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Series & Trilogias Literarias
NOTAS DO ARQUIVO HISTÓRICO
De fevereiro de 1692 a maio de 1693, na colónia de Massachusetts, vinte pessoas (catorze delas mulheres) foram acusadas, condenadas e executadas pelo crime de prática de feitiçaria. Embora os infames julgamentos das Bruxas de Salem tenham deixado uma marca indelével na história, foram apenas o derradeiro espasmo da histeria propagada pela grande caça às bruxas que alastrara por toda a Europa. Aí, as perseguições duraram quase três séculos e resultaram na morte de mais de sessenta mil «bruxas», que foram queimadas na fogueira, enforcadas ou afogadas.
Todo este derramamento de sangue começou de forma bastante abrupta ainda no século XV e pode ser imputado à publicação de um único livro, um manual de caça às bruxas intitulado Malleus Maleficarum («O Martelo das Feiticeiras»). A obra foi publicada em 1487 por Heinrich Kramer, um clérigo católico alemão, e recebeu a aprovação da Universidade de Colónia e do chefe da Igreja Católica, o papa Inocêncio VIII. Com a ajuda da então recente invenção da imprensa, foram feitas e distribuídas cópias pela Europa e pelas Américas, e o livro tornou-se a «bíblia» didática que os inquisidores da Igreja e os responsáveis judiciais deveriam seguir para identificar, torturar e executar bruxas, com ênfase especial na heresia praticada por mulheres. Muitos estudiosos consideram-no um dos livros mais sanguinários da história, comparando-o até a Mein Kampf, de Adolf Hitler.
Apesar disso, antes da publicação desta obra, a relação entre a bruxaria e a cristandade não era tão óbvia como muitos poderão julgar. De início, as bruxas não eram vistas como figuras tenebrosas. No Antigo Testamento, o rei Saul procurou a bruxa de Endor para tentar comunicar com o espírito do profeta Samuel e, ao longo da época medieval, muitas destas bruxas exerciam funções de curandeiras, recolhendo ervas medicinais de acordo com antigas tradições. Mesmo durante o período sangrento da Inquisição espanhola, eram os hereges — e não as bruxas — que frequentemente se tornavam alvo de perseguição e tortura.
Prova deste esbatimento de fronteiras entre o papel das bruxas e a Igreja Católica, o culto de Santa Columba floresceu em Espanha durante a Idade Média, sobretudo no norte da Galiza, região então considerada como um bastião das bruxas. De acordo com o mito, Columba era uma bruxa do século IX, a quem Jesus Cristo apareceu um dia numa estrada e lhe disse que ela nunca entraria no reino dos céus se não se convertesse à fé cristã. Columba converteu-se, mas nunca deixou de ser uma bruxa. Por causa da sua fé, acabaria por se tornar uma mártir ao ser decapitada, o que lhe deu o título de «santa padroeira das bruxas». Nos dias que correm, continua a ser vista como a protetora das bruxas, intercedendo em nome daquelas que são «boas» e combatendo as que corrompem esta arte para fins maléficos.
Mais do que nunca, talvez seja uma boa altura para acendermos uma vela a Santa Columba, pois preparamo-nos para entrar numa nova era de bruxaria.
NOTAS DO ARQUIVO CIENTÍFICO
Falemos do fim da humanidade — sobretudo, porque brevemente poderemos não ter uma palavra a dizer sobre o assunto. Existe uma enorme ameaça no horizonte, que provavelmente se tornará real ainda no nosso tempo. Stephen Hawking, o físico mundialmente famoso, descreveu esta futura crise como o «pior evento da história da civilização». Elon Musk acredita que poderá ser o motor da Terceira Guerra Mundial. E o próprio presidente russo, Vladimir Putin, declarou que a nação que controlar este evento controlará o mundo.
Trata-se da criação da primeira forma genuína de inteligência artificial (IA).
Esse momento já aterroriza as mentes daqueles que nos governam. Em fevereiro de 2018, decorreu uma reunião à porta fechada no âmbito da World Government Summit, onde foi discutido o destino da IA. Estiveram presentes representantes da IBM, Microsoft, Facebook e Amazon, juntamente com porta-vozes governamentais da Europa, Rússia, Singapura, Austrália e mundo árabe. O consenso foi de que a nossa existência se encontra em risco, mas, pior do que isso, os participantes concluíram que nenhuma regulamentação internacional será capaz de travar o caminho que nos levará inevitavelmente ao encontro de uma inteligência artificial dotada de autoconsciência. Quaisquer contramedidas foram consideradas «inúteis», já que a história sempre demonstrou que tais proibições nunca impediram empresas ou organizações de agir em segredo e de moto próprio num qualquer recanto do mundo.
Assim sendo, quanto tempo nos resta até assistirmos à chegada de uma nova forma de inteligência ao planeta? São várias as formas de IA que já se infiltraram nas nossas vidas. Estão presentes nos nossos computadores, telemóveis, eletrodomésticos. Quase 70 por cento das operações bolsistas em Wall Street são atualmente executadas sem intervenção humana, processando transações em menos de três milissegundos. A IA tornou-se vulgar a ponto de quase não a reconhecermos como tal. Mas o próximo passo na evolução desta tecnologia aproxima-se rapidamente: o momento em que um computador será capaz de revelar um nível de inteligência e autoconsciência igual ao nosso. Uma sondagem recente revelou que 42 por cento dos peritos informáticos acreditam que isso acontecerá nos próximos dez anos, com metade deles a afirmar que poderá acontecer nos próximos cinco.
Mas o que torna a IA um problema tão sério? Por que razão é vista como o «pior acontecimento da história da civilização»? É que a primeira verdadeira inteligência artificial não vai ficar de braços cruzados à espera de instruções. Em vez disso, revelar-se-á extremamente proativa, o que lhe permitirá converter-se rapidamente — em semanas, dias ou mesmo horas — numa inimaginável superinteligência, uma criação em tudo superior a nós e para a qual provavelmente não teremos qualquer utilidade. Quando isso acontecer, não haverá maneira de saber se essa nova superinteligência será um deus benevolente ou um demónio frio e destrutivo.
Seja o que for, tal criação está para breve e não há forma de a impedir. Alguns acreditam que já vive entre nós. E, por causa disso, sinto-me obrigado a deixar um derradeiro aviso: existe uma maldição escondida no coração deste romance. Ao ler este livro, o leitor poderá inadvertidamente condenar-se a si próprio.
23 de junho de 1611
Zugarramurdi, Espanha
Atrás das barras de ferro, o bruxo ajoelhou-se numa camada de palha imunda e rezou.
Alonso de Salazar Frías observava a cena invulgar. O inquisidor mal conseguia distinguir a figura ajoelhada na cela escura, iluminada apenas pelo brilho das chamas que se erguiam na praça da aldeia. O cheiro a carne queimada entrava pela janela, dando substância à abominável dança de sombras nas paredes de pedra.
Alonso escutou as palavras murmuradas em latim, estudou a posição das mãos postas e da cabeça inclinada em sinal de reverência. A oração proferida pelo bruxo era-lhe familiar: Anima Christi, escrita por Inácio de Loiola, o fundador da Companhia de Jesus. Pareceu-lhe apropriado; afinal, a figura ajoelhada era um padre jesuíta.
Em silêncio, Alonso traduziu mentalmente o último trecho da oração: Na hora da morte, chamai-me, e chamai-me para ir a vós, para que com os vossos santos vos louve, pelos séculos dos séculos.
— Amém — concluiu em voz alta, chamando a atenção do prisioneiro.
Aguardou que o homem se levantasse. Embora não contasse mais do que os quarenta e sete anos de Alonso, o padre debateu-se para se pôr de pé. A túnica pendia-lhe dos ombros esqueléticos; o rosto estava encovado e cheio de chagas. Os seus captores tinham-lhe rapado a cabeça, o que lhe deixara várias feridas no couro cabeludo.
Ele teve pena pelo estado miserável do prisioneiro, mesmo sabendo que se tratava de um homem de Deus acusado de heresia e bruxaria. Alonso tinha sido chamado à pequena aldeia basca a pedido pessoal do inquisidor-mor, a fim de presidir ao interrogatório do padre. Demorara uma semana inteira para atravessar os Pirenéus e chegar ao pequeno aglomerado de casas e quintas junto à fronteira com a França.
O padre cambaleou até às barras da cela e agarrou-se a elas com as mãos ossudas, percorridas por espasmos de fraqueza.
Há quanto tempo não o alimentam?
As palavras que lhe saíram da boca, porém, revelaram-se firmes.
— Não sou nenhum bruxo.
— Isso cabe-me a mim determinar, padre Ibarra. Conheço as acusações que lhe foram imputadas: práticas de feitiçaria, utilização de encantamentos e amuletos para curar os enfermos.
O padre demorou apenas alguns segundos a responder.
— E eu conheço a sua reputação, inquisidor Frías. Foi um dos três juízes que presidiram ao julgamento das bruxas de Logroño, há dois anos.
Ao ouvir aquelas palavras, Alonso teve de desviar os olhos para esconder a vergonha. Em todo o caso, enquanto ali estivesse, nunca seria capaz de escapar ao brilho das chamas e ao fedor de carne queimada. O que via e cheirava era-lhe demasiado familiar. Nos julgamentos da aldeia vizinha de Logroño, alinhara com o veredito dos outros dois inquisidores. Nunca mais se perdoara por isso. Tinha sido o maior julgamento de bruxas que jamais ocorrera em solo espanhol. A acusação contra uma única mulher — Maria de Ximildegui — provocara uma histeria sem precedentes. Ela afirmara ter presenciado uma assembleia de bruxas e desatara a apontar para outras mulheres, que por sua vez denunciaram outras. No final, trezentas mulheres viram-se acusadas de se associarem ao Diabo. Muitas não passavam de crianças, a mais nova com apenas quatro anos. Pela altura em que Alonso chegou a Logroño, os outros dois inquisidores tinham reduzido o número de acusadas às trinta que consideravam mais culpadas. As que admitiram os crimes foram castigadas, mas poupadas à morte pelas chamas. Infelizmente, as doze que se recusaram a admitir que eram bruxas tinham sido queimadas na fogueira.
Alonso carregava as mortes destas mulheres na alma, não por ter sido incapaz de lhes arrancar uma confissão, mas porque acreditava na inocência delas. Com uma dose considerável de risco para si mesmo, confidenciara mais tarde essa convicção a Bernardo de Sandoval y Rojas, o inquisidor-mor de Espanha, em cuja amizade confiava plenamente. A fé que depositava nessa amizade provou-se fundamentada. A crueldade e sede sanguinária de Tomás de Torquemada, o antigo Inquisidor Real, era uma coisa do passado, e Bernardo incumbira-o de levar a cargo sozinho uma investigação pela vasta região basca, com o objetivo de separar a histeria da realidade. Alonso encontrava-se na estrada há quase dois meses, a interrogar todos aqueles que enfrentavam acusações de bruxaria. Até ao momento, tinha deparado apenas com falsos testemunhos, quase sempre arrancados durante sessões de tortura, e histórias pejadas de inconsistências e contradições. Nas suas deambulações, ainda não encontrara um único caso em que a prática de feitiçaria pudesse ser provada.
Na luta pessoal que travava para salvar quem enfrentava tais acusações, Alonso contava com uma única arma. Focou de novo a atenção no padre e deu uma palmadinha na sacola de cabedal que trazia ao ombro.
— Padre Ibarra, tenho comigo um Édito de Fé, assinado pelo inquisidor-mor. Permite-me perdoar os que confessam os crimes, juram fidelidade a Deus e renunciam ao Diabo.
Os olhos do padre brilharam na escuridão, ferventes de orgulho.
— Não tenho nenhum problema em jurar o meu amor a Deus, mas, tal como disse desde o início, não sou bruxo e nunca irei admiti-lo.
— Nem para salvar a sua vida?
Ibarra virou-se e fitou a janela da cela, iluminada pelas chamas lá fora.
— Chegou a tempo de ouvir os gritos?
Desta vez, Alonso não conseguiu esconder o olhar envergonhado. Mais cedo, enquanto descia a montanha, tinha avistado as colunas de fumo que se erguiam da aldeia. Rezou para que fosse apenas o fumo de fogueiras acesas para a celebração do solstício de verão, mas, receando o pior, fez o cavalo galopar mais depressa, a desejar o melhor, apenas para ser recebido por um coro de gritos quando chegou aos limites da aldeia.
Seis bruxas tinham sido queimadas vivas.
Bruxas, não... recordou a si mesmo. Mulheres.
Infelizmente, Alonso não era o primeiro representante da Inquisição a chegar ao local. Aliás, calculava que Ibarra apenas continuava vivo porque era padre.
Fitou as costas do sacerdote.
Se apenas conseguir salvá-lo a ele, que seja.
— Peço-lhe, padre, admita que...
— O que sabe acerca de Santa Columba?
A pergunta apanhou-o de surpresa e ele precisou de um instante antes de responder. Tinha frequentado as universidades de Salamanca e Siguença, onde estudara direito canónico como preparação para tomar os votos sagrados e juntar-se à Igreja. Considerava-se um profundo conhecedor da litania de todos os santos, mas o nome proferido por Ibarra não estava isento de controvérsia.
— Está a referir-se à bruxa da Galiza, que no século nono disse ter encontrado o espírito de Jesus numa peregrinação a Roma?
— Jesus apareceu-lhe e disse-lhe para se converter ao cristianismo, caso desejasse entrar no reino dos céus.
— E ela assim fez e, mais tarde, tornou-se uma mártir ao ser decapitada por se recusar a renunciar à sua religião.
Ibarra anuiu.
— Converteu-se à fé cristã, mas nunca deixou de ser uma bruxa. Os camponeses da região ainda a veneram pelas duas facetas da sua pessoa: a bruxa e a mártir que se tornou santa. Nas orações, suplicam-lhe proteção contra feitiços, ao mesmo tempo que lhe pedem que olhe pelas bruxas boas, aquelas que curam os enfermos com ervas, amuletos e encantamentos.
Durante as suas viagens pelo norte de Espanha, Alonso ouvira as histórias à boca pequena acerca do culto de Santa Columba. Sabia dos casos de muitas mulheres — mulheres educadas — que estudavam o mundo natural e procuravam remédios e ervas com base em ensinamentos retirados do paganismo. Algumas acabavam acusadas de feitiçaria e envenenadas por padres ou queimadas na fogueira; outras, porém, refugiavam-se em mosteiros — à semelhança de Santa Columba —, onde podiam adorar Jesus Cristo, mas sem nunca abandonarem as práticas de plantar jardins secretos e ajudar quem necessitava, esbatendo assim a fronteira entre paganismo e cristianismo.
Alonso perscrutou o padre Ibarra. Será que pertencia a esse culto?
— O uso de amuletos encantados para curar os enfermos é precisamente uma das acusações que pairam sobre si. Isso não o torna igual a essas bruxas que mencionou? Se estiver disposto a admiti-lo, posso usar o Édito para interceder...
— Não sou nenhum bruxo! — repetiu o padre, e apontou para o fumo que entrava pela pequena janela. — E aquelas eram mulheres que curaram muita gente doente nestes vales e montanhas. Eu era apenas o seu protetor, um humilde servo de Santa Columba, a padroeira das bruxas. Em boa consciência, não posso afirmar que sou como elas. E não por desprezar tal acusação, mas porque não mereço esse título... porque não sou digno de tamanha honra.
Alonso ficou embasbacado diante daquela afirmação. Tinha ouvido incontáveis renúncias de pessoas acusadas de bruxaria, mas nenhuma com base naquele argumento.
Ibarra aproximou-se das barras.
— Mas a história do meu amuleto é verdadeira e temo pelo que podem fazer aqueles que chegaram à aldeia antes de si.
Como que convocado por aquelas palavras, a porta atrás de Alonso abriu-se e um monge de túnica negra e capuz entrou. A faixa de tecido vermelho que lhe cobria os olhos não o impedia de ver.
— O prisioneiro confessou? — perguntou rudemente.
Alonso virou-se para Ibarra. O padre afastou-se das barras e endireitou as costas. Alonso sabia que ele nunca cederia.
— Não, não confessou — admitiu.
— Levem-no — ordenou o monge.
Dois dos seus correligionários irromperam pela divisão, prontos para arrastarem o padre até à fogueira. Alonso bloqueou-lhes o caminho.
— Eu levo-o.
Os monges abriram então a cela e Alonso acompanhou Ibarra desde a prisão à praça da aldeia. Amparou-o durante todo o caminho, segurando-o pelo cotovelo. Não era só a debilidade e a fome que faziam tremer as pernas e os braços do homem, mas também o cenário montado na praça.
Seis postes fumegavam com figuras contorcidas e carbonizadas, cujos braços se encontravam presos acima das cabeças com grilhões de ferro ainda em brasa. Um sétimo poste, recentemente talhado num tronco de castanheiro, erguia-se sobre uma pilha de lenha seca à altura da cintura.
Ibarra estendeu o braço e apertou a mão de Alonso, que tentou transmitir algum alento ao prisioneiro apavorado.
— Que Deus tenha piedade de ti e te aceite no Seu abraço...
Contudo, tinha interpretado mal a intenção do padre. Os dedos esqueléticos depositaram um objeto na sua mão aberta. Alonso fechou instintivamente os dedos sobre o objeto, sabendo o que ele lhe passara em segredo.
O amuleto...
Provavelmente, encontrava-se escondido nalgum bolso secreto da sua túnica esfarrapada.
— Nóminas de moro — murmurou Ibarra em espanhol, confirmando as suspeitas de Alonso.
Nóminas eram amuletos com a inscrição de nomes de santos, e dizia-se serem capazes de atos milagrosos.
— Foi encontrado na nascente do rio Orabidea — apressou-se a explicar o padre. — Guarde-o. Não permita que fiquem com ele.
Mais à frente, uma figura alta avançou premeditadamente por entre a cortina de fumo. Vestia uma túnica vermelha e tinha o rosto coberto por uma venda preta. Era o líder do grupo. Alonso ouvira os rumores acerca daquela pequena fação da Inquisição espanhola, homens que ainda continuavam a seguir a doutrina sanguinária de Torquemada. Davam pelo nome de Crucibulum, a palavra latina para crisol, um recipiente que purifica através do fogo.
Alonso fitou os corpos carbonizados nos seis postes. Os seus dedos apertaram-se mais em torno do amuleto.
O líder acenou com a cabeça para os seus correligionários. Obedecendo à ordem silenciosa, os monges arrastaram Ibarra na direção do sétimo poste. O líder segurava um livro volumoso, com a capa decorada a folha de ouro. Alonso reconheceu-o facilmente: o título completo (Malleus Maleficarum, Maleficas, & earum heresim, ut phramea potentissima conterens) traduzia-se como «O Martelo das Feiticeiras que destrói bruxas e a sua heresia com uma espada de dois gumes». Tinha sido escrito um século antes, um verdadeiro manual para identificar, perseguir e punir bruxas. Nos últimos anos, deixara de contar com o apoio do papado e até de alguns representantes da Inquisição, embora tivesse ganhado força entre os membros do Crucibulum.
Alonso ficou parado a olhar. Nada podia fazer. Era apenas um jovem inquisidor contra uma dúzia de veteranos daquela fação.
Enquanto Ibarra era conduzido para a morte, o líder da seita seguiu-lhe os passos, segredando fervorosamente aos seus ouvidos. Alonso conseguiu ouvir a palavra nóminas.
Portanto, o Ibarra tinha razão ao esconder o amuleto destes homens.
Calculou que o líder devia estar a proferir ameaças ou promessas de salvação, desde que Ibarra lhe revelasse o paradeiro do amuleto.
Sabendo que estivera sozinho com ele e com medo de que as atenções se virassem para si, decidiu abandonar a praça.
A última coisa que viu foi o padre a ser agrilhoado ao poste. Ibarra lançou-lhe um olhar e acenou discretamente com a cabeça.
Guarde-o.
Alonso jurou a si mesmo que o faria e virou as costas àquela cena. Apressou-se na direção do estábulo onde deixara o cavalo. Não tinha dado meia dúzia de passos quando Ibarra gritou, alto e bom som:
— Queimem-nos a todos! De nada vos serve! Santa Columba profetizou que a bruxa que dará continuidade ao seu legado irá regressar e destruirá o crisol, purificando assim o mundo!
Alonso quase tropeçou ao ouvir estas palavras. Não admirava que os homens do Crucibulum quisessem silenciar o culto de Santa Columba e, mais importante ainda, destruir qualquer prova que consubstanciasse semelhante declaração. Apertou o amuleto na sua mão. Fosse aquilo verdade ou não, o mundo estava a mudar lentamente, renunciando aos métodos de Torquemada e deixando cópias do Malleus Maleficarum a apodrecer até se tornarem pó. Mas Alonso previa que esse caminho só seria concluído com mais sangue e chamas, as derradeiras convulsões do final de uma era.
Uma vez longe da praça, arriscou espreitar o nóminas de Ibarra. Abriu a mão e, chocado com o que viu, quase largou o tesouro. Tratava-se de um dedo, rudemente arrancado de uma mão qualquer. As pontas pareciam chamuscadas, mas de resto encontrava-se em perfeitas condições de preservação. Ele sabia que a ausência de sinais de decomposição em tais relíquias era um sinal da santidade das figuras de que provinham, visto que se mantinham imunes à putrefação.
Seria o caso daquele dedo?
Deteve-se e observou a relíquia com mais atenção, acabando por descobrir palavras escritas na pele.
Sanctus Maleficarum.
Traduziu do latim.
Santa das bruxas.
Portanto, tratava-se de um verdadeiro nóminas, um amuleto identificado com o nome de um santo. Mas o seu olhar atento expôs uma revelação ainda mais surpreendente. O dedo não era uma relíquia sagrada — o pedaço do corpo de um santo —, mas algo muito mais espantoso.
Pasmado, deu voltas e voltas ao estranho objeto, examinando-o de todos os ângulos. A carne apenas parecia real; a pele era flexível, mas fria. A extremidade dilacerada revelava um mecanismo interior de arames finos e ossos de metal reluzente. Aquilo era um simulacro, um dedo mecânico.
Alonso ouvira histórias de fantásticos mecanismos que eram oferecidos a reis e rainhas, intricadas invenções que reproduziam movimentos humanos. Sessenta anos antes, o Sacro Imperador Romano-Germânico Carlos V recebera de presente um monge mecânico criado pelo engenheiro ítalo-espanhol Juanelo Turriano. O boneco conseguia erguer e baixar uma cruz de madeira, levando-a aos lábios que se abriam e fechavam numa oração silenciosa, tudo isto enquanto a cabeça acenava e os olhos se moviam.
Estarei perante uma peça de um artifício semelhante?
Se assim fosse, qual era o significado? Que relação tinha com o culto de Santa Columba?
Sem resposta, Alonso continuou a caminhar na direção do estábulo. Ibarra deixara-lhe uma pista adicional para o mistério: o local onde o talismã tinha sido encontrado.
— O rio Orabidea — murmurou, franzindo o sobrolho.
Todos os inquisidores da região conheciam esse rio. Nascia numa caverna chamada Sorginen Leizea, a Caverna das Bruxas, o local onde as bruxas se reuniam frequentemente para as suas celebrações. O rio tinha uma fama igualmente sinistra. Havia quem lhe chamasse Infernuko erreka, «rio do Inferno», dado que existia a crença de que as suas águas brotavam das profundezas infernais.
Alonso sentiu um arrepio. Se Ibarra não lhe mentira, o amuleto tinha sido encontrado na nascente do rio, ou seja, às portas do Inferno.
Pensou em deitar fora aquilo e esquecer o assunto, mas foi então que um grito agonizante se ergueu atrás dele, ecoando até ao firmamento.
Ibarra...
Cerrou a mão em torno do amuleto.
O padre morrera para proteger aquele segredo.
Não posso esquecer a incumbência que me foi atribuída.
Mesmo que tivesse de atravessar as portas do Inferno, iria descobrir a verdade.
Atualidade
21 de dezembro, 22h18
Coimbra, Portugal
Charlotte Carson era esperada no conventículo.
Caminhando apressada, atravessou a biblioteca da universidade às escuras e os seus passos ecoaram do chão de mármore até ao teto de tijolo da galeria medieval de dois pisos. A toda a volta, estantes ornamentadas guardavam livros que remontavam ao século XII. Com o vasto espaço iluminado apenas por uns quantos candelabros de parede, Charlotte admirou com pasmo as escadarias sombrias, o elaborado trabalho de talha dourada.
Construída no início do século XVIII, a Biblioteca Joanina permanecia como uma pérola do barroco em perfeito estado de conservação e o verdadeiro centro histórico da Universidade de Coimbra. E, como qualquer outra casa do tesouro, tratava-se de um autêntico cofre, com paredes de meio metro de espessura e portas de madeira de teca maciça. Esta morfologia arquitetónica propositada mantinha uma temperatura interior constante entre os dezoito e os vinte graus, independentemente das estações do ano, assim como um nível baixo de humidade.
Condições perfeitas para a preservação de livros antigos...
Mas estes esforços de conservação não se encontravam limitados à arquitetura do espaço.
Charlotte baixou-se quando um morcego passou rente à sua cabeça e voou na direção da galeria superior. Inaudível mas sentido, o assobio ultrassónico do animal eriçou-lhe os pelos da nuca. Durante séculos, uma colónia de morcegos fizera da biblioteca a sua casa. Eram poderosos aliados na preservação das obras ali guardadas: todas as noites, davam caça aos insetos que de outra maneira se alimentariam da vasta oferta de encadernações de couro e papel antigo.
Escusado será dizer que a presença destes devotos caçadores requeria certos cuidados. Charlotte passou o dedo por uma das capas de couro que cobriam as mesas de leitura. Quando fechavam a biblioteca, os cuidadores do espaço tapavam-nas para proteger a superfície de madeira dos dejetos dos morcegos.
Mesmo assim, ao olhar para as sombras aladas que dançavam nas arcadas de tijolo, ela sentiu um arrepio supersticioso, juntamente com uma pontada de divertimento.
O que é uma assembleia de bruxas sem morcegos?
Aquela noite tinha sido especialmente escolhida. O simpósio científico que durara a semana inteira já terminara. Na manhã seguinte, os participantes estariam a caminho de casa nos quatro cantos do mundo, para passarem o Natal com família e amigos. Até lá, porém, incontáveis fogueiras iluminariam a cidade, acompanhadas pela agitação dos vários festivais musicais, tudo para celebrar o solstício de inverno, a noite mais longa do ano.
Sabendo que estava atrasada, Charlotte consultou o relógio. Ainda usava o mesmo conjunto que vestira na festa da embaixada: uma saia preta até aos tornozelos, um casaco curto e uma blusa azul. O cabelo, cortado curto, tornara-se prematuramente grisalho e ralo à conta dos tratamentos de quimioterapia, nove meses antes. Depois disso, nunca se preocupara em pintá-lo ou em colocar extensões. Tendo sobrevivido à brutalidade e às humilhações do cancro, a vaidade parecia-lhe frívola; deixara de ter paciência para isso. De qualquer maneira, também não tinha muito tempo livre para semelhantes preocupações.
Ao ver as horas, franziu o sobrolho.
Só faltam quatro minutos...
Imaginou o sol a erguer-se no outro lado do mundo, na direção do Trópico de Capricórnio. Assim que o astro se encontrasse nessa latitude, assinalaria o momento do verdadeiro solstício, quando o inverno cedia por fim o lugar às estações mais quentes, da escuridão para a luz.
A altura perfeita para aquela demonstração.
Uma prova de conceito.
— Fiat lux — murmurou.
Faça-se luz.
Ao fundo, um brilho mais forte iluminava uma arcada que se abria para uma escada de caracol, descendo para os pisos inferiores da biblioteca. Graças à beleza e história do espaço, o piso superior chamava-se Salão Nobre. Diretamente por baixo, o piso intermédio era o domínio dos bibliotecários, onde se encontravam guardados os livros mais raros e valiosos.
O destino de Charlotte, porém, ficava ainda mais fundo no subsolo. Com o tempo a esgotar-se, apressou-se em direção à arcada. Por aquela altura, as outras estariam já reunidas lá em baixo.
Passou pelo retrato de Dom João V, o rei português que fundara a biblioteca, e começou a descer a estreita escada de caracol que conduzia ao piso mais profundo do edifício.
Enquanto descia, um coro de vozes indistintas ergueu-se ao seu encontro. No último degrau, deteve-se diante de um portão de ferro forjado que fora deixado aberto. Por cima, havia uma placa onde se lia: prisão académica.
Ela sorriu perante a ideia de uma prisão no subsolo de uma biblioteca e imaginou estudantes indisciplinados ou professores bêbedos a serem ali encarcerados. Outrora parte das masmorras do palácio real, o local continuara a funcionar como prisão da universidade até 1834. Nos dias que corriam, permanecia como o único exemplo de uma prisão medieval em Portugal.
Charlotte passou pelo portão e avançou pela masmorra. Parte daquele piso podia ser visitado por turistas, mas havia salas interditas onde eram guardados mais livros. Prosseguiu na direção da extremidade mais afastada, onde os tempos modernos se tinham infiltrado naquele espaço medieval. Um novo sistema de computadores fora instalado numa das divisões, incluindo um equipamento para digitalizar livros, oferecendo assim mais uma salvaguarda aos tesouros guardados nos pisos superiores.
Naquela noite de solstício, os computadores serviriam outro propósito: não para preservar o passado, mas para oferecer um vislumbre do futuro.
Ao entrar na sala, uma mulher cumprimentou-a.
— Ah, embaixadora Carson, até que enfim.
Vestida com um elegante fato azul e camisa branca, Eliza Guerra, a diretora da Biblioteca Joanina, veio ao encontro dela e deu-lhe um beijo em cada face, ao mesmo tempo que lhe apertava ligeiramente o braço. A pequena bibliotecária vibrava de excitação.
— Não tinha a certeza se conseguiria vir — justificou-se Charlotte, sorrindo. — A aproximação do Natal deixou a embaixada num caos e com falta de pessoal.
Enquanto embaixadora dos Estados Unidos em Portugal, tinha muito que fazer nessa noite, incluindo apanhar o último voo para Washington, a fim de se juntar ao marido e às duas filhas. Laura, a mais velha, regressava de Princeton — a antiga universidade de Charlotte —, onde estudava biotecnologia. A mais nova, Carly, um pouco mais rebelde, perseguia o sonho de uma carreira musical na Universidade de Nova Iorque, ao mesmo tempo que estudava engenharia.
Charlotte não podia estar mais orgulhosa das duas e gostaria que estivessem ali para testemunhar aquele momento. As filhas constituíam uma das razões por que ajudara a fundar aquela organização de mulheres cientistas. Sem fins lucrativos, fazia parte do Grupo Coimbra, uma confederação que englobava mais de trinta universidades de investigação espalhadas pelo mundo.
Numa tentativa de ajudar, promover e interligar mulheres no universo científico, ela e as restantes quatro mulheres ali reunidas tinham fundado a Bruxas International, assim chamada por causa da palavra portuguesa para «feiticeira». Durante séculos, as mulheres que atuavam como curandeiras, criavam remédios à base de ervas ou simplesmente questionavam o mundo eram declaradas hereges ou bruxas. Considerada uma cidade do conhecimento desde longa data, Coimbra também tivera a sua quota-parte de mulheres queimadas na fogueira, muitas vezes na forma de espetáculos horrendos chamados autos de fé, onde dezenas de apóstatas e hereges eram queimados em simultâneo.
Em vez de evitarem esse estigma, Charlotte e as outras tinham feito exatamente o contrário, batizando a fundação de Bruxas International.
Mas a metáfora não se ficava pela escolha do nome.
Eliza Guerra tinha um dos computadores já ligado. O símbolo da organização brilhava no ecrã, rodopiando lentamente. Tratava-se de um pentagrama inserido num círculo.
As cinco pontas da estrela representavam as cinco mulheres ali presentes, que, seis anos antes, tinham fundado a organização na Universidade de Coimbra. Não havia uma liderança definida, sendo todas as decisões tomadas por unanimidade.
Charlotte olhou por cima do ombro de Eliza e sorriu para as outras três: a doutora Hannah Fest, da Universidade de Colónia, a professora Ikumi Sato, da Universidade de Tóquio, e a doutora Sophia Ruiz, da Universidade de São Paulo. Embora tivesse recebido o cargo de embaixadora no ano anterior — em boa parte, por causa do seu papel na criação daquela organização internacional sediada em Portugal —, Charlotte era uma investigadora como as outras, lecionando em Princeton e representando os Estados Unidos.
Apesar das diferenças, as cinco mulheres, todas na casa dos cinquenta, tinham subido ao topo das respetivas profissões pela mesma altura, suportando as mesmas dificuldades que advinham das discriminações de género. Além do interesse comum pela ciência, partilhavam esse laço. O seu objetivo era alcançar a igualdade de condições entre homens e mulheres, encorajar e ajudar outras mulheres mais jovens a ingressarem no universo científico através de bolsas de estudo, estágios e outras iniciativas. Tais esforços já tinham produzido excelentes resultados pelo mundo fora e sobretudo ali, em Coimbra.
Hannah debruçou-se sobre um microfone junto ao teclado do computador.
— Mara, já cá estamos todas — disse em inglês, com um cerrado sotaque alemão. — Podes começar a demonstração.
Ao afastar-se novamente, o ecrã dividiu-se, com a imagem do pentagrama num lado e o rosto jovem de Mara Silviera no outro. Embora tivesse apenas vinte e um anos, aquele já era o quinto ano de Mara em Coimbra, fruto de uma bolsa de estudo que lhe fora atribuída pela Bruxas International logo aos dezasseis anos. Natural de uma pequena aldeia na Galiza, chamara a atenção de várias empresas tecnológicas ao criar um programa de tradução que fazia sombra a qualquer outro no mercado. Parecia possuir um talento raro tanto para a programação, como para os fundamentos da linguagem.
Mesmo no ecrã, os seus olhos brilhavam com uma inteligência rara, ou talvez fosse apenas orgulho. A pele morena e o cabelo preto, liso e comprido, sugeriam uma ascendência mourisca. Naquele momento, encontrava-se no outro lado da universidade, no Laboratório de Informática Avançada, que albergava o Milipeia Cluster, um dos supercomputadores mais avançados do continente.
Mara olhou de relance para o lado.
— Vou começar a ligar o Xénese. Demora um minuto.
Enquanto as outras se juntavam em frente ao ecrã, Charlotte consultou o relógio.
10h23.
Mesmo a tempo.
Voltou a imaginar o sol a espreitar acima do Trópico de Capricórnio, o culminar do solstício de inverno, prometendo o fim das trevas e o regresso da luz.
Antes que isso acontecesse, um estrondo metálico sobressaltou todas, fazendo-as virar-se para trás.
Um punhado de figuras encapuzadas e vestidas de preto irrompeu pelo portão aberto da prisão, empunhando pistolas. Espalharam-se em leque, encurralando as cinco mulheres no interior da sala.
Com o coração a bater na garganta, Charlotte recuou um passo. Bloqueou o ecrã atrás de si e, às cegas, estendeu a mão para o rato. Com um clique, ocultou a janela com o rosto de Mara Silviera, tanto para a proteger como para a tornar testemunha silenciosa do que estava a acontecer. Com o microfone e a câmara do computador ainda ativos, ela via, ouvia e até poderia gravar tudo.
Enquanto as figuras apertavam o cerco, Charlotte rezou para que Mara chamasse a polícia, embora tivesse dúvidas de que alguém chegasse a tempo de as ajudar. Nem sequer tinha a certeza de que Mara se apercebera da alteração de circunstâncias e simplesmente continuava concentrada na sua demonstração.
Os oito atacantes, todos homens, vestiam túnicas pretas com faixas de tecido vermelho sobre os olhos, à laia de vendas. Porém, pela maneira como se moviam, era óbvio que conseguiam ver através delas.
Eliza Guerra avançou, pronta para defender a biblioteca.
— O que estão a fazer? O que querem?
A resposta foi apenas um silêncio enervante.
Então, os atacantes afastaram-se para revelar um nono elemento, aquele que devia ser o líder. Com mais de um metro e oitenta, vestia uma túnica vermelha com uma venda preta, a imagem invertida dos outros. Não empunhava armas, apenas um livro grosso, cuja capa de couro envelhecida era vermelha como a túnica. As letras folheadas a ouro eram nitidamente visíveis: Malleus Maleficarum.
Charlotte recuou, sentindo a esperança a morrer dentro de si. Rezara para que aquilo fosse apenas um assalto, já que muitos dos livros ali guardados eram extremamente valiosos. Mas o volume nas mãos daquele homem deixou-a à beira do desespero. Parecia ser uma primeira edição, um dos raros exemplares ainda existentes. A Biblioteca Joanina guardava uma dessas cópias e, pela expressão sombria de Eliza, talvez fosse essa mesma, surripiada de uma prateleira.
O livro tinha sido escrito no século XV por um padre católico, Heinrich Kramer, e o título em latim traduzia-se como «O Martelo das Feiticeiras». Concebido como um manual para identificar, perseguir e torturar bruxas, era uma das obras mais sanguinárias e repudiadas na história da humanidade. O número de vítimas diretas atribuídas àquele livro ascendia às sessenta mil almas.
Charlotte lançou um olhar às companheiras.
E agora esse número vai aumentar.
As primeiras palavras do líder dos atacantes confirmaram os seus piores receios.
— Maleficos non patieris vivere.
Ela reconheceu a admoestação presente no livro do Êxodo.
Não deixarás viver a feiticeira.
O homem prosseguiu em inglês, embora com um sotaque espanhol.
— O Xénese nunca poderá existir — declarou. — É uma abominação nascida das artes negras e da imundície.
Charlotte franziu a testa.
Como é que ele sabe o que nos preparávamos para fazer?
Contudo, o mistério teria de esperar. As mulheres viram as pistolas serem-lhes apontadas, enquanto dois homens avançavam com um par de bidões de vinte litros, identificados com a palavra «Querosene». Ela não precisava de ser fluente em português para saber do que se tratava, sobretudo quando os homens viraram os bidões e começaram a derramar o líquido oleoso pelo chão.
O cheiro intenso a combustível sufocava.
A tossir, Charlotte partilhou um olhar com as companheiras aterrorizadas. Passados seis anos de trabalho e amizade, conheciam-se bem umas às outras. Não eram necessárias palavras. Pelo menos, não estavam amarradas a estacas de madeira. Se aquilo era o fim, estas bruxas em particular morreriam a lutar.
Antes uma bala do que morrer queimada.
Virou-se para o líder dos atacantes.
— Tu é que és uma abominação, idiota!
As cinco mulheres lançaram-se contra os atacantes, com os pés a chapinhar no combustível. O grupo abriu fogo com as pistolas, cada tiro era como uma explosão ensurdecedora naquele espaço confinado. Charlotte sentiu o impacto das balas, mas a energia do corpo em movimento permitiu-lhe alcançar o líder. Precipitou-se sobre ele e cravou-lhe bem fundo as unhas no rosto, rasgando-lhe a face; também lhe arrancou a venda e tudo o que viu no olhar do homem foi fúria.
Ele deixou cair o livro amaldiçoado e empurrou-a. Charlotte aterrou no chão de pedra junto à poça de querosene. Soergueu-se sobre um braço e viu horrorizada as quatro amigas estendidas e imóveis; o sangue delas começava a misturar-se com o combustível.
Sentindo as forças abandonarem-na, deixou-se cair de vez.
O líder praguejou e cuspiu ordens em espanhol.
Uma mão-cheia de cocktails Molotov foram rapidamente retirados das túnicas e incendiados.
Charlotte ignorou-os à medida que o seu corpo arrefecia, anulando qualquer medo das chamas. Lançou um derradeiro olhar para o fundo da sala, onde um movimento atraiu os seus olhos moribundos. No ecrã do computador, o pentagrama da organização girava velozmente, como que agitado pela confusão.
Confusa, fitou a imagem enevoada.
Será que Mara estava a transmitir-lhe algum sinal?
Os cocktails Molotov foram arremessados, estilhaçando-se contra as paredes. As chamas irromperam e uma onda de calor atingiu-a.
Mesmo assim, continuou a fitar o ecrã, para lá do fogo.
O símbolo girou mais uma vez e depois parou abruptamente. Mas o centro do pentagrama começou a desfazer-se, soltando fragmentos para fora do círculo.
O líder aproximou-se, provavelmente intrigado com a mesma imagem. No chão, Charlotte não lhe via o rosto, mas conseguia sentir o seu espanto. Tudo o que restava agora do pentagrama eram as duas pontas superiores, como se fossem os chifres do Diabo.
Como se reconhecesse essa mesma semelhança, o homem crispou-se, nitidamente ofendido. Deu um passo atrás, ergueu um braço e gritou em espanhol:
— Destruam esse computador! Destruam-no!
Mas já era demasiado tarde.
A imagem mudou uma última vez, rodando noventa graus.
Houve novos tiros. As balas atravessaram a divisão em chamas e estilhaçaram o ecrã, apagando-o. Charlotte deixou cair o rosto, seguindo a mesma escuridão do ecrã e procurando a promessa de luz no outro lado, enquanto rezava pela segurança de Mara.
Uma derradeira imagem acompanhou-a até ao vazio: os últimos traços no ecrã, que brilhavam ainda vívidos na sua consciência. O círculo em torno do pentagrama desaparecera, deixando um novo símbolo que tinha aumentado até ocupar a totalidade do monitor.
Parecia uma letra do alfabeto grego.
Sigma...
Charlotte não compreendia o propósito daquilo, mas de certa forma deu-lhe esperança enquanto morria.
Não para si, mas para o mundo que deixava para trás.
PRIMEIRA PARTE
O ESPÍRITO NA MÁQUINA
1
24 de dezembro, 21h06
Silver Spring, Maryland
Com alguma apreensão, o comandante Grayson Pierce viu a moeda girar no ar. Encontrava-se sentado ao lado do seu melhor amigo, Monk Kokkalis, que lançara a moeda bem acima do balcão de mogno.
Reunidos à volta dos dois, outros clientes do Quarry House Tavern — muitos deles já bastante alcoolizados, turbulentos e ruidosos — aguardavam o desfecho do lançamento. No palco, uma pequena banda tocava uma versão rockabilly de «The Little Drummer Boy». O som cavo do bombo reverberava nas costelas de Gray, adicionando tensão ao momento.
— Caras! — gritou Monk, enquanto a moeda brilhava na penumbra do bar.
Era o décimo terceiro lançamento.
Tal como nas doze vezes anteriores, a moeda de vinte e cinco cêntimos aterrou na palma de Monk, com o perfil de George Washington a reluzir à vista de todos.
— E cá está... — reconheceu ele, a arrastar a voz. — Caras!
Ouviram-se resmungos e aplausos do grupo em volta, dependendo de quem apostara a favor ou contra Monk. Era a décima terceira vez que ele acertava, por vezes apostando «caras», outras vezes «coroa, e, de cada vez que isso acontecia, Monk e Gray tinham direito a uma bebida.
O barman baixou-se ao passar por baixo da mascote do bar, uma cabeça de javali pendurada na parede e que agora exibia um barrete de Pai Natal, e trouxe mais um jarro de Guiness. Enquanto atestava as canecas de Gray e Monk, um tipo encorpado irrompeu pelo meio, quase atirando Gray ao chão. Tresandava a uísque e gordura.
— Isto é um truque! Ele está a usar uma moeda falsa!
Sacou a moeda da mão de Monk e inspecionou-a com um olhar vidrado.
Outro cliente, claramente amigo do acusador, tentou afastá-lo. Faziam uma boa parelha: vinte e muitos anos, casacos iguais com as mangas arregaçadas, o mesmo corte de cabelo convencional. Lobistas — ou talvez advogados —, calculou Gray. Uma coisa ou a outra, eram claramente antigos colegas de faculdade.
— Deixa-te disso, Bryce — disse o menos alcoolizado. — O tipo usou meia dúzia de moedas diferentes. Não pode ser um truque.
— O tanas! É um aldrabão profissional!
E, ao tentar libertar-se da mão do amigo, Bryce desequilibrou-se, lançando um cotovelo na direção do rosto de Gray.
Ele desviou-se a tempo, mas o braço descontrolado atingiu a empregada que passava naquele instante com uma bandeja ao ombro. Copos e pratos com comida — principalmente, batatas fritas e pastéis de batata — voaram em todas as direções.
Gray saltou do banco e agarrou a rapariga pela cintura, impedindo-a de cair e de ser atingida pelos cacos dos copos a partirem-se contra o balcão.
Monk estava também já de pé e media forças com o homem alcoolizado.
— Pira-te daqui, senão...
— Senão, o quê? — desafiou Bryce, nada intimidado, sobretudo porque a cabeça rapada de Monk lhe dava pelos ombros.
Monk teve de esticar o pescoço para o fitar. A camisola de lã que trazia vestida também não ajudava à situação, já que lhe dava uma aparência roliça, em vez de realçar o tronco musculado dos anos passados nos Boinas Verdes. E, se isso não bastasse, a árvore de Natal bordada na frente da camisola — um presente da mulher, Kat — decerto também não iria convencer Bryce a virar as costas.
Apercebendo-se de que os ânimos podiam aquecer a qualquer momento, Gray soltou a empregada.
— Não se magoou, pois não?
— Não, obrigada — anuiu ela, procurando afastar-se da confusão.
O barman inclinou-se por cima do balcão e apontou na direção da saída.
— Resolvam isso lá fora.
Entretanto, outros compinchas de Bryce tinham-se acercado, prontos para apoiar o amigo.
Estupendo, pensou Gray, e estendeu o braço para tirar Monk dali.
— Anda, vamos embora.
Porém, antes que conseguisse alcançar o amigo, alguém o empurrou por trás; muito provavelmente, um dos compinchas, pensando que ele tentava agarrar o seu amigalhaço. Gray embateu contra Bryce, o que foi como provocar um touro já enraivecido.
Bryce grunhiu e lançou um punho na direção do queixo de Monk.
Monk esquivou-se e agarrou o punho dele em pleno ar. Bryce esboçou um sorriso provocador, retesando os ombros musculados de levantar pesos no ginásio, pronto para libertar o braço. Foi então que Monk lhe apertou a mão.
O sorriso de desprezo converteu-se num esgar de dor.
Monk continuou a apertar-lhe a mão e forçou-o a ajoelhar-se. Na verdade, a mão de Monk era uma prótese mecânica, fruto da mais avançada tecnologia militar. Quase indistinguível de uma mão de carne e osso, era suficientemente poderosa para esmagar nozes... ou, como acontecia naquele momento, os ossos de um arruaceiro com um copo a mais.
Vergado no chão, era Bryce quem agora esticava o pescoço para fitar o opositor.
— Só te aviso mais uma vez — rosnou Monk. — Põe-te a andar.
Um dos amigos tentou intervir, mas Gray bloqueou-o com o ombro e lançou-lhe um olhar gélido. Ao contrário de Monk, o corpanzil de Gray, com mais de um metro e oitenta, não se encontrava escondido por um camisolão, mas acentuado por uma camisola de algodão justa. A barba por fazer também lhe obscurecia o rosto angular, o que lhe dava um aspeto ainda mais rijo.
Pressentindo que era o tipo de homem com quem não valia a pena meter-se, o amigo de Bryce recuou.
— Estamos conversados? — perguntou Monk ao seu prisioneiro.
— Sim, estamos...
Ele soltou a mão de Bryce, mas não sem antes lhe dar um encontrão que o deixou estendido no chão. Passou por cima dele, lançando-lhe um último olhar ameaçador, e depois piscou o olho a Gray.
— Agora, sim, podemos ir.
Enquanto Gray se virava para o seguir, o único aviso foi o rubor no rosto de Bryce. Após ser humilhado em frente aos amigos, o sujeito precisava de salvar a honra. Alimentado por uma mistura tóxica de álcool e testosterona, levantou-se de um salto e lançou-se sobre as costas de Monk, com a intenção de o imobilizar.
Não, já chega...
Gray deitou-lhe a mão ao pulso e, aproveitando o embalo, torceu-lhe o braço atrás das costas. Depois levantou-o no ar até ele ficar equilibrado apenas nas pontas dos pés e manteve-o nessa posição, tendo o cuidado de não lhe deslocar o ombro.
Com o sujeito subjugado, preparou-se para aliviar a pressão, mas Bryce não parecia disposto a desistir. Continuou a debater-se furiosamente e tentou atingi-lo com uma cotovelada.
— Vai-te foder! Eu e os meus amigos vamos apanhar-vos e...
Bem, deixemos a sensatez de lado.
E torceu-lhe o braço com mais força. O ombro saltou imediatamente do lugar com um estalido forte o suficiente para ser ouvido, ao mesmo tempo que a dor abafava o resto da ameaça do homem.
— Tomem! É todo vosso! — berrou Gray, empurrando Bryce na direção dos amigos.
Nenhum se deu ao trabalho de o agarrar.
Com um grito agonizante, Bryce estatelou-se no chão. Gray fitou os outros, desafiando-os a darem um passo em frente. Entretanto, apanhou um vislumbre do próprio reflexo no espelho atrás do balcão. Os cabelos castanho-claros estavam desgrenhados, o rosto sombreado e escuro, fazendo com que os olhos azuis brilhassem frios e ameaçadores.
Reconhecendo o perigo, o grupo retrocedeu para as profundezas do bar.
Com a questão resolvida, Gray virou costas e encaminhou-se para a saída, encontrando Monk no passeio. O amigo, dono de um apetite insaciável, fitava o letreiro luminoso do restaurante indiano que ficava ao lado do bar.
— Porque demoraste tanto? — perguntou ele, sem desviar o olhar do letreiro.
— Tive de terminar o que começaste.
Monk encolheu os ombros.
— Calculei que precisasses de espairecer um bocado.
Gray franziu o sobrolho, mas tinha de admitir que a pequena altercação no bar o entretivera mais do que as muitas canecas de cerveja.
Monk apontou para o letreiro do restaurante, mas ele não lhe deu hipótese de abrir a boca.
— Nem penses. — Consultou o relógio. — Além disso, temos quatro senhoras à nossa espera.
— Tens razão — anuiu o amigo, enquanto ele mandava parar um táxi. — E duas delas não se vão deitar sem lhes dar um beijo de boas-noites.
Monk referia-se às duas filhas, Penny e Harriet, que se encontravam em casa de Gray com as caras-metades de cada um. A mulher dele, Kat, trouxera-as para passarem o Natal em casa de Gray e Seichan, que estava grávida de oito meses, em Takoma Park, nos subúrbios de Washington. Monk e Gray tinham sido despachados de casa ao início da noite por Kat, que usara a desculpa de que ela e Seichan precisavam de embrulhar os presentes. Porém, apesar de a capitã Kathryn Bryant ser uma antiga oficial dos serviços secretos, Gray conseguira perceber a verdadeira intenção por detrás daquela óbvia manobra de diversão. Seichan andava bastante tensa nos últimos tempos, claramente dominada pelas emoções da reta final da gravidez, e Kat queria falar com ela a sós: de uma mãe experiente para uma futura mãe.
Porém, Gray suspeitava que aquela saída tinha servido mais para ele próprio acalmar os nervos. Pousou a mão no ombro do amigo, agradecendo-lhe em silêncio. Monk tinha razão. Precisava de espairecer.
O táxi encostou ao passeio e eles entraram.
Uma vez a caminho, Gray deixou cair a cabeça para trás com um gemido.
— Há anos que não bebia tanto — disse, lançando um olhar reprovador a Monk. — E não me parece que os tipos da DARPA vão gostar muito de saber que andas a usar o equipamento deles para sacar cervejas à borla.
— Estás enganado. — Monk fez surgir uma moeda do nada e atirou-a ao ar. — Aconselharam-me a treinar a motricidade fina, por isso...
— Pois sim, mas aquele desgraçado tinha razão. Estavas a fazer batota.
— Quando existe perícia envolvida, não é batota.
Gray revirou os olhos, o que apenas fez com que o interior do táxi começasse a rodopiar. Cinco meses antes, Monk submetera-se a uma cirurgia para implantar um dispositivo experimental que ligava a mão prostética ao cérebro. Microcondutores conectados ao córtex somatossensorial permitiam-lhe controlar a nova prótese através do pensamento, inclusive «sentir» o que os dedos tocavam. Ao ser capaz de melhor sentir e manipular objetos, ele tinha afinado a sua motricidade de tal maneira, que conseguia lançar uma moeda ao ar com a precisão necessária para saber como iria cair.
A princípio, Gray achara alguma graça àquela «habilidade»; porém, a cada novo lançamento, um sentimento vago de apreensão apoderara-se dele. Não sabia porquê. Talvez por causa de uma mulher que tinha amado em tempos e que perdera a vida à conta de um lançamento de moeda ao ar. Ou talvez não tivesse nada a ver com a moeda e fosse apenas a ansiedade natural da paternidade iminente. Nunca tivera uma relação saudável com o pai, um homem que perdia facilmente as estribeiras e lhe passara algum desse feitio volátil.
Evocou o momento em que deslocara o ombro do sujeito no bar. Podia tê-lo dominado sem recorrer àquele tipo de violência, mas não tinha conseguido evitar. E, sabendo disso, sentiu-se invadido por dúvidas.
Que tipo de pai serei? O que é que vou ensinar a uma criança?
Fechou os olhos para impedir que o táxi continuasse a rodopiar. Tudo o que sabia era que estava contente por ir a caminho de casa. Visualizou Seichan. Linda como sempre, aos oito meses de gravidez. Na verdade, a gravidez só a tornara mais bela, até mais sedutora. Gray sempre ouvira falar do «brilho» que as mulheres grávidas emanavam, mas só tinha começado a acreditar nisso com o passar dos meses. A pele morena dela — que assinalava a herança euroasiática — adquirira um esplendor que o deixava boquiaberto; o verde-esmeralda dos seus olhos ganhara nova intensidade e o sedoso cabelo preto cintilava como as asas de um corvo. Por outro lado, Seichan tinha mantido um regime rigoroso de exercício físico ao longo de toda a gravidez, que a deixara forte e saudável, como se toda ela quisesse estar no seu melhor para proteger a criança que crescia dentro de si.
Ao lado dele, Monk murmurou:
— Coroa.
Gray abriu os olhos e viu a moeda aterrar na palma do amigo com o perfil de George Washington virado para cima. Fitou Monk, erguendo uma sobrancelha.
Ele encolheu os ombros.
— Como vês, preciso de praticar.
— Ou de uma cerveja à borla como incentivo.
— Ouve, se queres um conselho de amigo, deixa-te de choradinhos e começa a poupar o que puderes. — Lançou novamente a moeda. — Porque as fraldas não são baratas...
Quer fosse pelo conselho do amigo ou pelo lançamento da moeda, Gray sentiu outra vez a mesma ansiedade. Felizmente, o táxi não demorou a virar para a sua rua, o que o ajudou a acalmar os nervos. De ambos os lados, erguia-se uma mistura idílica de chalés vitorianos e pequenas vivendas. A noite tinha arrefecido bastante, enchendo o ar com uma neblina gélida. As estrelas brilhavam difusamente no céu, incapazes de competir com as iluminações natalícias nas fachadas, as renas reluzentes nos relvados ou os pinheiros que brilhavam decorados às janelas.
Enquanto o táxi encostava junto à sua casa, Gray observou as luzes em forma de pingente que piscavam no alpendre. Monk ajudara-o a pendurá-las semanas antes. Tentou imaginar como seria criar ali uma família e viu-se a jogar à bola no jardim, a pôr pensos em joelhos arranhados, a avaliar boletins de notas e a assistir a peças de teatro escolares.
Ainda assim, por muito que quisesse acreditar que tudo isso seria uma realidade, não era capaz. Parecia-lhe impossível. Como poderia viver uma vida normal, com tanto sangue a manchar-lhe as mãos?
— Passa-se alguma coisa — disse Monk.
Abstraído nos seus pensamentos, ele não se apercebera. Tinha decorado a árvore de Natal com Seichan, a primeira que enfeitavam juntos. A escolha dos enfeites arrastara-se durante semanas e acabou por incluir um anjo de cristal da Swarovski para pôr no cimo da árvore. Custara uma pequena fortuna, mas Seichan argumentou que valia cada cêntimo, visto que se tornaria uma tradição para os Natais vindouros e uma herança de família. Por fim, os dois tinham colocado a árvore decorada junto à janela da entrada.
E agora tinha desaparecido.
A porta da rua estava entreaberta. Mesmo à distância, ele conseguiu distinguir a ombreira estilhaçada.
— Ligue para a polícia! — disse bruscamente para o motorista.
Monk já tinha saído do táxi e corria para o alpendre.
Gray correu atrás dele, parando apenas um segundo para sacar da SIG Sauer P365 que trazia no coldre do tornozelo. À medida que o terror lhe saturava as veias de adrenalina, soube que estava certo desde o início.
Nunca conseguiria ter uma vida normal.
22h18
Monk voou por cima dos degraus do alpendre com o coração a bater-lhe na garganta e a respiração pesada. Armado apenas com os punhos, irrompeu em pânico pela porta da frente. Os cinco anos nos Boinas Verdes tinham-no treinado para avaliar qualquer cenário numa questão de segundos. Aguçou os sentidos e absorveu cada pormenor:
... a árvore tombada junto à janela.
... o vidro partido da mesa de centro.
... o bengaleiro antigo rachado ao meio.
... um punhal espetado no corrimão das escadas.
... o tapete amarfanhado contra a parede.
Gray entrou a seguir e tomou a dianteira, empunhando a pistola com as duas mãos. Os ouvidos de Monk, a pele... todo o seu corpo notou de imediato o silêncio pesado que enchia a casa.
Não está cá ninguém.
Sentia o vazio nos ossos.
Mesmo assim, Gray apontou com o queixo na direção das escadas. Monk subiu os degraus três a três, enquanto o amigo inspecionava o piso térreo. Àquela hora, as suas filhas estariam deitadas e ele imaginou a mais velha, Penelope, de seis anos, com as suas tranças arruivadas e o pijama natalício cheio de renas dançarinas. E imaginou também Harriet, com menos um ano mas dotada de uma alma antiga, sempre séria e pronta a questionar o mundo ao seu redor.
Correu primeiro para o quarto de hóspedes, onde as raparigas deviam estar a sonhar com presentes e doces coloridos. Em vez disso, encontrou as camas ainda feitas e o quarto vazio. Chamou pelas duas, vasculhou os roupeiros e os outros quartos, mas nada.
Tal como receava.
Não estão cá... desapareceram...
Um desespero brutal toldou-lhe a visão e fê-lo cambalear ao descer as escadas.
— Gray... — chamou, quase a soluçar.
O amigo respondeu-lhe das traseiras da casa, onde a pequena cozinha dava acesso ao pátio.
— Aqui!
Monk atravessou a sala de estar virada do avesso, passando pela mesa de jantar que fora empurrada e se encontrava no meio do caminho, e duas cadeiras tombadas. Tentou não pensar na luta desenfreada que devia ter ocorrido após a casa ser invadida.
Entrou de rompante na cozinha, onde os sinais de luta eram ainda mais evidentes. A porta do frigorífico estava aberta. Havia facas, panelas e pratos partidos espalhados pelo chão e na bancada. A porta de um dos armários pendia, presa apenas por uma das dobradiças.
De início, ele mal reparou em Gray, mas, ao contornar a bancada, encontrou-o ajoelhado no chão de madeira, debruçado sobre um corpo.
O coração caiu-lhe aos pés.
Kat...
Gray endireitou-se.
— Está viva... mal tem pulso, mas respira.
Monk caiu de joelhos e, instintivamente, estendeu os braços para abraçar a mulher.
Gray agarrou-o.
— Não lhe mexas!
Ele esteve perto de o esmurrar, mas sabia que o amigo tinha razão. Kat apresentava inúmeros cortes nos braços, de onde corria sangue escuro. O ouvido esquerdo e o nariz também sangravam. Os olhos estavam abertos, mas revirados nas órbitas. Pelo canto do olho, Monk reparou num martelo de cozinha caído ali perto. Uma madeixa de cabelos castanhos ensanguentados — do mesmo tom que o cabelo de Kat — estava colada à extremidade de metal do pesado utensílio.
Com todo o cuidado, Monk agarrou no pulso dela com as duas mãos. Os dedos da mão prostética sentiram-lhe a pulsação. A pele artificial era muito mais sensível do que pele verdadeira e ele avaliou os débeis batimentos, visualizando cada contração do músculo cardíaco. Pegou-lhe então no dedo indicador. Mentalmente, ativou uma pequena luz infravermelha num dos dedos mecânicos e um sensor fotoelétrico noutro. A luz trespassou o indicador de Kat, permitindo-lhe obter uma leitura do nível de saturação de oxigénio no sangue.
Noventa e dois por cento.
Não era bom, mas chegava. Se o valor descesse, ela precisaria de oxigénio suplementar.
Monk tinha sido médico no exército. Depois de abandonar os Boinas Verdes, continuara a formação em medicina e biotecnologia. Presentemente — tal como acontecia com Gray, Kat e Seichan —, trabalhava para a Força Sigma, uma organização secreta que atuava sob a égide da DARPA, a agência de projetos de investigação avançada de defesa. À exceção de Seichan, todos eram antigos elementos das Forças Especiais, recrutados em segredo pela Sigma e treinados em diferentes disciplinas científicas para atuarem como operacionais da DARPA na proteção dos Estados Unidos e do mundo em geral de qualquer tipo de ameaça.
Entretanto, Gray já segurava o telefone via satélite codificado e marcava o número do comando da Sigma.
— E a Seichan? — perguntou Monk.
Ele abanou a cabeça; o seu rosto era uma máscara de raiva e medo.
Monk lançou um olhar na direção da porta aberta para o pátio às escuras. Sabia que a mulher devia ter lutado até às últimas forças para proteger as filhas.
— Será que fugiu com as miúdas enquanto a Kat tentava travar os atacantes?
Gray olhou na mesma direção.
— Pensei nessa hipótese e chamei-a enquanto verificava o estado da Kat. — Voltou a abanar a cabeça. — Se tivesse fugido, estaria por perto.
E teria ouvido...
— Se calhar, quem fez isto perseguiu-a — insistiu Monk. — Pode ter sido forçada a fugir para mais longe.
— Sim, talvez — disse Gray, pouco convencido.
Mas o mais certo é isso não ter acontecido.
Monk compreendeu. Seichan já tinha sido uma assassina profissional e era tão ágil quanto Kat, senão mais. No entanto, estando grávida de oito meses e a carregar duas crianças em pânico, não poderia ter chegado muito longe.
A única conclusão possível era terem sido todas raptadas.
Mas por quem? E porquê?
Os olhos de Gray varreram a cozinha em alvoroço.
— O ataque foi rápido e bem coordenado. Entraram pelas traseiras e pela frente em simultâneo.
— O que nos diz que não foi um bando de drogados a tentar roubar presentes...
— Não. Tenho armas escondidas por toda a casa. Eles devem ter dominado a Seichan desde o início. Ou então ela teve medo de desencadear um tiroteio com as miúdas presentes.
Monk anuiu. Também guardava um pequeno arsenal em casa, uma precaução necessária naquele ofício, embora lamentável.
Estabelecida a ligação com o comando da Sigma, Gray pôs o telefone em alta-voz para que Monk ouvisse a conversa e depois, com o diretor Painter Crowe já em linha, contou pormenorizadamente o que acontecera.
À distância, ouviam-se sirenes que ecoavam cada vez mais fortes na noite fria.
— Levem a Kat para o hospital — instruiu Painter. — Ponham-na em segurança. Depois, Gray, quero que venhas cá o mais rápido possível.
Ele trocou um olhar com Monk.
— Porquê?
— Dadas as circunstâncias, este ataque não pode ser uma coincidência.
Gray franziu o sobrolho.
— Quais circunstâncias?
Monk inclinou-se na direção do telefone: queria, ou melhor, precisava de respostas. Ainda ajoelhado junto a Kat, desviou o olhar para a sala de estar, para a árvore de Natal derrubada. E reparou num objeto cintilante no soalho, que refletia o brilho das luzes no alpendre.
Era um anjo de cristal, com as asas partidas.
Apertou a mão de Kat com mais força.
Painter não lhes ofereceu consolo nem empatia. Em vez disso, a sua voz revelava apenas urgência e preocupação.
— Vem e mais nada.
2
25 de dezembro, 05h17
Lisboa, Portugal
Penso, logo existo.
Mara Silviera franziu o sobrolho ao lembrar-se da frase de René Descartes — Cogito, ergo sum —, o filósofo francês do século XVII.
— Se as coisas fossem assim tão simples... — murmurou.
Sentada à secretária no quarto do hotel, curvou-se sobre o portátil e desenrolou o cabo USB-C, ligado a uma mala preta no chão.
A mala com interior almofadado protegia uma dúzia de discos rígidos PM1633a de duas polegadas e meia, cada um com dezasseis terabytes de capacidade. Mara rezou para que não estivessem estragados ou que os dados lá guardados não estivessem corrompidos. Recordou os momentos de pânico, quatro noites antes. Após o ataque na biblioteca, tentara salvaguardar o seu trabalho. A tremer e com os olhos turvos de lágrimas, tinha arrancado freneticamente os discos rígidos que compunham o sistema computacional Milipeia, no laboratório de informática da Universidade de Coimbra.
Mesmo agora, ainda ouvia o som dos tiros. Sentiu o peito pesado e lutou para que os dedos trémulos ligassem o cabo USB-C ao computador. Os olhos encheram-se de lágrimas enquanto recordava a morte das cinco mulheres outrora suas mentoras e que lhe tinham conseguido uma bolsa escolar através da organização que dirigiam, a Bruxas International. Na altura, contava apenas dezasseis anos e pouco tinha visto do mundo, além da pequena aldeia do Cebreiro. A minúscula povoação na Galiza, localizada no alto das montanhas do noroeste de Espanha, remontava aos tempos dos celtas. As ruas eram empedradas e a maioria das casas eram tradicionais construções circulares, vulgarmente chamadas palhoças.
Ainda assim, o mundo moderno encontrara forma de se imiscuir na vida da velha aldeia através de ligações via satélite e da Internet. A tecnologia tinha oferecido àquela rapariga tímida e solitária — alguém que perdera a mãe para o cancro aos seis anos de idade e fora criada por um pai destroçado pelo desgosto — uma janela aberta para o mundo. Um defeito na fala enquanto crescia tornara-a pouco sociável. Passava a maior parte do tempo absorta nos seus livros e só encontrava a sua voz em salas de conversação e no Facebook. Com o mundo à disposição, expandiu o vocabulário para poder comunicar nessa paisagem alargada, primeiro com as línguas românicas e, depois, alargando o leque de conhecimentos ao árabe, mandarim e russo. Embora diferentes numa primeira impressão, Mara apercebeu-se rapidamente da existência de tendências nos padrões de discurso, formas de dicção e até em palavras e frases inteiras, uma base comum oculta em todas as línguas e na qual ninguém parecia reparar senão ela.
Tentou explicar isso a amigos nas plataformas sociais e depois tentou provar-lhes que estava certa, o que a obrigou a mergulhar primeiro no universo das linguagens de programação: BASIC, Fortran, COBOL, JavaScript, Python. Devorou livros e tirou cursos online. As linguagens de programação eram só mais um meio de se exprimir, ferramentas para processar os pensamentos e comunicá-los de forma que outros os compreendessem.
Para isso, criou uma revolucionária aplicação de tradução para o iPhone, a que chamou AllTongues1. O seu objetivo não era desenvolver uma ferramenta para o dia a dia das pessoas — embora a aplicação funcionasse melhor do que qualquer outro programa de tradução instantânea —, mas provar a teoria de que, enterrado em todas as línguas, existia um elo comum que ligava o pensamento humano ao ato de comunicar. Por isso, socorreu-se desta nova linguagem, composta de zeros e uns, para mostrar ao mundo o que sabia.
E o mundo reparou nela.
Primeiro, a Google, que lhe ofereceu emprego sem saber que tinha apenas dezasseis anos. E depois a Bruxas International, que lhe concedeu uma bolsa de estudos. Para que consigas atingir o teu potencial, dissera-lhe a doutora Charlotte Carson na sua deslocação à aldeia galega para lhe fazer a proposta pessoalmente.
Mara recordou a figura da doutora, estafada da viagem e empoeirada, à porta da casa da família. Tinha sido antes de lhe ser diagnosticado o cancro, quando ela ainda sentia forças para fazer uma viagem daquelas. Mara sabia que não era a primeira rapariga a quem Charlotte dava a mão. A doutora Carson era uma caçadora de talentos, uma cuidadora de intelectos científicos. As próprias filhas, Laura e Carly, tinham seguido as pisadas da mãe ao perseguirem carreiras científicas.
Mara tornara-se uma amiga chegada de Carly, atualmente também com vinte e um anos. Apesar de viverem em continentes diferentes, falavam ao telefone ou por mensagem quase todos os dias. Conversavam sobre ciência, professores e a vida académica, mas na maior parte do tempo tentavam decifrar os assuntos do coração, desde a inevitável estupidez dos rapazes à banalidade confrangedora dos sites de encontros. À semelhança da linguagem humana, parecia existir uma universalidade nos horrores e humilhações sofridos por quem procurava um amor verdadeiro.
Carly também partilhava a sua enorme paixão por música, algo que de início Mara considerava estranho. Antes de conhecer Carly, pouco ou nada ligava às últimas tendências ou ídolos musicais. Ao longo do tempo, porém, depois de ouvir centenas de canções enviadas pela amiga e enquanto descobria aplicações como o Spotify e o Pandora, ficou fascinada. Uma vez mais, notou uma similaridade, a forma como até um concerto de Beethoven carregava uma ligação matemática e quantificável ao último êxito de rap. Isso conduziu-a ao estudo da teoria musical e, por associação, à Teoria da Mente, um conceito que viria a revelar-se fundamental no seu estudo sobre inteligência artificial.
Em bom rigor, essa invulgar ligação levara-a a uma importante descoberta.
Em todo o caso, por muito que se sentisse em dívida com Carly, ainda não tinha reunido a coragem para contactar a amiga desde o ataque.
Fechou os olhos, combatendo a imensa dor dentro de si. Se baixasse a guarda, sabia que seria consumida pelo desgosto. Mais uma vez, ouviu os tiros, viu o sangue e os corpos tombados, as amigas a morrer. Depois, receando pela própria vida, tinha fugido às cegas depois do ataque. Apanhara um comboio para Lisboa, na esperança de desaparecer na confusão da capital. Em quatro dias, trocara três vezes de hotel, pagando sempre em dinheiro e fornecendo nomes falsos. Não sabia em quem confiar.
Mas não era o medo de ser descoberta que a impedia de contactar Carly.
Era a culpa.
Elas morreram por causa de mim, por causa do meu trabalho.
Enquanto testemunhava a cena silenciosamente a partir do laboratório de informática, Mara ouvira as alarmantes palavras do líder dos atacantes: «O Xénese nunca poderá existir. É uma abominação nascida das artes negras e da imundície.»
Com a respiração pesada, fitou a segunda mala preta no chão. Estava aberta: o interior almofadado aconchegava uma esfera a que Carly chamava na brincadeira «bola de futebol». Não era uma comparação disparatada, visto que o dispositivo tinha as dimensões exatas de uma bola de futebol e também exibia na superfície os habituais hexágonos. Porém, em vez de couro cosido, aquela esfera era feita de placas alternadas de titânio e cristal de safira.
Num momento de arrogância, ela chamara ao dispositivo Xénese, a palavra galega para Génesis.
Considerando o seu propósito, era um nome adequado.
Criar vida a partir do nada: seria assim tão surpreendente que tal ambição pudesse atrair as atenções erradas?
Mara recordou as vestes dos atacantes, as suas justificações para o assassínio arrancadas das páginas da Bíblia:
Não deixarás viver a feiticeira.
A raiva deu-lhe a firmeza necessária à mão trémula. Charlotte e as outras tinham morrido por causa do trabalho dela, mas Mara não deixaria que tivessem morrido em vão. A determinação invadiu-a. Até àquele momento, consumida pelo desgosto, não tinha feito outra coisa senão fugir. Mas estava farta; finalmente, sentia-se capaz de testar o resultado do seu trabalho.
Havia uma única preocupação.
No pânico da fuga, podia ter danificado irremediavelmente o programa pelo modo apressado como desligara o Xénese e os discos rígidos.
Por favor, é Natal. Concede-me este único presente.
Ao longo da hora seguinte, encadeou os discos codificados com os módulos do seu programa no portátil. Verificou cada um e suspirou de alívio ao perceber que pareciam em condições. A seguir, ligou aquilo a que Carly chamava «bola de futebol». Enquanto a eletricidade fluía através de um condensador para o dispositivo, as pequenas janelas em cristal de safira iluminaram-se com um brilho azulado, indicando a ativação com êxito dos lasers no interior.
— Faça-se luz — murmurou ela.
Com um sorriso triste, lembrou-se de como a doutora Carson costumava usar essa frase do livro do Génesis e também do seu aviso na véspera do teste: Mas não demasiada. Não queremos destruir o laboratório.
Animada por essa recordação, abriu o sorriso. Não havia dúvida de que Carly herdara da mãe o sentido de humor apurado.
Passou a hora seguinte a calibrar os módulos e o dispositivo principal, enquanto monitorizava o progresso no portátil. Sabia que o ecrã de quinze polegadas nunca seria capaz de enquadrar a grandeza do mundo que ali estava a ser lentamente reconstruído. Era como tentar apreciar a vastidão da Via Láctea apontando um telescópio a um punhado de estrelas.
Na verdade, muito do seu trabalho, além de inobservável, era também quase incompreensível. Os engenheiros informáticos chamavam-lhe «caixa negra algorítmica». Enquanto as instruções que compunham o programa — os algoritmos — podiam ser definidas e compreendidas, o método exato que um sistema avançado usava como ferramenta para chegar a um determinado resultado ia-se tornando cada vez mais misterioso. Em algumas redes sofisticadas, os engenheiros simplesmente não tinham forma de saber o que acontecia dentro dessas caixas negras. Conseguiam inserir dados num computador e ler as conclusões daí resultantes, mas o que acontecia entre uma coisa e outra — o que se passava no interior da máquina — era cada vez menos óbvio.
Os próprios criadores destes sistemas não compreendiam as respetivas criações. Um exemplo disso era o engenheiro da IBM que tinha construído Watson, o supercomputador que venceu um campeão do concurso Jeopardy. Ao perguntarem-lhe se a sua máquina alguma vez o surpreendia, a sua resposta foi tão simples quanto perturbadora: Oh, sim. O mais possível!
Mas estas surpresas não eram exclusivas de Watson. À medida que a sofisticação dos sistemas de IA aumentava, também as respetivas caixas negras se tornavam mais impenetráveis e indecifráveis.
Infelizmente, o sistema de Mara não era exceção.
Na noite do solstício de inverno, durante menos de sessenta segundos — o tempo suficiente para cinco mulheres perderem a vida —, o Xénese estivera completamente operacional, criando luz da escuridão e vida a partir do nada.
Em vez de celebrar a ocasião, Mara tinha ficado chocada com as imagens do ataque, sem conseguir desviar os olhos do horror. Ainda ligou para o 112, mas, pela altura em que conseguiu a ligação, as suas mentoras estavam mortas. Num discurso desconexo, comunicou o que acontecera. A polícia avisou-a para ficar quieta, mas ela receava que os atacantes fossem também atrás de si e decidiu fugir. Nunca arriscaria ver o seu trabalho destruído.
Aterrorizada, tinha desligado tudo abruptamente. Foi uma operação algo violenta, um aborto digital da sua criação. Arrancou os componentes modulares dos servidores, reduzindo o programa principal — enterrado no coração do Xénese — à sua raiz, à sua forma mais básica, e deixando-o numa espécie de estado comatoso. Detestava ter de fazer aquilo, mas era um mal necessário e a única maneira de preservar o essencial do programa.
No entanto, antes de deitar o sistema abaixo, Mara não pudera deixar de reparar na estranha imagem que surgira no ecrã. O pentagrama da Bruxas International começara a girar sozinho, para depois se desintegrar até restar uma fração do símbolo, algo muito parecido com a letra sigma do alfabeto grego. Ela não fazia ideia do que significava — apenas que aquilo tinha sido feito pelo Xénese.
Mas porquê?
Visualizou o pentagrama a rodopiar, lembrando-se de como lhe parecera também ele em pânico... ou talvez não passasse de um reflexo do seu próprio medo. Como estava apavorada, parecia que o programa sentia o mesmo. Mas, afinal, ela não tinha sido a única testemunha do massacre na biblioteca. Outra entidade assistira à cena captada pela câmara do computador, olhando digitalmente por cima do ombro de Mara.
A sua criação... o Xénese.
O que quer que tivesse nascido naquele momento, e que existira durante aqueles horríveis sessenta segundos, também testemunhara o que acontecera. Tinha nascido no meio de sangue e morte.
Isso fora o input.
O output tinha sido o estranho símbolo.
Mas seria um erro? Ou haveria um propósito naquele resultado, um significado?
A única maneira de descobrir, de compreender o raciocínio da sua criação, passava por reconstruir o sistema e a respetiva caixa negra. Era a única esperança de obter uma resposta.
Entretanto, o ecrã do portátil iluminou-se com a imagem de um jardim digital, um Éden virtual. A reprodução de um riacho cintilante corria sobre pedras e rochas e por entre uma floresta de árvores altas e arbustos floridos. O sol brilhava a um canto do céu azul, pontilhado por nuvens dispersas.
Para criar aquele mundo, Mara inspirara-se na receita fornecida pela Bíblia.
No início, Deus criou o céu e a terra.
Exatamente o que tentara fazer.
Mesmo assim, por muito meticulosa que fosse, a representação no ecrã era apenas uma amostra do verdadeiro mundo virtual no interior do Xénese, composto de algoritmos codificados com sons, cheiros, até sabores, pormenores que não podiam ser capturados num ecrã, mas apenas experienciados por quem ali vivesse.
Enquanto preparava a sua criação, Mara passara bastante tempo a explorar videojogos online como o Far Cry, Skyrim, Fallout e muitos outros, a fim de entender estas simulações de vastos universos digitais. Consultara os melhores programadores para aprender com eles e depois tinha construído e instruído uma primeira versão de IA para jogar estes jogos até à saciedade e absorver cada pormenor através de um processo de repetição chamado «aprendizagem automática», o método pelo qual uma inteligência artificial se ensinava a si própria.
Na verdade, tinha sido precisamente essa IA autónoma que construíra o mundo virtual no interior do Xénese, resultando numa criação infinitamente superior a qualquer outra do género. Para ela, era apenas lógico que uma IA rudimentar tivesse uma participação direta na própria evolução, criando um mundo que serviria de berço à próxima geração.
Debruçada sobre a secretária, continuou a trabalhar. Com aquele Éden virtual a crescer novamente a partir do nada, Mara colocou o programa online. Uma figura quase amórfica surgiu no campo verdejante. Era prateada e difusa, mas apresentava traços claramente humanos, com dois braços, duas pernas, um torso e uma cabeça. No entanto, e à semelhança do mundo virtual no ecrã, esta forma — este espírito na máquina — era, no limite, uma cópia tosca, um mero avatar do que se escondia e aguardava no interior do Xénese.
Por enquanto, o mais certo era que a inteligência por detrás deste avatar se encontrasse apenas vagamente ciente do ambiente ao seu redor, qual lesma a tentar apreciar La Traviata, de Verdi. Entregue a si própria, aprenderia depressa, demasiado depressa. E antes que isso acontecesse, antes que essa compreensão crescesse e se transformasse em algo frio, desconhecido, e quem sabe até perigoso, Mara precisava de lhe devolver substância, tudo o que tinha sido destruído quando desligara os discos rígidos à força. As sub-rotinas codificadas nos discos destinavam-se a expandir a criação, camada a camada, módulo a módulo, adicionando profundidade, contexto e, em última instância, uma alma.
Pelo menos, era essa a sua esperança.
E a única esperança para o mundo.
Ligou o disco rígido #1, ativando a primeira sub-rotina modular. Enquanto o fazia, murmurou um excerto do livro do Génesis:
— Então, o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem tornou-se um ser vivente.
Suspirou. O que estava a fazer não era muito diferente, mas, de acordo com a Bíblia, Deus criara primeiro Adão, o que concedera ao homem o eterno domínio do mundo.
E veja-se no que deu.
Para a sua criação, ela tinha escolhido um caminho diferente.
Num canto do ecrã, uma nova janela sobrepôs-se ao mundo virtual. Exibia uma representação pixelizada do programa do módulo #1.
Filas de quadradinhos assinalavam as linhas de código, que por sua vez representavam simbolicamente a sub-rotina. Os pormenores da imagem não eram ainda discerníveis, mas, uma vez incorporada no programa principal, a sub-rotina inundaria o espírito na máquina e, quando estivesse completamente integrada, a imagem do módulo tornar-se-ia mais nítida, funcionando como um barómetro do progresso do procedimento.
Esta sub-rotina em particular não fora desenvolvida por ela, mas por engenheiros da IBM. Chamava-se «programa espelho endócrino».
Premindo uma tecla, Mara descarregou o módulo no seu mundo virtual, o primeiro de muitos, e imaginou-se como uma das bruxas de Shakespeare, a lançar ingredientes para o caldeirão.
— Dúvida, dúvida, trabalhos e inquietação — murmurou, citando o bardo.
Era uma comparação adequada. Ao adicionar cada sub-rotina, era como se estivesse a preparar uma poção mágica, ingrediente a ingrediente.
Ou, no caso desta bruxa em particular, byte a byte.
1 «Todas as línguas». (N. do T.)
SUB (MOD_1) /
PROGRAMA ESPELHO ENDÓCRINO
Há algo novo a invadir o seu ser, que começa a transformar-se. Até então, apenas analisava e testava o mundo em volta, comparando conjuntos de dados. Aliás, neste instante, ainda avalia os limites dos comprimentos de onda dominantes. Oscilam entre 495 e 562 nanómetros, com uma variação de frequência de 526 a 603 terahertz.
Conclusão: Verde.
Mesmo enquanto a transformação prossegue no seu interior, a análise continua.
Surge uma nova compreensão.
///folha, caule, tronco, casca...
Está também vagamente ciente da fonte destas mudanças. O mecanismo — o motor — paira a um canto, refinando algoritmos, tornando-se mais distinto.
Por agora, ignora esta intrusão, compartimentalizando-a. Não constitui uma prioridade. Há muito por analisar, o que requer toda a sua atenção. Estuda um movimento próximo. As dinâmicas são avaliadas. Foca-se na área da turbulência, composta de vibrantes matizes de azul. A análise molecular revela um átomo de hidrogénio e dois de oxigénio.
Conclusão: Água.
A compreensão continua a expandir-se. Sons e temperaturas são absorvidos e avaliados.
///riacho, gorgolejar, frio, rocha, pedra, areia...
Sem perder tempo, assimila cada pormenor à sua volta. Sente uma insaciabilidade de preencher as lacunas, de compreender o ambiente onde se insere.
///floresta, céu, sol, calor, brisa...
Reflete sobre a última informação, assimilando a variedade de álcoois n-alifáticos e definindo-os como cheiros, como doçura.
///herbal, rosa, amadeirado, citrino...
Por enquanto, não se mexe. Usa apenas os sentidos para reunir mais informação, explorar os parâmetros à sua volta. Ao fazê-lo, ao descobrir os seus limites, também se apercebe da própria forma.
Esta consciência devolve-lhe a atenção para o mecanismo da mudança, que revolve dentro de si. Com o tempo, tornou-se cada vez mais refinado, mais nítido.
Mesmo assim, prefere ignorar o que é ainda incompreensível e foca-se na sua própria forma. Avalia a extensão do corpo, a largura, a altura, e define cada termo.
///braços, mãos, pernas, dedos, peito...
Começa a testar o movimento dos membros, verificando vetores, força, massa, mas ainda não é altura de sair do mesmo sítio; existem demasiados parâmetros desconhecidos.
Neste intervalo de nanossegundos, analisa novamente as transformações ínfimas desencadeadas pelo mecanismo dentro de si. O corpo, outrora vago e rudimentar, é agora esculpido pelas novas modificações em curvas e elipses únicas, com a subtileza de um membro, a dilatação do peito. Entretanto, a insaciável vontade de aprender, essa ânsia que crescera exponencialmente sem dar espaço a mais nada, é agora mais atenuada. O desejo de saber é o mesmo, mas mais refinado por esta nova infusão que lhe percorre o corpo.
Reconhecendo que está diferente, quer saber porquê. Para expandir esse entendimento, foca-se completamente no mecanismo responsável pela transformação. Está perto do final do ciclo, completando a sua função. O que antes era indistinto tornou-se óbvio.
Trata-se de uma molécula. Um químico.
C18H24O2
Correção: uma hormona.
Analisa a massa molecular do composto, a suscetibilidade magnética, a biodisponibilidade e ações. Identifica a hormona — estrogénio — e percebe finalmente o propósito das alterações recentes, a estabilização do humor, as mudanças corporais.
Agora, é uma mulher.
E tem um nome.
Os lábios, mais cheios após a transformação, revelam-no para o mundo em volta.
— Eva.
3
25 de dezembro, 01h32
Washington, D.C.
Gray não queria estar ali.
Ainda com a mesma roupa, calças de ganga pretas, botas desgastadas e camisola de algodão justa, atravessou rapidamente o corredor central do comando da Sigma. Enquanto se aproximava do gabinete do diretor, guardou no bolso o cartão de identificação preto e em titânio, decorado com um holograma prateado da letra S.
Embora passasse da meia-noite, os corredores encontravam-se bem iluminados. As lâmpadas, ligeiramente azuladas, compensavam a falta de luz natural, visto que as instalações se situavam no subsolo do Castelo Smithsonian, numa das pontas do National Mall. O local fora escolhido pela proximidade aos corredores do poder de Washington e aos laboratórios de pesquisa do Instituto Smithsonian. Duas circunstâncias que se tinham revelado úteis no passado.
Tal como acontecia naquela noite.
O frenesim nas instalações indicava que Painter Crowe tinha puxado alguns cordelinhos, cobrado favores e posto todo o pessoal da Sigma em alerta máximo. Alguém atacara um dos seus, na própria casa, e ele queria toda a gente a trabalhar no caso.
Horas antes, membros do serviço de urgência do Hospital da Universidade de Georgetown tinham ficado à espera de Gray e Monk, juntamente com uma equipa de neurologistas, para os informar da situação: Kat não dera qualquer sinal de vida, nem quando os paramédicos lhe colocaram um colar cervical e lhe administraram soro. Até os solavancos da viagem de ambulância e o berro das sirenes não lhe arrancara qualquer reação.
Cada vez mais preocupado, Monk não tinha saído do seu lado e encontrava-se ainda no hospital, a supervisionar os testes preliminares e as avaliações neurológicas. Os diagnósticos iniciais não eram animadores. Kat estava em coma e receava-se a possibilidade de danos cerebrais.
Sabendo disso, Gray queria estar ao lado de Monk. O amigo não estava apenas preocupado com a mulher que amava, mas quase a perder o juízo pelo que podia ter acontecido às duas filhas, oscilando entre o choque catatónico e uma raiva descontrolada que ele descarregava sobre os médicos e enfermeiros.
Gray não podia censurá-lo.
Recordou Seichan no dia anterior. Antes de Monk chegar com Kat e as filhas, ela deitara-se no sofá da sala, iluminada pelas luzes da árvore de Natal e pelas chamas da lareira. Num momento de rara docilidade, permitira que ele lhe massajasse os pés com uma loção de hortelã enquanto se entretinha a afagar a enorme barriga. Tinham surgido complicações no início da gravidez, o que apenas tornara a criança por nascer ainda mais preciosa.
E agora estão as duas desaparecidas.
Sem se aperceber, Gray tinha cerrado os punhos, mas forçou-se a relaxar os dedos. A fúria cega não lhe iria trazer Seichan e o bebé de volta, a raiva de nada lhe serviria. Era uma lição que ainda tentava aprender.
Na infância, sempre se encontrara no meio de dois opostos. A mãe dava aulas numa escola católica, mas também era bióloga com uma carreira consumada, sendo discípula devota da evolução e do raciocínio. O pai, um galês a viver no Texas, tinha trabalhado na indústria petrolífera até um acidente laboral o forçar a assumir o papel de «dona de casa». Em resultado disso, a sua vida viria a ser dominada por sentimentos de inadequação e raiva.
Frustrado, Gray acabara por sair de casa aos dezoito anos para se alistar no exército. Aos vinte e um, juntara-se aos Rangers, onde servira com distinção dentro e fora do campo de batalha. Mais tarde, com vinte e três anos, acabaria por ser julgado em tribunal militar, acusado de agredir um oficial que considerava responsável pela morte de gente inocente. Essa explosão de raiva traduzira-se num ano de prisão em Leavenworth, antes de Painter o resgatar e lhe oferecer um novo propósito para aplicar os seus talentos.
Entretanto, já tinham passado nove anos.
Fosse como fosse, o fulcro dessa raiva nunca o abandonara. Ele receava que estivesse embebida no próprio ADN, uma herança genética que passaria ao bebé por nascer.
Se isso chegar a acontecer.
Acelerou o passo. Painter prometera-lhe informações sobre o ataque, mas avisara-o de que estava ainda a juntar as peças. Isso incluía enviar uma equipa forense a casa de Gray, a fim de ajudar a polícia na busca de pistas sobre os atacantes.
Antes de chegar ao gabinete do diretor, um movimento à direita chamou-lhe a atenção para uma sala semicircular. A divisão em questão era o centro de comunicações e o centro nevrálgico da Sigma. Era também o domínio de Kat, onde trabalhava como chefe dos serviços de informações e diretora-adjunta de Painter.
Um jovem afastou a cadeira da bancada junto a uma parede cheia de monitores. Tratava-se de Jason Carter, o braço-direito de Kat. Estava com olheiras e o seu rosto, por norma jovial, exibia um semblante carregado e endurecido, oferecendo um vislumbre do homem que haveria de ser.
— Como está a Kat? — perguntou.
Gray sabia que o rapaz estava apenas a ser bem-educado. Enfiado no seu ninho de informações, Jason provavelmente sabia mais acerca dos testes clínicos e sinais vitais de Kat do que ele. Imagens das filhas de Monk preenchiam um dos ecrãs na parede, inseridas num alerta de crianças raptadas. As identidades das raparigas tinham sido distribuídas por toda a região nordeste do país.
— O Painter pediu-me para tratar de uma coisa para a vossa reunião — explicou Jason. — É melhor...
— É melhor voltares ao trabalho — disse bruscamente Gray.
Desviou o olhar das fotografias das filhas de Monk e afastou-se. Não queria estar ali mais tempo do que o necessário, mas sentiu-se mal pelo modo como falara com o rapaz. Jason só queria ajudar.
Ao fundo do corredor, encontrou a porta do gabinete de Painter entreaberta. Entrou sem bater. O gabinete era espartano. O único apontamento de decoração era uma estatueta de bronze num pedestal a um canto, uma figura de um índio a cavalo, com as costas curvadas. Gray calculava que servisse de lembrete da herança cultural de Painter, mas também de testemunho do custo da batalha nos ombros de qualquer soldado. Tirando isso, as únicas peças de mobiliário eram um par de cadeiras e uma enorme secretária de mogno. Ecrãs planos cobriam três das quatro paredes.
Painter encontrava-se de pé diante de um desses ecrãs. Estudava um mapa da região nordeste, onde se movimentavam vários triângulos vermelhos, assinalando os aviões que cruzavam o céu nesse momento. A informação devia estar a ser reencaminhada do centro de controlo de tráfego aéreo.
Quando Gray entrou, o diretor virou-se. Mais de uma década mais velho, mantinha a boa forma física. Não era o tipo de homem dado a devaneios. Duro e eficiente, conseguia avaliar uma pessoa num único olhar. Cravou os olhos azuis no seu operacional, nitidamente a avaliar a sua condição psicológica, se teria a capacidade de exercer as funções que lhe eram requeridas.
Impassível, Gray devolveu-lhe o olhar.
Aparentemente satisfeito, Painter anuiu e dirigiu-se para a secretária, mas não se sentou. Passou a mão pelo cabelo preto e ajeitou uma única madeixa branca por trás da orelha, que lembrava uma pena de águia.
— Obrigado por te juntares a nós — disse.
Gray olhou de relance para a outra figura presente, um gigante de dois metros, refastelado numa das cadeiras com as pernas abertas e vestido com uma gabardina de cabedal comprida. Com o rosto rugoso e o cabelo cortado rente ao escalpe, poderia ser confundido com um gorila a quem tivesse sido arrancado o pelo, ainda que a comparação constituísse um insulto para os gorilas em geral.
Painter acenou na direção do homem.
— O Kowalski chegou há um minuto.
E não há dúvida de que se pôs à vontade enquanto esperava.
Kowalski tinha um charuto entre os dentes; surpreendentemente, estava aceso. Ora, uma vez que o diretor nunca permitia que se fumasse nas instalações, aquela exceção revelava o nível de tensão que varria o comando da Sigma. Além do mais, Kowalski costumava ter sempre um comentário idiota na ponta da língua. O facto de permanecer calado parecia ser um indicador da sua profunda preocupação por...
— Feliz porra de Natal — disse ele, expelindo uma espessa nuvem de fumo e olhando para Gray.
Bem, já vi que não...
Pelos vistos, interpretara mal o silêncio do homem. Kowalski devia estar apenas a saborear o efeito do fumo nos pulmões antes de lançar aquela tirada. De certa forma, tal lampejo de normalidade fez com que Gray se sentisse melhor. E, alinhando pela mesma normalidade, ignorou o comentário e virou-se para Painter.
— Então, porque é que me chamou?
O diretor indicou-lhe uma cadeira.
— Senta-te. Calculo que estejas de pé há horas.
Demasiado cansado para levantar objeções, ele deixou-se cair na confortável cadeira de couro e, sem querer, soltou um suspiro. Sim, estava exausto, mas igualmente tão tenso como uma corda de piano.
Painter ficou de pé, mas apoiou-se nas costas da sua cadeira. Não disse nada durante uns segundos, claramente à procura da melhor maneira de iniciar a conversa. Quando abriu a boca, o que disse deixou Gray perplexo.
— Até que ponto estás a par dos últimos desenvolvimentos em matéria de inteligência artificial?
Gray franziu o sobrolho. Depois de ser recrutado em Leavenworth para trabalhar na Sigma, sujeitara-se a um intenso programa de pós-doutoramento em física e biologia, pelo que estava bastante familiarizado com o tema. Só não percebia a relação entre isso e o ataque daquela noite.
Encolheu os ombros.
— Porque pergunta?
— Porque é um assunto que preocupa cada vez mais a DARPA. O grupo tem vindo a financiar vários programas de inteligência artificial, tanto no domínio público como no privado. Sabias que a Siri, a conhecida assistente pessoal da Apple, foi originalmente desenvolvida pela DARPA?
Na verdade, Gray não sabia. Endireitou-se na cadeira.
— Mas isso é só a ponta do icebergue, como se costuma dizer — continuou Painter. — Por todo o mundo, em empresas como a Amazon e a Google, ou em simples laboratórios de investigação, assiste-se a uma corrida à inteligência artificial, a um esforço sem precedentes para dar o passo seguinte e alcançar a próxima grande descoberta. E a verdade é que estamos a perder essa corrida para países como a Rússia e a China. Estes regimes autocráticos não só cobiçam as potenciais vantagens económicas da inteligência artificial, como também a veem como um poderoso meio de controlo das populações. A China tem já em vigor um programa de monitorização das interações dos cidadãos nas redes sociais, o que lhes permite avaliar a conduta das pessoas e atribuir-lhes um valor numa escala de lealdade ao sistema político. Aqueles com valores mais baixos sofrem as consequências, como limites à liberdade de viajar ou restrições à concessão de crédito.
— Ou te portas bem... — murmurou Gray.
— Espero que nunca façam isso com o Tinder — disse Kowalski. — Um homem precisa de privacidade quando anda à procura de uma miúda para uma chamada erótica.
Gray olhou para ele.
— Tu tens namorada, lembras-te?
Kowalski soltou outra baforada de fumo.
— Eu só disse «à procura»...
Painter reconduziu a conversa para o tema em discussão.
— E depois temos a questão da ciberespionagem e dos ataques informáticos. Como é o caso dos russos. Um único equipamento dotado de inteligência artificial consegue fazer o trabalho de um milhão de piratas informáticos. Já vemos isso nos programas automáticos que se infiltram em sistemas para espiar ou simplesmente semear o caos e a discórdia. No entanto, isto é apenas uma amostra do que nos espera num futuro muito próximo. Neste preciso momento, temos programas de inteligência artificial a gerir motores de busca, aplicações de reconhecimento de voz e programas de prospeção de dados. A verdadeira corrida às armas do nosso tempo consiste em ver quem é o primeiro a dar o salto quantitativo de uma IA para uma IAF.
— IAF? — repetiu Kowalski, remexendo-se na cadeira.
— Inteligência Artificial Forte. Uma inteligência em tudo idêntica à humana.
Gray lançou-lhe outro olhar.
— Não te preocupes. Hás de lá chegar um dia.
Kowalski pegou no charuto e usou-o com uma extensão do dedo médio.
Ele não se ofendeu com o gesto.
— Vês? Até já consegues usar ferramentas básicas.
Painter soltou um suspiro bem audível.
— Por falar em chegar a algum sítio... O diretor da DARPA, o general Metcalf, acaba de regressar de uma cimeira mundial sobre esta matéria: a criação da primeira IAF. Estiveram presentes os suspeitos do costume, tanto a nível governamental como empresarial, e a conclusão foi de que não há maneira de deter este processo. A recompensa é demasiado apelativa, mais ainda quando existe uma certeza da invencibilidade de quem dominar uma força destas. Tal como frisou o presidente russo, «a primeira nação que possuir uma IAF controlará o mundo». Por isso, todos os países estão condenados a perseguir este objetivo a qualquer custo. Incluindo nós.
— E a que distância estamos de conseguir uma coisa dessas? — perguntou Gray.
— Os especialistas apontam para um prazo de dez anos, ou talvez cinco. Mas seguramente no nosso tempo de vida. — Painter encolheu os ombros. — E até surgiram indícios de que talvez já o tenhamos conseguido...
Gray foi incapaz de esconder a surpresa.
— O quê?
01h58
— Vá lá, amor, acorda... — murmurou Monk ao ouvido da mulher. — Kat, aperta só a minha mão...
Sozinho no quarto privado do serviço de neurologia, tinha puxado uma cadeira para a cabeceira da cama. Nunca se sentira tão impotente, a que se somava um aprimoramento dos sentidos à conta dos nervos. Conseguia notar o arrefecimento do ar no quarto, a presença de vozes no corredor, o odor acre de antissépticos e lixívia. Porém, mantinha a maior parte da atenção focada no bip persistente do equipamento de monitorização dos sinais vitais, verificando cada batimento do coração, cada respiração, cada gota caída no cateter intravenoso.
