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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FORTIM - P.2 / F.P. Wilson
O FORTIM - P.2 / F.P. Wilson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Ele estava sentado um pouco afastado da janela, de maneira a poder ouvir a conversa embaixo, sem ser visto por Magda, no caso de ela levantar os olhos. Fora descuidado da vez anterior. Ansioso para ouvi-la melhor, debruçara-se no peitoril. Quando Magda inesperadamente olhou para cima, ele não teve tempo de recuar. Decidira então que seria melhor um ataque frontal e descera para conversar com eles.

 

Agora parecia que cessara completamente a conversa. Ao ouvir o ruído das rodas da cadeira do professor ele se inclinou para a frente e divisou os dois se afastando. Magda parecia calma enquanto empurrava a cadeira apesar da revolta que, imaginava ele, estaria dominando o espírito dela. Ainda esticou o pescoço para um último olhar quando o par dobrou a esquina da estalagem e desapareceu de suas vistas.

 

Obedecendo a um impulso súbito, ele correu para a porta, atravessou o corredor em três largas passadas, entrou no quarto de Magda e se dirigiu diretamente para a janela. Ela estava atravessando a ponte, com a cadeira de rodas à sua frente.

 

 

 

 

Era um prazer vê-la caminhar.

 

Glenn se interessara por Magda desde o primeiro encontro na garganta, quando ela o enfrentara com arrogante calma, apertando na mão uma pedra. Mais tarde, quando ela viera a seu encontro na sala da estalagem para comunicar que não lhe cederia o quarto, ele vira pela primeira vez, à luz do candeeiro, o brilho dos olhos dela e sentiu uma emoção desconhecida. Olhos de um castanho profundo, as faces rosadas. . . Ele gostou do jeito com que ela o olhou e achou maravilhoso o seu sorriso. Magda sorrira apenas uma vez na presença dele, enrugando os cantos dos olhos e revelando uns dentes brancos e parelhos. E o cabelo... Os pequenos cachos que percebera sob o lenço eram de um castanho lustroso. . . Ela deveria usá-lo solto, ao invés de escondê-lo.

 

Mas a atração era mais do que física. Aquela moça provinha de boa cepa. Glenn ficou a contemplá-la enquanto ela alcançava a entrada do fortim e entregava a cadeira para a guarda. O portão tornou a fechar-se e Magda ficou sozinha na extremidade da ponte. Quando a moça se voltou e iniciou a caminhada de regresso, ele se recolheu para o fundo do quarto, de modo a não ser visível pela janela, mas sem deixar de observá-la.

 

Olhar para ela! Vê-la afastar-se do fortim. Ela sente que cada par de olhos na muralha estão fixos nela; que naquele momento não há quem, em pensamento, não a tenha despido e violado. Entretanto, ela caminha com o queixo levantado, seu andar nem apressado nem provocador - perfeitamente tranqüila, como se estivesse fazendo uma entrega de rotina e está a caminho da seguinte. Entrementes, quanta revolta dentro dela!

 

Glenn não podia dominar sua admiração silenciosa. Aprendera ao longo dos anos a esconder seus sentimentos sob uma capa de calma impenetrável. Era como se uma concha o mantivesse isolado, imune a qualquer contato íntimo, reduzindo suas probabilidades de uma conduta impulsiva e permitindo-lhe uma apreciação clara, serena e desapaixonada de tudo e de todos em torno dele, mesmo em meio à maior confusão.

 

Percebeu que Magda era uma das raras pessoas com poder de penetrar em sua concha, de provocar turbulências em sua calma. Sentia-se atraído por ela e testemunhava-lhe respeito - algo que ele raramente concedia a qualquer outra pessoa.

 

Apesar de tudo, não lhe sobrava tempo agora para esses devaneios. Precisava manter-se a distância. Entretanto... há muitos anos que ele não convivia com uma mulher, e Magda despertara nele sentimentos que julgava adormecidos para sempre. Era gostoso relembrá-los. Magda conseguira iludir a guarda dele e Glenn sentia que também estava iludindo a dela. Seria formidável se...

 

Não' Você não pode desviar-se de sua missão! Não tem tempo para distrair-se. Agora, não. Em qualquer outra ocasião sim, mas não agora. Somente um tolo. . .

 

Apesar de tudo. . .

 

Suspirou, resignado. Era melhor guardar seus sentimentos novamente, antes que perdesse o controle da situação. De outro modo, o resultado poderia ser desastroso. Para ambos.

 

Ela já estava chegando à estalagem. Glenn deixou o quarto, fechando cuidadosamente a porta, e voltou para o dele. Atirou-se na cama e se deixou ficar imóvel, com as mãos na nuca, esperando o ruído dos passos na escada. Ela, porém, não subiu.

 

Para sua surpresa, Magda deu-se conta de que, quanto mais se aproximava da estalagem, menos pensava no pai e mais em Glenn. Um sentimento de culpa a dominou. Deixara o pai aleijado, sozinho, cercado de nazistas e tendo de enfrentar um vampiro naquela noite. Apesar de tudo isso, seus pensamentos se concentravam em um estrangeiro. Fazendo a volta por trás da estalagem, ela experimentava uma estranha sensação e sentia o pulso mais acelerado ao pensar nele.

 

Falta de alimentação, pensou ela. Ainda não comera nada naquela manhã.

 

Não havia ninguém atrás da estalagem. A banqueta que Glenn trouxera para ela ali estava, vazia e isolada, batida pelo sol. Olhou para a janela dele. Também não havia ninguém.

 

Magda apanhou a banqueta e levou-a para a parte da frente, dizendo de si para si que o que sentia não era desapontamento, mas simplesmente fome.

 

Lembrou-se de que Glenn havia dito que iria tomar seu café da manhã. Talvez ele ainda estivesse na sala. Apressou o passo. Sim, o que ela tinha era fome.

 

Entrou na sala e viu luliu sentado no recanto onde eram servidas as refeições, à sua direita. Ele cortara uma grande fatia de queijo e estava bebendo leite de cabra. O estalajadeiro parecia comer pelo menos seis vezes por dia.

 

Estava sozinho.

 

- Domnisoara Cuza! - chamou ele. - Aceita um pedaço de queijo?

 

Magda aceitou com um movimento de cabeça e sentou-se. Não tinha tanta fome como imaginara, mas precisava alimentar-se para continuar lutando. Além disso havia algumas perguntas que ela precisava fazer a luliu.

 

- O seu novo hóspede - disse ela, em tom distraído, servindo-se de uma fatia de queijo branco - deve ter tomado o café da manhã em seu quarto.

 

- O café da manhã? - estranhou luliu. - Ele não costuma fazer as refeições aqui. E muitos viajantes trazem sua própria comida consigo.

 

Magda surpreendeu-se. Por que então Glenn dissera que iria pedir que Lídia lhe servisse o café? Uma desculpa para retirar-se?

 

- Diga-me uma coisa, luliu. Você parece ter-se acalmado depois do que houve ontem à noite. Por que ficou tão assustado quando Gleen chegou?

 

- Não foi por nada.

 

- luliu, você estava tremendo de pavor. Gostaria de saber por que. principalmente considerando que meu quarto fica em frente ao dele. Tenho o direito de saber se você acha que ele é perigoso.

 

O estalajadeiro concentrou-se em cortar sua fatia de queijo.

 

- A senhora vai dizer que sou um bobo.

 

- Não, não vou.

 

- Está bem - disse ele em tom de conspirador, deixando a faca sobre a mesa. -- Quando eu era criança meu pai dirigia a estalagem e, como eu, pagava os trabalhadores do fortim. Houve uma ocasião em que não chegou o ouro destinado às despesas - parece que foi roubado - e meu pai não pôde pagar todos os salários. O fato se repetiu no mês seguinte: parte do dinheiro desapareceu. Então certa noite chegou um estranho e começou a bater em meu pai, socando-o e arremessando-o em torno da sala como se ele fosse feito de palha e dizendo-lhe que entregasse o dinheiro. "Entregue o dinheiro! Entregue o dinheiro!" - luliu inflou suas já amplas bochechas. - Meu pai, envergonha-me dize-lo, entregou o dinheiro. Ele apanhara uma parte dele e escondera-a. O estranho estava furioso. Nunca tinha visto alguém assim com tanta raiva. Ele começou a bater e a, dar pontapés em meu pai de novo, deixando-o com os dois braços quebrados.

 

- Mas o que é que isso tem a ver com...

 

- A senhora deve entender - prosseguiu luliu inclinando-se para a frente e baixando ainda mais o tom de voz - que meu pai era um homem honesto e que o início do século foi uma época muito ruim aqui na região. Papai reservara apenas um pouquinho do ouro a fim de que tivéssemos o que comer durante o inverno seguinte, e tinha a intenção de pagar o empréstimo quando as coisas melhorassem. Foi a única ação desonesta que ele praticou em toda a sua vida. ..

 

- luliu! - exclamou Magda, interrompendo aquela torrente de palavras. - O que é que isso tem a ver com o novo hóspede?

 

- Eles parecem ser a mesma pessoa, Domnisoara. Eu tinha apenas dez anos na época, mas me lembro bem do homem que bateu em meu pai. Nunca mais o esquecerei. Ele tinha o cabelo vermelho e era igualzinho a este homem. Acontece - acrescentou com uma risadinha - que o primeiro tinha talvez uns trinta anos, tal como este de agora, e o fato se passou há mais de quarenta. E à luz do lampião, ontem à noite, eu. . . eu pensei que ele viera para me bater também.

 

Magda ergueu as sobrancelhas, interrogativamente, e luliu se apressou a explicar.

 

- Não que esteja faltando ouro agora, claro. É que os trabalhadores estão proibidos de entrar no fortim para fazer seu serviço e eu continuo a pagá-los da mesma maneira. Ninguém poderá dizer que guardei o ouro para mim. Nunca!

 

- É claro que não, luliu - disse Magda, levantando-se e apanhando mais uma fatia de queijo. - Acho que vou para o quarto repousar um pouco.

 

luliu sorriu e acenou com a cabeça.

 

- O jantar será servido às seis.

 

Magda subiu as escadas rapidamente, mas, sem querer, diminuiu o passo ao cruzar pela porta de Glenn, olhando de soslaio e imaginando o que estaria ele fazendo, ou mesmo se se encontrava lá dentro.

 

O quarto dela estava abafado, levando-a a deixar a porta aberta a fim de canalizar a brisa que vinha da janela. O jarro de porcelana em cima da cômoda estava cheio. Magda derramou um pouco de água fresca na bacia e molhou o rosto. Sentia-se exausta, mas tinha certeza de que o sono seria impossível. .. Pensamentos demais enchiam-lhe a cabeça, impedindo-a de descansar alguns minutos.

 

Um forte pipilar de passarinhos levou-a até à janela. Em meio aos densos ramos da árvore que crescera junto à parede norte da estalagem havia um ninho. Ela podia ver quatro filhotes - cujas cabecinhas se resumiam aos olhos e aos bicos escancarados - que esticavam os pescoços magros para receberem o alimento que a mãe lhes trazia. Magda nada sabia a respeito de pássaros. Aquele ali era cinzento, com manchas pretas nas asas. Se ela estivesse em sua casa em Bucareste talvez ficasse contemplando a cena. Mas, com todas as coisas que vinham acontecendo, não tinha a menor disposição para apreciar aquilo.

 

Tensa, inquieta, ela vagou pelo pequeno quarto. Verificou a lanterna que havia trazido. Ainda funcionava, ótimo. Precisaria dela naquela noite. Quando vinha retornado do fortim chegara a uma decisão.

 

Seus olhos pousaram no bandolim encostado a um canto perto da janela. Ela o apanhou, sentou-se na cama e começou a tocar. A princípio por tentativas, afinando o instrumento aos primeiros acordes, ela foi aos poucos relaxando os nervos e tocando com gosto, passando de uma canção folclórica para outra. Como acontece com tantos amadores eficientes, ela adquiriu uma forma de arrebatamento com seu bandolim, os olhos fixos num ponto do espaço, as mãos se movimentando pelo tato, a voz murmurando em surdina as palavras de cada canção. A tensão cedeu, substituída por uma tranqüilidade interior. Ela continuou tocando, esquecida do passar das horas. Um leve ruído em sua porta trouxe-a de volta à realidade. Era Glenn.

 

- Você toca muito bem - disse ele, sem entrar.

 

Ela ficou alegre por ver que era ele, alegre porque sorria para ela, e alegre também pelo prazer que demonstrara em ouvi-la. Magda sorriu timidamente.

 

- Não tão bem como devia se estudasse mais.

 

- Talvez. Mas a variedade de seu repertório é maravilhosa. Conheço apenas uma pessoa capaz de tocar tantas canções com tal precisão.

 

- Quem é?

 

- Eu.

 

Lá estava novamente a pretensão. Ou quem sabe ele queria apenas divertir-se à custa dela? Magda decidiu pagar para ver. Indicou-lhe o bandolim.

 

- Então mostre.

 

Sorrindo, Glenn entrou no quarto, puxou uma banqueta para junto da cama, sentou-se e apanhou o bandolim. Depois de dedilhar as cordas, ajustando a afinação, começou a tocar. Magda escutava estupefata. Um homem daquele tamanho, com mãos tão grandes, tocava nas cordas com incrível delicadeza. Estava evidentemente procurando dar uma demonstração de sua afirmativa, tocando muitas das mesmas canções, porém em estilo mais intrincado.

 

Magda estudou-o. Gostava da maneira como sua camisa azul se esticava ao, longo dos ombros. As mangas estavam arregaçadas até os cotovelos, e, enquanto ele tocava, os músculos e os tendões se movimentavam sob a pele de seus braços. Havia cicatrizes naqueles braços, desde os pulsos até onde as mangas da camisa permitiam ver. Ela teve vontade de perguntar-lhe a respeito de tantas cicatrizes, mas desistiu, achando que seria uma indagação muito pessoal. Entretanto não seria demais procurar saber onde ele aprendera algumas daquelas canções.

 

- A última canção que você tocou estava errada - disse-lhe Magda.

 

- Qual?

 

- Eu a chamo The Bricklayer's Lady. Bem sei que a letra varia conforme o local, mas a melodia é sempre a mesma.

 

- Nem sempre - contestou Glenn. - Foi deste modo que ela foi originalmente tocada.

 

- Como pode ter tanta certeza? - Aquela irritante pretensão outra vez.

 

- Porque a lauter da vila que me ensinou a canção já era velha quando nos conhecemos, e ela morreu há muitos anos.

 

- Que vila? - perguntou Magda, sentindo uma indignação crescente. Aquela área pertencia à sua especialidade. Quem era ele para corrigi-la?

 

- Kranich. . . perto de Suceava.

 

- Ah. . . na Moldávia. Isso pode explicar a diferença. Quando levantou a cabeça, surpreendeu os olhos dele fixos nela.

 

- Sente-se solitária com a ausência de seu pai?

 

Magda pensou sobre aquilo. A princípio sentira falta do pai e não sabia o que fazer sem ele. Naquele momento, porém, achava-se muito contente por estar sentada ali com Glenn, ouvindo-o tocar e, sim, até discutindo com ele. Ela jamais o teria convidado a ficar em seu quarto, mesmo com a porta aberta; entretanto tudo acontecera naturalmente e ela, sentindo-se segura, deleitava-se com os olhares dele, sobretudo com aqueles olhos azuis, embora fosse evidente a preocupação dele em impedir que eles revelassem muita coisa.

 

- Sim e não - respondeu ela afinal.

 

- Uma resposta honesta - comentou ele, rindo. - Ou melhor, duas respostas.

 

Um silêncio cresceu entre ambos, e Magda deu-se conta de que Glenn era verdadeiramente um homem, um homem grande e ossudo, com a pele esticada sobre seus ossos. Havia em torno dele uma aura de masculinidade, algo que ela jamais notara em qualquer outro homem. Não sentira isso na noite anterior nem pela manhã, mas agora, naquele pequeno quarto, a presença dele parecia encher todos os espaços. Isso a agradava, fazendo com que ela se sentisse estranha e diferente. Uma sensação primitiva. Ouvira falar de magnetismo animal. . . Seria isso o que estava agora experimentando na presença dele? Ou era por que ele parecia ter tanta vida? Positivamente, ele irradiava vitalidade.

 

- Você é casada? - perguntou Glenn, olhando para o anel de ouro no dedo anular da mão direita de Magda - a aliança que fora de sua mãe.

 

- Não.

 

- Tem um amante então?

 

- Claro que não.

 

- Por que não?

 

- Porque. . . - Magda hesitou. Não ousaria dizer-lhe que, a não ser em seus sonhos, ela descartara qualquer possibilidade de viver com um homem. Todos os que lhe tinham agradado, nos últimos anos, eram casados; quanto aos solteiros, parece que queriam continuar assim, por motivos de foro íntimo ou porque nenhuma mulher suficientemente digna os aceitara. Mas sem dúvida todos os homens que ela conhecera não passavam de anões insignificantes" se comparados com o que se encontrava agora sentado na frente dela. - Porque já passei da idade em que essas coisas têm alguma importância! - respondeu ela finalmente. - Você é apenas uma criança!

 

- E quanto a você? É casado?

 

- Não agora.

 

- Já foi?

 

- Várias vezes.

 

- Toque mais uma canção! - pediu Magda, exasperada. Glenn parecia preferir caçoar dela do que dar-lhe respostas sérias.

 

Passado algum tempo, a música foi de novo interrompida e a conversa recomeçou, abrangendo uma série de tópicos, sempre, porém, relacionados com ela. Magda se surpreendeu falando a respeito de tudo o que a interessava, a começar pela música e pelos ciganos e o folclore rural romeno, fontes da música que ela tanto amava, e sobre suas esperanças, sonhos e opiniões. As palavras a princípio soaram vacilantes, mas em breve passaram a fluir com entusiasmo, encorajadas pela atenção de Glenn. Era uma das raras vezes na vida de Magda em que ela é que tomava a iniciativa dos assuntos. E Glenn escutava. Parecia sinceramente interessado em tudo o que a moça dizia, ao contrário de tantos outros homens que fingem escutar, à espera da primeira oportunidade para tomarem conta da conversa. Glenn insistia em não falar de si mesmo, devolvendo o assunto para ela.

 

As horas se escoaram, até que as sombras começaram a envolver a estalagem. Magda bocejou.

 

- Desculpe-me - disse ela. - Acho que estou tornando-me importuna, falando tanto de mim. Vamos falar de você. Onde nasceu?

 

- Cresci viajando por toda a Europa ocidental - replicou ele, sacudindo os ombros. - Acho que posso considerar-me britânico.

 

- Você fala o romeno excepcionalmente bem, quase como um nativo.

 

- É que tenho visitado o país inúmeras vezes, e até morado uns tempos com famílias romenas.

 

- Mas, sendo um súdito britânico, não está correndo perigo em vir à Romênia nesta época? Especialmente com os nazistas tão próximos?

 

- Na verdade - explicou Glenn, depois de hesitar por um momento - não tenho uma cidadania definida. Possuo documentos de vários países, provando minha nacionalidade, mas nenhum é verdadeiro. Nestas montanhas não se necessita de tais papéis.

 

Um homem sem nacionalidade? Magda nunca ouvira falar de algo assim. A que país ele deveria ser leal?

 

- Tenha cuidado. Não há muitos romenos de cabelos ruivos.

 

- É verdade - replicou ele com um sorriso, passando a mão pela cabeleira. - Mas os alemães estão no fortim e a Guarda de Ferro não se aventura nas montanhas sem uma razão muito forte. Procurarei não aparecer enquanto estiver por aqui, o que espero não se prolongue por muito tempo.

 

Magda sentiu-se decepcionada. Teria muito prazer em sabê-lo por perto.

 

- Quanto tempo?

 

Sentiu que fizera a pergunta de maneira muito açodada, mas não pôde evitá-la. Queria saber.

 

- O tempo suficiente para uma última visita antes que a Alemanha e a Romênia declarem guerra à Rússia.

 

- Isso não pode ser!

 

- É inevitável. E não vai demorar - acrescentou ele, levantando-se.

 

- Onde vai?

 

- Vou deixar você descansar. Está precisando.

 

Glenn inclinou-se e colocou o bandolim nas mãos dela. Por um momento, seus dedos se tocaram e Magda teve uma sensação, como se um choque elétrico a sacudisse, fazendo com que ela estremecesse dos pés à cabeça. Entretanto, ela não retirou a mão... Oh, não! Isso faria com que a sensação desaparecesse, que cessasse o delicioso calor que lhe percorria o corpo todo, descendo-lhe pelas pernas.

 

Ela percebeu que Glenn sentira algo, também, a seu modo.

 

Então ele rompeu o contato e se dirigiu para a porta. A sensação interrompeu-se, deixando-a um tanto enfraquecida. Gostaria de deter Glenn, agarrar sua mão, pedir-lhe para ficar. Entretanto não podia imaginar-se fazendo uma coisa dessas, e ficou chocada por sua imaginação ter ido tão longe. A incerteza também a dominava. Tais emoções e conflitos eram novidade para ela. Como poderia controlá-los?

 

Quando a porta se fechou atrás dele, Magda sentiu que o encantamento desaparecera, substituído por uma sensação de vazio. Permaneceu imóvel por alguns instantes, depois disse de si para si que provavelmente aquela fora a melhor solução - ela ter ficado sozinha. Precisava dormir, descansar, para mais tarde estar bem alerta.

 

É que decidira não deixar que Papai enfrentasse sozinho Molasar naquela noite.

 

Quinta-feira, 1 de maio

17h22m

 

O Capitão Woermann estava sentado em seu quarto, sozinho. Observara as sombras envolverem lentamente o fortim até o sol desaparecer. Sua intranqüilidade crescera com as sombras, embora não devesse ser assim. Afinal, já se tinham passado duas noites consecutivas sem que se registrasse uma morte, e não havia razão para que o quadro se alterasse. Todavia, restava uma sensação de mau agouro.

 

O moral dos homens se elevara enormemente. Eles começaram a agir e a sentir-se de novo como vitoriosos. Woermann percebia isso nos olhos, nos rostos deles. Tinham sido ameaçados, alguns haviam morrido, mas eles persistiram e mantinham ainda a posse do fortim. Sem a presença da moça e sem que nenhum outro de seus camaradas fosse assassinado, estabeleceu-se uma trégua tácita entre os homens de uniforme cinza e os de preto. Não se misturavam, mas havia um novo sentido de camaradagem - todos tinham triunfado. Woermann, porém, sentia-se incapaz de participar daquele otimismo.

 

Olhou para o quadro que estava pintando. Perdera todo o entusiasmo para continuar trabalhando nele e não tinha vontade de iniciar outro. Nem sequer se animava a preparar a tinta e corrigir a sombra que parecia representar um enforcado. Toda a sua atenção se concentrava agora naquela sombra. Cada vez que olhava para o quadro ela parecia-lhe mais nítida. O vulto estava mais escuro, a forma da cabeça mostrava-se mais definida. O oficial estremeceu e desviou o olhar. Tolices...

 

Não. . . não tolices de todo. Havia ainda qualquer coisa repulsiva em curso no fortim. Não houvera mortes nas duas noites anteriores, mas o fortim não mudara. O mal não desaparecera; estava apenas. .. descansando. Descansando? Seria essa a palavra exata? Não, realmente. Contendo-se, talvez, pois com certeza não havia ido embora. As paredes ainda pareciam pressioná-lo, o ar continuava pesado e repleto de ameaças. Os homens podiam dar tapinhas amigos nas costas uns dos outros, conversar animadamente, mas Woermann continuava apreensivo. Bastava-lhe olhar para seu quadro inacabado para sentir, com absoluta certeza, que as mortes seriam retomadas, que estava havendo apenas uma pausa que poderia durar alguns dias ou acabar naquela mesma noite. Nada fora superado nem afastado. A morte ainda estava ali, esperando, pronta a agir de novo quando julgasse oportuno.

 

Entesou o corpo para sustar um calafrio. Alguma coisa iria acontecer em breve. Sentia isso na medula de sua espinha.

 

Mais uma noite. .. dêem-me apenas mais uma noite.

 

Se a morte esperasse até a manhã seguinte, Kaempffer partiria para Ploiesti. Depois disso, Woermann podia restabelecer suas normas. .. sem a interferência da SS. E retirar seus homens do fortim imediatamente, se tudo começasse outra vez.

 

Kaempffer... Que seria que o inefável Erich estava planejando? Não aparecera durante toda a tarde.

 

SS-Sturmbannführer Kaempffer estava debruçado sobre o mapa do entroncamento ferroviário de Ploiesti, aberto sobre sua cama. A luz do sol enfraquecia rapidamente e seus olhos doíam de tanto examinar os finos traçados das linhas que se entrecruzavam. Era melhor suspender o trabalho do que continuá-lo sob a fraca iluminação proporcionada pelas lâmpadas elétricas.

 

Endireitando o corpo, esfregou os olhos. Afinal o dia não fora perdido de todo. O novo mapa do entroncamento ferroviário fornecera-lhe algumas informações úteis. Ele começaria por eliminar a autoridade dos romenos. Todos os detalhes relativos à construção do novo campo seriam determinados por ele, inclusive a escolha do local. Julgou ter encontrado um que satisfazia suas exigências. Havia uma série de antigos armazéns na extremidade oriental do entroncamento. Se aqueles grandes depósitos não estivessem em uso nem destinados a alguma importante utilização, poderiam servir como sede do campo de Ploiesti. Cercas de arame farpado seriam levantadas em questão de dias e depois a Guarda de Ferro se encarregaria de recrutar os judeus.

 

Kaempffer estava ansioso para começar. Deixaria que a Guarda de Ferro reunisse os primeiros "hóspedes" segundo o critério que eles achassem melhor enquanto ele supervisionava a instalação do campo. Uma vez que isso estivesse encaminhado ele poderia dispor de mais tempo para ensinar aos romenos os eficientes métodos da SS para punir os indesejáveis.

 

Ao dobrar o mapa seus pensamentos se fixaram nos imensos benefícios que poderiam ser proporcionados pelo campo e nas precauções a tomar para que a maioria desses benefícios ficasse com ele. Recolher desde logo os anéis, os relógios e as jóias dos prisioneiros; os dentes de ouro e as cabeleiras das mulheres poderiam ser arrecadados mais tarde. Os comandantes na Alemanha e na Polônia estavam todos ficando ricos. Kaempffer não via motivo para que ele fosse uma exceção.

 

E ainda haveria mais. Em futuro próximo, depois que ele conseguisse fazer o campo funcionar como um mecanismo bem lubrificado, surgiriam certamente oportunidades para ceder alguns dos prisioneiros mais fortes para trabalharem na indústria romena. Era uma prática já adotada em outros campos, e muito lucrativa. Ele poderia muito bem emprestar um grande número de prisioneiros, em especial porque a Operação Barbarossa estava para ser desencadeada. O exército romeno iria invadir a Rússia, juntamente com a Wehrmacht, reduzindo em muito a força de trabalho do país. Sim, as fábricas estariam necessitando de trabalhadores. O salário deles iria, naturalmente, para o bolso do comandante do campo.

 

Ele conhecia os truques. Aprendera-os com Hess em Auschwitz. Não era todos os dias que um homem tinha uma oportunidade, como aquela, de servir seu país, melhorar o equilíbrio genético da raça humana e ficar rico - tudo ao mesmo tempo. Era um homem de sorte...

 

A não ser por aquele desgraçado fortim. Afinal, o problema parecia estar agora sob controle. Se tudo continuasse assim, ele partiria na manhã seguinte e informaria seu êxito a Berlim. O relatório deveria parecer adequado:

 

Ele chegara e perdera dois homens na primeira noite, antes que pudesse assumir a contra-ofensiva; depois desta, não houve mais mortes. (Seria vago a respeito da maneira como detivera as mortes, mas bastante claro relativamente ao responsável pelo mérito.) Após três noites sem mortes, partira. Missão cumprida. Se as mortes recomeçassem após a sua partida, a culpa seria daquele incompetente, Woermann. Mas, a essa altura, Kaempffer já estaria completamente empenhado na instalação do Campo de Ploiesti. Eles mandariam qualquer outro para socorrer Woermann.

 

A batida de Lídia na porta, anunciando o jantar, arrancou Magda de seu sono. Com as mãos em concha, jogou um pouco de água fresca no rosto, sentindo-se bem acordada, embora sem apetite. Seu estômago estava tão embrulhado que seria impossível ingerir qualquer alimento.

 

Debruçou-se na janela. Havia ainda no céu traços de luz, mas ninguém no passo. A noite já começara a envolver o fortim, porém as lâmpadas do pátio ainda não tinham sido acesas. Havia aqui e ali janelas iluminadas, como olhos no escuro. A de Papai era uma delas, mas ainda não participava da cena que Glenn denominara, na primeira noite, "atração barata para turista".

 

Perguntou a si mesma se Glenn se encontraria agora embaixo à mesa de jantar. Estaria pensando nela? Acaso esperando por ela? Ou teria preferido fazer sua refeição sozinho? Não importava. Ela não poderia, sob qualquer circunstância, deixar que ele a visse. Um olhar nos olhos dela e ele descobriria sua intenção e poderia tentar impedi-la de realizar o que projetara.

 

Magda procurou fixar sua atenção no fortim. Por que estava pensando em Glenn? Ele. evidentemente, poderia tomar conta de si. O dever dela era preocupar-se com Papai e com sua missão desta noite - não com Glenn.

 

E contudo seus pensamentos persistiam em voltar-se para Glenn. Chegara a sonhar com ele durante a sesta. Não se lembrava dos detalhes, mas a impressão que lhe ficou tinha algo de carinhoso e até mesmo de erótico. Que estava acontecendo com ela? Nunca, em momento algum reagira daquela maneira em relação a outro homem. Houve ocasiões, durante sua adolescência, em que fora cortejada e se sentira atraída por dois ou três jovens, mas não passou disso. Até mesmo Mihail. . . Tinham sido mais íntimos, porém ela nunca sentiu desejo por ele.

 

Era esse o ponto: Magda percebeu, chocada, que desejava Glenn, que o queria perto dela, fazendo-a sentir...

 

Aquilo era um absurdo! Ela estava se comportando como uma garota do interior, toda nervosa após seu primeiro encontro com o jovem bem-falante recém-chegado da cidade grande. Não, ela não podia permitir-se um relacionamento com Glenn nem com qualquer outro homem, pelo menos enquanto Papai não pudesse arranjar-se sozinho e sobretudo enquanto ele estivesse preso no fortim, ameaçado pelos alemães e por aquela coisa. Papai vinha em primeiro lugar. Ele não contava com mais ninguém, e ela não o abandonaria.

 

Ah, mas Glenn!... Se ao menos houvesse mais homens como ele. Glenn fizera com que ela se sentisse importante, como se o fato de ser apreciada por ele a tornasse mais valiosa. Podia conversar com ele sem ficar com a impressão de estar falando com personagens de livros mal escritos.

 

Já eram mais de dez horas quando Magda deixou a estalagem. De sua janela ela vira Glenn descer em direção ao passo e postarse junto da moita à beira da garganta. Depois de certificar-se de que ele se instalara em seu posto, ela amarrou um lenço na cabeça, apanhou a lanterna e deixou o quarto. Não encontrou ninguém em seu caminho e mergulhou na noite escura.

 

Magda não se dirigiu para a ponte. Em vez disso, ela atravessou a passagem e caminhou no sentido das altas montanhas, descobrindo a pista na escuridão. Não poderia utilizar a lanterna enquanto não estivesse no interior do fortim; se a acendesse ali ou na garganta, arriscar-se-ia a ser vista por uma das sentinelas na muralha. Levantou a gola do casaco e enfiou a lanterna no cós da saia, sentindo o frio do metal contra a pele.

 

Sabia exatamente onde deveria ir. Na interseção da garganta com a parede ocidental do passo havia um montão de pedras roladas, pedaços de rocha descidos das montanhas e ali depositados ao longo do tempo. A subida não era difícil e podia-se passar por cima do entulho, conforme ela verificara anos antes, quando fizera sua primeira visita à garganta à procura da inexistente pedra fundamental. Ela atravessara aquela elevação inúmeras vezes, mas sempre à luz do dia. Naquela noite, porém, teria de enfrentar a escuridão e a névoa. Não havia sequer um pouco de luar, uma vez que no quarto minguante a lua só deveria surgir depois da meia-noite. A empresa seria arriscada, mas Magda estava certa de que conseguiria levá-la a cabo.

 

Alcançou a encosta da montanha, onde a garganta era interrompida por um corte quase vertical. O montão de entulho formava uma espécie de meio-cone, com a base no fundo da garganta, cerca de vinte metros abaixo, e o vértice terminando dois passos além do ponto onde ela se encontrava.

 

Cerrando os dentes e respirando fundo uma, duas vezes, Magda começou a descer, movendo-se devagar e cautelosamente, testando cada ponto de apoio antes de dar novo passo, sempre encostada na rocha. Não tinha pressa. Havia tempo de sobra. Precaução era a palavra de ordem. Precaução e silêncio. Bastava um passo em falso para que ela deslizasse encosta abaixo. As pontas de rocha no caminho espedaçariam seu corpo antes que ela chegasse ao fundo da garganta. E, mesmo que sobrevivesse à queda, as rochas deslocadas chamariam a atenção das sentinelas na muralha. Era preciso o máximo cuidado.

 

Magda progredia sem problemas, evitando, durante todo o tempo, pensar que Molasar talvez estivesse esperando por ela na garganta lá embaixo Houve apenas um momento angustiante. Foi depois que ela começou a caminhar debaixo da suave ondulação da bruma: por um momento faltou-lhe onde pisar. Agarrou-se a uma saliência na rocha, com as duas pernas balouçando sobre o precipício, incapaz de encontrar um ponto de apoio. Era como se o globo terrestre tivesse desaparecido, deixando-a sozinha, pendurada para sempre numa ponta de rocha. Ela, porém, conseguindo dominar o pânico, deslccou-se para a esquerda até que seus pés encontraram o procurado ponto de apoio.

 

O resto da descida foi mais fácil. Magda alcançou incólume a base do entulho. Contudo, havia mais um trecho de terreno difícil pela frente. O fundo da garganta, nunca percorrido por ninguém, era um amontoado de pedaços de rocha, raízes de árvores e galhos que lhe dificultavam a caminhada, obrigando-a a mover-se com lentidão e com o maior cuidado. As pedras eram escorregadias e traiçoeiras, capazes de provocar uma queda violenta ao primeiro passo em falso. Magda quase não enxergava nada, cega pela cerração, mas continuava avançando. Depois de uma eternidade, passou seu primeiro ponto de referência: indistinta e escura faixa de sombra acima de sua cabeça. Estava sob a ponte. A base da torre deveria encontrar-se à sua frente, um pouco à esquerda.

 

Magda sabia que quase atingira o ponto desejado quando, súbito, sentiu que seu pé esquerdo afundara em água gelada até o tornozelo. Rapidamente recuou para tirar os sapatos e as meias grossas, erguendo a saia acima dos joelhos. Depois, encheu-se de coragem, cerrou os dentes e entrou na água, a respiração mais acelerada, enquanto o frio lhe picava os pés e as pernas, causando-lhe dor e gelando-a até os ossos. Apesar de tudo, ela continuou avançando, lentamente mas com determinação, vencendo a tentação de subir para a margem, que a livraria do frio. Apressar-se poderia significar ruído, e ruído a possibilidade de ser descoberta.

 

Ela já avançara cerca de quatro metros dentro da água quando se deu conta de que terminara a travessia. Seus pés estavam dormentes. Tiritando de frio, sentou-se numa rocha e massageou os dedos até restabelecer a circulação; depois, calçou novamente as meias e os sapatos.

 

Com mais alguns passos alcançou a base de granito sobre a qual fora construído o fortim. Sua superfície enrugada servia como pista até à base da torre que se debruçava sobre a garganta. Nesse ponto ela sentiu as paredes lisas e os ângulos retos dos blocos reveladores da mão do homem.

 

Depois de orientar-se, identificou o enorme bloco que procurava e empurrou-o. Com o ruído de um suspiro e um rangido quase inaudível, a. pedra girou para dentro. Um retângulo escuro, como uma boca escancarada, aguardava Magda. Sem hesitar, ela tirou a lanterna da cintura e penetrou no buraco.

 

Quando ela entrou, a sensação do mal atingiu-a como se tivesse sido golpeada, e gotas de suor inundaram-lhe o rosto, despertando-lhe uma vontade de recuar, através da abertura e mergulhar novamente na cerração. Seu sentimento de incerteza era muito pior do que quando ela e Papai tinham passado pelo portão na noite de terça-feira, e pior, também, do que naquela mesma manhã, quando ela tentara chegar ao fortim. Será que ela se tornara mais sensível àquele poder maligno, ou fora este que ficara mais forte?

 

Ele flutuava lenta e languidamente, sem destino, nos mais fundos recessos da caverna embaixo do porão do fortim, deslocando-se de uma sombra para outra, como uma parte da escuridão, conservando a forma humana mas não sujeito às suas características essenciais.

 

Parou, sentindo uma nova vida que não se achava presente um momento antes. Alguém entrara no fortim. Depois de um instante de concentração, reconheceu a presença da filha do aleijado, aquela que ele agarrara duas noites atrás - uma moça tão dotada de vigor e bondade que seu sempre insaciável apetite transformou-se rapidamente em voraz necessidade. Ficara furioso quando os alemães deixaram a moça sair do fortim.

 

Agora ela estava de volta.

 

Começou a flutuar novamente através da escuridão, mas já não se sentia mais lânguido e sem destino.

 

Magda permaneceu imóvel na densa escuridão, trêmula e indecisa. A poeira e as partículas de mofo, deslocadas com a entrada dela, initavam-lhe a garganta e as narinas, sufocando-a. Tinha de sair. Aquela era uma aventura tola. Que poderia ela fazer para ajudar Papai contra um não-morto? O que é que ela realmente esperava rencontrar quando resolvera vir até aqui? Heroísmos tolos como aquele já tinham provocado a morte de várias pessoas. O que é que ela pensava ser, afinal? O que a fizera pensar. . .

 

Pare!

 

Um grito mental interrompeu-lhe os pensamentos aterrorizados. Ela estava raciocinando como uma derrotista. Não era de seu feitio. Ela podia fazer alguma coisa por Papai! Não sabia exatamente o que seria, mas pelo menos estaria ao lado dele, para darlhe apoio moral. Não desistiria.

 

Sua intenção original fora dirigir-se para o bloco móvel atrás dela, mas já não conseguia fazê-lo girar. Seria um motivo de tranqüilidade se pudesse contar com uma rota de fuga, caso necessitasse.

 

Achou que agora poderia usar a lanterna e acendeu-a. O facho luminoso furou a escuridão, revelando a parte inferior de uma longa escada de pedra que subia em espiral até à superfície interna na base da torre. Magda ainda tentou dirigir o facho para cima, mas a luz foi completamente dominada pela escuridão.

 

Não lhe restava outra escolha senão subir a escada.

 

Depois do arriscado percurso através da garganta coberta pela cerração, uma escada, mesmo de pedra, representava um luxo. Iluminando cada degrau, à medida que subia, ela se assegurava de que iria pisar no lugar certo. Tudo estava silencioso no imenso, escuro cilindro de pedra, exceto quanto ao eco de seus passos - e assim continuou até que ela tivesse completado duas das três voltas que constituíam a escada.

 

Então ela sentiu uma corrente de ar, vinda do lado direito, e ouviu um ruído estranho.

 

Magda permaneceu imóvel, gelada pelo fluxo de ar frio, prestando atenção num suave, muito distante ruído de algo que estava sendo raspado. Era irregular no ritmo e no som, mas persistente. Rapidamente, ela dirigiu a luz da lanterna para a direita e viu uma estreita abertura, de quase dois metros de altura, na pedra. Nas vezes em que ela passara por ali, em explorações anteriores, ela notara a abertura sem lhe dar maior atenção. Nunca sentira qualquer corrente de ar vindo através da abertura nem ouvira o menor ruído lá dentro.

 

Orientando o facho de luz na direção da fenda, Magda perscrutou dentro da escuridão, esperando e ao mesmo tempo não esperando descobrir a causa daquele ruído.

 

Contanto que não sejam ratos. Deus queira que não haja ratos lá.

 

Ali dentro Magda nada viu, exceto um extenso e vazio trecho de chão coberto de poeira. O ruído parecia vir do fundo da cavidade. À direita, distante uns quinze metros, ela percebeu uma réstia de luz. Para ter certeza, apagou a lanterna; realmente era uma luz, embora fraca, que vinha de cima. Magda procurou orientar-se na escuridão e achou o contorno de uma escada.

 

De repente deu-se conta do local onde se encontrava. Posicionada a leste, ela estava olhando para dentro do porão, o que significava que a luz à sua direita coava através de uma fenda no solo do mesmo. Precisamente duas noites antes ela estivera no início daqueles degraus, enquanto Papai. . . examinava os cadáveres.

 

Se os degraus estavam à sua direita, então à esquerda deveriam jazer os oito alemães mortos. Mas aquele ruído persistia, chegando a seus ouvidos como se procedesse do término distante do porão - se é que ele tinha um fim.

 

Dominando um calafrio, ela orientou novamente o facho da lanterna e continuou a subir. Havia ainda um lanço a vencer. Ela projetou a luz mais para cima, onde os degraus desapareciam num nicho escuro na extremidade do teto. Isso a deixou mais animada, por saber que esse teto correspondia ao solo do primeiro pavimento da torre, o pavimento onde se encontrava Papai. E o nicho se situava justamente na parede que dividia os quartos dele.

 

Magda completou rapidamente a subida e preparou-se para agir. Encostou a orelha na grande pedra à direita, que mostrava seus gonzos em posição semelhante à do bloco de entrada vinte metros abaixo. Não ouviu qualquer ruído. Mesmo assim, ainda esperou um pouco mais. Nenhum som de vozes nem de passos. Papai estava sozinho.

 

Ela empurrou a pedra, certa de que ela giraria facilmente, mas nada conseguiu. Apoiou então o corpo contra a mesma e tentou novamente, com toda força. O bloco continuava imóvel. Irritada, sentindo-se presa numa estreita caverna, Magda não atinava com o que pudesse ter acontecido. Cinco anos antes, ela movera aquela pedra com a maior facilidade. Teriam feito alguma obra no fortim, ao longo desses anos, prejudicando o delicado equilíbrio dos gonzos?

 

Teve a idéia de bater levemente com o cabo da lanterna na pedra, com a esperança de que esse ruído alertasse Papai da presença dela. Mas que adiantaria isso? Ele certamente não poderia ajudá-la a mover a pedra. Além disso o ruído poderia propagar-se, chamando a atenção das sentinelas ou de um dos oficiais. Não, não deveria fazer isso.

 

Entretanto precisava entrar naquele quarto! Empurrou novamente, desta vez apoiando as costas contra a pedra e os pés na parede oposta, utilizando toda a sua força. Nada conseguiu.

 

Enquanto razia suas frustradas tentativas, ocorreu-lhe que talvez houvesse um outro caminho. . . via porão. Se não encontrasse guardas ali, talvez pudesse chegar ao pátio e, se as luzes deste ainda estivessem apagadas, haveria uma possibilidade de ela atravessar sem ser vista o curto espaço até à torre e ao quarto de Papai. Mas tanto faz. . . Entretanto se a qualquer momento encontrasse seu caminho bloqueado, de qualquer maneira ela poderia regressar ao ponto de partida.

 

Rapidamente, Magda desceu até à fenda na parede. A fria corrente de ar ainda soprava com a mesma intensidade e se ouvia o mesmo ruído estranho. Ela continuou caminhando até à escada que a levaria ao porão, encaminhando-se para a luz que coava de cima. Com o auxílio do facho da lanterna, evitou desviar-se para a esquerda, onde sabia que estavam os cadáveres.

 

À medida que ela descia mais para dentro do porão, seus movimentos iam-se tornando mais difíceis. A vontade, o sentimento <lo dever, o amor a seu pai - tudo o que havia de mais nobre em sua consciência - a impeliam para a frente. Entretanto alguma coisa emperrava seus passos, retardando-lhe a progressão. Uma parte primitiva de seu cérebro estava-se rebelando, querendo que ela voltasse.

 

Mas ela prosseguiu, desprezando todos os avisos. Não deixaria que a detivessem. . . embora a maneira como as sombras pareciam mover-se, deslocando-se e volteando em torno dela, fosse apavorante e desanimadora. Uma ilusão de óptica, disse de si para si. Se continuasse avançando sentir-se-ia melhor.

 

Magda já estava alcançando o início da escada quando viu que algo se movia no primeiro degrau. Ao focalizar a luz da lanterna, mal pôde conter um grito.

 

Um rato!

 

Estava encolhido no degrau, com seu corpo gordo parcialmente enrolado na cauda, lambendo as patas. A repugnância tomou conta dela. Teve vontade de vomitar. Sabia ser-lhe impossível dar mais um passo com aquela coisa ali. O rato levantou a cabeça, olhou para ela e desapareceu na escuridão. Magda não esperou que ele mudasse de idéia e voltasse. Subiu correndo metade dos degraus, depois parou e prestou atenção, aguardando que seu estômago se acalmasse.

 

Tudo estava em silêncio lá em cima, não se ouvindo o som de uma voz, de alguém tossindo ou caminhando. Apenas o mesmo ruído estranho continuava, persistente, mais forte agora que ela se encontrava no porão, mas ainda muito distante no recesso da caverna. Magda tentou figurar aquilo. Ela não conseguia imaginar o que poderia ser nem queria tentar saber.

 

Ainda uma vez girou o facho de luz da lanterna em torno de si, para certificar-se de que não havia mais ratos. Depois, retomou a subida, lenta e cuidadosamente, em completo silêncio. Perto do topo examinou detidamente o buraco no solo. Do outro lado da parede fendida à sua direita passava o corredor central do porão, iluminado com uma série de lâmpadas e aparentemente deserto.

 

Mais três degraus conduziram-na ao nível do chão, e outros três levaram-na até junto da parede arruinada. De novo ela procurou ouvir o som dos passos das sentinelas. Não tendo ouvido nada, espiou o corredor: estava deserto.

 

Faltava agora a parte realmente perigosa. Tinha de percorrer todo o corredor até alcançar os degraus que a levariam até o pátio. E aí subiria aqueles dois pequenos lanços. E, depois disso. . .

 

Uma coisa de cada vez - disse Magda de si para si - Primeiro, o corredor. Vencer essa etapa antes de preocupar-se com a escada.

