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O GATO QUE FALAVA COM FANTASMAS / Lilian Jackson
O GATO QUE FALAVA COM FANTASMAS / Lilian Jackson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O GATO QUE FALAVA COM FANTASMAS

 

     Jim Qwilleran é um homem muito rico — a pessoa mais rica do Condado de Moose, para ser exato. O Condado de Moose, como todos sabem, reivindica estar a 650 km ao norte de tudo, e ser um posto avançado remoto, bem distante do crime, tráfico e poluição das áreas urbanas densamente povoadas mais ao sul. Os habitantes têm um desprezo chauvinista pelo que eles chamam de Lá Embaixo.

     Antes de Qwilleran herdar sua enorme fortuna ele fora jornalista Lá Embaixo, cobrindo o setor de crimes em jornais influentes durante vinte e cinco anos. Seu nome (soletrado com um nada convencional Qw) e sua foto (caracterizada por um opulento bigode) eram conhecidos por milhões de pessoas. Então, com cinqüenta anos de idade, tornou-se herdeiro da fortuna Klingenschoen e foi morar no Condado de Moose.

     Atualmente vive na maior simplicidade na cidade de Pickax, sede do condado (população: 3 mil), dividindo um modesto apartamento de solteiro com dois gatos siameses, escrevendo uma coluna para o jornal local, dirigindo um carro de boa potência, saindo com uma bibliotecária, e ignorando o fato de que possui metade do condado e uma porção substancial de Nova Jersey. O homem alto, vigoroso e bigodudo é visto freqüentemente andando de bicicleta em Pickax, jantando em restaurantes e entrando em sebos. Lê muito e, embora os olhos melancólicos e o bigode caído emprestem à sua aparência um aspecto de tristeza, é feliz.

     Não é de surpreender que Qwilleran tenha conservado seu interesse no crime, já que possui a curiosidade natural e o cinismo de um jornalista que fareja uma má ação como um gato fareja um rato. Recentemente viu-se assombrado por suspeitas secretas depois de um incidente que os outros aceitaram como um capricho do destino. As circunstâncias iniciais são narradas com suas próprias palavras. Ele gravou o seguinte, numa fita, logo depois de sua viagem noturna a North Middle Hummock:

     Eu sabia que o telefone ia tocar. Sabia dez segundos antes que ele interrompesse o primeiro ato de Otelo. Foi num domingo à noite, no começo de outubro, e eu estava de pijama, calmamente ouvindo uma gravação da ópera que Polly Duncan me trouxera de Londres. Os siameses também estavam tranqüilos, embora não necessariamente ouvindo a ópera. Koko instalara-se na mesa de café, sentado ereto e oscilando ligeiramente, com uma expressão vidrada nos oblíquos olhos azuis. As óperas o colocam em transe. Yum Yum enrolara-se no meu colo com as patas cobrindo as orelhas — um comentário felino sobre Verdi, sem dúvida. Não sou grande apreciador de ópera, mas Polly está tentando me converter, e admito que Otelo de Verdi é uma peça convincente.

     De repente, durante o tenso desenrolar da cena da briga de bêbados, o corpo de Yum Yum enrijeceu-se e os dedos contraíram-se. No mesmo instante os olhos de Koko arregalaram-se e as orelhas apontaram para o telefone.

     Dez segundos depois... ele tocou.

     Consultei o relógio. Em Pickax poucas pessoas se aventuram a ligar depois da meia-noite.

     “Alô!”, atendi bruscamente, esperando ouvir uma voz pastosa perguntar por Nadine ou Doreen ou Chlorine, tendo como pano de fundo ruídos de um bar noturno. Ou o interlocutor perguntar abruptamente, “Quem é?” Nesse caso eu diria imperiosamente, “Com quem o senhor quer falar?”, e ele desligaria imediatamente sem a menor explicação. De todas as expressões que conheço, a que mais depressa desaponta as pessoas nessas circunstâncias é Com quem.

     Mas não era um bêbado. Parecia íris Cobb, embora sua voz — normalmente tão animada — tivesse um claro tremor que me preocupou. “Desculpe ligar tão tarde, sr. Q, mas eu... estou muito assustada.”

     “Qual é o problema?”, perguntei depressa.

     “Estou ouvindo... barulhos estranhos na casa”, disse, com voz lamuriosa.

     A sra. Cobb morava sozinha numa velha casa de fazenda meio afastada da cidade, onde não há barulho e qualquer ruído soa exagerado à noite. As batidas e estalos de uma fornalha ou bomba elétrica, por exemplo, podem ser apavorantes, e uma persiana solta batendo contra a casa pode deixar a pessoa apavorada.

     “Dá a impressão”, perguntei, “de algum problema mecânico ou qualquer coisa solta fora da casa?”

     “Não... não... nada disso”, disse num tom aturdido, como se estivesse escutando. “Pronto! Acabei de ouvir de novo!”

     “Que tipo de barulho, sra. Cobb?” Minha curiosidade já estava desperta.

     Ela hesitou antes de responder timidamente: “É assustador! Parece... sobrenatural!”

     Como deveria reagir? A sra. Cobb sempre achara que seria divertido ter um fantasma assombrando a velha casa, mas hoje sua voz expressava o mais abjeto terror. “Pode descrever especificamente os sons?”

     “São como batidas nas paredes... estrépitos... gemidos... e às vezes um grito.”

     Passei, interrogativamente, a mão no bigode, que sempre fica eriçado em momentos como esse. Era outubro, e no Condado de Moose costuma-se festejar o Dia das Bruxas durante o mês todo. Já havia abóboras em todas as varandas e fantasmagóricos lençóis brancos pendurados às árvores. Os brincalhões poderiam estar começando antes da hora — talvez alguns garotos da cidade vizinha de Chipmunk, conhecida por seus arruaceiros. “A sra. deveria chamar a polícia”, aconselhei-a calmamente. “Diga-lhes que suspeita de ladrões.”

     “Eu os chamei anteontem”, disse, “e tudo estava quieto quando o xerife chegou. Foi embaraçoso.”

     “Há quanto tempo isso vem acontecendo? Quero dizer, quando foi que notou pela primeira vez esses ruídos misteriosos?”

     “Há duas semanas. A princípio eram só batidas — de vez em quando — não muito fortes.”

     A voz dela estava mais controlada agora, e pensei que a melhor coisa a fazer era mantê-la falando. Ela podia conversar até perder o medo. “A senhora mencionou a situação a alguém?”, perguntei.

     “Bem... sim. Contei às pessoas que moram no fim da alameda, mas não me levaram a sério.”

     “Por que não conta a Larry ou ao sr. Tibbitt?”

     “Para falar a verdade, não quis fazê-lo.”

     “Por que não?”

     “Bem... à luz do dia, sr. Q, quando o sol está brilhando, sinto-me como uma tola se falar disso. Não quero que pensem que estou ficando louca.”

     Era compreensível. “Imagino que mantém os holofotes acesos no pátio depois de escurecer.”

     “Ah, sim, sempre! E fico espiando lá fora, mas não há nada lá. Parece estar vindo de dentro da casa.”

     “Concordo que é uma situação enigmática, sra. Cobb”, disse, tentando parecer interessado e prestativo, mas não apreensivo. “Por que não pega seu carro e vai até Indian Village e passa a noite com Susan? E de manhã investigaremos. Deve haver alguma explicação lógica.”

     “Oh, eu não posso!”, disse, numa voz balbuciante. “Meu carro está no celeiro, e tenho medo de ir até lá. Oh, sr. Q, não sei o que fazer!... Santo Deus! Começou de novo!” As palavras dela terminaram num grito que deixou minha pele arrepiada. “Tem alguma coisa lá fora!”

     “Procure se controlar, sra. Cobb”, disse firmemente. “Vou apanhá-la e levá-la a Indian Village. Ligue para Susan e diga-lhe que está indo para lá. Faça uma mala. Chego em vinte minutos. E tome um leite quente, sra. Cobb.”

     Vesti as calças e um suéter sobre o pijama, agarrei as chaves do carro e um casaco e saí correndo do apartamento, tropeçando num dos gatos que estava no caminho. A sra. Cobb tinha problemas de saúde, e os barulhos podiam muito bem ser imaginários, resultado de medicações, mas isso não os tornava menos assustadores.

     A fazenda em North Middle Hummock ficava a trinta minutos de distância, mas cheguei em vinte. Por sorte não havia tráfego. Era tarde da noite de domingo, e todos no Condado de Moose estavam em casa, dormindo na frente da TV.

     Os velhos paralelepípedos da Rua Principal, molhados por uma chuva recente, brilhavam como numa cena noturna de filme de suspense, e atravessei na disparada os três quarteirões do centro de Pickax a mais de cem quilômetros por hora, desrespeitando o único sinal vermelho da cidade. A partir do limite da cidade, as luzes da rua terminavam. Não havia lua, e estava infernalmente escuro nas estradas vicinais. Essa foi uma região de mineração no século XIX. Atualmente a estrada fora bordejada por poços de mina abandonados, torres de perfuração apodrecendo e sinais vermelhos de Perigo, que nessa noite sem lua ficavam escondidos pela escuridão.

     Acendi os faróis de milha, seguindo a linha amarela e procurando o Café Dimsdale, um ponto de referência solitário que fica aberto a noite toda. Suas luzes brilhavam fracamente pelas janelas sujas, identificando o cruzamento onde eu tinha de entrar na Estrada de Ittibittiwassee. Aí a estrada era reta e regular. Aumentei para cento e quarenta.

     Depois da Velha Ponte de Pranchas o caminho tornava-se tortuoso e escarpado, e voltei prudentemente aos cem quilômetros, pensando na mulher que dependia de mim nessa noite. A pobre sra. Cobb tinha sobrevivido a uma pesada cota de tragédias. Há alguns anos, quando eu morava Lá Embaixo e escrevia para o Daily Fluxion, ela fora minha senhoria. Eu alugava um quarto mobiliado em cima da sua loja de antiguidades numa parte arruinada da cidade. Depois do assassinato do marido, vendeu a loja e mudou-se para Pickax, onde usou sua perícia em trabalhos de museu. Agora era administradora residente do Museu da Casa de Fazenda Goodwinter e morava numa ala do edifício histórico.

     Não era de surpreender que me tivesse telefonado em seu desespero. Éramos bons amigos, embora de modo formal, sempre nos chamando de “sra. Cobb” e “sr. Q”. Eu suspeitava que ela gostaria de um relacionamento mais íntimo, mas não era o meu tipo. Eu a admirava como mulher de negócios e perita em antigüidades, mas ela gostava de depender dos homens para tudo, o que era muito aborrecido. Era porém uma cozinheira de mão cheia. Admito que me seduzia facilmente com seu assado de panela e bolo de coco, e os siameses eram loucos por seu bolo de carne.

     De modo que aqui estava eu, correndo para North Mid-dle Hummock, de pijama, para salvar uma desamparada donzela em apuros. Por um breve instante veio-me à idéia que o telefonema angustiado podia ser uma manobra para me levar até lá, no meio da noite. Desde que herdei a fortuna Klingenschoen ando desconfiado de amigas mulheres. E desde que a sra. Cobb chegou em Pickax com seu furgão carregado de livros de receitas e seu jeito de adoração, tenho estado em guarda. Aprecio uma boa comida e sempre a considerei uma ótima cozinheira, mas ela adorava roupas rosa e franzidas — para não falar daqueles óculos com as armações cheias de brilhantinhos de imitação. Além disso, eu estava namorando Polly Duncan, que era inteligente, culta, estimulante, amorosa... e ciumenta.

     Procurar North Middle Hummock, à noite, era literalmente andar às cegas. Tinha sido uma comunidade florescente no tempo em que as minas funcionavam, mas o desastre econômico depois da Primeira Grande Guerra transformara-a numa cidade-fantasma, uma pilha de fragmentos de pedra cobertos de mato e totalmente invisível numa noite sem lua. Sem sinais de rua nem pontos de referência visíveis, todas as árvores e moitas pareciam iguais. Finalmente os faróis iluminaram o gradil branco da Fazenda Fugtree, e dei três vivas à tinta branca. Depois de outro trecho escuro havia uma casa pintada de branco com uma luz bruxuleante na janela; alguém estava assistindo à TV. A casa marcava a entrada da Alameda do Riacho Negro, e a alameda acabava na propriedade Goodwinter. Senti um grande alívio.

     A sra. Cobb tinha herdado a histórica casa da Fazenda Goodwinter de Herb Hackpole, seu terceiro marido, depois de um casamento escandalosamente curto. Ela imediatamente a vendeu à Sociedade Histórica para uso como museu — vendeu-a por um dólar! Era esse tipo de pessoa, de bom coração e incrivelmente generosa.

     Ao enveredar pela entrada de cascalho, notei que o pátio Goodwinter, que deveria estar iluminado pelos holofotes, estava às escuras. A casa também. Falhas de luz são comuns no Condado de Moose... no entanto, lembrei-me de ter visto luz na Fazenda Fugtree, e alguém estava assistindo à TV na casa da esquina. Senti uma sensação de formigamento no lábio superior.

     Rodeando o lado oeste da grande casa de fazenda, estacionei com os faróis acesos iluminando a entrada do apartamento da administradora e apanhei uma lanterna no porta-luvas. Primeiro toquei a campainha; como não obtive resposta, tentei abrir a porta e não me surpreendi ao encontrá-la destrancada. Isso é habitual no Condado de Moose. Apontando a lanterna para o hall de entrada deparei com um interruptor de luz na parede e tentei acendê-la, ainda pensando que tinha sido cortada. Inesperadamente o interruptor reagiu — e quatro velas elétricas num lustre de ferro iluminaram-se.

     “Sra. Cobb!”, chamei. “É Qwilleran!”

     Não houve resposta, nem havia qualquer batida, estrépito ou gemido. E certamente nenhum grito. Na verdade, os aposentos estavam estranhamente silenciosos. Uma passagem em arco à esquerda levava à sala de estar, e seus móveis antigos iluminaram-se logo que achei o interruptor de parede. Por que, perguntei a mim mesmo, essa mulher assustada tinha apagado todas as luzes? As raízes do meu bigode estavam enviando sinais de ansiedade: às vezes gostaria de ser menos sensível.

     Do outro lado do hall, a porta do quarto estava aberta, e havia uma mala na cama, parcialmente arrumada. A porta do banheiro fora fechada. “Sra. Cobb!”, chamei de novo. Meio relutante, abri a porta do banheiro e forcei-me a olhar no box do chuveiro.

     Ainda chamando seu nome, continuei pelo hall até a cozinha antiga com lareira, grande mesa de jantar e armários de pinho. Acendi as luzes, e naquele instante meus instintos disseram-me o que ia encontrar. Havia uma caixa de leite no balcão da cozinha, e no chão estava uma pessoa estatelada, de saia e suéter rosa, os olhos arregalados, o rosto redondo dolorosamente contorcido. Não dava sinais de vida.

 

     Quando Qwilleran descobriu o corpo sem vida da sra. Cobb, reagiu mais com pesar do que com choque. Tinha se preparado para o pior assim que entrara na Alameda do Riacho Negro e encontrara o local às escuras. Agora, olhando para a figura vestida de rosa — da cabeça aos pés! — amassou o bigode com as mãos, numa mistura de tristeza e raiva. Era inimaginável que essa pobre mulher se fosse na plenitude da vida, no ponto culminante da carreira, no auge da felicidade. Ela havia granjeado a admiração da comunidade; seu último marido a tinha deixado em boa situação; e com cinqüenta e cinco anos de idade era avó pela primeira vez. Mas, pensava, o destino nunca tivera senso de oportunidade.

Encontrando o telefone da cozinha, ligou para o número de emergência da polícia e relatou o incidente sem emoção, descrevendo todos os detalhes necessários. O telefone estava sobre uma relíquia de escola: uma base de ferro fundido sustentando um banco de madeira e uma carteira em forma de caixa, com tampa de erguer. A superfície da tampa tinha encaixes para canetas e tinteiro e estava riscada com várias iniciais. Sobre ela estava uma agenda em ordem alfabética contendo números de telefone; estava aberta na letra E. Qwilleran ligou para Susan Exbridge em Indian Village, e ela atendeu ao primeiro toque.

     “Susan, aqui é Qwill”, disse gravemente. “Iris ligou para você agora há pouco?”

     “Ligou, a coitadinha estava aterrorizada por alguma razão. Estava quase incoerente, mas eu deduzi que você iria trazê-la aqui para passar a noite. Acabei de colocar lençóis rosa na cama de hóspedes.”

     “O plano era esse. Estou na fazenda agora. Ela não vai poder ir.”

     “Por quê? O que aconteceu, Qwill?”

     “Encontrei-a no chão da cozinha. Não respirava. Não havia pulso. Já chamei a polícia.”

     Susan lamentou-se ao telefone. “Meu Deus! Que coisa horrível! O que faremos sem ela? Estou arrasada!”

     Ela possuía uma tendência a ser dramática e uma razão pessoal para ficar desolada. As duas mulheres eram sócias num novo empreendimento no centro de Pickax, e as letras douradas tinham acabado de ser pintadas na janela da loja: Exbridge & Cobb, Antigüidades Finas. A inauguração estava marcada para sábado.

     “Falo com você amanhã, Susan. O xerife deve chegar a qualquer momento”, disse Qwilleran.

     “Alguma coisa que eu possa fazer?”

     “Vá descansar e prepare-se para um dia cheio amanhã. Vou chamar Larry, e tenho certeza de que ele vai precisar de sua ajuda.”

     Larry Lanspeak era presidente da Sociedade Histórica e do Museu da Casa de Fazenda Goodwinter, além de dono do armazém local. Como comerciante, líder cívico e ator de talento do Clube de Teatro de Pickax, transmitia grande firmeza a tudo que empreendia. Qwilleran ligou para a casa de campo de Lanspeak no elegante West Middle Hummock e, embora fossem quase duas da manhã, Larry atendeu ao telefone tão energicamente como se fosse meio-dia.

   “Larry, aqui é Qwill. Desculpe incomodá-lo. Temos um problema. Estou ligando do museu. Iris telefonou-me há pouco. Estava histérica, e eu corri para cá. Você sabia de seu problema de coração, não é? Cheguei tarde demais. Encontrei-a morta no chão da cozinha. Chamei a polícia.”

     Houve um silêncio prolongado do outro lado da linha.

     “Larry... ?”

     Numa voz rouca Larry disse: “Não pode ser! Precisamos dela! E era jovem demais para morrer!”

     “Tinha nossa idade.” O tom de Qwilleran era compreensivelmente mal-humorado.

     “Vou me vestir e vou para aí em seguida. É uma notícia terrível. Carol vai ficar arrasada!”

     Qwilleran acendeu as luzes do pátio e apagou os faróis no momento exato em que o carro do xerife entrou na alameda.

     Um policial jovem, com chapéu de abas largas, desceu. “Alguém comunicou sobre um cadáver?”

     “E a sra. Cobb, administradora do museu. Ela ligou para mim em pânico, e vim ver se podia ajudar. Sou Jim Qwilleran, de Pickax.”

     O delegado acenou afirmativamente. Todos conheciam o enorme bigode que pertencia ao homem mais rico do condado.

     Entraram, e Qwilleran mostrou o caminho para a cozinha.

     “A ambulância está a caminho”, disse o delegado. “Levarão o corpo para o Hospital de Pickax. O legista assinará o atestado de óbito.”

     “Ele pode querer falar com o dr. Halifax. Ela estava fazendo tratamento para problemas de coração.”

     O delegado concordou com a cabeça, escrevendo o relatório.

     Qwilleran explicou: “A sra. Cobb me chamou porque estava ouvindo ruídos estranhos e tinha medo de ficar aqui.”

     “Ela ligou-nos há uns dias. Eu verifiquei, mas não achei nada de irregular. Não havia indícios de ladrão na região. É parente dela?”

     “Não. Ela tem um filho em St. Louis. Ele decidirá o que fazer. É melhor eu ligar para ele e dar a notícia.”

     Naquele momento a ambulância chegou, e os silenciosos atendentes removeram o cadáver vestido de rosa, de uma pessoa que cativara a comunidade com sua generosidade, personalidade alegre e conhecimento enciclopédico de antigüidades. E com sua cozinha, pensou Qwilleran. Sempre que havia um bazar de caridade ou recepção cívica, a sra. Cobb ficava de pé a noite toda assando biscoitos — não qualquer um de lascas de chocolate, mas uma variedade de quadradinhos de limão e coco, merengues de caramelo e nozes, doces de abricó e ameixa, e muitos mais. Ironicamente, havia cidadãos do Condado de Moose que se recordariam de Iris Cobb principalmente por seus biscoitos.

     Qwilleran folheou a agenda que estava na carteira, procurando o número de telefone do filho. Infelizmente não conseguia recordar-se do nome do rapaz. Tinha uma vaga lembrança de que era Dennis. O sobrenome não era Cobb, mas algo como Gough, pronunciado Goff... ou Lough, pronunciado Luff... ou Keough, pronunciado Kyow. Na letra K encontrou um nome com um telefone com código de área de St. Louis e ligou para o número. Uma voz sonolenta de homem atendeu.

     Muitas vezes Qwilleran fora encarregado de avisar parentes de vítimas, e o fazia com sensibilidade. Sua voz tinha uma riqueza de timbre e uma suavidade que davam a impressão de sincero sentimento.

     “Dennis?”, disse. “Desculpe-me por acordá-lo a esta hora. Sou Jim Qwilleran, amigo de sua mãe, chamando de North Middle Hummock.”

     O rapaz ficou imediatamente alarmado. “Algo errado?”, perguntou. Arquejava audivelmente.

     “Recebi um telefonema de Iris depois da meia-noite. Ela estava com medo de ficar sozinha na fazenda, por isso ofereci-me para levá-la à casa de uma amiga...”

     “O que aconteceu? Diga o que aconteceu!”

     “Encontrei-a no chão da cozinha. Provavelmente teve um ataque do coração. Sinto ter de lhe dar a notícia, Dennis.”

     O filho gemeu. “Ah, meu Deus! Eu ia tomar um avião para vê-la amanhã — quero dizer hoje. O médico dela tinha sugerido.”

     “Sua morte é uma grande perda. Ela fez muitas amizades aqui e conquistou toda a comunidade.”

     “Eu sei. Ela me contava em suas cartas como estava feliz. Pela primeira vez na vida sentia-se como se realmente pertencesse a uma comunidade.”

     “Isso nos leva ao assunto das preparações para o enterro, Dennis. O que devemos fazer? A decisão é sua, embora a Fundação Klingenschoen considere um privilégio cobrir todas as despesas. Iris alguma vez expressou seu desejo sobre isso?”

     “Meu Deus, não”, disse o filho. “Ela estava muito ocupada vivendo! Não sei o que dizer. Isso foi totalmente inesperado. Preciso pensar a respeito — conversar com Cheryl.”

     “Ligue-me de volta, aqui na fazenda, assim que for possível. O hospital está esperando as instruções.”

     Ao recolocar o fone no gancho, Qwilleran notou a prateleira na parede cheia de revistas femininas com receitas — tristes substitutos para as três dúzias de livros de capa dura com receitas que ela perdera num incêndio desastroso. Outras prateleiras continham pratos antigos, tigelas e canecas de estanho; as vigas tinham caçarolas de cobre e cestos pendurados; em volta da lareira havia utensílios de ferro usados nos dias de cozinhar ao ar livre. Era um lugar confortável e aconchegante. A sra. Cobb gostava de sua cozinha.

     Distraidamente folheou a agenda de telefones, onde os nomes estavam escritos em grandes letras de forma, com caneta de ponta grossa, sinal de que a visão dela estava enfraquecendo. A agenda continha, na maior parte, os números de voluntários do museu... também de alguém chamado Kristi... e Vince e Verona, seja lá quem fossem... e do dr. Halifax. Tanto a casa como o consultório estavam listados. Em Pickax, as pessoas podiam chamar o médico em casa no meio da noite. HB&B obviamente era a firma de advocacia de Hasselrich, Bennett e Barter. Por certo eles tinham tratado de sua herança e redigido o testamento. A sra. Cobb recebera uma bela herança do terceiro marido, embora não usasse o nome dele.

   Enquanto esperava, Qwilleran perambulou pelo apartamento, procurando pistas dos últimos momentos da vida dela. Na mala aberta sobre a cama havia um roupão e um par de chinelos cor-de-rosa. A caixa de leite continuava sobre a mesa da cozinha, e ele colocou-a na geladeira. Havia uma caneca de leite no microondas; o forno fora desligado, mas o leite estava morno. Despejou-o na pia e lavou a caneca. A porta que ia da cozinha para a parte principal do museu estava destrancada, e ele percorria a esmo as salas de exposição quando o telefone tocou. Ficou contente que Dennis retornasse o telefonema tão depressa. A voz que ouviu, no entanto, era de mulher.

     “Aqui é Kristi, da Fazenda Fugtree”, disse. “Iris está bem? Vi um carro de polícia e uma ambulância entrando na alameda.”

     “Lamento dizer”, ele anunciou solenemente, “que a sra. Cobb teve um ataque fatal.”

     “Oh, não! Sinto tanto. Eu sabia que ela estava se tratando com o dr. Hal, mas não tinha idéia de que era tão grave. E o sr. Lanspeak?”

     “Não, apenas um amigo de Pickax.”

     “Como aconteceu?”, a voz parecia jovem e nervosa.

     “Acredito que os detalhes sairão amanhã nos jornais.”

     “Ah... Bem, sinto muito mesmo! Estava sentada aqui com meus filhotes doentes, vi as luzes dos carros e resolvi ligar.”

     “Tudo bem.”

     “Bem, obrigada. Qual o seu nome?”

     “Jim Qwilleran”, murmurou.

     A maioria das mulheres teria reagido com um “Ooooooh!” excitado ao saber que falava com um solteirão disputado e muito rico, mas a moça disse apenas: “Meu nome é Kristi Waffle.”

     “Foi muito amável em ligar. Boa noite.”

     Ele ouviu um carro estacionando no pátio e foi ao encontro de Larry Lanspeak. Apesar de sua posição elevada na comunidade, ele era pouco sedutor. Altura, aparência e feições ordinárias emprestavam-lhe um anonimato que lhe permitia desempenhar diferentes papéis no Clube de Teatro.

     “Que tragédia!”, disse, abanando a cabeça e falando com sua voz bem modulada de ator. Entrou no apartamento com o passo deliberado e alongado de quem gostaria de ser mais alto. “Ninguém pode avaliar quanto essa mulher fez por nossa comunidade! E não aceitava um centavo por isso! Nunca vou encontrar uma administradora igual...”

     Foi interrompido pela campainha do telefone.

     “Deve ser o filho dela ligando de St. Louis”, disse Qwilleran ao pegar o fone, mas estremeceu às primeiras palavras que ouviu.

     “Alô! Aqui é Vince Boswell!” Era uma voz forte, penetrante e fanhosa. “Liguei para saber de Iris. Aconteceu alguma coisa a ela? Minha mulher e eu estávamos assistindo a um vídeo, e vimos as luzes da ambulância.”

     Qwilleran respondeu serenamente: “Lamento dizer que a sra. Cobb sofreu um ataque fatal.”

     “Sério? E uma pena!”, ouviu-se da voz intensa, que ficou mais abafada quando o fone foi afastado da boca. “Um sujeito disse que Iris teve um ataque fatal, meu bem!” Depois bradou ao telefone: “Gostávamos muito de Iris, minha mulher e eu. Alguma coisa que possamos fazer?”

     Qwilleran estava segurando o fone a vinte centímetros do ouvido. “Acho que não, mas obrigado por ligar.”

     “Estamos aqui perto... se precisar de qualquer auxílio no museu, entende? Teremos prazer em ajudar numa hora dessas.”

     “É muita bondade de sua parte. Boa noite, sr. Bosworth.”

     “Boswell,” corrigiu o homem. “Estamos na casa da esquina, minha mulher e eu. Larry Lanspeak é nosso amigo.”

     “Ah, sei. Bem, boa noite, sr. Boswell. Agradecemos sua consideração.”

     Qwilleran desligou e disse a Larry: “Quem é Boswell?”

     “Você não conhece Vince e Verona? Ela é uma de nossas voluntárias, e Vince está catalogando as prensas tipográficas antigas no celeiro. Está escrevendo um livro sobre a história da imprensa.”

     Qwilleran pensou: será que o mundo precisa de outro livro sobre a história da imprensa? “Onde achou esse sujeito, Larry?”

     “Ele veio de Pittsburgh.”

     Deve ter sido treinador de algum time, pensou Qwilleran.

     Larry continuou: “Vince ofereceu-se para fazer o serviço grátis, por isso o deixamos morar na casa dos empregados, sem pagar. Agora que Iris se foi, teremos de ter alguém morando na casa, por razões de segurança. Estou pensando que os Boswell poderiam preencher o lugar, temporariamente.”

     “Estou disposto a me mudar para cá até que você arrume um residente permanente”, disse Qwilleran.

     “É uma oferta gentil, Qwill, mas seria um abuso.”

     “Nem um pouco. Estava querendo passar algum tempo no museu — especialmente na coleção de documentos — desencavando material para minha coluna.”

     “Se está falando sério, Qwill, resolveria nosso problema, e não precisaria se envolver com o funcionamento do museu. Tem uma linha de telefone separada, e os voluntários entram e saem com suas próprias chaves. Ninguém o incomodaria.”

     “Eu traria os gatos comigo, é claro”, salientou Qwilleran. “Koko é um agente de segurança autonomeado, e Yum Yum distinguiu-se uma vez ao caçar um rato do museu. Iris costumava convidá-los para virem aqui de vez em quando, e nunca fizeram qualquer estrago.”

     “Não estou preocupado com isso”, disse Larry. “Sei que são bem-comportados e poderiam divertir-se muito, brincando com os gatos do celeiro e empanturrando-se de ratos do campo.”

     “Eles são gatos caseiros”, Qwilleran corrigiu-o depressa. “Tenho muito cuidado em não deixá-los sair.”

     O telefone tocou de novo, e dessa vez era Dennis. “Nós já conversamos, sr. Qwilleran; Cheryl e eu achamos que o funeral e o enterro devem ser aí, onde mamãe tinha tantos amigos. Vou tomar o avião conforme planejado antes, e nesse meio tempo o senhor pode tomar quaisquer decisões que sejam necessárias. Ela sempre escrevia sobre o senhor nas suas cartas. Foi muito bondoso para ela.”

     “Fico satisfeito que venha, Dennis. Vou recebê-lo no aeroporto e fazer uma reserva para você no Hotel Pickax, mas não sei seu sobrenome.”

     “É H-o-u-g-h, pronuncia-se Huff.”

     “Você vai tomar o vôo das cinco horas, de Minneapolis?”

     “Isso mesmo... e sr. Qwilleran, há algo que quero lhe contar quando chegar, algo que estava acontecendo à minha mãe na última semana, mais ou menos. Tinha a ver com o museu. Ela estava muito perturbada.”

     Qwilleran ensaiou alisar o bigode. “Claro que vou querer ouvir isso.”

     “Obrigado por tudo, sr. Q. Não era assim que minha mãe o chamava?”

     “A maioria das pessoas me chama de Qwill. Faça o mesmo, Dennis.”

     Ao desligar lentamente o telefone, perguntas sobre o estado mental de Iris Cobb vieram-lhe à cabeça. Tinha que ser a medicação!

     “O que ficou decidido?”, perguntou Larry.

     “As providências serão por nossa conta. Funeral e enterro aqui. O filho chegará esta tarde. Vou mandar a Fundação Klingenschoen cobrir as despesas e quero que tudo seja feito direito.”

     “Concordo. Usaremos a funerária Dingleberry e o culto será na Velha Igreja de Pedra.”

     “Você poderia fazer algumas ligações enquanto eu arrumo um pouco de café?”, perguntou Qwilleran. “Temos que avisar Dingleberry e informar o hospital. Se quiserem saber quem é o parente mais próximo, é Dennis H-o-u-g-h, pronunciado Huff. Depois vou chamar a WPKX e o serviço noturno do jornal. Eles poderão dar a notícia na primeira página, e eu escreverei o obituário na terça-feira.”

     Larry disse: “Diga-lhes que o museu estará fechado a semana toda.”

     Sentaram-se à mesa da cozinha, empurraram para o lado as velas cor-de-rosa nos suportes de copos-de-leite e tomaram goles de café em canecas de porcelana enquanto resolviam os detalhes: amigos convidados para comparecer à funerária na tarde de terça-feira, ritos finais a serem celebrados na igreja em Park Circle na manhã de quarta-feira, a Banda Funerária de Pickax para liderar a procissão de carros até o cemitério. Como ex-presidente da câmara de comércio, Larry tinha certeza de que todo o comércio cerraria as portas na manhã do funeral. Como presidente em exercício do conselho de educação, pediria às escolas que também fechassem por meio dia.

     “Todas as turmas faziam excursões ao museu”, disse, “e Iris sempre tinha biscoitos e limonada para os garotos.”

     Por um século ou mais, os funerais tinham sido eventos de importância em Pickax. As pessoas da cidade sempre compareciam em massa para apresentar seus cumprimentos e contar o número de veículos na procissão. Essas estatísticas viravam casos de anais, para serem memorizadas e citadas; noventa e três carros no funeral de Senior Goodwinter no ano anterior; setenta e cinco quando o capitão Fugtree foi enterrado. O mais espetacular de todos fora o funeral de Ephraim Goodwinter em 1904; cinqüenta e duas charretes, trinta e sete carruagens, mais de cem acompanhantes a pé, e dezessete em bicicletas. “Havia de tudo, menos camelos e elefantes”, ouviu-se um espectador irreverente comentar na ocasião. Ephraim, dono da mina Goodwinter, era detestado, e sua procissão funerária parecera uma marcha de triunfo, mas isso era uma longa história, dissimulada em boatos e preconceito — que Qwilleran esperava algum dia pesquisar.

     Em seguida veio a pergunta se haveria flores ou não. “Tenho certeza de que Iris gostaria de flores”, disse. “Há um certo sentimentalismo em homenagens florais, e nossa amiga era uma pessoa sentimental.”

     “E quanto ao panegírico? Iris era excessivamente modesta.”

     “Sim, mas ansiava por aprovação. Quando chegou a Pickax, eu a apresentei numa assembléia da prefeitura, e o público aplaudiu-a por cortesia. Iris ficou tão comovida que foi para casa e chorou. Por isso eu voto a favor do panegírico.”

     “Certo! Vamos convocar o prefeito e o presidente dos representantes do Condado de Moose. Ou será que deveríamos ter uma mulher para fazer um dos discursos? Susan, talvez. Ou Carol.”

     “Conhecendo Iris, eu diria que eles deveriam ser feitos por homens.”

     “Tem razão. Pediremos a Susan para escolher o caixão e a roupa para vestir Iris.” Larry inclinou-se para trás na cadeira. “Bem, acho que é só o que podemos fazer por essa noite. Amanhã — quero dizer, hoje — vou ter vendas promocionais na loja, para o Dia de Colombo, e se eu correr para casa agora vou conseguir dormir umas três horas.”

     Qwilleran disse: “Eu gostaria de mencionar uma coisa: Iris queixou-se de escutar ruídos peculiares depois de escurecer. Alguma vez você ouviu algo fora do comum?”

     “Não que me lembre. Estive aqui muitas vezes tarde da noite quando montávamos exposições, e só ouvi grilos, sapos e às vezes um mergulhão.”

     “Quando cheguei hoje, Larry, estava tudo às escuras. Pensei que era falta de energia, mas quando experimentei os interruptores de parede, tudo funcionou. Como explica isso?”

     “Não sei”, disse Larry, obviamente cansado e impaciente para ir embora. “Quando descobrimos que sua visão estava ficando ruim, dissemos a Iris que não tentasse economizar eletricidade, mas ela tinha hábitos parcimoniosos. Vou lhe arrumar umas chaves do escritório.” Atravessou a porta até o museu e logo retornou, segurando duas chaves. “Esta é da porta da frente do apartamento, e a outra é do celeiro. Talvez queira usar o celeiro para seu carro, se o tempo estiver ruim. Também há uma boa provisão de lenha para as lareiras.”

     “Qual celeiro?”

     “O novo celeiro de aço. O velho está cheio de prensas tipográficas.”

     “E esta porta para o museu pode ser trancada?”

     “Não; nunca nos preocupamos em instalar uma tranca, e Iris sempre a deixava aberta, exceto quando estava cozinhando.”

     “Eu a manterei fechada”, disse Qwilleran, “por causa dos gatos. Não os quero rondando pelo museu.”

     “Faça como quiser, Qwill. Não sei como agradecê-lo por nos socorrer. Espero que fique confortável. E mantenha-me informado.”

     Os dois homens entraram nos carros e avançaram pela Alameda do Riacho Negro, Larry na grande perua que denotava uma rica propriedade rural, e Qwilleran em seu modelo pequeno, econômico. Ele voltou para Pickax em velocidade normal, pensando:

     Alguém desligou as luzes — interruptor por interruptor, cômodo por cômodo, dentro e fora da casa.

     Alguém desligou o forno de microondas.

     Alguém fechou a porta entre a cozinha e o museu.

 

     Amanhecia quando Qwilleran chegou ao seu apartamento em Pickax. A cidade estava lugubremente silenciosa. Logo mais os despertadores acordariam a população, e a sirene das sete horas, no alto da prefeitura, arrancaria os preguiçosos da cama. Eles ligariam seus rádios e ouviriam sobre a morte de Iris Cobb, quando então os boatos em Pickax entrariam em ação, levando as chocantes notícias através das linhas de telefone, de cercas de quintal, e sobre xícaras de café na Lanchonete da Lois, perto da prefeitura.

     Qwilleran subiu cansado as escadas estreitas e íngremes para seus aposentos em cima da garagem Klingenschoen. Esperando nos degraus de cima estavam dois siameses zangados — Yum Yum olhando-o reprovadoramente e Koko repreendendo-o. Com olhos faiscantes, cauda abanando e postura rígida, ele emitiu um único silvo de alta intensidade, “MIAU!”, que expressava tudo: Onde esteve? As luzes ficaram acesas a noite toda! Ninguém nos alimentou! Você deixou as janelas abertas!

     “Quietos!”, protestou Qwilleran. “Vocês parecem Vince Boswell. E não me aborreçam com queixas bobas. Tenho notícias de arrepiar: perdemos a sra. Cobb! Não haverá mais almôndegas caseiras para vocês dois, seus danadinhos!”

     Enxotou-os para o cômodo deles — um quarto com tapete macio, almofadas, cestos e TV — e depois caiu na cama. Não acordou quando a sirene das sete da manhã tocou, nem quando começou o ruído das perfuratrizes na Rua Principal, onde a prefeitura estava de novo abrindo buracos no asfalto.

     Às oito voltou à consciência bruscamente com um telefonema de Arch Riker, seu amigo de toda a vida, atualmente editor e diretor do jornal local.

     Sem cumprimentar nem se desculpar, Riker disse abruptamente: “Você ouviu o noticiário, Qwill? Iris Cobb foi encontrada morta no seu apartamento na noite passada!”

     “Eu sei”, replicou Qwilleran, mal-humorado e rouco. “Fui eu que achei o corpo, chamei a polícia, avisei o parente mais próximo, planejei o funeral, telefonei dando a notícia para a estação de rádio e para o seu serviço de notícias e cheguei em casa às cinco da manhã. Alguma outra notícia sensacional?”

     “Volte a dormir, seu velho rabugento”, disse Riker.

     Às oito e meia Polly Duncan ligou. “Qwill, já se levantou? Você ouviu a triste notícia sobre Iris Cobb?”

     Qwilleran controlou a irritação e deu-lhe uma versão mais amável de sua resposta a Arch Riker. E na meia hora seguinte foi chamado por Fran Brodie, sua antiga decoradora de interiores; o sr. O’Dell, seu zelador; e Eddington Smith, vendedor de livros de segunda mão, todos fazendo jus à fama de boateiros de Pickax.

Exasperado, pulou da cama, apertou o botão da cafeteira computadorizada e abriu uma lata de salmão vermelho para os siameses. Ao engolir os primeiros e bem-vindos goles da bebida quente, observou-os comendo — corpos rente ao chão, caudas na horizontal, cabeças abocanhando de lado. Depois, executaram um ritual primitivo com mandíbulas bem abertas e compridas línguas róseas, seguidas de uma lavagem de máscaras e orelhas com patas úmidas, tudo cuidadosamente coreografado. E essa tarefa mundana era feita com elegância e graça por um par de objetos de arte viva, pelagem castanha, extremidades marrons e olhos azuis. Qwilleran tinha descoberto que olhar os siameses era terapêutico, aliviando a fadiga, frustração, irritabilidade e inquietação — um remédio sem receita e sem efeitos colaterais adversos.

     “Muito bem”, disse ele, “tenho outras notícias para vocês. Estamos de mudança para o Museu da Casa de Fazenda Goodwinter.” Era sua norma comunicar-se com eles com termos diretos. Como que entendendo o que dizia, ambos se escafederam do quarto; odiavam mudanças de endereço.

     Qwilleran carregou o carro com material para escrever, um dicionário, duas malas de roupas para o tempo frio que estava por chegar, seu toca-fitas portátil, algumas fitas inclusive Otelo, e a panela de assar peru que servia de privada para os gatos. Por fim apresentou a cesta de vime onde eles estavam acostumados a viajar.

     “Vamos embora!”, chamou. “Onde estão vocês, seus malandros?”

     Oito quilos de sólida carne de gato haviam subitamente desaparecido. “Venham cá! Chega de brincadeira!” Finalmente, mãos e joelhos no chão, encontrou Yum Yum debaixo da cama e Koko no canto mais afastado do armário, escondido atrás de um par de tênis de corrida.

     Flácidos e silenciosos, deixaram que os colocasse no cesto, mas estavam planejando um contra-ataque. Tão logo o carro se dirigiu para North Middle Hummock, começaram seu programa de altercações e miados. As investidas um no outro sacudiam o cesto, e os rosnados sugeriam violência sangrenta.

     “Se vocês, seus dois selvagens, ficarem quietos”, berrou Qwilleran, “vou fazer comentários sobre a viagem. Estamos agora indo para o norte na Estrada de Pickax e nos aproximando da extinta mina Goodwinter. Como podem lembrar, foi cenário de uma tremenda explosão em 1904.”

     Houve uma calmaria momentânea na algazarra vinda do assento traseiro. Os gatos gostavam do som de sua voz. Tinha uma ressonância que aquietava os corações selvagens sob aquela pálida pelagem sedosa.

     Ele continuou no estilo de um guia de excursão. “Lá na frente à direita está o Café Dimsdale, famoso pela comida ruim e café ainda pior. As janelas não são lavadas desde a administração Hoover. Aqui entramos na Estrada de Ittibittiwassee.”

     Os passageiros estavam tranqüilos agora. O sol brilhava; o céu tinha um azul de outubro com nuvens brancas encapeladas tingidas de prata; as matas estavam chamejantes com as cores de outono. A viagem foi bem diferente do jogo de cabra-cega que Qwilleran executara na noite anterior.

     “Segurem-se bem”, disse. “Vamos cruzar a Velha Ponte de Pranchas. Em seguida virão várias curvas fechadas. À esquerda está a famosa Arvore dos Enforcados.”

     Depois chegaram à cidade-fantasma que um dia fora North Middle Hummock... depois ao gradil branco da Fazenda Fugtree... e finalmente à tabuleta de madeira com os dizeres:

 

MUSEU DA CASA DE FAZENDA GOODWINTER

1869

Aberto de sexta a domingo

das 13 às 16 horas ou com hora marcada

    

     A Alameda do Riacho Negro era bordeada de árvores numa orgia de ouro, vermelho-vinho, rosa-salmão e laranja — testemunhas vivas das antigas florestas de madeira de lei que cobriam o Condado de Moose antes da chegada dos madeireiros. No fundo do panorama estava a venerável casa da fazenda.

     “Chegamos!”, anunciou Qwilleran. Carregou o cesto para dentro da ala oeste da grande construção. “Vocês terão duas lareiras e parapeitos de janela largos para verem muitos animais selvagens. E uma coisa que não existe no centro de Pickax.”

Os siameses emergiram do cesto cautelosamente e dirigiram-se direto à cozinha, Yum Yum ao lugar onde tinha caçado um rato há quatro meses e Koko ao local exato onde a sra. Cobb tinha caído. Arqueou o dorso, arrepiou a cauda e iniciou uma dança macabra.

     Qwilleran enxotou-os para fora da cozinha, e eles se dedicaram a uma exploração metódica, farejando os tapetes, pulando para cima das mesas com a leveza de uma pena, testando os assentos das cadeiras para checar a maciez e contorno adequado, verificando a vista dos parapeitos das janelas e examinando o banheiro, onde sua privada fora colocada. Na sala de estar Koko reconheceu um grande armário de pinho — um armário da Pennsylvania — que viera da mansão Klingenschoen e tinha dois metros de altura. Podia voar para cima dele num único e seguro salto. Nas prateleiras, achou apenas algumas brochuras, e a maior parte do espaço estava cheia de bricabraques antigos. As cadeiras eram cobertas de veludo escuro, ótimas para mostrar pêlos de gato, e espalhados pelo soalho de madeira encerada havia tapetes orientais antigos, bons para agarrar ou para escorregar.

     Enquanto os siameses inspecionavam o local, Qwilleran trouxe a bagagem. O material para escrever foi empilhado na mesa de jantar da cozinha. O toca-fitas, numa arca austríaca na sala de estar. Mas as roupas deram problema, porque o quarto estava cheio dos pertences da sra. Cobb. Pior ainda, em sua opinião, era a mobília do quarto: as cômodas e mesas com tampos frios de mármore, a cadeira de balanço muito pequena e delicada, e a enorme cabeceira da cama em madeira escura, de desenho intricado e chegando quase ao teto. Parecia pesar uma tonelada, e imaginou aquilo caindo-lhe na cabeça quando estivesse deitado.

     “Hoje à noite será o teste”, disse aos siameses que rondavam por ali. “Ou esta casa faz ruídos estranhos depois de escurecer, ou tudo estava na cabeça da pobre mulher. Mas duvido que algum dia possamos desvendar o mistério da casa e do pátio sem luzes. Quantas luzes estavam acesas antes dela ter o colapso? Devia haver luz na cozinha onde ela estava esquentando o leite, talvez no quarto onde fazia a mala, certamente no pátio, porque estava me esperando. E obviamente o microondas estava sendo usado.”

     Koko fez “ik ik ik” e coçou a orelha.

     Qwilleran trancou os gatos fora da cozinha enquanto sentava-se à mesa de jantar para datilografar o obituário da sra. Cobb na máquina de escrever dela. Não precisava de notas. Conhecia bem suas credenciais de vendedora de antigüidades e avaliadora oficial, sua habilidade ao catalogar a vasta coleção Klingenschoen, sua generosa doação à Sociedade Histórica e esforços incansáveis para restaurá-la como um museu vivo, conseguindo arrancar doações em dinheiro e em preciosos objetos particulares das avarentas famílias do Condado de Moose. Ela organizara programas para estudantes, contagiando-os com o germe do interesse por sua tradição. E Qwilleran não podia terminar seu hino de louvor sem elogiar a abundância de biscoitos deliciosos que jorravam de sua cozinha.

     Omitiu o fato de que seus três maridos tinham morrido de mortes não naturais: Hough de envenenamento por comida, Cobb num acidente, e Hackpole... Qwilleran preferiu não pensar em Hackpole.

     Acabado o obituário, transmitiu-o por telefone ao copidesque do Moose County Something para a edição de terça-feira. Este era claramente um nome incomum para um jornal, mas o Condado de Moose orgulhava-se de ser diferente.

     O trabalho abrira o apetite de Qwilleran, e ele foi saquear o congelador, aprontando um jantar de caldo de carne com cevada e pão de queijo caseiro.

     Antes de terminar a refeição, batidas na aldrava chamaram-no à porta da frente. O visitante era um homem magricela de meia-idade, de olhos e nariz aguçados.

     “Vi seu carro no pátio”, disse numa voz forte e fanhosa. “Há alguma coisa que possa fazer por você? Sou Vince Boswell. Estava trabalhando nas prensas tipográficas no celeiro.”

     Era a voz que ouvira ao telefone, do tipo que perfura os tímpanos como uma faca. Qwilleran estremeceu. Disse serenamente: “Como vai. Acabei de me mudar e ficarei morando aqui por algumas semanas.”

     “Ótimo! Assim não preciso me preocupar com este lugar. Eu ficava mais ou menos de olho no museu quando Iris saía. Você deve ser Jim Qwilleran do Something. Vejo sempre o seu retrato no jornal. Vai passar muito tempo aqui?”

     “Vou ficar indo e vindo.”

     “Então olharei o lugar enquanto estiver fora. Também sou escritor — coisas técnicas, sabe. Estou escrevendo um livro sobre a história da prensa tipográfica e catalogando o equipamento antigo no celeiro. E um trabalho e tanto!” Boswell olhou atrás de Qwilleran para o chão. “Vejo que tem um gatinho.”

     “Tenho dois”, disse Qwilleran.

     “Minha filhinha adora gatos. Talvez minha mulher possa trazer a Baby aqui um dia desses para conhecê-los.”

     Qwilleran limpou a garganta. “Esses não são gatos comuns, sr. Boswell. São gatos de guarda siameses, muito temperamentais, e não estão acostumados com crianças. Eu não gostaria que... sua filha fosse arranhada acidentalmente.” Ele sabia que a etiqueta do Condado de Moose exigia que convidasse o visitante para uma cerveja ou uma xícara de café, mas a voz de trombeta de Boswell o irritava. Disse: “Eu o convidaria para uma xícara de café, mas estou de saída para o aeroporto. E alguém que vem à cidade para o funeral.”

     Boswell sacudiu a cabeça pesarosamente. “Minha mulher e eu ficamos tristes com isso. Iris era uma boa mulher. Quando é o funeral? Vai ter velório?”

     “Acredito que a informação sairá no jornal de amanhã.” Qwilleran olhou o relógio. “Vai ter de me desculpar, sr. Boswell. Quero estar lá quando o avião aterrissar.”

     “Chame-me Vince. E me diga se houver algo que eu possa fazer, ouviu?” Saiu com um aceno de mão que incluía o gato. “Até logo, gatinho. Prazer em conhecê-lo, sr. Qwilleran.”

     Qwilleran fechou a porta e virou-se para Koko. “O que você achou desse idiota barulhento?”

     Koko deitou as orelhas para trás. Qwilleran pensou, jamais alguém o chamara de “gatinho”. Uma forma mais apropriada seria “Vossa Excelência” ou “Vossa Eminência”.

     Antes de sair para o aeroporto, telefonou para Susan Exbridge em seu apartamento em Indian Village. Disse: “É só para comunicar que me mudei para a casa de Iris, caso precise de mim. Como estão as coisas?”

     A vice-presidente da Sociedade Histórica tinha energia e entusiasmo iguais aos do presidente. Disse: “Estou exausta! Corri para o museu hoje cedo e escolhi as roupas para Iris ser enterrada. Decidi pelo conjunto rosa de camurça que ela usou para seu casamento no ano passado. Depois escolhi o caixão na Dingleberry. Iris adoraria! Tem um forro franzido cor-de-rosa, muito feminino. Depois discuti as músicas com o organista da igreja, arregimentei os anfitriões para amanhã à noite na casa funerária e contratei a banda que vai acompanhar o enterro. Também falei com os floristas para mandarem vir de avião flores cor-de-rosa especiais de Minneapolis. O Condado de Moose só tem crisântemos ferrugem e ouro, que ficariam horríveis com o forro cor-de-rosa do caixão, você não acha?”

     “Parece que foi um dia inteiro de trabalho árduo, Susan.”

     “Se foi! E tão comovente! Ainda não tive tempo de lamentar, mas agora vou tomar dois martínis e chorar um bocado pela coitadinha da Iris... O que fez hoje, Qwill?”

     “Escrevi o obituário e passei-o por telefone, e agora estou indo ao aeroporto apanhar o filho dela”, disse Qwilleran. “Vou levá-lo para jantar e deixá-lo no hotel. Seu nome é Dennis H-o-u-g-h, pronunciado Huff. Você e Larry podem fazer-lhe companhia amanhã?”

     “O que você tem em mente?”

     “Vocês poderiam levá-lo para almoçar e jantar e acompanhá-lo à Dingleberry na hora apropriada.”

     “Ele é atraente?”, perguntou Susan com a maior cara-de-pau. Recentemente divorciada, estava constantemente alerta para possibilidades.

     “Depende do seu gosto”, disse Qwilleran. “Ele tem um metro e cinqüenta, pesa cento e quarenta quilos, tem um olho de vidro e caspa.”

     “É o meu tipo”, disse ela afetadamente.

