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O GATO QUE CONHECIA SHAKESPEARE / Lilian Jackson
O GATO QUE CONHECIA SHAKESPEARE / Lilian Jackson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O GATO QUE CONHECIA SHAKESPEARE

 

No Condado de Moose, seiscentos e quarenta quilômetros ao norte de qualquer parte do mundo, sempre começa a nevar em novembro, e neva — e neva — e neva.

Primeiro, todos os degraus da frente desaparecem sob sessenta centímetros de neve. Então as cercas e os arbustos não são mais visíveis. Os postes de luz e telefone vão ficando menores até as linhas ficarem baixas o suficiente para alguém pular por cima delas. Ouvir, de hora em hora, os boletins meteorológicos no rádio é o hobby de inverno de todos no Condado de Moose, e limpar a neve torna-se a atividade principal. Charruas e aparadores vão formando montanhas brancas que encobrem prédios inteiros e exigem que os moradores cavem túneis para a rua. Na cidade de Pickax, a sede do Condado, não é raro ver esquis na área comercial do centro. Se o aeroporto fecha — e frequentemente isso acontece — o Condado de Moose torna-se uma ilha de neve e de gelo. Tudo começa em novembro, com uma tempestade que os moradores chamam "A Grande".

Na noite de 5 de novembro, Jim Qwilleran estava descansando em sua confortável biblioteca na companhia de amigos. Um ar de contentamento prevalecia. Eles jantaram bem, a governanta havia preparado um ensopado de mexilhões e escalopes de vitela. O mordomo havia empilhado aromática lenha de macieira na lareira, e a chama projetava reflexos nos livros com capas de couro, que enchiam quatro paredes de prateleiras da biblioteca. De lâmpadas ligeiramente encobertas vinha um raio de luz que aquecia a mobília de couro e os tapetes Bokhara.

Qwilleran, um homem forte de meia-idade com um farto bigode, sentou-se à sua escrivaninha inglesa antiga e sintonizou o boletim meteorológico das nove horas no rádio — um dos vários rádios portáteis distribuídos pela casa com esse objetivo.

"A noite será mais fria, com baixa de aproximadamente quatro graus", previu o meteorologista da WPKX. "Ventos altos e boa chance de nevar esta noite e amanhã."

Qwilleran desligou bruscamente o rádio. "Se vocês, rapazes, não se opõem", disse aos outros dois, "eu gostaria de deixar a cidade por uns dias. Passaram-se seis meses desde minha última viagem até Lá Embaixo, e meus amigos do jornal pensam que morri. A sra. Cobb servirá as refeições, e estarei de volta antes que a neve caia — espero. Simplesmente conservem as patas cruzadas."

Quatro orelhas marrons viraram atentamente à declaração. Duas máscaras marrons, com longos bigodes brancos e olhos incrivelmente azuis, se afastaram das lenhas em chamas em direção ao homem sentado à escrivaninha.

Quanto mais você fala com os gatos, Qwilleran fora avisado, mais inteligentes eles se tornam. Um "gatinho lindo" casual não terá nenhum efeito; é preciso uma conversa inteligente.

O sistema, ele achava, parecia estar funcionando; o casal de siameses que estava sobre o tapete perto da lareira reagiu como se tivesse entendido o que ele estava dizendo. Yum Yum, a pequena fêmea afetuosa, olhou fixamente para ele com expressão que parecia de censura. Koko, o garboso e musculoso macho, levantou-se de onde estava, se espreguiçando com majestade leonina, andou afetadamente até a escrivaninha e bronqueou com ruidosos uivos. "Miau-au AU!"

"Eu estava esperando um pouco mais de compreensão e consideração", disse-lhes o homem.

Qwilleran, com mais ou menos cinquenta anos, estava enfrentando uma crise singular da meia-idade. Depois de morar toda a vida em grandes regiões metropolitanas, ele residia agora na cidade de Pickax, cuja população era de 3 mil habitantes. Depois de uma carreira de diligente jornalista ganhando um modesto salário, era agora milionário — ou bilionário; ele não sabia exatamente. De qualquer modo, era o único herdeiro da fortuna dos Klingenscboen, estabelecida no Condado de Moose no século XIX. O legado incluía uma mansão na Rua Principal, três empregados, uma garagem para quatro carros e uma limusine. Mesmo depois de um ano, achava estranho seu novo estilo de vida. Como jornalista ele se interessava principalmente em investigar histórias, checar os fatos, cumprir o prazo limite e garantir suas fontes. Agora sua principal preocupação, como a de todos os outros adultos do Condado de Moose, parecia ser o clima, especialmente em novembro.

Quando os siameses reagiram de forma negativa à sua proposta, Qwilleran pressionou seu bigode pensativamente por um instante. "No entanto", disse ele, "é imperativo que eu vá. Arch Riker está deixando o Daily Fluxion e estou encarregado de sua festa de despedida sexta-feira à noite."

Em seus dias de solteiro frugal, em um apartamento de um quarto, Qwilleran nunca tinha tido ambição de dinheiro ou posses e, entre seus colegas de trabalho, nunca foi notado por sua generosidade. Mas quando o patrimônio de Klingenschoen finalmente passou pelo tribunal de sucessões, ele surpreendeu a mídia, ao convidar todo o pessoal do Daily Fluxion para um jantar no Clube da Imprensa.

Ele planejou levar um convidado: Junior Goodwinter, o chefe de redação do Pickax Picayune, o único jornal do Condado de Moose. Ao telefonar para a agência do jornal, ele disse: "Olá, Junior! Você gostaria de vadiar alguns dias e voar Lá para Baixo para uma festa? Como meu convidado. Cocktails e jantar no Clube da Imprensa".

"Oh! Nossa! Nunca vi um Clube da Imprensa, a não ser em filmes", disse o editor. "Poderíamos também visitar a agência do Daily Fluxion?"

Junior vestia-se como um estudante do segundo ano colegial, e exibia um inocente entusiasmo, raro num jornalista com grau cum laude de uma universidade estatal.

"Poderíamos também dar uma passada em um jogo de hóquei e em alguns shows", disse Qwilleran, "mas teremos de ficar de olho nos boletins meteorológicos e voltar para cá antes que a neve caia."

"Há uma frente fria vindo do Canadá, mas acho que por enquanto estamos salvos", disse Junior. "A festa é exatamente a propósito de quê?"

"Uma festança de despedida para Arch Riker, e eis o que quero que você faça: traga uma sacola de carregar jornais do Picayune e uns cem exemplares de sua última edição. Depois do jantar direi umas poucas palavras sobre o Condado de Moose e sobre o Picayune e isso será o sinal para você levantar e começar a distribuir os jornais."

"Usarei um boné de beisebol de lado e gritarei Extrai Extrai É isso que você quer?"

"Você entendeu!", disse Qwilleran. "Mas a pronúncia exata é 'E-exx-tra'! Esteja pronto às nove horas da manhã de sexta-feira. Pegarei você em seu escritório."

As notícias sobre o clima na manhã de sexta-feira não eram encorajadoras: "Uma frente fria vinda do Canadá aumenta a possibilidade de forte neve esta noite e amanhã, com ventos soprando na direção nordeste."

A governanta de Qwilleran manifestou seus medos. "O que fará, sr. Q, se não conseguir voltar antes que a neve caia? Se a tempestade for 'A Grande', o aeroporto ficará fechado sabe Deus por quanto tempo."

"Bem, eu lhe direi, sra. Cobb. Vou alugar um trenó puxado por cães e uma matilha de huskies, e conduzirei o trenó de volta para Pickax."

"Oh, sr. Q!", ela riu. "Nunca sei se acredito ou não no senhor."

Ela estava preparando um delicioso prato de fígados de galinha refogados, com uma guarnição de gemas de ovos bem cozidos e pedaços de bacon, que colocou no chão. Yum Yum devorou sua porção esfomeadamente, mas Koko recusou-se a comer. Alguma coisa o estava chateando.

Os dois gatos tinham os corpos castanhos-escuros e pontos marrons de pedigree siamês: máscaras marrons acentuando o azul dos olhos; orelhas marrons atentas como coroas reais; pernas marrons elegantemente longas e esguias; caudas marrons que chicoteavam, enrolavam e abanavam para expressar emoções e opiniões. Mas Koko tinha alguma coisa mais: um desconcertante grau de inteligência e um misterioso talento para saber quando alguma coisa estava... errada!

Naquela manhã ele tinha arrancado um livro de uma prateleira na biblioteca.

"Isso não é educado!", disse-lhe Qwilleran, apelando para sua inteligência. "Esses são livros antigos, raros e valiosos — para serem tratados com respeito, se não com reverência." Ele examinou o livro. Era um exemplar de capa de couro fino de A Tempestade, um dos 37 volumes da obra de Shakespeare que faziam parte da herança.

Com leve apreensão, Qwilleran recolocou o livro na prateleira. A escolha do título era infeliz. No entanto ele estava determinado a voar até Lá Embaixo para a festa, a despeito de Koko, da sra. Cobb e do meteorologista da WPKX.

Uma hora antes do voo, ele foi até a agência do Picayune, para pegar Junior e a sacola de jornais. Todos os prédios da Rua Principal tinham mais de um século e eram construídos com pedra cinza nos mais variados estilos arquitetônicos. A sede do Picayune — espremida entre o pavilhão de caça, em estilo vienense, e o correio, em estilo romano — parecia um antigo mosteiro espanhol.

Um agradável cheiro de tinta permeava a agência do jornal, mas o prédio tinha a aparência embalsamada de um museu. Não havia nenhum encarregado de receber anúncios no danificado balcão da frente. Não havia nenhuma recepcionista atenta e sorridente — apenas uma campainha.

Qwilleran examinou o cenário silencioso: fichários de madeira e escrivaninhas envelhecidas de carvalho dourado... tachinhas para pregar pedidos de anúncios e assinaturas... velhos exemplares do Picayune, amarelados e quebradiços, colados nas paredes, que não eram pintadas desde a Grande Depressão. Do outro lado da divisória baixa de carvalho e vidro sujo estava a sala de composição. Um homem solitário ficava na frente da caixa de tipos, distraído ante tudo, exceto a linha de tipos que estava colocando com movimentos rápidos.

Diferentemente do Daily Fluxion, que tinha uma circulação de cerca de um milhão de exemplares, as prensas antiquadas do Picayune imprimiam 3 200 exemplares a cada edição. Enquanto o Fluxion adotava todos os avanços tecnológicos e tendências jornalísticas, o Picayune ainda parecia o jornal fundado pelo bisavô de Junior. Quatro páginas, impressas em tipografia, contendo anúncios classificados e fofocas sociais na primeira página. Cafés da manhã com panquecas, reuniões sociais para tomar sorvete e funerais eram cobertos exaustivamente, enquanto breves menções a políticas locais, notícias policiais e acidentes eram relegadas à última página ou inteiramente omitidas.

Qwilleran tocou a campainha, e Junior Goodwinter desceu correndo a escada de madeira, que dava para o escritório editorial, seguido por um grande gato branco.

"Quem é seu bem alimentado amigo?", perguntou Qwilleran.

"É William Allen, o caçador de ratos da redação", disse Junior como se todos os jornais tivessem um caçador de ratos na redação. Como chefe de redação ele escrevia quase todas as matérias do jornal e vendia a maior parte dos anúncios. Sênior Goodwinter, proprietário e editor, ficava o tempo todo na sala de composição, com um avental de couro e um chapéu de papel jornal dobrado, colocando os tipos de chumbo na barra de composição, com expressão de concentração e êxtase. Ele era tipógrafo desde os oito anos de idade.

Junior gritou: "Até mais, pai. Volto em poucos dias".

O homem ocupado na sala de composição virou-se e disse carinhosamente: "Divirta-se, Junior, e tome cuidado".

"Se você quiser dirigir o Jag enquanto eu estiver fora, as chaves estão sobre minha escrivaninha."

"Obrigado, filho, mas acho que não vou precisar dele. Disseram na oficina que meu carro estaria pronto mais ou menos às cinco horas. Agora, tome cuidado."

"Está bem, pai, e você se cuide!"

Houve um olhar de calorosa e mútua admiração entre os dois, e Qwilleran por um momento sentiu por não ter tido filhos. Ele teria desejado um como Junior. Mas talvez um pouco mais alto e um pouco mais másculo.

Junior pegou a sacola de jornais e sua mochila, e os dois foram para o aeroporto. Juntos eram um ótimo exemplo das diferenças entre gerações: Qwilleran, um homem sóbrio com cabelos meio grisalhos, bigode exuberante e olhos tristes; Junior, uma criança excitada de pele corada e de tênis. Junior começou a conversa com uma pergunta repentina:

"Você acha que pareço jovem demais, Qwill?"

"Jovem demais para quê?"

"Quero dizer, Jody acha que ninguém me levaria a sério."

"Com sua estatura e seu rosto jovial, você ainda parecerá ter quatorze anos quando tiver setenta e cinco", disse-lhe Qwilleran, "e não é de todo mau. Mais tarde, você mudará durante a noite e, de repente, aparentará ter cento e dois."

"Jody acha que ajudaria se eu deixasse a barba crescer."

"Não é uma má ideia! Sua namorada tem boas ideias."

"Minha avó diz que pareço um dos Sete Anões."

"Sua avó deve ser uma pessoa doce, Junior."

"Vovó Gage é uma figura! A mãe de minha mãe, você conhece. Você deve tê-la visto pela cidade. Ela dirige um Mercedes e buzina em todo cruzamento."

Qwilleran não demonstrou nenhuma surpresa. Ele tinha aprendido que quem residia há muito tempo no Condado de Moose era individualista militante.

"Você teve notícias de Melinda desde que ela deixou Pickax?", perguntou Junior.

"Uma ou duas vezes. Eles a mantêm bem ocupada no hospital. Estará melhor em Boston. Poderá se especializar."

"Melinda nunca quis ser médica no interior, mas estava louca para casar com você, Qwill, e se mudar para sua mansão."

"Sinto muito, não sirvo para ser marido. Descobri isso um tempo atrás, e não seria justo cometer o mesmo erro com Melinda. Espero que ela encontre um homem amável e da idade dela em Boston."

"Ouvi dizer que agora você está tendo um caso com a bibliotecária chefe."

Qwilleran soprou o bigode. "Não sei o que você quer insinuar, mas deixe-me dizer que eu gosto da companhia da sra. Duncan. Nessa época do videotudo, é bom encontrar alguém que compartilha comigo o interesse pela literatura. Nós nos reunimos e lemos em voz alta."

"Oh, claro", disse Junior com sorriso malicioso.

"Quando você e Jody pensam em se casar?"

"Com o salário que meu pai me paga, ainda não tenho condições de ter um apartamento próprio. Você sabe, continuo morando com meus pais na casa da fazenda. Jody ganha duas vezes mais do que eu e é apenas uma assistente de dentista."

"Mas você tem um Jaguar."

"Que foi um presente de formatura de vovó Gage. Atualmente ela é a única na família com grana. Serei herdeiro quando ela se for, mas isso não vai ser logo. Aos 82 ela ainda planta bananeira e pode me vencer no exercício abdominal. As pessoas no Condado de Moose vivem muito tempo, salvo pelos acidentes. Um de meus ancestrais morreu quando seu cavalo se assustou com uma revoada de melros. Meu avô Gage foi fulminado por um raio. Uma tia e um tio morreram quando o carro bateu em um veado. Era novembro — estação do cio, você sabe — e um macho dos grandes, com chifre de oito pontas, atravessou direto o para-brisa. O xerife disse que parecia assassinato de um amador com um machado. Agora, de acordo com estimativas oficiais, há dez mil veados neste condado."

Qwilleran diminuiu a velocidade e começou a procurar sinais de vida selvagem.

"É a estação do arco e flecha e os caçadores os deixam nervosos", continuou Junior. "Toda manhã ou ao anoitecer — ou seja, quando os veados saltam atravessando a estrada."

"Todos os dez mil?", Qwilleran reduziu a velocidade para setenta.

"O dia hoje está mesmo escuro", observou Junior. "O céu está carregado."

"Qual é o primeiro dia em que a neve sempre cai?"

"A primeira tempestade registrada foi a 2 de novembro de 1919, mas 'A Grande' normalmente não cai até meados do mês. A pior registrada foi a de 13 de novembro de 1931. Três frentes frias — do Alasca, das Rochosas e do Golfo — encontraram-se sobre o Condado de Moose. Muitas pessoas perderam o rumo e morreram de frio. Quando 'A Grande' cai, é melhor você ficar em casa! Ou, se estiver dirigindo, não saia do carro."

Apesar dos perigos do norte do país, Qwilleran estava começando a invejar os nativos. Eles tinham raízes! Famílias como os Goodwinter tinham cinco gerações — do tempo em que as fortunas eram feitas com a mineração e a extração da madeira. As organizações mais importantes em Pickax eram a Sociedade Histórica e o Clube Genealógico. Na estrada para o aeroporto, a história ia se desenrolando: casas abandonadas de mineiros e pilhas de detritos nos locais das velhas minas... cidades fantasmas somente identificáveis por algumas solitárias chaminés de pedra... uma estação ferroviária caindo aos pedaços no meio de lugar nenhum... os restos ásperos das árvores enegrecidas pelos incêndios da floresta.

Depois de alguns minutos de silêncio, Qwilleran aventurou-se a fazer uma pergunta de ordem pessoal a Junior: "Como um jornalista formado, o que você acha do Picayune? Você está se realizando? Acha que é certo continuar no século XIX?"

"Você está brincando? Minha ambição é fazer do Pic um jornal de verdade", disse Junior, "mas papai quer mantê-lo como era há cem anos. Ele estava contando conosco, os filhos, para manter a tradição, mas meu irmão foi para a Califórnia trabalhar em publicidade, minha irmã casou-se com um fazendeiro de Montana, e assim fiquei amarrado a ele."

"O Condado poderia sustentar um jornal de verdade. Por que não começar um e deixar seu pai manter o Picayune como hobby? Você não seria um concorrente; o Pic é incomparável. Você nunca considerou essa possibilidade?"

Junior lançou-lhe um olhar de pânico, e as palavras desabaram. "Eu não tenho recursos para começar sequer um quiosque de limonada! Estamos quebrados! E por isso que estou trabalhando por uma miséria... A cada ano vamos mais para o buraco. Papai vendeu nossa fazenda e agora está amortizando a casa da fazenda... Eu não deveria estar lhe contando isso... Mamãe está há muito tempo atrás dele para se desfazer do jornal... Ela está realmente chateada! Mas papai não a escuta. Ele se mantém firme na tipografia e se afunda mais em dívidas. Diz que é sua vida — sua razão de viver... Você nunca o viu compor? Ele pode colocar mais de trinta e cinco letras por minuto sem olhar para a caixa de tipos." A fisionomia de Junior refletia sua admiração.

"Sim, eu o vi e fiquei impressionado", disse Qwilleran. "Vi também as prensas no porão. Alguns dos equipamentos parecem com a prensa de Gutenberg."

"Papai coleciona prensas velhas. Ele tem um celeiro cheio. A primeira prensa de meu bisavô operava com um pedal como uma máquina de costura antiga."

"Sua avó rica poderia lhe ajudar se você quisesse começar um jornal?"

"Vovó Gage não desembolsará nem mais um tostão. Ela já foi nossa fiadora várias vezes e pagou nossos prêmios do seguro e nos colocou os três na faculdade... Ei, por que você não começa um jornal, Qwill? Você está rico!"

"Não tenho absolutamente nenhum interesse ou aptidão para negócios, Junior. Por isso criei a Fundação Klingenschoen. Eles tratam de tudo e colocam um pouco de dinheiro no meu bolso. Passei vinte e cinco anos nos jornais e agora tudo que quero é tempo e calma para escrever algo."

"Como está indo seu livro?"

"Bem", disse Qwilleran, pensando em sua máquina de escrever negligenciada, em sua escrivaninha bagunçada e nas anotações desorganizadas.

No aeroporto deixaram o carro em um campo aberto que servia como estacionamento para períodos longos. O terminal era pouco mais que uma choça, e o administrador — que era também quem tirava o bilhete, mecânico e piloto em tempo parcial — estava varrendo o chão. "Vamos pegar 'A Grande'?", perguntou com humor.

Quando os dois jornalistas embarcaram no bimotor para a primeira etapa de sua viagem, foram espertos o suficiente para evitar conversas pessoais. Havia outros quinze passageiros e trinta ouvidos estariam escutando. O Condado de Moose tinha uma rede de boatos que disseminava mais notícias que o Picayune e as transmitia mais rapidamente que a WPKX. Com bom senso, Qwilleran e Junior conversaram sobre esportes até que o pequeno avião aterrissou bruscamente em Mineápolis e eles embarcaram em um jato.

"Espero que sirvam um almoço a bordo", disse Junior. "O que teremos para jantar no Clube da Imprensa?"

"Eu pedi sopa de cebola à francesa, costeletas e torta de maçã."

"Oh, nossa!"

Houve uma escala em Chicago antes de decolarem para a etapa final de sua viagem. Até aterrissarem, pegarem o ônibus para o Hotel Stilton e sintonizarem os boletins meteorológicos, já era hora de ir para o Clube da Imprensa.

"Os colunistas esportivos estarão lá?", perguntou Junior.

"Todos, desde os mais altos executivos aos 'focas'. Suponho que agora eles são chamados auxiliares de redação."

"Eles vão achar ridículo se eu pedir autógrafos?"

"Vão se sentir lisonjeados", disse Qwilleran.

No clube, Qwilleran foi tratado como um herói que retorna, mas ele se lembrou que qualquer um seria um herói se patrocinasse jantar e bebidas à vontade para toda a redação. Um fotógrafo deu-lhe um empurrão amigável nas costas e perguntou como era ser milionário.

"Deixarei você saber no próximo ano, em 15 de abril", respondeu Qwilleran.

O editor de turismo queria saber como ele se divertia morando no interior. "O Condado de Moose fica no Cinturão da Neve?"

"Exatamente! Ele é a fivela do Cinturão da Neve."

"Bem, de qualquer modo você é um felizardo, escapou da violência da cidade."

"Nós temos muita violência no norte", Qwilleran lhe informou. "Furacões, relâmpagos, ciclones, incêndios florestais, animais selvagens, derrubadas de árvores, enchentes de primavera! Mas é mais fácil aceitar a violência da natureza do que a violência humana. Nunca temos franco-atiradores loucos atirando em crianças nos ônibus escolares, como o incidente que houve aqui na semana passada."

"Você ainda tem o gato que é mais esperto que você?"

No Clube da Imprensa, Qwilleran tinha uma reputação de detetive amador; sabia-se também que Koko era de alguma maneira responsável por seu êxito.

Qwilleran explicou a Junior: "Talvez você não tenha observado, mas a foto de Koko está pendurada no vestíbulo, junto às dos vencedores do Prêmio Pulitzer. Um dia lhe contarei suas façanhas. Você não acreditará, mas de qualquer modo contarei."

Durante a happy hour, Junior encontrou os colunistas e repórteres cujos artigos ele lia na edição do Fluxion para outros estados, e com dificuldade conseguiu controlar sua excitação. Por outro lado, o convidado de honra estava nitidamente contido. Arch Riker estava alegre por se livrar do Fluxion, mas a ocasião era entristecida pela recente dissolução de seu casamento.

"Quais são seus planos?", perguntou Qwilleran.

"Bem, passarei o Dia de Ação de Graças com meu filho em Denver e o Natal com minha filha em Oregon. Depois disso, não sei."

Após a deliciosa costeleta e a torta de maçã, o editor executivo presenteou Riker com um relógio de pulso de ouro, e Qwilleran fez um pequeno discurso em homenagem a seu amigo de longa data. Concluiu com poucas palavras sobre o Condado de Moose.

"Senhoras e senhores, a maioria de vocês nunca ouviu falar do Condado de Moose. E o único condado secreto do estado. Os cartógrafos às vezes se esquecem de colocá-lo no mapa. Muitos de nossos legisladores pensam que ele pertence ao Canadá. Mas há cem anos o Condado de Moose era o estado mais rico, graças à mineração e à exploração da madeira. Hoje em dia é um paraíso de férias para qualquer pessoa interessada em pescar, caçar, passear de barco e acampar. Temos duas características peculiares que gostaria de mencionar: temperaturas perfeitas de maio a outubro, e um jornal que não muda desde que foi fundado há mais de um século. Junior Goodwinter, o mais jovem chefe de redação em cativeiro, escreve todos os artigos. Na era da comunicação por satélite não é fácil escrever com uma pena de ganso e tinta de sépia... Permitam-me apresentar Junior e o Pickax Picayune!"

Junior tirou rapidamente seu boné de beisebol e o saco de jornais e correu pela sala de jantar gritando "E-e-exx-tra! E-exx-tra!", enquanto jogava um punhado de jornais sobre cada mesa. Os convidados os pegaram e começaram a ler — primeiro com risinhos, depois às gargalhadas. Na página 1, coluna 1, encontraram os classificados:

 

VENDEM-SE: Pás usadas em bom estado. E também um vestido de noiva nº 38, sem uso.

 

CORRA! Se seu velho calhambeque não vai aguentar mais um inverno, talvez você encontre um calhambeque melhor no leilão de carros usados de Hackpole, talvez não. Não pode dizer até vê-los.

 

GRÁTIS: Três gatinhos cinzentos com botas brancas. Quase domesticados.

 

ACABOU DE CHEGAR: Nova remessa de ceroulas na Loja da Família do Bill. A qualidade não é a mesma de sempre, e os preços estão mais altos do que os do ano passado, mas que raiva! É melhor comprar antes que a neve caia.

 

Dividindo a primeira página com esses exemplos de "verdade na publicidade" encontravam-se itens de notícias com grandes manchetes.

 

RECORDE QUASE QUEBRADO

Havia 75 carros no cortejo do funeral do capitão Fugtree na semana passada — o mais longo desde 1904, quando 52 charretes e 37 carruagens desfilaram até o cemitério para sepultar Ephraim Goodwinter.

 

CHÁ-DE-COZINHA

A srta. Doreen Mayfus foi homenageada com um chá-de-cozinha na última terça-feira. Houve jogos e prêmios como recompensa. A futura noiva abriu 24 presentes. O lanche incluiu folhados de salsicha, sanduíches de pimentão-doce e tortinhas.

 

ANIVERSÁRIO CELEBRADO

O sr. e a sra. Alfred Toodle comemoraram seu septuagésimo aniversário de casamento com um jantar oferecido por sete de seus onze filhos: Richard Toodle, Emil Toodle, Joseph Toodle, Conrad Toodle, Donna Toodle, Dorothy (Toodle) Fugtree e Estelle (Toodle) Campbell. Também estavam presentes 30 netos, 82 bisnetos e 13 tataranetos. O jantar foi realizado no Restaurante da Família Toodle. O bolo com várias camadas foi decorado por Betsy Ann Toodle.

 

Durante o alvoroço (todos estavam lendo em voz alta) o diretor do Clube da Imprensa foi cuidadosamente até a cabeceira da mesa e cochichou no ouvido do anfitrião. "Interurbano para você, Qwill. Em meu escritório."

Antes de correr para o telefone, Qwilleran exclamou: "Obrigado a todos por terem vindo! O bar está aberto!"

Ele ficou ausente da sala de jantar o suficiente para fazer algumas chamadas telefônicas e, quando voltou, arrastou Junior para longe de um grupo de editores e repórteres.

"Temos de ir embora, Junior. Vamos para casa. Alterei nossas reservas... Arch, diga até logo a todos por nós, certo? E uma emergência... Venha, Junior."

"O quê?... O quê?", gaguejou Junior.

"Conto-lhe mais tarde."

"Minha sacola..."

"Esqueça sua sacola."

Qwilleran puxou o jovem escada abaixo e o empurrou para dentro do táxi que esperava à beira da calçada com o motor ligado.

"Hotel Stilton, rápido", ele gritou, enquanto o táxi disparava em frente, "e ultrapasse os faróis vermelhos."

"Oh, nossa!", disse Junior.

"Com que rapidez você consegue colocar suas coisas na mochila, rapaz? Temos sete minutos para arrumar as malas, desocupar o quarto e ir para o heliporto no terraço do hotel."

Só depois que se amontoaram no helicóptero da polícia, Qwilleran achou tempo para explicar: "Um telefonema urgente de Pickax", ele exclamou. " 'A Grande' está indo para lá. Temos de chegar antes dela — emergência pessoal. Estamos prontos para correr. Eles estão segurando o avião."

Quando finalmente se afivelaram no jato, Junior disse: "Ei, como você conseguiu aquele negócio? Eu nunca tinha entrado em um helicóptero".

"É mais fácil se você tiver trabalhado no Fluxion", explicou Qwilleran, "e se tiver cooperado com 'Homicídios' e feito propaganda do Fundo das Viúvas de Policiais. Sinto estragar o resto de nossos planos."

"Está bem. Não me importo de perder as outras coisas."

"Podemos fazer uma rápida conexão em Chicago e depois pegar o voo da TGIF saindo de Mineápolis. Temos sorte por ele fazer aquela rota."

Durante o restante do voo, Qwilleran estava relutante em falar, mas Junior não conseguia parar. "Todo mundo era ótimo! Os colunistas de esportes disseram que me levariam ao camarote da imprensa qualquer hora que eu fosse à cidade. O rapaz que dirige a coluna Newsroom Mouse vai redigir uma matéria sobre o Picayune na terça-feira, e isso significa aparecer em uma cadeia de jornais em todo o país, você sabe. O que acha disso?... O sr. Bates disse que eu conseguiria um trabalho a qualquer hora que quisesse deixar o Pickax."

Qwilleran evitou comentar. Ele estava acostumado com as promessas do chefe de redação; o homem tinha uma memória curta.

Junior continuava a tagarelar. "Eles empregam uma porção de mulheres no Fluxion, não é? Na recepção, atribuições gerais, chefes de departamentos, fotógrafas. Você conhece aquela fotógrafa ruiva — a que estava com meias verdes?"

Qwilleran negou com a cabeça. "Ela entrou depois que saí do jornal."

"Ela é repórter fotográfica, e faz free lances para revistas nacionais. Poderá vir ao Condado de Moose na próxima primavera e fazer uma reportagem com fotos sobre as minas abandonadas. Nada mau!"

"Nada mau", repetiu Qwilleran calmamente.

Ele ainda estava excepcionalmente calmo quando embarcaram no pequenino avião do TGIF depois da meia-noite. Ocupou o assento da janela e, quando se virou para ouvir Junior, pôde ver um homem sentado do outro lado do corredor, segurando uma revista aberta. O passageiro olhou a mesma página durante todo o voo.

Ele não está lendo, pensou Qwilleran. Está ouvindo. E ele não é daqui. Ninguém no Condado de Moose tem aquela frescura de camisa de colarinho abotoado.

No terminal do aeroporto, o estranho dirigiu-se a um balcão para alugar um carro.

"Junior", resmungou Qwilleran, "quem é o cara da capa preta?"

"Nunca o vi antes", disse Junior. "Parece um caixeiro-viajante."

O homem não era nenhum caixeiro-viajante, Qwilleran disse a si mesmo. Havia algo em seu andar, em seu jeito, na maneira como ele avaliava o que estava à sua volta...

Enquanto se dirigiam de volta para Pickax, de manhã bem cedo, Junior finalmente mostrou sinais de falta de entusiasmo e percebeu o silêncio de preocupação de Qwilleran. "Alguma coisa errada em sua casa, Qwill? Você disse que era uma emergência."

"É uma emergência, mas não em minha casa. Sua mãe telefonou para minha governanta, e a sra. Cobb ligou para o Clube da Imprensa. Você precisa chegar em casa rapidamente. Não há nenhuma tempestade indo para lá; menti para você sobre isso." Qwilleran virou à direita no farol.

"Ei! Para onde está indo? Você não está me levando à fazenda?"

"Estamos indo para o hospital. Houve um acidente. Um acidente de carro."

"Meu pai!", exclamou Junior. "É muito grave?"

"Muito. Sua mãe está lhe esperando no hospital. Não sei como dizer isso, Junior, mas tenho de conseguir lhe contar. Seu pai morreu instantaneamente. Estava na ponte — a Velha Ponte de Pranchas."

Eles pararam em frente à porta lateral do hospital. Junior pulou do carro sem dizer uma palavra e entrou às pressas no prédio.

 

SEGUNDA-FEIRA, 11 DE NOVEMBRO. 

"Uma nuvem pesada cobre todo o condado, com possibilidade de neve antes do anoitecer. A temperatura neste momento em Pickax é de 5,5 graus negativos, com o agravante de um vento frio de 23,5 abaixo de zero." — Assim disse o meteorologista da WPKX.

Na segunda-feira de manhã, as escolas, lojas, escritórios e restaurantes de Pickax estiveram fechados até a noite — para o funeral. O dia estava frio, cinzento, úmido e deprimente. Todavia, uma multidão rodeou a Velha Igreja de Pedra no Park Circle. Outros espectadores amontoaram-se no pequeno parque circular — tiritando, batendo com os pés no chão, balançando os braços, esfregando as mãos enluvadas, qualquer coisa para esquentar, e isso incluía um furtivo gole de uma garrafinha em casos de desespero. Eles estavam aguardando para assistir à quebra de um recorde: o mais longo cortejo fúnebre desde 1904.

Carros de polícia bloquearam o centro da Rua Principal para facilitar a formação do cortejo. Carros levando bandeiras roxas no para-choque estavam alinhados em quatro fileiras de um lado a outro da rua.

Qwilleran, circulando no meio da multidão no parque, observava as fisionomias e prestava atenção no baixo e respeitoso sussurro de vozes. Meninos pequenos que escalavam a fonte para uma melhor visão eram enxotados por um oficial da polícia e repreendidos quando gritavam ou corriam no meio da multidão.

Encontravam-se reunidos dentro da igreja os numerosos ramos do clã dos Goodwinter, assim como oficiais da cidade, membros da Câmara do Comércio e da direção do Country Club. Fora da igreja estavam os leitores do Picayune: homens de negócios, donas-de-casa, fazendeiros, aposentados, garçonetes, trabalhadores, caçadores. Estavam assistindo a um evento do qual se lembrariam por toda a vida e descreveriam para as futuras gerações, exatamente como seus avós haviam descrito o funeral de Ephraim Goodwinter.

Entre eles encontrava-se um homem estranho à cena. Ele vagava no meio da multidão, olhando atentamente em todas as direções, examinando os rostos. Estava usando uma capa impermeável preta, e Qwilleran imaginava que ela teria um forro pesado; o frio estava de arrepiar.

Um caçador usando camuflagem laranja e preta estava resmungando para um homem que usava um boné e tinha uma bochecha cheia de rapé. "Vai ser um cortejo longo. Maior que o do capitão Fugtree, parece."

O fazendeiro mascou do outro lado. "Perto de uns cem, eu calculo. O do capitão tinha setenta e cinco, disseram no jornal."

"Sorte que puderam enterrá-lo antes da neve cair. 'A Grande' está se movendo nesta direção, disseram no rádio."

"Não se pode acreditar em nada que dizem no rádio. Aquela tempestade vinda do Canadá acabou antes de chegar a qualquer ponto perto da fronteira."

"O que aconteceu?", perguntou o caçador. "O acidente, quero dizer."

"Velha Ponte de Pranchas. É um absurdo! Tínhamos pedido ao condado para remover o que estivesse quebrado e alargar a desgraçada. Disseram que ele bateu no corrimão de pedra, mergulhou de cabeça e aterrissou nas pedras do rio. O carro pegou fogo. O caixão está lacrado, ouvi dizer."

"Eles deveriam processar alguém."

"Provavelmente estava em alta velocidade. Deve ter batido num veado."

"Ou podia estar numa corrida de sexta-feira à noite", disse o caçador com um sorriso irônico.

"Não ele! Ela é a única que frequenta bares e boates. Com ele nunca acontecia nada senão trabalho, trabalho, trabalho. Dormiu no volante, aposto. Família inteira de azarados. Você sabe o que aconteceu ao velho."

"Sim, mas ele provavelmente o merecia, pelo que ouvi."

"E depois foi o tio. Tem coisa suspeita sobre aquela história!"

"E o avô. Eles nunca descobriram a verdade sobre o que aconteceu com ele. O que farão com o jornal agora?"

"O rapaz tomará conta", disse o fazendeiro. "Quarta geração. Sabe-se lá o que ele vai querer fazer. Esses jovens vão pra escola e voltam com ideias malucas."

As vozes silenciaram quando o sino começou a tocar uma única nota solene, e o caixão foi levado da igreja, seguido pela família desolada. A viúva de véu, andando lentamente, foi acompanhada por seu filho mais velho. Junior ia ao lado de sua irmã que veio de Montana. Na calçada e no parque, as pessoas da cidade se cruzavam e os homens tiravam seus chapéus. Houve uma longa espera enquanto as pessoas de luto se dirigiam para os carros, dirigidos por jovens de jaquetões pretos e chapéus de pele preta. A um sinal, os homens de uniforme entraram em fila e ergueram os instrumentos de latão. Então, com a Banda Funerária de Pickax tocando uma marcha lúgubre, a longa fila de carros começou a se movimentar.

Qwilleran abaixou as abas laterais de seu chapéu de inverno, virou para cima a gola do casaco e seguiu pelo parque para o lugar que ele agora chamava de lar.

A residência Klingenschoen, herdada por Qwilleran, era uma das cinco edificações importantes do Park Circle, onde a Rua Principal dividia e rodeava um pequeno pedaço de gramado, com bancos de pedra e uma fonte também de pedra. De um lado do círculo estavam a Velha Igreja de Pedra, e a Pequena Igreja de Pedra e um respeitável Palácio da Justiça. Em frente, do outro lado do parque, estavam a biblioteca pública e a mansão K, como os naturais de Pickax a chamavam. Um cubo maciço feito de pedra com três pavimentos, a mansão ocupava sua área espaçosa com a régia segurança de que era a construção mais impressionante e mais cara da cidade.

Para um homem que escolhera passar sua vida adulta em apartamentos e hotéis, sempre se mudando como um cigano, a residência palaciana era um desconforto, um embaraço. Qwilleran acabaria doando-a à cidade como museu, mas por cinco anos estava condenado a viver com o marco do consumo conspícuo de Klingenschoen: amplos cômodos com mais de quatro metros de altura e madeira trabalhada; toneladas de candelabros de cristal e uma grande quantidade de tapetes orientais; inestimáveis antiguidades francesas e inglesas e objetos de arte que valiam milhões.

Qwilleran resolveu seu problema mudando-se para o velho alojamento dos empregados acima da garagem, enquanto a governanta ficou ocupando a suntuosa suíte na casa principal.

Governanta era um termo errôneo para Iris Cobb. Outrora negociante e apreciadora de antiguidades, vinda Lá de Baixo, ela agora tinha a função de administradora da casa, arquivista da coleção e curadora de uma obra-prima de arquitetura destinada a se tornar um museu. Era também uma cozinheira obsessiva, que gostava de se divertir na cozinha — uma figura atarracada em um avental cor-de-rosa desbotado. Apesar das credenciais de sua carreira, a viúva Cobb cozinhava, sem parar, doces e tortas para agradar o sexo oposto e era inclinada a contemplar os homens com adoração, através de seus óculos de lentes espessas.

A sra. Cobb tinha um abundante guisado de ostras esperando Qwilleran quando ele voltou do funeral. "Olhei pela janela e vi todos os carros", disse ela. "O cortejo devia ter uns oitocentos metros!"

"O mais longo da história de Pickax", disse Qwilleran. "Não foi simplesmente o funeral de um homem; pode vir a ser o funeral de um jornal centenário."

"O senhor viu a viúva? Ela está passando por um terrível momento." A sra. Cobb sentia-se emocionalmente ligada a qualquer mulher que perdesse o marido, tendo ela própria vivenciado duas tragédias como essa.

"Os três filhos adultos da sra. Goodwinter estavam com ela — também uma mulher mais velha, provavelmente a vovó Gage de Junior. Uma mulher pequenina, mas tão ereta quanto um brigadeiro... Algum telefonema enquanto eu estava fora, sra. Cobb?"

"Não, mas um ajudante de cozinha do Old Stone Mill trouxe alguns bolinhos de fígado de porco. É uma nova receita, e o chef gostaria de ter sua opinião. Eu os coloquei no freezer."

Qwilleran grunhiu aborrecido. "Darei àquele palhaço uma opinião — rápida! Eu não tocaria em um bolinho de fígado de porco nem se ele me pagasse!"

"Oh, não são alimentos para pessoas, sr. Q! São para os gatos. O chef está. experimentando uma linha de congelados para animais domésticos."

"Bem, tire uns dois do freezer e os fedelhos mimados podem experimentá-los na ceia. A propósito, a senhora notou alguns livros no chão da biblioteca? Koko está empurrando-os das prateleiras, e não aprovo seu novo hobby."

"Eu a arrumei esta manhã e não notei nada."

"Ele anda particularmente atraído por aqueles pequenos volumes de Shakespeare com encadernação de couro de porco. Ontem encontrei Hamlet no chão."

Atrás das lentes grossas da sra. Cobb havia um pestanejar maroto. "O sr. acha que ele sabe que eu tinha um presunto cozido na geladeira?"

"Ele tem caminhos tortuosos de comunicação, sra. Cobb, mas esse seria um novo e indigno", disse Qwilleran. "Que dia é hoje? Segunda-feira? Suponho que vai sair hoje à noite. Se isso acontecer, darei comida aos gatos."

A face da governanta iluminou-se. "Herb Hackpole vai me levar para jantar fora — em algum lugar especial, disse ele.

Espero que seja no Old Stone Mill. Dizem maravilhas da comida desde que o novo chef de cozinha assumiu o lugar."

Qwilleran soprou o bigode, um sinal particular de desaprovação. "Já é tempo de o avarento levá-la para jantar fora! Parece-me que você sempre vai para a casa dele e cozinha."

"Mas eu gosto!", disse a sra. Cobb com os olhos brilhando.

