lado da escrivaninha.
— Era o Primeiro-Ministro — explicou M., em voz agridoce. — Diz que deseja que tanto você como Miss Brand saiam do País. — M. baixou os olhos e pousou-os, impassível, no fornilho do cachimbo. — Vocês dois têm de dar o fora até amanhã à tarde. Há muitas pessoas, neste caso, que lhes conhecem as caras. Poderão somar dois e dois e saberem que são quatro, quando virem em que estado lamentável se encontram. Vão para qualquer lugar que lhes agrade. Despesas sem limite de verba para ambos. Qualquer importância que precisarem. Vou falar com o Tesoureiro. Fique fora por um mês. Mas completamente fora de circulação, entendeu? Vocês dois já deveriam ter partido esta tarde, mas a moça tem um compromisso amanhã às onze horas. No Palácio. Foi-lhe concedida a George Cross. Mas isso não será divulgado até ao novo ano, claro. Gostaria de encontrá-la, qualquer dia. Deve ser uma excelente moça. Aliás — a expressão de M., quando levantou os olhos, era indecifrável — o Primeiro-Ministro tinha na ideia qualquer coisa para você, também. Esquecera que nós, aqui, não admitimos essas coisas. De modo que me pediu para lhe agradecer em nome dele. Disse algumas palavras simpáticas a respeito de nosso serviço. É muito gentil.
M. esboçou um daqueles raros sorrisos que iluminavam seu rosto com uma vivacidade e calor imediatos. Bond retribuiu o sorriso. Eles compreendiam bem as coisas que não chegavam a ser ditas.
Bond percebeu que era tempo de sair. Levantou-se e disse:
— Muito obrigado, chefe. Estou muito satisfeito pela moça.
— Bom, então está tudo combinado — disse M., com uma nota de despedida na voz. — Por hoje basta. Vê-lo-emos aqui dentro de um mês. Ah, é verdade — acrescentou com naturalidade — passe pelo seu escritório antes de sair. Encontrará uma coisa que eu lhe deixei lá. Uma pequena lembrança .
James Bond desceu pelo elevador e foi mancando pelo corredor, até seu gabinete. Quando cruzou a porta interior, encontrou sua secretária arrumando alguns papéis na escrivaninha ao lado da dele.
— 008 já está de volta? — perguntou.
— Sim — respondeu ela, sorrindo feliz. — Deve voar esta noite para cá.
— Ótimo, fico alegre por saber que você terá companhia — disse Bond. — Vou partir novamente.
— Oh! — exclamou a moça. Olhou rapidamente para ele e depois desviou o olhar. — Você está mesmo com cara de quem precisa de um bom descanso.
— Pois vou tê-lo mesmo. Um mês de exílio. — Pensou em Gala. — Vai ser um período de puras férias. Nada mais. Alguma coisa para mim?
— Seu novo carro está lá embaixo. Já o examinei. O homem disse que você lhe tinha dado ordens para que o trouxessem para experiência esta manhã. É lindo! Ah, é verdade. E tem ainda o pacote que veio do gabinete de M. Quer que o desembrulhe?
— Sim, por favor. . .
Bond sentou-se à escrivaninha e olhou o relógio. Cinco horas. Sentia-se fatigado. Sabia que iria sentir o mesmo durante alguns dias. Sempre tinha essas reações, no final de uma difícil missão. Era a consequência dos dias de nervos em tensão, dos temores, do medo.
Sua secretária voltou ao escritório, com duas caixas de papelão, de aspecto pesado. Colocou-as sobre a escrivaninha, e ele abriu a de cima. Quando viu a espécie de papel que envolvia o objeto, percebeu logo o que estava para vir.
Havia um cartão dentro da caixa. Bond pegou-o e leu. Na tinta verde usada por M., este dizia: “Você pode precisar destas coisas.” Não havia assinatura.
Bond desembrulhou o papel impermeável e sopesou a nova e refulgente Beretta em sua mão. Um lembrete. Não. Uma recordação. Bond sacudiu os ombros e fez a arma deslizar por baixo do casaco, para o coldre vazio. Levantou-se com alguma dificuldade.
— No outro embrulho, você encontrará um Colt de cano longo — disse ele à secretária. — Guarde até eu regressar. Então, eu o levarei ao fogão da cantina e jogá-lo-ei lá dentro.
Caminhou para a porta:
— Adeus, Lil. Lembranças a 008, e diga-lhe que tome cuidado com você. Eu estarei na França. Estação F terá meu endereço. Mas só em caso de emergência.
A moça sorriu.
— Que deverei considerar uma emergência? — perguntou.
Bond soltou uma pequena risada.
— Qualquer convite para um tranquilo jogo de bridge, por exemplo — respondeu ele.
Saiu mancando e fechou a porta.
O Mark VI, modelo 1953, tinha uma carroçaria esportiva e elegante, cor cinza de navio de guerra como o velho quatro litros e meio que fora para a sepultura numa garagem de Maidstone. O estofamento de couro azul-marinho deu um luxuoso gemido de coisa nova, quando Bond subiu, desajeitadamente, para o assento ao lado do motorista de provas.
Meia hora depois, o motorista ajudou-o a descer na esquina de Birdcage Walk com Queen Anne’s Gate.
— Se o senhor quisesse, poderíamos ter feito maior velocidade — disse o motorista. — E se nos autorizar a ficar com ele por mais uns quinze dias, poderemos prepará-lo para chegar aos cento e sessenta horários.
— Mais tarde — respondeu Bond. — Está comprado. Mas com uma condição. De que você o leve à terminal do ferry-boat na estação de Calais, amanhã à tarde.
O motorista sorriu:
— O.K. Eu o levarei. Verei o senhor no cais, está bem?
— Combinado. Siga com cuidado pela A-20. A estrada de Dover está muito perigosa, estes últimos dias.
— Não se preocupe, sir — respondeu o motorista, pensando que aquele homem devia ser um tanto medroso, apesar de tudo o que parecia conhecer a respeito de automóveis. — Não acontecerá nada.
— Nem todos os dias — advertiu ainda Bond, sorrindo. — Vê-lo-ei em Calais.
Sem esperar a resposta, saiu mancando, apoiado à bengala, por entre os raios de luz poeirenta do crepúsculo, filtrados através das árvores do parque.
Sentou-se defronte da ilha, no lago, e puxou da cigarreira, acendendo um cigarro. Olhou o relógio. Cinco para as seis. Lembrou-se de que ela não era o tipo de pequena que não seria pontual num encontro. Reservara a mesa de um canto parar o jantar. E depois? Mas, primeiro, haveria o longo e requintado planejar. De que gostaria ela? Onde gostaria de ir? Onde já teria estado? Alemanha, com certeza. França? Deixaria Paris de lado. Poderiam visitar a cidade no regresso. Mas, na primeira noite, iriam o mais longe que pudessem, bem longe do Pas de Galais. Havia aquela casa de campo, com uma comida maravilhosa, entre Montreuil e Étaples. Depois, a descida ao longo do Loire. Os pequenos lugares perto do rio, para alguns dias. As cidades dos castelos, não. Lugares como Beaugency, por exemplo. Depois, vagarosamente, para o sul, sempre seguindo pelas estradas do Oeste, evitando a vida em lugares mundanos e hotéis de cinco estrelas. Explorando lentamente o caminho. Bond teve um sobressalto. Explorar o quê? Um ao outro? Seria que ele estava levando a pequena a sério, demasiado a sério?
— James.
Era uma voz clara, bem timbrada, um pouco nervosa. Não a voz que ele esperava.
Levantou os olhos. Ela estava de pé, a poucos metros de distância. Bond reparou que usava uma boina preta, colocada num ângulo brejeiro. Tinha um ar excitante, misterioso, como alguém que vemos, em terra estranha, conduzindo sozinha um carro aberto. Alguém inatingível e mais desejável do que qualquer outra pessoa que já se conheceu até hoje. Alguém que está a caminho de um encontro amoroso com outro. Alguém que não é para você.
Bond ergueu-se, e deram-se as mãos.
Foi ela quem soltou a sua. Não se sentou.
— Gostaria muito que você fosse amanhã, James — disse Gala.
Seus olhos eram ternos quando o fitou. Ternos e suaves, mas, pensou ele, algo evasivos. Bond sorriu.
— Amanhã de manhã? Ou amanhã à noite? — disse ele.
— Não seja ridículo — respondeu Gala, rindo e corando. — Amanhã no Palácio.
— E depois? Que tenciona você fazer?
Gala encarou-o, cautelosamente. Que seria que esse olhar lembrava a ele? O olhar de Morphy? O olhar com que fitara Drax, na derradeira mão do jogo no Blades? Também não. Havia algo mais. Ternura? Pena?
A moça olhou por cima do ombro. Bond deu meia volta. Mais adiante viu a figura de um rapaz alto, de cabelos louros e cortados curtos. Estava de costas para ambos, sem fazer qualquer movimento. Matando o tempo.
Bond voltou a cabeça para Gala, e os olhos dela encontraram os seus.
— Vou-me casar com aquele homem — declarou ela, simplesmente. — Amanhã de tarde. — E então, como se não houvesse necessidade de outra explicação, acrescentou: — O nome dele é Vivian, Detetive-Inspetor.
— Ah, sim — disse Bond — compreendo. — Sorriu, um tanto amargo.
Houve um momento de silêncio, durante o qual seus olhos se desviaram para longe.
Entretanto, por que motivo deveria ele esperar outra coisa diferente? Um beijo. O contato de dois corpos assustados, agarrando-se no meio do perigo. Nada mais houvera. Depois, o anel de noivado sempre estivera no dedo dela, para que Bond não tivesse dúvidas. Por que supusera ele, automaticamente, que a moça o usara apenas como estratagema para que Drax não excedesse os limites? Por que imaginara que ela compartilhava de seus desejos e de seus planos?
E agora? conjeturava Bond. Sacudiu os ombros para expulsar a dor do fracasso... essa dor que é bem maior do que o prazer do sucesso. Afastar-se, era agora a única saída. Sair do caminho dessas duas vidas jovens e levar seu frio coração para qualquer outro lugar. Nada de penas. Nada de falsos sentimentos. Tinha de representar o papel que ela esperava dele. O homem duro, mundano. O Agente Secreto. O homem que era apenas uma silhueta.
Gala fitava-o, bastante nervosa, esperando ver-se desligada do estranho que tentara penetrar no átrio de seu coração.
Bond sorriu, com calor.
— Estou com ciúme — disse ele. — Tinha outros planos para você amanhã à noite.
Gala retribuiu o sorriso, grata por ter sido quebrado o silêncio.
— Quais eram esses planos? — indagou.
— Ia levá-la a uma casa de campo na França. E, depois de um jantar maravilhoso, pretendia verificar se é verdade o que dizem a respeito do grito de uma rosa.
A moça riu.
— Lamento muito não poder participar desses planos. Mas existem tantas outras, esperando serem colhidas.
— Sim, creio que sim — disse Bond. — Então, adeus, Gala.
Estendeu-lhe a mão.
— Adeus, James.
Bond tocou em Gala Brand pela derradeira vez e, depois, separaram-se, caminhando cada qual ao encontro de suas tão diferentes vidas.
CAPÍTULO 20
A JOGADA DE DRAX
Havia três diferentes fontes de dores no corpo de Gala. A dor latejante atrás da orelha esquerda, a carne mordida nos pulsos, e o queimar das correias em torno de seus tornozelos.
Cada saliência do terreno, cada desvio, cada pressão repentina do pé de Drax nos freios ou no acelerador, despertava uma dessas dores e lhe irritava os nervos. Se ao menos tivesse sido colocada mais presa ao assento de trás. Mas só havia lugar para seu corpo rolar alguns centímetros no assento, de modo que se via obrigada a contorcer constantemente o rosto machucado para evitar o contato com as paredes de brilhante couro de porco.
O ar que respirava era abafado, com um cheiro de forração nova de couro, fumaça do cano de descarga e, de quando em quando, o mais acentuado de borracha queimada, cada vez que Drax raspava os pneumáticos numa esquina de curva acentuada.
No entanto, o desconforto e a dor não eram nada. Krebs! Curioso como seu temor e repulsa por Krebs a atormentava mais que tudo. As outras coisas eram grandes demais. O mistério de Drax e seu ódio pela Inglaterra. O enigma do seu perfeito domínio da língua alemã. O “Explorador da Lua”. O segredo da cápsula atômica. Como salvar Londres. Eram assuntos que há muito tempo ela afastara para um recanto do cérebro como coisas insolúveis.
Mas a tarde passada a sós com Krebs estava presente e terrível em seu espírito, e este voltava sempre e sempre aos detalhes da mesma, como uma língua em cima de um dente dolorido.
Muito tempo depois de Drax ter partido, ela continuara a fingir inconsciência. A princípio, Krebs se ocupara com as máquinas, conversando com elas em alemão, numa falinha de bebê, toda carinhosa.
— Pronto, minha Liebchen. Agora está melhor, não está? Uma gota de óleo para você, minha Pupperl? Como não? Vai já. Não, não sua preguiçosa. Eu disse mil voltas. Não novecentas. Vamos ver agora. Nós podemos fazer coisa melhor, não podemos? Sim, minha Schatz. É isto. Rodando, rodando, lá vamos nós. Para cima e para baixo. Rodando, rodando. Deixe eu limpar sua carinha bonita, para você, para nós podermos ver o que o pequenino mostrador está dizendo. Jesus Maria, bist du ein braves Kind!
E assim continuara, ora ficando em pé, diante de Gala, ora esgaravatando o nariz e chupando os dentes, numa atitude horrível de ruminante. Até que foi permanecendo cada vez mais tempo diante dela, esquecendo as máquinas, conjeturando, tomando uma resolução.
E então sentira a mão dele desabotoar o botão de cima de seu vestido, e o recuo (automático de seu corpo teve de ser disfarçado por um grunhido realístico e uma pantomima de volta de consciência.
Pedira água, e ele fora buscar no banheiro, trazendo um pouco num copo de escova de dentes. Depois puxara uma cadeira de cozinha para a frente dela e sentara-se atravessado, de costas para o assento, o queixo descansando na última travessa do encosto. Ficara então a fitá-la especulativamente, por baixo das pálpebras caídas, com aqueles olhos desbotados.
Ela fora a primeira a romper o silêncio.
— Por que me trouxeram aqui? Para que são todas essas máquinas?
Krebs lambera os lábios de sua boquinha vermelha e bicuda, aberta sob a mancha de bigode amarelo, e foi formando lentamente um sorriso em forma romboide.
— Isto é um engodo para passarinhos. Dentro em breve atrairá um passarinho para seu ninho quente. Então o passarinho porá um ôvo. Oh, um ôvo tão grande, redondo! Um ôvo lindo!
A parte inferior de seu rosto ria encantada, enquanto seus olhos divagavam.
— A mocinha bonita está aqui porque, de outro modo, poderia assustar o passarinho, e este ir embora. E isto seria tão triste, não é mesmo? — o homem cuspiu as três palavras seguintes: — Cadela inglesa e suja!
Seus olhos tornaram-se atentos, cheios de resolução. Puxou a cadeira mais para perto, de modo que seu rosto ficou muito próximo ao dela, e ela se viu envolvida pelo miasma de sua respiração.
— E agora, cadela inglesa, diga para quem você está trabalhando? — Esperou. — Você precisa me responder, sabe? — avisou suavemente. — Nós estamos sozinhos aqui. Não há ninguém para lhe ouvir gritar.
— Não seja estúpido — disse Gala em desespero de causa. — Como eu poderia estar trabalhando para outra pessoa que não fosse Sir Hugo? (Krebs sorriu ao ouvir o nome).
— Eu só estava curiosa a respeito do plano de voo...
Gala iniciou uma explicação arrastada, a respeito de seus números e os de Drax, e de como desejara partilhar do sucesso do “Explorador da Lua”.
— Tente novamente — sussurrou Krebs, quando ela terminou. — Você deve sair-se melhor que isso — e, subitamente, seus olhos haviam-se tornado chispantes de crueldade, e suas mãos se estenderam para ela, por trás do encosto da cadeira. . .
No assento de trás do veloz Mercedes, Gala rangeu os dentes e choramingou com a lembrança dos dedos leves se arrastando pelo seu corpo, tateando, beliscando, puxando, enquanto seus olhos, durante o tempo todo, fitavam curiosamente os dela, até que, finalmente, ela juntou saliva na boca e deu uma cusparada bem no meio da cara do homem.
Este nem se dera o trabalho de parar para limpar o rosto, mas, de repente, aplicara-lhe um golpe violento, e ela gritara uma só vez, para em seguida desmaiar.
E então se vira sendo empurrada para a parte traseira do carro, com um tapete atirado em cima dela, e eles partiram velozmente pelas ruas de Londres. Gala ouvia outros carros perto deles, o campainhar frenético de uma bicicleta, um grito de vez em quando, o grunhido animalesco de uma velha klaxon, o ronronar de uma lambreta, um rangir de freios, e compreendeu que voltara ao mundo real, que pessoas inglesas, amigos, estavam em volta dela. Lutara para se pôr de joelhos e gritar, mas Krebs devia ter-lhe pressentido os movimentos, porque as mãos dele se encontraram repentinamente em seus tornozelos, prendendo-os à barra de descanso para os pés, no chão. Compreendeu que estava perdida, e as lágrimas lhe correram pelas faces, enquanto rezava para que alguém, de um jeito ou de outro, chegasse a tempo.
Isto acontecera há menos de uma hora, e agora ela podia garantir que haviam chegado a uma cidade grande — Maidstone, se estava sendo levada de volta para a base.
No relativo silêncio do avanço do Mercedes por dentro da cidade, ela ouviu, subitamente, a voz de Krebs. Havia nela um quê de ansioso.
— Mein Kapitän, tenho estado a observar um carro já há algum tempo. Não resta dúvida de que está nos seguindo. Raramente usa os faróis. Está apenas a uns cem metros de distância, atrás de nós agora. Eu acho que é o carro do Comandante Bond.
Drax grunhiu de surpresa, e ela ouviu seu corpanzil virar-se todo para dar uma rápida olhada.
Praguejou violentamente, e depois veio o silêncio, dentro do qual ela pôde sentir o carro grande se movimentando em curvas e se esforçando por ganhar terreno dentro do trânsito.
— Ja, sowas! — disse finalmente Drax. Sua voz parecia preocupada. — Quer dizer que aquela velha peça de museu ainda pode movimentar-se. Tanto melhor, meu caro Krebs. Parece que ele está sozinho.
Deu uma risada desagradável:
— Deixe que ele fique por nossa conta, porque se sobreviver, nós o meteremos no mesmo saco com a mulher. Ligue o rádio. Estação local. Logo saberemos se existe algum obstáculo.
Ouviu-se um rápido estalido da estática e depois Gala escutou a voz do Primeiro-Ministro, a voz das grandes ocasiões de sua vida, vinda em fragmentos entrecortados, enquanto Drax punha o carro em terceira e acelerava para sair da cidade: “. . . arma criada pela engenhosidade do homem. . . mil milhas acima no firmamento. . . área patrulhada pelos navios de Sua Majestade. . . planejado exclusivamente para a defesa de nossa amada ilha. . . uma longa era de paz... desenvolvimento para a grande viagem do homem além dos limites deste planeta. . . Sir Hugo Drax, esse grande patriota e benfeitor do nosso País...”
Gala ouviu o estrondear da gargalhada acima do uivar dos ventos, um vasto latido de desprezo e triunfo e, em seguida, o rádio foi desligado.
— James — sussurrou Gala consigo mesmo. — Só resta você. Tenha cuidado. Mas ande depressa.
O rosto de Bond era uma máscara de poeira e imundície com o sangue das moscas e outros insetos que se haviam esmagado contra ele. Muitas vezes tivera de retirar uma das mãos com câimbra do volante, para limpar os óculos, mas o Bentley ia portando-se muito bem, e ele tinha certeza de que pegaria o Mercedes.
Estava quase alcançando noventa e cinco na linha reta, pouco antes da entrada para Leed Castle, quando luzes possantes foram emitidas por trás dele, e uma buzina de quatro tons executou seu ousado “pam-pim-pim-pam” quase dentro de seu ouvido.
A aparição de um terceiro carro na corrida era quíase inacreditável. Bond mal se dera o trabalho de olhar no espelho retrovisor, desde que havia saído de Londres. Ninguém, a não ser um corredor de automóvel ou um homem desesperado, poderia ter emparelhado com eles, e seu espírito se encontrava numa confusão quando, automaticamente, afastou-se para a esquerda e viu, com o rabo dos olhos, um carro baixo, vermelho como os dos bombeiros, emparelhar com ele e afastar-se com uma diferença de umas dez milhas, uma hora extra em seu relógio.
Vislumbrou o famoso radiador Alfa e, na borda do capô, escrito em letras grandes, brancas, as palavras: Attaboy II. Em seguida, viu o rosto sorridente de um rapazinho em mangas de camisa, que espetou dois dedos vermelhos no ar antes de desaparecer na mistura de sons que um Alfa em disparada compõe com o gemido de seu escape, o espooar do cano de descarga e o uivo trovejante do transmissor.
Bond sorriu cheio de admiração ao levantar a mão para o chofer. Alfa Romeu, oito cilindradas, com surpercarburadores, pensou consigo mesmo. Deve ser quase tão velho quanto o meu. ‘32 ou ‘33, provavelmente. E só a metade de meus cc. Targa Florio, em 1931, e depois disso fez bonito em toda a parte. Com certeza era um tipo desses de cabeça quente, ouvindo uma das estações da RAF dos arredores. Tentando voltar de alguma festa a tempo de assinar o ponto antes de ser citado num relatório. Observou benèvolamente quando o Alfa balançou a cauda na curva em S ao lado de Leeds Ctostle e, em seguida, passou uivando pelo longo caminho largo em direção à distante bifurcação de Charing.
Bond bem podia imaginar o sorriso de satisfação do rapaz, quando este alcançou Drax: “Ôba. É uma Merc!” E a raiva de Drax, ao ouvir a música impudente da buzina. Deve estar fazendo 105, pensou Bond. Espero que esse maluquinho não saia da estrada. Ficou a olhar os dois jogos de luzes traseiras se aproximando, o rapaz do Alfa se preparando para o truque de surgir por trás e, de repente, acelerar ao máximo, assim que tivesse uma oportunidade para passar.
Pronto. Quatrocentas jardas adiante o Mercedes apareceu, branco, iluminado pelas luzes duplas do Alfa. Havia uma milha de estrada livre na frente, completamente reta. Bond quase sentia os pés do rapaz pisando o pedal mais fundo ainda. Ôba rapaz!
Lá na frente, no Mercedes, Krebs tinha a boca colada ao ouvido de Drax.
— Outro deles — gritou aflito. — Não consigo ver o rosto. Vem vindo para nos passar agora.
Drax deixou escapar uma obscenidade a meia voz. Seus dentes branquejaram no pálido reflexo do painel.
— Vou dar uma lição a esse canalha — falou, endireitando os ombros e agarrando o volante com firmeza com as grandes luvas de couro. Com o canto dos olhos viu o capô da Alfa surgir a estibordo. ‘Tam-pim-pim-pim”, cantava a buzina, suave, delicadamente. Drax virou rápido o volante do Mercedes para a direita e, depois do horrível chocalhar dos metais, trouxe-o novamente para o centro, a fim de corrigir a posição.
— Bravo! Bravo! — gritou Krebs, fora de si com a excitação, ao ajoelhar-se no assento do carro e olhar para trás.
— Dupla capotagem. Passou por cima da cerca de cabeça para baixo. Acho que já está se incendiando. Sim. Estou vendo as chamas.
— Isto dará ao nosso caro Sr. Bond qualquer coisa para refletir — rosnou Drax, respirando pesadamente.
Bond, porém, o rosto impassível, mal examinara o velocímetro, e nada havia a não ser vingança em seu espírito, quando partiu veloz atrás do Mercedes que voava.
Vira tudo. O voo grotesco do carro vermelho, ao virar de rodas para o ar, e tornar a virar, a figura do rapaz projetada para o alto, os braços e as pernas abertos, ao ser cuspido para fora do volante, e o estrondo final, quando o carro saltou a cerca de cabeça para baixo e foi desmoronar-se no campo.
Quando passou disparado, observando as marcas horríveis de grafita deixadas pela derrapagem, seu espírito anotou um toque macabro final. Saindo, não se sabe como, incólume do holocausto, a buzina ainda dava contato, e seu ulular subia para o céu, abrindo estridentemente estradas imaginárias para a passagem do Attaboy II: “Pam-pim-pim-pam. Pam-pim-pim-pam.”
Com que então um homicídio tivera lugar bem debaixo de seus olhos. Ou, pelo menos, uma tentativa de homicídio. Assim, fossem quais fossem seus motivos, Sir Hugo Drax era um criminoso e, provavelmente, um maníaco. Isto, acima de tudo, significava perigo certo para o “Explorador da Lua”. Era o bastante para Bond. Meteu a mão debaixo do painel e, de seu coldre escondido, tirou o Colt Especial do Exército, calibre 45 de cano longo, e colocou-o no assento ao seu lado. A batalha agora era em campo aberto e, de um jeito ou de outro, o Mercedes teria de ser parado.
Usando a estrada como se fosse Donington, Bond pisou o acelerador e ali conservou o pé. Pouco a pouco, com o ponteiro oscilando de cada lado do número cem, começou a diminuir a diferença.
Drax entrou pelo lado esquerdo da bifurcação em Charing e subiu embalado a longa colina. Na frente, dentro do raio gigante de seus faróis, um grande caminhão de transporte, desses de oito rodas, um AEC Diesel, ia subindo a primeira curva do caminho, lutando sob o peso de quatorze toneladas de notícias impressas que levava numa viagem noturna para um dos jornais do East Kent.
Drax praguejou baixinho, ao ver o longo transporte de vinte rolos gigantescos, cada um deles contendo cinco milhas de papel impresso com notícias, amarradas lá em cima. Logo ali, no meio daquela curva traiçoeira em S, no alto da colina.
Olhou no espelho retrovisor e viu o Bentley chegando à bifurcação.
Foi então que teve uma ideia.
— Krebs — o nome saiu como um tiro de pistola. — Tire sua faca.
Um estalido agudo, e o estilete já estava na mão de Krebs. Ninguém perdia tempo, quando havia aquela nota na voz do mestre.
— Vou diminuir a marcha e seguir atrás do caminhão. Tire os sapatos e as meias, suba no capo, e quando eu vier por detrás dele, pule em cima. Eu irei na maior vagareza. Não haverá perigo. Corte as cordas e segure os rolos de papel. Primeiro os da esquerda. Depois os da direita. Nessa altura eu já terei colocado o carro no mesmo nível do caminhão, e quando você tiver cortado o segundo lote, pule no carro. Tenha cuidado para não ser levado com o papel. Verstanden? Also. Hals und Beinbruch!
Drax apagou as luzes dos faróis e contornou a curva a oitenta quilômetros por hora. O caminhão ia vinte jardas adiante, e ele teve de frear com força, a fim de não abalroá-lo. O Mercedes executou uma derrapagem, até o radiador ficar quase debaixo do chassi do caminhão.
Drax fez a mudança para segunda:
— Agora!
Manteve o carro firme como uma rocha, quando Krebs, descalço, passou por cima do para-brisa e foi-se arrastando ao longo do brilhante capo, com a faca na mão.
Num salto, atingiu o ponto visado e começou a cortar as cordas do lado esquerdo. Drax afastou-se para a direita e foi deslizando até ficar paralelo às rodas traseiras do Diesel, a fumaça do óleo vinda do cano de descarga subindo-lhe aos olhos e às narinas.
As luzes do carro de Bond começavam a aparecer no início da curva.
Houve uma série de baques fortes, quando os rolos do lado esquerdo caíram do caminhão para a estrada e foram rolando velozes pela escuridão. Depois, mais baques, ao partirem-se as cordas do lado direito. Um dos rolos arrebentou ao cair, e Drax ouviu um barulho de coisas dilaceradas, quando o papel, desenrolando-se tombou pesadamente num ponto da subida.
Aliviado de sua carga, o caminhão quase pulou para a frente, e Drax teve de acelerar um pouco para alcançar a figura esvoaçante de Krebs, que aterrisou, metade em cima das costas de Gala e metade no assento da frente. Drax pisou até embaixo o acelerador e subiu a colina como um raio, ignorando o grito do chofer do caminhão, que se sobrepôs ao clamor dos pistões, quando ele disparou em frente.
Ao contornar velozmente a curva seguinte, viu o cilindro de dois faróis desenharem-se em curva no céu, acima do topo das árvores, até se tornarem quase verticais. Tremularam ali por um instante, e depois os raios de luz giraram através do espaço e desapareceram.
Uma grande risada, semelhante a um latido de cão, escapou de Drax, e durante a fração de um segundo, tirou os olhos da estrada e levantou o rosto triunfalmente para as estrelas.
CAPITULO 21
“O PERSUASOR”
Krebs ecoou a risada maníaca com outra estridente.
— Um golpe de mestre, mein Kapitän. O senhor precisava ver como eles desciam pela colina. O tal que arrebentou. Wunderschön! Parecia o papel higiênico de um gigante. Este deve ter feito um belo pacote dele. Ele vinha chegando bem na curva. E o segundo foi tão bom quanto o primeiro. Viu a cara do motorista? Zum Kotzen! E a firma Bowater! Um belo negócio foi o que fizeram.
— Você trabalhou bem — observou Drax, conciso, o pensamento noutra coisa.
De repente, levou o carro para o lado da estrada, com um grito de protesto dos pneus.
— Donnerwetter — disse, zangado, quando começou a virar o carro. — Mas nós não podemos deixar o homem ali. Precisamos pegá-lo.
O carro já ia roncando pela estrada abaixo.
— A arma — ordenou Drax, secamente.
Passaram o caminhão no alto da colina. Estava parado, e não se via sinal de motorista. Provavelmente telefonando para a companhia, pensou Drax, diminuindo a marcha ao contornarem a primeira curva. Viam-se luzes em duas ou três casas, e um grupo de pessoas rodeava um dos rolos de papel que ali estava por entre as ruínas do portão da frente de suas casas. Havia mais rolos na borda do lado direito da estrada. À esquerda, um poste telegráfico se inclinava como bêbedo, partido ao meio. Na curva seguinte, via-se o princípio de uma grande confusão de papel estendendo-se para baixo, ao longo da colina, formando guirlandas nas cercas e na estrada, como se fossem os babados de um vestido de baile à fantasia, elefantíaco.
O Bentley tinha quase se espatifado contra as grades que guarneciam o lado direito da curva, protegendo-o de um barranco profundo. Por entre a confusão de ferro retorcido dos mourões, pendia, de capo para baixo, com uma das rodas ainda presa ao eixo quebrado de trás e ali pousada de esguelha como um guarda-chuva surrealista.
Drax se aproximou e, acompanhado de Krebs, saiu do carro e ficou quieto, à escuta.
Não se ouvia o menor som, exceto o do motor de um carro distante, seguindo rápido pela estrada de Ashford, e o trilar de um grilo insone.
Com as armas na mão, eles caminharam cautelosamente por cima dos restos do Bentley, os pés esmagando o vidro partido na estrada. Sulcos profundos haviam sido marcados na margem de grama, e sentia-se o cheiro forte de gasolina, misturado ao de borracha queimada. O metal quente do carro estalava e partia baixinho. O vapor ainda jorrava do radiador espatifado.
Bond estava caído de bruços no fundo do barranco, a uns seis metros de distância do carro. Krebs virou-o. O rosto estava coberto de sangue, mas ele respirava. Revistaram-no completamente, e Drax meteu no bolso a fina Beretta. Depois, juntos, arrastaram-no até a estrada, jogando-o, em seguida, no assento traseiro do Mercedes, com a metade do corpo em cima do de Gala.
Quando ela percebeu quem era, deu um grito de horror.
— Halt’s Maul — rosnou Drax. Foi para o assento da frente e, enquanto ligava o motor, Krebs inclinou-se e se ocupou com um longo pedaço de arame flexível.
— Faça o negócio direito — disse Drax. — Não quero que haja erros. — Refletiu melhor. — Volte depois para junto dos destroços e retire as placas. Depressa. Eu tomo conta da estrada.
Krebs puxou o tapete para cima dos dois corpos inertes e pulou fora do carro. Usando a faca como chave de parafuso, dentro em breve estava de volta com as placas, e o enorme carro começou a se movimentar no momento exato em que um grupo de habitantes do local apareceu caminhando nervosamente pela descida da montanha, focalizando as lanternas sobre a cena de devastação.
Krebs riu feliz consigo mesmo à ideia de que os estúpidos ingleses teriam de limpar e pôr tudo aquilo em ordem. Acomodou-se no assento, a fim de apreciar o trecho do caminho que sempre fora seu predileto: os bosques primaveris, cheios de florzinhas azuis e rosa, que iam até Chilham.
Eles tinham-no tornado particularmente feliz à noite. Iluminados por entre as tochas verdes das árvores novas pelos grandes faróis do Mercedes, tinham-no feito pensar nas lindas florestas de Ardennes, no grupo dedicado onde servira e na viagem que fizera num jipe capturado aos americanos, tal como naquela noite, ao lado de seu adorado líder, que ia ao volante. Der Tag custara a chegar, mas agora ali estava. Com o jovem Krebs no caminhão. Finalmente veria as multidões dando vivas, as medalhas, as mulheres, as flores. Lançou um olhar aos exércitos de flores azuis que passavam voando e sentiu-se feliz e confortado.
Gala sentia na boca o gosto do sangue de Bond. O rosto dele estava ao lado do dela, no assento de couro, e ela se mexeu para lhe dar mais lugar. A respiração do rapaz era pesada e irregular. Ela perguntava a si mesma quanto estaria ferido. Experimentou sussurrar-lhe ao ouvido. Depois falou mais alto. Ele deu um grunhido e acelerou a respiração.
— James — cochichou. — James.
Bond resmungou qualquer coisa, e ela encostou-se com força contra ele. Depois, soltou uma série de palavrões, e seu corpo se mexeu.
Tornou a ficar imóvel, e ela quase pôde senti-lo explorando as próprias sensações.
— Sou eu, Gala.
Ela sentiu o corpo dele enrijecer.
— Deus do céu. Que diabo de confusão — falou Bond.
— Você está bem? Tem algum osso quebrado?
Sentiu que ele experimentava os braços e as pernas.
— Parece que está tudo bem. Uma brecha na cabeça. Estou falando coisas que fazem sentido?
— Claro que sim — respondeu Gala. — Agora ouça.
Rapidamente, contou-lhe tudo que sabia, começando pelo caderninho de notas preto.
O corpo dele estava rígido como uma tábua contra o dela, e ele mal respirava, ouvindo a história inacreditável.
Logo depois corriam para Canterbury, e Bond colocou a boca em seu ouvido.
— Vou tentar jogar-me por trás — sussurrou. — Ver se arranjo um telefone. É a única esperança.
Começou a se erguer sobre os joelhos, o peso de seu corpo quase sufocando a respiração da moça.
Ouviu-se uma forte pancada, e ele tornou a cair em cima dela.
— Outro movimento que você faça e estará morto — disse a voz de Krebs, vindo baixinho por entre os assentos da frente.
Faltavam só vinte minutos para chegar à base! Gala rangeu os dentes e tratou de reanimar Bond, que perdera os sentidos novamente.
Acabara de conseguir, quando o carro chegou à porta da cúpula de lançamento, e Krebs, com um revólver na mão, já ia desfazendo os nós em torno dos tornozelos de ambos.
Vislumbraram o cimento familiar, iluminado pela lua, e o semicírculo de guardas a uma certa distância, antes de serem empurrados pela porta. Depois, quando Krebs lhes arrancou os sapatos, seguiram pela passagem estreita, de ferro, dentro da cúpula de lançamento.
Ali estava o cintilante foguete, lindo, inocente, qual um novo brinquedo para ciclopes.
Mas havia um cheiro horrível de produtos químicos no ar, e para Bond, o “Explorador da Lua” parecia uma gigantesca agulha hipodérmica pronta para ser enterrada no coração da Inglaterra. Apesar de um resmungo de Krebs, ele parou na escada e levantou os olhos para seu nariz faiscante. Um milhão de mortes. Um milhão. Um milhão. Um milhão.
E tudo dependia dele? Pelo amor de Deus! Tudo dependia dele?
Com o revólver de Krebs cutucando-o, desceu lentamente os degraus, atrás de Gala.
Quando entrou pela porta do escritório de Drax, controlou-se. De repente, seu espírito tornou-se claro, e toda a letargia e a dor haviam-lhe deixado o corpo. Alguma coisa, qualquer coisa, precisava ser feita. De um jeito ou de outro, ele havia de descobrir um meio. O corpo inteiro e a mente tornaram-se-lhe concentrados e agudos como uma lâmina. Seus olhos ganharam vida, novamente, e a derrota abandonou-o, como a pele de uma serpente.
Drax seguira na frente e se sentara à escrivaninha. Trazia uma Luger na mão. Este apontava um lugar entre Gala e Bond e era firme como uma rocha.
Por trás dele, Bond escutou as portas duplas se fecharem, batendo.
— Eu era um dos melhores atiradores na Divisão Branderburg — disse Drax, entabulando conversa.
— Amarre a moça nessa cadeira, Krebs. Depois o homem .
Gala olhou desesperadamente para Bond. Este disse:
— Você não vai atirar. Teria receio de atingir o combustível.
Encaminhou-se lentamente para a escrivaninha. Drax sorriu alegremente e, seguindo a trajetória do cano do revólver, mirou o estômago de Bond.
— Sua memória é ruim, inglês. Eu lhe disse que esta sala é inteiramente separada da cúpula por meio das portas duplas. Dê mais um passo e ficará sem estômago.
Bond olhou os olhos apertados e confiantes do outro e parou.
— Vamos, Krebs.
Quando os dois ficaram bem amarrados, e dolorosamente, às pernas e braços das duas cadeiras de aço tubular, pouco distante um do outro, por baixo do mapa de vidro, Krebs saiu da sala. Voltou um momento depois com uma espécie de maçarico mecânico.
Colocou a feia máquina sobre a escrivaninha, introduziu o ar com algumas breves bombadas e riscou um fósforo. Uma chama azul sibilou, elevando-se a alguns centímetros. Ele pegou o instrumento e acercou-se de Gala. Parou a pouca distância da moça.
Drax ordenou, severo:
— Vejamos agora. Vamos tratar desse caso, sem criar complicações. Nós costumávamos chamá-lo Der Zwagsman — O Persuasor. Nunca me esquecerei de como lidou com o último espião que pegamos juntos. Bem ao sul do Reno, não foi, Krebs?
Bond era todo ouvidos.
— Foi sim, mein Kapitän. — Krebs riu, recordando-se. — Era um porco de um belga.
— Pois bem. Vocês dois aí não se esqueçam. Aqui não temos esse negócio de fair play. Nada de atitudes esportivas e toda essa história. Isto aqui é negócio.
A voz estalava como um chicote, a cada palavra.
— Você — lançava um olhar a Gala Brand — para quem está trabalhando?
Gala se conservou em silêncio.
— Onde você quiser, Krebs.
A boca de Krebs estava entreaberta. Sua língua percorria o lábio, para cima e para baixo. Parecia ter dificuldade em respirar, quando deu um passo em direção à moça.
A pequenina chama roncava gulosamente.
— Pare — disse Bond, frio. — Ela trabalha para a Scotland Yard. E eu também.
Essias coisas agora não tinham mais propósito. Não podia ser de nenhuma utilidade imaginável para Drax. De qualquer maneira, amanhã de tarde, talvez não existisse mais nenhuma Scotland Yard.
— Assim está melhor — disse Drax. — Agora responda: Alguém sabe que vocês estão prisioneiros? Vocês pararam para telefonar a alguém?
Se eu disser que sim, pensou Bond, ele atirará em nós dois e se livrará dos corpos. Dessa forma, a última chance de impedir o lançamento do “Explorador da Lua” terá desaparecido. E se a Yard sabe, por que ainda não chegaram aqui? Não. Nossa oportunidade ainda pode vir. O Bentley será encontrado. Vallance ficará preocupado quando não tiver notícias minhas.
Não — respondeu. — Se eu tivesse telefonado, eles já estariam por aqui a esta hora.
— Isto é verdade — disse Drax, refletindo.
— Neste caso, não estou mais interessado em vocês e felicito-os por terem tornado a entrevista tão harmoniosa. Poderia ter sido mais difícil, se você estivesse sozinho. Uma moça é sempre útil nessas ocasiões. Krebs largue isso. Pode ir. Diga aos outros o que é necessário. Eles devem estar fazendo conjeturas. Eu vou entreter nossos hóspedes durante algum tempo e depois subirei até a casamata. Providencie para que o carro seja bem lavado. O assento de trás. E faça desaparecer as marcas no lado direito. Diga para tirarem o painel inteiro, se fôr necessário. Ou então podem tocar fogo na maldita coisa. Nós não vamos mais precisar dela. — Riu abruptamente. — Verstanden?
— Sim, mein Kapitän...
Krebs, colocou com relutância o maçarico, que roncava de leve, na escrivaninha ao lado de Drax.
— Para o caso de lhe ser necessário — disse, olhando esperançoso para Gala e Bond. Saiu depois pelas portas duplas.
Drax pôs a Luger também na escrivaninha em frente a ele. Abriu uma gaveta, tirou um charuto e acendeu-o com um isqueiro Ronson. Depois, acomodou-se confortàvelmente. O silêncio reinou na sala durante vários minutos, enquanto Drax puxava fumaçadas do charuto, todo satisfeito. Em seguida, pareceu tomar uma resolução. Fitou Bond com benevolência.
— Você nem sabe quanto eu desejei um auditório inglês — declarou como se estivesse dando uma entrevista à imprensa. — Você nem sabe como estava ansioso por contar minha história. Aliás, um relatório completo de minhas atividades encontra-se em poder de um escritório muito respeitável de advogados de Edinburgo. — Tabeliães, aliás. Bem salvo de qualquer perigo.
Drax sorriu abertamente para um e para outro:
— Essa boa gente recebeu instruções para abrir o envelope no final do primeiro voo bem sucedido do “Explorador da Lua”. Mas vocês, seus felizardos, terão uma, antecipação do que eu escrevi e então, quando amanhã às doze horas, virem através destas portas abertas — fez um gesto para a direita — o primeiro vapor saindo das turbinas e souberem que devem ser queimados vivos dentro de meio segundo, terão a satisfação momentânea de saber com quantos paus se faz uma canoa.
— Você poderá nos dispensar as piadas — interrompeu Bond, com aspereza. — Continue com sua história, Kraut.
Os olhos de Drax fuzilaram momentaneamente.
— Um Kraut. Sim eu sou realmente um Reichsdeutscher — a boca, por baixo do bigode vermelho, saboreava a linda palavra — e até a própria Inglaterra terá de concordar, dentro em breve, que foram liquidados por um único alemão. E então talvez parem de nos chamar de Krauts — POR ORDEM! — As palavras foram gritadas, e todo militarismo prussiano entrou em desfile lá embaixo.
Drax exultou do outro lado da escrivaninha, olhando Bond, os dentes grandes, espalhados e salientes sob o bigode vermelho, roendo nervosamente uma unha, depois da outra. Em seguida, enfiou com esforço a mão direita no bolso da calça, como para colocá-la a salvo da tentação, e pegou o charuto com a esquerda. Puxou umas tragadas durante alguns instantes e, depois, com a voz ainda tensa, começou.
CAPITULO 22
A CAIXA DE PANDORA
Meu verdadeiro nome — disse Drax dirigindo-se a Bond — é Graf Hugo von der Drache. Minha mãe era inglesa, e por causa dela fui educado na Inglaterra até a idade de doze anos. Depois, não pude mais suportar este país imundo e completei minha educação em Berlim e Leipzig.
Bond calculava facilmente que aquele brutamontes com cara de bicho-papão e dentes de bruxo não havia sido muito bem recebido numa escola particular inglesa. O fato de ser um conde estrangeiro com um mundo de nomes não teria ajudado muito.
Os olhos de Drax brilharam, cheios de reminiscências: — Quando fiz vinte anos, comecei a trabalhar no ramo de negócio da família. Era uma filial do grande truste de aço Rheinmetal Bórsig. Nunca ouviu falar dele, suponho. Pois bem, se foi ferido por uma bomba de 88mm. durante a guerra, provavelmente foi uma das de lá. Nossas filiais eram peritas em aços especiais, e eu aprendi a respeito deles, e muita coisa sobre a indústria aviatória. Nossos melhores fregueses. Foi quando ouvi, pela primeira vez, falar em columbita. Valendo o que valem os brilhantes naqueles dias. Liguei-me à firma, e quase imediatamente depois disso arrebentou a guerra. Uma época maravilhosa. Eu tinha vinte e oito anos e era tenente da 140a do Regimento Panzer. Nós investimos contra o Exército britânico, na França, e o atravessamos como uma faca por dentro da manteiga. Simplesmente embriagador.
Durante alguns instantes, Drax sugou o charuto, e Bond calculou que ele estava vendo as aldeias incendiadas da Bélgica através da fumaça.
— Aqueles dias eram formidáveis, meu caro Bond. — Drax esticou um braço comprido e bateu a cinza do charuto para o chão. — Mas aí fui escolhido para a Divisão Brandenburg e tive de deixar as pequenas e o champanha para voltar à Alemanha e começar o adestramento, a fim de executar o vasto pulo na água para a Inglaterra. Precisavam de meu in-glês na Divisão. Todos nós devíamos trajar uniformes ingleses. Teria sido engraçado, porém os malditos generais disseram que não podia ser, e eu fui transferido para o Serviço Secreto Estrangeiro do SS. O RSHA, era como se chamava. SS Obergruppenfuhrer Kaltenbrunner acabava de assumir o comando depois que Heydrich foi assassinado em 42. Ele era um bom homem, e eu estava sob as ordens diretas de um ainda melhor, Obersturmbannfuhrer — Drax enrolava na boca o título delicioso com prazer. — Otto Skorzeny. Sua tarefa na RSHA era o terrorismo e a sabotagem. Um agradável interlúdio, meu caro Bond, durante o qual eu pude registrar o nome de muitos ingleses, coisa que me deu muito prazer. Mas então — o punho de Drax esmagou a escrivaninha — Hitler foi novamente traído por aqueles miseráveis generais, e os ingleses e norte-americanos tiveram oportunidade de desembarcar na França.
— Foi uma pena — disse Bond, friamente.
— Sim, meu caro Bond, foi de fato uma pena. — Drax preferiu ignorar a ironia. — Mas para mim foi o ponto alto da guerra. Skorzeny transformou todos os seus sabotadores e terroristas em SS Jagdverbände, para usá-los na retaguarda das linhas inimigas. Cada Jagdverbände era dividida em Streifkorps, e depois em Kommandos, cada um deles levando os nomes de seus oficiais-comandantes. Com o posto de Oberleutnant — Drax encheu-se visivelmente de empáfia — à testa do Kommando “Drache”, eu penetrei diretamente nas linhas americianas com a famosa Brigada Panzer 150a na penetração de Ardennes, em dezembro de 44. Você se lembra, sem dúvida, do efeito causado por esta brigada em seus uniformes americanos e nos tanques e veículos americanos capturados. Kolossal! Quando a Brigada teve de se retirar, eu fiquei onde estiava e fui estabelecer-me nas Florestas de Ardennes, cinquenta milhas à retaguarda das linhas aliadas. Havia vinte rapazes, dez homens bons e dez Hitlerjugend Lobishomens. Todos com menos de vinte anos, mas todos bons rapazes. Por coincidência, o chefe deles era um jovem chamado Krebs, que demonstrou possuir determinados dons que o qualificaram para o pôsto de executor e “persuasor” de nosso alegre pequeno bando. Drax deu uma risadinha gostosa.
Bond lambeu os lábios, ao lembrar-se da brecha que Krebs fizera na cabeça batendo de encontro à cômoda. Ter-lhe-ia dado o pontapé com tanta força quanto lhe era possível dar? Sim, sua memória o tranquilizava, com cada grama de força que ele podia pôr no sapato.
— Ficamos naqueles bosques durante seis meses — continuou Drax, orgulhoso — e durante todo esse tempo dávamos notícias nossas à nossa Pátria por meio do rádio. Os caminhões de busca nunca deram conosco. E então aconteceu um desastre. — Drax sacudiu ia cabeça àquela lembrança. — Existia uma grande fazenda a uma milha de distância de nosso esconderijo na floresta. Uma porção de cabanas haviam sido construídas em torno dela, e eram usadas como quartel-general de retaguarda para um grupo de ligação. Ingleses e norte-americanos. Um lugar incrível. Sem disciplina, sem segurança, cheio de vadios e desertores vindos de todos os lugares da vizinhança. Nós vínhamos observando o grupo há muito tempo, e um dia eu resolvi fazer tudo aquilo voar pelos ares. O plano era simples. À noite, dois dos meus homens, um vestido num uniforme americano, e outro de uniforme britânico, deviam dirigir-se para lá num carro-patrulha capturado, contendo duas toneladas de explosivos. Havia um ponto de estacionamento para os carros — nenhuma sentinela, naturalmente — próximo à sala de refeitório, e eles deviam trazer o carro tão perto dela quanto possível, regular a explosão para a hora do jantar, às sete, e depois se afastarem. Tudo muito fácil, de modo que eu saí naquela manhã para tratar de negócios e deixei a missão para ser cumprida por meu segundo em comando. Eu estava vestido com o uniforme de Corpo de Sinaleiros britânicos, e parti numa motocicleta inglesa capturada por nós para enviar um despacho da mesma unidade que fazia o percurso diário num caminho ali perto. Está claro que ele veio pontualmente na hora, de modo que eu lhe segui atrás, saindo de um caminho lateral. Emparelhei com ele ei dei-lhe um tiro nas costas, tomei-lhe os documentos e, depois de colocá-lo em cima de sua própria motocicleta, levei-o para os bosques e toquei-lhe fogo.
Drax viu a fúria nos olhos de Bond e levantou a mão.
— Não foi muito esportivo? Meu caro, o homem já estava morto. Entretanto, prossigamos. Fui seguindo meu caminho, e então o que haveria de acontecer? Um dos aviões de vocês, voltando de um voo de reconhecimento, veio atrás de mim pela estrada com uma metralhadora. Um de seus próprios aviões! Jogou-me para longe da estrada. Só Deus sabe quanto tempo fiquei ali, caído no fosso. Em certo momento, durante a tarde, voltei a mim a tive o bom senso de esconder o boné e o dólmã com os despachos. Na cerca. Provavelmente ainda estão lá. Preciso ir buscá-los um dia. Lembranças interessantes. Depois toquei fogo nos restos da motocicleta e devo ter desmaiado novamente, porque quando tornei a dar por mim, tinha sido recolhido por um veículo britânico e estávamos seguindo para o maldito quartel-general de ligação! Acredite-se ou não! Lá estava o carro-patrulha, bem ao lado da sala do rancho! Era demais para mim. Eu estava cheio de estilhaços de bomba e minha perna estava quebrada. Pois bem, desmaiei, e quando voltei a mim, vi que metade do hospital se debruçava sobre mim, e eu só tinha a metade da cara.
Drax levantou a mão e alisou a pele lustrosa da têmpora e da face esquerda:
— Depois disso, tudo se resumiu numa questão de representar um papel. Eles não tinham ideia de quem eu era. O carro que me apanhara havia sido reduzido a simples fragmentos. Eu era apenas um inglês, vestido numa camisa e calças inglesas que quase morrera.
Drax fez uma pausa, tirou outro charuto e acendeu-o. Na sala reinou o silêncio, quebrado apenas pelo roncar atenuado do maçarico. Sua voz ameaçadora tornara-se mais baixa. A pressão está cedendo, pensou Bond.
Virou a cabeça e olhou Gala. Pela primeira vez, viu a lesão feia atrás de sua orelha esquerda. Endereçou-lhe um sorriso de encorajamento, e ela retorceu os lábios num sorriso de resposta.
Drax falava por dentro da fumaça do charuto:
— Não há muito mais coisa para contar. Durante o ano em que eu passei sendo enviado de um para outro hospital, elaborei meus planos sem omitir os mínimos detalhes. Consistiam muito simplesmente em vingar-me da Inglaterra pelo que me tinha feito e ao meu país. Confesso que, pouco a pouco, foi-se tornando uma obsessão. Cada dia que se passava no ano em que a destruição e a rapina campearam em meu país, meu ódio e desprezo pelos ingleses iam-se tornando cada vez mais amargos.
As veias do rosto de Drax começaram a inchar e, de repente, ele se pôs a desferir socos na mesa e a gritar para seus prisioneiros, fitando com olhos esbugalhados ora um, ora outro:
— Abomino e desprezo vocês todos. Seus porcos! Idiotas inúteis, ociosos, decadentes, escondendo-se por trás de seus malditos penhascos brancos, enquanto os outros povos travam batalhas por vocês. Fracos demais para defenderem suas colônias, bajulando a América com os chapéus nas mãos. Esnobes malcheirosos, que são capazes de fazer qualquer coisa por dinheiro. Ah! — Drax estava triunfante. — Eu sabia que precisava apenas de dinheiro e a aparência de um gentleman. Um gentleman! Pfui Teufel! Para mim um gentleman é apenas alguém de quem eu posso tirar vantagem. Aqueles malditos imbecis no Blades, por exemplo. Cretinos endinheirados. Durante meses a fio tirei milhares de libras deles, tapeei-os bem debaixo de seus narizes, até que você apareceu e estragou o brinquedo.
Os olhos de Drax se apertaram.
— Como foi que descobriu o truque da cigarreira — perguntou incisivo.
Bond deu de ombros.
— Com os olhos — respondeu indiferente.
— Ah, bem. Talvez eu estivesse um tanto descuidado naquela noite. Mas onde é mesmo que eu estava? Ah, sim, no hospital. Os bons médicos mostravam-se tão ansiosos por me ajudarem a descobrir quem eu era realmente. — Soltou uma gargalhada. — Foi fácil. Muito fácil. Dentre as identidades que eles me ofereciam com tanta boa vontade, topei com o nome de Hugo Drax. Que coincidência! De Drache para Drax! Como quem hesita, pensei que podia ser eu. Eles sentiram-se muito orgulhosos. Sim, afirmaram, naturalmente que é você. Triunfalmente, fizeram-me entrar-lhe na pele. Saí do hospital dentro dela, começando a rodar por Londres à cata de alguém para matar e roubar. Até que um dia, num pequeno escritório acima de Piccadilly, encontrei um agiota judeu. (Drax agora falava muito depressa. As palavras jorravam-lhe excitadamente dos lábios. Bond reparou num aglomerado de espuma que se formava num canto de sua boca e crescia.) — Ah, foi fácil. Uma bordoada em seu crânio nu. Quinze mil libras no cofre. Então tratei de me afastar do País. Fui para Tânger — onde se podia fazer qualquer coisa, comprar qualquer coisa, arranjar qualquer coisa que se desejasse. Columbita. Mais rara que a platina, e todos prontos a adquiri-la. A Era do Jato. Eu conhecia essas coisas. Não me havia esquecido de minha profissão. Então, por Deus, lhe digo que trabalhei. Durante cinco anos vivi para o dinheiro. Fui valente como um leão. Corri riscos tremendos. E eis que, de repente, o primeiro milhão me chega às mãos. Depois o segundo. Em seguida o quinto. Depois o vigésimo. Voltei para a Inglaterra. Gastei um milhão aqui, e Londres estava no papo. Depois voltei à Alemanha. Encontrei Krebs. Encontrei cinquenta deles. Alemães leais. Técnicos brilhantes. Todos vivendo sob nomes falsos, como tantos outros de meus antigos camaradas. Dei-lhes minhas ordens, e eles esperaram, pacificamente, inocentemente. E onde estava eu?
Drax fitou Bond, com os olhos arregalados:
— Eu estava em Moscou! Moscou! Um homem que tem columbita para vender pode ir a qualquer lugar. Encontrei as pessoas indicadas para meu caso. Ouviram meus planos. Deram-me Walter, o novo gênio de seus mísseis teleguiados da estação de Peenemunde, e os bons dos russos começaram a construir a cápsula dos instrumentos e explosivos, a cápsula atômica — apontou para o teto — que está agora nos esperando ali. Então tornei a regressar para Londres. — Fez uma pausa. — A Coroação. Minha carta para o Palácio. Triunfo. Hurras para Drax. — O homem estourou numa gargalhada. — A Inglaterra estava aos meus pés. Todos os malditos cretinos do país! Foi quando meus homens chegaram, e nós começamos. Bem juntos das saias da Grã-Bretanha. No alto de seus famosos penhascos. Trabalhamos como loucos. Construímos um cais no seu Canal inglês. Para receber fornecimentos! Suprimentos vindos de meus bons amigos os russos, que chegaram na hora exata, segunda-feira à noite. Mas foi aí que Tallon teve de ouvir alguma coisa. O velho imbecil. Falou com o Ministério. Mas Krebs estava ouvindo. Apareceram cinquenta voluntários para matar o homem. Tiramos a sorte, e Bartsch morreu como um herói. — Drax fez nova pausa. Depois continuou. — A nova cápsula foi içada para o lugar. Deu certo. Uma perfeita peça de encomenda. O mesmo peso. Tudo perfeito, como a antiga, a caneca de folha, cheia dos queridos instrumentos do Ministério, está agora em Stettin — atrás da Cortina de Ferro. O fiel submarino está de viagem de volta para aqui, e dentro em breve — olhou o relógio — estará navegando sob as águas do Canal inglês para nos levar a todos para longe, quando passar um minuto de meio-dia amanhã.
Drax limpou a boca com as costas da mão e recostou-se de novo na cadeira fitando o teto, os olhos povoados de visões. De repente, riu e olhou interrogativamente para Bond, passando o olhar pelo próprio nariz:
— Quer saber qual será a primeira coisa que nós faremos quando estivermos a bordo? Rasparemos esses famosos bigodes nos quais você estava tão interessado. Você cheirou um camundongo, meu caro Bond, onde devia ter cheirado um rato. Aquelas cabeças raspadas e aqueles bigodes: que nós cultivávamos tão assiduamente. Apenas uma precaução, meu caro. Experimente raspar a própria dabeça e deixar crescer um bigodão preto. Nem mesmo sua mãe o reconheceria. É a combinação das duas coisas que produz o efeito. Apenas um mínimo refinamento. Precisão, meu caro. Precisão, em cada detalhe. Foi esta a minha palavra de passe. — Drax deu uma risadinha sem graça e puxou uma boa fumarada do charuto. Súbito, olhou incisivamente, desconfiado, para Bond. — Então? Diga alguma coisa. Não fique aí sentado como uma múmia. Que pensa de minha história? Não acha que é extraordinária? Notável? Um homem ter feito tudo isto? Vamos, vamos, fale.
Uma das mãos foi levada até a boca, e Drax começou a roer as unhas furiosamente. Mas, em seguida, meteu-a no bolso, e seus olhos tornaram-se frios e cruéis.
— Ou quer que mande buscar Krebs — fez um gesto para o telefone em cima da escrivaninha. — O Persuasor. Pobre Krebs! É como uma criança a quem tivessem arrebatado os brinquedos. Ou talvez Walter. Eles lhes dariam uma lembrança para toda a vida. Esse aí não tem um pingo de moleza. Então?
Bond começou a falar, olhando a caraça vermelha, do outro lado da escrivaninha:
— Não resta dúvida, é um caso notável. Paranoia galopante. Ilusões de ciúme e perseguição. Ódio megalomaníaco e desejo de vingança. Fato bastante curioso — continuou dizendo, em tom de conversação — poderá ter alguma relação com seus dentes. Diastema, é como chamam isto. Acontece quando a criança chupa o dedo na infância. Sim. Tenho a impressão de que será isto o que dirão os psicólogos, assim que lhe puserem no hospício. “Dentes de bicho-papão.” Foi atormentado na escola etc. É extraordinário o efeito produzido numa criança. Então o nazismo ajudou a soprar as flamas, e ainda aconteceu você levar aquela pancada feia na sua feia cabeça. A pancada que você mesmo engendrou. Acho que foi o que estava faltando. Dali por diante, você passou a ser realmente louco. Do mesmo gênero desses que acreditam serem Deus. É extraordinário observar como são tenazes. Completamente fanáticos. Você é quase um gênio. Lombroso teria ficado encantado com você. No ponto em que estão as coisas, você não passa de um cão danado que precisa ser morto. Ou então você se suicida. Os paranoicos geralmente se matam. É uma pena. Coisa triste, mesmo.
Bond fez uma pausa e pôs todo o desprezo que pôde acumular na voz:
— E agora, continuemos com esta farsa, vamos, seu lunático cabeludo.
Deu resultado. A cada palavra de Bond, a cara de Drax ia se contorcendo de raiva cadia vez maior, os olhos estavam vermelhos de cólera, o suor da fúria pingava de suas mandíbulas para a camisa, os lábios se afastariam dos dentes irregulares, e um fio de saliva saíra-lhe da boca e lhe escorria pelo queixo. Agora, com o último insulto sobre a escola particular, que devia ter-lhe despertado sabe Deus que espécie de lembranças dolorosas, ele pulou da cadeira, rodeou a escrivaninha, investiu contra Bond, os punhos cabeludos martelando. Bond rangeu os dentes e aguentou.
Quando Drax teve de pegar a cadeira do chão pela segunda vez, com Bond em cima dela, a tempestade de raiva passou subitamente. Tirou do bolso o lenço de seda e limpou o rosto e as mãos. Depois, encaminhou-se calmamente para a porta e falou, olhando por cima da cabeça pendente de Bond e dirigindo-se à pequena.
— Não creio que vocês dois me deem mais trabalho — declarou com a voz perfeitamente calma e segura. — Krebs nunca comete enganos com seus nós.
Gesticulou em direção à figura ensanguentada da outra cadeira:
— Quando ele acordar, pode dizer-lhe que estas portas ainda se abrirão mais uma vez, pouco antes do meio-dia de amanhã. Alguns minutos mais tarde, não sobrará nada de nenhum de vocês dois. Nem mesmo — acrescentou, ao escancarar a porta de dentro — as obturações de seus dentes.
A porta externa bateu.
Bond levantou lentamente a cabeça e sorriu dolorosamente para sua companheira com os lábios manchados de sangue. Explicou com dificuldade:
— Tive de deixá-lo louco. Não quis que ele tivesse tempo para pensar. Tive de provocar aquela tempestade cerebral.
Gala olhava-o sem compreender, os olhos arregalados para a máscara terrível de seu rosto.
— Está tudo bem. Não se preocupe. Londres está O.K. Tenho um plano.
Sobre a escrivaninha, o maçarico fez um “pleft” baixinho e apagou.
CAPÍTULO 23
MENOS ZERO
Por entre os olhos entreabertos, Bond fitou demoradamente o maçarico, enquanto por alguns preciosos segundos permanecia sentado e deixava a vida voltar-lhe lentamente ao corpo. Tinha a impressão de que sua cabeça fora usada como bola de futebol, mas não tinha nada quebrado. Drax batera-lhe sem nenhuma ciência e com a confusão de golpes de um homem embriagado.
Gala observava-o ansiosamente. Os olhos, no rosto sanguinolento, estavam quase fechados, mas a linha do queixo aparecia tensa de concentração, e ela percebia o esforço de vontade que ele fazia.
Bond sacudiu a cabeça, e quando se voltou para ela, Gala viu que seus olhos estavam febris pelo triunfo.
Fez um gesto na direção do isqueiro.
— O isqueiro. Eu tive de tentar fazê-lo esquecer-se dele. Siga-me. Vou-lhe mostrar como.
Começou a balançar a leve cadeira de aço, polegada por polegada, em direção à escrivaninha:
— Pelo amor de Deus, não vá virar de pernas para cima, do contrário estará tudo perdido. Mas procure apressar-se senão o maçarico esfria.
Sem compreender, sentindo-se quase como se tomasse parte em algum fantástico brinquedo infantil, Gala, cautelosamente, foi balançando a cadeira pelo chão atrás dele.
Segundos depois, Bond lhe disse que parasse ao lado da escrivaninha, enquanto ele continuava o balanço até a cadeira de Drax. Depois, manobrou de modo a tomar posição em frente ao seu alvo e, com uma súbita guinada, suspendeu-se com a cadeira, de forma que sua cabeça ficou para baixo.
Ouviu-se um estalo, quando o isqueiro Ronson, de escrivaninha, prendeu-se-lhe nos dentes, mas seus lábios sustiveram-no, e a parte superior ficou-lhe na boca, assim que ele impulsionou a cadeira para a primeira posição, apenas com a força suficiente para impedir que saltasse fora. Em seguida, recomeçou sua paciente viagem de volta para o ponto onde Gala se encontrava sentada, no canto da escrivaninha onde Krebs deixara a lâmpada.
Bond descansou até sua respiração tornar-se novamente regular.
— Chegamos agora à parte difícil — avisou, severo. — Enquanto eu tento fazer este maçarico funcionar, você vai rodando sua cadeira, de modo que seu braço direito fique tanto quanto possível defronte de mim.
Obedientemente, a moça foi executando os movimentos, enquanto Bond balançava sua cadeira, de forma que esta se encostou a beira da escrivaninha e permitiu que sua boca alcançasse e agarrasse o cabo do maçarico entre os dentes.
Em seguida, foi trazendo o maçarico para perto e, depois de alguns minutos de trabalho paciente, conseguiu colocar o maçarico e o isqueiro como desejava, na borda da escrivaninha.
Após outro descanso, curvou-se, fechou a válvula da tocha com os dentes, e começou a fazer voltar a pressão, puxando lenta e repetidamente o pistão com os lábios e apertando-o de volta com o queixo. Sentia no rosto o calor do aquecedor e sentia o cheiro dos restos de gás no pequeno instrumento. Se ao menos não tivesse esfriado demais.
Endireitou o corpo.
— Ultima etapa, Gala — disse sorrindo quase com esforço para ela. — Talvez eu tenha de lhe machucar um pouco. Não faz mal?
— Claro que não — respondeu a moça.
— Então lá vai — disse Bond, e curvou-se para a frente, soltando a válvula de segurança à esquerda do depósito.
Depois debruçou-se rapidamente sobre o Ronson, que estava no ângulo direito e bem debaixo do tubo da tocha. Com os dois dentes incisivos apertou para baixo a trave de ignição.
Era uma manobra horrível e, apesar de ele sacudir a cabeça para trás com a rapidez de uma serpente, deixou escapar um leve gemido de dor, quando o jato de fogo azul do maçarico subiu-lhe pela face machucada e pela ponta do nariz.
Mas a parafina vaporizada sibilava sua língua vital de chama, e ele sacudiu as lágrimas dos olhos, curvando a cabeça quase até o ângulo direito e novamente prendeu a haste do maçarico nos dentes.
Teve a impressão de que seu queixo se partiria com o peso da coisa, e os nervos dos dentes da frente reclamaram, mas ele balançou a cadeira cautelosamente até colocá-la em posição vertical, afastada da escrivaninha, e então forçou o pescoço a curvar-se para a frente, até que a ponta da chama azul da tocha mordeu o ponto que ligava o pulso direito de Gala ao braço da cadeira.
Bond tentou desesperadamente conservar a chama firme, contudo a respiração da moça raspou-lhe entre os dentes, angustiada, quando o cabo se movia entre suas mandíbulas, e o maçarico queimou-lhe o antebraço.
Então tudo acabou. Derretido pelo forte calor, as tiras de cobre foram-se partindo uma por uma e, de repente, o braço direito de Gala ficou livre, e ela o estendeu para tomar o maçarico da boca de Bond.
A cabeça do rapaz caiu novamente para trás, entre os ombros, e ele torceu-a para todos os lados, a fim de conseguir fazer o sangue circular pelos músculos doloridos.
Antes mesmo que ele se desse conta, Gala já se inclinava sobre seus braços e pernas, e ele também estava livre.
Ao sentar-se imóvel por um momento, os olhos fechados, esperando que a vida lhe voltasse ao corpo, sentiu de repente, encantado, os lábios macios de Gala sobre os seus.
Abriu os olhos. Ela estava de pé, diante dele, os olhos brilhando.
— Isto é pelo que você fez — falou, muito séria.
— Você é uma garota maravilhosa — disse Bond. Depois, porém, sabendo o que ia fazer, sabendo que era bem concebível que ela sobrevivesse, mas que ele só tinha mais alguns minutos de vida, fechou os olhos para que ela não visse a desesperança neles.
Gala observou-lhe a expressão do rosto e virou de costas. Pensou que fosse apenas exaustão e o efeito do que seu corpo tinha sofrido. Lembrou-se aí, de repente, da água oxigenada no banheiro pegado ao seu escritório.
Passou pela porta de comunicação. Como era extraordinário ver suas coisas familiares novamente. Devia ser outra pessoa que se sentara naquela escrivaninha e batera na máquina a correspondência, outra moça a que ali empoara o nariz. Sacudiu os ombros e foi para o toalete. Meu Deus, que cara, e só Deus sabe como se sentia cansada! Mas primeiro pegou uma toalha molhada, um pouco de água oxigenada, e voltou. Durante dez minutos tratou do campo de batalha que era a cara de Bond.
Este permanecia sentado em silêncio, uma das mãos descansando na cintura dela e observando-a agradecido. Depois, quando ela voltou para o escritório e fechou a porta do banheiro após entrar, ele se levantou, apagou o maçarico que ainda silvava, e encaminhou-se para o chuveiro de Drax, tirou a roupa e permaneceu durante cinco minutos debaixo da água gelada. “Preparando o corpo”, pensou melancòlicamente, ao examinar o rosto maltratado no espelho.
Vestiu as roupas e voltou para a escrivaninha de Drax, que revistou metòdicamente. Esta lhe proporcionou apenas um prêmio, a “garrafa do escritório”, cheia até a metade de Haig and Haig. Foi buscar dois copos, um pouco de água e chamou Gala.
Ouviu-a abrir a porta do banheiro.
— O que é? — Uísque.
— Vá tomando o seu. Estarei pronta daqui a um minuto.
Bond olhou a garrafa, serviu três quartos de um copo de escovas de dentes e tomou-o de uma vez, em dois goles. Em seguida, acendeu meio trêmulo um abençoado cigarro e sentou-se na borda da escrivaninha, sentindo o álcool queimá-lo no estômago, descendo-lhe até as pernas.
Pegou a garrafa novamente e olhou-a. Ainda havia muito para Gala e um copo inteiro para ele, antes de sair por aquela porta. Era melhor que nada. Não seria tão difícil com aquilo dentro de si, contanto que saísse em passos rápidos o fechasse a porta depois. Nada de olhar para trás.
Gala entrou, uma Gala transformada, parecendo tão bela quanto na noite em que a vira pela primeira vez, exceto as linhas de exaustão sob os olhos, que o pó não disfarçava totalmente, e os feios vincos nos pulsos e tornozelos.
Bond deu-lhe um drinque e tomou outro. Os olhos de ambos sorriam por cima da orla dos copos.
Depois Bond se ergueu.
— Escute, Gala — começou num tom de voz bem natural . — Nós temos de enfrentar o que está por vir e terminar com a história, de modo que serei breve e depois tomaremos outra dose.
Bond ouviu quando ela prendeu a respiração, mas continuou:
— Dentro de dez minutos, mais ou menos, eu vou fechá-la no banheiro de Drax, pôr você debaixo do chuveiro, e abri-lo completamente.
A moça gritou, aproximando-se dele:
— James. Não continue. Eu sei que você vai dizer qualquer coisa horrível. Pare, por favor, James.
— Deixe disso, Gala — disse Bond com aspereza. — Que diabo adianta tudo isto. É um milagre maldito, se é que posso dizer assim, e nós temos a oportunidade.
Afastou-se dela. Encaminhou-se então para as portas que conduziam ao foguete.
— Depois então — prosseguiu, segurando o precioso isqueiro na mão direita — eu sairei daqui, fecharei as portas e acenderei um último cigarro debaixo da cauda do “Explorador da Lua”.
Meu Deus! — sussurrou a moça. — Que é que você está dizendo? Você está louco.
Fitou-o com os olhos arregalados de horror.
— Não seja ridícula — disse Bond impaciente. — Que diabo nos resta fazer? A explosão será tão pavorosa, que ninguém sentirá nada. Deve dar resultado, com todo esse combustível em vapor circulando em redor. Trata-se de mim ou de um milhão de pessoas em Londres. A cápsula não se soltará. As bombas atômicas não explodem assim. Com certeza derreterá. Só há uma chance de você escapar. A maior parte da explosão se encaminhará para a linha de menor resistência através do telhado — e por baixo, pela cavidade exaustora, se eu conseguir fazer funcionar o maquinismo que abre o chão.
Bond sorriu.
— Ânimo — pediu, caminhando para ela e pegando-lhe uma das mãos. — O rapaz ficou de pé no tombadilho incendiado. Eu quis imitá-lo desde os cinco anos de idade.
Gala puxou a mão.
— Não me importa o que você está dizendo — declarou encolerizada. — Temos de pensar em outra coisa qualquer. Você não me acha capaz de ter nenhuma ideia. Vai só me dizendo o que pensa e o que temos de fazer.
Dirigiu-se para o mapa da parede e apertou o interruptor.
— Naturalmente, se tivermos de usar o isqueiro, usá-lo-emos. — Olhou o mapa do falso plano de voo, mal vendo o que tinha diante dos olhos. — Mas a ideia de você caminhar ali sozinho e ficar no meio daqueles horríveis vapores do combustível e calmamente acender essa coisa para depois ser reduzido a pó... Entretanto, se tivermos de agir assim, agiremos juntos. É preferível, melhor do que ser queimada até morrer aqui dentro. De qualquer maneira — fez uma pausa — eu gostaria de ir com você. Nós entramos juntos nesse negócio.