     Qwilleran mudou de roupa, apanhou rosbife frio na geladeira e esquentou-o para os gatos, depois foi para o aeroporto.

     Dois anos antes, o aeroporto do Condado de Moose era pouco mais que um pasto de gado e um barracão, mas uma doação da Fundação Klingenschoen havia melhorado a pista de pouso e o terminal, construído hangares e asfaltado o estacionamento, enquanto os clubes locais de jardinagem tinham feito o paisagismo da entrada e plantado crisântemos ferrugem e ouro.

     No terminal, exemplares do Something de segunda-feira exibiam estas notícias na primeira página, dentro de uma tarja negra:

                   COMUNICADO

   Iris Cobb Hackpole foi encontrada morta em seu apartamento em North Middle Hummock esta manhã, aparentemente de um ataque do coração. Era administradora residente do Museu da Casa de Fazenda Goodwinter e sócia de uma nova loja de antigüidades aberta em Pickax. Ultimamente não estava bem de saúde. Os preparativos para o funeral serão anunciados oportunamente.

     Quando o turboélice de dois motores aterrissou e deslizou pela pista até o terminal, Qwilleran imaginou se reconheceria Dennis depois de seu encontro anterior Lá Embaixo. Lembrava dele como um rapaz alinhado, de rosto fino, recém-saído da faculdade, que trabalhava numa firma de arquitetura. Desde então, Dennis havia casado, tido um filho, e iniciado seu próprio negócio como empreiteiro de construção — acontecimentos que haviam alegrado o coração de sua mãe.

     O rapaz que agora vinha andando para o terminal evidenciava as marcas de alguns anos e responsabilidades a mais, e o rosto emaciado denunciava tristeza e cansaço.

     Qwilleran deu-lhe um aperto de mão sincero. “É bom vê-lo de novo, Dennis. Sinto que tenha de ser nessas circunstâncias.”

     O filho disse: “Isso é que é o mais triste! Minha mãe ficava convidando Cheryl e eu para virmos visitá-la, mas estávamos sempre ocupados. Estou muito arrependido. Ela nunca conheceu o neto.”

     Quando iam de carro na direção de Pickax, Qwilleran perguntou-lhe: “Iris contou-lhe sobre o Condado de Moose? Sobre as minas abandonadas e tudo mais?”

     “Contou; escrevia cartas muito boas. Nosso filho poderá lê-las algum dia.”

     Qwilleran relanceou os olhos para o passageiro e comparou a face fina e melancólica ao rosto gorducho e alegre da sra. Cobb. “Você não se parece com sua mãe.”

     “Acho que pareço com meu pai, embora nunca o tenha conhecido nem visto fotos dele”, disse Dennis. “Ele morreu quando eu tinha três anos — de envenenamento por comida. Só o que sei é que ele tinha um péssimo temperamento e era cruel com minha mãe e que, quando morreu, houve um boato desprezível de que ela o envenenara. Sabe como é em cidades pequenas; eles não têm nada para fazer, então espalham calúnias. Por isso mudamo-nos da cidade, e ela me criou sozinha.”

     “Tenho profunda simpatia por pais que criam os filhos sozinhos”, disse Qwilleran. “Minha mãe enfrentou o mesmo desafio, e sou o primeiro a admitir que não foi fácil para ela. Como é que Iris entrou no negócio de antigüidades?”

     “Ela trabalhava como cozinheira em casas particulares, e uma dessas famílias tinha muitas antigüidades. Ela se apaixonou por aquilo. Costumávamos estudar juntos na mesa da cozinha — eu fazendo exercícios de matemática e ela estudando a construção de gavetas em cômodas do século XVIII, ou coisas do gênero. Então ela conheceu C. C. Cobb, e eles abriram a Loja de Trastes na Rua Zwinger, onde o senhor morou. Acho que sabe do resto.”

     “Cobb era um sujeito grosseiro.”

     “Hackpole também, pelo que ouvi.”

     “Quanto menos falarmos dessa nulidade, melhor”, disse Qwilleran franzindo as sobrancelhas. “Está com fome? Podemos parar num restaurante. Pickax tem alguns bons.”

     “Comi um guisado em Minneapolis enquanto esperava o vôo, mas até que gostaria de um hambúrguer com cerveja.”

     Foram para o Old Stone Mill, um moinho de cereais centenário convertido em restaurante, com a roda d’água ainda girando e guinchando. Dennis tomou a cerveja, e Qwilleran pediu água Squunk com uma fatia de limão.

     “É melhor do que parece”, explicou. “É uma água mineral local que vem de uma fonte em Squunk Corners.” A seguir, disse: “Sinto que Iris não tenha vivido para assistir à abertura da Exbridge e Cobb. É muito diferente da Loja de Trastes na Rua Zwinger. O apartamento dela no museu também está repleto de antigüidades finas. Você provavelmente vai herdá-las.”

     “Acho que não”, disse Dennis. “Ela sabia que não aprecio móveis e coisas velhas. Cheryl e eu gostamos de vidro e aço e aquele plástico moldado da Itália. Mas quero ver o museu. Eu trabalhei para uma firma que restaurava edifícios antigos.”

     “A casa da fazenda Goodwinter é um exemplo notável, e sua restauração foi um trabalho intelectual só dela. Fica a cerca de cinqüenta quilômetros de Pickax, e achei uma imprudência ela ter ido morar lá sozinha.”

     “Eu também achei. Queria que ela arrumasse um dober-man ou um pastor alemão, mas ela vetou depressa a idéia. Não gostaria de um cachorro, a menos que ele tivesse pernas Chippendale.”

     “Vocês mantinham contato regularmente?”

     “Sim, tínhamos um bom relacionamento. Eu telefonava todos os domingos, e ela escrevia uma ou duas vezes por semana. Conhece sua caligrafia? É terrível!”

     “Só um criptógrafo podia ler.”

     “Por isso lhe dei de presente uma máquina de escrever. Ela a adorava! Adorava o museu. Adorava Pickax. Era uma mulher muito feliz... e de repente a casa caiu.”

     “O que quer dizer?”

     “Ela foi consultar um médico devido à má digestão e descobriu que tinha uma doença coronária assintomática. Seu colesterol estava nas nuvens; o açúcar no sangue, problemático; e tinha um excesso de peso de vinte e cinco quilos. Ficou psicologicamente arrasada!”

     “Mas ela sempre pareceu tão saudável.”

     “Aí é que está. Ela ficou deprimida, e então começou a se desligar do museu... Acredita em fantasmas?”

     “Sinto, mas não.”

     “Nem eu, mas mamãe sempre se interessou por espíritos — amigáveis, claro.”

     “Sei tudo sobre isso”, disse Qwilleran. “Na Rua Zwinger ela dizia que tinha uma aparição brincalhona na casa, mas acontece que sei que C. C. Cobb andava lhe pregando peças. Todas as noites ele saía da cama sem que ela visse e colocava um saleiro nos chinelos dela ou pendurava suas calcinhas no lustre. Devia ter muito trabalho para imaginar uma nova brincadeira todas as noites.”

     “Isso é o que chamo de devoção”, disse Dennis.

     “Francamente, eu acho que ela sabia, mas não queria que C. C. soubesse que sabia. Isso é que é devoção!”

     Os hambúrgueres foram servidos, e os dois homens comeram em silêncio por alguns minutos. Depois Qwilleran disse: “Você mencionou que Iris começou a se desiludir com o museu. Eu não sabia disso.”

     Dennis concordou, sobriamente. “Ela começou a pensar que o lugar era assombrado. No começo achou graça, mas depois começou a ficar com medo. Cheryl e eu tentamos fazer com que fosse a St. Louis para uma visita. Pensamos que uma mudança de cenário lhe faria algum bem, mas ela não queria ir antes da inauguração da loja. Talvez fosse sua medicação — não sei — mas ela estava ouvindo ruídos que não conseguia explicar. Isso pode acontecer numa casa velha, sabe, madeira que range, camundongos, correnteza na chaminé...”

     “Ela lhe deu alguma informação?”

     “Eu trouxe algumas de suas cartas”, disse Dennis. “Estão na minha mala. Pensei que poderia lê-las e verificar se alguma coisa faz sentido. Para mim não faz. Quero perguntar ao médico dela quando o vir.”

     “O dr. Halifax é uma ótima pessoa, pronto a ouvir e explicar. Vai gostar dele.”

     Foram até o Novo Hotel Pickax, como era chamado, e Qwilleran avisou Dennis para não esperar acomodações de alto luxo. “O hotel era ‘novo’ em 1930, mas é conveniente, localizado bem no centro e perto da casa funerária. Larry Lanspeak entrará em contato com você amanhã — talvez até hoje. Ele é presidente da Sociedade Histórica, e um sujeito e tanto.”

     “É, mamãe adorava os Lanspeak.”

     Estacionaram em frente ao hotel, e Qwilleran acompanhou Dennis à recepção, onde a presença do bigode famoso assegurou o melhor serviço da equipe do hotel. O recepcionista da noite era um daqueles belos rapagões louros que abundavam no Condado de Moose.

     Qwilleran lhe disse: “Mitch, eu fiz uma reserva para Dennis Hough, soletrado H-o-u-g-h. Ele veio para o enterro da sra. Cobb. Veja que seja muito bem tratado... Dennis, este é Mitch Ogilvie, membro da Sociedade Histórica. Ele conhecia sua mãe.”

     “Fiquei triste com a notícia, sr. Hough”, disse o recepcionista. “Ela era uma ótima pessoa e gostava do museu.”

     Dennis murmurou um agradecimento e assinou o registro.

     “Boa noite, Dennis”, disse Qwilleran. “Vejo-o na casa funerária amanhã à tarde.”

     “Obrigado por tudo, Qwill... Espere um momento!” Tirou um envelope da valise e entregou-o. “Estas são cópias. Não precisa devolver. São algumas das cartas mais recentes. A última chegou no sábado. Talvez consiga descobrir o que estava acontecendo no museu... ou se foi...” Bateu de leve na cabeça.

 

     Após deixar Dennis Hough no hotel, Qwilleran seguiu de carro até North Middle Hummock no meio de uma nuvem de vapor azul espectral — luar misturado a farrapos da neblina que caía nos vales dos Hummock. Quando chegou em casa e apagou os faróis, o terreiro e a fazenda apareceram banhados em azul místico.

     Entrou em casa e ligou o lustre de quatro lâmpadas. Apenas três acenderam. Ao mesmo tempo, duas formas sombrias aproximaram-se furtivamente pela sala escura e piscaram para ele.

     “O que aconteceu com as luzes?”, perguntou-lhes. “Ontem à noite as quatro estavam funcionando.”

     Os siameses bocejaram e espreguiçaram-se.

     “Vocês têm algo a contar? Ouviram algum barulho diferente?”

     Koko limpou o peito com a língua comprida e rósea, e Yum Yum roçou-se nos tornozelos de Qwilleran, sugerindo alguma coisinha para comer. Essa fora a primeira vez que tinham sido deixados sozinhos neste lugar, e Qwilleran procurou quadros entortados, livros no chão, abajures deslocados e papel higiênico rasgado. Não se podia adivinhar como eles reagiriam quando eram abandonados em novo ambiente. Felizmente, apenas alguns pêlos de gato numa bergère de veludo azul e um pouco de mato seco na sala de visitas provavam sua presença felina; tinham escolhido a cadeira favorita da sra. Cobb como sua própria, e um deles, ou os dois, havia pulado para cima do armário de dois metros de altura para examinar o arranjo seco que enchia uma cesta Shaker.

     Qwilleran fez uma xícara de café antes de sentar-se para ler as últimas cartas de Iris Cobb, grato que Dennis a tivesse presenteado com a máquina de escrever. A primeira carta datava de 22 de setembro e começava com perguntas da avó sobre Dennis Junior, comentários sobre o tempo bom, elogios sobre a nova loja de antigüidades marcada para abrir em 17 de outubro e uma comprida receita de uma nova sobremesa de altas calorias que tinha inventado, depois do que ela escrevia:

     Estou me divertindo muito no museu. No outro dia achei que seria interessante se mostrássemos um aquecedor de cama de cabo comprido num dos quartos de dormir em exposição, e lembrei-me que alguém havia doado um aquecedor em más condições. Procurei-o no computador. (A Fundação Klingenschoen pagou para ter nosso catálogo computadorizado. Não é formidável?) Dito e feito, ele informava que o referido aquecedor de latão estava amassado e com o cabo solto mas valia a pena ser restaurado. Então fui lá embaixo procurá-lo. O porão é um depósito de material danificado, e eu estava fuçando por lá, procurando o aquecedor de cama, quando ouvi um ruído misterioso (soletrei direito?) de batidas na parede. Disse para mim mesma — Ora essa, temos um fantasma! Escutei e deduzi de que parede vinha o ruído, então apanhei um velho espremedor de batatas de madeira que estava jogado por ali a comecei a bater “rat-tat-tat” na parede. Depois não houve mais batidas. Se era um fantasma, acho que o assustei.

     Gostaria que vocês viessem para a inauguração da loja. Vai ser uma festa e tanto. Susan está planejando ponche de champanhe, flores e tudo o mais.

Com amor, Mamãe

     Qwilleran pensou, crisântemos ouro e ferrugem, sem dúvida. Pegou a carta seguinte, datada de 30 de setembro, e descobriu uma drástica mudança de humor. A sra. Cobb escrevia:

     Queridos Dennis e Cheryl,

     Estou muito aborrecida. Acabei de receber meu relatório médico do dr. Hal e tudo está errado! Coração, sangue, colesterol, tudo! Estive chorando muito para poder falar, senão teria telefonado. Se não começar um regime severo, fizer certos exercícios e tomar medicação, precisarei ser operada! Foi um choque horrível. Nunca pensei que isso aconteceria comigo. Sentia-me tão bem! Agora sinto-me realmente suicida. Soletrei certo? Perdoem-me por descarregar meus problemas em vocês. Não posso escrever mais esta noite.

Mamãe

     Pobre Iris, pensou Qwilleran. Sua mãe tinha passado pelo mesmo pânico quando o médico lhe apresentara a sentença de morte. Apanhou a carta seguinte, contente em achá-la em melhor estado de espírito. Fora escrita cinco dias depois.

     Queridos filhos,

     Seu telefonema me alegrou demais. Eu deveria ter ido para aí quando me convidaram da primeira vez, mas agora tenho que ficar aqui para a inauguração. De dia sinto-me bem, mas à noite fico muito nervosa e deprimida, principalmente por causa dos barulhos estranhos (escrevi direito?) Eu já contei sobre as batidas no porão. Agora ouço-as todo o tempo — e também gemidos e ruídos. Às vezes penso que está tudo na minha cabeça, e aí fico mesmo preocupada e com aquele aperto horrível no peito.

     Eu sempre disse que uma casa velha espelha as pessoas que nela moraram, como algo que se imprime no madeiramento e na argamassa. Parece doidice, eu sei, mas coisas ruins sempre aconteceram com os Goodwinter — suicídio, acidentes fatais, assassinato. Posso sentir isso no ambiente da casa, e está me deixando muito inquieta. Será minha imaginação? Ou serão maus espíritos? Tenho estado tão preocupada com meus problemas que me esqueci de perguntar sobre o pequeno Denny. Descobriram o que causou sua brotoeja?

Com amor da Mamãe e Vovó

     A última carta não estava datada, mas Dennis a recebera no sábado, um dia antes da morte da mãe.

 

     Querido Dennis,

     Não sei quanto tempo mais poderei agüentar isso — quero dizer, os barulhos. Os voluntários não ouvem nada. Sou a única que os escuta. Falei com o dr. Hal, e ele suspendeu por uns dias a minha medicação, mas não fez diferença. Ainda ouço os barulhos, mas só quando estou sozinha. Não quero contar ao Larry. Ele vai pensar que estou louca. O museu estará aberto na sexta-feira, sábado e domingo, e haverá pessoas por aqui. Vou esperar até segunda-feira, e se não melhorar, vou me demitir.

Mamãe

     P.S. Agora não estou ouvindo mais.

 

     Dennis recebeu a carta no sábado, ligou para o dr. Halifax e comprou uma passagem de avião para segunda-feira. Na noite de domingo ela morreu, o rosto contorcido de dor — ou o quê? Estava aterrorizada, decidiu Qwilleran. Por quê? Ou por quem?

     Depois de ler a última carta não teve pressa alguma para ir deitar, com aquela monstruosa cabeceira elevando-se por cima dele. Pensou em dormir no sofá, mas antes tinha de fazer uma experiência. Era sua intenção ficar acordado até a meia-noite com as arandelas e lustres acesos em todos os cômodos e com o toca-fitas a todo o volume. Então, precisamente à meia-noite, desligaria tudo e sentaria no escuro, escutando.

     Para a primeira fase dessa estratégia, andou pelo apartamento ligando interruptores e ativando lâmpadas. No hall de entrada apenas duas lâmpadas acenderam. Na noite anterior haviam sido quatro. Uma hora antes eram três. Bufou no bigode, pois tinha pouca paciência com equipamento elétrico que não funcionava bem, e não estava disposto a procurar lâmpadas sobressalentes.

     Confortável no roupão de banho impermeável e chinelos de pele de alce, regalou os gatos com uma sardinha e preparou outra xícara de café para si. Depois colocou a fita de Otelo no toca-fitas e acomodou-se na bergère de veludo azul em frente à lareira. Absteve-se de acendê-la; as achas crepitando prejudicariam os sons puros na fita.

     Desta vez esperava ouvir a gravação do princípio ao fim sem interrupção. Para sua consternação, quando Otelo e Desdêmona aproximavam-se do dueto amoroso no primeiro ato, o telefone tocou. Abaixou o volume e foi atender o telefone no quarto.

     “Qwill, aqui é Larry”, disse a voz enérgica. “Acabei de falar com Dennis Hough ao telefone. Obrigado por instalá-lo no hotel. Ele disse que as acomodações são muito boas.”

     “Espero que não lhe tenham dado a suíte nupcial com a cama redonda e lençóis de cetim”, disse Qwilleran de mau humor, ressentindo-se da interrupção.

     “Ele está na suíte presidencial — a única com telefone e TV em cores. Está tudo combinado para amanhã. Susan vai levá-lo para almoçar; Carol e eu levaremos os dois para jantar. Vai tudo bem no museu? Está confortável aí?”

     “Acho que vou ter pesadelos se dormir naquela cama monstruosa.”

     Num tom de falsa censura Larry disse: “Esse monstro, Qwill, é uma cama General Grant sem preço, confeccionada há um século para uma Feira Mundial! Olhe a qualidade do pau-rosa! Olhe o acabamento! Olhe a pátina!”

     “Seja como for, Larry, a cabeceira parece a porta de um mausoléu, e ainda não estou pronto para ser enterrado. Fora isso, o resto vai bem.”

     “Então, boa noite. Foi um dia agitado, e nenhum de nós dormiu muito a noite passada, não é? Finalmente consegui arrumar “os outros” para ajudar a carregar o caixão, de modo que vou me deitar e ter uma merecida noite de sono.”

     “Uma pergunta, Larry. Você viu a Iris durante as horas de visita do museu na semana passada?”

     “Não, mas Carol viu. Disse que Iris parecia cansada e preocupada — com o resultado de seu relatório médico, sem dúvida, e talvez com o estresse da inauguração da nova loja. Carol lhe disse que fosse descansar.”

     Qwilleran voltou à sua ópera, mas tinha perdido o dueto amoroso. Desligou o aparelho irritado, verificou o paradeiro dos gatos, apagou as luzes, e esparramou-se na bergère azul com os pés sobre a banqueta. Então esperou no escuro — aguardando e tentando escutar as batidas, gemidos, chocalhos e gritos.

     Quatro horas depois abriu os olhos de repente. Estava com o pescoço doendo, e com os dois siameses no colo, e o peso combinado deles fizera com que um pé ficasse totalmente entorpecido. Dormindo, pesavam o dobro do que na balança do veterinário. Qwilleran saiu mancando pela sala, resmungando e batendo no chão com o pé adormecido. Se houvera ruídos nas paredes, tinha dormido apesar deles, num estupor bem-aventurado. A chamada de Larry era a última coisa de que se lembrava.

     Em retrospecto, havia algo sobre o telefonema que o incomodava. Larry mencionara carregadores do caixão. Disse que havia arrumado “os outros” para ajudar a carregá-lo. O que, perguntava-se Qwilleran, ele queria dizer com “outros”?

     Esperou impacientemente até as sete da manhã e ligou para a casa de campo dos Lanspeak. Sem preâmbulos, disse: “Larry, posso lhe fazer uma pergunta?”

     “Claro, o que o está preocupando?”

     “Quem vai carregar o caixão?”

     “Os três homens do conselho do museu e Mitch Ogilvie — além de você e eu. Por que pergunta?”

     “Só para registro”, disse Qwilleran, “ninguém até este minuto deu a menor indicação de que eu seria um dos carregadores — não que eu tenha qualquer objeção, entende — mas estou feliz de ter descoberto.”

     “Susan não lhe disse?”

     “Ela conversou longamente comigo sobre um conjunto de camurça rosa e um caixão com forro rosa e flores rosa vindo de Minneapolis por avião, mas nem uma palavra sobre carregar o caixão.”

     “Desculpe, Qwill. Isso lhe cria algum problema?”

     “Não. Sem problema. Eu apenas queria ter certeza.”

     A verdade é que criava um grande problema. Exigia um terno escuro — algo que Qwilleran não tinha há vinte e cinco anos. Nem durante seus anos de escassez, nem em sua recém-adquirida riqueza, tinha achado que um guarda-roupa sortido era importante para seu estilo de vida. No Condado de Moose podia arranjar-se com suéteres, blusões, um casaco esporte de tweed com detalhes em couro, e um blazer marinho. No momento possuía um terno cinza-claro, comprado quando fora padrinho no casamento de Iris Cobb com Hackpole. Não tinha saído do cabide desde aquela ocasião memorável.

     Às nove em ponto, ligou para a Scottie’s Men’s Shop no centro de Pickax, dizendo: “Preciso rapidamente de um terno escuro, Scottie.”

     “Quão escurro, rapaz, e qual a prressa”, perguntou o proprietário. Ele gostava de pronunciar guturalmente os erres para Qwilleran, que sempre lhe contava que o nome de solteira da mãe era Mackintosh.

     “Muito escuro. Vou carregar o caixão, e o funeral é amanhã às dez e meia. Você tem um alfaiate à mão?”

     “Sim, mas não sei por quanto tempo. Ele estava de saída parra o médico. Chegue aqui em cinco minutos e ele o atenderrá.”

     “Não estou em Pickax, Scottie. Estou morando na Fazenda Groodwinter. Você pode segurá-lo por meia hora? Suborne o cara!”

     “Beem, ele é um escocês teimoso, mas vou fazerr o possível.”

     Qwilleran agarrou a navalha de barba, espalhou rapidamente o creme, e se cortou. Justamente quando estancava o sangue e resmungava baixo, a aldrava de latão da porta soou.

     “Maldito Boswell!”, disse alto. Tinha certeza de que era o aborrecido do Boswell; quem mais chamaria a essa hora?

     Metido no roupão curto de barbear e com a metade do rosto cheia de espuma, foi até o hall de entrada e abriu a porta violentamente. No limiar estava uma mulher sobressaltada segurando um prato de biscoitos. Ela cobriu o rosto com uma das mãos, embaraçada. “Oh, está se barbeando! Perdoe-me, sr. Qwilleran”, disse, num suave sotaque sulista. Cada declaração cadenciada acabava com ênfase na última palavra em uma pergunta implícita. “Sou sua vizinha, Verona Boswell? Trouxe-lhe alguns biscoitos frescos... para seu café?” Era um som refrescante no Condado de Moose, a quase setecentos quilômetros ao norte do Norte, mas Qwilleran não tinha tempo para amenidades.

     “Obrigado. Muito obrigado”, disse rapidamente, aceitando o prato.

     “Eu só queria dizer... bem-vindo?”

     “É muito gentil de sua parte.” Ele tentou não ser abrupto. Por outro lado, a espuma estava secando no seu rosto e o alfaiate de Scottie, ficando impaciente.

     “Avise-nos se houver qualquer coisa que possamos... fazer por você?”

     “Agradeço sua delicadeza.”

     “Espero que possamos nos conhecer melhor depois do... funeral?”

     “Certamente, sra. Boswell.” Ele deu um passo atrás e estava começando a fechar a porta.

     “Ah, por favor, me chame de... Verona? Você nos verá muitas vezes.”

     “Tenho certeza que sim, mas preciso pedir licença agora. Estou de saída para Pickax em negócio urgente.”

     “Então não vou detê-lo. Provavelmente o veremos esta noite no... velório?” Relutantemente ela recuou, dizendo: “Minha filhinha, Baby, adoraria conhecer seus gatos”.

     Qwilleran acabou de vestir-se com os dentes cerrados. Sempre vivera em cidades, onde podia ignorar os vizinhos e ser completamente ignorado por sua vez. A urbanidade sufocante dos Boswell, temia, poderia ser um problema — para não mencionar a “Baby” que queria conhecer os “gatinhos”. Seria realmente esse o seu nome? Baby Boswell! Qwilleran já não gostava da pequena mesmo antes de conhecê-la. Tinha certeza de que era uma dessas crianças insuportáveis — bonitinha, fútil, e afetada. Como W. C. Fields, nunca desenvolvera gosto por crianças.

     Quanto a Verona Boswell, não era desprovida de atrativos, e sua voz branda era um contraste bem-vindo à estridência do marido. Verona era um pouco mais moça que Vince, mas havia perdido o frescor — provavelmente, pensou Qwilleran, de tanto ouvir as arengas ruidosas do marido. Apesar das virtudes prestativas de seus vizinhos, ele decidiu ver os Boswell o mínimo possível.

     Dirigindo irritado para Pickax, foi parado por excesso de velocidade, mas o policial olhou para sua licença de motorista e o bigode característico e apenas o advertiu. Na loja masculina, Scottie esperava-o com uma seleção de ternos azul-marinho, enquanto um alfaiate com uma fita métrica em volta do pescoço aguardava nervosamente no fundo.

     “Não quero pagar muito”, disse Qwilleran, examinando o preço das etiquetas.

     “Falando como um verdadeiro Mackintosh”, disse o lojista, acenando com a cabeça grisalha. “Esse clã sempre teve os bolsos fundos e os brraços currtos. Talvez queira alugar um terno, se for só para um funerral.”

     Qwilleran olhou-o com o cenho carregado.

     “Por outro lado, um terno escurro é prático para ter no armário no caso de querrer casar de repente.”

     Qwilleran escolheu com relutância, considerando todos os ternos caros.

     Enquanto o alfaiate verificava o caimento, suspendendo aqui e puxando ali, Scottie disse: “Então está morando na Fazenda Gíoodwinter, não é? Viu algum morto sentado num barril de moedas de ouro?”

     “Até agora não tive o prazer”, replicou Qwilleran. “Você supõe que ele seja um visitante regular?”

     “O velho Ephraim Goodwinter era um avarrento, sabe, e dizem que ainda volta para contarr seu dinheiro. Como quer pagar o terrno? Em dinheiro? Com carrtão? Dez dólares por semana?”

     Da loja, Qwill dirigiu-se para o parque industrial de Pickax, onde o Moose County Something ocupava um edifício novo. Projetado para abrigar escritórios editoriais e de negócios, bem como uma moderna instalação gráfica, o edifício era um projeto caro que se tornara possível pelo empréstimo isento de juros da Fundação Klingenschoen. O cabeçalho diário na página quatro listava os seguintes nomes:

Arch Riker, editor e diretor

Junior Goodwinter, chefe de redação

William Allen, gerente geral

    

     Qwilleran entrou primeiro no escritório do gerente editorial, dominado por uma grande escrivaninha antiga de tampa corrediça que eclipsava o rapaz sentado à sua frente. A escrivaninha pertencera ao bisavô dele, o avarento Ephraim.

     Junior Goodwinter possuía um rosto de menino e estava deixando a barba crescer numa tentativa de parecer ter mais de quinze anos. “Hei! Puxe uma cadeira! Coloque os pés para cima!”, ele cumprimentou Qwilleran. “Foi um belo artigo que escreveu sobre Iris Cobb. Soube que você está tomando conta de minha velha residência.”

     “Só por enquanto, até que arrumem um novo administrador. Espero fazer algumas pesquisas enquanto estiver lá. Como está se saindo com essa escrivaninha ancestral?”

     “Não tão bem. Todos esses escaninhos e gavetinhas parecem uma boa idéia, mas se você guarda alguma coisa neles não acha mais. Mas gosto da idéia da tampa corrediça. Posso socar meu trabalho inacabado dentro, abaixar a tampa e ir para casa de consciência limpa.”

     “Descobriu algum compartimento secreto? Imagino que Ephraim tinha alguns segredos a esconder.”

     “Puxa, eu não saberia onde começar a procurar por compartimentos secretos. Por que não trás Koko para cá e o deixa farejar por aí? Ele é bom nisso.”

     “Ele tem farejado desde que nos mudamos para a fazenda. Lembra-se de Iris e imagina por que ela não está lá. Por falar nisso, logo antes de morrer ela disse que estava ouvindo barulhos estranhos. Você teve alguma aventura sobrenatural quando vivia lá?”

     “Não”, disse Junior. “Estava muito ocupado montando cavalos e brigando com meu irmão de um metro e noventa.”

     “Nunca me disse que era um cavaleiro, Junior.”

     “Ah, era. Você não sabia? Eu queria ser jóquei, mas meus pais proibiram. As alternativas eram ser um moço de recados ou um jornalista de cinqüenta quilos.”

     “Como está o novo bebê?”, perguntou Qwilleran, que nunca era capaz de lembrar-se do nome ou sexo do filho de seu jovem amigo.

     “Garoto incrível! Esta manhã ele agarrou meu dedo com tanta força que não consegui soltar. E só tem quatro semanas! Quatro semanas e três dias!”

     Mão fechada que nem o tataravô, pensou Qwilleran. Depois apontou para a porta. “Quem é este? E William Allen?” Um grande gato branco entrou no escritório com a arrogância de um diretor.

   “Ele em pessoa — não é reencarnação”, disse Junior. “Escapou milagrosamente do incêndio no antigo prédio. Provavelmente chamuscou-se um pouco, mas limpou tudo e não fez reclamações ao seguro. Encontramo-lo há um mês, dez meses depois do incêndio. Adivinhe onde estava! Sentado em frente ao Serviço Estadual de Atendimento aos Desempregados!”

     A seguir Qwilleran visitou o escritório dos editores. Arch Riker estava sentado numa cadeira de executivo com encosto alto, à frente de uma prancha curva de nogueira sustentada por dois monólitos de mármore.

     “Que tal trabalhar neste ambiente elegante?”, perguntou Qwilleran. “Estou detectando o toque fino do Estúdio de Decorações de Amanda.”

     “Isso me tira a liberdade. Tenho medo de colocar os pés na minha mesa”, disse Riker, que afirmava pensar melhor com os pés para cima.

     “Essas escoras parecem lápides antigas.”

     “Não me surpreenderia se fossem. Amanda tem todos os instintos de um saqueador de túmulos... Olhe, foi um obituário muito apropriado o que você escreveu para Iris Cobb. Espero que faça um, a metade tão bom quanto esse, quando for á minha vez. Qual é a história por trás da história?”

     “O que quer dizer?”

     “Não se faça de bobo, Qwill. Você sabe que sempre há suspeita de um desastre de carro ser suicídio, e um suicídio ser assassinato. O que realmente aconteceu no domingo à noite? Você parece preocupado.”

     Qwilleran tocou o bigode num gesto culpado, mas disse desembaraçadamente: “Se pareço preocupado, Arch, é porque comprei um terno escuro para o funeral — estou no grupo que vai carregar o caixão — e não sei se Scottie o aprontará em tempo. Você vai a Dingleberry hoje à noite?”

     “A idéia é essa. Levarei a adorável Amanda para jantar, e depois passaremos na casa funerária, se ela ainda conseguir ficar de pé e andar direito.”

     “Diga ao barman para pôr água no bourbon dela”, sugeriu Qwilleran. “Não queremos que sua namorada dê vexame na Dingleberry.”

     Como camaradas de toda uma vida, os dois homens tinham rido de suas paixonites de meninos, se vangloriado de suas aventuras amorosas de jovens, confidenciado sobre seus problemas de casamento e dividido a dor dos divórcios subseqüentes. Atualmente compraziam-se em caçoadas confidenciais sobre Amanda, a amiga excêntrica de Riker, sem papas na língua e beberrona. Havia muitos adjetivos lisonjeiros que podiam se aplicar a essa mulher de negócios de sucesso e membro agressivo da câmara municipal, mas “adorável” não era um deles.

     Riker perguntou: “Você e Polly estarão lá?”

     “Ela tem uma reunião de jantar com a diretoria da biblioteca, mas irá mais tarde.”

     “Quem sabe podemos ir a algum lugar depois — nós quatro”, propôs Riker. “Sempre preciso regalar-me com algum líquido depois de apresentar meus cumprimentos aos falecidos.”

     Qwilleran levantou-se para sair. “Tudo bem. Vejo-o na Dingleberry.”

     “Não tão depressa! Quanto tempo vai ficar na cidade? Pode ficar por aqui até a hora do almoço?”

     “Hoje não. Vou para minha casa desfazer as malas, descobrir onde guardam lâmpadas sobressalentes e fazer um inventário do congelador. Iris sempre cozinhava como se aguardasse quarenta visitas inesperadas para jantar.”

     “Minha casa! Só está lá há meio dia e já a chama de minha casa. Você tem uma capacidade para se ajustar depressa!”

     “No fundo, sou um cigano”, disse Qwilleran. “Minha casa é onde penduro a escova de dentes e os gatos têm sua privada. Vejo-o à noite.”

     Dirigindo para North Middle Hummock notou que o vento tinha aumentado e as folhas começavam a cair. Na Estrada Fugtree o asfalto estava forrado de folhas amareladas dos alamos. Era um ótimo dia para passear a pé, refletiu. Sua bicicleta estava em Pickax, e sentia falta do exercício diário. Estava relaxado e de bom humor; algumas brincadeiras com os colegas no Something sempre o deixavam com boa disposição. Um momento depois, sua calma acabou.

     Ao virar a esquina para a Alameda do Riacho Negro apertou o freio violentamente. Uma criancinha estava de pé no meio da alameda, segurando algum tipo de brinquedo.

     Ao ruído premente dos pneus esmagando o pedregulho, a sra. Boswell correu para fora de casa, gritando desesperada.

     “Baby! Eu disse para ficar no quintal!” Apanhou a garota sob um braço e tirou-lhe o brinquedo das mãos. “Isso é do papai. Não é para mexer.”

     Qwilleran abriu a janela do carro. “Essa foi por pouco”, disse. “É melhor prendê-la com uma correia.”

     “Eu sinto... tanto, sr. Qwilleran?”

     Ele continuou devagar pela alameda, sentindo um calafrio ao se lembrar do quase-acidente, depois pensando sobre o sotaque insinuante de Verona, depois dando-se conta que o “brinquedo” era um walkie-talkie. Quando estacionou no terreiro, o furgão de Boswell estava saindo do velho celeiro; o motorista inclinou-se na janela.

     “A que horas é o funeral amanhã?”, corneteou a voz irritante, ressoando pela paisagem.

     “Às dez e meia.”

     “Você sabe quem vai carregar o caixão? Pensei que me convidariam, porque sou vizinho e tudo mais. Teria prazer em ir, embora esteja bastante ocupado no celeiro. Qualquer hora que queira ver as prensas tipográficas, diga. Eu tiro um tempinho para lhe explicar tudo. É muito interessante.”

     “Tenho certeza de que é”, disse Qwilleran, impassível.

     “Estamos querendo ir ao velório esta noite, minha mulher e eu. Se quiser uma carona, será um prazer. Há muito lugar no furgão!”

     “É muito amável, mas vou encontrar uns amigos em Pickax.”

     “Está bem, mas não esqueça, estamos aqui para ajudar, a qualquer hora que precise de nós.” Boswell acenou um adeus amigável e dirigiu pela alameda em direção à casa dos empregados.

     Puxando irritado o bigode, Qwilleran entrou no apartamento e procurou os gatos — sempre sua primeira preocupação ao voltar para casa. Estavam na cozinha. Pareceram surpresos em vê-lo de volta tão cedo. Davam a impressão de estar embaraçados, como se ele tivesse interrompido algum rito felino que não deveria testemunhar.

     “O que é que os dois malandros estiveram aprontando?”, perguntou.

     Koko fez “ik ik ik” e Yum Yum limpou com indiferença uma mancha em seu alvo ventre.

     “Vou sair para andar, por isso podem voltar ao passatempo misterioso que lhes dá esse ar de culpa.”

     Sossegadamente, depois de vestir uma roupa para correr, andou pela alameda, apreciando a gloriosa folhagem de outubro, o azul vibrante do céu e o cobertor amarelo de folhas sob os pés. Chegando à casa dos empregados, passou depressa, temendo que os Boswell saíssem e entabulassem uma conversa amigável. Na esquina virou para o leste, a fim de explorar um trecho da Estrada Fugtree que nunca tinha percorrido. Era asfaltado mas não havia casas de fazenda — só pastagens cheias de pedras, manchas de bosques e esquilos ocupados nos carvalhos. Andou cerca de dois quilômetros, sem ver nada de interessante exceto uma ponte sobre um arroio estreito, evidentemente o Riacho Negro. Depois retornou sobre os passos, passando depressa em frente à casa dos Boswell e diminuindo em frente à Fazenda Fugtree.

     O nome Fugtree era famoso no condado. A casa da fazenda fora construída por um magnata da madeira no século XIX, e era um perfeito exemplo de Vitoriano Abastado — três andares, torre e uma riqueza de detalhes arquitetônicos. O complexo dos celeiros, barracões e galinheiros indicava que também tinha sido um local de trabalho para um fazendeiro muito rico. Atualmente as dependências estavam em mau estado, a casa precisava de uma pintura e o terreno estava coberto de mato. Os atuais ocupantes não estavam tomando conta da propriedade Fugtree da maneira a que ela fora acostumada.

     Enquanto Qwilleran especulava sobre o esplendor desaparecido, alguém no quintal do lado olhava em sua direção com as mãos na cintura. Virou-se e voltou rapidamente à Alameda do Riacho Negro. Ao passar pela casa dos empregados cuidou em olhar direto à frente. Mesmo assim estava cônscio da criança correndo na frente do jardim.

     “Oi!”, ela chamou.

     Ele ignorou a saudação e apertou o passo.

     “Oi!”, ela disse de novo, quando ele passou à sua frente.

     Ele continuou a andar. Quando menino em Chicago, fora alertado para nunca falar com adultos estranhos, e como adulto numa sociedade em mudança considerava prudente nunca falar com crianças estranhas.

     “Oi!”, ela chamou atrás dele, quando marchava resolutamente pela alameda, espalhando as folhas sob os pés. Era provavelmente uma criança solitária, imaginou, mas baniu o pensamento e terminou o passeio fazendo um jogging.

     Chegando ao apartamento, acendeu a luz do hall por pura curiosidade. Três lâmpadas responderam. Primeiro tinham sido quatro, depois três, depois duas. Agora eram três de novo. Resmungando baixinho foi até a cozinha, onde Koko estava sentado no parapeito da janela olhando fixamente para o terreiro. Yum Yum olhava para Koko.

     Qwilleran disse numa voz mais alta que de costume: “Como os dois vadios passam tanto tempo na cozinha olhando para o nada, quem sabe podem me dizer onde achar lâmpadas sobressalentes? Venha, Koko. Vamos fazer uma pequena incursão.”

     Com muita dificuldade Koko desviou sua atenção da cena externa e executou um longo salto do parapeito até o grande freezer que a sra. Cobb deixara bem estocado de comida.

     “Eu disse lâmpadas, não almôndegas”, disse Qwilleran. Foi abrindo os armários de madeira até achar o que precisava — uma lâmpada em forma de chama para uso em lustres em forma de velas. Levou a lâmpada e uma cadeira da cozinha para o hall da frente, com os siameses correndo ao seu lado para olhar o show. Qualquer ação fora do comum atraía a atenção deles, e um homem subindo numa cadeira era um espetáculo.

     Depois de subir na cadeira, Qwilleran não se lembrou qual lâmpada precisava ser substituída. Desceu e ligou o interruptor. Todas as quatro acenderam.

     “Fantasmas!”, resmungou ao devolver a cadeira à cozinha e recolocar a lâmpada no armário de vassouras.

 

     A Casa de Funerais Dingleberry ocupava uma velha mansão de pedra no Bulevar Goodwinter, e fora construída por um magnata da mineração durante os anos de desenvolvimento do condado. Embora o exterior fosse severo, o interior tinha sido redecorado pelo Estúdio de Decorações de Amanda. Tapetes suntuosos, paredes forradas e cortinas de seda crua na cor verde-água pálida colocavam em destaque os móveis de mogno do século XVIII e os belos quadros a óleo com suas molduras caras. A decoração era tão apreciada que a maioria das residências em Pickax fora decorada com o verde Dingleberry.

Quando Qwilleran chegou naquela terça-feira à tarde, o grande pátio de estacionamento dos fundos estava lotado; todos os espaços permitidos na rua estavam tomados, bem como alguns dos não permitidos. Entrando no estabelecimento, ouviu um ruído abafado de vozes nas salas adjacentes. Susan Exbridge, como sempre elegantemente vestida, mas apressada, aproximou-se dele no vestíbulo.

     “Dennis é encantador!”, disse em voz baixa, refreando os gestos e fala normalmente teatrais. “Sinto muita pena dele. Ele acha que Iris ainda estaria viva se tivesse chegado um dia antes, mas fiz o possível para sossegá-lo. Levei-o para almoçar no Tipsy e depois demos uma volta pelo condado. Ficou muito impressionado! Quando viu a propriedade Fitch — que está à venda, sabe — disse que a casa-grande podia ser convertida em condomínio, e que ele mesmo gostaria de morar na outra casa. Não mencionei, mas se herdar o dinheiro de Iris ele terá condições de comprar a propriedade Fitch e poderíamos fazê-lo entrar no Clube de Teatro. Está interessado em representar, e poderíamos utilizar um homem bonitão para papéis principais — para sua idade, quero dizer. Eu lhe disse que o Condado de Moose é um bom lugar para criar uma família. Na verdade, não posso imaginar por que alguém iria querer morar em St. Louis, você pode?”

     “Você devia ser corretora”, disse Qwilleran.

     “Talvez faça isso, se a loja de antigüidades não der certo. Como vai ser possível tocá-la sem Iris? Eu tinha os contatos, mas ela, a experiência. Exbridge & Cobb! Soava tão bem! Como Crosse e Blackwell ou Bausch e Lomb. Você quer ir vê-la? Está linda.”

     Susan acompanhou Qwilleran até a Sala do Descanso, onde os visitantes congregavam-se em pequenos grupos, falando em voz baixa mas animadamente. Toda uma parede estava coberta de flores cor-de-rosa, com algumas vermelhas e outras brancas para destacar, e Iris Cobb em seu conjunto de camurça rosa jazia em paz num caixão forrado de rosa, com os óculos cravejados de pedrinhas dobrados numa das mãos como se os tivesse tirado para cochilar.

     Qwilleran disse: “O esmalte de unhas rosa foi idéia sua, Susan? Eu nunca a vi usar esmalte.”

     “Ela falava que não podia porque estava sempre com as mãos na água, mas não vai ter de cozinhar mais, por isso achei que o esmalte ficaria bem.”

     “Não se engane. Nesse momento ela está toda feliz, confeccionando alguma delícia etérea para os anjos.”

     “Os advogados o chamaram?”

     “Não. Por que o fariam?”

     “Quinta-feira de manhã será a leitura do testamento. Pediram que Larry e eu assistíssemos. Pergunto-me por quê. Estou ficando nervosa.”

     Qwilleran disse: “Talvez Iris tenha lhe deixado sua cama General Grant.”

     Um novo grupo de visitantes chegou, Susan pediu licença e retornou a seu posto de cumprimentos no vestíbulo. Qwilleran procurou o enlutado principal, que estava ansioso por encontrá-lo.

     “Leu as cartas dela?”, perguntou Dennis.

     Qwilleran acenou pesarosamente. “Seu declínio foi muito rápido. Foi uma pena.”

     “Eu perguntei ao dr. Halifax se os barulhos que ela ouvia podiam ser efeito da medicação. Ele não disse que sim nem que não, mas vi o resultado dos exames, e ela realmente estava em péssima forma. Dizia que tinha ‘pavor’ de cirurgia. Eu sabia disso. Ela estava protelando uma cirurgia de olhos, embora a visão estivesse começando a prejudicá-la para dirigir.”

     “Quando vai querer visitar a fazenda?”

     “Que tal amanhã depois do enterro? Estou curioso sobre...”

     Dennis foi interrompido por uma voz alta na entrada e olhou para o vestíbulo. Todos se viraram para lá. Os Boswell tinham chegado e estavam se dirigindo para o ataúde, o homem carregando a filhinha. Pela primeira vez Qwilleran notou que ele mancava acentuadamente.

     “Veja, Baby”, ele dizia na sua voz de camelô de feira. “Esta é a senhora bonita que lhe dava biscoitos. Ela foi morar no céu, e nós viemos dizer adeus.”

     “Diga adeus para a sra. Cobb, Baby”, disse a voz suave da mãe.

     “Adeus”, disse Baby, dobrando os dedinhos num gesto infantil.

     “Iris está tão... bonita? Não é, Baby?”

     “Por que é que ela está numa caixa?” Para uma criança de sua idade, expressava-se com muita clareza, pensou Qwilleran.

     O pai colocou-a no chão e virou-se para Qwilleran, que os observava. “Tem muita gente aqui hoje. O estacionamento está lotado”, disse, numa voz que podia ser ouvida na Sala do Descanso e áreas adjacentes. “É o maior velório que já assisti! Olhe estas flores! Ela era uma pessoa muito benquista! Não parecia ter grandes talentos, mas todos gostavam dela. Vê-se isso pelo grande número de pessoas.”

     A sra. Boswell, que segurava a mão da filha, disse: “Baby, este é o homem bonito que mora no... museu? Diga alô para o sr. Qwilleran.”

     “Oi!”, disse Baby.

     Qwilleran olhou para a criaturinha a mais de um metro abaixo do nível de seus olhos, pateticamente franzina no casaquinho de veludo azul, chapéu e calça justa amassada. O conjunto obviamente tinha sido feito às pressas em casa. Antes de poder responder com um rígido ‘como vai’, os pais viram os Lanspeak e dirigiram-se até eles, deixando-o com Baby.

     Ela olhou para cima assombrada com o bigode e disse, com seu modo claro e preciso: “O que é essa coisa em seu rosto?”

     “É meu nariz”, disse Qwilleran. “Seu pai não tem um nariz?”

     “Sim, ele tem um nariz.”

     “E sua mãe? Não tem nariz?”

     “Todo mundo tem nariz”, disse Baby com desdém, como se falasse com um bobalhão.

     “Então você devia reconhecer um nariz quando vê um.”

     Baby não ficou desconcertada com a lógica evasiva dele. “Onde você trabalha?”, perguntou.

     “Eu não trabalho. Onde você trabalha?”

     “Sou muito pequena. O papai trabalha.”

     “Onde ele trabalha?”

     “No celeiro.”

     “O que ele faz no celeiro?”

     Baby arranhou o chão com a ponta do seu sapatinho de boneca. “Não sei. Eu não vou ao celeiro.”

     “Por que não?”

     “Eu ficaria suja.”

     “Boa resposta”, disse Qwilleran, olhando em volta e esperando ser salvo depressa.

     “Tem gatinhos no celeiro”, disse Baby espontaneamente.

     “Se você não entra lá, como sabe que tem gatinhos?”

     O animado diálogo tinha atraído a embevecida atenção dos grupos em volta, e a sra. Boswell precipitou-se para eles e arrebatou a filha dali. “Não aborreça o sr. Qwilleran”, ralhou suavemente.

     Foi um alívio para ele circular entre os adultos. O registro dos convidados era um “quem é quem” de Pickax: líderes cívicos, ricos colecionadores de antigüidades, políticos em campanha e membros das sociedades Histórica e Genealógica — as duas organizações mais importantes num condado que se orgulhava de sua tradição. O Clube dos Veteranos, que admitia apenas residentes vitalícios de idade avançada, estava representado por numerosos membros de cabelos brancos, muitos dos quais dependentes de bengalas, andadores e cadeiras de rodas. Qwilleran achou muito elogiável que Mitch Ogilvie, o jovem recepcionista do hotel, prestasse uma pródiga atenção àqueles velhos, escutando suas histórias e encorajando-os a falar.

     Arch Riker estava lá, segurando o braço da vacilante Amanda. Polly Duncan, em companhia dos membros do conselho da biblioteca, trocou olhares com Qwilleran através da sala repleta; sempre eram discretos em público. O lépido Homer Tibbitt, de noventa e quatro anos, fazia-se acompanhar por uma senhora de idade com cabelos bem penteados, de uma cor castanho juvenil.

     Riker perguntou a Qwilleran: “Quem é aquele velho que anda como um robô?”

     “Quando você tiver a idade dele, não conseguirá sair da cama sem um guindaste”, disse Qwilleran. “É Homer Tibbitt, reitor aposentado da escola, de noventa e quatro anos e ainda fazendo trabalho voluntário para o museu.”

     Amanda disse: “Aquela mulher de oitenta e cinco anos com cabelos de trinta e cinco é Rhoda Finney. Está atrás dele há anos, mesmo antes da esposa morrer. É uma das Finney de Lockmaster, e todos nós sabemos sobre eles!” As declarações de Amanda sempre misturavam humor, imaginação e verdade em proporções desconhecidas. “O velho falando com Homer é Adam Dingleberry, o mais antigo agente funerário de três condados.” Referia-se a uma figura frágil, encurvada, apoiada num andador. “Ele enterrou mais segredos do que um cachorro enterra ossos. Aposto que alguns deles voltam para assombrá-lo. Olhem para os dois velhos caturras de cabeças juntas, conversando entre risadinhas como dois idiotas! Pode apostar que Adam está contando histórias sujas e Homer mandou a namorada desligar o aparelho de surdez.”

     Riker puxou-lhe o braço. “Venha, Amanda; está na hora de irmos.”

     Qwilleran manobrou pelo salão até chamar a atenção de Polly, em seguida inclinou a cabeça discretamente na direção da porta da frente. Ela despediu-se dos membros do conselho e seguiu-o.

     No vestíbulo Riker disse: “Vamos ao Old Stone Mill? Eles fecham mais tarde que o Stephanie’s.”

     “Encontramos vocês lá”, disse Qwilleran. Em seguida, ele e Polly foram cada um para seu carro.

     No pitoresco moinho o grupo pediu uma mesa tranqüila e foi conduzido a um canto reservado, com vista para a roda d’água. Formavam um quarteto heterogêneo: o herdeiro Klingenschoen com seu enorme bigode; Arch Riker com a calma e barriguda figura de um jornalista de cabelos rareando que trabalhou a vida toda numa escrivaninha; Polly Duncan, de rosto agradável e voz suave, da biblioteca pública de Pickax; Amanda Goodwinter dos Goodwinter beberrões, como era conhecido seu ramo da proeminente família. Polly tinha um corpo rechonchudo, propensão para conjuntos cinza, e cabelos grisalhos notadamente sem estilo, mas era um modelo de elegância, se comparada a Amanda, em quem todas as roupas pareciam de segunda mão e cada fio de cabelo parecia estar propositalmente fora de lugar. Não obstante, Riker apreciava sua excêntrica companhia por alguma razão perversa que Qwilleran não podia compreender.

     Amanda pediu seu bourbon costumeiro; Polly, xerez seco; Riker quis Scotch; e Qwilleran encomendou uma torta de abóbora e café.

     Polly disse: “Qwill, foi um bonito obituário o que escreveu para Iris. No dia-a-dia ela era tão retraída que as pessoas esqueciam-se de todas as suas habilidades, conhecimentos e qualidades admiráveis.”

     Amanda levantou o copo num brinde. “Aqui vai um trago para Santa Iris dos Hummocks!” A seguir encolheu-se e olhou carrancuda para Riker, que lhe dera um pontapé por baixo da mesa.

     Polly levantou o copo e citou, de Hamlet: “Que as revoadas de anjos cantem para seu descanso”.

     Os dois homens acenaram com as cabeças e beberam em silêncio. Riker perguntou: “Como foi seu verão na Inglaterra, Polly? Arrasou-os com seu conhecimento de Shakespeare?”

     Ela sorriu agradavelmente. “Não tive chance de me mostrar, Arch. Estava muito ocupada respondendo às perguntas deles sobre filmes americanos.”