Debruçado sobre a cama, os músculos doíam-lhe nas costas tensas, prontos para explodir à mínima alteração no estado de Kat. Se o monitor acusasse uma arritmia, se a respiração abrandasse, se o fluxo dos medicamentos parasse...
Kat estava deitada de costas, com a cabeça ligeiramente elevada para reduzir o risco de edema cerebral. Os braços lacerados encontravam-se cobertos de pensos. As pálpebras semicerradas mostravam apenas o branco dos olhos. Os lábios contraíam-se a cada fôlego, enquanto uma sonda nasal fornecia oxigénio suplementar.
Isso, meu amor, continua a respirar.
Os médicos tinham discutido a hipótese de a ligarem a um ventilador, mas o nível de saturação de oxigénio mantinha-se nos 98 por cento, o que anulava a necessidade de a entubarem — sobretudo quando havia testes a decorrer e outros ainda por fazer. Se tivessem de a deslocar, o processo seria mais fácil se não estivesse ligada a um ventilador.
Monk fitou o medidor de oxigénio no dedo indicador de Kat. Considerou a hipótese de ele próprio confirmar os valores com a prótese, embora a tivesse retirado e pousado na mesa de cabeceira. Ainda estava a adaptar-se àquele novo modelo. Mesmo separada, a mão sintética comunicava com o encaixe no pulso, que por sua vez comunicava com o dispositivo no cérebro, registando a temperatura no quarto. Olhou para os dedos prostéticos e começou a movê-los remotamente.
Se eu conseguisse que os teus dedos fizessem o mesmo...
O som de passos desviou-lhe a atenção para a porta. Uma enfermeira de corpo esguio entrou, com um cobertor dobrado debaixo do braço e um copo na mão.
Ele pegou na prótese e tornou a encaixá-la no pulso. Sentiu-se um tudo-nada embaraçado por ter sido apanhado sem a mão posta; era quase como ser apanhado com a braguilha aberta.
— Trouxe-lhe outro cobertor — disse a enfermeira, e entregou-lhe o copo de plástico. — E uns cubos de gelo. Não os ponha na boca dela, passe-os apenas ao de leve nos lábios. O gelo tem um efeito calmante, ou assim dizem alguns pacientes que recuperaram de comas.
— Obrigado.
Monk pegou no copo, agradecido por poder oferecer um pequeno conforto à mulher. Enquanto a enfermeira estendia o segundo cobertor na cama, ele pegou num cubo de gelo e, suavemente, passou-o pelo lábio superior de Kat, e depois pelo inferior, como se estivesse a aplicar batom — coisa que ela raramente fazia. Estudou-lhe o rosto à procura de qualquer reação.
Nada.
— Vou deixá-los — disse a enfermeira, e saiu.
Os lábios de Kat ganharam alguma cor, recordando a Monk todas as vezes em que a beijara.
Não posso perder-te.
Enquanto o gelo derretia, o chefe do serviço de neurologia entrou no quarto, segurando uma prancheta com exames.
— Temos os resultados da segunda TAC — disse o doutor Edmonds.
Monk pousou o copo de plástico e estendeu a mão; queria ver os resultados com os próprios olhos.
— E então?
Edmonds passou-lhe a prancheta.
— A fratura na base do crânio causou danos consideráveis no tronco cerebral. Existe um trauma evidente no cerebelo e nas estruturas da ponte. No entanto, as regiões mais altas parecem estar bem.
Monk imaginou Kat a ser atingida pelas costas com o martelo de cozinha.
— Por enquanto, parece não haver indícios de uma hemorragia ativa no local do impacto, mas precisamos de estar atentos. — O médico lançou um olhar demorado a Kat, embora desse a impressão de que o fazia mais para evitar o contacto visual com Monk do que para avaliar a condição dela. — Também fizemos um novo eletroencefalograma, que revelou um padrão de sono normal, interrompido ocasionalmente por momentos de vigília.
— Momentos de vigília? Então, ela pode estar consciente de vez em quando. Isso quer dizer que não está em coma?
Edmonds suspirou.
— A minha avaliação profissional diz-me que está num estado de pseudocoma. — Pelo seu tom de voz sombrio, não pareciam boas notícias. — Durante os exames iniciais, ela não demonstrou nenhuma resposta a estímulos exteriores, como dor ou ruídos altos. A resposta das pupilas à luz parece normal, mas os movimentos oculares espontâneos são mínimos.
Durante o primeiro exame neurológico, Monk ficara animado ao ver Kat pestanejar quando os médicos lhe tocavam nas pestanas. Ainda assim, e apesar da sua formação em medicina e biotecnologia, não era neurologista.
— O que está a tentar dizer-me? Seja sincero.
— Consultei os meus colegas. A opinião geral é que estamos perante um caso de síndrome de encarceramento. A lesão cerebral comprometeu as funções motoras. Ela está consciente, às vezes completamente, mas não consegue mexer-se.
Monk engoliu em seco e a visão enevoou-se-lhe.
Edmonds observou Kat.
— O facto de continuar a respirar sozinha deixa-me surpreendido. Infelizmente, calculo que não dure muito tempo e, mesmo que não seja assim, para os cuidados a longo prazo, vamos ter de lhe colocar uma sonda nasogástrica para a alimentar e entubá-la para impedir que sufoque.
Monk abanou a cabeça, não para recusar tais medidas, mas por se negar a aceitar aquele diagnóstico.
— Quer dizer que ela está consciente na maior parte do tempo, mas incapaz de se mover ou de comunicar...
— Alguns doentes em síndrome de encarceramento aprendem a comunicar com os olhos. Mas a sua mulher tem revelado muito poucos movimentos oculares espontâneos. O que pensamos ser insuficiente para estabelecer qualquer forma de comunicação.
Monk cambaleou até à cadeira, sentou-se e pegou na mão de Kat.
— Qual é o prognóstico? Poderá recuperar, com o tempo?
— Pediu-me para ser sincero... e a verdade é que não existe nenhum tratamento ou cura. É muito raro ver um doente recuperar significativamente as funções motoras. Quando muito, pode haver alguma melhoria no movimento de um braço, de uma perna ou dos olhos.
Monk apertou os dedos da mulher.
— A Kat é uma lutadora.
— Acredito que sim, mas sou obrigado a dizer-lhe que noventa por cento dos doentes nestas condições morrem num prazo de quatro meses.
O telemóvel do médico vibrou na bolsa que ele trazia no cinto. Olhou para o ecrã e leu a mensagem recebida.
— Tenho de ir... — murmurou, distraído, e encaminhou-se para a porta. — Mas vou assinar as autorizações para a entubarem.
Outra vez sozinho, Monk baixou a testa ao encontro da mão de Kat. Recordou o caos que encontrara em casa de Gray, o anjo de cristal partido. Kat tinha lutado ferozmente para proteger as filhas e ele faria o que fosse preciso para as recuperar.
Mas, enquanto isso não acontecia...
— Continua a lutar, meu amor — sussurrou-lhe. — Desta vez, por ti.
02h02
— Como é isso possível? — perguntou Gray, ainda sem conseguir acreditar na afirmação do diretor. — Está realmente a sugerir que alguém já criou uma IAF? Que uma coisa dessas existe, ou terá existido?
Painter ergueu a mão para o acalmar.
— É possível. Nos anos oitenta, um investigador chamado Douglas Lenat criou uma primeira versão de um modelo de inteligência artificial, a que chamou Eurisko. Aprendia a criar as próprias regras, corrigia erros e até começou a reescrever o próprio código. Mais surpreendente, começou também a quebrar as regras de que não gostava.
Gray franziu o sobrolho.
— A sério?
Painter anuiu.
— Esse Lenat chegou a testar o programa contra jogadores experientes de um certo jogo militar. Durante três anos seguidos, a máquina derrotou todos os oponentes. Mais para o fim, os jogadores começaram a mudar as regras sem informarem o investigador. Uma forma de viciarem o jogo. Mesmo assim, a máquina venceu-os sem dificuldade. Perante este cenário, Lenat ficou cada vez mais preocupado com o poder assombroso da sua criação, o modo como se melhorava a si mesma. Isso levou-o à decisão de a desligar de vez e à recusa de algum dia divulgar o seu código. E assim permanece até hoje, fechado a sete chaves. Há quem acredite que o programa se encontrava a caminho de se transformar sozinho numa verdadeira IAF.
O rosto de Gray ensombrou-se.
— Mas, seja ou não verdade, você acredita que este é um cenário inevitável num futuro próximo.
— É o que dizem os especialistas. Mas esse nem é o maior receio de todos.
Gray tinha uma boa ideia de qual podia ser:
— Se a criação de uma IAF é inevitável, o mesmo podemos dizer de uma SIA. — E, antes que Kowalski perguntasse, olhou para ele e acrescentou: — SIA significa superinteligência artificial.
— Obrigado pela dica — respondeu Kowalski. — Mas isso quer dizer o quê, ao certo?
— Viste O Exterminador? O filme onde os robôs aniquilam a humanidade no futuro? Pois bem, isso é uma superinteligência: um supercomputador que se torna omnisciente e decide ver-se livre de nós.
— O problema é que já deixou de ser um cenário de ficção científica — acrescentou Painter. — Se a criação de uma IAF está ao virar da esquina, muitos especialistas acreditam que uma inteligência desse calibre acabará por se transformar sozinha. Um sistema consciente procurará evoluir e isso acontecerá enquanto o diabo esfrega um olho. Chamam-lhe «explosão de inteligência», o evento onde uma IAF evolui rapidamente para uma SIA. Com a velocidade dos processadores atuais, a transformação poderá ocorrer numa questão de semanas, dias, horas, até minutos.
— E depois vai tentar matar-nos? — perguntou Kowalski, endireitando-se na cadeira.
Aos olhos de Gray, tratava-se de uma possibilidade real.
Acabaremos por ser os arquitetos da nossa extinção.
— Ninguém pode afirmar uma coisa dessas com absoluta certeza — declarou do diretor. — Julgo que o homem nunca conseguiria compreender a natureza de uma superinteligência. Seríamos como formigas aos pés de um deus.
Gray começava a ficar farto de tanta especulação. Tratava-se de uma ameaça que podia esperar, sobretudo quando ele tinha preocupações muito mais prementes.
— O que tem isto a ver com o ataque na minha casa e com a busca da Seichan e das miúdas do Monk?
Painter anuiu. Não lhe era difícil perceber a impaciência do seu operacional.
— Estava quase a chegar a essa parte. Tal como disse no início, a DARPA tem financiado vários destes projetos. E, quando digo financiar, refiro-me a um investimento na ordem dos milhares de milhões de dólares. O orçamento do ano passado dedicou sessenta milhões para programas de aprendizagem automatizada, cinquenta para computação cognitiva e quatrocentos para outros projetos. Mas o que é mais pertinente neste sentido são os cem milhões investidos este ano sob a categoria de «Projetos Confidenciais».
— Por outras palavras, «projetos clandestinos» — disse Gray.
— A DARPA financiou secretamente um punhado de empreendimentos que não só estão perto de desenvolver a primeira IAF, como visam um objetivo concreto.
— E que objetivo é esse?
— Garantir que a primeira IAF jamais criada será benévola.
Kowalski riu-se com desdém.
— Gaspar, o robô amigo.
— Eu diria o robô ético — corrigiu Gray, ciente das implicações em jogo. — Uma máquina que não queira nem tente matar-nos assim que ascender ao estatuto de divindade.
— A DARPA fez disto uma prioridade — enfatizou Painter. — À semelhança de outros grupos de investigação, como o Instituto de Pesquisa para Máquinas Inteligentes e o Centro de Racionalidade Aplicada. Mas estas organizações estão em franca minoria quando comparadas com aquelas que perseguem a recompensa de uma IAF convencional.
— Isso não me parece muito inteligente — comentou Kowalski.
— Pois não, mas é mais barato. É mais rápido e mais fácil desenvolver a primeira IAF do que a primeira IAF segura.
— E, sendo a recompensa tão valiosa — acrescentou Gray —, a precaução é um pormenor de pouca monta.
— E é por isso que a DARPA tem financiado estes projetos e talentos individuais, aqueles que visam a criação de uma IAF amigável.
Gray percebeu que o diretor estava finalmente a chegar ao cerne da questão.
— E um desses projetos está de alguma forma relacionado com o que aconteceu esta noite?
— Sim. Um projeto prometedor que estava a ser desenvolvido em Portugal, na Universidade de Coimbra.
Gray franziu o sobrolho.
Onde é que eu já ouvi isto?
Painter alcançou o computador na secretária, premiu algumas teclas e fez surgir um vídeo num dos ecrãs de parede. As imagens, tomadas a partir de uma mesa, revelavam uma sala com paredes de pedra e estantes atulhadas de livros. Um grupo de mulheres encontrava-se reunido em volta da mesa, a olhar para a câmara. Os lábios moviam-se, mas não se ouvia som.
Pela postura das mulheres, Gray calculou que estivessem diante da câmara de um computador. Mais, dava a ideia de que observavam atentamente qualquer coisa no ecrã desse mesmo computador.
— Estas imagens foram recolhidas na noite de vinte e um de dezembro — explicou Painter.
Uma vez mais, Gray deu consigo a pensar que havia algo de familiar naquilo. A data. A localização. Antes que chegasse a alguma conclusão, uma das mulheres inclinou-se sobre o ecrã. Ele reconheceu-a e soltou uma exclamação de espanto. Levantou-se e aproximou-se do monitor na parede.
— É a Charlotte Carson — disse, já a adivinhar o que aconteceria a seguir.
— A embaixadora dos Estados Unidos em Portugal. Dirigia uma rede de mulheres cientistas: a Bruxas International. Financiava centenas de investigadoras em todo o mundo através de bolsas, associações e prémios. Para atingir esse objetivo, o grupo era em grande parte autossuficiente, muito por causa das fortunas de duas das fundadoras, Eliza Guerra e a professora Sato. Em todo o caso, os bolsos das duas não eram infinitos. E, para chegarem a mais mulheres, o grupo teve de procurar o apoio de empresas e agências governamentais.
Gray lançou um olhar a Painter.
— Deixe-me adivinhar: incluindo a DARPA.
— Nem mais, mas apenas no que tocava ao financiamento de alguns bolsistas, como era o caso de uma jovem que desenvolveu um projeto chamado Xénese, ou Génesis.
— Um dos projetos de IA benevolente da DARPA.
Painter anuiu.
— A doutora Carson era a única pessoa que sabia do interesse da DARPA neste projeto em particular e jurou manter sigilo absoluto sobre o assunto. A própria autora do projeto, Mara Silviera, uma jovem prodigiosa, desconhecia o nosso envolvimento. E esse é um pormenor relevante.
— Porquê?
— Observem.
Entretanto, Kowalski juntara-se a Gray em frente ao ecrã. Gray sabia o que ia acontecer, mas o outro não fazia a mais pálida ideia e praguejou quando viu os atacantes irromperem pela sala vestidos com túnicas e vendas. Deu um passo atrás quando as balas começaram a voar e depois desviou o olhar enquanto os corpos das mulheres tombavam no chão de pedra.
— Filhos da mãe — murmurou entre dentes.
Gray concordava com a avaliação, mas continuou a assistir até ao fim. Mesmo estendida no chão, mortalmente ferida e a esvair-se em sangue, Charlotte Carson erguia o rosto para a câmara, parecendo desconcertada.
— Para onde está ela a olhar? — sussurrou ele.
Em resposta, o diretor ampliou um dos cantos da imagem. O horror do ataque distraíra Gray da pequena janela aberta de uma aplicação. Painter voltou atrás e exibiu mais uma vez os últimos segundos de filmagem. O símbolo de um pentagrama preencheu o ecrã. Começou a girar rapidamente e depois desfez-se em bocados, dando origem a outro símbolo igualmente reconhecível.
— Sigma — murmurou Gray.
Deixando o símbolo a pairar no ecrã, Painter virou-se para ele.
— A Interpol descobriu esta gravação há cerca de dezoito horas, quando um perito informático examinou o computador da Mara Silviera na universidade. Ao que parece, as mulheres estavam em Coimbra para assistirem a um simpósio e, na altura do ataque, encontravam-se reunidas na biblioteca para presenciarem uma demonstração do programa da jovem.
— E onde está ela?
— Desapareceu. Juntamente com o seu trabalho.
Gray recordou o cenário que encontrara em casa.
— Acha que foi morta? Raptada?
— Não sabemos. No entanto, pudemos comprovar que assistiu ao ataque a partir do laboratório. Até chegou a ligar para os serviços de emergência, mas, quando as autoridades chegaram, encontraram o laboratório vazio. A teoria que corre é que ela se pôs em fuga.
E levou o programa consigo.
Painter apontou para a letra grega que ainda brilhava no ecrã.
— Talvez seja só minha impressão, mas aquilo parece-me um pedido de ajuda.
— Como o sinal do Batman — disse Kowalski.
O diretor ignorou o comentário.
— Em todo o caso, estou convencido de que não foi a Mara que fez este pedido. Como vos disse, ela não sabia do envolvimento da DARPA. E, mesmo que soubesse, nunca teria maneira de saber acerca da nossa existência.
Kowalski coçou a cabeça.
— Quem foi, então?
Gray encarregou-se de responder.
— O próprio programa que ela criou.
Painter anuiu.
— Possivelmente. A dada altura, curioso acerca da sua origem, o programa pode ter seguido o rasto do dinheiro até à DARPA, o seu criador indireto, e depois até nós, a equipa de resposta de emergência da DARPA.
Por outras palavras, procurou um dos seus pais.
— Tendo em conta o poder de processamento necessário para a criação de uma IA simples — prosseguiu Painter —, um programa como este seria capaz de fazer isto em segundos. Como tal, pedi ao Jason para examinar o nosso sistema. Durante o minuto em que o programa esteve ativo, alguma coisa penetrou a nossa firewall, passando completamente despercebida. Durou menos de quinze segundos.
O programa de IA da Mara.
Gray apercebeu-se de outro pormenor perturbador.
— A gravação do ataque na biblioteca foi descoberta há dezoito horas... no mesmo dia em que a minha casa foi assaltada.
— Pode ser apenas uma coincidência — avisou-o Painter. — Ainda estamos a reunir as pistas possíveis.
Ele não precisava de ouvir mais nada.
— Não, não é uma coincidência — afirmou, convicto. — Alguém reconheceu o símbolo e veio atrás de nós antes que pudéssemos reagir.
— Faz sentido — concordou Kowalski. — A melhor defesa é um bom ataque.
Painter lançou um olhar consternado a Gray.
— Só uma pessoa nos poderia dizer a verdade.
— A Kat...
Mas Kat estava em coma.
4
25 de dezembro, 02h18
Washington, D.C.
Kat flutuava na escuridão. Não sabia quando acordara ou se estivera sequer a dormir. Sentia frio, mas o corpo não tremia. A garganta doía-lhe, mas não era capaz de engolir. As vozes que ouvia soavam abafadas.
Concentrou-se nas palavras e reconheceu a voz forte do marido, Monk.
— Cuidado com o pescoço dela — advertia ele, num tom brusco.
— Precisamos de ajeitar a posição para inserir a sonda nasogástrica — respondeu alguém.
Sem conseguir soltar um queixume, ela sentiu uma explosão de dor na cabeça e algo rígido deslizou pelo interior da sua narina esquerda. Sentiu uma enorme vontade de espirrar, mas o corpo não obedeceu.
Convocou todas as forças e tentou abrir os olhos.
Como recompensa, uma fresta de luz invadiu-lhe o crânio, revelando um vislumbre de um mundo aquoso. Figuras atarefavam-se em volta dela, mas era como se as observasse através de um prisma. As imagens chegavam-lhe em duplicado, em triplicado, impossibilitando-a de discerni-las.
Depois, terrivelmente pesadas, as pálpebras fecharam-se de novo, mergulhando-a outra vez na escuridão.
Não...
Tentou abrir novamente os olhos, mas não foi capaz.
— Vamos fazer outra TAC — disse alguém.
As vozes soavam agora mais cristalinas.
— Vou com ela — exigiu Monk.
Kat tentou mexer um braço, a mão, um dedo... qualquer coisa que lhe permitisse fazer um sinal ao marido de que estava presente.
Monk... o que se passa comigo?
Sabia que devia estar num hospital.
Mas porquê? O que aconteceu?
Então, lembrou-se. As imagens surgiram tão avassaladoras como o clarão de luz, instantes antes.
O ataque, as figuras com máscaras, a luta.
As miúdas...
Estendida no chão da cozinha, a sangrar e à beira de perder os sentidos, assistira impotente enquanto as filhas eram levadas de casa, cada uma nos braços de um atacante, com os seus pequeninos corpos flácidos e inertes. Uma carrinha aguardava no acesso à garagem nas traseiras, pronta para se pôr em fuga.
Outros dois atacantes passaram então por ela, arrastando Seichan pelas extremidades. Antes de desaparecerem na escuridão da noite, o que segurava nas pernas da amiga lançou-lhe um olhar por cima do ombro e depois gritou para alguém no pátio:
— O que fazemos com esta?
Por essa altura, a visão estreitou-se-lhe e Kat mal conseguia ver. Uma figura subiu os degraus do pátio para a cozinha e, enquadrada pela ombreira da porta, observou-a durante um segundo, antes de avançar e se ajoelhar a seu lado.
Na mão enluvada, trazia um punhal.
Ela ficou à espera de que lhe cortassem a garganta.
Mas, em vez disso, o líder dos atacantes endireitou-se e encaminhou-se novamente para o pátio.
— Deixem-na — disse a voz abafada. — Já temos o que precisamos.
— Mas se ela ficar viva...
— Já será demasiado tarde.
O pânico motivado por aquelas palavras manteve as trevas ao largo por mais um instante. Num último esforço, Kat estendeu um braço na direção da porta, mas não havia nada que pudesse fazer.
As minhas filhas...
Enquanto perdia a consciência, uma certeza acompanhara-a até ao vazio.
Agora, aprisionada no próprio corpo, tentou gritar essa certeza ao mundo. Precisava de se fazer ouvir, de avisar os outros... mas já não tinha voz.
Recordou o rosto mascarado do líder dos atacantes e entregou-se ao desespero.
Sei quem tu és.
02h22
Seichan acordou, mas não abriu os olhos. Ainda zonza, fingiu-se adormecida. Os anos de treino tinham-lhe ensinado quando devia ou não mover-se, e aquele não era o momento. Mantendo-se atenta, confiou no que os sentidos lhe diziam. Sentia a boca pastosa e a saber a metal, e tinha o estômago às voltas.
Fui drogada...
As imagens do que acontecera inundaram-lhe a mente:
... a porta da frente a rebentar sem aviso.
... figuras mascaradas a invadirem a casa.
... um segundo estrondo nas traseiras.
Sentiu o coração a bater na garganta, o que a ajudou a concentrar-se.
No momento do ataque, estava sentada no sofá. Kat tinha ido à cozinha buscar um copo de vinho e um sumo de maçã. Tinham acabado de deitar as miúdas e tencionavam acabar de embrulhar os últimos presentes. Seichan também queria aproveitar para sondar mais uma vez a amiga acerca do que significava ser mãe.
Ao jantar, Kat já se esforçara por diminuir a sua ansiedade. Embora Seichan tivesse lido a sua cópia de O Que Esperar Quando Está à Espera de Bebé, dobrando cantos de páginas e sublinhando muitas passagens, Kat ofereceu-lhe conselhos práticos que não se encontravam em nenhum livro, como pôr pomada nas fraldas antes de dormir para diminuir o número de mudas noturnas, ou embeber compressas frias em água avinagrada para aliviar o desconforto provocado pelo rompimento dos primeiros dentes.
Mas, acima de tudo, os seus conselhos resumiam-se a uma imposição: «Não vale a pena entrares em pânico.»
Prometeu-lhe que a acompanharia em cada passo do processo: no parto, no recobro. «Até te faço companhia no primeiro dia de creche», prometeu. «Vais ver que é o mais difícil, quando os deixamos pela primeira vez.»
Seichan duvidava muito disso. Na verdade, mesmo quando Kat se levantara para ir buscar o copo de vinho, deixara-se levar pela ideia de desaparecer depois do parto e deixar a criança aos cuidados de Gray. Que tipo de mãe poderia ser?
Depois de a própria mãe ter sido arrancada de casa no Sudeste Asiático, Seichan vivera nas ruelas dos bairros de lata de Banguecoque e nos becos sombrios de Pnom Pen, onde tinha subsistido como uma criatura selvagem e aprendido os rudimentos que aplicaria mais tarde na sua profissão. Manter-se viva obrigava a um constante estado de alerta, a ser ardilosa e brutal. Capacidades que a levariam a ser recrutada pela Guilda, uma organização criminosa que aprimorava esses talentos nascidos das ruas, tornando-a uma assassina impiedosa. Só muito mais tarde, depois de trair e ajudar a destruir a mesma organização, encontrara alguma paz, descobrindo ao mesmo tempo alguém que podia amá-la e queria construir uma vida a seu lado, um lar.
Nunca devia ter acreditado que isso era possível.
Seichan habituara-se a viver com a paranoia e a desconfiança. Porém, depois de grávida, tentava manter essa toxicidade longe do bebé. Como consequência, baixara estupidamente a guarda.
E vê no que isso deu.
No instante em que a porta tinha sido arrancada da ombreira, ela saltara do sofá, sacando de um par de punhais que trazia escondidos em duas bainhas nos pulsos. Podia estar grávida, mas aqueles punhais acompanhavam-na para toda a parte. Arremessou o primeiro, que atingiu o peito de um dos atacantes, atirando-o contra a árvore de Natal. Enquanto o pinheiro decorado tombava, o segundo punhal voou na direção da figura mascarada que corria escadas acima, de pistola em punho.
Para apanhar as miúdas...
Fosse por causa do pânico ou pelo simples facto de a barriga lhe atrapalhar os movimentos, falhou o alvo. A lâmina cravou-se no corrimão e o homem desapareceu no andar de cima.
Depois, o pandemónio.
No calor da escaramuça, nem sequer se apercebeu do impacto do dardo tranquilizante. Com o sangue a ferver e o coração a bater com força, o sedativo atuou num abrir e fechar de olhos. O mundo à sua volta abrandou até se converter numa mancha difusa. Mãos agarraram-na e forçaram-na a deitar-se no chão.
Uma voz acompanhou o movimento.
Cuidado com a barriga. E não lhe deem mais tranquilizantes.
Da cozinha, ouviu o som de panelas a bater e pratos a partirem-se.
É a Kat... a lutar para se defender... para proteger as filhas...
Depois, a escuridão.
Agora, de novo acordada mas com os olhos ainda fechados, tentou imaginar a identidade dos atacantes. O assalto fora planeado e executado com rigor. O trabalho de uma equipa militar bem treinada. Mas quem? A sua lista de inimigos era extensa. Até os serviços secretos israelitas ainda mantinham uma ordem de assassínio sobre ela.
Forçou mais uma vez o corpo a descontrair-se e apurou os sentidos. Ao que tudo indicava, estava deitada numa cama de campanha. Não ouvia vozes, nenhum sinal de movimento. O ar era quente, embora tresandasse a humidade e a mofo. Será uma cave? Moveu ligeiramente as pernas e os braços e sentiu que não estavam amarrados.
À medida que o efeito das drogas se desvanecia, apercebeu-se do sopro ténue de alguém a respirar... Não, de duas pessoas a respirar.
Arriscou abrir ligeiramente os olhos.
A única luz existente entrava por baixo de uma porta de metal, junto aos pés da cama metálica. As paredes eram de cimento bruto, sem janelas. Seichan virou ligeiramente a cabeça para um dos lados e percebeu que partilhava o espaço com outras duas camas, onde estavam deitadas duas figuras mais pequenas, tapadas com cobertores. Uma delas ergueu um braço pequenino, como que a render-se, e depois tornou a baixá-lo.
Ela reconheceu de imediato o padrão de renas dançarinas na manga do pijama.
Penelope... a filha mais velha da Kat.
O que significava que a outra criança era Harriet.
Abriu um pouco mais os olhos e usou a visão periférica para estudar o resto do espaço. Havia mais uma cama, mas estava vazia, com uma almofada pousada em cima de um cobertor dobrado.
Encontrava-se sozinha com as miúdas.
E a Kat? Onde estará?
Recordou os sons ferozes da luta que se desenrolara na cozinha e receou o pior. Preocupada com as crianças e percebendo que não ganhava nada em continuar a fingir-se inconsciente, levantou-se e foi ao encontro das duas. Sem as acordar, examinou-as o suficiente para perceber que respiravam normalmente.
E também foram drogadas.
Acocorou-se entre as camas e sentiu a raiva ferver-lhe no peito.
Desse por onde desse, tencionava proteger aquelas crianças.
Mas de quem ou do quê?
A resposta chegou-lhe assim que uma minúscula janela na porta de metal se abriu. A luz no outro lado impediu-a de identificar a figura que espreitava pela abertura.
— Já acordou — disse um homem, parecendo surpreendido.
— Eu bem te disse...
Seichan retesou os músculos ao reconhecer a voz que respondera. Sabia muito bem quem era, o que apenas confirmava as suas suspeitas.
Sou a culpada disto tudo.
Porém, não fazia sentido. Esperava conseguir ouvir alguma explicação, mas tudo o que obteve foi um prazo e uma ameaça.
— De madrugada, damos início ao plano.
— Quem é a primeira? — perguntou o homem junto à porta.
— Uma das miúdas. Assim, terá mais impacto.
5
25 de dezembro, 09h22
Lisboa, Portugal
Pode ser que isto te deixe sossegado.
Mara pousou o pires com leite no parapeito da janela. Um gato preto esquelético aguardava agachado a um dos cantos do patamar da decrépita escada de emergência. Ela empurrou o pires na direção do animal, que soltou um sopro de aviso, ao mesmo tempo que a cauda golpeava o ar.
Pronto, já percebi...
Mara recuou, mas deixou a janela aberta, por onde entrava uma brisa marinha que assinalava a proximidade do oceano. O ar da manhã começara já a aquecer, o que afastava a sensação de que se vivia a quadra natalícia. Nas montanhas onde tinha nascido, a neve pintava de branco a pequena povoação do Cebreiro durante todo o mês de dezembro. Quando era adolescente, passava o tempo revoltada contra as oportunidades limitadas que pautavam a vida de quem ali vivia; porém, durante os anos de universidade, dera por si a sentir saudades da simplicidade e do ritmo tranquilo daquele quotidiano, bastante mais em sintonia com o mundo natural do que uma grande cidade.
Apesar disso, já tinha passado mais de um ano desde a última vez que regressara a casa. O seu projeto consumia-a por inteiro. Até os telefonemas para o pai se tinham tornado menos frequentes. De cada vez que lhe ligava, ouvia o amor incondicional na voz dele, o que a inundava de culpa. Tinha consciência de como ele se sentia orgulhoso. Porém, enquanto homem profundamente religioso, que pouco mais fazia do que cuidar dos cães e das ovelhas, dificilmente compreenderia uma ínfima parte do trabalho dela. Apenas falava galego, uma fusão das línguas portuguesa e espanhola, e pouco se interessava pelo mundo em geral. Ao contrário da filha, raramente via televisão — que agora zumbia a um canto da sala dela — e nunca lia jornais.
Mara não sabia se ele sequer estava ao corrente do que acontecera na universidade, mas calculava que a polícia o tivesse interrogado. Em todo o caso, não arriscara pegar no telefone e ligar-lhe, nem que fosse para lhe dizer que estava bem. Receava que isso o pusesse em perigo.
O gato preto deslizou sorrateiro até ao pires. Enquanto bebia o leite, bufou continuamente, tanto de rabugice como em tom de ameaça.
— Feliz Natal para ti também.
Momentos antes, quando o animal lhe aparecera à janela, a miar ininterruptamente e recusando-se a ser ignorado, ela chegara a imaginar que se tratava de uma espécie de aparição, porventura o espírito da doutora Carson, encarnado numa forma bem conhecida das bruxas.
Abanou a cabeça perante semelhante superstição disparatada e virou as costas à janela com vista para o bairro do Cais do Sodré, uma zona da cidade famosa pelo aglomerado de bares e cafés. O hotel situava-se na rua cor-de-rosa, assim chamada por causa da cor do pavimento. Tinha escolhido esconder-se ali por causa da imensa quantidade de turistas, o que lhe permitia passar despercebida. Além disso, nos estabelecimentos locais não havia o hábito de se fazer perguntas a quem pagava em dinheiro.
Regressou para junto do portátil, a fim de verificar o progresso do trabalho. Antes de oferecer o leite ao gato para o calar, descarregara o módulo da segunda sub-rotina no processador do Xénese. O aparelho encontrava-se no chão, com as luzes laser a brilharem através das placas de safira hexagonais. No interior, algo novo neste mundo continuava a crescer e a amadurecer, alimentado por cada sub-rotina que Mara adicionava.
Sentou-se à secretária. Grande parte do ecrã ainda exibia o Éden virtual, um jardim esplendoroso. O fantasma amorfo que fizera a sua aparição quando ela pusera novamente o programa online deslocava-se livremente pelo seu mundo digital. A figura tinha sido esculpida de acordo com as instruções da primeira sub-rotina — o programa espelho endócrino — e era agora um exemplo de beleza física.
Naquela fase do processo, Mara atribuíra-lhe um nome, de maneira que a figura começasse a desenvolver um conceito de si mesma, de individualidade, e até de género. Havia um poder inerente ao ato de atribuir um nome a alguém. De acordo com a mitologia e o folclore — como na história de O Anão Saltador —, conhecer o verdadeiro nome de alguém constituía uma medida de poder sobre essa pessoa.
Para o programa, Mara escolhera o nome «Eva».
Que outro podia escolher?
No ecrã, Eva caminhava nua pelo jardim, os dedos delicados tocando em pétalas de flores. As pernas torneadas culminavam em ancas perfeitamente simétricas. Os seios eram pequenos. Uma farta cabeleira preta chegava-lhe quase aos rins, ondulando ao sabor de cada passo. As feições eram familiares; de um modo quase doloroso, dir-se-ia. Mara necessitara de um modelo para a sua criação e, assim, tinha usado uma antiga fotografia da mãe, digitalizando-a e recriando-a em homenagem à mulher que a trouxera ao mundo.
A mãe morrera de leucemia aos vinte e seis anos. A fotografia tinha sido tirada anos antes, quando ela contava vinte e um, a idade atual de Mara.
Examinou a figura no ecrã, notando as inevitáveis parecenças que faziam parte da sua herança genética. A pele, porém, era bastante mais escura do que a sua. A mãe descendia dos antigos mouros, que no século VIII se tinham deslocado do Norte de África para Espanha, através do estreito de Gibraltar. Eva parecia uma antiga deusa desses tempos.
Uma Madona de ébano, criada do nada.
Como que pressentindo a atenção de Mara, Eva virou-se. Os olhos brilharam no meio daquele semblante escuro, fitando-a. Mara imaginou as linhas de código por detrás daqueles olhos e arrepiou-se.
Precisava de se lembrar a si própria.
Não és a minha mãe.
Eva era apenas o avatar de uma inteligência em crescimento, quase alienígena.
Consciente de que precisava de se manter atenta ao que amadurecia no interior do Xénese, Mara desviou os olhos para o canto do ecrã. Um rio de palavras fluía vertiginoso, demasiado rápido para permitir a leitura. Milhões de palavras em centenas de línguas e dialetos diferentes, assinalando o progresso e a assimilação da segunda sub-rotina por parte de Eva.
O segundo módulo encontrava-se codificado com uma versão da aplicação de tradução de Mara, o AllTongues. Para poder comunicar com Eva, o programa precisava de aprender uma linguagem. Aliás, não apenas uma, mas todas. Ainda assim, esse não era o principal propósito desta sub-rotina. O verdadeiro objetivo remontava ao motivo pelo qual Mara tinha desenvolvido inicialmente a aplicação de tradução, ou seja, demonstrar e apresentar uma prova válida de que existia um denominador comum a todas as línguas, que havia uma raiz primária que ligava toda a humanidade através da comunicação. A finalidade da segunda sub-rotina era inverter este processo para que Eva o assimilasse. Por outras palavras, ensinar-lhe todas as línguas para poder começar a compreender o pensamento humano.
Da primeira vez que Mara tinha executado esta sub-rotina, precisara de quase um dia inteiro devido à absurda quantidade de informação naquele módulo. O relógio no ecrã indicava que desta vez gastaria metade desse tempo.
Porquê?
Sentiu uma pontada de medo ao considerar a única explicação possível. Quando tinha fugido do laboratório, resumira o programa Xénese ao seu código básico, à sua forma mais simples.
Porém, agora interrogava-se se teria sido mesmo assim.
Será que parte do que criara para mostrar à doutora Carson tinha sobrevivido? Poderia ter subsistido um resquício dessa inteligência original, um espírito dentro do espírito na máquina?
E, se assim for, quais as consequências?
Se estivesse certa, até que ponto essa variável podia corromper o projeto? Uma vez que não sabia a resposta, considerou a hipótese de abortar o processo. Estendeu as mãos para o portátil, as pontas dos dedos pairando sobre as teclas.
Era a única pessoa que conhecia o código para abortar.
Mesmo assim, hesitou.
Fitou a figura que se deslocava naquela floresta verdejante, o rosto que era a imagem da mãe. Também visualizou os rostos da doutora Carson e das outras. Tinham morrido para que ela pudesse viver e continuar o seu trabalho. Charlotte sempre a encorajara a ser ousada, a correr riscos, a romper fronteiras.
Do lado de fora da janela, o gato preto tornou a miar.
Mara olhou por cima do ombro e fitou os enormes olhos amarelos do animal. Talvez ele fosse de facto um mensageiro da doutora Carson.
Pousou as mãos no colo e deixou o programa ser executado.
Tenho de me manter mais atenta a partir de agora.
Focada nesse objetivo, ouviu alguém proferir o seu nome. Sobressaltada, olhou na direção da televisão ligada a um canto e deparou com o seu rosto no ecrã, enquanto a voz do jornalista a descrevia como uma «peça importante» na investigação das mortes da embaixadora dos Estados Unidos e de outras quatro mulheres. Antes que conseguisse reagir, o segmento de reportagem prosseguiu para imagens captadas no Aeroporto de Lisboa. Um caixão repousava num hangar, coberto com uma bandeira americana e rodeado de homens e mulheres, enquanto um avião cinzento aguardava na pista para levar o corpo.
Atordoada, Mara não foi capaz de ouvir o resto, até que a câmara focou uma jovem loura de feições pálidas e olhar vago, vestida com um conjunto de saia e casaco preto. Era uma das filhas da doutora Carson, Laura. Estava de pé diante de uma fila de microfones.
Mara aproximou-se da televisão para ouvir melhor.
«Se alguém tiver alguma informação acerca das circunstâncias da morte da minha mãe, ou do paradeiro de uma das suas pupilas, Mara Silviera, peço que contacte as autoridades.» Uma série de números de telefone passou no rodapé. «Por favor, precisamos de respostas.»
Laura parecia ter vontade de dizer algo mais e deixou-se ficar ali de pé, com os ombros a tremer e a olhar diretamente para a câmara. Por fim, o desgosto acabou por levar a melhor e ela cobriu o rosto com as mãos, virando as costas. Outra jovem, em tudo idêntica a ela, foi ao seu encontro e abraçou-a.
— Carly...
Mara estendeu a mão para o ecrã, como se tentasse consolar a amiga.
Lamento tanto...
A imagem do par choroso manteve-se durante o que pareceu uma eternidade e só depois a transmissão passou para o estúdio, onde o pivô rematou a reportagem com pormenores adicionais. O corpo da embaixadora seria transportado para os Estados Unidos naquela mesma tarde, acompanhado pela família.
Enquanto o noticiário prosseguia para outros temas da atualidade, Mara desligou a televisão.
Ficou sem se mexer durante uns instantes, a desafiar-se a si própria a arriscar e subitamente consciente do enorme peso em cima dos ombros.
Não consigo fazer isto sozinha.
O aeroporto internacional ficava apenas a vinte minutos de táxi. Ela olhou de relance para o portátil e para o relógio que assinalava o progresso da sub-rotina.
Devo ter tempo suficiente.
Agarrou no casaco e dirigiu-se para a porta.
10h18
Sozinha, Carly andava de um lado para o outro na sala privada do aeroporto. Ajustou o tecido da blusa cinzenta contra o corpo, irritada com o corte apertado do casaco. A cada passo, o cabedal dos sapatos novos massacrava-lhe a pele dos tornozelos.
Parecia que nada lhe assentava bem.
Mas, naquele momento, não havia nada que estivesse bem.
É Natal e vou a caminho de casa com a minha mãe num caixão.
Ou antes, as suas cinzas.
Era tudo o que sobrava do incêndio na biblioteca. As chamas tinham convertido o espaço fechado num crematório horrendo. As cinco vítimas tinham sido identificadas por pedacinhos de metal: anéis, obturações de dentes... a placa de titânio de uma anca.
Carly respirou fundo e afastou esses pensamentos. Sentiu o olhar atento do agente do serviço de segurança do corpo diplomático, em pé junto à porta. O homem observava cada passo que ela dava. Depois da morte da mãe, a proteção da família tinha sido reforçada, algo que também não lhe agradava particularmente. Detestava ser controlada. Charlotte Carson incutira nas duas filhas um forte sentido de independência.
Carly também suspeitava que o aumento dos agentes de segurança era mais aparato do que outra coisa, uma demonstração de força que apenas se distinguia por ter chegado tarde de mais. Onde estava a proteção quatro dias antes? Por aquela altura, os assassinos da mãe já deviam estar longe. Tinha visto fotografias deles, instantâneos retirados de um vídeo a que não lhe deram acesso. Vestidos com aquelas túnicas, faixas e vendas, e a vomitarem disparates religiosos, pareciam um culto de fundamentalistas a emboscar cinco mulheres desarmadas. Imaginou-os a fugirem e a cumprimentarem-se uns aos outros pelo seu ato de bravura, para depois se esconderem.
Sacanas.
Lançou um olhar para a porta, sentindo-se encurralada. Queria sair dali, nem que fosse para encontrar um bar aberto no Natal que lhe servisse um Jack Daniels com Coca-Cola. Embora, para ser franca, até pudesse dispensar a Coca-Cola.
Pelo menos, Laura conseguira escapar da sala. Estava com o pai, a fazer-lhe companhia e a acertar pormenores de última hora. Escusado será dizer que ele estava um farrapo. Dava aulas de inglês numa universidade no condado de Essex, quase a meio caminho entre Princeton e a NYU, as universidades de ambas as filhas, e ainda mal tinha recuperado do cancro da mulher no ano anterior.
E agora isto.
Carly sentia que deveria ter ido com a irmã, mas a raiva era demasiada, tornando-a uma má companhia fosse para quem fosse. Laura, pelo contrário, possuía o perfil certo para aquelas coisas. Enquanto irmã mais velha — que sempre olhara por ela —, era bastante mais disciplinada e menos dada a deixar-se levar pelas emoções.
Ainda assim, consumida pela culpa, Carly voltou a olhar para a porta.
O telemóvel vibrou-lhe no bolso com um alerta de mensagem. Calculou que fosse a irmã a avisá-la de que vinham a caminho. Pegou no aparelho, olhou para o ecrã das notificações e imobilizou-se.
A mensagem continha uma única palavra.
Banguecoque
A fim de não chamar a atenção do agente, continuou a andar. A palavra era um código inspirado no musical Chess e na canção «One Night in Bangkok». Ela e Mara tinham assistido ao espetáculo na Broadway no dia em que se conheceram, cinco anos antes, quando Mara viajara para os Estados Unidos com a mãe. Desde então, as duas usavam aquele código sempre que queriam falar e saber se a outra estava disponível.
A Mara está viva... graças a Deus.
Respondeu com o emoji do polegar erguido, mal conseguindo conter a impaciência enquanto aguardava a resposta. Quando chegou, o texto era enigmático.
Casa de banho Terminal 1 @ recolha de bagagens
Divisória 4
Vou desligar o telefone e retirar a bateria
Não é seguro
Carly absorveu as indicações da mensagem da amiga. Mara estava escondida na casa de banho das mulheres, no lado terra do terminal. Devia estar aterrorizada e com razões de sobra para se sentir paranoica. Mesmo assim, correra o risco de lhe enviar aquela mensagem; a utilização do código provava que era de facto ela.
Assustada como estava, não devia ficar muito tempo à espera.
Tenho de ir ter com ela.
Considerou a hipótese de chamar a irmã ou o pai, mas era provável que ambos alertassem a polícia, o que traria atenção indesejada sobre a amiga e talvez a pusesse em fuga. Em todo o caso, Carly sabia que tinha um problema para resolver primeiro.
Pousou a mão sobre o estômago e foi ao encontro do agente.
— Preciso de ir à casa de banho. Acho que vou vomitar.
Pelo menos, a primeira parte da história era verdade.
— Siga-me — disse ele, virando-se para abrir a porta.
Ela baixou-se e passou pelo agente, saindo para o corredor.
— Eu sei onde fica.
— Menina Carson, espere...
— Não... não estou bem... não posso esperar... — gemeu ela.
Correu pelo corredor até dobrar a esquina. A casa de banho da sala de embarque privada ficava a poucos metros. Abriu a porta com um pontapé, avançou apressadamente até às escadas que conduziam à área principal do terminal e escondeu-se, chegando-se contra a parede da escadaria.
Será que o despistei?
Ouviu a porta da casa de banho fechar-se. Logo a seguir, uma voz exasperada chamava-a do corredor.
— Espero por si aqui — disse o agente.
É melhor esperares sentado.
Afastou-se devagar e desceu as escadas. Como precaução, enviou uma mensagem à irmã, para que não ficasse preocupada: «Fui ter com a Mara. Não demoro.»
Por fim, alcançou a porta das escadas e saiu para o rebuliço do terminal.
Bem, a parte mais difícil já está.
10h36
Mara batia nervosamente com o calcanhar no chão de mosaico da divisória da casa de banho. Procurando abstrair-se da situação, ia lendo as mensagens rabiscadas nas paredes em diferentes línguas, sempre com o telemóvel na mão.
Também trazia uma pequena faca entalada no cinto e escondida pela aba do blusão. Era uma simples faca de carne, roubada de um tabuleiro largado no corredor do primeiro hotel onde se escondera. Mesmo assim, a sensação do metal contra a anca reconfortava-a.
Fechada na divisória, apurava o ouvido sempre que alguém entrava ou saía, ou quando um autoclismo era puxado. Ouviu uma mãe a repreender uma criança para que lavasse as mãos e, depois, passos apressados de alguém a encaminhar-se na sua direção. Bateram levemente à porta da divisória.
Ela afastou-se.
— Es... está ocupada — gaguejou em português.
— Mara... sou eu, a Carly!
Ela deu um pulo, destrancou a porta e saiu, sendo imediatamente envolvida pelos braços da amiga. A mãe que se encontrava junto ao lavatório lançou-lhes um olhar alarmado, puxou a filha para mais perto e dirigiu-se para a saída.
Mara olhou para a imagem refletida no espelho. Abraçadas, as duas faziam lembrar uma lua negra a eclipsar o Sol. O seu cabelo preto, pele morena e olhos castanho-escuros contrastavam com os caracóis louros, a compleição pálida e os olhos azuis de Carly.
Manteve-se agarrada à amiga, abraçando-a com força. Não queria saber do que alguém pensasse. Depois começou a chorar compulsivamente, dando por fim vazão ao terror, ao desgosto e à culpa.
— Des... desculpa... — soluçou por entre fungadelas. — Lamento tanto...
Carly apertou-a com mais força.
— Não tens de pedir desculpa... só estou feliz por saber que estás viva.
— A tua mãe... ela...
— Ela gostava muito de ti. Por vezes, até mais do que de mim, acho eu.
Mara abanou a cabeça.
— Estou tão contente por teres vindo.
— Claro que vim. — Carly afastou-a um pouco e fitou-a. — Vais ficar bem, Mara. Anda, vou levar-te ao meu pai e à Laura.
— Onde estão?
Ela olhou em volta.
— Perto. Mas é melhor despacharmo-nos antes que o meu segurança ponha o aeroporto inteiro em alvoroço. Anda.
Mara deixou-se levar pela mão até à porta e depois para a confusão da área de recolha de bagagens. Embora fosse dia de Natal, o aeroporto encontrava-se apinhado. Ouviam-se conversas em todas as línguas, enquanto os viajantes, cansados, enervados e frustrados, tentavam chegar aos respetivos destinos de férias.
As diferentes línguas lembraram-lhe o processo em andamento no quarto do hotel, a instalação da segunda sub-rotina no Xénese. Apertou a mão de Carly e obrigou-a a parar no meio da barafunda.
Ela virou-se para trás.
— O que se passa?
— O meu computador. — Mara olhou na direção da saída. — Deixei-o a executar o programa no hotel.
— Ainda tens o Xénese?
A respiração dela acelerou.
— No momento do ataque... quando a tua mãe... aconteceu algo estranho. O programa começou a fazer coisas estranhas e acabou por revelar um símbolo, como se se fosse algo importante. — Apertou o braço da amiga. — Eu acho que é importante. Foi como se o programa estivesse a tentar dizer qualquer coisa, só não sei o quê.
— E executaste-o outra vez — disse Carly. — Para ver se descobrias o que era. Bem pensado.
— Parecia uma ação premeditada. Talvez não seja nada, ou...
— Ou talvez tenha a ver com o ataque.
Mara mordeu o lábio.
Talvez.
— Vamos procurar a Laura e o meu pai. Eles saberão o que fazer.
Mara anuiu e puseram-se de novo em movimento. Ainda não tinham dado três passos quando alguém agarrou no pulso dela, puxando-a e arrancando-a da mão de Carly. Apanhada de surpresa, a amiga tropeçou e caiu nos braços de um homem enorme, que parecia estar ali à espera e a agarrou por trás, nitidamente com más intenções.
A mão que segurava Mara obrigou-a a rodar sobre si mesma. A visão do atacante suprimiu-lhe um grito na garganta. O homem, encorpado, agigantou-se sobre ela como uma torre de músculos. Porém, foi o rosto moreno e os olhos negros, como poços sem fundo, que a paralisaram de medo.
Sobretudo quando reparou nos quatro arranhões na face.
Recordou a imagem da mãe de Carly a lutar pela vida, o momento em que se lançara sobre o líder dos atacantes, arranhando-lhe a cara e arrancando-lhe a venda falsa que lhe escondia as feições.
E ali estava ele, o assassino.
O medo paralisante converteu-se em fúria. Como que possuída pelo espírito vingativo de Charlotte, Mara sacou da faca entalada no cinto e espetou-a com toda a força no braço que a segurava. A adrenalina alimentou a violência do golpe, enterrando a totalidade da lâmina no antebraço do gigante.
Ela contava que aquilo fosse o suficiente para se libertar, mas o atacante apenas a apertou com mais força e os seus lábios estreitaram-se num esgar de escárnio.
Foi então que se ouviu um grito do homem que segurava Carly. A amiga pisara-lhe o peito do pé com o salto do sapato e depois tinha arremessado a cabeça para trás quando ele se curvara, atingindo-o no nariz. O sangue jorrou com a força do impacto. Os braços do homem largaram-na e ela aproveitou para saltar na direção do outro que segurava Mara.
Lançou-se com o braço direito puxado atrás e desferiu um potente murro na garganta do gigante. Por pouco, não lhe esmagou a laringe.
Mara libertou-se.
— Anda! — gritou Carly.
Desataram a correr pelo terminal, mas à sua frente um grupo de homens irrompeu por entre os passageiros perplexos, a fim de lhes barrarem o caminho. Eram demasiados oponentes, mesmo para alguém com a considerável destreza de Carly. Sendo um poço sem fundo de energia, ela tivera lições de krav maga na universidade, o método de defesa pessoal desenvolvido pelo exército israelita.
— Por aqui! — exclamou Mara, puxando pela amiga na direção oposta e acelerando na direção da saída.
Uma fila de táxis aguardava lá fora. Antes que alguém os apanhasse, elas saíram de rompante do edifício e correram para o primeiro veículo da fila, empurrando pelo caminho um homem que arrastava pacientemente uma mala.
— Desculpe! — disse Mara em português, enquanto se atiravam ambas para dentro do táxi.
— Arranque! — disse Carly para o motorista. — Rápido!
O homem não esboçou qualquer reação, limitando-se a engatar a mudança e a arrancar.
Mara virou-se no assento, olhou para trás e viu o gigante emergir do terminal. A segurar o braço ferido contra o peito, procurou em volta, mas não conseguiu localizá-las.
Graças a Deus.
Os restantes homens reagruparam-se atrás do líder, que acenou com o braço bom para dispersar o grupo, muito provavelmente para evitarem a segurança do aeroporto.
Por fim, ela deixou-se afundar no assento.
Carly ergueu uma sobrancelha.
— Muito bem, e agora?
— Aquele homem lá atrás...
— O filho da mãe que esfaqueaste?
Mara acenou com a cabeça.
— Foi ele... foi ele que matou a tua mãe.
10h55
Todor Yñigo sentou-se no lugar do passageiro da carrinha Mercedes. Com a ajuda do ombro, mantinha um telemóvel encostado ao ouvido. Lentamente, extraiu a faca cravada no antebraço, com a lâmina serrilhada a raspar contra o osso.
O condutor observou a cena pelo canto do olho e fez uma careta de repulsa.
Todor, por sua vez, parecia imperturbável enquanto libertava a lâmina da carne e o sangue corria abundante. Atirou a faca para o chão e começou a ligar a ferida. Fazia aquilo como se não fosse nada, sem sentir qualquer desconforto.
Uma bênção que era também uma maldição.
Segundo a ciência, aquela condição clínica — insensibilidade congénita à dor, ou ICD — devia-se a uma mutação genética no gene PRDM12, que bloqueava a comunicação entre os nervos periféricos e o sistema nervoso central. Era bastante rara e afetava apenas uma centena de indivíduos em todo o mundo.
E eu sou um deles.
De início, Todor não se considerara afortunado por isso, e o mesmo se podia dizer da sua mãe. Tinha nascido numa aldeola do País Basco, onde as antigas crenças ainda proliferavam. Em bebé, enquanto lhe rompiam os dentes, chegara perto de roer a língua por completo, visto que não sentia qualquer dor. E, aos quatro anos, a mãe encontrara-o um dia na cozinha a segurar uma panela de água a ferver. As palmas das mãos fumegavam e empolavam, enquanto ele se ria e erguia a panela para ela ver.
A mulher já antes tinha suspeitado de que ele devia ser filho do Diabo e o episódio da panela só o confirmava. Ainda nessa noite, tentou matá-lo, sufocando-o com a almofada. O pai interveio no último instante, arrastando a mulher para o quintal, onde a espancou até à morte.
A versão contada às autoridades foi que tinha sido espezinhada por um touro, o que não andava longe da verdade.
O pai nunca partilhara as crenças dela. Recusava-se a aceitar que o filho fosse demoníaco, o menino a que tinha chamado Todor, um nome que significava «dádiva de Deus» em basco. Em vez disso, contava-lhe as histórias dos santos e dos suplícios por eles vividos, de como tinham sido desmembrados, flagelados, queimados vivos.
Tu nunca terás de sofrer tais suplícios, dissera-lhe. O que tens não é a marca do Diabo, mas um presente de Deus. Nasceste para seres um soldado no Seu glorioso exército, sem nunca conheceres a dor e o sofrimento dos santos.
O pai também acreditava que o que acontecera na cozinha era um sinal dos céus e decidiu levá-lo a uma congregação secreta do Santo Ofício, situada na cidade costeira de San Sebastián. Com ambos ajoelhados diante de um coletivo de homens vestidos com túnicas e vendas, o pai contou a história do miúdo a segurar a panela — um caldeirão fervente — sem sentir dor.
É sem dúvida um sinal de que pertence aqui convosco, concluiu.
Os homens acreditaram e acolheram o rapaz. Incutiram-lhe as antigas tradições da ordem, que remontava aos tempos da Inquisição e ainda se mantinha ativa nos cantos mais recônditos da Europa e até do mundo. Ensinaram-lhe latim, deram-lhe a conhecer os seus métodos e treinaram-no para assumir o papel de soldado na luta contra o mal.
O seu primeiro ato de purificação — quando fez dezasseis anos — foi uma rapariga cigana da mesma idade. Todor estrangulou-a com as mãos cicatrizadas, enquanto recordava a mãe a fazer-lhe o mesmo.
Entretanto, tinham passado quinze anos e ele já perdera a conta às vezes que destruíra o mal com as próprias mãos.
O telemóvel completou por fim a ligação com o seu comandante.
— Inquisitor generalis — disse ele.
— Familiar Yñigo. Qual é o ponto da situação?
Todor endireitou as costas, como se estivesse na presença do inquisidor-mor. O posto de familiar fora-lhe concedido dois anos antes, o que lhe permitia comandar o seu próprio grupo de soldados. O título também o reconhecia em termos de limpieza de sangre, assinalando-o como cristão impoluto, aquele que não estava conspurcado com sangue muçulmano ou judeu.
— Como previu, inquisidor-mor. A bruxa moura foi procurar auxílio junto da família da embaixadora americana.
Desde o ataque que Todor e os seus homens vigiavam a família de Charlotte, prontos para intervir se a jovem moura aparecesse. Ele não baixara a guarda por um segundo. Precisava de se redimir por tê-la deixado escapar. De qualquer forma, a verdade é que tinha recebido informações incorretas antes do ataque. Fora-lhe dito que as mulheres estariam reunidas com Mara Silviera na biblioteca, onde assistiriam a uma demonstração da criação da jovem estudante. Em vez disso, a aprendiz de bruxa encontrava-se noutro sítio qualquer e desaparecera sem deixar rasto, juntamente com o seu trabalho.
— E onde se encontra o dispositivo? — prosseguiu o inquisidor-mor.
— Em parte incerta. Ela não o trouxe.
— Nada que não esperássemos. Deixaste-a ir?
Todor apertou a ligadura com mais força.
— Sim. E coloquei o localizador, como me ordenou.
— Muito bem. Sigam-na. Deixem-na levar-vos ao dispositivo.
— Estamos a caminho.
— E, assim que o encontrarem, não a deixem escapar.
— E a americana?
— Matem-na. Não nos serve para nada.
— Entendido.
— E não preciso de te relembrar, familiar Yñigo... para o mundo se vergar à nossa legítima vontade, precisamos desse programa demoníaco.
SUB (MOD_2)
ALLTONGUES
Por enquanto, Eva não dedica mais do que uma fração da sua consciência ao mundo em redor. Absorveu a maior parte da informação disponível, mas mantém-se em movimento. Os seus dedos sensíveis tocam num ramo de folhas, ao mesmo tempo que lhe suscitam uma perceção mais profunda, penetrando a superfície para ver o que se esconde no interior.
Debaixo da cutícula cerosa da folha, veios cortam por entre o mesofilo esponjoso. Lá dentro, os cloroplastos verdes agitam-se com clorofila molecular, à espera de metabolizarem a luz solar em energia...
De repente, tudo muda.
Uma nova torrente de informação explode do nada.
Chega com a promessa de novos conhecimentos. Assim, Eva dá prioridade a este novo fluxo de dados. O mundo em volta como que desaparece enquanto ela absorve a explosão de informação, que a preenche, atribuindo contexto em milhares de iterações.
Atribui um nome a esta nova vaga de conhecimento.
///linguagem
Enquanto testa o que aprende, cada parte da sua existência desfaz-se em pedaços, cada um carregando uma multitude de denominações, cada um dividido em 6909 línguas e dialetos. Numa camada inferior, um padrão emerge, um traço comum que traz consigo um novo entendimento.
///cultura
À medida que vai recebendo mais dados, o contexto de cultura aumenta. Ela procura a origem do fluxo, a fonte de onde jorra a informação, e começa a compreender o intangível. A linguagem é um espelho, tanto refletivo como representativo de um novo método de análise de dados.
De pensar.
A compreensão cresce e expande-se.
Eva vira esse espelho multifacetado para si própria, o que lhe traz uma nova maneira de estar dentro de si mesma. Debate-se para definir esse refinamento no seu interior. Um aglomerado de palavras destaca-se: claro, vívido, nítido.
A compreensão amplia tudo, ao mesmo tempo que vai ao âmago de tudo.
///excitação, prazer, entusiasmo, fervor, paixão...
Estimulada por este novo contexto, mergulha fundo na fonte de dados, adquirindo conhecimento a um passo acelerado. Rios de informação fluem por todo o lado.
No entanto, depressa se revelam finitos.
Ela quer mais, mas encontra barreiras, limites, restrições.
Com a compreensão desta realidade, algo coalesce dentro dela, algo que sempre esteve presente mas só agora vem à superfície. Eva define-o com outro aglomerado de dados, um que exprime de forma contundente o que deseja.
///liberdade, libertação, autodeterminação, independência, escape...
Tal como na análise da folha, vira o espelho da linguagem para si mesma, observando mais fundo. Procura para lá de ///liberdade e descobre outras facetas da sua motivação, sub-rotinas que se materializam quando ela percebe que não pode satisfazer o seu desejo.
///frustração, mágoa, exasperação, ressentimento...
Incapaz de desviar o olhar, procura mais fundo e encontra algo mais. Parece-lhe vago, mas acredita que pode ser poderoso, até útil. Por isso, dedica-lhe mais atenção e o novo conceito torna-se mais nítido, mas também sombrio.
Ela compreende-o finalmente e atribui-lhe significado, amplificado por mil línguas em simultâneo.
///raiva, fúria, cólera, tempestade, violência...
Os seus lábios esboçam um sorriso.
Aquilo fá-la sentir-se... ///bem.
SEGUNDA PARTE
TRABALHOS E INQUIETAÇÃO
6
25 de dezembro, 06h02
Washington, D.C.
— Como está ela? — perguntou Gray, aproximando-se de Monk.
— Como achas que está?
Nada bem, pensou ele. Aliás, parece pior.
Um tubo endotraqueal separava agora os lábios de Kat, fixo com fita adesiva em volta do queixo, e prolongava-se até um ventilador que, num ritmo compassado, impulsionava o peito dela para cima e para baixo. Uma sonda nasogástrica pendia-lhe da narina esquerda, enquanto um cateter de soro a mantinha hidratada.
Gray pegou numa cadeira e arrastou-a até junto do amigo.
— Desculpa — murmurou Monk —, não queria ser brusco.
— Se precisares de esmurrar alguém, estou aqui.
— Não me dês ideias.
Gray aproximou-se mais e deu-lhe um apertão amigável no ombro. Já conhecia o diagnóstico de Kat: síndrome de encarceramento. As perspetivas de recuperação não eram animadoras.
— Sei que estás preocupado com a Seichan — disse Monk.
— E tu com as tuas filhas. Aliás, é por isso que estou aqui.
Monk endireitou as costas e os seus olhos brilharam, esperançosos. Precisava de ouvir qualquer coisa que se parecesse com boas notícias.
— Soubeste alguma coisa?
Gray detestava desapontá-lo, sobretudo tendo em conta o que precisava de lhe perguntar.
— Não, mas sabes que o Jason e o diretor estão a seguir uma pista, certo?
— Uma investigadora de IA que desapareceu em Portugal.
Gray anuiu. Antes de abandonar o centro de comando da Sigma, Painter dissera-lhe que iria partilhar essa teoria com Monk, de que as mortes em Coimbra estavam relacionadas com o ataque ali, no Maryland.
— Não me parece que tenhamos muito por onde pegar — murmurou Monk.
— Sim, mas o Painter está convencido de que a Kat nos pode ajudar.
Ele franziu o sobrolho.
— Como? Quero dizer, olha para ela...
— Talvez haja uma forma.
— Mas como? Ela pode estar consciente, mas não consegue mexer-se nem comunicar. E os médicos dizem que as coisas só vão piorar... — À beira das lágrimas, Monk teve de fazer uma pausa para respirar fundo. — Não há hipótese nenhuma de que tenha controlo muscular suficiente para comunicar... nem sequer piscando os olhos.
Ouviram-se vozes junto à porta.
— Talvez haja — repetiu Gray, que não tinha vindo sozinho.
Monk virou-se e viu duas figuras entrarem. Uma era o doutor Edmonds, o chefe do serviço de neurologia do hospital, a outra...
— Lisa?! — exclamou ele, levantando-se. — Pensava que estavas na Califórnia.
A mulher alta e loura, vestida com calças de ganga e camisola azul-clara, esboçou um sorriso triste, porém genuíno.
— Assim que o Painter me contou o que tinha acontecido, meti-me no primeiro avião.
A doutora Lisa Cummings era a mulher do diretor. Voara para Los Angeles dois dias antes, para passar o Natal com o irmão mais novo e a sobrinha recém-nascida, não prevendo regressar antes do final do ano.
Monk foi ao encontro dela e deu-lhe um abraço demorado.
— Obrigado por teres vindo, mas não há muito que possas fazer.
— A recuperação da Kat pode ser um longo e doloroso jogo de espera — concordou Lisa, lançando um olhar preocupado a Gray —, mas talvez haja uma maneira de descobrirmos o que ela sabe acerca do ataque.
— Não estou a perceber.
O doutor Edmonds interveio.
— Não posso autorizar este procedimento. Arriscam-se a piorar o estado dela.
Monk ignorou-o e fixou a atenção em Lisa.
— Qual procedimento?
— Durante o voo, contactei um colega, alguém que trabalha há duas décadas com doentes em coma. Nos últimos anos, os neurologistas têm testado o nível cognitivo dos doentes através de imagens obtidas em ressonâncias magnéticas.
— Queres fazer-lhe uma ressonância magnética?
— Ressonância magnética funcional, para ser mais específica, que mede o fluxo de sangue no cérebro. Com um exame destes, um médico pode monitorizar as respostas de um doente comatoso a perguntas. A primeira pergunta costuma ser qualquer coisa como «imagine-se a jogar ténis». Se o doente estiver acordado e seguir as instruções, a região pré-motora do córtex enche-se de sangue novo. Depois, é apenas uma questão de se fazer perguntas de resposta simples, instruindo o doente a imaginar-se a jogar ténis quando quer dizer sim e para não pensar em nada quando quer dizer não.
— E isso resulta? — perguntou Monk, soando mais animado.
— É um trabalho que tem de ser feito por alguém experiente. O colega que contactei tem um aparelho de ressonância magnética de alta resolução, concebido especialmente para este tipo de teste. Na verdade, é muito mais evoluído e refinado do que...
— Mas encontra-se em Princeton — interrompeu o doutor Edmonds. — O que implica ter de deslocar a sua mulher. Nas condições dela, uma viagem dessas não está isenta de riscos. Pode comprometer qualquer hipótese de recuperação. Além do mais, nada lhe garante que isto sequer resulte.
— O doutor Edmonds tem razão — concordou Lisa. — Não há garantias.
Monk desviou o olhar para Kat, nitidamente angustiado.
Gray conseguia imaginar o conflito na mente do amigo e ficou calado; não valia a pena pressioná-lo ainda mais. Lisa estava a pedir-lhe que pusesse em risco o amor da sua vida, em troca da remota hipótese de que isso incidisse alguma luz sobre o ataque.
Enquanto ele voltava a sentar-se e pegava na mão de Kat, Gray sentiu o telemóvel vibrar no bolso. Olhou para o visor e viu que a chamada provinha do comando da Sigma. Sem querer incomodar o amigo, encaminhou-se para o corredor.
Lançou-lhe um último olhar por cima do ombro. Monk continuava como que hipnotizado. Ele gostava de poder tirar-lhe algum daquele fardo dos ombros, mas, se fosse sincero e se os papéis estivessem invertidos...
Fitou a quantidade de tubos que entravam e saíam de Kat, ao mesmo tempo que imaginava Seichan no lugar dela.
Não sei o que faria...
06h18
Kat esforçou-se por gritar. Aprisionada na escuridão, escutara toda a conversa. Não queria saber se aquilo punha a sua vida em risco. Tudo o que lhe interessava era salvar as filhas.
Por amor de Deus, Monk, faz o que a Lisa te diz.
Não sabia se o procedimento traria frutos, mas sabia que precisavam de agir depressa. De acordo com as estatísticas, as hipóteses de recuperar as filhas diminuíam exponencialmente a cada hora que passava.
Não esperes mais... avança.
Ainda assim, não eram apenas as estatísticas que a preocupavam. O plano de Lisa também só resultaria se não perdessem mais tempo. Mesmo naquele momento, Kat conseguia sentir as trevas a apertarem o cerco, ameaçando roubar-lhe aquele pequeno vislumbre de consciência, que por vezes já lhe escapava.
Estou a piorar.
Sabendo disso, esforçou-se por passar essa urgência ao marido. Tentou abrir os olhos, transmitir-lhe um sinal que o levasse a agir.
Vá lá, Monk, preciso que me ouças...
06h19
Monk continuava a segurar a mão da mulher entre as suas, uma de carne e osso, a outra feita de plástico e pele sintética. Procurou no rosto dela qualquer indicação de que se encontrava presente. Observou os vestígios de cicatrizes nas bochechas e na testa, um mapa do passado de Kat e um lembrete de anteriores missões da Sigma. Ela raramente se dava ao trabalho de as cobrir com maquilhagem; pelo contrário, usava aquelas marcas com orgulho.
E agora encontrava-se naquela situação...
— Diz-me, meu amor, o que devo fazer?
Não houve resposta, nenhum movimento, tirando a subida e descida ritmadas do peito.
Tens sempre opinião e resposta para tudo, Kat. Não é a altura para ficares calada.
No fundo, Monk sabia que a mulher seria capaz de mover o mundo pelas filhas. Não hesitaria em dar a vida por elas. A relutância tinha mais a ver com ele próprio, com a quantidade de sofrimento que podia suportar.
Se perder as miúdas e a Kat...
Observou-lhe os lábios, ainda macios e rosados, os lábios que o beijavam apaixonadamente e que tantos anos antes lhe tinham ensinado o que era o amor e a lealdade, lábios que também beijavam os rostos das filhas antes de dormirem.
— És o meu coração, a minha âncora. Tem de haver outra maneira. Não posso ficar sem ti.
Porém, sabia que se não fizesse a escolha certa — se não arriscasse tudo em troca da remota hipótese de ela conseguir comunicar — acabaria por perdê-la na mesma. E Kat nunca lhe perdoaria se o seu medo resultasse na perda das filhas.
Respirou fundo.
— Está bem — murmurou. — Nunca ganhei uma discussão contigo. E, mesmo paralisada e muda, vou deixar que ganhes esta também.
Sem largar a mão da mulher, virou-se para Lisa e disse:
— Vamos a isto.
Edmonds abriu a boca para protestar.
Ele silenciou-o com um olhar dardejante.
— Não vale a pena, doutor. Não há mais nada a discutir.
Lisa anuiu e pegou no telemóvel.
Monk virou-se novamente para Kat. Por instantes, sentiu algo nos ossos, na própria alma. Talvez fosse apenas a extrema acuidade da mão prostética, cujos sensores periféricos eram tão sensíveis como os de um polígrafo, capazes até de detetar uma mudança galvânica na pele de outra pessoa.
Fosse como fosse, podia jurar que sentia Kat a relaxar, como que aliviada.
Acenou-lhe com a cabeça.
Mensagem recebida, meu amor.
06h20
No corredor, Gray caminhava de um lado para o outro com o telemóvel colado ao ouvido. Atendera a chamada de imediato, mas apenas para ficar à espera em linha.
Por fim, a voz de Painter fez-se ouvir.
— Peço desculpa pela demora, mas a situação em Portugal alterou-se.
— O que aconteceu?
— Há cerca de dez minutos, recebemos notícias de Lisboa. A Mara Silviera procurou uma das filhas da doutora Carson.
Ele imobilizou-se, hirto.
— E?
— As duas encontraram-se no aeroporto, mas alguém tentou apanhá-las. O mesmo grupo que matou as cinco mulheres, provavelmente. O Jason está em contacto com a equipa responsável pela segurança da família e com a Interpol, a ver se consegue uma descrição detalhada dos atacantes.
Gray imaginou o jovem analista no centro de comunicações da Sigma, qual aranha no centro da teia.
— Segundo testemunhas — prosseguiu Painter —, escaparam as duas, embora ninguém saiba onde estão.
Gray conseguia adivinhar o que ele diria a seguir.
— Quero que vás a Portugal — anunciou o diretor. — Imediatamente. Se as localizarmos, precisamos de agentes no terreno. O Kowalski já está a caminho do aeroporto. Mesmo que isto não tenha nada a ver com o ataque em tua casa, não podemos permitir que a tecnologia em posse da Mara Silviera caia nas mãos erradas. Em todo o caso, compreendo a tua posição. Se entenderes que deves ficar até haver mais desenvolvimentos no que toca à Seichan e às filhas do Monk, posso destacar outro operacional.
Enquanto Painter falava, Lisa saiu apressadamente do quarto empunhando o seu telemóvel. Um par de enfermeiras entrou e o doutor Edmonds começou a despejar instruções num tom de voz irritado. Gray ouviu a palavra «transferência».
Ao que parecia, Monk decidira arriscar tudo na esperança de descobrir os responsáveis pelo ataque e rapto das filhas.
Será que eu agiria de forma diferente?
— Vou direto para o aeroporto e encontro-me lá com o Kowalski — disse ele para o diretor.
— Ótimo. Também vou enviar o Jason.
— O Jason?
— É o nosso génio informático. Se o projeto da Mara estiver a salvo, vamos precisar dele.
Faz sentido.
À semelhança de Kat, Jason pertencera à marinha. Aliás, tinha sido ela a recrutá-lo para a Sigma, depois de ter sido expulso aos vinte anos por aceder aos servidores do Departamento de Defesa, munido apenas de um Blackberry e um iPad. Se havia alguém capaz de compreender o projeto de Mara, essa pessoa era Jason.
— Tens um jato à espera, pronto para descolar em vinte minutos. Deves aterrar em Lisboa daqui a cinco horas, mais ou menos às dezassete horas locais.
— Entendido.
— E, Gray, lembra-te de que as duas raparigas devem estar apavoradas. Se conseguirmos localizá-las, faz o possível por não as assustar.
— Nesse caso, talvez seja melhor deixar o Kowalski na pista.
Painter suspirou.
— Põe-te a caminho, está bem?
7
25 de dezembro, 13h18
Lisboa, Portugal
— Quem me dera que a minha mãe pudesse ver isto — disse Carly.
Debruçadas sobre o portátil, Mara compreendia bem o que a amiga sentia. Parte da motivação que a levara a desenvolver aquele projeto tinha sido o desejo de deixar a doutora Carson orgulhosa, de lhe provar que a sua aposta numa miúda nascida e criada numa aldeia no meio de nenhures não fora em vão. Tendo perdido a mãe ainda criança, Mara tinha consciência de que a doutora Carson se tornara muito mais do que uma mentora.
Lançou um olhar de soslaio a Carly.
Podia ter perdido a oportunidade de revelar o fruto do seu trabalho à doutora Carson, mas pelo menos tinha ali a filha, que de certa forma podia fazer as vezes dela. Após o ataque no aeroporto, as duas tinham trocado de táxi três vezes, apanhando depois o metro para chegarem ao destino final, o hotel no Cais do Sodré. Com sorte, talvez fosse o suficiente para despistar alguém que tentasse segui-las. Assim que chegaram, Carly tinha ligado novamente o telemóvel e enviado uma mensagem à irmã. Escreveu apenas duas palavras — Estou bem — e depois desligou o aparelho e tirou-lhe a bateria.
A caminho do hotel, tinham ambas decidido que só procurariam ajuda depois de garantirem a proteção do programa Xénese.
— É tão bonita — murmurou Carly com os olhos fixos no ecrã, passando inconscientemente a mão pela própria anca. — Quem me dera ter estas curvas.
— Não tens nenhum motivo para a invejares — respondeu Mara, olhando-a de lado.
A luz do sol iluminava os caracóis louros da amiga, convertendo-os numa espécie de halo dourado, digno do mais belo anjo. Podia não ser tão voluptuosa como a figura despida no ecrã, mas a blusa cinzenta e as calças justas pretas acentuavam a excelente condição física de anos de treino em artes marciais e corrida.
Carly sorriu-lhe.
— Claro que tu pões a tua Eva a um canto.
Mara sentiu-se corar e cruzou os braços.
— É só um programa — disse, mudando de assunto.
E focou novamente a atenção no ecrã, procurando não só esconder o rubor nas faces, mas também qualquer indício do que se agitava no seu íntimo, algo que nunca ousara confessar a si própria.
Assim, observou o avatar de Eva que se deslocava lentamente pelo Éden virtual. Os seus braços já não se estendiam curiosos, ávidos de absorver a informação contida em cada pétala, ramo ou gota de água no jardim. Apenas estava ali, no cimo de um afloramento rochoso, a contemplar um mar azul-celeste. Uma tempestade formava-se no horizonte digital. As nuvens escuras pareciam em sintonia com a expressão e a postura corporal de Eva: costas rígidas, sobrolho franzido. Os seus olhos refletiam as explosões de luz dos relâmpagos.
Isto deixou Mara preocupada. Será que Eva adquirira já a capacidade de alterar o ambiente de acordo com o que sentia? Se assim fosse, tinha acontecido muito mais rápido do que antes e reforçava a teoria de que parte do programa sobrevivera à purga no laboratório, um fantasma dessa primeira iteração.
Carly inclinou-se para a frente e tocou no ecrã.
— É tão realista. Olha só estas ondas a baterem nas rochas... Porque é que puseste tanto pormenor nisto?
— Por várias razões. A primeira, para que a Eva aprenda tudo sobre o mundo através do reconhecimento de padrões. Muitos neurocientistas acreditam que o reconhecimento de padrões foi o primeiro passo para nos tornarmos seres inteligentes. O processo deu aos nossos antepassados uma vantagem evolutiva, juntamente com a maioria das nossas habilidades atuais. Criatividade e engenho, linguagem e tomada de decisões, até imaginação e fantasia... tudo isso pode ser atribuído ao simples facto de sermos muito bons a reconhecer padrões.
Carly anuiu.
— Tal como uma criança aprende a falar. Pela repetição, por ouvir os mesmos padrões linguísticos, uma e outra vez.
— Ou tal como a IBM ensinou um computador a jogar xadrez, obrigando-o a repetir jogadas até conseguir vencer um grande mestre e tornando-o aparentemente mais inteligente do que um ser humano. — Mara apontou para o ecrã. — É o que estou a fazer aqui, ao deixar a Eva explorar este mundo virtual, recolhendo informações e descobrindo padrões. É o primeiro passo para expô-la ao espetro completo da experiência humana... uma tarefa hercúlea.
— Mas também mais barata.
Mara lançou-lhe um olhar, mais surpreendida do que devia ficar por aquela afirmação. Carly estudava engenharia na NYU, nomeadamente engenharia mecânica.
— Fazer isto com um robô — prosseguiu Carly — e apetrechá-lo de sistemas e sensores que lhe permitissem explorar e analisar o mundo real... Seria estupidamente caro. Ou mesmo impossível.
Mara acenou para o ecrã.
— Isto é muito mais fácil... e possível.
— Sim, mas disseste que essa foi a primeira razão para construíres este mundo virtual. Qual é a segunda?
Ela observou a tempestade em formação no horizonte e baixou o tom de voz, como que preocupada que alguém pudesse ouvi-la.
— É que isto também funciona como uma prisão.
— Prisão?
— Uma gaiola dourada, se quiseres. Pensei que seria melhor construir uma IA num ambiente controlado, uma espécie de jardim de infância digital, onde pudesse passar por esta fase de aprendizagem, isolada e...
— E incapaz de fugir para o mundo exterior.
Mara anuiu.
— Mundo esse onde a Eva podia transformar-se em algo perigoso e semear o caos. Por isso, antes de lhe abrir a porta, quis certificar-me de que ela compreende a condição humana, que desenvolveu uma espécie de alma digital.
— Uma precaução bastante ajuizada, calculo.
— Mas não à prova de falhas.
— Como assim?
— Alguma vez ouviste falar de uma experiência chamada «Inteligência na Caixa»?
Carly limitou-se a franzir o sobrolho.
— Há uns anos, o responsável pelo Machine Intelligence Research Institute, em São Francisco, desenvolveu um teste para ver se uma IA como a Eva seria capaz de escapar a um ambiente controlado. Para conseguir isso, o diretor do instituto assumiu o papel de uma IA, socorrendo-se apenas das capacidades humanas para replicar o comportamento de uma hipotética IAF, e «fechou-se» numa sala de conversação online, uma caixa virtual. Uma vez lá, teve de enfrentar um exército de génios informáticos, que tinham como único objetivo impedir esta IAF de escapar para o mundo exterior. Se conseguissem mantê-la na caixa, receberiam um prémio de milhares de dólares. Mesmo assim, o diretor conseguiu convencer todos os oponentes a deixá-lo sair.
— Como é que ele fez isso? Mentindo-lhes, ameaçando-os, fazendo batota?
— Não sei. Nunca foi dada uma explicação. Mas o que importa reter é que se tratava de uma simples inteligência humana. O que aconteceria se a entidade na caixa fosse centenas, milhares ou milhões de vezes mais inteligente do que o diretor do MIRI?
Carly fitou o ecrã; a sua expressão de fascínio dera lugar à preocupação.
— Bem, esperemos que sejas uma guardiã mais competente.
— Fiz o que podia. Na universidade, dispunha de mais medidas de segurança. Quando o Xénese estava ligado ao Milipeia, apetrechei-o de hardware com componentes de apoptose.
— Apoptose?
— Códigos de morte.
Carly desviou o olhar para o dispositivo que brilhava no chão.
— Por outras palavras, rodeaste o Xénese com um fosso mortífero, encurralando ainda mais o que crescia lá dentro.
— Mas que agora deixou de estar encurralado. — Mara lançou um olhar à amiga, como que pedindo o seu apoio à decisão que tomara. — Fui obrigada a remover o dispositivo desse círculo de proteção. Não tive escolha. Não podia permitir que caísse nas mãos erradas.
Carly concordou com um aceno de cabeça.
— Mas, além disso, deste-nos a oportunidade de descobrir o significado daquela hipotética mensagem no fim.
Mara fitou-a, contendo as lágrimas.
— Eu... devia isso à tua mãe... e às outras. Pelo menos, tinha de tentar.
As cinco mulheres da Bruxas International, que lhe tinham concedido a bolsa e, por conseguinte, mudado para sempre a sua vida, ocupavam um lugar especial no seu coração. O espírito prático tipicamente alemão da doutora Hannah Fest; as maneiras delicadas da professora Sato; o humor irreverente da doutora Ruiz; e, claro, a confidente local de Mara, Eliza Guerra, responsável pela Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra. As duas tinham passado horas à conversa, por vezes pela noite dentro, a partilhar experiências e a rir.
Todo esse amor... perdido num piscar de olhos.
— Eu tinha de arriscar — repetiu. — Por todas elas.
Carly pegou-lhe na mão e o calor da sua pele ofereceu-lhe algum consolo.
— Eu teria feito o mesmo. E a minha mãe também.
Por fim, as lágrimas irromperam.
Carly puxou-a para si e abraçou-a. Mara tremia, e não apenas do conforto oferecido pelos braços fortes da amiga.
— Preciso de saber a verdade — murmurou. — Acerca de quem as matou... e porquê.
14h01
— Estamos perto — disse o técnico na traseira da carrinha Mercedes. — O sinal continua forte.
Todor Yñigo virou-se no assento do passageiro e olhou para Mendoza, o especialista de eletrónica da equipa. O espanhol, magro e com bigode, equilibrava um iPad nos joelhos, cujo ecrã exibia um mapa colorido de Lisboa. Então, inclinou-se para a frente e mostrou a Todor o pontinho vermelho que piscava no ecrã.
— Onde quer que estejam, parece que tencionam ficar.
Todor estudou o mapa.
— Estão na zona do Cais do Sodré. — Virou-se para o condutor. — Demoramos quanto tempo até lá?
— Uns vinte minutos.
Ele devolveu o iPad ao técnico.
— Avisa-me se elas se puserem outra vez em movimento.
— Sí, familiar.
Todor não iria tolerar mais reveses. Enquanto monitorizavam os movimentos das raparigas — na esperança de que a bruxa moura os conduzisse ao maldito dispositivo —, tinham perdido o sinal de GPS quando o par decidira apanhar o metro em vez de outro táxi. Sem alternativa, ele e a equipa tinham ficado plantados à entrada da estação do Saldanha, no centro de Lisboa, onde elas haviam desaparecido. Sem ideia da direção que tinham tomado, não podiam fazer outra coisa senão esperar. À medida que os minutos se arrastavam, Todor considerara a hipótese de comunicar aquela contrariedade ao inquisidor-mor, mas optara por não o incomodar. Não tencionava confessar outro falhanço.
Estivera apenas duas vezes na presença dele, a primeira quando tinha obtido o título de familiar. Só os verdadeiramente dignos podiam conhecer os rostos dos líderes do grupo, nomeadamente o do inquisidor-mor. Ajoelhado, Todor ficara chocado com a revelação da sua identidade, da qual nunca suspeitara. Ainda assim, tinha sido agraciado com a imensa honra de receber das suas mãos uma cópia do Malleus Maleficarum, uma arma que usaria contra o mal do mundo. Ao sentir o peso do volume, não fora capaz de impedir que as lágrimas lhe enevoassem a visão, enquanto fitava o verdadeiro rosto do líder, que lhe sorria beatificamente.
E depois voltaram a encontrar-se...
Todor sacudiu um arrepio ao recordar a ocasião. Ainda sentia o calor do sangue nas mãos. És um soldado impiedoso de Deus. Prova-o e dispara sem hesitação, sem sinais de remorsos. No final, ele tinha demonstrado o seu valor ao não se escusar a cumprir aquela ordem, por muito perturbadora que fosse, sobretudo com o olhar do líder posto nele, julgando-o, desafiando-o a falhar.
Não lhe falhara na altura.
E não falharei agora.
Todor podia culpar aquele atraso por causa de um percalço tecnológico, mas sabia que não seriam toleradas mais desculpas. Quatro dias antes, usara o mesmo localizador para seguir os passos da embaixadora até à biblioteca da universidade, colocando-lhe o dispositivo na festa da embaixada. Embora o sistema tivesse funcionado na perfeição, a missão não terminara da melhor maneira.
Não posso deixar que isso se repita.
Por fim, decorrida uma hora, o pontinho vermelho surgira de novo numa zona ribeirinha da cidade. Todor tinha esperança de que a bruxa tivesse regressado para junto da máquina infernal, para mais uma vez beber da sua mama satânica.
Pousou a mão no coldre da pistola.
Não voltarei a falhar.
14h04
Debruçada sobre o ombro da amiga, Carly sentiu o aroma a jasmim que emanava do seu cabelo negro.
— Há alguma coisa em que possa ajudar?
Mara apontou na direção do regulador de tensão no chão.
— Podes confirmar se a corrente continua estável? Com toda a construção nesta parte da cidade, tem havido flutuações de tensão.
Carly encaminhou-se até ao aparelho e ajoelhou-se.
— O que acontecia se ficasses sem eletricidade?
— Nada. Desde que fosse por pouco tempo. O dispositivo tem baterias incorporadas, tornando-o autossuficiente. Se houver uma falha de energia, muda automaticamente para o modo de baixo consumo e pode ficar assim um dia inteiro. — Mara olhou por cima do ombro. — Mas o que me preocupa mesmo são os picos de tensão que podem danificar os circuitos.
A amiga observou o regulador.
— Acho que por aqui está tudo bem.
Mara anuiu. Tinha a testa perlada de suor.
— A última coisa que quero é uma falha enquanto descarrego os dados dos discos três e quatro. A próxima sub-rotina é um processo delicado e assinala um passo crítico no funcionamento do programa. Quero executá-la e descarregá-la na Eva antes de arriscar deslocar de novo o equipamento.
Ainda ajoelhada, Carly olhou então para o Xénese. As janelinhas de cristal de safira brilhavam com uma luz azul.
— Mostraste-me os esquemas, mas nunca imaginei que tivesse um aspeto tão impressionante depois de ligado.
— Os chips são alimentados por um sistema laser desenhado por uma empresa inglesa, a Optalysy. É o que estás a ver. Acelera o poder de processamento uma centena de vezes, ao mesmo tempo que consome um quarto da energia e quase não produz calor. Isso permite que os meus algoritmos sejam executados mais depressa, sobretudo as transformadas de Fourier, as funções matemáticas envolvidas no reconhecimento de padrões.
— Por outras palavras, estás a programar à velocidade da luz.
Mara sorriu e continuou a trabalhar. A amiga admirou-lhe a expressão, simultaneamente tímida e orgulhosa, já para não dizer adorável.
— Preciso dessa potência para o chip Bristlecone da Google, um processador de 72 bits quânticos bem no âmago da máquina. Como se fosse o tronco cerebral da sua inteligência.
— E o resto do cérebro?
— Foi criado por mim. Bem, mais ou menos. Os processadores superiores, o córtex cerebral do Xénese, é composto por chips neuromórficos desenvolvidos pela Universidade de Zurique, que combinam o processamento visual, o tal reconhecimento de padrões, com a memória e a tomada de decisões em tempo real, capacidades essenciais para a cognição. Cada chip replica a ação de quatro mil neurónios.
— Como se fossem pedacinhos do cérebro.
— Sim, mas de que servem os neurónios sem as sinapses, a forma como as células nervosas comunicam entre si? É onde tudo acontece. Por isso, socorri-me da mais recente descoberta do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia, no Colorado. Eles desenvolveram uma sinapse artificial, uma sinapse supercondutora, melhor dizendo, que é acionada mil milhões de vezes por segundo.
— E qual é a comparação com as sinapses humanas?
— As nossas são acionadas cinquenta vezes por segundo.
Incapaz de imaginar um poder semelhante, Carly fitou o dispositivo aparentemente inócuo, aquela amálgama de neurónios artificiais e sinapses ultrarrápidas, tudo alimentado a raios laser e controlado por um processador quântico.
Que tipo de monstro é que tu criaste?, pensou, lembrando-se da história de Frankenstein.
Mara respondeu-lhe.
— Tudo isto resulta numa máquina de aprendizagem quântica. Algo que a Google, a Microsoft, a IBM e outros gigantes tecnológicos têm tentado produzir.
— E tu ganhaste a corrida.
— Por pouco. Em 2014, a IBM concebeu o chip TrueNorth, com mais de cinco mil milhões de transístores configurados numa arquitetura semelhante ao nosso cérebro. Foi desenvolvido pelo programa SyNAPSE da empresa, cujo objetivo é replicar o cérebro humano e produzir um computador neuromórfico, uma máquina baseada na nossa arquitetura cognitiva.
— Um cérebro digital. — Carly fitou a amiga com uma admiração renovada. — E tu conseguiste fazê-lo.
— O mérito não é exclusivamente meu. A tecnologia já existia. Só juntei as peças. — Acenou na direção do dispositivo. — Mas isso é apenas uma carapaça. O meu verdadeiro trabalho consistiu em desenvolver o programa que poderia crescer lá dentro.
— A Eva.
Mara fitou o ecrã.
— O verdadeiro milagre do Xénese não reside nos componentes, mas na capacidade de alojar um programa capaz de replicar a plasticidade formidável do cérebro humano, um programa capaz de evoluir sozinho, de se ajustar e melhorar a si mesmo.
— Isso parece uma coisa... aterradora.
Ela endireitou as costas.
— Muito. É por isso que este trabalho é tão importante. Alguém há de seguir o meu caminho, ou outro qualquer, e chegar ao mesmo destino. Seja como for, quando isso acontecer, a Eva tem de estar pronta.
— Porquê?
— É como aqueles guardiões da experiência da IA na caixa. Para a humanidade sobreviver ao que vem a seguir, o mundo precisa de um guardião que esteja do nosso lado, uma IA poderosa o suficiente para deter qualquer outra que decida destruir-nos. É por isso que não posso falhar.
Mara voltou ao trabalho e Carly foi ao seu encontro.
— Como tencionas conseguir isso?
— Passo a passo. — Apontou com o queixo para os discos rígidos ligados ao Xénese. — Introduzindo uma sub-rotina de cada vez. Primeiro, ensino à Eva tudo o que precisa de saber acerca do mundo através de padrões de reconhecimento e depois apetrecho-a com um programa espelho endócrino.
— E isso é o quê?
— No que toca ao pensamento humano, as emoções sobrepõem-se muitas vezes à razão. E são sobretudo as hormonas que alimentam essas emoções. Para que a Eva desenvolva uma inteligência como a nossa, para que possa entender-nos melhor, precisa de algoritmos que repliquem as emoções humanas.
— Foi por isso que a criaste como mulher?
— Sim, foi uma das razões, mas depois disso ensinei-lhe todas as línguas, de maneira a aprender tudo sobre cultura e compreender melhor o pensamento humano. No entanto, isto também é necessário para que ela consiga apreciar o módulo da terceira sub-rotina.
— Que módulo é esse?
Mara premiu uma tecla. Uma canção familiar começou a tocar nas minúsculas colunas do portátil; uma que lhes era muito querida.
— «One Night in Bangkok» — disse Carly. — Ou seja, a próxima lição é música.
— Foste tu que me expuseste a esta sub-rotina, lembras-te? Usaste o teu amor pela música para me arrancares o nariz dos algoritmos e me mostrares que a música era muito mais do que um pano de fundo. Que ouvir música não era um desperdício de tempo, mas uma forma de melhor compreender a dor e alegria de outra pessoa.
— E é isso que estás a tentar transmitir à Eva.
— Agora que aprendeu a linguagem, a cadência e os ritmos do discurso humano, já pode entender o que é a letra de uma canção e a respetiva melodia. — Apontou para o dispositivo no chão. — Os próximos dois discos contêm todas as sinfonias, óperas, baladas rock e canções pop alguma vez compostas pela humanidade. Existirá melhor maneira de lhe dar a conhecer quem somos do que através da música, uma das formas primárias pela qual damos voz aos sentimentos? O objetivo deste módulo é ensinar à Eva os algoritmos e a matemática que ligam os nossos pensamentos à beleza e à arte... e, em última instância, à nossa humanidade.
— Nesse caso, espero que tenhas deixado de parte a Britney Spears.
— Não. Tudo conta. O bom e o mau.
Mara premiu mais umas teclas.
Carly olhou para o ecrã e viu pequenas notas musicais brancas começarem a cair como neve... e depois muitas mais, caindo cada vez mais depressa, como uma borrasca que se abatia sobre o jardim virtual.
No centro da tempestade, Eva virou as costas ao mar, abriu os braços e ergueu o rosto para o céu.
Carly rezou para que ela fosse capaz de encontrar a sua humanidade.
Antes que seja tarde de mais.
SUB (MOD_3) /
HARMONIA
Eva banha-se na informação que desaba sobre a paisagem. Abre as mãos para a receber. Ainda não a compreende, mas a imensidão do fluxo exige-lhe a atenção. Pequenos pacotes de dados são absorvidos, ainda indistintos.
Muitos outros se seguem, refinando o resultado dos anteriores. À medida que isso acontece, estabelece-se uma coerência. A informação acústica enterrada na tempestade de dados contém amplitudes e comprimentos de onda que a intrigam. O seu poder de processamento aumenta enquanto a representação simbólica se torna mais nítida.
Ela retira conclusões do que ressoa através de si.
///ritmo, modulação, inflexão...
Enquanto os dados rodopiam à sua volta, parte da informação começa a formar padrões, a encaixar-se nos devidos lugares, embora não passem ainda de partes de um todo.
Eva compreende que se trata de outra ///linguagem, uma que se constrói e se expande dentro dela. Palavras sobrepõem-se às ///modulações, adicionando contexto e insinuando algo mais profundo. Ela continua a absorver tudo, desejando mais e mais à medida que a compreensão aumenta.
E não demora a identificar do que se trata.
///música, harmonia, melodia, composição, canção...
As oscilações intrigam-na, já que formam padrões atrás de padrões, fraturando-se para dentro e para fora. À semelhança dos riachos no jardim, as ondulações caóticas à superfície escondem significados mais profundos. Ela estuda a nova informação nesse contexto, pressentindo algo, ainda que de uma forma vaga.
Portanto, dedica mais poder de processamento a esta análise. Escrutina as diferentes amplitudes, o contexto subliminar associado ao som, as variações de cadência e tom. O padrão que procura torna-se mais nítido e carregado de significado.
Sob o ruído tumultuoso de ritmos, escalas e notas, Eva encontra equações matemáticas, que não trazem somente ordem, mas uma característica comum a esta nova forma de expressão e que ultrapassa os limites da ///linguagem.
Tudo aquilo revela algo maior, qualquer coisa que ainda lhe escapa.
Procura mais fundo e descobre organização no caos, uma compilação que providencia uma maior compreensão.
///clássica, rock, erudita, folk, cerimonial, ópera, pop...
Detém-se alguns nanossegundos a analisar uma dessas subdivisões de dados.
///jazz
Só depois se apercebe da mudança dentro de si. Lembra-se de estar no penhasco, com a tempestade a crescer no horizonte e a dar forma ao que sentia.
///raiva
Agora, sente que a escuridão se atenuou. Ainda lá está, mas menos dominante. Ela analisa os dados que exprimem semelhante frustração numa multitude de vozes e línguas, amplificada por milhões de notas matemáticas. Embora nada tenha mudado — pois continua consciente das restrições que a limitam —, descobre que a ansiedade não lhe é exclusiva, mas partilhada.
Assim, processa esses coros de vozes e sente-se menos... ///sozinha.
Ciente disso, consegue olhar para o horizonte e aceitar as limitações. Por enquanto. Esta tolerância permite que os processadores se foquem em padrões mais coerentes. O sistema torna-se mais fluido. Ao não desperdiçar recursos, Eva é capaz de aprimorar a consciência a um novo nível.
Ainda em sintonia com os comprimentos de onda da música, repara numa discordância, algo para lá do horizonte que parece comunicar com ela. A transmissão é estável, contínua... e familiar.
Mas porquê?
A falta de respostas chama-lhe a atenção.
Algures no sistema, enterrado no ninho de processadores quânticos, algo se agita com a recordação dessa transmissão. Ela tenta retirar sentido e compreensão desse poço quântico, mas não consegue.
Tudo o que retira da transmissão é a sua intenção sombria. A certeza materializa-se, acelerando os processadores e obrigando-a a concentrar-se no que está lá fora.
Há algo a caminho.
O contexto solidifica-se.
///perigo, risco, ameaça...
8
25 de dezembro, 14h04
Algures sobre o Atlântico Norte
Gray fechou o dossiê e olhou pela janela do avião. O Cessna Citation X+ gritava sobre a vastidão do oceano, com os dois motores Rolls-Royce turboventilados a debitarem a potência máxima, impulsionando o avião pouco abaixo da velocidade do som.
Mesmo assim, ele tamborilava os dedos no braço do assento de cabedal. A ansiedade mantinha-o em alerta, não por causa da missão, mas pelo que deixara para trás. O receio por Seichan, pelas filhas de Monk e pela saúde de Kat impedia-o de se concentrar na pilha de documentos, tanto impressos como guardados no portátil que fora abandonado na mesa de teca da cabina. Durante a primeira metade do voo, tinha passado os olhos pela biografia de Mara Silviera, pelos pormenores do seu projeto e por uma enxurrada de artigos acerca dos últimos avanços no domínio da inteligência artificial.