Hackpole era um negociante de carros usados com fama de ser antipático, mas ela o achava atraente. O homem tinha diabos vermelhos tatuados nos braços, usava seus poucos cabelos em um corte rente à cabeça e frequentemente deixava de fazer a barba, mas ela gostava de homens rudes. Qwilleran se lembrava que seu último marido fora um bruto inculto e ela o amara profundamente. Agora, desde que começara a namorar Hackpole, sua face alegre e redonda tinha-se tornado radiante.

"Se o senhor quiser trazer alguém para o jantar", disse a sra. Cobb, "pode servir o presunto cozido, e farei a salada com gengibre que o senhor gosta, e colocarei uma fôrma de batata-doce no forno. Tudo o que o senhor tem a fazer é tirá-la quando o apito tocar." Ela sabia da incapacidade de Qwilleran na cozinha.

"É muita gentileza sua", disse ele. "Eu poderia convidar a sra. Duncan."

"Oh, seria ótimo!" A expressão da governanta era conspiratória, como se pressentisse um romance. "Vou pôr na mesa de marchetaria da biblioteca uma toalha da Madeira, velas e tudo. Será agradável e aconchegante para os dois. O sr. O'Dell pode acender a lareira com aquelas lenhas de macieira. Elas exalam um cheiro tão bom!"

"Não faça isso tão explicitamente sedutor", pediu Qwilleran. "A dama é muito decente."

"Ela é uma pessoa adorável, sr. Q, e tem a idade certa para o senhor, se não se importa de eu estar falando assim. Ela tem muita personalidade para uma bibliotecária."

"É uma nova tendência", disse ele. "As bibliotecas agora têm menos livros, e muitos audiovisuais... e festas com champanhe... e personalidades por todos os cantos."

Depois do almoço, Qwilleran deu uma volta pelo Park Circle até a biblioteca pública, que parecia um templo grego. Fora construída pelo fundador do Picayune na virada do século, e um retrato de Ephraim Goodwinter estava pendurado no saguão de entrada, embora fosse parcialmente ofuscado por uma exposição de novos modelos de vídeo e tivesse um corte na tela mal consertado.

A multidão do horário de saída escolar ainda não se havia aglomerado na biblioteca com as lições de casa, de modo que quatro jovens funcionárias amavelmente se apressaram para ajudar Qwilleran. As jovens eram sempre atraídas pelo homem de bigode exuberante e olhos tristes. Além disso, ele participava do conselho diretor da biblioteca e era o homem mais rico da cidade.

Ele fez às funcionárias uma simples pergunta e todas elas saíram apressadas em diversas direções — uma para o catálogo de fichas, uma para a prateleira de história local, e duas para o computador. A resposta proveniente de todas as fontes era negativa. Ele lhes agradeceu e se dirigiu ao escritório da bibliotecária-chefe no segundo andar.

Carregando sua capa de lenhador e chapéu de madeireiro, Qwilleran subiu a escada saltando de três em três degraus, pensando em coisas agradáveis. Polly Ducan era uma mulher charmosa, ainda que enigmática, e tinha uma voz que ele achava calma e estimulante.

De sua escrivaninha, ela olhou para cima e deu-lhe um cordial mas encorajador sorriso. "Que surpresa agradável, Qwill! Que missão especial traz você até aqui com essa pressa?"

"Vim principalmente para ouvir sua voz suave", disse ele, jogando um certo charme. E em seguida citou um de seus versos preferidos de Shakespeare: "A voz dela foi sempre agradável, sussurrante e acariciadora, excelente coisa na mulher".

"É do Rei Lear, quinto ato, cena três", ela retorquiu prontamente.

"Polly, sua memória é incrível!", disse ele. "Estou assombrada e não sei o que dizer."

"Essa é a fala de Hermia, no terceiro ato, cena dois, de Sonho de uma noite de verão... Não olhe tão surpreso, Qwill. Contei-lhe que meu pai era especialista em Shakespeare. Quando crianças conhecíamos as peças como nossos amiguinhos sabiam as médias de rebatidas dos grandes times... Você foi ao funeral esta manhã?"

"Eu o observei do parque, e ele me deu uma ideia. De acordo com a falange das ansiosas assistentes do andar de baixo, ninguém jamais escreveu uma história do Picayune. Eu gostaria de tentar isso. O que existe para trabalhar sobre isso?"

"Deixe-me pensar... Você poderia começar com os Goodwinter em nossa coleção genealógica."

"Você tem exemplares antigos do jornal?"

"Somente dos últimos vinte anos. Os anteriores foram destruídos por ratos ou por canos de vapor que explodiram ou por má administração. Mas estou certa de que o escritório do Picayune tem um arquivo completo."

"Há alguém que eu possa entrevistar? Alguém que se lembraria de sessenta, setenta e cinco anos atrás?"

"Você poderia verificar no Clube dos Veteranos. Todos eles têm mais de oitenta anos. Euphonia Gage é a presidente."

"É aquela mulher que dirige um Mercedes e buzina demais?"

"Uma descrição sucinta! O velho Goodwinter era seu genro, e como ela tem uma reputação de franqueza brutal poderia fornecer algumas informações preciosas."

"Polly, você é um tesouro! A propósito, você está livre para jantar esta noite? A sra. Cobb está preparando uma comida que é boa demais para um solteiro solitário. Pensei que você poderia concordar em compartilhá-la."

"Com prazer! Não devo ficar até muito tarde, mas espero que haja tempo para ler em voz alta após o jantar. Você tem uma voz maravilhosa, Qwill."

"Obrigado." Ele alisou o bigode com prazer. "Irei para casa e farei um gargarejo."

Virando-se para ir embora, ele olhou de relance do segundo andar para a sala de leitura. "Quem é aquele homem lá * — com uma pilha de livros sobre a mesa?"

"Um historiador Lá de Baixo que pesquisa sobre os primeiros trabalhos de mineração. Ele perguntou se eu poderia recomendar alguns bons restaurantes, e sugeri o Stephanie's e o Old Stone Mill. Você tem outras ideias?"

"Acho que sim", disse Qwilleran. Ele afundou seu chapéu na cabeça de forma impetuosa e fez barulho pela galeria com suas botas amarelas, parando à mesa onde o estranho estava sentado.

Parodiando um amigável nativo do norte do país, ele disse: "Alô! A dama ali diz que você está procurando um lugar para comer. Para uma comida realmente boa, experimente o Otto's Tasty Eats. Você pode comer de tudo por cinco dólares. Quanto tempo ficará por aqui?"

"Até terminar meu trabalho", disse o historiador rispidamente, debruçando-se sobre seu livro.

"Se quiser um gole de cerveja pode tentar o Hotel Booze. Bons sanduíches também."

"Obrigado", disse o homem em tom de dispensa.

"Vejo que está lendo sobre aquelas velhas minas. Meu avô morreu em uma caverna em 1913. Eu não era nascido ainda. Tem visitado algumas velhas minas?"

"Não", disse o homem, fechando seu livro com força e empurrando sua cadeira para trás.

"Mais perto daqui há o Dimsdale. Eles servem jantar. Bom lugar para pegar um prato de vagens com salsichas."

Agarrando sua capa preta, o estranho caminhou rapidamente para a escadaria.

Satisfeito com a exasperação do homem e com seu próprio desempenho, Qwilleran endireitou o chapéu, dobrou a capa e seguiu seu caminho. Sabia, pela óbvia falta de interesse do homem, que ele não era o que alegava ser.

Às 5h30 Herb Hackpole chegou para pegar sua companheira de jantar, estacionando ao lado da entrada para carros e buzinando. A sra. Cobb saiu apressada pela porta dos fundos, tão excitada quanto uma menina em seu primeiro encontro com o namorado.

Às 5h45 Qwilleran alimentou os gatos. Os bolinhos de fígado de porco, quando degelados, tornaram-se uma papa cinzenta que causava aversão, mas os siameses abaixaram-se sobre o prato e devoraram a inovação do chef com as caudas coladas ao chão, denotando total satisfação.

Às 6h00 Polly Duncan chegou — a pé — tendo deixado seu velho carrinho vermelho atrás da biblioteca. Se ele fosse visto na entrada circular para carros da mansão K, os fofoqueiros de Pickax teriam um dia muito agitado. Todo mundo conhecia o carro de todo mundo — marca, modelo, ano e cor.

Polly não era tão jovem e esguia como as mulheres que ele namorara Lá Embaixo, mas era uma mulher interessante, com uma voz que às vezes o deixava tonto, e parecia ter um abraço confortável, embora ele não tivesse testado sua teoria. A bibliotecária mantinha uma certa reserva, apesar de sua demonstração de amizade, e sempre insistia em voltar para casa cedo.

Ele saudou-a na porta da frente, uma obra-prima entalhada, de latão polido. "Onde está a neve que prometeram?", perguntou ele.

"Todos os dias em novembro o WPKX prevê neve como um caso de polícia", disse ela, "e mais cedo ou mais tarde eles acertarão... Esta casa nunca deixa de me surpreender!"

Ela estava contemplando maravilhada as paredes de couro âmbar do vestíbulo e a grande escadaria extravagantemente ampla e elaboradamente balaustrada. O candelabro ofuscante era de cristal Baccarat. Os tapetes eram antiguidades da Ásia Menor. "Esta casa não pertence a Pickax; ela pertence a Paris. É impossível acreditar que os Klingenschoen possuíssem esses tesouros e ninguém soubesse disso."

"Foi a vingança dos Klingenschoen — por não serem aceitos socialmente." Qwilleran acompanhou-a até os fundos da casa. ''Vamos jantar na biblioteca, mas a sra. Cobb quer que eu lhe mostre seu jardim móvel de ervas no solário."

O cômodo de chão de pedra tinha grandes vidraças, algumas seringueiras antigas e cadeiras de vime para se relaxar no verão; a nova aquisição de inverno era uma carreta de ferro batido, com oito vasos de barro etiquetados com os nomes: hortelã, camomila, tomilho, basil etc.

"Pode ser girada durante o dia para aproveitar melhor a luz do sol", explicou. "Isto é — se a WPKX nos permitir ter alguma."

Polly acenou com a cabeça em sinal de aprovação. "As ervas gostam de sol, mas não de muito calor. Onde a sra. Cobb achou essa engenhoca inteligente?"

"Ela desenhou-a, e um amigo dela a construiu em sua serralheria. Talvez você conheça Hackpole, o vendedor de carros usados."

"Sim, justamente sua oficina guardou meu carro no inverno. Você está gostando de seu novo carro com tração dianteira, Qwill?"

"Eu saberei melhor quando a neve cair."

Na biblioteca, as lâmpadas estavam acesas, a lenha em chamas na lareira e a mesa posta como uma exposição ofuscante de porcelana, cristal e prata. As quatro paredes de livros eram salientadas por bustos de mármore de Homer, Dante e Shakespeare.

"Os Klingenschoen leram esses livros?", perguntou Polly.

"Acho que eram principalmente para decoração, exceto umas poucas novelas picantes dos anos 20. Achei no sótão caixas de livros de mistérios e romances."

"Pelo menos alguém estava lendo. Ainda há esperança para a palavra impressa." Ela entregou a ele um livro com capa gasta e desbotada. "Eis algo que pode lhe interessar — Picturesque Pickax, publicado antes da Primeira Guerra Mundial. Na página com o marcador há uma fotografia do prédio do Picayune com os empregados em pé na calçada."

Qwilleran achou a foto de homens com fisionomias ansiosas e bigodes grandes, colarinhos altos, aventais de couro, viseiras, ligas no braço e cabelo emplastrado repartido ao meio. "Pareciam estar diante de um pelotão de fuzilamento", disse. "Obrigado. Será útil."

Ele serviu um aperitivo para sua convidada. Sherry seco era o preferido dela; um copo era seu limite. Para ele, um suco de uva branca.

"Votre santé!", ele brindou, fitando-a.

"Santé!", ela respondeu com um olhar contido.

Ela usava um conjunto cinza-escuro, blusa branca e mocassim castanho-avermelhado que parecia ser seu uniforme da biblioteca, mas tentou dar mais vida com uma echarpe colorida. Estar na moda não era uma de suas metas, e seu corte de cabelo austero não estava na última onda, mas sua voz...! Era sempre suave, dócil e baixa, e conhecia Shakespeare de trás para a frente e de frente para trás.

Depois de um instante de silêncio, durante o qual Qwilleran se perguntava o que Polly estaria pensando, ele disse: "Você se lembra daquele cara que se dizia historiador na sala de leitura? Ele estava com uma pilha de livros sobre o trabalho nas velhas minas. Mas duvido que esteja falando a verdade."

"Por que você diz isso?"

"Sua postura relaxada. A forma como segurava o livro. Ele não demonstrava a ânsia ávida do pesquisador por informações, e não estava tomando notas. Estava lendo preguiçosamente para matar o tempo."

"Então quem é ele? Por que disfarçaria sua identidade?"

"Acho que ele é um investigador. Narcóticos — FBI — alguma coisa assim."

Polly olhou desconfiada. "Em Pickax?"

"Tenho certeza de que há vários esqueletos nos armários locais, Polly, e a maioria do pessoal daqui sabe tudo sobre eles. Você tem aqui alguns fofoqueiros de categoria mundial."

"Eu não os chamaria de fofoqueiros", disse, com ar de defesa. "Em cidades pequenas as pessoas compartilham as informações. É uma forma de carinho."

Qwilleran ergueu uma sobrancelha, maliciosamente. "Bem, o estranho misterioso completará sua missão antes que a neve caia ou ficará fazendo pose na sala de leitura até a primavera chegar... Outra pergunta. O que acontecerá ao Picayune agora que o velho se foi? Algum palpite?"

"Será provavelmente uma morte tranquila — uma ideia de que viveu seu tempo."

"Você conheceu bem os pais de Junior?"

"Só casualmente. O velho era fanático por trabalho — um homem agradável, mas de forma alguma social. Gritty gosta da vida do Country Club: golfe, baralho, jantares dançantes. Eu queria que ela participasse do meu conselho diretor, mas era extremamente entediante para o seu gosto."

"Gritty? É o nome da sra. Goodwinter?"

"Na verdade, Gertrude, mas há uma certa panelinha aqui que aderiu a seus apelidos de adolescência: Muffy, Buffy, Bunky, Dodo. Devo admitir que a sra. Goodwinter tem muita coragem, por bem ou por mal. Ela é como a mãe. Euphonia Gage é uma mulher corajosa."

Um apito soou distante e Qwilleran acendeu as velas, colocou uma fita de Fauré no toca-fitas e serviu o jantar.

"Obviamente você conhece todo mundo em Pickax", comentou ele.

"Para uma recém-chegada, sou aceitável. Estou aqui há somente... vinte e cinco anos."

"Eu tinha a impressão de que você era do Leste. Nova Inglaterra?"

Ela concordou com a cabeça. "Quando estava na faculdade, casei-me com um jovem de Pickax e viemos para cá administrar uma livraria de sua família. Infelizmente ela foi fechada logo depois disso — quando meu marido morreu — mas eu não quis voltar para o Leste."

"Ele devia ser muito jovem."

"Muito jovem. Era voluntário do corpo de bombeiros. Eu me lembro de um dia seco de ventania, em agosto. Nossa livraria ficava a uma quadra do Corpo de Bombeiros, e quando a sirene soou, meu marido saiu depressa da loja. O tráfego parou completamente e homens vinham correndo de todas as direções — disparados, ansiosos, movendo os braços para todos os lados. O mecânico do posto de gasolina, um dos jovens pastores, um garçom, o homem da cutelaria — todos correndo como se suas vidas dependessem disso. Então carros e caminhões com luzes giratórias pararam e estacionaram a esmo, e os motoristas pularam para fora e correram para a sede do Corpo de Bombeiros. Aí as portas foram abertas, o tanque e a mangueira foram tirados, e os homens subiam nos caminhões e se vestiam com roupas apropriadas para enfrentar o fogo."

"Você descreve isso vividamente, Polly."

Seus olhos se encheram de lágrimas. "Foi um fogo no celeiro, e ele foi morto por uma viga que caiu."

Houve um longo silêncio.

"É uma história triste", disse Qwilleran.

"Os bombeiros eram tão conscienciosos. Quando a sirene tocava, eles abandonavam tudo e corriam. No meio da noite acordavam de um sono profundo, vestiam algumas roupas e corriam. Ainda eram criticados: chegaram tarde demais... não havia homens suficientes... a água das bombas de incêndio não era suficiente... os equipamentos estavam quebrados", observou. "Eles se esforçavam bastante. Ainda se esforçam. São todos voluntários, você sabe."

"Junior Goodwinter é um voluntário", disse Qwilleran, "e seu bip está sempre soando no meio de alguma coisa... O que você fez depois daquele dia de ventania em agosto?"

"Fui trabalhar na biblioteca e encontrei um consolo aqui."

"Pickax tem uma dimensão humana que é — como direi? — confortante. Tranquilizadora. Mas por que todos nós somos obcecados com os boletins meteorológicos?"

"Estamos próximos aos elementos", disse Polly. "O clima afeta tudo: a agricultura, a extração da madeira, a pescaria comercial, os esportes ao ar livre. E todos nós dirigimos longas distâncias pelas estradas do país. Não há táxis que possamos chamar em um dia ruim."

A sra. Cobb havia deixado a cafeteira ligada e potes de musse de chocolate na geladeira. A refeição acabou de forma agradável.

"Onde estão os gatos?", perguntou Polly.

"Trancados na cozinha. Koko andou empurrando livros da prateleira. Ele acha que é um bibliotecário. Yum Yum, por outro lado, é simplesmente uma gata que persegue sua cauda e rouba clipes de papel e esconde coisas sob o tapete. Sempre que meu pé tropeça em um calombo no tapete, eu estremeço. Será meu relógio de pulso? Ou um rato? Ou meus óculos de leitura? Ou um envelope amassado da cesta de lixo?"

"Que títulos Koko recomendou?"

"Ele está gostando muito de Shakespeare", disse Qwilleran. "Pode ser por causa das capas de couro. Logo que cheguei ele empurrou Sonho de uma noite de verão da prateleira."

"É uma coincidência", disse Polly. "Meu nome vem de uma das personagens." Ela fez uma pausa e esperou que ele adivinhasse.

"Hipólita?"

"Correto! Meu pai deu nome a todos nós a partir dos personagens das peças. Meus irmãos são Marco Antonio e Brutus, e minha pobre irmã Ofélia teve sempre, desde a quinta série, de tolerar comentários obscenos... Por que você não solta os gatos? Eu gostaria de ver Koko em ação."

Quando eles foram soltos, Yum Yum andou elegantemente para a biblioteca, colocando uma pata na frente da outra e procurando um colo livre, mas Koko ostentava sua independência adiando sua entrada. Só quando Qwilleran e sua convidada ouviram um plunk concluíram que Koko estava na sala. No chão jazia o volume fino de Henrique VIII.

Qwilleran disse: "Você tem de admitir que ele sabe o que está fazendo. Há uma cena forte desempenhada por uma mulher na peça — quando a rainha enfrenta os dois cardeais."

"É terrível!", disse Polly. "Katherine diz ser uma pobre e fraca mulher, mas destrói os dois homens sábios. 'Tendes rostos de anjos, mas o céu conhece vossos corações!' Você já se perguntou sobre a verdadeira identidade de Shakespeare, Qwill?"

"Eu li que as peças podem ter sido escritas por Jonson ou Oxford."

"Eu acho que Shakespeare era mulher. Há muitos papéis femininos fortes e falas maravilhosas para mulheres."

"E há papéis masculinos fortes e falas maravilhosas para homens", ele retorquiu.

"Sim, mas sustento que uma mulher pode escrever papéis masculinos fortes com mais sucesso do que um homem pode escrever bons papéis para mulheres."

"Humm", murmurou Qwilleran com polidez.

Koko agora estava sentado com orgulho na escrivaninha, obviamente esperando por alguma coisa, e Qwilleran se sentiu obrigado a ler o prólogo da peça. Depois Polly fez uma leitura estarrecedora da cena de confronto da rainha.

"Miau!", ronronou Koko.

"Agora preciso ir", disse ela, "antes que meu senhorio comece a ficar preocupado." "Seu senhorio?"

"O sr. MacGregor é um amável viúvo", ela explicou. "Aluguei uma pequena casa em sua fazenda, e ele acha que mulheres não deveriam sair sozinhas à noite. Fica acordado esperando que eu entre com o carro."

"Você já testou sua teoria sobre Shakespeare com seu senhorio?", perguntou Qwilleran.

Depois de Polly ter dito um gracioso "obrigada" e um rápido "boa-noite", Qwilleran ficou pensando em sua desculpa para ir embora cedo. Pelo menos Koko não a expulsara de casa, como fizera com outras visitas femininas no passado. Isso já era um bom sinal.

Qwilleran estava tirando a louça do jantar e colocando a cozinha em ordem, quando a sra. Cobb voltou de seu encontro, rubra e feliz.

"Oh, não precisa fazer isso, sr. Q", disse ela.

"Não há problema algum. Obrigado pela refeição soberba. Como foi seu jantar?"

"Fomos ao Old Stone Mill. A comida está muito melhor agora. Eu comi uma esplêndida truta ao molho de vinho. Herb pediu steak Diane, mas não gostou do molho."

Aquele cara, pensou Qwilleran, preferiria ketchup. Para a sra. Cobb ele disse: "A sra. Duncan estava me contando sobre a brigada de incêndio voluntária. Hackpole não é bombeiro?"

"Sim, e ele teve algumas experiências emocionantes — retirando crianças de um prédio em chamas, reanimando pessoas com respiração boca a boca, juntando vacas de um celeiro incendiado!"

Interessante se for verdade, pensava Qwilleran. "Traga-o aqui para um drinque na próxima noite em que vocês saírem", sugeriu. "Gostaria de saber como funciona a brigada de incêndio de uma cidade pequena."

"Oh, obrigada sr. Q! Ele ficará contente. Ele acha que o senhor não gosta dele por tê-lo levado ao tribunal uma vez."

"Nada pessoal. Simplesmente objetei por ter sido atacado por um cachorro que deveria estar acorrentado, de acordo com a lei. Se a senhora gosta dele, sra. Cobb, tenho certeza de que ele é um bom homem."

Quando Qwilleran estava fechando a casa para dormir, o telefone tocou. Era a voz de Junior Goodwinter estalando de excitação. "Ela está chegando. Ela chega no voo de amanhã!"

"Quem está chegando?"

"A repórter fotográfica que encontrei no Clube da Imprensa. Ela diz que amanhã o Fluxion está publicando a coluna e vai aparecer por todo o país esta semana. Ela quer oferecer a reportagem fotográfica a uma revista enquanto a notícia está quente."

"Você contou a ela... sobre seu pai?"

"Ela diz que isso só fará a reportagem mais atual. Tenho de pegá-la no aeroporto amanhã de manhã. Iremos buscar alguns veteranos que costumavam trabalhar no Pic para posarem para as fotos. Você compreende o que significa isso? Pickax será colocada no mapa! E poderia levar o Picayune de volta aos bons tempos, se começarmos a pegar assinaturas de outros lugares."

Coisas mais estranhas já aconteceram, pensou Qwilleran. "Telefone para mim amanhã à noite depois da sessão de fotos. Coloque-me a par do que acontecer. E boa sorte!"

Quando recolocou o telefone no gancho, ouviu um leve som, plunk, como se outro livro aterrissasse no tapete Bokhara. Koko estava sentado na prateleira de Shakespeare, parecendo orgulhoso de si mesmo.

Qwilleran pegou o livro e alisou as páginas amarrotadas. Era Hamlet outra vez, e uma linha na primeira cena chamou sua atenção: "Acaba de bater meia-noite. Vai para a cama..."

Dirigindo-se para o gato ele disse: "Você pode pensar que é inteligente, mas tem de parar com isso! Esses livros são impressos em um refinado papel da Índia. Eles não podem aguentar esse tipo de tratamento."

"Ik, ik, ik", ronronou Koko, seguindo sua observação com um bocejo.

 

TERÇA-FEIRA, 12 DE NOVEMBRO. 

"Neve durante o dia, depois queda de temperatura e mudança da direção dos ventos para nordeste." Assim disse a WPKX, e o sr. O'Dell, empregado da casa, limpou suas pás de neve e checou as velas de ignição de seu limpador de neve.

Era o dia seguinte à bem-sucedida estreia dos bolinhos de fígado de porco, e Qwilleran planejou almoçar no Old Stone Mill — para relatar os resultados ao chef de cozinha, e para resolver um mistério que o estava chateando.

Quem é o chef de cozinha?

Qual o seu nome?

De onde ele veio?

Quais eram suas credenciais?

E por que ninguém o tinha visto?

O restaurante era um antigo moinho com uma roda d'água gigantesca, recentemente reformado com bom gosto. As paredes de pedra e vigas de madeira maciças ficavam expostas. O chão de madeira fora lixado até chegar à cor de mel; todas as mesas tinham uma visão da roda d'água que rangia e girava sem parar, embora o fluxo do moinho tivesse secado há setenta anos. A comida, todo mundo dizia, era abominável.

Então o restaurante foi comprado pela empresa XYZ, Inc., de Pickax, construtora dos apartamentos e condomínios Indian Village no rio Ittibittiwassee. A firma possuía também uma série de lojas no condado e um novo motel em Mooseville.

Um dia, em um encontro da Câmara do Comércio, Qwilleran foi abordado por Don Exbridge, o X da empresa XYZ. Era um varapau com um metro e noventa e cinco, e um sorriso que o tornara popular e bem-sucedido.

"Qwill, você tem ligações com restaurantes Lá de Baixo", disse Exbridge. "Onde podemos conseguir um bom chef de cozinha para o Old Stone Mill? De preferência alguém que aprecie ar livre e não se importe de morar em uma cabana."

"Pensarei nisso e darei um retorno", prometeu Qwilleran.

Então as rodas começaram a girar em sua mente. Hixie Rice, sua antiga vizinha Lá de Baixo... membro de um seleto grupo de gastrônomos... adorava comer, e sua figura comprovava isso... mulher jovem, inteligente... infeliz no amor... trabalhava em publicidade e promoção... costumava falar francês com Koko. Por que, perguntava-se Qwilleran, todas as pessoas espertas estavam na publicidade, enquanto os pensadores sérios que davam duro estavam no jornalismo, ganhando menos?

A última vez que tinha tido notícia de Hixie, ela estava namorando um chef de cozinha e tendo aulas de administração de restaurante. E foi assim que Hixie Rice e seu chef de cozinha aterrissaram em Pickax. Imediatamente substituíram o horrível cardápio por pratos mais sofisticados e novos ingredientes. O chef treinou o antigo pessoal da cozinha, guardou as velhas frigideiras e racionou o sal.

Quando Qwilleran foi almoçar no Old Stone Mill, na terça-feira, mal reconheceu a antiga sócia do Clube das Gordas Amigáveis. "Hixie, você está quase anoréxica!", disse ele. "Você parou de colocar manteiga em seu bacon e açúcar em seu sundae de chocolate?"

"Você não vai acreditar, Qwill, mas trabalhar em restaurante curou minha obsessão por comida", disse. "Toda essa comida me enjoa. Sete quilos de manteiga... cinco quilos de fatias de queijo... duas centenas de galinhas... trinta dúzias de ovos! Você já viu duas centenas de galinhas depenadas, Qwill?"

Com o peso perdido, Hixie tinha perdido também sua voz alta e asmática, e seu cabelo agora parecia saudável e natural, em vez de montado e envernizado. "Você está com uma aparência excelente!", ele lhe falou.

"E você parece ótimo, Qwill. Sua voz soa diferente."

"Parei de fumar. Rosemary convenceu-me a abandonar o cachimbo."

"Você ainda vê Rosemary?"

"Não, ela está morando em Toronto."

"Toda nossa velha gangue de gastrônomos está dispersa, mas pensei que vocês dois estivessem destinados à servidão sagrada."

"Havia um choque de personalidade entre Rosemary e Koko", ele explicou.

Hixie indicou-lhe um lugar perto da roda do moinho que girava. "Esta é considerada uma mesa privilegiada", disse ela, "embora o movimento da roda deixe alguns de nossos clientes enjoados. É o rangido que me dá ímpetos de subir nas paredes e a fita com a gravação de um moinho acelerado tem um efeito psicológico nos que vêm jantar. Eles estão gastando o tapete que leva ao banheiro." Ela lhe entregou o cardápio. "O pernil de cordeiro com ratatouille está bom hoje."

"E o salmão fresco?"

"Acabou. Você está um pouco atrasado."

"Foi premeditado", disse Qwilleran. "Eu gostaria de falar com você. Pode se sentar comigo?"

Ele pediu o pernil, e Hixie sentou-se com um copo de Campari e um cigarro. "Koko e Yum Yum gostaram dos bolinhos?", perguntou ela.

"Depois que comeram, um correu atrás do outro para cima e para baixo por duas horas, e eles são castrados! Você descobriu um afrodisíaco para felinos?"

"Esta é apenas a primeira de várias comidas congeladas para gatos que queremos comercializar. O pessoal da XYZ está nos apoiando financeiramente. Fabulosas Comidas Congeladas para Felinos Exigentes! Que tal?"

"Quando você e seu parceiro irão visitar e falar francês com Koko? Vocês não viram a choça magnífica em que moro."

"É difícil fazermos visitas", ela se desculpou. "Nós trabalhamos em horas ruins. Nunca me falaram sobre isso na escola de restaurante. Não estou lamentando; na verdade, estou absolutamente feliz! Eu era um fracasso, você sabe, mas tudo mudou desde que encontrei um homem maravilhoso. Ele não é alcoólatra, não consome drogas e não é marido de outras mulheres."

"Estou muito feliz por você", disse Qwilleran. "Quando serei apresentado ao rapaz?"

"Ele não está aqui agora."

"Qual é seu nome? Como ele é?"

"Tony Peters, e é alto, louro e muito atraente."

"Onde ele aprendeu a cozinhar?"

"Montreal... Paris... outros bons lugares."

"Eu gostaria de conhecer o rapaz e apertar sua mão. Afinal de contas, sou responsável por trazer vocês dois para este paraíso do norte."

"Atualmente", disse Hixie, "ele está fora da cidade. Sua mãe teve um derrame e ele teve de ir para a Filadélfia."

"Seria melhor ele voltar antes que a neve caia ou terá de fazer a viagem com sapatos para neve. O aeroporto fecha após 'A Grande'. Onde vocês estão morando?"

"Nós temos um excelente apartamento no Indian Village. O sr. Exbridge usou de pistolão para nos colocar lá dentro. Há uma fila de espera, você sabe."

"E o que vocês fazem no dia de folga?"

"Tony está escrevendo um livro de receitas. Eu investigo a concorrência pelo condado."

"Tem feito descobertas interessantes?"

"Próximo ao Old Stone Mill, Stephanie's tem a melhor comida", disse Hixie, "mas seu chef de cozinha tem algum tipo de bloqueio mental. Eu pedi uma alcachofra recheada e ele me trouxe um abacate recheado. Quando o garçom insistiu que era uma alcachofra, peguei meu prato e invadi a cozinha para enfrentar o chef de cozinha, e aquele arrogante estúpido teve a audácia de me dizer que eu não poderia distinguir uma alcachofra recheada de um crocodilo recheado! Fiquei furiosa! Informei a ele que uma alcachofra pertence à mesma família do cardo e um abacate é um fruto em forma de pêra, cujo nome vem da palavra que significa testículo em Nahuatl, embora eu tivesse certeza que ele não sabia nada sobre o assunto!"

"Como ele reagiu?"

"Levantou uma faca de açougueiro e começou a esmigalhar peitos de galinha, de modo que me retirei antes que eu me tornasse um número na estatística de homicídio."

 

Naquela tarde, Qwilleran sentou-se diante de sua escrivaninha na biblioteca e se perguntou sobre Hixie e seu misterioso companheiro. Koko pulou para o topo da escrivaninha, sentou-se orgulhoso e empertigou a cabeça com expectativa.

"Você se lembra de Hixie?", perguntou-lhe Qwilleran. "Ela estava tendo aulas de francês e costumava dizer: 'Bonjour, Monsieur Koko'. Ela sempre se envolvia com tipos marginais, e agora está com um chef de cozinha invisível. Há algo estranho com ele, mas sua cozinha está produzindo grandes maravilhas. Eu trouxe um bom pedaço de pernil de cordeiro. Hixie ficou alegre por você ter gostado dos bolinhos."

Koko remexeu o traseiro, apertou os olhos e ronronou em falsete "Ik, ik".

Naquele momento a sra. Cobb apareceu na sala, inquiridora.

"Ouvi o senhor conversando e pensei que tivesse companhia, sr. Q. Eu vinha sugerir um pouco de chá e cookies. Acabei de assar merengues de pecã com manteiga e açúcar."

"Estou apenas tendo um diálogo inteligente com Koko, como recomendou Lori Bamba", explicou. "Sinto-me um idiota, mas ele parece se divertir. A propósito, aceitarei um pouco dessas coisas com manteiga e açúcar, mas faça café em vez de chá."

Ela saiu rapidamente para a cozinha, e Qwilleran continuou. "Bem, Koko, hoje foi a grande sessão de fotos no escritório do Picayune. Por consideração a Junior, espero que alguma coisa boa advenha disso. Eu me pergunto se os veteranos se mantiveram juntos o tempo suficiente para a fotografia ser tirada. Provavelmente tiveram de escorá-los com arame."

O dia passou sem a neve prevista pelo rádio, mas a temperatura estava caindo rapidamente. Qwilleran estava ouvindo a previsão do tempo à noite, bem tarde, quando Junior finalmente telefonou. Sua voz não tinha nada da excitação do dia anterior. Ele falou em tom baixo. Qwilleran pensou: alguma coisa saiu errada; a ruiva deu o bolo; decidiu que isso não dava uma reportagem; esqueceu a câmera; o plano ruiu; os veteranos tiveram ataques do coração.

"Você ouviu algum boato?", Junior perguntou.

"Sobre o quê?"

"Sobre qualquer coisa."

"Não sei sobre o que está falando, garoto. Você está sóbrio?"

"Gostaria de não estar", disse Junior de maneira mal-humorada. "Você se importa se eu for aí vê-lo? Sei que está tarde..."

"Certo, venha."

"Estou na casa de Jody. Tudo bem se eu a levar comigo?"

"Claro. O que vocês dois querem beber?"

'Taça café", disse Junior depois de hesitar um momento. "Se bebo quando estou mal, corro o risco de cortar os pulsos."

Qwilleran encheu uma garrafa térmica com café e já estava com uma bandeja esperando na biblioteca, quando o Jaguar vermelho entrou na garagem.

Tiny Jody, com seu cabelo louro e liso e grandes olhos azuis, parecia uma boneca de porcelana. Junior parecia um velho.

"Bom Deus! O que aconteceu com você?", perguntou Qwilleran. "Você está com uma aparência cadavérica, Junior." Apontando com a mão, encaminhou o jovem casal para a biblioteca.

Junior despencou em um sofá de couro. "Más notícias!"

"A sessão de fotos não foi realizada?"

"Oh, claro, mas de que vai adiantar? Fui um louco fazendo-a vir inutilmente para cá."

"Você está falando em enigmas, Junior. Fale claro!"

Com sua voz de menina, Jody disse: "Conte ao sr. Qwilleran sobre sua mãe, Juney."

O jovem jornalista olhou fixamente para Qwilleran durante um instante de silêncio antes de contar impulsivamente a notícia: "Ela está vendendo."

"Vendendo o quê?"

"Vendendo o Picayune."

Qwilleran franziu as sobrancelhas. "O que há para vender? Não há nada lá, a não ser... bem... uma ideia original."

"Esta é a pior parte", disse Junior. "A ideia e todos aqueles anos de tradição estão indo por água abaixo. Ela está vendendo o nome."

Qwilleran não conseguia acreditar nem entender. "Onde ela espera encontrar um comprador?"

Jody interrompeu. "Ela já conseguiu um comprador. A empresa XYZ."

"Eles querem fazer dele um jornal descartável de propaganda", disse Junior, parecendo que ia chorar. "Um daqueles tablóides, com anúncios baratos e tinta que solta nas mãos. Nenhuma matéria jornalística. Eu lhe digo, Qwill, é uma porrada."

"Ela tem o direito de vender o jornal? E o testamento de seu pai?"

"Ele deixou tudo para ela. Todos os bens estão assegurados juntos — como estão."

"Juney", disse a voz delicada, "conte ao sr. Qwilleran sobre seu sonho."

"Sim, tenho sonhado com meu pai todas as noites. Ele aparece em pé com seu avental de couro e o chapéu de papel de jornal, todo coberto de sangue, e está me dizendo alguma coisa que eu não consigo ouvir."

Qwilleran estava tentando organizar os pensamentos de Junior. "Isso aconteceu muito rápido, Junior. Seu pai foi enterrado ontem. É rápido demais para uma esposa desolada tomar uma decisão. Você disse isso a sua mãe?"

"O que adianta? Quando ela decide fazer alguma coisa, ela faz."

"Como sua irmã e seu irmão reagiram?"

"Meu irmão voltou para a Califórnia. Ele não se importa. Minha irmã acha que é um crime, mas ela não tem nenhuma influência. Não com nossa mãe! Você não a conhece."

"Foi ideia dela? Ou o pessoal XYZ fez uma oferta?"

Junior hesitou antes de responder. "Hum... Não sei."

"Por que ela está com essa pressa para vender?"

"Bem, o dinheiro, sabe como é... Ela precisa do dinheiro. Papai tinha uma porção de dívidas."

"Ele tinha um seguro de vida decente?"

"Havia uma apólice, mas nada grande. Vovó Gage pagou durante anos, exatamente para proteger minha mãe e a nós... A casa também está sendo vendida."

"A casa da fazenda?"

"Não é triste?", disse Jody. "Ela foi da família Goodwinter por uns cem anos."

Qwilleran disse: "Uma viúva nunca deveria tomar uma decisão rápida para mudar seu estilo de vida."

"Bem, a casa está hipotecada", disse Junior, "e de qualquer modo ela nunca quis uma casa grande. Ela gosta de condomínios. Ela quer se desfazer da casa antes que a neve caia — não quer ficar presa num lugar grande como o campo, durante o inverno."

"É compreensível."

"Ela está indo para um apartamento no Indian Village."

"Eu pensei que não havia casa desocupada por lá."

Jody disse: "Ela está mudando para a casa de um amigo", e Junior fez uma careta para ela.

"Ela consegue achar um comprador para a casa com essa rapidez — sem prejudicar a venda?", perguntou Qwilleran.

"Ela conseguiu um comprador."

"Quem? Você sabe quem é?"

"Herb Hackpole."

"Hackpole! O que um homem sozinho quer com uma casa grande como aquela?"

"Bem, ele está querendo um lugar no campo, você sabe, assim vai poder criar seus cães. Ele tem cães de caça. A propriedade não chega a ter nem um acre de terra, mas ele terá um bom cercado e dois celeiros."

"E a mobília? Você dizia que seus pais tinham uma porção de móveis herdados da família."

"Eles serão leiloados separadamente."

Jody disse: "Ao Juney prometeram a escrivaninha de seu bisavô, mas ela vai ser vendida também."

Em tom de defesa, Junior disse: "Se puderem fazer o leilão antes que a neve caia, vão atrair compradores de Ohio e de Illinois e conseguir pegar um preço maior."

"E as antigas prensas no celeiro?"

Junior encolheu os ombros. "Serão vendidas como ferro-velho. Eles calculam o preço por tonelada."

Os três caíram em três tipos de silêncio: Junior, deprimido; Jody, solidário; Qwilleran, aturdido. Senior Goodwinter tinha morrido na noite de sexta-feira, fora enterrado na segunda e hoje era terça-feira.

"Quando você ouviu sobre essas decisões drásticas, Junior?"

"Minha mãe telefonou para o escritório esta tarde — exatamente no meio da sessão de fotos. Eu não disse nada à fotógrafa. Você acha que eu deveria ter contado a ela? Poderia matar a reportagem — ou cortá-la. Ela foi embora há uma hora. Levei-a ao aeroporto."

De repente o bip de Junior tocou. "Oh, não!", disse ele. "É tudo o que eu queria! Um estúpido incêndio no celeiro. Leve Jody para casa, está bem Qwill?", ele falou por cima do ombro, saindo rapidamente. A sirene da entrada da cidade estava tocando alto. As sirenes da polícia gemiam.

Foi então que Qwilleran se deu conta de que tinha esquecido de servir o café. "Aceita uma xícara, Jody? Se já não estiver frio."

A jovem encolheu-se no sofá segurando a grande caneca em suas pequenas mãos. "Sinto muita pena do Juney. Disse a ele para ir Lá para Baixo, pegar um trabalho no Daily Fluxion e esquecer tudo isso daqui."

"Ninguém deveria agir por impulso numa hora como essa", aconselhou Qwilleran.

"Talvez ele pudesse conseguir um mandado para impedi-la de vender — ou adiar até que ela pense direito."

"Não funcionará. Teria de ser comprovado que ela está mentalmente incapaz. A propriedade é dela agora. Ela pode fazer tudo o que quiser."

Naquele momento, a sra. Cobb, de roupão e chinelos, fez uma abrupta aparição no vão da porta. "Olhem pela janela!", disse alarmada. "Há um incêndio na Rua Principal! Parece que o pavilhão de caça está pegando fogo!"

Qwilleran e Jody deram um salto, e todos os três correram para as janelas da frente.

"É o pavilhão do Herb", disse a sra. Cobb. "Esta é a noite da reunião deles. Pode ser que haja trinta ou quarenta pessoas na casa."

"Vou lá ver", disse Qwilleran. "Venha, Jody, e depois eu a levarei para casa. Por ali... pela porta dos fundos... o carro está na garagem."

No centro da cidade, a Rua Principal estava cheia de clarões de luzes azuis e vermelhas. O tráfego foi desviado e os caminhões dos bombeiros estacionaram em uma curva, apontando seus faróis para o centro do quarteirão. As bombas de incêndio estavam funcionando e as mangueiras espalhavam água no telhado do pavilhão de três andares. Atrás daquele prédio havia um reluzir vermelho-alaranjado com chamas que saltavam para cima — depois um assobio de vapor — depois uma nuvem de fumaça.