Os olhos de Bond estavam cheios de ternura, quando caminhou em direção à moça, passou-lhe um braço em volta da cintura e abraçou-a bem junto a si.
— Gala, você é um amor — disse com simplicidade. — Se houver outro meio, nós o tentaremos. Mas — olhou o relógio — já passa de meia-noite, e nós precisamos tomar uma resolução rápida. A qualquer momento pode ocorrer a Drax a ideia de mandar guardas para ver sé nós estamos em ordem, e só Deus sabe a que horas ele virá aqui acertar o giroscópio.
Gala torceu o corpo como uma gata. Fitou-o com a boca aberta, o rosto tenso de excitação. Sussurrou:
— O giroscópio, para acertar o giroscópio. Encostou-se novamente de leve contra a parede, os. olhos procurando o rosto de Bond.
— Você não compreende? — sua voz estava beirando a histeria. — Depois que ele sair, nós poderíamos alterar o giroscópio para onde estava, de acordo com o antigo plano de voo, e então o foguete cairia simplesmente no Mar do Norte, onde se julga que irá cair.
Gala afastou-se da parede e agarrou a camisa de Bond com as duas mãos, fitando-o com um olhar que implorava:
— Não poderíamos? Não poderíamos?
— Você conhece as outras direções? — perguntou Bond, ansioso.
— Claro que sim. Convivo com eles há um ano. Nós não teremos uma previsão do tempo, mas teremos de nos arriscar. A previsão desta manhã dizia que nós teríamos as mesmas condições de hoje.
— Por Deus — disse Bond. — Nós poderíamos fazer isto. Se conseguirmos esconder-nos nalgum lugar e fazer Drax imaginar que escapamos. Que tal o túnel exaustor, se eu conseguir fazer funcionar a máquina que abre o assoalho?
— São trinta e tantos metros de queda em linha reta — disse Gala, sacudindo a cabeça. — E as paredes são de aço polido. Como vidro. Além do mais, não há corda ou coisa alguma aqui. Eles tiraram tudo da oficina ontem. Sem contar com os guardas na praia.
Bond refletiu. Depois seus olhos tornaram-se brilhantes:
— Tenho uma ideia. Mas em primeiro lugar, que me diz você do radar, o radar de retorno de Londres? Ele não empurrará o foguete para fora do seu curso e de volta para Londres?
Gala sacudiu a cabeça:
— Ele só trabalha dentro de um raio de cem milhas, mais ou menos. O foguete nem sequer pegará seu sinal. Se estiver apontando para o Mar do Norte, entrará na órbita do transmissor da jangada. Não há nada de errado nos meus planos. Mas onde nos poderemos esconder?
— Num dos tubos de ventilação — respondeu Bond. — Vamos.
Lançou um último olhar à sala. O isqueiro estava em seu bolso. Aquilo seria o último recurso. Não havia mais nada que eles fossem precisar. Seguiu Gala para o cintilante cilindro e dirigiu-se ao painel de instrumentos que controlava a capa de aço da cavidade exaustora.
Após um rápido exame, moveu uma pesada barra de Zu a Auf. Ouviu-se um leve sibilo da máquina hidráulica atrás da parede, e os dois semicírculos de aço se abriram sob a cauda do foguete, deslizando depois novamente para o lugar. Bond seguiu em frente e olhou para baixo.
Os arcos no telhado lá em cima cintilavam em resposta ao seu olhar, de lá das paredes polidas do largo funil de aço, até se curvarem desaparecendo de suas vistas, em direção ao distante clamor ôco do mar.
Bond voltou ao escritório de Drax e puxou para baixo a cortina do boxe do chuveiro. Depois, Gala e ele rasgaram em tiras a cortina e ligaram umas às outras. Deu um rasgão em feitio de um V no fim da última tira para dar a impressão de que a corda da fuga tinha-se partido. Amarrou então a outra extremidade firmemente em torno da ponta aguda de uma das três barbatanas do “Explorador da Lua” e deixou cair o resto de modo que descesse pelo cilindro.
Não era lá grande coisa como falsa pista, mas podia servir para ganhar um pouco de tempo.
As bocarras redondas dos ventiladores tubulares tinham o espaço de umas dez jardas entre si e ficavam a cerca de 1.50m do chão. Bond contou. Havia cinquenta delas. Abriu cautelosamente a grade presa em gonzos que cobria uma delas e olhou para cima. A uma distância de doze metros via-se um leve brilho vindo do luar lá fora. — Chegou à conclusão de que estavam emparedados bem dentro do túnel formado pelo muro da base, até que viraram para os ângulos direitos, em direção aos gradeados das paredes exteriores.
Bond estendeu o braço e correu a mão pela superfície. Era de um concreto rústico, inacabado, e ele grunhiu de satisfação, quando sentiu primeiro uma forte protuberância, e depois outra. Eram as extremidades bifurcadas das varas de aço que reforçavam as paredes, cortadas onde os cilindros começavam.
Ia ser uma coisa dolorosa, mas não havia dúvida de que poderiam ir-se arrastando, centímetro por centímetro, por um desses cilindros, tal como alpinistas numa chaminé rocha acima e, na curva do topo, ficarem ocultos de tudo, menos da busca complicada que seria difícil de manhã com todos os oficiais de Londres em redor da base.
Bond se ajoelhou, e a moça montou-lhe às costas, depois do que começaram a subir.
Uma hora depois, com os pés e os ombros machucados e cortados, deitaram-se exaustos, apertados bem fortemente nos braços um do outro, as cabeças afastadas alguns centímetros do gradeado circular, situado diretamente acima da porta externa, e puseram-se a ouvir os guardas mexendo os pés incessantemente dentro da escuridão, cem jardas distante deles.
Cinco horas, seis, sete.
Lentamente o sol apareceu por trás da cúpula, e as gaivotas começaram a gritar nos penhascos. Então, surgiram de súbito as três figuras caminhando para eles na distância, passaram por um novo pelotão de guardas, os queixos levantados, os joelhos erguidos, vindos para render a ronda noturna.
As figuras foram-se aproximando, e os olhos apertados, exaustos, do casal oculto puderam ver todos os detalhes da cara vermelho-alaranjada de Drax, o pálido focinho de raposa do Dr. Walter, a nédia e balofa cara de sono de Krebs.
Os três homens caminhavam como se fossem executores de um fuzilamento, sem dizer nada. Drax tirou a chave, e eles, silenciosamente, entraram pela porta, alguns pés abaixo dos corpos tensos de Bond e Gala.
Depois, durante dez minutos, reinou o silêncio, quebrado apenas pelo som ocasional de vozes que subiam pelo cilindro do ventilador, quando os três homens se movimentavam pelo chão de aço em torno da cavidade exaustara. Bond sorriu consigo mesmo à ideia do ódio e da consternação que deveriam estampar-se no rosto de Drax; do infeliz Krebs, encolhendo-se sob as chicotadas da língua de Drax; a amarga acusação nos olhos de Walter. Foi então que a porta se escancarou abaixo dele, e Krebs chamou, imperioso, o chefe dos guardas.
— Die Engländer — a voz de Krebs era quase histérica. —Escaparam. O Herr Kapitän pensa que possam estar num dos tubos de ventilação. Vamos arriscar. A cúpula será aberta novamente, e nós vamos eliminar os vapores do combustível. Depois então o Herr Doktor passará a mangueira de vapor quente em cada um dos tubos. Se eles estiverem num deles, isto os liquidará. Escolha quatro homens. As luvas de borracha e as vestimentas para incêndio estão lá embaixo. Nós vamos tirar a pressão do aquecimento. Diga aos outros que prestem atenção para ver se escutam os gritos. Verstanden?
— Zu Befehl!
O homem voltou diligentemente para junto de seu grupo, e Krebs, com o suor da ansiedade no rosto, voltou-se e desapareceu novamente pela porta.
Por um momento Bond permaneceu imóvel.
Ouviram rumores pesados acima de suas cabeças, quando a cúpula se dividiu em dois e se abriu. A mangueira de vapor quente!
Bond ouvira contar de motins em navios sendo combatidos com isto. Desordens em fábricas. Será que alcançará doze metros? A pressão durará? Quantas caldeiras alimentavam o aquecimento? Entre os cinquenta tubos de ventilação, qual seria o escolhido para começarem? Teria Bond ou Gala deixado qualquer indício, com relação àquele que haviam subido?
Bond sentia que Gala esperava que ele explicasse. Que fisesse alguma coisa. Que protegesse a ambos.
Cinco homens vieram aproximando-se do semicírculo de guardas. Passaram por baixo e desapareceram.
Bond pôs a boca no ouvido de Gala.
— Isto poderá machucar — avisou. — Não posso prever quanto. Não pode ser evitado. Teremos de aguentar. Sem fazer barulho.
Sentiu logo a pressão dos braços dela, à guisa de resposta:
— Levante os joelhos. Não fique acanhada. A hora não é para pudores virginais.
— Cale a boca — sussurrou Gala, zangada. Ele sentiu um joelho subir e ficar trancado entre suas coxas. Seu próprio joelho seguiu por ali até não conseguir estender-se mais. A moça se remexia furiosamente.
— Não seja idiota — cochichou Bond, puxando-lhe a cabeça para junto do peito, até que ficou meio encoberta pela sua camisa aberta.
Bond encobriu-a tanto quanto possível. Não podiam fazer nada com relação aos tornozelos e as mãos. Levantou a gola da camisa, o mais que pôde por cima das cabeças. Apertavam-se um contra o outro.
Quentes, cheios de câimbras, sem respirar. Esperando — de repente a ideia ocorreu a Bond, como dois namorados debaixo de arbustos, ocultos. Esperando que as pisadas se afastassem, de modo a poderem principiar tudo novamente. Sorriu amargamente consigo mesmo e pôs-se à escuta.
O silêncio reinava lá embaixo, no foguete. Deviam estar na sala das máquinas. Walter devia estar assistindo à instalação da mangueira na válvula externa. Agora ouviam-se ruídos distantes. Por onde começariam?
Num ponto qualquer, não muito longe, havia um sussurro leve, bem arrancado do fundo, como o apito ineficiente de um trem distante.
Bond dobrou para trás o colarinho da camisa e arriscou um olhar por entre as grades, até os guardas. Os que conseguiu ver, olhavam em frente para a cúpula do lançamento, um pouco à sua esquerda.
Novamente o longo sussurro áspero. E mais uma vez se repetiu.
Ia ficando mais alto. Viu as cabeças dos guardas rodando para o lado das grades das paredes que ocultavam Gala e ele. Deviam estar observando, fascinados, enquanto os jatos brancos e espessos de vapor subiam pelas grades até lá em cima ha parede de cimento, conjeturando: “— Será esta, ou aquela, ou aquela outra, qual será que virá acompanhada de um duplo grito.”
Sentia o coração de Gala batendo de encontro ao seu. Ela não sabia o que estava por acontecer. Confiava nele.
— Pode machucar — sussurrou-lhe novamente. — Pode queimar. Não nos matará. Tenha coragem. Não emita um som.
— Eu estou bem — cochichou a moça, encolerizada. Mas ele percebeu que seu corpo se colava mais ao dele. Chuá! Estava chegando mais perto.
Chuá! A diferença era de dois tubos.
CHUÁ! Pegado a eles. Sentiu um leve cheiro do vapor.
— “Fique bem firme”, ordenou Bond a si mesmo. Esmagou a companheira de encontro ao próprio corpo e prendeu a respiração.
— “Agora. Depressa. Acabem com isso, desgraçados.”
E eis que, subitamente, houve uma grande pressão; o calor e um barulho infernal chegou-lhes aos ouvidos, seguidos de um instante de dor intolerável.
Depois um silêncio mortal, uma mistura de frio intenso e fogo nos tornozelos e nas mãos, uma sensação de estarem ensopados, e um esforço desesperado, sufocante, de fazer o ar puro penetrar nos pulmões.
Seus corpos lutaram automaticamente para se separarem um do outro, para conseguir alguns centímetros de espaço e ar para as áreas da pele que já começavam a cobrir-se de bolhas. A respiração rasgava-lhes as gargantas, e a água porejava do cimento para dentro de suas bocas abertas, até que ambos se curvaram para um lado e atiraram-na fora, e ela foi juntar-se ao riachinho que corria por baixo de seus corpos ensopados, descendo pelos tornozelos escaldantes e dali para as paredes verticais do tubo pelo qual haviam subido.
O uivo da mangueira a vapor afastou-se deles até se tornar um sussurro e, finalmente, cessar. Reinou então o silêncio na estreita prisão de cimento de ambos, ouvindo-se apenas suas teimosas respirações e o tique-taque do relógio de Bond.
Os dois corpos continuavam deitados e à espera, aguentando a dor.
Meia hora — meio ano — mais tarde, Walter, Krebs e Drax seguiram em fila por baixo deles.
No entanto, como medida de precaução, os guardas tinham sido deixados para trás na cúpula do lançamento.
CAPITULO 24
ZERO
Então estamos combinados?
— Sim, Sir Hugo — era o Ministro do Abastecimento quem falava. Bond reconheceu a figura espigada, segura de si. — As direções são aquelas. Meu pessoal verificou-as, independentemente, com o Ministério da Aeronáutica esta manhã.
— Neste caso, se me permite o privilégio — Drax levantou o pedacinho de papel e ia virando em direção à cúpula.
— Segure-a, Sir Hugo. Assim mesmo, por favor. O braço esticado no ar.
As lâmpadas dos flashes se acenderam, e o conjunto de câmaras zumbiu e estalou pela última vez. Drax voltou-se e andou os poucos metros que o separavam da cúpula, quase, assim pareceu a Bond, fitando-o diretamente nos olhos através do gradeado acima da porta da casamata.
A pequena turba de repórteres e fotógrafos dissolveu-se e encaminhou-se para o caminho de concreto, deixando para trás apenas um grupinho de oficiais que conversavam nervosamente, à espera de que Drax surgisse em cena.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e cinco. “Depressa, seu danado”, pensou.
Pela centésima vez repetiu para si mesmo os números qus Gala lhe ensinara durante as horas de dor e câimbras que se seguiram à provação do vapor, e pela centésima vez movimentou os membros para preservar a circulação.
— Apronte-se — cochichou no ouvido de Gala. — Está se sentindo bem?
Sentiu que a moça sorria.
— Ótimo.
Ela fechou a mente à ideia de suas pernas todas cheias de bolhas e da rápida descida, raspando-as pelo tubo de ventilação .
A porta fechou-se com um baque abaixo deles, seguindo-se o estalido da fechadura, e então, precedida por cinco guardas, a figura de Drax apareceu lá embaixo, marchando solene para o grupo de oficiais, a tira de papel com os números na mão.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e sete. — Agora — sussurrou.
— Boa sorte — respondeu Gala, também num sussurro. Escorregando, arranhando-se, rasgando-se. Seus ombros, cautelosamente, se expandiam e contraíam; os pés, cheios de bolhas, de sangue, procurando as saliências agudas do ferro; com o corpo dilacerado abrindo caminho através do tubo de um metro, rezava para que a pequena encontrasse forças para suportar tudo aquilo, quando o seguisse.
Finalmente, o pulo de três metros, que lhe repercutia na espinha, um pontapé nas grades, e ele galgava o chão de aço, corria para as escadas, deixando uma trilha de pegadas vermelhas e um borrifo de gotas de sangue caídas de seus ombros feridos.
Os arcos de luz haviam sido apagados, mas o clarão do dia penetrava pelo telhado aberto, e o azul do céu misturado ao fulgor da luz do sol davam a Bond a impressão de que estava correndo dentro de uma enorme safira.
A grande e mortal agulha no centro parecia ser feita de vidro. Olhando para cima, enquanto suava e arfava no percurso das infindáveis curvas da escada de ferro, era difícil para ele ver onde o nariz do foguete, afinando na ponta, terminava, e começava o céu.
Por trás do pesado silêncio que envolvia a bala esplendente, Bond ouvia um ruído apavorante e regular, o caminhar de minúsculos pés de metal num ponto qualquer do corpo do “Explorador da Lua”. Enchia o vasto compartimento de aço, como as batidas do coração na história de Poe, e Bond compreendeu que Drax, diretamente do ponto do tiro, apertara o interruptor que mandava a faixa radiofônica, disparando a mais de duzentas jardas até o foguete ali à espera. O tique-tique cessaria dentro em breve, ouvir-se-ia o suave gemido do catavento aceso, uma pequena porção de vapor das turbinas, e depois o rugido do jato de flama no qual o foguete se ergueria lentamente e se curvaria majestoso no início de sua gigantesca curva de aceleração.
E então, diante dele, viu o braço retorcido do guindaste dobrado novamente contra a parede, e sua mão alcançou a barra. O braço foi-se esticando para baixo e para fora em direção à linha fina e quadrada, na pele brilhante do foguete, que era a porta do compartimento do giroscópio.
Caminhando apoiado nas mãos e nos joelhos, Bond alcançou-o bem antes de as almofadas de borracha virem descansar contra o cromo polido. Encontrou o disco de descarga, do tamanho de um xelim, exatamente como Gala havia descrito. Apertar, estalar, e a pequenina porta se abria, girando no parafuso duro. Dentro. Cuidado para não ferir a cabeça. Os cabos cintilantes embaixo dos ponteiros da bússola. Virar. Torcer. Firme. Isto é para o rolamento. Agora o topo e o pior. Virar. Lento. Bem delicadamente. Mas firme. Um último olhar. Uma olhada no relógio. Quatro minutos para ir. Não fique em pânico. Volte. Estalido da porta. Uma fugida rápida de gato. Não olhe para baixo. O guindaste se ergueu. Bateu contra a parede. E agora as escadas.
Tique-tique-tique-tique.
Ao descer, Bond vislumbrou o rosto de Gala, branco, tenso, enquanto ela permanecia segurando a porta exterior aberta, a porta do escritório de Drax. Oh, Deus! Como seu corpo doía! Um último salto e uma reviravolta desajeitada para a direita. Pam! Quando bateu com força a porta de fora. Nova pancada, e ei-los atravessando a sala em direção ao chuveiro. A água jorrando sobre seus corpos pegajosos e doloridos.
Por dentro de todo aquele barulho, acima das batidas do próprio coração, Bond ouviu o súbito estalar da estática e, em seguida, a voz do locutor da BBC vinda do enorme aparelho da sala de Drax, poucos centímetros distante da parede fina do banheiro. Fora novamente Gala quem se lembrara do aparelho de rádio de Drax e que encontrara tempo para pô-lo a funcionar enquanto Bond trabalhava no giroscópio.
“... cinco minutos de atraso” — dizia a voz excitada, leve, ao microfone. — Bond fechou o chuveiro, e a voz chegou até eles mais claramente. — “Sir Hugo foi persuadido a dizer algumas palavras. Parece muito confiante. Está dizendo qualquer coisa no ouvido do Ministro. Estão ambos rindo. Gostaria de saber o que estão dizendo. Ah, eis o meu colega que chega com as últimas notícias a respeito do tempo, vindas do Ministério da Aeronáutica. Que dizem elas? Perfeito em todas as altitudes. Bom espetáculo. Não há dúvida de que temos um dia maravilhoso aqui, Ah! A multidão reunida à distância, perto da estação de guardas-costeiros, vai apanhar uma boa queimadura de sol. Deve haver milhares de pessoas ali. Que foi que você disse? Vinte mil? Bem, a impressão que dá é essa mesmo. Walmer Beach também está apinhada de gente. Toda a população de Kent parece estar na rua. Todo mundo vai ficar com mau jeito no pescoço. Vai ser pior que em Wimbledon. Alô, que é que está se passando ali no cais? Puxa, é um submarino que acaba de subir à superfície. Que espetáculo! É um dos maiores que existem, creio eu. E a equipe de Sir Hugo está lá embaixo também. Alinhados no cais, como se estivessem numa parada. Magnífica corporação. Agora entram a bordo em fila. Disciplina perfeita. Deve ser uma ideia do Almirantado. Oferecer-lhes uma recepção especial na entrada do Canal. Maravilhoso espetáculo. Gostaria que você estivesse aqui para ver. Agora Sir Hugo vem vindo em nossa direção. Dentro em pouco estará falando com vocês. Bela figura de homem! Todos os que se encontram no ponto de tiro o estão aclamando. Tenho certeza de que todos nós nos sentimos inclinados a aclamá-lo hoje. Ele vem vindo para o ponto de tiro. Daqui vejo o sol brilhando no nariz do “Explorador da Lua”, lá adiante, por trás dele. Começa a sair por trás do alto da cúpula de lançamento. Espero que alguém tenha uma máquina fotográfica. Ei-lo que chega aqui agora — uma pausa. — Sir Hugo Drax.
Bond olhou o rosto gotejante de Gala. Ensopados e sangrando, ficaram nos braços um do outro, sem falar e tremendo ligeiramente sob o impacto de suas emoções. Seus olhos nada exprimiam e eram insondáveis quando se fitaram.
A voz que se ergueu era aveludado rosnar:
— Vossa Majestade, homens e mulheres da Inglaterra. Estou prestes a modificar o curso da história da Inglaterra. — Uma pausa. — Dentro de poucos minutos todas as vossas vidas estarão alteradas, em alguns casos drasticamente, pelo — hum — impacto do “Explorador da Lua”. Sinto-me muito orgulhoso e feliz porque o destino me elegeu, dentre todos os meus compatriotas, para lançar esta grande flecha de vingança nos céus e assim proclamar para sempre e para que todo o mundo presencie, o poderio de minha Pátria. Espero que esta oportunidade seja para sempre um aviso de que o destino dos inimigos de meu País estará escrito em poeira, em cinzas, em lágrimas e — uma pausa — em sangue. E agora muito obrigado por me terem ouvido, e eu, sinceramente, faço votos para que aqueles dentre vós que puderem, repitam as minhas palavras aos seus filhos, se os tiverem, hoje à noite.
Uma onda um tanto hesitante de aplausos ecoou através do microfone. Em seguida, ouviu-se a voz animada do locutor.
— Acabamos de ouvir Sir Hugo Drax, dirigindo-lhes algumas palavras antes de atravessar o ponto de tiro que leva ao interruptor na parede que lançará o “Explorador da Lua”. É a primeira vez que fala em público. Muito — hum — incisivo. Não faz rodeios para falar. Entretanto, muita gente achará que não há nenhum mal nisto. E agora chegou o momento de eu passar o microfone ao técnico, Capitão-Chefe de Grupo Tandy, do Ministério do Abastecimento, que descreverá para vocês o lançamento do “Explorador da Lua”. Em seguida, ouvirão a palavra de Peter Trimble, numa das embarcações da patrulha de segurança naval, o HMS Merganzer, que descreverá a cena da área compreendida pelo alvo. O Capitão Tandy.
Bond lançou um olhar ao relógio.
— Só mais um minuto — disse a Gala. — Oh, meu Deus, como eu gostaria de pôr as mãos em Drax. Tome aqui — estendeu a mão para o sabonete e arrancou-lhe alguns pedaços. — Ponha isto nos ouvidos, quando chegar a hora. O barulho vai ser tremendo, não sei dizer como será o calor. Não durará muito, e as paredes de aço talvez aguentem bem. Gala olhou para ele. Sorriu.
— Se você me segurar, não vai ser assim tão ruim — falou.
— E agora Sir Hugo está com a mão no interruptor e olha o cronômetro.
— DEZ — disse outra voz, forte e sonora como o toque de um sino.
Bond abriu o chuveiro, e a água jorrou sobre seus corpos apertados um contra o outro.
— NOVE — reboou a voz do que controlava o tempo.
— Os operadores do radar estão olhando as telas. Nada, exceto uma massa de linhas onduladas. . .
— OITO.
— Todos estão usando tampões nos ouvidos. A casamata deve ser indestrutível. As paredes de concreto têm três metros e meio de espessura. O teto em pirâmide tem sete metros e pouco de espessura na ponta.. .
— SETE.
— Primeiro o rádio sustará o mecanismo do tempo nas turbinas. Porá em movimento o cata-vento. Uma coisa flamejante como uma rodinha de fogo de artifício. . .
— SEIS.
— As válvulas se abrirão. Combustível líquido, Fórmula secreta. Coisa formidável. Dinamite. Cai dos tanques de combustível ...
— CINCO.
— Aceso pelo pino giratório, quando o combustível chega ao motor do foguete. . .
— QUATRO.
— enquanto que a água oxigenada e o permaganato já se misturaram, tornaram-se vapor, e as bombas das turbinas começam a girar.. .
— TRÊS.
— bombeando o combustível inflamável, através do motor, na cauda do foguete, para a cavidade exaustora. Calor gigantesco. . . 3500 graus...
— DOIS.
— Sir Hugo está prestes a apertar o botão. Está olhando pela abertura. O suor lhe umedece a fronte. Completa tensão aqui. Tremenda tensão.
— UM.
Nada senão o ruído da água, caindo incessantemente nos dois corpos agarrados.
— FOGO!
O coração de Bond pulou para a garganta ao ouvir o grito. Sentiu Gala estremecer. Silêncio. Nada, senão o sibilar da água...
— Sir Hugo deixou a casamata. Vai caminhando calmamente para a borda dos penhascos. Tão confiante! Passou agora para o elevador. Vai descer. Naturalmente. Deve ir até o submarino. As telas de televisão mostram um pouco de vapor vindo da cauda do foguete. Mais alguns segundos. Sim, ele se encontra no cais. Olhou para trás e levantou o braço no ar. Bom velho Sir Hu...
Um troar longínquo chegou até Bond e Gala. Mais alto. Mais alto. O chão ladrilhado começou a tremer debaixo dos pés deles. Um clamor de furacão!! Seriam pulverizados. As paredes tremiam, queimavam. As pernas de ambos começaram a descontrolar-se sob seus corpos oscilantes. Segure-a bem. Segure-a bem. Pare com isso! Pare com isso!! PARE COM ESSE BARULHO.
Cristo, ele ia desmaiar. A água estava fervendo. Era preciso fechá-la. Encontrei. Não. O cano arrebentou. Vapor, cheiro, ferro, tinta.
Tire-a daqui para fora! Tire-a daqui para fora!! Tire-a daqui para fora!!!
Depois o silêncio. Silêncio que se podia sentir, apalpar, apertar. E eles estavam no chão do escritório de Drax. Só a luz do banheiro ainda brilhava. A fumaça ia dissipando-se. Assim como o cheiro horrível de ferro queimado e tinta. Estavam sendo sugados pelo ar condicionado. A parede de aço inclina-se para eles qual bolha gigantesca. Os olhos de Gala estão abertos, e ela está sorrindo. Mas o foguete? Que foi que aconteceu? Londres? Mar do Norte? O rádio. Parece em ordem. Sacudiu a cabeça, e a surdez foi lentamente desaparecendo. Lembrou-se do sabão. Retirou-o das orelhas.
— Atravessando a barreira do som. Viajando perfeitamente bem no centro da tela do radar. Um lançamento perfeito. Receio que não tenham ouvido nada por causa do barulho. Tremendo. Primeiro todo aquele grande lençol de chamas vindo do penhasco, saindo da cavidade exaustora, e depois vocês deveriam ter visto o nariz lentamente surgir da cúpula. Ei-lo que sobe como um enorme lápis de prata. Mantendo-se em posição vertical nesta imensa coluna de chamas e vagarosamente subindo no ar. A flama se espalhando por centenas de quilômetros sobre o concreto. O uivo da coisa deve ter ameaçado seriamente arrebentar nossos microfones. Grandes fragmentos caíram do penhasco, e o concreto parece uma teia de aranha. Tremenda vibração. E a agulha subindo cada vez mais rápida. Cem milhas por hora. Mil. E — o locutor interrompeu o que ia dizendo — o que é que você disse? Ah, sim? Agora está percorrendo o espaço numa velocidade de dez mil milhas horárias! Encontra-se a uma altura de trezentas milhas. Não posso ouvir mais, naturalmente. Só vimos a flama durante alguns segundos. Como uma estrela. Sir Hugo deve estar muito orgulhoso. Encontra-se, no momento, no Canal. O submarino partiu como um foguete. Deve estar fazendo mais de trinta nós. Atirando para cima um colosso de espuma. Já alcançou o East Goodwins agora. Viaja para o norte. Dentro em breve chegará até os navios patrulheiros. Presenciarão o lançamento e a aterrissagem. Mas esse itinerário foi meio surpreendente. Ninguém aqui tinha a menor indicação. Até mesmo as autoridades navais parecem um tanto mistificadas. O Comandante-em-Chefe Nore foi ao telefone. Mas agora é só o que eu lhes posso informar daqui e vou passar a palavra a Peter Trimble, a bordo do HMS Merganzer, num ponto qualquer da Costa Oriental.
Nada, exceto os pulmões funcionando, indicava que os dois corpos largados na lagoa sempre crescente do chão ainda estivessem vivos. Mas seus tímpanos avariados pendiam desesperadamente do ruído de estática que veio durante alguns instantes do gabinete de metal todo empipocado. Agora teriam o veredicto do seu trabalho.
— Aqui fala Peter Trimble. Temos uma linda manhã — retifico — tarde, aqui. Um pouco ao norte de Goodwin Sands. Calmo como um lago. Não há vento. O sol brilha alegremente. A área compreendida pelo alvo foi declarada limpa, sem nenhuma embarcação. Não é assim, Comandante Edwards? Sim, o Capitão diz que está tudo inteiramente limpo. Por enquanto nada se vê na tela do radar. Não me é permitido informar o raio em que o pegaremos. Por motivos de segurança, e essa coisa toda. Mas nós só pegaremos o foguete por uma fração de segundo. Não está certo o que digo, Capitão? Mas o alvo começa a aparecer na tela. Não se pode vê-lo da ponte, naturalmente. Deve estar a setenta milhas daqui, na direção do norte. Vimos o “Explorador da Lua” subindo. Espetáculo assombroso! O barulho semelhante a um trovão. Uma longa chama saía da cauda. Devia estar já a dez milhas de distância, mas não era possível deixar de ver a luz. Não é isto, Capitão? Ah, sim, compreendo. Bom, isto é muito interessante. O enorme submarino se aproxima rapidamente. Está apenas a uma milha de distância. Suponho que seja aquele onde se encontra Sir Hugo com seus homens. Nenhum de nós aqui foi informado de coisa alguma a seu respeito. O Capitão Edwards diz que não responde à lâmpada Aldis. Não traz distintivo de navegação. Muito misterioso. Peguei-o agora mesmo. Está bem nítido em meus binóculos. Mudamos de rumo para tentar a intercepção. O Comandante diz que não é um dos nossos. Acha que deve ser estrangeiro. Atenção! Mostrou agora suas cores. O que vem a ser isto? Santo Deus! O capitão diz que é um submarino russo. Puxa! Agora está arriando as bandeiras e submergindo. Bang! Ouviram? Atiramos visando a proa, mas já desapareceu. Que é isto? Ah, o operador do asdic informa que está acelerando cada vez mais, debaixo da água. Vinte e cinco nós. Puxa! De qualquer modo, o submarino não poderá ver muita coisa debaixo da água, porém encontra-se agora bem na área do alvo. Passam vinte minutos das doze horas. O “Explorador” deve ter mudado seu rumo e prepara agora a descida. A umas mil milhas. Velocidade de descida, dez mil milhas horárias. Estará aqui dentro de segundos. Espero que não se verifique tragédia alguma. O submarino russo encontra-se bem dentro da zona perigosa. O operador do radar está acenando para nós. É o sinal para avisar que está na hora. Vem chegando. Vem chegando! . . . Não se ouve o mais leve ruído! deus do céu! Que é isto? Cuidado! Cuidado! Uma terrível explosão.. . Uma nuvem negra se eleva no ar. Uma gigantesca vaga, como a de um maremoto, aproxima-se rapidamente de nós. Uma vaga enorme! O submarino! Santo Deus... vimo-lo agora saltar fora da água e voltar a mergulhar, de quilha para o ar! Vem chegando. . .! Vem chegando! ...
CAPÍTULO 25
ZERO MAIS
Duzentos mortos confirmados, até agora, e aproximadamente o mesmo número de pessoas desaparecidas — informou M.
— Ainda estão chegando notícias da costa oriental, e as informações da Holanda não são das melhores. Foram inutilizadas muitas milhas de suas defesas navais. A maioria de nossas perdas ocorreu nas unidades patrulheiras. Duas delas viraram, incluindo o Merganzer. O Comandante desapareceu. O camarada da B. B. C. também. Os navios-faróis de Good-win partiram as amarras. Ainda não recebemos notícias da Bélgica e da França. Haverá contas bem pesadas a pagar, quando tudo isto ficar em ordem...
Era na tarde seguinte, e Bond, com uma bengala de ponta de borracha ao lado da cadeira, voltava a sentar-se onde tudo havia começado: do outro lado da escrivaninha daquele homem calmo, de frios olhos cinzentos, que o convidara para jantar e jogar bridge, há cem anos atrás.
Por baixo da roupa, Bond era uma perfeita e entrelaçada teia de esparadrapo. A dor queimava-lhe as pernas, sempre que tentava mexer os pés. Um traço vermelho cortava-lhe a face esquerda e a parte superior do nariz. O linimento, feito à base de ácido pícrico, cintilava à luz que entrava pela janela. Segurava um cigarro, como podia, na mão enluvada. Inacreditavelmente, M. tinha-o convidado a fumar.
— Algumas notícias do submarino, chefe? — perguntou Bond.
— Já o localizaram — disse M. com satisfação. — Adernado a cerca de trinta braças de profundidade. O navio de salvamento que deveria localizar os restos do foguete encontra-se agora por cima dele. Os mergulhadores já estiveram no fundo, e não houve resposta aos sinais feitos no casco. O embaixador soviético esteve no Foreign Office esta manhã. Parece ter declarado vir a caminho um navio salva-vidas, proveniente do Báltico, mas respondemos que não podíamos esperar, visto que, tratando-se de um navio naufragado, constitui um perigo para a navegação, no local onde está. — M. riu. — Com efeito, seria um perigo se alguém se dispusesse a navegar a trinta braças de profundidade, em pleno Canal. Contudo, estou satisfeito por não ser membro do Ministério — acrescentou friamente. — Tem estado em sessão permanente, desde o final da transmissão radiofônica. Vallance conseguiu entrar em contato com os tais advogados de Edinburgh, antes de eles abrirem a mensagem de Drax para o mundo. Parece ser um documento terrível, como se tivesse sido escrito pelo próprio Jeová. Vallance levou-o ao Governo, na noite passada, e ficou no 10, Downing Street, para esclarecer pontos ainda não averiguados.
— Eu sei — disse Bond. — Ele esteve telefonando constantemente para o hospital, procurando saber detalhes, até depois da meia-noite. Eu mal podia raciocinar direito, devido aos entorpecentes que me aplicaram. E que vai acontecer agora?
— Vão tentar abafar a coisa, com a maior embromação de que se teve notícia até hoje em toda a História. Uma quantidade enorme de lero-lero científico, explicando que o combustível foi usado só pela metade. Deu-se uma inesperada e potente explosão. Serão pagas indenizações. Perda trágica de Sir Hugo Drax e sua valiosa equipe. Grande patriota. Perda trágica de um dos submarinos de Sua Majestade. Último modelo experimental, ordens mal compreendidas. Tudo muito triste. Felizmente, perdeu-se uma tripulação mínima. Os parentes mais próximos serão informados. Trágica perda de um radialista da B.B.C. Inacreditável erro ao confundir a insígnia branca com as cores navais soviéticas. O desenho é muito semelhante. A bandeira branca foi recuperada no naufrágio.
— Mas que me diz da explosão atômica? — indagou Bond. — Radiações, poeiras radioativas e tudo isso. . . A famosa nuvem em forma de cogumelo. Com certeza isso vai ser um problema para explicar.
— Aparentemente, não estão muito preocupados com a questão — disse M. — A nuvem vai passar como formação normal, após uma explosão daquela envergadura. O Ministério do Abastecimento conhece toda a história. Foi preciso contar-lhes. Seus homens andaram percorrendo ontem à noite toda a costa oriental, com contadores Geiger, e ainda não houve qualquer notícia positiva. — M. sorriu friamente. — A nuvem terá de descer em algum lugar, claro, mas por uma feliz circunstância, o vento está empurrando-a para o norte. De volta a casa, como se poderia dizer. . .
Bond esboçou um sorriso, com dificuldade.
— Compreendo. Que coisa apropriada.
— Evidentemente — prosseguiu M., enchendo o cachimbo — haverá por aí uma série de boatos desagradáveis. Já começaram, aliás. Muita gente viu você e Miss Brand, serem retirados em padiolas. Depois, há o caso da Bowaters contra Drax, pela perda de todo aquele material de impressão. Haverá também inquérito sobre o rapaz que foi morto no Alfa Romeo. E alguém terá de explicar como se encontraram os restos de seu automóvel, entre os quais, — e nesta altura, M. olhou acusadoramente para Bond — foi encontrado um Colt de cano longo. E temos ainda o Ministério de Abastecimento. Vallance teve de chamar alguns de seus homens, ontem, para limpar aquela casa da Ebury Street. Mas essa gente está treinada em guardar segredo. Não será por aí que se descobrirá alguma coisa. Naturalmente, será um negócio arriscado. Mas a mentira de grandes proporções sempre o foi. E qual seria a alternativa? Encrencas com a Alemanha? Guerra com a Rússia? Muita gente, dos dois lados do Atlântico, ficaria mais do que satisfeita se lhe déssemos um motivo para agir.
M. fez uma pausa e chegou um fósforo ao cachimbo. Depois continuou:
— Se a história fôr engolida, não sairemos muito mal de tudo isto. Quisemos um de seus submarinos ultravelozes e ficaremos satisfeitos com as pistas que conseguimos descobrir a respeito de suas bombas atômicas. Os russos sabem que nós sabemos que o jogo deles fracassou. Malenkov não está muito firme no poder, e isto pode muito bem significar outra rebelião entre os senhores do Kremlin. Quanto aos alemães, bem... todos nós sabemos que ainda ficou muito nazismo espalhado por aí, e isto servirá para que o Ministério seja um pouco mais cauteloso, no tocante ao rearmamento da Alemanha. Entre as consequências de menor vulto — disse com um sorriso — destaca-se a de que o trabalho de segurança de Vallance, e o meu também, aliás, vão ficar um pouco mais fáceis para o futuro. Esses políticos não veem que a era atômica criou o mais letal sabotador da história da humanidade: o homenzinho com a valise pesada.
— E a imprensa vai engolir essa história? — perguntou Bond, duvidoso.
M. sacudiu os ombros.
— O Primeiro-Ministro teve esta manhã um encontro com os jornalistas — respondeu M., chegando outro fósforo ao cachimbo — e creio que conseguiu tudo da melhor maneira. Se os boatos se intensificarem mais tarde, ele terá, provavelmente, de convocá-los novamente e dizer-lhes parte da verdade. Então, eles se portarão bem. Sempre se portaram, quando o negócio é importante de verdade. O principal é ganhar tempo e manter afastados os boateiros. No momento, todos estão de tal maneira orgulhosos do “Explorador da Lua”, que não indagarão muito minuciosamente que foi que não deu certo.
Ouviu-se um leve zumbido no intercomunicador da escrivaninha de M., e uma luzinha vermelha piscou repetidas vezes. M. pegou no fone e curvou-se. — Alô. — Houve uma pausa. — Atenderei na linha do Ministério. — Apanhou o receptor branco, na mesa onde havia quatro telefones. — Sim. Está falando. — Nova pausa. — Pronto, sir? Escuto. — M. premiu o botão do misturador de sons. Segurou o fone junto ao ouvido, e nem um som chegou até aos ouvidos de Bond. Houve uma longa pausa, durante a qual M. ia puxando uma ou outra baforada do cachimbo, com a mão esquerda, enquanto escutava. Depois, tirou-o da boca. — De acordo, sir. É isso mesmo, sir. — Outra pausa. — Estou certo de que o meu homem teria ficado extremamente orgulhoso, sir. Mas, naturalmente, como Vossa Excelência sabe, é uma regra aqui no serviço. — M. franziu a testa. — Se me permite dar uma opinião, sir, creio que não seria nada aconselhável. — Uma pausa e a fisionomia de M. se desanuviou. — Obrigado, sir. Claro, Vallance não tem o mesmo problema. É o mínimo que ela merece, sir. — Outra pausa. — Compreendo. Assim será feito, sir. — Nova pausa. — É muita bondade sua, sir.
Depois de mais alguns cumprimentos, M. colocou o telefone branco no gancho, e o botão do misturador voltou à sua posição inicial de “livre”.
Por uns instantes, M. continuou fitando o telefone, como se em dúvida a respeito do que fora dito. Depois rodou a cadeira para longe da escrivaninha e olhou pela janela, pensativo.
Reinou o silêncio na sala, e Bond remexeu-se na cadeira, para aliviar a dor que lhe invadia novamente o corpo.
O mesmo pombo de segunda-feira, ou talvez outro, veio descansar no peitoril da janela, com o mesmo ruflar de asas. Caminhava para um e outro lado, baixando a cabeça e arruinando. Depois, voou para as árvores do parque. O tráfego murmurava, sonolento, na distância.
Como estivera perto, pensou Bond, de embarcar desta para melhor. Quão perto estivera de não haver nada mais do que a sirena distante da ambulância sob um sinistro céu negro e alaranjado, o cheiro de queimado, os gritos das pessoas ainda presas nos edifícios. O suave bater do coração de Londres, silenciado por uma geração. E toda uma geração de sua gente, morta nas ruas, entre as ruínas fumegantes de uma civilização que talvez não se erguesse de novo senão daí a muitos séculos.
Tudo isso teria acontecido por causa de um homem que fazia trapaça nas cartas, desdenhosamente, para alimentar o fogo devorador de seu ego maníaco; teria acontecido, se não fosse o presidente do clube Blades que o descobriu; se não fosse M., que concordara em ajudar um velho amigo; se não fosse a lição meio recordada por Bond e aprendida com um perito em trapaças; se não fossem as precauções de Vallance; se não fosse a boa cabeça de Gala para cálculos; se não fosse por uma série completa de circunstâncias fortuitas, de oportunidades .
E quem preparou a série?
Ouviu-se um ranger agudo, quando a cadeira de M. girou. Bond, cautelosamente, voltou a focalizar sua atenção nos olhos cinzentos do outro lado da escrivaninha.
— Era o Primeiro-Ministro — explicou M., em voz agridoce. — Diz que deseja que tanto você como Miss Brand saiam do País. — M. baixou os olhos e pousou-os, impassível, no fornilho do cachimbo. — Vocês dois têm de dar o fora até amanhã à tarde. Há muitas pessoas, neste caso, que lhes conhecem as caras. Poderão somar dois e dois e saberem que são quatro, quando virem em que estado lamentável se encontram. Vão para qualquer lugar que lhes agrade. Despesas sem limite de verba para ambos. Qualquer importância que precisarem. Vou falar com o Tesoureiro. Fique fora por um mês. Mas completamente fora de circulação, entendeu? Vocês dois já deveriam ter partido esta tarde, mas a moça tem um compromisso amanhã às onze horas. No Palácio. Foi-lhe concedida a George Cross. Mas isso não será divulgado até ao novo ano, claro. Gostaria de encontrá-la, qualquer dia. Deve ser uma excelente moça. Aliás — a expressão de M., quando levantou os olhos, era indecifrável — o Primeiro-Ministro tinha na ideia qualquer coisa para você, também. Esquecera que nós, aqui, não admitimos essas coisas. De modo que me pediu para lhe agradecer em nome dele. Disse algumas palavras simpáticas a respeito de nosso serviço. É muito gentil.
M. esboçou um daqueles raros sorrisos que iluminavam seu rosto com uma vivacidade e calor imediatos. Bond retribuiu o sorriso. Eles compreendiam bem as coisas que não chegavam a ser ditas.
Bond percebeu que era tempo de sair. Levantou-se e disse:
— Muito obrigado, chefe. Estou muito satisfeito pela moça.
— Bom, então está tudo combinado — disse M., com uma nota de despedida na voz. — Por hoje basta. Vê-lo-emos aqui dentro de um mês. Ah, é verdade — acrescentou com naturalidade — passe pelo seu escritório antes de sair. Encontrará uma coisa que eu lhe deixei lá. Uma pequena lembrança .
James Bond desceu pelo elevador e foi mancando pelo corredor, até seu gabinete. Quando cruzou a porta interior, encontrou sua secretária arrumando alguns papéis na escrivaninha ao lado da dele.
— 008 já está de volta? — perguntou.
— Sim — respondeu ela, sorrindo feliz. — Deve voar esta noite para cá.
— Ótimo, fico alegre por saber que você terá companhia — disse Bond. — Vou partir novamente.
— Oh! — exclamou a moça. Olhou rapidamente para ele e depois desviou o olhar. — Você está mesmo com cara de quem precisa de um bom descanso.
— Pois vou tê-lo mesmo. Um mês de exílio. — Pensou em Gala. — Vai ser um período de puras férias. Nada mais. Alguma coisa para mim?
— Seu novo carro está lá embaixo. Já o examinei. O homem disse que você lhe tinha dado ordens para que o trouxessem para experiência esta manhã. É lindo! Ah, é verdade. E tem ainda o pacote que veio do gabinete de M. Quer que o desembrulhe?
— Sim, por favor. . .
Bond sentou-se à escrivaninha e olhou o relógio. Cinco horas. Sentia-se fatigado. Sabia que iria sentir o mesmo durante alguns dias. Sempre tinha essas reações, no final de uma difícil missão. Era a consequência dos dias de nervos em tensão, dos temores, do medo.
Sua secretária voltou ao escritório, com duas caixas de papelão, de aspecto pesado. Colocou-as sobre a escrivaninha, e ele abriu a de cima. Quando viu a espécie de papel que envolvia o objeto, percebeu logo o que estava para vir.
Havia um cartão dentro da caixa. Bond pegou-o e leu. Na tinta verde usada por M., este dizia: “Você pode precisar destas coisas.” Não havia assinatura.
Bond desembrulhou o papel impermeável e sopesou a nova e refulgente Beretta em sua mão. Um lembrete. Não. Uma recordação. Bond sacudiu os ombros e fez a arma deslizar por baixo do casaco, para o coldre vazio. Levantou-se com alguma dificuldade.
— No outro embrulho, você encontrará um Colt de cano longo — disse ele à secretária. — Guarde até eu regressar. Então, eu o levarei ao fogão da cantina e jogá-lo-ei lá dentro.
Caminhou para a porta:
— Adeus, Lil. Lembranças a 008, e diga-lhe que tome cuidado com você. Eu estarei na França. Estação F terá meu endereço. Mas só em caso de emergência.
A moça sorriu.
— Que deverei considerar uma emergência? — perguntou.
Bond soltou uma pequena risada.
— Qualquer convite para um tranquilo jogo de bridge, por exemplo — respondeu ele.
Saiu mancando e fechou a porta.
O Mark VI, modelo 1953, tinha uma carroçaria esportiva e elegante, cor cinza de navio de guerra como o velho quatro litros e meio que fora para a sepultura numa garagem de Maidstone. O estofamento de couro azul-marinho deu um luxuoso gemido de coisa nova, quando Bond subiu, desajeitadamente, para o assento ao lado do motorista de provas.
Meia hora depois, o motorista ajudou-o a descer na esquina de Birdcage Walk com Queen Anne’s Gate.
— Se o senhor quisesse, poderíamos ter feito maior velocidade — disse o motorista. — E se nos autorizar a ficar com ele por mais uns quinze dias, poderemos prepará-lo para chegar aos cento e sessenta horários.
— Mais tarde — respondeu Bond. — Está comprado. Mas com uma condição. De que você o leve à terminal do ferry-boat na estação de Calais, amanhã à tarde.
O motorista sorriu:
— O.K. Eu o levarei. Verei o senhor no cais, está bem?
— Combinado. Siga com cuidado pela A-20. A estrada de Dover está muito perigosa, estes últimos dias.
— Não se preocupe, sir — respondeu o motorista, pensando que aquele homem devia ser um tanto medroso, apesar de tudo o que parecia conhecer a respeito de automóveis. — Não acontecerá nada.
— Nem todos os dias — advertiu ainda Bond, sorrindo. — Vê-lo-ei em Calais.
Sem esperar a resposta, saiu mancando, apoiado à bengala, por entre os raios de luz poeirenta do crepúsculo, filtrados através das árvores do parque.
Sentou-se defronte da ilha, no lago, e puxou da cigarreira, acendendo um cigarro. Olhou o relógio. Cinco para as seis. Lembrou-se de que ela não era o tipo de pequena que não seria pontual num encontro. Reservara a mesa de um canto parar o jantar. E depois? Mas, primeiro, haveria o longo e requintado planejar. De que gostaria ela? Onde gostaria de ir? Onde já teria estado? Alemanha, com certeza. França? Deixaria Paris de lado. Poderiam visitar a cidade no regresso. Mas, na primeira noite, iriam o mais longe que pudessem, bem longe do Pas de Galais. Havia aquela casa de campo, com uma comida maravilhosa, entre Montreuil e Étaples. Depois, a descida ao longo do Loire. Os pequenos lugares perto do rio, para alguns dias. As cidades dos castelos, não. Lugares como Beaugency, por exemplo. Depois, vagarosamente, para o sul, sempre seguindo pelas estradas do Oeste, evitando a vida em lugares mundanos e hotéis de cinco estrelas. Explorando lentamente o caminho. Bond teve um sobressalto. Explorar o quê? Um ao outro? Seria que ele estava levando a pequena a sério, demasiado a sério?
— James.
Era uma voz clara, bem timbrada, um pouco nervosa. Não a voz que ele esperava.
Levantou os olhos. Ela estava de pé, a poucos metros de distância. Bond reparou que usava uma boina preta, colocada num ângulo brejeiro. Tinha um ar excitante, misterioso, como alguém que vemos, em terra estranha, conduzindo sozinha um carro aberto. Alguém inatingível e mais desejável do que qualquer outra pessoa que já se conheceu até hoje. Alguém que está a caminho de um encontro amoroso com outro. Alguém que não é para você.
Bond ergueu-se, e deram-se as mãos.
Foi ela quem soltou a sua. Não se sentou.
— Gostaria muito que você fosse amanhã, James — disse Gala.
Seus olhos eram ternos quando o fitou. Ternos e suaves, mas, pensou ele, algo evasivos. Bond sorriu.
— Amanhã de manhã? Ou amanhã à noite? — disse ele.
— Não seja ridículo — respondeu Gala, rindo e corando. — Amanhã no Palácio.
— E depois? Que tenciona você fazer?
Gala encarou-o, cautelosamente. Que seria que esse olhar lembrava a ele? O olhar de Morphy? O olhar com que fitara Drax, na derradeira mão do jogo no Blades? Também não. Havia algo mais. Ternura? Pena?
A moça olhou por cima do ombro. Bond deu meia volta. Mais adiante viu a figura de um rapaz alto, de cabelos louros e cortados curtos. Estava de costas para ambos, sem fazer qualquer movimento. Matando o tempo.
Bond voltou a cabeça para Gala, e os olhos dela encontraram os seus.
— Vou-me casar com aquele homem — declarou ela, simplesmente. — Amanhã de tarde. — E então, como se não houvesse necessidade de outra explicação, acrescentou: — O nome dele é Vivian, Detetive-Inspetor.
— Ah, sim — disse Bond — compreendo. — Sorriu, um tanto amargo.
Houve um momento de silêncio, durante o qual seus olhos se desviaram para longe.
Entretanto, por que motivo deveria ele esperar outra coisa diferente? Um beijo. O contato de dois corpos assustados, agarrando-se no meio do perigo. Nada mais houvera. Depois, o anel de noivado sempre estivera no dedo dela, para que Bond não tivesse dúvidas. Por que supusera ele, automaticamente, que a moça o usara apenas como estratagema para que Drax não excedesse os limites? Por que imaginara que ela compartilhava de seus desejos e de seus planos?
E agora? conjeturava Bond. Sacudiu os ombros para expulsar a dor do fracasso... essa dor que é bem maior do que o prazer do sucesso. Afastar-se, era agora a única saída. Sair do caminho dessas duas vidas jovens e levar seu frio coração para qualquer outro lugar. Nada de penas. Nada de falsos sentimentos. Tinha de representar o papel que ela esperava dele. O homem duro, mundano. O Agente Secreto. O homem que era apenas uma silhueta.
Gala fitava-o, bastante nervosa, esperando ver-se desligada do estranho que tentara penetrar no átrio de seu coração.
Bond sorriu, com calor.
— Estou com ciúme — disse ele. — Tinha outros planos para você amanhã à noite.
Gala retribuiu o sorriso, grata por ter sido quebrado o silêncio.
— Quais eram esses planos? — indagou.
— Ia levá-la a uma casa de campo na França. E, depois de um jantar maravilhoso, pretendia verificar se é verdade o que dizem a respeito do grito de uma rosa.
A moça riu.
— Lamento muito não poder participar desses planos. Mas existem tantas outras, esperando serem colhidas.
— Sim, creio que sim — disse Bond. — Então, adeus, Gala.
Estendeu-lhe a mão.
— Adeus, James.
Bond tocou em Gala Brand pela derradeira vez e, depois, separaram-se, caminhando cada qual ao encontro de suas tão diferentes vidas.
CAPÍTULO 20
A JOGADA DE DRAX
Havia três diferentes fontes de dores no corpo de Gala. A dor latejante atrás da orelha esquerda, a carne mordida nos pulsos, e o queimar das correias em torno de seus tornozelos.
Cada saliência do terreno, cada desvio, cada pressão repentina do pé de Drax nos freios ou no acelerador, despertava uma dessas dores e lhe irritava os nervos. Se ao menos tivesse sido colocada mais presa ao assento de trás. Mas só havia lugar para seu corpo rolar alguns centímetros no assento, de modo que se via obrigada a contorcer constantemente o rosto machucado para evitar o contato com as paredes de brilhante couro de porco.
O ar que respirava era abafado, com um cheiro de forração nova de couro, fumaça do cano de descarga e, de quando em quando, o mais acentuado de borracha queimada, cada vez que Drax raspava os pneumáticos numa esquina de curva acentuada.
No entanto, o desconforto e a dor não eram nada. Krebs! Curioso como seu temor e repulsa por Krebs a atormentava mais que tudo. As outras coisas eram grandes demais. O mistério de Drax e seu ódio pela Inglaterra. O enigma do seu perfeito domínio da língua alemã. O “Explorador da Lua”. O segredo da cápsula atômica. Como salvar Londres. Eram assuntos que há muito tempo ela afastara para um recanto do cérebro como coisas insolúveis.
Mas a tarde passada a sós com Krebs estava presente e terrível em seu espírito, e este voltava sempre e sempre aos detalhes da mesma, como uma língua em cima de um dente dolorido.
Muito tempo depois de Drax ter partido, ela continuara a fingir inconsciência. A princípio, Krebs se ocupara com as máquinas, conversando com elas em alemão, numa falinha de bebê, toda carinhosa.
— Pronto, minha Liebchen. Agora está melhor, não está? Uma gota de óleo para você, minha Pupperl? Como não? Vai já. Não, não sua preguiçosa. Eu disse mil voltas. Não novecentas. Vamos ver agora. Nós podemos fazer coisa melhor, não podemos? Sim, minha Schatz. É isto. Rodando, rodando, lá vamos nós. Para cima e para baixo. Rodando, rodando. Deixe eu limpar sua carinha bonita, para você, para nós podermos ver o que o pequenino mostrador está dizendo. Jesus Maria, bist du ein braves Kind!
E assim continuara, ora ficando em pé, diante de Gala, ora esgaravatando o nariz e chupando os dentes, numa atitude horrível de ruminante. Até que foi permanecendo cada vez mais tempo diante dela, esquecendo as máquinas, conjeturando, tomando uma resolução.
E então sentira a mão dele desabotoar o botão de cima de seu vestido, e o recuo (automático de seu corpo teve de ser disfarçado por um grunhido realístico e uma pantomima de volta de consciência.
Pedira água, e ele fora buscar no banheiro, trazendo um pouco num copo de escova de dentes. Depois puxara uma cadeira de cozinha para a frente dela e sentara-se atravessado, de costas para o assento, o queixo descansando na última travessa do encosto. Ficara então a fitá-la especulativamente, por baixo das pálpebras caídas, com aqueles olhos desbotados.
Ela fora a primeira a romper o silêncio.
— Por que me trouxeram aqui? Para que são todas essas máquinas?
Krebs lambera os lábios de sua boquinha vermelha e bicuda, aberta sob a mancha de bigode amarelo, e foi formando lentamente um sorriso em forma romboide.
— Isto é um engodo para passarinhos. Dentro em breve atrairá um passarinho para seu ninho quente. Então o passarinho porá um ôvo. Oh, um ôvo tão grande, redondo! Um ôvo lindo!
A parte inferior de seu rosto ria encantada, enquanto seus olhos divagavam.
— A mocinha bonita está aqui porque, de outro modo, poderia assustar o passarinho, e este ir embora. E isto seria tão triste, não é mesmo? — o homem cuspiu as três palavras seguintes: — Cadela inglesa e suja!
Seus olhos tornaram-se atentos, cheios de resolução. Puxou a cadeira mais para perto, de modo que seu rosto ficou muito próximo ao dela, e ela se viu envolvida pelo miasma de sua respiração.
— E agora, cadela inglesa, diga para quem você está trabalhando? — Esperou. — Você precisa me responder, sabe? — avisou suavemente. — Nós estamos sozinhos aqui. Não há ninguém para lhe ouvir gritar.
— Não seja estúpido — disse Gala em desespero de causa. — Como eu poderia estar trabalhando para outra pessoa que não fosse Sir Hugo? (Krebs sorriu ao ouvir o nome).
— Eu só estava curiosa a respeito do plano de voo...
Gala iniciou uma explicação arrastada, a respeito de seus números e os de Drax, e de como desejara partilhar do sucesso do “Explorador da Lua”.
— Tente novamente — sussurrou Krebs, quando ela terminou. — Você deve sair-se melhor que isso — e, subitamente, seus olhos haviam-se tornado chispantes de crueldade, e suas mãos se estenderam para ela, por trás do encosto da cadeira. . .
No assento de trás do veloz Mercedes, Gala rangeu os dentes e choramingou com a lembrança dos dedos leves se arrastando pelo seu corpo, tateando, beliscando, puxando, enquanto seus olhos, durante o tempo todo, fitavam curiosamente os dela, até que, finalmente, ela juntou saliva na boca e deu uma cusparada bem no meio da cara do homem.
Este nem se dera o trabalho de parar para limpar o rosto, mas, de repente, aplicara-lhe um golpe violento, e ela gritara uma só vez, para em seguida desmaiar.
E então se vira sendo empurrada para a parte traseira do carro, com um tapete atirado em cima dela, e eles partiram velozmente pelas ruas de Londres. Gala ouvia outros carros perto deles, o campainhar frenético de uma bicicleta, um grito de vez em quando, o grunhido animalesco de uma velha klaxon, o ronronar de uma lambreta, um rangir de freios, e compreendeu que voltara ao mundo real, que pessoas inglesas, amigos, estavam em volta dela. Lutara para se pôr de joelhos e gritar, mas Krebs devia ter-lhe pressentido os movimentos, porque as mãos dele se encontraram repentinamente em seus tornozelos, prendendo-os à barra de descanso para os pés, no chão. Compreendeu que estava perdida, e as lágrimas lhe correram pelas faces, enquanto rezava para que alguém, de um jeito ou de outro, chegasse a tempo.
Isto acontecera há menos de uma hora, e agora ela podia garantir que haviam chegado a uma cidade grande — Maidstone, se estava sendo levada de volta para a base.
No relativo silêncio do avanço do Mercedes por dentro da cidade, ela ouviu, subitamente, a voz de Krebs. Havia nela um quê de ansioso.
— Mein Kapitän, tenho estado a observar um carro já há algum tempo. Não resta dúvida de que está nos seguindo. Raramente usa os faróis. Está apenas a uns cem metros de distância, atrás de nós agora. Eu acho que é o carro do Comandante Bond.
Drax grunhiu de surpresa, e ela ouviu seu corpanzil virar-se todo para dar uma rápida olhada.
Praguejou violentamente, e depois veio o silêncio, dentro do qual ela pôde sentir o carro grande se movimentando em curvas e se esforçando por ganhar terreno dentro do trânsito.
— Ja, sowas! — disse finalmente Drax. Sua voz parecia preocupada. — Quer dizer que aquela velha peça de museu ainda pode movimentar-se. Tanto melhor, meu caro Krebs. Parece que ele está sozinho.
Deu uma risada desagradável:
— Deixe que ele fique por nossa conta, porque se sobreviver, nós o meteremos no mesmo saco com a mulher. Ligue o rádio. Estação local. Logo saberemos se existe algum obstáculo.
Ouviu-se um rápido estalido da estática e depois Gala escutou a voz do Primeiro-Ministro, a voz das grandes ocasiões de sua vida, vinda em fragmentos entrecortados, enquanto Drax punha o carro em terceira e acelerava para sair da cidade: “. . . arma criada pela engenhosidade do homem. . . mil milhas acima no firmamento. . . área patrulhada pelos navios de Sua Majestade. . . planejado exclusivamente para a defesa de nossa amada ilha. . . uma longa era de paz... desenvolvimento para a grande viagem do homem além dos limites deste planeta. . . Sir Hugo Drax, esse grande patriota e benfeitor do nosso País...”
Gala ouviu o estrondear da gargalhada acima do uivar dos ventos, um vasto latido de desprezo e triunfo e, em seguida, o rádio foi desligado.
— James — sussurrou Gala consigo mesmo. — Só resta você. Tenha cuidado. Mas ande depressa.
O rosto de Bond era uma máscara de poeira e imundície com o sangue das moscas e outros insetos que se haviam esmagado contra ele. Muitas vezes tivera de retirar uma das mãos com câimbra do volante, para limpar os óculos, mas o Bentley ia portando-se muito bem, e ele tinha certeza de que pegaria o Mercedes.
Estava quase alcançando noventa e cinco na linha reta, pouco antes da entrada para Leed Castle, quando luzes possantes foram emitidas por trás dele, e uma buzina de quatro tons executou seu ousado “pam-pim-pim-pam” quase dentro de seu ouvido.
A aparição de um terceiro carro na corrida era quíase inacreditável. Bond mal se dera o trabalho de olhar no espelho retrovisor, desde que havia saído de Londres. Ninguém, a não ser um corredor de automóvel ou um homem desesperado, poderia ter emparelhado com eles, e seu espírito se encontrava numa confusão quando, automaticamente, afastou-se para a esquerda e viu, com o rabo dos olhos, um carro baixo, vermelho como os dos bombeiros, emparelhar com ele e afastar-se com uma diferença de umas dez milhas, uma hora extra em seu relógio.
Vislumbrou o famoso radiador Alfa e, na borda do capô, escrito em letras grandes, brancas, as palavras: Attaboy II. Em seguida, viu o rosto sorridente de um rapazinho em mangas de camisa, que espetou dois dedos vermelhos no ar antes de desaparecer na mistura de sons que um Alfa em disparada compõe com o gemido de seu escape, o espooar do cano de descarga e o uivo trovejante do transmissor.
Bond sorriu cheio de admiração ao levantar a mão para o chofer. Alfa Romeu, oito cilindradas, com surpercarburadores, pensou consigo mesmo. Deve ser quase tão velho quanto o meu. ‘32 ou ‘33, provavelmente. E só a metade de meus cc. Targa Florio, em 1931, e depois disso fez bonito em toda a parte. Com certeza era um tipo desses de cabeça quente, ouvindo uma das estações da RAF dos arredores. Tentando voltar de alguma festa a tempo de assinar o ponto antes de ser citado num relatório. Observou benèvolamente quando o Alfa balançou a cauda na curva em S ao lado de Leeds Ctostle e, em seguida, passou uivando pelo longo caminho largo em direção à distante bifurcação de Charing.
Bond bem podia imaginar o sorriso de satisfação do rapaz, quando este alcançou Drax: “Ôba. É uma Merc!” E a raiva de Drax, ao ouvir a música impudente da buzina. Deve estar fazendo 105, pensou Bond. Espero que esse maluquinho não saia da estrada. Ficou a olhar os dois jogos de luzes traseiras se aproximando, o rapaz do Alfa se preparando para o truque de surgir por trás e, de repente, acelerar ao máximo, assim que tivesse uma oportunidade para passar.
Pronto. Quatrocentas jardas adiante o Mercedes apareceu, branco, iluminado pelas luzes duplas do Alfa. Havia uma milha de estrada livre na frente, completamente reta. Bond quase sentia os pés do rapaz pisando o pedal mais fundo ainda. Ôba rapaz!
Lá na frente, no Mercedes, Krebs tinha a boca colada ao ouvido de Drax.
— Outro deles — gritou aflito. — Não consigo ver o rosto. Vem vindo para nos passar agora.
Drax deixou escapar uma obscenidade a meia voz. Seus dentes branquejaram no pálido reflexo do painel.
— Vou dar uma lição a esse canalha — falou, endireitando os ombros e agarrando o volante com firmeza com as grandes luvas de couro. Com o canto dos olhos viu o capô da Alfa surgir a estibordo. ‘Tam-pim-pim-pim”, cantava a buzina, suave, delicadamente. Drax virou rápido o volante do Mercedes para a direita e, depois do horrível chocalhar dos metais, trouxe-o novamente para o centro, a fim de corrigir a posição.
— Bravo! Bravo! — gritou Krebs, fora de si com a excitação, ao ajoelhar-se no assento do carro e olhar para trás.
— Dupla capotagem. Passou por cima da cerca de cabeça para baixo. Acho que já está se incendiando. Sim. Estou vendo as chamas.
— Isto dará ao nosso caro Sr. Bond qualquer coisa para refletir — rosnou Drax, respirando pesadamente.
Bond, porém, o rosto impassível, mal examinara o velocímetro, e nada havia a não ser vingança em seu espírito, quando partiu veloz atrás do Mercedes que voava.
Vira tudo. O voo grotesco do carro vermelho, ao virar de rodas para o ar, e tornar a virar, a figura do rapaz projetada para o alto, os braços e as pernas abertos, ao ser cuspido para fora do volante, e o estrondo final, quando o carro saltou a cerca de cabeça para baixo e foi desmoronar-se no campo.
Quando passou disparado, observando as marcas horríveis de grafita deixadas pela derrapagem, seu espírito anotou um toque macabro final. Saindo, não se sabe como, incólume do holocausto, a buzina ainda dava contato, e seu ulular subia para o céu, abrindo estridentemente estradas imaginárias para a passagem do Attaboy II: “Pam-pim-pim-pam. Pam-pim-pim-pam.”
Com que então um homicídio tivera lugar bem debaixo de seus olhos. Ou, pelo menos, uma tentativa de homicídio. Assim, fossem quais fossem seus motivos, Sir Hugo Drax era um criminoso e, provavelmente, um maníaco. Isto, acima de tudo, significava perigo certo para o “Explorador da Lua”. Era o bastante para Bond. Meteu a mão debaixo do painel e, de seu coldre escondido, tirou o Colt Especial do Exército, calibre 45 de cano longo, e colocou-o no assento ao seu lado. A batalha agora era em campo aberto e, de um jeito ou de outro, o Mercedes teria de ser parado.
Usando a estrada como se fosse Donington, Bond pisou o acelerador e ali conservou o pé. Pouco a pouco, com o ponteiro oscilando de cada lado do número cem, começou a diminuir a diferença.
Drax entrou pelo lado esquerdo da bifurcação em Charing e subiu embalado a longa colina. Na frente, dentro do raio gigante de seus faróis, um grande caminhão de transporte, desses de oito rodas, um AEC Diesel, ia subindo a primeira curva do caminho, lutando sob o peso de quatorze toneladas de notícias impressas que levava numa viagem noturna para um dos jornais do East Kent.
Drax praguejou baixinho, ao ver o longo transporte de vinte rolos gigantescos, cada um deles contendo cinco milhas de papel impresso com notícias, amarradas lá em cima. Logo ali, no meio daquela curva traiçoeira em S, no alto da colina.
Olhou no espelho retrovisor e viu o Bentley chegando à bifurcação.
Foi então que teve uma ideia.
— Krebs — o nome saiu como um tiro de pistola. — Tire sua faca.
Um estalido agudo, e o estilete já estava na mão de Krebs. Ninguém perdia tempo, quando havia aquela nota na voz do mestre.
— Vou diminuir a marcha e seguir atrás do caminhão. Tire os sapatos e as meias, suba no capo, e quando eu vier por detrás dele, pule em cima. Eu irei na maior vagareza. Não haverá perigo. Corte as cordas e segure os rolos de papel. Primeiro os da esquerda. Depois os da direita. Nessa altura eu já terei colocado o carro no mesmo nível do caminhão, e quando você tiver cortado o segundo lote, pule no carro. Tenha cuidado para não ser levado com o papel. Verstanden? Also. Hals und Beinbruch!
Drax apagou as luzes dos faróis e contornou a curva a oitenta quilômetros por hora. O caminhão ia vinte jardas adiante, e ele teve de frear com força, a fim de não abalroá-lo. O Mercedes executou uma derrapagem, até o radiador ficar quase debaixo do chassi do caminhão.
Drax fez a mudança para segunda:
— Agora!
Manteve o carro firme como uma rocha, quando Krebs, descalço, passou por cima do para-brisa e foi-se arrastando ao longo do brilhante capo, com a faca na mão.
Num salto, atingiu o ponto visado e começou a cortar as cordas do lado esquerdo. Drax afastou-se para a direita e foi deslizando até ficar paralelo às rodas traseiras do Diesel, a fumaça do óleo vinda do cano de descarga subindo-lhe aos olhos e às narinas.
As luzes do carro de Bond começavam a aparecer no início da curva.
Houve uma série de baques fortes, quando os rolos do lado esquerdo caíram do caminhão para a estrada e foram rolando velozes pela escuridão. Depois, mais baques, ao partirem-se as cordas do lado direito. Um dos rolos arrebentou ao cair, e Drax ouviu um barulho de coisas dilaceradas, quando o papel, desenrolando-se tombou pesadamente num ponto da subida.
Aliviado de sua carga, o caminhão quase pulou para a frente, e Drax teve de acelerar um pouco para alcançar a figura esvoaçante de Krebs, que aterrisou, metade em cima das costas de Gala e metade no assento da frente. Drax pisou até embaixo o acelerador e subiu a colina como um raio, ignorando o grito do chofer do caminhão, que se sobrepôs ao clamor dos pistões, quando ele disparou em frente.
Ao contornar velozmente a curva seguinte, viu o cilindro de dois faróis desenharem-se em curva no céu, acima do topo das árvores, até se tornarem quase verticais. Tremularam ali por um instante, e depois os raios de luz giraram através do espaço e desapareceram.
Uma grande risada, semelhante a um latido de cão, escapou de Drax, e durante a fração de um segundo, tirou os olhos da estrada e levantou o rosto triunfalmente para as estrelas.
CAPITULO 21
“O PERSUASOR”
Krebs ecoou a risada maníaca com outra estridente.
— Um golpe de mestre, mein Kapitän. O senhor precisava ver como eles desciam pela colina. O tal que arrebentou. Wunderschön! Parecia o papel higiênico de um gigante. Este deve ter feito um belo pacote dele. Ele vinha chegando bem na curva. E o segundo foi tão bom quanto o primeiro. Viu a cara do motorista? Zum Kotzen! E a firma Bowater! Um belo negócio foi o que fizeram.
— Você trabalhou bem — observou Drax, conciso, o pensamento noutra coisa.
De repente, levou o carro para o lado da estrada, com um grito de protesto dos pneus.
— Donnerwetter — disse, zangado, quando começou a virar o carro. — Mas nós não podemos deixar o homem ali. Precisamos pegá-lo.
O carro já ia roncando pela estrada abaixo.
— A arma — ordenou Drax, secamente.
Passaram o caminhão no alto da colina. Estava parado, e não se via sinal de motorista. Provavelmente telefonando para a companhia, pensou Drax, diminuindo a marcha ao contornarem a primeira curva. Viam-se luzes em duas ou três casas, e um grupo de pessoas rodeava um dos rolos de papel que ali estava por entre as ruínas do portão da frente de suas casas. Havia mais rolos na borda do lado direito da estrada. À esquerda, um poste telegráfico se inclinava como bêbedo, partido ao meio. Na curva seguinte, via-se o princípio de uma grande confusão de papel estendendo-se para baixo, ao longo da colina, formando guirlandas nas cercas e na estrada, como se fossem os babados de um vestido de baile à fantasia, elefantíaco.
O Bentley tinha quase se espatifado contra as grades que guarneciam o lado direito da curva, protegendo-o de um barranco profundo. Por entre a confusão de ferro retorcido dos mourões, pendia, de capo para baixo, com uma das rodas ainda presa ao eixo quebrado de trás e ali pousada de esguelha como um guarda-chuva surrealista.
Drax se aproximou e, acompanhado de Krebs, saiu do carro e ficou quieto, à escuta.
Não se ouvia o menor som, exceto o do motor de um carro distante, seguindo rápido pela estrada de Ashford, e o trilar de um grilo insone.
Com as armas na mão, eles caminharam cautelosamente por cima dos restos do Bentley, os pés esmagando o vidro partido na estrada. Sulcos profundos haviam sido marcados na margem de grama, e sentia-se o cheiro forte de gasolina, misturado ao de borracha queimada. O metal quente do carro estalava e partia baixinho. O vapor ainda jorrava do radiador espatifado.
Bond estava caído de bruços no fundo do barranco, a uns seis metros de distância do carro. Krebs virou-o. O rosto estava coberto de sangue, mas ele respirava. Revistaram-no completamente, e Drax meteu no bolso a fina Beretta. Depois, juntos, arrastaram-no até a estrada, jogando-o, em seguida, no assento traseiro do Mercedes, com a metade do corpo em cima do de Gala.
Quando ela percebeu quem era, deu um grito de horror.
