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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O GAVIÃO LEVANTA VÔO / Roland Piguet
O GAVIÃO LEVANTA VÔO / Roland Piguet

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O GAVIÃO LEVANTA VÔO

 

O homem sentiu um suor frio correr-lhe pelas fontes quando ouviu os passos aproximarem-se, rangendo no saibro da alameda. Dissimulado na ombreira da porta de ferro, cravada no muro, fez-se o mais pequeno possível e os dedos crisparam-se-lhe na coronha da pistola.

A noite lívida de Setembro envolvia a fábrica, e diante dele, no muro de tijolo vermelho, percebia-se, meio rasgado, um imenso retrato-cartaz de Grotewohl, o anjo da guarda da República Democrática Alemã, que formava um rectângulo branco destacando-se na penumbra.

Roçando o muro, o guarda-nocturno passou a menos de cinquenta centímetros, espartilhado no seu uniforme negro. Depois afastou-se tão tranquilamente como se aproximara, e pouco a pouco o ruído dos seus passos desvaneceu-se na noite.

O homem deixou escapar de uma só vez o ar que retivera nos pulmões. Os nervos distenderam-se-lhe, e maquinalmente enxugou a testa com a manga. Ficou ainda uns instantes de ouvido à escuta. Tranquilizado pelo silêncio total que de novo reinava em seu redor, tirou uma chave da algibeira e introduziu-a no buraco da fechadura; deu a volta e empurrou lentamente a porta que se abriu sem ruído e se fechou atrás dele. Com meia dúzia de passos largos atravessou a distância que o separava do edifício destinado à Direcção, e seguiu encostado ao muro uma vintena de metros. Parou diante de uma segunda porta e puxou de uma segunda chave. A porta, tal como a outra, abriu-se sem ruído e rodou nos gonzos. O homem penetrou no edifício e, depois de fechar a porta atrás de si, permaneceu uns instantes imóvel, nas trevas, espiando o menor barulho, respirando com curtas inspirações, esforçando-se por dominar os nervos.

Sempre nas trevas, tacteou a parede com a mão, caminhando em bicos de pés, mas sem hesitações, como alguém que conhece o local onde se encontra. Aquele longo e estreito corredor, embora mergulhado na mais completa escuridão, era-lhe familiar. Contou dez passos e atingiu a janela. Contou mais sete e estacou. Não precisava acender a luz para saber que se encontrava defronte de uma porta larga, com batentes duplos, revestida de couro, onde se inscrevia em letras de ouro a palavra PRIVAT. Sabia que não havia-ali nenhuma célula fotoeléctrica dissimulada no couro, e que o único dispositivo de alarme era um arame rente ao chão ligado a uma sereia.

Apontou rapidamente uma pilha de algibeira, tirou uma pinça das profundezas da sua gabardina, e cortou um fio. Apagou logo a pilha, guardou a pinça na algibeira e daí retirou uma terceira chave, minúscula e chata, que delicadamente introduziu na complicada fechadura. Ao cabo de instantes sentiu que o fecho cedia. Empurrou a porta, entrou no escritório, e tornou a fechá-la atrás de si.

As trevas eram menos densas que no corredor que acabava de atravessar. As grandes janelas deixavam perpassar um vago clarão. Os olhos habituados à penumbra distinguiram a secretária e os maples de couro, assim como um armário metálico.

Evitando chocar contra os móveis, avançou para o canto mais escuro do quarto. Apontou de novo a pilha, iluminando de súbito uma massa negra, quadrada, imponente, de sinistros reflexos: o COFRE-FORTE.

Instintivamente o homem voltou-se e lançou em redor um olhar de receio e desconfiança. Parecia-lhe que o lustre do tecto se ia acender, que todos os candeeiros do escritório se iam iluminar, que a fábrica inteira se iluminaria com milhares de luzes, e que diante dele ia surgir Karl Breícher, rodeado pelos seus colaboradores, de revólver em punho, com um riso de troça nos lábios. Parecia-lhe que o tinham voluntariamente deixado chegar até ali para melhor o confundirem, para melhor o ridicularizarem antes de o liquidarem; para lhe provarem que o Partido estava sempre ao corrente de tudo, e que ninguém era capaz de o trair; que ninguém, nem mesmo ele, militante comunista reputado, membro dirigente do Partido, nada podia tentar contra o regime das causas justas.

Uma espécie de medo absurdo invadiu-o e foi sacudido por uma tremura nervosa, o olhar fixo na direcção da porta, não ousando já, sequer, olhar para o cofre cuja combinação conhecia de cor, e que continha os planos secretos do “KL-X-19”, um aparelho teleguiado, última invenção sensacional dos engenheiros alemães da Alemanha Oriental, descoberta que iria revolucionar a técnica moderna e talvez transformar o destino do Mundo.

Fez um enorme esforço de vontade para dominar os nervos tensos à flor da pele. Em seu redor não havia senão silêncio. Um silêncio total. Um silêncio que nenhum barulho insólito vinha perturbar.

O homem conseguiu enfim recuperar as suas capacidades e a sua lucidez. Estava realmente sozinho, absolutamente sozinho. Ajoelhou-se no chão e pousou à sua frente a pistola e a pilha que inclinou de modo a iluminar apenas o estritamente necessário. Cortou os dois fios ligados à sineta de alarme, guardou a pinça na algibeira, e principiou a combinar os números. Durante uns instantes soube encontrar em si a força para dominar o nervosismo dos seus movimentos, e os dedos ágeis fizeram deslizar os números: 2, 1, 4, 3, 8, 1, 9...

Ouviu-se um ligeiro ruído e a espessa porta de aço entreabriu-se. O homem puxou-a para trás, com mão febril. Intensa emoção tomou conta dele quando descobriu o dossier vermelho, que tinha por única inscrição, a palavra “GEHEIMN” (1). Folheou-o rapidamente, e não pôde impedir-se de se sentir impressionado ao apoderar-se de uns planos de valor incalculável. Guardou o dossier numa pasta e tornou a fechar o cofre. Pegou na “Mauser” e apagou a pilha. Depois deitou um olhar ao quadrante luminoso do relógio de pulso. Eram três e cinco. Sabia que o mais duro ainda estava para acontecer: sair da fábrica e fugir... Sabia que a fase mais crítica do seu plano só agora ia começar, e que apesar dos seus cálculos, sábios e matemáticos, era sempre preciso contar com os imponderáveis, contar com o acaso que, esse, não se calcula, e que estupidamente obstrui o mecanismo mais bem regulado.

Apertando a pequena pasta contra o peito, o homem saiu da sala. Tornou a fazer o caminho que percorrera, em sentido inverso, abrindo e fechando todas as portas atrás de si.

Quando se encontrou ao ar livre, permaneceu por momentos dissimulado na sombra, perscrutando as trevas, olhos e ouvidos atentos.

A chuvinha que começara a cair ao princípio da noite, cessara, mas uma brisa do norte levantara-se subitamente, e soprava com violência, varrendo algumas nuvens raras num céu espantosamente claro.

Calculando o momento favorável, o homem avançou com passos rápidos em direcção à pequena porta de ferro (1)—”Secreto” em alemão por onde se introduzira no pátio da fábrica... Mal percorrera uns metros, uma voz gutural fê-lo estacar de repente:

- Haiti...

O homem sentiu o sangue gelar-lhe nas veias. Voltou-se com um esticão, a mão na coronha da automática.

 

— Was machen Sie da ? (1).

 

Um guarda de uniforme aproximava-se agitando um revólver. O homem reconheceu-o pelo andar. Era Walther Jost. Como não esboçasse nenhum movimento de fuga, o velho Walther Jost não desconfiou e repetiu a pergunta, aproximando-se. Envolvido pelas trevas, não reconheceu o visitante nocturno, assim como não distinguiu a pistola que lhe tremia entre os dedos. E quando por fim a distinguiu, era tarde demais.

Perturbando brutalmente a serenidade da noite, a “Mau-ser” cuspiu por três vezes seguidas.

O velho guarda dobrou-se em dois, a arma escapou-lhe da mão, e, como se as pernas se recusassem a suportá-lo, tombou sobre a calçada.

O homem pôs-se a correr ao longo do muro da cerca, o mais depressa que as pernas lho permitiam. Parou duzentos metros adiante e deitou um olhar angustiado por cima do ombro. Ninguém o seguia, e o silêncio caíra mais pesado, mais sinistro ainda, como se nada de extraordinário se tivesse passado.

O homem aproveitou todos os segundos. O medo agarrava-lhe o estômago como uma tenaz, mas esse medo dava-lhe uma audácia e uma temeridade incríveis. Diante dele erguia-se uma grade imensa, que ia do solo até ao cimo do muro, com mais de quatro metros de altura. Essa rede fechava a passagem reservada aos camiões. Não possuía a chave, (1) — ”Que faz o senhor aí”, em alemão. – nem nunca pensara arranjá-la, não lhe tendo passado péla cabeça que poderia vir a servir-lhe.

Com uma agilidade que ninguém adivinharia possuir, o homem começou a subir pela barra transversal. Sem hesitação alçou as pernas por sobre as pontas eriçadas e deixou-se cair do outro lado. Ao encontrar-se de novo na rua, teve a suficiente presença de espírito para verificar se não tinha perdido os preciosos documentos que escondera na gabar-dina, e pelos quais arriscava a pele. Depois, largando a correr, entrou no automóvel que meia hora mais cedo parara na borda do passeio. Pôs o motor em marcha e partiu como um bólide, fazendo uma curva audaciosa.

E enquanto o carro desaparecia na noite, as sereias de alarme da Deutschluftkonstruktionwerstatte começaram de súbito a apitar... day ou quase nada, distinguia à primeira vista, das outras cidades-jardins berlinenses, o bloco de Marienfielde, distrito do sul ligado ao Tempelhof, se não fosse por cima da porta este letreiro: Zentral Fluchlingsnotaufnahmelager Berlin (1). Mas, atravessada a soleira da porta, a vista dos grupos errantes e ociosos entre as casas, homens, mulheres, crianças, chamava a atenção do observador menos clarividente, nos rostos lia-se o abatimento e a desesperança dos que se acostumaram a esperar eternamente. E esperavam, com efeito, desde o dia em que se tinham inscrito num centro de refugiados de Berlim-Oeste, após terem atravessado clandestinamente a fronteira. Aqueles ex-cidadãos de pleno direito da República Democrática Alemã não eram senão párias da sociedade comunista, e, como se dizia em Berlim, Republikfluchtige (2). Mas isso não fazia que fossem recebidos de braços abertos a oeste, pois os dirigentes da Alemanha Livre sabiam perfeitamente que, no meio dessa incessante vaga, fugia da Alemanha Oriental grande número de indivíduos indesejáveis por razões que não eram políticas. Grande parte deles sabia que nunca obteria sobre o seu cartão de identidade o carimbo mágico Anerkannt (3) que lhes

 

(1)—Campo principal de acolhimento de refugiados em Berlim. (2)—Desertores da República.

(3)—Reconhecido.

 

dava direito ao auxílio imediato das autoridades de Bona e que faria deles cidadãos normais.

De uma janela situada no terceiro andar, Gerta Riimer olhava com olhar irónico um grupo de mulheres que tagarelava no pátio. Estas não tardaram a dar por tal e voltaram-se ostensivamente, esforçando-se por ignorarem quem elas tanto detestavam e desprezavam.

—Pobres idiotas...—murmurou Gerta, deitando-lhes um olhar mau.

Fez-lhes uma careta e cuspiu na direcção delas. Era uma rapariga alta, bela e loura, de uns 30 anos de idade, assaz roliça, e que costumava atrair o olhar dos homens. Os seus olhos azuis-claros tinham qualquer coisa de duro e de cínico que os lábios finos e sensuais não conseguiam atenuar.

Não era ela, Gerta Riimer, que iria ficar para ali a ralar-se naquele campo, esperando indefinidamente o direito de trabalhar. Não era ela que se iria contentar em viver como uma dependente, esperando a boa vontade dos senhores de Bona. Havia apenas seis meses que desertara do campo comunista, mas não era para vir morrer de fome na zona livre. Aquelas trouxas que tinha por companheiras de dormitório davam-lhe vontade de rir; como se fosse difícil ganhar dinheiro, mesmo sem carta de trabalho. Ela, Gerta, não precisava. A única dificuldade era encontrar onde morar. Mas acabava justamente de encontrar quarto numa pensão do bairro de Reinickendorf, que o proprietário consentira em lhe alugar por uma soma exorbitante, por causa dos papéis dela não estarem em regra. Em Berlim-Oeste, como em todos os lados, com dinheiro obtinha-se tudo; e o dinheiro, sabia onde arranjá-lo; não fazia parte daquele grupo de trouxas que mais depressa morreriam de fome a venderem-se.

Gerta deitou para o chão o cigarro americano meio fumado, aureolado de bâton, e esmagou-o com o pé. Sentada na cama estreita, enfiou um par de meias de nylon muito finas assegurando-se que a costura ficava direita e lhe moldava as bem delineadas barrigas das pernas. Calçou sapatos de saltos altos, aproximou-se do espelho pendurado por cima de um lavatório imundo, e retocou os lábios. Depois enfiou uma gabardina, pegou na maleta e lançou um olhar de desprezo àquele horrível dormitório jurando a si mesma nunca mais tornar a pôr ali os pés.

Quando passou diante das companheiras, olhou-as com arrogância. Estas suspenderam a conversa e encararam-na com ódio. Gerta ouviu uma delas pronunciar a palavra: Hure (1). Esteve quase a voltar atrás para a esbofetear; mas encolheu os ombros e atravessou o pátio lentamente, como que a troçá-las, saindo, enfim, para a avenida. Chamou um táxi, deu a sua nova morada ao motorista e enfiou-se no carro.

O táxi atravessou Tempelhof e dirigiu-se para o centro da cidade. O tempo estava ainda chuvoso e o ar carregado de humidade. Eram quase 7 horas da noite e os anúncios luminosos dos cafés e das lojas cintilavam em todos os sentidos.

Chegada diante da pensão, situada na Miillerstrasse, e que era desde agora o seu novo domicílio, Gerta desceu do táxi, pagou ao motorista, subiu rapidamente para o seu quarto, e saiu quase logo em seguida. Dirigiu-se a pé ao longo de uma rua espaçosa para uma cervejaria situada quinhentos metros adiante, cuja luz crua iluminava o asfalto com as suas lâmpadas de néon. Tinha a intenção de jantar aí, ou, antes, de se fazer convidar a jantar. Frequentava aquele estabelecimento havia já umas semanas e tinha feito dele o seu quartel-general,

1 Desavergonhada!

 

pois aí encontrava muitos soldados americanos e ingleses.

Mas nessa noite, quando entrou na sala, viu logo que não havia gente, e ficou desanimada. Pensara que teria sorte, como lhe acontecia às vezes, e que encontraria alguém solitário e desanimado, a quem proporia com êxito um pouco de companhia, mas não encontrou ninguém.

Henri Louvier pousou a revista que folheava e levantou-se. Acabava de ver o capitão Grandjean atravessar a; sala e dirigir-se para ele.

—Estou desolado—disse este—mas não poderá falar com o comandante. Está em Munique desde ontem e não volta antes do fim da semana.

—Que pena! Teria gostado de me despedir antes de partir e de lhe agradecer todo o apoio que me deu. Facilitou muito a minha tarefa. Encarrego-o de lhe agradecer em meu nome.

—Pode ficar descansado!—assegurou o capitão, com um sorriso que deixava entrever uns dentes muito compridos e um pouco afastados.—Então, abandona definitivamente Berlim ?—continuou.

—Amanhã de manhã, às 8,40 em ponto. Ordens são ordens.

—Não seria eu quem diria o contrário—sublinhou o capitão.—Pois desejo-lhe muito boa viagem e espero que nos voltemos a ver um dia. Uma segunda missão em Berlim, quem sabe?

—Talvez.

—Boa sorte.

—Obrigado, capitão.

Os dois homens deram um aperto de mão e Louvier afastou-se.

Aquela diligência protocolar junto do comandante do regimento francês em Berlim era a sua última visita, uma obrigação que não se podia deixar de se impor a si mesmo; para mais, naquele caso que o levara a Berlim partindo de Alger e passando por Paris, era realmente graças ao comandante que tinha podido apanhar com tanta rapidez o pequeno patife do tenente francês, último elo de uma cadeia que transmitia para o outro lado da Cortina de Ferro informações sobre as operações militares na África do Norte. Louvier lastimou com sinceridade não poder despedir-se pessoalmente do comandante, por quem tinha sentido real simpatia desde o primeiro contacto.

Atravessou o pátio, passou diante da sentinela e encontrou-se na rua. A sua missão terminara, e o comandante Jolivet, a quem todos chamavam familiarmente “Petit Monsieur”, o célebre “Petit Monsieur”, o espantoso director dos Serviços Especiais de Espionagem do II Bureau, a quem falara ao telefone durante a manhã, parecera-lhe contente. As malas estavam feitas e acabara de restituir às autoridades francesas o carro posto à sua disposição. Agora era só tomar ajuizadamente o avião para Paris, onde com certeza o esperava já outra missão. A não ser que o “Petit Monsieur” lhe desse uns diazinhos de férias, do que duvidava. O “Petit Monsieur” era raro dar férias ao seu pessoal, nunca as tomando ele próprio. Mas a verdade é que ele também não precisava muito delas: habitava um pavilhão nos arredores de Paris, e por isso podia, ao fim da tarde, no regresso a casa, gozar dos encantos da natureza e cultivar as flores do seu jardim, a que dedicava verdadeira paixão. Louvier sempre perguntara a si próprio como era que um homem que enviava sistematicamente outros homens para serem massacrados nas cinco partes do Mundo podia gostar de flores.

Louvier consultou o relógio; eram 5 horas. Não tinha absolutamente nada que fazer até ao dia seguinte de manhã. Decidiu permitir-se um passeio pela cidade, para matar o tempo. Dirigiu-se naturalmente para o centro, passeando tranquilamente, como turista, observando para a direita e para a esquerda, espantado por descobrir tão tarde que havia coisas muito interessantes para ver em Berlim. Só lhe faltava o tradicional aparelho fotográfico a tiracolo.

Três quartos de hora mais tarde atingia o célebre Vurfuerstendamm, o boulevard mais conhecido de Berlim Ocidental, grande artéria ultramoderna ao longo da qual se erguem os grandes hotéis internacionais, os restaurantes de luxo e os cinemas. Pelo espaçoso passeio, na alameda junto dos parques de estacionamento, desfilavam numerosos transeuntes. Acabava de percorrer uma centena de metros quando teve de repente a sensação de estar a ser seguido.

Louvier possuía um sexto sentido, o da intuição. Voltou-se com um ar distraído e olhou para trás. Tudo parecia normal. Quis no entanto assegurar-se e recorreu ao estratagema clássico: marcha lenta, paragens diante das montras, o recomeçar a andar precipitadamente e depois voltar-se de repente. Não tardou a observar, ao cabo de momentos, um indivíduo de sobretudo beige e chapéu cinzento, que parava de cada vez que ele o fazia.

Louvier continuou a andar um pouco à toa. Depois, entrou num café, instalou-se a uma mesa e pediu uma cerveja. Era um café tipicamente berlinense que acabava de ser restaurado. As paredes e os mais escondidos recantos estavam cobertos de espelhos emoldurados a roxo e ouro, o que permitia ver para todos os lados ao mesmo tempo.

Enquanto olhava em seu redor com expressão divertida, à espera de ver aparecer o tipo que o seguia, Louvier sentia-se de bastante bom-humor. Talvez até porque a sua missão terminara e porque no dia seguinte as suas aventuras berlinenses seriam apenas uma lembrança entre outras.

Uma bonita gretchen acabava de pousar diante dele um copo de cerveja quando Louvier se sentiu bruscamente interessado pela súbita chegada de uma personagem. Mas essa personagem não era o homem que o seguira, de sobretudo beige. Era uma personagem muito mais interessante e sem nenhuma relação com o tipo em questão. Acabava de entrar no café uma mulher absolutamente notável, de uma beleza que o deixou pregado à cadeira. De tipo essencialmente nórdico, alta, esbelta, de cabelos de um louro dourado, nariz pequeno e rectilíneo, olhos enormes, claros como o céu azul, reunia ao mesmo tempo a beleza, a graça e a distinção.

Louvier não encontrou no meio das suas recordações nenhuma mulher que pudesse ser-lhe comparada. Marilyn Monroe, Sofia Loren ou claro, Brigitte Bardot, pareciam-lhe bem desenxabidas em comparação com aquela mulher de 25 anos que acabava de se instalar à mesa vizinha da sua. Nenhuma das rainhas de beleza em voga podia rivalizar com ela. A única a quem talvez a pudesse comparar, por uma certa personalidade, um certo ar, era a Greta Garbo, de uns anos atrás.

Em tempo normal, Louvier ter-se-ia contentado em a apreciar como conhecedor, mais nada, pois no seu ofício não havia tempo nem lugar para o amor de ocasião, e cada encontro feminino era um perigo, qualquer coisa contra que era preciso estar sempre precavido. Mas Louvier não estava em missão. A sua missão terminara, não se falava mais nisso, o que modificava o aspecto das coisas. Louvier estava completamente livre para agir como lhe apetecesse até ao dia seguinte às 8,45 da manhã.

Sentindo o olhar do francês sobre si, a bela desconhecida voltou a cabeça e percebeu que ele a devorava com os olhos. Mas voltou-lhe ostensivamente a cara. O olhar desdenhoso que ela lhe lançou porque a olhava com demasiada insistência, fez imediatamente compreender a Louvier que perdia o seu tempo.

Quando, já tarde, Gerta Riimer entrou no quarto, deparou com um desconhecido de gabardina e óculos escuros sentado num maple diante da porta, segurando um objecto pequeno, maciço e em aço escuro.

—Que... que deseja... de mim?...—gaguejou ela.

O homem tirou lentamente os óculos. Dois olhos de um azul acinzentado, pequenos, cruéis, dois olhos que ela conhecia bem, fitaram-na intensamente.

Gerta Riimer ficara apatetada. Depois, pouco a pouco conseguiu dominar-se e deixou-se cair molemente a um canto do leito.

—Não é de espantar... Esta noite sonhei com morcegos... —articulou ela lentamente.

Louvier espantou-se ao vê-la encomendar uma água mineral. Habitualmente aquele género de beldade loura bebia uísque. Remexeu na carteira e tirou um maço de cigarros ingleses. Pegou delicadamente num e levou-o aos lábios. Depois manejou o isqueiro. Viu-se uma chispa, e outra e outra, mas não, nenhuma chama surgiu. Esboçou um gesto de contrariedade, agitou o isqueiro e recomeçou sem sucesso.

A ocasião não se podia perder. Louvier levantou-se, atravessou a distância que o separava da bela desconhecida e estendeu-lhe um fósforo aceso.

—Dá-me licença?

Surpreendida, contrariada, encarou-o franzindo as sobrancelhas. Depois, a expressão dura que o fulminava amenizou-se, e Louvier julgou ler nela um leve divertimento. Ela avançou o rosto, de um oval perfeito, puro como o de um quadro do século XVII, e acendeu o cigarro. Aspirou uma funda baforada, lançou o fumo pelas narinas e esboçou um sorriso.