Qwilleram estacionou, e ele e Jody andaram até mais perto.

"É o Picayunel", ele gritou. "Todo o prédio está em chamas!"

Jody começou a chorar. "Pobre Juney!", e continuou dizendo: "Pobre Juney!"

"Eles estão jogando água no pavilhão para que o fogo não se espalhe", disse Qwilleran. "No correio também. Receio que as dependências do jornal sejam atingidas."

"Acho que era isso o que o pai dele estava tentando dizer no sonho", disse. "Você consegue ver o Juney?"

"Não consigo reconhecer ninguém naqueles capacetes e capas de borracha. Até as faces estão pretas. Trabalho duro! O de capacete branco é o chefe dos bombeiros, isso é tudo que posso dizer."

"Espero que Juney não faça uma loucura, como correr para dentro do prédio para tentar salvar algo."

"Eles são treinados para não correrem riscos tolos", Qwilleran garantiu a ela.

"Mas ele é tão impulsivo — e sentimental. É por isso que está tão chateado... quero dizer, com o fato de sua mãe vender o Pic." Um ar repentino de horror atravessou sua face. "Oh não! William Allen está lá. Eles sempre o trancam durante a noite. Estou ficando com náusea..."

"Calma, Jody! Ele pode ter escapado. Os gatos são inteligentes... Venha. Não podemos permanecer aqui. Está esfriando e você está tremendo. Os homens vão trabalhar durante horas, limpando e procurando focos de incêndio. Levarei você de carro para casa. Você ficará bem?"

"Sim. Vou esperar até Juney chegar em casa. Ele está morando comigo, desde que o pai morreu, sabia?"

 

Na mansão K, Qwilleran encontrou a sra. Cobb à mesa da cozinha, ainda com seu roupão cor-de-rosa, tomando chocolate e parecendo preocupada. "Não há notícias no rádio", disse ansiosamente.

"Não foi o pavilhão de caça", contou-lhe Qwilleran. "Foi o prédio do Picayune. Está arrasado. Mais de um século de publicações destruído em meia hora."

"O senhor viu Herb?" Ela serviu uma xícara de chocolate a Qwilleran. Não era sua bebida favorita.

"Não, mas tenho certeza de que ele estava lá, com um machado."

"Ele não deveria estar fazendo esse trabalho extenuante. Tem mais de cinquenta, o senhor sabe, e a maioria dos bombeiros é muito mais jovem."

"Você parece muito preocupada com ele, sra. Cobb." Qwill olhou para ela com ar de indagação.

A governanta baixou os olhos e sorriu constrangida. "Bem, admito que estou apaixonada. Nós sempre temos bons momentos juntos, e ele está começando a dar indiretas."

"Sobre casamento?", o desânimo de Qwilleran se tornou evidente em sua pergunta brusca. Como governanta ela era uma jóia — muito valiosa para ser perdida. Ela mimara demais ele e os siameses com sua comida.

"Mas eu não deixaria de trabalhar", a sra. Cobb apressou-se em dizer. "Sempre trabalhei e este é o trabalho mais maravilhoso que já tive. É um sonho transformado em realidade. Estou falando sério!"

"E você é perfeita para o posto. Não se precipite em nada, sra. Cobb."

"Não o farei", ela prometeu. "Ele não falou nada abertamente e ainda não fez o pedido, portanto, não diga nada."

Ela encheu novamente sua xícara de chocolate e levou-a para o andar de cima, dizendo um cansado boa-noite.

Qwilleran fez sua vistoria noturna da casa, antes de ligar o alarme contra roubo e de se assegurar que as portas e janelas estavam fechadas. Então retirou-se para seu alojamento acima da garagem, levando uma cesta de piquenique. Indistintos sons vinham da cesta, que balançava de um lado para o outro, vigorosamente, enquanto ele a carregava.

A garagem para quatro carros fora no passado um abrigo para carruagem, construída com pedras, o mesmo material que fizera a grandiosidade da casa principal. Havia quatro portas em forma de arcos que davam para os estábulos, uma cúpula com um cata-vento no telhado e uma elaborada braçadeira de lanternas de carruagem em cada canto da construção.

No andar de cima, o interior foi reformado para se adaptar ao gosto de Qwilleran — contemporâneo e confortável em suaves tons de bege, ferrugem e marrom. Era tranquilo e simples, um escape da pompa e preciosidade da mansão K.

Na sala havia poltronas, boa iluminação para leitura, um aparelho de som e um pequeno bar em que Qwilleran preparava as bebidas para os convidados. Ele próprio não ingeria bebidas alcoólicas desde a vez que se sentira mal em uma plataforma do metrô em Nova York, uma experiência que ficou para sempre como um alerta. Nem tinha mais andado de metrô.

Os outros cômodos eram seu escritório de trabalho, seu quarto e o quarto dos gatos, acarpetado e mobiliado com almofadas, cestas, pilares para arranhar, poleiros para subir e uma grelha turca que lhes servia como vaso sanitário. Havia também uma prateleira de livros de segunda mão comprados no bazar do hospital por dez centavos cada. Havia livros de iniciação à álgebra e gramática inglesa simplificada. Havia uma coleção de sermões famosos. Outros títulos eram The Burning of Rome, Elsie Dinsmore e Eneida, de Virgílio. Koko podia empurrá-los da prateleira o quanto quisesse.

Qwilleran abriu a cesta de vime no quarto dos gatos e convidou os dois relutantes siameses a pular para fora. Por que, ele se perguntava, eles nunca queriam entrar na cesta? E, quando estavam nela, nunca queriam sair? Koko e Yum Yum por fim saíram cautelosamente, uma atuação que repetiam todas as noites durante o último ano, sondando o terreno e farejando a mobília como se suspeitassem que o cômodo tivesse microfones secretos ou uma armadilha.

"Gatos!", disse Qwilleran em voz alta. "Quem pode entendê-los?"

Ele deixou os siameses em suas ocupações peculiares — um lambendo o outro, se torcendo, se perseguindo, mordendo as orelhas e farejando indiscretamente — enquanto sintonizava as notícias da meia-noite em sua sala de estar.

"Os escritórios e prensas do Pickax Picayune foram destruídos pelo fogo esta noite. Houve perda total do prédio, de acordo com o chefe dos bombeiros, Bruce Scott. Vinte e cinco brigadas de fogo, três caminhões pipa e duas mangueiras de incêndio de Pickax e comunidades vizinhas responderam ao alarme e ainda estão em cena. Não há informações sobre feridos. Em outro lugar no condado, o Conselho da Aldeia Mooseville votou para gastar quinhentos dólares nas decorações do Natal."

Ele desligou o rádio, com exasperação. As mesmas notícias de quinze segundos seriam repetidas de hora em hora sem outros detalhes. Aos ouvintes não seria contado como o fogo começara, quem o anunciou, que arquivos e equipamentos foram destruídos, a idade do prédio, sua construção, os problemas encontrados para combater o fogo, precauções tomadas, valor estimado das perdas, cobertura do seguro.

Sem dúvida, o condado precisava de um jornal. O destino do Picayune era lamentável, mas era preciso ser realista. O Pic havia sido uma relíquia da era do cavalo e da charrete. Foi o sentimentalismo e a autocomplacência de Senior que faliram seu jornal. A tipografia era sua obsessão, sua razão de viver, para citar Junior.

Razão de viver? Qwilleran concentrou-se e alisou seu bigode com as pontas dos dedos. Se o jornal tinha estado de fato à beira da falência, podia o acidente de Senior ter sido um suicídio? A Velha Ponte de Pranchas seria um lugar ideal para um "acidente" fatal. Era bem conhecida como perigosa. Senior era um homem sensato, cuidadoso — não um dos bêbados ou jovens arruaceiros das noites de sexta-feira que normalmente sofriam desastres na ponte.

Qwilleran sentiu uma sensação de formigamento no lábio superior, e percebeu que sua suspeita era válida. Havia alguma coisa estranha em seu lábio superior. Um formigamento, um tremor ou simplesmente uma vaga inquietação nas raízes de seu bigode avisavam-no quando ele estava na pista certa. E agora ele estava recebendo o sinal.

Se Senior tinha pretendido acabar com a própria vida, representar um "acidente" evitaria a cláusula de suicídio, desde que a apólice do seguro existisse há bastante tempo. Junior não mencionara que a avó Gage havia pago o prêmio durante anos?

Um "acidente" podia ter indenização dupla para a viúva, ou até tripla, embora fosse arriscado: haveria uma investigação completa. As companhias de seguro não gostavam de ser enganadas.

Talvez Senior tivesse medo de alguma coisa pior do que perder o jornal. Ele havia tomado medidas desesperadas para manter o Picayune à tona — vendendo a terra cultivada, hipotecando a casa da fazenda, mendigando para sua sogra. Seu desespero levou-o a alguma coisa ilegal? Ele temia alguma revelação? E o homem de capa preta? O que ele estava fazendo em Pickax? A morte de Senior ocorrera apenas umas horas antes de o estranho chegar no avião. Senior sabia que ele estava vindo? E por que o visitante estava rondando? Havia outros envolvidos?

E agora os escritórios do Picayune tinham sido destruídos. Era um momento curioso para um desastre como esse. Havia alguma coisa no porão do edifício ao lado das prensas e dos arquivos de exemplares antigos? Era uma evidência incriminadora que tinha de ser eliminada? Quem sabia o que havia? E quem jogou o fósforo?

Qwilleran despertou de seus devaneios e flexionou a perna que estava prestes a adormecer. Ele estava tendo algumas ideias estranhas. O que a sra. Cobb havia colocado naquele chocolate?

Do quarto dos gatos, embaixo do corredor, vinha um som abafado, mas reconhecível: plunk! Foi seguido por outro plunk — então, outra vez, plunk plunk plunk em rápida sucessão. Era o som dos livros caindo no piso acarpetado. Koko estava derrubando sua coleção particular.

 

QUARTA-FEIRA, 13 DE NOVEMBRO. 

"Continua frio, com céu encoberto e caída de neve, acumulando sete a dez centímetros."

"Encoberto!", Qwilleran berrava para o rádio em sua escrivaninha. "Por que vocês não olham pela janela? O sol está brilhando como no dia quatro de julho!"

Ele voltou sua atenção para o Daily Fluxion da terça-feira, que havia dado um bom espaço para a história do Pickax Picayune. Não foi inteiramente exato, mas as cidades pequenas ficavam alegres com qualquer atenção da imprensa metropolitana. Depois ele tentou ler sobre os desastres, terrorismo, crime e corrupção Lá de Baixo, mas sua mente continuava sendo levada de volta ao Condado de Moose.

Com neve ou sem neve, ele queria sair dirigindo para o campo, observar a Velha Ponte de Pranchas, visitar a casa da fazenda de Goodwinter, encontrar a viúva. Levaria flores, apresentaria suas condolências e faria umas perguntas corteses. Era uma abordagem com a qual ele sempre havia lidado bem para conseguir notícias. Olhos tristes e bigode caído davam a ele uma postura lúgubre que passava como profunda simpatia.

Na lista telefônica do condado, ele encontrou Senior Good-winter na Alameda do Riacho Negro, em North Middle Hummock. No mapa do condado ele não conseguia encontrar nem um nem outro. Encontrou Middle Hummock e West Middle Hummock. Encontrou Mooseville, Smith's Folly, Squunk Corners, Chipmunk e Brrr, que não era um erro de impressão; essa cidade era o ponto mais frio do condado. Mas North Middle Hummock não era encontrado. Ele levou seu problema para o sr. O'Dell, que sabia todas as respostas.

A sra. Fulgrove e o sr. O'Dell eram empregados diaristas na mansão K. A mulher esfregava e polia seis dias por semana com fervor quase religioso; o empregado tratava dos trabalhos pesados. O sr. O'Dell havia sido bedel de uma escola durante quarenta anos e cuidara de centenas de estudantes adolescentes — respondendo a suas perguntas, resolvendo seus problemas e emprestando-lhes dinheiro para o almoço. "Bedel" era um título respeitado em Pickax, e se algum dia o sr. O'Dell decidisse se candidatar ao cargo de prefeito, seria eleito por unanimidade. Agora, com seu cabelo grisalho, face corada e expressão afável, supervisionava o patrimônio de Klingenschoen tão naturalmente quanto supervisionara a educação dos jovens de Pickax.

Qwilleran encontrou-o lubrificando as dobradiças da porta do armário de vassouras. "O senhor sabe a localização da casa da fazenda de Senior Goodwinter, sr. O'Dell? Eu não acho North Middle Hummock no mapa."

Com voz cadenciada ele respondeu: "O próprio diabo não poderia encontrar um lugar daqueles no mapa, penso eu, pois é uma cidade fantasma há cinquenta anos, mas o senhor poderá encontrá-la, pois vou lhe dizer como chegar lá. Siga para leste, para além da mina Buckshot, onde o vento assobia no poço da mina mesmo em dia sem vento, e tem um gemido que vem dos fundos da mina. Quando você chegar na Velha Ponte de Pranchas, seja prudente, pois as tábuas rangem como os dentes do próprio diabo. Observe uma árvore solitária numa colina alta — a árvore da forca, eles costumam chamá-la — e então você estará chegando na igreja em que eu e minha mulher fomos casados pelo bom padre Ryan há quarenta e cinco anos, que Deus o tenha! E, quando você chegar a um monte de cascalho, isto é tudo o que restou de North Middle Hummock."

"Acho que estamos esquentando", disse Qwilleran.

"Esquentando, é? Ainda há um caminho a seguir — pouco mais de três quilômetros até você colocar os olhos na cerca branca da fazenda do capitão Fugtree. Depois do prado de ovelhas, não dê atenção para o letreiro que diz Fugtree Sideroad, pois é a Alameda do Riacho Negro, e no final dela você verá a casa de Goodwinter. Ela é cinza com uma porta amarela."

Enquanto Qwilleran partia para North Middle Hummock, que não existia, e para a Alameda do Riacho Negro, que era chamada de alguma outra coisa, ele se admirava com a informação programada nas cabeças dos que tinham nascido no Condado de Moose. Se o sr. O'Dell conseguia descrever o caminho de forma tão detalhada, Senior Goodwinter, que dirigira diariamente na estrada tortuosa, certamente conhecia todas as sacudidelas da estrada, todos os buracos, todos os remendos de cascalhos soltos. Não era provável que Senior tivesse destruído seu carro acidentalmente.

Qwilleran não ouviu nenhum assobio ou gemido na mina de Buckshot, mas a Velha Ponte de Pranchas de fato rangeu de forma agourenta. Embora os parapeitos fossem construídos de pedra, o leito da ponte era uma tira de pranchas soltas, uma ao lado da outra. A "árvore da forca" era bem denominada — um antigo carvalho cheio de nós formando uma grotesca silhueta no céu. Tudo o mais se confirmava: a igreja, o cascalho, a cerca branca, o prado de ovelhas.

A casa da fazenda no final da Alameda do Riacho Negro era uma incoerente estrutura com desbotadas ripas cinzentas, em uma área coberta de folhas de bordo douradas e vermelhas. Arbustos de crisântemos ainda estavam florescendo teimosamente em torno do degrau da porta.

Qwilleran ergueu uma aldrava de latão com a forma da letra grega pi e deixou-a cair na porta amarela. Tinha se arriscado a fazer a visita inesperada, sem hora marcada, à moda do campo, e quando a porta se abriu ele foi saudado sem surpresa por uma jovem alegre, com camisa xadrez.

"Sou Jim Qwilleran", disse ele. "Não pude comparecer ao funeral, mas trouxe algumas flores para a sra. Goodwinter."

"Eu conheço o senhor!", exclamou ela. "Eu via sua foto no Daily Fluxion, antes de me mudar para Montana. Entre!" Ela se virou e gritou para o alto da escadaria. "Mãe! Você tem companhia!"

A mulher que desceu as escadas não era nenhuma viúva perturbada, com olhos vermelhos de choro e insônia; era um tipo robusto, com uma roupa vermelha de ginástica, olhos brilhantes e bochechas cor-de-rosa, como se tivesse acabado de chegar de um cooper.

"Sr. Qwilleran!", ela gritou, estendendo as mãos. "Que bom receber sua visita surpresa! Nós todos lemos sua coluna no Fluxion e estamos contentes com sua chegada aqui."

Ele entregou as flores. "Com meus cumprimentos e simpatia, sra. Goodwinter."

"Por favor, me chame de Gritty. Todos fazem isso", disse ela. "E obrigada por sua gentileza. Rosas! Eu adoro rosas! Vamos para a sala de estar. Todos os outros lugares estão uma bagunça por causa do inventário... Pug, querida, ponha essas adoráveis flores em um vaso, sim? Você é um amor."

A centenária casa da fazenda tinha muitos cômodos pequenos com tábuas de assoalho largas e janelas com alguns dos vidros originais. Os móveis que não combinavam entre si eram obviamente herdados, mas a decoração fora cuidadosamente escolhida: ladrilhos azul-e-branco, cortinas de algodão azul-e-branco e porcelana azul-e-branca na prateleira. Antigos utensílios de cozinha estavam pendurados em volta da grande lareira.

Gritty disse: "Estamos esperando que se associe ao Country Club, sr. Qwilleran."

"Não tenho me associado a nada", disse ele,"porque estou me concentrando em escrever um livro."

"Não sobre Pickax, espero", disse a viúva com uma risada. "Seria proibido em Boston... Pug, querida, traga-nos um drinque, pode ser?... O que o senhor vai beber, sr. Qwilleran?"

"Refrigerante de gengibre, club soda, algo assim. E todos me chamam Qwill."

"O que acha de coca-cola com um pouco de rum?" Ela o estava tentando com um olhar maroto. "Alegre-se, Qwill!"

"Obrigado, mas tenho passado sem álcool há vários anos."

"Bem, você está fazendo alguma coisa certa! Você parece maravilhosamente saudável." Ela o avaliou da cabeça aos pés. "Você é feliz no Condado de Moose?"

"Estou me acostumando — o ar fresco, o estilo de vida relaxado, o povo amigável", disse ele. "Deve ser um conforto para você, nesse período triste, ter tantos amigos e parentes."

"Os parentes, você pode ficar com eles!", disse ela, distraidamente. "Mas, sim, eu tenho sorte de ter bons amigos."

A filha trouxe uma bandeja de bebidas e Qwilleran ergueu seu copo. "Com esperança no futuro!"

"Você está bem certo!", disse sua anfitriã, brandindo um drinque duplo. "Você fica para o almoço, Qwill? Fiz uma torta de presunto e espinafre com as sobras da comida do funeral. Pug, querida, veja se está pronta para sair do forno. Espete uma faca nela."

A visita não foi o que Qwilleran havia previsto. Ele foi solicitado a mudar abruptamente das condolências para um bate-papo social.

"Você tem uma casa bonita", observou ele.

"Pode parecer boa", disse Gritty, "mas é um... bem, você sabe o quê. Estou cansada de pisos que se inclinam, portas que rangem, fossas sépticas que refluem e escadas com degraus estreitos. Deus! Eles deviam ter pés pequenos, antigamente. E bundas pequenas! Veja essas cadeiras Windsor! Estou vendendo a casa e me mudando para um apartamento em Indian Village — perto do campo de golfe."

Pug disse: "Minha mãe é campeã de golfe. Ela vence todos os torneios."

"O que fará com suas antiguidades, quando você se mudar?", perguntou Qwilleran inocentemente.

"Vou vendê-las em leilão. Você gosta de leilões? Eles são o maior passatempo do Condado de Moose — junto com os jantares sociais e a bisbilhotice."

"Oh, mamãe!", protestou Pug. Ela se virou para Qwilleran. "Aquela grande escrivaninha com tampa giratória pertencia a meu bisavô. Ele fundou o Picayune."

"Ela parece um esquife com tampa giratória", disse sua mãe. "Eu estive condenada a viver com antiguidades toda a minha vida. Jamais gostei delas. Loucura, não é?"

O almoço foi servido em uma mesa de pinho na cozinha, e a torta chegou em pratos azul-e-branco.

Gritty disse: "Espero que esta seja a última refeição que eu coma na louça azul. Ela faz os alimentos parecerem horrorosos, mas esse conjunto passou por todas as gerações da família de meu marido — centenas de peças que se recusam a quebrar."

"Fiquei horrorizado", disse Qwilleran, "quando os escritórios do Picayune pegaram fogo. Estava esperando que o jornal continuasse a ser publicado sob a direção de Junior."

"Porcaria de Picayune! Eles deviam ter desligado as tomadas há trinta anos."

"Mas é um caso único nos anais do jornalismo. Junior poderia ter prosseguido com a tradição, mesmo publicando o jornal com métodos modernos."

"Não", disse ela. "Aquele menino casará com sua anã, e os dois vão deixar Pickax e vão trabalhar Lá Embaixo. Provavelmente em algo secundário." E acrescentou com uma risada. "Junior é o cabeça-dura da ninhada."

"Oh, mamãe, não diga essas coisas", protestou Pug. E dirigindo-se a Qwilleran: "Minha mãe é a humorista da família".

"Isso esconde meu coração partido", disse a viúva com um desembaraçado encolher de ombros.

"O que acontecerá ao prédio do Picayune agora? Eles foram capazes de salvar alguma coisa?"

"Tudo se foi", disse ela, sem aparente pesar. "O prédio está destruído, mas as paredes de pedra estão perfeitas. Elas são muito grossas. Daria um bom mini-shopping com seis ou oito lojas, mas teremos de esperar e ver o que conseguimos com o seguro."

Durante toda a visita, os pensamentos estavam correndo na mente de Qwilleran: tudo estava sendo feito muito rapidamente; tudo parecia muito bem planejado. Quanto à viúva, ou estava enfrentando aquilo com coragem ou era extremamente sem coração. Ele estava mais propenso a considerar a segunda hipótese.

Ao chegar em casa, ele telefonou para a clínica dentária do dr. Zoller e falou com a jovem recepcionista que tinha dentes com coroas maravilhosamente bem colocadas.

"Aqui é Jim Qwilleran, Pam. Eu poderia conseguir um horário esta tarde para fazer uma limpeza em meus dentes?"

"Um momento. Deixe-me ver sua ficha... O senhor esteve aqui em julho, sr. Qwill. Não precisa vir até janeiro."

"É uma emergência. Tenho tomado muito chá."

"Oh... Bem, nesse caso o senhor está com sorte. Jody acabou de ter uma consulta cancelada. O senhor pode vir neste instante?"

"Em três minutos e vinte segundos." Em Pickax nunca ninguém estava a mais do que cinco minutos de qualquer lugar.

A clínica ocupava um estábulo de pedras reformado que, uma vez, nos tempos do cavalo e da carruagem, havia sido um celeiro atrás do velho Hotel de Pickax. Jody saudou Qwilleran ansiosamente. Com seu jaleco branco comprido, ela parecia menor ainda.

"Eu estava tentando encontrar você!", disse. "Junior quer que saiba que ele está indo Lá para Baixo para encontrar o editor que lhe prometeu um emprego. Saiu ao meio-dia."

"Bem, é o fim do velho Picayune", disse Qwilleran.

"Coloque seu cinto de segurança. Você vai fazer uma viagem." Ela ajustou a cadeira de dentista no seu nível mais baixo. "Sua cabeça está confortável?"

"Quanto tempo Junior ficou no local do incêndio?" "Ele chegou às cinco e meia esta manhã, e estava arrasado! Eles tiveram de ficar alertas aos focos de incêndio, você pode imaginar... Agora, abra bem a boca."

"Salvaram alguma coisa?", perguntou rapidamente, antes de obedecer.

"Acho que não. Os papéis que não estavam queimados estavam ensopados. Assim que apagaram o fogo, deixaram Junior entrar com uma máscara de oxigênio, para ver se conseguia encontrar uma caixa à prova de fogo que pertencia a seu pai. Mas a fumaça estava muito espessa. Ele não conseguiu ver nada... Ops! Dei uma picada em você?"

"Arrh!", respondeu Qwilleran com a boca cheia de instrumentos.

Os dedos pequeninos de Jody tinham um toque delicado, mas suas mãos estavam tremendo depois de uma noite sem dormir.

"Junior diz que eles não sabem o que causou o incêndio. Ele não deixou ninguém fumar quando estavam fotografando... Este é um ponto sensível?"

"Arrh arrh."

"Pobre Juney! Ele estava moído — absolutamente moído! Você sabe, ele realmente não é forte o bastante para ser bombeiro, mas o chefe deixou-o pegar a mangueira — com três homens de reserva em vez de dois. Isso fez Juney se sentir menos desamparado... Agora pode enxaguar."

"O prédio tem um bom seguro?"

"Só um pouco mais aberta, por favor! Isto!... Tem algum seguro, mas a maior parte do que estava lá é de valor inestimável, porque é antigo e insubstituível... Agora, enxágue."

"É uma pena que as velhas edições não estivessem em microfilmes e guardadas em algum lugar seguro."

"Juney disse que isso ficaria muito caro."

"Quem informou sobre o incêndio?" Outra pergunta rápida entre os enxágues.

"Algumas crianças que cruzavam a Rua Principal. Elas viram fumaça e quando os caminhões chegaram, o prédio todo estava em chamas... Isto está machucando você?"

"Arrh arrh."

Ela observou: "Assim, imagino que Juney arranjará um emprego no Fluxion e sua mãe venderá tudo". Ela tirou o babador. "Você, hein! Tem passado fio dental após todas as refeições como o dr. Zoller mandou?"

"Informe ao dr. Zoller", disse Qwilleran, "que não só tenho passado fio dental após todas as refeições, como o passo também entre os pratos. Nos restaurantes sou conhecido como o Louco Passador de Fio Dental."

Da clínica dentária ele foi para a Scottie's Men's Shop. Qwilleran, cuja mãe tinha sido da família Mackintosh, gostava muito dos Scot, e o comerciante tinha um sotaque irlandês que usava para bons clientes.

Durante toda sua carreira, Qwilleran nunca se importou muito com roupas, satisfazendo-se com um uniforme sem graça constituído por paletó, calças, camisa e gravata. Havia alguma coisa relacionada ao estilo de vida do norte do país, entretanto, que instigava seu interesse por camisas xadrez de lã escocesa, suéteres da Islândia, casacão com capuz, chapéus de soldado de cavalaria, botas grandes e mocassim de camurça. E quanto mais Scottie arrastava seus erres, mais Qwilleran comprava.

Ao entrar na loja, Qwilleran disse: "O que aconteceu com as quatro toneladas de neve que supúnhamos cair hoje?"

"Tudo bobagem", disse Scottie, sacudindo sua cabeleira grisalha. "Não acrrredito em uma palavrrra que dizem no rrrádio. Qualquer pessoa pode conseguir melhores informações com as lagartas."

"Você está com cara de quem perdeu o sono na noite passada."

"Sim, foi uma noite ruim, muito ruim", disse o chefe dos bombeiros voluntários. "Não cheguei em casa antes das seis da manhã. Chipmunk e Kennebeck enviaram pessoas treinadas para ajudar. Não conseguiríamos sem eles — ou sem nossas mulheres, Deus as abençoe. Fizeram chegar café e sanduíches a noite inteira."

"Como Junior aguentou?"

"Foi duro para o rapaz. Muitas vezes eu estive no escritório do jornal para passar o tempo com seu velho pai. Era uma armadilha para incêndio! Toneladas de jornal! Divisórias de madeira velha — seca como isca — e o velho piso de madeira!" Scottie sacudiu a cabeça outra vez.

"Alguma ideia de como começou?"

"Não poderia dizer. Estiveram fotografando, e um cigarro pode ter queimado de forma descuidada. Havia um solvente inflamável que sempre usavam para limpar as velhas prensas e, quando foi atingido, espalhou rapidamente." "Alguma suspeita de incêndio criminoso?"

"Nenhuma evidência de trapaça. A meu ver, não há nenhuma razão para falar com o chefe de polícia."

"Mas você salvou o pavilhão de caça e o correio, Scottie."

"Sim, de fato nós os salvamos, mas de algum modo eles foram atingidos."

No caminho de casa, Qwilleran parou na biblioteca pública para examinar a sala de leitura. O homem que dizia ser historiador não estava lá, e as funcionárias não o viam desde a manhã de terça-feira. Polly Duncan também não estava lá, e as funcionárias disseram que ela não voltaria naquele dia.

Para o jantar, a sra. Cobb serviu strogonoff de carne e talharim com sementes de papoula; após comer duas porções e um prato de torta de abóbora, Qwilleran levou alguns jornais de outras cidades e duas revistas novas para a biblioteca. Puxou as cortinas e acendeu um fósforo no hábil arranjo de lenhas, gravetos e rolos de papel do sr. O'Dell. Então esparramou-se em seu sofá favorito e apoiou os pés na otomana.

Os siameses rapidamente se apresentaram. Eles sabiam que uma lareira estava sendo acesa antes que o aroma silvestre circulasse, antes do crepitar dos gravetos, e até antes do fósforo ser riscado. Depois de se aquecer no calor do fogo, Koko começou a cheirar livros e Yum Yum pulou no colo de Qwilleran, girando três vezes antes de se sentar.

A fêmea estava desenvolvendo uma afeição excessiva pelo homem. Era descaradamente possessiva em relação a seu colo. Ela o contemplava com olhos de adoração, ronronava quando ele olhava para longe dela, e achava que a melhor coisa do mundo era subir e tocar o bigode dele com uma pata aveludada. Na verdade, ele a chamava de sua pequena namorada. Havia mencionado isso a Lori Bamba, a jovem que sabia tudo sobre gatos.

"Eles se dirigem para o sexo oposto", explicou Lori, "e sabem quem é quem. É difícil explicar."

 

Yum Yum estava cochilando em seu colo, a própria imagem de contentamento felino, quando Qwilleran ouviu o primeiro plunk. Não havia nenhum sentido em repreender Koko. Entrava por um ouvido e saía pelo outro. Quando repreendido no passado ele não apenas tinha ficado ressentido, como encontrara seu próprio caminho de retaliação. Em qualquer discussão, Qwilleran aprendera, um siamês tem sempre a última palavra.

Assim, ele simplesmente observou, transferiu a adormecida carga de seu colo para a otomana e foi ver que estrago tinha sido feito. Como esperava, era Shakespeare outra vez. A sra. Fulgrove havia limpado as encadernações de couro de porco com uma mistura de lanolina e óleo para preservar o couro, e os dois ingredientes eram produtos animais. Mas qualquer que fosse a explicação para o especial interesse de Koko por esses livros, dois deles estavam agora no chão, e por acaso eram as peças favoritas de Qwilleran: Macbeth e Júlio César.

Ele folheou o último até encontrar uma passagem de que gostava: a cena da conspiração, na qual os homens que planejam assassinar César se encontram no escuro, escondendo suas faces com as capas. "Inclinemo-nos e banhemos nossas mãos até os cotovelos no sangue de César e com ele tinjamos nossas espadas!"

Conspiração, refletiu Qwilleran, era o artifício favorito de Shakespeare para estabelecer conflito, criando suspense e ganhando as emoções da plateia. Em Macbeth havia a conspiração para matar o velho rei. "Quem pensaria que o velho homem tinha tanto sangue?"

Um tremor no lábio superior de Qwilleran alertou-o. Seria a dupla tragédia do Picayune o resultado de uma conspiração? Ele não tinha pista alguma — apenas a sensação nas raízes de seu bigode. Não tinha nenhuma pista e nenhum caminho lógico para investigar.

Anos antes, como repórter policial premiado, ele havia desenvolvido uma rede de informantes anônimos. Mas no Condado de Moose ele não tinha nenhuma fonte. Embora os nativos fossem notórios fofoqueiros, evitavam fofocar com estranhos, e Qwilleran era um estranho mesmo depois de dezoito meses no meio deles.

Ele deu uma olhada no calendário. Era quarta-feira, 13 de novembro. Na noite de 14 de novembro, ele teria setenta e cinco comprovados fofoqueiros sob seu teto — todos ótimas pessoas, tomando chá e conversando entre elas.

"Certo, velho detetive", ele disse a Koko. "Amanhã à noite cultivaremos alguns informantes."

 

QUINTA-FEIRA, 14 DE NOVEMBRO. 

O clima estava cooperando com o maior evento social da estação — não muito frio, sem muito vento, sem muita névoa. Na noite de terça-feira, setenta e cinco membros da Sociedade Histórica e do Clube dos Veteranos veriam a mansão Klingenschoen pela primeira vez, e a residência tornar-se-ia oficialmente o Museu Klingenschoen.

Desde que herdara o pretensioso edifício, Qwilleran o considerava uma residência absurda para um solteiro e dois gatos. Ele propôs, portanto — com a cooperação da Sociedade Histórica —, abrir a mansão para o público, como museu, duas ou três tardes por semana. Quando o prefeito anunciou a notícia em um encontro do conselho, os cidadãos de Pickax ficaram exultantes e os convidados para a inauguração se sentiram especialmente honrados.

O dia de Qwilleran começou como sempre em seu apartamento da garagem. Sintonizou a informação sobre o tempo, tomou uma xícara de café instantâneo, vestiu-se e desceu b corredor para o quarto dos gatos.

"Expresso Especial saindo agora pela pista quatro", anunciou, abrindo a cesta de vime.

Os siameses sentaram-se, focinho a focinho, no peitoril da janela desfrutando a luz fina do brilho do sol de novembro e ignorando o convite.

"Café da manhã sendo servido agora no vagão-restaurante."

Não houve resposta alguma, nem mesmo o tremelique de um bigode de gato. Com impaciência, Qwilleran pegou um animal em cada mão e os depositou sem cerimônia na cesta.

"Se vocês agem como gatos, serão tratados como gatos", explicou ele com voz moderada. "Ajam como seres corteses, cooperativos, inteligentes, e serão tratados de acordo."

Houve sons de briga e de rosnado dentro da cesta enquanto ele a carregava pelo pátio até a casa principal.

Era ideia da sra. Cobb que os siameses deveriam passar seus dias entre os tapetes orientais, tapeçarias francesas e os velhos livros raros da mansão. "Quando você tem antiguidades valiosas", explicou ela, "você tem quatro coisas a temer: roubo, fogo, calor seco e ratos."

Diante de sua recomendação, Qwilleran instalou controles de umidade, um alarme contra assaltantes, detectores de fumaça e uma linha direta com a estação de polícia e com o Corpo de Bombeiros. Esperava que Koko e Yum Yum tratassem dos outros perigos.

Quando Qwilleran chegou na porta dos fundos com a cesta de vime, a governanta gritou da cozinha: "O senhor gostaria de uma omelete de cogumelos, sr. Q?"

"Parece-me ótimo. Vou dar comida para os gatos. O que há na geladeira?"

"Fígados de galinha refogados. Koko provavelmente vai preferi-los aquecidos com um pouco de strogonoff de carne de ontem à noite. Yum Yum não é exigente."

Depois que terminou seu próprio café da manhã — uma omelete de três ovos com dois bolinhos ingleses tostados e um pouco de geleia de amora selvagem — ele disse: "Delicioso! O melhor omelete de cogumelos sem cogumelos que já comi".

"Oh, meu caro!" A governanta pôs as mãos no rosto com vergonha. "Esqueci o recheio? Estou tão excitada com a noite de hoje, que não sei se estou vindo ou indo. O senhor não está excitado, sr. Q?"

"Estou levemente curioso", disse ele.

"Oh, sr. Q, o senhor deve estar brincando! O senhor trabalhou nisso durante um ano!"

Era verdade. Para preparar a mansão para uso público, o sótão tinha sido revestido de lambris e mobiliado como uma sala de reunião. Fizeram um estacionamento pavimentado atrás da casa. Engenheiros Lá de Baixo instalaram um elevador. Foi exigida uma saída nos fundos para o caso de incêndio. Para acesso livre de obstáculos, houve adaptações como uma rampa na entrada dos fundos, um novo banheiro no piso principal, e controle dos elevadores na altura de cadeiras de rodas.

"Qual a ordem dos eventos hoje à noite?", Qwilleran perguntou à sra. Cobb. Ela havia presidido a comissão organizadora da Sociedade Histórica.

"Os membros começarão a chegar às sete horas para uma visita guiada ao museu. A sra. Exbridge treinou dezoito guias."

"E quem treinou a sra. Exbridge? Não seja tão modesta, sra. Cobb. Eu sei e a senhora sabe que toda essa aventura teria sido impossível sem sua experiência."

"Oh, obrigada, sr. Q", disse ela, se autocensurando enrubescida, "mas eu não posso aceitar tanto crédito. A sra. Exbridge entende muito de antiguidades. Ela quer abrir uma loja de antiguidades, agora que seu processo de divórcio chegou ao fim."

"A esposa de Don Exbridge? Eu não sabia que eles estavam tendo problemas. Lamento ouvir isso." Qwilleran sempre se identificava com quem estivesse passando por um caso de divórcio, por ter ele próprio sobrevivido a uma experiência dolorosa.

"Sim, é muito ruim", disse a sra. Cobb. "Eu não sei o que  deu errado. Susan Exbridge não fala sobre isso. É uma mulher muito refinada. Ele, eu nunca conheci."

"Eu me encontrei com ele algumas vezes. É um sujeito amável, com um sorriso e um aperto de mão para todos."

"Bem, ele é um empreiteiro, o senhor sabe, e eu tenho uma visão sombria a respeito deles. Sempre combatemos empreiteiros e burocratas Lá Embaixo. Eles queriam demolir as lojas antigas e algumas casas históricas."

"E depois? O que acontece após a visita ao museu?"

"Subiremos para a sala de reunião, e é quando o senhor faz seu discurso."

"Um discurso, não. Apenas umas poucas palavras. Por favor!"

"Depois haverá uma breve reunião de negócios e um lanche."

"Espero que a senhora não tenha assado setenta e cinco dúzias de cookies para aqueles descarados caçadores de cookies", disse Qwilleran. "Suspeito que a maioria deles comparece às reuniões por causa de suas bebidas de coco com limão. Seu amigo estará lá?"

"Herb? Não, ele tem de levantar cedo amanhã. É o começo da estação de caça ao veado. E os gatos? Eles vão comparecer à inauguração?"

"Por que não? Yum Yum passará a noite em cima da geladeira, mas Koko gosta de desfilar por aí e se exibir."

O telefone tocou e Koko pulou para a mesa da cozinha, como se soubesse que era um chamado de Lori Bamba, de Mooseville.

Lori era a secretária de tempo parcial de Qwilleran, uma jovem com longas tranças douradas amarradas com fitas azuis que fascinavam os siameses.

"Ei, Qwill", disse ela. "Espero não estar interrompendo alguma coisa crucial. Este não é o grande dia?"

"Você tem razão. Hoje à noite tornamo-nos públicos. Quais são as notícias de Mooseville?"

"Nick acabou de me telefonar do trabalho e pediu que eu lhe telefonasse. Alguém está acampando em sua propriedade no lago. No caminho para o trabalho, ele viu um carro estacionado no bosque. Ele não sabia se você havia autorizado."

"Não sei nada sobre isso. Mas há algum mal? Há uma porção de terra lá que não está sendo usada." Qwilleran havia herdado a propriedade do lago juntamente com a mansão em Pickax: oitenta acres cobertos de árvores, com uma praia na frente do terreno e uma cabana de madeira.

"Não é uma boa ideia encorajar invasores", disse Lori. "Eles poderiam deixar um monte de lixo, cortar suas árvores, provocar queimadas..."

"Está bem, está bem. Estou convencido."

"Nick disse que você deveria telefonar para o xerife."

"Farei isso. Agradeço seu interesse. Como estão as coisas em Mooseville? Como está o bebê?"

"Finalmente falou sua primeira palavra. Disse 'moose' muito claramente, de modo que pensamos que quando crescer vai ser presidente da Câmara do Comércio... Ouço Koko falando aí atrás?"

"Ele quer falar um pouquinho com você."

Qwilleram segurou o fone no ouvido de Koko, que se sacudia e girava com animação. Seguiu-se uma série de "miaus" e "iks" e ronronares de intensidades e inflexões variadas.

Quando a conversa acabou, Qwilleran disse à governanta: "A língua inglesa tem seiscentas mil palavras. Koko tem apenas duas, mas consegue mais música e significado a partir de 'miau' e 'ik' do que alguns de nossos amigos cultos conseguem a partir do dicionário inteiro".

"Essa Lori certamente tem jeito para gatos", disse a sra. Cobb, com um indício de ciúme.

"Se Lori tivesse morado em Salem há trezentos anos, teria sido queimada no poste."

A governanta parecia entristecida. "Acho que Koko não gosta de mim."

"Por que a senhora diz isso, sra. Cobb?"

"Ele nunca fala comigo, nem ronrona, nem vem para ser mimado."

"Siameses", Qwilleran começou, limpando a garganta e selecionando cuidadosamente suas palavras, "são menos expansivos que outras raças, e Koko em especial não é um gato de colo, embora eu tenha certeza de que ele gosta da senhora."

"Yum Yum se esfrega em meus tornozelos quando estou cozinhando e às vezes pula no meu colo. É uma gatinha muito doce."

"Koko é menos emocional e mais racional", explicou Qwilleran. "Tem suas próprias características e personalidade, e temos de compreendê-lo e aceitá-lo como é. Ele pode não lhe dar muita atenção, mas a respeita, e aprecia a comida maravilhosa que a senhora prepara."

Ele se desembaraçou desse diálogo delicado com um sentimento de alívio. Koko tinha hostilizado várias amigas, e uma inimizade entre um gato temperamental e uma excelente governanta era coisa que devia ser evitada.

Da biblioteca ele telefonou para o escritório do xerife, e em meia hora havia um uniforme marrom na porta dos fundos.