 

Esperou um pouco, temerosa de enfrentar o brilho das lâmpadas. Até então andara sempre no escuro. Expor-se àquelas luzes seria como apresentar-se nua, ao meio-dia, no centro de Bucareste. Entretanto, a outra única opção seria desistir e voltar.

 

Caminhou para a frente, sob as lâmpadas do corredor, procurando andar rápida e silenciosamente. Estava quase alcançando a escada quando ouviu que alguém estava descendo. Era uma hipótese que ela já tinha previsto, de modo que não hesitou em esconder-se no quarto mais próximo.

 

Logo que passou pela porta, Magda ficou gelada. Não vira ninguém, não ouvira qualquer ruído, não fora tocada, mas sabia que não se achava sozinha. Precisava sair! Mas isso iria expô-la à vista de quem estava descendo a escada. Súbito, algo se agitou na escuridão atrás dela e um braço a segurou pelo pescoço.

 

- Que temos aqui? - disse uma voz em alemão. Havia uma sentinela no quarto! O soldado arrastou-a de volta para o corredor. - Ora. ora! Vamos sair para a luz e dar uma olhada em você!

 

O coração de Magda bateu mais apressadamente enquanto procurava distinguir a cor do uniforme do soldado. Se fosse cinza, talvez houvesse uma chance, ainda que pequena. Se, porém, fosse preta...

 

Era preta. E havia outro einsatzkommando correndo ao encontro deles.

 

- É a garota judia! - disse o primeiro.

 

Estava sem capacete e seus olhos revelavam que ele despertara de repente. Devia estar cochilando no quarto quando ela entrou.

 

- Como é que ela conseguiu entrar? - perguntou o segundo ao aproximar-se.

 

Magda desejou sumir ante o olhar dos dois soldados.

 

- Não sei - respondeu o primeiro, soltando-a e empurrando-a na direção da escada que subia para o pátio -, mas acho que é melhor levá-la ao major.

 

Virou-se para entrar no quarto e colocar novamente o capacete. Nesse momento o segundo soldado da SS colocou-se ao lado dela. Magda agiu sem pensar. Deu um empurrão no primeiro soldado, atirando-o para dentro do quarto, voltou correndo na direção da abertura na parede. Não queria ver a cara daquele major. Se conseguisse chegar até lá embaixo teria uma chance de fugir, pois somente ela conhecia o caminho.

 

A parte de trás de seu couro cabeludo pareceu pegar fogo de repente e seus pés quase deixaram o chão quando o segundo soldado lhe arrancou o lenço da cabeça, puxando-lhe violentamente os cabelos. Mas ele não se contentou com isso e, enquanto lágrimas de dor corriam dos olhos da moça, puxou-a para si segurando-a ainda pelos cabelos; então colocou uma mão entre os seios dela e imobilizou-a contra a parede.

 

Magda sentiu-se sufocada e quase perdeu os sentidos ante o choque violento da cabeça e dos ombros contra a pedra. Os momentos seguintes foram uma sucessão confusa de vozes:

 

- Você não a matou, não é? -- Ela vai voltar a si.

 

- Não sabe qual é o seu lugar, aquela lá.

 

- Talvez ninçuém tenha tido tempo para ensiná-la de maneira adequada.

 

Houve uma breve pausa. Finalmente um dos soldados disse:

 

- Vamos lá.

 

Ainda tonta, as pernas sem forças, a visão toldada, Magda sentiu-se arrastada pelos braços ao longo do chão frio do corredor e, depois de uma curva, colocada sob a luz direta de uma lâmpada. Percebeu então que se encontrava em um dos quartos. Mas por quê? Quando eles lhe soltaram os braços, ela ouviu a porta fechar-se, o quarto escurecer e os dois caírem sobre ela, cada qual mais desajeitadamente, um tentando puxar-lhe a saia para baixo enquanto o outro procurava levantá-la acima da cintura para tirar-lhe a calcinha.

 

Ela queria gritar, mas não tinha voz; queria debater-se, mas seus braços e pernas pesavam como chumbo; deveria estar terrivelmente apavorada, mas tudo lhe parecia distante e como num sonho. Por cima dos ombros de seus assaltantes ela podia distinguir o contorno iluminado da porta que dava para o corredor. Se pudesse sair por ali!

 

Então o contorno da porta se alterou, como se uma sombra tivesse passado por ela. Magda sentiu que havia alguém no outro lado. Súbito, ouviu-se um violento estrondo e a porta foi arrebentada, espalhando pedaços de madeira para todos os lados. Um vulto másculo apareceu no vão da porta, mal deixando penetrar a claridade das lâmpadas.

 

Glenn! - pensou ela a princípio, mas logo essa esperança se desvaneceu, ante a onda de frio e malignidade vindo da entrada da porta.

 

Os espantados alemães soltaram gritos de terror quando saíram rolando de cima dela. O vulto parecia avolumar-se à medida que saltava para a frente. Magda sentiu-se chutada e empurrada quando os dois soldados se abaixaram para apanhar os fuzis que haviam posto de lado. Entretanto, não foram suficientemente rápidos O recém-chegado se aproximou deles com impressionante velocidade e, inclinando-se, agarrou cada soldado pela garganta e depois levantou-os no ar.

 

Magda começou a compreender o que estava acontecendo à medida que o pavor tomava conta dela. Era Molasar que estava à sua frente, um vulto enorme e escuro, destacado pela luz que vinha do corredor, tendo em lugar dos olhos dois pontos de fogo e, em cada mão, um einsatzkommando esperneando e gritando. Os soldados foram mantidos assim até que seus movimentos se reduziram. Depois, quando seus roncos abafados e angustiantes cessaram, ambos ficaram, lassos, pendurados das extremidades dos braços de Molasar. Em seguida, este sacudiu-os tão violentamente que Magda pôde ouvir os ossos e as cartilagens de seus pescoços se estraçalharem. Molasar então atirou os dois corpos para um canto escuro e desapareceu.

 

Vencendo seu pavor e sua fraqueza, Magda conseguiu colocar-se em posição de gatinhas. Ainda não estava em condições de se pôr de pé. Precisava de mais alguns minutos até que suas pernas fossem capazes de sustentá-la.

 

Ouviu então um som - um ruído sibilante, como um furacão que a atraísse, provocando-lhe ânsias de vômito. O sopro obrigou-a a levantar-se e, depois que ela se encostou contra a parede, atirou-a na direção da luz do corredor.

 

Ela precisava sair dali! Dominada pelo indizível horror provocado pela cena que ocorrera no quarto que acabara de deixar, parou por um momento de pensar no pai. O corredor parecia moverse como uma onda enquanto, cambaleando, ela se dirigia para a parede fendida, fazendo um esforço para recobrar a consciência. Conseguiu chegar até à abertura sem cair, mas, ao atravessá-la, percebeu um movimento atrás de si.

 

Molasar vinha vindo, com longas passadas que o deixavam cada vez mais perto dela, a capa ondeando às suas costas, os olhos fuzilando, os lábios e o queixo manchados de sangue.

 

Com um pequeno grito, Magda passou pela abertura e correu em direção à escada que dava para o porão. Não havia a mais remota possibilidade de que correr mais rápido que Molasar, mas ela se recusava a desistir. Sentindo que ele chegava cada vez mais perto, não se animava a olhar para trás. Em vez disso correu para a escada.

 

Ao tocar no chão o salto de seu sapato escorregou na lama e ela começou a cair. Braços fortes, gelados como a noite, seguraram-na por trás, um em torno da cintura e o outro abaixo dos joelhos. Ela abriu a boca para gritar todo o seu pavor, mas a voz tinha desaparecido. Sentiu-se levantada e carregada para baixo. Depoisde um olhar rápido e horrorizado às linhas angulares do rosto pálido de Molasar, salpicado de sangue, com seus longos cabelos desgrenhados, a loucura estampada nos olhos, Magda foi carregada para dentro do porão, fora do alcance da luz, nada mais podendo ver no corredor completamente escuro, mas percebendo que Molasar a levava na direção da base da torre. Ela ainda tentou debaterse, mas seus esforços foram facilmente dominados. Por fim desistiu de reagir, reservando suas forças para o caso de surgir uma oportunidade de escapar.

 

Como da vez anterior, Magda sentia qualquer parte de seu corpo tocada por ele imediatamente gelada, apesar de toda a roupa que vestia. E havia ainda aquele cheiro nauseabundo de algo velho e podre. Embora ele não parecesse fisicamente sujo, dava uma impressão de... imundície.

 

Molasar carregou-a através da abertura na base da torre.

 

- Para onde. . . ? - Antes que o terror a dominasse de todo, ela conseguiu pronunciar as primeiras palavras de sua pergunta.

 

Não houve resposta.

 

Magda começara a tiritar desde que eles atravessaram o porão: agora, na escada, seus dentes batiam. O contato com Molasar parecia sugar todo o calor de seu corpo.

 

Embora a escuridão fosse completa, Molasar subia dois degraus de cada vez com facilidade e segurança. Depois de uma volta completa pela superfície interna da base da torre, ele se deteve. Magda sentiu em torno dela a pressão dos lados do nicho no teto, ouviu a pedra ranger ao deslocar-se e então a luz bateu-lhe no rosto.

 

- Magda!

 

Era a voz de Papai. Enquanto procurava ajustar suas pupilas, ao clarão da luz, Magda sentiu-se colocada em pé e liberada. Esticou a mão na direção da voz e reconheceu o encosto da cadeira de rodas de Papai. Agarrou-o com toda a força, como um náufrago se agarra a uma prancha flutuando.

 

- Que está você fazendo aqui? - perguntou ele, com voz rouca.

 

- Os soldados... - foi tudo o que ela conseguiu dizer. Com a visão já ajustada, viu Papai olhando para ela, espantado.

 

- Eles raptaram você da estalagem?

 

- Não - respondeu ela, sacudindo a cabeça. - Eu vim pela entrada secreta.

 

- Mas por que você foi fazer uma coisa tão absurda?

 

- Para que você não tivesse de enfrentá-lo sozinho - explicou Magda, sem fazer qualquer gesto em direção a Molasar. Sua referência eia evidente.

 

O quarto escurecera bastante depois de sua chegada. Ela sabia que Molasar deveria estar imóvel em algum lugar atrás dela, na sombra, junto à pedra giratória, mas não tinha coragem de olhar na direção dele.

 

Magda prosseguiu em seu relato:

 

- Dois soldados da SS me descobriram e me levaram para um quarto. Eles iam me...

 

- E que aconteceu? - perguntou Papai, os olhos esbugalhados.

 

- Fui... - começou ela, olhando rapidamente para a sombra, sobre o ombro - salva.

 

Papai continuava com os olhos fixos na filha, não mais revelando preocupação, mas outro sentimento - descrença.

 

- Por Molasar?

 

Magda confirmou com um movimento de cabeça e finalmente encontrou coragem para voltar o rosto e encarar Molasar.

 

- Ele matou os dois.

 

Magda procurou-o com o olhar. Ele permaneceu na sombra, junto à abertura na parede, envolto pela escuridão - uma figura de pesadelo, o rosto apenas percebido, mas os olhos brilhando. O sangue desaparecera de suas faces, como se tivesse sido absorvido através da pele, ao invés de limpo. Magda estremeceu.

 

- Você estragou tudo! - exclamou Papai, irritado. - Quando forem encontrados novos cadáveres, serei objeto de toda a fúria do major. E você é a culpada!

 

- Vim para estar perto de você - desculpou-se Magda, magoada. Por que Papai estava tão irritado com ela?

 

- Não lhe pedi para vir! Não queria que você estivesse aqui e continuo não querendo!

 

- Papai, por favor!

 

Ele apontou um dedo retorcido para a abertura.

 

- Vá embora, Magda! Tenho muito o que fazer e pouco tempo de sobra. Os nazistas não demorarão a chegar aqui, perguntando-me por que mais dois de seus homens estão mortos e eu não saberei o que responder. E preciso falar com Molasar antes que eles cheguem!

 

- Papai...

 

- Vá embora!

 

Magda permaneceu imóvel, olhando para o pai. Como era possível que ele lhe falasse daquela maneira? Ela tinha vontade de chorar, queria implorar, convencê-lo a mudar de idéia, mas não podia. Sentia-se incapaz de desobedecê-lo, ainda mais na presença de Molasar. Tratava-se de seu pai e, embora estivesse sendo profundamente injusto, não deveria ser contrariado.

 

Magda voltou-se e, passando apressada pelo impassível Molasar, dirigiu-se para a abertura. A pedra girou assim que ela saiu e a moça encontrou-se de novo no escuro. Procurou na cintura a sua lanterna. Não estava. Provavelmente caíra no caminho.

 

Magda tinha duas opções: retomar ao quarto de Papai e pedir-lhe uma vela ou um candeeiro, ou então, descer no escuro. Depois de alguns segundos de hesitação, escolheu a segunda opção. Não podia enfrentar Papai novamente naquela noite. Ele a magoara mais do que em qualquer outra ocasião. Uma mudança se operara nele. Parecia ter perdido sua bondade, a gentileza que sempre fora parte de seu modo de agir. Mandara-a embora, naquela noite, como se se tratasse de uma pessoa estranha. E nem sequer se preocupou em saber se ela dispunha de uma luz para iluminar-lhe o caminho!

 

Magda reprimiu um soluço. Ela não iria chorar! Entretanto, que mais poderia fazer? Sentiu-se desamparada. Pior ainda: traída.

 

A única coisa que lhe restava fazer era deixar o fortim. Começou a descer a escada, confiando apenas no tato. Não enxergava nada, mas sabia que, se mantivesse sua mão esquerda apoiada na parede e experimentasse cada degrau antes de abandonar o anterior, poderia chegar lá embaixo sem cair no vazio.

 

Quando completou a primeira espiral, Magda esperou ouvir aquele ruído estranho através da abertura que dava para o porão. Contudo nada ouviu desta vez. Pelo contrário, havia um som diferente vindo do fundo da escuridão, mais alto, mais próximo mais pesado. Ela diminuiu os passos até que sua mão esquerda fez deslizar a pedra da parede e foi colhida pela corrente de ar frio que soprava pela abertura. O novo ruído agora era mais forte.

 

Era um som rascante, como se alguma coisa estivesse sendo arrastada, som de andar trôpego que lhe arrepiava os nervos e lhe secava a língua a ponto de grudá-la no céu da boca. Não deveriam ser ratos. . . O ruído era forte demais. Parecia originar-se na parte mais funda da escuridão à esquerda. Mais para a direita, uma réstia de luz se filtrava pela parte de cima, onde se situava o porão, mas não alcançava a área de onde o som partia. Magda também não desejava ver o que havia por lá.

 

Às apalpadelas atravessou a abertura e, por alguns instantes, não encontrou qualquer apoio no outro lado. Foi então que sua mão tocou a pedra fria, maravilhosamente sólida, e ela pôde continuar descendo, agora mais rapidamente, o coração aos pulos, a respiração ofegante. Se algo estava vindo em seu encalço ela deveria atingir a parte externa do fortim antes que seu perseguidor chegasse à escada.

 

Ela continuou descendo sem parar, olhando de quando em vez por cima do ombro num gesto instintivo e completamente inútil de tentar enxergar na escuridão. Um retângulo indistinto apareceu ante seus olhos quando ela alcançou o solo; correu então na direção dele, atravessou-o e saiu para o nevoeiro lá fora. Fazendo a pedra girar, fechou a abertura e encostou-se nela com um suspiro de alívio.

 

Depois de recobrar a calma, Magda deu-se conta de que não se livrara da maligna atmosfera do fortim só porque saíra do interior deste. Pela manhã a opressão que lá dominava desaparecia no lado de fora; agora, porém, se estendia além de suas muralhas. Ela começou a andar, cambaleando na escuridão. Somente quando chegou ao arroio sentiu que escapara ao envolvimento do mal.

 

De repente ela ouviu uma série de gritos e o nevoeiro se tornou mais claro. Todas as luzes no fortim haviam sido acesas. Alguém deveria ter encontrado os dois novos cadáveres.

 

Magda continuou a afastar-se dali. As novas luzes não representavam perigo, pois a claridade não a alcançava - apenas se filtrava através da névoa, como a luz do sol vista do fundo de um lago escuro. A claridade, que era absorvida pelo nevoeiro e que o embranquecia, fazia com que ela ficasse mais oculta do que revelada. Magda entrou descuidadamente no arroio, desta vez sem se preocupar em tirar os sapatos e as meias - queria afastar-se para longe do fortim o mais depressa possível. A sombra da ponte passou por cima de sua cabeça e logo depois ela atingiu a base do entulho. Após um breve descanso, para acalmar a respiração, começou a subir até ficar acima do nível do nevoeiro que enchia quase por completo a garganta. Agora pouco faltava para chegar ao topo. Mais alguns segundos e estaria livre de qualquer perigo.

 

Meio de gatinhas, ela procurou vencer a última etapa. Súbito, topou com uma moita, seu pé enroscou-se em uma raiz e ela caiu de braços, ferindo o joelho em uma pedra. Puxando o joelho contra o peito, começou a chorar, com profundos soluços de todo desproporcionais à dor. Era a angústia provocada por Papai e também o alívio por ter conseguido sair do fortim - uma reação derivada de tudo o que ela tinha visto e ouvido lá, de tudo o que lhe haviam feito, ou quase.

 

- Você esteve no fortim.

 

Era Glenn. Não havia outra pessoa que ela mais desejasse encontrar naquele momento. Enxugando apressadamente as lágrimas na manga, a moça tentou levantar-se. Seu joelho ferido provocou uma dor aguda que lhe subiu pela coxa e Magda só não caiu porque Glenn a amparou.

 

- Você está machucada? - perguntou com voz macia.

 

- Apenas um arranhão.

 

Tentou dar um passo, mas a perna se recusou a suportar seu peso. Sem pronunciar uma palavra, Glenn tomou-a nos braços e começou a caminhar em direção à estalagem.

 

Pela segunda vez naquela noite ela era assim carregada. Agora, porém, muita coisa mudara. Os braços de Glenn representavam um cálido santuário, fazendo esquecer toda a sensação de frio deixada pelo toque de Molasar. Ao apoiar-se em Glenn ela sentiu desaparecer todo o temor que a dominara. Mas como havia ele surgido atrás dela, sem ser pressentido? Ou teria ele permanecido ali, parado o tempo todo, à espera dela?

 

Magda repousou a cabeça no ombro dele, sentindo-se segura e em paz. Se ao menos eu pudesse ficar assim para sempre.

 

Glenn carregou-a sem esforço através da porta dianteira da estalagem, depois atravessou o salão de entrada que se encontrava vazio, subiu a escada e abriu a porta do quarto dela. Após colocála delicadamente na beira da cama, ajoelhou-se a seus pés.

 

- Deixe-me examinar esse joelho.

 

Magda hesitou a princípio, depois levantou a saia acima do joelho esquerdo, cobrindo o direito e apertando o resto do grosso tecido em torno das coxas. No fundo de sua mente ela achava que não deveria estar sentada ali, em sua cama, expondo a perna a um homem que mal conhecia. Entretanto.

 

A meia de lã azul-marinho estava rasgada, deixando ver um arranhão vermelho na rótula. O local já inchara. Glenn levantou-se e foi até à cômoda, apanhando uma toalha que molhou na água do jarro e depois colocou sobre o joelho dela.

 

- Isto deve ajudar - disse ele.

 

- O que teria havido de errado no fortim? - perguntou ela, olhando para os cabelos vermelhos de Glenn, tentando ignorar, e no entanto deleitando-se com o calor que lhe subira pela coxa a partir do ponto em que a mão dele a tocara ao colocar a toalha.

 

- Você esteve lá esta noite - disse ele, encarando-a com ar grave. - Por que não me conta?

 

- Estive lá, sim, mas não sei explicar, ou melhor, talvez não possa aceitar o que está acontecendo. Estou certa de que o despertar de Molasar alterou o fortim. Eu gostava muito daquele lugar. Hoje tenho-lhe horror. Existe ali, bem definida qualquer coisa errada. Não é necessário vê-la nem tocá-la para sentir sua presença do mesmo modo que muitas vezes não se precisa olhar para fora para saber que vai chover. É como se o ar estivesse impregnado, penetrando através de nossos poros.

 

- Que espécie de coisa errada você sente em Molasar?

 

- Ele é maligno. Sei que isso é vago, mas quero dar idéia de mal. Inerentemente maligno. Um monstruoso, antigo mal que se apoia na morte, que valoriza tudo o que é nocivo à vida, que odeia e teme tudo o que respeitamos. - Fez uma pausa, embaraçada pela intensidade de suas palavras. - É isso que eu acho. A explicação tem algum sentido para você?

 

Glenn encarou-a de perto por um longo momento antes de responder.

 

- Você deve ser extremamente sensível para sofrer desse modo.

 

- Entretanto...

 

- Entretanto o quê?

 

- Entretanto esta noite Molasar salvou-me das mãos de dois seres humanos que deveriam ter sido, por todos os motivos, meus aliados contra ele.

 

As pupilas dos olhos azuis de Glenn se dilataram.

 

- Você foi salva por Molasar?

 

- Fui. Ele matou dois soldados alemães - a lembrança daquilo fê-la estremecer - de maneira horrível. . . mas não me causou qualquer dano. Estranho, não acha?

 

- Muito.

 

Deixando a toalha úmida sobre o ferimento, Glenn retirou a mão do joelho dela e passou-a pela cabeleira vermelha. Magda desejou que aquela mão voltasse para onde estivera, mas Glenn parecia preocupado.

 

- Você conseguiu fugir dele?

 

- Não. Ele me levou até meu pai - esclareceu Magda, notando que Glenn não gostara da resposta, mas concordara com um movimento de cabeça como se a aceitasse. - E houve algo mais.

 

- A respeito de Molasar?

 

- Não. Algo mais no fortim. No porão. . . algo que se movia, que se arrastava por lá. Talvez fosse essa a causa do ruído rascante que ouvi.

 

- Ruído rascante - repetiu Glenn em voz baixa.

 

- Como uma coisa que se arrastasse, arranhando. . . vindo bem lá do fundo do porão.

 

Sem dizer uma palavra, Glenn levantou-se e se dirigiu para a janela, onde permaneceu imóvel, contemplando o fortim.

 

- Conte-me tudo o que lhe aconteceu esta noite, desde o momento em que você entrou no fortim até sair. Não poupe detalhes.

 

Magda relatou tudo o que pôde lembrar até o instante em que Molasar a depositou no quarto de Papai. Então, a voz dela se apagou.

 

- O que há?

 

- Nada.

 

- Como estava seu pai? - perguntou Glenn. - Estava bem? A mágoa apertou-lhe a garganta.

 

- Sim, estava bem. - A despeito de seu esforçado sorriso, as lágrimas lhe inundaram os olhos e começaram a rolar-lhe pelas faces. Por mais que ela tentasse detê-las, não conseguia. - Ele me mandou embora. . . Queria ficar sozinho com Molasar. Pode compreender isso? Depois de tudo o que passei para chegar lá, ele me manda voltar.

 

A angústia da voz dela deve ter desviado a preocupação de Glenn, que deixou a janela e voltou-se para ela.

 

- Papai não se impressionou por eu ter sido assaltada e quase violada por dois nazistas brutais. . . Nem sequer perguntou se eu estava ferida! Toda a sua preocupação era no sentido de eu não reduzir o precioso tempo de seu encontro com Molasar. Sou sua filha, mas ele acha mais importante conversar com. . . com aquela criatura!

 

Glenn aproximou-se do leito e sentou-se ao lado dela, passando-lhe o braço pelos ombros e puxando-a carinhosamente para si.

 

- Seu pai está sob uma terrível pressão. Não deve esquecer isso.

 

- E ele não deve esquecer que é meu pai!

 

- Tem razão - disse ele suavemente. - Não deve não. - Recostou-se na cama, depois, com delicadeza, puxou Magda pelos ombros. - Assim. Fique tranqüila a meu lado e feche os olhos. Sentir-se-á melhor.

 

Com o coração na garganta, Magda deixou que Glenn a acomodasse junto dele. Esqueceu a dor no joelho ao levantar os pés do chão e girar o corpo para deitar-se de lado, encarando-o. Os dois ficaram estendidos bem juntos na cama estreita, Glenn com o braço debaixo dela, Magda com a cabeça no ombro dele, os corpos quase se tocando. Com a mão esquerda apoiada no peito de Glenn, Magda não mais se lembrou de Papai nem da mágoa que ele lhe causara, sentindo apenas as ondas de desejo que se agitavam dentro dela. Nunca estivera assim, deitada ao lado de um homem. Era assustador e maravilhoso. A aura de masculinidade dele envolvia-a, deixando-a entontecida. Ela estremecia ao sentir o contato dele em qualquer parte do corpo, como se choques elétricos lhe atravessassem a roupa... a roupa que a estava sufocando.

 

Sem poder resistir, levantou a cabeça e beijou-o nos lábios. Ele correspondeu ardentemente por um instante, depois recuou.

 

- Magda. . .

 

Ela viu nos olhos dele uma mistura de desejo, hesitação e surpresa. Estava também surpreendida, talvez até mais do que ele. Não houvera uma premeditação naquele beijo; apenas uma necessidade despertada de repente, queimando-a em sua intensidade. O corpo dela reagiu de acordo com um desejo próprio e ela não tentara contrariá-lo. Talvez aquele momento nunca mais se repetisse. Teria de acontecer agora. Ela queria dizer a Glenn que desejava fazer amor com ele, mas não conseguia.

 

- Algum dia, Magda - disse Glenn, como se estivesse lendo os pensamentos dela e trazendo, a cabeça de Magda de volta para seu ombro. - Algum dia, mas não agora. Não esta noite.

 

Afagou-lhe os cabelos e pediu-lhe que dormisse. Estranhamente, a promessa a satisfez. O calor do desejo abrandou e, com ele, todas as emoções da noite. Até a mágoa pela atitude do pai e a preocupação com o que ele estava fazendo se foram apagando. Ocasionais reminiscências de temores sofridos ainda feriam a superfície de sua calma crescente, mas tornavam-se cada vez menores e mais espaçadas. Interrogações a respeito de Glenn passavam-lhe pela mente: quem era ele, afinal? E era correto ou pelo menos próprio que ela permitisse aquela intimidade?

 

Glenn... ele parecia saber mais a respeito do fortim e de Molasar do que admitia. Ela dera por si conversando com ele acerca daquela construção como se esta lhe fosse tão intimamente familiar como era para ela. Por que ele não demonstrara surpresa a respeito da entrada secreta na base da torre, nem quanto à abertura, no poço da escada, que dava para o porão, quando Magda fizera referências a esses detalhes tidos como pouco desconhecidos? Para ela havia apenas uma resposta a essas interrogações: Ele já estava a par de tudo.

 

Mas eram dúvidas sem consistência. Se ela descobrira, anos atrás, a entrada secreta da torre, não havia razão para que ele nãopudesse também ter feito a mesma descoberta. O que importava agora era que, pela primeira vez naquela noite, ela se sentia completamente segura, confortável e desejada.

 

Adormeceu serenamente.

 

Tão logo o bloco de pedra girou, fechando a abertura por onde Magda passara, Cuza voltou-se para Molasar e viu que aquelas pupilas de um negrume sem fundo, mergulhadas na sombra, já estavam fixas na direção dele. Até então o professor aguardara o momento de interrogar Molasar, de desfazer as contradições que, durante a manhã, haviam sido apontadas por aquele singular estrangeiro de cabelo ruivo. Mas Molasar aparecera trazendo Magna em seus braços.

 

- Por que você fez isso? - perguntou Cuza, sentado em sua cadeira de rodas, Molasar continuava a olhar para ele, sem nada dizer.

 

- Por quê? - insistiu Cuza. - Pensei que ela não fosse mais do que outro tentador petisco para você!

 

- Está provocando minha paciência, aleijado! - O rosto de Molasar ia ficando mais pálido à medida que ele falava. - Não poderia ficar indiferente, hoje, ao ver dois alemães atacar e violar uma mulher de meu país, do mesmo modo como não suportei, quinhentos anos atrás, ver os turcos fazerem a mesma coisa. Foi por isso que me aliei a Vlad Tepes! Esta noite, porém, os alemães foram mais longe do que qualquer turco jamais teria ousado: tentaram cometer seu crime dentro das próprias paredes do meu fortim! - Abruptamente, acalmou-se e chegou a sorrir. - Para falar a verdade, gostei de acabar com aqueles tipos miseráveis.

 

- Como estou certo de que você gostou de sua aliança com Vlad.

 

- Sua satisfação em empalar abriu-me amplas oportunidades para saciar minhas necessidades sem despertar atenção de ninguém. Vlad acabou por confiar em mim. Ultimamente, eu era um dos raros boiardes com quem ele realmente podia contar.

 

- Não compreendo você.

 

- Nem eu espero que compreenda. Você não tem capacidade para tanto. Estou além de seus conhecimentos.

 

Cuza tentou desfazer a confusão que emaranhava seus pensamentos. Tantas contradições. . . Nada se apresentava como deveria ser. E, dominando tudo, lá estava o inegável conhecimento de que ele devia a segurança da filha, talvez mesmo a vida dela, a um não-morto.

 

- Apesar de tudo, estou em débito com você. Molasar não fez qualquer comentário.

 

Cuza hesitou, mas acabou por formular a pergunta que mais desejava fazer:

 

- Há outros como você?

 

- Você quer dizer não-mortos? Moroi? Costumava haver, mas agora não sei. Desde que despertei tenho sentido tanta relutância da parte dos vivos em aceitar minha existência que devo presumir que todos foram mortos ao longo destes quinhentos anos.

 

- E todos os outros tinham tanto pavor da cruz? Molasar inteiriçou o corpo.

 

- Você não ficou com ela, ficou? Quero avisá-lo de que. . .

 

- Está bem guardada. Não entendo, porém, por que a teme. - Cuza apontou para as paredes. - Você mesmo está cercado de cruzes de bronze e níquel, milhares delas, e no entanto foi tomado de pânico à vista de uma cruzinha de prata que estava comigo na noite passada.

 

Molasar aproximou-se de uma das cruzes e colocou a mão em cima dela.

 

- Estas representam um artifício. Reparou como o braço horizontal se acha numa posição alta? Está tão alto que o conjunto nem parece uma cruz. Tal configuração não produz efeitos maléficos em mim. Tenho milhares delas nas paredes do fortim para iludir perseguidores quando estou escondido. Elas não poderiam conceber que alguém de minha espécie fosse esconder-se numa construção ornamentada com cruzes. E como você ficará sabendo, se eu decidir conceder-lhe minha confiança, esta configuração especial tem um significado muito importante para mim.

 

Cuza tinha desesperadamente esperado descobrir uma pista no pavor de Molasar diante da cruz, mas essa esperança estava definhando e morrendo. Sentiu-se imensamente desanimado. Precisava pensar! Sobretudo, precisava que Molasar continuasse falando, que não fosse embora, pelo menos naquele momento. - Quem eram eles? Quem o estava perseguindo?

 

- O nome Glaeken significa alguma coisa para você?

 

- Não.

 

- Não mesmo? - insistiu Molasar, aproximando-se mais.

 

- Asseguro-lhe que jamais ouvi esse nome. Por que ele seria tão importante?

 

- Então talvez eles tenham ido embora - murmurou Molasar, mais para si mesmo do que para Cuza.

 

- Por favor, explique-me isso você mesmo. Quem ou o que era Glaeken?

 

- A Glaeken era uma seita de fanáticos que teve início como um ramo da Igreja na Idade Média. Seus membros defendiam a ortodoxia e eram a princípio subordinados diretamente ao papa. Mais tarde, porém, tornaram-se independentes. Procuraram infiltrar-se em todas as fontes de poder, em colocar sob seu controle todas as famílias reais, a fim de submeterem o mundo a um comando integral, com uma única religião e um só governo.

 

- Impossível! Considero-me uma autoridade em história da Europa, especialmente a desta região, e jamais ouvi falar em tal seita!

 

Molasar aproximou-se ainda mais e mostrou os dentes.

 

- Você tem o topete de chamar-me de mentiroso dentro das paredes de meu fortim? Imbecil! Que sabe você de história? Que sabia a respeito de mim, dos de minha espécie, antes que eu mesmo tivesse revelado algo? Que leu sobre a história do fortim? Nada! A Glaeken era uma irmandade secreta. As famílias reais nunca ouviram falar dela e, se posteriormente a Igreja soube de sua existência, jamais admitiu isso.

 

Cuza virou o rosto para fugir do hálito pestilento de Molasar.

 

- E como foi que você soube da existência da seita?

 

- Em determinada época, acontecia no mundo pouca coisa de que os moroi não tomassem conhecimento. E quando soubemos dos planos da Glaeken decidimos agir. Os moroi - acrescentou ele, com evidente orgulho - enfrentaram a Glaeken durante séculos. Era claro que a consecução dos objetivos dela seria danosa para nós, e assim repetidamente solapamos seus planos tirando a vida de quem quer que, no poder, se filiasse à seita.

 

Molasar começou a vagar pelo quarto.

 

- Inicialmente a Glaeken nem sequer sabia que existíamos. Porém, tão logo tomou conhecimento de nós moveu-nos uma guerra total. Um por um meus irmãos moroi passaram a ser de fato mortos, Quando percebi que o cerco se apertava em torno de mim, construí este fortim e me escondi dentro dele, resolvido a vencer a Glaeken e anular seus planos de domínio do mundo. Agora parece que fui bem-sucedido.

 

- Muito engenhoso - disse Cuza. - Você se cerca de falsas cruzes e fica hibernando. Mas eu preciso perguntar, e você, por favor, me responda: Por que tem medo da cruz?

 

- Não posso discutir esse ponto.

 

- Mas você tem que me dizer! O Messias. . . era Jesus Cristo.. . ?

 

- Não! - exclamou Molasar, cambaleando e encostando-se à parede, incapacitado de falar.

 

- O que houve?

 

Molasar fitou Cuza com olhar penetrante.

 

- Se você não fosse meu compatriota, eu arrancaria sua língua agora mesmo!

 

Até por ouvir o nome de Cristo ele se descontrola! - pensou Cuza.

 

- Mas eu nunca. . .

 

- Jamais pronuncie esse nome outra vez. Se você quiser que eu o ajude, nunca mais diga esse nome.

 

- Mas é apenas uma palavra.

 

- Nunca mais' - repetiu Molasar, retomando sua autoridade. - Está avisado. Se insistir, seu corpo irá lá para baixo, juntar-se aos dos alemães.

 

Cuza sentiu que estava perdendo terreno. Precisava tentar alguma coisa.

 

O que acha destas palavras: Yitgadal veyitkadash shemei raba bealma divera chireutei, veyamlich. . .

 

- O que quer dizer esse amontoado de sons? - perguntou Molasar. - Uma espécie de cantochão? Palavras mágicas? Você está tentando se livrar de mim? Aliou-se aos alemães?

 

- Não! - foi tudo o que Cuza pôde dizer antes que sua voz se apagasse. - Sua mente parecia ter sofrido um golpe. Agarrou-se aos braços de sua cadeira com as mãos aleijadas, sob a impressão de que o quarto iria girar e derrubá-lo. Era um pesadelo! Essa criatura da Idade Média se apavorava à vista da cruz e à menção do nome de Jesus Cristo. Todavia as palavras do Kaddish - a oração hebraica para os mortos - eram apenas um amontoado de sílabas sem significação. Não podia ser! E contudo era.

 

Molasar continuava falando, ignorando a penosa confusão que se processava no espírito de seu interlocutor. Cuza tentou entender as palavras dele. Talvez elas fossem cruciais para a sobrevivência de Magda, e dele próprio.

 

- Meu poder está voltando lenta mas ininterruptamente. Sinto que dentro em pouco - duas noites no máximo - estarei em condições de livrar meu fortim de todos estes intrusos.

 

Cuza tentou assimilar o sentido das palavras: poder. . . duas noites no máximo. . . livrar meu fortim. . . Entretanto outras palavras continuavam soando em sua mente, num meio-tom persistente. . . Yitgadal veyitkadash shemei... bloqueando seu raciocínio.

 

Ouviu-se então o ruído de pesadas botas nos degraus da escada da torre e o eco de vozes humanas, tomadas de pavor, soando no pátio; ao mesmo tempo, a única lâmpada do quarto começou a tornar-se mortiça, indicando uma interrupção no suprimento de energia.

 

Molasar mostrou os dentes com um sorriso voraz.

 

- Parece que eles encontraram seus dois camaradas. . .

 

- E logo virão aqui, para porem a culpa em mim - disse Cuza, arrancado de seu torpor pela nova situação de alarme.

 

- Você é um homem inteligente - disse Molasar, caminhando na direção da parede e dando um leve empurrão no bloco móvel, que girou imediatamente. - Use a cabeça.

 

Cuza viu-o inclinar-se e desaparecer na sombra profunda da abertura, desejando ter podido ir com ele. Depois que o bloco voltou para seu lugar, Cuza aproximou a cadeira da mesa e debruçou-se sobre o Al Azif, fingindo que o estudava. Na verdade esperava, temeroso.

 

Não foi uma longa espera. Kaempffer entrou com violência no quarto.

 

- Judeu! - exclamou o major, apontando um dedo acusador para Cuza e tomando uma atitude arrogante que ele sem dúvida considerava prova de seu poder. - Você fracassou, judeu! Eu deveria contar com isso!

 

Cuza limitou-se a continuar imóvel, olhando para seu acusador. Que poderia responder? Não tinha a menor possibilidade de reagir. Sentia-se infeliz, angustiado e fisicamente alquebrado. Doía-lhe todo o corpo, cada osso, cada junta, cada músculo. Sua mente ficara entorpecida depois de seu encontro com Molasar. Estava incapaz de raciocinar. Embora sentisse a boca seca, não se animava a tomar mais água, pois sua bexiga ansiava por esvaziar-se à simples vista de Kaempffer. Não estava preparado para tamanha tensão. Era um professor, um intelectual, um homem de cultura. Não tinha condições de enfrentar aquele vaidoso fanfarrão que tinha o poder de vida e de morte sobre ele. Desejava ardentemente contraatacá-lo, mas não tinha a mais remota esperança de poder fazê-lo. Valeria de fato a pena viver assim?

 

Que outras humilhações ele poderia suportar?

 

Entretanto havia Magda. De alguma maneira restava uma esperança para ela.

 

Duas noites... Molasar dissera que, após mais duas noites, teria poder suficiente. Quarenta e oito horas! Cuza perguntou a si mesmo se poderia sobreviver durante tanto tempo. Sim, ele se esforçaria para durar até sábado à noite. A noite de sábado... o Sabá já teria findado. . . Mas o que significava agora o Sabá? Haveria alguma coisa que tivesse realmente importância?

 

- Ouviu o que eu disse, judeu?

 

A voz do major se elevara, forçada, até parecer um grito. Outra voz respondeu:

 

- Ele nem sabe sobre o que você está falando.

 

O capitão havia entrado no quarto. Cuza sentiu que Woermann era um homem decente, de uma nobreza constrangida - um traço que não se espera encontrar em um oficial alemão.

 

- Então vai aprender logo!

 

Com duas largas passadas, Kaempffer ficou ao lado de Cuza e inclinou-se para a frente até que seu perfeito rosto ariano quase tocou o do professor.

 

- O que há de errado, major? -- perguntou Cuza, fingindo ignorar o que acontecera, mas não escondendo seu verdadeiro temor. - Que foi que eu fiz?

 

- Você não fez nada, judeu! E esse é o problema. Durante duas noites você ficou sentado aqui com esses velhos livros, fazendo o papel de responsável pela súbita interrupção das mortes. Entretanto, esta noite. . .

 

- Eu nunca me... - começou Cuza a dizer, mas Kaempffei o interrompeu dando um soco na mesa.

 

- Silêncio! Esta noite mais dois dos meus homens foram encontrados mortos no porão, com as gargantas estraçalhadas como as dos outros.

 

Cuza teve uma imagem fugaz dos dois soldados. Depois de ter visto os outros cadáveres, era fácil imaginar os ferimentos. Chegou a visualizar com certa satisfação aquelas gargantas ensangüentadas. Eles haviam tentado violar sua filha e mereceram o castigo recebido. Mereciam até pena maior. Molasar fizera justiça bebendo-lhes o sangue.

 

Mas agora era ele quem estava em perigo. A fúria no rosto do major não permitia dúvidas. Ou descobria uma saída ou não viveria até à noite de sábado.

 

- Está agora provado que não foi você o responsável pelas duas últimas noites de paz. Não há qualquer conexão entre sua chegada e as duas noites sem mortes... foi apenas uma coincidência feliz para você, que se aproveitou dela para nos fazer acreditar que tudo era obra sua. Isso comprova o que aprendi na Alemanha: jamais confie em um judeu!

 

- Eu nunca disse que era o responsável por...

 

- Você está tentando deter-me aqui, não é isso? - disse Kaempffer, entrefechando os olhos e baixando a voz até um tom ameaçador. - Está fazendo o possível para retardar o cumprimento de minha missão em Ploiesti, não é mesmo?

 

Cuza vacilou ante a súbita mudança de tática do major. O homem estava transtornado. . . tão transtornado quanto Abdul Alhazred deve ter ficado depois de escrever o Al Azif. . . que estava ali na frente deles, sobre a mesa. . .

 

O professor teve uma idéia.

 

- Mas major! Eu encontrei finalmente alguma coisa num dos livros!

 

O Capitão Woermann procurou ajudar.

 

- Encontrou? Que foi que você encontrou?

 

- Encontrou coisa nenhuma! - exclamou Kaempffer. - É mais uma mentira desse judeu, para salvar sua pele!

 

Você não sabe o quanto está certo, major.

 

- Deixe o homem falar, pelo amor de Deus! - interveio Woermann. Depois voltou-se para Cuza. - Que diz o livro? Mostre para mim.

 

Cuza indicou o Al Azif, escrito no arábico primitivo. O livro era datado do século VIII e nada tinha a ver com o fortim ou mesmo com a Romênia, justamente por isso. Mas o professor esperava que os dois alemães não soubessem disso.

 

A incerteza contraiu as sobrancelhas de Woermann, ao olhar para o pergaminho.

 

- Não sei ler essas pegadas de galinha.

 

- Ele está mentindo! - berrou Kaempffer.

 

- Este livro não mente, major - replicou Cuza, torcendo para que os alemães não conhecessem a diferença entre o turco e o arábico antigo, e prosseguiu em sua mentira. - Foi escrito por um turco que invadiu esta região antes de Maomé II. Diz ele que havia um pequeno castelo - a descrição das cruzes leva a crer que se tratava deste fortim - no qual morara um dos antigos senhores da Valáquia. A proteção do falecido senhor assegurava aos nativos da região o privilégio de dormir tranqüilamente no fortim, mas se quaisquer estranhos ou invasores ousassem ultrapassar os portões de sua antiga moradia, ele os mataria à razão de um por noite, enquanto aqui permanecessem. Compreenderam? A mesma coisa que está acontecendo aqui agora aconteceu a uma esquadra do exército turco há cerca de meio milênio!

 

Cuza observou os rostos dos dois oficiais quando terminou sua exposição. Estava até admirado pela facilidade com que inventara aquela história baseado no que sabia a respeito de Molasar e da região. Havia furos na história, mas de pouca monta, com pequena probabilidade de serem notados.

 

Kaempffer zombou:

 

- Isso não passa de uma bobagem!

 

- Não necessariamente - interveio Woermann. - Pense um pouco: os turcos costumavam então andar por aí. E conte nossos cadáveres. .. com os dois de agora temos a média de um morto por noite desde que cheguei aqui em 22 de abril.

 

- Mesmo assim... - A voz de Kaempffer revelava que sua autoconfiança fora abalada. Olhou com desconfiança para Cuza.

 

Então não somos os primeiros?

 

- Não. Pelo menos de acordo com o que diz o livro.

 

A história pegara! A maior mentira que Cuza pregara em toda a sua vida, inventada na hora, fora aceita! Eles não tinham idéia de que estavam sendo enganados. O professor teve vontade de rir.

 

- Afinal como foi que eles resolveram o problema? - perguntou Woermann.

 

- Partiram.

 

Seguiu-se um longo silêncio à resposta simples de Cuza. Por fim Woermann voltou-se para Kaempffer.

 

- Eu já vinha dizendo a você que. . .

 

- Não podemos partir - interrompeu Kaempffer, com um traço de histeria na voz. - Nunca antes de domingo. E se você - acrescentou, dirigindo-se a Cuza - não encontrar uma resposta para este problema até esse dia, judeu, farei com que você e sua filha sigam comigo para Ploiesti!

 

- Mas por quê?

 

- Ficará sabendo quando chegar lá - disse Kaempffer, depois pareceu ter encontrado uma solução melhor. - Não. Acho que vou anunciar logo. Talvez isso acelere seus esforços. Sem dúvida você já ouviu falar de Auschwitz, não? E de Buchenwald?

 

Cuza sentiu um frio no estômago.

 

- Campos de morte.

 

- Preferimos chamá-los de campos de recuperação.- Os romenos não dispõem de instalações assim. A minha missão é corrigir tal deficiência. Gente de sua espécie, mais os ciganos, os francomaçons e outras escórias humanas serão tratadas no campo que irei instalar em Ploiesti. Se você provar que é fiel a mim, tomarei providências no sentido de que sua transferência para o campo seja retardada, talvez mesmo até sua morte natural. Se, porém, você se atravessar em meu caminho, terá a honra, juntamente com sua filha, de ser nosso primeiro hóspede.

 

Cuza permaneceu imóvel em sua cadeira. Sentia que os lábios e a língua se moviam, mas não conseguia falar, de tão chocado e tão amedrontado que ficara. Aquilo não era possível! Todavia o brilho nos olhos de Kaempffer lhe reafirmava que era verdade. Por fim, conseguiu articular uma palavra:

 

- Animal!

 

O sorriso de Kaempffer se alargou.

 

- Ainda que pareça estranho, não me incomodo de ouvir essa palavra nos lábios de um judeu. É uma prova positiva de que estou cumprindo minhas obrigações. - Caminhou até à porta e depois retornou. - De modo que é bom estudar direitinho esses livros, judeu. Trabalhe com convicção para mim. Descubra uma resposta. Não é apenas o seu próprio bem-estar que está em jogo, mas também o de sua filha.

 

Voltou-se de novo e saiu.

 

Cuza olhou para Woermann como quem implora:

 

- Capitão... ?

 

- Nada posso fazer, Herr Professor - replicou Woermann em voz baixa, com evidente pesar. - Apenas sugiro que o senhor estude esses livros. Já encontrou uma referência ao fortim, o que significa que pode encontrar outra. E aproveito para sugerir que aconselhe sua filha a encontrar um lugar mais seguro que a estalagem . . . talvez alguma residência nas montanhas.