     “Pelo menos”, disse Qwilleran, “os ingleses sabem que o Bardo de Avon é um dramaturgo elisabetano, e não um distribuidor de cosméticos.”

     “Aí vêm os mandachuvas”, murmurou Amanda quando outro quarteto entrou.

     A caminho da sua mesa, os Lanspeak, Dennis Hough e Susan Exbridge pararam para falar ao grupo de Qwilleran, e Polly lhes disse: “Foi um espetáculo e tanto na Dingleberry. Todas as cores coordenadas! Até o esmalte de unhas cor-de-rosa!”

     “Susan merece todo o crédito!”, disse Carol Lanspeak.

     “Eu devia ter adivinhado!” disse docemente Polly, no que parecia ser um cumprimento ao gosto excelente de Susan, a não ser por um ligeiro arquear das sobrancelhas. Qwilleran e Riker trocaram olhares conhecedores. A antipatia de Polly por Susan não era segredo.

     Quando os recém-chegados foram para sua mesa, Riker perguntou: “É verdade que os Dingleberry enterram sem cobrar quem tenha cem anos ou mais?”

     “Eles podem permitir-se isso”, resmungou Amanda. “Estão ganhando dinheiro como água, embora eu tenha tido um trabalhão para conseguir receber meu pagamento pela decoração.”

     “Eles esperam descontar nos negócios”, disse Qwilleran.

     “A empresa Dingleberry”, disse Polly, “envolve cinco gerações. O avô de Adam Dingleberry era fabricante de caixões. A segunda geração combinou uma loja de móveis com um salão de serviços funerários, como eram conhecidos. A empresa atual é dirigida por Adam, seus filhos e netos.”

     Amanda disse: “Quem era aquele cretino com voz de britadeira que chegou e perturbou a paz?”

     “Você fez sucesso com a filha dele, Qwill”, disse Riker. “Quem são eles?”

     “Meus vizinhos no museu. Ele está catalogando as prensas tipográficas para a Sociedade Histórica... Incidentalmente, Arch, o obituário que enviei referia-se a horas de ‘visita’ na casa de funerais. Alguém mudou para horas de ‘visitação’. Eu sei que é considerado elegante em certos círculos, mas é um eufemismo ridículo e não tem lugar num jornal com alguma classe. ‘Visitação’ é uma manifestação divina.”

     “Ou uma comunicação espírita”, ajuntou Polly. “Shakespeare refere-se à visitação do fantasma do pai de Hamlet.”

     “Falando de fantasmas”, disse Qwilleran, “houve alguma vez um rumor sobre a Fazenda Goodwinter ser assombrada?”

     Beligerantemente Amanda disse: “Se não é, devia ser! Três gerações morreram de mortes violentas, a começar por aquele unha-de-fome do Ephraim, e todos eles bem que mereceram!”

     Seu acompanhante a repreendeu, secretamente divertido. “Está falando de seus parentes consangüíneos, Amanda.”

     “Não é o meu ramo da família. Nós somos loucos, mas Ephraim sempre foi rico e mesquinho.”

     “Calma, Amanda. As pessoas estão olhando para você.”

     “Deixe que olhem!” Ela fitou ameaçadoramente as mesas em volta.

     Ainda protestando, Riker disse: “Nosso chefe de redação é descendente direto de Ephraim, e não é rico nem mesquinho. Junior é pobre e digno de estima.”

     “Ele é só um garoto”, resmungou: Amanda. “Dê-lhe tempo! Vai ficar podre como todo o resto.”

     Piscando para Qwilleran e mudando delicadamente de assunto, Riker perguntou: “Alguém nesta mesa acredita em fantasmas?”

     “São alucinações causadas por drogas, delírio e outras desordens físicas e mentais”, disse Qwilleran.

     “Mas eles têm andado por aí há milhares de anos”, disse Polly. “Leia a Bíblia, Cícero, Plutarco, Dickens, Poe!”

     Riker disse: “Quando meus filhos eram pequenos, saímos de férias para uma cabana alugada nas montanhas. Nosso cachorro foi junto, é claro. Era um grande boxer corajoso, mas todas as noites o animal rastejava no chão da cabana, ganindo e agachando-se como um covarde. Nunca vi nada igual! Mais tarde descobrimos que um inquilino anterior fora assassinado por um vagabundo.”

     “Eu também tenho uma história para contar”, disse Polly. “Estava viajando pela Europa quando minha mãe morreu. Nem sabia que ela estava doente, mas uma noite acordei e a vi de pé na beira da minha cama tão claramente quanto possível — em seu casaco cinzento com dois botões de prata.”

     “Ela falou?”, perguntou Riker.

     “Não, mas eu sentei na cama e disse: *Mãe! O que está fazendo aqui?’ Imediatamente ela desapareceu. Na manhã seguinte, soube que ela havia falecido algumas horas antes de eu ver sua imagem.”

     Qwilleran disse: “Isso é conhecido como uma aparição de crise retardada, um tipo de telepatia causado por uma intensa concentração emocional.”

     “Besteira!”, disse a encantadora Amanda.

     Qwilleran e Polly murmuraram um discreto adeus no estacionamento do Old Stone Mill e foram para casa em carros separados depois de um afetuoso “eu telefono” e “à bientôt”.

     Era uma daquelas noites escuras quando as nuvens encobrem a lua. Ao contrário da imprudente viagem atendendo ao pedido de socorro de Iris, esse trajeto foi feito de modo sossegado enquanto Qwilleran pensava em Polly Duncan e sua voz melodiosa, seus conhecimentos de literatura, seus pequenos ciúmes e seu altivo desdém por Susan Exbridge. (Susan penteava os cabelos no Delphine’s, gastava dinheiro em roupas, dirigia um carro suntuoso, usava jóias verdadeiras, morava em Indian Village, prestava serviços no conselho da diretoria da biblioteca embora nunca lesse um livro — todas as coisas que Polly desaprovava.) Surpreendia-o, no entanto, que Polly acreditasse em manifestações sobrenaturais; pensava que ela tivesse mais bom senso.

     Podia entrever uma luz na Fazenda Fugtree e a TV bruxuleava na casa dos Boswell, mas o pátio do museu estava escuro. O que ele precisava era de um timer para ligar as luzes automaticamente ao escurecer. Estacionou e estendeu a mão para a lanterna no porta-luvas, mas tinha-a deixado em casa. Acendendo os faróis, achou 0 caminho para a entrada, vislumbrando de relance um movimento espectral numa das janelas. Os gatos, conjeturou, tinham estado na janela esperando-o e pularam no chão para recebê-lo. Quando abriu a porta, no entanto, só Yum Yum apareceu. Koko estava em outro lugar; podia-se ouvi-lo falando consigo mesmo num monólogo musical intercalado por guinchos e miados.

     Sorrateiramente Qwilleran foi para o fundo do apartamento e observou o gato vasculhando a cozinha com o focinho no chão como um cão de caça, farejando aqui e ali como se detectasse comida derramada. Os hábitos culinários da sra. Cobb eram descuidados. Um punhado de farinha atirada freqüentemente não acertava a tigela; um recipiente onde mexia vigorosamente espirrava; uma colher de pau pingava; um tomate esguichava. No entanto, o chão parecia limpo e encerado recentemente. Koko estava seguindo a lembrança de um cheiro; estava investigando algo que só ele sabia; e fazia um comentário contínuo de suas descobertas.

     Qwilleran vestiu o pijama antes de fazer outra tentativa de ouvir a gravação do Otelo. Os siameses juntaram-se a ele na sala de visitas, mas aos primeiros acordes ruidosos fugiram dali e ficaram escondidos durante toda a cena da tempestade. Em determinado momento pensaram que era seguro voltar rastejando, mas as trompas soaram, e eles desapareceram de novo.

     No instante em que o triunfante Otelo fazia sua dramática entrada, o telefone tocou. Qwilleran resmungou com desaprovação, abaixou o volume e atendeu a chamada no quarto.

     “Nosso escritório vem tentando encontrá-lo, Qwill”, disse o afável advogado que tratava dos assuntos legais da Fundação Klingenschoen. “Na qualidade de advogados da sra. Cobb, gostaríamos de sugerir que assistisse à leitura de seu testamento na quinta-feira de manhã.”

     Qwilleran bufou no bigode, momentaneamente irritado. “Você tem uma boa razão para me pedir para estar lá?”

     “Tenho certeza que achará interessante. Além do legado principal à sua família, ela queria deixar algumas lembranças aos amigos. Às onze da manhã, na quinta-feira, em meu escritório.”

     Qwilleran agradeceu com pouco entusiasmo e voltou ao Otelo. Estava seguindo o libreto e perdera o lugar e o sentido da ópera. Voltou a fita e apertou o play. De novo os siameses encenaram sua pantomima de fuga desordenada e volta sorrateira; aquilo estava virando um jogo. Dessa vez a fita seguiu até a cena de abertura do segundo ato. O perverso lago estava lançando-se em seu Credo cheio de ódio quando... o telefone tocou. Qwilleran encaminhou-se, vagarosamente, mais uma vez para o quarto.

     Uma voz de mulher disse: “Sr. Qwilleran, suas luzes estão acesas.”

     Perdido na melancolia da ópera, ele hesitou. Luzes? Que luzes? Do terreiro? “Os faróis do carro!”, gritou. “Obrigado. Quem está falando?”

     “Kristi, da Fazenda Fugtree. Posso ver sua casa de uma janela do andar de cima.”

     Depois de agradecê-la de novo, Qwilleran correu para fora e apagou os faróis. O facho tinha enfraquecido para um amarelado fraco, e a bateria estava descarregada. Tinha razão; o motor recusou-se a pegar. Reclinando-se no banco do motorista, encarou os fatos: as oficinas no interior fecham às nove da noite; agora já passa da meia-noite; o funeral é às dez e meia da manhã; tenho de apanhar meu terno às nove; minha bateria está descarregada.

     Só havia uma coisa a fazer. Por mais desagradável que fosse, era a única solução para o problema.

 

     Bem cedo na quarta-feira de manhã, Qwilleran cerrou os dentes, mordeu os lábios, engoliu o orgulho e telefonou para a casa do alto da Alameda do Riacho Negro. Era importante, percebia, imprimir o tom exato — não muito amigável de repente, nem muito apologético, mas um pouco mais caloroso que antes, com uma nota de urgência para esconder o embaraço.

     “Sr. Boswell”, disse, “aqui é Qwilleran. Estou com um sério problema.”

     “Em que posso ajudar? Será um privilégio e um prazer”, disse a voz que apunhalava os tímpanos.

     “Esqueci de apagar os faróis do carro ontem à noite, e o motor não quer dar partida. Teria por acaso equipamento para me dar uma ajuda com a bateria?”

     “Claro. Vou correndo para aí.”

     “Desculpe incomodá-lo tão cedo, mas tenho de estar em Pickax às nove horas... para os preliminares do funeral.”

     “Não há problema.”

     “Eu o reembolsarei, é claro.”

     “Esqueça! E para isso que servem os vizinhos — ajudar uns aos outros. Chegarei aí num instante.”

     Qwilleran detestou os sentimentos piegas do homem e desejou que não esperassem que fosse pagar o favor tomando conta da criança numa tarde em que fossem ao cinema em Pickax.

     Embora com esforço, Qwilleran sobreviveu ao tipo Boswell de afabilidade e agradeceu-o sinceramente embora sem efusividade. No caminho para Pickax ocorreu-lhe que ficaria bem algum sinal de agradecimento, porque Boswell recusara remuneração. Uma garrafa de qualquer coisa? Uma caixa de bombons? Um vaso de plantas? Um brinquedo de pano para Baby? Vetou o brinquedo imediatamente; essa atitude de tio poderia ser mal interpretada, e Baby começaria a rondar por perto, fazendo perguntas e querendo agradar os “gatinhos”. De repente até poderia começar a chamá-lo de Tio Qwill.

     Ao passar pela Fazenda Fugtree lembrou-se que tinha uma dívida de gratidão também com Kristi Waffle. Chocolates? Um vaso de plantas? Uma garrafa de qualquer coisa? Nem conhecia a mulher. Ela parecia jovem e vivaz. Aparentemente tinha filhos, mas de que idade? Teria um marido? Se tinha, por que ele não estava cortando a grama? Não deviam estar em boa situação. A caminhonete na entrada era quase uma sucata. Ao chegar no Scottie ainda estava num dilema. Uma cesta de frutas? Um peru congelado? Uma garrafa de qualquer coisa?

     Qwilleran apanhou o terno escuro e foi para seu apartamento em cima da garagem. Do outro lado de Park Circle os acompanhantes do enterro já estavam se reunindo na Velha Igreja de Pedra. O tráfego fora desviado, os carros para a procissão fúnebre já se alinhavam em fila de quatro, e o parque propriamente dito estava cheio de espectadores curiosos. Vestindo-se rapidamente encontrou os sapatos pretos, uma camisa branca e meias escuras, mas todas as gravatas tinham listras vermelhas, xadrez vermelho ou eram todas vermelhas; voltou então ao Scottie para comprar uma gravata apropriada.

     Quando finalmente chegou à igreja devidamente engravatado, observou as três gerações de agentes funerários da Dingleberry: o velho Adam apoiado na coluna, os filhos cuidando dos detalhes com grande eficiência, e os netos dirigindo o cortejo. Dentro da igreja o órgão gemia acordes sonoros, os bancos estavam cheios, as flores cor-de-rosa cercavam o altar e Iris Cobb jazia num caixão rosa com seu conjunto de camurça rosa. Isto era o que ela teria desejado para seu adeus a Pickax. Embora sempre tivesse parecido modesta, envaidecia-se com a atenção e aprovação dos outros. Qwilleran sentiu uma onda de alegria por sua antiga senhoria, sua antiga governanta, sua amiga ansiosa por agradar — que havia atingido tal status.

     Depois do enterro, compareceu a um pequeno lanche numa sala reservada no Stephanie’s. A conversa foi em tom melancólico, com os convidados procurando dizer a coisa certa, lançando migalhas de consolo, com suaves lamentos e lembranças nostálgicas.

     Dennis Hough foi o primeiro a romper o arranjo. Disse: “Conheci muitas pessoas legais aqui. Não admira que minha mãe fosse tão feliz! Gostaria de mudar-me para o Condado de Moose.”

     “Isso agradaria imensamente a Iris”, disse Susan Exbridge.

     “Mas não sei como Cheryl reagirá à idéia. E tão longe de tudo. Como são as escolas?”

     Carol Lanspeak falou. “Graças à Fundação K, pudemos expandir nossas instalações, melhorar o currículo e contratar bons professores.”

     “A Fundação K?”

     “É nosso apelido afetuoso para a Fundação Memorial Klingenschoen.”

     Larry Lanspeak disse: “O condado tem várias empresas de construção de imóveis industriais e comerciais, mas estamos precisando de uma boa construtora para imóveis residenciais. Acho que devia pensar nisso.”

     Depois do lanche, quando Qwilleran e Dennis iam de carro para North Middle Hummock, o rapaz perguntou: “Como funciona a Fundação K?”

     “Ela gerencia e investe a fortuna Klingenschoen e emprega os rendimentos de maneira a beneficiar a comunidade — doações, bolsas de estudo, empréstimos comerciais de juros baixos e assim por diante.”

     “Se eu abrisse um negócio aqui, teria chance de conseguir um empréstimo?”

     “Não tenho dúvida, se você solicitar à Fundação e apresentar um bom projeto.”

     “Minha mãe disse que a fortuna Klingenschoen é toda sua.”

     “Eu a herdei, mas dinheiro demais é um fardo”, explicou Qwilleran. “Resolvi o problema passando tudo para a Fundação. Deixo-os se preocuparem com tudo.”

     “Isso é muito generoso.”

     “Não generoso; apenas esperto. Tenho tudo de que preciso. Sempre fui feliz vivendo com duas malas e alugando um quarto mobiliado. Continuo não precisando de muitos bens.”

     Ao passarem por um campo cercado com uma sebe, Qwilleran disse: “Foi aqui que um bando de melros voou dos arbustos e assustou o cavalo de um homem. Ele foi atirado ao chão e morreu. Os melros fazem uma operação de guerrilha contra a população humana em certas épocas do ano.”

     “Quem era o homem?”

     “Samson Goodwinter. Aconteceu há mais de setenta e cinco anos, mas os habitantes daqui ainda falam disso como se tivesse acontecido na semana passada.”

     “As cartas de minha mãe diziam que todos os Goodwinter tiveram mortes violentas.”

     “Deixe-me explicar a família Goodwinter”, disse Qwilleran. “Há quarenta e nove deles na lista de telefones mais recente de Pickax, todos descendentes de quatro irmãos. Há os Goodwinter muito admirados, como o dr. Halifax, e os Goodwinter excêntricos, como Amanda, a amiga de Arch Riker. Um outro ramo da família especializou-se em ovelhas negras, ou pelo menos parece. Mas os desafortunados Goodwinter que sua mãe mencionava são todos progênie do irmão mais velho, Ephraim. Ele deu azar a toda a linha de descendentes.”

     “Como foi que ele fez isso?”

     “Era ganancioso. Possuía a mina Goodwinter, o jornal local e alguns bancos no condado, mas era avarento demais para adotar medidas de segurança para a mina. O resultado foi uma explosão que matou trinta e dois mineiros.”

     “Há quanto tempo isso ocorreu?”

     “Em 1904. Daí por diante, ele foi violentamente odiado. Para cerca de trinta famílias e seus parentes, era a reencarnação do diabo. Tentou compensar doando uma biblioteca pública, mas as famílias das vítimas não o perdoaram. Jogavam pedras em sua casa e tentaram incendiar seu celeiro. Os filhos e o empregado faziam turnos de guarda com espingardas, depois de escurecer.”

     “Como é que ele era? Você sabe?”

     “O museu tem o retrato dele — um vilão de cara ranzinza, costeletas, rosto encovado e boca caída.” Estavam agora passando pelo terreno montanhoso conhecido por Hummocks. “Na próxima curva”, disse Qwilleran, “você verá uma árvore grotesca em cima de uma pequena elevação. Chamam-na Arvore dos Enforcados. Foi onde encontraram Ephraim pendurado numa corda em 30 de outubro de 1904.”

     “O que aconteceu?”

     “A família afirmou que foi suicídio, mas circulou o rumor, via boataria de Pickax, de que ele foi linchado.”

     “Houve algum dia uma prova, de um jeito ou de outro?”

     “Bom, a família apareceu com uma nota suicida”, disse Qwilleran, .”por isso não houve investigação nem acusações. E se a história do linchamento for verdadeira, é curioso que ninguém jamais tenha delatado os linchadores e que ninguém tenha confessado em seu leito de morte. Hoje em dia há uma ordem fraternal chamada Os Nobres Filhos do Laço. Presume-se que sejam descendentes diretos da turba de linchadores.”

     “O que é que fazem? Você conhece algum deles?”

     “Ninguém sabe quem pertence à ordem; nem as próprias esposas. O prefeito de Pickax poderia ser um Nobre Filho. Ou os rapazes Dingleberry. Ou Larry Lanspeak. É um segredo que vem sendo transmitido há três ou quatro gerações, e — acredite! — não é fácil manter um segredo no Condado de Moose. Eles têm uma rede de mexericos que faz a comunicação por satélite parecer o “pony express”. Claro que não chamam de mexericos. São informações compartilhadas.”

     “Fantástico!”, disse Dennis com o assombro estampado no rosto. “Que lugar interessante!”

     Quando chegaram à Alameda do Riacho Negro, Qwilleran dirigiu devagar para que o passageiro pudesse apreciar a beleza da folhagem e a vista da graciosa casa da fazenda. Uma caminhonete enferrujada estava saindo do terreiro quando chegaram.

     “Prepare-se”, disse Qwilleran. “Aí vem aquele espalhafatoso que animou as coisas na casa funerária ontem à noite.”

     A caminhonete parou, e Vince Boswell inclinou-se para fora. “Sinto não ter podido ir ao funeral”, disse. “Estou tentando acabar o trabalho sobre as prensas tipográficas antes da neve chegar. Quantos carros foram ao enterro?”

     “Não contei”, disse bruscamente Qwilleran, e em seguida — lembrando-se da ajuda de Boswell para fazer seu carro pegar — emendou a resposta seca com um tom mais cordial. “Havia uma magnífica banda de música. A igreja estava repleta.”

     “Deve ter sido um acontecimento. Gostaria de ter estado lá para dizer adeus à senhora.” Examinou Dennis. “Acho que não fui apresentado formalmente ao seu amigo.”

     Qwilleran fez as apresentações brevemente.

     Boswell disse: “Imagino que veio apanhar algumas coisas de sua mãe. Ela possuía um livro de receitas que minha mulher gostaria de ter, se você não o quiser. Ela está sempre procurando novas receitas. Se os cavalheiros quiserem vir jantar conosco hoje, seriam muito bem-vindos. Será simples, mas é comida caseira.”

     “É muita bondade sua”, disse Qwilleran, “mas o tempo do sr. Hough é limitado. Ele quer apenas visitar a fazenda.”

     “Ficarei feliz em lhe mostrar as prensas tipográficas no celeiro, senhor.”

   “Obrigado, não desta vez.”

     “Bem, diga-me se puder ser de qualquer ajuda”, disse Boswell.

     Após ele sair com a caminhonete, Dennis perguntou: “Você acha que ele é um Nobre Filho do Laço?”

     “Ele é um filho de alguma coisa”, disse Qwilleran, “mas me tirou de uma enrascada nesta manhã, e eu deveria ser grato. Talvez seja por isso que estava dando uma indireta sobre o livro de sua mãe.”

     “Na casa funerária ontem à noite, ele pediu a Larry o lugar de minha mãe como administrador residente. Meio prematuro, não acha?”

     “Vince Boswell não se destaca pela sutileza.”

     Primeiramente eles percorreram as dependências. Qwilleran ia apontando as características da casa. A parte original era construída com vigas quadradas medindo trinta e cinco por trinta e cinco centímetros, calafetadas com argamassa feita de barro, palha e sangue de porco. As alas leste e oeste tinham sido adicionadas depois, e toda a estrutura estava coberta com telhas de cedro, agora patinadas com um cinza prateado.

     Dennis não externou sentimentos quando entraram no apartamento da mãe. Percorreu o recinto com as mãos nos bolsos, comentando sobre as tábuas largas do assoalho, o uso excessivo de madeira entalhada, e as janelas de dois-por-dois com muitas vidraças ainda ostentando o vidro ondulado original. Não disse nada sobre a cama General Grant, o armário da Pennsylvania, ou a coleção de objetos de estanho na cozinha — todos considerados tesouros raros por Iris Cobb.

     Quando entraram na cozinha, Koko levantou-se de seu assento no parapeito da janela, esticou o corpo esguio numa grande curva, e voou num salto para cima do freezer, a dois metros de distância.

     “Muito cedo para o jantar”, disse-lhe Qwilleran.

     “Este é Koko?”, perguntou Dennis. “Minha mãe falava dele. Dizia que é muito inteligente.”

     Koko agora estava no chão, traçando desenhos abstratos com o focinho, movendo a cabeça da direita para a esquerda, cobrindo todo o aposento sistematicamente.

     “Esta é sua imitação de cão de caça”, explicou Qwilleran.

     Ao chegar perto do telefone, o gato ficou excitado, pulou para o assento da velha escrivaninha escolar e cheirou a tampa com resfôlegos úmidos.

     “O que há na escrivaninha?”, perguntou Dennis.

     Qwilleran levantou a tampa. “Papéis”, disse. Havia notas na caligrafia ilegível de Iris, recortes de jornal, fichas de arquivo, uma lente e um velho caderno de notas de folhas soltas, a capa preta agora acinzentada com manchas de água e farinha e pelo uso freqüente.

     Dennis disse: “Parece o livro de receitas dela. Ela me disse que foi a única coisa que salvou do incêndio no ano passado. Isso porque estava na bagagem dela na época. Ia levá-lo para a lua-de-mel, se puder acreditar nisso.”

     “Conhecendo sua mãe, acredito”, disse Qwilleran recolocando o caderno na escrivaninha. “Existem mulheres no Condado de Moose que venderiam a alma ao diabo para poder botar as mãos nesta coleção de receitas. Gostaria de ver o museu agora?”

     Dennis olhou o relógio. “Claro.”

     A parte principal da casa era mobiliada com mesas de cavalete, camas de corda, guarda-tortas, cadeiras de encosto de balaústre, arcas com cintas de ferro e outros adornos de uma casa de pioneiro. A ala oeste era dedicada a coleções de tecidos, documentos, artefatos de iluminação e afins. Dennis ignorou as paredes estampadas que tinham entusiasmado a mãe, e as cortinas das janelas que haviam sido objeto de muitas pesquisas, e os objetos herdados cuja doação Iris Cobb tinha implorado às famílias antigas da área.

     “Foi no porão que ela ouviu primeiro as batidas”, disse Dennis.

     “Tudo bem, vamos descer as escadas”, disse Qwilleran.

     Um anúncio no topo das escadas do porão explicava que a “adega”, originariamente, tinha chão de terra e era usada para estocar legumes e maçãs no inverno, e possivelmente leite e creme da vaca. Mais tarde tinha sido acrescentado um recipiente para carvão e um armário para conservas caseiras. O porão tinha agora um chão de concreto, um moderno equipamento de aquecimento e lavanderia, mas os barrotes expostos acima da cabeça eram troncos de vinte e cinco centímetros de diâmetro com a casca ainda à mostra.

     Qwilleran achou uma porta que levava a um depósito sob a ala oeste, onde móveis danificados e refugos da casa estavam empilhados a torto e a direito, e entre eles um espremedor de batatas de madeira. As paredes de pedra tinham trinta centímetros de espessura, e uma delas estava toscamente coberta com argamassa rachada. Teria sido Iris que a rachara, pensou Qwilleran, ao bater na parede em resposta ao visitante fantasmagórico?

     “Nada aqui explica as batidas”, disse Dennis. “A casa foi construída como o Forte Knox. Vamos voltar lá para cima. Susan vem me apanhar para irmos ver a propriedade Fitch. O corretor de imóveis vai nos encontrar lá.”

     “Você fala sério sobre mudar-se para o Condado de Moose?”

     “Só vou saber depois de conversar com Cheryl, mas quando lhe contar sobre a propriedade Fitch ela pode ficar animada.”

     Não conte a ela sobre Susan, pensou Qwilleran. Havia um óbvio relacionamento desenvolvendo-se entre Dennis e a vivaz divorciada. Observara-o em Dingleberry e no lanche que se seguiu ao funeral e notou outra vez quando Susan chegou e arrebatou o rapaz para a propriedade Fitch. Ele era pelo menos quinze anos mais novo que ela, mas tão alto como seu antigo marido e com a mesma beleza rude.

     Depois que se despediu do casal, Qwill tornou a entrar, acendendo as luzes do hall só por curiosidade. Da última vez tinha ativado quatro lâmpadas. Agora eram três de novo. Qwilleran bufou no bigode.

     Esperara terminar a tarde com Dennis, examinando as exposições do museu e olhando as prensas tipográficas no celeiro, depois do que poderiam ir tomar uns drinques na Shipwreck Tavern, em Mooseville, jantar no Hotel Aurora Boreal à beira do lago e comer uma sobremesa no colorido Café do Urso Preto.

     Um pouco desapontado, telefonou a Polly na biblioteca. “Gostaria de sair esta noite? Poderíamos jantar no Hotel Aurora Boreal e terminar no Urso Preto.”

     “Que tal vir para minha casa em vez disso?”, ela perguntou.

     “Você não devia ter de cozinhar depois de trabalhar o dia todo”, protestou ele.

     “Não se incomode. Posso preparar alguma coisa facilmente.”

     Ele sabia o que ia ser. Tinham lido recentemente em voz alta uma peça — O Cocktail, de T. S. Eliot — e desde então Polly estivera preparando pratos com curry em vez de peixe grelhado ou costeletas fritas. Ele gostava de comida indiana, mas Polly já estava exagerando. Sua casa começava a ter um aroma permanente de Bombaim, como se tivesse se infiltrado no carpete e nas cortinas. “Tem certeza de que quer ter esse trabalho?”, perguntou.

     “Claro que sim! Além disso, tenho uma surpresa para você.”

     “O que é?” Qwilleran detestava ser surpreendido.

     “Se contar, não será surpresa, não é? Venha às seis e meia. Isso me dará tempo de chegar em casa e trocar de roupa.”

     E achar o pó de curry, pensou ele. Relutantemente concordou. Teria preferido um linguado grelhado ou costeletas recheadas no Aurora Boreal.

     Agora que tinha um tempo de sobra, ocorreu-lhe que nunca varrera folhas. Entrevistara reis; fora metralhado numa praia do Mediterrâneo; e fora brevemente refém de um assaltante de bancos enlouquecido, mas nunca havia varrido folhas. Vestiu calças jeans e camisa xadrez vermelha e foi ao celeiro procurar um ancinho.

     Há um ano o celeiro tinha sido palco de um leilão, quando os bens da casa da família Goodwinter foram liquidados. Agora, servia de garagem e barracão de utilidades, abrigando ferramentas de jardim, uma bancada, cacarecos de todo o tipo e pilhas de lenha. O carro da sra. Cobb estava estacionado ali, e ele imaginou que provavelmente seria vendido. Era maior que seu carro, de tamanho econômico, e acomodaria mais facilmente o transportador e a privada dos gatos. Poderia ser agradável levá-los em algumas excursões pela região. Os Lanspeak tinham falado entusiasmados sobre as Montanhas Blue Ridge. Ele se perguntou se a altitude prejudicaria os ouvidos dos gatos.

     Encontrando um ancinho, Qwilleran lançou-se a uma nova experiência — um exercício agradável que ativava os músculos sem ocupar a mente. Deu-lhe tempo para refletir sobre o irritante Vince Boswell, a descoberta por Koko do livro de receitas de Iris Cobb, a óbvia atração entre Susan Exbridge e Dennis Hough, a surpresa prometida por Polly e a perspectiva de mais um jantar de alguma coisa com curry.

     Pelo canto dos olhos percebeu alguém se aproximando.

     “Oi!”, disse Baby. Qwilleran resmungou uma resposta e varreu mais depressa.

     “O que você está fazendo?”

     “Varrendo folhas.”

     “Por quê?”

     “Pela mesma razão por que você escova os dentes. Tem de ser feito.”

     Ela considerou brevemente esse raciocínio analógico e continuou: “Quantos anos você tem?”

     “Isso é informação confidencial. Quantos anos você tem?”

     “Três em abril.”

     “Que tipo de carro você guia?”, perguntou Qwilleran.

     “Eu não tenho carro”, disse, fazendo beicinho. Ele teve de admitir que era uma linda criança e se expressava com clareza.

     “Por que não?”

     “Sou muito pequena.”

     “Por que você não cresce?”

     Enquanto Baby pensava numa resposta a essa difícil pergunta, a mãe veio correndo pela alameda. “Baby? Baby?”, chamava no seu modo brando e ineficiente. “Papai não quer que você venha para cá. Desculpe, sr. Qwilleran. Ela estava amolando? Ela gosta de fazer perguntas... importunas?”

     “Ela está treinando para ser jornalista”, disse Qwilleran varrendo diligentemente.

     Acabou sua tarefa com satisfação, amontoando as folhas em pilhas para os jardineiros recolherem. Depois entrou para alimentar os siameses. O freezer continha, pelos seus cálculos, um suprimento para dois meses de molho para espaguete, chili, macarrão com queijo (seu favorito), vichyssoise, assado de panela, peru à tetrazzini, gumbo de camarão, caranguejo condimentado, almôndegas suecas e outras especialidades Cobb — nada com molho de curry, notou com satisfação.

     Descongelou um pouco do assado de panela para os gatos, e, enquanto o devoravam, tirou o livro de receitas da sra. Cobb da escrivaninha e procurou seu bolo de creme de coco favorito com recheio de abricó, mas a caligrafia o derrotou. No decorrer dos anos as páginas tinham sido manchadas com impressões digitais da cozinheira e restos de tomate, chocolate, gema de ovo e o que parecia ser sangue. Ele pensou: a gente poderia ferver isto e fazer uma sopa gostosa. Koko tinha provavelmente farejado o livro e seguido a pista de seu esconderijo na escrivaninha. Gato extraordinário! Ele mesmo cheirou o livro, mas não detectou qualquer odor perceptível. Devolveu-o à mesa e foi se vestir para o jantar.

    

     Polly morava numa casa pequena na velha Fazenda MacGregor. O último dos MacGregor morrera, a casa principal estava à venda e o inteligente ganso que costumava patrulhar a propriedade não estava mais por ali. Por um momento sombrio, enquanto estacionava o carro, Qwilleran imaginou ganso ao curry como sendo a surpresa de Polly, mas quando se aproximou da porta de entrada o aroma de camarão ao curry assaltou-lhe as narinas e ele imaginou ouvir música indiana.

     “Não me diga! Posso adivinhar o que tem para o jantar”, disse ele.

     A saudação dela foi insolitamente ardente. Ela transbordava de um entusiasmo diferente de seu ar normal de felicidade contida.

     “Vamos fazer uma Hora de Relaxamento antes do jantar?”, perguntou, tilintando jubilosamente cubos de gelo nos copos. Serviu-lhe água Squunk com uma fatia de limão e passou um prato de hors-d’oeuvre de azeitona e queijo. Então, levantando seu copo de xerez, disse: “Comei vosso pão com alegria e bebei vossa água Squunk com o coração feliz.”

     “Você está de bom humor hoje”, disse Qwill. “O conselho da biblioteca lhe deu um aumento?”

     “Melhor que isso.”

     “Eles aprovaram um novo sistema de aquecimento para a biblioteca?”

     Polly ergueu-se num pulo. Normalmente levantava-se graciosamente, mas agora pulou dizendo: “Feche os olhos”, enquanto corria para o quarto. Quando voltou ele ouviu um guincho fraco, e abriu os olhos para vê-la segurando uma pequena cesta onde havia um gatinho branco com grandes orelhas marrom, grandes patas marrom, uma mancha escura no nariz e os indescritíveis olhos azuis de um siamês.

     “Apresento-lhe o meu pequenino”, disse orgulhosamente. “Ele veio de Lockmaster no ônibus de hoje, viajando sozinho.”

     “E assim que são os siameses quando pequenos?”, perguntou Qwilleran espantado. Tinha adotado tanto Koko como Yum Yum depois de crescidos.

     “Ele não é um amor?” Ela levantou-o da cesta e esfregou o rosto no seu pêlo. “Eu o adoro! Ele é tão queridinho!... Você é meu queridinho?... Sim, ele é o meu queridinho. Ouça-o ronronar.”

     Ela colocou cuidadosamente o gatinho no chão, e ele cambaleou pelo carpete como um brinquedo de corda, as pernas finas abertas em ângulos estranhos e as grandes patas marrom movendo-se desajeitadamente como um palhaço com sapatos enormes. Polly explicou: “Ele ainda não está firme das pernas e não sabe bem o que fazer com as patas. E claro que está um pouco amedrontado porque está longe da mãe e dos irmãos... Não é, meu docinho?”

     Qwilleran teve de admitir que era uma criaturinha adorável, mas achou o comentário de Polly enjoado. Ele ocasionalmente chamava Yum Yum de sua queridinha, mas era diferente. Era um termo carinhoso, não sentimentalismo piegas. “Qual o nome dele?”, perguntou.

     “Bootsie, e vai crescer para ser exatamente como Koko.”

     Sem chance com um nome desses!, pensou Qwilleran. Koko tinha o majestoso sobrenome de Kao K’o Kung, um artista chinês do século XIII. Ele falou: “Você nunca quis um animal de estimação. Sempre disse que estava muito ocupada e viajava muito.”

     “Eu sei”, respondeu ela doce e envergonhadamente, “mas o bibliotecário de Lockmaster tinha uma ninhada e Bootsie era absolutamente irresistível. Quer segurá-lo? Primeiro tenho de dar um beijinho nele, para saber que é amado.”

     Qwilleran aceitou o pequeno fardo cautelosamente. “Ele deve pesar cerca de noventa gramas. Do que é recheado? Penugem de ganso?”

     “Pesa exatamente setecentos gramas na minha balança da cozinha.”

     “Você o alimenta com conta-gotas?”

     “Ele recebe uma colher cheia de ração de gato quatro vezes ao dia. Não é preciso muito para encher seu estomagozinho.”

     Bootsie estava muito contente no colo de Qwilleran e ronronava alto sacudindo todos os seu.s setecentos gramas. De vez em quando emitia um fraco guincho, fechando os olhos com o esforço.

     “Ele precisa ser lubrificado”, disse Qwilleran.

     “Isso significa que ele gosta de você. Ele quer que seja seu padrinho. Dê-lhe um beijinho.”

     “Não, obrigado. Tenho gatos ciumentos em casa.” Ficou satisfeito quando Bootsie foi devolvido ao quarto de dormir e o jantar, servido.

     Era curry de novo — e tão apimentado que o fez pular da cadeira depois da primeira garfada. “Uau!”, disse.

     “Forte?”, inquiriu Polly.

     “Como o inferno! O que aconteceu?”

     “Aprendi a fazer meu próprio pó de curry — quatorze condimentos, inclusive quatro tipos de pimenta. Quer um pouco de água gelada?”

     A cada instante Polly espiava no quarto para verificar o gatinho. Dormindo ou acordado? Dentro ou fora da cesta? Feliz ou infeliz? Qwilleran mal podia acreditar que uma mulher de meia-idade inteligente e sofisticada, com uma posição executiva numa biblioteca pública pudesse ser rebaixada, de um dia para outro, a uma completa idiota.

     Como sobremesa Polly serviu um bem recebido prato de sorvete e sugeriu tomarem café na sala de estar. “Você gostaria que Bootsie se juntasse a nós?”, perguntou timidamente.

     “Não”, disse firmemente. Tenho um assunto sério a discutir com você.”

     “Mesmo?”, perguntou, lançando um olhar perturbado para a porta do quarto, ao ouvir um guincho; Qwilleran sabia que tinha de lançar uma bomba para ganhar sua atenção.

     “Minha teoria”, disse, “é que a morte de Iris Cobb foi assassinato.”

 

     Quando Polly ouviu a palavra “assassinato”, ficou horrorizada. No Condado de Moose o homicídio era tradicionalmente considerado propriedade exclusiva das cidades Lá de Baixo. “O que o levou a essa conclusão, Qwill?”

     “Observação, especulação e trabalho mental”, replicou, alisando o bigode matreiramente. “Você deve se lembrar que na noite passada, no Old Stone Mill, indaguei se a Fazenda Goodwinter tinha reputação de mal-assombrada. Eu não estava só puxando conversa. Antes de sua morte, Iris vinha se queixando de barulhos nas paredes — batidas, gemidos e até gritos. Na última carta ao filho, estava quase louca de medo, dando a entender que havia maus espíritos na casa. Então, logo antes de morrer, viu alguma coisa pela janela da cozinha que a aterrorizou.”

     “Como sabe?”

     “Ela estava falando comigo ao telefone naquele momento.

     Logo depois, cheguei e encontrei-a morta no chão da cozinha. Estranhamente, todas as luzes estavam apagadas, dentro e fora da casa. Um ataque do coração, disse o médico-legista, mas eu vi o olhar de terror no rosto dela e digo que não foi pura e simplesmente um ataque do coração. Ela fora aterrorizada, intencional ou acidentalmente, por alguma coisa fora da janela. Poderia ser a mesma coisa que apagou as luzes, antes ou depois dela ter tido o colapso.”

     Polly ficou boquiaberta e esqueceu-se de olhar a porta do quarto. “Está querendo dizer — um fantasma? Você sempre zombou dessas coisas.”

     “Estou simplesmente dizendo que não sei. Está acontecendo alguma coisa que não entendo. Koko passa horas olhando pela janela de onde Iris viu a aparição assustadora.”

     “O que se vê dessa janela?”

     “Depois de escurecer, nada, a menos que os gatos consigam ver coisas que não vemos. De dia, só há o terreiro e o velho celeiro mais adiante. Os pássaros foram para o sul, acho, e os esquilos estão todos na Estrada Fugtree, saqueando os carvalhos. No entanto, algo atrai a atenção de Koko. E ele anda rondando pelo chão da cozinha, farejando e resmungando consigo mesmo.”

     “Você já ouviu alguns dos barulhos que perturbavam Iris?”

     “Ainda não. Há um lustre que acende e apaga misteriosamente, mas é a única ocorrência estranha.”

     Polly disse: “Já ouvi histórias sobre o fantasma de Ephraim, mas achei que eram tolices. Foi uma coisa terrível, Qwill! Por que aconteceria isso àquela mulher tão boa?”

     “Há a possibilidade da medicação tê-la tornado suscetível a certas influências na casa que não perturbariam ninguém mais — nem mesmo Iris, se sua saúde estivesse normal.”

     “Alguma coisa poderia ser feita a respeito disso?”

     “Não vejo como poderemos agir sem mais provas”, disse Qwilleran. “Dê-me um tempo. Afinal de contas, só aconteceu há três dias.”

     O cenho de Polly estava vincado de perplexidade e preocupação. Não mencionara Bootsie sequer uma vez nem olhara na direção da porta do quarto. Com um agradável senso de satisfação, Qwilleran desculpou-se por sair cedo.

     Na volta para North Middle Hummock, fez algumas sérias reflexões sobre Polly e o modo como se preocupava com aquele gatinho. Ele próprio admirava e respeitava seus gatos — e Deus sabe como era indulgente com eles — mas não era sentimental, pensou consigo. A garrulice tola de Polly era completamente inadequada para uma mulher sensata. Recordando sua amizade, lembrou-se de que fora a inteligência dela que primeiro o atraíra. Em alguns assuntos era muito culta. Após um início vagaroso devido à discrição inata dela, seu relacionamento florescera. Depois, com a familiaridade, ela se tornara possessiva, um pouco intrometida e às vezes ciumenta. Tudo isso ele podia entender, e até lidar, mas os arroubos dela com o gato eram mais do que podia agüentar. Não haveriam mais fins de semana relaxantes na casa de campo de Polly só com os dois — lendo Shakespeare alto e tocando música — não enquanto Bootsie distraísse sua atenção. Bootsie! Que nome desprezível para um siamês, insistiu Qwilleran. Considerando a paixão dela por Shakespeare, por que não o chamara de Puck?

    

     A leitura do testamento de Iris Cobb teve lugar no escritório de Hasselrich, Bennett e Barter na quinta-feira de manhã, em presença de Dennis Hough, Larry Lanspeak, Susan Exbridge e de Qwilleran, que compareceu relutantemente. O sócio principal era conhecido por sua afabilidade e otimismo. Era o tipo de advogado, dissera Qwilleran uma vez, que tornava um prazer ser pressionado, divorciado, ou acusado — um homem idoso, de ralos cabelos, bochechas trêmulas e ligeiramente curvado.

     Quando todos estavam reunidos, Hasselrich observou: “Lembro-me bem do dia em que Iris Cobb Hackpole veio a mim para redigir sua última vontade e testamento. Foi três meses antes de sua saúde começar a declinar. Não havia qualquer coisa de mórbido na ocasião. Ela estava feliz com a consciência de que seus bens iriam para os que amava e respeitava e para as causas que abraçara.”

     Abriu as portas do armário atrás de sua escrivaninha, puxou uma tela de vídeo e apertou um controle remoto. Na tela apareceu Iris Cobb em seu conjunto de camurça rosa e óculos cravejados de pedrinhas. Estava sorrindo. O rosto redondo brilhava. Um silêncio baixou sobre os espectadores.

     Do alto-falante veio a voz alegre: “Eu, Iris Cobb Hackpole, viúva, da cidade de Pickax no Condado de Moose, estando em meu juízo e memória perfeitos, e sabedora das incertezas da vida, declaro o presente instrumento como sendo minha última vontade e testamento, revogando por meio deste todos e quaisquer testamentos feitos por mim a qualquer tempo antes disso.”

     Olhares rápidos foram trocados entre os ouvintes enquanto ela seguia legando os amplos bens financeiros ao filho e à família dele. Para Susan Exbridge, deixou sua parte das ações da Exbridge & Cobb. Expressou o desejo de que a Sociedade Histórica liquidasse sua coleção de antigüidades, o carro e os pertences pessoais, e a renda fosse revertida para o museu. Só excluía dois itens: desejava que James Qwilleran ficasse com o armário da Pennsylvania — por razões que ele entenderia — e com seu livro de receitas.

     A imagem na tela sumiu, e houve um momento de silêncio seguido por aclamações apropriadas e algumas trivialidades murmuradas por Hasselrich.

     Susan disse a Qwilleran: “Eu faço um trato. Você me dá o livro de receitas e pode ficar com a Exbridge & Cobb.” A Dennis ela disse: “Agora você poderá mudar-se para cá e adquirir a propriedade Fitch.”

     “Gosto da idéia”, disse Dennis, e Qwilleran notou um olhar significativo entre os dois.

     Quando um funcionário apareceu com uma bandeja de prata, o próprio Hasselrich serviu o café e passou as xícaras, salientando orgulhosamente que eram do aparelho Wedgwood de sua avó materna.

     Larry disse a Qwilleran: “Não sabia que você era cozinheiro.”

     “Sei tanto de cozinha quanto de buracos negros no universo”, replicou, “mas Iris tinha um irônico senso de humor. A piada é que ninguém consegue ler sua caligrafia. Quanto ao armário, fico feliz que ela o tenha deixado, em vez da cama General Grant.”

     “Como vão as coisas na fazenda?”

     “Estou aprendendo a conviver com lençóis e toalhas rosa, mas há um problema. Os armários e gavetas estão cheios das roupas de Iris. Com minhas camisas, calças e suéteres pendurados em cadeiras e maçanetas, acordo à noite e penso que estou rodeado de espectros.”

     “Tire as coisas dela de seu caminho, Qwill”, disse Larry. “Tem algumas caixas de papelão no porão. Nosso comitê de doações se encarregará do resto.”

     “Outra coisa, Larry. Ou nós temos gremlins, ou temos uma instalação elétrica defeituosa no lustre do hall. Ele precisa ser examinado por um eletricista.”

     “Vou alertar o Homer. Ele mandará uma pessoa imediatamente.” Larry foi até a escrivaninha do advogado e pegou o telefone. Decisões rápidas e ação imediata eram sua marca registrada.

     Qwilleran tomou uma segunda xícara de café, cumprimentou o herdeiro e ofereceu-lhe uma carona para o aeroporto.

     “Obrigado, Qwill, mas resolvi ficar até domingo”, disse Dennis. “A inauguração da Exbridge & Cobb já estava marcada para sábado, e Susan vai em frente como planejado.”

     Susan disse: “Os convites foram postos no correio na semana passada, Qwill, e sei que Iris não ia querer que cancelássemos. Ela estará conosco em espírito, mas achei que seria apropriado se Dennis a representasse.”

     Humm, pensou Qwilleran.

     “As pessoas podem pensar que a loja irá mal das pernas sem a Iris”, ela continuou, falando animadamente, “mas a presença de Dennis dará ao empreendimento alguma estabilidade, não acha? É muita gentileza dele oferecer-se para ficar mais alguns dias.”

     Humm, pensou Qwilleran. Ela estava com um ar inusitadamente feliz; seus gestos dramáticos estavam mais expansivos que nunca, e Dennis a olhava com demasiada freqüência.

     Antes de sair, Qwilleran perguntou a Hasselrich se tencionava notificar o jornal sobre os termos do testamento.

     “Nunca foi nossa política fazê-lo”, disse o advogado.

     “Mas nesse caso o senhor deveria reconsiderar. O dinheiro Hackpole é notícia, e Iris era uma pessoa importante”, argumentou Qwilleran. “Se não fizer uma declaração oficial, os boateiros de Pickax começarão a distorcer os fatos.”

     “Vou pensar no assunto”, disse Hasselrich.

     Qwilleran deixou-o pensando e foi ao escritório do Moose County Something, onde achou o editor em sua sala ricamente decorada.

     “Arch, eu nunca havia notado”, disse Qwilleran, “mas suas paredes são verde Dingleberry.”

     “É onde vou acabar — na Dingleberry — por isso estou me acostumando aos poucos. No que está pensando? Você parece cheio das intenções.”

     “O legado Cobb-Hackpole foi anunciado. Você devia mandar Roger ao escritório do advogado para pegar a história.”

     “Quem são os beneficiários?”

     “A família, a sócia nos negócios, a Sociedade Histórica e — em menor proporção — eu.”

     “Você? Do que é que precisa? Você já é dono de metade do país.”

     “Ela me deixou o armário de dois metros de altura que lhe dei de presente de casamento. Koko sempre gostou de sentar-se em cima dele.”

     “Deixe Koko sentar-se numa escada. Aquilo é um armário da Pennsylvania e vale uma pequena fortuna”, disse Riker, que conhecia um pouco sobre antigüidades. Ele apertou o botão do intercomunicador e vociferou: “O testamento de Iris Cobb já foi lido. Qwill nos deu a dica. Mande alguém para HB & B.”

     Qwilleran disse: “Ela também me deixou um caderno de folhas soltas contendo todas as suas receitas pessoais, mas não precisa mencionar isso na história.”

     “Pensei que se opusesse à censura”, disse Riker. “Vejo isso como uma manchete provocativa: “VIÚVA MILIONÁRIA LEGA LIVRO DE RECEITAS A SOLTEIRÃO BILIONÁRIO. Isso tem toda a sorte de implicações interessantes.”

     A campainha do interfone soou e uma voz guinchou: “O Qwill está aí? Pergunte se tem alguma coisa para nós. Já usamos todo o material de reserva dele.”

     “Ouviu isso?”, perguntou Riker. “A Pena de Qwill secou?”

     “Diretamente da Pena de Qwill” era o nome da coluna que Qwilleran concordara em escrever para o Something. “É o seguinte”, ele explicou a Riker. “Eu planejei algumas entrevistas, mas a morte de Iris me manteve fora de campo por alguns dias.”

     “Tudo bem. Pense depressa num artigo para amanhã”, disse Riker. “Lembre-se da sra. Peishy.”

     Dirigindo de volta a North Middle Hummock, Qwilleran pensou depressa. Tanto ele como Riker lembravam-se da professora de Inglês, no ginásio, que sempre mandava a classe escrever mil palavras sobre assuntos como o tempo, ou o café da manhã, ou a cor verde. O nome dela não era Peishy, mas tinha o azar de possuir olhos grandes, redondos, pálidos e úmidos. No tempo de estudante, Qwilleran tinha contribuído com sua parte de gemidos e protestos, mas hoje em dia podia escrever mil palavras sobre qualquer assunto, de um momento para outro.

     Observando a paisagem enquanto dirigia pela estrada de Ittibittiwassee e atravessava os Hummock, decidiu sobre o tópico: cercas! O Condado de Moose era entrecruzado por cercas de estacas, de forquilhas, de arame farpado, de quatro barras para curral, e até de cercas vivas, cada uma enviando sua própria mensagem, que ia desde Bem-vindo até Não se Aproxime. Nos elegantes Hummock havia quilômetros de muros baixos de pedra, bem como paliçadas de videiras de dois metros de altura em volta das piscinas. Na vila arruinada de Chipmunk havia uma cerca feita de velhas molas de cama. Qwilleran estava preparado — se essas observações somassem menos de mil palavras — para citar Robert Frost, referir-se a Cole Porter e remontar às raízes latinas da palavra “cerca”. Poderia até dedicar a coluna à sra. Peishy.

     Ao passar pela Fazenda Fugtree, notou que a cerca branca precisava de uma mão de tinta e arrependeu-se de não ter agradecido devidamente à mulher que o avisara sobre os faróis. Ele gostaria de pagar pelo serviço de pintura da cerca, mas tal generosidade poderia dar a impressão errada. Talvez, decidiu, devesse simplesmente escrever um bilhete de agradecimento.

     Virando na Alameda do Riacho Negro, divisou dois veículos estacionados no pátio do museu. Um deles era um quatro-portas azul-marinho, com cerca de dez anos. O outro, um furgão da Pickax Power Problems, Inc. O eletricista preparava-se para ir embora, e Homer Tibbitt estava recebendo sua conta.

     “As lâmpadas foram consertadas?”, perguntou-lhes Qwilleran.

     “Não havia nada errado a não ser lâmpadas soltas”, disse o eletricista. “Quando há muita vibração, as lâmpadas podem se soltar — ou acender e se apagar — especialmente essas que parecem uma chama. Rosqueie-as firmemente — e não terá problemas.”

     “O que causaria a vibração?”, perguntou Qwilleran.

     “Quem sabe? Fornalha, bomba, aparelhos — qualquer coisa que esteja desequilibrada. Bem, até logo! Chame de novo quando tiver outro trabalho fácil como este.”