— Halt’s Maul — rosnou Drax. Foi para o assento da frente e, enquanto ligava o motor, Krebs inclinou-se e se ocupou com um longo pedaço de arame flexível.
— Faça o negócio direito — disse Drax. — Não quero que haja erros. — Refletiu melhor. — Volte depois para junto dos destroços e retire as placas. Depressa. Eu tomo conta da estrada.
Krebs puxou o tapete para cima dos dois corpos inertes e pulou fora do carro. Usando a faca como chave de parafuso, dentro em breve estava de volta com as placas, e o enorme carro começou a se movimentar no momento exato em que um grupo de habitantes do local apareceu caminhando nervosamente pela descida da montanha, focalizando as lanternas sobre a cena de devastação.
Krebs riu feliz consigo mesmo à ideia de que os estúpidos ingleses teriam de limpar e pôr tudo aquilo em ordem. Acomodou-se no assento, a fim de apreciar o trecho do caminho que sempre fora seu predileto: os bosques primaveris, cheios de florzinhas azuis e rosa, que iam até Chilham.
Eles tinham-no tornado particularmente feliz à noite. Iluminados por entre as tochas verdes das árvores novas pelos grandes faróis do Mercedes, tinham-no feito pensar nas lindas florestas de Ardennes, no grupo dedicado onde servira e na viagem que fizera num jipe capturado aos americanos, tal como naquela noite, ao lado de seu adorado líder, que ia ao volante. Der Tag custara a chegar, mas agora ali estava. Com o jovem Krebs no caminhão. Finalmente veria as multidões dando vivas, as medalhas, as mulheres, as flores. Lançou um olhar aos exércitos de flores azuis que passavam voando e sentiu-se feliz e confortado.
Gala sentia na boca o gosto do sangue de Bond. O rosto dele estava ao lado do dela, no assento de couro, e ela se mexeu para lhe dar mais lugar. A respiração do rapaz era pesada e irregular. Ela perguntava a si mesma quanto estaria ferido. Experimentou sussurrar-lhe ao ouvido. Depois falou mais alto. Ele deu um grunhido e acelerou a respiração.
— James — cochichou. — James.
Bond resmungou qualquer coisa, e ela encostou-se com força contra ele. Depois, soltou uma série de palavrões, e seu corpo se mexeu.
Tornou a ficar imóvel, e ela quase pôde senti-lo explorando as próprias sensações.
— Sou eu, Gala.
Ela sentiu o corpo dele enrijecer.
— Deus do céu. Que diabo de confusão — falou Bond.
— Você está bem? Tem algum osso quebrado?
Sentiu que ele experimentava os braços e as pernas.
— Parece que está tudo bem. Uma brecha na cabeça. Estou falando coisas que fazem sentido?
— Claro que sim — respondeu Gala. — Agora ouça.
Rapidamente, contou-lhe tudo que sabia, começando pelo caderninho de notas preto.
O corpo dele estava rígido como uma tábua contra o dela, e ele mal respirava, ouvindo a história inacreditável.
Logo depois corriam para Canterbury, e Bond colocou a boca em seu ouvido.
— Vou tentar jogar-me por trás — sussurrou. — Ver se arranjo um telefone. É a única esperança.
Começou a se erguer sobre os joelhos, o peso de seu corpo quase sufocando a respiração da moça.
Ouviu-se uma forte pancada, e ele tornou a cair em cima dela.
— Outro movimento que você faça e estará morto — disse a voz de Krebs, vindo baixinho por entre os assentos da frente.
Faltavam só vinte minutos para chegar à base! Gala rangeu os dentes e tratou de reanimar Bond, que perdera os sentidos novamente.
Acabara de conseguir, quando o carro chegou à porta da cúpula de lançamento, e Krebs, com um revólver na mão, já ia desfazendo os nós em torno dos tornozelos de ambos.
Vislumbraram o cimento familiar, iluminado pela lua, e o semicírculo de guardas a uma certa distância, antes de serem empurrados pela porta. Depois, quando Krebs lhes arrancou os sapatos, seguiram pela passagem estreita, de ferro, dentro da cúpula de lançamento.
Ali estava o cintilante foguete, lindo, inocente, qual um novo brinquedo para ciclopes.
Mas havia um cheiro horrível de produtos químicos no ar, e para Bond, o “Explorador da Lua” parecia uma gigantesca agulha hipodérmica pronta para ser enterrada no coração da Inglaterra. Apesar de um resmungo de Krebs, ele parou na escada e levantou os olhos para seu nariz faiscante. Um milhão de mortes. Um milhão. Um milhão. Um milhão.
E tudo dependia dele? Pelo amor de Deus! Tudo dependia dele?
Com o revólver de Krebs cutucando-o, desceu lentamente os degraus, atrás de Gala.
Quando entrou pela porta do escritório de Drax, controlou-se. De repente, seu espírito tornou-se claro, e toda a letargia e a dor haviam-lhe deixado o corpo. Alguma coisa, qualquer coisa, precisava ser feita. De um jeito ou de outro, ele havia de descobrir um meio. O corpo inteiro e a mente tornaram-se-lhe concentrados e agudos como uma lâmina. Seus olhos ganharam vida, novamente, e a derrota abandonou-o, como a pele de uma serpente.
Drax seguira na frente e se sentara à escrivaninha. Trazia uma Luger na mão. Este apontava um lugar entre Gala e Bond e era firme como uma rocha.
Por trás dele, Bond escutou as portas duplas se fecharem, batendo.
— Eu era um dos melhores atiradores na Divisão Branderburg — disse Drax, entabulando conversa.
— Amarre a moça nessa cadeira, Krebs. Depois o homem .
Gala olhou desesperadamente para Bond. Este disse:
— Você não vai atirar. Teria receio de atingir o combustível.
Encaminhou-se lentamente para a escrivaninha. Drax sorriu alegremente e, seguindo a trajetória do cano do revólver, mirou o estômago de Bond.
— Sua memória é ruim, inglês. Eu lhe disse que esta sala é inteiramente separada da cúpula por meio das portas duplas. Dê mais um passo e ficará sem estômago.
Bond olhou os olhos apertados e confiantes do outro e parou.
— Vamos, Krebs.
Quando os dois ficaram bem amarrados, e dolorosamente, às pernas e braços das duas cadeiras de aço tubular, pouco distante um do outro, por baixo do mapa de vidro, Krebs saiu da sala. Voltou um momento depois com uma espécie de maçarico mecânico.
Colocou a feia máquina sobre a escrivaninha, introduziu o ar com algumas breves bombadas e riscou um fósforo. Uma chama azul sibilou, elevando-se a alguns centímetros. Ele pegou o instrumento e acercou-se de Gala. Parou a pouca distância da moça.
Drax ordenou, severo:
— Vejamos agora. Vamos tratar desse caso, sem criar complicações. Nós costumávamos chamá-lo Der Zwagsman — O Persuasor. Nunca me esquecerei de como lidou com o último espião que pegamos juntos. Bem ao sul do Reno, não foi, Krebs?
Bond era todo ouvidos.
— Foi sim, mein Kapitän. — Krebs riu, recordando-se. — Era um porco de um belga.
— Pois bem. Vocês dois aí não se esqueçam. Aqui não temos esse negócio de fair play. Nada de atitudes esportivas e toda essa história. Isto aqui é negócio.
A voz estalava como um chicote, a cada palavra.
— Você — lançava um olhar a Gala Brand — para quem está trabalhando?
Gala se conservou em silêncio.
— Onde você quiser, Krebs.
A boca de Krebs estava entreaberta. Sua língua percorria o lábio, para cima e para baixo. Parecia ter dificuldade em respirar, quando deu um passo em direção à moça.
A pequenina chama roncava gulosamente.
— Pare — disse Bond, frio. — Ela trabalha para a Scotland Yard. E eu também.
Essias coisas agora não tinham mais propósito. Não podia ser de nenhuma utilidade imaginável para Drax. De qualquer maneira, amanhã de tarde, talvez não existisse mais nenhuma Scotland Yard.
— Assim está melhor — disse Drax. — Agora responda: Alguém sabe que vocês estão prisioneiros? Vocês pararam para telefonar a alguém?
Se eu disser que sim, pensou Bond, ele atirará em nós dois e se livrará dos corpos. Dessa forma, a última chance de impedir o lançamento do “Explorador da Lua” terá desaparecido. E se a Yard sabe, por que ainda não chegaram aqui? Não. Nossa oportunidade ainda pode vir. O Bentley será encontrado. Vallance ficará preocupado quando não tiver notícias minhas.
Não — respondeu. — Se eu tivesse telefonado, eles já estariam por aqui a esta hora.
— Isto é verdade — disse Drax, refletindo.
— Neste caso, não estou mais interessado em vocês e felicito-os por terem tornado a entrevista tão harmoniosa. Poderia ter sido mais difícil, se você estivesse sozinho. Uma moça é sempre útil nessas ocasiões. Krebs largue isso. Pode ir. Diga aos outros o que é necessário. Eles devem estar fazendo conjeturas. Eu vou entreter nossos hóspedes durante algum tempo e depois subirei até a casamata. Providencie para que o carro seja bem lavado. O assento de trás. E faça desaparecer as marcas no lado direito. Diga para tirarem o painel inteiro, se fôr necessário. Ou então podem tocar fogo na maldita coisa. Nós não vamos mais precisar dela. — Riu abruptamente. — Verstanden?
— Sim, mein Kapitän...
Krebs, colocou com relutância o maçarico, que roncava de leve, na escrivaninha ao lado de Drax.
— Para o caso de lhe ser necessário — disse, olhando esperançoso para Gala e Bond. Saiu depois pelas portas duplas.
Drax pôs a Luger também na escrivaninha em frente a ele. Abriu uma gaveta, tirou um charuto e acendeu-o com um isqueiro Ronson. Depois, acomodou-se confortàvelmente. O silêncio reinou na sala durante vários minutos, enquanto Drax puxava fumaçadas do charuto, todo satisfeito. Em seguida, pareceu tomar uma resolução. Fitou Bond com benevolência.
— Você nem sabe quanto eu desejei um auditório inglês — declarou como se estivesse dando uma entrevista à imprensa. — Você nem sabe como estava ansioso por contar minha história. Aliás, um relatório completo de minhas atividades encontra-se em poder de um escritório muito respeitável de advogados de Edinburgo. — Tabeliães, aliás. Bem salvo de qualquer perigo.
Drax sorriu abertamente para um e para outro:
— Essa boa gente recebeu instruções para abrir o envelope no final do primeiro voo bem sucedido do “Explorador da Lua”. Mas vocês, seus felizardos, terão uma, antecipação do que eu escrevi e então, quando amanhã às doze horas, virem através destas portas abertas — fez um gesto para a direita — o primeiro vapor saindo das turbinas e souberem que devem ser queimados vivos dentro de meio segundo, terão a satisfação momentânea de saber com quantos paus se faz uma canoa.
— Você poderá nos dispensar as piadas — interrompeu Bond, com aspereza. — Continue com sua história, Kraut.
Os olhos de Drax fuzilaram momentaneamente.
— Um Kraut. Sim eu sou realmente um Reichsdeutscher — a boca, por baixo do bigode vermelho, saboreava a linda palavra — e até a própria Inglaterra terá de concordar, dentro em breve, que foram liquidados por um único alemão. E então talvez parem de nos chamar de Krauts — POR ORDEM! — As palavras foram gritadas, e todo militarismo prussiano entrou em desfile lá embaixo.
Drax exultou do outro lado da escrivaninha, olhando Bond, os dentes grandes, espalhados e salientes sob o bigode vermelho, roendo nervosamente uma unha, depois da outra. Em seguida, enfiou com esforço a mão direita no bolso da calça, como para colocá-la a salvo da tentação, e pegou o charuto com a esquerda. Puxou umas tragadas durante alguns instantes e, depois, com a voz ainda tensa, começou.
CAPITULO 22
A CAIXA DE PANDORA
Meu verdadeiro nome — disse Drax dirigindo-se a Bond — é Graf Hugo von der Drache. Minha mãe era inglesa, e por causa dela fui educado na Inglaterra até a idade de doze anos. Depois, não pude mais suportar este país imundo e completei minha educação em Berlim e Leipzig.
Bond calculava facilmente que aquele brutamontes com cara de bicho-papão e dentes de bruxo não havia sido muito bem recebido numa escola particular inglesa. O fato de ser um conde estrangeiro com um mundo de nomes não teria ajudado muito.
Os olhos de Drax brilharam, cheios de reminiscências: — Quando fiz vinte anos, comecei a trabalhar no ramo de negócio da família. Era uma filial do grande truste de aço Rheinmetal Bórsig. Nunca ouviu falar dele, suponho. Pois bem, se foi ferido por uma bomba de 88mm. durante a guerra, provavelmente foi uma das de lá. Nossas filiais eram peritas em aços especiais, e eu aprendi a respeito deles, e muita coisa sobre a indústria aviatória. Nossos melhores fregueses. Foi quando ouvi, pela primeira vez, falar em columbita. Valendo o que valem os brilhantes naqueles dias. Liguei-me à firma, e quase imediatamente depois disso arrebentou a guerra. Uma época maravilhosa. Eu tinha vinte e oito anos e era tenente da 140a do Regimento Panzer. Nós investimos contra o Exército britânico, na França, e o atravessamos como uma faca por dentro da manteiga. Simplesmente embriagador.
Durante alguns instantes, Drax sugou o charuto, e Bond calculou que ele estava vendo as aldeias incendiadas da Bélgica através da fumaça.
— Aqueles dias eram formidáveis, meu caro Bond. — Drax esticou um braço comprido e bateu a cinza do charuto para o chão. — Mas aí fui escolhido para a Divisão Brandenburg e tive de deixar as pequenas e o champanha para voltar à Alemanha e começar o adestramento, a fim de executar o vasto pulo na água para a Inglaterra. Precisavam de meu in-glês na Divisão. Todos nós devíamos trajar uniformes ingleses. Teria sido engraçado, porém os malditos generais disseram que não podia ser, e eu fui transferido para o Serviço Secreto Estrangeiro do SS. O RSHA, era como se chamava. SS Obergruppenfuhrer Kaltenbrunner acabava de assumir o comando depois que Heydrich foi assassinado em 42. Ele era um bom homem, e eu estava sob as ordens diretas de um ainda melhor, Obersturmbannfuhrer — Drax enrolava na boca o título delicioso com prazer. — Otto Skorzeny. Sua tarefa na RSHA era o terrorismo e a sabotagem. Um agradável interlúdio, meu caro Bond, durante o qual eu pude registrar o nome de muitos ingleses, coisa que me deu muito prazer. Mas então — o punho de Drax esmagou a escrivaninha — Hitler foi novamente traído por aqueles miseráveis generais, e os ingleses e norte-americanos tiveram oportunidade de desembarcar na França.
— Foi uma pena — disse Bond, friamente.
— Sim, meu caro Bond, foi de fato uma pena. — Drax preferiu ignorar a ironia. — Mas para mim foi o ponto alto da guerra. Skorzeny transformou todos os seus sabotadores e terroristas em SS Jagdverbände, para usá-los na retaguarda das linhas inimigas. Cada Jagdverbände era dividida em Streifkorps, e depois em Kommandos, cada um deles levando os nomes de seus oficiais-comandantes. Com o posto de Oberleutnant — Drax encheu-se visivelmente de empáfia — à testa do Kommando “Drache”, eu penetrei diretamente nas linhas americianas com a famosa Brigada Panzer 150a na penetração de Ardennes, em dezembro de 44. Você se lembra, sem dúvida, do efeito causado por esta brigada em seus uniformes americanos e nos tanques e veículos americanos capturados. Kolossal! Quando a Brigada teve de se retirar, eu fiquei onde estiava e fui estabelecer-me nas Florestas de Ardennes, cinquenta milhas à retaguarda das linhas aliadas. Havia vinte rapazes, dez homens bons e dez Hitlerjugend Lobishomens. Todos com menos de vinte anos, mas todos bons rapazes. Por coincidência, o chefe deles era um jovem chamado Krebs, que demonstrou possuir determinados dons que o qualificaram para o pôsto de executor e “persuasor” de nosso alegre pequeno bando. Drax deu uma risadinha gostosa.
Bond lambeu os lábios, ao lembrar-se da brecha que Krebs fizera na cabeça batendo de encontro à cômoda. Ter-lhe-ia dado o pontapé com tanta força quanto lhe era possível dar? Sim, sua memória o tranquilizava, com cada grama de força que ele podia pôr no sapato.
— Ficamos naqueles bosques durante seis meses — continuou Drax, orgulhoso — e durante todo esse tempo dávamos notícias nossas à nossa Pátria por meio do rádio. Os caminhões de busca nunca deram conosco. E então aconteceu um desastre. — Drax sacudiu ia cabeça àquela lembrança. — Existia uma grande fazenda a uma milha de distância de nosso esconderijo na floresta. Uma porção de cabanas haviam sido construídas em torno dela, e eram usadas como quartel-general de retaguarda para um grupo de ligação. Ingleses e norte-americanos. Um lugar incrível. Sem disciplina, sem segurança, cheio de vadios e desertores vindos de todos os lugares da vizinhança. Nós vínhamos observando o grupo há muito tempo, e um dia eu resolvi fazer tudo aquilo voar pelos ares. O plano era simples. À noite, dois dos meus homens, um vestido num uniforme americano, e outro de uniforme britânico, deviam dirigir-se para lá num carro-patrulha capturado, contendo duas toneladas de explosivos. Havia um ponto de estacionamento para os carros — nenhuma sentinela, naturalmente — próximo à sala de refeitório, e eles deviam trazer o carro tão perto dela quanto possível, regular a explosão para a hora do jantar, às sete, e depois se afastarem. Tudo muito fácil, de modo que eu saí naquela manhã para tratar de negócios e deixei a missão para ser cumprida por meu segundo em comando. Eu estava vestido com o uniforme de Corpo de Sinaleiros britânicos, e parti numa motocicleta inglesa capturada por nós para enviar um despacho da mesma unidade que fazia o percurso diário num caminho ali perto. Está claro que ele veio pontualmente na hora, de modo que eu lhe segui atrás, saindo de um caminho lateral. Emparelhei com ele ei dei-lhe um tiro nas costas, tomei-lhe os documentos e, depois de colocá-lo em cima de sua própria motocicleta, levei-o para os bosques e toquei-lhe fogo.
Drax viu a fúria nos olhos de Bond e levantou a mão.
— Não foi muito esportivo? Meu caro, o homem já estava morto. Entretanto, prossigamos. Fui seguindo meu caminho, e então o que haveria de acontecer? Um dos aviões de vocês, voltando de um voo de reconhecimento, veio atrás de mim pela estrada com uma metralhadora. Um de seus próprios aviões! Jogou-me para longe da estrada. Só Deus sabe quanto tempo fiquei ali, caído no fosso. Em certo momento, durante a tarde, voltei a mim a tive o bom senso de esconder o boné e o dólmã com os despachos. Na cerca. Provavelmente ainda estão lá. Preciso ir buscá-los um dia. Lembranças interessantes. Depois toquei fogo nos restos da motocicleta e devo ter desmaiado novamente, porque quando tornei a dar por mim, tinha sido recolhido por um veículo britânico e estávamos seguindo para o maldito quartel-general de ligação! Acredite-se ou não! Lá estava o carro-patrulha, bem ao lado da sala do rancho! Era demais para mim. Eu estava cheio de estilhaços de bomba e minha perna estava quebrada. Pois bem, desmaiei, e quando voltei a mim, vi que metade do hospital se debruçava sobre mim, e eu só tinha a metade da cara.
Drax levantou a mão e alisou a pele lustrosa da têmpora e da face esquerda:
— Depois disso, tudo se resumiu numa questão de representar um papel. Eles não tinham ideia de quem eu era. O carro que me apanhara havia sido reduzido a simples fragmentos. Eu era apenas um inglês, vestido numa camisa e calças inglesas que quase morrera.
Drax fez uma pausa, tirou outro charuto e acendeu-o. Na sala reinou o silêncio, quebrado apenas pelo roncar atenuado do maçarico. Sua voz ameaçadora tornara-se mais baixa. A pressão está cedendo, pensou Bond.
Virou a cabeça e olhou Gala. Pela primeira vez, viu a lesão feia atrás de sua orelha esquerda. Endereçou-lhe um sorriso de encorajamento, e ela retorceu os lábios num sorriso de resposta.
Drax falava por dentro da fumaça do charuto:
— Não há muito mais coisa para contar. Durante o ano em que eu passei sendo enviado de um para outro hospital, elaborei meus planos sem omitir os mínimos detalhes. Consistiam muito simplesmente em vingar-me da Inglaterra pelo que me tinha feito e ao meu país. Confesso que, pouco a pouco, foi-se tornando uma obsessão. Cada dia que se passava no ano em que a destruição e a rapina campearam em meu país, meu ódio e desprezo pelos ingleses iam-se tornando cada vez mais amargos.
As veias do rosto de Drax começaram a inchar e, de repente, ele se pôs a desferir socos na mesa e a gritar para seus prisioneiros, fitando com olhos esbugalhados ora um, ora outro:
— Abomino e desprezo vocês todos. Seus porcos! Idiotas inúteis, ociosos, decadentes, escondendo-se por trás de seus malditos penhascos brancos, enquanto os outros povos travam batalhas por vocês. Fracos demais para defenderem suas colônias, bajulando a América com os chapéus nas mãos. Esnobes malcheirosos, que são capazes de fazer qualquer coisa por dinheiro. Ah! — Drax estava triunfante. — Eu sabia que precisava apenas de dinheiro e a aparência de um gentleman. Um gentleman! Pfui Teufel! Para mim um gentleman é apenas alguém de quem eu posso tirar vantagem. Aqueles malditos imbecis no Blades, por exemplo. Cretinos endinheirados. Durante meses a fio tirei milhares de libras deles, tapeei-os bem debaixo de seus narizes, até que você apareceu e estragou o brinquedo.
Os olhos de Drax se apertaram.
— Como foi que descobriu o truque da cigarreira — perguntou incisivo.
Bond deu de ombros.
— Com os olhos — respondeu indiferente.
— Ah, bem. Talvez eu estivesse um tanto descuidado naquela noite. Mas onde é mesmo que eu estava? Ah, sim, no hospital. Os bons médicos mostravam-se tão ansiosos por me ajudarem a descobrir quem eu era realmente. — Soltou uma gargalhada. — Foi fácil. Muito fácil. Dentre as identidades que eles me ofereciam com tanta boa vontade, topei com o nome de Hugo Drax. Que coincidência! De Drache para Drax! Como quem hesita, pensei que podia ser eu. Eles sentiram-se muito orgulhosos. Sim, afirmaram, naturalmente que é você. Triunfalmente, fizeram-me entrar-lhe na pele. Saí do hospital dentro dela, começando a rodar por Londres à cata de alguém para matar e roubar. Até que um dia, num pequeno escritório acima de Piccadilly, encontrei um agiota judeu. (Drax agora falava muito depressa. As palavras jorravam-lhe excitadamente dos lábios. Bond reparou num aglomerado de espuma que se formava num canto de sua boca e crescia.) — Ah, foi fácil. Uma bordoada em seu crânio nu. Quinze mil libras no cofre. Então tratei de me afastar do País. Fui para Tânger — onde se podia fazer qualquer coisa, comprar qualquer coisa, arranjar qualquer coisa que se desejasse. Columbita. Mais rara que a platina, e todos prontos a adquiri-la. A Era do Jato. Eu conhecia essas coisas. Não me havia esquecido de minha profissão. Então, por Deus, lhe digo que trabalhei. Durante cinco anos vivi para o dinheiro. Fui valente como um leão. Corri riscos tremendos. E eis que, de repente, o primeiro milhão me chega às mãos. Depois o segundo. Em seguida o quinto. Depois o vigésimo. Voltei para a Inglaterra. Gastei um milhão aqui, e Londres estava no papo. Depois voltei à Alemanha. Encontrei Krebs. Encontrei cinquenta deles. Alemães leais. Técnicos brilhantes. Todos vivendo sob nomes falsos, como tantos outros de meus antigos camaradas. Dei-lhes minhas ordens, e eles esperaram, pacificamente, inocentemente. E onde estava eu?
Drax fitou Bond, com os olhos arregalados:
— Eu estava em Moscou! Moscou! Um homem que tem columbita para vender pode ir a qualquer lugar. Encontrei as pessoas indicadas para meu caso. Ouviram meus planos. Deram-me Walter, o novo gênio de seus mísseis teleguiados da estação de Peenemunde, e os bons dos russos começaram a construir a cápsula dos instrumentos e explosivos, a cápsula atômica — apontou para o teto — que está agora nos esperando ali. Então tornei a regressar para Londres. — Fez uma pausa. — A Coroação. Minha carta para o Palácio. Triunfo. Hurras para Drax. — O homem estourou numa gargalhada. — A Inglaterra estava aos meus pés. Todos os malditos cretinos do país! Foi quando meus homens chegaram, e nós começamos. Bem juntos das saias da Grã-Bretanha. No alto de seus famosos penhascos. Trabalhamos como loucos. Construímos um cais no seu Canal inglês. Para receber fornecimentos! Suprimentos vindos de meus bons amigos os russos, que chegaram na hora exata, segunda-feira à noite. Mas foi aí que Tallon teve de ouvir alguma coisa. O velho imbecil. Falou com o Ministério. Mas Krebs estava ouvindo. Apareceram cinquenta voluntários para matar o homem. Tiramos a sorte, e Bartsch morreu como um herói. — Drax fez nova pausa. Depois continuou. — A nova cápsula foi içada para o lugar. Deu certo. Uma perfeita peça de encomenda. O mesmo peso. Tudo perfeito, como a antiga, a caneca de folha, cheia dos queridos instrumentos do Ministério, está agora em Stettin — atrás da Cortina de Ferro. O fiel submarino está de viagem de volta para aqui, e dentro em breve — olhou o relógio — estará navegando sob as águas do Canal inglês para nos levar a todos para longe, quando passar um minuto de meio-dia amanhã.
Drax limpou a boca com as costas da mão e recostou-se de novo na cadeira fitando o teto, os olhos povoados de visões. De repente, riu e olhou interrogativamente para Bond, passando o olhar pelo próprio nariz:
— Quer saber qual será a primeira coisa que nós faremos quando estivermos a bordo? Rasparemos esses famosos bigodes nos quais você estava tão interessado. Você cheirou um camundongo, meu caro Bond, onde devia ter cheirado um rato. Aquelas cabeças raspadas e aqueles bigodes: que nós cultivávamos tão assiduamente. Apenas uma precaução, meu caro. Experimente raspar a própria dabeça e deixar crescer um bigodão preto. Nem mesmo sua mãe o reconheceria. É a combinação das duas coisas que produz o efeito. Apenas um mínimo refinamento. Precisão, meu caro. Precisão, em cada detalhe. Foi esta a minha palavra de passe. — Drax deu uma risadinha sem graça e puxou uma boa fumarada do charuto. Súbito, olhou incisivamente, desconfiado, para Bond. — Então? Diga alguma coisa. Não fique aí sentado como uma múmia. Que pensa de minha história? Não acha que é extraordinária? Notável? Um homem ter feito tudo isto? Vamos, vamos, fale.
Uma das mãos foi levada até a boca, e Drax começou a roer as unhas furiosamente. Mas, em seguida, meteu-a no bolso, e seus olhos tornaram-se frios e cruéis.
— Ou quer que mande buscar Krebs — fez um gesto para o telefone em cima da escrivaninha. — O Persuasor. Pobre Krebs! É como uma criança a quem tivessem arrebatado os brinquedos. Ou talvez Walter. Eles lhes dariam uma lembrança para toda a vida. Esse aí não tem um pingo de moleza. Então?
Bond começou a falar, olhando a caraça vermelha, do outro lado da escrivaninha:
— Não resta dúvida, é um caso notável. Paranoia galopante. Ilusões de ciúme e perseguição. Ódio megalomaníaco e desejo de vingança. Fato bastante curioso — continuou dizendo, em tom de conversação — poderá ter alguma relação com seus dentes. Diastema, é como chamam isto. Acontece quando a criança chupa o dedo na infância. Sim. Tenho a impressão de que será isto o que dirão os psicólogos, assim que lhe puserem no hospício. “Dentes de bicho-papão.” Foi atormentado na escola etc. É extraordinário o efeito produzido numa criança. Então o nazismo ajudou a soprar as flamas, e ainda aconteceu você levar aquela pancada feia na sua feia cabeça. A pancada que você mesmo engendrou. Acho que foi o que estava faltando. Dali por diante, você passou a ser realmente louco. Do mesmo gênero desses que acreditam serem Deus. É extraordinário observar como são tenazes. Completamente fanáticos. Você é quase um gênio. Lombroso teria ficado encantado com você. No ponto em que estão as coisas, você não passa de um cão danado que precisa ser morto. Ou então você se suicida. Os paranoicos geralmente se matam. É uma pena. Coisa triste, mesmo.
Bond fez uma pausa e pôs todo o desprezo que pôde acumular na voz:
— E agora, continuemos com esta farsa, vamos, seu lunático cabeludo.
Deu resultado. A cada palavra de Bond, a cara de Drax ia se contorcendo de raiva cadia vez maior, os olhos estavam vermelhos de cólera, o suor da fúria pingava de suas mandíbulas para a camisa, os lábios se afastariam dos dentes irregulares, e um fio de saliva saíra-lhe da boca e lhe escorria pelo queixo. Agora, com o último insulto sobre a escola particular, que devia ter-lhe despertado sabe Deus que espécie de lembranças dolorosas, ele pulou da cadeira, rodeou a escrivaninha, investiu contra Bond, os punhos cabeludos martelando. Bond rangeu os dentes e aguentou.
Quando Drax teve de pegar a cadeira do chão pela segunda vez, com Bond em cima dela, a tempestade de raiva passou subitamente. Tirou do bolso o lenço de seda e limpou o rosto e as mãos. Depois, encaminhou-se calmamente para a porta e falou, olhando por cima da cabeça pendente de Bond e dirigindo-se à pequena.
— Não creio que vocês dois me deem mais trabalho — declarou com a voz perfeitamente calma e segura. — Krebs nunca comete enganos com seus nós.
Gesticulou em direção à figura ensanguentada da outra cadeira:
— Quando ele acordar, pode dizer-lhe que estas portas ainda se abrirão mais uma vez, pouco antes do meio-dia de amanhã. Alguns minutos mais tarde, não sobrará nada de nenhum de vocês dois. Nem mesmo — acrescentou, ao escancarar a porta de dentro — as obturações de seus dentes.
A porta externa bateu.
Bond levantou lentamente a cabeça e sorriu dolorosamente para sua companheira com os lábios manchados de sangue. Explicou com dificuldade:
— Tive de deixá-lo louco. Não quis que ele tivesse tempo para pensar. Tive de provocar aquela tempestade cerebral.
Gala olhava-o sem compreender, os olhos arregalados para a máscara terrível de seu rosto.
— Está tudo bem. Não se preocupe. Londres está O.K. Tenho um plano.
Sobre a escrivaninha, o maçarico fez um “pleft” baixinho e apagou.
CAPÍTULO 23
MENOS ZERO
Por entre os olhos entreabertos, Bond fitou demoradamente o maçarico, enquanto por alguns preciosos segundos permanecia sentado e deixava a vida voltar-lhe lentamente ao corpo. Tinha a impressão de que sua cabeça fora usada como bola de futebol, mas não tinha nada quebrado. Drax batera-lhe sem nenhuma ciência e com a confusão de golpes de um homem embriagado.
Gala observava-o ansiosamente. Os olhos, no rosto sanguinolento, estavam quase fechados, mas a linha do queixo aparecia tensa de concentração, e ela percebia o esforço de vontade que ele fazia.
Bond sacudiu a cabeça, e quando se voltou para ela, Gala viu que seus olhos estavam febris pelo triunfo.
Fez um gesto na direção do isqueiro.
— O isqueiro. Eu tive de tentar fazê-lo esquecer-se dele. Siga-me. Vou-lhe mostrar como.
Começou a balançar a leve cadeira de aço, polegada por polegada, em direção à escrivaninha:
— Pelo amor de Deus, não vá virar de pernas para cima, do contrário estará tudo perdido. Mas procure apressar-se senão o maçarico esfria.
Sem compreender, sentindo-se quase como se tomasse parte em algum fantástico brinquedo infantil, Gala, cautelosamente, foi balançando a cadeira pelo chão atrás dele.
Segundos depois, Bond lhe disse que parasse ao lado da escrivaninha, enquanto ele continuava o balanço até a cadeira de Drax. Depois, manobrou de modo a tomar posição em frente ao seu alvo e, com uma súbita guinada, suspendeu-se com a cadeira, de forma que sua cabeça ficou para baixo.
Ouviu-se um estalo, quando o isqueiro Ronson, de escrivaninha, prendeu-se-lhe nos dentes, mas seus lábios sustiveram-no, e a parte superior ficou-lhe na boca, assim que ele impulsionou a cadeira para a primeira posição, apenas com a força suficiente para impedir que saltasse fora. Em seguida, recomeçou sua paciente viagem de volta para o ponto onde Gala se encontrava sentada, no canto da escrivaninha onde Krebs deixara a lâmpada.
Bond descansou até sua respiração tornar-se novamente regular.
— Chegamos agora à parte difícil — avisou, severo. — Enquanto eu tento fazer este maçarico funcionar, você vai rodando sua cadeira, de modo que seu braço direito fique tanto quanto possível defronte de mim.
Obedientemente, a moça foi executando os movimentos, enquanto Bond balançava sua cadeira, de forma que esta se encostou a beira da escrivaninha e permitiu que sua boca alcançasse e agarrasse o cabo do maçarico entre os dentes.
Em seguida, foi trazendo o maçarico para perto e, depois de alguns minutos de trabalho paciente, conseguiu colocar o maçarico e o isqueiro como desejava, na borda da escrivaninha.
Após outro descanso, curvou-se, fechou a válvula da tocha com os dentes, e começou a fazer voltar a pressão, puxando lenta e repetidamente o pistão com os lábios e apertando-o de volta com o queixo. Sentia no rosto o calor do aquecedor e sentia o cheiro dos restos de gás no pequeno instrumento. Se ao menos não tivesse esfriado demais.
Endireitou o corpo.
— Ultima etapa, Gala — disse sorrindo quase com esforço para ela. — Talvez eu tenha de lhe machucar um pouco. Não faz mal?
— Claro que não — respondeu a moça.
— Então lá vai — disse Bond, e curvou-se para a frente, soltando a válvula de segurança à esquerda do depósito.
Depois debruçou-se rapidamente sobre o Ronson, que estava no ângulo direito e bem debaixo do tubo da tocha. Com os dois dentes incisivos apertou para baixo a trave de ignição.
Era uma manobra horrível e, apesar de ele sacudir a cabeça para trás com a rapidez de uma serpente, deixou escapar um leve gemido de dor, quando o jato de fogo azul do maçarico subiu-lhe pela face machucada e pela ponta do nariz.
Mas a parafina vaporizada sibilava sua língua vital de chama, e ele sacudiu as lágrimas dos olhos, curvando a cabeça quase até o ângulo direito e novamente prendeu a haste do maçarico nos dentes.
Teve a impressão de que seu queixo se partiria com o peso da coisa, e os nervos dos dentes da frente reclamaram, mas ele balançou a cadeira cautelosamente até colocá-la em posição vertical, afastada da escrivaninha, e então forçou o pescoço a curvar-se para a frente, até que a ponta da chama azul da tocha mordeu o ponto que ligava o pulso direito de Gala ao braço da cadeira.
Bond tentou desesperadamente conservar a chama firme, contudo a respiração da moça raspou-lhe entre os dentes, angustiada, quando o cabo se movia entre suas mandíbulas, e o maçarico queimou-lhe o antebraço.
Então tudo acabou. Derretido pelo forte calor, as tiras de cobre foram-se partindo uma por uma e, de repente, o braço direito de Gala ficou livre, e ela o estendeu para tomar o maçarico da boca de Bond.
A cabeça do rapaz caiu novamente para trás, entre os ombros, e ele torceu-a para todos os lados, a fim de conseguir fazer o sangue circular pelos músculos doloridos.
Antes mesmo que ele se desse conta, Gala já se inclinava sobre seus braços e pernas, e ele também estava livre.
Ao sentar-se imóvel por um momento, os olhos fechados, esperando que a vida lhe voltasse ao corpo, sentiu de repente, encantado, os lábios macios de Gala sobre os seus.
Abriu os olhos. Ela estava de pé, diante dele, os olhos brilhando.
— Isto é pelo que você fez — falou, muito séria.
— Você é uma garota maravilhosa — disse Bond. Depois, porém, sabendo o que ia fazer, sabendo que era bem concebível que ela sobrevivesse, mas que ele só tinha mais alguns minutos de vida, fechou os olhos para que ela não visse a desesperança neles.
Gala observou-lhe a expressão do rosto e virou de costas. Pensou que fosse apenas exaustão e o efeito do que seu corpo tinha sofrido. Lembrou-se aí, de repente, da água oxigenada no banheiro pegado ao seu escritório.
Passou pela porta de comunicação. Como era extraordinário ver suas coisas familiares novamente. Devia ser outra pessoa que se sentara naquela escrivaninha e batera na máquina a correspondência, outra moça a que ali empoara o nariz. Sacudiu os ombros e foi para o toalete. Meu Deus, que cara, e só Deus sabe como se sentia cansada! Mas primeiro pegou uma toalha molhada, um pouco de água oxigenada, e voltou. Durante dez minutos tratou do campo de batalha que era a cara de Bond.
Este permanecia sentado em silêncio, uma das mãos descansando na cintura dela e observando-a agradecido. Depois, quando ela voltou para o escritório e fechou a porta do banheiro após entrar, ele se levantou, apagou o maçarico que ainda silvava, e encaminhou-se para o chuveiro de Drax, tirou a roupa e permaneceu durante cinco minutos debaixo da água gelada. “Preparando o corpo”, pensou melancòlicamente, ao examinar o rosto maltratado no espelho.
Vestiu as roupas e voltou para a escrivaninha de Drax, que revistou metòdicamente. Esta lhe proporcionou apenas um prêmio, a “garrafa do escritório”, cheia até a metade de Haig and Haig. Foi buscar dois copos, um pouco de água e chamou Gala.
Ouviu-a abrir a porta do banheiro.
— O que é? — Uísque.
— Vá tomando o seu. Estarei pronta daqui a um minuto.
Bond olhou a garrafa, serviu três quartos de um copo de escovas de dentes e tomou-o de uma vez, em dois goles. Em seguida, acendeu meio trêmulo um abençoado cigarro e sentou-se na borda da escrivaninha, sentindo o álcool queimá-lo no estômago, descendo-lhe até as pernas.
Pegou a garrafa novamente e olhou-a. Ainda havia muito para Gala e um copo inteiro para ele, antes de sair por aquela porta. Era melhor que nada. Não seria tão difícil com aquilo dentro de si, contanto que saísse em passos rápidos o fechasse a porta depois. Nada de olhar para trás.
Gala entrou, uma Gala transformada, parecendo tão bela quanto na noite em que a vira pela primeira vez, exceto as linhas de exaustão sob os olhos, que o pó não disfarçava totalmente, e os feios vincos nos pulsos e tornozelos.
Bond deu-lhe um drinque e tomou outro. Os olhos de ambos sorriam por cima da orla dos copos.
Depois Bond se ergueu.
— Escute, Gala — começou num tom de voz bem natural . — Nós temos de enfrentar o que está por vir e terminar com a história, de modo que serei breve e depois tomaremos outra dose.
Bond ouviu quando ela prendeu a respiração, mas continuou:
— Dentro de dez minutos, mais ou menos, eu vou fechá-la no banheiro de Drax, pôr você debaixo do chuveiro, e abri-lo completamente.
A moça gritou, aproximando-se dele:
— James. Não continue. Eu sei que você vai dizer qualquer coisa horrível. Pare, por favor, James.
— Deixe disso, Gala — disse Bond com aspereza. — Que diabo adianta tudo isto. É um milagre maldito, se é que posso dizer assim, e nós temos a oportunidade.
Afastou-se dela. Encaminhou-se então para as portas que conduziam ao foguete.
— Depois então — prosseguiu, segurando o precioso isqueiro na mão direita — eu sairei daqui, fecharei as portas e acenderei um último cigarro debaixo da cauda do “Explorador da Lua”.
Meu Deus! — sussurrou a moça. — Que é que você está dizendo? Você está louco.
Fitou-o com os olhos arregalados de horror.
— Não seja ridícula — disse Bond impaciente. — Que diabo nos resta fazer? A explosão será tão pavorosa, que ninguém sentirá nada. Deve dar resultado, com todo esse combustível em vapor circulando em redor. Trata-se de mim ou de um milhão de pessoas em Londres. A cápsula não se soltará. As bombas atômicas não explodem assim. Com certeza derreterá. Só há uma chance de você escapar. A maior parte da explosão se encaminhará para a linha de menor resistência através do telhado — e por baixo, pela cavidade exaustora, se eu conseguir fazer funcionar o maquinismo que abre o chão.
Bond sorriu.
— Ânimo — pediu, caminhando para ela e pegando-lhe uma das mãos. — O rapaz ficou de pé no tombadilho incendiado. Eu quis imitá-lo desde os cinco anos de idade.
Gala puxou a mão.
— Não me importa o que você está dizendo — declarou encolerizada. — Temos de pensar em outra coisa qualquer. Você não me acha capaz de ter nenhuma ideia. Vai só me dizendo o que pensa e o que temos de fazer.
Dirigiu-se para o mapa da parede e apertou o interruptor.
— Naturalmente, se tivermos de usar o isqueiro, usá-lo-emos. — Olhou o mapa do falso plano de voo, mal vendo o que tinha diante dos olhos. — Mas a ideia de você caminhar ali sozinho e ficar no meio daqueles horríveis vapores do combustível e calmamente acender essa coisa para depois ser reduzido a pó... Entretanto, se tivermos de agir assim, agiremos juntos. É preferível, melhor do que ser queimada até morrer aqui dentro. De qualquer maneira — fez uma pausa — eu gostaria de ir com você. Nós entramos juntos nesse negócio.
Os olhos de Bond estavam cheios de ternura, quando caminhou em direção à moça, passou-lhe um braço em volta da cintura e abraçou-a bem junto a si.
— Gala, você é um amor — disse com simplicidade. — Se houver outro meio, nós o tentaremos. Mas — olhou o relógio — já passa de meia-noite, e nós precisamos tomar uma resolução rápida. A qualquer momento pode ocorrer a Drax a ideia de mandar guardas para ver sé nós estamos em ordem, e só Deus sabe a que horas ele virá aqui acertar o giroscópio.
Gala torceu o corpo como uma gata. Fitou-o com a boca aberta, o rosto tenso de excitação. Sussurrou:
— O giroscópio, para acertar o giroscópio. Encostou-se novamente de leve contra a parede, os. olhos procurando o rosto de Bond.
— Você não compreende? — sua voz estava beirando a histeria. — Depois que ele sair, nós poderíamos alterar o giroscópio para onde estava, de acordo com o antigo plano de voo, e então o foguete cairia simplesmente no Mar do Norte, onde se julga que irá cair.
Gala afastou-se da parede e agarrou a camisa de Bond com as duas mãos, fitando-o com um olhar que implorava:
— Não poderíamos? Não poderíamos?
— Você conhece as outras direções? — perguntou Bond, ansioso.
— Claro que sim. Convivo com eles há um ano. Nós não teremos uma previsão do tempo, mas teremos de nos arriscar. A previsão desta manhã dizia que nós teríamos as mesmas condições de hoje.
— Por Deus — disse Bond. — Nós poderíamos fazer isto. Se conseguirmos esconder-nos nalgum lugar e fazer Drax imaginar que escapamos. Que tal o túnel exaustor, se eu conseguir fazer funcionar a máquina que abre o assoalho?
— São trinta e tantos metros de queda em linha reta — disse Gala, sacudindo a cabeça. — E as paredes são de aço polido. Como vidro. Além do mais, não há corda ou coisa alguma aqui. Eles tiraram tudo da oficina ontem. Sem contar com os guardas na praia.
Bond refletiu. Depois seus olhos tornaram-se brilhantes:
— Tenho uma ideia. Mas em primeiro lugar, que me diz você do radar, o radar de retorno de Londres? Ele não empurrará o foguete para fora do seu curso e de volta para Londres?
Gala sacudiu a cabeça:
— Ele só trabalha dentro de um raio de cem milhas, mais ou menos. O foguete nem sequer pegará seu sinal. Se estiver apontando para o Mar do Norte, entrará na órbita do transmissor da jangada. Não há nada de errado nos meus planos. Mas onde nos poderemos esconder?
— Num dos tubos de ventilação — respondeu Bond. — Vamos.
Lançou um último olhar à sala. O isqueiro estava em seu bolso. Aquilo seria o último recurso. Não havia mais nada que eles fossem precisar. Seguiu Gala para o cintilante cilindro e dirigiu-se ao painel de instrumentos que controlava a capa de aço da cavidade exaustora.
Após um rápido exame, moveu uma pesada barra de Zu a Auf. Ouviu-se um leve sibilo da máquina hidráulica atrás da parede, e os dois semicírculos de aço se abriram sob a cauda do foguete, deslizando depois novamente para o lugar. Bond seguiu em frente e olhou para baixo.
Os arcos no telhado lá em cima cintilavam em resposta ao seu olhar, de lá das paredes polidas do largo funil de aço, até se curvarem desaparecendo de suas vistas, em direção ao distante clamor ôco do mar.
Bond voltou ao escritório de Drax e puxou para baixo a cortina do boxe do chuveiro. Depois, Gala e ele rasgaram em tiras a cortina e ligaram umas às outras. Deu um rasgão em feitio de um V no fim da última tira para dar a impressão de que a corda da fuga tinha-se partido. Amarrou então a outra extremidade firmemente em torno da ponta aguda de uma das três barbatanas do “Explorador da Lua” e deixou cair o resto de modo que descesse pelo cilindro.
Não era lá grande coisa como falsa pista, mas podia servir para ganhar um pouco de tempo.
As bocarras redondas dos ventiladores tubulares tinham o espaço de umas dez jardas entre si e ficavam a cerca de 1.50m do chão. Bond contou. Havia cinquenta delas. Abriu cautelosamente a grade presa em gonzos que cobria uma delas e olhou para cima. A uma distância de doze metros via-se um leve brilho vindo do luar lá fora. — Chegou à conclusão de que estavam emparedados bem dentro do túnel formado pelo muro da base, até que viraram para os ângulos direitos, em direção aos gradeados das paredes exteriores.
Bond estendeu o braço e correu a mão pela superfície. Era de um concreto rústico, inacabado, e ele grunhiu de satisfação, quando sentiu primeiro uma forte protuberância, e depois outra. Eram as extremidades bifurcadas das varas de aço que reforçavam as paredes, cortadas onde os cilindros começavam.
Ia ser uma coisa dolorosa, mas não havia dúvida de que poderiam ir-se arrastando, centímetro por centímetro, por um desses cilindros, tal como alpinistas numa chaminé rocha acima e, na curva do topo, ficarem ocultos de tudo, menos da busca complicada que seria difícil de manhã com todos os oficiais de Londres em redor da base.
Bond se ajoelhou, e a moça montou-lhe às costas, depois do que começaram a subir.
Uma hora depois, com os pés e os ombros machucados e cortados, deitaram-se exaustos, apertados bem fortemente nos braços um do outro, as cabeças afastadas alguns centímetros do gradeado circular, situado diretamente acima da porta externa, e puseram-se a ouvir os guardas mexendo os pés incessantemente dentro da escuridão, cem jardas distante deles.
Cinco horas, seis, sete.
Lentamente o sol apareceu por trás da cúpula, e as gaivotas começaram a gritar nos penhascos. Então, surgiram de súbito as três figuras caminhando para eles na distância, passaram por um novo pelotão de guardas, os queixos levantados, os joelhos erguidos, vindos para render a ronda noturna.
As figuras foram-se aproximando, e os olhos apertados, exaustos, do casal oculto puderam ver todos os detalhes da cara vermelho-alaranjada de Drax, o pálido focinho de raposa do Dr. Walter, a nédia e balofa cara de sono de Krebs.
Os três homens caminhavam como se fossem executores de um fuzilamento, sem dizer nada. Drax tirou a chave, e eles, silenciosamente, entraram pela porta, alguns pés abaixo dos corpos tensos de Bond e Gala.
Depois, durante dez minutos, reinou o silêncio, quebrado apenas pelo som ocasional de vozes que subiam pelo cilindro do ventilador, quando os três homens se movimentavam pelo chão de aço em torno da cavidade exaustara. Bond sorriu consigo mesmo à ideia do ódio e da consternação que deveriam estampar-se no rosto de Drax; do infeliz Krebs, encolhendo-se sob as chicotadas da língua de Drax; a amarga acusação nos olhos de Walter. Foi então que a porta se escancarou abaixo dele, e Krebs chamou, imperioso, o chefe dos guardas.
— Die Engländer — a voz de Krebs era quase histérica. —Escaparam. O Herr Kapitän pensa que possam estar num dos tubos de ventilação. Vamos arriscar. A cúpula será aberta novamente, e nós vamos eliminar os vapores do combustível. Depois então o Herr Doktor passará a mangueira de vapor quente em cada um dos tubos. Se eles estiverem num deles, isto os liquidará. Escolha quatro homens. As luvas de borracha e as vestimentas para incêndio estão lá embaixo. Nós vamos tirar a pressão do aquecimento. Diga aos outros que prestem atenção para ver se escutam os gritos. Verstanden?
— Zu Befehl!
O homem voltou diligentemente para junto de seu grupo, e Krebs, com o suor da ansiedade no rosto, voltou-se e desapareceu novamente pela porta.
Por um momento Bond permaneceu imóvel.
Ouviram rumores pesados acima de suas cabeças, quando a cúpula se dividiu em dois e se abriu. A mangueira de vapor quente!
Bond ouvira contar de motins em navios sendo combatidos com isto. Desordens em fábricas. Será que alcançará doze metros? A pressão durará? Quantas caldeiras alimentavam o aquecimento? Entre os cinquenta tubos de ventilação, qual seria o escolhido para começarem? Teria Bond ou Gala deixado qualquer indício, com relação àquele que haviam subido?
Bond sentia que Gala esperava que ele explicasse. Que fisesse alguma coisa. Que protegesse a ambos.
Cinco homens vieram aproximando-se do semicírculo de guardas. Passaram por baixo e desapareceram.
Bond pôs a boca no ouvido de Gala.
— Isto poderá machucar — avisou. — Não posso prever quanto. Não pode ser evitado. Teremos de aguentar. Sem fazer barulho.
Sentiu logo a pressão dos braços dela, à guisa de resposta:
— Levante os joelhos. Não fique acanhada. A hora não é para pudores virginais.
— Cale a boca — sussurrou Gala, zangada. Ele sentiu um joelho subir e ficar trancado entre suas coxas. Seu próprio joelho seguiu por ali até não conseguir estender-se mais. A moça se remexia furiosamente.
— Não seja idiota — cochichou Bond, puxando-lhe a cabeça para junto do peito, até que ficou meio encoberta pela sua camisa aberta.
Bond encobriu-a tanto quanto possível. Não podiam fazer nada com relação aos tornozelos e as mãos. Levantou a gola da camisa, o mais que pôde por cima das cabeças. Apertavam-se um contra o outro.
Quentes, cheios de câimbras, sem respirar. Esperando — de repente a ideia ocorreu a Bond, como dois namorados debaixo de arbustos, ocultos. Esperando que as pisadas se afastassem, de modo a poderem principiar tudo novamente. Sorriu amargamente consigo mesmo e pôs-se à escuta.
O silêncio reinava lá embaixo, no foguete. Deviam estar na sala das máquinas. Walter devia estar assistindo à instalação da mangueira na válvula externa. Agora ouviam-se ruídos distantes. Por onde começariam?
Num ponto qualquer, não muito longe, havia um sussurro leve, bem arrancado do fundo, como o apito ineficiente de um trem distante.
Bond dobrou para trás o colarinho da camisa e arriscou um olhar por entre as grades, até os guardas. Os que conseguiu ver, olhavam em frente para a cúpula do lançamento, um pouco à sua esquerda.
Novamente o longo sussurro áspero. E mais uma vez se repetiu.
Ia ficando mais alto. Viu as cabeças dos guardas rodando para o lado das grades das paredes que ocultavam Gala e ele. Deviam estar observando, fascinados, enquanto os jatos brancos e espessos de vapor subiam pelas grades até lá em cima ha parede de cimento, conjeturando: “— Será esta, ou aquela, ou aquela outra, qual será que virá acompanhada de um duplo grito.”
Sentia o coração de Gala batendo de encontro ao seu. Ela não sabia o que estava por acontecer. Confiava nele.
— Pode machucar — sussurrou-lhe novamente. — Pode queimar. Não nos matará. Tenha coragem. Não emita um som.
— Eu estou bem — cochichou a moça, encolerizada. Mas ele percebeu que seu corpo se colava mais ao dele. Chuá! Estava chegando mais perto.
Chuá! A diferença era de dois tubos.
CHUÁ! Pegado a eles. Sentiu um leve cheiro do vapor.
— “Fique bem firme”, ordenou Bond a si mesmo. Esmagou a companheira de encontro ao próprio corpo e prendeu a respiração.
— “Agora. Depressa. Acabem com isso, desgraçados.”
E eis que, subitamente, houve uma grande pressão; o calor e um barulho infernal chegou-lhes aos ouvidos, seguidos de um instante de dor intolerável.
Depois um silêncio mortal, uma mistura de frio intenso e fogo nos tornozelos e nas mãos, uma sensação de estarem ensopados, e um esforço desesperado, sufocante, de fazer o ar puro penetrar nos pulmões.
Seus corpos lutaram automaticamente para se separarem um do outro, para conseguir alguns centímetros de espaço e ar para as áreas da pele que já começavam a cobrir-se de bolhas. A respiração rasgava-lhes as gargantas, e a água porejava do cimento para dentro de suas bocas abertas, até que ambos se curvaram para um lado e atiraram-na fora, e ela foi juntar-se ao riachinho que corria por baixo de seus corpos ensopados, descendo pelos tornozelos escaldantes e dali para as paredes verticais do tubo pelo qual haviam subido.
O uivo da mangueira a vapor afastou-se deles até se tornar um sussurro e, finalmente, cessar. Reinou então o silêncio na estreita prisão de cimento de ambos, ouvindo-se apenas suas teimosas respirações e o tique-taque do relógio de Bond.
Os dois corpos continuavam deitados e à espera, aguentando a dor.
Meia hora — meio ano — mais tarde, Walter, Krebs e Drax seguiram em fila por baixo deles.
No entanto, como medida de precaução, os guardas tinham sido deixados para trás na cúpula do lançamento.
CAPITULO 24
ZERO
Então estamos combinados?
— Sim, Sir Hugo — era o Ministro do Abastecimento quem falava. Bond reconheceu a figura espigada, segura de si. — As direções são aquelas. Meu pessoal verificou-as, independentemente, com o Ministério da Aeronáutica esta manhã.
— Neste caso, se me permite o privilégio — Drax levantou o pedacinho de papel e ia virando em direção à cúpula.
— Segure-a, Sir Hugo. Assim mesmo, por favor. O braço esticado no ar.
As lâmpadas dos flashes se acenderam, e o conjunto de câmaras zumbiu e estalou pela última vez. Drax voltou-se e andou os poucos metros que o separavam da cúpula, quase, assim pareceu a Bond, fitando-o diretamente nos olhos através do gradeado acima da porta da casamata.
A pequena turba de repórteres e fotógrafos dissolveu-se e encaminhou-se para o caminho de concreto, deixando para trás apenas um grupinho de oficiais que conversavam nervosamente, à espera de que Drax surgisse em cena.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e cinco. “Depressa, seu danado”, pensou.
Pela centésima vez repetiu para si mesmo os números qus Gala lhe ensinara durante as horas de dor e câimbras que se seguiram à provação do vapor, e pela centésima vez movimentou os membros para preservar a circulação.
— Apronte-se — cochichou no ouvido de Gala. — Está se sentindo bem?
Sentiu que a moça sorria.
— Ótimo.
Ela fechou a mente à ideia de suas pernas todas cheias de bolhas e da rápida descida, raspando-as pelo tubo de ventilação .
A porta fechou-se com um baque abaixo deles, seguindo-se o estalido da fechadura, e então, precedida por cinco guardas, a figura de Drax apareceu lá embaixo, marchando solene para o grupo de oficiais, a tira de papel com os números na mão.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e sete. — Agora — sussurrou.
— Boa sorte — respondeu Gala, também num sussurro. Escorregando, arranhando-se, rasgando-se. Seus ombros, cautelosamente, se expandiam e contraíam; os pés, cheios de bolhas, de sangue, procurando as saliências agudas do ferro; com o corpo dilacerado abrindo caminho através do tubo de um metro, rezava para que a pequena encontrasse forças para suportar tudo aquilo, quando o seguisse.
Finalmente, o pulo de três metros, que lhe repercutia na espinha, um pontapé nas grades, e ele galgava o chão de aço, corria para as escadas, deixando uma trilha de pegadas vermelhas e um borrifo de gotas de sangue caídas de seus ombros feridos.
Os arcos de luz haviam sido apagados, mas o clarão do dia penetrava pelo telhado aberto, e o azul do céu misturado ao fulgor da luz do sol davam a Bond a impressão de que estava correndo dentro de uma enorme safira.
A grande e mortal agulha no centro parecia ser feita de vidro. Olhando para cima, enquanto suava e arfava no percurso das infindáveis curvas da escada de ferro, era difícil para ele ver onde o nariz do foguete, afinando na ponta, terminava, e começava o céu.
Por trás do pesado silêncio que envolvia a bala esplendente, Bond ouvia um ruído apavorante e regular, o caminhar de minúsculos pés de metal num ponto qualquer do corpo do “Explorador da Lua”. Enchia o vasto compartimento de aço, como as batidas do coração na história de Poe, e Bond compreendeu que Drax, diretamente do ponto do tiro, apertara o interruptor que mandava a faixa radiofônica, disparando a mais de duzentas jardas até o foguete ali à espera. O tique-tique cessaria dentro em breve, ouvir-se-ia o suave gemido do catavento aceso, uma pequena porção de vapor das turbinas, e depois o rugido do jato de flama no qual o foguete se ergueria lentamente e se curvaria majestoso no início de sua gigantesca curva de aceleração.
E então, diante dele, viu o braço retorcido do guindaste dobrado novamente contra a parede, e sua mão alcançou a barra. O braço foi-se esticando para baixo e para fora em direção à linha fina e quadrada, na pele brilhante do foguete, que era a porta do compartimento do giroscópio.
Caminhando apoiado nas mãos e nos joelhos, Bond alcançou-o bem antes de as almofadas de borracha virem descansar contra o cromo polido. Encontrou o disco de descarga, do tamanho de um xelim, exatamente como Gala havia descrito. Apertar, estalar, e a pequenina porta se abria, girando no parafuso duro. Dentro. Cuidado para não ferir a cabeça. Os cabos cintilantes embaixo dos ponteiros da bússola. Virar. Torcer. Firme. Isto é para o rolamento. Agora o topo e o pior. Virar. Lento. Bem delicadamente. Mas firme. Um último olhar. Uma olhada no relógio. Quatro minutos para ir. Não fique em pânico. Volte. Estalido da porta. Uma fugida rápida de gato. Não olhe para baixo. O guindaste se ergueu. Bateu contra a parede. E agora as escadas.
Tique-tique-tique-tique.
Ao descer, Bond vislumbrou o rosto de Gala, branco, tenso, enquanto ela permanecia segurando a porta exterior aberta, a porta do escritório de Drax. Oh, Deus! Como seu corpo doía! Um último salto e uma reviravolta desajeitada para a direita. Pam! Quando bateu com força a porta de fora. Nova pancada, e ei-los atravessando a sala em direção ao chuveiro. A água jorrando sobre seus corpos pegajosos e doloridos.
Por dentro de todo aquele barulho, acima das batidas do próprio coração, Bond ouviu o súbito estalar da estática e, em seguida, a voz do locutor da BBC vinda do enorme aparelho da sala de Drax, poucos centímetros distante da parede fina do banheiro. Fora novamente Gala quem se lembrara do aparelho de rádio de Drax e que encontrara tempo para pô-lo a funcionar enquanto Bond trabalhava no giroscópio.
“... cinco minutos de atraso” — dizia a voz excitada, leve, ao microfone. — Bond fechou o chuveiro, e a voz chegou até eles mais claramente. — “Sir Hugo foi persuadido a dizer algumas palavras. Parece muito confiante. Está dizendo qualquer coisa no ouvido do Ministro. Estão ambos rindo. Gostaria de saber o que estão dizendo. Ah, eis o meu colega que chega com as últimas notícias a respeito do tempo, vindas do Ministério da Aeronáutica. Que dizem elas? Perfeito em todas as altitudes. Bom espetáculo. Não há dúvida de que temos um dia maravilhoso aqui, Ah! A multidão reunida à distância, perto da estação de guardas-costeiros, vai apanhar uma boa queimadura de sol. Deve haver milhares de pessoas ali. Que foi que você disse? Vinte mil? Bem, a impressão que dá é essa mesmo. Walmer Beach também está apinhada de gente. Toda a população de Kent parece estar na rua. Todo mundo vai ficar com mau jeito no pescoço. Vai ser pior que em Wimbledon. Alô, que é que está se passando ali no cais? Puxa, é um submarino que acaba de subir à superfície. Que espetáculo! É um dos maiores que existem, creio eu. E a equipe de Sir Hugo está lá embaixo também. Alinhados no cais, como se estivessem numa parada. Magnífica corporação. Agora entram a bordo em fila. Disciplina perfeita. Deve ser uma ideia do Almirantado. Oferecer-lhes uma recepção especial na entrada do Canal. Maravilhoso espetáculo. Gostaria que você estivesse aqui para ver. Agora Sir Hugo vem vindo em nossa direção. Dentro em pouco estará falando com vocês. Bela figura de homem! Todos os que se encontram no ponto de tiro o estão aclamando. Tenho certeza de que todos nós nos sentimos inclinados a aclamá-lo hoje. Ele vem vindo para o ponto de tiro. Daqui vejo o sol brilhando no nariz do “Explorador da Lua”, lá adiante, por trás dele. Começa a sair por trás do alto da cúpula de lançamento. Espero que alguém tenha uma máquina fotográfica. Ei-lo que chega aqui agora — uma pausa. — Sir Hugo Drax.
Bond olhou o rosto gotejante de Gala. Ensopados e sangrando, ficaram nos braços um do outro, sem falar e tremendo ligeiramente sob o impacto de suas emoções. Seus olhos nada exprimiam e eram insondáveis quando se fitaram.
A voz que se ergueu era aveludado rosnar:
— Vossa Majestade, homens e mulheres da Inglaterra. Estou prestes a modificar o curso da história da Inglaterra. — Uma pausa. — Dentro de poucos minutos todas as vossas vidas estarão alteradas, em alguns casos drasticamente, pelo — hum — impacto do “Explorador da Lua”. Sinto-me muito orgulhoso e feliz porque o destino me elegeu, dentre todos os meus compatriotas, para lançar esta grande flecha de vingança nos céus e assim proclamar para sempre e para que todo o mundo presencie, o poderio de minha Pátria. Espero que esta oportunidade seja para sempre um aviso de que o destino dos inimigos de meu País estará escrito em poeira, em cinzas, em lágrimas e — uma pausa — em sangue. E agora muito obrigado por me terem ouvido, e eu, sinceramente, faço votos para que aqueles dentre vós que puderem, repitam as minhas palavras aos seus filhos, se os tiverem, hoje à noite.
Uma onda um tanto hesitante de aplausos ecoou através do microfone. Em seguida, ouviu-se a voz animada do locutor.
— Acabamos de ouvir Sir Hugo Drax, dirigindo-lhes algumas palavras antes de atravessar o ponto de tiro que leva ao interruptor na parede que lançará o “Explorador da Lua”. É a primeira vez que fala em público. Muito — hum — incisivo. Não faz rodeios para falar. Entretanto, muita gente achará que não há nenhum mal nisto. E agora chegou o momento de eu passar o microfone ao técnico, Capitão-Chefe de Grupo Tandy, do Ministério do Abastecimento, que descreverá para vocês o lançamento do “Explorador da Lua”. Em seguida, ouvirão a palavra de Peter Trimble, numa das embarcações da patrulha de segurança naval, o HMS Merganzer, que descreverá a cena da área compreendida pelo alvo. O Capitão Tandy.
Bond lançou um olhar ao relógio.
— Só mais um minuto — disse a Gala. — Oh, meu Deus, como eu gostaria de pôr as mãos em Drax. Tome aqui — estendeu a mão para o sabonete e arrancou-lhe alguns pedaços. — Ponha isto nos ouvidos, quando chegar a hora. O barulho vai ser tremendo, não sei dizer como será o calor. Não durará muito, e as paredes de aço talvez aguentem bem. Gala olhou para ele. Sorriu.
— Se você me segurar, não vai ser assim tão ruim — falou.
— E agora Sir Hugo está com a mão no interruptor e olha o cronômetro.
— DEZ — disse outra voz, forte e sonora como o toque de um sino.
Bond abriu o chuveiro, e a água jorrou sobre seus corpos apertados um contra o outro.
— NOVE — reboou a voz do que controlava o tempo.
— Os operadores do radar estão olhando as telas. Nada, exceto uma massa de linhas onduladas. . .
— OITO.
— Todos estão usando tampões nos ouvidos. A casamata deve ser indestrutível. As paredes de concreto têm três metros e meio de espessura. O teto em pirâmide tem sete metros e pouco de espessura na ponta.. .
— SETE.
— Primeiro o rádio sustará o mecanismo do tempo nas turbinas. Porá em movimento o cata-vento. Uma coisa flamejante como uma rodinha de fogo de artifício. . .
— SEIS.
— As válvulas se abrirão. Combustível líquido, Fórmula secreta. Coisa formidável. Dinamite. Cai dos tanques de combustível ...
— CINCO.
— Aceso pelo pino giratório, quando o combustível chega ao motor do foguete. . .
— QUATRO.
— enquanto que a água oxigenada e o permaganato já se misturaram, tornaram-se vapor, e as bombas das turbinas começam a girar.. .
— TRÊS.
— bombeando o combustível inflamável, através do motor, na cauda do foguete, para a cavidade exaustora. Calor gigantesco. . . 3500 graus...
— DOIS.
— Sir Hugo está prestes a apertar o botão. Está olhando pela abertura. O suor lhe umedece a fronte. Completa tensão aqui. Tremenda tensão.
— UM.
Nada senão o ruído da água, caindo incessantemente nos dois corpos agarrados.
— FOGO!
O coração de Bond pulou para a garganta ao ouvir o grito. Sentiu Gala estremecer. Silêncio. Nada, senão o sibilar da água...
— Sir Hugo deixou a casamata. Vai caminhando calmamente para a borda dos penhascos. Tão confiante! Passou agora para o elevador. Vai descer. Naturalmente. Deve ir até o submarino. As telas de televisão mostram um pouco de vapor vindo da cauda do foguete. Mais alguns segundos. Sim, ele se encontra no cais. Olhou para trás e levantou o braço no ar. Bom velho Sir Hu...
Um troar longínquo chegou até Bond e Gala. Mais alto. Mais alto. O chão ladrilhado começou a tremer debaixo dos pés deles. Um clamor de furacão!! Seriam pulverizados. As paredes tremiam, queimavam. As pernas de ambos começaram a descontrolar-se sob seus corpos oscilantes. Segure-a bem. Segure-a bem. Pare com isso! Pare com isso!! PARE COM ESSE BARULHO.
Cristo, ele ia desmaiar. A água estava fervendo. Era preciso fechá-la. Encontrei. Não. O cano arrebentou. Vapor, cheiro, ferro, tinta.
Tire-a daqui para fora! Tire-a daqui para fora!! Tire-a daqui para fora!!!
Depois o silêncio. Silêncio que se podia sentir, apalpar, apertar. E eles estavam no chão do escritório de Drax. Só a luz do banheiro ainda brilhava. A fumaça ia dissipando-se. Assim como o cheiro horrível de ferro queimado e tinta. Estavam sendo sugados pelo ar condicionado. A parede de aço inclina-se para eles qual bolha gigantesca. Os olhos de Gala estão abertos, e ela está sorrindo. Mas o foguete? Que foi que aconteceu? Londres? Mar do Norte? O rádio. Parece em ordem. Sacudiu a cabeça, e a surdez foi lentamente desaparecendo. Lembrou-se do sabão. Retirou-o das orelhas.
— Atravessando a barreira do som. Viajando perfeitamente bem no centro da tela do radar. Um lançamento perfeito. Receio que não tenham ouvido nada por causa do barulho. Tremendo. Primeiro todo aquele grande lençol de chamas vindo do penhasco, saindo da cavidade exaustora, e depois vocês deveriam ter visto o nariz lentamente surgir da cúpula. Ei-lo que sobe como um enorme lápis de prata. Mantendo-se em posição vertical nesta imensa coluna de chamas e vagarosamente subindo no ar. A flama se espalhando por centenas de quilômetros sobre o concreto. O uivo da coisa deve ter ameaçado seriamente arrebentar nossos microfones. Grandes fragmentos caíram do penhasco, e o concreto parece uma teia de aranha. Tremenda vibração. E a agulha subindo cada vez mais rápida. Cem milhas por hora. Mil. E — o locutor interrompeu o que ia dizendo — o que é que você disse? Ah, sim? Agora está percorrendo o espaço numa velocidade de dez mil milhas horárias! Encontra-se a uma altura de trezentas milhas. Não posso ouvir mais, naturalmente. Só vimos a flama durante alguns segundos. Como uma estrela. Sir Hugo deve estar muito orgulhoso. Encontra-se, no momento, no Canal. O submarino partiu como um foguete. Deve estar fazendo mais de trinta nós. Atirando para cima um colosso de espuma. Já alcançou o East Goodwins agora. Viaja para o norte. Dentro em breve chegará até os navios patrulheiros. Presenciarão o lançamento e a aterrissagem. Mas esse itinerário foi meio surpreendente. Ninguém aqui tinha a menor indicação. Até mesmo as autoridades navais parecem um tanto mistificadas. O Comandante-em-Chefe Nore foi ao telefone. Mas agora é só o que eu lhes posso informar daqui e vou passar a palavra a Peter Trimble, a bordo do HMS Merganzer, num ponto qualquer da Costa Oriental.
Nada, exceto os pulmões funcionando, indicava que os dois corpos largados na lagoa sempre crescente do chão ainda estivessem vivos. Mas seus tímpanos avariados pendiam desesperadamente do ruído de estática que veio durante alguns instantes do gabinete de metal todo empipocado. Agora teriam o veredicto do seu trabalho.
— Aqui fala Peter Trimble. Temos uma linda manhã — retifico — tarde, aqui. Um pouco ao norte de Goodwin Sands. Calmo como um lago. Não há vento. O sol brilha alegremente. A área compreendida pelo alvo foi declarada limpa, sem nenhuma embarcação. Não é assim, Comandante Edwards? Sim, o Capitão diz que está tudo inteiramente limpo. Por enquanto nada se vê na tela do radar. Não me é permitido informar o raio em que o pegaremos. Por motivos de segurança, e essa coisa toda. Mas nós só pegaremos o foguete por uma fração de segundo. Não está certo o que digo, Capitão? Mas o alvo começa a aparecer na tela. Não se pode vê-lo da ponte, naturalmente. Deve estar a setenta milhas daqui, na direção do norte. Vimos o “Explorador da Lua” subindo. Espetáculo assombroso! O barulho semelhante a um trovão. Uma longa chama saía da cauda. Devia estar já a dez milhas de distância, mas não era possível deixar de ver a luz. Não é isto, Capitão? Ah, sim, compreendo. Bom, isto é muito interessante. O enorme submarino se aproxima rapidamente. Está apenas a uma milha de distância. Suponho que seja aquele onde se encontra Sir Hugo com seus homens. Nenhum de nós aqui foi informado de coisa alguma a seu respeito. O Capitão Edwards diz que não responde à lâmpada Aldis. Não traz distintivo de navegação. Muito misterioso. Peguei-o agora mesmo. Está bem nítido em meus binóculos. Mudamos de rumo para tentar a intercepção. O Comandante diz que não é um dos nossos. Acha que deve ser estrangeiro. Atenção! Mostrou agora suas cores. O que vem a ser isto? Santo Deus! O capitão diz que é um submarino russo. Puxa! Agora está arriando as bandeiras e submergindo. Bang! Ouviram? Atiramos visando a proa, mas já desapareceu. Que é isto? Ah, o operador do asdic informa que está acelerando cada vez mais, debaixo da água. Vinte e cinco nós. Puxa! De qualquer modo, o submarino não poderá ver muita coisa debaixo da água, porém encontra-se agora bem na área do alvo. Passam vinte minutos das doze horas. O “Explorador” deve ter mudado seu rumo e prepara agora a descida. A umas mil milhas. Velocidade de descida, dez mil milhas horárias. Estará aqui dentro de segundos. Espero que não se verifique tragédia alguma. O submarino russo encontra-se bem dentro da zona perigosa. O operador do radar está acenando para nós. É o sinal para avisar que está na hora. Vem chegando. Vem chegando! . . . Não se ouve o mais leve ruído! deus do céu! Que é isto? Cuidado! Cuidado! Uma terrível explosão.. . Uma nuvem negra se eleva no ar. Uma gigantesca vaga, como a de um maremoto, aproxima-se rapidamente de nós. Uma vaga enorme! O submarino! Santo Deus... vimo-lo agora saltar fora da água e voltar a mergulhar, de quilha para o ar! Vem chegando. . .! Vem chegando! ...