 

Cuza não podia confessar ao capitão que mentira ao afirmar que encontrara uma referência ao fortim, que não havia esperança de que surgisse alguma. E quanto a Magda:

 

- Minha filha é obstinada. Continuará na estalagem.

 

- Esperava que me dissesse isso mesmo. Contudo, além de um conselho, nada mais posso oferecer-lhe. Não estou mais no comando do fortim. Aliás - acrescentou com um sorriso triste - acho que nunca estive. Boa-noite.

 

- Espere! - pediu Cuza, tirando a cruz do bolso. - Tome isto. Já não me serve para mais nada.

 

Woermann apanhou a pequena cruz de prata, olhou para ela por um momento e retirou-se.

 

Cuza, sentado em sua cadeira de rodas, sentiu-se tomado pela mais profunda depressão. Não havia qualquer possibilidade de vencer. Se Molasar parasse de matar alemães, Kaempffer seguiria para Ploiesti, a fim de dar início ao extermínio sistemático dos judeus. Se Molasar insistisse, Kaempffer destruiria o fortim e ele e Magda seriam arrastados para Ploiesti como suas primeiras vítimas. Ao pensar que Magda poderia cair nas mãos deles compreendeu a velha expressão de um desuno pior do que a morte.

 

Deveria haver uma saída. Muito mais grave que sua própria vida e a de Magda havia a ameaça que pairava sobre centenas de milhares, talvez um milhão ou mais de seres humanos. Precisava achar um meio de deter Kaempffer, de evitar que ele cumprisse sua missão. . . Cuza ficara com a impressão de que o major tinha o máximo interesse em chegar a Ploiesti na segunda-feira. Ele perderia sua posição, se se atrasasse? Se isso fosse verdade, o condenado teria um período de adiamento.

 

E se Kaempffer nunca deixasse o fortim, vítima de um acidente? Mas como? De que maneira seria possível detê-lo?

 

Suspirou, desanimado. Não passava de um judeu aleijado no meio de uma porção de soldados alemães. Necessitava de orientação, de uma resposta. E com urgência. Cruzou seus dedos retorcidos e baixou a cabeça.

 

Oh, Deus! Ajudai vosso humilde servo, dai-me a solução para os problemas de vossos outros servos. Ajudai-me a ajudá-los. Ensinai-me a encontrar um meio de salvá-los...

 

A silenciosa prece traduzia a inutilidade de seu desespero. Que poderia fazer? Quantos, dos inumeráveis milhares que estavam morrendo nas mãos dos alemães, haviam erguido seus corações e suas vozes num apelo semelhante? E onde estavam eles agora? Mortos! E o que aconteceria com ele, se ficasse esperando por uma resposta às suas súplicas? Morto também. E com Magda talvez fosse pior.

 

Continuou imóvel, mergulhado em seu desespero.

 

Havia ainda Molasar. . .

 

Woermann parou por um momento no lado de fora da porta do professor depois de fechá-la. Experimentara uma estranha sensação quando o velho judeu estava explicando o que descobrira naquele livro indecifrável - uma impressão de que Cuza estava falando a verdade e mentindo ao mesmo tempo. Curioso. . . Qual seria a intenção do professor?

 

Atravessou rapidamente o pátio iluminado, percebendo a expressão de ansiedade nos rostos das sentinelas. Ah, fora bom demais para ser verdade! Duas noites sem uma baixa. . . com esperança de chegar a três. . . Agora tudo voltava à estaca zero. . . exceto quanto ao número de cadáveres que continuava a crescer. Dez, agora. Um por noite durante dez noites. Uma estatística apavorante. Se ao menos o matador - o senhor valáquio de Cuza - tivesse esperado até a noite seguinte, Kaempffer teria partido e ele poderia retirar-se com seus homens. Entretanto, segundo a situação se apresentava agora, todos teriam de permanecer até o fim da semana. Faltavam as noites de sexta, sábado e domingo. A morte potencial de três pessoas. Talvez até mais.

 

Woermann virou à direita e percorreu a curta distância até à entrada do porão. O detalhe era a presença agora de dois novos corpos na caverna embaixo do porão. O oficial decidiu verificar se eles tinham sido arrumados adequadamente. Mesmo os einsatzkommandos tinham direito a um mínimo de dignidade na morte.

 

Ao atravessar o porão olhou para o quarto onde os dois corpos foram encontrados; não apenas suas gargantas tinham sido estraçalhadas, mas também as cabeças estavam torcidas, ficando em estranha posição. O assassino havia quebrado o pescoço deles por alguma razão, Era uma nova atrocidade. Agora o quarto estava vazio, com pedaços de madeira da porta esparramados pelo chão. O que teria acontecido ali? Ao serem encontradas, as armas dos dois homens revelavam que não fora disparado um único tiro. Será que eles tentaram salvar-se, fechando a porta contra o atacante? Por que ninguém ouviu os seus gritos? Ou não teriam eles gritado? Woermann apressou o passo pelo corredor central até à parede fendida e ouviu vozes que vinham da parte de baixo. Quando descia as escadas o oficial encontrou um pequeno grupo que subia, assoprando nas mãos geladas, e ordenou que os homens voltassem.

 

- Vamos ver se vocês fizeram um serviço correto.

 

Na caverna embaixo do porão a luz mortiça das lanternas e do lampião de querosene mal iluminava os dez corpos envoltos em lençóis e estendidos no chão.

 

- Nós fizemos o melhor possível, senhor - disse um dos soldados de uniforme cinza. - Alguns lençóis não tinham sido passados a ferro.

 

Woermann examinou o conjunto. Tudo parecia em ordem. Ele teria em breve de tomar uma decisão quanto ao destino dos corpos. Precisava transportá-los. Mas como?

 

Juntou as mãos, satisfeito: Kaempffer, naturalmente! O major estava planejando partir no domingo à noite, independente do que acontecesse. Ele poderia levar os corpos para Ploiesti e de lá mandá-los de avião para a Alemanha. Perfeito. E, também, conveniente. . .

 

Por acaso notou que o pé esquerdo do terceiro corpo, a partir da esquerda, aparecia fora do lençol. Ao abaixar-se para cobri-lo viu que a bota estava enlameada, como se o homem tivesse sido arrastado até ali puxado pelos braços. As duas botas estavam cobertas de lama.

 

Woermann sentiu uma onda de raiva, mas procurou acalmarse. Na verdade que importava aquilo? Os mortos estavam mortos. Por que fazer um escarcéu a propósito de um par de botas enlameadas? Na semana anterior isso mereceria uma reprimenda. Agora não passava de um detalhe sem importância. Uma ninharia. Apesar de tudo aquelas botas sujas aborreceram-no. Não saberia dizer exatamente por que, mas a verdade é que aquilo o aborrecera.

 

- Vamos embora, rapazes - disse ele, afastando-se e deixando um rastro de névoa provocada por sua respiração. Os homens o seguiram apressadamente. Estava muito frio lá embaixo.

 

Woermann parou ao pé da escada e olhou para trás. Os corpos mal se distinguiam, na meia-luz. Aquelas botas. . . O fato de elas estarem enlameadas não lhe saía da mente. Afinal subiu a escada, atrás de seus homens, até o porão.

 

De seu alojamento na parte traseira do fortim, Kaempffer, debruçado na janela, olhava para o pátio. Vira Woermann descer para o porão e regressar, mas continuou olhando. Deveria sentir-se relativamente seguro, pelo menos durante o resto da noite. Não por causa dos guardas que o cercavam, mas porque quem matara os dois soldados já havia completado a cota e não viria novamente.

 

Entretanto, seu pavor atingira o auge.

 

É que lhe ocorrera um pensamento particularmente horripilante. Até então todas as vítimas tinham sido escolhidas entre os soldados. Os oficiais permaneciam imunes. Por quê? Poderia ser apenas devido ao fato ocasional do número de soldados no fortim ser bem maior que o de oficiais, na proporção de mais de vinte para um. Mas no fundo Kaempffer alimentava uma angustiosa suspeita de que ele e Woermann estavam sendo reservados para algo especialmente horrível.

 

Não saberia explicar por que pensava assim, mas não conseguia afastar essa impressão. Se ao menos pudesse desabafar com alguém - qualquer pessoa - talvez ficasse parcialmente aliviado daquele fardo e até conseguisse dormir.

 

Mas não havia ninguém.

 

Assim, ele ficaria ali naquela janela até ao amanhecer, sem coragem para fechar os olhos antes que o sol inundasse o céu com sua luz.

 

Sexta-feira, 2 de maio

7h32m

 

Magda esperou no portão, apoiando-se, ansiosa, ora sobre um pé ora sobre o outro. Apesar da manhã ensolarada, sentia frio. A enregelante e aterradora sensação provocada pela presença de algo maligno e que até então ficara confinada no fortim parecia agora extravasar, alcançando o passo. Na noite anterior essa sensação acompanhara-a quase até o arroio; agora de manhã, atingira-a tão logo pisou na ponte.

 

As altas portas de madeira tinham sido abertas para dentro e estavam apoiadas nas pedras laterais do arco de entrada, parecendo um pequeno túnel. Os olhos de Magda vagavam da entrada da torre onde ela esperava que Papai aparecesse - para a abertura escura, situada precisamente no lado oposto do pátio, que conduzia ao porão, na parte traseira do fortim. Ali alguns soldados trabalhavam, escavando em volta das pedras. Ao contrário da véspera, quando seus movimentos eram despreocupados, hoje estavam nervosos. Os homens agiam como loucos - loucos apavorados.

 

Mas então por que não vão embora? Magda não podia compreender a razão de eles permanecerem ali, noite após noite, esperando que morresse mais um deles. Isso não fazia sentido.

 

Estava muito ansiosa para saber notícias de Papai. O que eles lhe teriam feito, na noite anterior, depois de terem descoberto os corpos dos soldados que a haviam atacado? Ao aproximar-se da ponte, assaltou-a o pensamento de que talvez o tivessem matado. Todavia tal presságio desapareceu ante a presteza com que a sentinela atendeu seu pedido para ver o pai. E agora, depois que a ansiedade inicial deixou de existir, ela começou a devanear.

 

O pipilar dos famintos filhotes de passarinho, no lado de fora de sua janela, e seu joelho esquerdo ainda latejando tinham-na despertado naquela manhã. Acordara sozinha em seu leito, completamente vestida, embaixo das cobertas. Ela se revelara tão terrivelmente vulnerável na noite anterior que Glenn poderia ter-se aproveitado disso sem dificuldade. Entretanto, não o fizera, mesmo quando ela demonstrou claramente que o desejava.

 

Magda recriminou-se, incapaz de compreender o que havia feito, envergonhada pela lembrança de sua própria imprudência. Felizmente, Glenn a rejeitara. . . não, essa era uma palavra muito forte. . . Seria melhor dizer que deixara para outra vez. Ao relembrar aquele instante sentiu-se satisfeita por ele a ter contido, embora, no fundo, estivesse um pouco magoada por ter sido tão facilmente recusada.

 

Por que deveria sentir-se magoada? Nunca achou que tivesse encantos capazes de seduzir um homem. Apesar disso, havia bem no fundo de sua mente aquela insinuação maldosa de que lhe faltava alguma coisa.

 

No entanto se a culpa não fosse dela. Podia ser que ele fosse um desses homens que. . . que não gosta de mulher, somente de outro homem. Porém ela estava certa de que não era esse o caso. Recordava seu único beijo - mesmo agora sentia uma onda de agradável calor inundar-lhe o corpo - e recordava também o ardor com que ele o retribuíra.

 

De qualquer maneira, o oferecimento dela não fora aceito. E se tivesse sido? Como o olharia agora? Constrangida por sua leviandade, seria forçada a evitá-lo, e isso significaria privar-se da companhia dele. E ela precisava tanto dessa companhia. . .

 

A noite anterior fora um caso especial, uma combinação de circunstâncias que não se repetiria. Via agora de maneira bem clara o que acontecera: a exaustão física e emocional, a fuga recente do ataque dos soldados, a intervenção de Molasar, a recusa de Papai, impedindo-a de ficar ao lado dele - tudo isso contribuíra para que temporariamente seu controle falhasse. Não fora Magda Cuza quem estivera deitada na cama, ao lado de Glenn, na noite anterior; fora uma outra pessoa, alguém que ela não conhecia. Aquilo não mais se repetiria.

 

Pela manhã passara em frente ao quarto dele, mancando por causa do ferimento no joelho. Esteve tentada a bater na porta para agradecer-lhe a ajuda e pedir desculpas pelo que fizera. Entretanto depois de escutar por uns instantes sem ter ouvido qualquer ruído, receou acordá-lo.

 

Magda fora diretamente para o fortim, não apenas para ver se Papai estava bem, mas também para dizer-lhe como ele a magoara, como não tinha o direito de tratá-la daquela maneira e como ela pretendia seguir seu conselho e deixar o passo Dinu. Esta última parte era apenas uma ameaça, mas ela queria feri-lo de alguma maneira, à guisa de retribuição ao que ele lhe fizera, obrigálo a reagir, ou pelo menos a desculpar-se por sua insensível conduta. Ensaiara cuidadosamente o que iria dizer e até mesmo o tom de voz com que iria falar-lhe. Estava pronta.

 

E então Papai apareceu na entrada da torre com sua cadeira empurrada por um soldado. Bastou olhar para o rosto dele para que todo o seu ressentimento desaparecesse. O aspecto dele era impressionante. Parecia ter envelhecido vinte anos da noite para o dia. Magda não imaginava que isso fosse possível, mas a verdade é que ele se mostrava ainda mais fraco do que antes.

 

Como deve ter sofrido! Mais do que uma pessoa seria capaz de suportar. Perseguido por seus compatriotas, pela doença e agora pelo exército alemão. Eu não poderia ser também contra ele.

 

O soldado que o trazia naquela manhã era mais cortês do que o da véspera. Parou a cadeira perto de Magda e afastou-se. Sem uma palavra, ela fez a volta e começou a empurrar Papai na direção da ponte. Ainda não haviam percorrido cinco metros, quando ele levantou a mão.

 

- Para aqui, Magda.

 

- O que há de errado? - estranhou ela, sem obedecer. Ainda sentia ali o mal-estar que provinha do fortim, embora Papai não parecesse notá-lo.

 

- Não dormi um minuto esta noite.

 

- Eles o mantiveram acordado? - perguntou Magda, passando para a frente e agachando-se aos pés do pai. O desejo instintivo de protegê-lo afogara o ressentimento que ainda havia em seu coração. - Eles não lhe bateram, não foi?

 

Os olhos dele, injetados de sangue, se fixaram nos da filha.

 

- Eles não tocaram em mim, mas me feriram profundamente.

 

- Como?

 

O professor começou falando no dialeto cigano que ambos conheciam.

 

- Preste atenção, Magda. Fiquei sabendo por que o destacamento da SS está aqui. É apenas uma parada na viagem deles para Ploiesti, onde o major vai instalar um campo de concentração . . . para o nosso povo.

 

- Oh, não! - exclamou Magda, revoltada. - Não pode ser verdade. O governo jamais consentiria que os alemães viessem e...

 

- Eles já estão aqui! Você sabe que os alemães vêm construindo fortificações em torno das refinarias de Ploiesti e que estão treinando soldados romenos para o combate. Se já fazem isso, por que não acreditar que eles pretendem ensinar aos romenos a maneira de matar os judeus? Do que pude concluir, o major é formado nessa especialidade. Adora seu trabalho. Será um excelente instrutor, não tenha dúvida.

 

Não podia ser! Todavia ela não dissera também que Molasar era apenas uma lenda? Em Bucareste tinham corrido histórias a respeito desses campos, sussurrados comentários sobre as atrocidades, sobre as inúmeras mortes. A princípio ninguém acreditava, mas as testemunhas passaram a suceder-se com tanta intensidade que até o judeu mais céptico teve de convencer-se. Os católicos continuaram achando que tudo não passava de boatos. Não sendo diretamente ameaçados, não se interessavam em acreditar, embora tivessem também de pagar o preço da invasão.

 

- É um local excelente - disse Papai com voz cansada e isenta de emoção. - Fácil de se chegar lá. E se um dos inimigos dos nazistas bombardear os campos petrolíferos, o inferno resultante completará o trabalho iniciado. E quem sabe? Talvez o conhecimento da existência do campo possa até fazer com que o inimigo hesite em desencadear os bombardeios, embora isso não me pareça provável. - Fez uma pausa, exausto. Depois murmurou: - Kaempffer precisa ser detido.

 

Magda se levantou, não mais suportando a dor no joelho ferido.

 

- Você não está pensando que poderá detê-lo, está? Será morto uma dúzia de vezes antes que possa sequer fazer-lhe um arranhão!

 

- Preciso encontrar um jeito. Não é mais apenas a vida de você que me preocupa. Agora são milhares. E todas dependendo de Kaempffer.

 

- Mas ainda que alguma coisa seja capaz de. . . detê-lo, eles mandarão outro em seu lugar!

 

- É verdade, mas isso exigirá tempo, e qualquer atraso só nos beneficiará. Talvez a Rússia, entrementes, ataque a Alemanha ou vice-versa. Não acredito que dois insanos, como Hitler e Stalin, consigam ficar por muito tempo sem que um pule na garganta do outro. E, no conflito que se seguir, talvez o campo de Ploiesti seja esquecido.

 

- Mas quem poderá deter o major? - observou Magda, querendo que Papai visse o quanto aquela tarefa era uma loucura.

 

- Talvez Molasar.

 

Magda não queria acreditar no que ouvira.

 

- Não, Papai!

 

Ele levantou a mão enluvada.

 

- Agora, ouça. Molasar deu a entender que poderia utilizar-me como um aliado contra os alemães. Não sei de que modo seria capaz de ajudá-lo, mas esta noite irei descobrir. E, em troca, pedirei que ele detenha o Major Kaempffer.

 

- Mas você não pode fazer um acordo assim com Molasar! Não pode confiar em que ele, no fim, não acabe matando você!

 

- Não dou a menor importância à minha vida. Já lhe disse que há coisas mais importantes em jogo. Além disso, percebi certa noção rústica de honra em Molasar. Acho que você o julga muito severamente. Reage como mulher, não como cientista. Ele é um produto de seu tempo, de um tempo em que se tinha sede de sangue. Entretanto Molasar possui um sentimento de patriotismo que está sendo profundamente ferido pela simples presença dos alemães. Estou em condições de explorar isso. Ele nos considera como conterrâneos valáquios e tem simpatia por nós. Não foi ele que salvou você dos dois alemães que a atacaram ontem à noite? E ele poderia facilmente tê-la transformado numa terceira vítima. Devemos tentar utilizá-lo. Não temos alternativa.

 

Magda permaneceu imóvel na frente do pai e procurou por outra opção. Mas não conseguiu encontrar nenhuma. O esquema de Papai, embora ela o detestasse, oferecia um vislumbre de esperança. Estaria ela sendo injusta com Molasar? Pareceria ele tão horrendo apenas por ser tão diferente dos outros e se mostrar implacável? Não seria mais uma força natural do que algo conscientemente maligno? O Major Kaempffer não constituía um exemplo melhor do que era de fato um ser cruel? Ela não tinha resposta?. Sentia-se sem rumo.

 

- Não gosto disso, Papai - foi tudo o que ela conseguiu dizer.

 

- Ninguém disse que você deveria gostar. Ninguém prometeu uma solução fácil... ou de modo algum uma solução, para esse problema. - Tentou impedir um bocejo sem conseguir e prosseguiu com voz cansada: - E agora gostaria de voltar para meu quarto. Preciso dormir, preparar-me para o encontro desta noite. Necessitarei de toda a minha imaginação se quiser estabelecer um acordo com Molasar.

 

- Um trato com o demônio - murmurou Magda, com um trêmulo fio de voz. Estava mais assustado do que nunca com a situação de seu pai.

 

- Não, minha querida. O demônio lá no fortim usa um uniforme preto com um emblema de prata no quepe representando uma caveira e se intitula um Sturmbannführer.

 

Com relutância Magda retornara para o portão empurrando a cadeira de rodas e esperou que o pai desaparecesse no interior da torre. Então voltou apressada para a estalagem, em estado de completa confusão. As coisas estavam acontecendo de modo muito rápido Até agora sua vida fora preenchida com livros e pesquisa, melodias e notas musicais pretas sobre papel branco. Não fora preparada para conspirações. Sentia-se ainda tonta, atingida pelas monstruosas implicações de tudo o que ouvira.

 

Confiava em que Papai soubesse o que estava fazendo. Instintivamente, ela se opusera à planejada ligação com Molasar'até que percebera aquele lampejo nos olhos do pai. Um raio de esperança luzira neles, um fragmento do antigo brilho que fizera antes sua companhia tão agradável. Era uma oportunidade para ele fazer alguma coisa, ao invés de permanecer sentado em sua cadeira de rodas esperando que fizessem as coisas para ele. Necessitava de maneira desesperada sentir que poderia ser de alguma utilidade para seu povo. . . para alguém. E ela não tinha o direito de roubar-lhe essa satisfação.

 

Ao aproximar-se da estalagem, Magda sentiu, por fim, que a sensação de frio do fortim desaparecera. Contornou a casa à procura de Glenn, na esperança de que ele estivesse aproveitando o sol da manhã. Não o encontrou no pátio nem na sala de jantar, ao passar por ela. Subiu a escada e parou em frente à porta dele, escutando. Mais uma vez não ouviu o menor ruído. Talvez estivesse lendo, pois não lhe parecia que ele fosse pessoa que dormia até tarde.

 

Magda chegou a levantar a mão para bater na porta, mas conteve-se. Já o procurara em volta da casa e agora vinha a seu quarto - ele podia pensar que ela o estava perseguindo.

 

Regressando a seu quarto, Magda ouviu o aflito pio dos filhotes de passarinho e foi até à janela para observar o ninho. De onde estava podia ver as quatro cabecinhas se agitando, mas a mãe não aparecia. Ela torceu para que ela viesse logo - os filhotes pareciam famintos ao extremo.

 

Magda apanhou seu bandolim mas, depois de alguns acordes, colocou-o novamente de lado. Sentia-se impaciente. E o lamento dos filhotes agravava ainda mais sua irritação. Com súbita determinação, saiu para o corredor.

 

Bateu levemente por duas vezes na porta do quarto de Glenn. Nenhuma resposta, nenhum movimento no lado de dentro. Ela hesitou um instante e depois, cedendo a um impulso, experimentou o trinco. A porta se abriu.

 

- Glenn?

 

O quarto estava vazio. Era idêntico ao dela; de fato, ela ficara naquele mesmo quarto, quando ela e Papai se hospedaram na estalagem, por ocasião da última visita ao fortim. Entretanto havia alguma coisa diferente. Ela examinou as paredes. Era o espelho - o espelho sobre a cómoda fora retirado. Um retângulo mais claro na parede mostrava o lugar onde ele estivera pendurado. Talvez tivesse sido quebrado depois daquela sua última visita e jamais fora substituído.

 

Magda pôs-se a caminhar pelo quarto, andando, vagarosa, em forma de círculo. Fora ali que ele ficara e lá estava a cama ainda desarrumada, onde ele dormira. Sentiu-se excitada, imaginando o que diria se ele voltasse de repente. Como explicaria o estranho fato de haver entrado no quarto dele? Não poderia. O melhor mesmo era ir embora.

 

Ao retirar-se, notou que a porta do armário estava entreaberta. Alguma coisa brilhava no lado de dentro. Ela sabia que se estava arriscando, mas que mal faria uma rápida olhadela? Escancarou a porta.

 

O espelho que deveria estar sobre a cómoda encontrava-se apoiado a um canto do armário. Por que Glenn o havia tirado? Talvez não tivesse sido de propósito. Era possível que o espelho houvesse caído da parede e que luliu ainda não o tivesse recolocado.

 

Também havia ali dentro algumas peças de roupa e algo mais: uma caixa comprida, quase da altura dela, estava encostada no outro canto do armário.

 

Curiosa, Magda se ajoelhou e passou a mão pelo couro da caixa - áspero, velho, enrugado. Ou era muito antigo ou malcuidado. Ela não conseguia imaginar o que poderia haver dentro daquela caixa. Um rápido olhar sobre o ombro assegurou-a de que o quarto continuava vazio, a porta ainda aberta e o corredor em silêncio. Bastariam uns poucos segundos para que ela soltasse os fechos da caixa, desse uma olhada no que ela continha e recolocasse tudo em seu lugar, indo embora depois. Precisava saber. Sentindo a deliciosa apreensão de uma criança travessa ao invadir uma área proibida da casa, ela forçou um dos fechos de bronze. Havia três deles, que rangeram ao serem abertos, como se houvesse areia nas dobradiças. A tampa fez o mesmo ruído ao ser levantada.

 

A princípio Magda não percebeu o que vinha a ser aquilo. A cor era de um azul-escuro, e o objeto, de um metal cuja espécie ela não identificava. Tinha a forma de uma cunha alongada - uma comprida peça de metal, afinando na direção da ponta e muito aguçada em seus dois chanfros. Como uma espada. Era isso. Uma espada! Uma enorme espada à qual faltasse o punho. Havia apenas uma grossa cavilha na extremidade inferior, que parecia destinada a encaixar-se na ponta de um punho. Em que àrma fina imensa e terrível aquele objeto se transformaria, quando ajustada a seu punho!

 

O olhar dela foi atraído pelas marcas da lâmina, toda coberta por estranhos símbolos. Estes não eram simplesmente desenhados na superfície azul do metal, mas entalhados nela. Magda correu a ponta do dedo mínimo ao longo dos entalhes. Os símbolos eram runas, mas de uma espécie que ela nunca vira. Conhecia as runas germânicas e escandinavas, que remontavam à Idade Média, talvez ao século XIV. Estas, porém, eram mais velhas. Muito mais. Possuíam uma característica de misteriosa antiguidade que a intrigava, parecendo deslocar-se enquanto eram examinadas. Aquela lâmina antiga. .. tão antiga que Magda pôs-se a imaginar quem ou o quê a teria fabricado.

 

A porta do quarto foi fechada com violência.

 

- Encontrou o que estava procurando?

 

Magda pôs-se de pé rapidamente, ao ouvir o ruído da porta, fazendo com que a tampa da caixa se fechasse sobre a lâmina. Voltou-se e encarou Glenn, com o coração batendo mais depressa por efeito da surpresa - e da culpa.

 

- Glenn, eu... Ele parecia furioso.

 

- Pensei que poderia confiar em você! O que esperava achar aí?

 

- Nada.. . Vim aqui à sua procura.

 

Não compreendia a intensidade da reação dele. Por certo, tinha direito de ficar aborrecido, mas tamanha indignação. . .

 

- Você pensou que me encontraria dentro do armário?

 

- Não. Eu... - Por que tentar explicar? Pareceria uma desculpa esfarrapada. Não tinha nada a fazer ali. Estava numa posição falsa e não ignorava isso, sentindo-se terrivelmente constrangida por ter sido apanhada em flagrante. Entretanto não era como se ela tivesse entrado no quarto para roubá-lo. À medida que sua indignação crescia, pela maneira como fora interpretada, aumentava também sua vontade de enfrentar a dureza do olhar dele, fitando-o com igual altivez. - Estava curiosa para saber algo mais de sua vida e vim aqui para conversarmos. Eu. . . eu gostei tanto de estar com você, mas sei tão pouco a seu respeito... - Sacudiu a cabeça. - Não acontecerá outra vez.

 

Começou a caminhar em direção à porta, pretendendo deixálo com seu precioso segredo, mas não andou muito. Ao passar entre Glenn e a cômoda, ele a deteve, segurando-a pelos ombros delicadamente mas com firmeza. Depois fez com que ela ficasse de frente para ele. Seus olhares se cruzaram.

 

- Magda. . .

 

Sem poder continuar, puxou-a contra o peito e colou os lábios nos dela, apertando-a docemente. Magda experimentou uma fugaz vontade de resistir, de debater-se, de empurrá-lo, mas tudo não passou de um mero reflexo e desapareceu antes que ela percebesse, engolfada pelo calor do desejo que tomara conta dela. Passou os braços em torno do pescoço de Glenn e puxou-o também, afundada no ardor que a envolvera. A língua dele procurou a dela, deixando-a chocada ante tanta audácia - pois nunca ouvira dizer que alguém beijasse assim - e estonteando-a com o prazer que a carícia lhe provocara. As mãos de Glenn começaram a descer pelo corpo dela, acariciando-lhe as nádegas por cima da roupa, e subiram até os seios, deixando um rastro de calor por onde passavam. Depois desamarraram o lenço que cobria os cabelos dela, atirando-o ao chão e passando a desabotoar-lhe o casaco de lã. Ela não o impediu. As roupas já lhe pesavam sobre o corpo e o quarto parecia estar tão quente... gostaria de tirá-lo.

 

Houve um breve instante em que ela poderia ter detido aquilo, recuando e retirando-se. Com o casaco já aberto, uma voz distante soou em sua mente: Serei eu mesma? O que está havendo comigo? Isto é uma loucura! Era a voz da antiga Magda, a Magda que enfrentara o mundo desde que sua mãe morrera. Esta voz, porém, era dominada pela de outra Magda, uma estranha Magda que surgira lentamente entre as ruínas de tudo aquilo em que a antiga Magda acreditara. Uma nova Magda, despertada pela chama vital que ardia dentro do homem que naquele momento a tinha nos braços. O passado, a tradição, as conveniências - tudo havia perdido seu significado; o amanhã era um dia distante que ela poderia não chegar a ver nunca. Agora só aquele momento importava. E Glenn.

 

O casaco escorregou dos ombros dela, depois a blusa branca. Quando os cabelos rolaram sobre suas costas e seus ombros nus Magda sentiu um estranho calor. Glenn puxou então o sutiã, libertando-lhe os seios. Sempre com os lábios colados nos dela, ele passou de leve a ponta dos dedos sobre cada seio, detendo-se nos bicos endurecidos e traçando pequenos círculos que arrancavam dela gemidos de prazer. Afinal, os lábios dele foram baixando pela garganta de Magda até o vale entre os seios e daí para os bicos entumescidos, um de cada vez, a língua fazendo pequenos círculos úmidos sobre aqueles que os dedos dele haviam traçado. Com um pequeno grito ela agarrou-lhe a cabeça e empinou os seios contra seu rosto, estremecendo de gozo à medida que as ondas de arrebatamento começaram a pulsar no interior de sua pélvis.

 

Glenn levantou-a e colocou-a sobre a cama, retirando-lhe o resto das roupas, enquanto ao mesmo que, com os lábios, não cessava de acariciá-la. Depois também ele se despiu inclinando-se por cima dela. As mãos de Magda começaram instintivamente a agir, correndo pelo corpo dele como se quisessem certificar-se de que tudo aquilo era real. Em seguida ele penetrou-a e, após a primeira estocada dolorida, ela sentiu-se possuída e foi maravilhoso.

 

Oh, Deus! - pensava ela, enquanto os espasmos do prazer lhe percorriam o corpo todo. Então é assim? Era isso o que ela tinha perdido durante todos aqueles anos? Seria esse o ato terrível de que falavam as mulheres casadas? Não podia ser! Aquilo era maravilhoso demais! E achava que não perdera nada, porque nunca teria gozado assim com qualquer outro homem que não fosse Glenn.

 

Ele começou a mover-se dentro dela e Magda procurou acompanhar-lhe o ritmo. O prazer aumentou, dobrando e redobrando, até que ela teve a impressão de que sua carne se derretia. Sentia que o corpo de Glenn começava a enrijecer à medida que igualmente sentia que o inevitável ia acontecer dentro dela. E aconteceu. Com seu corpo arqueado, os calcanhares apoiados no colchão, os joelhos dobrados para cima, Magda Cuza viu o mundo intumescer, estourar e partir-se em pedaços envolto num clarão de labaredas. Após um momento, acompanhando sua respiração ofegante, ela sentiu, através das pálpebras de seus olhos fechados, que tudo se ajustava novamente.

 

O resto do dia foi passado naquela estreita cama, ambos sussurrando, rindo, trocando idéias, explorando-se mutuamente. Glenn sabia de tudo e ensinou-lhe uma porção de coisas: era como se a estivesse apresentando ao próprio corpo dela. Ele foi paciente, gentil e carinhoso, fazendo com que ela atingisse o ápice do prazer repetidas vezes. Ele fora o primeiro amante dela. Magda não lhe disse isso, nem precisava dizer. Por outro lado, ela estava longe de ser a primeira amante dele. Isto também não necessitava ser objeto de comentários nem Magda achou que tivesse importância. Todavia sentiu que ele se mostrava por demais fogoso, como se condenado voluntariamente à abstinência por um longo tempo.

 

O corpo dele a fascinava. O físico masculino era terra incógnita para Magda. Gostaria de saber se os músculos de todos os homens eram tão rijos e tão à flor da pele. Todos os pêlos de Glenn eram vermelhos e ele tinha ainda numerosas cicatrizes no peito e no abdômen. Quando ela lhe perguntou a origem deles, ele respondeu que eram o resultado de acidentes. E, para evitar novas perguntas, ele a excitou e ambos fizeram amor de novo.

 

Depois que o sol se escondeu por trás da montanha, eles se vestiram e foram passear, de mãos dadas, parando de vez em quando para trocarem beijos. Quando regressaram à estalagem encontraram Lídia pondo a mesa. Magda deu-se conta de que estava faminta e assim ambos se sentaram e se serviram, ela tentando tirar os olhos de cima de Glenn e concentrar-se no jantar, satisfazendo uma fome, enquanto uma outra crescia. Todo um mundo novo se abrira para ela, deixando-a ansiosa para voltar a explorá-lo.

 

Comeram apressadamente e pediram licença para levantar-se, logo que terminaram, como crianças ansiosas por brincar antes que escurecesse. Correram da mesa para o pavimento superior, Magda na frente, rindo e puxando Glenn para o quarto dela. Desta vez seria em sua cama. Tão logo a porta se fechou atrás deles cada um tirou a roupa do outro, jogando-a em todas as direções; depois, sempre agarrados, enroscaram-se na cama, envoltos pela escuridão.

 

Horas depois, muito bem aproveitadas, Magda, ainda nos braços dele, em paz consigo mesma e com o mundo de uma maneira que ela até então desconhecia - Magda descobriu que estava apaixonada. Magda Cuza, a solteirona devoradora de livros, amava. Nunca, em tempo algum, em nenhum lugar poderia ter havido outro homem como Glenn. E ele a desejava. Ela o amava. Ela não dissera isso, e ele também não. Magda achou que deveria esperar que ele o fizesse primeiro. Poderia demorar um pouco, mas isso não tinha importância. Sabia que ele pensava da mesma maneira e essa certeza bastava-lhe.

 

Ela aconchegou-se mais a ele. Aquele dia fora suficiente para encher-lhe o resto da vida. Seria muita sofreguidão esperar que o dia seguinte fosse igual. Entretanto ela torcia para que o fosse. Avidamente. Certamente jamais alguém extraíra do próprio corpo tanto prazer e tantas emoções. Ninguém. Naquela noite ela iria dormir sendo uma Magda Cuza diferente da que acordara de manhã naquela mesma cama. Parecia haver passado tanto tempo. . . toda uma vida. E a outra Magda lhe parecia agora uma estranha. Uma sonâmbula, nada mais. A nova Magda estava bem acordada e amando. Tudo iria correr às mil maravilhas.

 

Magda fechou os olhos. Chegavam-lhe aos ouvidos os pios dos filhotes de passarinho no lado de fora da janela. Seus pipilos mostravam-se mais fracos do que de manhã e pareciam ter adquirido um timbre desesperado. Mas, antes que ela pudesse imaginar o que teria acontecido, adormeceu.

 

Ele contemplou o rosto de Magda na meia-luz do quarto. Sereno e inocente. O rosto de uma criança adormecida. Apertou os braços em torno dela, com medo de perdê-la.

 

Deveria ter guardado distância dela; sabia bem disso. Entretanto a atração fora demasiada. Deixara que ela remexesse as cinzas de sentimentos que ele julgara mortos e desaparecidos há muito tempo, e descobrisse brasas entre os carvões apagados. E naquela manhã, no calor de sua cólera por encontrá-la revistando seu armário, os carvões se reacenderam.

 

Era quase como um destino. Ele vivera muito e tinha experiência bastante para acreditar que tudo estava de fato arrumado para acontecer. Entretanto, havia certas coisas. . . inevitáveis. A diferença era sutil, contudo muito importante.

 

E no entanto não era correto deixá-la iludida, quando nem ele mesmo estava seguro de não ser obrigado a desaparecer. Talvez por isso mesmo tivesse sido atraído por ela. Se morresse ali, pelo menos o sabor dos lábios dela adoçaria seus últimos instantes. Não podia dar-se ao luxo de preocupar-se agora. Isso o distrairia, reduzindo suas chances de sobreviver na batalha que se aproximava. E contudo, se ele sobrevivesse, será que ela o aceitaria quando soubesse a verdade a seu respeito?

 

Puxou a coberta para cobrir os ombros nus de Magda. Não queria perdê-la. Se houvesse um meio de ficar com ela, depois que tudo tivesse acabado, ele se empenharia o máximo possível para descobri-lo.

 

Sexta-feira, 2 de maio

21h37m

 

O Capitão Woermann estava sentado em frente a seu cavalete. Decidira vencer sua resistência e pintar de novo aquela sombra que parecia um enforcado. Agora, porém, com a palheta na mão esquerda e um tubo de tinta na direita, não encontrava ânimo para fazer a correção. Era melhor deixar a sombra como estava. Não tinha importância. Afinal, não iria levar o quadro consigo. Não queria recordações daquele lugar quando fosse embora. Se ele viesse a partir.

 

Fora, as luzes do fortim estavam todas acesas, as sentinelas aos pares, armadas até os dentes e prontas para atirar à mais leve provocação. A arma de Woermann estava no coldre, esquecida sobre a cama.

 

Ele havia concebido uma teoria própria a respeito do fortim, não que a levasse muito a sério, mas a única que se encaixava nos fatos e esclarecia a maior parte dos mistérios. O fortim tinha vida. Isso explicava porque ninguém jamais vira quem matava os homens e por que ninguém encontrava um rastro nem era capaz de descobrir o esconderijo do assassino, a despeito de todas as paredes que haviam sido derrubadas.

 

Um fato, porém, não se ajustava em sua explicação. Um fato capital. O fortim não demonstrara qualquer reação quando eles chegaram, pelo menos de uma maneira que se pudesse notar. Na verdade, os pássaros pareciam evitar de fazer seus ninhos ali, mas Woermann não sentira qualquer coisa errada, até àquela primeira noite quando a parede do porão fora perfurada. A partir de então o fortim mudara completamente. Tornara-se sedento de sangue.

 

Ninguém havia explorado de maneira completa a caverna embaixo do porão. Na verdade parecia não haver razões para tanto. Sentinelas estavam de guarda no momento em que um soldado fora morto acima deles, sem que percebessem qualquer movimento de vinda ou ida através da abertura no pavimento. Talvez fosse conveniente explorar mais. Quem sabe se o coração do fortim não estava enterrado naquelas cavernas. Era nelas que deveriam procurar. Não. . . Isso levaria uma eternidade. As cavernas poderiam estender-se por quilómetros; ademais, ninguém desejaria receber tal missão. Lá no fundo era sempre noite. E a noite se tornara uma terrível inimiga. Somente os cadáveres permaneceriam naquela escuridão.

 

Os cadáveres. . . com suas botas enlameadas e mortalhas malpostas. De quando em vez, Woermann revia aquele quadro. Como agora. E durante todo o dia, desde que inspecionara a colocação dos dois últimos soldados mortos, aquelas botas sujas se atravessavam em seus pensamentos, perturbando-os, manchando-os de lama.

 

Aquelas botas sujas. . . Não sabia explicar por que a lembrança delas lhe fazia tanto mal.

 

Continuou sentado, com o olhar fixo na pintura.

 

Kaempffer estava sentado na beira da cama, com as pernas cruzadas, uma Schmeisser sobre os joelhos. Um tremor de frio tomou conta dele. Tentou reagir, mas não teve forças. Nunca imaginara o quanto o terror era exaustivo.

 

Precisava sair logo dali!

 

Explodir o fortim no dia seguinte - era isso o que deveria fazer! Colocar as cargas e reduzi-lo a escombros depois do almoço. Assim poderia passar a noite de sábado em Ploiesti, num leito com colchão, sem se sobressaltar com qualquer ruído, com uma simples corrente de ar. Não teria mais de ficar sentado, tremendo e suando, à espera do que poderia surgir na sua porta, vindo do corredor.

 

Mas o dia seguinte ainda estava longe. Não ficaria bem apressar-se tanto. Não era esperado em Ploiesti antes de segunda-feira e o normal seria que ele utilizasse todo o tempo disponível para resolver o problema no fortim. Explodi-lo só como último recurso, a ser considerado apenas depois que todos os demais falhassem.

 

O Alto Comando ordenara que aquele passo fosse vigiado, e escolhera o fortim como a melhor solução para essa vigilância. Destruí-lo teria de ser o derradeiro recurso.

 

Ouviu os passos cadenciados de um par de einsatzkommandos no corredor à frente de sua porta fechada. Toda aquela área estava bem guardada. Certificara-se disso, embora sem acreditar que houvesse a menor probabilidade de que uma rajada de tiros de uma Schmeisser fosse de fato capaz de deter o que estava causando todas aquelas mortes. . . simplesmente, esperava que os guardas fossem atacados primeiro, poupando-se assim por mais uma noite. E seria melhor que aqueles guardas ficassem acordados, no cumprimento de seu dever, por mais fatigados que estivessem! Ele exigira muito de seus homens durante todo o dia, derrubando a seção traseira do fortim, com ênfase especial na área em torno do quarto dele. Os soldados haviam testado todas as paredes dentro de um raio de quinze metros a partir do local onde ele se refugiara, mas não tinham encontrado nada. Não havia passagens secretas que conduzissem a seu quarto, nem esconderijos em qualquer parte.

 

Kaempffer estremeceu mais uma vez.

 

O frio e a escuridão chegaram como de costume, mas Cuza se sentia naquela noite fraco e doente demais para fazer girar sua cadeira e enfrentar Molasar. A codeína havia acabado e a dor em suas juntas tornara-se insuportável.

 

- Como você consegue entrar neste quarto e sair? - perguntou ele, à míngua de qualquer outra coisa para dizer.

 

Cuza estivera vigiando a pedra giratória que permitia uma passagem para a base da torre, certo de que Molasar apareceria por ali. Entretanto ele se achava naquele momento atrás da cadeira.

 

- Tenho meus recursos próprios para deslocar-me, sem necessidade de portas nem de passagens secretas. São meios muito além de sua compreensão.

 

- Juntamente com uma porção de outras coisas - replicou Cuza, incapaz de esconder o desespero que havia em sua voz.

 

Fora um mau dia. Além da dor incessante, havia a triste constatação de que a esperança, alimentada naquela manhã, de evitar um sofrimento para seu povo, não passara de uma quimera, de um sonho impraticável. Ele planejara um acordo com Molasar, uma troca de favores. Mas com que fim? Anular o major? Magda tivera razão ao argumentar que deter Kaempffer significaria apenas retardar o inevitável: a morte dele poderia até mesmo piorar a situação. Haveria por certo violentas represálias contra os judeus romenos se um oficial da SS, destacado para instalar um campo de concentração, fosse eliminado de maneira brutal. E a SS simplesmente enviaria outro oficial para Ploiesti talvez dentro de uma semana ou de um mês. De que adiantaria então? Os alemães tinham tempo de sobra. Estavam vencendo todas as batalhas, conquistando um país após outro. Parecia não haver meios de detê-los. E quando por fim eles assumissem o poder em todos os países que desejassem, poderiam perseguir à vontade os objetivos de seu insano líder com base na pureza racial.

 

No final das contas, tudo o que um aleijado professor de História pudesse fazer não provocaria a menor diferença.

 

E, para piorar as coisas, havia a insistente certeza de que Molasar temia a cruz... temia a cruz!

 

Molasar deslocou-se para dentro do campo de visão do professor e ficou parado, olhando para ele. Estranho, pensou Cuza, Ou mergulhei num pântano de autopiedade, que me deixa isolado, ou me acostumei com Molasar. Naquele momento, não era vítima da sensação de inferioridade que sempre sofrera na presença de Molasar. Talvez já não se importasse mais.

 

- Acho que você vai morrer - disse Molasar, sem rodeios. A brutalidade das palavras chocou o professor.

 

- Por suas mãos?

 

- Não. Pelas de você mesmo.

 

Será que Molasar tinha capacidade para adivinhar pensamentos? Os de Cuza haviam sido, naquela tarde, justamente nesse sentido. Pôr termo à sua vida resolveria uma série de problemas. Libertaria Magda. Sem ele para atender, a filha poderia fugir para as montanhas e escapar de Kaempffer, da Guarda de Ferro e do resto. Sim, a idéia lhe passara pela cabeça. Faltavam-lhe, porém, os meios... Os meios e a decisão.

 

- Talvez - replicou Cuza, evitando o olhar do outro. - E, se não for iniciativa minha, será em breve no campo de concentração do Major Kaempffer.

 

- Campo de concentração? - estranhou Molasar, inclinando-se para a frente e colocando-se sob a luz da lâmpada, a testa franzida pela curiosidade. - Um lugar onde se reúnem pessoas que vão morrer?

 

- Não. Um lugar para onde eles levam os que devem ser assassinados. O major vai instalar um campo assim não muito longe daqui, mais para o sul.

 

- Para matar valáquios? - exclamou Molasar, furioso, mostrando os Tdentes afiados e longos. - Um alemão está aqui para matar meu povo?

 

- Não se trata de seu povo - ressaltou Cuza, incapaz de esconder seu desânimo. Quanto mais pensava nisso pior se sentia.

 

- São judeus. Não são pessoas com quem você irá preocupar-se.

 

- Sou eu que decido o que me preocupa ou não! Mas judeus? Não há judeus na Valáquia.. . pelo menos não em número suficiente para despertar interesse.

 

- Isso era verdade quando você construiu o fortim. Mas no século seguinte nós fomos expulsos da Espanha e do restante da Europa ocidental. A maioria se instalou na Turquia, mas muitos foram para a Polônia, Hungria e Valáquia.

 

- Nós? - perguntou Molasar, intrigado. - Você é judeu? Cuza concordou com um movimento de cabeça, esperando uma explosão de anti-semitismo do antigo boiardo. Ao invés disso, porém, Molasar ponderou:

 

- Mas é um valáquio, também.