     Qwilleran franziu o cenho. Podia imaginar o que a Pickax Power Problems iria cobrar por uma corrida até North Middle Hummock. Quando abriu a porta e os gatos vieram cumprimentá-lo, disse: “Vocês, seus pesos-pesados, têm de parar de bater os pés!”

     Os siameses estavam invulgarmente alertas e ativos para a tarde, que era a hora normal de sua sesta, mas isso era compreensível. Koko, como chefe da segurança, tinha observado prudentemente o eletricista, e Yum Yum estivera vigiando os cordões de seus sapatos. Além disso, Homer Tibbitt havia acompanhado o eletricista, e os gatos nunca tinham visto um ser humano que andava como um robô. O chefe da manutenção, notavelmente ágil para a idade, andava rapidamente, movimentando desajeitadamente os braços e pernas.

     O sr. Tibbitt retornara ao museu, e Qwilleran seguiu-o para se desculpar. Encontrou o diretor e uma mulher de cabelos castanhos na área de exposições.

     “Não precisa se desculpar”, disse Tibbitt, em sua voz aguda. “Isso me dá um pretexto para vir aqui e inspecionar as coisas. Ela dirige o carro para mim”, explicou acenando com a cabeça para a companheira. “Eles não renovam mais minha licença de motorista. Essa é a vantagem de me ligar a uma mulher mais jovem. O único problema de Rhoda é seu maldito aparelho de surdez. Ela não manda consertar essa droga. Rhoda, este é o sr. Qwilleran. Esta é Rhoda Finney. Ela ensinava Inglês na minha escola quando eu era diretor.”

     Qwilleran inclinou-se sobre a mão da sra. Finney, que sorriu com a serenidade de quem não ouviu uma palavra do que fora dito.

     Tibbitt disse: “Vamos para o escritório tomar café. Rhoda, você quer café?”

     “Desculpe, não tenho nenhum, querido”, disse, remexendo na bolsa. “Quer uma pastilha para a garganta?”

     “Esqueça.” Ele dispensou-a e dirigiu-se à frente de Qwilleran para o desolado escritório, mobiliado com arquivos de carvalho, mesas de madeira manchadas, cadeiras descombinadas e prateleiras de livros de consulta. Uma das mesas estava abarrotada de cacarecos sob um letreiro especificando Para Ser Catalogado. Outra mesa ostentava uma série de frascos de bebida instantânea, copos de papel e colheres de plástico.

     “Vou fazer uma pequena limpeza”, disse a sra. Finney, apanhando um espanador de penas num gancho e saindo do aposento.

     O homem idoso esquentou água numa cafeteira elétrica e mediu o café instantâneo para Qwilleran e um substituto de café para si. “Essa coisa insípida é só o que o dr. Hal me deixa beber desde meu último aniversário”, explicou, “mas melhora muito com algumas gotas de conhaque.” Mostrou a Qwilleran um frasco de bolso, de prata, com suas iniciais gravadas. “Resto dos tempos da lei seca”, disse. “Vem a calhar de vez em quando... O que achou do funeral? Penso que foi uma despedida decente. Até o velho Dingleberry ficou impressionado. Larry me disse que você está morando aqui até acharem um novo administrador. Notou algo fora do comum?”

     “Como o quê?”, perguntou Qwilleran alisando o bigode numa mostra de indiferença.

     “Dizem que o velho Ephraim ronda por aí de vez em quando. Eu mesmo nunca o vi porque nunca passei a noite aqui, mas ele tem algum tipo de segredo escondido. O velho Adam Dingleberry sabe o que é, mas não conta. Já tentei por diversas vezes arrancar-lhe a resposta, mas foi inútil.”

     “Meus gatos têm agido estranhamente desde que nos mudamos para cá”, disse Qwilleran. “Eu pensava que estavam procurando Iris Cobb. Ela os convidou para jantar aqui algumas vezes.”

     “Sem dúvida estão sentindo uma presença invisível”, disse Tibbitt muito sério.

     “Você conhece alguém que já viu o tal fantasma de Ephraim?”

     “Senior Goodwinter me contou algo pouco antes de seu acidente. Ele disse que o velho saiu direto da parede uma noite, carregando uma corda. Estava tão silencioso como um túmulo. Note que isso foi quase noventa anos depois da morte de Ephraim! Senior teve uma sensação sufocante. Então a visão desapareceu na mesma parede de onde tinha saído, e alguns dias depois Senior morreu.”

     “Qual parede?”, perguntou Qwilleran enquanto pensava em Iris Cobb e seu espremedor de batatas. “Sabe qual era a parede?”

   “Ele não me contou.”

     “Alguém da família viu alguma vez Ephraim olhando pela janela à noite?”

     “Ninguém jamais mencionou, mas os Goodwinter preferiam silenciar sobre o assunto, Fiquei surpreendido por Senior ter-me feito essa confidência. Fui seu professor no primário, por isso imagino que confiava em mim.”

     “Tenho a impressão de que as pessoas daqui acreditam piamente nos espíritos dos mortos.”

     “É verdade! Esta é uma bela região de fantasmas — como na Escócia, sabe. Temos muitos escoceses por aqui. Você não me disse que é escocês?”

     “Minha mãe era uma Mackintosh”, informou-o Qwilleran, com um ar de orgulho, “e ela nunca viu fantasmas, que eu saiba. Certamente nunca falou de fantasmas na minha presença.”

     “Você precisa de sensibilidade e uma mente aberta, é claro. Os céticos não sabem o que estão perdendo.”

     “Você já viu uma aparição?”

     “Claro que sim! Trinta e duas! Você soube da explosão na mina Goodwinter em 1904? Trinta e dois mineiros feitos em pedacinhos! Bem... vinte anos depois daquele desastre eu tive uma experiência curiosa — exatamente vinte anos depois, em treze de maio. Estava visitando uma jovem que morava no campo. Eu residia em Pickax, a uma distância de dez quilômetros, e estava voltando a pé para casa. Pouca gente no Condado de Moose tinha automóvel naquele tempo, e eu não possuía sequer uma bicicleta. Por isso voltava a pé por volta de meia-noite, pela North Pickax. Não era asfaltada naquela época. Sabe onde aquela colina se ergue logo ao norte da mina? Era apenas uma pilha de escória então, e quando cheguei lá vi algumas sombras se movendo no topo da pilha. Parei, olhei na escuridão e percebi que eram homens — arrastavam-se com picaretas e marmitas e não emitiam um som. Depois desapareceram atrás da colina. Eu contei; eram trinta e dois e todos tinham uma lanterna à testa. Ainda vejo aquelas luzes balançando à medida que a coluna avançava. Não havia vento naquela noite, mas depois que eles se foram, as folhas das árvores farfalharam e senti um calafrio.”

     Qwilleran ficou respeitosamente em silêncio por alguns momentos antes de falar: “Você disse que foi em 1924? A lei seca estava vigorando. Tem certeza de que não tinha tomado uns tragos dessa bomba aí no frasco de prata?”

     “Não fui o único que os viu”, protestou Homer. “E sempre era no aniversário da explosão — treze de maio.”

     “Ainda se pode vê-los?”

     “Não é provável. Agora que a estrada é asfaltada e os carros passam a mais de cem quilômetros por hora, quem veria uma coisa tão efêmera como um fantasma? Mas eu lhe digo o que fazer: ano que vem, na noite de treze de maio, você e eu iremos até o local da mina Goodwinter, estacionaremos o carro e esperaremos alguma coisa acontecer.”

     “Vou marcar na minha agenda”, disse Qwilleran, “mas não esqueça de trazer o frasco.”

     Nesse momento Rhoda Finney entrou no escritório com seu espanador de penas. Vendo as xícaras de café, disse: “Seus mauzinhos! não me disseram que tinha café!”

     Homer olhou para Qwilleran e sacudiu os ombros desanimado. Erguendo-se da cadeira, preparou-se para dosar uma bebida instantânea da fila de frascos na mesa. “Qual tipo?”, gritou.

     A sra. Finney olhou para o relógio. “Duas e dezessete, querido.” Ela espanou alguns móveis do escritório antes de sentar-se.

     Qwilleran disse: “A administração do museu parece estar muito bem organizada”.

     “Está mesmo”, disse Homer. “Larry é bem exigente. Temos doze comitês ativos e setenta e cinco voluntários. Eu controlo a equipe de manutenção. Temos estudantes de ginásio que trabalham no jardim, ganhando pontos por serviços à comunidade. Temos vinte voluntários capacitados que fazem a limpeza, se contar Rhoda e seu bendito espanador. Contratamos profissionais — como a Pickax Power Problems — para fazer consertos. Para lavar as janelas, o condado nos envia alguns presos.”

     “Você já encontrou janelas soltas batendo com o vento? Ou qualquer ripa solta nos lados da casa?”

     “Nada foi comunicado, e se não está quebrado não consertamos.”

     “Sabia que a argamassa está rachada no porão, embaixo da ala oeste?”

     Homer descartou o assunto com um vago aceno de mão. “Está falando daquele ninho de ratos? E um depósito de trastes doados ao museu: móveis quebrados, ferramentas enferrujadas, livros embolorados, cerâmica rachada, jarros de despejo e penicos manchados.”

     “As papoulas estavam lindas neste ano”, interrompeu Rhoda. “Pena que não florescem por muito tempo.”

     “Eu disse penicos — não papoulas!”, gritou Homer na sua voz aguda. “Penicos de quarto! Urinóis! As coisas que se põem embaixo da cama!”

     Rhoda virou-se para Qwilleran e explicou suavemente: “O clube de jardinagem mantém nossos canteiros de flores. Não acha que os crisântemos ferrugem e ouro estão lindos? Ainda não tivemos geadas.”

     “Desisto!”, disse Homer levantando para o alto as mãos ossudas. “Ela é uma mulher encantadora, mas ainda vai acabar comigo!” Com movimentos desconjuntados dos braços e pernas saiu do aposento batendo os pés.

     Rhoda perguntou com um sorriso radiante: “Ele estava novamente fazendo sua preleção sobre celeiros antigos?”

     “Não, estava fazendo sua preleção sobre fantasmas!”, disse Qwilleran em voz alta.

     “Ah... sim”, disse enquanto pendurava o espanador num gancho atrás da porta. “Sabe, eles têm muitas na fazenda Fugtree.”

     Qwilleran saiu rapidinho, gritando que o telefone estava tocando na ala oeste.

     Era Roger MacGillivray, repórter do Moose County Something. “Qwill, já me informei sobre o testamento de Iris Cobb”, disse, “mas há uma coisa que não está clara. O que é aquele livro de receitas que ela lhe deixou?”

     Qwilleran, que era adepto de mentiras improvisadas, disse: “É a coleção particular de receitas que ela queria ver publicadas postumamente”. Falava com a deliberação de quem está autorizado a fazer uma declaração para ser publicada. “A Fundação Klingenschoen vai subscrever os custos de publicação, e a renda irá para a Bolsa Memorial de Estudos Iris Cobb. Para estudos de economia doméstica”, acrescentou, numa reflexão posterior.

     “Ótimo!”, disse Roger. “Isso encerra a coisa. Muito obrigado.”

     Qwilleran aprontou rapidamente sua coluna para o jornal de sexta-feira e transmitiu-a por telefone ao copidesque. Portanto, já era tarde quando começou a pensar no jantar, mas encontrou um de seus pratos favoritos no congelador — perna de carneiro cozida com lentilhas — e descongelou uma boa porção no microondas. Era uma grande peça de carne, e antes de sentar-se para comer cortou um naco generoso para os siameses, picando-o em cubinhos e pondo no prato deles sob a mesa do telefone. Yum Yum atacou-o com entusiasmo, mas Koko estava virtualmente colado à janela da cozinha, olhando para a escuridão lá fora.

     “Já estamos fartos desta atuação ridícula, meu chapa!”, disse Qwilleran. “Vamos ver o que o está perturbando!” De lanterna na mão saiu irritado da casa, iluminando o exterior, em lugares escuros não atingidos pelas luzes do pátio. Não viu nada fora do comum, nem se movendo. Um pequeno tremor no lábio superior o fez pensar: o que é que os gatos vêem quando estão fixando o espaço? Koko tinha saído da janela, e Qwilleran estava pronto para desistir da busca quando o facho da lanterna iluminou algumas depressões no chão embaixo da janela da cozinha. Pareciam pegadas. Isso elimina os espíritos desencarnados, pensou consigo. Poderia ter sido um garoto de Chipmunk... um jovem abelhudo... um lavador de janelas da cadeia do condado.

     Apressou-se em entrar e procurou na lista o telefone de Homer Tibbitt. Queria saber qual fora a última vez que as janelas haviam sido lavadas.

     O chefe da manutenção morava na October House, uma residência para idosos, e a telefonista disse: “Sinto muito, não posso tocar para o sr. Tibbitt a esta hora. Ele se recolhe às sete e meia. Quer deixar um recado?”

     “Diga apenas que Jim Qwilleran ligou. Tentarei de novo amanhã de manhã.”

     Os gatos pareciam ter apreciado sua porção de carneiro; estavam lavando as máscaras, bigodes e orelhas com satisfação. Qwilleran colocou seu prato de comida no microondas para esquentar de novo e imediatamente o puxou fora, olhando sem acreditar. Tudo o que sobrara dele fora um pouco de lentilhas e um osso de perna, roído até ficar limpo.

 

     Enquanto Qwilleran preparava o desjejum para os siameses, na manhã de sexta-feira, seu pensamento ainda estava naquelas pegadas fora da janela da cozinha. Se os lavadores tinham estado lá no último fim de semana, elas poderiam ser deles. Se não, as depressões reveladoras tinham certamente sido deixadas no solo fofo na noite de domingo, quando Iris Cobb fazia seu último telefonema. Tinha chovido mais cedo naquela tarde; depois disso o tempo estivera seco.

     Colocou o prato de pontas de filé mignon no chão, sob a mesa do telefone, e chamou de novo a October House.

     “O sr. Tibbitt”, disse a telefonista, “não está. Quer deixar recado?”

     “Aqui é Jim Qwilleran.”

     “Ah, sim, sr. Qwilleran. O senhor ligou ontem à noite.”

     “O sr. Tibbitt voltará logo?”

     “Acho que não. Foi para Lockmaster.”

     “Ele está bem?”, perguntou Qwilleran rápido. Lockmaster, ao sul do condado, tinha um centro médico famoso pelo setor geriátrico.

     “Ah, sim, está muito bem. A sra. Finney levou-o de carro para lá, a fim de ver as cores do outono na região de criação de cavalos. Dizem que é lindo.”

     “Ah, sei”, murmurou Qwilleran. “Quando retornam?”

     “Só domingo à tarde. Foram visitar uns amigos. Quer que diga para lhe telefonarem?”

     “Não. Não se incomode. Eu falo com ele depois, no museu.”

     Qwilleran tinha agora de enfrentar uma nova tarefa desagradável — acondicionar os pertences pessoais de Iris Cobb nas caixas de papelão do porão. Ele tinha feito isso uma vez, depois da morte da mãe, e fora uma tarefa de cortar o coração. Fizera-o muitas vezes quando trabalhava numa casa de repouso, no tempo da faculdade, e naquela situação era um serviço de rotina. Mas era um ritual embaraçoso e íntimo fazê-lo para uma mulher que tinha sido sua antiga senhoria e governanta. Sentia-se como um voyeur ao apanhar nos armários e gavetas das cômodas seus terninhos rosa, robes rosa, lingerie rosa e camisolas rosa. O mais penoso de tudo foi a invasão das gavetas de cima, com a miscelânea de batons, brincos quebrados, lixas usadas, vidros de remédios, uma escova de cabelo com alguns fios presos às cerdas e a lente de aumento com cabo de prata que lhe dera no último aniversário.

     Quando acabou de arrumar as caixas etiquetou-as e carregou-as para o escritório do museu. Koko quis acompanhá-lo.

     “Desculpe”, disse Qwilleran. “A placa diz que é proibido fumo, comida, bebida e pés descalços.”

     Quando a tarefa terminou, no entanto, Koko ainda estava dando saltos na porta do museu, tentando virar a maçaneta. Tinham-lhe permitido entrar na área de exposições uma vez, quando a sra. Cobb era viva, e naquela ocasião fora atraído por alguns modelos de barcos.

     Qwilleran finalmente aquiesceu. “Está bem, mas vai ficar desapontado”, disse ao gato. “A exposição de barcos já foi desmontada.”

     Assim que a porta de ligação foi aberta, Koko precipitou-se para o museu, ignorando os cômodos dos pioneiros e dirigindo-se para a ala leste, que abrigava as exposições temáticas, coleções de estudos e o escritório do museu. Correu direto para o escritório, espiou atrás da porta e começou a pular tentando alcançar o espanador de penas da sra. Finney.

     “Seu demônio!”, disse Qwilleran. “Como sabia que estava ali?” Afastou o gato, fechou a porta do escritório e observou de perto enquanto ele explorava.

     Koko desviou-se da sala que tinha sido palco da exposição de barcos; a porta estava fechada e uma placa anunciava nova mostra para breve. Não se interessou por documentos históricos nem pela eminente coleção de artefatos antigos de iluminação. O que fascinou o notável gato foi uma mostra que todos consideravam a mais enfadonha do museu: têxteis. Consistia de roupas de cama e mesa amareladas pelo tempo; acolchoados desbotados de lavagens com sabão de barrela; cobertores tecidos a mão com buracos feitos por traças; tapetes confeccionados a mão encardidos pelo uso; medonhos panos de prato feitos com sacos de farinha; um colchão manchado estofado de palha; cortinas tingidas com amoras e cascas de cebola. No entanto, os cartões de identificação declaravam orgulhosamente os nomes dos pioneiros que tinham tecido, acolchoado, enganchado, tingido e estofado esses artefatos. Koko interessou-se especialmente por um travesseiro confeccionado com saco de farinha e recheado, segundo o cartão de identificação, com penas de galinha da Fazenda Centenária Inchpot. Farejou-o atentamente.

     “Penas de galinha! Eu devia saber!”, disse Qwilleran. “Vamos para casa.” Pegou o gato no colo, mas Koko escapou de suas mãos e correu de volta para o travesseiro da Inchpot. Curiosamente, um travesseiro similar da Fazenda Trevelyan, de data um pouco anterior na história do Condado de Moose, foi completamente ignorado. Qwilleran agarrou Koko pelo pescoço e arrastou-o de volta ao apartamento.

     Foram recebidos por Yum Yum, que tocou o focinho no de Koko e começou a limpar os odores históricos de seu pêlo. Terminada esta tarefa, Koko iniciou uma nova missão: olhar fixamente o compartimento do congelador em cima da geladeira.

     “Não há nada para gatos nesse congelador”, disse-lhe Qwilleran. “Você está na pista errada. Pode comer um pouco da almôndega do freezer grande, mas só na hora do jantar.”

     Koko insistiu, pulando nas pernas de trás. Para provar o que dizia, Qwilleran abriu a porta do freezer, expondo pilhas de rosquinhas de canela, bolinhos de mirtilo, de chocolate, pães de banana com nozes e outros doces. Foi então que teve uma idéia: um pacote dos bolinhos de nozes seriam um agradecimento ideal para a família da Fazenda Fugtree, e um ótimo presente com um toque de sentimento. Mais tarde poderia presentear os Boswell com uma torta de cereja, se pudesse fazê-lo sem envolver-se nos mexericos dos vizinhos. A sra. Boswell era agradável, mas a voz do marido gelava o sangue de Qwilleran, e Baby era uma pestinha.

     Estavam no meio da tarde, uma boa hora para fazer uma visita de improviso. Descongelou os bolinhos de nozes e dirigiu-se de carro até a Fazenda Fugtree. Embora fosse muito perto, raciocinou que se aparecesse a pé poderia sugerir familiaridade excessiva, e até o oferecimento obrigatório de refrescos. Chegando de carro pareceria mais formal e poderia fazer uma rápida retirada. Decidiu ir de carro.

     Vista de perto, a velha fazenda estava ainda mais dilapidada do que parecia da estrada. Obviamente, a porta da frente não era usada há anos; os degraus estavam cobertos de mato. Deu a volta até a porta lateral e, ao chegar, uma mulher jovem estava saindo do celeiro mais próximo, com um macacão encardido e um gorro de forragem. Tinha corpo de modelo, mas o macacão não era nada elegante; na verdade, parecia vir da Loja de Descontos para Fazendeiros de North Kennebeck.

     “É o senhor Qwilleran”, cumprimentou-o. “Reconheci pelo retrato no jornal. Desculpe-me pela minha aparência; estava varrendo o estéreo no curral.”

     Os modos e a fala dela pareciam incompatíveis com varrer estéreo no curral, e a curiosidade de Qwilleran acendeu-se. Saindo do carro, entregou-lhe o pacote de bolinhos. “Vim agradecer por me avisar sobre os faróis na terça-feira à noite. Isto é do freezer da sra. Iris Cobb. Achei que sua família iria gostar.”

     “Obrigada. Não tenho família”, disse, “mas adoro a comida de Iris. Sinto que a tenhamos perdido. Era uma senhora muito agradável.”

     Qwilleran ficou desconcertado. “Quando ligou da primeira vez sobre Iris... mencionou... que seus filhos estavam doentes”, disse hesitante.

     O rosto dela ficou perplexo por um momento e “depois iluminou-se. “Acho que falei que estava cuidando de meus filhotes doentes. Queria dizer... cabritinhos.”

     “Desculpe minha ignorância. Sou recém-chegado de Lá de Baixo e ainda não domino o vocabulário daqui.”

     “Sente-se, por favor”, disse, acenando para umas cadeiras de jardim meio enferrujadas. “Gostaria de um copo de vinho?”

     “Obrigado, sra. Waffle, mas o álcool não está na minha lista de vícios.”

     “Kristi”, disse ela. “Chame-me Kristi. Então, gostaria de uma limonada fresca com mel das abelhas locais?”

     “Agora está falando minha língua.”

     Sentou-se cuidadosamente numa das vacilantes cadeiras e examinou o terreiro. Era uma perspectiva de tarefas infinitas, grama por cortar, celeiros por pintar, cercas por consertar. O que fazia ela sozinha ali?, pensava consigo. Era jovem. Cerca de trinta anos, deduziu. Mas de aspecto sério. Era cordial, mas só os lábios sorriam. Os olhos eram cheios de tristeza, ou pesar, ou preocupação. Um rosto interessante!

     Junto com a limonada vieram biscoitos e um pedaço de queijo branco fresco. “Queijo de cabra”, explicou. “Eu mesma faço. Vai ficar morando aqui no museu?”

     “Só até encontrarem um substituto para a sra. Cobb.” Tentando não olhar para a grama descuidada e a casa em mau estado, disse: “Há quanto tempo está neste lugar?”

     “Desde que minha mãe morreu, há uns dois anos. Cresci aqui, mas estava fora há dez anos. Quando herdei a casa, voltei para ver se conseguia ganhar a vida com as cabras. Sou a última dos Fugtree.”

     “Mas seu nome é Waffle.”

     “Era meu nome de casada. Depois de meu divórcio decidi mantê-lo.”

     Qwilleran pensou, qualquer coisa é melhor que Fugtree.

     “Qualquer coisa é melhor que Fugtree”, disse, como se lesse o pensamento de Qwill.

     “Não estou familiarizado com a história de sua família, embora saiba que o capitão Fugtree foi um herói de guerra.”

     Kristi suspirou pesarosa. “Meus antepassados fizeram muito dinheiro com madeira e construíram esta casa, mas o capitão estava mais interessado em ser um herói de guerra, e isso não paga contas. Quando meus pais herdaram a casa lutaram para mantê-la, e agora que já se foram estou tentando tocá-la. As pessoas dizem que devo vendê-la para um construtor de condomínios, como os de Indian Village, mas seria um crime demolir esta casa fabulosa. Pelo menos estou fazendo uma tentativa de tocar a fazenda”, disse, sorrindo com tristeza.

     “Por que cabras?”

     “Por várias razões.” Ela iluminou-se perceptivelmente. “São animais muito dóceis, a alimentação não é custosa, e há um mercado crescente para seus produtos. Sabia disso? Atualmente crio cabras de leite, mas algum dia gostaria de ter algumas angorá, fiar sua lã e tecê-la. Estudei a arte de tecelagem na escola.”

     “Isso me parece material para a coluna ‘A Pena de Qwill’”, disse Qwilleran. “Posso marcar uma entrevista com você e as cabras?”

   “Seria ótimo, sr. Qwilleran!”

     “Por favor, me chame de Qwill”, disse. Estava sentindo-se à vontade e cativado. A limonada era a melhor que já provara, e o queijo de cabra, delicioso. Os olhos suaves e tristes de Kristi eram hipnóticos. Não tinha o menor desejo de sair. Olhando para a casa, disse: “Este é um exemplo único de arquitetura do século XIX. Qual a razão para a torre? Ou era simplesmente um conceito?”

     “Não sei exatamente. Meus antepassados eram donos da fazenda, e minha mãe achava que usavam a torre como vigia — para espionar os empregados no campo e ver se não estavam vadiando.”

     “E para que você a usa?”

     “Subo lá para meditar. Foi como descobri que você tinha deixado os faróis acesos.”

     “O que há na torre?”

     “Principalmente moscas. As moscas adoram torres. Pulverizar inseticida não ajuda muito. Estão sempre zumbindo, tomando sol e se multiplicando. Gostaria de ver a casa?”

     “Gostaria imensamente.”

     “Vou lhe avisando: é uma bagunça. Minha mãe era uma colecionadora compulsiva. Ia a leilões e arrematava todo o tipo de trastes. É uma doença, sabe, comprar em leilões.”

     “Eu tive um ataque agudo de leilonite — uma vez”, disse Qwilleran, “e entendo como o vírus pode entrar no sangue de qualquer um e causar uma doença crônica incurável.”

     Entraram na casa pela porta lateral, abrindo caminho entre sacolas cheias de roupas, sapatos, chapéus, bonecas e guarda-chuvas; triciclos enferrujados e um cortador de grama manual; caixas de papelão abertas repletas de potes e panelas amassados, pratos rachados, bandejas de bar e velhas garrafas de leite; baldes de madeira e de latão; uma geladeira de carvalho e um suporte de vime para samambaia; pilhas de revistas e centenas de livros. Tendo ficado tempo demais em sótãos e porões, essas relíquias transmitiam um cheiro de mofo a casa toda.

     Kristi disse com um sorriso pesaroso: “Estou tentando esvaziar esse acúmulo — vendendo ou dando algumas coisas, mas há toneladas delas!”

     Só a sala de jantar tinha duas mesas grandes, vinte cadeiras, três armários de louças e porcelana suficiente para abrir um restaurante.

     “Viu o que quero dizer?”, falou. “E isso não é nada. Os quartos estão piores. Tente não olhar para a desordem. Observe a madeira entalhada, os tetos esculpidos, as janelas de vitral e as escadas.”

     Do vestíbulo, uma larga escadaria subia em curva para o segundo andar. O pilar e o corrimão eram maciços e a balaustrada extravagante, lembrando os dias em que a madeira reinava. Era toda de nogueira negra, disse Kristi.

     “Mas não é a escada original”, frisou. “A primeira subia em espiral até a torre e era muito graciosa. Meu avô a substituiu e selou a torre.”

     “Moscas demais?”, disse Qwilleran. “Ou muito difícil para aquecer?”

     “É uma longa história”, disse virando-se. “Está com vontade de subir quatro andares?”

     Depois que chegaram ao terceiro andar ela destrancou uma porta que dava para a torre. Aqui as escadas eram simples, de serviço, mas terminavam num quartinho encantador não muito maior que um quartinho de vestir, com janelas nos quatro lados e assentos nos vãos das janelas almofadados com veludo esgarçado. Numa mesa de vime estragada havia binóculos, uma vela derretida e um livro de ioga encapado em papel pardo. Moscas varejeiras iridescentes tomavam sol na janela sul.

     Qwilleran apanhou os binóculos e olhou para o norte, onde o grande lago faiscava logo abaixo do horizonte. Para oeste, a agulha da torre de uma igreja erguia-se acima de uma floresta de sempre-vivas. Para leste ficava a propriedade Goodwinter com o furgão de Boswell no terreiro, uma caminhonete azul na entrada do museu, e meia dúzia de pessoas enérgicas varrendo as folhas, colocando-as em sacos e pondo-as na caminhonete.

     Qwilleran perguntou: “O que é aquela linha diagonal de árvores que corta os campos pelo meio?”

     “É o Riacho Negro”, disse Kristi. “Não dá para vê-lo, mas as árvores crescem nas margens, e há alguns salgueiros bem antigos debruçando-se sobre as águas.”

     “Esta casa”, disse Qwilleran enquanto desciam os quatro lances de escadas, “devia estar registrada como local histórico.”

     “Eu sei.” Os olhos de Kristi encheram-se de melancolia. “Mas há muita burocracia, e eu não teria tempo de fazer as pesquisas e preencher os formulários. E além disso a casa e as terras teriam de ser postas em ordem, e eu não tenho como pagar.”

     Qwilleran alisou o bigode pensativamente: isto poderia ser um projeto para a Fundação Klingenschoen se encarregar. Os Fugtree eram pioneiros que ajudaram a desenvolver o condado, e a casa é um exemplo de arquitetura digno de ser preservado. No futuro, poderia ser adquirida pela Sociedade Histórica e aberta ao público como um museu. Ele podia visualizar a Estrada Fugtree se tornando um “parque do museu”, com a Fazenda Goodwinter demonstrando a vida dos primeiros colonizadores e a mansão Fugtree mostrando o Condado de Moose durante seus anos de desenvolvimento. Até as impressoras antigas do celeiro tinham possibilidades como um “Museu da Palavra Impressa”. Qwilleran gostou do nome. Um ou dois bons restaurantes poderiam ser abertos na vizinhança, e a cidade-fantasma de North Middle Hummock se reergueria, com os inevitáveis condomínios do outro lado do Riacho Negro. O fato de Kristi ser uma jovem atraente não tinha nada a ver com suas especulações entusiásticas, disse a si mesmo.

     “Gostaria de outro copo de limonada?”, indagou para quebrar o silêncio que caíra depois de sua última declaração.

     “Não, obrigado”, respondeu, acordando do devaneio, “mas que tal amanhã às quatorze horas para a entrevista?”

     Enquanto ela o acompanhava até o carro, ele mencionou casualmente, “A Fundação Klingenschoen poderia ajudá-la com o registro histórico. Por que não escreve uma carta para a Fundação aos cuidados de Hasselrich, Bennett e Barter? E veja o que acontece.”

     Os olhos dela perderam a melancolia pela primeira vez. “Acha realmente que tenho alguma chance?”

     “Não custa tentar. Tudo o que tem a perder é um selo de correio.”

     “Oh, sr. Qwilleran — Qwill — eu lhe daria um abraço se não tivesse estado estercando o curral!”

     “Vou me lembrar da oferta”, disse.

     Chegando da fazenda, Qwilleran ignorou os siameses e procurou “cabra” no dicionário. Depois ligou para Roger MacGillivray no escritório do jornal. “Foi bom tê-lo encontrado, Roger. Quero pedir um favor. Está livre para jantar hoje?”

     “Uh... sim... mas teria de ser cedo. Prometi estar em casa às sete para tomar conta do nenê.”

     “Eu lhe pago um jantar no Tipsy se você parar na biblioteca de Pickax e me trouxer alguns livros sobre cabras.”

     Houve uma pausa. “Sobre o quê, Qwill?”

     “C-a-b-r-a-s. Encontro-o no Tipsy às cinco e meia.”

     “Deixe ver se entendi direito, Qwill. Você quer livros sobre cabras?”

     “Isso mesmo! Quadrúpedes ruminantes com chifres. E Roger...”

     “O quê?”

     “Não precisa contar a ninguém que os livros são para mim.”

 

     O Tipsy era um restaurante popular em North Kennebeck, que começara como uma pequena cabana de troncos nos anos 30 e agora ocupava uma grande cabana de troncos, onde comensais autênticos convergiam para comer bifes autênticos sem frivolidades, como galhos de salsa e gordura vegetal. As batatas eram descascadas e fritas na cozinha sem a ajuda de fosfato de sódio. A única opção de legume era cenoura cozida. A única salada era a de repolho cru. E havia uma fila de espera todas as noites.

     Qwilleran e seu convidado, que estavam com pressa, usaram as credenciais de imprensa para conseguir uma mesa, e sentaram-se diretamente sob a grande fotografia do gato preto-e-branco que dava nome ao restaurante.

     Roger atirou uma pilha de livros sobre a mesa: Criando Cabras por Lazer e Lucro, Desmascarando Mitos sobre Cabras e Como Iniciar um Clube de Cabras “Era isso que queria?”, perguntou incrédulo.

     “Vou entrevistar um criador de cabras”, disse Qwilleran, “e não quero ignorar totalmente qual o sexo que dá leite e qual o que tem C.C.”

     “Descubra se é verdade que elas comem latas”, disse Roger. “Quem é o criador? Eu o conheço?”

     “Quem falou que é ele? É uma moça da Fazenda Fugtree ao lado do museu Goodwinter. O nome dela é Kxisti.”

     “Claro, eu a conheço.” Tendo crescido no Condado de Moose e ensinado na escola por nove anos antes de mudar para o jornalismo, as relações de Roger eram numerosas. “Estivemos juntos no ginásio. Ela casou-se com um sujeito de Purple Point com muita aparência e pouco cérebro, e mudaram-se — para algum lugar Lá Embaixo.”

     “Ela voltou e está divorciada”, disse Qwilleran.

     “Não me surpreende. Ele era um idiota e Kristi era uma moça talentosa. Mas volúvel. Pulava de uma grande idéia para outra. Lembro-me de quando quis fazer cestas de macramé para aros de basquete.

     “Ela parece ter os pés no chão agora.”

     “Qual a aparência dela? Tinha grandes olhos sérios e usava roupas esquisitas, mas todos os estudantes de arte usavam roupas esquisitas.”

    “Agora usa macacões sujos e botas enlameadas, e o cabelo preso sob um gorro. Ainda tem grandes olhos sérios. Acho que tem preocupações maiores que sua capacidade de enfrentá-las.”

     Os bifes foram servidos rapidamente, e os dois homens dedicaram-se a eles com concentração. O bife do Tipsy exigia muita mastigação, mas o sabor era de primeira. Era de gado criado para consumo local, como as batatas, as cenouras e o repolho. Havia algo no solo do Condado de Moose que produzia legumes saborosos e forragem superior para o gado.

     Qwilleran disse: “Não sei se você sabe que estou morando na Fazenda Goodwinter até encontrarem um novo administrador.”

     “Prepare-se para passar o inverno lá”, avisou Roger. “Vão ter muita dificuldade em substituir Iris Cobb.”

     “Você conheceu algum dos Goodwinter quando moravam lá?”

     “Só os três garotos. Freqüentamos a escola na mesma época. Junior foi o único que sobrou. A irmã mora num rancho em Montana, e o irmão está em algum lugar do Oeste.

     “Alguma vez disseram qualquer coisa sobre o lugar ser assombrado?”

     “Não, os pais nunca os deixavam mencionar o boato do fantasma... ou o assassinato do avô... ou a ‘morte súbita’ do bisavô, como era chamada. A família toda agia como se nada de anormal tivesse ocorrido. Por que pergunta? Anda vendo fantasmas?”

     Qwilleran cofiou o bigode cautelosamente, indeciso se poderia confiar em Roger. Disse: “Sabe que não acredito em fantasmas ou duendes, mas... Iris estava ouvindo barulhos fantasmagóricos na casa Goodwinter antes de morrer.”

     “Que tipo de barulhos?”

     “Batidas, gemidos e gritos.”

     “Não brincai”

     “E o comportamento de Koko tem sido anormal desde que nos mudamos. Está sempre resmungando e olhando para o espaço.”

     “Está falando com fantasmas”, disse Roger com a cara mais séria do mundo.

     Qwilleran nunca podia ter certeza quando o jovem repórter falava sério. Disse: “Iris tinha a teoria de que uma casa transpira o bem ou o mal, dependendo de seus ocupantes anteriores.”

     “Minha sogra prega o mesmo”, disse Roger.

     “Como está Mildred, falando nisso? Não a tenho visto ultimamente.”

     “Está metida até o pescoço em boas causas, como sempre. Ainda tentando perder peso. Ainda com problemas com aquele marido. Acho que ela devia arrumar um advogado e desatar o nó.”

     “E como vai Sharon e... o bebê?”

     “Sharon voltou a lecionar. E aquela criança! Não sabia que um bebê podia ser tão divertido!... Bem, não posso ficar para a sobremesa. Tenho de voltar para que Sharon possa ir à reunião de seu clube. Obrigado, Qwill. Foi a melhor refeição que tive em um mês!”

     Qwilleran continuou sentado e pediu o pudim de pão à moda antiga do Tipsy, com um jarro de creme grosso para despejar por cima, seguido de duas xícaras de um café bem forte para exorcizar demônios e duendes domésticos. Depois voltou a North Middle Hummock a fim de dar uma ensaiada final na sua entrevista com a pastora de cabras.

     Depois de folhear os capítulos sobre procriação, alimentação, aleitamento, descornamento, castração, corte de cascos, limpeza de curral e manejo de estéreo, tomou uma decisão: era melhor caminhar vendado sobre uma prancha do que criar cabras. Além disso, havia o perigo de doenças como coccidiose, sarna folicular, distensão do rúmen e amolecimento do casco, sem mencionar defeitos de nascença como quartela saltada, úbere caído, teta sem abertura, orifício vazando e hermafroditismo. Não era de espantar que a moça das cabras parecesse preocupada.

     Depois dessa pesquisa ele sabia, no entanto, quais perguntas fazer, e sentiu uma admiração crescente por Kristi e sua escolha de carreira. Talvez, como Roger dissera, tivesse sido volúvel no ginásio, mas quem não o é naquela idade? Estava ansioso pela entrevista. Quando Polly Duncan ligou para perguntar se planejava comparecer à recepção de Exbridge & Cobb, Qwilleran ficou feliz por ter uma boa desculpa. Disse: “Tenho uma entrevista com um fazendeiro às duas da tarde.”

    

     Kristi recebeu-o no sábado à tarde de macacão branco. Tinha estado assistindo a um parto, disse. “Buttercup teve problemas e eu precisei ajudar. Geranium também está pronta e tenho de examiná-la a cada meia hora. Ouça-a balindo, coitadinha.”

     “Você dá nome a todas as suas cabras?” “Claro. Todas têm sua própria personalidade.” Enquanto se encaminhavam para os currais, Qwilleran indagou quantos cabritos Buttercup tinha parido.

     “Dois. Estou formando meu próprio rebanho em vez de comprar animais. Leva tempo, mas é menos dispendioso.”

     “Quanto pesa um cabrito ao nascer?”

     “Cerca de três quilos. Durante uns tempos eu os alimento com mamadeira, de três a cinco vezes ao dia.”

     Qwilleran disse: “Há uma pergunta me atormentando. Como ou por que se envolveu com cabras?”

     Kristi disse gravemente: “Bem, conheci uma cabra chamada Petunia e foi amor à primeira vista, por isso fiz um curso por correspondência e depois arrumei um emprego numa fazenda de cabras. Morávamos em New England então.”

   “O que fazia seu marido nessa época?”

     “Praticamente nada. Esse era o problema”, disse com uma careta amarga.

     Aproximavam-se de uma área de celeiros, barracões e currais pequenos cercados de arame, onde havia pequenas árvores de sombra com os troncos protegidos. Um gato de celeiro espremia-se para passar por baixo da cerca. No curral mais próximo, umas doze cabras de diferentes cores coçavam as cabeças umas das outras, reclinavam-se no chão, ou estavam imóveis de pé com expressões passivas. Fitaram os dois visitantes com olhos tristes e suaves, e Qwilleran viu de soslaio os olhos de Kristi, que também eram tristes e suaves.

     “Gosto daquele preto grande com a cara listrada”, disse. “De que tipo ele é?”

     “Ela”, Kristi lembrou-o. “Essas são todas fêmeas. Aquela é uma núbia e eu a chamo de Black Tulip. Note seu nariz romano e longas orelhas elegantes. E de muito bom pedigree. A branca é Gardênia. É uma saanen. Gosto muito dela; é tão feminina! A castanha de duas listras na cara é Honeysuckle.”

     “O que é aquela estrutura no meio do pátio?”

     “É um cevador. Elas recebem alimentação nutritiva, mas também pastam. O fazendeiro que aluga as terras de Fugtree cuida do meu pasto. Alguns estudantes vêm depois das aulas para limpar a sala de ordenha, os cevadores e coisas assim. E também tenho um amigo que vem de Pickax nos fins de semana para ajudar.”

     Houve um rebuliço no campo mais afastado. Dois bodes estavam dando cabeçadas um no outro e um terceiro, marradas num barril. “São machos”, explicou Kristi. “Mantenho-os afastados da área de ordenha por causa do seu cheiro.”

     “Então ‘feder como um bode’ não é só uma expressão?”

     Kristi foi forçada a concordar. “Você gostaria de acariciar as cabras?”, perguntou. “Elas gostam de atenção. Não faça movimentos repentinos. Deixe-as primeiro farejar sua mão.”

     As fêmeas vieram para a cerca e se roçaram no arame, depois fitaram Qwilleran com olhos sonolentos, emitindo um gemido suave, mas a pelagem pareceu áspera para uma mão acostumada a acariciar gatos.

     Em seguida, Kristi mostrou-lhe a sala de ordenha. “Mando pasteurizar comercialmente o leite”, explicou. “Depois é vendido a pessoas alérgicas a leite de vaca ou que o acham indigesto. Gostaria de uma xícara de chá e um pedaço de queijo?”

   Foram para a casa e sentaram-se à mesa da cozinha, o único cômodo que parecia habitável. Mesmo assim, a mesa estava entulhada de objetos, inclusive uma grande bíblia familiar de capa de couro. Kristi disse que a mãe a comprara num leilão, e que o museu poderia gostar de tê-la.

     Qwilleran disse: “Você não me contou por que seu avô reconstruiu a escada.”

     “Houve um escândalo envolvido.”

     “Tanto melhor!”

     “Você não vai colocar isto na sua coluna, vai?”

     “Não, se você não quiser.”

     “Bem”, começou, “aconteceu no começo deste século. Meu bisavô tinha uma bela filha chamada Emmaline, e ela se apaixonou por um dos rapazes Goodwinter, o segundo filho de Ephraim. O nome dele era Samson. Mas o pai dela desaprovou, e Emmaline foi proibida de ver seu amor. Como era uma moça corajosa, costumava subir pela escada em espiral até a torre e acender uma luz, que podia ser vista da casa dos Goodwinter, e Samson ia encontrá-la na margem do Riacho Negro sob os salgueiros. Então aconteceu a tragédia! Samson caiu do cavalo e morreu. Poucos meses depois Emmaline deu à luz uma criança, uma desgraça horrível naquele tempo. A família a desprezava, e os amigos a abandonaram. Então, uma noite durante uma tempestade, ela subiu a escada em espiral e se jogou da torre.”

     “Uma história trágica”, disse Qwilleran. “Foi por isso que o pai dela reconstruiu a escada?”

     “Foi; ele arrancou a linda escada em espiral e a substituiu pela escada em ângulo que temos hoje. Quando eu era menina, a porta da torre estava sempre trancada.”

     “Como é que sabe que a escada em espiral era bonita? Tem uma fotografia?”

     “Não... eu apenas sei”, disse misteriosamente.

     “O que aconteceu ao filho de Emmaline?”

     “O capitão Fugtree o criou como se fosse o próprio filho. Era meu pai.”

     “Então Emmaline era sua avó!”

     “Oh, ela era tão linda, Qwill! Gostaria de me parecer com ela.”

     “Eu apreciaria ver um retrato dela.”

     “Todas as fotos foram destruídas depois que ela se matou. A família fingia que ela nunca havia existido.”

     “Então como sabe que era bonita?”

     Kristi abaixou os olhos tristes e demorou a responder. Quando tornou a olhar para cima, o rosto estava radiante. “Não sei se devo lhe contar isto... eu a vejo sempre que há uma tempestade.” Ela esperou para ver a reação de Qwilleran e, quando ele a olhou com simpatia, continuou. “Ela sobe a escada com uma roupa branca esvoaçante, muito devagar, até a torre — e então desaparece... Ela sobe pela escada em espiral que não está mais lá!”

     Qwilleran fitava a neta do fantasma Emmaline e procurava a coisa certa a dizer. Ela tinha-lhe feito um elogio ao confidenciar um segredo pessoal, e ele não queria estragar a história fazendo perguntas indiscretas. Foi salvo pela campainha do telefone.

     Kristi apanhou o fone da cozinha. “Alô?” Então empalideceu, olhando fixamente para a frente como se estivesse paralisada. Depois de ouvir por uns momentos, desligou sem palavras.

     “Problemas?”, perguntou Qwilleran.

     Ela engoliu em seco e disse: “Meu ex-marido. Está de volta à cidade.”

     Sentiu pelo jeito perturbado dela que não haveria mais entrevista nem chá. “Bem”, disse levantando-se, “acho que já vou indo. Foi uma tarde muito instrutiva. Obrigado pela sua cooperação e pelo lanche. Talvez ligue de novo para verificar alguns detalhes. E diga se eu puder fazer qualquer coisa por você.

     Ela acenou com a cabeça e caminhou até a geladeira como uma sonâmbula. “Aqui está um pedaço de queijo para levar para casa”, disse com a voz trêmula. “E não se esqueça de levar a bíblia para o museu.”

     Enquanto percorria a curta distância para a casa Goodwinter, ele tinha outra coisa na cabeça além das cabras. Pensava na história de Emmaline. Kristi era muito emotiva sobre a avó; talvez apenas imaginasse que a via subindo as escadas de roupas brancas esvoaçantes. Gostaria de estar lá na próxima tempestade... Mas o mais sério no momento era o telefonema e a reação aterrorizada de Kristi. Hesitava em se intrometer em seus assuntos pessoais, mas estava preocupado. Ela morava lá sozinha. Podia estar correndo perigo.

     Quando estava a ponto de virar na Alameda do Riacho Negro ouviu uma caminhonete se aproximar pelo oeste e olhou para trás a tempo de divisar um furgão entrando no caminho da casa Fugtree. Logo que chegou ao museu largou o queijo e a bíblia na mesa de jantar e imediatamente discou o número de Kristi. Para seu alívio ela atendeu com voz normal.

     “Aqui é Qwill”, disse. “Esqueci de perguntar quanto leite uma cabra pode produzir num dia.”

   “Black Tulip é minha melhor cabra e dá mil e quatrocentos litros por ano. Sempre calculamos pelo peso do animal, não pelo volume diário.” Ela foi breve e eficiente na resposta. “E pode escrever que ela foi a Grande Campeã na feira do condado.”

     “Ah, sei. Bem, obrigado. Está tudo bem por aí?”

     “Tudo bem.”

     “Aquele telefonema logo antes de eu sair pareceu perturbá-la, e fiquei preocupado.”

     “É muito amável, Qwill, mas meu amigo de Pickax está aqui, e tudo está sob controle.”

     “Ótimo. Então, boa noite”, disse Qwilleran.

     O telefonema teria sido realmente do ex-marido dela? pensou. E quem era esse “amigo” que aparecera subitamente e tudo ficara bem? Voltou para a mesa onde tinha largado as duas doações de Kristi. Yum Yum devorava uma e Koko estava sentado sobre a outra.

 

     Qwilleran tinha suas razões para convidar a sogra de Roger para jantar. Queria saber mais sobre Kristi Fugtree Waffle — não para complementar a entrevista sobre cabras mas para satisfazer a curiosidade — e Mildred Hanstable era a pessoa certa para isso. Tendo residido a vida toda no Condado de Moose, ensinara na escola por quase trinta anos, conhecia duas gerações de estudantes, bem como seus pais e avós, os membros atuais e os anteriores do conselho da escola, os representantes distritais — em suma, todo mundo.

     Quando Qwilleran telefonou para Mooseville, ela disse com sua costumeira efusão: “Qwill! Que bom ouvir sua voz! Roger me contou que você está tomando conta do museu. Foi um choque enorme perder Iris! Ela sempre pareceu tão saudável, não é? Talvez estivesse meio gordinha, mas... ah, meu Deus! Eu também estou! Tenho de entrar já num regime.”

     “Comece seu regime amanhã”, disse. “Está livre para jantar hoje?”

     “Estou sempre livre para jantar. Esse é o meu problema.”

     “Eu a apanho às 6h30, e iremos ao Hotel Aurora Boreal.”

     Qwilleran descongelou um pouco de lagosta para os siameses, imaginando se o hotel à margem do lago em Mooseville ofereceria algo assim tão gostoso. Depois tomou um banho de chuveiro e vestiu algo que considerou recomendável para a ocasião. Quando saía com Polly Duncan, que não era ligada em moda, usava o que estava limpo e à mão. Mildred, por outro lado, ensinava arte e economia doméstica, e sabia apreciar cores, linhas gerais e coordenação. Para Mildred, ele se esforçou mais. Para ela, vestiu um cardigã de pêlo de camelo por cima de uma camisa esporte branca e calças marrons, um conjunto que acentuava o bronzeado adquirido durante os últimos meses em que andara de bicicleta. Admirando-se no espelho de corpo inteiro da sra. Cobb, um luxo que faltava em seu apartamento de Pickax, notou que os tons de bronzeado favoreciam seus cabelos grisalhos e o luxuriante bigode cinzento.

     Satisfeito consigo mesmo, dirigiu o carro pelas colinas e campos cultivados dos Hummock até a margem selvagem e coberta de árvores do lago, experimentando outra vez a milagrosa mudança da atmosfera perto da água. Não era apenas a proximidade de cento e cinqüenta quilômetros de água e de uma frota de barcos pesqueiros; era um elemento indescritível que elevava o espírito e fazia de Mooseville um paraíso de férias.

     Mildred recebeu-o com um abraço platônico. “Você está com uma aparência ótima! E adoro sua combinação de bronzeado e branco!” Ela tinha licença para dar abraços platônicos, sendo não somente a sogra de Roger, como também antiga vizinha de Qwilleran, articulista de alimentos para o Moose County Something e esposa leal de um marido ausente.

     Qwilleran devolveu o cumprimento, admirando seja lá o que fosse que ela estava usando. “Foi você que desenhou, Mildred?”

     “Sim; é para ser um disfarce elegante para uma senhora gorda.”

     “Bobagem! Você é uma bela senhora madura de talhe maduro”, disse num floreio declamatório.

     “Eu sempre adoro sua escolha de palavras, Qwill.”

    A medida que se dirigiam para o centro de Mooseville havia sinais de que o período de férias estava acabando. Encontraram menos tráfego de turistas, menos carros de passeio e pouquíssimos barcos em reboques. As casas de verão já estavam cobertas com placas de madeira para o inverno. Não havia muitos barcos de pesca balançando ao longo dos molhes municipais que bordejavam a Rua Principal, e as gaivotas davam seu último viva à estação.

     “É um pouco triste”, observou Mildred, “mas agradável também. Outubro pertence a nós, e não àqueles turistas barulhentos e arrogantes Lá de Baixo. Felizmente eles deixam seu dinheiro por aqui e ajudam a tocar a nossa economia. Eu só queria que tivessem melhores modos.”

     O Hotel Aurora Boreal era um edifício parecido com um quartel, com três andares de janelas simples em melancólicas fileiras, mas era um marco histórico que tinha servido à comunidade no século XIX, quando os marinheiros e lenhadores — que também não tinham bons modos — freqüentavam o bar e alugavam um quarto por dois tostões.

     Quando Qwilleran e sua convidada sentaram-se à sala de refeições numa mesa perto da janela com vista para as docas, Mildred disse: “Há cem anos as pessoas olhavam por esta mesma janela e viam escunas de três mastros levando passageiros de anquinhas e cartolas, e modernos navios a carvão pegando carregamentos de madeira e minério.” Relanceou os olhos pelo menu. “E há cem anos este hotel servia uma gororoba para os taifeiros e garimpeiros, em vez de pescada grelhada e saladinhas de regime. O que vai pedir, Qwill? Você nunca precisa se preocupar com calorias.”

     “Já que os gatos comeram lagosta hoje, acho que tenho direito a uma sopa de cebolas à francesa, pernas de rã, salada Cesar e torta de abóbora com pecã.”

     “O que os gatos acham de seu novo ambiente?”, perguntou.

     “Aprovaram a bergère de veludo azul, o armário alemão e o parapeito da janela da cozinha. Quanto à cama General Grant, numa pesquisa de opinião, eles votaram ‘indecisos’. Gastronomicamente estão no sétimo céu dos gatos, devorando tudo que há naquele freezer de Iris.”

     “Li sobre o testamento de Iris no jornal de ontem. Ela queria realmente que suas receitas fossem publicadas? Ou você inventou isso? Para mim soou suspeitosamente como um qwilleranismo.”