CAPÍTULO 25
ZERO MAIS
Duzentos mortos confirmados, até agora, e aproximadamente o mesmo número de pessoas desaparecidas — informou M.
— Ainda estão chegando notícias da costa oriental, e as informações da Holanda não são das melhores. Foram inutilizadas muitas milhas de suas defesas navais. A maioria de nossas perdas ocorreu nas unidades patrulheiras. Duas delas viraram, incluindo o Merganzer. O Comandante desapareceu. O camarada da B. B. C. também. Os navios-faróis de Good-win partiram as amarras. Ainda não recebemos notícias da Bélgica e da França. Haverá contas bem pesadas a pagar, quando tudo isto ficar em ordem...
Era na tarde seguinte, e Bond, com uma bengala de ponta de borracha ao lado da cadeira, voltava a sentar-se onde tudo havia começado: do outro lado da escrivaninha daquele homem calmo, de frios olhos cinzentos, que o convidara para jantar e jogar bridge, há cem anos atrás.
Por baixo da roupa, Bond era uma perfeita e entrelaçada teia de esparadrapo. A dor queimava-lhe as pernas, sempre que tentava mexer os pés. Um traço vermelho cortava-lhe a face esquerda e a parte superior do nariz. O linimento, feito à base de ácido pícrico, cintilava à luz que entrava pela janela. Segurava um cigarro, como podia, na mão enluvada. Inacreditavelmente, M. tinha-o convidado a fumar.
— Algumas notícias do submarino, chefe? — perguntou Bond.
— Já o localizaram — disse M. com satisfação. — Adernado a cerca de trinta braças de profundidade. O navio de salvamento que deveria localizar os restos do foguete encontra-se agora por cima dele. Os mergulhadores já estiveram no fundo, e não houve resposta aos sinais feitos no casco. O embaixador soviético esteve no Foreign Office esta manhã. Parece ter declarado vir a caminho um navio salva-vidas, proveniente do Báltico, mas respondemos que não podíamos esperar, visto que, tratando-se de um navio naufragado, constitui um perigo para a navegação, no local onde está. — M. riu. — Com efeito, seria um perigo se alguém se dispusesse a navegar a trinta braças de profundidade, em pleno Canal. Contudo, estou satisfeito por não ser membro do Ministério — acrescentou friamente. — Tem estado em sessão permanente, desde o final da transmissão radiofônica. Vallance conseguiu entrar em contato com os tais advogados de Edinburgh, antes de eles abrirem a mensagem de Drax para o mundo. Parece ser um documento terrível, como se tivesse sido escrito pelo próprio Jeová. Vallance levou-o ao Governo, na noite passada, e ficou no 10, Downing Street, para esclarecer pontos ainda não averiguados.
— Eu sei — disse Bond. — Ele esteve telefonando constantemente para o hospital, procurando saber detalhes, até depois da meia-noite. Eu mal podia raciocinar direito, devido aos entorpecentes que me aplicaram. E que vai acontecer agora?
— Vão tentar abafar a coisa, com a maior embromação de que se teve notícia até hoje em toda a História. Uma quantidade enorme de lero-lero científico, explicando que o combustível foi usado só pela metade. Deu-se uma inesperada e potente explosão. Serão pagas indenizações. Perda trágica de Sir Hugo Drax e sua valiosa equipe. Grande patriota. Perda trágica de um dos submarinos de Sua Majestade. Último modelo experimental, ordens mal compreendidas. Tudo muito triste. Felizmente, perdeu-se uma tripulação mínima. Os parentes mais próximos serão informados. Trágica perda de um radialista da B.B.C. Inacreditável erro ao confundir a insígnia branca com as cores navais soviéticas. O desenho é muito semelhante. A bandeira branca foi recuperada no naufrágio.
— Mas que me diz da explosão atômica? — indagou Bond. — Radiações, poeiras radioativas e tudo isso. . . A famosa nuvem em forma de cogumelo. Com certeza isso vai ser um problema para explicar.
— Aparentemente, não estão muito preocupados com a questão — disse M. — A nuvem vai passar como formação normal, após uma explosão daquela envergadura. O Ministério do Abastecimento conhece toda a história. Foi preciso contar-lhes. Seus homens andaram percorrendo ontem à noite toda a costa oriental, com contadores Geiger, e ainda não houve qualquer notícia positiva. — M. sorriu friamente. — A nuvem terá de descer em algum lugar, claro, mas por uma feliz circunstância, o vento está empurrando-a para o norte. De volta a casa, como se poderia dizer. . .
Bond esboçou um sorriso, com dificuldade.
— Compreendo. Que coisa apropriada.
— Evidentemente — prosseguiu M., enchendo o cachimbo — haverá por aí uma série de boatos desagradáveis. Já começaram, aliás. Muita gente viu você e Miss Brand, serem retirados em padiolas. Depois, há o caso da Bowaters contra Drax, pela perda de todo aquele material de impressão. Haverá também inquérito sobre o rapaz que foi morto no Alfa Romeo. E alguém terá de explicar como se encontraram os restos de seu automóvel, entre os quais, — e nesta altura, M. olhou acusadoramente para Bond — foi encontrado um Colt de cano longo. E temos ainda o Ministério de Abastecimento. Vallance teve de chamar alguns de seus homens, ontem, para limpar aquela casa da Ebury Street. Mas essa gente está treinada em guardar segredo. Não será por aí que se descobrirá alguma coisa. Naturalmente, será um negócio arriscado. Mas a mentira de grandes proporções sempre o foi. E qual seria a alternativa? Encrencas com a Alemanha? Guerra com a Rússia? Muita gente, dos dois lados do Atlântico, ficaria mais do que satisfeita se lhe déssemos um motivo para agir.
M. fez uma pausa e chegou um fósforo ao cachimbo. Depois continuou:
— Se a história fôr engolida, não sairemos muito mal de tudo isto. Quisemos um de seus submarinos ultravelozes e ficaremos satisfeitos com as pistas que conseguimos descobrir a respeito de suas bombas atômicas. Os russos sabem que nós sabemos que o jogo deles fracassou. Malenkov não está muito firme no poder, e isto pode muito bem significar outra rebelião entre os senhores do Kremlin. Quanto aos alemães, bem... todos nós sabemos que ainda ficou muito nazismo espalhado por aí, e isto servirá para que o Ministério seja um pouco mais cauteloso, no tocante ao rearmamento da Alemanha. Entre as consequências de menor vulto — disse com um sorriso — destaca-se a de que o trabalho de segurança de Vallance, e o meu também, aliás, vão ficar um pouco mais fáceis para o futuro. Esses políticos não veem que a era atômica criou o mais letal sabotador da história da humanidade: o homenzinho com a valise pesada.
— E a imprensa vai engolir essa história? — perguntou Bond, duvidoso.
M. sacudiu os ombros.
— O Primeiro-Ministro teve esta manhã um encontro com os jornalistas — respondeu M., chegando outro fósforo ao cachimbo — e creio que conseguiu tudo da melhor maneira. Se os boatos se intensificarem mais tarde, ele terá, provavelmente, de convocá-los novamente e dizer-lhes parte da verdade. Então, eles se portarão bem. Sempre se portaram, quando o negócio é importante de verdade. O principal é ganhar tempo e manter afastados os boateiros. No momento, todos estão de tal maneira orgulhosos do “Explorador da Lua”, que não indagarão muito minuciosamente que foi que não deu certo.
Ouviu-se um leve zumbido no intercomunicador da escrivaninha de M., e uma luzinha vermelha piscou repetidas vezes. M. pegou no fone e curvou-se. — Alô. — Houve uma pausa. — Atenderei na linha do Ministério. — Apanhou o receptor branco, na mesa onde havia quatro telefones. — Sim. Está falando. — Nova pausa. — Pronto, sir? Escuto. — M. premiu o botão do misturador de sons. Segurou o fone junto ao ouvido, e nem um som chegou até aos ouvidos de Bond. Houve uma longa pausa, durante a qual M. ia puxando uma ou outra baforada do cachimbo, com a mão esquerda, enquanto escutava. Depois, tirou-o da boca. — De acordo, sir. É isso mesmo, sir. — Outra pausa. — Estou certo de que o meu homem teria ficado extremamente orgulhoso, sir. Mas, naturalmente, como Vossa Excelência sabe, é uma regra aqui no serviço. — M. franziu a testa. — Se me permite dar uma opinião, sir, creio que não seria nada aconselhável. — Uma pausa e a fisionomia de M. se desanuviou. — Obrigado, sir. Claro, Vallance não tem o mesmo problema. É o mínimo que ela merece, sir. — Outra pausa. — Compreendo. Assim será feito, sir. — Nova pausa. — É muita bondade sua, sir.
Depois de mais alguns cumprimentos, M. colocou o telefone branco no gancho, e o botão do misturador voltou à sua posição inicial de “livre”.
Por uns instantes, M. continuou fitando o telefone, como se em dúvida a respeito do que fora dito. Depois rodou a cadeira para longe da escrivaninha e olhou pela janela, pensativo.
Reinou o silêncio na sala, e Bond remexeu-se na cadeira, para aliviar a dor que lhe invadia novamente o corpo.
O mesmo pombo de segunda-feira, ou talvez outro, veio descansar no peitoril da janela, com o mesmo ruflar de asas. Caminhava para um e outro lado, baixando a cabeça e arruinando. Depois, voou para as árvores do parque. O tráfego murmurava, sonolento, na distância.
Como estivera perto, pensou Bond, de embarcar desta para melhor. Quão perto estivera de não haver nada mais do que a sirena distante da ambulância sob um sinistro céu negro e alaranjado, o cheiro de queimado, os gritos das pessoas ainda presas nos edifícios. O suave bater do coração de Londres, silenciado por uma geração. E toda uma geração de sua gente, morta nas ruas, entre as ruínas fumegantes de uma civilização que talvez não se erguesse de novo senão daí a muitos séculos.
Tudo isso teria acontecido por causa de um homem que fazia trapaça nas cartas, desdenhosamente, para alimentar o fogo devorador de seu ego maníaco; teria acontecido, se não fosse o presidente do clube Blades que o descobriu; se não fosse M., que concordara em ajudar um velho amigo; se não fosse a lição meio recordada por Bond e aprendida com um perito em trapaças; se não fossem as precauções de Vallance; se não fosse a boa cabeça de Gala para cálculos; se não fosse por uma série completa de circunstâncias fortuitas, de oportunidades .
E quem preparou a série?
Ouviu-se um ranger agudo, quando a cadeira de M. girou. Bond, cautelosamente, voltou a focalizar sua atenção nos olhos cinzentos do outro lado da escrivaninha.
— Era o Primeiro-Ministro — explicou M., em voz agridoce. — Diz que deseja que tanto você como Miss Brand saiam do País. — M. baixou os olhos e pousou-os, impassível, no fornilho do cachimbo. — Vocês dois têm de dar o fora até amanhã à tarde. Há muitas pessoas, neste caso, que lhes conhecem as caras. Poderão somar dois e dois e saberem que são quatro, quando virem em que estado lamentável se encontram. Vão para qualquer lugar que lhes agrade. Despesas sem limite de verba para ambos. Qualquer importância que precisarem. Vou falar com o Tesoureiro. Fique fora por um mês. Mas completamente fora de circulação, entendeu? Vocês dois já deveriam ter partido esta tarde, mas a moça tem um compromisso amanhã às onze horas. No Palácio. Foi-lhe concedida a George Cross. Mas isso não será divulgado até ao novo ano, claro. Gostaria de encontrá-la, qualquer dia. Deve ser uma excelente moça. Aliás — a expressão de M., quando levantou os olhos, era indecifrável — o Primeiro-Ministro tinha na ideia qualquer coisa para você, também. Esquecera que nós, aqui, não admitimos essas coisas. De modo que me pediu para lhe agradecer em nome dele. Disse algumas palavras simpáticas a respeito de nosso serviço. É muito gentil.
M. esboçou um daqueles raros sorrisos que iluminavam seu rosto com uma vivacidade e calor imediatos. Bond retribuiu o sorriso. Eles compreendiam bem as coisas que não chegavam a ser ditas.
Bond percebeu que era tempo de sair. Levantou-se e disse:
— Muito obrigado, chefe. Estou muito satisfeito pela moça.
— Bom, então está tudo combinado — disse M., com uma nota de despedida na voz. — Por hoje basta. Vê-lo-emos aqui dentro de um mês. Ah, é verdade — acrescentou com naturalidade — passe pelo seu escritório antes de sair. Encontrará uma coisa que eu lhe deixei lá. Uma pequena lembrança .
James Bond desceu pelo elevador e foi mancando pelo corredor, até seu gabinete. Quando cruzou a porta interior, encontrou sua secretária arrumando alguns papéis na escrivaninha ao lado da dele.
— 008 já está de volta? — perguntou.
— Sim — respondeu ela, sorrindo feliz. — Deve voar esta noite para cá.
— Ótimo, fico alegre por saber que você terá companhia — disse Bond. — Vou partir novamente.
— Oh! — exclamou a moça. Olhou rapidamente para ele e depois desviou o olhar. — Você está mesmo com cara de quem precisa de um bom descanso.
— Pois vou tê-lo mesmo. Um mês de exílio. — Pensou em Gala. — Vai ser um período de puras férias. Nada mais. Alguma coisa para mim?
— Seu novo carro está lá embaixo. Já o examinei. O homem disse que você lhe tinha dado ordens para que o trouxessem para experiência esta manhã. É lindo! Ah, é verdade. E tem ainda o pacote que veio do gabinete de M. Quer que o desembrulhe?
— Sim, por favor. . .
Bond sentou-se à escrivaninha e olhou o relógio. Cinco horas. Sentia-se fatigado. Sabia que iria sentir o mesmo durante alguns dias. Sempre tinha essas reações, no final de uma difícil missão. Era a consequência dos dias de nervos em tensão, dos temores, do medo.
Sua secretária voltou ao escritório, com duas caixas de papelão, de aspecto pesado. Colocou-as sobre a escrivaninha, e ele abriu a de cima. Quando viu a espécie de papel que envolvia o objeto, percebeu logo o que estava para vir.
Havia um cartão dentro da caixa. Bond pegou-o e leu. Na tinta verde usada por M., este dizia: “Você pode precisar destas coisas.” Não havia assinatura.
Bond desembrulhou o papel impermeável e sopesou a nova e refulgente Beretta em sua mão. Um lembrete. Não. Uma recordação. Bond sacudiu os ombros e fez a arma deslizar por baixo do casaco, para o coldre vazio. Levantou-se com alguma dificuldade.
— No outro embrulho, você encontrará um Colt de cano longo — disse ele à secretária. — Guarde até eu regressar. Então, eu o levarei ao fogão da cantina e jogá-lo-ei lá dentro.
Caminhou para a porta:
— Adeus, Lil. Lembranças a 008, e diga-lhe que tome cuidado com você. Eu estarei na França. Estação F terá meu endereço. Mas só em caso de emergência.
A moça sorriu.
— Que deverei considerar uma emergência? — perguntou.
Bond soltou uma pequena risada.
— Qualquer convite para um tranquilo jogo de bridge, por exemplo — respondeu ele.
Saiu mancando e fechou a porta.
O Mark VI, modelo 1953, tinha uma carroçaria esportiva e elegante, cor cinza de navio de guerra como o velho quatro litros e meio que fora para a sepultura numa garagem de Maidstone. O estofamento de couro azul-marinho deu um luxuoso gemido de coisa nova, quando Bond subiu, desajeitadamente, para o assento ao lado do motorista de provas.
Meia hora depois, o motorista ajudou-o a descer na esquina de Birdcage Walk com Queen Anne’s Gate.
— Se o senhor quisesse, poderíamos ter feito maior velocidade — disse o motorista. — E se nos autorizar a ficar com ele por mais uns quinze dias, poderemos prepará-lo para chegar aos cento e sessenta horários.
— Mais tarde — respondeu Bond. — Está comprado. Mas com uma condição. De que você o leve à terminal do ferry-boat na estação de Calais, amanhã à tarde.
O motorista sorriu:
— O.K. Eu o levarei. Verei o senhor no cais, está bem?
— Combinado. Siga com cuidado pela A-20. A estrada de Dover está muito perigosa, estes últimos dias.
— Não se preocupe, sir — respondeu o motorista, pensando que aquele homem devia ser um tanto medroso, apesar de tudo o que parecia conhecer a respeito de automóveis. — Não acontecerá nada.
— Nem todos os dias — advertiu ainda Bond, sorrindo. — Vê-lo-ei em Calais.
Sem esperar a resposta, saiu mancando, apoiado à bengala, por entre os raios de luz poeirenta do crepúsculo, filtrados através das árvores do parque.
Sentou-se defronte da ilha, no lago, e puxou da cigarreira, acendendo um cigarro. Olhou o relógio. Cinco para as seis. Lembrou-se de que ela não era o tipo de pequena que não seria pontual num encontro. Reservara a mesa de um canto parar o jantar. E depois? Mas, primeiro, haveria o longo e requintado planejar. De que gostaria ela? Onde gostaria de ir? Onde já teria estado? Alemanha, com certeza. França? Deixaria Paris de lado. Poderiam visitar a cidade no regresso. Mas, na primeira noite, iriam o mais longe que pudessem, bem longe do Pas de Galais. Havia aquela casa de campo, com uma comida maravilhosa, entre Montreuil e Étaples. Depois, a descida ao longo do Loire. Os pequenos lugares perto do rio, para alguns dias. As cidades dos castelos, não. Lugares como Beaugency, por exemplo. Depois, vagarosamente, para o sul, sempre seguindo pelas estradas do Oeste, evitando a vida em lugares mundanos e hotéis de cinco estrelas. Explorando lentamente o caminho. Bond teve um sobressalto. Explorar o quê? Um ao outro? Seria que ele estava levando a pequena a sério, demasiado a sério?
— James.
Era uma voz clara, bem timbrada, um pouco nervosa. Não a voz que ele esperava.
Levantou os olhos. Ela estava de pé, a poucos metros de distância. Bond reparou que usava uma boina preta, colocada num ângulo brejeiro. Tinha um ar excitante, misterioso, como alguém que vemos, em terra estranha, conduzindo sozinha um carro aberto. Alguém inatingível e mais desejável do que qualquer outra pessoa que já se conheceu até hoje. Alguém que está a caminho de um encontro amoroso com outro. Alguém que não é para você.
Bond ergueu-se, e deram-se as mãos.
Foi ela quem soltou a sua. Não se sentou.
— Gostaria muito que você fosse amanhã, James — disse Gala.
Seus olhos eram ternos quando o fitou. Ternos e suaves, mas, pensou ele, algo evasivos. Bond sorriu.
— Amanhã de manhã? Ou amanhã à noite? — disse ele.
— Não seja ridículo — respondeu Gala, rindo e corando. — Amanhã no Palácio.
— E depois? Que tenciona você fazer?
Gala encarou-o, cautelosamente. Que seria que esse olhar lembrava a ele? O olhar de Morphy? O olhar com que fitara Drax, na derradeira mão do jogo no Blades? Também não. Havia algo mais. Ternura? Pena?
A moça olhou por cima do ombro. Bond deu meia volta. Mais adiante viu a figura de um rapaz alto, de cabelos louros e cortados curtos. Estava de costas para ambos, sem fazer qualquer movimento. Matando o tempo.
Bond voltou a cabeça para Gala, e os olhos dela encontraram os seus.
— Vou-me casar com aquele homem — declarou ela, simplesmente. — Amanhã de tarde. — E então, como se não houvesse necessidade de outra explicação, acrescentou: — O nome dele é Vivian, Detetive-Inspetor.
— Ah, sim — disse Bond — compreendo. — Sorriu, um tanto amargo.
Houve um momento de silêncio, durante o qual seus olhos se desviaram para longe.
Entretanto, por que motivo deveria ele esperar outra coisa diferente? Um beijo. O contato de dois corpos assustados, agarrando-se no meio do perigo. Nada mais houvera. Depois, o anel de noivado sempre estivera no dedo dela, para que Bond não tivesse dúvidas. Por que supusera ele, automaticamente, que a moça o usara apenas como estratagema para que Drax não excedesse os limites? Por que imaginara que ela compartilhava de seus desejos e de seus planos?
E agora? conjeturava Bond. Sacudiu os ombros para expulsar a dor do fracasso... essa dor que é bem maior do que o prazer do sucesso. Afastar-se, era agora a única saída. Sair do caminho dessas duas vidas jovens e levar seu frio coração para qualquer outro lugar. Nada de penas. Nada de falsos sentimentos. Tinha de representar o papel que ela esperava dele. O homem duro, mundano. O Agente Secreto. O homem que era apenas uma silhueta.
Gala fitava-o, bastante nervosa, esperando ver-se desligada do estranho que tentara penetrar no átrio de seu coração.
Bond sorriu, com calor.
— Estou com ciúme — disse ele. — Tinha outros planos para você amanhã à noite.
Gala retribuiu o sorriso, grata por ter sido quebrado o silêncio.
— Quais eram esses planos? — indagou.
— Ia levá-la a uma casa de campo na França. E, depois de um jantar maravilhoso, pretendia verificar se é verdade o que dizem a respeito do grito de uma rosa.
A moça riu.
— Lamento muito não poder participar desses planos. Mas existem tantas outras, esperando serem colhidas.
— Sim, creio que sim — disse Bond. — Então, adeus, Gala.
Estendeu-lhe a mão.
— Adeus, James.
Bond tocou em Gala Brand pela derradeira vez e, depois, separaram-se, caminhando cada qual ao encontro de suas tão diferentes vidas.
CAPÍTULO 20
A JOGADA DE DRAX
Havia três diferentes fontes de dores no corpo de Gala. A dor latejante atrás da orelha esquerda, a carne mordida nos pulsos, e o queimar das correias em torno de seus tornozelos.
Cada saliência do terreno, cada desvio, cada pressão repentina do pé de Drax nos freios ou no acelerador, despertava uma dessas dores e lhe irritava os nervos. Se ao menos tivesse sido colocada mais presa ao assento de trás. Mas só havia lugar para seu corpo rolar alguns centímetros no assento, de modo que se via obrigada a contorcer constantemente o rosto machucado para evitar o contato com as paredes de brilhante couro de porco.
O ar que respirava era abafado, com um cheiro de forração nova de couro, fumaça do cano de descarga e, de quando em quando, o mais acentuado de borracha queimada, cada vez que Drax raspava os pneumáticos numa esquina de curva acentuada.
No entanto, o desconforto e a dor não eram nada. Krebs! Curioso como seu temor e repulsa por Krebs a atormentava mais que tudo. As outras coisas eram grandes demais. O mistério de Drax e seu ódio pela Inglaterra. O enigma do seu perfeito domínio da língua alemã. O “Explorador da Lua”. O segredo da cápsula atômica. Como salvar Londres. Eram assuntos que há muito tempo ela afastara para um recanto do cérebro como coisas insolúveis.
Mas a tarde passada a sós com Krebs estava presente e terrível em seu espírito, e este voltava sempre e sempre aos detalhes da mesma, como uma língua em cima de um dente dolorido.
Muito tempo depois de Drax ter partido, ela continuara a fingir inconsciência. A princípio, Krebs se ocupara com as máquinas, conversando com elas em alemão, numa falinha de bebê, toda carinhosa.
— Pronto, minha Liebchen. Agora está melhor, não está? Uma gota de óleo para você, minha Pupperl? Como não? Vai já. Não, não sua preguiçosa. Eu disse mil voltas. Não novecentas. Vamos ver agora. Nós podemos fazer coisa melhor, não podemos? Sim, minha Schatz. É isto. Rodando, rodando, lá vamos nós. Para cima e para baixo. Rodando, rodando. Deixe eu limpar sua carinha bonita, para você, para nós podermos ver o que o pequenino mostrador está dizendo. Jesus Maria, bist du ein braves Kind!
E assim continuara, ora ficando em pé, diante de Gala, ora esgaravatando o nariz e chupando os dentes, numa atitude horrível de ruminante. Até que foi permanecendo cada vez mais tempo diante dela, esquecendo as máquinas, conjeturando, tomando uma resolução.
E então sentira a mão dele desabotoar o botão de cima de seu vestido, e o recuo (automático de seu corpo teve de ser disfarçado por um grunhido realístico e uma pantomima de volta de consciência.
Pedira água, e ele fora buscar no banheiro, trazendo um pouco num copo de escova de dentes. Depois puxara uma cadeira de cozinha para a frente dela e sentara-se atravessado, de costas para o assento, o queixo descansando na última travessa do encosto. Ficara então a fitá-la especulativamente, por baixo das pálpebras caídas, com aqueles olhos desbotados.
Ela fora a primeira a romper o silêncio.
— Por que me trouxeram aqui? Para que são todas essas máquinas?
Krebs lambera os lábios de sua boquinha vermelha e bicuda, aberta sob a mancha de bigode amarelo, e foi formando lentamente um sorriso em forma romboide.
— Isto é um engodo para passarinhos. Dentro em breve atrairá um passarinho para seu ninho quente. Então o passarinho porá um ôvo. Oh, um ôvo tão grande, redondo! Um ôvo lindo!
A parte inferior de seu rosto ria encantada, enquanto seus olhos divagavam.
— A mocinha bonita está aqui porque, de outro modo, poderia assustar o passarinho, e este ir embora. E isto seria tão triste, não é mesmo? — o homem cuspiu as três palavras seguintes: — Cadela inglesa e suja!
Seus olhos tornaram-se atentos, cheios de resolução. Puxou a cadeira mais para perto, de modo que seu rosto ficou muito próximo ao dela, e ela se viu envolvida pelo miasma de sua respiração.
— E agora, cadela inglesa, diga para quem você está trabalhando? — Esperou. — Você precisa me responder, sabe? — avisou suavemente. — Nós estamos sozinhos aqui. Não há ninguém para lhe ouvir gritar.
— Não seja estúpido — disse Gala em desespero de causa. — Como eu poderia estar trabalhando para outra pessoa que não fosse Sir Hugo? (Krebs sorriu ao ouvir o nome).
— Eu só estava curiosa a respeito do plano de voo...
Gala iniciou uma explicação arrastada, a respeito de seus números e os de Drax, e de como desejara partilhar do sucesso do “Explorador da Lua”.
— Tente novamente — sussurrou Krebs, quando ela terminou. — Você deve sair-se melhor que isso — e, subitamente, seus olhos haviam-se tornado chispantes de crueldade, e suas mãos se estenderam para ela, por trás do encosto da cadeira. . .
No assento de trás do veloz Mercedes, Gala rangeu os dentes e choramingou com a lembrança dos dedos leves se arrastando pelo seu corpo, tateando, beliscando, puxando, enquanto seus olhos, durante o tempo todo, fitavam curiosamente os dela, até que, finalmente, ela juntou saliva na boca e deu uma cusparada bem no meio da cara do homem.
Este nem se dera o trabalho de parar para limpar o rosto, mas, de repente, aplicara-lhe um golpe violento, e ela gritara uma só vez, para em seguida desmaiar.
E então se vira sendo empurrada para a parte traseira do carro, com um tapete atirado em cima dela, e eles partiram velozmente pelas ruas de Londres. Gala ouvia outros carros perto deles, o campainhar frenético de uma bicicleta, um grito de vez em quando, o grunhido animalesco de uma velha klaxon, o ronronar de uma lambreta, um rangir de freios, e compreendeu que voltara ao mundo real, que pessoas inglesas, amigos, estavam em volta dela. Lutara para se pôr de joelhos e gritar, mas Krebs devia ter-lhe pressentido os movimentos, porque as mãos dele se encontraram repentinamente em seus tornozelos, prendendo-os à barra de descanso para os pés, no chão. Compreendeu que estava perdida, e as lágrimas lhe correram pelas faces, enquanto rezava para que alguém, de um jeito ou de outro, chegasse a tempo.
Isto acontecera há menos de uma hora, e agora ela podia garantir que haviam chegado a uma cidade grande — Maidstone, se estava sendo levada de volta para a base.
No relativo silêncio do avanço do Mercedes por dentro da cidade, ela ouviu, subitamente, a voz de Krebs. Havia nela um quê de ansioso.
— Mein Kapitän, tenho estado a observar um carro já há algum tempo. Não resta dúvida de que está nos seguindo. Raramente usa os faróis. Está apenas a uns cem metros de distância, atrás de nós agora. Eu acho que é o carro do Comandante Bond.
Drax grunhiu de surpresa, e ela ouviu seu corpanzil virar-se todo para dar uma rápida olhada.
Praguejou violentamente, e depois veio o silêncio, dentro do qual ela pôde sentir o carro grande se movimentando em curvas e se esforçando por ganhar terreno dentro do trânsito.
— Ja, sowas! — disse finalmente Drax. Sua voz parecia preocupada. — Quer dizer que aquela velha peça de museu ainda pode movimentar-se. Tanto melhor, meu caro Krebs. Parece que ele está sozinho.
Deu uma risada desagradável:
— Deixe que ele fique por nossa conta, porque se sobreviver, nós o meteremos no mesmo saco com a mulher. Ligue o rádio. Estação local. Logo saberemos se existe algum obstáculo.
Ouviu-se um rápido estalido da estática e depois Gala escutou a voz do Primeiro-Ministro, a voz das grandes ocasiões de sua vida, vinda em fragmentos entrecortados, enquanto Drax punha o carro em terceira e acelerava para sair da cidade: “. . . arma criada pela engenhosidade do homem. . . mil milhas acima no firmamento. . . área patrulhada pelos navios de Sua Majestade. . . planejado exclusivamente para a defesa de nossa amada ilha. . . uma longa era de paz... desenvolvimento para a grande viagem do homem além dos limites deste planeta. . . Sir Hugo Drax, esse grande patriota e benfeitor do nosso País...”
Gala ouviu o estrondear da gargalhada acima do uivar dos ventos, um vasto latido de desprezo e triunfo e, em seguida, o rádio foi desligado.
— James — sussurrou Gala consigo mesmo. — Só resta você. Tenha cuidado. Mas ande depressa.
O rosto de Bond era uma máscara de poeira e imundície com o sangue das moscas e outros insetos que se haviam esmagado contra ele. Muitas vezes tivera de retirar uma das mãos com câimbra do volante, para limpar os óculos, mas o Bentley ia portando-se muito bem, e ele tinha certeza de que pegaria o Mercedes.
Estava quase alcançando noventa e cinco na linha reta, pouco antes da entrada para Leed Castle, quando luzes possantes foram emitidas por trás dele, e uma buzina de quatro tons executou seu ousado “pam-pim-pim-pam” quase dentro de seu ouvido.
A aparição de um terceiro carro na corrida era quíase inacreditável. Bond mal se dera o trabalho de olhar no espelho retrovisor, desde que havia saído de Londres. Ninguém, a não ser um corredor de automóvel ou um homem desesperado, poderia ter emparelhado com eles, e seu espírito se encontrava numa confusão quando, automaticamente, afastou-se para a esquerda e viu, com o rabo dos olhos, um carro baixo, vermelho como os dos bombeiros, emparelhar com ele e afastar-se com uma diferença de umas dez milhas, uma hora extra em seu relógio.
Vislumbrou o famoso radiador Alfa e, na borda do capô, escrito em letras grandes, brancas, as palavras: Attaboy II. Em seguida, viu o rosto sorridente de um rapazinho em mangas de camisa, que espetou dois dedos vermelhos no ar antes de desaparecer na mistura de sons que um Alfa em disparada compõe com o gemido de seu escape, o espooar do cano de descarga e o uivo trovejante do transmissor.
Bond sorriu cheio de admiração ao levantar a mão para o chofer. Alfa Romeu, oito cilindradas, com surpercarburadores, pensou consigo mesmo. Deve ser quase tão velho quanto o meu. ‘32 ou ‘33, provavelmente. E só a metade de meus cc. Targa Florio, em 1931, e depois disso fez bonito em toda a parte. Com certeza era um tipo desses de cabeça quente, ouvindo uma das estações da RAF dos arredores. Tentando voltar de alguma festa a tempo de assinar o ponto antes de ser citado num relatório. Observou benèvolamente quando o Alfa balançou a cauda na curva em S ao lado de Leeds Ctostle e, em seguida, passou uivando pelo longo caminho largo em direção à distante bifurcação de Charing.
Bond bem podia imaginar o sorriso de satisfação do rapaz, quando este alcançou Drax: “Ôba. É uma Merc!” E a raiva de Drax, ao ouvir a música impudente da buzina. Deve estar fazendo 105, pensou Bond. Espero que esse maluquinho não saia da estrada. Ficou a olhar os dois jogos de luzes traseiras se aproximando, o rapaz do Alfa se preparando para o truque de surgir por trás e, de repente, acelerar ao máximo, assim que tivesse uma oportunidade para passar.
Pronto. Quatrocentas jardas adiante o Mercedes apareceu, branco, iluminado pelas luzes duplas do Alfa. Havia uma milha de estrada livre na frente, completamente reta. Bond quase sentia os pés do rapaz pisando o pedal mais fundo ainda. Ôba rapaz!
Lá na frente, no Mercedes, Krebs tinha a boca colada ao ouvido de Drax.
— Outro deles — gritou aflito. — Não consigo ver o rosto. Vem vindo para nos passar agora.
Drax deixou escapar uma obscenidade a meia voz. Seus dentes branquejaram no pálido reflexo do painel.
— Vou dar uma lição a esse canalha — falou, endireitando os ombros e agarrando o volante com firmeza com as grandes luvas de couro. Com o canto dos olhos viu o capô da Alfa surgir a estibordo. ‘Tam-pim-pim-pim”, cantava a buzina, suave, delicadamente. Drax virou rápido o volante do Mercedes para a direita e, depois do horrível chocalhar dos metais, trouxe-o novamente para o centro, a fim de corrigir a posição.
— Bravo! Bravo! — gritou Krebs, fora de si com a excitação, ao ajoelhar-se no assento do carro e olhar para trás.
— Dupla capotagem. Passou por cima da cerca de cabeça para baixo. Acho que já está se incendiando. Sim. Estou vendo as chamas.
— Isto dará ao nosso caro Sr. Bond qualquer coisa para refletir — rosnou Drax, respirando pesadamente.
Bond, porém, o rosto impassível, mal examinara o velocímetro, e nada havia a não ser vingança em seu espírito, quando partiu veloz atrás do Mercedes que voava.
Vira tudo. O voo grotesco do carro vermelho, ao virar de rodas para o ar, e tornar a virar, a figura do rapaz projetada para o alto, os braços e as pernas abertos, ao ser cuspido para fora do volante, e o estrondo final, quando o carro saltou a cerca de cabeça para baixo e foi desmoronar-se no campo.
Quando passou disparado, observando as marcas horríveis de grafita deixadas pela derrapagem, seu espírito anotou um toque macabro final. Saindo, não se sabe como, incólume do holocausto, a buzina ainda dava contato, e seu ulular subia para o céu, abrindo estridentemente estradas imaginárias para a passagem do Attaboy II: “Pam-pim-pim-pam. Pam-pim-pim-pam.”
Com que então um homicídio tivera lugar bem debaixo de seus olhos. Ou, pelo menos, uma tentativa de homicídio. Assim, fossem quais fossem seus motivos, Sir Hugo Drax era um criminoso e, provavelmente, um maníaco. Isto, acima de tudo, significava perigo certo para o “Explorador da Lua”. Era o bastante para Bond. Meteu a mão debaixo do painel e, de seu coldre escondido, tirou o Colt Especial do Exército, calibre 45 de cano longo, e colocou-o no assento ao seu lado. A batalha agora era em campo aberto e, de um jeito ou de outro, o Mercedes teria de ser parado.
Usando a estrada como se fosse Donington, Bond pisou o acelerador e ali conservou o pé. Pouco a pouco, com o ponteiro oscilando de cada lado do número cem, começou a diminuir a diferença.
Drax entrou pelo lado esquerdo da bifurcação em Charing e subiu embalado a longa colina. Na frente, dentro do raio gigante de seus faróis, um grande caminhão de transporte, desses de oito rodas, um AEC Diesel, ia subindo a primeira curva do caminho, lutando sob o peso de quatorze toneladas de notícias impressas que levava numa viagem noturna para um dos jornais do East Kent.
Drax praguejou baixinho, ao ver o longo transporte de vinte rolos gigantescos, cada um deles contendo cinco milhas de papel impresso com notícias, amarradas lá em cima. Logo ali, no meio daquela curva traiçoeira em S, no alto da colina.
Olhou no espelho retrovisor e viu o Bentley chegando à bifurcação.
Foi então que teve uma ideia.
— Krebs — o nome saiu como um tiro de pistola. — Tire sua faca.
Um estalido agudo, e o estilete já estava na mão de Krebs. Ninguém perdia tempo, quando havia aquela nota na voz do mestre.
— Vou diminuir a marcha e seguir atrás do caminhão. Tire os sapatos e as meias, suba no capo, e quando eu vier por detrás dele, pule em cima. Eu irei na maior vagareza. Não haverá perigo. Corte as cordas e segure os rolos de papel. Primeiro os da esquerda. Depois os da direita. Nessa altura eu já terei colocado o carro no mesmo nível do caminhão, e quando você tiver cortado o segundo lote, pule no carro. Tenha cuidado para não ser levado com o papel. Verstanden? Also. Hals und Beinbruch!
Drax apagou as luzes dos faróis e contornou a curva a oitenta quilômetros por hora. O caminhão ia vinte jardas adiante, e ele teve de frear com força, a fim de não abalroá-lo. O Mercedes executou uma derrapagem, até o radiador ficar quase debaixo do chassi do caminhão.
Drax fez a mudança para segunda:
— Agora!
Manteve o carro firme como uma rocha, quando Krebs, descalço, passou por cima do para-brisa e foi-se arrastando ao longo do brilhante capo, com a faca na mão.
Num salto, atingiu o ponto visado e começou a cortar as cordas do lado esquerdo. Drax afastou-se para a direita e foi deslizando até ficar paralelo às rodas traseiras do Diesel, a fumaça do óleo vinda do cano de descarga subindo-lhe aos olhos e às narinas.
As luzes do carro de Bond começavam a aparecer no início da curva.
Houve uma série de baques fortes, quando os rolos do lado esquerdo caíram do caminhão para a estrada e foram rolando velozes pela escuridão. Depois, mais baques, ao partirem-se as cordas do lado direito. Um dos rolos arrebentou ao cair, e Drax ouviu um barulho de coisas dilaceradas, quando o papel, desenrolando-se tombou pesadamente num ponto da subida.
Aliviado de sua carga, o caminhão quase pulou para a frente, e Drax teve de acelerar um pouco para alcançar a figura esvoaçante de Krebs, que aterrisou, metade em cima das costas de Gala e metade no assento da frente. Drax pisou até embaixo o acelerador e subiu a colina como um raio, ignorando o grito do chofer do caminhão, que se sobrepôs ao clamor dos pistões, quando ele disparou em frente.
Ao contornar velozmente a curva seguinte, viu o cilindro de dois faróis desenharem-se em curva no céu, acima do topo das árvores, até se tornarem quase verticais. Tremularam ali por um instante, e depois os raios de luz giraram através do espaço e desapareceram.
Uma grande risada, semelhante a um latido de cão, escapou de Drax, e durante a fração de um segundo, tirou os olhos da estrada e levantou o rosto triunfalmente para as estrelas.
CAPITULO 21
“O PERSUASOR”
Krebs ecoou a risada maníaca com outra estridente.
— Um golpe de mestre, mein Kapitän. O senhor precisava ver como eles desciam pela colina. O tal que arrebentou. Wunderschön! Parecia o papel higiênico de um gigante. Este deve ter feito um belo pacote dele. Ele vinha chegando bem na curva. E o segundo foi tão bom quanto o primeiro. Viu a cara do motorista? Zum Kotzen! E a firma Bowater! Um belo negócio foi o que fizeram.
— Você trabalhou bem — observou Drax, conciso, o pensamento noutra coisa.
De repente, levou o carro para o lado da estrada, com um grito de protesto dos pneus.
— Donnerwetter — disse, zangado, quando começou a virar o carro. — Mas nós não podemos deixar o homem ali. Precisamos pegá-lo.
O carro já ia roncando pela estrada abaixo.
— A arma — ordenou Drax, secamente.
Passaram o caminhão no alto da colina. Estava parado, e não se via sinal de motorista. Provavelmente telefonando para a companhia, pensou Drax, diminuindo a marcha ao contornarem a primeira curva. Viam-se luzes em duas ou três casas, e um grupo de pessoas rodeava um dos rolos de papel que ali estava por entre as ruínas do portão da frente de suas casas. Havia mais rolos na borda do lado direito da estrada. À esquerda, um poste telegráfico se inclinava como bêbedo, partido ao meio. Na curva seguinte, via-se o princípio de uma grande confusão de papel estendendo-se para baixo, ao longo da colina, formando guirlandas nas cercas e na estrada, como se fossem os babados de um vestido de baile à fantasia, elefantíaco.
O Bentley tinha quase se espatifado contra as grades que guarneciam o lado direito da curva, protegendo-o de um barranco profundo. Por entre a confusão de ferro retorcido dos mourões, pendia, de capo para baixo, com uma das rodas ainda presa ao eixo quebrado de trás e ali pousada de esguelha como um guarda-chuva surrealista.
Drax se aproximou e, acompanhado de Krebs, saiu do carro e ficou quieto, à escuta.
Não se ouvia o menor som, exceto o do motor de um carro distante, seguindo rápido pela estrada de Ashford, e o trilar de um grilo insone.
Com as armas na mão, eles caminharam cautelosamente por cima dos restos do Bentley, os pés esmagando o vidro partido na estrada. Sulcos profundos haviam sido marcados na margem de grama, e sentia-se o cheiro forte de gasolina, misturado ao de borracha queimada. O metal quente do carro estalava e partia baixinho. O vapor ainda jorrava do radiador espatifado.
Bond estava caído de bruços no fundo do barranco, a uns seis metros de distância do carro. Krebs virou-o. O rosto estava coberto de sangue, mas ele respirava. Revistaram-no completamente, e Drax meteu no bolso a fina Beretta. Depois, juntos, arrastaram-no até a estrada, jogando-o, em seguida, no assento traseiro do Mercedes, com a metade do corpo em cima do de Gala.
Quando ela percebeu quem era, deu um grito de horror.
— Halt’s Maul — rosnou Drax. Foi para o assento da frente e, enquanto ligava o motor, Krebs inclinou-se e se ocupou com um longo pedaço de arame flexível.
— Faça o negócio direito — disse Drax. — Não quero que haja erros. — Refletiu melhor. — Volte depois para junto dos destroços e retire as placas. Depressa. Eu tomo conta da estrada.
Krebs puxou o tapete para cima dos dois corpos inertes e pulou fora do carro. Usando a faca como chave de parafuso, dentro em breve estava de volta com as placas, e o enorme carro começou a se movimentar no momento exato em que um grupo de habitantes do local apareceu caminhando nervosamente pela descida da montanha, focalizando as lanternas sobre a cena de devastação.
Krebs riu feliz consigo mesmo à ideia de que os estúpidos ingleses teriam de limpar e pôr tudo aquilo em ordem. Acomodou-se no assento, a fim de apreciar o trecho do caminho que sempre fora seu predileto: os bosques primaveris, cheios de florzinhas azuis e rosa, que iam até Chilham.
Eles tinham-no tornado particularmente feliz à noite. Iluminados por entre as tochas verdes das árvores novas pelos grandes faróis do Mercedes, tinham-no feito pensar nas lindas florestas de Ardennes, no grupo dedicado onde servira e na viagem que fizera num jipe capturado aos americanos, tal como naquela noite, ao lado de seu adorado líder, que ia ao volante. Der Tag custara a chegar, mas agora ali estava. Com o jovem Krebs no caminhão. Finalmente veria as multidões dando vivas, as medalhas, as mulheres, as flores. Lançou um olhar aos exércitos de flores azuis que passavam voando e sentiu-se feliz e confortado.
Gala sentia na boca o gosto do sangue de Bond. O rosto dele estava ao lado do dela, no assento de couro, e ela se mexeu para lhe dar mais lugar. A respiração do rapaz era pesada e irregular. Ela perguntava a si mesma quanto estaria ferido. Experimentou sussurrar-lhe ao ouvido. Depois falou mais alto. Ele deu um grunhido e acelerou a respiração.
— James — cochichou. — James.
Bond resmungou qualquer coisa, e ela encostou-se com força contra ele. Depois, soltou uma série de palavrões, e seu corpo se mexeu.
Tornou a ficar imóvel, e ela quase pôde senti-lo explorando as próprias sensações.
— Sou eu, Gala.
Ela sentiu o corpo dele enrijecer.
— Deus do céu. Que diabo de confusão — falou Bond.
— Você está bem? Tem algum osso quebrado?
Sentiu que ele experimentava os braços e as pernas.
— Parece que está tudo bem. Uma brecha na cabeça. Estou falando coisas que fazem sentido?
— Claro que sim — respondeu Gala. — Agora ouça.
Rapidamente, contou-lhe tudo que sabia, começando pelo caderninho de notas preto.
O corpo dele estava rígido como uma tábua contra o dela, e ele mal respirava, ouvindo a história inacreditável.
Logo depois corriam para Canterbury, e Bond colocou a boca em seu ouvido.
— Vou tentar jogar-me por trás — sussurrou. — Ver se arranjo um telefone. É a única esperança.
Começou a se erguer sobre os joelhos, o peso de seu corpo quase sufocando a respiração da moça.
Ouviu-se uma forte pancada, e ele tornou a cair em cima dela.
— Outro movimento que você faça e estará morto — disse a voz de Krebs, vindo baixinho por entre os assentos da frente.
Faltavam só vinte minutos para chegar à base! Gala rangeu os dentes e tratou de reanimar Bond, que perdera os sentidos novamente.
Acabara de conseguir, quando o carro chegou à porta da cúpula de lançamento, e Krebs, com um revólver na mão, já ia desfazendo os nós em torno dos tornozelos de ambos.
Vislumbraram o cimento familiar, iluminado pela lua, e o semicírculo de guardas a uma certa distância, antes de serem empurrados pela porta. Depois, quando Krebs lhes arrancou os sapatos, seguiram pela passagem estreita, de ferro, dentro da cúpula de lançamento.
Ali estava o cintilante foguete, lindo, inocente, qual um novo brinquedo para ciclopes.
Mas havia um cheiro horrível de produtos químicos no ar, e para Bond, o “Explorador da Lua” parecia uma gigantesca agulha hipodérmica pronta para ser enterrada no coração da Inglaterra. Apesar de um resmungo de Krebs, ele parou na escada e levantou os olhos para seu nariz faiscante. Um milhão de mortes. Um milhão. Um milhão. Um milhão.
E tudo dependia dele? Pelo amor de Deus! Tudo dependia dele?
Com o revólver de Krebs cutucando-o, desceu lentamente os degraus, atrás de Gala.
Quando entrou pela porta do escritório de Drax, controlou-se. De repente, seu espírito tornou-se claro, e toda a letargia e a dor haviam-lhe deixado o corpo. Alguma coisa, qualquer coisa, precisava ser feita. De um jeito ou de outro, ele havia de descobrir um meio. O corpo inteiro e a mente tornaram-se-lhe concentrados e agudos como uma lâmina. Seus olhos ganharam vida, novamente, e a derrota abandonou-o, como a pele de uma serpente.
Drax seguira na frente e se sentara à escrivaninha. Trazia uma Luger na mão. Este apontava um lugar entre Gala e Bond e era firme como uma rocha.
Por trás dele, Bond escutou as portas duplas se fecharem, batendo.
— Eu era um dos melhores atiradores na Divisão Branderburg — disse Drax, entabulando conversa.
— Amarre a moça nessa cadeira, Krebs. Depois o homem .
Gala olhou desesperadamente para Bond. Este disse:
— Você não vai atirar. Teria receio de atingir o combustível.
Encaminhou-se lentamente para a escrivaninha. Drax sorriu alegremente e, seguindo a trajetória do cano do revólver, mirou o estômago de Bond.
— Sua memória é ruim, inglês. Eu lhe disse que esta sala é inteiramente separada da cúpula por meio das portas duplas. Dê mais um passo e ficará sem estômago.
Bond olhou os olhos apertados e confiantes do outro e parou.
— Vamos, Krebs.
Quando os dois ficaram bem amarrados, e dolorosamente, às pernas e braços das duas cadeiras de aço tubular, pouco distante um do outro, por baixo do mapa de vidro, Krebs saiu da sala. Voltou um momento depois com uma espécie de maçarico mecânico.
Colocou a feia máquina sobre a escrivaninha, introduziu o ar com algumas breves bombadas e riscou um fósforo. Uma chama azul sibilou, elevando-se a alguns centímetros. Ele pegou o instrumento e acercou-se de Gala. Parou a pouca distância da moça.
Drax ordenou, severo:
— Vejamos agora. Vamos tratar desse caso, sem criar complicações. Nós costumávamos chamá-lo Der Zwagsman — O Persuasor. Nunca me esquecerei de como lidou com o último espião que pegamos juntos. Bem ao sul do Reno, não foi, Krebs?
Bond era todo ouvidos.
— Foi sim, mein Kapitän. — Krebs riu, recordando-se. — Era um porco de um belga.
— Pois bem. Vocês dois aí não se esqueçam. Aqui não temos esse negócio de fair play. Nada de atitudes esportivas e toda essa história. Isto aqui é negócio.
A voz estalava como um chicote, a cada palavra.
— Você — lançava um olhar a Gala Brand — para quem está trabalhando?
Gala se conservou em silêncio.
— Onde você quiser, Krebs.
A boca de Krebs estava entreaberta. Sua língua percorria o lábio, para cima e para baixo. Parecia ter dificuldade em respirar, quando deu um passo em direção à moça.
A pequenina chama roncava gulosamente.
— Pare — disse Bond, frio. — Ela trabalha para a Scotland Yard. E eu também.
Essias coisas agora não tinham mais propósito. Não podia ser de nenhuma utilidade imaginável para Drax. De qualquer maneira, amanhã de tarde, talvez não existisse mais nenhuma Scotland Yard.
— Assim está melhor — disse Drax. — Agora responda: Alguém sabe que vocês estão prisioneiros? Vocês pararam para telefonar a alguém?
Se eu disser que sim, pensou Bond, ele atirará em nós dois e se livrará dos corpos. Dessa forma, a última chance de impedir o lançamento do “Explorador da Lua” terá desaparecido. E se a Yard sabe, por que ainda não chegaram aqui? Não. Nossa oportunidade ainda pode vir. O Bentley será encontrado. Vallance ficará preocupado quando não tiver notícias minhas.
Não — respondeu. — Se eu tivesse telefonado, eles já estariam por aqui a esta hora.
— Isto é verdade — disse Drax, refletindo.
— Neste caso, não estou mais interessado em vocês e felicito-os por terem tornado a entrevista tão harmoniosa. Poderia ter sido mais difícil, se você estivesse sozinho. Uma moça é sempre útil nessas ocasiões. Krebs largue isso. Pode ir. Diga aos outros o que é necessário. Eles devem estar fazendo conjeturas. Eu vou entreter nossos hóspedes durante algum tempo e depois subirei até a casamata. Providencie para que o carro seja bem lavado. O assento de trás. E faça desaparecer as marcas no lado direito. Diga para tirarem o painel inteiro, se fôr necessário. Ou então podem tocar fogo na maldita coisa. Nós não vamos mais precisar dela. — Riu abruptamente. — Verstanden?
— Sim, mein Kapitän...
Krebs, colocou com relutância o maçarico, que roncava de leve, na escrivaninha ao lado de Drax.
— Para o caso de lhe ser necessário — disse, olhando esperançoso para Gala e Bond. Saiu depois pelas portas duplas.
Drax pôs a Luger também na escrivaninha em frente a ele. Abriu uma gaveta, tirou um charuto e acendeu-o com um isqueiro Ronson. Depois, acomodou-se confortàvelmente. O silêncio reinou na sala durante vários minutos, enquanto Drax puxava fumaçadas do charuto, todo satisfeito. Em seguida, pareceu tomar uma resolução. Fitou Bond com benevolência.
— Você nem sabe quanto eu desejei um auditório inglês — declarou como se estivesse dando uma entrevista à imprensa. — Você nem sabe como estava ansioso por contar minha história. Aliás, um relatório completo de minhas atividades encontra-se em poder de um escritório muito respeitável de advogados de Edinburgo. — Tabeliães, aliás. Bem salvo de qualquer perigo.
Drax sorriu abertamente para um e para outro:
— Essa boa gente recebeu instruções para abrir o envelope no final do primeiro voo bem sucedido do “Explorador da Lua”. Mas vocês, seus felizardos, terão uma, antecipação do que eu escrevi e então, quando amanhã às doze horas, virem através destas portas abertas — fez um gesto para a direita — o primeiro vapor saindo das turbinas e souberem que devem ser queimados vivos dentro de meio segundo, terão a satisfação momentânea de saber com quantos paus se faz uma canoa.
— Você poderá nos dispensar as piadas — interrompeu Bond, com aspereza. — Continue com sua história, Kraut.
Os olhos de Drax fuzilaram momentaneamente.
— Um Kraut. Sim eu sou realmente um Reichsdeutscher — a boca, por baixo do bigode vermelho, saboreava a linda palavra — e até a própria Inglaterra terá de concordar, dentro em breve, que foram liquidados por um único alemão. E então talvez parem de nos chamar de Krauts — POR ORDEM! — As palavras foram gritadas, e todo militarismo prussiano entrou em desfile lá embaixo.
Drax exultou do outro lado da escrivaninha, olhando Bond, os dentes grandes, espalhados e salientes sob o bigode vermelho, roendo nervosamente uma unha, depois da outra. Em seguida, enfiou com esforço a mão direita no bolso da calça, como para colocá-la a salvo da tentação, e pegou o charuto com a esquerda. Puxou umas tragadas durante alguns instantes e, depois, com a voz ainda tensa, começou.
CAPITULO 22
A CAIXA DE PANDORA
Meu verdadeiro nome — disse Drax dirigindo-se a Bond — é Graf Hugo von der Drache. Minha mãe era inglesa, e por causa dela fui educado na Inglaterra até a idade de doze anos. Depois, não pude mais suportar este país imundo e completei minha educação em Berlim e Leipzig.
Bond calculava facilmente que aquele brutamontes com cara de bicho-papão e dentes de bruxo não havia sido muito bem recebido numa escola particular inglesa. O fato de ser um conde estrangeiro com um mundo de nomes não teria ajudado muito.
Os olhos de Drax brilharam, cheios de reminiscências: — Quando fiz vinte anos, comecei a trabalhar no ramo de negócio da família. Era uma filial do grande truste de aço Rheinmetal Bórsig. Nunca ouviu falar dele, suponho. Pois bem, se foi ferido por uma bomba de 88mm. durante a guerra, provavelmente foi uma das de lá. Nossas filiais eram peritas em aços especiais, e eu aprendi a respeito deles, e muita coisa sobre a indústria aviatória. Nossos melhores fregueses. Foi quando ouvi, pela primeira vez, falar em columbita. Valendo o que valem os brilhantes naqueles dias. Liguei-me à firma, e quase imediatamente depois disso arrebentou a guerra. Uma época maravilhosa. Eu tinha vinte e oito anos e era tenente da 140a do Regimento Panzer. Nós investimos contra o Exército britânico, na França, e o atravessamos como uma faca por dentro da manteiga. Simplesmente embriagador.
Durante alguns instantes, Drax sugou o charuto, e Bond calculou que ele estava vendo as aldeias incendiadas da Bélgica através da fumaça.
— Aqueles dias eram formidáveis, meu caro Bond. — Drax esticou um braço comprido e bateu a cinza do charuto para o chão. — Mas aí fui escolhido para a Divisão Brandenburg e tive de deixar as pequenas e o champanha para voltar à Alemanha e começar o adestramento, a fim de executar o vasto pulo na água para a Inglaterra. Precisavam de meu in-glês na Divisão. Todos nós devíamos trajar uniformes ingleses. Teria sido engraçado, porém os malditos generais disseram que não podia ser, e eu fui transferido para o Serviço Secreto Estrangeiro do SS. O RSHA, era como se chamava. SS Obergruppenfuhrer Kaltenbrunner acabava de assumir o comando depois que Heydrich foi assassinado em 42. Ele era um bom homem, e eu estava sob as ordens diretas de um ainda melhor, Obersturmbannfuhrer — Drax enrolava na boca o título delicioso com prazer. — Otto Skorzeny. Sua tarefa na RSHA era o terrorismo e a sabotagem. Um agradável interlúdio, meu caro Bond, durante o qual eu pude registrar o nome de muitos ingleses, coisa que me deu muito prazer. Mas então — o punho de Drax esmagou a escrivaninha — Hitler foi novamente traído por aqueles miseráveis generais, e os ingleses e norte-americanos tiveram oportunidade de desembarcar na França.
— Foi uma pena — disse Bond, friamente.
— Sim, meu caro Bond, foi de fato uma pena. — Drax preferiu ignorar a ironia. — Mas para mim foi o ponto alto da guerra. Skorzeny transformou todos os seus sabotadores e terroristas em SS Jagdverbände, para usá-los na retaguarda das linhas inimigas. Cada Jagdverbände era dividida em Streifkorps, e depois em Kommandos, cada um deles levando os nomes de seus oficiais-comandantes. Com o posto de Oberleutnant — Drax encheu-se visivelmente de empáfia — à testa do Kommando “Drache”, eu penetrei diretamente nas linhas americianas com a famosa Brigada Panzer 150a na penetração de Ardennes, em dezembro de 44. Você se lembra, sem dúvida, do efeito causado por esta brigada em seus uniformes americanos e nos tanques e veículos americanos capturados. Kolossal! Quando a Brigada teve de se retirar, eu fiquei onde estiava e fui estabelecer-me nas Florestas de Ardennes, cinquenta milhas à retaguarda das linhas aliadas. Havia vinte rapazes, dez homens bons e dez Hitlerjugend Lobishomens. Todos com menos de vinte anos, mas todos bons rapazes. Por coincidência, o chefe deles era um jovem chamado Krebs, que demonstrou possuir determinados dons que o qualificaram para o pôsto de executor e “persuasor” de nosso alegre pequeno bando. Drax deu uma risadinha gostosa.
Bond lambeu os lábios, ao lembrar-se da brecha que Krebs fizera na cabeça batendo de encontro à cômoda. Ter-lhe-ia dado o pontapé com tanta força quanto lhe era possível dar? Sim, sua memória o tranquilizava, com cada grama de força que ele podia pôr no sapato.
— Ficamos naqueles bosques durante seis meses — continuou Drax, orgulhoso — e durante todo esse tempo dávamos notícias nossas à nossa Pátria por meio do rádio. Os caminhões de busca nunca deram conosco. E então aconteceu um desastre. — Drax sacudiu ia cabeça àquela lembrança. — Existia uma grande fazenda a uma milha de distância de nosso esconderijo na floresta. Uma porção de cabanas haviam sido construídas em torno dela, e eram usadas como quartel-general de retaguarda para um grupo de ligação. Ingleses e norte-americanos. Um lugar incrível. Sem disciplina, sem segurança, cheio de vadios e desertores vindos de todos os lugares da vizinhança. Nós vínhamos observando o grupo há muito tempo, e um dia eu resolvi fazer tudo aquilo voar pelos ares. O plano era simples. À noite, dois dos meus homens, um vestido num uniforme americano, e outro de uniforme britânico, deviam dirigir-se para lá num carro-patrulha capturado, contendo duas toneladas de explosivos. Havia um ponto de estacionamento para os carros — nenhuma sentinela, naturalmente — próximo à sala de refeitório, e eles deviam trazer o carro tão perto dela quanto possível, regular a explosão para a hora do jantar, às sete, e depois se afastarem. Tudo muito fácil, de modo que eu saí naquela manhã para tratar de negócios e deixei a missão para ser cumprida por meu segundo em comando. Eu estava vestido com o uniforme de Corpo de Sinaleiros britânicos, e parti numa motocicleta inglesa capturada por nós para enviar um despacho da mesma unidade que fazia o percurso diário num caminho ali perto. Está claro que ele veio pontualmente na hora, de modo que eu lhe segui atrás, saindo de um caminho lateral. Emparelhei com ele ei dei-lhe um tiro nas costas, tomei-lhe os documentos e, depois de colocá-lo em cima de sua própria motocicleta, levei-o para os bosques e toquei-lhe fogo.
Drax viu a fúria nos olhos de Bond e levantou a mão.
— Não foi muito esportivo? Meu caro, o homem já estava morto. Entretanto, prossigamos. Fui seguindo meu caminho, e então o que haveria de acontecer? Um dos aviões de vocês, voltando de um voo de reconhecimento, veio atrás de mim pela estrada com uma metralhadora. Um de seus próprios aviões! Jogou-me para longe da estrada. Só Deus sabe quanto tempo fiquei ali, caído no fosso. Em certo momento, durante a tarde, voltei a mim a tive o bom senso de esconder o boné e o dólmã com os despachos. Na cerca. Provavelmente ainda estão lá. Preciso ir buscá-los um dia. Lembranças interessantes. Depois toquei fogo nos restos da motocicleta e devo ter desmaiado novamente, porque quando tornei a dar por mim, tinha sido recolhido por um veículo britânico e estávamos seguindo para o maldito quartel-general de ligação! Acredite-se ou não! Lá estava o carro-patrulha, bem ao lado da sala do rancho! Era demais para mim. Eu estava cheio de estilhaços de bomba e minha perna estava quebrada. Pois bem, desmaiei, e quando voltei a mim, vi que metade do hospital se debruçava sobre mim, e eu só tinha a metade da cara.
Drax levantou a mão e alisou a pele lustrosa da têmpora e da face esquerda:
— Depois disso, tudo se resumiu numa questão de representar um papel. Eles não tinham ideia de quem eu era. O carro que me apanhara havia sido reduzido a simples fragmentos. Eu era apenas um inglês, vestido numa camisa e calças inglesas que quase morrera.
Drax fez uma pausa, tirou outro charuto e acendeu-o. Na sala reinou o silêncio, quebrado apenas pelo roncar atenuado do maçarico. Sua voz ameaçadora tornara-se mais baixa. A pressão está cedendo, pensou Bond.
Virou a cabeça e olhou Gala. Pela primeira vez, viu a lesão feia atrás de sua orelha esquerda. Endereçou-lhe um sorriso de encorajamento, e ela retorceu os lábios num sorriso de resposta.
Drax falava por dentro da fumaça do charuto:
— Não há muito mais coisa para contar. Durante o ano em que eu passei sendo enviado de um para outro hospital, elaborei meus planos sem omitir os mínimos detalhes. Consistiam muito simplesmente em vingar-me da Inglaterra pelo que me tinha feito e ao meu país. Confesso que, pouco a pouco, foi-se tornando uma obsessão. Cada dia que se passava no ano em que a destruição e a rapina campearam em meu país, meu ódio e desprezo pelos ingleses iam-se tornando cada vez mais amargos.
As veias do rosto de Drax começaram a inchar e, de repente, ele se pôs a desferir socos na mesa e a gritar para seus prisioneiros, fitando com olhos esbugalhados ora um, ora outro:
— Abomino e desprezo vocês todos. Seus porcos! Idiotas inúteis, ociosos, decadentes, escondendo-se por trás de seus malditos penhascos brancos, enquanto os outros povos travam batalhas por vocês. Fracos demais para defenderem suas colônias, bajulando a América com os chapéus nas mãos. Esnobes malcheirosos, que são capazes de fazer qualquer coisa por dinheiro. Ah! — Drax estava triunfante. — Eu sabia que precisava apenas de dinheiro e a aparência de um gentleman. Um gentleman! Pfui Teufel! Para mim um gentleman é apenas alguém de quem eu posso tirar vantagem. Aqueles malditos imbecis no Blades, por exemplo. Cretinos endinheirados. Durante meses a fio tirei milhares de libras deles, tapeei-os bem debaixo de seus narizes, até que você apareceu e estragou o brinquedo.
Os olhos de Drax se apertaram.
— Como foi que descobriu o truque da cigarreira — perguntou incisivo.
Bond deu de ombros.
— Com os olhos — respondeu indiferente.
— Ah, bem. Talvez eu estivesse um tanto descuidado naquela noite. Mas onde é mesmo que eu estava? Ah, sim, no hospital. Os bons médicos mostravam-se tão ansiosos por me ajudarem a descobrir quem eu era realmente. — Soltou uma gargalhada. — Foi fácil. Muito fácil. Dentre as identidades que eles me ofereciam com tanta boa vontade, topei com o nome de Hugo Drax. Que coincidência! De Drache para Drax! Como quem hesita, pensei que podia ser eu. Eles sentiram-se muito orgulhosos. Sim, afirmaram, naturalmente que é você. Triunfalmente, fizeram-me entrar-lhe na pele. Saí do hospital dentro dela, começando a rodar por Londres à cata de alguém para matar e roubar. Até que um dia, num pequeno escritório acima de Piccadilly, encontrei um agiota judeu. (Drax agora falava muito depressa. As palavras jorravam-lhe excitadamente dos lábios. Bond reparou num aglomerado de espuma que se formava num canto de sua boca e crescia.) — Ah, foi fácil. Uma bordoada em seu crânio nu. Quinze mil libras no cofre. Então tratei de me afastar do País. Fui para Tânger — onde se podia fazer qualquer coisa, comprar qualquer coisa, arranjar qualquer coisa que se desejasse. Columbita. Mais rara que a platina, e todos prontos a adquiri-la. A Era do Jato. Eu conhecia essas coisas. Não me havia esquecido de minha profissão. Então, por Deus, lhe digo que trabalhei. Durante cinco anos vivi para o dinheiro. Fui valente como um leão. Corri riscos tremendos. E eis que, de repente, o primeiro milhão me chega às mãos. Depois o segundo. Em seguida o quinto. Depois o vigésimo. Voltei para a Inglaterra. Gastei um milhão aqui, e Londres estava no papo. Depois voltei à Alemanha. Encontrei Krebs. Encontrei cinquenta deles. Alemães leais. Técnicos brilhantes. Todos vivendo sob nomes falsos, como tantos outros de meus antigos camaradas. Dei-lhes minhas ordens, e eles esperaram, pacificamente, inocentemente. E onde estava eu?
Drax fitou Bond, com os olhos arregalados:
— Eu estava em Moscou! Moscou! Um homem que tem columbita para vender pode ir a qualquer lugar. Encontrei as pessoas indicadas para meu caso. Ouviram meus planos. Deram-me Walter, o novo gênio de seus mísseis teleguiados da estação de Peenemunde, e os bons dos russos começaram a construir a cápsula dos instrumentos e explosivos, a cápsula atômica — apontou para o teto — que está agora nos esperando ali. Então tornei a regressar para Londres. — Fez uma pausa. — A Coroação. Minha carta para o Palácio. Triunfo. Hurras para Drax. — O homem estourou numa gargalhada. — A Inglaterra estava aos meus pés. Todos os malditos cretinos do país! Foi quando meus homens chegaram, e nós começamos. Bem juntos das saias da Grã-Bretanha. No alto de seus famosos penhascos. Trabalhamos como loucos. Construímos um cais no seu Canal inglês. Para receber fornecimentos! Suprimentos vindos de meus bons amigos os russos, que chegaram na hora exata, segunda-feira à noite. Mas foi aí que Tallon teve de ouvir alguma coisa. O velho imbecil. Falou com o Ministério. Mas Krebs estava ouvindo. Apareceram cinquenta voluntários para matar o homem. Tiramos a sorte, e Bartsch morreu como um herói. — Drax fez nova pausa. Depois continuou. — A nova cápsula foi içada para o lugar. Deu certo. Uma perfeita peça de encomenda. O mesmo peso. Tudo perfeito, como a antiga, a caneca de folha, cheia dos queridos instrumentos do Ministério, está agora em Stettin — atrás da Cortina de Ferro. O fiel submarino está de viagem de volta para aqui, e dentro em breve — olhou o relógio — estará navegando sob as águas do Canal inglês para nos levar a todos para longe, quando passar um minuto de meio-dia amanhã.
Drax limpou a boca com as costas da mão e recostou-se de novo na cadeira fitando o teto, os olhos povoados de visões. De repente, riu e olhou interrogativamente para Bond, passando o olhar pelo próprio nariz:
— Quer saber qual será a primeira coisa que nós faremos quando estivermos a bordo? Rasparemos esses famosos bigodes nos quais você estava tão interessado. Você cheirou um camundongo, meu caro Bond, onde devia ter cheirado um rato. Aquelas cabeças raspadas e aqueles bigodes: que nós cultivávamos tão assiduamente. Apenas uma precaução, meu caro. Experimente raspar a própria dabeça e deixar crescer um bigodão preto. Nem mesmo sua mãe o reconheceria. É a combinação das duas coisas que produz o efeito. Apenas um mínimo refinamento. Precisão, meu caro. Precisão, em cada detalhe. Foi esta a minha palavra de passe. — Drax deu uma risadinha sem graça e puxou uma boa fumarada do charuto. Súbito, olhou incisivamente, desconfiado, para Bond. — Então? Diga alguma coisa. Não fique aí sentado como uma múmia. Que pensa de minha história? Não acha que é extraordinária? Notável? Um homem ter feito tudo isto? Vamos, vamos, fale.
Uma das mãos foi levada até a boca, e Drax começou a roer as unhas furiosamente. Mas, em seguida, meteu-a no bolso, e seus olhos tornaram-se frios e cruéis.
— Ou quer que mande buscar Krebs — fez um gesto para o telefone em cima da escrivaninha. — O Persuasor. Pobre Krebs! É como uma criança a quem tivessem arrebatado os brinquedos. Ou talvez Walter. Eles lhes dariam uma lembrança para toda a vida. Esse aí não tem um pingo de moleza. Então?
Bond começou a falar, olhando a caraça vermelha, do outro lado da escrivaninha:
— Não resta dúvida, é um caso notável. Paranoia galopante. Ilusões de ciúme e perseguição. Ódio megalomaníaco e desejo de vingança. Fato bastante curioso — continuou dizendo, em tom de conversação — poderá ter alguma relação com seus dentes. Diastema, é como chamam isto. Acontece quando a criança chupa o dedo na infância. Sim. Tenho a impressão de que será isto o que dirão os psicólogos, assim que lhe puserem no hospício. “Dentes de bicho-papão.” Foi atormentado na escola etc. É extraordinário o efeito produzido numa criança. Então o nazismo ajudou a soprar as flamas, e ainda aconteceu você levar aquela pancada feia na sua feia cabeça. A pancada que você mesmo engendrou. Acho que foi o que estava faltando. Dali por diante, você passou a ser realmente louco. Do mesmo gênero desses que acreditam serem Deus. É extraordinário observar como são tenazes. Completamente fanáticos. Você é quase um gênio. Lombroso teria ficado encantado com você. No ponto em que estão as coisas, você não passa de um cão danado que precisa ser morto. Ou então você se suicida. Os paranoicos geralmente se matam. É uma pena. Coisa triste, mesmo.
Bond fez uma pausa e pôs todo o desprezo que pôde acumular na voz:
— E agora, continuemos com esta farsa, vamos, seu lunático cabeludo.
Deu resultado. A cada palavra de Bond, a cara de Drax ia se contorcendo de raiva cadia vez maior, os olhos estavam vermelhos de cólera, o suor da fúria pingava de suas mandíbulas para a camisa, os lábios se afastariam dos dentes irregulares, e um fio de saliva saíra-lhe da boca e lhe escorria pelo queixo. Agora, com o último insulto sobre a escola particular, que devia ter-lhe despertado sabe Deus que espécie de lembranças dolorosas, ele pulou da cadeira, rodeou a escrivaninha, investiu contra Bond, os punhos cabeludos martelando. Bond rangeu os dentes e aguentou.
Quando Drax teve de pegar a cadeira do chão pela segunda vez, com Bond em cima dela, a tempestade de raiva passou subitamente. Tirou do bolso o lenço de seda e limpou o rosto e as mãos. Depois, encaminhou-se calmamente para a porta e falou, olhando por cima da cabeça pendente de Bond e dirigindo-se à pequena.
— Não creio que vocês dois me deem mais trabalho — declarou com a voz perfeitamente calma e segura. — Krebs nunca comete enganos com seus nós.
Gesticulou em direção à figura ensanguentada da outra cadeira:
— Quando ele acordar, pode dizer-lhe que estas portas ainda se abrirão mais uma vez, pouco antes do meio-dia de amanhã. Alguns minutos mais tarde, não sobrará nada de nenhum de vocês dois. Nem mesmo — acrescentou, ao escancarar a porta de dentro — as obturações de seus dentes.
A porta externa bateu.
Bond levantou lentamente a cabeça e sorriu dolorosamente para sua companheira com os lábios manchados de sangue. Explicou com dificuldade:
— Tive de deixá-lo louco. Não quis que ele tivesse tempo para pensar. Tive de provocar aquela tempestade cerebral.
Gala olhava-o sem compreender, os olhos arregalados para a máscara terrível de seu rosto.
— Está tudo bem. Não se preocupe. Londres está O.K. Tenho um plano.
Sobre a escrivaninha, o maçarico fez um “pleft” baixinho e apagou.
CAPÍTULO 23
MENOS ZERO
Por entre os olhos entreabertos, Bond fitou demoradamente o maçarico, enquanto por alguns preciosos segundos permanecia sentado e deixava a vida voltar-lhe lentamente ao corpo. Tinha a impressão de que sua cabeça fora usada como bola de futebol, mas não tinha nada quebrado. Drax batera-lhe sem nenhuma ciência e com a confusão de golpes de um homem embriagado.
Gala observava-o ansiosamente. Os olhos, no rosto sanguinolento, estavam quase fechados, mas a linha do queixo aparecia tensa de concentração, e ela percebia o esforço de vontade que ele fazia.
Bond sacudiu a cabeça, e quando se voltou para ela, Gala viu que seus olhos estavam febris pelo triunfo.
Fez um gesto na direção do isqueiro.