 

- A Valáquia formou com a Moldávia o país que agora chamamos de Romênia.

 

- Os nomes mudam. Você não nasceu aqui? E também não nasceram os outros judeus que vão ser levados para os campos de concentração?

 

- Sim, mas...

 

- Então todos eles são valáquios!

 

Cuza percebeu que a paciência de Molasar estava-se esgotando, mas insistiu:

 

- Mas seus ancestrais eram imigrantes.

 

- E daí? Meu avô veio da Hungria. Serei eu, que nasci neste solo, menos valáquio por causa disso?

 

- Não, claro que não.

 

Era uma discussão sem sentido. Precisava terminar.

 

- Então esses outros judeus de que você falou estão no mesmo caso. São valáquios e, conseqüentemente, meus compatriotas!

 

- arrematou Molasar, endireitando o corpo e puxando os ombros para trás. - Nenhum alemão pode invadir meu país e matar meus compatriotas!

 

Bem típico! - pensou Cuza. - Aposto que ele nunca protestou, no seu tempo, quando seus camaradas boiardos depredaram as propriedades dos camponeses valáquios. E obviamente ele também nunca se rebelou contra as empalações ordenadas por Vlad. Era admissível que a nobreza valáquia dizimasse o populacho, mas ai do estrangeiro que ousasse fazer isso!

 

Molasar recuara para as sombras além do cone de luz da lâmpada.

 

- Conte-me mais a respeito desses campos.

 

- Prefiro não falar sobre isso. É muito. . .

 

- Conte-me!

 

- Vou-lhe dizer o que sei - replicou Cuza com um suspiro resignado. - O primeiro foi instalado em Buchenwald, ou talvez Dachau, há uns oito anos mais ou menos. Existem outros: Flossenburg, Ravensbruck, Natzweiler, Auschwitz, e mais alguns de que provavelmente nunca ouvi falar. Em breve haverá um na Romênia - na Valáquia, como você gosta de chamar - e talvez até mais, dentro de um ano ou dois. Os campos têm uma finalidade: reunir determinadas categorias de pessoas, milhões delas, para serem torturadas, humilhadas, submetidas a trabalhos forçados e por fim exterminadas.

 

- Milhões?

 

Cuza não conseguia distinguir muito bem o tom de Molasar, mas sem dúvida ele estava tendo dificuldade de entender o que ouvia. Era agora uma sombra entre as sombras, agitando-se muito, quase freneticamente.

 

- Milhões - confirmou Cuza com firmeza.

 

- Vou matar esse major alemão!

 

- Isso não adiantará nada. Há milhares como ele, que virão substituí-lo. Você poderá matar alguns ou mesmo muitos, mas eles acabarão aprendendo como matar você.

 

- E quem os envia para aqui?

 

- O líder é um homem chamado Hitler, que. . .

 

- Um rei? Um príncipe?

 

- Não - replicou Cuza, procurando a definição exata. - Acho que voevod é a palavra que melhor traduz a posição dele.

 

- Ah! Um ditador! Então vou matá-lo; assim ele não mandará ninguém!

 

Molasar falara de modo tão banal que Cuza teve dificuldade em aprender o real significado daquelas palavras. Quando por fim entendeu, ainda perguntou:

 

- O que foi que você disse?

 

- O Ditador Hitler. Quando tiver readquirido toda a minha força beberei todo o sangue dele!

 

Cuza sentiu-se como se tivesse passado o dia inteiro tentando emergir das profundezas de um oceano, sem esperança de chegar à tona para respirar. Com as palavras de Molasar ele chegou à superfície e respirou. Contudo, não seria difícil afundar de novo.

 

- Mas você não poderá fazer isso! Ele está muito bem protegido,! E vive em Berlim!

 

Molasar aproximou-se, colocando-se mais uma vez dentro do cone de luz. Seus dentes estavam à mostra, agora numa grosseira imitação de sorriso.

 

- A proteção do Ditador Hitler não terá mais eficiência do que todas as medidas tomadas por seus lacaios aqui no fortim. Por mais portas fechadas e mais homens armados que o defendam, poderei agarrá-lo quando quiser. E por mais longe que esteja, eu o alcançarei quando tiver recobrado minhas forças.

 

Cuza mal podia conter sua excitação. Afinal, havia uma esperança, uma esperança bem maior do que ele jamais imaginara.

 

- Quando será isso? Quando poderá você ir a Berlim?

 

- Ficarei pronto para isso amanhã à noite. Estarei então suficientemente forte, em particular depois de matar todos os invasores.

 

- Então fico satisfeito por eles não me terem dado atenção, quando lhes disse que a melhor coisa que tinham a fazer era evacuar o fortim.

 

- Você o quê? - perguntou ele aos berros.

 

Cuza não tirava os olhos das mãos de Molasar, prontas a esganá-lo, contidas apenas pela vontade de seu dono.

 

- Desculpe - pediu o professor, recostando-se em sua cadeira. - Pensei que fosse isso o que você queria.

 

- Eu quero a vida deles! - insistiu Molasar, mas as mãos recuaram. - Quando eu quiser outra coisa avisarei você, e você fará exatamente o que eu mandar.

 

- É claro, é claro.

 

Cuza, além de concordar completa e verdadeiramente com isso, não estava em condições de oferecer a menor resistência. Não podia esquecer com que espécie de criatura estava lidando. Molasar não toleraria ser enganado sob qualquer pretexto; não admitia outra solução que não fosse a sua. Nada mais era aceitável ou mesmo analisável por ele.

 

- Está bem, pois vou precisar da ajuda de um mortal. Sempre foi assim. Como somente posso agir nas horas de escuridão, necessito de alguém que, durante o dia, possa aparecer, a fim de tomar certas providências impossíveis à noite. Foi assim que aconteceu quando construí este fortim e montei toda a engrenagem de sua manutenção até hoje. No passado utilizei-me de alguns proscritos, seres humanos com apetites diferentes dos meus, mas não mais aceitáveis por seus camaradas. Comprei os serviços deles fornecendo-lhe os meios de saciarem seus apetites. Quanto a você, porém... seu preço, acho eu, será de acordo com meus desejos. Participamos, no momento, de uma causa comum.

 

Cuza olhou para suas mãos aleijadas.

 

- Suspeito que não seja o agente de que você precisa. Há melhores do que eu.

 

- A tarefa que vou entregar a você, para amanhã à noite, é bem simples: Um objeto muito precioso para mim deve ser retirado do fortim e escondido em lugar seguro nas montanhas. Feito isso, ficarei livre para perseguir e destruir aqueles que pretendem matar nossos compatriotas.

 

Cuza experimentou uma estranha sensação de desafogo, um alívio emocional ao imaginar Hitler e Himmler encolhidos de medo na frente de Molasar, e depois seus corpos estraçalhados e sem vida - ou melhor, sem cabeça - expostos na entrada de um campo de concentração vazio. Isso significaria o fim da guerra e a salvação de seu povo; não apenas os judeus romenos, mas toda a sua raça! Era a promessa de um amanhã para Magda. E mais - o desaparecimento de Antonescu e da Guarda de Ferro. Talvez até significasse sua recondução à cátedra na universidade.

 

Mas logo a realidade o trouxe de volta daquelas alturas, sentando-o novamente em sua cadeira de rodas. Como poderia ele tirar qualquer coisa do fortim? E de que modo a levaria para as montanhas, quando toda a sua força mal podia fazer com que a cadeira cruzasse a porta?

 

- Você precisa de um homem são - disse ele a Molasar, numa voz desanimada. - Um aleijado como eu é inútil para você.

 

Adivinhou, mais do que viu, que Molasar contornava a mesa ao lado dele. Sentiu uma leve pressão em seu ombro direito. Era a mão de Molasar. Levantou os olhos e o encarou. Ele estava sorrindo.

 

- Você tem muito o que aprender a respeito de meus poderes.

 

O FORTIM Sábado, 3 de maio

10h20m

 

Júbilo.

 

Era isso o que ela sentia. Magda nunca imaginara o quanto era maravilhoso acordar de manhã e encontrar-se envolvida pelos braços de alguém que ela amava. Que sensação de tranqüilidade e de segurança! O dia que tinha pela frente apresentava-se com a perspectiva de ser ainda mais brilhante, dado que Glenn faria parte dele.

 

Glenn estava deitado de lado e ela também, um de frente para o outro. Ele ainda dormia e, embora Magda não quisesse acordálo, não pôde dominar o desejo de acariciá-lo. Cheia de ternura, passou a mão pelo ombro dele e pelas cicatrizes em seu peito coberto de pêlo vermelho. Encostou a coxa nua na dele. Estava tão sensualmente morno sob as cobertas, pele contra pele, poro contra poro! O desejo começou a fazer subir a temperatura de sua pele. Que bom se ele se acordasse!

 

Magda ficou observando o rosto de Glenn, à espera de um movimento. Tinha tanto o que aprender a respeito daquele homem! De onde viera ele, afinal? Como teria sido sua juventude? O que estava fazendo ali? Por que trouxera aquela enorme espada? O que havia nele de tão maravilhoso? Ela se sentia como uma colegial, excitada, ansiosa. Não se recordava de haver sido tão feliz.

 

Queria que Papai o conhecesse. Os dois iriam entender-se maravilhosamente. Entretanto ela não imaginava de que maneira Papai iria reagir ao saber do relacionamento dela com Glenn. Ele não era judeu... Na verdade, Magda não sabia a origem dele, mas por certo não era judeu. Isso, é claro, não faria a menor diferença para ela, mas tais assuntos haviam sido importantes para Papai.

 

Papai. . .

 

Uma súbita sensação de culpa afogou seu nascente desejo. Enquanto ela estivera aconchegada nos braços de Glenn, feliz e em segurança entre espasmos de indizível êxtase, Papai lá estava, gelado e sozinho num quarto de pedra, cercado por homens cruéis e aguardando a entrevista com uma criatura vinda do Inferno. Devia sentir-se envergonhada!

 

E, no entanto, por que não poderia ela desfrutar um pequeno prazer? Não abandonara Papai. Ainda continuava ali na estalagem. Ele a expulsara do fortim na noite anterior e se recusara, na véspera, a passear no lado de fora. E agora que pensava nisso descobriu que, se Papai a tivesse acompanhado até a estalagem na manhã do dia anterior, ela não teria entrado no quarto de Glenn e eles não estariam agora juntos.

 

É estranho como as coisas acontecem.

 

Entretanto, disse ela de si para si, o que aconteceu ontem e na noite passada não alterava de forma alguma as coisas. Eu mudei, mas os nossos propósitos continuam inalterados. Papai e eu estamos, nesta manhã, tão à mercê dos alemães como estávamos na manhã de ontem e nas anteriores. Ainda somos judeus. Eles ainda são nazistas.

 

Magda afastou-se de junto de Glenn e levantou-se, carregando consigo a colcha da cama e cobrindo-se com a mesma ao chegar à janela. Muita coisa mudara no comportamento dela, muitas inibições haviam simplesmente deixado de existir, como a camada de pintura de um objeto de metal submetido ao fogo; entretanto, não poderia aparecer nua na janela, em plena luz do dia.

 

O fortim.. . Podia sentir-lhe a presença antes mesmo de aproximar-se da janela. A impressão de algo maligno que sentira dentro dele espraiara-se até à vila durante a noite. . . como se Molasar estivesse à procura dela. No outro lado da garganta lá estava aquela construção de pedra cinzenta, sob um céu também de cinza, toldado pelos últimos remanescentes do nevoeiro noturno que ainda envolviam as bases de suas muralhas. As sentinelas percorriam os parapeitos; o portão estava aberto. E havia alguém ou alguma coisa se movendo em cima da ponte, na direção da estalagem. Magda firmou o olhar, aproveitando a luz da manhã, para descobrir o que era.

 

Uma cadeira de rodas. E nela... Papai. Mas não havia ninguém empurrando-a. Ele mesmo acionava as rodas. Com movimentos fortes, rápidos e ritmados, as mãos de Papai agarravam os aros das rodas, fazendo-as girar com velocidade ao longo da ponte.

 

Era inacreditável, mas era o que ela estava vendo. E Papai dírigia-se para a estalagem!

 

Sacudindo Glenn, para que acordasse, ela começou a correr pelo quarto, juntando as peças de suas roupas e vestindo-as. Glenn levantou-se logo, rindo do nervosismo dela e ajudando-a a encontrar sua blusa. Magda não estava achando graça nenhuma naquela situação. Apressadamente acabou de vestir-se e saiu correndo do quarto. Queria estar lá embaixo, quando Papai chegasse.

 

Theodor Cuza estava desfrutando uma alegria especial naquela manhã.

 

Fora curado. Suas mãos estavam descobertas e expostas ao ar frio da manhã, agarrando as rodas da cadeira e fazendo-as girar sobre a ponte. Tudo isso sem dor, sem grande esforço. Pela primeira vez durante um tempo tão longo que ele não seria capaz de lembrar, Cuza despertara com a sensação de que alguém chegara às escondidas durante a noite e encanara com firmeza cada uma de suas juntas. Seus braços moviam-se agora para a frente e para trás como pistões bem lubrificados e sua cabeça girava para um lado ou para o outro sem dificuldade ou estalidos de dor. Sua língua apresentava-se úmida... havia de novo suficiente saliva para engolir, e seu rosto descontraíra-se, e ele podia voltar a sorrir sem que as pessoas em torno dele estremecessem e se afastassem.

 

E era isso o que ele fazia agora - sorrindo como um tolo pela alegria de ser capaz de movimentar-se sozinho, de tomar fisicamente parte ativa no mundo que o cercava.

 

Lágrimas! Havia lágrimas em seu rosto. Chorara várias vezes desde que a doença o atacara, mas, como acontecera com a saliva, as lágrimas haviam secado. Agora seus olhos estavam úmidos e seu rosto molhado por elas. E ele chorava de alegria, sem acanhamento, enquanto rodava sua cadeira em direção à estalagem.

 

Cuza não sabia o que deveria esperar quando Molasar se aproximou dele na noite anterior e lhe colocou a mão sobre o ombro. Ignorava, na ocasião, o que aquilo significava, mas Molasar disse-lhe que fosse dormir e que tudo seria diferente na manhã seguinte. Adormecera logo e não tivera as repetidas interrupções do sono, durante a noite, para tomar um gole de água que acalmasse a secura da boca e da garganta. E ainda despertara mais tarde do que de costume.

 

Despertar... Era esse o verbo que definia seu estado atual. Despertara, deixando de ser um morto vivo. Logo na primeira tentativa conseguira sentar-se e em seguida levantar-se sem dores, sem apoiar-se nas paredes ou na cadeira. Ficou então sabendo que seria capaz de ajudar Molasar, e ele desejava ajudá-lo. Qualquer coisa que Molasar lhe mandasse fazer, ele o faria com satisfação.

 

Tivera de enfrentar alguns momentos delicados ao deixar o fortim. Não queria deixar que alguém percebesse que ele podia andar, de modo que repetiu os movimentos de costume ao rodar a cadeira em direção ao portão. As sentinelas olharam para ele com curiosidade, mas não o detiveram; sabiam que havia permissão para aquelas visitas à filha. Felizmente, nenhum dos oficiais se encontrava no pátio quando ele passou.

 

Agora, com os alemães atrás e a ponte livre à sua frente, o Professor Theodor Cuza fazia girar as rodas de sua cadeira com a maior rapidez que lhe era possível. Tinha de mostrar aquilo a Magda. Ela precisava ver o que Molasar conseguira fazer por ele.

 

A cadeira de rodas alcançou o fim da ponte com um solavanco que quase atirou Cuza de ponta-cabeça, mas ele manteve-se rodando. Era mais difícil rodar sobre chão de barro mas não tinha importância. Isso dava-lhe oportunidade de exercitar seus músculos, que pareciam surpreendentemente fortes depois de tantos anos de imobilidade. Depois de passar pela porta da estalagem, ele continuou contornando a casa até seu lado sul. Nesse lado havia apenas uma janela, no primeiro pavimento, que abria para a sala de jantar. Ele parou depois de passar por ela e rodou a cadeira até junto da parede. Ficava assim fora da vista tanto do fortim como da estalagem, e ele teria simplesmente de fazer aquilo mais uma vez.

 

Junto à parede, travou as rodas da cadeira e, apoiando-se em seus braços, pôs-se de pé, sem o auxílio de ninguém. Sozinho. Em pé. Por si mesmo. Era um homem novamente. Poderia olhar os outros de frente sem necessidade de levantar os olhos. Acabara-se aquela existência de dependente, de ser tratado como uma criança. Agora ali ele estava de pé... um homem outra vez!

 

- Papai!

 

Virou-se e deparou com Magda na esquina da casa, olhando embasbacada para ele.

 

- Uma linda manhã, não acha? - disse ele abrindo os braços para a filha.

 

Depois de uma leve hesitação, Magda precipitou-se ao seu encontro.

 

- Oh, Papai! - disse ela numa voz que foi abafada pelas dobras do casaco de Cuza, tal a maneira com que ele a apertou contra o peito. - Você pode ficar em pé,!

 

- E muito mais do que isso.

 

Afastou-se dela e começou a caminhar em torno da cadeira, a princípio apoiando-se com a mão no encosto, depois soltando-o ao certificar-se de que não precisava dele. Suas pernas estavam fortes, mais fortes até do que quando se levantara naquela manhã. Podia caminhar! Achava até que era capaz de correr, de dançar. Entusiasmado, curvou-se e rodopiou numa grotesca imitação de um passo da abulea cigana, quase caindo no chão. Conseguiu, porém, equilibrarse e voltou para perto de Magda, rindo do espanto que havia no rosto dela.

 

- Papai, que aconteceu? É um milagre!

 

Ainda ofegante, em virtude das risadas e do esforço, ele tomou as mãos da filha.

 

- Sim, foi um milagre. Um milagre no mais verdadeiro sentido da palavra.

 

- Mas como... ?

 

- Molasar foi quem fez isto. Curou-me. Estou livre da esclerodermia. . . completamente. Como se nunca tivesse estado doente.

 

Olhou para Magda e viu como o rosto dela brilhava de alegria por ele, como suas pálpebras piscavam, tentando conter as lágrimas de felicidade. Ela estava de fato participando daquele momento. E, ao fitá-la detidamente, sentiu que havia mais alguma coisa diferente, uma outra alegria mais profunda que ele nunca tinha visto antes nela. Chegou a pensar em fazer-lhe uma pergunta, mas desistiu. Ficaria para mais tarde. Sentia-se agora tão bem, tão vivo!

 

Um ruído lhe chamou a atenção e ele olhou para o lado. Magda fez o mesmo. Os olhos dela brilharam ao ver quem era.

 

- Veja, Glenn! Não é maravilhoso? Molasar curou meu pai!

 

O homem de cabelo vermelho e estranha pele morena nada disse, parado na esquina da estalagem. Seus olhos de um azul-pálido fixaram-se nos de Cuza, fazendo com que o professor sentisse que sua própria alma estava sendo examinada. Magda continuava falando, excitada, correndo para Glenn e puxando-o pelo braço. Parecia embriagada de tanta felicidade.

 

- É um milagre,! Um verdadeiro milagre! Agora podemos sair daqui antes que...

 

- Qual o preço que o senhor pagou? - perguntou Glenn num tom grave que interrompeu a tagarelice de Magda.

 

Cuza ergueu a cabeça e tentou enfrentar o olhar de Glenn. Percebeu que não poderia. Não havia naqueles frios olhos azuis qualquer traço de júbilo. Apenas decepção e tristeza.

 

- Nada paguei. Molasar fez isso por um compatriota.

 

- Nada se recebe de graça. Nunca.

 

- Bem, ele me pediu para prestar-lhe alguns pequenos serviços, ajudá-lo em certas providências depois que ele deixar o fortim, uma vez que não lhe é possível movimentar-se durante o dia.

 

- O quê, especificamente?

 

Cuza estava ficando aborrecido com esse tipo de interrogatório. Glenn não tinha o direito de lhe fazer perguntas e o professor estava determinado a não dar resposta alguma.

 

- Ele não disse.

 

- É estranho, não acha? Receber pagamento por um serviço que o senhor ainda não prestou, nem mesmo concordou em prestar? O senhor nem sequer sabe o que lhe será exigido e no entanto já aceitou o pagamento.

 

- Isto não é um pagamento - replicou Cuza com renovada confiança. - O que ele fez apenas me deixa em condições de ajudá-lo. Não houve uma barganha porque não há necessidade disso. Nossa ligação resulta do fato de participarmos da mesma causa - expulsar os alemães do solo romeno e eliminar Hitler e os nazistas do mundo!

 

Os olhos de Glenn se arregalaram e Cuza esteve a ponto de rir da expressão de seu rosto.

 

- Ele lhe prometeu isso?

 

- Não foi uma promessa! Molasar sentiu-se motivado quando o informei a respeito dos planos de Kaempffer para instalar um campo de concentração em Ploiesti. E, ao saber que havia na Alemanha um homem chamado Hitler que estava atrás de tudo, jurou destruí-lo tão logo recobrasse todo o seu poderio e pudesse deixar o fortim. Não havia necessidade de um acordo, de uma barganha ou de um pagamento - temos uma causa comum!

 

Devia estar falando muito alto pois notou que Magda se afastara um pouco, com um olhar de preocupação no rosto. Agarrou o braço de Glenn e apoiou-se nele. Cuza sentiu-se gelado. Tentou manter a voz calma ao perguntar:

 

- E o que esteve você fazendo, minha filha, desde que nos separamos ontem pela manhã?

 

- Eu... Bem. . . Estive quase todo o tempo com Glenn. Não precisava acrescentar mais nada. Ele ficou sabendo. Sim, ela estivera com Glenn. Cuza olhou para a filha, abraçada àquele estranho com evidente intimidade, a cabeça descoberta, os cabelos agitados pelo vento. Ela estivera com Glenn. Esta certeza o encolerizou. Fora das vistas dele durante menos de dois dias e já se entregara àquele forasteiro. Iria acabar com aquilo! Mas não agora. Mais tarde. Havia muitas outras coisas importantes para serem atendidas. Tão logo ele e Molasar terminassem a missão em Berlim, esse tal de Glenn, com seus olhos acusadores, seria objeto de sua atenção, também.

 

... Objeto de sua atenção... ? O professor nem mesmo sabia o que queria significar com aquilo. Qual seria a causa de sua hostilidade em relação a Glenn?

 

- Mas você não percebe o que significa isto? - disse Magda, obviamente tentando acalmá-lo. - Já podemos partir, Papai! Atravessamos o passo e fugimos daqui. Você não terá de voltar para o fortim! E Glenn nos ajudará, não é verdade, Glenn?

 

- Claro. Mas acho bom você perguntar a seu pai se ele quer mesmo partir.

 

Miserável! - pensou Cuza, ao perceber a interrogação nos olhos aflitos de Magda. Ele pensa que sabe tudo!

 

- Papai... ? - insistiu ela, mas a expressão do rosto do pai não deixava dúvidas sobre qual seria a resposta.

 

- Tenho de voltar - disse-lhe o pai. - Não por mim. Não tenho mais ambições. Mas por nosso povo. Por nossa cultura. Pelo mundo. Esta noite ele terá poderio bastante para acabar com Kaempffer e com o resto dos alemães que se encontram no fortim. Depois disso, terei de executar algumas tarefas simples para ele e poderemos partir sem a preocupação de nos escondermos das patrulhas. E em seguida Molasar dará cabo de Hitler!

 

- Ele poderá mesmo fazer isso? - perguntou Magda, revelando suas dúvidas ante as dificuldades da tarefa que o pai estava descrevendo.

 

- Também me fiz a mesma pergunta. Recordei então o quanto ele deixou aqueles alemães apavorados, quase a ponto de atirarem uns nos outros, e a maneira como zombou deles naquele fortim durante uma semana e meia, matando-os à vontade. - Expôs ao vento as mãos nuas e constatou, com renovada admiração, que seus dedos se flexionavam e se estendiam facilmente, sem a menor dor. - E, depois de tudo o que fez por mim, concluí que há muito pouca coisa que ele não possa fazer.

 

- Você pode confiar nele? - perguntou Magda.

 

Cuza olhou espantado para a filha. Aquele Glenn aparentemente corrompera-a com seu feitio suspeitoso. Era um relacionamento maléfico.

 

- E acaso estou em condições de não confiar? - replicou ele, depois de uma pausa. - Minha filha, você não está vendo que isso representará para todos nós um retorno à normalidade? Os nossos amigos ciganos não serão mais perseguidos, esterilizados e postos a trabalhar como escravos. Nós, os judeus, não seremos expulsos de nossas casas e de nossos empregos; nossos bens deixarão de ser confiscados e desaparecerá a ameaça de extinção de nossa raça. Que mais posso fazer senão confiar em Molasar?

 

Magda permaneceu silenciosa. Não queria replicar, mesmo porque não tinha argumentos.

 

- E quanto a mim - continuou Cuza - significará o retorno à universidade.

 

- Sim... as suas pesquisas. - murmurou Magda, como se estivesse pensando em outra coisa.

 

- Minhas pesquisas foram de fato a primeira coisa em que pensei. Mas agora, que estou novamente com saúde, não vejo por que não possa pretender o cargo de reitor.

 

Magda olhou para ele tomada de surpresa.

 

- Mas você nunca aceitou participar da administração da universidade antes.

 

Ela tinha razão. Na realidade, aquelas funções jamais o tinham seduzido. Mas agora as coisas eram diferentes.

 

- Isso foi antes, mas temos de viver o dia de hoje. E se eu cooperar para que a Romênia não seja destruída pelos fascistas, você não acha que mereço algum reconhecimento?

 

- O senhor também cooperará para que Molasar fique solto no mundo - disse Glenn, quebrando seu prolongado silêncio. - Isso fará jus a um tipo de reconhecimento que talvez o senhor não deseje.

 

Cuza sentiu que os músculos de suas maxilas se retesavam. Por que aquele intrometido não ia embora?

 

- Ele já está solto! Meu papel será apenas o de encaminhar seu poderio. Deve haver uma maneira de firmarmos uma espécie de.. . acordo com ele. Temos muito que aprender com um ser como Molasar, e ele tem muito a oferecer. Quem sabe que outras enfermidades supostamente incuráveis ele será capaz de curar? Nossa dívida para com ele já será enorme por nos livrar do nazismo. Considero uma obrigação moral descobrirmos um meio de chegara um entendimento com ele.

 

- Entendimento? - estranhou Glenn. - Que compensações o senhor está pensando oferecer-lhe?

 

- Há uma porção delas.

 

- Quais, por exemplo?

 

- Bem... Podemos dar-lhe os nazistas que iniciaram esta guerra e instalaram os campos de concentração. Será um bom início.

 

- E depois? Quais serão os seguintes? Não se esqueça de que Molasar não se deterá. O senhor terá de continuar assegurando-lhe a subsistência. Torno a perguntar: quais serão os seguintes?

 

- Não admito ser interpelado dessa maneira! - exclamou Cuza, à beira de perder o controle. - Alguma coisa tem de ser feita! Se uma nação inteira se submeteu a Adolf Hitler, certamente encontraremos um meio de coexistir com Molasar!

 

- Não pode haver coexistência com monstros - replicou Glenn - sejam eles nazistas ou Nosferatu. Com licença.

 

Fez meia-volta e foi-se embora. Magda continuou imóvel, quieta, vendo-o afastar-se. Cuza, por sua vez, observava a atitude da filha, sabendo que, embora não corresse de fato atrás de Glenn, acompanhava-o em espírito. Perdera a filha.

 

Essa certeza deveria feri-lo, cortar-lhe o coração. Entretanto não sofria qualquer dor ou impressão de perda. Apenas raiva. O único pensamento que o enfurecia era saber que sua filha lhe fora roubada.

 

Por que não se sentia ferido?

 

Depois de ver Glenn desaparecer na esquina da estalagem, Magda encarou o pai. Estudou aquele rosto irado, tentando compreender o que havia no coração dele, tentando pôr em ordem seus próprios sentimentos confusos.

 

Papai ficara curado, e isso era maravilhoso. Mas a que preço? Ele mudara tanto, não apenas fisicamente, mas também em seu modo de pensar, até mesmo em sua personalidade. Havia um tom de arrogância em sua voz que ela nunca ouvira antes. E a defesa que fazia de Molasar era de todo injustificável. Parecia que Papai fora reduzido a fragmentos e depois reconstituído com arame fino. .. mas faltavam algumas peças.

 

- E você? - perguntou ele. - Também vai fugir de mim? Magda fixou os olhos nele, antes de responder. Era quase um estranho.

 

- Claro que não - respondeu, esperando que sua voz não revelasse o quanto ela desejava estar com Glenn. - Entretanto.

 

- Entretanto o quê? - perguntou ele, a voz soando como uma chicotada.

 

- Você pensou mesmo o que significa lidar com uma criatura como Molasar?

 

As feições de Papai, agora novamente flexíveis, se contorceram a ponto de a assustarem. Os lábios dele estavam contraídos de tanta raiva.

 

- Então é isso! O seu amante conseguiu que você se colocasse contra seu próprio pai e seu próprio povo, não foi? - exclamou ele, as palavras pronunciadas com a violência de golpes e acompanhadas de uma risada amarga. - Com que facilidade você foi dominada, minha filha! Um par de olhos azuis, um corpo musculoso, e você imediatamente volta as costas a seu povo, justamente quando ele está prestes a ser trucidado!

 

Magda sentiu-se como se tivesse levado uma pancada na cabeça. Não era Papai quem estava falando aquilo. Nunca fora mau para ela nem para qualquer outra pessoa, e no entanto agora se mostrava capaz de tanta crueldade! Apesar de tudo ela se recusava a deixar que ele percebesse o quanto a tinha ferido.

 

- Minha única preocupação era você - disse ela, procurando evitar que os lábios tremessem. - Tem certeza de que pode confiar em Molasar?

 

- E você tem certeza de que não posso? Nunca falou com ele, nunca o ouviu nem se surpreendeu com o brilho de seus olhos quando ele se refere aos alemães que invadiram seu fortim e seu país.

 

- Senti o seu contato - replicou Magda sentindo um calafrio, apesar do calor do sol. - Duas vezes. Não há nada que me convença de que ele se preocupa com os judeus. .. nem com qualquer ser.

 

- Também senti seu contato - disse Papai levantando os braços e circulando rápido em torno da cadeira vazia. - Veja com seus próprios olhos o que esse contato fez por mim. Quanto ao fato de Molasar salvar nosso povo, não tenho ilusões. Ele pouco está ligando para os judeus em outros países; só se interessa pelos que vivem aqui. Apenas os judeus romenos. A palavra-chave é romeno. Ele pertenceu à nobreza desta terra, que ainda considera como sua. Chame isto de nacionalismo, de patriotismo, do que quiser; não tem importância. O fato é que quer expulsar os alemães daquilo que ele denomina de solo valáquio e pretende agir nesse sentido. Nosso povo se beneficiará disso. E eu estou decidido a fazer o que puder para ajudá-lo!

 

As palavras soavam como sinceras. Magda não podia deixar de admitir isso. Eram lógicas e plausíveis. Talvez fosse uma atitude nobre a que Papai estava tomando. Naquele momento ele poderia fugir e salvar-se juntamente com ela; em vez disso, resolvera voltar para o fortim e tentar salvar mais do que duas vidas. Arriscava a dele em favor de um objetivo maior. Talvez fosse a decisão correta. Magda se esforçava para acreditar nesse raciocínio

 

Mas não podia. O entorpecente frio da mão de Molasar a deixara incapacitada para acreditar nele. E havia algo mais: o estranho brilho nos olhos de Papai. Um olhar desvairado. Corrompido .

 

- Quero apenas a segurança de você - foi tudo o que ela pôde dizer.

 

- E eu quero a sua - replicou ele. - Magda notou uma brandura em seus olhos e sua voz. Por um momento pareceu ser o mesmo de antigamente. - E quero também que você se afaste desse tal Glenn. Não é amizade conveniente.

 

Ela desviou o olhar na direção do passo. Jamais concordaria em perder Glenn.

 

- Ele é a melhor coisa que já me aconteceu na vida.

 

- Tanto assim?

 

Magda sentiu que a dureza retornava ao tom de voz de Papai.

 

- Sim - respondeu com voz sumida. - Ele me fez ver que, até agora, eu não conhecia o real significado de viver.

 

- Que emocionante! Que melodramático! - comentou Papai, a voz destilando veneno. - Mas ele não é judeu!

 

Magda já esperava por isso.

 

- Pouco me importa - replicou, enfrentando o pai. De certo modo sabia que Papai também pouco estava ligando para isso. Utilizava apenas mais uma objeção para feri-la. - Ele é um homem bom. Quando e se sairmos daqui, eu o acompanharei, caso ele me queira.

 

- Depois veremos isso! - O tom era de ameaça. - Mas por ora espero que não discutamos mais.

 

Sem olhar para ela, sentou-se na cadeira.

 

- Papai, onde vai?

 

- Leve-me de volta para o fortim! Era demais para ela.

 

- Vá sozinho, como veio!

 

Mal tinha acabado de extravasar seu ressentimento, Magda arrependeu-se do que dissera. Nunca havia falado com o pai daquela maneira em toda a sua vida. Pior ainda: Papai pareceu não ter notado ou, se notou, não deu a menor importância à reação da filha.

 

- Foi uma tolice de minha parte ter vindo esta manhã sem ninguém me empurrando - disse ele, como se não tivesse ouvido as palavras dela. - Mas não tive paciência para esperar que você fosse buscar-me. Preciso ser mais cuidadoso. Não quero que haja suspeita quanto ao meu verdadeiro estado de saúde, a fim de evitar que redobrem a vigilância sobre mim. É melhor você me levar.

 

Magda obedeceu, relutante e ressentidamente. Pela primeira vez sentiu-se satisfeita por deixá-lo no portão e voltar sozinha para a estalagem.

 

Matei Stephanescu estava furioso. A raiva queimava-lhe o peito como ferro em brasa. Não sabia por quê. Estava sentado, tenso e rígido, na sala de sua pequena casa na extremidade sul da vila, com uma xícara de chá e um pedaço de pão sobre a mesa à sua frente. Pensava em uma porção de coisas. E sua raiva aumentava mais.

 

Achava que não era direito que Alexandra e seus filhos trabalhassem no fortim a vida inteira, ganhando bom dinheiro, enquanto ele tinha de pastorear um rebanho de cabras até que elas ficassem grandes bastante para serem vendidas ou trocadas, a fim de que ele pudesse sobreviver. Até então jamais invejara Alexandru, mas naquela manhã parecia que ele e seus filhos lhe haviam roubado todo o pasto de suas cabras.

 

Matei lembrou-se de seus próprios filhos. Necessitava deles ali. Já com quarenta e sete anos de idade, estava ficando grisalho e com dor nas juntas. E onde andavam seus filhos? Haviam partido para Bucareste dois anos antes, em busca de melhor sorte, abandonando pai e mãe, sem se lembrarem que ele ia ficando velho e precisava de ajuda. Desde então não tivera mais notícia dos rapazes. Matei tinha certeza de que, se em vez de Alexandro fosse ele o encarregado de cuidar do fortim, seus filhos estariam agora a seu lado e talvez Alexandro é que tivesse de ir para Bucareste.

 

Aquele era um mundo miserável que estava cada vez pior. Sua própria mulher já não se importava mais com ele e não se levantara naquela manhã. loan sempre se preocupara no sentido de que ele comesse bem na primeira refeição. Naquele dia, porém, acontecera qualquer coisa. Ela não estava doente, mas continuara deitada, e simplesmente lhe dissera: "arranje-se você mesmo!"

 

E ele teve de preparar seu chá, que agora ali estava, frio e sem gosto, na xícara à sua frente. Apanhou a faca e cortou um pedaço de pão. Mas depois da primeira dentada cuspiu.

 

Pão velho!

 

Deu um murro na mesa. Não iria mais suportar aquilo. Com a faca ainda na mão, entrou no quarto de dormir e se inclinou sobre o vulto de sua mulher, ainda envolto nas cobertas.

 

- O pão está velho - disse ele.

 

- Então vá arranjar pão fresco você mesmo - foi a resposta abafada.

 

- Você é uma mulher ruim! - exclamou ele, com voz rouca. Sentiu o cabo úmido da faca em sua mão. Sua cólera chegava a um grau incontrolável.

 

loan afastou as cobertas e pôs-se de joelhos na cama, as mãos nos quadris, a cabeleira negra em desalinho, o rosto ainda sonolento. A resposta dela foi igualmente irada:

 

- E você é uma pobre imitação de homem!

 

Matei ficou imóvel, olhando para sua mulher, em estado de choque. Por um momento teve vontade de fugir do quarto. Não podia acreditar que loan dissesse uma coisa daquelas. Ela o amava. E ele a amava. Agora, porém, a vontade dele era matá-la.

 

O que estava acontecendo? Era como se alguma coisa no ar que eles respiravam os tivesse envenenado.

 

E então ele perdeu de todo o controle e, com um furor insensato, avançou de faca em punho na direção da mulher. Sentiu o impacto. Quando a lâmina afundou no corpo de loan ele sentiu o impacto e ouviu-lhe o grito de terror e agonia. Depois recuou e saiu do quarto, sem sequer procurar saber onde a faca a atingira ou se ela ainda estava viva ou morta.

 

Ao abotoar sua túnica antes de descer para o refeitório, na hora do almoço, o Capitão Woermann olhou pela janela e viu o professor e a filha aproximando-se do fortim através da ponte. Ficou observando o par, com uma amarga satisfação em verificar que tomara uma decisão correta ao sugerir que a moça ficasse na estalagem e não no fortim, e que pai e filha pudessem encontrar-se e conversar livremente durante o dia. Melhorou muito a convivência dos homens com a partida da moça, que não foi mais importunada, apesar de andar sozinha. Woermann acertara quanto ao juízo que fizera dela: leal e devotada. Enquanto os observava notou que eles pareciam envolvidos em acesa discussão.

 

Alguma coisa se mostrou errada aos olhos de Woermann. Olhando melhor, percebeu que as mãos do professor estavam sem luvas. Era a primeira vez, desde que ele chegara, que isso acontecia. E Cuza parecia estar ajudando a movimentar a cadeira, empurrando o aro das rodas.

 

Woermann sacudiu os ombros. Talvez o professor tivesse tido apenas uma melhora. Desceu a escada, afivelando o cinturão e o coldre enquanto caminhava. O pátio era uma confusão de jipes, caminhões, geradores e entulhos provocados pela derrubada de paredes. Os homens de serviço estavam no refeitório, almoçando. A impressão era que naquele dia eles não tinham trabalhado tão duramente como na véspera, o que se explicava por não ter havido, na noite anterior, morte alguma para motivá-los.

 

Ouviu vozes vindas do lado do portão. O professor e a filha estavam chegando, ainda discutindo, enquanto a sentinela se mantinha impassível. Woermann não precisava entender romeno para concluir que havia uma desavença entre eles. A moça parecia estar na defensiva, mas sem querer ceder. O pai dava a impressão de um tirano, explorando sua enfermidade como uma arma contra a filha.

 

Entretanto, ele parecia ter melhorado muito. Sua voz, em geral fraca, soava de forma enérgica. O professor certamente estava passando muito bem.

 

Woermann retomou sua caminhada em direção ao refeitório. Todavia, depois de alguns passos, retardou o andar, quando sua atenção foi atraída para a direita, onde um arco de pedra dava acesso para o porão e mais além.

 

Aquelas botas. . . aquelas malditas botas enlameadas...

 

Elas o perseguiam e pareciam zombar dele... Havia nelas qualquer coisa estranha. Precisava saber o que era. Agora mesmo.

 

Desceu a escada rapidamente e entrou no porão. Não havia necessidade de prolongar aquela incerteza. Queria apenas dar uma olhada e voltar para a luz. Apanhou um lampião que estava junto à parede derrubada e o acendeu; depois, encaminhou-se para a noite silenciosa e fria do corredor embaixo do porão.

 

Ao pé da escada havia três grandes ratos chafurdando na lama. Com nojo, Woermann engatilhou sua Luger, enquanto os ratos o olhavam desafiadoramente. Quando acabou de colocar uma bala na agulha e engatilhar a arma, os ratos já tinham fugido.

 

Ainda de pistola em punho, Woermann percorreu a fileira de cadáveres envoltos em lençóis. Não encontrou mais ratos em seu caminho. O problema das botas enlameadas havia desaparecido de sua mente. Toda a sua atenção agora estava voltada para a situação dos soldados mortos. Se aqueles ratos os atacassem ele nunca se perdoaria por haver retardado o embarque de seus restos mortais.

 

Tudo parecia normal. Os lençóis estavam em seus lugares. Levantou cada um deles, a fim de verificar como estavam os rostos dos mortos, mas não havia indícios de que os ratos os tivessem atacado. Encostou a mão num dos rostos. Gelado. .. gelado e rígido. Provavelmente não muito apetitoso para um rato.

 

Contudo, não queria descuidar-se depois que vira os ratos. Os corpos seriam despachados na manhã seguinte bem cedo. Já esperara demais. Ao voltar-se para ir embora, percebeu que a mão de um dos cadáveres aparecia fora do lençol. Woermann curvou-se para cobri-la de novo mas se deteve ao tocar nos dedos do morto.

 

Eles tinham sido cortados.

 

Maldizendo os ratos, ele aproximou o lampião para verificar a extensão dos danos. Um calafrio percorreu-lhe a espinha ao examinar a mão. Estava imunda, com as unhas cheias de lama e a carne de cada dedo arrancada quase até o osso.

 

Woermann sentiu-se mal. Já vira antes mãos como aquela. Pertenciam a um soldado que na última guerra, sofrera um ferimento na cabeça e, por engano, fora dado como morto, sendo enterrado vivo. Ao voltar a si dentro de seu caixão ele procurou abrir caminho através de uma caixa de madeira e mais de um metro de terra. Apesar de seus esforços sobre-humanos, o pobre homem não conseguiu chegar à superfície. No entanto, antes que seus pulmões cedessem, as mãos conseguiram atravessar todos os obstáculos.

 

E aquelas mãos eram iguais à que ele agora contemplava horrorizado.

 

Trêmulo, Woermann recuou. Não tinha coragem para ver a outra mão do soldado nem qualquer outra coisa ali.

 

Voltou-se e correu para a luz do sol.

 

Magda retornou diretamente para seu quarto, pretendendo passar algumas horas sozinha. Tinha muita coisa em que pensar e precisava de tempo. Mas não conseguia acalmar-se. Tudo no quarto lembrava Glenn e os prazeres da noite anterior. A cama ainda desfeita era uma fonte contínua de perturbação.

 

Aproximou-se da janela e olhou para o fortim. O mal-estar que antes sentira dentro de suas muralhas agora saturava o ar que ela respirava, frustrando-lhe as tentativas de raciocinar com coerência. O fortim lá estava, sobre sua rocha, como um estranho animal marítimo que estendesse tentáculos em todas as direções.

 

Ao voltar-se, teve a atenção despertada pelo ninho dos pássaros. Os filhotes estavam estranhamente silenciosos. Depois dos pios insistentes durante todo o dia anterior e até de noite, era de admirar que agora estivessem tão quietos. Talvez já tivessem abandonado o ninho. Mas não. Seria impossível. Magda não entendia muito de pássaros, porém estava certa de que aqueles pequeninos filhotes tão cedo não teriam condições de voar.

 

Preocupada, puxou a banqueta para junto da janela e subiu para ver melhor o ninho. Os filhotes estavam lá, imóveis, nada mais do que um amontoado de penas, as bocas caladas e os olhos arregalados, sem vida. .. Olhando para eles, Magda teve uma indizível sensação de perda. Desceu da banqueta e debruçou-se na janela, intrigada. Não havia sinais de violência no ninho. Os filhotes tinham simplesmente morrido. Doença? Ou falta de comida? Teria a mãe deles sido vítima de algum gato da vila? Ou resolvera abandoná-los?

 

Magda não quis mais ficar sozinha.

 

Atravessou o corredor e bateu na porta do quarto de Glenn. Não tendo ouvido resposta, abriu-a e entrou. Vazio. Foi até à janela e olhou, com esperança de ver Glenn tomando sol na parte de trás da casa, mas não havia ninguém lá.

 

Onde estaria ele?

 

Desceu a escada para a sala de jantar e surpreendeu-se ao ver sobre a mesa os pratos ainda com restos de comida. Para ela Lídia sempre fora uma impecável dona-de-casa. À vista dos pratos, lembrou-se de que não havia tomado o café da manhã. Já estava quase na hora do almoço e ela sentia fome.

 

Magda atravessou a porta da frente e encontrou luliu em pé no lado de fora, com os olhos voltados para a outra extremidade da vila.

 

- Bom dia - disse ela. - Seria possível que o almoço me fosse servido mais cedo?

 

luliu girou seu corpanzil e olhou para ela. A expressão de seu rosto, com a barba por fazer, era de indiferença e até de hostilidade, como se não se dignasse responder ao pedido. Depois de um momento, voltou a olhar para a vila.

 

Magda, imitando-o, divisou um ajuntamento de pessoas em frente a uma das cabanas.

 

- Que aconteceu? - perguntou ela.

 

- Nada que possa ser do interesse de um forasteiro - replicou luliu em tom hostil. Depois pareceu ter mudado de opinião. - Mas talvez a senhora devesse saber. - Havia uma maliciosa intenção em seu sorriso, ao acrescentar: - Os filhos de Alexandru estiveram brigando entre si. Um está morto e o outro gravemente ferido.

 

- Que coisa horrível! - exclamou Magda.

 

Ela conhecia bem Alexandru e seus filhos, tendo conversado com eles inúmeras vezes a respeito do fortim. Todos pareciam ser muito unidos. Ela ficou ainda mais chocada com a informação sobre o incidente, em virtude do prazer que luliu parecia estar sentindo ao transmiti-la.

 

- Não é assim tão horrível, Domnisoara Cuza. Alexandru e sua família há muito tempo que vêm pensando que são melhores do que nós. Mereceram isso! E serve também de lição - acrescentou, entrefechando os olhos - para os forasteiros que vêm aqui pensando que são melhores do que nós.

 

Magda recuou um passo, amedrontada pelo tom da voz de luliu. Ele sempre fora uma pessoa pacata. Que bicho o teria mordido?

 

Saiu e deu uma volta em torno da casa. Estava precisando de Glenn mais do que nunca, mas não conseguia encontrá-lo, nem mesmo no posto de observação perto da ponte de onde vigiava o fortim.

 

Glenn desaparecera.