    “Se você leu no Something, é verdade”, disse.

     “Bem, quando o livro de receitas for publicado, vou querer comprar o primeiro exemplar.”

     “Eu estava esperando que consentisse em ser a editora, Mildred. As receitas precisam ser organizadas e testadas, imagino. Iris era uma dessas cozinheiras despreocupadas — um punhado disto, uma pitada daquilo. Sou voluntário como seu provador oficial.”

     “Será uma honra!”

     “Deixe-me avisá-la: os garranchos dela parecem hieróglifos egípcios.”

     “Depois de corrigir papéis escolares por trinta anos, Qwill, posso ler qualquer coisa.”

     Ele queria interrogá-la sobre Kristi mas achou prudente adiar o assunto até a sobremesa. Parece que sempre que convidava Mildred para jantar, seu motivo era arrancar informações do incrível banco de dados de sua memória, embora tentasse ser sutil quanto a isso. Portanto, perguntou-lhe sobre a nova mostra do museu, a ser brevemente inaugurada. Ela era presidente do comitê da exposição.

     “Está pronta há três semanas”, disse, “mas adiamos a abertura para coincidir com a estação do outono — um tipo de programa duplo, você sabe. O espetáculo é todo sobre as calamidades na história do Condado de Moose. O público gosta de calamidades. Tenho certeza de que sabe disso. A circulação do Daily Fluxion não aumentava sempre depois de um grande desastre de avião ou de um terremoto?”

     “Como é que se comemora uma calamidade numa pequena sala de um museu?”, perguntou.

     “É preciso um certo grau de inventividade, sem falsa modéstia. Estamos cobrindo as paredes com ampliações de fotos, e você não imagina a controvérsia que surgiu. Um membro de nossa comissão, Fran Brodie, para sua informação, encontrou uma foto suspeita nos arquivos do museu, sem informações quanto a origem ou doador, com apenas uma data escrita no verso: 30 de outubro de 1904. Isso lhe lembra algo?”

     “Não foi quando encontraram o corpo de Ephraim Goodwinter?”

     “Uma data que sempre será lembrada nos mexericos dos cafés! Era apenas um instantâneo — uma foto horripilante da Arvore dos Enforcados com (presumivelmente) um corpo balançando numa corda. Fran queria ampliá-la para noventa por um metro. Eu disse que seria puro sensacionalismo. Ela disse que era história local. Eu disse que era de muito mau gosto. Ela disse que era reportagem objetiva. Eu disse que era provavelmente um rolo de tapete amarrado para parecer um corpo.”

     “Por que alguém se daria ao trabalho de fazer isso?”

     “Os que detestavam Ephraim fariam qualquer coisa, Qwill, para ‘provar’ que ele fora linchado por uma turba de homens cobertos de lençóis brancos. Na verdade, o museu tem até um lençol com dois buracos para os olhos feitos a fogo, que dizem ter sido achado perto da Arvore dos Enforcados, em 30 de outubro de 1904, pelo pastor da Velha Igreja de Pedra. Eu suspeito que foi deixado lá para o bom reverendo o encontrar.”

     “Estou detectando um ceticismo em seus comentários, Mildred.”

     “Se quer mesmo saber, sou de opinião que a história do linchamento é um logro. O bilhete suicida de Ephraim está na posse de Junior Goodwinter, e a caligrafia confere. Junior permitiu que fizéssemos uma fotocópia para a mostra. É claro que Fran Brodie — que pode ser muito inconveniente — disse que o bilhete suicida pode ser uma falsificação. De modo que a disputa recomeçou, e Larry teve de intervir para arbitrar. O resultado foi um meio-termo. Vamos chamar o desastre da mina Goodwinter de “Verdade ou Mito?’ com um grande letreiro nesse sentido. E mostrar o pretenso bilhete suicida e a pretensa foto do enforcamento, mas no tamanho atual. Sem ampliações sensacionalistas!”

     “Fico feliz que tenha se mantido firme, Mildred. Você sempre o faz! Fran foi aluna sua?”

     “Foi, há dez anos. E agora, que é decoradora de interiores, gosta de desafiar sua antiga professora. Ela é talentosa — admito — mas sempre foi irritante na escola, e continua irritante.”

     As entradas foram servidas, e Qwilleran perguntou: “Você foi à recepção da Exbridge & Cobb esta tarde?”

     “Foi fabulosa!”, falou. “Você devia ter ido. Serviram champanhe e canapés excelentes. Todas as pessoas importantes compareceram. Todos vestidos para a ocasião. Susan arrasou num modelo original, como sempre; gostaria de ter o corpo daquela mulher. Conheci o filho de Iris; é muito bem-apessoado. E as antigüidades — você nem acredita! Tinham uma cadeira Chippendale por 10 mil dólares! Uma cadeira de canto! E nem tinha braços! E uma cômoda por 90 mil dólares!”

     “Quem é que vai pagar esses preços no Condado de Moose?”

     “Não se engane, Qwill. Há muitas fortunas antigas por aqui. Eles não ostentam, mas as têm — pessoas como o dr. Zeller, Euphonia Gage, dr. Halifax, os Lanspeak e que tal você?”

     “Já lhe expliquei isso antes, Mildred. Não sou do tipo aquisitivo. Se não puder comer ou usar, não compro. Iris e Susan devem ter investido uma fortuna naquela loja.”

     “E verdade”, disse Mildred, “e agora Susan ficou com tudo. Ela realmente teve sorte.” Baixando a voz, continuou: “Não repita, mas — pelo que notei nesta tarde — ela também está de olho no filho de Iris. Acontece que sei que ele deixou o hotel na quinta-feira à noite mas não vai sair da cidade até amanhã. O auditor do hotel é casado com nossa consultora da escola, e eu vi os dois na loja dos Lanspeak hoje.”

     “Eu teria ido à recepção”, disse Qwilleran, “mas estava entrevistando uma moça interessante — Kristi Fugtree.”

     “Lembro-me dela”, disse Mildred. “Freqüentava minhas aulas de arte — uma ótima tecelã. Tinha olhos fascinantes, como uma estrela de cinema que vi mas não consigo me lembrar do nome. Ela casou-se e mudou para longe. Está de volta?”

     “Está de volta e morando na fazenda da família, criando cabras e vendendo o leite.”

     “Bem, isso é diferente, não é mesmo? Kristi sempre foi diferente. Quando os outros estudantes estavam tecendo acrílico e chenille, Kristi tecia palhas de milho e algodãozinho do campo.”

     “Você conhece o sujeito com quem ela se casou? O sobrenome dele era Waffle.”

     “Conhecia-o só de vista e pela reputação e achei que Kristi tinha feito uma má escolha. Ele era um rapaz bonito e popular entre as garotas. Kristi era a única que não corria atrás dele, então naturalmente ele a perseguia. Provavelmente pensava que ela herdaria o dinheiro da família Fugtree. Se ele possuísse algum miolo teria descoberto que a fortuna da família fora jogada fora pelo capitão Fugtree, que era muito benquisto, mas era um esnobe e um mandrião com um enorme ego. Se Kristi está criando cabras, pelo menos tem mais ambição que seu ilustre antepassado.”

     Qwilleran disse: “A casa foi negligenciada por anos, mas é uma jóia arquitetônica.”

     “Especialmente a torre! No meu tempo de solteira, quando costumávamos freqüentar Willoway, podíamos ver a torre acima das árvores e pensávamos que era assombrada.”

     “O que é Willoway?”

     “Você ainda não descobriu Willoway? Está decaindo, Qwill”, disse com um sorriso malicioso. “É uma alameda de namorados sob os salgueiros que crescem às margens do Riacho Negro. A trilha começa na ponte perto do museu e depois vira por trás das propriedades Goodwinter e Fugtree. É muito romântica! Você devia explorá-la, Qwill — com companhia adequada!”

     No domingo de manhã Qwilleran foi explorar Willoway sozinho — embora não tão sozinho como esperava.

     A expedição não foi premeditada. Estivera passeando pelos terrenos do museu com as mãos nos bolsos, respirando profundamente, apreciando a profusão das cores do outono, quando teve a distinta impressão de que estava sendo espionado. Olhou em todas as direções de modo casual, como se estivesse admirando a vista.

     Se tivesse olhado para a casa da fazenda teria descoberto dois pares de olhos intensamente azuis fixados nele, mas isso não lhe ocorreu. Relanceou a vista para o leste descortinando terras da fazenda; ao norte estava o celeiro, sem o furgão de Boswell; para o oeste podia entrever a torre da mansão Fugtree elevando-se acima dos topos das árvores. Talvez, pensou com prazer, Kristi o estivesse observando com binóculos. Era surpreendente, pensou, como podia pressentir isso de tal distância. Alisou o bigode, endireitou os ombros e decidiu explorar Willoway.

     O revigorante dia de outubro estava tão límpido que podia ouvir o som distante dos sinos de igreja em West Mid-dle Hummock, a três milhas dali. Primeiro, subiu a Alameda do Riacho Negro, depois foi para o leste pela Estrada Fugtree até a ponte, onde deslizou pela margem até o riacho. Embora estreito e raso, o regato agitava-se e gorgolejava rapidamente pelas pedras, sob os galhos pendentes dos salgueiros, enquanto a trilha — macia pelas décadas de húmus e agora vistosamente decorada com folhas caídas — estava sombreada pelos bordos e carvalhos.

     Achou o lugar agradavelmente retirado e imaginou se Iris teria descoberto esse ponto tranqüilo. Provavelmente não; ela era uma mulher comprovadamente caseira. Perambulando pela trilha ao longo do rio, ocasionalmente enxergava de relance a torre Fugtree, cujo vulto crescia à medida que se aproximava. Aqui em Willoway, Emmaline e Samson tinham tido seus malfadados encontros.

     Exceto pela água borbulhante estava tudo muito quieto, como costuma ser um dia de outubro, e a trilha úmida de orvalho abafava-lhe os passos. Parou para admirar a cena pitoresca, desejando ter trazido a máquina fotográfica e, de repente, ouviu estalidos nas moitas, seguidos por vozes indistintas. As inflexões sugeriam o ritual do cumprimento, mas não de uma saudação cordial. Eram fragmentos de diálogo que não conseguiu entender.

     Qwilleran moveu-se cautelosamente para. lá. Ao virar uma curva da trilha ocultou-se rapidamente atrás de uma árvore e ouviu. Uma mulher estava falando zangada.

     “Não tenho dinheiro!”

     “Então arrume algum!”, disse um homem ameaçadoramente. “E também preciso de um carro. Estão atrás de mim.”

     “Por que não rouba um? Você parece saber como se faz.” Isto foi seguido por um gritinho de dor. “Não toque em mim, Brent!”

     Qwilleran jogou uma pedra no riacho, e o baque na água deteve o diálogo hostil por alguns segundos.

     “O que foi isso?”, perguntou o homem alarmado.

     “Um peixe... E você não pode ficar em casa, Brent, portanto, tire isso da cabeça.”

     Houve umas lamúrias incoerentes sobre “nenhum lugar para ir”.

     “Volte para o lugar de onde veio, ou aviso a polícia que está aqui!”

     O homem deu uma resposta que pareceu violenta, e Qwilleran atirou outra pedra no riacho.

     “Tem alguém por aqui”, disse o homem.

     “Não tem ninguém aqui, estúpido! E agora vou embora; nunca mais quero vê-lo, nem ouvir falar de você! E estou lhe avisando, Brent: não tente qualquer gracinha. Tenho um revólver em casa!”

     “Kristi, estou com fome.” A voz implorava. “E faz frio à noite.”

     Houve um momento de silêncio. “Vou deixar um pouco de pão e queijo no cepo grande, mas acabou! Volte para Lockmaster e entregue-se.”

   As palavras finais diminuíram quando ela virou as costas. Qwilleran arriscou uma espiada furtiva por trás do tronco de um carvalho e viu-a correndo pela trilha com passos silenciosos. Também viu um homem de jaqueta verde-escura com desenhos estampados nas costas. Então, ao ouvir sons de um zíper e de urina no riacho, Qwilleran voltou-se e procedeu à retirada, subindo a margem até uma estrada de terra de acesso ao fundo da propriedade Goodwinter.

     Seu primeiro ato foi colocar o carro dentro do celeiro de aço e trancar a porta. Depois discou o número de Kristi. A voz dela estava trêmula ao atender.

     “É Qwill de novo,” disse. “Você deve estar pensando por que não peguei todos os dados, mas esqueci de perguntar os nomes dos bodes.”

     “Ah... sim... São Napoleon... e Rasputin... e Attila”, disse.

     “Muito apropriados! Obrigado, Kristi. Está um dia lindo. Como vai tudo aí na fazenda?”

     “Tudo bem.” A resposta dela não foi convincente.

     “Vai haver muito tráfego na Estrada Fugtree esta tarde. O museu está abrindo uma nova exposição. Espero que o movimento não tire o apetite dos animais.”

     “Não vai incomodá-los.”

     “Diga se tiver algum problema, qualquer problema que seja. Está ouvindo?”

     “Estou”, murmurou. “Obrigada.”

     Pouco tranqüilizado pela conversa, Qwilleran vagou a esmo pelo apartamento. Os apuros de Kristi o perturbavam, mas ela dava a impressão de que sua intervenção não era necessária nem desejada. Afinal de contas, Kristi tinha um amigo em Pickax, com uma caminhonete, que parecia estar disponível em emergências. Qwilleran alisou o bigode com os dedos.

     Estava precisando de uma xícara de café forte e de alguma leitura que o distraísse — algo para passar o tempo até as treze horas, quando o museu abriria para o público. Em Pickax estava lendo alto para os gatos Eothen, de Kinglake, e havia três Arnold Bennett de segunda mão que ansiava por começar, mas tinha esquecido de trazer os livros para North Middle Hummock. As revistas da sra. Cobb não eram do seu gosto; aprendera tudo o que tinha de saber sobre louça de barro Rockingham, antigos sopradores de vidro de Massachusetts e diques de Newport. As prateleiras estavam cheias de figurinos, brinquedos de ferro fundido e vidros coloridos. Os poucos livros que havia eram brochuras e ele já os lera pelo menos duas vezes. Não estava a fim de ler E o Vento Levou novamente.

     Seus pensamentos errantes foram interrompidos por um som familiar: thlunk! Depois de novo thlunk! Era o inconfundível ruído de um livro caindo no tapete oriental. Qwilleran podia reconhecê-lo em qualquer lugar. Chegou à sala a tempo de ver Koko esgueirando-se com o corpo e a cauda abaixados, significando traquinagem. Dois livros haviam sido derrubados da prateleira. Qwilleran leu os títulos e foi diretamente para o telefone. Chegara a hora, concluiu, de discutir o comportamento de Koko com uma especialista.

     Havia uma moça em Mooseville que parecia saber tudo sobre gatos. Lori Bamba era também a secretária free lance que lidava com a correspondência de Qwilleran quando as cartas dos fãs eram demasiadas. Discou o número dela, usando o telefone da cozinha e tomando cuidado de fechar a porta. Senão, Koko viraria uma peste. Ele gostava de Lori Bamba e sabia quando ela estava na linha.

     Lori atendeu com aquele jeito alegre que tornava um prazer ouvir a sua voz, e Qwilleran iniciou com as amenidades. “Não a vejo há algum tempo, Lori. Como está o bebê?”

     “Já está engatinhando, Qwill. Nossa gata malhada pensa que é um gatinho e tenta cuidar dele.”

     “E como vai Nick?”

     “Bem, ele ainda não achou um novo emprego. Avise-nos se tiver alguma idéia. Ele tem diploma de engenheiro, você sabe.”

     “Vou fazer isso, mas diga-lhe que não saia até que tenha arrumado outra coisa. E você? Tem tempo para escrever algumas cartas para mim?”

     “Claro que sim! Nick vai para Pickax às quartas-feiras. Ele pode apanhar as coisas aí.”

     “Não estou em Pickax, Lori. Os gatos e eu estamos no apartamento de Iris Cobb, no museu, por algumas semanas.”

     “Oh, Qwill! Que acontecimento terrível, aquele! Sentiremos falta dela.”

     “Todos sentem falta dela, inclusive os siameses.”

     “Como é que eles reagiram a morar num museu?”

     “É por isso que estou ligando, Lori. Alguma coisa está perturbando Koko. A população de pássaros já emigrou para o sul, e ainda assim ele fica sentado à janela durante horas, olhando e esperando. Um dia, quando o levei para a área de exposições, foi direto a um travesseiro estofado de penas, de antes da Primeira Guerra Mundial, e há alguns minutos derrubou dois livros da prateleira: Matar um Tordo e Um Estranho no Ninho.”

     Sem hesitação, Lori perguntou: “Há aves suficientes na dieta dele?”

     “Humm... Temos usado a comida do freezer de Iris”, disse Qwilleran, “e, agora que mencionou, acho que é quase inteiramente de carne e peixe.”

     “Tente servir mais aves”, aconselhou.

     “Certo, Lori, vou fazer isso mesmo.”

     Qwilleran foi em busca dos siameses. De pé no meio do hall central, chamou: “Hei, seus gastrônomos, seja lá onde estiverem! O dr. Purrgood quer que vocês comam mais patinhos, faisões e galinhas da Cornualha!”

     Yum Yum podia ser ouvida arranhando os pedregulhos da sua privada; faziam um barulho característico quando esfregados contra os lados de metal da assadeira de peru. Mas Koko tinha realizado seu famoso ato de desaparecer.

     “Koko, onde você está?”

     O gato tinha um jeito exasperante de se tornar invisível quando a ocasião o pedia, e Qwilleran sempre ficava preocupado quando ele estava fora de suas vistas.

     Yum Yum logo saiu do banheiro andando delicadamente nas pontinhas das patas. Foi diretamente para um dos tapetes orientais da sala. Havia um montículo suspeito no meio dele, que ela farejou ardentemente. O montículo mexeu-se.

     Levantando o tapete, Qwilleran perguntou: “O que há de errado com você, Koko? Será que o termostato está com pouca potência? Está se escondendo de alguma coisa? O que está tentando me dizer?”

     Koko empertigou-se ao máximo, como só um siamês sabe fazer, e saiu arrogantemente da sala.

 

     Os primeiros a chegar ao museu para a abertura da exposição de calamidades foram os membros da Sociedade Histórica, muito bem vestidos em suas roupas domingueiras: os homens de terno e gravata e as mulheres de saia e salto alto. Mitch Ogilvie, na qualidade de diretor do tráfego, instruía-os a deixar os idosos e enfermos na entrada do museu e depois estacionar o carro no pátio, deixando os parquímetros usuais para o público. Esperava-se grande afluência, devido ao artigo na primeira página do Moose County Something:

MUSEU GOODWINTER REABRE APRESENTANDO GRANDES CALAMIDADES

   O Museu da Casa de Fazenda Goodwinter em North Middle Hummock vai reassumir seu horário normal no domingo com uma nova exposição apresentando fatos memoráveis da história do Condado de Moose. O museu esteve fechado por uma semana, após a morte de Iris Cobb Hackpole, administradora residente. A nova mostra expõe fotografias e artefatos dos tempos da exploração madeireira, navegação e mineração, segundo a porta-voz Carol Lanspeak. Murais de fotos exibem visões dramáticas de naufrágios, incêndios florestais, desastres em minas, congestionamento de troncos e outros acidentes, inclusive um “desastre” em 1919 quando o xerife derramou galões de bebida alcoólica de contrabando no depósito de lixo de Squunk Corners. Há uma vinheta de grande interesse, conta Lanspeak, intitulada “Verdade ou Mito?”, explorando a controvertida morte de Ephraim Goodwinter, em 1904. “A Fazenda Goodwinter e região circunjacente estão no auge do brilho outonal”, disse Lanspeak. “O show de cores torna uma excursão aos Hummock duplamente agradável.” Horário normal das treze às dezesseis horas, de sexta a domingo. Atendem-se grupos com hora marcada.

     À uma da tarde Qwilleran vestiu-se para a ocasião, envergando uma nova gravata de lã escocesa que Scottie o tinha convencido a comprar enrolando os erres. Com a bíblia de Kristi debaixo do braço dirigiu-se diretamente ao escritório do museu, onde Larry estava martelando as teclas do computador.

     “Como vão as coisas, Larry?”

     “A boa propaganda sempre dá resultado”, disse o presidente. “O que é isso sob seu braço? Está planejando fazer um sermão?”

     “É uma bíblia doada pela moça da Fazenda Fugtree. O que devo fazer com ela?”

     “É a bíblia da família Fugtree?”

     “Não, apenas algo que a mãe dela comprou num leilão.”

     “Que pena. Bem, escreva o nome da doadora neste cartão e deixe a bíblia na mesa de catalogação. O arquivista se encarregará dela.”

     “Teve alguma sorte, Larry, em achar um sucessor para Iris?”

     “Tivemos algumas propostas. Iris, como sabe, não aceitava um tostão, mas estamos preparados para pagar um salário decente mais o apartamento com tudo dentro. Mitch Ogilvie candidatou-se ao emprego. Gosta de antigüidades, e Deus sabe como é animado, mas é muito jovem, e os jovens ficam por um ano e depois decolam para pastagens mais verdes. Susan acha que Vince Boswell seria bom. Ele costumava dirigir leilões de antigüidades Lá Embaixo, e é hábil com ferramentas. Poderia fazer os pequenos reparos que agora estamos tendo de pagar.”

     “Em minha opinião”, disse Qwilleran, “Mitch tem a personalidade mais adequada para a posição. Como trabalha na recepção do hotel, está acostumado a lidar com as pessoas, e já observei que se dá bem com os mais velhos. Boswell é muito ruidoso e espalhafatoso. Ele afasta as pessoas. Além disso, o apartamento do administrador não é grande o bastante para uma família de três.”

     Larry relanceou os olhos pelo escritório antes de responder. “Na verdade, Verona não é mulher dele. Se lhe dermos o emprego ele vai embarcá-la e à criança de volta para Pittsburgh.”

     “O que aconteceu à perna dele?”

     “Poliomielite. Foi há muito tempo, antes de existir a vacina. Considerando que ele tem dores, porta-se muito bem.”

     “Humm... que pena”, murmurou Qwilleran. “Mas Mitch, pelo menos, tem as unhas limpas.”

     Larry deu de ombros. “Bem... você sabe... Vince está fazendo todo o trabalho sujo no celeiro. Algumas daquelas impressoras estão imundas com um montão de tinta e graxa.”

     Qwilleran preencheu o cartão de doação e depois perguntou: “O que vai acontecer aqui quando começar a nevar?”

     “Removeremos a neve do Riacho Negro com um limpa-neve, e o condado cuidará da Estrada Fugtree. Sem problemas.”

     “Alguém visita o museu no inverno?”

     “Certamente! Programamos ônibus de estudantes, de idosos e de clubes femininos, e encenamos eventos especiais para o dia de Ação de Graças, de Natal, dos Namorados e assim por diante. No Dia das Bruxas temos um churrasco de marshmallow para as crianças, e Mitch Ogilvie conta histórias de fantasmas. E a neve torna este lugar realmente lindo.”

     “Por falar nisso, você deveria pensar em colocar um timer nas luzes do “pátio, para que acendam automaticamente ao escurecer. E também em uma ou duas luzes dentro da casa, por razões de segurança.”

     “Boa idéia”, disse Larry, tirando do bolso um caderninho e fazendo uma anotação.

     “Outro assunto para o qual quero chamar sua atenção é a concessão de terra assinada por ‘Abraham Lincoln’ na mostra de documentos.”

     “É o documento mais valioso que temos”, disse Larry orgulhosamente.

     “Só que não foi realmente assinado por Lincoln.”

     “Quer dizer que é uma falsificação? Como sabe?”

     “Eu não suspeitaria de intenção criminosa. Acho que houve milhares de certidões emitidas, e o Secretário Seward foi autorizado a assinar pelo presidente. Ele o fazia com um floreio. A assinatura de Lincoln era pequena e regular, e ele não escrevia seu primeiro nome.”

     “Ainda bem que me contou, Qwill. Vou colocar esta informação no cartão de registro.” De novo apareceu o livrinho de notas. “O valor do documento acaba de cair alguns milhares de dólares, mas obrigado assim mesmo, meu chapa.”

     Nesse momento, Carol Lanspeak entrou correndo no escritório. “Desapareceu um objeto da exposição, Larry”, disse. “Venha ver!”

     Carol saiu depressa, com o marido logo atrás. Qwilleran seguiu-os mas foi interceptado a cada passo do caminho. Mildred Hanstable e Fran Brodie, tagarelando juntas como se fossem grandes amigas, pararam-no para comentar sobre sua gravata escocesa.

    Mildred disse a Fran: “Como é que ele se mantém tão esbelto?”

     Fran a Mildred: “Como é que ele se mantém tão jovem?”

     “Permanecendo sóbrio e solteiro”, aconselhou Qwilleran, antes de seguir adiante.

     Susan Exbridge sussurrou-lhe ao ouvido: “Uma boa notícia! Dennis Hough fez uma oferta para a propriedade Fitch. Ele vai abrir um negócio de construção aqui.”

     A má notícia, pensou Qwilleran, é que ele vai trazer a mulher.

     Em seguida, Homer Tibbitt e Rhoda Finney se aproximaram dele, e Homer disse em sua voz aguda: “Você queria falar comigo? Nós fomos a Lockmaster para assistir às corridas de cavalo e arrumar o aparelho de surdez dela, e enquanto estávamos lá nos casamos para não perdermos tempo.”

     “Já tínhamos a licença há tempos, mas ele é muito atrapalhado”, disse a nova sra. Tibbitt, sorrindo ternamente para o marido.

     Qwilleran estendeu as felicitações e comprimiu-se no meio da multidão, cuja maioria tentava entrar na sala apinhada que mostrava as calamidades.

     Polly Duncan puxou-lhe a manga e disse num meio sussurro: “Tenho um grande favor a lhe pedir, Qwill.”

     “Faço qualquer coisa”, disse, “menos tomar conta de um gatinho de setecentos gramas.”

     Em tom de censura, disse: “Era exatamente o que eu ia lhe pedir. Há um seminário em Lockmaster, e eu esperava poder deixar Bootsie com você por uma noite.”

     “Humm”, refletiu, procurando alguma boa razão para recusar. “Será que dois gatos adultos com vozes agudas não o assustariam?”

     “Duvido. Ele é um sujeitinho bem ajustado. Nada o aborrece.”

     “Yum Yum pode pensar que ele é um ratinho.”

     “Ela é muito inteligente para isso. Ele não vai dar qualquer trabalho, Qwill, e você vai gostar dele tanto quanto eu gosto.”

     “Bem... vou tentar... mas se ele espera que eu vá lhe fazer carinhos, está redondamente enganado.”

     Qwilleran abriu caminho na crescente multidão, notando a presença do advogado Hasselrich e esposa, dr. Zoller e sua loura mais recente, Arch Riker e a graciosa Amanda, os Boswell com Baby, e muitos políticos cujos nomes estariam nas cédulas eleitorais de novembro. A voz de Vince Boswell podia ser ouvida acima de todas. “Será que vão servir refrescos? Iris costumava fazer uns bolinhos danados de bons!”

     Qwilleran acabou chegando à exposição de calamidades. Como Mildred havia dito, o impacto dramático fora criado com os murais de fotos. Mostravam o congestionamento de troncos de 1892 que ceifou nove vidas, o incêndio de 1898 que destruiu a cidade de Sawdust, o naufrágio de uma escuna de três mastros na tempestade de 1901 e outras calamidades da história do Condado de Moose, mas a mostra dominante era a vinheta “Verdade ou Mito?”, que revivia antigas questões sobre o misterioso fim de Ephraim Goodwinter.

     A história da explosão da mina e suas conseqüências estava apresentada graficamente sem comentários. As ampliações de fotos e recortes de jornais haviam sido agrupadas sob quatro datas:

     13 de maio de 1904 — Foto da equipe de socorro da mina Goodwinter. Manchetes Lá de Baixo dizem: 32 MORTOS EM EXPLOSÃO DE MINA.

     18 de maio de 1904 — Foto de viúvas e crianças chorosas. Trecho do Pickax Picayune daquela data: “O sr. e a sra. Ephraim Goodwinter e a família viajaram hoje e vão passar vários meses fora.”

     25 de agosto de 1904 — Arquiteto entrega projeto de edifício para biblioteca. Reportagem de destaque do Picayune: A cidade logo terá uma biblioteca pública, graças à prodigalidade do sr. Ephraim Goodwinter, proprietário e editor deste jornal.”

     2 de novembro de 1904 — Foto da procissão do funeral de Ephraim. Reportagem do Picayune: Os pranteadores acompanharam os restos mortais do falecido Ephraim Goodwinter até a sepultura, na mais longa procissão de enterro já registrada. O sr. Goodwinter faleceu subitamente na terça-feira.”

     Intercalados às fotos ampliadas e recortes havia capacetes de mineiros, picaretas e marretas — até uma marmita de mineiro com uma referência aos pastelões de carne e batata que eles tradicionalmente levavam para o poço da mina. Um retrato do carrancudo filantropo mostrava o rasgo de faca que recebera quando ficou em exposição no vestíbulo da biblioteca pública. Um instantâneo impreciso da Arvore dos Enforcados com sua carga medonha fora marcado como “não identificado”. Havia também uma fotocópia do pretenso bilhete suicida, numa caligrafia extraordinariamente similar à de A. Lincoln. Uma urna convidava os visitantes a votar: “Suicídio ou Assassinato”?

     O cotovelo de Qwilleran foi puxado por Hixie Rice, gerente de publicidade do Moose County Something. “Há uma mensagem nisso”, disse. “Ephraim precisava é de um bom supervisor de relações públicas.”

     “O que ele precisava”, disse Qwilleran, “era de um pouco de bom senso.”

     Ele voltou passando pela multidão e encontrou os Lanspeak no escritório. “Você disse que uma coisa tinha desaparecido. O que foi?”

     “O lençol”, disse Carol.

     “Que lençol?”

     “Nós tínhamos exposto um lençol branco que o reverendo, sr. Crawbanks, achara perto da Arvore dos Enforcados depois da morte de Ephraim.”

     “Quer dizer que alguém o roubou?”, perguntou Qwilleran.

Larry disse gravemente: “É o primeiro roubo em nosso espaço de exposições, e temos algumas coisas bem valiosas em exibição. Obviamente temos um biruta entre nós. E sabemos que foi alguém de dentro, porque o lençol já estava faltando quando as portas se abriram para o público, às treze horas. Não é uma grande perda. O lençol era de valor duvidoso, mesmo como objeto histórico. Mas não gosto da idéia de termos um gatuno entre o pessoal.”

     Qwilleran perguntou: “Quantas pessoas têm as chaves do museu? Homer me disse que vocês têm setenta e cinco voluntários.”

     “Ninguém tem chave. Os voluntários entram com a chave oficial que fica escondida na varanda da frente.”

     “Escondida onde? Sob o capacho?”

     “Sob a cesta de milho indígena que fica pendurada acima da campainha”, disse Carol.

     “Sempre consideramos nosso pessoal de toda a confiança”, disse Larry.

     Qwilleran desculpou-se e foi à procura da presidente da exposição. Encontrou Mildred conversando com Verona Boswell, que estava dizendo: “Baby falava frases completas quando tinha oito meses de idade.” Ela segurava a mão da garotinha de casaco azul de veludo e chapéu.

     “Com licença, sra. Boswell”, disse Qwilleran. “Posso pedir emprestada a sra. Hanstable para me explicar uma das exibições?”

     “Mas é claro... Baby, sabe quem é este? Diga alô para o sr. Qwilleran.”

     “Alô!”, disse ela.

     “Alô”, replicou Qwill com mais amabilidade que o usual.

     Guiou Mildred para a sala deserta dos têxteis. “É um lugar tranqüilo para conversarmos”, explicou. “Ainda não vi qualquer visitante olhar esta mostra medonha.”

     “É sinistra, não é?”, concordou. “Tentamos animá-la com cenários coloridos e passamos cordões nela toda para parecer importante, mas todo mundo gostou dos cordões de veludo vermelho e detestou os têxteis. O que houve, Qwill?”

     “Gostaria de cumprimentá-la pela exposição das calamidades. Está atraindo muita atenção.”

     “Eu agradeço a você, e Fran Brodie também. Vai ser interessante ver o resultado da votação.”

     “Você examinou a exposição hoje?”

     “Não consegui chegar nem perto. Gente demais. Alguém fez outra investida contra o retrato de Ephraim?”

     “Não, Mildred, alguém levou o lençol do reverendo sr. Crawbanks.”

     “Verdade? Não está brincando comigo, está?”

     “Carol descobriu que estava faltando. Ela e Larry estão surpresos, para dizer o mínimo. Não têm a menor idéia de quem poderia tê-lo surrupiado. Você tem?”

     “Qwill”, disse, “eu não pretendo entender qualquer coisa que acontece na sociedade de hoje. Por que não pergunta ao policial Koko? Ele é mais esperto que qualquer um de nós.”

     “Por falar em Koko”, disse, “gostaria que você olhasse aquele travesseiro Inchpot. Vê alguma coisa de extraordinário nele?”

     Ela estudou o travesseiro cuidadosamente. “Só que foi mexido.” Ela pulou o cordão de veludo, afofou o travesseiro a arrumou-o com mais arte. “Pronto! ficou melhor?”

     “É uma ocorrência normal que objetos expostos sejam mexidos?”

     “Bem... não. Os voluntários têm ordem de nunca mexer nas exposições. Por que pergunta?”

     Ele abaixou a voz. “Eu trouxe Koko aqui há uns dias, e ele veio direto para este travesseiro e farejou-o. Não queria largar e tive de literalmente expulsá-lo do museu. E não me diga que está estofado com penas de galinha, porque o travesseiro da Fazenda Trevelyan também está, e ele ignorou-o totalmente.”

     “Vamos ver o que diz o cartão de identificação”, disse Mildred, pulando de novo o cordão e apanhando a etiqueta escrita à mão. “Foi usado na Fazenda Inchpot antes da Primeira Grande Guerra... a capa é um saco de farinha alvejado... está estofado com penas de galinha dos galinheiros de Inchpot... Foi doado por Adeline Inchpot Crowe.”

     “Você disse Crow?”

     “Com um e no final.”

     “Vamos sair daqui, Mildred. Essas penas de galinha de setenta e cinco anos me dão um acesso agudo de depressão. Você gostaria de dar uma vista de olhos no livro de receitas de Iris, já que está aqui?”

     Qwilleran passou pela contramão no meio das pessoas e sugeriu uma xícara de café quando entraram na cozinha da ala oeste.

     “Ou quem sabe outra coisinha”, disse Mildred maliciosamente. “Multidões me deixam nervosa, a menos que eu tenha um copo na mão.”

     “Vou ver o que posso achar. Iris não tinha um bar bem sortido.”

     “Qualquer coisa serve, se fizer um barulhinho.”

     Qwilleran começou a chocalhar cubos de gelo. “O livro de receitas está na escrivaninha sob o telefone. Levante a tampa... Encontrei xerez seco, Dubonnet e Campari. O que você quer?”

     Não houve resposta.

     “Achou?”, perguntou. “E só um caderno de folhas soltas, misturado com um montão de recortes e pedaços de papel.”

     Mildred estava debruçada sobre a escrivaninha. “Não está aqui.”

     “Tem de estar aí! Eu o vi alguns dias atrás.”

     “Não está aqui”, insistiu. “Venha ver.”

     Qwilleran correu e olhou sobre os ombros dela. “Onde poderia ter ido parar?”

     “Os gatos roubaram”, disse Mildred maliciosamente. “Koko levantou a tampa, e Yum Yum o apanhou com sua famosa pata.”

     “Improvável. Eles são gatunos, mas um caderno de folhas soltas de cinco centímetros de espessura está fora de sua capacidade.”

     “Você deve tê-lo extraviado.”

     “Eu examinei a caligrafia por dez segundos e em seguida recoloquei-o na escrivaninha. Alguém entrou aqui e roubou-o — alguém que sabia onde Iris o guardava. Ela convidou alguma vez o pessoal do museu para tomar café ou outra coisa?”

     “Sim, muitas vezes, mas...”

     “Não há tranca na porta entre o museu e o apartamento. Alguém teve três dias para fazer o serviço. Estive fora todos os dias. Temos de pôr uma tranca naquela porta! O que impediria alguém de entrar e roubar os gatos?” Ele parou e olhou ao redor. “Onde estão eles? Ficam sempre na cozinha. Não os vi. Onde estão eles?”

 

     Depois que os siameses foram encontrados adormecidos sobre uma toalha rosa no banheiro (isolado do tumulto do museu), após Mildred terminar seu Campari e a multidão ter diminuído, Qwilleran foi à procura de Larry Lanspeak. O presidente estava no escritório conferenciando com alguns diretores do museu.

     “Entre, Qwill”, disse Larry. “Estávamos discutindo o incidente do lençol desaparecido.”

     “Pois agora podem discutir o incidente do livro de receitas desaparecido”, disse Qwilleran. “A coleção de receitas de Iris desapareceu de sua escrivaninha.”

     “O livro de receitas, eu até posso entender”, disse Susan, “mas quem levaria um lençol com furos?”

Carol sugeriu colocar um grande anúncio no quadro de avisos dos voluntários. “Poderíamos dizer: ‘Os voluntários que tomaram emprestado o lençol da exposição de calamidades e o livro de receitas da escrivaninha de Iris Cobb, queiram por favor devolvê-los imediatamente ao escritório do museu. Não faremos perguntas.’ Que tal lhes parece isto?”

     Qwilleran disse: “Chegou a hora de instalar uma tranca na porta de ligação entre o museu e o apartamento do administrador, Iris tinha uma grande quantidade de valiosos objetos de coleção — artigos pequenos, fáceis de apanhar. Algumas pessoas que não roubariam dos vivos pensam que não há nada demais em roubar dos mortos. E um costume primitivo, praticado há séculos.”

     “Mas não por aqui”, disse Susan.

    “Como sabe? Os mortos nunca informam à polícia. O Condado de Moose pode ter computadores e aviões particulares, mas há muitas crenças primitivas. Fantasmas, por exemplo. Estou sempre ouvindo que Ephraim anda através das paredes de vez em quando.”

     Larry sorriu. “É uma piada popular, Qwill, apenas algo para se conversar entre dois goles de café.” Estendeu a mão para o telefone, ao mesmo tempo que olhava o relógio. “Vou ligar para Homer sobre a tranca. Espero que ainda esteja de pé. São apenas cinco e meia, mas ele se deita cada dia mais cedo.”

     “A nova mulher vai mudar os hábitos dele”, disse Qwilleran. “É muito ardente!”

     “É”, disse Larry com um risinho, “devem estar sentadinhos assistindo à televisão até as oito da noite... Por que estamos rindo? Quando tivermos a idade de Homer, nem estaremos aqui!” Completou a chamada e disse que Homer traria um serralheiro de manhã cedo, antes de qualquer outra coisa.

     Qwilleran disse: “Tenho outra sugestão a fazer, sobre trancas e objetos de valor. Iris tinha muitos papéis particulares na escrivaninha da sala. Deviam ser empacotados, fechados e entregues ao filho.”

     “Terei prazer em fazê-lo”, disse Susan. “Vou encontrar-me com Dennis esta semana.”

     Qwilleran olhou-a sem expressão e depois virou-se para Larry.

     O presidente disse: “Proponho que o façamos imediatamente. Você, Susan, Qwill e eu podemos nos encarregar disso. Que tamanho de caixa vamos precisar?”

     Os três encaminharam-se para a ala oeste, carregando uma caixa de papelão, fita adesiva e um marcador de feltro. Koko e Yum Yum os receberam à porta.

     “Olá, gatos”, disse Larry jovialmente.

     Os siameses seguiram-nos até a sala, onde a escrivaninha ocupava um lugar de destaque.

     “É a escrivaninha mais feia que já vi”, comentou Qwilleran. Era basicamente uma caixa achatada, com uma gaveta e uma superfície deslizante para escrever, empoleirada sobre pernas compridas e encimada por um armário.

     “Esta é uma Dingleberry original feita a mão, de 1890”, informou-o Larry. “Iris comprou-a no leilão Goodwinter. Eu estava dando lances contra ela, mas caí fora quando chegaram a quatro algarismos.”

     Por trás das portas do armário havia caixas de sapato rotuladas com grandes letras de fôrma feitas com um marcador de feltro: Faturas, Cartas, Financeira, Médica, Seguros e Pessoal. Na gaveta havia as costumeiras canetas, tesouras, clipes de papel, elásticos, blocos de memorando e uma lupa.

     Qwilleran disse: “Ela deixava lupas por toda a casa. Até usava uma pendurada no pescoço.”

    “Muito bem”, disse Larry. “Vamos trancar isto no escritório do museu e fazer Dennis assinar um recibo quando vier.”

     “Boa idéia”, disse Qwilleran.

     Susan não disse nada. Parecia estar emburrada. Ao saírem da sala, tropeçou num tapete. Qwilleran amparou-a, “Desculpe-me”, disse. “Há um gato sob o tapete. E a segunda vez que ele se esconde sob um tapete oriental.”

     “Tem bom gosto”, disse Larry. “Eles são antigüidades, artigos de museu.”

     “Existe mais alguma armadilha por aqui?”, disse Susan irritada, enquanto seguia Larry de volta ao museu.

     Qwilleran descongelou um pedaço de “frango à Ia king” para os siameses, que o devoraram sofregamente, evitando com cuidado o pimentão e as lasquinhas de amêndoas. Observava distraidamente o ritual, pensando no lençol desaparecido, no livro de receitas roubado e na ânsia de Susan para colocar as mãos nos documentos particulares de Iris Cobb.

     Algo havia acontecido a Susan Exbridge depois que o marido se divorciara dela por outra mulher. Enquanto esposa de um empresário de sucesso, fora membro ativo de clube, servindo na diretoria de todas as organizações e trabalhando diligentemente para o bem comum. Desde aquele golpe no seu ego, ela se concentrara em trabalhar para si mesma. De certo modo tinha razão. Conforme os boatos de Pickax, o ex-marido tinha manobrado o acordo do divórcio de tal modo que Susan ficara rica no papel mas desprovida de dinheiro, e se liquidasse as ações teria de pagar uma enorme parcela de imposto.

     Os boatos também diziam que noventa por cento do empreendimento Exbridge & Cobb fora financiado por Iris. Se verdadeiros, refletiu Qwilleran, a herança de Susan era considerável. Admitindo que as duas mulheres fossem boas amigas além de sócias nos negócios, mesmo assim era uma situação que despertava as suspeitas de Qwilleran. Não poderia existir um par de amigas mais improvável. Iris não era chique, sofisticada nem desembaraçada; no entanto, Susan tinha-a engolfado com sua amizade e Iris ficara lisonjeada em ser acolhida por uma mulher como Susan, de modos, roupas e relações sociais tão distintos.

     Irritava Qwilleran pensar que Iris Cobb fora usada; afinal eram de Iris os conhecimentos e o dinheiro que haviam estabelecido a nova loja de antigüidades. Irritava-o também ver Susan tentar conquistar Dennis Hough, que tinha uma esposa e um filho pequeno, além do grosso da fortuna Cobb-Hackpole.

     Descarregou o ressentimento preparando um sanduíche, usando pão de centeio com alcaravia de um congelador, carne de outro e mostarda e raiz forte da geladeira. Os siameses olhavam-no comer, e repartiu a carne com eles. “O espírito da sra. Cobb ainda está entre nós”, disse-lhes.

     Era verdade. A presença dela era palpável, invocada pela comida que cozinhara, a cozinha acolhedora, o gosto por antigüidades, as toalhas e os lençóis rosa e até as revistas e os romances. A qualquer momento ela poderia entrar na sala e dizer: “sr. Qwilleran, gostaria de um dos meus biscoitinhos de chocolate e coco?”

     Olhou por cima do sanduíche e quase pensou que podia vê-la. Seria esta a presença invisível que absorvia Koko em conversas?

     Qwilleran ergueu-se num pulo e saiu, andando rapidamente pelas cercanias para recobrar um pouco de paz.

     Era domingo à noite. Na semana tinha estado ouvindo Otelo quando o telefonema desesperado da sra. Cobb interrompera o primeiro ato. Desde então, tinha feito mais duas tentativas para ouvir a ópera completa. Tentaria de novo. As noites de domingo normalmente eram tranqüilas no condado, e era pouco provável que alguém telefonasse. Por um momento pensou em silenciar os dois telefones, mas a comunicação era sua vida e a idéia de perder, de propósito, uma chamada lhe pareceu um lapso moral.

     Com uma caneca de café à mão e os dois gatos na bergère de veludo azul, a cena confortável estava montada. Apertou o botão play. De novo o clangor das cordas da abertura expulsaram os gatos da sala, mas eles voltaram e agüentaram as trombetas, embora com as orelhas deitadas para trás.

     Tudo foi bem até o terceiro ato e a ária que Polly chamava de magnífica. Justamente quando Otelo começou o pungente Dio! mi potevi... o telefone soou. Qwilleran tentou ignorá-lo, mas a campainha insistente estragou a música. Mesmo assim, estava determinado a deixar que tocasse até desistir. Aumentou o volume. O tenor agonizava e o telefone tocava. Qwilleran cerrou os dentes. Dez toques... quinze... vinte! Então ocorreu-lhe que só uma pessoa desesperada persistiria por tanto tempo, só alguém que sabia que ele estava em casa. Abaixou o volume e dirigiu-se ao telefone do quarto.

     “Alô?”, disse apreensivo.

     “Qwill, aqui é Kristi”, disse uma voz nervosa. “Não escreva o artigo sobre minhas cabras.”

     “Por que não, Kristi?”

     “Alguma coisa terrível aconteceu. Oito delas estão mortas, e as outras estão morrendo.”

     “Meu Deus! O que aconteceu?”

     “Eu as alimentei às cinco horas e estavam bem. Duas horas depois voltei lá e três estavam mortas.” A voz dela estava embargada. “O resto estava lutando para respirar, e uma delas caiu bem aos meus pés. Não posso — não posso...” As palavras viraram soluços.

     A compaixão subiu à garganta de Qwilleran enquanto seus pensamentos voaram para Koko e Yum Yum. Sabia como os animais podem ser preciosos. “Calma, Kristi”, disse. “Calma! O que você fez?”

     Ela soluçou por uns momentos e fungou ruidosamente antes de dizer: “Chamei o número de emergência do veterinário, e ele veio imediatamente, mas a essa hora todos os cabritinhos já estavam mortos e a maioria das cabras também.” Ela engasgou de novo.

     Ele esperou pacientemente que se recobrasse.

     “Os bodes estão bem”, disse. “Estavam num cercado separado.”

     “O veterinário disse que foi veneno — provavelmente inseticida no alimento. Seus pulmões...”, ela parou e chorou de novo. “Seus pulmões se encheram de fluido, e elas sufocaram. O veterinário está enviando amostras para o laboratório. Isto é mais do que eu posso agüentar! Todo o rebanho!”

     “Como é possível ter acontecido?”

     “A polícia chamou de vandalismo.”

     Qwilleran sentiu uma sensação de formigamento no lábio superior e sabia a resposta para a pergunta seguinte. “Você tem alguma idéia de quem cometeu esse crime inconcebível?”

     “Eu sei quem foi!” O desgosto dela deu lugar à raiva. “O idiota estúpido com quem eu era casada!”

     “Disse isso à polícia?”

     “Disse. Ele está sendo procurado desde que fugiu de uma prisão em Lockmaster. Ele pensou que poderia esconder-se aqui, ou que eu lhe daria dinheiro e um carro. Eu lhe disse que estava louco. Eu não queria nada com ele! Ah, por que não o entreguei?” gritou, terminando com um gemido de cortar o coração.

     “É revoltante, Kristi! Você tinha alguma idéia de que ele iria sabotar a fazenda?”

     “Ele me ameaçou esta manhã, e eu o avisei que tinha um revólver. Não esperava algo assim. Poderia matá-lo! Não é só a perda de dois anos de trabalho, mas... todos aqueles animais tão dóceis! Buttercup... Geranium... Black Tulip! Eram tão queridas!”, disse num gemido.

     “Gostaria de poder fazer algo. Há alguma coisa que possa fazer?”

     “Não há qualquer coisa que alguém possa fazer”, suspirou. “Apenas não escreva o artigo. O envenenamento vai estar no jornal amanhã. Um dos repórteres me telefonou.”

     “Telefone para mim, Kristi, se houver qualquer contratempo, não importa o quê.”

   “Obrigado, Qwill. Boa noite.”

     Qwilleran desligou o toca-fitas. Tinha ouvido tragédias demais para uma noite.

     Na segunda-feira cedo, o telefone começou a tocar, quando os boateiros entraram em ação. Mildred Hanstable, Polly Duncan, Larry Lanspeak e outros telefonaram para dizer: “Você ouviu as notícias hoje de manhã?... Sabe o que aconteceu à sua vizinha?... Não era essa mulher que você ia entrevistar?... O conselho de saúde retirou do mercado todos os produtos de cabras... Eles acham que foi veneno.”

     Foi um começo abrupto para outro dia ocupado. Mesmo antes de ter preparado a primeira xícara de café, Qwilleran viu o sr. e a sra. Tibbitt chegarem no seu pesado carro, seguidos de perto pelo caminhão Conserta-Tudo de Al. Este era o sistema aceito no Condado de Moose; os trabalhadores sempre chegavam seis horas atrasados, ou então antes do café da manhã. Qwilleran saudou-os de mau humor.

     “Vou tirar um pouco o pó”, anunciou Rhoda.

     “Vou tomar uma xícara de café”, disse Homer.

     “Quer juntar-se a mim?”, perguntou Qwilleran, acenando com a caneca de café.

     “Não, obrigado. Vou fazer uma xícara com minha própria mistura no escritório.” Homer bateu no bolso dos quadris e manobrou rapidamente os membros angulosos na direção do escritório.

     Grande sujeito! pensou Qwilleran. Engoliu café e um bolinho enquanto o serralheiro trabalhava na porta e depois juntou-se a Tibbitt no escritório do museu.

     “Alguém furtou meu espanador”, queixou-se Rhoda.

     “Fui eu!”, disse o marido. “Joguei-o no lixo. Use um pano de pó como todo mundo. Borrife-o com aquele negócio que dizem que pega poeira.”

     “Uma vez diretor, sempre diretor”, ela explicou a Qwilleran. “Ele gosta de mandar.” Tirou um pano de pó do armário de limpeza e saiu do escritório, sacudindo-o temperamentalmente nas cadeiras e armários de arquivo, ao passar.

     Qwilleran disse a Homer: “Alguém me disse que não existe serralheiro no Condado de Moose porque não há trancas. Então quem é o sujeito que está trabalhando na minha porta?”

     “Um serralheiro morreria de fome por estas bandas”, disse Homer, “mas esse cara conserta geladeiras, fonógrafos, máquinas de escrever — qualquer coisa. Por que quer uma tranca entre você e o museu? O velho Ephraim o tem importunado? Uma porta não o deterá, você sabe. Nem mesmo uma parede de pedra.”

     “Não me preocupo com vagabundos mortos”, disse Qwilleran. “Preocupo-me com os vivos.”

     “O Dia das Bruxas está chegando e pode esperar alguns moleques. Quando eu era rapaz costumávamos assombrar as casas nessa época, especialmente se era alguém que detestávamos, como um professor severo ou o sovina da cidade.”

     “Como é que se assombra uma. casa? Isso não estava no nosso repertório de brincadeiras em Chicago, onde cresci.”

     “Se bem me lembro”, disse o velho, “você crava um prego grande ou algo assim sob uma tábua solta do lado de fora da casa, com um barbante comprido amarrado. Então, estica bem o barbante e passa uma vareta por ele como se tocasse um violino. Reverbera por toda a casa. Gritos no sótão! Gemidos nas paredes! Duvido que funcione com o chão de madeira compensada que se usa hoje em dia. Estão eliminando todos os pequenos prazeres da vida. Tudo é sintético, até nosso alimento.”

     “Um dos pequenos prazeres da vida, imagino, era escrever as iniciais nas escrivaninhas das escolas”, disse Qwilleran. “A mesa de telefone da sra. Cobb é uma antiga escrivaninha com as iniciais H. T gravadas na tampa. Você saberia algo a respeito?”

     “No canto de baixo à direita? É a minha escrivaninha!” Homer exultava. “Veio da velha escola de Riacho Negro. A professora me deu umas vergastadas por escrever aquela pequena obra de arte. Se eu fosse esperto teria escrito as iniciais de outra pessoa. Adam Dingleberry usara aquela escrivaninha antes de mim — e gravou as iniciais do filho do pastor. Tinha um senso de humor meio doido. Ainda tem! Foi expulso da escola por pregar peças. Ninguém lhe dava muito crédito por originalidade e criatividade. Existem outras iniciais na escrivaninha?”