— O isqueiro. Eu tive de tentar fazê-lo esquecer-se dele. Siga-me. Vou-lhe mostrar como.
Começou a balançar a leve cadeira de aço, polegada por polegada, em direção à escrivaninha:
— Pelo amor de Deus, não vá virar de pernas para cima, do contrário estará tudo perdido. Mas procure apressar-se senão o maçarico esfria.
Sem compreender, sentindo-se quase como se tomasse parte em algum fantástico brinquedo infantil, Gala, cautelosamente, foi balançando a cadeira pelo chão atrás dele.
Segundos depois, Bond lhe disse que parasse ao lado da escrivaninha, enquanto ele continuava o balanço até a cadeira de Drax. Depois, manobrou de modo a tomar posição em frente ao seu alvo e, com uma súbita guinada, suspendeu-se com a cadeira, de forma que sua cabeça ficou para baixo.
Ouviu-se um estalo, quando o isqueiro Ronson, de escrivaninha, prendeu-se-lhe nos dentes, mas seus lábios sustiveram-no, e a parte superior ficou-lhe na boca, assim que ele impulsionou a cadeira para a primeira posição, apenas com a força suficiente para impedir que saltasse fora. Em seguida, recomeçou sua paciente viagem de volta para o ponto onde Gala se encontrava sentada, no canto da escrivaninha onde Krebs deixara a lâmpada.
Bond descansou até sua respiração tornar-se novamente regular.
— Chegamos agora à parte difícil — avisou, severo. — Enquanto eu tento fazer este maçarico funcionar, você vai rodando sua cadeira, de modo que seu braço direito fique tanto quanto possível defronte de mim.
Obedientemente, a moça foi executando os movimentos, enquanto Bond balançava sua cadeira, de forma que esta se encostou a beira da escrivaninha e permitiu que sua boca alcançasse e agarrasse o cabo do maçarico entre os dentes.
Em seguida, foi trazendo o maçarico para perto e, depois de alguns minutos de trabalho paciente, conseguiu colocar o maçarico e o isqueiro como desejava, na borda da escrivaninha.
Após outro descanso, curvou-se, fechou a válvula da tocha com os dentes, e começou a fazer voltar a pressão, puxando lenta e repetidamente o pistão com os lábios e apertando-o de volta com o queixo. Sentia no rosto o calor do aquecedor e sentia o cheiro dos restos de gás no pequeno instrumento. Se ao menos não tivesse esfriado demais.
Endireitou o corpo.
— Ultima etapa, Gala — disse sorrindo quase com esforço para ela. — Talvez eu tenha de lhe machucar um pouco. Não faz mal?
— Claro que não — respondeu a moça.
— Então lá vai — disse Bond, e curvou-se para a frente, soltando a válvula de segurança à esquerda do depósito.
Depois debruçou-se rapidamente sobre o Ronson, que estava no ângulo direito e bem debaixo do tubo da tocha. Com os dois dentes incisivos apertou para baixo a trave de ignição.
Era uma manobra horrível e, apesar de ele sacudir a cabeça para trás com a rapidez de uma serpente, deixou escapar um leve gemido de dor, quando o jato de fogo azul do maçarico subiu-lhe pela face machucada e pela ponta do nariz.
Mas a parafina vaporizada sibilava sua língua vital de chama, e ele sacudiu as lágrimas dos olhos, curvando a cabeça quase até o ângulo direito e novamente prendeu a haste do maçarico nos dentes.
Teve a impressão de que seu queixo se partiria com o peso da coisa, e os nervos dos dentes da frente reclamaram, mas ele balançou a cadeira cautelosamente até colocá-la em posição vertical, afastada da escrivaninha, e então forçou o pescoço a curvar-se para a frente, até que a ponta da chama azul da tocha mordeu o ponto que ligava o pulso direito de Gala ao braço da cadeira.
Bond tentou desesperadamente conservar a chama firme, contudo a respiração da moça raspou-lhe entre os dentes, angustiada, quando o cabo se movia entre suas mandíbulas, e o maçarico queimou-lhe o antebraço.
Então tudo acabou. Derretido pelo forte calor, as tiras de cobre foram-se partindo uma por uma e, de repente, o braço direito de Gala ficou livre, e ela o estendeu para tomar o maçarico da boca de Bond.
A cabeça do rapaz caiu novamente para trás, entre os ombros, e ele torceu-a para todos os lados, a fim de conseguir fazer o sangue circular pelos músculos doloridos.
Antes mesmo que ele se desse conta, Gala já se inclinava sobre seus braços e pernas, e ele também estava livre.
Ao sentar-se imóvel por um momento, os olhos fechados, esperando que a vida lhe voltasse ao corpo, sentiu de repente, encantado, os lábios macios de Gala sobre os seus.
Abriu os olhos. Ela estava de pé, diante dele, os olhos brilhando.
— Isto é pelo que você fez — falou, muito séria.
— Você é uma garota maravilhosa — disse Bond. Depois, porém, sabendo o que ia fazer, sabendo que era bem concebível que ela sobrevivesse, mas que ele só tinha mais alguns minutos de vida, fechou os olhos para que ela não visse a desesperança neles.
Gala observou-lhe a expressão do rosto e virou de costas. Pensou que fosse apenas exaustão e o efeito do que seu corpo tinha sofrido. Lembrou-se aí, de repente, da água oxigenada no banheiro pegado ao seu escritório.
Passou pela porta de comunicação. Como era extraordinário ver suas coisas familiares novamente. Devia ser outra pessoa que se sentara naquela escrivaninha e batera na máquina a correspondência, outra moça a que ali empoara o nariz. Sacudiu os ombros e foi para o toalete. Meu Deus, que cara, e só Deus sabe como se sentia cansada! Mas primeiro pegou uma toalha molhada, um pouco de água oxigenada, e voltou. Durante dez minutos tratou do campo de batalha que era a cara de Bond.
Este permanecia sentado em silêncio, uma das mãos descansando na cintura dela e observando-a agradecido. Depois, quando ela voltou para o escritório e fechou a porta do banheiro após entrar, ele se levantou, apagou o maçarico que ainda silvava, e encaminhou-se para o chuveiro de Drax, tirou a roupa e permaneceu durante cinco minutos debaixo da água gelada. “Preparando o corpo”, pensou melancòlicamente, ao examinar o rosto maltratado no espelho.
Vestiu as roupas e voltou para a escrivaninha de Drax, que revistou metòdicamente. Esta lhe proporcionou apenas um prêmio, a “garrafa do escritório”, cheia até a metade de Haig and Haig. Foi buscar dois copos, um pouco de água e chamou Gala.
Ouviu-a abrir a porta do banheiro.
— O que é? — Uísque.
— Vá tomando o seu. Estarei pronta daqui a um minuto.
Bond olhou a garrafa, serviu três quartos de um copo de escovas de dentes e tomou-o de uma vez, em dois goles. Em seguida, acendeu meio trêmulo um abençoado cigarro e sentou-se na borda da escrivaninha, sentindo o álcool queimá-lo no estômago, descendo-lhe até as pernas.
Pegou a garrafa novamente e olhou-a. Ainda havia muito para Gala e um copo inteiro para ele, antes de sair por aquela porta. Era melhor que nada. Não seria tão difícil com aquilo dentro de si, contanto que saísse em passos rápidos o fechasse a porta depois. Nada de olhar para trás.
Gala entrou, uma Gala transformada, parecendo tão bela quanto na noite em que a vira pela primeira vez, exceto as linhas de exaustão sob os olhos, que o pó não disfarçava totalmente, e os feios vincos nos pulsos e tornozelos.
Bond deu-lhe um drinque e tomou outro. Os olhos de ambos sorriam por cima da orla dos copos.
Depois Bond se ergueu.
— Escute, Gala — começou num tom de voz bem natural . — Nós temos de enfrentar o que está por vir e terminar com a história, de modo que serei breve e depois tomaremos outra dose.
Bond ouviu quando ela prendeu a respiração, mas continuou:
— Dentro de dez minutos, mais ou menos, eu vou fechá-la no banheiro de Drax, pôr você debaixo do chuveiro, e abri-lo completamente.
A moça gritou, aproximando-se dele:
— James. Não continue. Eu sei que você vai dizer qualquer coisa horrível. Pare, por favor, James.
— Deixe disso, Gala — disse Bond com aspereza. — Que diabo adianta tudo isto. É um milagre maldito, se é que posso dizer assim, e nós temos a oportunidade.
Afastou-se dela. Encaminhou-se então para as portas que conduziam ao foguete.
— Depois então — prosseguiu, segurando o precioso isqueiro na mão direita — eu sairei daqui, fecharei as portas e acenderei um último cigarro debaixo da cauda do “Explorador da Lua”.
Meu Deus! — sussurrou a moça. — Que é que você está dizendo? Você está louco.
Fitou-o com os olhos arregalados de horror.
— Não seja ridícula — disse Bond impaciente. — Que diabo nos resta fazer? A explosão será tão pavorosa, que ninguém sentirá nada. Deve dar resultado, com todo esse combustível em vapor circulando em redor. Trata-se de mim ou de um milhão de pessoas em Londres. A cápsula não se soltará. As bombas atômicas não explodem assim. Com certeza derreterá. Só há uma chance de você escapar. A maior parte da explosão se encaminhará para a linha de menor resistência através do telhado — e por baixo, pela cavidade exaustora, se eu conseguir fazer funcionar o maquinismo que abre o chão.
Bond sorriu.
— Ânimo — pediu, caminhando para ela e pegando-lhe uma das mãos. — O rapaz ficou de pé no tombadilho incendiado. Eu quis imitá-lo desde os cinco anos de idade.
Gala puxou a mão.
— Não me importa o que você está dizendo — declarou encolerizada. — Temos de pensar em outra coisa qualquer. Você não me acha capaz de ter nenhuma ideia. Vai só me dizendo o que pensa e o que temos de fazer.
Dirigiu-se para o mapa da parede e apertou o interruptor.
— Naturalmente, se tivermos de usar o isqueiro, usá-lo-emos. — Olhou o mapa do falso plano de voo, mal vendo o que tinha diante dos olhos. — Mas a ideia de você caminhar ali sozinho e ficar no meio daqueles horríveis vapores do combustível e calmamente acender essa coisa para depois ser reduzido a pó... Entretanto, se tivermos de agir assim, agiremos juntos. É preferível, melhor do que ser queimada até morrer aqui dentro. De qualquer maneira — fez uma pausa — eu gostaria de ir com você. Nós entramos juntos nesse negócio.
Os olhos de Bond estavam cheios de ternura, quando caminhou em direção à moça, passou-lhe um braço em volta da cintura e abraçou-a bem junto a si.
— Gala, você é um amor — disse com simplicidade. — Se houver outro meio, nós o tentaremos. Mas — olhou o relógio — já passa de meia-noite, e nós precisamos tomar uma resolução rápida. A qualquer momento pode ocorrer a Drax a ideia de mandar guardas para ver sé nós estamos em ordem, e só Deus sabe a que horas ele virá aqui acertar o giroscópio.
Gala torceu o corpo como uma gata. Fitou-o com a boca aberta, o rosto tenso de excitação. Sussurrou:
— O giroscópio, para acertar o giroscópio. Encostou-se novamente de leve contra a parede, os. olhos procurando o rosto de Bond.
— Você não compreende? — sua voz estava beirando a histeria. — Depois que ele sair, nós poderíamos alterar o giroscópio para onde estava, de acordo com o antigo plano de voo, e então o foguete cairia simplesmente no Mar do Norte, onde se julga que irá cair.
Gala afastou-se da parede e agarrou a camisa de Bond com as duas mãos, fitando-o com um olhar que implorava:
— Não poderíamos? Não poderíamos?
— Você conhece as outras direções? — perguntou Bond, ansioso.
— Claro que sim. Convivo com eles há um ano. Nós não teremos uma previsão do tempo, mas teremos de nos arriscar. A previsão desta manhã dizia que nós teríamos as mesmas condições de hoje.
— Por Deus — disse Bond. — Nós poderíamos fazer isto. Se conseguirmos esconder-nos nalgum lugar e fazer Drax imaginar que escapamos. Que tal o túnel exaustor, se eu conseguir fazer funcionar a máquina que abre o assoalho?
— São trinta e tantos metros de queda em linha reta — disse Gala, sacudindo a cabeça. — E as paredes são de aço polido. Como vidro. Além do mais, não há corda ou coisa alguma aqui. Eles tiraram tudo da oficina ontem. Sem contar com os guardas na praia.
Bond refletiu. Depois seus olhos tornaram-se brilhantes:
— Tenho uma ideia. Mas em primeiro lugar, que me diz você do radar, o radar de retorno de Londres? Ele não empurrará o foguete para fora do seu curso e de volta para Londres?
Gala sacudiu a cabeça:
— Ele só trabalha dentro de um raio de cem milhas, mais ou menos. O foguete nem sequer pegará seu sinal. Se estiver apontando para o Mar do Norte, entrará na órbita do transmissor da jangada. Não há nada de errado nos meus planos. Mas onde nos poderemos esconder?
— Num dos tubos de ventilação — respondeu Bond. — Vamos.
Lançou um último olhar à sala. O isqueiro estava em seu bolso. Aquilo seria o último recurso. Não havia mais nada que eles fossem precisar. Seguiu Gala para o cintilante cilindro e dirigiu-se ao painel de instrumentos que controlava a capa de aço da cavidade exaustora.
Após um rápido exame, moveu uma pesada barra de Zu a Auf. Ouviu-se um leve sibilo da máquina hidráulica atrás da parede, e os dois semicírculos de aço se abriram sob a cauda do foguete, deslizando depois novamente para o lugar. Bond seguiu em frente e olhou para baixo.
Os arcos no telhado lá em cima cintilavam em resposta ao seu olhar, de lá das paredes polidas do largo funil de aço, até se curvarem desaparecendo de suas vistas, em direção ao distante clamor ôco do mar.
Bond voltou ao escritório de Drax e puxou para baixo a cortina do boxe do chuveiro. Depois, Gala e ele rasgaram em tiras a cortina e ligaram umas às outras. Deu um rasgão em feitio de um V no fim da última tira para dar a impressão de que a corda da fuga tinha-se partido. Amarrou então a outra extremidade firmemente em torno da ponta aguda de uma das três barbatanas do “Explorador da Lua” e deixou cair o resto de modo que descesse pelo cilindro.
Não era lá grande coisa como falsa pista, mas podia servir para ganhar um pouco de tempo.
As bocarras redondas dos ventiladores tubulares tinham o espaço de umas dez jardas entre si e ficavam a cerca de 1.50m do chão. Bond contou. Havia cinquenta delas. Abriu cautelosamente a grade presa em gonzos que cobria uma delas e olhou para cima. A uma distância de doze metros via-se um leve brilho vindo do luar lá fora. — Chegou à conclusão de que estavam emparedados bem dentro do túnel formado pelo muro da base, até que viraram para os ângulos direitos, em direção aos gradeados das paredes exteriores.
Bond estendeu o braço e correu a mão pela superfície. Era de um concreto rústico, inacabado, e ele grunhiu de satisfação, quando sentiu primeiro uma forte protuberância, e depois outra. Eram as extremidades bifurcadas das varas de aço que reforçavam as paredes, cortadas onde os cilindros começavam.
Ia ser uma coisa dolorosa, mas não havia dúvida de que poderiam ir-se arrastando, centímetro por centímetro, por um desses cilindros, tal como alpinistas numa chaminé rocha acima e, na curva do topo, ficarem ocultos de tudo, menos da busca complicada que seria difícil de manhã com todos os oficiais de Londres em redor da base.
Bond se ajoelhou, e a moça montou-lhe às costas, depois do que começaram a subir.
Uma hora depois, com os pés e os ombros machucados e cortados, deitaram-se exaustos, apertados bem fortemente nos braços um do outro, as cabeças afastadas alguns centímetros do gradeado circular, situado diretamente acima da porta externa, e puseram-se a ouvir os guardas mexendo os pés incessantemente dentro da escuridão, cem jardas distante deles.
Cinco horas, seis, sete.
Lentamente o sol apareceu por trás da cúpula, e as gaivotas começaram a gritar nos penhascos. Então, surgiram de súbito as três figuras caminhando para eles na distância, passaram por um novo pelotão de guardas, os queixos levantados, os joelhos erguidos, vindos para render a ronda noturna.
As figuras foram-se aproximando, e os olhos apertados, exaustos, do casal oculto puderam ver todos os detalhes da cara vermelho-alaranjada de Drax, o pálido focinho de raposa do Dr. Walter, a nédia e balofa cara de sono de Krebs.
Os três homens caminhavam como se fossem executores de um fuzilamento, sem dizer nada. Drax tirou a chave, e eles, silenciosamente, entraram pela porta, alguns pés abaixo dos corpos tensos de Bond e Gala.
Depois, durante dez minutos, reinou o silêncio, quebrado apenas pelo som ocasional de vozes que subiam pelo cilindro do ventilador, quando os três homens se movimentavam pelo chão de aço em torno da cavidade exaustara. Bond sorriu consigo mesmo à ideia do ódio e da consternação que deveriam estampar-se no rosto de Drax; do infeliz Krebs, encolhendo-se sob as chicotadas da língua de Drax; a amarga acusação nos olhos de Walter. Foi então que a porta se escancarou abaixo dele, e Krebs chamou, imperioso, o chefe dos guardas.
— Die Engländer — a voz de Krebs era quase histérica. —Escaparam. O Herr Kapitän pensa que possam estar num dos tubos de ventilação. Vamos arriscar. A cúpula será aberta novamente, e nós vamos eliminar os vapores do combustível. Depois então o Herr Doktor passará a mangueira de vapor quente em cada um dos tubos. Se eles estiverem num deles, isto os liquidará. Escolha quatro homens. As luvas de borracha e as vestimentas para incêndio estão lá embaixo. Nós vamos tirar a pressão do aquecimento. Diga aos outros que prestem atenção para ver se escutam os gritos. Verstanden?
— Zu Befehl!
O homem voltou diligentemente para junto de seu grupo, e Krebs, com o suor da ansiedade no rosto, voltou-se e desapareceu novamente pela porta.
Por um momento Bond permaneceu imóvel.
Ouviram rumores pesados acima de suas cabeças, quando a cúpula se dividiu em dois e se abriu. A mangueira de vapor quente!
Bond ouvira contar de motins em navios sendo combatidos com isto. Desordens em fábricas. Será que alcançará doze metros? A pressão durará? Quantas caldeiras alimentavam o aquecimento? Entre os cinquenta tubos de ventilação, qual seria o escolhido para começarem? Teria Bond ou Gala deixado qualquer indício, com relação àquele que haviam subido?
Bond sentia que Gala esperava que ele explicasse. Que fisesse alguma coisa. Que protegesse a ambos.
Cinco homens vieram aproximando-se do semicírculo de guardas. Passaram por baixo e desapareceram.
Bond pôs a boca no ouvido de Gala.
— Isto poderá machucar — avisou. — Não posso prever quanto. Não pode ser evitado. Teremos de aguentar. Sem fazer barulho.
Sentiu logo a pressão dos braços dela, à guisa de resposta:
— Levante os joelhos. Não fique acanhada. A hora não é para pudores virginais.
— Cale a boca — sussurrou Gala, zangada. Ele sentiu um joelho subir e ficar trancado entre suas coxas. Seu próprio joelho seguiu por ali até não conseguir estender-se mais. A moça se remexia furiosamente.
— Não seja idiota — cochichou Bond, puxando-lhe a cabeça para junto do peito, até que ficou meio encoberta pela sua camisa aberta.
Bond encobriu-a tanto quanto possível. Não podiam fazer nada com relação aos tornozelos e as mãos. Levantou a gola da camisa, o mais que pôde por cima das cabeças. Apertavam-se um contra o outro.
Quentes, cheios de câimbras, sem respirar. Esperando — de repente a ideia ocorreu a Bond, como dois namorados debaixo de arbustos, ocultos. Esperando que as pisadas se afastassem, de modo a poderem principiar tudo novamente. Sorriu amargamente consigo mesmo e pôs-se à escuta.
O silêncio reinava lá embaixo, no foguete. Deviam estar na sala das máquinas. Walter devia estar assistindo à instalação da mangueira na válvula externa. Agora ouviam-se ruídos distantes. Por onde começariam?
Num ponto qualquer, não muito longe, havia um sussurro leve, bem arrancado do fundo, como o apito ineficiente de um trem distante.
Bond dobrou para trás o colarinho da camisa e arriscou um olhar por entre as grades, até os guardas. Os que conseguiu ver, olhavam em frente para a cúpula do lançamento, um pouco à sua esquerda.
Novamente o longo sussurro áspero. E mais uma vez se repetiu.
Ia ficando mais alto. Viu as cabeças dos guardas rodando para o lado das grades das paredes que ocultavam Gala e ele. Deviam estar observando, fascinados, enquanto os jatos brancos e espessos de vapor subiam pelas grades até lá em cima ha parede de cimento, conjeturando: “— Será esta, ou aquela, ou aquela outra, qual será que virá acompanhada de um duplo grito.”
Sentia o coração de Gala batendo de encontro ao seu. Ela não sabia o que estava por acontecer. Confiava nele.
— Pode machucar — sussurrou-lhe novamente. — Pode queimar. Não nos matará. Tenha coragem. Não emita um som.
— Eu estou bem — cochichou a moça, encolerizada. Mas ele percebeu que seu corpo se colava mais ao dele. Chuá! Estava chegando mais perto.
Chuá! A diferença era de dois tubos.
CHUÁ! Pegado a eles. Sentiu um leve cheiro do vapor.
— “Fique bem firme”, ordenou Bond a si mesmo. Esmagou a companheira de encontro ao próprio corpo e prendeu a respiração.
— “Agora. Depressa. Acabem com isso, desgraçados.”
E eis que, subitamente, houve uma grande pressão; o calor e um barulho infernal chegou-lhes aos ouvidos, seguidos de um instante de dor intolerável.
Depois um silêncio mortal, uma mistura de frio intenso e fogo nos tornozelos e nas mãos, uma sensação de estarem ensopados, e um esforço desesperado, sufocante, de fazer o ar puro penetrar nos pulmões.
Seus corpos lutaram automaticamente para se separarem um do outro, para conseguir alguns centímetros de espaço e ar para as áreas da pele que já começavam a cobrir-se de bolhas. A respiração rasgava-lhes as gargantas, e a água porejava do cimento para dentro de suas bocas abertas, até que ambos se curvaram para um lado e atiraram-na fora, e ela foi juntar-se ao riachinho que corria por baixo de seus corpos ensopados, descendo pelos tornozelos escaldantes e dali para as paredes verticais do tubo pelo qual haviam subido.
O uivo da mangueira a vapor afastou-se deles até se tornar um sussurro e, finalmente, cessar. Reinou então o silêncio na estreita prisão de cimento de ambos, ouvindo-se apenas suas teimosas respirações e o tique-taque do relógio de Bond.
Os dois corpos continuavam deitados e à espera, aguentando a dor.
Meia hora — meio ano — mais tarde, Walter, Krebs e Drax seguiram em fila por baixo deles.
No entanto, como medida de precaução, os guardas tinham sido deixados para trás na cúpula do lançamento.
CAPITULO 24
ZERO
Então estamos combinados?
— Sim, Sir Hugo — era o Ministro do Abastecimento quem falava. Bond reconheceu a figura espigada, segura de si. — As direções são aquelas. Meu pessoal verificou-as, independentemente, com o Ministério da Aeronáutica esta manhã.
— Neste caso, se me permite o privilégio — Drax levantou o pedacinho de papel e ia virando em direção à cúpula.
— Segure-a, Sir Hugo. Assim mesmo, por favor. O braço esticado no ar.
As lâmpadas dos flashes se acenderam, e o conjunto de câmaras zumbiu e estalou pela última vez. Drax voltou-se e andou os poucos metros que o separavam da cúpula, quase, assim pareceu a Bond, fitando-o diretamente nos olhos através do gradeado acima da porta da casamata.
A pequena turba de repórteres e fotógrafos dissolveu-se e encaminhou-se para o caminho de concreto, deixando para trás apenas um grupinho de oficiais que conversavam nervosamente, à espera de que Drax surgisse em cena.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e cinco. “Depressa, seu danado”, pensou.
Pela centésima vez repetiu para si mesmo os números qus Gala lhe ensinara durante as horas de dor e câimbras que se seguiram à provação do vapor, e pela centésima vez movimentou os membros para preservar a circulação.
— Apronte-se — cochichou no ouvido de Gala. — Está se sentindo bem?
Sentiu que a moça sorria.
— Ótimo.
Ela fechou a mente à ideia de suas pernas todas cheias de bolhas e da rápida descida, raspando-as pelo tubo de ventilação .
A porta fechou-se com um baque abaixo deles, seguindo-se o estalido da fechadura, e então, precedida por cinco guardas, a figura de Drax apareceu lá embaixo, marchando solene para o grupo de oficiais, a tira de papel com os números na mão.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e sete. — Agora — sussurrou.
— Boa sorte — respondeu Gala, também num sussurro. Escorregando, arranhando-se, rasgando-se. Seus ombros, cautelosamente, se expandiam e contraíam; os pés, cheios de bolhas, de sangue, procurando as saliências agudas do ferro; com o corpo dilacerado abrindo caminho através do tubo de um metro, rezava para que a pequena encontrasse forças para suportar tudo aquilo, quando o seguisse.
Finalmente, o pulo de três metros, que lhe repercutia na espinha, um pontapé nas grades, e ele galgava o chão de aço, corria para as escadas, deixando uma trilha de pegadas vermelhas e um borrifo de gotas de sangue caídas de seus ombros feridos.
Os arcos de luz haviam sido apagados, mas o clarão do dia penetrava pelo telhado aberto, e o azul do céu misturado ao fulgor da luz do sol davam a Bond a impressão de que estava correndo dentro de uma enorme safira.
A grande e mortal agulha no centro parecia ser feita de vidro. Olhando para cima, enquanto suava e arfava no percurso das infindáveis curvas da escada de ferro, era difícil para ele ver onde o nariz do foguete, afinando na ponta, terminava, e começava o céu.
Por trás do pesado silêncio que envolvia a bala esplendente, Bond ouvia um ruído apavorante e regular, o caminhar de minúsculos pés de metal num ponto qualquer do corpo do “Explorador da Lua”. Enchia o vasto compartimento de aço, como as batidas do coração na história de Poe, e Bond compreendeu que Drax, diretamente do ponto do tiro, apertara o interruptor que mandava a faixa radiofônica, disparando a mais de duzentas jardas até o foguete ali à espera. O tique-tique cessaria dentro em breve, ouvir-se-ia o suave gemido do catavento aceso, uma pequena porção de vapor das turbinas, e depois o rugido do jato de flama no qual o foguete se ergueria lentamente e se curvaria majestoso no início de sua gigantesca curva de aceleração.
E então, diante dele, viu o braço retorcido do guindaste dobrado novamente contra a parede, e sua mão alcançou a barra. O braço foi-se esticando para baixo e para fora em direção à linha fina e quadrada, na pele brilhante do foguete, que era a porta do compartimento do giroscópio.
Caminhando apoiado nas mãos e nos joelhos, Bond alcançou-o bem antes de as almofadas de borracha virem descansar contra o cromo polido. Encontrou o disco de descarga, do tamanho de um xelim, exatamente como Gala havia descrito. Apertar, estalar, e a pequenina porta se abria, girando no parafuso duro. Dentro. Cuidado para não ferir a cabeça. Os cabos cintilantes embaixo dos ponteiros da bússola. Virar. Torcer. Firme. Isto é para o rolamento. Agora o topo e o pior. Virar. Lento. Bem delicadamente. Mas firme. Um último olhar. Uma olhada no relógio. Quatro minutos para ir. Não fique em pânico. Volte. Estalido da porta. Uma fugida rápida de gato. Não olhe para baixo. O guindaste se ergueu. Bateu contra a parede. E agora as escadas.
Tique-tique-tique-tique.
Ao descer, Bond vislumbrou o rosto de Gala, branco, tenso, enquanto ela permanecia segurando a porta exterior aberta, a porta do escritório de Drax. Oh, Deus! Como seu corpo doía! Um último salto e uma reviravolta desajeitada para a direita. Pam! Quando bateu com força a porta de fora. Nova pancada, e ei-los atravessando a sala em direção ao chuveiro. A água jorrando sobre seus corpos pegajosos e doloridos.
Por dentro de todo aquele barulho, acima das batidas do próprio coração, Bond ouviu o súbito estalar da estática e, em seguida, a voz do locutor da BBC vinda do enorme aparelho da sala de Drax, poucos centímetros distante da parede fina do banheiro. Fora novamente Gala quem se lembrara do aparelho de rádio de Drax e que encontrara tempo para pô-lo a funcionar enquanto Bond trabalhava no giroscópio.
“... cinco minutos de atraso” — dizia a voz excitada, leve, ao microfone. — Bond fechou o chuveiro, e a voz chegou até eles mais claramente. — “Sir Hugo foi persuadido a dizer algumas palavras. Parece muito confiante. Está dizendo qualquer coisa no ouvido do Ministro. Estão ambos rindo. Gostaria de saber o que estão dizendo. Ah, eis o meu colega que chega com as últimas notícias a respeito do tempo, vindas do Ministério da Aeronáutica. Que dizem elas? Perfeito em todas as altitudes. Bom espetáculo. Não há dúvida de que temos um dia maravilhoso aqui, Ah! A multidão reunida à distância, perto da estação de guardas-costeiros, vai apanhar uma boa queimadura de sol. Deve haver milhares de pessoas ali. Que foi que você disse? Vinte mil? Bem, a impressão que dá é essa mesmo. Walmer Beach também está apinhada de gente. Toda a população de Kent parece estar na rua. Todo mundo vai ficar com mau jeito no pescoço. Vai ser pior que em Wimbledon. Alô, que é que está se passando ali no cais? Puxa, é um submarino que acaba de subir à superfície. Que espetáculo! É um dos maiores que existem, creio eu. E a equipe de Sir Hugo está lá embaixo também. Alinhados no cais, como se estivessem numa parada. Magnífica corporação. Agora entram a bordo em fila. Disciplina perfeita. Deve ser uma ideia do Almirantado. Oferecer-lhes uma recepção especial na entrada do Canal. Maravilhoso espetáculo. Gostaria que você estivesse aqui para ver. Agora Sir Hugo vem vindo em nossa direção. Dentro em pouco estará falando com vocês. Bela figura de homem! Todos os que se encontram no ponto de tiro o estão aclamando. Tenho certeza de que todos nós nos sentimos inclinados a aclamá-lo hoje. Ele vem vindo para o ponto de tiro. Daqui vejo o sol brilhando no nariz do “Explorador da Lua”, lá adiante, por trás dele. Começa a sair por trás do alto da cúpula de lançamento. Espero que alguém tenha uma máquina fotográfica. Ei-lo que chega aqui agora — uma pausa. — Sir Hugo Drax.
Bond olhou o rosto gotejante de Gala. Ensopados e sangrando, ficaram nos braços um do outro, sem falar e tremendo ligeiramente sob o impacto de suas emoções. Seus olhos nada exprimiam e eram insondáveis quando se fitaram.
A voz que se ergueu era aveludado rosnar:
— Vossa Majestade, homens e mulheres da Inglaterra. Estou prestes a modificar o curso da história da Inglaterra. — Uma pausa. — Dentro de poucos minutos todas as vossas vidas estarão alteradas, em alguns casos drasticamente, pelo — hum — impacto do “Explorador da Lua”. Sinto-me muito orgulhoso e feliz porque o destino me elegeu, dentre todos os meus compatriotas, para lançar esta grande flecha de vingança nos céus e assim proclamar para sempre e para que todo o mundo presencie, o poderio de minha Pátria. Espero que esta oportunidade seja para sempre um aviso de que o destino dos inimigos de meu País estará escrito em poeira, em cinzas, em lágrimas e — uma pausa — em sangue. E agora muito obrigado por me terem ouvido, e eu, sinceramente, faço votos para que aqueles dentre vós que puderem, repitam as minhas palavras aos seus filhos, se os tiverem, hoje à noite.
Uma onda um tanto hesitante de aplausos ecoou através do microfone. Em seguida, ouviu-se a voz animada do locutor.
— Acabamos de ouvir Sir Hugo Drax, dirigindo-lhes algumas palavras antes de atravessar o ponto de tiro que leva ao interruptor na parede que lançará o “Explorador da Lua”. É a primeira vez que fala em público. Muito — hum — incisivo. Não faz rodeios para falar. Entretanto, muita gente achará que não há nenhum mal nisto. E agora chegou o momento de eu passar o microfone ao técnico, Capitão-Chefe de Grupo Tandy, do Ministério do Abastecimento, que descreverá para vocês o lançamento do “Explorador da Lua”. Em seguida, ouvirão a palavra de Peter Trimble, numa das embarcações da patrulha de segurança naval, o HMS Merganzer, que descreverá a cena da área compreendida pelo alvo. O Capitão Tandy.
Bond lançou um olhar ao relógio.
— Só mais um minuto — disse a Gala. — Oh, meu Deus, como eu gostaria de pôr as mãos em Drax. Tome aqui — estendeu a mão para o sabonete e arrancou-lhe alguns pedaços. — Ponha isto nos ouvidos, quando chegar a hora. O barulho vai ser tremendo, não sei dizer como será o calor. Não durará muito, e as paredes de aço talvez aguentem bem. Gala olhou para ele. Sorriu.
— Se você me segurar, não vai ser assim tão ruim — falou.
— E agora Sir Hugo está com a mão no interruptor e olha o cronômetro.
— DEZ — disse outra voz, forte e sonora como o toque de um sino.
Bond abriu o chuveiro, e a água jorrou sobre seus corpos apertados um contra o outro.
— NOVE — reboou a voz do que controlava o tempo.
— Os operadores do radar estão olhando as telas. Nada, exceto uma massa de linhas onduladas. . .
— OITO.
— Todos estão usando tampões nos ouvidos. A casamata deve ser indestrutível. As paredes de concreto têm três metros e meio de espessura. O teto em pirâmide tem sete metros e pouco de espessura na ponta.. .
— SETE.
— Primeiro o rádio sustará o mecanismo do tempo nas turbinas. Porá em movimento o cata-vento. Uma coisa flamejante como uma rodinha de fogo de artifício. . .
— SEIS.
— As válvulas se abrirão. Combustível líquido, Fórmula secreta. Coisa formidável. Dinamite. Cai dos tanques de combustível ...
— CINCO.
— Aceso pelo pino giratório, quando o combustível chega ao motor do foguete. . .
— QUATRO.
— enquanto que a água oxigenada e o permaganato já se misturaram, tornaram-se vapor, e as bombas das turbinas começam a girar.. .
— TRÊS.
— bombeando o combustível inflamável, através do motor, na cauda do foguete, para a cavidade exaustora. Calor gigantesco. . . 3500 graus...
— DOIS.
— Sir Hugo está prestes a apertar o botão. Está olhando pela abertura. O suor lhe umedece a fronte. Completa tensão aqui. Tremenda tensão.
— UM.
Nada senão o ruído da água, caindo incessantemente nos dois corpos agarrados.
— FOGO!
O coração de Bond pulou para a garganta ao ouvir o grito. Sentiu Gala estremecer. Silêncio. Nada, senão o sibilar da água...
— Sir Hugo deixou a casamata. Vai caminhando calmamente para a borda dos penhascos. Tão confiante! Passou agora para o elevador. Vai descer. Naturalmente. Deve ir até o submarino. As telas de televisão mostram um pouco de vapor vindo da cauda do foguete. Mais alguns segundos. Sim, ele se encontra no cais. Olhou para trás e levantou o braço no ar. Bom velho Sir Hu...
Um troar longínquo chegou até Bond e Gala. Mais alto. Mais alto. O chão ladrilhado começou a tremer debaixo dos pés deles. Um clamor de furacão!! Seriam pulverizados. As paredes tremiam, queimavam. As pernas de ambos começaram a descontrolar-se sob seus corpos oscilantes. Segure-a bem. Segure-a bem. Pare com isso! Pare com isso!! PARE COM ESSE BARULHO.
Cristo, ele ia desmaiar. A água estava fervendo. Era preciso fechá-la. Encontrei. Não. O cano arrebentou. Vapor, cheiro, ferro, tinta.
Tire-a daqui para fora! Tire-a daqui para fora!! Tire-a daqui para fora!!!
Depois o silêncio. Silêncio que se podia sentir, apalpar, apertar. E eles estavam no chão do escritório de Drax. Só a luz do banheiro ainda brilhava. A fumaça ia dissipando-se. Assim como o cheiro horrível de ferro queimado e tinta. Estavam sendo sugados pelo ar condicionado. A parede de aço inclina-se para eles qual bolha gigantesca. Os olhos de Gala estão abertos, e ela está sorrindo. Mas o foguete? Que foi que aconteceu? Londres? Mar do Norte? O rádio. Parece em ordem. Sacudiu a cabeça, e a surdez foi lentamente desaparecendo. Lembrou-se do sabão. Retirou-o das orelhas.
— Atravessando a barreira do som. Viajando perfeitamente bem no centro da tela do radar. Um lançamento perfeito. Receio que não tenham ouvido nada por causa do barulho. Tremendo. Primeiro todo aquele grande lençol de chamas vindo do penhasco, saindo da cavidade exaustora, e depois vocês deveriam ter visto o nariz lentamente surgir da cúpula. Ei-lo que sobe como um enorme lápis de prata. Mantendo-se em posição vertical nesta imensa coluna de chamas e vagarosamente subindo no ar. A flama se espalhando por centenas de quilômetros sobre o concreto. O uivo da coisa deve ter ameaçado seriamente arrebentar nossos microfones. Grandes fragmentos caíram do penhasco, e o concreto parece uma teia de aranha. Tremenda vibração. E a agulha subindo cada vez mais rápida. Cem milhas por hora. Mil. E — o locutor interrompeu o que ia dizendo — o que é que você disse? Ah, sim? Agora está percorrendo o espaço numa velocidade de dez mil milhas horárias! Encontra-se a uma altura de trezentas milhas. Não posso ouvir mais, naturalmente. Só vimos a flama durante alguns segundos. Como uma estrela. Sir Hugo deve estar muito orgulhoso. Encontra-se, no momento, no Canal. O submarino partiu como um foguete. Deve estar fazendo mais de trinta nós. Atirando para cima um colosso de espuma. Já alcançou o East Goodwins agora. Viaja para o norte. Dentro em breve chegará até os navios patrulheiros. Presenciarão o lançamento e a aterrissagem. Mas esse itinerário foi meio surpreendente. Ninguém aqui tinha a menor indicação. Até mesmo as autoridades navais parecem um tanto mistificadas. O Comandante-em-Chefe Nore foi ao telefone. Mas agora é só o que eu lhes posso informar daqui e vou passar a palavra a Peter Trimble, a bordo do HMS Merganzer, num ponto qualquer da Costa Oriental.
Nada, exceto os pulmões funcionando, indicava que os dois corpos largados na lagoa sempre crescente do chão ainda estivessem vivos. Mas seus tímpanos avariados pendiam desesperadamente do ruído de estática que veio durante alguns instantes do gabinete de metal todo empipocado. Agora teriam o veredicto do seu trabalho.
— Aqui fala Peter Trimble. Temos uma linda manhã — retifico — tarde, aqui. Um pouco ao norte de Goodwin Sands. Calmo como um lago. Não há vento. O sol brilha alegremente. A área compreendida pelo alvo foi declarada limpa, sem nenhuma embarcação. Não é assim, Comandante Edwards? Sim, o Capitão diz que está tudo inteiramente limpo. Por enquanto nada se vê na tela do radar. Não me é permitido informar o raio em que o pegaremos. Por motivos de segurança, e essa coisa toda. Mas nós só pegaremos o foguete por uma fração de segundo. Não está certo o que digo, Capitão? Mas o alvo começa a aparecer na tela. Não se pode vê-lo da ponte, naturalmente. Deve estar a setenta milhas daqui, na direção do norte. Vimos o “Explorador da Lua” subindo. Espetáculo assombroso! O barulho semelhante a um trovão. Uma longa chama saía da cauda. Devia estar já a dez milhas de distância, mas não era possível deixar de ver a luz. Não é isto, Capitão? Ah, sim, compreendo. Bom, isto é muito interessante. O enorme submarino se aproxima rapidamente. Está apenas a uma milha de distância. Suponho que seja aquele onde se encontra Sir Hugo com seus homens. Nenhum de nós aqui foi informado de coisa alguma a seu respeito. O Capitão Edwards diz que não responde à lâmpada Aldis. Não traz distintivo de navegação. Muito misterioso. Peguei-o agora mesmo. Está bem nítido em meus binóculos. Mudamos de rumo para tentar a intercepção. O Comandante diz que não é um dos nossos. Acha que deve ser estrangeiro. Atenção! Mostrou agora suas cores. O que vem a ser isto? Santo Deus! O capitão diz que é um submarino russo. Puxa! Agora está arriando as bandeiras e submergindo. Bang! Ouviram? Atiramos visando a proa, mas já desapareceu. Que é isto? Ah, o operador do asdic informa que está acelerando cada vez mais, debaixo da água. Vinte e cinco nós. Puxa! De qualquer modo, o submarino não poderá ver muita coisa debaixo da água, porém encontra-se agora bem na área do alvo. Passam vinte minutos das doze horas. O “Explorador” deve ter mudado seu rumo e prepara agora a descida. A umas mil milhas. Velocidade de descida, dez mil milhas horárias. Estará aqui dentro de segundos. Espero que não se verifique tragédia alguma. O submarino russo encontra-se bem dentro da zona perigosa. O operador do radar está acenando para nós. É o sinal para avisar que está na hora. Vem chegando. Vem chegando! . . . Não se ouve o mais leve ruído! deus do céu! Que é isto? Cuidado! Cuidado! Uma terrível explosão.. . Uma nuvem negra se eleva no ar. Uma gigantesca vaga, como a de um maremoto, aproxima-se rapidamente de nós. Uma vaga enorme! O submarino! Santo Deus... vimo-lo agora saltar fora da água e voltar a mergulhar, de quilha para o ar! Vem chegando. . .! Vem chegando! ...
CAPÍTULO 25
ZERO MAIS
Duzentos mortos confirmados, até agora, e aproximadamente o mesmo número de pessoas desaparecidas — informou M.
— Ainda estão chegando notícias da costa oriental, e as informações da Holanda não são das melhores. Foram inutilizadas muitas milhas de suas defesas navais. A maioria de nossas perdas ocorreu nas unidades patrulheiras. Duas delas viraram, incluindo o Merganzer. O Comandante desapareceu. O camarada da B. B. C. também. Os navios-faróis de Good-win partiram as amarras. Ainda não recebemos notícias da Bélgica e da França. Haverá contas bem pesadas a pagar, quando tudo isto ficar em ordem...
Era na tarde seguinte, e Bond, com uma bengala de ponta de borracha ao lado da cadeira, voltava a sentar-se onde tudo havia começado: do outro lado da escrivaninha daquele homem calmo, de frios olhos cinzentos, que o convidara para jantar e jogar bridge, há cem anos atrás.
Por baixo da roupa, Bond era uma perfeita e entrelaçada teia de esparadrapo. A dor queimava-lhe as pernas, sempre que tentava mexer os pés. Um traço vermelho cortava-lhe a face esquerda e a parte superior do nariz. O linimento, feito à base de ácido pícrico, cintilava à luz que entrava pela janela. Segurava um cigarro, como podia, na mão enluvada. Inacreditavelmente, M. tinha-o convidado a fumar.
— Algumas notícias do submarino, chefe? — perguntou Bond.
— Já o localizaram — disse M. com satisfação. — Adernado a cerca de trinta braças de profundidade. O navio de salvamento que deveria localizar os restos do foguete encontra-se agora por cima dele. Os mergulhadores já estiveram no fundo, e não houve resposta aos sinais feitos no casco. O embaixador soviético esteve no Foreign Office esta manhã. Parece ter declarado vir a caminho um navio salva-vidas, proveniente do Báltico, mas respondemos que não podíamos esperar, visto que, tratando-se de um navio naufragado, constitui um perigo para a navegação, no local onde está. — M. riu. — Com efeito, seria um perigo se alguém se dispusesse a navegar a trinta braças de profundidade, em pleno Canal. Contudo, estou satisfeito por não ser membro do Ministério — acrescentou friamente. — Tem estado em sessão permanente, desde o final da transmissão radiofônica. Vallance conseguiu entrar em contato com os tais advogados de Edinburgh, antes de eles abrirem a mensagem de Drax para o mundo. Parece ser um documento terrível, como se tivesse sido escrito pelo próprio Jeová. Vallance levou-o ao Governo, na noite passada, e ficou no 10, Downing Street, para esclarecer pontos ainda não averiguados.
— Eu sei — disse Bond. — Ele esteve telefonando constantemente para o hospital, procurando saber detalhes, até depois da meia-noite. Eu mal podia raciocinar direito, devido aos entorpecentes que me aplicaram. E que vai acontecer agora?
— Vão tentar abafar a coisa, com a maior embromação de que se teve notícia até hoje em toda a História. Uma quantidade enorme de lero-lero científico, explicando que o combustível foi usado só pela metade. Deu-se uma inesperada e potente explosão. Serão pagas indenizações. Perda trágica de Sir Hugo Drax e sua valiosa equipe. Grande patriota. Perda trágica de um dos submarinos de Sua Majestade. Último modelo experimental, ordens mal compreendidas. Tudo muito triste. Felizmente, perdeu-se uma tripulação mínima. Os parentes mais próximos serão informados. Trágica perda de um radialista da B.B.C. Inacreditável erro ao confundir a insígnia branca com as cores navais soviéticas. O desenho é muito semelhante. A bandeira branca foi recuperada no naufrágio.
— Mas que me diz da explosão atômica? — indagou Bond. — Radiações, poeiras radioativas e tudo isso. . . A famosa nuvem em forma de cogumelo. Com certeza isso vai ser um problema para explicar.
— Aparentemente, não estão muito preocupados com a questão — disse M. — A nuvem vai passar como formação normal, após uma explosão daquela envergadura. O Ministério do Abastecimento conhece toda a história. Foi preciso contar-lhes. Seus homens andaram percorrendo ontem à noite toda a costa oriental, com contadores Geiger, e ainda não houve qualquer notícia positiva. — M. sorriu friamente. — A nuvem terá de descer em algum lugar, claro, mas por uma feliz circunstância, o vento está empurrando-a para o norte. De volta a casa, como se poderia dizer. . .
Bond esboçou um sorriso, com dificuldade.
— Compreendo. Que coisa apropriada.
— Evidentemente — prosseguiu M., enchendo o cachimbo — haverá por aí uma série de boatos desagradáveis. Já começaram, aliás. Muita gente viu você e Miss Brand, serem retirados em padiolas. Depois, há o caso da Bowaters contra Drax, pela perda de todo aquele material de impressão. Haverá também inquérito sobre o rapaz que foi morto no Alfa Romeo. E alguém terá de explicar como se encontraram os restos de seu automóvel, entre os quais, — e nesta altura, M. olhou acusadoramente para Bond — foi encontrado um Colt de cano longo. E temos ainda o Ministério de Abastecimento. Vallance teve de chamar alguns de seus homens, ontem, para limpar aquela casa da Ebury Street. Mas essa gente está treinada em guardar segredo. Não será por aí que se descobrirá alguma coisa. Naturalmente, será um negócio arriscado. Mas a mentira de grandes proporções sempre o foi. E qual seria a alternativa? Encrencas com a Alemanha? Guerra com a Rússia? Muita gente, dos dois lados do Atlântico, ficaria mais do que satisfeita se lhe déssemos um motivo para agir.
M. fez uma pausa e chegou um fósforo ao cachimbo. Depois continuou:
— Se a história fôr engolida, não sairemos muito mal de tudo isto. Quisemos um de seus submarinos ultravelozes e ficaremos satisfeitos com as pistas que conseguimos descobrir a respeito de suas bombas atômicas. Os russos sabem que nós sabemos que o jogo deles fracassou. Malenkov não está muito firme no poder, e isto pode muito bem significar outra rebelião entre os senhores do Kremlin. Quanto aos alemães, bem... todos nós sabemos que ainda ficou muito nazismo espalhado por aí, e isto servirá para que o Ministério seja um pouco mais cauteloso, no tocante ao rearmamento da Alemanha. Entre as consequências de menor vulto — disse com um sorriso — destaca-se a de que o trabalho de segurança de Vallance, e o meu também, aliás, vão ficar um pouco mais fáceis para o futuro. Esses políticos não veem que a era atômica criou o mais letal sabotador da história da humanidade: o homenzinho com a valise pesada.
— E a imprensa vai engolir essa história? — perguntou Bond, duvidoso.
M. sacudiu os ombros.
— O Primeiro-Ministro teve esta manhã um encontro com os jornalistas — respondeu M., chegando outro fósforo ao cachimbo — e creio que conseguiu tudo da melhor maneira. Se os boatos se intensificarem mais tarde, ele terá, provavelmente, de convocá-los novamente e dizer-lhes parte da verdade. Então, eles se portarão bem. Sempre se portaram, quando o negócio é importante de verdade. O principal é ganhar tempo e manter afastados os boateiros. No momento, todos estão de tal maneira orgulhosos do “Explorador da Lua”, que não indagarão muito minuciosamente que foi que não deu certo.
Ouviu-se um leve zumbido no intercomunicador da escrivaninha de M., e uma luzinha vermelha piscou repetidas vezes. M. pegou no fone e curvou-se. — Alô. — Houve uma pausa. — Atenderei na linha do Ministério. — Apanhou o receptor branco, na mesa onde havia quatro telefones. — Sim. Está falando. — Nova pausa. — Pronto, sir? Escuto. — M. premiu o botão do misturador de sons. Segurou o fone junto ao ouvido, e nem um som chegou até aos ouvidos de Bond. Houve uma longa pausa, durante a qual M. ia puxando uma ou outra baforada do cachimbo, com a mão esquerda, enquanto escutava. Depois, tirou-o da boca. — De acordo, sir. É isso mesmo, sir. — Outra pausa. — Estou certo de que o meu homem teria ficado extremamente orgulhoso, sir. Mas, naturalmente, como Vossa Excelência sabe, é uma regra aqui no serviço. — M. franziu a testa. — Se me permite dar uma opinião, sir, creio que não seria nada aconselhável. — Uma pausa e a fisionomia de M. se desanuviou. — Obrigado, sir. Claro, Vallance não tem o mesmo problema. É o mínimo que ela merece, sir. — Outra pausa. — Compreendo. Assim será feito, sir. — Nova pausa. — É muita bondade sua, sir.
Depois de mais alguns cumprimentos, M. colocou o telefone branco no gancho, e o botão do misturador voltou à sua posição inicial de “livre”.
Por uns instantes, M. continuou fitando o telefone, como se em dúvida a respeito do que fora dito. Depois rodou a cadeira para longe da escrivaninha e olhou pela janela, pensativo.
Reinou o silêncio na sala, e Bond remexeu-se na cadeira, para aliviar a dor que lhe invadia novamente o corpo.
O mesmo pombo de segunda-feira, ou talvez outro, veio descansar no peitoril da janela, com o mesmo ruflar de asas. Caminhava para um e outro lado, baixando a cabeça e arruinando. Depois, voou para as árvores do parque. O tráfego murmurava, sonolento, na distância.
Como estivera perto, pensou Bond, de embarcar desta para melhor. Quão perto estivera de não haver nada mais do que a sirena distante da ambulância sob um sinistro céu negro e alaranjado, o cheiro de queimado, os gritos das pessoas ainda presas nos edifícios. O suave bater do coração de Londres, silenciado por uma geração. E toda uma geração de sua gente, morta nas ruas, entre as ruínas fumegantes de uma civilização que talvez não se erguesse de novo senão daí a muitos séculos.
Tudo isso teria acontecido por causa de um homem que fazia trapaça nas cartas, desdenhosamente, para alimentar o fogo devorador de seu ego maníaco; teria acontecido, se não fosse o presidente do clube Blades que o descobriu; se não fosse M., que concordara em ajudar um velho amigo; se não fosse a lição meio recordada por Bond e aprendida com um perito em trapaças; se não fossem as precauções de Vallance; se não fosse a boa cabeça de Gala para cálculos; se não fosse por uma série completa de circunstâncias fortuitas, de oportunidades .
E quem preparou a série?
Ouviu-se um ranger agudo, quando a cadeira de M. girou. Bond, cautelosamente, voltou a focalizar sua atenção nos olhos cinzentos do outro lado da escrivaninha.
— Era o Primeiro-Ministro — explicou M., em voz agridoce. — Diz que deseja que tanto você como Miss Brand saiam do País. — M. baixou os olhos e pousou-os, impassível, no fornilho do cachimbo. — Vocês dois têm de dar o fora até amanhã à tarde. Há muitas pessoas, neste caso, que lhes conhecem as caras. Poderão somar dois e dois e saberem que são quatro, quando virem em que estado lamentável se encontram. Vão para qualquer lugar que lhes agrade. Despesas sem limite de verba para ambos. Qualquer importância que precisarem. Vou falar com o Tesoureiro. Fique fora por um mês. Mas completamente fora de circulação, entendeu? Vocês dois já deveriam ter partido esta tarde, mas a moça tem um compromisso amanhã às onze horas. No Palácio. Foi-lhe concedida a George Cross. Mas isso não será divulgado até ao novo ano, claro. Gostaria de encontrá-la, qualquer dia. Deve ser uma excelente moça. Aliás — a expressão de M., quando levantou os olhos, era indecifrável — o Primeiro-Ministro tinha na ideia qualquer coisa para você, também. Esquecera que nós, aqui, não admitimos essas coisas. De modo que me pediu para lhe agradecer em nome dele. Disse algumas palavras simpáticas a respeito de nosso serviço. É muito gentil.
M. esboçou um daqueles raros sorrisos que iluminavam seu rosto com uma vivacidade e calor imediatos. Bond retribuiu o sorriso. Eles compreendiam bem as coisas que não chegavam a ser ditas.
Bond percebeu que era tempo de sair. Levantou-se e disse:
— Muito obrigado, chefe. Estou muito satisfeito pela moça.
— Bom, então está tudo combinado — disse M., com uma nota de despedida na voz. — Por hoje basta. Vê-lo-emos aqui dentro de um mês. Ah, é verdade — acrescentou com naturalidade — passe pelo seu escritório antes de sair. Encontrará uma coisa que eu lhe deixei lá. Uma pequena lembrança .
James Bond desceu pelo elevador e foi mancando pelo corredor, até seu gabinete. Quando cruzou a porta interior, encontrou sua secretária arrumando alguns papéis na escrivaninha ao lado da dele.
— 008 já está de volta? — perguntou.
— Sim — respondeu ela, sorrindo feliz. — Deve voar esta noite para cá.
— Ótimo, fico alegre por saber que você terá companhia — disse Bond. — Vou partir novamente.
— Oh! — exclamou a moça. Olhou rapidamente para ele e depois desviou o olhar. — Você está mesmo com cara de quem precisa de um bom descanso.
— Pois vou tê-lo mesmo. Um mês de exílio. — Pensou em Gala. — Vai ser um período de puras férias. Nada mais. Alguma coisa para mim?
— Seu novo carro está lá embaixo. Já o examinei. O homem disse que você lhe tinha dado ordens para que o trouxessem para experiência esta manhã. É lindo! Ah, é verdade. E tem ainda o pacote que veio do gabinete de M. Quer que o desembrulhe?
— Sim, por favor. . .
Bond sentou-se à escrivaninha e olhou o relógio. Cinco horas. Sentia-se fatigado. Sabia que iria sentir o mesmo durante alguns dias. Sempre tinha essas reações, no final de uma difícil missão. Era a consequência dos dias de nervos em tensão, dos temores, do medo.
Sua secretária voltou ao escritório, com duas caixas de papelão, de aspecto pesado. Colocou-as sobre a escrivaninha, e ele abriu a de cima. Quando viu a espécie de papel que envolvia o objeto, percebeu logo o que estava para vir.
Havia um cartão dentro da caixa. Bond pegou-o e leu. Na tinta verde usada por M., este dizia: “Você pode precisar destas coisas.” Não havia assinatura.
Bond desembrulhou o papel impermeável e sopesou a nova e refulgente Beretta em sua mão. Um lembrete. Não. Uma recordação. Bond sacudiu os ombros e fez a arma deslizar por baixo do casaco, para o coldre vazio. Levantou-se com alguma dificuldade.
— No outro embrulho, você encontrará um Colt de cano longo — disse ele à secretária. — Guarde até eu regressar. Então, eu o levarei ao fogão da cantina e jogá-lo-ei lá dentro.
Caminhou para a porta:
— Adeus, Lil. Lembranças a 008, e diga-lhe que tome cuidado com você. Eu estarei na França. Estação F terá meu endereço. Mas só em caso de emergência.
A moça sorriu.
— Que deverei considerar uma emergência? — perguntou.
Bond soltou uma pequena risada.
— Qualquer convite para um tranquilo jogo de bridge, por exemplo — respondeu ele.
Saiu mancando e fechou a porta.
O Mark VI, modelo 1953, tinha uma carroçaria esportiva e elegante, cor cinza de navio de guerra como o velho quatro litros e meio que fora para a sepultura numa garagem de Maidstone. O estofamento de couro azul-marinho deu um luxuoso gemido de coisa nova, quando Bond subiu, desajeitadamente, para o assento ao lado do motorista de provas.
Meia hora depois, o motorista ajudou-o a descer na esquina de Birdcage Walk com Queen Anne’s Gate.
— Se o senhor quisesse, poderíamos ter feito maior velocidade — disse o motorista. — E se nos autorizar a ficar com ele por mais uns quinze dias, poderemos prepará-lo para chegar aos cento e sessenta horários.
— Mais tarde — respondeu Bond. — Está comprado. Mas com uma condição. De que você o leve à terminal do ferry-boat na estação de Calais, amanhã à tarde.
O motorista sorriu:
— O.K. Eu o levarei. Verei o senhor no cais, está bem?
— Combinado. Siga com cuidado pela A-20. A estrada de Dover está muito perigosa, estes últimos dias.
— Não se preocupe, sir — respondeu o motorista, pensando que aquele homem devia ser um tanto medroso, apesar de tudo o que parecia conhecer a respeito de automóveis. — Não acontecerá nada.
— Nem todos os dias — advertiu ainda Bond, sorrindo. — Vê-lo-ei em Calais.
Sem esperar a resposta, saiu mancando, apoiado à bengala, por entre os raios de luz poeirenta do crepúsculo, filtrados através das árvores do parque.
Sentou-se defronte da ilha, no lago, e puxou da cigarreira, acendendo um cigarro. Olhou o relógio. Cinco para as seis. Lembrou-se de que ela não era o tipo de pequena que não seria pontual num encontro. Reservara a mesa de um canto parar o jantar. E depois? Mas, primeiro, haveria o longo e requintado planejar. De que gostaria ela? Onde gostaria de ir? Onde já teria estado? Alemanha, com certeza. França? Deixaria Paris de lado. Poderiam visitar a cidade no regresso. Mas, na primeira noite, iriam o mais longe que pudessem, bem longe do Pas de Galais. Havia aquela casa de campo, com uma comida maravilhosa, entre Montreuil e Étaples. Depois, a descida ao longo do Loire. Os pequenos lugares perto do rio, para alguns dias. As cidades dos castelos, não. Lugares como Beaugency, por exemplo. Depois, vagarosamente, para o sul, sempre seguindo pelas estradas do Oeste, evitando a vida em lugares mundanos e hotéis de cinco estrelas. Explorando lentamente o caminho. Bond teve um sobressalto. Explorar o quê? Um ao outro? Seria que ele estava levando a pequena a sério, demasiado a sério?
— James.
Era uma voz clara, bem timbrada, um pouco nervosa. Não a voz que ele esperava.
Levantou os olhos. Ela estava de pé, a poucos metros de distância. Bond reparou que usava uma boina preta, colocada num ângulo brejeiro. Tinha um ar excitante, misterioso, como alguém que vemos, em terra estranha, conduzindo sozinha um carro aberto. Alguém inatingível e mais desejável do que qualquer outra pessoa que já se conheceu até hoje. Alguém que está a caminho de um encontro amoroso com outro. Alguém que não é para você.
Bond ergueu-se, e deram-se as mãos.
Foi ela quem soltou a sua. Não se sentou.
— Gostaria muito que você fosse amanhã, James — disse Gala.
Seus olhos eram ternos quando o fitou. Ternos e suaves, mas, pensou ele, algo evasivos. Bond sorriu.
— Amanhã de manhã? Ou amanhã à noite? — disse ele.
— Não seja ridículo — respondeu Gala, rindo e corando. — Amanhã no Palácio.
— E depois? Que tenciona você fazer?
Gala encarou-o, cautelosamente. Que seria que esse olhar lembrava a ele? O olhar de Morphy? O olhar com que fitara Drax, na derradeira mão do jogo no Blades? Também não. Havia algo mais. Ternura? Pena?
A moça olhou por cima do ombro. Bond deu meia volta. Mais adiante viu a figura de um rapaz alto, de cabelos louros e cortados curtos. Estava de costas para ambos, sem fazer qualquer movimento. Matando o tempo.
Bond voltou a cabeça para Gala, e os olhos dela encontraram os seus.
— Vou-me casar com aquele homem — declarou ela, simplesmente. — Amanhã de tarde. — E então, como se não houvesse necessidade de outra explicação, acrescentou: — O nome dele é Vivian, Detetive-Inspetor.
— Ah, sim — disse Bond — compreendo. — Sorriu, um tanto amargo.
Houve um momento de silêncio, durante o qual seus olhos se desviaram para longe.
Entretanto, por que motivo deveria ele esperar outra coisa diferente? Um beijo. O contato de dois corpos assustados, agarrando-se no meio do perigo. Nada mais houvera. Depois, o anel de noivado sempre estivera no dedo dela, para que Bond não tivesse dúvidas. Por que supusera ele, automaticamente, que a moça o usara apenas como estratagema para que Drax não excedesse os limites? Por que imaginara que ela compartilhava de seus desejos e de seus planos?
E agora? conjeturava Bond. Sacudiu os ombros para expulsar a dor do fracasso... essa dor que é bem maior do que o prazer do sucesso. Afastar-se, era agora a única saída. Sair do caminho dessas duas vidas jovens e levar seu frio coração para qualquer outro lugar. Nada de penas. Nada de falsos sentimentos. Tinha de representar o papel que ela esperava dele. O homem duro, mundano. O Agente Secreto. O homem que era apenas uma silhueta.
Gala fitava-o, bastante nervosa, esperando ver-se desligada do estranho que tentara penetrar no átrio de seu coração.
Bond sorriu, com calor.
— Estou com ciúme — disse ele. — Tinha outros planos para você amanhã à noite.
Gala retribuiu o sorriso, grata por ter sido quebrado o silêncio.
— Quais eram esses planos? — indagou.
— Ia levá-la a uma casa de campo na França. E, depois de um jantar maravilhoso, pretendia verificar se é verdade o que dizem a respeito do grito de uma rosa.
A moça riu.
— Lamento muito não poder participar desses planos. Mas existem tantas outras, esperando serem colhidas.
— Sim, creio que sim — disse Bond. — Então, adeus, Gala.
Estendeu-lhe a mão.
— Adeus, James.
Bond tocou em Gala Brand pela derradeira vez e, depois, separaram-se, caminhando cada qual ao encontro de suas tão diferentes vidas.
CAPÍTULO 20
A JOGADA DE DRAX
Havia três diferentes fontes de dores no corpo de Gala. A dor latejante atrás da orelha esquerda, a carne mordida nos pulsos, e o queimar das correias em torno de seus tornozelos.
Cada saliência do terreno, cada desvio, cada pressão repentina do pé de Drax nos freios ou no acelerador, despertava uma dessas dores e lhe irritava os nervos. Se ao menos tivesse sido colocada mais presa ao assento de trás. Mas só havia lugar para seu corpo rolar alguns centímetros no assento, de modo que se via obrigada a contorcer constantemente o rosto machucado para evitar o contato com as paredes de brilhante couro de porco.
O ar que respirava era abafado, com um cheiro de forração nova de couro, fumaça do cano de descarga e, de quando em quando, o mais acentuado de borracha queimada, cada vez que Drax raspava os pneumáticos numa esquina de curva acentuada.
No entanto, o desconforto e a dor não eram nada. Krebs! Curioso como seu temor e repulsa por Krebs a atormentava mais que tudo. As outras coisas eram grandes demais. O mistério de Drax e seu ódio pela Inglaterra. O enigma do seu perfeito domínio da língua alemã. O “Explorador da Lua”. O segredo da cápsula atômica. Como salvar Londres. Eram assuntos que há muito tempo ela afastara para um recanto do cérebro como coisas insolúveis.
Mas a tarde passada a sós com Krebs estava presente e terrível em seu espírito, e este voltava sempre e sempre aos detalhes da mesma, como uma língua em cima de um dente dolorido.
Muito tempo depois de Drax ter partido, ela continuara a fingir inconsciência. A princípio, Krebs se ocupara com as máquinas, conversando com elas em alemão, numa falinha de bebê, toda carinhosa.
— Pronto, minha Liebchen. Agora está melhor, não está? Uma gota de óleo para você, minha Pupperl? Como não? Vai já. Não, não sua preguiçosa. Eu disse mil voltas. Não novecentas. Vamos ver agora. Nós podemos fazer coisa melhor, não podemos? Sim, minha Schatz. É isto. Rodando, rodando, lá vamos nós. Para cima e para baixo. Rodando, rodando. Deixe eu limpar sua carinha bonita, para você, para nós podermos ver o que o pequenino mostrador está dizendo. Jesus Maria, bist du ein braves Kind!
E assim continuara, ora ficando em pé, diante de Gala, ora esgaravatando o nariz e chupando os dentes, numa atitude horrível de ruminante. Até que foi permanecendo cada vez mais tempo diante dela, esquecendo as máquinas, conjeturando, tomando uma resolução.
E então sentira a mão dele desabotoar o botão de cima de seu vestido, e o recuo (automático de seu corpo teve de ser disfarçado por um grunhido realístico e uma pantomima de volta de consciência.
Pedira água, e ele fora buscar no banheiro, trazendo um pouco num copo de escova de dentes. Depois puxara uma cadeira de cozinha para a frente dela e sentara-se atravessado, de costas para o assento, o queixo descansando na última travessa do encosto. Ficara então a fitá-la especulativamente, por baixo das pálpebras caídas, com aqueles olhos desbotados.
Ela fora a primeira a romper o silêncio.
— Por que me trouxeram aqui? Para que são todas essas máquinas?
Krebs lambera os lábios de sua boquinha vermelha e bicuda, aberta sob a mancha de bigode amarelo, e foi formando lentamente um sorriso em forma romboide.
— Isto é um engodo para passarinhos. Dentro em breve atrairá um passarinho para seu ninho quente. Então o passarinho porá um ôvo. Oh, um ôvo tão grande, redondo! Um ôvo lindo!
A parte inferior de seu rosto ria encantada, enquanto seus olhos divagavam.
— A mocinha bonita está aqui porque, de outro modo, poderia assustar o passarinho, e este ir embora. E isto seria tão triste, não é mesmo? — o homem cuspiu as três palavras seguintes: — Cadela inglesa e suja!
Seus olhos tornaram-se atentos, cheios de resolução. Puxou a cadeira mais para perto, de modo que seu rosto ficou muito próximo ao dela, e ela se viu envolvida pelo miasma de sua respiração.
— E agora, cadela inglesa, diga para quem você está trabalhando? — Esperou. — Você precisa me responder, sabe? — avisou suavemente. — Nós estamos sozinhos aqui. Não há ninguém para lhe ouvir gritar.
— Não seja estúpido — disse Gala em desespero de causa. — Como eu poderia estar trabalhando para outra pessoa que não fosse Sir Hugo? (Krebs sorriu ao ouvir o nome).
— Eu só estava curiosa a respeito do plano de voo...
Gala iniciou uma explicação arrastada, a respeito de seus números e os de Drax, e de como desejara partilhar do sucesso do “Explorador da Lua”.
— Tente novamente — sussurrou Krebs, quando ela terminou. — Você deve sair-se melhor que isso — e, subitamente, seus olhos haviam-se tornado chispantes de crueldade, e suas mãos se estenderam para ela, por trás do encosto da cadeira. . .
No assento de trás do veloz Mercedes, Gala rangeu os dentes e choramingou com a lembrança dos dedos leves se arrastando pelo seu corpo, tateando, beliscando, puxando, enquanto seus olhos, durante o tempo todo, fitavam curiosamente os dela, até que, finalmente, ela juntou saliva na boca e deu uma cusparada bem no meio da cara do homem.
Este nem se dera o trabalho de parar para limpar o rosto, mas, de repente, aplicara-lhe um golpe violento, e ela gritara uma só vez, para em seguida desmaiar.
E então se vira sendo empurrada para a parte traseira do carro, com um tapete atirado em cima dela, e eles partiram velozmente pelas ruas de Londres. Gala ouvia outros carros perto deles, o campainhar frenético de uma bicicleta, um grito de vez em quando, o grunhido animalesco de uma velha klaxon, o ronronar de uma lambreta, um rangir de freios, e compreendeu que voltara ao mundo real, que pessoas inglesas, amigos, estavam em volta dela. Lutara para se pôr de joelhos e gritar, mas Krebs devia ter-lhe pressentido os movimentos, porque as mãos dele se encontraram repentinamente em seus tornozelos, prendendo-os à barra de descanso para os pés, no chão. Compreendeu que estava perdida, e as lágrimas lhe correram pelas faces, enquanto rezava para que alguém, de um jeito ou de outro, chegasse a tempo.
Isto acontecera há menos de uma hora, e agora ela podia garantir que haviam chegado a uma cidade grande — Maidstone, se estava sendo levada de volta para a base.
No relativo silêncio do avanço do Mercedes por dentro da cidade, ela ouviu, subitamente, a voz de Krebs. Havia nela um quê de ansioso.
— Mein Kapitän, tenho estado a observar um carro já há algum tempo. Não resta dúvida de que está nos seguindo. Raramente usa os faróis. Está apenas a uns cem metros de distância, atrás de nós agora. Eu acho que é o carro do Comandante Bond.
Drax grunhiu de surpresa, e ela ouviu seu corpanzil virar-se todo para dar uma rápida olhada.
Praguejou violentamente, e depois veio o silêncio, dentro do qual ela pôde sentir o carro grande se movimentando em curvas e se esforçando por ganhar terreno dentro do trânsito.
— Ja, sowas! — disse finalmente Drax. Sua voz parecia preocupada. — Quer dizer que aquela velha peça de museu ainda pode movimentar-se. Tanto melhor, meu caro Krebs. Parece que ele está sozinho.
Deu uma risada desagradável:
— Deixe que ele fique por nossa conta, porque se sobreviver, nós o meteremos no mesmo saco com a mulher. Ligue o rádio. Estação local. Logo saberemos se existe algum obstáculo.
Ouviu-se um rápido estalido da estática e depois Gala escutou a voz do Primeiro-Ministro, a voz das grandes ocasiões de sua vida, vinda em fragmentos entrecortados, enquanto Drax punha o carro em terceira e acelerava para sair da cidade: “. . . arma criada pela engenhosidade do homem. . . mil milhas acima no firmamento. . . área patrulhada pelos navios de Sua Majestade. . . planejado exclusivamente para a defesa de nossa amada ilha. . . uma longa era de paz... desenvolvimento para a grande viagem do homem além dos limites deste planeta. . . Sir Hugo Drax, esse grande patriota e benfeitor do nosso País...”
Gala ouviu o estrondear da gargalhada acima do uivar dos ventos, um vasto latido de desprezo e triunfo e, em seguida, o rádio foi desligado.
— James — sussurrou Gala consigo mesmo. — Só resta você. Tenha cuidado. Mas ande depressa.
O rosto de Bond era uma máscara de poeira e imundície com o sangue das moscas e outros insetos que se haviam esmagado contra ele. Muitas vezes tivera de retirar uma das mãos com câimbra do volante, para limpar os óculos, mas o Bentley ia portando-se muito bem, e ele tinha certeza de que pegaria o Mercedes.
Estava quase alcançando noventa e cinco na linha reta, pouco antes da entrada para Leed Castle, quando luzes possantes foram emitidas por trás dele, e uma buzina de quatro tons executou seu ousado “pam-pim-pim-pam” quase dentro de seu ouvido.
A aparição de um terceiro carro na corrida era quíase inacreditável. Bond mal se dera o trabalho de olhar no espelho retrovisor, desde que havia saído de Londres. Ninguém, a não ser um corredor de automóvel ou um homem desesperado, poderia ter emparelhado com eles, e seu espírito se encontrava numa confusão quando, automaticamente, afastou-se para a esquerda e viu, com o rabo dos olhos, um carro baixo, vermelho como os dos bombeiros, emparelhar com ele e afastar-se com uma diferença de umas dez milhas, uma hora extra em seu relógio.
Vislumbrou o famoso radiador Alfa e, na borda do capô, escrito em letras grandes, brancas, as palavras: Attaboy II. Em seguida, viu o rosto sorridente de um rapazinho em mangas de camisa, que espetou dois dedos vermelhos no ar antes de desaparecer na mistura de sons que um Alfa em disparada compõe com o gemido de seu escape, o espooar do cano de descarga e o uivo trovejante do transmissor.
Bond sorriu cheio de admiração ao levantar a mão para o chofer. Alfa Romeu, oito cilindradas, com surpercarburadores, pensou consigo mesmo. Deve ser quase tão velho quanto o meu. ‘32 ou ‘33, provavelmente. E só a metade de meus cc. Targa Florio, em 1931, e depois disso fez bonito em toda a parte. Com certeza era um tipo desses de cabeça quente, ouvindo uma das estações da RAF dos arredores. Tentando voltar de alguma festa a tempo de assinar o ponto antes de ser citado num relatório. Observou benèvolamente quando o Alfa balançou a cauda na curva em S ao lado de Leeds Ctostle e, em seguida, passou uivando pelo longo caminho largo em direção à distante bifurcação de Charing.