 

Aborrecida e desanimada, Magda voltou para a estalagem. Quando se encaminhava para a porta avistou uma pessoa que vinha da vila, cambaleando. Era uma mulher e parecia ferida.

 

- Ajudem-me,!

 

Magda quis correr ao encontro dela, mas luliu apareceu na porta e segurou-a pelo braço.

 

- Fique aqui! - ordenou ele em tom rude; depois dirigiu-se para a mulher:

 

- Vá embora, loan!

 

- Estou ferida. - exclamou ela. - Matei me deu uma facada!

 

Magda viu que o braço esquerdo da mulher pendia, flácido, ao longo de seu corpo, e a roupa que ela vestia - mais parecendo uma camisola de dormir - estava encharcada de sangue desde o ombro até ao joelho esquerdo.

 

- Não traga seus problemas para cá - disse-lhe luliu. - Já chegam os que nós temos.

 

A mulher continuava avançando.

 

- Ajudem-me, por favor!

 

luliu afastou-se da porta e apanhou uma pedra do tamanho de uma maçã.

 

- Não! - gritou Magda, segurando o braço dele.

 

luliu empurrou-a para um lado e atirou a pedra, gemendo com o esforço despendido. Felizmente para a mulher a pontaria não foi boa e a pedra passou zunindo por cima da cabeça dela. Entretanto a intenção não deixava dúvidas. Com um soluço, ela começou a arrastar-se de volta.

 

- Espere! Eu a ajudarei! - disse Magda, correndo a seu encontro.

 

luliu, porém, de novo segurou Magda pelo braço e empurrou-a para dentro da sala, fazendo com que ela tropeçasse e caísse no chão.

 

- Cuide de sua vida! - gritou ele. - Não vou deixar que tragam problemas para dentro de minha casa! Agora vá para seu quarto e fique por lá,!

 

- Você não pode... - começou Magda a dizer, mas luliu avançou para ela com os dentes à mostra e um braço levantado. Assustada, ela pôs-se em pé e dirigiu-se para a escada.

 

O que teria havido com luliu? Era uma pessoa diferente! A vila inteira parecia ter sido tomada pela violência: facadas, mortes - e ninguém para prestar a menor ajuda a um vizinho necessitado. Que estava acontecendo ali?

 

Ao chegar ao pavimento superior Magda encaminhou-se logo para o quarto de Glenn. Não era provável que ele tivesse retornado sem ser visto, mas ela queria ter certeza.

 

Ainda vazio.

 

Onde estaria ele?

 

Atravessou o pequeno quarto e abriu o armário, encontrando tudo como na véspera - as roupas, a caixa com a espada sem punho, o espelho. Este deixou-a intrigada. Olhou para o lugar onde ele estivera pendurado, acima da cômoda. O prego ainda se encontrava lá. Examinou atrás da moldura e viu que o arame estava intacto, o que significava que o espelho não caíra da parede; alguém o tinha retirado. Glenn? Por que faria uma coisa dessas? Insatisfeita, fechou o armário e deixou o quarto. As cruéis palavras de Papai naquela manhã e o inexplicável desaparecimento de Glenn pareciam ter-se juntado para que ela suspeitasse de tudo. Precisava reagir. Tinha de acreditar que Papai estava bem, que Glenn retornaria em breve para junto dela e que a população da vila voltaria aos pacatos hábitos de sempre.

 

Glenn... Onde ele teria ido? E por quê? O dia anterior fora de completa união dos dois, e agora ela nem mesmo sabia onde ele estava. Será que apenas se aproveitara dela? Tivera seu desejo saciado e depois a abandonara? Não, não podia acreditar que fosse assim.

 

Ele se mostrara bastante perturbado com o que Papai lhe dissera naquela manhã. A ausência de Glenn talvez tivesse alguma coisa a ver com isso. Mesmo assim ela se sentia abandonada.

 

À medida que o sol descia por trás das montanhas, Magda se tornava mais nervosa. Bateu mais uma vez no quarto dele. Nada. Desconsolada, voltou para seu próprio quarto e para a janela de onde se avistava o fortim. Evitando olhar para o ninho silencioso, examinou atentamente as moitas ao longo da extremidade da garganta, com esperança de descobrir algum indício que pudesse levála até Glenn. Foi então que percebeu um movimento numa das moitas, no lado direito da ponte. Sem olhar de novo para ter certeza, Magda correu para a escada. Tinha de ser Glenn! Tinha de ser!

 

luliu não estava à vista e ela pôde deixar a estalagem sem problemas. Ao aproximar-se da moita ela identificou o cabelo vermelho dele entre os ramos. O coração bateu-lhe mais acelerado. Uma onda de regozijo e alívio a inundou, apesar do ressentimento pela tortura em que ele a deixara durante todo o dia.

 

Glenn estava apoiado numa rocha, escondido, vigiando o fortim. Ela tinha vontade de passar os braços em torno dele e rir por vê-lo em segurança; ao mesmo tempo queria reclamar por ter sido abandonada sem uma palavra.

 

- Onde esteve você o dia inteiro? - perguntou Magda, ao aproximar-se dele, fazendo o possível para que a voz parecesse calma,

 

Ele respondeu sem se virar.

 

- Caminhando. Tinha umas coisas em que pensar, de modo que fui dar uma caminhada pelo passo. Uma longa caminhada.

 

- Senti sua falta.

 

- E eu a sua - replicou ele, voltando-se e estendendo o braço. - Há aqui lugar bastante para dois.

 

O sorriso de Glenn não era tão franco nem tão tranqüilizador como ela esperava. Ele parecia estranhamente tenso e preocupado.

 

Magda aninhou-se sob o braço dele, apertando-lhe o corpo. Que bom. . . Como ela se sentia protegida por aquele braço.

 

- O que é que está preocupando você?

 

- Uma porção de coisas. Estas folhas, por exemplo - acrescentou, arrancando um punhado de galho mais próximo e esmagando-as na mão. - Elas estão morrendo. Caindo. E estamos em plena primavera. Além disso, os habitantes da vila...

 

- É o fortim, não é? - perguntou Magda.

 

- Parece que sim. Quanto mais tempo os alemães permanecerem lá, quanto mais destruírem o interior da estrutura, tanto mais o espirito do mal se espalhará por toda a parte. Pelo menos é o que parece.

 

- Pelo menos é o que parece - repetiu Magda.

 

- E além disso há o seu pai. . .

 

- Ele me preocupa também. Não quero que Molasar se apoie nele e depois o deixe como... - relutou em concluir a frase; sua mente se recusava a configurar a cena - fez com os outros.

 

- Existem coisas piores para um homem do que ter seu sangue chupado.

 

O tom grave da voz de Glenn a surpreendeu.

 

- Você já fez essa mesma observação na primeira vez em que esteve com Papai. E o que é que podia ser pior?

 

- Ele perder sua personalidade.

 

- A si mesmo?

 

- Não. O seu eu. O seu próprio eu. O que ele é, os princípios pelos quais lutou durante toda a sua vida. Isso pode ser perdido.

 

- Glenn, não consigo compreender.

 

Não podia mesmo compreender. Ou talvez não quisesse. Havia no olhar de Glenn uma abstração que a perturbava.

 

- Vamos imaginar o seguinte - disse ele. - Suponhamos que o vampiro, ou moroi, ou não-morto, tal como consta da lenda - um espírito confinado numa sepultura durante o dia e saindo à noite para alimentar-se com o sangue dos vivos - nada mais seja do que uma lenda como você sempre a considerou. E agora, por outro lado, suponha que o mito vampiro seja o resultado de tentativas de antigos contadores de histórias que visavam conceituar algo situado além da compreensão deles; que o elemento básico da lenda se resuma num ser que tem sede, não de algo tão simples, como sangue, mas que se alimenta das fraquezas humanas, que explora a loucura e a dor, que retira sua força e seu poderio da desgraça, do temor e da degradação.

 

Aquele tom de voz deixava Magda chocada.

 

- Glenn, por favor, não fale assim. Isso é terrível. Como pode alguém alimentar-se da desgraça e da dor? Você não está querendo dizer que Molasar. . .

 

- Estou apenas presumindo.

 

- Pois bem, está enganado - replicou ela com convicção. - Bem sei que Molasar parece mau e talvez insano, naturalmente por ser quem é. Entretanto não chega a ser o monstro que você. descreve Não faz sentido. Antes de nossa chegada ele salvara os habitantes da vila que o major tinha aprisionado. E não esqueça o que ele fez por mim, quando fui atacada por aqueles dois soldados. Livrou-me das garras deles - acrescentou, estremecendo ao recordar a cena. - Pode haver algo mais degradante do que ser violentada por dois nazistas? Se Molasar se alimentasse da desgraça alheia poderia ter um pequeno banquete à minha custa. Em vez disso ele interveio e matou os soldados.

 

- Sim, um tanto brutalmente, parece, segundo o que você me contou.

 

Com repugnância, Magda recordou os estertores dos soldados, o esfacelamento dos ossos de suas gargantas quando Molasar os agarrou.

 

- Que conclui você?

 

- Que ele se saciou.

 

- Mas poderia ter-me matado também, se isso lhe desse prazer. Mas não o fez. Levou-me de volta para junto de meu pai.

 

- Exatamente! - exclamou Glenn, o olhar fixo nela. Intrigada pela resposta de Glenn, Magda hesitou, depois insistiu:

 

- E quanto a meu pai, que passou os últimos anos numa agonia quase contínua? Completamente infeliz. Agora está curado de sua esclerodermia. Como se nunca a tivesse tido! Se Molasar se nutre da desgraça humana, por que não deixou que meu pai continuasse sofrendo e fornecendo-lhe alimento? Por que cortou essa fonte de suprimento, curando Papai?

 

- Sim, por quê?

 

- Oh, Glenn! - exclamou ela, apoiando-se nele. - Não me deixe mais assustada do que já estou! Não quero discutir com você. Já tive uns momentos horríveis com meu pai. Não poderei suportar uma discórdia com você também!

 

Glenn passou o braço em torno dela.

 

- Está bem, mas pense no seguinte: Seu pai está fisicamente melhor do que nos últimos anos, mas que foi que aconteceu com a personalidade dele? É o mesmo homem que chegou aqui com você há quatro dias?

 

Essa era uma pergunta que a importunara o dia inteiro - uma pergunta que ela não sabia como responder.

 

-- Sim. . . Não. .. Não sei! Acho que ele está tão confuso quanto eu, mas estou certa de que saberá como proceder. Apenas sofreu um choque, eis tudo. Vendo-se de repente livre de uma moléstia supostamente incurável, que cada vez lhe limitava mais os movimentos, é natural que ficasse perturbado por algum tempo, comportando-se de maneira anormal. Mas ele há de sobrepujar essa fase. Espere e verá.

 

Glenn não contestou e Magda ficou contente por isso. Significava que também ele queria que a paz reinasse entre ambos. Ela notou que o nevoeiro já cobria o fundo do passo e começava a crescer à medida que o sol mergulhava atrás dos picos. A noite estava chegando.

 

A noite. Papai dissera que Molasar expulsaria os alemães do fortim naquela noite. Isso deveria dar-lhe novas esperanças, mas de certo modo lhe parecia uma ação terrível e violenta. Nem mesmo a sensação de segurança que lhe dava o braço de Glenn em torno dela conseguia atenuar seus receios.

 

- Vamos voltar para a estalagem - pediu por fim. Glenn sacudiu a cabeça.

 

- Não. Preciso saber o que acontece lá.

 

- Talvez seja uma longa noite.

 

- Poderá ser a maior noite de minha vida - replicou Glenn sem olhar para ela. - Uma noite sem fim.

 

Magda levantou a cabeça e percebeu o terrível ar de remorso que se estampava no rosto dele. Que coisa o estaria dilacerando por dentro? Por que não repartia suas apreensões com ela?

 

- Você está pronto?

 

As palavras não surpreenderam Cuza. Desde que os últimos raios de sol tinham desaparecido do céu, ele ficara esperando a chegada de Molasar. Ao ouvir aquela voz cavernosa levantou-se de sua cadeira de rodas, orgulhoso e grato por poder fazê-lo. Aguardara durante todo o dia que o sol se escondesse, praguejando várias vezes ante a lentidão de seu deslocamento no céu.

 

E agora o momento chegara por fim. Aquela noite seria dele e de ninguém mais. Cuza esperara muito por isso. Era a sua vez, e ele não permitiria que alguém pretendesse roubá-la.

 

- Pronto! - respondeu voltando-se e deparando com Molasar junto dele, pouco visível à luz de uma simples vela sobre a mesa. Cuza desaparafusara a lâmpada pendurada do teto, achando que ficaria mais à vontade na penumbra criada pela vela. Mais de acordo com Molasar. - Graças a você, estou em condições de ser útil.

 

O rosto de Molasar manteve-se impassível.

 

- Não me custou muito destruir os efeitos provocados por sua doença. Estivesse eu mais forte e poderia tê-lo curado num instante; mas, devido ao meu relativo enfraquecimento, precisei de uma noite inteira para isso.

 

- Nenhum médico teria conseguido tanto êxito por mais que se esforçasse.

 

- Não foi nada - replicou Molasar, com um gesto de indiferença. - Possuo grandes poderes para provocar a morte, mas também os tenho para curar. Há sempre um equilíbrio.

 

O professor achou que a atitude de Molasar era anormalmente filosófica. Mas Cuza não tinha tempo para filosofias naquela noite.

 

- Que faremos agora?

 

- Temos que esperar - replicou Molasar. - Ainda não está tudo pronto.

 

- E depois, o que vai haver? - perguntou Cuza, incapaz de dominar sua impaciência.

 

Molasar foi até à janela e ficou olhando para as montanhas escuras. Depois de uma longa pausa, falou em tom grave:

 

- Esta noite confiarei a você a fonte de meu poderio. Você deve recebê-la, retirá-la do fortim e encontrar nestes penhascos um lugar seguro para escondê-la. Você não deve permitir que pessoa alguma o detenha.

 

Cuza sentiu-se confuso.

 

- A fonte de seu poderio? Nunca ouvi dizer que algum não-morto possuísse tal coisa.

 

- Porque nunca quisemos que isso fosse conhecido - explicou Molasar, encarando o professor. - Meus poderes derivam dessa fonte, mas ela é também meu ponto mais vulnerável. Permite que eu exista sob esta forma, mas, se cair em mãos hostis, poderá ser usada para pôr fim aos meus dias. É por isso que sempre a conservo perto de mim, onde possa protegê-la.

 

- Que coisa é essa? Onde. . .

 

- Um talismã, escondido nas profundezas da caverna embaixo do porão. Se eu tiver de sair do fortim, não posso deixá-lo aqui, desprotegido, nem arriscar-me a levá-lo comigo para a Alemanha. Por isso vou entregá-lo a alguém em quem eu possa confiar -- concluiu Molasar, aproximando-se mais.

 

Cuza sentiu um arrepio em todo o corpo quando o negrume sem fundo das pupilas de Molasar se fixaram nele, mas procurou manter-se impassível.

 

- Pode confiar em mim. Esconderei seu talismã tão bem que nem mesmo uma cabra-da-montanha será capaz de encontrá-lo. Juro!

 

- Jura mesmo? - insistiu Molasar, aproximando-se ainda mais. A chama da lanterna iluminou-lhe o rosto ceroso. - Será a tarefa mais importante de toda a sua vida.

 

- Sou capaz de executá-la... agora - disse Cuza, cerrando os punhos e sentindo força em vez de dor em seus movimentos. - Ninguém o tirará de mim.

 

- Não é provável que alguém tente fazer isso. Mesmo que o faça, será muito difícil que exista hoje uma pessoa que saiba como usar o talismã contra mim. Mas, por outro lado, como ele é feito de ouro e prata, pode ser encontrado e derretido...

 

Uma incerteza surgiu no espírito de Cuza.

 

- Nada pode ficar escondido para sempre.

 

- Para sempre não é necessário. Apenas até que eu dê cabo do Ditador Hitler e de sua corte. É preciso que permaneça em lugar seguro até que eu retorne. Depois eu mesmo me encarregarei de sua proteção.

 

- Ele ficará em segurança! - prometeu Cuza, sentindo de novo sua autoconfiança. Poderia esconder o que quisesse naquelas montanhas por alguns dias. - Quando você voltar estarei à sua espera. Hitler vencido. . . Que dia glorioso esse! Liberdade para a Roménia, para os judeus. E para mim. . . uma justificativa!

 

- O que quer dizer?

 

- Minha filha. . . Ela acha que não devo confiar em você. Os olhos de Molasar se entrefecharam.

 

- Não é prudente discutir esse assunto com alguém, mesmo sua filha.

 

- Ela deseja tanto quanto eu que Hitler seja vencido. Simplesmente acha difícil acreditar que você seja sincero. Ela está sendo influenciada pelo homem que, segundo penso, se tornou seu amante.

 

- Que homem?

 

Cuza teve a impressão de que Molasar se sobressaltara, de que seu rosto pálido se tornara mais lívido ainda.

 

- Não sei muita coisa a respeito dele. Chama-se Glenn e demonstra certo interesse em relação ao fortim. Entretanto...

 

Cuza sentiu-se bruscamente jogado para cima. Com um movimento rápido, as mãos de Molasar o tinham agarrado pelo casaco, erguendo-o no ar.

 

- Descreva-me como é ele!

 

As palavras soaram roucas através dos dentes cerrados.

 

- Ele é... é alto! - balbuciou Cuza, apavorado com a força descomunal daquelas mãos tão perto de sua garganta e aqueles afiados dentes amarelos. - Quase tão alto quanto você, e...

 

- E o cabelo? Qual a cor do cabelo dele?

 

- Vermelha.

 

Molasar deu-lhe um forte empurrão, atirando-o longe e fazendo com que ele rolasse e deslizasse desamparadamente, esfolando-se no chão. Aturdido, Cuza ouviu um som gutural escapar da garganta de Molasar, enlouquecido de raiva:

 

- Glaeken!

 

Cuza chocou-se contra a parede oposta do quarto e permaneceu no chão, estonteado ainda por uns momentos. À medida que sua visão foi clareando devagar ele pôde reconhecer no rosto de Molasar algo que jamais esperara ver: medo.

 

Glaeken? - pensou Cuza, agachado, com receio de falar. Não era esse o nome da seita secreta a que Molasar se referira duas noites antes? Os fanáticos que costumavam persegui-lo? Os que o haviam levado a construir o fortim para proteger-se deles? Cuza ficou olhando para Molasar, que se dirigira para a janela e agora contemplava a vila com uma expressão indecifrável. Por fim, voltou-se para Cuza. Sua boca resumia-se a uma linha fina e rígida.

 

- Há quanto tempo ele está aqui?

 

- Há três dias. . . desde a noite de quarta-feira - respondeu Cuza que, sem poder conter-se, perguntou em seguida: - Por quê? O que há de errado?

 

Molasar não respondeu logo. Caminhou de um lado para outro, preferindo a parte mais escura do quarto, não atingida pela luz da vela. Três passos para cá, três passos para lá, imerso em seus pensamentos. Afinal, parou.

 

- A seita Glaeken deve existir ainda - disse com voz rouca. -. Eu deveria saber disso! Eles sempre foram bastante tenazes, e sua ambição de dominar o mundo fanática demais para desaparecer. Esses nazistas de que você falou. . . esse tal de Hitler. . . tudo agora faz sentido. É claro!

 

Cuza achou prudente levantar-se.

 

- O que é que faz sentido?

 

- Os da seita Glaeken sempre preferiram trabalhar nos bastidores, utilizando movimentos populares para esconderem sua própria identidade e seus verdadeiros objetivos - explicou Molasar, ereto, os punhos cerrados. - Percebo tudo agora. O Ditador Hitler e seus sequazes não são mais do que outra fachada da seita. Fui um tolo! Deveria ter reconhecido os métodos dele quando você me falou a respeito dos campos de concentração. E essa cruz retorcida que os nazistas adotaram como símbolo. .. nada mais claro! A Glaeken foi outrora uma arma da Igreja!

 

- Mas Glenn...

 

- É um deles! Não um fantoche, como os nazistas, mas um membro do círculo mais secreto, um verdadeiro Glaeken. . . um de seus assassinos!

 

- Mas como pode você ter tanta certeza? - perguntou Cuza, sentindo um nó na garganta.

 

- A seita recrutou seus famigerados membros de modo uniforme: olhos azuis, pele morena, cabelo vermelho. São treinados em todos os processos de matar, incluindo nós, os não-mortos. Esse homem que diz chamar-se Glenn tem em mira impedir que eu me afaste do meu fortim!

 

Cuza apoiou-se na parede, arrasado pela visão de Magda nos braços de um homem que fazia parte do verdadeiro poder que sustentava Hitler. Era fantástico demais para ser verdadeiro! E no entanto tudo parecia encaixar-se. Essa é que era a prova pior - tudo se encaixava. Não seria de admirar que Glenn se tivesse mostrado tão aborrecido ao ouvir o professor dizer que iria ajudar Molasar em sua cruzada para libertar o mundo de Hitler. E explicava também por que ele próprio, Cuza, havia instintivamente detestado o homem ruivo. O verdadeiro monstro não era Molasar.. . era Glenn! E naquele exato momento Magda deveria estar com ele! Alguma providência tinha de ser tomada!

 

Esticou o corpo e encarou Molasar. Cuza não iria permitir-se entrar em pânico. Necessitava de respostas antes de decidir o que fazer.

 

- De que modo ele poderia deter você?

 

- Ele conhece meios. . . meios que foram aperfeiçoados durante séculos de conflito com os da minha espécie. Somente ele poderá utilizar meu talismã contra mim. Se conseguir apossar-se dele, ficará em condições de me destruir!

 

- Destruí-lo. . .

 

Cuza sentia-se confuso. Glenn poderia arruinar tudo. Se ele destruísse Molasar haveria mais campos de concentração, mais conquistas pelos exércitos de Hitler... a erradicação dos judeus como um povo.

 

- Ele tem de ser eliminado - disse Molasar. - Não posso correr o risco de deixar minha fonte de poder aqui enquanto ele estiver por perto.

 

- Então elimine-o - replicou Cuza. - Mate-o da mesma maneira como você matou os outros!

 

- Não - disse Molasar, sacudindo a cabeça. - Ainda não estou suficientemente forte para enfrentar alguém como ele. . . pelo menos fora destas muralhas. Sou mais poderoso aqui no fortim. Se houver uma maneira de trazê-lo para cá poderei enfrentá-lo com vantagem e então fazer com que ele nunca mais interfira nos meus atos... jamais!

 

- Sei como trazê-lo! - prometeu Cuza. A solução lhe ocorrera de súbito, cristalizando-se em sua mente à medida que ele falava. Era muito simples. - Eu me encarrego de fazê-lo vir aqui.

 

A expressão do rosto de Molasar era de dúvida mas também de interesse.

 

- Trazido por quem?

 

- O Major Kaempffer ficará muito feliz em encarregar-se disso!

 

Cuza ouviu a própria risada e se espantou com sua crueldade. Mas por que não rir? Não podia esconder seu contentamento por ter tido a idéia de utilizar um major da SS justamente para ajudar a livrar o mundo do nazismo.

 

- Por que concordaria ele em fazer isso?

 

- Deixe comigo.

 

Cuza sentou-se na cadeira de rodas e começou a rodá-la na direção da porta. Seu cérebro trabalhava de modo furioso. Teria de encontrar um jeito certo de obter a concordância do major, obrigar Kaempffer a persuadir-se de que ele próprio decidira trazer Glenn até ao fortim. Com o impulso das mãos, rodou a cadeira para fora da torre e entrou no pátio.

 

- Guarda! Guarda! - começou ele a gritar. O Sargento Oster acudiu logo, seguido de dois soldados. - Chamem o major. Preciso falar com ele imediatamente!

 

- Levarei seu recado - disse o sargento -, mas não espere que ele venha correndo.

 

Os dois soldados acharam graça, mas Cuza insistiu:

 

- Diga-lhe que descobri uma coisa importante, a respeito do fortim, que exige sejam tomadas providências ainda esta noite. Amanhã será tarde demais.

 

O sargento olhou para um de seus subordinados e fez um sinal com a cabeça indicando a parte traseira do fortim.

 

- Mexa-se! - ordenou. - E você - acrescentou, dirigindo-se para o outro - empurre este homem, para que o Major Kaempffer não tenha que caminhar muito para ouvir o que ele tem a dizer.

 

A cadeira de Cuza foi levada através do pátio aos solavancos, por causa dos entulhos provocados pelas paredes derrubadas. Deixado mais perto do quarto do major, o professor permaneceu sentado, rememorando o que deveria dizer. Após longos minutos Kaempffer apareceu, não escondendo seu aborrecimento.

 

- O que tem você para me dizer, judeu?

 

- É da máxima importância, major - disse Cuza, abaixando o tom de voz de maneira que Kaempffer tivesse dificuldade para ouvir. - E não devo falar muito alto.

 

Ao aproximar-se de Cuza, pisando com cuidado nos pedaços de tijolos espalhados pelo chão, Kaempffer continuava resmungando. O professor, entrementes, regozijava-se por ter tido a idéia de inventar aquela cena.

 

Kaempffer postou-se por fim ao lado da cadeira de rodas e fez sinal para que os outros se afastassem.

 

- É bom que você tenha mesmo algo importante para dizerme. Se me obrigou a vir até aqui por nada...

 

- Estou certo de que descobri uma nova fonte de informações a respeito do fortim - disse Cuza, em tom baixo e conspiratório. - Há um forasteiro hospedado na estalagem. Encontrei-me hoje com ele. Parece muito interessado no que está acontecendo aqui. .. interessado mesmo. Fez-me uma porção de perguntas esta manhã.

 

- E que tenho eu com isso?

 

- Bem, ele fez alguns comentários que me despertaram suspeitas. Ao voltar para o fortim, fiz uma pesquisa nos livros proibidos e encontrei referências que confirmam as declarações dele.

 

- Que declarações?

 

- Elas não são importantes em si mesmas. O que é importante é que elas indicam que ele sabe mais a respeito do fortim do que diz. Acho que pode estar de certo modo ligado às pessoas que pagam pela manutenção do fortim. - Cuza fez uma pausa, dando tempo a que o major absorvesse aquela primeira informação. Não queria sobrecarregá-lo com muitos dados. Depois de um intervalo razoável, acrescentou: - Se eu fosse o senhor, major convidaria esse forasteiro para vir até aqui amanhã a fim de conversar. Talvez ele tenha coisas interessantes para contar.

 

- Ora, judeu. Isso, se você fosse eu! Não perderei meu tempo com um sujeito qualquer, convidando-o para me visitar. E não vou esperar até de manhã! - Voltou-se para o Sargento Oster e ordenou: - Mande que quatro de meus soldados se apresentem a mim agora mesmo! - Depois, dirigindo-se a Cuza: - Você irá junto, para termos a certeza de prender o homem certo.

 

Cuza mal disfarçou seu sorriso. Tudo fora tão simples, tão maquiavelicamente simples!

 

- Outra objeção que meu pai faz é o fato de você não ser judeu

 

- disse Magda.

 

Os dois ainda estavam sentados em meio às folhas caídas, vigiando o fortim. A noite já caíra e todas as luzes estavam acesas.

 

- Ele tem razão.

 

- Qual é a sua religião?

 

- Nenhuma.

 

- Mas você deve ter sido criado segundo os preceitos da de seus pais.

 

- Talvez - replicou ele sacudindo os ombros. - Mas isso foi há tanto tempo que já não me lembro mais.

 

- Como é possível esquecer uma coisa assim?

 

- É fácil.

 

Ela começou a irritar-se ante a maneira como Glenn fugia às perguntas.

 

- Você acredita em Deus?

 

Ele encarou-a e esboçou um sorriso que não chegou a enternecê-la.

 

- Acredito em você. Não é o bastante? Magda aconchegou-se mais nos braços dele.

 

- Sim. Acho que sim.

 

Como deveria comportar-se com um homem que era tão diferente dela mas que lhe despertava tantas emoções? Ele parecia bem-educado, até mesmo erudito, embora Magda não fosse capaz de imaginá-lo lendo um livro. Era do tipo que dava uma impressão de força, ainda que fosse extremamente delicado com ela.

 

Glenn era, na verdade, uma massa confusa de contradições. Apesar disso, Magda sentia haver encontrado nele o homem com quem gostaria de repartir sua vida. A que ela imaginava com Glenn era de todo diferente da que sonhara no passado. Nada de dias pacatos de professora em seu futuro, mas sim noites infindáveis de pernas e braços entrelaçados e ardente paixão. Se tivesse de escolher um tipo de vida depois do fortim queria que fosse com Glenn.

 

Não podia compreender como aquele homem lhe despertara tanta excitação. Tudo o que desejava era estar com ele. Sempre. Dormir abraçada a ele, criar os filhos que ambos teriam e vê-lo sorrir da maneira que fizera poucos minutos antes.

 

Agora, porém, ele não sorria mais. Seus olhos estavam fixos no fortim. Alguma coisa o atormentava de modo terrível, roendo-o por dentro. Magda queria participar daquele tormento; confortá-lo, se possível. Entretanto nada poderia fazer enquanto Glenn não se abrisse com ela. talvez agora fosse o momento propício para tentar. ..

 

- Glenn - disse ela com todo o carinho - qual o motivo verdadeiro de você estar aqui?

 

Ao invés de responder, ele apontou para o fortim:

 

- Alguma coisa está acontecendo lá.

 

Magda olhou O portão principal se abrira e, iluminadas pelo clarão que vinha do pátio, seis vultos apareceram na ponte, um deles numa cadeira de rodas.

 

- Onde irão eles com Papai? - perguntou ela sentindo-se invadida pela angústia.

 

- À estalagem, muito provavelmente. É a única hipótese, considerando que eles estão a pé.

 

- Então vêm buscar-me - concluiu Magda. Não lhe ocorria outra explicação.

 

- Não, acho que não. Não trariam seu pai com eles se quisessem arrastar você para dentro do fortim. Devem ter outra intenção.

 

Mordendo, nervosa, o lábio inferior, Magda viu o grupo deslocar-se ao longo da ponte, acima do nevoeiro que subia do arroio.

 

Algumas lanternas iluminavam o caminho deles. Estavam passando a uns seis metros de distância, quando Magda sussurrou para Glenn:

 

- Vamos ficar escondidos aqui até sabermos para onde eles estão indo.

 

- Se não a encontrarem pensarão que você fugiu. .. e tomarão represálias contra seu pai. Se resolverem procurá-la, sem dúvida terão êxito. . . estamos encurralados aqui. Não há como esconderse. A solução é ir ao encontro deles.

 

- E você?

 

- Estarei aqui, se precisar de mim. Por enquanto, porém, acho que quanto menos eles me virem melhor.

 

Com relutância, Magda levantou-se e saiu do esconderijo. Quando alcançou a estrada, o grupo já havia passado. Antes de chamá-los, Magda examinou mais detidamente a situação. Havia qualquer coisa errada. Não sabia dizer o que era, mas uma sensação de perigo a dominava. O major fazia parte do grupo, que era constituído por soldados da SS. Entretanto Papai parecia ter vindo com eles por vontade própria, e até parecia conversar um pouco. Deveria estar tudo bem.

 

- Papai?

 

Os soldados, inclusive o que empurrava a cadeira, viraram-se de imediato com as armas em punho. Papai falou com eles em alemão:

 

- Esperem! Essa é a minha filha. Deixem-me falar com ela. Magda correu para junto dele, contornando o ameaçador quinteto de vultos em uniforme negro. Ao falar, utilizou o dialeto cigano:

 

- Por que eles o trouxeram para cá? Ele respondeu no mesmo dialeto:

 

- Explicarei mais tarde. Onde está Glenn?

 

- Ali nas moitas - replicou ela sem hesitação. Afinal era Papai quem estava perguntando. - Por que você quer saber?

 

Mas Papai já se virara para o major e informava em alemão, apontando para o local que Magda indicara:

 

- Ele está ali.

 

Imediatamente quatro soldados formaram um semicírculo e começaram a avançar em direção à moita.

 

Magda olhou embasbacada para o pai:

 

- Papai, que está fazendo? - perguntou ela, querendo correr para junto de Glenn, mas sendo impedida por Papai, que a segurou pelo pulso.

 

- Está tudo bem - disse ele, voltando a usar o dialeto cigano. - Fiquei sabendo há pouco que Glenn é um deles!

 

Magda ouviu a própria voz, agora falando em romeno. Estava por demais espantada pela traição de Papai para responder em outro idioma que não fosse o seu.

 

- Não! Isso é. . .

 

- Ele pertence a um grupo que orienta os nazistas, que os utiliza para seus fins iníquos. É pior que um nazista!

 

- Mentira! Você perdeu a cabeça!

 

- Não, não perdi. Lamento que tenha sido eu a dar-lhe esta notícia. Mas foi melhor você ouvi-la de mim agora do que depois, quando fosse tarde demais!

 

- Eles vão matá-lo! - gritou ela, sentindo-se tomada de pânico. Freneticamente, tentou libertar-se. Mas Papai segurou-a com uma nova força, enchendo-lhe os ouvidos com notícias terríveis durante todo o tempo.

 

- Não! Eles não vão matá-lo, mas apenas levá-lo para um pequeno interrogatório. E então ele será forçado a revelar suas ligações com Hitler, a fim de salvar a pele. - Os olhos de Papai estavam brilhantes, febris e sua voz vibrava. - E aí você me agradecerá, Magda. ao saber que fiz isto por você.

 

- Você fez isto por você mesmo! - exclamou ela, ainda tentando Iivrar-se das mãos dele. - Você o odeia porque. . .

 

Ouviram-se tiros, um rápido tumulto e em seguida Glenn apareceu, trazido por dois soldados de arma em punho. Foi logo rodeado pelos outros quatro, cada um com uma arma automática apontada para ele.

 

- Deixem-no! - gritou Magda tentando aproximar-se do grupo, mas impedida de fazer isso porque Papai não lhe soltava o pulso.

 

- Deixe, Magda - disse Glenn com voz grave e olhar fixo em Papai. - Eles acabarão por dar um tiro em você.

 

- Que gesto nobre! - disse Kaempffer postado atrás dela.

 

- E que espetáculo! - sussurrou Papai.

 

- Levem esse homem para o fortim e vamos descobrir o que é que ele sabe.

 

Os soldados cutucaram Glenn com o cano de suas armas, empurrando-o na direção da ponte. Ele não era agora mais que um vulto escuro, projetado contra o clarão que vinha do fortim. Imperturbável, caminhou até chegar à ponte e então pareceu tropeçar na extremidade da madeira e cair para a frente. Magda conteve um grito, mas em seguida percebeu que não fora uma queda - Glenn saltara para o outro lado da ponte. Que poderia ele tentar? De repente Magda percebeu sua intenção - alcançar o lado oposto e esconder-se embaixo da ponte, talvez mesmo procurar subir pela encosta rochosa da garganta, protegido pela escuridão.

 

Magda conseguiu livrar-se e correu para a ponte. Ó Deus, fazei com que ele escape! Se conseguisse passar para baixo da ponte, Glenn seria envolvido pelo nevoeiro. E, quando os alemães trouxessem cordas para chegar até onde estava, ele já teria alcançada o fundo da garganta e desaparecido - a menos que escorregasse e. caísse lá embaixo, sem salvação.

 

Magda já estava a uns quatro metros da cena quando a primeira Schmeisser disparou uma rajada de balas contra Glenn. Em seguida as outras também dispararam, iluminando a noite com o clarão das descargas. Ensurdecida pelo som repetido dos tiros, Magda parou, vendo horrorizada as lascas que as balas arrancavam, das pranchas da ponte. Glenn estava quase desaparecendo quando o primeiro projétil o alcançou. Ela viu o corpo dele retorcer-se e estremecer enquanto rajadas sucessivas sulcavam de manchas vermelhas as pernas c as costas dele. Depois fizeram com que ele girasse sobre si mesmo e novas manchas cobriram-lhe o peito e " abdome. Cambaleando, Glenn dobrou-se sobre si mesmo e rolou pela encosta, desaparecendo em seguida.

 

Os instantes seguintes foram um pesadelo para Magda, que permanecia paralisada e momentaneamente cega pelo clarão dos disparos. Talvez Glenn não estivesse morto - não poderia estar! Ele era vigoroso demais para ser abatido assim. Tudo aquilo não passava de um sonho mau e em breve ela despertaria nos braços dele. No momento, porém, teria de representar no sonho: obrigar-se a caminhar para a frente, gritando em silêncio dentro do nevoeiro que se adensava.

 

Oh, não! Oh-não-oh-não-oh-não!

 

As palavras lhe vinham à mente, mas a moça não conseguia pronunciá-las.

 

Quando ela chegou, os soldados já estavam na beira da garganta, tentando furar o nevoeiro com o facho de luz de suas lanternas de mão. Magda se aproximou, mas nada conseguiu ver. Para ajudar a vencer seu desejo de saltar à procura de Glenn, ela se voltou contra os soldados, batendo com os punhos cerrados no peito e no rosto do que estava mais perto. A reação dele foi automática, quase casual. Apenas cerrando os dentes como sinal de raiva, ele ergueu o cano de sua Schmeisser e golpeou-a lateralmente na cabeça.

 

Magda sentiu o mundo girar ao cair e quase perdeu os sentidos ao bater contra o chão. Ouviu ao longe a voz de Papai, que gritava o nome dela. A escuridão envolveu-a, mas ela ainda lutou durante tempo suficiente para vê-lo empurrado em sua cadeira, aolongo da ponte, de volta para o fortim. Ele estava voltado para trás, olhando para ela e gritando:

 

- Magda! Tudo acabará bem, você vai ver! As coisas se ajustarão da melhor maneira possível e então você compreenderá! E me agradecerá! Não me odeie, Magda!

 

Porém Magda odiava-o. Jurou que o odiaria sempre. Esse foi seu último pensamento antes que o mundo desaparecesse.

 

Um homem não identificado fora baleado, ao resistir à voz de prisão, e caíra na garganta. Woermann notara a fisionomia satisfeita dos einsatzkommandos quando regressaram ao fortim. Notara também o ar perturbado do professor. As duas reações eram compreensíveis. Os soldados tinham matado um homem desarmado, a coisa que eles mais gostavam de fazer; Cuza, pela primeira vez em sua vida, testemunhara um assassinato estúpido.

 

Entretanto o que Woermann não conseguia explicar era a expressão desapontada e furiosa de Kaempffer. Os dois oficiais encontraram-se no meio do pátio.

 

- Só um homem? Todo esse tiroteio apenas por causa de um único homem?

 

- Os soldados estavam nervosos - explicou Kaempffer, ele próprio visivelmente nervoso. - O homem não devia ter tentado fugir.

 

- Por que você foi buscá-lo?

 

- O judeu achou que ele sabia alguma coisa a respeito do fortim.

 

- Desconfio que você não o avisou de que apenas desejava fazer-lhe umas perguntas.

 

- Ele tentou fugir.

 

- E o resultado final é que agora você sabe tanto quanto sabia antes. Você deve ter assustado o pobre homem, fazendo com que ele perdesse a cabeça e procurasse fugir. Acabou-se a fonte de informação. Você e sua gente nunca vão aprender.

 

Kaempffer dirigiu-se para seu quarto sem responder, deixando Woermann sozinho no pátio. A onda de irritação que Kaempffer em geral provocava nele não se desencadeou desta vez. Tudo o que Woermann sentiu foi um frio ressentimento... e resignação.

 

Permaneceu imóvel, observando enquanto os homens, que não estavam de guarda, se recolhiam a seus alojamentos. Apenas alguns momentos antes, ao ouvir o tiroteio na extremidade da ponte, ele ordenara que seus homens entrassem em forma. Entretanto nada acontecera e eles ficaram desapontados. Woermann compreendia essa reação. Ele também desejava ter um inimigo de carne e osso para combater, um inimigo que ele pudesse atacar, ferir, vencer. Todavia o inimigo que estava enfrentando era invisível, misterioso.

 

Woermann dirigiu-se para a escada do porão. Queria ir lá embaixo mais uma vez aquela noite. Uma última vez. Sozinho.

 

Tinha de ir sozinho. Não podia deixar que ninguém soubesse o que ele estava suspeitando. Pelo menos agora, depois de ter decidido exonerar-se. Fora uma decisão difícil, mas ele a tomara. Pediria reforma e nada mais teria a ver com aquela guerra. Era isso o que os membros do Partido no Alto Comando queriam que ele fizesse. Contudo se soubessem, mesmo vagamente, o que ele pensava haver encontrado na caverna embaixo do porão, com certeza seria considerado um lunático. Não podia deixar que os nazistas lhe manchassem o nome dessa maneira.

 

. . . Botas enlameadas e dedos descarnados. . . botas enlameadas e dedos descarnados. . . uma litania de demência empurrando-o para baixo. Algo abominável e irracional existia naquelas profundezas. Woermann julgava saber o que poderia ser, mas não era capaz nem de expressá-lo nem mesmo de formar uma imagem mental daquilo. Sua mente afastou-se assustada da imagem, deixando-a confusa e obscura, como se vista de grande distância através de um binóculo desfocado.

 

Atravessou o arco da entrada e desceu a escada.

 

Ele fechara os olhos durante um tempo longo demais à espera de que o que havia de errado na Wehrmacht e na guerra que ela vinha travando se resolvesse por si mesmo. Mas os problemas não iriam resolver-se por si mesmos. Woermann podia ver isso agora. Podia por fim admitir para si mesmo que as atrocidades que se cometiam na esteira dos combates não eram aberrações momentâneas. Tivera medo de enfrentar a verdade, de perceber que tudo tomara um rumo errado nesta guerra. E agora, que tirara a venda dos olhos, sentia-se envergonhado de ter tomado parte nela.

 

A caverna sob o porão seria seu lugar de penitência. Veria com seus próprios olhos o que estava acontecendo ali. Enfrentaria aquilo sozinho e o ajustaria às devidas proporções. Não teria tranqüilidade enquanto não fizesse isso. Só depois de haver lavado sua honra estaria apto a retornar para Rathenow e para Helga. Poderia então ser um pai de fato para Fritz. .. impedindo que o rapaz ingressasse na Jugendführer, mesmo que tivesse de quebrar-lhe as pernas.

 

As sentinelas escalados para guardar a abertura na caverna embaixo do porão ainda não tinham assumido seus postos. Era melhor assim. Agora ele poderia entrar sem ser visto e evitaria que alguém se oferecesse para acompanhá-lo. Com uma lanterna na mão Woermann parou no topo da escada, contemplando a escuridão que o esperava.

 

Súbito, ocorreu-lhe que ele podia estar doido. Abrir mão de seu posto de capitão seria uma loucura! Se ficara com os olhos fechados por tanto tempo, por que não conservá-los assim? Pensou no quadro que estava pintando e na figura do enforcado... um "corpo que parecia ter adquirido, na última vez que o examinara, uma leve obesidade. Sim, concluiu Woermann, ele deveria estar raciocinando mal. Não tinha que ir lá embaixo, sobretudo sozinho. E certamente não depois do escurecer. Por que não esperar até o dia clarear?

 

.. . Botas enlameadas... dedos descarnados...

 

Agora. Tinha de ser agora. Não se aventuraria a descer desarmado. Tinha sua Luger. E também a cruz de prata que pedira ao professor. Iniciou a descida.

 

Estava na metade da escada quando ouviu o ruído. Parou para "scutar... eram sons de coisa arrastada, que vinham de sua direita, em direção à parte de trás, no próprio coração do fortim. Ratos? Correu o facho da lanterna pelas proximidades mas nada encontrou. O trio que o havia recebido naqueles mesmos degraus, quando ali "stivera ao meio-dia, se escondera. Woermann completou sua descida e dirigiu-se apressadamente para o local onde estavam os cadáveres, mas logo se deteve, estupefato e horrorizado.

 

Os cadáveres tinham desaparecido.

 

Logo que foi deixado em seu quarto e ouviu a porta fechar-se, Cuza saltou da cadeira e correu para a janela. Fixou o olhar na ponte, procurando por Magda. Mesmo à luz da lua que acabara de surgir por trás das montanhas ele não conseguia ver claramente o lado oposto da garganta. Entretanto luliu e Lídia deveriam ter visto o que acontecera. Eles a ajudariam, com certeza.

 

Fora um duro teste para sua força de vontade permanecer na cadeira de rodas ao invés de correr para junto da filha, quando aquele alemão desalmado a atacou, jogando-a ao chão. Tivera de conter-se. Revelar sua capacidade para caminhar poderia ter arruinado tudo o que ele e Molasar haviam combinado. E o plano deles era agora mais importante do que qualquer outra coisa. A destruição de Hitler deveria ter precedência sobre o bem-estar de uma simples mulher, mesmo que ela fosse sua própria filha.

 

- Onde está ele?

 

Cuza voltou-se ao ouvir aquela voz atrás dele. Havia ameaça no tom de Molasar quando ele falou de dentro da escuridão. Teria acabado de chegar ou ficara esperando ali, durante todo o tempo?

 

- Morto - respondeu Cuza com dificuldade, sentindo que Molasar chegava mais perto dele.

 

- Impossível!

 

- É verdade. Vi com meus próprios olhos. Ele tentou fugir e os alemães encheram-lhe o corpo de balas. Devia estar desesperado. Acho que ele percebeu o que lhe aconteceria se fosse trazido para dentro do fortim.

 

- Onde está seu corpo?

 

- Na garganta.

 

-- É preciso encontrá-lo! - Molasar aproximou-se tanto que o luar, entrando pela janela, iluminou-lhe parcialmente o rosto. - Preciso ter certeza absoluta!

 

- Ele está morto. Ninguém poderia sobreviver a tantos tiros. Teve uma porção de ferimentos fatais. Deve ter morrido antes de chegar ao fundo da garganta. E a queda. .. - acrescentou Cuza, sacudindo a cabeça, como que querendo livrar-se daquela lembrança. Em outra ocasião, em outro lugar, sob circunstâncias diferentes, ele teria sofrido um choque com o que testemunhara, mas agora... - Ele está duplamente morto.

 

Molasar ainda se mostrava relutante em aceitar o que Cuza lhe afirmava.

 

- Eu precisava matá-lo com minhas próprias mãos, sentir a vida dele extinguir-se. Só assim ficaria certo de que ele está fora de meu caminho. Nessas circunstâncias sou forçado a fiar-me em sua assertiva, isto é, que ele não pode ter sobrevivido.

 

- Não precisa fiar-se apenas em mim. Veja você mesmo. O corpo dele está lá no fundo da garganta. Por que não vai certificar-se pessoalmente?

 

Molasar concordou com um lento movimento da cabeça.