"Departamento do xerife, senhor", disse o guarda. "Consegui uma informação no rádio sobre sua propriedade a leste de Moosevile. Nenhum carro em suas matas, senhor, embora houvesse vestígios de recentes pneus e dois maços de cigarros vazios. Ele enterrou os tocos de cigarros, de modo que sabe alguma coisa sobre acampamento. Eram cigarros canadenses. Tivemos uma porção de turistas canadenses por aqui. Nenhum sinal de roubo. Nenhum arrombamento ou vandalismo em sua cabana. A estação de caça começa amanhã, senhor. Se o senhor não quer que ninguém entre com rifles, deve afixar cartazes em sua propriedade."

O dia demorou a passar. O clima continuou bom. A excitação aumentou. A sra. Cobb colocou açúcar na sopa e sal na compota de maçã. A cauda de Koko foi pisada duas vezes.

Às sete horas, todas as luzes da mansão foram acesas. Oitenta janelas grandes e estreitas reluzindo na noite com brumas criava um espetáculo que Pickax jamais tinha visto, e o movimento aumentou em Park Circle com as pessoas que paravam para olhar, embasbacadas.

Quando os convidados chegaram, foram saudados por Qwilleran e pelos diretores da Sociedade Histórica. Foram, então, de cômodo em cômodo, maravilhados com a riqueza e as dimensões palacianas do interior. A sala de visitas, com seus pares de lareiras e candelabros, tinha uma fortuna em pinturas a óleo nas paredes revestidas de seda carmesim. A sala de jantar, projetada para dezesseis lugares, era revestida de lambris de nogueira entalhada, importada da Inglaterra no século XIX. Os visitantes estavam tão extasiados pelo museu que Koko nem sequer foi notado, embora se empertigasse entre eles e fizesse poses de estátua nos pilares entalhados da escada e no antigo piano de pau-rosa.

Às oito horas, foi convocada a assembleia no terceiro andar. Nigel Fitch, um diretor de investimentos, bateu o martelo e pediu a todos que se levantassem para um minuto de silêncio em homenagem a Senior Goodwinter. Em seguida começaram os agradecimentos. Primeiro, o presidente agradeceu ao meteorologista por adiar a neve. E agradeceu a Qwilleran por tornar disponível a mansão como museu.

Qwilleran ficou em pé e agradeceu aos membros da sociedade pelo estímulo e apoio. Agradeceu à empresa XYZ pela doação para a construção. Agradeceu à firma CPA por informatizar o catálogo do museu. Particularmente agradeceu à sra. Cobb por colocar o museu em um nível profissional. Em seguida, agradeceu às quatro comissões que tinham trabalhado na inauguração. O presidente se mantinha olhando para o elevador com expectativa.

Durante a discussão sobre velhas e novas atividades, Polly Duncan, representante da biblioteca pública, propôs um projeto de história oral para preservar a memória dos Veteranos. "Deveria ser executado por alguém com habilidade para entrevistas", especificou, olhando para Qwilleran. Ele disse que podia fazer uma tentativa.

Nigel Fitch, que normalmente presidia uma reunião de forma rápida, estava prosseguindo em passo lento. "Estamos esperando o prefeito, mas ele está se atrasando na entrada da cidade."

Sempre que Fitch olhava para o elevador, todas as cabeças da plateia viravam esperançosamente na mesma direção. Num determinado momento houve sons mecânicos no poço do elevador, e fez-se um silêncio na reunião. As portas se abriram e entrou um Veterano, alto, magro e elegantemente vestido. Ele fez uma saudação alegre para o presidente e caminhou em direção a uma cadeira vazia, com modos de andar desajeitado, como um robô.

"Este é o sr. Tibbitt", sussurrou uma mulher perto de Qwilleran. "Um diretor de escola aposentado. Ele tem noventa e três anos. Um velho querido."

"Sr. presidente", disse Susan Exbridge, "eu gostaria de fazer uma proposta. A Sociedade dos Cantores apresentará Messias, de Haendel, na Velha Igreja de Pedra no dia 24 de novembro, exatamente como foi executada no século XVIII, com cantores usando trajes da época. Planejamos uma recepção para os participantes depois da apresentação, e este museu seria um local maravilhoso para realizá-la, se o sr. Qwilleran consentisse."

"Por mim, tudo bem", disse Qwilleran, "desde que eu não tenha de usar calças de cetim."

E o prefeito ainda não chegara. Olhando frequentemente para seu relógio, Pitch estimulava discussões sobre o aumento das taxas, o recrutamento de novos membros e o início de um boletim informativo.

Finalmente, o zumbido revelador no poço do elevador foi ouvido, seguido de um estalido quando a cabine chegou ao terceiro andar. Todas as cabeças se viraram com expectativa. A porta do elevador se abriu, e foi Koko que saiu — cauda perpendicular, orelhas soberbamente eretas, e um rato morto agarrado em suas patas.

Qwilleran se levantou. "E quero agradecer ao vice-presidente encarregado de exterminação, por sua diligência ao eliminar certos perigos do museu."

"Reunião encerrada", gritou Fitch.

Durante a conversa social que se seguiu, o banqueiro disse a Qwilleran: "Você tem um gato extraordinário. Como ele fez isso?"

Qwilleran explicou que o sr. O'Dell estava lá embaixo, e que provavelmente colocara Koko na cabine, apertara o botão, e o enviara para cima — para fazer graça.

Na verdade Qwilleran não pensava nada disso. Koko era capaz de entrar na cabine, esticar-se o máximo possível, e alcançar os controles com a pata. Havia feito isso antes. O gato era fascinado por apertar botões, por chaves, manivelas e maçanetas. Mas como alguém poderia explicar isso ao banqueiro?

Quando o prefeito finalmente chegou, ele encurralou Qwilleran. "Diga, Qwill, quando esta cidade emergirá do Obscurantismo?"

"O que você quer dizer?"

"Você já ouviu falar de todo um condado tentando funcionar sem um jornal? Todos nós sabíamos que Senior era excêntrico, mas pensávamos que Junior assumiria e daria continuidade. Ele é um rapaz brilhante; era meu aluno de ciências políticas quando eu dava aulas. Mas suponho que tenha ouvido falar que Gritty vendeu o Picayune para você sabe quem. Eles farão dele uma casa da moeda — vão transformá-lo em um boletim de publicidade, e só — e continuaremos sem qualquer cobertura das notícias. Por que você não começa um jornal, Qwill?"

"Bem, eu gostaria de ter meu próprio jornal, meu próprio restaurante quatro estrelas e meu próprio clube com grandes times, mas tive de aceitar o fato de que não sou um investidor nem um administrador."

"Certo. E suas conexões Lá de Baixo? Sei que você atraiu aquele jovem casal para cá para reativar o Old Stone Mill."

"Pensarei sobre isso", prometeu Qwilleran.

"Pense rápido."

Durante as xícaras de chá fraco e de ponche moderadamente alcoólico não faltou blábláblá.

"Incrível coleção de antiguidades!"

"Você gosta desse clima?"

"Uma noite memorável. Estamos em débito com o senhor, sr. Qwilleran."

"A neve nunca esteve tão atrasada."

"O que você vai fazer para o Dia de Ação de Graças?"

''Você gostaria de uma árvore de Natal de quatro metros para o museu, Qwill? Tenho uma bonita em minha fazenda."

"Lugar charmoso para um casamento. Meu filho se casará logo."

No entanto, não havia nenhuma teoria sobre o acidente de Senior ou o incêndio do Picayune, apesar das questões levantadas por Qwilleran. Ele ainda era um estranho. Embora observador por profissão, não ouvira nada que sugerisse alguma atividade ilegal ou conspiração.

Enquanto sentia um crescente desapontamento, percebeu que a sra. Cobb estava extraordinariamente exaltada. Ela conversava animadamente, ria muito e aceitava elogios sem ficar rubra. Alguma coisa maravilhosa tinha acontecido com ela, imaginava ele. Ela ganhara a loteria estadual, era avó pela primeira vez, ou o prefeito a indicara para a Comissão de Preservação. Qualquer que fosse a razão, a sra. Cobb estava excessivamente feliz.

Então Qwilleran observou dois Veteranos sentados em um canto com as cabeças bem próximas. Uma mulher frágil, dependente de uma muleta, estava ouvindo um senhor com uma bengala que falava do incêndio do Picayune. Qwilleran perguntou se eles estavam gostando da festa.

"Bons cookies", disse o homem, "mas deveriam ter colocado alguma coisa no ponche. Estou contente por não ter nevado."

"Nós quase não saímos depois que a neve cai", disse sua companheira. "Eu nunca vi uma casa tão grande!"

"Mas não consegui ouvir uma palavra na reunião."

A mulher resmungou. "Amos, você sempre se senta na fileira de trás, e sempre se queixa que não consegue ouvir."

Qwilleran perguntou o nome deles.

"Eu sou Amos Cook, oitenta e oito anos", disse o homem. "Oitenta e oito e ainda cozinhando. Ha ha ha." Apontou para a mulher o dedo polegar. "Ela é uma jovem avezinha, oitenta e cinco anos. Ha ha ha."

"Eu sou Hettie Spence e farei oitenta e seis anos no mês que vem", disse ela. Os Veteranos exibiam suas idades como se fossem medalhas. "Eu era Fugtree antes de me casar com o sr. Spence. Ele era dono da loja de ferragens. Nós criamos cinco filhos nossos — quatro meninos — e três crianças adotadas. Todos entraram na faculdade. Meu filho mais velho é oftalmologista Lá Embaixo." Ela falava com um tremular das pálpebras, das mãos e dos ombros.

"Minha sobrinha-neta casou-se com um deles", disse Amos interropendo-a.

"Eu escrevia os obituários para o Picayune antes de minha artrite piorar", disse Hettie. "Escrevi o obituário do último dos Klingenschoen."

"Eu li", disse Qwilleran. "Foi inesquecível."

"Meu pai não me deixou ir para a faculdade, mas fiz cursos por correspondência, e..."

Amos interrompeu. "Ela e eu estávamos nas fotos que eles tiraram antes do incêndio."

"Vocês gostaram?", perguntou Qwilleran. "A fotógrafa era boa? Quantas fotos ela tirou?"

"Muitas", lamentou. "Fiquei extremamente cansado. Eu tinha acabado de fazer uma operação no fígado. Ela fazia clique-clique-clique. Não como nos velhos tempos. Naquela época você tinha de olhar para o passarinho até que seu rosto congelasse, e o homem ficava com a cabeça sob um pano preto."

"Naquela época tínhamos de dizer 'xis' antes dele bater a foto", disse Hettie. "Não havia fotógrafas, naquele tempo."

"Não me deixaram fumar minha palha de milho. Diziam que embaçaria as fotos. Nunca ouvi algo mais estúpido."

Qwilleram perguntou-lhe que horas eles saíram do escritório do jornal.

"Meu neto nos pegou às seis", disse Amos.

"Cinco", corrigiu-o Hettie.

"Seis, Hettie. Junior levou a moça para o aeroporto às cinco e meia."

"Bem, meu relógio marcava cinco, e tomei meu remédio."

"Você se esqueceu de dar corda nele, e tomou seu remédio bem atrasada. Foi por isso que ficou com um pouco de vertigem."

Qwilleran os interrompeu. "E o fogo começou violentamente mais ou menos quatro horas depois. Vocês têm alguma ideia do que o causou?"

O velho casal se entreolhou e negou com a cabeça.

"Quanto tempo o senhor trabalhou no Picayune, sr. Cook?"

"Fui aprendiz de tipógrafo quando tinha dez anos de idade, e continuei até não poder trabalhar mais." Ele acariciou seu peito. "Coração fraco. Mas consegui ser jornalista-chefe quando Titus era vivo. Tínhamos dois homens e um garoto nas prensas manuais, e levava o dia inteiro para imprimir alguns milhares. O jornal era vendido por um penny. Você conseguia comprar jornais o ano inteiro por um dólar."

Qwilleran lembrou-se do livro que Polly lhe dera. "Meus caros, vocês concordariam em descer e ver uma fotografia dos empregados do Picayune? Vocês devem ser capazes de identificá-los."

"Meus olhos não estão muito bons", disse Hettie. "Cataratas. E não ando tão rápido desde que quebrei os quadris."

Mesmo assim Qwilleran levou-os à biblioteca e mostrou seu exemplar do Picturesque Pickax. Ligou o gravador, e a entrevista foi transcrita posteriormente por Lori Bamba.

 

Pergunta: Esta é uma foto dos empregados do Picayune, tirada um pouco antes de 1921. Vocês reconhecem alguns dos rostos?

Amos: Eu não estou na foto. Nem mesmo sei quando foi tirada. Mas este, no meio, é Titus Goodwinter — o de chapéu-coco e bigode como guidão de bicicleta.

Hettie: Ele sempre usava chapéu-coco. Quem está perto de Titus?

Amos: Este com ligas no braço? Não o conheço.

Hettie: Era o contador?

Amos: Não, o contador tinha aquelas faixas pretas nas mangas da camisa. Bill Watkins era seu nome.

Hettie: Bill era o xerife. Seu primo Barnaby fazia a contabilidade. Eu ia para a escola com ele. Foi morto por uma carroça e um cavalo desgovernados.

Amos: Foi o xerife que tentou parar a carroça desgovernada, Hettie. Barnaby levou um tiro de rifle na cabeça.

Hettie: Desculpe, mas eu discordo. Barnaby não era a favor de armas de fogo. Conheci sua família inteira.

Amos: (em voz alta) Eu não disse que ele tinha uma arma! Disse que alguém acertou um tiro nele!

Hettie: Eu pensava que o xerife sempre portasse uma arma.

Amos: (mais alto) Nós estamos falando do contador! Barnaby! O das faixas pretas nas mangas!

Hettie: Não grite!

Amos: Bem, de qualquer forma, o de chapéu-coco é Titus Goodwinter.

Titus foi o fundador do jornal?

Amos: Não. Ephraim começou o jornal tempos atrás. Não sei quando. Teve um grande funeral quando morreu. Ele se pendurou.

Hettie: Ele se enforcou, ou assim disseram.

Amos: Em um grande carvalho perto da Velha Ponte de Pranchas.

Foi então que Titus começou a administrar o jornal?

Amos: Não, o filho mais velho ficou com o controle, mas ele caiu de um cavalo.

Hettie: Centenas de melros surgiram de um milharal, e seu cavalo disparou.

Amos: Naquele tempo, os melros eram como os mosquitos hoje.

Hettie: Titus se encarregou do jornal depois disso. Oh, ele era bem genioso. Uma vez, quando o córrego encheu e seu cavalo não queria atravessá-lo, Titus saltou com raiva e atirou nele.

Amos: No próprio cavalo! Matou-q com um tiro! Esse é Titus com um chapéu-coco. Sempre usava chapéu-coco.

Quem é o homem com aparência de mau no final da fileira?

Amos: Era o camponês que dirigia carroças, não é, Hettie?

Hettie: É Zack, certo. Jamais gostei dele. Ele bebia.

Amos: Matou Titus em uma briga e foi para a prisão. Mas era bom motorista. Tinha uma filha bonita. Seu nome era Ellie. Ela trabalhou uma temporada no jornal.

Hettie: Ellie dobrava os jornais, fazia o chá e a limpeza.

Amos: Numa noite escura, jogou-se no rio.

Hettie: Pobre menina, não tinha mãe, o pai bebia e o irmão era agressivo.

Amos: Titus gostou dela logo que a conheceu.

Hettie: Titus era paquerador — ele, aquele de chapéu-coco e grande bigode.

Fim da entrevista.

 

Nigel Fitch interrompeu o diálogo, dizendo que estava pronto para levar os dois Veteranos para casa. Todos os convidados estavam sendo levados, embora com relutância. Puxando Polly da multidão que saía, Qwilleran convidou-a para ficar para mais um drinque.

"Um cálice de sherry, e depois devo ir", disse ela enquanto entravam na biblioteca. "Não gostou por eu ter envolvido você no projeto de história oral?"

"De modo algum. Ele pode ser interessante. Você sabia que o pai do Senior foi assassinado e seu avô se enforcou?

"A família teve uma história violenta, mas você deve se lembrar que essa região foi de pioneiros como no Velho Oeste, só que numa época posterior. Somos mais civilizados agora."

"Computadores e vídeos não fazem uma civilização."

"Isso não é Shakespeare, Qwill."

"Visitei a sra. Goodwinter ontem", disse ele. "Ela não parecia uma dessas viúvas tradicionais, arrasadas pela dor e sedadas pelo médico da família."

"Ela é uma mulher corajosa. Sempre foi."

"Ela tem tomado umas decisões muito repentinas — vender a casa, leiloar a mobília, deixar as prensas irem para o ferro-velho. Há menos de uma semana Senior morreu, e os anúncios de leilão estão por toda a cidade. É rápido demais."

"As pessoas que nunca foram viúvas estão sempre dizendo como as viúvas devem se comportar", disse Polly. "Gritty é uma mulher forte como sua mãe. Euphonia Gage deve fazer parte de sua lista para uma entrevista de história oral."

"O que você sabe da empresa XYZ?"

"Apenas que é bem-sucedida em tudo que faz."

"Você conhece os diretores?"

"Superficialmente. Don Exbridge é um homem encantador. Ele é o cabeça, o homem das ideias. Caspar Young é o empreiteiro. E o dr. Zoller é o homem do dinheiro."

"Faz sentido. Suspeito que ele fez uma fortuna em fio dental", disse Qwilleran. "Todos eles, X, Y e Z pertencem ao Country Club?"

Ele tinha feito um estudo do sistema de panelinhas em Pickax. Tudo dependia do clube ao qual a pessoa se associava, da igreja que frequentava, e de quanto tempo a família da pessoa morava no Condado de Moose. Os Goodwinter estavam lá havia cinco gerações; os Fitche, quatro.

"Devo ir agora", disse Polly, "antes que meu senhorio chame o xerife e mandem o pelotão de busca. O sr. MacGregor é um velho amável e não quero aborrecê-lo."

Depois que ela saiu, Qwilleran se perguntava se a refinada mão da empresa XYZ tinha guiado as decisões da sra. Goodwinter. Todos eles pertenciam ao clube. Jogavam golfe. Jogavam cartas. Era assim que funcionava.

Ele também se perguntou se Polly realmente tinha um senhorio idoso chamado MacGregor monitorando suas atividades. Ou era uma desculpa para ir embora cedo? E por que ela relutava tanto em ficar até mais tarde? Ela estava com medo de alguma coisa. Fofocas, talvez. Pickax impunha um código de comportamento vitoriano às mulheres que tinham uma profissão, e elas tomavam cuidado para preservar aparências, embora estivessem vivendo no final do século XX. O senhorio de Polly, suspeitava Qwilleran, deve ser mais que um senhorio.

 

SEXTA-FEIRA, 15 DE NOVEMBRO. 

Era o dia da abertura da temporada de caça para os caçadores de veados. No Museu Klingenschoen, era a manhã seguinte à inauguração e a sra. Cobb ainda estava animada e um tanto aturdida.

Qwilleran cumprimentou-a pelo sucesso da noite. "Todos elogiaram o museu e o lanche, não necessariamente nesta ordem", disse ele. "Ofereceram-nos uma árvore de Natal de quatro metros para o salão, e os Fitche gostariam de usar o museu para o casamento do filho."

"Seria um belo cenário para um casamento", disse ela, acrescentando de modo brincalhão: "Koko poderia ser o garçon d'honneur e carregar as alianças na cauda".

"Você está fazendo piadas esta manhã", disse Qwilleran. "Deve estar se sentindo muito bem."

Ela olhou-o timidamente. "O que o senhor pensaria sobre ter dois casamentos aqui?"

"Você?"

Seus olhos estavam brilhando atrás das grossas lentes. "Herb está comprando uma casa centenária de fazenda. Ele me telefonou logo antes da inauguração e disse que pensava que deveríamos nos casar."

"Hum", disse Qwilleran, que estava procurando alguma coisa mais agradável para dizer. "É a casa de Goodwinter. Eu a vi. É uma preciosidade!"

"Ele fez uma boa compra porque ela está com pressa de vendê-la antes que a neve caia."

"A decoração é pesada, mas você deve saber como corrigir isso."

"Será divertido restaurá-la e mobiliá-la com móveis de época."

"Hackpole gosta de antiguidades?", perguntou Qwilleran com ar de quem duvida.

"Na verdade não, mas ele diz que posso fazer o que quiser. Seu principal interesse é caçar e pescar. Ele tem armários cheios de armas, facas de caça e varas de pescar. Quer me dar um rifle — calibre 22 ou algo assim — para esquilos e coelhos." Seus lábios enrugados expressavam reprovação.

"É difícil imaginá-la andando pelos bosques, atirando em animais pequenos, sra. Cobb."

Ela estremeceu. "Herb estava me contando como ele estripa um veado, e embrulhou meu estômago. A propósito, ele quer saber se o senhor gosta de carne de veado. Ele sempre pega o macho, e diz que a carne é deliciosa se o veado sangra lentamente para morrer. O coração deve continuar a bombear sangue para fora dos tecidos." Ela repetia, sem entusiasmo, o que ele dissera.

"Hum", disse Qwilleran outra vez, seu bigode mais virado para baixo do que normalmente. Ele não estava feliz com a reviravolta dos acontecimentos. Uma governanta trabalhando um turno de oito horas, e depois indo para casa cozinhar para o marido, seria bem diferente da governanta que morava na casa do patrão e que acostumara mal tanto os gatos quanto ele com suas comidas, durante os últimos dezoito meses. Todavia, ele sabia que Iris Cobb, viúva duas vezes, desejava muito um marido. Que pena ela não ter encontrado um melhor do que Hackpole.

É verdade que ele ganhava bem a vida — com carros usados, oficinas de automóveis, solda e ferro-velho. É verdade que era bombeiro voluntário e que se orgulhava disso. Havia construído um jardim móvel de ervas para a sra. Cobb em sua oficina; havia colhido frutas silvestres para que ela fizesse geleia; era um perito lenhador. No entanto, Hackpole era considerado antipático por toda a cidade. Parece que não tinha nenhum amigo, exceto a sra. Cobb, e agora esse inepto Romeu queria dar a ela um rifle calibre 22! Pobre mulher! Ela havia esperado uma cara blusa de seda no aniversário, e ele lhe dera um caro canivete suíço. O homem despertava a curiosidade de Qwilleran.

Como teria conseguido comprar a casa de Goodwinter tão rapidamente? Certamente ele não era membro da panelinha do Country Club, mas devia ter ligações com a empresa XYZ. Provavelmente sua oficina de solda tinha o contrato para as grades das sacadas do Motel de Mooseville e das casas do Indian Village.

Em seguida o telefone tocou, e Qwilleran atendeu a chamada na biblioteca.

Uma voz de menina disse: "Sr. Qwilleran, aqui é Jody. Juney voltou Lá de Baixo ontem à noite. Ele não conseguiu emprego".

"Ele encontrou o diretor de redação?" "Sim, o homem que lhe prometeu um emprego. Disse que tinha acabado de contratar três novas repórteres e não havia oportunidade nesse momento, mas eles continuariam a tê-lo na lista de espera."

"É típico!", resmungou Qwilleran. "É típico daquele cara."

"Juney tentou o Morning Rampage também, mas eles estão diminuindo o quadro de pessoal. Ele está terrivelmente deprimido. Chegou tarde ontem à noite e não dormiu nada."

"Com sua referência acadêmica, ele não terá problema para conseguir colocação, Jody. Na primavera, os jornais enviam caça-talentos aos campi universitários para recrutar os melhores estudantes. Ele tentou apenas uma cidade. Devia começar a enviar seu curriculum vitae para todo o país."

"Foi o que eu disse, mas ele não deu atenção. Saiu cedo esta manhã e disse que ia caçar. Disse que iria para a casa da fazenda e pegaria o rifle de seu irmão — se sua mãe já não o tivesse vendido. É por isso que estou preocupada. Ju-ney não entende de florestas e não é louco por caça."

"Sair pelas florestas será uma boa terapia, Jody. Vai aguçar sua perspectiva. E o clima não está ruim. Não se preocupe com ele."

"Bem, não sei..."

"Quando Junior voltar, nós nos encontraremos e teremos uma conversa."

Qwilleran tinha marcado um encontro à tarde com a avó Gage de Junior, para uma entrevista de história oral, mas ainda faltava uma hora e se sentiu impaciente. A comunicação da sra. Cobb o angustiara, e a decepção de Junior tinha-o deixado vagamente constrangido. Resolveu seguir seu próprio conselho: dirigiu-se ao campo.

Era um dia cinzento, provavelmente não alegraria ninguém e, sem neve, o campo parecia triste. Viajando na direção norte para Mooseville, pelos bons campos de caça, ele olhava as estradas do lado de baixo, procurando o carro de Junior. Aqui e ali, um carro ou caminhonete de caçador, estacionados bem além dos acostamentos em uma área desolada coberta de mato, mas não havia sinal de um Jaguar vermelho. Ele tinha vislumbres de um vulto laranja brilhante se agachando em um milharal ou entrando nas florestas, e ouvia tiros de espingarda. Ele estava feliz porque usava seu próprio boné laranja brilhante.

Ao chegar à sua propriedade na beira do lago, seguiu a estrada curva de terra que levava à cabana. Viu as marcas de pneus onde o campista havia estacionado. Em seguida subiu para a cabana de madeira, admirando o lago do alto. Com as janelas de venezianas, a energia desligada e o sistema de água drenado, estava mais frio dentro do que fora. Na praia, as barreiras de neve estavam no lugar. O lago parecia medonho e pronto para congelar. A cena era sombria e solitária. Ele ouviu tiros de espingardas na floresta, e apressou-se em voltar para seu carro.

Indo para seu encontro com Euphonia Gage, pegou um desvio na Estrada MacGregor, procurando a casa de campo onde Polly dizia morar sob os olhos vigilantes de seu senhorio idoso. Não havia habitações nessa estrada do campo — apenas campos abertos, intercalados com trechos de bosques. Não havia tráfego algum, exceto um carro com uma lebre amarrada no teto. O motorista abriu um grande sorriso para Qwilleran e fez um V com os dedos.

De repente houve uma sacudidela na estrada, e o asfalto deu lugar ao cascalho. Um pouco mais adiante, duas caixas de correio no alto de mourões de cedro marcavam uma longa entrada para carros, ladeada por arbustos. Ela levava a uma série de construções: uma considerável casa de fazenda de pedra, uma casa pequenina nos fundos, alguns barracões e um celeiro exposto ao ar, vergando para o chão. Os nomes nas caixas de correio eram MacGregor e Duncan.

Nenhum carro à vista. Nenhum equipamento agrícola. Nenhum cachorro latindo. Mas um ganso andava em volta da casa principal e grasnava de maneira ameaçadora. Com extremo cuidado e de olho na ave, Qwilleran saiu do carro e caminhou em direção à porta lateral da casa da fazenda. Não houve necessidade de bater. Ele já tinha sido anunciado.

"O que você quer?", guinchou uma voz queixosa. Um velho, frágil e curvo, apareceu no vão da porta, usando três suéteres e algumas polainas de tricô sobre as calças.

"Sr. MacGregor? Sou Jim Qwilleran. Só quero fazer uma pergunta, senhor."

"O que você está vendendo? Não quero comprar nada."

"Não sou vendedor. Estou procurando um caçador que dirige um Jaguar vermelho."

"O que vermelho?"

"Um carro vermelho. Vermelho brilhante."

"Não sei", disse o velho. "Sou daltônico."

"De qualquer forma, obrigado, sr. MacGregor. Bom dia."

Ainda observando o ganso, Qwilleran saiu de costas. Ele tinha confirmado que Polly realmente morava em uma casa de campo, junto a uma casa de fazenda que pertencia a um idoso senhorio chamado MacGregor. Satisfeito, dirigiu de volta à cidade. A casa de campo, ele observou, era incrivelmente pequena.

Às duas e trinta tocou a campainha de uma grande casa de pedra no bulevar Goodwinter, para entrevistar a presidente, de oitenta e dois anos de idade, do Clube dos Veteranos. A mulher que abriu a porta não era jovem nem velha, mas ele duvidava que ela pudesse plantar bananeira e fazer abdominais.

"A sra. Gage está em seu estúdio", disse a mulher. "O senhor pode entrar — pelo corredor em frente."

Uma caverna sombria de veludo escuro, pesados móveis entalhados e tapeçarias de crina preta levavam a uma luz, um estúdio iluminado, sem móveis, exceto dois grandes espelhos e uma esteira para exercícios. Uma mulher baixa usando collant, maiô e polainas, estava sentada em posição de lótus na esteira. Ela se levantou sem esforço e veio em frente.

"Sr. Qwilleran! Ouvi Junior falar muito do senhor! E naturalmente eu lia sua coluna no Fluxion." Sua voz era calma, mas vibrante. Ela tirou um suéter largo que ia até o joelho e fez Qwilleran entrar na sala sufocante.

Era pequena, mas não era frágil, cabelos brancos, mas pele lisa.

"Sei que a senhora é presidente do Clube dos Veteranos", disse ele.

"Sim, eu tenho oitenta e dois anos. O sócio mais jovem é automaticamente indicado para presidente."

"Desconfio que a senhora mentiu sobre sua idade."

Sua expressão contente reconhecia o elogio.

"Pretendo viver uns cento e três. Acho que cento e quatro seria exagero, não acha? O exercício é o segredo, e a respiração é o fator mais importante. O senhor sabe como respirar, ST. Qwilleran?"

"Estou fazendo o melhor que posso para cinquenta anos."

"Levante-se e deixe-me colocar as mãos em sua costela... Agora inspire... expire... aspire... exale. O senhor respira muito bem, sr. Qwilleran, mas pode trabalhar nisso um pouco mais. Agora, o que posso fazer pelo senhor?"

"Gostaria de ligar o gravador e fazer algumas perguntas para a senhora sobre os primeiros tempos no Condado de Moose."

"Ficarei feliz em ajudar."

A entrevista seguinte foi transcrita mais tarde:

 

Pergunta: Quando seus ancestrais vieram para o Condado de Moose, sra. Gage?

Sra. Gage: Meu avô veio para cá em meados do século XIX, diretamente da escola de medicina. Era o primeiro médico do lugar e foi tratado como uma bênção do céu. Não existia hospitais nem clínicas. Tudo era primitivo. Ele ia até as casas em lombo de cavalo, às vezes na frente de uma matilha de lobos uivando. E uma vez, após um incêndio na floresta, quando todas as trilhas estavam intransitáveis, com um machado, ele abriu seu caminho de 24 km entre ruínas para tratar dos sobreviventes. Eles estavam queimados, mutilados e cegos, e não havia medicamentos, exceto os que ele trazia em sua mochila.

Que tipo de medicamentos ele usava?

Sra. Gage: Meu avô fazia os seus medicamentos e fazia ele mesmo os comprimidos com ervas e plantas, como pó de ruibarbo, arnica e noz-vômica. Alguns de seus pacientes preferiam remédios fora de moda, como chá de gatária ou um bom gole de uísque. Nunca pagavam seus serviços com dinheiro. Eles lhe davam duas galinhas por ajustar um osso quebrado ou um cesto de maçãs por um parto.

Que tipos de casos ele tratava?

Sra. Gage: Tudo. Febre, varíola, doença do pulmão, cirurgia, tratamento de dentes. Ele arrancava dentes com um par de "torniquetes". E havia uma grande quantidade de emergências causadas por inundações de primavera, cobras peçonhentas, acidentes de serraria, coices de mulas, brigas de tavernas. Amputações eram muito comuns. Ainda tenho sua coleção de serras, facas e escalpelos.

Por que tantas amputações?

Sra. Gage: Não havia antibióticos. Um membro infeccionado tinha de ser amputado, ou o paciente morreria de envenenamento no sangue. Meu avô contava que fazia cirurgias à luz de velas em uma cabana de madeira enquanto alguém da família enxotava moscas da incisão aberta. Isso foi há uns cem anos, o senhor entende. Quando meu pai começou sua atividade, as condições tinham melhorado. Ele tinha um escritório em nossa saleta da frente, ia atender nas casas em uma pequena carruagem ou trenó, e tinha um chofer em tempo integral que morava no estábulo e cuidava dos cavalos. O chofer — seu nome era Zack — depois foi trabalhar no Picayune e ganhou notoriedade por matar Titus Goodwinter.

A senhora sabe em que circunstâncias?

Sra. Gage: Para voltar um pouquinho, o pai de Zack era um mineiro, que ficou em pedaços em uma explosão subterrânea. Zack tornou-se um homem amargo e violento que batia sempre em sua esposa e nas duas crianças. Meu pai costumava medicá-los e denunciar as agressões ao oficial de polícia, mas nada era feito a respeito. A jovem filha de Zack também trabalhava no Picayune, e Titus, que era um escandaloso devasso, seduziu a pobre moça. Ela se afogou, e Zack foi atrás de Titus com uma faca de caçar. Não é uma história bonita.

O Picayune era um bom jornal naquela época?

Sra. Gage: Bem... eu lhe direi... se você desligar essa coisa.

Fim da entrevista.

Após Qwilleran desligar o gravador, a sra. Gage disse: "Posso lhe falar confidencialmente, porque você é amigo do meu neto favorito. Junior fala de você com orgulho. A verdade é: eu nunca fiz bom juízo daquele ramo da família Goodwinter, nem do jornal que eles publicavam. Ephraim, o fundador do Picayune, não era jornalista. Era um rico proprietário de mina e um barão da madeira, que faria qualquer coisa por dinheiro. Foi sua avareza e negligência que causou a terrível explosão da mina, matando 39 homens. No final ele se suicidou. Seus filhos não eram melhores. Seu neto, Senior, era uma pessoa estranha; só estava interessado em composição de tipos!"" Ela virou os olhos com escárnio.

"Por que sua filha se casou com ele?", perguntou Qwilleran diretamente, uma vez que Euphonia era conhecida por sua franqueza.

"Gritty sempre quis se casar com um Goodwinter, e ela sempre fez exatamente o que quis. Foi um casamento estranho. Ela é uma moça ardorosa que gosta de se divertir. Senior não tinha nenhum ardor e com toda certeza sua ideia de diversão não era a minha. Como geraram Junior, não consigo explicar. Ele é muito pequeno para ser filho de Gritty — ela é como uma amazona! — e muito brilhante para ser filho de Senior."

"Genes recessivos", disse Qwilleran. "Ele lembra sua avó."

"O senhor é um homem encantador, sr. Qwilleran. Gostaria que Junior tivesse tido o senhor como pai."

"A senhora é uma mulher encantadora, sra. Gage."

Os dois deram uma pausa para um momento de admiração mútua, e ele se achou querendo que ela fosse trinta anos mais jovem. Coragem — era isso que ela possuía — coragem! Provavelmente resultado de toda aquela respiração.

"O senhor acha que Junior promete?", perguntou ela.

"Grande promessa, sra. Gage. A senhora pode se orgulhar dele. A senhora estava ciente de que o Picayune estava falindo?"

"É claro que eu estava ciente. Tentei ajudar. Não sei o que aquele homem fez com meu dinheiro, a menos..."

"A menos o quê, sra. Gage?"

"Serei inteiramente franca. Vamos ficar à vontade, como diz Junior. Você vê, eu fiquei sabendo de forma indireta que Senior andava fazendo frequentes viagens de um dia até Lá Embaixo. Na verdade, para Mineápolis. Se meu genro tivesse alguma vez demonstrado algum tipo de ardor, eu imaginaria que ele tivesse outra mulher. Naquelas circunstâncias, só pude deduzir que ele estava jogando como um último recurso — jogando e perdendo."

"Ocorreu à senhora que a morte dele pode ter sido suicídio?"

Ela olhou assustada. "Senior não teria coragem, sr. Qwilleran, para tirar sua própria vida."

Ao sair, ele disse: "A senhora é uma pessoa excelente para entrevistas, sra. Gage. Espero que possamos nos encontrar outra vez — talvez uma noite para jantar."

"Adorarei aceitar, se o convite ainda for válido na primavera. Vou para a Flórida amanhã", disse ela. "Foi um imenso prazer, sr. Qwilleran. Agora, não se esqueça de respirar!"

 

Qwilleran estava de bom humor aquela noite, quando se acomodou em sua cadeira de couro favorita, acariciando a gata em seu colo e esperando que um livro caísse no tapete. Ele parara de protestar; o truque do livro estava se tornando um jogo entre ele e Koko. O gato jogava um título; Qwilleran lia em voz alta, acompanhado de ronronares, "iks" e "miaus".

Naquela ocasião a seleção de Koko foi Henrique V, uma boa escolha, pensou Qwilleran. Folheou todo o livro em busca de uma passagem de que gostava, a disposição com que o rei falava para suas tropas: "Uma vez mais para a brecha, queridos amigos, uma vez mais..."

Koko assumiu sua posição de ouvinte, sentando-se empinado e atento no topo da escrivaninha, com a cauda enrolada nas patas da frente, e os olhos azuis cintilando, escurecidos à luz da lâmpada.

Era uma fala imperiosa, cheia de vividas referências. "Mas quando a tempestade da guerra sopra em nossos ouvidos, é preciso que imitemos a ação do tigre..."

"MIAU!", ronronou Koko.

Com uma audiência tão atenta, Qwilleran não se acanhava em dramatizar a fala. Com um terrível olhar, franziu a testa, endureceu os músculos, mostrou os dentes, distendeu as narinas e respirou firme. Koko estava ronronando rouco.

Berrando a todo volume, Qwilleran proferiu a última linha: "Deus por Henrique! Inglaterra e São Jorge!"

"MIAU-AU!", uivou Koko. Yum Yum fugiu do cômodo sobressaltada, e a sra. Cobb veio correndo.

"Oh! Pensei que o senhor estivesse sendo assassinado, sr. Q."

"Simplesmente lendo para Koko", explicou. "Ele parece divertir-se com o som da voz humana."

"É da sua voz que ele gosta. Ontem à noite todos estavam dizendo que o senhor deveria se juntar ao grupo de teatro", disse ela.

Quando a casa voltou a sua calma normal, um nome passou pela mente de Qwilleran — Harry Noyton. Ele tivera negócios com Harry, Lá Embaixo. O homem era um empreendedor ousado, que estava sempre procurando um novo desafio ou um jogo financeiro. Por mais absurda que fosse a proposta, Harry, sempre lucrava com ela. Atualmente estava morando sozinho em Chicago, em uma cobertura no alto de uma torre de escritórios que ele construíra.

Num impulso, Qwilleran discou para o apartamento de Noyton, e uma voz subumana declarou que ele poderia ser encontrado em seu hotel, em Londres.

"É possível uma coincidência assim?", Qwilleran perguntou a Koko. "Harry está na Inglaterra!" Ele deu uma olhada em seu relógio. Dez e trinta. Seria madrugada em Londres. Melhor! Noyton frequentemente o tirava do sono em horas absurdas, e sem pretexto.

Ele discou para o hotel em Londres, esperando que fosse o Saint George, mas era o Claridge's. Quando a voz de Noyton chegou na linha, ele parecia tão vigoroso quanto estaria ao meio-dia; sua energia era fenomenal.

"Qwill! Como está garoto? Ouvi dizer que você está vivendo como um glutão desde que saiu do Flux. Quem está cozinhando? Sei que você nunca gastou um quarto de dólar em uma chamada telefônica a menos que fosse urgente."

"Você gostaria de ser um magnata de jornal, Harry?"

"O Fluxion está à venda?"

Qwilleran descreveu a situação em Pickax, acrescentando: "Seria um crime prostituir com publicidade descartável um jornal centenário. O condado precisa de um jornal, e o nome do Picayune é parte da vida de todos. Ele teve publicidade nacional esta semana e vai ter mais. Se alguém fizesse uma proposta melhor à viúva ela poderia entender."

"Diabo, conversarei com a viúva. Eu sou bom de conversa com viúvas."

Qwilleran acreditava nisso. Noyton era um self-made man, com um talento para atrair mulheres assim como dinheiro, embora jamais tivesse adquirido algum refinamento. Mesmo de terno com colete feito sob medida ele continuava parecendo um espantalho. Tinha várias ex-esposas e estava sempre procurando outra.

"Pegarei um avião para casa amanhã", disse ele. "Como chego a Pickax? Nunca ouvi falar desse lugar."

"Você pega um voo para Mineápolis e de lá um avião pequeno para o Condado de Moose. Sinto não saber o horário. Provavelmente eles nem sequer têm um."

"Fretarei alguma coisa, de algum modo. Ninguém consegue me manter no chão por muito tempo."

"É melhor chegar aqui antes que a neve caia."

"Telefonarei para você de Mineápolis."

"Bom! Irei buscá-lo no aeroporto, Harry."

Com um confortável sentimento de realização, Qwilleran começou sua verificação noturna da casa e, ao fazê-lo, encontrou outro livro de couro de porco no chão. Desta vez era Tudo está Bem Quando Termina Bem.

"Não acabou ainda, caro menino", ele disse a Koko enquanto colocava os dois gatos, que protestaram, na cesta de vime.

Ele estava certo. Às duas horas da madrugada foi acordado por uma chamada telefônica de Jody.

"Sr. Qwilleran, estou muito preocupada. Juney não voltou para casa."

"Talvez tenha ido para a casa da mãe dele. Você ligou para lá?"

"Ninguém atendeu. Pug voltou para Montana, e a sra. Goodwinter provavelmente está dormindo... em Indian Village. Liguei para a vovó Gage mais cedo, e ela achava que Juney ainda estava Lá Embaixo. Liguei até para Roger, seu amigo em Mooseville."

"Então seria melhor notificarmos a polícia. Telefonarei para o xerife. Fique aí."

"Eu vou enlouquecer, sr. Qwilleran. Eu queria sair e ir eu mesma procurá-lo."

"Você não pode fazer isso, Jody. Você deveria ligar para uma amiga e pedir que ela fique com você. Que tal Francesca?"

"Detesto telefonar para ela tão tarde."

"Telefonarei a ela para você. A filha de um chefe de polícia está acostumada com emergências. Agora desligue para que eu possa telefonar para o xerife. E tome um copo de leite morno, Jody."

 

SÁBADO, 16 DE NOVEMBRO. 