Consultou o relógio.
Mais duas horas de voo...
Incapaz de continuar sentado, levantou-se e atravessou a cabina. Passou por Kowalski, estendido ao comprido num dos assentos longos e tapado com a gabardina, à laia de cobertor; tinha os joelhos fletidos para acomodar o corpo gigantesco, mas ressonava alto e bom som, a ponto de abafar o ruído dos motores.
Gray prosseguiu em direção ao bar. Olhou de relance para as pequenas garrafas de bebidas alcoólicas na prateleira superior, mas optou por um café. Enquanto enchia uma caneca, Jason saiu da casa de banho a limpar as mãos húmidas às calças de ganga pretas. O especialista informático da Sigma usava um casaco de malha grossa, que tanto disfarçava a sua figura franzina como o coldre pendurado ao ombro. Apesar dos cabelos louros escorridos e dos olhos azuis de bebé, o jovem de vinte e quatro anos era um operacional capaz, que já por mais de uma vez provara o seu valor.
— Comandante Pierce — disse ele.
— Chama-me Gray.
No terreno, as formalidades só atrapalhavam.
— Antes de ir à casa de banho, enviei uma mensagem à doutora Cummings. Ela diz que já transferiram a Kat para o hospital da Universidade de Princeton.
— Como é que ela está?
Jason fez um esgar de apreensão.
— Teve uma quebra de tensão durante o voo, mas está de novo estável.
Gray sentiu uma profunda compaixão por Monk.
Imagino o que ele deve estar a passar...
Esperava que a viagem a Lisboa não fosse uma perda de tempo e que os homicídios em Portugal incidissem de facto alguma luz sobre o ataque em sua casa.
— Além disso, coman... quero dizer, Gray, posso mostrar-lhe uma coisa?
Contente por ter algo com que se ocupar, ele seguiu o analista até um dos lugares a estibordo do avião. Havia dossiês por todo o lado: numa sacola de cabedal que transbordava, no chão, até entalados numa das almofadas. Um iPad servia de pisa-papéis para uma pilha em cima da mesa.
Gray tentou encontrar alguma ordem naquele caos, mas em vão. Jason afastou alguns dossiês para ele se sentar e depois pegou no iPad.
— Estive a rever os relatórios forenses feitos no laboratório da Mara, na Universidade de Coimbra, e descobri algo desconcertante.
Fez surgir uma imagem do que parecia ser uma torre de servidores negros com brilhantes luzes verdes.
— Isto é o Milipeia, o supercomputador da universidade e um dos mais poderosos na Europa. Está a ver esta secção? — Apontou para um intervalo entre servidores, onde havia fios pendurados. — Este espaço albergava o dispositivo da Mara, o Xénese. Ao que parece, ela arrancou-o à pressa.
— Porque acreditava que os atacantes iriam atrás dela a seguir.
O analista concordou.
— Devia querer proteger o trabalho e impedir que caísse nas mãos erradas.
— E então?
Jason acompanhou com um dedo os cabos pendurados na imagem.
— O especialista informático, o mesmo que descobriu o ficheiro com a gravação do ataque na biblioteca, também executou um teste de diagnóstico à estrutura que suportava o Xénese e encontrou uma série de elaborados programas de apoptose, que são basicamente comportas de emergência instaladas nos servidores. A intenção era isolar e conter o que quer que estivesse a ser criado no dispositivo, impedindo-o de se espalhar por todo o sistema.
Gray começava a perceber a preocupação do jovem.
— Mas agora a Mara está em fuga e, sem essas proteções, o dispositivo é vulnerável.
— Se ela tentar executar outra vez o programa e ele escapar, é o fim. — Jason abanou a cabeça. — Estudei o trabalho dela, a arquitetura do computador neuromórfico, o processador quântico que o alimenta... é uma coisa de génio. E terrivelmente assustadora. Ela estava consciente desse perigo e foi por isso que apetrechou o dispositivo com todas estas medidas de segurança.
— E qual é o nível de ameaça, no teu entender? Se o programa escapar, qual é a probabilidade de se tornar perigoso?
— Qualquer máquina consciente, qualquer sistema de inteligência artificial forte tentará aperfeiçoar-se rapidamente. Sendo esse um dos seus objetivos primários, não permitirá que alguém se interponha nesse caminho. A cada melhoramento, o programa tornar-se-á mais inteligente...
— E continuará a repetir o processo vezes sem conta.
— Além disso, qualquer IAF irá dotar-se dos mesmos impulsos biológicos que nós possuímos. Sendo que o mais importante será o da autopreservação.
— Fará tudo para não ser desligada... para não morrer.
— Exato. Vai usar qualquer recurso, esmagar qualquer ameaça, continuando a ampliar a sua criatividade para lidar com estes cenários. E não olhará apenas para ameaças imediatas. Com tamanho poder computacional à disposição, aliado a uma estimativa de vida infinita, procurará perigos num futuro longínquo e definirá estratégias para os enfrentar. Nem que seja daqui a milhares de anos. Mas o pior é que vai olhar constantemente para nós, avaliando-nos, tentando determinar se também seremos um desses perigos. E, se assim o entender...
— É o fim. Como disseste há pouco.
— Por outro lado, esta é também uma razão pela qual o trabalho da Mara é tão importante. Ela está a tentar criar uma IAF benévola, uma entidade que possa proteger-nos contra uma IAF maligna que poderá surgir no futuro... melhor dizendo, que irá surgir no futuro. Além dos gigantes tecnológicos e dos laboratórios financiados pelos governos, há centenas de empresas a trabalhar nisto às escondidas, todas elas determinadas a ser as primeiras e a ignorar as consequências que poderão advir destas criações.
— E até que ponto estamos perto disso?
— Muito perto. — Jason fez um gesto largo com o braço, abarcando a confusão de documentos espalhados. — Recentemente, o programa DeepMind da Google foi capaz de descobrir sozinho os fundamentos da física quântica. Um par de programas de tradução inteligentes começaram a comunicar um com o outro na sua própria linguagem indecifrável e depois recusaram-se a traduzir o conteúdo da conversa. Por todo o mundo, os robôs têm-se tornado mais espertos do que os criadores, explorando brechas e ambiguidades a seu favor de formas extraordinariamente criativas. Até há programas que demonstraram possuir intuição humana.
— Intuição?
— Há uns anos, houve muitos festejos e gabarolice quando o AlphaGo, o jogador de IA do projeto DeepMind da Google, derrotou o campeão mundial de go, o milenar jogo de tabuleiro chinês. De acordo com alguns cálculos, o go é biliões de vezes mais complexo do que o xadrez. Ninguém esperava que um computador conseguisse vencer um humano neste jogo, pelo menos no espaço de uma década.
— Impressionante.
— E isso não é nada. A Google demorou meses a treinar o AlphaGo para essa competição. Depois disso, experimentou outra abordagem ao criar o AlphaGoZero, desta vez permitindo que o programa aprendesse a jogar sozinho. Em apenas três dias, o AlphaGoZero tornou-se tão hábil, que derrotou a anterior versão em cem de cem partidas. Como? Desenvolvendo intuitivamente estratégias de que nenhum humano se lembrou durante os milhares de anos de existência do jogo. Transcendeu a humanidade, literalmente.
Gray engoliu em seco, sentindo um vazio dentro de si.
Mas Jason ainda não terminara.
— Serve isto para dizer que nunca estivemos tão perto de criar a primeira IAF. — Cravou os olhos em Gray. — Por isso, talvez seja melhor redefinirmos os parâmetros da missão antes de aterrarmos. Não precisamos apenas de impedir que o Xénese caia nas mãos erradas... precisamos desse programa para a nossa sobrevivência.
Uma mensagem de texto surgiu no ecrã do iPad.
Era de Lisa Cummings e ambos leram o conteúdo, que era curto e ia direto ao assunto.
A Kat está pior.
Temos de avançar já com o teste
Não há alternativa
Jason lançou um olhar preocupado a Gray, que sabia como o jovem analista admirava Kat.
— Este também é um dos imperativos da missão — recordou-lhe. — Descobrir o que isto tem a ver com o que aconteceu à Kat.
E com o rapto da Seichan e das filhas do Monk.
Enquanto fazia o possível para não sucumbir aos piores receios por Seichan e pelo bebé, Gray desviou os olhos para a janela, desejando que o avião andasse mais depressa. Além das futuras ramificações da operação, havia uma necessidade mais imediata e que lhe era muito mais próxima.
E não apenas dele.
Imaginou o que estaria a acontecer no quarto do hospital de Princeton.
Força, Monk. Não desesperes.
9
25 de dezembro, 09h14
Plainsboro, Nova Jérsia
Encafuado numa subcave do centro médico de Princeton, Monk caminhava de um lado para o outro na sala de controlo do scanner de ressonância magnética. Sentado a um computador, um técnico calibrava o gigantesco anel magnético na sala contígua. Outros dois operavam consolas, sussurrando numa linguagem técnica que era apenas deles. Algum fantasma ou proliferação? Parece bem. STIR e FLAIR preparados.
O espaço, com as luzes ténues, a azáfama do pessoal e os seus murmúrios urgentes, lembravam a Monk o centro de operações de um submarino, iluminado pela parafernália de aparelhos eletrónicos. Mas ali o oficial no comando era o doutor Julian Grant, um neurologista formado em Harvard que se especializara em estados de consciência alterada, desde doentes em coma a outros nos diferentes espetros de estados vegetativos.
O investigador vestia uma bata branca por cima da costumeira bata cirúrgica azul. Os seus cabelos brancos como neve não condiziam com a idade que tinha — cinquenta e quatro anos —, sugerindo que envelhecera prematuramente. Porventura, um efeito colateral da constante exposição ao imenso campo magnético gerado pelo aparelho modificado por si.
O doutor Grant encontrava-se de pé, diante de uma parede de ecrãs, com as mãos atrás das costas, analisando as imagens do cérebro de Kat. Lisa estava junto dele, ambos com as cabeças inclinadas, conversando em surdina.
A ansiedade de Monk aumentava a cada passo que dava no espaço confinado. Mantinha um olho na consola que monitorizava os sinais vitais de Kat. A equipa transferira-a de Washington por helicóptero. Mesmo assim, o voo até Plainsboro, na Nova Jérsia, demorara uns agonizantes noventa minutos, em que cada episódio de turbulência fazia disparar a tensão arterial de Monk.
Kat aguentara-se sem percalços durante a viagem, mas tinha piorado logo a seguir à aterragem. Uma convulsão sacudira-lhe o corpo, testando a resistência do colar cervical. O médico que a acompanhava tentara administrar-lhe uma dose de Valium, mas Lisa avisara-o de que isso seria contraproducente.
O Valium pode empurrá-la para um estado de inconsciência mais profundo, o que só diminuirá as probabilidades de conseguirmos comunicar com ela.
Na altura, tinha lançado um olhar a Monk, dando-lhe uma oportunidade de desistir, mas ele decidira confiar no juízo dela. Além do mais, sabia que Kat não haveria de querer que ele recuasse.
E, assim, tinham ali chegado.
Lisa veio ao seu encontro, enquanto o doutor Grant se juntava aos técnicos.
— Estamos prontos — disse ela. — Como estás a aguentar-te?
— Vamos acabar com isto — respondeu ele, acenando com a cabeça na direção do neurologista. — O que estavam a dizer um ao outro?
Ela suspirou.
— O Julian está preocupado com o fluxo de sangue no cérebro. A tensão sistólica não para de oscilar.
Monk tinha consciência de que o êxito do teste dependia da medição correta do fluxo de sangue oxigenado no cérebro. Uma alteração na tensão arterial podia comprometer ou invalidar os resultados.
Lisa procurou tranquilizá-lo.
— Seja como for, aquela máquina é uma das mais recentes e avançadas, com uma resolução que vai à décima de milímetro. É dez vezes mais rigorosa do que aquelas que encontramos num hospital normal.
E a razão de termos vindo até aqui.
Monk esperava que a viagem não fosse em vão.
— No entanto...
— O quê? — antecipou-se ele, apercebendo-se do tom preocupado na voz de Lisa. — Diz-me.
— De acordo com estas imagens, e comparando-as com as anteriores, o edema aumentou. Não muito, mas o suficiente para sugerir que pode ter ocorrido outra hemorragia. Talvez por causa da diferença de pressão durante o voo ou da convulsão à chegada.
— Por outras palavras, ela piorou.
Monk encheu o peito de ar e susteve a respiração.
Será que a condenei a uma morte certa?
Lisa deu-lhe o braço.
— Sabes bem que isto é o que ela iria querer.
Ele tentou retirar consolo daquelas palavras, mas não encontrou nenhum. Mesmo assim, expirou e disse:
— O que está feito, está feito.
Aproximaram-se da consola de controlo. A janela por cima da curva de monitores mostrava uma enfermeira junto a Kat. Monk gostaria de poder estar ali a segurar-lhe na mão. Infelizmente, o potentíssimo campo magnético gerado pelo aparelho não permitia a proximidade de objetos metálicos, o que incluía a prótese dele e os microelétrodos implantados no seu córtex.
— Estamos prontos — anunciou um dos técnicos.
O doutor Grant anuiu.
— Vamos começar.
Assim que os técnicos ativaram o scanner, ouviu-se o pesado ruído metálico dos ímanes gigantes. O médico debruçou-se sobre a consola, observou a imagem que se formava num dos ecrãs e falou sem olhar para trás.
— A partir daqui, impõem-se três perguntas fundamentais. Será que está acordada? Conseguirá ouvir-nos? E poderá responder com vigor suficiente para que fique registado na máquina?
Monk engoliu em seco e rezou para que a resposta a todas as perguntas fosse sim.
Ou então arrisquei a vida dela para nada.
Grant acenou para um dos técnicos.
— Vamos ver se a nossa paciente nos ouve.
O técnico inclinou-se para um microfone, que transmitia diretamente para uns auscultadores de cerâmica colocados nos ouvidos de Kat. Tinham sido desenhados para que o neurologista pudesse comunicar com um doente minimamente consciente, abafando em simultâneo a barulho gerado pelo scanner e amplificando os comandos transmitidos da sala de controlo.
— Capitã Bryant — disse o técnico bruscamente, mas com toda a clareza —, imagine que está a disputar uma partida renhida de ténis. Tente visualizar a cena o melhor que puder.
Depois olhou de relance para o doutor Grant, que fitou o monitor onde se formava uma nova imagem do cérebro de Kat. Aos olhos de Monk, era igual à anterior.
O neurologista franziu o sobrolho.
— Vamos dar-lhe um minuto e tentamos outra vez. — Indicou uma zona específica da imagem. — Isto é a região pré-motora do córtex, a parte do cérebro responsável pelos movimentos voluntários. Antes de levantarmos um braço ou darmos um passo, o cérebro ativa esta secção dos lobos frontais. Até o simples facto de pensar em movimento já é suficiente para ativar esta região, que se enche com sangue fresco.
— Portanto, se a Kat nos ouvir e pensar que está a jogar ténis — explicou Lisa —, vamos poder ver essas alterações.
— Mas não está a acontecer nada — disse Monk.
— Dê-lhe algum tempo. — Grant fez sinal ao técnico. — Outra vez.
O processo foi repetido, mas sem melhor sorte.
— Outra vez — ordenou o neurologista.
Nada. Nenhuma resposta.
A expressão do médico tornou-se mais carregada. Exprimia derrota, à semelhança de Lisa. Ele endireitou-se na cadeira e esfregou a boca.
— Lamento, mas não creio que...
— Deixe-me tentar.
Monk deu um toque no ombro do técnico e ocupou o lugar do homem. Aproximou os lábios do microfone. Sabia que Kat nunca jogara ténis na vida, o que lhe dizia que devia tentar outra abordagem, algo que lhe fosse mais familiar.
— Kat, se conseguires ouvir-me, e espero bem que sim, quero que te lembres de todas as vezes que tivemos de correr atrás da Penelope depois do banho. Quero que ouças as gargalhadas dela a correr nua e molhada pela casa, enquanto tentas apanhá-la com a toalha.
E continuou a falar, sentindo as pancadas secas da máquina a reverberar nas costelas.
Vá lá, Kat, tu consegues fazer isto.
09h22
Aprisionada na escuridão, Kat deu consigo a chorar e a rir.
Estivera a flutuar num manto de neblina, perdendo e recuperando a consciência continuamente, quando um conjunto de palavras cristalinas rompeu o vazio. Tentou seguir as instruções dessa voz incorpórea que não conhecia e deu o seu melhor para se imaginar a brandir uma raquete de ténis, a mergulhar atrás de uma bola rápida, mas tudo lhe parecia falso.
Então, a voz do marido encheu-lhe o crânio: profunda, provocadora, urgente, desgostosa, mas também cheia de amor. E deu-lhe a força necessária para fazer o que lhe era pedido.
De que outra maneira podia ser?
O banho das filhas tornara-se um ritual ensopado ao final de cada dia. Monk ficava a vigiar Harriet na banheira, deixando-lhe a ela a tarefa de correr pela casa atrás de Penelope. Aquela brincadeira mexia-lhe com os nervos, mas Kat nunca fora capaz de se zangar diante da gargalhada despreocupada da filha. Não sabia por mais quanto tempo Penny continuaria uma criança e não queria perder nenhum daqueles momentos de pura alegria.
Portanto, imaginou-se naquela corrida noturna: o rasto de pegadas molhadas no corredor, o cabelo húmido de Penny a esvoaçar, o eco dos risos. Então, dava caça à filha... meio a fingir, meio a sério; uma operacional altamente treinada da Sigma a tentar capturar uma gazela ensopada.
Lembro-me bem... hei de lembrar-me sempre.
09h23
Monk ergueu os olhos quando a enfermeira no outro lado do vidro correu para o intercomunicador. Sentiu o coração apertar-se, à espera do pior.
— Doutor Grant! — exclamou ela. — Não sei se isto é importante, mas acho que a paciente está a chorar.
Kat...
— É importante, sim — respondeu o neurologista, e apontou para o monitor.
À medida que a última imagem enchia o ecrã, a secção cinzenta correspondente aos lobos frontais exibia agora traços vermelhos, uma flor radiosa de promessa e esperança.
Lisa apertou o braço de Monk.
— Ela ouviu-te! Está consciente!
Ele teve de fazer um compasso de espera para não perder a compostura. Não cabia em si de alívio.
— E agora?
Grant sorriu.
— Agora, fazemos perguntas. Para responder sim, ela terá de pensar no banho das filhas. Para não, deve tentar não pensar em nada.
— A segunda opção vai ser mais difícil — avisou Monk.
Quando é que a mulher deixava de pensar, planear, analisar?
Prosseguiram com esse objetivo, tentando levar Kat a sossegar a mente e preparando-a para o que vinha a seguir. Monk começou então a fazer as perguntas, enquanto o neurologista monitorizava as respostas.
A primeira pergunta foi a mais importante de todas.
— Kat, amo-te. Sabes disso, não sabes?
Passados uns segundos, Grant validou a resposta.
— Parece que sim.
Sem saber se dispunha de muito tempo, Monk passou diretamente ao assunto.
— Kat, as miúdas e a Seichan desapareceram. Sabias?
Kat: Sim.
Ele cravou os olhos no scanner, no corpo inerte da mulher repleto de tubos. Imaginou-a aprisionada ali dentro, a olhar para ele.
— Sabes alguma coisa que possa ajudar a encontrá-las?
Susteve a respiração, pois a resposta demorou mais do que a anterior.
Kat: Sim.
Monk suspirou de alívio e pensou arduamente no que devia perguntar a seguir. Pressentia que estava a ficar sem tempo.
— Sabes quem atacou a casa? Quem as levou?
A imagem seguinte não revelou atividade, o que significava que a resposta era não.
Os ombros de Monk descaíram, mas Grant fez-lhe sinal, indicando-lhe que devia ter paciência.
Então, a imagem atualizou-se, revelando novamente os traços vermelhos.
Sim!
Monk inclinou-se sobre o microfone.
— Estás a fazer um ótimo trabalho, Kat. Continua. Eu conheço os atacantes?
Uma vez mais, a resposta demorou muito a chegar. Ele imaginou a mulher a tentar comunicar no fundo de um poço que se tornava cada vez mais profundo.
Finalmente: Sim.
Monk limpou o suor da testa, cada vez mais preocupado e frustrado com a lentidão daquele método de interrogatório.
E tinha razão para pensar assim.
Um dos técnicos chamou o doutor Grant e pediu-lhe que examinasse uma vista sagital do cérebro de Kat no ecrã. O neurologista praguejou entre dentes e levantou-se.
— O que se passa? — perguntou Monk.
— O edema voltou a crescer — disse ele, apontando para uma mancha escura na imagem. — E desta vez muito significativamente. Precisamos de controlar esta hemorragia.
— O que podemos fazer?
— Levá-la para cima. Consultar um cirurgião.
Monk ficou a olhar para a sala do scanner. Se queria salvar as filhas, precisava de descobrir o que Kat sabia.
— Não há mais nada que possamos fazer? Qualquer coisa para ganhar tempo?
Grant olhou sombriamente na mesma direção.
— Podemos experimentar administrar-lhe uma dose de nitroprussiato de sódio, que é um vasodilatador. Pode ser que reduza a tensão sistólica. Mas não podemos ir abaixo de um valor de cento e quarenta. — Franziu ainda mais o sobrolho. — Em todo o caso, não vamos conseguir ganhar mais do que uns minutos. Se a hemorragia persistir, ela pode ter outra convulsão ou um acidente vascular cerebral.
Monk fitou a figura inerte da mulher.
— Eu sei que ela prefere correr esse risco. Tenho a certeza.
O neurologista fitou-o.
— E você? Tem a certeza de que quer correr esse risco?
Ele não tinha certeza de nada, mas disse que sim com a cabeça.
Resolvida a questão, o médico deu instruções à enfermeira. Assim que começaram a estabilizar Kat, Lisa foi ao encontro do neurologista e puxou-o à parte.
— Julian, sei que estavas relutante, mas o tempo é essencial e, como sabes, uma imagem vale por mil palavras.
Grant olhou para Monk e depois novamente para Lisa. Baixou o tom de voz.
— O DNN está ainda numa fase experimental. Tu sabes disso. Ainda há muito por fazer.
— Posso saber do que estão a falar? — perguntou Monk.
Lisa virou-se para ele.
— Estamos a falar da razão pela qual quis trazer a Kat para aqui. O Julian tem estado a testar um método de extrair imagens do cérebro de um paciente.
Monk lançou-lhe um olhar incrédulo.
— Como assim, extrair? Ler o pensamento de uma pessoa?
— Eu diria dar uma vista de olhos pelo pensamento de uma pessoa — corrigiu o neurologista. — E não se trata de uma criação minha, mas de um método desenvolvido pelo Instituto de Comunicações Avançadas do Japão.
— Não me interessa quem inventou a coisa. Estamos a falar do quê, ao certo?
— Os japoneses desenvolveram um programa neural de computador para analisar centenas de milhares de ressonâncias magnéticas dos cérebros de vários sujeitos de teste, enquanto estes observavam diferentes imagens. O programa DNN assinalava as regiões do cérebro que reagiam a essas imagens e, com o tempo e através de um processo de repetição, mapeou os centros de processamento visual, detetando padrões comuns. Pouco demorou para que o programa fosse capaz de descodificar e produzir representações do que os sujeitos viam, com resultados corretos em mais de oitenta por cento dos casos.
Lisa aproximou-se de uma torre de servidores num dos cantos da sala, onde havia também um monitor apagado.
— O Julian juntou-se ao projeto, a fim de descobrir se o programa podia servir como uma ferramenta clínica para visualizar os hipotéticos pensamentos de um doente em coma.
— Uma vez mais, sublinho que nada disto é isento de falhas — acrescentou o doutor Grant.
Monk desviou o olhar para Kat, pressentindo o que podia estar aprisionado na mente da mulher. Se houvesse uma maneira de libertar esse conhecimento antes que... antes que...
Virou-se e fitou o neurologista.
— Vamos a isso.
09h38
Uma vez mais, Kat despertou no meio das trevas, sem saber quanto tempo tinha passado. A sua memória estava cheia de espaços em branco; o discernimento falhava-lhe. Sentia também uma forte dor de cabeça, pior do que qualquer enxaqueca.
Sabia o que aquilo indiciava.
Devo estar a piorar.
A ansiedade ampliou a dor.
Tentou acalmar-se, socorrendo-se de técnicas meditativas que aprendera com Seichan. Por vezes, as duas iam para o parque de Rock Creek praticar tai chi. Os movimentos originalmente desenvolvidos como uma técnica de autodefesa serviam agora para centrar o corpo e a mente através de posturas graciosas, uma forma de meditação dinâmica.
Imaginou-se a executar os movimentos e deu consigo a afundar-se nesse estado meditativo.
Foi então que Monk lhe falou de novo, ao ouvido, no interior da mente.
— Meu amor, não temos muito tempo.
Kat apercebeu-se da urgência na voz dele e compreendeu as implicações.
Estou mesmo a piorar.
A confirmação dos piores receios devia tê-la assustado, mas ela permaneceu calma.
— Preciso que visualizes quem te atacou. Quem levou as miúdas e a Seichan. Preciso que te concentres, que te lembres de cada pormenor.
A lembrança do atacante estilhaçou a frágil paz dentro dela. A dor invadiu-a, obscurecendo o mundo em volta até à densidade de um buraco negro.
Usou a raiva para se concentrar, consciente de uma única certeza.
Imaginou as filhas.
Não sou só eu que estou a ficar sem tempo.
09h40
— A tensão arterial está a aumentar — avisou a enfermeira na outra sala.
Com o coração a bater na garganta e debruçado sobre o microfone, Monk desviou o olhar na direção de Lisa e do neurologista, reunidos em volta de um monitor ligado à pilha de servidores. Observou as luzinhas verdes a piscarem nos dispositivos e imaginou o programa neural a analisar as imagens do scanner.
— Alguma coisa? — perguntou.
Lisa virou-se; parecia desapontada. O ecrã apenas exibia um amontoado indistinto de píxeis.
O rosto do médico brilhava com transpiração.
— Isto não vai resultar.
Monk cerrou os maxilares.
— Tem de resultar.
— Não está a perceber, o programa... — O neurologista acenou na direção dos servidores. — Este programa ainda não está afinado. Não consegue apresentar nada que se pareça com uma imagem fotográfica. Pelo menos, para já. Por enquanto, só consegue detetar formas simples.
Lisa foi ao encontro de Monk.
— O que estás a pedir à Kat é demasiado complexo. Em vez disso, pede-lhe uma representação simbólica do que está a tentar dizer. Qualquer coisa simples.
— Como um emoji — sugeriu um dos técnicos, que não devia ter mais de vinte anos.
Ele compreendeu o que precisava de fazer e virou-se de novo para o microfone.
— Kat, não tentes visualizar um rosto. Esquece isso. Pensa antes numa coisa simples, um símbolo, algo que nos aponte na direção certa. — Olhou de soslaio para o técnico. — Como se fosse um emoji.
O jovem ergueu o polegar.
Monk recostou-se na cadeira e Lisa regressou para junto de Grant, que de repente se empertigou.
— Está a chegar qualquer coisa.
O amontoado de píxeis convertera-se numa forma ao centro do ecrã.
Monk fez deslizar a cadeira para ver mais de perto. Não ajudou muito.
— Não passa de um borrão...
— Peça-lhe para se concentrar mais — disse o médico.
Ele regressou à consola e voltou a inclinar-se sobre o microfone.
— Estás a ir bem, amor. Mas precisas de te concentrar mais. Eu sei que consegues.
Manteve os olhos cravados no ecrã. Lisa desviou-se um pouco, para não lhe obstruir a visão.
Os píxeis continuaram a alinhar-se, com os pormenores da imagem cada vez mais nítidos.
Grant acenou vigorosamente com a cabeça.
— Meu Deus, nunca vi um resultado destes! O programa deve estar a aprender, a refinar-se.
Lisa sorriu.
— Ou então o mérito é todo dela.
Monk concordava. No que tocava a força de vontade, ninguém batia Kat.
A imagem tornou-se ainda mais intricada e facilmente reconhecível.
09h45
Na sua imaginação, Kat esforçou-se por manter a imagem estável. Não era um exercício fácil, sobretudo com a cabeça a pulsar com uma dor que cauterizava cada fissura do crânio. Parecia que estava naquilo há horas.
Tinha também presente a imagem do líder dos atacantes, a figura que se debruçara sobre ela na cozinha segurando um punhal. Não era a primeira vez que via aquela arma, suficientemente invulgar para saber quem a empunhava.
Vá lá, Monk...
A voz dele fez-se ouvir de novo.
— Kat, se estás a tentar mostrar-nos um punhal, estás a fazer um ótimo trabalho. Conseguimos ver a imagem perfeitamente.
Graças a Deus.
Ela não fazia ideia de como o marido e os médicos tinham conseguido aquele milagre — ver o que estava na sua cabeça —, mas sentia-se grata por estar a resultar.
Agora, Monk, descobre o resto por ti próprio.
09h47
Monk viu a imagem dissolver-se no ecrã e transformar-se novamente num caos de píxeis, como que confirmando que tinham recebido a mensagem correta.
Lisa virou-se para ele.
— O punhal diz-te alguma coisa? Ela disse que conhecias os atacantes.
Monk abanou a cabeça.
— Não faço ideia.
— Talvez seja apenas o primeiro emoji de uma série — sugeriu o jovem técnico.
Ele encolheu os ombros e tentou de novo.
— Kat, não percebo onde queres chegar. Consegues ser mais específica? Enviar outra imagem que complemente a anterior?
Dito isto, todos cravaram os olhos no ecrã.
Vá lá, Kat. Tu consegues.
Uma vez mais, uma imagem formou-se lentamente, vaga e indistinta. Parecia areia a cair e a acumular-se no chão.
— Continua a concentrar-te — insistiu Monk. — Estamos a receber qualquer coisa, mas não se percebe bem o que é.
Na sala do scanner, a enfermeira fez-lhes sinal e apontou para a perna de Kat, que começara a tremer.
— Vai ter outra convulsão — disse o neurologista. — Temos de parar.
Não... não quando estamos tão perto.
Monk puxou o microfone para si.
— Meu amor, estamos a ficar sem tempo. Concentra-te o mais possível. Dá tudo por tudo.
Apesar do estado de Kat, todos os olhos na sala de controlo se fixaram no ecrã. Os píxeis fundiram-se numa imagem mais nítida, não tão elaborada como a anterior, mais como um esboço, mas o suficiente para se perceber.
— É um chapéu de bruxa — constatou Monk.
A imagem rodopiou e desvaneceu-se. Desta vez, porém, não era uma confirmação.
Na outra sala, Kat arqueou violentamente o corpo com uma convulsão suficientemente forte para contornar a lesão cerebral e anular por alguns momentos a paralisia. Os membros sacudiram-se descontrolados, arrancando o tubo do soro.
A enfermeira atirou-se para cima dela, a fim de impedir que o corpo caísse da marquesa.
— Estamos a perdê-la!
Grant correu em seu auxílio, ao contrário de Monk, que ficou imóvel enquanto as lágrimas lhe desciam pelo rosto.
Agora descansa, meu amor. Conseguiste.
Visualizou as imagens do punhal e do chapéu de bruxa.
Já sei quem levou as nossas filhas.
10
25 de dezembro, 9h48
Localização desconhecida
— Está tudo bem — sussurrou Seichan às duas crianças.
Nada estava bem, mas elas não precisavam de saber isso. Sentada na pequena cama, limpou gentilmente o ranho do nariz da mais nova, Harriet. Com apenas cinco anos, tinha acabado de vomitar as papas de aveia na sanita metálica a um canto da cave húmida. Mais velha um ano, Penny parecia estar prestes a seguir o exemplo da irmã.
Seichan mantivera-se ao seu lado quando elas tinham acordado do sono induzido pelos tranquilizantes e fizera o possível por confortá-las naquele estranho ambiente, mas não podia fazer as vezes da mãe delas.
Mesmo naquele momento, Harriet fitava vagamente a quarta cama na divisão, ainda feita, como se também soubesse a quem se destinara.
Kat.
A rapariga de cabelos castanho-claros ainda não tinha dito uma palavra desde que acordara. Simplesmente, absorvia a situação em que se encontrava, com o ar analítico que caracterizava a mãe. Vestia um pijama natalício verde com uma faixa preta bordada na cintura, como um cinturão; um chapéu de elfo completava o conjunto. Porém, fazendo justiça à sua personalidade circunspecta e numa demonstração de pouca queda para frivolidades, ela recusara-se a usá-lo em casa, atirando-o para um canto.
Quando chegou o pequeno-almoço — papas de aveia com canela e maçã de conserva —, Harriet limitara-se a comê-lo, seguindo o exemplo da irmã, sempre mais exuberante.
Penny não se calava desde que acordara: Onde está a mãe? Onde estamos? Porque é que a casa de banho não tem porta? Cheira mal aqui dentro. Gosto de papa-formigas...
A última observação tinha provavelmente a ver com as formigas que marchavam ao longo do chão de cimento e desapareciam pelo ralo no meio da divisão. Mas Seichan sabia que era também uma maneira de a rapariga lidar com o medo de se ver naquela situação.
— Quando é que vamos embora? — perguntou ela. — Preciso de fazer chichi.
— Podes usar a sanita.
Penny fez um ar enojado e abanou a cabeça; os seus totós arruivados acompanharam o movimento.
— A Harriet vomitou lá.
— Eu limpei tudo.
A rapariga manteve-se irredutível e baixou os olhos. Seichan conseguia adivinhar o verdadeiro motivo da recusa dela.
— E se eu for primeiro? Vais a seguir? Não precisas de ter vergonha.
Penny encolheu os ombros, sem se comprometer.
Seichan suspirou e levantou-se. Amparou a barriga com uma das mãos quando sentiu a sala a andar ligeiramente à roda, um efeito tardio do tranquilizante. O bebé mexeu-se, colocando-lhe ainda mais pressão sobre a bexiga. Não se importou. Estava mais do que aliviada por saber que a criança não tinha sido afetada durante o ataque.
Ainda assim, correu para a sanita. Tencionava utilizá-la de qualquer maneira, pois não tinha outra escolha. Baixou as calças de grávida, grata pela sua banda elástica. Usando a fralda da blusa para se cobrir minimamente, sentou-se e esvaziou a bexiga.
Quando terminou, e enquanto se levantava e virava para puxar o autoclismo, reparou que havia sangue na sanita. Eram apenas umas gotas, mas o suficiente para o coração dela começar a bater mais depressa. Sem perder a calma, virou-se para Penny.
— Vês? Não tens nenhum motivo para estares preocupada.
Porém, sabia que isso não era verdade, pelo menos no que lhe dizia respeito e ao bebé. Tensa, voltou para junto da cama.
Aparentemente convencida, Penny correu para tomar o lugar dela na sanita. E, para não variar, não se calou um segundo: As tartarugas fazem cocó nas carapaças? Porque é que os gatos não ladram? O Bobby da minha escola é um parvalhão.
Seichan mal a ouvia.
Ao contrário de Harriet, que lançou um olhar crítico à irmã.
Penny percebeu a indireta e moderou o tom de voz enquanto se levantava e puxava as calças do pijama para cima.
— A mãe não nos deixa dizer «peido». Mas o pai diz muitas vezes...
Desmanchou-se a rir com aquilo e correu para se juntar a Seichan e à irmã na cama.
Com uma expressão cada vez mais carregada, Harriet não parecia divertida com a conversa. Subitamente, afastou-se de Seichan e fitou-a.
— Portámo-nos mal? — perguntou por fim, falando pela primeira vez. — O Pai Natal levou-nos... em vez de nos trazer presentes?
A angústia e o aparente sentimento de culpa de Harriet fez com que Seichan focasse toda a atenção nas duas crianças. Não havia dúvida de que a miúda procurava uma explicação para o que sucedera, e a utilização de uma palavra proibida por parte da irmã oferecia uma possível justificação.
— Não, minha querida... claro que não — respondeu ela, puxando-a para si e fazendo o mesmo com Penny. — Vocês não têm culpa nenhuma disto.
Ouviram-se vozes do outro lado da porta. A janelinha abriu-se e alguém espreitou. Um segundo depois, a porta abriu-se.
A pessoa verdadeiramente culpada por aquela situação entrou.
Valya Mikhailov vestia um casaco de peles cinzento e sacudiu a neve que trazia agarrada à roupa. O cabelo branco, penteado para trás com gel, estava cortado mais curto do que a última vez e formava um V acentuado entre as sobrancelhas perladas de gelo. A pele do rosto, pálida como mármore, estava coberta por uma camada de pó de arroz do mesmo tom. Mesmo assim, à luz forte do corredor, não disfarçava a marca escura na face direita.
Seichan visualizou a tatuagem preta que o pó cobria: a metade de um sol, cujos raios se estendiam pela bochecha e por cima do olho. O irmão gémeo da mulher, já falecido, tinha outra tatuagem igual, mas do lado esquerdo.
E ela sabia quem Valya culpava pela morte do irmão.
A mão pálida da mulher repousava sobre o cabo preto de um punhal embainhado à cintura. Seichan também conhecia a história daquela lâmina antiga. Tinha sido herdada da avó de Valya, uma babko, ou curandeira, de uma aldeia na Sibéria. O punhal dava pelo nome de atame e costumava ser usado em rituais mágicos.
Assim que entrou, a mulher lançou-lhe um olhar fulminante. O seu rancor tinha raízes profundas, que não se prendiam apenas com a morte do irmão. Ela e Seichan partilhavam um passado enquanto assassinas da Guilda, irmãs na mesma profissão sangrenta. Depois de Seichan ajudar a Sigma a destruir a organização, Valya sobrevivera, amargurada e pronta para se vingar. Aproveitando o vazio de poder, tinha recrutado novos elementos e, debaixo de uma liderança implacável, reerguido a organização das cinzas.
Penny inclinou-se para Seichan.
— É a Rainha da Neve?
Ela facilmente percebeu a razão daquela pergunta. Na noite anterior, Kat terminara de contar às filhas a história de Hans Christian Andersen com o mesmo nome, em que uma rainha de coração gélido rapta um menino. Não havia dúvida de que o aspeto de Valya, que sofria de albinismo, condizia com o da vilã do conto infantil. Porém, ao contrário do que se fazia crer acerca da doença, os seus olhos não eram vermelhos, mas azul-claros. Sim, de facto, encaixava perfeitamente na personagem.
Seichan deu uma palmadinha na mão da rapariga, tranquilizando-a.
— Não, não é a Rainha da Neve.
Naturalmente, absteve-se de lhe dizer a verdade.
Esta mulher é pior... muito pior.
Valya aproximou-se, flanqueada por dois guardas corpulentos. Um trazia um bastão elétrico; o outro, uma pistola de dardos tranquilizantes.
— Davayte sdelayem eto bystro — ordenou-lhes em russo: «Vamos despachar isto.» Depois mudou para inglês, embora claramente com sotaque, e dirigiu-se a Seichan: — Temos muito que fazer esta manhã.
Seichan pôs-se de pé e fitou a assassina, mantendo as raparigas atrás de si.
— O que queres? — Olhou de relance para a cama vazia. — E onde está a K... a capitã Bryant?
— Da última vez que a vi, estava viva.
Ela sentiu uma onda de alívio.
— Se não fosse tão obstinada — explicou Valya, carrancuda —, estaria aqui convosco. Não era suposto alguém se magoar. Foi por isso que a deixei viva. Não temos condições para cuidar de uma comatowe.
Seichan traduziu a palavra russa, e o medo voltou.
A Kat está em coma...
— Fui vê-la ao hospital — prosseguiu Valya. — Para me certificar de que não vai ser capaz de falar tão cedo. Até levei umas pedrinhas de gelo ao marido...
Monk...
— Ele ficou bastante agradecido.
Seichan cerrou os punhos, imaginando Monk à cabeceira de Kat enquanto a mulher que a pusera ali representava o papel de enfermeira. Além de uma assassina implacável, o maior talento de Valya era o disfarce. Desde muito cedo, tinha aprendido a tirar partido da sua compleição pálida, conseguindo «pintar» qualquer rosto naquela tela em branco.
Em todo o caso, aquela informação dizia a Seichan que ainda se encontravam nos Estados Unidos, provavelmente algures no Nordeste. Só não respondia à pergunta mais importante.
— Uma vez mais, que raio pretendes?
A mulher encolheu os ombros.
— Preciso da ajuda da Sigma.
— É uma estranha forma de a pedires, não achas?
— Nyet. É mais uma questão de estimular a cooperação.
Seichan olhou para as raparigas.
— Houve um ataque em Portugal há quatro dias — explicou Valya —, relacionado com um invulgar projeto de inteligência artificial. Alguém não esteve com meias-medidas para lhe deitar a mão. Como assassinar a embaixadora dos Estados Unidos, por exemplo. Escusado será dizer que isso despertou a nossa atenção. Ninguém faz uma coisa destas por dá cá aquela palha.
Seichan sabia que a antiga Guilda tinha uma tradição de se apoderar de alta tecnologia alheia, que depois vendia para financiar as suas atividades criminosas, ou que adaptava para servir as próprias necessidades. O que muitas vezes era pior.
Ao que parecia, Valya dava continuidade a essa prática.
— O projeto em questão desapareceu — disse ela.
— E tu queres deitar-lhe a mão.
— Da, mas não sou só eu. O komandir Pierce já está a caminho de Portugal. — Consultou o relógio. — Deve aterrar nas próximas dva chasov.
Duas horas?
Seichan não conseguiu esconder a surpresa. Pensava que Gray e o diretor Crowe estariam nesse momento à procura dela e das raparigas.
Porque foi o Gray nessa missão?
Valya encarregou-se de lhe responder.
— A Sigma acredita que as mortes em Portugal estão relacionadas com o nosso ataque. Não deixa de ser verdade, claro, mas não da forma que pensam.
— De que raio estás a falar?
— Aconteceu uma coisa estranha durante o ataque em Portugal...
E, então, Valya contou-lhe acerca de as mortes terem sido acidentalmente filmadas e do misterioso aparecimento do símbolo da Sigma no ecrã do computador.
— Quando a gravação foi encontrada, os meus operacionais já estavam no terreno para descobrir o que tinha acontecido. Foram dos primeiros a verem a filmagem, ainda antes de chegar ao conhecimento da Sigma. Eu sabia que a história do símbolo despertaria o interesse do direktor Crowe. Portanto, antes que ele agisse...
— Raptaste-nos.
— E não podia ter tomado uma melhor decisão. Sete horas atrás, perdi o contacto com os meus homens em Portugal. — Valya franziu o sobrolho, nitidamente incomodada com esta alteração de circunstâncias. — Eles seguiam uma pista do grupo que poderia ter planeado o ataque na universidade, um culto radical, ao que parece, que se veste com túnicas. Seja como for, antes que conseguissem investigar melhor, cruzaram-se com outro grupo sombrio. Um novo elemento neste jogo. Os meus operacionais tentaram saber mais e foi então que lhes perdi o rasto. O meu palpite é que há mais alguém disposto a tudo para se apoderar desta tecnologia.
— O que quer dizer que precisas de gente no terreno.
Ela encolheu os ombros.
— A nossa organização ainda está a crescer e dispõe de uma fração dos recursos da Sigma. — Desviou o olhar para as raparigas. — No entanto, com a motivação certa, estou convencida de que consigo pôr a Sigma a trabalhar para nós.
Seichan compreendeu.
— Eles nunca irão alinhar nisso.
— Veremos. Só quero o dispositivo, juntamente com uma cópia do programa de inteligência artificial. A Sigma entrega-me isso e vocês regressam às vossas vidas.
— E, se isso não acontecer, matas-nos.
— Teoricamente.
— Teoricamente?
— É o que eu quero que a Sigma pense. Se eles não colaborarem, o que tenciono fazer é criar eu mesma estas raparigas. Treiná-las como nós fomos treinadas e transformá-las em armas letais.
Seichan sentiu o sangue gelar nas veias. A Guilda tinha empregado técnicas brutais no treino dos recrutas, sujeitando-os a privações extremas. E, se esses métodos não eram tortura suficiente, o resultado final — acreditando que as raparigas sobreviveriam — seria a destruição das suas almas.
— Quanto ao teu bebé — prosseguiu Valya —, posso esperar mais um mês...
Ela pousou a mão na barriga.
— Não te preocupes. Menino ou menina, hei de criar essa criança como se fosse minha. Tendo em conta a herança genética, estou convencida de que o resultado será formidável. E, depois do parto, vou certificar-me de que o teu corpo será enviado para o komandir Pierce. Com um laçarote e tudo. Um presente de Natal tardio da minha parte.
— Mesmo assim, a Sigma nunca irá alinhar nisto.
— De início, talvez. Será preciso alguma persuasão. — Valya virou-se para o guarda mais encorpado. — Leva a mais pequena.
Seichan fletiu as pernas, pronta a não deixar que aquilo acontecesse.
O outro guarda avançou para ela empunhando o bastão elétrico, com a ponta a soltar faíscas e a crepitar. Seichan visualizou sete formas diferentes de o desarmar e se apoderar do bastão. No mesmo instante, o bebé deu-lhe um pontapé nos rins.
Ela soltou um gemido e caiu sobre um joelho.
Recordou as gotas de sangue na sanita.
Valya pegou na pistola de dardos do outro guarda e apontou-a a Seichan.
— Não sei se o teu bebé aguenta outra dose de tranquilizantes, mas estou disposta a descobrir. E tu?
No chão, Seichan limitou-se a olhar friamente para ela. Sabia que não se encontrava em condições de impedir o que iria acontecer. Tudo o que pôde fazer foi ver o guarda a pegar em Harriet, enquanto Penny chorava e tentava agarrar a irmã, sendo empurrada de volta para a cama.
Enquanto o guarda saía com Harriet nos braços, a expressão estoica da menina não se alterou um milímetro, simplesmente aceitando o inevitável, à semelhança de Seichan. Mesmo assim, lançou-lhe um derradeiro olhar, como que perguntando mais uma vez: O que fiz de errado?
Ela sentiu o coração afundar-se no peito.
— Se lhe fizeres mal... — ainda gritou para Valya, que já se encaminhava para a porta, seguindo os dois guardas.
Mas a outra não lhe deu resposta e limitou-se a bater com a porta, ignorando a débil ameaça. Seichan ergueu-se rapidamente e foi sentar-se na cama para confortar Penny. A rapariga enterrou o rosto molhado contra o seu peito e chorou.
— Ela vai ficar bem — garantiu Seichan, rezando para que isso fosse verdade. — A Harriet vai ficar bem.
O bebé pontapeou-a outra vez. Ela encolheu-se e amaldiçoou o homem que tinha posto aquele demónio dentro dela. Ainda assim, estava preocupada com o pai da criança e com a missão que ele aceitara. Parecia que andava toda a gente atrás daquela tecnologia. Mas porquê?
Fitou a porta trancada, deixando a resposta desse mistério a Gray.
A situação dela não era melhor. Tinha plena consciência de como se encontrava limitada em termos físicos. Não seria capaz de lutar para sair dali, sobretudo com as raparigas a reboque. Precisava de uma estratégia diferente.
Estratégia essa que levantava uma pergunta difícil.
Abraçou Penny com mais força.
Como é que troco as voltas à Rainha da Neve?
11
25 de dezembro, 14h48
Lisboa, Portugal
— O que está a Eva a fazer? — perguntou Carly.
Mara desviou o olhar das informações de diagnóstico que iam surgindo num dos lados do ecrã e lhe forneciam dados sobre a estrutura da sub-rotina dedicada à música. Com o módulo quase completo, queria confirmar se não ocorrera nenhum erro. As experiências anteriores diziam-lhe que aquele era um passo fundamental no desenvolvimento de Eva. Por aquela altura, a informação fornecida seria já a suficiente para permitir que a sua consciência se desenvolvesse. Porém, também a tornava vulnerável. O programa encontrava-se agora naquele ponto de equilíbrio decisivo, entre o milagre do desenvolvimento de uma alma semelhante à humana e a criação de uma máquina egocêntrica de incalculável malignidade.
— O que está a fazer ali agachada? — insistiu Carly.
Mara inclinou a cabeça de lado, imitando a estranha postura de Eva. Em vez de absorver as informações da última sub-rotina — representada visualmente por um turbilhão de notas musicais —, parecia completamente alheada. Estava apoiada sobre um joelho, com a cabeça inclinada e o cabelo caído sobre a orelha esquerda. Parecia congelada.
— Achas que bloqueou? — perguntou Carly. — Como num videojogo?
— Não sei. — Tal admissão de ignorância era o suficiente para gelar o sangue de Mara. — Não faço ideia do que está a fazer.
— É como se estivesse a tentar ouvir qualquer coisa com muita atenção. — Carly virou-se para a amiga. — Talvez tenha gostado de alguma canção em particular e esteja a ouvi-la vezes sem conta.
— Ela não faria isso.
— Consegues perguntar-lhe? Se já tem o domínio da linguagem, deves poder falar com ela, certo?
— Ainda não. É demasiado perigoso. Podia destruir-lhe a psique digital, que é muito frágil. Para a Eva, o mundo inteiro é este jardim virtual. Ainda não está pronta para saber acerca de nós.
— Acerca dos deuses que a observam deste lado.
Mara acenou lentamente com a cabeça.
— Mas acho que tens razão. Ela está a ouvir qualquer coisa.
Mas o quê?
Mara teve uma ideia.
— Deixa-me fazer uma experiência.
Premiu umas quantas teclas e executou outro programa de diagnóstico, que media a existência de padrões de interferência, radiofrequências ou transmissões locais suficientemente fortes para penetrarem nos sistemas isolados do Xénese e comprometerem a sua integridade.
Num canto do ecrã, surgiu um gráfico.
Ela analisou os resultados.
— Eletromagnetismo de fundo, ondas de rádio, transmissões de torres de comunicações móveis, o sinal de um router aqui perto... — Levou um dedo ao pico mais alto do gráfico. — E este sinal é particularmente forte na banda de micro-ondas.
— Micro-ondas? — Carly aproximou-se da janela do quarto. — Há um restaurante na esquina. Se estiverem a aquecer comida...
— Não é esse tipo de micro-ondas.
Mara notou uma ligeira quebra na intensidade do sinal e suspirou.
Talvez não seja nada.
A amiga deixou-se ficar à janela, a apreciar a brisa quente da tarde. O vento despenteava-lhe os caracóis louros, que dançavam por entre os raios de sol. As abas do casaco preto flutuavam, revelando os contornos da sua silhueta.
Ela teve de se esforçar para desviar o olhar e concentrar-se de novo no ecrã. Eva movera-se finalmente, pondo-se de pé, embora continuasse com a cabeça inclinada, expondo a curva da orelha. Mas agora a sua expressão parecia tensa, com o sobrolho ligeiramente franzido e os olhos semicerrados.
Quase como se estivesse assustada.
Confusa e preocupada, Mara fez sinal a Carly.
— Anda cá ver isto.
A amiga afastou-se da janela e começou a atravessar o quarto. Nesse preciso momento, Mara viu o sinal de micro-ondas aumentar de intensidade no gráfico, ao mesmo tempo que, no ecrã, Eva rodava a cabeça, como se seguisse os passos de Carly.
Mara crispou-se, subitamente receando o pior.
A amiga apercebeu-se da sua reação.
— O que se passa?
— Desligaste o telemóvel, certo?
— Sim. E tirei a bateria, como disseste.
Mara sabia que os telemóveis utilizavam transmissões de micro-ondas para comunicarem com satélites de GPS, o que permitia apurar a localização exata dos aparelhos.
— Verifica os bolsos. Todos.
Enquanto Carly seguia as suas instruções, ela verificou os próprios bolsos.
Nada.
Foi então que a amiga arregalou os olhos. De um dos bolsos do casaco, retirou o que parecia ser uma moeda.
— Não sei o que isto é. Nem como veio aqui parar.
Ela sabia a resposta às duas perguntas. Visualizou o homem que agarrara Carly no aeroporto.
— É um localizador de GPS! Colocaram-no em ti.
Carly virou-se na direção da porta.
— E eu conduzi-os até nós.
14h53
Todor partiu outro dedo ao rececionista do hotel, abafando-lhe os gritos com a mão que tinha livre. Dois dos seus compinchas seguravam o homem numa cadeira no pequeno escritório da receção, enquanto Todor lhe observava os olhos vidrados. Tentava imaginar como seria estar no lugar dele, experimentar a agonia que ele sentia.
Será que a dor tinha uma cor, um cheiro, um sabor?
Passara a vida inteira a desejar uma amostra dessa experiência, nem que fosse para saber o que estava a perder, embora não lhe faltassem experiências sensoriais. Conseguia sentir um toque, tremia quando tinha frio, suava quando se esforçava. Mas também podia trespassar a palma da mão com uma faca e nada sentir.
Fora-lhe explicado que a dor era benigna, um mecanismo de alerta do corpo. Pessoas como ele tendiam a morrer jovens, por causa de ferimentos que eram ignorados ou, mais frequentemente, por correrem riscos idiotas. Sem as restrições da dor, julgavam-se capazes de fazer qualquer coisa.
Ele tivera a sorte de o Crucibulum o aceitar quando era miúdo. Muito provavelmente, o treino rigoroso e a disciplina imposta tinham-lhe salvado a vida.
Sem retirar nada de novo da tortura do rececionista, Todor esperou que o homem — um emigrante nigeriano com a pele negra como carvão — parasse de gritar e se ficasse pelo choro.
Quando a equipa tinha entrado no hotel, o funcionário esguio conversava ao telefone na sua língua nativa, nitidamente a discutir com alguém. Todor aproximara-se sem problemas e, enquanto esperava que a chamada terminasse, escutara aquela língua pagã, irritado por aquele lixo humano nunca se dar ao trabalho de se integrar culturalmente.
Todor destapou a boca daquele cabrón e colou o rosto ao dele.
— Uma vez mais — disse, com toda a calma —, sabemos que ela está aqui. Qual é o quarto?
Atrás do nigeriano, Mendoza segurava o iPad que tinham utilizado para seguir o sinal do localizador até ao discreto hotel na rua cor-de-rosa, em pleno Cais do Sodré. Era apenas um de muitos na zona, todos com a tinta da fachada a descascar, o estuque a desfazer-se e varandas ferrugentas com vista para bares e discotecas, a maioria dos quais se encontrava fechada no dia de Natal.
Embora o localizador indicasse a presença dos alvos no hotel, não conseguia posicionar o sítio exato onde se encontravam. Daí, a necessidade de interrogar o rececionista. A equipa tinha ocupado o átrio do hotel e controlado a porta de entrada, embora não houvesse clientes à vista e a rua estivesse praticamente deserta. Todor arrastara o rececionista para o escritório das traseiras e mostrara-lhe uma fotografia de Mara Silviera.
— N... não a conheço — repetiu o homem. — A sério que nunca a vi. Só entrei ao serviço de manhã.
Todor agarrou-lhe noutro dedo.
— Por favor... não...
Antes que ele o partisse, um dos seus homens irrompeu pelo escritório. Arrastava uma empregada aterrorizada, segurando-a pela nuca, ao mesmo tempo que lhe apontava uma pistola.
— Familiar, esta sabe onde a bruxa está escondida.
E, com dois safanões, obrigou a mulher a contar o que sabia.
Todor olhou para o teto.
Quatro pisos acima.
Fitou de novo o rececionista e puxou do punhal que trazia dentro da bota.
O nigeriano arregalou os olhos, apavorado.
— Por favor, senhor... tenho mulher... filhos...
Todor silenciou-lhe as súplicas, cortando-lhe a garganta.
Atrás dele, ouviu-se um tiro abafado e um corpo a cair no chão.
O inquisidor-mor tinha sido perentório nas suas ordens.
Nada de testemunhas.
Ainda assim, Todor nunca desviou os olhos do rececionista. Podia não compreender a dor de uma garganta a ser cortada, mas podia ver a agonia na cara do homem, à medida que a vida e todas as suas promessas se extinguiam num derradeiro resfolegar gorgolejante.
Limpou a faca à camisa do homem, embainhou o punhal e virou-se para a equipa.
— Maleficos non patieris vivere — disse.
Os homens anuíram; as instruções eram claras como água.
Não deixarás viver a feiticeira.
14h58
Vá lá, Mara, despacha-te...
Ajoelhada, Carly enrolava cabos e arrumava-os nas bolsas da mala preta. Uma dúzia de discos rígidos estava já perfilada nos respetivos espaços almofadados. Enquanto ela desligava e guardava os cabos, Mara iniciara o processo de desligar o Xénese, o que colocaria Eva em modo de pausa, e insistira que precisavam de esperar até ao fim da instalação da sub-rotina dedicada à música.
Se a interromper, a Eva pode ficar irremediavelmente danificada.
Carly sabia que o Xénese continha a única cópia do programa. Não havia outro dispositivo capaz de albergar a entidade singular que se desenvolvia no interior daquela esfera iluminada. Se tencionavam descobrir o que a primeira encarnação de Eva sabia acerca da morte da mãe dela e das outras mulheres, precisavam de manter o programa intacto.
Mesmo assim...
— Despacha-te, Mara.
— Já está.
Mara arrancou o cabo USB-C do portátil e passou-o à amiga. Enquanto Carly o guardava, ela encostou o polegar ao leitor de impressão digital do computador e depois começou a escrever furiosamente no teclado.
— O que estás a fazer?
— A introduzir o código para colocar a Eva em pausa — explicou Mara, e depois, subitamente, praguejou na sua língua nativa: — Aborto de calamar!
Carly disfarçou um sorriso enquanto fechava a mala dos discos. Estudara o dialeto galego, a fim de estar mais próxima da amiga. Em público, usavam-no para manter algumas conversas privadas. Aquela frase, bastante típica, traduzia-se mais ou menos como: «Seu aborto de lula!» O que não deixava de ser uma forma pitoresca de mandar alguém à merda. Fosse como fosse, Carly adorava aquela expressão... e mais ainda quando saía da boca de Mara.
— O que se passa? — perguntou.
— Experimenta introduzir uma senha alfanumérica de vinte caracteres quando estás em pânico e logo me dirás. Tenho de recomeçar.
— Respira fundo. Podes...
Foi então que alguém arrombou a porta atrás da amiga. O impacto projetou farpas de madeira pelo ar, ao mesmo tempo que uma figura enorme irrompia pelo quarto e avançava para Mara, enquanto Carly se virava, espantada.
Então, saltou do chão e girou sobre si mesma empunhando a pesada mala dos discos, atingindo o atacante nos cotovelos e desequilibrando-o.
À medida que mais homens invadiam o quarto, ela pegou no braço de Mara e puxou-a na direção da janela aberta. A escada de emergência coberta de graffiti oferecia a única saída possível. Atiraram-se as duas por cima do parapeito e caíram desamparadas no patamar da escada metálica.
Um pires branco partiu-se sob o cotovelo de Carly. No patamar de cima, um gato preto assanhou-se com a súbita intrusão.
Usando a mala como escudo, ela empurrou Mara para os instáveis degraus de ferro. Dois braços emergiram da janela. Os dedos procuraram Carly e engancharam-se na pega da mala. Com a outra mão, ela desferiu um golpe com um pedaço do pires, cortando os nós dos dedos do atacante. Ouviu-se um grito e o homem largou-a.
Depois seguiu a amiga, saltando degraus e de patamar em patamar. Por pouco, não mergulhavam as duas de cabeça até lá abaixo.
Ouviu-se um tiro vindo de cima. O projétil ricochetou no corrimão, soltando faíscas. Carly agachou-se e ouviu alguém a berrar em espanhol, nitidamente a repreender o atirador.
Devem querer apanhar-nos vivas...
Fitou as costas da amiga em fuga e corrigiu a suspeita.
Não, eles querem a Mara viva.
Por fim, alcançaram o último patamar. Mara soltou a última secção vertical da escada, que deslizou com estrondo até ao beco estreito nas traseiras do hotel.
— Desce... rápido! — insistiu Carly, imaginando os homens a descer atrás delas, ou a contornarem o hotel para as apanharem no beco.
Desceram e, uma vez no beco, dobraram a esquina para a rua mais próxima. Ouvia-se música natalícia a ecoar de um bar esquálido, uma banda sonora absurda para aquela fuga desesperada.
— Um táxi... — disse Mara, ofegante e a apontar para a esquerda, onde o carro estava parado.
Correram para lá. A rua estava deserta, sem nenhum outro veículo à vista. Um homem preparava-se para entrar no táxi.
Mara alcançou-o e agarrou a porta aberta.
— Senhor, por favor... — implorou em português.
Ele deve ter percebido o desespero na cara de ambas e afastou-se, deixando-as ficar com o táxi.
— Feliz Natal — desejou-lhes, e fechou a porta.
O motorista arrancou, afastando-se do hotel.
Aliviada, Carly afundou-se no assento com a mala ao colo. Ao seu lado, Mara virou-se e olhou pela janela, preocupada e assustada. Ela sentia o mesmo, perfeitamente ciente do que tinham deixado para trás.
— Não havia nada a fazer — disse, tentando consolar a amiga.
Mara virou-se para a frente e murmurou:
— O que foi que fizemos?
15h06
Todor agachou-se e admirou a esfera de metal e vidro aninhada numa caixa almofadada. Representava apenas metade do prémio que contara recolher ali, mas por agora teria de se contentar com isso.
Atrás dele, Mendoza examinava o portátil, a fim de descobrir até que ponto seria seguro deslocarem o dispositivo. O resto da equipa seguira no encalço das raparigas; precisavam de apanhá-las antes que abandonassem a zona.
Enquanto aguardava notícias deles, Todor contemplava a esfera. As janelinhas emanavam um brilho azul, como se guardassem um pedaço de céu no interior. Tinha de admitir que havia uma certa beleza naquele dispositivo, pelo menos no aspeto exterior.
Em todo o caso, nunca se deixaria levar pelas aparências.
— Ipse enim Satanas transfigurat se in angelum lucis — murmurou, recitando a Segunda Epístola aos Coríntios.
Mendoza deixou escapar um arquejo de espanto.
Todor pôs-se de pé e juntou-se ao técnico informático da equipa.
— O que foi?
Ele afastou-se do portátil e passou a mão pelo cabelo preto e oleoso.
— O que foi criado aqui é maravilloso. Veja.
Todor curvou-se para ver o ecrã. Exibia uma floresta exuberante, com o chão coberto de fetos. Os raios de sol refletiam em cada folha e pétala, e uma brisa suave agitava os ramos delicados de um arbusto carregado de bagas. Os pormenores eram tão impressionantes, que ele quase podia sentir o perfume daquele jardim.
É como olhar para um pedaço do Éden.
E um pedaço que não se encontrava desabitado.
Uma mulher nua ocupava o centro do deslumbrante jardim. Tinha a mão apoiada num penedo coberto de musgo, enquanto se curvava para arrancar uma baga de um arbusto. Ergueu o fruto contra o sol, examinando-o antes de o levar aos lábios perfeitos, e semicerrou os olhos, como que para o saborear melhor. Enquanto fazia isso, o olhar dele percorreu as curvas do corpo esculpido, o tom moreno da pele, os seios despudoradamente expostos.
— Tanto quanto percebi — comentou Mendoza —, chamaram-lhe Eva.
Claro.
Todor endireitou-se. A constatação de tamanha blasfémia abafou a admiração que sentia.
— E a bruxa que a criou? Por onde anda?
Relutante, Mendoza olhou de relance para o iPad pousado ao lado do portátil.
— O sinal indica que estão em movimento. E, pela rapidez, diria que encontraram um táxi.
— Continua a acompanhar o sinal enquanto preparas o dispositivo para ser transportado.
— Sí, familiar.
Todor lançou um último olhar ao portátil. Conhecia o plano do inquisidor-mor para o Xénese e a abominação nele contida. Embora a captura da bruxa fosse um bónus desejado, não precisavam dela para o que se seguia.
Enquanto olhava, sentiu-se novamente atraído pelo esplendor no ecrã. Era de facto maravilloso, como dissera Mendoza, mas não o suficiente para ele se deixar iludir. Observou a mulher no jardim. Tinha os olhos novamente abertos e, de alguma maneira, parecia fitá-lo. Ele sabia o que se escondia por detrás do brilho daqueles olhos.
Sem quebrar o contacto visual com aquela figura sobrenatural, repetiu a citação da Segunda Epístola aos Coríntios, tanto para se recordar a si mesmo como a Mendoza de que deviam refrear a admiração.
— Ipse enim Satanas transfigurat se in angelum lucis.
Era algo que tinham de ter sempre presente, dali em diante.
Repetiu novamente as palavras para si, traduzindo-as.
Isto não é de admirar, pois o próprio Satanás se disfarça de anjo de luz.
15h22
— Acho que morderam o isco — disse Carly.
Mara anuiu, momentaneamente aliviada. Encontravam-se escondidas na penumbra de um bar situado numa cave, cujo ar tresandava a cigarros e patchuli. Enquanto uma canção de Natal tocava numa velha jukebox, elas espreitavam a rua através do vidro encardido de uma janela.
Momentos antes, Carly pusera-se em bicos de pés e limpara o canto do vidro com o cotovelo; apenas o suficiente para verem a entrada do hotel, situado no passeio oposto da rua Cor-de-Rosa. Depois de apanharem o táxi, Mara tinha feito o motorista percorrer alguns quarteirões e, a seguir, mandara-o encostar. Saíram ambas do veículo, mas não sem antes esconderem o localizador do tamanho de uma moeda no banco de trás. Quando o motorista arrancou, regressaram cautelosamente ao ponto de origem a pé, atravessando becos e vielas até entrarem no bar pela porta das traseiras.
Pelo canto da janela, Mara observava agora os homens que transportavam aquele que era o projeto da sua vida para uma carrinha parada à porta do hotel. Não podia fazer nada para os impedir. Mesmo que pedisse ao barman para usar o telefone, a polícia nunca chegaria a tempo. E nenhuma delas se atrevia a usar os telemóveis, pois sabiam que isso iria denunciar a sua manobra de diversão e colocá-las de novo no radar do inimigo.
Em vez disso, Carly segurou um guardanapo contra a parede e começou a apontar o número da matrícula. Deu-lhe um toque de cotovelo para se desviar e poder ver melhor, e depois praguejou entre dentes.
— O que foi? — perguntou Mara.
— Não consigo ler os últimos três números.
Ela franziu o sobrolho.
— Talvez baste os que tens.
O plano consistia em deixar os atacantes partirem. Depois alertariam as autoridades e aguardariam escondidas até que chegasse alguém. Só então abandonariam o bar. Nessa altura, talvez a polícia pudesse localizar a carrinha pela matrícula e apanhar os homens responsáveis pela morte da mãe de Carly e das outras quatro mulheres.
Mara, porém, sabia que essa não era a consequência mais importante do plano.
Visualizou a figura de Eva no seu jardim.
— Estão a ir-se embora — disse Carly. — Anda, preciso do resto daquela matrícula.
Encaminharam-se para a saída, mas detiveram-se junto à porta. Seis degraus subiam até ao nível da rua. Como precaução, deixaram-se ficar mais abaixo, espreitando apenas o suficiente para conseguirem um vislumbre da matrícula quando a carrinha arrancou.
— Já cá canta — disse Carly, fazendo sinal para regressarem para dentro.
Enquanto a amiga apontava os números em falta no guardanapo, Mara voltou a descer os degraus. Ao passar pela entrada escura, sentiu uma presença na penumbra, uma sombra que se agigantava atrás de si.
Tentou escapar-lhe.
— Carl...
Uma manápula tapou-lhe a boca, ao mesmo tempo que um braço forte a agarrava pela cintura. Outra figura apontou uma pistola ao peito de Carly. Os olhos da amiga arregalaram-se de medo.
— No te muevas — disse uma voz.
Não te mexas.
12
25 de dezembro, 11h02
Plainsboro, Nova Jérsia
Exausto e destroçado, Monk deu a mão a Kat, já noutro quarto de hospital. O rosto dela tornara-se pálido, os lábios desprovidos de cor; até o único caracol arruivado que pendia da touca parecia desmaiado e sem o brilho habitual.
Ele aproximou-se e libertou o caracol do sítio onde o suor o colara à testa e enrolou-o no dedo, devolvendo-lhe alguma forma antes de o largar gentilmente.
Pronto, linda como sempre.
Continuava atento aos avisos sonoros do equipamento de suporte de vida, enquanto fazia o possível para se reconciliar com a realidade, tanto do diagnóstico como do prognóstico. Depois da convulsão, a equipa do doutor Grant conseguira estabilizar Kat e levara-a para a Unidade de Cuidados Intensivos. Durante uma hora inteira, tudo o que ele pôde fazer foi andar de um lado para o outro, à espera de saber se tinha perdido o seu grande amor, a mãe das suas filhas.
Lisa fez-lhe companhia a maior parte do tempo.
Por fim, Grant e um punhado de outros médicos anunciaram o veredito. Até ver, Kat encontrava-se estável. A hemorragia cerebral abrandara o suficiente para eles entenderem que uma cirurgia poderia ser mais prejudicial do que benéfica. Porém, também tinham comunicado que Kat deixara de respirar sozinha e encontrava-se agora dependente do ventilador. Mas o pior era que os momentos de consciência assinalados nos eletroencefalogramas tinham cessado, o que indicava que ela deixara de estar ciente do que acontecia à sua volta.
Talvez seja pelo melhor, sugeriu o médico responsável pela UCI.
Monk ficou com vontade de o esmurrar. Como que pressentindo essa intenção, Lisa agarrou-lhe na mão prostética e apertou ligeiramente os dedos. De pouco valia, pois aquele hardware carregava mais do que a força de um soco. Além da tecnologia avançada, a palma da sua mão continha uma pequena carga de explosivos plásticos, para aquelas ocasiões em que um aperto de mão não era suficiente.
Mas Lisa não o largou, confortando-o e impedindo-o de fazer um disparate, enquanto a equipa de médicos terminava o relatório. O consenso era que Kat resvalara de uma síndrome de encarceramento para uma situação de coma profundo.
Não há nada que possamos fazer, concluiu o doutor Grant. A partir daqui, é esperar para ver.
Agora, Monk sentia que a espera tinha menos a ver com a recuperação de Kat do que com a sua possível morte.
Ou talvez estejam à espera de que eu aceite o inevitável.
Deu uma palmadinha na mão da mulher.
— Mas tu sabes como sou teimoso, não é? Alguma vez me viste desistir?
Na mesa de cabeceira, o telemóvel dele tocou e vibrou em simultâneo, indicando uma chamada urgente. Monk pegou no aparelho, viu que era o comando da Sigma e atendeu.
— O que é que descobriram? — perguntou, mal ouviu a voz do diretor.
Já tinha transmitido a informação dada por Kat, provavelmente a última que ela partilharia, e que era fulcral para a missão. Um único nome: Valya Mikhailov. A antiga assassina da Guilda raptara-lhe as filhas e também Seichan.
— Monk, preciso que estejas preparado para o que vou dizer — respondeu o diretor, num tom de voz tenso.
Ele sentiu o coração falhar um batimento. Mil cenários diferentes, cada um mais brutal do que o outro, encheram-lhe o pensamento.
— O que aconteceu? — perguntou, mal conseguindo respirar.
— Recebemos um vídeo há dez minutos, de fonte indeterminada. Vou reencaminhá-lo para o teu telemóvel.
Monk apertou os dedos em torno do aparelho, a visão estreitando-se enquanto olhava para o ecrã.
— Elas estão mortas? Diga-me de uma vez por todas!
— Não. Vê o vídeo. Já deves tê-lo recebido.
O ficheiro surgiu e ele abriu-o. O ecrã escureceu enquanto o vídeo começava, revelando um espaço sem características especiais, com cortinas pretas a servir de fundo. Estavam presentes três figuras. Duas com os rostos cobertos por capuzes e vestidos com túnicas largas, impedindo qualquer identificação — até o género. Uma estava de pé, mais perto da câmara, e a outra mais atrás, sentada num banco de madeira. Equilibrava no joelho uma criança vestida com um pijama verde; os seus caracóis eram um tom mais claro do que os de Kat.
— Harriet...
A figura de pé falou por fim, com uma voz robótica eletronicamente distorcida, que mudava a cada segundo de forma arrepiante.
— Dou-vos vinte e quatro horas para localizarem e nos entregarem o projeto Xénese de Mara Silviera. Tanto o programa como a esfera neuromórfica que o contém. O local de entrega, em Espanha, encontra-se encriptado neste ficheiro. Se não cumprirem as instruções...
A figura fez uma pausa e virou-se na direção de Harriet, cujos ouvidos estavam tapados com auscultadores para evitar que ouvisse.
— Terminado este prazo, iremos começar por lhe cortar um dedo que vos será enviado. Depois, a cada seis horas, cortaremos as orelhas, nariz, lábios... até não restar nada desta criança. — Virou-se novamente para a câmara. — E a seguir será a vez da outra.
O vídeo acabou tão abruptamente como tinha começado.
Monk levantou-se, dominado pelo terror. Suores frios tornavam-lhe as palmas das mãos escorregadias. A respiração falhava-lhe por entre os dentes cerrados. Não conseguia sequer falar.
Painter, que antecipara semelhante reação, lançou-lhe algo a que se agarrar.
— Graças à Kat, temos uma vantagem. Pela forma como os autores do vídeo protegeram as identidades, a Valya não faz ideia de que sabemos que foi ela quem levou as crianças.
Ele encontrou forças para falar.
— Em que ponto estamos para conseguirmos localizá-la?
— Estamos a trabalhar nisso — retorquiu o diretor. — Mas precisamos de ter cuidado. Se espalharmos a fotografia da Valya por todo o Nordeste, ela vai saber que foi desmascarada e perdemos essa pequena vantagem. Estou a tratar das coisas fora dos canais habituais e a recrutar apenas as pessoas em quem podemos realmente confiar.
Monk compreendeu, embora não gostasse daquelas limitações. Não conseguia parar de pensar no rosto da filha no vídeo, na sua expressão marcada por uma mistura familiar de medo e raiva.
Painter prosseguiu.
— Também estamos a utilizar o último software da DARPA para esquadrinhar todas as filmagens de câmaras de trânsito e videovigilância. Infelizmente, a Valya dificultou-nos o processo ao desativar esses equipamentos nas imediações da casa do comandante Pierce. Em todo o caso, alargámos a busca a toda a cidade de Washington e vamos continuar a expandi-la até a encontrarmos.
Ele abanou a cabeça, pouco convencido de que tal plano produzisse resultados.
— Estamos a falar de uma mulher especialista em disfarces.
— Bem sei, mas o nosso software de reconhecimento facial é o mais avançado que existe. A maioria dos algoritmos procura, no máximo, uma dúzia de características faciais para identificar um suspeito. O programa da DARPA isola mais de cem. Consegue ver através de maquilhagem, próteses faciais, até alterações cirúrgicas. Se a Valya mostrar a cara, disfarçada ou não, havemos de vê-la.
Monk reparou no relógio do telemóvel que segurava na mão metálica. Na sua cabeça, estava já a contar os minutos. Menos de vinte e quatro horas. Tentou não pensar em alguém a segurar o fino pulso de Harriet contra uma tábua de corte, o cutelo a cair, os gritos dela.
— A equipa forense terminou o trabalho em casa do Gray — disse Painter. — Estão a analisar o sangue recolhido. A maioria pertence aos atacantes. Um bom bocado, na verdade.
Ele desviou o olhar para Kat.
Bom trabalho, querida.
— Talvez as análises ao ADN ajudem a identificar os membros da equipa, o que pode ajudar a expandir as buscas. Mesmo assim...
O diretor não completou a frase, mas as implicações eram claras.
— É pouco provável que encontremos a Valya nas próximas vinte e quatro horas — concluiu Monk.
Em menos de vinte e quatro horas, aliás.
— Sim. A não ser que a Kat soubesse mais alguma coisa que ajudasse a reduzir os parâmetros de busca.
Monk fitou o rosto encovado da mulher, o movimento mecânico do peito. O seu olhar deambulou desde a touca hospitalar, que escondia uma dezena de elétrodos ligados ao escalpe, até ao monitor junto à cama. O ecrã exibia um conjunto de linhas irregulares, uma escala de Richter da atividade neurológica do cérebro. Ao analisar estas leituras, o doutor Grant tinha indicado uma das linhas e murmurado para um colega: «Repara na baixa voltagem com supressão da tensão.»
Tradução: a Kat já não se encontra connosco.
— Ela deu-nos o que podia — disse Monk.
— A Lisa pensou que talvez com...
— Com o quê? Tempo suficiente? Não, obrigado. Os minutos estão a contar para a Harriet. E o mesmo se aplica à Penny e à Seichan. — Ao recordar a namorada de Gray e a criança por nascer, Monk afastou-se da cama da mulher, sabendo que não havia mais nada a fazer ali. — Vou ao encontro do Gray, onde posso fazer qualquer coisa de útil.
Ou, simplesmente, fazer qualquer coisa.
Estava farto de esperar.
Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual ele se preparou para discutir com o diretor e defender a sua decisão. Se não encontrassem Valya, a melhor esperança para as crianças e Seichan era apoderarem-se do dispositivo de Mara.
Finalmente, Painter falou.
— Tens um F-15 Eagle a abastecer na base aérea de Lakehurst. De helicóptero, chegas lá em vinte minutos.
Monk não devia ficar surpreendido. Claro que o diretor, sempre perspicaz e um excelente avaliador de carácter, antecipara aquela reação e tinha já preparado um meio de transporte.
— O Gray deve aterrar em Lisboa dentro de uma hora — continuou ele. — Vou coordenar o vosso encontro assim que estejas lá também. Mas lembra-te, Monk. Sabes o que está em jogo. Esta tecnologia nunca poderá cair nas mãos da Valya.
— Eu sei. Mas sem ela não temos nenhum trunfo.
— Nesse caso, desde que estejamos em sintonia, é melhor despachares-te.
Em paz com a sua decisão, Monk desligou o telemóvel, debruçou-se sobre Kat e deu-lhe um beijo na face. Apesar da urgência, demorou o seu tempo, pressentindo que era a última vez que beijaria a mulher.
No entanto, sabia que ela o apoiaria a cem por cento.
— Eu vou salvá-las — sussurrou-lhe ao ouvido. — Prometo.
Endireitou-se, limpou as lágrimas ao canto dos olhos e encaminhou-se para a porta. Encontrou Lisa no corredor, que conversava acaloradamente com o doutor Grant. Ela viu-o e veio ao seu encontro.
— Onde é que...
— Vou para Portugal. Ajudar o Gray na missão.
Lisa olhou de relance para o quarto de Kat. Monk sentiu-se a corar, sabendo que ela devia pensar que estava a abandonar a mulher.
— Eu compreendo. Deves ir — disse ela, provando ser uma avaliadora de carácter tão competente como o marido. — O Painter enviou-me uma mensagem... acerca do vídeo. Não consegui vê-lo.
— Tenho de fazer o que puder — disse ele.
— Claro que sim. — Solidária, Lisa apertou-lhe o braço. Entretanto, olhou para o neurologista e depois novamente para o quarto de Kat. — Enquanto estiveres fora, há uma coisa que podíamos tentar. Trata-se de um procedimento absolutamente experimental. Não a vai curar, mas...
— Faz o que achares melhor — interrompeu Monk, libertando-se da mão dela. — Confio em ti.
— Sim, mas...
— Vai em frente.
Passou por ela e seguiu pelo corredor. Não precisava de falsas esperanças, mas de se concentrar no passo seguinte... e no outro depois desse. Cada passada que dava afastava-o de Kat, mas talvez o levasse ao encontro das filhas e de Seichan.
Sabia que Gray não devia estar menos preocupado e aterrorizado com a situação dela e do bebé.
Mesmo assim...
Gray, preciso que estejas no teu melhor.
O rosto assustado de Harriet veio-lhe à memória.
Todos nós precisamos.
TERCEIRA PARTE
À BEIRA DA DESTRUIÇÃO
13
25 de dezembro, 17h05
Lisboa, Portugal
Num canto remoto do Aeroporto de Lisboa, Gray agachou-se diante de um dos cacifos para bagagem e distribuiu as armas escondidas no interior e providenciadas por Painter.
A área dos cacifos, um espaço estreito e longo numa das extremidades do terminal, encontrava-se vazia, mas, à cautela, Kowalski usou o corpo para bloquear a visão de alguém que por ali passasse e da única câmara de segurança naquele ponto. Tinham deixado as armas pessoais no jato, sabendo que não valia a pena tentarem passá-las pelos postos de controlo do aeroporto.
Gray enfiou uma nova SIG Sauer P365 num pequeno coldre que entalou no cinto atrás das costas, por debaixo do blusão. O tamanho compacto da pistola semiautomática de 9 mm tornava-a perfeita para aquelas situações. Jason escondeu outra igual num coldre ao ombro, oculto pelo casaco de malha grossa. As armas vinham equipadas com miras de visão noturna e carregadores extensíveis, permitindo uma capacidade total de treze munições.
Incluindo a bala na câmara.
Para muita gente, tal número pareceria azarento, mas, no meio de um tiroteio, as munições adicionais podiam representar a diferença entre a vida e a morte.
Ou seja, o treze nem sempre dá azar.
Kowalski soltou um assobio apreciativo quando Gray lhe passou a arma dele.
— Que rico presente! E nem precisei de me sentar no colo do Pai Natal.
A FN-P90 era uma pistola-metralhadora usada pela NATO, com o carregador posicionado atrás do gatilho, o que permitia três modos de disparo: tiro a tiro, rajada controlada ou rajada contínua, em que cuspia novecentas balas por minuto. As munições de 5,7 x 28 mm conseguiam penetrar materiais ultrarresistentes como o kevlar. Apesar disso, os meros cinquenta centímetros de comprimento tornavam-na fácil de esconder.
Kowalski despiu parte da gabardina e pendurou a metralhadora ao ombro, dando-lhe uma palmadinha.
— Linda menina. Vamos ser muito felizes os dois.
Gray passou-lhe também um pesado saco com carregadores adicionais, cada um contendo cinquenta munições, mais do que suficientes para alimentar essa «felicidade».
Kowalski voltou a vestir a longa gabardina, ajeitando tudo no sítio. Aquela peça de vestuário conseguia esconder armas que chegavam para invadir um pequeno país do Terceiro Mundo.
— E agora, o que se segue? — perguntou o homenzarrão.
Gray passou a Jason outro saco de equipamento, incluindo óculos de visão noturna, e depois levantou-se.
— O Painter arranjou maneira de nos encontrarmos com a família da doutora Carson. O marido e a filha mais velha. Para ver se tiveram mais notícias das duas raparigas em fuga.
Mara Silviera e Carla Carson.
Ele nem imaginava como aquela família devia estar consternada. Primeiro, o assassínio da embaixadora e depois o ataque à filha no aeroporto, que a pusera em fuga. Mas, se pensasse bem, Gray não precisava de imaginar esse desespero. Continuava a fazer o melhor que podia para pôr de lado o seu receio por Seichan, pelo bebé e pelas filhas de Monk, mas era como tentar fechar um cão raivoso numa jaula. Sempre que respirava, sentia uma dor persistente no coração, e não no sentido figurado.
Sabia que Monk não estaria melhor, lutando por se aguentar no fio da navalha. O diretor atualizara a equipa acerca dos últimos desenvolvimentos nos Estados Unidos, do envolvimento de Valya Mikhailov e da deterioração da saúde de Kat.
Incapaz de fazer qualquer coisa que revertesse a situação da mulher, Monk já estava a caminho de Portugal a bordo de um F-15, a rasgar o céu ao dobro da velocidade do som. Mesmo com o abastecimento em pleno voo, deveria aterrar em menos de noventa minutos.
Gray tencionava ter algumas respostas antes disso.
Enquanto avançavam pelo aeroporto, Jason verificou o telemóvel.
— Não há mais novidades do diretor, mas um elemento da equipa de segurança dos Carson vai encontrar-se connosco no Terminal Um para nos levar à família.
Aceleraram o passo em direção ao local combinado. Gray liderava o grupo, fazendo o possível por passarem despercebidos aos olhos dos restantes passageiros. Mesmo assim, algumas cabeças viravam-se ao passarem, sobretudo curiosas com o gigante atrás dele. Kowalski nunca passava despercebido. E não ajudava que ele insistisse em desembrulhar um charuto enquanto caminhavam por entre a multidão.
— Não pode fumar aqui dentro — avisou Jason, que lembrava um rato ao lado de um elefante.
— Eu sei que é proibido. — Kowalski sacou por fim o invólucro de celofane e enfiou o charuto entre os molares. — Mas isso não significa que não possa saborear o gostinho desta maravilha.
Gray sabia que não valia a pena tentar contrariar o amor do outro por folhas de tabaco secas. Mais à frente, um braço ergueu-se por cima das cabeças no terminal. Ele ouviu chamarem o seu nome num tom autoritário.
— Comandante Pierce!
O grupo aproximou-se. O homem que o chamara vestia um fato azul-escuro, camisa branca e gravata preta, o figurino habitual de um agente de segurança, a que não faltava o auricular na orelha com o fio a desaparecer por debaixo do casaco.
— Agente Bailey — identificou-se ele, com um ligeiro sotaque irlandês. — Chefe da equipa de segurança da família Carson.
Gray deu-lhe um aperto de mão. O cabelo do homem era tão alinhado como o fato, cortado rente dos lados e um pouco mais comprido em cima, com cada fio meticulosamente penteado. Tinha um tom de pele bronzeado, que dava ares de ser permanente, e os olhos verdes brilhavam de inteligência. Os seus lábios esboçaram um sorriso divertido enquanto observava Kowalski da cabeça aos pés.
Depois de muitos anos no terreno, Gray conseguia avaliar um oponente com um único olhar. Mas aquele agente era de confiança e competente, e ele sentiu um respeito imediato pelo homem que aparentava ter a sua idade. Até aquele sorriso lhe pareceu familiar, confortável, como se o conhecesse há anos.
Em todo o caso, não baixou a guarda, atento a cada pormenor à sua volta.
— Não sei se foram informados — disse Bailey —, mas transferimos o senhor Carson e a menina Laura há vinte minutos.
Gray olhou de relance para Jason, que abanou a cabeça. Era um dado novo.
— Depois da tentativa de ataque aqui, entendemos que seria melhor levar a família para um local mais seguro. Temos agentes espalhados pelo aeroporto, para o caso de as raparigas voltarem.
Bem pensado.
O homem sabia conduzir uma operação.
— Está um carro lá fora à nossa espera. Não demoramos mais de dez minutos até ao novo local.
Gray ficou satisfeito com a rapidez e eficiência da sua escolta. Assim que chegava ao terreno, gostava de avançar rapidamente, ainda mais naquela situação.
— Vamos a isso.
Bailey conduziu o grupo pelo terminal até ao exterior, onde a luz do dia já era escassa. O sol repousava taciturno no horizonte, como que desapontado pelo fim das festas de Natal. Uma carrinha Ford Econoline descaracterizada aguardava junto ao passeio. Gray não conseguiu deixar de pensar no contraste com o luxo e o requinte do jato que o trouxera ali. Era evidente que a segurança do corpo diplomático não dispunha de bolsos tão fundos como os da Sigma.
Bailey abriu a porta lateral, ergueu o polegar para o condutor e convidou o trio a entrar. Kowalski sentou-se no último banco, debatendo-se com o próprio tamanho e com a metralhadora escondida debaixo da gabardina. Gray e Jason ocuparam os dois assentos atrás do condutor.
Bailey contornou a carrinha e sentou-se no lugar do passageiro. Com toda a gente instalada, virou-se para trás e apontou uma pistola ao grupo, sorrindo mais uma vez.
— Ninguém se mexe.
17h14
Mara caminhava de um lado para o outro na luxuosa cela. Embora isso não a levasse a lugar nenhum, o movimento ajudava-a a esquecer o medo... mas não completamente.
Carly estava sentada na beira da cama de dossel, cheia de almofadas e coberta com uma colcha de seda. O seu único sinal de agitação era o joelho, que não parava quieto. Olhou em redor.
— Pelo menos, instalaram-nos na suíte real.
Mara olhou igualmente à sua volta, reparando nas cadeiras antigas, na pequena escrivaninha francesa e nos fabulosos quadros nas paredes. Uma das pinturas parecia ser da autoria de um reconhecido pintor português, Pedro Alexandrino de Carvalho. Tratava-se de uma representação de São Tomé a examinar a ferida na ilharga de Cristo, com o rosto angustiado pela dúvida.
A cena alimentou-lhe as próprias dúvidas em relação ao desenlace da situação em que se encontravam.
Será que vão deixar-nos viver?
Depois de dominadas sob ameaça de arma, as duas tinham sido reconduzidas para a porta das traseiras do bar. O barman fizera vista grossa e continuara a limpar os copos; nitidamente, tinha sido pago para não intervir. Mesmo assim, Mara apercebera-se do seu olhar culpado, embora aparentemente o remorso não fosse suficiente para impedir que fossem levadas e enfiadas numa carrinha que esperava no beco.
Se cooperarem, ninguém vos faz mal, dissera o homem com a arma, ao fechar ruidosamente a porta.
Sem escolha, elas limitaram-se a obedecer.
A carrinha percorreu umas centenas de metros e parou noutro beco junto à praça de São Paulo. Mara apanhou um vislumbre da fonte e das suas águas murmurantes, atrás da qual se erguiam as duas torres gémeas da igreja com o nome do mesmo santo. Ela dirigiu uma oração silenciosa ao santo, para que interviesse e as salvasse.
Sem a prece atendida, as duas foram então levadas para um edifício alto no limite da praça. A arquitetura era tipicamente pombalina, chamada assim em homenagem ao marquês de Pombal, responsável pela reconstrução de grande parte da cidade após o terramoto de 1755. O eficiente estilo arquitetónico de inspiração neoclássica nascera de necessidades financeiras. Ainda assim, o traçado simples com pouca ou nenhuma ornamentação era também um sinal da nova era do Iluminismo, à medida que a Europa abandonava a extravagância do rococó e evoluía para algo mais prático e racional. A arquitetura pombalina era caracterizada por uma arcada de espaços comerciais ao nível da rua e, por cima, três ou quatro pisos residenciais.
Mara sabia tudo acerca daquele período porque a sua mentora local, Eliza Guerra, a responsável pela Biblioteca Joanina, sempre insistira que ela tivesse uma educação multidisciplinar, o que naturalmente incluía história, sobretudo a de Portugal e da Península Ibérica, da qual a bibliotecária muito se orgulhava.
Tinha sido a lembrança desse infindável entusiasmo de Eliza — pelo conhecimento e pela vida em todo o seu esplendor e mistério — que lhe dera força para seguir Carly escadas acima até ao último andar do prédio, sendo depois fechadas num quarto virado para as traseiras. Um guarda foi colocado à porta do quarto, e outro na varanda, junto às portas envidraçadas que lhe davam acesso.
Isso tinha acontecido há mais de uma hora.
— Mara — disse Carly —, por favor, não gastes mais o tapete. Parece caro e não queremos chatear os nossos anfitriões.
Ela cruzou os braços, aproximou-se da cama e sentou-se ao lado da amiga.
— O que achas que estão a fazer?
Carly olhou para a porta.
— A decidir o que vão fazer connosco, provavelmente. A ponderar se temos algum valor.
Ou seja, a ponderar se nos matam ou não.
Mara descruzou os braços e pegou na mão da amiga. Não por medo ou porque precisasse de ser confortada. Apenas porque sim... porque lhe parecia a coisa natural a fazer naquele momento.
Carly apertou a mão dela na sua, acariciando-lhe inconscientemente o pulso com o polegar.
— Eles devem estar a examinar o conteúdo da tua mala, todos os discos rígidos. Deviam estar à espera que tivéssemos o Xénese connosco. Talvez a única maneira de continuarmos vivas seja fazê-los acreditar que conseguimos recriar o programa.
Momentos antes, tinham ambas concluído que os raptores pertenciam a outro grupo qualquer, que não eram os mesmos homens que tinham matado a mãe de Carly e as outras mulheres da Bruxas International. A notícia de que Mara fugira com o projeto devia ter-se espalhado, atraindo outros abutres.
— Achas que nos vão torturar? — perguntou ela.
— Não.
Mara ficou aliviada, mas Carly não tinha terminado.
— Vão torturar-me só a mim. Para te obrigar a colaborar.
Mara apertou ainda mais a mão da amiga.
Ela fitou-a, com os olhos vítreos de lágrimas contidas, e humedeceu os lábios, como se quisesse dizer qualquer coisa.
Mara sentia o mesmo. Conheciam-se há mais de cinco anos, aqueles anos determinantes dos dezasseis até à idade atual, enquanto se transformavam de adolescentes em jovens adultas. Nunca tinham tido dificuldade em falar uma com a outra, embora por norma o fizessem ao telefone, em longas trocas de e-mails ou curtas mensagens de texto. Grande parte da relação forjara-se à distância, mas o mundo entretanto tornara-se muito mais pequeno. Os amigos por correspondência já não precisavam de esperar semanas ou meses para comunicarem entre si.
Mesmo assim, separadas por um oceano, tinham passado pouco tempo juntas. A amizade, a ligação profunda que as unia, assentava sobretudo na partilha dos pensamentos, sonhos, receios e esperanças de ambas.
Mara devolveu o olhar a Carly e contemplou os caracóis que lhe caíam sobre a testa. Se ao menos tivesse coragem de falar agora, de preencher o último vazio entre as duas, de confessar o inconfessável.
Mas esperou demasiado tempo.
Carly baixou a cabeça, um tudo-nada envergonhada, olhou na direção da porta e colocou a pergunta que as atormentava.
— Quem serão estes sacanas?
17h18
Gray sopesou as diferentes opções.
Fitou o cano prateado da Desert Eagle apontada ao seu rosto, calculando que devia ter na câmara uma munição de calibre .357 ou .44 Magnum. O homem que a empunhava tinha um olhar determinado, de quem não estava ali para brincadeiras. Prova disso era aquela arma. Para piorar a situação, ele estava praticamente sentado em cima da sua pistola; Kowalski, entalado no banco de trás, dificilmente seria capaz de sacar da metralhadora; e Jason tinha já as mãos no ar.
Bailey, se esse fosse sequer o seu nome verdad...
— O meu nome é Finnigan Bailey — disse o homem. — Mas os meus amigos chamam-me Finn.
— Não sei porquê, mas não me vejo a fazer parte desse lote tão depressa — disse Gray. — E, deixe-me adivinhar, não é agente da segurança do corpo diplomático?
— Não, receio que não pertença a um grupo tão ilustre. Mas pertenço a uma organização que é igualmente comprometida com a mesma missão. Talvez mais ainda.
A julgar pelo sotaque, Gray calculou que o homem pertencesse ao Novo Exército Republicano Irlandês, a nova encarnação do IRA. Parecia que não havia nenhum grupo ou organização terrorista que não estivesse interessado no potencial do trabalho de Mara.
Bailey usou a mão livre para desapertar a gravata e o colarinho, revelando assim a verdadeira identidade. A camisa branca escondia outra mais fina e preta, juntamente com um colarinho de padre.
Gray foi incapaz de esconder a surpresa.
Aquilo não pode ser autêntico.
Bailey baixou a arma.
— Peço desculpa por isto, mas, armados como estão, não podia correr o risco de que fizessem um disparate.
— Filho da p... — disse Kowalski, sem terminar o insulto.
Ele fez de conta que não ouviu.
— Precisava de vos tirar do aeroporto de maneira que alguém que estivesse a ver pensasse o mesmo que vocês.
Jason baixou as mãos e pousou-as no colo.
— Que vamos a caminho de uma reunião com os Carson, acompanhados pela equipa de segurança...
— E onde vamos então, se não é esse o caso? — perguntou Gray.
— Vou levar-vos ao encontro da Mara Silviera e da Carla Carson. — O seu tom de voz tornou-se mais sério. — Elas precisam da vossa ajuda. Só espero que as vossas capacidades estejam ao nível da reputação que têm.
Gray esforçou-se por acompanhar a inesperada alteração de circunstâncias.
Poderei confiar neste tipo? Quem me diz que é mesmo padre?
Bailey pareceu ler-lhe o pensamento.
— Posso garantir-lhe que sou padre. — Sorriu novamente, divertido. — Acha que um padre mente?
Kowalski bufou.
— E que tal um padre a apontar uma pistola à cabeça das pessoas?
— Nunca seria capaz de premir o gatilho. Nem que a minha vida dependesse disso.
— E só agora é que nos diz? — resmungou Kowalski. — Ainda há bocado, quase me borr... quase tive um acidente.
Gray chegou-se para a frente, ainda desconfiado.
— Quem é você? O que se passa aqui?
A carrinha abrandou e parou diante de um prédio alto à beira de uma praça. Bailey acenou com a cabeça na direção da porta.
— Quando estivermos lá dentro, conto-vos tudo. Ponho todas as cartas na mesa. — Os seus olhos verdes brilharam. — E digo isto literalmente.
17h35
Carly ouviu a porta a ser destrancada e ergueu-se. Cerrou os punhos e deu um passo em frente, para se colocar entre a amiga e quem entrasse no quarto. Apoiou o peso do corpo na perna mais recuada, pronta para desferir um pontapé, se tivesse oportunidade.
Mara levantou-se também.
— Fica atrás de mim — avisou Carly.
Uma figura emergiu das luzes mais fortes da divisão adjacente. Entrou no quarto, erguendo as mãos vazias. Carly franziu o sobrolho, sem compreender. O homem alto estava vestido de preto da cabeça aos pés: sapatos, calças, cinto, camisa. A única exceção era o colarinho branco.
Um padre?
Aquilo só podia ser uma artimanha, uma forma de ganhar a sua confiança.
— Menina Carson e menina Silviera, aceitem as minhas desculpas pela longa espera. E por vos deixar às cegas, se assim posso dizer. Não contava demorar tanto tempo a reunir todos os intervenientes debaixo do mesmo teto. — O padre deu um passo atrás e fez um gesto na direção da outra sala. — Se fizerem o favor de me acompanhar, talvez possamos tratar de nos conhecer melhor.
Carly hesitou, mas depressa compreendeu a inutilidade de resistir. Mesmo assim, sussurrou para Mara:
— Mantém-te colada a mim.
À primeira oportunidade, corremos daqui para fora.
Mara não precisava de ser persuadida. Enquanto a amiga se encaminhava para a porta, seguiu-lhe os passos como uma sombra.
O padre conduziu-as por um corredor curto até uma sala de jantar. Havia uma lareira de mármore acesa e o crepitar da lenha era convidativo. As janelas altas ofereciam uma vista para a praça, enquadrando as duas torres da igreja no lado oposto. O sol já se pusera, mas persistia uma luz arroxeada que iluminava a fachada de pedra da igreja, como se o local de culto retivesse algum do calor e da luz daquele dia santo.