 

- Sim. . , Tem razão. Acho que vou fazer isso, pois necessito ter certeza - disse ele. recuando um passo e mergulhando de novo na escuridão. - Voltarei a falar com você quando tudo estiver pronto.

 

Cuza olhou uma vez mais na direção da estalagem, depois voltou para sua cadeira. A descoberta de Molasar de que a seita Glaeken ainda existia sem dúvida o chocara profundamente. Talvez não fosse tão fácil livrar o mundo de Hitler. Ainda assim, tinha de tentar. Era o que iria fazer.

 

Ficou sentado na escuridão sem se preocupar em acender a vela e fazendo votos para que Magda estivesse bem.

 

Com as têmporas latejando e a lanterna tremendo-lhe na mão, Woermann permaneceu imóvel na escuridão gelada, olhando para os lençóis amassados que agora não cobriam nada a não ser o chão embaixo deles. A cabeça de Lutz ainda continuava lá, apoiada sobre o lado esquerdo, com a boca e os olhos abertos. O resto havia desaparecido. . . precisamente como Woermann suspeitara. Todavia o fato de temer que aquilo acontecesse não atenuou a brutalidade do impacto.

 

Onde estavam os cadáveres?

 

E uma vez mais das profundidades à sua direita, vinham aqueles ruídos estranhos. Woermann sabia que tinha de ir ao encontro da fonte que os produzia. Sua honorabilidade exigia isso dele. Mas antes... Colocando a Luger no coldre, tirou do bolso da túnica a cruz de prata. Achou que ela lhe daria mais proteção do que uma pistola.

 

Com a cruz erguida à sua frente, Woermann começou a caminhar ao encontro do ruído. A caverna embaixo do porão se estreitava, formando um túnel baixo que serpenteava na direção da parte de trás do fortim. À medida que avançava, o ruído se tornava mais forte. Aproximou-se mais. Então começou a ver os ratos. Uns poucos a princípio - gordas ratazanas, empoleiradas em pequenas saliências da rocha e olhando para ele. Quanto mais avançava mais numerosas elas eram - centenas delas, encostadas às paredes, cada vez mais amontoadas, até que o túnel pareceu forrado de uma esteira peluda que se contorcia e ondulava, fixando nele os incontáveis olhinhos redondos e negros. Contendo sua repugnância, o oficial continuou avançando. Os ratos no chão à sua frente evitavam ser pisados mas não demonstravam medo dele. Woermann lamentou não ter trazido uma Schrneisser, contudo não era provável que qualquer tipo de arma fosse capaz de salvá-lo se aqueles ratos o atacassem em massa.

 

Mais adiante o túnel fazia uma curva acentuada para a direita, e Woermann parou para escutar. O ruído estranho era ainda mais forte, agora tão perto que dava a impressão de que sua origem se localizava na curva seguinte. Isso significava que ele deveria ser ainda mais cauteloso Tinha de encontrar um meio de ver o que estava acontecendo sem ser visto.

 

Teria de apagar a lanterna.

 

Woerman não desejava fazer isso. A ondulante camada de ratos no chão e nas paredes seria ainda mais perigosa na escuridão. A impressão era de que a luz é que estava contendo os ratos. E se eles. . . Agora era tarde para desistir. Precisava saber o que havia ali adiante. Imaginou que poderia chegar até à curva com umas cinco passadas. Faria isso no escuro, depois dobraria à esquerda, dando então mais três passos. Se não encontrasse nada acenderia novamente a lanterna e prosseguiria em frente. Pelo que sabia, talvez não houvesse mesmo nada. A proximidade do ruído poderia ser uma ilusão acústica do túnel. . . teria ainda outra centena de metros a percorrer. Ou não teria. . .

 

Enchendo-se de coragem, Woermann apagou a lanterna mas ficou com o dedo no interruptor, pronto a reacendê-la caso acontecesse algo com os ratos. Nada ouviu nem sentiu. Ao parar, esperando que seus olhos se adaptassem à escuridão, notou que o ruído aumentara ainda mais, como se a ausência de luz o amplificasse. Escuridão absoluta. Não havia o menor indício de claridade oriunda de qualquer ponto depois da curva. Entretanto qualquer que fosse a origem do ruído, deveria haver alguma luz, não deveria?

 

Forçou a retomada de seu avanço, contando as passadas, enquanto cada nervo de seu corpo exigia que ele se voltasse e corresse. Mas precisava saber! Onde estavam aqueles corpos? E que é que produzia aquele ruído? Talvez então os mistérios do fortim fossem esclarecidos. Era dever dele descobrir. Seu dever...

 

Ao completar a quinta e última passadas, dobrou à esquerda e, ao fazê-lo, perdeu o equilíbrio. Instintivamente, estendeu a mão esquerda - a que segurava a lanterna -, procurando apoiar-se. E então entrou em contato com algo felpudo que deu um guincho, moveu-se e o mordeu com dentes afiados como navalhas. A dor subiu-lhe pelo braço, obrigando-o a cerrar os dentes para não gritar e não soltar a lanterna.

 

O ruído agora soava mais forte e bem à frente. Contudo a escuridão continuava. Por mais que forçasse os olhos, nada conseguia ver. Começou a transpirar à medida que o medo penetrava fundo em seus intestinos e o oprimia. Tinha de haver luz em algum lugar à frente.

 

Deu mais um passo - bem mais curto do que os anteriores - e parou.

 

Os sons vinham agora diretamente de um ponto à sua frente, bem perto... e para baixo. . . raspando, arranhando, arrastando.

 

Mais um passo. O que quer que fossem aqueles sons, eles davam a impressão de um esforço combinado, embora Woermann não ouvisse a respiração acelerada que deveria resultar desse esforço, mas apenas a sua própria e o latejar de seu sangue nos ouvidos. E o estranho ruído.

 

Mais um passo e ele acenderia a luz outra vez. Levantou o pé, mas sentiu que não podia avançar. Por própria vontade, o corpo se recusava a dar mais um passo até que ele pudesse ver para onde estava indo.

 

Woermann permaneceu imóvel, tremendo. Queria voltar, desistindo de saber o que havia a sua frente. Nada que fosse racional ou deste mundo seria capaz de mover-se, de existir naquela escuridão. Era melhor não saber. Mas os corpos. .. Ele tinha de saber.

 

Reunindo toda a sua vontade, Woermann acendeu a lanterna. Teve de esperar um momento até que suas pupilas se adaptassem ao repentino clarão, e ainda mais tempo para que sua mente registrasse o horror que a luz revelava.

 

E então Woermann gritou. . . um uivo de agonia que foi aumentando de volume e de tom, ecoando e voltando a ecoar em torno dele enquanto ele voltava correndo pelo caminho por onde tinha vindo. Passou rapidamente pelos ratos e continuou. Havia ainda uns dez metros de túnel a percorrer quando Woermann teve de parar.

 

Havia alguém à sua frente.

 

Focalizou o facho de sua lanterna no vulto que lhe bloqueava a passagem E então viu o rosto de cera, a capa, a roupa, o cabelo comprido, os dois poços negros onde deveriam estar os olhos. E então ficou sabendo. Aquele era o senhor do fortim.

 

Woermann permaneceu imóvel por um momento, encarou o estranho vulto com mórbida fascinação, e então apelou para seu quarto de século de disciplina militar.

 

- Deixe-me passar! - ordenou, expondo à luz da lanterna a cruz que segurava na mão direita, certo de que estava usando uma arma eficaz. - Em nome de Deus, em nome de Jesus Cristo, em nome de tudo o que é sagrado, deixe-me passar!

 

Ao invés de recuar o vulto avançou, aproximando-se tanto de Woermann que a luz destacou suas faces encovadas. Ele estava sorrindo - um esgar de sarcasmo, que fez com que o sangue de Woermann lhe gelasse nas veias e que as mãos lhe tremessem violentamente.

 

Aqueles olhos. . . Oh, Deus! Aqueles olhos... Woermann sentia-se enjaulado, incapaz de recuar, por saber o que havia atrás dele, e não podendo avançar. Continuava mantendo o facho da lanterna sobre a cruz de prata - a cruz! Os vampiros têm horror à cruz! -, colocando-a bem à vista enquanto lutava para vencer um terror nunca imaginado.

 

Deus misericordioso! Se tendes piedade de mim, não me abandoneis!

 

Invisível, uma mão insinuou-se através da escuridão e arrancou a cruz que Woermann segurava, prendendo-a com o polegar e o indicador e deixando o oficial apavorado e sem ação ao ver a facilidade com que a dobrava uma vez, depois outra, até transformá-la numa massa informe de prata, que foi atirada no chão, com a displicência de um fumante que joga fora o toco de seu cigarro.

 

Woermann deu um grito de terror, ao ver a mesma mão mover-se na direção dele. Tentou desviar-se, mas não foi bastante rápido.

 

Magda recobrou pouco a pouco a consciência, sentindo que alguém estava debruçado sobre ela e quase lhe arrancava um dedo da mão direita. Abriu os olhos. As estrelas luziam no céu. Havia um vulto escuro que a atacava brutalmente.

 

Onde estava ela? E por que sua mão doía tanto?

 

As imagens se sucediam em sua mente - Glenn... a ponte. . . os tiros... a garganta...

 

Glenn estava morto! Não fora um sonho - Glenn estava morto!

 

Com um gemido ela conseguiu sentar-se, fazendo com que seu assaltante desse um grito de terror e saísse correndo em direção à vila. Quando a sensação de tontura diminuiu ela tocou de leve na região inchada do lado direito de sua cabeça e estremeceu de dor.

 

Procurou também saber o que acontecera no dedo de sua mão direita. A carne em torno do anel de casamento de sua mãe estava machucada e dolorida. O atacante deveria ter tentado arrancar a aliança. E era um dos habitantes da vila. Talvez tivesse pensado que ela estava morta e ficara apavorado, quando a viu mover-se.

 

Magda levantou-se e tornou a sentir-se tonta. Quando conseguiu recuperar-se, dominando a ânsia de vómito e o zumbido em seus ouvidos, tentou caminhar. Cada passo lhe provocava uma pontada de dor na cabeça, mas ela continuou andando para alcançar a estrada. Um débil luar se filtrava através das nuvens carregadas. A lua ainda não havia nascido quando ela desmaiara. Durante quanto tempo estivera inconsciente? Precisava encontrar Glenn!

 

Ele ainda está vivo - disse para si mesma. - Tem de estar! Só dessa maneira podia imaginá-lo. Porém, como poderia ele estar vivo? Como poderia alguém sobreviver depois de tantos ferimentos a bala. . . depois da queda até ao fundo da garganta. . .?

 

Magda começou a soluçar, tanto por Glenn como por aquela dolorosa sensação de perda. Sentiu desprezo por si mesma devido àquele egoísmo, porém era algo que não podia ser negado. Vinham-lhe à mente pensamentos acerca de todas as coisas que eles não mais fariam juntos. Após trinta e um anos Magda por fim encontrara um homem que ela podia amar. Passara um dia inteiro a seu lado - vinte e quatro inesquecíveis horas submersa na verdadeira magnificência da vida. E saber agora que ele lhe fora roubado e brutalmente assassinado!

 

Não era justo!

 

Chegou até à beira da garganta e ficou olhando o nevoeiro que subia lá do fundo. Seria possível alguém odiar uma construção de pedra? Magda odiava o fortim. Ele abrigava o próprio mal. Se tivesse esse poder ela o mergulharia no Inferno, levando todos quantos estivessem em seu interior - sim, até mesmo Papai! - Juntamente com ele.

 

Mas o fortim flutuava, silencioso e implacável, num mar de névoa, iluminado por dentro, escuro e sinistro por fora, ignorando-a.

 

Magda preparou-se para descer até à garganta como fizera duas noites atrás. Duas noites... e parecia uma eternidade. O nevoeiro subira até à borda da garganta, tornando a descida ainda mais perigosa. Era uma loucura arriscar sua vida tentando achar o corpo de Glenn na escuridão lá embaixo. Entretanto a vida dela já não importava agora tanto quanto há poucas horas atrás. Precisava encontrá-lo. . . tocar em seus ferimentos, sentir seu coração parado e sua pele gelada. Queria saber com certeza se não havia mesmo a menor esperança de vida. Não descansaria enquanto permanecesse em dúvida quanto a isso.

 

Ao tentar os primeiros passos ouviu algumas pedras rolarem perto dela. De início pensou que, com seu peso, havia deslocado algum torrão da beira da garganta. Mas logo depois tornou a ouvir o ruído. Magda parou e ficou atenta. Havia um outro som: uma respiração ofegante. Alguém estava subindo a encosta através da névoa!

 

Assustada. Magda recuou e escondeu-se numa moita, pronta para correr. Susteve a respiração ao ver que uma mão surgia de dentro do nevoeiro e se apoiava na beira da garganta, seguida de outra mão e de uma cabeça. Magda reconheceu-a imediatamente.

 

- Glenn!

 

Ele não deu mostras de ter escutado e continuou lutando para chegar até à borda. Magda correu para ele. Agarrando-o por baixo dos braços e mobilizando todas as forças de que era capaz, puxou-o para a superfície em cima, onde ele ficou de bruços, arquejando e gemendo. Ela ajoelhou-se junto dele, impotente e confusa.

 

- Oh, Glenn! Você está. . . - as mãos dela estavam molhadas e escuras a luz do luar. - Você está sangrando!

 

Aquilo era oco, era óbvio, era esperado - mas era tudo o que ela podia dizer no momento.

 

Você deveria estar morto! - pensou ela, mas não pronunciou as palavras. Talvez nada tivesse acontecido. Entretanto as roupas dele sstavam encharcadas do sangue que escoava de inúmeros ferimentos mortais. Era um milagre que ele ainda respirasse, que pudesse ter subido toda a encosta da garganta! E no entanto ali estava ele, prostrado diante dela. .. mas vivo! Se conseguira suportar tudo aquilo, talvez. ..

 

- Vou buscar um médico! - Outra ponderação estúpida, apenas um reflexo. Não havia médico no passo Dinu. - Trarei Buliu e Lídia. Eles me ajudarão a carregá-lo para a. ..

 

Glenn murmurou qualquer coisa. Magda inclinou-se, aproximando o ouvido dos lábios dele.

 

- Vá ao meu quarto - disse ele com uma voz fraca, seca, atormentada. Podia sentir-se o cheiro de sangue em seu hálito. Ele está sangrando por dentro!

 

- Vou levar você para lá tão logo encontre luliu. .. Mas será que luliu a ajudaria.

 

Os dedos de Glenn agarraram-na pela manga do vestido.

 

- Escute! Vá buscar aquela caixa... a que você viu ontem.. . com uma lâmina dentro.

 

- Isso não vai ajudá-lo em nada agora! Você precisa é de cuidados médicos!

 

- Você tem de ir! Nada mais poderá salvar-me!

 

Ela se ergueu, hesitou por um momento, depois começou a correr. Sua cabeça latejava novamente, mas agora era mais fácil suportar a dor. Glenn queria aquela lâmina de espada. Isso não fazia sentido, mas a voz dele estava carregada de tanta convicção. . . tanta urgência. . . tanta necessidade. Tinha de fazer o que ele pedira.

 

Magda não reduziu os passos ao entrar na estalagem e subir a escada, parando apenas na entrada do quarto de Glenn. Dirigiu-se então até o armário e apanhou a caixa, que se abriu com um estalido agudo. Ela não havia recolocado os fechos no lugar quando Glenn a surpreendera no dia anterior. A lâmina escorregou de dentro da caixa e bateu contra o espelho, que se partiu, espalhando pedaços pelo chão. Magda agachou-se logo e recolocou a lâmina em seu lugar, fechou a caixa com cuidado e em seguida ergueu-a, gemendo sob seu inesperado peso. Ao voltar-se para ir embora, apanhou o cobertor da cama, depois correu para seu quarto em busca de outro cobertor.

 

luliu e Lídia, alertados por aquela movimentação no pavimento superior, aguardavam ao pé da escada, com ar de espanto, quando ela desceu.

 

- Não tentem deter-me! - exclamou Magda ao passar por

eles.

 

Alguma coisa na voz dela, uma espécie de advertência, fez com que eles se afastassem para deixá-la passar.

 

Magda chegou ao local onde havia deixado Glenn carregando a caixa e os cobertores. Afastou os galhos dos arbustos e aproximou-se de Glenn, rezando para que ele ainda estivesse vivo. Encontrou-o deitado de costas, mais fraco, a voz apenas um sussurro.

 

- A lâmina - murmurou ele quando Magda se debruçou sobre seu corpo. - Tire-a da caixa.

 

Durante um angustioso momento Magda pensou que ele iria pedir um coup de grâce. Ela faria qualquer coisa por Glenn - qualquer coisa menos isso. Mas poderia um homem com aqueles ferimentos todos fazer um esforço tão desesperado, subindo a encosta da garganta, apenas para pedir que o matassem? Abriu a caixa. Dois grandes pedaços de espelho haviam caído dentro dela. Magda colocou-os de lado e tirou a lâmina escura e fria, segurando-a com as mãos e sentindo as reentrâncias das estranhas inscrições.

 

Ela colocou a arma sobre os braços que ele estendera para recebê-la e quase a deixou cair quando um breve clarão azulado, como a chama de um gás, correu ao longo da aresta ao contato das mãos dele. Glenn suspirou, aliviado, e sua fisionomia se descontraiu como se as dores tivessem cessado, substituídas por uma alegria íntima. . . a alegria de um homem que volta ao lar depois de uma jornada longa e tenebrosa.

 

Colocou a lâmina sobre seu corpo crivado de balas e encharcado de sangue, a ponta na altura dos tornozelos e o espigão da extremidade oposta quase tocando o queixo. Depois de cruzar os braços sobre a lâmina, que apertou contra o peito, Glenn fechou os olhos.

 

- Você não deve ficar aqui - disse ele com um fio de voz. - Volte mais tarde.

 

- Não vou deixá-lo.

 

Glenn não replicou. Sua respiração foi-se tornando mais calma e regular. Parecia haver adormecido. Magda mantinha os olhos fixos nele. O clarão azulado se espalhou por seus braços, revestindo-os de uma leve patina de luz. Magda cobriu-lhe o corpo com um cobertor, não apenas para aquecê-lo mas também para que essa luz não fosse vista do fortim. Depois afastou-se, colocou o segundo cobertor sobre os próprios ombros e sentou-se encostada a uma pedra. Uma infinidade de interrogações, até então contidas, enchiam-lhe a mente.

 

Afinal, quem era ele? Que espécie de homem era esse que, tendo sofrido uma série de ferimentos suficientes para matá-lo várias vezes, ainda se mostrava capaz de escalar uma encosta como aquela, tarefa difícil mesmo para uma pessoa em perfeita saúde. Que espécie de homem escondia o espelho de seu quarto num guarda-roupa juntamente com uma antiga espada sem punho? Quem era esse que agora segurava essa espada contra o peito enquanto jazia à beira da morte. Como poderia ela entregar seu amor e sua vida a um homem assim? Na verdade, ela nada sabia a respeito dele.

 

E então o aviso de Papai lhe soou de novo nos ouvidos: Ele pertence a um grupo que orienta os nazistas, que os utiliza para atingir seus próprios objetivos sórdidos! Ele é pior que um nazista!

 

Será que Papai tinha razão? Poderia ela estar tão cega por sua paixão que não via ou não queria ver a realidade? Glenn por certo não era uma pessoa comum. Tinha seus segredos e estava longe de ter sido totalmente franco com ela. Seria possível que Glenn fosse o inimigo e Molasar o aliado?

 

Abrigou-se melhor com o cobertor. Tudo o que lhe restava fazer era esperar.

 

Suas pálpebras começaram a pesar. Os efeitos da concussão e o ruído ritmado da respiração de Glenn somaram-se à sua fadiga. Ainda lutou um pouco, depois cedeu. . . apenas por uns instantes. . . só para descansar os olhos.

 

Klaus Woermann sabia que estava morto. E contendo. . . não, não era um morto.

 

Lembrava-se com clareza de sua morte. Fora estrangulado com deliberada lentidão ali na caverna embaixo do porão nas trevas iluminadas apenas pela fraca luminosidade de sua lanterna caída no chão. Dedos gelados com incalculável força tinham apertado sua garganta, cortando-lhe o ar até que seu sangue lhe explodisse nos ouvidos e ele fosse envolvido pela escuridão.

 

Não, porém, a escuridão eterna. Ainda não.

 

Não podia compreender sua continuada capacidade de raciocinar. Estava deitado de costas, os olhos abertos contemplando as trevas. Não sabia há quantas horas estava assim. O tempo perdera todo o significado. Exceto quanto à visão, não tinha qualquer comando sobre seu corpo. Era como se este pertencesse a outra pessoa. Não sentia nada, nem mesmo o chão pedregoso sob suas costas ou o ar frio sobre seu rosto. Não conseguia ouvir nada. Também não respirava. Era incapaz de mover. . . mesmo que fosse um dedo. E quando um rato lhe percorreu a face, esfregando os pêlos nos olhos, ele nem sequer piscou.

 

Estava morto. E contudo não era um morto.

 

Todo o temor desaparecera, toda a angústia. Estava privado de qualquer sentimento, exceto do remorso. Aventurara-se a entrar naquela caverna em busca de redenção e apenas encontrara horror e morte... sua própria morte.

 

De repente Woermann deu-se conta de que estava sendo arrastado. Embora ainda não pudesse sentir nada, teve a impressão de estar sendo puxado na escuridão, pela aba de sua túnica e através de uma estreita passagem, para um quarto também escuro... e para a luz.

 

A linha de visão de Woermann acompanhava a extensão de seu corpo.

 

Enquanto era arrastado por um corredor pontilhado de fragmentos de granito, seu olhar se deteve em uma parede que ele reconheceu de imediato - uma parede sobre a qual tinham sido escritas com sangue algumas palavras de uma língua antiga. A parede fora lavada, porém ainda se viam manchas escuras na pedra.

 

O capitão foi largado no chão. Seu campo de visão estava agora limitado a um trecho do teto parcialmente destruído, bem acima de sua cabeça. Movimentando-se na periferia de sua visão havia um vulto escuro. Woermann viu uma corda grossa que descia serpenteando de uma trave do teto, viu um laço dessa mesma corda baixar sobre seu rosto, e em seguida ele foi de novo puxado. . . para cima... até que seus pés deixaram o solo e seu corpo sem vida começou a balançar e voltear no espaço. Uma figura sombria desapareceu na entrada do corredor e Woermann foi deixado sozinho, pendurado na corda pelo pescoço.

 

Quis gritar seu protesto a Deus, pois agora sabia que aquele ser escuro que comandava o fortim estava em guerra não apenas contra os corpos dos soldados que haviam penetrado em seus domínios, mas também contra suas mentes e seus espíritos.

 

E Woermann percebeu qual o papel que fora obrigado a representar naquela guerra: o de suicida. Seus homens pensariam que ele se matara! Isso os desmoralizaria completamente. O comandante, o homem que devia dar-lhes o exemplo, enforcara-se - a suma covardia, a derradeira deserção.

 

Woermann não podia permitir que tal acontecesse. Entretanto nada podia fazer para alterar o curso dos acontecimentos. Estava morto.

 

Era esse o seu castigo por ter fechado os olhos à monstruosidade da guerra? Se era, a pena tinha sido exagerada. Ficar pendurado daquele jeito e ver seus homens e os einsatzkommandos

chegarem, curiosos e surpresos, olhando para ele. E, como suprema ignomínia, ver Erich Kaempffer sorrindo para ele!

 

Era essa a razão de ele ter sido deixado oscilando às portas do eterno esquecimento? Para testemunhar sua própria humilhação como suicida?

 

Se ao menos pudesse fazer alguma coisa!

 

Um gesto derradeiro para redimir seu orgulho e... sim. . . sua coragem. Um último gesto para dar sentido à sua morte.

 

Alguma coisa!

 

Qualquer coisa!

 

Mas tudo o que ele podia fazer era ficar pendurado, esperando que o encontrassem.

 

Cuza levantou os olhos ao ouvir que um ruído rascante enchia o quarto. A seção da parede que conduzia para a base da torre estava girando. Quando o movimento cessou, a voz de Molasar se fez ouvir do fundo da escuridão.

 

- Está tudo pronto.

 

Até que enfim! A espera fora quase insuportável. À medida que as horas passavam, Cuza quase perdera a esperança de ainda ver Molasar naquela noite. Nunca fora um homem paciente, mas não tinha idéia de haver sido tão torturado por uma sensação de urgência como naquela noite. Tentara distrair-se, imaginando o que teria acontecido a Magda, depois daquele golpe na cabeça. . . Mas não adiantara. A perspectiva da destruição de Hitler sobrepunha-se em sua mente a quaisquer outras considerações. Cuza percorrera em todos os sentidos o espaço dos dois quartos, obcecado por sua ardente ansiedade de agir, porém incapaz de fazer qualquer coisa antes da palavra de ordem de Molasar.

 

Mas agora ele chegara. Ao correr a seu encontro, deixando para sempre a cadeira de rodas, sentiu na palma da mão o contato de um frio cilindro de metal.

 

- O que... ?

 

Era uma lanterna elétrica.

 

- Você precisará disso.

 

Cuza apertou o interruptor, notando que a lanterna era do tipo utilizado pelo exército alemão. A lente estava rachada. Ele pôs-se a imaginar quem...

 

- Venha comigo.

 

Molasar desceu sem hesitar os degraus da escada em espiral na parte interna da parede da torre. Parecia dispensar qualquer tipo de luz para iluminar-lhe o caminho, mas Cuza não enxergava nada. Para acompanhar de perto Molasar teve de manter o facho da lanterna dirigido para os degraus onde deveria pisar. Gostaria de ter um momento para examinar aquele local. Durante muito tempo desejara explorar a base da torre e até àquele momento só dispunha das informações que Magda lhe transmitira. Agora, porém, não havia tempo para tratar de detalhes. Quando a guerra acabasse ele retornaria para fazer a inspeção com vagar.

 

Passado algum tempo eles chegaram a uma estreita abertura na parede. Cuza passou por ela, atrás de Molasar, e encontrou-se na caverna embaixo do porão. Molasar estugou o passo e Cuza estava leve de esforçar-se para acompanhá-lo. Entretanto não se lamentou, tão contente estava por poder andar, por não mais sentir o frio nas mãos que lhe dificultava a circulação, nem as juntas emperradas pela artrite. Chegara até a suar! Que maravilha!

 

Divisou, à sua direita, uma claridade que descia pela escada que dava para o porão. Girou o facho da lanterna para a esquerda. Os corpos tinham desaparecido. Os alemães deviam tê-los despachado já, mas era estranho que tivessem deixado as mortalhas empilhadas no chão.

 

Além do som de seus próprios passos Cuza começou a ouvir outro ruído. Um leve arranhar. À medida que seguia atrás de Molasar, saindo da caverna e passando para um corredor estreito que mais parecia um túnel, o ruído foi-se tornando progressivamente mais forte. Ele acompanhou Molasar através das várias curvas do corredor até que, depois de uma particularmente brusca para a esquerda, Molasar parou e fez sinal para que Cuza se aproximasse. O som rascante se acentuara, ecoando em torno deles.

 

- Prepare-se - disse Molasar, com uma expressão indecifrável. - O que você vai ver poderá chocá-lo, mas é uma providência indispensável à recuperação de meu talismã. Talvez houvesse outro meio, mas este é conveniente e satisfatório.

 

Cuza duvidou que Molasar pudesse fazer com os corpos dos soldados alemães qualquer coisa que realmente o surpreendesse.

 

Entraram então numa grande câmara hemisférica com um teto de rocha de gelo e um chão empoeirado. Uma profunda escavação fora feita no meio da câmara. E o ruído rascante cada vez mais forte. De onde vinha ele? Cuza procurou descobrir fazendo correr o facho da lanterna pelas paredes e pelo teto e espalhando a luz por toda a câmara.

 

Sua atenção foi despertada por um movimento perto de seus pés e em toda a periferia da escavação. Pequenos movimentos.

 

Sentiu um calafrio - ratos! Centenas deles cercavam a cova, chocando-se, trepando uns em cima dos outros, agitados. . . ansiosos. . .

 

Cuza percebeu algo muito maior do que um rato subindo pela parede da escavação. Avançou um passo e projetou a luz da lanterna diretamente dentro da cova... e quase a deixou cair. Era como se estivesse vendo uma das antecâmaras do Inferno. Sentindo-se de repente estonteado, afastou-se da borda e encostou-se na parede mais próxima para não cair. Fechou os olhos e arquejou como um cão num dia sufocante de verão, tentando dominar sua náusea e aceitar o que estava vendo.

 

Havia dez cadáveres na cova, todos com o uniforme alemão, cinzento ou preto, e todos movendo-se de um lado para outro - até mesmo o que estava sem cabeça!

 

Cuza abriu novamente os olhos. À meia-luz da câmara ele viu um dos cadáveres arrastar-se como um caranguejo até à borda da cova e atirar para fora um punhado de terra voltando depois para o fundo.

 

Cuza desencostou-se da parede e, cambaleando, aproximou-se da cova para olhar outra vez.

 

Eles pareciam não necessitar dos olhos, pois não davam a menor atenção aos gestos de cavar a terra dura e gelada. Suas juntas mortas se movimentavam, desajeitadas e emperradas, como se resistissem à força que as impelia, mas sempre trabalhando de modo incansável, em profundo silêncio, com surpreendente eficiência, a despeito de seus movimentos atáxicos. O ruído do arrastar de suas botas e do arranhar de suas mãos no solo quase gelado - à medida que eles aprofundavam e alargavam a escavação - crescia e ecoava pelas paredes e pelo teto da câmara lugubremente amplificado.

 

De repente o ruído cessou e desapareceu como se nunca tivesse existido. Todos os cadáveres suspenderam seus movimentos e agora permaneciam imóveis.

 

Molasar falou ao ouvido de Cuza:

 

- Meu talismã se encontra enterrado sob os derradeiros centímetros de solo. Você tem de remover a terra que o cobre.

 

- Mas eles não podem. . . ? - O estômago de Cuza rebelou-se ante a idéia de ele ter de descer até lá embaixo.

 

- Eles são muito desajeitados.

 

Com um olhar suplicante, Cuza perguntou:

 

- Você não pode fazer isso? Depois eu levarei o talismã para qualquer lugar que você quiser.

 

Os olhos de Molasar fuzilaram de impaciência.

 

- Isso faz parte de seu trabalho! É tão simples! Com tanta coisa importante para fazer você reclama só porque vai sujar suas mãos?

 

- Não, não, claro que não! É apenas porque... - Cuza olhou ainda uma vez para os cadáveres.

 

Molasar acompanhou esse olhar. Embora ele não tivesse pronunciado uma única palavra nem feito qualquer gesto os corpos começaram a mover-se, voltando-se simultaneamente e arrastando-se para fora da cova. Após terem saído todos se alinharam formando um círculo ao longo da beira do fosso. Os ratos se movimentavam sobre os pés deles. Os olhos de Molasar não se despregavam de Cuza.

 

Sem esperar nova ordem, Cuza deixou-se escorregar pela parede da cova até ao fundo. Colocou a lanterna sobre uma saliência da rocha e começou a escavar com as mãos a terra frouxa, no ponto mais baixo do buraco em forma de cone. O frio e a sujeira não lhe impediam o trabalho. Depois da primeira reação, por estar cavando no mesmo lugar em que os cadáveres haviam trabalhado, ele se sentiu entusiasmado por ser capaz de utilizar de novo as mãos, ainda que numa tarefa tão repugnante como aquela. Devia tudo a Molasar. Era gostoso mergulhar os dedos na terra e sentir o solo desmanchar-se. Animado, aumentou o ritmo, trabalhando febrilmente.

 

Suas mãos logo encontraram alguma coisa diferente de terra. Era uma caixa quadrada, com uns trinta centímetros de cada lado e cerca de dez de altura. E pesada. . . muito pesada. Cuza arrancou a capa já meio rasgada que a cobria e abriu a tampa.

 

Qualquer coisa metálica, brilhante e pesada, estava dentro dela. Cuza prendeu a respiração. A princípio pensou que se tratasse de um crucifixo, mas isso era impossível. Era quase uma cruz, desenhada segundo as mesmas linhas excêntricas das milhares que enchiam as paredes do fortim. Entretanto nenhuma destas podia comparar-se com a que estava na caixa. Bem mais grossa, deveria ter sido o modelo segundo o qual as demais foram fundidas. O braço vertical era arredondado, quase cilíndrico e, à exceção de uma profunda reentrância no topo, parecia de ouro maciço. O braço horizontal tinha o aspecto de prata. Cuza examinou-a ligeiramente através das lentes inferiores de seus óculos bifocais mas não encontrou qualquer desenho ou inscrição.

 

O talismã de Molasar. . . a chave de seu poder. Cuza emocionou-se, reverente. Havia poder ali, poder que ele chegava a sentir em suas mãos enquanto segurava a cruz. A seguir ergueu-a para que Molasar pudesse vê-la, e pareceu-lhe detectar um clarão em torno dela - ou seria apenas um reflexo da luz da lanterna na sua superfície polida?

 

- Encontrei o que você queria!

 

De onde estava Cuza não podia ver Molasar em cima, mas notou que os cadáveres recuaram quando ele levantou acima da cabeça aquele objeto semelhante a uma cruz.

 

- Molasar! Está-me ouvindo?

 

- Estou - respondeu ele, parecendo estar falando do fundo do túnel. - Meu poder está agora em suas mãos. Guarde esse talismã cuidadosamente até que o tenha escondido onde ninguém possa encontrá-lo.

 

Satisfeito, Cuza segurou o talismã ainda com mais força.

 

- Quando partirei? E como?

 

- Dentro de uma hora, tão logo eu tenha dado cabo daqueles alemães que tiveram a ousadia de invadir meu fortim.

 

A batida da porta foi acompanhada pela voz de alguém que o chamava pelo nome. Parecia ser o Sargento Oster. . . na iminência de uma crise de nervos. Entretanto o Major Kaempffer não confiava em ninguém. Saltou em sua cama e empunhou a Luger.

 

- Quem é?

 

Propositadamente demonstrou no tom da voz sua desaprovação por ter sido acordado. Era a segunda noite que faziam isso. Na primeira acontecera aquela inútil excursão com o judeu até à ponte. O que seria agora? Olhou o relógio. Quase quatro horas! O dia estava prestes a clarear. Quem poderia querer falar-lhe tão cedo? A menos que alguém tivesse sido morto.

 

- É o Sargento Oster. senhor.

 

- O que há desta vez? - perguntou Kaempffer, abrindo a porta.

 

Um simples olhar para o rosto pálido do sargento fez com que ele soubesse que algo terrível havia acontecido. Mais do que uma simples morte.

 

- Foi o capitão, senhor. . . O Capitão Woermann. . .

 

- Pegaram-no? - Woermann? Assassinado? Um oficial?

 

- Ele se matou, senhor.

 

Kaempffer fitou o sargento com os olhos arregalados, estupefado. recobrando-se graças a um grande esforço.

 

- Espere aí. - Kaempffer fechou a porta e vestiu, apressada, as calças, as botas, e atirou a túnica sobre sua roupa de baixo, sem se preocupar em abotoá-la. Em seguida voltou para a porta. - Leve-me para o local onde o corpo foi encontrado.

 

Enquanto seguia atrás do sargento através das partes destruídas do fortim, Kaempffer deu-se conta de que o fato de Klaus Woermann ter-se suicidado o perturbara mais do que se o oficial tivesse sido assassinado como todos os outros. O gesto não afinava com o caráter de Woermann. As pessoas mudam, mas Kaempffer não conseguia imaginar que aquele jovem, que sozinho derrotara uma companhia de soldados britânicos na última guerra, acabasse agora com a própria vida, por piores que fossem as circunstâncias.

 

Apesar de tudo. . . Woermann estava morto. .O único homem que podia interpelá-lo, chamando-o de covarde, estava mudo para sempre. Isso compensava tudo o que Kaempffer vinha sofrendo desde sua chegada àquele inferno. E havia um detalhe especial a ser explorado - a maneira como Woermann morrera. O relatório nada esconderia: o Capitão Woermann suicidara-se - era o que constaria dos arquivos. Uma morte infamante. Pior do que deserção. Kaempffer gostaria de ver a expressão dos rostos da mulher e dos dois filhos de que Woermann tanto se orgulhava. O que iriam eles pensar do pai, do herói deles, ao receberem a notícia?

 

Ao invés de levar o major para o quarto de Woermann, no outro lado do pátio, Oster dirigiu-se para o corredor onde Kaempffer aprisionara os habitantes da vila no dia de sua chegada. A área fora parcialmente destruída nos últimos dias. Dobraram a curva final e ali estava Woermann.

 

Pendurado por uma grossa corda, seu corpo oscilava levemente como que impulsionado por uma brisa; entretanto, o ar estava parado. A corda fora amarrada a uma viga do teto. Kaempffer correu o olhar à procura de uma banqueta ou de qualquer apoio que tivesse permitido a Woermann realizar aquela operação. Talvez ele tivesse subido numa das pilhas de pedras que apareciam aqui e ali. . . os olhos. Os olhos de Woermann tinham saltado de suas órbitas. Kaempffer teve a impressão de que eles se moviam, acompanhando sua aproximação, mas achou que era apenas um reflexo da luz das lâmpadas espalhadas pelo teto.

 

O oficial se deteve à frente do corpo oscilante de seu colega. A fivela do cinturão de Woermann ficara na altura do nariz de Kaempffer, que, levantando os olhos, pôde ver detidamente aquele rosto ingurgitado, vermelho de sangue estagnado.

 

... de novo os olhos. .. Pareciam agora fixos nele. Kaempffer desviou o olhar e viu a sombra de Woermann na parede. A imagem era a mesma, exatamente a mesma, da sombra do enforcado que ele vira no quadro pintado pelo oficial.

 

Um calafrio percorreu-lhe a espinha.

 

Pressentimento? Teria Woermann previsto sua morte? Ou a idéia do suicídio já estava há muito em sua mente?

 

A satisfação de Kaempffer começou a extinguir-se quando ele se deu conta de que era agora o único oficial no fortim. A partir daquele momento toda a responsabilidade recaía unicamente sobre seus ombros. Na verdade, talvez lhe tocasse ser a próxima vítima. Que deveria ele. . .

 

Um tiroteio irrompeu no pátio.

 

Surpreso, Kaempffer voltou-se e viu Oster olhar para o fundo do corredor e depois para ele. A interrogação que havia no rosto do sargento transformou-se em horror ao fitar um ponto acima da cabeça de Kaempffer. O Major da SS quis girar o corpo para descobrir o motivo de tão violenta reação, mas sentiu que dedos grossos e gelados agarravam-lhe o pescoço e começavam a apertar.

 

Kaempffer tentou livrar-se, dar um pontapé em quem o atacava por trás, mas seu pé nada encontrou. Abriu a boca para gritar,, porém mal conseguiu emitir um grunhido. Lutando desesperado para livrar-se dos dedos que implacavelmente o estavam sufocando, ele procurou virar-se para ver quem o atacava. Na verdade, já sabia. No fundo horrorizado de sua mente ele sabia. Entretanto precisava ver! Fez mais um esforço, viu a manga do atacante - a manga de uma túnica cinzenta do exército alemão. Subindo o olhar por ela. . . deparou com Woermann.

 

Mas ele está morto!

 

Apavorado, Kaempffer continuou a debater-se, arranhando as mãos mortas que lhe apertavam a garganta. Tudo em vão. Sentiu-se levantado no ar pelo pescoço, lenta e continuadamente, até que só a ponta de seus pés ficaram em contato com o chão. Mais um, pouco e a suspensão foi total. Agitou os braços na direção de Oster mas o sargento, com o rosto transformado em uma máscara de pavor, encostara-se à parede e se arrastava devagar para fora, - para fora! - fugindo dele. E não deu sequer mostras de ter tomado conhecimento do que acontecia com Kaempffer. Seu olhar estava dirigido para um ponto mais acima, para seu ex-comandante. . . morto. . . mas cometendo um assassinato.

 

Imagens confusas passaram pela mente de Kaempffer, um desfile de cenas e de sons, que se tornavam cada vez mais indistintos e mesclados à medida que enfraqueciam as batidas de seu coração.

 

O som do tiroteio continuava a ecoar, vindo do pátio, misturado com gritos de dor e de medo. Oster esgueirou-se pelo corredor, ignorando os dois mortos que se aproximavam, um deles o próprio einsatzkommando Flick, assassinado na primeira noite passada no fortim. Por fim Oster os viu, não sabendo então para onde fugir. O tiroteio aumentava no pátio. . . saraivada de balas por toda a parte, enquanto Oster descarregava a sua Schmeisser contra os cadáveres que se aproximavam, rasgando-lhes os uniformes, atirando-os para trás, mas não conseguindo evitar que eles avançassem. .. gritos de Oster quando cada um dos corpos agarrou um de seus braços atirando-o de cabeça contra a parede. . . os gritos acabando com um golpe surdo quando seu crânio se estilhaçou como um ovo...

 

A visão de Kaempffer foi diminuindo... os sons enfraqueceram . . . uma prece se formou em sua mente:

 

Oh, Deus! Deixai-me viver! Farei qualquer coisa que quiserdes se me deixardes viver!

 

Uma ruptura. . . uma queda súbita no chão. . . a corda do enforcado se rompera com o peso de dois corpos. .. mas nenhuma -diminuição na pressão da garganta. .. uma incontrolável letargia se apossava dele... na meia-luz ele viu o cadáver do Sargento Oster, com a cabeça ensangüentada, levantar-se e acompanhar seus dois assassinos na direção do pátio... e no fim, em seu derradeiro espasmo, Kaempffer ainda divisou a fisionomia contorcida de Woermann... e viu um sorriso nela.

 

Caos no pátio.

 

Por toda a parte havia cadáveres caminhando, atacando os soldados em seus leitos, em seus postos. As balas não podiam matálos - eles já estavam mortos. Os seus horrorizados ex-camaradas descarregavam as armas contra eles, mas os mortos continuavam a aproximar-se. E o pior era que, tão logo alguém morria, o novo cadáver se levantava e se unia ao grupo dos atacantes.

 

Dois desesperados soldados de uniforme preto tiraram a tranca do portão e começaram a abri-lo; mas antes que pudessem fugir foram agarrados por trás e arrastados pelo chão. Momentos depois também esses estavam outra vez de pé, montando guarda, em companhia de outros cadáveres, na frente do portão aberto, a fim de evitar passagem de algum de seus camaradas vivos.

 

De repente, todas as luzes se apagaram quando uma rajada de metralhadora espatifou os geradores.

 

Um cabo da SS subiu num jipe e deu partida, com esperança de forçar seu caminho para fora; porém, quando soltou a embreagem, o motor parou. Foi arrancado do assento e estrangulado antes que tivesse tempo de dar partida de novo.

 

Um soldado, que se refugiara tremendo de horror dentro de seu saco de dormir, foi sufocado por um cadáver sem cabeça que em vida fora conhecido pelo nome de Lutz.

 

O tiroteio não demorou a ceder. A fuzilaria generalizada deu lugar a rajadas intermitentes, depois a tiros isolados. Os gritos dos homens foram substituídos por um ou outro gemido. Depois até estes cessaram. Por fim, o silêncio. Tudo quieto, enquanto os cadáveres, .- antigos e novos - permaneciam de pé espalhados pelo pátio imóveis, como que esperando.

 

Súbito, silenciosamente, todos, à exceção de dois, caíram no chão e ali ficaram. O par remanescente começou a andar, arrastando os pés, na direção da entrada do porão. Apenas um vulto isolado, alto e escuro, permaneceu no centro do pátio - indisputa do senhor do fortim, afinal.

 

Quando o nevoeiro começou a penetrar pelo portão aberto,, cobrindo o solo do pátio e os cadáveres inertes, o vulto iniciou lentamente seu caminho para a caverna embaixo do porão.

 

Magda despertou sobressaltada pelo tiroteio no fortim. A princípio receou que os alemães tivessem sabido da cumplicidade de Papai e que o estivessem fuzilando. Mas essa terrível hipótese durou apenas um instante. Aquelas loucas saraivadas não correspondiam a uma disciplinada ordem de fogo mas sim ao fragor caótico de uma batalha.

 

Foi uma curta batalha.

 

Tiritando de frio sobre o solo úmido, Magda notou que as estrelas tinham desaparecido no céu cinzento. Os ecos dos tiros haviam cessado de todo engolfados pelo ar gelado que precedia a alvorada. Alguém ou alguma coisa saíra vitorioso no fortim. Magda não tinha dúvida de que fora Molasar.

 

Levantou-se e foi para junto de Glenn. O rosto dele estava molhado de suor e a sua respiração era ofegante. Ao retirar o cobertor, a fim de verificar os ferimentos, um pequeno grito lhe escapou dos lábios. O corpo de Glenn estava envolvido por completo pelo clarão azulado que vinha da lâmina. Cuidadosamente, ela aproximou a mão. Aquela chama não queimava mas lhe dava uma sensação de calor. Embaixo da camisa rasgada de Glenn ela sentiu alguma coisa dura e pesada, parecendo de metal. Magda retirou-a.

 

Na semiclaridade da madrugada ela teve certa dificuldade para identificar aquele objeto que rolara na palma de sua mão. Era feito de chumbo. Uma bala.

 

Magda apalpou mais uma vez o corpo de Glenn. Havia uma porção delas, mas os ferimentos tinham desaparecido em sua maioria, deixando apenas algumas cicatrizes redondas ao invés de ferimentos abertos. Ela puxou os farrapos da camisa ensangüentada que cobriam o abdome dele e examinou a região onde ela sentira um corpo estranho sob a pele. Ali, para o lado direito da lâmina que ele conservava apertada contra o peito, havia uma ferida aberta com um sólido caroço logo abaixo da pele. Enquanto ela observava o caroço saiu para fora. Tratava-se de outra bala que, lenta e penosamente, fora expelida através do ferimento. Era surpreendente e aterrador: a lâmina da espada e seu clarão estavam extraindo as balas do corpo de Glenn e curando-lhe os ferimentos! Magda continuava observando, espantada.

 

O clarão começou a extinguir-se.

 

- Magda...

 

Ela teve um choque. A voz de Glenn era muito mais forte do que quando o cobrira. Colocou-lhe de novo o cobertor sobre o corpo, abrigando-o até ao pescoço. Os olhos dele estavam abertos, voltados para o fortim.

 

- Descanse mais um pouco - pediu Magda.

 

- O que está acontecendo lá?

 

- Ouvi há pouco um grande tiroteio.