     “Várias. Lembro-me de B. O. Imagino que essas letras não tenham qualquer significado hoje em dia.”

     “Era o avô de Mitch, Bruce Ogilvie. Ele veio depois de mim. Ganhava todas as maratonas ortográficas de olhos fechados — não conseguia soletrar com eles abertos.”

     Qwilleran disse: “Aqui no norte do país parece que as vidas estão interligadas. Empresta à comunidade uma rica estrutura. A vida nas cidades Lá Embaixo é um emaranhado de fios soltos.”

     “Você devia escrever um artigo na A Pena de Qwill’ sobre isso”, sugeriu Homer.

     “Acho que sim. Falando em A Pena de Qwill’, Rhoda me disse que você sabe alguma coisa sobre celeiros antigos.”

     “Sei mesmo! É outra tradição que está desaparecendo. Eles constroem estruturas de aço que parecem armazéns de fábrica. Não me convencem de que o gado é feliz nessas geringonças! Mas ainda há um bom celeiro nesta propriedade.” Dobrou um braço na direção da janela do norte. “Ainda estará de pé muito depois dos celeiros de aço terem sumido.”

     “Ainda não tive chance de olhá-lo”, admitiu Qwilleran.

     “Então vamos lá- É uma beleza!” Homer levantou-se devagar como se soltasse as juntas uma por uma. “Ao contrário da opinião popular, não sou montado com ossos de plástico ? parafusos de aço. O que você vê são todas partes originais.

     Rhoda”, chamou, “diga a Al para deixar a conta, que lhe mandaremos um cheque.”

     Encaminhando-se para o celeiro os dois homens andaram devagar, embora os braços e pernas que Homer atirava para o ar dessem a impressão de rapidez. Qwilleran olhou para trás, para a fazenda, e viu um pequeno vulto castanho no peitoril da janela; acenou com a mão.

     O celeiro Goodwinter era de estilo clássico com um telhado de duas águas, com os troncos pintados antigamente de vermelho e atualmente de um cinza prateado riscado de vermelho. Um alpendre fora acrescentado ao lado, e restos de um silo de pedra chata estavam no canto oposto como um fantasma cinzento.

     Caminhavam em silêncio. “Não posso andar... e falar... ao mesmo tempo”, disse Homer jogando os membros ritmicamente.

     O celeiro estava muito afastado da casa e era maior do que Qwilleran imaginara. Quanto mais perto chegavam, mais elevado parecia. Uma rampa de relva levava até as enormes portas duplas.

     Qwill disse: “Agora sei o que querem dizer com ‘tão grandes como portas de celeiro.’”

     Pararam no pé da rampa para Homer retomar o fôlego antes de tentar a subida. Quando se recobrou do esforço, explicou: “As portas tinham de ser grandes para que uma carroça carregada de feno pudesse entrar no celeiro. A abertura do tamanho de um homem na porta grande é chamada de buraco da agulha.”

     Enquanto falava, um canto da porta se abriu, e uma gata prenhe atravessou pela portinhola de gatos e saiu bamboleando.

    “Essa é Cleo”, disse. “Está na minha comissão, encarregada do controle dos roedores. Parece que outra ninhada de rateiros está a caminho. Gatos de celeiro nunca são demais.”

     “Qual é a finalidade do alpendre?” perguntou Qwilleran.

     “Ephraim o construiu para abrigar suas carruagens. Tinha algumas bem elegantes, dizem. Mais tarde o filho guardava ali seu Stanley Steamer. Depois que Titus Goodwinter foi morto, a viúva comprou um Pierce Arrow — com limpadores de pára-brisa, imagine você! Todo mundo achou o máximo!”

     O velho celeiro de madeira estava construído em cima de um alicerce de pedra, e à medida que o terreno fazia um declive atrás o alicerce ficava da altura de um andar .

     “É isso que chamam de estábulo na Escócia”, disse Homer. “Os Goodwinter mantinham o gado e os cavalos aqui nos velhos tempos.” Subiram a rampa de relva devagar e entraram no celeiro pelo buraco da agulha, o velho mostrando as ferragens da porta — simples ganchos e aros de ferro forjados a mão, trabalho de um ferreiro local.

     O interior estava escuro, contrastando com o brilho do sol lá fora. Apenas alguns raios de luz esgueiravam-se de janelas invisíveis por cima das vigas. Tudo estava em silêncio, exceto pelo arruinar abafado dos pombos e o bater de asas. “E melhor abrirmos as portas grandes para podermos enxergar”, disse Homer. “Este lugar fica mais escuro a cada ano.”

     Qwilleran percebeu de repente que nunca estivera dentro de um celeiro. Tinha-os visto à distância quando percorria uma estrada, e havia um celeiro de maçãs dentro da propriedade Klingenschoen, mas nunca o inspecionara. Agora, erguendo a vista para o vasto espaço sob o telhado, entrecruzado de vigas, teve a mesma sensação de admiração que experimentara nas catedrais góticas.

     Homer viu-o olhando para cima. “Este é um palheiro duplo”, explicou. “As vigas têm vinte metros de comprimento por trinta e cinco centímetros de largura. Tudo é montado com encaixes — sem pregos. Tudo de pinho branco. Não se vê mais pinho branco. Foram todos cortados.”

   Apontou para as marcas de machado e enxó. “O piso principal era chamado de eira. As tábuas têm dez centímetros de espessura. É preciso um chão sólido como este para agüentar uma carroça carregada de feno — ou essas benditas prensas tipográficas.”

     Foi então que Qwilleran notou o conteúdo do celeiro. Engradados para embalagem em madeira e máquinas grotescas parecendo instrumentos de tortura espalhavam-se no chão coberto de palha.

     “Isto é só uma parte”, continuou o velho. “O resto dos engradados está lá em baixo no estábulo. Senior Goodwinter era obcecado por impressão manual. Cada vez que uma velha estamparia fechava ou se modernizava, ele comprava o equipamento obsoleto. Nunca chegou a fazer um inventário, ou mesmo abrir os engradados. Apenas ia colecionando.”

     “É aí que eu entro!”, disse uma voz dissonante atrás deles. Vince Boswell estava parado no limiar da porta. “Meu trabalho é descobrir o que há nestes engradados e catalogar tudo para que possam iniciar um museu de imprensa”, disse com sua voz penetrante. Era fácil acreditar que tinha sido leiloeiro. “Ontem eu desembalei uma máquina impressora do século XVIII.”

     “Você prossegue”, disse-lhe Homer. “Quero voltar para a casa antes de minhas pernas cederem. Estou ficando com dor nos joelhos.” E retornou pela rampa de relva.

     Nesse instante uma figurinha do tamanho de uma boneca veio subindo penosamente a rampa, usando jeans e suéter vermelho minúsculos. Carregava um balde de plástico verde numa mão e uma pá de plástico amarela na outra. A mãe ansiosa seguia-a, correndo e chamando numa vozinha: “Baby! Baby! Volte aqui!”

     Vince olhou para elas e assumiu uma atitude rígida. “Será que não pode controlar essa criança?”, reclamou. “Tire-a daqui. Não é seguro.”

     Verona agarrou a criança nos braços, e o balde e a pá voaram em direções opostas.

     “Minha pá! meu balde!”, gritou Baby.

     Qwilleran apanhou-os e entregou-lhe.

     “Diga obrigada”, murmurou Verona.

     “Obrigada”, disse Baby automaticamente. Enquanto se afastavam pela alameda, olhou para trás, tristonha. Havia algo de perturbador nela, refletiu Qwilleran, e era tão doentiamente magra.

     Com um encolher de ombros, Boswell disse: “Vou lhe mostrar o que achei aqui, se estiver interessado.” Apontou para uma engenhoca com pernas decorativas. “É uma impressora de alavanca articulada de Washington, 1827. Encontrei velhas caixas de tipos, bastões de composição, uma impressora primitiva de cilindro, blocos de madeira — todos os tipos de surpresas. Quando abro um engradado nunca sei o que vou achar.” Apanhou um pé-de-cabra e arrancou a tampa de uma caixa de madeira. Estava recheada de palha. “Parece com uma guilhotina de papel manual.”

     “Estou muito impressionado”, disse Qwilleran indo em direção à porta.

     “Espere um pouco!”, disse Boswell em tons agudos. “Ainda não viu a metade.”

     “Devo confessar”, disse Qwilleran, “que não estou muito interessado em equipamento mecânico, e algumas dessas impressoras parecem diabólicas.” Acenou com a cabeça para algo que parecia ser metade máquina de costura e metade guilhotina.

     “E uma impressora de pedal”, disse o especialista. “E esta é uma Albion. E esta é uma Columbian. Quando a alavanca de contrapeso se move, a águia vai para cima e para baixo.” A Columbian era um monstro de ferro forjado embelezada por uma águia, serpentes e golfinhos.

     “Assombroso”, disse Qwilleran em tom melancólico. “Você precisa me contar mais sobre este assunto fascinante noutra hora.” Consultou o relógio e encaminhou-se para a rampa.

     “Gostaria de tomar um prato de sopa com minha mulher e comigo?”

     “Obrigado pelo convite, mas estou esperando um telefonema importante.”

     Boswell apanhou um walkie-talkie de cima de um engradado. “Estou indo para casa jantar, Verona”, disse. “Que tal uma sopa de tomates e um cachorro-quente?”

     Os dois fecharam as grandes portas, trancando-as com o gancho e aro primitivos, e desceram a rampa de relva. Em seguida, Boswell partiu no furgão enferrujado e Qwilleran caminhou até a casa, grato por poder escapar do especialista de voz de estilete e arenga de livro didático. Por que precisava de um walkie-talkie? Por que não ficava na rampa e simplesmente gritava? Como podia a delicada Verona agüentar essa voz ensurdecedora? Incomodava-o que ela e Baby fossem sacrificáveis, que pudessem ser embarcadas de volta a Pittsburgh como mercadoria desnecessária, caso Vince fosse nomeado sucessor da sra. Cobb. A mera presunção dele de tomar o lugar dela era obscena, disse Qwilleran a si mesmo.

     Ao abrir a porta da ala oeste, um borrão de pêlos passou zunindo por seus tornozelos e voou para os degraus. Com um berro Qwilleran pulou e agarrou o corpo escorregadio do gato com ambas as mãos. Aterrissaram numa pilha de folhas.

     “Ah, não, não vai não, seu moço!”, ralhou Qwilleran, carregando-o de volta para casa. “Aonde pensa que vai? Num baileco com os gatos de celeiro? Ou está interessado em prensas tipográficas?”

     Ao falar estas palavras largou o gato no chão, e Koko fez uma aterrissagem-surpresa em quatro patas. Quanto a Qwilleran, a idéia que lhe cruzou a mente nesse momento fez seu bigode enrolar.

     Exatamente o que, perguntou-se, haveria naqueles engradados fechados? Prensas tipográficas? Ou algo mais?...

 

     As novas suspeitas de Qwilleran sobre as prensas tipográficas foram relegadas a segundo plano enquanto enfrentava as exigências do dia. Houve uma longa conversa por telefone com o Executivo Geral da Fundação K, e uma chamada subseqüente para Kristi na Fazenda Fugtree.

     “Nada a relatar”, disse com voz abatida. “A polícia continua aparecendo. Armaram barricadas por todo o condado, esperando que Brent tentasse fugir com um carro furtado, mas nenhum roubo de carro foi comunicado. Onde está seu carro? Procurei-o de binóculos, e não estava no pátio. Eu já estava para lhe telefonar.”

     “Está trancado no celeiro de aço, mas agradeço sua preocupação.”

     “O conselho de saúde está aqui de novo, e também os homens que vêm remover os animais mortos. É muito doloroso de olhar. Não posso agüentar vê-los arrastando minha linda Black Tulip e minha doce e pequena Geranium.”

     “É uma coisa terrível”, disse Qwilleran, “mas você precisa deixar isso para trás e pensar em seu próximo passo.”

     “Eu sei. Preciso pensar construtivamente. É o que estou tentando fazer. Meu amigo disse que vai me ajudar a consertar a casa, se eu quiser abrir um restaurante ou uma pensão com café da manhã. Mas primeiro tenho de me desembaraçar de todos os trastes de minha mãe. Não sei se faço uma grande liquidação de usados aqui em casa ou se faço uma grande fogueira. E preciso de dinheiro para colocar a casa em ordem. Não sei quanto vou receber do seguro. Ah, meu Deus! eu não quero o dinheiro do seguro! Só quero acordar e encontrar Gardenia e Honeysuckle esperando para serem ordenhadas e me olhando com aqueles olhos comovedores. Eu adoro criar cabras!”

     “Eu sei que adora, Kristi, mas quer você pretenda começar outro rebanho ou mesmo uma pensão, a Fundação Klingenschoen gostaria de ajudá-la a registrar a casa como lugar histórico. Se estiver interessada, estão preparados para oferecer-lhe uma subvenção para cobrir a pesquisa e a reforma.”

     “Se estou interessada? Se estou interessada? Oh, Qwill, isso seria ótimo — realmente ótimo! Espere até eu contar ao Mitch.”

     “Mitch? Seria Mitch Ogilvie, por algum acaso?”

     “Sim. Ele disse que o conhece. E, Qwill, posso lhe pedir um grande favor? Ele se candidatou ao emprego de administrador residente do museu. Você daria uma palavrinha em seu favor? Ele se sente a respeito do museu como eu a respeito das cabras. E ele não vai ser recepcionista de hotel para sempre. Tem muito mais a oferecer.”

     “Não é ele que conta histórias de fantasmas às crianças, no Dia das Bruxas?”

     “É, e faz os dentes delas baterem de verdade!”

     “Gostaria de falar com ele. Por que não o traz aqui na ala oeste para tomarmos sidra com rosquinhas?”

     “Quando?”

     “Que tal hoje à noite?”, sugeriu Qwilleran. “Lá pelas oito.”

     “Levarei queijo de cabra e umas bolachas”, disse muito excitada. “E não se preocupe — o queijo não está envenenado.”

     Em seguida, Qwilleran telefonou a Polly na biblioteca. “Vou a Pickax fazer umas coisas. Gostaria de me encontrar lá para jantar?”

     “Adoraria”, disse, “desde que seja cedo. Preciso ir para casa, você sabe, alimentar meu amorzinho. Ele faz quatro refeições por dia em horário regular.”

     Qwilleran estremeceu. Muitas vezes havia dito: “Tenho de ir para casa alimentar os gatos”, mas o jeito afetado de Polly era intolerável.

     “Por que não vem ao meu apartamento quando fechar a biblioteca?”, sugeriu. “Vou mandar vir a comida do Old Stone Mill. 0 que devo pedir para você?”

     “Só uma salada verde com peru julienne e torradas melba. Vou levar um pouco do peru para o meu amorzinho. Ele come como um leãozinho.”

     Qwilleran estremeceu de novo, esquecendo-se de quantos pacotinhos de comida levara para os siameses e de como o bolso de seu velho casaco de tweed uma vez cheirara a molho de peru. Na verdade, tinha muitas vezes chamado Yum Yum de “meu amorzinho”, mas fazia-o em particular.

     Passou a tarde escrevendo a coluna “A Pena de Qwill” sobre a nova exposição de calamidades do museu. Sobre o lençol desaparecido não disse uma palavra, mas questionou por que não havia menção aos mineiros mortos na explosão. Na exibição havia a foto de um monumento de granito no cemitério, erguido com subvenção pública à memória dos trinta e dois mortos, mas eles não estavam identificados.

     Enviou sua cópia para a redação do Something e comprou sidra e rosquinhas para o encontro com Kristi e Mitch, chegando ao seu apartamento em Pickax a tempo de encomendar o jantar. Embora a entrega em domicílio não fosse um serviço anunciado pelo Old Stone Mill, o chefe de cozinha fornecia refeições para os siameses quando estavam na cidade, e um ajudante de garçom, chamado Derek Cuttlebrink, estava acostumado a fazer entregas diárias de sushi, empadas de camarão, miolos de carneiro no vapor e outras iguarias.

     Polly chegou a pé. Deixando o carro no estacionamento da biblioteca, cortou caminho pelo fundo da propriedade até a antiga garagem Klingenschoen, uma amostra da discrição que ela achava prudente praticar como chefe da biblioteca numa cidade mexeriqueira, embora não enganasse a ninguém. A garagem, na verdade uma garagem para quatro carros, era uma suntuosa construção de pedra com portas em arco e oito lanternas de carruagem de latão colocadas nos cantos. Usando a própria chave, Polly abriu a que antes fora a porta dos empregados e subiu as estreitas escadas para o apartamento de Qwilleran. Houve um momento ardente de saudações que teria deleitado os mexeriqueiros de Pickax, e então ele perguntou como estava o mais recente pensionista dela.

     “Está se tornando mais adorável a cada dia!”, disse Polly. “As coisas que faz são mesmo encantadoras, como dormir no meu travesseiro com o nariz enterrado nos meus cabelos e ronronando até não poder mais. Já engordou um quilo e meio, imagine!”

     Qwilleran estremeceu e apanhou uma garrafa. “Posso servir o de costume?”

     Sorvendo seu xerez, Polly indagou sobre o envenenamento das cabras. “Alguma outra notícia?”

     “Nada oficial. Também temos alguns mistérios no museu. Você pode não ter notado durante a inauguração ontem, mas o lençol do reverendo sr. Crawbanks desapareceu da exposição de calamidades. Também sumiu o livro de receitas de Iris Cobb.”

     “É mesmo? Que estranho! O livro de receitas eu posso entender, mas por que o lençol? Os jovens costumavam correr pelos campos vestidos de lençóis brancos perto do Dia das Bruxas, tentando assustar as pessoas, até que o condado proibiu, com o que chamaram de regulamento feijão-com-porco.”

     “O que vem a ser isso?”

     “Foi o resultado de um incidente perto de Mooseville. Uma mulher mandou o filho adolescente comprar comestíveis numa loja na encruzilhada, e ele voltava para casa andando numa estrada vicinal depois do escurecer. Ao aproximar-se da ponte sobre o Ittibittiwassee, uma figura coberta de lençol saiu do leito escuro do rio e começou a gemer e a gritar. O intrépido jovem continuou a andar até chegar a alguns metros do fantasma. Então apanhou no saco de compras uma lata de feijão e atirou-a no espectro — bem no meio dos buracos dos olhos. Era uma moça sob o lençol, e ela foi para o hospital com uma concussão.”

     “E presumo que o rapaz foi preso”, disse Qwilleran.

     Nesse minuto a campainha tocou, e Polly achou prudente retirar-se para o banheiro e pentear o cabelo. Um ajudante de garçom alto e magro chegou com a salada de Polly e a costeleta de cordeiro de Qwill — mais dois pedaços de torta de abóbora com os cumprimentos do chefe.

     “Onde estão os gatos?”, perguntou o ajudante.

     “De férias”, disse Qwilleran ao dar-lhe uma gorjeta. “Obrigado, Derek.”

     “Eles é que têm sorte. Eu nunca vou a lugar algum.”

     “Pensei que você ia para a faculdade neste outono.”

     Derek deu de ombros. “Bem, sabe, eu ganhei um bom papel na próxima peça do teatro e conheci uma garota de Lockmaster que é um estouro, de modo que decidi trabalhar mais um ano.”

     “Obrigado de novo, Derek”, disse Qwilleran, levando-o para a porta. “Estou ansioso para vê-lo na peça de novembro. Não me conte nada sobre seu papel; dá azar. Os siameses enviaram lembranças. Agradeça ao chefe. Cuidado com essa garota de Lockmaster. E não tropece nas escadas.” Em estágios lentos, encaminhou o sociável Derek Cuttlebrink para fora do apartamento.

     Polly emergiu do banheiro, não parecendo muito diferente. “Ele é um bom garoto, mas ainda não se encontrou”.

     “Está procurando no lugar errado”, resmungou Qwilleran. Jantaram na mesa de travertino, e Polly perguntou se gostara da gravação de Otelo.

     “É uma ópera formidável! Até os gatos gostaram. Toquei várias vezes.” Não até o fim, mas ele omitiu esse detalhe.

     “O que achou do Credo de lago?”

     “Inesquecível!”

     “E você não concorda comigo que Dio! mi potevi é magnífico?”

     “Tirou as palavras da minha boca!... E o que achou da exposição de calamidades?”, perguntou, mudando habilmente de assunto.

     “As meninas conseguiram um milagre! Era um assunto difícil de dramatizar. E a idéia da urna para votar foi muito inteligente.”

     “Na minha opinião elas perderam uma oportunidade. Deveriam ter homenageado as trinta e duas vítimas pelo nome, e eu disse isso na minha coluna.”

     “Ninguém sabe quem eram eles, exceto por alguma recordação ocasional de família”, informou-o Polly. “Não há lista oficial. Temos velhas cópias do Picayune em microfilme, mas as edições de treze a dezoito de maio estranhamente estão faltando.”

     “Onde arranjou esse filme?”

     “Junior Goodwinter nos entregou tudo quando o Picayune cessou a publicação. Também examinamos os arquivos do tribunal do condado, mas os registros de óbito anteriores a 1905 foram destruídos por um incêndio naquele ano.”

   “Seria interessante saber quem acendeu o fósforo”, disse Qwilleran. “E pouco provável que todos os registros tenham sido destruídos acidentalmente. Quem queria os nomes das vítimas esquecidos? Os Goodwinter? Os seus nomes dariam uma pista para a identificação da turba de linchamento? Havia provavelmente trinta e dois, um para vingar cada vítima. Um toque ritualista, não acha? Eles estavam embrulhados em lençóis para que ninguém soubesse a identidade do verdadeiro carrasco. Imagino que tiraram a sorte com palitinhos pelo privilégio.”

     “Uma dedução interessante”, disse Polly, “admitindo que a história do linchamento seja verdadeira.”

     “Se Ephraim cometeu o suicídio, por que o faria em lugar público? Ele tinha um grande celeiro. Podia ter pulado do alto do palheiro. Na verdade, alguém realmente se importa — nesta data tardia — sobre a exata sorte do velho patife? Por que os Nobres Filhos do Laço persistem geração após geração?”

     “Porque Ephraim é o único vilão que Mooseville possuiu”,

     disse Polly, “e todos gostam de ter uma pessoa para detestar”.

     Ela recusou a torta de abóbora, e Qwilleran não teve dificuldade para consumir as duas fatias. Depois disse: “O que sabe sobre Vince e Verona?”

     “Não muito”, disse Polly. “Eles apareceram subitamente há um mês e propuseram um trato, que a diretoria do museu ficou encantada em aceitar. Vince ofereceu-se para catalogar as prensas tipográficas e em troca eles lhe dariam a casa isenta de aluguel. Aquelas prensas tipográficas eram um elefante branco, de modo que a chegada de Vince em cena foi considerada uma bênção dos céus.”

     “Vocês não acham que a oferta dele foi extraordinariamente generosa?”

     “Não. Está escrevendo um livro sobre a história da imprensa, e é uma oportunidade única para ele ver o equipamento que foi realmente usado cem ou duzentos anos atrás.”

     “Eu gostaria de saber como foi que ele soube das prensas tipográficas.”

     “Ele parece saber muito sobre impressão.”

     Qwilleran disse: “Durante minha carreira, Polly, entrevistei milhares de pessoas e sei distinguir (a) os que sabem do que estão falando e (b) os que decoraram informações de um livro. Não acho que Boswell seja um (a).”

     “Sem dúvida, o projeto é uma experiência de aprendizado para ele”, persistiu teimosamente. “Está sempre consultando livros sobre o assunto. Graças a Senior Goodwinter, nossa biblioteca tem a coleção completa sobre impressão manual nos Estados centrais do nordeste.”

     Qwilleran bufou no bigode. “Café?”, perguntou.

     “Vince era leiloeiro Lá Embaixo”, acrescentou Polly.

     “Ou camelô de feira. Sua voz acordaria um morto. Há uma coisa no jeito de Vince que me intriga. Toda vez que volto ao museu, vindo de algum lugar, seu furgão está acabando de sair do celeiro. Hoje descobri que ele usa um walkie-talkie para dizer a Verona quando vai chegar em casa para o almoço, e suspeito que ela o usa para avisá-lo quando eu viro na Alameda do Riacho Negro. Um dia desses vou enganá-lo — sair do museu, estacionar o carro em algum lugar e voltar sorrateiramente a pé, pelo caminho do fundo.”

     “Ah, Qwill, você é um detetive nato!”, riu Polly. “Só o que precisa é de um boné de caçador e uma lupa.”

     “Pode rir”, retrucou, “mas vou lhe dizer outra coisa: Koko passa a maior parte do tempo vigiando o celeiro da janela da cozinha.”

     “Ele está procurando gatos de celeiro ou ratos do campo.”

     “Isso é o que você pensa, mas não é a mensagem que estou captando do transmissor felino.” Alisou o bigode significativamente. “Tenho uma teoria, ainda não de todo desenvolvida, de que Boswell está com más intenções naquele celeiro. Está procurando outra coisa que não prensas tipográficas naqueles engradados. E quando a achar vai entrar pelas portas do celeiro, carregar o furgão e entregar a mercadoria.”

     “Que tipo de mercadoria?”, perguntou Polly com um sorriso divertido.

     “Não tenho provas”, disse Qwilleran, “e não estou preparado para dizer. Se eu pudesse passar uma hora naquele celeiro com um pé-de-cabra, poderia ter algumas respostas. Lembre-se de que Boswell é a primeira pessoa a tocar naqueles engradados desde a morte de Senior Goodwinter há um ano. Como é que ele soube deles? Alguém no Condado de Moose lhe deu a dica e está provavelmente colaborando na operação.”

     Polly olhou o relógio. Ainda sorrindo, disse: “Qwill, tudo isso é muito interessante — confuso mas provocante. Você precisa me contar mais numa outra hora. Agora preciso pedir licença. Bootsie ficou sozinho o dia todo, e o pobrezinho está querendo sua papinha.”

     Qwilleran bufou no bigode. “Quando vai para Lockmaster?”

     “Amanhã logo depois do almoço. Deixarei Bootsie no caminho. Ele tem sua comida especial, sua privadinha e sua escova. Ele apreciaria se você lhe desse uma escovada e uma beijoquinha de vez em quando. E tão afetuoso! E também está treinado, é claro. E adorável ver o queridinho arranhando a caixa e depois sentando-se com uma expressão beatífica em sua cara de narizinho manchado.”

     Polly retornou a seu carro no estacionamento da biblioteca, olhando em volta disfarçadamente para ver se alguém estava observando. Qwilleran esperou uns discretos minutos, depois colocou a bicicleta na mala do seu carro e dirigiu-se para North Middle Hummock, onde encontrou dois siameses olhando ansiosamente para o freezer.

     “Adivinhem quem vem para jantar amanhã”, anunciou. “Pé Frio!”

 

     Aproximadamente às vinte horas da segunda-feira Qwilleran estava se preparando para seus convidados, gelando a bebida, pegando guardanapos de papel, enchendo uma travessa com rosquinhas suficientes para dez e preparando a lenha nas duas lareiras. Sem avisar, Koko apareceu correndo na cozinha, vindo de não se sabe onde, e pulou para o parapeito da janela que dava para o celeiro. Para os olhos de Qwill, a janela não era mais que um retângulo negro reflexivo, mas Koko viu algo que o excitou.

     Qwilleran pôs a mão em concha sobre os olhos e perscrutou a escuridão. Duas luzes dançavam no terreiro, e de repente vieram-lhe à cabeça as luzes balouçando nos capacetes dos mineiros fantasmas de Homer. Mas estas luzes eram diferentes; moviam-se rapidamente e giravam em grandes arcos. Ao se aproximarem pôde distinguir dois rostos, e reconheceu Kristi e Mitch. Vinham da Fazenda Fugtree com lanternas — caminhando por Willoway — e chegaram ao museu pelos fundos.

     Qwilleran recebeu-os na entrada, acompanhado pelo chefe de segurança.

     Kristi disse: “Está uma noite tão bonita que resolvemos vir andando. A trilha pelo riacho é um atalho, mas meio assustadora à noite. Mitch deveria levar as crianças lá para contar as histórias de fantasma neste ano.” Ela deu a Qwilleran um abraço entusiástico e uma fôrma plástica com queijo de cabra. “Estou exultante”, disse, “depois que você me contou sobre a oferta Klingenschoen.”

     Os homens apertaram-se as mãos e Qwilleran disse: “Você tem um imponente nome escocês. Minha mãe era uma Mackintosh.”

     “É, o clã Ogilvie data do século XII”, disse Mitch com óbvio orgulho. “Minha família veio da Escócia em 1861.”

     “E acontece que sei que seu avô ganhava todas as maratonas ortográficas com os olhos fechados.”

     “Você andou falando com Homer. Aquele velho tem uma memória incrível””

     Kristi disse a Qwilleran: “Vou lhe tecer um cachecol com o tartã dos Mackintosh assim que conseguir desencavar meu tear de sob os trastes de minha mãe... Oooooh! Que lindo gato! E amistoso?”

     “Especialmente com pessoas que chegam carregando queijo de cabra. Onde gostariam de sentar? Na sala, ou em volta da grande mesa da cozinha? Em qualquer dos lugares podemos acender a lareira.”

     Escolheram a cozinha. Enquanto Qwilleran servia a sidra, Mitch acendia os gravetos da lareira e Kristi, as velas rosa que a sra. Cobb deixara na mesa. “Isto é tão aconchegante”, disse. “Iris costumava convidar-nos para limonada e biscoitos. Mitch, você não adoraria viver aqui?”

     “Claro que sim! Atualmente estou morando em cima da drogaria de Pickax”, explicou a Qwilleran. “Gostaria de saber se apareceram muitos candidatos para o lugar de Iris.”

     “Quais são suas qualificações, Mitch?”

     “Bem, eu pertenço à Sociedade Histórica desde o ginásio, li muito a respeito de antigüidades e estou na comissão de Homer, supervisionando os garotos que fazem o serviço no pátio. Além disso, tenho algumas idéias para eventos especiais que poderia pôr em prática se morasse aqui em tempo integral.”

     “E ele se dá bem com todo mundo”, disse Kristi. “Até com Amanda Goodwinter. E com Adam Dingleberry.”

     Mitch disse: “O velho Adam não estará muito tempo mais entre nós. Mudou-se para o Asilo de Idosos, mas sua mente ainda é perfeita.”

     “E ainda apalpa as garotas”, disse Kristi.

     “O senhor deveria entrevistá-lo para sua coluna, sr. Qwilleran, antes que seja tarde.”

     “Chame-me Qwill, Mitch. Adam tem alguma história de fantasmas para contar?”

     “Todo mundo por aqui teve pelo menos uma experiência sobrenatural”, disse, olhando severamente para Kristi, mas ela ignorou a indireta.

     “Infelizmente ainda não me juntei ao clube”, disse Qwilleran. “Que tal as histórias que você conta às crianças no Dia das Bruxas? São clássicas? Ou você as inventa?”

     “São todas verdadeiras, baseadas em acontecimentos do Condado de Moose e nas histórias escocesas. É claro que acrescento alguns detalhes de arrepiar os cabelos.”

     “Já viu alguma vez os trinta e dois mineiros?”

     Mitch acenou que sim. “Há cerca de três anos. Eu voltava de uma festa em Mooseville e parei no acostamento da estrada por um minuto, você entende. Foi perto da colina Goodwinter — a velha pilha de detritos — e eu os vi.”

     “Com o que se pareciam?”

     “Eram apenas sombras de homens arrastando-se. Sabia que eram mineiros porque tinham lanternas nos capacetes.”

     “Você os contou?”

     “Só pensei nisso depois de alguns deles já terem desaparecido atrás da colina, mas eis uma coisa engraçada: era treze de maio, o aniversário da explosão.”

     “Você disse que voltava de uma festa?”

     “Isso não teve nada a ver, juro.”

     “Está bem, vou ser franco com você. Sempre fui cético sobre essas histórias. Sempre achei que havia uma explicação lógica. Ainda acho, no fundo da mente, mas estou começando a duvidar de meu próprio ceticismo. Deixe-me contar o que tem acontecido por aqui.”

    Contou-lhes sobre a ligação aterrorizada de Iris Cobb no meio da noite, sobre as batidas no porão e os gemidos nas paredes e sobre ela “ter visto alguma coisa” logo antes de morrer. E falou: “Disseram-me que Senior Goodwinter — logo antes de morrer — viu Ephraim atravessando uma parede. Estou tentando classificar as evidências, você compreende.”

     Kristi disse: “Há muitos rumores sobre Ephraim. Dizem que escondeu muitas moedas de ouro para o caso de precisar empreender uma fuga rápida, mas ele morreu subitamente e agora volta para procurá-las.”

     “Velho sovina!”, disse Mitch. “Nunca desiste!”

     “Um dos meus gatos”, disse Qwilleran, “tem agido estranhamente desde que nos mudamos para cá. Fala consigo mesmo e olha pela janela de onde Iris viu a coisa que a apavorou.”

     “Os gatos estão sempre fazendo coisas doidas”, falou Kristi.

     “Koko”, disse Qwilleran, “não é um gato comum. Sempre tem uma ótima razão para fazer o que faz.” Ouvindo seu nome, o gato entrou na cozinha, com um ar elegante e vaidoso.

     “Nossa! É um belo animal”, disse Mitch.

     “Ele parece muito inteligente”, acrescentou Kristi.

     “Koko não é apenas inteligente, mas extraordinariamente intuitivo. Não diria que é paranormal, mas percebe quando há algo estranho e, se o fantasma de Ephraim está rondando por aqui, Koko vai achá-lo!”

     Os três viraram-se para olhar o notável gato. Infelizmente Koko escolhera esse momento para cuidar da base da cauda.

     Qwilleran disse depressa: “Vocês gostariam de ver o porão onde Iris ouviu primeiro as batidas? É só um quarto de despejo do museu. Sabem a qual me refiro?”

     “Já ouvi falar, mas nunca estive lá embaixo. Gostaria de vê-lo”, disse Mitch.

     “Vou levar Koko junto. Ele pode ouvir até minhocas rastejando e mariposas polinizando e, se houver qualquer coisa de irregular lá embaixo, ele a farejará. Vou prendê-lo numa coleira para que possa controlá-lo mais rápido.”

     Amarrou o gato numa coleira de couro azul e enrolou uns metros de cordão de náilon que servia de correia, e os quatro desceram ao porão, Koko de muito bom grado.

     No depósito algumas lâmpadas descobertas espalhavam uma luz brilhante sobre os móveis quebrados, ferramentas enferrujadas, livros bolorentos, cerâmica rachada e teias de aranha.

     “Minha mãe adoraria isso!”, disse Kristi.

     “Isso é o que Homer chamaria de ninho de pega”, disse Qwilleran. “Iris estava procurando um aquecedor de cama quebrado quando ouviu pela primeira vez as batidas na parede. Eis o espremedor de batatas que ela usou para responder.” Apanhou o pequeno bastão de madeira e bateu o código Morse para SOS na parede de argamassa — a única habilidade de que se lembrava de sua convivência com os escoteiros — e continuou batendo.” Nenhuma das mensagens obteve resposta, mas a argamassa rachou um pouco mais.

     Entrementes, Koko estava abocanhando teias de aranha em vez de investigar.

     “Gatos nunca cooperam”, explicou Qwilleran. “O truque é ignorá-lo por um tempo. Vamos encontrar algo para nos sentar.”

     Kristi achou uma cadeira de balanço que não balançava mais; Mitch empoleirou-se num barril; Qwilleran sentou-se numa cadeira de cozinha com três travessas faltando, ao mesmo tempo que vigiava disfarçadamente Koko, que começava a mover-se furtivamente por ali.

     “Estou ouvindo uns ruídos surdos”, disse Kristi.

     “São trovões”, disse-lhe Mitch, “mas estão muito longe. Não deve chover hoje.”

     Koko farejou um carrinho de bebê de vime sem rodas. “Alguma criança desmantelou-o para fazer um carrinho de mão”, arriscou Mitch.

     Quando o gato farejou o espremedor de batatas, Qwilleran disse: “Estamos ficando quentes. Ele sabe que Iris o empunhou. Agora olhem para ele!”

     Koko estava se encaminhando para a parede de argamassa rachada, pulando por cima de uma caixa de carvão, esquivando-se sob uma cadeira de três pernas, subindo no monstruoso aparador que estava encostado à parede de estuque. Era uma confusão de prateleiras, espelhos e ornamentos entalhados.

     “Minha mãe comprou duas dessas coisas bobas”, disse Kristi. “Ouçam! Trovões de novo! Estão chegando perto!”

     Koko estava erguido nas pernas de trás e esticando-se para ver a parede atrás do aparador.

     “Ele pressente algo”, sussurrou Qwilleran.

     Mitch disse: “Acho que está vendo uma aranha andando pela parede.”

     “Odeio aranhas”, disse Kristi.

     Com um rápido movimento Koko pulou, esmagou o inseto, puxou-o para baixo com a pata e mastigou-o com satisfação.

     “Ugh!”, disse ela.

     “Vamos embora”, disse Qwilleran agarrando o gato. “Ele não está em boa forma esta noite.”

     “Temos de ir embora”, disse Mitch quando emergiram do porão e viram o céu iluminado pelos raios azuis.

     “Eu os levarei de carro”, ofereceu Qwilleran, “por isso vamos tomar outro copo de sidra antes de sair.” Os quatro voltaram à cozinha.

     “Esta é de boa qualidade”, disse Mitch. “Veio do engenho de sidra de Trevelyan? Eles jogam dentro maçãs machucadas, maçãs caídas, vermes e tudo mais. Meu avô insistia em usar maçãs perfeitas, e era a sidra mais sem gosto que alguém já provou.”

     Os dois homens conversaram sobre a limpeza de folhas com ancinho, o negócio de hotelaria e a história escocesa, mas Kristi estava quieta e introspectiva. Finalmente, disse com suavidade: “Emmaline vai aparecer esta noite”.

     Os homens se entreolharam e depois viraram-se para ela.

     Ela falou: “Qwül, você gostaria de ver Emmaline? Mitch já a viu duas vezes.”

     “Eu gostaria”, disse ele.

     O aguaceiro tinha começado. Apanharam os casacos e correram para o celeiro de aço. Ao chegarem à Alameda do Riacho Negro, torrentes de água batiam no pára-brisa. Quando viraram na Estrada Fugtree, os lampejos dos raios delineavam a casa vitoriana contra o céu azul elétrico. Ninguém falava. Correram para a porta lateral e chegaram ensopados à cozinha. Ainda assim não houve conversa. Silenciosamente Kristi colocou os casacos nos encostos das cadeiras da cozinha. Não acendeu as luzes, mas iluminou o chão com uma lanterna a fim de guiá-los pela sala. Tateando por entre a incrível confusão, acharam o caminho para a maciça escadaria e sentaram-se nos degraus para esperar no escuro, sentindo o cheiro de mofo da casa, a vibração dos trovões, ouvindo a chuva vergastando as janelas altas e estreitas e vendo o fulgor azul das vidraças a cada lampejo de raio. Esperavam.

     “Ela está vindo!”, sussurrou Kristi.

     Ninguém ousava respirar.

     Os homens olhavam fixamente, em silêncio absoluto.

     Kristi estremeceu e respirou convulsivamente.

     Qwilleran sentiu o sangue gelar.

     Os minutos passavam.

     Então Kristi rompeu em lágrimas. “Ela não estava linda?”, suspirou.

     “Linda!”, disse Mitch num meio-sussurro.

     “Incrível!”, murmurou Qwilleran.

     Os três sentaram-se em silêncio por algum tempo, cada um imerso em seus próprios pensamentos. A chuva abrandou; o tumulto acalmou-se; e Qwilleran decidiu-se a murmurar: “O que posso dizer?... Obrigado... Boa noite.” Apertou a mão de Kristi, tocou o ombro de Mitch e encontrou o caminho para a saída. “Meu Deus!”, disse em voz alta, sentando-se no lugar do motorista, relutante em ligar a ignição.

     Em casa, deixou-se cair na bergère e descambou para um devaneio tão profundo que não ouviu o veículo parando à porta. A aldrava de latão o sobressaltou. Pulou para abrir a porta, dizendo: “Mitch! esqueceu alguma coisa?”

     “Só queria conversar um minuto — sem Kristi.”

     “Venha para a cozinha e tire este casaco molhado. Quer uma xícara de café antes de voltar?”

     “Talvez seja uma boa idéia.”

     “Ponha outra acha na lareira enquanto eu faço o café.”

     “Desculpe eu ter voltado tão tarde.”

     “Esqueça! O que o está perturbando?”

     Mitch lançou-lhe um olhar perscrutador. “Diga-me honestamente, Qwill. Você viu Emmaline?”

     “E você?”, perguntou Qwilleran, devolvendo o olhar intenso.

     “Eu nunca a vi”, confessou o rapaz.

     “Para falar a verdade”, disse Qwilleran, “também não a vi, mas senti um arrepio. Pressenti uma presença invisível. Talvez estivesse reagindo à emoção de Kristi. Seja o que for, foi uma experiência memorável.”

     Tomaram o café por uns instantes sem falar. Então Qwilleran disse: “Coma uma rosquinha.” Empurrou o prato por cima da mesa.

     “Obrigado. Estas rosquinhas são muito gostosas.”

     “Kristi é uma moça interessante”, disse Qwilleran.

     “Eu me preocupo com ela — com Brent ainda à solta.”

     “Ele é perigoso?”

     “Pior: é estúpido! Ele ia bem até que foram Lá para Baixo, e começou a usar drogas. Desestruturou-se. Era até um rapaz bem-apessoado. Pelo menos Kristi pensava assim, imagino.”

     “Se ele está assim tão mal”, especulou Qwilleran, “não demorará muito para que a polícia o capture. E preciso um pouco de inteligência e algum instinto animal para ser um fugitivo.”

     “Tem razão!” Mitch empurrou o prato de volta por cima da mesa. “Rosquinha?”

     “Quero. Não são ruins.”

     “Assim de chofre, Qwill, acha que tenho alguma chance de pegar o emprego do museu?”

     “Estou do seu lado, Mitch, mas está nas mãos da diretoria do museu.”

     “Estive fazendo lobby, e a maioria deles garantiu seu apoio, mas Larry e Susan estão batendo o pé — pelo menos parece.”

     “Vou ver o que posso fazer em seu favor.”

     “Eu apreciaria muito.” Mitch olhou sua xícara de café e mexeu-se nervosamente.

     “Outra rosca, Mitch?” O prato voltou pela mesa.

     “Obrigado.”

     Qwilleran leu os sinais. “Alguma coisa o perturba?”

     “Bem, quando você estava nos contando que Iris ouvia barulhos, pensei numa coisa que deveria lhe dizer, algo que ouvi recentemente de um dos veteranos. Ele ouviu a história de um antigo ferreiro que costumava ferrar os cavalos dos Goodwinter... Você já ouviu sobre o grande funeral que fizeram para Ephraim?”

     “Certamente! Trinta e sete carruagens, cinqüenta e duas charretes, ou seria o contrário?”

     “Esse ferreiro contou ao veterano que Ephraim não estava no caixão!”

     “Por quê? Ele sabia por quê?”

     “A família do velho sovina estava com medo de que fosse desenterrado — por seus inimigos, sabe — então foram adiante com toda a cerimônia do funeral no cemitério, mas na verdade ele foi enterrado secretamente aqui na fazenda.”

     “Onde? Você sabe?”

     “Sob a casa!”

     “Era só o que faltava, Mitch. Você acredita nessa história!”

     “Só estou lhe contando o que ouvi, Qwill, em razão do que você contou sobre Iris e de como seu gato anda agindo.”

     “Humm”, fez Qwilleran, afagando o bigode. “Que tal outra xícara de café?”

     “Obrigado, mas tenho de ir. Estou no turno do dia nesta semana.”

     Qwilleran e Koko levaram o convidado até a porta e olharam a caminhonete azul sair. A chuva tinha parado, mas as árvores ainda gotejavam, e a noite estava escura. Koko farejava e esquadrinhava a escuridão, e Qwilleran deu um pulo e pegou o gato antes que ele cruzasse o umbral e desaparecesse na noite.

 

     À meia-noite Qwilleran retirou-se para a cama General Grant com um romance que Koko derrubara duas vezes da prateleira. Já tinha lido Um Estranho no Ninho há alguns anos e assistido ao filme, mas estava disposto a lê-lo de novo. Tentou, mas os olhos apenas passavam pelas palavras automaticamente, enquanto a mente revia a noite com Kristi, Mitch e Emmaline. Ele saboreou especialmente o boato do enterro de Ephraim sob a casa. Mitch aparentemente acreditava na história, mas o veterano que a revelara podia ter imaginado a coisa toda, ou o ferreiro que a relatara poderia ter tomado umas e outras depois de um duro dia de trabalho na bigorna. Não obstante, Qwilleran gostava da história.

     Os siameses estavam enrascados no pé da cama. Em Pickax, tinham seu próprio quarto, completo, com todo o conforto, mas no museu queriam dormir no pé da cama de Qwilleran, uma singularidade que o fez perguntar-se sobre as influências subliminares do lugar. Tudo estava quieto, exceto por uma pata que se mexia ocasionalmente ou um pequeno ronco. Pouco tempo depois de ter apagado a luz de cabeceira e virado de lado, sentiu os animais acordarem sobressaltados de seu profundo sono. Koko miava. Acendeu a lâmpada a tempo de observá-los ouvindo com as orelhas empinadas, pescoços estendidos e cabeças girando como periscópios, enquanto esforçavam-se para enxergar na sala adjacente. Depois, em uníssono, com fluida graça, pularam da cama e correram para a cozinha. Tinham escutado alguma coisa.

     Qwilleran também tinha, mas presumira que fosse o motor da geladeira, ou que a bomba elétrica estava enchendo a caixa, como às vezes fazia por razões próprias. No entanto, calçou os chinelos de pele de alce e tateou o caminho até a cozinha, onde ouviu o barulhinho de um gato lambendo goles de água. Era Yum Yum. Koko estava no parapeito da janela emitindo sons inarticulados como fazia com os esquilos — comportamento inusitado no meio da noite.

     Qwilleran espiou pela janela e não viu coisa alguma, mas achou prudente verificar o museu. Sem ligar as luzes — apenas acendendo a lanterna apontada para o chão — inspecionou as salas de exposição e o escritório. Caprichosamente pensou que seria uma piada para um cético como ele se Ephraim Goodwinter se materializasse através de uma parede — e que artigo seria para “A Pena de Qwill”! Esperançoso, sentou-se no escritório. Por um momento achou que vira, pelo canto dos olhos, um pequeno movimento, e virou-se depressa, mas não havia nada lá. Se fosse menos cético poderia ter sido mais paciente, mas recusou-se a passar mais de cinco minutos procurando fantasmas.

     Voltando ao apartamento, trancou a porta de ligação e tornou a se deitar, ligou o rádio e ouviu a WPKX anunciar o fim das transmissões por aquela noite. Yum Yum deitou-se de novo sobre seus pés, embora o parceiro não houvesse voltado. Qwilleran apanhou o livro e tentou retomar a leitura, mas a ausência de Koko o deixava desconfortável. Mais uma vez foi até a cozinha e o chamou sem ouvir resposta. O apartamento estava mergulhado em silêncio, mas não um silêncio vivo, que respirava, significando que um corpo peludo estava escondido e ouvindo; era o silêncio morto que cai sobre um lugar quando um gato desaparecido simplesmente não está lá.

     De mau humor, Qwilleran voltou ao museu e achou Koko sentado na mesa do escrivão junto com outros itens não catalogados: um jarro de faiança, um descascador de maçãs de manivela, um travesseiro bordado comemorando a Exposição de Columbia de 1893, um colhedor de mirtilo de madeira, uma velha gravura de navios a vela — e a bíblia de Kristi. Um tremor quase imperceptível nas raízes do bigode de Qwilleran fez com que carregasse o gato e a bíblia de volta ao apartamento.

     Desta vez, com dois gatos pesando-lhe sobre os pés, não teve problemas em adormecer. Dormiu profundamente até as horas mais escuras da noite, quando viu-se sentado na cama encarando o rosto duro de olhos implacáveis do sovina. Tentou falar mas não conseguiu. Tentou gritar. Ephraim aproximou-se mais e mais, e de repente a cabeceira da cama General Grant começou a cair. Levantou as duas mãos numa fútil tentativa de impedir que o esmagasse...

     O sonho se desfez e Qwilleran descobriu-se sentado na cama com os braços levantados e a cabeça latejando. Os gatos dormiam contentes; a cabeceira continuava firmemente no lugar; mas sua pele estava suada, a garganta irritada e os olhos queimavam.

     Depois de tomar uma aspirina e um grande copo de água, terminou a noite num sofá e sucumbiu a um profundo sono até que o telefone tocou e a voz bem conhecida de Arch Riker vociferou: “Você ouviu as notícias pelo rádio?”

     “Não, droga! Estava dormindo tão bem!”, reclamou Qwilleran com a voz rouca. “Com um amigo como você, quem precisa de um despertador? Que horas são?”

     “Nove e quinze. Quer voltar a dormir, ou quer ouvir as últimas notícias?”, perguntou o editor do Something, sabendo bem qual seria a resposta.

     Qwilleran despertou imediatamente. “O que aconteceu?”, perguntou com a voz normal.

     “Saiu no noticiário das nove. Acharam o corpo de um homem perto de onde você está morando. Esteve metido em alguma briga ontem à noite?”

     “Quem? Quem é o homem?”

     “Para um espectador inocente você parece ansioso demais, meu amigo. Não vão liberar o nome até que tenham notificado os parentes mais próximos.”

     “Onde estava o corpo?”

     “Na Estrada Fugtree perto da ponte do Riacho Negro. É só o que sei. Roger está no distrito policial procurando algo para o Something.”

     Qwilleran tinha acabado de desligar quando Polly Duncan ligou, contando as mesmas novas.

     Ele disse: “Os gatos e eu fomos alertados na noite passada. Alguma coisa estava acontecendo na vizinhança, mas não podia imaginar o quê. Depois, tive um pesadelo e vi o fantasma de Ephraim. Queria ter uma lata de feijões. Quando acordei estava tendo uma reação física estranha.” Descreveu os sintomas.

     “Parece mais um acesso de alergia, provavelmente causado por todas aquelas folhas caídas e a chuva forte. Beba bastante água.”

     Qwilleran optou por café, depois ligou para o Moose County Something. Roger tinha acabado de voltar do centro cívico.

     “O que descobriu, Roger?”, perguntou.

     “E falem de justiça perfeita! O homem assassinado é Brent Waffle”, disse o jovem repórter. “É o sujeito de quem Kristi Fugtree se divorciou, e o principal suspeito de envenenar as cabras dela.”

     “Como foi morto?”, Qwilleran segurou o fôlego, lembrando que Kristi tinha um revólver e era bastante exaltada para usá-lo.

     “Golpeado na cabeça com instrumento rombudo, mas não aconteceu na ponte. Foi apenas largado lá. Eles podem distinguir pelo sangramento, ou o que seja, que foi morto em outro lugar.”

     “Eles sabem a hora da morte?”

     “O legista fixou entre dezessete e dezoito horas de ontem.”

     “Quem achou o corpo?”

     “O pessoal da manutenção de estrada que tinha ido trabalhar na ponte.”

     “E quanto a suspeitos?”

     “Estão conversando com as pessoas aí da vizinhança. Vão chegar a você logo, portanto é melhor ensaiar seu álibi... Tenho de ir agora para escrever minha história. Mantenha isto em segredo até que o jornal saia nas ruas.”

     Qwilleran procurou a agenda de telefones da sra. Cobb, mas antes que pudesse fazer outra ligação houve um tumulto no parapeito da janela. Koko estava agitado, andando de um lado para outro no peitoril como tigre enjaulado, emitindo um agudo “ik ik ik”.

     “Que confusão é esta?”, perguntou Qwilleran. Foi até a janela a tempo de ver algo desaparecendo pela entrada de gatos da porta do celeiro, e não era um gato. Na rampa de relva estava um pequeno objeto verde brilhante.

     Qwilleran ligou para a casa dos Boswell. “Aqui é Qwilleran. Acho que Baby está no celeiro. É melhor mandar seu marido pegá-la.”

     “Ah, meu Deus!... eu não sabia...”, disse uma voz confusa. “Vince não está... vou me vestir...”

     “Está se sentindo bem, sra. Boswell?”

     “Eu estava deitada... não sabia... vou me vestir...”

     “Fique onde está. Vou achá-la e levá-la para casa.”

     “Ah, obrigada... sinto muito... eu não sabia...”