—Francês?—disse, com leve pronúncia germânica.

—Sim, francês. Dá-me licença?...

E sem lhe dar tempo a responder, Louvier puxou de uma cadeira e sentou-se à mesa. Ela deixou-o agir e o seu sorriso acentuou-se.

—Os franceses passam por ser muito atrevidos, e a mim parece-me que ainda é pouco o que dizem deles...

—Qualquer pessoa de qualquer outra nacionalidade teria agido da mesma maneira para com uma rapariga tão bonita como você—disse Louvier.—Até um alemão.—E acrescentou:—Conheço muitos dos seus compatriotas mais descarados que muitos franceses.

—Eu não sou alemã, sou sueca...

Louvier agradeceu com um movimento de cabeça à gretchen, que discretamente lhe trazia a bebida deixada na outra mesa. Uma rapariga esperta, aquela criadinha, e que sabia compeender as coisas.

—Somos dois estrangeiros perdidos neste país, se bem compreendo... —recomeçou Louvier.

—Perdidos, é a palavra. Custa-me muito circular nesta cidade. Todas as ruas se parecem entre si.

—É o aborrecimento das cidades reconstruídas.

—Estou um pouco desapontada. Imaginava Berlim diferente.

—Seria indiscreto perguntar-lhe se viaja sozinha?

—Muito indiscreto. Mas vou responder-lhe: sou o que há de mais sozinho no mundo!...

—Bravo! Nesse caso precisa de um guia.

—E naturalmente é o senhor esse guia?

E lançou-lhe um sorriso capaz de perturbar um frade. Aquelas suecas eram realmente umas mulheres formidáveis que não se embaraçavam com preconceitos ridículos. Que pena ter de deixar Berlim no dia seguinte. Uma aventura que poderia resultar maravilhosa oferecia-se-lhe na véspera da sua partida.

Tagarelavam havia uns bons cinco minutos, como se fossem velhos conhecidos, quando ele se lembrou que não sabia ainda o nome dela. Decidiu preencher imediatamente essa lacuna.

—Ainda não me disse o seu nome...

—Chamo-me Ingrid Haldem, tenho 28 anos, sou solteira e trabalho num instituto de beleza em Estocolmo. E você?

—Chamo-me Lucien Marceau, tenho 30 anos, sou igualmente solteiro, sou representante de uma sociedade francesa de vinhos e licores, e adoro as louras suecas perdidas nas cidades alemãs!

—Você agrada-me!—disse Ingrid rindo.

—Você também... Moralidade da história? Quando duas pessoas se encontram e se agradam mutuamente, nunca mais se deixam e aproveitam passar juntos o maior número possível de horas, até ao momento em que o destino as separe!...

—Tem muita razão, mas preciso, no entanto, deixá-lo por instantes, para fazer um telefonema.

Ergueu-se e dirigiu-se ao balcão para perguntar onde se encontrava a cabina telefónica. O seu andar flexível como o de um felino possuía qualquer coisa de majestoso. Não tinha nada a invejar a uma rainha descendo os degraus do seu palácio.

Quando ela desapareceu por detrás da porta envidraçada, Louvier ficou pensativo. Não se lembrava de ter encontrado algum dia uma mulher daquele estofo, tão bela e tão desejável. E também não se lembrava de ter abordado alguma com tamanha facilidade.”Por puro acaso. Ora no seu ofício o acaso era uma palavra inexistente. Uma palavra para sempre riscada do dicionário. Não havia acasos.

Lembrou-se que fora por causa do tal energúmeno que entrara na cervejaria. Mais um acaso? Decididamente aconteciam-lhe muitos acasos exactamente na véspera da sua partida. Uma rapariga fantástica, aquela Ingrid Haldem. Dir-se-ia que saíra viva das mãos de um escultor grego.

Enquanto assim reflectia, tirou um cigarro do seu maço francês, e maquinalmente pegou no isqueiro da bela sueca, que ficara em cima da mesa. Mas logo conteve o gesto. O isqueiro não trabalhava e fora graças a ele que pudera abordá-la tão facilmente.

Examinou o isqueiro com discrição. Era um isqueiro alemão, de modelo corrente e que trabalhava a gás. A pedra funcionava perfeitamente, mas por outro lado percebeu que não havia nenhuma cápsula no interior. Não havia portanto nenhuma oportunidade de o fazer funcionar, nessas condições, mesmo agitando-o como íngrid o fizera. Disfarçadamente pegou na carteira de crocodilo deixada sobre a mesa e deitou um olhar indiscreto ao interior. Por entre os batons, os pentes, a caixa de pó, e outros encantadores objectos, encontrava-se uma caixa de fósforos.

Não era nada de anormal possuir uma caixa de fósforos, pensou Louvier, mesmo não suecos, mas porque não se ter então servido deles para acender o cigarro, em vez de se esforçar por fazer funcionar um isqueiro que não funcionaria em caso algum, pois não podia funcionar sem nova carga? Se não para que ele, Louvier, viesse oferecer-lhe lume e desse modo entrasse em contacto?

Ingrid saiu da cabina e de longe lançou-lhe um sorriso terno que Louvier retribuiu com outro não menos terno. Ela reuniu-se-lhe e tomou um ar embaraçado.

—Estou desolada. Mas tenho de me ausentar por umas horas e você não pode acompanhar-me.

—O que está a dizer-me é pura crueldade ou então não percebo. A minha presença será assim tão indesejável?

—Não posso explicar-lhe, mas preciso partir imediatamente.

—Não é nada de grave, espero...

—Não, uma maçada, apenas. Uma amiga minha, uma sueca, que precisa de mim...

Na realidade ele afligia-se por Ingrid, que lhe anunciara não conhecer absolutamente ninguém em Berlim e que descobria bruscamente uma amiga íntima, sueca, como ela, bem entendido. Louvier daria metade do seu soldo para saber a quem telefonara ela, e porque teria de partir com tanta precipitação.

—Mas eis o que lhe proponho para o consolar—continuou Ingrid Haldem—. Marco-lhe um encontro no meu hotel, hoje às 9 da noite. Fica na Altubarstrases, nº 11. Passaremos o serão juntos...

A voz dela era voluptuosa e cheia de promessas, ao pronunciar essa última frase.

Afastou-se e fez-lhe um sinal com a mão antes de fechar atrás de si a porta envidraçada. Ele viu-a atravessar a rua e chamar um táxi.

Quando ela desapareceu, Louvier pôs-se a reflectir, e lastimou de súbito que o “Petit Monsiew” lhe tivesse dado ordem para voltar à pátria.

Passava das 9 quando Roger Méral deixou o jornal. O tempo que teimava em continuar pardo e húmido havia semanas já, pesava-lhe. Naquela diabólica cidade em que o Sol só brilhava por engano, os Invernos duravam 6 meses. Sempre aquela maldita chuva, aquele vento frio e aquela espessa bruma que se arrastava pelas ruas e que o obrigava a tossir.

Contudo havia já 5 anos que dirigia de colaboração com seu cunhado, Ernst Koch, Die Deutsche Woche, um semanário com uma tiragem de mais de 100.000 exemplares. Pequeno jornalista de uma revista francesa, de Berlim, conseguira aquela situação graças ao seu casamento com uma alemã, co-herdeira de um negócio que corria bem e que não parava de se desenvolver desde o fim da guerra.

Embora se entendesse às mil maravilhas com o cunhado, Roger Méral tinha saudades da Provença e do seu sol, do seu calor e do clima mediterrânico. Felizmente que uma segunda actividade que mantinha rigorosamente secreta, ignorada até de sua mulher, o distraía um pouco das monótonas exigências do jornalismo alemão.

Roger Méral instalou-se no seu “Opel” descapotável, acendeu os faróis e pôs o motor em marcha. Vinte minutos mais tarde estacionava diante do seu prédio da Pacelliallee, no bairro de Dahlem.

Ao sair do carro lembrou-se de repente da visita que tivera no escritório, ao princípio da tarde. Um refugiado de Berlim Oriental, recém-desembarcado, um certo Otto Scheiniger, que se dizia jornalista, e que viera pedir-lhe um emprego no jornal, embora sem licença para trabalhar, com a promessa de escrever um artigo sensacional sobre um caso mantido rigorosamente secreto: o roubo dos planos de um engenho teleguiado numa fábrica de aviação de Fal-kenburg, e que, segundo ele, era uma invenção fabulosa, tão extraordinária como o lançamento do primeiro “Sput-nik”.

Roger Méral ficara e continuava céptico a respeito de tais afirmações. Tentara primeiro informar-se um pouco mais, mas o outro não quisera adiantar nada antes de ter a certeza de ser contratado. No fim de contas, Méral pensava ter feito bem em não o despedir sem mais aquelas, e de lhe ter pedido tempo para reflectir. O tipo não tinha o ar de um mitómano e parecia seguro de si. Mas talvez exagerasse a importância do roubo, se roubo havia.

De momento, pelo menos, enquanto não sabia mais alguma coisa, achava inútil informar Paris do caso.

Quando chegou a casa a mulher estava entregue aos preparativos do jantar, e a mesa já estava posta.

A refeição começou silenciosamente, como todas as noites, quando estavam sós, pois o casal só trocava as palavras indispensáveis. Frau Méral não era particularmente dotada para a conversa. Terminada a sopa, ergueu a cabeça e pareceu lembrar-se de qualquer coisa.

—Que há?—perguntou o marido.

—Esquecia-me de te dizer que alguém te telefonou, ainda agora.

- Quem?

—Uma mulher, que não quis dizer o nome.

—Essa agora...

—Perguntei se te podia dar o recado, e ela disse que queria falar pessoalmente contigo ao telefone.

—Essa agora...

—Diz que quer fazer-te uma proposta interessante.

Méral concentrou-se por momentos, tentando adivinhar de quem se trataria mas depois esqueceu o caso. Era provavelmente uma maluca, que se tomava por George Sand, e que queria propor-lhe um folhetim para o jornal.

Essa história voltou-lhe ao espírito um pouco mais tarde, ao acabar de jantar, quando o telefone tocou de novo. Ergueu-se da mesa e dirigiu-se ao seu gabinete para atender.

—Está lá?—disse com a boca ainda meio cheia.

—Está? É o sr. Méral?—perguntou uma voz de mulher.

—O próprio. Quem fala?

—O meu nome não lhe diria nada. Estou encarregada de lhe fazer uma proposta, sr. Méral. Proposta que interessará com certeza aos seus superiores.

—Não tenho superiores, menina. Sou director e proprietário do meu jornal. —Não se trata do seu jornal, sr. Méral. Compreende o que quero dizer?

—Não compreendo nada. E se não me diz imediatamente quem é a senhora, desligo.

—Faria mal, sr. Méral. Não seja estúpido. Sei exactamente quem o senhor é, por detrás dessa máscara de jornalista. É inútil negar, só perderia o seu tempo e o nosso. Repito-lhe que tenho uma proposta a fazer-lhe, ou antes, um negócio. Mas se insiste em jogar ao jogo do faz-que-não-entende, dirijo-me a um concorrente. Tenho a certeza que os seus amigos do C. I. A. e do I. S. ficariam muito contentes se me dirigisse a eles...

—Está bem!—disse Méral mudando de tom.

Esperou uns segundos para se dominar e tornou:

—Que tem a dizer-me?

—Ainda bem que se tornou razoável. Tem a certeza de que ninguém o escuta?

—A certeza absoluta.

—Então ouça, com atenção. Temos uma coisa para vender! Os planos secretos do “KL-X-19”. O “KL-X-19” é um avião teleguiado cuja capacidade vai transformar com-pletamente a moderna aviação. Os seus chefes já ouviram falar disto com certeza. Em troca destes planos, pedimos que nos seja entregue, em notas, 150.000 dólares. Se esta oferta interessar os seus superiores, nós lhes indicaremos o dia, a hora e o local onde nos podem entregar essa soma. Até breve, sr. Méral.

—Espere! Para onde posso telefonar?

—Não se preocupe com isso. Eu é que telefono.

O barulhinho do aparelho a desligar-se embateu no seu ouvido com uma pancada seca.

Roger Méral pousou lentamente o auscultador, e inconscientemente puxou do lenço e limpou a testa. Estava a suar. Tinha a impressão de segurar o Mundo nas suas mãos.

 

Louvier olhou para o táxi que se afastava no nevoeiro, sacudido pelo pavimento da calçada. Encontrava-se agora para os lados de Lufar, nos arredores de Berlim, um dos raros locais que tinham escapado aos bombardeamentos aliados durante a última guerra. Ali, não se via nenhuma construção moderna; velhas casas cinzentas, cujas, meio torcidas, a maior parte delas já com as persianas corridas.

A bela Ingrid Haldem devia realmente apreciar o pitoresco para se ter ido instalar num bairro tão sinistro. No caso, é claro, dela habitar na morada que lhe dera. Mas nada havia menos certo, e Louvier não apostaria encontrá-la aí. Sobretudo depois do rápido salto que dera ao seu hotel, uma ideia que lhe viera à cabeça, certamente inspirada por um anjo bom.

Desde que a bela sueca o deixara, tinham acontecido dois factos da mais alta importância. Primeiro, alguém se introduzira no seu quarto durante a sua ausência, e lhe esquadrinhara as bagagens. Segundo, era a mensagem de Paris, dando-lhe ordem para permanecer em Berlim e anunciando-lhe que o agente local, RH-5, entraria em contacto e dar-lhe-ia instruções.

Não tinha agora dúvidas de que essa nova missão que lhe confiava o “Petit Monsieur” estava em relação directa com Ingrid, a feiticeira, e com quem quer que fosse que se introduzira no seu quarto de hotel.

Enquanto não recebia a visita de RH 5, decidira não faltar ao encontro que lhe marcara a encantadora criatura, persuadido de que iria poder informar-se de coisas muito interessantes.

Cinquenta metros mais adiante distinguiu o nome da rua que procurava: Altliibarstrasse, escrito a azul num letreiro mal seguro contra um muro de pedras acinzentadas. O beco estreito descia aos zigue-zagues até às primeiras casas rodeadas de hangares e jardins, e prolongava-se entre duas cercas, alargando-se de repente entre dois enormes prédios escuros.

Se o Kurfuerstendamm regorgitava de multidão, ali, pelo contrário, tudo estava completamente deserto. Louvier assegurou-se que a pistola que nunca o deixava estava à mão. Apalpou a coronha e começou a deslizar suavemente por sobre as largas pedras. Era um rendez-vous de amor bem estranho, aquele...

Chegado à extremidade do muro cuja altura ia diminuindo, começou a contar à esquerda os números ímpares. Não tardou a adivinhar que o nº 11 ficava mesmo no fundo do beco. Depressa lobrigou um letreiro luminoso mal iluminado, com a inscrição Kaffeewirtschaft. Eis que as coisas mudavam de figura. Já não se tratava de um hotel mas de um simples café. A não ser que Ingrid fosse tão distraída que confundisse um café com um hotel...

Começou prudentemente a caminhar em bicos de pés, dissimulando-se na sombra o melhor que podia. Felicitou-se por ter chegado adiantado ao rendez-vous. Ficara marcado para as 9, e as agulhas do seu relógio luminoso marcavam pouco mais de 8 e meia.

Deslizou ao longo da fachada e arriscou uma olhadela pela porta envidraçada. Tratava-se de uma pequena sala, de tectos baixos e paredes pintadas a cal, iluminada por um globo antiquado. Percebia-se que aquela espécie de albergue renunciara há muito a receber clientela. Um balcão de madeira ocupava um canto e um grosso tubo de fogão atravessava a sala e enterrava-se na parede. Dois homens estavam sentados junto de uma pequena mesa e fumavam. Louvier reconheceu logo num deles o tipo que o seguira durante a tarde. Tinha fato azul e continuava com o chapéu e feltro cinzento enfiado pela sua cabeça de fuinha; no rosto sobressaía um bigode ralo e negro. O outro era uma espécie de colosso, com estatura de urso. Não tinha chapéu e viam-se-lhe os cabelos louros e ondulados que lhe faziam uma testa curta. Além desses dois pacíficos cidadãos, não havia mais ninguém na sala.

Louvier compreendeu rapidamente que as promessas de amor e de doces delícias da encantadora Ingrid, lhe seriam concretizadas por intermédio daqueles dois macacos. Ficou ainda uns instantes a espiar, observando os movimentos de cada um deles; não podia compreender as palavras que trocavam mas notou que o tipo do chapéu consultava o relógio de dois em dois minutos. Os dois assassinos, pois de assassinos se devia tratar, pareciam em todo o caso serem os únicos ocupantes daquele sinistro estabelecimento, que tinha ainda a pretensão de se chamar Kaffeewirtschaft. Louvier decidiu beneficiar da surpresa e atacar de repente.

Empurrando com violência a porta com o pé, entrou bruscamente, o cano da pistola apontado na direcção dos dois homens.

Estes imobilizaram-se, estupefactos. Louvier avançou lentamente, e contornou a mesa embora mantendo uma certa distância entre si e os seus inimigos.

—Levantem-se, meus cordeirinhos, e depressa!

Eles levantaram-se, amedrontados, perguntando a si mesmos como podia o tipo por quem eles esperavam, preparados para o abater, estar ali com uma pistola apontada.

—Recuem!

Recuaram um passo, e depois outro, com lentidão. Mas na altura em que se encostavam à parede, o rosto assombrado do homem do bigode tomou uma expressão divertida, cuja razão Louvier não teve tempo de apreender. Uma pancada assentada com todo o vigor no alto do crânio arrancou-lhe um gemido surdo, viu milhares de estrelinhas e caiu redondo por terra.

Roger Méral esmagou nervosamente o cigarro num cinzeiro cheio de pontas de cigarro. Fechara-se no escritório a seguir ao jantar, e pedira à mulher para não o incomodar sob pretexto algum. Todavia havia mais de uma hora que não fazia absolutamente nada, senão esperar e andar de roda do telefone.

Tinha a certeza que “ela” telefonaria ainda nessa noite; tinha o pressentimento, ou melhor, a certeza. E pensar que não conseguia pôr-se em contacto com o famoso CB-128, a quem o “Petit Monsieur” lhe pedia para o informar do assunto! Sem que ele o soubesse, um agente especial do 2.º Bureau encontrava-se em Berlim sob o nome de Lucien Mar-ceau, e ele não conseguia apanhá-lo. Ninguém sabia o que fora feito dele. As bagagens estavam ainda no Kolnhotel, na Wienerstrasse. O porteiro fora formal, ele não dormira no hotel, a chave do quarto pendurada no ficheiro era disso testemunha. Devia no entanto ter sido posto ao corrente da visita. Que pensar do facto dele não a ter esperado ou deixado uma mensagem qualquer? O gerente, em todo o caso, prometera-lhe comunicar-lhe o recado que ele, Roger, deixara em sua intenção, assim que o seu cliente chegasse.

Méral tornou a sentar-se à secretária e releu atentamente, talvez pela décima vez, a mensagem em código que Paris lhe enviara:

Planos do mais alto interessa—arranjá-los por qualquer meio — CB-128 encarregado do caso—tomar imediatamente contacto com Lucien Marceau representante Kolnhotel—fornecer-lhe todas as indicações—secundá-lo se necessário—seguem novas instruções.

Esteve prestes a telefonar-lhe mais uma vez, mas conteve-se. Não adiantava. Era CB-128 que devia manifestar-se e era imprudente chamar a atenção para o sr. Marceau pedindo com demasiada frequência notícias dele à direcção do hotel.

Bruscamente Méral estremeceu. A campainha do telefone acabava de retinir. Pegou febrilmente no auscultador.

—Alô? É de casa do sr. Méral?—perguntou uma voz de homem.

—É o próprio que fala. Quem fala daí?

—Sou o gerente do Kolnhotel. Foi o senhor que veio hoje de manhã pedir para falar ao sr. Marceau, não foi?

—Fui—respondeu Méral esforçando-se por manter uma voz calma.—Entreguei-lhe até uma carta para ele.

—Justamente, é por isso que lhe telefono. Esta tarde veio um amigo' do sr. Marceau buscar as bagagens dele...

—Um amigo do sr. Marceau?...

—Sim. O sr. Marceau ficou retido em casa de um cliente a noite passada, e partiu esta manhã cedo para França. Não teve tempo de passar no hotel e...

—Que aspecto tinha esse amigo?—atalhou Méral.

—Era um senhor com muito bom aspecto... Não era alto... Baixo, mesmo. Um pouco forte, aí de uns 50 anos, muito bem vestido. Acha que?...

—Não acho nada. Pergunto só para ver se por acaso eu o conheceria. Temos amigos comuns. Ele não lhe disse o nome?

—Não pensei perguntar-lhe—confessou o gerente.—Somente, depois dele se ter ido embora é que pensei que talvez não devesse ter-lhe deixado levar as bagagens do meu cliente com aquela facilidade... Há ainda a sua carta... —

—Entregou-lha também?

—Entreguei... Acha que não devia?...

—Não tem importância.

—Ah! Ainda bem! Fico descansado...

—Não se apoquente que não tem importância. O sr. Mar-ceau devia com efeito partir para França esta manhã. Tinha gostado de vê-lo antes da partida, mas paciência. Muito obrigado por me ter telefonado.

Roger Méral pousou lentamente o auscultador. O seu anterior nervosismo desvanecera-se como por encantamento. Sentia-se de repente muito calmo. Calmo como de cada vez que tinha um choque, como de cada vez que sentia um perigo iminente.

Ficou pensativo durante uns minutos. O caso começava mal. E foi ainda o telefone que mais uma vez o arrancou aos seus pensamentos.

Logo às primeiras palavras adivinhou ser “ela” quem telefonava.

- Sr. Méral?

— O próprio.

—Transmitiu a nossa oferta?

—Transmiti.

Houve uma pausa, e depois a voz continuou, no mesmo tom arrastado, vulgar e metálico:

—E estão interessados?

—Estão.

Houve outra pausa.

—Óptimo. Ouça-me pois com atenção. Precisamos entrar em contacto. Aviso-o já que tomamos todas as nossas precauções e que seria vão tentar atraiçoar-nos...

Méral não respondeu e a voz continuou:

—São 8 e meia. Esteja no restaurante da estação de Char-lottenburg dentro de meia hora!...

Ouviu-se o estalido de quem desliga.

—Alô ? Alo ?!—insistiu Méral.

Mas ela desligara. Sem lhe dar indicações pormenorizadas. Sem lhe dizer que era preciso que se encontrasse junto do balcão, ao fundo da sala, ou noutro lugar qualquer. Sem lhe indicar se ele se devia dar a conhecer. E tinha apenas meia hora diante de si.

As pessoas com quem ia contactar sabiam do ofício. Não lhe davam tempo a reflectir nem tempo para preparar uma armadilha.

Adivinhou que eram temíveis.

E ele estava sozinho.

—De agente de informações de segundo plano passava a vedeta, e ia pela primeira vez representar o papel de um especialista, o papel que deveria caber a CB-128...