 

Com um gemido, Glenn tentou sentar-se. Magda fez com que ele se deitasse novamente. Ainda estava muito fraco.

 

- Preciso ir ao fortim... deter Rasalom.

 

- Quem é Rasalom?

 

- O que você e seu pai chamam de Molasar. Ele inverteu as letras de seu nome para iludi-los... Na verdade, chama-se Rasalom ... e eu preciso detê-lo!

 

Tentou mais uma vez sentar-se e mais uma vez Magda o impediu.

 

- O dia está quase nascendo. Um vampiro não pode aparecer à luz do sol, de modo que...

 

- Ele tem tanto receio da luz quanto você!

 

- Mas um vampiro...

 

- Ele não é um vampiro! Nunca foi. Se fosse - acrescentou Glenn, com uma nota de aflição em sua voz - eu não iria incomodar-me procurando detê-lo.

 

Um calafrio, como uma mão gelada, percorreu a espinha de Magda.

 

- Não é um vampiro?

 

- Ele é a fonte dessas lendas sobre vampiros, mas o que ele deseja é muito mais do que simples sangue. Essa idéia se espalhou no folclore porque as pessoas podem ver o sangue e tocá-lo. O que alimenta Rasalom não pode ser visto nem tocado.

 

- Era isso o que você estava tentando dizer-me, ontem à noite... antes da chegada dos soldados? - perguntou ela, não querendo recordar o que acontecera então.

 

- Sim. Ele retira sua força da dor humana, da miséria e da loucura. Alimenta-se da agonia dos que ele mata com as próprias mãos, mas beneficia-se muito mais com a desumanidade dos homens entre si.

 

- Isso não é possível! Ninguém poderia viver nessas condições. Elas são demasiado... irreais!

 

- Será a luz do sol demasiado irreal para uma flor em sua necessidade de desabrochar? Acredite-me. Rasalom alimenta-se de coisas que não podem ser vistas nem tocadas - e todas elas malignas.

 

- Você fala como se ele fosse o próprio Demônio!

 

- Você quer dizer Satã? O Diabo? - disse Glenn com um sorriso fraco. - Ponha de lado todas as religiões de que você ouviu falar. Elas nada significam aqui. Rasalom é anterior a todas.

 

- Não posso acreditar...

 

- É um sobrevivente da Antigüidade. Finge ser um vampiro de quinhentos anos de idade porque isso se ajusta à história do fortim e da região. E também porque assim deu margem a um temor generalizado - outro de seus prazeres. Mas é muitíssimo mais velho. Tudo o que ele disse ao seu pai - tudo mesmo - foi mentira... exceto o fato de estar debilitado e ter de recobrar suas forças.

 

- Tudo mentira? Mas então por que foi que ele me salvou? E curou Papai? E libertou os habitantes da vila, que o major havia prendido como reféns? Eles teriam sido executados se ele não os tivesse salvo.

 

- Ele não salvou ninguém. Você me disse que ele matou os dois soldados que guardavam os prisioneiros. E acaso libertou ele os reféns? Não! Ele acrescentou o insulto à injúria levando os soldados mortos a entrar no quarto do major obrigando este a fazer papel de bobo e enfurescer-se. Rasalom estava tentando provocá-lo para que ele fuzilasse todos os habitantes da vila. Esse é bem o tipo de atrocidade que lhe aumenta as forças. Depois de meio milênio de prisão, ele está necessitado de novos alimentos. Felizmente, os acontecimentos conspiraram contra ele e os reféns sobreviveram.

 

- Prisão? Mas ele disse a Papai... - A voz dela falhou. - Outra mentira?

 

Glenn confirmou com um movimento de cabeça.

 

- Rasalom não construiu o fortim, como afirmou. Nem estava escondendo-se nele. Pelo contrário, a finalidade da construção foi encarcerá-lo e mantê-lo assim para sempre. Quem poderia imaginar que o fortim ou o próprio passo Dinu pudessem ser um dia considerados de valor militar? Ou que algum imbecil fosse quebrar a parede da cela dele. Se Rasalom conseguir a liberdade, o mundo...

 

- Mas ele já está livre agora.

 

- Não, ainda não está. Essa é outra de suas mentiras. Ele quer que Papai pense nisso, mas na verdade continua no fortim por causa da outra peça disto aqui.

 

Afastou o cobertor e mostrou a extremidade mais grossa da lâmina da espada.

 

- O punho desta espada é a única coisa que Rasalom teme no mundo, pois só esse punho é capaz de detê-lo. É a chave que o mantém preso dentro do fortim. A lâmina se torna inútil sem o punho, mas os dois juntos podem destruí-lo.

 

Magda sacudiu a cabeça tentando livrar-se da confusão que tornava tudo cada vez mais incrível.

 

- Mas esse punho... onde está ele? Qual o seu formato?

 

- Você viu milhares de reproduções dele nas paredes do fortim.

 

- As cruzes! - exclamou Magda com um redemoinho em sua mente. Afinal, não eram cruzes! Sendo reproduções do punho de uma espada não era de admirar que o braço horizontal se situasse tão alto! Há quantos anos ela vinha olhando para elas sem que jamais lhe tivesse ocorrido essa possibilidade]! E se Molasar - ou ela deveria agora se acostumar a chamá-lo de Rasalom? - fosse verdadeiramente a fonte das lendas de vampiros, ficava explicado por que seu temor do punho da espada se transformara, nas histórias do folclore, em temor das cruzes. - Mas onde...

 

- Enterrada no fundo da caverna embaixo do porão. Enquanto o punho estiver dentro das paredes do fortim, Rasalom continuará prisioneiro delas.

 

- Mas tudo o que ele tem a fazer é cavar e apanhá-lo.

 

- Mas acontece que Rasalom não pode tocar no punho, nem mesmo chegar perto dele.

 

- Então não há perigo de fuga!

 

- Infelizmente, há - murmurou Glenn, baixando o tom de voz e fitando os olhos de Magda. - Ele conta com seu pai.

 

Magda quis protestar, gritar Não! com toda a força de seus pulmões, mas não pôde. Ficara imobilizada pelas graves palavras de Glenn. .. palavras que, por desgraça, ela não podia contestar.

 

- Deixe-me dizer-lhe o que acho que aconteceu - disse ele, após um longo silêncio. - Rasalom foi libertado na primeira noite após a chegada dos alemães ao fortim. A força dele não lhe permitia matar mais do que um homem. Depois disso tinha de repousar e refazer as energias. Penso que sua estratégia inicial foi matar um de cada vez, a fim de alimentar-se dessa agonia diária e do terror que crescia entre os vivos sempre que um deles era vitimado. Rasalom preocupou-se em não matar muitos de uma só vez, em especial os oficiais, pois isso poderia levar a uma retirada geral. É provável que ele esperasse a ocorrência de uma destas três hipóteses: Os alemães ficariam tão frustrados que arrebentariam por completo o fortim, provocando assim a liberdade dele; ou mandariam buscar mais e mais reforços, oferecendo-lhe mais vidas para a sua fome e mais gente para ficar apavorada; ou, ainda, ele encontraria entre as pessoas que se encontravam no fortim um inocente corruptível.

 

Magda mal ouviu a própria voz balbuciar Papai.

 

- Ou você. Segundo deduzi de nossa conversa, a atenção de Rasalom pareceu concentrar-se em você quando ele apareceu pela primeira vez. Aconteceu, porém, que o capitão retirou você do fortim, deixando-a fora do alcance de Rasalom. E assim este teve de socorrer-se de Papai.

 

- Mas ele poderia utilizar um dos soldados!

 

- Ele aumenta sua força com a destruição de tudo que é nobre em uma pessoa. A corrupção dos valores de um simples ser humano decente enriquece-o mais que milhares de homicídios. Isso é um festim para Rasalom. Os soldados não lhe adiantavam muito. Veteranos da Polônia e de outras campanhas, eles matavam orgulhosamente para agradar seu Führer. Assim tinham pouco valor para Rasalom. E quanto aos reforços. .. guardas de um campo de concentração! Nada havia nessas criaturas que valesse a pena degradar! Assim as únicas coisas que os alemães lhe poderiam dar, além do terror e da agonia da morte que irradiava deles, eram as ferramentas para cavar.

 

- Cavar? - perguntou Magda. - Cavar para quê?

 

- Para desenterrar o punho da espada. Suspeito que a coisa que você ouviu como se fosse um arrastar de pés na caverna embaixo do porão, depois que seu pai a mandou embora, era um grupo de soldados mortos retornando para suas mortalhas.

 

Cadáveres caminhando. . . A idéia era grotesca, fantástica demais para ser considerada; todavia ela se lembrava da história que o major havia contado a respeito dos dois soldados mortos que se moveram desde o local onde tinham morrido até ao quarto dele.

 

- Mas se eles tem poder para fazer os mortos caminharem, por que não manda um deles desenterrar o punho?

 

- Impossível. O punho rejeita esse poder. Um cadáver controlado por ele retornaria a seu estado de imobilidade no instante em que tocasse no punho. Seu pai é a única pessoa que pode tirar o punho de dentro do fortim.

 

- Mas, tão logo Papai toque no punho, Rasalom não perderá o controle sobre ele?

 

Glenn sacudiu a cabeça com ar triste.

 

- Você precisa se convencer de que agora seu pai está ajudando Rasalom voluntariamente... entusiasticamente. Será possível para Papai transportar o punho com facilidade porque ele estará agindo por sua livre vontade.

 

- Mas Papai ignora isso! - exclamou Magda, desesperada. - Por que você não o alertou?

 

- Porque a batalha é dele, não minha. E porque eu não podia correr o risco de deixar que Rasalom suspeitasse de minha presença aqui. De qualquer modo, seu pai não iria acreditar em mim; preferiu odiar-me. Rasalom fez um excelente trabalho nele, destruindo sua personalidade paulatinamente, privando-o de todas as coisas em que ele acreditava, deixando apenas a parte venal de sua natureza.

 

Era verdade. Magda vira tudo isso acontecer e se recusara acreditar, mas era verdade!

 

- Você poderia tê-lo ajudado!

 

- Talvez, mas tenho minhas dúvidas. A batalha de seu pai era tanto contra ele mesmo como contra Rasalom. E, por fim, o mal deve ser enfrentado sozinho. Seu pai desculpou o mal que pressentiu dentro de Rasalom e deixou-se convencer de que iria ter a solução de todos os seus problemas. Rasalom começou com a parte religiosa. Na verdade ele não tinha medo da cruz, mas fingiu ficar apavorado ao vê-la, levando seu pai a renegar todo o seu passado, minando-lhe a crença e os valores apoiados nesse passado. Então Rasalom salvou você de supostos atacantes - uma prova da rapidez e da capacidade de adaptação de sua mente - fazendo com que seu pai se tornasse devedor dele. Rasalom prosseguiu, prometendo-lhe destruir o nazismo e salvar o povo judeu. E depois, o golpe final - a eliminação de todos os sintomas da doença que Papai vinha sofrendo durante tantos anos. Rasalom havia conquistado um escravo dócil, que faria com prazer tudo o que lhe fosse pedido. Não se contentando em destruir a personalidade do homem que você chama de Papai, ainda fez dele o instrumento capaz de libertar do fortim o maior inimigo da humanidade. Tenho que deter Rasalom de uma vez por todas! - exclamou Glenn, procurando sentar-se.

 

- Deixe que ele vá - pediu Magda, desesperada, ao pensar no que acontecera com Papai, ou melhor, com o que Papai permitira que lhe acontecesse. Entretanto seria ela, ou qualquer outra pessoa, capaz de resistir a um ataque assim contra a própria personalidade? - Talvez meu pai se liberte da influência de Rasalom e possamos voltar a ser o que éramos antes.

 

- Vocês nunca mais conseguirão isso se Rasalom ficar em liberdade!

 

- Neste mundo de Hitler e da Guarda de Ferro, o que poderá Rasalom fazer de mal que já não tenha sido feito?

 

- Você não está percebendo! - replicou Glenn amargamente. - Uma vez livre, Rasalom fará Hitler parecer uma criança inocente.

 

- Nada poderia ser pior que Hitler! - disse Magda. - Nada!

 

- Rasalom poderia! Você não vê, Magda, que com Hitler por mais diabólico que ele seja, sempre haverá alguma esperança? Ele é um homem, é um mortal. Algum dia há de morrer, até mesmo assassinado.. . talvez amanhã ou daqui a trinta anos, mas deixará de existir. Ele controla apenas uma parte do mundo. E embora pareça no momento invencível, ainda tem de enfrentar a Rússia. A Grã-Bretanha continua a desafiá-lo. E há a América. Se os americanos decidirem colocar a serviço da guerra sua vitalidade e capacidade produtiva, nenhum país, nem mesmo a Alemanha será capaz de resistir por muito tempo. De modo que, como você vê, há também esperança nesta hora negra.

 

Magda balançou devagar a cabeça, concordando. O que Glenn acabara de dizer afinava com seus próprios sentimentos. . . Ela nunca perdera a esperança.

 

- Mas Rasalom...

 

- Rasalom, como já expliquei, se alimenta de degradação humana. E nunca na história da humanidade houve os excessos que ora se registram na Europa oriental. Enquanto o punho da espada permanecer no interior das paredes do fortim, Rasalom ficará não apenas prisioneiro mas também isolado do que acontece no lado de fora. Se o punho for removido ele desencadeará imediatamente todas as desgraças - a carnificina de Buchenwald, de Dachau, de Auschwitz e demais campos de concentração -, todas as monstruosidades da guerra moderna. Ele irá absorver tudo isso como uma esponja, regalar-se com a abundância de seu banquete e tornar-se incrivelmente forte. Seu poder excederá qualquer previsão. Apesar disso ele não ficará satisfeito. Exigirá mais. Deslocar-se-á com rapidez pelo mundo, derrubando chefes de estado, espalhando a confusão entre os governos, reduzindo as nações a um amontoado de gente desatinada. Que exército poderá enfrentar as legiões de mortos que ele é capaz de mobilizar? Dentro de pouco tempo reinará o caos. E então o verdadeiro horror começará. Você disse que não há nada pior que Hitler? Imagine o mundo inteiro transformado num campo de concentração!

 

A mente de Magda se recusava a configurar o que Glenn estava descrevendo.

 

- Isso não pode acontecer!

 

- Por que não? Você acha que faltarão voluntários para tomar conta dos campos de concentração de Rasalom? Os nazistas demonstraram que há uma porção de homens mais do que desejosos de massacrar seus semelhantes. Mas a coisa irá além disso.

 

Você viu o que aconteceu hoje com os habitantes da vila, não foi? Tudo o que havia de mau nas personalidades deles veio à tona. Suas manifestações se reduziram à cólera, ao ódio, à violência.

 

- Mas por quê?

 

- Influência de Rasalom. Ele está ficando progressivamente mais forte lá dentro, alimentando-se de mortes e de temores, bem como da lenta desintegração da personalidade de Papai. E à medida que ele recobra as forças as paredes do fortim vão sendo destruídas pelos soldados. Todos os dias eles derrubam uma parte da estrutura interna, comprometendo assim a integridade da construção. E cada dia a influência da presença de Rasalom se estende para além daquelas muralhas. O fortim foi construído segundo um antigo traçado, com as reproduções do punho da espada colocadas nas paredes dentro e uma ordem específica para isolar Rasalom do mundo, para conter seu poderio, para mantê-lo prisioneiro. Agora tudo isso está sendo destruído e os habitantes da vila pagando um elevado preço. Se Rasalom escapar e se alimentar nos campos de concentração, o mundo inteiro pagará um preço semelhante. E Rasalom não será tão seletivo como Hitler ao escolher suas vítimas: ninguém escapará. Raça, religião - nada disso importará. Rasalom será realmente imparcial. O rico não poderá comprar sua exclusão, o religioso não poderá rezar, o ladino não poderá tapear ou mentir. Todos sofrerão, em particular as mulheres e as crianças. As pessoas viverão de maneira miserável, passarão a vida mergulhadas em desespero e morrerão em agonia. Geração após geração, todos terão de contribuir com seu sofrimento para alimentar Rasalom. - Parou um instante para respirar, depois continuou: - E o pior de tudo, Magda, é que não haverá esperança. Quando acabará isso? Rasalom será intocável. . . invencível. . . imortal. Se ele for libertado agora, nada mais o deterá. Sempre, no passado, a espada o conteve, mas hoje, com o mundo no estado em que se encontra ... ele se tornará tão forte que nem mesmo esta lâmina, junto com seu punho, será capaz de detê-lo. Ele jamais deverá deixar o fortim!

 

Magda percebeu que Glenn estava resolvido a entrar no fortim.

 

- Não! - exclamou ela, os braços em torno do pescoço dele Não podia deixar que ele fosse. - Você ainda está muito fraco para enfrentar Rasalom. Não há outra pessoa que possa fazer isso?

 

- Somente eu. Ninguém poderá substituir-me. Como seu pai, terei de enfrentá-lo sozinho. Afinal de contas, é por minha culpa que Rasalom ainda existe.

 

- Como pode ser isso?

 

Glenn não respondeu. Magda tentou outro caminho:

 

- De onde veio Rasalom?

 

- Ele foi um homem normal... a princípio, mas depois se entregou a um poder maligno e foi para sempre transformado por ele.

 

- Mas - perguntou Magda com um nó na garganta - se Rasalom serve a um poder maligno, a quem serve você?

 

- A outro poder.

 

Ela notou a relutância dele, mas insistiu:

 

- Um poder voltado para o bem?

 

- Talvez.

 

- Por quanto tempo?

 

- Toda a minha vida.

 

- Como pode ser... ? - perguntou ela com medo da resposta. - Como pode ser culpa sua Glenn?

 

- Meu nome não é Glenn - disse ele com o olhar perdido ao longe. - É Glaeken. Sou tão velho quanto Rasalom. Fui eu quem construiu o fortim.

 

Cuza não vira Molasar desde que descera para a cova a fim de reaver o talismã. Ele dissera qualquer coisa a respeito de fazer com que os alemães pagassem por terem invadido o fortim, mas sua voz se tornara inaudível e ele desaparecera. Os cadáveres então começaram a mover-se, desaparecendo também atrás do miraculoso ser que os controlava.

 

Cuza foi deixado sozinho no frio, em companhia dos ratos e do talismã. Preferia ter ido também, mas imaginou que o que de fato importava era que em breve todos estariam mortos, tanto os oficiais como os soldados. Entretanto ele gostaria de ver o Major Kaempffer sofrer alguns dos tormentos que infligira a inúmeros inocentes e pessoas desamparadas.

 

Contudo Molasar ordenara que ele esperasse ali. Agora, com os ecos enfraquecidos do tiroteio que ocorria no pátio, Cuza compreendeu porquê. Molasar queria evitar que o homem a quem confiara sua fonte de poder corresse o risco de ser vítima de uma bala perdida. Pouco depois o fogo cessou de todo. Deixando o talismã no chão, Cuza apanhou a lanterna e saiu da cova onde se encontrava no meio dos ratos. Estes agora já não o incomodavam; o professor estava por demais preocupado, aguardando o retorno de Molasar.

 

Não teve de esperar muito. Ouviu o ruído de passos que se aproximavam. Mais do que um par. Dirigiu o facho de sua lanterna para a entrada da câmara e viu o Major Kaempffer caminhando em sua direção. Cuza mal conteve um grito e quase caiu dentro da cova. Foi então que notou aqueles olhos vidrados, a expressão apagada, e verificou que o major da SS estava morto. Woermann marchava atrás dele, também morto, com um pedaço de corda pendurado no pescoço.

 

Achei que você gostaria de ver estes dois - disse Molasar ao entrar com os oficiais na câmara. - Especialmente o que iria instalar o chamado campo de concentração para nossos compatriotas, valáquios. Agora vou procurar esse tal de Hitler e dar cabo dele e de seus sequazes. Antes disso, porém, cuidemos de meu talismã. Você terá de escondê-lo em perfeita segurança nas montanhas. Só então poderei devotar minhas energias para livrar o mundo de nosso inimigo comum.

 

- Fique descansado! - prometeu Cuza. - Seu talismã já está comigo.

 

Arrastando-se para dentro da cova, apanhou o talismã e guardou-o. Ao começar a subir de novo viu Molasar recuar.

 

- Guarde isso! - disse ele. - O brilho do ouro e da prata poderão despertar a atenção de alguém.

 

- Pois não - concordou Cuza, cobrindo o talismã com um pedaço de pano. - Farei um embrulho melhor quando chegar lá em cima. Não se preocupe. Providenciarei para que.. .

 

- Guarde-o agora! - A ordem ecoou pela caverna.

 

Cuza surpreendeu-se com a veemência de Molasar. Achou que ele não deveria expressar-se daquela maneira. Mas enfim. . . Era preciso fazer concessões a um boiardo do século XV.

 

- Muito bem - respondeu pacientemente, procurando a caixa no fundo da cova e colocando o talismã dentro dela.

 

- Agora, sim - disse a voz que vinha da parte acima e. atrás dele. Cuza olhou e viu que Molasar se deslocava para o lado da cova oposto à entrada. - E ande depressa. Quanto mais cedo eu souber que o talismã está em lugar seguro mais cedo poderei partir para a Alemanha.

 

Cuza apressou-se. Saiu da cova o mais rápido possível e começou a caminhar pelo túnel em direção aos degraus que o levariam para a luz de um novo dia, não apenas para ele e para seu povo, mas para o mundo inteiro.

 

- É uma longa história, Magda. .. longa de muitos anos. E receio que não haja tempo para contá-la a você.

 

Sua voz soava aos ouvidos de Magda como se viesse da extremidade de um longo e escuro túnel. Glenn dissera que Rasalom precedera o judaísmo... e também que ele era tão velho quanto Rasalom. Mas isso não podia ser! O homem que a amara não podia ser um remanescente de uma época esquecida! Ele era real! Era humano! Feito de carne e sangue!

 

Um movimento na sombra interrompeu as cogitações de Magda. Glenn estava tentando pôr-se de pé, utilizando a lâmina da espada como apoio. Conseguiu ficar de joelhos mas estava muito fraco para erguer-se mais.

 

- Quem é você? - perguntou Magda, abaixando-se para "ncará-lo de frente, como se o visse pela primeira vez. - E quem é Rasalom?

 

- A história teve início há muitos séculos - disse ele, esforçando-se para ficar de pé, apoiado na espada sem punho. - Bem antes da época dos faraós, da Babilônia e mesmo da Mesopotâmia. Havia outra civilização então, numa outra época.

 

- A Antigüidade - disse Magda. - Você já havia mencionado isso. - A idéia não era nova para ela, que, de quando em vez, encontrara essa teoria nos documentos históricos e arqueológicos que tivera de ler quando auxiliava Papai em suas pesquisas. A obscura teoria pressupunha que toda a história antiga era apenas a Segunda Idade do Homem; que muitos e muitos séculos antes houvera uma grande civilização na Europa e na Ásia, sendo que alguns de seus apologistas iam mais além, incluindo os continentes ilhas da Atlântida e de Mu nesse mundo antigo, um mundo que, segundo eles, fora destruído por um cataclismo global. - É uma teoria desacreditada - insistiu Magda, com voz trêmula. - Todos os historiadores e arqueólogos de reputação julgam que tudo não passa de uma fantasia.

 

- Sim, eu sei - replicou Glenn, torcendo os lábios de modo sardónico. - É o mesmo tipo de autoridade que zombou da existência de Tróia... até que Schliemann a encontrou. Contudo, não quero discutir isso com você. A Antigüidade aconteceu mesmo. Nasci nessa época.

 

- Mas como... ?

 

- Deixe-me fazer um resumo rápido. Não temos muito tempo e quero que você compreenda umas tantas coisas antes que eu vá enfrentar Rasalom. Coisas que eram diferentes na Antigüidade. O mundo era então um campo de batalha entre dois... - Ele parecia não encontrar a palavra exata. - Não quero dizer deuses porque você ficaria com a impressão de que eles tinham identidades e personalidades distintas. Eram duas vastas e conflitantes.. . forças.. . Poderes que se enfrentavam no mundo de então. Um, o Poder Negro, que era chamado Caos e que representava tudo o que fosse hostil à humanidade. O outro Poder era. ..

 

Interrompeu-se novamente e Magda não se conteve e concluiu, por ele:

 

- O Poder Branco... o poder de Bem?

 

- Não é assim tão simples. Nós o chamávamos apenas de Luz. O que interessava era que ele se opunha ao Caos. A Antigüidade ficou por fim dividida em dois campos: os que buscavam o domínio através do Caos e os que resistiam. Rasalom era um necromante de sua época, um brilhante adepto do Poder Negro. Dedicou-se inteiramente a ele, e em conseqüência, tornou-se o paladino do Caos.

 

- E você preferiu ser o paladino da Luz - do Bem. Ela desejava que ele respondesse que sim.

 

- Não... - Não tive precisamente uma escolha. Também, não posso dizer que o Poder que sirvo seja assim tão bom, tão luminoso. Fui... convocado, pode dizer-se. Uma série de circunstâncias demasiado complicadas para serem expostas agora - ainda mais que elas de há muito perderam qualquer vestígio de sentido para mim - fez com que eu me incluísse nos exércitos da LuzLogo percebi que seria impossível desligar-me dele e pouco depois encontrei-me na linha de frente, como um líder. Deram-me a espada. A lâmina e o punho tinham sido forjados por uma raça de gente de pequena estatura e há muito extinta. A espada foi moldada com uma finalidade: destruir Rasalom. Ocorreu então a batalha decisiva entre as forças oponentes: Armagedon, Ragnarok, aomesmo tempo todas as batalhas que levavam ao Juízo Final. O cataclismo resultante - terremotos, tempestades, inundações - apagaram todos os traços da Antigüidade do Homem. Só algumas pessoas foram poupadas para começarem tudo de novo.

 

- E quanto aos Poderes?

 

- Ainda existem - replicou Glenn, sacudindo os ombros.

 

- Entretanto a influência deles declinou depois do cataclismo. Não lhes sobrou muita coisa num mundo devastado cujos habitantes tinham retornado ao estado selvagem. E enquanto estes voltavam sua atenção para outro lugar Rasalom e eu continuávamos lutando através dos tempos e do espaço, nenhum dos dois obtendo vantagens durante muito tempo, nem desistindo ou envelhecendo. Entrementes, ao longo dos séculos, fomos perdendo alguma coisa. . .

 

- Olhou para o pedaço de espelho que caíra de dentro da caixa e que agora se encontrava no chão, perto dos joelhos dele. - Ponha esse espelho diante do meu rosto - pediu ele a Magda. - Ela obedeceu, curiosa. - Que está vendo agora? - perguntou Glenn.

 

Ela sentira nele e vira em seus olhos não passava de um truque tantas vezes repetido? E ele, seria ainda capaz de amar? Magda não podia externar seus pensamentos. O simples ato de abrigá-los já era penoso. Glaeken pareceu ter lido o que se passava na cabeça dela.

 

- Você acreditaria se eu lhe dissesse?

 

- Mas ontem...

 

- Eu a amo, Magda - murmurou ele, pegando-lhe a mão. - Estive afastado durante tanto tempo... Você me alcançou. Ninguém foi capaz disso. Posso ser mais velho do que qualquer pessoa que você já tenha imaginado, mas ainda sou um homem. Jamais perdi esta condição.

 

Devagar Magda passou os braços em torno dos ombros dele, apertando-o Carinhosamente mas com firmeza. Queria segurá-lo, mantê-lo afastado do fortim.

 

Depois de um longo momento, ele falou no ouvido dela:

 

- Ajude-me a ficar de pé, Magda. Preciso deter seu pai. Magda sabia que tinha de ajudá-lo, ainda que temesse pelo que podia acontecer-lhe. Agarrou-o pelo braço e procurou levantálo, mas os joelhos dele se dobravam. Por fim, ele caiu pesadamente e deu um murro no chão.

 

- Preciso de mais tempo!

 

- Eu irei - disse Magda, um tanto surpreendida ao ouvir a própria voz. - Esperarei meu pai no portão.

 

- Não! É muito perigoso!

 

- Eu posso falar com ele. Papai me ouvirá.

 

- Ele agora se encontra por inteiro fora de si. Obedecerá apenas a Rasalom.

 

- Vou tentar. Você tem alguma idéia melhor? - Glaeken ficou em silêncio. - Então já vou.

 

Magda fez um esforço para se mostrar confiante e levantou a cabeça com ar de desafio para que ele pensasse que ela não estava com medo. Na verdade, mal conseguia ficar de pé.

 

- Não ultrapasse o portão - avisou Glaeken. - Aconteça o que acontecer, não entre no fortim. Ele está agora sob o domínio absoluto de Rasalom!

 

Bem sei - pensou Magda, ao sair correndo em direção à ponte. - E não posso permitir que Papai passe para o lado de fora, ainda mais se ele trouxer consigo o punho da espada.

 

Cuza julgou que não precisaria mais da lanterna depois de chegar ao porão, mas todas as lâmpadas estavam apagadas. Ele notou contudo que o corredor não ficara de todo às escuras. Havia pontos luminosos nas paredes. Cuza procurou observar mais de perto e viu que eram as reproduções do talismã, em forma de cruzcolocadas nas pedras, que brilhavam fracamente. Quando ele se aproximou o brilho aumentou, e diminuiu depois que ele se afastou, como que respondendo ao objeto que o professor tinha na mão.

 

Theodor Cuza caminhou ao longo do corredor central em um estado de perplexidade. Jamais o sobrenatural se apresentara tão real diante dele. E ele jamais seria capaz de imaginar o mundo ou a própria existência da maneira que imaginara antes. Percebeu o quanto fora vaidoso, pensando que havia visto tudo, sem se dar conta dos intulhos que lhe limitavam a visão. Bem, agora esses intulhos tinham desaparecido e havia todo um novo mundo à sua volta.

 

Apertou contra o peito a caixa que continha o talismã, sentindo-se junto ao sobrenatural... e contudo longe de seu Deus. Entretanto, o que havia Deus feito por seu Povo Eleito? Quantos milhares ou milhões tinham morrido nos últimos anos, chamando por seu nome sem obter resposta?

 

Dentro em breve haveria uma resposta, e Theodor Cuza estava cooperando para isso.

 

Ao subir para o pátio sentiu um mal-estar e parou a meio caminho, notando que o nevoeiro descia pelos degraus, como uma nuvem branca, enquanto os pensamentos dele redemoinhavam de maneira descontrolada.

 

Estava prestes a acontecer seu momento de triunfo pessoal. Sentia-se finalmente capaz de fazer alguma coisa, de tomar parte ativa na luta contra os nazistas. Por que, então, essa sensação de que havia algo errado? Tinha de admitir que alimentava certas dúvidas a respeito de Molasar, embora não fosse capaz de especificá-las. Todas as peças se encaixavam...

 

Ou não? Cuza não podia esquecer que achara a forma do talismã muito estranha. Por que tinha a forma da cruz que Molasar tanto temia? Talvez aquela fosse a solução que Molasar encontrara para proteger o talismã - fazê-lo parecido com um objeto sagrado a fim de despistar seus inimigos, do mesmo modo como procedera com o fortim. Mas havia ainda aquela espécie de relutância de Molasar em aproximar-se do talismã, sua insistência para que Cuza tomasse conta dele. Se o talismã era tão importante, se representava realmente a fonte de todo o seu poder, por que então Molasar não ficava com ele ou não se encarregava ele próprio de escondê-lo?

 

Lenta e instintivamente Cuza subiu os últimos degraus da escada para o pátio. Ao chegar ao topo seus olhos piscaram ante a luminosidade do alvorecer, e ele descobriu a resposta às suas dúvidas, a luz do dia. Claro! Molasar não podia andar durante o dia e precisava de alguém que o fizesse! Que alívio acabar com aquelas dúvidas - a luz do dia esclareceu tudo!

 

À medida que seus olhos se foram acostumando à luz que aumentava, Cuza divisou, através do resto de nevoeiro que ainda cobria o pátio, um vulto imóvel, esperando por ele. Durante um angustioso momento pensou que fosse uma das sentinelas que tivesse escapado ao massacre, mas constatou logo que o vulto se mostrava pequeno e frágil demais para ser um soldado alemão.

 

Era Magda. Cheio de alegria, ele correu na direção da filha.

 

Do limiar do portão do fortim Magda correu os olhos pelo pátio. Todo ele estava completamente silencioso e deserto, mas revelando inúmeros sinais da batalha: buracos de bala na lona e na carroceria dos caminhões, pára-brisas estilhaçados, marcas de balas nas pedras das paredes, fumaça subindo das ruínas dos geradores. Nada se movia. Ela imaginou como deveria estar ensangüentado o chão que se ocultava sob uma camada espessa de nevoeiro, ainda na altura dos joelhos ao longo do pátio.

 

De si para si, Magda também perguntava o que estava ela fazendo ali, tiritando sob o frio da madrugada, esperando por Papai, que poderia ou não estar trazendo nas mãos o futuro do mundo. Agora que ela dispunha de uns instantes de calma para pensar, para tranqüilamente analisar tudo o que Glenn - Glaeken - lhe dissera, a dúvida começou a insinuar-se em sua mente. As palavras, sussurradas no escuro perdiam seu impacto com a aproximação do dia. Fora tão fácil acreditar em Glaeken enquanto ela escutava sua voz e olhava dentro de seus olhos. Agora, porém, que se encontrava longe dele, imóvel e sozinha em frente ao portão... agora ela se sentia insegura.

 

Eram forças indescritíveis - forças poderosas, invisíveis, desconhecidas. . . Luz... Caos. . . que se opunham por causa do controle da humanidade! Absurdo,! Aquilo era o produto de uma fantasia, a visão perturbada de um fumante de ópio!

 

E no entanto... havia Molasar - ou Rasalom ou qualquer que fosse seu verdadeiro nome. Ele não era uma visão, embora por certo fosse mais do que um simples mortal, situando-se muito além de qualquer coisa que ela jamais experimentara ou desejara experimentar. E sem dúvida diabólico. Ela sentira isso logo na primeira vez que ele a tocara.

 

E havia Glaeken - se era esse seu verdadeiro nome -, que não parecia diabólico mas bem que podia ser um louco. Ele era real e possuía uma lâmina de espada que resplandecia e curava feridas capazes de matar uma dezena de homens. Ela vira tudo com seus próprios olhos. Além disso, sua imagem não podia ser refletida.

 

Talvez fosse ela que estivesse louca.

 

Mas não, não estava. E se o mundo se encontrasse mesmo à beira do abismo ali, naquele remoto passo nas montanhas? Em quem deveria ela acreditar? Em Rasalom, que conforme sua própria confissão confirmada por Glaeken fora mantido durante cinco séculos numa espécie de cárcere e, agora que estava livre, prometia acabar com Hitler e suas atrocidades? Ou acreditar no homem ruivo, que se tornara o amor de sua vida mas lhe mentira a respeito de uma porção de coisas, inclusive do próprio nome? O homem que o pai dela acusara de ser um aliado dos nazistas?

 

Por que tudo isso recai sobre mim?

 

Por que deveria ela escolher, quando a confusão se generalizara? Em quem acreditar? No pai, que merecera sua confiança a vida inteira, ou no forasteiro, que lhe revelara uma parte de sua feminilidade que ela nem sequer suspeitava que existisse? Não era justo!

 

Na verdade ninguém jamais afirmou que a vida era justa - suspirou Magda.

 

Teria de tomar uma decisão. E imediatamente.

 

As palavras de Glenn, na hora em que ela partira, soaram em seus ouvidos. Aconteça o que acontecer, não entre no fortim. Ele está agora sob o domínio absoluto de Rasalom! Mas ela sabia que tinha de entrar. A aura maligna que envolvia o fortim tornara penosa até mesmo a travessia da ponte. Agora ela teria de sentir qual seria o ambiente lá dentro. Isso a ajudaria a decidir.

 

Avançou um passo e recuou. Uma onda de suor inundou-lhe o corpo. Não tinha vontade de fazer aquilo, mas as circunstâncias não lhe ofereciam alternativa. Cerrando os dentes, fechou os olhos e transpôs o portão.

 

A sensação de algo diabólico tomou conta dela, cortando-lhe a respiração, revolvendo-lhe o estômago, como se ela estivesse embriagada. Era mais intensa e mais poderosa do que nunca. Magda hesitou, querendo desesperadamente voltar para fora. Apesar de tudo, encheu-se de coragem, disposta a vencer a onda maligna que a envolvia. O próprio ar que estava respirando confirmava o que ela já aprendera: nada de bom jamais viria de dentro do fortim.

 

E era ali, no limiar do portão, que ela teria de encontrar-se com Papai. E impedir que ele saísse, caso de fato carregasse o punho de uma espada.

 

Um vulto que se deslocava através do pátio chamou a atenção de Magda. Papai surgira da entrada do portão. Ficou parado durante um momento, depois viu-a e correu para ela. Magda, procurando dominar o espanto por ver seu aleijado pai agora correndo, notou que a roupa dele estava toda suja de terra. Ele carregava uma caixa contendo alguma coisa pesada.

 

- Magda! Eu o tenho comigo! - exclamou ele, ofegante, parando junto dela.

 

- O que é que você tem, Papai?

 

O som de sua própria voz lhe pareceu estranho. Tinha medo da resposta.

 

- O talismã de Molasar, a fonte de seu poder!

 

- Você o roubou dele?

 

- Não. Foi ele mesmo que o confiou a mim. Tenho de encontrar um esconderijo seguro nas montanhas enquanto ele vai para a Alemanha.

 

Magda sentiu um calafrio. Papai estava tirando um objeto de dentro do fortim, exatamente conforme Glaeken dissera que ele faria.

 

Ela precisava saber o que havia dentro da caixa

 

- Deixe-me ver.

 

- Agora não há tempo. Preciso ir...

 

Tentou passar ao lado dela, mas Magda o impediu, colocando-se à sua frente e mantendo-o dentro dos limites do fortim.

 

- Por favor - pediu ela. - Deixe que eu o veja.

 

Ele hesitou, desconfiado, estudando o rosto da filha, depois levantou a tampa e mostrou o que ele chamava de talismã de Molasar.

 

Magda, ao vê-lo, sentiu um nó na garganta. Oh, Deus! O objeto era obviamente pesado e parecia feito de ouro e prata - tal qual as estranhas cruzes espalhadas pelo fortim. E havia uma fenda, na parte de cima, onde se encaixaria de maneira perfeita o espigão que ela vira na extremidade da lâmina de Glaeken.

 

Era o punho da espada! O punho... a chave do mistério do fortim... a única coisa capaz de proteger o mundo contra Rasalom.

 

Magda, imóvel, ficou olhando para o pai, que dizia umas palavras que ela não conseguia ouvir. As palavras não chegavam a seus ouvidos. Tudo o que ela podia ouvir era a descrição de Glaeken do que viria a ser o mundo caso Rasalom escapasse do fortim. Todo o seu ser se rebelava ante a decisão que iria tomar, mas não havia outra opção para ela. Precisava deter seu pai... a qualquer custo.

 

- Volte, Papai - pediu ela, procurando nos olhos dele algum remanescente do homem que ela tão ternamente amara durante toda a sua vida. - Deixe isso no fortim. Molasar vem mentindo para você desde o início. Isso não é a fonte do poder dele - mas sim a única coisa que pode detê-lo! Ele é o inimigo de tudo o que há de bom no mundo! Você não pode libertá-lo!

 

- Isso é ridículo! Ele já está livre! E é um aliado. Olhe só o que ele fez por mim! Posso caminhar!

 

- Mas só até o outro lado desta ponte. Apenas o bastante para que isso seja retirado de dentro do fortim. Molasar não poderá sair enquanto o punho permanecer aqui.

 

- Tudo mentira! Molasar vai matar Hitler e acabar com os campos de concentração,!

 

- Ele se alimenta desses campos, Papai! - Era como se ela estivesse falando com um surdo. - Ao menos uma vez na vida escute-me! Acredite em mim! Faça o que lhe digo! Não tire essa coisa daqui de dentro do fortim!

 

Ignorando o que a filha lhe dizia. Cuza forçou a passagem:

 

- Saia de minha frente!

 

Magda colocou as duas mãos sobre o peito do pai, decidida a desafiar o homem que a havia criado, que a ensinara tanto e tanto lhe dera.

 

- Ouça-me. Papai! - Não!

 

Magda deu mais um passo e empurrou o pai com toda a força e fazendo-o recuar cambaleando. Ela se odiava por estar procedendo assim mas o pai não lhe deixara alternativa. Tinha de parar de pensar nele como um aleijado; ele estava bem e forte agora... e tão determinado quanto ela.

 

- Você tem coragem de bater em seu próprio pai? - exclamou ele com voz rouca, o espanto e a cólera estampadas em seu rosto. - Foi isso o que uma noite na cama com seu amante ruivo lhe ensinou? Sou seu pai! Ordeno-lhe que me deixe passar!

 

- Não, Papai - replicou ela, as lágrimas rolando em suas faces. Até então nunca ousara desobedecê-lo, mas tinha de enfrentá-lo agora pelo bem dos dois e de todo o mundo.

 

A vista das lágrimas da filha pareceu desconsertá-lo. Por uns instantes a fisionomia dele se adoçou, dando a impressão de que voltara a ser o que era. Chegou a abrir a Doca para falar, mas de repente perdeu o controle e avançou sobre a filha, batendo com o punho da espada na cabeça dela.

 

Rasalom ficou esperando na caverna, imerso na escuridão, o silêncio apenas quebrado pelos ratos correndo sobre os cadáveres dos dois oficiais que ele deixara estendidos no chão depois que o aleijado se retirara com aquele maldito punho. Em breve este seria levado para fora do fortim e ele estaria de novo livre.

 

Seu apetite não demoraria a ser saciado. Se o que o aleijado lhe contara fosse verdade - e as conversas que ele ouvira entre os soldados alemães confirmavam a informação - a Europa se transformara em uma sentena de miséria humana. Após tantos séculos de luta, de tantas derrotas às mãos da Glaeken, seu destino estava prestes a mudar. Ele receara ter perdido tudo quando Glaeken o encerrara naquela prisão de pedra - mas afinal conseguira sair de lá. A cobiça humana o libertara de sua estreita cela, onde ficara durante cinco séculos. A ambição e a sede de poder dos homens estavam prestes a fornecer-lhe a força suficiente para que ele se transformasse em senhor do mundo.

 

Ficou aguardando. Continuava faminto. O esperado momento da reconquista do poder custava a chegar. Algo estava saindo errado. Já havia transcorrido tempo bastante para que o aleijado tivesse saído do fortim duas vezes até agora. Três vezes!

 

Alguma coisa errada acontecera. Molasar ativou seus sentidos por todo o fortim até detectar a presença da filha do aleijado. Era ela a causa do retardo! Mas por quê? Ela nãopoderia saber - a menos que Glaeken lhe tivesse contado, antes de morrer, o que significava o punho.

 

Rasalom fez um pequeno gesto com a mão esquerda e logo os corpos do Major Kaempffer e do Capitão Woermann começaram a movimentar-se, pondo-se outra vez de pé e aguardando ordens.

 

Enraivecido, Rasalom saiu apressadamente da caverna. A moça seria facilmente dominada. Os dois cadáveres caminhavam atrás dele, cambaleando. E, logo, após, um exército de ratos.

 

Magda percebeu, espantada, que aquele objeto de ouro e prata estava sendo lançado com força contra sua cabeça. Jamais lhe ocorrera que Papai fosse capaz de feri-la. Todavia ele desfechara um golpe que poderia ter sido mortal. Salvou-a um reflexo instintivo de autopreservação - ela recuou no último momento, a seguir, avançou e atirou o pai ao chão quando ele tentava recuperar o equilíbrio depois do golpe selvagem. Magda atirou-se sobre o pai e agarrou um dos braços da cruz, conseguindo arrancá-la das mãos dele. Como um animal ferido, Cuza arranhou os braços da filha, tentando dominá-la e gritando:

 

- Devolva-me isso! Você vai estragar tudo!

 

Magda pôs-se em pé e encostou-se no arco da entrada, segurando com ambas as mãos o braço de ouro da cruz. Estava perigosamente perto do portão, mas conseguira manter o punho da espada dentro dos limites do fortim.

 

Cuza fez um esforço para levantar-se e atirar-se contra a filha com a cabeça abaixada e os braços estendidos. Magda esquivou-se mas ele conseguiu agarrá-la pelo vestido, fazendo com que ela se virasse, e começou a bater-lhe no rosto e a gritar como um desesperado.

 

- Pare com isso, Papai! - exclamou ela, mas ele parecia não estar ouvindo, comportando-se como um animal selvagem. Quando as unhas dele, sujas de lama, alcançaram os olhos dela, Magda levantou a cruz sem se dar conta do que estava fazendo - era um gesto instintivo. - Pare com isso!

 

O ruído do metal contra a cabeça de Papai quase a fez desmaiar. Estonteada, viu o pai, com os olhos arregalados atrás dos óculos, deslizar para o chão e ficar imóvel, envolto por farrapos de nevoeiro.

 

Que foi que eu fiz?

 

- Por que você me obrigou a fazer isso? - exclamou ela. - Não podia acreditar em mim ao menos uma vez? Apenas uma vez?

 

Tinha de puxá-lo para fora - só um pouco além do portão. Antes disso, porém, ela precisava cuidar do punho da espada, colocá-lo em algum lugar dentro do fortim. Depois arrastaria Papai para fora.

 

No lado oposto do pátio situava-se a entrada para o porão. Poderia atirar o punho por ali. Magda começou a correr na direção da entrada mas parou a meio caminho. Alguém estava subindo os degraus da escada.

 

Rasalom!

 

Ele parecia flutuar, surgindo do porão, como um imenso peixe morto do fundo de um açude de água estagnada. Ao vê-la os olhos dele se tornaram duas esferas de fúria tenebrosa, despedindo relâmpagos. Com os dentes à mostra, pareceu deslizar no nevoeiro ao encontro dela.

 

Magda decidiu resistir. Glaeken afirmara que o punho tinha o poder de conter Rasalom. Ela se sentiu forte. Era capaz de enfrentá-lo.

 

Houve um movimento atrás de Rasalom enquanto ele se aproximava. Dois outros vultos estavam emergindo do porão, dois vultos de rostos pálidos e impassíveis que caminhavam em silêncio. Magda logo reconheceu o capitão e aquele horrível major. Não era preciso que chegassem mais perto para que ela se certificasse de que ambos estavam mortos. Glaeken alertara-a quanto aos cadáveres que caminhavam, e ela até esperava vê-los - o que não impediu que o sangue lhe gelasse nas veias. No entanto sentia-se estranhamente segura.