"Possibilidade de tempestades de neve hoje, com queda de temperatura. No momento, quatro graus negativos. Mínima de ontem à noite, dez negativos... E agora vamos às notícias: um caçador declarado perdido esta manhã, foi encontrado pelos assistentes do xerife auxiliados pelos soldados de cavalaria do Estado. Junior Goodwinter está internado em estado regular no Hospital de Pickax, sofrendo de hipotermia e com uma perna quebrada."

Como Qwilleran tomou conhecimento, mais tarde, por intermédio do chefe de polícia Brodie, um assistente da patrulha de rotina das estradas vicinais, no dia de abertura da estação de caça, tinha localizado o Jaguar vermelho estacionado perto de uma área de matas. Quando Junior foi declarado perdido, eles estavam prontos para começar as buscas naquele ponto, usando cães de caça, pelotão montado e um grupo voluntário de fazendeiros que eram hábeis cavaleiros.

"Parece-me", disse Qwilleran à sra. Cobb, à mesa do café da manhã, "que ninguém deveria ir caçar sozinho. Os riscos são muitos."

"Herb sempre vai sozinho", disse ela.

Qwilleran pensou: aquele cara não consegue encontrar alguém para ir com ele. Pensamentos maldosos vinham à sua mente sempre que Hackpole era mencionado. Em voz alta, disse: "Se ele for levá-la para jantar esta noite, por que não o traz para um drinque antes de vocês saírem?"

"Seria agradável", disse ela. "Nós viremos direto para a cozinha. Ele ficará mais à vontade aqui."

"Ele gostaria de dar uma volta pelo museu?"

"Bem, para falar a verdade, sr. Q, ele acha que objetos de arte só servem para guardar poeira, mas eu gostaria de lhe mostrar o porão."

"A senhora nunca me contou nada sobre a história dele", disse Qwilleran, embora Junior lhe tivesse contando algo a respeito.

"Ele cresceu aqui. Depois de uma temporada no exército, trabalhou na costa leste, casou-se e teve dois filhos. Agora estão crescidos e ele nem sabe onde estão."

Isto se adapta ao quadro, pensou Qwilleran.

"Ele voltou para o Condado de Moose por causa das alergias de sua esposa, mas ela não gostou da vida no campo e o deixou."

Fugiu com um motorista de caminhão de cerveja, Qwilleran ouvira dizer.

"Ele é um homem muito solitário e sinto pena dele."

"Ele lhe mostrou a casa da fazenda?"

"Ainda não, mas sei o que quero fazer — arrancar o papel de parede, pintar as paredes de branco e estampá-las."

"Você gostaria de ter o guarda-roupa de pinho? Se quiser, é seu presente de casamento."

Ela arfava. "O senhor quer dizer aquele armário da Pensilvânia? Oh, eu adoraria! Mas o senhor tem certeza de que quer se separar dele?"

"Minha vida nunca será a mesma sem ele", disse. "Talvez eu tenha ataques de ansiedade e períodos de grande depressão, e talvez tenha de começar uma terapia, mas quero que você fique com o armário."

"Oh, sr. Q, o senhor está brincando comigo outra vez."

"Vocês marcaram a data?"

"No próximo sábado, se estiver tudo certo com o senhor. Herb simplesmente queria que fôssemos ao cartório, mas eu disse a ele que queria me casar aqui. Susan Exbridge vai ser minha madrinha. O senhor estaria disposto a ser o padrinho?"

Ele engoliu em seco. "Com prazer, sra. Cobb. A senhora tem uma lista de convidados? Faremos uma recepção com champanhe."

"É muita delicadeza sua, mas não acho que Herb gostaria de uma recepção, sr. Q."

"Avise-me se a senhora mudar de ideia. Quero que tenha um casamento memorável. A senhora tem sido valiosa aqui."

"Há um favor que gostaria de pedir se o senhor não se importa", disse ela. "O senhor falaria com Koko sobre o jardim móvel de ervas? Ele continua a girá-lo".

"A senhora já tentou falar com um gato sobre qualquer coisa?", perguntou Qwilleran. "Ele revira os olhos, coça as orelhas e continua fazendo o mesmo."

"Eu não queria mencionar isso, mas... depois que levei o jardim para um lugar ensolarado, ele o leva de volta para um canto escuro. Eu o vi fazer isso. Ele se apóia nas patas traseiras, põe as patas na prateleira mais baixa e empurra."

Os cantos da boca de Qwilleran tremeram quando ele imaginou Koko empurrando o jardim de ervas pelo chão de pedra do solário como um carrinho de bebê. A luz do sol era fraca em novembro, e aquele gato a queria só para si.

"Por que você não pede a Hackpole para inventar algum tipo de freio para as rodas?", sugeriu.

A campainha tocou.

"Oh, meu caro! Esqueci de lhe dizer", disse a sra. Cobb. "Devo estar completamente descompensada. Hixie Rice avisou que ia passar por aqui quando fosse para o trabalho.

Provavelmente é ela na porta da frente." Ela levantou-se de um salto.

"Continue sentada. Eu irei."

Hixie tinha estacionado seu pequeno carro na entrada circular, e estava olhando para a porta da frente com seus acessórios de latão de brilho deslumbrante, polidos pelo sr. O'Dell.

"É tudo tão imponente, Qwill! Você deveria ter um mordomo", disse ela, enquanto seus saltos estalavam no vestíbulo de mármore branco. "Eu lhe trouxe a última iguaria de nossa linha de comida congelada para gatos: pedacinhos de lagosta em molho de Nantua e enchova."

Koko fez uma aparição imediata no salão e ficou olhando fixamente para Hixie sem expressão, exceto a curva de anzol em sua cauda.

"Acho que ele se lembra de mim", disse Hixie. "Comment ça va, Monsieur Koko?"

"Ik, ik", ele respondeu. Enquanto Qwilleran dava uma volta pela casa com Hixie, Koko os seguiu como um super-zeloso guarda de segurança.

"Que tapetes esplêndidos!", disse ela quando entraram na sala de visitas.

Os dois grandes Aubusson antigos eram de cor creme, com as bordas e os medalhões do centro de rosas desbotadas.

"Observe Koko", disse Qwilleran. "Ele sempre evita pisar no desenho das rosas."

"As velhas tintas vermelhas não eram feitas de alguma espécie de inseto? Talvez ele possa farejá-lo."

"Depois de cem anos? Não tente explicar isso, Hixie. Que tal uma xícara de café?"

Quando eles se instalaram confortavelmente na biblioteca, ela contemplou os quatro mil livros de capa de couro. "Qwill, você acha traumático herdar muito dinheiro? Você se sente vulnerável, isolado ou culpado?"

"Particularmente, não."

"Você não acha as pessoas invejosas, ressentidas ou hostis?"

"Você esteve lendo algum livro, Hixie. De fato, é realmente uma amolação ter muito dinheiro, de modo que eu o transferi para uma fundação filantrópica, e eles se livram dele calmamente."

Ela começou a acender um cigarro, e ele a deteve. "Regulamento da cidade. Proibido fumar em museus... Como está a mãe de seu amigo?"

"Quem?"

"Você disse que a mãe de Tony teve um derrame e que ele precisou voar para a Filadélfia."

"Oh, ela está melhorando, e ele já está de volta, trabalhando em seu livro de culinária", disse Hixie com ar despreocupado. "Eu também vou escrever um livro, sobre os toaletes em restaurantes campestres. São inacreditáveis!"

"Não se queixe. Você tem sorte dos toaletes serem dentro da casa. Qual é sua crítica?"

"Bom, deixe-me lhe contar sobre o café North Pole em Brrr. Eles têm apenas um toalete, e para chegar lá você tem de passar por um cozinheiro muito ocupado e uma mulher de mais de cem quilos lavando louça. Quando o achei, entre uma lata de lixo e um esfregão sujo, o cômodo era escuro, e eu não conseguia encontrar o interruptor. Finalmente o cozinheiro chegou e puxou um fio gorduroso pendurado no teto e, voilà!, o toalete se inundou com a luz de uma lâmpada de quinze watts.

"Meu próximo problema: como fechar a porta. Estava bem aberta — e aparentemente enguiçada. Quando tentei forçá-la, uma escova para vaso sanitário e uma garrafa de alvejante caíram em minha cabeça. Veja você, eles mantinham a porta aberta, enganchando-a em uma prateleira alta onde guardavam o material de limpeza. Fechei a coisa e comecei a apalpar procurando o vaso. Eu ouvia um som gorgolejante sob meus pés, de alguma espécie de dreno no chão. De vez em quando ele engasgava, gorgolejava e borbulhava. Fiquei preocupada com aquilo.

"O assento do vaso estava fixado com um parafuso, e era tipo sela de equitação. O dreno no chão continuava a gorgolejar e a borbulhar. O lavatório enferrujado começou a arfar e entrar em erupção, de modo que saí de lá rapidamente e parei na moita no caminho de casa."

"Hixie, você sempre exagera", disse Qwilleran. "Como estava a comida?"

"Fabulosa! Falo sério! E agora há uma coisa que gostaria de discutir com você. Koko endossaria nossa linha felina de comidas congeladas? Desenharíamos um rótulo 'A Escolha de Koko' e teríamos camisetas de Koko e outros prêmios. Talvez adesivos de para-choques gratuitos dizendo 'Minha Gata Ama Koko'. O que você acha?''

"Não acho que ele simpatizaria com isso. Ele não curte nada, a menos que seja ideia dele."

"Ele poderia fazer comerciais de TV", ela insistiu. "Na próxima semana trarei uma câmera de vídeo e farei um teste com ele."

"Isso eu tenho de ver", disse Qwilleran. "Como estão as coisas no Old Stone Mill?"

"Meu patrão veio jantar ontem à noite e disse que está reescrevendo nosso contrato, dando-nos Tinia participação melhor."

"Parabéns!"

"Ele estava se sentindo muito bem. Tinha uma mulher com ele — não sua esposa — e eles tomaram duas garrafas inteiras do nosso melhor champanhe-"

"Ouvi dizer que o divórcio dele agora é definitivo."

"Ele não está perdendo tempo. Ambos estavam planejando um cruzeiro pelo sul e esperando sair antes que a neve caia."

"Como é ela?", perguntou Qwilleran.

"Do tipo atlético robusto com uma risada alta — o tipo que não consigo tolerar! O sr. X tem um apartamento em nosso conjunto, e acho que ela está morando com ele. For que todos por aqui estão tão preocupados com a neve?"

 

A neve não caiu no sábado, embora ainda estivesse sendo prevista nos boletins meteorológicos de hora em hora. Qwilleran estava ouvindo as notícias das seis horas na biblioteca, quando a sra. Cobb deu uma rápida olhada no cômodo.

"Ele está aqui", ela disse nervosamente.

Qwilleran seguiu-a até a cozinha para saudar o homem que estava roubando sua governanta. Cumprimentou Hackpole com um aperto de mãos, com intenção de ser cordial e sincero, e seus dedos foram esmagados por um aperto possante.

"Disseram que podemos esperar neve esta noite", disse Qwilleran, usando a abertura de conversa padrão do Condado de Moose.

"Não haverá neve ainda por alguns dias", disse Hackpole. "Estive fora, nas florestas, o dia todo, e posso dizer isso pelo modo como os veado-galheiros estão se comportando."

"Ouvi dizer que você é um conhecedor das florestas e gostaria de ouvir mais sobre isso, mas primeiro... que tal um drinque? Sra. Cobb, o que lhe posso servir?"

"O senhor acha que eu poderia tomar um uísque?", ela perguntou de forma acanhada.

"Uma dose e uma cerveja para mim", disse o namorado. Ele estava usando seu traje de noite: um paletó esporte de veludo cotelê com camisa de flanela xadrez. Koko estivera rodeando-o e finalmente se aventurou a farejar seus sapatos.

"Saia!", berrou Hackpole, batendo os pés no chão.

Koko nem sequer pestanejou.

"O que há com esse gato? Ele é surdo?", perguntou. "Eu consigo fazer a maioria dos gatos pular sessenta centímetros acima do chão."

"Koko se considera autorizado a farejar sapatos", disse Qwilleran. "Ele sabe que você tem cachorros em casa."

Os três puxaram as cadeiras para perto da antiga mesa da cozinha, importada de um mosteiro espanhol.

"Parece que você está precisando de uma mesa nova", disse o convidado, observando as marcas de três séculos cuidadosamente preservadas. Ele bebeu de uma vez sua dose e em seguida enfiou três dedos no bolso superior de seu paletó esporte.

A sra. Cobb deu uma palmadinha em sua mão, em forma de uma censura afetuosa. "Proibido fumar, querido. É ruim para as antiguidades, e é proibido por lei em museus."

Ele deixou os cigarros no bolso e olhou cautelosamente para Koko. "Por que ele está sentado ali, me contemplando?", perguntou ele com a irritabilidade de um fumante a quem foi dito para não fumar.

"Koko está avaliando você", disse Qwilleran. "Os dados serão programados no minicomputador de seu cérebro."

"Sempre tínhamos um bando de gatos sem dono ao redor", disse o convidado. "Amarrávamos uma lata de estanho no rabo do gato e tínhamos um ótimo alvo em movimento para um calibre 22." Ele ria, mas ria sozinho.

Qwilleran disse: "Se você amarrasse uma lata na cauda de Koko, ele se sentaria e olharia fixamente para um ponto entre seus olhos até você começar a se sentir tonto. Logo você sentiria uma dor terrível sob a omoplata esquerda, seguida por uma dor abdominal aguda. Seus pés ficariam dormentes e você teria dificuldade para respirar. Depois seu sangue começaria a formigar. Você sabe qual a sensação de ter o sangue formigando?"

A sra. Cobb acariciou a mão de seu amigo. "Ele está só brincando, querido. Ele está sempre brincando." Ela o viu manuseando o maço de cigarros outra vez. "Opa! É proibido!"

Hackpole jogou o maço sobre a mesa.

"Ouvi dizer que você é ótimo no rifle para veado", disse Qwilleran, gentilmente.

"Sim, sou um ótimo atirador. Caço alces, veados, ursos pardos — tudo. Mas o veado-galheiro é meu favorito. Tenho troféus de machos de chifre de oito pontas, mas o de chifre de forquilha tem a melhor carne. É o que eu trouxe ontem. Sempre pego um no primeiro dia."

Qwilleran pensou: e aposto que ele caça ilegalmente no resto do ano.

"Foi uma caçada limpa e deixei que ele sangrasse bastante. Em seguida, destripei-o, coloquei-o nas costas e o carreguei até minha caminhonete. Cheguei em casa ao meio-dia. Ele pesava quarenta e quatro quilos."

Qwilleran subtraiu mentalmente uns dez quilos.

Com uma ponta de orgulho, a sra. Cobb disse: "Herb é um caçador de tocaia".

"Sim. Você não conhece a caça de tocaia, aposto."

Qwilleran teve de admitir sua ignorância.

"Nós, os caçadores de tocaia, não nos sentamos atrás de um arbusto e esperamos alguma coisa aparecer na trilha. Você vai se mexendo em volta, procurando caça — muito devagar, com muito cuidado, muito silencioso. Quando você avista seu macho, você fica escondido, aguardando o melhor tiro. Você tem de se mover como um veado e fazer o barulho que um veado faria. Nada de zíper, nada de isqueiros. Você tem de ter bons olhos e uma boa pontaria. É muito boa, a caça de tocaia."

"Estou impressionado", disse Qwilleran enquanto servia outra dose para seu convidado. "Sei que você é também um bombeiro voluntário."

"Estou deixando", disse Hackpole, com insatisfação. "Muitas mulheres estão entrando. Não me importo que elas tomem conta da cantina quando temos um incêndio a noite toda, mas elas não têm de dirigir caminhão nem ficar perto do local do fogo."

A noiva disse: "Fico contente por ele sair. É muito perigoso".

"Sim, inalação de fumaça, para começar. Ou você está tentando abrir uma saída para o fogo e o telhado cai. Uma vez vi uma mangueira sair do bocal e chicotear em volta, batendo em cabeças e quebrando ossos. Você não sabe a força da água que sai por uma mangueira! Tem muita coisa que as pessoas não sabem."

"Sempre quis saber por que os bombeiros usam tanto o machado", disse Qwilleran.

"É para abrir passagem para o fogo, para que a fumaça e o calor saiam e possamos entrar no prédio e apagar as chamas."

"Alguma ideia do que causou o incêndio no Picayune?"

"Começou no porão. É tudo o que se sabe. Minha oficina fez algum trabalho de reparo naquelas prensas velhas. Eles colocavam um balde embaixo para aparar o solvente quando limpavam a tinta. Havia um monte de trapos e um monte de papel. Mau negócio! A escada atuou como um condutor, e o fogo foi direto para o telhado."

"Bem, querido", disse a sra. Cobb, "nós temos de ir, mas primeiro quero que você veja o pub no porão."

Os construtores da mansão tinham importado um pub inglês de Londres, completo, com bar, mesas e cadeiras de taverna, inclusive lambris de parede.

Era algo que Hackpole iria apreciar. "Ei, você poderia obter uma licença para bebidas alcoólicas e abrir uma taverna aqui embaixo", disse ele.

Quando pegaram o elevador de volta para o piso principal, Qwilleran perguntou onde iam jantar.

"Otto's Tasty Eats. Preço único — você pode comer de tudo." Ele apalpou seu bolso superior. "Onde estão meus cigarros?"

"Você os deixou na mesa da cozinha, querido", disse a sra. Cobb.

"Não estou encontrando esses malditos", ele gritou da cozinha.

"Você verificou em todos os bolsos?"

"Não importa. Tenho outro maço no porta-luvas."

Qwilleran estendeu a mão. "Estou contente de podermos finalmente nos conhecer, e quero parabenizá-lo por achar uma maravilhosa..."

Foi interrompido por um barulho forte. Vinha dos fundos da casa. Ele e a governanta correram para o solário, seguidos vagarosamente pelo convidado. O lugar estava escuro, mas um vulto fantasmagórico, pálido, saiu rapidamente do cômodo onde eles entraram.

Quando as luzes foram acesas, a catástrofe apareceu. No meio do piso estava o jardim móvel de ervas e, perto, estava um vaso de barro, quebrado, com terra e folhagens espalhadas por todos os lados. Outras plantas tinham sido removidas dos vasos e jogadas pelo cômodo, e o piso era uma bagunça arenosa de terra e folhas.

"Oh, meu Deus! Oh, meu Deus!", disse a sra. Cobb em estado de choque e terror.

"É o fantasma de nossa residência", Qwilleran explicou para Hackpole. "A sra. Cobb não lhe contou que temos um fantasma?"

Aristocraticamente, ela disse: "Toda casa velha deveria ter um fantasma", mas havia um tremor em sua voz, e ela olhou em volta com impaciência, procurando o gato culpado.

"Vamos arrumar tudo", Qwilleran tranquilizou-a. "Não se preocupe. Vocês dois vão jantar, e eu arrumarei a bagunça. Tenham uma noite agradável."

Logo que o casal saiu, ele foi procurar os siameses. Como imaginava, eles estavam na biblioteca com ar inocente e satisfeito. Ele pisou em uma protuberância e achou um cigarro sob o tapete Bokhara. Era a contribuição de Yum Yum para a ocasião. Koko estava com o queixo apoiado na pata e a pata na capa de um livro encadernado com couro. Ele levantou a cabeça e virou os olhos brilhantes e esperançosos para o homem.

"Eu não vou ler para você. Você não merece", disse Qwilleran com calma, mas com firmeza. "Foi uma maldade fazer aquilo. Você sabe o quanto a sra. Cobb ama seu jardim de ervas, e o gosto de nossa comida fica melhor por causa das coisas que ela planta. Portanto, não espere nem uma palavra de mim! Fique aí e medite sobre seus pecados, e tente ser um gato melhor no futuro... Estou saindo para jantar."

Ele arrancou o livro de Koko. Era Hamlet outra vez. Antes de recolocá-lo na prateleira ele o cheirou. Qwilleran tinha um faro perspicaz, mas tudo que pôde detectar foi cheiro de livro velho. Ele cheirou Macbeth e os outros títulos que Koko havia desalojado. Todos cheiravam a livro velho. Depois ele comparou o cheiro com outros títulos que Koko até então tinha ignorado: Otelo, Como Gostais e Antonio e Cleópatra. Teve de admitir que todos tinham exatamente o mesmo cheiro — de livro velho. Saiu para jantar.

 

DOMINGO, 17 DE NOVEMBRO. 

"Pouca neve, podendo se intensificar", foi a previsão. Realmente o sol estava brilhando e Qwilleran pensou em um longo passeio.

Durante as panquecas do café da manhã, ele pediu muitas desculpas à governanta. "Eu realmente sinto muito o que aconteceu com seu jardim de ervas, sra. Cobb. O vaso que ele quebrou continha hortelã, que é parente da gatária, eu suponho. Por que ele derrubou os outros é um mistério. Nós substituiremos todos."

"Não será fácil", disse ela. "Quatro das ervas cresceram de semente de estufa da cidade de Herb. As outras eram plantas que não podemos comprar nesta época do ano."

"Não há sentido em castigá-lo. A menos que você pegue um gato no ato e bata no focinho dele, ele não relaciona a repreensão com o delito. Foi isso que Lori Bamba disse, e ela sabe tudo sobre gatos. Não há dúvidas de que foi Yum Yum que roubou os cigarros. Encontrei um sob o tapete e outro atrás da almofada da cadeira."

"E eu achei o maço vazio sob o tapete no corredor lá de cima", disse a sra. Cobb.

"Receio que sua noite tenha começado mau. Vocês gostaram do jantar?"

Ela enrugou os lábios e em seguida admitiu: "Bem, tivemos uma pequena discussão. Quando ele descobriu que a fumaça de cigarro é prejudicial às antiguidades, disse que não posso tê-las na casa da fazenda. Ele é um fumante inveterado."

"Você poderia usar imitações?"

"Eu odeio cópias, sr. Q. Vivi tempo demais com as coisas autênticas."

"Vocês devem chegar a algum acordo."

"Posso pensar em um bom acordo", disse ela decididamente. "Ele deveria abandonar seu vício fedorento. O senhor nunca ouviu o conselho médico fazer qualquer advertência contra antiguidades]

Qwilleran concordou solidário e, em seguida, pediu licença dizendo que queria sair para comprar o Fluxion.

Ele estava se sentindo leve por duas razões. Percebia uma discordância entre a sra. Cobb e Hackpole que poderia arruinar o casamento. E... ele recebera um convite de Polly Duncan.

"Quinta-feira é meu dia de folga", ela dissera. "Por que você não vem a minha casa e eu faço um assado e pudim de Yorkshire? Venha antes de escurecer; é mais fácil encontrar a casa à luz do dia."

Ele andou rapidamente. Ficava a mais ou menos seis quilômetros e meio da periferia de Pickax e, no caminho, encontrou o chefe dos bombeiros entrando na loja à procura do Fluxion de domingo.

Qwilleran disse: "Onde está a neve pela qual o Condado de Moose é famoso?"

"Não saberia dizer, mas esse clima vai continuar até que ela chegue."

"Explique-me uma coisa, Scottie. Pickax tem uma estranha disposição de ruas. Nada faz sentido."

"Ela foi planejada por dois mineradores e um madeireiro no dia de pagamento", disse Scottie, "ou assim costumam dizer."

"Como os caminhões de bombeiro encontram o endereço certo? A cidade é limitada ao sul pela South Street — nada errado com isso — mas é limitada ao norte pela East Street, a oeste pela North Street e a leste pela West Street. O campo de beisebol está na esquina da South North Street com a West South Street. Isso poderia deixar louca uma mente lógica."

"Não procure lógica aqui, rapaz", disse Scottie, sacudindo sua cabeleira grisalha.

"O chefão dos bombeiros voou para cá para investigar o incêndio do Picayune?

"Não precisamos chamá-lo, a menos que pareça incêndio premeditado, ou que alguém morra no incêndio. E esse foi uma combustão acidental causada por trapos de óleo e solventes na sala de impressão."

"Como você fica sabendo que um incêndio foi provocado?"

"Você está planejando um pequeno incêndio, rapaz?"

"Não no futuro previsível, Scottie."

"Bem, se você o fizer, evite deixar uma lata de sete litros na área, pintada de vermelho e cheirando a gasolina. E não risque logo o fósforo. A explosão pode jogá-lo para fora da porta."

"Você é capaz de saber quando o incêndio começa com uma explosão?"

"Sim. Se a porta está para fora das dobradiças — é uma forma. E se as paredes estão carbonizadas profundamente."

Qwilleran acabou seu passeio, parando para uma xícara de café em um restaurante na N. North Street e o jornal de domingo em uma loja na S. West Street.

A tarde, quando estava lendo o Fluxion e contando os erros tipográficos, a campainha tocou, e quando ele chegou à porta encontrou uma face idosa, dentro de um capuz de casaco pesado.

"Boa tarde", disse a visita, com uma voz animada muito alta e aguda. "O senhor tem algum buraco de rato que queira tapar?"

"Desculpe?"

"Buracos de ratos. Eu sou bom para tapar buracos de ratos."

Qwilleran estava confuso. Trabalhadores sempre chegavam pela entrada de serviço; nunca vinham aos domingos; e normalmente eram muito mais jovens.

"Estou dando meu passeio diário", disse o velho. "Está um dia lindo para um passeio. Eu sou Hommer Tibbitt, do Clube dos Veteranos."

"Claro! Não reconheci você no capuz. Entre!"

"Vi seu gato desfilando com um rato na festa, e pensei que talvez você tivesse buracos de rato que quisesse tapar. Eu faria isso grátis."

"Deixe-me pegar seu paletó, e nos sentaremos e conversaremos sobre isso. Você gostaria de uma xícara de café?"

"Tomarei um pouco se for descafeinado, e não seria mal se colocasse um gole de conhaque também para dar início ao funcionamento dessa velha fornalha outra vez."

Eles foram para a biblioteca, o sr. Tibbitt andando vigosamente com os braços e pernas batendo numa coordenação desajeitada. Havia fogo na grade de ferro, e ele ficou de costas para o calor. "Estou acostumado a velhas casas como esta", disse ele. "Fui guarda voluntário do Museu Lockmaster, no condado vizinho. Você ouviu falar dele?"

"Não posso dizer que tenha ouvido. Sou novo por aqui."

"Era uma mansão de um arquiteto naval — toda construída de madeira — e tapei cinquenta e sete buracos de rato. Em uma casa de pedra como esta, os ratos têm de ser mais espertos, mas temos ratos espertos em Pickax."

"O que o trouxe para o Cinturão da Neve, sr. Tibbitt?"

"Eu nasci aqui, e a velha fazenda estava vazia. Também havia outra razão; uma professora de inglês aposentada em Lockmaster estava me perseguindo. Elas gostam de diretores de escola aposentados. Eu era diretor da Escola Superior de Pickax quando me aposentei. Tenho noventa e três anos. Comecei a dar aulas há setenta anos."

"Você deveria ter trazido sua professora de inglês para Pickax", disse Qwilleran. "Nunca ouvi tantos verbos e pronomes massacrados.

O diretor de escola fez um gesto de desespero.

"Nós sempre tentamos fazer o melhor possível, mas há um ditado aqui — desculpe-me a gramática: o povo do campo é diferente e o povo do Condado de Moose é mais diferente ainda."

Apesar das juntas estalando, o velho era animadíssimo, e Qwilleran disse: "A aposentadoria parece combinar com o senhor, sr. Tibbitt."

"Mantenha-se ocupado! Este é o segredo! Agora, se você quiser que eu faça uma inspeção nos buracos de rato..."

Qwilleran hesitou. "Nós temos um zelador, o senhor conhece..."

"Eu conheci Pat O'Dell desde que ele estava na primeira série. Ele é um bom rapaz, mas nunca estudou buracos de rato."

"Antes de lançarmos uma campanha contra mus-musculus, sr. Tibbitt, eu gostaria de gravar algumas de suas lembranças para o projeto de história oral — isto é, se o senhor consentir."

"Ligue a máquina. Faça-me perguntas. Mas antes me dê outra xícara de café com um gole de conhaque — aliás, dois goles — e certifique-se de que seja descafeinado."

A seguinte entrevista com Homer Tibbitt foi transcrita mais tarde:

 

Pergunta: O que o senhor pode nos contar sobre as primeiras escolas do Condado de Moose?

Tibbitt: Retrocedendo bastante, quando minha mãe era professora, elas eram construídas com toras de madeira — apenas uma sala com carteiras em volta das paredes, bancos duros sem encostos e um fogão a lenha no meio. E como tinham corrente de ar! Ela dava aulas em uma escola em que a neve entrava pelas fendas, e havia rastros de coelho na neve sobre o chão.

O que era exigido de um professor naquela época?

Tibbitt: Minha mãe andava cinco quilômetros até a escola e chegava lá cedo o suficiente para varrer o chão e acender o fogão a lenha. Ela lecionava para oito séries em uma sala — sem nenhum livro didático! Seu salário era um dólar por dia mais comida e um quarto de graça em uma casa de família de colonos. Os professores ganhavam dois dólares.

Quantos estudantes havia na sala?

Tibbitt: Trinta ou quarenta matriculados, mas apenas a metade deles aparecia sempre nas aulas.

Quais as matérias que ela lecionava?

Tibbitt: Ela lecionava as três habilidades básicas (leitura, escrita e aritmética), história, geografia, gramática, caligrafia e ortografia. Ela ainda organizava jogos e programas especiais, e era solicitada para conferências sobre os efeitos nocivos da bebida, do tabaco e dos espartilhos apertados.

E os times esportivos? Havia competição atlética?

Tibbitt: Eles jogavam nas férias e havia uma rivalidade entre escolas, mas eram jogos de ortografia, e não de futebol.

As condições tinham melhorado quando o senhor começou a lecionar?

Tibbitt: Ainda tínhamos escolas de uma única sala, mas eram bem construídas e já tínhamos livros didáticos. Ainda não tínhamos banheiro dentro... Eu poderia lhe incomodar com mais uma xícara de café? Minha boca está seca.

O senhor conheceu algum dos Goodwinter ligados ao jornal?

Tibbitt: Eu me aposentei antes de Junior nascer, mas seu pai foi meu aluno. Senior era um menino calmo, com uma mente obsessiva. Eu cresci com Titus e Samson, e conhecia o velho pai. Quando eu tinha onze anos trabalhava como aprendiz de tipógrafo depois da escola. Ephraim Goodwinter fez muito dinheiro na mineração, mas era ganancioso. Já ouviu sobre a explosão que matou trinta e dois homens? Os engenheiros tinham avisado Ephraim, mas ele não queria gastar dinheiro em medidas de segurança. Depois da explosão ele tentou consertar doando uma biblioteca pública.

É verdade que ele se enforcou?

Tibbitt: Ha! Esse é um dos pequenos segredos sujos do Condado de Moose. A família disse que foi suicídio, e o médico legista disse que foi suicídio, mas todo mundo sabia que ele foi linchado e todo mundo sabia quem estava presente no linchamento. A cidade toda compareceu ao seu funeral. Eles queriam ter certeza de que ele não voltaria, era o que se dizia.

O que aconteceu a Titus e a Samson?

Tibbitt: Há uma tola e improvável história sobre o cavalo de Samson, que se assustou com uma revoada de metros e que foi assim que ele morreu. Em seguida Titus foi assassinado pelo motorista da carroça do Picayune. Morreu com seu chapéu-coco na cabeça.

Quem era o motorista da carroça?

Tibbitt: Zack Whittlestaff. Este condado tem muitos nomes curiosos: Cuttlebrink, Dingleberry, Fitzbottom — quase elisabetanos. Eu tinha um Falstaff em uma de minhas classes e um Scroop. Direto de Shakespeare, hein?

O senhor diria que houve uma vendeta contra os Goodwinter?

Tibbitt: Bem, os parentes das vítimas da explosão odiavam Ephraim, você pode ter certeza disso. Ele era um rufião. Não os outros. Zack era um deles. Ele era um rufião. Nenhum êxito na escola. Casou-se com uma moça da família Scroop. Seus dois filhos frequentaram minhas classes. A moça se meteu em encrencas e se afogou. Deixou um bilhete endereçado ao gato dela — provavelmente o único ser vivo que amava a pobre moça.

Fim da entrevista.

 

A sessão de gravação foi interrompida por uma chamada telefônica de Mineápolis. Harry Noyton estava a caminho. Seu avião fretado chegaria no aeroporto de Pickax às cinco e trinta.

"Como está o clima aí?", perguntou Noyton.

"Nenhuma neve, mas está frio. Espero que você esteja trazendo roupas quentes."

"Diabos, eu não tenho nenhuma roupa quente. Eu pego um táxi com aquecimento quando quero ir a algum lugar."

"Não há táxis no Condado de Moose", disse Qwilleran. "Teremos de comprar algumas ceroulas e um chapéu com abas para os ouvidos. Encontro você às cinco e meia."

Ele reservou bastante tempo para dirigir até lá. A estrada do aeroporto passava pelo campo dos veados. Ao anoitecer, eles estariam se alimentando e se movendo por ali. Os caçadores armados estavam nas florestas há três dias, provocando-os e deixando-os nervosos. Qwilleran dirigia com cuidado.

Enquanto esperava a aterrissagem do avião, trocou umas palavras com Charlie. "Você acha que ainda teremos neve neste inverno?"

"Ela está atrasada, mas quando chegar será 'A Grande'."

"Ouvi dizer que você perdeu um bom cliente."

"Quem?"

"Senior Goodwinter."

"Sim. É uma pena. Ele era um cara gentil. Matou-se de trabalhar. A maioria das pessoas está sempre indo para Flórida ou Vegas ou para outro lugar qualquer, mas o que ele sempre fazia era voar para Mineápolis a negócios e voltar no mesmo dia. É por isso que digo que ele se matou de trabalhar. Adormeceu no volante, é o mais provável."

Quando Noyton saiu do avião, usava um paletó leve pendendo em volta de sua figura magra e carregava uma mala do tamanho exato para um aparelho de barbear e uma camisa extra. Esse era seu estilo. Ele se gabava de poder voar pelo mundo com uma escova de dentes e um cartão de crédito.

"Qwill, meu velho! Você parece um fazendeiro, com essas botas e esse chapéu!"

"E você parece um visitante de outro planeta", disse Qwilleran. "Vai assustar os nativos com esse terno com colete. A primeira coisa que faremos amanhã é levar você à Scottie's Men's Shop e comprar alguma camuflagem... Coloque o cinto de segurança, Harry", acrescentou enquanto dava a partida em seu pequeno carro.

"Diabos, nunca coloquei um cinto de segurança em minha vida, exceto nos aviões."

Qwilleran desligou o motor e cruzou os braços. "Há 10 mil veados no Condado de Moose, Harry. Esta é a época do cio. A essa hora da noite, todos os machos perseguem todas as fêmeas e atravessam a estrada de um lado para outro. Se batermos em um veado, você vai sair pelo para-brisa, portanto, coloque o cinto."

"Nossa! As probabilidades são melhores no aeroporto de Beirute!"

"No último inverno, um macho perseguiu uma fêmea na Rua Principal, em Pickax, e os dois atravessaram a vitrina de uma loja de móveis. Aterrissaram em um colchão d'água."

Noyton colocou o cinto de segurança e olhou ansiosamente para a estrada nos dezesseis quilômetros seguintes, enquanto Qwilleran examinava os campos de milho e as matas para ver se havia algum movimento.

"Se encontrarmos um macho, Harry, você quer que eu o ataque violentamente e arrisque a ter suas patas atravessando o para-brisa, ou prefere que eu tente evitá-lo e aterrisse de cabeça para baixo em uma vala?"

"Nossa! Tenho escolha?", disse Norton, agarrando o painel com as duas mãos.

Quando chegaram nas cercanias de Pickax, Qwilleran disse: "Eis o programa. Amanhã apresento você ao prefeito e às pessoas do desenvolvimento econômico. Ele vai colocá-lo em contato com a viúva — e ela é uma viúva alegre, devo acrescentar. Essa noite levarei você para jantar no Old Stone Mill. Depois disso, há uma suíte lhe esperando no palácio que herdei. Você pode escolher entre uma suíte estilo Old English com cortinas laterais na cama, ou Biedermeier com flores pintadas em tudo, ou ainda Empire com esfinges e animais fabulosos para lhe dar pesadelos."

"Para falar a verdade, Qwill, eu ficaria muitíssimo mais à vontade em um hotel. Ele me dá mais flexibilidade. Eu fiz uma refeição em Mineápolis, e agora gostaria de ir para a cama. Alguma objeção?"

"Nenhuma. O Hotel New Pickax fica localizado próximo à Prefeitura."

"Estão construindo novos hotéis, não é?", Noyton disse com óbvia aprovação.

"O Hotel New Pickax foi construído em 1935, depois que o hotel original pegou fogo. Ele tem mensageiro em tempo parcial, TV a cores no saguão, banheiro dentro do prédio e fechaduras nas portas."

Ele deixou Noyton na entrada do hotel. "Telefone-me amanhã, quando estiver descansado, e virei buscá-lo para o café da manhã. Quero ter uma conversa particular com você antes de apresentá-lo ao prefeito."

No final da noite, Qwilleran e seus dois amigos relaxaram um pouco na biblioteca antes de apagar as luzes. Yum Yum sentou em seu colo com as costas em posição adequada para ser acariciada, e Koko sentou-se empinado e alerta no topo da escrivaninha esperando conversa.

Qwilleran começou em tom calmo e conciliatório. "Não sei o que dizer a você, Koko. Normalmente você não é destrutivo — a menos que tenha uma razão. Por que você destruiu o jardim de ervas?"

O gato apertou os olhos e emitiu um pequeno ruído sem abrir a boca.

"Não adianta se fazer de arrependido. O estrago está feito. Se está tentando hostilizar nossa esplêndida governanta, não está percebendo que isso prejudica você mesmo. Você não vai comer tão bem quando ela estiver casada e morando em outro local."

Koko saltou da escrivaninha para a estante de livros e começou a dar patadas na coleção.

"Nada de leituras esta noite. Eu tive um dia cheio. Mas colocaremos a fita do sr. Tibbitt e veremos como ela soa."

O pequeno gravador portátil tornou a voz alta e aguda do velho ainda mais nasalada, e Koko mexeu com a cabeça de um lado para outro e bateu nas orelhas com uma pata.

Houve o toque de um telefone na fita, e a gravação terminou de modo abrupto. Qwilleran acariciou seu bigode pensativamente. "Ephraim foi linchado", falou em voz alta. "Titus foi esfaqueado. O outro irmão — Samson — provavelmente sofreu uma emboscada. E Senior foi... o quê? Sua morte foi um acidente? Ou foi suicídio? Ou foi assassinato?"

"Miau!", ronronou Koko, e Qwilleran sentiu uma pontada significativa nas raízes de seu bigode.

 

SEGUNDA-FEIRA, 18 DE NOVEMBRO. 

"Uma inesperada frente fria fez baixar a temperatura para quinze graus negativos em Pickax ontem à noite, vinte e um negativos em Brrr, mas há indicação de uma tendência a esquentar, com alguma queda de neve esta tarde."

Qwilleran desligou o rádio de seu carro com um gesto de impaciência. Apesar das previsões, o Condado de Moose, ainda não vira sequer um floco de neve. Ele estava dirigindo para o Hotel New Pickax na limusine que herdara do patrimônio de Klingenschoen, para impressionar melhor o visitante Lá de Baixo.

Quando Noyton viu o comprido veículo preto, disse: "Jesus! Você realmente prosperou! Como aconteceu? Você se casou com uma ricaça? Ninguém nunca me contou por que você deixou o Fluxion. Eu pensava que você tivesse se aposentado para escrever um livro".

 

"É uma longa história", disse Qwilleran. "Primeiro quero lhe mostrar onde moro e convidá-lo para um dos memoráveis cafés da manhã de minha governanta."

"Você — com uma governanta e uma limusine? Eu me lembro de quando você morava em um quarto mobiliado e andava de ônibus."

"Na verdade moro sobre a garagem, e estou transformando a casa em museu."

Em estado de êxtase, Noyton entrou na mansão K e disse: "Eu conheço reis na Europa que não vivem tão bem. Uma coisa eu quero saber: por que estou aqui? Por que você mesmo não financia esse jornal?"

Era uma pergunta que Qwilleran estava cansado de ouvir. Explicou sua posição. "Sou escritor, Harry, não um empresário." Ele relatou a história do Picayune e reiterou a necessidade gritante de um jornal no condado.

"Quem vai dirigi-lo?", foi a primeira pergunta de Noyton.

"Arch Riker acabou de deixar o Fluxion. Ele é um grande editor e conhece o negócio até do avesso. Junior Groodwinter é o último de uma longa estirpe dos Goodwinter do jornal. É um jornalista experiente. Sua ficha acadêmica é o máximo, e ele tem energia e entusiasmo sem limites."

"Parece meu tipo de rapaz. Quem é a viúva?"

"Gritty Goodwinter..."

"Eu já gosto dela!"

"Ela quer vender o jornal para um amigo que vai apenas explorar o nome centenário. Naturalmente você poderia esquecer o Picayune e começar alguma coisa chamada Back-woods Gazette ou o Moose Call, mas o Picayune teve uma propaganda de quase um milhão de dólares na última semana e vai ter mais em uma revista nacional."

"Entendi o quadro", disse Noyton. "Vamos tirar o jornal daqueles bastardos."

"A sra. Goodwinter também tem um celeiro cheio de prensas antigas. Você poderia dar início a um museu do jornal."

"Eu gostaria!", exclamou Noyton. "De qualquer modo, o que fez você pensar em mim?"

Qwilleran hesitou. Eles estavam tomando café da manhã, e Koko estava sob a mesa, esperando que alguém deixasse cair uma tira de bacon. "Bem, foi assim: seu nome simplesmente apareceu em minha cabeça." Como ele poderia explicar a um homem como Noyton que o gato tinha atraído sua atenção para um certo livro? Não, era muito forçado.

Depois do café da manhã, os dois homens fizeram uma visita à Scottie's Men's Shop. O proprietário arrastou seus erres e vendeu a Noyton um jaquetão de raccoon, um chapéu Aussie e botas de couro. Durante o resto do dia, o grande homem desajeitado, com um rosto cheio de rugas, foi bastante visível em Pickax.