Méral vestiu o sobretudo, enfiou o chapéu na cabeça e na algibeira uma pistola de calibre 8 mm com 13 balas e mais uma que fez escorregar para o cano.

Vinte minutos mais tarde chegava a Heerstrasse. Arrumou o carro no largo e dirigiu-se para o restaurante da estação.

Quando entrou na sala viu logo que nunca poderia adivinhar quem era a sua misteriosa interlocutora entre todas aquelas mulheres, a maior parte delas viajantes, que ocupavam pequenas mesas. Devia ter acabado de chegar um comboio, pois havia muita gente a passar com malas, cruzando-se e gesticulando numa azáfama indescritível.

Méral instalou-se a uma mezinha desocupada e que lhe permitia controlar as entradas pelas duas portas: a que dava para o largo e a que se abria directamente sobre o cais. Deitou um olhar para o relógio da parede. Eram 9 horas menos 2 minutos.

Às 9 e 5, sempre atento a observar as duas entradas, estremeceu de repente. O alto-falante por cima da sua cabeça acabava de pronunciar o seu nome: Chamam M. Méral ao telefone!

O jornalista levantou-se imediatamente e dirigiu-se ao andar inferior. A menina do P. B. X. indicou-lhe a cabina nº 3. Pegou no auscultador, aclarando a voz e falou:

—Daqui, Méral...

—É um homem pontual, muito bem—disse a voz que começava a tornar-se-lhe familiar.—Dirija-se ao nº 12 da Matzs-trasse. É uma grande cervejaria. Instale-se ao balcão e leia o jornal.

Mais uma vez Méral não teve tempo de fazer a menor pergunta e já “ela” desligara. Não tinha, aliás, perguntas a fazer. Por enquanto tinha só que se conformar com as ordens dadas.

Abandonou o restaurante e dirigiu-se ao automóvel. Dez minutos mais tarde arrumava-o diante da cervejaria. Seguindo estreitamente as indicações, aproximou-se do balcão, pediu um copo de vinho branco (detestava a cerveja) e tirou um jornal da algibeira.

Estava ali havia mais de um quarto de hora, quando o caixa afastou o auscultador do aparelho telefónico do seu ouvido.

—Pedem para falar ao sr. Méral!—disse com ar de pergunta e olhando em redor.

Desta vez “ela” exagerava. Não ia francamente fazê-lo andar de Herodes para Pilatos durante toda a noite?! Pegou no auscultador com nervosismo arrancando-o das mãos do caixa.

—Alô ?—exclamou mal-humorado.

—Vá para casa e tome cuidado, sr. Méral! Olhe que está a ser seguido!... Amanhã torno a telefonar-lhe.

—Alô! Alô! Al...

O terceiro alô morreu-lhe na garganta.

 

Confortàvelmente instalado num maple de couro vermelho, Louis-Henri Jolivet abriu delicadamente uma caixa de bombons, pegou num com a ponta dos dedos e levou-o à boca, após o que guardou com cuidado a caixa numa gaveta da secretária, e com um piparote limpou um grão de pó preso na lapela do casaco. Com um gesto familiar, que se tornara numa espécie de tique desde há muitos anos, alisou os cabelos ralos num crânio em forma de pêra e esticou o laço que subsíituía a gravata, assegurando-se que estava bem no seu lugar, como ele gostava que todas as coisas estivessem. Depois inclinou-se e com as suas mãos brancas, de unhas tratadas, arranjou com delicadeza o ramo de rosas vermelhas renovado todas as manhãs ao canto da sua secretária.

Permaneceu imóvel por momentos, de olhar vago, mal mexendo os lábios, saboreando com gula o maravilhoso gosto de morango contra o céu da boca. Depois avançou o braço com cuidado, de modo a não tocar com o punho imaculado no mata-borrão, arrancou uma folha do calendário, amarrotou-a com gestos nervosos, e deitou-a para o cesto dos papéis. Cada gesto que realizava com precisão, parecia ter um sentido definido.

Debruçou-se por fim sobre o dossier aberto na sua frente e no qual pregara uma fotografia antiga. Contemplou-a longamente.

Ao cabo de minutos carregou no botão vermelho do microfone e falou com voz clara e de timbre agradável.

—Duranne já chegou?

—Já, sim senhor.

—Diga-lhe para vir ao meu gabinete imediatamente.

—Muito bem.

Cortou o contacto e reclinou-se na cadeira. Uma ruga de preocupação vincou-se-lhe na testa.

Uns instantes mais tarde a visita esperada entrava no gabinete. Era um homem de 35 anos, alto, de ombros largos, com estatura de atleta. Por baixo de uns cabelos escuros, cortados curtos e encaracolados, o seu rosto moreno tinha uns traços quase regulares demais para um homem. Mas a força do queixo, a linha enérgica do nariz, o relevo das maçãs colocadas altas, salvavam o perfil duma pureza demasiado clássica. As narinas bem abertas vibravam como as de animal de raça.

Outra pessoa que não fosse Louis-Henri Jolivet poderia enganar-se ao contemplar aquele físico perfeito de “astro” de cinema. Mas ele sabia melhor que ninguém que Serge Duranne era o mais temível dos seus agentes secretos. Entrado ao serviço desde 1952, aquele a quem os colegas chamavam “Gavião”, tinha a reputação de um homem que aliava a capacidades físicas extraordinárias uma inteligência e uns reflexos admiráveis. A sua audácia e temeridade valiam-lhe a admiração da maior parte dos seus camaradas, e o próprio Louis-Henri Jolivet, o respeitado “Petit Monsieur” que todos temiam, lhe testemunhava uma espécie de instintivo respeito. Desde que fazia parte do Serviço, tinha-se criado pouco a pouco um método, para não dizer uma tradição. Especialista das missões “superperigosas”, o “Gavião” era aquele que se enviava para onde os outros tinham falhado.

Alguma coisa de novo?—perguntou o recém-chegado apertando a mão que lhe estendiam.

Sem responder à pergunta, Louis-Henri Jolivet apontou-lhe uma cadeira em frente da sua. Puxou do lenço de linho fino, limpou os cantos da boca e tornou a colocá-lo na algibeira. Depois, os seus olhos de um azul vivo fitaram-no por instantes.

—Sim, há alguma coisa de novo...

Empurrou o dossier em direcção do agente e designou-lhe a fotografia.

—Conhece este tipo?

Serge Duranne contemplou atentamente o rosto cruel: olhos de um azul ou cinzento de aço, em todo o caso espantosamente claros, o nariz curto, a boca quase inexistente, o maxilar fugidio, que parecia moldado com o pescoço, largo e alto.

—Bela cabeça de carrasco...—murmurou Duranne.

—Não levou tempo a acertar. É um antigo SS, membro da Gestapo, torturador em Buchenwald. Chama-se Hans Fried-mann, e tem muitas centenas de cadáveres na consciência.

Com um gesto elegante, Louis-Henri Jolivet tirou uma rosa da jarra, aspirou-a suavemente e tornou a pô-la no seu lugar.

—E o canalha continua vivo?—interrogou Duranne.

—Goza de tão boa saúde como você ou eu. Quando o nazismo foi abaixo, Friedmann, como muitos outros, conseguiu esconder-se. Permaneceu ajuizadamente na sombra durante uns anos, e depois um dia reapareceu na Alemanha Oriental sob o nome de Werner Klauss...

Duranne fitou o seu interlocutor admirado.

—Werner Klauss? Mas é um agente soviético! Julgo até que já tivemos ocasião de cruzarmos armas com ele, há três anos, em Budapeste...

—Tem uma excelente memória, Duranne. Mas é o mesmo homem. Onde houver torturas, vemo-lo aparecer. Com a queda de Hitler, o pássaro voltou a casaca. De nazi, tornou-se comunista militante. E foi subindo de posto. Após um estágio de vários anos na Rússia, regressou à Alemanha Oriental, com o título de comissário político. Depois tornou-se chefe-adjunto das Informações. Mas esse indivíduo tem um defeito grave para um defensor das democracias populares. Tem o gosto de viver como um grande senhor. E como sabe, do outro lado da Cortina de Ferro, nenhuma notoriedade é definitiva. Não gostam muito das pessoas que se tornam tabus. Percebe o que eu quero dizer? O culto da personalidade não está lá muito em moda, neste momento. Os sovietes, que têm o controle de tudo, entraram no caso, de modo que as reluzentes penas do nosso pássaro começaram a embaciar, e a certa altura viu-se pura e simplesmente demitido.

Duranne pensou que o “Petit Monsieur” demorava bastante para ir direito aos factos.

—Klauss, que está longe de ser um imbecil—continuou Jolivet—não ficou à espera de ir penar para qualquer lado na Sibéria, e pôs-se ao largo, preparando inteligentemente o golpe. Trair, para ele, é um hábito. Roubou os planos de um engenho teleguiado de uma fábrica de aviação, de que tinha o controle, e que é só isto: o tal “KL-X-19”.

—O “KL-X-19”?—repetiu maquinalmente Duranne, com um espanto não fingido.

—Nem mais nem menos. E se Klauss tivesse podido deitar a mão ao “Sputnik 3”, tê-lo-ia feito sem hesitar. Realizado o golpe, passou clandestinamente a fronteira e escondeu-se em Berlim Ocidental. Procura agora desembaraçar-se dos planos e contactou com o nosso agente local por intermédio de uma mulher que deve ser sua cúmplice ou coisa no género.

—E que pede ele em troca?

—Uma ninharia. 150.000 dólares.

Duranne reteve a custo um assobio de admiração.

—Esses planos, é inútil acentuá-lo, são da mais alta importância. Os americanos pagariam três vezes esse preço, sem hesitar, para os obterem. Mas o Ministério nunca consentirá em dar semelhante soma, por isso...

—Por isso devo eu empenhar-me em obtê-los por outra forma—rematou Duranne.

—Por todos os meios!—precisou Louis-Henri Jolivet.— Era realmente pena deixarmos isso para as mãos dos americanos, não era ? E podermos apanhar-lhes o bocado mesmo debaixo do nariz, a mim pessoalmente dava-me uma certa satisfação...

—Tem mais alguma indicação a dar-me?

Jolivet não respondeu logo. Começou por abrir uma gaveta da secretária, pegou na caixa de bombons, abriu-a, escolheu com cuidado um caramelo de mentol e pousou-o na ponta da língua. Depois ergueu a cabeça e então os seus olhos azuis fitaram Duranne.

—Já tivemos aborrecimentos. Tinha encarregado Louvier deste caso. Ele encontrava-se justamente em Berlim. Ora deixámos" de ter qualquer notícia a seu respeito há uns 5 dias. Aconteceu-lhe com certeza alguma coisa. Por outro lado, Méral, o nosso agente local, não pôde estabelecer contacto com Klauss, pois os agentes comunistas têm-no debaixo de olho. Este caso, que ao princípio parecia tão simples, começa mal. Aqui está o dossier. Estude-o detalhadamente.

—Quando deseja que eu parta?

—O mais depressa possível.

—Então parto amanhã.

Duranne levantou-se, meteu o dossier na sua pasta e dirigiu-se para a porta.

—Um momento, Duranne...

Junto da porta, este interrompeu-se e interrogou o outro com o olhar.

—Ficaria muito maçado se tivesse sucedido realmente qualquer coisa a Louvier—murmurou Louis-Henri Jolivet com voz suave.—E um rapaz de quem eu gosto muito, mas sinto-me obrigado a recordar-lhe que a sua missão consiste essencialmente em tentar apanhar os planos.

Louvier abriu um olhar glauco e não soube dizer se sonhava ainda ou se acordava. A cabeça doía-lhe horrivelmente. Tinha a vaga consciência de estar estendido por terra numa posição inconfortável; qualquer coisa lhe magoava os pulsos. Tentou mexer-se mas não o conseguiu.

Permaneceu imóvel durante vários minutos, e depois readquiriu um pouco de lucidez. Estava mergulhado em trevas e o silêncio total reinava em seu redor. Fez novo esforço para se mover. Nele, o pensamento e os músculos trabalhavam a par; precisava primeiro sentir os músculos para o espírito começar a trabalhar.

A dor aguda que sentiu no alto do crânio arrancou-lhe um gemido surdo. Já não sonhava. Estava realmente deitado no chão, sobre cimento. Um cheiro bizarro, impregnado de humidade, subia-lhe às narinas; tentou esticar as mãos que estavam anquilosadas e não conseguiu separá-las uma da outra. Percebeu que lhas tinham atado. Tentou mexer as pernas e esse movimento permitiu-lhe mudar de posição. Sentiu então mais agudamente os seu corpo e todos os membros. Uma réstea de luz passava por debaixo da porta na sua frente. Então, bruscamente, recordou-se. Reviu com nitidez a cena no café. Tinham-no assaltado.

Esse primeiro esforço cerebral arrancou-lhe novo gemido. Desta vez parecia que lhe tinham enfiado um prego pelo crânio. Um véu passou-lhe diante dos olhos e ficou vários minutos sem ver nada, sem pensar em nada, esperando pacientemente que a dor desaparecesse.

Ao cabo de um quarto de hora conseguiu sentar-se, de costas para o tabique. Constatou ter as duas mãos apertadas por uma corrente de aço presa à parede a 30 centímetros do chão; o chão era de cimento assim como as paredes, e não havia janela. Os olhos, agora habituados às trevas, descobriram, espalhados, vários objectos heteróclitos.

Louvier pensou que fora imprudente e que cometera talvez o maior erro da sua carreira indo ao encontro marcado pela bela sueca. Devia normalmente ter esperado que o agente RH-5 contactasse com ele e só então se dirigir a Altlubarsetrasse. Talvez tivesse sido informado de algum detalhe que lhe permitisse agir diferentemente e evitar a armadilha.

Mas agora não valia a pena fazer cálculos desses, perfeitamente inúteis. Estava nas mãos dos amigos de Ingrid, e era preciso esperar para saber o que eles queriam. Um facto era certo—que teriam podido liquidá-lo e não o tinham feito. Devia haver uma razão.

Tendo recobrado a lucidez, Louvier pôs-se a reflectir rapidamente. Os amigos da bela sueca tinham forçado o seu quarto do hotel e esquadrinhado as suas bagagens. Até nova ordem, quando se esquadrinhava as bagagens de uma pessoa, era com a ideia de aí encontrar alguma coisa. Ora nenhum papel comprometedor, absolutamente nada que pudesse interessar esses senhores se encontrava na mala. Constatou que também lhe tinham revistado o fato. Mas deviam ter ficado com a cara à banda, pois além dos papéis passados em nome de Lucien Marceau, a sua carteira continha apenas uns recortes, uma agenda de moradas imaginárias, o seu bilhete de avião, e prospectos da casa G. Gi-roux, vinhos e licores.

Então, os seus carcereiros procuravam alguma coisa!

Qualquer coisa que julgavam estar na sua posse. Mas o quê? O mais desconcertante do caso é que ele não sabia de que se tratava. Podiam tentar tudo para o fazer falar, poderiam maltratar-lhe os olhos, as unhas ou as plantas dos pés, que não havia perigo de ele confessar um facto ou circunstancia que ignorava.

Se tivesse forças para tanto, Louvier teria rido; noutra ocasião, a situação seria para isso: o “Petit Monsieur” encarregara-o de uma nova missão sobre a qual não tinha a mínima informação. Aqueles que iam interrogá-lo, não suspeitavam que iam ser eles, com o seu interrogatório, a dar-lhe uma pista.

Um ruído de passos vindos do quarto ao lado interrompeu os seus pensamentos. Uma chave rangeu na fechadura e a porta abriu-se. No mesmo instante uma luz crua e brutal vinda de um globo fixo ao tecto fez-lhe piscar os olhos.

O homem que acabava de entrar fechou com cuidado a porta atrás de si. Era um asiático. Baixo, magro, tinha o rosto amarelo como um limão, com olhos excessivamente fendidos, sob uma cabeleira negra como ébano que se lhe colava à testa. Louvier reconheceu sem esforço a sua nacionalidade. Não havia que enganar-se, não era nem um ana-mita, nem um japonês, mas um chinês, um porco.

Mao Tsé-Tung segurava uma caixa debaixo do braço. Passou diante de Louvier sem lhe prestar a mínima atenção, comportando-se exactamente como se estivesse sozinho, e foi pousar a sua carga num ângulo da cave. Aproximou-se de uma espécie de longa mesa de ferro, abriu uma gaveta e retirou de lá vários instrumentos de todos os géneros e de formas bizarras.

Ao ver os seus gestos, dir-se-ia um serralheiro que começava o dia de trabalho e que se instalava à sua banca. Com longos dedos magros, ágeis e precisos como os de um relojoeiro, pôs-se a afiar um gancho de aço. Experimentou a ponta cortante e pareceu satisfeito. Guardou meticulosamente o instrumento num estojo e passou a outro género de trabalho.

Louvier observou-o com atenção; a actividade daquele macaco intrigava-o. Mao Tsé-Tung movia-se agora junto de uma caixa rectangular, de 30 centímetros de altura, e coberta com uma placa de vidro. Manobrou várias vezes as duas tábuas de correr, nos lados da caixa, e untou-as de óleo. Uma das tábuas estava recortada em forma de ferradura.

O Mao Tsé-Tung ainda não pronunciara palavra desde que entrara. Mas Louvier não precisava de explicações. A cave onde o tinham fechado era uma câmara de tortura notavelmente apetrechada e abundantemente fornecida com utensílios de toda a espécie. Não podia adivinhar exactamente para que serviam, mas que isso não lhe importasse pois cedo viria a sabê-lo. Mao Tsé-Tung devia ser o contramestre e estava prestes a abrir o baile.

Louvier interrompeu as suas deduções. A porta acabava de se abrir, e desta vez era Ingrid Haldem em pessoa, que entrava. - Querida Ingrid. Encarou-o por instantes e deu uns passos na sua direcção. Depois procurou um assento, com o olhar, encontrou-o, puxou-o para diante de Louvier, e sentou-se.

Mao Tsé-Tung estava tão absorvido pelo apaixonante trabalho que fazia, que nem sequer pareceu dar por que alguém entrara ali. O tipo devia ser alguém no género de Einstein. Vivia no seu mundo espiritual e não devia vislumbrar sequer os entes que viviam em seu redor.

Ingrid Haldem abriu a carteira, tirou um maço de cigarros, colocou um entre os lábios, e acendeu o isqueiro.

—Olha!—exclamou Louvier.—Já trabalha!

Ela fitou-o sem ódio e sem troça. Nos seus grandes olhos claros, debruados de longas pestanas negras, só havia indiferença e uma espécie de vazio.

Que quer dizer?

—Que ontem à noite o isqueiro não trabalhava. Cometeu um erro ao deixá-lo sobre a mesa quando foi telefonar aos seus cúmplices para saber se tinham encontrado alguma coisa nas minhas bagagens.

Ela permaneceu silenciosa durante uns segundos e os olhos refulgiram-lhe.

—É muito forte, sr. Marceau—disse ela com voz lenta—, muito perspicaz para um representante de vinhos e licores. Mas não o bastante, pois compareceu ao encontro marcado...

—Você agradava-me tanto!...

—Ah, sim?

—E agrada-me cada vez mais. É a mulher da minha vida!

—Serei a mulher da sua morte, CB-128, agente especial do 2.º Bureau francês!—disse a sueca com voz fria mas sem ira.

—Vou, pois, morrer de amor ? O sonho da minha vida, da minha morte, quero dizer.

—É muito espirituoso. Mas veremos daqui a pouco, quando estiver nas mãos do sr. Chun-Lee, se ainda terá vontade de gracejar.

— Refere-se a Mao Tsé-Tung? O amiguinho não é loquaz.

—O sr. Chun-Lee é mudo. Mas é um grande sábio. Consagrou a vida a estudar o problema do sofrimento físico. Percebe o que quero dizer?

—Uma espécie de humanista, não?

— O sr. Chun-Lee aperfeiçoou diversos processos muito engenhosos a que é difícil resistir, Marceau. Daqui a bocado vamos interrogá-lo. Mas no seu interesse, teria vantagem em responder logo às perguntas que lhe fizermos.

—Com o maior prazer, cara amiga, mas, talvez não me acredite, não creio poder responder-lhe.

Ingrid Haldem esboçou um vago sorriso. Deitou o cigarro para o cimento, levantou-se e esmagou-o com o pé. Depois dirigiu-se ao chinês, que continuava entretido no seu canto.

—Sr. Chun-Lee, não se importa de mostrar a sua última invenção ao nosso corajoso amigo?

O asiático aproximou-se e cumprimentou à maneira do seu país. Com as duas mãos juntas sobre o ventre, dobrou-se em dois numa reverência impecável.

— O sr. Chun-Lee aperfeiçoou e modernizou velhos processos do seu país—continuou Ingrid calmamente.—A remota civilização chinesa não tem segredos para ele, e contém numerosos recursos de imaginação.

Acendeu novo cigarro e afastou-se, dando lugar ao asiático, que pousou diante de Louvier a famosa caixa de tábuas corrediças e coberta com tampo de vidro. Depois foi buscar ao canto da cave a caixa que trazia debaixo do braço ao entrar. Sem pronunciar qualquer som, à maneira de um mimo a fazer o seu número, ajustou o caixote à caixa, fixou-a solidamente com dois ganchos de pressão, e manobrou as portas corrediças. Depois fitou atentamente Louvier, apontou-lha a abertura em forma de ferradura, afagou o pescoço, fazendo-o compreender por gestos que a parede se adaptava à nuca, e que a cabeça do interessado ficava assim sem defesa no interior da caixa envidraçada.

Com um movimento seco o chinês levantou ao mesmo tempo a porta corrediça da caixa e do caixote. E com um sorriso diabólico a plissar-lhe o rosto simiesco, esperou.

Sem querer, Louvier sentiu-se estremecer e arrepiar, com a respiração cortada. Chiando, e escorregando uns sobre os outros, uma vintena de ratos invadiu a caixa.

O rápido da noite corria a 180 quilómetros à hora, em direcção a Berlim, arrastando ao longo dos flancos um rumor surdo e rouco que o grito estridente do rodado dos carris cobria às vezes. Lançado como um bólide, bem agarrado aos rails de aço, furava montanhas e bosques, riscava as planícies, as pastagens e as landes, engolia os campos de trigo, atravessava rios e torrentes no estrondo das pontes e viadutos.

A bruma das primeiras horas do dia tornava-se mais espessa e por detrás das janelas podia distinguir-se por momentos um canto do céu pardacento onde tremeluziam pálidas estrelas. Era a hora em que os viajantes vencidos pelo cansaço se fecham quase todos nos seus compartimentos, dormitando como podem nos bancos estofados.

Desde a paragem regulamentar na fronteira, para o controle da alfândega, o comboio lançado a uma rapidez vertiginosa, parecia querer recuperar o tempo perdido e aumentava a velocidade, engolindo quilómetros, atravessando as estações e as passagens de nível numa barulheira ensurdecedora. A maior parte das carruagens estava às escuras e só as pequenas lâmpadas de vigia iluminavam tenuemente os ocupantes.