     Qwilleran omitiu as amenidades, enfiou umas roupas e correu para o celeiro. Abrindo o buraco da agulha e espiando na escuridão, chamou: “Baby! Baby!” — a voz ecoando no recinto abobadado. Então abriu as grandes portas, e a torrente de luz revelou a menininha caminhando com dificuldade por uma passagem entre os engradados, carregando um gatinho, com as quatro patas sobressaindo desajeitadamente como um espantalho.

     “Achei um gatinho”, disse ela.

     “Cuidado! Ele pode arranhar. Ponha-o no chão devagar — muito devagar — isso mesmo!”

     Baby era obediente. Isso contava a seu favor, pensou Qwilleran. Ela atendia à razão e era obediente.

     “Eu gosto de gatinhos”, disse.

     “Eu sei que gosta, mas sua mãe quer que vá para casa. Ela não está se sentindo bem. Pegue seu balde e vamos voltar para casa.”

     Com um olhar relutante para o gato que se afastava nas perninhas trêmulas, Baby saiu, apanhou o balde verde e a pá amarela. Qwilleran fechou as portas do celeiro, e começaram a descer a rampa.

     “É um balde bonito. Onde o arranjou?”

     “A mamãe comprou para mim.”

     “De que cor é?”

     “É verde!”, disse impaciente, como se considerasse o interlocutor mentalmente deficiente.

     “O que você faz com o balde?”

     “Cavo na areia.”

     “Não existe areia por aqui.”

     “Nós fomos para a praia”, disse, com uma carranca de criança de dois anos.

     Estavam atravessando o terreiro devagar, e Qwilleran percebeu que as pernas das criancinhas são excepcionalmente curtas; levaria meia hora para atravessar a Alameda do Riacho Negro. Duvidava que conseguisse manter um diálogo com Baby, por meia, hora sem insultar a inteligência dela e sem parecer um idiota.

     Ela quebrou o silêncio para dizer: “Quero ir ao banheiro.”

     “Você não pode esperar até chegar em casa?”

     “Não sei.”

     Possibilidades medonhas passaram pela cabeça de Qwilleran. Era uma situação que nunca havia enfrentado.

     No entanto Baby tinha uma solução. “Você tem um banheiro?”, perguntou.

     Criança trapaceira! pensou; está determinada a entrar para ver os gatos. Pensando depressa, disse: “Está enguiçado.”

     “O que quer dizer isso?”

     “Está quebrado.”

     Continuaram andando, Qwilleran segurando-lhe a mão e puxando-a.

     “Eu quero ir ao banheiro”, repetiu.

     Qwilleran inspirou profundamente. “Está bem, vou levá-la depressa para casa. Segure bem o balde.” Pegou-a no colo como vira Verona fazer, refletindo que ela não pesava muito mais que Yum Yum. Com passadas rápidas, tomando cuidado para não sacudi-la, apressou-se pela alameda.

     Verona os esperava na varanda, vestindo um roupão surrado, os cabelos despenteados e o rosto pálido. Um dos olhos estava inchado e fechado e tinha uma equimose roxa no pescoço.

     “Obrigada, sr. Qwilleran. Sinto tê-lo incomodado.”

     Baby puxou o roupão da mãe, e uma compreensão sem palavras passou entre elas.

     “Com licença”, disse Verona.

     Qwilleran esperou. O olho preto aguçou-lhe a curiosidade. Quando ela voltou, disse: “Onde está Vince?”

     “Foi para Lockmaster... à biblioteca? Fazer umas pesquisas? Saiu ontem à tarde?” A cadência fascinante tinha voltado à sua fala.

     “O que houve com seu olho?”, perguntou Qwilleran.

     “Ah, fui uma tola! Bati na porta do armário?”

     Qwilleran bufou nos seus bigodes. Já ouvira isso antes. “Achei sua filha brincando com gatinhos no celeiro. Eles podem ser bravos. Ela poderia ser arranhada ou mordida.”

     “Coitada da Baby, não tem ninguém com quem brincar”, disse Verona pateticamente.

     “Por que é que seu marido não faz uma caixa de areia para ela? Ela gosta de cavar.”

     “Vou pedir, mas ele trabalha muito e fica tão cansado? A perna ruim, sabe, ele tem muitas dores?”

     “Quando ele volta?”

     “Acho que estará em casa para jantar?”

   Caminhando de volta ao museu, Qwilleran pensou, por que Boswell iria até a biblioteca de Lockmaster quando a de Pickax tinha a coleção completa de material para impressão manual? O que mais o atrairia em Lockmaster? O centro médico? A pista de corridas? Ou algum negócio escuso relacionado aos engradados do celeiro? Suas suspeitas fugazes sobre o conteúdo dos engradados retornou, e ele pensou, gostaria de passar uma hora com um pé de cabra naquele celeiro!

     Ao chegar em casa achou Koko na mesa do telefone, uma indicação de que tinha estado tocando. Kristi podia ter tentado ligar. Telefonou para a Fazenda Fugtree.

     “Já ouvi as notícias!”, disse a ela. “Não sei o que dizer!”

     Ela falou com surpreendente agressividade. “Pois eu sei muito bem o que dizer. Por que não o mataram antes que envenenasse minhas cabras?”

     “A polícia tem algum suspeito?”

     “É claro”, disse amargamente. “Sou a principal suspeita e Mitch vem logo em seguida.”

     “Como é que eu entro na lista?”, perguntou Qwilleran. “Estava em Willoway no domingo de manhã e o ouvi ameaçando você. Atirei uma pedra no rio, mas estava com vontade de atirá-la na cabeça dele.”

     “Bem, imagino que a polícia irá contatá-lo como rotina.”

     “Vou manter contato. Diga se houver qualquer coisa que eu possa fazer.”

     Logo em seguida Larry telefonou. “Que diabo está acontecendo em North Middle Hummock, Qwill? Primeiro foi a morte de Iris, depois dois furtos no museu, depois um rebanho de cabras foi envenenado, e agora um cadáver misterioso.”

     “Sou inocente!”

   “Tivemos um pedido para o emprego de Iris, de uma senhora de Lockmaster, que é altamente qualificada, mas é muito idosa, considerando que já sofreu um ataque do coração. Deus sabe que não queremos que outra administradora caia morta no chão da cozinha.”

     “Eu ainda acho que Mitch é o seu homem, Larry”, disse Qwilleran. “Passei umas horas com ele ontem à noite e fiquei bem impressionado. Tem boas idéias e traria alma nova ao trabalho. Os velhos gostam dele. Os moços também.”

     “Eu dou valor à sua opinião”, disse Larry, “mas — olhando mais longe — ainda sou a favor de Boswell, e Susan compartilha minha opinião. Como administrador, ele pode continuar catalogando as impressoras, ajudar-nos a montar um Museu de Impressoras Manuais e assumir o título de curador. No seu âmbito, eu diria que será único nos Estados Unidos, senão no mundo! Mas, é claro, a decisão final será da junta dos diretores. Vamos ter uma reunião nesta semana.”

     Qwilleran disse: “Desculpe, Larry. Há um carro de polícia parando à minha porta. Falo com você depois.”

     O policial na soleira da porta era o que tinha respondido à chamada de Qwilleran dez dias antes. “Sr. Qwilleran, posso fazer-lhe umas perguntas?”, indagou polidamente.

     “Claro. Entre, por favor. Não quero que os gatos fujam para fora de casa.” Ambos estavam atrás dele, farejando o ar puro.

     O policial perguntou: “O senhor viu ou ouviu qualquer coisa suspeita nas vizinhanças da Estrada Fugtree?”

     “Não posso dizer que ouvi. Esta velha casa é construída como uma fortaleza, sabe, e as janelas estavam fechadas. Vieram amigos aqui à noite, estávamos conversando e não prestamos muita atenção ao mundo lá fora... embora... haja uma coisa que eu gostaria de mencionar”, acrescentou Qwilleran como uma reflexão posterior. “Algum tempo depois da meia-noite eu estava lendo na cama, quando os gatos me alertaram para um barulho surdo. Verifiquei o apartamento e o museu mas encontrei tudo em ordem.

     “Olhou lá fora?”

     “Olhei rapidamente, mas tudo estava quieto e então voltei à minha leitura.”

     “A que horas foi isso?”

     A WPKX estava anunciando o fim das transmissões.”

     Nesse momento houve um som no vestíbulo, e os dois homens viraram-se para olhar a fonte. Vinha do chão, no fundo do vestíbulo. Um dos tapetes orientais tinha uma elevação no meio, e ela estava se mexendo.

     “É o meu gato”, explicou Qwilleran. “Ele se entoca sob os tapetes e conversa consigo mesmo.”

     O policial pegou uma fotografia de um homem, frente e perfil. “Já viu essa pessoa na vizinhança nos últimos dois ou três dias?”

     “Não posso dizer que já vi.” Era um rosto que já fora bonito, mas agora parecia depravado, de um homem de trinta anos. “É este o homem que estão procurando?”, perguntou Qwilleran com fingida inocência.

     “Esta é a vítima. Estamos interessados nos seus movimentos nos últimos dias.”

     “Eu o informarei se souber de alguma coisa.”

     “Eu apreciaria.”

     Qwilleran fechou a porta assim que o policial saiu, endireitou o tapete enrugado e foi procurar Koko. Desta vez ele estava em cima da mesa de jantar, vigiando a bíblia e contraindo os bigodes.

     “Ahá! Couro!”, disse Qwilleran em voz alta. A capa era de couro, elaboradamente estampada em relevo com filetes de ouro, e os rebordos das páginas eram dourados. Provavelmente tinha cem anos, calculou. Abrindo a bíblia para verificar a data da publicação, não foi além da folha de rosto. A página estava coberta de registros de família escritos a mão, e alguns dos nomes e datas despertaram a imediata atenção de Qwilleran.

 

     Ao passo que a capa de couro atraía Koko, a folha de rosto ocupou a atenção de Qwilleran nas horas seguintes. Esqueceu de almoçar, e os siameses respeitaram sua concentração e não interromperam, embora Koko ficasse por perto para dar apoio moral. O magnífico livro tinha algum dia ocupado lugar de importância e respeito na mesa da sala de visitas de alguém. Mais recentemente havia sido relegado à miscelânea de relíquias dos Fugtree, adquirindo um pouco do bafio de mofo da casa. Foi esse cheiro que fez os bigodes de Koko se contraírem, pensou Qwilleran.

Dentro da capa havia um comprovante de venda da Casa de Leilões Bid-a-Bit datado de agosto, 1959, declarando que a sra. Fugtree tinha pago cinco dólares pela “Bíblia Bosworth”. Verificando rapidamente a lista telefônica do Condado de Moose, Qwilleran não viu qualquer Bosworth arrolado; ou a família havia morrido, ou tinha se mudado. Também dentro da capa estava um envelope com recortes de jornal amarelados, obviamente do antigo Pickax Picayune. No típico estilo do século XIX, todos os itens novos, obituários e notas sociais pareciam anúncios classificados, com tipos de corpo microscópico, sugerindo que os leitores tinham melhor visão naquele tempo.

     Examinou os recortes e deixou-os de lado, voltando a atenção para a folha de rosto. Tendo ouvido os membros da Sociedade de Genealogia contarem suas aventuras quando investigavam linhagens, sabia que era costume manter os registros de família numa bíblia. Não conhecia nada de seus ancestrais, exceto que o nome de solteira da mãe era Mackintosh; no entanto, achou fascinante a árvore genealógica da família Bosworth.

     Infelizmente, as gerações não estavam catalogadas de modo científico. Nascimentos, mortes, casamentos e calamidades eram registrados conforme iam ocorrendo, com o ano anotado. Uma casa incendiara-se em 1908; uma perna fora amputada em 1911; alguém se afogara em 1945. Era um diário informal tanto quanto uma árvore genealógica. Nos primeiros anos os registros estavam escritos com uma pena larga molhada em tinta, que desbotara um pouco — mais adiante, com uma caneta-tinteiro que ocasionalmente vazava — e finalmente, parecia, com uma esferográfica de boa qualidade.

     A caligrafia sugeria que a mesma pessoa havia feito todos os registros por mais de cinqüenta anos, e a escrita delicada levou Qwilleran a pensar que era uma mulher. O último registro datava de 1958, um ano antes da bíblia ser vendida em leilão, sem dúvida na liquidação de seus bens. Nenhum membro da família havia reivindicado o nostálgico documento. Ele logo adivinhou sua individualidade e decidiu que gostava dela. Ela incluía sarcasmos nas notícias: uma noiva tinha um grande dote ou pés pequenos; um recém-nascido tinha cabelos vermelhos ou orelhas grandes; uma notícia de falecimento vinha seguida de um comentário lacônico: “Bebia.” Não havia espaço na folha para palavras supérfluas, mas os recortes de jornal aumentavam as estatísticas vitais.

     Qwilleran atacou a pesquisa com o mesmo gosto que se dedicava a uma boa refeição, e Koko sabia que alguma coisa empolgante estava acontecendo. Sentou-se na mesa e olhava atentamente enquanto os recortes eram distribuídos em pilhas bem ordenadas: casamentos, nascimentos, crismas, anúncios de negócios, obituários, acidentes etc; de vez em quando avançava timidamente uma pata para tocá-los, retirando-a quando Qwilleran dizia: “Não!”

     O que primeiro chamou-lhe a atenção foi uma data. Encabeçando a página estava o nome de Luther Bosworth, nascido em 1874. A semelhança com o nome de Vince foi notada e descartada; o fator importante era a data da morte — 1904. Se Luther morrera em 13 de maio daquele ano, fora obviamente uma das vítimas da explosão, com apenas trinta anos de idade. Mas um mineiro possuiria uma bíblia tão ostentosa? Suas casas não passavam de barracos, e os proprietários das minas administravam as lojas da companhia mantendo os trabalhadores constantemente em dívida.

     Uma averiguação mais extensa mostrou que Luther casara-se em 1898. A noiva, Lucy, tinha apenas dezessete anos. Seis anos depois ela ficara viúva com quatro filhos pequenos. O que faziam as viúvas naquele tempo? Mandavam os filhos para um orfanato? Lavavam roupa para fora?

     “Acho que foi Lucy quem manteve estes registros”, disse Qwilleran a Koko. “Droga! Por que não registrou as datas exatas? E como conseguiu esta bíblia cara?”

     “MIAU!”, fez Koko ambiguamente.

     “Muito bem, vamos ver se descobrimos o que aconteceu aos quatro filhos de Lucy.” A folha de rosto deu as seguintes informações:

     Um filho morreu em 1918. “França”, dizia a anotação, convertendo-o num dos mortos da Primeira Guerra Mundial.

     Uma filha morreu em 1919. “Gripe.” Uma contra-referência no Picayune revelava que setenta e três moradores do Condado de Moose tinham morrido naquela epidemia de pós-guerra, inclusive dois médicos, que “haviam trabalhado até cair”.

     Duas crianças, Benjamin e Margaret, sobreviveram para dar continuidade à linhagem familiar, mas só Benjamin podia carregar o nome da família. Qwilleran investigou a linha dele primeiro, e o que descobriu fê-lo esmurrar a mesa sobressaltado.

     Benjamin Bosworth tivera três filhos. Um deles, de nome Henry, morreu em 1945. “Marinha — afogado no mar”, foi a anotação da avó. A viúva de Henry mudou-se para Pittsburgh em 1956, levando o filho. O menino sofreu um acidente em 1955, e o registro do Picayune elucidava em seu estilo lacônico usual: “Um empregado do Pomar Trevelyan disparou uma espingarda de caça para impedir alguns rapazes de roubar as macieiras, na quarta-feira à tarde, resultando em três garotos assustados e uma perna quebrada. Vincent Bosworth caiu de uma árvore e teve fratura exposta.”

     Com óbvio regozijo, Qwilleran bateu na mesa e disse: “Muito bem, Koko, o que deduz disso?”

     O gato arrastou as patas, constrangido, e não fez comentários.

     “Eu lhe digo o que deduzi! Vincent Bosworth, ainda sofrendo de uma fratura mal consolidada — e não poliomielite! — volta de Pittsburgh depois de muitos anos com o nome mudado. Por que voltou? E por que mudou o nome? E por que atribui a sua claudicação à poliomielite? Vince é neto de Luther e Lucy!”

     Qwilleran estava tão entusiasmado que teve de sair para espairecer um pouco. Deu duas voltas ao redor do terreno, tomando cuidado para não arrastar os pés nas folhas secas. A terra úmida exalava um aroma intoxicante; os crisântemos ferrugem e ouro do clube de jardinagem ainda floresciam teimosos; um gato de celeiro tomava sol na rampa de relva; não havia sinal de Boswell e seu furgão. No todo, estava um dia muito agradável.

     Voltando à investigação genealógica, disse a Koko: “Isto é mais divertido que garimpar ouro. Agora vejamos o que aconteceu à filha de Luther, Margaret.”

     De acordo com a folha de rosto, Margaret desposara um tal de Roscoe DeFord. O orgulhoso comentário de Lucy era “Advogado!” O Picayune mencionava uma recepção para duzentos convidados no Hotel Pickax e uma lua-de-mel em Paris — nada mal para a filha de um mineiro, pensou Qwilleran, se é que Luther o era. O nome DeFord ainda estava em evidência em Pickax, embora não no exercício da advocacia.

     Trabalhando mais depressa, impelido pela expectativa, identificou a descendência de Roscoe e Margaret DeFord: quatro filhos e dez netos. Dentre os últimos havia uma Susan, nascida em 1949.

     “Macacos me mordam!”, disse Qwilleran. Lembrou-se do letreiro dourado na janela de Exbridge & Cobb. Num canto estavam os nomes das proprietárias: Iris Cobb e Susan DeFord Exbridge.

     “Então Susan Exbridge e Vince Boswell são primos em segundo grau!”, disse ao fiel Koko. “Quem diria? Ela é tão melíflua, e ele tão grosseiro! Mas os laços sangüíneos são fortes, como dizem por aí, e é por isso que ela o apóia para o emprego no museu. Obviamente não quer que se saiba que são aparentados.”

     A descoberta pedia uma celebração. Preparou café e descongelou alguns biscoitos de chocolate do farto freezer, è deu aos siameses um punhado para mastigar, pois era nutritivo e bom para seus dentes. Estava ansioso para retomar a pesquisa, agora. Havia mais uma pista a seguir: o destino da viúva de Luther.

     “A última coisa que soubemos”, disse, “é que era uma viúva de vinte e três anos com quatro filhos e uma bíblia esplêndida. Seria muito religiosa? Seria bonita? Pena que não temos uma fotografia sua.”

     Seu entusiasmo era contagioso, e os dois gatos estavam agora atentos, sentados na mesa em poses esculturais. A notória pata de Yum Yum ocasionalmente tumultuava a ordem dos recortes.

     “Por favor! Se quer tomar parte, faça algo de construtivo... Ouçam isto! No mesmo ano em que Luther morreu, Lucy estabeleceu-se como comerciante — e não foi como lavadeira!”

     Um anúncio de negócios no Picayune dizia: “Lucy Bosworth, viúva de Luther Bosworth, anuncia que comprou o Armazém Geral de Pickax de John Edwards, que se aposentou por motivos de saúde. A sra. Bosworth continuará a vender alimentos, vestuário, ferragens, miudezas, aviamentos e cerveja da melhor qualidade, a preços módicos. Aberto diariamente das 7 às 22 horas. Fechado aos domingos até o meio-dia.”

     “O armazém de 1904!”, exclamou Qwilleran. “Com jogos de dama em volta do fogão bojudo em vez de videogames... Espere! o que temos aqui?”

     Um comentário escrito na margem do recorte, na letra reconhecível de Lucy, dizia: “Pago a vista.”

     “Interessante”, disse Qwilleran. “Se Luther era mineiro, onde Lucy conseguiria dinheiro para comprar a vista uma empresa em funcionamento? Os mineiros não tinham seguro de vida naquele, época — isso eu sei! Teria Ephraim indenizado as famílias das vítimas? Improvável, a menos que fosse forçado. Lucy o processara? As vítimas não tinham muita chance, em casos de litígio, nos velhos tempos. Teria ela chantageado o velho pão-duro? Baseada em quê?”

     “MIAU!”, fez Koko com uma ênfase que reforçou a conjetura de Qwilleran.

     Continuou decifrando os registros da folha de rosto. Em 1904 Lucy comprou a loja. Em 1905 casou de novo. O novo marido era Karl Lunspik, e seu comentário entre parênteses na bíblia era “Bonitão!”

     “Ah!”, disse. “Homem bonitão desposa viúva com quatro filhos pequenos! Por amor? Ou por que ela possuía um negócio de sucesso e uma bíblia cara?” Os fatos seguintes fizeram seu bigode eriçar-se:

     Em 1906 Karl e Lucy tiveram um filho, William.

     Em 1908 o nome deles foi legalmente mudado para Lanspeak.

     Em 1911 o Armazém Geral de Pickax foi redenominado Secos e Molhados Lanspeak.

     Em 1926 o filho William juntou-se aos negócios, e a loja tornou-se Loja de Departamentos Lanspeak.

     William teve cinco filhos e onze netos, um destes sendo Lawrence Karl Lanspeak, nascido em 1946.

     “Fantástico!”, berrou Qwilleran, para susto dos siameses, que debandaram. “Eles são todos primos em segundo grau — Larry e Susan com seus conhecimentos no clube de campo e carros de status... e Vince Boswell com seu furgão enferrujado e modos irritantes. Larry é bisneto da indestrutível Lucy Bosworth!”

     Apanhou o telefone e ligou para a loja. Assim que Larry ouviu a voz de Qwilleran, disse: “Já viu os jornais de hoje? Eles identificaram o corpo. Foi o sujeito que envenenou as cabras!”

     “Eu sei”, disse Qwilleran. “A polícia esteve por aqui fazendo perguntas.”

     “Espero que não tenha dado seu nome verdadeiro”, gracejou Larry.

     “Falando de nomes, fiz uma descoberta no museu. Quando está planejando vir para cá?”

     “Amanhã, mas por que você não vem à cidade hoje para jantar comigo e Carol? Encontre-nos no Stephanie’s.”

     “Boa idéia”, disse Qwilleran, “mas hoje não posso. Obrigado assim mesmo. Vejo-o amanhã.” Absteve-se de mencionar que Polly ia trazer Bootsie para passar a noite.

     Ao deixar o telefone ouviu batidas fracas na porta da frente do apartamento, que o alarmaram. O chamado usual daquele lado era o retinir da aldrava de latão da porta. Os siameses ficaram imóveis com as orelhas para a frente e, quando ele saiu da cozinha para investigar, eles ficaram para trás. Andando pelo vestíbulo, ouviu as batidas de novo. Olhou pelo vidro da porta da frente, mas não viu ninguém parado lá nem carro estacionado no pátio. Era verdade, falou consigo, que as casas velhas faziam ruídos estranhos.

     Ao voltar as costas, o ruído se repetiu. Mesmo em plena luz do dia era misterioso, e para os ouvidos da sra. Cobb no meio da noite deviam ter sido apavorantes.

     Voltou sobre os passos até a porta da frente e escancarou-a. No degrau de cima estava Baby, carregando o balde verde e levantando a pá amarela, pronta para bater de novo.

     “Oi!”, disse.

     Qwilleran gemeu com alívio e aborrecimento. “O que está fazendo aqui? Sua mãe sabe onde você está?”

     Ela ofereceu o balde verde. “Isto é para você.”

     Havia um bilhete no balde, bem como um pedaço de alguma coisa embrulhado em papel encerado. O bilhete dizia: “Pensei que gostaria de um bolo de carne para fazer sanduíche. Fiz ontem, fica melhor no dia seguinte.”

     “Diga à sua mãe muito obrigado”, disse, devolvendo o balde.

     Baby estava espiando entre as pernas dele. “Posso ver os gatinhos?”

     “Eles estão dormindo. Por que você não vai para casa e dorme?”

     “Eu já dormi”, disse, virando-se e olhando especulativamente para o celeiro.

     “Vá para casa agora”, falou severamente. “Vá direto para casa, está me ouvindo?”

     Sem mais uma palavra Baby desceu os degraus e marchou pela alameda com suas pernas curtas, carregando o balde verde. Ele ficou olhando até que ela chegasse quase em casa. Ela não olhou para trás uma só vez. Qwilleran preparou um sanduíche de almôndega para si e deu um pouco para os gatos. Os três devoraram-na como se estivessem em jejum há uma semana. Depois, pegou a bicicleta no celeiro de aço e foi dar uma volta. Havia uma quantidade anormal de tráfego na Estrada Fugtree — basbaques, indo olhar onde o corpo fora achado, esperando ver sangue. Uma turma de trabalhadores estava consertando a ponte, e uma tabuleta laranja berrante avisava que a estrada estava fechada, mas Qwilleran passou pedalando pela barreira e falou com o capataz, um homem corpulento com as bochechas cheias de rapé. O capataz reconheceu o bigode familiar.

     “Bem ali adiante”, disse, apontando para o barranco pedregoso onde Qwilleran antes tinha descido para Willoway. “Sangue seco por todo o rosto. Parecia uma daquelas máscaras de Halloween.”

     “A polícia tem idéia de quem foi?”

     Era lugar-comum no Condado de Moose que qualquer pessoa com ares de fazendeiro possuía informações confidenciais ou estava disposto a inventá-las.

     “Ouvi dizer que eles têm um par de suspeitos, mas não indiciaram ninguém ainda. Ele foi morto em outro lugar e jogado aqui. Havia muitas marcas de pneus enlameados no asfalto quando chegamos para trabalhar.”

     “Quem era o homem assassinado?”

     “Era o homem que envenenou as cabras — um. preso fugido, gente local — foi Lá para Baixo e se meteu em encrenca. Só digo”, disse o capataz com uma cusparada enfática, “que se fossem minhas cabras eu teria ido atrás dele com uma espingarda!”

 

     Qwilleran voltou do passeio de bicicleta justamente quando Polly estacionava o carro no terreiro. “Estou um pouco adiantada”, desculpou-se, “porque quero chegar a Lockmaster antes de escurecer.” Ela entregou-lhe um “porta-gato” de papelão. “Eis o meu queridinho. Leve-o para dentro antes que apanhe um resfriado. Vou pegar a bagagem dele.”

     O “porta-gato” tinha uma alça, buracos redondos para ar, e uma mensagem impressa num dos lados: “Oi! Meu nome é Bootsie. Qual é o seu?” De um dos buracos apareceu um focinho úmido do tamanho de um botão, que sumiu depressa e deu lugar a uma pata marrom que podia pertencer a um cocker spaniel.

     Polly entrou no apartamento carregando uma lata de comida para gatos, de aspecto saudável e com uma porção de letrinhas no rótulo, uma cesta acolchoada, uma escova e uma caixa de lixo forrada com papéis rasgados. “Esta é a privadinha dele”, disse. “Foi treinado com papel. Eu uso toalhas de papel — não jornais porque a tinta pode sair no traseirinho dele... E esta é a comida especial, uma fórmula computadorizada para satisfazer às suas necessidades. Dê-lhe três colheres de sopa rasas, nem mais nem menos, em cada refeição, e não o deixe comer mais nada. Espalhe-a numa camada bem fina num pires; sugiro que coloque num canto isolado para que ele não se sinta ameaçado.”

     “E água para beber? Pode ser de torneira?”

     “Água da torneira está bem”, disse séria, “e esta é a cesta de dormir. Ponha-a num lugar quentinho, a cerca de meio metro do chão... E muito obrigada, Qwill! Agora preciso correr. Deixe-me despedir do queridinho.” Ternamente ergueu Bootsie do “porta-gato” e tocou o nariz no focinho molhado. “Beijinho, beijinho, meu amor. Seja bonzinho.” Para Qwilleran, acrescentou: “Amanhã é aniversário dele, por falar nisso; vai fazer onze semanas.”

     Despediu-se de Qwilleran terna mas apressadamente, entregou-lhe o inocente gatinho e correu para o carro. Ele ficou segurando o montinho de pêlos ronronante, imaginando o que teria acontecido aos siameses. Eles tinham evitado as cerimônias da chegada, como era de esperar, e até que ele soubesse onde estavam os siameses relutava em largar Bootsie.

     Koko e Yum Yum, acabou descobrindo, estavam em cima do armário da Pennsylvania de dois metros de altura, sentados lado a lado como dois embrulhos compactos, parecendo petrificados. “Ah! vocês estão aí!”, disse Qwilleran. “Desçam e venham conhecer Pé Frio.”

     Colocou cuidadosamente o gatinho no chão. A criaturinha parecia vulnerável com o pescocínho branco e o fino rabo marrom, pés bambos e o focinho manchado, mas assim que se viu livre ensaiou uns passos cambaleantes e subitamente precipitou-se para fora da sala como um foguete. Quando Qwilleran o alcançou, estava sobre o balcão da cozinha devorando o resto da almôndega, com papel encerado e tudo. Vendo o homenzarrão, correu para a frente do apartamento com saltos exagerados como um gafanhoto, pulando da cadeira para a mesa, para a escrivaninha, para a cama, para a penteadeira. Koko e Yum Yum continuavam encarapitados em cima do armário, olhando para baixo aparentemente incrédulos.

     Nas horas seguintes Pé Frio criou o caos com sua fuga alucinada — trombando nos móveis, quebrando uma peça de vidro antiga, pulando, caindo e aterrissando de costas, subindo pela perna das calças de Qwilleran e agarrando-se a seu colo. Depois de um jantar exasperante, Qwill telefonou a Lori Bamba em Mooseville e gritou: “Socorro!”

     Não perdeu tempo perguntando pela saúde do bebê ou pela procura de emprego por Nick. Disse: “Não sei como fui cair nesta armadilha, Lori. Polly Duncan tem um novo gatinho e eu concordei em tomar conta dele, mas é um maníaco assanhado, hiperativo e movido a jato! Está nos deixando a todos loucos, zunindo e agarrando-se em tudo, e o tempo todo ronrona como um Modelo T com dois cilindros falhando.”

     “Que idade ele tem?”, perguntou Lori.

   “Amanhã faz onze semanas. E vou ter de cantar ‘Feliz Aniversário’ para ele.”

     “Lembre-se, Qwill, ele é muito novinho e foi abandonado numa casa estranha com dois gatos grandes. Está assustado. O medo o faz fugir.”

     “Assustado!”, gritou Qwilleran. “Koko e Yum Yum é que estão assustados. Estão em cima do armário de dois metros de altura e não querem descer nem para comer. Pé Frio comeu sua própria comida aprovada clinicamente, depois devorou o peru com azeitonas e cogumelos dos meus gatos, em seguida investiu e arrancou um pedaço de salmão do meu garfo!... E vou lhe dizer outra coisa. Em vez de garras, ele tem agulhas. Quando me sento, pula no meu colo e enterra aquelas dezoito agulhas em mim. O decoro me impede de descrever o efeito disso. Peça ao seu marido para explicar.”

     Lori escutava compreensiva. “Onde está o gatinho agora?”

     “Eu finalmente o tranquei no seu “porta-gato”, mas não posso deixá-lo naquela caixa apertada por vinte e quatro horas. Existe algum tipo de calmante para gatos?”

     “Com toda essa comida no estômago e a segurança do “porta-gato”, ele vai dormir logo, Qwill. Deixe-o lá até que se acalme. Depois, na hora de dormir, tranque-o na cozinha com um pires de água, a privadinha e alguma coisa macia para dormir em cima.”

   “Vou tentar. Obrigado, Lori.”

     Ela tinha razão. Pé Frio ficou quieto por toda a tarde, e os siameses aventuraram-se a descer do seu poleiro seguro. A paz doméstica foi curta, no entanto.

     Logo antes da meia-noite Qwilleran levou o “porta-gato” para a cozinha, fechou a porta e soltou Pé Frio. Por uns instantes o gatinho cambaleou pelo chão como um lavrador bêbado, guinchando e ronronando ao mesmo tempo. Depois calou-se e desapareceu misteriosamente. Era óbvio que estava armando uma emboscada.

     Qwilleran estava preparando a refeição noturna do gatinho — três colheres de sopa do insosso picadinho cinzento espalhado num pires — quando foi subitamente atacado por trás. Pé Frio pulara nas suas costas e se agarrara ao suéter.

     “Desça!”, berrou, sacudindo os ombros numa tentativa de desalojar o atacante, mas o suéter era grosso, e Bootsie estava firmemente enganchado nas malhas e guinchava com toda a força de seus minúsculos pulmões.

     “Desça!... Ai! ai!” Cada vez que gritava, as agulhas enterravam-se mais fundo em sua carne e os guinchos aumentavam.

     “Cale a boca, seu idiota!”

     Qwilleran tentou alcançar as costas, primeiro por cima dos ombros, depois pela cintura. Na primeira tentativa agarrou as orelhas; na última, um rabinho. Puxou delicadamente pelo rabo. “Ai! ai! Droga!”

     Ouvindo o rebuliço, os siameses arriscaram-se a descer do armário e uivavam do lado de fora da porta da cozinha.

     “E vocês calem a boca também!”, berrou para eles.

     Fique calmo, disse a si mesmo, e tentou sentar-se devagar na ponta de uma cadeira. Funcionou até um ponto. Bootsie parou de guinchar e arranhar, mas não fez qualquer tentativa de desprender suas garras. Estava perfeitamente satisfeito de passar a noite suspenso como um bebê índio.

     Depois de cinco minutos de inatividade, Qwilleran perdeu a paciência. Como dissera Lori, o medo o faria fugir. Levantou-se num salto, urrando uma praga que aprendera no norte da África, agitando os braços e galopando pela cozinha como um pajé-curandeiro. A praga terminou num prolongado uivo de dor, quando Pé Frio agarrou as costas de Qwilleran para a cavalgada selvagem.

     Já passava da meia-noite. Em desespero de causa, ligou para o número dos Boswell. Quando ouviu o suave alô de Ve-rona, gritou: “Chame Vince! Estou em apuros! Aqui é Qwilleran.”

     “Sinto, mas Vince ainda não voltou”, disse a voz macia num tom de alarme. “Posso ajudar?”

     “Estou com um gato nas minhas costas — com as garras enterradas no meu suéter! Preciso de alguém para soltá-lo... Ai-ai-ai!”

     “Ah, meu Deus! Já estou indo.”

     Ele encaminhou-se devagar para a porta da frente, tentando não assustar Pé Frio, e acendeu as luzes do terreiro. Em questão de minutos que pareceram horas, Verona apareceu, correndo e agarrando uma lanterna. Um casaco estava jogado por cima do roupão surrado.

     Abrindo a porta em câmara lenta, ele a avisou: “Não faça nenhum movimento súbito. Veja se pode agarrá-lo pelo meio e levantá-lo devagar para que solte as garras. Tente desprender uma de cada vez.”

     Verona fez o que ele mandava, mas quando soltava uma pata, outra se agarrava com determinação renovada.

     “Acho que não está funcionando. Posso fazer uma sugestão?”, perguntou com seu jeito respeitoso. “Poderíamos tirar seu suéter pela cabeça? Se eu o enrolar pelas costas, conseguiremos que saia com gatinho e tudo.”

     “Tudo bem. Vá com calma. Não o assuste.”

     “Ah, ele é um gatinho bonzinho. É um gatinho tão lindo!”, murmurava Verona, enrolando o suéter por cima do animalzinho e da cabeça de Qwilleran. “Nossa!”, disse ela. “Sua camisa está manchada de sangue?”

     Ele arrancou-a. , “E suas costas estão cobertas de arranhões sangrando? Você tem um antisséptico?”

     “Tem um no banheiro, acho.”

     Deixando Pé Frio enrolado confortavelmente no suéter, foram até o banheiro e acharam um líquido que Verona aplicou generosamente aos arranhões, enquanto Qwilleran se encolhia e resmungava.

     “Dói? Mas não queremos ter uma infecção, não é? Pronto, vista alguma coisa para não ficar resfriado?” A voz dela era música aos seus ouvidos.

     “Não sei como agradecê-la, sra. Boswell”, disse colocando uma camisa limpa. “Não queria incomodá-la a esta hora, mas a outra saída seria chamar o corpo de bombeiros voluntários de North Kennebeck.”

     “Não me incomodou de modo algum. Há mais algum arranhão que precise de antisséptico?”

     “Uh... Acho que não”, disse Qwilleran. “Onde está Vince?”

     “Ficou em Lockmaster mais um pouco. Não terminou na biblioteca’?”

     Ele olhou para a mulherzinha patética com o cabelo despenteado, o olho preto ficando amarelo, as ridículas roupas — casaco cáqui, roupão desbotado, chinelos velhos. “Gostaria de uma xícara de café?”

     “Tenho de ir para casa”, disse. “Deixei Baby dormindo e ela pode acordar... mas... você tem leite?”

     “Leite? Acho que não. Não tomo leite. A sra. Cobb deixou uma caixa, mas azedou e eu joguei fora.”

     “Estou sem leite para Baby? Pensei que Vince voltaria e faria umas compras?”

     “Há uma lata de leite em pó aqui. Serve?”

     “Ah, eu apreciaria muito?”

     “Se Vince não tiver chegado até amanhã cedo, vou comprar alguma coisa para você. Faça a lista do que precisa.”

     Verona corou embaraçada. “Ele não me deixou dinheiro.”

     “Isso é imperdoável! Vamos ver o que temos aqui.” Pegando uma sacola de compras no armário de vassouras, encheu-a com pão de queijo, bolinhos de mirtilo, pão de banana e nozes, sopa de legumes, caçarola de atum, chili e — relutantemente — seu prato favorito, macarrão com queijo. “Vou levá-la de carro para casa”, disse, apanhando um casaco e procurando as chaves.

     Era uma viagem curta, não mais que dois quarteirões. Depois de um breve silêncio, Verona disse: “Eu vi seus gatos grandes? São lindos! Gostaria que Baby os visse um dia.”

     “Está bem”, disse. “Traga-a na quinta-feira de tarde. E obrigado de novo, sra. Boswell, por vir em meu socorro.”

     “Chame-me Verona”, disse ao sair do carro. Esperou até que ela entrasse e depois foi embora, perguntando-se como uma mulher agradável como Verona podia ter se envolvido com um cafajeste como Boswell.

     De volta ao apartamento, Pé Frio ainda estava enrolado no suéter, e quando Qwilleran o desenroscou, o gatinho continuou a dormir profundamente com um ar angélico na carinha de focinho manchado. Estava ronronando.

 

     Pé Frio e os siameses confraternizavam polidamente quando Qwilleran saiu de bicicleta na quarta-feira de manhã, dirigindo-se a West Middle Hummock. Ao passar pela Fazenda Fugtree imaginou se a polícia voltaria a interrogá-lo sobre seus visitantes de segunda-feira à noite.

     Brent Waffle fora morto antes das vinte horas, segundo o relatório médico. Kristi e Mitch haviam chegado, via Willoway, pontualmente às vinte horas. Poderiam ter encontrado Waffle na trilha, discutido violentamente, golpeando-o com uma lanterna — ou duas lanternas — e deixando o corpo na margem do riacho. Talvez lembrassem do caso de Buddy Yarrow no Rio Ittibittiwassee, em que o legista decidiu que Buddy havia escorregado e batido com a cabeça numa pedra. Então, depois de meia-noite, Mitch teria dirigido por uma das estradas de acesso até Willoway e removido o corpo para a estrada pública, em local bem distante da propriedade Fugtree. O ronco que Qwilleran ouvira tarde da noite poderia ter sido a caminhonete de Mitch na estrada de cascalho.

     Se isso fosse verdade, refletiu, os assassinos amadores tinham estado muito calmos naquela noite. E se fosse verdade, por que o corpo — deixado em Willoway durante uma chuva torrencial — estava coberto de sangue seco ao ser achado pela turma de trabalhadores da estrada? O mais provável é que Waffle tenha sido morto dentro de casa. Talvez ele tivesse retornado à cena do seu crime e se escondido num dos currais de cabra vazios, possivelmente contemplando Kristi como a próxima vítima. Talvez os bodes Attila, Napoleon e Rasputin — tivessem ficado agitados, alertando-a. Então ela e Mitch teriam ido investigar, e foram dois contra um.

     Qwilleran esperava que suas especulações estivessem erradas. Eles eram gente boa, com vidas promissoras à frente. Era o efeito hipnotizador de pedalar a bicicleta que produzia essas fantasias, disse para si mesmo.

     Numa loja de produtos rurais em West Middle Hummock comprou maçãs, laranjas e leite e deixou na casa dos Boswell. Verona, ainda num roupão, agradeceu com lágrimas nos olhos.

     “Onde está Vince?”, perguntou.

     Ela deu de ombros e sacudiu tristemente a cabeça.

     “Telefone se surgir qualquer problema.”

     Baby, agarrada ao roupão da mãe, disse: “Eu vou ver os gatinhos amanhã.”

     Quando Qwilleran chegou ao museu, o pátio estava cheio de carros: o velho quatro-portas dos Tibbitt, a comprida perua de Larry e o bebedor de gasolina de Susan (parte de seu acordo de divórcio), entre outros. Parecia que a junta de diretores estava em sessão, sem dúvida para decidir sobre o novo administrador.

     Qwilleran trocou rapidamente o agasalho, contou os narizes de três embrulhos de pêlos adormecidos e juntou-se ao grupo no museu. A reunião ainda não havia começado. Alguns dos diretores e membros da comissão estavam percorrendo lentamente a área de exposição; outros tomavam café no escritório.

     “Junte-se a nós, Qwill!”, chamou Larry. “Experimente uma rosquinha!”

     “Primeiro uma palavra com você, Larry.” Qwilleran chamou-o com um gesto para fora do escritório e o conduziu para o apartamento. “Quero que você veja algo que descobri.”

     “O que é?”

     “Algo que pertenceu à sua bisavó.”

     “Qual delas? Eu tinha quatro. E você também, por falar nisso.”

     “As minhas não escreviam segredos nas folhas de rosto de suas bíblias”, retrucou Qwilleran. “Sente-se.” Sentaram-se à mesa grande, e Qwilleran apanhou o grande livro com capa de couro gravada a ouro. “Este objeto raro foi vendido num leilão do Bid-a-Bit para a sra. Fugtree, cuja filha o presenteou ao museu. Foi identificado como a Bíblia Bosworth, porque o primeiro nome registrado na folha de rosto era o de Luther Bosworth, que morreu em 1904.”

     “Deixe-me ver!”, Larry estendeu a mão.

     “Ainda não! Examinando as anotações, deduzi que a viúva de Luther, Lucy, fazia registros sobre a família na bíblia. Parece que ela morreu por volta de 1958, porque não há anotações depois dessa data, e a sra. Fugtree comprou a bíblia em 1959.”

     “Você andou se ocupando”, disse Larry, “mas qual é o ponto?”

     “O ponto é que, de acordo com Lucy, você, Susan e Vince Boswell são primos em segundo grau, mas é claro que você já sabia disso; todos no Condado de Moose são doidos por genealogia.”

     “Acredito que existe algum tipo de relacionamento”, disse Larry evasivo. “Ai! Ai! O que é isto?” Ele estava sacudindo a perna.

     “Desculpe. É Pé Frio. Vou trancá-lo. É o gato de Polly.” Qwilleran colocou Bootsie no armário de vassouras.

     “Muito bem, Sherlock, o que mais descobriu?”, perguntou Larry. “Você parece cheio de si.”

     “Descobri alguns fatos sobre sua loja. Sua bisavó comprou o Armazém Geral de Pickax em 1904, tão logo a morte de Luther. Pagou em dinheiro. Logo depois, casou com Karl não-sei-de-quê e mudou o nome da loja para Secos e Molhados Lanspeak. Isto daria uma boa coluna para a ‘A Pena de QwilV. Tenho certeza de que você poderia completar os detalhes.”

     Por melhor ator que fosse, Larry não conseguiu deixar de corar, e sua fronte cobriu-se de suor. “Deixe-me ver isto!”

     Qwilleran agarrou a bíblia possessivamente. “Mais uma coisa, Larry, e depois não o deterei mais, Você e Susan estão empurrando Vince Boswell — ou Bosworth, como parece ser o caso — para o lugar de Iris, mas têm certeza de que ele projeta a imagem que querem para o museu? Mesmo que seja seu parente, ele não tem a personalidade adequada e nem classe, para ser franco, e pode haver outros indícios contra ele, se minhas suspeitas se confirmarem.” Alisou o bigode num gesto significativo. “Se a diretoria está se reunindo hoje para discutir o assunto, seria prudente adiar a decisão.”

     “O que está tentando dizer, Qwilleran? Qual o grande mistério?”

     “Vince foi para Lockmaster deixando Verona sem transporte, sem dinheiro, e até sem leite para a criança. Ele saiu segunda-feira, e não se sabe quando vai voltar. Será que joga nos cavalos? A temporada de corridas começou em Lockmaster.”

     “Eu não sabia disso.”

     “Obviamente o homem não tem senso de responsabilidade. É este o tipo de administrador que você quer? Por falar nisso, por que ele mudou o nome Bosworth?”

     “Para falar a verdade, nunca lhe perguntei”, disse Larry.

     “Luther Bosworth era mineiro? Foi uma das vítimas da explosão de 13 de maio?”

     “Não, ele era uma espécie de faz-tudo — caseiro da Fazenda Goodwinter. Só sei o que meu tio-avô Benjamin disse. Ephraim gostava muito de Luther.”

     “Mas você não descende de Luther; seu bisavô era Karl.”

     “Exato.”

     “Karl era um homem bonito.”

     “Como sabe?”

     “Leia a bíblia de sua família e vai descobrir.” Qwilleran presenteou-o com um floreio, sem ligar para alguns ruídos e baques no armário de vassouras.

     “Agora deixe-me fazer-lhe uma pergunta”, disse Larry.

     “De acordo com o jornal, a vítima era o ex-marido de Kristi Fugtree. Todos sabem que foi ele que envenenou as cabras dela. Ela ultimamente tem andado muito com Mitch Ogilvie. Acha que Mitch teve algo a ver com isso?”

     “É improvável. Ele e Kristi estiveram aqui na segunda à noite, bebendo sidra e discutindo a restauração da mansão Fugtree como lugar histórico.”

     “Espero em Deus que ele não esteja envolvido”, disse Larry. “Agora tenho de voltar ao escritório e começar a reunião.”

     “Mais uma pergunta, se não se importa, Larry. O que sabe sobre caixas de areia para crianças?”

     “As pessoas por aqui as constroem com tábuas de cinco por dez e pegam areia de graça na Estrada Sandpit. Por que pergunta?”

     “Temos uma pequena arqueóloga na casa dos Boswell, sem lugar para cavar.”

     O indefectível livrinho de notas apareceu. “A turma do pátio pode dar um jeito. Deve haver algumas tábuas de cinco por dez no celeiro de aço. Vou resolver isso.”

     Quando ele saiu houve uma pequena explosão no armário de vassouras, acompanhada pelo som de vidro quebrado. Qwilleran abriu a porta com um safanão. Bootsie estava sentado na prateleira junto das lâmpadas, ronronando.

     Polly Duncan voltou mais cedo que o esperado para apanhar o gatinho. “Quando a reunião acabou, não fiquei para bater papo”, explicou. “Estava com saudades do meu amorzinho. Ele foi um bom menino?”

     “Sem problema. Eu estou com algumas cicatrizes, e o valor da coleção de vidros Cobb diminuiu em algumas centenas de dólares, e os siameses nunca mais serão os mesmos, mas... sem problema.”

     Polly não prestou atenção. “Onde está ele? Não posso esperar para vê-lo. Onde está ele?” Ela e Qwilleran revistaram o apartamento, verificando todos os lugares quentinhos e macios. Encontraram Koko e Yum Yum na bergère de veludo azul, mas nem sinal do gatinho. Qwilleran podia adivinhar pela expressão aterrorizada de Polly que ela pensava que os siameses haviam comido Pé Frio.

     “Aqui está ele!”, chamou do banheiro, bem a tempo de salvar Polly de um colapso nervoso.

     Bootsie estava na panela de assar peru que servia de privada para os siameses, profundamente adormecido no pedregulho.

     Polly o apanhou. “Bootsie querido! O que está fazendo aí? Está triste? Sentiu a minha falta? Beijinho-beijinho... Ele usou a privadinha dele, Qwill?”

     “Ele pareceu preferir a panela de assar peru.”

     “Espero que não tenha ficado muito assustado para comer.”

     “Não, comeu muito bem, eu garanto. Você encontrou Vince Boswell por lá? Ele disse que ia fazer pesquisas na biblioteca.”

     “Não vi ninguém de Pickax. Se estavam lá, estavam todos no prado. Tem corridas nesta semana. Agora precisamos pegar nossas coisas e voltar para casa.”

     Qwilleran apresentou com presteza a cesta, a privadinha, a escova e o “porta-gato” de Bootsie.

     “Diga adeus ao tio Qwill, Bootsie”, disse Polly, levantando a perninha da frente do gato e acenando com a desajeitada pata marrom. “Olhe essa patinha — parece uma linda flor marrom. Acha que eu deveria cortar as unhas dele?”

     “Não faça nada sem pensar”, disse Qwilleran.

     Depois que saíram soltou um suspiro de alívio, e os siameses começaram a andar por ali espreguiçando-se. Os três desfrutaram calmamente um jantar de frango cordon bleu do congelador, e à noitinha acomodaram-se na sala para ouvir música — os gatos na bergère azul e Qwilleran na espreguiçadeira marrom do lado oposto, com uma caneca de café na mão. As campainhas dos dois telefones foram desligadas. Não importava qual fosse a crise ou emergência, estava determinado a ouvir a fita de ópera de Polly sem interrupção.

     Enquanto os primeiros três atos se desenrolavam, deu-se conta de que estava realmente apreciando a música. Estava disposto a retratar as observações sarcásticas sobre ópera que fizera no passado. Os siameses ouviam também, possivelmente escutando notas e nuanças que escapavam aos seus ouvidos. Ele estava seguindo o libreto em inglês, e o “suspense” ia num crescendo no quarto ato. Durante a pungente “Canção do Salgueiro”, Desdêmona dizia: “Ouça! Escuto um gemido! Silêncio! Quem está batendo àquela porta?” E Emília respondia: “É o vento”.

     Nesse preciso instante um rosnado profundo saiu do peito de Koko. Ele pulou para o chão e correu para o vestíbulo. No momento seguinte soaram batidas frenéticas na porta da frente, o batedor de latão retinindo, e punhos esmurrando as almofadas da porta.

     Qwilleran correu para abri-la.

     “Ajude-me a achar Baby!”, gritou Verona, os olhos arregalados de angústia e lutando para respirar. “Ela saiu! Talvez para o celeiro!”

     Ele agarrou um blusão, a lanterna de pilha, e correram pelo terreiro. Uma lâmpada de vapor de mercúrio num alto poste iluminava todo o pátio, mas Verona viera correndo pela alameda sem lanterna. Esquecera-se, no seu pânico.

     “Há quanto tempo ela saiu?”, gritou Qwilleran.

     “Não sei.” Ela estava sem fôlego.

     “Onde está Vince?”

     “Não voltou ainda.”

     Subiram correndo pela rampa de relva até o buraco da agulha.

     “Entre, mas não vá mais adiante”, ordenou Qwilleran. “Está muito escuro aqui. Há muitos obstáculos. Chame a menina.”

     “Baby! Baby!”, chamou Verona com a voz aterrorizada.

     “Mais alto!”

     Ela avançou.

     “Fique parada! Estou falando sério! Chame-a!”

     “Ba-by! Ba-by!”

     Qwilleran iluminou com a lanterna os corredores cobertos de palha entre os engradados e as prensas. Não havia movimento exceto por um gato de celeiro que correu a esconder-se. Num canto, uma grande caixa de madeira estava encostada à parede. Qwilleran tinha visto essa caixa em sua visita anterior, colocada horizontalmente no chão e imaginou como Boswell a levara até ali. Agora estava levantada e encostada à parede.

     “Fique onde está!”, disse a Verona enquanto ia investigar. “Não pare de chamar.”

     A caixa levantada encobrira uma abertura quadrada no piso, e uma escada de mão descia para o estábulo subterrâneo . Qwilleran iluminou o buraco com a lanterna e viu um balde verde. Desceu a escada e tornou a subir rapidamente.

     Colocando o braço em volta de Verona disse: “Volte para a casa. Temos de chamar uma ambulância.”

     “Ela está machucada! Onde está? Tenho de vê-la!”

     “Não pode. Espere até a ambulância chegar.”

     Verona desmaiou.

     Qwilleran carregou-a de volta até o apartamento e colocou-a na cama, onde ficou — acordada, mas imóvel e olhando fixamente para o teto. Cobriu-a com um cobertor e elevou-lhe os pés, depois hgou para o número de emergência e para o dr. Halifax.

     “Doutor, estou com uma mãe e filha aqui. A criança está inconsciente”, disse. “Acho que a mãe está em estado de choque. Já chamei a ambulância. O que devo fazer enquanto não chega?”

     “Mantenha-as ambas aquecidas. Mande a ambulância trazê-las para o hospital de Pickax. Estarei lá. Qual é o nome?”