Bond bem podia imaginar o sorriso de satisfação do rapaz, quando este alcançou Drax: “Ôba. É uma Merc!” E a raiva de Drax, ao ouvir a música impudente da buzina. Deve estar fazendo 105, pensou Bond. Espero que esse maluquinho não saia da estrada. Ficou a olhar os dois jogos de luzes traseiras se aproximando, o rapaz do Alfa se preparando para o truque de surgir por trás e, de repente, acelerar ao máximo, assim que tivesse uma oportunidade para passar.
Pronto. Quatrocentas jardas adiante o Mercedes apareceu, branco, iluminado pelas luzes duplas do Alfa. Havia uma milha de estrada livre na frente, completamente reta. Bond quase sentia os pés do rapaz pisando o pedal mais fundo ainda. Ôba rapaz!
Lá na frente, no Mercedes, Krebs tinha a boca colada ao ouvido de Drax.
— Outro deles — gritou aflito. — Não consigo ver o rosto. Vem vindo para nos passar agora.
Drax deixou escapar uma obscenidade a meia voz. Seus dentes branquejaram no pálido reflexo do painel.
— Vou dar uma lição a esse canalha — falou, endireitando os ombros e agarrando o volante com firmeza com as grandes luvas de couro. Com o canto dos olhos viu o capô da Alfa surgir a estibordo. ‘Tam-pim-pim-pim”, cantava a buzina, suave, delicadamente. Drax virou rápido o volante do Mercedes para a direita e, depois do horrível chocalhar dos metais, trouxe-o novamente para o centro, a fim de corrigir a posição.
— Bravo! Bravo! — gritou Krebs, fora de si com a excitação, ao ajoelhar-se no assento do carro e olhar para trás.
— Dupla capotagem. Passou por cima da cerca de cabeça para baixo. Acho que já está se incendiando. Sim. Estou vendo as chamas.
— Isto dará ao nosso caro Sr. Bond qualquer coisa para refletir — rosnou Drax, respirando pesadamente.
Bond, porém, o rosto impassível, mal examinara o velocímetro, e nada havia a não ser vingança em seu espírito, quando partiu veloz atrás do Mercedes que voava.
Vira tudo. O voo grotesco do carro vermelho, ao virar de rodas para o ar, e tornar a virar, a figura do rapaz projetada para o alto, os braços e as pernas abertos, ao ser cuspido para fora do volante, e o estrondo final, quando o carro saltou a cerca de cabeça para baixo e foi desmoronar-se no campo.
Quando passou disparado, observando as marcas horríveis de grafita deixadas pela derrapagem, seu espírito anotou um toque macabro final. Saindo, não se sabe como, incólume do holocausto, a buzina ainda dava contato, e seu ulular subia para o céu, abrindo estridentemente estradas imaginárias para a passagem do Attaboy II: “Pam-pim-pim-pam. Pam-pim-pim-pam.”
Com que então um homicídio tivera lugar bem debaixo de seus olhos. Ou, pelo menos, uma tentativa de homicídio. Assim, fossem quais fossem seus motivos, Sir Hugo Drax era um criminoso e, provavelmente, um maníaco. Isto, acima de tudo, significava perigo certo para o “Explorador da Lua”. Era o bastante para Bond. Meteu a mão debaixo do painel e, de seu coldre escondido, tirou o Colt Especial do Exército, calibre 45 de cano longo, e colocou-o no assento ao seu lado. A batalha agora era em campo aberto e, de um jeito ou de outro, o Mercedes teria de ser parado.
Usando a estrada como se fosse Donington, Bond pisou o acelerador e ali conservou o pé. Pouco a pouco, com o ponteiro oscilando de cada lado do número cem, começou a diminuir a diferença.
Drax entrou pelo lado esquerdo da bifurcação em Charing e subiu embalado a longa colina. Na frente, dentro do raio gigante de seus faróis, um grande caminhão de transporte, desses de oito rodas, um AEC Diesel, ia subindo a primeira curva do caminho, lutando sob o peso de quatorze toneladas de notícias impressas que levava numa viagem noturna para um dos jornais do East Kent.
Drax praguejou baixinho, ao ver o longo transporte de vinte rolos gigantescos, cada um deles contendo cinco milhas de papel impresso com notícias, amarradas lá em cima. Logo ali, no meio daquela curva traiçoeira em S, no alto da colina.
Olhou no espelho retrovisor e viu o Bentley chegando à bifurcação.
Foi então que teve uma ideia.
— Krebs — o nome saiu como um tiro de pistola. — Tire sua faca.
Um estalido agudo, e o estilete já estava na mão de Krebs. Ninguém perdia tempo, quando havia aquela nota na voz do mestre.
— Vou diminuir a marcha e seguir atrás do caminhão. Tire os sapatos e as meias, suba no capo, e quando eu vier por detrás dele, pule em cima. Eu irei na maior vagareza. Não haverá perigo. Corte as cordas e segure os rolos de papel. Primeiro os da esquerda. Depois os da direita. Nessa altura eu já terei colocado o carro no mesmo nível do caminhão, e quando você tiver cortado o segundo lote, pule no carro. Tenha cuidado para não ser levado com o papel. Verstanden? Also. Hals und Beinbruch!
Drax apagou as luzes dos faróis e contornou a curva a oitenta quilômetros por hora. O caminhão ia vinte jardas adiante, e ele teve de frear com força, a fim de não abalroá-lo. O Mercedes executou uma derrapagem, até o radiador ficar quase debaixo do chassi do caminhão.
Drax fez a mudança para segunda:
— Agora!
Manteve o carro firme como uma rocha, quando Krebs, descalço, passou por cima do para-brisa e foi-se arrastando ao longo do brilhante capo, com a faca na mão.
Num salto, atingiu o ponto visado e começou a cortar as cordas do lado esquerdo. Drax afastou-se para a direita e foi deslizando até ficar paralelo às rodas traseiras do Diesel, a fumaça do óleo vinda do cano de descarga subindo-lhe aos olhos e às narinas.
As luzes do carro de Bond começavam a aparecer no início da curva.
Houve uma série de baques fortes, quando os rolos do lado esquerdo caíram do caminhão para a estrada e foram rolando velozes pela escuridão. Depois, mais baques, ao partirem-se as cordas do lado direito. Um dos rolos arrebentou ao cair, e Drax ouviu um barulho de coisas dilaceradas, quando o papel, desenrolando-se tombou pesadamente num ponto da subida.
Aliviado de sua carga, o caminhão quase pulou para a frente, e Drax teve de acelerar um pouco para alcançar a figura esvoaçante de Krebs, que aterrisou, metade em cima das costas de Gala e metade no assento da frente. Drax pisou até embaixo o acelerador e subiu a colina como um raio, ignorando o grito do chofer do caminhão, que se sobrepôs ao clamor dos pistões, quando ele disparou em frente.
Ao contornar velozmente a curva seguinte, viu o cilindro de dois faróis desenharem-se em curva no céu, acima do topo das árvores, até se tornarem quase verticais. Tremularam ali por um instante, e depois os raios de luz giraram através do espaço e desapareceram.
Uma grande risada, semelhante a um latido de cão, escapou de Drax, e durante a fração de um segundo, tirou os olhos da estrada e levantou o rosto triunfalmente para as estrelas.
CAPITULO 21
“O PERSUASOR”
Krebs ecoou a risada maníaca com outra estridente.
— Um golpe de mestre, mein Kapitän. O senhor precisava ver como eles desciam pela colina. O tal que arrebentou. Wunderschön! Parecia o papel higiênico de um gigante. Este deve ter feito um belo pacote dele. Ele vinha chegando bem na curva. E o segundo foi tão bom quanto o primeiro. Viu a cara do motorista? Zum Kotzen! E a firma Bowater! Um belo negócio foi o que fizeram.
— Você trabalhou bem — observou Drax, conciso, o pensamento noutra coisa.
De repente, levou o carro para o lado da estrada, com um grito de protesto dos pneus.
— Donnerwetter — disse, zangado, quando começou a virar o carro. — Mas nós não podemos deixar o homem ali. Precisamos pegá-lo.
O carro já ia roncando pela estrada abaixo.
— A arma — ordenou Drax, secamente.
Passaram o caminhão no alto da colina. Estava parado, e não se via sinal de motorista. Provavelmente telefonando para a companhia, pensou Drax, diminuindo a marcha ao contornarem a primeira curva. Viam-se luzes em duas ou três casas, e um grupo de pessoas rodeava um dos rolos de papel que ali estava por entre as ruínas do portão da frente de suas casas. Havia mais rolos na borda do lado direito da estrada. À esquerda, um poste telegráfico se inclinava como bêbedo, partido ao meio. Na curva seguinte, via-se o princípio de uma grande confusão de papel estendendo-se para baixo, ao longo da colina, formando guirlandas nas cercas e na estrada, como se fossem os babados de um vestido de baile à fantasia, elefantíaco.
O Bentley tinha quase se espatifado contra as grades que guarneciam o lado direito da curva, protegendo-o de um barranco profundo. Por entre a confusão de ferro retorcido dos mourões, pendia, de capo para baixo, com uma das rodas ainda presa ao eixo quebrado de trás e ali pousada de esguelha como um guarda-chuva surrealista.
Drax se aproximou e, acompanhado de Krebs, saiu do carro e ficou quieto, à escuta.
Não se ouvia o menor som, exceto o do motor de um carro distante, seguindo rápido pela estrada de Ashford, e o trilar de um grilo insone.
Com as armas na mão, eles caminharam cautelosamente por cima dos restos do Bentley, os pés esmagando o vidro partido na estrada. Sulcos profundos haviam sido marcados na margem de grama, e sentia-se o cheiro forte de gasolina, misturado ao de borracha queimada. O metal quente do carro estalava e partia baixinho. O vapor ainda jorrava do radiador espatifado.
Bond estava caído de bruços no fundo do barranco, a uns seis metros de distância do carro. Krebs virou-o. O rosto estava coberto de sangue, mas ele respirava. Revistaram-no completamente, e Drax meteu no bolso a fina Beretta. Depois, juntos, arrastaram-no até a estrada, jogando-o, em seguida, no assento traseiro do Mercedes, com a metade do corpo em cima do de Gala.
Quando ela percebeu quem era, deu um grito de horror.
— Halt’s Maul — rosnou Drax. Foi para o assento da frente e, enquanto ligava o motor, Krebs inclinou-se e se ocupou com um longo pedaço de arame flexível.
— Faça o negócio direito — disse Drax. — Não quero que haja erros. — Refletiu melhor. — Volte depois para junto dos destroços e retire as placas. Depressa. Eu tomo conta da estrada.
Krebs puxou o tapete para cima dos dois corpos inertes e pulou fora do carro. Usando a faca como chave de parafuso, dentro em breve estava de volta com as placas, e o enorme carro começou a se movimentar no momento exato em que um grupo de habitantes do local apareceu caminhando nervosamente pela descida da montanha, focalizando as lanternas sobre a cena de devastação.
Krebs riu feliz consigo mesmo à ideia de que os estúpidos ingleses teriam de limpar e pôr tudo aquilo em ordem. Acomodou-se no assento, a fim de apreciar o trecho do caminho que sempre fora seu predileto: os bosques primaveris, cheios de florzinhas azuis e rosa, que iam até Chilham.
Eles tinham-no tornado particularmente feliz à noite. Iluminados por entre as tochas verdes das árvores novas pelos grandes faróis do Mercedes, tinham-no feito pensar nas lindas florestas de Ardennes, no grupo dedicado onde servira e na viagem que fizera num jipe capturado aos americanos, tal como naquela noite, ao lado de seu adorado líder, que ia ao volante. Der Tag custara a chegar, mas agora ali estava. Com o jovem Krebs no caminhão. Finalmente veria as multidões dando vivas, as medalhas, as mulheres, as flores. Lançou um olhar aos exércitos de flores azuis que passavam voando e sentiu-se feliz e confortado.
Gala sentia na boca o gosto do sangue de Bond. O rosto dele estava ao lado do dela, no assento de couro, e ela se mexeu para lhe dar mais lugar. A respiração do rapaz era pesada e irregular. Ela perguntava a si mesma quanto estaria ferido. Experimentou sussurrar-lhe ao ouvido. Depois falou mais alto. Ele deu um grunhido e acelerou a respiração.
— James — cochichou. — James.
Bond resmungou qualquer coisa, e ela encostou-se com força contra ele. Depois, soltou uma série de palavrões, e seu corpo se mexeu.
Tornou a ficar imóvel, e ela quase pôde senti-lo explorando as próprias sensações.
— Sou eu, Gala.
Ela sentiu o corpo dele enrijecer.
— Deus do céu. Que diabo de confusão — falou Bond.
— Você está bem? Tem algum osso quebrado?
Sentiu que ele experimentava os braços e as pernas.
— Parece que está tudo bem. Uma brecha na cabeça. Estou falando coisas que fazem sentido?
— Claro que sim — respondeu Gala. — Agora ouça.
Rapidamente, contou-lhe tudo que sabia, começando pelo caderninho de notas preto.
O corpo dele estava rígido como uma tábua contra o dela, e ele mal respirava, ouvindo a história inacreditável.
Logo depois corriam para Canterbury, e Bond colocou a boca em seu ouvido.
— Vou tentar jogar-me por trás — sussurrou. — Ver se arranjo um telefone. É a única esperança.
Começou a se erguer sobre os joelhos, o peso de seu corpo quase sufocando a respiração da moça.
Ouviu-se uma forte pancada, e ele tornou a cair em cima dela.
— Outro movimento que você faça e estará morto — disse a voz de Krebs, vindo baixinho por entre os assentos da frente.
Faltavam só vinte minutos para chegar à base! Gala rangeu os dentes e tratou de reanimar Bond, que perdera os sentidos novamente.
Acabara de conseguir, quando o carro chegou à porta da cúpula de lançamento, e Krebs, com um revólver na mão, já ia desfazendo os nós em torno dos tornozelos de ambos.
Vislumbraram o cimento familiar, iluminado pela lua, e o semicírculo de guardas a uma certa distância, antes de serem empurrados pela porta. Depois, quando Krebs lhes arrancou os sapatos, seguiram pela passagem estreita, de ferro, dentro da cúpula de lançamento.
Ali estava o cintilante foguete, lindo, inocente, qual um novo brinquedo para ciclopes.
Mas havia um cheiro horrível de produtos químicos no ar, e para Bond, o “Explorador da Lua” parecia uma gigantesca agulha hipodérmica pronta para ser enterrada no coração da Inglaterra. Apesar de um resmungo de Krebs, ele parou na escada e levantou os olhos para seu nariz faiscante. Um milhão de mortes. Um milhão. Um milhão. Um milhão.
E tudo dependia dele? Pelo amor de Deus! Tudo dependia dele?
Com o revólver de Krebs cutucando-o, desceu lentamente os degraus, atrás de Gala.
Quando entrou pela porta do escritório de Drax, controlou-se. De repente, seu espírito tornou-se claro, e toda a letargia e a dor haviam-lhe deixado o corpo. Alguma coisa, qualquer coisa, precisava ser feita. De um jeito ou de outro, ele havia de descobrir um meio. O corpo inteiro e a mente tornaram-se-lhe concentrados e agudos como uma lâmina. Seus olhos ganharam vida, novamente, e a derrota abandonou-o, como a pele de uma serpente.
Drax seguira na frente e se sentara à escrivaninha. Trazia uma Luger na mão. Este apontava um lugar entre Gala e Bond e era firme como uma rocha.
Por trás dele, Bond escutou as portas duplas se fecharem, batendo.
— Eu era um dos melhores atiradores na Divisão Branderburg — disse Drax, entabulando conversa.
— Amarre a moça nessa cadeira, Krebs. Depois o homem .
Gala olhou desesperadamente para Bond. Este disse:
— Você não vai atirar. Teria receio de atingir o combustível.
Encaminhou-se lentamente para a escrivaninha. Drax sorriu alegremente e, seguindo a trajetória do cano do revólver, mirou o estômago de Bond.
— Sua memória é ruim, inglês. Eu lhe disse que esta sala é inteiramente separada da cúpula por meio das portas duplas. Dê mais um passo e ficará sem estômago.
Bond olhou os olhos apertados e confiantes do outro e parou.
— Vamos, Krebs.
Quando os dois ficaram bem amarrados, e dolorosamente, às pernas e braços das duas cadeiras de aço tubular, pouco distante um do outro, por baixo do mapa de vidro, Krebs saiu da sala. Voltou um momento depois com uma espécie de maçarico mecânico.
Colocou a feia máquina sobre a escrivaninha, introduziu o ar com algumas breves bombadas e riscou um fósforo. Uma chama azul sibilou, elevando-se a alguns centímetros. Ele pegou o instrumento e acercou-se de Gala. Parou a pouca distância da moça.
Drax ordenou, severo:
— Vejamos agora. Vamos tratar desse caso, sem criar complicações. Nós costumávamos chamá-lo Der Zwagsman — O Persuasor. Nunca me esquecerei de como lidou com o último espião que pegamos juntos. Bem ao sul do Reno, não foi, Krebs?
Bond era todo ouvidos.
— Foi sim, mein Kapitän. — Krebs riu, recordando-se. — Era um porco de um belga.
— Pois bem. Vocês dois aí não se esqueçam. Aqui não temos esse negócio de fair play. Nada de atitudes esportivas e toda essa história. Isto aqui é negócio.
A voz estalava como um chicote, a cada palavra.
— Você — lançava um olhar a Gala Brand — para quem está trabalhando?
Gala se conservou em silêncio.
— Onde você quiser, Krebs.
A boca de Krebs estava entreaberta. Sua língua percorria o lábio, para cima e para baixo. Parecia ter dificuldade em respirar, quando deu um passo em direção à moça.
A pequenina chama roncava gulosamente.
— Pare — disse Bond, frio. — Ela trabalha para a Scotland Yard. E eu também.
Essias coisas agora não tinham mais propósito. Não podia ser de nenhuma utilidade imaginável para Drax. De qualquer maneira, amanhã de tarde, talvez não existisse mais nenhuma Scotland Yard.
— Assim está melhor — disse Drax. — Agora responda: Alguém sabe que vocês estão prisioneiros? Vocês pararam para telefonar a alguém?
Se eu disser que sim, pensou Bond, ele atirará em nós dois e se livrará dos corpos. Dessa forma, a última chance de impedir o lançamento do “Explorador da Lua” terá desaparecido. E se a Yard sabe, por que ainda não chegaram aqui? Não. Nossa oportunidade ainda pode vir. O Bentley será encontrado. Vallance ficará preocupado quando não tiver notícias minhas.
Não — respondeu. — Se eu tivesse telefonado, eles já estariam por aqui a esta hora.
— Isto é verdade — disse Drax, refletindo.
— Neste caso, não estou mais interessado em vocês e felicito-os por terem tornado a entrevista tão harmoniosa. Poderia ter sido mais difícil, se você estivesse sozinho. Uma moça é sempre útil nessas ocasiões. Krebs largue isso. Pode ir. Diga aos outros o que é necessário. Eles devem estar fazendo conjeturas. Eu vou entreter nossos hóspedes durante algum tempo e depois subirei até a casamata. Providencie para que o carro seja bem lavado. O assento de trás. E faça desaparecer as marcas no lado direito. Diga para tirarem o painel inteiro, se fôr necessário. Ou então podem tocar fogo na maldita coisa. Nós não vamos mais precisar dela. — Riu abruptamente. — Verstanden?
— Sim, mein Kapitän...
Krebs, colocou com relutância o maçarico, que roncava de leve, na escrivaninha ao lado de Drax.
— Para o caso de lhe ser necessário — disse, olhando esperançoso para Gala e Bond. Saiu depois pelas portas duplas.
Drax pôs a Luger também na escrivaninha em frente a ele. Abriu uma gaveta, tirou um charuto e acendeu-o com um isqueiro Ronson. Depois, acomodou-se confortàvelmente. O silêncio reinou na sala durante vários minutos, enquanto Drax puxava fumaçadas do charuto, todo satisfeito. Em seguida, pareceu tomar uma resolução. Fitou Bond com benevolência.
— Você nem sabe quanto eu desejei um auditório inglês — declarou como se estivesse dando uma entrevista à imprensa. — Você nem sabe como estava ansioso por contar minha história. Aliás, um relatório completo de minhas atividades encontra-se em poder de um escritório muito respeitável de advogados de Edinburgo. — Tabeliães, aliás. Bem salvo de qualquer perigo.
Drax sorriu abertamente para um e para outro:
— Essa boa gente recebeu instruções para abrir o envelope no final do primeiro voo bem sucedido do “Explorador da Lua”. Mas vocês, seus felizardos, terão uma, antecipação do que eu escrevi e então, quando amanhã às doze horas, virem através destas portas abertas — fez um gesto para a direita — o primeiro vapor saindo das turbinas e souberem que devem ser queimados vivos dentro de meio segundo, terão a satisfação momentânea de saber com quantos paus se faz uma canoa.
— Você poderá nos dispensar as piadas — interrompeu Bond, com aspereza. — Continue com sua história, Kraut.
Os olhos de Drax fuzilaram momentaneamente.
— Um Kraut. Sim eu sou realmente um Reichsdeutscher — a boca, por baixo do bigode vermelho, saboreava a linda palavra — e até a própria Inglaterra terá de concordar, dentro em breve, que foram liquidados por um único alemão. E então talvez parem de nos chamar de Krauts — POR ORDEM! — As palavras foram gritadas, e todo militarismo prussiano entrou em desfile lá embaixo.
Drax exultou do outro lado da escrivaninha, olhando Bond, os dentes grandes, espalhados e salientes sob o bigode vermelho, roendo nervosamente uma unha, depois da outra. Em seguida, enfiou com esforço a mão direita no bolso da calça, como para colocá-la a salvo da tentação, e pegou o charuto com a esquerda. Puxou umas tragadas durante alguns instantes e, depois, com a voz ainda tensa, começou.
CAPITULO 22
A CAIXA DE PANDORA
Meu verdadeiro nome — disse Drax dirigindo-se a Bond — é Graf Hugo von der Drache. Minha mãe era inglesa, e por causa dela fui educado na Inglaterra até a idade de doze anos. Depois, não pude mais suportar este país imundo e completei minha educação em Berlim e Leipzig.
Bond calculava facilmente que aquele brutamontes com cara de bicho-papão e dentes de bruxo não havia sido muito bem recebido numa escola particular inglesa. O fato de ser um conde estrangeiro com um mundo de nomes não teria ajudado muito.
Os olhos de Drax brilharam, cheios de reminiscências: — Quando fiz vinte anos, comecei a trabalhar no ramo de negócio da família. Era uma filial do grande truste de aço Rheinmetal Bórsig. Nunca ouviu falar dele, suponho. Pois bem, se foi ferido por uma bomba de 88mm. durante a guerra, provavelmente foi uma das de lá. Nossas filiais eram peritas em aços especiais, e eu aprendi a respeito deles, e muita coisa sobre a indústria aviatória. Nossos melhores fregueses. Foi quando ouvi, pela primeira vez, falar em columbita. Valendo o que valem os brilhantes naqueles dias. Liguei-me à firma, e quase imediatamente depois disso arrebentou a guerra. Uma época maravilhosa. Eu tinha vinte e oito anos e era tenente da 140a do Regimento Panzer. Nós investimos contra o Exército britânico, na França, e o atravessamos como uma faca por dentro da manteiga. Simplesmente embriagador.
Durante alguns instantes, Drax sugou o charuto, e Bond calculou que ele estava vendo as aldeias incendiadas da Bélgica através da fumaça.
— Aqueles dias eram formidáveis, meu caro Bond. — Drax esticou um braço comprido e bateu a cinza do charuto para o chão. — Mas aí fui escolhido para a Divisão Brandenburg e tive de deixar as pequenas e o champanha para voltar à Alemanha e começar o adestramento, a fim de executar o vasto pulo na água para a Inglaterra. Precisavam de meu in-glês na Divisão. Todos nós devíamos trajar uniformes ingleses. Teria sido engraçado, porém os malditos generais disseram que não podia ser, e eu fui transferido para o Serviço Secreto Estrangeiro do SS. O RSHA, era como se chamava. SS Obergruppenfuhrer Kaltenbrunner acabava de assumir o comando depois que Heydrich foi assassinado em 42. Ele era um bom homem, e eu estava sob as ordens diretas de um ainda melhor, Obersturmbannfuhrer — Drax enrolava na boca o título delicioso com prazer. — Otto Skorzeny. Sua tarefa na RSHA era o terrorismo e a sabotagem. Um agradável interlúdio, meu caro Bond, durante o qual eu pude registrar o nome de muitos ingleses, coisa que me deu muito prazer. Mas então — o punho de Drax esmagou a escrivaninha — Hitler foi novamente traído por aqueles miseráveis generais, e os ingleses e norte-americanos tiveram oportunidade de desembarcar na França.
— Foi uma pena — disse Bond, friamente.
— Sim, meu caro Bond, foi de fato uma pena. — Drax preferiu ignorar a ironia. — Mas para mim foi o ponto alto da guerra. Skorzeny transformou todos os seus sabotadores e terroristas em SS Jagdverbände, para usá-los na retaguarda das linhas inimigas. Cada Jagdverbände era dividida em Streifkorps, e depois em Kommandos, cada um deles levando os nomes de seus oficiais-comandantes. Com o posto de Oberleutnant — Drax encheu-se visivelmente de empáfia — à testa do Kommando “Drache”, eu penetrei diretamente nas linhas americianas com a famosa Brigada Panzer 150a na penetração de Ardennes, em dezembro de 44. Você se lembra, sem dúvida, do efeito causado por esta brigada em seus uniformes americanos e nos tanques e veículos americanos capturados. Kolossal! Quando a Brigada teve de se retirar, eu fiquei onde estiava e fui estabelecer-me nas Florestas de Ardennes, cinquenta milhas à retaguarda das linhas aliadas. Havia vinte rapazes, dez homens bons e dez Hitlerjugend Lobishomens. Todos com menos de vinte anos, mas todos bons rapazes. Por coincidência, o chefe deles era um jovem chamado Krebs, que demonstrou possuir determinados dons que o qualificaram para o pôsto de executor e “persuasor” de nosso alegre pequeno bando. Drax deu uma risadinha gostosa.
Bond lambeu os lábios, ao lembrar-se da brecha que Krebs fizera na cabeça batendo de encontro à cômoda. Ter-lhe-ia dado o pontapé com tanta força quanto lhe era possível dar? Sim, sua memória o tranquilizava, com cada grama de força que ele podia pôr no sapato.
— Ficamos naqueles bosques durante seis meses — continuou Drax, orgulhoso — e durante todo esse tempo dávamos notícias nossas à nossa Pátria por meio do rádio. Os caminhões de busca nunca deram conosco. E então aconteceu um desastre. — Drax sacudiu ia cabeça àquela lembrança. — Existia uma grande fazenda a uma milha de distância de nosso esconderijo na floresta. Uma porção de cabanas haviam sido construídas em torno dela, e eram usadas como quartel-general de retaguarda para um grupo de ligação. Ingleses e norte-americanos. Um lugar incrível. Sem disciplina, sem segurança, cheio de vadios e desertores vindos de todos os lugares da vizinhança. Nós vínhamos observando o grupo há muito tempo, e um dia eu resolvi fazer tudo aquilo voar pelos ares. O plano era simples. À noite, dois dos meus homens, um vestido num uniforme americano, e outro de uniforme britânico, deviam dirigir-se para lá num carro-patrulha capturado, contendo duas toneladas de explosivos. Havia um ponto de estacionamento para os carros — nenhuma sentinela, naturalmente — próximo à sala de refeitório, e eles deviam trazer o carro tão perto dela quanto possível, regular a explosão para a hora do jantar, às sete, e depois se afastarem. Tudo muito fácil, de modo que eu saí naquela manhã para tratar de negócios e deixei a missão para ser cumprida por meu segundo em comando. Eu estava vestido com o uniforme de Corpo de Sinaleiros britânicos, e parti numa motocicleta inglesa capturada por nós para enviar um despacho da mesma unidade que fazia o percurso diário num caminho ali perto. Está claro que ele veio pontualmente na hora, de modo que eu lhe segui atrás, saindo de um caminho lateral. Emparelhei com ele ei dei-lhe um tiro nas costas, tomei-lhe os documentos e, depois de colocá-lo em cima de sua própria motocicleta, levei-o para os bosques e toquei-lhe fogo.
Drax viu a fúria nos olhos de Bond e levantou a mão.
— Não foi muito esportivo? Meu caro, o homem já estava morto. Entretanto, prossigamos. Fui seguindo meu caminho, e então o que haveria de acontecer? Um dos aviões de vocês, voltando de um voo de reconhecimento, veio atrás de mim pela estrada com uma metralhadora. Um de seus próprios aviões! Jogou-me para longe da estrada. Só Deus sabe quanto tempo fiquei ali, caído no fosso. Em certo momento, durante a tarde, voltei a mim a tive o bom senso de esconder o boné e o dólmã com os despachos. Na cerca. Provavelmente ainda estão lá. Preciso ir buscá-los um dia. Lembranças interessantes. Depois toquei fogo nos restos da motocicleta e devo ter desmaiado novamente, porque quando tornei a dar por mim, tinha sido recolhido por um veículo britânico e estávamos seguindo para o maldito quartel-general de ligação! Acredite-se ou não! Lá estava o carro-patrulha, bem ao lado da sala do rancho! Era demais para mim. Eu estava cheio de estilhaços de bomba e minha perna estava quebrada. Pois bem, desmaiei, e quando voltei a mim, vi que metade do hospital se debruçava sobre mim, e eu só tinha a metade da cara.
Drax levantou a mão e alisou a pele lustrosa da têmpora e da face esquerda:
— Depois disso, tudo se resumiu numa questão de representar um papel. Eles não tinham ideia de quem eu era. O carro que me apanhara havia sido reduzido a simples fragmentos. Eu era apenas um inglês, vestido numa camisa e calças inglesas que quase morrera.
Drax fez uma pausa, tirou outro charuto e acendeu-o. Na sala reinou o silêncio, quebrado apenas pelo roncar atenuado do maçarico. Sua voz ameaçadora tornara-se mais baixa. A pressão está cedendo, pensou Bond.
Virou a cabeça e olhou Gala. Pela primeira vez, viu a lesão feia atrás de sua orelha esquerda. Endereçou-lhe um sorriso de encorajamento, e ela retorceu os lábios num sorriso de resposta.
Drax falava por dentro da fumaça do charuto:
— Não há muito mais coisa para contar. Durante o ano em que eu passei sendo enviado de um para outro hospital, elaborei meus planos sem omitir os mínimos detalhes. Consistiam muito simplesmente em vingar-me da Inglaterra pelo que me tinha feito e ao meu país. Confesso que, pouco a pouco, foi-se tornando uma obsessão. Cada dia que se passava no ano em que a destruição e a rapina campearam em meu país, meu ódio e desprezo pelos ingleses iam-se tornando cada vez mais amargos.
As veias do rosto de Drax começaram a inchar e, de repente, ele se pôs a desferir socos na mesa e a gritar para seus prisioneiros, fitando com olhos esbugalhados ora um, ora outro:
— Abomino e desprezo vocês todos. Seus porcos! Idiotas inúteis, ociosos, decadentes, escondendo-se por trás de seus malditos penhascos brancos, enquanto os outros povos travam batalhas por vocês. Fracos demais para defenderem suas colônias, bajulando a América com os chapéus nas mãos. Esnobes malcheirosos, que são capazes de fazer qualquer coisa por dinheiro. Ah! — Drax estava triunfante. — Eu sabia que precisava apenas de dinheiro e a aparência de um gentleman. Um gentleman! Pfui Teufel! Para mim um gentleman é apenas alguém de quem eu posso tirar vantagem. Aqueles malditos imbecis no Blades, por exemplo. Cretinos endinheirados. Durante meses a fio tirei milhares de libras deles, tapeei-os bem debaixo de seus narizes, até que você apareceu e estragou o brinquedo.
Os olhos de Drax se apertaram.
— Como foi que descobriu o truque da cigarreira — perguntou incisivo.
Bond deu de ombros.
— Com os olhos — respondeu indiferente.
— Ah, bem. Talvez eu estivesse um tanto descuidado naquela noite. Mas onde é mesmo que eu estava? Ah, sim, no hospital. Os bons médicos mostravam-se tão ansiosos por me ajudarem a descobrir quem eu era realmente. — Soltou uma gargalhada. — Foi fácil. Muito fácil. Dentre as identidades que eles me ofereciam com tanta boa vontade, topei com o nome de Hugo Drax. Que coincidência! De Drache para Drax! Como quem hesita, pensei que podia ser eu. Eles sentiram-se muito orgulhosos. Sim, afirmaram, naturalmente que é você. Triunfalmente, fizeram-me entrar-lhe na pele. Saí do hospital dentro dela, começando a rodar por Londres à cata de alguém para matar e roubar. Até que um dia, num pequeno escritório acima de Piccadilly, encontrei um agiota judeu. (Drax agora falava muito depressa. As palavras jorravam-lhe excitadamente dos lábios. Bond reparou num aglomerado de espuma que se formava num canto de sua boca e crescia.) — Ah, foi fácil. Uma bordoada em seu crânio nu. Quinze mil libras no cofre. Então tratei de me afastar do País. Fui para Tânger — onde se podia fazer qualquer coisa, comprar qualquer coisa, arranjar qualquer coisa que se desejasse. Columbita. Mais rara que a platina, e todos prontos a adquiri-la. A Era do Jato. Eu conhecia essas coisas. Não me havia esquecido de minha profissão. Então, por Deus, lhe digo que trabalhei. Durante cinco anos vivi para o dinheiro. Fui valente como um leão. Corri riscos tremendos. E eis que, de repente, o primeiro milhão me chega às mãos. Depois o segundo. Em seguida o quinto. Depois o vigésimo. Voltei para a Inglaterra. Gastei um milhão aqui, e Londres estava no papo. Depois voltei à Alemanha. Encontrei Krebs. Encontrei cinquenta deles. Alemães leais. Técnicos brilhantes. Todos vivendo sob nomes falsos, como tantos outros de meus antigos camaradas. Dei-lhes minhas ordens, e eles esperaram, pacificamente, inocentemente. E onde estava eu?
Drax fitou Bond, com os olhos arregalados:
— Eu estava em Moscou! Moscou! Um homem que tem columbita para vender pode ir a qualquer lugar. Encontrei as pessoas indicadas para meu caso. Ouviram meus planos. Deram-me Walter, o novo gênio de seus mísseis teleguiados da estação de Peenemunde, e os bons dos russos começaram a construir a cápsula dos instrumentos e explosivos, a cápsula atômica — apontou para o teto — que está agora nos esperando ali. Então tornei a regressar para Londres. — Fez uma pausa. — A Coroação. Minha carta para o Palácio. Triunfo. Hurras para Drax. — O homem estourou numa gargalhada. — A Inglaterra estava aos meus pés. Todos os malditos cretinos do país! Foi quando meus homens chegaram, e nós começamos. Bem juntos das saias da Grã-Bretanha. No alto de seus famosos penhascos. Trabalhamos como loucos. Construímos um cais no seu Canal inglês. Para receber fornecimentos! Suprimentos vindos de meus bons amigos os russos, que chegaram na hora exata, segunda-feira à noite. Mas foi aí que Tallon teve de ouvir alguma coisa. O velho imbecil. Falou com o Ministério. Mas Krebs estava ouvindo. Apareceram cinquenta voluntários para matar o homem. Tiramos a sorte, e Bartsch morreu como um herói. — Drax fez nova pausa. Depois continuou. — A nova cápsula foi içada para o lugar. Deu certo. Uma perfeita peça de encomenda. O mesmo peso. Tudo perfeito, como a antiga, a caneca de folha, cheia dos queridos instrumentos do Ministério, está agora em Stettin — atrás da Cortina de Ferro. O fiel submarino está de viagem de volta para aqui, e dentro em breve — olhou o relógio — estará navegando sob as águas do Canal inglês para nos levar a todos para longe, quando passar um minuto de meio-dia amanhã.
Drax limpou a boca com as costas da mão e recostou-se de novo na cadeira fitando o teto, os olhos povoados de visões. De repente, riu e olhou interrogativamente para Bond, passando o olhar pelo próprio nariz:
— Quer saber qual será a primeira coisa que nós faremos quando estivermos a bordo? Rasparemos esses famosos bigodes nos quais você estava tão interessado. Você cheirou um camundongo, meu caro Bond, onde devia ter cheirado um rato. Aquelas cabeças raspadas e aqueles bigodes: que nós cultivávamos tão assiduamente. Apenas uma precaução, meu caro. Experimente raspar a própria dabeça e deixar crescer um bigodão preto. Nem mesmo sua mãe o reconheceria. É a combinação das duas coisas que produz o efeito. Apenas um mínimo refinamento. Precisão, meu caro. Precisão, em cada detalhe. Foi esta a minha palavra de passe. — Drax deu uma risadinha sem graça e puxou uma boa fumarada do charuto. Súbito, olhou incisivamente, desconfiado, para Bond. — Então? Diga alguma coisa. Não fique aí sentado como uma múmia. Que pensa de minha história? Não acha que é extraordinária? Notável? Um homem ter feito tudo isto? Vamos, vamos, fale.
Uma das mãos foi levada até a boca, e Drax começou a roer as unhas furiosamente. Mas, em seguida, meteu-a no bolso, e seus olhos tornaram-se frios e cruéis.
— Ou quer que mande buscar Krebs — fez um gesto para o telefone em cima da escrivaninha. — O Persuasor. Pobre Krebs! É como uma criança a quem tivessem arrebatado os brinquedos. Ou talvez Walter. Eles lhes dariam uma lembrança para toda a vida. Esse aí não tem um pingo de moleza. Então?
Bond começou a falar, olhando a caraça vermelha, do outro lado da escrivaninha:
— Não resta dúvida, é um caso notável. Paranoia galopante. Ilusões de ciúme e perseguição. Ódio megalomaníaco e desejo de vingança. Fato bastante curioso — continuou dizendo, em tom de conversação — poderá ter alguma relação com seus dentes. Diastema, é como chamam isto. Acontece quando a criança chupa o dedo na infância. Sim. Tenho a impressão de que será isto o que dirão os psicólogos, assim que lhe puserem no hospício. “Dentes de bicho-papão.” Foi atormentado na escola etc. É extraordinário o efeito produzido numa criança. Então o nazismo ajudou a soprar as flamas, e ainda aconteceu você levar aquela pancada feia na sua feia cabeça. A pancada que você mesmo engendrou. Acho que foi o que estava faltando. Dali por diante, você passou a ser realmente louco. Do mesmo gênero desses que acreditam serem Deus. É extraordinário observar como são tenazes. Completamente fanáticos. Você é quase um gênio. Lombroso teria ficado encantado com você. No ponto em que estão as coisas, você não passa de um cão danado que precisa ser morto. Ou então você se suicida. Os paranoicos geralmente se matam. É uma pena. Coisa triste, mesmo.
Bond fez uma pausa e pôs todo o desprezo que pôde acumular na voz:
— E agora, continuemos com esta farsa, vamos, seu lunático cabeludo.
Deu resultado. A cada palavra de Bond, a cara de Drax ia se contorcendo de raiva cadia vez maior, os olhos estavam vermelhos de cólera, o suor da fúria pingava de suas mandíbulas para a camisa, os lábios se afastariam dos dentes irregulares, e um fio de saliva saíra-lhe da boca e lhe escorria pelo queixo. Agora, com o último insulto sobre a escola particular, que devia ter-lhe despertado sabe Deus que espécie de lembranças dolorosas, ele pulou da cadeira, rodeou a escrivaninha, investiu contra Bond, os punhos cabeludos martelando. Bond rangeu os dentes e aguentou.
Quando Drax teve de pegar a cadeira do chão pela segunda vez, com Bond em cima dela, a tempestade de raiva passou subitamente. Tirou do bolso o lenço de seda e limpou o rosto e as mãos. Depois, encaminhou-se calmamente para a porta e falou, olhando por cima da cabeça pendente de Bond e dirigindo-se à pequena.
— Não creio que vocês dois me deem mais trabalho — declarou com a voz perfeitamente calma e segura. — Krebs nunca comete enganos com seus nós.
Gesticulou em direção à figura ensanguentada da outra cadeira:
— Quando ele acordar, pode dizer-lhe que estas portas ainda se abrirão mais uma vez, pouco antes do meio-dia de amanhã. Alguns minutos mais tarde, não sobrará nada de nenhum de vocês dois. Nem mesmo — acrescentou, ao escancarar a porta de dentro — as obturações de seus dentes.
A porta externa bateu.
Bond levantou lentamente a cabeça e sorriu dolorosamente para sua companheira com os lábios manchados de sangue. Explicou com dificuldade:
— Tive de deixá-lo louco. Não quis que ele tivesse tempo para pensar. Tive de provocar aquela tempestade cerebral.
Gala olhava-o sem compreender, os olhos arregalados para a máscara terrível de seu rosto.
— Está tudo bem. Não se preocupe. Londres está O.K. Tenho um plano.
Sobre a escrivaninha, o maçarico fez um “pleft” baixinho e apagou.
CAPÍTULO 23
MENOS ZERO
Por entre os olhos entreabertos, Bond fitou demoradamente o maçarico, enquanto por alguns preciosos segundos permanecia sentado e deixava a vida voltar-lhe lentamente ao corpo. Tinha a impressão de que sua cabeça fora usada como bola de futebol, mas não tinha nada quebrado. Drax batera-lhe sem nenhuma ciência e com a confusão de golpes de um homem embriagado.
Gala observava-o ansiosamente. Os olhos, no rosto sanguinolento, estavam quase fechados, mas a linha do queixo aparecia tensa de concentração, e ela percebia o esforço de vontade que ele fazia.
Bond sacudiu a cabeça, e quando se voltou para ela, Gala viu que seus olhos estavam febris pelo triunfo.
Fez um gesto na direção do isqueiro.
— O isqueiro. Eu tive de tentar fazê-lo esquecer-se dele. Siga-me. Vou-lhe mostrar como.
Começou a balançar a leve cadeira de aço, polegada por polegada, em direção à escrivaninha:
— Pelo amor de Deus, não vá virar de pernas para cima, do contrário estará tudo perdido. Mas procure apressar-se senão o maçarico esfria.
Sem compreender, sentindo-se quase como se tomasse parte em algum fantástico brinquedo infantil, Gala, cautelosamente, foi balançando a cadeira pelo chão atrás dele.
Segundos depois, Bond lhe disse que parasse ao lado da escrivaninha, enquanto ele continuava o balanço até a cadeira de Drax. Depois, manobrou de modo a tomar posição em frente ao seu alvo e, com uma súbita guinada, suspendeu-se com a cadeira, de forma que sua cabeça ficou para baixo.
Ouviu-se um estalo, quando o isqueiro Ronson, de escrivaninha, prendeu-se-lhe nos dentes, mas seus lábios sustiveram-no, e a parte superior ficou-lhe na boca, assim que ele impulsionou a cadeira para a primeira posição, apenas com a força suficiente para impedir que saltasse fora. Em seguida, recomeçou sua paciente viagem de volta para o ponto onde Gala se encontrava sentada, no canto da escrivaninha onde Krebs deixara a lâmpada.
Bond descansou até sua respiração tornar-se novamente regular.
— Chegamos agora à parte difícil — avisou, severo. — Enquanto eu tento fazer este maçarico funcionar, você vai rodando sua cadeira, de modo que seu braço direito fique tanto quanto possível defronte de mim.
Obedientemente, a moça foi executando os movimentos, enquanto Bond balançava sua cadeira, de forma que esta se encostou a beira da escrivaninha e permitiu que sua boca alcançasse e agarrasse o cabo do maçarico entre os dentes.
Em seguida, foi trazendo o maçarico para perto e, depois de alguns minutos de trabalho paciente, conseguiu colocar o maçarico e o isqueiro como desejava, na borda da escrivaninha.
Após outro descanso, curvou-se, fechou a válvula da tocha com os dentes, e começou a fazer voltar a pressão, puxando lenta e repetidamente o pistão com os lábios e apertando-o de volta com o queixo. Sentia no rosto o calor do aquecedor e sentia o cheiro dos restos de gás no pequeno instrumento. Se ao menos não tivesse esfriado demais.
Endireitou o corpo.
— Ultima etapa, Gala — disse sorrindo quase com esforço para ela. — Talvez eu tenha de lhe machucar um pouco. Não faz mal?
— Claro que não — respondeu a moça.
— Então lá vai — disse Bond, e curvou-se para a frente, soltando a válvula de segurança à esquerda do depósito.
Depois debruçou-se rapidamente sobre o Ronson, que estava no ângulo direito e bem debaixo do tubo da tocha. Com os dois dentes incisivos apertou para baixo a trave de ignição.
Era uma manobra horrível e, apesar de ele sacudir a cabeça para trás com a rapidez de uma serpente, deixou escapar um leve gemido de dor, quando o jato de fogo azul do maçarico subiu-lhe pela face machucada e pela ponta do nariz.
Mas a parafina vaporizada sibilava sua língua vital de chama, e ele sacudiu as lágrimas dos olhos, curvando a cabeça quase até o ângulo direito e novamente prendeu a haste do maçarico nos dentes.
Teve a impressão de que seu queixo se partiria com o peso da coisa, e os nervos dos dentes da frente reclamaram, mas ele balançou a cadeira cautelosamente até colocá-la em posição vertical, afastada da escrivaninha, e então forçou o pescoço a curvar-se para a frente, até que a ponta da chama azul da tocha mordeu o ponto que ligava o pulso direito de Gala ao braço da cadeira.
Bond tentou desesperadamente conservar a chama firme, contudo a respiração da moça raspou-lhe entre os dentes, angustiada, quando o cabo se movia entre suas mandíbulas, e o maçarico queimou-lhe o antebraço.
Então tudo acabou. Derretido pelo forte calor, as tiras de cobre foram-se partindo uma por uma e, de repente, o braço direito de Gala ficou livre, e ela o estendeu para tomar o maçarico da boca de Bond.
A cabeça do rapaz caiu novamente para trás, entre os ombros, e ele torceu-a para todos os lados, a fim de conseguir fazer o sangue circular pelos músculos doloridos.
Antes mesmo que ele se desse conta, Gala já se inclinava sobre seus braços e pernas, e ele também estava livre.
Ao sentar-se imóvel por um momento, os olhos fechados, esperando que a vida lhe voltasse ao corpo, sentiu de repente, encantado, os lábios macios de Gala sobre os seus.
Abriu os olhos. Ela estava de pé, diante dele, os olhos brilhando.
— Isto é pelo que você fez — falou, muito séria.
— Você é uma garota maravilhosa — disse Bond. Depois, porém, sabendo o que ia fazer, sabendo que era bem concebível que ela sobrevivesse, mas que ele só tinha mais alguns minutos de vida, fechou os olhos para que ela não visse a desesperança neles.
Gala observou-lhe a expressão do rosto e virou de costas. Pensou que fosse apenas exaustão e o efeito do que seu corpo tinha sofrido. Lembrou-se aí, de repente, da água oxigenada no banheiro pegado ao seu escritório.
Passou pela porta de comunicação. Como era extraordinário ver suas coisas familiares novamente. Devia ser outra pessoa que se sentara naquela escrivaninha e batera na máquina a correspondência, outra moça a que ali empoara o nariz. Sacudiu os ombros e foi para o toalete. Meu Deus, que cara, e só Deus sabe como se sentia cansada! Mas primeiro pegou uma toalha molhada, um pouco de água oxigenada, e voltou. Durante dez minutos tratou do campo de batalha que era a cara de Bond.
Este permanecia sentado em silêncio, uma das mãos descansando na cintura dela e observando-a agradecido. Depois, quando ela voltou para o escritório e fechou a porta do banheiro após entrar, ele se levantou, apagou o maçarico que ainda silvava, e encaminhou-se para o chuveiro de Drax, tirou a roupa e permaneceu durante cinco minutos debaixo da água gelada. “Preparando o corpo”, pensou melancòlicamente, ao examinar o rosto maltratado no espelho.
Vestiu as roupas e voltou para a escrivaninha de Drax, que revistou metòdicamente. Esta lhe proporcionou apenas um prêmio, a “garrafa do escritório”, cheia até a metade de Haig and Haig. Foi buscar dois copos, um pouco de água e chamou Gala.
Ouviu-a abrir a porta do banheiro.
— O que é? — Uísque.
— Vá tomando o seu. Estarei pronta daqui a um minuto.
Bond olhou a garrafa, serviu três quartos de um copo de escovas de dentes e tomou-o de uma vez, em dois goles. Em seguida, acendeu meio trêmulo um abençoado cigarro e sentou-se na borda da escrivaninha, sentindo o álcool queimá-lo no estômago, descendo-lhe até as pernas.
Pegou a garrafa novamente e olhou-a. Ainda havia muito para Gala e um copo inteiro para ele, antes de sair por aquela porta. Era melhor que nada. Não seria tão difícil com aquilo dentro de si, contanto que saísse em passos rápidos o fechasse a porta depois. Nada de olhar para trás.
Gala entrou, uma Gala transformada, parecendo tão bela quanto na noite em que a vira pela primeira vez, exceto as linhas de exaustão sob os olhos, que o pó não disfarçava totalmente, e os feios vincos nos pulsos e tornozelos.
Bond deu-lhe um drinque e tomou outro. Os olhos de ambos sorriam por cima da orla dos copos.
Depois Bond se ergueu.
— Escute, Gala — começou num tom de voz bem natural . — Nós temos de enfrentar o que está por vir e terminar com a história, de modo que serei breve e depois tomaremos outra dose.
Bond ouviu quando ela prendeu a respiração, mas continuou:
— Dentro de dez minutos, mais ou menos, eu vou fechá-la no banheiro de Drax, pôr você debaixo do chuveiro, e abri-lo completamente.
A moça gritou, aproximando-se dele:
— James. Não continue. Eu sei que você vai dizer qualquer coisa horrível. Pare, por favor, James.
— Deixe disso, Gala — disse Bond com aspereza. — Que diabo adianta tudo isto. É um milagre maldito, se é que posso dizer assim, e nós temos a oportunidade.
Afastou-se dela. Encaminhou-se então para as portas que conduziam ao foguete.
— Depois então — prosseguiu, segurando o precioso isqueiro na mão direita — eu sairei daqui, fecharei as portas e acenderei um último cigarro debaixo da cauda do “Explorador da Lua”.
Meu Deus! — sussurrou a moça. — Que é que você está dizendo? Você está louco.
Fitou-o com os olhos arregalados de horror.
— Não seja ridícula — disse Bond impaciente. — Que diabo nos resta fazer? A explosão será tão pavorosa, que ninguém sentirá nada. Deve dar resultado, com todo esse combustível em vapor circulando em redor. Trata-se de mim ou de um milhão de pessoas em Londres. A cápsula não se soltará. As bombas atômicas não explodem assim. Com certeza derreterá. Só há uma chance de você escapar. A maior parte da explosão se encaminhará para a linha de menor resistência através do telhado — e por baixo, pela cavidade exaustora, se eu conseguir fazer funcionar o maquinismo que abre o chão.
Bond sorriu.
— Ânimo — pediu, caminhando para ela e pegando-lhe uma das mãos. — O rapaz ficou de pé no tombadilho incendiado. Eu quis imitá-lo desde os cinco anos de idade.
Gala puxou a mão.
— Não me importa o que você está dizendo — declarou encolerizada. — Temos de pensar em outra coisa qualquer. Você não me acha capaz de ter nenhuma ideia. Vai só me dizendo o que pensa e o que temos de fazer.
Dirigiu-se para o mapa da parede e apertou o interruptor.
— Naturalmente, se tivermos de usar o isqueiro, usá-lo-emos. — Olhou o mapa do falso plano de voo, mal vendo o que tinha diante dos olhos. — Mas a ideia de você caminhar ali sozinho e ficar no meio daqueles horríveis vapores do combustível e calmamente acender essa coisa para depois ser reduzido a pó... Entretanto, se tivermos de agir assim, agiremos juntos. É preferível, melhor do que ser queimada até morrer aqui dentro. De qualquer maneira — fez uma pausa — eu gostaria de ir com você. Nós entramos juntos nesse negócio.
Os olhos de Bond estavam cheios de ternura, quando caminhou em direção à moça, passou-lhe um braço em volta da cintura e abraçou-a bem junto a si.
— Gala, você é um amor — disse com simplicidade. — Se houver outro meio, nós o tentaremos. Mas — olhou o relógio — já passa de meia-noite, e nós precisamos tomar uma resolução rápida. A qualquer momento pode ocorrer a Drax a ideia de mandar guardas para ver sé nós estamos em ordem, e só Deus sabe a que horas ele virá aqui acertar o giroscópio.
Gala torceu o corpo como uma gata. Fitou-o com a boca aberta, o rosto tenso de excitação. Sussurrou:
— O giroscópio, para acertar o giroscópio. Encostou-se novamente de leve contra a parede, os. olhos procurando o rosto de Bond.
— Você não compreende? — sua voz estava beirando a histeria. — Depois que ele sair, nós poderíamos alterar o giroscópio para onde estava, de acordo com o antigo plano de voo, e então o foguete cairia simplesmente no Mar do Norte, onde se julga que irá cair.
Gala afastou-se da parede e agarrou a camisa de Bond com as duas mãos, fitando-o com um olhar que implorava:
— Não poderíamos? Não poderíamos?
— Você conhece as outras direções? — perguntou Bond, ansioso.
— Claro que sim. Convivo com eles há um ano. Nós não teremos uma previsão do tempo, mas teremos de nos arriscar. A previsão desta manhã dizia que nós teríamos as mesmas condições de hoje.
— Por Deus — disse Bond. — Nós poderíamos fazer isto. Se conseguirmos esconder-nos nalgum lugar e fazer Drax imaginar que escapamos. Que tal o túnel exaustor, se eu conseguir fazer funcionar a máquina que abre o assoalho?
— São trinta e tantos metros de queda em linha reta — disse Gala, sacudindo a cabeça. — E as paredes são de aço polido. Como vidro. Além do mais, não há corda ou coisa alguma aqui. Eles tiraram tudo da oficina ontem. Sem contar com os guardas na praia.
Bond refletiu. Depois seus olhos tornaram-se brilhantes:
— Tenho uma ideia. Mas em primeiro lugar, que me diz você do radar, o radar de retorno de Londres? Ele não empurrará o foguete para fora do seu curso e de volta para Londres?
Gala sacudiu a cabeça:
— Ele só trabalha dentro de um raio de cem milhas, mais ou menos. O foguete nem sequer pegará seu sinal. Se estiver apontando para o Mar do Norte, entrará na órbita do transmissor da jangada. Não há nada de errado nos meus planos. Mas onde nos poderemos esconder?
— Num dos tubos de ventilação — respondeu Bond. — Vamos.
Lançou um último olhar à sala. O isqueiro estava em seu bolso. Aquilo seria o último recurso. Não havia mais nada que eles fossem precisar. Seguiu Gala para o cintilante cilindro e dirigiu-se ao painel de instrumentos que controlava a capa de aço da cavidade exaustora.
Após um rápido exame, moveu uma pesada barra de Zu a Auf. Ouviu-se um leve sibilo da máquina hidráulica atrás da parede, e os dois semicírculos de aço se abriram sob a cauda do foguete, deslizando depois novamente para o lugar. Bond seguiu em frente e olhou para baixo.
Os arcos no telhado lá em cima cintilavam em resposta ao seu olhar, de lá das paredes polidas do largo funil de aço, até se curvarem desaparecendo de suas vistas, em direção ao distante clamor ôco do mar.
Bond voltou ao escritório de Drax e puxou para baixo a cortina do boxe do chuveiro. Depois, Gala e ele rasgaram em tiras a cortina e ligaram umas às outras. Deu um rasgão em feitio de um V no fim da última tira para dar a impressão de que a corda da fuga tinha-se partido. Amarrou então a outra extremidade firmemente em torno da ponta aguda de uma das três barbatanas do “Explorador da Lua” e deixou cair o resto de modo que descesse pelo cilindro.
Não era lá grande coisa como falsa pista, mas podia servir para ganhar um pouco de tempo.
As bocarras redondas dos ventiladores tubulares tinham o espaço de umas dez jardas entre si e ficavam a cerca de 1.50m do chão. Bond contou. Havia cinquenta delas. Abriu cautelosamente a grade presa em gonzos que cobria uma delas e olhou para cima. A uma distância de doze metros via-se um leve brilho vindo do luar lá fora. — Chegou à conclusão de que estavam emparedados bem dentro do túnel formado pelo muro da base, até que viraram para os ângulos direitos, em direção aos gradeados das paredes exteriores.
Bond estendeu o braço e correu a mão pela superfície. Era de um concreto rústico, inacabado, e ele grunhiu de satisfação, quando sentiu primeiro uma forte protuberância, e depois outra. Eram as extremidades bifurcadas das varas de aço que reforçavam as paredes, cortadas onde os cilindros começavam.
Ia ser uma coisa dolorosa, mas não havia dúvida de que poderiam ir-se arrastando, centímetro por centímetro, por um desses cilindros, tal como alpinistas numa chaminé rocha acima e, na curva do topo, ficarem ocultos de tudo, menos da busca complicada que seria difícil de manhã com todos os oficiais de Londres em redor da base.
Bond se ajoelhou, e a moça montou-lhe às costas, depois do que começaram a subir.
Uma hora depois, com os pés e os ombros machucados e cortados, deitaram-se exaustos, apertados bem fortemente nos braços um do outro, as cabeças afastadas alguns centímetros do gradeado circular, situado diretamente acima da porta externa, e puseram-se a ouvir os guardas mexendo os pés incessantemente dentro da escuridão, cem jardas distante deles.
Cinco horas, seis, sete.
Lentamente o sol apareceu por trás da cúpula, e as gaivotas começaram a gritar nos penhascos. Então, surgiram de súbito as três figuras caminhando para eles na distância, passaram por um novo pelotão de guardas, os queixos levantados, os joelhos erguidos, vindos para render a ronda noturna.
As figuras foram-se aproximando, e os olhos apertados, exaustos, do casal oculto puderam ver todos os detalhes da cara vermelho-alaranjada de Drax, o pálido focinho de raposa do Dr. Walter, a nédia e balofa cara de sono de Krebs.
Os três homens caminhavam como se fossem executores de um fuzilamento, sem dizer nada. Drax tirou a chave, e eles, silenciosamente, entraram pela porta, alguns pés abaixo dos corpos tensos de Bond e Gala.
Depois, durante dez minutos, reinou o silêncio, quebrado apenas pelo som ocasional de vozes que subiam pelo cilindro do ventilador, quando os três homens se movimentavam pelo chão de aço em torno da cavidade exaustara. Bond sorriu consigo mesmo à ideia do ódio e da consternação que deveriam estampar-se no rosto de Drax; do infeliz Krebs, encolhendo-se sob as chicotadas da língua de Drax; a amarga acusação nos olhos de Walter. Foi então que a porta se escancarou abaixo dele, e Krebs chamou, imperioso, o chefe dos guardas.
— Die Engländer — a voz de Krebs era quase histérica. —Escaparam. O Herr Kapitän pensa que possam estar num dos tubos de ventilação. Vamos arriscar. A cúpula será aberta novamente, e nós vamos eliminar os vapores do combustível. Depois então o Herr Doktor passará a mangueira de vapor quente em cada um dos tubos. Se eles estiverem num deles, isto os liquidará. Escolha quatro homens. As luvas de borracha e as vestimentas para incêndio estão lá embaixo. Nós vamos tirar a pressão do aquecimento. Diga aos outros que prestem atenção para ver se escutam os gritos. Verstanden?
— Zu Befehl!
O homem voltou diligentemente para junto de seu grupo, e Krebs, com o suor da ansiedade no rosto, voltou-se e desapareceu novamente pela porta.
Por um momento Bond permaneceu imóvel.
Ouviram rumores pesados acima de suas cabeças, quando a cúpula se dividiu em dois e se abriu. A mangueira de vapor quente!
Bond ouvira contar de motins em navios sendo combatidos com isto. Desordens em fábricas. Será que alcançará doze metros? A pressão durará? Quantas caldeiras alimentavam o aquecimento? Entre os cinquenta tubos de ventilação, qual seria o escolhido para começarem? Teria Bond ou Gala deixado qualquer indício, com relação àquele que haviam subido?
Bond sentia que Gala esperava que ele explicasse. Que fisesse alguma coisa. Que protegesse a ambos.
Cinco homens vieram aproximando-se do semicírculo de guardas. Passaram por baixo e desapareceram.
Bond pôs a boca no ouvido de Gala.
— Isto poderá machucar — avisou. — Não posso prever quanto. Não pode ser evitado. Teremos de aguentar. Sem fazer barulho.
Sentiu logo a pressão dos braços dela, à guisa de resposta:
— Levante os joelhos. Não fique acanhada. A hora não é para pudores virginais.
— Cale a boca — sussurrou Gala, zangada. Ele sentiu um joelho subir e ficar trancado entre suas coxas. Seu próprio joelho seguiu por ali até não conseguir estender-se mais. A moça se remexia furiosamente.
— Não seja idiota — cochichou Bond, puxando-lhe a cabeça para junto do peito, até que ficou meio encoberta pela sua camisa aberta.
Bond encobriu-a tanto quanto possível. Não podiam fazer nada com relação aos tornozelos e as mãos. Levantou a gola da camisa, o mais que pôde por cima das cabeças. Apertavam-se um contra o outro.
Quentes, cheios de câimbras, sem respirar. Esperando — de repente a ideia ocorreu a Bond, como dois namorados debaixo de arbustos, ocultos. Esperando que as pisadas se afastassem, de modo a poderem principiar tudo novamente. Sorriu amargamente consigo mesmo e pôs-se à escuta.
O silêncio reinava lá embaixo, no foguete. Deviam estar na sala das máquinas. Walter devia estar assistindo à instalação da mangueira na válvula externa. Agora ouviam-se ruídos distantes. Por onde começariam?
Num ponto qualquer, não muito longe, havia um sussurro leve, bem arrancado do fundo, como o apito ineficiente de um trem distante.
Bond dobrou para trás o colarinho da camisa e arriscou um olhar por entre as grades, até os guardas. Os que conseguiu ver, olhavam em frente para a cúpula do lançamento, um pouco à sua esquerda.
Novamente o longo sussurro áspero. E mais uma vez se repetiu.
Ia ficando mais alto. Viu as cabeças dos guardas rodando para o lado das grades das paredes que ocultavam Gala e ele. Deviam estar observando, fascinados, enquanto os jatos brancos e espessos de vapor subiam pelas grades até lá em cima ha parede de cimento, conjeturando: “— Será esta, ou aquela, ou aquela outra, qual será que virá acompanhada de um duplo grito.”
Sentia o coração de Gala batendo de encontro ao seu. Ela não sabia o que estava por acontecer. Confiava nele.
— Pode machucar — sussurrou-lhe novamente. — Pode queimar. Não nos matará. Tenha coragem. Não emita um som.
— Eu estou bem — cochichou a moça, encolerizada. Mas ele percebeu que seu corpo se colava mais ao dele. Chuá! Estava chegando mais perto.
Chuá! A diferença era de dois tubos.
CHUÁ! Pegado a eles. Sentiu um leve cheiro do vapor.
— “Fique bem firme”, ordenou Bond a si mesmo. Esmagou a companheira de encontro ao próprio corpo e prendeu a respiração.
— “Agora. Depressa. Acabem com isso, desgraçados.”
E eis que, subitamente, houve uma grande pressão; o calor e um barulho infernal chegou-lhes aos ouvidos, seguidos de um instante de dor intolerável.
Depois um silêncio mortal, uma mistura de frio intenso e fogo nos tornozelos e nas mãos, uma sensação de estarem ensopados, e um esforço desesperado, sufocante, de fazer o ar puro penetrar nos pulmões.
Seus corpos lutaram automaticamente para se separarem um do outro, para conseguir alguns centímetros de espaço e ar para as áreas da pele que já começavam a cobrir-se de bolhas. A respiração rasgava-lhes as gargantas, e a água porejava do cimento para dentro de suas bocas abertas, até que ambos se curvaram para um lado e atiraram-na fora, e ela foi juntar-se ao riachinho que corria por baixo de seus corpos ensopados, descendo pelos tornozelos escaldantes e dali para as paredes verticais do tubo pelo qual haviam subido.
O uivo da mangueira a vapor afastou-se deles até se tornar um sussurro e, finalmente, cessar. Reinou então o silêncio na estreita prisão de cimento de ambos, ouvindo-se apenas suas teimosas respirações e o tique-taque do relógio de Bond.
Os dois corpos continuavam deitados e à espera, aguentando a dor.
Meia hora — meio ano — mais tarde, Walter, Krebs e Drax seguiram em fila por baixo deles.
No entanto, como medida de precaução, os guardas tinham sido deixados para trás na cúpula do lançamento.
CAPITULO 24
ZERO
Então estamos combinados?
— Sim, Sir Hugo — era o Ministro do Abastecimento quem falava. Bond reconheceu a figura espigada, segura de si. — As direções são aquelas. Meu pessoal verificou-as, independentemente, com o Ministério da Aeronáutica esta manhã.
— Neste caso, se me permite o privilégio — Drax levantou o pedacinho de papel e ia virando em direção à cúpula.
— Segure-a, Sir Hugo. Assim mesmo, por favor. O braço esticado no ar.
As lâmpadas dos flashes se acenderam, e o conjunto de câmaras zumbiu e estalou pela última vez. Drax voltou-se e andou os poucos metros que o separavam da cúpula, quase, assim pareceu a Bond, fitando-o diretamente nos olhos através do gradeado acima da porta da casamata.
A pequena turba de repórteres e fotógrafos dissolveu-se e encaminhou-se para o caminho de concreto, deixando para trás apenas um grupinho de oficiais que conversavam nervosamente, à espera de que Drax surgisse em cena.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e cinco. “Depressa, seu danado”, pensou.
Pela centésima vez repetiu para si mesmo os números qus Gala lhe ensinara durante as horas de dor e câimbras que se seguiram à provação do vapor, e pela centésima vez movimentou os membros para preservar a circulação.
— Apronte-se — cochichou no ouvido de Gala. — Está se sentindo bem?
Sentiu que a moça sorria.
— Ótimo.
Ela fechou a mente à ideia de suas pernas todas cheias de bolhas e da rápida descida, raspando-as pelo tubo de ventilação .
A porta fechou-se com um baque abaixo deles, seguindo-se o estalido da fechadura, e então, precedida por cinco guardas, a figura de Drax apareceu lá embaixo, marchando solene para o grupo de oficiais, a tira de papel com os números na mão.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e sete. — Agora — sussurrou.
— Boa sorte — respondeu Gala, também num sussurro. Escorregando, arranhando-se, rasgando-se. Seus ombros, cautelosamente, se expandiam e contraíam; os pés, cheios de bolhas, de sangue, procurando as saliências agudas do ferro; com o corpo dilacerado abrindo caminho através do tubo de um metro, rezava para que a pequena encontrasse forças para suportar tudo aquilo, quando o seguisse.
Finalmente, o pulo de três metros, que lhe repercutia na espinha, um pontapé nas grades, e ele galgava o chão de aço, corria para as escadas, deixando uma trilha de pegadas vermelhas e um borrifo de gotas de sangue caídas de seus ombros feridos.
Os arcos de luz haviam sido apagados, mas o clarão do dia penetrava pelo telhado aberto, e o azul do céu misturado ao fulgor da luz do sol davam a Bond a impressão de que estava correndo dentro de uma enorme safira.
A grande e mortal agulha no centro parecia ser feita de vidro. Olhando para cima, enquanto suava e arfava no percurso das infindáveis curvas da escada de ferro, era difícil para ele ver onde o nariz do foguete, afinando na ponta, terminava, e começava o céu.
Por trás do pesado silêncio que envolvia a bala esplendente, Bond ouvia um ruído apavorante e regular, o caminhar de minúsculos pés de metal num ponto qualquer do corpo do “Explorador da Lua”. Enchia o vasto compartimento de aço, como as batidas do coração na história de Poe, e Bond compreendeu que Drax, diretamente do ponto do tiro, apertara o interruptor que mandava a faixa radiofônica, disparando a mais de duzentas jardas até o foguete ali à espera. O tique-tique cessaria dentro em breve, ouvir-se-ia o suave gemido do catavento aceso, uma pequena porção de vapor das turbinas, e depois o rugido do jato de flama no qual o foguete se ergueria lentamente e se curvaria majestoso no início de sua gigantesca curva de aceleração.
E então, diante dele, viu o braço retorcido do guindaste dobrado novamente contra a parede, e sua mão alcançou a barra. O braço foi-se esticando para baixo e para fora em direção à linha fina e quadrada, na pele brilhante do foguete, que era a porta do compartimento do giroscópio.
Caminhando apoiado nas mãos e nos joelhos, Bond alcançou-o bem antes de as almofadas de borracha virem descansar contra o cromo polido. Encontrou o disco de descarga, do tamanho de um xelim, exatamente como Gala havia descrito. Apertar, estalar, e a pequenina porta se abria, girando no parafuso duro. Dentro. Cuidado para não ferir a cabeça. Os cabos cintilantes embaixo dos ponteiros da bússola. Virar. Torcer. Firme. Isto é para o rolamento. Agora o topo e o pior. Virar. Lento. Bem delicadamente. Mas firme. Um último olhar. Uma olhada no relógio. Quatro minutos para ir. Não fique em pânico. Volte. Estalido da porta. Uma fugida rápida de gato. Não olhe para baixo. O guindaste se ergueu. Bateu contra a parede. E agora as escadas.
Tique-tique-tique-tique.
Ao descer, Bond vislumbrou o rosto de Gala, branco, tenso, enquanto ela permanecia segurando a porta exterior aberta, a porta do escritório de Drax. Oh, Deus! Como seu corpo doía! Um último salto e uma reviravolta desajeitada para a direita. Pam! Quando bateu com força a porta de fora. Nova pancada, e ei-los atravessando a sala em direção ao chuveiro. A água jorrando sobre seus corpos pegajosos e doloridos.
Por dentro de todo aquele barulho, acima das batidas do próprio coração, Bond ouviu o súbito estalar da estática e, em seguida, a voz do locutor da BBC vinda do enorme aparelho da sala de Drax, poucos centímetros distante da parede fina do banheiro. Fora novamente Gala quem se lembrara do aparelho de rádio de Drax e que encontrara tempo para pô-lo a funcionar enquanto Bond trabalhava no giroscópio.
“... cinco minutos de atraso” — dizia a voz excitada, leve, ao microfone. — Bond fechou o chuveiro, e a voz chegou até eles mais claramente. — “Sir Hugo foi persuadido a dizer algumas palavras. Parece muito confiante. Está dizendo qualquer coisa no ouvido do Ministro. Estão ambos rindo. Gostaria de saber o que estão dizendo. Ah, eis o meu colega que chega com as últimas notícias a respeito do tempo, vindas do Ministério da Aeronáutica. Que dizem elas? Perfeito em todas as altitudes. Bom espetáculo. Não há dúvida de que temos um dia maravilhoso aqui, Ah! A multidão reunida à distância, perto da estação de guardas-costeiros, vai apanhar uma boa queimadura de sol. Deve haver milhares de pessoas ali. Que foi que você disse? Vinte mil? Bem, a impressão que dá é essa mesmo. Walmer Beach também está apinhada de gente. Toda a população de Kent parece estar na rua. Todo mundo vai ficar com mau jeito no pescoço. Vai ser pior que em Wimbledon. Alô, que é que está se passando ali no cais? Puxa, é um submarino que acaba de subir à superfície. Que espetáculo! É um dos maiores que existem, creio eu. E a equipe de Sir Hugo está lá embaixo também. Alinhados no cais, como se estivessem numa parada. Magnífica corporação. Agora entram a bordo em fila. Disciplina perfeita. Deve ser uma ideia do Almirantado. Oferecer-lhes uma recepção especial na entrada do Canal. Maravilhoso espetáculo. Gostaria que você estivesse aqui para ver. Agora Sir Hugo vem vindo em nossa direção. Dentro em pouco estará falando com vocês. Bela figura de homem! Todos os que se encontram no ponto de tiro o estão aclamando. Tenho certeza de que todos nós nos sentimos inclinados a aclamá-lo hoje. Ele vem vindo para o ponto de tiro. Daqui vejo o sol brilhando no nariz do “Explorador da Lua”, lá adiante, por trás dele. Começa a sair por trás do alto da cúpula de lançamento. Espero que alguém tenha uma máquina fotográfica. Ei-lo que chega aqui agora — uma pausa. — Sir Hugo Drax.
Bond olhou o rosto gotejante de Gala. Ensopados e sangrando, ficaram nos braços um do outro, sem falar e tremendo ligeiramente sob o impacto de suas emoções. Seus olhos nada exprimiam e eram insondáveis quando se fitaram.
A voz que se ergueu era aveludado rosnar:
— Vossa Majestade, homens e mulheres da Inglaterra. Estou prestes a modificar o curso da história da Inglaterra. — Uma pausa. — Dentro de poucos minutos todas as vossas vidas estarão alteradas, em alguns casos drasticamente, pelo — hum — impacto do “Explorador da Lua”. Sinto-me muito orgulhoso e feliz porque o destino me elegeu, dentre todos os meus compatriotas, para lançar esta grande flecha de vingança nos céus e assim proclamar para sempre e para que todo o mundo presencie, o poderio de minha Pátria. Espero que esta oportunidade seja para sempre um aviso de que o destino dos inimigos de meu País estará escrito em poeira, em cinzas, em lágrimas e — uma pausa — em sangue. E agora muito obrigado por me terem ouvido, e eu, sinceramente, faço votos para que aqueles dentre vós que puderem, repitam as minhas palavras aos seus filhos, se os tiverem, hoje à noite.