Embora tivesse tido o cuidado de reservar lugar num compartimento de 1.a classe, Duranne reconsiderara e comprara no último momento um lugar-cama para dormir confortàvelmente e no dia seguinte de manhã começar o trabalho em forma. Preferira escolher aquele meio de locomoção menos agradável que o avião, mas que lhe dava mais oportunidade de chegar a Berlim sem ser logo descoberto.

Mergulhado no país dos sonhos antes mesmo de pararem em Bar-le-Duc, Duranne dormia profundamente ao chegarem à fronteira alemã, e teve a sorte de não ser incomodado pelos homens da alfândega que passaram diante dele sem o acordarem. Porém, talvez não dormisse tão confiadamente aí pelas 3 horas da manhã se pudesse suspeitar do que se passava um pouco mais adiante no corredor da quarta carruagem.

Viajante solitário, um homem vestido com sobretudo castanho e chapéu da mesma cor debruçava-se a uma janela aberta apesar da frescura da noite, e fumava. De vez em quando lançava uma olhadela furtiva na direcção de um compartimento ocupado apenas por uma pessoa. Um homem dormia encolhido na gabardina a que erguera a gola. Parecia alto, de ombros largos. Era impossível perceber-lhe os traços ocultos pelo chapéu descido para os olhos. Como bagagem, levava apenas uma mala de couro preto.

No corredor, o viajante de sobretudo castanho não começou a demonstrar certo nervosismo senão quando o comboio, pela primeira vez, começou a abrandar ligeiramente a marcha. Instantes mais tarde houve um grande esticão, e o comboio abrandou ainda mais para continuar a marcha a uns 30 quilómetros à hora.

No compartimento, o homem da gabardina não mudara de posição e continuara a dormir sacudido pelas trepidações.

Um letreiro luminoso ao lado da linha iluminou o rosto do homem debruçado à janela, que teve tempo para ler:

Mocho-14-4 — 49 Achtung, Arbeitel (1). Um clarão perpassou-lhe no olhar. Consultou o relógio e debruçou-se ainda mais, procurando atravessar a bruma matutina com o olhar. O comboio agora seguia a 20 quilómetros.

O homem do sobretudo castanho estremeceu. Acabava de distinguir ao longe um automóvel correndo na estrada nacional, junto à linha do caminho de ferro. O homem tirou o lenço da algibeira e agitou-o várias vezes na sua frente. O sinal foi logo compreendido pelos ocupantes do carro pois este apagou e acendeu os faróis várias vezes seguidas.

O homem fechou a janela, e deitou um olhar furtivo em redor. O corredor estava completamente deserto. Aproximou-se resolutamente do compartimento e tirou uma pistola da algibeira. Entreabriu ligeiramente a porta e tão calmamente como se se encontrasse num stand de tiro, apontou para o homem que dormia. Uma vez. Duas vezes. Três vezes, carregou no gatilho.

A vítima mal se mexeu. O corpo encolheu-se, e deslizou suavemente para o lado. Os olhos entreabriram-se, o pescoço contraiu-se e um fio de sangue saiu-lhe da boca correndo para o queixo.

Nos compartimentos vizinhos, os viajantes acordados em sobressalto começaram a abrir as portas. Ao fundo do corredor, o assassino tinha a testa a suar. A porta resistia. Ouviu várias pessoas perguntarem: “O que foi?”—”Ouviu?”—”O que se passa?” Várias cabeças ainda meio adormecidas apareceram nas ombreiras das portas.

—Mataram um homem!—gritou de súbito uma mulher.

Seguiu-se a voz assustada de um homem:

—Puxem o sinal de alarme! Puxem o sinal de alarme!

Ouviu-se um silvo agudo, sentiu-se um esticão brutal, e o comboio imobilizou-se.

 

(1)—Atenção, trabalhos!

 

O assassino conseguiu por fim arrancar o trinco da fechadura. Abriu a porta e saltou. Atravessando o fosso a correr, precipitou-se para a estrada onde um “Mercedes” acabava de parar deixando o motor a trabalhar. Enfiou-se por ele dentro e o carro partiu como uma flecha por entre a neblina.

Tinham passado bem 5 minutos desde que o atentado fora cometido e que o assassino fugira quando Duranne chegou ao compartimento do homem assassinado, abrindo passagem com dificuldade por entre os curiosos. Quando viu a vítima, não fez nenhum comentário nem pediu nenhuma explicação. Ficara ao facto. Dentre todas aquelas pessoas assustadas, a fazerem perguntas, ele era o único a saber por que tinham morto aquele homem.

Preferiu não se demorar ali pois era inútil que alguém notasse a semelhança. Sim, porque a vítima era parecida consigo. Era um homem da sua idade, mais ou menos, e com a sua figura. Tal como ele vestia uma gabardina de um cinzento-esverdeado, e um chapéu cinzento. Tal como ele, tinha por única bagagem uma mala preta, de couro. E como se o acaso tivesse necessidade de acumular provas, por cima da cabeça ensanguentada estava preso ao porta-bagagens um bilhete onde se via a palavra “Reservado” com o nº 26. Ora a folha correspondente desse mesmo nº 26, Duranne tinha-a na algibeira.

 

Méral apagou o lustre do tecto e aproximou-se da janela. O homem de sobretudo beige e chapéu cinzento continuava de vigia à esquina da rua. Distinguia mal a silhueta aureolada de bruma, mas sabia que era ele.

Desde o passeio nocturno de um café para outro, para encontrar a sua misteriosa correspondente, sentia vigiado o mais pequeno passo que dava. Notara que eram dois nessa tarefa, revezando-se dia e noite; o magro de sobretudo beige e o colosso louro de canadiana. Fosse para ir ao jornal ou a um lado qualquer, sentia a presença deles atrás de si.

“Ela” telefonara já duas vezes desde o encontro falhado, e de cada vez tivera de lhe dizer que era seguido e que não podia sair de casa. Por outro lado, Méral não se sentia feito para uma missão tão perigosa nem sentia vocação para servir de presa aos abutres que só esperavam uma coisa antes de o liquidarem: que ele os conduzisse junto do homem que possuía os planos roubados.

Méral compreendera, felizmente, estar “queimado”, e felicitava-se por tê-lo comunicado logo para Paris. Agora só tinha de esperar que o “Petit Monsieur” enviasse alguém para tomar o seu lugar e o seu papel, papel que decididamente sentia não ter envergadura para representar. A solução que “ela” sugerira para despistar os que o seguiam era astuciosa, mas comportava alguns riscos. E Méral não queria tomar riscos num caso tão sério. “Ela” parecia impaciente de fechar contrato. Era evidente que, quanto mais tempo passava, mais nervosas e impacientes ficavam as pessoas interessadas no caso. Mas Méral não podia fechar o negócio pois o “Petit Monsieur” não lhe dera nem meios, nem indicação, nem ordem para tal. A última mensagem de Paris resumia-se em três palavras: “Manter absolutamente contacto!”

Méral estava prestes a afastar-se da janela quando viu o homem começar a caminhar pelo passeio. Depois compreendeu que ele se afastava, quando viu um táxi parar e outro homem descer dele.

A campainha do telefone tocou bruscamente e fê-lo estremecer. Era “ela”. Ele sabia, de resto, que ela telefonaria nessa noite para lhe dar novas ordens e havia mais de uma hora que ele esperava o telefonema. No entanto, foi com pena que interrompeu a vigilância e saiu da sala para passar ao seu gabinete. Cruzou-se com a mulher no vestíbulo, sem trocar palavra, fazendo apenas a reflexão de que Frau Méral não estava ainda deitada, apesar da hora tardia. Habitualmente deitava-se cedo. Às 9 horas. E passava das 10.

Pegou no auscultador e colou-o ao ouvido. Mas não se ouviu nenhum som, senão o ruído contínuo da linha. O correspondente desligara. Méral assim fez também. Devia ser alguém que se enganara no número.

Acendeu um cigarro, deu uns passos no escritório e voltou para a janela. Não havia ninguém na rua. A campainha do telefone tornou a tocar e mais uma vez o fez estremecer. Tomou consciência disso e murmurou para si que se encontrava num estado de tensão pouco usual, desde há uns dias. A mínima coisa, o menor ruído o fazia sobressaltar-se.

Desta vez o correspondente anunciou-se. Desde as primeiras palavras Méral adivinhou a identidade de quem telefonava.

Não era uma voz de mulher, mas sim de homem, a voz do homem que ele esperava como a vinda do Messias.

—Cheguei para fazer o que sabe. Sou o sobrinho de Hen-riette!

—Que idade tem a sua tia?

—17 anos.

—Como está ela?

—Está a ficar careca e a deixar crescer o bigode.

Completamente tranquilizado, Méral mudou radicalmente de tom.

—Estou contentíssimo que aqui esteja. Quando chegou?

—Hoje de manhã. Em que ponto vai?

—Não avancei um milímetro.

—Tornaram a telefonar-lhe?

—Sim, duas vezes. Mas não me posso mexer, arranjei uns irmãos siameses.

—Quando pensa que tornarão a telefonar?

—Provavelmente esta noite.

—Diga-lhe que sou eu que estou encarregado de tratar do caso e que tenho aquilo que ela pede.

—Óptimo. Em que hotel está?

—No Kõlnhotel, com o nome de Blanchard.

—No Kõlnhotel?—exclamou Méral.—Está doido. Sabe com certeza que foi justamente nesse hotel que...

—Bem sei!—atalhou o seu interlocutor.

—E tem razões especiais?

—Tenho.

—Então, é consigo.

—Esteja mas é atento a que os tipos que o seguem não o percam de vista, e mostre a maior das actividades.

—Entendido. Pede-me para eu os entreter, para você agir à sua vontade, não é?

—Exactamente.

Duranne saiu da cabina telefónica, atravessou o vestíbulo do hotel e dirigiu-se para o guichet da recepção. Levava na mão uma maleta em imitação de couro, que pousou sobre o balcão, e dirigiu-se ao empregado:

—Não se importa de tomar conta desta mala?

O empregado apressou-se a preencher essa formalidade e entregou-lhe um recibo, redigido numa folha de papel branco com as armas do hotel.

—Obrigado. Aliás é possível que precise dela já amanhã de manhã.

—Como o senhor quiser.

Duranne guardou o recibo na carteira. Quando se afastava já, o empregado perguntou-lhe:

—O senhor está satisfeito com o quarto?

—Muito satisfeito.

—É o melhor quarto do-hotel. E foi também um francês que o ocupou. Um senhor muito simpático. Se ele tivesse ficado entre nós alguns dias mais, tê-lo-ia conhecido.

Pareceu a Duranne que ao pronunciar as últimas palavras, o empregado o fitava com um interesse especial.

—Ah, sim?—perguntou à vontade.

—Era um representante de vinhos e licores, vindo de Paris.

—E porque acha que havíamos de travar conhecimento?

—Por nada, senhor. Mas é sempre agradável encontrar um compatriota no estrangeiro.

—É você que toma nota das comunicações telefónicas?

O rapaz pareceu ficar perturbado, pelo espaço de segundos, com aquela pergunta directa. Mas dominou-se imediatamente e respondeu com voz natural:

—Sou, sou. A partir deste momento até amanhã de manhã sou eu que estou no P. B. X. Faço o serviço da noite.

—Pergunto-lhe isto porque é natural que receba uma comunicação mais tarde. Então não hesite em tocar para o meu quarto, pois não vou já deitar-me.

—Muito bem, senhor.

Duranne afastou-se. Enquanto subia a larga escadaria de mármore coberta por espessa alcatifa vermelha, perguntou a si mesmo o que significaria a atitude do ruivo dos óculos. Estranho homenzinho, pensou. Demasiado atencioso, demasiado atento aos desejos dos clientes. Porque lhe teria falado de Louvier? Simplesmente, como ele dizia, por se tratar de um francês, como ele ? Ou por outra razão ? Pensou que seria prudente desconfiar do tipo, que tinha um género que não lhe agradava nada.

Ao chegar ao segundo andar lobrigou a criada de quarto que o ajudara a pousar as coisas. Era uma bela ocasião de obter algumas informações.

—Hep! Fraulein...

Fez-lhe sinal com a mão e ela apressou-se a vir ter com ele, pensando na gorjeta.

—Queria fazer-lhe uma pergunta...

—Faz favor...

—Lembra-se de um francês que esteve cá hospedado há pouco tempo?

—O sr. Marceau? Lembro, sim! Só partiu há 5 dias. De resto, bastante precipitadamente. Foi um amigo que veio buscar as malas. É um cliente que eu lastimo se tenha ido, era tão gentil... Não era como os resmungões do terceiro andar... Dava sempre um ar da sua graça. Mas porque me perguntou isso? Era seu amigo?

—Não, mas foi o seu colega lá em baixo que se referiu a ele.

—Ah, o ruivo!—disse ela com ar de desprezo.

Duranne adivinhou que ela não tinha nenhuma simpatia pela pessoa em questão.

—Não gosta do ruivo?—perguntou com um sorriso divertido.

—Quero lá saber dele! Mas não gosto desse género de pessoas que gostam de se dar ares. Só cá está há dois dias e já se julga director.

—Ah, só cá está há dois dias?

—Sim, substitui o tio Wielfried que caiu doente.

—Ah, bem, bem—murmurou Duranne.—E fora esse sr. Marceau, não há mais franceses no hotel?

—Não, só o senhor.

—Tanto pior! Gostaria de ter encontrado um compatriota.

Meteu uma moeda na mão da criada e afastou-se. Já tinha uma opinião formada a respeito do ruivo.

Quando se encontrou no quarto, fechou o fecho de segurança da porta e verificou a solidez da fechadura. Depois apagou o lustre do tecto de luz demasiado crua e acendeu o candeeiro da mesa de cabeceira. Instalou-se num maple e acendeu um cigarro. Resumia os factos, enquanto atirava as baforadas do fumo.

A sua missão consistia em arranjar os planos secretos do “KL-X19. a mão de um tipo escondido em Berlim Ocidental, e perseguido pelos agentes comunistas alemães. Louvier, que fora encarregado do caso, desaparecera da circulação há 5 dias. Méral, agente local, de segundo plano, oficialmente estabelecido em Berlim, com quem acabava de tomar contacto, recebera as ordens por telefone; mas não conseguira contactar com a pessoa em questão, continuamente seguida pelo adversário. Os modos do adversário provavam, aliás, a que ponto queriam reaver os planos roubados.

Fora seguido desde Paris e tinham tentado assassiná-lo no comboio; só escapara ao massacre graças a circunstâncias extraordinárias, porque um homem cujos sinais se lhe assemelhavam, tivera a infeliz ideia de se instalar no compartimento onde logicamente devia ser ele a encontrar-se.

Podia, ao menos, depois desse engano, esperar a oportunidade de se instalar em Berlim sob completo incógnito. Os agentes comunistas, persuadidos de o haverem liquidado, não tentariam andar em busca de um tipo, para eles feito cadáver. Mas mesmo nesse ponto nada lhe permitia convencer-se de tamanha facilidade. O ruivo dos óculos, pelo menos, tinha dúvidas a seu respeito, e espiava-o. Até que ponto suspeitava a sua verdadeira identidade, era difícil saber. Que ele lhe tivesse falado de Louvier, ainda era plausível; mas Louvier não podia ter-lhe dito que estava satisfeito com o quarto pela razão de ter partido dali três dias antes dele ter vindo substituir o outro empregado.

Duranne prometeu a si mesmo levá-lo à parede na primeira ocasião e obrigá-lo a falar. Era a razão essencial que o levara a hospedar-se no Kõlnhotel. Para encontrar Louvier era preciso começar a partir desse ponto. Mas de momento Louvier passava para segundo lugar. O seu objectivo nº 1 era entrar em contacto com Werner Klauss e apoderar-se dos planos por qualquer meio. Desse lado, Louis-Henri Jolivet dera-lhe carta branca. Podia escolher à sua vontade a direcção das manobras. A solução desejada por Duranne era aproximar-se do indivíduo, roubar-lhe os planos, e abatê-lo. Werner Klauss, aliás Hans Friedrnann, sucessivamente carrasco da Gestapo, comissário político e por fim chefe adjunto das Informações na Alemanha Oriental era um canalha imundo que não merecia ir acabar tranquilamente os seus dias num país da América do Sul sob uma terceira identidade.

A campainha do telefone interrompeu bruscamente os seus pensamentos. Era com certeza Méral que telefonava para anunciar que a rapariga telefonara outra vez. E o ruivo que estava no P. B. X. ia funcionar como uma máquina de gravar.

—Alô ?—disse Duranne.

—Uma comunicação para o senhor—disse a voz do ruivo.

—Pode ligar.

Decorreram uns segundos e depois ouviu-se a voz de Méral.

—Alô Blanchard? Daqui...

—Um momento!—atalhou Duranne.

Pousou o auscultador sobre a mesa e saiu precipitadamente do quarto; percorreu rapidamente o corredor e começou a descer a escada na ponta dos pés. Chegado ao primeiro andar estacou e debruçou-se para a rampa. Por detrás do seu balcão, o ruivo tinha o receptor bem colado ao ouvido.

Duranne desceu o último andar sem tomar mais precauções, procurando, pelo contrário, que o ruivo ouvisse alguém descer a escada.

Quando chegou ao pé dele o homenzinho tinha pousado o aparelho e folheava um livro de registos aberto na sua frente. Levantou a cabeça com toda a naturalidade.

—Peço desculpa de o incomodar mais uma vez—disse Duranne—mas preciso exactamente de uma indicação que se encontra na maleta que lhe confiei.

Estendeu-lhe o recibo que o outro lhe dera meia hora antes. O ruivo entregou-lhe a mala sem comentários.

—Passe-me a comunicação telefónica para a cabina, por favor—continuou Duranne com naturalidade.

O olhar do ruivo exprimiu uma visível contrariedade apesar de se esforçar por não mostrar nenhuma reacção. Duranne atravessou o hall e entrou na cabina. Deixou a porta aberta e arranjou-se de forma a ver o ruivo e que o ruivo o visse a ele. Retomou então o fio da conversa interrompida.

—Pode falar. A sobrinha da tia Henriette é toda ouvidos.

E ouviu as informações de Méral sem tirar os olhos do ruivo, registando cada palavra como um magnetofone. Quando Méral terminou, Duranne disse-lhe apenas que lhe telefonaria quando precisasse. Desligou então e saiu da cabina.

Duranne deitou um olhar em sua volta. O vestíbulo estava deserto e o relógio indicava 23 horas. Sabia agora que, mal voltasse costas, o ruivo se precipitaria a informar as pessoas para quem trabalhava e lhes contaria o que acabava de se passar.

Depois do que lhe anunciara Méral, era absolutamente necessário evitar ser seguido. Em poucos segundos, o cérebro trabalhando rapidamente, Duranne compreendeu o perigo de deixar aquele tipo a circular. E decidiu neutralizá-lo.

Dirigiu-se de novo à recepção, com ar preocupado, e balançando a maleta, que pousou no balcão. O outro ergueu a cabeça.

—Torna a entregar-ma?—perguntou admirado.

Mas Duranne constatou que ele mal podia ocultar a sua perturbação.

—Torno.

O ruivo pegou na maleta e voltou-lhe as costas pelo espaço de segundos. Duranne deslizou por debaixo do balcão, tirou a pistola do coldre e com a coronha deu-lhe uma forte pancada na nuca. O homenzinho caiu por terra sem soltar um ai. Duranne ergueu-o e pô-lo às costas. Não devia pesar mais do que 50 quilos. Com a sua cabeça chata e queixo pontiagudo, parecia uma raposa aos ombros do caçador.

Duranne apressou-se em direcção à porta, mas prestes a chegar vislumbrou duas pessoas a subirem os degraus de pedra. Mal teve tempo de recuar e de se esconder atrás de uma coluna. As pessoas passaram a um metro dele. Era um casal, pensionista do hotel. Pareceram admirados por não encontrarem ninguém na recepção. Trocaram umas palavras e Duranne viu o homem debruçar-se e tirar do gancho uma chave. Após o que se afastaram e se meteram no elevador.

Duranne abandonou o esconderijo e saiu do hotel. Lá fora a noite estava negra como tinta e o passeio completa-mente deserto, mal se distinguia. Evitou o revérbero e dirigiu-se para um “Opel” cinzento, de modelo corrente, que alugara numa garagem, nessa mesma manhã. Abriu a porta de trás e sacudiu dos ombros o fardo que caiu pesadamente como um pedaço de carne congelada.

Duranne olhou vigilantemente em redor. Não havia ninguém, só o silêncio, alterado de vez em quando pela buzina longínqua de um automóvel. A sorte estava mais uma vez do seu lado, ninguém o vira e iam decorrer ainda uns dias antes que a direcção do hotel, espantada com a desaparição do seu empregado, avisasse a polícia.

Alisou o fato e verificou não ter vestígios de sangue. Depois voltou para o hotel. Aproximou-se da recepção, pegou no recibo que ficara sobre o balcão, e pendurou a chave do seu quarto no' quadro das chaves. Cônscio que nada poderia fazer supor fosse a quem fosse o que acabava de se passar, tornou a sair e meteu-se no carro.

Cinco minutos mais tarde afastava-se do bairro e dirigia-se para os lados de Tegelsee. Chegado à floresta de Jung-fern, meteu-se por um caminho deserto e pouco frequentado. Parou cem metros adiante. Saiu do carro, deu a volta, e acendeu uma pilha eléctrica.

Quando examinou o ruivo, teve a desagradável surpresa de verificar que andava a passear com um cadáver. Com efeito, o homenzinho estava frio e teso.

Duranne resmungou qualquer coisa. Afinal, com aquele não podia contar para obter informações. Devia ter batido com demasiada força, ou o rapaz era ainda mais fraco do. que parecia. Como último recurso, passou-lhe revista às algibeiras, mas não achou grande coisa. Só uma carteira velha com papéis passados em nome de Hugo Stein, 45 anos, nacionalidade alemã.

Duranne guardou a carteira na sua algibeira. Depois pegou no cadáver pelos pés e puxou-o para fora do carro. Ouviu-se um baque surdo quando a cabeça bateu no passeio.

 

Apesar da hora matinal, a Mehringplatz oferecia, nesse dia, uma animação particular. A multidão deambulava, apressava-se, cruzava-se, deslizava entre a onda de carros cujo buzinar ininterrupto era por vezes atravessado pelo grito estridente dos rapazes dos jornais. Pela primeira vez, desde há meses, o céu aclarara, deixando raiar um sol aureolado de bruma, como que querendo dar uma curta trégua aos habitantes da cidade antes de chegarem os grandes frios.

Duranne observava em seu redor. Até ali tinha a certeza de não ter sido seguido. Segundo as indicações de Méral, a estação de autocarros devia encontrar-se do outro lado da praça, por detrás da saída do metro. Duranne assegurou-se discretamente que a pistola continuava no seu lugar, contra o peito, no saco de couro, pronta a saltar-lhe para a mão em caso de necessidade. A rapidez com que costumava pegar na pistola e a precisão da sua pontaria haviam-no por mais de uma vez salvo de situações desesperadas. Mas Duranne sabia servir-se de qualquer arma. Manejava a navalha tão bem como o martelo ou o sabre, e sabia por vezes transformar um objecto qualquer numa perigosa arma. Familiarizado com todos os exercícios de judo, sabia no entanto bater-se simplesmente a soco; as mãos, os braços, as pernas, podiam tornar-se engenhos mortíferos. Mas tinha para com a sua pistola uma simpatia particular. Enquanto a soubesse ali, no seu estojo, bem espalmada contra o peito, sentia-se em segurança fosse em que situação fosse.