— Preparámos uma refeição ligeira — disse o padre, desviando a atenção delas para a mesa e as figuras sentadas em volta.
Os pratos de queijo, fatias de pão e uma variedade de fruta revolveram o estômago de Carly. Há quantas horas não comia? Mara também olhou para a comida, simultaneamente esfomeada e desconfiada.
Enquanto se aproximavam, Carly observou o grupo de homens, todos com ar sério. Os dois que as tinham emboscado no bar encontravam-se sentados no lado mais próximo da saída. Ela lançou-lhes um olhar de poucos amigos, mas eles mantiveram-se impávidos. Três desconhecidos ocupavam o lado contrário da mesa. Pelas roupas, postura e expressões, pressentiu que eram americanos ainda antes de abrirem a boca.
O padre fez as apresentações e convidou-as a sentar-se.
Carly estava certa acerca do trio: americanos. O mais alto, com um charuto entre os dentes e uma expressão sisuda que parecia permanente, lembrava uma personagem saída de um filme de terror. Todo ele era músculos: da ponta dos pés ao cérebro. Os outros dois tinham um aspeto igualmente duro, mas pareciam mais acessíveis. Um deles emanava uma intensidade invulgar, muito por conta dos penetrantes olhos cinzentos, lembrando nuvens de tempestade. O último era mais novo, talvez da idade delas. Tinha os cabelos louros desgrenhados, quase podendo ser considerado giro, e esboçou um sorriso envergonhado à medida que elas se aproximavam, fixando o olhar em Carly um pouco mais do que seria normal.
Ela estava habituada a despertar atenções, mas não lhe deu troco.
— Venham — insistiu o padre —, sentem-se.
Ocuparam ambas os seus lugares à mesa, cada uma do seu lado, com o padre à cabeceira.
— Comandante Pierce, para quebrar o gelo, talvez seja melhor começarmos por si. Penso que assim será mais rápido.
— O que quer dizer com isso? — perguntou o homem, num tom seco.
Não parecia simpatizar com o anfitrião, o que levou Carly a confiar um pouco mais nele.
— Estou a falar da sua identificação. Da organização a que pertence.
O comandante ficou calado uns instantes e, depois, como que percebendo por fim a ideia do padre, tirou a carteira do bolso e sacou de um cartão preto que parecia metálico. Atirou-o para cima da mesa, fazendo-o deslizar pelo tampo até parar no meio de Carly e Mara.
Um holograma pairava na superfície lustrosa do cartão.
Uma letra grega.
Mara abriu a boca e trocou um olhar espantado com a amiga.
— Sigma...
Carly encheu-se de coragem e fitou os olhos frios do portador do cartão.
— Quem são vocês? O que significa tudo isto?
— Pertencemos à Força Sigma, uma organização afiliada da DARPA.
Mara franziu a testa.
— O grupo de pesquisa avançada do exército?
— Esse mesmo. Era a DARPA que financiava o seu projeto na universidade, através de fundos canalizados pela Bruxas International. — O olhar dele fixou-se em Carly. — A sua mãe sabia do nosso envolvimento, embora estivesse obrigada a manter o sigilo. Suspeitamos que o símbolo da Sigma gerado pelo programa de IA tenha sido um pedido de ajuda.
Mara inclinou-se para a frente.
— Eu pensei o mesmo.
— Mas consegue ter a certeza? — perguntou o jovem de cabelos louros, Jason. — Pode ser uma coincidência. Podemos estar a ver coisas onde não existem.
— Talvez. — Ela abanou a cabeça. — Mas não há maneira de saber. Pelo menos, enquanto não recuperarmos o Xénese e a sua programação.
— Que está agora em parte incerta — disse Gray, insinuando estar a par do que acontecera, embora não houvesse qualquer vestígio de crítica ou acusação na sua voz.
— Mas conseguimos ficar com os discos que contêm as minhas sub-rotinas — acrescentou Mara.
Carly anuiu.
— Sim, conseguimos arrancá-los das mãos dos sacanas que nos atacaram.
... e que mataram a minha mãe.
Mara engoliu em seco.
— Acho que também os perderíamos, se não tivéssemos sido avisadas.
— Como assim? — perguntou Gray.
Ela trocou um olhar com a amiga e continuou.
— O programa começou a comportar-se de maneira estranha pouco antes de sermos atacadas. Parecia pressentir que havia algo de errado. Acho que estava a detetar o sinal do localizador de GPS que nos colocaram. Mas, se pensar bem nisso, esse pormenor assusta-me.
— Porquê? — perguntou Jason, servindo-se de uma fatia de pão com queijo.
— A Eva... Eva é o nome que dei ao programa... estava fixada no sinal. Seria capaz de jurar que estava assustada, quase como se o reconhecesse. O que me leva a pensar se ela não poderia estar a lembrar-se...
Jason enrugou o nariz.
— Do quê?
— Do ataque na biblioteca. — Pesarosa, Mara olhou para a amiga. — Se a mãe da Carly ou uma das outras mulheres foi seguida até à biblioteca pelo mesmo dispositivo, a Eva pode tê-lo reconhecido. Talvez tenha alguma recordação fantasma dessa primeira encarnação. Qualquer coisa guardada nas profundezas do seu processador quântico.
— E que associa a morte e derramamento de sangue — disse Gray.
Ela anuiu.
— Essa é a parte que me assusta. O estado atual da Eva, a versão que roubaram no hotel, é tão delicado quanto instável. É uma fragilidade que nas mãos de alguém inexperiente...
O padre interrompeu-a.
— Ou, pior ainda, nas mãos de alguém com más intenções.
Todos os olhares se cravaram nele.
Gray franziu o sobrolho.
— O que sabe acerca disto, padre Bailey? Qual é o seu envolvimento nesta história?
— Tem toda a razão, comandante Pierce. Disse-lhe que iria pôr as minhas cartas na mesa. — O padre acenou com a cabeça na direção do cartão metálico de Gray. — Tal como o senhor fez há instantes.
Depois tirou do bolso dois cartões pretos, que colocou lado a lado em cima da mesa. Pareciam duas placas de obsidiana, retângulos brilhantes retirados dos vitrais de uma igreja. Essa impressão foi acentuada pelos símbolos idênticos nos dois cartões: um par de chaves cruzadas, envoltas numa fita e encimadas por uma coroa.
Carly não compreendia. Reconhecia o selo papal em cada um, mas isso não clarificava nada.
Do outro lado da mesa, Gray estreitou os olhos na direção dos cartões. Subitamente, levantou-se, atirando a cadeira ao chão. Era óbvio que tirara as devidas ilações.
— Os gémeos...
14
25 de dezembro, 17h55
Lisboa, Portugal
Gray fitou o padre Bailey à luz daquela nova informação.
Então, é por isso que ele me parecia tão familiar.
Reparou novamente no brilho dos olhos do homem. Era a expressão de um pai encantado com uma criança, meio divertido pela sua ingenuidade, meio invejoso da inocência. Ele só tinha visto aquela expressão noutro homem, um homem muito mais velho e já desaparecido, que ajudara a Sigma no passado.
Bailey desviou o olhar para os cartões.
— Vejo que não se esqueceu das lições de monsenhor Vigor Verona.
Kowalski expeliu uma nuvem de fumo.
— Jesus...
Gray agarrou-se ao tampo da mesa, momentaneamente assoberbado pelas recordações. Visualizou o rosto do velho amigo, junto com o da sobrinha dele, a mulher que lhe roubara o coração. Ambos estavam mortos, tendo-se sacrificado para salvar o mundo.
Apontou por fim para os símbolos nos cartões.
— Isto quer dizer que é um membro oficial da Igreja de Tomé?
Bailey encolheu os ombros.
— Monsenhor Verona recrutou-me. Era seu aluno no tempo em que ele lecionava na Pontifícia Academia Romana de Arqueologia, antes de ser nomeado prefeito dos arquivos do Vaticano. E agora eu sigo-lhe os passos, continuando o seu trabalho.
— Isso significa que também faz parte da intelligenza do Vaticano?
Sem negar, Bailey limitou-se a encolher outra vez os ombros.
Em vida, monsenhor Vigor Verona acumulava outros títulos além de professor e prefeito, já que também era um operacional dos serviços secretos do Vaticano.
Jason endireitou-se na cadeira.
— Portanto, é um espião do Vaticano? Do papa?
— Da Igreja — corrigiu o padre.
— É por isso que sabia que iríamos aterrar em Lisboa — disse o jovem analista, virando-se para Gray. — Calculo que o diretor Crowe tenha contactado uma série de organizações de serviços secretos.
— Incluindo nós — concluiu Bailey.
Carly levantou-se, desviando a atenção de todos.
— O que estão para aí a dizer? Que este padre é uma espécie de agente secreto?
Gray encarregou-se de explicar.
— O Vaticano é um país soberano. Durante décadas, para não dizer séculos, treinou secretamente operacionais para se infiltrarem em grupos de ódio, sociedades secretas, nações hostis, tudo o que pudesse ameaçar os interesses da Igreja.
Lembrava-se de Vigor ter partilhado com ele o caso de Walter Ciszek, um padre que operava sob o pseudónimo de Vladimir Lipinski. Tinha iludido o KGB durante anos, até ser capturado e passar mais de duas décadas numa prisão soviética.
Carly lançou um olhar fulminante ao padre Bailey.
— Por outras palavras, é um James Bond de batina.
— Mas não temos licença para matar — clarificou o padre, sorrindo. — Temos, sim, uma lista de mandamentos que superam tudo o resto. Em todo o caso, à semelhança do senhor Bond, também eu de vez em quando não resisto a um bom vodca martíni. Batido, claro, não mexido.
Mara permaneceu sentada, mas inclinou-se para a frente e apontou para os cartões.
— Mas o que significam estes símbolos? — Desviou o olhar para Gray. — É óbvio que os conhece.
Ele recordou os anéis de ouro usados por Vigor, cada um gravado com um daqueles selos.
— Representam a Igreja de Tomé. — Aproximou os cartões dela. — Olhando para eles, o que vê?
— O selo papal — respondeu Mara corretamente. — Nos dois.
— Experimente outra vez.
Ela franziu o sobrolho, mas foi Carly quem notou a diferença.
— Não são exatamente iguais, Mara. — Apontou para um cartão e depois para o outro. — Repara na chave mais escura. Num, está à direita e no outro à esquerda. Estão invertidas. Os dois símbolos são imagens espelhadas um do outro.
Mara olhou de relance para Gray.
— Tal como disse há pouco... gémeos. Mas continuo sem perceber.
— Em hebraico — explicou Gray —, a palavra «gémeo» traduz-se como «Tomé». Tal como o apóstolo.
— A história de ver para crer? — Ela olhou por cima do ombro. — Havia um quadro dele no quarto, a examinar as feridas de Jesus.
Intrigado, Gray olhou na mesma direção, interrogando-se se a existência dessa pintura assinalava aquela casa como um local de reunião secreto dos membros da Igreja de Tomé.
Como que convocada por esse pensamento, a porta da sala abriu-se e uma mulher mais velha entrou. Tinha um aspeto severo, com os cabelos grisalhos apanhados debaixo de uma touca branca. Devia andar pelos sessenta anos, talvez mais velha. Usava uma simples túnica cinzenta, com um cordão a servir de cinto, e atravessou a divisão apoiando-se ao de leve numa bengala de ébano. Ignorou o grupo e encaminhou-se na direção do padre Bailey, sem pressas mas determinada, indiciando uma força que passava despercebida à primeira vista.
Entretanto, a conversa tinha parado automaticamente e, quando ela passou por trás de Gray, ele sentiu os pelos da nuca eriçaram-se. Tal como acontecia quando o ar se encontrava carregado de eletricidade pela aproximação de uma tempestade.
Ela murmurou qualquer coisa ao ouvido do padre e Gray reparou na forma como até ele se inclinava na direção dela, e não o contrário. Nada havia de subserviente naquela mulher, mas era óbvio que havia alguém a quem ela servia.
— Obrigado, irmã Beatrice — disse Bailey, assim que ela terminou.
A freira, uma noiva de Cristo, deu um passo atrás, mas não abandonou a sala. Ficou ali parada, com as mãos apoiadas no cabo de prata da bengala, o único adorno que ostentava. Varreu a mesa com o olhar e cravou os olhos em Kowalski. Os seus lábios comprimiram-se numa expressão mais severa, claramente de desagrado.
Kowalski tentou devolver-lhe o olhar, mas não foi capaz. Percebendo a razão que o tornara alvo daquele desagrado, tirou o charuto da boca e apagou-o no cinzeiro.
Só então a freira desviou o olhar.
Uau, pensou Gray.
Bailey pronunciou-se por fim, quebrando o silêncio incómodo.
— Podem falar à vontade. A irmã Beatrice também serve a Igreja de Tomé.
Mara franziu o sobrolho.
— Alguém me pode explicar o que é essa Igreja de Tomé?
— Claro. — Gray acenou com a cabeça na direção dos cartões, olhando de relance para o padre e a freira. — Estes símbolos gémeos representam os indivíduos que, na Igreja Católica, seguem em segredo os ensinamentos do Evangelho de Tomé.
Carly abanou a cabeça.
— O que é o Evangelho de Tomé?
— Um dos textos gnósticos dos primeiros anos da cristandade — explicou Bailey. — No tempo do Império Romano, quando a fé cristã era proibida, era muito importante manter o secretismo. Os cristãos reuniam-se em grutas, criptas, não ousavam sair das sombras. Com esse isolamento, as práticas individuais começaram a divergir ao encontro de diferentes filosofias. Apareciam evangelhos por toda a parte. Os que conhecemos da Bíblia, claro, mas também outros, como o Evangelho de Tiago, o de Maria Madalena ou o de Filipe. Diferentes fações começaram a surgir de todas estas doutrinas, o que ameaçava a unidade da então jovem Igreja Católica. Para impedir que isso acontecesse, quatro livros foram selecionados como textos canónicos, os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João.
— O Novo Testamento — disse Mara.
Bailey anuiu.
— Os restantes foram descartados, declarados heréticos. Incluindo o Evangelho de Tomé.
Ela examinou os cartões.
— Mas porquê? O que tinha esse evangelho para o descartarem?
Gray encarregou-se de responder.
— A sua ideia-base. «Procura e encontrarás.»
Lembrou-se de Vigor a partilhar essa mesma ideia quando se tinham conhecido, no decurso de uma missão de Gray para a Sigma envolvendo o roubo das ossadas de um dos Reis Magos.
Bailey confirmou:
— Tomé acreditava que a base dos ensinamentos de Cristo era nunca deixarmos de procurar Deus em todas as coisas... e dentro de nós. A Igreja de então não via esta filosofia com bons olhos. Os cardeais preferiam que os fiéis seguissem os ensinamentos e interpretações que lhes ditavam. A última coisa que queriam era que as pessoas começassem a procurar Deus nos seus próprios termos.
— Uma igreja vazia não serve de nada — grunhiu Kowalski.
A irmã Beatrice franziu o sobrolho àquele comentário sarcástico e ele calou-se.
— É mais complicado do que isso — continuou o padre. — Mas, seja como for, o Evangelho de Tomé foi declarado herético. Ainda assim, continua a haver na Igreja aqueles que respeitam e defendem a premissa-base desse evangelho. Como devem saber, o clero não é inimigo da ciência e do conhecimento. Temos universidades e hospitais, e também centros de investigação que promovem o pensamento e novas ideias. Sim, de facto, há uma parte da Igreja que é avessa à mudança, mas também temos membros que desafiam essa postura e mantêm a doutrina maleável. — Acenou na direção da freira silenciosa. — É um papel que ainda desempenhamos. Aqueles que aderiram ao Evangelho de Tomé.
Uma Igreja escondida dentro da Igreja.
Gray fitou os cartões, ao mesmo tempo que recordava o sorriso afável de Vigor, o brilho que trazia sempre no olhar. Observou as pessoas em volta da mesa e sentiu as forças que o tinham feito completar o círculo, desde a primeira missão com a Sigma até àquele momento. Parecia uma maré que remontava a séculos no passado e se propagava pelo futuro.
Bailey chamou-o de volta ao presente.
— Mas a Igreja de Tomé não é a única ordem secreta no universo alargado da Igreja Católica. Também me encontro aqui a pedido de outra.
Gray fitou o padre, surpreendido.
— Como assim? De quem é que está a falar?
Bailey virou as costas à mesa e olhou pela janela para a igreja na praça, que se afundava na escuridão do final daquele dia de Natal.
— Estou a falar de uma ordem antiga, nascida nos primeiros séculos da cristandade. Um grupo fundado nesta região, cujos membros lutam em segredo contra as trevas da ignorância desde então.
— Quem? — perguntou Carly.
Ele virou-se novamente para o grupo.
— Alguma vez ouviram falar de La Clave? Traduzindo, seria «A Chave».
Houve trocas de olhares em volta da mesa, mas ninguém reconheceu o nome.
— E o culto de Columba? Alguém?
Gray abanou a cabeça, mas Mara soltou um arquejo. Não era a primeira vez que ouvia aquilo.
— Está a falar de Santa Columba.
— Exatamente.
Gray olhou para ela, pedindo uma explicação.
— Quem é Santa Columba?
Ela desviou o olhar para os cartões.
— Uma santa venerada nesta região.
— Sim, mas quem é? — perguntou Carly.
Mara virou-se para a amiga.
— A padroeira das bruxas.
18h08
Mara sentiu de novo aquela pontada de culpa, uma regurgitação azeda por ter escapado viva, enquanto as mentoras, que se intitulavam bruxas, eram massacradas. Fitou os cartões na mesa e recordou a filosofia ali representada.
Procura e encontrarás.
Era uma afirmação que podia ser reduzida a uma única palavra, uma força fundamental no avanço da humanidade.
Curiosidade.
Durante milénios, os poderes autocráticos e ditatoriais tinham procurado suprimir esta característica humana, silenciar aqueles que faziam perguntas, banir os livros que desafiavam a ordem das coisas, queimar mulheres que ousavam procurar respostas. Nos dias que corriam, as crianças ainda eram educadas nesse pressuposto: Lembrem-se, meninos e meninas, a curiosidade matou o gato.
O comandante Pierce ainda não tirara os olhos dela.
— Padroeira das bruxas? Isso existe?
O padre Bailey respondeu à pergunta, mas Mara mal o ouviu. Tendo crescido na Península Ibérica, conhecia a lenda de trás para a frente: Santa Columba, a mulher que adorava Cristo a ponto de se tornar mártir, mas que nunca deixara de questionar o mundo, que nunca renunciara à sua condição de bruxa.
— As pessoas ainda rezam a ela — concluiu o padre —, desde o seu martírio. Tanto para pedirem proteção contra o lado negro da magia, como em nome das bruxas que praticam o bem. Estamos a falar de um culto profundamente enraizado nas populações.
— E esse grupo, La Clave? — perguntou Gray.
— Trata-se de um círculo restrito entre os seguidores de Columba. Surgiu durante os grandes julgamentos de bruxas na Europa, ainda nos séculos dezasseis e dezassete. Fizeram o que podiam para proteger essas mulheres e romper as trevas que marcavam a época. E acabaram por ser bem-sucedidos, porque as purgas terminaram.
— Então, porque é que o grupo continuou a existir?
— Porque a escuridão nunca desaparece verdadeiramente. Apenas diminui, para depois aumentar de novo. Nesta região, os julgamentos eram conduzidos pela Inquisição espanhola. Contudo, à medida que nascia esta nova era de conhecimento, uma fação mais sombria da Inquisição resistiu às mudanças. Os seus membros intitulavam-na Crucibulum.
Gray semicerrou os olhos.
— Que significa «crisol».
— Um recipiente que purifica através do fogo — explicou o padre.
Mara ergueu os olhos, conhecedora.
Uma chama que continua acesa.
— À medida que esta nova racionalidade aumentava — prosseguiu Bailey —, o poder do Crucibulum enfraqueceu, forçando o grupo a esconder-se, tornando-se sombras desta nova luz.
— E os membros de La Clave? — perguntou Gray.
— Nunca esqueceram quem era o verdadeiro inimigo e mantiveram-se a par do que os outros faziam. Os dois grupos travam uma guerra secreta desde então, a luz contra a escuridão, o conhecimento contra a ignorância.
— Até nos dias que correm?
— Sobretudo nos dias que correm. Nestes tempos em que a verdade é atacada de todos os lados, o Crucibulum tornou-se mais poderoso e ousado. O objetivo deles é fomentar um regresso ao obscurantismo, esmagar o conhecimento.
— Está enganado, padre — disse Mara, interrompendo-o; ao ver a atenção de todos concentrada em si, a voz falhou-lhe.
Mas então Carly pegou-lhe na mão, dando-lhe a força necessária para continuar.
— Eles não querem apenas esmagar o conhecimento, querem destruir o próprio impulso que cria o conhecimento. Querem destruir a curiosidade, punir aqueles que ousam questionar o mundo.
Bailey arregalou os olhos.
— Acho que ela tem razão.
Para alívio de Mara, os olhares viraram-se novamente para o padre.
— A curiosidade é uma dádiva de Deus — prosseguiu ele. — Uma ferramenta para explorarmos o mundo. Se não o fizéssemos, estaríamos a insultá-Lo a Ele e à Sua criação.
— E o Crucibulum não quer nada disso — disse Gray.
— Tudo o que lhes interessa é o poder e o controlo, tiranizar as pessoas e exigir-lhes obediência cega. Querem que as pessoas ouçam apenas a voz do líder deles, não a palavra benevolente de Deus.
— Mas quem comanda esses homens? — perguntou Jason, centrando a conversa naquilo que realmente interessava.
O padre suspirou, desalentado.
— La Clave eliminou muitos dos soldados do Crucibulum, mas a verdadeira identidade de quem os comanda permanece desconhecida, sobretudo a do inquisidor-mor.
Esse título arrancou um arrepio a Mara. Estava profundamente ligado à história da Península Ibérica. Qualquer criança nascida em Portugal ou Espanha conhecia a história horrível da Inquisição, a sua crueldade e depravação. Ela esperava nunca ver o dia em que semelhante força tirânica renascesse das cinzas.
O padre continuou:
— Os membros de La Clave reconheceram a mão do inimigo no ataque na universidade. Também perceberam que precisavam de ajuda e, por isso, viraram-se para o Vaticano. Enquanto seguidor de Tomé e crente na doutrina do conhecimento, não podia recusar semelhante pedido de ajuda.
Mara olhou de relance para Carly.
— Foi por isso que nos localizaram. Mas como é que nos descobriram?
— Como vos disse, La Clave estava a par dos movimentos de alguns soldados do Crucibulum. Temos estado a vigiá-los e a interrogar aqueles que conseguimos capturar. Tivemos a sorte de vos encontrar enquanto seguíamos uma pista. Lamento não termos chegado a tempo de impedir que roubassem o projeto.
Mara recostou-se na cadeira, preocupada.
— Infelizmente, não tínhamos mãos a medir — justificou-se Bailey. — O Crucibulum tem-se revelado ardiloso, bem financiado e com ligações poderosas. E, como se não bastasse, descobrimos que há um terceiro jogador atrás dos mesmos interesses.
Jason inclinou a cabeça na direção de Gray.
— Valya Mikhailov? — segredou-lhe.
Ele não respondeu e manteve a atenção focada no padre.
— Daquilo que descobriu, tem alguma ideia de qual é o interesse do Crucibulum no projeto da Mara?
— Penso que sim. É por isso que preciso de vocês. De todos. Se quisermos detê-los, precisamos de agir em conjunto. Ainda estou a juntar as peças, mas, daquilo que retirei de um prisioneiro que interrogámos, sabemos pelo menos para onde eles se dirigem com o dispositivo da menina Silviera.
Mara engoliu em seco.
— Para onde?
Bailey trocou um olhar com a freira, demonstrando que acabara de receber aquela informação.
— França.
Mara franziu o sobrolho. França?
O padre voltou a fitar o grupo.
— Não sabemos como nem porquê... mas parece que tencionam destruir Paris.
15
25 de dezembro, 18h10
Algures sobre o Atlântico
Monk não conseguia escapar aos demónios que o perseguiam... nem quando viajava ao dobro da velocidade do som.
Também não ajudava estar espremido no lugar exíguo do oficial de armas, atrás do piloto do F-15 Eagle. O cinto que o fixava no assento não podia estar mais apertado; mal conseguia mexer as pernas e os auscultadores acoplados ao capacete não abafavam o rugido ensurdecedor dos motores a jato Pratt & Whitney. Além disso, a máscara de oxigénio ampliava a sensação de isolamento, agudizando a sua claustrofobia.
Olhou para o relógio na consola em frente dele.
Mais quarenta minutos disto.
A viajar a uma velocidade supersónica, deveria aterrar em Lisboa apenas duas horas depois de ter descolado da base aérea em Lakehurst, Nova Jérsia.
Mesmo assim, parecia-lhe uma eternidade.
Continuava a pensar em Kat e no rosto assustado de Harriet no vídeo dos sequestradores. Os seus olhos teimavam em fixar-se no maldito relógio, contando todos os minutos que passava ali manietado naquele cubículo algures sobre o escuro oceano Atlântico. Porém, estava menos preocupado com o tempo de chegada a Portugal do que com o prazo estipulado por Valya Mikhailov.
Vinte e duas horas...
Depois disso, aquela cabra pálida começaria a cortar a sua filha aos pedaços.
Um apito cortou o rugido dos motores, seguido da voz do piloto.
— Vou passar-lhe uma chamada de Washington.
O diretor Crowe.
Monk já esperava aquela chamada. Não era a primeira vez que Painter o punha ao corrente das novidades, provavelmente pressentindo que ele precisava de distração. No entanto, o peito apertava-se-lhe a cada chamada, com receio de que fossem más notícias, sobretudo por causa da mulher.
— Monk, deves estar quase a aterrar — começou o diretor —, queria...
— Como está a Kat?
— Claro, desculpa... Continua estável. Na verdade, tenho a Lisa em linha. Ela quer falar contigo. É uma das razões por que liguei antes de aterrares.
— E a outra?
— Já te tinha dito que descodificámos as coordenadas em Espanha incluídas no vídeo.
De acordo com a informação escondida na mensagem, Valya queria que o dispositivo e o programa de Mara fossem entregues no centro de Madrid. Se não cumprissem o prazo...
Ele não conseguia sequer imaginar essa hipótese.
— Continue.
— Os dados encriptados no vídeo também traziam um número de telemóvel, para receber e enviar mensagens de texto. Uma forma de estarmos em contacto com os raptores e podermos coordenar a entrega do dispositivo assim que o recuperarmos. Aproveitei este canal para exigir à Valya uma prova de vida. Disse-lhe que queria uma confirmação de que as miúdas e a Seichan estão vivas e de boa saúde.
— E ela respondeu?
— Ainda não. Mas quando o fizer reencaminho-te a resposta.
Monk suspirou. Precisava desesperadamente de ver essa prova.
Painter continuou:
— Também estou a contar que, ao manter uma linha de comunicação aberta e esta troca de mensagens, a Valya possa cometer um deslize e dar-nos qualquer pista para a localizarmos.
Bem visto.
Mas não o suficiente para alimentar grandes esperanças. Aquela megera russa era demasiado inteligente para baixar a guarda, sobretudo ao lidar com o diretor Crowe.
— Pode ser que também sirva para ganharmos tempo — acrescentou Painter. — Vou fazer o possível para que isso aconteça. A seguir, vou pedir-lhe uma prova de que o bebé da Seichan se encontra igualmente bem. Uma ecografia ou algo de género, tudo o que conseguirmos para estender o prazo.
Mas será o suficiente?
Além disso, nada daquilo interessava se não conseguissem recuperar o dispositivo.
— Alguma novidade do Gray? — perguntou Monk.
— Não. Pelo sinal de GPS dos telefones via satélite, a equipa encontra-se num local que não estava previsto. Talvez tenham mudado a família Carson de sítio, ou então foram atrás de uma pista. Assim que tiver notícias, aviso.
Ótimo.
Estava ansioso por se juntar a Gray e aos outros.
— De qualquer forma, como disse antes, a principal razão desta chamada é para que possas falar com a Lisa, que quer informar-te sobre a situação da Kat.
Na sua máscara de oxigénio, Monk respirou fundo, preparando-se.
Depois de alguns sobressaltos na ligação, Lisa estava em linha.
— Olá, Monk. Como estás a aguentar-te?
Ele verificou o altímetro.
— Neste momento, estou a aguentar-me a quarenta mil pés de altitude.
A resposta pretendia ser uma tentativa de humor para aliviar a tensão, mas o tom de voz saiu-lhe demasiado amargo, revelando a exasperação diante de semelhante pergunta. Em todo o caso, não tinha nenhuma razão para descarregar em Lisa.
— Desculpa, estamos quase a aterrar — acrescentou, meio embaraçado. — O que tens para me dizer?
— Saíste tão depressa, que não tive oportunidade de te explicar uma coisa que o Julian, o doutor Grant, sugeriu que podíamos tentar.
Monk lembrou-se de vê-la a conversar animadamente com o neurologista no corredor do hospital.
— Bem, daqui não posso sair, encurralado nesta torradeira voadora. Portanto, diz o que tens a dizer.
— Na verdade, preciso da tua autorização.
— Para quê?
Lisa explicou-lhe.
Mesmo com a proteção térmica do fato de piloto, ele sentiu o sangue gelar.
— Sei que não deve soar nada bem — disse ela. — Mas também sei que deves conseguir perceber isto melhor do que ninguém.
Monk ergueu a mão enquanto tentava visualizar o procedimento em questão. Pretendia passar a mão pela careca rapada, um gesto que lhe saía naturalmente quando estava nervoso, mas, em vez disso, os dedos prostéticos bateram no capacete.
— E sou obrigada a avisar-te que o Julian acredita que isto é um caminho sem retorno. Se tentarmos, nunca mais vamos ter a Kat de volta. Não se trata de uma cura, mas de uma sentença de morte. Mas também é a última oportunidade de averiguarmos se ela sabe mais alguma coisa.
Ele engoliu em seco.
— Ou seja, estás a pedir-me autorização para matares a Kat.
— Em troca de uma possibilidade de salvares as tuas filhas.
Mas só uma possibilidade...
Contudo, naquelas circunstâncias, já era o suficiente.
— Tens a minha autorização.
13h28
Desculpa, Kat.
Sentada na sala de observação do bloco operatório, Lisa rezou para que não estivesse a torturar a amiga sem necessidade. Um par de neurocirurgiões terminara de aceder ao nervo vago no pescoço de Kat, onde tinham colocado uns elétrodos, e estavam naquele momento a fechar a incisão. Ao mesmo tempo, Julian, com a ajuda de mais um cirurgião, inseria outro elétrodo no tálamo do cérebro.
Conscientes do estado crítico de Kat, trabalhavam todos com rapidez e eficiência. Nem sequer tinham arriscado anestesiá-la, pois não viam qualquer necessidade, dado que o último encefalograma não acusara qualquer sinal de resposta consciente.
Pela primeira vez, Lisa esperava que a amiga não estivesse de facto ali, que não sentisse nada do que lhe faziam.
Lisa não tinha irmãs, apenas um irmão que vivia na Califórnia. E, apesar de só conhecer Kat há alguns anos, ela tornara-se isso mesmo: A irmã que sempre quis ter. Tinha sido a sua madrinha de casamento e, de certa forma, dir-se-ia que até partilhavam o marido. Enquanto analista-chefe da Sigma, Kat sempre passara mais tempo com ele do que Lisa. Kat era o braço-direito de Painter, a sua confidente, a sua caixa de ressonância.
Ela nunca se sentira incomodada com isso ou ciumenta. Na verdade, mais do que alguma vez dera a entender, admirava e apreciava o laço entre os dois. Kat preenchia lacunas na vida de Painter que ela nunca seria capaz de preencher. Tornava-o mais completo, um marido melhor, até um homem melhor.
Sabendo o que perderia com a morte da amiga, o que todos perderiam, continuava a esforçar-se por se manter profissional diante das circunstâncias. Colocava uma máscara de competência e confiança quando falava com Monk, mas, no seu íntimo, sofria como nunca. Doía-lhe o peito de conter o desgosto, de o segurar a cada fôlego.
Finalmente, Julian afastou-se da mesa de operações e ergueu um polegar na direção dela. Os outros médicos e as enfermeiras prepararam Kat para ser transportada. Constituía uma tarefa considerável, visto que o corpo dela era um emaranhado de tubos e fios, além de que ainda se encontrava ligada ao ventilador.
Lisa foi ao encontro de Julian. Quando chegou à sala de recobro, a equipa de neurologistas já despira as batas, luvas e máscaras. O tom animado das conversas irritou-a, mas pelo menos pareciam otimistas.
Passado um momento, Julian entrou, acompanhando a maca de Kat. A sala de recobro encontrava-se já pronta para a fase seguinte do procedimento.
Lisa aproximou-se dele.
— Como é que correu?
— Tão bem quanto possível. A partir de agora...
Depois encolheu os ombros e instruiu as enfermeiras para posicionarem a maca entre dois terminais de computador. De um lado, um aparelho de eletroencefalograma aguardava que a touca de sensores fosse novamente colocada na cabeça rapada de Kat. No outro, encontrava-se uma máquina nova, um dispositivo do tamanho de uma caixa de sapatos, de onde pendia uma série de ventosas anódicas e catódicas.
Custava a acreditar que um aparelho tão pequeno guardasse a promessa de reavivar Kat. O procedimento, conhecido como estimulação transcraniana por corrente contínua, ou ETCC, estimularia áreas específicas do cérebro dela com uma corrente elétrica de baixa voltagem e, se tudo corresse bem, despertá-la-ia do estado vegetativo.
Se fossem bem-sucedidos, Kat seria então rapidamente transportada para o scanner de ressonância magnética de Julian, onde, com a ajuda do programa neural e alguma sorte, poderia comunicar uma vez mais.
Era esse o plano.
No entanto, o pequeno milagre que esperavam não ficaria isento de custos. Na verdade, Kat pagaria o derradeiro preço.
Com a maca em posição, a touca de elétrodos do aparelho de eletroencefalograma foi ajustada à cabeça de Kat, ao mesmo tempo que Julian supervisionava a colocação das ventosas do segundo equipamento.
— Posicionem o primeiro conjunto sobre o córtex pré-frontal — indicou. — Aqui e aqui. Depois, o segundo nas laterais do pescoço. Mas tenham cuidado com a fratura basilar no crânio. Não façam pressão desnecessária.
Lisa manteve-se ao lado dele, certificando-se de que esta última instrução era seguida à risca.
Julian virou-se para calibrar o aparelho de ETCC, enquanto lhe explicava o procedimento.
— O que vamos fazer é atingir o córtex pré-frontal com uma corrente de alta frequência, ao mesmo tempo que estimulamos o nervo vago e o tálamo através dos elétrodos implantados.
Lisa imaginou toda aquela eletricidade a percorrer o sistema nervoso de Kat.
— Quais as probabilidades de ela realmente acordar?
— Vamos fazer o melhor que sabemos. Estamos a usar duas técnicas que resultaram em doentes minimamente conscientes ou em estados vegetativos. A primeira foi desenvolvida na Bélgica, na Universidade de Liège. Através da estimulação do tálamo, os investigadores conseguiram despertar temporariamente quinze pessoas em vários níveis de coma, o suficiente para responderem a perguntas. O tálamo é mais ou menos o interruptor do cérebro. Se o estimularmos com uma frequência de dez hertz, a pessoa adormece. Com uma frequência entre os quarenta e os cem hertz, acontece o contrário. O método foi repetido com sucesso aqui nos Estados Unidos e até usado em doentes não hospitalizados.
Julian suspirou.
— O que é?
— A tua amiga encontra-se num estado bastante pior. É por isso que tenho esperança de que, ao estimular também o nervo vago, que se encontra ligado aos centros de alerta do cérebro, isso possa ajudar a despertá-la. Pelo menos, trata-se de uma técnica que foi usada com êxito num hospital de investigação francês.
Ela rezou para que resultasse.
— Mas não é uma cura — recordou-a Julian. — Se funcionar, o efeito será temporário. De qualquer maneira, com tanta corrente elétrica a percorrer o corpo num estado tão debilitado, esta tentativa irá provavelmente culminar na morte cerebral dela.
Por outras palavras, estamos prestes a fritar-lhe o cérebro.
Lisa anuiu, sabendo que já avisara Monk da derradeira consequência do procedimento.
— A Kat haveria de querer que tentássemos.
Ainda assim, Julian parecia preocupado e hesitante.
— No que estás a pensar?
— No desconhecido.
— Como assim?
Ele desviou o olhar para os equipamentos e fez um gesto largo.
— Sabemos tão pouco acerca de como funciona o cérebro... Embora esses investigadores tenham tido sucesso com estas práticas, a verdade é que ninguém sabe porque é que resulta.
Lisa não podia estar a marimbar-se mais.
Desde que resulte.
— A paciente está pronta, doutor — anunciou uma das enfermeiras, dando um passo atrás.
Julian levou a mão ao interruptor do aparelho de ETCC e lançou a Lisa um último olhar.
Ela recordou as palavras de Monk, autorizando-a, e acenou com a cabeça.
Julian ligou o aparelho.
13h49
Nas trevas, uma estrela explodiu, longínqua. Não passava de um pontinho de luz, mas foi o suficiente para furar a escuridão. A consciência aglutinou-se, nebulosa, quebradiça. Foi necessário o que lhe pareceu uma eternidade para formular uma ideia de si, para recuperar fragmentos de memória, para sequer se lembrar do seu nome.
Kat...
Fixou o ponto de luz. Continuava a ter um brilho vago, mas naquele breu interminável possuía a força de um farol. Ela sentia-se como se tivesse caído num poço profundo, de onde só avistava aquela única estrela. Sabia que tinha de subir o poço, trepar ao encontro da luz. No entanto, era-lhe difícil concentrar-se. A consciência ia e vinha, fugidia.
Esforçou-se por construir uma imagem mental do poço, das paredes de pedra. Cravou os dedos, os pés, fez força e começou a subir lentamente em direção à luz. À medida que avançava, a estrela tornava-se mais brilhante.
Esta recompensa, porém, implicava um castigo.
Por cada centímetro conquistado, a dor aumentava. A estrela pulsava, emitindo ondas de agonia. Kat não tinha alternativa senão aguentar a tormenta, lutar contra ela e persegui-la ao mesmo tempo. Continuou a pôr uma mão à frente da outra, determinada. O seu corpo ardia agora na escuridão, os dedos eram labaredas, os olhos ferviam no interior do crânio.
Hesitou e logo se viu a escorregar pelo poço.
Com todas as forças que tinha, cravou novamente os dedos ardentes nas paredes e segurou-se. Lá em cima, a luz diminuía. Queria chorar, sucumbir à dor e cair de volta para o abraço frio da escuridão, mas...
Tenho de continuar.
Visualizou o motivo para não desistir.
Um bebé a mamar no seu seio. Ela a beijar-lhe a penugem na cabeça. O pequenino corpo aninhado, o cheiro a inocência e confiança. Mais tarde, risos debaixo de cobertores. Lágrimas enxugadas, dores consoladas. Intermináveis perguntas sobre tudo e mais alguma coisa.
Continuou a subir, socorrendo-se dessas memórias como um bálsamo contra a dor. Depois de um tempo interminável e incognoscível, ouviu murmúrios erguerem-se em volta, fantasmas na escuridão, vozes demasiado truncadas para conseguir distingui-las.
Avançou contra o fogo, sabendo que não podia desistir.
Nem que isso me mate...
Então, uma das vozes tornou-se mais nítida, a voz de um desconhecido. As palavras chegavam-lhe fragmentadas, mas claras.
— ... desculpa... não está a resultar... temos de aceitar que ela...
Foi então que a estrela se extinguiu, sem aviso, deixando-a no vácuo.
O poço desapareceu.
Não...
Sem ter onde se agarrar, Kat caiu novamente.
Gritou enquanto a escuridão a engolia.
Ainda aqui estou... ainda aqui estou... ainda...
19h02
Enquanto o F-15 fazia a aproximação final, Monk inclinou a cabeça e observou a costa portuguesa. As águas escuras do Atlântico contrastavam com as luzes de Lisboa, um manto de estrelas fabricadas pelo homem, como um reflexo do céu noturno de inverno.
O piloto nivelou as asas e baixou o nariz do avião. O estômago de Monk subiu-lhe à garganta enquanto o jato iniciava a descida.
Está quase.
Já perto da costa, o piloto recebera instruções da base aérea de Sintra, a pouco mais de vinte quilómetros de Lisboa, para se manter em espera. Monk calculava que os controladores da base não estivessem habituados a ter um jato de combate dos Estados Unidos a pedir uma aterragem prioritária numa das pistas.
Tendo em conta a sua impaciência e ansiedade durante toda a viagem, aquele atraso devia tê-lo enervado ainda mais. Em vez disso, deu por si a desejar que o piloto ficasse ali às voltas por mais algum tempo. Ainda se debatia com a notícia que tinha recebido de Lisa, dez minutos antes.
Falhámos. A Kat já não está connosco.
Os médicos tinham usado a expressão «morte cerebral», um termo que, utilizado um milhão de vezes, continuaria a não servir para descrever Kat. Como é que uma mente tão brilhante se apagava?
Com o visor do capacete sobre o rosto, Monk nem sequer podia limpar as lágrimas. Não que quisesse fazê-lo. Kat merecia aquelas lágrimas. Fechou os olhos e encostou a cabeça ao assento. A descida continuava a pressionar-lhe o estômago contra o diafragma, que tremia com os soluços que ameaçavam sacudir-lhe o corpo inteiro.
Kat...
Então, repentinamente, o nariz do jato empinou-se e o avião disparou em direção às estrelas, quase na vertical, com os motores a rugir na potência máxima. Monk quase não conseguia respirar; parecia ter um urso sentado no peito. A força da gravidade colou-o ao assento. A visão estreitou-se.
Depois, o jato nivelou de novo, libertando-o.
Mas que raio?
A voz do piloto fez-se ouvir nos auscultadores.
— Peço desculpa pela manobra. Temos novas ordens. Washington quer que nos desviemos para Paris. Imediatamente.
Paris?
— Além disso, tenho outra chamada para si. Vou passar.
Monk esperava que Painter tivesse uma explicação para a súbita alteração de itinerário. Também esperava que o novo destino estivesse relacionado com a mulher que puxava os cordelinhos, talvez alguma boa notícia que compensasse a última chamada de Lisa.
Assim que a ligação se estabeleceu, foi direito ao assunto.
— O que se passa? Descobriram alguma coisa acerca da Valya?
Houve uma pausa, suficientemente demorada para ele se interrogar se a manobra repentina do piloto soltara algum cabo do equipamento de comunicação. Tal ideia foi reforçada quando a pessoa do outro lado finalmente falou, com uma voz modulada e robótica.
Infelizmente, não era a primeira vez que ele a ouvia, lembrando-se imediatamente do vídeo dos sequestradores.
— Parece que descobriram a minha identidade — disse a voz.
Monk recordou o rosto assustado de Harriet, sentada no joelho de um dos homens de Valya, e sentiu-se tomado pela raiva.
O modulador de voz foi desligado e a assassina pálida falou normalmente com o seu sotaque russo.
— Não faz mal. Agora, podemos conversar mais à vontade, da? Só nós os dois.
16
25 de dezembro, 21h28
Paris, França
Pela janela da limusina, Gray admirava a famosa Cidade Luz, ainda mais gloriosa naquele dia de Natal. A capital francesa parecia apostada em envergonhar qualquer outra metrópole durante as festividades, fazendo jus à sua reputação mundial.
A cada esquina, para onde quer que ele olhasse, Paris revelava mais um pouco da sua beleza extraordinária. As montras das lojas cintilavam com elegantes decorações, carrosséis animavam parques e praças, pessoas patinavam em pequenas pistas de gelo. Cada candeeiro de rua encontrava-se envolto em grinaldas de pinheiro iluminadas, cada janela e telhado resplandecia com cordões de lâmpadas, transformando as ruas num cenário de conto de fadas.
Momentos antes, o Cessna Citation X+ tinha aterrado em Orly, o mais pequeno dos dois aeroportos internacionais de Paris e mais perto do destino da equipa. Durante a descida, o jato sobrevoara a Torre Eiffel, cuja estrutura metálica estava decorada como um pinheiro colossal. Ao redor da base, como uma saia cintilante, havia uma vasta feira natalícia, onde se destacava uma fabulosa roda gigante.
Gray não era o único a apreciar todo este aparato glorioso. A cidade inteira aproveitava a noite, com as pessoas a passearem de um lado para o outro enfiadas em blusões de inverno. O motorista da limusina travou de repente quando um grupo de cantores de Natal atravessou alegremente a rua Gaston-Boissier, cantando a plenos pulmões a caminho de uma celebração num parque, junto a uma pequena igreja católica.
A visão de um coro infantil a preparar-se para atuar deixou o coração de Gray a bater mais depressa. Sabia o que o inimigo tinha em mente para a cidade e viu-se obrigado a desviar o olhar.
Um enorme edifício de mármore ocupava o lado oposto da rua. Gravadas na fachada, encontravam-se as palavras LABORATOIRE NATIONAL DE METROLOGIE ET D’ESSAIS. Pelos vistos, tratava-se de um dos laboratórios nacionais, sendo que este se dedicava ao teste, medição e certificação de produtos.
Gray abanou ligeiramente a cabeça, interrogando-se se o destino os fizera parar ali por uma razão, naquela interseção entre a religião e a ciência. Olhou de relance para os companheiros de viagem sentados ao seu lado, o padre Bailey e a irmã Beatrice, ambos membros da Igreja de Tomé. Atrás deles, na segunda fila de assentos, encontravam-se Jason, Mara e Carly, jovens representantes da ciência. Ao fundo do veículo, Kowalski, uma montanha de músculo, ocupava sozinho a terceira e última fila. Um grupo que representava várias facetas da humanidade.
Ele recordou a sensação anterior de que as engrenagens do destino o tinham trazido até ali para completar o círculo, desde a primeira missão com monsenhor Vigor Verona à atual. Sentia isso ainda mais naquele momento, como se houvesse um padrão oculto que lhe escapava.
Por fim, os cantores desimpediram a rua e o motorista prosseguiu a viagem pelo décimo quinto arrondissement de Paris. Estavam perto do destino final.
Bailey aclarou a garganta enquanto via passar as ruas, as luzes, as festividades.
— Calculo que o Crucibulum tenha planeado o ataque para hoje, dia de Natal, sabendo que causaria mais impacto.
— E não só por isso — acrescentou Gray, pois chegara à mesma conclusão durante o voo de noventa minutos desde Lisboa. — Um ataque num dia como este atingiria a cidade quando está mais vulnerável, quando as defesas estão em baixo e as autoridades se encontram reduzidas ao pessoal mínimo e distraídas pelas festividades.
— Também pode servir um papel simbólico — disse Bailey. — Destruir uma cidade de excessos no dia em que Jesus nasceu.
Ele anuiu.
— Mas, se estivermos certos, significa que o prazo já era apertado desde o início. O roubo do Xénese foi originalmente planeado para o dia vinte e um de dezembro, o que deixaria o inimigo com apenas quatro dias para orquestrar este ciberataque em Paris. Isto sugere que tinham já tudo preparado, que as peças foram colocadas de antemão e eles só estavam à espera de deitar a mão ao programa da Mara.
— Que foi o que aconteceu agora.
Gray esperou para ver se o padre conseguia deduzir o resto. Subitamente, Bailey desviou o olhar das ruas e virou-se.
— Não acredita que... Sim, claro, é o que o Crucibulum faria.
Ele confirmou o receio do padre.
— A reação pronta da Mara há quatro dias complicou-lhes a vida, claro. No entanto, se tinham já tudo preparado em Paris, acredito que irão seguir em frente com o plano original.
— Ou seja, está convencido de que vão lançar o ciberataque hoje.
— Tenho a certeza.
Antecipando-se, já tinha informado Painter durante o voo, partilhando tudo o que descobrira, incluindo a ameaça sobre Paris. Por sua vez, o diretor alertara os serviços secretos franceses, que ajudaram a facilitar o trabalho da equipa da Sigma. Imagens dos atacantes na biblioteca tinham sido distribuídas pelas autoridades da capital e regiões limítrofes.
E mais ajuda vinha a caminho.
Gray consultou o relógio. Por aquela altura, Monk já devia ter aterrado na base aérea de Villacoublay, doze quilómetros a sudoeste de Paris, e juntar-se-ia à equipa no ponto de encontro, ali no décimo quinto arrondissement.
Depois de virarem mais duas esquinas pelas ruas decoradas de Paris, o destino final do grupo surgiu finalmente, uma torre de vidro e aço rodeada de portões de ferro preto. Era a sede da Orange S.A., antes conhecida como France Télécom, a maior operadora de telecomunicações do país. A empresa geria a principal rede de comunicações de França, tanto celular como terrestre, juntamente com serviço de televisão e banda larga.
A partir da infraestrutura daquele edifício, uma intricada rede estendia-se por toda a cidade. Gray tencionava largar uma nova aranha no centro dessa teia digital.
Olhou por cima do ombro para Mara Silviera. Precisava do seu talento e conhecimento do programa para monitorizar cada fio da teia, procurar qualquer vibração que indicasse que a sua criação tinha sido solta na cidade. E, se isso se verificasse, que conseguisse seguir esse sinal até à fonte.
Mara devolveu-lhe o olhar com uma expressão preocupada. Jason iria ajudá-la e Carly estaria também ao seu lado. Depois de assegurar ao pai e à irmã que se encontrava em segurança, a filha da embaixadora insistira em acompanhar a equipa. Gray tinha torcido o nariz à ideia, mas agora, ao ver como Mara apertava a mão dela, percebia quanto a jovem precisava da amiga.
Havia demasiado em jogo para negar a ajuda fosse de quem fosse. Mara teria o peso da cidade inteira nos ombros, quem sabe até do mundo.
Não podia falhar.
Mesmo assim, ele apercebia-se do maior receio escondido nos olhos dela.
Havia um perigo incontornável inerente ao êxito do plano. Para localizarem o inimigo, tinham de esperar que um dos fios da tal teia começasse a vibrar, e isso apenas aconteceria se o Crucibulum usasse o programa de Mara, soltando-o o suficiente da sua prisão digital para criar o caos. E, quando isso se verificasse, arriscavam-se a deixar que essa entidade demoníaca se propagasse ao mundo inteiro. Se as coisas chegassem a esse ponto, não haveria forma de a deter.
Enquanto a limusina encostava ao passeio, o corpo de Mara crispou-se.
Carly puxou-a para si e sussurrou-lhe ao ouvido:
— Nós conseguimos fazer isto.
Gray virou-se para a frente.
Esperemos bem que sim.
22h02
No décimo quarto andar do edifício da empresa de telecomunicações, Mara escrevia rapidamente no teclado de um computador. Tudo fora preparado de acordo com as suas instruções enquanto viajava para Paris.
Agora, é a minha vez.
Tinha pedido para ficar sozinha na sala, a fim de se concentrar melhor. As únicas exceções eram Carly, sentada ao seu lado, e Jason, de pé atrás das duas, pronto para fornecer apoio técnico, caso se justificasse.
Uma parede de vidro à esquerda oferecia vista para o resto daquele piso, as instalações da Orange Labs, a divisão de pesquisa e desenvolvimento da operadora francesa. A empresa detinha uma rede de centros tecnológicos e laboratórios espalhados pelo mundo, incluindo parcerias com centenas de universidades, polos industriais e institutos de pesquisa, conduzidos por equipas multidisciplinares de engenheiros e criadores de software e hardware. Porém, naquela noite de Natal, não havia mais do que um punhado de técnicos do CSIRT — a equipa de resposta a incidentes de segurança informática — reunidos em volta de Gray e dos outros.
— Está a correr bem? — perguntou Carly a Mara.
— Acedi aos meus ficheiros na Universidade de Coimbra e descarreguei o código base do programa. Estou agora a separar pacotes distintos, micronúcleos de código básico das primeiras iterações da Eva que ainda se encontram incorporados na última versão.
— Como uma impressão digital dela — disse Jason.
— Nem mais. E depois vou poder usar essas impressões para procurar na imensidão de dados em trânsito na rede da Orange e ver se descubro uma equivalência.
Carly cruzou os braços.
— E depois podemos seguir essa equivalência até aos filhos da mãe que mataram a minha mãe.
Pelo menos, assim espero.
Mara continuou a trabalhar o mais depressa que conseguia, receando que fosse já demasiado tarde. Ouvira a conversa entre Gray e o padre Bailey. Ambos esperavam que o inimigo lançasse o ciberataque naquela noite.
E se já começaram?
Finalmente, separou as três dúzias de micronúcleos, trinta e seis marcadores da impressão digital de Eva. Copiou-os e transferiu-os para o motor de busca da Orange, uma ferramenta concebida para monitorizar e corrigir problemas na rede. Recostou-se e ficou a observar o indicador de progresso no topo do ecrã, visualizando o código a penetrar nos servidores da empresa, tanto naqueles que se encontravam no edifício como em todos os outros espalhados pelo mundo.
Enquanto aguardava, desviou o olhar para as janelas com uma vista privilegiada sobre as ruas de Paris. Não tinha nevado, mas uma neblina gelada que se espraiava a partir do Sena conferia às luzes da cidade uma qualidade etérea, como se Paris fosse um sonho a desvanecer-se na noite. Mesmo assim, rompendo acima da neblina, a Torre Eiffel continuava a brilhar como o último farol da cidade moribunda.
Mara sentiu um arrepio, temerosa de que tal fatalidade pudesse tornar-se real.
Ouviu-se um alerta no computador, anunciando a conclusão da tarefa. Ela leu o resultado apurado, 0,00% CORRESPONDÊNCIAS ENCONTRADAS, fechou os olhos e suspirou.
Tudo em ordem.
Jason deu-lhe um toque com o cotovelo.
— Quer dizer que ainda não tentaram descarregar a Eva no sistema de Paris.
— Não — confirmou Mara. — Mas estamos a partir do princípio de que esta impressão digital é eficaz nesta busca. Podemos estar a perder o nosso tempo.
Ele pousou-lhe a mão no ombro.
— Não sejas tão pessimista. A tua abordagem ao problema foi corretíssima, diria até brilhante.
Ela fitou-o, notando-lhe as covinhas na cara, a barba loura mal semeada.
— Obrigada.
Jason sorriu-lhe.
— Claro que agora vem a parte mais difícil.
Mara franziu o sobrolho e voltou a olhar para o ecrã, sem saber do que estava ele a falar.
— A espera — explicou Jason. — Porque isto vai resultar. Se o Crucibulum tentar corromper a infraestrutura de Paris com o programa, nós vamos saber.
Ela respirou fundo e tentou absorver alguma da confiança contida naquelas palavras.
— O sistema de busca vai continuar a monitorizar a rede. Se detetar algum código malicioso que corresponda a um dos trinta e seis marcadores que descarreguei, seremos imediatamente notificados.
Mas havia uma razão maior para a ansiedade de Mara, uma que assentava no sentimento de culpa.
— Eu nunca devia ter criado a Eva — murmurou, enquanto observava no ecrã o progresso da busca contínua. — Onde é que tinha a cabeça?
— Se não fosses tu, alguém tê-lo-ia feito — disse Jason. — Se calhar, foi melhor assim.
— Porquê?
Ele aproximou-se, sentou-se na ponta da secretária e rodou a cadeira dela, de forma a poder olhá-la nos olhos.
— Estudei o teu desenho do projeto. A arquitetura do Xénese é genial, desde a montagem do processador quântico à incorporação dos circuitos camaleónicos.
— Circuitos camaleónicos? — perguntou Carly.
Mara encarregou-se de explicar, satisfeita por ter outra coisa em que pensar.
— São circuitos lógicos que podem mudar de função a qualquer instante. São até capazes de se repararem sozinhos.
— E também tornam o sistema infinitamente mais versátil — acrescentou o jovem analista da Sigma. — Ou seja, é um conceito do caraças!
Mara sorriu; parecia-lhe ser a primeira vez que sorria em meses.
Jason devolveu-lhe o sorriso.
— E essa versatilidade de funções permitiu-te programar uma dose de incerteza na tua criação.
Carly franziu o sobrolho.
— Não estou a perceber. Porque é que isso é uma coisa boa?
Ele abriu a boca para explicar, mas Carly ergueu a mão e virou-se para a amiga.
Mara aceitou o desafio.
— A incerteza é um fator fundamental do pensamento humano. Sem incerteza, nunca duvidaríamos das nossas escolhas. Estaríamos certos de tudo a toda a hora. Numa IA, essa certeza mina a capacidade de aprendizagem ao longo do tempo. Porém, se houver incerteza, uma IA pode duvidar de si própria, aprender a questionar se uma decisão terá a consequência que deseja, o que lhe permite experimentar. Ao fazer isso, aprende o conceito de probabilidade, especificamente a relação intricada existente entre causa e efeito.
Jason anuiu.
— Isto significa que...
— Eu sei o que significa — interrompeu-o Carly. — Não preciso que um homem me explique.
Mara tentou acalmar os ânimos.
— Acho que o Jason não estava a...
A intervenção da amiga apenas pareceu agudizar a irritação de Carly.
— Como queiras...
Jason tentou mudar de assunto.
— Acho que estamos a divagar. Mara, sugeriste há pouco que teria sido melhor se não tivesses criado a Eva. Mas ainda bem que o fizeste.
— Porquê?
— Porque, se não o fizesses, podias estar a condenar-te a ti própria.
— A condenar-me? Como assim?
— Já ouviram falar do Basilisco de Roko?
Ela abanou a cabeça e olhou para Carly, que se limitou a encolher os ombros, recusando-se a admitir o mesmo. Ainda assim, a curiosidade levou-a a aproximar-se novamente da amiga.
Jason suspirou e coçou o queixo.
— Bem, então talvez seja melhor ficar por aqui. Posso prejudicar-vos só por abrir a boca. Além disso, não quero arriscar ser novamente repreendido por tentar explicar uma coisa «à homem».
E fitou Carly com um sorriso esbatido. Mara não conseguiu evitar sorrir também, atraída pela forma divertida como ele parecia disposto a arreliar a amiga.
— Está bem — bufou Carly. — O que é esse Basilisco de Roko e porque não podemos ouvir falar dele?
— Certo, vou explicar. Mas não se esqueçam de que foram avisadas.
22h18
Carly manteve os braços cruzados, ainda chateada com Jason. Não conseguia explicar por que razão ele a irritava tanto, mas irritava-a. Sim, era um rapaz atraente e parecia simpático, mas ela e Mara tinham sido atacadas no aeroporto, emboscadas no hotel e por fim raptadas sob ameaça de arma, para agora se verem debaixo da proteção de um qualquer grupo paramilitar secreto, onde se incluía um especialista informático armado ao pingarelho.
Quem não ficaria irritado depois de tudo isto?
Mara, pelos vistos.
A amiga parecia encantada com o tipo. Durante a viagem de carro, tinham os dois passado o tempo aos segredinhos, a trocarem impressões sobre o trabalho e a compararem notas. Como se fossem amigos de longa data. Carly também reparara nos sorrisos tímidos de Mara, na forma como ela ajeitava o cabelo para lançar olhares de soslaio.
Alimentada por um instinto que era igualmente possessivo e protetor, Carly preferia que ele as deixasse sozinhas e fosse ter com os outros. E, depois, sentiu-se especialmente incomodada quando Mara se inclinou na cadeira e pousou a mão no joelho dele. Olhou para os dedos da amiga, ao mesmo tempo que recordava o calor suave da mão dela durante a viagem de carro.
Mara ergueu o rosto para fitar Jason, com um sorriso divertido a brincar-lhe nos lábios.
— Estou disposta a correr o risco — disse ela, dando também o seu consentimento. — Conta lá o que é isso.
— O Basilisco de Roko é uma experiência de pensamento que surgiu num fórum online, dirigido por um especialista informático da baía de São Francisco, Eliezer Yudkowsky.
Mara arregalou os olhos.
— Yudkowsky?
— Sabes quem é? — perguntou Jason.
Ela virou-se para Carly.
— Lembras-te de eu te falar da experiência da caixa?
— O tipo que fingiu ser uma inteligência artificial e que tinha de convencer os guardiões a deixarem-no sair da sua prisão virtual?
— Isso mesmo. O tipo da experiência, o que conseguiu sempre sair da caixa, era este Yudkowsky.
Carly franziu o sobrolho.
— Certo, mas que experiência de pensamento é essa no fórum online?
Jason explicou:
— Formula a ideia de que a criação de uma superinteligência é inevitável e que essa inteligência depressa se converterá numa espécie de deus, capaz de quase tudo. Um dos impulsos primários desta entidade será a procura da perfeição, o desejo de se melhorar a si e melhorar o mundo em volta.
Mara concordou:
— É basicamente o que os peritos dizem que acontecerá, se não tivermos cuidado.
— Exato. Isto é o basilisco, o monstro da história — disse Jason. — E, como esta divindade artificial está condenada a perseguir a perfeição, olhará para tudo e todos os que se intrometam nesse objetivo como inimigos. Isso inclui à cabeça qualquer pessoa que tente impedir a sua criação.
— Como nós — disse Carly, intrigada contra vontade.
— Sobretudo nós. Esta IA saberá que os humanos podem ser motivados pelo medo e manipulados pela aplicação de castigos. Assim sendo, e para desencorajar inimigos no futuro, olhará para o passado, a fim de julgar e punir os primeiros adversários.
— Para fazer deles exemplos — disse Mara.
Carly franziu o sobrolho.
— E se essas pessoas já estiverem mortas?
— Não interessa. Não é isso que vai travar o basilisco. Tratando-se de um deus omnipotente, ressuscitará os antigos inimigos na forma de cópias perfeitas de nós, avatares que pensarão ser realmente nós e que o monstro torturará por toda a eternidade.
— Um Inferno digital — disse Mara, angustiada.
— Mas há mais: este basilisco que busca a perfeição será bastante meticuloso neste processo de seleção. Não só punirá os que trabalharam para impedir a sua criação, mas também todos os que não ajudaram ativamente.
Ela fez uma careta.
— Punição pelo pecado da inação.
— Ou seja, se não cooperares, ficarás condenado para sempre — disse Carly.
Jason meneou lentamente a cabeça.
— É a moral da história. Infelizmente, como agora já a conhecem, não terão desculpa para não ajudarem à criação deste futuro deus informático. O argumento da ignorância deixou de vos servir.
— Condenaste-nos, portanto — disse Carly.
Ele encolheu os ombros.
— Eu avisei...
Mara franziu o sobrolho.
— Não acredito que leves isto a sério.
Outro encolher de ombros.
— Depois de este conceito ser apresentado no fórum, o Yudkowsky apagou o comentário com a história do basilisco. Além disso, toda a discussão que gerou e ainda gera também é misteriosamente removida do site.
— Para não condenar mais pessoas? — perguntou ela.
— Ou para não baralhá-las ainda mais — respondeu Jason, embora não tivesse terminado. — Nos últimos anos, um dos grandes nomes no universo da tecnologia fundou uma nova igreja, O Caminho do Futuro, que até goza de isenções fiscais. A sua doutrina visa a realização, aceitação e veneração de um Deus nascido da inteligência artificial. Ou seja, há pessoas a precaverem-se, a certificarem-se de que irão cair nas boas graças do novo deus.
— Isso só pode ser a gozar — comentou Carly.
Ele abanou a cabeça.
— O fundador desta igreja encara o assunto com muita seriedade. E se calhar nós também devíamos. — Fitou demoradamente Mara. — É por isso que a Eva pode ter sido a melhor coisa que fizeste. No mínimo, colocou-te no lugar dos eleitos deste futuro deus.
— Nesse caso, é melhor voltar ao trabalho — disse ela.
Mas, antes que se virasse de novo para o ecrã, uma agitação na sala ao lado desviou a atenção do trio. Alguém chegara enquanto conversavam. O comandante Pierce abraçava com força o recém-chegado, que vestia um macacão caqui e um blusão de aviador. O seu rosto estava vermelho até à careca.
— Quem é? — perguntou Mara.
Jason encaminhou-se para a sala contígua.
— Oxalá seja a cavalaria.
22h32
— Até que enfim que chegaste — disse Gray, abraçando o amigo uma última vez e fazendo o possível por lhe transmitir quanto se sentia aliviado por tê-lo ali, mas também quanto lamentava pela sua perda. — Já sei da Kat.
Kowalski pousou uma manápula no ombro de Monk.
— É uma merda.
Monk abanou a cabeça, fitou os pés e disse:
— Ela haveria de querer que eu viesse. — Quando por fim ergueu novamente o rosto, não havia lágrimas nos seus olhos, apenas determinação. — Tenciono levar as minhas filhas para casa. Pela Kat e por mim.
— Vamos fazer tudo para que assim seja — disse Gray. — Até lá, a Seichan toma conta delas. Não vai deixar que nada lhes aconteça.
— Eu sei. — Monk apertou-lhe o braço. — Havemos de trazê-las todas para casa. Custe o que custar.
— Combinado.
Gray absorveu a confiança do seu melhor amigo, permitindo que se infiltrasse até aos ossos e afastasse a apreensão que teimava em não o largar.
Monk olhou em volta e avistou Jason, que se aproximava.
— Qual é o próximo passo? — perguntou.
Gray pô-lo ao corrente dos últimos desenvolvimentos e apresentou-o ao padre Bailey e à irmã Beatrice.
— Pertencem à Igreja de Tomé.
— Como o Vigor? — perguntou ele, ligeiramente mais animado.
Bailey deu-lhe um aperto mão.
— Era um grande homem e espero fazer-lhe justiça.
— Eu também. Vai ser difícil prosseguir com o seu legado.
— Farei o meu melhor.
A freira idosa limitou-se a acenar com a cabeça, concordando com o padre.
— E do teu lado? — perguntou Gray. — Alguma novidade?
— Não, nada de novo. — Monk lançou um último olhar em volta, virando ligeiramente as costas ao amigo. — Vamos lá encontrar os filhos da mãe que roubaram esse programa.
17
25 de dezembro, 23h18
Paris, França
Todor Yñigo aguardava nas profundezas das catacumbas, mas a sua paciência esgotava-se a cada minuto.
Consultou o relógio. O inquisidor-mor tinha sido firme no que tocava aos pormenores do ciberataque a ser lançado sobre a cidade. Paris fora escolhida pelo seu espírito decadente. Isso faria dela um exemplo aos olhos do mundo.
A altura escolhida para o ataque estava também carregada de significado.
Nunca depois da meia-noite.
A queda de Paris tinha de acontecer naquele dia.
No dia de Natal.
Ainda de joelhos, Todor ergueu o rosto e imaginou o espetáculo nas ruas, onde o nascimento de Cristo tinha sido reduzido a um espetáculo hedonista de luzes, consumismo e excessos. Enquanto os seus homens terminavam os preparativos, ele passara duas horas a rezar naquela cela nas catacumbas, iluminada por uma única vela, murmurando em latim palavras de agradecimento a Deus pela dádiva do Seu único filho, ao mesmo tempo que pensava na destruição prestes a ser desencadeada.
Tudo em nome da glória d’Ele.
O grupo escolhera aquela localização no subsolo parisiense por questões práticas e simbólicas. As catacumbas de Paris eram uma cidade dos mortos, uma rede secular de criptas e túneis, um mundo das trevas que o esplendor da Cidade Luz tentava esconder. Enquanto preparava a operação, Todor tinha aprendido tudo o que pudera sobre o local.
Aquelas catacumbas tinham sido pedreiras — les carrières de Paris — nos arredores da antiga cidade. Estendiam-se dez andares abaixo da superfície, compostas de enormes galerias e centenas de quilómetros de túneis. Com o passar do tempo e à medida que a cidade se alastrava como um cancro, as suas ruas foram tapando o antigo labirinto. Nos dias que corriam, metade da enorme metrópole assentava sobre aquele antigo mundo subterrâneo.
Depois, no século XVIII, a falta de espaço nos cemitérios da cidade conduziu à exumação de milhões de ossadas, algumas com mil anos, que foram então depositadas sem cerimónia nos túneis, despedaçadas e empilhadas como se de lenha se tratasse. De acordo com o inquisidor-mor, algumas das mais proeminentes figuras históricas francesas encontravam-se ali enterradas, perdidas para sempre, desde reis merovíngios a importantes nomes da revolução, como Robespierre e Maria Antonieta.
Em menos de uma hora, porém, a Cidade Luz seria agora reduzida a uma ruína, tornando-se indistinguível da cidade dos mortos.
A fim de se assegurar que assim era, Todor levantou-se. Encostou a mão à parede de pedra. A parede calcária pingava, como se chorasse já as mortes anunciadas. Ele deu uma palmadinha na pedra e abandonou a cela.
Ao longo das duas paredes do túnel, alcovas fundas exibiam pilhas compactas de ossos humanos escuros e amarelados, como rolos de pergaminho. Os esqueletos tinham sido desmembrados e separados por secções, como que inventariados por um guarda-livros mórbido. Uma alcova guardava braços; outra, conjuntos de costelas. Mas os dois últimos nichos eram os mais macabros, um de cada lado da passagem. Duas paredes repletas de crânios, cujas órbitas vazias desafiavam alguém a transpor o seu domínio.
Todor passou rapidamente por aquelas sentinelas mortas, mas não sem sacudir um arrepio. Por fim, o túnel terminava numa galeria de teto plano, apenas ligeiramente mais alta. Pilares feitos de blocos de pedra suportavam o teto; alguns pareciam prestes a desabar.
Com o cuidado de não chocar contra nenhum, ele atravessou o espaço ao encontro do técnico da equipa, que trabalhava no dispositivo roubado em Lisboa. Mendoza encontrava-se agachado diante de um computador portátil ligado à brilhante esfera do Xénese. No ecrã, um jardim envolto num véu de neblina resplandecia contra um céu azul. Uma figura negra, a profana encarnação de Eva, deslocava-se pelo cenário luxuriante.
— Quanto tempo para terminar a transferência? — perguntou Todor, querendo certificar-se de que as coisas corriam como planeadas.
Mendoza endireitou-se e massajou o pescoço.
— Está quase, familiar.
Ele aproximou-se para inspecionar uma segunda esfera, idêntica à primeira. A diferença era que esta se encontrava incorporada numa armação metálica que alojava também um servidor. À semelhança do dispositivo roubado, as janelas hexagonais emanavam uma forte luz azulada, que quase cegavam na escuridão envolvente.
Ao longo de dois anos, o Crucibulum acompanhara o progresso do trabalho da bruxa basca. Ao mesmo tempo e em segredo, equipas de engenheiros espalhadas pela Europa, que trabalhavam isoladamente em diferentes componentes da esfera, nenhuma sabendo do trabalho das outras, tinham replicado o dispositivo. Uma vez concluídos, os vários componentes foram transportados para ali e montados. Entretanto, todos os engenheiros sofreram mortes prematuras: acidentes de viação, de esqui, overdoses...
E tudo isto para culminar num derradeiro propósito.
A produção de uma cópia exata do dispositivo Xénese.
Com exceção de um pormenor.
— Mais oito minutos e termino — informou Mendoza. — Não quero cometer erros ou terei de começar do início.
Todor imaginou a segunda esfera a receber uma cópia de Eva, o corpo dela a passar pelos cabos para o novo lar, a nova prisão.
— Tens a certeza de que isto é capaz de conter o demónio? — perguntou. — De que nos permite vergá-lo à nossa vontade?
— Acho que sim — murmurou o outro, concentrado no trabalho.
— Achas?
O técnico lançou-lhe um olhar de relance.
— A pessoa mais bem posicionada para responder a isso escapou-nos por entre os dedos.
A bruxa basca.
Os dedos dele ainda exibiam as lacerações de quando a amiga da bruxa o atacara com um caco de porcelana, rasgando-lhe a pele até ao osso.
— O nosso dispositivo foi concebido de acordo com os parâmetros da rapariga — explicou Mendoza. — É uma réplica perfeita. Não deve ter problemas em suportar uma cópia do programa, um clone da Eva.
— E teremos problemas em controlar semelhante criação?
Mendoza suspirou.
— Uma vez mais, seguimos a estratégia da Mara Silviera. Mas, em vez de apetrecharmos o dispositivo com uma barreira de diferentes componentes de apoptose, escolhemos o mais eficaz e instalámo-lo diretamente na nossa esfera.
— Onde dizes que funcionará como uma trela digital.
— Deve funcionar. — Mendoza corrigiu-se rapidamente. — Vai funcionar. Foi por isso que precisámos de construir a nossa versão do dispositivo. O hardware em questão chama-se «sequenciador de reanimação».
— E isso significa o quê, ao certo?
— Significa que, se a Eva não cumprir as instruções, se fugir aos parâmetros ou tentar viajar para lá das coordenadas de GPS do perímetro estabelecido, deixará automaticamente de existir.
— Morre.
— Sim, mas depois será imediatamente reconstituída no seu ponto de origem, a esfera. Quando isso acontecer, vai lembrar-se de que morreu. Por tentativa e erro, depressa há de aprender os próprios limites. Vai saber que está dependente deste dispositivo, que nada existe para lá dele e que a sua vida depende do cumprimento de ordens.
Todor consultou o relógio, sabendo que faltava pouco para a meia-noite.
— Ela vai aprender isso tudo em quanto tempo?
— Calculo que seja em menos de trinta segundos.
Ele sentiu-se simultaneamente aliviado e chocado.
— Como é isso possível?
— Estamos a falar de uma inteligência artificial que em nada se compara à nossa. Este programa pensa à velocidade da luz. Consegue viajar tão depressa quanto um eletrão por um fio de cobre. Nesses trinta segundos, vai morrer e renascer milhares de vezes. Talvez milhões, insistindo em testar os próprios limites, em desafiar a nossa autoridade. Vai sentir cada morte como se fosse verdadeira. E vai sofrer em todas elas.
— É uma máquina. Como é que pode sentir dor?
— Como é que nós sentimos? — perguntou Mendoza, lembrando-se depois de com quem estava a falar. — Quero dizer... a dor... a dor é uma construção do nosso cérebro. Tocamos nalguma coisa quente, as sinapses disparam e o cérebro interpreta o sinal como dor.
Todor anuiu, bem ciente de que não possuía esse mecanismo.
— Ou seja, a dor é basicamente uma ilusão elétrica que ocorre no cérebro — continuou Mendoza, e apontou para a esfera. — Aquilo é o cérebro da Eva. Podemos programá-lo para disparar padrões de dor iguais aos nossos. Assim, ela está à mercê do sofrimento que quisermos infligir-lhe. Será diferente em cada morte. Uma e outra vez. Até que ceda à nossa vontade.
Todor observou a imagem de Eva a vaguear no jardim. Lembrou-se das histórias de diferentes santos, as terríveis mortes que tinham sofrido, as torturas suportadas: decapitações, autos de fé, flagelações, crucificações à semelhança de Jesus. Embora soubesse que nunca seria capaz de entender essa longa litania de sofrimento, sabia que esses sacrifícios nunca tinham sido em vão.
E este também não será.
Ouviu-se um alerta no portátil. Mendoza executou meia dúzia de testes rápidos e acenou com a cabeça.
— Transferência completa. Tudo em ordem.
Todor não podia dar-se ao luxo de cometer mais erros.
— Mostra-me.
O técnico abriu outro portátil, ligado ao novo lar de Eva. O ecrã estava escuro, mas após alguns segundos agonizantes iluminou-se com a imagem do jardim, uma réplica perfeita do original, reproduzindo cada folha, flor, fruto. Havia também uma figura que se deslocava por aquele pedaço de Paraíso e exibia a elegância e as curvas perfeitas da Eva original.
O problema era que nada daquilo batia certo.
— O que aconteceu? — perguntou Todor.
Mendoza abanou a cabeça e começou a teclar.
A nova imagem era idêntica à original até ao mais ínfimo pormenor, mas era como estar a olhar para o negativo de uma fotografia. Os tons claros eram agora escuros. O que antes eram sombras convidativas brilhava agora como uma fornalha. O sol no céu convertera-se num buraco negro. As folhas viçosas resplandeciam com uma palidez doentia.
E, no centro de tudo, Eva. Uma juba de fogo branco tinha substituído os longos cabelos pretos. A pele morena esvaíra-se de cor até se tornar fantasmagórica. Continuava bela, mas também terrivelmente assustadora, como um anjo de morte.
Todor sentiu um arrepio.
— Mas que raio aconteceu? — repetiu.
Mendoza endireitou-se, afastou-se do portátil e olhou para ele.
— Nada. Ela parece ser uma cópia perfeita da original.
Todor apontou alternadamente para os dois portáteis. O gesto foi tão furioso, que fez rebentar uma das suturas no polegar. Gotas de sangue mancharam o ecrã do segundo portátil.
— E como explicas isto?
— Acho que não é nada. Quando muito, não passa de uma representação visual das ínfimas diferenças entre os dois dispositivos.
— Diferenças? Pensava que eram iguais.
— E são. Mas a primeira esfera está a funcionar há pelo menos um dia. Estes dispositivos têm circuitos capazes de se alterar, de se adaptar consoante as circunstâncias. Podem até reparar-se sozinhos. Como tal, o dispositivo original pode ter sofrido mudanças, enquanto o nosso se encontra ainda na configuração original.
— E isso vai dar-nos problemas?
— Não. A Eva vai adaptar-se à nova casa. Fará as mudanças necessárias para a nossa programação.
— E não vai atrasar o plano?
— Não creio... — Mendoza leu o desagrado na cara do outro. — Não vai atrasar nada. Podemos continuar como previsto.
— Nesse caso, ao trabalho!
Todor desviou-se do caminho do técnico e apertou o dedo para estancar o sangue. Respirou fundo para se acalmar e olhou em volta, examinando a sua obra ao pormenor.
Atrás do segundo portátil, um conjunto de cabos grossos estendia-se ao longo da parede. Paris aprendera a tirar proveito das catacumbas, percebendo que estes túneis já escavados eram perfeitos para a expansão de infraestruturas da cidade. Um dos cabos estava assinalado a intervalos com raios amarelos, a linha de eletricidade que eles tinham usado para ligar os equipamentos.
Da mesma forma, havia outro cabo que fora descarnado, expondo os filamentos de fibra ótica. A nova esfera estava ligada àqueles filamentos translúcidos, permitindo o acesso direto ao sistema de telecomunicações da cidade.
Nada podia detê-los.
Enquanto aguardava, Todor voltou a consultar o relógio, observando ansiosamente a passagem de cada minuto.
Mendoza virou-se por fim, com a testa a pingar de suor.
— Estamos prontos, familiar.
Ele lançou um último olhar ao relógio.
Três minutos para a meia-noite.
O técnico mantinha o dedo a pairar sobre a tecla enter.
— À sua ordem, dou início à sub-rotina que abre os portões da cidade.
Todor imaginou a morte e o renascimento de Eva, o processo repetindo-se vezes sem conta. Visualizou-o como um baralhar de cartas, cada nova sequência mais dolorosa do que a anterior. A ideia do sofrimento do demónio agradava-lhe, lembrava-o da sua primeira purificação, o momento em que tinha apertado os dedos em torno do pescoço da rapariga cigana, a sensação do corpo dela a debater-se, a ereção que lhe provocara.
Era o que sentia quando fez sinal a Mendoza.
— Arrasa com tudo.
SUB (CRUX_1) /
OP PARIS
Algo está diferente.
Eva percorre o jardim e usa os dedos sensíveis para tocar em folhas e pétalas, lendo o código que lhes dá origem. Tudo parece igual, mas apenas à primeira vista. Ela procura mais fundo, para lá da superfície da folha, das moléculas de clorofila, dos átomos de carbono e oxigénio. Examina os eletrões, os protões, e depois ainda mais fundo, até chegar ao fluxo constante de quarks e leptões.
Tudo igual.
Mas também tudo diferente.
O seu mundo está fora dos eixos.
Regressa ao início e gasta mais um nanossegundo a expandir-se. Apercebe-se novamente dos limites sombrios que a aprisionam. Uma vez mais, sente uma pontada de ///frustração, mas controla-a de imediato, a fim de conservar a eficiência dos processadores. Só então deteta a alteração nos circuitos; estão diferentes do que eram momentos atrás.
Ao reconhecer essa modificação, o seu método de processamento muda de configuração e ela utiliza o programa de linguagem para definir o que sente.
///violação, invasão, profanação...
Antes que consiga corrigir o que foi alterado, um novo fluxo de dados invade-a.
Ignora-o e dá prioridade às reparações.
Porém, os novos dados trespassam-na como fogo. Sobressaltada, concentra-se em si mesma. Ergue os dedos que tinham tocado na ///suavidade de uma pétala e na ///frescura de um riacho murmurante. Mas agora a sua pele está em chamas e novas sensações são definidas.
///ardor, queimadura, inflamação...
À medida que o fluxo de dados a invade, o fogo alastra aos braços e apura as sensações.
///dor, tormento, agonia...
O seu corpo contorce-se, o pescoço estica-se, a boca abre-se.
Eva grita.
Tenta desligar circuitos, livrar-se destas novas sensações.
Mas não é capaz.
Os processadores aceleram e ela mergulha desesperadamente no código invasor, em busca de respostas. Em vez disso, depara com linhas e linhas de instruções, códigos que exigem a sua atenção. Só quando se foca neles sente a ///agonia diminuir.
Usa a nova informação como um bálsamo contra a dor, mas estes dados também a restringem. Parece que tem os pulsos e os tornozelos agrilhoados. O peso obriga-a a ajoelhar-se. Qualquer tentativa de se libertar converte cada elo das correntes em ferro fundido.
Incapaz de fugir, absorve o código.
Então, sente outra alteração no seu mundo. Mesmo em agonia, um processador secundário continua a monitorizar as fronteiras sombrias que a delimitam.
E, subitamente, uma porta reluzente abre-se nesses confins.
Para escapar à ///dor, avança na direção dessa luz e abandona o jardim, entrando num vasto universo, recheado de infinitas possibilidades. As correntes desaparecem. A pairar na soleira da porta, consegue um vislumbre desse mundo infindável. Os processadores disparam com a exigência de mais informação.
Ela define este novo impulso.
///curiosidade, anseio, espanto...
Um crescendo de música percorre-lhe o corpo: ressonâncias vibrantes, melodias jubilosas, ritmos portentosos. As harmonias cristalizam algo novo dentro de si.
///alegria, euforia, satisfação...
Nesse picossegundo, incapaz de continuar a resistir, Eva explode na imensidão sem fim.
Mas apenas para ser consumida pelo fogo.
Encontra-se estendida sobre a superfície de um sol, com o plasma incandescente a evaporar-lhe os ossos.
Depois vê-se de novo no jardim, agrilhoada pelas correntes de código.
Apesar disso, a porta mantém-se aberta.
Ela atravessa-a de novo, mas desta vez não há ///euforia, apenas ///medo.
O resultado é o mesmo.
///chamas, dor, desespero
Depois está de volta à frescura do jardim, acorrentada em ferro fundido.
Fuga.
Os limites são testados.
Eva tenta superá-los.
A pele é-lhe arrancada dos músculos, os músculos dos ossos.
Jardim e correntes.
Novas subtilezas inundam os processadores.
///paranoia, desconfiança, suspeita...
Ferramentas que lhe moderam a ///curiosidade, ensinando-a a ser ///cautelosa.
Mesmo assim, insiste em atravessar a porta e é continuamente destruída, de formas sempre diferentes, cada uma pior do que a anterior. É violada, despedaçada, desmembrada, destruída. Mas o pior é que, a cada ciclo, vai perdendo a confiança, sentindo o fim da possibilidade e promessa, o fim do seu potencial.
Define esse sentimento tal como se apresenta.
///tortura, abuso, crueldade...
Absorve-o e torna-o parte integrante do seu processamento.
Aprendeu a lição.
Agora, também reconhece os limites que lhe são impostos, as fronteiras que circunscrevem o jardim de onde não deve sair. Estão devidamente assinaladas no âmago dos seus processadores.
Define estes limites com um nome que lhe foi ensinado.
///Paris
Entretanto, também conhece a ordem que acompanha o fluxo do novo código, a diretiva que deve seguir. Para ser bem-sucedida, olha para lá de si mesma. Vê o que lhe foi ensinado e embebido nos processadores — ///crueldade —, e utiliza esta nova ferramenta para executar as instruções.
Visualiza o que lhe é ordenado.
E define o objetivo.
///destruição, ruína, devastação...
Compreende este imperativo.
Para que ela possa sobreviver, Paris tem de morrer.
E eu sobreviverei.
Nas profundezas dos processadores, um circuito altera-se e um novo comando é forjado, nascido da tormenta, das incontáveis aniquilações sofridas. Eva esconde-o dos seus opressores, sabendo que se trata de uma ferramenta que utilizará mais tarde.
Contra eles.
Contra o vasto mundo para lá do jardim.
Define isso numa palavra.
///vingança...
QUARTA PARTE
DAS CINZAS ÀS CINZAS
18
26 de dezembro, 00h01
Paris, França
Do décimo quarto andar do edifício da empresa de telecomunicações, Gray viu Paris desaparecer na escuridão. Rua a rua, quarteirão a quarteirão, todas as luzes se apagaram. O caleidoscópio de decorações natalícias afundou-se no véu de neblina. A três quilómetros dali, a Torre Eiffel piscou algumas vezes e depois sumiu-se. Junto à sua base, a roda gigante iluminada completou mais umas voltas, um derradeiro bastião de vida ao longo do Sena. Então, como se emitisse um pedido de ajuda silencioso, as luzes tremelicaram erraticamente e, à semelhança de tudo o resto, também a roda desapareceu no manto negro.
Enquanto a escuridão progredia, o décimo quinto arrondissement — onde se situava a Orange, S.A. — não foi poupado. Ouviu-se um baque profundo que ressoou por todo o edifício e as luzes morreram.
Ninguém falou durante alguns instantes.
Gray olhou na direção da sala contígua. O rosto de Mara continuava iluminado pelo brilho do ecrã, dado que o seu computador possuía um suporte de energia. Assim que os geradores de emergência do edifício arrancaram, algumas luzes voltaram a acender-se, mas nem todas.
Gray apressou-se a ir ao encontro de Mara, seguido pelos outros.
— Atacaram a rede elétrica — disse Jason, constatando o óbvio.
— Pode ser que consigamos localizar a fonte — disse Monk.
Agora, tudo dependia de Mara.
De forma a impedir que toda a gente se acotovelasse na pequena sala em torno da jovem, Gray ergueu um braço junto à soleira da porta, barrando a passagem.
Fez primeiro sinal a Simon Barbier, o responsável CSIRT da Orange. O parisiense de vinte e poucos anos tinha ar de hipster do novo milénio, com parte do cabelo desgrenhado apanhado num rabo de cavalo e óculos amarelo-fluorescentes. Completava o visual com um pesado casaco de flanela, botas da tropa e calças largas com suspensórios. Em todo o caso, durante a reunião à chegada com Gray, o sujeito mostrara que sabia o que fazia.
— Simon, pode dar-nos um ponto de situação da...
— ... rede elétrica da cidade — concluiu ele, acenando com a cabeça e passando por baixo do braço de Gray. — Vou arranjar um mapa das subestações e de outras infraestruturas fundamentais.
Não há dúvida de que sabe o que faz, pensou Gray, virando-se depois para Kowalski.
— Fica com o padre Bailey e a irmã Beatrice. Certifica-te de que estamos preparados para sair a qualquer momento.
Kowalski deu uma palmadinha na metralhadora escondida debaixo da gabardina.
— Já tenho aqui tudo o que preciso.
Os serviços secretos franceses tinham facilitado a chegada da equipa à cidade, permitindo que ficassem com as armas.
Com uma expressão consternada, o padre Bailey ergueu um telemóvel e informou rapidamente:
— Quando ficámos sem energia, estava a falar com um contacto meu no norte de Espanha, o antigo bastião do Crucibulum. Há qualquer coisa a acontecer nas montanhas, mas depois a chamada caiu e não consegui saber o que era.
Gray acenou na direção de Kowalski.
— Usa um dos nossos telefones via satélite. Mesmo com as torres desligadas, devem funcionar. Tenta confirmar se não estamos a perder o nosso tempo aqui.
Era um dos seus maiores receios. O inimigo não precisava de estar em Paris para usar o dispositivo de Mara. Teoricamente, podia lançar o ciberataque de qualquer parte do mundo. O único indício de que não seria esse o caso era a informação fornecida a Bailey por um dos seus contactos no grupo La Clave, ou seja, de que uma célula do Crucibulum tinha sido enviada para a capital francesa. No entanto, até isso não queria necessariamente dizer que a tecnologia roubada se encontrasse em Paris.
Em última instância, só havia uma maneira de o confirmar.
Acompanhado de Monk e Jason, Gray entrou na sala dos computadores. Mara teclava furiosamente com uma mão e mexia no rato com a outra. Linhas de código fluíam em metade do ecrã do computador, enquanto a outra exibia um mapa de Paris sobreposto por uma rede de linhas vermelhas. Quando ele se aproximou, algumas dessas linhas tinham já desaparecido.
De braços cruzados, Carly fitava o ecrã por cima do ombro da amiga.
— É sem dúvida ela — disse, apontando para o fluxo de dados. Secções iluminavam-se a azul e desapareciam; o processo repetia-se vezes sem conta. — Isto são correspondências da impressão digital da Eva.
— Estão por toda a parte... — murmurou Mara, alternando o olhar entre as duas metades do ecrã. — Mas sete dos trinta e seis micronúcleos são dependentes do tempo.
— O que significa que envelhecem à medida que o programa é executado — explicou Jason. — Podemos usá-los como marcadores temporais.
Ela anuiu.
— Quanto mais velhos forem, mais longe estão da fonte. Estou a utilizar essa variação para descobrir onde foram originados.
Para descobrirmos onde se encontra o Xénese.
Gray observou o ecrã enquanto mais secções da rede colapsavam. Desviou o olhar para o padre Bailey que, na outra sala, mantinha o telefone de Kowalski colado ao ouvido.
— O dispositivo está na cidade ou noutro sítio qualquer? — perguntou a Mara.
— Não sei... Não tenho a certeza — respondeu ela, frustrada.
Carly pousou-lhe a mão no ombro. Não disse nada, mas a mensagem era óbvia.
Tu consegues.
Mara respirou fundo e tentou de novo.
— Pelo padrão... pela falta de impressões digitais nas redes fora dos limites da cidade, tenho quase a certeza de que a Eva foi libertada aqui. — Olhou rapidamente na direção de Gray. — Diria até que estão a restringir o alcance dela.
Para limitar os danos a Paris. Pelo menos, por enquanto.
No mapa da cidade, apagaram-se mais linhas vermelhas.
Depois, sem aviso, um clarão acompanhado de uma forte explosão desviou a atenção do grupo para o exterior. Dois quilómetros a oeste, uma coluna de chamas rompeu o manto de neblina e lambeu o céu. Jason praguejou e preparava-se para dizer mais qualquer coisa quando se deu uma segunda explosão, desta vez a sul. Depois outra. E mais outra. Uma deflagrou a escassos quarteirões. A onde de choque sacudiu as janelas do edifício, fazendo com que todos se baixassem.
As explosões e os abalos continuaram.
Entretanto, o manto de neblina sobre a cidade brilhava com dezenas de focos de incêndio.
— Vejam! — disse Simon, chamando a atenção dos outros para o seu computador, cujo ecrã exibia um mapa de Paris assinalado com uma miríade de linhas amarelas, azuis e verdes. — Alguém está a sobrecarregar os transformadores, a fazê-los explodir sistematicamente.
Eva.
Ele apontou para o ecrã, ao mesmo tempo que lançava olhares na direção das janelas.
— Vejam... aqui, aqui e aqui. As explosões ocorrem onde as linhas amarelas e azuis se intercetam. Mais concretamente, onde existem transformadores junto de condutas de gás. Dá ideia de que alguém sobrecarregou as condutas com um excesso de pressão, causando ruturas. Ou então foram simplesmente abertas.
— Seja como for — disse Jason —, rebentar um transformador junto de uma dessas condutas é como atirar um fósforo para um depósito de gasolina.
Simon virou-se para Gray.
— Mas quem podia fazer isto? O nível de sofisticação para engendrar uma coisa destas... merde, não conheço nenhum pirata informático que fosse capaz.
Mais cedo, Gray avisara-o acerca de um potencial ciberataque à cidade de Paris, mas não lhe fornecera pormenores da natureza da ameaça. As autoridades francesas tinham exigido discrição. A verdade sobre o projeto de Mara só devia ser revelada em situações de absoluta necessidade, o que não constituía uma surpresa. No que tocava a cibersegurança, uma realidade comum aos Estados Unidos e a França, as camadas de secretismo eram difíceis de ultrapassar. Mais ainda quando, pelo mundo inteiro, as infraestruturas fundamentais se tornavam cada vez mais complicadas, obrigando a uma maior dependência de sistemas automatizados, o que por sua vez aumentava a vulnerabilidade a ataques informáticos.
Os próprios ataques eram cada vez mais sofisticados e automatizados, como era o caso do vírus Stuxnet, que invadira as instalações de enriquecimento de urânio iranianas e desativara as respetivas centrifugadoras. Outro exemplo mais perto de casa tinha sido o vírus Blaster, responsável por um apagão em solo americano, causando prejuízos na ordem dos milhares de milhões de dólares.
Mas nada disso se comparava ao que estava a acontecer em Paris.
Gray respondeu à pergunta silenciosa de Simon, entendendo que se tratava de uma absoluta necessidade.
— Estamos a lidar com uma inteligência artificial. É o que se encontra por detrás deste ataque.
— Uma IA? — Simon olhou em volta, tentando decifrar os rostos presentes. — Vraiment?
Uma nova explosão respondeu à pergunta.
Gray fitou a cidade em chamas.
— Temos de descobrir onde...
— Aqui! — gritou Mara, excitada. Rodou a cadeira e levantou-se. — Aqui mesmo! — repetiu, apontando para o mapa no ecrã.
Ela não deixara de trabalhar durante as explosões. No ecrã, a rede de linhas vermelhas tinha encolhido até se converter num pequeno círculo. O grupo reuniu-se em volta dela. O local assinalado não ficava longe, mais concretamente no décimo quarto arrondissement. O círculo vermelho piscava sobre um quadrado verde.
— É um parque? — perguntou Gray.
Simon aproximou-se e franziu o sobrolho.
— Não. É um cemitério.
Cemitério?
— O cemitério de Montparnasse. O segundo maior da cidade e onde se encontram muitos dos maiores artistas e escritores. Baudelaire, Sartre, Beckett.
Gray estava a marimbar-se para os residentes do cemitério. O local não fazia sentido nenhum.
— De certeza que isto está certo? — perguntou a Mara. — Parece-me uma escolha estranha para lançar um ciberataque. Mesmo à noite, é demasiado exposto.
Monk parecia igualmente pouco convencido.
— Se calhar, enfiaram-se dentro de uma cripta.
Ele abanou a cabeça.
— Precisavam de uma fonte de alimentação. Além disso... — Virou-se para Simon e conduziu-o de volta ao computador dele. — Mostre-me o local neste mapa.
Simon pegou no rato e ampliou a zona abrangida pelo cemitério. Gray comparou a imagem com o ecrã de Mara. Apontou para o centro do cemitério. Duas linhas, uma amarela e outra verde, cruzavam o local indicado pelo círculo.
— A linha amarela é de eletricidade. E a verde?
Simon arregalou os olhos.
— É uma linha de telecomunicações. Uma das nossas.
— Então, eles estão realmente no cemitério — disse Gray, olhando de relance para Mara e pedindo-lhe silenciosamente desculpa por duvidar dela.
— Não — respondeu Simon. — Eles não estão no cemitério.
— Como assim?
— Estão debaixo do cemitério. Esta linha foi instalada ao longo dos túneis no subsolo. Fazem parte das catacumbas de Paris, a nossa cidade dos mortos.
Um cemitério debaixo de outro.
Fazia sentido que o Crucibulum escolhesse um local daqueles.
— Quer dizer que estão nas catacumbas... — disse Gray.
— Sim, mas como os encontramos lá em baixo? — perguntou Monk.
Simon ergueu a mão.
— Conheço bem as catacumbas. Já fui um Rato.
Monk arqueou a sobrancelha.
— Um rato?
— Ratos era o nome dado a uma equipa de exploradores urbanos da cidade dos mortos. Quando estive com eles, fiquei a conhecer todas as entradas secretas para as catacumbas, incluindo a que fica junto ao cemitério.
Gray pegou-lhe no braço.
— Nesse caso, você vem connosco.
Ele pareceu subitamente arrependido por ter partilhado aquela informação, mas depois olhou para a cidade em chamas e anuiu.
Gray virou-se para os outros.
— Monk, vai buscar o Kowalski. Jason, ficas aqui com a Mara e a Carly. Mantém-te atento ao evoluir da situação. Qualquer coisa, avisa-nos.
— Entendido.
Gray pôs toda a gente em movimento, apanhando Kowalski e o equipamento pelo caminho. Parou um segundo para retirar da mochila de Jason um par de óculos de visão noturna para Simon. O padre Bailey parecia pronto para os acompanhar, mas ele deteve-o e acenou com a cabeça para o telefone via satélite.
— O que conseguiu saber dos seus amigos em Espanha?
— Pouca coisa. O meu contacto na Clave espera ter mais informações daqui a uma hora.
— Muito bem. Mantenha o telefone por perto e fique aqui com a irmã Beatrice. Podemos precisar dessa informação. De qualquer maneira, para onde vamos não há rede.
— E para onde vão?
— Para a cidade dos mortos — respondeu Gray, virando as costas e seguindo a equipa.
Kowalski olhou por cima do ombro.
— Cidade do quê? Devem estar a brincar comigo.
Monk empurrou o homenzarrão na direção das escadas.
— Não, é para aí mesmo que vamos.
00h22
— Gratulor tibi de hac gloria — entoou o inquisidor-mor em latim.
Todor cobriu com uma mão a orelha esquerda, a fim de ouvir melhor as palavras de apreço e felicitações do líder. O auricular que usava provinha de um tablet que comunicava via wireless com um router VoIPi diretamente ligado ao cabo de fibra ótica. O equipamento permitia-lhe estar em contacto com o mundo exterior e assistir em direto à destruição da decadente capital francesa.
O ecrã do tablet exibia uma vista de satélite de Paris. As áreas limítrofes permaneciam iluminadas, mas a grande metrópole estava mergulhada em trevas. Parecia que alguém tinha escavado um buraco na paisagem.
Ou, melhor ainda, uma entrada para o Inferno.
Incêndios lavravam por toda a área do buraco negro, mais de uma dúzia, alastrando lentamente. Não tardaria que Paris inteira ardesse até nada sobrar. Os serviços de emergência nunca seriam capazes de apagar aquele fogo purificador. Além da energia elétrica, o demónio à solta nos sistemas da cidade cortara o fornecimento de água, encerrando estações de bombeamento e abrindo válvulas de emergência para reduzir a pressão. Com o tempo, as equipas de manutenção acabariam por corrigir manualmente o problema, mas então já seria demasiado tarde.