Uma onda um tanto hesitante de aplausos ecoou através do microfone. Em seguida, ouviu-se a voz animada do locutor.
— Acabamos de ouvir Sir Hugo Drax, dirigindo-lhes algumas palavras antes de atravessar o ponto de tiro que leva ao interruptor na parede que lançará o “Explorador da Lua”. É a primeira vez que fala em público. Muito — hum — incisivo. Não faz rodeios para falar. Entretanto, muita gente achará que não há nenhum mal nisto. E agora chegou o momento de eu passar o microfone ao técnico, Capitão-Chefe de Grupo Tandy, do Ministério do Abastecimento, que descreverá para vocês o lançamento do “Explorador da Lua”. Em seguida, ouvirão a palavra de Peter Trimble, numa das embarcações da patrulha de segurança naval, o HMS Merganzer, que descreverá a cena da área compreendida pelo alvo. O Capitão Tandy.
Bond lançou um olhar ao relógio.
— Só mais um minuto — disse a Gala. — Oh, meu Deus, como eu gostaria de pôr as mãos em Drax. Tome aqui — estendeu a mão para o sabonete e arrancou-lhe alguns pedaços. — Ponha isto nos ouvidos, quando chegar a hora. O barulho vai ser tremendo, não sei dizer como será o calor. Não durará muito, e as paredes de aço talvez aguentem bem. Gala olhou para ele. Sorriu.
— Se você me segurar, não vai ser assim tão ruim — falou.
— E agora Sir Hugo está com a mão no interruptor e olha o cronômetro.
— DEZ — disse outra voz, forte e sonora como o toque de um sino.
Bond abriu o chuveiro, e a água jorrou sobre seus corpos apertados um contra o outro.
— NOVE — reboou a voz do que controlava o tempo.
— Os operadores do radar estão olhando as telas. Nada, exceto uma massa de linhas onduladas. . .
— OITO.
— Todos estão usando tampões nos ouvidos. A casamata deve ser indestrutível. As paredes de concreto têm três metros e meio de espessura. O teto em pirâmide tem sete metros e pouco de espessura na ponta.. .
— SETE.
— Primeiro o rádio sustará o mecanismo do tempo nas turbinas. Porá em movimento o cata-vento. Uma coisa flamejante como uma rodinha de fogo de artifício. . .
— SEIS.
— As válvulas se abrirão. Combustível líquido, Fórmula secreta. Coisa formidável. Dinamite. Cai dos tanques de combustível ...
— CINCO.
— Aceso pelo pino giratório, quando o combustível chega ao motor do foguete. . .
— QUATRO.
— enquanto que a água oxigenada e o permaganato já se misturaram, tornaram-se vapor, e as bombas das turbinas começam a girar.. .
— TRÊS.
— bombeando o combustível inflamável, através do motor, na cauda do foguete, para a cavidade exaustora. Calor gigantesco. . . 3500 graus...
— DOIS.
— Sir Hugo está prestes a apertar o botão. Está olhando pela abertura. O suor lhe umedece a fronte. Completa tensão aqui. Tremenda tensão.
— UM.
Nada senão o ruído da água, caindo incessantemente nos dois corpos agarrados.
— FOGO!
O coração de Bond pulou para a garganta ao ouvir o grito. Sentiu Gala estremecer. Silêncio. Nada, senão o sibilar da água...
— Sir Hugo deixou a casamata. Vai caminhando calmamente para a borda dos penhascos. Tão confiante! Passou agora para o elevador. Vai descer. Naturalmente. Deve ir até o submarino. As telas de televisão mostram um pouco de vapor vindo da cauda do foguete. Mais alguns segundos. Sim, ele se encontra no cais. Olhou para trás e levantou o braço no ar. Bom velho Sir Hu...
Um troar longínquo chegou até Bond e Gala. Mais alto. Mais alto. O chão ladrilhado começou a tremer debaixo dos pés deles. Um clamor de furacão!! Seriam pulverizados. As paredes tremiam, queimavam. As pernas de ambos começaram a descontrolar-se sob seus corpos oscilantes. Segure-a bem. Segure-a bem. Pare com isso! Pare com isso!! PARE COM ESSE BARULHO.
Cristo, ele ia desmaiar. A água estava fervendo. Era preciso fechá-la. Encontrei. Não. O cano arrebentou. Vapor, cheiro, ferro, tinta.
Tire-a daqui para fora! Tire-a daqui para fora!! Tire-a daqui para fora!!!
Depois o silêncio. Silêncio que se podia sentir, apalpar, apertar. E eles estavam no chão do escritório de Drax. Só a luz do banheiro ainda brilhava. A fumaça ia dissipando-se. Assim como o cheiro horrível de ferro queimado e tinta. Estavam sendo sugados pelo ar condicionado. A parede de aço inclina-se para eles qual bolha gigantesca. Os olhos de Gala estão abertos, e ela está sorrindo. Mas o foguete? Que foi que aconteceu? Londres? Mar do Norte? O rádio. Parece em ordem. Sacudiu a cabeça, e a surdez foi lentamente desaparecendo. Lembrou-se do sabão. Retirou-o das orelhas.
— Atravessando a barreira do som. Viajando perfeitamente bem no centro da tela do radar. Um lançamento perfeito. Receio que não tenham ouvido nada por causa do barulho. Tremendo. Primeiro todo aquele grande lençol de chamas vindo do penhasco, saindo da cavidade exaustora, e depois vocês deveriam ter visto o nariz lentamente surgir da cúpula. Ei-lo que sobe como um enorme lápis de prata. Mantendo-se em posição vertical nesta imensa coluna de chamas e vagarosamente subindo no ar. A flama se espalhando por centenas de quilômetros sobre o concreto. O uivo da coisa deve ter ameaçado seriamente arrebentar nossos microfones. Grandes fragmentos caíram do penhasco, e o concreto parece uma teia de aranha. Tremenda vibração. E a agulha subindo cada vez mais rápida. Cem milhas por hora. Mil. E — o locutor interrompeu o que ia dizendo — o que é que você disse? Ah, sim? Agora está percorrendo o espaço numa velocidade de dez mil milhas horárias! Encontra-se a uma altura de trezentas milhas. Não posso ouvir mais, naturalmente. Só vimos a flama durante alguns segundos. Como uma estrela. Sir Hugo deve estar muito orgulhoso. Encontra-se, no momento, no Canal. O submarino partiu como um foguete. Deve estar fazendo mais de trinta nós. Atirando para cima um colosso de espuma. Já alcançou o East Goodwins agora. Viaja para o norte. Dentro em breve chegará até os navios patrulheiros. Presenciarão o lançamento e a aterrissagem. Mas esse itinerário foi meio surpreendente. Ninguém aqui tinha a menor indicação. Até mesmo as autoridades navais parecem um tanto mistificadas. O Comandante-em-Chefe Nore foi ao telefone. Mas agora é só o que eu lhes posso informar daqui e vou passar a palavra a Peter Trimble, a bordo do HMS Merganzer, num ponto qualquer da Costa Oriental.
Nada, exceto os pulmões funcionando, indicava que os dois corpos largados na lagoa sempre crescente do chão ainda estivessem vivos. Mas seus tímpanos avariados pendiam desesperadamente do ruído de estática que veio durante alguns instantes do gabinete de metal todo empipocado. Agora teriam o veredicto do seu trabalho.
— Aqui fala Peter Trimble. Temos uma linda manhã — retifico — tarde, aqui. Um pouco ao norte de Goodwin Sands. Calmo como um lago. Não há vento. O sol brilha alegremente. A área compreendida pelo alvo foi declarada limpa, sem nenhuma embarcação. Não é assim, Comandante Edwards? Sim, o Capitão diz que está tudo inteiramente limpo. Por enquanto nada se vê na tela do radar. Não me é permitido informar o raio em que o pegaremos. Por motivos de segurança, e essa coisa toda. Mas nós só pegaremos o foguete por uma fração de segundo. Não está certo o que digo, Capitão? Mas o alvo começa a aparecer na tela. Não se pode vê-lo da ponte, naturalmente. Deve estar a setenta milhas daqui, na direção do norte. Vimos o “Explorador da Lua” subindo. Espetáculo assombroso! O barulho semelhante a um trovão. Uma longa chama saía da cauda. Devia estar já a dez milhas de distância, mas não era possível deixar de ver a luz. Não é isto, Capitão? Ah, sim, compreendo. Bom, isto é muito interessante. O enorme submarino se aproxima rapidamente. Está apenas a uma milha de distância. Suponho que seja aquele onde se encontra Sir Hugo com seus homens. Nenhum de nós aqui foi informado de coisa alguma a seu respeito. O Capitão Edwards diz que não responde à lâmpada Aldis. Não traz distintivo de navegação. Muito misterioso. Peguei-o agora mesmo. Está bem nítido em meus binóculos. Mudamos de rumo para tentar a intercepção. O Comandante diz que não é um dos nossos. Acha que deve ser estrangeiro. Atenção! Mostrou agora suas cores. O que vem a ser isto? Santo Deus! O capitão diz que é um submarino russo. Puxa! Agora está arriando as bandeiras e submergindo. Bang! Ouviram? Atiramos visando a proa, mas já desapareceu. Que é isto? Ah, o operador do asdic informa que está acelerando cada vez mais, debaixo da água. Vinte e cinco nós. Puxa! De qualquer modo, o submarino não poderá ver muita coisa debaixo da água, porém encontra-se agora bem na área do alvo. Passam vinte minutos das doze horas. O “Explorador” deve ter mudado seu rumo e prepara agora a descida. A umas mil milhas. Velocidade de descida, dez mil milhas horárias. Estará aqui dentro de segundos. Espero que não se verifique tragédia alguma. O submarino russo encontra-se bem dentro da zona perigosa. O operador do radar está acenando para nós. É o sinal para avisar que está na hora. Vem chegando. Vem chegando! . . . Não se ouve o mais leve ruído! deus do céu! Que é isto? Cuidado! Cuidado! Uma terrível explosão.. . Uma nuvem negra se eleva no ar. Uma gigantesca vaga, como a de um maremoto, aproxima-se rapidamente de nós. Uma vaga enorme! O submarino! Santo Deus... vimo-lo agora saltar fora da água e voltar a mergulhar, de quilha para o ar! Vem chegando. . .! Vem chegando! ...
CAPÍTULO 25
ZERO MAIS
Duzentos mortos confirmados, até agora, e aproximadamente o mesmo número de pessoas desaparecidas — informou M.
— Ainda estão chegando notícias da costa oriental, e as informações da Holanda não são das melhores. Foram inutilizadas muitas milhas de suas defesas navais. A maioria de nossas perdas ocorreu nas unidades patrulheiras. Duas delas viraram, incluindo o Merganzer. O Comandante desapareceu. O camarada da B. B. C. também. Os navios-faróis de Good-win partiram as amarras. Ainda não recebemos notícias da Bélgica e da França. Haverá contas bem pesadas a pagar, quando tudo isto ficar em ordem...
Era na tarde seguinte, e Bond, com uma bengala de ponta de borracha ao lado da cadeira, voltava a sentar-se onde tudo havia começado: do outro lado da escrivaninha daquele homem calmo, de frios olhos cinzentos, que o convidara para jantar e jogar bridge, há cem anos atrás.
Por baixo da roupa, Bond era uma perfeita e entrelaçada teia de esparadrapo. A dor queimava-lhe as pernas, sempre que tentava mexer os pés. Um traço vermelho cortava-lhe a face esquerda e a parte superior do nariz. O linimento, feito à base de ácido pícrico, cintilava à luz que entrava pela janela. Segurava um cigarro, como podia, na mão enluvada. Inacreditavelmente, M. tinha-o convidado a fumar.
— Algumas notícias do submarino, chefe? — perguntou Bond.
— Já o localizaram — disse M. com satisfação. — Adernado a cerca de trinta braças de profundidade. O navio de salvamento que deveria localizar os restos do foguete encontra-se agora por cima dele. Os mergulhadores já estiveram no fundo, e não houve resposta aos sinais feitos no casco. O embaixador soviético esteve no Foreign Office esta manhã. Parece ter declarado vir a caminho um navio salva-vidas, proveniente do Báltico, mas respondemos que não podíamos esperar, visto que, tratando-se de um navio naufragado, constitui um perigo para a navegação, no local onde está. — M. riu. — Com efeito, seria um perigo se alguém se dispusesse a navegar a trinta braças de profundidade, em pleno Canal. Contudo, estou satisfeito por não ser membro do Ministério — acrescentou friamente. — Tem estado em sessão permanente, desde o final da transmissão radiofônica. Vallance conseguiu entrar em contato com os tais advogados de Edinburgh, antes de eles abrirem a mensagem de Drax para o mundo. Parece ser um documento terrível, como se tivesse sido escrito pelo próprio Jeová. Vallance levou-o ao Governo, na noite passada, e ficou no 10, Downing Street, para esclarecer pontos ainda não averiguados.
— Eu sei — disse Bond. — Ele esteve telefonando constantemente para o hospital, procurando saber detalhes, até depois da meia-noite. Eu mal podia raciocinar direito, devido aos entorpecentes que me aplicaram. E que vai acontecer agora?
— Vão tentar abafar a coisa, com a maior embromação de que se teve notícia até hoje em toda a História. Uma quantidade enorme de lero-lero científico, explicando que o combustível foi usado só pela metade. Deu-se uma inesperada e potente explosão. Serão pagas indenizações. Perda trágica de Sir Hugo Drax e sua valiosa equipe. Grande patriota. Perda trágica de um dos submarinos de Sua Majestade. Último modelo experimental, ordens mal compreendidas. Tudo muito triste. Felizmente, perdeu-se uma tripulação mínima. Os parentes mais próximos serão informados. Trágica perda de um radialista da B.B.C. Inacreditável erro ao confundir a insígnia branca com as cores navais soviéticas. O desenho é muito semelhante. A bandeira branca foi recuperada no naufrágio.
— Mas que me diz da explosão atômica? — indagou Bond. — Radiações, poeiras radioativas e tudo isso. . . A famosa nuvem em forma de cogumelo. Com certeza isso vai ser um problema para explicar.
— Aparentemente, não estão muito preocupados com a questão — disse M. — A nuvem vai passar como formação normal, após uma explosão daquela envergadura. O Ministério do Abastecimento conhece toda a história. Foi preciso contar-lhes. Seus homens andaram percorrendo ontem à noite toda a costa oriental, com contadores Geiger, e ainda não houve qualquer notícia positiva. — M. sorriu friamente. — A nuvem terá de descer em algum lugar, claro, mas por uma feliz circunstância, o vento está empurrando-a para o norte. De volta a casa, como se poderia dizer. . .
Bond esboçou um sorriso, com dificuldade.
— Compreendo. Que coisa apropriada.
— Evidentemente — prosseguiu M., enchendo o cachimbo — haverá por aí uma série de boatos desagradáveis. Já começaram, aliás. Muita gente viu você e Miss Brand, serem retirados em padiolas. Depois, há o caso da Bowaters contra Drax, pela perda de todo aquele material de impressão. Haverá também inquérito sobre o rapaz que foi morto no Alfa Romeo. E alguém terá de explicar como se encontraram os restos de seu automóvel, entre os quais, — e nesta altura, M. olhou acusadoramente para Bond — foi encontrado um Colt de cano longo. E temos ainda o Ministério de Abastecimento. Vallance teve de chamar alguns de seus homens, ontem, para limpar aquela casa da Ebury Street. Mas essa gente está treinada em guardar segredo. Não será por aí que se descobrirá alguma coisa. Naturalmente, será um negócio arriscado. Mas a mentira de grandes proporções sempre o foi. E qual seria a alternativa? Encrencas com a Alemanha? Guerra com a Rússia? Muita gente, dos dois lados do Atlântico, ficaria mais do que satisfeita se lhe déssemos um motivo para agir.
M. fez uma pausa e chegou um fósforo ao cachimbo. Depois continuou:
— Se a história fôr engolida, não sairemos muito mal de tudo isto. Quisemos um de seus submarinos ultravelozes e ficaremos satisfeitos com as pistas que conseguimos descobrir a respeito de suas bombas atômicas. Os russos sabem que nós sabemos que o jogo deles fracassou. Malenkov não está muito firme no poder, e isto pode muito bem significar outra rebelião entre os senhores do Kremlin. Quanto aos alemães, bem... todos nós sabemos que ainda ficou muito nazismo espalhado por aí, e isto servirá para que o Ministério seja um pouco mais cauteloso, no tocante ao rearmamento da Alemanha. Entre as consequências de menor vulto — disse com um sorriso — destaca-se a de que o trabalho de segurança de Vallance, e o meu também, aliás, vão ficar um pouco mais fáceis para o futuro. Esses políticos não veem que a era atômica criou o mais letal sabotador da história da humanidade: o homenzinho com a valise pesada.
— E a imprensa vai engolir essa história? — perguntou Bond, duvidoso.
M. sacudiu os ombros.
— O Primeiro-Ministro teve esta manhã um encontro com os jornalistas — respondeu M., chegando outro fósforo ao cachimbo — e creio que conseguiu tudo da melhor maneira. Se os boatos se intensificarem mais tarde, ele terá, provavelmente, de convocá-los novamente e dizer-lhes parte da verdade. Então, eles se portarão bem. Sempre se portaram, quando o negócio é importante de verdade. O principal é ganhar tempo e manter afastados os boateiros. No momento, todos estão de tal maneira orgulhosos do “Explorador da Lua”, que não indagarão muito minuciosamente que foi que não deu certo.
Ouviu-se um leve zumbido no intercomunicador da escrivaninha de M., e uma luzinha vermelha piscou repetidas vezes. M. pegou no fone e curvou-se. — Alô. — Houve uma pausa. — Atenderei na linha do Ministério. — Apanhou o receptor branco, na mesa onde havia quatro telefones. — Sim. Está falando. — Nova pausa. — Pronto, sir? Escuto. — M. premiu o botão do misturador de sons. Segurou o fone junto ao ouvido, e nem um som chegou até aos ouvidos de Bond. Houve uma longa pausa, durante a qual M. ia puxando uma ou outra baforada do cachimbo, com a mão esquerda, enquanto escutava. Depois, tirou-o da boca. — De acordo, sir. É isso mesmo, sir. — Outra pausa. — Estou certo de que o meu homem teria ficado extremamente orgulhoso, sir. Mas, naturalmente, como Vossa Excelência sabe, é uma regra aqui no serviço. — M. franziu a testa. — Se me permite dar uma opinião, sir, creio que não seria nada aconselhável. — Uma pausa e a fisionomia de M. se desanuviou. — Obrigado, sir. Claro, Vallance não tem o mesmo problema. É o mínimo que ela merece, sir. — Outra pausa. — Compreendo. Assim será feito, sir. — Nova pausa. — É muita bondade sua, sir.
Depois de mais alguns cumprimentos, M. colocou o telefone branco no gancho, e o botão do misturador voltou à sua posição inicial de “livre”.
Por uns instantes, M. continuou fitando o telefone, como se em dúvida a respeito do que fora dito. Depois rodou a cadeira para longe da escrivaninha e olhou pela janela, pensativo.
Reinou o silêncio na sala, e Bond remexeu-se na cadeira, para aliviar a dor que lhe invadia novamente o corpo.
O mesmo pombo de segunda-feira, ou talvez outro, veio descansar no peitoril da janela, com o mesmo ruflar de asas. Caminhava para um e outro lado, baixando a cabeça e arruinando. Depois, voou para as árvores do parque. O tráfego murmurava, sonolento, na distância.
Como estivera perto, pensou Bond, de embarcar desta para melhor. Quão perto estivera de não haver nada mais do que a sirena distante da ambulância sob um sinistro céu negro e alaranjado, o cheiro de queimado, os gritos das pessoas ainda presas nos edifícios. O suave bater do coração de Londres, silenciado por uma geração. E toda uma geração de sua gente, morta nas ruas, entre as ruínas fumegantes de uma civilização que talvez não se erguesse de novo senão daí a muitos séculos.
Tudo isso teria acontecido por causa de um homem que fazia trapaça nas cartas, desdenhosamente, para alimentar o fogo devorador de seu ego maníaco; teria acontecido, se não fosse o presidente do clube Blades que o descobriu; se não fosse M., que concordara em ajudar um velho amigo; se não fosse a lição meio recordada por Bond e aprendida com um perito em trapaças; se não fossem as precauções de Vallance; se não fosse a boa cabeça de Gala para cálculos; se não fosse por uma série completa de circunstâncias fortuitas, de oportunidades .
E quem preparou a série?
Ouviu-se um ranger agudo, quando a cadeira de M. girou. Bond, cautelosamente, voltou a focalizar sua atenção nos olhos cinzentos do outro lado da escrivaninha.
— Era o Primeiro-Ministro — explicou M., em voz agridoce. — Diz que deseja que tanto você como Miss Brand saiam do País. — M. baixou os olhos e pousou-os, impassível, no fornilho do cachimbo. — Vocês dois têm de dar o fora até amanhã à tarde. Há muitas pessoas, neste caso, que lhes conhecem as caras. Poderão somar dois e dois e saberem que são quatro, quando virem em que estado lamentável se encontram. Vão para qualquer lugar que lhes agrade. Despesas sem limite de verba para ambos. Qualquer importância que precisarem. Vou falar com o Tesoureiro. Fique fora por um mês. Mas completamente fora de circulação, entendeu? Vocês dois já deveriam ter partido esta tarde, mas a moça tem um compromisso amanhã às onze horas. No Palácio. Foi-lhe concedida a George Cross. Mas isso não será divulgado até ao novo ano, claro. Gostaria de encontrá-la, qualquer dia. Deve ser uma excelente moça. Aliás — a expressão de M., quando levantou os olhos, era indecifrável — o Primeiro-Ministro tinha na ideia qualquer coisa para você, também. Esquecera que nós, aqui, não admitimos essas coisas. De modo que me pediu para lhe agradecer em nome dele. Disse algumas palavras simpáticas a respeito de nosso serviço. É muito gentil.
M. esboçou um daqueles raros sorrisos que iluminavam seu rosto com uma vivacidade e calor imediatos. Bond retribuiu o sorriso. Eles compreendiam bem as coisas que não chegavam a ser ditas.
Bond percebeu que era tempo de sair. Levantou-se e disse:
— Muito obrigado, chefe. Estou muito satisfeito pela moça.
— Bom, então está tudo combinado — disse M., com uma nota de despedida na voz. — Por hoje basta. Vê-lo-emos aqui dentro de um mês. Ah, é verdade — acrescentou com naturalidade — passe pelo seu escritório antes de sair. Encontrará uma coisa que eu lhe deixei lá. Uma pequena lembrança .
James Bond desceu pelo elevador e foi mancando pelo corredor, até seu gabinete. Quando cruzou a porta interior, encontrou sua secretária arrumando alguns papéis na escrivaninha ao lado da dele.
— 008 já está de volta? — perguntou.
— Sim — respondeu ela, sorrindo feliz. — Deve voar esta noite para cá.
— Ótimo, fico alegre por saber que você terá companhia — disse Bond. — Vou partir novamente.
— Oh! — exclamou a moça. Olhou rapidamente para ele e depois desviou o olhar. — Você está mesmo com cara de quem precisa de um bom descanso.
— Pois vou tê-lo mesmo. Um mês de exílio. — Pensou em Gala. — Vai ser um período de puras férias. Nada mais. Alguma coisa para mim?
— Seu novo carro está lá embaixo. Já o examinei. O homem disse que você lhe tinha dado ordens para que o trouxessem para experiência esta manhã. É lindo! Ah, é verdade. E tem ainda o pacote que veio do gabinete de M. Quer que o desembrulhe?
— Sim, por favor. . .
Bond sentou-se à escrivaninha e olhou o relógio. Cinco horas. Sentia-se fatigado. Sabia que iria sentir o mesmo durante alguns dias. Sempre tinha essas reações, no final de uma difícil missão. Era a consequência dos dias de nervos em tensão, dos temores, do medo.
Sua secretária voltou ao escritório, com duas caixas de papelão, de aspecto pesado. Colocou-as sobre a escrivaninha, e ele abriu a de cima. Quando viu a espécie de papel que envolvia o objeto, percebeu logo o que estava para vir.
Havia um cartão dentro da caixa. Bond pegou-o e leu. Na tinta verde usada por M., este dizia: “Você pode precisar destas coisas.” Não havia assinatura.
Bond desembrulhou o papel impermeável e sopesou a nova e refulgente Beretta em sua mão. Um lembrete. Não. Uma recordação. Bond sacudiu os ombros e fez a arma deslizar por baixo do casaco, para o coldre vazio. Levantou-se com alguma dificuldade.
— No outro embrulho, você encontrará um Colt de cano longo — disse ele à secretária. — Guarde até eu regressar. Então, eu o levarei ao fogão da cantina e jogá-lo-ei lá dentro.
Caminhou para a porta:
— Adeus, Lil. Lembranças a 008, e diga-lhe que tome cuidado com você. Eu estarei na França. Estação F terá meu endereço. Mas só em caso de emergência.
A moça sorriu.
— Que deverei considerar uma emergência? — perguntou.
Bond soltou uma pequena risada.
— Qualquer convite para um tranquilo jogo de bridge, por exemplo — respondeu ele.
Saiu mancando e fechou a porta.
O Mark VI, modelo 1953, tinha uma carroçaria esportiva e elegante, cor cinza de navio de guerra como o velho quatro litros e meio que fora para a sepultura numa garagem de Maidstone. O estofamento de couro azul-marinho deu um luxuoso gemido de coisa nova, quando Bond subiu, desajeitadamente, para o assento ao lado do motorista de provas.
Meia hora depois, o motorista ajudou-o a descer na esquina de Birdcage Walk com Queen Anne’s Gate.
— Se o senhor quisesse, poderíamos ter feito maior velocidade — disse o motorista. — E se nos autorizar a ficar com ele por mais uns quinze dias, poderemos prepará-lo para chegar aos cento e sessenta horários.
— Mais tarde — respondeu Bond. — Está comprado. Mas com uma condição. De que você o leve à terminal do ferry-boat na estação de Calais, amanhã à tarde.
O motorista sorriu:
— O.K. Eu o levarei. Verei o senhor no cais, está bem?
— Combinado. Siga com cuidado pela A-20. A estrada de Dover está muito perigosa, estes últimos dias.
— Não se preocupe, sir — respondeu o motorista, pensando que aquele homem devia ser um tanto medroso, apesar de tudo o que parecia conhecer a respeito de automóveis. — Não acontecerá nada.
— Nem todos os dias — advertiu ainda Bond, sorrindo. — Vê-lo-ei em Calais.
Sem esperar a resposta, saiu mancando, apoiado à bengala, por entre os raios de luz poeirenta do crepúsculo, filtrados através das árvores do parque.
Sentou-se defronte da ilha, no lago, e puxou da cigarreira, acendendo um cigarro. Olhou o relógio. Cinco para as seis. Lembrou-se de que ela não era o tipo de pequena que não seria pontual num encontro. Reservara a mesa de um canto parar o jantar. E depois? Mas, primeiro, haveria o longo e requintado planejar. De que gostaria ela? Onde gostaria de ir? Onde já teria estado? Alemanha, com certeza. França? Deixaria Paris de lado. Poderiam visitar a cidade no regresso. Mas, na primeira noite, iriam o mais longe que pudessem, bem longe do Pas de Galais. Havia aquela casa de campo, com uma comida maravilhosa, entre Montreuil e Étaples. Depois, a descida ao longo do Loire. Os pequenos lugares perto do rio, para alguns dias. As cidades dos castelos, não. Lugares como Beaugency, por exemplo. Depois, vagarosamente, para o sul, sempre seguindo pelas estradas do Oeste, evitando a vida em lugares mundanos e hotéis de cinco estrelas. Explorando lentamente o caminho. Bond teve um sobressalto. Explorar o quê? Um ao outro? Seria que ele estava levando a pequena a sério, demasiado a sério?
— James.
Era uma voz clara, bem timbrada, um pouco nervosa. Não a voz que ele esperava.
Levantou os olhos. Ela estava de pé, a poucos metros de distância. Bond reparou que usava uma boina preta, colocada num ângulo brejeiro. Tinha um ar excitante, misterioso, como alguém que vemos, em terra estranha, conduzindo sozinha um carro aberto. Alguém inatingível e mais desejável do que qualquer outra pessoa que já se conheceu até hoje. Alguém que está a caminho de um encontro amoroso com outro. Alguém que não é para você.
Bond ergueu-se, e deram-se as mãos.
Foi ela quem soltou a sua. Não se sentou.
— Gostaria muito que você fosse amanhã, James — disse Gala.
Seus olhos eram ternos quando o fitou. Ternos e suaves, mas, pensou ele, algo evasivos. Bond sorriu.
— Amanhã de manhã? Ou amanhã à noite? — disse ele.
— Não seja ridículo — respondeu Gala, rindo e corando. — Amanhã no Palácio.
— E depois? Que tenciona você fazer?
Gala encarou-o, cautelosamente. Que seria que esse olhar lembrava a ele? O olhar de Morphy? O olhar com que fitara Drax, na derradeira mão do jogo no Blades? Também não. Havia algo mais. Ternura? Pena?
A moça olhou por cima do ombro. Bond deu meia volta. Mais adiante viu a figura de um rapaz alto, de cabelos louros e cortados curtos. Estava de costas para ambos, sem fazer qualquer movimento. Matando o tempo.
Bond voltou a cabeça para Gala, e os olhos dela encontraram os seus.
— Vou-me casar com aquele homem — declarou ela, simplesmente. — Amanhã de tarde. — E então, como se não houvesse necessidade de outra explicação, acrescentou: — O nome dele é Vivian, Detetive-Inspetor.
— Ah, sim — disse Bond — compreendo. — Sorriu, um tanto amargo.
Houve um momento de silêncio, durante o qual seus olhos se desviaram para longe.
Entretanto, por que motivo deveria ele esperar outra coisa diferente? Um beijo. O contato de dois corpos assustados, agarrando-se no meio do perigo. Nada mais houvera. Depois, o anel de noivado sempre estivera no dedo dela, para que Bond não tivesse dúvidas. Por que supusera ele, automaticamente, que a moça o usara apenas como estratagema para que Drax não excedesse os limites? Por que imaginara que ela compartilhava de seus desejos e de seus planos?
E agora? conjeturava Bond. Sacudiu os ombros para expulsar a dor do fracasso... essa dor que é bem maior do que o prazer do sucesso. Afastar-se, era agora a única saída. Sair do caminho dessas duas vidas jovens e levar seu frio coração para qualquer outro lugar. Nada de penas. Nada de falsos sentimentos. Tinha de representar o papel que ela esperava dele. O homem duro, mundano. O Agente Secreto. O homem que era apenas uma silhueta.
Gala fitava-o, bastante nervosa, esperando ver-se desligada do estranho que tentara penetrar no átrio de seu coração.
Bond sorriu, com calor.
— Estou com ciúme — disse ele. — Tinha outros planos para você amanhã à noite.
Gala retribuiu o sorriso, grata por ter sido quebrado o silêncio.
— Quais eram esses planos? — indagou.
— Ia levá-la a uma casa de campo na França. E, depois de um jantar maravilhoso, pretendia verificar se é verdade o que dizem a respeito do grito de uma rosa.
A moça riu.
— Lamento muito não poder participar desses planos. Mas existem tantas outras, esperando serem colhidas.
— Sim, creio que sim — disse Bond. — Então, adeus, Gala.
Estendeu-lhe a mão.
— Adeus, James.
Bond tocou em Gala Brand pela derradeira vez e, depois, separaram-se, caminhando cada qual ao encontro de suas tão diferentes vidas.
CAPÍTULO 20
A JOGADA DE DRAX
Havia três diferentes fontes de dores no corpo de Gala. A dor latejante atrás da orelha esquerda, a carne mordida nos pulsos, e o queimar das correias em torno de seus tornozelos.
Cada saliência do terreno, cada desvio, cada pressão repentina do pé de Drax nos freios ou no acelerador, despertava uma dessas dores e lhe irritava os nervos. Se ao menos tivesse sido colocada mais presa ao assento de trás. Mas só havia lugar para seu corpo rolar alguns centímetros no assento, de modo que se via obrigada a contorcer constantemente o rosto machucado para evitar o contato com as paredes de brilhante couro de porco.
O ar que respirava era abafado, com um cheiro de forração nova de couro, fumaça do cano de descarga e, de quando em quando, o mais acentuado de borracha queimada, cada vez que Drax raspava os pneumáticos numa esquina de curva acentuada.
No entanto, o desconforto e a dor não eram nada. Krebs! Curioso como seu temor e repulsa por Krebs a atormentava mais que tudo. As outras coisas eram grandes demais. O mistério de Drax e seu ódio pela Inglaterra. O enigma do seu perfeito domínio da língua alemã. O “Explorador da Lua”. O segredo da cápsula atômica. Como salvar Londres. Eram assuntos que há muito tempo ela afastara para um recanto do cérebro como coisas insolúveis.
Mas a tarde passada a sós com Krebs estava presente e terrível em seu espírito, e este voltava sempre e sempre aos detalhes da mesma, como uma língua em cima de um dente dolorido.
Muito tempo depois de Drax ter partido, ela continuara a fingir inconsciência. A princípio, Krebs se ocupara com as máquinas, conversando com elas em alemão, numa falinha de bebê, toda carinhosa.
— Pronto, minha Liebchen. Agora está melhor, não está? Uma gota de óleo para você, minha Pupperl? Como não? Vai já. Não, não sua preguiçosa. Eu disse mil voltas. Não novecentas. Vamos ver agora. Nós podemos fazer coisa melhor, não podemos? Sim, minha Schatz. É isto. Rodando, rodando, lá vamos nós. Para cima e para baixo. Rodando, rodando. Deixe eu limpar sua carinha bonita, para você, para nós podermos ver o que o pequenino mostrador está dizendo. Jesus Maria, bist du ein braves Kind!
E assim continuara, ora ficando em pé, diante de Gala, ora esgaravatando o nariz e chupando os dentes, numa atitude horrível de ruminante. Até que foi permanecendo cada vez mais tempo diante dela, esquecendo as máquinas, conjeturando, tomando uma resolução.
E então sentira a mão dele desabotoar o botão de cima de seu vestido, e o recuo (automático de seu corpo teve de ser disfarçado por um grunhido realístico e uma pantomima de volta de consciência.
Pedira água, e ele fora buscar no banheiro, trazendo um pouco num copo de escova de dentes. Depois puxara uma cadeira de cozinha para a frente dela e sentara-se atravessado, de costas para o assento, o queixo descansando na última travessa do encosto. Ficara então a fitá-la especulativamente, por baixo das pálpebras caídas, com aqueles olhos desbotados.
Ela fora a primeira a romper o silêncio.
— Por que me trouxeram aqui? Para que são todas essas máquinas?
Krebs lambera os lábios de sua boquinha vermelha e bicuda, aberta sob a mancha de bigode amarelo, e foi formando lentamente um sorriso em forma romboide.
— Isto é um engodo para passarinhos. Dentro em breve atrairá um passarinho para seu ninho quente. Então o passarinho porá um ôvo. Oh, um ôvo tão grande, redondo! Um ôvo lindo!
A parte inferior de seu rosto ria encantada, enquanto seus olhos divagavam.
— A mocinha bonita está aqui porque, de outro modo, poderia assustar o passarinho, e este ir embora. E isto seria tão triste, não é mesmo? — o homem cuspiu as três palavras seguintes: — Cadela inglesa e suja!
Seus olhos tornaram-se atentos, cheios de resolução. Puxou a cadeira mais para perto, de modo que seu rosto ficou muito próximo ao dela, e ela se viu envolvida pelo miasma de sua respiração.
— E agora, cadela inglesa, diga para quem você está trabalhando? — Esperou. — Você precisa me responder, sabe? — avisou suavemente. — Nós estamos sozinhos aqui. Não há ninguém para lhe ouvir gritar.
— Não seja estúpido — disse Gala em desespero de causa. — Como eu poderia estar trabalhando para outra pessoa que não fosse Sir Hugo? (Krebs sorriu ao ouvir o nome).
— Eu só estava curiosa a respeito do plano de voo...
Gala iniciou uma explicação arrastada, a respeito de seus números e os de Drax, e de como desejara partilhar do sucesso do “Explorador da Lua”.
— Tente novamente — sussurrou Krebs, quando ela terminou. — Você deve sair-se melhor que isso — e, subitamente, seus olhos haviam-se tornado chispantes de crueldade, e suas mãos se estenderam para ela, por trás do encosto da cadeira. . .
No assento de trás do veloz Mercedes, Gala rangeu os dentes e choramingou com a lembrança dos dedos leves se arrastando pelo seu corpo, tateando, beliscando, puxando, enquanto seus olhos, durante o tempo todo, fitavam curiosamente os dela, até que, finalmente, ela juntou saliva na boca e deu uma cusparada bem no meio da cara do homem.
Este nem se dera o trabalho de parar para limpar o rosto, mas, de repente, aplicara-lhe um golpe violento, e ela gritara uma só vez, para em seguida desmaiar.
E então se vira sendo empurrada para a parte traseira do carro, com um tapete atirado em cima dela, e eles partiram velozmente pelas ruas de Londres. Gala ouvia outros carros perto deles, o campainhar frenético de uma bicicleta, um grito de vez em quando, o grunhido animalesco de uma velha klaxon, o ronronar de uma lambreta, um rangir de freios, e compreendeu que voltara ao mundo real, que pessoas inglesas, amigos, estavam em volta dela. Lutara para se pôr de joelhos e gritar, mas Krebs devia ter-lhe pressentido os movimentos, porque as mãos dele se encontraram repentinamente em seus tornozelos, prendendo-os à barra de descanso para os pés, no chão. Compreendeu que estava perdida, e as lágrimas lhe correram pelas faces, enquanto rezava para que alguém, de um jeito ou de outro, chegasse a tempo.
Isto acontecera há menos de uma hora, e agora ela podia garantir que haviam chegado a uma cidade grande — Maidstone, se estava sendo levada de volta para a base.
No relativo silêncio do avanço do Mercedes por dentro da cidade, ela ouviu, subitamente, a voz de Krebs. Havia nela um quê de ansioso.
— Mein Kapitän, tenho estado a observar um carro já há algum tempo. Não resta dúvida de que está nos seguindo. Raramente usa os faróis. Está apenas a uns cem metros de distância, atrás de nós agora. Eu acho que é o carro do Comandante Bond.
Drax grunhiu de surpresa, e ela ouviu seu corpanzil virar-se todo para dar uma rápida olhada.
Praguejou violentamente, e depois veio o silêncio, dentro do qual ela pôde sentir o carro grande se movimentando em curvas e se esforçando por ganhar terreno dentro do trânsito.
— Ja, sowas! — disse finalmente Drax. Sua voz parecia preocupada. — Quer dizer que aquela velha peça de museu ainda pode movimentar-se. Tanto melhor, meu caro Krebs. Parece que ele está sozinho.
Deu uma risada desagradável:
— Deixe que ele fique por nossa conta, porque se sobreviver, nós o meteremos no mesmo saco com a mulher. Ligue o rádio. Estação local. Logo saberemos se existe algum obstáculo.
Ouviu-se um rápido estalido da estática e depois Gala escutou a voz do Primeiro-Ministro, a voz das grandes ocasiões de sua vida, vinda em fragmentos entrecortados, enquanto Drax punha o carro em terceira e acelerava para sair da cidade: “. . . arma criada pela engenhosidade do homem. . . mil milhas acima no firmamento. . . área patrulhada pelos navios de Sua Majestade. . . planejado exclusivamente para a defesa de nossa amada ilha. . . uma longa era de paz... desenvolvimento para a grande viagem do homem além dos limites deste planeta. . . Sir Hugo Drax, esse grande patriota e benfeitor do nosso País...”
Gala ouviu o estrondear da gargalhada acima do uivar dos ventos, um vasto latido de desprezo e triunfo e, em seguida, o rádio foi desligado.
— James — sussurrou Gala consigo mesmo. — Só resta você. Tenha cuidado. Mas ande depressa.
O rosto de Bond era uma máscara de poeira e imundície com o sangue das moscas e outros insetos que se haviam esmagado contra ele. Muitas vezes tivera de retirar uma das mãos com câimbra do volante, para limpar os óculos, mas o Bentley ia portando-se muito bem, e ele tinha certeza de que pegaria o Mercedes.
Estava quase alcançando noventa e cinco na linha reta, pouco antes da entrada para Leed Castle, quando luzes possantes foram emitidas por trás dele, e uma buzina de quatro tons executou seu ousado “pam-pim-pim-pam” quase dentro de seu ouvido.
A aparição de um terceiro carro na corrida era quíase inacreditável. Bond mal se dera o trabalho de olhar no espelho retrovisor, desde que havia saído de Londres. Ninguém, a não ser um corredor de automóvel ou um homem desesperado, poderia ter emparelhado com eles, e seu espírito se encontrava numa confusão quando, automaticamente, afastou-se para a esquerda e viu, com o rabo dos olhos, um carro baixo, vermelho como os dos bombeiros, emparelhar com ele e afastar-se com uma diferença de umas dez milhas, uma hora extra em seu relógio.
Vislumbrou o famoso radiador Alfa e, na borda do capô, escrito em letras grandes, brancas, as palavras: Attaboy II. Em seguida, viu o rosto sorridente de um rapazinho em mangas de camisa, que espetou dois dedos vermelhos no ar antes de desaparecer na mistura de sons que um Alfa em disparada compõe com o gemido de seu escape, o espooar do cano de descarga e o uivo trovejante do transmissor.
Bond sorriu cheio de admiração ao levantar a mão para o chofer. Alfa Romeu, oito cilindradas, com surpercarburadores, pensou consigo mesmo. Deve ser quase tão velho quanto o meu. ‘32 ou ‘33, provavelmente. E só a metade de meus cc. Targa Florio, em 1931, e depois disso fez bonito em toda a parte. Com certeza era um tipo desses de cabeça quente, ouvindo uma das estações da RAF dos arredores. Tentando voltar de alguma festa a tempo de assinar o ponto antes de ser citado num relatório. Observou benèvolamente quando o Alfa balançou a cauda na curva em S ao lado de Leeds Ctostle e, em seguida, passou uivando pelo longo caminho largo em direção à distante bifurcação de Charing.
Bond bem podia imaginar o sorriso de satisfação do rapaz, quando este alcançou Drax: “Ôba. É uma Merc!” E a raiva de Drax, ao ouvir a música impudente da buzina. Deve estar fazendo 105, pensou Bond. Espero que esse maluquinho não saia da estrada. Ficou a olhar os dois jogos de luzes traseiras se aproximando, o rapaz do Alfa se preparando para o truque de surgir por trás e, de repente, acelerar ao máximo, assim que tivesse uma oportunidade para passar.
Pronto. Quatrocentas jardas adiante o Mercedes apareceu, branco, iluminado pelas luzes duplas do Alfa. Havia uma milha de estrada livre na frente, completamente reta. Bond quase sentia os pés do rapaz pisando o pedal mais fundo ainda. Ôba rapaz!
Lá na frente, no Mercedes, Krebs tinha a boca colada ao ouvido de Drax.
— Outro deles — gritou aflito. — Não consigo ver o rosto. Vem vindo para nos passar agora.
Drax deixou escapar uma obscenidade a meia voz. Seus dentes branquejaram no pálido reflexo do painel.
— Vou dar uma lição a esse canalha — falou, endireitando os ombros e agarrando o volante com firmeza com as grandes luvas de couro. Com o canto dos olhos viu o capô da Alfa surgir a estibordo. ‘Tam-pim-pim-pim”, cantava a buzina, suave, delicadamente. Drax virou rápido o volante do Mercedes para a direita e, depois do horrível chocalhar dos metais, trouxe-o novamente para o centro, a fim de corrigir a posição.
— Bravo! Bravo! — gritou Krebs, fora de si com a excitação, ao ajoelhar-se no assento do carro e olhar para trás.
— Dupla capotagem. Passou por cima da cerca de cabeça para baixo. Acho que já está se incendiando. Sim. Estou vendo as chamas.
— Isto dará ao nosso caro Sr. Bond qualquer coisa para refletir — rosnou Drax, respirando pesadamente.
Bond, porém, o rosto impassível, mal examinara o velocímetro, e nada havia a não ser vingança em seu espírito, quando partiu veloz atrás do Mercedes que voava.
Vira tudo. O voo grotesco do carro vermelho, ao virar de rodas para o ar, e tornar a virar, a figura do rapaz projetada para o alto, os braços e as pernas abertos, ao ser cuspido para fora do volante, e o estrondo final, quando o carro saltou a cerca de cabeça para baixo e foi desmoronar-se no campo.
Quando passou disparado, observando as marcas horríveis de grafita deixadas pela derrapagem, seu espírito anotou um toque macabro final. Saindo, não se sabe como, incólume do holocausto, a buzina ainda dava contato, e seu ulular subia para o céu, abrindo estridentemente estradas imaginárias para a passagem do Attaboy II: “Pam-pim-pim-pam. Pam-pim-pim-pam.”
Com que então um homicídio tivera lugar bem debaixo de seus olhos. Ou, pelo menos, uma tentativa de homicídio. Assim, fossem quais fossem seus motivos, Sir Hugo Drax era um criminoso e, provavelmente, um maníaco. Isto, acima de tudo, significava perigo certo para o “Explorador da Lua”. Era o bastante para Bond. Meteu a mão debaixo do painel e, de seu coldre escondido, tirou o Colt Especial do Exército, calibre 45 de cano longo, e colocou-o no assento ao seu lado. A batalha agora era em campo aberto e, de um jeito ou de outro, o Mercedes teria de ser parado.
Usando a estrada como se fosse Donington, Bond pisou o acelerador e ali conservou o pé. Pouco a pouco, com o ponteiro oscilando de cada lado do número cem, começou a diminuir a diferença.
Drax entrou pelo lado esquerdo da bifurcação em Charing e subiu embalado a longa colina. Na frente, dentro do raio gigante de seus faróis, um grande caminhão de transporte, desses de oito rodas, um AEC Diesel, ia subindo a primeira curva do caminho, lutando sob o peso de quatorze toneladas de notícias impressas que levava numa viagem noturna para um dos jornais do East Kent.
Drax praguejou baixinho, ao ver o longo transporte de vinte rolos gigantescos, cada um deles contendo cinco milhas de papel impresso com notícias, amarradas lá em cima. Logo ali, no meio daquela curva traiçoeira em S, no alto da colina.
Olhou no espelho retrovisor e viu o Bentley chegando à bifurcação.
Foi então que teve uma ideia.
— Krebs — o nome saiu como um tiro de pistola. — Tire sua faca.
Um estalido agudo, e o estilete já estava na mão de Krebs. Ninguém perdia tempo, quando havia aquela nota na voz do mestre.
— Vou diminuir a marcha e seguir atrás do caminhão. Tire os sapatos e as meias, suba no capo, e quando eu vier por detrás dele, pule em cima. Eu irei na maior vagareza. Não haverá perigo. Corte as cordas e segure os rolos de papel. Primeiro os da esquerda. Depois os da direita. Nessa altura eu já terei colocado o carro no mesmo nível do caminhão, e quando você tiver cortado o segundo lote, pule no carro. Tenha cuidado para não ser levado com o papel. Verstanden? Also. Hals und Beinbruch!
Drax apagou as luzes dos faróis e contornou a curva a oitenta quilômetros por hora. O caminhão ia vinte jardas adiante, e ele teve de frear com força, a fim de não abalroá-lo. O Mercedes executou uma derrapagem, até o radiador ficar quase debaixo do chassi do caminhão.
Drax fez a mudança para segunda:
— Agora!
Manteve o carro firme como uma rocha, quando Krebs, descalço, passou por cima do para-brisa e foi-se arrastando ao longo do brilhante capo, com a faca na mão.
Num salto, atingiu o ponto visado e começou a cortar as cordas do lado esquerdo. Drax afastou-se para a direita e foi deslizando até ficar paralelo às rodas traseiras do Diesel, a fumaça do óleo vinda do cano de descarga subindo-lhe aos olhos e às narinas.
As luzes do carro de Bond começavam a aparecer no início da curva.
Houve uma série de baques fortes, quando os rolos do lado esquerdo caíram do caminhão para a estrada e foram rolando velozes pela escuridão. Depois, mais baques, ao partirem-se as cordas do lado direito. Um dos rolos arrebentou ao cair, e Drax ouviu um barulho de coisas dilaceradas, quando o papel, desenrolando-se tombou pesadamente num ponto da subida.
Aliviado de sua carga, o caminhão quase pulou para a frente, e Drax teve de acelerar um pouco para alcançar a figura esvoaçante de Krebs, que aterrisou, metade em cima das costas de Gala e metade no assento da frente. Drax pisou até embaixo o acelerador e subiu a colina como um raio, ignorando o grito do chofer do caminhão, que se sobrepôs ao clamor dos pistões, quando ele disparou em frente.
Ao contornar velozmente a curva seguinte, viu o cilindro de dois faróis desenharem-se em curva no céu, acima do topo das árvores, até se tornarem quase verticais. Tremularam ali por um instante, e depois os raios de luz giraram através do espaço e desapareceram.
Uma grande risada, semelhante a um latido de cão, escapou de Drax, e durante a fração de um segundo, tirou os olhos da estrada e levantou o rosto triunfalmente para as estrelas.
CAPITULO 21
“O PERSUASOR”
Krebs ecoou a risada maníaca com outra estridente.
— Um golpe de mestre, mein Kapitän. O senhor precisava ver como eles desciam pela colina. O tal que arrebentou. Wunderschön! Parecia o papel higiênico de um gigante. Este deve ter feito um belo pacote dele. Ele vinha chegando bem na curva. E o segundo foi tão bom quanto o primeiro. Viu a cara do motorista? Zum Kotzen! E a firma Bowater! Um belo negócio foi o que fizeram.
— Você trabalhou bem — observou Drax, conciso, o pensamento noutra coisa.
De repente, levou o carro para o lado da estrada, com um grito de protesto dos pneus.
— Donnerwetter — disse, zangado, quando começou a virar o carro. — Mas nós não podemos deixar o homem ali. Precisamos pegá-lo.
O carro já ia roncando pela estrada abaixo.
— A arma — ordenou Drax, secamente.
Passaram o caminhão no alto da colina. Estava parado, e não se via sinal de motorista. Provavelmente telefonando para a companhia, pensou Drax, diminuindo a marcha ao contornarem a primeira curva. Viam-se luzes em duas ou três casas, e um grupo de pessoas rodeava um dos rolos de papel que ali estava por entre as ruínas do portão da frente de suas casas. Havia mais rolos na borda do lado direito da estrada. À esquerda, um poste telegráfico se inclinava como bêbedo, partido ao meio. Na curva seguinte, via-se o princípio de uma grande confusão de papel estendendo-se para baixo, ao longo da colina, formando guirlandas nas cercas e na estrada, como se fossem os babados de um vestido de baile à fantasia, elefantíaco.
O Bentley tinha quase se espatifado contra as grades que guarneciam o lado direito da curva, protegendo-o de um barranco profundo. Por entre a confusão de ferro retorcido dos mourões, pendia, de capo para baixo, com uma das rodas ainda presa ao eixo quebrado de trás e ali pousada de esguelha como um guarda-chuva surrealista.
Drax se aproximou e, acompanhado de Krebs, saiu do carro e ficou quieto, à escuta.
Não se ouvia o menor som, exceto o do motor de um carro distante, seguindo rápido pela estrada de Ashford, e o trilar de um grilo insone.
Com as armas na mão, eles caminharam cautelosamente por cima dos restos do Bentley, os pés esmagando o vidro partido na estrada. Sulcos profundos haviam sido marcados na margem de grama, e sentia-se o cheiro forte de gasolina, misturado ao de borracha queimada. O metal quente do carro estalava e partia baixinho. O vapor ainda jorrava do radiador espatifado.
Bond estava caído de bruços no fundo do barranco, a uns seis metros de distância do carro. Krebs virou-o. O rosto estava coberto de sangue, mas ele respirava. Revistaram-no completamente, e Drax meteu no bolso a fina Beretta. Depois, juntos, arrastaram-no até a estrada, jogando-o, em seguida, no assento traseiro do Mercedes, com a metade do corpo em cima do de Gala.
Quando ela percebeu quem era, deu um grito de horror.
— Halt’s Maul — rosnou Drax. Foi para o assento da frente e, enquanto ligava o motor, Krebs inclinou-se e se ocupou com um longo pedaço de arame flexível.
— Faça o negócio direito — disse Drax. — Não quero que haja erros. — Refletiu melhor. — Volte depois para junto dos destroços e retire as placas. Depressa. Eu tomo conta da estrada.
Krebs puxou o tapete para cima dos dois corpos inertes e pulou fora do carro. Usando a faca como chave de parafuso, dentro em breve estava de volta com as placas, e o enorme carro começou a se movimentar no momento exato em que um grupo de habitantes do local apareceu caminhando nervosamente pela descida da montanha, focalizando as lanternas sobre a cena de devastação.
Krebs riu feliz consigo mesmo à ideia de que os estúpidos ingleses teriam de limpar e pôr tudo aquilo em ordem. Acomodou-se no assento, a fim de apreciar o trecho do caminho que sempre fora seu predileto: os bosques primaveris, cheios de florzinhas azuis e rosa, que iam até Chilham.
Eles tinham-no tornado particularmente feliz à noite. Iluminados por entre as tochas verdes das árvores novas pelos grandes faróis do Mercedes, tinham-no feito pensar nas lindas florestas de Ardennes, no grupo dedicado onde servira e na viagem que fizera num jipe capturado aos americanos, tal como naquela noite, ao lado de seu adorado líder, que ia ao volante. Der Tag custara a chegar, mas agora ali estava. Com o jovem Krebs no caminhão. Finalmente veria as multidões dando vivas, as medalhas, as mulheres, as flores. Lançou um olhar aos exércitos de flores azuis que passavam voando e sentiu-se feliz e confortado.
Gala sentia na boca o gosto do sangue de Bond. O rosto dele estava ao lado do dela, no assento de couro, e ela se mexeu para lhe dar mais lugar. A respiração do rapaz era pesada e irregular. Ela perguntava a si mesma quanto estaria ferido. Experimentou sussurrar-lhe ao ouvido. Depois falou mais alto. Ele deu um grunhido e acelerou a respiração.
— James — cochichou. — James.
Bond resmungou qualquer coisa, e ela encostou-se com força contra ele. Depois, soltou uma série de palavrões, e seu corpo se mexeu.
Tornou a ficar imóvel, e ela quase pôde senti-lo explorando as próprias sensações.
— Sou eu, Gala.
Ela sentiu o corpo dele enrijecer.
— Deus do céu. Que diabo de confusão — falou Bond.
— Você está bem? Tem algum osso quebrado?
Sentiu que ele experimentava os braços e as pernas.
— Parece que está tudo bem. Uma brecha na cabeça. Estou falando coisas que fazem sentido?
— Claro que sim — respondeu Gala. — Agora ouça.
Rapidamente, contou-lhe tudo que sabia, começando pelo caderninho de notas preto.
O corpo dele estava rígido como uma tábua contra o dela, e ele mal respirava, ouvindo a história inacreditável.
Logo depois corriam para Canterbury, e Bond colocou a boca em seu ouvido.
— Vou tentar jogar-me por trás — sussurrou. — Ver se arranjo um telefone. É a única esperança.
Começou a se erguer sobre os joelhos, o peso de seu corpo quase sufocando a respiração da moça.
Ouviu-se uma forte pancada, e ele tornou a cair em cima dela.
— Outro movimento que você faça e estará morto — disse a voz de Krebs, vindo baixinho por entre os assentos da frente.
Faltavam só vinte minutos para chegar à base! Gala rangeu os dentes e tratou de reanimar Bond, que perdera os sentidos novamente.
Acabara de conseguir, quando o carro chegou à porta da cúpula de lançamento, e Krebs, com um revólver na mão, já ia desfazendo os nós em torno dos tornozelos de ambos.
Vislumbraram o cimento familiar, iluminado pela lua, e o semicírculo de guardas a uma certa distância, antes de serem empurrados pela porta. Depois, quando Krebs lhes arrancou os sapatos, seguiram pela passagem estreita, de ferro, dentro da cúpula de lançamento.
Ali estava o cintilante foguete, lindo, inocente, qual um novo brinquedo para ciclopes.
Mas havia um cheiro horrível de produtos químicos no ar, e para Bond, o “Explorador da Lua” parecia uma gigantesca agulha hipodérmica pronta para ser enterrada no coração da Inglaterra. Apesar de um resmungo de Krebs, ele parou na escada e levantou os olhos para seu nariz faiscante. Um milhão de mortes. Um milhão. Um milhão. Um milhão.
E tudo dependia dele? Pelo amor de Deus! Tudo dependia dele?
Com o revólver de Krebs cutucando-o, desceu lentamente os degraus, atrás de Gala.
Quando entrou pela porta do escritório de Drax, controlou-se. De repente, seu espírito tornou-se claro, e toda a letargia e a dor haviam-lhe deixado o corpo. Alguma coisa, qualquer coisa, precisava ser feita. De um jeito ou de outro, ele havia de descobrir um meio. O corpo inteiro e a mente tornaram-se-lhe concentrados e agudos como uma lâmina. Seus olhos ganharam vida, novamente, e a derrota abandonou-o, como a pele de uma serpente.
Drax seguira na frente e se sentara à escrivaninha. Trazia uma Luger na mão. Este apontava um lugar entre Gala e Bond e era firme como uma rocha.
Por trás dele, Bond escutou as portas duplas se fecharem, batendo.
— Eu era um dos melhores atiradores na Divisão Branderburg — disse Drax, entabulando conversa.
— Amarre a moça nessa cadeira, Krebs. Depois o homem .
Gala olhou desesperadamente para Bond. Este disse:
— Você não vai atirar. Teria receio de atingir o combustível.
Encaminhou-se lentamente para a escrivaninha. Drax sorriu alegremente e, seguindo a trajetória do cano do revólver, mirou o estômago de Bond.
— Sua memória é ruim, inglês. Eu lhe disse que esta sala é inteiramente separada da cúpula por meio das portas duplas. Dê mais um passo e ficará sem estômago.
Bond olhou os olhos apertados e confiantes do outro e parou.
— Vamos, Krebs.
Quando os dois ficaram bem amarrados, e dolorosamente, às pernas e braços das duas cadeiras de aço tubular, pouco distante um do outro, por baixo do mapa de vidro, Krebs saiu da sala. Voltou um momento depois com uma espécie de maçarico mecânico.
Colocou a feia máquina sobre a escrivaninha, introduziu o ar com algumas breves bombadas e riscou um fósforo. Uma chama azul sibilou, elevando-se a alguns centímetros. Ele pegou o instrumento e acercou-se de Gala. Parou a pouca distância da moça.
Drax ordenou, severo:
— Vejamos agora. Vamos tratar desse caso, sem criar complicações. Nós costumávamos chamá-lo Der Zwagsman — O Persuasor. Nunca me esquecerei de como lidou com o último espião que pegamos juntos. Bem ao sul do Reno, não foi, Krebs?
Bond era todo ouvidos.
— Foi sim, mein Kapitän. — Krebs riu, recordando-se. — Era um porco de um belga.
— Pois bem. Vocês dois aí não se esqueçam. Aqui não temos esse negócio de fair play. Nada de atitudes esportivas e toda essa história. Isto aqui é negócio.
A voz estalava como um chicote, a cada palavra.
— Você — lançava um olhar a Gala Brand — para quem está trabalhando?
Gala se conservou em silêncio.
— Onde você quiser, Krebs.
A boca de Krebs estava entreaberta. Sua língua percorria o lábio, para cima e para baixo. Parecia ter dificuldade em respirar, quando deu um passo em direção à moça.
A pequenina chama roncava gulosamente.
— Pare — disse Bond, frio. — Ela trabalha para a Scotland Yard. E eu também.
Essias coisas agora não tinham mais propósito. Não podia ser de nenhuma utilidade imaginável para Drax. De qualquer maneira, amanhã de tarde, talvez não existisse mais nenhuma Scotland Yard.
— Assim está melhor — disse Drax. — Agora responda: Alguém sabe que vocês estão prisioneiros? Vocês pararam para telefonar a alguém?
Se eu disser que sim, pensou Bond, ele atirará em nós dois e se livrará dos corpos. Dessa forma, a última chance de impedir o lançamento do “Explorador da Lua” terá desaparecido. E se a Yard sabe, por que ainda não chegaram aqui? Não. Nossa oportunidade ainda pode vir. O Bentley será encontrado. Vallance ficará preocupado quando não tiver notícias minhas.
Não — respondeu. — Se eu tivesse telefonado, eles já estariam por aqui a esta hora.
— Isto é verdade — disse Drax, refletindo.
— Neste caso, não estou mais interessado em vocês e felicito-os por terem tornado a entrevista tão harmoniosa. Poderia ter sido mais difícil, se você estivesse sozinho. Uma moça é sempre útil nessas ocasiões. Krebs largue isso. Pode ir. Diga aos outros o que é necessário. Eles devem estar fazendo conjeturas. Eu vou entreter nossos hóspedes durante algum tempo e depois subirei até a casamata. Providencie para que o carro seja bem lavado. O assento de trás. E faça desaparecer as marcas no lado direito. Diga para tirarem o painel inteiro, se fôr necessário. Ou então podem tocar fogo na maldita coisa. Nós não vamos mais precisar dela. — Riu abruptamente. — Verstanden?
— Sim, mein Kapitän...
Krebs, colocou com relutância o maçarico, que roncava de leve, na escrivaninha ao lado de Drax.
— Para o caso de lhe ser necessário — disse, olhando esperançoso para Gala e Bond. Saiu depois pelas portas duplas.
Drax pôs a Luger também na escrivaninha em frente a ele. Abriu uma gaveta, tirou um charuto e acendeu-o com um isqueiro Ronson. Depois, acomodou-se confortàvelmente. O silêncio reinou na sala durante vários minutos, enquanto Drax puxava fumaçadas do charuto, todo satisfeito. Em seguida, pareceu tomar uma resolução. Fitou Bond com benevolência.
— Você nem sabe quanto eu desejei um auditório inglês — declarou como se estivesse dando uma entrevista à imprensa. — Você nem sabe como estava ansioso por contar minha história. Aliás, um relatório completo de minhas atividades encontra-se em poder de um escritório muito respeitável de advogados de Edinburgo. — Tabeliães, aliás. Bem salvo de qualquer perigo.
Drax sorriu abertamente para um e para outro:
— Essa boa gente recebeu instruções para abrir o envelope no final do primeiro voo bem sucedido do “Explorador da Lua”. Mas vocês, seus felizardos, terão uma, antecipação do que eu escrevi e então, quando amanhã às doze horas, virem através destas portas abertas — fez um gesto para a direita — o primeiro vapor saindo das turbinas e souberem que devem ser queimados vivos dentro de meio segundo, terão a satisfação momentânea de saber com quantos paus se faz uma canoa.
— Você poderá nos dispensar as piadas — interrompeu Bond, com aspereza. — Continue com sua história, Kraut.
Os olhos de Drax fuzilaram momentaneamente.
— Um Kraut. Sim eu sou realmente um Reichsdeutscher — a boca, por baixo do bigode vermelho, saboreava a linda palavra — e até a própria Inglaterra terá de concordar, dentro em breve, que foram liquidados por um único alemão. E então talvez parem de nos chamar de Krauts — POR ORDEM! — As palavras foram gritadas, e todo militarismo prussiano entrou em desfile lá embaixo.
Drax exultou do outro lado da escrivaninha, olhando Bond, os dentes grandes, espalhados e salientes sob o bigode vermelho, roendo nervosamente uma unha, depois da outra. Em seguida, enfiou com esforço a mão direita no bolso da calça, como para colocá-la a salvo da tentação, e pegou o charuto com a esquerda. Puxou umas tragadas durante alguns instantes e, depois, com a voz ainda tensa, começou.
CAPITULO 22
A CAIXA DE PANDORA
Meu verdadeiro nome — disse Drax dirigindo-se a Bond — é Graf Hugo von der Drache. Minha mãe era inglesa, e por causa dela fui educado na Inglaterra até a idade de doze anos. Depois, não pude mais suportar este país imundo e completei minha educação em Berlim e Leipzig.
Bond calculava facilmente que aquele brutamontes com cara de bicho-papão e dentes de bruxo não havia sido muito bem recebido numa escola particular inglesa. O fato de ser um conde estrangeiro com um mundo de nomes não teria ajudado muito.
Os olhos de Drax brilharam, cheios de reminiscências: — Quando fiz vinte anos, comecei a trabalhar no ramo de negócio da família. Era uma filial do grande truste de aço Rheinmetal Bórsig. Nunca ouviu falar dele, suponho. Pois bem, se foi ferido por uma bomba de 88mm. durante a guerra, provavelmente foi uma das de lá. Nossas filiais eram peritas em aços especiais, e eu aprendi a respeito deles, e muita coisa sobre a indústria aviatória. Nossos melhores fregueses. Foi quando ouvi, pela primeira vez, falar em columbita. Valendo o que valem os brilhantes naqueles dias. Liguei-me à firma, e quase imediatamente depois disso arrebentou a guerra. Uma época maravilhosa. Eu tinha vinte e oito anos e era tenente da 140a do Regimento Panzer. Nós investimos contra o Exército britânico, na França, e o atravessamos como uma faca por dentro da manteiga. Simplesmente embriagador.
Durante alguns instantes, Drax sugou o charuto, e Bond calculou que ele estava vendo as aldeias incendiadas da Bélgica através da fumaça.
— Aqueles dias eram formidáveis, meu caro Bond. — Drax esticou um braço comprido e bateu a cinza do charuto para o chão. — Mas aí fui escolhido para a Divisão Brandenburg e tive de deixar as pequenas e o champanha para voltar à Alemanha e começar o adestramento, a fim de executar o vasto pulo na água para a Inglaterra. Precisavam de meu in-glês na Divisão. Todos nós devíamos trajar uniformes ingleses. Teria sido engraçado, porém os malditos generais disseram que não podia ser, e eu fui transferido para o Serviço Secreto Estrangeiro do SS. O RSHA, era como se chamava. SS Obergruppenfuhrer Kaltenbrunner acabava de assumir o comando depois que Heydrich foi assassinado em 42. Ele era um bom homem, e eu estava sob as ordens diretas de um ainda melhor, Obersturmbannfuhrer — Drax enrolava na boca o título delicioso com prazer. — Otto Skorzeny. Sua tarefa na RSHA era o terrorismo e a sabotagem. Um agradável interlúdio, meu caro Bond, durante o qual eu pude registrar o nome de muitos ingleses, coisa que me deu muito prazer. Mas então — o punho de Drax esmagou a escrivaninha — Hitler foi novamente traído por aqueles miseráveis generais, e os ingleses e norte-americanos tiveram oportunidade de desembarcar na França.
— Foi uma pena — disse Bond, friamente.
— Sim, meu caro Bond, foi de fato uma pena. — Drax preferiu ignorar a ironia. — Mas para mim foi o ponto alto da guerra. Skorzeny transformou todos os seus sabotadores e terroristas em SS Jagdverbände, para usá-los na retaguarda das linhas inimigas. Cada Jagdverbände era dividida em Streifkorps, e depois em Kommandos, cada um deles levando os nomes de seus oficiais-comandantes. Com o posto de Oberleutnant — Drax encheu-se visivelmente de empáfia — à testa do Kommando “Drache”, eu penetrei diretamente nas linhas americianas com a famosa Brigada Panzer 150a na penetração de Ardennes, em dezembro de 44. Você se lembra, sem dúvida, do efeito causado por esta brigada em seus uniformes americanos e nos tanques e veículos americanos capturados. Kolossal! Quando a Brigada teve de se retirar, eu fiquei onde estiava e fui estabelecer-me nas Florestas de Ardennes, cinquenta milhas à retaguarda das linhas aliadas. Havia vinte rapazes, dez homens bons e dez Hitlerjugend Lobishomens. Todos com menos de vinte anos, mas todos bons rapazes. Por coincidência, o chefe deles era um jovem chamado Krebs, que demonstrou possuir determinados dons que o qualificaram para o pôsto de executor e “persuasor” de nosso alegre pequeno bando. Drax deu uma risadinha gostosa.
Bond lambeu os lábios, ao lembrar-se da brecha que Krebs fizera na cabeça batendo de encontro à cômoda. Ter-lhe-ia dado o pontapé com tanta força quanto lhe era possível dar? Sim, sua memória o tranquilizava, com cada grama de força que ele podia pôr no sapato.
— Ficamos naqueles bosques durante seis meses — continuou Drax, orgulhoso — e durante todo esse tempo dávamos notícias nossas à nossa Pátria por meio do rádio. Os caminhões de busca nunca deram conosco. E então aconteceu um desastre. — Drax sacudiu ia cabeça àquela lembrança. — Existia uma grande fazenda a uma milha de distância de nosso esconderijo na floresta. Uma porção de cabanas haviam sido construídas em torno dela, e eram usadas como quartel-general de retaguarda para um grupo de ligação. Ingleses e norte-americanos. Um lugar incrível. Sem disciplina, sem segurança, cheio de vadios e desertores vindos de todos os lugares da vizinhança. Nós vínhamos observando o grupo há muito tempo, e um dia eu resolvi fazer tudo aquilo voar pelos ares. O plano era simples. À noite, dois dos meus homens, um vestido num uniforme americano, e outro de uniforme britânico, deviam dirigir-se para lá num carro-patrulha capturado, contendo duas toneladas de explosivos. Havia um ponto de estacionamento para os carros — nenhuma sentinela, naturalmente — próximo à sala de refeitório, e eles deviam trazer o carro tão perto dela quanto possível, regular a explosão para a hora do jantar, às sete, e depois se afastarem. Tudo muito fácil, de modo que eu saí naquela manhã para tratar de negócios e deixei a missão para ser cumprida por meu segundo em comando. Eu estava vestido com o uniforme de Corpo de Sinaleiros britânicos, e parti numa motocicleta inglesa capturada por nós para enviar um despacho da mesma unidade que fazia o percurso diário num caminho ali perto. Está claro que ele veio pontualmente na hora, de modo que eu lhe segui atrás, saindo de um caminho lateral. Emparelhei com ele ei dei-lhe um tiro nas costas, tomei-lhe os documentos e, depois de colocá-lo em cima de sua própria motocicleta, levei-o para os bosques e toquei-lhe fogo.
Drax viu a fúria nos olhos de Bond e levantou a mão.
— Não foi muito esportivo? Meu caro, o homem já estava morto. Entretanto, prossigamos. Fui seguindo meu caminho, e então o que haveria de acontecer? Um dos aviões de vocês, voltando de um voo de reconhecimento, veio atrás de mim pela estrada com uma metralhadora. Um de seus próprios aviões! Jogou-me para longe da estrada. Só Deus sabe quanto tempo fiquei ali, caído no fosso. Em certo momento, durante a tarde, voltei a mim a tive o bom senso de esconder o boné e o dólmã com os despachos. Na cerca. Provavelmente ainda estão lá. Preciso ir buscá-los um dia. Lembranças interessantes. Depois toquei fogo nos restos da motocicleta e devo ter desmaiado novamente, porque quando tornei a dar por mim, tinha sido recolhido por um veículo britânico e estávamos seguindo para o maldito quartel-general de ligação! Acredite-se ou não! Lá estava o carro-patrulha, bem ao lado da sala do rancho! Era demais para mim. Eu estava cheio de estilhaços de bomba e minha perna estava quebrada. Pois bem, desmaiei, e quando voltei a mim, vi que metade do hospital se debruçava sobre mim, e eu só tinha a metade da cara.
Drax levantou a mão e alisou a pele lustrosa da têmpora e da face esquerda:
— Depois disso, tudo se resumiu numa questão de representar um papel. Eles não tinham ideia de quem eu era. O carro que me apanhara havia sido reduzido a simples fragmentos. Eu era apenas um inglês, vestido numa camisa e calças inglesas que quase morrera.
Drax fez uma pausa, tirou outro charuto e acendeu-o. Na sala reinou o silêncio, quebrado apenas pelo roncar atenuado do maçarico. Sua voz ameaçadora tornara-se mais baixa. A pressão está cedendo, pensou Bond.
Virou a cabeça e olhou Gala. Pela primeira vez, viu a lesão feia atrás de sua orelha esquerda. Endereçou-lhe um sorriso de encorajamento, e ela retorceu os lábios num sorriso de resposta.
Drax falava por dentro da fumaça do charuto:
— Não há muito mais coisa para contar. Durante o ano em que eu passei sendo enviado de um para outro hospital, elaborei meus planos sem omitir os mínimos detalhes. Consistiam muito simplesmente em vingar-me da Inglaterra pelo que me tinha feito e ao meu país. Confesso que, pouco a pouco, foi-se tornando uma obsessão. Cada dia que se passava no ano em que a destruição e a rapina campearam em meu país, meu ódio e desprezo pelos ingleses iam-se tornando cada vez mais amargos.
As veias do rosto de Drax começaram a inchar e, de repente, ele se pôs a desferir socos na mesa e a gritar para seus prisioneiros, fitando com olhos esbugalhados ora um, ora outro:
— Abomino e desprezo vocês todos. Seus porcos! Idiotas inúteis, ociosos, decadentes, escondendo-se por trás de seus malditos penhascos brancos, enquanto os outros povos travam batalhas por vocês. Fracos demais para defenderem suas colônias, bajulando a América com os chapéus nas mãos. Esnobes malcheirosos, que são capazes de fazer qualquer coisa por dinheiro. Ah! — Drax estava triunfante. — Eu sabia que precisava apenas de dinheiro e a aparência de um gentleman. Um gentleman! Pfui Teufel! Para mim um gentleman é apenas alguém de quem eu posso tirar vantagem. Aqueles malditos imbecis no Blades, por exemplo. Cretinos endinheirados. Durante meses a fio tirei milhares de libras deles, tapeei-os bem debaixo de seus narizes, até que você apareceu e estragou o brinquedo.