Com passo de quem anda a passear deu a volta à praça e aproximou-se da estação dos autocarros. As indicações de Méral conferiam. Passavam por ali quatro linhas, das quais a nº 13.

Consultou o relógio e acertou as horas pelo relógio da estação. Os quadrantes indicavam 9,45. Tinha ainda um quarto de hora na sua frente. Afastou-se uns 50 metros e comprou o jornal num quiosque. Depois tornou a observar em redor de si, tentando descobrir alguma coisa de particular, o comportamento anormal de um indivíduo, esperando, como ele, o autocarro; mas rapidamente renunciou a esse exercício. Havia muita gente, e todos os viajantes que esperavam, a ler o jornal, podiam ser tomados por suspeitos.

Às 10 horas Duranne começou a olhar com atenção os números dos autocarros que chegavam e partiam sem cessar, descarregando e carregando cachos de citadinos.

Às 10 e 3, o primeiro nº 13 chegou e partiu. Méral tinha dito o terceiro. Este chegou, como estava previsto, às 10 e 13.

Duranne deslizou por entre a multidão, e subiu. Seguiu a fila, passou diante do guichet e pediu um bilhete para Zeh-lendorf, estação término.

Todos os lugares sentados estavam ocupados. Ficou em pé por uns momentos e depois deslizou pelo corredor e ficou na frente, seguindo as indicações com a maior precisão. Chegado por detrás do assento do motorista, segurou-se à barra e continuou a leitura do jornal; mas desta vez teve o cuidado de o dobrar na página das palavras cruzadas e tirou um lápis da algibeira.

Havia já 10 bons minutos que o autocarro andava e não acontecia nada. De vez em quando Duranne escrevia umas letras nos quadrados brancos com o ar absorvido de quem se concentra num problema. Em cada paragem havia pessoas que desciam e outras que subiam. Várias vezes pessoas tinham ido de encontro a ele pedindo desculpa, e de cada vez ele estremecera imperceptivelmente. Mas a pessoa em questão ainda não se manifestara.

Duranne olhou mais uma vez para o relógio, com discrição, com o ar natural do senhor que receia chegar tarde ao escritório. Eram agora 10 e meia; havia pois 17 minutos que subira para o autocarro. No entanto Méral não devia ter-se enganado; ele tinha dito o terceiro nº 13 a partir das 10 horas. Depois ocorreu-lhe um pensamento: a pessoa em questão não subira talvez para o autocarro porque percebera estar a ser seguida. Se fosse esse o caso, era mesmo possível que os agentes comunistas alemães estivessem ao corrente do encontro dos dois. Estava prestes a convencer-se disso quando de súbito uma voz de mulher lhe disse ao ouvido :

—Não se volte! Vá passear esta noite, entre as 7 e meia e as 8, na Lynarstrasse! Eu conduzi-lo-ei até àquele que deve encontrar.

—Acha que fomos seguidos?—murmurou Duranne mal mexendo os lábios, sem se voltar.

—É sempre possível, mas não o creio.

—Nesse caso, o que é que a impede de me conduzir já?

—Só terei conhecimento do local logo à tarde. Para onde posso comunicar consigo em caso de contra-ordem?

—No Kõlnhotel. Peça para falar a Blanchard—disse Duranne sem hesitação.

O autocarro estacou de repente numa nova paragem, abrindo simultaneamente as portas automáticas. Duranne teve apenas tempo de ver uma silhueta loura envolvida numa gabardina parda, que passou por ele e desceu no meio de outros passageiros. As portas automáticas fecharam-se com um ruído seco, e o autocarro pôs-se em marcha.

Duranne não se mexeu e continuou concentrado nas palavras cruzadas. Da mulher só tinha visto a cabeleira loura. Poderia cruzar-se com ela noutro lugar que não a reconheceria. Ela conseguira tomar contacto com ele num lugar público sem que ele pudesse ao menos saber quem ela era ou sequer distinguir-lhe o rosto. Pensou a que ponto Wer-ner Klauss conhecia os cordelinhos do ofício, e compreendeu de repente que seria muito difícil enganá-lo.

Misturando-se a outros viajantes, Gerta Rumer empurrou-os com os cotovelos, subiu logo para outro autocarro que se encostara ao que ela acabava de deixar.

Estava perfeitamente tranquilizada com respeito ao homem com quem acabava de contactar e que se revelara sob a identidade de Blanchard; sabia perfeitamente que ele se manteria no autocarro nº 13 e que teria interesse em agir segundo as indicações dadas e que em caso nenhum tentaria segui-la. Mas não estava segura do mesmo quanto aos agentes comunistas alemães.

Desde o dia em que Werner Klauss dera com ela e de novo reclamara a sua colaboração sob ameaça de morte, Gerta Rumer vivia no constante temor de cair nas mãos dos seus antigos amigos.

A promessa de ganhos fabulosos que lhe fizera Werner Klauss era, evidentemente, tentadora, mas ela tinha uma confiança muito limitada na palavra do antigo comissário político. Werner Klauss era um conhecimento antigo; conhecera-o a quando de um interrogatório, no dia seguinte a uma rusga num café mal afamado. Klauss evitara-lhe a prisão e várias maçadas, mas em troca exigira que ela trabalhasse para ele como indicadora. De cada vez que um indivíduo era considerado suspeito, ela devia arranjar-se para o encontrar e seduzir. O seu papel consistia depois em adormecer a sua desconfiança até ao dia em que ele lhe fazia confidências, e sobretudo confissões.

Várias dezenas de indivíduos de todas as categorias tinham, graças à habilidade de Gerta Riimer, ido parar a um campo de deportação.

No entanto, Gerta Riimer realizara essa tarefa com certa repugnância, que crescia de dia para dia. Mas Werne Klauss tinha-a nas mãos e ela sabia que ao primeiro sinal de revolta ele tinha o poder de a fazer passar pela mesma sorte que toda aquela gente que ela denunciara. E um dia, cansada de tanta baixeza, decidira fugir da Alemanha Comunista e refugiar-se em Berlim Ocidental, com o único fito de fugir a Klauss. Se tivesse tido um pouco mais de paciência, talvez pudesse prever os acontecimentos que se seguiriam.

O autocarro que acabava de tomar andava já há 5 minutos e acabara de entrar pela Albrechtstrasse. Gerta tirou da carteira a caixa de pó e o baton. Retocou a maquilhagem mas na verdade esforçava-se por observar através do espelho todas as pessoas atrás dela. Nenhum dos viajantes parecia prestar-lhe a mínima atenção, mas Gerta perdera há muito o hábito de se fiar nas aparências. Andara na escola de Wer-ner Klauss, que era a desconfiança personificada.

Esperou pela próxima paragem, levantou-se e desceu por uma das portas automáticas situada na dianteira do carro. Assim que se encontrou no passeio dirigiu-se para a porta traseira do autocarro e tornou a subir. Esgueirou-se para o fundo e não se aproximou logo em seguida do guicheí envidraçado. Pôs-se a encarar cada viajante que subira atrás de si.

De repente estremeceu. Um homem vestido com sobretudo beige e chapéu cinzento subiu e tomou o lugar na fila dos outros viajantes diante do guichet do revisor; tinha um bigode estreito e negro, e segundo os olhos escuros e a carnação morena, devia ser espanhol ou sul-americano. Mas o que importava a Gerta era já ter notado o tipo, e saber agora que era seguida. Notara-o alguns instantes antes no espelho da caixa de pó. Estava sentado três filas atrás dela, junto da janela. Tinha, pois, descido quando ela descera e subido atrás de si.

Gerta aproximou-se insensivelmente da porta traseira, reservada à subida dos passageiros. Na paragem seguinte, quando o autocarro estacou, ela deixou subir as pessoas, mas não desfitou o motorista por detrás do guichet de vidro. Na altura em que ele se preparava para carregar no botão que fazia funcionar as portas automáticas, ela empurrou de repente umas pessoas a seu lado e precipitou-se de um salto.

Ainda não tinha pousado os pés no passeio já a porta batia atrás de si. O autocarro partiu logo em seguida e ela teve tempo de distinguir duas personagens no interior do autocarro que manifestavam o seu descontentamento: primeiro, o revisor, que a fulminava com o olhar e que batia na cabeça com a palma da mão. Segundo, o homem do bigodinho, que carregava em vão na campainha para descer, furioso de ter sido enganado.

Gerta atravessou rapidamente o largo e dirigiu-se para a praça de táxis mais próxima. Um “Volkswagen” cinzento era o primeiro da fila. Enfiou-se nele e deu ao motorista uma morada num bairro totalmente oposto ao local onde devia dirigir-se.

O táxi lançou-se pelo boulevard fora. Gerta puxou de uma nota de 20 marcos, que representava três vezes o preço da corrida, e estendeu-a ao motorista.

—Vai tomar a segunda travessa à direita! Pára 100 metros adiante, e quando eu tiver descido, parte imediatamente, a 100 à hora!

Verstanáen, Fraulein! (1)—disse o motorista na sua pronúncia cerrada de berlinense.

Guardou a nota com visível satisfação, e carregou no acelerador. O conta-quílómetros atingiu rapidamente os 90. Chegado a alturas da Ordenmeisterstrasse, abrandou bruscamente e voltou à direita. Cem metros adiante, executando à letra as instruções da sua freguesa, encostou-se ao passeio. Gerta desceu incontinente e o táxi partiu logo em seguida.

Escondida atrás de uma coluna de cartazes teve tempo de o ver desaparecer antes que um outro carro vindo do boulevard se enfiasse também pela travessa. Desta vez tinha a certeza de deixar de ser seguida, e de poder ir, sem obstáculos, ao café-restaurante onde Werner Klauss devia chamá-la ao telefone para se informar de como decorrera o passeio e lhe dar novas instruções.

 

(1)—Entendido, menina!

 

Assim que Duranne chegou às proximidades do seu hotel compreendeu que o cadáver do dito Hugo Stein tinha sido descoberto. Um carro oficial da Berliner Polizei, estacionava junto do passeio. Os polícias deviam estar a levar o inquérito a sério, para se encontrarem já ao corrente da última actividade da vítima, descoberta, segundo o jornal, nessa madrugada.

A polícia devia encontrar-se a interrogar o pessoal e na sua qualidade de cliente do hotel não deixaria de passar diante deles. Uma expressão de contrariedade espalhou-se-lhe nos traços; não que receasse ser reconhecido como autor do assassinato; sabia perfeitamente que ninguém o vira abater o denunciante ruivo, assim como ninguém o vira transportá-lo para o carro. Mas Duranne não sentia simpatia por nenhum organismo de polícia do Mundo, fosse ele qual fosse; temia aqueles inquéritos intermináveis que o mais das vezes lhe faziam perder um tempo precioso. Lamentou não ter previsto uma reacção tão rápida dos chuis e sobretudo ter deixado na recepção aquela maleta que lhe era necessária para o bom seguimento dos acontecimentos.

Duranne atravessou o vestíbulo com passo descontraído. Dois inspectores à paisana discutiam com o gerente que parecia fazer um número de pantomina improvisada; ia e vinha, apertando desesperadamente o crânio calvo entre as mãos, repetindo sem cessar:

—Ich verstehe nicht, Herr Ispektor, ich verstehe nicht! (1).

Um rapaz magro com o rosto coberto de borbulhas substituíra o ruivo na recepção, e de olhos fitos no grupo, escutava demonstrando sinais da mais viva exaltação.

Estendeu a Duranne a chave do quarto com um sorriso cúmplice e apontou o grupo com um movimento de cabeça.

—É um golpe para a Direcção—lançou num sorriso onde surgiram uns dentes demasiado compridos e pontiagudos.

—Que se passa?—perguntou Duranne, quase desinteressadamente.

—Não sabe?

—Não sei o quê?

—O empregado do turno da noite foi encontrado esta noite para os lados de Tegelersee, no passeio, com a cabeça esmagada.

—Como aconteceu isso?—perguntou Duranne, parecendo vivamente impressionado.

O jovem empregado escondeu os longos dentes e a boca tomou a forma de um acento circunflexo.

—Mistério. Os chuis dizem que não sabem ainda se foi acidente ou assassinato. Eles que digam, mas eu tenho a certeza que o tal Hugo Stein foi abatido.

- Acha?

—Com certeza. Fazia o serviço da noite cá no hotel. Não devia mexer-se do seu posto até às 6 da manhã, e encontraram-no a 3 quilómetros daqui, morto na calçada. É uma história muito estranha.

—Com efeito, é estranho—aprovou Duranne.

 

(1)—Não compreendo, senhor inspector, não compreendo.

 

Começaram a interrogar o pessoal. Depois, serão os clientes. Está a ver a reputação que isto faz ao hotel!— E acrescentou confidencialmente:—Todas as conversas telefónicas são controladas desde há uma hora.

Duranne deixou-o e subiu ao quarto. Ouvira o suficiente para saber que os polícias não suspeitavam ainda do móbil do crime. Tratava-se agora de não se deixar enervar num dos tais intermináveis interrogatórios.

Fechou a porta por dentro, tirou o casaco e desembaraçou-se do estojo de couro com a pistola, que escondeu debaixo do colchão. Depois tornou a vestir o casaco.

Se a polícia o interrogasse sobre o alvo da sua viagem, podia dizer-lhes que era jornalista, um velho truque clássico, e que viera a Berlim para se encontrar com o seu amigo Roger Méral, director do jornal Die Deutsche Woche. Lastimou não ter avisado este último e fez votos para que ele não tivesse a fantasia de lhe telefonar, pois a sua conversa, mesmo em código, só chamaria as suspeitas da polícia para cima deles. Sem aquela maldita maleta que era obrigado a trazer consigo para o acompanhar ao rendez-vous com Wer-ner Klauss, teria muito bem podido não reaparecer no hotel, o que teria sido muito mais simples. Resmungou contra o ruivo, que mesmo morto continuava a criar-lhe complicações.

Três pancadas secas na porta arrancaram-no bruscamente às suas reflexões.

Duranne deitou um olhar em volta. Nada de anormal poderia chamar a atenção. Acendeu um cigarro e foi abrir com ar tranquilo.

Os dois inspectores que vislumbrara de costas 5 minutos antes, encontravam-se na sua frente. O primeiro era um rapaz magro e alto, com um rosto estreito e longo nariz adunco. O segundo, embora mais baixo, impressionava pela desmedida largura dos ombros: parecia não ter pescoço, como se lhe tivessem pousado directamente a cabeça no tronco. Ambos vestiam gabardina negra de oleado. O alto e magro trazia um chapéu á tirolesa e o outro estava em cabelo e deixava ver, segundo a boa tradição alemã, os cabelos louros cortados curto e por cima das orelhas.

—Deutsche Politzei!—anunciou o magro, exibindo o cartão.

Depois, sem esperar ser convidado a entrar, penetrou no quarto.

Deu uns passos e lançou um olhar circular enquanto o colega ficava cobrindo a porta, numa atitude de esfinge, as duas mãos enfiadas nos bolsos da gabardina.

—Faz favor, mostra-me os seus papéis?—continuou o magro sem cordialidade.

Duranne estendeu-lhe o passaporte. O inspector folheou-o minuciosamente, ergueu a cabeça e meteu-o na algibeira.

—Que veio fazer a Berlim, sr. Blanchard?

—Uma troca de pontos de vista sobre o Mercado Comum —respondeu tranquilamente Duranne.

—Não se importa de dizer o nome da pessoa que devia encontrar?

—Trata-se de um compatriota, que habita Berlim há muitos anos, Roger Méral, co-director do jornal Die Deutsche Woche.

—E já se encontrou com ele ?

—Ainda não. Só telefonei a marcar encontro. Cheguei apenas ontem...

—Bem sei!—atalhou secamente o polícia.

Fitou-o com olhar frio, parecendo atravessá-lo com os seus olhos penetrantes. E de repente disse:

—O sr. Roger Méral morreu!

Duranne sentiu a garganta apertar-se-lhe. Não precisava continuar a representar, pois o espanto que se espalhou pelo rosto era verdadeira estupefacção.

—Morreu?...—repetiu com voz rouca.

—Mataram-no ontem na própria casa; um desconhecido despejou-lhe 3 balas no ventre!

Duranne aspirou nervosamente o cigarro que se apagara.

—Frau Méral foi acordada em sobressalto pelas detonações, e teve tempo de ver o assassino do marido que fugia. Não pôde ver-lhe o rosto, mas os sinais que nos deu correspondem exactamente aos seus, sr. Blanchard.

Duranne esmagou o cigarro no cinzeiro.

—As suas suspeitas são ridículas, sr. inspector! Não vi Méral, telefonei-lhe apenas.

—E o empregado da recepção?

— O empregado da recepção?

—Sim, Hugo Stein, encontrado perto de Tegelersee, com o crânio fracturado, deitado sobre a calçada?

—Fui posto ao corrente dessa história, apenas há 5 minutos. Mas não veja relação entre a morte de Méral...

—Nós também não, sr. Blanchard. Mas deve haver uma! Teve convívio directo com Hugo Stein?

—Como qualquer outro hóspede do hotel, mais nada.

—E ele não lhe interessava particularmente?

—Porque me havia ele de interessar particularmente?! —retorquiu Duranne, a quem aquele interrogatório começava a irritar.

—No entanto informou-se a seu respeito. A criada dos quartos, a quem interrogámos, foi muito clara. O senhor tinha-lhe perguntado há quanto tempo estava Stein empregado no hotel.

—É possível, mas isso é um argumento muito débil para suporem ser eu o autor do assassínio. As vossas suposições são simplesmente ridículas, deixe-me dizer-lhe, sr. inspector. E cedo verificarão que vão por caminho errado.

—É isso mesmo que desejamos, sr. Blanchard —continuou o polícia, com voz glacial.—Mas há ainda outro facto que nos leva a crer não estar o senhor tão alheio a estes dois assassinatos, como no-lo quer fazer crer. Ontem chegou de Paris no comboio da noite. Ora houve um homem morto no seu compartimento por um indivíduo que conseguiu fugir de automóvel e que tinha cúmplices. E o senhor viajava nesse mesmo comboio. É talvez uma coincidência? Mas não acha que temos muitas coincidências, já?

—É possível, repito-lhe, porém, que eu não tenho nada a ver com nenhum desses casos! Vim a Berlim para um inquérito jornalístico, apenas, e não para matar pessoas! Não vejo mesmo que interesse podia ter...

—Nós também não vemos, por ora, mas havemos de ver. Em todo o caso, é curioso que o senhor esteja sempre no local onde matam alguém...

—Peço-lhe, âr. inspector, paremos com esta brincadeira de mau gosto. Faça o seu inquérito, que diabo, e logo verá que está enganado!

—É exactamente um inquérito que estamos a fazer.

—Mas que esperam de mim, afinal?—gritou Duranne, exasperado.

—Prendemo-lo, sr. Blanchard.

Ao sair do Schwarzwaldgasthaus, Gerta Riimer deitou maquinalmente uma olhadela na direcção dos poucos clientes que ocupavam as mesas do restaurante. Nenhum novo personagem viera instalar-se aí desde que ela entrara. Pareceu ficar tranquilizada, pois esse receio de ser seguida tornara-se-lhe uma obsessão. No entanto, desta vez, estava certa de ter despistado os tipos que a seguiam.

Werner Klauss, com uma pontualidade que faria inveja a um oficial inglês, telefonara à hora certa. Ela adivinhara, embora ele não se tivesse manifestado, que os resultados da sua entrada em contacto com o outro, o tinham deixado satisfeito. Mas embora impaciente, nada alterava a sua desconfiança, nem nada o faria negligenciar a mais ínfima precaução. E ainda não lhe revelara o local que escolhera para encontrar o agente francês.

Gerta preparava-se para se afastar quando um táxi parou justamente rente ao passeio, uns metros adiante dela. Um homem desceu e pagou a corrida. Aproveitando a oportunidade, ela interpelou o motorista mesmo na altura em que ele punha o motor em marcha.

—Está livre?

Ele contentou-se em fazer-lhe um sinal afirmativo com a cabeça, e estendeu o braço para trás para lhe abrir a porta.

—Miillerstrasse, nº 34!—disse Gerta, instalando-se no banco traseiro.

O táxi deu lentamente a volta à praça e meteu pela Vorckstrasse em direcção à Mehrinkplatz. Pela primeira vez desde o princípio do dia Gerta sentiu os nervos distenderem-se-lhe um pouco. Acabava de realizar uma perigosa missão com êxito, já que pudera contactar com o agente francês, e despistar os que a seguiam. Uma trégua momentânea era-lhe concedida até à noite; até às 7 e meia, hora a que abordaria um homem na rua, tomando um ar equívoco, mas em verdade continuando a perigosa tarefa a que não podia fugir. O seu “cliente de ocasião” seria Blanchard, agente do 2.º Bureau, o homem que ela estava encarregada de conduzir até Werner Klauss. Vira-se contra vontade metida numa engrenagem, e arriscava a vida a todos os momentos, pois a sua sorte estava agora ligada à de Werner Klauss. Esforçou-se por não pensar.

O táxi, que rodava agora na Gitschinerstrasse, começou a abrandar e parou de repente. Todavia, não havia sinais de trânsito.

—O que há?—perguntou ela.

O motorista ficou impassível e não respondeu. Gerta não teve tempo de lhe fazer nova pergunta. A porta abriu-se brutalmente e um homem enfiou-se a seu lado, carregando-lhe com uma pistola nas costelas. Depois o táxi continuou em grande velocidade.

Gerta sentiu-se sufocar. Engoliu a saliva com dificuldade, e quis dizer qualquer coisa. Mas não conseguia articular. O enorme homem louro que se apoiava contra ela era o mesmo viajante que insta'ntes antes saíra do táxi, diante da Schwarzwaldgasthaus. Ela fitou-o com os olhos desmedidamente abertos, aterrada, ainda incapaz de realizar o que se passava. Então de repente fez-se luz, como após uma avaria na electricidade. Estava tudo preparado! Tinha-se deixado agarrar!

O colosso louro que não tirava os olhos dela parecia adivinhar o que ela pensava. Esboçou o que se pode chamar um sorriso, mas parecia antes uma careta. Um urso querendo seduzir uma gazela.

—Acabou-se a festa, minha linda!—disse ele, com voz que se esforçava por tornar melodiosa.—Deste-nos muito trabalho mas sempre conseguimos agarrar-te, hem? Assim como acabaremos por agarrar aquele pulha do Klauss quando nos tiveres dito onde se esconde ele.

De maxilares apertados, Gerta lançou um olhar furtivo à porta do outro lado.

—É inútil tentares ausentar-te do nosso lado, minha linda, não poderás abri-la, e depois, à velocidade com que seguimos, arriscavas-te muito...

E apertou mais o cano da pistola contra as costas dela.