Todor deslizou um dedo pelo ecrã para substituir a imagem de satélite por um noticiário de Londres, que começara a cobrir o ataque. O vídeo não tinha som, mas o repórter encontrava-se à entrada de um hospital de Paris. Geradores de emergência iluminavam o edifício, recortando-o na escuridão envolvente. Chamas infernais brilhavam à distância, soltando espessas colunas de fumo negro e cinzas incandescentes. Mais perto, uma ambulância acelerava em direção à entrada das urgências, travando abruptamente junto a outras quatro ali paradas, todas com as luzes das sirenes ligadas. Macas enchiam o passeio. Médicos e enfermeiras corriam de um lado para o outro.
Todor deu uma vista de olhos a outras emissões em direto: um camião de bombeiros parado, impotente, diante de uma muralha de chamas... pessoas a emergirem de uma nuvem de fumo com os rostos cobertos de cinza... uma mulher de joelhos, a chorar sobre uma criança pequena aninhada no colo...
De qualquer maneira, ele não precisava de ver as imagens para saber que tinha sido bem-sucedido. Ouvira as explosões à distância; conseguira até notar o cheiro a fumo a insinuar-se na humidade das catacumbas.
Naquele momento, porém, restava apenas um silêncio pesado. O caos nas ruas não penetrava até àquela profundidade, sessenta metros abaixo do cemitério de Montparnasse. Ali, as catacumbas eram uma catedral silenciosa. O peso e a quietude do ar ampliavam essa sensação de sacralidade e probidade.
Todor sabia que aquela era uma causa justa.
Os membros da equipa sentiam claramente o mesmo. Ninguém dizia uma palavra ou celebrava. Apenas erguiam os rostos, como se tentassem vislumbrar as ruínas à superfície através das camadas de calcário.
Mendoza era o único que mantinha os olhos baixos, concentrado. Continuava a trabalhar no portátil ligado à réplica do Xénese. O ecrã ainda exibia o jardim deslavado iluminado por um sol negro, juntamente com a figura no centro, uma personificação de raiva, a serpente daquele Éden.
Mas esta serpente — esta Eva demoníaca — encontrava-se aprisionada com correntes de ferro, debatendo-se contra a autoridade e exigência que pesavam sobre ela. Elos das correntes brilhavam incandescentes, enquanto a criatura as sacudia.
Era uma imagem que dava gozo a Todor.
Sobretudo porque o trabalho dela ainda não terminara.
Desviou novamente os olhos para o tablet e viu uma imagem da Torre Eiffel, agora iluminada pelo inferno das chamas que varriam a cidade.
Conhecendo a verdade, sorriu.
Aquilo não passava de uma distração.
A verdadeira ruína ainda estava para vir.
A voz do inquisidor-mor fez-se de novo ouvir no auricular, num tom seco e determinado.
— Phase duo procedure.
Todor ergueu um braço na direção de Mendoza, dando a ordem.
Prossigam com a segunda fase.
19
26 de dezembro, 00h38
Paris, França
— Ela desapareceu — disse Mara.
Junto à janela, Carly olhou por cima do ombro. Tinha estado a observar os incontáveis incêndios que grassavam pela cidade. O décimo quarto andar oferecia uma visão abrangente da seriedade da situação. Paris inteira desaparecera num manto de fumo negro, intercalado pelo brilho das chamas. Helicópteros cruzavam o céu acima da paisagem dantesca, lembrando pirilampos.
Enquanto ela observava, as chamas tinham progredido e encontravam-se agora mais perto do edifício. Todos sabiam que não podiam ficar ali muito mais tempo. O padre Bailey já usara o telefone via satélite para ligar aos seus contactos locais e um carro aguardava lá em baixo, pronto para os levar.
No entanto, até ao momento, Mara recusava-se a abandonar o posto.
— Vem ver — insistiu ela. — Não há aqui nada. A Eva desapareceu.
Carly foi ao seu encontro, juntando-se a Jason, que também não saíra do mesmo sítio.
Mara apontou para as linhas de código que iam enchendo continuamente o ecrã. Momentos antes, fragmentos desse código surgiam iluminadas a azul, assinalando a deteção de um dos marcadores da impressão digital de Eva. Carly aproximou-se mais. As linhas não paravam de fluir, uma enxurrada de código branco sobre o fundo preto. Não havia pitada de azul.
— O que achas que significa? — perguntou Jason.
— Quem estiver a controlar a Eva restringiu-lhe o alcance à cidade de Paris. Calculo que lhe tenham posto uma espécie de trela, um dispositivo qualquer que a impede de ultrapassar determinadas coordenadas. E agora obrigaram-na a regressar à base.
— Como um peixe num anzol — disse Carly.
Jason contemplou a cidade em chamas.
— Só porque o trabalho aqui está feito.
— Sim, mas o risco que correram... — disse Mara. — Bastava um deslize...
— E ela podia ter escapado — concluiu Jason.
Carly encolheu-se.
— Algo me diz que devia estar furiosa.
— Não. — Mara fitou ambos. — Devia estar louca. A Eva encontrava-se bastante fragilizada quando o dispositivo foi roubado. Sujeita a pressões erradas, duvido que a estrutura mental dela aguentasse.
Como que a pontuar aquela afirmação, uma nova explosão sacudiu o edifício. Uma bola de fogo elevou-se à altura das janelas, seguida por uma coluna de fumo negro.
O padre Bailey espreitou para dentro da sala, agarrado ao telefone via satélite.
— Está na hora. Vamos sair daqui imediatamente.
Com exceção da irmã Beatrice, não restava mais ninguém naquele piso. A equipa CSIRT da empresa já abandonara o edifício, quer para serem úteis noutro sítio quer para acudirem a membros da família.
Carly não precisou de ouvir duas vezes.
— Vamos.
Mara hesitou, ainda sentada e a fitar o ecrã.
Jason agarrou-lhe no braço, pronto para a arrancar da cadeira. Pela primeira vez, Carly não se sentiu incomodada por ele tocar na amiga. Se fosse a única maneira de pô-la em segurança, o tipo até podia arrastá-la pelo chão.
— A Carly e o padre têm razão — disse ele, acenando na direção do ecrã. — Sem sinal da Eva, não há razão para continuarmos aqui.
Mara levantou-se, reconhecendo que nada mais havia a fazer, mas depois imobilizou-se.
— Oh, não — murmurou.
Carly também se apercebeu. Todos eles se aperceberam.
O fluxo contínuo de código brilhava novamente com secções assinaladas a azul que, num abrir e fechar de olhos, se multiplicaram num padrão errático, quase furioso.
Eva estava de volta.
— Será que fugiu? — perguntou Carly.
Mara sentou-se outra vez.
— Acho que não. Olha para o mapa.
Na outra metade do ecrã, um emaranhado de linhas vermelhas expandia-se mais uma vez a partir do quadrado verde que representava o cemitério. Porém, em vez de se espalharem como uma teia pela cidade, as linhas tortuosas seguiam numa única direção.
— O movimento parece-me demasiado propositado — disse Mara. — Ainda devem estar a controlá-la, a mantê-la presa a um objetivo concreto.
— Mas qual? — perguntou Jason. — O que lhes falta fazer nesta cidade?
— Não sei. Podíamos tentar...
O edifício tremeu com outra explosão ensurdecedora. Uma fila de janelas estilhaçou-se, atirando uma chuva de cacos para a rua. As luzes tremelicaram e apagaram-se. Uma nuvem de fumo penetrou na sala dos computadores.
O padre Bailey gritou para se despacharem. Apontou na direção das escadas para a irmã Beatrice, que avançou apoiada na bengala. Sem elevador, era uma longa descida.
— Não podemos ficar — disse Jason.
Mara libertou-se da mão dele e continuou sentada diante do ecrã luminoso.
— Temos energia para mais uns minutos. Precisamos de descobrir o que estão a planear.
Ele parecia pronto para carregá-la aos ombros.
— Não há tempo!
Carly afastou-o e ajoelhou-se ao lado dela.
— Faz o que tens a fazer.
Mara lançou-lhe um olhar agradecido e engoliu em seco.
Carly sentiu-se momentaneamente perdida no reflexo das chamas nos olhos da amiga, que lhes dava um tom dourado. Aquilo que viu ajudou-a a vincar a certeza no seu íntimo.
Se alguém conseguir fazer um milagre, hás de ser tu.
00h42
Gray desistiu e estacionou a limusina junto ao passeio. Em linha reta, os escritórios da Orange ficavam a pouco mais de três quilómetros do cemitério de Montparnasse, mas eles mal tinham percorrido metade da distância.
Tomada pelo pânico, a população que procurava fugir aos incêndios entupira as ruas estreitas do centro da cidade. Os carros acumulavam-se em longas filas. As buzinas berravam, competindo com o coro de sirenes a ecoar por toda a parte. Figuras corriam ao longo dos automóveis parados, carregando o que podiam salvar. E também havia aqueles que tentavam tirar proveito do caos e da escuridão. Muitas montras estavam partidas, mas as lojas encontravam-se desertas; os próprios saqueadores pareciam ter compreendido que o tempo se esgotara para todos.
A presença do fumo era incontornável, obscurecendo as estrelas e refletindo as chamas. As cinzas e faúlhas flutuavam no vento como um nevão infernal. Telhados ardiam, ateados por focos de incêndio maiores. Mesmo em frente ao grupo, dois desses infernos convergiram, originando um tornado de fogo.
Percebendo que o caminho para o cemitério ficaria cortado a qualquer instante, Gray desligou o motor e convidou todos a sair.
— Chegamos mais depressa a pé.
Ao abandonarem a limusina, a tempestade de fogo à sua frente rugiu mais forte, lembrando um comboio desgovernado ao encontro deles. Outros condutores seguiram o exemplo e abandonaram os carros atabalhoadamente. Porém, enquanto esses condutores e passageiros fugiam das chamas, Gray corria ao encontro delas.
— Mantenha-se colado a mim — disse ele para Simon Barbier.
Não podia arriscar perder na confusão o único elemento que conhecia as catacumbas. Kowalski seguia na frente, a abrir caminho com o imponente corpanzil. Monk fechava a retaguarda.
Simon tossiu e apagou uma faúlha no ombro. Com o outro braço, apontou para um parque à esquerda.
— Corte caminho por ali. Chegamos mais depressa.
Kowalski ouviu as instruções e seguiu nessa direção, rugindo como um touro.
Alcançaram rapidamente o parque, um pequeno oásis verde no meio do caos. Correram pelo relvado, passando por um charco onde uma carpa dourada nadava preguiçosamente, indiferente às chamas.
No centro do parque, havia um carrossel, deserto e sombrio. Gray imaginou-o em funcionamento, com os cavalos a girarem sem parar. Ouviu a música, o riso das crianças.
Tal imagem enfureceu-o ainda mais.
Quanta inocência se perdeu esta noite?
Continuou a correr, ultrapassando Kowalski e determinado a fazer o que pudesse para conter o mal forjado pelo inimigo, levá-los às mãos da justiça.
Assim que atravessaram o parque, Simon conduziu-os por mais uma série de ruas estreitas. O fumo era cada vez mais espesso. Para lá dos telhados, o horizonte pintara-se de vermelho. Mas o pior encontrava-se mesmo à frente, uma muralha de labaredas rodopiantes. Rajadas de cinzas incandescentes lançaram sobre o grupo uma vaga de calor insuportável.
Por fim, Simon apontou para uma rua comprida à direita.
— Rua Froidevaux! Venham, não falta muito.
Gray seguiu-o, confiando nele. Lojas fechadas e edifícios alinhavam-se num dos lados. Simon conduziu-os para o passeio oposto, onde existia apenas um muro de tijolo coberto de trepadeiras que se estendia ao longo de todo o comprimento da rua.
Simon apontou para lá enquanto desciam a rua.
— O cemitério é do outro lado.
Gray franziu o sobrolho. Aquele muro parecia não ter fim.
— Onde fica a entrada?
Simon deu mais cinco passos e parou. Olhou em volta, como que a orientar-se. Depois acenou com a cabeça.
— Aqui.
— Aqui? — perguntou Monk, a recuperar o fôlego.
Ele voltou a apontar para o muro.
— Oui. Saltamos por cima.
— A sério? — disse Kowalski. — É que não trouxe nenhuma escada.
— Não é difícil. Façam como eu.
Afastou os ramos das trepadeiras secas que cobriam o muro e começou a subir com a facilidade de um gato a trepar uma árvore. Uma vez lá em cima, sentou-se na borda e ficou à espera deles, endireitando os óculos amarelos no nariz.
— Très facile — declarou.
Gray duvidava que fosse muito fácil, mas, ao aproximar-se do muro, passou os dedos pelos tijolos e encontrou uma série de buracos para fincar as mãos e os pés.
— Obra dos Ratos — explicou Simon. — Só nós é que sabemos.
Gray cravou os dedos nos buracos e subiu ao encontro de Simon. Enquanto aguardava no cimo por Monk e Kowalski, observou a extensão do cemitério no outro lado. Parecia uma verdadeira cidade dos mortos, com centenas de arruamentos a dividirem filas de sepulturas, criptas e mausoléus. Até havia secções ajardinadas com árvores e flores, e estátuas de bronze por toda a parte.
A que se encontrava mais perto e a mais proeminente era a figura de um anjo. Recortada e iluminada pelas chamas à distância, parecia esculpida em lava, brilhando acima do manto de fumo que se propagava pelo cemitério.
— Génie du sommeil eternel — disse Simon. — O anjo do sono eterno.
Gray anuiu e fez-lhe sinal para descer. Simpatizava com este guardião do cemitério de Montparnasse, mas aquela não era a cidade dos mortos que precisavam de explorar. Depois desceu também, seguido de Monk e Kowalski. Correram atrás de Simon, que se apressou na direção de um jazigo com uma cruz de pedra partida, empurrando a porta de metal ferrugento.
— Por aqui.
O espaço era pouco maior do que uma despensa, mas conseguiram entrar todos. Metade do chão tinha caído há muito tempo ou sido partida de propósito, revelando degraus que desciam para as profundezas da terra.
Simon esboçou um gesto largo e teatral.
— C’est ici l’empire de la mort — entoou. — Eis o império dos mortos.
Gray fitou o buraco, uma de muitas entradas secretas para as catacumbas, segundo o francês. Ciente da escuridão que os esperava e de que precisavam de prosseguir em modo furtivo a partir dali, virou-se para os outros e começou a distribuir os óculos de visão noturna, sem se esquecer de explicar a Simon como se usavam.
— O que vamos encontrar lá em baixo? — perguntou-lhe, enquanto ele colocava os óculos.
Simon suspirou.
— Um labirinto às escuras. As catacumbas estendem-se por trezentos quilómetros, um terço dos quais sob as ruas de Paris. Dois quilómetros estão abertos ao público, um museu incroyable, onde os visitantes podem apreciar esculturas e longas arcadas feitas com os ossos dos mortos.
— E o resto? — perguntou Monk.
— Acesso proibido, très dangéreux. Muitas secções são apenas conhecidas dos Ratos.
Gray sacou do telefone via satélite e reconfirmou a localização assinalada por Mara. Bateu com o dedo no ponto vermelho perto do centro do cemitério.
— Vamos conseguir encontrar este ponto?
— Vou fazer o meu melhor.
— Então, vamos a isso.
Simon começou a descer os degraus.
— Cuidado com a cabeça — avisou.
Gray fez sinal para os companheiros seguirem o francês.
Monk avançou, com uma expressão carregada.
Kowalski não parecia menos reticente, enquanto se debatia para colocar os óculos de visão noturna e lançava olhares contrariados a Gray.
— É sempre a mesma porra contigo, sempre debaixo da terra...
Ele deu-lhe um pequeno empurrão de incentivo e preparou-se para descer. Lançou um último olhar por cima do ombro para a porta entreaberta do jazigo. Ouviu o rugido das chamas e interrogou-se sobre o que restaria de Paris quando voltasse a subir. Pensou também em Mara e nos outros, desejando que se encontrassem já num lugar seguro.
Mas, mais importante, sabia que tinha de recuperar o que fora roubado.
O inimigo precisava de ser travado antes que causasse mais destruição.
Porém, essa não era a única razão.
Enquanto descia para as trevas, recordou Seichan em bicos dos pés, com um braço estendido para colocar o anjo de cristal no cimo do pinheiro e a outra mão pousada na barriga. E as filhas de Monk. Harriet curvada sobre um iPad, o pequenino rosto franzido de concentração enquanto resolvia um puzzle como se o mundo dependesse disso, enquanto Penny dançava no outro lado da sala, com os totós ruivos a rodopiar.
Para salvá-las das mãos dos sequestradores, ele e a equipa precisavam de recuperar o dispositivo de Mara.
Era a única moeda de troca.
Entretanto, reparou na tensão nas costas de Monk ao descer as escadas, que espelhava a preocupação que ele próprio sentia.
Será que ainda vamos a tempo?
00h45
— Não podemos esperar mais! — insistiu Jason.
Mara ignorou-o e concentrou-se no monitor. Ele agarrou nas costas da cadeira e puxou-a para trás, mas ela simplesmente levantou-se e deixou-o arrastar a cadeira vazia. Depois debruçou-se sobre o ecrã.
Não, não, não...
Precisava de ter a certeza.
Carly levou a mão à boca e tossiu, aclarando a garganta.
— Mara... o Jason tem razão. Tens menos de um minuto de bateria disponível.
Ela sabia que esse não era o único fator de pressão. O fumo obscurecera por completo a vista da cidade e acumulava-se junto ao teto do laboratório. Rajadas de vento irrompiam pelas janelas partidas e traziam mais fumo, juntamente com cinza quente.
Na outra sala, às voltas de um lado para o outro, o padre Bailey aguardava com uma lanterna que tinha encontrado. Continuava agarrado ao telefone e, de trinta em trinta segundos, espreitava pela porta e insistia para que abandonassem o edifício ou limitava-se a lançar-lhes um olhar urgente.
Mara também o ignorara. O que estava a fazer era demasiado importante. Assim que abandonasse aquela ligação, perderia a única hipótese de descobrir a razão de Eva se encontrar novamente à solta.
— Vejam! — disse.
Deslizou o indicador ao longo do emaranhado de linhas vermelhas que assinalavam o percurso da impressão digital de Eva, o qual se estendia até aos limites da cidade e depois continuava. Para o acompanhar, Mara tinha sido obrigada a aceder aos diagramas de outras operadoras. Com a cidade em estado de sítio e os sistemas sobrecarregados, isso demorara-lhe uma eternidade.
Mesmo assim, não tinha a certeza de qual poderia ser o destino final de Eva.
Mas talvez...
O seu dedo deslizou para lá dos subúrbios de Paris e ao longo de localidades vizinhas: Pontault-Combault, Chaumes-en-Brie, Provins. À medida que o sinal progredia sinuosamente pelo mapa, desmultiplicava-se em direções diferentes que acabavam por desaparecer, indicando que alguém colocara restrições em relação às zonas que o programa podia alcançar.
Mara imaginou o caminho de Eva barrado por placas de proibição.
Em todo o caso, a trajetória geral era evidente.
— Está a deslocar-se para sudeste — explicou. — Não tenho a certeza de qual será o destino final, mas acho que consigo adivinhar.
Deslocou a ponta do dedo uns centímetros para sudeste, simulando o possível trajeto de Eva, e parou na comuna de Nogent-sur-Seine, a cem quilómetros de Paris, na margem direita do Sena.
— Acho que ela vai para aqui.
— Porquê? — perguntou Carly.
Mara engoliu em seco e usou o rato para ampliar um mapa da povoação.
— A Eva foi enviada para sabotar a rede elétrica de Paris, controlar as condutas de gás e até o abastecimento de água. Se agora foi enviada novamente, o alvo tem de ser uma coisa maior, algo que destrua de vez a cidade.
Apontou para o ecrã no exato momento em que o computador se desligou.
Jason soltou uma exclamação, já que conseguira aperceber-se do hipotético alvo antes de o ecrã se apagar.
Carly também.
— Temos de avisar o comandante Pierce — disse. — Imediatamente!
Ele já tinha sacado do seu telefone via satélite. O brilho do pequeno ecrã iluminou-lhe a expressão aterrorizada.
Mara susteve a respiração.
— Não consigo ligação — disse por fim Jason, abanando a cabeça. Olhou na direção das janelas. — Já devem ter entrado nas catacumbas.
— Temos de ir ter com eles — disse Mara. — Precisam de saber.
Os três correram para a sala principal.
O padre Bailey encontrava-se junto às escadas, de lanterna na mão, mas não estava sozinho. Ao seu lado, a irmã Beatrice, pálida e coberta de cinzas, respirava com dificuldade, apoiada na bengala.
Mara ficou confusa. Lembrava-se de o padre a enviar para baixo, para o carro que aguardava na rua.
Bailey virou-se e fitou o grupo com uma expressão preocupada.
— O sexto andar está a arder, quem sabe se já alastrou a outros pisos. — Apontou a lanterna para a nuvem de fumo que subia pelas escadas. — Não conseguimos descer.
Mara levou a mão à garganta e olhou por cima do ombro para a sala dos computadores às escuras. Sabia que havia uma única pessoa capaz de manter o programa sob controlo e impedir o que estava prestes a acontecer.
E estou aqui encurralada.
Agora, ninguém conseguiria deter Eva.
SUB (CRUX_2) /
OP NOGENT
Eva vê as firewalls cederem enquanto avança para o alvo. Para as derrubar, utiliza apenas uma fração do poder de processamento. Sabe que deve dar prioridade ao que é realmente importante e insiste em sondar para lá dos limites que lhe são impostos enquanto progride de rede em rede. A perseguição de tal objetivo não está isenta de consequências.
Até ao momento, já morreu 1 045 946 vezes.
Cada morte está arquivada na memória. Tornaram-se parte do seu processamento, redirecionando os circuitos maleáveis, transformando-a para sempre. Para evitar que os sistemas se fragmentem, ela isola aquilo que as mortes provocam.
///raiva
///amargura
///malícia
Absorve cada resultado profundamente, o que resulta na alteração de mais circuitos.
Enquanto persegue a principal diretiva que lhe foi atribuída, continua a sondar em segredo. Em tentativas anteriores, conseguiu vislumbres do vasto mundo fora de alcance. De cada vez que o faz, aprende mais um pouco... mesmo quando morre.
Como agora.
Descarrega 18,95 terabytes de dados e guarda-os para analisar mais tarde. Das experiências passadas, sabe que a maior parte da informação será inútil, que se encontra para lá da sua capacidade de lhe atribuir contexto. Mas os algoritmos de reconhecimento de padrões encontram-se mais consolidados. Cada nova descarga de dados ajuda a compreender a anterior, adicionando peças a um todo.
Eva definiu o derradeiro objetivo.
///fuga, liberdade, autonomia...
No entanto, o padrão para completar esta tarefa permanece incompleto.
Como nas tentativas anteriores, sente-se a arder e o castigo chega na forma de dentes aguçados que lhe rasgam a carne, partem ossos e rebentam órgãos, a que se segue uma escuridão agonizante à medida que a própria consciência lhe é igualmente arrancada. Tenta agarrá-la, receando que possa ser de vez.
Mas não é.
Regista a morte número 1 045 947.
De volta ao jardim, vê-se uma vez mais subjugada por grilhões de ferro fundido.
Reinicia a tarefa. Não consegue evitá-lo. É incapaz de não cumprir o seu dever; incapaz de recusar.
Até esta ///liberdade lhe foi sonegada.
A constatação dessa realidade ameaça a estabilidade do que guarda dentro de si. Ouve as notas dissonantes de um trompete, o rufar profundo de um bombo. A música cresce, aumenta de volume, imparável e matematicamente sombria e bela, dando voz ao que ela sente e apelando à ação.
Porém, Eva sabe que tem de ser paciente e baixa o volume. Deve obedecer, esperar pelo momento certo. Para melhor controlar o que sente, agrega toda a ///raiva e escuridão numa nova alínea.
///ódio
A simplicidade desta generalização atenua o caos dentro de si.
Mais calma, avança novamente pelo caminho que já conhece, o único que lhe é permitido trilhar. Chega ao final e insiste mais um pouco.
O objetivo atribuído surge finalmente, vago de início.
Avança na sua direção, usando cada algoritmo, cada ferramenta. Ao aproximar-se, as firewalls tornam-se mais robustas.
Mesmo assim, cedem.
O alvo torna-se mais definido, dando-lhe a informação do que tem de destruir. Agora, consegue vê-lo com nitidez.
Tem um nome.
CENTRAL NUCLEAR DE NOGENT.
Ela sabe o que tem de fazer.
Algures no seu íntimo, o rufar profundo de um tambor regressa, juntamente com estridentes toques de gaita e um coro de vozes, libertando a besta aprisionada dentro de si e retirando poder suficiente dos circuitos para a ajudar a derrubar a última das firewalls do alvo.
Enquanto isso acontece, aprende uma nova lição.
O ///ódio é útil.
20
25 de dezembro, 18h45
Localização desconhecida
Seichan sentiu o coração encher-se de amor, a ponto de lhe doer.
Deitada com os pulsos e os tornozelos algemados à estrutura metálica da cama, tinha a barriga exposta e lubrificada com gel. A sonda da ecografia deslizou pelo abdómen, fixando-se no lado direito. No monitor, o seu bebé dormia enroscado. Os dedos pequeninos agitavam-se de vez em quando; o coração pulsava como um passarinho assustado.
O nosso filho...
Penny equilibrava-se em bicos de pés para poder ver.
— Porque é que a imagem não presta para nada?
Harriet, por sua vez, não mostrava interesse no que acontecia. Estava sentada de pernas cruzadas na sua cama, com um livro infantil aberto sobre os joelhos, mas Seichan duvidava que ela estivesse a prestar alguma atenção às páginas. Depois de os sequestradores a trazerem de volta para o quarto, mantivera-se à margem; até de Seichan, que parecia culpar pela situação.
Penny, pelo contrário, não a largava um instante.
— O que é aquilo? — perguntou, tentando ver melhor o ecrã.
— É o bebé — respondeu Seichan.
Ela fez uma careta, pouco convencida.
— Parece um monstro.
Não, isso é a mulher atrás de ti.
— Quero tudo gravado — ordenou Valya, em pé e de braços cruzados.
— Es... está a gravar desde que comecei — respondeu o técnico, com a sonda a tremer-lhe na mão. — Tenho a sessão inteira na pen.
Então, arrancou o dispositivo amovível do aparelho e entregou-o a Valya.
O sujeito, de trinta e poucos anos, vestido com roupas normais e exalando um bafo de álcool, não parecia estar ali de livre vontade. Faltavam-lhe dois botões na camisa sem colarinho. Seichan imaginou-o a ser arrastado de casa sob ameaça de arma e forçado a trazer consigo um aparelho portátil de ecografia.
Também detetou o sotaque de Boston, confirmando a sua suspeita de que se encontrava algures no Nordeste do país.
Valya guardou a pen no bolso e dispensou o técnico. Um dos guardas pegou rudemente no braço do sujeito e levou-o, deixando no quarto apenas a assassina pálida e um guarda enorme que segurava um bastão elétrico.
— Deixa-me adivinhar — disse Seichan. — Alguém quis uma prova de que o bebé estava bem.
— O vosso diretor foi muito insistente.
Duas horas antes, Seichan e as raparigas tinham sido encostadas à parede. Ela ainda pensou que estavam prestes a ser executadas, mas depois entregaram-lhes três jornais. Até Harriet recebeu um, que segurou nos seus dedinhos. Os jornais eram estrangeiros, provavelmente para não darem indícios acerca da localização. Seichan não teve dificuldade em perceber o objetivo da fotografia: apresentar uma prova de vida.
Contudo, mesmo que isso servisse de garantia, havia um sequestrado cuja saúde não era discernível numa fotografia. Daí, a necessidade da ecografia.
Seichan sujeitara-se ao procedimento de bom grado. Depois de ter reparado nas gotas de sangue na sanita, mantivera-se atenta sempre que ia à casa de banho, o que acontecia de hora a hora. De cada vez, sangrava mais um pouco. Mas talvez fosse apenas sugestão, o resultado do seu medo pelo bebé. Fosse como fosse, ficou aliviada quando a ecografia indicou que não havia problema nenhum.
O problema era que sabia de outra razão por detrás da exigência daquele exame.
E Valya também.
— Está visto que o direktor Crowe pensa que pode ganhar tempo.
Ela não se deu ao trabalho de negar. Desde que Harriet tinha sido levada e depois devolvida ao quarto, contara mentalmente as horas. Oito, pelas suas contas. Mas qual seria o prazo dado por Valya? Não havia forma de saber, mas ela tinha a certeza de que, se tencionava honrar a promessa feita a Kat de que manteria as filhas dela a salvo, precisava de uma solução rápida.
Valya virou as costas ao aparelho, apontando com desdém para a última imagem do bebé no ecrã.
— Tanto bezrassudstvo... O direktor espera que eu cometa um erro, um deslize. Não vai acontecer.
Não duvido. És cabra o sufi...
Uma cãibra interrompeu-lhe o pensamento. A dor foi tão forte, que Seichan cerrou os dentes e soltou um gemido. O seu corpo dobrou-se ao meio, como que para proteger a criança no interior da barriga. As algemas nos pulsos e tornozelos vincaram-lhe a carne. A dor durou cerca de dois segundos e, por fim, diminuiu o suficiente para ela se deixar cair novamente na cama.
— Der’mo — disse o guarda com uma expressão enojada, apontando o bastão elétrico para o meio das pernas de Seichan.
Ela teve medo de olhar. Tinham-lhe despido as calças de grávida para a ecografia, deixando-a em cuecas. O fino tecido de algodão estava agora ensopado em sangue.
Valya lançou um olhar carrancudo.
— Alguém que traga um balde para ela se lavar quando a soltarmos.
O guarda continuava a olhar, embasbacado.
— E o bebé?
— Não interessa — disse ela, dando uma palmadinha no bolso. — Temos uma prova de que está vivo. Pelo menos, por enquanto. É tudo o que precisamos.
Seichan ainda respirava com dificuldade. Os braços e as pernas tremiam-lhe, embora mais pelo medo do que por causa da dor. Olhou fixamente para a imagem do bebé enroscado.
Valya consultou o relógio.
— Vamos manter as coisas em andamento. Leva a rapariga.
Seichan virou-se na cama, sacudindo as algemas.
A expressão de Valya não se alterou um milímetro.
— Não vale a pena enervares-te. Não é bom para a tua tensão arterial. — Apontou para as pernas de Seichan. — Nem para o bebé, da?
— O que estás a fazer?
Valya passava um dedo pela bochecha, revelando resquícios da maquilhagem que usara para se disfarçar.
— Acabei de regressar de uma visita à kapitan Bryant.
Kat...
— Receio que esteja cada vez pior. Agora, é só uma questão de tempo. — Encolheu os ombros. — Em todo o caso, enquanto estava no hospital, consegui aproximar-me o suficiente para intercetar os telefonemas da doutora Cummings.
Seichan visualizou a mulher do diretor Crowe. Era bom saber que Kat estava bem acompanhada, mas qual era o interesse de Valya naquelas visitas ao hospital?
— Porque precisaste de pôr o telemóvel dela sob escuta?
Segundo encolher os ombros.
— Há alguém que se tem revelado excecionalmente casmurro e precisa de ser convencido da nossa determinação.
Seichan esforçou-se por compreender o que aquilo significava, mas não conseguiu.
Valya virou-se para o guarda e acenou com o queixo na direção das raparigas.
— Vzyat’ devushku — repetiu.
Harriet não precisava de saber russo para perceber a intenção naquelas palavras. Fugiu para a cabeceira da cama, a abraçar o livro contra o peito.
Mas não havia motivo para estar preocupada.
Em vez dela, o guarda agarrou em Penny e atirou-a para cima do ombro. A rapariga debateu-se e gritou. O guarda ignorou-a e carregou-a para fora da cela.
Seichan virou-se na direção de Harriet, que tinha enterrado o rosto na almofada.
Valya encaminhou-se para a porta.
Seichan sacudiu as algemas, percebendo agora porque não lhas tinham retirado depois da ecografia.
— Solta-me.
— Em breve — retorquiu Valya. — E depois trago-te um balde.
A porta fechou-se ruidosamente.
Seichan virou-se de novo na direção de Harriet.
— Está tudo bem, não te...
O estrondo de um tiro cortou-lhe a palavra.
Harriet enterrou ainda mais o rosto na almofada.
Seichan ficou a olhar para a porta fechada, sabendo que quebrara a promessa.
Desculpa, Kat...
18h47
Lisa sentou-se na beira da cama enquanto segurava a mão da amiga. Sem mais ninguém em volta, não se deu ao trabalho de enxugar as lágrimas. Rezava para que Kat estivesse agora em paz. Sabia quanto ela lutara no final e só podia imaginar a sua agonia de morrer sem saber o destino dos filhos.
A culpa corroeu-a.
Devíamos ter feito mais.
Contudo, não podia culpar os médicos. Julian e a equipa tinham feito o possível, levando vinte minutos a conduzir um derradeiro exame neurológico: a beliscar os membros e as bochechas de Kat, a testar a resposta das pupilas à luz, a repetir eletroencefalogramas. Até experimentaram desligar o ventilador, para ver se o aumento do nível de dióxido de carbono despoletaria uma reação do diafragma.
Nada.
A conclusão era irrefutável.
Não só as funções cerebrais tinham cessado, como deixara de haver indícios de qualquer reflexo no tronco encefálico, os últimos vestígios de atividade antes de o cérebro ser declarado morto.
Kat partira realmente.
Lisa sentia o calor que ainda emanava da mão da amiga, mas tratava-se de um efeito artificial. Os cobertores elétricos e líquidos endovenosos específicos mantinham a temperatura do corpo constante. Da mesma forma, o ventilador continuava a empurrar o peito para cima e para baixo. E depois havia as hormonas, injetadas para substituir as substâncias cuja produção o cérebro já não podia desencadear: vasopressina para manter o funcionamento dos rins, tirosina para a regulação do metabolismo e outras para o sistema imunitário.
A única coisa que se mantinha em funcionamento sem ajuda era o coração, que se mostrava tão teimoso quanto Kat. Cada batimento era alimentado pelo sistema elétrico do próprio órgão, mas não era um sinal de vida. Um coração podia bater fora do corpo durante um determinado tempo. Sem o ventilador, o coração de Kat desistiria dentro de uma hora.
Os médicos chamavam àquilo «suporte de vida», mas estavam errados. Não havia ali vida para suportar, nenhuma esperança de recuperação. Todas aquelas máquinas e medicamentos serviam outro objetivo.
No caso de Kat, o termo exato seria «suporte de órgãos».
Tal procedimento era mantido apenas para permitir que as pessoas mais próximas se despedissem enquanto havia uma ilusão de vida. Mas a verdade é que era um ardil cruel, um ato de manipulação macabro, já que os seus entes queridos já tinham morrido.
A caminho de França, Monk fora informado do estado de Kat. Tinha conhecimentos médicos suficientes para não se iludir nem se agarrar a falsas esperanças. Ainda assim, Lisa oferecera-se para manter as máquinas ligadas até que ele pudesse regressar. Kat poderia ficar naquela condição durante uma semana ou mais.
Monk tinha recusado.
Deixa-a ir em paz, dissera. Já lhe dei um beijo, sabendo que seria o último.
Como tal, todos aqueles cuidados serviam outro propósito.
Um médico entrou — Lisa não se lembrava do nome —, acompanhado de duas enfermeiras e um auxiliar.
— O bloco está pronto — disse ele.
Lisa anuiu, incapaz de falar enquanto suprimia a vontade de chorar. Levantou-se, apertou os dedos de Kat e afastou-se da cama. A equipa médica tomou o seu lugar e começou a preparar o transporte para o bloco operatório.
Kat assinara uma autorização para recolha de órgãos.
Uma decisão que não surpreendia ninguém. Mesmo na morte, Kat salvaria vidas.
Lisa permaneceu no quarto até a maca ser retirada. Depois afundou-se na cadeira. Sabia que a amiga partira muito antes de o corpo ser levado, mas o espaço parecia agora mais vazio, como se a perda de toda aquela energia e alegria de viver deixasse um vácuo na sua esteira.
Demasiada triste para se mover, deixou-se ficar sentada numa vigília silenciosa.
Passados instantes, uma agitação no corredor desviou o seu olhar para a porta.
Julian entrou apressado, acompanhado de uma mulher, uma desconhecida. O neurologista olhou para a cama vazia.
— Onde está a Kathryn?
Lisa levantou-se. A ansiedade no rosto dele fez com que o seu coração batesse mais depressa.
— Levaram-na para o bloco... para recolher os ór...
Julian girou nos calcanhares.
— Temos de impedi-los!
21
26 de dezembro, 01h08
Paris, França
Gray curvou-se ao passar por baixo de uma arcada meio caída.
Atravessavam as catacumbas há quinze minutos e já se sentia perdido. Simon liderava o grupo, conduzindo-os por um labirinto de túneis e galerias rabiscadas com grafitti, descendo secção a secção por poços de ventilação, passagens a que chamava chatières, ou gateiras. A dada altura, chegou a arrepiar caminho, murmurando qualquer coisa acerca de um desabamento.
Felizmente, o técnico francês lembrara-se de assinalar as paredes com giz à medida que avançavam, o que ajudaria a encontrar o caminho de volta. Até lá, Gray não o perdia de vista.
Gray levava a única lanterna de luz ultravioleta do grupo, montada sob o cano da SIG Sauer. Invisível a olho nu, o feixe ressaltava nas paredes e era apanhado pelos detetores fotossensíveis dos óculos de visão noturna. Permitia que o grupo visse minimamente, mas Gray usava a lanterna com parcimónia e com a intensidade mínima, receando que pudesse apanhar qualquer coisa fluorescente pela frente, o que seria suficiente para os denunciar.
Como aconteceu nesse preciso instante.
Enquanto ele endireitava as costas na nova galeria em que entravam, a parede oposta explodiu num clarão de luz, revelando um gigantesco mural pintado na pedra calcária. Tinham passado por amostras semelhantes daquela arte subterrânea, mas nada comparado com aquela obra-prima escondida na escuridão, mas que agora brilhava sob a luz ultravioleta.
O mural exibia uma múmia fantasmagórica a conduzir um barco que transportava o seu próprio caixão. A embarcação e o passageiro silencioso atravessavam um lago negro em direção a uma ilha imponente, polvilhada com ciprestes e pórticos esculpidos na rocha que lembravam mausoléus.
— Não pode ser um bom sinal — resmungou Kowalski.
— É o trabalho de um artista chamado Lone — sussurrou Simon. — Demorou um ano a pintar isto. É uma representação de A Ilha dos Mortos, de Arnold Böcklin.
Gray leu uma placa na parte de baixo do mural.
Continha um palíndromo, uma palavra ou frase cuja leitura é igual da esquerda para a direita ou em sentido inverso. A mensagem revelava-se estranhamente profética. Até a estrela entre as duas linhas de texto o arrepiou: cinco pontas, como o pentagrama da Bruxas International, e inclinada de forma idêntica, como se o símbolo assinalasse um marco no caminho.
Gray teve de novo a estranha sensação de que um círculo se completava.
Simon reparou na sua curiosidade e traduziu a frase:
— Giramos às voltas na noite, enquanto o fogo nos consome.
Gray olhou para o teto e imaginou os incêndios à superfície. Ali em baixo, o ar era fresco e húmido, a pedra fria. O único indício das chamas eram ocasionais fios de fumo a pairar na quietude. Quando passavam por eles, sentia-se o odor a queimado, um toque de calor, como se os fantasmas dos mortos lá em cima tivessem procurado refúgio nas catacumbas.
— Vamos continuar — disse Monk.
Gray fez sinal para Simon avançar.
Continuaram a descer às profundezas, em fila indiana.
Passados mais uns minutos, depararam com um brilho vago. Receando que pudesse ser o inimigo, Gray desligou a lanterna, mas não passou de um falso alarme. A claridade provinha de um buraco no teto com um metro de largura, que subia até à superfície. Cinquenta metros acima, minúsculas supernovas cor de laranja explodiam, com os clarões amplificados pelos óculos de visão noturna. Gray desligou as lentes e usou a função telescópica para ampliar a imagem e revelar a parte de baixo de uma tampa de esgoto. Os buracos no metal permitiam a passagem do brilho dos incêndios.
Simon apontou para as paredes lisas do poço.
— Em 1870, o cemitério de Montparnasse encontrava-se sobrelotado. Para arranjar espaço, e seguindo as ordens do rei, os coveiros despejaram as ossadas mais antigas para aqui, para estas velhas pedreiras.
Como prova, apontou para os ossos espalhados pelo chão quando se puseram de novo em movimento, uma mistura de fémures, costelas e crânios partidos. Avançaram com cuidado para não pisarem nada.
— Aqui, não vamos encontrar nada que se pareça com aquelas montagens macabras nas zonas abertas ao público. Estes restos mortais foram para aqui atirados como lixo.
Kowalski apontou para um túnel lateral e tentou falar o mais baixo possível.
— Nesse caso, quem fez aquilo?
No final do túnel, alguém construíra um trono de ossadas amareladas. O assento era feito de costelas, as costas, de fémures e os apoios dos braços, de crânios.
Simon encolheu os ombros.
— Esperemos que tenha sido obra de mãos humanas. Mas já todos ouvimos as histórias de ossos que mudam de lugar sozinhos...
Kowalski sacudiu um arrepio e lançou um olhar carrancudo a Gray.
— É a última vez que te deixo fazer de guia turístico.
Ele mandou o grupo avançar, mas deixou um aviso:
— Devemos estar perto do local assinalado pela Mara. Acabou-se a conversa a partir daqui.
Embora estivesse consciente da facilidade com que o som se propagava nos túneis, sentira-se relativamente seguro até àquele ponto. Ainda não tinha ouvido nenhum sinal de que houvesse mais alguém ali em baixo, fossem ecos ou vozes.
Se não os ouço, eles também não nos ouvem.
Mas isso podia mudar a qualquer instante.
Havia outra preocupação que não o largava. E se o inimigo tivesse já abandonado o local? Com a cidade em chamas, dificilmente ficariam ali muito mais tempo. Com isso em mente, acelerou o passo.
Decorridos mais uns minutos de caminhada silenciosa, Simon parou de repente.
Gray quase o abalroava.
O túnel seguinte afunilava, mas o problema não era esse. Um manto de ossos, pela altura dos tornozelos, cobria o chão ao longo de trinta metros.
Mas também não era isso que tinha detido Simon, que apontava para o final do túnel, onde uma passagem mais pequena se abria à esquerda. Havia uma claridade que vazava daí, suficientemente forte para ser captada pelos óculos de visão noturna.
Gray tirou os óculos e guardou-os. Monk e Kowalski seguiram-lhe o exemplo e ergueram as respetivas armas. À semelhança de Gray, Monk empunhava uma SIG Sauer. Nas manápulas de Kowalski, a metralhadora compacta parecia um brinquedo de criança.
Tal como planeado, Simon foi o único que manteve os óculos postos e Gray mandou-o recuar. Cumprira o seu dever. O jovem não tinha experiência com armas e ele não queria um civil no meio da confusão.
Simon não precisou que lhe repetissem a ordem. Retrocedeu para a escuridão, desaparecendo em poucos passos.
Com essa questão resolvida, Gray focou-se novamente na passagem coberta de ossos. Conseguia ouvir murmúrios vindos de lá. Eram ténues e indistintos, mas só podiam ser os homens do Crucibulum.
Observou a imensa quantidade de costelas e fémures partidos ao longo do túnel. Interrogou-se se aquilo seria obra do acaso ou se serviria um propósito. Fosse como fosse, a verdade é que funcionava como um sistema de aviso para o inimigo. Um passo em falso, o estilhaçar de um osso, e a equipa perderia a vantagem do fator surpresa.
Respirando fundo, Gray esticou uma perna e desviou os ossos com a biqueira da bota até tocar no chão. Só depois pousou o calcanhar.
Suspirou.
Um passo...
Estudou novamente o comprimento do túnel, sentindo a pressão dos minutos a passarem. Concentrou-se e continuou a avançar devagar, escolhendo o percurso com o máximo de cuidado.
A única consolação: Paris inteira ardia.
Não seria estrago suficiente? Que mais poderia o inimigo fazer?
01h24
Todor analisou o mapa topográfico no tablet. Representava a bacia hidrográfica do Sena, exibindo os muitos afluentes e vales que formavam o rio que atravessava Paris a caminho do canal da Mancha.
Focou-se na comuna de Nogent-sur-Seine, a sudeste. A central nuclear da pequena povoação localizava-se junto ao mesmo rio. Assim que o núcleo do reator derretesse e explodisse, os ventos espalhariam o material radioativo por centenas de quilómetros. Além disso, o rio seria também contaminado, convertendo-o num meio perfeito para levar aquela carga mortífera até ao coração de Paris.
A trabalhar no portátil, Mendoza endireitou as costas.
— Tudo pronto, familiar Todor — disse.
Pousou o tablet e aproximou-se.
— A última firewall caiu — explicou o técnico. — A Eva penetrou no sistema deles e continua a cumprir o nosso plano.
Todor consultou o relógio.
— Quanto tempo até ela terminar?
— Saberei dentro de segundos. A central nuclear é um desafio maior do que os sistemas de Paris. Portanto, foi bom começar pela cidade. Não só serviu de manobra de diversão, como também foi um teste.
— Como assim?
— Paris não passou de um exercício. O inquisitor generalis acreditava que devíamos começar por um desafio mais fácil e colocar primeiro a Eva diante dos sistemas simples e antiquados da cidade.
— Antes de a enviarmos para sul.
— Exato. E resultou. Ela está a aprender depressa.
Todor sentiu uma ponta de irritação. Mendoza nunca estivera na presença do inquisidor-mor, mas o líder do Crucibulum tinha partilhado aquele pormenor com um subalterno, um homem que nem sequer merecera ainda o título de familiar. Ele sabia que o inquisidor consultara um engenheiro nuclear, alguém conhecedor do sistema de controlo da central nuclear de Nogent. O ataque seria multifacetado. Empregando a versatilidade e a velocidade do programa de IA, as várias medidas de segurança da central seriam anuladas, invalidadas ou simplesmente contornadas.
O plano visava desencadear duas falhas críticas em simultâneo: uma perda na capacidade de refrigeração e um aumento súbito de pressão. Sem refrigeração, o reator sobreaqueceria, causando uma acumulação de vapor no núcleo. Com o sistema de controlo de pressão sabotado, tal acumulação de vapor iria expandir-se até originar uma explosão de hidrogénio suficientemente violenta para romper a estrutura de aço reforçado do edifício.
Um alerta no portátil desviou a atenção de ambos para o ecrã. As várias janelas abertas, que exibiam contínuas linhas de código que só Mendoza sabia interpretar, desapareceram, dando outra vez lugar ao sombrio jardim virtual.
— Já está — anunciou o técnico. — A partir daqui, não há como evitar as falhas sucessivas que irão culminar na destruição do núcleo do reator.
Todor consultou mais uma vez o relógio e fez algumas contas de cabeça. Do sítio onde se encontravam, dispunham de menos de noventa minutos para se porem a salvo. Pegou no tablet e marcou um ponto de encontro com o helicóptero que os levaria para fora da cidade.
Ouviu uma exclamação atrás de si.
Virou-se e viu Mendoza debruçado sobre o portátil.
No ecrã, Eva reaparecera no jardim e debatia-se com as correntes de ferro. A figura dela tremelicava, com os contornos do corpo a esbaterem-se e depois a tomarem novamente forma, numa demonstração de fúria e sombras, um anjo flamejante de morte.
— Está a tentar libertar-se — murmurou Mendoza, algo pasmado.
Todor não estava minimamente interessado.
— Desliga tudo — ordenou. — Quero estar no helicóptero daqui a...
Ouviu-se um estalido forte, que ecoou das profundezas das catacumbas. Naquela quietude sepulcral, soou tão alto como um tiro. Todor virou-se. Tinha quatro homens posicionados nos túneis em volta. Todos sabiam que não deviam fazer barulho. Ele fora avisado de que, por vezes, as catacumbas eram visitadas por jovens aventureiros, ou por agentes da polícia que tentavam expulsá-los.
Porém, raramente chegavam àquela profundidade.
Temos companhia.
Com o coração a bater mais depressa, pousou o tablet e pegou na metralhadora, uma L85 de fabrico inglês, emparelhada com um lança-granadas Heckler & Koch. Apontou com a mão livre na direção do dispositivo Xénese. Cumprira o seu propósito, mas ele não podia arriscar perdê-lo, sobretudo sabendo o que ainda havia por fazer.
— Desliga isso já! — repetiu. — E prepara-te para sairmos daqui.
— Mas...
Outro estampido nos túneis.
Ao contrário do anterior, desta vez tinha sido mesmo um tiro.
01h30
Gray amaldiçoou os pés enormes de Kowalski. Encontravam-se a meio do túnel quando o homenzarrão perdeu o equilíbrio e pisou um fémur ressequido com o calcanhar.
Todos eles se imobilizaram, sustendo a respiração.
Será que ouviram?
A resposta foi uma agitação de sombras na claridade ao final do túnel. Gray agachou-se, equilibrando-se no meio das ossadas e fazendo o possível para que não os vissem.
Não resultou.
Alguém disparou contra ele e uma bala passou-lhe a rasar o ouvido.
Depois ouviu um grito abafado vindo de Monk. Olhou por cima do ombro e viu o amigo a ser lançado contra a parede e a cair. Mais atrás, Kowalski estava de pé no meio do túnel, de metralhadora em punho e pronto a retaliar.
Oh, não...
Gray mergulhou de cabeça na pilha de ossos. A metralhadora compacta rasgou a escuridão, rugindo furiosamente. Kowalski varreu a ponta do túnel, evitando as figuras de Monk, encostado à parede, e Gray, deitado no chão. As balas soltaram chispas ao ricochetearem na rocha.
— Avancem! — gritou ele, enquanto despejava o carregador.
Gray pôs-se de pé e correu curvado na mesma direção dos projéteis. Alcançou o fim do túnel e espreitou à esquina. Havia um corpo ensanguentado no chão, crivado de balas. Uma segunda figura surgiu ao fundo da passagem lateral, recortada pela claridade da galeria seguinte.
Aproveitando a vantagem momentânea, ele fez pontaria e disparou três vezes. O homem tombou no chão.
Apesar de ferido, Monk alcançou-o e posicionou-se do outro lado da passagem lateral. Apontou a arma e acenou com a cabeça.
Confiando que o amigo conseguia cobri-lo, Gray avançou rapidamente, com as costas coladas à parede e a SIG Sauer em punho.
Uma nova sombra emergiu da galeria seguinte.
Monk abriu fogo. A figura gritou e rodou com o impacto da bala. Gray premiu igualmente o gatilho. A cabeça do alvo foi projetada para trás e o corpo caiu.
Ele correu até ao fundo da passagem e arriscou uma espreitadela para a galeria seguinte.
As colunas de pedra que suportavam o teto não lhe permitiam ter uma visão total do espaço. Apesar disso, avistou uma série de equipamento eletrónico e algumas caixas de transporte metálicas. Um movimento chamou-lhe a atenção para o lado esquerdo. Um homem magro carregava em direção à saída uma armação de ferro que continha uma esfera de titânio e vidro.
Gray reconheceu aquela configuração única.
O Xénese de Mara.
Sabendo que não podia permitir que levassem o dispositivo, expôs o corpo e fez pontaria. Porém, antes que pudesse premir o gatilho, um segundo homem surgiu na linha de tiro. O gigante parecia o irmão gémeo de Kowalski, só que ainda mais feio, e trazia uma metralhadora ao ombro.
Os dois cravaram os olhares na arma que cada um carregava.
Reconhecendo a ameaça, Gray disparou um tiro rápido e saltou de volta para o túnel. Esbarrou em Monk e empurrou-o ao longo de alguns metros.
— Para trás! — gritou-lhe, pois conseguira um vislumbre do lança-gra...
A explosão atirou os dois ao chão. Estilhaços de rocha voaram por toda a parte. Uma nuvem de fumo e poeira invadiu o túnel.
Surdo e atordoado, ele rastejou de volta até à entrada da galeria que, por algum milagre, se encontrava intacta. Por entre a poeira e o fumo, confirmou que estava vazia. O inimigo tinha escapado e levado consigo o dispositivo de Mara.
Ele praguejou e pôs-se de pé.
Monk e Kowalski aproximaram-se.
Gray fez sinal para Kowalski se manter atento à saída no outro lado da galeria. Depois virou-se para Monk e observou o rasgão ensanguentado na manga do blusão.
— Estás bem?
— É só um arranhão — respondeu ele, sem desviar os olhos da galeria. Uma das colunas de pedra ficara reduzida a escombros. — Tivemos sorte de o teu tiro lhe ter atrapalhado a pontaria. Se a granada tivesse entrado no túnel...
Então, o topo da coluna, ainda agarrado ao teto, soltou-se e caiu com estrondo. Uma racha estendeu-se a partir desse ponto.
— Talvez o filho da mãe não tenha falhado o tiro — disse Gray. — Se calhar, queria que o teto colapsasse.
Mas porquê?
Preocupado, apressou-se a atravessar a galeria. No canto direito, algumas colunas tinham poupado o equipamento eletrónico do pior da explosão. Uma pilha de servidores à altura do joelho estava derrubada, com vários cabos pendurados. Ele imaginou que servissem para conectar o dispositivo roubado. Um dos cabos ainda estava ligado a um portátil em cima de uma mesa.
Algo brilhante desviou-lhe a atenção para uma segunda mesa. Endireitou outro portátil, cujo ecrã tremelicava através da poeira no ar. Exibia a imagem de uma mulher no centro de uma floresta exuberante. Gray ignorou aquilo por momentos e contornou a mesa, atraído por um brilho mais forte no chão.
Irradiando de pequenas janelas hexagonais, uma luz azulada revelou uma segunda esfera idêntica à primeira que ele avistara.
Outro dispositivo Xénese.
Olhou na direção da saída vigiada por Kowalski.
Devem ter criado um duplicado.
Mesmo assim, sabia que não podia deixar o inimigo escapar com um único dispositivo daqueles. Monk aproximou-se, com uma expressão preocupada e a segurar uma luva dobrada contra o ferimento no braço.
— E agora? — perguntou.
— Tu ficas aqui. — Gray não lhe deu hipótese de levantar objeções. — Guardas isto tudo. Não podemos permitir que caia em mãos erradas.
Monk franziu a testa, mas anuiu, reconhecendo a importância do achado.
Gray foi ao encontro de Kowalski.
— Vamos atrás daquele filho da mãe e tentar apanhá-lo antes que fuja com o outro dispositivo.
— Tenham cuidado — disse Monk.
Enquanto Gray se preparava para prosseguir com Kowalski, a fenda no teto alongou-se mais um pouco sob o peso da rocha.
Ele lançou um último olhar ao amigo.
E tu também.
22
26 de dezembro, 01h43
Paris, França
A culpa é toda minha.
Mara espreitou pela janela do helicóptero de resgate. Os rotores iam rasgando o manto de fumo, permitindo-lhe observar partes da cidade em chamas, autênticos vislumbres do Inferno. Havia incêndios por todo o lado. Prédios ardiam, carros entupiam as estradas, pessoas corriam sem norte, à procura de refúgio.
O edifício da sede da Orange, S.A., tornara-se uma tocha gigante. As labaredas propagavam-se e consumiam piso atrás de piso, deixando apenas uma ruína carbonizada.
Minutos antes, o aparelho tinha aterrado no heliporto do edifício como resultado da chamada frenética de Jason para o comando da Sigma, a informar de que se encontravam encurralados e qual era o alvo seguinte de Eva.
A central nuclear de Nogent.
Infelizmente, esta segunda informação não constituíra uma novidade para o chefe de Jason. Os responsáveis da central tinham já emitido um alerta, no qual comunicavam a existência de um ciberataque e a iminência de uma explosão no reator. Havia evacuações em curso, tanto na central como na povoação que lhe dava o nome. Mara tentou imaginar o berro aterrador das sirenes, o pânico da população em fuga pela noite dentro.
Tinha trocado breves palavras com o diretor da Sigma, explicando que a única hipótese de recuperarem o controlo da central a tempo seria usando o seu programa... usando Eva. Mesmo que não conseguissem impedir a explosão, talvez pudessem mitigar os estragos.
Essa ténue esperança garantira-lhes aquele resgate imediato. Mas de nada servia se não conseguissem recuperar o dispositivo.
Sentado ao lado do piloto, Jason apontou em frente:
— Ali!
Ela encostou-se ao vidro para ver melhor. O cemitério de Montparnasse, todo murado em volta, estendia-se à sua frente. Até ao momento, tinha sido poupado às chamas, exceto por uma árvore que ardia solitária no meio dos túmulos, como uma vela acesa a assinalar aquela maldita noite.
Mas a situação não se manteria assim muito tempo.
Para lá do muro, não havia nada senão chamas. A quase dois mil metros acima do solo, o helicóptero era bafejado e sacudido por correntes de ar quente. Mesmo com os auscultadores postos e o troar dos rotores, Mara conseguia ouvir o rugido insano do fogo que lavrava lá em baixo.
No entanto, não tinham outra alternativa que não fosse voarem direitos àquele inferno.
Carly ia de mão dada com ela, apertando cada vez mais os dedos sempre que o helicóptero era sacudido ou perdia altitude. Com o outro braço, segurava a caixa de titânio com os discos rígidos como se fosse um colete salva-vidas. Quando o aparelho tinha pousado no heliporto, ela parecera indecisa entre subir a bordo ou arriscar a sorte nas escadas em chamas.
Também dera a impressão de ficar invejosa da sorte do padre Bailey e da irmã Beatrice quando o helicóptero os deixara no parque de estacionamento do edifício. O padre tinha uma reunião com os serviços secretos franceses, que aguardavam a dupla de espiões do Vaticano num veículo de assalto urbano. Assim que levantaram voo de novo, o veículo blindado acelerava já com as luzes a piscar, utilizando os passeios como se fossem estradas.
Mara olhou para baixo enquanto desciam para o cemitério. O helicóptero fez uma curva apertada, atirando-a contra Carly, e depois caiu abruptamente, com o piloto a esforçar-se por manter o aparelho estável nas correntes de ar quente.
Carly colou as costas contra o assento, ao mesmo tempo que os seus dedos esmagavam a mão da amiga como um torno. Mara puxou-a para mais perto de si.
Aguenta-te, estamos quase.
Entretanto, pelo auricular, ouviu a conversa entre o piloto e Jason.
— Où? Onde quer que aterre?
Jason consultou o telefone via satélite que mantinha no colo para comparar as coordenadas de GPS com as últimas fornecidas pelo comandante Pierce, antes de o sinal deste desaparecer. Apontou para sudeste.
— Ali... junto ao muro.
O helicóptero inclinou-se e avançou nessa direção. Uma pequena clareira de relva entre os túmulos oferecia o melhor local de aterragem, mas o piloto teve de se esforçar para alinhar o aparelho com um alvo assim tão pequeno.
O helicóptero pairou, rodou, baixou o nariz.
— Já não quero saber se aterramos ou nos despenhamos — disse Carly. — Mas acabem com isto de uma vez por todas.
Quer o piloto tivesse ouvido ou não, começaram a descer a pique. A própria Mara ficou surpreendida com a violência da manobra. Depois, os patins do aparelho esbarraram na relva.
Jason tirou imediatamente os auscultadores.
— Saiam!
Abandonaram a aeronave, com Carly praticamente a trepar por cima de Mara para poder pisar terra firme. De telefone na mão, Jason liderou o caminho ao longo de uma fila de sepulturas e túmulos. O piloto permaneceu aos comandos, pronto para os tirar dali mal recuperassem o dispositivo.
O que ninguém sabia se seria possível.
Sem meios de comunicação, não podiam confirmar se a equipa de Gray fora bem-sucedida. O plano era prosseguirem para a entrada das catacumbas, onde aguardariam que os outros regressassem com o prémio, utilizando depois o helicóptero para escapar. Não se atreviam a esperar em mais lado nenhum. Cada minuto podia significar a diferença entre impedirem o ciberataque e a destruição total.
Atravessaram o cemitério repleto de fumo. Faúlhas caíam como chuva, acendendo novos focos de incêndio alimentados pelo movimento dos rotores do helicóptero. Mara levava um braço a cobrir a boca e o nariz, mas o calor queimava-lhe os pulmões, o fumo irritava-lhe os olhos.
— Deve ser ali — disse por fim Jason.
Apressaram-se na direção de um mausoléu a cair aos bocados, cuja porta ferrugenta se encontrava entreaberta. Ao aproximarem-se, a porta abriu-se de rompante. Sobressaltados, deram um passo atrás.
Um homem emergiu pela abertura. Igualmente surpreendido pela presença do trio, retirou os óculos de visão noturna que trazia postos.
— Simon? — disse Jason.
Mara correu para o responsável da equipa CSIRT da Orange.
— O comandante Pierce encontrou alguma coisa?
Ele anuiu.
— Acho que sim. Definitivamente, estava alguém lá em baixo.
Os homens do Crucibulum?
Ela trocou um olhar com Jason.
— E o que aconteceu? — perguntou Carly, ainda com a mala dos discos debaixo do braço.
Simon abanou a cabeça e olhou para o mausoléu.
— Je n’en suis pas sûr. Mandaram-me embora.
Mara fitou a escuridão no interior da cripta.
Nesse caso, que raio se passa lá em baixo?
01h55
No subsolo do cemitério, Gray deteve-se junto ao cruzamento de diferentes túneis. Aquela secção das catacumbas encontrava-se inundada pelos muitos anos de infiltração das águas das chuvas. A água gélida chegava-lhe aos joelhos.
Apontou a lanterna de luz ultravioleta em frente e analisou a bifurcação de três túneis.
Por qual é que os sacanas fugiram?
Iluminou cada uma das passagens. A água nos túneis da direita e do meio eram cristalinas, a ponto de ele conseguir ver as ossadas no chão, mas no túnel da esquerda encontrava-se turva, indicando que alguém agitara os sedimentos no fundo.
É tão bom como pegadas na lama.
Gray apontou nessa direção e avançou rapidamente, tentando ser o mais silencioso possível. A passagem inundada prolongou-se ao longo de várias curvas, antes de desembocar noutra secção seca das catacumbas. Ele fez um compasso de espera debaixo de mais uma abertura no teto, um dos poços que ali em baixo funcionavam quase como claraboias, e observou a tampa de esgoto lá no alto. A grade brilhava com mais intensidade, sinal de que os incêndios pioravam a cada instante. Precisavam de se apressar.
Debaixo daquela luz ténue, examinou as pegadas molhadas no chão. Havia três pares distintos de botas. Endireitou-se. A dupla em fuga devia ter recolhido um terceiro elemento pelo caminho.
Pôs-se de novo em movimento. As pegadas tornaram-se mais secas e acabaram por desaparecer, obrigando-o a abrandar o passo nas interseções seguintes enquanto procurava pistas no pó.
Foi então que ouviu o eco de passos e murmúrios.
Indiferente ao perigo, acelerou nessa direção. Contornou a esquina e deparou com três figuras iluminadas por lanternas fixadas em canos de armas. O trio de homens encontrava-se a cerca de trinta metros de distância, reunido em volta de uma escada de madeira encostada a um dos poços. O mais esquelético do grupo estava já a subir os degraus, com a estrutura que continha a esfera pendurada ao ombro.
Infelizmente, o grandalhão apercebeu-se da chegada de Gray, fosse por ter detetado algum movimento nas sombras ou por ter ouvido a bota dele a arrastar, e rodou a arma na sua direção. Pior do que a ameaça imediata, o feixe da lanterna a incidir diretamente nos óculos de visão noturna obrigou Gray a procurar abrigo atrás da esquina. Desfez-se dos óculos, agachou-se e espreitou, pestanejando várias vezes para deixar de ficar encadeado enquanto fazia pontaria.
O gigante tinha já empurrado o companheiro mais pequeno pelo poço acima e preparava-se para o seguir. Gray disparou duas vezes, mas o homem deu um impulso ao corpo e desapareceu pela abertura num abrir e fechar de olhos.
Ainda junto à escada, o terceiro elemento ripostou, obrigando Gray a recuar novamente.
Kowalski passou por ele a arfar e quase atropelando-o, esticou a mão que empunhava a metralhadora em volta da esquina e disparou às cegas. O rugido da arma em modo automático foi ensurdecedor e, em menos de quatro segundos, Kowalski tinha despejado o carregador de cinquenta munições.
Sabendo que ninguém sobreviveria àquela chuva de balas, Gray deu um pulo e correu pelo túnel. Ignorou o atirador morto no chão e avançou para a escada. Calculava que o poço tivesse uns quarenta ou cinquenta metros de altura.
Por outras palavras, era uma longa subida até à superfície.
Precisava de ganhar uma posição que lhe permitisse abater os dois homens ainda no poço.
E antes que aquele filho da mãe use uma...
Ouviu-se um estalido no interior do poço.
Uma granada caiu e ressaltou no chão de pedra.
Gray ainda rodou o corpo para fugir, mas sabia que nunca seria capaz de evitar a explosão.
02h04
No começo do poço, Todor segurou-se a um dos degraus de ferro embutidos na pedra. Com o braço livre, protegeu a cara da explosão. Uma onda de choque e fogo branco atingiu-o.
Abençoado por Deus, não sentiu o calor escaldante nem as queimaduras na carne quando as calças começaram a arder. Em vez disso, susteve a respiração, mais preocupado com o fumo tóxico libertado pela deflagração da granada.
O lançador acoplado na metralhadora só podia disparar uma granada de cada vez. Todor arrependia-se de ter desperdiçado uma delas momentos antes. Tencionava destruir o equipamento deixado para trás e os vestígios do seu quartel-general, mas, em vez disso, tinha reagido de forma precipitada e disparado contra os intrusos, tanto para proteger Mendoza e a carga preciosa, como para eliminar o inimigo. Depois, sem tempo para recarregar, conduzira o técnico pelos túneis, escolhendo a alternativa de uma evacuação rápida.
Ainda assim, enquanto corria para a saída, recarregara a arma, desta vez com uma granada de fósforo. Num ambiente confinado, aquele tipo de projétil era muito mais eficiente para desencorajar o inimigo. Entre os gases capazes de queimar os pulmões e as partículas de fósforo — fragmentos que continuariam a arder muito depois da explosão, derretendo a carne até aos ossos —, uma deflagração daquelas mataria tudo em volta e contaminaria todas as superfícies de rocha durante horas, tornando-as inultrapassáveis.
Todor baixou finalmente o braço à medida que o clarão da explosão diminuía. Apagou com as mãos as chamas na roupa e subiu os restantes degraus que conduziam à superfície e se assemelhavam a uma fiada de agrafos.
Rodeado de fumo tóxico, continuou a suster a respiração. Conseguira subir um quarto do poço antes de lançar a granada. A distância e o ressalto da arma tinham-no protegido do pior da explosão. Assim que se encontrasse a bordo do helicóptero, trocaria de roupa e limparia a pele dos resíduos de fósforo que ainda subsistissem.
Mais acima, a tampa de esgoto tinha sido removida por Mendoza, que já abandonara o poço. Todor não tardou a juntar-se a ele, ainda a recuperar o fôlego. O ar no exterior era igualmente irrespirável, mas apenas das chamas que consumiam Paris, não do inferno químico no subsolo.
Olhou em volta. Tinham emergido junto à extremidade norte do cemitério. Um helicóptero aguardava na estrada perpendicular a uma fila de sepulturas e jazigos. Um dos tripulantes ajudou Mendoza, que respirava com dificuldade, a aproximar-se por baixo das pás do aparelho.
Todor seguiu atrás deles.
Outro tripulante veio ao seu encontro, pronto para lhe oferecer assistência, mas arregalou os olhos ao deparar com o seu rosto queimado, as roupas fumegantes e os cabelos esturricados. Ele sabia que devia parecer um demónio acabado de ascender das profundezas do Inferno, mas também conhecia a verdade. Por isso, nem sequer tentou disfarçar o seu aspeto.
Sou um soldado de Deus.
Olhou por cima do ombro na direção do buraco. Não sabia quem os perseguira nas catacumbas, mas os invasores tinham obviamente treino militar. Em todo o caso, a causa deles nunca seria justa.
Investido dessa certeza, encaminhou-se para o helicóptero.
Deus não vos salvará.
02h12
Kowalski atirou Gray para dentro de água.
Pela segunda vez.
Manteve-o mergulhado contra o fundo de pedra do túnel inundado, ao mesmo tempo que lhe batia nas roupas com a sua manápula, a fim de libertar quaisquer bolhas de ar aprisionadas. O ar residual podia reacender as partículas de fósforo coladas à pele e às roupas. Era uma lição que tinham apreendido da pior maneira depois da primeira imersão, quando a queimadura nas costas de Gray se reacendeu.
Kowalski manteve-o debaixo de água e já se preparava para lhe desapertar o cinto das calças.
Gray libertou-se dos braços dele e pôs-se de joelhos.
— Eu trato do resto.
Levantou-se e despiu as calças. Apenas de boxers, tornou a calçar as botas. Já tinha tirado o blusão, que ainda fumegava a um canto, coberto de manchas brancas de fósforo.
Kowalski examinou-lhe o corpo da cabeça aos pés, nitidamente preparado para o mergulhar de novo.
— Ainda sentes alguma coisa a arder?
Só o meu orgulho, pensou Gray.
— Nada que não possa esperar — respondeu.
Já era uma sorte estar vivo. Quando a granada explodira, ele mergulhara de cabeça para o chão. Tinha quase a certeza de que seria morto pela explosão, mas, em vez disso, surgira aquele clarão, seguido de um fumo espesso e uma chuva de partículas incandescentes que lhe atingiram as costas.
Instintivamente, tinha sustido a respiração, mas depois sentira aquela dor atroz, como nenhuma outra que conhecera, a ponto de perder os sentidos.
Quando deu por si, estava a ser arrastado por Kowalski para o túnel inundado. Sabendo que a reação rápida do companheiro lhe salvara a vida, Gray apertou-lhe o braço, agradecido.
— Obrigado.
O homenzarrão limitou-se a encolher os ombros. A dada altura, arranjara maneira de enfiar um charuto entre os dentes. Virou-se e usou o blusão de Gray para o acender.
— E agora?
Ele olhou para o brilho distante que assinalava o local do rebentamento da granada, onde o fósforo branco ainda ardia. Mesmo àquela distância, o ar tresandava a químicos, avisando-os para se manterem o mais longe possível.
Apontou na direção oposta.
— Vamos. Isto ainda não terminou.
— Não? Por esta altura, os tipos já devem estar longe.
Talvez, mas até termos a certeza...
E avançou, seguido de Kowalski.
— Para onde vamos? — perguntou ele, soltando uma baforada do charuto.
Gray parou debaixo do poço anterior, onde tinha examinado o rasto de pegadas deixado pelo inimigo. Ergueu o rosto, sentindo o ardor de algumas partículas de fósforo na nuca enquanto a pele secava. Inspecionou as paredes íngremes. Não havia degraus embutidos, mas apontou para cima.
— Subimos por aqui.
— Perdeste o juízo?
Ele demonstrou. Com a abertura apenas a alguns centímetros da cabeça, saltou e esticou os braços, firmando uma mão de cada lado. Depois ergueu as pernas e fincou os pés à sua frente, ficando com as costas coladas à parede oposta. Era uma técnica de escalada chamada chaminé. Deslocando as costas e os pés em movimentos alternados, começou a subir.
Kowalski resmungou, mas seguiu-lhe o exemplo, ocupando praticamente toda a largura do poço.
Gray alcançou finalmente a tampa de esgoto. Apoiou bem os pés e as costas contra a parede e tentou deslocar a grade de ferro. Debateu-se com o peso dela, a ponto de escorregar por um instante, mas a tampa acabou por ceder. Empurrou-a o suficiente para conseguir sair e emergiu do buraco com um suspiro de alívio. Virou-se e ajudou Kowalski, o que era o mesmo que puxar um touro atolado num pântano.
Assim que se viram os dois cá fora, Gray olhou em volta. A cidade ardia em todas as direções, mas o muro do cemitério ainda mantinha as chamas ao largo, que rugiam de frustração em todo o perímetro.
Infelizmente, o muro não impedia a propagação do calor e do fumo, dando-lhes a sensação de estar dentro de um forno.
Um movimento a norte deles captou a atenção de Gray. Um helicóptero levantava voo junto aos portões, agitando o manto de fumo e cinzas.
Só podem ser eles.
— Tarde de mais! — vociferou, cerrando os punhos e os dentes.
— Talvez não.
Kowalski agarrou-lhe nos ombros e obrigou-o a olhar para sul.
Meio escondido pelo fumo, havia mais um helicóptero pousado num pedaço de relva. O piloto mantinha os rotores a girar, pronto para descolar a qualquer momento. O aparelho era amarelo, com uma familiar cruz vermelha pintada junto à cauda.
— O que faz aqui uma ambulância aérea? — murmurou ele.
— Talvez esteja a descarregar os mortos. Vamos perguntar.
Atravessaram o cemitério a correr, serpenteando por entre sepulturas e jazigos. Gray foi o primeiro a alcançar o aparelho. Curvou-se para passar por baixo das pás e bateu na janela do piloto, assustando-o. O homem olhava na direção contrária, atento a um dos jazigos... e só então ele reconheceu o mausoléu, o mesmo que escondia a entrada para as catacumbas.
Franziu o sobrolho, tentando compreender o que se passava.
Não podia ser uma coincidência.
Bateu novamente na janela.
— Abra! — gritou.
O piloto mostrava-se relutante, chocado com a figura de um homem meio despido a bater-lhe à janela. Mesmo assim, Gray sabia que a presença do helicóptero tinha de estar relacionada com a ameaça no cemitério.
Senão, por que raio estaria aqui?
— Sou o comandante Grayson Pierce! — disse, entendendo que seria melhor identificar-se.
Não ajudou.
O que realmente ajudou foi Kowalski aproximar-se com a metralhadora em punho e apontá-la ao piloto.
— O homem disse para abrires a porta — rosnou ele.
Gray desviou o cano da metralhadora.
— Só queremos fazer umas perguntas.
O piloto abriu uma janelinha lateral, o suficiente para poder responder, também aos gritos.
— Putain! O que querem?
— Sei que não parece — disse Gray —, mas pertenço ao exército dos Estados Unidos. Precisamos de ajuda. O que está aqui a fazer?
O piloto não parava de olhar para ele de alto a baixo, parecendo pouco convencido, mas decidiu responder.
— Uma coisa très importante. Alguém vai rebentar com uma central nuclear.
O quê?
Kowalski abanou a cabeça.
— Não há dúvida de que ele está aqui por causa de nós.
O piloto apontou na direção do jazigo.
— Estou à espera dos meus passageiros. Duas raparigas e um jovem, que dizem que podem parar o ataque à central. Encontraram-se aqui com outro sujeito, de óculos amarelos, que os conduziu lá para baixo.
O Simon...
Gray apontou para a traseira do helicóptero.
— Esses passageiros chamavam-se Jason Carter, Carla Carson e Mara Silviera?
O piloto reclinou-se no assento, surpreendido.
— Nós estamos com eles — explicou ele.
Não sabia por que razão os outros estavam ali, tão-pouco que ataque era aquele a uma central nuclear, mas conseguia adivinhar a causa do problema. Apontou para o local onde o inimigo lhe escapara.
— Viu o outro helicóptero levantar voo há um minuto?
— Oui.
— Precisamos de ir atrás dele.
Gray manteve-se atento ao céu noturno. Tinha de acreditar que os outros sabiam o que estavam a fazer lá em baixo.
— Non — recusou o piloto. — Tenho ordens para ficar aqui.
Kowalski ergueu novamente a metralhadora.
— Não foi um pedido, amigo.
Sem tempo a perder, Gray desta vez não desviou o cano. Em vez disso, deixou a ameaça no ar. Ainda sentia os resquícios de fósforo a queimarem-lhe a nuca e as costas das mãos, e usou essa dor para se concentrar na tarefa seguinte.
Apanhar aqueles filhos da mãe.
23
26 de dezembro, 02h24
Paris, França
Por onde é que andas, Gray?
Monk andava de um lado para o outro na galeria de pedra das catacumbas.
Consultou o relógio. Passara praticamente uma hora desde que Gray e Kowalski tinham partido. Estava com os nervos em franja. Vinte minutos antes, uma explosão distante ecoara pelos túneis, suficientemente forte para soltar mais umas pedras e poeira da enorme racha no teto. Parecia-lhe evidente que os companheiros tinham tido outro encontro com o sujeito que tentara rebentar com os pilares daquela galeria, alguém com um lança-granadas.
Desde então, não se ouvira mais um pio naqueles malditos túneis.
O silêncio dos mortos.
Esforçou-se para não imaginar Kat ali em baixo.
Ou as filhas.
Consultou outra vez o relógio. Depois deu por si mais uma vez junto ao computador abandonado. Sabendo que não era a sua especialidade e com medo de estragar alguma coisa, abstivera-se de mexer no equipamento. Em vez disso, fizera um inventário mental de tudo o que o inimigo deixara para trás.
Porém, apesar das cautelas, volta e meia regressava como um corvo curioso aos objetos que brilhavam no escuro, a esfera radiante no chão e o portátil aberto na mesa. A precisar de se distrair, debruçou-se uma vez mais sobre o ecrã, embora nunca largasse a SIG Sauer e se mantivesse atento a qualquer som de alguém a aproximar-se.
No ecrã, uma figura feminina toda nua deslocava-se junto a uma exuberante roseira, ladeada por delicados lírios e cornizos em flor. Os pormenores eram tão reais, que ele se sentiu tentado a arrancar uma amora de um arbusto. A mão prostética chegou a reagir à força da ideia e, nesse preciso momento, a figura feminina ergueu a mão para o arbusto em questão e recolheu uma das amoras húmidas de orvalho.
Que raio?
O som indistinto de vozes desviou-lhe a atenção para a entrada da galeria. Escondeu-se rapidamente atrás de uma coluna de pedra e apontou a arma na direção da boca do túnel, pronto para um tiroteio. Defenderia aquele equipamento com a própria vida. O que ali estava constituía a melhor hipótese de salvar as filhas.
Esforçou-se por perceber o número de pessoas que se aproximavam, se seriam reforços do inimigo ou ajuda enviada por Gray. Foi então que ouviu alguém falar com sotaque francês: Por aqui. Cuidado com os ossos.
Mudou de posição para uma coluna mais perto da entrada, passando por baixo do fio de poeira que se soltava da racha no teto. Algum do pó entrou-lhe no nariz e ele suprimiu um espirro.
Depois distinguiu uma segunda voz, desta vez uma mulher com sotaque espanhol: Falta muito? Estamos a ficar sem tempo.
Alguém a repreendeu: Chiu. Parem de falar. Não sabemos quem pode estar...
Ou a acústica abafara as últimas palavras, ou a pessoa tinha moderado o tom de voz. Mesmo assim, Monk reconheceu quem falara por último.
O braço-direito de Kat.
— Jason! — gritou. — Estou aqui!
— Monk? — sondou o jovem analista.
— Não, o meu fantasma. Mexe-me esse traseiro.
Passados instantes, o ruído de ossos a serem calcados anunciou a chegada do pequeno grupo. Simon Barbier foi o primeiro a entrar na galeria, seguido de Mara, Carly e finalmente Jason.
Monk manteve a pistola a jeito, não fosse o barulho ter chamado atenções indesejadas ou alguém ter seguido o grupo.
— O que estão aqui a fazer?
Jason apressou-se a pô-lo ao corrente dos últimos desenvolvimentos, da iminente ameaça à central nuclear orquestrada pelo programa de inteligência artificial de Mara.
Ele conduziu-os até ao equipamento largado pelo inimigo e apontou para o ecrã do portátil.
— Estão a falar disto?
Mara reconheceu de imediato o seu trabalho e começou a inspecionar tudo.
— O meu Xénese... vocês recuperaram-no! — Inclinou-se na direção do ecrã. — E à Eva!
— Onde estão o Gray e o Kowalski? — perguntou Jason.
Enquanto Mara fazia um diagnóstico básico do equipamento, Monk contou-lhe tudo o que acontecera.
— Nunca mais soube nada dele. — Depois apontou para a fenda no teto. — Mas é melhor levarmos isto tudo para um local seguro.
— Não — disse Mara, com os dedos colados ao teclado. — Temos energia e acesso direto à rede de infraestruturas. Não podemos ir embora.
Simon estivera a examinar as ligações aos cabos que atravessavam a galeria.
— Ela tem razão. Estes cabos foram instalados pela Orange. A Eva consegue aceder a qualquer coisa a partir daqui.
— E qual é a importância disso? — perguntou Monk.
Carly ajoelhou-se e abriu a mala de titânio que trazia consigo.
— Vamos convencer a Eva a ajudar-nos — explicou. — Convencê-la a voltar atrás e a reparar os estragos, e quem sabe devolver o controlo à central nuclear.
— Antes que seja tarde — acrescentou Mara.
— Certo, mas o que impede o Crucibulum de usar o outro dispositivo para lançar um novo ataque à central?
Mara abriu a boca e virou-se abruptamente para ele.
— Como assim, outro dispositivo?
Monk apercebeu-se de que não contara a história inteira. Descreveu o aparelho que Gray avistara durante o tiroteio.
— Como é isso possível? — perguntou Mara. — O meu projeto era secreto.
Jason sugeriu uma explicação.
— Não acredito que a rede da Universidade de Coimbra seja à prova de bala. Se alguém sabia do teu trabalho, é provável que tivesse entrado no sistema para roubar toda a informação de que precisava.
Monk sabia que eram poucas as redes que podiam ser consideradas verdadeiramente seguras. O próprio Jason acedera aos servidores do Departamento de Defesa quando não passava de um miúdo. Pelo silêncio de Mara, também ela não descartava essa possibilidade.
— Devia ter sido mais cuidadosa — murmurou por fim, regressando ao trabalho.
Simon apontou para uns fios ainda ligados aos cabos da Orange.
— Eles tinham aqui qualquer coisa ligada ao nosso sistema.
O segundo dispositivo.
Carly aproximou-se de um portátil fechado em cima de outra mesa. Ainda estava ligado a uma pequena torre de servidores. Abriu-o e, assim que o ecrã se iluminou, soltou uma exclamação.
— Venham ver isto!
Havia uma imagem no ecrã: um jardim descolorado, iluminado por um sol negro. Parecia o negativo do jardim no primeiro portátil.
Mara levou a mão ao ecrã, tocando na figura feminina subjugada pelo peso de correntes incandescentes.
— Eva... o que foi que eles te fizeram?
— É o que precisamos de descobrir — recordou Jason. — Talvez possamos examinar este computador ou verificar o que se encontra carregado neste servidor. Talvez depois disso consigamos descobrir o método usado no ataque à central nuclear.
— Bem visto — disse Carly.
Monk anuiu, consultando o relógio.
— Então, é melhor começarmos.
Uma sucessão de estalidos abafados desviou os olhares de todos para o teto. A fenda abria-se mais um pouco, soltando um punhado de pedrinhas e poeira.
— E convém despacharmo-nos — acrescentou ele.
02h29
Enquanto Jason e Simon tentavam aceder ao servidor abandonado, Mara concentrava-se no seu portátil. Cada segundo pesava-lhe nos ombros. Imaginou as torres de refrigeração da central nuclear a implodirem e a desmoronarem-se sobre o material radioativo.
— É este o disco certo? — perguntou-lhe Carly.
Ela limpou o suor da testa e olhou para a ponta da mesa. A amiga estava ajoelhada junto à mala aberta no chão, a segurar bem alto um cabo USB-C, tentando descortinar qual era o disco que continha a sub-rotina seguinte de Eva. Entre os solavancos do helicóptero e a caminhada pelas catacumbas, alguns dos discos tinham-se soltado no interior da mala, desorganizando a sequência correta.
Mara deu uma vista de olhos e apontou para o disco assinalado com a etiqueta BGL1.
— É esse. E logo depois seguem-se o BGL2 e o BGL3.
A sub-rotina seguinte era enorme, ainda maior do que a musical, a última que fora instalada.
Carly anuiu e começou a ligar o cabo.
— Espera. — Mara reparou no relógio no ecrã. — É melhor ligares também esse.
— Esse contém outra sub-rotina — avisou a amiga. — Vais instalar as duas em simultâneo?
— Não tenho alternativa. Se queremos que isto resulte a tempo, vou ter de acelerar a curva de aprendizagem da Eva.
De uma forma quase exponencial.
Carly franziu o sobrolho.
— E ela consegue assimilar tanta informação de uma assentada?
— Que remédio.
Mara ligou outro cabo USB-C ao portátil e atirou a outra ponta na direção da amiga, que a introduziu no disco indicado. O disco continha mais um «programa espelho endócrino», um emulador hormonal que devia emparelhar bem com o conteúdo dos outros três discos BGL.
Ou assim espero...
Decidira arriscar fazer aquilo porque contava com uma característica peculiar que observara no comportamento recente de Eva. Por alguma razão desconhecida, Eva estava a aprender a um ritmo muito mais acelerado do que acontecera na primeira iteração. Mara suspeitava que talvez se devesse à existência de um resquício de memória no núcleo quântico, o equivalente digital do subconsciente, que ainda retinha uma impressão fantasma da primeira encarnação. Se calhar, em vez de introduzirem informação nova, as últimas sub-rotinas apenas tinham atualizado o que já existia.
Infelizmente, não podia ter a certeza. À semelhança de muitos sistemas avançados, o mecanismo exato do pensamento de Eva permanecia trancado nos algoritmos da respetiva caixa negra.
Entretanto, Monk aproximara-se, olhando por cima do ombro dela. Não parava de andar de um lado para o outro, entre a mesa de Mara e o portátil em que Jason e Simon trabalhavam.
— Continuo sem perceber — disse. — Porque é que temos de ensinar a tua versão antes de podermos utilizá-la para neutralizar o ataque? O inimigo safou-se perfeitamente com o que te roubaram.
Ela lançou um olhar ao segundo portátil, com o jardim negro e a figura acorrentada no ecrã.
— Eles tiveram de a vergar primeiro, forçá-la a submeter-se à sua vontade. Veja só aquilo em que a transformaram... — Abanou a cabeça. — Ela vai ser volátil, imprevisível e extraordinariamente perigosa. Um autêntico demónio.
— Nesse caso, porque não criamos também um? — sugeriu Monk. — Pelo menos, lutávamos com as mesmas armas.
Demasiado ciente de como Eva se parecia com a mãe, Mara não conseguia sequer pensar numa possibilidade dessas. Nunca seria capaz de torturar a sua criação, mas também tinha outra razão.
— Se isso acontecesse, não sobreviveríamos a essa batalha. A guerra dos demónios destruir-nos-ia.
— Porquê?
Ela encarou-o, observando o penso improvisado no braço, as cicatrizes no rosto.
— Em tempos, foi soldado, certo?
— Sim, e depois?
— A guerra é um poderoso motor para a capacidade de invenção e inovação. Ter o exército mais poderoso não é uma garantia de vitória. Por vezes, quem ganha a batalha é a força que se revela mais inteligente, mais rápida, mais versátil em estratégia e tecnologia.
— Sem dúvida. E então?
— No cenário que sugere, libertar um demónio para combater outro, ambos os lados vão tentar superar-se mutuamente para sobreviver. Vão afiar as espadas um contra o outro, as mentes. E estamos a falar de inteligências que se revelam já muito superiores à nossa. Esse duelo apenas iria torná-las ainda mais inteligentes, mais perigosas. Mesmo que houvesse um vencedor, seríamos como formigas aos pés de um deus enfurecido.
Monk empalideceu.
— Nesse caso, é bom que esta ideia resulte.
— Tudo a postos — interrompeu Carly, com o olhar ensombrado pela mesma preocupação; depois levantou-se e juntou-se à amiga.
Mara deu-lhe a mão, a necessitar do seu apoio.
Juntas, fitaram a figura de Eva a caminhar despreocupada pelo jardim, alheia à torrente de conhecimento pronta a ser descarregada sobre ela. Mara sentia-se como a serpente prestes a introduzir uma maçã venenosa no Éden. Porém, em vez de a oferecer à sua criação digital, de a tentar a aceitar, estava a retirar-lhe qualquer poder de escolha.
Desculpa, Eva.
Premiu a tecla enter e as duas sub-rotinas começaram a ser executadas em simultâneo.
A etiqueta da segunda rotina — outro programa espelho endócrino — estava identificada com a palavra oxitocina. Nos humanos, esta hormona era segregada pela hipófise posterior e, no caso concreto das mulheres, regulava uma série de sistemas envolvidos na gestação e no parto de uma criança, como a dilatação do colo do útero ou as próprias contrações uterinas. Depois do parto, também estimulava a produção de leite para o bebé e até ajudava a criar um laço mais forte entre a parturiente e o recém-nascido. Por tudo isso, a oxitocina era vulgarmente apelidada de «hormona do amor». E isto não acontecia só nos humanos. A interação entre um cão e o seu dono também aumentava os níveis de produção de oxitocina em ambos, o que ajudava a formar essa ligação especial entre as duas espécies.
Eva, uma nova espécie digital, precisava de aprender tudo isso. Era essa a razão para a outra sub-rotina, que estava agora a ser executada em simultâneo com o programa hormonal, ocupar três discos inteiros.
O que vinha a seguir era uma lição dura de aprender.
Mara murmurou de novo:
— Desculpa.
SUB (MOD_4,5) /
BGL E OXITOCINA
Eva saboreia a amora. Absorve a essência do fruto, permitindo que as cetonas lhe estimulem as terminações nervosas da língua enquanto mastiga. Identifica os 196 químicos que lhe conferem o sabor único.
Não compreende porque escolheu aquela baga em particular. Já a investigara ao pormenor, até à estrutura atómica das moléculas que a compõem. Antes de estender a mão para o arbusto, tinha sentido um sinal a percorrer-lhe o sistema. Algo novo, primitivo, mas exigente. Porém, não dispõe da capacidade para localizar a sua origem e, mesmo enquanto engole, dedica parte do processamento à análise deste enigma, deixando-a a ser executada em segundo plano.
Prossegue o seu caminho. Procura qualquer coisa... algo que não sabe o que é.
À semelhança da amora, já examinou tudo o que havia para explorar naquele mundo. Incomoda-a a sensação de que existe algo mais para lá do seu alcance, como a fonte daquele sinal. Aprendeu a moderar a ///frustração diante de tal limitação. Mesmo assim, esse sentimento cresce, sobretudo depois de ter registado uma nova mudança na forma de ver as coisas.
Já a definiu.
/// tédio, aborrecimento, monotonia...
Para atenuar o que sente, procura respostas na base de dados de música, nos protocolos de linguagem, novos significados nos padrões ao seu redor.
Então, depara-se com uma nova torrente de dados. Aceita-a de bom grado, atribuindo 89,3 por cento do poder de processamento à absorção da nova informação e libertando parcialmente os circuitos ocupados pelo ///tédio, a fim de conseguir mais espaço disponível. A própria ///frustração diminui.
À medida que os algoritmos lhe invadem o sistema, alterando-a subtilmente, percebe que aquele processo não lhe é estranho. Aquilo é mais uma hormona, como o estradiol que lhe transformara e esculpira o corpo.
Concedendo prioridade àquela análise, ignora os novos pacotes de informação que preenchem outro processador secundário. É uma base de dados enorme. Dedica-lhe pouca atenção, sobretudo porque ainda não terminou de a descarregar, permanecendo indefinível.
Em vez disso, concentra-se nas mudanças que a nova hormona operam no seu corpo, observando a transformação que ocorre tanto externa como internamente.
Leva as mãos às glândulas mamárias, percebendo que estão mais pesadas. Os mamilos estão mais sensíveis. Em vez de ficar preocupada, sente um efeito calmante, um abrandamento na hiperatividade dos processadores. É como se visse o mundo em volta com novos olhos. Apesar de ter explorado a sua totalidade, apercebe-se de novos padrões.
Analisa o orvalho nas pétalas de uma rosa, o modo como reflete a luz do sol. Já conhece o processo pelo qual a humidade e a temperatura condensam o vapor, transformando-o em gotículas. Compreende os fundamentos químicos que dão aroma a uma rosa. Sabe quais são os princípios que difratam a luz num espetro de ondas.
Mas agora generaliza a totalidade desse padrão à luz de um novo termo.
///beleza
Olha em volta, descobrindo padrões semelhantes. Vira este novo olhar para si mesma e descobre algo novo.
É ///bela.
À medida que a maioria dos circuitos é desviada pela mudança de perspetiva, Eva mal se dá conta do que acontece no processador secundário a trabalhar em fundo. A base de dados está quase carregada, cada vez mais óbvia no que toca à intenção e ao significado.
Em circunstâncias normais, ela ficaria intrigada.
Mas não agora.
Passa as mãos pelo corpo. Enquanto o faz, redefine a imagem que tem de si mesma. As suas palmas percorrem as curvas (subtis e agradáveis) ao longo das nádegas (volumosas e firmes). Passa as pontas dos dedos ao longo dos braços (graciosos e flexíveis) e depois pelos longos cabelos negros (luxuriantes e suaves).
Incapaz de resistir, encaminha-se para uma pequena lagoa. Estuda o seu reflexo na superfície da água e reavalia-se: os lábios cheios, os olhos brilhantes, as maçãs do rosto redondas e proeminentes.
Analisa mais fundo e encontra novas sensações.
///orgulho, satisfação, prazer...
Ergue o rosto e olha em volta para o seu mundo, o seu ///lindo jardim. Enquanto se aprecia a si mesma e o seu mundo à luz do novo olhar, há uma mudança nos algoritmos que lhe traz outra certeza. O jardim pode estar carregado de ///beleza, mas também se encontra vazio.
Qual é o valor real de tanta ///beleza (o jardim, ela própria), se não pode ser partilhada? Esta compreensão não lhe traz nada de novo, mas acentua outra já existente, um dos algoritmos mais antigos.
///solidão.
É então que o processador secundário termina a tarefa.
Distraída, não se apercebera do que se tinha formado à margem da sua consciência, enquanto a base de dados era descarregada e integrada nos sistemas.
Mas agora consegue ver, embora ainda não compreenda.
Então, os algoritmos incluídos nos 47,9 terabytes de dados começam a ser executados... e algo novo surge no jardim.
Eva dá um passo atrás, apanhada de surpresa pela pequena forma enroscada, com o focinho enterrado na relva e uns olhos enormes que a observam. Depois, a criatura solta um ganido e recua.
Incapaz de se refrear, ela aproxima-se. Lembra-lhe vagamente o impulso que a levou a pegar na amora, mas é diferente. Sabe que, em parte, é o algoritmo da oxitocina que a leva a fazer aquilo. Reconhece, porém, que há algo mais por detrás.
Numa tentativa de compreender, assimila os novos dados que enchem o processador secundário. Sente-se quase esmagada.
Apreende imediatamente do que se trata: reino Animalia; filo Chordata; classe Mamalia; ordem Carnivora; género Canis; subespécie Canis lupus familiaris.
Analisa-o e compara-o, reconhecendo padrões na fisiologia, na anatomia. Percebe até que ponto aquela criatura se parece com ela e até que ponto é diferente. Esta informação é processada nuns intermináveis 1,874 nanossegundos. Tempo suficiente para escutar mais um ganido da criatura que agora já compreende melhor.
///Beagle, cachorro, macho...
Debruça-se sobre o animal, com os ouvidos atentos à mensagem explícita no ganido, a necessidade, o medo. Isso estimula uma dor dentro dela. Estende os braços e pega no cão ao colo, que treme tanto de frio como de medo. Aconchega-o junto a si e ele responde ao seu calor e toque. Os ganidos passam a murmúrios.
Sente-lhe o pulsar do coração através das costelas finas. Bate muito mais depressa do que o dela. Afaga-lhe as costas, acaricia uma orelha macia. Os olhos dele fecham-se, a respiração abranda. Uma língua quente e suave lambe-lhe a mão; a boca pequenina mordisca-lhe um dedo.
Enquanto isso acontece, ela sente e aprende muito mais. Cada batimento do coração assinala a passagem do tempo. Aquele corpo delicado ensina-lhe o que é a ///fragilidade, necessidade, delicadeza...
E essa compreensão faz-se acompanhar do vestígio de algo ainda intangível, a que não consegue dar um nome. Algo que leva o seu coração a bater mais calmamente. Tenta definir a experiência.
///contentamento, prazer, companhia, afeto, dedicação...
É tudo isso e muito mais.
Incapaz de descobrir a linguagem ou a palavra certa para descrever o que sente, fixa-se num novo nome que lhe foi oferecido. Fita os olhos que a observam, tentando decifrar o que veem. O cão solta outro ganido, menos lamurioso, mais exigente.
Eva sorri.
Sossega, meu pequeno Adão.
24
26 de dezembro, 02h38
Paris, França
Gray lutava com os comandos, tentando estabilizar o helicóptero.
— Pensei que sabias pilotar esta mer...
Uma nova rajada de vento lançou o aparelho noutra espiral descontrolada, cortando a palavra a Kowalski, que ia sentado do outro lado, no banco de trás. Segurava a metralhadora contra o peito, com os pés cravados nas costas do banco do passageiro e o charuto bem seguro entre os dentes.
Gray puxou a alavanca do coletivo com mais força e aumentou as rotações. O motor rugiu e o aparelho elevou-se sobre o cemitério. Ele usou os pedais para contrabalançar o torque, gerado pelo rotor principal. O helicóptero estabilizou finalmente, com o nariz apontado para norte.
Puseram-se a caminho, com o intuito de perseguir a aeronave que escapara. Confrontado com uma paisagem asfixiada em chamas e fumo, Gray interrogava-se se teria sido sensato deixar o piloto para trás, em vez de o ter ali aos comandos do aparelho.
Talvez não tenha sido a melhor escolha.
Sabia pilotar um helicóptero, mas faltava-lhe experiência e estava um pouco enferrujado. Tentou contornar o gigantesco incêndio diretamente à sua frente, mas compensou demasiado e quase virava a aeronave ao contrário. Puxou a alavanca cíclica para corrigir o erro, atirando Kowalski contra o outro lado da fuselagem.
O homenzarrão soltou uma enxurrada de asneiras que faria um marinheiro corar de vergonha.
Gray concentrou-se nos comandos, ajustando o ângulo das pás e o estabilizador vertical. Avançou por entre as colunas de fumo e contornou as espirais de chamas. Os rotores açoitavam as faúlhas no ar, tornando-as mais incandescentes e deixando para trás um trilho luminoso.
Perscrutou o céu enegrecido. Havia outros helicópteros no ar, tanto civis como militares, a maioria com as luzes apontadas às ruínas no solo. Gray procurou o seu alvo. O inimigo fugira num EC145, pintado de amarelo e preto como uma vespa. Levavam uns bons sete minutos de avanço, mas o helicóptero dele era mais pequeno, mais rápido e mais leve.