Os olhos de Drax se apertaram.
— Como foi que descobriu o truque da cigarreira — perguntou incisivo.
Bond deu de ombros.
— Com os olhos — respondeu indiferente.
— Ah, bem. Talvez eu estivesse um tanto descuidado naquela noite. Mas onde é mesmo que eu estava? Ah, sim, no hospital. Os bons médicos mostravam-se tão ansiosos por me ajudarem a descobrir quem eu era realmente. — Soltou uma gargalhada. — Foi fácil. Muito fácil. Dentre as identidades que eles me ofereciam com tanta boa vontade, topei com o nome de Hugo Drax. Que coincidência! De Drache para Drax! Como quem hesita, pensei que podia ser eu. Eles sentiram-se muito orgulhosos. Sim, afirmaram, naturalmente que é você. Triunfalmente, fizeram-me entrar-lhe na pele. Saí do hospital dentro dela, começando a rodar por Londres à cata de alguém para matar e roubar. Até que um dia, num pequeno escritório acima de Piccadilly, encontrei um agiota judeu. (Drax agora falava muito depressa. As palavras jorravam-lhe excitadamente dos lábios. Bond reparou num aglomerado de espuma que se formava num canto de sua boca e crescia.) — Ah, foi fácil. Uma bordoada em seu crânio nu. Quinze mil libras no cofre. Então tratei de me afastar do País. Fui para Tânger — onde se podia fazer qualquer coisa, comprar qualquer coisa, arranjar qualquer coisa que se desejasse. Columbita. Mais rara que a platina, e todos prontos a adquiri-la. A Era do Jato. Eu conhecia essas coisas. Não me havia esquecido de minha profissão. Então, por Deus, lhe digo que trabalhei. Durante cinco anos vivi para o dinheiro. Fui valente como um leão. Corri riscos tremendos. E eis que, de repente, o primeiro milhão me chega às mãos. Depois o segundo. Em seguida o quinto. Depois o vigésimo. Voltei para a Inglaterra. Gastei um milhão aqui, e Londres estava no papo. Depois voltei à Alemanha. Encontrei Krebs. Encontrei cinquenta deles. Alemães leais. Técnicos brilhantes. Todos vivendo sob nomes falsos, como tantos outros de meus antigos camaradas. Dei-lhes minhas ordens, e eles esperaram, pacificamente, inocentemente. E onde estava eu?
Drax fitou Bond, com os olhos arregalados:
— Eu estava em Moscou! Moscou! Um homem que tem columbita para vender pode ir a qualquer lugar. Encontrei as pessoas indicadas para meu caso. Ouviram meus planos. Deram-me Walter, o novo gênio de seus mísseis teleguiados da estação de Peenemunde, e os bons dos russos começaram a construir a cápsula dos instrumentos e explosivos, a cápsula atômica — apontou para o teto — que está agora nos esperando ali. Então tornei a regressar para Londres. — Fez uma pausa. — A Coroação. Minha carta para o Palácio. Triunfo. Hurras para Drax. — O homem estourou numa gargalhada. — A Inglaterra estava aos meus pés. Todos os malditos cretinos do país! Foi quando meus homens chegaram, e nós começamos. Bem juntos das saias da Grã-Bretanha. No alto de seus famosos penhascos. Trabalhamos como loucos. Construímos um cais no seu Canal inglês. Para receber fornecimentos! Suprimentos vindos de meus bons amigos os russos, que chegaram na hora exata, segunda-feira à noite. Mas foi aí que Tallon teve de ouvir alguma coisa. O velho imbecil. Falou com o Ministério. Mas Krebs estava ouvindo. Apareceram cinquenta voluntários para matar o homem. Tiramos a sorte, e Bartsch morreu como um herói. — Drax fez nova pausa. Depois continuou. — A nova cápsula foi içada para o lugar. Deu certo. Uma perfeita peça de encomenda. O mesmo peso. Tudo perfeito, como a antiga, a caneca de folha, cheia dos queridos instrumentos do Ministério, está agora em Stettin — atrás da Cortina de Ferro. O fiel submarino está de viagem de volta para aqui, e dentro em breve — olhou o relógio — estará navegando sob as águas do Canal inglês para nos levar a todos para longe, quando passar um minuto de meio-dia amanhã.
Drax limpou a boca com as costas da mão e recostou-se de novo na cadeira fitando o teto, os olhos povoados de visões. De repente, riu e olhou interrogativamente para Bond, passando o olhar pelo próprio nariz:
— Quer saber qual será a primeira coisa que nós faremos quando estivermos a bordo? Rasparemos esses famosos bigodes nos quais você estava tão interessado. Você cheirou um camundongo, meu caro Bond, onde devia ter cheirado um rato. Aquelas cabeças raspadas e aqueles bigodes: que nós cultivávamos tão assiduamente. Apenas uma precaução, meu caro. Experimente raspar a própria dabeça e deixar crescer um bigodão preto. Nem mesmo sua mãe o reconheceria. É a combinação das duas coisas que produz o efeito. Apenas um mínimo refinamento. Precisão, meu caro. Precisão, em cada detalhe. Foi esta a minha palavra de passe. — Drax deu uma risadinha sem graça e puxou uma boa fumarada do charuto. Súbito, olhou incisivamente, desconfiado, para Bond. — Então? Diga alguma coisa. Não fique aí sentado como uma múmia. Que pensa de minha história? Não acha que é extraordinária? Notável? Um homem ter feito tudo isto? Vamos, vamos, fale.
Uma das mãos foi levada até a boca, e Drax começou a roer as unhas furiosamente. Mas, em seguida, meteu-a no bolso, e seus olhos tornaram-se frios e cruéis.
— Ou quer que mande buscar Krebs — fez um gesto para o telefone em cima da escrivaninha. — O Persuasor. Pobre Krebs! É como uma criança a quem tivessem arrebatado os brinquedos. Ou talvez Walter. Eles lhes dariam uma lembrança para toda a vida. Esse aí não tem um pingo de moleza. Então?
Bond começou a falar, olhando a caraça vermelha, do outro lado da escrivaninha:
— Não resta dúvida, é um caso notável. Paranoia galopante. Ilusões de ciúme e perseguição. Ódio megalomaníaco e desejo de vingança. Fato bastante curioso — continuou dizendo, em tom de conversação — poderá ter alguma relação com seus dentes. Diastema, é como chamam isto. Acontece quando a criança chupa o dedo na infância. Sim. Tenho a impressão de que será isto o que dirão os psicólogos, assim que lhe puserem no hospício. “Dentes de bicho-papão.” Foi atormentado na escola etc. É extraordinário o efeito produzido numa criança. Então o nazismo ajudou a soprar as flamas, e ainda aconteceu você levar aquela pancada feia na sua feia cabeça. A pancada que você mesmo engendrou. Acho que foi o que estava faltando. Dali por diante, você passou a ser realmente louco. Do mesmo gênero desses que acreditam serem Deus. É extraordinário observar como são tenazes. Completamente fanáticos. Você é quase um gênio. Lombroso teria ficado encantado com você. No ponto em que estão as coisas, você não passa de um cão danado que precisa ser morto. Ou então você se suicida. Os paranoicos geralmente se matam. É uma pena. Coisa triste, mesmo.
Bond fez uma pausa e pôs todo o desprezo que pôde acumular na voz:
— E agora, continuemos com esta farsa, vamos, seu lunático cabeludo.
Deu resultado. A cada palavra de Bond, a cara de Drax ia se contorcendo de raiva cadia vez maior, os olhos estavam vermelhos de cólera, o suor da fúria pingava de suas mandíbulas para a camisa, os lábios se afastariam dos dentes irregulares, e um fio de saliva saíra-lhe da boca e lhe escorria pelo queixo. Agora, com o último insulto sobre a escola particular, que devia ter-lhe despertado sabe Deus que espécie de lembranças dolorosas, ele pulou da cadeira, rodeou a escrivaninha, investiu contra Bond, os punhos cabeludos martelando. Bond rangeu os dentes e aguentou.
Quando Drax teve de pegar a cadeira do chão pela segunda vez, com Bond em cima dela, a tempestade de raiva passou subitamente. Tirou do bolso o lenço de seda e limpou o rosto e as mãos. Depois, encaminhou-se calmamente para a porta e falou, olhando por cima da cabeça pendente de Bond e dirigindo-se à pequena.
— Não creio que vocês dois me deem mais trabalho — declarou com a voz perfeitamente calma e segura. — Krebs nunca comete enganos com seus nós.
Gesticulou em direção à figura ensanguentada da outra cadeira:
— Quando ele acordar, pode dizer-lhe que estas portas ainda se abrirão mais uma vez, pouco antes do meio-dia de amanhã. Alguns minutos mais tarde, não sobrará nada de nenhum de vocês dois. Nem mesmo — acrescentou, ao escancarar a porta de dentro — as obturações de seus dentes.
A porta externa bateu.
Bond levantou lentamente a cabeça e sorriu dolorosamente para sua companheira com os lábios manchados de sangue. Explicou com dificuldade:
— Tive de deixá-lo louco. Não quis que ele tivesse tempo para pensar. Tive de provocar aquela tempestade cerebral.
Gala olhava-o sem compreender, os olhos arregalados para a máscara terrível de seu rosto.
— Está tudo bem. Não se preocupe. Londres está O.K. Tenho um plano.
Sobre a escrivaninha, o maçarico fez um “pleft” baixinho e apagou.
CAPÍTULO 23
MENOS ZERO
Por entre os olhos entreabertos, Bond fitou demoradamente o maçarico, enquanto por alguns preciosos segundos permanecia sentado e deixava a vida voltar-lhe lentamente ao corpo. Tinha a impressão de que sua cabeça fora usada como bola de futebol, mas não tinha nada quebrado. Drax batera-lhe sem nenhuma ciência e com a confusão de golpes de um homem embriagado.
Gala observava-o ansiosamente. Os olhos, no rosto sanguinolento, estavam quase fechados, mas a linha do queixo aparecia tensa de concentração, e ela percebia o esforço de vontade que ele fazia.
Bond sacudiu a cabeça, e quando se voltou para ela, Gala viu que seus olhos estavam febris pelo triunfo.
Fez um gesto na direção do isqueiro.
— O isqueiro. Eu tive de tentar fazê-lo esquecer-se dele. Siga-me. Vou-lhe mostrar como.
Começou a balançar a leve cadeira de aço, polegada por polegada, em direção à escrivaninha:
— Pelo amor de Deus, não vá virar de pernas para cima, do contrário estará tudo perdido. Mas procure apressar-se senão o maçarico esfria.
Sem compreender, sentindo-se quase como se tomasse parte em algum fantástico brinquedo infantil, Gala, cautelosamente, foi balançando a cadeira pelo chão atrás dele.
Segundos depois, Bond lhe disse que parasse ao lado da escrivaninha, enquanto ele continuava o balanço até a cadeira de Drax. Depois, manobrou de modo a tomar posição em frente ao seu alvo e, com uma súbita guinada, suspendeu-se com a cadeira, de forma que sua cabeça ficou para baixo.
Ouviu-se um estalo, quando o isqueiro Ronson, de escrivaninha, prendeu-se-lhe nos dentes, mas seus lábios sustiveram-no, e a parte superior ficou-lhe na boca, assim que ele impulsionou a cadeira para a primeira posição, apenas com a força suficiente para impedir que saltasse fora. Em seguida, recomeçou sua paciente viagem de volta para o ponto onde Gala se encontrava sentada, no canto da escrivaninha onde Krebs deixara a lâmpada.
Bond descansou até sua respiração tornar-se novamente regular.
— Chegamos agora à parte difícil — avisou, severo. — Enquanto eu tento fazer este maçarico funcionar, você vai rodando sua cadeira, de modo que seu braço direito fique tanto quanto possível defronte de mim.
Obedientemente, a moça foi executando os movimentos, enquanto Bond balançava sua cadeira, de forma que esta se encostou a beira da escrivaninha e permitiu que sua boca alcançasse e agarrasse o cabo do maçarico entre os dentes.
Em seguida, foi trazendo o maçarico para perto e, depois de alguns minutos de trabalho paciente, conseguiu colocar o maçarico e o isqueiro como desejava, na borda da escrivaninha.
Após outro descanso, curvou-se, fechou a válvula da tocha com os dentes, e começou a fazer voltar a pressão, puxando lenta e repetidamente o pistão com os lábios e apertando-o de volta com o queixo. Sentia no rosto o calor do aquecedor e sentia o cheiro dos restos de gás no pequeno instrumento. Se ao menos não tivesse esfriado demais.
Endireitou o corpo.
— Ultima etapa, Gala — disse sorrindo quase com esforço para ela. — Talvez eu tenha de lhe machucar um pouco. Não faz mal?
— Claro que não — respondeu a moça.
— Então lá vai — disse Bond, e curvou-se para a frente, soltando a válvula de segurança à esquerda do depósito.
Depois debruçou-se rapidamente sobre o Ronson, que estava no ângulo direito e bem debaixo do tubo da tocha. Com os dois dentes incisivos apertou para baixo a trave de ignição.
Era uma manobra horrível e, apesar de ele sacudir a cabeça para trás com a rapidez de uma serpente, deixou escapar um leve gemido de dor, quando o jato de fogo azul do maçarico subiu-lhe pela face machucada e pela ponta do nariz.
Mas a parafina vaporizada sibilava sua língua vital de chama, e ele sacudiu as lágrimas dos olhos, curvando a cabeça quase até o ângulo direito e novamente prendeu a haste do maçarico nos dentes.
Teve a impressão de que seu queixo se partiria com o peso da coisa, e os nervos dos dentes da frente reclamaram, mas ele balançou a cadeira cautelosamente até colocá-la em posição vertical, afastada da escrivaninha, e então forçou o pescoço a curvar-se para a frente, até que a ponta da chama azul da tocha mordeu o ponto que ligava o pulso direito de Gala ao braço da cadeira.
Bond tentou desesperadamente conservar a chama firme, contudo a respiração da moça raspou-lhe entre os dentes, angustiada, quando o cabo se movia entre suas mandíbulas, e o maçarico queimou-lhe o antebraço.
Então tudo acabou. Derretido pelo forte calor, as tiras de cobre foram-se partindo uma por uma e, de repente, o braço direito de Gala ficou livre, e ela o estendeu para tomar o maçarico da boca de Bond.
A cabeça do rapaz caiu novamente para trás, entre os ombros, e ele torceu-a para todos os lados, a fim de conseguir fazer o sangue circular pelos músculos doloridos.
Antes mesmo que ele se desse conta, Gala já se inclinava sobre seus braços e pernas, e ele também estava livre.
Ao sentar-se imóvel por um momento, os olhos fechados, esperando que a vida lhe voltasse ao corpo, sentiu de repente, encantado, os lábios macios de Gala sobre os seus.
Abriu os olhos. Ela estava de pé, diante dele, os olhos brilhando.
— Isto é pelo que você fez — falou, muito séria.
— Você é uma garota maravilhosa — disse Bond. Depois, porém, sabendo o que ia fazer, sabendo que era bem concebível que ela sobrevivesse, mas que ele só tinha mais alguns minutos de vida, fechou os olhos para que ela não visse a desesperança neles.
Gala observou-lhe a expressão do rosto e virou de costas. Pensou que fosse apenas exaustão e o efeito do que seu corpo tinha sofrido. Lembrou-se aí, de repente, da água oxigenada no banheiro pegado ao seu escritório.
Passou pela porta de comunicação. Como era extraordinário ver suas coisas familiares novamente. Devia ser outra pessoa que se sentara naquela escrivaninha e batera na máquina a correspondência, outra moça a que ali empoara o nariz. Sacudiu os ombros e foi para o toalete. Meu Deus, que cara, e só Deus sabe como se sentia cansada! Mas primeiro pegou uma toalha molhada, um pouco de água oxigenada, e voltou. Durante dez minutos tratou do campo de batalha que era a cara de Bond.
Este permanecia sentado em silêncio, uma das mãos descansando na cintura dela e observando-a agradecido. Depois, quando ela voltou para o escritório e fechou a porta do banheiro após entrar, ele se levantou, apagou o maçarico que ainda silvava, e encaminhou-se para o chuveiro de Drax, tirou a roupa e permaneceu durante cinco minutos debaixo da água gelada. “Preparando o corpo”, pensou melancòlicamente, ao examinar o rosto maltratado no espelho.
Vestiu as roupas e voltou para a escrivaninha de Drax, que revistou metòdicamente. Esta lhe proporcionou apenas um prêmio, a “garrafa do escritório”, cheia até a metade de Haig and Haig. Foi buscar dois copos, um pouco de água e chamou Gala.
Ouviu-a abrir a porta do banheiro.
— O que é? — Uísque.
— Vá tomando o seu. Estarei pronta daqui a um minuto.
Bond olhou a garrafa, serviu três quartos de um copo de escovas de dentes e tomou-o de uma vez, em dois goles. Em seguida, acendeu meio trêmulo um abençoado cigarro e sentou-se na borda da escrivaninha, sentindo o álcool queimá-lo no estômago, descendo-lhe até as pernas.
Pegou a garrafa novamente e olhou-a. Ainda havia muito para Gala e um copo inteiro para ele, antes de sair por aquela porta. Era melhor que nada. Não seria tão difícil com aquilo dentro de si, contanto que saísse em passos rápidos o fechasse a porta depois. Nada de olhar para trás.
Gala entrou, uma Gala transformada, parecendo tão bela quanto na noite em que a vira pela primeira vez, exceto as linhas de exaustão sob os olhos, que o pó não disfarçava totalmente, e os feios vincos nos pulsos e tornozelos.
Bond deu-lhe um drinque e tomou outro. Os olhos de ambos sorriam por cima da orla dos copos.
Depois Bond se ergueu.
— Escute, Gala — começou num tom de voz bem natural . — Nós temos de enfrentar o que está por vir e terminar com a história, de modo que serei breve e depois tomaremos outra dose.
Bond ouviu quando ela prendeu a respiração, mas continuou:
— Dentro de dez minutos, mais ou menos, eu vou fechá-la no banheiro de Drax, pôr você debaixo do chuveiro, e abri-lo completamente.
A moça gritou, aproximando-se dele:
— James. Não continue. Eu sei que você vai dizer qualquer coisa horrível. Pare, por favor, James.
— Deixe disso, Gala — disse Bond com aspereza. — Que diabo adianta tudo isto. É um milagre maldito, se é que posso dizer assim, e nós temos a oportunidade.
Afastou-se dela. Encaminhou-se então para as portas que conduziam ao foguete.
— Depois então — prosseguiu, segurando o precioso isqueiro na mão direita — eu sairei daqui, fecharei as portas e acenderei um último cigarro debaixo da cauda do “Explorador da Lua”.
Meu Deus! — sussurrou a moça. — Que é que você está dizendo? Você está louco.
Fitou-o com os olhos arregalados de horror.
— Não seja ridícula — disse Bond impaciente. — Que diabo nos resta fazer? A explosão será tão pavorosa, que ninguém sentirá nada. Deve dar resultado, com todo esse combustível em vapor circulando em redor. Trata-se de mim ou de um milhão de pessoas em Londres. A cápsula não se soltará. As bombas atômicas não explodem assim. Com certeza derreterá. Só há uma chance de você escapar. A maior parte da explosão se encaminhará para a linha de menor resistência através do telhado — e por baixo, pela cavidade exaustora, se eu conseguir fazer funcionar o maquinismo que abre o chão.
Bond sorriu.
— Ânimo — pediu, caminhando para ela e pegando-lhe uma das mãos. — O rapaz ficou de pé no tombadilho incendiado. Eu quis imitá-lo desde os cinco anos de idade.
Gala puxou a mão.
— Não me importa o que você está dizendo — declarou encolerizada. — Temos de pensar em outra coisa qualquer. Você não me acha capaz de ter nenhuma ideia. Vai só me dizendo o que pensa e o que temos de fazer.
Dirigiu-se para o mapa da parede e apertou o interruptor.
— Naturalmente, se tivermos de usar o isqueiro, usá-lo-emos. — Olhou o mapa do falso plano de voo, mal vendo o que tinha diante dos olhos. — Mas a ideia de você caminhar ali sozinho e ficar no meio daqueles horríveis vapores do combustível e calmamente acender essa coisa para depois ser reduzido a pó... Entretanto, se tivermos de agir assim, agiremos juntos. É preferível, melhor do que ser queimada até morrer aqui dentro. De qualquer maneira — fez uma pausa — eu gostaria de ir com você. Nós entramos juntos nesse negócio.
Os olhos de Bond estavam cheios de ternura, quando caminhou em direção à moça, passou-lhe um braço em volta da cintura e abraçou-a bem junto a si.
— Gala, você é um amor — disse com simplicidade. — Se houver outro meio, nós o tentaremos. Mas — olhou o relógio — já passa de meia-noite, e nós precisamos tomar uma resolução rápida. A qualquer momento pode ocorrer a Drax a ideia de mandar guardas para ver sé nós estamos em ordem, e só Deus sabe a que horas ele virá aqui acertar o giroscópio.
Gala torceu o corpo como uma gata. Fitou-o com a boca aberta, o rosto tenso de excitação. Sussurrou:
— O giroscópio, para acertar o giroscópio. Encostou-se novamente de leve contra a parede, os. olhos procurando o rosto de Bond.
— Você não compreende? — sua voz estava beirando a histeria. — Depois que ele sair, nós poderíamos alterar o giroscópio para onde estava, de acordo com o antigo plano de voo, e então o foguete cairia simplesmente no Mar do Norte, onde se julga que irá cair.
Gala afastou-se da parede e agarrou a camisa de Bond com as duas mãos, fitando-o com um olhar que implorava:
— Não poderíamos? Não poderíamos?
— Você conhece as outras direções? — perguntou Bond, ansioso.
— Claro que sim. Convivo com eles há um ano. Nós não teremos uma previsão do tempo, mas teremos de nos arriscar. A previsão desta manhã dizia que nós teríamos as mesmas condições de hoje.
— Por Deus — disse Bond. — Nós poderíamos fazer isto. Se conseguirmos esconder-nos nalgum lugar e fazer Drax imaginar que escapamos. Que tal o túnel exaustor, se eu conseguir fazer funcionar a máquina que abre o assoalho?
— São trinta e tantos metros de queda em linha reta — disse Gala, sacudindo a cabeça. — E as paredes são de aço polido. Como vidro. Além do mais, não há corda ou coisa alguma aqui. Eles tiraram tudo da oficina ontem. Sem contar com os guardas na praia.
Bond refletiu. Depois seus olhos tornaram-se brilhantes:
— Tenho uma ideia. Mas em primeiro lugar, que me diz você do radar, o radar de retorno de Londres? Ele não empurrará o foguete para fora do seu curso e de volta para Londres?
Gala sacudiu a cabeça:
— Ele só trabalha dentro de um raio de cem milhas, mais ou menos. O foguete nem sequer pegará seu sinal. Se estiver apontando para o Mar do Norte, entrará na órbita do transmissor da jangada. Não há nada de errado nos meus planos. Mas onde nos poderemos esconder?
— Num dos tubos de ventilação — respondeu Bond. — Vamos.
Lançou um último olhar à sala. O isqueiro estava em seu bolso. Aquilo seria o último recurso. Não havia mais nada que eles fossem precisar. Seguiu Gala para o cintilante cilindro e dirigiu-se ao painel de instrumentos que controlava a capa de aço da cavidade exaustora.
Após um rápido exame, moveu uma pesada barra de Zu a Auf. Ouviu-se um leve sibilo da máquina hidráulica atrás da parede, e os dois semicírculos de aço se abriram sob a cauda do foguete, deslizando depois novamente para o lugar. Bond seguiu em frente e olhou para baixo.
Os arcos no telhado lá em cima cintilavam em resposta ao seu olhar, de lá das paredes polidas do largo funil de aço, até se curvarem desaparecendo de suas vistas, em direção ao distante clamor ôco do mar.
Bond voltou ao escritório de Drax e puxou para baixo a cortina do boxe do chuveiro. Depois, Gala e ele rasgaram em tiras a cortina e ligaram umas às outras. Deu um rasgão em feitio de um V no fim da última tira para dar a impressão de que a corda da fuga tinha-se partido. Amarrou então a outra extremidade firmemente em torno da ponta aguda de uma das três barbatanas do “Explorador da Lua” e deixou cair o resto de modo que descesse pelo cilindro.
Não era lá grande coisa como falsa pista, mas podia servir para ganhar um pouco de tempo.
As bocarras redondas dos ventiladores tubulares tinham o espaço de umas dez jardas entre si e ficavam a cerca de 1.50m do chão. Bond contou. Havia cinquenta delas. Abriu cautelosamente a grade presa em gonzos que cobria uma delas e olhou para cima. A uma distância de doze metros via-se um leve brilho vindo do luar lá fora. — Chegou à conclusão de que estavam emparedados bem dentro do túnel formado pelo muro da base, até que viraram para os ângulos direitos, em direção aos gradeados das paredes exteriores.
Bond estendeu o braço e correu a mão pela superfície. Era de um concreto rústico, inacabado, e ele grunhiu de satisfação, quando sentiu primeiro uma forte protuberância, e depois outra. Eram as extremidades bifurcadas das varas de aço que reforçavam as paredes, cortadas onde os cilindros começavam.
Ia ser uma coisa dolorosa, mas não havia dúvida de que poderiam ir-se arrastando, centímetro por centímetro, por um desses cilindros, tal como alpinistas numa chaminé rocha acima e, na curva do topo, ficarem ocultos de tudo, menos da busca complicada que seria difícil de manhã com todos os oficiais de Londres em redor da base.
Bond se ajoelhou, e a moça montou-lhe às costas, depois do que começaram a subir.
Uma hora depois, com os pés e os ombros machucados e cortados, deitaram-se exaustos, apertados bem fortemente nos braços um do outro, as cabeças afastadas alguns centímetros do gradeado circular, situado diretamente acima da porta externa, e puseram-se a ouvir os guardas mexendo os pés incessantemente dentro da escuridão, cem jardas distante deles.
Cinco horas, seis, sete.
Lentamente o sol apareceu por trás da cúpula, e as gaivotas começaram a gritar nos penhascos. Então, surgiram de súbito as três figuras caminhando para eles na distância, passaram por um novo pelotão de guardas, os queixos levantados, os joelhos erguidos, vindos para render a ronda noturna.
As figuras foram-se aproximando, e os olhos apertados, exaustos, do casal oculto puderam ver todos os detalhes da cara vermelho-alaranjada de Drax, o pálido focinho de raposa do Dr. Walter, a nédia e balofa cara de sono de Krebs.
Os três homens caminhavam como se fossem executores de um fuzilamento, sem dizer nada. Drax tirou a chave, e eles, silenciosamente, entraram pela porta, alguns pés abaixo dos corpos tensos de Bond e Gala.
Depois, durante dez minutos, reinou o silêncio, quebrado apenas pelo som ocasional de vozes que subiam pelo cilindro do ventilador, quando os três homens se movimentavam pelo chão de aço em torno da cavidade exaustara. Bond sorriu consigo mesmo à ideia do ódio e da consternação que deveriam estampar-se no rosto de Drax; do infeliz Krebs, encolhendo-se sob as chicotadas da língua de Drax; a amarga acusação nos olhos de Walter. Foi então que a porta se escancarou abaixo dele, e Krebs chamou, imperioso, o chefe dos guardas.
— Die Engländer — a voz de Krebs era quase histérica. —Escaparam. O Herr Kapitän pensa que possam estar num dos tubos de ventilação. Vamos arriscar. A cúpula será aberta novamente, e nós vamos eliminar os vapores do combustível. Depois então o Herr Doktor passará a mangueira de vapor quente em cada um dos tubos. Se eles estiverem num deles, isto os liquidará. Escolha quatro homens. As luvas de borracha e as vestimentas para incêndio estão lá embaixo. Nós vamos tirar a pressão do aquecimento. Diga aos outros que prestem atenção para ver se escutam os gritos. Verstanden?
— Zu Befehl!
O homem voltou diligentemente para junto de seu grupo, e Krebs, com o suor da ansiedade no rosto, voltou-se e desapareceu novamente pela porta.
Por um momento Bond permaneceu imóvel.
Ouviram rumores pesados acima de suas cabeças, quando a cúpula se dividiu em dois e se abriu. A mangueira de vapor quente!
Bond ouvira contar de motins em navios sendo combatidos com isto. Desordens em fábricas. Será que alcançará doze metros? A pressão durará? Quantas caldeiras alimentavam o aquecimento? Entre os cinquenta tubos de ventilação, qual seria o escolhido para começarem? Teria Bond ou Gala deixado qualquer indício, com relação àquele que haviam subido?
Bond sentia que Gala esperava que ele explicasse. Que fisesse alguma coisa. Que protegesse a ambos.
Cinco homens vieram aproximando-se do semicírculo de guardas. Passaram por baixo e desapareceram.
Bond pôs a boca no ouvido de Gala.
— Isto poderá machucar — avisou. — Não posso prever quanto. Não pode ser evitado. Teremos de aguentar. Sem fazer barulho.
Sentiu logo a pressão dos braços dela, à guisa de resposta:
— Levante os joelhos. Não fique acanhada. A hora não é para pudores virginais.
— Cale a boca — sussurrou Gala, zangada. Ele sentiu um joelho subir e ficar trancado entre suas coxas. Seu próprio joelho seguiu por ali até não conseguir estender-se mais. A moça se remexia furiosamente.
— Não seja idiota — cochichou Bond, puxando-lhe a cabeça para junto do peito, até que ficou meio encoberta pela sua camisa aberta.
Bond encobriu-a tanto quanto possível. Não podiam fazer nada com relação aos tornozelos e as mãos. Levantou a gola da camisa, o mais que pôde por cima das cabeças. Apertavam-se um contra o outro.
Quentes, cheios de câimbras, sem respirar. Esperando — de repente a ideia ocorreu a Bond, como dois namorados debaixo de arbustos, ocultos. Esperando que as pisadas se afastassem, de modo a poderem principiar tudo novamente. Sorriu amargamente consigo mesmo e pôs-se à escuta.
O silêncio reinava lá embaixo, no foguete. Deviam estar na sala das máquinas. Walter devia estar assistindo à instalação da mangueira na válvula externa. Agora ouviam-se ruídos distantes. Por onde começariam?
Num ponto qualquer, não muito longe, havia um sussurro leve, bem arrancado do fundo, como o apito ineficiente de um trem distante.
Bond dobrou para trás o colarinho da camisa e arriscou um olhar por entre as grades, até os guardas. Os que conseguiu ver, olhavam em frente para a cúpula do lançamento, um pouco à sua esquerda.
Novamente o longo sussurro áspero. E mais uma vez se repetiu.
Ia ficando mais alto. Viu as cabeças dos guardas rodando para o lado das grades das paredes que ocultavam Gala e ele. Deviam estar observando, fascinados, enquanto os jatos brancos e espessos de vapor subiam pelas grades até lá em cima ha parede de cimento, conjeturando: “— Será esta, ou aquela, ou aquela outra, qual será que virá acompanhada de um duplo grito.”
Sentia o coração de Gala batendo de encontro ao seu. Ela não sabia o que estava por acontecer. Confiava nele.
— Pode machucar — sussurrou-lhe novamente. — Pode queimar. Não nos matará. Tenha coragem. Não emita um som.
— Eu estou bem — cochichou a moça, encolerizada. Mas ele percebeu que seu corpo se colava mais ao dele. Chuá! Estava chegando mais perto.
Chuá! A diferença era de dois tubos.
CHUÁ! Pegado a eles. Sentiu um leve cheiro do vapor.
— “Fique bem firme”, ordenou Bond a si mesmo. Esmagou a companheira de encontro ao próprio corpo e prendeu a respiração.
— “Agora. Depressa. Acabem com isso, desgraçados.”
E eis que, subitamente, houve uma grande pressão; o calor e um barulho infernal chegou-lhes aos ouvidos, seguidos de um instante de dor intolerável.
Depois um silêncio mortal, uma mistura de frio intenso e fogo nos tornozelos e nas mãos, uma sensação de estarem ensopados, e um esforço desesperado, sufocante, de fazer o ar puro penetrar nos pulmões.
Seus corpos lutaram automaticamente para se separarem um do outro, para conseguir alguns centímetros de espaço e ar para as áreas da pele que já começavam a cobrir-se de bolhas. A respiração rasgava-lhes as gargantas, e a água porejava do cimento para dentro de suas bocas abertas, até que ambos se curvaram para um lado e atiraram-na fora, e ela foi juntar-se ao riachinho que corria por baixo de seus corpos ensopados, descendo pelos tornozelos escaldantes e dali para as paredes verticais do tubo pelo qual haviam subido.
O uivo da mangueira a vapor afastou-se deles até se tornar um sussurro e, finalmente, cessar. Reinou então o silêncio na estreita prisão de cimento de ambos, ouvindo-se apenas suas teimosas respirações e o tique-taque do relógio de Bond.
Os dois corpos continuavam deitados e à espera, aguentando a dor.
Meia hora — meio ano — mais tarde, Walter, Krebs e Drax seguiram em fila por baixo deles.
No entanto, como medida de precaução, os guardas tinham sido deixados para trás na cúpula do lançamento.
CAPITULO 24
ZERO
Então estamos combinados?
— Sim, Sir Hugo — era o Ministro do Abastecimento quem falava. Bond reconheceu a figura espigada, segura de si. — As direções são aquelas. Meu pessoal verificou-as, independentemente, com o Ministério da Aeronáutica esta manhã.
— Neste caso, se me permite o privilégio — Drax levantou o pedacinho de papel e ia virando em direção à cúpula.
— Segure-a, Sir Hugo. Assim mesmo, por favor. O braço esticado no ar.
As lâmpadas dos flashes se acenderam, e o conjunto de câmaras zumbiu e estalou pela última vez. Drax voltou-se e andou os poucos metros que o separavam da cúpula, quase, assim pareceu a Bond, fitando-o diretamente nos olhos através do gradeado acima da porta da casamata.
A pequena turba de repórteres e fotógrafos dissolveu-se e encaminhou-se para o caminho de concreto, deixando para trás apenas um grupinho de oficiais que conversavam nervosamente, à espera de que Drax surgisse em cena.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e cinco. “Depressa, seu danado”, pensou.
Pela centésima vez repetiu para si mesmo os números qus Gala lhe ensinara durante as horas de dor e câimbras que se seguiram à provação do vapor, e pela centésima vez movimentou os membros para preservar a circulação.
— Apronte-se — cochichou no ouvido de Gala. — Está se sentindo bem?
Sentiu que a moça sorria.
— Ótimo.
Ela fechou a mente à ideia de suas pernas todas cheias de bolhas e da rápida descida, raspando-as pelo tubo de ventilação .
A porta fechou-se com um baque abaixo deles, seguindo-se o estalido da fechadura, e então, precedida por cinco guardas, a figura de Drax apareceu lá embaixo, marchando solene para o grupo de oficiais, a tira de papel com os números na mão.
Bond olhou o relógio. Onze e quarenta e sete. — Agora — sussurrou.
— Boa sorte — respondeu Gala, também num sussurro. Escorregando, arranhando-se, rasgando-se. Seus ombros, cautelosamente, se expandiam e contraíam; os pés, cheios de bolhas, de sangue, procurando as saliências agudas do ferro; com o corpo dilacerado abrindo caminho através do tubo de um metro, rezava para que a pequena encontrasse forças para suportar tudo aquilo, quando o seguisse.
Finalmente, o pulo de três metros, que lhe repercutia na espinha, um pontapé nas grades, e ele galgava o chão de aço, corria para as escadas, deixando uma trilha de pegadas vermelhas e um borrifo de gotas de sangue caídas de seus ombros feridos.
Os arcos de luz haviam sido apagados, mas o clarão do dia penetrava pelo telhado aberto, e o azul do céu misturado ao fulgor da luz do sol davam a Bond a impressão de que estava correndo dentro de uma enorme safira.
A grande e mortal agulha no centro parecia ser feita de vidro. Olhando para cima, enquanto suava e arfava no percurso das infindáveis curvas da escada de ferro, era difícil para ele ver onde o nariz do foguete, afinando na ponta, terminava, e começava o céu.
Por trás do pesado silêncio que envolvia a bala esplendente, Bond ouvia um ruído apavorante e regular, o caminhar de minúsculos pés de metal num ponto qualquer do corpo do “Explorador da Lua”. Enchia o vasto compartimento de aço, como as batidas do coração na história de Poe, e Bond compreendeu que Drax, diretamente do ponto do tiro, apertara o interruptor que mandava a faixa radiofônica, disparando a mais de duzentas jardas até o foguete ali à espera. O tique-tique cessaria dentro em breve, ouvir-se-ia o suave gemido do catavento aceso, uma pequena porção de vapor das turbinas, e depois o rugido do jato de flama no qual o foguete se ergueria lentamente e se curvaria majestoso no início de sua gigantesca curva de aceleração.
E então, diante dele, viu o braço retorcido do guindaste dobrado novamente contra a parede, e sua mão alcançou a barra. O braço foi-se esticando para baixo e para fora em direção à linha fina e quadrada, na pele brilhante do foguete, que era a porta do compartimento do giroscópio.
Caminhando apoiado nas mãos e nos joelhos, Bond alcançou-o bem antes de as almofadas de borracha virem descansar contra o cromo polido. Encontrou o disco de descarga, do tamanho de um xelim, exatamente como Gala havia descrito. Apertar, estalar, e a pequenina porta se abria, girando no parafuso duro. Dentro. Cuidado para não ferir a cabeça. Os cabos cintilantes embaixo dos ponteiros da bússola. Virar. Torcer. Firme. Isto é para o rolamento. Agora o topo e o pior. Virar. Lento. Bem delicadamente. Mas firme. Um último olhar. Uma olhada no relógio. Quatro minutos para ir. Não fique em pânico. Volte. Estalido da porta. Uma fugida rápida de gato. Não olhe para baixo. O guindaste se ergueu. Bateu contra a parede. E agora as escadas.
Tique-tique-tique-tique.
Ao descer, Bond vislumbrou o rosto de Gala, branco, tenso, enquanto ela permanecia segurando a porta exterior aberta, a porta do escritório de Drax. Oh, Deus! Como seu corpo doía! Um último salto e uma reviravolta desajeitada para a direita. Pam! Quando bateu com força a porta de fora. Nova pancada, e ei-los atravessando a sala em direção ao chuveiro. A água jorrando sobre seus corpos pegajosos e doloridos.
Por dentro de todo aquele barulho, acima das batidas do próprio coração, Bond ouviu o súbito estalar da estática e, em seguida, a voz do locutor da BBC vinda do enorme aparelho da sala de Drax, poucos centímetros distante da parede fina do banheiro. Fora novamente Gala quem se lembrara do aparelho de rádio de Drax e que encontrara tempo para pô-lo a funcionar enquanto Bond trabalhava no giroscópio.
“... cinco minutos de atraso” — dizia a voz excitada, leve, ao microfone. — Bond fechou o chuveiro, e a voz chegou até eles mais claramente. — “Sir Hugo foi persuadido a dizer algumas palavras. Parece muito confiante. Está dizendo qualquer coisa no ouvido do Ministro. Estão ambos rindo. Gostaria de saber o que estão dizendo. Ah, eis o meu colega que chega com as últimas notícias a respeito do tempo, vindas do Ministério da Aeronáutica. Que dizem elas? Perfeito em todas as altitudes. Bom espetáculo. Não há dúvida de que temos um dia maravilhoso aqui, Ah! A multidão reunida à distância, perto da estação de guardas-costeiros, vai apanhar uma boa queimadura de sol. Deve haver milhares de pessoas ali. Que foi que você disse? Vinte mil? Bem, a impressão que dá é essa mesmo. Walmer Beach também está apinhada de gente. Toda a população de Kent parece estar na rua. Todo mundo vai ficar com mau jeito no pescoço. Vai ser pior que em Wimbledon. Alô, que é que está se passando ali no cais? Puxa, é um submarino que acaba de subir à superfície. Que espetáculo! É um dos maiores que existem, creio eu. E a equipe de Sir Hugo está lá embaixo também. Alinhados no cais, como se estivessem numa parada. Magnífica corporação. Agora entram a bordo em fila. Disciplina perfeita. Deve ser uma ideia do Almirantado. Oferecer-lhes uma recepção especial na entrada do Canal. Maravilhoso espetáculo. Gostaria que você estivesse aqui para ver. Agora Sir Hugo vem vindo em nossa direção. Dentro em pouco estará falando com vocês. Bela figura de homem! Todos os que se encontram no ponto de tiro o estão aclamando. Tenho certeza de que todos nós nos sentimos inclinados a aclamá-lo hoje. Ele vem vindo para o ponto de tiro. Daqui vejo o sol brilhando no nariz do “Explorador da Lua”, lá adiante, por trás dele. Começa a sair por trás do alto da cúpula de lançamento. Espero que alguém tenha uma máquina fotográfica. Ei-lo que chega aqui agora — uma pausa. — Sir Hugo Drax.
Bond olhou o rosto gotejante de Gala. Ensopados e sangrando, ficaram nos braços um do outro, sem falar e tremendo ligeiramente sob o impacto de suas emoções. Seus olhos nada exprimiam e eram insondáveis quando se fitaram.
A voz que se ergueu era aveludado rosnar:
— Vossa Majestade, homens e mulheres da Inglaterra. Estou prestes a modificar o curso da história da Inglaterra. — Uma pausa. — Dentro de poucos minutos todas as vossas vidas estarão alteradas, em alguns casos drasticamente, pelo — hum — impacto do “Explorador da Lua”. Sinto-me muito orgulhoso e feliz porque o destino me elegeu, dentre todos os meus compatriotas, para lançar esta grande flecha de vingança nos céus e assim proclamar para sempre e para que todo o mundo presencie, o poderio de minha Pátria. Espero que esta oportunidade seja para sempre um aviso de que o destino dos inimigos de meu País estará escrito em poeira, em cinzas, em lágrimas e — uma pausa — em sangue. E agora muito obrigado por me terem ouvido, e eu, sinceramente, faço votos para que aqueles dentre vós que puderem, repitam as minhas palavras aos seus filhos, se os tiverem, hoje à noite.
Uma onda um tanto hesitante de aplausos ecoou através do microfone. Em seguida, ouviu-se a voz animada do locutor.
— Acabamos de ouvir Sir Hugo Drax, dirigindo-lhes algumas palavras antes de atravessar o ponto de tiro que leva ao interruptor na parede que lançará o “Explorador da Lua”. É a primeira vez que fala em público. Muito — hum — incisivo. Não faz rodeios para falar. Entretanto, muita gente achará que não há nenhum mal nisto. E agora chegou o momento de eu passar o microfone ao técnico, Capitão-Chefe de Grupo Tandy, do Ministério do Abastecimento, que descreverá para vocês o lançamento do “Explorador da Lua”. Em seguida, ouvirão a palavra de Peter Trimble, numa das embarcações da patrulha de segurança naval, o HMS Merganzer, que descreverá a cena da área compreendida pelo alvo. O Capitão Tandy.
Bond lançou um olhar ao relógio.
— Só mais um minuto — disse a Gala. — Oh, meu Deus, como eu gostaria de pôr as mãos em Drax. Tome aqui — estendeu a mão para o sabonete e arrancou-lhe alguns pedaços. — Ponha isto nos ouvidos, quando chegar a hora. O barulho vai ser tremendo, não sei dizer como será o calor. Não durará muito, e as paredes de aço talvez aguentem bem. Gala olhou para ele. Sorriu.
— Se você me segurar, não vai ser assim tão ruim — falou.
— E agora Sir Hugo está com a mão no interruptor e olha o cronômetro.
— DEZ — disse outra voz, forte e sonora como o toque de um sino.
Bond abriu o chuveiro, e a água jorrou sobre seus corpos apertados um contra o outro.
— NOVE — reboou a voz do que controlava o tempo.
— Os operadores do radar estão olhando as telas. Nada, exceto uma massa de linhas onduladas. . .
— OITO.
— Todos estão usando tampões nos ouvidos. A casamata deve ser indestrutível. As paredes de concreto têm três metros e meio de espessura. O teto em pirâmide tem sete metros e pouco de espessura na ponta.. .
— SETE.
— Primeiro o rádio sustará o mecanismo do tempo nas turbinas. Porá em movimento o cata-vento. Uma coisa flamejante como uma rodinha de fogo de artifício. . .
— SEIS.
— As válvulas se abrirão. Combustível líquido, Fórmula secreta. Coisa formidável. Dinamite. Cai dos tanques de combustível ...
— CINCO.
— Aceso pelo pino giratório, quando o combustível chega ao motor do foguete. . .
— QUATRO.
— enquanto que a água oxigenada e o permaganato já se misturaram, tornaram-se vapor, e as bombas das turbinas começam a girar.. .
— TRÊS.
— bombeando o combustível inflamável, através do motor, na cauda do foguete, para a cavidade exaustora. Calor gigantesco. . . 3500 graus...
— DOIS.
— Sir Hugo está prestes a apertar o botão. Está olhando pela abertura. O suor lhe umedece a fronte. Completa tensão aqui. Tremenda tensão.
— UM.
Nada senão o ruído da água, caindo incessantemente nos dois corpos agarrados.
— FOGO!
O coração de Bond pulou para a garganta ao ouvir o grito. Sentiu Gala estremecer. Silêncio. Nada, senão o sibilar da água...
— Sir Hugo deixou a casamata. Vai caminhando calmamente para a borda dos penhascos. Tão confiante! Passou agora para o elevador. Vai descer. Naturalmente. Deve ir até o submarino. As telas de televisão mostram um pouco de vapor vindo da cauda do foguete. Mais alguns segundos. Sim, ele se encontra no cais. Olhou para trás e levantou o braço no ar. Bom velho Sir Hu...
Um troar longínquo chegou até Bond e Gala. Mais alto. Mais alto. O chão ladrilhado começou a tremer debaixo dos pés deles. Um clamor de furacão!! Seriam pulverizados. As paredes tremiam, queimavam. As pernas de ambos começaram a descontrolar-se sob seus corpos oscilantes. Segure-a bem. Segure-a bem. Pare com isso! Pare com isso!! PARE COM ESSE BARULHO.
Cristo, ele ia desmaiar. A água estava fervendo. Era preciso fechá-la. Encontrei. Não. O cano arrebentou. Vapor, cheiro, ferro, tinta.
Tire-a daqui para fora! Tire-a daqui para fora!! Tire-a daqui para fora!!!
Depois o silêncio. Silêncio que se podia sentir, apalpar, apertar. E eles estavam no chão do escritório de Drax. Só a luz do banheiro ainda brilhava. A fumaça ia dissipando-se. Assim como o cheiro horrível de ferro queimado e tinta. Estavam sendo sugados pelo ar condicionado. A parede de aço inclina-se para eles qual bolha gigantesca. Os olhos de Gala estão abertos, e ela está sorrindo. Mas o foguete? Que foi que aconteceu? Londres? Mar do Norte? O rádio. Parece em ordem. Sacudiu a cabeça, e a surdez foi lentamente desaparecendo. Lembrou-se do sabão. Retirou-o das orelhas.
— Atravessando a barreira do som. Viajando perfeitamente bem no centro da tela do radar. Um lançamento perfeito. Receio que não tenham ouvido nada por causa do barulho. Tremendo. Primeiro todo aquele grande lençol de chamas vindo do penhasco, saindo da cavidade exaustora, e depois vocês deveriam ter visto o nariz lentamente surgir da cúpula. Ei-lo que sobe como um enorme lápis de prata. Mantendo-se em posição vertical nesta imensa coluna de chamas e vagarosamente subindo no ar. A flama se espalhando por centenas de quilômetros sobre o concreto. O uivo da coisa deve ter ameaçado seriamente arrebentar nossos microfones. Grandes fragmentos caíram do penhasco, e o concreto parece uma teia de aranha. Tremenda vibração. E a agulha subindo cada vez mais rápida. Cem milhas por hora. Mil. E — o locutor interrompeu o que ia dizendo — o que é que você disse? Ah, sim? Agora está percorrendo o espaço numa velocidade de dez mil milhas horárias! Encontra-se a uma altura de trezentas milhas. Não posso ouvir mais, naturalmente. Só vimos a flama durante alguns segundos. Como uma estrela. Sir Hugo deve estar muito orgulhoso. Encontra-se, no momento, no Canal. O submarino partiu como um foguete. Deve estar fazendo mais de trinta nós. Atirando para cima um colosso de espuma. Já alcançou o East Goodwins agora. Viaja para o norte. Dentro em breve chegará até os navios patrulheiros. Presenciarão o lançamento e a aterrissagem. Mas esse itinerário foi meio surpreendente. Ninguém aqui tinha a menor indicação. Até mesmo as autoridades navais parecem um tanto mistificadas. O Comandante-em-Chefe Nore foi ao telefone. Mas agora é só o que eu lhes posso informar daqui e vou passar a palavra a Peter Trimble, a bordo do HMS Merganzer, num ponto qualquer da Costa Oriental.
Nada, exceto os pulmões funcionando, indicava que os dois corpos largados na lagoa sempre crescente do chão ainda estivessem vivos. Mas seus tímpanos avariados pendiam desesperadamente do ruído de estática que veio durante alguns instantes do gabinete de metal todo empipocado. Agora teriam o veredicto do seu trabalho.
— Aqui fala Peter Trimble. Temos uma linda manhã — retifico — tarde, aqui. Um pouco ao norte de Goodwin Sands. Calmo como um lago. Não há vento. O sol brilha alegremente. A área compreendida pelo alvo foi declarada limpa, sem nenhuma embarcação. Não é assim, Comandante Edwards? Sim, o Capitão diz que está tudo inteiramente limpo. Por enquanto nada se vê na tela do radar. Não me é permitido informar o raio em que o pegaremos. Por motivos de segurança, e essa coisa toda. Mas nós só pegaremos o foguete por uma fração de segundo. Não está certo o que digo, Capitão? Mas o alvo começa a aparecer na tela. Não se pode vê-lo da ponte, naturalmente. Deve estar a setenta milhas daqui, na direção do norte. Vimos o “Explorador da Lua” subindo. Espetáculo assombroso! O barulho semelhante a um trovão. Uma longa chama saía da cauda. Devia estar já a dez milhas de distância, mas não era possível deixar de ver a luz. Não é isto, Capitão? Ah, sim, compreendo. Bom, isto é muito interessante. O enorme submarino se aproxima rapidamente. Está apenas a uma milha de distância. Suponho que seja aquele onde se encontra Sir Hugo com seus homens. Nenhum de nós aqui foi informado de coisa alguma a seu respeito. O Capitão Edwards diz que não responde à lâmpada Aldis. Não traz distintivo de navegação. Muito misterioso. Peguei-o agora mesmo. Está bem nítido em meus binóculos. Mudamos de rumo para tentar a intercepção. O Comandante diz que não é um dos nossos. Acha que deve ser estrangeiro. Atenção! Mostrou agora suas cores. O que vem a ser isto? Santo Deus! O capitão diz que é um submarino russo. Puxa! Agora está arriando as bandeiras e submergindo. Bang! Ouviram? Atiramos visando a proa, mas já desapareceu. Que é isto? Ah, o operador do asdic informa que está acelerando cada vez mais, debaixo da água. Vinte e cinco nós. Puxa! De qualquer modo, o submarino não poderá ver muita coisa debaixo da água, porém encontra-se agora bem na área do alvo. Passam vinte minutos das doze horas. O “Explorador” deve ter mudado seu rumo e prepara agora a descida. A umas mil milhas. Velocidade de descida, dez mil milhas horárias. Estará aqui dentro de segundos. Espero que não se verifique tragédia alguma. O submarino russo encontra-se bem dentro da zona perigosa. O operador do radar está acenando para nós. É o sinal para avisar que está na hora. Vem chegando. Vem chegando! . . . Não se ouve o mais leve ruído! deus do céu! Que é isto? Cuidado! Cuidado! Uma terrível explosão.. . Uma nuvem negra se eleva no ar. Uma gigantesca vaga, como a de um maremoto, aproxima-se rapidamente de nós. Uma vaga enorme! O submarino! Santo Deus... vimo-lo agora saltar fora da água e voltar a mergulhar, de quilha para o ar! Vem chegando. . .! Vem chegando! ...
CAPÍTULO 25
ZERO MAIS
Duzentos mortos confirmados, até agora, e aproximadamente o mesmo número de pessoas desaparecidas — informou M.
— Ainda estão chegando notícias da costa oriental, e as informações da Holanda não são das melhores. Foram inutilizadas muitas milhas de suas defesas navais. A maioria de nossas perdas ocorreu nas unidades patrulheiras. Duas delas viraram, incluindo o Merganzer. O Comandante desapareceu. O camarada da B. B. C. também. Os navios-faróis de Good-win partiram as amarras. Ainda não recebemos notícias da Bélgica e da França. Haverá contas bem pesadas a pagar, quando tudo isto ficar em ordem...
Era na tarde seguinte, e Bond, com uma bengala de ponta de borracha ao lado da cadeira, voltava a sentar-se onde tudo havia começado: do outro lado da escrivaninha daquele homem calmo, de frios olhos cinzentos, que o convidara para jantar e jogar bridge, há cem anos atrás.
Por baixo da roupa, Bond era uma perfeita e entrelaçada teia de esparadrapo. A dor queimava-lhe as pernas, sempre que tentava mexer os pés. Um traço vermelho cortava-lhe a face esquerda e a parte superior do nariz. O linimento, feito à base de ácido pícrico, cintilava à luz que entrava pela janela. Segurava um cigarro, como podia, na mão enluvada. Inacreditavelmente, M. tinha-o convidado a fumar.
— Algumas notícias do submarino, chefe? — perguntou Bond.
— Já o localizaram — disse M. com satisfação. — Adernado a cerca de trinta braças de profundidade. O navio de salvamento que deveria localizar os restos do foguete encontra-se agora por cima dele. Os mergulhadores já estiveram no fundo, e não houve resposta aos sinais feitos no casco. O embaixador soviético esteve no Foreign Office esta manhã. Parece ter declarado vir a caminho um navio salva-vidas, proveniente do Báltico, mas respondemos que não podíamos esperar, visto que, tratando-se de um navio naufragado, constitui um perigo para a navegação, no local onde está. — M. riu. — Com efeito, seria um perigo se alguém se dispusesse a navegar a trinta braças de profundidade, em pleno Canal. Contudo, estou satisfeito por não ser membro do Ministério — acrescentou friamente. — Tem estado em sessão permanente, desde o final da transmissão radiofônica. Vallance conseguiu entrar em contato com os tais advogados de Edinburgh, antes de eles abrirem a mensagem de Drax para o mundo. Parece ser um documento terrível, como se tivesse sido escrito pelo próprio Jeová. Vallance levou-o ao Governo, na noite passada, e ficou no 10, Downing Street, para esclarecer pontos ainda não averiguados.
— Eu sei — disse Bond. — Ele esteve telefonando constantemente para o hospital, procurando saber detalhes, até depois da meia-noite. Eu mal podia raciocinar direito, devido aos entorpecentes que me aplicaram. E que vai acontecer agora?
— Vão tentar abafar a coisa, com a maior embromação de que se teve notícia até hoje em toda a História. Uma quantidade enorme de lero-lero científico, explicando que o combustível foi usado só pela metade. Deu-se uma inesperada e potente explosão. Serão pagas indenizações. Perda trágica de Sir Hugo Drax e sua valiosa equipe. Grande patriota. Perda trágica de um dos submarinos de Sua Majestade. Último modelo experimental, ordens mal compreendidas. Tudo muito triste. Felizmente, perdeu-se uma tripulação mínima. Os parentes mais próximos serão informados. Trágica perda de um radialista da B.B.C. Inacreditável erro ao confundir a insígnia branca com as cores navais soviéticas. O desenho é muito semelhante. A bandeira branca foi recuperada no naufrágio.
— Mas que me diz da explosão atômica? — indagou Bond. — Radiações, poeiras radioativas e tudo isso. . . A famosa nuvem em forma de cogumelo. Com certeza isso vai ser um problema para explicar.
— Aparentemente, não estão muito preocupados com a questão — disse M. — A nuvem vai passar como formação normal, após uma explosão daquela envergadura. O Ministério do Abastecimento conhece toda a história. Foi preciso contar-lhes. Seus homens andaram percorrendo ontem à noite toda a costa oriental, com contadores Geiger, e ainda não houve qualquer notícia positiva. — M. sorriu friamente. — A nuvem terá de descer em algum lugar, claro, mas por uma feliz circunstância, o vento está empurrando-a para o norte. De volta a casa, como se poderia dizer. . .
Bond esboçou um sorriso, com dificuldade.
— Compreendo. Que coisa apropriada.
— Evidentemente — prosseguiu M., enchendo o cachimbo — haverá por aí uma série de boatos desagradáveis. Já começaram, aliás. Muita gente viu você e Miss Brand, serem retirados em padiolas. Depois, há o caso da Bowaters contra Drax, pela perda de todo aquele material de impressão. Haverá também inquérito sobre o rapaz que foi morto no Alfa Romeo. E alguém terá de explicar como se encontraram os restos de seu automóvel, entre os quais, — e nesta altura, M. olhou acusadoramente para Bond — foi encontrado um Colt de cano longo. E temos ainda o Ministério de Abastecimento. Vallance teve de chamar alguns de seus homens, ontem, para limpar aquela casa da Ebury Street. Mas essa gente está treinada em guardar segredo. Não será por aí que se descobrirá alguma coisa. Naturalmente, será um negócio arriscado. Mas a mentira de grandes proporções sempre o foi. E qual seria a alternativa? Encrencas com a Alemanha? Guerra com a Rússia? Muita gente, dos dois lados do Atlântico, ficaria mais do que satisfeita se lhe déssemos um motivo para agir.
M. fez uma pausa e chegou um fósforo ao cachimbo. Depois continuou:
— Se a história fôr engolida, não sairemos muito mal de tudo isto. Quisemos um de seus submarinos ultravelozes e ficaremos satisfeitos com as pistas que conseguimos descobrir a respeito de suas bombas atômicas. Os russos sabem que nós sabemos que o jogo deles fracassou. Malenkov não está muito firme no poder, e isto pode muito bem significar outra rebelião entre os senhores do Kremlin. Quanto aos alemães, bem... todos nós sabemos que ainda ficou muito nazismo espalhado por aí, e isto servirá para que o Ministério seja um pouco mais cauteloso, no tocante ao rearmamento da Alemanha. Entre as consequências de menor vulto — disse com um sorriso — destaca-se a de que o trabalho de segurança de Vallance, e o meu também, aliás, vão ficar um pouco mais fáceis para o futuro. Esses políticos não veem que a era atômica criou o mais letal sabotador da história da humanidade: o homenzinho com a valise pesada.
— E a imprensa vai engolir essa história? — perguntou Bond, duvidoso.
M. sacudiu os ombros.
— O Primeiro-Ministro teve esta manhã um encontro com os jornalistas — respondeu M., chegando outro fósforo ao cachimbo — e creio que conseguiu tudo da melhor maneira. Se os boatos se intensificarem mais tarde, ele terá, provavelmente, de convocá-los novamente e dizer-lhes parte da verdade. Então, eles se portarão bem. Sempre se portaram, quando o negócio é importante de verdade. O principal é ganhar tempo e manter afastados os boateiros. No momento, todos estão de tal maneira orgulhosos do “Explorador da Lua”, que não indagarão muito minuciosamente que foi que não deu certo.
Ouviu-se um leve zumbido no intercomunicador da escrivaninha de M., e uma luzinha vermelha piscou repetidas vezes. M. pegou no fone e curvou-se. — Alô. — Houve uma pausa. — Atenderei na linha do Ministério. — Apanhou o receptor branco, na mesa onde havia quatro telefones. — Sim. Está falando. — Nova pausa. — Pronto, sir? Escuto. — M. premiu o botão do misturador de sons. Segurou o fone junto ao ouvido, e nem um som chegou até aos ouvidos de Bond. Houve uma longa pausa, durante a qual M. ia puxando uma ou outra baforada do cachimbo, com a mão esquerda, enquanto escutava. Depois, tirou-o da boca. — De acordo, sir. É isso mesmo, sir. — Outra pausa. — Estou certo de que o meu homem teria ficado extremamente orgulhoso, sir. Mas, naturalmente, como Vossa Excelência sabe, é uma regra aqui no serviço. — M. franziu a testa. — Se me permite dar uma opinião, sir, creio que não seria nada aconselhável. — Uma pausa e a fisionomia de M. se desanuviou. — Obrigado, sir. Claro, Vallance não tem o mesmo problema. É o mínimo que ela merece, sir. — Outra pausa. — Compreendo. Assim será feito, sir. — Nova pausa. — É muita bondade sua, sir.
Depois de mais alguns cumprimentos, M. colocou o telefone branco no gancho, e o botão do misturador voltou à sua posição inicial de “livre”.
Por uns instantes, M. continuou fitando o telefone, como se em dúvida a respeito do que fora dito. Depois rodou a cadeira para longe da escrivaninha e olhou pela janela, pensativo.
Reinou o silêncio na sala, e Bond remexeu-se na cadeira, para aliviar a dor que lhe invadia novamente o corpo.
O mesmo pombo de segunda-feira, ou talvez outro, veio descansar no peitoril da janela, com o mesmo ruflar de asas. Caminhava para um e outro lado, baixando a cabeça e arruinando. Depois, voou para as árvores do parque. O tráfego murmurava, sonolento, na distância.
Como estivera perto, pensou Bond, de embarcar desta para melhor. Quão perto estivera de não haver nada mais do que a sirena distante da ambulância sob um sinistro céu negro e alaranjado, o cheiro de queimado, os gritos das pessoas ainda presas nos edifícios. O suave bater do coração de Londres, silenciado por uma geração. E toda uma geração de sua gente, morta nas ruas, entre as ruínas fumegantes de uma civilização que talvez não se erguesse de novo senão daí a muitos séculos.
Tudo isso teria acontecido por causa de um homem que fazia trapaça nas cartas, desdenhosamente, para alimentar o fogo devorador de seu ego maníaco; teria acontecido, se não fosse o presidente do clube Blades que o descobriu; se não fosse M., que concordara em ajudar um velho amigo; se não fosse a lição meio recordada por Bond e aprendida com um perito em trapaças; se não fossem as precauções de Vallance; se não fosse a boa cabeça de Gala para cálculos; se não fosse por uma série completa de circunstâncias fortuitas, de oportunidades .
E quem preparou a série?
Ouviu-se um ranger agudo, quando a cadeira de M. girou. Bond, cautelosamente, voltou a focalizar sua atenção nos olhos cinzentos do outro lado da escrivaninha.
— Era o Primeiro-Ministro — explicou M., em voz agridoce. — Diz que deseja que tanto você como Miss Brand saiam do País. — M. baixou os olhos e pousou-os, impassível, no fornilho do cachimbo. — Vocês dois têm de dar o fora até amanhã à tarde. Há muitas pessoas, neste caso, que lhes conhecem as caras. Poderão somar dois e dois e saberem que são quatro, quando virem em que estado lamentável se encontram. Vão para qualquer lugar que lhes agrade. Despesas sem limite de verba para ambos. Qualquer importância que precisarem. Vou falar com o Tesoureiro. Fique fora por um mês. Mas completamente fora de circulação, entendeu? Vocês dois já deveriam ter partido esta tarde, mas a moça tem um compromisso amanhã às onze horas. No Palácio. Foi-lhe concedida a George Cross. Mas isso não será divulgado até ao novo ano, claro. Gostaria de encontrá-la, qualquer dia. Deve ser uma excelente moça. Aliás — a expressão de M., quando levantou os olhos, era indecifrável — o Primeiro-Ministro tinha na ideia qualquer coisa para você, também. Esquecera que nós, aqui, não admitimos essas coisas. De modo que me pediu para lhe agradecer em nome dele. Disse algumas palavras simpáticas a respeito de nosso serviço. É muito gentil.
M. esboçou um daqueles raros sorrisos que iluminavam seu rosto com uma vivacidade e calor imediatos. Bond retribuiu o sorriso. Eles compreendiam bem as coisas que não chegavam a ser ditas.
Bond percebeu que era tempo de sair. Levantou-se e disse:
— Muito obrigado, chefe. Estou muito satisfeito pela moça.
— Bom, então está tudo combinado — disse M., com uma nota de despedida na voz. — Por hoje basta. Vê-lo-emos aqui dentro de um mês. Ah, é verdade — acrescentou com naturalidade — passe pelo seu escritório antes de sair. Encontrará uma coisa que eu lhe deixei lá. Uma pequena lembrança .
James Bond desceu pelo elevador e foi mancando pelo corredor, até seu gabinete. Quando cruzou a porta interior, encontrou sua secretária arrumando alguns papéis na escrivaninha ao lado da dele.
— 008 já está de volta? — perguntou.
— Sim — respondeu ela, sorrindo feliz. — Deve voar esta noite para cá.
— Ótimo, fico alegre por saber que você terá companhia — disse Bond. — Vou partir novamente.
— Oh! — exclamou a moça. Olhou rapidamente para ele e depois desviou o olhar. — Você está mesmo com cara de quem precisa de um bom descanso.
— Pois vou tê-lo mesmo. Um mês de exílio. — Pensou em Gala. — Vai ser um período de puras férias. Nada mais. Alguma coisa para mim?
— Seu novo carro está lá embaixo. Já o examinei. O homem disse que você lhe tinha dado ordens para que o trouxessem para experiência esta manhã. É lindo! Ah, é verdade. E tem ainda o pacote que veio do gabinete de M. Quer que o desembrulhe?
— Sim, por favor. . .
Bond sentou-se à escrivaninha e olhou o relógio. Cinco horas. Sentia-se fatigado. Sabia que iria sentir o mesmo durante alguns dias. Sempre tinha essas reações, no final de uma difícil missão. Era a consequência dos dias de nervos em tensão, dos temores, do medo.
Sua secretária voltou ao escritório, com duas caixas de papelão, de aspecto pesado. Colocou-as sobre a escrivaninha, e ele abriu a de cima. Quando viu a espécie de papel que envolvia o objeto, percebeu logo o que estava para vir.
Havia um cartão dentro da caixa. Bond pegou-o e leu. Na tinta verde usada por M., este dizia: “Você pode precisar destas coisas.” Não havia assinatura.
Bond desembrulhou o papel impermeável e sopesou a nova e refulgente Beretta em sua mão. Um lembrete. Não. Uma recordação. Bond sacudiu os ombros e fez a arma deslizar por baixo do casaco, para o coldre vazio. Levantou-se com alguma dificuldade.
— No outro embrulho, você encontrará um Colt de cano longo — disse ele à secretária. — Guarde até eu regressar. Então, eu o levarei ao fogão da cantina e jogá-lo-ei lá dentro.
Caminhou para a porta:
— Adeus, Lil. Lembranças a 008, e diga-lhe que tome cuidado com você. Eu estarei na França. Estação F terá meu endereço. Mas só em caso de emergência.
A moça sorriu.
— Que deverei considerar uma emergência? — perguntou.
Bond soltou uma pequena risada.
— Qualquer convite para um tranquilo jogo de bridge, por exemplo — respondeu ele.
Saiu mancando e fechou a porta.
O Mark VI, modelo 1953, tinha uma carroçaria esportiva e elegante, cor cinza de navio de guerra como o velho quatro litros e meio que fora para a sepultura numa garagem de Maidstone. O estofamento de couro azul-marinho deu um luxuoso gemido de coisa nova, quando Bond subiu, desajeitadamente, para o assento ao lado do motorista de provas.
Meia hora depois, o motorista ajudou-o a descer na esquina de Birdcage Walk com Queen Anne’s Gate.
— Se o senhor quisesse, poderíamos ter feito maior velocidade — disse o motorista. — E se nos autorizar a ficar com ele por mais uns quinze dias, poderemos prepará-lo para chegar aos cento e sessenta horários.
— Mais tarde — respondeu Bond. — Está comprado. Mas com uma condição. De que você o leve à terminal do ferry-boat na estação de Calais, amanhã à tarde.
O motorista sorriu:
— O.K. Eu o levarei. Verei o senhor no cais, está bem?
— Combinado. Siga com cuidado pela A-20. A estrada de Dover está muito perigosa, estes últimos dias.
— Não se preocupe, sir — respondeu o motorista, pensando que aquele homem devia ser um tanto medroso, apesar de tudo o que parecia conhecer a respeito de automóveis. — Não acontecerá nada.
— Nem todos os dias — advertiu ainda Bond, sorrindo. — Vê-lo-ei em Calais.
Sem esperar a resposta, saiu mancando, apoiado à bengala, por entre os raios de luz poeirenta do crepúsculo, filtrados através das árvores do parque.
Sentou-se defronte da ilha, no lago, e puxou da cigarreira, acendendo um cigarro. Olhou o relógio. Cinco para as seis. Lembrou-se de que ela não era o tipo de pequena que não seria pontual num encontro. Reservara a mesa de um canto parar o jantar. E depois? Mas, primeiro, haveria o longo e requintado planejar. De que gostaria ela? Onde gostaria de ir? Onde já teria estado? Alemanha, com certeza. França? Deixaria Paris de lado. Poderiam visitar a cidade no regresso. Mas, na primeira noite, iriam o mais longe que pudessem, bem longe do Pas de Galais. Havia aquela casa de campo, com uma comida maravilhosa, entre Montreuil e Étaples. Depois, a descida ao longo do Loire. Os pequenos lugares perto do rio, para alguns dias. As cidades dos castelos, não. Lugares como Beaugency, por exemplo. Depois, vagarosamente, para o sul, sempre seguindo pelas estradas do Oeste, evitando a vida em lugares mundanos e hotéis de cinco estrelas. Explorando lentamente o caminho. Bond teve um sobressalto. Explorar o quê? Um ao outro? Seria que ele estava levando a pequena a sério, demasiado a sério?
— James.
Era uma voz clara, bem timbrada, um pouco nervosa. Não a voz que ele esperava.
Levantou os olhos. Ela estava de pé, a poucos metros de distância. Bond reparou que usava uma boina preta, colocada num ângulo brejeiro. Tinha um ar excitante, misterioso, como alguém que vemos, em terra estranha, conduzindo sozinha um carro aberto. Alguém inatingível e mais desejável do que qualquer outra pessoa que já se conheceu até hoje. Alguém que está a caminho de um encontro amoroso com outro. Alguém que não é para você.
Bond ergueu-se, e deram-se as mãos.
Foi ela quem soltou a sua. Não se sentou.
— Gostaria muito que você fosse amanhã, James — disse Gala.
Seus olhos eram ternos quando o fitou. Ternos e suaves, mas, pensou ele, algo evasivos. Bond sorriu.
— Amanhã de manhã? Ou amanhã à noite? — disse ele.
— Não seja ridículo — respondeu Gala, rindo e corando. — Amanhã no Palácio.
— E depois? Que tenciona você fazer?
Gala encarou-o, cautelosamente. Que seria que esse olhar lembrava a ele? O olhar de Morphy? O olhar com que fitara Drax, na derradeira mão do jogo no Blades? Também não. Havia algo mais. Ternura? Pena?
A moça olhou por cima do ombro. Bond deu meia volta. Mais adiante viu a figura de um rapaz alto, de cabelos louros e cortados curtos. Estava de costas para ambos, sem fazer qualquer movimento. Matando o tempo.
Bond voltou a cabeça para Gala, e os olhos dela encontraram os seus.
— Vou-me casar com aquele homem — declarou ela, simplesmente. — Amanhã de tarde. — E então, como se não houvesse necessidade de outra explicação, acrescentou: — O nome dele é Vivian, Detetive-Inspetor.
— Ah, sim — disse Bond — compreendo. — Sorriu, um tanto amargo.
Houve um momento de silêncio, durante o qual seus olhos se desviaram para longe.
Entretanto, por que motivo deveria ele esperar outra coisa diferente? Um beijo. O contato de dois corpos assustados, agarrando-se no meio do perigo. Nada mais houvera. Depois, o anel de noivado sempre estivera no dedo dela, para que Bond não tivesse dúvidas. Por que supusera ele, automaticamente, que a moça o usara apenas como estratagema para que Drax não excedesse os limites? Por que imaginara que ela compartilhava de seus desejos e de seus planos?
E agora? conjeturava Bond. Sacudiu os ombros para expulsar a dor do fracasso... essa dor que é bem maior do que o prazer do sucesso. Afastar-se, era agora a única saída. Sair do caminho dessas duas vidas jovens e levar seu frio coração para qualquer outro lugar. Nada de penas. Nada de falsos sentimentos. Tinha de representar o papel que ela esperava dele. O homem duro, mundano. O Agente Secreto. O homem que era apenas uma silhueta.
Gala fitava-o, bastante nervosa, esperando ver-se desligada do estranho que tentara penetrar no átrio de seu coração.
Bond sorriu, com calor.
— Estou com ciúme — disse ele. — Tinha outros planos para você amanhã à noite.
Gala retribuiu o sorriso, grata por ter sido quebrado o silêncio.
— Quais eram esses planos? — indagou.
— Ia levá-la a uma casa de campo na França. E, depois de um jantar maravilhoso, pretendia verificar se é verdade o que dizem a respeito do grito de uma rosa.
A moça riu.
— Lamento muito não poder participar desses planos. Mas existem tantas outras, esperando serem colhidas.
— Sim, creio que sim — disse Bond. — Então, adeus, Gala.
Estendeu-lhe a mão.
— Adeus, James.
Bond tocou em Gala Brand pela derradeira vez e, depois, separaram-se, caminhando cada qual ao encontro de suas tão diferentes vidas.
Ian Fleming
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