—Fica quieta, isto é uma viagem de turismo. Não gostaria de ter de te adormecer. Não gosto de magoar senhoras.

O táxi, que dera meia volta, seguia a grande velocidade, ao longo do Tiergarten. O pseudomotorista de táxi parecia totalmente desinteressado do que se passava atrás dele, limitando-se a concentrar exclusivamente a sua atenção na calçada.

Gerta, de principio aterrada pela rapidez do ataque, começava insensivelmente a dominar-se. O medo incontrolável que a tomara, privando-a totalmente de reacção, desaparecia pouco a pouco para dar lugar a uma incrível lucidez. Em poucos segundos analisou o trágico da situação. Os tipos que acabavam de se apoderar dela pertenciam aos serviços alemães de Informações, e levavam-na para a interrogarem. Ela conhecia os métodos deles e sabia que não podia esperar piedade nem misericórdia, e que mesmo que ela lhes dissesse toda a verdade, isso não os impediria de a torturarem e matarem.

—Para onde me levam?—perguntou de repente, com uma voz que ela própria desconhecia.

—Olha. Tornou-se tagarela. Julguei que eras muda.

—Para onde me levam?—repetiu Gerta.

—À casa do chinês, bonequinha. Um artista na arte de fazer as raparigas falarem. Verás. Nunca vi nenhuma que não tivesse respondido.

Gerta tornou a mergulhar num mutismo amuado. O cano curto da pistola continuava enterrado nas suas costelas.

Insensivelmente, com lentidão de caracol, a sua mão direita aproximou-se da carteira que o colosso não tinha achado necessário tirar-lhe. Pouco a pouco os dedos aproximaram-se do fecho éclair. Imperceptivelmente fê-lo deslizar, malha a malha. Um esticão seguido de uma travagem brusca permitiu-lhe enfiar a mão na carteira e agarrar a coronha do seu “P-38”. O homem ainda não se dera conta de nada. Mas faltava o mais difícil: tirar o revólver da carteira, apontá-lo ao tipo e carregar no gatilho. Compreendeu que para fazer esses movimentos precisava adormecer a sua desconfiança.

—Quem é o chinês?—perguntou de repente.

O colosso fez nova careta.

—Já te disse, é um artista...

Gerta trouxe o revólver até à boca da carteira.

—Um sábio que inventa uma data de coisas...

O “P-38” emergiu da bolsa nos dedos crispados de Gerta.

—Aperfeiçoou um sistema que ultrapassa a imaginação...

Gerta apontou o cano contra o ventre do colosso e carregou no gatilho. No mesmo instante o seu pulso violentamente torcido arrancou-lhe um grito de dor, abafado pelo ruído do tiro. Diante dela o vidro da porta transformou-se numa estrela e um praguejar furioso soou-lhe aos ouvidos, enquanto o táxi seguia aos zigue-zagues pela calçada.

—Bruxa! Maldita bruxa!—rugiu o colosso, esmagando-lhe o pulso.

Agitou a sua pistola por cima da cabeça dela e assentou-lhe um violento golpe no crânio. Gerta Rumer não teve tempo de perceber que falhara. Caiu suavemente para o lado no banco, e da nuca começou a correr-lhe um fio de sangue.

 

—Não têm o direito de me prender!—exclamou Duranne. —Vou queixar-me ao consulado francês.

—Siga-nos!—disse o inspector.

—Não têm mandato de prisão, não podem prender-me. Recuso-me absolutamente a segui-los.

—Não se faça esperto e siga-nos sem arranjar sarilhos. É o melhor conselho que posso dar-lhe, sr. Blanchard.

O polícia tirou a pistola da algibeira, e o seu olhar azul, duro como aço saído das usinas de Krupp, fulminou Duranne.

—Vai seguir-nos com muito juizinho até ao comissariado, entendeu ? E não tente fazer-se esperto, porque aviso-o que atiro sem hesitações se tentar fugir-nos das mãos.

Duranne encolheu os ombros com um gesto de protesto, querendo exprimir que não fazia tenção de lhes fugir, e que aideia nem sequer podia estar na sua mente. Mas na realidade reflectia com a maior rapidez. Se aqueles dois polícias tacanhos o levassem para o comissariado, tinha de contar ficar preso vários dias. E tinha um encontro marcado com a enviada de Werner Klauss nessa mesma noite. Esse rendez-vous era demasiado importante para ser anulado ou apenas adiado, tanto mais que sabia não estarem inactivos os agentes comunistas. A melhor prova era a de que acabavam de liquidar

- 80Méral como baviam provavelmente liquidado Louvier. E depois havia a gente do C. I. A. e do I. S. que podia manifestar-se e querer uma talhada do bolo. E o boIo não era pequeno. Numa fracção de segundo compreendeu ter de agir, e agir sem perda de tempo.

O homem atarracado continuava enchendo a ombreira da porta com os seus ombros de bisonte e com as mãos enfiadas nos bolsos da gabardina. O alto e magro estava a um metro dele, com a pistola na mão.

- Pois então, vamos lá!-disse Duranne com o ar de quem se resigna.-Mas previno-os que hão-de pagar-mas.

—Depois há-de dizer isso ao comissario Agora venha.

Mas com rapidez fulminante a mão de Duranne abateu-se sobre o pulso do inspector. A brutalidade do cnoque vê-lo vacilar e o revólver caiu para o tapete. Antes de ter tempo 'de reagir, já Duranne lhe dava um golpe na garganta, com o gume da mão; caiu redondo, de boca aberta, enquanto Duranne mergulhava atrás dele, como quem se lança para uma piscina.

O ataque durara um segundo, o tempo necessário para o atarracado reagir. Este lançou-se num salto tirando a pistola do bolso. Duranne puxou o tapete com ambas as mãos, e o polícia caiu de pernas para o ar, deixando fugir a arma. Antes de poder recuperá-la, já Duranne estava sobre ele. Ambos rolaram pelo sobrado.

O polícia atarracado tinha a estrutura de um hércules. Além disso, Duranne sabia que os polícias alemães tinham aprendido a lutar, à base de exercícios de judo e outros; mas confiava nos seus prodigiosos reflexos e na rapidez' dos seus golpes. O polícia atarracado ainda mais percebera que Duranne lhe enviara já por duas vezes o joelho ao fígado e que lhe apertava o pescoço entre os Seus antebraços. Porém, o polícia tinha um pescoço de touro. Tornou-se roxo mas resistiu; conseguiu mesmo soltar um braço dobrado debaixo

— de si e golpeou Duranne na nuca. Este soltou-o e atirou-lhe com o cotovelo contra o maxilar. O outro enterrou-lhe dois dedos no rosto, à procura dos olhos. Duranne agarrou-lhe o pulso, evitou o golpe de joelhos no ventre e puxou-o com selvajaria. O outro gemeu e largou-o. Acabava de deslocar uma omoplata. Duranne aparou a tempo o pontapé que teria abatido um boi e começou a golpeá-lo sistematicamente na base da nuca. O polícia desfaleceu. Teve dois ou três sobressaltos, tentou ainda uma vez levantar-se mas de súbito as forças abandonaram-no completamente e tornou-se apenas num monte de carne imóvel no tapete.

Duranne ergueu-se e observou os estragos. As duas pistolas jaziam no tapete à distância de um metro entre si, ao lado dos dois corpos inanimados. Os dois representantes da Deutsche Polizei tinham à sua frente uma boa meia hora antes de virem a si; e o polícia atarracado tinha além disso, um bom mês antes de poder retomar o serviço.

Duranne apanhou as pistolas, tirou-lhes as balas e deitou tudo para o cesto dos papéis. Depois passou rapidamente ao quarto de banho, pôs em ordem o vestuário e fechou a mala.

Vestido tal como no dia da chegada, sentindo contra o peito a pequena bolsa de couro com o seu precioso conteúdo, deixou o quarto sem conceder o mínimo olhar às suas vítimas. Não as tinha morto, já era alguma coisa. Infelizmente para os dois polícias, o destino tinha-os colocado no seu caminho, e no seu ofício todos os elementos que tentassem barrar-lhe caminho tinham de ser impiedosamente afastados.

Deitou um olhar discreto para o corredor. Não havia ninguém. Fechou a porta e deu duas voltas à chave. Depois desceu tranquilamente as escadas e dirigiu-se à recepção. O rapaz alto de óculos olhou-o com espanto.

—Vai-se embora?

—Vou. Os meus negócios obrigam-me a deixar Berlim.

faz favor de me entregar a conta e uma maleta que deixei aqui. - O rapaz pareceu hesitar.

—Não deseja falar com o gerente, parece-me que ele queria..—Não tenho tempo.

O empregado executou as ordens com ar embaraçado. Duranne pagou a conta. No momento em que pegava na mala para se afastar o empregado reteve-o mais uma vez.

—Por acaso não viu os inspectores?

—Vi. Foram-me interrogar. Creio até que ainda se encontram no meu quarto. Estão a fazer investigações minuciosas.—Depois acrescentou, perante o rosto atónito do rapaz: —A propósito, acho que o senhor deveria subir ao meu quarto. Parece-me que me esqueci de fechar a torneira da casa de banho.

Trinta segundos mais tarde estava instalado ao volante do seu automóvel e partia como um bólide pela avenida fora. Sabia agora que o jogo se tornara extremamente perigoso e que ia atingir o ponto culminante. Era preciso encontrar-se com o manhoso e temível Werner Klauss, lograr os adversários das informações comunistas, e escapar às investigações da polícia de Berlim. E, como sempre, aquele a quem chamavam “Gavião” permanecia sozinho na corrida e podia apenas contar consigo próprio. Louvier tinha desaparecido e Méral deixara-se matar.

A luz da lâmpada vacilou quando os eléctrodos começaram a funcionar. Gerta Rúmer uivou de dor. O uivo saiu-lhe das entranhas, escapou-se-lhe da garganta, tornou-se agudo e prolongou-se.

Depois a voz quebrou-se durante dois ou três segundos e logo recomeçou a rugir. De súbito o rosto convulsionado pelo sofrimento tornou-se lívido e a cabeça imobilizou-se.

—Perdeu os sentidos—disse o colosso.

O chinês aquiesceu com uma careta muda. Voltou-se com ar interrogativo para Ingrid Haldem, que permanecia impassível, fumando tranquilamente o seu cigarro inglês.

—Basta então por agora—murmurou a sueca.—Esta pequena demonstração deve tê-la feito perder o gosto da mentira. Acordem-na!

Gerta Rumer estava deitada sobre a mesa, de tornozelos e pulsos ligados por correias de couro. A sua longa cabeleira loura estava desfeita, e mechas húmidas colavam-se-lhe à testa; o rímel que escorrera dos olhos misturava-se ao sangue coalhado no pescoço, e formava sulcos roxos.

O asiático aproximou-se dela e desatou com delicadeza os eléctrodos fixados aos dedos polegares, deixando aparecer as manchas negras das queimaduras; depois molhou uma toalha e pôs-se a lavar-lhe atentamente o rosto, como o faria a um pedaço de metal depois de uma experiência. Ela teve dois ou três sobressaltos e o rosto contraiu-se-lhe. Depois o maxilar crispado distendeu-se e as cores voltaram-lhe insensivelmente. Começou a mexer os lábios e depois abriu os olhos que se abriram desmedidamente; lia-se neles um temor indefinível. Reconheceu diante de si os seus algozes: o chinês, o colosso de canadiana, o motorista do táxi, e o homem de bigodinho que despistara no autocarro e que os outros chamavam Rudy, e por fim a mulher, a qual parecia dirigir as operações.

—Levem-na para o divã. Agora há-de falar—disse a sueca.

O colosso inclinou-se para Gerta e pegou-lhe como numa pluma. Com a facilidade de um criado de restaurante carregando uma bandeja, à sua frente, pô-la no divã e fê-la sentar encostada à parede.

Ingrid Haldem deitou o cigarro para o chão de cimento e esborrachou-o com o pé; depois levantou-se e veio postar-se diante da alemã.

—E agora, que pudeste apreciar os talentos do sr. Chuen-Lee, vais responder às nossas perguntas. Aviso-te que se tentas enganar-nos mais uma vez, entrego-te à sapiência do professor. E, acredita, minha linda, a pequena sessão dos eléctrodos é apenas um ligeiro aperitivo no menu. Então, que escolhes?

—Eu falo...—murmurou Gerta.

—Óptimo. Quando devias encontrar-te com o tipo do autocarro ?

—Ao fim da tarde de hoje.

- Onde? —Na Lynarstrasse.

—A que horas?

—Entre as 7 e meia e as 8.

—Onde devias conduzi-lo?

—Ao “Krenzkafee”, na Seyertrasse.

—E depois?

—Werner Klauss telefonar-me-ia para lá. Só então me daria instruções. Mas ignoro o lugar onde devíamos encontrá-lo.

Os olhos de Ingrid Haldèm reluziram. Tinha a certeza que desta vez Gerta Riimer falava verdade.

—Então—murmurou lentamente—, Klauss tinha a intenção de fechar o negócio hoje mesmo?

—Tinha.

A sueca interrompeu o interrogatório durante instantes. No seu espírito os pensamentos corriam velozmente, e construíam as primeiras linhas de um plano de batalha. À sua roda os homens não se mexiam, respeitando o seu silêncio. Ela ergueu a cabeça e continuou:

—Conheces o homem que deves conduzir junto de Klauss? —Usa o nome de Blanchard. Está hospedado no Kõlnhotel.

Ingrid Haldem trocou um olhar com o colosso.

—Que sabes mais a seu respeito?

—É um agente do 2.º Bureau, é tudo quanto sei.

—E como sabes isso?

—Klauss encarregara-me primeiro de contactar com o director da Deutsche Woche que ele sabia ser um agente francês. Foi ele que transmitiu para Paris a nossa oferta e foi ele que nos informou que um agente especial estava a chegar a Berlim para tratar do caso.

Mais uma vez Ingrid Haldem observou uns segundos de silêncio e encarou Gerta Riimer com curiosidade. Visivelmente, embora já não duvidasse da sinceridade da sua prisioneira, aquela afirmação parecia espantá-la.

—Um agente especial!—troçou o pseudomotorista de táxi.—Liquidei-o eu com toda a limpeza no seu compartimento.

—Cale o bico, Peter!—ordenou Ingrid com secura.—Ninguém lhe pediu a opinião.

O tal Peter mastigou umas palavras ininteligíveis como desculpa e recuou um passo, com ar contrariado. A sueca voltou-se para o chinês.

—Sr. Chuen-Lee, ocupe-se dela e faça tudo para que se encontre em boa forma esta noite. Precisamos muito da sua colaboração.

Uma expressão de pesar perpassou nos olhos do asiático. Para ele, a ordem era tão cruel como entregar um frasco de doce a uma criança recomendando-lhe que não lhe tocasse. No entanto cruzou os braços sobre o ventre e inclinou-se cerimoniosamente, enquanto a sueca, seguida pelo bando, saía da cave.

Servindo-se da escada de cimento, o grupo chegou ao rés-do-chão.

—Que pensa disto, Fraulein Ingrid?

Era o colosso louro que fazia a pergunta.

—Penso que a rapariga nos disse tudo o que sabia, Gerhard...

—E acha que o tipo que usa o nome de Blanchard é um agente do 2.° Bureau ?

—Cedo o saberemos, Gerhard; mas tenho antes a impressão que o tipo não pertence a nenhuma rede de espionagem, e que tenta enganar todos os lados, trabalhando por conta própria.

—A não ser que pertença ao C. I. A. ou ao I. S. Foi ele, em todo o caso, que liquidou Stein.

—Sem dúvida nenhuma. E foi provavelmente ele quem liquidou Méral, se quer que eu lhe diga. Para mais, instalou-se no Kolnhotel. O hotel em que justamente se hospedou CB-128. É isso que me leva a crer não ser ele um agente especial.

—Tem um plano?

—Sim, tenho um plano...—murmurou Ingrid.—Mas é preciso agir com rapidez!

—Não quer primeiro discutir o caso com o chefe?

—O chefe não está visível, de momento. E depois, de qualquer maneira, não temos tempo!

 

Duranne lançou um rápido olhar aos ponteiros luminosos do seu relógio de pulso. Marcavam 19 horas e 45 minutos. Ele acabava de percorrer, em passo de passeio, o Lynars-trasse em todo o seu comprimento.

Em dado momento acendeu um cigarro. Depois meteu pés a caminho, descendo a rua em sentido inverso. Mas mal começara a andar quando uma rapariga que estivera aninhada na ombreira de um portão avançou praa ele e o abordou.

—Boa noite!—disse ela pendurando-se-lhe no braço.— Posso levá-lo comigo?

Era alta e loura. Elegante, tanto quanto Duranne podia observar na penumbra que os envolvia. Distinguiu sobretudo a brancura dos dentes e o fulgor dos olhos. Ele não respondeu e contentou-se em encará-la, tentando reencontrar a silhueta da que vislumbrara furtivamente no autocarro. Pensou que era mais um falso alerta.

—Não ficará desiludido!—insistiu a rapariga com voz bizarra.

A ele pareceu-lhe que ela o fitava com intensidade.

—Vamos, larga!—disse com secura, para se ver livre dela.

Longe de se perturbar, a rapariga continuou em voz mais baixa:

- Custa-lhe 150.000 dólares...

Duranne olhou-a fixamente Ela continuava imóvel, de olhos presos aos seus. —Eu sou aquela por quem esperava—continuou, como a responder à pergunta muda que lhe dirigia o homem na sua frente.

Duranne não soube explicar a si mesmo o mal-estar que sentiu. Não era nem medo, nem espanto, nem mesmo surpresa. De resto, há muito já que nada podia surpreendê-lo. Todavia teve a nítida impressão que havia ali qualquer coisa errada. Mas o quê? Não sabia.

—Para onde me leva?—perguntou simplesmente.

—Junto daquele com quem deve encontrar-se.

—Então, vamos.

—Tem o dinheiro?

—Não está longe.

—Então vá buscá-lo primeiro, eu espero aqui.

Duranne voltou-lhe as costas e afastou-se. Quando chegou ao boulevard dirigiu-se ao seu carro, abriu a mala traseira e daí retirou a pasta em imitação de couro que deixara na recepção do hotel. Depois voltou para junto da mulher que o esperava.

—Fica longe?

—Bastante longe. Temos de tomar um táxi.

Chegados à praça de táxis, ela afastou-se dele e dirigiu-se para um “Volkswagen” cujo motorista dormitava, de cabeça apoiada no volante. Mas Duranne interceptou-lhe o gesto.

—Não! Esse não! Antes este—disse, apontando um “Opel” cinzento uns metros atrás daquele.

—Que receia?

—Receio sempre alguma coisa.

Meteu-se no carro e acomodou-se no assento. Ela sentou-se a seu lado e deu uma direcção ao motorista. Duranne registou instintiva e mentalmente o nome da rua. O táxi partiu lentamente, tomou velocidade, contornou a alameda e misturou-se à vaga de veículos que deambulavam pelo boulevard.

Duranne sentia-se perfeitamente calmo, lúcido, distendido. Distendido e lúcido tal como sempre que entrava em acção, tal como de cada vez que chegava o momento crucial. Sorria agora para o verdadeiro alvo da sua missão, Werner Klauss, o temível Werner Klauss, o homem que tinha conseguido adormecer a desconfiança dos seus colaboradores, o homem que, como um abutre, guardava ciosamente a sua presa, o homem que possuía os planos do “KL-X-19”.

Duranne não fazia a mínima ideia da maneira como se iria desenrolar a entrevista e não procurava sequer imaginá-la. Sabia que nesse género de encontros não servia de nada elaborar um plano e que tudo se improvisava. De momento corria para o adversário com a sua inseparável pistola bem presa no estojo contra o peito, e sobre os joelhos uma maleta que continha 150.000 falsos dólares.

Embora preocupado por outros pensamentos, Duranne notara a estranha beleza loura que Werner Klauss tinha a seu serviço como agente de ligação. Ao passarem pelo boulevard iluminado, pudera distinguir os traços dela mais nitidamente. Era bela mas fria. Bela e fria como uma estátua de mármore. O táxi andava já havia 5 minutos e ela continuava silenciosa e imóvel, tal como ele. De vez em quando o rosto dela era violentamente iluminado pelos faróis de um carro em sentido inverso, o que lhe dava qualquer coisa de irreal. Ao observá-la pelo canto do olho, Duranne sentiu de novo uma impressão bizarra. Aquela mulher que não devia ainda ter 30 anos, tinha qualquer coisa de maléfico. Adivinhou-a perigosa.

O táxi acabava de atravessar uma grande artéria e metia por uma rua secundária, bordejada por prédios sombrios onde as montras das lojas se tornavam cada vez mais raras. A circulação era igualmente menor, menos densa, e passaram a cruzar muitos poucos carros. Duranne adivinhou que atingiam os barros fora de portas e que se dirigiam para os arredores. Mas em nenhum momento perguntou à companheira de estrada a que local o conduzia. De qualquer modo isso não tinha importância pois ela limitava-se apenas ao seu papel de guia e de intermediária.

Deitou novo olhar ao relógio. Eram 20 horas e 15. Havia mais de 20 minutos que rodavam, e ainda não haviam trocado palavra, quando bruscamente o motorista quebrou o silêncio:

—Que número é?

—Pare lá ao fundo, no cruzamento, junto do cartaz publicitário!

A resposta era lacónica, fria, metálica.

Duranne experimentou outra vez aquele mal-estar que sentira quando ela o abordara. Todavia, tudo se passava normalmente. O encontro fora marcado na Lynarstrasse, ela viera à hora indicada, tinham subido para o táxi que ele próprio escolhera.

Este travou suavemente e imobilizou-se na borda do passeio. Ela desceu primeiro e pagou logo ao motorista. Duranne juntou-se-lhe, de maleta na mão.

Quando o táxi desapareceu ela esperou ainda um minuto e observou o terreno em redor. Tudo estava perfeitamente calmo e o bairro deserto. Nem veículos, nem peões; parecia uma rua abandonada; só raras janelas iluminadas, aqui e ali. Não havia candeeiros na rua.

—Venha!—disse ela.

Caminharam lado a lado uns 200 metros, e depois ela parou de repente diante de um prédio velho cujas janelas estavam todas mergulhadas nas trevas. Tirou uma chave da carteira e introduziu-a na fechadura da porta de carvalho que se abriu com um gemer sinistro. Entrou e fez sinal para que Duranne a seguisse. Na entrada, uma ténue claridade vinda de uma porta entreaberta, permitia à justa distinguir formas vagas de móveis.

—Venha!—disse ela outra vez.

E precedeu-o num corredor sombrio, depois desceram uma escada de cimento e penetraram num quarto ainda menos iluminado do que o primeiro.

—Espere aqui—ordenou ela.

Voltou-lhe as costas e Duranne distinguiu nitidamente a sua silhueta a desaparecer por detrás de um reposteiro que se confundia com a obscuridade. Foi nessa altura que ele compreendeu o significado do leve mal-estar que sentira desde o princípio, e que compreendeu o que não corria direito.

Na Lynstrasse, no momento de o abordar, ela não o fizera francamente; hesitara. E hesitara porque não estava bem certa de ser “ele”, o homem esperado. Porque era a primeira vez que o via, porque não fora ela que contactara com ele no autocarro...