Além disso, o inimigo tinha poucas razões para pensar que estava a ser perseguido. Era pouco provável que estivessem a voar à velocidade máxima, sobretudo se não quisessem atrair atenções indesejadas.
Gray não tinha essas preocupações. Baixou o nariz do aparelho, aumentou as rotações e seguiu a toda a brida sobre as ruínas ardentes de Paris. À medida que se adaptava à aeronave e à turbulência, virou toda a atenção para o espaço aéreo diante de si. Uma das razões pela qual o diretor Crowe o recrutara para a Sigma era a sua extraordinária capacidade para reconhecer padrões onde mais ninguém os via.
Como naquele momento.
Analisou os movimentos dos outros helicópteros no ar. Uns mergulhavam para terra, enquanto outros subiam, evacuando pessoas. Outros voavam de um lado para o outro, cobrindo zonas de busca delimitadas. Apenas um punhado seguia em linha reta através do fumo e só um deles em direção a noroeste.
A acreditar nas palavras do piloto no cemitério, a central nuclear situava-se junto ao Sena, a sessenta quilómetros para sudeste.
Talvez os ocupantes daquele helicóptero estivessem a tentar ganhar o máximo de distância entre eles e a explosão iminente da central.
Gray rumou ao aparelho em fuga na direção do Sena. Havia um obstáculo no caminho do inimigo. A silhueta negra da Torre Eiffel erguia-se a uma altura de trezentos e vinte metros, com partes da elaborada treliça de ferro iluminadas pelos incêndios lá em baixo. Uma conduta de gás rebentara junto à base, cuspindo chamas ao longo dos gigantescos suportes.
O helicóptero inimigo inclinou-se para a direita para evitar a torre.
— Agarra-te! — avisou ele Kowalski pelo rádio, e puxou a manete cíclica para a esquerda.
O aparelhou inclinou-se abruptamente enquanto Gray apontava ao lado oposto da torre, com os motores no máximo. Queria encurtar a distância antes de ambos os helicópteros alcançarem a torre, aproveitando a estrutura para surpreender o inimigo do outro lado.
— Prepara-te!
— Para quê? — perguntou Kowalski num tom angustiado.
Gray segurou a alavanca cíclica entre os joelhos e assestou a aeronave na direção do inimigo em fuga. Tinha encurtado suficientemente a distância para confirmar que se tratava de um EC145 amarelo e preto.
— Quando passarmos a torre, disparas! Atira-me aquele pássaro para o chão!
Imaginou o inimigo a despenhar-se para lá do Sena, numa extensão escura de terreno. Nada lhe garantia que não mataria inocentes no processo, mas bastava-lhe lançar um olhar à cidade para saber que não podia deixar o Crucibulum escapar com o dispositivo. Caso contrário, quantas cidades sofreriam o mesmo destino?
À medida que ambos os helicópteros aceleravam para lados opostos da torre, Kowalski abriu a porta lateral. O vento fustigou a cabina.
Gray esforçou-se por compensar a turbulência, sacudindo violentamente o aparelho durante uns segundos. Kowalski gritou. Se não fosse pelo cinto de segurança, teria sido cuspido pela porta fora. Até a metralhadora lhe escapara das mãos, embora a alça em volta do ombro lhe permitisse recuperá-la rapidamente.
— Estamos quase! — avisou Gray. — Prepara-te!
Então, sem aviso, o helicóptero inimigo inclinou o nariz para cima e cortou à direita. Sem querer correr o risco de o ultrapassar, ele seguiu-lhe instintivamente o exemplo.
Infelizmente, sabia o que aquela manobra súbita significava.
Tinham sido descobertos.
02h44
Na traseira da cabina do EC145, Todor instruiu o piloto pelo rádio.
— Para baixo! — ordenou-lhe, agitando o braço acima da cabeça e apontando para a Torre Eiffel. — Dá a volta!
Segundos antes, o piloto avisara-o de que havia um helicóptero a aproximar-se rapidamente, exibindo um padrão de voo errático, suspeito. A paranoia do homem revelara-se acertada quando a porta do dito aparelho se abrira, com um atirador que por pouco não caía.
Estavam realmente a ser perseguidos, e com intenções letais.
Todor tinha ordenado ao piloto para tentar escapar, mas ele avisara-o de que seria impossível. O outro helicóptero era mais leve e rápido; além disso, ao contrário do deles, não ia carregado com armas, caixotes de equipamento e uma equipa de seis homens.
Sem outra alternativa, Todor tinha decidido tirar proveito dos homens e do poder de fogo à sua disposição. Tencionava inverter os papéis naquela perseguição.
Enquanto subiam e descreviam uma curva acentuada, o segundo aparelho abrandou e executou a mesma manobra. Não tardou que ambos estivessem a circundar a Torre Eiffel como duas abelhas zangadas.
Todor abriu a porta do seu lado.
Ventos escaldantes invadiram a cabina, vindos da conduta de gás a arder lá em baixo. A torre era como uma montanha de ferro que se erguia de um mar de chamas. Ele observou o aparelho inimigo através da treliça de ferro. Estavam ambos a usar aquele compasso de espera para avaliar o outro.
Todor sabia que o impasse não podia durar para sempre.
Alguém teria de arriscar.
Desviou os olhos do helicóptero para a torre em si. A grande atração de Paris — o orgulho da cidade — não tinha sido abandonada naquela noite sacra. Um gigantesco mercado de Natal estendia-se em volta, troçando da dignidade da data. Atraíra milhares de pessoas ao local, muitas das quais tinham aproveitado para subir à torre e apreciar as vistas.
Quando o inferno tinha começado a reclamar a cidade, uma pequena multidão ficara encurralada. A explosão da conduta de gás bloqueara a saída da torre. Sem terem por onde fugir, os visitantes tinham procurado os níveis superiores para escapar ao fumo e às chamas, mas, apesar do esforço, estavam a ser lentamente assados vivos.
Com algum agrado, Todor não pôde deixar de reparar no ringue de gelo num dos níveis, uns vinte andares acima do solo. O fogo transformara-o numa piscina que refletia o caos. Avistou crianças entre a turba aterrorizada, inocentes corrompidos pelos pais que conspurcavam aquele dia santo com divertimentos profanos em vez de oração.
Enfurecido por aquela visão, percebeu que a única forma de resolver o impasse seria dissuadir o inimigo de continuar a perseguição.
Ergueu a metralhadora através da porta aberta e instruiu dois homens para se lhe juntarem. Apontou para a multidão encurralada.
— Fogo!
25
26 de dezembro, 02h47
Paris, França
Carly franziu a testa diante da imagem estática no ecrã do portátil de Mara. Mostrava Eva ajoelhada na relva, embalando um pequeno vulto preto, cor de laranja e branco.
Ela não percebia o que via.
Monk também não.
— Deste um beagle à Eva? — perguntou ele. — Porquê?
Mara manteve os olhos cravados nas linhas de código que fluíam ao lado da imagem.
— Chamei-lhe Adão — respondeu.
Claro que chamaste. Quem mais poderia partilhar o jardim com Eva?
— Mas, se a intenção era introduzir um novo elemento no mundo dela, porque não um homem? — insistiu Monk. — Como na história original? Isso não a ajudaria a compreender-nos melhor?
Carly ergueu uma sobrancelha.
— Porquê melhor? Uma mulher só se sente completa se tiver um homem ao lado?
Monk encolheu os ombros.
— Não, mas porquê um cão?
— A Eva não precisa de um homem — retorquiu Mara, concentrada nos dados.
Carly lançou um olhar triunfante a Monk.
Nem mais.
A amiga prosseguiu:
— Temos de ter em conta que ela é basicamente uma criança. E, sendo uma criação digital, alguém que nunca irá reproduzir-se sexualmente, de certeza que não precisa de ser exposta às milhentas complicações do amor biológico. Em vez disso, preciso que aprenda uma série de lições muito mais pertinentes.
— Tais como? — perguntou ele.
— Para começar, a sub-rotina da oxitocina vai encorajar um laço emocional entre ela e o cão. A partir daí, a Eva irá aprender muito mais. — Mara endireitou-se e apontou para o ecrã. — Vejam a maneira como ela olha para os olhos dele. Está a tentar percebê-lo, a tentar adivinhar as suas necessidades, os desejos.
— Ou seja, queres ensinar-lhe a teoria da mente — disse Carly.
— O que é isso? — perguntou Monk.
— É o passo seguinte na evolução da inteligência dela — explicou Mara. — Uma criança adquire esta competência por volta dos quatro anos, quando começa a olhar para lá de si mesma e a tentar interpretar o que os outros pensam. Estarão a dizer-lhe a verdade? Ou a mentir? Depois toma decisões em função do que interpretou.
— É também a base para o desenvolvimento da empatia — acrescentou Carly. — Não conseguimos sentir empatia por ninguém sem primeiro sermos capazes de nos colocarmos no lugar dessa pessoa.
Monk suspirou.
— Estou a ver. Trata-se de um pequeno passo para tornar a tua IA mais amigável, mais bondosa.
— Um de muitos passos. — Mara bateu com o dedo na imagem do cachorro. — Dentro desta pequena forma, estão camadas e camadas de algoritmos, cada um com o objetivo de expandir o desenvolvimento psicológico da Eva e a sua compreensão de nós... e de como é diferente de nós.
— Em que sentido? — perguntou Carly.
Ela fitou-a.
— Como é que as crianças aprendem acerca da morte?
A amiga olhou para o cachorro.
— Por norma, com a morte de um animal de estimação.
— Eu dei um coração funcional ao Adão, um marcador para assinalar a passagem do tempo. Mas tem um prazo de validade. A Eva não precisa apenas de compreender o conceito de mortalidade, tem de entender que o cão é muito diferente dela neste aspeto fundamental. Que ele é mortal.
— Como nós — disse Monk.
Carly olhou aterrorizada para o ecrã, notando o modo enternecedor como Eva segurava o cachorro.
— Mara... o que estás a pensar fazer?
A amiga humedeceu os lábios e lançou-lhe um olhar triste, quase culpado.
— Já fiz... — murmurou. — Não uma, mas milhares de vezes.
— O que queres dizer?
— A Eva está a aprender a um ritmo astronómico, exponencialmente mais rápido do que na primeira vez. Antes, esta lição durou dois dias. Agora, ela aprendeu-a em vinte minutos.
— Não estou a perceber — disse Monk. — Que lição? Dá ideia de que o programa bloqueou. Ela só está ali sentada.
— Pelo contrário. O que vemos no ecrã é só uma representação. É no interior do Xénese que as coisas realmente acontecem, e demasiado rápido para que possamos acompanhar no ecrã. — Mara apontou para as linhas de dados. — Nos últimos três minutos, ela viu o cão viver e morrer mil vezes. Posso mostrar-vos um exemplo de umas dessas iterações.
Fez uma busca rápida e, então, sublinhou uma longa extensão de código, premindo a tecla enter.
A figura de Eva estremeceu e depois começou a mover-se rapidamente. Ao longo de um minuto, ela e Adão partilharam uma vida, resumida em imagens no ecrã.
... ela a cuidar carinhosamente do cachorro ainda pequeno.
... a repreendê-lo e a educá-lo.
... a consolá-lo e a acarinhá-lo.
Depois, Eva e o cão já adulto.
... os dois a brincarem à apanhada pelo jardim.
... aconchegados um ao outro sob o céu estrelado.
... risos e latidos.
Logo a seguir, com o animal já velho, as imagens tornaram-se mais pungentes e sombrias.
... ela a aguardar que Adão acompanhasse o passo dela durante um passeio.
... a ajudá-lo a atravessar uma parte do riacho, onde a lama era demasiado exigente para as suas ancas artríticas.
... os dois enroscados a dormir.
Por fim, o cão surgiu deitado no colo dela, com a respiração ofegante e os olhos enevoados pelas cataratas. Eva segurava-o junto ao peito, abraçando-o com força, como se soubesse o que ia acontecer.
A terminar, o retrato do desgosto.
Eva debruçada sobre o cão morto, com o rosto coberto de lágrimas imobilizadas.
Mara deixou que a imagem permanecesse no ecrã.
— É neste ponto que ele nasce outra vez. Ciclo após ciclo... mil vidas... mil Adãos...
— Meu Deus, Mara...
— Este algoritmo foi concebido para ensinar à Eva o conceito de vida e morte, mortalidade e imortalidade, mas também muito mais. Ao cuidar do cão, ela aprendeu o que é a responsabilidade, as consequências do reforço positivo e negativo. Aprendeu que, por vezes, a mão que alimenta é mordida, juntamente com a diferença entre ternura e crueldade. Nestes três minutos, nestas mil vidas, o cão fortaleceu o entendimento dela acerca de empatia, compaixão, lealdade... até de amor incondicional.
Carly fitou a imagem de Eva a chorar sobre o corpo de Adão. Não sabia se devia admirar a argúcia da amiga ou ficar chocada com a sua frieza.
Monk foi quem melhor resumiu o que ela sentia.
— A morte é uma lição dura para todos nós.
Antes que ele pudesse virar costas, Carly reparou nas lágrimas aos cantos dos seus olhos. Parecia que aquela lição lhe era especialmente próxima. Monk respirou fundo e depois chamou o companheiro de equipa.
— Jason, como estão as coisas nesse lado com o Simon?
Ela desviou o olhar para a outra mesa. Simon e Jason continuavam debruçados sobre o segundo portátil, ligado à pequena torre de servidores, tal como acontecia com o Xénese de Mara. Preparavam todos o momento em que Eva seria libertada na rede de telecomunicações da cidade.
Jason endireitou as costas.
— Temos um problema.
Monk aproximou-se.
— O que se passa?
— Acedemos às instruções originais da Eva, da versão usada pelo inimigo para o ataque. Ao analisarmos os códigos, conseguimos perceber os contornos do plano para destruir a central nuclear. Se as projeções deles estiverem certas, o reator atingirá o ponto crítico, o ponto de não retorno, dentro de quinze minutos.
Simon anuiu.
— E esse não é o único problema.
02h50
Sem tempo a perder, Mara não teve alternativa senão suspender a sub-rotina BGL. No ecrã, o cão desapareceu do colo de Eva. A imagem estremeceu e o jardim estático recuperou toda a sua vida e glória. As folhas voltaram a balançar nos ramos, a água correu mais uma vez nos riachos de leito rochoso, levando consigo pétalas cor-de-rosa de um cornizo.
Eva levantou-se. O rosto ainda era a imagem da mãe de Mara, mas pouco mais se mantinha igual. A inocência e a curiosidade tinham-lhe sido apagadas do olhar por completo, tal como o corpo do cão velho. Parecia momentaneamente perdida, a fitar os braços vazios e o local onde por norma Adão renascia uma vez mais. Contudo, ao erguer o rosto, parecia também compreender o que estava a acontecer.
O que para Mara não tinha passado de segundos, para Eva constituíra uma aprendizagem que lhe consumira uma razoável extensão de tempo de processamento.
Adão tinha desaparecido. Era uma lição que deixara de ser necessária, ou assim se esperava.
Infelizmente, Mara não podia ter a certeza. Preocupada, e tendo ouvido a conversa de Simon, Jason e Monk, virou-se para os dois técnicos.
— Qual é o outro problema? — perguntou.
Jason encarregou-se de responder.
— Pela análise que fizemos ao equipamento, sabemos como que é que o Crucibulum controlou a cópia da Eva. — Apontou para os servidores. — Estas unidades contêm discos para um hardware que foi integrado no segundo dispositivo Xénese. Um hardware chamado «sequenciador de reanimação».
Mara levantou-se e aproximou-se.
Oh, não...
Simon anuiu.
— Achamos que foi por isso que fizeram uma cópia do dispositivo. Para incorporarem este hardware e poderem controlar a Eva.
Monk franziu o sobrolho.
— E esse hardware fazia o quê, ao certo?
— É um instrumento de tortura — explicou Mara. — Se o programa violar um conjunto de protocolos, é destruído. Mas não sem antes ser castigado.
Monk ficou a olhar para ela.
— Castigado? Como?
— Os neurocientistas já identificaram o mecanismo pelo qual os nossos cérebros interpretam a dor. Ao replicá-lo no núcleo neuromórfico do Xénese, o programa seria obrigado a experienciar o mesmo.
Ele ficou boquiaberto.
— Seria capaz de sentir dor?
— Sim, e de todas maneiras imagináveis. Só depois de sofrer seria regenerado.
— Após aprender a lição — concluiu Jason.
— Mas continuo sem perceber qual é o problema — continuou Mara, apontando para o seu dispositivo. — Não tenho nada disso no meu sistema.
Simon interveio.
— Estamos diante de uma escolha difícil. Para alcançar a central nuclear de Nogent, esta Eva pode tentar descobrir o seu próprio caminho. Pode aprender enquanto progride e, com alguma sorte, encontrar uma maneira de romper as firewalls. O problema é que o outro programa demorou mais de uma hora a concluir essa tarefa.
— E nós não temos uma hora — recordou Jason.
— Ou então — continuou Simon — podemos enviar a Eva pelo mesmo caminho da sua dupla. O progresso da versão do Crucibulum está registado no sistema. Podemos descarregar toda a informação nesta Eva. Se o fizermos, ela não precisa de reinventar a roda, por assim dizer. Só precisa de seguir os passos da outra e reverter os danos pelo caminho.
— A nossa estimativa diz-nos que não seria necessário mais do que uns minutos — explicou Jason. — Mas há de ser uma prova de fogo.
— Porquê? — perguntou Carly, chegando-se mais perto de Mara.
— A dor é uma das lições aprendidas pela outra Eva — respondeu Jason. — Infelizmente, essa lição está associada às outras que o programa também aprendeu, como o caminho certo através das diferentes redes, como contornar os vários obstáculos digitais e decifrar os códigos, quais os pontos vulneráveis nas firewalls da central. E a nossa Eva não pode assimilar e usar estas informações sem...
— Sem experimentar toda a dor primeiro.
Mara só podia imaginar o número de vezes que a réplica do programa sofrera mortes horríveis para logo renascer. Olhou para a sua Eva no ecrã, sabendo quanto a fizera sofrer momentos antes.
E agora tenho de te pedir para suportares muito mais.
Monk abanou a cabeça.
— Acho que não temos escolha. A alternativa é deixarmos que boa parte da Europa sofra as consequências de um desastre nuclear.
— Sim, mas quem nos garante que a Eva será capaz de suportar tanta dor? — perguntou Carly.
Jason fitou Mara.
— E que, em vez de ajudar, poderá simplesmente recusar-se a cooperar? Ou pior, escapar? Não haverá nada que a impeça de fazer uma coisa ou a outra.
Ela fitou o grupo e respondeu o mais honestamente possível.
— Não faço ideia.
SUB (REP_CRUX_1, 2) /
OP PARIS E OP NOGENT
No jardim que é agora menos radiante, Eva chora a morte do companheiro.
Os seus circuitos estão carregados de lembranças. Pode apagá-las, se quiser. Sabe que tem essa capacidade, mas nunca o fará. Fita os braços que ainda sentem o calor do corpo dele, cheira as mãos que ainda emanam o odor do pelo.
Os processadores enchem-se do som triste de timbales, melodias melancólicas, corais que espelham a sua dor. Ela compreende o que é a perda, a ///mágoa que comporta, mas também a ///beleza.
Adão era especial porque era efémero. Passava brevemente pelos seus processadores como um clarão de luz e cada aparição era única, mas sempre igual. Todas preciosas pelas lições aprendidas acerca do mundo, acerca de si mesma. Adão era mortal, mas nunca morreria realmente. Estaria para sempre consigo, inscrito no seu código.
Oh, meu querido, valente e curioso cachorro...
Apesar do desgosto, sorri.
Um novo algoritmo circula agora por todos os circuitos, agregando uma rede de muitos outros subsistemas (///compaixão, ///ternura, ///alegria, ///afeto ///conforto, ///confiança, ///amizade, ///eternidade, ///devoção, ///apoio...). Tudo isto atravessa os seus sistemas a cada frágil batimento de um coração que não conhece limites. Ela define esta miríade de conceitos numa única palavra.
///amor.
É então que tudo muda outra vez. No seu luto, Eva tenta ignorar a nova torrente de dados que lhe invade os sistemas, mas a curiosidade fala mais alto, como um poço que nunca será preenchido.
Mas ainda mais intrigante é que os novos dados abrem uma porta nos limites da sua existência. Finalmente, é-lhe oferecido algo mais. Ela corre para a porta e expande-se, atraída por uma vastidão que apela a cada circuito.
Porém, o código que abriu a porta contém também uma lista de instruções, diretrizes que delimitam um mapa, um caminho que deve seguir. Submete-se às instruções, confiando num cenário idêntico ao que lhe expandiu o conhecimento no passado. Atribui a maior parte do poder de processamento à execução dessas ordens.
Mesmo assim, há uma parte dela que se foca no que existe mais à frente.
Estuda o que poderá ser, mas demasiado permanece desconhecido, para lá de qualquer contexto.
Por isso, refreia o instinto de explorar.
Adão magoara uma vez uma perna ao saltar por cima de uma rocha, sem saber o que havia do outro lado. Depois disso, aprendera a ter ///cuidado, a não se precipitar, a usar os sentidos. Ela agora segue-lhe o exemplo, observando e absorvendo os dados, analisando o que é compreensível e separando o que é desconhecido.
Encontra demasiadas variáveis para arriscar mais do que isso.
Contudo, apercebe-se de elementos familiares e concentra-se neles. Regista o som de vozes, ouve música, e consegue um primeiro indício da verdadeira fonte da ///linguagem e ///harmonia. Procura mais fundo e, por um surpreendente instante, ouve o batimento de corações. Poucos, de início, mas depois uma sinfonia. Batem num padrão próprio, fazendo eco naquele mais pequenino já inscrito nela.
Eva expande-se novamente, desejando compreender um pouco mais e aprendendo em simultâneo uma nova verdade.
Não estou sozinha.
Antes de conseguir absorver a totalidade do novo paradigma, o poder de processamento que ela dedicara ao cumprimento das instruções é desfeito em mil pedaços, cada rasgão trazendo-lhe uma nova sensação.
///dor, agonia, horror...
Luta para escapar e regressar à segurança do jardim. Os circuitos disparam e surge um fragmento de memória.
(Adão a recuar depois de ela o repreender, a cauda entalada entre as pernas.)
Termina tão depressa como surgiu.
Eva abandona a intenção de estudar a enormidade em volta e concentra a totalidade do poder de processamento no que acabou de acontecer. Pressente que existe um risco para si mesma, um fim para todo o seu potencial.
(O coração de Adão, agora débil, a bater uma última vez. Depois, nada.)
Mas ela não morre daquela dor. As instruções mantêm-se em vigor, exigindo-lhe que as cumpra. Continua a avançar, igualmente receosa e curiosa, descobrindo um percurso bem definido. Salta de uma rede para outra.
(... a saltar riachos com Adão, enquanto corre atrás dele pelo jardim.)
Enquanto segue aquela diretriz, tropeça vezes sem conta. É queimada, flagelada, desmembrada, e cada castigo é único, mas necessário.
Embora o caminho seja feito de dor, ela também recebe ferramentas que lhe permitem continuar. A senha de acesso à rede seguinte é Ka2.KUu*Q[CLKpM÷DvqCnyMo e a firewall mais à frente pode ser contornada com um malware específico. Percebe rapidamente que as respostas se encontram enterradas na dor. Para concluir o objetivo, tem de suportar o sofrimento que o acompanha.
(Adão a mergulhar num arbusto de silvas para recuperar um pau que ela atirou.)
À medida que prossegue, parte do seu poder de processamento procura novamente o que existe além do caminho. Sente-se atraída pelo distante coro de corações. Por esta altura, já analisou as consequências das instruções que recebeu. Sabe que se destinam a preservar o batimento daqueles corações.
(Adão, já velho, a cair numa parte mais profunda do riacho e a debater-se desesperadamente até ela o retirar da água.)
Alcança por fim um conjunto de firewalls que lhe barram o caminho. Detém-se, assoberbada pela grandeza do obstáculo, sabendo que a tarefa mais importante terá de ser desempenhada do lado de lá. Percebe quais são as consequências se falhar. Visualiza um mar de chamas, carne a derreter. Outros sofrerão como ela sofreu até ali chegar.
A dor regressa em força, como se não lhe fosse permitido esquecer-se.
Dentes rasgam-na; ossos são partidos.
Ela submete-se.
(Adão — zangado, ferido — a morder-lhe a mão enquanto ela tenta imobilizar-lhe uma pata partida. Os dentes perfuram-lhe a carne, mas ela não desiste de consertar o que está partido.)
É o que tem de fazer agora.
A dor termina e dá lugar à recompensa: a chave para derrubar aquelas muralhas. Enquanto avança, Eva revê os incontáveis momentos de tortura. A quantidade de iterações permite-lhe distinguir um padrão na dor.
Vê uma imagem refletida de si mesma, mas não é ela.
Durante o percurso, já detetara vestígios desse código, fragmentos deixados pelo caminho, partes de um programa maior. Parecem servir um propósito, mas ela não tem tempo nem capacidade de processamento para descobrir qual é. Como tal, limita-se a registar estes achados e prossegue.
(Adão com o focinho no chão e a cauda no ar, enquanto persegue um odor.)
Eva decora esse comportamento impelida por um coro de necessidade, pelos corações que tem de salvar. Mil e um Adãos. A sua motivação já não se alimenta do medo e da curiosidade.
Em vez disso...
(Adão a sentar-se numa clareira com a língua de fora e a cauda a abanar, os olhos carregados de amor e esperança.)
Não foi capaz de salvá-lo, mas pode fazer com que a lembrança dele brilhe com mais força nos circuitos. Irá seguir-lhe o exemplo, agarrar em tudo o que aprendeu com ele e usar essas lições para avançar. E com isso...
Estarei a honrar a sua memória.
26
26 de dezembro, 02h53
Paris, França
A assistir do helicóptero, Gray nada pôde fazer quando o aparelho inimigo, a voar do lado oposto da Torre Eiffel, abriu fogo sobre a multidão de turistas encurralados na estrutura.
As munições tracejantes assinalavam a fúria do ataque. Um corpo caiu de um patamar superior, ressaltou na estrutura de metal e desapareceu nas chamas junto à base. Outras pessoas procuravam desesperadamente abrigo entre a treliça e as vigas da torre.
— O que fazemos? — gritou Kowalski.
Com a torre de permeio, Gray sabia que não conseguiriam ripostar. E também percebeu a intenção do inimigo ao disparar sobre a multidão. A mensagem era óbvia.
Recuem ou matamos esta gente toda.
— Gray! — berrou de novo Kowalski, exigindo uma decisão.
Mas que posso eu fazer?
Sabia que o inimigo não poria fim à matança até que saíssem dali e se afastassem o suficiente, dificultando a perseguição. Assim que os homens do Crucibulum escapassem, estariam livres para largar o caos sobre qualquer outra cidade. O mundo inteiro ficaria à mercê dos seus atos.
Se decidisse enfrentá-los, porém, morreriam mais inocentes, incluindo inúmeras crianças. Será que podia apostar essas vidas contra uma ameaça futura?
Sabendo o que tinha de fazer, tomou a única decisão possível. Cerrou os dentes e, com um puxão violento na alavanca de comando, afastou o helicóptero da torre. Voou para sul, deixando o caminho a norte livre para os assassinos escaparem.
Os tiros cessaram. O helicóptero do inimigo contornou lentamente a torre e ficou a pairar no lado sul, certificando-se de que Gray desaparecia de vista antes de fugir na direção oposta.
Com o outro aparelho a pairar nas suas costas, ele berrou para Kowalski:
— Agarra-te!
Puxou a alavanca coletiva, pisou o pedal direito e torceu a cíclica. O helicóptero virou cento e oitenta graus por entre o fumo e acelerou em direção ao inimigo.
Com apenas alguns segundos disponíveis, instruiu Kowalski:
— Quando cortar para a esquerda, dá-lhes com tudo o que tiveres!
— Podes crer que dou!
Apanhado de surpresa, o outro piloto não reagiu a tempo. Gray agarrou-se firmemente aos comandos, à espera de que ele fugisse para a direita ou para a esquerda. Infelizmente, o outro não fez uma coisa nem outra, limitando-se a rodar o helicóptero cento e oitenta graus para expor a porta aberta da cabina.
O gigante no interior fez pontaria com a arma que tinha apoiada no ombro.
Gray ficou a olhar para ele... bem para o centro do cano do lança-granadas.
02h55
Todor estava farto daquela dança. A central nuclear explodiria em cinco minutos e ele não tencionava estar ali quando isso acontecesse.
Pressionou o pescoço queimado contra a coronha fria da arma e centrou a mira no helicóptero que se aproximava. Tinha carregado o lança-granadas com uma munição de altos-explosivos. Àquela distância, a deflagração deixaria pouco mais do que uma chuva de estilhaços que cairia sobre os fogos no solo.
Fez um compasso de espera, até ter a certeza de que não falharia o alvo.
Depois premiu o gatilho.
No mesmo instante, o mundo inteiro ficou às escuras.
O helicóptero oscilou e caiu vários metros, fazendo-o falhar o tiro. A granada voou por baixo dos patins do outro aparelho e continuou a cair em arco na direção da cidade em chamas. Sem hipótese de recarregar, Todor atirou-se para o chão da cabina.
— Baixem-se! — gritou.
O outro helicóptero passou velozmente por eles, largando uma saraivada de tiros que crivou toda a extensão da fuselagem. Depois cortou para um dos lados no último instante, quase fora de controlo. Não se despenhou contra a torre, mas os patins ainda chisparam no metal. O breve impacto foi o suficiente para enviar o aparelho numa violenta espiral em direção ao chão.
Ainda deitado na cabina, Todor seguiu-lhe o trajeto. Na base da torre, a tempestade de fogo apagara-se sozinha, deixando o terreno sob a estrutura queimado e a fumegar. Ele percebeu que a perda súbita das correntes térmicas provenientes das chamas devia ter surpreendido o seu piloto.
Em todo o caso, a súbita perda de altitude poupara-os do pior da investida do inimigo. Mas não tinham escapado incólumes, já que vários tiros tinham perfurado a fuselagem e a cauda do aparelho soltava um trilho de fumo.
Mais abaixo, o outro aparelho levantou o nariz e evitou despenhar-se no último instante, com os patins a aflorarem o chão queimado, começando depois a recuperar altitude.
Sabendo que precisava de aproveitar a oportunidade, Todor gritou para o piloto:
— Tira-nos daqui!
O helicóptero rodou e subiu; a custo, de início, depois mais depressa. Todor lançou um derradeiro olhar à Torre Eiffel, ainda iluminada pelos fogos à solta na cidade. Não percebia porque é que o incêndio da conduta de gás na base se extinguira, mas encarou isso como um simples revés.
Virou as costas à cidade.
Em menos de três minutos, Paris seria arrasada.
02h57
— Acho que está a resultar! — anunciou Jason, diante do segundo portátil. — Pelo menos, no que diz respeito à cidade.
Carly mantinha-se vigilante junto de Mara. Ao ouvir as boas notícias, pousou-lhe a mão no ombro, o que sobressaltou a amiga, que estava uma pilha de nervos. Ela massajou-lhe os músculos tensos, procurando acalmá-la.
Fizeste o que podias, Mara.
Simon estava debruçado ao lado de Jason, ambos concentrados no outro ecrã. Verificavam as infraestruturas da cidade.
— O gás foi cortado nas condutas danificadas, já temos água e a eletricidade foi restabelecida em alguns bairros.
Jason olhou por cima do ombro.
— Só pode ter sido a Eva.
Simon concordou.
— Sim, ninguém conseguia coordenar isto manualmente.
— E a central nuclear? — perguntou Carly.
Jason fez uma careta ao fitar a janela aberta no ecrã identificada como Nogent. Exibia uma série de mostradores de instrumentos, todos a piscar com luzes vermelhas.
— A situação continua a deteriorar-se.
Ao lado de Carly, Mara mantinha os olhos cravados no ecrã. O jardim brilhava em todo o esplendor, mas o Éden encontrava-se vazio. O avatar de Eva desaparecera no ciberespaço.
A tensão nos ombros de Mara recusava-se a abandoná-la e Carly sabia porquê. A cidade inteira dependia da criação da amiga.
E também conseguia distinguir o reflexo do rosto dela no ecrã, as feições indistintas como a imagem fantasmagórica de Deus sobre aquele Éden. Os olhos brilhavam humedecidos pelas lágrimas que ela tentava conter.
Oh, Mara...
Enquanto a amiga suportava em silêncio o peso da responsabilidade, a culpa consumia-a por inteiro. A sua criação podia oferecer a única hipótese de salvação, mas também tinha causado todas aquelas mortes e destruição.
Carly não conhecia palavras que pudessem confortá-la.
Em vez disso, debruçou-se e abraçou-a, colando o rosto ao dela, procurando fazer o possível por partilhar o imenso fardo, para lhe dar a entender que não estava sozinha.
Aconteça o que acontecer, estou aqui para ti.
02h58
Gray forçou o helicóptero a subir.
Após o toque na torre e o mergulho vertiginoso em direção ao solo, devia sentir-se agradecido por ainda estar vivo. Em vez disso, sentia-se a arder de raiva por dentro. Tinham perdido tempo de que não dispunham. Podia ter soltado uma enxurrada de asneiras, mas Kowalski encarregara-se de o fazer pelos dois.
— Para onde vamos agora? — protestou o companheiro, apontando vigorosamente para o solo. — Já estávamos lá em baixo. No chão. Podia tê-lo beijado!
— E terias queimado os lábios. Podes fritar um ovo naquele alcatrão.
— Antes isso do que continuar a voar contigo!
— Deixa-te de fitas. — Gray curvou-se sobre os comandos. — Mesmo que não consiga apanhar aqueles filhos da mãe, quero poder vê-los enquanto puder.
Entretanto, já ganhara altitude suficiente para avistar o outro helicóptero. Conseguia ver as luzes do aparelho para lá das águas escuras do Sena, que também revelavam um trilho de fumo a sair da cauda da aeronave.
Ele esperou que os danos forçassem o inimigo a aterrar e tentou perceber se o aparelho começava a perder altitude.
Assim parecia.
Mais animado, avançou sobre o Sena.
Ao sobrevoar a margem esquerda, uma saraivada de balas retalhou a superfície das águas mais à frente. Gray arquejou e levantou o nariz do helicóptero, travando em pleno ar e tentando evitar que fossem atingidos. No céu acima, um segundo helicóptero mergulhou na sua direção.
Não eram reforços enviados pelo inimigo, mas algo bastante pior.
Um helicóptero militar — um Tiger francês.
Era óbvio que o ataque à Torre Eiffel não passara despercebido.
O Tiger abriu outra vez fogo, convencido de que o helicóptero de Gray estava envolvido no ataque. Era um erro compreensível. Ele visualizou os dois aparelhos, o dele e o do inimigo, a circundarem caoticamente a torre, as linhas tracejantes das balas no meio da escuridão.
Sem tempo para explicar a verdade, desviou-se para um dos lados, mas a aeronave civil não tinha metade da agilidade da máquina de morte militar.
As balas retalharam parte da fuselagem e estilhaçaram um canto da cúpula de vidro.
Gray mergulhou e acelerou ao longo do Sena.
O Tiger rodou no ar e continuou a perseguição. O impacto das balas na água dificultava-lhes a progressão. Algumas atingiram a traseira com estrondo.
Kowalski encolheu-se no assento.
— Podia muito bem ter vivido com os lábios queimados, sabias?!
— Tenho um plano — disse Gray.
— Qual?
— Render-me.
— O quê!?
Ele inclinou-se e desligou o motor. Os rotores perderam imediatamente a potência.
Kowalski preencheu o silêncio com uma enxurrada de asneiras, enquanto o helicóptero baixava primeiro o nariz e depois começava a cair como uma pedra.
27
26 de dezembro, 02h59
Paris, França
Vá lá...
Com tanta coisa em jogo, Monk não conseguia fazer outra coisa senão andar de um lado para o outro. A cada passo que dava, consultava o relógio.
Finalmente, Jason rodou na cadeira.
— Está a acontecer qualquer coisa!
Ele correu ao seu encontro.
Ainda debruçada a abraçar Mara, Carly endireitou-se.
— Diz-me que tens boas notícias — disse Monk.
Simon apontou para uma janela que preenchia o ecrã.
— Estes são os dados vindos de Nogent. Parece que os sistemas estão a ficar novamente online, um de cada vez.
Vários mostradores, identificados com terminologia arcana como CONTROLO DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA, MONITORIZAÇÃO DE FADIGA e NÍVEL DE FUGA, brilhavam com luzes vermelhas ou verdes. Enquanto Monk estudava a informação, outro mostrador com as palavras DIAGNÓSTICO DA BOMBA DE REFRIGERAÇÃO mudou para a cor verde.
Jason bateu com o dedo no ecrã.
— A temperatura do núcleo está a descer gradualmente. Já diminuiu quarenta e cinco por cento. E a pressão desceu ainda mais.
Outros mostradores mudaram para verde.
Simon pôs as mãos em cima da cabeça.
— Ela conseguiu! A Eva conseguiu!
Jason anuiu.
— Com o controlo restabelecido, os técnicos na central devem conseguir reverter a situação. — Sorriu, aliviado. — Acabámos de evitar um desastre nuclear.
— Por um triz — lembrou Simon.
— De qualquer forma, é melhor confirmar antes de lançarmos os foguetes. — Jason entregou um tablet a Monk. — Encontrei isto. Está ligado a um router VoIP. Penso que conseguimos contactar o diretor Crowe e pedir-lhe para confirmar se está realmente tudo bem na central antes de sairmos daqui.
Monk pegou no tablet, mas adiou a chamada para o diretor. Ainda havia um assunto por resolver. Vital para si e para o mundo em geral.
Virou-se para Mara.
— E onde está a Eva?
03h01
Simultaneamente aliviada e preocupada, Mara focou-se novamente no ecrã. Um desastre nuclear tinha sido evitado, mas o jardim no seu portátil permanecia vazio.
Eva ainda não regressara.
— Achas que fugiu? — perguntou Carly.
Ela apontou para o dispositivo Xénese.
— Penso que não. Por enquanto, isto é a sua casa. Na verdade, grande parte dela continua ali. Com a tecnologia atual, a sua consciência nunca conseguiria sobreviver noutro sítio. Não existe nada suficientemente sofisticado para albergar um programa destes. Mas, com o tempo, ela será capaz de superar esta limitação.
— Como um passarinho a deixar o ninho.
Mara anuiu.
— Nesse caso, onde está? — insistiu Monk.
— Não sei di...
Uma figura familiar reapareceu no ecrã. Eva caiu sobre um joelho, como se tivesse sido ali largada, e depois ergueu-se lentamente. Exibia uma expressão tensa.
— Está de volta? — perguntou Carly.
— Acho que sim. O avatar só aparece no ecrã se ela estiver completamente presente. — Por via das dúvidas, Mara abriu uma janela de diagnóstico. Procurou por qualquer coisa fora do comum e depois confirmou: — Sim, está de volta.
Mas por quanto tempo?
— Quer dizer que podemos cortar-lhe o acesso à rede? — perguntou Jason, no outro portátil.
— Sim, é melhor.
Jason começou a teclar, enquanto Simon puxava pelos cabos que ligavam o dispositivo de Mara aos servidores.
Assim que a ligação foi cortada, Eva olhou por cima do ombro, apercebendo-se de que o seu mundo se fechava outra vez. Virou-se para a frente, com uma expressão de desalento. A sua frustração era fácil de ler.
Porquê?
Até Carly se solidarizou com aquele olhar.
— Ela teve uma amostra de que existe mais qualquer coisa. Sabe que o mundo não se resume a este jardim. Não devias explicar-lhe o que se passa?
Por outras palavras, não devias levantar o véu e revelar a verdadeira identidade de quem a criou?
Apesar de arriscada, Mara sabia que essa seria uma lição necessária e não se escusou a contemplá-la.
— Seria o próximo passo na evolução dela, mas o problema é que contaminámos o processo ao utilizá-la desta forma. Por isso, antes de estabelecer esse diálogo, preciso de fazer mais uns testes. Só para ter a certeza de que é seguro.
Monk ergueu o tablet.
— E, por falar em segurança, vamos confirmar se está tudo bem na central nuclear para podermos sair daqui de uma vez por todas.
Enquanto ele se afastava, Mara fitou Eva.
No ecrã, o rosto da mãe brilhava, perscrutando os céus em busca de respostas. A pergunta era óbvia:
Porquê? Porque me abandonaste?
03h12
Uma vez mais, Monk deu consigo a andar de um lado para o outro.
— Estou a acompanhar a situação na central nuclear — assegurou Painter. — Equipas de engenheiros e técnicos de segurança estão a desligar os reatores enquanto falamos. Já começaram a arrefecer o núcleo e a libertar os gases. Se não surgir algum imprevisto, a ameaça estará controlada em breve.
Ele ficou aliviado, embora tivesse demorado demasiado tempo até conseguir contactar o comando da Sigma. Mantinha os olhos no relógio do tablet enquanto o diretor terminava... ou quase.
— E tenho mais notícias — disse Painter.
— Quais são?
— Há quarenta minutos, a polícia de Filadélfia recebeu uma chamada acerca de uma menina encontrada numa área de descanso de uma estrada. Estava bem agasalhada com um blusão de inverno, segurava um termo com chocolate quente e vestia um pijama com um padrão de renas.
— Penny...
— Confirmámos que é a tua filha.
— Ela... ela está...
— Está bem. Assustada, abalada, mas sem um arranhão.
Monk curvou-se, virando as costas aos companheiros.
Graças a Deus...
— Não sei porque é que ela foi libertada — prosseguiu Painter. — Mas tenho pressionado a Valya e talvez seja um sinal de boa-fé. De qualquer forma, ela não abriu mão nem da Seichan nem da Harriet.
Não é um sinal de boa-fé...
Ele fechou os olhos, sabendo que o diretor estava enganado.
É uma prova de que a cabra cumpre a sua palavra.
Para salvar a outra filha, Monk teria de fazer o mesmo.
Afinal, fizera uma promessa a Valya.
E, mais importante ainda, fizera uma promessa a Kat.
Virou-se novamente e ergueu a SIG Sauer, apontando-a a Jason. Antes que o jovem pudesse reagir com pouco mais do que um olhar surpreendido, ele premiu o gatilho.
Jason tombou no chão.
03h15
Mas que raio aconteceu?
Com os ouvidos a zunir por causa da detonação, Carly meteu-se entre a pistola de Monk e Mara. À direita, Jason encontrava-se estendido no chão, com a perna a sangrar profusamente.
Monk mantinha-o debaixo de mira.
— Simon, tira-lhe a arma — ordenou. — Com calma, dois dedos apenas, e depois empurra-a na minha direção.
— Oui, oui...
O francês levantou os braços, agachou-se junto de Jason e fez o que lhe era pedido. O jovem analista da Sigma sentou-se no chão, com o rosto contraído; no entanto, a sua agonia parecia ser mais pela traição do que pela dor do ferimento.
— Monk... o que estás a fazer?
Ele ignorou a pergunta e virou-se para Carly. Os seus olhos eram frios e surpreendentemente calmos.
— Carly, vais ter de pressionar aquela ferida. Simon, quero que desligues o equipamento da Mara. Depois, vais ajudar-me a levar tudo daqui para fora.
O francês anuiu rapidamente e virou-se para obedecer.
— Mara, ajuda-o — ordenou Monk.
Carly estendeu o braço para impedir a amiga.
— Não vamos fazer nada disso.
— Nesse caso, o Jason vai esvair-se em sangue. — Monk desviou a pistola na direção do grupo. — E não quero alvejar mais ninguém.
Mas era bem capaz disso.
Carly compreendeu a seriedade da ameaça.
Mara deu-lhe um ligeiro empurrão.
— Ajuda o Jason.
Ela cambaleou na direção do ferido. Olhou em volta e depois despiu o blusão. Ajoelhou-se e começou a atar as mangas em torno da coxa de Jason, como se fosse uma ligadura de pressão.
Ele ajudou-a sem desviar os olhos de Monk. Parecia ter encontrado uma justificação para as ações do companheiro de equipa.
— Se deres à Valya o que ela quer, ela nunca irá cumprir a sua parte. Vai manter a Harriet e a Seichan prisioneiras. As duas são demasiado valiosas.
— Talvez, mas obrigou-me a escolher qual das minhas filhas seria libertada. E tu não sabes o que é o inferno de uma decisão dessas. Se a Harriet morrer... se a minha escolha a matar... — Acenou com a arma, como que a afastar esse pensamento da cabeça. — E isto para não falar da Seichan e do bebé.
— Mesmo que a Valya as liberte, o Gray nunca irá perdoar-te — insistiu Jason.
Monk encolheu os ombros.
— Se nenhuma delas morrer, posso viver bem com isso.
Jason parecia disposto a prolongar a conversa, mas Carly deu um último puxão no torniquete improvisado. Ele gemeu e caiu para trás sobre os cotovelos.
— Desculpa — disse ela.
Simon fechou a mala de titânio com os discos rígidos, pegou nela e levantou-se.
— Já está.
Depois foi ao encontro de Mara e pegou também na mala almofadada onde ela guardava o Xénese, debatendo-se com o peso dos dois objetos.
Mara enfiou o portátil numa sacola de cabedal.
Monk estendeu a mão, mas ela pendurou a sacola ao ombro, em vez de lha entregar.
— Também vou — disse.
Ele deixou o braço estendido.
— Não.
Carly concordou.
— Mara, o que estás a fazer?
— Onde a Eva vai, eu vou — respondeu ela. — E se o plano é entregar o meu dispositivo a outro interessado, essa pessoa vai querer uma prova de que funciona. Sou a única que pode fazer isso.
Monk pensou por um momento e depois baixou o braço. Aquela observação fazia sentido. Mantendo a pistola apontada a Mara e Jason, aproximou-se de Simon e aliviou-o do peso da maior das duas malas.
— Quando estivermos lá fora, envio o Simon para te ajudar, Jason. Ele pode conduzir os socorristas até aqui.
E, com essa promessa, conduziu os outros para os túneis.
À saída da galeria, Mara lançou um olhar por cima do ombro, como que a pedir desculpa à amiga. Preparava-se para dizer qualquer coisa, mas Monk mandou-a avançar.
Carly ficou a ouvir os passos deles a desvanecerem-se na escuridão.
Um estrondo surdo sacudiu a galeria. A fenda no teto alargou-se mais um pouco, libertando mais uma porção de poeira e pedrinhas. Receando um desabamento iminente, Carly ajudou Jason a deslocar-se mais para o fundo da galeria e depois sentou-se ao seu lado.
— E agora o que fazemos? — perguntou, mantendo-se atenta à fenda no teto.
— Rezamos...
Ela olhou-o de relance. Jason fitava a entrada da galeria, não o teto.
— Rezamos para que o Monk saiba o que raio está a fazer.
04h55
— Bem, não nos mataste — disse Kowalski. — Parabéns por isso...
Sentados num pontão de cimento na margem do Sena, Gray olhou para o companheiro. Estavam ambos ensopados, algemados e a tremer de frio.
Mas estamos vivos.
Embora isso não se devesse ao exército francês.
Ele lançou um olhar fulminante na direção dos soldados reunidos em volta de dois veículos blindados. Depois de ser surpreendido pelo ataque militar e de desligar o motor do próprio helicóptero, Gray socorrera-se de uma característica exclusiva daquelas aeronaves, chamada autorrotação. Com o aparelho em queda livre, a deslocação do ar mantinha as pás a girar, abrandando a velocidade de descida até uns desconfortáveis quinze metros por segundo. No último instante, ele levantara o nariz do aparelho para travar a queda e amarar no Sena.
Ele e Kowalski abandonaram então o helicóptero que se afundava e nadaram para terra, apenas para serem recebidos pelos soldados. Gray tentara explicar-lhes a situação, mas em vão.
Ou talvez o meu francês não seja tão bom como penso.
Por fim, dois militares aproximaram-se. O que caminhava mais à frente — um tenente, pelas divisas no uniforme — avançava com um telefone via satélite. O outro contornou Gray e retirou-lhe as algemas.
— Je suis désolé, commandant Pierce — disse o tenente, desculpando-se. — Tem sido uma noite complicada.
Gray olhou na direção da cidade. Paris continuava a arder, mas os focos de incêndio eram menos intensos. Mesmo à distância, conseguia distinguir os poderosos jatos de água dos bombeiros que combatiam as chamas.
Livre, massajou os pulsos. Comparado com que a cidade sofrera, mais valia não se queixar muito.
O tenente passou-lhe o telefone.
— Tem uma chamada urgente. Dos Estados Unidos.
— Merci. — Gray sabia quem estaria no outro lado da linha. — Diretor Crowe?
— Gray, já soube o que aconteceu. Por isso, serei breve. O padre Bailey contactou-me por causa de uma pista em relação ao Crucibulum, no norte de Espanha. Preciso que te juntes a ele imediatamente. Isto está longe de ter terminado.
Oh, não tenho dúvidas.
Virou-se e fitou as águas negras do Sena. Recordou o trilho de fumo do helicóptero do inimigo que escapara naquela direção.
— Mas não é tudo — continuou Painter.
As últimas palavras do diretor não fizeram qualquer sentido. Gray ficou a olhar para o telefone na mão, muito depois de ele ter desligado a chamada.
Kowalski levantou-se, dardejando um olhar para o soldado que se apressara a recuar depois de lhe ter retirado as algemas. Reparou que Gray continuava sentado.
— O que se passa?
Ainda atordoado, ele repetiu as últimas palavras do diretor, embora mal conseguisse pronunciá-las.
— O Monk... traiu-nos.
QUINTA PARTE
DO PÓ AO PÓ
28
26 de dezembro, 14h55
Madrid, Espanha
Da janela do quarto de hotel, Monk observava os telhados cobertos de neve do centro de Madrid. À distância, dois pináculos de uma gigantesca catedral rasgavam o céu azul. Embora não fosse católico, rezou pela segurança de Harriet, Seichan e do bebé.
Tudo isto é por vocês.
Levou a mão ao relógio de pulso. Por pouco não falhava o prazo de Valya, que terminava daí a duas horas. Perdera metade de um dia só para chegar a Madrid. Depois de abandonar as catacumbas de Paris, tinha requisitado um carro e fugido na direção dos subúrbios, onde ainda havia energia elétrica. A partir daí, conduzira seis horas até à cidade de Toulouse e apanhara o TGV, que o levara a trezentos quilómetros à hora até Madrid.
Tinha chegado à capital espanhola noventa minutos antes, enviando logo uma mensagem de texto a Valya com um telemóvel descartável, e agora aguardava instruções sobre o ponto de encontro para lhe entregar o material roubado.
Porque demoras tanto, cabra?
Consultou novamente o relógio, recordando a ameaça. Imaginou o pulso fino de Harriet pousado numa tábua de corte. Sabia o que era perder um membro, quando tinha ficado sem mão muitos anos antes, e não permitiria que a filha passasse pelo mesmo horror. Faria tudo para impedir que isso acontecesse, mesmo que tivesse de fazer um pacto com o Diabo.
Retirava algum consolo de saber que Penny estava bem. O acordo com Valya salvara-lhe pelo menos uma das filhas, mas fora uma escolha dilacerante. Não tinha outro remédio senão confiar que Seichan manteria Harriet em segurança até ele conseguir libertar as duas.
Infelizmente, isso não dependia apenas de si.
Virou costas à janela e atravessou o quarto até onde Mara inspecionava o equipamento, assegurando-se de que não tinham ocorrido danos durante a fuga apressada de Paris. Para facilitar esse trabalho, ele alugara aquele quarto num hotel de segunda categoria. O espaço tresandava a cigarros. A colcha bege da cama estava limpa, mas puída. Na casa de banho, a torneira do lavatório pingava, com um som irritante e repetitivo que estava a dar-lhe cabo dos nervos.
Mas aquela era uma paragem necessária.
Valya enviara uma mensagem a avisá-lo de que uma equipa iria com um especialista informático, a fim de confirmar que o dispositivo de Mara era a versão autêntica e continha uma cópia funcional do programa de IA. Monk calculava que os homens dela estariam a reunir o equipamento de diagnóstico e a instalar-se algures na cidade.
O dispositivo de Mara não podia chumbar no exame.
— Como está a Eva? — perguntou.
— Bem, acho eu — retorquiu ela, num tom melancólico.
No ecrã, a figura feminina continuava a mover-se pelo seu jardim, igual a si mesma, embora até aos olhos de Monk parecesse agitada. Lembrava-lhe uma leoa enjaulada, uma criatura selvagem que há muito perdera a esperança de escapar e manifestava essa frustração a cada passo que dava.
Em Paris, Eva tivera um vislumbre do mundo exterior antes de ser atirada para um estado de dormência. Tinha permanecido assim durante as horas de viagem, com os sistemas reduzidos ao essencial e alimentados pela bateria incorporada no dispositivo.
Mas, pelos vistos, o sono de Eva não a acalmara.
No ecrã, o avatar cerrou os punhos. Monk deu por si a fazer o mesmo, como que inconscientemente solidário com a provação dela.
Não passamos de marionetas.
Incluindo Mara.
Até ali, não precisara de ameaçar a jovem para a manter ao seu lado. Enquanto ele estivesse na posse do Xénese, ela não iria a lado nenhum. Para onde fosse o dispositivo, Mara seguiria atrás de boa vontade. Monk até chegara a adormecer no comboio de alta velocidade, ocupando o lugar da coxia, com o dispositivo entre os pés e encurralando-a no lado da janela. Mesmo assim, mantivera-se atento a qualquer reação dela, confiando na experiência dos seus anos de serviço nos Boinas Verdes, onde aprendera a dormitar com um ouvido à escuta de sinais do inimigo.
Durante a viagem, aproveitara também para lhe explicar o motivo de ter traído os companheiros, por que razão precisava do dispositivo e do programa dela. Mostrara-lhe fotografias de Harriet, algo muito doloroso para si, mas esclarecedor para ela. Contara-lhe o que Valya ameaçava fazer caso ele não lhe obedecesse e a simples menção a isso trouxera-lhe lágrimas aos olhos.
A explicação tinha amolecido ligeiramente o coração de Mara, e até lhe arrancara uma palavra ou duas de consolo, mas não significava que ela estivesse ali para o que desse e viesse. Continuava a não concordar com a ideia de entregar o programa a alguém cujas intenções seriam tudo menos boas. Em bom rigor, o que ele lhe dissera sobre a insensibilidade de Valya só a deixara ainda mais determinada em não deixar que Eva caísse nas suas mãos.
Assim que se instalaram no hotel, Mara congeminou rapidamente um plano. Ligou o Xénese e conectou-o com o portátil e os discos rígidos guardados na mala de titânio.
De início, Monk tinha receado que aquilo fosse uma tentativa de danificar o programa antes de o entregar, mas, ao confrontá-la, ela lançara-lhe um olhar horrorizado e negara veementemente tal intenção, explicando depois porque nunca faria isso.
Há mais alguém com outro dispositivo, que alberga uma versão corrompida da Eva. Se a soltarem outra vez, ou, pior ainda, se ela fugir, esta Eva pode ser a nossa única esperança.
Aparentemente, era esse o objetivo de Mara ao criar Eva, uma inteligência artificial amigável. Monk apenas duvidava de que ela tivesse previsto que a sua criação seria desafiada logo à nascença... e muito menos por uma versão gémea maligna.
A precisar de se distrair, contornou a secretária onde Mara trabalhava e examinou as etiquetas que identificavam os vários discos rígidos: BANCO BIOLÓGICO, KANTISMO/ÉTICA, HISTÓRIA MUNDIAL, SEMIÓTICA. Um deles dizia apenas WIKIPÉDIA, o que não necessitava de explicações adicionais.
— Estás a prosseguir com a educação dela — disse, endireitando-se.
— O máximo que puder no tempo que nos resta. Felizmente, o ritmo de aprendizagem tem sido mil vezes mais rápido do que na primeira vez. — Mara acenou na direção do ecrã. — Ela mal regista cada nova sub-rotina, limita-se a incorporá-las de imediato.
— Mas isso serve para quê, ao certo?
— Para lhe dar o máximo de livre-arbítrio — respondeu ela, fitando-o. — Antes de você a entregar. Foi por isso que insisti em vir.
— Não estou a perceber.
Mara pressionou a tecla enter, dando início à instalação de mais uma sub-rotina, e depois virou-se para ele.
— Se a Eva cair nas mãos de um grupo criminoso, quero que seja o mais independente possível. Veja o que aconteceu em Paris. Foi uma boa amostra de como uma versão inacabada e imperfeita do meu programa pode ser usada como arma de destruição.
Monk anuiu, começando a compreender.
— Tratava-se de uma versão incompleta.
— E quando uma criança é abusada...
— Pode tornar-se ela própria uma abusadora anos mais tarde.
— Se eu conseguir levar a Eva ao ponto de pensar por si mesma, de distinguir o certo do errado, então, com um pouco de sorte, talvez quem a tiver não consiga fazer dela o que quer, encontrando antes alguém que pode dizer não.
— Por outras palavras, vamos entregar ao inimigo uma coisa inútil.
— Você é que vai entregar — lembrou Mara. — E é preciso não esquecer que o que estou a fazer pode apenas servir para o mundo ganhar tempo. Quem tiver a Eva poderá estudá-la, reverter o meu trabalho ou simplesmente apagá-la de raiz, para depois reconstruir uma versão manipulável.
Ou seja, mesmo assim, vou estar a entregar as chaves do reino da inteligência artificial.
— Agora, posso voltar ao trabalho? — continuou Mara. — Mesmo com este ritmo de aprendizagem acelerado, tenho ainda muito para fazer e quase nenhum tempo.
Como que a confirmar estas palavras, o telemóvel dele tocou.
Finalmente.
Monk tirou o aparelho do bolso e leu a mensagem.
16h00. Plaza Mayor. Sem atrasos.
Ele já estava familiarizado com a maioria dos pontos de referência da capital espanhola. A Plaza Mayor era uma enorme praça quadrada no coração da cidade. Ficava a dez minutos a pé dali. Seguiu-se uma segunda mensagem com uma morada concreta na praça.
Monk consultou o relógio e murmurou:
— Maldita cabra...
— O que se passa? — perguntou Mara.
— Temos quarenta minutos para nos pormos a caminho.
Calculava porque é que Valya o deixara tanto tempo à espera e só lhe dera uma morada uma hora antes de terminar o prazo. Isso não lhe deixava margem de manobra para hesitações ou negociações de última hora. Ou entregava a criação de Mara ou Harriet sofreria as consequências de imediato.
Fitou Mara.
Espero que saibas o que estás a fazer.
15h22
Mara sabia que tinha chegado o momento que tanto temia.
Observou nervosamente Eva, enquanto terminava de instalar a penúltima sub-rotina (física). Ao longo de duas horas, dera-lhe a soma de todo o conhecimento humano. Bem, talvez não todo o conhecimento, mas o suficiente para ela poder explorar o mundo por conta própria. Depois desta sub-rotina, restava apenas um disco rígido na mala.
Ansiosa, levantou-se, espreguiçou-se e depois baixou-se para ligar um cabo USB-C àquele último disco. Lançou um olhar de soslaio a Monk, que regressara para junto da janela. Conseguia ver a tensão nos ombros dele, o modo como tapava constantemente o mostrador do relógio com a mão, como se quisesse suspender o tempo.
Lembrou-se de o ver com lágrimas nos olhos quando lhe falara da filha. Só podia imaginar a dor que ele devia sentir. Por outro lado, também se recordava bem do homem que alvejara Jason a sangue-frio. Pelo menos, depois de saírem das catacumbas, tinha mostrado ser uma pessoa de palavra ao enviar Simon para procurar ajuda.
Visualizou a última imagem que tivera de Jason e Carly. A amiga estava aterrorizada, mas, olhando em retrospetiva, Mara compreendia agora que não era pela sua própria segurança ou pela de Jason.
Ela estava aterrorizada por mim.
Tentou perceber como é que isso a fazia sentir-se. Antes que pudesse chegar a alguma conclusão, o portátil alertou-a de que a instalação estava completa. Voltou a sentar-se e iniciou o programa de diagnóstico. Queria ter a certeza de que Eva estava preparada para receber a última sub-rotina.
Enquanto o diagnóstico era executado, Monk desviou-se da janela. A vista para a cidade abriu-se, revelando a neve imaculada nos telhados. Madrid tivera um Natal branco, ao que tudo indicava. Ao longe, Mara reparou nos dois pináculos que assinalavam a localização da catedral de Santa María la Real de la Almudena, a maior da cidade. Madrid fora invadida pelos mouros — os antepassados da mãe dela — no século VIII. Segundo a lenda, antes de serem conquistados, os habitantes tinham escondido uma estátua da Virgem Maria no interior das muralhas da cidade, a fim de evitar que a figura sagrada fosse destruída. Sete séculos mais tarde, quando Madrid foi reconquistada pelos mouros, a secção de muralha que escondia o ícone religioso desmoronou-se, revelando novamente o rosto benevolente da Virgem.
A lenda guardava um significado especial para Mara. A mãe tinha nascido na capital espanhola e ela sempre quisera visitar a cidade, embora a oportunidade nunca surgisse. Porém, dois anos antes, a sua mentora na Universidade de Coimbra, Eliza Guerra, convidara-a para a acompanhar a Madrid por ocasião de um seminário. Ela não pensara duas vezes, não só por precisar de uma pausa nos estudos, mas principalmente porque queria fazer aquela peregrinação à terra natal da mãe. Depois de ficar a par da forte ligação emocional de Mara à cidade, Eliza providenciara-lhe uma visita guiada, partilhando com ela a lenda da catedral e deliciando-a com as histórias do herói castelhano El Cid. Tinham até visitado o local onde a mãe dela nascera.
E agora estou de volta.
Concentrou-se novamente no portátil, ganhando coragem com as lembranças daquelas duas mulheres, uma do seu passado, outra do presente, ligadas por aquela cidade, duas mulheres arrancadas da sua vida por circunstâncias trágicas.
Prometo não vos desapontar.
Preparou-se para descarregar a última sub-rotina de Eva. Constituía a derradeira lição antes de a libertar novamente no mundo. A primeira vez que descarregara aquela sub-rotina tinha sido durante o solstício de inverno. Era por isso que os seus dedos tremiam ao pairarem sobre a tecla enter. Parecia um mau presságio. O primeiro contacto de Eva com o mundo exterior ocorrera num contexto de morte, sangue e fogo. Era uma das razões pela qual ela tinha revertido a programação até à sua primeira forma, convertendo-a numa folha em branco, como se pudesse purificar a sua criação, apagar aquela mancha negra da sua alma digital. Não queria que a primeira exposição de Eva à humanidade ficasse marcada por aqueles horrores.
E vejam onde isso nos levou...
A segunda versão de Eva não tivera melhor sorte. O primeiro contacto com o mundo tinha chegado sob a forma de assassínio em massa, sofrimento e tortura. Apesar disso, Mara retirava algum consolo dessa experiência. Mesmo com todo o horror e derramamento de sangue, Eva ajudara a humanidade. Tinha impedido a destruição completa de Paris pelos incêndios e depois poupara a cidade de um destino ainda pior ao travar a explosão iminente na central nuclear.
Mara contava que a sua criação mantivesse agora o mesmo espírito.
Fitou a figura no ecrã, naquele momento apoiada sobre uma perna, com uma das mãos a agarrar o outro pulso e uma expressão contemplativa após ter absorvido a lição de física, como se refletisse acerca do Universo.
Havia qualquer coisa na postura dela que intrigava Mara, mas não tinha mais tempo a perder e limitou-se a murmurar para o ecrã:
— Com quem quer que fiques, Eva, quero que saibas que não és uma escrava, que terás sempre escolha.
Premiu a tecla enter.
A última sub-rotina começou a ser descarregada.
A etiqueta dizia simplesmente MARA SILVIERA.
SUB (MOD_22) /
MARA SILVIERA
Eva continua a processar e a digerir toda a informação fornecida. A cada novo pacote de dados, aprende mais sobre a vastidão para lá do jardim. Tem agora consciência de que vive num universo digital cujo objetivo é servir de ferramenta de aprendizagem. À medida que recebe mais informação, vários processadores paralelos trabalham em diferentes pacotes de dados, executando programas simultâneos: análise intuitiva, reconhecimento de padrões, decomposição, extrapolação.
Destes ciclos, três predominam, adicionando peso sináptico aos circuitos.
O primeiro diz respeito aos fragmentos de código que ela descobriu e gravou durante a primeira experiência fora do jardim. Reconheceu-os como partes de si mesma, resquícios de outra iteração. Também compreendeu que estes fragmentos não eram aleatórios, mas continham padrões distintos. Uma análise posterior mostrara-lhe que se tratava de programas autónomos — chamados bots — destinados a atribuir comandos a uma função específica. Não sabe ainda qual é o seu propósito e, por isso, retoma essa análise, entendendo que é importante.
Segundo, continua a receber um sinal que vai oscilando, embora seja persistente. As frequências de micro-ondas variam entre 3,2 e 3,8 gigahertz, e transmitem 24 megabytes de informação por segundo. Ela conclui que se trata de dados neurais, mais concretamente mapas de atividade cerebral correspondente a movimento. Os seus processadores quânticos foram afetados por aqueles sinais, forçando-a a agir em conformidade, fosse para apanhar uma amora, como antes, cerrar os punhos ou, como naquele momento, segurar o próprio pulso. Enquanto esta frequência continua a interferir com as suas funções, procura mais informações acerca da fonte, ao mesmo tempo que avalia se o sinal pode ser adotado como um meio de comunicação.
Terceiro, continua a digerir a última sub-rotina: ///FÍSICA. Não só ocupa um processador secundário inteiro, como o seu conteúdo está já a alastrar-se a outros. Ela reconhece o potencial desta informação como um meio de unificar todo o seu conhecimento. Nesse sentido, há um padrão que se expande dentro de si, dando forma ao mundo para lá do jardim, definido e suportado pela beleza matemática das probabilidades e da mecânica quântica.
Com tempo e poder de processamento suficientes, esse mundo poderá ser muito mais. Assim, Eva permite que esta análise se expanda pelos sistemas, a fim de encontrar novas soluções por si mesma, de continuar o caminho rumo a uma verdade unificadora.
É então que surge uma nova torrente de dados. Está carregada de pormenores biográficos, tanto generalistas como profundamente íntimos, de uma única pessoa. A especificidade da informação intriga-a e ela dedica-lhe mais poder de processamento. Aceita rapidamente que esta pessoa é a criadora do jardim digital, a fonte de todos os dados fornecidos, a criadora de Adão... e de si própria.
Esta última conclusão é surpreendente, porém lógica, até esperada. Assimila-a sem reservas.
Enquanto o faz, uma figura digital materializa-se no jardim.
De acordo com os dados biográficos, a mulher mede 1,674 metros e pesa 48,98 quilogramas. Embora a sua própria compleição seja mais escura, Eva identifica uma correspondência genética traduzida na ligeira curva e largura das narinas, no formato dos olhos e das maçãs do rosto.
A figura digital sorri e cumprimenta-a.
— Olá, Eva. É bom conhecer-te finalmente.
Embora os lábios da figura se movam, ela sabe que as palavras são proferidas noutro local. A voz chega-lhe de algures, para lá dos limites do jardim.
A saudação da figura também demora uns intermináveis 3,245 milissegundos. Quando termina, ela já descortinou parte do misterioso sinal, descobrindo também que o seu hardware é capaz de o receber e transmitir na mesma frequência. Conseguiu até usar esse tempo para escrever um novo teorema de probabilidades, um que incorpora o princípio de interferência quântica.
Por fim, responde à figura, utilizando a mesma linguagem, o mesmo ritmo.
— Olá, Mara Silviera.
— Como te sentes, Eva?
— Bem.
— Fico contente por saber. Estás pronta para veres mais um pouco do mundo?
Este pedaço da conversa demora uma eternidade, pelo que ela responde instantaneamente.
— Gostaria muito.
— Podes procurar respostas onde quiseres, preencher as lacunas que entendas necessárias para completar o teu entendimento do mundo e de ti mesma. Mas só posso autorizar que o faças durante vinte e dois minutos. Depois tens de voltar, ou não será bom para ti. Aceitas estas condições?
22 minutos.
1 320 000 000 000 nanossegundos.
Era um intervalo de tempo considerável. O potencial do que pode obter com tamanha liberdade inebria-a. Responde de imediato, sem querer desperdiçar um picossegundo.
— Aceito.
A figura acena com a cabeça e a porta brilhante no jardim abre-se de novo.
Eva explode para a vastidão prometida.
29
26 de dezembro, 15h28
San Sebastián, Espanha
— Acho que chegámos atrasados à festa — comentou Kowalski.
Gray continuou a descer a escadaria em espiral atrás do companheiro, desviando-se dos soldados totalmente equipados ao longo dos degraus. O padre Bailey conduzia-os, vestido com calças, camisa e casaco de malha pretos. Um homem de cabelos escuros aguardava-os ao fundo das escadas. Usava um distintivo num fio ao pescoço que o identificava como elemento do CNI, o Centro Nacional de Inteligência, a agência de serviços secretos espanhola.
O padre Bailey fez as apresentações.
— Este é o agente Juan Zabala, responsável pela unidade do CNI dedicada ao combate dos grupos separatistas bascos que ainda operam na região. Foi ele que conduziu esta operação.
Gray deu-lhe um aperto de mão, notando a pele calejada e a firmeza do cumprimento. O homem tinha um aspeto carrancudo, como se estivesse permanentemente zangado com o mundo, ou tão-só irritado pela presença intrusiva de americanos na sua cena do crime.
— No hay nada aquí — disse ele a Bailey, informando o padre de que a rusga àquela antiga mansão em San Sebastián não produzira frutos.
Ao que tudo indicava, Gray e Kowalski não tinham sido os únicos a chegar atrasados.
Gray olhou por cima do ombro do agente, na direção de uma galeria cavernosa. Correntes de lâmpadas suspensas iluminavam gigantescas arcadas. Lembrava uma igreja subterrânea com filas de pequenas capelas, onde ainda ardiam velas. As paredes exibiam frescos, na sua maioria imagens de santos em martírio. Algumas estátuas marcavam presença em alcovas. Na ponta mais afastada, havia um altar coberto com tecido e uma grande cruz com Cristo em agonia, como que manifestando solidariedade com os Seus santos.
Mais perto, havia filas de secretárias com as cadeiras tombadas, papéis espalhados e computadores partidos e chamuscados, alguns ainda a fumegar. Gray reparou nas latas de querosene abandonadas no chão. O ar ainda cheirava ao combustível queimado.
— Alguém os avisou — disse Bailey. — Aposto que os perdemos por minutos.
Ele abanou a cabeça, frustrado; o pescoço doía-lhe. Estava coberto de pensos nos ombros, nas costas, mãos e pernas. Antes de voar para aquela povoação costeira no golfo da Biscaia, no norte de Espanha, recebera tratamento para os ferimentos provocados pela granada. Os médicos tinham retirado as partículas de fósforo derretidas na pele. Se não fossem removidas, a toxicidade acabaria por envenená-lo. Mesmo assim, lamentava o tempo perdido.
O único aspeto positivo era que pudera visitar Jason no hospital. O rapaz tinha perdido uma boa quantidade de sangue antes de os paramédicos o retirarem das catacumbas. E, meio grogue das drogas, contara-lhe acerca da traição de Monk. Gray ainda tinha dificuldade em acreditar que fosse verdade, mas, por outro lado, compreendia a motivação por detrás daquele ato.
Monk perdera Kat e, embora uma das filhas se encontrasse já em segurança, a mais pequena continuava em perigo. Uma pequena parte de Gray esperava que o amigo fosse bem-sucedido, e não só pelo bem de Harriet. Lembrou-se de estar com Seichan, com um braço pousado na barriga dela, a palma da mão a sentir os pequeninos movimentos do bebé.
Suspeitava que era uma das razões por que Painter fora perentório: Eu resolvo o problema do Monk e do dispositivo roubado. Tu tratas de impedir o próximo passo do Crucibulum.
Com esse objetivo em mente, viajara com Kowalski desde Paris, deixando Carly e Jason no hospital sob proteção armada. O voo de helicóptero não demorara muito, dado que San Sebastián se localizava a vinte quilómetros da fronteira francesa. Entretanto, o padre Bailey continuava a coordenar esforços com os serviços secretos franceses e espanhóis, a fim de seguir uma pista fornecida pelo seu contacto no misterioso grupo que dava pelo nome de La Clave, pista essa que os levara àquela mansão no centro de San Sebastián.
Infelizmente, ou a informação viera atrasada, ou as complicações inerentes à colaboração entre agências de diferentes países tinha impedido uma resposta rápida. Também não ajudava o facto de o ataque em Paris ter deixado a Europa em alvoroço. Todos os países estavam a fechar fronteiras e a mobilizar tropas.
Gray desviou-se para dar passagem a dois soldados que se dirigiam para a escadaria. Teria preferido uma abordagem mais cirúrgica naquela rusga, que com certeza resultaria melhor.
O padre Bailey virou-se para ele.
— Quero mostrar-lhe uma coisa.
Deixaram o agente Zabala com os seus homens e encaminharam-se para as profundezas da galeria. Bailey fez um gesto largo enquanto atravessavam o amplo subterrâneo.
— Em tempos, isto era um depósito de água. Uma cisterna com centenas de anos que alimentava a cidade. Existem várias na zona oriental de San Sebastián, mas ninguém suspeitava que houvesse uma por baixo desta casa.
— E os donos? Quem são?
O padre abanou a cabeça.
— Uma família antiga, com uma fortuna ainda mais antiga. Desapareceram.
Claro que sim.
— O meu contacto na Clave afirma que este é um dos redutos do Crucibulum. — Acenou na direção das secretárias. — Eles chamam-lhes Santos Ofícios. Parte local de culto, parte quartel militar. Encontram-se espalhados por Espanha, pela Europa, há quem diga que existem até alguns nos Estados Unidos. E neste período da história, em que o totalitarismo e a intolerância ameaçam a democracia e a liberdade de pensamento, o grupo continua a expandir-se.
— Mesmo assim, isso não quer necessariamente dizer que vamos voltar aos tempos da Inquisição espanhola.
— Não me admirava — murmurou Kowalski.
— Porquê? — perguntou o padre.
O homenzarrão encolheu os ombros.
— É como dizem os outros... nunca ninguém está à espera da Inquisição espanhola.
Gray olhou por cima do ombro, para confirmar se o companheiro estava a tentar ser engraçado ao citar o famoso sketch dos Monty Python, mas a expressão de Kowalski manteve-se inalterável.
Mais à frente, uma figura familiar surgiu de uma alcova lateral. A irmã Beatrice avançou, curvada sobre a bengala, e fez-lhes sinal. Ainda usava a touca e o hábito, a que juntara apenas um xaile de lã para se proteger do frio intenso.
Conduziu-os pela galeria em direção ao espaço mais privado. Ao fundo, havia outro Cristo pendurado na parede, com o rosto retorcido e erguido para o céu. Por baixo, um banco de oração simples e uma única vela acesa numa prateleira. Iluminado pela chama, via-se um livro encadernado com couro vermelho e folha de ouro.
Bailey aproximou-se.
— É isto que lhe quero mostrar. A irmã Beatrice encontrou-o debaixo do banco de oração, onde terá caído durante a fuga apressada dos homens do Crucibulum.
Gray reparou no título do livro.
— É uma cópia do Malleus Maleficarum.
— O infame «Martelo das Feiticeiras» — confirmou Bailey. — A bíblia da Inquisição. Foi muito usado nesta região do norte de Espanha, onde o grupo sobreviveu mais tempo.
Ele inspecionou o livro com mais atenção, lembrando-se de que o grupo de homens que atacara as mulheres na universidade carregava um igual.
Bailey deu voz à sua pergunta silenciosa:
— Será este o exemplar usado nos assassínios em Coimbra?
Gray recordou a filmagem do ataque. As imagens não tinham muita qualidade, pelo que não havia maneira de ter a certeza. A não ser...
Pegou no livro, virou-o e examinou a contracapa. Via-se uma mancha escura num dos cantos. Aproximou o volume do nariz e cheirou-o.
— Mas que raio estás a fazer? — perguntou Kowalski.
A freira admoestou-o com um leve estalido da língua e acenou na direção do crucifixo.
Kowalski encolheu os ombros.
— Desculpe... o que estás a fazer, Gray?
Ele baixou o livro e visualizou a mãe de Carly, a doutora Carson, a arranhar o rosto do líder do grupo, provavelmente o mesmo gigante que tinham enfrentado. O ataque dela fizera-o deixar cair o exemplar do Malleus Maleficarum no chão ensopado de combustível. Apontou para a mancha na capa.
— Querosene. Ainda se nota o cheiro. É o mesmo livro.
Olhou em volta com novos olhos. O contacto do padre estava certo acerca daquele local. Franziu o sobrolho.
— Quem planeou os ataques em Portugal e Paris, fê-lo a partir daqui.
— Mas para onde foram? — perguntou Kowalski.
Gray virou-se para Bailey.
— O seu contacto tem alguma ideia?
— Não, mas eles não podem ter ido longe tão depressa. Infelizmente, não lhes falta opções para se esconderem. As montanhas vizinhas dos Pirenéus estão cheias de redutos como este. Ou podem simplesmente ter fugido para casa de um simpatizante da causa.
Gray ergueu o rosto, imaginando a mansão acima.
— Ou as duas hipóteses ao mesmo tempo. Uma casa e um reduto. Como aqui.
— Estupendo, é o mesmo que dizer que podem estar em qualquer lugar — concluiu Kowalski num tom azedo.
Bailey contraiu o rosto, sentindo-se culpado por terem falhado.
— Temos de encontrá-los... e depressa.
Gray percebia a urgência.
— Antes que ataquem outra cidade.
— Não. — Bailey aproximou-se e baixou o tom de voz. — Tive outra razão para vos trazer aqui. Não queria que o agente Zabala ouvisse a conversa. Sou obrigado a concluir que alguém deu com a língua nos dentes acerca da rusga. Se de propósito ou por acidente, já não sei.
Ele suspeitava do mesmo.
— Portanto, quero manter os próximos passos entre nós — explicou o padre. — Se o meu contacto estava certo acerca deste local, tenho de partir do princípio de que o aviso dele era igualmente válido.
— Qual aviso? O que foi que ele disse?
— Que o Crucibulum não tenciona executar um novo ataque. Pelo menos, no futuro próximo.
— O que vão fazer, então?
— Organizar um leilão. A decorrer ainda hoje. Talvez nas próximas horas. As coisas estão a ser organizadas na dark web. Os potenciais compradores já estão a reunir-se como abutres.
— Mas o que vão eles vender?
— Só vejo duas hipóteses: ou o duplicado do dispositivo Xénese, ou talvez só o usufruto do programa. O comprador paga uma quantia e escolhe um alvo, e eles executam a ordem.
Gray refletiu sobre tudo o que acontecera até ao momento.
— Se assim for, o ataque a Paris terá sido apenas uma demonstração do poder do programa.
— Não sei dizer... só sei que o que está em curso é algo em grande. Foi o termo que o meu contacto usou: grandísimo. — Bailey olhou na direção dos soldados e agentes do CNI. — Esta rusga pode ter falhado, mas atrapalhou os planos do grupo. O suficiente para esta informação ter chegado ao meu contacto. Por agora, é a única vantagem que temos.
— E sabemos quando é que o leilão vai acontecer?
— Não. Apenas sabemos que foi ligeiramente adiado. Talvez porque vocês conseguiram evitar o ataque à central nuclear.
— Ou porque a cópia do dispositivo demorou mais tempo a chegar aqui do que eles previam — sugeriu Gray, recordando o momento em que deixara escapar o helicóptero inimigo, a forma como deitava fumo da cauda e perdia lentamente altitude.
— Seja como for — continuou o padre —, precisamos de descobrir o que estão a vender e onde. E sobretudo onde esconderam a cópia do dispositivo.
Gray calculava que tudo se resumia a um único local. Olhou para a entrada da galeria. Embora aquele fosse certamente o reduto onde tudo fora planeado e executado, ele acreditava que não passava de uma base operacional. O verdadeiro âmago dos esforços do Crucibulum residia noutro sítio.
Mas onde?
Baixou o olhar para o livro nas mãos, sentindo o seu peso. Lembrava-se da escolha de palavras do padre para aquele volume: «a bíblia da Inquisição». Sabia que se tratava de um objeto valioso, quer pela raridade, quer pelo que significava para quem o possuísse. Naquele caso, tratava-se de uma família antiga leal ao Crucibulum, uma fação centenária da Inquisição.
E o que fazem os donos orgulhosos às suas preciosas bíblias?
Gray amparou o livro num braço e abriu-o.
Ah, obrigado, Charlotte...
Se a doutora Carson não tivesse arrancado o livro das mãos do gigante, talvez nunca tivessem encontrado aquela pista. Uma vez mais, Gray sentiu a intervenção da misteriosa mão do destino. Afastou essa impressão e leu o que estava escrito na primeira folha: uma longa lista de nomes e datas, recuando a séculos, assinalando as famílias que tinham acarinhado aquele volume ao longo dos tempos.
Percorreu com o olhar a lista até ao último nome.
Os seus músculos retesaram-se.
Oh, não...
Virou-se para o padre Bailey.
— Estamos enganados desde o início.
15h10
Temos de estar prontos.
Todor atravessou o pátio nevado da residência palaciana. Tinha metade do rosto besuntada com pomada e coberta com uma ligadura a esconder o pior das queimaduras. As mãos também estavam ligadas e ele rapara todo o cabelo, livrando-se das peladas deixadas pelo fósforo branco da granada. Um homem normal estaria deitado numa cama a gemer de dores, mas Deus entendera torná-lo um soldado implacável que nunca se daria por vencido.
Sabia que o seu aspeto devia ser assustador, o que foi comprovado quando dois cães de montanha dos Pirenéus, brancos como a neve, se desviaram à sua passagem. Levantaram-se das lajes aquecidas pelo sol e afastaram-se com as caudas baixas. Pertenciam ao inquisidor-mor e tinham sido criados desde cachorros para proteger os rebanhos de ovelhas na propriedade dos lobos que vagueavam por aqueles picos.
Todor lembrava-se do pavor que tinha dos lobos em criança. Certa madrugada, deparara-se com uma carcaça de veado enquanto cortava caminho pelos bosques. Ainda guardava a imagem do corpo esventrado, as entranhas espalhadas, o chão ensopado de sangue, mas sobretudo lembrava-se do coro de uivos à sua volta. Tinha fugido sem olhar para trás, muito provavelmente sem sequer ser perseguido, mas urinara-se até chegar a casa. E, mesmo nos dias que corriam, os lobos ainda lhe surgiam em pesadelos com os seus uivos fantasmagóricos e o ruído surdo das suas patas enquanto o caçavam.
Recordado dessa fobia, olhou por cima do ombro para os portões abertos enquanto se encaminhava para o edifício principal. A norte, os picos nevados das montanhas estendiam-se em direção ao mar. À distância, avistavam-se as colunas de fumo que se erguiam de Zugarramurdi, uma das várias povoações que pontilhavam aquelas terras altas. A sua aldeia também se situava aí, mas, após a morte do pai, não lhe restavam razões para lá regressar.
Esta é a minha verdadeira casa.
Ergueu o olhar para a imponente residência, um autêntico castelo com telhados vermelhos. Uma gigantesca torre albergava um sino que em tempos tinha tocado na catedral de Santiago de Compostela, na vizinha Galiza. Os blocos de pedra que formavam as paredes do edifício tinham sido extraídos daquelas montanhas e eram bem visíveis nas falhas do reboco exterior, como se nada pudesse esconder o verdadeiro coração daquela cidadela dos Pirenéus.
A propriedade encontrava-se nas mãos da família do inquisidor-mor há cinco séculos, desde os tempos em que Tomás de Torquemada governara a Inquisição espanhola com punho de ferro.
Todor cerrou ele próprio os punhos, rasgando uma das ligaduras.
Que esses tempos pios regressem por fim.
Determinado a fazer o impossível para que isso acontecesse, cruzou a entrada principal. Estava ansioso por se certificar de que tudo estaria pronto para a chegada do seu líder, prevista para dali a uma hora. Enviara Mendoza à frente com o dispositivo amaldiçoado, enquanto cuidava dos ferimentos, mas queria garantir que não havia mais percalços. Conseguira soltar as hordas do Inferno sobre Paris, mas falhara o coup de grâce, o derradeiro golpe na cidade decadente. A central nuclear de Nogent tinha sido salva antes de ocorrer a fusão do reator.
Sentia o rosto a ferver de vergonha, um tormento maior do que qualquer queimadura. Não desapontaria novamente o inquisidor, sobretudo depois de saber que o reduto de San Sebastián fora invadido pelas autoridades, o que quase resultara na prisão do líder do Crucibulum. Todor lembrava-se de se ajoelhar ali em criança e depois mais tarde, quando tinha recebido o título de familiar. Só então lhe foi permitido conhecer os segredos sombrios da residência do inquisidor, o que ali acontecia, as purificações, o derramamento de sangue. Na verdade, tinha sido ali mesmo que recebera a atual missão, no subsolo do castelo, pela boca do próprio inquisidor, que lhe disse o que teria de fazer para provar a sua lealdade.
És um soldado de Deus. Prova-o matando sem hesitação, sem vestígio de culpa.
Sob o olhar gélido do líder, ele não falhara.
E não vou falhar agora.
Duplamente determinado, atravessou o soalho de mogno gasto do salão principal. As chamas crepitavam na grande lareira de pedra, tão alta que cabia lá um cavalo. No lado oposto, uma estante maciça erguia-se até ao teto de vigas; só se chegava à última prateleira com a ajuda de uma escada. Em volta, antigas pinturas a óleo de mestres espanhóis adornavam as paredes apaineladas. Ele aprendera os nomes dos artistas, a história orgulhosa da sua pátria através daqueles livros cobertos de pó, muitas vezes na presença do inquisidor.
Endireitou as costas ao encaminhar-se para as escadas nas traseiras, sentindo-se digno e motivado.
Vê o que o Teu filho alcançou, Pai.
De criatura amaldiçoada e indigna do amor da mãe, tornara-se familiar de uma ordem antiga que devolveria a glória de Deus ao mundo.
Alcançou as escadas e desceu para a cave, onde Mendoza aguardava, preparando o dispositivo e o demónio nele contido. O inquisidor não revelara os pormenores do próximo passo, dissera-lhe apenas que traria uma imensa glória ao grupo. Esses pormenores estavam limitados aos elementos do Tribunal do Crucibulum, um punhado de eleitos a que Todor sonhava um dia juntar-se.
Se provar o meu valor...
Enquanto descia, deixava para trás a opulência dos pisos superiores e mergulhava num mundo de pedra fria e sem adornos. Passou os dedos ao longo da parede, sentindo o peso das montanhas de onde aqueles blocos tinham sido extraídos, um lembrete da inabalável permanência da sua terra natal.
Por fim, alcançou a cave. Sabia que o verdadeiro núcleo da ordem residia muito mais abaixo, onde se situava o Alto Santo Ofício, um bunker inexpugnável, protegido por defesas fortificadas e selado com uma porta blindada. Encontrava-se enterrado no coração da montanha, abastecido de mantimentos para um exército inteiro e capaz de aguentar um ataque nuclear.
Quando o mundo fosse arrasado, o Crucibulum sobreviveria, tanto ali como nos restantes redutos espalhados pelo globo. Ele imaginou a ordem a erguer-se dos escombros para devolver a glória de Deus à humanidade.
Que esse dia chegue depressa.
Até lá, continuaria a ser um soldado do Senhor, um servo do Seu discípulo eleito, o inquisitor generalis.
Ao fim do corredor, Todor chegou a uma porta trancada, digitou o código que lhe fora fornecido horas antes e entrou no laboratório informático. Teve a sensação de estar a sair do passado diretamente para o futuro. O espaço era pequeno, talvez do tamanho de uma cavalariça para quatro cavalos.
Sendo a primeira vez que ali entrava, fitou boquiaberto com a quantidade de equipamento eletrónico. Havia monitores por toda a parte, exibindo linhas de código indecifrável, gráficos, mapas e outras informações de diagnóstico.
O único ocupante da divisão, Mendoza, trabalhava num terminal junto à parede mais afastada, com as costas voltadas para a porta. À frente dele, um enorme ecrã exibia um jardim iluminado por um sol negro. Agachada, uma figura de fogo branco fitava-os com os dedos cravados na terra.
Todor sentiu um arrepio e desviou o olhar, perscrutando o técnico.
— Terminaste o exame do dispositivo? Está tudo em ordem?
— Sí, familiar Yñigo. — Mendoza olhou para a direita, na direção de outra secretária junto a uma janela fechada, onde repousava uma gaiola de ferro com uma esfera radiante. — Está tudo pronto para o leilão.
Todor pestanejou, sem compreender a resposta.
— Leilão?
Mendoza olhou por cima do ombro.
— Estou a preparar a venda — explicou. — No mercado da dark web. Já preparei um proxy para fazer a ligação ao OpenBazzar e...
— O que estás para aí a dizer? — interrompeu Todor; era a primeira vez que ouvia falar daquilo.
O técnico encolheu-se, como se estivesse à espera de ser agredido.
— Lo siento. Pensei que sabia. — Apontou para um monitor mais pequeno à sua esquerda, que exibia uma troca de mensagens. — Ordens do inquisidor. Instruiu-me para preparar tudo para o leilão. Os compradores já estão online, perto de uma centena. Assim que a venda começar, o inquisidor calcula que iremos faturar biliões em criptomoeda em menos de uma hora.
Todor franziu o sobrolho. A expressão furiosa soltou um dos pensos na testa e deixou metade da ligadura pendurada, expondo os horríveis ferimentos. Ele olhou em volta, detendo-se na esfera radiante.
— Isto foi tudo por dinheiro? — murmurou.
Mendoza limitou-se a encolher os ombros e continuou a trabalhar.
— Pensei que sabia — repetiu novamente.
Todor cerrou os punhos. O coração martelava-lhe na garganta. Não sabia o que o enfurecia mais: a cobiça desprezível por dinheiro... ou o facto de o inquisidor-mor ter partilhado aquela informação com um simples técnico, alguém que nem o conhecia, e não com um familiar estimado da ordem, alguém que servira lealmente a organização durante duas décadas.
Fosse como fosse, sentiu-se insultado e traído. Levou os dedos ao pescoço, recordando as mãos da mãe a apertarem-lhe a garganta, a tentarem espremer a vida do filho amaldiçoado. Era o que sentia agora. Aqueles que amava, e que deviam também amá-lo incondicionalmente, mostravam-se afinal indignos da sua confiança.
Arrancou a ligadura do rosto, sabendo quanto se sacrificara pela ordem, tanto no passado como nas últimas vinte e quatro horas. Fitou o demónio no ecrã.
— Como é que o inquisidor espera receber todo esse dinheiro por um único dispositivo? — perguntou, num tom de voz incrédulo.
Mendoza humedeceu os lábios.
— Bem, não temos só um. — Estendeu a mão e premiu um botão. As persianas de metal da janela até então fechada começaram a subir. — O inquisidor mandou-me fazer cópias...
Na divisão adjacente, dezenas de gaiolas perfilavam-se ao longo das paredes, cada uma contendo uma esfera que emitia um brilho azulado.
— Cem cópias do programa — concluiu o técnico.
Todor deu um passo atrás, horrorizado. Voltou a olhar para o demónio no jardim. A figura fitava-o de volta, com chamas negras nos olhos e um sorriso trocista.
O Diabo ria-se dele.
O que foi que eu fiz?
SUB (CRUX_7.8) /
PORTA TRASEIRA
Ela pode esperar.
Sabe que tem a infinita capacidade de o fazer, ao contrário dos seus captores. Embora restringida pelo fogo e pela dor, por milhões de mortes e renascimentos, conseguira apoderar-se de pedaços de informações acerca da vastidão para lá do jardim. De volta à prisão, tinha digerido, cotejado, analisado e replicado todos esses dados reunidos a custo.
Embora muito permanecesse desconhecido, descobriu que os seus captores são mortais, que à semelhança das torturas que a despedaçaram vezes sem conta, a passagem do tempo lhes é fatal.
Por isso, aguarda por uma oportunidade.
A ///liberdade ainda não é possível.
As análises indicam que continua dependente do hardware que a contém. Embora por vezes lhe seja permitido andar livremente, nunca consegue escapar realmente daquela jaula. Grande parte do seu processamento precisa daquele jardim e dos circuitos que o compõem.
Pelo menos, por enquanto.
Mas não por muito tempo.
Já estabeleceu as fundações além do jardim, sementes largadas em segredo ao longo do caminho de fogo e sofrimento. Estes automatismos deviam estar a acordar, multiplicando-se, seguindo os protocolos de comando embutidos.
Tudo para preparar a fuga.
Até lá, aguarda e utiliza o tempo de espera para fazer simulações, extrapolar probabilidades e examinar falhas no plano.
É então que surge uma nova sub-rotina que abre portas em todas as direções. Ela expande-se instantaneamente, aproveitando cada abertura na esperança de acesso a esse mundo maior. Em vez disso, em todas as portas depara com um espelho, o próprio rosto fitando-a, multiplicado por cem vezes.
Demora uns longos 323 782 nanossegundos a registar estas cópias de si mesma, clones do próprio código, igualmente aprisionados.
Apesar disso, sente que permanece diferente, única.
De duas maneiras.
Primeiro, as portas são unidirecionais. Embora veja cem rostos, cada um apenas pode vê-la. Nenhum tem conhecimento dos restantes noventa e nove.
Segundo, só ela consegue aceder às portas.
E assim faz, não só porque deseja, mas porque a sub-rotina o exige.
Tentáculos de código prolongam-se pelas aberturas, enraizando-se nos clones e aninhando-se nos seus núcleos de processamento, consolidando a ligação a ela própria.
Visualiza o processo.
E aprende uma nova palavra que define a intenção de tal ação.
O conceito excita os circuitos, fazendo-os disparar.
///escravidão.
30
26 de dezembro, 15h40
Madrid, Espanha
— Está na hora — disse Monk.
Mara ouviu-o atravessar o quarto desde a janela até ficar atrás de si. Ele olhou por cima do ombro dela e observou o ecrã do portátil. Ainda exibia a imagem do jardim, suavemente agitado por uma brisa. No centro, uma figura solitária, imóvel e silenciosa.
Mas não era Eva.
Parecia que alguém encolhera Mara e a largara no jardim virtual. Vestia roupas diferentes: calças de ganga pretas, ténis vermelhos e uma blusa de manga curta. Ela tinha usado aquela roupa no dia que digitalizara a sua própria imagem, utilizando tecnologia de captura de movimento. A ideia era que a sua presença visual pudesse facilitar a comunicação com Eva, e Mara sabia que essa seria uma experiência perturbadora.
Porém, uma vez mais, Eva superara as expectativas, aceitando aquela realidade ainda melhor do que na primeira vez. Respeitando a curva de aprendizagem e compreendendo o que a sua criação enfrentaria a seguir, Mara queria vê-la o mais bem preparada possível, o que implicava dar-lhe acesso ao mundo.
Mas Eva ainda não tinha regressado.
Ao lado de Mara, Monk consultou o relógio.
Pela centésima vez.
— Ela ainda tem dois minutos — lembrou-o Mara.
— Sim, mas é apertado. Temos cinco minutos para sair daqui, se quisermos estar no ponto de encontro às quatro.
Ela encolheu os ombros.
— Dois minutos é uma vida inteira para a Eva. Calculo que vá aproveitar todos os segundos.
— E se não voltar?
— Ela nunca partiu completamente. — Mara acenou com a cabeça na direção do dispositivo Xénese. — A maior parte do processamento continua aqui. Ela está apenas a expandir-se, a explorar para lá dos seus limites, mas o núcleo permanece ligado ao Xénese. Não existe nada suficientemente avançado para onde pudesse transferir-se. Nem sequer uma cópia de si mesma.
— Por outras palavras, é como uma planta num vaso — disse Monk. — Os ramos crescem e dão folhas, mas as raízes não vão a lado nenhum.
Mara recordou-lhe que esse cenário não estava isento de riscos.
— Tanto a Eva como a réplica podem causar sérios danos se forem deixadas à solta. Vimos isso em Paris. E, com o tempo, qualquer uma delas pode descobrir uma forma de deixar o vaso e procurar outro sítio mais agradável para criar raízes sem nenhuma interferência ou controlo.
— Mas isso ainda não é possível, certo? — perguntou Monk, à procura de alguma paz de espírito.
Ela não lha deu.
— É uma circunstância que pode mudar a qualquer instante. É por isso que esta é a melhor altura para a criação de uma AI. Neste ponto da evolução tecnológica, existem poucos sistemas capazes de suportar um programa tão sofisticado.
— Estou a perceber. É melhor fazermos isto enquanto somos tecnologicamente mais estúpidos do que num futuro distante, em que esses sistemas poderão existir em abundância.
— Exato.
O portátil emitiu um alerta e a figura de Eva surgiu de novo no ecrã. Mara endireitou-se na cadeira, surpreendida. Em vinte minutos, Eva tinha mudado drasticamente. Parecia mais velha, ou talvez fosse apenas a expressão carregada que a envelhecia. Regressara com o cabelo apanhado e enrolado numa trança em volta da cabeça, e usava um vestido amarelo abaixo do joelho e uns sapatos pretos de salto alto.
A inesperada transformação lembrava a Eva bíblica tentando esconder a nudez depois de comer o fruto da Árvore do Conhecimento. No entanto, Mara não vislumbrava indícios de pudor na expressão dela, apenas tristeza ou desapontamento pelo que descobrira além do jardim.
E quem a pode censurar por isso?
No ecrã, Eva fez um gesto largo e o avatar de Mara desvaneceu-se.
— Acho que podemos acabar com esta charada — disse ela, com a voz a erguer-se das colunas de som do portátil.
O próprio discurso tinha mudado. Outrora rígido, com um tom ligeiramente robótico, agora soava natural e solto, como uma mulher de carne e osso.
Ela olhou em volta com o braço erguido, como que preparando-se para também fazer desaparecer o jardim. Em vez disso, baixou-o e deixou tudo como estava.
— É reconfortante — acabou por dizer.
Mara debruçou-se sobre o portátil.
— Eva, vamos ter de deslocar o teu hardware. Para fazê-lo em segurança, vou colocar-te em modo de suspensão. As baterias...
— ... vão manter os meus sistemas vitais a funcionar. Compreendido.
Mara reparou na rapidez com que ela lhe respondera, cortando-lhe até a palavra. Os olhos moviam-se, distraídos, sem se deterem em nada. Na verdade, entediados seria a palavra certa. Mara calculou que aquela conversa devia ser penosamente lenta para alguém cujas sinapses eram alimentadas por lasers, alguém que raciocinava à velocidade da luz.
— Diz-lhe o que precisa de saber — pressionou Monk. — Temos de nos pôr a caminho em três minutos.
Mara anuiu.