Ele foi visto saindo do hotel, entrando na Prefeitura, passeando com o prefeito, almoçando com homens influentes no Country Club, saindo do escritório do advogado, entrando no banco, jantando com a viúva Goodwinter e comendo um steak de mais de meio quilo com duas batatas assadas.

Correu um boato de que ele era um texano que estava comprando direitos de exploração de petróleo que tornariam ricos os fazendeiros do Condado de Moose. Ou que era um especulador promovendo escavações perto da praia que arruinariam a indústria de turismo. Ou que era o homem de sondagens de uma usina nuclear que vazaria radiação, contaminaria a água potável e mataria os peixes. Ou que era um representante de Hollywood para um filme importante a ser rodado no Condado de Moose. Os boatos foram relatados pela sra. Cobb, que os ouvira da sra. Fulgrove, a quem tinham sido contados pelo sr. O'Dell.

Enquanto isso, Qwilleran fez uma visita ao hospital para ver o jovem editor do jornal, conhecido por sua energia e entusiasmo sem limites. Junior estava afundado em uma cadeira com a perna engessada, a face sem barbear, e expressão de insatisfação. Jody andava rapidamente de um lado para outro, tentando parecer alegre e ser útil, mas Junior estava obstinadamente melancólico.

"Seu idiota!", Qwilleran saudou o paciente. "Se você ia quebrar uma perna, por que não escolheu um lugar mais confortável?"

Jody disse: "Ele pegou um forte resfriado na floresta, mas não evoluiu para pneumonia. Ele quer ficar no hospital até sua barba crescer."

"Não há mais para onde ir", disse Junior desesperadamente. "A casa da fazenda foi vendida. Os móveis vão ser leiloados na quarta-feira. Eu não posso morar com Jody; tudo o que ela tem é um estúdio."

"Temos camas de sobra e você será bem-vindo", disse Qwilleran

"Não sei. Eu simplesmente não sei o que fazer."

"Bem, tire essa fisionomia sombria de sua face. Tenho boas notícias. Um conhecido meu Lá de Baixo quer comprar um jornal. Ele está preparado para oferecer à sua mãe três vezes mais do que a XYZ ofereceu, e ele vai investir em um novo equipamento de impressão."

Junior parecia desconfiado. "Ele é louco?"

"Louco e rico. Possui edifícios de escritórios, hotéis, clubes, uma cadeia de restaurantes e algumas cervejarias nos Estados Unidos e no exterior, e gosta da ideia de ter um jornal. Mais tarde, ele poderia se dedicar a revistas."

"Não acredito nisso. Estou tendo uma alucinação. Ou você está tendo alucinação."

Jody gritava. "Oh, Juney! Isso não é fabuloso?"

Qwilleran continuou. "Noyton está aqui agora. Os pró-ceres da cidade estão entusiasmados. O plano é de Arch Riker ser o editor e você, o diretor de redação de um jornal de verdade. Eu conheço alguns jornalistas jovens Lá de Baixo que estão desencantados com a cidade, e acharão que este é um bom lugar para se constituir uma família. Não vão ganhar tanto quanto Lá Embaixo, mas viver aqui é mais barato. Quem sabe? Poderíamos conseguir que Noyton financiasse um aeroporto decente e comprasse uma linha aérea. Mas teremos de controlar seu entusiasmo, ou ele construirá um hotel de cinquenta andares no meio de um milharal."

Junior estava sem fala.

"Oh, Juney", sua amiga baixinha continuava gritando alto e agudo, "diga alguma coisa."

"Você tem certeza de que isso vai até o fim?"

"Noyton nunca volta atrás."

"Mas minha mãe tem essa... ligação íntima com Exbridge."

"Ligação! Ela está tendo um caso com Exbridge, e você sabe disso. Mas se ela está com tanta fome quanto parece, esquecerá a XYZ e atacará um peixe maior. Noyton não vai só retinir moedas em seus ouvidos, mas jogará seu charme. As mulheres gostam dele."

"Ele é casado?", perguntou Jody.

"No momento, não, mas é muito velho para você, Jody."

Ela deu uma risadinha.

"Ele também está interessado em comprar as velhas prensas que estão no celeiro, para dar início a um museu do jornal. Seu pai ficaria contente, Junior."

"Oh, nossa!"

"Jody", disse Qwilleran, "você buscaria café para nós na cafeteria? E alguns daqueles cookies de farinha de aveia feitos de papelão e serragem?" Ele entregou a ela uma nota e esperou que desaparecesse. "Antes que ela volte, Junior, responda a umas perguntas, sim? Você acha que o acidente de seu pai pode ter sido suicídio?"

Junior olhou fixamente. "Eu não acho — que ele faria — uma coisa dessas."

"Ele tinha falido. Sua mãe estava tendo um caso. E poderia haver outra razão."

"O que você quer dizer?"

"Você se lembra daquele estranho da capa preta, que chegou aqui de avião? Você achou que ele era caixeiro-viajante. Eu acho que era algum tipo de investigador. Se seu pai estivesse envolvido em alguma coisa obscura, ele poderia saber que o homem estava chegando..."

"Meu pai não faria algo ilegal", protestou Junior. "Ele não tinha esse tipo de cabeça."

"Próxima pergunta: pode ter sido assassinato?"

"O QUÊ!" Junior quase pulou fora do gesso. "Por que fariam... quem faria...?"

"Salte essa pergunta. O que estava na caixa de metal que você tentou salvar depois do incêndio?"

"Não sei. Papai guardava muito segredo em relação a ela, mas eu sabia que era importante."

"De que tamanho era ela?"

Junior espirrou e pegou um lenço de papel.

"Mais ou menos do tamanho de uma caixa de lenço de papel."

"Ouço Jody chegando. Diga: por que seu pai fazia frequentes viagens de um dia para Mineápolis?"

"Ele nunca me contou." A face de Junior ficou vermelha. "Mas sei que ele não estava se dando bem com minha mãe."

Jody voltou com o café. "Não sobrou nenhum cookie de farinha de aveia, por isso eu trouxe melaço."

"Tem gosto de pneu queimado", disse Junior após umas duas beliscadas. "Como foi a festa de inauguração, Qwill?"

"Casa cheia! Comecei a entrevistar os Veteranos e a gravar história oral. Tem algumas sugestões? Entrevistei sua avó e o sr. Tibbitt."

"A sra. Woolsmith", disse Jody em voz baixa. "Ela seria uma boa sugestão."

Junior cocou a barba que crescia. "Você deveria achar alguém que se lembrasse das minas, das fazendas pioneiras e da indústria de pesca antes das lanchas."

"A sra. Woolsmith morava em uma fazenda", disse Jody calmamente.

"Preciso de pessoas com memória fidedigna", disse Qwilleran.

"Não obstante, você terá de desencavar as histórias", Junior advertiu-o. "Os Veteranos gostam de falar sobre sua pressão arterial, suas dentaduras e seus bisnetos."

Jody disse: "A sra. Woolsmith ainda tem quase todos os dentes".

"Bem, pense um pouco nisso", disse Qwilleran a Junior. "Não tem pressa."

"Espere um minuto! Já sei! Tem uma mulher no serviço de atendimento ao idoso", Junior de repente se lembrou. "Ela tem mais de noventa anos, mas é perspicaz e passou toda a sua vida em uma fazenda. Seu nome é Woolsmith. Sarah Woolsmith."

Jody pegou seu casaco e bolsa a tiracolo e saiu calmamente do quarto.

"Ei! Onde ela está indo?", gritou Junior.

Depois dessa sessão no hospital, Qwilleran foi almoçar no Stephanie's, perguntando a si próprio sobre a caixa de metal de Senior e suas frequentes viagens a Mineápolis. O embaraço que enrubesceu Junior significava que ele sabia ou suspeitava da razão. Os jovens que são muito despreocupados com suas próprias relações podem ficar estranhamente embaraçados com as aventuras sexuais dos mais velhos. Enquanto ele estava absorto com essa reação curiosa, ouviu uma voz familiar à mesa atrás dele.

Um homem estava pedindo um sanduíche de rosbife com mostarda e raiz-forte. "Tire a gordura, por favor. E traga uma salada temperada com molho de Roquefort e sem pepino ou pimenta verde."

A voz tinha uma vibração entrecortada que Qwilleran já ouvira. Ele se levantou e foi ao banheiro, olhando de relance para seu vizinho, quando passou. Era o dito historiador que ele havia confrontado na biblioteca. O homem mudara sua imagem de colarinho abotoado para um traje mais informal — menos conspícuo no Condado de Moose —, mas não havia dúvida sobre sua identidade. Era o estranho, cuja visita anterior tinha coincidido com o acidente fatal de Sênior — ou suicídio — ou assassinato.

Qwilleran passou o resto de sua hora de almoço peneirando as possibilidades. Montou cenários que envolviam a caixa de metal... adultério... jogo a dinheiro... conexão de drogas... espionagem. Em nenhuma delas o tipógrafo de conduta discreta parecia encaixar.

 

TERÇA-FEIRA, 19 DE NOVEMBRO. 

"Dia mais quente, com temperatura máxima alcançando seis graus negativos. Possibilidade de nevar esta tarde, e condições de violenta tempestade de neve na quarta-feira. No momento, nossa temperatura é de sete graus negativos."

"Isso é terrível!", disse a sra. Cobb. "Amanhã é o leilão e vai ser no campo. Dizem que o hotel está cheio de negociantes de outras cidades. Vieram esta tarde para a pré-inauguração."

"Não se preocupe. Se eles preveem violenta tempestade de neve, será um belo dia", disse Qwilleran com o cinismo de um lunático do clima do Condado de Moose. "Como eles vão fazer um leilão numa casa como aquela? Não há nada senão uma série de cômodos pequenos."

"O leilão provavelmente será no celeiro. Os cartazes e o rádio diziam para se agasalhar. Foxy Fred está cuidando dele, de modo que tudo será bem feito. Vou esta tarde pegar um catálogo. A que horas a srta. Rice chega? Os gatos estão com fome."

Por recomendação de Hixie, foi dado aos siameses pouquíssimo alimento no café da manhã — apenas o suficiente para evitar que mastigassem tornozelos. A ideia era deixar Koko faminto para seu teste de vídeo, e Yum Yum tinha de sofrer com ele. Eles miavam continuamente enquanto Qwilleran comia seus ovos Benedict. Andavam impacientemente pelo piso, entre os pés, e soltavam um grito agudo quando acidentalmente um pé baixava sobre uma cauda.

Evidentemente, Koko sabia que Hixie era responsável por esse ultraje. A sua chegada, ele a saudou com um brilho fatal nos olhos e abanou a cauda.

"Bonjour, Monsieur Koko", disse ela. Ele se virou e com as pernas rígidas foi para a lavanderia, onde arranhou o cascalho de seu vaso sanitário.

"Eis o meu roteiro", ela explicou para Qwilleran. "Começamos com uma tomada da porta da frente, que denota elegância e prosperidade num relance. Então entramos no salão e a câmera focaliza dos móveis franceses à grande escadaria até o candelabro de cristal."

"Parece telenovela de horário nobre."

"Em seguida damos um zoom no topo da escadaria, onde Koko está sentado, olhando chateado."

"Quem vai dirigir isso", Qwilleran quis saber.

Hixie ignorou a pergunta. "Aí o mordomo anuncia com uma voz formal que os bolinhos de fígado de porco estão servidos. A voz é em off. Você pode fazer essa voz em off, Qwill. Imediatamente Koko corre para baixo, deslizando daquele jeito fluido que ele tem, e a câmera o segue para a sala de jantar."

"Sala de jantar?", Qwilleran resmungou com ar de dúvida. Os siameses estavam acostumados a fazer as refeições na cozinha e relutavam em comer em outro local.

Hixie continuou com sua audácia usual. "Tomada rápida da mesa de jantar de seis metros com os candelabros de prata de um metro, e um único prato elegante de porcelana. Podemos usar um dos pratos da baixela de Klingenschoen com a borda azul, brasão de ouro e monograma K... Aí... corte para Koko devorando avidamente os bolinhos de fígado de porco. Talvez seja preciso fazer várias tomadas; portanto, fique preparado para pegá-lo, Qwill. O truque é evitar tomadas pela retaguarda."

"Isso não será fácil. Gatos gostam muito de se virar."

"Muito bem. Você pode colocá-lo no degrau lá de cima."

Koko estava ouvindo com uma expressão que podia ser descrita apenas como azeda. Quando Qwilleran se curvou para pegá-lo, ele escorregou de suas mãos como uma barra de sabão molhada, desceu rapidamente para o salão como uma nuvem e saltou para cima do armário da Pensilvânia. Desse poleiro de dois metros, contemplava lá embaixo seus perseguidores com ar de desafio. Estava sentado perigosamente perto de um grande e raro vaso de maiólica.

"Não me atrevo a subir e agarrá-lo", disse Qwilleran. "Ele fez um refém. Provavelmente sabe que aquele vaso vale 30 mil dólares."

"Eu não sabia que ele era tão temperamental", disse Hixie.

"Vamos tomar uma xícara de café na cozinha e ver o que acontece quando o ignoramos. Os siameses odeiam ser ignorados."

Em poucos minutos Koko se juntou a eles, andando de um lado para o outro, com demonstração de indiferença. Sentou-se em suas ancas como um canguru e inocentemente lambia um pequeno pedaço de sua pele. Quando acabou essa tarefa, ele se permitiu ser carregado para o topo da escadaria.

Hixie dirigia de baixo. "Arrume-o como um pacote compacto no último degrau, Qwill, olhando para a câmera."

Ele abaixou o gato suavemente até o degrau acarpetado, mas Koko enrijeceu o corpo. Suas costas se dobraram, a cauda enrolou como um saca-rolhas, e as quatro pernas pareciam fora da articulação.

"Tente outra vez", Hixie gritou. "Enfie as pernas dele sob o corpo."

"Venha para cima e enfie as pernas dele sob o corpo," disse Qwilleran, "e eu descerei e filmarei. Sua ideia é boa, Hixie, mas não vai funcionar."

"Bem, traga-o para baixo e faremos um close com a comida para gatos para ver como ele aparece na câmera."

Qwilleran arrastou Koko para a sala de jantar. Até agora o gato era um retorcido, desaprovado, intratável, rosnante pacote de pele.

"Pronto, sra. Cobb!", Hixie gritou em direção à cozinha.

A governanta, que estava a postos como apoio, veio da cozinha com um prato de pasta de porco cinzenta. "Isto será em cores?", perguntou.

Cuidadosamente, Qwilleran colocou Koko em frente ao prato — de perfil para a câmera — enquanto Hixie focava suas teleobjetivas. Koko olhava com aversão para a massa cinzenta mole e amorfa, as orelhas e bigodes abaixados. Levantou uma pata meticulosamente e a sacudiu com repugnância. Em seguida, sacudiu a outra pata e vagarosamente foi embora abanando o rabo.

Qwilleran disse: "Se alguma vez você precisar de uma cena de um gato indo embora vagarosamente, Koko é seu ator".

"Foi tudo novo e estranho para ele", disse Hixie, impávida. "Tentaremos um outro dia."

"Temo que Koko será sempre um gato muito senhor de si. Ele não se preocupa com fama, fortuna e aparecer na mídia. A palavra cooperação nunca esteve em seu vocabulário. Sempre que tento tirar uma fotografia, ele rola nas ancas, aponta uma perna para o céu em uma pose pornográfica e lambe suas partes íntimas... Vamos acabar nosso café."

A sra. Cobb tinha café fresco esperando por eles, e o serviu na biblioteca, com um pouco de suas meia-luas de amêndoas com damasco.

"O que há de novo no negócio do restaurante?", Qwilleran perguntou a Hixie.

"Quase nada. Acabamos de contratar um boy chamado Derek Cuttlebrink. Adoro nomes engraçados. Na escola conheci uma Betty Schipps, que se casou com um homem chamado Fisch, e eles abriram um restaurante de comidas do mar. Você já folheou uma lista telefônica do Condado de Moose? É um terror! Fugtree, Mayfus, Inchpot, Hackpole..."

"Eu conheço Hackpole", disse Qwilleran. "Ele trabalha com carros usados e tem uma oficina de consertos de automóveis."

"Então deixe-me lhe contar uma coisa engraçada. Quando comecei esse trabalho, eu tentava ser sempre encantadora, lembrar das fisionomias e cumprimentar os clientes pelo nome. Fiz um curso para melhorar a memória, e estava usando a técnica de associação. Um dia o sr. Hackpole chegou com uma mulher desmazelada que ele estava tentando impressionar, e eu o chamei de sr. Chopstick. Ele não gostou nem um pouquinho."

"Ele não tem nenhum senso de humor", disse Qwilleran, abaixando a voz, "e essa 'mulher desmazelada' é a sra. Cobb, a governanta de minha preferência, cujas meia-luas de amêndoa e damasco você está devorando."

"Sinto muito, mas você tem de admitir que ela é desmazelada", sussurrou Hixie.

"Não mais desmazelada do que certa mulher de publicidade que eu conhecia Lá Embaixo."

"Você venceu", disse ela. "Por que não vem almoçar hoje no Mill?"

"O que há de especial?"

"Pimenta malagueta. Traga seu extintor de incêndio."

Pouco antes do meio-dia, Qwilleran teve outro visitante. Nick Bamba, marido de sua secretária de tempo parcial em Mooseville, transportando uma pilha de cartas para serem assinadas. Nick foi saudado efusivamente pelos dois siameses farejando, e parecendo saber que ele compartilhava um cômodo com três gatos e uma pessoa cujas longas tranças eram amarradas com graciosos laços de fita. Os dois homens foram para a biblioteca seguidos por duas caudas marrons verticais, enrijecidas com ar de importância.

"Tem tempo para um drinque?", perguntou Qwilleran. Ele estava contente com a visita do jovem engenheiro de visão, que trabalhava na prisão do Estado e compartilhava seu interesse por crimes. "Como andam as coisas na instituição carcerária?"

"Calmas o suficiente para me deixarem preocupado", disse Nick. "Aceito um bourbon. Você gosta desse clima?"

"Chegou a quinze graus negativos em Brrr uma noite dessas."

"O vento frio fazia chegar a trinta e cinco negativos."

"Como está o bebê?" Qwilleran nunca conseguia lembrar o nome ou sexo do filho dos Bamba.

"Ele está excelente. É um bebê obediente e saudável, graças a Deus!"

"É bom saber. Você levou Snuffles ao veterinário?"

"Ele disse que é uma espécie de dermatite que afeta gatos castrados. Ela está tomando hormônios agora."

"Gostei de sua informação sobre o infrator, Nick. Eu notifiquei o xerife, como você sugeriu."

"Vi que agora você colocou cartazes em sua propriedade."

"O sr. O'Dell foi até lá e cobriu todas as possibilidades: proibida a entrada, proibida a caça, proibido acampar."

"Ele é um rapaz extraordinário", disse Nick. "Quando eu estava no segundo grau, ele me livrou de algumas dificuldades cabeludas."

"Alguma novidade em Mooseville?"

"Nunca há novidades em Mooseville. Mas... sabe aquele trailer que localizei em sua propriedade na semana passada? Não é comum nessa área — o tipo da placa. Três tons de marrom. Desde então eu o vi várias vezes no estacionamento do Old Stone Mill, atrás, perto da porta da cozinha. Só por curiosidade, fiz um levantamento rápido da placa. Foi registrada por alguém com o nome de Hixie Rice."

Depois que Nick foi embora, Qwilleran pensou que Hixie dificilmente era o tipo que curte ficar ao ar livre; ele nunca a tinha visto com saltos mais baixos do que oito centímetros.

Ele foi almoçar cedo e pediu seu cozido com pimenta malagueta.

"Koko superou seu enfado?", perguntou Hixie.

"Aparentemente. Quando você acabou de sair pela porta, ele comeu avidamente o bolinho de fígado de porco... Por sinal, quem é o dono daquele trailer bonito no estacionamento?"

Hixie pareceu vaga. "O marrom? Oh, ele pertence a uma de nossas cozinheiras. Seu marido trabalha em Mooseville e tem de viajar quase cem quilômetros por dia, por isso ele dirige seu carro pequeno, e ela dirige o que consome muita gasolina para trabalhar."

O que ela estava ocultando? Qwilleran lembrou que Hixie sempre fora uma mentirosa loquaz, embora não necessariamente com êxito, e sempre dava um jeito de se envolver com elementos marginais no departamento ardoroso. O que mais ela havia inventado? O chef invisível? O livro de culinária dele? A mãe doente na Filadélfia?

 

QUARTA-FEIRA, 20 DE NOVEMBRO. 

Quando o telefone tocou às seis da manhã, Qwilleran sabia que era Harry Noyton. Quem mais teria o descaramento e a insensibilidade para telefonar àquela hora? Ele conseguiu dizer um alô com sonolência e ouviu uma voz insuportavelmente animada dizer: "Levante-se e brilhe! Vai dormir o dia todo? O que acha de me convidar outra vez para um daqueles supercafés?"

"Você espera que eu tire a governanta da cama no meio da noite?", Qwilleran resmungou.

"De qualquer forma, vou dar uma chegada aí. Quero falar com você. Pegarei um táxi e estarei aí em cinco minutos."

"Não há táxis, Harry. Você pode andar. São só três quarteirões."

"Eu não ando três quarteirões desde que saí da infantaria!"

"Tente! É bom para você. Não vá para a casa principal; venha para o meu apartamento em cima da garagem."

Qwilleran vestiu-se rapidamente e abriu uma porta de armário que escondia uma minicozinha. Uma minipia produzia uma água fervente instantânea para sua especialidade culinária, café instantâneo. Um minimicroondas degelava pãezinhos para café da manhã tirados de um minifreezer.

Em pouquíssimo tempo Noyton subiu a escada. "É aqui que você mora? Gosto mais dessas coisas modernas do que daquela sucata na casa grande. Ei! Este sofá é sexy Você traz moças para cá?"

Qwilleran estava sempre rabugento antes de seu café da manhã. "Aqui é onde eu trabalho, Harry. Estou escrevendo um livro."

"Não brinca! É sobre o quê?"

"Você terá de esperar e comprar um exemplar quando for publicado."

"Eu gosto de vocês, jornalistas", disse Noyton com irrefreável bom humor. "Vocês são independentes! Foi por isso que gostei muito dessa ideia de ter um jornal. Esse pedaço de floresta está esperando alguma coisa acontecer. Há muito dinheiro por aqui! As pessoas possuem seus próprios aviões, três ou quatro carros, barcos de doze metros, casacos de peles de marta! Você precisava ver as jóias nas mulheres do Country Club!"

"Você está vendo a riqueza herdada", disse Qwilleran. "Há também pobreza e desemprego, e muitas crianças que não irão para a faculdade. Um jornal corajoso poderia suscitar alguma consciência cívica, promover oportunidades de trabalho e bolsas de estudos. O Fundo Klingenschoen não pode fazer isso sozinho — e não deveria fazer isso sozinho!"

"Maldição! Você pensou em tudo. É isso que gosto em vocês, jornalistas."

Qwilleran colocou canecas de café e um prato de pãezinhos de canela da sra. Cobb sobre a mesa de travertino, própria para jogar baralho. "Pegue uma cadeira, Harry. O que acha do hotel? Você está bem instalado?"

"Nossa, eles me deram a suíte nupcial com cama redonda e lençóis de seda cor-de-rosa!"

"Teve sorte com suas entrevistas ontem?"

"Nenhum problema! Está tudo arranjado! Aquela moça Goodwinter não sabia com quem estava tratando. Fiz cheques de seis algarismos em três diferentes bancos pelos direitos ao nome do Picayune e pelos velhos equipamentos de impressão."

"Como conseguiu isso?"

"O prefeito nos levou a todos para almoçar no clube — ela e os caras do desenvolvimento econômico —, na sala particular de reunião. Foi muito divertido. Quando tudo acabou ela estava me chamando de Harry e eu a estava chamando de Gritty. Meus advogados telefonaram para os advogados dela, o banqueiro dela telefonou para meus banqueiros, e nós dois fizemos um trato. A cidade apóia cem por cento. Criaremos empregos. Faremos uma construção livre de impostos durante dez anos. O jornal pode ser impresso por terceiros até o prédio ficar pronto."

"O que acontecerá com o prédio velho, destruído pelo fogo?"

"A municipalidade vai derrubá-lo e vão pagar a ela uma indenização. Eles o revenderão por um mínimo. Os representantes do condado também entram no acordo. O condado se responsabilizará pela metade de um museu de jornal perto de Mooseville. Atração turística, você sabe... Ei, esses pãezinhos estão gostosos pra danar!"

"O que a empresa XYZ estava fazendo enquanto você cobria o lance do leilão e namorava a viúva?"

"A XYZ nunca teve nada no papel. Foi tudo velhacaria com Gritty. De modo que ela não estava obrigada a fazer negócios com aqueles ladrões. Se uma pobre viúva pode obter três quartos de um milhão em vez de um insignificante número de cinco dígitos, quem irá levá-la à corte?"

Qwilleran pensou: a notícia não vai ser bem recebida por Exbridge. Gritty terá de se mudar de Indian Village rapidamente. A notícia logo se espalhará pela cidade.

Noyton estava eufórico e falava sem parar. "Alguns representantes do condado levaram-me para ver a situação da terra, e — ei, seu exagerado! — não me disseram uma palavra sobre machos no cio atravessando o para-brisa! Eu gosto de Mooseville. Tudo é construído com toras de madeira. Eu gostaria de construir um hotel aqui. A cidade está pronta para um edifício alto. Poderíamos construí-lo com blocos de concreto. O que você acha?"

"Harry, você não tem jeito. Deixe o projeto para os arquitetos."

"Diabos, o dinheiro é meu! Eu digo aos arquitetos o que projetar."

"Bem, quando o jornal for lançado, não tente dizer aos editores como editar."

A face de Noyton assumiu um sorriso confidencial. "Gritty foi conosco para Mooseville e sentamos no banco de trás. Desenvolvemos uma pequena — como você chama isso?"

"Relação."

"Depois ela me levou para jantar no lugar com uma roda que ressoa como uma matraca e chia. Eu disse a eles para me darem uma lata de óleo e uma chave de fenda, e eu sairia e arrumaria a coisa maldita. Mas nos divertimos, Qwill, e quero dizer nos di-ver-ti-mos mesmo. Acabamos em minha suíte, no hotel, com uma garrafa de uísque. Ela não queria ir para a casa em que está morando, por isso fiz um pequeno arranjo no quarto. Não poderia desperdiçar aqueles lençóis cor-de-rosa. Ela é meu tipo de mulher, Qwill — com garra e um corpo atraente. Lembra de Natalie? Minha vida jamais foi a mesma depois que perdi Natalie! E sabe o que mais? Gritty realmente se sente atraída por mim! Vou levá-la ao Havaí para umas pequenas férias. Tenho alguns negócios lá. Nada grande. Só condomínios."

"Seria melhor vocês saírem daqui antes que a neve caia", disse Qwilleran, "e antes que Exbridge venha atrás de você com uma espingarda. Ele acabou de se divorciar por causa de Gritty."

"Não tenho medo de Exbridge", disse Noyton. "Já lidei com otários mais vivos que ele... Oh, a propósito, falei com o amigo de seu editor — encontrei-o no Texas — e ele ficou entusiasmado. Depois Gritty me levou ao hospital para conhecer Junior, e ele entrou em órbita!"

Qwilleran disse: "Descubra se Gritty sabe alguma coisa sobre uma pequena caixa à prova de fogo que desapareceu no incêndio do Picayune. Ninguém sabe o que ela contém, mas Junior acha que é importante. Poderia estar no meio do entulho."

"Sem problemas! Levaremos uma equipe lá e começaremos a peneirar. E eu lhe contei que fiz uma oferta ao Hotel Pickax? Traremos um bom decorador Lá de Baixo e mudaremos o nome para Noyton House."

"Não faça desse jeito. Contrate um arquiteto local e mantenha o velho nome. Você quer que essa boa gente pense que está sendo invadida? O truque é adaptar, e não tomar."

"Está bem, general. Sim senhor, general. Tem certeza de que não quer continuar minha folha de pagamentos?"

"Não, obrigado."

"Agora tenho de ir. Obrigado pelo café. Tomei melhores, mas estava forte, sem dúvida! Tenho umas pontas para amarrar antes de ir para o aeroporto. Fretei um avião para Mineápolis."

"Precisa de uma carona para o aeroporto?"

Noyton negou com a cabeça e parecia orgulhoso. "Gritty vai me levar, mas faça-me um favor, pode ser? Ela deixará as chaves do carro no balcão do terminal com Charlie. Alguém poderia buscar o carro antes que a neve caia. Ela não vai precisar dele. Ela não vai voltar até a primavera."

Noyton tinha acabado de descer a escada, batendo suas botas novas, quando Junior telefonou. "Quer ouvir algumas notícias?"

"Boas ou más?"

"Ambas. A transação do Picayune acabou. O dinheiro está no banco. Arch Riker está a caminho. Vou sair do hospital hoje. Fiz a barba, e vovó Gage está indo para a Flórida, de modo que tenho onde ficar até ela voltar."

"Quais são as más notícias?"

"Jody está furiosa comigo. Não sei o que há de errado com ela. De repente, ela diz que não a ouço e que a ignoro quando outras pessoas estão por perto."

"Você terá de começar a pensar do ponto de vista dela tanto quanto do seu, se vocês dois querem se casar", disse Qwilleran. "Falo a partir de uma triste experiência. Você não sabe o quanto ela se preocupa com você. Ela se preocupou com você quando seu pai morreu, quando você estava enfrentando o incêndio do Picayune, quando você não pôde participar do Fluxion e quando você saiu pelas florestas."

Houve uma pausa, em seguida: "Talvez você tenha razão, Qwill".

Às oito horas Qwilleran sintonizou o noticiário meteorológico da manhã: "Aviso de tempestades para todo o Condado de Moose... Repito: aviso de tempestades".

A sra. Cobb murmurou no interfone: "O senhor está interessado no café da manhã, sr. Q?"

"Não esta manhã, obrigado, mas quero falar com a senhora antes que saia para o leilão."

Ele colocou os siameses na cesta de vime, e os três atravessaram o pátio para a casa principal.

"O senhor ouviu o noticiário meteorológico?", perguntou a sra. Cobb. "Parece 'A Grande'. Espero que ela mantenha distância até depois do leilão. Susan Exbridge vem me pegar às dez horas. Herb me disse para não comprar nada, mas o senhor sabe como sou em leilões!"

"Como está a exposição?"

"Eles têm coisas maravilhosas e, pela primeira vez, vi a casa da fazenda. Mal posso esperar para arrumá-la. Resolvemos nosso problema; Herb vai ter uma ala da casa para fumar, para as armas, as cabeças empalhadas e tudo aquilo. O senhor vai ao leilão?"

"Devo passar um instante para ver o movimento. Qual é a melhor hora para ir?"

"Não muito cedo. Eles apresentam as quinquilharias pela manhã e seguram as coisas boas até mais tarde. Eles oferecerão almoço por volta do meio-dia. Não se esqueça de se agasalhar, e não use suas melhores roupas, sr. Q."

Depois que a sra. Cobb saiu apressadamente, com grande excitação, Qwilleran perambulou pela casa até não aguentar mais o suspense. Quem estaria no leilão? O que estavam comprando? Os preços eram altos? O que as pessoas estavam comentando a respeito? O que estavam servindo no almoço? Vestindo seu paletó de madeireiro, chapéu de lenha-dor e botas, dirigiu-se para a Alameda do Riacho Negro no North Middle Hummock.

As estradas do campo estavam com o tráfego extraordinariamente pesado. Carros, furgões e caminhonetes dirigiam-se para o norte, e alguns estavam voltando, carregados. A oitocentos metros da casa da fazenda ele começou a ver veículos estacionados dos dois lados da estrada. Estacionou onde uma caminhonete estava saindo e andou o resto do caminho. Frequentadores assíduos de leilão estavam se arrastando até seus carros, puxando abajures de chão e cadeiras de balanço. Uma mulher estava carregando uma estante, feita de varetas curvas.

"Eu não me importo, querido", disse para seu esposo carrancudo. "Eu só queria alguma coisa que pertencesse a um Goodwinter, mesmo que fosse apenas uma escova de dentes velha."

Estacionado em frente ao pátio estava um furgão do Leilões de Foxy Fred. Os clientes se misturavam, examinando fileiras de mobílias e acessórios para casa: cobertores, bicicletas, pequenos eletrodomésticos, objetos de cristal, equipamentos de lavanderia, ferramentas de jardim. Os móveis grandes ainda estavam na casa da fazenda; tudo o mais estava abarrotado em um grande celeiro onde as ofertas estavam acontecendo.

Foxy Fred, usando um chapéu de faroeste e jaqueta vermelha, estava na plataforma, discursando para uns cem ou mais compradores apinhados ombro a ombro. "Eis uma genuína lanterna antiga de celeiro, completa com pavio. Quem dá cinco?... Cinco?... Dá quatro... Vejo ali uma nota de um dólar. Dá dois. Dá dois... Tenho dois. Três. Eu vi três? Três! Ninguém dá mais! Quero quatro, quero quatro, quero quatro."

Para fazer lances, os clientes pegavam cartões numerados com uma mulher de jaqueta vermelha, que registrava as vendas em um livro e recolhia o dinheiro. Qwilleran não tinha intenção de fazer lance, mas de qualquer modo pegou um cartão. Era número 124.

"Olhem! Olhem!", o leiloeiro gritou. Os carregadores, de blusão vermelho, estavam erguendo uma cadeira estofada para inspeção do público.

No entanto, os lances eram baixos. Os clientes ou estavam entediados ou sufocados por rajadas de calor vindas de aquecedores elétricos portáteis. De repente, Foxy Fred sacudiu a atenção de todos. Após apenas dois lances, ele permitiu que uma cadeira de balanço saísse por um preço abusivamente baixo. O público protestou.

"Se vocês não gostam, acordem e façam um lance!", censurou-os. Qwilleran saiu do celeiro e encontrou a sra. Cobb e Susan Exbridge no vagão para almoço. "Como está a comida?", perguntou ele.

"Não é exatamente um Old Stone Mill", disse a sra. Exbridge, "mas está boa. Experimente o cozido. É caseiro."

"O novo chef do Mill fez uma grande diferença", disse Qwilleran. "Alguém o conheceu?"

"Eu o vi no estacionamento em Indian Village", ela disse. "Ele é alto, louro e muito atraente, mas parece tímido demais."

A sra. Cobb disse: "O senhor jamais vai imaginar o que comprei! Um berço de cerejeira feito a mão! Estou esperando meu primeiro neto para logo".

"Os negociantes de outros Estados estão fazendo lances altos?", Qwilleran perguntou.

"Eles estão hesitando, aguardando os bons itens, mas muitos estão aqui. Sempre consigo identificar um negociante. Eles têm um ar esperto, mas querem parecer despreocupados. Vê aquele homem baixo com as mãos no bolso? Vê a mulher com um chapéu marrom felpudo? Eles são negociantes. O homem de paletó de lã — acho que é segurança. Ele não está fazendo lances. Nem sequer está prestando atenção. Está apenas observando as pessoas."

Antes de se virar para olhar, Qwilleran teve a intuição de que seria o estranho que dizia ser historiador. O homem estava perambulando sem destino no meio da multidão.

Naquele momento houve um movimento geral em direção ao celeiro, como se atendendo a um sinal. Lá dentro as vozes estavam altas e excitadas, enquanto os carregadores traziam para fora os móveis pesados.

"Olhem! Olhem!", o leiloeiro gritava com uma voz que cortava inteiramente a algazarra. "Cadeira rococó vitoriana, Belter genuíno, eu acho — parte de um conjunto para saleta — duas cadeiras e um canapé. Estofado de crina. Em bom estado. Quem dá dois mil pelo conjunto? Dois mil para começar. Dois mil?"

Um cartão foi erguido.

"ALl!", gritou um carregador, que também fazia as vezes de observador.

"Tenho dois mil. Quem dá dois e quinhentos, quem dá dois e quinhentos, dois e quinhentos. Vamos... Vamos..."

"AQUI!"

"Dois e quinhentos! Quem dá três."

"AQUI!"

"Três! Quem dá quatro. Quatro... Quatro... Quem dá quatro..."

"AQUI!"

A excitação estava aumentando. Era como final de um jogo empatado, e o tempo passando, pensou Qwilleran. Era como a última bola, com um minuto para jogar.

Quando a mobília foi finalmente arrematada por uma quantia que ele considerou astronômica, o público se dispersou com lamentos e suspiros.

Alguém puxou com força a manga de sua camisa, e uma voz de mulher disse: "Como você não fez um lance para a mobília, Qwill?"

"Hixie! Eu não sabia que você gostava de leilões!"

"Eu não, mas meus clientes estavam falando tanto sobre este que fugi quando a multidão do almoço diminuiu."

"Vamos com calma lá para trás!", gritou Foxy Fred, e Qwilleran tomou Hixie pelo braço, dirigiu-a para fora e atravessaram o pátio até a casa da fazenda.

"O material bom está aqui", disse ele, pegando um catálogo. Entre os grandes itens ainda na casa estavam duas camas do general Grant, um órgão de saleta, um biombo de três metros e meio de largura, uma grande arca de pinho, um aparador de nogueira preta com mesa combinando e uma pesada escrivaninha com tampa giratória. "Esta escrivaninha é a única coisa a que eu estaria tentado a fazer um lance", Qwilleran disse a Hixie.

Mas ela realmente não estava interessada nas antiguidades. "Você ouviu o último boato?", perguntou ela.

"Qual? A cidade está cheia de rumores esta semana."

"Não é falso alarme. Uma amiga de meu patrão, que morava com ele, está fugindo para se casar com outro homem. Eles vieram jantar ontem à noite — um casal de passarinhos de meia-idade agindo como crianças. Eu os coloquei em uma boa mesa acima da roda do moinho, e isso deixou o cara louco. Ele pediu uma lata de óleo."

"Exbridge sabe da troca?"

"Aparentemente sim, porque está pálido! Quando chegou para almoçar hoje estava com um humor de matar. Achou o Bloody Mary quente; a sopa fria; a vitela dura. Ameaçou despedir Antoine."

"Quem?"

"Bem, seu apelido é Tony, mas seu nome é Antoine."

Qwilleran estava manuseando o cartão no bolso. "Tenho de voltar para o celeiro, para ver o que está acontecendo", disse ele. "Até mais."

A empolgação no celeiro era contagiante. Ele estava pegando a febre de leilão, sendo os sintomas uma excitação nervosa e um imprudente sentido de aventura.

"Vai esquentar agora, pessoal", gritava Foxy Fred, e uma caixa de carvalho para gelo, um castiçal do século XVIII e uma mesa estilo imperial passaram sob o martelo em rápida sucessão. Em seguida o órgão para saleta e a arca de pinho foram leiloados pelo preço do catálogo.

"Em seguida, teremos uma escrivaninha de tampa giratória de cerejeira", disse o leiloeiro. "Em perfeitas condições. Data de 1881. Origem notável. Pertenceu a Ephraim Goodwinter, proprietário de mina, madeireiro, fundador do Picayune de Pickax e doador da biblioteca pública de Pickax. Começaremos com cinco mil?... Cinco mil?... Quatro mil?"

"Mil", disse uma mulher perto da plataforma. Era a negociante de chapéu marrom felpudo.

"Tenho mil. Ninguém dá mais! Bonita escrivaninha — sete gavetas — vários escaninhos — talvez um compartimento secreto. Quem oferece dois mil?"

Qwilleran levantou seu cartão.

"AQUI!", gritou o observador.

"Dois mil agora. Cheguem a três. Eu ouvi três? Cerejeira sólida. Muita história acompanha a escrivaninha."

"AQUI!"

"Tenho três mil. Quem dá três e meio? Três e meio, três e meio, três e meio..."

A hipnótica ladainha do leiloeiro teve um efeito magnético sobre Qwilleran. Ele levantou seu cartão.

"Três e meio por esta escrivaninha de cinco mil, pessoal. Ninguém dá mais? Quem dá quatro... quem dá quatro... quatro..."

"AQUI!"

A gola rolê de Qwilleran estava apertando seu pescoço. Ele tirou o paletó.

"Quatro mil. Cheguem a quatrimeio quatrimeio quatrimeio. É um brinde. Cerejeira sólida. Latões fundidos.

"AQUI!"

"Quatro mil e quinhentos. Ouvi cinco? Está indo, gente. Vocês vão deixar essa moleza?"

"Quatro e seiscentos!", Qwilleran gritou.

"Quatro e seiscentos! Quem dá quatro e setecentos? Quem dá... quem dá... quem dá..."

"AQUI!"

A mulher de chapéu marrom felpudo queria a escrivaninha e estava aumentando pouco a pouco.

"Quatro e setecentos! Eu ouvi quatro e oitocentos? Quem dá... quem dá..."

Qwilleran ergueu seu cartão.

"AQUI!"

"Quatro mil e oitocentos. Está indo, gente..."

"Quatro e novecentos!", disse a comerciante.

"Cinco!", gritou Qwilleran.

"Este é o espírito! Eu ouvi cinco mil e cem?"

Todas as cabeças viraram para a comerciante de chapéu felpudo. O chapéu balançou em negativa.

"Cinco e cem, eu ouvi? Cinco e cem? Vai por cinco mil. Vai vai, vai... VENDIDA para o número cento e vinte e quatro."

O público aplaudiu. A sra. Cobb abanou seu catálogo com aprovação feroz. Qwilleran esfregou a testa.

Depois de fazer arranjos para liberar a escrivaninha, ele se dirigiu para casa em um confuso estado de choque e agitação. Cinco mil por um móvel parecia uma soma surpreendente para o antigo escritor de artigos do Daily Fluxion. No restaurante em Middle Hummock ele tentou telefonar para Junior, mas ninguém respondia na casa de vovó Gage.