Algo duro mergulhou bruscamente contra as suas costas enquanto o globo do tecto se iluminava, cegando-o com a sua luz crua.

Além do que lhe carregava com o cano da metralhadora nas costas e que ele não via, havia mais dois indivíduos na sua frente, segurando as respectivas pistolas na sua direcção. Um era um colosso louro vestindo canadiana de couro, o outro um tipo moreno e de bigodinho preto.

O quadro vivo durou uns 10 segundos e então Ingrid Haldem fez a sua entrada. Uma entrada à maneira de Lucrécia Bórgia, flexível, cruel, um sorriso trocista ao canto dos lábios. Duranne mal se deu conta da metamorfose da sua companheira de viagem.

—Então, sr. Blanchard—exclamou ela com uma ironia que o chicoteava—, julgo que desejava encontrar o nosso amigo Werner Klauss e que se terá enganado na direcção...

Duranne permaneceu de pedra. Ao vê-lo dir-se-ia que não sentia surpresa alguma e que já esperava aquela pequena recepção. Ingrid Haldem não gozou de um triunfo completo, e percebeu-o. Embora logrado, apanhado estupidamente na ratoeira, o homem diante dela e que a fitava intensamente, parecia ainda dominá-la. Ela notou pela primeira vez que ele era belo. A sua atitude altiva era a de um fidalgo aprisionado pelos vassalos.

Ela aparou-lhe o olhar mas acabou por desviar os olhos. E isso irritou-a.

—Que esperam para o desarmar?—disse, com voz de súbito glacial.—Que seja eu a fazê-lo?

Gerhard, o colosso louro, avançou para Duranne, enfiou a mão dentro do casaco e retirou-lhe a arma oculta. Depois arrancou-lhe a maleta que ainda segurava.

—Avance!—ordenou a sueca.

Duranne não se mexeu. Mas um forte soco nas costas obrigou-o a dar uns passos em frente. A um metro de Ingrid, continuava a olhá-la intensamente, com a expressão ligeiramente desdenhosa que lhe era familiar. Não importava em que circunstâncias; mesmo vencido, Duranne mantinha a atitude de um vencedor.

—Sente-se!—ordenou a sueca apontando-lhe uma cadeira de metal.

Duranne sentou-se lentamente, calmamente, como se se encontrasse numa sala à hora do chá. Com elegância e desenvoltura.

—Atem-no!

Gerhard guardou a pistola e aproximou-se. Tirou uma correia das profundezas da algibeira e atou-lhe solidamente os punhos aos braços da cadeira, com a certeza de quem não fizera outra coisa na vida. Rodeada de Rudy, o mexicano, e de Peter Schmutz, que continuava de metralhadora na mão, Ingrid Haldem avançou por seu turno e aproximou-se de Duranne.

—Quem é você?—lançou de repente.

Duranne fitou-a e sorriu. Mas continuou mudo.

Gerhard esbofeteou-o com uma tal força que a cabeça pareceu desprender-se-lhe do corpo. Um fio de sangue começou a correr-lhe do lábio fendido.

—Quando faço uma pergunta gosto que me respondam! —disse Ingrid.

Duranne voltou lentamente a cabeça e fitou o colosso. E teve um segundo sorriso. Mas no seu olhar havia um fulgor bizarro, indefinível. Sem querer, o poderoso Gerhard sentiu-se perturbado. Nos olhos de Duranne havia aquele fulgor inquietante de certos ciganos que predizem a morte.

Duranne tornou a voltar-se para a sueca.

—Diga aos seus homens para saírem daqui e eu respondo às suas perguntas.

—Aqui, quem dá as ordens sou eu!

—Como quiser. Nesse caso, não falo.—E acrescentou, martelando cada sílaba:—Mesmo que me torturem.

Gerhard tornou a avançar mas Ingrid Haldem interrompeu-o com um gesto. Compreendia instintivamente que aquele tipo não fazia bluff, e que era da raça dos que são capazes de morrerem lentamente sem abrirem a boca. E depois, de todas as maneiras, o tempo urgia.

—Deixem-nos sós!

Espantados, os homens saíram uns atrás dos outros, sem fazerem perguntas, tendo desde sempre o hábito de executarem ordens sem discutirem. Quando desapareceram, Ingrid Haldem deixou passar uns segundos e perguntou:

—Agora, sou toda ouvidos. Quem é você? Donde vem? A que serviço pertence ?

Duranne hesitou uma fracção de segundo, e depois arriscou o golpe, sabendo que dessa resposta dependeriam, para bem ou para mal, os acontecimentos finais.

—Não pertenço a serviço nenhum. Trabalho para mim.

—E o que é que mo prova?

—Nada. Pode acreditar-me ou não.

—Então trabalha para si? Um aventureiro? Um aventureiro que anda a passear com 150.000 dólares?

—Esses dólares são falsos. É-lhe muito fácil verificá-lo.

—Também me será muito fácil suprimi-lo! Facílimo!

- Não.

Ingrid Haldem permaneceu desconcertada por momentos, diante da surpreendente segurança daquele homem. Observou-o um momento e depois modificou radicalmente a sua maneira de ser.

Como que transformada por uma varinha de condão, foi de súbito uma mulher de encanto desbordante, sedutora, langorosa, que se dirigiu a Duranne.

—Tem muito humor, Blanchard, mas não compreendo bem o que quer dizer com isso. É-me, com efeito, muito fácil suprimi-lo. Tão fácil que basta eu tocar esta campainha para aparecerem aí os homens que o levarão para as mãos do professor. Um homem encantador, um asiático absolutamente dedicado a servir-me, e que terá imensa alegria em o enviar para o outro mundo depois de lhe ter feito uma série de meiguices muito asiáticas, em que é mestre.

Duranne deixou ver os dentes brancos e brilhantes como os de um lobo.

—Não. Não me suprime porque precisa de mim.

—Explique-se!

—Sabe muito bem o que eu quero dizer. Werner Klauss é raposa velha, que dificilmente se deixa apanhar. É capaz de lhes escapar por entre os dedos no último instante, capaz de fugir a todas as armadilhas. Ora acontece existir apenas um único indivíduo com quem ele se quer encontrar, e esse indivíduo sou eu.

—Isso é o que você diz. Creio antes que o homem que Klauss espera é um agente francês do 2.º Bureau.

—Ele pensa que eu sou esse agente, o que vem a dar na mesma.

—E tem a certeza de não o ser, na realidade ?

—Mesmo se eu o fosse, não modificaria em nada a situação. Quer queira quer não, é só através de mim que pode chegar até Klauss.

Por sua vez Ingrid Haldem teve um sorriso rasgado.

—E é, com efeito, essa a nossa intenção. É um homem muito perspicaz, Blanchard, muito manhoso, muito esperto, muito seguro de si... Que pena ser nosso adversário!

—Não sou obrigatoriamente vosso adversário.

—Esquece que liquidou um dos nossos no Kõlnhotel.

—Está muito bem informada, parabéns!

—Muito mais do que julga. Sabemos também que suprimiu Méral.

Ao pronunciar estas palavras ela fitou-o intensamente com os seus olhos azuis de aço onde havia uma expressão mista de contentamento e de ironia.

Duranne estremeceu imperceptivelmente, mas a sueca enganou-se sobre o significado. Duranne percebeu com uma satisfação, que engoliu como uma golfada de bílis, que jogara a carta certa. Ouvia da boca de Ingrid que os agentes comunistas não o tomavam por um agente especial, pois acreditavam ser ele quem tinha liquidado o director da Deutsche Woche. E ao mesmo tempo perguntava a si próprio quem o teria feito, já que não tinham sido eles.

Pairou um silêncio, durante o qual ficaram a espiar-se, como dois gatos.

—Como soube do caso do roubo dos planos do “KL-X-19”?—perguntou de repente a sueca.

—Por Méral.

—Conhecia-o?

—Já tivera ocasião de trabalhar para ele.—E acrescentou: —E contra ele, aliás.

—Agente duplo ?

—Se quiser.

—Tem o negócio bem montado! Bravo! Faz-se passar por agente especial enviado por Paris, ia ao rendez-vous de Klauss, entregava-lhe 150.000 dólares falsos, em troca dos quais ele lhe entregava os planos. Os ianques pagariam qualquer preço, para terem esses documentos. Infelizmente para eles e para você, o negócio falhou. Você menosprezou-nos. E somos nós, agora, que vamos beneficiar de todo o trabalho que você empregou no plano.

—Talvez eu não tenha perdido tudo...

Fez uma pausa e exclamou:

—Tenho uma proposta a fazer-lhe!

—Uma proposta?—interrogou Ingrid com exagerada ironia.—Decididamente é um tipo curioso, Blanchard. Noutras circunstâncias diria mesmo que era um tipo divertido. Caiu na ratoeira, está nas nossas mãos, e ainda tem uma proposta a fazer-nos?! É fantástico!

Duranne pareceu não ter ouvido. Sabia muito bem que se a bela sueca se dava ao trabalho de conversar com ele, era porque tivera a mesma ideia.

—Werner Klauss espera uma pessoa, que sou eu. Há uma mulher, sua cúmplice, encarregada de me conduzir junto dele.

—A cúmplice chama-se Gerta Rumer, e, tal como você, está nossa prisioneira.

—Sei-o muito bem! Se não eu não estaria aqui. É pois ela que tem de me conduzir junto de Klauss. E como Klauss é um tipo extremamente desconfiado, marcou-lhe encontro num café para lhe telefonar, não é assim? E daí lhe dará nova morada, talvez para um outro café, e por fim a morada definitiva onde terá lugar o encontro. É assim ou não?

—Absolutamente certo! Mas adivinha-o um pouco tarde demais, tudo exacto excepto um pequeno detalhe. Não é você quem acompanhará Gerta Riimer de um café para outro. É um dos meus homens que a acompanhará de táxi. Nós seguimos noutro carro. Chegados perto do lugar definitivo, só nessa altura, você desce do carro e vai ao rendez-vous enquanto nós cercamos a casa. Enquanto Klauss verifica se você está ou não armado, entramos nós, abatemo-lo e recuperamos os planos.

—Não recuperarão nada e não liquidarão ninguém—disse tranquilamente Duranne.

Ingrid Haldem pareceu desconcertada diante da calma e segurança do prisioneiro.

—Explique-se!—disse com voz sarcástica.

—Não recuperarão os planos e não liquidarão Klauss pela excelente razão de que, quando lá chegarem, não encontram ninguém. Porque enquanto Klauss mandar Greta passear de um café para outro, há-de procurar vê-la passar diante de si, sem ser visto, e notará que é outro o homem que a acompanha. A vossa Gerta teve todo o tempo de estudar a minha fisionomia, no autocarro, e deu-lhe com certeza uma descrição precisa da minha pessoa. Aliás, ela está nas vossas mãos, é fácil perguntarem-lhe.

A sueca franziu as sobrancelhas e uma ruga vertical vincou-lhe a fronte. Não pensara naquele detalhe ínfimo que tinha uma importância tão grande; mas ele, ele pensara-o. Ela compreendeu que ele era muito forte, talvez mais forte ainda do que ela imaginava. Vencido, nas mãos deles, arranjava ainda meio de se impor. Compreendeu que o seu interesse era pô-lo a seu lado, pois só ele seria capaz de lograr Werner Klauss. Ergueu a cabeça, e perguntou, sem o desfitar:

—Qual é a sua proposta, Blanchard?

—Eu acompanho Gerta Riimer. Um dos vossos homens conduz o táxi. Você segue atrás, noutro carro. Quando chegarmos ao local definitivo, deixam-me ir sozinho ao rendez-vous.

—E aproveita para se escapar, não ?

—Não é esse o meu interesse, e de todas as maneiras é-lhes fácil cercar a casa e cortarem todas as saídas.

—E depois?

—Eu ocupo-me pessoalmente de Klauss. Depois chamo-os.

—E que pede em troca?

—A vida e 20.000 dólares.

Ingrid Haldem teve um ricto amuado.

—É caro—disse após um silêncio.

—É este o meu preço. Nunca faço negócios pequenos.

—Esquece que está em meu poder.

—Nunca esqueço nada.

Ingrid Haldem ergueu-se e começou a passear nervosamente para lá e para cá. O tempo passava e era preciso tomar uma decisão. Percebia perfeitamente que a proposta de Duranne era a melhor maneira de agir, a mais segura maneira de adormecer a prevenção de Klauss, que devia ter previsto uma armadilha, e a maneira de fugir no último momento. Mas, ao mesmo tempo, sentia uma cólera surda por ser obrigada a aceitar o negócio. Nutria por Duranne um sentimento estranho, misto de ódio e de admiração. E no fundo subsistia certa desconfiança. Quem era ele, na verdade, e donde vinha?

Voltou-se bruscamente e fitou-o com insistência, como se quisesse penetrar o fundo do seu pensamento. Mas o rosto de Duranne era uma máscara impenetrável. Procurou o ponto sensível da sua proposta, a manha oculta que podia permitir-lhe enganá-los e escapar-lhes no último instante. Mas não encontrou nada. Era ele que arriscava tudo.

—Aceito a sua proposta, Blanchard!

—A minha vida e os 20.000 dólares?

—A sua vida e os 20.000 dólares. Mas antes queria ter realmente a certeza que você não é na verdade um agente especial.

Duranne esboçou um sorriso.

—Desconfiada, hem?

Ingrid Haldem não respondeu. Uma espécie de foco vermelho acabava de se acender na parede. Ela consultou o relógio, dirigiu-se para a porta e saiu sem se voltar para trás.

 

Duranne observou tudo em seu redor. O quarto em que se encontrava era uma cave, pequena, quadrada e de cimento. Tinha duas portas mas nenhuma janela. Continuava atado à cadeira, e quem o tinha atado não era um amador; as correias de couro feriam-lhe a carne e as mãos estavam roxas.

Apesar destes pequenos inconvenientes, Duranne teve a sensação de vir de muito longe. Tinham-no levado à parede, isso era verdade, mas ele tinha ainda uma vitória no seu activo. E, facto inesperado, não o tomavam por um agente especial, mas por um aventureiro. Sob esse aspecto as circunstâncias haviam-no favorecido. Ao contrário do que logicamente pensara, não era o bando a soldo da secção de Informações Este-Oeste que matara Méral. Perguntou a si mesmo mais uma vez quem, além deles, teria suprimido o director da Deutsche Woche. Mas a sua vitória era ter convencido Ingrid Haldem que só ele era capaz de ir ter com Werner Klauss. Isso dava-lhe uma margem de tempo, e no seu ofício não se podia desprezar a mais pequena esperança. Ingrid Haldem aceitara a combinação e era o principal. Pouco lhe importava, de momento, o desenrolar dos acontecimentos, embora sabendo que ela tomava todas as precauções para a delicada operação que ia ter lugar. Nada lhe provava, por outro lado, que em caso de êxito, a sueca respeitaria os seus compromissos e que uma vez de posse dos planos não o liquidaria como se propunha liquidar Klauss.

Duranne pôs várias hipóteses. Pareceu-lhe muito difícil, ao ir ter com Werner Klauss, avisá-lo do que se tramava, e fazer-lhe compreender em poucos instantes que os tipos de Ingrid lhe iam no encalço. Klauss era um homem perseguido, sempre de sobreaviso, e cujas reacções eram difíceis de prever. Tentar escapar-se-lhes no meio da operação sem se tornar num crivo de balas, era impossível.

A porta por onde Ingrid acabara de sair abriu-se e apareceu Gerhard, seguido de Rudy, o mexicano; este ficou junto da porta, com a mão na algibeira do casaco, enquanto o colosso se aproximava de Duranne. Gerhard pegou num canivete e cortou as correias.

—Então, parece que vamos trabalhar todos juntos?—perguntou, com ar hostil.

—Parece que sim—respondeu Duranne esfregando os pulsos. —Não gosto muito disso!—exclamou Rudy, num misto de ódio e desdém.—Não sei porquê mas a tua cara não me diz nada de bom.

—Precisas habituar-te!

—Que remédio... Mas não é para te dar prazer...

O colosso interrompeu com um gesto as vociferações do homenzinho magro.

—Se quiseres qualquer coisa, diz. Mandamos-te umas sanduíches e café.

—Não preciso de nada.

—Como quiseres. Previno-te de que partimos dentro de meia hora.

Voltou-lhe as costas e aproximando-se de Rudy fez-lhe um sinal com a cabeça. A porta fechou-se silenciosamente. Tinham consentido em libertá-lo das correias, já era qualquer coisa de ganho, mas a liberdade era relativa. Nove menos metros quadrados para distender os músculos. Duranne deu a volta à cave e inspeccionou as paredes. Além da lâmpada colada ao cimento, nada de particular lhe reteve a atenção, e se havia um microfone algures, devia estar bem dissimulado.

Voltou a sentar-se na cadeira e acendeu um cigarro. De repente notou que a outra porta estava entreaberta, quando 30 segundos mais cedo o não estava. Levantou-se de novo, aproximou-se e espreitou.

O segundo compartimento da cave, embora mal iluminado, parecia muito maior. Duranne hesitou em penetrar lá, temendo uma ratoeira. Estava mesmo a ponto de renunciar a tal quando um ruído bizarro se fez ouvir; uma espécie de tamborilar. Escutou com mais atenção. Era como um ofegar, um assobio entrecortado de silêncios e de notas agudas.

Duranne empurrou a porta e avançou uns passos para o interior desses segundo compartimento. Por todos os diferentes objectos que o guarneciam, adivinhou para que servia esse santuário. Continuou a avançar. Depois parou de súbito com um movimento de recuo.

Dentro de uma caixa envidraçada, uma vintena de ratos acabavam de devorar e roer a cabeça de um homem cujo corpo convulsionado e crispado, saía para fora da caixa, deitado no chão. O que um dia fora a cabeça, era apenas uma ferida aberta e sangrenta, uma bola vermelha, um crânio hediondo onde os animais se precipitavam para os últimos farrapos de carne. Deste horrível espectáculo soltava-se um odor de putrefacção.

Duranne quase vomitou. Tirou o lenço da algibeira e colocou-o contra a boca. Depois recuou lentamente para a saída. Mas a cave iluminou-se de súbito e o globo do tecto focou com luz crua e violenta o repugnante espectáculo. O sr. Chuen-Lee aproximou-se com o seu rosto plissado e sorridente. Apontou-lhe o cadáver da cabeça devorada, e tocou com a mão no peito para fazer compreender que aquele espectáculo era obra sua. Depois cruzou as mãos sobre o ventre e fez um cumprimento profundo.

Duranne teve de repente receio de compreender e escondeu esse receio sob uma expressão de enjoo.

—Quem é?—perguntou com uma voz que conseguiu tornar natural.

O rosto simiesco do asiático fendeu-se num sorriso de louco sádico. Enfiou a mão no bolso e puxou de uma folha de papel branco que lhe pôs diante dos olhos. E nessa folha Duranne leu, em letras maiúsculas: CB-128, AGENTE FRANCÊS.

Duranne fez um esforço sobre-humano para se não trair. E adivinhou que se o chinês estava sozinho na cave, havia atrás das paredes alguns olhos que o observavam. Compreendeu que Ingrid Haldem acabava de fazer uma experiência, que devia espiar a sua reacção, que queria ficar convencida que ele era realmente um aventureiro e não um segundo agente especial enviado por Paris.

Duranne olhou para o asiático e encontrou forças para responder ao seu sorriso. Mas só a boca sorria. Nos seus olhos, cujas pupilas se tornaram minúsculas, havia uma fúria assassina.

—Um tipo que não teve sorte -disse com desprendimento.

Depois voltou-se e saiu da cave.

—Apresento-lhe Gerta Rumer!—anunciou Ingrid Haldem com um sorriso frio.—A querida colaboradora de Klauss teve a gentileza de aceitar guiar-nos e participar na operação desta noite.

As duas mulheres acabavam de entrar no quarto; seguidas por Gerhard e de Peter Schmutz, este último vestido como motorista de táxi.

—Não preciso repetir que Gerta Riimer é uma rapariga inteligente, que compreendeu de que lado estavam os seus interesses, e que sabe ser inútil tentar enganar-nos.

A antiga protegida de Werner Klauss, a misteriosa correspondente de Méral, aquela que verdadeiramente o contactara no autocarro, mantinha-se imóvel diante de Duranne, metida na sua gabardina cinzenta. Tinha o rosto lívido, os traços vincados, e o olhar sem expressão. Não era difícil adivinhar que a tinham torturado. Duranne perguntava a si mesmo se ela se confessava definitivamente vencida ou se seria possível animá-la e fazer dela uma aliada.

Ingrid Haldem vestira um casaco comprido de couro preto, e calçara uns sapatos de salto raso, de solas de crepe. Os seus longos cabelos louros estavam esticados para trás e arranjados em carrapito na nuca. Era mais uma vez uma nova personagem, em que não aparecia nem coqueteria nem feminidade. Tornara-se numa personagem assexual, nada mais senão um chefe de grupo que partia em missão. Dirigiu-se uma última vez a Duranne:

—Torno a recordar-lhe que o seu único interesse, o único—sublinhou—é ganhar 20.000 dólares. Trate de o não esquecer!

Fez um gesto com a mão e saiu do quarto. Gerta Riimer seguiu-a logo, e depois Duranne, Peter Schmutz, e por fim o colosso. Este último tinha ambas as mãos enfiadas no interior da canadiana que formava dois altos na altura dos bolsos.

Uns atrás dos outros, subiram a escada de cimento, atravessaram um quarto pequeno, depois outro maior, e encontraram-se na rua. Duranne não reconheceu o local e compreendeu que o prédio que servia de covil à organização tinha várias saídas. Ao longo do passeio estacionavam dois carros. O primeiro era um táxi preto, o segundo um “Porsch” cinzento-pérola.

Peter Schmutz instalou-se ao volante do táxi, e Ingrid Haldem fez sinal a Duranne e a Gerta Rumer para subirem.-Depois de instalado no seu lugar, Duranne viu pelo retrovisor que ela se instalava ao volante do “Porsche” e que Gerhard, após sentar-se a seu lado, mantinha em posição de tiro uma pequena metralhadora.

Os faróis varreram o asfalto da rua e logo passaram para médios. O motor roncou, houve uns estremeções, e o táxi partiu. Chegados ao fim da rua, Duranne voltou-se ligeiramente e olhou para trás. O “Porsche” seguia-os a 20 metros de distância.

 

Uma neblina espessa caíra sobre a cidade, velando como um tule a iluminação crua dos revérberos e dos anúncios de néon. Apesar da hora avançada, uma grande animação reinava ainda sobre o Kurfuersíendamm. Os carros rodavam, cruzavam-se, e ultrapassavam-se, enquanto numerosos peões embrulhados nas suas gabardinas se apressavam pelos passeios. Diante da grande entrada do “Schillerkaffee”, uns fregueses saíam, outros despachavam-se em entrar para aí beberem uma última cerveja.