 

Rasalom deteve-se a pouco mais de três metros dela e, lento, levantou os braços como se fossem duas asas. Por um instante, nada aconteceu, mas logo após Magda notou uma agitação no nevoeiro que cobria o pátio e chegava até à altura de seus joelhos. Mãos começaram a aparecer em torno dela, seguidas de várias cabeças e depois os troncos. Como repugnantes cogumelos intumescidos, surgindo do solo pantanoso, os soldados alemães que ocupavam o fortim deixavam a imobilidade dos mortos.

 

Magda viu aqueles corpos trucidados, aquelas gargantas dilaceradas, mas não se abalou. Tinha consigo o punho da espada. Glaeken assegurara que, com ele, o poder de Rasalom poderia ser enfrentado. Magda acreditava nisso. Tinha de acreditar.

 

Os cadáveres agruparam-se atrás, à direita e à esquerda de Rasalom. Nenhum deles se movia agora.

 

Talvez eles estejam com medo do punho! - pensou Magda, o coração acelerado. - Talvez não consigam chegar mais perto!

 

Foi então que notou uma leve ondulação no nevoeiro em torno das pernas dos cadáveres. Olhando melhor distinguiu em meio à névoa uns pequenos vultos cinzentos e castanhos. Ratos! Uma sensação de repugnância percorreu-lhe o corpo e ela começou a recuar. Eles se moviam na direção dela, não em uma frente compacta, mas de forma caótica, criando uma confusão de patas e caudas e cabeças agitadas. Magda era capaz de enfrentar qualquer coisa - inclusive os mortos que andavam - qualquer coisa menos ratos.

 

Ela viu um sorriso espalhar-se pelo rosto de Rasalom e percebeu que estava reagindo tal qual ele esperara - recuando e aproximando-se da entrada. Magda ainda tentou parar, fazer com que suas pernas se imobilizassem, mas elas continuaram afastando-se dos ratos.

 

Paredes de pedras negras fechavam-se em torno dela - em sua retirada ela penetrara no arco da entrada. Mais dois passos e ela teria transposto o portão... deixando Rasalom livre para conquistar o mundo.

 

Magda fechou os olhos e conseguiu parar.

 

Não passarei daqui - disse para si mesma. - Nem um passo a mais... Nenhum... Ela ficou repetindo as mesmas palavras em pensamento até que algo roçou em seu tornozelo e fugiu. Um bicho pequeno e peludo. Depois outro. Mais outro. Ela mordeu o lábio para não gritar. O punho da espada não estava dando resultado! Os ratos a atacavam! Dentro em pouco todos estariam em cima dela.

 

Aterrorizada, abriu os olhos. Rasalom se encontrava agora mais perto, seus olhos sem fundo fixos nos dela à luz fraca da madrugada, a legião de mortos espalhada atrás dele e os ratos aglomerados à frente. Ele açulava os ratos, empurrando-os contra os pés e tornozelos dela. Magda percebeu que não poderia suportar mais aquilo e que estava a ponto de correr... Sentia um invencível terror crescendo dentro dela, prestes a dominá-la, a destruir toda a sua determinação! O punho não me está protegendo! Virou-se para fugir, mas se deteve. Os ratos roçavam nela mas não mordiam. Era a influência do punho! Como ela contava com essa proteção, Rasalom perdeu o controle sobre os ratos assim que eles a tocaram. Magda recobrou o ânimo e se acalmou.

 

Eles não podem morder-me. Mal podem tocar-me por um instante. Seu maior temor era que eles lhes subissem pelas pernas. Agora tinha certeza de que isso não aconteceria. Sentiu-se outra vez firme.

 

Rasalom deve ter percebido a mudança. Franziu a testa e fez um gesto com a mão.

 

Os cadáveres começaram a mover-se outra vez. Juntaram-se em torno dele e estabeleceram uma sólida barreira de carne morta, arrastando os pés, tropeçando uns nos outros, aproximando-se do lugar onde ela estava, fitando-a com aqueles olhos vazios. Não havia ameaça em seus movimentos, nenhum sinal de ódio, de conquista de um objetivo. Era apenas um aglomerado de carne morta. Mas estavam tão perto! Se fossem vivos o hálito deles atingiria o rosto dela. Na verdade alguns cheiravam como se já tivessem começado a apodrecer.

 

Magda tornou a fechar os olhos, lutando contra a repugnância que lhe enfraquecia as pernas e apertando o punho da espada contra o peito.

 

... até aqui e nem mais um passo... até aqui e nem mais um passo. . . por Glaeken, por mim, pelo que resta de Papai, por toda a humanidade... até aqui e nem mais um passo...

 

Algo pesado e frio chocou-se contra ela. Magda recuou, gritando de surpresa e asco. Os cadáveres mais próximos tinham começado a avançar e a encostar nela. Um outro empurrou-a e ela cambaleou para trás de novo. Desviando-se para o lado deixou que aquele corpanzil bambo passasse por ela. Magda percebera qual a manobra de Rasalom. Se não conseguira aterrorizá-la, fazendo com que ela fugisse do fortim, então a expulsaria, movimentando aquele exército de mortos contra ela. Estava tendo êxito. Faltava apenas um passo para chegar ao limiar do portão.

 

Sob a pressão de mais corpos, Magda fez um movimento desesperado. Agarrou com as duas mãos o punho da espada por seu braço de ouro e fez um giro, batendo contra a carne morta dos que estavam mais perto dela.

 

O contato com os corpos produziu faíscas brilhantes e um chiado de carne queimada com traços de fumaça amarelada e acre. Os cadáveres começaram a retorcer-se, espasmodicamente, e a cair DO chão, frouxos como marionetes cujos cordões tivessem rebentado. Magda deu um passo à frente e girou sua arma outra vez. fazendo um arco mais amplo, e de novo o resultado foram as faíscas, o cheiro de carne queimada, o súbito afrouxar dos corpos.

 

O próprio Rasalom deu um passo atrás.

 

Magda deixou que um leve, amargo sorriso lhe aflorasse aos lábios. Agora, pelo menos, conseguira espaço que lhe permitia respirar. Dispunha de uma arma e estava aprendendo a usá-la. Aí percebeu que Rasalom olhava para um ponto à esquerda dela e olhou para ver o que chamara a atenção dele.

 

Papai! Ele voltara a si e estava de pé, apoiado na parede do arco da entrada. Magda sentiu um pesar imenso ao ver um fio de sangue correndo pelo rosto de seu pai saindo do ferimento que ela produzira nele.

 

- Você aí! - gritou Rasalom, apontando para Papai. - Tire o talismã das mãos dela! É uma aliada de nossos inimigos!

 

Magda viu o pai sacudir a cabeça negativamente e seu coração se encheu de novas esperanças.

 

- Não! - A voz de Papai era apenas um débil murmúrio, mas ecoou nas paredes de pedra em torno deles. - Estive observando! Se o que ela tem nas mãos é mesmo a fonte de seu poder, você não precisa de meu auxílio para apossar-se dele. Agarre-o você mesmo!

 

Magda sentiu que nunca tivera tanto orgulho de seu pai como naquele instante, vendo-o enfrentar a criatura que lhe roubara a alma e que estivera tão perto de alcançar seu objetivo. Ela conteve as lágrimas e sorriu, feliz por estar recebendo apoio de Papai e por poder retribuí-lo.

 

- Ingrato! - exclamou Rasalom, o rosto contraído pelo ódio - Você me traiu! Muito bem, então... seja bem-vindo à sua doença! Divirta-se com suas dores!

 

Papai caiu de joelhos, soltando um gemido angustiante. Ergueu as mãos e viu como elas se tornavam brancas e retorcidas outra vez, com a mesma deformidade que até à véspera as deixava inúteis. Sua espinha encurvou-se e ele caiu para a frente com um lamento. Pouco a pouco, com o sofrimento extravasando por todos os poros, seu corpo dobrou-se sobre si mesmo. Quando mudou de posição, seu corpo ficou no chão, retorcido, numa torturada paródia da posição fetal.

 

Magda correu para ele, gritando horrorizada:

 

- Papai!

 

Ela quase chegava a sentir a dor dele.

 

Ele, entretanto, suportava as dores sem se lastimar, o que parecia irritar Rasalom. Em meio a um coro de guinchos, os ratos avançaram e uma nuvem peluda se formou em torno de Papai, subindo-lhe pelo corpo e mordendo-o com os pequenos dentes afiados.

 

Magda dominou sua repugnância e correu para junto dele, atacando os ratos com o punho da espada e afastando-os com a mão livre. Todavia os poucos que ela conseguia fazer recuar eram substituídos por novo grupo de pequenas mandíbulas que avermelhavam de sangue a carne de Papai. Magda gritava e soluçava, apelando para Deus em todos os idiomas que conhecia.

 

A única resposta veio de Rasalom - um sarcasmo sussurrado atrás dela:

 

- Atire o talismã para fora e você salvará seu pai! Se essa coisa sair de dentro do fortim ele viverá!

 

Magda fez um esforço para ignorar a ordem de Rasalom, mas, no fundo, sentia que ele vencera a batalha. Não poderia permitir que aquele horror continuasse - Papai sendo comido vivo pelos ratos! Não lhe restava outro recurso para salvá-lo. Fora vencida. Teria de ceder,

 

Mas ainda não. Os ratos não a mordiam; apenas Papai era atacado.

 

Ela deitou-se sobre o pai, cobrindo o corpo dele com o dela e colocando o punho da espada entre os dois.

 

- Ele vai morrer! - murmurou a voz odiosa. - Vai morrer e a culpada será você. Por sua causa. Tudo o que tem a fazer. . .

 

As palavras de Rasalom foram interrompidas de repente, substituídas por um grito - uma exclamação de raiva, de temor e de incredulidade.

 

- VOCÊ!

 

Magda levantou os olhos e viu Glaeken - fraco, pálido, coberto de sangue coagulado - apoiando-se no portão do Fortim, apenas a alguns passos de distância. Não havia no mundo outra pessoa que ela tanto desejasse ver.

 

- Tinha certeza de que você viria!

 

Entretanto, pela aparência dele, só um milagre poderia explicar como ele tivera forças para chegar até ali. Jamais poderia enfrentar Rasalom em tão precárias condições.

 

O que importava, porém, é que ele estava ali, a lâmina da espada em uma das mãos, a outra estendida para ela. As palavras eram dispensáveis. Magda sabia o que ele estava pedindo e o que ela deveria fazer. Esticou o braço e entregou a Glaeken o punho da espada.

 

De algum ponto atrás dela, Rasalom gritava desesperadamente:

 

- Nãooo!

 

Glaeken esboçou um sorriso débil para ela; depois, com um gesto simples e rápido, encaixou o espigão da extremidade da lâmina na fenda do topo da cruz. O ajustamento de ambas as peças provocou um leve estalido, enquanto um lampejo de luz mais brilhante do que o sol no solstício do verão - insuportavelmente brilhante - se desdobrava como uma bola do corpo de Glaeken e da espada indo refletir seu fulgor nas inúmeras reproduções do punho, em forma de cruz, encravadas nas paredes do fortim.

 

A luz atingiu Magda como o ar quente de uma fornalha, muito limpo, seco e morno. As sombras desapareceram enquanto o pátio se inundava de uma luz deslumbrante. O nevoeiro dissipou como se nunca tivesse existido. Os ratos fugiram para todos os lados, guinchando. A luz se infiltrou nos corpos que estavam em pé, derrubando-os como se fossem hastes de trigo maduro. Até mesmo Rasalom recuou, cobrindo o rosto com as duas mãos.

 

O verdadeiro senhor do fortim havia retornado.

 

A luz foi-se extinguindo lentamente, voltando para a espada, e transcorreu algum tempo antes que Magda pudesse enxergar outra vez. O que viu então foi o vulto imponente de Glaeken, a roupa ainda em frangalhos, e ensangüentada, mas o homem dentro dela renovado. Toda a fadiga, toda a fraqueza, todos os ferimentos tinham desaparecido. Era um homem perfeito, irradiando impressionante poderio e implacável determinação. Seu olhar era tão ameaçador, tão terrível em sua determinação que ela se sentiu feliz por ter Glaeken como amigo e não como adversário. Aquele era o homem que liderara as forças da Luz contra o Caos, séculos e séculos antes. . . o homem que ela amava.

 

Glaeken segurava agora a espada completa diante de si, a lâmina coberta de inscrições. Seus olhos azuis cintilavam, ele voltou-se para Magda e saudou-a com a espada.

 

- Obrigado, minha Dama - disse ele, com ternura. - Sabia que você tinha coragem, mas nunca pensei que fosse tanta.

 

Magda ruborizou-se com o louvor. Minha Dama... Ele a chamara de minha Dama!

 

Glaeken apontou para Papai.

 

- Leve-o para fora do fortim. Montarei guarda até que você atravesse a ponte.

 

Os joelhos de Magda fraquejaram quando ela se levantou. Um rápido olhar em torno dela revelou um amontoado de corpos no chão. Rasalom tinha desaparecido.

 

- Onde...?

 

- Eu o acharei - disse Glaeken. - Antes, porém, quero certificar-me de que você se encontra em lugar seguro.

 

Magda curvou-se e agarrou Papai por baixo dos braços, arrastou aquele corpo magro e sofrido, cruzou o limiar da entrada e entrou na ponte. A respiração dele era ofegante e o sangue corria-lhe de milhares de pequenos ferimentos. Magda começou a limpá-los com a saia.

 

- Adeus, Magda.

 

Era a voz de Glaeken, com uma terrível conotação de despedida final. Ela levantou a cabeça e viu que ele a fitava com uma infinita tristeza estampada no rosto.

 

- Adeus? Para onde você vai?

 

- Concluir uma guerra que já deveria ter terminado séculos atrás. - A voz dele fraquejou. - Desejo que...

 

Uma apreensão imensa se apossou de Magda.

 

- Você vai voltar para mim, não vai? Glaeken voltou-se e caminhou na direção do pátio.

 

- Glaeken!

 

O vulto dele desapareceu no interior da torre. O grito de Magda foi um misto de gemido e de soluço.

 

- Glaeken!

 

O interior da torre estava mergulhado na escuridão. Mais do que uma simples sombra - era um negrume que só Rasalom era capaz de produzir. Glaeken foi envolvido por ele, embora não ficasse de todo sem ação. Sua espada rúnica começou a emitir uma pálida luz azulada tão logo ele atravessou a entrada da torre. As reproduções do punho, encravadas nas paredes, refletiram de imediato a presença do original e se iluminaram com uma luz branca e amarela que pulsava de maneira lenta, fraca, como se obedecesse ao ritmo de um poderoso e remoto coração.

 

O som do grito de Magda soava nos ouvidos de Glaeken e ele se deteve ao pé da escada da torre tentando dominar a dor que lhe causava aquela voz que pronunciava seu nome e sabendo que se continuasse ouvindo, acabaria por fraquejar. Tinha de esquecê-la do mesmo modo como precisava romper todos os laços que o ligavam ao mundo fora das muralhas do fortim. Agora havia apenas ele e Rasalom. Os milénios do conflito entre eles estavam prestes a ter um fim. Ele cuidaria disso.

 

Esperou que o poder da espada resplandecente impregnasse seu corpo. Era gostoso empunhá-la outra vez, como se recuperasse um membro há muito tempo perdido. Todavia nem mesmo a segurança que a espada lhe dava era capaz de impedir a tristeza que havia no fundo de seu coração.

 

Não seria um vencedor naquela luta. Mesmo que conseguisse matar Rasalom, a vitória lhe custaria tudo.. . pois a vitória eliminaria a finalidade de sua continuada existência. Ele deixaria de ser de utilidade para o Poder ao qual servia.

 

Se derrotasse Rasalom...

 

Deixou de considerar tais hipóteses. Essa não era a melhor maneira de iniciar uma batalha. Tinha de convencer-se da vitória - esse era o único meio de vencer. E ele precisava vencer.

 

Olhou em torno de si. Sentiu que Rasalom se encontrava em algum lugar mais acima. Por quê? Não poderia fugir por ali.

 

Glaeken subiu a escada correndo até o segundo pavimento e parou aí, alerta, tenso, os sentidos aguçados. Tinha certeza de que Rasalom estava bem mais acima, porém o ar ali lhe parecia carregado de perigo. As reproduções do punho da espada pulsavam nas paredes, furando o nevoeiro com raios luminosos em forma de cruz. Perto dele, à sua direita, divisou os degraus que conduziam ao terceiro pavimento. Nada se movia.

 

Iniciou a subida, mas logo se deteve, percebendo um súbito movimento em torno dele. Ao procurar descobrir o que era, uma porção de vultos escuros ergueu-se do solo e dos cantos mais sombrios. Glaeken correu o olhar para a direita e para a esquerda, contando rapidamente uma dezena de cadáveres alemães.

 

Então... Rasalom não se retirara sozinho.

 

Ao perceber que os cadáveres avançavam em sua direção,, Glaeken colocou-se perto do lanço de escadas seguinte e preparou-se para enfrentá-los. Não tinha medo deles, pois sabia a amplitude e os limites dos poderes de Rasalom e estava familiarizado com os; seus truques. Aqueles vultos que se movimentavam eram de fato mortos que não podiam atingi-lo.

 

Entretanto a ameaça o surpreendeu. O que Rasalom poderia esperar com essa manobra macabra?

 

De modo instintivo, o corpo de Glaeken tomou posição para a batalha - pernas afastadas, a direita um pouco atrás da esquerda, a espada em punho - enquanto os cadáveres se aproximavam. Não precisava atacá-los; sabia que era capaz de atravessar suas fileiras e obrigá-los a abrir caminho, simplesmente afastando-os com a espada. Entretanto isso não era suficiente para ele. Seu instinto guerreiro exigia que ele os atacasse e Glaeken de bom grado acedeu. Ansiava por golpear qualquer coisa que se relacionasse com Rasalom. Aqueles cadáveres alemães serviriam de estímulo para a energia de que ele iria precisar em seu confronto final com o senhor deles.

 

Os corpos haviam ganho impulso e agora formavam um semicírculo de vultos indistintos que se fechava sobre ele, os braços esticados, as mãos em forma de garras. Quando a primeira vaga chegou a seu alcance Glaeken rodopiou a espada, arrancando um braço à direita, decepando uma cabeça à esquerda, A lâmina da espada emitia um clarão esbranquiçado cada vez que entrava em contato com aquela carne morta, penetrando-a sem esforço e fazendo subir do ferimento uma fumaça amarela à medida que cada cadáver tombava no chão.

 

Glaeken rodopiou a espada outra vez, a fisionomia transfigurada pela cena macabra que se desenrolava em torno dele. Não era o vazio daqueles rostos emaciados e que a meia-luz tornava cinzentos que o desconcertava, nem o mau cheiro que deles se exalava. Era o silêncio. No havia ordens de comando dos oficiais, nem gritos de dor ou de raiva, nem exclamações de incitamento. Apenas o arrastar de pés, o ruído de sua própria respiração e o silvo da espada.

 

Não chegava a ser uma batalha, mas um cortar de carne, apenas um prolongamento da chacina que os alemães haviam, horas antes, infligido uns aos outros. Mesmo assim eles continuavam avançando na direção dele, destemidos, intrépidos, os de trás empurrando os que estavam mais próximos e Glaeken, apertando cada vez mais o círculo.

 

Com a metade dos atacantes empilhados a seus pés. Glaeken recuou um pouco a fim de dispor de mais espaço para girar a espada. O salto de seu sapato tropeçou em um dos corpos caídos e ele cambaleou para trás, sem equilíbrio. Nesse momento percebeu um movimento acima e atrás de si. Espantado, ergueu os olhos e viu dois cadáveres descendo os degraus da escada que conduzia ao andar superior. Não havia tempo para esquivar-se. O peso combinado dos dois se abateu sobre ele com enorme força, atirando-o ao solo. Antes que Glaeken pudesse livrar-se deles, os demais cadáveres caíram-lhe em cima, empilhando-se uns sobre os outros e prendendo-o sob meia tonelada de carne morta.

 

Ele permaneceu calmo, embora mal pudesse respirar sob aquele peso. A escassa quantidade de ar que lhe chegava às narinas estava impregnada de um odor repugnante, mistura de carne queimada, sangue coagulado e excremento dos cadáveres feridos na barriga. Esforçando-se para não vomitar, ele mobilizou todas as suas forças e conseguiu livrar o corpo daquela pilha que o sufocava.

 

Enquanto se apoiava nas mãos e nos joelhos, Glaeken sentiu que os blocos de pedra do solo começavam a vibrar. Ignorava o que isso significava ou o que provocava a vibração.. . sabia apenas que tinha de sair logo dali. Com um movimento brusco, afastou os cadáveres restantes e correu para a escada.

 

Atrás dele pedras começaram a rolar, produzindo um ruído surdo. A salvo nos degraus da escada, Glaeken viu desaparecer a parte do solo onde ele estivera quase sufocado poucos minutos antes. Os blocos de pedra desabaram, carregando muitos dos cadáveres que foram acumular-se, com estrondo, no pavimento inferior.

 

Ofegante, Glaeken apoiou-se na parede para recobrar a calma e esperar que desaparecesse de suas narinas o mau cheiro dos cadáveres. Havia uma razão por trás daquelas tentativas de impedir-lhe a passagem - Rasalom jamais agia sem um propósito definido. - Mas qual? Ao voltar-se para prosseguir na subida para o terceiro pavimento, Glaeken percebeu um movimento no solo. À beira do buraco aberto pelo desabamento um braço decepado de um dos cadáveres se arrastava pelo chão, movimentado pelos dedos. Sacudindo a cabeça desconcertado, Glaeken retomou a subida, reexaminando tudo o que sabia a respeito de Rasalom, numa tentativa de descobrir qual o plano daquela mente doentia. A meio caminho, sentiu um pouco de poeira cair-lhe no rosto. Sem hesitar, atirou-se contra a parede justamente a tempo de evitar um bloco de pedra que, rodando escada abaixo, foi cair com estrépito no ponto onde ele se encontrava segundos antes.

 

Um olhar para cima lhe revelou que o bloco se desprendera da parte interna do topo da escada. Rasalom agia outra vez. Será que ele ainda tinha esperanças de deter seu perseguidor? Já deveria saber que estava apenas retardando o confronto inevitável.

 

Todavia o resultado desse confronto... não poderia ser previsto. Com os poderes que cada um possuía, Rasalom sempre tivera vantagens. Os principais entre os poderes dele eram o comando sobre a luz e a treva, e a capacidade de fazer com que os animais e os objetos inanimados obedecessem à sua vontade. Sobretudo, Rasalom era invulnerável a traumas de qualquer espécie, produzidos por qualquer arma - exceto pela espada rúnica de Glaeken.

 

Glaeken não estava tão bem armado. Embora nunca envelhecesse nem adoecesse e tivesse sido imbuído de uma vitalidade impetuosa e força superior, ele poderia sucumbir a ferimentos de grande gravidade, como quase acontecera na garganta. Nunca, em todos os seus séculos de existência, ele sentira a morte tão perto. Conseguira salvar-se apenas porque tivera o auxílio de Magda.

 

Agora as probabilidades praticamente se equivaliam. A lâmina e o punho haviam sido reunidos de novo... a espada estava intacta nas mãos de Glaeken. Rasalom conservava seus poderes superiores mas estava contido pelas paredes do fortim; não poderia fugir para encontrar-se com Glaeken em outra ocasião mais conveniente. Tinha de ser agora. Agora!

 

Glaeken aproximou-se cautelosamente do terceiro pavimento. Estava deserto - nada se movia, nada se escondia no escuro. Ao atravessar o espaço até à base do seguinte lanço da escada, sentiu a torre oscilar. O solo tremeu, depois rachou, e em seguida desabou quase debaixo de seus pés, deixando-o encostado contra uma parede, os calcanhares precariamente apoiados numa estreita saliência. Olhando por cima da biqueira de suas botas, Glaeken viu o bloco de pedra do piso projetar-se sobre o andar inferior em meio a uma nuvem de poeira.

 

Perto demais - pensou ele, respirando aliviado - mas não o suficiente para me alcançar.

 

Examinou os danos. Só aquele bloco havia caído. Os quartos do terceiro pavimento ainda permaneciam intactos atrás da parede à qual ele estava encostado. Glaeken voltou o corpo e avançou pouco a pouco pela estreita saliência em direção aos próximos degraus. Ao passar pela porta do corredor, esta abriu-se subitamente e ele viu-se frente a frente com os vultos de mais dois cadáveres alemães, os quais se arrojavam sobre ele ao mesmo tempo, obrigando-o a recuar. Só as pontas dos dedos de sua mão livre o impediram de cair agarrando com segurança a maçaneta da porta enquanto, balançando, ele alcançava um arco amplo passando sobre a escancarada abertura embaixo.

 

O par de cadáveres, não tendo onde apoiar-se, desapareceu silenciosamente na escuridão, tombando sobre o entulho do andar debaixo.

 

Glaeken esticou-se até chegar ao vão da porta e descansou. Mais perto ainda.

 

Ele podia imaginar agora o que seu secular inimigo tinha em mente: Teria Rasalom esperado empurrá-lo pela abertura e depois fazer desabar sobre ele toda ou parte da estrutura interna da torre? Se as toneladas de blocos de pedra não matasse Glaeken de uma vez por todas, pelo menos iriam prendê-lo para sempre.

 

Aquilo podia dar resultado - pensou ele, o olhar furando a escuridão à procura de mais cadáveres que talvez o esperassem. Se Rasalom tivesse êxito poderia utilizar os corpos dos alemães para que removessem o entulho até que a espada fosse encontrada. Depois teria de esperar que aparecesse algum habitante da vila ou forasteiro, que pegasse a arma e a tirasse de dentro do fortim. Talvez esse plano desse certo; de qualquer maneira, Glaeken sentia que Rasalom tinha algo mais em mente.

 

Magda acompanhou com a vista, apreensiva e desanimada, o vulto de Glaeken desaparecer no interior da torre. Seu desejo era correr atrás dele e trazê-lo de volta, mas Papai precisava dela - agora mais do que nunca. Procurou afastar seu coração e seus pensamentos de Glaeken e empenhou-se em cuidar dos ferimentos do pai. Eram ferimentos terríveis. A despeito de todos os seus esforços para estancar o sangue, este escorria, infiltrando-se pelos intervalos das pranchas da ponte e caindo no arroio lá embaixo.

 

Com um súbito estremecimento Papai abriu os olhos e ergueuos para ela, mostrando um rosto horrivelmente pálido.

 

- Magda - balbuciou, com voz tão baixa que ela mal conseguia ouvi-lo.

 

- Não fale, Papai. Poupe suas forças.

 

- Não tenho mais nada para poupar. . . Perdoe-me...

 

- Quietinho... - pediu Magda, mordendo o lábio inferior. Ele não vai morrer. . . não vou deixá-lo morrer!

 

- Preciso desabafar agora. Não terei outra oportunidade.

 

- Não diga isso...

 

- Queria apenas que tudo voltasse ao que era antes, nada mais. Que você não sofresse. Queria que soubesse. . .

 

Sua frase foi interrompida por um estrondo dentro do fortim. A ponte vibrou com a força do choque dos blocos de pedra caindo no chão. Magda viu nuvens de poeira surgindo das janelas do segundo e do terceiro pavimentos da torre. Glaeken. . .?

 

- Fui um tolo - alegava Papai, a voz cada vez mais fraca. - Abjurei nossa fé e tudo mais em que eu acreditava, até minha própria filha, iludido pelas mentiras dele. Cheguei mesmo a ser o responsável pela morte do homem que você amava.

 

- Está tudo bem, Papai. O homem que eu amo ainda vive! E neste mesmo momento está dentro do fortim disposto a dar um fim àquele monstro de uma vez para sempre.

 

Papai tentou sorrir.

 

- Posso ver nos seus olhos tudo o que você sente por ele... se vocês tiverem filhos...

 

Ouviu-se outro estrondo, bem mais forte que o anterior. Desta vez ondas de poeira saltaram de todos os pavimentos da torre. Um vulto apareceu, sozinho, na beira do telhado. Quando se voltou de novo para Papai os olhos deste estavam imóveis e sua respiração suspensa.

 

- Papai? - exclamou ela, sacudindo-o e não querendo acreditar no que lhe diziam todos os seus sentidos e instinto. - Papai, acorde! Acorde!

 

Recordou-se de todo o ódio que sentira por ele na noite anterior, o quanto desejara que tivesse morrido. E agora. . . agora queria ardentemente que tudo começasse de novo, que ele a ouvisse nem que fosse por um minuto, que ela pudesse dizer que o perdoava, que o amava e respeitava, que nada havia mudado na realidade. Papai não poderia partir sem que ela lhe dissesse tudo isso!

 

Glaeken! Glaeken saberia o que fazer! Olhou outra vez para a torre e viu que agora, junto ao parapeito, havia dois vultos, um em frente do outro.

 

Glaeken correu pelas escadas até ao quinto pavimento, evitando as pedras que rolavam e os súbitos buracos no chão. Nesse último pavimento havia uma rampa que conduzia até o telhado da torre.

 

Ele encontrou Rasalom em pé junto ao parapeito na extremidade do telhado. Sua capa negra ondulava ao sopro leve da brisa da madrugada. Abaixo e atrás de Rasalom, o passo Dinu mal se distinguia no nevoeiro. E, mais além, a elevada parede oriental do passo avermelhava seus cimos à luz do sol nascente, até então invisível.

 

Ao avançar, Glaeken procurou imaginar por que Rasalom esperou por ele tão calmamente e em tão precária posição. Quando o telhado começou de repente a ceder e a cair sob seus pés, ele compreendeu. Com um movimento que era puro reflexo, Glaeken saltou para a direita e conseguiu pendurar-se no parapeito, sustentado pelo braço que estava livre. Quando conseguiu esticar-se e ficar em posição agachada, o telhado e a estrutura interna do terceiro, quarto e quinto pavimentos desabaram e abriram caminho através do segundo com um impacto que sacudiu toda a restante parte da torre. As toneladas de escombros foram depositar-se no pavimento térreo, deixando Glaeken e Rasalom equilibrados na borda de um enorme e oco cilindro de pedra. Mas Rasalom nada mais podia fazer com as pedras da torre. As reproduções do punho da espada, colocadas na parte de dentro das paredes externas, eram uma prova contra os poderes dele.

 

Glaeken deslocou-se ao longo da borda em sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, esperando que Rasalom recuasse mas, ele não o fez.

 

Rasalom não se mexeu. Em vez disso, falou na Língua Esquecida:

 

- E então, bárbaro, de novo somos apenas nós dois, não é verdade?

 

Glaeken não replicou. Estava alimentando seu ódio, mobilizando sua fúria com as lembranças de todos os sofrimentos de Magda nas mãos de Rasalom. Precisava de toda essa fúria para vibrar o golpe derradeiro. Não podia permitir-se a menor hesitação, qualquer pensamento que o desviasse de seu propósito. Tinha de ser implacável, agora. Cinco séculos antes, quando aprisionara Rasalom, fora generoso e não o trucidara. Não repetiria essa generosidade. O conflito terminaria ali de uma vez por todas.

 

- Vamos lá, Glaeken - disse Rasalom em tom amável e conciliatório. - Você não acha que é tempo de pormos um fim a esta nossa guerra?

 

- Acho! - replicou Glaeken com os dentes cerrados.

 

Olhou para a ponte e viu o pequeno vulto de Magda debruçado sobre o corpo do pai estendido no chão. A antiga fúria de guerreiro explodiu dentro dele, fazendo-o correr os últimos quatro passos, sua espada erguida em ambas as mãos para o golpe de decapitação.

 

- Trégua! - implorou Rasalom, recuando, a arrogância afinal desaparecida.

 

- Nada de trégua!

 

- A metade do mundo! Ofereço-lhe a metade do mundo, Glaeken! Nós o dividiremos em partes iguais e você poderá ficar com quem você quiser. A outra metade será minha.

 

Glaeken havia abaixado a espada, mas ergueu-a outra vez.

 

- Não! Desta vez não haverá acordos.

 

Rasalom recorreu ao argumento que Glaeken mais temia.

 

- Mate-me e você terá selado sua própria sorte!

 

- Onde está escrito isso?

 

A despeito de toda a sua determinação, Glaeken não pode evitar um instante de hesitação.

 

- Não é necessário que esteja escrito! É óbvio! Você só existe para se opor a mim. Acabe comigo e acabará com sua razão de ser. Mate-me e estará matando a si mesmo.

 

Era óbvio. Glaeken temia esse momento desde aquela noite em Tavira, quando pela primeira vez teve conhecimento de que Rasalom fugira da cela. Todavia durante todo o tempo houvera, no fundo de sua mente, uma leve esperança de que, se matasse Rasalom, não estaria ao mesmo tempo cometendo um ato suicida.

 

Mas era uma vaga esperança. Teria de correr o risco. A alternativa era clara: desfechar o golpe agora e acabar com tudo, ou considerar a trégua.

 

E por que não aceitá-la? A metade do mundo era melhor do que a morte. Pelo menos ficaria vivo... e poderia ter Magda a seu lado.

 

Rasalom deve ter adivinhado seus pensamentos.

 

- Você parece gostar da moça - disse Rasalom, apontando na direção da ponte. - Poderá ficar com ela. Qual a necessidade de perdê-la? Ela é um corajoso insetozinho, não é?

 

- É isso o que nós todos somos para você? Insetos?

 

- Nós? Você ficou tão apaixonado que passou a incluir-se como sendo um deles? Estamos acima e além de qualquer coisa que eles jamais sonhariam ser.. . tão perto dos deuses como eles nunca estarão. Devemos unir-nos e agir em conjunto ao invés de nos hostilizarmos como estamos fazendo.

 

- Jamais me afastei do convívio deles. Tenho procurado, durante todo o tempo, viver como um homem normal.

 

- Mas você não é um homem normal e não pode viver como se fosse! Eles morrem enquanto você continua vivendo! Não pode ser um deles. Não tente! Continue sendo o que é - superior a eles! Junte-se a mim e nós os governaremos. Mate-me e ambos morreremos,!

 

Glaeken vacilou. Se ao menos dispusesse de um pouco mais de tempo para decidir. . . Queria livrar-se de Rasalom de uma vez por todas, mas não à custa da própria vida. Sobretudo agora, depois que achara Magda. Não podia suportar a idéia de perdê-la para sempre. Queria ficar mais tempo com ela.

 

Magda. . . Glaeken não podia ver, mas sentia que os olhos dela estavam fixos nele naquele instante. Um grande peso oprimiu-lhe o peito. Apenas alguns minutos antes ela arriscara tudo para impedir que Rasalom saísse do fortim, a fim de que ele, Glaeken, dispusesse de mais tempo. Poderia ele fazer menos do que isso e ainda merecê-la? Lembrou-se de seus olhos brilhantes quando ela lhe entregou o punho da espada:

 

- Tinha certeza de que você viria.

 

Glaeken abaixara a espada enquanto lutava consigo mesmo. Vendo isso, Rasalom sorriu. E aquele sorriso foi o estímulo final.

 

- Por Magda! - pensou Glaeken e ergueu a arma. Nesse momento o sol despontou sobre o cume oriental da montanha e bateu-lhe em cheio nos olhos. Apesar da ofuscação, ele ainda viu Rasalom atirar-se contra ele.

 

Foi então que Glaeken compreendeu por que Rasalom se mostrara tão falante e tentara tantas manobras retardadoras e por que deixara que ele se aproximasse tanto a ponto de ficar em condições de desfechar seu golpe de espada. Rasalom estivera esperando que o sol surgisse por trás da montanha e que Glaeken ficasse momentaneamente cego. E agora fazia sua última e desesperada tentativa para lançar Glaeken e sua espada para fora do fortim, empurrando-o por cima do parapeito da torre.

 

Ele avançou agachado por baixo da ponta da espada de Glaeken, os braços estendidos. Não havia espaço para Glaeken manobrar - não podia desviar-se para um lado nem recuar sequer um passo. Tudo o que lhe restava era apoiar-se e levantar a espada o mais alto possível, perigosamente alto até que seus braços ficassem quase verticais sobre sua cabeça. Sabia que levara seu centro de gravidade a um nível precário, mas sua determinação não era menor que a de Rasalom. Aquilo tinha de acabar - aqui e agora.

 

Quando o impacto veio - os punhos de Rasalom batendo com toda a força contra suas costelas - Glaeken foi atirado para trás. Concentrando-se na espada, pressionou sua ponta contra as costas expostas de Rasalom e atravessou-o de lado a lado. Com um grito de raiva e dor, Rasalom tentou erguer-se, mas Glaeken agarrou-se à espada enquanto continuava a cair para trás.

 

Presos um no outro, ambos caíram sobre a borda e despencaram do alto da torre.

 

Glaeken viu-se estranhamente calmo enquanto os dois pareciam deslizar no espaço em direção à garganta lá embaixo, lutando até o último instante. Ele vencera.

 

E perdera.

 

O grito de Rasalom interrompeu-se. Com seus olhos negros, incrédulos, arregalados para Glaeken, ele se recusava a acreditar, mesmo agora, que estava morrendo. E então ele começou a murchar - a espada rúnica foi-lhe devorando corpo e essência depois da queda. Sua pele se enrugava e se desprendia. Ante os olhos de Glaeken seu secular inimigo desintegrou-se e desapareceu.

 

Sentindo que o nevoeiro subia, Glaeken olhou mais uma vez e divisou a expressão horrorizada de Magda que permanecia imóvel na ponte. Ele ainda tentou levantar a mão para um adeus, mas o nevoeiro logo o engolfou.

 

Tudo o que restava agora era o violento impacto contra as pedras invisíveis, no fundo da garganta.

 

Magda tinha os olhos fixos nos dois vultos em cima do parapeito da torre. Estavam muito próximos, quase se tocando. Ela viu o vermelho do cabelo de Glaeken incendiado à luz do sol nascente; depois, a cintilação da lâmina da espada; em seguida, os dois vultos se atracarem, rodopiarem sobre a borda e caírem, como se estivessem intimamente ligados.

 

O grito de Magda juntou-se ao gemido de um dos contendores quando os dois vultos entrelaçados mergulharam no nevoeiro ascendente e desapareceram.

 

Por um longo e angustioso momento Magda permaneceu imóvel. Não tinha ânimo sequer para respirar. Glaeken e Rasalom haviam caído juntos, engolidos pelo nevoeiro que enchia a garganta. Glaeken caíra! Ela presenciou, horrorizada, a queda para a morte inevitável.

 

Em estado de choque, Magda aproximou-se da margem da ponte e olhou para baixo, na direção do ponto onde desaparecera o homem que tanto significava para ela. Sentia-se completamente sem rumo. Sua cabeça rodopiava e a tontura ameaçava derrubá-la. Com um movimento brusco, reagiu contra aquela letargia, aquele desejo de inclinar-se cada vez mais sobre o abismo, até que ela também caísse e se juntasse a Glaeken lá no fundo. Voltou-se e começou a correr pela ponte.

 

Não pode ser! - dizia de si para si enquanto ouvia os próprios passos nas pranchas da ponte. - Não os dois! Primeiro, Papai e agora Glaeken - os dois de uma vez não!

 

Deixando a ponte, ela se dirigiu para a direita na direção da extremidade da garganta. Glaeken sobrevivera à queda anterior. . . talvez sobrevivesse pela segunda vez! Quem sabe! Contudo a última queda fora de muito mais alto. Ela afastou os pedaços de rocha que lhe dificultavam a passagem, ignorando os arranhões nas pernas e nas mãos. O sol, embora ainda não muito alto para iluminar diretamente a garganta, já aquecera o ar no passo e adelgaçara o nevoeiro. Ela prosseguiu na descida, tropeçando, caindo, levantando-se e procurando andar o mais depressa que lhe permitia o terreno acidentado. Passando por baixo da ponte, tratou de não pensar no corpo de Papai, sozinho, estendido lá em cima. Por fim chegou no arroio, junto à base da torre.

 

Ofegante, Magda parou e andou lentamente em círculo e procurando, ansiosa, algum sinal de vida entre os seixos rolados e os blocos de pedra caídos. Não encontrou nada. . . ninguém.. .

 

- Glaeken? - A voz dela soou fraca e abafada. - Glaeken?

 

Nenhuma resposta.

 

Ele tem de estar aqui!

 

Alguma coisa cintilou não muito longe de onde ela se encontrava Magda correu para ver o que era. Encontrou a espada. .. ou o que restava dela. A lâmina se fragmentara em inúmeros pedaços e, junto a um deles, estava o punho, despojado do brilho do ouro e da prata de sua armação. Uma enorme sensação de perda se apossou de Magda quando ela levantou o punho da espada e passou a mão sobre sua superfície agora escura. Uma alquimia ao revés transformara os metais nobres em chumbo. Magda lutou contra a conclusão lógica, mas, no fundo, sabia que o punho cumprira a finalidade para a qual fora projetado.

 

Rasalom estava morto; em conseqüência, a espada não era mais necessária, como também não era o homem que a empunhara.

 

Desta vez não haveria milagres.

 

Magda soluçou de angústia, balbuciando palavras que lhe escapavam involuntariamente dos lábios e perduraram enquanto seus pulmões puderam alimentá-las. Era um som de desespero e de perda, reverberando pelas muralhas do fortim e pela garganta e ecoando no fundo do passo.

 

Depois que o silêncio voltou, ela permaneceu imóvel, com a cabeça inclinada e os ombros caídos, querendo chorar, mas sem forças; querendo golpear quem quer que tivesse sido responsável pela tragédia, mas todos os que nela haviam tomado parte estavam mortos - exceto apenas ela mesma; querendo gritar, protestar contra a cega injustiça que a atingira, mas sentindo-se incapaz de fazer qualquer coisa que não fosse soluçar, dando vazão à angústia que a dominava.

 

Magda deixou-se ficar ali durante um longo tempo, tentando encontrar uma razão para continuar existindo. Não tinha mais nada. Tudo o que ela amava na vida lhe fora arrancado. Não havia mais motivo para justificar sua existência...

 

Entretanto deveria haver. Glaeken vivera tanto tempo e nunca lhe faltaram razões para continuar existindo. E admirara a coragem dela. Seria um ato de coragem agora desistir de tudo?

 

Não. Glaeken certamente desejaria que ela vivesse. Tudo o que ele fizera e defendera tinha sido em favor da sobrevivência; até mesmo morrera por esse ideal.

 

Ela apertou o punho da espada contra o peito até que os soluços cessaram. Depois voltou-se e começou a caminhar, sem saber para onde iria nem o que faria, mas certa de que acharia um caminho e uma razão para prosseguir.

 

E levaria consigo o punho da espada. Era a única coisa que lhe restava.

 

Estou vivo!

 

Glaeken sentou-se em meio à escuridão, apalpando seu corpo para certificar-se de que existia. Rasalom se fora, reduzido a um punhado de poeira suspenso no ar. Finalmente, depois de séculos, Rasalom deixara de ser.

 

Entretanto, por que estou vivo? Por quê?

 

Ele caíra ali, furando o nevoeiro e chocando-se contra as rochas com força suficiente para quebrar todos os ossos do corpo. A lâmina da espada fizera-se em pedaços, o punho se alterara.

 

Entretanto ele sobrevivera.

 

No momento do impacto sentira algo saindo de dentro de si e ele ficara ali, esperando pela morte.

 

Entretanto ela não viera.

 

Sua perna direita doía-lhe de maneira horrível, mas ele podia respirar, sentir, mover-se. E também ouvir. Ao perceber o ruído dos passos de Magda, que descia para o fundo da garganta, ele se arrastou até à pedra giratória na base da torre, abriu a passagem e se escondeu lá dentro, esperando em silêncio, enquanto ela o chamava pelo nome. Chegou a tapar os ouvidos, angustiado com a dor e a ansiedade da voz dela, desejando responder mas sem poder fazê-lo. Pelo menos por enquanto. Até que tivesse certeza.

 

E agora ouvia nitidamente que ela estava atravessando o arroio. Glaeken girou outra vez a pedra e se pôs em pé do lado de fora da torre. Não conseguia firmar sua perna direita. Estaria quebrada? Jamais quebrara um osso até então. Incapaz de andar, arrastou-se para junto do arroio. Precisava saber. Tinha de certificar-se antes de tomar qualquer decisão.

 

Na margem do arroio ele hesitou. Estava vendo o céu, cada vez mais azul, a refletir-se na superfície ondulada da água. Será que veria alguma coisa mais se se debruçasse sobre ela?

 

Por favor - disse ele em pensamento para o Poder a que servira, o Poder que talvez não mais estivesse ouvindo. - Por favor, fazei com que isto seja o fim de minha missão. Deixai-me viver como um homem normal o resto dos dias que me forem concedidos. Permiti que eu envelheça ao lado da mulher que amo, ao invés de vê-la definhar, enquanto permaneço jovem. Fazei com que isto seja o fim de minha missão. Já completei a tarefa. Libertai-me!"

 

Cerrando os dentes, ele aproximou a cabeça da água. Um rosto pálido, com olhos azuis e cabelo vermelho, olhava de volta para ele. Sua imagem estava lá. Ele podia ver-se refletido! Voltara a ser normal!

 

Uma sensação de regozijo e alívio correu-lhe pelo corpo. Acabou tudo!

 

Finalmente acabou tudo!

 

Levantou a cabeça e olhou para o outro lado da garganta, vendo afastar-se, devagar, o vulto da mulher que ele amava como jamais amara outra em toda a sua longa vida.

 

- Magda! - Tentou ficar em pé, mas a perna ferida não o sustentava. Teria de esperar, como qualquer pessoa normal, que ela cicatrizasse. - Magda!

 

Ela olhou para trás e ficou imóvel durante uma eternidade. Ele agitou os dois braços acima da cabeça. Teria soluçado bem alto se ainda lembrasse como fazer isso. Entre outras coisas, teria de aprender a chorar de novo.

 

- Magda!

 

Alguma coisa caiu das mãos dela, um objeto parecido com um punho de espada. Depois ela estava correndo na direção dele, tão rápido quanto lhe permitiam suas longas pernas, tendo no rosto uma expressão de contentamento e ao mesmo tempo de dúvida, como se o fato de encontrá-lo fosse a coisa mais maravilhosa do mundo, mas com medo de acreditar que tudo era verdade, até que pudesse abraçá-lo.

 

Glaeken lá estava, esperando ser abraçado.

 

E, bem acima um pássaro de asas azuis, com o bico cheio de palha, adejava para um pouso suave na beira de uma janela do fortim à procura de um lugar para construir seu ninho.

 

                                                                               F.P. Wilson 

 

 

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