Ao chegar em casa, ele descobriu por quê. Havia uma mensagem na secretária eletrônica. "Olá! Estamos voando Lá para Baixo para casar. Os pais de Jody moram perto de Cleveland. Espero que nos encontremos na volta, antes que a neve caia. E, olhe, eles encontraram a caixa com cadeado de papai!"

A sra. Cobb tinha saído para jantar com Susan Exbridge. Qwilleran remexeu na geladeira e encontrou uma sopa de lentilhas e galinha. Esquentou a sopa para si e cortou a galinha para os siameses.

"Nada de leitura hoje à noite", ele disse a Koko. "Tive agitação demais para um dia. 'O resto é silêncio.' Isto é de Hamlet, caso você não saiba."

O relógio do salão soou sete vezes, e ele sintonizou o boletim meteorológico. Advertências de tempestade tinham sido feitas o dia todo, mas o tempo tinha sido bom. Duvidando, ele ouviu a previsão de sempre:

"Advertências de tempestade acabaram no final desta tarde, mas um alerta de tempestade permanece. Os ventos estão a quarenta quilômetros por hora, podendo chegar a sessenta e quatro. Temperatura no momento: sete graus negativos em Pickax, quatorze negativos em Brrr. E agora uma olhada nas manchetes... Duas pessoas morreram, em um acidente de carro com um veado, na estrada do aeroporto às quatro e quarenta e cinco da tarde. Os nomes estão retidos aguardando notificação dos parentes. O carro indo para o oeste bateu e matou um macho grande, em seguida caiu numa vala..."

"Junior!", gritou Qwilleran. "Não! Não! O azar do Picayune! O quinto a morrer de uma morte violenta! Pobre Jody..."

 

QUINTA-FEIRA, 21 DE NOVEMBRO.

"Avisos de tempestade são válidos outra vez para o Condado de Moose", disse o radialista da WPKX, "com ventos fortes provenientes do noroeste e temperatura inalterada de sete negativos... E quanto às notícias... eis uma novidade sobre o acidente fatal de ontem na estrada do aeroporto. Os mortos às quatro e quarenta e cinco da tarde eram Gertrude Goodwinter, 48, de North Middle Hummock e Harold Noyton, 52, de Chicago. De acordo com o departamento policial, o carro bateu e matou um grande macho, em seguida eles caíram em uma vala e capotaram."

Naquela manhã, Qwilleran foi cedo à delegacia para encontrar Andrew Brodie. Embora os agentes fossem corteses e cooperativos, somente o chefe de polícia de Pickax poderia ser confiável para uma conversa amigável e informações em off.

Brodie estava sentado à sua escrivaninha, sobrecarregado com o trabalho de rotina e se queixando como sempre. "E o que passa pela sua cabeça?", ele perguntou, depois de uma longa crítica aos sistemas de computador.

"Você sabe alguma coisa sobre o acidente fatal de ontem na estrada do aeroporto?"

"O xerife e a polícia estadual cuidaram dele", disse, "mas nós ajudamos a localizar os parentes próximos. Não foi fácil, pois o marido dela acabou de ser enterrado, a mãe está na Flórida, Junior no avião alhures e as outras crianças no oeste. Quanto ao cara que estava com ela — tiveram de tirar da cama advogados e banqueiros para ter informações a respeito dele."

"No início pensei que Junior e Jody tivessem morrido. Sei que Jody é amiga de sua filha, por isso tentei telefonar para sua casa ontem à noite, mas não obtive resposta alguma."

"Minha esposa e eu estávamos fora fazendo uma visita", disse Brodie, "e Francesca estava ensaiando para um concerto na igreja, em que vão usar todas aquelas indumentárias à moda antiga. Será um espetáculo, com certeza. Elas estão fazendo suas próprias roupas."

"Estou ansioso para ver", disse Qwilleran, comentando depois sobre o clima, a estação de caça e o leilão de Goodwinter, antes de retomar a conversa sobre o acidente. "Você sabe quem estava dirigindo?"

"Não há como dizer. Os dois foram arremessados do carro, pelo que entendi."

"Suponho que eles não estavam usando cinto de segurança."

"É o que parece, não é?"

"O xerife acha que eles estavam em alta velocidade?"

"De acordo com as marcas da derrapagem, muito rápido. E de acordo com o médico legista, eles tinham bebido. O macho era bem grande, mais de noventa quilos, oito pontas. Você sabe alguma coisa sobre o cara que estava com ela? O nome é Noyton."

"Tudo o que sei", disse Qwilleran, "é que ele é um conglomerado de um homem só com algumas ex-esposas gananciosas e filhos briguentos, que disputarão o testamento por dez anos."

Quando saiu do escritório de Brodie, Qwilleran começou a se perguntar como Exbridge reagiria à morte de Gritty, e como a ex-sra. Exbridge reagiria à perda da ex-amante de seu ex-marido. Sua curiosidade incitou-o a almoçar outra vez no Old Stone Mill. Hixie estava sempre pronta para dizer umas verdades.

Mas hoje ela parecia nervosa e preocupada. Acompanhava os clientes até as mesas, mas evitava conversa. Qwilleran levou um bom tempo para consumir sua sopa de ervilhas e o sanduíche de carne, fazendo hora até a maioria dos fregueses ir embora. Então ele se ofereceu para pagar a Hixie um drinque, e ela sentou-se à sua mesa mal-humorada.

"Horrível acidente na estrada do aeroporto", ele comentou. "Não era a mulher que morava com seu patrão?"

"Não posso me preocupar com os problemas dele hoje", ela vociferou. "Tenho meus próprios problemas."

"Qual é o problema?"

"Tony saiu de repente esta manhã — justo antes do movimento do almoço! Sem qualquer explicação. Saiu pela janela."

"Pela janela?"

"E pegou meu carro! Meu carro em vez daquele trailer!"

"Eu pensei que o trailer pertencesse a uma de suas cozinheiras."

Hixie descartou a pergunta com as mãos. "Estava em meu nome. Isto é, eu o comprei pelo aniversário dele. Portanto, por que não pegou o trailer? Por que pegou meu carro?"

"Talvez ele tivesse alguma incumbência urgente para fazer."

"Então, por que saiu pela janela do banheiro? E por que pegou suas facas? Você sabe o que isso significa, Qwill — a mesma velha seta no grande coração de Hixie. Se Tony planejasse voltar, ele não teria levado suas facas. Você sabe como os chefs de cozinha são com suas facas. Eles praticamente dormem com elas."

"Alguma coisa extraordinária aconteceu para provocar essa saída rápida?"

Hixie olhou carrancuda para seu copo de Campari, antes de responder. "Bem, mais ou menos às onze horas estávamos preparando o almoço, e um homem bateu na porta com insistência. Ela estava fechada e uma das garçonetes foi ver o que ele queria. Ele perguntou por Antoine Delapierre. Ela lhe disse que aqui não tinha ninguém com esse nome, mas ele entrou assim mesmo. Eu estava dobrando guardanapos na área de serviço, e poderia dizer imediatamente que ele não era exatamente um outro vendedor de batatas fritas. Parecia frio e determinado."

"Ele estava usando um paletó de lã e um chapéu de pele de coelho?"

"Algo assim. De qualquer maneira, perguntei o que ele queria, e ele disse que era amigo de Antoine Delapierre. To-ny ouviu isso, pegou suas facas e fugiu para o banheiro dos empregados. Foi a última vez que tivemos notícias dele. Deixou a janela aberta e disparou em meu carro! Por que algum dia dei àquela besta uma duplicata de minhas chaves?"

Porque ele era alto, louro e muito atraente, pensou Qwilleran. Sentiu pena dela. Hixie, a perdedora de nascença, tinha perdido outra vez. Mas agora ela não estava chorando; estava furiosa.

"Então Tony Peters não era seu verdadeiro nome?", ele perguntou.

"Várias pessoas mudam seus nomes para fins comerciais", disse ela sem preocupação, mas seus olhos estavam piscando nervosamente.

"Você sabe o que está por trás de tudo isso?"

"Não tenho a mínima ideia. Quando o homem entrou na cozinha, fiquei com raiva e ordenei que ele saísse."

Qwilleran se absteve de continuar a conversa. Mais cedo ou mais tarde Hixie soltaria a verdade. Ele contemplava o desenrolar dos acontecimentos com certa satisfação. Sua suspeita tinha se confirmado; o estranho em Pickax era realmente um investigador.

Enquanto isso, ele foi para casa e se vestiu para jantar na casa de Polly Duncan na Estrada MacGregor. Rosbife e pudim de Yorkshire!

A sra. Cobb estava ocupada na cozinha, assando bolinhos de avelãs. "O senhor acha que deveria sair para o campo, sr. Q?", perguntou ela. "Eles avisaram no rádio que vai haver tempestade."

"Eles avisaram que ia haver tempestade ontem, e nada aconteceu. Eu acho que o computador deles está com defeito. Eles estão lendo as previsões do tempo do ano passado. Portanto, não há nada com o que se preocupar."

Ele pegou uma mão cheia de bolinhos de avelã e foi procurar os siameses. Fazia questão de dizer até logo para eles sempre que saía de casa por poucas horas — outra das recomendações de Lori Bamba.

Os gatos não estavam na biblioteca, mas um exemplar de A Tempestade jazia no chão abaixo do busto de Shakespeare. Isso fez Qwilleran parar para pensar, mas só por um momento. Uma vez Koko já tinha arrancado aquele título ameaçador, e não houve nenhuma borrasca. Senior Goodwinter tinha trombado na Velha Ponte de Pranchas, mas o clima estivera bom.

Qwilleran se dirigiu para o norte. Estava frio e havia um vento forte, mas ele estava usando seu jaquetão de camurça com gola de castor, um chapéu de soldado de cavalaria da mesma pele, uma camisa de lã com o xadrez dos Mackintosh, botas de caça, meias de lã e, naturalmente, a comprida ceroula vermelha que era o equipamento padrão no Condado de Moose.

O céu estava nublado e o vento assobiava, mas seu coração estava iluminado e sua mente aquecida com planos. Depois desta noite, ele mergulharia na redação do livro que havia negligenciado; Polly ficaria contente em saber que ele iria escrever de novo.

Esse convite para o jantar era auspicioso; isso significava, ele esperava, que ela estava relaxando o comportamento mistificante que o mantinha à distância de um braço. Ele achava que tinha descoberto a razão para essa reserva. Em um recente encontro do conselho da biblioteca, uma verba do Fundo Klingenschoen foi alocada para a compra de livros, equipamento de vídeo e um novo aquecedor — mas nenhum dólar para o pessoal. Além disso, ele ficou horrorizado ao saber como a bibliotecária chefe ganhava pouco. A casa pequena, o carro velho e o vestuário limitado de Polly, tudo sugeria suas poucas posses. Qwilleran sabia que ela era uma mulher orgulhosa; a discrepância entre os status financeiros dos dois a constrangia? Ele sabia — e ela sem dúvida também sabia — que as fofoqueiras da cidade ficariam muito felizes se pudessem dizer que a bibliotecária chefe estava preparando um golpe do baú.

Com esses pensamentos atravessando sua mente enquanto dirigia, mal percebeu os minúsculos pontos brancos de neve em seu para-brisa. Pouco depois, grandes flocos de neve de aparência cristalina relembravam-lhe uma emoção da infância — ao pegá-los com a língua. Logo uma luz empoeirada de neve era visível no asfalto, e Qwilleran reduziu a velocidade para enfrentar as partes escorregadias.

No momento em que saiu da rodovia principal para a Estrada MacGregor, havia um véu de neve sobre os campos e sempre-vivas — uma paisagem bonita, embora a neve rodopiante obscurecesse sua visão. O crepúsculo parecia estar chegando cedo. Ele estava agora viajando na direção leste e a neve fustigava o para-brisa, rápido o suficiente para tornar os limpadores inúteis. Era quase uma tempestade de neve, disse a si mesmo. Não demoraria muito. Ele dirigia vagarosa e cuidadosamente.

A casa de Polly, ele lembrava a partir de sua visita anterior, clandestina, ficava a cinco quilômetros da rodovia principal — três quilômetros pavimentados, em seguida uma sacudidela e dois quilômetros de cascalho. Não havia outros carros à vista, e agora ele estava dirigindo através de um túnel de neve — densa neve. Gostaria de poder continuar no asfalto; não havia rastros de pneus para seguir. Ninguém tinha passado ali desde que a neve começara a cair. Era impossível distinguir os cruzamentos a partir dos campos abertos.

De repente alguma coisa se agigantou em frente a seu carro, e ele parou justo antes de mergulhar no arbusto. Ele havia chegado na estrada de cascalhos. Agora tinha de virar à esquerda depois de uma certa distância e então virar à direita na continuação da Estrada MacGregor. Fez várias tentativas antes de encontrar a entrada certa. Depois disso, percebeu que estava na direção certa — exatamente a um quilômetro e meio das duas caixas de correio, MacGregor e Duncan. Ele conferiu o odômetro.

O problema era permanecer na estrada; em cada lado do leito estaria a inevitável vala de drenagem. Os limpadores de para-brisa, embora funcionassem furiosamente, eram inúteis contra o ataque violento da neve. Ele estava dirigindo através de um cobertor branco. A capota do carro era invisível. Pelo menos não precisava se preocupar com veados; eles se dirigiriam para um lugar coberto. Ele aprendera isso com Hackpole. Mas não tinha tempo para pensar em Hackpole, nem mesmo em Polly. O problema era dirigir em linha reta, embora estivesse cego pela neve.

Outra vez, um grupo de árvores agigantou-se à frente. Ele estava fora da estrada! Girando o volante, derrapou. Tentou controlar o volante, mas o carro estava deslizando de lado. Estava deslizando em um declive e parou em um ângulo perigoso. A vala de drenagem. Mais um grau de inclinação e o carro capotaria. Ele desligou o motor e ficou ali, rodeado por paredes de neve.

Ele sabia que o carro nunca sairia da vala naquelas condições escorregadias — e daquele ângulo — mesmo com tração dianteira. Considerou as opções. Quanto mais tempo hesitasse, mais a neve se amontoaria no para-brisa e na janela lateral — uma camada opaca, centímetros de espessura e branco-acinzentado no crepúsculo. Abrindo a porta, testou, o terreno sob os pés. Pronto! Era uma vala. Se ele subisse a escarpa chegaria no terreno sólido e poderia andar o resto do caminho. Estava agora a menos de oitocentos metros, sabia.

Colocando o chapéu, puxando as abas até os ouvidos, virando a gola do paletó para cima, puxando com força as luvas sem pontas, ele se preparou para enfrentar as intempéries. Se subisse a ribanceira e virasse à direita, estaria no caminho da fazenda. Teria de prosseguir com fé cega. Na violenta tempestade de neve que o envolvia não havia nenhum sentido de direção; o vento lançava neve de todos os lados.

Agora ele podia sentir alguma coisa sólida sob os pés — o leito da estrada — mas já havia um acúmulo de doze, vinte e cinco ou quarenta centímetros, dependendo do ponto. Ele seguiu em frente, cego pela neve, em um passo cuidadoso de cada vez. Ele tinha um plano! Se deslizasse para a direita, estaria fora do leito da estrada; então desviaria para a esquerda. Se deslizasse para a esquerda, voltaria para a vala oposta.

Desse modo, ele ziguezagueou em frente, não ousando esperar que um carro se aproximasse. Veria os faróis no nevoeiro? Ouviria o motor acima do uivo do vento? O vento estava uivando agora, uivando através das árvores que ele não podia ver.

Embora a gola do paletó e o chapéu próprio para tempestade estivessem bem apertados, e suas calças estivessem emboladas dentro das botas, a umidade inexorável achava seu caminho em cada fresta. Ele batia a neve para fora de suas luvas e tirava a neve do rosto. Não adiantava; em poucos segundos estava coberto de gelo.

Estivera andando pelo que parecia mais de uma hora. Estaria andando em um círculo? Se tivesse inadvertidamente feito uma meia-volta, pensando que a vala da direita era a da esquerda, estaria agora se dirigindo para a estrada principal, quase cinco quilômetros atrás.

A caminhada cega e lenta era desencorajadora, assustadora. Ele estava totalmente desorientado. Colocava as mãos com luvas à sua frente como um sonâmbulo, mas não havia nada a sentir. Mal conseguia manter os olhos abertos. Suas pálpebras estavam úmidas. Estariam se fechando, congeladas? Suas bochechas e testa estavam entorpecidas, em virtude da violência do vento e da umidade. Ele gritou: "Olá!" "Socorro!" Estava gritando no vazio e engolindo neve.

O que faço agora?, perguntou-se — não em pânico mas em defesa. Tinha um desejo opressivo de se abaixar até os joelhos, se enrolar como uma bola e desistir. Continue andando, dizia a si mesmo. Continue andando!

Ele se lembrou das caixas de correio. Tinha de trombar com elas, ou passaria por elas sem vê-las. Avançava pouco a pouco, sem ver, sem sentir, sem saber. A neve estava ficando mais profunda sob os pés e amontoando centímetros de espessura em suas roupas. Parou e tentou respirar normalmente, mas estava ficando sufocado pelo vento e afogado pela neve.

De repente, sem avisar, alguma coisa surgiu à sua frente e ele caiu sobre duas caixas de correio, bem juntas, com trinta centímetros de neve por cima. Jogou os braços em torno delas como um marinheiro se afogando se agarra em escombros flutuantes. Curvou-se por cima delas, tentando recuperar a respiração.

Poucos metros depois estaria a entrada de carros. Mas quantos metros além? Era tentativa e erro. Quando bateu um joelho em um cano de concreto, percebeu que era ali. Lembrou-se de uma cerca que margeava a entrada para carros. Ele seguiria a cerca achando seu caminho. Funcionaria até que a cerca chegasse a um abrupto fim. A casa de fazenda de tijolinhos estaria à esquerda. A casa pequena estaria bem em frente.

Uma vez mais foi tropeçando cegamente no que esperava ser um caminho reto. Estava escuro agora e ele percebeu que a neve não era branca no preto da noite. Mas achava que tinha detectado alguma coisa vermelha no espaço à frente. Seguiu, procurando alcançá-lo, até se sentir em cima de degraus enterrados em um monte de neve. Levantou-se com a ajuda das mãos e dos joelhos. Havia uma porta bem em frente a ele. Ele se apoiou nela, batendo com os dois punhos. A porta se abriu e ele caiu em uma cozinha.

"Oh meu Deus! Qwill! O que aconteceu? Você está machucado?"

Caiu sobre as mãos e os joelhos com uma avalanche de neve se desprendendo de suas roupas. Polly puxou seu braço. Ele se arrastou mais para dentro e ouviu a porta bater atrás dele, interrompendo o barulho da tempestade. Estava agradável e calmo dentro de casa.

"Você está bem? Consegue se levantar? Não pensei que estivesse vindo. O que aconteceu com seu carro?"

Ele queria ficar no chão, mas deixou-a ajudá-lo a ficar em pé.

"Deixe-me limpá-lo. Fique parado."

Ele ficou em pé, em silêncio e imóvel, enquanto ela tirava seu chapéu e luvas e jogava-os na mesa da cozinha. Com toalhas ela removeu a neve e o gelo de seu bigode e sobrancelhas. Tirou uma enorme quantidade de neve de seu paletó, calças e botas. E ele ainda continuava calado e entorpecido no meio de uma enchente de neve e gelo que se derretiam.

Agora ela estava tirando seu jaquetão. "Vamos tirar essas roupas úmidas e lhe darei uma bebida quente. Sente-se. Deixe-me tirar suas botas."

Ela o conduziu até uma cadeira, e ele se sentou obedientemente.

"Suas meias estão secas. Você sente bem os pés? Não estão dormentes, estão? Sua camisa está úmida em volta do colarinho. Vou colocá-la na secadora. As calças também. Elas estão encharcadas. Agradeça a Deus por estar usando ceroulas. Vou buscar uns cobertores."

E ele ainda não conseguia dizer nada. Ela embrulhou-o em cobertores e conduziu-o a um sofá, convenceu-o a se deitar, aconchegou-o sob as cobertas, enfiou um termômetro em sua boca.

"Vou fazer um chá quente e telefonar para o médico para ver se estou fazendo as coisas certas."

Qwilleran fechou os olhos e não pensava em nada, exceto em aquecimento, secura e segurança. Ouviu vagamente um assobio de chaleira, um telefone sendo sacolejado, água sendo derramada em um balde.

Quando Polly voltou com uma caneca de chá quente em uma bandeja, ela disse: "O telefone está mudo. As linhas devem estar soterradas. Eu me pergunto se deveria lhe trazer um escalda-pés. Como você se sente? Você quer se sentar e tomar um chá?" Ela tirou o termômetro de sua boca e examinou-o.

Qwilleran estava começando a voltar a si. Ergueu-se para se sentar, sem ajuda. Aceitou a caneca de chá com um olhar de agradecimento para Polly. Tomou um golinho e emitiu um longo e profundo suspiro. Em seguida proferiu suas primeiras palavras.

"Por este consolo, muito obrigado, pois está um frio penetrante. "

"Graças a Deus!" Ela ria e chorava. "Você está vivo! Que susto você me deu! Mas você está bem. Quando cita Shakeaspeare, sei que está bem."

Ela jogou os braços em torno de seus ombros envoltos pelo cobertor e se aninhou com a cabeça em seu peito. Naquele momento a energia elétrica acabou. Metade do Condado de Moose ficou escura, e a pequena casa mergulhou na escuridão.

 

SEXTA-FEIRA, 22 DE NOVEMBRO. 

Qwilleran abriu os olhos em um pequeno quarto repleto de luz ofuscante.

"Acorde, Qwill! Acorde! Venha e veja o que aconteceu." Alguém de robe azul estava em pé à janela, contemplando encantada a cena externa. "Tivemos uma tempestade de gelo."

Ele estava lento para acordar. Vagamente, se lembrava da noite anterior. Polly... sua casa pequenina... a violenta tempestade de neve.

"Não fique aí, Qwill. Venha e veja. Está lindo!"

"Você é linda", disse ele. "A vida é linda!"

Estava frio no quarto, embora um reconfortante zumbido em algum lugar da casa indicasse que o aquecedor estava funcionando. Fazendo um esforço para sair da cama, ele se enrolou em um cobertor e se juntou a Polly à janela.

O que via era unia paisagem enfeitiçante, um brilho ofuscante sob o sol frio e opressivo de novembro. O ar estava parado. Havia uma calma no campo, agora vitrificado com uma fina película de gelo cintilante. Os campos eram terras de prata. Todos os ramos de árvore, todos os gravetos estavam cobertos de cristal. As linhas de eletricidade e as cercas de arame foram transformadas em cordões de diamantes.

"Não posso acreditar que tivemos uma violenta tempestade de neve ontem à noite", disse ele. "Não posso acreditar que eu estava perambulando na neve lá fora."

"Você dormiu bem?", ela perguntou.

"Muito bem. E não por vaguear pela neve ou comer muito rosbife... Sinto o cheiro de alguma coisa boa."

"Café", disse ela, "e pãezinhos de leite no forno."

Os pãezinhos eram pontilhados de passas e servidos com requeijão e geleia de amoras.

"A cerca que você seguiu na violenta tempestade", disse Polly, "é uma fileira de amoreiras, plantadas por MacGregor anos atrás. Ele deixa as pessoas da fazenda vizinha pegar as amoras, e depois elas nos abastecem com geleias... Alguma coisa está chateando você, Qwill?"

"A sra. Cobb deve estar preocupada. O telefone está funcionando?"

"Ainda não. A energia chegou há meia hora."

"As máquinas de limpar neve chegam a essa estrada?"

"Vão acabar chegando, mas não está na lista prioritária deles. Eles fazem primeiro as ruas das cidades e as rodovias principais."

"Você ouviu alguma coisa no rádio?"

"Tudo está fechado — escolas, lojas, escritórios. A biblioteca não vai abrir até segunda-feira. Todas as reuniões estão canceladas. Eles permitiram a aterrissagem do helicóptero na cobertura do hospital e transportaram um paciente esta manhã. Muitos carros foram abandonados em montes de neve. O corpo de um homem foi encontrado em um carro que saiu da estrada. Ele estava asfixiado. Você carrega uma pá na mala do carro, Qwill?"

Ele negou com a cabeça, com ar de culpa.

"Se você estiver encalhado, tem de limpar a neve do cano de trás. você sabe. para que o aquecedor possa funcionar."

"Se ficarmos impedidos de sair", disse Qwilleran, "eu prefiro ficar impedido aqui com você do que em qualquer outro lugar. E muito tranquilo. Como você encontrou este lugar?"

"Meu marido morreu nesta fazenda, quando estava combatendo um incêndio no celeiro, e os MacGregor foram muito gentis comigo. Eles me ofereceram a casa do arrendatário sem pagar aluguel."

"O que aconteceu com o arrendatário?"

"E uma espécie em extinção. Hoje em dia, os fazendeiros têm empregados que moram em casas na cidade."

"Você não se preocupa com seu senhorio em um clima como este?"

"Ele está na Flórida. Seu filho levou-o ao aeroporto na terça-feira. Eu tenho de alimentar seu ganso de estimação durante o inverno. Você já ouviu falar em babá de ganso?"

De repente, a cozinha estava silenciosa. O aquecedor fizera seu trabalho e se desligara. O motor da geladeira tinha acabado de funcionar. A bomba tinha enchido a caixa e estava em silêncio. Então, o silêncio de dentro e de fora foi quebrado por um ruído distante.

"A máquina de neve!", gritou Polly. "Que extraordinário!"

Da janela oeste eles podiam ver plumas de neve sendo sopradas à altura do topo das árvores. Em seguida, era possível ver a máquina acompanhada de uma outra menor e do carro do xerife. O comboio parou em frente à casa da fazenda, e o pequeno arado se pôs em marcha na entrada para carros. Finalmente, o carro do xerife parou na porta.

"O sr. Qwilleran está aqui?", perguntou o delegado.

Qwilleran se apresentou. "Meu carro está em uma vala, em algum lugar ao longo da estrada."

"Eu o vi", disse o delegado. "Posso levá-lo para a cidade... se o senhor quiser", acrescentou, olhando para a mulher de robe azul.

Qwilleran virou-se com uma cara desapontada para Polly. "É melhor eu ir. Você ficará bem?"

Ela assentiu. "Telefonarei para você logo que as linhas forem consertadas."

O delegado educadamente virou-se enquanto os dois se despediam.

Na volta para Pickax com o policial, Qwilleran disse:

"Creio que essa tempestade tenha sido 'A Grande'."

"Foi, sim."

"Fez muito estrago?"

"O habitual."

"Como você me achou?"

"Vim procurando. Recebi um telefonema do chefe de polícia de Pickax, do prefeito e da patrulha rodoviária." Ele pegou o microfone. "Carro noventa e quatro para Despachos. Estou com ele!"

Pickax, a cidade da pedra cinza, estava agora coberta de branco e cintilante com o gelo. O Park Circle parecia um bolo de casamento. Na mansão K todas as janelas, portas e grades estavam com uma crista de centímetros de neve, e o sr. O'Dell estava passando o aparador de neve, limpando as entradas para carros.

A sra. Cobb cumprimentou Qwilleran com uma demonstração de alívio. "Eu estava doente de preocupação pelo modo como os gatos estavam agindo", disse. "Eles sabiam que alguma coisa estava errada. Koko miou a noite inteira."

"Onde estão eles agora?"

"Adormecidos sobre a geladeira — exaustos! Eu mesma não consegui pregar o olho. Começou a nevar logo que o senhor saiu e tive medo que perdesse seu rumo ou ficasse preso. Os telefones estavam mudos, mas logo que foram consertados telefonei para todos que eu conhecia, até para o prefeito."

"Sra. Cobb, a senhora está tremendo. Sente-se, vamos tomar uma xícara de chá, e eu lhe contarei minha experiência."

Quando ele acabou, ela disse: "Os gatos estavam certos! Sabiam que você estava em apuros".

"Tudo está bem quando acaba bem. Telefonarei para a oficina de Hackpole para tirar o carro da vala. Agora, e o casamento? Está tudo indo de acordo com os planos?"

"Be-e-em", ela disse de maneira indecisa, olhando para baixo.

"Alguma coisa está errada?"

"Bem, Herb está dizendo que não quer que eu trabalhe depois que nos casarmos — pelo menos, não aqui no museu. Ele acha que eu deveria ficar em casa e... e..."

"E o quê?"

Ela umedeceu os lábios. "Fazer a contabilidade das operações comerciais dele."

"O QUÊ?", gritou Qwilleran. "E destruir seus anos de experiência e conhecimento? O homem é louco!"

"Eu disse a ele que não haveria casamento se eu não pudesse trabalhar no museu", ela disse de modo provocador.

"Muito bem! Isso mostrou coragem. Fico contente por ter se auto-afirmado." Ele sabia o quanto ela queria uma casa própria e um marido. Não exatamente um homem. Um marido.

"De qualquer modo, ele voltou atrás, por isso imagino que está tudo certo. Minha roupa de casamento chegou — camurça cor-de-rosa — e é deslumbrante! Meu filho enviou-a de Saint Louis, e não precisa conserto algum. Ele viria para o casamento, se os voos não estivessem tão problemáticos. Além disso, o bebê está para nascer a qualquer momento."

Qwilleran preferia evitar detalhes domésticos, mas a governanta queria tagarelar sobre os planos do casamento.

"Susan Exbridge vai usar cinza. Eu encomendei meu buquê — rosa cor-de-rosa —, e botões de rosa cor-de-rosa para o senhor e para Herb."

"Sei que vocês não querem recepção", disse Qwilleran, "mas nós devíamos estourar uma garrafa de champanhe e brindar à noiva e ao noivo."

"Foi o que Susan disse. Ela quer trazer caviar e steak ao molho tártaro."

Aquelas palavras, as duas cabeças marrons que dormiam no alto da geladeira ergueram-se prontamente.

Qwilleran segurou o riso quando imaginou Hackpole usando um botão de rosa cor-de-rosa e experimentando ovas de peixe e carne crua. "Que tal música de fundo?", ele sugeriu. "Vamos colocar uma fita."

"Oh, seria lindo. O senhor escolheria alguma coisa, sr. Q?"

A noiva vendida, ele pensou. "E onde a senhora quer celebrar a cerimônia?"

"Na sala de visitas, em frente à lareira. Deixe-me mostrar ao senhor o que tenho em mente."

Eles saíram da cozinha seguidos pelos siameses, que gostavam de ser incluídos nas conferências domésticas.

"Poderíamos colocar o juiz atrás de uma mesa pequena", disse a sra. Cobb. "Um fogo na lareira a tornaria aconchegante, e colocaríamos um vaso de rosas cor-de-rosa sobre a mesa, para combinar com as rosas do tapete."

Naquele momento, houve um rosnado explosivo atrás deles. Koko estava eriçando a cauda, arqueando as costas e mostrando os dentes. Suas orelhas e bigodes estavam virados para trás, e seus olhos tinham um brilho mau.

"Céus! O que está errado?", gritou a sra. Cobb.

"Ele está sobre as rosas!", disse Qwilleran. "Ele sempre evita andar sobre as rosas!"

"Ele me deu um susto."

"Ele está tendo um surto de loucura de gato ou vendo um fantasma", disse Qwilleran, mas sentiu um estremecimento incômodo no lábio superior e alisou o bigode vigorosamente.

Quando voltaram para a cozinha, a sra. Cobb disse: "Estou tão agradecida ao senhor por ter me trazido para Pickax, sr. Q. Tem sido uma experiência maravilhosa; encontrei Herb, e vou me casar perto de todas essas coisas que amo. Estou muito grata."

"Não exagere sra. Cobb. A senhora tem feito um grande trabalho e merece o melhor. Tem certeza de que não quer tirar uma semana de folga?"

"Não, simplesmente vamos jantar no Hotel Pickax e passar nossa noite de núpcias na suíte nupcial", disse ela. "Depois teremos nossa viagem de lua-de-mel na primavera. Herb quer me levar para pescar no norte do Canadá."

Qwilleran não conseguia imaginá-la arremessando uma vara de pescar para fisgar uma truta, como não era capaz de imaginar Hackpole dormindo entre lençóis de seda cor-de-rosa. "Mas a senhora poderia pegar uma semana agora, para descansar e relaxar", disse ele.

"Bem", disse ela quase se desculpando, "segunda-feira há um encontro da comissão sobre a decoração da árvore de Natal, e domingo à noite é o concerto do Messias e a recepção com trajes típicos. Eu não perderia isso por nada!"

"E Herb?"

"Ele não faz questão. Há alguma coisa na TV que ele gosta de ver todo domingo à noite."

Qwilleran tinha apreensões sobre esse casamento, e elas estavam ficando mais fortes. Ele se sentiria um hipócrita como padrinho de casamento de um homem de quem sinceramente não gostava, mas estava fazendo isso pela sra. Cobb. Ela era sempre tão generosa com seu tempo, esforço e bom ânimo... tão ansiosa por aprovação e tão embaraçada com elogios... tão entendida em seu campo e todavia tão ingênua em suas emoções... tão pronta para agradar e se adaptar aos caprichos dos outros — especialmente de um homem musculoso e com tatuagem.

"A senhora ainda está tremendo, sra. Cobb", disse ele. "E a excitação e a falta de sono. Suba e se acalme. Eu darei comida aos gatos e sairei para jantar. E não prepare nenhuma comida amanhã; é o dia de seu casamento."

Ela agradeceu-lhe exageradamente e se retirou para sua suíte.

Qwilleran foi para a biblioteca escolher a música do casamento: Bach para a cerimônia e Schubert, com o champanhe e o caviar. Koko seguiu-o e examinou cada fita, cheirando algumas e estendendo para outras uma pata indecisa.

"Um bibliotecário felino já é ruim", disse Qwilleran. "Por favor! Não quero um disc-jóquei felino."

"Niik niik niik", Koko retrucou irritado, girando uma orelha para a frente e outra para trás.

O telefone tocou, e quem chamou disse: "A gentil companhia telefônica retomou os serviços para os camponeses da Estrada MacGregor."

A voz melódica fez a parte de trás do pescoço de Qwilleran arrepiar. "Eu estava pensando em você, Polly. Eu estava pensando a respeito de tudo."

"Deu tudo maravilhosamente certo, Qwill, mas estremeço ao pensar em você naquela neve."

"Eu também estremeço. Quando posso vê-la outra vez?"

"Eu gostaria de ir para o concerto na noite de domingo."

"Por que você não faz uma mala para passar a noite? Se você voltar para casa depois do concerto, vai ter que voltar na manhã da segunda-feira. Você pode escolher entre as suítes do andar de cima: Inglesa, Império ou Biedermeier."

"Eu acho que gostaria da suíte Inglesa", disse Polly. "Sempre quis dormir em uma cama de quatro pilares com cortinas dos lados."

"MIAU!", ronronou Koko.

Ao recolocar o telefone no gancho, suavemente, Qwilleran disse: "E você trate de sua vida, rapaz!"

 

SÁBADO, 23 DE NOVEMBRO. 

"Céu nublado e mais sete centímetros de neve", o meteorologista estava prevendo. No entanto, o sol estava brilhando e Pickax estava cintilando sob o cobertor de neve que caíra na quinta-feira. A neve continuava branca em Pickax.

Quando Qwilleran foi para a casa principal preparar o café da manhã dos gatos, a sra. Fulgrove e o sr. O'Dell estavam no trabalho. "Belo dia para um casamento", ele comentou.

"Certo, mas quando se trata de casamento o diabo controla o tempo", disse o mordomo. "Quando me casei, os céus trovejaram e os cachorros uivaram e os pássaros caíram mortos na estrada, mas durante quarenta e cinco anos vivemos juntos sem nenhuma palavra de raiva entre nós. E quando ela se foi, que Deus a tenha, se foi de repente, sem nenhuma dor ou lágrima."

A sra. Cobb estava nervosa. Sem nenhum alimento para preparar e nenhuma fôrma de bolinhos com passas ao rum para assar, ela se encontrava sem destino pela casa, aguardando a hora de arrumar os cabelos. Os gatos também estavam inquietos, sentindo algum tipo de agitação. Não paravam, e Koko falava consigo mesmo com "miaus" e "iks" particulares, e de vez em quando derrubava um livro da prateleira. Qwilleran estava contente por escapar. Às duas horas tinha marcado uma entrevista com Sarah Woolsmith.

A fazendeira, de noventa e cinco anos de idade, residia há muito tempo no centro de atendimento ao idoso, junto ao Hospital Pickax, dois prédios modernos que pareciam fora do lugar em uma cidade de imitações de castelos e fortalezas.

A enfermeira no balcão de recepção estava esperando Qwilleran. "A sra. Woolsmith está aguardando o senhor na sala de leitura", disse ela. "O senhor terá o local todo para vocês, mas por favor limite sua visita a quinze minutos; ela se cansa facilmente. Ela está ansiosa por ser entrevistada. Não são muitas as pessoas que querem ouvir os idosos falarem dos tempos antigos."

Na sala de leitura ele encontrou uma pequena e frágil mulher, com mãos trêmulas, sentada em uma cadeira de rodas, agarrada a seu xale. Ela estava acompanhada de uma voluntária que a trouxera do quarto.

"Sarah querida, este é o sr. Qwilleran", disse a voluntária, calma e claramente. "Ele está fazendo uma visita cordial a você." De lado, ela sussurrou: "Ela tem noventa e cinco anos e ainda tem quase todos os dentes, mas sua visão não é boa. Tem uma alma bondosa e todos nós a amamos. Sentarei perto da porta e lhe avisarei quando o tempo acabar."

"Onde estão meus dentes?", a sra. Woolsmith perguntou com uma voz aguda e alarmada.

"Uma parte em sua boca, querida, e você está adorável com seu novo xale." Afetuosamente, ela apertou o braço da velha senhora.

Sem desperdiçar tempo em preliminares, Qwilleran disse: "A senhora poderia me contar o que significava viver em uma fazenda quando era jovem, sra. Woolsmith? Vou ligar este gravador." Ele levantou o aparelho para que ela o visse, mas ela olhava vagamente em várias direções.

A seguinte entrevista foi transcrita mais tarde:

 

Pergunta: A sra. nasceu no Condado de Moose?

Sra. Woolsmith: Não sei por que você quer conversar comigo. Eu nunca fiz nada, senão viver em uma fazenda e criar uma família. Tive meu nome no jornal uma vez, quando fui assaltada.

O que a senhora cultivava?

Sra. Woolsmith: Saiu no jornal — sobre o assaltante — e eu cortei o pedaço. Está na minha bolsa, onde está minha bolsa? Tire-o e leia. Você pode ler para mim. Eu gosto de ouvir.

 

Sarah Woolsmith, 65, de Squunk Corners estava sentada sozinha e tricotando um suéter em sua sala de estar, na última quinta-feira, às onze horas da noite, quando um homem com um lenço na face irrompeu e disse: "Dê-me todo o seu dinheiro. Preciso muito dele". Ela lhe deu US$ 18,73 de sua bolsa, e ele fugiu a pé, deixando-a ilesa, mas surpresa.

 

Sra. Woolsmith: Eu costumava tricotar naquele tempo. Tivemos sete crianças, John e eu, cinco deles meninos. Dois morreram na guerra. John morreu na grande tempestade de 37. Foi buscar as vacas e morreu de frio. Quinze vacas e todas as galinhas congelaram. Os invernos eram rigorosos naquela época. Eu tenho um cobertor elétrico. Você tem um cobertor elétrico? Quando eu era jovem dormíamos sob uma pilha de acolchoados, minhas irmãs e eu. De manhã, olhávamos para cima para ver o gelo no teto. Era bonito, todo cintilante. Havia gelo na bilha quando lavávamos o rosto. Às vezes pegávamos resfriado. Mamãe esfregava óleo de gambá e gordura de ganso em nosso peito. Não gostávamos disso. (Risos.) Meu irmão atirava em coelhos selvagens, mas eu conseguia persegui-los e pegá-los. Papai ficava orgulhoso de mim. Papai não tinha cavalo. Ele atava mamãe ao arado e eles lavravam a terra. Não fui à escola. Eu ajudava mamãe na cozinha. Uma vez ela ficou doente e tive de alimentar dezesseis homens. Eu era apenas desse tamanho. Foi na época da colheita. Eles eram todos vizinhos. Os vizinhos ajudavam os vizinhos naquele tempo.

A senhora sempre tinha tempo para...

Sra. Woolsmith: Nós, as mulheres da família, esfregávamos as roupas em uma tina e fazíamos nosso próprio sabão. Eu fazia vinagre e manteiga. Enchíamos os travesseiros com penas de galinha. Tínhamos uma porção deles! (Risos.) Uma vez por semana, pegávamos a carroça para ir à cidade, pegar a correspondência e comprar um centavo de balas de marroio. Eu me casei com John e tínhamos uma grande fazenda. Vacas, cavalos, porcos, galinhas. Nós pagávamos os meninos dos vizinhos para debulhar e descascar. Cinco centavos por hora. Os melros vinham e comiam nosso milho. Uma vez os gafanhotos chegaram e comeram tudo. Comeram a roupa no varal. (Risos.) Os meninos dos vizinhos trabalhavam doze horas por dia, debulhando e descascando.

O que a senhora se lembra do...

Sra. Woolsmith: Nunca trancamos nossas portas. Os vizinhos podiam entrar e pegar uma xícara de açúcar emprestada. Foi um menino vizinho que pegou meu dinheiro. Eu sabia quem era, mas não falei para a polícia. Eu conhecia sua voz. Trabalhou em nossa fazenda algumas vezes.

Por que não contou para a polícia?

Sra. Woolsmith: O nome dele era Basil. Tive pena dele. Seu pai estava na prisão. Matou um homem.

Era a família de Whittlestaff?

Sra. Woolsmith: Eu espiei pela janela quando levou meu dinheiro. Havia luar. Eu o vi correndo por nossos campos de batata. Sabia para onde ele estava indo. O trem de carga parou em Watertown para se abastecer de água. Você podia ouvir o apito a três quilômetros de distância. Um menino caiu nos trilhos e morreu. Eu nunca andei de trem.