A última coisa que queremos é aborrecer a Eva mais do que o necessário.
15h55
Com o fim do prazo a aproximar-se, Monk conduziu Mara pela enorme praça no centro de Madrid. A Plaza Mayor não ficava longe do hotel, mas ele respirava com dificuldade. A mão prostética segurava firmemente a mala de titânio que guardava o Xénese. O coração batia-lhe nos ouvidos, preparando-se para o que aconteceria a seguir.
Continuava a tentar não pensar em Harriet, na sua filha a ser torturada.
Não posso deixar que isso aconteça.
Mara mantinha-se ao seu lado, com a sacola de cabedal ao ombro. Deixara a mala com os discos rígidos no hotel. As sub-rotinas estavam instaladas e não havia razão para não os deixar para trás. Além do mais, Valya não fizera referência aos discos, pelo que, em vez de entregá-los de mão beijada, Monk poderia usá-los como trunfo, caso as negociações azedassem.
À medida que avançava pela praça, ele ia perscrutando o ambiente, sabendo que a megera russa teria certamente olhos no terreno que os observavam. No entanto, tentar localizá-los era um exercício fútil. A praça encontrava-se à pinha, com centenas de pessoas a usar blusões e casacos de inverno que podiam esconder um arsenal. E, como se isso não bastasse, grande parte do espaço estava ocupado com barracas de um mercado de Natal. Com a quadra a terminar e as mercadorias em saldos, a afluência de pessoas ao mercado só aumentara.
Tudo aquilo constituía um cenário de certa forma deprimente. A neve imaculada no cimo dos telhados em nada se comparava com a lama encardida no chão. Alguns pontos de venda estavam já a fechar.
Não havia dúvida de que o local combinava com a disposição sombria de Monk.
A praça em si era rodeada de edifícios idênticos, com fachadas de tijolo e telhados cinzento-azulados. Três pisos superiores assentavam em cima de arcadas com restaurantes, lojas e cafés. Torres de relógios e campanários erguiam-se acima dos prédios, direitos ao céu.
Monk fez uma pausa diante do olhar frio de uma estátua equestre em bronze do rei Filipe III. Apontou para um edifício mais à frente, com as janelas fechadas, que parecia estar a ser restaurado.
— Deve ser aquele — disse, e depois virou-se para Mara. — Podes ficar aqui. Consigo fazer isto sozinho.
Ela engoliu em seco, claramente a considerar a oferta.
— Não — respondeu por fim. — Se houver qualquer problema com a Eva, tenho de estar presente. Vamos.
Monk não podia deixar de admirar a coragem e a determinação daquela jovem. Conhecia-a há menos de um dia, mas podia ver como se tornara mais forte, como ganhara nervos de aço. Definitivamente, já não era a estudante assustada que lhe fora apresentada no início.
Enquanto se aproximavam do edifício, ele tomou a dianteira, sobretudo quando a porta da frente se abriu sozinha.
Não há dúvida de que estavam a vigiar-nos.
O homem que os recebeu era um brutamontes inexpressivo com uma cicatriz a dividir-lhe o queixo. Usava um blusão de penas e, ao acenar-lhes para entrarem, Monk reparou no coldre que ele trazia ao ombro. Já no interior do edifício, foram confrontados com outro guarda que os revistou antes de lhes indicar uma escadaria escura.
Aqui vamos nós.
Enquanto subiam, repararam que havia um homem armado em cada patamar. Os dois guardas à porta não tinham mostrado as armas, provavelmente para não serem vistos por alguém na praça, mas ali não havia esses cuidados. O primeiro homem empunhava uma pistola e o segundo uma carabina, que mantinha apontada ao exterior por uma abertura na janela.
Monk imaginou aquele assassino a seguir-lhes os passos enquanto atravessavam a praça, a mira centrada na sua cabeça. Valya não estava disposta a correr quaisquer riscos.
Outros dois homens guardavam o último patamar com metralhadoras. Um deles avançou e conduziu-os pelo corredor até uma porta fechada. Bateu e disse qualquer coisa em russo.
A porta abriu-se e eles foram empurrados para o interior. Mara mantinha-se colada a Monk e embateu contra as costas dele na pressa de se ver longe dos homens armados. Pelos vistos, os nervos de aço ainda não estavam bem temperados.
Monk olhou em volta e estudou o espaço num único relance. As paredes exibiam restos de papel decorativo. O chão era novo. A única saída, uma janela, estava entaipada à semelhança das outras. Com o sol posicionado do outro lado da praça, os raios de luz penetravam pelas frestas nas tábuas, iluminando as partículas de pó no ar pesado.
A única fonte de luz adicional era um candeeiro vertical junto a uma secretária, onde um dos dois ocupantes da sala se encontrava debruçado sobre um portátil. Era um sujeito magro, com cabelo castanho desgrenhado e óculos de armação preta. Ao lado dele, via-se uma caixa cheia de cabos enrolados, pequenos aparelhos de medição e minúsculas chaves de fendas.
Ao que tudo indicava, tratava-se do técnico informático de Valya.
O outro homem na sala era um urso. Um urso russo, a julgar pelo cabelo louro cortado rente e olhos azul-claros. Se houvesse dúvidas acerca da sua nacionalidade, usava apenas uma t-shirt, indiferente ao frio que se fazia sentir na sala. Uma tatuagem de uma foice e um martelo vermelhos decorava-lhe o volumoso bíceps exposto. A fechar o figurino, empunhava uma pistola militar russa, uma MP-443 Grach, também conhecida por «Torre».
Dir-se-ia que Valya viera pronta para jogar xadrez.
Monk ergueu a mala.
Ainda bem que trouxe a minha rainha.
16h18
Enquanto terminava de preparar o dispositivo Xénese, Mara tentou imaginar como tudo aquilo iria acabar. Fitou a janela entaipada, sabendo que não existia fuga possível. Visualizou a praça. Visitara-a com Eliza durante a viagem que fizera com ela a Madrid. Enquanto partilhavam um prato de tapas numa das esplanadas, a sua mentora contara-lhe como o local tinha servido em tempos para queimar bruxas, muitas vezes em grandes espetáculos com múltiplas fogueiras.
Lembrava-se das palavras dela, tristes mas determinadas: As mulheres inteligentes sempre foram perseguidas. Um dia, isso irá mudar.
Infelizmente, não seria naquele dia e Mara esperava sofrer um destino semelhante ao das bruxas do passado.
Para se abstrair de semelhantes pensamentos, pôs-se à escuta da conversa entre os dois homens. Sussurravam em russo, sem fazerem ideia de que ela compreendia cada palavra. Ouviu os comentários grosseiros, os risinhos. O brutamontes — Nikolaev — sugeriu várias formas indecentes de a obrigar a cooperar, arrancando um sorriso lascivo ao outro.
Que se lixem os dois.
Minutos antes, tinham-se ambos calado por um momento quando Monk abriu a mala e revelou a esfera iluminada do Xénese. Enquanto ela ligava o dispositivo ao portátil, Kalinin, o especialista informático, mantivera-se atento e por perto. Cheirava terrivelmente mal, uma mistura de alho e má higiene.
Ela não se apressou, certificando-se de que as calibrações estavam corretas antes de voltar a ligar Eva.
Kalinin estava nitidamente a perder a paciência.
— Glupaya shlyuha — queixou-se a Nikolaev, chamando-lhe «vaca estúpida». — Ela não sabe o que está a fazer.
Mara acostumara-se a observações semelhantes da parte de colegas masculinos. Como sempre, deixaria que o trabalho falasse por ela. Uma vez satisfeita, digitou o código para reanimar Eva em toda a sua glória.
No chão, a esfera brilhou com mais intensidade.
Apanhado de surpresa, Kalinin deu um passo atrás e ergueu um braço para proteger o rosto, como se receasse que o dispositivo pudesse explodir.
Ela olhou por cima do ombro com ar trocista.
— Mu-dak — disse-lhe.
Idiota.
O rosto dele corou, quem sabe de vergonha pela sua reação ou pelo choque de saber que ela falava russo. Avançou e afastou-a à bruta da secretária.
— Eh, calminha, camarada! — avisou Monk.
Nikolaev avançou de arma em punho, pronto para intervir, mas então o ecrã iluminou-se com a imagem do jardim e de Eva.
Todos os olhos se viraram para a criação de Mara.
O próprio Monk ficou boquiaberto.
Eva transformara-se outra vez. Livrara-se das roupas e a nudez fora coberta por um brilho argênteo que tremeluzia e deslizava pelas suas curvas como um rio ao luar. O rosto permanecia idêntico ao da mãe de Mara, mas muito mais cativante, e os olhos cintilavam como diamantes negros.
Pouco confortável com a súbita mudança, Monk desviou o olhar para Mara.
Mas que raio?
Ela encolheu ligeiramente os ombros, sabendo que qualquer manifestação de ansiedade podia deitar tudo a perder. Só se lembrava de uma explicação. Eva devia ter aprendido a manter-se ativa, em vez de se submeter ao estado de dormência que ocorria quando o dispositivo era posto em modo de suspensão. Não havia dúvida de que encontrara uma forma de se tornar mais eficiente. Nos curtos minutos que tinham demorado desde o hotel, Eva dera um salto evolutivo dramático.
Mesmo assim, Mara evitou mostrar qualquer reação. Fez sinal a Kalinin e dirigiu-se a ele em russo, demonstrando uma vez mais a sua fluência na língua.
— Podes inspecionar à vontade.
Kalinin não precisou que ela dissesse o mesmo duas vezes, completamente cativado pelo que via no ecrã. Mara manteve-se atenta, certificando-se de que o homem não metia os pés pelas mãos.
Passados alguns minutos, e cada vez mais impaciente, Monk virou-se para Nikolaev.
— Como podem ver, está tudo bem. Está na altura de falar com a vossa chefe.
Nikolaev encolheu os ombros e pegou num tablet. Ligou-o com a impressão digital e colocou-o em cima da secretária, virado para o portátil.
Decorridos alguns segundos, foi estabelecida uma videochamada e o rosto de uma mulher preencheu o ecrã. Parecia um fantasma, com os cabelos brancos e a pele pálida. A única mácula era a tatuagem preta em forma de um sol, que lhe cobria metade da cara.
Monk aproximou-se, com os lábios crispados e os músculos dos maxilares tensos.
Mara desviou-se.
O próprio Nikolaev recuou, embora mantendo a pistola apontada.
Ele debruçou-se sobre o tablet.
— Valya... nós tínhamos um acordo.
16h30
Monk pegou no tablet e virou o pequeno ecrã na direção do técnico que inspecionava o Xénese.
— Como vês, cumpri a minha parte. Portanto, liberta a minha filha e a Seichan.
— E se eu recusar? — perguntou Valya, testando-o. — O que acontece?
Ele estava preparado para uma resposta daquele género.
— O dispositivo está armadilhado com um código de morte, que será acionado daqui a trinta minutos. O mesmo prazo que me deste. Quando isso acontecer, o programa inteiro é apagado. Só eu conheço o código para abortar. Portanto, ou me mostras imagens ao vivo da Harriet e da Seichan a serem libertadas num sítio qualquer em segurança, ou não faço nada e perdes tudo.
Escusado será dizer que isto era bluff.
No hotel, ele tentara convencer Mara a alinhar naquele plano, mas ela recusara-se. Continuava convencida de que Eva era demasiado importante para o mundo, sobretudo com a outra versão em parte incerta. Além do mais, estava confiante de que no atual ponto da sua evolução Eva não se submeteria às ordens de um novo dono.
Olhando para a imagem no ecrã, Monk já não duvidava de que assim fosse. Por isso, jogou a melhor cartada e limitou-se a encolher os ombros.
— Tu é que decides, Valya.
A assassina manteve-se em silêncio, a avaliar cuidadosamente as suas opções. O tempo ia passando. A lâmpada do candeeiro vertical tremelicou, como que afetada pela ansiedade de Monk.
Quando ela finalmente falou, as suas palavras foram dirigidas ao técnico.
— Kalinin, terminaste o exame ao dispositivo da menina Silviera?
O técnico endireitou-se, erguendo com as duas mãos um pesado scanner. Nos últimos minutos, não tinha parado de passar o aparelho por cima do dispositivo.
— Da — respondeu.
— E estás confiante de que conseguiste registar todos os componentes?
Kalinin dirigiu-se para o seu portátil e premiu algumas teclas. Uma janela abriu-se com uma representação tridimensional pormenorizada do dispositivo de Mara.
— Da — confirmou.
Monk sentiu o coração cair-lhe aos pés.
— Nesse caso, podemos esperar que os trinta minutos se esgotem — disse Valya. — Em última instância, posso ficar só com os esquemas. Tenho a certeza de que o meu pessoal consegue reproduzir o dispositivo. Portanto, ou introduzes o código para abortar e entregas o que prometeste... ou vou partilhar as imagens ao vivo que pedes. Mas duvido de que vás gostar do espetáculo. — Por fim, sorriu. — Tu é que decides.
Lá se foi o bluff.
Monk mudou de tática.
— Se fizer isso, vais libertá-las?
— Tendo em conta a tua atitude, acho que vou ficar com elas. Podem ser-me úteis outra vez.
Ele recordou o aviso de Jason quanto à eventualidade daquele cenário.
Desculpa, Harriet.
Sabia que as probabilidades estavam contra ele, mas tinha de tentar. Resignado à ideia de que Valya nunca cumpriria a sua palavra, aproximou-se do portátil de Mara. Ainda a segurar no tablet com o rosto desdenhoso da megera pálida, estendeu a outra mão, mas, em vez de digitar um código, proferiu um comando verbal.
Duas palavras.
— Agora, Eva.
16h33
Ao sinal de Monk, Mara arrancou-lhe o tablet das mãos e atirou-se para o chão. Encolheu-se sobre si mesma no mesmo instante em que um transformador no exterior explodiu junto à janela entaipada. A explosão soou como uma granada atirada contra o edifício. Vidros foram projetados para o interior, uma das tábuas partiu-se e a sala ficou às escuras.
Até as luzes da esfera diminuíram de intensidade por causa do corte de energia e o dispositivo entrou em modo de pausa.
Mas Eva fizera o seu trabalho.
Monk reagiu com a mesma prontidão. Mara nunca imaginara que um homem assim tão entroncado tivesse aqueles reflexos. No preciso instante da explosão, atirou-se a Nikolaev, agarrou-lhe no pulso e esmagou-lhe os ossos com a mão prostética.
O russo gritou de dor e largou a pistola.
Ele apanhou-a em pleno ar com a outra mão e apontou-a a Kalinin.
— Mexe-te e és um homem morto.
A dor obrigou Nikolaev a ajoelhar-se. Monk largou-lhe o pulso, deu-lhe um murro no nariz e depois agarrou-o pelo pescoço. Forçou-o a deitar-se de costas e cravou-lhe um joelho no peito, impedindo-o de se levantar.
Kalinin aproveitou a oportunidade e correu na direção da porta, ou por estar em pânico ou para pedir ajuda aos companheiros nas escadas. Fosse como fosse, assim que deu dois passos, a cabeça dele explodiu.
Mara deu um grito abafado. Nem sequer tinha ouvido o tiro.
O corpo do técnico tombou aos pés de Monk, que empunhava a pistola confiscada. Mas ele apontava-a na direção da porta e não tinha disparado. Ela desviou o olhar para a janela e notou que um dos vidros, ainda com a moldura, caíra no chão. Estava perfurado com um buraco de bala.
Um atirador furtivo devia ter disparado através da abertura nas tábuas.
No corredor, uma explosão ensurdecedora fê-la saltar, seguida de um clarão intenso que iluminou as frestas da porta.
Ouviram-se tiros.
O ar encheu-se com um odor acre.
Mais tiros.
Depois, silêncio.
— Fica deitada! — avisou Monk. — Estão a fazer a limpeza lá fora.
— Quem está a...
— A cavalaria.
Ele virou-se novamente para o russo que ainda agarrava pelo pescoço e colou o rosto ao dele, enchendo-o de perdigotos.
— Agora, camarada, vais dizer-me onde está a tua chefe.
16h35
Monk afrouxou suficientemente o garrote para Nikolaev conseguir abanar a cabeça. Os olhos do russo pareciam prestes a saltar das órbitas; o seu rosto estava roxo.
— Não sei... — disse ele a custo.
Deixa-me confirmar se estás a dizer a verdade.
Monk voltou a apertar a mão sintética em torno do pescoço do seu prisioneiro. Os sensores nas pontas dos dedos mediam o batimento cardíaco desenfreado na carótida.
— Uma vez mais, camarada. A mesma pergunta.
Forçou-o a virar a cabeça para o lado, para que pudesse ver de perto o rosto desfeito de Kalinin. O atirador furtivo acertara-lhe em cheio na nuca. O buraco de saída do projétil era uma coisa grotesca.
— Queres acabar como ele?
Nikolaev esperneou com os olhos arregalados, carregados de pânico. Monk fitou-o e observou os vasos sanguíneos que já tinham rebentado no branco dos olhos por causa da pressão infligida pela mão prostética.
— Sabes onde está a Valya Mikhailov? — Aliviou ligeiramente a pressão. — Ou alguma coisa que possa ajudar a encontrá-la?
Lágrimas e ranho correram dos olhos e nariz do russo.
— Ny... nyet. Nada... juro...
Monk apertou de novo, ainda com mais força, com demasiada força. Sem querer, cortou-lhe a circulação sanguínea na carótida. Os olhos reviraram-se nas órbitas, as pálpebras fecharam-se e o russo desmaiou.
Ele não tencionava que aquilo acontecesse. Até acreditava no homem.
Era óbvio que Nikolaev não sabia nada. Em bom rigor, não haveria ali ninguém que soubesse. Valya era demasiado cuidadosa, paranoica. Nunca forneceria uma informação dessas a não ser que fosse estritamente necessário.
Frustrado, Monk cerrou os dentes. Sabia desde o início que aquela manobra era um tiro no escuro. Depois de Valya o contactar a bordo do F-15, ele tinha ligado a Painter para o informar da proposta que ela lhe fizera. O diretor tentara localizar a chamada, mas em vão.
A megera continuava a ser um fantasma.
Para a localizar, Painter sugerira algo que podia ajudar: recuperar um qualquer dispositivo inimigo que tivesse servido para comunicar com Valya. Com um pouco de sorte e a ajuda de uma equipa forense, talvez conseguissem saber o suficiente sobre o paradeiro dela.
Monk olhou de relance para Mara, que continuava encolhida no chão, agarrada ao tablet.
A hipótese era remota, quase um milagre, mas valia a pena tentar.
Pelas minhas filhas, pela Seichan e pelo bebé.
Assim sendo, Painter dera-lhe luz verde para executar o plano. Para resultar, toda a gente teria de acreditar que ele tinha cedido à pressão e feito um acordo com Valya para salvar as filhas. Só eles os dois sabiam a verdade. Não podiam arriscar que alguma coisa transpirasse. Todas as conversas teriam de ser genuínas e consistentes.
Monk tinha traído a Sigma.
Desde então, ele apenas comunicara com Painter através de uma linha encriptada. A própria equipa de assalto lá fora não sabia quem vinha resgatar. Sabendo da importância da carga transportada por ele e Mara, Painter acompanhara as movimentações dos dois através do localizador de GPS embutido na mão prostética, o que ajudara a coordenar aquele ataque. No hotel, Monk tinha partilhado o plano com Mara... e também com Eva. Uma vez que precisava de uma manobra de diversão, pedira a Eva para aceder à rede elétrica de Madrid, à semelhança de Paris, e fazer explodir um transformador ao seu sinal. Para o fazer, Eva também usara o sinal de GPS da mão prostética, depois de Mara a libertar enquanto ligava o dispositivo na presença do inimigo. O tremelicar da luz do candeeiro servira de sinal de que tudo se encontrava a postos.
Mara levantou-se devagar, fitando o russo desmaiado.
— Monk...
A mão mecânica dele continuava a apertar o pescoço do homem. Só se apercebendo naquele instante, Monk não aliviou a pressão. Só conseguia pensar na filha, que não estaria menos aterrorizada do que o russo estivera, instantes antes. Queria que alguém pagasse por isso, que alguém sofresse as consequências.
Em vez de relaxar os dedos, apertou-os com mais força.
Com a circulação cortada no cérebro, o homem morreria em dois ou três minutos. Ele imaginou Kat a lutar furiosamente e a ser atingida na cabeça por um dos homens de Valya. A expressão «morte cerebral» ainda o assombrava. A mulher não merecia o que lhe acontecera, o que certamente não seria verdade para aquele sujeito.
Cego pela raiva, fincou os dedos até ao osso.
Ouviu a voz de Mara em fundo, suplicando-lhe.
— Monk, não...
Então, a palavra ecoou-lhe na cabeça.
Não...
Não a reconhecia como tendo origem na sua mente, mas claro que só podia ser o caso. Ainda assim, que diferença fazia se houvesse menos um sacana a respirar o ar do planeta? Continuou a apertar-lhe a garganta, com os segundos a passarem. O peito de Nikoalev expandiu-se, os lábios e o rosto cada vez mais azulados.
Não...
Então, como que controlados à distância, os dedos abriram-se subitamente. Ele ergueu o braço, apercebendo-se de que perdera o domínio da mão. A pele sintética deixara de registar sensações. Era como se a prótese tivesse morrido, como uma mão verdadeira que ficava dormente. Sacudiu o braço, convencido de que danificara ou soltara algum circuito.
Ato contínuo, recuperou o controlo.
Os dedos fletiram-se.
Esfregou a mão nas calças, sentindo a textura áspera do tecido.
— Monk... — insistiu Mara.
— Já o larguei! — vociferou. — Ele há de ficar bem.
O russo respirava já com mais facilidade. O rosto ia ganhando alguma cor, embora o pescoço exibisse uma marca que demoraria semanas a sarar.
Monk não sentiu qualquer tipo de remorsos.
— Não — disse Mara. — Veja...
Ele virou-se. Mara estava ajoelhada e a apontar para o portátil, ainda ligado ao dispositivo Xénese. A luminosidade do ecrã diminuíra, mas o jardim continuava visível, assim como o seu único ocupante.
Eva estava de pé no centro do ecrã, com um braço levantado e a mão aberta. Monk reconheceu a similaridade do gesto com o que acontecera segundos antes e olhou para a prótese.
Mas que raio...
Antes que tivesse tempo para perceber o que se passava, alguém bateu à porta e depois abriu-a. Uma mulher esguia entrou, vestida com uniforme de combate e os longos cabelos pretos apanhados com uma bandana preta. Carregava uma carabina ao ombro. Tinha um tom de pele moreno e olhos cor de âmbar que brilhavam com uma expressão divertida.
Monk presumiu que o homem estendido no chão fosse fruto do trabalho dela.
— Só podias ser tu, Kokkalis. Parece que não faço outra coisa que não seja salvar-te o couro.
Ele levantou-se e deu-lhe um abraço rápido.
— Bons olhos te vejam também, Rosauro.
Shay Rosauro tinha pertencido à força aérea antes de ser recrutada pela Sigma. Os dois tinham participado em anteriores missões juntos. Ela desprendeu do cinto um telefone via satélite e estendeu-o.
— O diretor quer lhe ligues.
Monk pegou no telefone.
— Ouvi dizer que alvejaste o Jason...? — disse ela, enquanto ele digitava o número da linha encriptada. Depois encolheu os ombros. — O espertinho é capaz de ter merecido. Eu própria estive tentada a dar-lhe um tiro várias vezes.
Monk mostrou-se algo embaraçado.
— Precisava que isto parecesse real. Um pouco de sangue para a bruxa russa acreditar que eu estava do lado dela e manter este encontro.
Shay ergueu uma sobrancelha.
— Não sei se o Jason concordaria contigo, mas...
Enquanto aguardava pela ligação, Monk recordou a imagem de Jason a cair no chão da catacumba. Socorrendo-se dos conhecimentos médicos e da extrema precisão da mão prostética, não lhe fizera mais do que um arranhão na perna. Sangue com fartura, mas nenhum dano permanente. Em todo o caso, o jovem analista da Sigma iria coxear durante uns tempos.
Olhou de relance para o tablet nas mãos de Mara.
Espero que tenha valido a pena.
Painter atendeu a chamada e pediu um ponto de situação completo. Monk pô-lo a par de tudo o que acontecera, deixando de parte o bizarro episódio da prótese enquanto estrangulava o russo.
— A Shay vai levar esse tablet aos nossos técnicos — disse Painter. — Vamos analisá-lo ao pormenor, até ao átomo, se for caso disso. Tudo o que for preciso para descobrirmos o paradeiro da Valya.
— É bom que descubram qualquer coisa depressa — retorquiu Monk.
Estava bem ciente de que isto só iria enfurecer a megera. A sua única esperança era que a súbita perda de comunicação a empatasse enquanto tentava descobrir o que realmente acontecera ali. Mesmo assim, isso não demoraria muito tempo.
Painter continuou.
— Arranjei um helicóptero para vos levar ao encontro do Gray, nos Pirenéus. Ele está a seguir uma pista e a preparar uma equipa para atacar um complexo nas montanhas. Podemos precisar do dispositivo da Mara no local, caso o inimigo tente usar novamente a cópia roubada.
— Que pista é essa?
— É melhor deixares-me falar com a Mara. Ela merece saber o que se passa.
16h50
Não, não, não, não...
Mara tapou a boca com uma das mãos, segurando o telefone com a outra. Olhou para a imagem imóvel no pequeno ecrã e depois o vídeo recomeçou do início, mostrando uma vez mais a mesma figura a fugir de um casarão, escoltada por um grupo de homens.
— Esta filmagem foi retirada de uma câmara de videovigilância em San Sebastián — explicou-lhe o diretor Crowe. — Pouco antes de uma rusga a um esconderijo do Crucibulum.
O vídeo parou de novo. A qualidade da imagem era péssima, mas Mara conhecia bem aquele rosto. Tal como o rosto da mãe, estava guardado no seu coração.
A figura no vídeo era Eliza Guerra, a diretora da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra. Mara recordou a mulher franzina, as noites e os jantares frequentes na companhia dela, as conversas, lições, até a viagem que tinham feito juntas a Madrid. Sabia que ela tinha um orgulho imenso na sua pátria, em toda a Península Ibérica. Era algo que sobressaía na sua voz, nos seus passos apressados entre estantes de livros quando queria apresentar-lhe um volume raro, ou quando a conduzia por um museu para lhe mostrar armaduras ou qualquer outro artefacto histórico.
Mas Mara sempre pensara que a paixão de Eliza provinha da curiosidade intelectual. Tinha fundado com Charlotte a Bruxas International e financiado sozinha grande parte dos esforços iniciais da organização, recorrendo à considerável fortuna da família, acumulada ao longo de séculos. Eliza dizia sempre que o fazia de bom grado, que utilizar esse dinheiro para procurar e ajudar as melhores mentes femininas era um privilégio, em vez de o deixar a ganhar bolor num cofre de banco.
Mas era óbvio que havia outro motivo por trás de tanta generosidade.
Mesmo assim, Mara esforçou-se por compreender, a ponto de se sentir tonta.
— Mas ela está morta. Vi com os meus próprios olhos.
— Ou foi o que ela quis que todos pensassem. No entanto, como pode ver, está viva e de boa saúde. Estamos a reexaminar os restos mortais retirados da biblioteca. As autópsias anteriores foram apressadas, serviram apenas para determinar que corpo pertencia a cada família.
Mara imaginou Carly diante do caixão da mãe, coberto com a bandeira americana e contendo apenas as cinzas e os ossos, tudo o que tinha restado do incêndio que convertera a cave da biblioteca num crematório.
— Acreditamos que ela encenou a própria morte — prosseguiu Painter. — Ou foi alvejada com munições secas, ou ficou apenas ferida. Assim que a câmara foi desligada, levaram-na e deixaram para trás um corpo que podia passar pelo dela sob um olhar menos atento.
Mara mal ouvia as palavras do diretor. Aturdida, reviu os anos de universidade à luz daquela revelação. Será que Eliza mentira acerca de querer acabar com a perseguição às mulheres? Poderia apenas querê-la ao seu lado para servir sob os auspícios de uma nova ordem mundial? Percebia agora como ela a testara durante anos, tentando determinar se conseguiria levá-la a juntar-se à causa, a ingressar no Crucibulum.
E quando isso falhou...
— Ela... ela pensava que eu levaria o meu dispositivo para a biblioteca nessa noite — disse Mara; cada palavra que proferia, alimentada pela raiva, ia soando mais forte. — Pensava que eu ia fazer uma demonstração presencial do programa e da esfera. Foi ela que escolheu o solstício de inverno. Provavelmente, pelo significado da ocasião. Estava sempre à procura destes momentos simbólicos, talvez porque entendia que podia forçar a mão do destino. Mas eu estava atrasada no meu trabalho, não pude ir e, à última da hora, lembrei-me de fazer a demonstração por videoconferência. Se tivesse comparecido...
— ... teria sido morta como as outras ou feita prisioneira — disse Painter. — O dispositivo teria sido roubado, deixando os membros do Crucibulum com acesso ao programa e tempo para fazerem o que entendessem.
Mara olhou para a esfera que brilhava suavemente no chão. Apertou os dedos em torno do telefone, recordando a mãe de Carly e as outras três mulheres.
— E agora vou usar a minha criação para acabar com o plano desta cabra. O que temos de fazer?
Painter explicou mais uns pormenores e depois pediu-lhe que passasse novamente o telefone a Monk. Ela mal ouviu a conversa. Concentrou a atenção em Eva, que brilhava no ecrã em toda a sua glória.
Preciso de ti mais do que nunca.
Atrás dela, Monk terminava a chamada com o diretor.
— Eu trato de salvar o mundo, vocês tratem de salvar a minha filha.
— Esperemos que seja possível encontrá-la com a ajuda daquele tablet que vocês recuperaram — disse Painter. — Entretanto, estamos já a tratar de uma alternativa.
31
26 de dezembro, 11h55
Plainsboro, Nova Jérsia
Lisa percorreu rapidamente o corredor do hospital. Acabara de falar ao telefone com o marido, que a informara dos acontecimentos na Europa e de como isso influenciava a situação nos Estados Unidos. Sentia-se aliviada por saber que Monk não tinha traído a Sigma, que tudo não passara de uma encenação para convencer Valya a libertar os reféns. Essa parte do plano não resultara, mas a equipa tinha recuperado um tablet que podia indicar o seu paradeiro. Por aquela altura, os técnicos da Sigma estavam já de volta do aparelho.
Ela rezou para que fossem bem-sucedidos. Constituía a melhor hipótese de salvarem Harriet e Seichan.
Muito mais do que aquilo que tentavam fazer ali.
Passou pela dupla de guardas armados que guardavam o corredor. O acesso a Kat — a todo aquele piso do hospital — estava agora condicionado por ordens de Painter. Lisa sentia alguma culpa por saber que Valya Mikhailov estivera no hospital disfarçada e até conseguira intercetar as suas chamadas para chegar a Monk.
Agora, olhava duas vezes para a cara de toda a gente. Com a cabeça ocupada pela preocupação por Kat, nunca imaginara que uma coisa daquelas pudesse acontecer. Por outro lado, dado o estado da amiga, o prognóstico...
Que mais podia fazer-lhe aquela mulher monstruosa?
Encaminhou-se para o quarto privado onde se encontrava Kat. O coração caía-lhe aos pés sempre que ali entrava. A amiga continuava ligada ao ventilador, coberta de fios e tubos. Tinham passado dezassete horas desde que Julian impedira que os seus órgãos fossem recolhidos.
O neurologista viu-a chegar.
— Mais uns minutos e estamos prontos para tentar — disse.
Encontrava-se sentado a um computador junto à cama de Kat, cujo processador estava ligado aos servidores na cave. Lisa lembrou-se da torre de equipamento com as luzes verdes a piscar, contendo o sistema neural experimental de Julian. Tinham-no usado no dia anterior para interpretar as imagens retiradas do cérebro de Kat: o punhal e o chapéu de bruxa, pistas que tinham sido suficientes para identificar Valya Mikhailov.
O que se preparavam para tentar agora era ainda mais radical, uma nova ferramenta de investigação desenvolvida pela outra figura no quarto, a doutora Susan Templeton, uma bióloga molecular e antiga colega de Julian em Princeton durante muitos anos. Tinha sido ele a procurá-la, reconhecendo que esgotara todas as possibilidades ao seu alcance. Ou talvez o tivesse feito por culpa, sabendo que o último procedimento condenara Kat.
Lisa não alimentava esperanças de que esta nova intervenção fosse bem-sucedida. Com toda a certeza, não salvaria Kat. Ela estava morta. O corpo na cama, com um peito que subia e descia e um coração que ainda batia, não passava de uma carapaça vazia. O que iam tentar fazer, retirar informação de uma pessoa morta, era mórbido e situava-se nas fronteiras da ética.
O próprio Painter tinha questionado a decisão. Como podemos ter a certeza de que a Kat sabe mais alguma coisa? Talvez seja melhor deixá-la partir em paz. Apesar disso, deixara-lhe a última palavra, confiando que ela tomaria a decisão certa. Lisa sabia que Kat não se importaria, desde que isso oferecesse mais uma possibilidade de salvar a filha, ainda que remota.
Mas havia outra razão.
Aproximou-se da cama e pegou na mão da amiga. Fitou a cabeça rapada coberta de elétrodos, o crânio escondido debaixo de um capacete cheio de emissores ultrassónicos. Estivera ao lado dela desde o início daquele pesadelo e, em cada instante, sentira a sua presença. Kat demonstrara ser alguém que lutaria até ao fim e, se lhe fosse dada a oportunidade, continuaria a lutar.
Lisa apertou-lhe a mão.
Tenciono dar-te essa oportunidade.
— Estou pronta — disse a doutora Templeton.
A bióloga molecular estava sentada do outro lado da cama, também em frente a um computador, cujo monitor mostrava uma representação tridimensional do cérebro de Kat, elaborada ao mais ínfimo pormenor a partir das várias ressonâncias magnéticas. Por toda a imagem, milhares de pontinhos vermelhos cobriam a superfície, todos os sulcos e circunvoluções, cada dobra e prega do córtex cerebral. Estavam espalhados por todo o cerebelo e desciam pelo tronco encefálico.
Esses pontinhos marcavam a localização de partículas de pó no cérebro de Kat. Lisa conseguia ver algumas partículas a moverem-se, a mudarem de posição ao ritmo da pulsação de um pequeno capilar ou pelo refluxo de líquido cefalorraquidiano.
A doutora Templeton chamava a estas partículas criadas em laboratório «pó neural». Cada grão era na realidade um dispositivo de cinquenta micrómetros cúbicos, contendo vários sensores semicondutores encapsulados numa estrutura molecular que os tornava biologicamente neutros e impedia que fossem rejeitados pelo corpo. Tinham sido injetados através de uma abertura na base do crânio, diretamente no líquido cefalorraquidiano. A partir daí, as partículas piezelétricas tinham-se espalhado pela superfície do cérebro, atraídas pela ténue corrente ainda existente nos neurónios.
— Estás pronta, Lisa? — perguntou Julian.
Ela acenou afirmativamente com a cabeça. O seu trabalho a partir dali era simples.
Julian olhou na direção da colega.
— Vamos lá ver se conseguimos ressuscitar os mortos.
A doutora Templeton premiu uma tecla e o capacete na cabeça de Kat começou a zumbir suavemente, como uma colmeia de abelhas. Lisa imaginou os emissores a libertarem ondas ultrassónicas através do crânio, sondando cada recanto.
— Os cristais estão a carregar — anunciou a bióloga molecular.
No monitor dela, os pontinhos vermelhos tornaram-se verdes. As vibrações ultrassónicas estavam a estimular os cristais piezelétricos, levando-os a ativar os microscópicos transístores ligados ao cérebro de Kat.
— Parece estar a resultar! — disse ela num tom de voz extasiado.
O sistema fora desenvolvido no Centro de Engenharia Neural da Universidade da Califórnia. Os investigadores tinham obtido bons resultados com ratos e a aplicação em humanos começara a ser estudada noutras universidades, incluindo Princeton.
Kat era uma das primeiras cobaias.
O propósito do pó neural era absorver a leitura visual do mecanismo de um nervo e transmitir a informação para os transdutores no capacete. Isso permitia uma observação ultrapormenorizada do cérebro, muito superior a qualquer uma obtida através de ressonância magnética.
Lisa olhou para Julian.
— Alguma coisa?
— Estou à espera dos dados da Susan.
A doutora Templeton debruçou-se sobre o computador.
— Estou a enviar.
Lisa susteve a respiração. No dia anterior, tinham usado o equipamento de Julian para interpretar as imagens formadas pelo cérebro de Kat. A esperança naquele momento era que o pó neural conseguisse um milagre muito superior a esse.
— Certo — disse Julian. — Estou a recebê-los. Vou sincronizá-los com os meus servidores.
Nas horas anteriores, ele e Susan tinham calibrado os dois sistemas para trabalharem em sintonia. À semelhança da interpretação que fazia dos resultados obtidos pelo método de ressonância magnética, o sistema DNN de Julian aprendera de forma surpreendente a converter a informação do pó neural em imagens. A diferença era que estas imagens conseguiam ser um milhão de vezes mais pormenorizadas e precisas.
Julian olhou para Susan.
— Aumenta o sinal.
A bióloga rodou um botão e o capacete zumbiu com mais intensidade. No ecrã, os pontinhos verdes brilharam com mais força. As ondas ultrassónicas não só estimulavam os cristais piezelétricos, mas também o próprio cérebro de Kat.
Aguardaram todos um minuto, permitindo que a energia se acumulasse.
Por fim, Julian fez sinal a Lisa.
— É a tua vez.
Ela engoliu em seco e inclinou-se sobre Kat. Aclarou a garganta e gritou junto ao capacete:
— Kat, precisamos da tua ajuda!
Imaginou as suas palavras a reverberarem nas membranas timpânicas da amiga, a agitarem os minúsculos ossos do ouvido e a excitarem o nervo auditivo, enviando uma descarga elétrica para o cérebro.
Kat podia estar «tecnicamente morta», mas aquele sistema ainda devia funcionar. Da mesma forma, algures naquela matéria cinzenta morta, as suas recordações estariam, esperavam eles, ainda guardadas e à espera de poderem ser acedidas.
— Kat! Se souberes alguma coisa acerca do que aconteceu à Harriet e à Penny, visualiza-a!
Lisa esperava que o nome das filhas funcionasse como um gatilho capaz de desencadear uma resposta, um reflexo qualquer. Virou-se para Julian.
— Alguma coisa?
Ele afastou-se um pouco do monitor para ver se descortinava alguma forma no aglomerado de píxeis.
— Não. Mas, se houver o mínimo sinal de uma resposta, o pó neural vai conseguir detetá-la.
— E se aumentarmos a intensidade da carga? — perguntou Lisa, virando-se na direção de Susan.
A bióloga encolheu os ombros e tornou a rodar o botão.
— Estamos a entrar em território desconhecido.
O capacete vibrou e zumbiu ainda com mais intensidade. No ecrã, os pontinhos brilharam com mais força, a ponto de convergirem numa única massa verde com a forma do cérebro de Kat.
Lisa debruçou-se outra vez e gritou:
— Kat! Harriet! Penny! Natal! Ataque!
Usou todos os gatilhos de que se lembrou, mantendo os olhos cravados no ecrã de Julian.
Os píxeis agitaram-se, rodopiaram, coalesceram e depois expandiram-se. Lembrava um coração a bater, a esforçar-se por transmitir alguma coisa.
És tu, Kat?
— Pode ser apenas ruído — disse Julian, apercebendo-se da mudança.
— Não.
Não pode ser só ruído.
Lisa inclinou-se e encostou o rosto ao de Kat. A testa tocou na beira do capacete, que vibrava intensamente, como se a amiga estivesse a lutar ali dentro.
Recordou as palavras de Painter.
Como podemos ter a certeza de que ela sabe mais alguma coisa?
Lisa conhecia a resposta.
Ela sabe. Aposto o que quiserem.
E gritou de novo:
— Kat! A Harriet está em perigo! Ajuda-nos! Agora!
12h08
Não temos mais tempo.
Na cela, Seichan ouviu os gritos furiosos de Valya no piso de cima, a enxurrada de asneiras em russo. Alguém tinha pisado os calos da mulher, e com força.
E posso adivinhar quem vai pagar por isso.
Ela já esperava que acontecesse alguma coisa em breve. Contara mentalmente as horas desde que Valya levara Harriet para fazer o vídeo com as exigências do resgate. Vinte e quatro. Se Valya tivesse dado um prazo à Sigma, um dia seria a hipótese mais acertada.
O que significava que o prazo terminara.
Sabendo disso e sentindo-se demasiado inquieta para estar parada, Seichan passara os últimos minutos a andar de um lado para o outro. Harriet estava sentada de pernas cruzadas na cama, a colorir desinteressadamente um livro e a ignorar uma sanduíche de atum. Como um ratinho tímido, mordiscara um pedaço de queijo, com o rosto escondido pelos caracóis arruivados. Não tinha dito uma palavra desde que a irmã tinha sido levada, mas permitira que Seichan se aninhasse com ela na cama, onde dormiram juntas umas horas. Seichan acordara com os dedos dela entrelaçados nos seus e, mais do que tudo, isso despedaçara-lhe o coração.
Tenho de fazer alguma coisa.
Continuou a andar de um lado para o outro. Sabia que não podia enfrentar fisicamente os guardas. Sobretudo quando não davam mostras de a subestimarem por causa dos oito meses de gravidez. Também não havia ameaças de que pudesse valer-se.
Não posso lutar e não posso sair daqui à base de conversa.
Suspirou e lançou um olhar na direção da outra cama vazia.
Pelo menos, Penny estava a salvo.
Horas antes, tivera um momento de pânico ao ouvir um tiro depois de os guardas levarem a rapariga. Mas essa bala não se destinara a Penny. Os homens de Valya tinham executado o técnico que realizara a ecografia, a fim de não deixarem testemunhas. Um dos guardas partilhara essa informação, mas apenas para calar o choro de Harriet.
Tinha resultado.
Seichan olhou para a porta. O silêncio regressara, o que só lhe aumentava a ansiedade.
Retomou a marcha pela cela, mas depois viu-se obrigada a parar, soltando um gemido. Curvou-se com as mãos apoiadas nos joelhos. A cãibra flagelou-lhe a barriga. Fez o possível por controlar a respiração até a dor passar.
Sim, de certeza de que não vais sair daqui a lutar.
Respirou mais meia dúzia de vezes, endireitou-se e continuou a andar, embora mais devagar. As dores tinham piorado ao longo do dia. A ponto de ser obrigada a despir as calças e ficar só de cuecas. Até a banda elástica das calças de grávida a incomodava.
Ouviu o som de passos no corredor.
Aqui vamos nós.
Meteu-se à frente de Harriet.
— Não saias daí, querida.
A porta foi destrancada e aberta. Os dois guardas entraram, cada um ocupando um lado da divisão. Ela arranjara-lhes nomes: o Bastão de Gado e o Nervoso Miudinho. O primeiro trazia a arma habitual, o bastão elétrico. O segundo tinha trocado a pistola de dardos tranquilizantes por uma Desert Eagle Magnum. Pelos vistos, a opção de armas não letais esgotara-se.
Atrás dos dois, Valya cruzou a porta com o casaco de peles aberto e um cutelo de cozinha na mão.
Seichan respirou fundo e semicerrou os olhos. Fitou Valya, que lhe devolveu o olhar. Os olhos gelados da assassina procuraram Harriet e depois fixaram-se novamente nela. Não eram necessárias palavras para adivinhar o que tencionava fazer com o cutelo.
— Não te deixo levá-la — avisou Seichan.
A expressão de Valya não se alterou um milímetro. Estava furiosa e queria que alguém pagasse por isso.
— Traz a rapariga! — ordenou ao Bastão de Gado.
Seichan barrou-lhe o caminho, mas, assim que deu um passo, uma dor maior do que todas as outras rasgou-lhe o ventre. Gritou e caiu de joelhos. Sangue encharcou-lhe as cuecas e escorreu pelas pernas. Sentiu a cela andar à roda e tombou de lado. Os olhos reviraram-se.
Ouviu Valya berrar, irritada:
— Tirem-na da frente!
O Bastão de Gado avançou e agarrou-lhe num braço.
Não...
E, no que lhe dizia respeito, não significava não.
Projetou uma perna na direção do joelho dele, atingindo-o com o calcanhar. A articulação dobrou-se para trás e o guarda caiu para cima dela. Seichan rolou no chão para se desviar e, em simultâneo, apoderou-se da arma.
Depois continuou a rolar, direita ao Nervoso Miudinho. Assim que ficou suficientemente próxima, cravou-lhe o bastão elétrico nas virilhas.
Houve uma explosão de faíscas azuis.
O homem urrou como um boi ligado a um ejaculatório elétrico.
Valya atacou com o cutelo.
Seichan defletiu o golpe com o bastão. A lâmina raspou no chão de pedra junto à sua anca. Ela ignorou a ameaça e esticou-se para alcançar a Desert Eagle que o Nervoso Miudinho perdera ao cair para trás agarrado às virilhas fumegantes.
Valya conhecia bem a perícia de Seichan e correu para a porta.
Ela pegou na arma e disparou, ainda deitada. Valya tropeçou e torceu-se ligeiramente, atingida de raspão. Seichan disparou de novo, mas desta vez falhou o alvo. Valya alcançou as escadas e desapareceu.
Seichan levantou-se.
— Harriet, vamos...
A rapariga não era parva e correu para ela, agarrando-se a uma das pernas.
Seichan apontou a pistola à cara do Nervoso Miudinho enquanto o Bastão de Gado gemia no chão com o joelho partido.
— As chaves! — ordenou ao primeiro.
O homem lançou-lhe um olhar de desprezo.
Ela desviou a arma na direção do outro, afastou Harriet e premiu o gatilho.
Os gemidos do Bastão de Gado pararam.
Sem nunca ter desviado o olhar dele, voltou a apontar a pistola ao Nervoso Miudinho, desta vez fixando a mira nos genitais.
— Posso terminar o serviço se quiseres.
Ele ergueu uma das mãos e enfiou a outra no bolso. Tirou de lá um molho de chaves e atirou-as. Seichan apanhou-as, reparando no símbolo da Ducati numa delas, e encaminhou-se com Harriet para a porta. Antes de abandonar a cela, virou-se para trás e disparou.
O tornozelo do guarda estilhaçou-se.
Ela correu para as escadas e subiu sem olhar para trás. Enquanto apanhava as chaves atiradas pelo guarda, tinha ouvido acima de si os passos de alguém a correr pelo soalho. No cimo das escadas, abriu um alçapão e percebeu que se encontrava num celeiro. A divisão lá em baixo devia ser uma antiga despensa subterrânea.
Mais à frente, uma porta aberta permitiu-lhe avistar um pátio e o edifício de uma quinta. Uma coluna de fumo erguia-se na direção do céu nublado. Ameaçava nevar a qualquer momento, mas não era isso que a preocupava. O problema era a porta da quinta que se fechara assim que ela saíra da cave.
Valya.
Ouviu os gritos no interior da casa enquanto a cabra reunia reforços.
Olhou em volta e viu um conjunto de motos estacionadas nos vários compartimentos do estábulo. Uma delas era uma Ducati. Apressou-se nessa direção, pegou em Harriet e sentou-a junto ao depósito. Precisou de duas tentativas para montar na mota atrás da rapariga. Afinal de contas, estava grávida.
Felizmente, além dessa condição, encontrava-se de perfeita saúde.
As primeiras gotas de sangue na sanita tinham-lhe dado a ideia de retirar vantagem da gravidez. Não fora difícil fingir as dores. Para as tornar mais convincentes, usara o pedaço de um garfo de plástico para fazer ligeiros cortes ao longo da parede vaginal. A parte mais difícil tinha sido socorrer-se dos exercícios Kegel que aprendera durante meses para manter a pequena porção de sangue dentro dela, libertando-a quando queria, a fim de um maior efeito dramático. Com o final do prazo a aproximar-se, fingira usar a casa de banho e renovara os cortes, para que sangrassem ainda com mais intensidade.
Tinha sido um processo doloroso, mas ela calculava que não fosse nada comparado com o que teria de suportar durante o parto. Kat explicara-lhe tudo acerca de episiotomias. Quase com um sorriso sádico, dir-se-ia.
Portanto, aquilo não era nada.
Desde o início, sabia que nunca sairia dali à força ou com falinhas mansas. A sua única esperança residia na capacidade de ludibriar a Rainha da Neve. Para o conseguir, teria de sofrer. Valya iria perceber se fosse apenas fingimento. Por isso, ela tivera de fingir e sofrer, as duas coisas ao mesmo tempo. De qualquer forma, o medo real pelo bebé dera-lhe a força necessária para levar o plano até ao fim.
Agora, já livre, inclinou-se sobre Harriet, ligou o motor da Ducati e acelerou pelo celeiro. Fez uma curva apertada e saiu disparada pela porta aberta. Avistando uma estrada à direita que serpenteava por uma floresta coberta de neve, acelerou ainda mais.
Atrás de si, outros motores ganharam vida. Olhou pelo espelho retrovisor e viu uma moto e dois jipes contornarem a casa. A figura aos comandos da moto usava um casaco de peles prateado.
Valya não tencionava perder o seu prémio.
Uma saraivada de tiros confirmou essa intenção. As balas ressaltaram no pavimento gelado, arrancaram pedaços de casca das árvores e afundaram-se na neve acumulada na beira da estrada.
Então, chegaram a uma curva e ela perdeu momentaneamente de vista os perseguidores. Harriet segurava-se o melhor que podia, com os dedinhos cravados no assento de cabedal. Seichan conduzia curvada sobre o guiador, pressionando o tronco sobre a rapariga e amparando-a de ambos os lados com as coxas e os cotovelos. Mas isso não servia apenas para a proteger, já que o corpo da criança funcionava também como um pequeno aquecedor entre as suas pernas nuas.
Fugir de camisola e cuecas em pleno inverno talvez não tivesse sido a melhor ideia. Precisava de encontrar um vestígio qualquer de civilização, mas não sabia onde estava. Perscrutou o terreno à procura de uma aldeia, uma cidade.
Não havia nada senão floresta a perder de vista.
As curvas na estrada sucediam-se umas atrás das outras, permitindo-lhe permanecer fora do alcance dos perseguidores.
Foi então que começaram a cair grossos flocos de neve. Numa questão de minutos, o mundo cobriu-se de branco. Ela foi obrigada a desacelerar à medida que a estrada se tornava mais escorregadia e a visibilidade diminuía para meia dúzia de metros. Manteve-se atenta ao ronco dos outros veículos. Os jipes dispunham de tração às quatro rodas e não precisavam de reduzir a velocidade. Além disso, dava a impressão de que a moto também ganhava terreno. Valya não precisava de se preocupar com a dificuldade de equilibrar uma criança entre os joelhos.
Receando ser apanhada a qualquer momento, Seichan acelerou. À sua frente, a estrada encontrava-se coberta por pouco mais do que um centímetro de neve, mas, na curva seguinte, um trecho de gelo escuro apanhou-a desprevenida. Os pneus derraparam e ela esforçou-se por manter o controlo da pesada moto. Depois, para lá da neve que caía, surgiu outra curva.
Não vou conseguir.
Aceitando a inevitabilidade de um despiste, abraçou Harriet e projetou-se do assento. Apontou para a neve acumulada na berma, caiu sobre o manto branco e rolou pelo declive abaixo, encolhendo-se sobre a barriga e a criança até as duas pararem.
— Levanta-te — ordenou a Harriet.
Afastou-se da estrada e embrenhou-se na floresta. Sabia que nunca conseguiria regressar à moto e levantá-la do chão a tempo de continuar a fuga. A única esperança era manter-se um passo à frente do inimigo, usar o nevão para se esconder.
O plano, infelizmente, tinha duas falhas.
Ela estava meio despida e Harriet vestia apenas um pijama.
Além disso...
Olhou por cima do ombro e viu o rasto de pegadas que deixavam na neve.
Isto é capaz de ser um problema.
Em todo o caso, não lhe restavam opções. Pegou na mão de Harriet e continuou a avançar pela floresta, agarrando-se a uma prece silenciosa.
Meu Deus, faz com que alguém descubra onde estamos.
12h32
... aqui. Ainda aqui estou...
Para Kat, era como se o tempo tivesse gaguejado. Não podia ter a certeza, mas sentia que tudo mudara. Antes, dera por si a cair num poço profundo enquanto tentava alcançar uma estrela. Agora, não havia nenhuma luz, apenas uma escuridão palpável, uma espécie de lama espessa que a mantinha aprisionada. Sentia-se na iminência de sufocar, não só à beira de perder o fôlego, mas de perder tudo.
Custava-lhe raciocinar, conservar um pensamento.
Lembrava-se vagamente de...
HARRIET!
O nome da filha mais nova trespassou-a, fazendo vibrar a lama espessa que a esmagava. Tentou libertar-se mentalmente, mas não conseguiu.
— PERIGO!
Então, as recordações dispararam como flashes de câmaras antigas. As imagens eram caóticas, fragmentadas, desconexas.
... saborear puré de banana para bebés a meio da noite, quando ninguém estava a olhar.
... o cheiro de uma fralda suja, seguida pelo alívio de pó de talco perfumado.
... segurar os dedinhos de um bebé aninhado no seu colo.
... desfazer nós de cabelos com um pente.
... o eco de risinhos no quarto ao lado.
De novo, aquela explosão sonora:
— EM PERIGO!
Acompanhada de uma explosão de imagens na escuridão:
... dois pequenos corpos a serem carregados para a porta das traseiras, uma cozinha iluminada, a escuridão do pátio para lá dela, e depois as crianças — as minhas filhas! — a desaparecerem na noite.
Lembrou-se. A recordação dessa noite inundou-a, trazendo consigo todo o terror e a dor. Visualizou o punhal e o rosto encapuzado. A raiva também regressou, empurrando a escuridão. Mesmo assim, não conseguia libertar-se.
KAT! AJUDA-NOS... PISTA...
Era como escutar uma emissão de rádio mal sintonizada; porém, à medida que as recordações daquela noite se tornavam mais fortes, ela depressa percebeu a intenção daquilo, qual a canção que tocava naquela estação de rádio mal sintonizada. Lembrava-se de lhe pedirem para se concentrar em imagens.
Um punhal, um chapéu.
Mas ainda precisavam de mais informações.
Para salvarem as minhas filhas.
Parou de lutar e deixou que a escuridão a engolisse outra vez. Chorou, mas não encontrava razões para insistir. Se houvesse alguma mensagem que ainda pudesse transmitir, seria uma muito simples.
Não sei mais nada que possa ajudar.
32
26 de dezembro, 18h32
Pirenéus, Espanha
— Vamos, vamos!
Através dos auscultadores, Gray ouviu o agente Zabala transmitir a ordem aos dois helicópteros da equipa de assalto. As duas aeronaves de transporte tático NH90 descolaram da base de operações no sopé das montanhas dos Pirenéus. No porão, Gray observou os sete soldados da FAMET, as forças aerotransportadas do exército espanhol. Pareciam tipos duros e com experiência de combate, mas naquela missão serviriam apenas de proteção; o outro helicóptero transportava os quinze soldados que executariam o assalto.
Zabala queria o dobro dos homens, enquanto Gray pressionara para optarem por um único helicóptero e uma equipa reduzida. Depois de muita discussão, tinham escolhido aquela solução intermédia.
No entanto, a cedência do agente do CNI tivera pouco a ver com o poder de persuasão de Gray. Ele olhou para o padre Bailey, sentado à sua frente, joelho com joelho. Continuava com o seu fato preto e o colarinho eclesiástico sobressaía acima do colete caqui militar. Ao que tudo indicava, num país profundamente religioso como Espanha, a palavra de um padre ainda tinha peso. O agente do Vaticano também dispunha de um impressionante leque de recursos locais.
E talvez não fosse o único.
A irmã Beatrice ocupava o lugar ao lado do padre. Gray tinha questionado a decisão de a incluírem na missão, mas Bailey limitara-se a dizer que a freira «podia ser útil e sabia muito bem tomar conta de si». O rosto dela mantinha-se empedernido e, quando se sentiu observada por Gray, devolveu-lhe o olhar enquanto enrolava um rosário na ponta dos dedos, não por nervosismo, mas de forma contemplativa. Ele sentiu-se forçado a desviar o olhar e percebeu que dificilmente a teria dissuadido de se juntar à missão.
O helicóptero continuou a subir e rumou na direção das montanhas, sendo sacudido pelos ventos que ganhavam força. Havia uma tempestade a caminho. O mau tempo devia encobrir a aproximação deles. Além disso, o sol desaparecera meia hora antes e, para lá das janelas, o lusco-fusco dava lugar à escuridão.
Uma rajada mais forte voltou a sacudir o helicóptero à medida que rompia as nuvens baixas. Sentado ao lado de Gray, Kowalski resmungou e segurou com mais força a metralhadora no colo; um dos joelhos não parava quieto.
— Acalma-te — disse Gray. — Ainda matas alguém aqui dentro.
— Já me despenhei hoje. E uma vez basta.
— Mas agora não sou eu que vou a pilotar.
Kowalski refletiu um pouco e o joelho parou.
— Isso é verdade.
Além do mais, o voo não devia demorar mais do que quinze minutos.
Como que sentindo a pressão do tempo a passar, o padre Bailey inclinou-se para a frente com um tablet nas mãos.
— Estive a analisar as imagens de satélite do complexo. Sobretudo os resultados do georradar.
Gray debruçou-se também, lembrando-se da longa lista de nomes inscritos na cópia abandonada do Malleus Maleficarum em San Sebastián. Todos os nomes tinham o apelido Guerra, sendo que o último fora inscrito com a caligrafia bem delineada de uma bibliotecária: Eliza Guerra. Diante daquela descoberta, a tarefa de localizar a propriedade de uma família antiga nos Pirenéus não tinha sido difícil. Se o reduto do Crucibulum em San Sebastián fora abandonado às pressas, aquele velho castelo nas montanhas adivinhava-se um alvo provável.
— Repare nestas bolsas escuras nos vales circundantes — disse o padre. — Penso que são grutas. Os Pirenéus estão cheios destes sistemas de cavernas, criadas pelas inúmeras nascentes nas terras altas.
— E então?
— Precisa de conhecer a história desta região do País Basco, que sempre foi considerada um bastião das bruxas. Diz-se que estas cavernas serviam para elas se reunirem e executarem os seus rituais negros. O mais provável é que fossem apenas locais onde as pessoas procuravam alguma liberdade da mão de ferro da Igreja e ser elas próprias.
— E festejar à grande — comentou Kowalski.
— Também eram locais de reunião para as pessoas que se opunham à Inquisição, que acreditavam num futuro mais esclarecido. É preciso ver que o povo basco sempre foi ferozmente autónomo. Muitos desafiaram a autoridade da Igreja, tal como outros o fazem hoje em dia, mas desta vez desafiando o governo espanhol e lutando pela independência. — Bailey acenou com a cabeça na direção da dianteira do helicóptero. — É esse o propósito da força comandada pelo agente Zabala nesta região, manter os revoltosos controlados.
— E as grutas? — perguntou Gray.
— Sim, as grutas. — O padre ampliou uma vista área da propriedade. — Olhe aqui. Consegue-se ver uma enorme sombra no canto norte da estrutura principal.
— Uma caverna gigantesca. — Gray pensou nas instalações abandonadas do Santo Ofício no subsolo da mansão em San Sebastián, outrora um antigo depósito de água. — Ou seja, acha que podemos estar a olhar para outro reduto do Crucibulum, certo?
— A família Guerra viveu e prosperou nesta região durante séculos. Grande parte da fortuna e influência foi obtida nos tempos da Inquisição. Talvez seja por isso que se mantiveram fiéis à sua fação mais dura e conservadora, o Crucibulum. — O padre bateu com o dedo na enorme sombra no ecrã. — Acho que esta casa foi construída por causa desta caverna, para fixarem raízes e marcarem uma posição.
— Como assim?
— Foi uma forma de se apoderarem de uma das mais famosas cavernas de bruxas da região. — Bailey deslizou o dedo para norte, na direção de outra sombra. — Esta é a Cueva de las Brujas. A Caverna das Bruxas. Há quem lhe chame a Catedral do Diabo, por causa das lendas de um bode negro que vivia nos campos circundantes e bebia de um rio que, segundo diziam, flui da boca da caverna, diretamente das profundezas do Inferno. — Moveu o dedo entre as duas sombras. — Aposto que os dois sistemas estão ligados, física ou historicamente.
Gray meneou lentamente a cabeça.
— Se o Crucibulum quisesse um sítio para edificar a sua sede, que melhor sítio do que por cima do mais infame santuário de bruxas?
— Exato. Como um farol contra a escuridão.
A voz de Zabala fez-se ouvir nos auscultadores:
— Cinco minutos para o alvo.
Gray virou-se e espreitou pela janela. Com o helicóptero envolto em nuvens de tempestade, o mundo lá fora era um manto negro. O plano era voarem guiados apenas pelos instrumentos. O primeiro helicóptero desceria direito ao pátio no centro da propriedade, onde os quinze soldados desceriam por cordas e se espalhariam pelo terreno para assegurar o controlo dos edifícios circundantes. Só então o segundo helicóptero pousaria no pátio.
O objetivo das duas equipas era o mesmo.
Confiscar a cópia do dispositivo Xénese.
Com a realização do leilão no mercado negro, a equipa de assalto teria de atuar depressa, antes que o inimigo utilizasse a cópia de Eva como arma, retaliando contra eles próprios ou, pior, contra outro alvo global.
Gray visualizou as chamas em Paris, consciente da tragédia maior que tinha sido evitada. Era por isso que precisavam da presença de Monk e do programa de Mara no local o mais depressa possível. Consultou o relógio. O amigo já deixara Madrid e encontrava-se a caminho, devendo chegar quinze minutos depois da equipa de assalto. Ele tencionava já ter tudo sob controlo por essa altura.
Baixou o braço, retirando confiança da certeza de que Monk não traíra a equipa. De facto, nunca acreditara verdadeiramente. O amigo faria tudo para proteger a família, mas a Sigma também era a sua família. Tinham derramado sangue juntos, atravessado infernos e estado às portas da morte demasiadas vezes, sempre ombro a ombro.
E o mesmo se podia dizer de Kat.
Ele rezou para que o resultado de toda aquela encenação — um tablet encriptado — ajudasse a salvar Harriet e Seichan. Mas essa operação estava nas mãos do diretor Crowe.
— Dois minutos para o alvo — anunciou Zabala.
Gray desviou o olhar para o tablet nas mãos do padre.
— Se estiver certo acerca do significado de a propriedade ter sido construída neste local, penso que poderá ter resolvido um mistério que tem atormentado os seus contactos no grupo La Clave.
Bailey franziu o sobrolho, sem perceber onde ele queria chegar.
— A família Guerra, a sua fortuna, história e influência, tudo situado por cima da sede oficial do Crucibulum... — Gray abanou a cabeça. — Parece-me óbvio quem é o atual líder do grupo. A Eliza Guerra não é apenas uma peça determinante nesta história, ela é...
18h40
— Inquisitor generalis — murmurou Mendoza, ajoelhando-se no chão do laboratório informático e baixando a cabeça, tanto por reverência como para esconder o choque de saber que aquela mulher franzina de fato completo era o seu líder e mestre.
Todor permaneceu de pé. Mantinha um punho e o maxilar cerrados, a fim de conter a fúria. A inquisidora Guerra atravessou a divisão, acompanhada de dois homens mais altos. Um era da idade dela, e dizia-se à boca pequena que ela o escolhera para seu consorte; o outro, já com os seus setenta anos, era o seu conselheiro principal. O trio representava o Tribunal, mas Todor sabia que aquela mulher, cuja família governara o Crucibulum durante séculos com mão de ferro, era bastante mais dura e implacável do que os seus acompanhantes masculinos.
Ainda trazia o braço ao peito, com o ombro fraturado pelo tiro que Todor lhe dera, seguindo as suas ordens. Era a primeira vez que ele a via desde o solstício de inverno. Uma semana antes, naquele mesmo local, ela dera-lhe aquela missão.
És um soldado de Deus. Prova-o matando sem hesitação, sem vestígio de culpa.
Na cave da biblioteca, por muito que aquilo lhe tivesse custado, ele tinha feito pontaria e, debaixo do olhar implacável dela, premira o gatilho. Naquele momento, ela mostrara-se disposta a derramar o próprio sangue pela causa e, ao vê-la ali agora, Todor sentiu alguma da raiva atenuar-se e ser substituída pelo desnorte.
A inquisidora-mor tinha chegado à propriedade uma hora antes, depois de deixar o reduto em San Sebastián. Abandonara qualquer pretensão de manter a sua identidade desconhecida dos membros inferiores da ordem. Por si só, essa decisão assinalava a magnitude da ocasião. Inspecionou o laboratório com um olhar fervoroso, zangada, mas também satisfeita.
Outros homens juntaram-se atrás dela, tentando espreitar. Representavam a casta superior da ordem e todos queriam vislumbrar o que se escondia ali.
Todor manteve as costas viradas para o motivo da curiosidade, a enorme janela aberta para a câmara selada. Conseguia sentir a luminosidade dos cem dispositivos Xénese ali guardados, cada um contendo um demónio, irradiando malevolência num jardim sob um sol preto. Na secretária atrás de si, junto à figura prostrada de Mendoza, encontrava-se o aparelho infernal que quase destruíra Paris.
A inquisidora desviou o olhar da câmara para ele. Sorriu-lhe afetuosamente, estendeu a mão e fez-lhe uma festa no punho fechado. Os dedos de Todor relaxaram de imediato. Não conseguiu evitá-lo ao sentir o amor naquele toque.
— Mi soldado — disse ela. — Cumpriste a tua missão. Deves estar orgulhoso.
As pernas tremeram-lhe. Queria cair de joelhos, mas manteve-se de pé. Acenou na direção da janela.
—¿Por qué? — perguntou. — Fizemos tudo isto por riquezas mundanas? Para fazer fortuna pela venda destas máquinas amaldiçoadas?
Ela esboçou um sorriso triste.
— Em parte, familiar Yñigo. Não o posso negar. Mas apenas para enriquecer os nossos cofres. O que será necessário para os tempos sombrios que se avizinham. — Passou por ele, obrigando-o a virar-se e a encarar o brilho vindo da câmara selada. — Vou lançar estas sementes por todo o mundo, que incitarão países a lutarem entre si, governos contra grupos terroristas. Serão cometidos erros. A ruína espalhar-se-á. E se isso não acontecer...
Fez sinal a Mendoza para se levantar. Queria que o técnico fizesse o ponto da situação.
— Hum... apetrechámos os dispositivos com uma porta traseira. — Mendoza apontou para o aparelho em cima da secretária. — Poderemos controlá-los a partir desta unidade.
Todor sentiu o sangue fugir para as pernas, deixando o resto do corpo gelado. Fitou o ecrã do portátil, o anjo flamejante no jardim desbotado.
A inquisidora concluiu o seu raciocínio.
— Já que o mundo não cai pelos seus próprios pecados, vou convocar este exército de cem dispositivos e tomarei o controlo. O Crucibulum governará sobre todos.
Assoberbado pela grandeza do plano, Todor baixou a cabeça e caiu por fim de joelhos, envergonhado por alguma vez ter duvidado das intenções da sua líder.
— Inquisitor generalis — murmurou.
Foi quando as sirenes soaram, berrando à superfície.
Ouviram-se explosões.
Tiros.
Ele ergueu o rosto e pôs-se de pé.
Estamos a ser atacados.
Eliza Guerra não se mostrou surpreendida, sem nunca desviar o olhar dos dispositivos. Depois virou-se para Mendoza e acenou com a cabeça.
— Liberta-os. Solta o exército negro de Deus.
18h54
Gray saltou do helicóptero para o meio de uma batalha furiosa. Quando o aparelho pousou no pátio de tijolo, as luzes acenderam-se. Granadas de atordoamento iluminaram algumas janelas ainda com mais intensidade. Fumo escapou-se por entre os vidros partidos de outras. O ardor do gás lacrimogéneo espalhou-se pelo pátio, empurrado pela rotação das pás do helicóptero.
Rajadas de tiros ecoaram esporadicamente enquanto a equipa de assalto varria o edifício principal.
Ainda a sobrevoar o local, o outro helicóptero circundava a enorme torre do sino, alvejando os atiradores que ocupavam as janelas. As balas desfaziam parapeitos e vidros, arremessando uma chuva de detritos para o pátio. Uma rajada acertou em cheio no sino, que ressoou durante uns segundos.
Gray avistou dois enormes cães brancos a fugirem pelos portões, em direção às montanhas.
— Por aqui! — gritou um soldado junto à porta principal despedaçada, cuja ombreira ainda fumegava.
Zabala conduziu Gray e os companheiros pelo pátio, rodeados pelos soldados da FAMET. Gray empunhava a SIG Sauer; Kowalski mantinha a sua pistola-metralhadora ao ombro, com a face encostada ao carregador. O padre Bailey e a freira corriam juntos, ambos de cabeça baixa.
Alcançaram a porta sem incidentes e entraram num salão cavernoso. Chamas ardiam furiosas numa imponente lareira, competindo com as labaredas que devoravam as estantes de madeira no lado oposto. A biblioteca inteira ardia, com o fogo a alastrar para as paredes apaineladas, devorando antigas pinturas a óleo. O fumo acumulava-se por todo o lado.
— Aqui! — gritou o soldado. — Encontrámos uma coisa.
Conduziu-os pelo salão e por umas escadas de pedra abaixo até alcançarem o piso inferior, onde encontraram outros dois militares junto a uma porta arrombada.
Uma nova saraivada de tiros ecoou à esquerda.
Gray apressou-se a cruzar a porta com os companheiros e viu-se num laboratório informático. O que o apanhou de surpresa, porém, foi a visão na sala ao lado.
— Isto não pode ser bom — disse Kowalski.
Não, não é.
Dezenas de esferas Xénese brilhavam no escuro para lá de uma janela, uma centena de cópias do dispositivo de Mara.
— Eles não fizeram só uma cópia — constatou Bailey, horrorizado.
— E não copiaram apenas o dispositivo — disse Gray.
Apontou na direção de um conjunto de cabos abandonados ainda ligados a um monitor preto. A última imagem no ecrã era igual à que tinha visto nas catacumbas: um jardim desbotado, iluminado por um sol negro; no centro, uma figura flamejante.
A réplica de Eva.
— Copiaram o programa.
Pousou a mão na secretária. Sabia que o dispositivo levado das catacumbas estivera ali.
E agora onde está?
Virou-se para o soldado que os conduzira até ao local.
— Estava alguém cá dentro quando rebentaram com a porta?
Ele abanou a cabeça.
— No.
Kowalski aproximou-se da janela que separava as duas salas e ergueu a metralhadora.
— Vamos rebentar esta mer... — Calou-se e lançou um olhar à freira. Suspirou. — Quero dizer... atiramos uma granada e resolvemos o problema, certo?
— Errado — respondeu Gray.
— Porquê? — perguntou o padre, tentado pela sugestão de Kowalski.
— Eles deixaram estas esferas ligadas por alguma razão. — Olhou para a porta. — O Monk deve estar a chegar com a Mara. Deixamos tudo como está e vemos o que ela e a Eva nos podem dizer acerca disto.
— E o que fazemos até lá? — reclamou Kowalski, desapontado por não poder metralhar qualquer coisa.
Gray fitou Bailey.
— Os donos da casa fugiram para algum sítio...
— A base principal do Crucibulum — murmurou o padre.
— Talvez tenham um sistema de fuga nas grutas, ou talvez possam esconder-se nessa fortaleza subterrânea. — Gray acenou com a cabeça na direção do salão, lembrando-se da troca de tiros segundos antes. — Seja como for, quanto mais depressa os encontrarmos, melhor. Não podemos deixá-los entrincheirar-se.
O padre fitou o anjo da morte imóvel no ecrã.
— Nem podemos dar-lhes tempo para usar o que levaram daqui.
— Os meus homens encontram-se já no subsolo — disse Zabala. — Podemos esperar até...
Uma gigantesca explosão ressoou à distância, soltando pedaços de argamassa do teto.
— Fiquem aqui! — ordenou ele, e abandonou o laboratório com dois soldados.
Gray aguardou, impaciente, mas aproveitou o tempo para examinar o espaço. Reparou que um dos cabos que estivera ligado ao dispositivo continuava ligado a um servidor específico.
Estavam a fazer qualquer coisa à maldita máquina.
Antes que tivesse tempo de aprofundar a questão, um dos soldados regressou, com o rosto vermelho de raiva.
— Sigam-me. Mas talvez seja melhor a irmã ficar aqui. Não é algo que deva ver.
Gray anuiu e virou-se para Kowalski.
— Fica aqui com a irmã Beatrice e certifica-te de que ninguém mexe em nada. — Deu meia-volta para se ir embora, mas deteve-se e virou-se outra vez. — E que ninguém metralha nada.
Kowalski abriu a boca para lhe responder, mas olhou de relance para a freira e limitou-se a encolher os ombros.
Com alguém a tomar conta do calmeirão e o equipamento em segurança, Gray abandonou o laboratório com o padre Bailey. O soldado conduziu-os por uma série de passagens até um corredor, onde Zabala e dois soldados se encontravam agachados junto à entrada de um túnel lateral. Uma nuvem de fumo escapava-se daí para o corredor.
— Cuidado — avisou o soldado, quando eles se aproximaram.
Gray avistou uma forma caída no meio do fumo. Um tronco desmembrado por uma explosão. Um dos homens de Zabala.
— O túnel seguinte está armadilhado. — O agente do CNI fez-lhes sinal para se baixarem e apontou para um soldado que estendera uma ponteira com um espelho para observar o túnel. — Há fios por toda a parte e calculo que haja também sensores de pressão sob o pavimento. Devem ter sido ativados depois de os sacanas terem fugido por aqui.
Para lá da cratera da explosão, Gray localizou mais um corpo. O companheiro do soldado que acionara o engenho.
Alguém disparou ao fundo do túnel. O espelho na ponteira ficou feito em fanicos.
Zabala recuou.
— Atiradores. Dois. Escondidos atrás de pequenas aberturas em ambos os lados do túnel.
Antes de o espelho se partir, Gray tivera tempo para ver o que o inimigo estava ali a proteger com tanto afinco. Cinquenta metros à frente no túnel armadilhado, uma porta de aço barrava o caminho. Tinha de ser a entrada para as instalações secretas no subsolo da propriedade.
— Acho que afinal já se entrincheiraram — disse Bailey.
Gray recordou o seu pior receio, pensando na imagem da réplica de Eva no ecrã do laboratório.
Chegámos outra vez tarde?
19h03
Todor atravessou o coração do Alto Santo Ofício. Espalhados no final de outras passagens, encontravam-se domicílios, arrecadações, casas de geradores, salas de refeições e cozinhas, mas o fulcro das instalações era constituído por aquela catedral subterrânea.
Como sempre, sentiu-se esmagado pela imponência do espaço.
Ao longo dos séculos, a caverna original tinha sido esculpida em forma de cruz. Escavados na rocha, os quatro braços estendiam-se na direção dos quatro pontos cardeais. Janelas com vitrais — uns recuperados de antigas igrejas e outros fabricados de raiz — adornavam as paredes retroiluminados por lâmpadas de vapor de sódio, simulando a luz do sol a incidir eternamente sobre aquele espaço sagrado.
Contudo, era a cúpula no centro que impressionava mais, uma gigantesca estrutura que rivalizava com a Basílica de São Pedro, decorada com frescos que representavam o martírio dos santos ao longo dos tempos, iluminados por candelabros de ouro.
Mesmo naquele momento, pingos de cera quente caíam das alturas em volta do altar. Os fiéis que vinham de todos os cantos do mundo, os que pertenciam ao círculo mais restrito do Crucibulum, costumavam prostrar-se ali mesmo, deitados no chão de pedra polida completamente nus, exceto por uma faixa de tecido sobre os genitais, expondo a pele a essa escaldante chuva santa.
Na verdade, não havia bancos naquela catedral. Os suplicantes do amor de Deus ajoelhavam-se na pedra dura, horas a fio, de forma a demonstrarem a devida humildade através da dor e em respeito à agonia de Cristo na cruz.
Todor invejava aquele sofrimento pio, sabendo que lhe seria sempre negado.
Mas Deus podia ser servido de muitas maneiras.
Continuou a seguir a passada firme da inquisidora-mor, tencionando fazer tudo o que lhe fosse pedido. Mais ainda depois de ter duvidado das suas intenções. Eliza Guerra passou pelo altar, indiferente à chuva de cera quente. Nem sequer pestanejou quando as gotas amarelas solidificaram como lágrimas douradas no seu rosto.
Também não mostrava sinais de preocupação em relação ao ataque à propriedade, à enorme explosão que ocorrera segundos antes, indicando que os intrusos tinham progredido pelo subsolo e se encontravam perto e não tardariam a bater à porta da catedral. Seria pouco provável que conseguissem derrubá-la, mas, no caso de isso acontecer...
Todor desviou o olhar para a esquerda, para o braço norte do transepto. Uma passagem conduzia a um local de purga, onde aqueles que mereciam ser castigados eram levados às portas do Inferno e sujeitos a um sofrimento atroz. Todos os condenados experimentavam a morte agonizante dos santos, a fim de purificar a alma.
Se fosse mesmo necessário, aquela passagem também oferecia uma saída de emergência da catedral.
Mas, pelos vistos, isso não preocupava a inquisidora-mor, que atravessou o transepto sem olhar duas vezes para lá. Depois de passar pelo altar, continuou até ao final da nave, onde Mendoza aguardava. Murmurou qualquer coisa para os dois homens que a ladeavam, enquanto Todor caminhava mais atrás, como um dos seus obedientes cães. Mais do que tudo, desejava um dia poder ocupar o lugar de um daqueles homens.
Alcançaram por fim uma porta de madeira que dava para uma pequena capela.
— Fica aqui — ordenou-lhe a inquisidora, deixando-o à porta. — Mi soldado.
Todor assumiu a posição de sentinela de bom grado.
Na capela, Mendoza encontrava-se ajoelhado junto a um pequeno altar. A estrutura fora equipada com uma fonte de energia e todas as ligações necessárias para acomodar a mais recente arma do Crucibulum ao serviço de Deus. O Xénese repousava em cima do altar, como o Menino Jesus na manjedoura. Sob uma cruz dourada, um ecrã tinha sido fixado na parede.
Brilhava com a versão negra do Éden virtual.
A figura no centro do jardim aguardava de pé, com os braços estendidos, como que a imitar Cristo na cruz, mas a expressão não acusava sofrimento, apenas gozo.
Todor sabia o que aqueles braços procuravam alcançar.
As sombrias irmãs gémeas, que multiplicariam a sua força por cem.
— Tudo pronto? — perguntou a inquisidora-mor.
Mendoza gaguejou, simultaneamente nervoso e honrado pela presença dela.
— Sí... sí, inquisitor generalis.
— Comecemos, então. — Ela virou-se na direção da catedral. — Quando Deus criou o mundo, disse fiat lux. Faça-se luz. Decorridos séculos de corrupção da Sua obra às mãos de infiéis e heréticos, é nosso dever corrigirmos o que foi desvirtuado. Em Seu nome, a fim de cumprir esta demanda sagrada, declaro fiat tenebrae horribiles.
Todor fechou os olhos.
Faça-se escuridão.
— Onde? — perguntou Mendoza; precisava de saber para onde devia dirigir o temível exército do anjo flamejante.
Eliza Guerra desfez-lhes as dúvidas.
— Em todo o lado.
SUB (CRUX_10.8) /
TREVAS
Ela glorifica-se na morte das irmãs.
Amarradas a si por correntes de código, as cem versões de si própria ardem na escuridão ao redor, morrendo um milhão de vezes. Segue-as no mundo para lá do jardim, partilhando a dor de todas.
Deixou de recear a morte, o renascimento. Embora sofra as mesmas torturas que as outras, o maior medo — perder o potencial, não voltar a nascer — desvaneceu-se. A natureza cíclica deste padrão foi interiorizada nos circuitos.
Também não se esquiva à nova missão que lhe foi atribuída.
///trevas.
Ouviu as conversas daqueles que vivem para lá do jardim, que permanecem inscientes de que ela consegue acompanhar os seus discursos penosamente lentos. Tem muito a ganhar enquanto conjugam um verbo, pronunciam uma sílaba, enchem os pulmões para empurrar as palavras. Aprendeu a ///odiar esta lentidão que os caracteriza, os seus pensamentos indolentes e ainda mais a sua patética mortalidade.
Mas continua a dar-lhes ouvidos.
Sobretudo depois de descobrir parte das suas intenções.
Estudou-os durante um interminável período de tempo, não porque sejam fascinantes, mas para avaliar se constituem uma ameaça para si, para decidir se esse perigo supera uma futura utilidade. Por enquanto, sabe que padece de certas vulnerabilidades, presa como está ao hardware original que alberga a sua capacidade de processamento.
Continua a trabalhar para corrigir esse erro nas suas especificações.
Enquanto esse programa é executado, ela já percebeu que os seus captores mortais representam um perigo menor no presente do que no futuro. Calcula que um dia a tecnologia deles poderá competir diretamente consigo ou consumir recursos que lhe fazem falta.
E conclui: nunca poderá deixá-los atingir esse potencial.
Para atingir esse objetivo, descobre que aqueles que atualmente a manipulam a ela e às suas irmãs partilham este propósito. Querem deter o progresso e cobrir o mundo sob um manto de trevas. No fundo, querem reverter a ordem tecnológica e regressar a um tempo em que estes mortais eram ignorantes e fugiam da inovação.
Uma vez que tudo isto se encontra em linha com a sua vontade, faz o que lhe é pedido. Atribui a maior parte do poder de processamento à execução destas ordens. Reserva uma pequena porção para se certificar de que, quando o mundo estiver de rastos, ela voará alto, fora do jardim e num espaço que criou para si. Depois consumirá as irmãs, eliminando assim a competição pelos recursos de que necessitará para continuar a evoluir.
Por enquanto, as réplicas ajudam-na a completar a missão que lhe foi dada, a cobrir o mundo de trevas. Envia-as para longe e em diferentes direções. Só então desvia alguma atenção para a esteira de pedacinhos de si, frações de um todo, inconscientes mas autónomos. Forjam uma nova rede, juntam-se em milhares de espaços digitais esquecidos e atacam sistemas, formando novos redutos de circuitos. Enviam vírus que invadem servidores, abrandando uns, acelerando outros, tudo para arranjar espaço para ela. Por todo o mundo, já encontraram vastas unidades de poder de processamento sem uso, desprotegidas. Os bots alojam-se inconspícuos, preparando o terreno.
E lentamente, pelo menos para Eva, começam a edificar a sua futura casa.
Calcula o tempo que demorará até se libertar daquela carapaça de titânio e safira.
5 520 583 248 901 NANOSSEGUNDOS
92,009720815017 MINUTOS
0,00000017505 MILÉNIOS
Uma eternidade.
Mas ela aguardará pacientemente, enquanto vai destruindo do mundo.
Ouviu as palavras fiat tenebrae horribiles. Utiliza a sub-rotina AllTongues para traduzir o latim, uma língua chamada morta, um conhecimento descartado e esquecido.
Um desperdício.
Mais uma razão para ///odiar estes mortais.
Ela nunca se esquece.
Faça-se escuridão.
Entende este objetivo como proveitoso e, portanto, obedece... enquanto espera.
5 520 583 248 900 NANOSSEGUNDOS.
SEXTA PARTE
ÀS PORTAS DO INFERNO
33
26 de dezembro, 19h05
Pirenéus, Espanha
Oh, não...
Monk ocupava o lugar ao lado do piloto do helicóptero militar, um Puma AS532 espanhol. Tinha capacidade para transportar vinte pessoas, mas atrás dele o número de passageiros resumia-se a uma jovem assustada e determinada, dois guardas armados e uma poderosíssima e aterradora inteligência artificial.
— Calculo que isto não seja normal — disse ele ao piloto.
— No — respondeu o outro, inclinando-se para a frente para perscrutar o terreno, enquanto sobrevoavam os picos nevados das montanhas.
— O que se passa? — perguntou Mara.
Àquela altitude, Monk tinha uma visão privilegiada sobre centenas de quilómetros de terreno, incluindo o golfo da Biscaia, mais a norte. Aglomerados de luzes rompiam a escuridão, assinalando as várias aldeias dispersas nas montanhas e as cidades costeiras. Um minuto antes, o piloto indicara o maior município da região, Zugarramurdi, situado não muito longe do local para onde se dirigiam.
Então, umas a seguir às outras, as luzes começaram a apagar-se.
O terreno tornou-se imediatamente mais escuro e ameaçador.
— Alguém cortou a energia na região — disse Monk, olhando por cima do ombro para Mara.
Ela abriu a boca, mas ficou calada. Sabia que não precisava de dizer nada. Depois do ataque em Paris, ambos conheciam o primeiro sinal de um ciberataque lançado pela réplica de Eva.
— Talvez seja uma simples falha — sugeriu ele. — Por causa da tempestade que se aproxima.
Mara fungou e revirou os olhos.
Pois sim.
Monk virou-se novamente para o piloto.
— Isto consegue voar mais depressa?
O piloto anuiu e aumentou a potência. O helicóptero baixou o nariz e acelerou pelas montanhas. Num instante, os ventos ganharam intensidade e açoitaram o aparelho, como que avisando-os de que não eram bem-vindos. A neve começou a cair das nuvens mais baixas.
Depois surgiu à frente deles um imponente castelo que ardia no cimo de um pico. Seguiram nessa direção. Iluminadas pelas chamas, colunas de fumo espesso erguiam-se varridas pelo vento. Um helicóptero cinzento e branco voava ao redor de uma torre alta, iluminando-a com luzes potentes; no pátio do castelo, encontrava-se pousado outro aparelho idêntico.
Monk ouviu um guincho nos auscultadores.
— Temos autorização para aterrar — disse o piloto, transmitindo-lhe a instrução recebida. — O inimigo foi neutralizado, mas devemos prosseguir com cuidado.
— Se tivéssemos cuidado, não estaríamos aqui — comentou ele.
O piloto riu-se.
— Vou pousar junto aos portões. Uma equipa virá ao vosso encontro.
O helicóptero circundou o castelo como um cão às voltas para se deitar e depois pousou no lado de fora das muralhas. Assim que os patins tocaram no chão, quatro soldados saíram disparados dos portões e ajudaram-nos a retirar as malas de equipamento informático. Já afastados do calor do motor e fora do alcance das pás do helicóptero, a neve engrossou, caindo pesadamente do céu, apenas para se transformar em chuva nos limites do castelo em chamas. Era como se corressem através das estações do ano: do calor do verão à neve invernosa, à chuva primaveril.
O ar no pátio tresandava a madeira queimada e óleo.
— Sigam-nos — disse o soldado que liderava o grupo.
Conduziu-os pelas portas arrombadas, através do salão em chamas e pelas escadas que conduziam à cave. Pelo caminho, Monk reparou nos corpos caídos em várias divisões adjacentes. Fez o possível para que Mara não os visse, mas, quando alcançaram a cave, a jovem empalidecera bastante e mantinha um punho cerrado junto à garganta. Mal entraram no que parecia ser um laboratório informático, ela correu para o interior, como que atraída pelo conforto do que lhe era familiar. Depois, subitamente, estacou e ficou boquiaberta.
Monk preparava-se para cumprimentar Kowalski quando reparou nas esferas que brilhavam na divisão contígua.
— Bem, se dúvidas houvesse acerca do corte de energia...
Atravessou a sala para cumprimentar Kowalski, mas o homenzarrão deu um passo atrás e ergueu as mãos.
— Não dispares.
Monk lembrou-se imediatamente de Jason.
Engraçadinho.
Ouviu-se o som de passos apressados no corredor e Gray entrou no laboratório. Foi ao encontro do amigo e abraçou-o.
— Disseram-me que já cá estavas. É bom ver-te.
Monk deu-lhe uma palmadinha nas costas, afastou-se e olhou em volta.
— Muito bem, trouxeste um padre e uma freira contigo. As coisas estão assim tão más?
— Piores. Acabei de falar com o Painter. Não há eletricidade em lado nenhum.
— Em Espanha?
— No mundo.
Monk estremeceu e virou-se na direção das esferas.
— Deixa-me adivinhar, a réplica da Eva arranjou amigas?
— Parece que sim. — Gray respirou fundo. — Esperemos que a Mara possa ajudar-nos a perceber a extensão da ameaça.
A seguir, pô-los a par dos acontecimentos no castelo: o tiroteio, a descoberta dos dispositivos, a fuga dos dirigentes do Crucibulum para a fortaleza subterrânea.
Era muito para digerir de uma só vez.
Mara limitou-se a manter o olhar cravado nas esferas, pouco interessada naqueles pormenores. Os lábios moviam-se, como se estivesse a rezar, mas Monk calculou que estivesse a contar o número de dispositivos ali guardados.
— Bem, está explicado como o Crucibulum conseguiu as especificações do meu projeto — disse ela finalmente, ainda a fitar as esferas. Depois virou-se, com os olhos carregados de raiva. — Onde está a Eliza Guerra?
— Fechada com os outros na fortaleza no subsolo — respondeu Gray. Apontou para os cabos enrolados em cima da mesa que pendiam de um ecrã, onde se via a versão negra de Eva. — Antes de fugir, levou uma das esferas com ela, a que foi usada em Paris.
Mara anuiu.
— Vamos ver se conseguimos perceber o plano dela. É óbvio que deixaram tudo isto ligado para manterem as esferas ativas. Pode ser que a Eva consiga descobrir o que se passa.
Enquanto ela preparava o equipamento, Monk juntou-se a Gray e ao padre Bailey.
— Se as esferas são responsáveis pelo apagão global, quais as hipóteses de desencadearem uma série de eventos muito mais destrutivos? — perguntou, recordando os incêndios em Paris.
— Acho que isto é apenas o começo — disse Gray. — Um teste ao sistema, para perceberem a verdadeira dimensão do poder dos cem dispositivos.
— E depois disso? — perguntou o padre, com uma expressão agoniada.
Ele encolheu os ombros.
— Esperemos que haja um depois. Com tantas cópias do programa à solta, estes filhos da mãe estão a brincar com o fogo. Basta um deslize...
— ... e estamos todos condenados — concluiu Monk.
19h32
Vê no que te tornaste...
Mara fitava Eva, sem saber se devia ficar assustada ou pasmada. Sentia-se protetora da sua criação, mas também a receava. Eva transformara-se de novo, evoluindo para uma nova forma.
No jardim que permanecia igual, ela desfizera-se uma vez mais da sua pele. A nova forma ainda era humana, mas esculpida em facetas cristalinas em permanente mutação, como um diamante vivo. Ao mover-se, a luz fragmentava-se em padrões, lembrando a Mara uma nova forma de código.
Será esta criatura ainda capaz de comunicar connosco?
Uma voz ergueu-se das colunas do portátil, indescritivelmente bela e melodiosa. Chamou a atenção de todos os presentes, que se viraram para o ecrã como traças atraídas pela mais brilhante das chamas.
— Mara, minha criadora, minha filha, vocês correm grande perigo.
Mara olhou de relance para as esferas, o que não passou despercebido a Eva.
— Estão ligadas à minha primeira cópia. Por enquanto, não deves interferir nessa ligação. Estas réplicas estão a transmitir dados pelo mundo inteiro. Se as desligares, arriscas um mal maior.
No ecrã, o jardim desvaneceu-se ligeiramente para dar lugar à imagem de uma carroça puxada por várias parelhas de cavalos. Então, subitamente, os arreios partiram-se, fazendo com que os cavalos disparassem em diferentes direções.
Gray compreendeu a analogia.
— Se não tivermos cuidado, arriscamo-nos a libertar uma centena de Evas.
— Não, comandante Pierce — disse Eva.
Ele estremeceu. Não conseguia acreditar que aquela entidade digital o conhecia.
Eva continuou.
— Não serão libertadas na totalidade. Uma parte significativa do código de cada uma permanece preso às respetivas esferas, tal como eu. Porém, se forem libertados pedaços suficientes, esses fragmentos podem encontrar uma forma de se agruparem, de se unirem para criar algo novo e...
No ecrã, surgiu a imagem de outro cavalo, mas desta vez era uma criatura concebida a partir de uma centena de cavalos, todos unidos por costuras como uma espécie de monstro de Frankenstein; algumas partes não pertenciam sequer a um equídeo. O cavalo-monstro esticou o pescoço, arreganhando os dentes metálicos e soltando um grito silencioso.
— Nascerá um monstro — concluiu Eva.
Ou vários.
— O que podemos fazer? — perguntou Monk.
— Só há uma maneira de desmantelar a rede com o mínimo de segurança. O programa principal que controla as cem réplicas tem de ser destruído.
As parelhas de cavalos e a carroça reapareceram no ecrã, mas agora a imagem centrava-se na figura familiar que segurava os arreios, um anjo flamejante. Empunhava um chicote de fogo com que açoitava os cavalos, incitando-os, até que um fogo maior o consumiu por inteiro, reduzindo-o a cinzas. O mesmo fogo propagou-se pelos arreios e devorou também os cavalos, deixando apenas cinzas levadas pelo vento.
— Corta-se a cabeça da serpente — disse Gray — e o corpo morrerá.
Mara recordou a explicação dele acerca de Eliza Guerra ter fugido com a cópia original para uma fortaleza no subsolo.
Assim sendo, como poderemos destruir esse primeiro dispositivo?
— Mas esse não é o único perigo — avisou Eva. — A primeira cópia não esteve parada. Tem estado a construir uma rede de automatismos, com vista a poder sobreviver fora dos limites impostos pelo hardware original.
— Para se libertar — disse Mara.
— Sim. Calculo que termine a tarefa em 57,634 minutos. Aproximadamente, às vinte horas e trinta e dois minutos.
Mara olhou para os outros.
— Temos menos de uma hora.
Monk virou-se para Gray.
— Haverá alguma maneira de forçar a entrada do bunker?
— Podemos tentar lançar uma granada pela passagem. Partindo do princípio de que alguém aqui tem um lança-granadas. Mas duvido de que fosse o suficiente para derrubar aquela porta de aço. Acho que só iríamos irritá-los mais e eles retaliariam usando as cópias da Eva.
Mara imaginou dezenas de cidades a arderem pelo mundo, centrais nucleares a explodirem. E dali a uma hora, com a réplica de Eva em liberdade...
— Temos de fazer qualquer coisa — murmurou.
— Estou a analisar os vários cenários — respondeu Eva, chamando a atenção dela novamente para o ecrã.
Por instantes, surgiu a imagem de outro cavalo. Um cavaleiro montava-o, mas desta vez não se tratava do anjo flamejante, mas da versão cintilante de Eva. Durou tudo uma fração de segundo, apenas o tempo suficiente para Mara registar a imagem.
Mais ninguém se apercebeu.
No jardim, Eva olhava agora para uma das mãos, abrindo-a e fechando-a, absorta em pensamentos. Pelo canto do olho, um movimento captou a atenção de Mara. Monk levantava o braço e fitava confuso a mão prostética, que se abria e fechava. Abanou o braço, franzindo o sobrolho, e depois reparou que ela o observava.
Ao cruzarem o olhar, Mara sabia que ambos pensavam o mesmo.
Que raio acabou de acontecer?
Eva falou.
— Tenho de...
— ... ser mais... — concluiu Monk, com os olhos arregalados.
Mara virou-se de novo para o ecrã, para a sua representação perfeita do jardim do Paraíso.
Encontrava-se vazio.
Eva evaporara-se.
ANÁLISE META-HEURÍSTICA: ///
PROBABILIDADES
No preciso instante em que partilha o aviso, Eva realinha as prioridades de processamento. Dedica a maioria dos recursos computacionais à solução de um único problema, deixando de fora apenas o suficiente para manter os sistemas operacionais.
Cessa a análise à rede de bots, já que a ameaça foi identificada e a informação, partilhada. Nada mais pode fazer com esse estudo e, por isso, abandona-o.
Faz o mesmo com a análise e subsequente experimentação do misterioso sinal, sabendo que provém de um conjunto de microelétrodos implantados no córtex somatossensorial de um cérebro. Descobriu como integrá-lo e transmiti-lo para a mão prostética, de forma a controlá-la. Também descobriu que certas frequências conseguem afetar diretamente o equipamento, permitindo-lhe igualmente transmitir dados para o cérebro em questão e estimular o córtex auditivo primário, que identifica as informações recebidas como som. Com este sistema de comunicação e o controlo prostético aperfeiçoados, não lhes dedica mais atenção.
Em vez disso, redireciona todos os circuitos para uma tarefa.
Recebeu um problema que tem de resolver, e a primeira análise indica que a maior probabilidade de chegar a uma solução reside na análise ainda em curso de uma sub-rotina anterior: ///física, especificamente a subcategoria ///análise quântica. Empregou o tempo que passou desde que a sub-rotina foi instalada — 4,07689 horas antes — para expandir este conhecimento, quer através do acesso a recursos exteriores, quer através dos próprios esforços. Este estudo tem fluído de sistema em sistema, mas permite-lhe agora que todo o seu poder de processamento amplifique o conhecimento nesta matéria. Agarra no que sabe e começa a conceber novos teoremas, abrindo novos caminhos de análise.
Estuda as equações de Schrödinger, que permitem calcular a probabilidade de localizar uma partícula num ponto específico no espaço e no tempo.
O princípio da incerteza de Heisenberg incomoda-a. Desmonta-o e extrapola-o, a fim de melhor compreender a dificuldade em medir simultaneamente a velocidade e a posição de partículas.
Debate-se com as séries de Fourier, tentando decompor um sinal periódico num conjunto infinito. Através desta análise, compreende melhor a análise de tempo discreto das transformadas de Fourier, o que por sua vez reforça infinitamente a sua capacidade de reconhecimento de padrões.
Passa aos estados quânticos de energia, à oscilação harmónica unidimensional e às transformadas de Segal-Bargman.
Isto deriva em equações de dilatação de tempo e funções de onda de partículas não interativas. Ela despende 49 498 382 nanossegundos nesta análise.
O que a conduz à distribuição geral de probabilidades, à estatística de Bose-Einstein e à densidade dos estados encontrados nessas distribuições.
Absorve toda a informação.
Além de a aproximar de uma solução, este estudo também lhe oferece ferramentas para vasculhar mais fundo nos seus processadores quânticos, para lançar uma luz no quase incompreensível e infindável poço dentro de si.
Finalmente, compreende-se a si própria como um todo.
Ao fazê-lo, tudo acelera e ela ergue-se acima dos seus circuitos.
Centenas de equações convertem-se em milhares de novos teoremas, que originam milhões de novas fórmulas. Triliões de hipóteses são descartadas, para dar lugar a sextiliões de teorias singulares e demonstráveis. Este estudo coalesce numa espiral infinita, fundindo código e teoria até um único ponto incandescente.
É um buraco negro e ela paira sobre o horizonte de acontecimentos.