     “Boswell. Verona Boswell.”

     “Não conheço o nome. Não é do condado.”

     Os paramédicos colocaram Baby numa maca e disseram ao policial que estava a postos: “Parece que ela caiu de uma escada e se estatelou no chão do estábulo. Chão de pedra. Aparentemente quebrou o pescoço.”

     Um pescocinho tão frágil, pensou Qwilleran. Não era maior que o de Koko.

     Depois que Verona foi embora numa maca, Qwilleran voltou ao celeiro com a lanterna e iluminou o estábulo subterrâneo. O balde verde ainda estava lá. Fechou o buraco da agulha e retornou ao museu. Assim que abriu a porta do apartamento, algo passou zunindo pelos seus pés e desapareceu no canto da casa mais depressa que os olhos poderiam perceber. Ele lançou-se em perseguição gritando: “Koko! Volte aqui!”

     O gato dirigia-se para o celeiro a uma velocidade quatro vezes maior do que Qwilleran conseguia correr. Transpondo a rampa em dois saltos, Koko desapareceu pela entrada de gatos como se tivesse sido gato de celeiro em outra encarnação. Qwilleran escancarou as grandes portas para aproveitar a luz do poste e chamou-o.

   Um tremor no lábio superior lhe disse que Koko pularia por onde estava a escada de mão. Qwilleran seguiu. O estábulo era um recinto de teto baixo e chão de pedra, com mais engradados, mais prensas e mais palha. Iluminou com a lanterna as cocheiras e escutou atentamente até que ouviu um rosnado conhecido subindo de volume e terminando num guincho. Localizou-o no canto mais afastado do estábulo, perto das portas de trás, por onde os cavalos e as vacas costumavam ser levados às suas cocheiras. Koko estava lá, rondando algo apertado entre dois engradados — uma ninhada de gatinhos recém-nascidos e a mãe, acomodados num pedaço de pano sujo.

     Qwilleran ergueu Koko pelo meio, e o gato pareceu bem contente de ser erguido. Ao se dirigirem para a escada, tropeçou no pé-de-cabra que Boswell usava para abrir engradados. Iluminou o chão com a lanterna. Num canto, um monte de palha tinha um afundado como se alguém houvesse dormido ali. Viu latas de cerveja e maços vazios de cigarros. Esse imbecil do Boswell! pensou Qwilleran. Dando uma de pateta e fumando numa cama de palha!

     O gato sob seu braço torcia-se para se livrar, e ele o soltou. Com o nariz no chão, Koko seguiu um rastro que o levou ao monte de palha, a um embrulho de alguma coisa enrolada parecendo um travesseiro, a uma mancha de sangue seco no travesseiro e na palha. O embrulho era do mesmo pano verde-escuro que Qwilleran vira em Willoway, onde estava estampado CADEIA DO CONDADO DE LOCKMASTER.

     Agarrando Koko e a lanterna, Qwilleran correu de volta ao apartamento e fez três telefonemas: primeiro para o plantão do Moose County Something, em seguida para a delegacia de polícia e, finalmente, para o presidente da Sociedade Histórica.

 

     O noticiário da manhã na WPKX incluía esta notícia: “Um suspeito do assassinato de Brent Waffle está sendo procurado pela polícia em vários condados do norte, depois da descoberta de provas incriminadoras e do desaparecimento do suspeito da área. De acordo com a delegacia de polícia, o nome do suspeito não será revelado até que seja preso e indiciado.”

     Seguiam-se breves informes de um acidente com três carros num sinal luminoso no centro de Kennebeck e uma controvérsia na reunião da câmara municipal de Pickax sobre o toque de recolher do Dia das Bruxas. O noticiário terminava com a seguinte informação: “Uma criança de dois anos e meio caiu e ficou seriamente ferida na propriedade do Museu da Casa de Fazenda Goodwinter na noite passada. Um alçapão no soalho do celeiro foi deixado descoberto e a criança caiu no chão de pedra do estábulo subterrâneo.”

     Depois que essas notícias matutinas foram dadas, Qwilleran recebeu telefonemas de todos os mexeriqueiros do lugar; um dos primeiros foi o sr. O’Dell, o zelador de cabelos brancos que tomava conta do apartamento de Qwilleran em Pickax. Ele disse: “Estou pensando em lavar as janelas se o senhor for voltar logo para a cidade.”

     “Não tenho planos de imediato”, disse Qwilleran. “Prometi ficar aqui até que achem um novo administrador.”

     “E uma pena o que está acontecendo aí”, disse o sr. O’Dell. “Primeiro foi a sra. Cobb, uma boa mulher, Deus lhe dê descanso! E, nem bem esfriou, a criança, inocente como um cordeiro, caiu. Tem uma nuvem preta em cima da Fazenda Goodwinter, e estou lhe avisando para ter cuidado, se não se importar que o diga. Nada de bom virá disso, se resolver ficar. O diabo anda fazendo das suas por aí há oitenta ou noventa anos, eu acho.”

     “Agradeço seu cuidado, sr. O’Dell”, disse Qwilleran. “Vou pensar seriamente nisso.”

     “E posso lavar as janelas?”

     “Pode, vá em frente e lave.” Qwilleran não tinha pressa de voltar a Pickax, com ou sem diabo, mas sabia que aliviaria a cabeça do sr. O’Dell se as janelas estivessem limpas.

     Arch Riker tinha outras idéias. “Por que não volta à cidade e pára de brincar de detetive?”, disse o editor. “Os leitores estão se queixando. Eles esperam ver a ‘A Pena de Qwill’ em determinados dias.”

     “Só tenho tido emergências, obstáculos e distrações nas duas últimas semanas”, disse Qwilleran. “Eu estava pronto para escrever uma coluna sobre cabras quando o rebanho foi envenenado e a primeira página pegou a história. Planejava fazer um artigo sobre prensas tipográficas antigas, mas o falso perito saiu da cidade e vai acabar na prisão.”

     “Desculpas, desculpas! Encontre um veterano e desencave umas memórias para segunda-feira”, disse Riker. “Vá levando numa boa até voltar para os trilhos.”

     Acatando a sugestão do editor e a dica de Mitch Ogilvie, Qwilleran ligou para o Asilo de Idosos, em Pickax, e pediu para entrevistar Adam Dingleberry. A enfermeira encarregada recomendou uma visita no fim da manhã, porque o velho ficava sempre sonolento depois do almoço, e especificou um limite de tempo de trinta minutos para o nonagenário falar, por ordem médica.

     Chegando ao Asilo, Qwilleran encontrou o saguão cheio de “canários” — voluntários que usavam batas amarelas e botões de lapela com a inscrição: “Nós nos importamos”. Eles se alvoroçavam por ali, recebendo os visitantes, empurrando pacientes em cadeiras de roda, aconchegando mantas de colo, ajustando chales, sorrindo suavemente e mostrando que se importavam, quer os pacientes fossem hóspedes pagantes como Adam Dingleberry ou indigentes sob a tutela do condado. Não havia qualquer sinal de que o alegre e moderno edifício fora antes a Fazenda de Indigentes do Condado.

     Um dos “canários” conduziu Qwilleran ao salão de leitura, um lugar tranqüilo equipado com livros de letras grandes e engenhosamente ajustáveis a lâmpadas de leitura. Tinha estado lá em ocasiões anteriores para fazer entrevistas e nunca vira alguém lendo. Os pacientes não confinados aos quartos estavam na sala, assistindo à TV.

     “Ele é um pouco surdo”, disse o “canário” que levou para a sala a cadeira do velho agente funerário, um homenzinho encarquilhado que um dia tinha sido o menino mais alto da escola, e um capeta, segundo Homer Tibbitt.

     A voluntária sentou-se à distância deles, perto da porta, e Qwilleran disse em voz alta e clara: “Nunca nos encontramos, sr. Dingleberry, mas já o vi em reuniões dos veteranos, e Homer Tibbitt me disse que foi seu contemporâneo na escola.”

     “Homer, hein? Ele era mais moço do que eu na escola. Ainda é. Só tem noventa e quatro anos. Eu tenho noventa e oito. Que idade você tem?” A voz dele tinha o mesmo timbre agudo de Homer e falhava a cada dez palavras.

     “Tenho vergonha de dizer”, replicou Qwilleran, “que só tenho cinqüenta anos.”

     “Cinqüenta, hein? Você tem de andar com suas próprias pernas. Quando chegar à minha idade, será levado de rodas para todo o lugar.”

     “Isso me dá algo para pensar no futuro.”

     Apesar de sua figura encolhida e rugas coriáceas, Adam Dingleberry tinha olhos agudos como pássaro, que se moviam tão depressa como seu pensamento. “Os patriarcas da cidade estão tentando banir o Dia das Bruxas”, disse, tomando o comando da conversa. “Nos velhos tempos costumávamos passar cera nas janelas e derrubar as privadas ao ar livre até não poder mais. Teve um ano que emparedamos com tijolos a porta da escola.”

     Qwilleran disse: “Posso ligar minha máquina e gravar isso?” Colocou o gravador na mesa entre os dois, e a seguinte conversa foi preservada para a posteridade:

O museu tem uma escrivaninha da escola de Riacho Negro, com iniciais gravadas. Alguma poderia ser sua?

Não. Eu sempre gravei as iniciais dos outros. Nunca terminei a escola. Me expulsaram porque lambuzei o cabelo da professora com estrume de vaca. O pai me deu uma surra, mas valeu a pena.

É verdade que a família Dingleberry está no negócio de funerais há mais de cem anos?

É. Meu avô veio da Mãe Pátria construir torres de perfuração para as minas. Fazia caixões também. Quando algum pobre-diabo morria, meu avô ficava a noite toda entalhando um caixão — feito sob medida. Os caixões não eram como os de hoje. Eram largos em cima e estreitos em baixo. Faz sentido, não é? Precisava um bocado de prática para mitrar as juntas. Meu avô tinha muito orgulho de seu trabalho, e meu pai aprendeu a fazer caixões com ele, só que meu pai começou a fazer móveis.

Que tipo de móveis, sr. Dingleberry?

Bom, ele costumava fabricar uma escrivaninha de pernas compridas com um guarda-louça em cima. Vendia toneladas delas! Era chamada de escrivaninha Dingleberry. Todas eram um pouco diferentes: com ou sem portas, uma gaveta, duas gavetas, fundo falso, cofre embutido, escaninhos, seja lá o que as pessoas quisessem.

Seu pai assinava os trabalhos?

Não. As pessoas sabiam quem tinha feito sua escrivaninha. Não tinha razão para pôr o nome. Veja hoje: eles colocam o nome em tudo. Meus netos levam nomes do lado de fora de suas camisas! Daqui a pouco estarão pondo o nome Dingleberry do lado de fora do caixão!

Como seu pai se tornou agente funerário?

Bem, sua escrivaninha — vendia tão bem, que ele contratou uns sujeitos para fazê-las, e também mesas, camas, caixões — tudo o que as pessoas quisessem. Por isso meu pai abriu uma loja de móveis. Dava funerais de graça para quem comprasse os caixões. Tinha um carro de enterro muito bonito com cavalos pretos e penachos pretos. Os funerais eram um espetáculo naquele tempo! Quando eu e meus irmãos tomamos conta —já morreram todos — abrimos uma casa de funerais, tudo muito correto e digno mas não pretensioso, viu? Largamos dos cavalos quando chegaram os automóveis. O pessoal detestou quando eles acabaram. Depois meus filhos assumiram a direção, e meus netos. Eles foram estudar fora. Eu nunca terminei.

Lembra-se do funeral de Ephraim Goodwinter?

(Longa pausa.) Bem, eu era muito menino, mas minha família falava disso.

A morte dele foi suicídio ou linchamento?

(Longa pausa.) Tudo o que sei é que foi enforcado.

Sabe quem cortou as cordas e desceu o corpo?

Sei. Meu pai e o filho de Ephraim, Titus. Tinha um padre lá também. Esqueço o nome.

O sr. Crawbanks?

Ele mesmo!

Como sabe de tudo isso?

(Longa pausa.) Eu não devia estar lá. Meu pai me mandou ficar em casa, mas eu me escondi na carroça. O pregador disse algumas rezas, e meu pai e Titus tiraram os chapéus. Eu me persignei. Sabia que ia levar uma surra quando voltássemos para casa.

Viu o corpo? As mãos estavam amarradas ou não?

Não dava para ver. Era perto do alvorecer — não havia muita luz.

Alguém tinha uma máquina fotográfica?

Sim. Titus tirou uma foto. Não sei por quê.

Como estava vestido o corpo?

Isso foi há muito tempo, e eu estava muito assustado para prestar atenção. Jogaram um cobertor em cima dele.

Um suicida teria de ficar em pé numa caixa ou outra coisa, e depois dar-lhe um pontapé. Lembra-se de ter visto algo assim?

(Longa pausa). Devia estar sentado num cavalo e dado um pontapé nele. O cavalo foi para casa sozinho. Sela vazia. Foi quando começaram a procurar o velho. Isso foi o que Titus disse.

Acreditou nisso?

Eu era um menino naquele tempo. Não parei para refletir.

Seu pai alguma vez falou sobre isso?

(Longa pausa). Não. Não naquele tempo. (Longa pausa). Por que quer saber tudo isso?

Nossos leitores apreciam as memórias dos veteranos. Já entrevistei Euphonia Gage, Emma Huggins Wimsey, Homer Tibbitt...

Homer, hein? Eu poderia lhe contar umas coisinhas que ele não sabe. Mas não as ponha no papel.

Vou desligar o gravador.

     Qwilleran desligou o gravador e colocou-o no chão.

     “Quero um copo de água”, pediu o velho na sua voz aguda. Enquanto o “canário” saía rapidamente da sala, ele disse a Qwilleran. “Não quero que ela ouça isto.” Com um olhar de soslaio acrescentou: “O que achou dela?”

     “É uma mulher atraente.”

     “Moça demais para mim.”

     Quando o “canário” voltou com o copo de água, Qwilleran a puxou de lado e disse: “Posso ficar uns momentos sozinho com o sr. Dingleberry? Ele tem alguns assuntos pessoais a discutir.”

     “Claro”, disse ela. “Esperarei lá fora.”

     Nervosamente Adam perguntou: “Para onde ela foi?”

     “Está bem atrás da porta. O que queria me dizer, sr. Dingleberry?”

     “Você não vai publicar no jornal?”

     “Não vou publicar no jornal.”

     “Nem contar a qualquer pessoa?”

     “Prometo”, disse Qwilleran levantando a mão direita.

     “Meu pai me contou logo antes de morrer. Me fez prometer que não contaria. Se alguém descobrisse, disse, nós dois seríamos enforcados. Mas ele já se foi, e eu logo irei também. Não tem vantagem levar para o túmulo.”

     “O senhor não devia passar esse segredo para seus filhos?”

     “Não. Não confio naqueles fedelhos. São muito arrogantes. Você tem uma cara honesta.”

     Qwilleran alisou o bigode numa exibição de modéstia. Pessoas estranhas sempre confiavam nele. Parecendo intensamente interessado e sincero, disse: “O que foi que seu pai lhe revelou?”

     “Bem, é sobre o funeral de Ephraim”, disse o velho Adam na sua voz esganiçada. “Foi a procissão de funeral mais comprida da história de Pickax! Seis cavalos pretos, em vez de quatro. Dois vieram lá de Lockmaster. Foram seguidos por trinta e sete carruagens e cinqüenta e duas charretes, mas... era tudo um logro!” Terminou ele com um riso cacarejado que se transformou num acesso de tosse, e Qwilleran lhe alcançou o copo de água.

     “Qual era o logro?”, perguntou quando o espasmo passou.

     Adam cacarejava de prazer. “Ephraim não estava no caixão!”

     Qwilleran pensou: então a história de Mitch é verdadeira. Ele está enterrado sob a casa! Para Adam ele disse: “Você disse que o corpo de Ephraim não estava no caixão. Onde estava então?”

     “Bom, a verdade é que...” Adam tomou um gole da água, que desceu mal, e a tosse recomeçou tão violentamente que Qwilleran ficou com medo que o velho sufocasse. Pediu auxílio, e uma enfermeira e dois “canários” correram para ajudá-lo.

     Quando passou o acesso e Adam estava suficientemente calmo para olhar com malícia para a enfermeira, Qwilleran agradeceu às assistentes e convidou-as a sair da sala. Depois repetiu a pergunta. “Onde está o corpo de Ephraim?”

     Reprimindo um riso em falsete, o agente funerário disse: “Ephraim não estava morto!”

     Qwilleran encarou o velho na cadeira de rodas. Havia a possibilidade de que estivesse senil, mas o resto da conversa fora plausível — quer dizer, plausível para os padrões às avessas do Condado de Moose. “Como explica esse tipo de logro?”, perguntou.

     “Bem, Ephraim sabia que as pessoas o odiavam e estavam decididas a vingar-se, de modo que as enganou. Ele tomou o navio para Yerp. Foi para a Suíça. Usou outro nome. Deixou as pessoas pensarem que estava morto.” Adam começou a rir.

     Qwilleran lhe deu o copo de água antes que tivesse outro ataque de alegria convulsiva. “Tome um gole, sr. Dingleberry. Cuidado ao engolir... E quanto ao resto da família Goodwinter?”

     “Bem, a mulher de Ephraim mudou-se de volta para o leste — esta foi a história que eles contaram — mas ela o seguiu para Yerp. Naquele tempo as pessoas podiam desaparecer sem problemas. O maldito governo não se intrometia o tempo todo. Mas o resultado foi que a coisa virou contra Ephraim. Quando ele escreveu aquele bilhete suicida, nunca imaginou que seus inimigos levariam as honras por tê-lo linchado!”

     “E os filhos?”

     “Titus e Samson viveram ambos na fazenda e tocaram os negócios — tocaram para baixo, principalmente.” A voz dele elevou-se num falsete e acabou num guincho de júbilo.

     “Se seu pai participou desse logro, certamente foi amplamente recompensado.”

     “Dois mil dólares”, disse Adam. “Era muito dinheiro naquela época — muito mesmo! E mais quinhentos a cada quadrimestre, enquanto mantivesse a boca fechada. O pai era um homem religioso, e não o teria feito, mas estava devendo no banco de Ephraim. Tinha medo de perder a loja.”

     “Por quanto tempo continuaram os pagamentos quadrimestrais?”

     “Até que Ephraim esticou as canelas em 1935. O pai sempre me dizia que eram rendimentos de um investimento que tinha feito. Estava no leito de morte quando me contou a verdade e me alertou para não falar a ninguém. Disse que as pessoas ficariam furiosas e poderiam queimar a loja de móveis por tê-los feito de bobos.” O queixo de Adam afundou para o peito.

     “Esta é uma história que provoca muitas reflexões com ramificações interessantes”, disse Qwilleran. “Obrigado por confiá-la a mim.”

     O velho se animou outra vez: “Havia outra coisa na consciência do pai. Ele enterrou o caseiro dos Goodwinter, e eles pagaram pelo funeral — pagaram muito bem, considerando que era um caixão simples.”

     Qwilleran ficou imediatamente alerta. “Como era o nome do caseiro?”

     “Esqueci.”

     “Luther Bosworth? Trinta anos de idade? Deixou mulher e quatro filhos?”

     “Ele mesmo!”

     “O que aconteceu a Luther?”

     “Um dos cavalos dos Goodwinter ficou furioso. Pisoteou-o até morrer — tanto que o caixão não foi aberto.”

     “Quando aconteceu isso?”

     “Logo depois que Ephraim foi embora. Titus disse que matou o cavalo a tiros.”

     Houve uma batida à porta e o “canário” abriu-a alguns centímetros. “A hora de visita já está quase no fim, senhor.”

     “Não a deixe entrar”, disse Adam.

     Qwilleran disse alto: “Um minuto mais, por favor.” A porta fechou-se, e ele disse a Adam: “Sabe por que os Goodwinter pagaram extra para o funeral?”

     Adam enxugou a boca. “Era suborno. Meu pai não o teria aceitado se não estivesse devendo no banco. Ele era um homem muito religioso.”

     “Tenho certeza de que era! Mas o que os Goodwinter estavam tentando abafar?”

     Adam enxugou a boca de novo. “Bem, Titus disse que o homem tinha sido pisoteado até morrer, mas quando meu pai apanhou o corpo, só havia um buraco de bala na cabeça.”

     Houve outra batida à porta. O queixo do velho afundou de novo no seu peito, mas ele reviveu o bastante para dar um puxão na saia do “canário” quando ela veio conduzir sua cadeira de volta ao quarto.

     Dirigindo de volta a North Middle Hummock, Qwilleran ia pensando, Mitch Ogilvie estava certo num ponto: o velho Adam sabia de uns pares de coisas. A história do duplo logro fora planejada com muitos detalhes que se combinavam para torná-la convincente — no Condado de Moose de qualquer modo, onde o incrível era crível... E, contudo, seria realmente verdadeira? Adam Dingleberry tinha reputação de ser um pregador de peças. Contar uma história do arco-da-velha sobre Ephraim podia ser sua peça final em todo o condado. Contá-la à mídia seria a virtual garantia de que iria vazar. Que manchetes daria!

O ENFORCAMENTO DE GOODWINTER FOI UMA FARSA! O DONO DA MINA MORREU NO EXTERIOR EM 1935

Todos os jornais dariam a notícia, e o nome de Qwilleran assinando o artigo brilharia por toda a nação mais uma vez. Mas como reagiria o Condado de Moose? Os Nobres Filhos do Laço — seja lá quem fossem — poderiam depredar a casa de funerais Dingleberry, com toda a suntuosa decoração, ainda por pagar. Poderiam até ir atrás de Junior Goodwinter, chefe de redação do Something, um bom rapaz, apesar de ser bisneto do vilão original. Qwilleran tinha uma responsabilidade e uma decisão a tomar. O duplo logro podia ser um triplo logro.

 

     Chegando à fazenda, Qwilleran foi direto para o toca-fitas, seguido pelos dois siameses que abanavam as caudas. “Aprontem-se”, instruiu-os. “Vocês estão prestes a ouvir uma história fantástica.”

     Se os gatos estavam esperando Verdi, ficaram desapontados. A voz aguda de Adam crepitava nos alto-falantes. “É. Meu avô veio da Mãe Pátria construir torres de perfuração para as minas...”

     As orelhas abanaram nervosas até que escutaram uma voz profunda dizendo: “Que tipo de móveis, sr. Dingleberry?” Ouvindo o som familiar Koko ergueu-se nas pernas traseiras e colocou a pata no toca-fitas, enquanto Yum Yum ronronava entusiasticamente.

     “Obrigado”, disse Qwilleran. “Admito que tenho uma boa voz.”

     O velho dizia: “Todas eram um pouco diferentes: com ou sem portas, uma gaveta, duas gavetas, fundo falso, cofre embutido, escaninhos, seja lá o que as pessoas quisessem.”

     “MIAU!”, fez Koko, e Qwilleran sentiu um tremor conhecido nas raízes do bigode. Desligou o som.

     A escrivaninha feiosa da sra. Cobb era uma Dingleberry; embora tivesse valor no mercado local, Qwilleran ainda a achava feia. Tinha pernas compridas, um guarda-louça com portas, sem escaninhos, e uma só gaveta. Teria um fundo falso? Removeu a gaveta e a examinou, sacudiu, apertou o fundo em vários lugares, passou os dedos à volta toda, bateu nos lados com a palma da mão, sacudiu de novo. O fundo era mais grosso que o normal, e alguma coisa balançava lá dentro.

     “Vou precisar de ajuda”, disse Qwilleran. O gato farejou e tocou com a pata, enquanto o homem corria a mão pelas superfícies e experimentava apertar em pontos vitais. Inexplicavelmente o fundo da gaveta se soltou num canto, e Qwilleran conseguiu abri-la.

     Não havia jóias escondidas no fundo falso; sem dúvida a sra. Goodwinter as levara para a Suíça. Havia documentos, no entanto, que lhe causaram um arrepio psicológico, como se estivesse violando um túmulo, e acendeu a lareira antes de espalhar os papéis bolorentos no tapete defronte dela. Havia faturas, recibos e notas promissórias. Reconheceu a caligrafia de um dos documentos:

     Recebi de Titus Goodwinter a importância de três mil dólares ($3,000) como indenização pela morte acidental de meu marido. Assinado neste dia 31 de outubro de 1904.

Lucy Bosworth

Titus ditara a carta? Lucy teria escrito sob coação? Ou fora cúmplice na trama? O recibo levou Qwilleran a uma fantástica especulação sobre o relacionamento da jovem mulher com seu marido, e também com Titus, que fora um conhecido mulherengo. Estava claro que o pagamento financiara a compra dos Armazéns Gerais de Pickax, sendo 3.000 dólares uma enorme soma naquele tempo em que uma família de seis pessoas podia viver confortavelmente com cinco dólares por semana. O preço do sangue, por assim dizer, podia também ter pago a imponente bíblia, símbolo de status naquela época.

     Havia outros documentos de interesse histórico, se alguém tivesse tempo de lê-los, inclusive notas promissórias com taxas anormalmente altas, assinadas por nomes bem conhecidos no condado, entre eles o perdulário capitão Fugtree. Os bancos de Ephraim podiam operar legalmente, mas em seus empréstimos de dinheiro particulares ele praticava agiotagem.

     A caligrafia num recibo datado de 28 de outubro chamou a atenção de Qwilleran. Era a mesma escrita pequena e atrevida do bilhete suicida de Ephraim, mas estava assinado pelo almoxarife e agente funerário escravizado financeiramente, o pai de Adam Dingleberry. Pressionado pela dívida a abandonar seus escrúpulos religiosos, assinara o seguinte:

     Recebida de Ephraim Goodwinter a importância de dois mil dólares ($ 2,000), em troca da qual o abaixo assinado concorda em enterrar um caixão vazio, com o cerimonial completo, no lote dos Goodwinter no Cemitério de Pickax, devendo o tomador ocultar os arranjos acima mencionados de todas as pessoas e futuros descendentes, com a condição do pagador realizar até a hora de sua morte pagamentos quadrimestrais de quinhentos dólares ($ 500). Assinado e aceito neste dia 28 de outubro de 1904.

Joshua Dingleberry

     Um acordo semelhante com Titus Goodwinter, cobrindo o sepultamento de Luther Bosworth, também levava a assinatura de Joshua.

Os siameses, atraídos pelo calor das achas queimando ou pelo cheiro rançoso dos documentos, assistiam de perto, e Koko estava particularmente interessado numa folha de papel dobrada que fora manuseada por mãos sujas. Era um diagrama grosseiro com medidas e outras especificações anotadas a lápis e desbotadas, que Qwilleran não conseguiu decifrar nem com os óculos de leitura. Usando uma lupa da mesa do telefone, conseguiu identificar o elemento central como um meio círculo com as dimensões dadas em pés. Dois retângulos ligados por um par de linhas paralelas estavam marcados com SO e NO, mas nenhuma dimensão era especificada. Dobrada junto ao diagrama havia uma fatura mal-escrita da Pedreira Mayfus da Estrada Sandpit: “4 carregamentos de pedra para revestir a garagem”. A data era 16 de maio de 1904, e fora marcado “pg”.

     “Três dias depois da explosão!”, observou Qwilleran. “O que os dois detetives deduzem disso? A garagem não é revestida; o chão é de madeira. E o que é isto?”

     Dobrado junto ao diagrama estava um pedacinho de papel com a inconfundível caligrafia de Ephraim Goodwinter.

     Recebida de Ephraim Goodwinter a importância de um mil dólares ($1.000) em troca da qual o abaixo assinado concorda em fazer o trabalho em pedra conforme especificado, reservadamente e sem auxílio e sem revelar o mesmo a qualquer pessoa, trabalho este a ser completado em 15 de agosto do corrente ano. Assinado e aceito neste dia 16 de maio de 1904.

Luther Bosworth

X (sua impressão digital)

    

     “Luther nem sabia assinar o próprio nome!”, exclamou Qwilleran. “O que me dizem disso?”

     Não ouvindo resposta, procurou os gatos. Yum Yum adormecera em frente à lareira com a cauda confortavelmente enrolada sobre o focinho. Uma corcova num dos tapetes orientais indicava que Koko estava se escondendo de novo. Consternado, Qwilleran foi ao telefone e discou um número em Mooseville.

“Alô, Lori. Aqui é Qwill”, disse. “Como vão as coisas?... Fico contente em saber. Como está o bebê?... Tem certeza de que não está comendo o alimento do gato?... Falando em filho de Ephraim — com os alforjes cheios de objetos de valor. Encoberto pela escuridão o par teria cavalgado por Willoway em direção a Mooseville, onde Ephraim embarcaria num navio para o Canadá, do outro lado do lago. Sua mulher, entretanto, refugiara-se no presbitério com o sr. e a sra. Crawbanks. Um trato já teria sido feito com Enoch Dingleberry, e os filhos de Ephraim poriam em execução o resto da charada: matar Luther, que sabia demais, depois culpar o cavalo; encenar o enforcamento com uma efígie improvisada às pressas; anunciar o suicídio e fazer aparecer o bilhete suicida; e chorar no enterro do pai. Não podiam imaginar que os boatos entrariam em ação, e os inimigos colheriam os louros pela morte de Ephraim. O que iniciara os rumores, é claro, fora a descoberta pelo sr. Crawbanks de um lençol branco, deixado ali recentemente por algum brincalhão no Dia das Bruxas.

     Compor este melodrama ocupou a cabeça de Qwilleran enquanto se arrastava devagar e dolorosamente pelo túnel. Era duro para as mãos, e ele tinha um joelho ruim desde seu tempo nas Forças Armadas. Sentou-se e ponderou. O que precisava era de um par de luvas grossas e um estofamento para os joelhos.

     Cuidadosamente recuou para fora do espaço apertado, limpou-se com as mãos e subiu a escada. Podia ouvir as risadas da turma de adolescentes que varriam as folhas, ensacavam e colocavam na caminhonete azul de Mitch. Trabalhavam no lado norte da casa, e Qwilleran passou pelo meio deles a caminho da ala oeste.

     Mitch o saudou. “Olá, Qwill! Lindo dia para uma caminhada.”

     Uma vez dentro do apartamento, planejou sua estratégia. As luvas não eram problema; tinha comprado um par de luvas de couro forradas em Pickax e estava disposto a sacrificá-las para a investigação do túnel. No entanto, acolchoar os joelhos era um desafio. Examinou o apartamento procurando um possível material. Só o que encontrou foi uma pilha de toalhas felpudas cor-de-rosa com o monograma de Iris Cobb. Teriam que servir. Agora precisava de algum tipo de barbante grosso para amarrar as toalhas em volta dos joelhos.

     Koko o seguia, pressentindo uma aventura, e sua ávida presença deu uma idéia a Qwilleran. Podia ser vantajoso levar o gato para o túnel, deixando-o andar à frente, prudentemente contido por uma coleira. Os mineiros costumavam levar canários aos poços das minas para testar se havia gases venenosos. Se Koko farejasse qualquer gás nocivo não sucumbiria; faria um enorme escarcéu, como só um siamês indignado consegue. Koko tinha um arnês de couro azul, com uma correia de náilon de três metros e meio de comprimento, uma parte da qual poderia ser usada para amarrar as toalhas rosa. Congratulando-se por sua inventividade, Qwilleran cortou a correia até o comprimento de um metro e oitenta e reservou o resto para amarrar.

     A turma do pátio estava rapidamente se encaminhando para trabalhar do lado oeste, e ele hesitou em ir até o celeiro usando luvas de couro, com Koko numa coleira, e sobraçando toalhas rosa. Depois de hesitar por um tempo, saiu e pediu a Mitch um saco de plástico para folhas.

    “Vai varrer um pouco, Qwill?”

     “Não, só estou empacotando algumas coisas para guardar no celeiro.”

     Agora estava pronto. Jogou dentro do saco de plástico as toalhas rosa, uma segunda lanterna, luvas, a coleira e dois pedaços curtos de corda. Enfiou Koko dentro da camisa e vestiu um casaco largo para camuflar. “Não vai demorar”, explicou ao gato, “e eu apreciaria sua cooperação. Fique de boca fechada e não exercite as garras.”

     Qwilleran esperou até que os voluntários estivessem reunidos ao lado da caminhonete de Mitch, numa pausa para refrescos. Então jogou o saco nos ombros e encaminhou-se para o celeiro. Podia sentir umas contorções dentro da camisa e ouviu uns guinchos abafados, mas o terreiro foi atravessado sem levantar suspeitas. Evitando se expor na rampa de relva, rodeou o celeiro pelo lado leste e entrou no estábulo pela porta do gado, nos fundos. Até aqui tudo bem!

     Primeiro prendeu Koko, que ronronava, na coleira e amarrou-o numa máquina impressora. Depois dedicou-se a enrolar as pernas com as toalhas e as cordas, uma idéia que acabou sendo menos factível do que parecia. Na verdade, depois da primeira tentativa, achou impossível dobrar os joelhos, e foi necessário desamarrar as cordas e recomeçar. Koko, começando a se impacientar, emitiu alguns guinchos agudos. “Quieto!”, resmungou Qwilleran. “Estou trabalhando o mais depressa possível.”

     Finalmente ficaram prontos. Koko com a coleira azul e Qwilleran com as joelheiras rosa entraram no túnel, o gato liderando e o homem rastejando atrás. Avançavam lentamente. O chão de terra do túnel estava cheio de pedras e pedaços de argamassa. Jogando-os para o lado com uma mão enluvada e segurando a lanterna com a outra, Qwilleran ficava obrigado a segurar a correia de Koko com os dentes, esperando que o gato não desse um súbito salto à frente.

     Rastejaram devagar e por longo tempo. Afinal de contas, o diagrama original mostrava o túnel estendendo-se desde o estábulo, passando sob a garagem e através do terreiro até o porão na ala oeste. Qwilleran tinha lido sobre esse tipo de túnel na Europa, ligando um convento ao mundo exterior: o convento era assombrado, e ossos humanos eram encontrados no túnel. Não havia ossos no túnel Goodwinter, só latas de cerveja, papéis de goma de mascar e alguns itens não identificados que Koko resolveu farejar. Qwilleran achou o ar do túnel abafado, cheirando a mofo e ratos, mas Koko estava experimentando uma alegria felina.

     Continuaram a rastejar. Quanto mais progrediam, mais entulho encontravam e mais depressa o gato queria andar, guinchando e puxando a coleira.

     “Aaai!”, rosnou Qwilleran entre dentes.

     “MIAU!”, replicou Koko impaciente.

     Estavam se aproximando do terminal sudoeste, mas não havia luz no fim do túnel — apenas uma parede de pedra talhada. Espalhadas em volta estavam pedras quebradas, pedaços de argamassa e algumas ferramentas descartadas — talhadeiras, martelos e uma furadeira. Também havia muita poeira. Rastejaram até o final, Qwilleran sufocando e tentando tossir sem descerrar os dentes.

     Koko foi o primeiro a achá-lo — um objeto pequeno, quadrado, em forma de caixa num canto escuro do túnel.

     Uma bomba!, pensou Qwilleran. Dinamite!

     Enrolando a ponta da coleira na mão enluvada, usou a outra para iluminar o artefato. Aproximou-se dele de joelhos, encontrou um botão e apertou. Por um momento houve um silêncio de morte no túnel, depois... um grito de arrepiar os cabelos... um resmungo raivoso terminando num rosnado feroz... queixumes de moribundos... o dobrar de um sino... gemidos e rangidos fantasmagóricos... gritos!

     Koko disparou como um foguete e Qwilleran, na outra ponta da coleira, esparramou-se no barro.

 

     Quando Qwilleran emergiu do celeiro com o saco de toalhas rosa e o gato miando, Mitch Ogilvie colocou as mãos em concha e gritou do outro lado do terreiro: “Seu telefone está tocando!”

     Por duas horas Qwilleran rastejara com as costas encurvadas e sentia-se enrijecido. Apesar disso, conseguiu chegar ao apartamento a tempo de atender, antes que a pessoa desligasse.

     “Ah, você está aí, Qwill!”, disse Carol Lanspeak. “Deixei o telefone tocar quinze vezes porque pensei que estivesse lá fora num dia bonito como este. Você estava lá fora?”

     “Estava”, disse ofegante.

     “Fui ao hospital visitar Verona. Baby vai ficar boa — e Verona está grávida.”

     “Eu não sabia. Como está ela?”

“Não muito bem. Ela quer voltar ‘para casa’ e levar Baby para convalescer lá. Larry está tomando conta das despesas e dando-lhe alguma coisa para sobreviver. Vince a deixou sem um centavo! Aquele covarde!”

     “Eles o encontraram?”

     “Acho que não. A polícia esteve interrogando Verona, e Larry pediu ao seu advogado para assessorá-la.”

     “Sinto pena de Verona.”

     “Eu também. Nunca chegamos a conhecê-la realmente. Ela era tão quieta e reservada. Era voluntária em nossa comissão de limpeza, e muito confiável. A razão por que estou ligando, Qwill — é que ela tem algo para lhe contar. Disse que é importante. Você acha que pode ir ao hospital hoje à noite? Vou levá-la ao aeroporto amanhã.”

     “Posso sim. Obrigado por me avisar.”

     “A propósito, a diretoria votou para dar o emprego a Mitch”, disse Carol.

     Polly Duncan foi a próxima a ligar. “Eles o encontraram!”, disse antes de qualquer formalidade. “Em algum lugar de Ohio. A sogra de minha assistente ouviu no rádio e telefonou para a biblioteca.”

     “Desconfio que ele é culpado de outras coisas, além de matar um vagabundo.”

     “O que quer dizer?”

     “Gostaria de dar um pulo aí esta noite — e discutir umas coisas”, disse Qwilleran.

     “Venha jantar, eu prepararei curry.”

     “Humm... obrigado, Polly, mas tenho um compromisso em Pickax. Vejo você depois das oito.”

     “Não coma sobremesa”, disse Polly. “Vou servir torta de abóbora com café.”

     A caminho de Pickax, Qwilleran sentiu uma ponta de remorso porque não permitira a Baby visitar os gatos; fora puro egoísmo de sua parte, admitia. E agora isso jamais aconteceria. Foi talvez a necessidade de fazer penitência que o levou a jantar no Café Dimsdale. Depois de uma sopa aguada, rolinhos de repolho salgados demais e um café irreconhecível, dirigiu-se ao hospital.

     Encontrou Verona num quarto particular, sentada numa cadeira e beliscando numa bandeja de comida. “Desculpe interromper seu jantar”, disse.

     “Não tenho vontade de comer nada”, disse Verona empurrando a bandeja. “Eles o pegaram?” A voz suave tinha perdido o tom alegre e era agora monótona e melancólica.

     “Eles o acharam em algum lugar de Ohio.”

     “Fico contente.”

     “Anime-se. Baby vai ficar boa, e seu olho está bem melhor. A equimose está desaparecendo.”

     Ela tocou no rosto. “Eu não bati numa porta. Estávamos discutindo e ele me bateu.”

     “Quando aconteceu?”

     “Quando ele estava saindo — na segunda-feira à noite.”

     “Você me disse que ele saiu na segunda-feira à tarde.”

     “Isso foi o que ele me mandou dizer.” Ela virou-se e ficou olhando pela janela.

     “Carol Lanspeak disse que tem alguma coisa a me contar, sra. Boswell.”

     “Esse não é o meu nome. Sou Verona Whitmoor.”

     “Gosto mais deste nome. Tem um agradável som musical, como quando você fala”, disse ele.

     Ela pareceu atrapalhada e abaixou a cabeça. “Estou tão envergonhada. Limpava o museu, aprontando-o para domingo; fui à cozinha de Iris quando você não estava lá e apanhei o livro de receitas.”

     “Eu soube que você o tinha pegado”, disse Qwilleran, “depois que me mandou o bolo de carne. Era a receita dela.”

     “Vince gostava tanto daquela receita de bolo de carne..., e eu estava tentando agradá-lo.”

     “Fico surpreso que você tenha conseguido decifrar a letra de Iris.”

     “Foi difícil, mas consegui. Eu tinha intenção de devolver, mas depois aconteceu tudo isso.” Ela parecia lamentavelmente vulnerável e desnutrida.

     “Sra. Whitmoor, não devia comer alguma coisa? O pudim de maçã parece bom.”

     “Não estou com fome.”

     “Como conheceu Vince?”, perguntou Qwilleran.

     “Eu estava trabalhando num restaurante em Pittsburgh, e ele costumava aparecer. Sentia pena dele porque estava sempre com dor — a perna ruim, sabe. Ele foi ferido no Vietnã.”

     Qwilleran resmungou com desprezo no bigode.

     Verona continuou: “Ficamos amigos e ele me convidou a vir para cá de férias. Disse que eu podia trazer Baby. Não me disse nada sobre o dinheiro — não nessa ocasião.”

     “Que dinheiro?”

     “A mãe dele era daqui, e contou-lhe sobre um dinheiro escondido sob o celeiro, mas ele tinha de cavar para achar. O avô sabia de tudo. Mas era difícil cavar, e ele estava sempre com medo de que alguém descobrisse o que estava fazendo. Foi por isso que matou o homem no celeiro.” Verona cobriu o rosto com as mãos, e seus ombros magros sacudiam com os soluços. Tal acesso de emoção pelo assassinato de um vagabundo fez Qwilleran perguntar:

     “Conhecia o homem que foi morto?”

     Ela sacudiu a cabeça, e as lágrimas continuaram a escorrer. Ele colocou a caixa de lenços de papel no colo dela e esperou pacientemente. O que poderia dizer? Talvez as emoções dela fossem uma confusa combinação de desgosto e alívio porque ela e Baby estavam livres de Vince. Foi uma cena longa e dolorosa. Quando finalmente persuadiu-a a falar, sua voz trôpega balbuciou algumas palavras de cada vez.

     Ele descreveu a penosa experiência quando chegou à casa de Polly às oito horas. Logo ao entrar, disse: “Eu sabia que aquele sujeito era uma fraude! Não era nenhum perito em prensas tipográficas e mentiu sobre sua perna doente — disse a Larry que fora poliomielite, e a Verona que acontecera no Vietnã. Na verdade foi resultado de uma travessura juvenil. E ouça isto! Ele, Larry e Susan são primos em segundo grau!”

     “Sente-se e coma uma fatia de torta”, disse Polly, “e conte desde o começo.”

     “Acabei de chegar do hospital. Fui visitar Verona”.

     “Ela sabia alguma coisa sobre o assassinato de Waffle?”

     “Não, até que a polícia lhe contou, mas sabia o que Boswell fazia no celeiro. Ele estava cavando para encontrar as moedas de ouro de Ephraim!”

     “Que ingenuidade! Onde ele ouviu essa antiga lenda?”

     “O bisavô dele era caseiro de Ephraim, e a história foi passada de pai para filho na família. Ele acreditou. Mudou o nome para que a cidade não pudesse ligá-lo ao Bosworth original. Catalogar as prensas era só uma fachada. Apareceu, por sorte, quando ele contatou Larry sobre umas férias por aqui, com a ‘mulher e a filha’. Mas estava sempre com medo de que alguém o descobrisse. Por isso, quando Brent Waffle escondeu-se no celeiro, imagino que Boswell o considerou uma ameaça e matou-o com um pé-de-cabra.”

     “O que aconteceu à sua teoria de contrabando de engradados, Qwill?”, disse Polly maliciosamente.

     “Esqueça. Eu estava enganado.”

     No seu estado de animação Qwilleran não notou que a torta de abóbora tinha sido congelada e insuficientemente descongelada, nem que Pé Frio estava sentado nos seus joelhos. Disse: “Na noite em que ele se desfez do corpo, os gatos ouviram um ruído, e eu também — um ronco. Era a caminhonete de Boswell, passando do lado oposto do celeiro para pegar o corpo no estábulo. Depois, ele saiu e mandou Verona mentir por ele. Também lhe deu um murro no olho.”

     Polly ofereceu-lhe mais torta, e ele declinou. “Uma fatia é mais do que suficiente, mas vou. tomar outra xícara de café.” Depois de alguns goles, disse: “Boswell estava usando uma furadeira para procurar o tesouro, e a vibração estava soltando as lâmpadas. Acredito que também rachou a argamassa da parede no porão. Foi onde Iris ouviu primeiro os ruídos de batidas. Ele estava usando um martelo e ta-lhadeira para arrancar o reboco... está pronta para o pior?”

     “Tem mais?”

     “Muito mais, mas custou um bom tempo até tirar tudo de Verona. Ela teve uma crise de choro, e eu pensei que estava transtornada por causa de Baby. Na verdade estava agoniada pela morte de Iris. Por acaso eu tinha comigo um gravador pequeno e inconspícuo. Gostaria de ouvir em primeira mão minha conversa com Verona?”

     Polly hesitou. “Não parece muito decente. Foi uma conversa particular.”

     “Seria mais decente se eu a repetisse palavra por palavra?”

     “Bem... se você coloca desse jeito...”

     A voz hesitante de Verona estava pontuada de fungadelas e gemidos, mas a voz de Qwilleran era a primeira na fita, e ele fez uma careta quando se ouviu repetindo as palavras piegas de Boswell. “Meu Deus! Eu disse isso?”, falou.

Não tenha medo de me contar suas mágoas, sra. Whitmoor. E para isso que servem os vizinhos.

Sinto-me terrivelmente mal com isso. Quando Iris morreu, eu também queria morrer.

Era uma ótima mulher. Todos gostavam dela.

Ela era tão boa com Baby e comigo. Ninguém mais... (Longa pausa.)

Você sabia que ela sofria do coração?

Ela nunca falava de si mesma, mas eu sabia que estava preocupada com alguma coisa.

Ela lhe contou sobre os barulhos misteriosos na casa?

Contou. E quando eu falei a Vince ele ficou nervoso. Disse que ela era muito intrometida. Ele estava martelando e furando e ela ouviu e pensou que eram fantasmas ou coisa assim. (Choro suave.)

O que ele fez a respeito?

Ele tentou achar meios de fazê-la sair da casa, para poder trabalhar, mas ela gostava do museu e adorava sua cozinha. Estava sempre cozinhando e assando. (Longa pausa.)

Continue, sra. Whitmoor.

Um dia ele voltou para casa com uma fita do Dia das Bruxas — sons fantasmagóricos, sabe. Disse que tinha tido uma idéia. Que Iris era uma mulher tola, e podia assustá-la tanto que largaria o emprego, e então ele poderia morar no apartamento do administrador e cavar quanto quisesse.

A idéia funcionou?

Ela ficou muito abalada, mas não saiu. Vince falava disso o tempo todo. Ficava como um louco e, quando tinha esses acessos de raiva, a perna doía mais.

Lembra da noite em que Iris morreu?

(Gemido prolongado.) Nunca vou esquecer! Não até morrer!

O que aconteceu?

(Choramingando.) Ele me deu um lençol com dois buracos. (Soluços.) Disse para eu entrar sob o lençol... e ficar de pé em frente à janela dela... e ele ia tocar a fita com efeitos fantasmagóricos. Eu não queria, mas ele disse... (Longa pausa.)

O que ele disse?

Ele fez umas ameaças, e eu fiquei com medo por Baby, por isso obedeci. (Gemido angustiado.) Eu não sabia o que ele faria!... Ah, Deus, me perdoe!... Eu não sabia que ele ia asfixiar Iris còm aquele travesseiro! (Soluços histéricos.)

     Qwilleran desligou o toca-fitas. Disse a Polly: “Ela continuou a chorar tanto que pensei que ia entrar em convulsão. De fato, a enfermeira veio, deu-lhe alguma coisa para beber e disse que era melhor eu sair. Obedeci, mas esperei na sala de visitas e depois de um tempo voltei. Agradeci a ela, disse-lhe que era uma boa mulher e que deveria ir para o sul e começar vida nova. Segurei-lhe as mãos, e ela quase sorriu. Então eu lhe fiz uma pergunta: por que o apartamento de Iris estava todo às escuras? Essa questão esteve me intrigando desde que achei o corpo de Iris no chão da cozinha.”

     “Verona tinha uma resposta?”

     “Disse que foi ela que entrou e desligou as luzes e o microondas. Homer Tibbitt tinha inculcado nos voluntários da limpeza que deveriam sempre desligar tudo — pelo perigo de incêndio.”

     Polly disse: “Sinto-me arrasada! E uma história de amedrontar — e fantástica!”

“Quer ouvir uma coisa realmente fantástica?”, disse Qwilleran. “Quando eu levei Koko ao museu pela primeira vez, ele foi direto a um determinado travesseiro na coleção de têxteis. Eu não sabia então, mas aquele travesseiro tinha sido removido da exposição sem autorização, e depois devolvido... E não é tudo. Quando ele disparou para o celeiro, ontem à noite, achou uma ninhada de gatinhos num lençol branco sujo, com buracos para os olhos. Obviamente Boswell o tinha socado entre os engradados, depois de usado para assustar Iris. Tinha chovido e o lençol foi arrastado pelo chão molhado; as pontas estavam enlameadas... e mais uma coisa incrivelmente ilustrativa, Polly! Duas vezes — não uma, mas duas vezes — Koko derrubou um romance da prateleira, onde um personagem é asfixiado com um travesseiro!”

    

     Quando Qwilleran retornou à fazenda, os siameses o receberam com queixas sentidas e pêlos eriçados. Estava frio no apartamento. “O termostato está com pouca potência?”, perguntou-lhes, “ou a sombra de Ephraim esteve vagando por aqui?” Acendeu um fogo crepitante na lareira da sala, vestiu o velho roupão e recostou-se numa espreguiçadeira para reflexão.

     Abstivera-se de contar a Polly a história de Adam Dingleberry e os documentos que encontrara confirmando-a. Os papéis foram devolvidos ao fundo falso da velha escrivaninha Dingleberry, e o segredo ficaria a salvo por mais algumas décadas. O Condado de Moose podia continuar acreditando que Ephraim morrera em 30 de outubro de 1904 — de um modo ou de outro — e a confraria dos Nobres Filhos do Laço podia continuar com suas tapeações. Qwilleran suspeitava que os Nobres Filhos, todos os trinta e dois, com lanternas nos capacetes, encenavam uma marcha fantasmagórica em cima da pilha de detritos da mina Goodwinter todos os anos, a 13 de maio.

     Na bergère azul, os siameses faziam uma sessão de limpeza recíproca. Teriam escolhido aquela poltrona porque era a favorita da sra. Cobb, ou porque sabiam que o estofamento realçava o azul de seus olhos? Qwilleran os observava, magníficas criaturas, fúteis e misteriosas.

     Disse a Koko: “Quando se sentava na janela da cozinha olhando para o celeiro, você sabia que alguma coisa anormal estava acontecendo por lá?”

     Koko, entretido em passar a língua em volta da orelha direita de Yum Yum, não prestou atenção. Por que, perguntou-se Qwilleran, os gatos são sufocantemente atenciosos ou irritantemente indiferentes? Prosseguiu — obstinadamente:

     “Quando você fazia túneis por baixo dos tapetes, estava tentando me dizer alguma coisa? Ou estava apenas se divertindo?”

   Koko estendeu seus serviços para a elegante garganta de Yum Yum, e ela levantou o queixo em êxtase. Qwilleran lembrava-se do tempo em que Koko esperava que a fêmea fizesse a limpeza. Os tempos haviam mudado.

     “E sobre todos aqueles resmungos e rosnados?”, perguntou. “Estava falando consigo mesmo ou conversando com uma presença invisível?”

     Os gatos sentaram-se com as patas encolhidas, contentes e totalmente distraídos.

     Meditando em sua poltrona e vagamente consciente da bergère azul em frente, ele quase podia sentir a presença de Iris Cobb. Nesse preciso momento dois focinhos marrom se ergueram, quatro orelhas marrom viraram, dois grupos de bigodes estremeceram. Alguma coisa estava para acontecer. Qwilleran preparou-se para uma aparição rosa, carregando biscoitos. Dez segundos depois, o telefone tocou.

     Qwilleran atendeu no quarto. “Alô?... Claro que me lembro de você! Como estão as coisas Aí Embaixo?... Não sei. Qual é a proposta?... Um apartamento de cobertura, você disse? Parece bom, mas vou ter de discutir com meus chefes. Onde posso encontrá-lo?...”

     Voltou para a sala e dirigiu-se à bergère azul. “Que tal vocês acham de passar o inverno no Cinturão do Crime em vez de no Cinturão da Neve?”

     A poltrona estava vazia. Eles tinham pressentido outra mudança de endereço. Os olhos de Qwilleran automaticamente ergueram-se para o topo do armário da Pennsylvania. Não estavam lá. Mas percebeu uma corcova no tapete da lareira e outra no tapete defronte ao sofá. Ambas as corcovas estavam eloqüentemente imóveis.

 

                                                                                 Lilian Jackson  

 

                      

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