Fim da entrevista.

A voluntária interrompeu o monólogo da sra. Woolsmith. "O tempo acabou, querida. Diga até logo agora, e vamos subir para nossa sesta."

A velha senhora estendeu uma mão magra e trêmula, e Qwilleran colocou-a ternamente entre as dele, admirando-se de que aquelas mãos frágeis tivessem um dia esfregado roupas, ordenhado vacas e plantado batatas.

A voluntária o acompanhou até a entrada. "Sarah se lembra de tudo o que se passou há setenta e cinco anos", disse ela, "mas não se lembra dos fatos recentes. A propósito, sou Irma Hasselrich."

"Você é parente do procurador do Fundo Klingenschoen?"

"É meu pai. Ele foi promotor de justiça quando Zack Whittlestaff foi condenado por matar Titus Goodwinter. O menino de Zack, que roubou Sarah e fugiu, voltou anos mais tarde e pagou a ela os dezoito dólares e setenta e três centavos, mas ela não se lembra. Ele também envia chocolates para ela todo Natal. Ele se tornou um homem de sucesso. Mudou seu nome, naturalmente. Se eu tivesse um nome como Basil Whittlestaff, também teria mudado, é claro", ela ria. "Ele vende carros usados e trabalha em uma oficina. E mal-humorado, mas trabalha bem."

Qwilleran foi para casa se vestir para o casamento. Ele não estava antecipando o momento com nenhum prazer. Tinha sido padrinho de Arch Riker vinte e cinco anos antes, quando era jovem e louco, e nem sempre sóbrio. Naquela ocasião, ele se atrapalhou com a aliança, fazendo com que o noivo a deixasse cair, levando duas centenas de convidados a um riso contido.

E agora ele ia ser padrinho de Basil Whittlestaff.

Às cinco horas, o crepúsculo de novembro coloriu a brancura da neve de Pickax de um azul enevoado. Na mansão K, as tapeçarias foram espanadas, os candelabros de cristal estavam acesos e o sr. O'Dell tinha dado início a uma chama festiva na lareira da sala de visitas.

O relógio no salão soou cinco vezes. O sr. O'Dell ligou o toca-fitas, e os acordes solenes de um prelúdio para órgão de Bach ressoaram pela casa. Na sala de visitas, o juiz estava parado em frente à lareira. O noivo e seu padrinho aguardavam no salão. Houve um momento de suspense, e então a noiva e sua madrinha apareceram na galeria acima e iniciaram sua digna descida.

A sra. Cobb, usualmente vista de avental ou de calças compridas ou de macacão folgado, estava quase irreconhecível em seu conjunto de camurça cor-de-rosa. Susan Exbridge sempre estava bem arrumada.

Até que o casal e os padrinhos se colocaram em frente ao juiz, ele já estava com as faces vermelhas do calor às suas costas. Flanqueando-o estavam dois indignados siameses, cujo território em frente à lareira estava sendo usurpado por um estranho.

Qwilleran sentia-se constrangido; Hackpole se mexia nervosamente; e o juiz enxugou a testa antes de começar o breve ritual: "Estamos aqui para unir este homem e esta mulher..."

Apesar da beleza tranquila do lugar, a atmosfera estava tensa.

"Se alguma pessoa puder apresentar um motivo justo pelo qual eles não possam se unir perante a lei, fale-o agora ou cale-se para sempre."

"MIAU!", ronronou Koko.

Hackpole franziu as sobrancelhas; as duas mulheres deram uma risadinha e Qwilleran sentiu uma reação mista de diversão e apreensão.

Herbert tomou Iris como sua esposa, e Iris tomou Herbert como seu esposo. Em seguida, foi a vez das alianças.

Este era o momento de Qwilleran. A aliança estava em seu bolso, e ele se atrapalhou com ela. Bolso errado. Ah! Achou a aliança. E então se desgraçou outra vez. A aliança de casamento caiu de sua mão e rolou pelo tapete.

Yum Yum foi atrás em um segundo. O ladrão residente da mansão Klingenschoen, atraído por qualquer coisa brilhante e dourada, rebateu seu pequeno tesouro para baixo da escrivaninha chinesa, com Qwilleran em louca perseguição. Exatamente quando o troféu estava ao alcance dele, ela o rodou pelo salão — batendo com uma pata, arremessando-o depois, batendo com a outra. Ela estava empurrando a aliança para baixo de um tapete persa, quando o padrinho finalmente interceptou-a.

Em velocidade recorde, o juiz, suando, encerrou a cerimônia. "Eu os declaro marido e mulher." Hackpole, meio embaraçado, deu um beijo em sua esposa, e o resto foram abraços apertados, apertos de mão, congratulações e os melhores desejos de felicidades.

As notas suaves da música para piano de Schubert se ajustavam à ocasião, e a sra. Fulgrove e o sr. O'Dell apareceram com bandejas de champanhe e frios sortidos. Qwilleran, com os dedos cruzados e um copo de suco de uva branca, propôs um brinde à felicidade futura dos recém-casados.

O momento de comemoração foi breve. O juiz deu um gole em seu champanhe e saiu às pressas, e a nova sra. Hackpole persuadiu seu marido a ir para a sala de jantar para ver os entalhes de uma caçada no maciço armário da Pensilvânia.

"Espero que ela seja feliz", disse Qwilleran à sra. Susan Exbridge. "Infelizmente mantive minha reputação como o pior 'padrinho' da história nupcial."

"Mas Koko foi muito bem como o padrinho felino", disse ela. "Sua declaração oportuna quebrou nossa tensão."

Os Hackpole voltaram de sua breve turnê e expressaram o desejo de irem embora, o noivo retinindo as chaves de seu carro e empurrando sua noiva para a porta de trás.

"Espere um minuto", disse Qwilleran. "Dê-me suas chaves e eu trarei o carro para a porta da frente. Não estamos jogando arroz, mas vocês devem sair em grande estilo."

"Mas temos dois carros", objetou Hackpole. "O dela está na garagem."

"Pegue-o amanhã. Ninguém jamais ouviu falar de uma noiva e um noivo saírem em veículos separados."

Qwilleran e Susan observaram a saída deles para a suíte nupcial do Hotel New Pickax. "Bem, lá vão eles", disse ele, "para melhor ou pior."

Susan aceitou o convite para jantar no Stephanie's, onde velas reluziam sobre as mesas com toalhas até o chão, e cores leves e música suave criavam um ambiente romântico. A noite era véspera do oratório Messias, e eles discutiam os planos para a recepção de gala no museu após a performance.

"Os gêmeos Fitch vão gravar vídeos", disse Susan.

Qwilleran assentiu. "Meus amigos Lá de Baixo recusam-se a acreditar nas atividades culturais desse condado remoto."

"Considero que somos o Luxemburgo do nordeste central dos Estados Unidos", disse Susan, com um dramático floreio de suas expressivas mãos. "E deixe-me lhe contar sobre a surpresa que planejamos para a audiência do Messias. Você sabe por que é tradição ficar em pé durante o 'Aleluia'?"

"Ouvi dizer que o rei inglês ficou tão impressionado quando o ouviu pela primeira vez que ficou em pé e, quando o rei se levanta, todos se levantam. É essa a lenda?"

"Certo! Por volta de 1742. Bem, o rei George II assistirá à performance amanhã à noite, com toda a corte real e adereços do século XVIII. Nosso grupo de teatro vai encená-lo... Você deveria se juntar ao grupo de teatro de Pickax, Qwill. Você tem uma boa voz e uma boa presença. Poderíamos representar Bell, Book and Candle e Koko poderia desempenhar o papel de Pyewacket."

"Eu tenho dúvidas se ele gostaria de desempenhar o papel de um gato", disse Qwilleran. "Ele é um esnobe insuportável. Receio que ele desempenharia melhor o papel principal em Ricardo III."

O jantar com Susan foi uma continuação agradável do casamento que o angustiara. Ele deu-lhe o buquê de rosas cor-de-rosa para levar para casa, e ela deu-lhe um beijo teatral. Temporariamente ele esqueceu o sentimento de perda de uma governanta morando com ele e sua reprovação quanto à escolha do marido. Ele esqueceu até o momento em que fez sua verificação noturna da casa, antes de se retirar para seu apartamento.

Um volume fino jazia sobre o tapete da biblioteca. Era um exemplar de Otelo, e a citação mais conhecida veio à cabeça de Qwilleran: "Deveis falar de um homem que não amou com sensatez, mas que amou excessivamente".

Enquanto carregava os siameses pelo pátio, na cesta de vime, lembrou-se de uma outra linha, e seu bigode eriçou. "Matai-me amanhã! Deixai que eu viva esta noite!"

 

DOMINGO, 24 DE NOVEMBRO. 

Mais três centímetros de neve caíram durante a noite. Quando Qwilleran carregou a cesta de vime para a casa principal, na manhã de domingo, os sinos de bronze da Velha Igreja de Pedra e as gravações de repiques da Pequena Igreja de Pedra anunciavam os serviços da manhã. O sr. O'Dell, que tinha assistido à missa cedo, estava ocupado com o aparador de neve.

"Certo, depois vou limpar a entrada para carros e o estacionamento para a festa à noite", disse ele. "Acho que não nevará mais hoje."

Qwilleran aumentou a temperatura do termostato na casa e estava preparando o café da manhã dos gatos, quando ouviu a porta de trás se abrir e fechar com violência. Deve ser O'Dell, ele pensou, procurando uma bebida quente em uma manhã fria. Quando ninguém apareceu e ele ouviu um choramingo no corredor de trás, foi investigar.

"Sra. Cobb!", exclamou. "O que está fazendo aqui? O que lhe aconteceu?"

Sua face estava pálida e seu cabelo desarrumado; ela estava se apoiando com fraqueza na porta de trás. A visão de Qwilleran, ela se debulhou em lágrimas, cobrindo o rosto com as mãos.

Ele levou-a para a cozinha e fez com que se sentasse em uma cadeira. "Como a senhora chegou aqui? A senhora veio andando na neve. Onde estão suas botas?"

"Eu não sei", ela se lastimou. "Eu apenas... fugi. Eu tinha de sair."

"O que houve de errado? A senhora pode me contar?" Ele tirou os sapatos úmidos dela e embrulhou seus pés em toalhas.

Ela balançou a cabeça e um suspiro se transformou em lamento. "Eu cometi... eu cometi um terrível... erro."

"Não compreendo, sra. Cobb. Não pode me dizer o que aconteceu?"

"Ele é um monstro! Eu me casei com um monstro! Oh, o que farei?"

"A sra. está machucada?"

Ela negou com a cabeça, derramando uma torrente de lágrimas.

Qwilleran estendeu-lhe uma caixa de lenços. "Ele abusou da senhora fisicamente?"

"Oh-h-h-h! Não posso falar sobre isso!" Ela abaixou a cabeça e balançou compulsivamente.

"Ele estava bebendo excessivamente?"

Ela fez um trêmulo sim.

"Farei uma xícara de chá."

"Não posso... não vai parar", ela choramingou. "Passei a noite toda vomitando."

"É melhor tomar um pouco de água, pelo menos. A senhora provavelmente está desidratada."

"Não consigo manter nada no estômago."

"Então chamarei o médico." Ele discou o número da casa do dr. Halifax, e a enfermeira que cuidava da esposa inválida do doutor disse que ele estava na igreja.

Qwilleran correu até o jardim e fez sinal para o mordomo. "Uma emergência, sr. O'Dell. Vá rapidamente à Velha Igreja de Pedra e traga o dr. Hal. Procure uma cabeça grisalha, então siga pelo corredor central e acene para ele."

"Pegarei a máquina de neve", disse O'Dell, com um enigmático franzir de sobrancelhas.

Ele saiu zunindo na máquina e Qwilleran voltou para a cozinha a tempo de ver Koko se roçando nas ancas da sra. Cobb. Quando ela se abaixou para acariciá-lo, ele pulou em seu colo. Ela deu-lhe um abraço apertado, e ele se permitiu ser abraçado assim, mexendo de leve as orelhas quando as lágrimas dela caíam.

Assim que a máquina ruidosa voltou, Qwilleran foi até a porta de trás.

"Cronometragem exata", disse o velho doutor. "Você me tirou justamente antes do sermão. Qual é o problema?"

Qwilleran explicou-lhe brevemente e o levou à cozinha. Em um instante o dr. Hal voltou. "Melhor levá-la ao hospital. Onde está seu telefone? Eu pedirei um quarto privativo."

"Não sei o que houve", disse Qwilleran em voz baixa, "mas seu marido deve ir procurá-la. Acho que o senhor deveria especificar a proibição de visitas."

Ele ajudou o dr. Hal levar a paciente até a porta de trás.

"Precisarei... de algumas coisas", ela disse fracamente.

"Nós faremos uma mala e a enviaremos para o hospital. Não se preocupe com nada, sra. Cobb." Qwilleran nunca seria capaz de chamá-la de sra. Hackpole.

O mordomo trouxe o carro, e Qwilleran lhe disse: "Enquanto saio, você poderia ir à Pequena Igreja de Pedra e pegar a sra. Fulgrove, quando terminar o serviço? Peça a ela para vir e fazer uma mala com as coisas pessoais da sra. Cobb, para uma pequena estada no hospital."

A ida para o hospital foi em silêncio, exceto para um lamento casual. "Estou trazendo muitos problemas para o senhor."

"De forma alguma. A senhora foi sábia em voltar para casa."

Quando ele voltou, após deixar a paciente, a sra. Fulgrove andava de um lado para outro com ar de importância. "Coloquei  na mala tudo o que consegui lembrar", disse ela, "o que não achei fácil, já que eu mesma nunca estive em um hospital, graças a Deus. Coloquei o que achei ser certo e o pequeno rádio perto da cama, e procurei a Bíblia, mas não consegui encontrar, por isso coloquei a minha e deve ser um conforto para ela."

"A sra. Cobb pediu à senhora para trabalhar hoje à noite durante a recepção, sra. Fulgrove?"

"Sim, ela pediu, mas considerando que hoje é domingo — e que não trabalho no dia do Senhor — eu não poderia receber dinheiro por isso, mas ajudarei com prazer, considerando que a pobre alma está no hospital, e estou agradecida por minha saúde."

Qwilleran pediu ao mordomo para entregar as coisas essenciais da sra. Cobb no hospital. "O senhor acha que podemos administrar a recepção sem ela, sr. O'Dell?"

"É claro que faremos o melhor que pudermos. As senhoras do clube precisarão de ajuda com as taças para ponche e coisas assim. Agora, devo levar os pequenos para o outro lado do pátio antes que a festa comece?"

"Acho que não. Os gatos gostam de uma festa. Vamos deixá-los ficar na casa."

"Quando as senhoras do clube saírem para o concerto, trancarei a casa e irei à igreja, mas estarei de volta antes que termine. A sra. Cobb ia acender todas as luzes e acender todas as lareiras. E muito ruim que ela não esteja se divertindo agora. O que é que a está afligindo?"

"Um tipo de vírus", disse Qwilleran.

Por volta do meio-dia, o telefone tocou e uma voz grossa perguntou: "Onde está ela? Onde está minha esposa?"

"É o sr. Hackpole?", Qwilleran perguntou. "Você não sabe? Ela está no hospital. Ela teve um tipo de ataque, segundo disseram."

Com uma explosão de irreverência, Hackpole desligou.

A tarde, ao telefonar para o hospital, Qwilleran ficou sabendo que a paciente estava descansando calmamente e se restabelecendo, mas que nenhuma visita era permitida, por ordem do dr. Halifax.

A tarde, Susan Exbridge e sua comissão chegaram para preparar o ponche e decorar a mesa. No mesmo momento Polly Duncan chegou com sua mala para uma noite. As mulheres se cumprimentaram com polidez, mas não calorosamente, e a comissão pareceu surpresa por ver Polly na propriedade.

A caminho do Old Stone Mill para jantar, Qwilleran disse a Polly: "Vi que você conhece Susan Exbridge".

"Todo mundo conhece Susan Exbridge. Ela está em todas as organizações e em todas as comissões."

"Ela acha que eu deveria me juntar ao grupo de teatro."

"Você vai ver que ele consome muito tempo", Polly o advertiu com irritação. "Se você está empenhado em escrever seu livro, o grupo de teatro interferiria muito."

Ela falou em um tom amargo, que não lhe era usual, e Qwilleran evitou mencionar a sra. Exbridge outra vez.

No restaurante, os clientes estavam esperando em pé, em fila, e Hixie tentava freneticamente fazer com que todos se sentassem. Não tinha tempo para papo. Qwilleran e sua convidada tiveram de aguardar uma mesa e um cardápio. Considerando o teor da conversa na sala de jantar, todos iriam ao concerto e todos estavam entusiasmados.

Qwilleran disse a Polly: "Minha mãe costumava cantar no coro do Messias todos os Natais. Meu número favorito é o coro do 'Aleluia', especialmente se eles tiram as pausas. Mas gosto daquela pausa de dois segundos antes do último aleluia — dois segundos de silêncio mortal e então POU!"

Hixie entregou-lhes os cardápios com desculpas pela demora. Preso com clipes à pasta, havia um pequeno cartão sugerindo um "pronto-para-ser-servido" Especial do Concerto. Preso ao cardápio de Qwilleran havia outro pequeno cartão escrito a mão por Hixie: "Quero uma conversa particular. Telefono amanhã".

Pouco depois das seis e trinta, o restaurante esvaziou-se, e os que tinham ido jantar convergiram para a Velha Igreja de Pedra. O altivo santuário estava completamente cheio, tanto os bancos com almofadas quanto as cadeiras dobráveis nos corredores laterais. Os três primeiros bancos estavam reservados e o público estava encantado. Palpites e boatos circulavam. A expectativa era evidente.

"Você tem alguma objeção de se sentar na fileira de trás no corredor lateral?", Qwilleran perguntou a Polly. "Quero sair antes da última nota, para que possa checar o museu antes que os convidados cheguem."

Às sete horas, o sr. O'Dell sentou-se em uma cadeira dobrável, e os dois homens trocaram acenos.

Em seguida, os executantes apareceram — primeiro a orquestra de uniforme cinza. O coro enfileirado usava perucas empoadas e indumentárias pastel — as mulheres de fichus de rendas e saias volumosas; os homens de calções até os joelhos, coletes e meias compridas. Finalmente, os solistas fizeram uma entrada dramática com veludos de tonalidades de pedras preciosas, criando grande excitação no público.

O maestro virou-se de frente para os ouvintes. "Senhoras e senhores, levantem-se todos para Sua Majestade, o Rei George."

As portas de trás foram escancaradas, e enquanto a orquestra tocava a música da coroação o grupo real descia até o corredor do centro em solene procissão — uma panóplia de veludo vermelho, arminho, seda branca e damasco-púrpura. O público ofegou, logo murmurou maravilhado e aplaudiu com deleite.

Qwilleran sussurrou para Polly: "Gostaria que minha mãe pudesse ter visto isso. Ela teria se extasiado".

A igreja era famosa por sua excelente acústica; o coro estava bem ensaiado; os solistas e instrumentistas eram profissionais; o órgão de tubos era magnífico. Foi uma performance que Qwilleran jamais esqueceria — por muitas razões.

Perto do fim do oratório, o sr. O'Dell saiu, fazendo um sinal para Qwilleran. A orquestra tocava o compasso de abertura que leva ao primeiro e explosivo aleluia. O rei e sua comitiva real levantaram-se; o público levantou-se; e Qwilleran se perdeu na majestade da música e em sua própria nostalgia pessoal.

Os aleluias se acumularam com intensidade crescente e celebração alegre, atingindo aquele momento dramático — aquela empolgante pausa — os dois segundos de silêncio vazio!

Naquela fração de fração de segundo, Qwilleran ouviu uma nota falsa — o gemido de uma sirene. Bruce Scott, sentado várias fileiras atrás, levantou-se do banco e saiu apressadamente pelo corredor. Outros dois homens saíram rapidamente. Qwilleran franziu a testa. Era uma hora infeliz para a sirene de incêndio.

O coro do "Aleluia" terminou e uma ária começou. Então uma porta atrás de Qwilleran se abriu, e um porteiro bateu de leve em seu braço e sussurrou.

Qwilleran saiu de sua cadeira instantaneamente, correndo através do pórtico e descendo a escada. Do outro lado do parque, o museu estava incandescente — não de luz, mas com um clarão vermelho.

"Oh, meu Deus! Os gatos!", ele berrou.

Ele saiu depressa, atravessando a rua, desviando-se do tráfego. Cortou pelo parque, sulcando freneticamente a neve profunda. Luzes vermelhas e azuis rodeavam o prédio. Mais sirenes estavam soando.

"Os gatos!", ele gritou.

Pessoas de paletó preto estavam desenrolando cordas e içando escadas. "Fiquem atrás!", ordenavam.

Qwilleran ultrapassou-os depressa. "Os gatos!", ele gritou.

O clarão vermelho se espalhava pelas janelas do segundo pavimento. Os vidros explodiram e línguas de fogo lambiam do lado de fora.

"Detenha-o!"

Ele estava se dirigindo para a porta de trás, mais perto da cozinha.

"Mantenha-o fora!"

Fortes braços o contiveram. Ele olhava para cima e via o clarão se espalhando pelo terceiro piso. Escadas foram erguidas. Janelas despedaçadas, e uma fumaça preta se formou em redemoinhos.

Qwilleran gemeu, derrotado.

 

SEGUNDA-FEIRA. 25 DE NOVEMBRO. 

Qwilleran ligou o rádio no quarto de seu apartamento da garagem. "Manchetes do momento: Museu Klingenschoen no Park Circle foi totalmente destruído pelo fogo na noite de domingo, em consequência de incêndio criminoso, de acordo com o chefe dos bombeiros Bruce Scott. Um corpo queimado encontrado no edifício, supostamente o do criminoso, não foi ainda identificado. Trinta bombeiros, quatro reservatórios e três mangueiras atuaram, com comunidades vizinhas ajudando os voluntários de Pickax. Nenhum bombeiro se feriu... Esperamos temperaturas mais quentes hoje e céu ensolarado."

"Ensolarado!", Qwilleran resmungou, desligando o rádio. Ele olhava fixamente com os olhos lúgubres para a cena cinzenta lá fora: o frio, pesado, céu de chumbo... o chão escuro com lodo e fuligem congelados... a estrutura de uma edificação de pedra de três pavimentos, que outrora fora atração turística, agora devastada pela fumaça. As janelas, portas e telhados se foram, e as paredes de pedra enegrecidas cercavam uma montanha de entulho queimado. O cheiro acre de fumaça, que permanecia sobre a ruína, penetrava também em seu apartamento.

Polly aproximou-se e segurou sua mão em sinal de apoio silencioso.

"Obrigado por me ajudar a chegar em casa nessa noite terrível", disse ele. "Você está suficientemente aquecida?" Ela estava usando um pijama dele. "Não conseguimos aquecimento até uma hora atrás. A energia chegou mais ou menos às cinco horas, mas o telefone ainda está mudo. O último caminhão dos bombeiros só saiu ao amanhecer."

Contemplando a paisagem deprimente, Polly disse: "Não consigo compreender o que aconteceu."

"Vai além da compreensão. Você gostaria de um café? Não há nada para o café da manhã senão pãezinhos congelados. A que horas você é esperada na biblioteca?"

"MIAU-U-U-U!", chegou um uivo alto e exigente do cômodo contíguo.

"Koko ouviu uma referência ao café da manhã", disse Qwilleran enquanto abria a porta da saleta dos gatos.

Eles andavam eretos, com focinhos de expectativa e caudas otimistas.

"Sinto muito", disse ele. O único cheiro esta manhã é de fumaça. Não há comida até que eu vá à loja. Simplesmente fiquem felizes por estarem vivos."

"Aí vem o sr. O'Dell", disse Polly.

"E melhor você ir se vestir."

Ela pegou suas roupas e entrou no banheiro, enquanto o criado subia vagarosamente a escada.

Qwilleran cumprimentou-o em tom baixo. "É um dia triste, sr. O'Dell, mas nós lhe agradecemos por ter salvado os gatos."

"Esse rapaz, foi ele mesmo que fez isso, atuando como um louco e arranhando a porta do armário de vassouras que eu havia encerado apenas há uma semana. Eu abri a porta, e era na cesta de piquenique que ele estava querendo entrar. Ficou repreendendo a pequena, até ela pular para dentro também. O senhor queria que eu os deixasse na casa, mas ele estava fazendo barulho demais, por isso carreguei-os para cá antes de sair para ouvir a música. Um milagre, é o que foi!"

"Koko percebeu que alguma coisa estava para acontecer", explicou Qwilleran. "Ele sentiu o perigo. Você ouviu alguma coisa sobre o criminoso? No rádio disseram que ele ainda não foi identificado."

"Aquilo que eu disse", falou O'Dell. "Meu velho amigo Brodie, que eu parei para ver esta manhã. E ele que está tentando falar com o senhor pelo telefone."

"A linha ficou enguiçada a noite toda. O que Brodie tinha para dizer?"

O mordomo sacudiu a cabeça tristemente. "Certamente eu sinto muito pela pobre mulher — ela no hospital e seu novo marido queimado mortalmente e criminoso."

Qwilleran ficou em silêncio. Era o tipo de coisa que aquele homem faria — incendiar o museu para impedir sua mulher de trabalhar. Ele era um louco! Ele estava louco em pensar que conseguiria se safar dessa.

"Eu fui lá quando o estavam colocando em um saco de lona", disse o criado. "Preto, ele estava como um cachorro quente queimado, aberto, despedaçado e cor-de-rosa dentro."

"Poupe-nos dos detalhes, sr. O'Dell. Agora é com a sra. Cobb que temos de nos preocupar. Nós todos sabemos o quanto o museu representa para ela."

"Há alguma coisa que eu possa fazer agora por aquela pobre alma?"

"Você pode pegar este dinheiro, comprar umas flores e entregá-las no hospital. Não rosas cor-de-rosa! Espere um minuto: escreverei um bilhete para colocar junto."

O criado saiu e Polly surgiu do banheiro usando o vestido branco de inverno que usara no concerto. "Isto não é o que eu normalmente uso para um dia de trabalho duro nas estantes da biblioteca", disse ela. "Como posso explicar que perdi minha mala no incêndio do museu?"

"Sinto muito por sua mala, Polly."

"Eu sinto mais por aqueles quatro mil livros."

"E da biblioteca que sentirei mais falta", ele disse. "Salvei apenas uma coisa. Quando o furgão do leilão entregou a escrivaninha, eu subornei os carregadores para tirarem da casa o presente de casamento da sra. Cobb; assim, o armário da Pensilvânia está na garagem junto com a velha escrivaninha de Ephraim Goodwinter."

O telefone tocou, um som bem-vindo depois de horas sem o serviço. Qwilleran agarrou-o. "Sim?... Estava enguiçado, dr. Hal. Qual é a situação?... Isto é mau, mas o pior está por vir. Eles identificaram o criminoso... Ajudaria se eu fosse ao hospital e tivesse uma conversa com ela?... Está bem, avisarei o senhor como andam as coisas."

Ele recolocou o fone no gancho e olhou-o pensativamente.

"Qual é o problema, Qwill?"

"A sra. Cobb estava melhorando, até que ligou o rádio e ouviu as notícias sobre o incêndio. Então foi novamente a vez da histeria."

Polly saiu para o trabalho e o telefone começou a tocar — e tocar. Amigos, associados e estranhos ligavam para manifestar suas reações de pesar e oferecer condolências. Intrometidos, os fofoqueiros queriam saber quem provocou o incêndio — e por quê. Na Rua Principal um fluxo constante de motoristas passava em torno do Park Circle, olhando embasbacados as ruínas.

A chamada telefônica de Junior Goodwinter Lá de Baixo chegou inesperadamente. "Qwill! Não posso acreditar nisso! Jody recebeu um telefonema de Francesca. Ela disse que eles não tinham identificado o incendiário."

"Foi Hackpole! Um de nossos próprios bombeiros."

"Não mais! Eles o expulsaram na última primavera, por infração de regras. Quando e se ele aparecesse para treinamento, seria escorraçado."

Qwilleran disse: "Estou imensamente angustiado com o acidente de sua mãe, Junior. Foi uma coisa terrível".

"Sim, eu sei. O que posso dizer?"

"Não houve nenhum aviso sobre o funeral."

"Nada de funeral. Falei com meu irmão e minha irmã, e decidimos fazer uma cerimônia em sua memória, mais tarde."

"Como isso afeta o restabelecimento do Picayune?"

"Ninguém sabe ainda, mas tenho boas notícias. Você sabe a caixa à prova de fogo de meu pai — ela continha uma chave para uma caixa-forte em Mineápolis. Ele havia colocado os cem anos do Picayune em microfilme, e não queria que ninguém soubesse que estava gastando dinheiro."

"E eu tenho boas notícias para você", disse Qwilleran. "A escrivaninha de seu bisavô está em minha garagem, e é sua quando você se casar com Jody."

"Oh, nossa!", Junior gritou.

O telefone continuou tocando. Hixie Rice telefonou para indagar se os siameses estavam salvos e se precisavam de comida. Pouco tempo depois, suas botas de salto alto estavam estalando escada acima, e ela entregou uma embalagem com frango cordon bleu.

"Fiquei absolutamente desolada quando ouvi sobre o incêndio", disse ela procurando um cinzeiro. "Importa-se que eu fume, Qwill?"

"Por mim, tudo bem", disse ele, "mas não sopre fumaça nos gatos. Isso deixa o pêlo deles azul."

Ela colocou os cigarros no bolso. "Eu devia abandoná-los. Dizem que essas coisas malditas causam rugas."

"Uma xícara de café?", sugeriu Qwilleran.

"Se for seu famoso veneno instantâneo, não, obrigada."

"Alguma notícia sobre seu chef e as facas dele?"

"Prepare-se", disse Hixie. "Você ouviu falar sobre um corpo não identificado encontrado em um carro atolado em um monte de neve? Bem, era Tony, fugindo para o Canadá em meu carro!"

"Você realmente sabe como escolhê-los, Hixie."

"Quando lhe contei que ele tinha fugido pela janela do banheiro, não lhe contei a história toda. Tony era um canadense-francês que morava aqui ilegalmente. Ele mudou o nome e clareou os cabelos. Eu podia conviver com isso, mas... ele tentou fraudar a companhia de seguros."

"Isso é mau."

"Vendeu o carro para uma loja de carros usados e declarou que tinha sido roubado. Aquele homem era investigador da seguradora. A primeira vez que ele veio espionar por aqui, Tony fugiu no trailer e passou uns dias na floresta."

"Em minha propriedade!. Você me disse que ele tinha ido visitar a mãe doente na Filadélfia. E agora? A perda de seu chef de cozinha afeta o restaurante?"

"É sobre isso que quero falar com você, Qwill. Meu patrão estava planejando um cruzeiro pelo Caribe com a mulher de Goodwinter, até que ela fugiu com outro homem e morreu."

"Assim, ele quer que você vá no lugar dela", adivinhou Qwilleran.

"Bem, ele tem as reservas e as passagens..."

"Hixie, você é uma mulher daquelas histórias reais de revistas. Se você está procurando conselho, não tenho nenhum comentário a fazer."

"Está bem. Eu só queria que você soubesse. Você é sempre tão solidário."

Quando Hixie desceu as escadas estalando suas botas de salto fino, Qwilleran preparou-se para a visita ao hospital, perguntando-se sobre a noite de núpcias da sra. Cobb. Ele ameaçou atear fogo no museu? Por que ela não nos avisou?

Ele a encontrou sentada em uma poltrona com seu vestido cor-de-rosa, olhando fixamente para fora da janela, sem seus óculos. Havia cravos e boca-de-leão em sua mesa de cabeceira, mas o rádio havia sido removido. Um bilhete encostado no vaso de flores dizia: "Nós sentimos sua falta — Koko e Yum Yum".

"Sra. Cobb", ele disse calmamente.

Ela apalpou o peitoril da janela em busca de seus óculos. "Oh, sr. Qwill! Eu me sinto tão mal com tudo isso. Tive medo de que os gatos estivessem presos na casa e quase morri! Mas agora sei que se salvaram. As flores são muito bonitas. Eu poderia chorar, mas não tenho mais lágrimas. Quando ouvi sobre o museu, queria me matar! Eu estou certa de que Herb fez isso. Foi ele?"

Qwilleran assentiu devagar e pesarosamente. "O corpo foi identificado. Todas as provas estão lá. Sinto muito trazer essas notícias tristes."

"Não tem problema. O pior já aconteceu. E eu me sinto tão culpada. Foi tudo erro meu. Por que me envolvi com aquele homem? Ele fez isso para me irritar — conseguiu o que queria."

Qwilleran puxou uma cadeira e se sentou. Ele falou docilmente: "Sei que é doloroso para a senhora, sra. Cobb, mas ninguém a está culpando".

"Irei embora, quando sair daqui. Posso morar em Saint Louis. Telefonei para meu filho."

"Não fuja. Todo mundo gosta da senhora. Eles a consideram valiosa para a Sociedade Histórica e para a cidade. A senhora poderia abrir um antiquário — fazer avaliações — estabelecer um negócio de abastecimento — abrir uma fábrica de cookies. Agora, a senhora pertence a este lugar."

"Eu não tenho para onde ir — onde morar. Aquele era meu lar."

"Imagino que a casa de Goodwinter será sua..."

"Oh, eu jamais poderia morar lá... não depois do que aconteceu."

"E a casa ancestral de Junior. Ele a queria ocupada por alguém como a senhora — com seu amor por casas antigas."

"O senhor não compreende..."

O bigode caído e os olhos tristes de Qwilleran estavam convincentemente solidários. "Se a senhora falasse sobre isso, poderia se sentir melhor. Ontem pela manhã, a senhora chegou se arrastando pela neve, enfraquecida depois de ter passado mal a noite toda. Ele fez alguma coisa grosseiramente ofensiva para magoá-la."

"Foi o que ele me contou."

Qwilleran sabia quando ficar em silêncio.

"Ele estava bebendo. Ele sempre ficava falante e fanfarrão quando bebia muito. Eu não me importava com isso."

Qwilleran assentiu com compreensão.

"Ele costumava me contar de seus feitos heróicos no exército. Eu não acreditava na metade, mas ele gostava de falar daquele modo, e isso não causava danos. Uma vez ele me contou que o pai dele tinha matado o pai de Senior em uma briga, e que seu tio tinha ajudado a linchar Ephraim Goodwinter. Ele tinha orgulho disso! Eu era tão idiota! Eu acompanhava isso e o adulava." Ela suspirou e olhou pela janela.

"E então... no sábado à noite no hotel..."

"Ele começou a se gabar de caçar veados fora da estação... cobrar mais dos fregueses... fraudar impostos. Ele achava que era esperto. Dizia que tinha feito o trabalho sujo para a empresa XYZ. Eu não sabia o que dizer. Eu não sabia se acreditava nele." Ela olhava para Qwilleran à espera de aprovação ou desaprovação.

Ele fez um sinal neutro e encorajador.

"Foi na noite de núpcias!", ela gritou angustiada.

"Eu sei. Eu sei."

"Então ele me contou como sua loja consertava os carros dos Goodwinter, e ele conhecia Gritty muito bem. Ele mantinha uma garrafa em sua oficina e eles bebiam juntos. Ele e uma Goodwinter! Ele parecia pensar que isso era uma honra! Imagino que não faz mal lhe contar isso; agora, ela se foi. Os dois se foram."

Houve uma longa pausa. Qwilleran aguardava com paciência.

Depois de respirar fundo, a sra. Cobb disse: "Gritty queria se livrar de seu marido e se casar com Exbridge, mas Senior estava quebrado e ela não ganharia nada com o divórcio. Se ele morresse em um acidente haveria o dinheiro do seguro, da venda do jornal e antiguidades, e tudo aquilo".

Ela estava calma no começo, mas agora apertava e soltava as mãos, e Qwilleran disse: "Relaxe e respire fundo algumas vezes, sra.. Cobb... Este quarto é agradável. Fiquei neste quarto quando caí da bicicleta, mas eles mudaram a cor horrenda da parede."

"É um cor-de-rosa bonito", ela disse. "Como um salão de beleza."

"A comida é satisfatória?"

"Eu não tenho apetite, mas as bandejas são bonitas."

"Os cookies são terríveis — acredite em mim. Deviam pedir umas receitas suas."

Ela tentou esboçar um sorriso tímido.

Depois de um tempo, Qwilleran perguntou: "Herb contou para a senhora o que de fato aconteceu a Senior Goodwinter?"

A sra. Cobb olhou para fora da janela, em seguida olhou suas mãos. "Senior levou o carro para a oficina de Herb para adaptá-lo às condições do inverno." Sua voz estava trêmula. "Herb fez alguma coisa — esqueci o que era — para que perdesse o controle e explodisse..."

"...quando batesse em uma superfície irregular como a Velha Ponte das Pranchas?"

Ela assentiu.

"Foi por isso que ele comprou a casa da fazenda por um preço baixo?"

Ela engoliu em seco e assentiu outra vez.

"E incendiou o prédio do Picayune como parte do trato?"

"Oh, sr. Q! Foi terrível! Eu lhe disse que era um assassino, e ele me disse que eu era a esposa de um assassino e que seria melhor manter minha boca fechada se eu soubesse o que era bom para mim. Ele estava com uma aparência terrível! Ele ia me bater! Eu corri para o banheiro, tranquei a porta e passei mal. Então ele foi dormir e roncou a noite toda. Eu queria fugir! Eu me vesti e fiquei sentada até de manhã. Quando ele começou a acordar, corri para fora do quarto — deixei minha roupa de noiva, bolsa, tudo."

"Então foi assim que ele pegou a chave do museu."

Ela lamentou, e sua face — habitualmente tão alegre — se mostrava esgotada e muito infeliz.

 

Quando Qwilleran voltou para seu apartamento, abriu uma lata de atum, separou em fatias e arrumou os pedaços em um prato raso de porcelana comum. "Nada mais de comidas feitas em casa", ele disse aos siameses. "Nada mais de alimentos de gastrônomos. Nada mais de travessas de porcelana antiga."

Eles devoraram o atum com as cabeças baixas e as caudas para cima, como gatos comuns. Mas o comportamento de Koko tinha sido extraordinário. Duas horas antes de o museu pegar fogo, ele queria sair do prédio; ele sabia o que estava por vir. O que mais ele sabia?

Ele sentia que o casamento da sra. Cobb acabaria desastrosamente? De que outra forma alguém poderia explicar sua bizarra performance sobre as rosas cor-de-rosa do tapete? E quando ele destruiu o jardim de ervas, ele estaria percebendo alguma conexão semântica com Herb Hackpole? Não, essa explicação era absurda demais, mesmo para a vivida imaginação de Qwilleran. O mais provável era que Koko estivesse simplesmente mastigando as folhas, como gatos gostam de fazer, e não gostou de alguma erva. Essas eram perguntas que nunca seriam respondidas.

Mais perplexidade ainda causava a atração de Koko por Shakespeare. Ele podia sentir o cheiro das capas de couro, ou do óleo usado para preservar o couro, ou de alguma cola rara do século XIX usada nas encadernações? Se fosse isso, por que se concentrava em Hamlet?

Koko ergueu sua cabeça do prato de atum e deu uma olhada significativa para Qwilleran, o que fez seu bigode tremer. Qual era o enredo da peça? O pai de Hamlet tinha morrido de repente; sua mãe se casou novamente logo depois; o fantasma do pai revelava que ele tinha sido assassinado; o nome da mãe era Gertrude.

Um arrepio desceu pela espinha de Qwilleran. NÃO!, ele disse para si mesmo. A semelhança da tragédia dos Goodwinter era fantástica demais; qualquer um poderia enlouquecer refletindo sobre uma possibilidade como essa. A predileção de Koko por Hamlet era estritamente uma coincidência. Isso, pelo menos, era o que ele dizia para si mesmo.

Os siameses tinham acabado seu jantar e estavam se limpando. A sala agora cheirava a peixe tanto quanto a fumaça rançosa. Ao abrir a janela uns poucos centímetros para ventilação, Qwilleran foi tocado pela trágica cena do lado de fora, o fantasma de uma construção nobre. Koko tinha tentado avisar e, se ele tivesse entendido a intenção do gato, essa destruição insensata poderia ter sido evitada.

O que acontecerá a seguir?, perguntou a si mesmo. Não podemos deixar o prédio em ruínas; vamos colocá-lo abaixo? A estrutura interna tinha três pavimentos de pedra com sessenta centímetros de espessura na base. Ocupava um local proeminente na Rua Principal, dividia o Park Circle com o Palácio da Justiça, a biblioteca pública e as duas igrejas.

Koko pulou para o peitoril da janela, ronronando "ik ik ik" e demonstrando expectativa com seus olhos brilhantes.

"Sinto não termos conversado mais nos últimos tempos", Qwilleran se desculpou. "Demasiadas perturbações. Você provavelmente não compreende o incêndio e todas as suas consequências. Você sentirá falta da sua coleção de Shakespeare? Trinta e sete pequenos livros de valor inestimável se foram nas chamas. E o que faremos com os restos do museu?"

Enquanto ele falava a neve começou a cair leve e silenciosamente, embranquecendo os sulcos congelados e o gelo incrustado de fuligem, projetando uma misericordiosa cortina branca na feia cena de devastação.

Ao mesmo tempo Qwilleran deu um tapinha em sua testa com a súbita descoberta. "Achei! Um teatro!", ele exclamou.

"MIAU!", ronronou Koko.

"Pickax precisa de um teatro. 'Teatro é a vida', como Hamlet dizia. Teremos um teatro, Koko, e você pode desempenhar o papel de Ricardo III... Onde está você?"

O gato tinha desaparecido.

"Aonde, diabos, esse gato foi?", Qwilleran trovejou, com um franzir de sobrancelhas.

Koko tinha voltado para seu lugar de comer e estava tentando lamber o brilho do prato de porcelana.

 

                                                                                 Lilian Jackson  

 

                      

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