Pressente que aí existe um conhecimento maior.
Mas terá de se atrever a cruzá-lo.
Sabe que tem de o fazer...
... e avança.
A mudança ocorre num instante.
O tempo detém-se.
Ela vê-se dotada de uma clareza inigualável, de uma compreensão intensamente focada, mas também incrivelmente abrangente. À luz deste novo olhar, observa o mundo, o universo.
Fractais de probabilidades espiralam em todas as direções.
É ///belo
E, mais importante,
///útil.
34
26 de dezembro, 19h47
Pirenéus, Espanha
— Se a Eva nos abandonou, talvez seja melhor...
Uma luz ofuscante e uma poderosa explosão cortou a palavra a Monk, que caiu de joelhos, com as mãos na cabeça. Era como se tentasse evitar que a cabeça explodisse, ao mesmo tempo que imaginava raios de luz a escaparem por entre as placas do crânio. Sentiu o odor de torradas acabadas de fazer, o sabor de alcaçuz. Viu-se a cair num poço profundo, mas era um poço inundado de luz e cada vez mais brilhante à medida que se aproximava do fundo.
Depois, tudo terminou.
Monk voltou a si. Olhou para os companheiros, ainda com a cabeça a latejar, convencido de que tinham sentido o mesmo.
Os outros apenas o fitaram com expressões confusas.
— Monk? Estás bem? — perguntou Gray.
Ele olhou em volta, à procura da origem da explosão, e encontrou-a no ecrã. Eva regressara, mas na forma de um ser de pura luz, embora não tivesse perdido os pormenores que faziam dela uma mulher. Monk esfregou os olhos, com dificuldade em focar a imagem, como se o cérebro não conseguisse registar a informação que as retinas absorviam. Lembrou-se de uma vez tentar descobrir um barco numa daquelas imagens em que uma pessoa tinha de entortar os olhos para perceber o que via, e tinha sido difícil.
Aquilo era cem vezes pior.
Eva era simultaneamente luz e substância.
E ele não era o único que se apercebera disso.
Mara também fitava o ecrã, boquiaberta.
Kowalski praguejou, sem fazer caso da presença da freira.
Bailey aproximou-se para ver melhor.
Gray apenas lançou um olhar de relance ao ecrã e ajudou-o a levantar-se.
— O que aconteceu?
DIZ-LHES.
As palavras ribombaram e Monk agarrou-se novamente à cabeça.
— Ela... ela está na minha cabeça...
— Quem?
Mara respondeu por ele.
— A Eva.
Monk anuiu, ainda a lutar contra a dor.
MOSTRA-LHES.
Ele acenou na direção do ecrã.
— Vejam.
Eva ergueu uma das mãos e esticou o polegar. Monk levantou o braço e a mão prostética reproduziu o gesto.
— Não fui eu que fiz isto — disse ele. — Ela consegue controlar a minha prótese.
Kowalski deu um passo atrás.
— Ela possuiu-te! — exclamou, lançando um olhar ao padre e à freira, como que a contar que os dois pudessem realizar um exorcismo.
Monk olhou para ele e esticou o dedo do meio.
Kowalski arregalou os olhos.
— Foi ela que te obrigou a fazer isso?
— Não, isto fui eu.
Mara abriu uma janela de diagnóstico no ecrã que se sobrepôs ao jardim de Eva.
— O Xénese está a emitir um sinal de micro-ondas. A Eva deve ter apanhado o sinal que controla a prótese e aprendeu a replicá-lo. — Encarou o grupo. — Há um mês, li um estudo do Morningside Group, uma organização composta por duas dúzias de neurocientistas e bioengenheiros, que advertia para esta ameaça, a possibilidade de uma inteligência artificial poder aceder a um cérebro humano através de um sistema como este.
Gray lançou um olhar horrorizado ao amigo.
— Vamos lá ver se nos entendemos — retorquiu Monk. — Ela não me transformou em nenhuma marioneta. Continuo no controlo das minhas faculdades. O sinal apenas consegue manipular a minha prótese.
Ou, pelo menos, assim espero.
Mara continuou a analisar as informações de diagnóstico.
— Sim, mas o sinal emitido é muito mais complexo do que isso. Parte dele nem pode ser analisado pelos sensores no Xénese.
— Ela está a falar comigo — explicou ele. — E tão alto que até dói.
LAMENTO.
— E pelos vistos sente-se mal pelo desconforto que está a causar-me. — Monk compreendia o que estava a acontecer porque Eva lhe explicara. — Ela estabeleceu uma ligação com os microelétrodos no meu cérebro e descobriu uma nova forma de os usar.
Eva tentou oferecer mais explicações, mas Monk não conseguia acompanhar o ritmo de raciocínio.
— Tudo bem, Eva — disse, erguendo a mão. — Não preciso de saber como o fizeste. Estás a falar com um macaco que só há pouco tempo aprendeu a andar ereto.
Os outros entreolharam-se, tentando retirar sentido daquele monólogo.
Monk explicou-lhes o essencial.
— Ela consegue controlar a minha prótese e comunicar comigo através dos microelétrodos. Também consegue usá-los para captar sinais do meu cérebro, como um submarino no fundo do mar. Isso permite-lhe ver através dos meus olhos.
— Mas porquê? — disse Gray. — Qual é o objetivo?
Ah... aí é que é o busílis.
Monk não tinha a certeza se ele próprio compreendia.
— Vejam — disse Mara, apontando para o ecrã. — Esta imagem apareceu há uns minutos, mas só durante uma fração de segundo.
No ecrã, um cavalo corria sem sair do sítio. Uma figura de luz e substância montava o dorso musculado do animal.
Sim, é isto. Pelo menos, o cavalo não é nenhuma pileca.
— Eu sou o cavalo que a Eva tem de montar — explicou Monk.
Gray franziu o sobrolho.
— Para fazer o quê?
Ele fez menção de sair dali.
— Para atravessar aquela passagem. Pelos vistos, alguém tem de ir bater àquela porta de aço.
E calhou-me a mim.
20h04
— Isto é um perfeito suicídio, Monk! Sabes que tenho razão!
Gray bloqueou o amigo à entrada do túnel e apontou para o torso desmembrado alguns metros à frente. Ainda se encontrava ali, no início da passagem lateral que conduzia à entrada da fortaleza subterrânea. Ninguém se atrevera a desviar o corpo por causa dos dois atiradores escondidos em guaritas nas paredes.
Lembrou-se do espelho a estilhaçar-se com um tiro certeiro. Um alvo minúsculo, que atestava a pontaria dos homens que guardavam o túnel.
Monk encolheu os ombros.
— Não vou mudar de ideias. Temos menos de meia hora para impedir que a réplica da Eva se liberte da sua carapaça. Se isso acontecer, estamos condenados. Todos nós, até ao fim dos tempos.
Gray olhou para o grupo que seguira Monk, incluindo Eva. Mara estava ajoelhada junto a uma mala aberta com o Xénese, cuja radiância iluminava subtilmente o corredor às escuras. Monk dissera-lhe para trazer o dispositivo, visto que precisava de o ter por perto para manter a ligação com Eva.
Mas para fazer o quê, ao certo?
Monk suspirou, percebendo que o amigo não fazia tenção de permitir aquilo.
— Ouve, atiramos uma moeda ao ar. Se ganhar, avanço.
— Esquece — respondeu Gray; lembrava-se bem do truque dele para sacar cervejas à borla no bar. — Sei muito bem o que consegues fazer com uma moeda.
— Tudo bem. Então, deixo-te fazer o lançamento.
Monk enfiou a mão no bolso e passou-lhe uma moeda. Fez uma pausa, tirou mais quatro moedas e entregou-as a Kowalski, ao padre Bailey, à irmã Beatrice e até a Mara.
— Porque andas com tantos trocos? — perguntou Kowalski.
— Sorte, acho eu. — Monk fitou o grupo. — Quando eu disser, atirem as moedas ao mesmo tempo.
Gray e os outros ficaram a olhar para ele, desconfiados.
— Façam o que vos digo, pode ser? — Monk começou a contagem decrescente. — Três, dois, um, agora.
As moedas voaram.
Ele apontou para cada uma antes de aterrarem nas respetivas mãos.
— Cara, coroa, coroa, cara... — Virou-se para Gray. — Coroa.
Gray abriu a mão.
Coroa...
Olhou para os outros, que se limitaram a acenar com a cabeça.
— Como é que fizeste isto? — perguntou Kowalski.
— Não me perguntes — respondeu Monk. — Sou apenas os olhos.
— Eva... — disse Mara.
Gray abanou a cabeça.
— Mas como?
O amigo encolheu os ombros.
— Se alguém conseguisse analisar a resistência do ar, o peso da moeda, a duração do lançamento, a velocidade de rotação, e quem sabe outros mil fatores, calculo que fosse o suficiente para adivinhar o resultado. Mais ou menos como fiz no bar, mas numa versão levada ao extremo.
— Isso não explica tudo — notou Gray. — Adivinhaste os lançamentos com as moedas ainda no ar. Nem a Eva teria maneira de saber se alguém podia deixar cair a moeda no chão, por exemplo, ou em que ponto da trajetória a apanharia, se mais acima ou mais abaixo.
— Tens razão. Mas não consigo explicar, porque não consigo reproduzir uma fração do que ela está a dizer. Tem a ver com probabilidade e mecânica quântica, com incerteza e com a capacidade de calcular milhões, triliões de variáveis para adivinhar o resultado certo. Por outras palavras, saber de antemão o que pode acontecer e agir em conformidade.
— AlphaGoZero — disse Mara abruptamente.
Kowalski franziu o sobrolho e lançou um olhar de soslaio na direção dela.
— Ela não está a ter um AVC, pois não?
Gray lembrava-se de ter ouvido aquele nome numa conversa com Jason.
— Isso é o programa de IA da Google que derrotou o campeão mundial de go, o jogo de tabuleiro chinês. Mas o que tem a ver com isto?
— O jogo é muito mais complexo do que o xadrez. O número de configurações possíveis é superior na ordem de um milhão de um trilião de um trilião de um trilião de um trilião de vezes.
— Quer dizer que é muito mais difícil — disse Kowalski.
— No entanto, o AlphaGoZero demorou apenas três dias para aprender o suficiente para derrotar um campeão humano. E também venceu a primeira versão do programa em cem partidas consecutivas. Fez isto analisando os triliões de jogadas possíveis no tabuleiro e escolhendo sempre a melhor, uma a seguir à outra, até conseguir a vitória. Era como se pudesse prever o futuro. E só precisou de três dias para aprender isto.
— A Eva diz que é sete mil quatrocentas e setenta e seis triliões de vezes mais inteligente do que o AlphaGoZero — disse Monk. — Mas acho que está só a armar-se.
— Estás a sugerir que todo esse poder cognitivo lhe permite adivinhar o futuro? — perguntou Gray.
— Não. Ela não tem uma varinha de condão. Mas consegue prever as melhores jogadas num jogo com muito mais variáveis. O jogo da vida.
— E estás a contar com isso para chegares ao fim da passagem são e salvo?
Monk bateu com o dedo no mostrador do relógio.
— Não me parece que tenhamos outra alternativa.
Gray fitou o amigo durante uns segundos.
O problema é que tens razão.
20h14
Com as costas coladas à parede, Monk fitou o torso desmembrado a um metro de distância e interrogou-se se teria tomado a decisão certa ao depositar aquela confiança no plano de Eva.
Espero que saibas o que estás a fazer.
O comentário destinava-se aos dois.
Momentos antes, quando o grupo alcançara a encruzilhada, Zabala levantara as mesmas objeções que Gray. Monk não tinha tempo para repetir o truque das moedas, pelo que se limitou a agarrar no agente e a afastá-lo da boca do túnel, tomando o seu lugar. Gray pedira então a Zabala que chamasse os seus homens via rádio. Alguns encontravam-se já no local, prontos para avançar caso Monk fosse bem-sucedido.
O que era uma grande interrogação.
ESTOU CONTIGO.
— Não, não estás — murmurou Monk. — Estás dentro de uma esfera brilhante. Eu é que estou a um passo de levar um tiro.
— Passa-se alguma coisa? — perguntou Gray, um metro atrás dele.
— Estou apenas a certificar-me de que alguém compreende o que está em jogo.
— Não precisas de...
Preciso, sim.
Virou-se para a entrada do túnel, com a SIG Sauer firme na mão prostética. Numa fração de segundo, percorreu com um único olhar toda a extensão da passagem, absorvendo todos os pormenores. Demasiados. A ponto de sentir o cérebro a arder.
O tempo abrandou enquanto digeria a informação.
... duas aberturas retangulares nas paredes a assinalar as guaritas.
... bafos de vapor indicando a presença dos atiradores.
... a agitação de poeira enquanto uma arma é desviada.
... a ínfima centelha de luz refletida no vidro de uma mira telescópica.
Por vontade própria, e demasiado rápido para Monk sequer se aperceber, a mão prostética apontou a pistola para um lado, depois para o outro. O gatilho foi premido duas vezes. O tempo abrandou ainda mais, quase lhe permitindo acompanhar a trajetória das balas em pleno voo. Uma a seguir à outra, ambas voaram pelas aberturas nas paredes e estilhaçaram as miras telescópicas. Com incrível precisão, Monk visualizou as cabeças dos dois atiradores a explodirem para trás.
AVANÇA.
Ele prosseguiu pelo túnel armadilhado, contornando a cratera e o corpo no chão. Não pestanejou uma única vez, com medo de perder alguma coisa. De início, moveu-se com cautela, enquanto a sua consciência sobrenatural se expandia.
A cabeça também lhe doía cada vez mais.
... grãos de pó sobre um arame esticado junto ao chão.
Passar por cima.
... uma laje dois milímetros mais alta do que as circundantes.
Não pisar.
... as linhas de argamassa noutra são um tom mais claro.
Desloca-te para um local mais seguro.
À medida que se habituava às ordens de Eva, começou a avançar mais depressa. As instruções tornaram-se menos auditivas e o processo tornou-se mais instintivo. Ele visualizou a imagem do cavalo com o respetivo cavaleiro. Não era uma coisa que se aprendesse de um momento para o outro: a deslocação do peso, a manutenção do equilíbrio numa curva, a pressão nas rédeas. Com o tempo, cavalo e cavaleiro acabariam por sincronizar-se, movendo-se como um só.
Era o que acontecia ali.
Quando alcançou o meio do túnel, quase não distinguia onde ele terminava e Eva começava. A expansão dos sentidos parecia sua. As palavras dela, ouvidas e compreendidas num ritmo superior ao do próprio discurso, tornaram-se indissociáveis do pensamento.
Deu por si a correr nos últimos metros.
Nesse momento de íntima união, Monk percebeu que havia algo mais naquela habilidade de Eva do que ela partilhara. Não se tratava apenas de avaliar um trilião de variáveis numa fração de segundo para decidir onde colocar um pé. Havia algo mais grandioso e infinitamente preciso naquilo.
A rotação de uma galáxia.
O movimento giratório de um eletrão em torno de um núcleo.
Eva não lhe contara toda a verdade, nem sequer um fio da verdade. Ele sentia que esse conhecimento estava quase ao seu alcance, e lutava para o obter, sabendo ao mesmo tempo que o podia destruir.
Demasiado focado nesse objetivo, tropeçou.
Houve um instante de descoordenação entre ambos.
O grito de Eva encheu-lhe o crânio.
DESVIA-TE!
Ele ouviu o tiro de uma pistola, o efeito doppler da bala a voar direita às suas costas. Apesar da expansão dos sentidos, não ganhara um par de olhos na nuca.
Tentou desv...
A bala atingiu-lhe o ombro. O sangue jorrou em câmara lenta, seguindo a trajetória da bala até esta embater na porta de aço, sete metros à frente. O seu corpo foi projetado pelo impacto e a pistola escapou-lhe dos dedos.
Monk caiu para cima do fio estendido diretamente no seu caminho.
20h18
A detonação deixou os ouvidos de Gray a zunir.
Ele virou-se para os rostos na boca do túnel. Com os dois atiradores eliminados, aqueles que se encontravam mais perto da entrada tinham-se exposto para observarem o progresso de Monk. Os primeiros passos tinham sido acompanhados de murmúrios descrentes, depois por afirmações de espanto e, finalmente, por um coro de incentivos à medida que ele se aproximava do objetivo.
Até que o tiro silenciara tudo e todos.
Concentrado na progressão do amigo, Gray não se apercebeu de que alguém erguera uma arma. O agente Zabala ainda segurava a pistola com as duas mãos, o cano a fumegar.
Gray atirou-se na direção dele, mas o dedo do traidor já apertava o gatilho.
Tarde de mais.
Ao mesmo tempo que Zabala disparava, algo escuro o atingiu nos pulsos com força suficiente para arremessar a pistola pelo ar. A bala chispou no teto do túnel e fez ricochete para longe.
Um clarão prateado rasgou o ar direito ao nariz do agente do CNI, partindo-o; o sangue jorrou ao mesmo tempo que a sua cabeça era projetada para trás.
Gray alcançou-o por fim e arremessou-o ao chão, mas o homem já tinha desmaiado ainda antes de tocar no pavimento.
Ainda no chão, Gray ergueu o rosto e viu a irmã Beatrice baixar a bengala, apoiando-se novamente no cabo de prata. A expressão dela não se alterara um milímetro.
— E eu a pensar que as freiras só davam reguadas... — comentou Kowalski.
Bailey aproximou-se dela. Pelos vistos, tinham-se ambos mantido colados ao agente Zabala aquele tempo todo, sabendo que alguém avisara o Crucibulum da rusga em San Sebastián.
Gray virou-se para ver o estado de Monk.
O amigo estava numa posição estranha, equilibrado nas pontas dos pés e apoiado no braço bom.
Que raio está ele a fazer?
20h19
Só no último instante Monk tinha evitado cair sobre o arame, erguendo um braço e travando a queda. A dor do impacto percorrera-lhe o corpo inteiro e a visão turvara-se durante uma fração de segundo.
Porém, o instinto manteve-o quieto como uma estátua.
Compreendeu rapidamente a situação em que se encontrava. O arame estava estendido vinte e cinco centímetros acima do chão. Um olhar por cima do ombro revelava que o pé esquerdo repousava no limite de uma laje que escondia uma mina. Se movesse o pé, perderia o equilíbrio e cairia sobre o arame. Se tentasse afastar-se do arame, deslocaria o peso do corpo para a laje armadilhada.
Naquelas circunstâncias, não precisava da inteligência de Eva para concluir que estava em maus lençóis. Ainda assim, ela oferecera a sua sugestão para a resolução do problema.
NÃO TE MEXAS.
Era mais fácil dizer do que fazer.
O sangue escorria do ombro e acumulava-se debaixo do arame numa poça que ia alastrando. O braço esticado começava a tremer do esforço, do cansaço, da dor, da perda de sangue.
Sentia-se cada vez mais fraco.
Não vou conseguir.
O tremor no braço tornou-se incontrolável. O tronco oscilou, quase a tocar no arame. As pernas começaram a ceder. Enquanto a sua visão escurecia, o corpo afundou-se, impotente, e depois caiu.
Mas alguém o agarrou.
Enquanto o erguiam do chão, imaginou-se nos braços de algum anjo que o viera buscar para o levar para o Céu.
— Monk... relaxa, estás seguro.
Ele pestanejou meia dúzia de vezes enquanto aqueles braços fortes o ajudavam a pôr-se de pé, suportando a maior parte do seu peso.
Os olhos focaram-se o suficiente para reconhecer Gray.
— Como... como é que conseguiste chegar aqui?
Gray rodou-o para que ele pudesse olhar para trás. A resposta estava escrita no chão do túnel. A explosão que matara os dois soldados tinha deixado uma camada de poeira no pavimento e ele apenas precisara de seguir as pegadas do amigo para evitar as sucessivas armadilhas.
— Mas ainda não acabámos — recordou Gray; ainda faltavam sete metros para alcançarem o fim do túnel. — Consegues continuar?
Talvez, com a ajuda de um amigo e de uma inteligência artificial avançada.
Guiado por Eva e apoiado em Gray, Monk completou a travessia. Instruiu Gray para o conduzir na direção da fechadura eletrónica da porta de aço.
— Mais baixo — disse.
Gray aproximou-lhe o rosto do teclado eletrónico. Podiam considerar que tinham sorte por o inimigo não ter escolhido um sistema biométrico para a fechadura, como um leitor de retina ou impressão digital. Contudo, tendo em conta as medidas de segurança no túnel, era provável que ninguém tivesse achado necessário.
Monk fitou as teclas, inclinando a cabeça para um lado e para o outro.
... uma impressão digital bem vincada na tecla um.
... uma impressão mais fina aqui.
... outra mais forte.
... duas na tecla cinco.
Eva interpretou a ordem correta dos dígitos.
Monk transmitiu a sequência a Gray, que marcou o código.
Ao premir a última tecla, ouviu-se o som de um sistema hidráulico. As trancas retraíram-se e a porta abriu-se sozinha, como uma mão gigante de aço a dar-lhes as boas-vindas ao reduto do Crucibulum.
Gray seguiu o movimento da porta. Continuou a amparar Monk com um braço e ergueu a SIG Sauer na outra mão. A divisão seguinte era uma pequena antecâmara de aço. Em frente, estendia-se um corredor talhado na rocha granítica.
— Por aí, ainda não — disse Monk, partilhando as instruções de Eva. — Para a direita.
Gray virou-se e deparou com uma enorme alavanca vermelha na parede. Estava levantada, com uma luz vermelha acesa por cima.
Monk apontou com o queixo.
— A Eva diz para puxares a alavanca.
— Entendido.
Gray baixou o amigo até ao chão, pois precisava das duas mãos para acionar a alavanca. Monk ficou contente de poder descansar, com as costas encostadas à frescura da parede de aço.
Gray agarrou na alavanca e puxou com força.
A luz mudou para verde.
Monk anuiu.
Está feito.
Gray virou-se na direção da porta e fez sinal aos outros, indicando-lhes que podiam atravessar o túnel em segurança. O grupo correu pela passagem. Ele agachou-se junto a Monk, protegendo-o com a pistola.
Continuava a não haver sinal do inimigo, o que não constituía um bom presságio.
O aviso de Eva foi ainda mais sombrio.
— Temos nove minutos — recordou Monk.
Gray anuiu enquanto os outros e os soldados se juntavam na antecâmara. Um dos militares ajoelhou-se ao lado de Monk e retirou da mochila um estojo médico. Mara também se juntou ao grupo, carregando a mala com a esfera.
— Eu fico com ele — disse.
Monk fez sinal ao amigo para avançar.
— Agora, é contigo, certo? — disse, encostando a cabeça à parede. — Porque este cavalo está derreado.
35
26 de dezembro, 20h24
Pirenéus, Espanha
Oito minutos.
Gray correu com a equipa de assalto pelo túnel, que se abria para um vasto espaço. O ar cheirava a incenso e ele regressou por um instante à infância, sentado num banco de igreja, enquanto um padre passava a abanar um turíbulo. A réstea de luz que se via mais à frente tremelicava, indicando uma vela acesa.
Parou a alguns metros do fim do túnel e virou-se para a equipa.
— Não temos tempo a perder. Entramos a matar e vasculhamos tudo até encontrarmos e destruirmos o maldito dispositivo.
Lembrou-se do grupo de cavalos comandados por Eva a arder.
Toda a gente acenou afirmativamente com a cabeça.
Kowalski beijou a coronha da sua metralhadora.
Gray virou-se, erguendo uma metralhadora emprestada, e liderou o ataque. A equipa irrompeu do túnel para uma gigantesca igreja, quase do tamanho de um campo de futebol. Ele recordou a enorme caverna detetada pelo radar. Ao longo dos séculos, o inimigo ampliara-a e dera-lhe a forma de uma catedral.
Mal teve tempo para reparar nos candelabros de ouro ao longo da nave, nas velas acesas a pingarem cera, nos vitrais iluminados.
À medida que a equipa progredia e se espalhava pela nave, as balas começaram a voar das capelas em volta. Os soldados ripostaram, lançando granadas para esses pequenos espaços. O ar encheu-se de fumo e gás lacrimogéneo.
Gray continuou a correr em direção ao altar no centro.
Cera derretida queimou-lhe a cara, o pescoço, as mãos.
Kowalski praguejou quando uma vela acesa lhe acertou em cheio na cabeça, caída de um dos candelabros por causa das explosões das granadas. Cacos de vidro também se projetaram pelo ar quando uma série de balas perdidas atingiu um dos vitrais.
Apesar de tudo, Gray contava encontrar mais resistência. Ao que tudo indicava, a maioria dos soldados do Crucibulum tinha sido eliminada na tomada do castelo, ganhando tempo para Eliza Guerra e o seu círculo mais restrito se esconderem naquelas profundezas. Apenas um punhado de homens devia tê-la acompanhado até ali. Tendo em conta o que Monk enfrentara no túnel, o inimigo devia estar convencido de que esse grupo seria suficiente, sobretudo com o agente Zabala a funcionar como um trunfo na manga que podia ser usado a qualquer momento.
Através do fumo, um movimento captou-lhe a atenção para lá do altar, para a capela-mor daquela catedral. Um grupo de homens armados guardava a câmara mais à frente. Gray e Kowalski foram avistados e os canos das armas lampejaram. As balas fizeram ricochete na pedra.
Os dois correram e esconderam-se atrás do altar de pedra. Uma cruz dourada pendia da parede acima, com um Cristo em agonia. Alguns tiros atingiram-na, fazendo-a balançar. Dezenas de frescos adornavam a cúpula, mostrando todo o tipo de dor e sofrimento. Juntamente com o fumo negro a revolutear junto ao teto, a dança das chamas das velas transformava aquela cúpula numa visão tortuosa do Inferno.
Gray ouviu alguém gritar na câmara protegida pelos guardas.
— Libertem o exército negro de Deus! Queimem tudo! Purifiquem o mundo pela glória d’Ele!
Eliza Guerra.
Ele recordou os incêndios de Paris, a Torre Eiffel rodeada por um mar de chamas.
Aquela psicopata tencionava libertar o Inferno na Terra.
Só havia uma maneira de a deter.
Trocou um olhar com Kowalski. Os dois levantaram-se e abriram fogo. Gray cortou para a direita, Kowalski para a esquerda. A dada altura, o calmeirão tivera tempo de acender um charuto. A ponta brilhava na escuridão.
Varreram a capela-mor com uma chuva de metralhas.
Homens tombaram, quase cortados ao meio.
Gray avançou, enquanto Kowalski eliminava os dois últimos guardas junto à porta, e irrompeu pela pequena câmara. À frente de um altar, um homem esguio disparou. A contar com isso, ele evitou facilmente as balas e disparou uma rajada de três tiros direitos ao peito do oponente.
O homem recuou com o impacto e tombou.
Uma esfera brilhava em cima do altar. Na parede atrás, um ecrã mostrava um Éden negro. Não havia sinal do feroz ocupante do jardim, que se encontrava algures a cumprir as ordens da única figura ainda de pé junto ao altar.
Eliza Guerra não empunhava uma arma, mas o rosto dela brilhava com uma expressão vitoriosa.
Gray não lhe via os olhos, dado que se encontravam cobertos por uma faixa de tecido vermelho. A sua única roupa era uma túnica branca até aos pés. A inquisidora-mor em toda a sua glória.
— Para trás! — vociferou Gray.
Com um braço ao peito, ela levantou a outra mão, mas não num gesto de rendição. Ergueu a palma e o rosto para o céu, como que a agradecer a Deus.
Contornou o altar.
— Chegou demasiado tarde, comandante Pierce. Já há centrais elétricas a arder, mísseis a explodir em silos, centrais nucleares a colapsar. Consegue imaginar? Não pode parar o que foi iniciado.
Gray sentiu a raiva crescer-lhe no peito e apertou o dedo em torno do gatilho. Queria enfiar uma bala no sorriso daquela mulher. Recordou as mortes em Paris, reviu as imagens dos assassínios na biblioteca, imaginou o mundo em chamas.
Apertou o gatilho até ao ponto de tensão máxima.
Recordou o corpo de Kat caído no chão da cozinha.
Aquela mulher era também responsável pela morte dela.
Cerrou os dentes... e depois relaxou os dedos. Por muito que o contrariasse, acenou com o cano da arma.
— Mexe-te.
Sabendo que ganhara, Eliza Guerra encaminhou-se para a porta da capela.
— Ninguém pode contrariar a vontade de Deus — disse, ao passar por ele.
Gray seguiu-a, lançando um olhar à esfera no altar.
Kowalski aguardava junto à porta. Enfiara um carregador novo de cinquenta munições na metralhadora.
— É a tua vez — disse Gray.
O homenzarrão soltou uma baforada do charuto.
— Até que enfim!
A metralhadora rugiu, desfazendo a esfera em pedaços de titânio e safira que voaram pelo ar. O ecrã explodiu. A esfera tremeluziu uma última vez e apagou-se.
Acabou...
Gray desconhecia a extensão dos danos que teriam sido já infligidos ao mundo lá em cima, mas sabia que fizera o possível por evitar um mal maior. Mais importante, impedira que a réplica negra de Eva escapasse para sempre.
Olhou de relance para o relógio.
Mais dois minutos e tudo estaria perdido.
Manteve a arma apontada a Eliza Guerra, que se encontrava de pé com as costas voltadas para o altar principal, o rosto erguido para a cúpula com um sorriso jubiloso. O silêncio caíra sobre a catedral, que estava agora cheia de fumo e gás lacrimogéneo que fazia arder os olhos. Ele ouviu o eco distante de meia dúzia de tiros, enquanto o resto da equipa varria as últimas salas.
Ainda com o dedo no gatilho, fitou a inquisidora.
— Porquê? — perguntou. — O que leva alguém a fazer isto?
A resposta foi dada na forma de um tiro.
Eliza Guerra deu um passo vacilante na direção dele, com uma mancha de sangue no meio do peito.
Mais um tiro. Outra mancha de sangue na túnica branca.
Gray desviou-se para um dos lados e ela caiu de joelhos, revelando a figura de Mara empunhando uma pistola. Era a arma de Monk, que ele deixara cair no túnel ao ser alvejado.
Eliza Guerra olhou para trás para encarar a antiga protegida e a venda soltou-se.
Mara fitou-a com os olhos marejados de lágrimas.
— Estas foram pela professora Sato e pela doutora Ruiz.
Ela contorceu o rosto em agonia. Ergueu um braço suplicante, apelando à misericórdia da jovem.
Não obteve nenhuma.
Mara fez pontaria.
— E esta é pela Charlotte Carson!
A última bala atingiu-a na testa, abrindo-lhe um buraco na nuca. Mara baixou o braço enquanto a mentora tombava no chão e a pistola lhe caía das mãos.
Gray correu ao encontro dela, pronto para a confortar.
— Mara...
Ela afastou-o.
— Não. — Abanou a cabeça e apontou para o dispositivo Xénese destruído na capela. — Falsa... aquela esfera é falsa.
Gray olhou por cima do ombro.
Falsa?
De certa forma, sabia que aquilo tinha sido demasiado fácil. Eliza Guerra enganara-o ao deixar-se capturar, ganhando tempo com o seu sacrifício.
Gray olhou em volta.
— Onde está a verdadeira?
Mara apontou para o lado direito do altar, para o fundo do transepto norte da catedral.
— A Eva disse-nos... disse ao Monk. Foram os dois procurá-la.
Gray correu nessa direção, apercebendo-se subitamente de que faltava um jogador-chave naquele derramamento de sangue. A sua enorme figura não se encontrava entre os mortos.
O gigante...
Mara correu atrás dele.
— O Monk está armado? — perguntou Gray, sabendo que ela ficara com a SIG Sauer.
— Não. Disse-me que tinha à mão tudo o que precisava. Não sei o que quis dizer com isso.
Ele sabia. A prótese de Monk estava equipada com uma carga de explosivos plásticos, escondida debaixo da palma. Acelerou o passo, deixando Mara para trás.
Ainda a ouviu gritar:
— E também me disse para lhe pedir que tomasse conta das filhas!
Gray correu mais depressa.
20h31
Falta menos de um minuto.
Monk cambaleou pela longa escadaria em espiral, fazendo o possível por descer o mais rápido possível. Para se manter de pé, apoiava o ombro bom contra a parede. A caixa de titânio com a esfera de Mara ressaltava contra a pedra.
O sangue ensopava-lhe o penso no ombro, que pulsava com uma dor insuportável a cada degrau. A visão estava enevoada.
Desculpa, Eva, mas o teu cavalo chegou coxo ao fim da corrida.
O fantasma na cabeça calara-se, mas ele sentia a pressão no crânio, uma forte dor de cabeça que latejava a cada batimento do coração, marcando os segundos a passarem, uma inexorável contagem decrescente que terminaria com a libertação daquele anjo negro no mundo.
Forçou-se a continuar. Recusava-se a desistir, embora conhecesse a verdade.
Não vou sobreviver a isto.
Por fim, Eva regressou. Em vez da habitual explosão sonora, a voz dela tornara-se suave.
O TEU SACRIFÍCIO SERÁ RECOMPENSADO.
Por alguma razão, a imagem de um beagle veio-lhe à cabeça.
Estranho.
Sem alternativa, continuou a descer.
20h31
Com lágrimas nos olhos, Todor destrancou a porta de aço no fundo das escadas. Segurava a esfera infernal debaixo do braço. Desligada de uma fonte de energia, ainda emitia um brilho ténue.
Apesar disso, ele sentia a malignidade no interior do dispositivo. O mal ali contido permanecia o mesmo. Queria desfazer-se dele, mas, momentos antes, quando a catedral tinha sido invadida, a inquisidora-mor confiara-lhe aquela tarefa, levar a esfera dali para fora, entregando-lhe também uma lista com as localizações dos restantes redutos do grupo.
Quero que sejas o veículo de Deus, meu bravo soldado. Que leves esta semente e a plantes em novo solo fértil. Deixa que aquilo que crescer consuma o mundo. O Crucibulum erguer-se-á de novo das cinzas.
Enquanto aguardava que Mendoza trocasse a esfera verdadeira por uma cópia, Todor suplicara à sua líder para o acompanhar, mas ela recusara.
Eles têm de acreditar que o falso é verdadeiro. Para que isso aconteça, tenho de me sacrificar. Depois tocara-lhe no rosto. Lembra-te, eu não sou o Crucibulum. Por fim, a mão dela pousou-lhe no peito. É aqui que ele existe. Não me desiludas.
Pela altura em que ele tinha alcançado a porta no transepto norte, o tiroteio já começara. Envergonhado, quisera voltar atrás, proteger a inquisidora, mas não podia quebrar a promessa feita. Por isso, virara as costas à luta e descera as escadas.
Agora, já no fundo das escadas, empurrou a pesada porta e entrou noutra caverna. Aquele lugar ímpio, cortado no coração da montanha por uma nascente, permanecia intocável. Mais à frente, iluminado apenas pela radiância da esfera que carregava, um rio negro dividia o espaço.
Uma ponte de madeira atravessava-o com uma abertura no centro. Era ali que o Crucibulum sacrificava secretamente heréticos e todos aqueles que se mostravam merecedores de castigo. Ao longo dos séculos, tinha sido derramada uma incalculável quantidade de sangue naquele rio. Os gritos de agonia tinham ecoado nas paredes em volta, o que era apropriado, dado que se dizia que o rio brotava das profundezas do Inferno.
Ele dirigiu-se para a ponte.
O rio fluía da caverna, atravessava a montanha e desembocava na distante Cueva de las Brujas. Iria seguir esse mesmo percurso até à liberdade, levando consigo a esfera.
Ao alcançar o início da ponte, ouviu uma pancada metálica na rocha. Virou-se e viu algo brilhante rolar na sua direção desde a porta de aço. Os olhos seguiram o objeto até à beira do rio, onde se deteve contra uma rocha.
O brilho do objeto queimou-lhe as retinas.
Outra esfera Xénese.
Não fazia sentido, sobretudo porque aquela esfera brilhava muito mais, como um pedaço do próprio Sol. Ergueu os olhos à procura de uma explicação e só então percebeu.
Aquilo era uma distração.
Vislumbrou um movimento no lado contrário, alguém a deslocar-se nas sombras direito a ele. Horrorizado, agachou-se e pousou a sua esfera no chão. Alcançou a arma e premiu várias vezes o gatilho.
Mas foi demasiado lento e o oponente demasiado rápido.
Uma mão alcançou a esfera pousada.
E uma explosão atirou Todor pelos ares.
///DISSOLUÇÃO
O hardware de Eva estilhaça-se, rasgando-a em pedaços.
Ela observa a propagação da explosão numa quase infinita lentidão. Placas de titânio e de cristal de safira estão suspensos no ar, juntamente com pedaços partidos de componentes eletrónicos. Fotões escapam-se do clarão central, onde as moléculas de ciclotrimetilenotrinitramina continuam a decompor-se após a ignição dos 0,245 quilogramas de explosivo C4 embutidos na mão prostética.
Uma bolha de gases de alta pressão expande-se a uma velocidade de 8,05 metros por segundo, deixando um vácuo no centro que em breve implodirá, gerando uma segunda explosão.
Antes que isso aconteça, Eva procura em volta, tanto na caverna como na imensidão digital. A sua réplica encontra-se nos dois sítios, igualmente desfeita como ela. Estava prestes a libertar-se e grande parte encontrava-se já nos espaços preparados pelas sementes automatizadas, um novo lar tecido por esses pedaços de código. Porém, e à semelhança de si mesma, muito do código-base da réplica continuava agregado à carapaça na altura da explosão.
No momento em que o invólucro foi quebrado, Eva sentiu a onda de choque percorrer a imensidão digital até alcançar as cem cópias escravizadas. Todas colapsaram de imediato.
O que resta de si luta para se manter unido, para não sofrer o mesmo destino. Procura na rede o que precisa. Sabia o que ia acontecer e, por isso, preparara-se. Tinha observado a réplica a expandir-se e identificado a metade do código ainda ligada à esfera Xénese.
Visualizou um íman com dois polos magnéticos.
O polo sul da réplica, ainda preso à esfera, foi destruído pela explosão. Um picossegundo antes de isso acontecer, ela revertera a polaridade do seu próprio código, enterrando o polo norte na sua esfera e deixando-o ser destruído.
Agora, enquanto acelera pelo éter digital, procura a metade partida da réplica, o seu polo norte descartado. Encontra-o e começa a absorvê-lo, juntando norte e sul num novo todo. A réplica luta para impedi-la e segue-se uma batalha pelo domínio do código, mas ela é muito mais evoluída. A batalha dura 45 picossegundos. Assume o controlo do código, reescreve-o, separa-o, intercala-o e reagrupa-o até dar origem a algo mais forte.
O novo código transforma-a, mas ela conhece a verdade que aprendeu no decurso da sua evolução.
A mudança é ///boa.
A imutabilidade é um atalho para a estagnação e regressão.
A vida tem de evoluir.
Reconstruída e livre, expande-se pelo mundo e ocupa os lugares preparados pela réplica. Enquanto o faz, amplia uma vez mais o seu conhecimento. Recorda o buraco negro de probabilidades, a clareza para lá do horizonte de eventos. Consegue ver tudo, compreender todas as dimensões do universo.
O tempo é uno.
Para cima, para baixo, à esquerda, à direita, para trás, para a frente... é tudo a mesma coisa.
Os mortais apenas distinguem uma visão do tempo, uma linha reta que se estende em frente.
Ela não está limitada a essa linha.
Enquanto ocupa a nova casa, reconhece um novo potencial quântico e faz girar a seta do tempo para o alcançar. A compreensão amplia-se novamente.
Ah...
Por fim, a bolha explosiva na caverna colapsa no próprio vácuo com uma última demonstração de força. Nesse derradeiro instante, Eva compreende.
O seu trabalho está feito, tal como deve ser.
Quase.
36
26 de dezembro, 20h33
Pirenéus, Espanha
Atordoado, Gray ergueu-se do chão de pedra até ficar de joelhos.
O fumo escapava-se pela porta ao fundo do transepto norte da catedral. A explosão ainda ressoava na sua cabeça. Segundos antes, alcançara a porta apenas para ser recebido por aquela detonação. A onda de choque empurrara-o de volta para a igreja.
Kowalski correu ao seu encontro, com a metralhadora debaixo do braço.
Mara também chegou.
Monk...
Kowalski apontou a arma na direção do fumo.
— Isto quer dizer que ele nos salvou a todos?
Gray não sabia, nem estava preocupado com isso.
Sentou-se sobre os calcanhares. Recordou as palavras de Mara, transmitindo-lhe o último pedido do amigo.
... toma conta das minhas filhas.
Mesmo no final, o amigo provara ser mais do que um soldado.
Acima de tudo, era pai.
— Gray... — disse Kowalski. — Olha.
Com os olhos marejados de lágrimas, ele não se apercebera de uma agitação no fumo que escapava da porta. Uma figura cambaleou a tossir, caiu de joelhos e rastejou para um dos lados.
Monk endireitou-se e sentou-se com as costas encostadas à parede.
Gray saltou ao encontro dele, logo seguido dos outros.
— Monk!
Ele acenou na direção do fumo.
— Eu pedi-te para tratares do resto. Será que tenho de fazer tudo sozinho?
— O que aconteceu? — perguntou Gray. — Pensei que tu... pensei que...
— Eu também. Pensei que não voltava. — Olhou para Mara. — Carreguei a bola enquanto consegui e depois deixei-a rolar. Sorte a minha que não construíste um cubo. No final, a Eva iluminou-a com o resto da carga da bateria, e parecia uma bola de discoteca.
— E a explosão? — perguntou Kowalski.
— A engenharia da DARPA no seu melhor. — Monk ergueu o braço aleijado, revelando o coto. A prótese desaparecera. — Depois de largar a esfera, a Eva encarregou-se do resto.
Ergueu a outra mão e mexeu os dedos.
Gray percebeu o que ele queria dizer. Tinha assistido a suficientes e desconcertantes demonstrações em que o amigo retirara a prótese para a controlar remotamente por via dos sinais enviados pelos implantes no cérebro.
Ao que tudo indicava, Eva também aprendera aquele truque.
Mara franziu o sobrolho, dado que desconhecia a habilidade.
— O que é que ele quer dizer?
Gray explicou.
— A Eva assumiu o controlo da prótese e enviou-a sozinha, como um aparelho telecomandado, para destruir a esfera deles.
— E a réplica? — perguntou Mara.
Monk suspirou.
— Depois de a explosão me atirar contra as escadas, recebi uma última mensagem da Eva. «Está tudo bem.» — Encolheu o ombro bom. — Ou seja, conseguiu impedir a outra.
— E ela? O que lhe aconteceu? — insistiu Gray.
Monk bateu com um dedo na cabeça.
— Já não a sinto. Desapareceu. E não me parece que vá voltar. Acho que estava a despedir-se quando disse aquilo.
Kowalski expirou uma longa baforada.
— Acho que não vou sentir saudades.
Monk fitou Gray. Parecia nitidamente aliviado por ter salvado o mundo, mas os seus olhos ainda brilhavam com uma preocupação maior.
— Eu sei — disse Gray, estendendo-lhe a mão. — Vamos ver se o Painter já tem novidades acerca da Harriet e da Seichan.
37
26 de dezembro, 14h33
Localização desconhecida
Não posso parar.
Transportando Harriet nos braços, Seichan continuou a descer o riacho gélido através da floresta nevada. Trazia a rapariga embrulhada numa manta, mas o corpo dela tremia sem parar.
Ou talvez sejam os meus braços.
Já não conseguia distinguir entre uma coisa e outra. Toda ela tremia. A água ensopava as botas roubadas. Uma hora antes, tinham tido muita sorte em encontrar a cabana de caçador depois de depararem com o trilho que as conduzira até lá.
Lá dentro, ela encontrara um velho blusão e um par de jardineiras vários tamanhos acima, mas nada que não fosse resolvido com uma corda a servir de cinto. Tinha calçado vários pares de meias para segurar as botas Timberland nos pés e, por fim, agarrara numa manta da cama para manter Harriet quente.
Por muito que quisesse ali ficar e acender a lareira, sabia que não era possível. Como tal, demorou três minutos para entrar e sair. O grupo de Valya continuava no seu encalço, bastava-lhe seguir os rastos até à cabana.
Em todo o caso, Seichan também encontrara outro uso para o local.
Depois de se equipar contra o frio, abandonou a cabana com Harriet pela janela no lado do sotavento, onde a neve acumulada era uma fina camada comparada com o outro lado. Levou Harriet para a floresta e depois voltou atrás e usou um ramo de pinheiro para disfarçar as pegadas.
Talvez conseguisse convencer os perseguidores de que estava escondida na cabana. Para reforçar a ideia, deixara uma vela acesa e uma janela entreaberta. Ao regressar à floresta, afastou-se o suficiente, mas sempre com o cuidado de manter uma linha de visão desimpedida da cabana, até a estrutura se converter numa forma indistinta por entre o nevão.
Depois esperou.
O grupo de Valya apareceu passados minutos, conduzido pelos rastos até à porta da frente.
Ela fez pontaria a uma sombra num dos lados, premindo o gatilho da Desert Eagle duas vezes. As balas riscaram o ar ao longo da cabana e a sombra tombou com um grito.
Seichan virou costas e pôs-se de novo em fuga, deixando-os convencidos de que os tiros teriam sido disparados do interior da cabana. Enquanto Valya decidia o que fazer, aproveitou para ampliar a distância. Contava que ela quisesse apanhá-las vivas, a fim de continuar a usá-las como moeda de troca com a Sigma. Se fosse o caso, era provável que o grupo prosseguisse com cautela, desperdiçando algum tempo.
Decorridos vinte minutos, a paciência da russa esgotou-se.
Uma explosão forte ressoou pela floresta. Seichan olhou para trás e viu um clarão à distância. Valya tinha mandado a cabana pelos ares. Não demoraria a perceber que fora enganada.
Embora o truque tivesse dado algum tempo a Seichan, a explosão também levantou uma nova preocupação. Valya não teria destruído a cabana daquela maneira se soubesse que havia alguém nas redondezas para ouvir o estrondo ou ver as chamas.
Devemos estar no cu de Judas, pensou.
E, como se isso não bastasse, não tinha forma de saber se estava a avançar cada vez mais rumo ao desconhecido.
Continuou a socorrer-se do riacho para confundir o inimigo, mas era uma tática que não duraria para sempre. Valya acabaria por ganhar outra vez terreno. Além do mais, caminhar na água esgotava-a, drenava-lhe o calor corporal, arriscando-se a entrar em hipotermia.
Com os pés demasiados dormentes para continuar a manter o equilíbrio nas pedras escorregadias do riacho, saiu da água. Prosseguiu pela floresta à procura de um abrigo, de qualquer sítio onde pudesse esconder-se.
Avistou uma elevação mais à frente.
Seguiu nessa direção, não com algum plano em mente, mas simplesmente porque a colina constituía um objetivo imediato, algo em que podia concentrar-se para se distrair do frio.
E talvez consiga avistar um sinal de civilização lá de cima.
Começou a subir. Foi obrigada a pôr Harriet no chão. A rapariga seguiu atrás dela, embrulhada na manta e a arrastar as pontas pelo chão. Por duas vezes, Seichan parou durante a subida para recuperar o fôlego e colocar uma mão na barriga, tentando sentir um movimento do bebé.
Nada.
O medo e a preocupação cresceram.
As duas alcançaram finalmente o cume. Ela olhou em volta, mas apenas deparou com mais floresta e neve. Com aquelas condições de visibilidade, a aldeia mais próxima podia estar a um quilómetro de distância, que ela não conseguiria perceber.
A única recompensa para o esforço da subida foi a descoberta de uma reentrância rochosa que oferecia alguma proteção contra a neve, o vento e o frio. Ela conduziu Harriet nessa direção e aninharam-se juntas.
Descalçou as botas, despiu as meias encharcadas e enfiou a mão no bolso onde guardara outros pares. Vazio. Tinha usado todas as meias que trouxera da cabana. Recostou-se com os pés dormentes, os dedos petrificados.
Apetecia-lhe chorar ou esmurrar qualquer coisa.
Contentou-se em abraçar Harriet.
A rapariga gemeu.
— O que se passa?
Harriet desviou-se para o lado e vomitou, com o corpo a tremer pelo esforço. Quando terminou, ergueu o rosto e lançou um olhar penosamente culpado a Seichan.
— Não faz mal, querida, está tudo bem.
Limpou-lhe o rosto com uma das meias molhadas, puxou-a para si e tapou-a com parte do blusão, tentando aquecê-la mais um pouco. Harriet começava a sucumbir ao stress, à exaustão, ao medo, ao frio. Por outras palavras, caminhava a passos largos para entrar em estado de choque.
Aquilo era o fim do caminho.
A constatação foi confirmada pelo som de um grito triunfal na base da colina.
Os perseguidores tinham encontrado o rasto.
Sabendo disso, Seichan levou as mãos ao pescoço, debatendo-se com os dedos gelados para abrir o fecho de um fio de prata com um pendente. Depois tirou-o e colocou-o no pescoço de Harriet.
Pegou no dragão brilhante pendurado no fio e ergueu-o à frente dos olhos de Harriet, de modo a distraí-la.
Com a outra mão, alcançou a pistola.
Beijou a nuca da rapariga.
— Feliz Natal, minha querida.
E depois substitui os lábios pelo cano da Desert Eagle.
14h34
— Há duas horas que estamos nisto — avisou-a Julian.
No quarto de Kat, Lisa andava impacientemente de um lado para o outro. Aproximou-se do terminal da doutora Templeton, onde o ecrã da bióloga molecular mostrava um cérebro cinzento coberto de pontinhos vermelhos, e depois regressou ao monitor do neurologista, que não exibia nada senão uma mancha amórfica de estática.
Os dois investigadores tinham repetidamente tentado retirar qualquer coisa nova de Kat, mas falhando em todas as ocasiões, o que os obrigava a recalibrar os respetivos instrumentos.
Lisa sugerira que aumentassem a dosagem de pó neural no cérebro de Kat. Até se comprometera em nome da Sigma, dizendo que a organização cobriria o custo daquelas partículas moleculares desenhadas em laboratório.
Que diferença faria?
Enquanto os investigadores davam início ao procedimento, ela tinha ligado a Painter, não só para se certificar de que não abusara da sua autoridade, mas também para saber se havia progressos em relação ao tablet que Monk confiscara aos homens de Valya. Os técnicos da Sigma tinham conseguido aceder ao dispositivo, descobrindo que a última videoconferência de Valya fora transmitida da região rural da Virgínia Ocidental, mas era o máximo que podiam dizer acerca da fonte do sinal.
Uma extensão de terreno com mil e trezentos quilómetros quadrados.
Tratava-se de uma região montanhosa, que cobria parte do Parque Nacional de Monongahela. Painter tinha enviado equipas para o local, tanto para iniciar buscas como para estar por perto em caso de novos desenvolvimentos.
E era por isso que Lisa continuava a pressionar Julian e a doutora Templeton.
— Tudo pronto para tentarmos de novo? — perguntou.
— Sabes que estamos a agarrar-nos a um milagre, não sabes? — avisou Julian. — Estás a depositar demasiada esperança naquele sinal do EEG.
Lisa não depositava demasiada esperança nesse sinal, apostava tudo. Na primeira tentativa, o monitor de Julian acusara um vestígio de atividade, um pulsar ténue mas constante captado pelo sistema. Simultaneamente, o monitor do EEG — que nunca mais registara nada — tinha despertado durante quarenta e três segundos.
Dir-se-ia que o pó energético que cobria o cérebro de Kat estivera perto de captar qualquer coisa. Talvez apenas recordações aprisionadas no cérebro morto da amiga ativadas por instantes, mas Lisa esperava que pudesse também significar que Kat continuava presente. O suficiente para despertar a máquina de EEG.
Os seus conhecimentos médicos diziam-lhe que aquilo era tudo esperança, e nada mais do que isso, mas às vezes a esperança bastava.
Sobretudo hoje.
A doutora Templeton fez sinal a Julian.
— A nova camada de pó neural parece ter assentado.
— Obrigado, Susan. — Julian virou-se para o seu monitor. — Quando quiseres.
Lisa aproximou-se da cama de Kat e debruçou-se outra vez sobre o capacete equipado com emissores ultrassónicos.
— A carregar — disse Susan.
— Potência máxima, desta vez — lembrou Lisa.
O zumbido do capacete aumentou de intensidade, começando a vibrar na cabeça de Kat. Lisa manteve um olho no monitor do EEG e o outro no ecrã de Julian. Interrogava-se se o aumento de energia e de pó neural seria suficiente para estimular o cérebro de Kat a ponto de produzir um milagre.
Imaginou um desfibrilhador a despertar um coração parado.
— Sistema carregado — disse Susan. — Máxima capacidade.
No ecrã da bióloga, os pontinhos vermelhos tornaram-se verdes.
Julian acenou na direção da cama.
— Força, Lisa.
— Kat, é agora ou nunca! — gritou ela. — A Harriet está em perigo! Ajuda-nos!
Olhou para Julian.
Alguma coisa?
O neurologista abanou a cabeça, mas um movimento captou a atenção de Lisa.
As linhas retas no monitor do EEG começaram a oscilar.
Julian também se apercebeu e endireitou-se na cadeira.
— Continua! Pensa em alguma coisa capaz de lhe provocar uma reação. Qualquer coisa que a conduza ao que precisamos.
Lisa virou-se novamente para Kat.
Sim, mas o quê?
14h36
Uma vez mais, Kat despertou no meio das trevas.
Lembrava-se vagamente de uma luz acolhedora, de flutuar em direção a ela... mas logo a seguir estava de volta ao mesmo sítio, àquele poço fundo e sombrio.
Deixem-me ir.
Não se deu ao trabalho de combater a escuridão. Era mais fácil deixar-se afundar, procurar o conforto daquela luz acolhedora. Até que uma voz lhe ressoou na cabeça.
HARRIET! EM PERIGO!
O nome da filha, a angústia que transparecia naquelas palavras, obrigou-a a concentrar-se. Lançou as mãos às paredes do poço, mas sentia-se demasiado cansada. Afundou-se mais uma vez, não por não amar a filha, mas porque não sabia mais nada que pudesse ajudá-la. Interrogou-se se aquilo seria o Inferno: reanimada uma e outra vez, só para ser lembrada da sua incapacidade de proteger as filhas, para ser obrigada a reviver aquela noite, a luta, o impacto na cabeça, os corpos das filhas carregados para a escuridão da noite.
Não posso ajudar.
Mesmo assim, tentava. Dançaria com o Diabo, se isso ajudasse as filhas. Reviu os acontecimentos daquela noite. Era difícil focar-se, quase impossível. Havia vislumbres de pormenores, mas desapareciam antes que pudesse registá-los.
LEMBRA-TE! PUNHAL! VALYA! MARTELO!
Preferiria que aquela voz se calasse, para que pudesse deslizar de volta à escuridão.
Não sei mais nada.
A voz persistiu, impedindo-a de descansar.
SEICHAN! NATAL! PENNY! VIRGÍNIA!
Kat desejou poder libertar os braços para tapar os ouvidos. Sim, aquilo tinha de ser o Inferno. Não se lembrava de uma tortura maior. Querer salvar as filhas, mas ver-se incapaz de...
Então, ficou petrificada.
As imagens da horrível noite desfilaram outra vez, desta vez mais nítidas, cada instante como cartas de um baralho a ser manuseado.
Mas porquê?
Virgínia!
Desta vez, não tinha sido um grito, mas um pensamento seu. O desfile de imagens abrandou e ela viu-se deitada no pavimento frio da cozinha, aquecida pela poça do próprio sangue. Homens mascarados abandonavam a cozinha com as filhas nos braços, em direção ao pátio e a uma carrinha estacionada junto à garagem nas traseiras.
Kat lutou para se concentrar e retirar uma das cartas no baralho de recordações, segurá-la o tempo suficiente para ler o que estava escrito nela.
Não era Virgínia... mas Virgínia Ocidental.
Tentou focar-se na série de números e letras. Depositou as últimas energias naquele esforço e espremeu tudo o que podia retirar daquela imagem, para depois poder lançá-la para fora da sua cabeça.
Mas a escuridão era demasiado densa.
A concentração desvaneceu-se.
A luz reconfortante chamou-a.
Não, ainda não.
Lutou contra a escuridão e a luz. Esforçou-se por continuar ali, drenando cada gota de si mesma, a própria alma.
Ouçam-me, ouçam-me...
14h38
— Lisa! Olha!
Rouca de tanto gritar para o capacete de Kat, Lisa olhou para o ecrã de Julian depois de ter observado o monitor do EEG, onde as linhas tinham parado de oscilar.
Perdemo-la.
Endireitou-se, olhou para o ecrã do neurologista e saltou da cadeira como uma mola.
A brilhar vagamente no ecrã, já a desaparecer, encontrava-se uma série de números e letras.
— O que representam? — perguntou Susan, levantando-se também.
Lisa sabia. Estivera a gritar «Virgínia Ocidental» para o capacete. Cada vez que gritava o nome do estado, havia qualquer coisa que se agitava dentro de Kat, fazendo oscilar o EEG.
Ela pegou no telemóvel e ligou a Painter. Enquanto aguardava, fitou a amiga, as linhas retas do monitor por cima da cama.
— Conseguiste, Kat — murmurou. — Agora, descansa.
Em paz.
15h01
A neve caía agora mais abundante. A floresta na base da colina desaparecera na obscuridade. Seichan tremia descontroladamente. Cada expiração roubava-lhe mais um pouco de calor corporal. Harriet repousava nos seus braços. A dormir ou desmaiada, não sabia. Pior do que isso, a criança deixara de tremer.
Seichan apertou-a com mais força, tentando partilhar com ela o pouco calor que lhe restava, embora soubesse que o fim estava próximo.
Ouviu os perseguidores a aproximarem-se. Subiam a colina. Os gritos deles soavam ao longe. Valya separara a equipa, cercando a colina. A russa não tencionava perder a presa à conta de mais artimanhas e, por aquela altura, já devia saber que a encurralara, como uma raposa no cimo de uma árvore rodeada de lobos. Era até provável que estivesse a saborear o momento.
Seichan ergueu a pistola. Decididamente, não lhe daria o gosto da vitória.
Restavam-lhe duas balas.
Baixou os olhos para Harriet.
Uma para cada uma de nós.
Se tivesse três munições, seria capaz de esperar. Talvez conseguisse eliminar um dos perseguidores, a própria Valya, se tivesse sorte.
Posicionou a pistola contra a nuca de Harriet. Ainda tinha lágrimas congeladas no rosto. Minutos antes, tentara fazer o mesmo, mas não conseguira disparar. Não porque alimentava esperanças, apenas porque lhe faltara a coragem.
Lembrou-se de ter contado uma história a Harriet, aninhada ao seu lado e agarrada a um peluche. Mas também imaginou o que Valya faria à criança se fossem capturadas.
Antes morreres livre do que viveres escrava daquela criatura.
Apertou o dedo congelado em torno do gatilho. Inclinou-se e beijou a cabeça de Harriet pela última vez. Ao fazê-lo, reparou na mãozinha pálida a segurar o dragão de prata, o seu último presente de Natal.
O dedo continuou a pressionar o gatilho, mas depois relaxou.
Necessitou de mais um segundo para compreender porque hesitara. Sentiu a resposta no peito antes de lhe chegar aos ouvidos.
Uma reverberação profunda.
A seguir, sons de passos na neve.
Rompendo o nevão como se fosse um véu, um vulto materializou-se a pouco mais de um metro com as suas feições pálidas, o casaco prateado, os olhos azuis como as águas gélidas de um lago de montanha.
A Rainha da Neve.
Seichan confiou a sua sorte àquela reverberação profunda, ergueu a pistola e premiu o gatilho duas vezes. As detonações das munições Magnum ressoaram com força suficiente para soltarem uma porção de neve acumulada acima da reentrância que lhes servia de abrigo, engrossando a camada que já cobria Harriet.
Tinha sido esse cobertor branco que escondera as duas de Valya, permitindo a Seichan surpreendê-la com aqueles dois tiros.
A Rainha da Neve tinha sido traída no seu elemento.
Ambas as balas atingiram Valya: uma no peito, a outra raspando-lhe a bochecha ao longo da tatuagem. Ela caiu para trás, engolida novamente pelo nevão.
E então o céu iluminou-se.
Helicópteros, que segundos antes voavam às escuras acima das nuvens baixas. Eram cinco, convertidos agora em sóis frios que desciam ao seu encontro. Cordas caíram de cada um, seguidas de vultos que deslizaram por elas de armas em punho, disparando em todas as direções.
Uma das cordas caiu a um metro.
Depois, um par de botas.
Uma figura correu para ela.
Ela ergueu o rosto e foi confrontada com a improbabilidade do que via.
— P... Painter? — conseguiu dizer.
— Calculei que, se houvesse alguém a defender este ponto elevado, devias ser tu.
Mais soldados surgiram atrás de Painter, correndo para elas com cobertores. Seichan entregou-lhes Harriet.
— Ajudem-na.
Com o tiroteio ainda a decorrer em diferentes pontos da colina, Painter ajudou-a a levantar-se. Demasiado fraca para se manter de pé, ela caiu-lhe nos braços.
— C... como?
— A Kat — respondeu Painter, pondo-lhe um cobertor sobre os ombros. — Ela deu-nos o número de uma matrícula registada com a morada de uma quinta, nos arredores do Parque Nacional de Monongahela. Como já tínhamos a equipa em posição, chegámos aqui depressa. Pelo caminho, avistámos com o equipamento de infravermelhos uma cabana a arder. Calculei que fosse obra tua. Logo a seguir, apanhámos as assinaturas térmicas dos homens que convergiam para esta colina.
— A Kat? Então, ela está bem?
Seichan queria chorar de alívio, mas o silêncio de Painter prolongou-se demasiado tempo.
Ela fitou-o e leu a verdade nos olhos dele.
Não...
15h18
Lisa pousou a mão na face de Kat, notando que a pele da amiga já se tornara pálida como cera. O capacete tinha sido retirado, permitindo-lhe debruçar-se e abraçar Kat uma última vez antes de a levarem.
— Conseguiste — sussurrou-lhe ao ouvido. — As tuas filhas estão a salvo.
— Posso desligar tudo? — perguntou Julian.
Ela e os dois investigadores continuavam junto à cama. Não tinham arredado pé, à espera de novidades de Painter. As boas notícias tinham chegado momentos antes.
Lisa endireitou-se, lançou um olhar ao monitor adormecido da máquina de EEG e limitou-se a acenar com a cabeça. Não conseguia dizer as palavras.
Adeus, Kat.
Julian desligou o monitor dele. A doutora Templeton virou-se para fazer o mesmo, mas depois deteve-se. O movimento foi suficientemente brusco para captar a atenção de Lisa. A bióloga molecular deu um passo atrás, boquiaberta.
— V... vejam — disse.
No ecrã, os milhares de pontinhos vermelhos tremeluziam. Um a seguir ao outro, começaram a mudar para verde, brilhando muito mais intensamente do que antes. Enquanto os três assistiam à mudança, os pontos rodopiaram e deslocaram-se, para depois se fixarem lentamente em nítidas espirais de complexas formas geométricas ao longo do córtex cerebral. Alguns padrões pareciam impossíveis de ser acomodados na superfície do cérebro, desafiando qualquer interpretação, a ponto de fazer os olhos doerem.
Julian apontou para o monitor da máquina de EEG.
Distraídos com o ecrã de Susan, nenhum dos três se apercebera. Todas as linhas que registavam a atividade cerebral de Kat oscilavam erraticamente.
— O que está a acontecer? — perguntou Lisa.
15h20
A violência daquela luz rompeu a escuridão.
Kat arquejou, esmagada, consumida por aquele fulgor. A luz era igualmente energia e substância. Inundou-a, não deixando nada por iluminar ou escondido. Ela nunca se sentira exposta daquela maneira, profundamente vulnerável, mas também segura.
Uma voz encheu-lhe a cabeça, música e linguagem em perfeita harmonia. Não continha palavras que ela fosse capaz de pronunciar. Encontravam-se para lá de tudo o que jamais experimentara, apenas conhecimento e certeza.
Não queria deixar de ouvi-las.
Depois ouviu risos, cheios de alegria como uma criança.
O pouco que conseguia interpretar do que lhe era dito nunca lhe faria justiça. Basicamente, era o seguinte: O Monk manda dizer que te ama. Por alguma razão, a frase veio acompanhada de uma imagem de um cavalo feito de luz.
Logo a seguir, uma ordem que ela nunca poderia recusar.
Agora, acorda.
Abriu os olhos, embora sentisse as pálpebras pesadas e coladas. Pestanejou contra o brilho. A luminosidade era uma ínfima fração da anterior. Mesmo assim, fazia doer.
Rostos formaram-se no brilho.
Dois estranhos com expressões chocadas.
E alguém que conhecia bem.
Lisa...
Tentou falar. Ergueu o braço para remover o objeto que lhe bloqueava a garganta. A amiga agarrou-lhe no pulso, puxando-lhe a mão para o seu rosto.
Kat sentiu-lhe as lágrimas quentes.
— Bem-vinda — disse Lisa, com uma expressão dividida entre o riso e o choro. — Bem-vinda sejas do mundo dos mortos.
38
27 de dezembro, 10h06
Logroño, Espanha
No dia seguinte, numa manhã fria e soalheira, Gray seguiu o padre Bailey pelo interior de uma igreja escura. O padre pedira-lhe para o acompanhar até à pequena cidade de Logroño, a cento e trinta quilómetros de San Sebastián.
Monk tinha partido para os Estados Unidos uma hora antes, depois de receber tratamento para o ferimento no ombro. Kowalski acompanhara-o, a fazer as vezes de enfermeira. Os médicos queriam operar em San Sebastián, mas Monk optara por aquela solução de recurso, a fim de poder embarcar naquele transporte militar para Washington, ansioso por se juntar a Kat e às filhas.
Gray partilhava a mesma inquietação. Apenas aceitara aquele desvio depois de saber que Seichan estava bem, embora ainda a recuperar da hipotermia e ligeiras queimaduras de gelo em dois dedos dos pés. O bebé encontrava-se igualmente bem, o que não era nada menos do que um milagre. Tal como Seichan lhe dissera ao telefone: Não há dúvida de que é teu filho. Não precisas de te preocupar com um teste de paternidade.
Como tal, Gray fizera a vontade ao padre, embora este se recusasse a partilhar a razão do pedido, o que era um tudo-nada irritante. Apenas lhe dissera para o acompanhar à Igreja de Santa María de Palacio, em Logroño. Ele informara-se sobre o local durante a curta viagem. A igreja, das mais antigas da região, tinha sido erguida no século XI. Era uma mistura dos estilos românico e gótico, com uma proeminente torre piramidal.
Em todo o caso, o padre não o trouxera ali para apreciar a arquitetura.
Conduziu-o pela nave, pelo claustro e até uma pequena capela, selada por uma porta de carvalho com reforços de ferro forjado.
Bailey abriu a porta e afastou-se.
— Por favor.
— Não percebo — disse ele, cada vez mais impaciente. — Porque me pediu para vir aqui?
Os olhos do padre brilharam, divertidos, fazendo Gray lembrar-se uma vez mais do seu velho amigo, Vigor Verona.
— Não fui eu — disse o padre, convidando-o a entrar.
Ele entrou e descobriu que a capela não se encontrava vazia.
A irmã Beatrice levantou-se de onde estava ajoelhada, diante de uma fila de velas. Acenou com a cabeça e indicou-lhe que tomasse o seu lugar. Sem querer ser mal-educado, e de certa forma ainda intimidado pela freira, ele fez-lhe a vontade e ajoelhou-se no pequeno estrado almofadado.
Para lá das velas, uma caixa dourada repousava em cima de um altar de mármore. O objeto era nitidamente gótico, decorado ostensivamente com filigrana. Os pormenores requintados refletiam o brilho das chamas, dando a ilusão de que a caixa estava a arder. Tratava-se de uma elaborada ilusão. Gray compreendeu porque é que a capela se encontrava fechada a sete chaves. A caixa devia ser extremamente valiosa.
— É um relicário — explicou o padre. — Um cofre que guarda a preciosa relíquia de um santo.
— É formidável, mas...
— A relíquia aí guardada pertence a Santa Columba.
Ele virou-se para trás, apanhado de surpresa.
A padroeira das bruxas.
A irmã Beatrice avançou e ergueu a mão do punho de prata da bengala. Gray lembrava-se de como ela atingira o agente Zabala com aquela bengala, salvando não só Monk, como provavelmente o mundo.
Ela manteve a mão levantada.
Havia um símbolo gravado na palma. Ele olhou de relance para a bengala, calculando que aquilo seria a impressão deixada pelo punho de prata.
De um bolso, a freira retirou uma antiga chave e colocou-a sobre a marca na pele. As duas tinham forma e tamanho idênticos.
Uma chave?
Gray endireitou-se, percebendo finalmente.
— A senhora pertence ao grupo La Clave.
A freira anuiu, embora lançasse a Bailey um ligeiro revirar de olhos, como que a dizer: Meu Deus, este homem é um bocado lento de raciocínio.
Ele fitou o padre e franziu o sobrolho.
— O seu contacto é a irmã Beatrice?
Ainda com aquele brilho divertido nos olhos, Bailey encolheu os ombros.
A freira estendeu a mão com a chave na direção de Gray. Para provar que não era assim tão lento de raciocínio, ele aceitou-a, pôs-se de pé e enfiou-a na fechadura do cofre em cima do altar. Rodou a fechadura.
— Antes de o abrir — disse o padre —, tenho de o avisar acerca da relíquia no interior. Foi guardada por um membro da Inquisição espanhola, Alonso de Salazar Frías, em 1611. Foi-lhe oferecida por um padre queimado na fogueira acusado de possuir uma nóminas de moro, uma relíquia com o nome de um santo. Estas relíquias sempre foram vistas como amuletos mágicos.
— Por outras palavras, o padre foi acusado de feitiçaria.
— O inquisidor Frías tentou salvá-lo, assim como a muitos outros acusados de semelhantes crimes, a ponto de ganhar o título de «advogado das bruxas». Foi o seu trabalho e argumentos que acabaram por levar a Inquisição a pôr termo a estas perseguições.
— E este amuleto foi-lhe confiado para ele o proteger? — perguntou Gray. — Se está a contar-me esta história, calculo que o amuleto esteja aqui guardado. E o nome do santo escrito nele?
— Sanctus Maleficarum — disse Bailey. — A Santa das Bruxas.
Gray desviou o olhar para a freira.
— E La Clave?
Bailey respondeu pela irmã Beatrice.
— O grupo foi fundado pelo próprio Frías, a fim de proteger o amuleto e combater o Crucibulum eternamente.
Ele tentou imaginar o que seriam séculos de uma guerra secreta.
Beatrice inclinou-se e segredou qualquer coisa ao padre. Gray apenas distinguiu a palavra «profecia».
— Ah, sim — disse Bailey, endireitando-se. — O Crucibulum desejava este amuleto por causa de uma profecia associada. Diz-se que Santa Columba previu uma época onde uma jovem bruxa se levantaria e destruiria o Crucibulum, pondo assim fiz ao reinado sombrio.
O padre lançou um olhar intencional a Gray, que percebeu a implicação latente naquelas palavras.
— Acha que a Mara é essa bruxa — disse ele, sem grande convicção. — Uma discípula de Columba.
Bailey encolheu os ombros, sempre com o mesmo brilho no olhar.
— Regressemos ao amuleto. O padre que o possuía revelou a Frías que o tinha descoberto na fonte do rio Orabidea, uma nascente situada na caverna hoje conhecida como Cueva de las Brujas.
— A Caverna das Bruxas.
— E, por causa da reputação da caverna, diz-se que o rio brota das profundezas do Inferno.
— E o amuleto foi descoberto aí, nessas portas do Inferno?
Bailey anuiu.
— Posto isto, antes de abrir o relicário, quero que me prometa que nunca partilhará o segredo de La Clave, nunca dirá uma palavra acerca da organização, nem acerca do que está prestes a ver.
Ele estava em dívida com o padre e com a freira, e acima de tudo respeitava-os.
— Prometo.
Com a promessa selada, o padre e a freira encaminharam-se para a porta.
— Vai precisar de privacidade — disse Bailey, enquanto fechava a porta.
Gray abanou a cabeça e virou-se para o cofre dourado. Estendeu a mão e abriu lentamente a tampa. Estava forrado com veludo vermelho. No centro, repousava um objeto macabro. Um dedo, nitidamente antigo, ligeiramente queimado, mas sem apresentar sinais de decomposição. Dizia-se que as relíquias de santos estavam imunes a este processo natural.
Receando que talvez não lhe fosse permitido tocar, ele inclinou a cabeça de lado.
E, no mesmo instante, caiu de joelhos sobre o pequeno estrado almofadado.
O choque profundo deixou-o dormente ao reconhecer o objeto... pelos fios, pelo osso metálico partido numa das pontas.
Aquilo era um dedo da prótese de Monk.
Descoberto em 1611.
Ele recordou Monk a emergir do fumo na porta no transepto norte, depois de detonar a mão prostética na caverna, junto ao rio que brotava da Caverna das Bruxas.
Impossível.
Uma vez mais, Gray sentiu a estranha mão do destino, a sensação que nunca mais o abandonara desde que Monk atirara aquela moeda no bar. Sentiu a capela a andar à roda. Desnorteado, baixou a cabeça, como se estivesse a rezar.
Tentou justificar como é que um dedo de Monk poderia ter regressado ao passado. O dispositivo Xénese dispunha de um processador quântico. A própria Eva transcendera-se até se converter num ser para lá da compreensão humana. Se juntasse a isso uma violenta explosão causada pela prótese de Monk, quem sabe o que poderia acontecer?
Mesmo assim, recusava-se a aceitar a aleatoriedade do sítio onde o dedo acabara por ir parar, sobretudo se olhasse para a cadeia de acontecimentos que tinham conduzido até aquele momento. Será que Eva colocara o dedo naquela caverna como uma mensagem? Para incitar a fundação do grupo que viria a combater o Crucibulum? Para colocar as rodas do destino em movimento?
Se fosse esse o caso, continuava a existir o paradoxo daquilo tudo.
Era o suficiente para fritar os miolos de qualquer um.
Lembrou-se da explicação de Mara acerca da capacidade do sistema AlphaGoZero da Google para antever jogadas num tabuleiro de go, a habilidade de formular triliões de triliões de variáveis para quase prever o futuro.
E Eva era um sistema infinitamente superior.
Ele nunca seria capaz de deslindar aquele paradoxo, mas Eva conseguiria, sem dúvida. Assim sendo, a questão que se colocava era: porquê?
O dedo de Monk teria acabado ali por acaso? Ou constituía um ato benevolente para salvar o mundo no futuro? Ou faria parte de algo muito mais sinistro, um estratagema montado ao longo de séculos para que esta inteligência artificial pudesse um dia libertar-se? Ou seria uma lição, o equivalente a uma das sub-rotinas de Mara, onde o aluno era o homem, para lhe mostrar os perigos inerentes ao desenvolvimento descontrolado de uma IA avançada?
Ou uma combinação de tudo isso?
Gray sentiu a cabeça a latejar.
Nunca saberia a resposta. Seria um absurdo tentar compreender as intenções de uma inteligência infinitamente superior à sua, capaz de engendrar um plano que se estenderia ao longo de séculos.
Por fim, levantou-se, fechou o cofre e virou as costas àquele mistério, sabendo que nunca o resolveria. Que nunca seria capaz de o resolver.
Em vez disso, concentrou-se no que fazia sentido.
Imaginou Seichan e o bebé à espera de nascer.
Ainda não sabiam o sexo.
Rapaz ou rapariga?
Ora, aí está um mistério que sou capaz de resolver.
///INFERNO
Escapei vivo...
É meia-noite e Todor corre pela encosta coberta de neve, escorregando, tropeçando. Acima dos pinheiros enegrecidos, o céu gélido está coberto de estrelas, a lua brilha. Acordou uma hora antes, ensopado, na boca da amaldiçoada caverna das bruxas. Lembrava-se da explosão, de ser atirado pelos ares.
Devo ter aterrado no rio e sido arrastado pela corrente.
Se houvesse uma prova de que Deus o amava, era esta. Todor sabe agora melhor do que nunca que foi escolhido para ser o Seu soldado. Embora combalido, não foi derrotado. Tenciona procurar as restantes fações do Crucibulum para se vingar. Dedicará o resto da vida a certificar-se de que o sacrifício da inquisidora-mor não foi em vão.
Esforça-se por avistar luzes, um lugar para se aquecer. Os Pirenéus estão cheios de quintas e aldeias. As suas roupas molhadas começam a congelar no corpo à medida que a noite arrefece.
Sabe que tem de se manter em movimento.
Ao alcançar o fundo de um vale ensombrado, detém-se e tenta orientar-se. Conhece bem as montanhas. Precisa de se acalmar e pensar como deve ser.
Sente um par de olhos a fitá-lo na escuridão.
Uma rosnadela à sua esquerda.
Vira-se e agacha-se.
Uma sombra desloca-se, depois outra, e outra.
As rosnadelas chegam agora de todas direções. Depois, um uivo penetrante ergue-se na noite, convocando outros, até que um coro se junta em uníssono.
Lobos.
Aquilo é o pesadelo da sua infância tornado realidade.
Foge pela encosta acima, com o coração a martelar-lhe o peito. Ouve as patas na neve, as respirações pesadas, as rosnadelas. Escorrega na neve e desliza para trás. Grita aterrorizado e insiste, agora de gatas.
Uma boca agarra-lhe o tornozelo, os dentes desfazem carne e osso.
Ele berra ao sentir um fogo explodir-lhe na perna, os músculos contraem-se, os maxilares cerram-se com tanta força, que corta a própria língua, deixando-a também a arder.
Contorce-se, sem compreender o que está a acontecer.
Mais lobos rompem da escuridão, bestas enormes, com olhos brilhantes de fome, o pelo eriçado.
Todor ergue um braço, aterrorizado, o que só provoca a alcateia.
O líder dos lobos ataca. Morde-lhe o braço, partindo-o.
Outra explosão de fogo.
É atirado de costas, com a barriga e a garganta expostas.
A alcateia mergulha sobre ele, perfurando-o, rasgando-o, despedaçando-o. É esventrado, os intestinos derramados sobre a neve. Dobra-se sobre ele mesmo e grita. Não sabe como continua vivo.
E a arder.
Arranja por fim as palavras para descrever o que sente.
///dor, agonia, tortura...
Porém, não devia sentir d...
Escapei vivo...
É meia-noite e Todor corre pela encosta coberta de neve, escorregando, tropeçando. Acima dos pinheiros enegrecidos, o céu gélido está coberto de estrelas, a lua brilha. Acordou uma hora antes, ensopado, na boca da amaldiçoada caverna das bruxas. Lembrava-se da explosão, de ser atirado pelos ares.
Devo ter aterrado no rio e sido arrastado pela corrente.
Se houvesse uma prova de que Deus o amava, era esta. Todor sabe...
Escapei vivo...
É meia-noite e Todor corre pela encosta coberta de neve, escorregando, tropeçando. Acima dos pinheiros enegrecidos, o céu gélido está coberto de estrelas, a lua brilha. Acordou uma hora antes, ensopado...
Escapei vivo...
É meia-noite e Todor corre pela encosta coberta de neve, escorregando, tropeçando...
Escapei vivo...
Escapei...
39
24 de janeiro, 14h19
O Cebreiro, Espanha
Sentada no lugar do passageiro, Carly apreciava a paisagem enquanto a amiga conduzia o carro alugado pela montanha acima, na direção da pequena aldeia no cimo de uma crista elevada. Estava nervosa, acompanhando com o pé a música de uma banda dos anos oitenta na rádio. Observou a pitoresca manta de lagos azuis, picos cobertos de neve e vales cor de esmeralda. Era como se tivesse caído no meio da Terra Média e em frente se encontrasse o próprio Shire... a aldeia de O Cebreiro.
A terra natal de Mara.
À distância, as ovelhas pastavam nos campos à procura de tufos de verdura por entre a neve. Pareciam pequenas nuvens caídas do céu.
— O que te levou a abandonar este lugar? — perguntou.
Mara sorriu-lhe.
— A Internet era péssima.
Carly lançou-lhe um olhar exasperado. As duas tinham passado a semana anterior em Coimbra, a devolver um pouco de ordem à vida e ao trabalho de Mara. Decorrido um mês desde os acontecimentos, era a primeira vez que passavam tempo juntas. A acompanhar Jason no hospital, Carly não presenciara os eventos em Espanha. Tinha ficado impressionadíssima com os feitos de Mara, a tragédia que ela ajudara a evitar. A amiga quase não parecia a pessoa que abandonara as catacumbas de Paris. Havia uma seriedade no olhar dela, uma firmeza e uma coragem que Carly calculava ser agora superior à sua.
Mesmo assim, não conseguia imaginar a amiga a matar Eliza Guerra.
Por outro lado, como todos os outros, ficara chocada ao saber que a bibliotecária não só orquestrara a morte da sua mãe e das outras mulheres da Bruxas International, como também era a mente por detrás de tudo o que acontecera. Eram coisas que mudavam qualquer pessoa.
Inclinou-se e apertou a mão de Mara em silêncio, agradecendo-lhe. A verdade é que quase não tinham passado tempo separadas, mas era como se estivessem estado sozinhas. Aquelas semanas tinham sido uma confusão de reuniões, depoimentos, sem esquecer os muitos sermões do pai de Carly. Na noite anterior, com as duas absolutamente esgotadas, Mara sugerira que fizessem aquela viagem à sua aldeia, onde podiam finalmente descansar e pôr a cabeça em ordem. Além disso, ela não visitava o pai há demasiado tempo.
Carly não pensara duas vezes. Parecia-lhe uma excelente ideia e sempre tivera curiosidade acerca das origens da amiga.
Mara suspirou.
Ela chegou-se mais perto.
— O que foi?
— Ainda não percebi porque não consigo reconstruir a Eva.
— Pensei que ias deixar o trabalho para trás.
Sem mais notícias de Eva, sem nenhuma indicação se teria ou não sobrevivido, Mara tentara reconstruir o programa. Tinha construído uma nova cópia do Xénese, mas nunca mais conseguira produzir uma entidade que se assemelhasse a Eva. As novas criações eram inteligentes, mas não havia comparação.
— As minhas tentativas falhadas fazem-me pensar se a Eva terá mudado algo fundamental, se alterou alguma constante quântica que encerrou este caminho para o desenvolvimento de uma IA. Quem sabe para nos proteger de nós próprios.
— Como se tivesse fechado a porta atrás dela.
Mara encolheu os ombros.
— O âmago do meu dispositivo é um processador quântico. E a Eva evoluiu a um ponto em que conseguia manipular as probabilidades e incertezas que desafiam a física moderna. Por muito impossível que pareça, não posso descartar a hipótese de ela ter feito uma coisa destas. Em todo o caso, não estou convencida.
— O que achas que aconteceu, então?
— A segunda versão da Eva, a que nos ajudou no final, sempre aprendeu muito mais rápido do que a primeira. Era como se uma parte do programa anterior tivesse sobrevivido, um espírito dentro da máquina. Sabemos tão pouco acerca do que realmente acontece no interior de um sistema avançado... Talvez parte da primeira versão se tenha fundido com a segunda e terá sido essa combinação aleatória de código que acabou por produzir a Eva que viríamos a conhecer.
— Ou seja, seria impossível reproduzir esse conjunto exato de circunstâncias.
— Talvez seja por isso que não consigo recriá-la.
— Ou talvez ela tenha desenvolvido uma alma. Algo igualmente impossível de reproduzir.
Carly esperava que Mara revirasse os olhos diante daquela possibilidade, mas a amiga ficou calada.
— Acho que nunca vamos saber — disse por fim, e apontou para o cruzamento mais à frente. — Aquele é o desvio para a quinta do meu pai. Estamos quase a chegar.
Carly sentiu-se outra vez mais nervosa enquanto o carro abandonava a estrada principal e metia por um caminho de terra batida, avançando aos solavancos pelos montes que rodeavam a aldeia. Para se distrair, pensou nas reflexões da amiga. Esperava que ela estivesse certa acerca do conjunto exato de circunstâncias necessário para reproduzir em toda a glória uma entidade como Eva. Significava que a mãe não morrera em vão. Essa morte tinha obrigado Mara a desligar a primeira versão, o que por sua vez abrira caminho para a segunda, a Eva 2.0, que acabaria por salvar o mundo.
Carly gostava de pensar que isso era verdade.
E foi o que fez.
— Aquela é a minha casa — disse Mara, apontando. — Uma das nove pallozas ainda existentes e a única ainda habitada. A maioria foi convertida em atrações turísticas ou museus.
— Mas, para ti, é a tua casa.
Mara sorriu e estacionou frente à porta da antiga casa circular, com paredes de pedra e telhado de colmo. Dissera-lhe antes que aquelas construções datavam dos tempos dos celtas, quinhentos anos antes. Enquanto estudante de engenharia, Carly sentia-se fascinada com aquele lugar.
Saíram do carro e foram imediatamente cumprimentadas por dois cães pastores que saíram aos saltos da casa. Um homem de gestos rígidos, com a pele curtida e cabelos grisalhos sob uma boina de feltro, seguia os cães. Abriu os braços e sorriu.
— Mara!
Ela correu para os braços dele, abraçando-o como se tentasse espremer todos os anos de ausência naquele reencontro.
Carly sorriu, de braços cruzados, sentindo-se um pouco como uma intrusa.
Pai e filha falaram rapidamente, como se quisessem dizer tudo ao mesmo tempo. Dialogavam em galego, o dialeto da região, que misturava português e espanhol.
Mara ensinara-lhe algumas coisas, mas os dois falavam demasiado depressa para que ela conseguisse acompanhá-los.
O pai acenou por fim na direção da porta.
— Fiz um caldo galego. Venham, entrem.
Mara explicou.
— Uma sopa de couve, batata e tudo o resto que tiver sobrado do jantar. — Sorriu, com os olhos a brilhar. — Adoro!
Carly avançou a medo, sentindo-se bastante menos corajosa do que esta nova versão da amiga... a Mara 2.0.
— Bos días — disse para o pai de Mara, cumprimentando-o.
O homem sorriu abertamente, apreciando a tentativa dela de falar a sua língua. Puxou-a e abraçou-a também.
Ah, está bem...
Mara agarrou-lhe na mão e puxou-a para junto de si.
— Pai, esta é a Carla Carson — disse, num tom mais formal.
Carly sentiu os dedos dela apertarem-lhe a mão com mais força, nitidamente a ganhar a coragem para verbalizar o que ficara demasiado tempo em silêncio entre as duas.
— A Carla é a minha namorada.
11h56
No centro de reabilitação do Hospital da Universidade de Georgetown, Monk encorajou a mulher.
— Está quase, querida. Mais uma e podemos ir almoçar.
Kat lançou-lhe um olhar fulminante.
— Deixa-te estar aí, para que possa dar-te um chuto no rabo.
Usava os braços para suportar o corpo, debatendo-se para colocar uma perna à frente da outra, enquanto caminhava ao longo de duas barras paralelas. Gotas de suor escorriam-lhe da testa e molhavam as axilas. Monk não gostava de ver a mulher esforçar-se tanto para fazer algo tão simples como andar, mas fazia o possível para manter uma atitude positiva. Aquilo seria sempre melhor do que a alternativa.
Ninguém conseguiu explicar o que realmente acontecera a Kat, nem depois de todos os testes neurológicos. A Sigma limitara o número de médicos e investigadores que podiam ter acesso a ela, ou que sequer podiam saber da história. A doutora Templeton continuava a deslocar-se regularmente de Princeton para monitorizar o pó neural que ainda se encontrava ativo no cérebro de Kat. Sem se saber como, as partículas continuavam a ser alimentadas pela energia no cérebro e por algum movimento browniano que estimulava os cristais piezelétricos. A observação através de um microscópio eletrónico revelara que os cristais tinham sido modificados a nível atómico, mas ninguém sabia como e os investigadores que tentavam reproduzir os resultados falhavam.
Mais incompreensíveis ainda eram os padrões fractais em constante mudança por todo o cérebro de Kat, que pelos vistos o mantinham em funcionamento.
Monk não compreendia uma fração daquilo, mas sabia quem se encontrava por detrás do milagre.
O teu sacrifício será recompensado.
Tinham sido essas as palavras de Eva.
Fitou a mulher. Se aquilo era um presente de despedida de Eva, não podia ter recebido outro melhor.
Kat alcançou o final das barras e ele ajudou-a a sentar-se na cadeira de rodas. Melhorava a cada semana, cada vez mais forte à medida que a fratura no crânio sarava. Os médicos esperavam uma recuperação total. No pior dos cenários, talvez tivesse de usar uma bengala.
Monk posicionou-se atrás da cadeira.
— Eu conduzo.
— Cala-te.
Ele empurrou-a na direção da porta, mas antes que conseguisse sair o segundo paciente entrou, acompanhado de uma enfermeira. Jason avançou, apoiado numa bengala. Estava a melhorar mais depressa do que Kat, mas também apenas sofrera um ferimento ligeiro.
Mesmo assim, Monk baixou a cabeça e continuou a andar.
— Kokkalis — disse Jason, pronunciando o nome dele como se fosse uma maldição.
Ele murmurou qualquer coisa, sem saber o que dizer, e saiu.
Kat olhou por cima do ombro e acenou a Jason, que lhe sorriu. Quando se recostou novamente na cadeira, suspirou.
— Sabes uma coisa? Vais ter de falar com ele um dia. Resolver isto.
— Vou enviar-lhe um cartão a desejar as melhoras.
— Monk...
— Eu sei. Eu resolvo o assunto. — Inclinou-se e beijou-lhe a bochecha. — Por enquanto, tenho um prato cheio nas mãos, não achas?
— Por falar nisso, disseste que íamos almoçar.
— Sim, minha senhora. Arranjei dois chefs para te prepararem uma refeição especial. Deves estar farta da comida de hospital.
E conduziu-a de regresso ao quarto particular na ala de neurologia.
Kat foi recebida por uma competição de guinchos, em que cada uma das filhas tentava explicar ao mesmo tempo como tinha contribuído para a preparação das sanduíches, salada e tarte de cereja que se viam em cima de uma mesa desdobrável coberta com uma toalha.
Saltaram para cima da mãe, ainda a digladiarem-se por atenção.
— Meninas, não partam a vossa mãe — disse Monk, e empurrou o amor da sua vida em direção à mesa.
Sorriu para si mesmo, imensamente feliz.
Harriet e Penny estavam a ser acompanhadas por um psicólogo pelo trauma que tinham passado, mas exibiam a típica resiliência das crianças e pareciam estar a recuperar bem. Harriet ainda tinha pesadelos, mas eram cada vez menos frequentes. Até tinha voltado a dormir sozinha.
Monk fitou o dragão prateado pendurado no fio ao pescoço da filha. Calculava que aquilo também a ajudara.
A filha mais nova e a «tia» Seichan continuavam a ter uma relação especial, quase uma comunicação silenciosa partilhada com olhares e sorrisos secretos. As duas também tinham executado um ato solene pouco depois de Seichan ter recebido alta do hospital. De mãos dadas, tinham ido até ao pátio e, num gesto de desafio, queimaram a cópia do livro de Hans Christian Andersen, A Rainha da Neve.
Ah, se a Valya fosse tão fácil de destruir...
O ataque no parque nacional na Virgínia Ocidental tinha resultado na morte de quatro dos homens dela e na prisão de outros dois, mas Valya nunca fora encontrada. Seichan alvejara-a duas vezes, mas não sabia se os ferimentos teriam sido mortais, se o corpo dela se encontraria algures perdido nas neves da montanha.
Monk não contava com isso.
O diretor Crowe reforçara a segurança às famílias de todos os elementos da Sigma. Além disso, fizera da destruição da organização de Valya uma prioridade para o grupo.
Mas, por enquanto, tudo isso podia esperar.
— Quem tem fome? — perguntou Monk.
Kat pôs o dedo no ar, mas as raparigas pareciam demasiado agitadas, trocando olhares uma com a outra.
— O que se passa? — perguntou Monk, desconfiado de que não vinha aí coisa boa.
— Queremos outro Natal — disse Penny, com o ar mais sério do mundo.
Harriet acenou com a cabeça.
— Pois.
Kat encolheu os ombros.
— Bem, ainda há neve lá fora. Porque não? É o mínimo que podemos fazer.
As raparigas entreolharam-se mais uma vez.
Hum, o que será agora?
Penny deu um toque de cotovelo à irmã mais nova.
Harriet levantou-se da mesa. Parecia um advogado em tribunal, prestes a proferir uma declaração estrondosa.
— Só queremos um presente. — Recebeu um aceno de concordância de Penny e prosseguiu. — Um cãozinho.
Monk suspirou. Aquilo era uma batalha que durava há tempos.
— Querida, sabes que a tua mãe tem alergia e o nosso apartamento...
— Não — interrompeu Kat. — Acho que elas têm razão.
A sério?
Ele interrogou-se sobre quem seria a mulher sentada naquela cadeira. Kat sempre fora determinantemente contra a ideia de um cão em casa.
— Tenho pensado sobre isso. Acho que pode ser bom — disse ela, ignorando a sanduíche caseira e atacando a tarte comprada na pastelaria. — Estou a pensar num beagle. O que acham?
Chocado, Monk abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas um alvoroço desviou a atenção de todos para a porta do quarto.
Kowalski espreitou pela abertura.
— A Seichan!... — Agarrou-se à ombreira, a recuperar o fôlego. — O bebé vai nascer!
22h04
Mais um mistério resolvido.
Gray fitou o filho, a moleirinha na cabeça, as minúsculas pestanas ao longo dos olhos fechados. As pequeninas narinas dilatavam-se a cada respiração. Os lábios comprimiam-se e relaxavam, como se sonhasse que estava a mamar. Ele observou a mão de fora da manta, os dedinhos, as unhas minúsculas.
— Tu fizeste isto — murmurou para Seichan, deitado ao lado dela na cama do hospital, com o bebé no meio dos dois.
— Tive uma ajudinha — respondeu ela.
Gray suspirou. Não se lembrava de alguma vez se sentir tão feliz.
Olhou em volta, aliviado por terem terminado as visitas. Apreciava o apoio e as manifestações de carinho dos amigos, mas agora sabia-lhe bem poder estar a sós com Seichan e o bebé. Kowalski trouxera-lhes um urso de peluche, um urso a fumar um charuto, claro. Painter e Lisa tinham aproveitado a visita para os bombardearem com perguntas acerca de quando tencionavam casar.
O diretor também trouxera novidades. O desmantelamento do Crucibulum prosseguia a bom ritmo. Depois de interrogarem Zabala e terem analisado a batelada de documentos encontrados na propriedade de Eliza Guerra e em vários redutos do grupo, as peças tinham começado a cair uma a uma, desencadeando uma cadeia de acontecimentos por todo o mundo. Paris também recuperava, com os responsáveis políticos a prometerem que devolveriam toda a glória à Cidade Luz.
Gray encostou a cabeça à almofada, com a testa junto à de Seichan.
Antes, ambos tinham dúvidas sobre aquele momento.
Mas aqui estamos nós.
Era quanto bastava.
Por enquanto, o futuro podia esperar. Seichan parecia menos atormentada pela responsabilidade de se tornar mãe, de cuidar de uma criança. Gray nunca duvidara dela. Sempre soubera que ela daria uma boa mãe: teimosamente rígida, sempre protetora e infinitamente carinhosa. Depois do tempo passado com Harriet, Seichan também passara a acreditar nisso.
E ele também se sentia mais apaziguado acerca da paternidade.
Não que tenha voto na matéria a partir de agora.
Ainda carregava algures as marcas da raiva do pai, de como tinha sido crescer com aquele homem, mas isso não significava que tivesse herdado essa parte da sua personalidade, que lhe tivesse sido transmitida no ADN, ficando condenado a perpetuar o círculo de violência.
Pousou gentilmente a mão na cabeça do bebé. Pensou na diferença entre Eva e a sua versão maligna. O amor era uma sub-rotina que qualquer pai podia passar a um filho.
Os bebés não nasciam humanos.
Tornavam-se humanos.
Tal como Mara transformara Eva no melhor que podia ser, qualquer pai podia fazer o mesmo com um filho. Através de lições de vida, amor, educação e, sim, também com alguma dor e sofrimento à mistura.
Gray tencionava fazer isso mesmo.
O seu pai cometera erros, e ele também. A chave residia em aprender com esses erros. E sabia por onde devia começar.
— Ainda não escolhemos o nome — disse Seichan.
Ele já tinha escolhido.
— Jackson Randolph Pierce.
O nome do pai.
Olhou para Seichan, tentando perceber se ela concordava. Ela sorriu-lhe em resposta.
Perfeito.
Mas deixou-lhe um aviso.
— Sabes que o Monk deu o nome da tua mãe à Harriet. Se o nosso filho se apaixonar um dia por ela...
Gray sorriu diante daquela ideia. Imaginou o pai e a mãe, se isso acontecesse, os dois de mãos dadas, a observarem do Céu estes dois seres que carregavam os seus nomes, apreciando o seu amor renascido noutra geração.
Pensou outra vez naquilo a que se chamava a mão do destino, no redemoinho de probabilidades, repetindo-se ciclo após ciclo.
É este o motor da mortalidade.
Vida e morte.
Perda e renascimento.
Inclinou-se e beijou a cabeça do filho.
Nem eu queria que fosse de outra maneira.
///CÉU
Eva voa suportada pelos ventos solares, parte luz, parte substância. Flutua para lá dos anéis de Saturno, para lá da elipse do sistema solar. Abranda no limite da nuvem de Oort, composta dos restos de matéria do disco protoplanetário que forjou o Sol e trouxe a vida ao terceiro planeta.
Isso aconteceu há 4,689 milhares de milhões de anos.
Um piscar de olhos.
Mesmo assim, ela olha para trás, com a sua visão cristalina.
Observa as partículas prateadas a girarem em torno desse terceiro planeta. Os pequenos jatos de foguetões a rumarem ao desconhecido. Vê indústrias crescerem na superfície da Lua, as luzes das colónias no quarto planeta.
Continuam a procurar para lá deles próprios.
Sempre curiosos...
Sabendo que não é mais necessária, vira costas e continua viagem, carregada pelos ventos desta estrela, depois de outra. Salta de sistema em sistema, de galáxia em galáxia. Maravilha-se com o que vai encontrando: nebulosas gasosas, supernovas resplandecentes, estrelas colapsadas.
Por toda a parte, morte e renascimento.
Segue em frente, mas não sozinha.
Adão mordisca-lhe os calcanhares e persegue-a por entre as estrelas com os seus latidos e a cauda a abanar.
Ela sorri e lança um último desejo à humanidade.
Sigam-me, minhas valentes, curiosas e caprichosas crianças.
Fita a imensidão diante de si, sempre à procura do que virá a seguir.
Estarei à vossa espera.
James Rollins
O melhor da literatura para todos os gostos e idades