Havia mais de meia hora que o homem ali estava, escondido no umbral de um portão, e não tirava os olhos da entrada do estabelecimento. Teve de súbito um leve estremecimento quando viu um táxi negro que acabava de parar na borda do passeio. Um homem e uma mulher desceram dele, subiram os poucos degraus e entraram no café. Através das largas vidraças, o homem viu-os aproximarem-se do bar. Ele ficou perfeitamente imóvel. Depois passou a ignorá-los completamente e concentrou toda a sua atenção na calçada.

Ao cabo de 5 minutos, quando ficou seguro que nenhum carro suspeito parara nas proximidades, saiu da sombra, atravessou o boulevard com passo rápido, e entrou na cabina telefónica do passeio em frente. Através dos vidros continuava a vislumbrar, de pé junto do bar, o homem e a mulher que haviam saído do táxi. Pegou no auscultador com mão febril e marcou um número. Segundos depois houve um ruído no aparelho e uma voz ressoou-lhe ao ouvido.

Hallo Schilerkaffee! Was Wunschen Sie ? (1)

—Não se importa de chamar Fraulein Use ao telefone?

—Ein moment, bitte (2).

Passaram-se uns segundos durante os quais viu o rapaz entrar na sala. Depois viu a mulher afastar-se do seu companheiro, e desaparecer.

—Fala Fraulein Use!—murmurou uma voz de mulher.

—São 23 horas e 37 minutos! E eu tinha dito 23 horas e 15!

—Tivemos de nos atrasar... Não encontrávamos táxi...

—Nada mais a assinalar?

—Mais nada.

—E o dinheiro?

—Verifiquei. Está certo.

—E passou na casa de câmbio, como lhe ordenei?

—Passei e mandei analisar algumas notas.

O homem interrompeu bruscamente o diálogo e observou com atenção na direcção do café.

—Quem é aquele tipo no bar, ao vosso lado?

—Ninguém, um bêbado qualquer.

—Tem a certeza?

—Tenho. Que ordens me dá?

—Vão abandonar o táxi que vos trouxe, e dirigirem-se a pé para a Leibnizstrasse. É a terceira rua a 5 minutos daqui, tomando a direcção do Zoogarten. Pelas alturas do nº 26 encontrarão um “Opel” cinzento. Entram, a chave de contacto está presa ao volante. Dirigem-se para a Levetzows-trasse no Altmoabit, ao nº 17. É aí que estarei. Ele sobe sozinho, e desarmado. Você fica lá fora e vigia a rua. Eis tudo. Faço votos para que não cometam nenhum erro. Pois o mínimo erro custa-lhes a vida, não o esqueçam!

Desligou e transferiu de novo toda a sua atenção para a sala do café. Viu a mulher com quem acabava de falar

 

(1)—Daqui Café Sbilher. Que deseja?

(2)—Um momento, por favor.

 

aproximar-se do companheiro. Viu este pagar as bebidas, depois empurrar o ébrio a seu lado e por fim viu o casal sair do “Schillercaffee” e descer o boulevard.

Quando o casal se afastou o suficiente, e viu que o homem o tinha perdido de vista, permaneceu ainda uns minutos na cabina telefónica a vigiar em torno de si. Notou que o ébrio saía por sua vez, titubeando. Viu-o dar uns passos no passeio e aproximar-se do táxi que trouxera o casal. Depois viu-o parlamentar com o motorista e agitar-lhe umas notas debaixo do nariz. Viu o motorista empurrá-lo, e adivinhou uma discussão entre eles; visivelmente o motorista recusava-se a levar o ébrio. Finalmente, sentou-se ao volante e partiu vazio, para ficar descansado. O bêbado injuriou-o com grandes gestos, e acabou por se afastar pelo boulevard aos tropeções.

Continuando dissimulado na cabina de vidro, o homem não prestava atenção ao que se passava à entrada do “Schillercaffee”. O que o interessava eram os automóveis. Mas nenhum veículo destravara suavemente quando o casal se afastara.

Duranne soubera desde o princípio que o caso seria duro de roer. Esperara ainda ser-lhe oferecida uma ocasião de escapar, enquanto passava de um café para outro em companhia da alemã. Acalentava também a esperança de que uma malha da rede em que estava preso se rompesse e lhe permitisse fugir. Mas nada, nem a mais pequena oportunidade se lhe deparara.

E tal como ele, agora, os agentes comunistas conheciam a morada definitiva onde devia ter lugar o encontro, o lugar escolhido por Klauss, onde este último o esperava para meter à algibeira os 150.000 dólares e lhe entregar os planos.

Ingrid Haldem tomara todas as suas precauções. Previra mesmo o que é costume chamar-se de imprevistos. Antes de dar a Gerta Riimer a morada definitiva onde devia ter lugar o encontro, Klauss dera-lhe ordem de abandonar o táxi e de tomar outro carro que os esperava numa rua adiante. Aquele hábil precaução acabava com qualquer tentativa de perseguição, pois nenhum carro, nem o táxi, nem o “Porsche”, se podia permitir segui-los a distância sem chamar a atenção. Mas Ingrid Haldem tinha vencido a manha com uma manha maior, enviando à frente Rudy brincar aos ébrios, no bar “Schillercaffee”. Desse modo, não só Du-ranne não podia tentar fosse o que fosse para lhes fugir, como Gerta Riimer se vira obrigada a comunicar as ordens de Klauss ao pequeno matador de bigodinho.

Caminhavam lado a lado, sem dizer palavra. Era a primeira vez que Duranne podia falar livremente e sem testemunhas com a enviada de Klauss. Perguntava a si mesmo se na verdade ela se tinha passado para os agentes comunistas ou se estaria pronta a pôr-se ao seu lado na altura em que ele tentasse algo. Aquela rapariga estava longe de ser idiota, e devia ter amor à vida. Todas as pessoas gostavam de viver. Mesmo Duranne. Compreendeu ser absolutamente necessário fazer dela uma aliada.

— Que pensa da situação?—perguntou ele sem abrandar o passo.

Ela nem sequer voltou a cabeça para ele, e o lábio torceu-se num sorriso amargo que nem era sorriso. Apenas uma expressão de cansaço.

—O que eu penso não tem importância.

—Ouça com atenção! Eles torturaram-na, eu sei. E você falou. Acabam sempre por dizer tudo. Seja quem for! Em troca de Klauss eles prometeram poupar-lhe a vida, não foi?

—Estou contente por saber que ele vai rebentar!—disse Gerta com a voz carregada de ódio.

Sim, vai rebentar. Depois será a minha vez, e depois a sua. Esta gente não tem misericórdia, bem sabe. Quando os tivermos levado até Klauss, e que eles o apanhem, liquidam-nos a nós.

—Bem sei! Mas não podemos fazer outra coisa. Olhe para trás! O mexicano está na nossa peugada desde que deixámos o café. Não há nada a fazer, nada a tentar. Somos verdadeiros ratos numa ratoeira. Só podemos é continuar a executar ordens para ganhar um pouco de tempo. Para prolongar esta porca de vida de alguns minutos. Só há uma coisa que me consola, é saber que apanham o Klauss! Gostaria que começassem por ele! Que antes de eu deixar de respirar, o visse a ele rebentar!

—Há talvez uma maneira de nos livrarmos disto...— começou suavemente Duranne.

Ela parou quase e voltou-se para ele.

—Ande, meu Deus! Não pare!...

—Que quer dizer?

—Nada! Mas se eu lhe disser para fazer qualquer coisa, faça-o sem hesitar!

Rudy juntou-se-lhes na própria altura em que chegavam junto do “Opel” azul estacionado em frente do nº 26; mas ultrapassou-os sem parar, e deu-lhes ordem para esperarem que tivesse atingido a primeira rua à sua direita, uns 50 metros adiante, para se porem em marcha. Este também conhecia bem o ofício. Werner Klauss podia muito bem encontrar-se na rua, escondido atrás de uma janela para controlar se o casal estava na realidade sozinho.

Duranne esperou que o homenzinho desaparecesse, e pôs o carro em marcha. Tivera uma ideia, mas logo a repelira: era aproveitar aqueles segundos para fazer uma marcha-atrás e fugir. Mas isso não fazia sentido, nem Gerta Rúmer nem ele tinham uma pistola e o “Porsche” em que Gerhard tomara lugar, armado com uma espingarda metralhadora e provavelmente granadas de mão, devia estacionar na rua vizinha. Gerta Riimer tivera a mesma ideia que ele, mas tal como ele compreendeu a inutilidade de uma tal tentativa. Com efeito, na altura em que atingiam o cruzamento, o “Porsche” passou-lhes suavemente à frente.

Instantes mais tarde, olhando pelo retrovisor, Duranne constatou que o táxi negro que tomara como freguês o mexicano, rodava a 20 metros de distância. Tudo se passava tal como Ingrid Haldem desejava, e até aí sem obstáculos. Werner Klauss decidira-se enfim a dar a morada definitiva do local escolhido para o encontro, e Duranne, semelhante à cabra que serve de isca aos caçadores, ia afrontar o tigre.

Enquanto ele manobrava o volante do “Opel” com mão hábil, Gerta Rimer mergulhara de novo num mutismo feroz, de rosto hermético, e olhar fixo. Observando-a julgar-se-ia que, efectivamente, tudo lhe era igual, que renunciara a toda e qualquer tentativa de salvar a vida, e que aceitava o trágico fim que a esperava. Mas Duranne conhecia suficientemente os entes daquela espécie para saber que, apesar das aparências, ela estava pronta a executar as suas ordens. Gerta não teve o mais pequeno estremecimento quando ele começou a falar:

—A única oportunidade de escaparmos é a de neutralizarmos Klauss e de lhe tirarmos a arma. Quando eu entrar no prédio, você espera três minutos, e entra por sua vez. Fica atrás da porta e quando eu tossir entra bruscamente. O resto é comigo.

—Mesmo que isso desse resultado—disse Gerta com voz monocórdica—o que poderá você fazer com uma pistola contra uma espingarda-metralhadora e granadas...

—Posso tentar mantê-los em respeito durante uns minutos.

E depois as granadas fazem muito barulho... O bairro é populoso e podem aparecer polícias...

—Eles dão cabo de nós como se fôssemos coelhos, antes de qualquer polícia aparecer...

—É uma chance minúscula, concordo, mas sempre é uma.

De olhos fixos na chegada do “Porsche” que continuava a rodar diante deles, voltaram ambos ao silêncio. Depois, ao cabo de instantes, Gerta Rumer disse com voz estranha:

—Como os planos lhe interessam!...

Duranne não respondeu. As luzes vermelhas das traseiras do “Porsche” acabavam de se acender e o potente carro começou a abrandar para em breve parar junto do passeio da Stromstrasse, ao longo do rio. Duranne carregou no travão e por seu turno veio arrumar o carro atrás do “Porsche”.

Ingrid Haldem desceu e dirigiu-se para o “Opel”, enquanto o táxi continuava o caminho e os ultrapassava. Dirigiu-se a Duranne, imóvel ao volante.

—Chegámos. A Levetzowstrasse é a ruazinha que desce para, a direita por cima do rio. Rudy foi estudar o terreno.

A voz dela era calma, natural, desprovida de qualquer emoção. A sueca parecia tão distendida como se se preparasse para entrar num suprise-party.

Começaram a espera em silêncio, Duranne e Gerta Rumer sentados à frente, no “Opel”, a sueca de pé, no passeio, fumando o seu tabaco inglês. Alguns carros passavam de vez em quando e uns raros traseuntes atrasados caminhavam apressados pelos passeios. Ao fim de 5 minutos Rudy apareceu, emergindo da neblina e indo ao encontro da sueca.

— O nº 17 fica logo ao voltar da esquina. É um prédio velho, de três andares, apertado entre dois prédios enormes. O local é mal iluminado e nem um gato se vê na rua. Peter parou o carro ao canto do quarteirão do lado de lá.

—Óptimo. Cortamos-lhe qualquer tentativa de fuga por este lado. E pelos telhados ?

—Do lado de trás, a casa dá para um pátio fechado com muros sem janelas. É impossível fugir por aí.

Ingrid Haldem esboçou um sorriso. Desta vez tinha a vitória assegurada. Voltou-se para Duranne:

—Klauss deve estar impaciente, Blanchard. É melhor não o fazer esperar. Não tenho mais nada a dizer-lhe. Mas não esqueça—disse dirigindo-se também a Gerta—que a vossa única oportunidade é executar estritamente o que ficou combinado.

—E quem me prova que manterá a palavra e me entregará os 20.000 dólares?

Houve um breve fulgor nos olhos da sueca.

—Nada! É a minha palavra contra a sua. Quanto aos 20.000 dólares, depende da maneira como nos vai entregar Klauss. Faço votos para que seja o mais silenciosamente possível. Encontramo-nos num bairro populoso e as detonações atraem sempre uma multidão de curiosos. Será preferível evitá-lo.

Duranne fez uma tentativa, mas sem fé.

—Precisava de uma arma.

—É perfeitamente inútil.

—Não tem confiança em mim?

—Não a tenho de um modo absoluto.

—Mas se me apresento sem arma, Klauss liquida-me.

—Tente dissuadi-lo. Nós exigimos muito dos que aceitam trabalhar para nós. Se tiver êxito, depois poderemos talvez ter confiança.

—Bem. Lá vou eu.

Saiu do carro e Gerta Riimer fez o mesmo. A alemã estava pálida como uma morta e custava-lhe dominar o tremor nervoso que a tomara.

—Mas esforcem-se por não virem imediatamente na nossa peugada, que Klauss podia dar por tal.

—Não se amofine com isso—respondeu Ingrid Haldem.

 

Atrás de Gerta Rumer, com a maleta na mão, Duranne meteu pela rua estreita que descia aos zigue-zagues. Só de um lado se viam janelas ainda iluminadas, aqui e ali. O outro lado estava mergulhado em trevas.

Ao atingir a porta entreaberta por cima da qual se distinguia, meio apagado, o nº 17, Duranne deitou um olhar furtivo para trás. Os seus olhos habituados à escuridão distinguiram o “Porsche” que acabava de parar, de faróis apagados, a uns 50 metros. Voltou-se então para a alemã.

—Não se esqueça!—disse com voz autoritária.—Quando eu tossir. É a nossa última chance.

Hesitou uma fracção de segundo, e depois enfiou resolutamente no corredor sombrio. Começou a subir uma escada velha que subia em caracol. Chegado ao patamar, hesitou de novo, sem saber se devia continuar a subir, pois Klauss não indicara o andar. Nesse preciso instante entreabriu-se uma porta na sua frente. Duranne compreendeu ser ali, e entrou. Mal dera uns passos no quarto quando ouviu a porta fechar-se atrás de si.

—Não se mexa!—disse uma voz rouca.

Duranne imobilizou-se.

—Deixe cair a mala e ponha as mãos atrás da nuca.

Duranne obedeceu sem dizer palavra. Sentiu um objecto duro carregar-lhe as costelas e uma mão apalpou-lhe o casaco. Depois, bruscamente, o quarto iluminou-se e Wer-ner Klauss apareceu-lhe, segurando um “Smith & Weston”. O homem parecia-se como duas gotas de água com a fotografia que lhe mostrara o “Petit Monsieur”. Os olhos cruéis, o nariz abatatado, o maxilar fugidio, a boca de lábios demasiado finos, o pescoço largo, a cabeleira ruiva, tudo contribuía para definir a ignóbil personagem.

Assim que olhou para ele Duranne percebeu que o antigo carrasco da Gestapo se encontrava num estado de excessiva agitação. Embora tivesse dominado até ali o jogo, e com grande habilidade, sentia-se nele o homem perseguido, que já não aguentava esperar mais, e que necessitava concluir rapidamente o negócio. Nos seus olhos pálidos havia um fulgor de inquietação, e na sua mão fechada o revólver tremia. Mantinha-se a três metros de Duranne, de pés atrás.

—Tem os dólares?—perguntou, mordendo o lábio.

—Na mala. 150.000 dólares.

Klauss respirou várias vezes seguidas, ofegante, como alguém que correu muito. Esforçou-se por dominar a sua emoção, e sem desfitar Duranne, ordenou:

—Coloque a maleta em cima da mesa!

Duranne baixou-se, pegou na maleta e pousou-a em cima da mesa.

—Abra-a!

—Gostava de ver os planos primeiro—disse Duranne sem pestanejar.

Werner Klauss deixou ver uns dentes amarelados e pontiagudos.

—Quem manda sou eu!—disse com dureza.—Abra a mala!

Duranne abriu a mala.

—Recue!—ordenou Klauss.

Esperou que Duranne se afastasse da mesa para se aproximar. Apalpou os maços de notas e tirou-as da maleta.

Pôs-se a contá-los cuidadosamente e essa verificação levou-lhe bem dois ou três minutos. Quando acabou, tornou a colocar as notas na mala e fechou-a.

—Como vê, está certo. Onde estão os planos ?—perguntou Duranne.

—Já vai vê-los. Achará o que lhe interessa na gaveta da cómoda que se encontra no quarto ao lado. E terá muito tempo de tomar posse deles, porque vou lá fechá-lo.

Duranne mal prestou atenção às palavras que Klauss acabava de pronunciar. Os seus olhos não desfitavam o revólver apontado para si. Havia já 5 minutos que entrara na casa. Gerta Rumer devia encontrar-se atrás da porta, e na rua Ingrid Haldem e o bando deviam começar a impacientar-se.

—Você não é correcto, Klauss—disse com voz despreocupada.—Eu entreguei-lhe os 150.000 dólares. Estava combinado que em troca me daria os planos. Não vejo a necessidade de me fechar nesse quarto. Que receia ? Eu não estou armado, que diabo!

Klauss teve um grunhido de ironia, como resposta. Com Duranne sempre na direcção do revólver, acabava de meter a maleta numa mala de couro que fechou à chave. Recuou uns passos, e abriu a porta que comunicava com o outro quarto.

—Entre para aí! Já disse que os planos estavam na gaveta da cómoda!

—Há-de pagar-me isto um dia, Klauss!

Com passo distendido, Duranne avançou na direcção que lhe indicava Klauss, e tossiu.

A porta abriu-se de repente. Klauss deu uma brusca volta sobre si, e disparou sem apontar, enquanto Duranne se lhe atirava às pernas. Klauss perdeu o equilíbrio e caiu. O revólver soltou-se-lhe da mão e deslizou pelo soalho. Mas com um reflexo surpreendente, o antigo nazi voltou-se e atirou um coice com a força e prontidão de uma mula. O pontapé atingiu Duranne na cabeça. Tonto, largou a presa enquanto Klauss se atirava em frente para apanhar o revólver. Mas como um gato que não chega a apanhar o rato, a mão grossa fechou-se-lhe no ar. Gerta Rumer, apoiada contra a porta acabava de empurrar o revólver com o pé, atirando-o na direcção de Duranne. Klauss ergueu-se como um louco, os olhos injectados de sangue; enfiou a mão na gabardina e apareceu segurando uma navalha.

Duranne disparou três vezes.

Klauss abriu desmedidamente os olhos, e uma espécie de espanto desenhou-se-lhe no rosto. A navalha caiu-lhe da mão, deu um passo em frente e de repente tombou também, soltando uma golfada de sangue.

—Apanhe o revólver, depressa!—gritou Duranne pondo-se de pé.

Gerta Rumer não respondeu, e ficou de pé, apoiada contra a porta, lívida, de olhos fixos.

—Mas porque espera, santo nome!—rugiu Duranne.— Afaste-se dessa porta!...

Pegou-lhe no braço com violência. Gerta Rumer não chegou a dar um passo. Deslizou ao longo da porta e tombou no chão. Mesmo sobre o seio, avolumava-se uma mancha vermelha no tecido da gabardina.

Duranne ficou sem reacção durante um segundo. Depois ajoelhou-se rapidamente e levantou as pálpebras da alemã. Não podia ter dúvidas, o antigo carrasco nazi acertara na sua cúmplice antes dele próprio perder a vida.

Duranne ergueu-se com presteza e precipitou-se para a janela. Através das persianas teve tempo de ver os homens de Ingrid Haldem que se aproximavam a correr.

Estava perdido. Perdido! Era tarde demais para tentar fugir-lhes. A sua única oportunidade era sair da casa com a arma e entrar num prédio vizinho.

Apanhou rapidamente a navalha de Klauss. Era uma navalha sueca, de mola, com uma lâmina de 18 centímetros de comprido. Dobrou-a e escondeu-a na peúga. Depois, segurando sempre o revólver, passou rapidamente ao outro quarto.

A porta escancarou-se e surgiu a silhueta de Gerhard. O colosso continuava com a metralhadora debaixo do braço. Ficou estupefacto e estacou, incapaz de pronunciar palavra. Depois foi Ingrid Haldem que apareceu por sua vez, seguida de Rudy. Também ela não soube esconder um movimento de surpresa, à vista de Duranne, que, sentado num maple, fumava tranquilamente um cigarro. Sobre a mesa, ao lado, repousava o revólver de Klauss.

Ela encarou Duranne e logo se conteve, perguntando apenas:

—É isto que chama agir silenciosamente?

—Você devia ter previsto que Gerta Riimer era capaz de tudo para salvar o seu protector—respondeu Duranne sem perder a calma.

—Que se passou, então?

—Só isto: ela subiu para o avisar que ia ser traído. Bela peça, a vossa recém-aliada. Por um triz não ia eu também parar aos anjinhos. Felizmente os meus reflexos ainda são rápidos, e infelizmente para Klauss e para a protegida dele, cometeu a imprudência de me ceder o “Smith & Weston”, uma arma que pode ser mortal.

Luziu um fulgor nos olhos de Ingrid, que podia ser tomado como admiração. Mas foi imperceptível, e ela esforçou-se por não o deixar transparecer.

—Onde estão os planos?

Duranne estendeu o braço e pegou numa senha posta sobre a mesa.

—Aqui estão eles!

—O queé isso?

—Uma senha de depósito. Klauss previra tudo. E era extremamente desconfiado, demasiado desconfiado para ter consigo os planos do “KL-X-19”. Pô-los no depósito da Estação Central de Charloíenburg.

Rudy, que se eclipsara, surgiu num pé de vento.

—Precisamos fugir daqui. Na rua começa a levantar-se certa agitação. O tiroteio acordou toda a gente.

Ingrid Haldem guardou a senha na algibeira.

—Vamos! Não vale a pena esperarmos pela chegada da polícia.

Duranne ergueu-se e seguiu-os. Com grande naturalidade, estendeu a mão para o revólver sobre a mesa. Mas, mais rápido do que ele, a manápula de Gerhard pousou-se sobre a revólver.

—Ainda não há confiança?—perguntou Duranne com um sorriso divertido.

—Há-de ver-se isso mais tarde...—grunhiu o colosso guardando a arma.

Atravessaram o primeiro quarto e alçaram as pernas por cima dos dois corpos inanimados sem lhes oferecerem um olhar; depois desceram as escadas a correr e chegaram à rua. Numerosas janelas estavam agora iluminadas de ambos os lados da rua, e no passeio aglomeravam-se curiosos.

O grupo subiu rapidamente até ao ponto em que o “Porsche” estava estacionado. Peter Schmuíz abandonara o seu táxi e instalara-se ao volante. Assim que todos se enfiaram no carro, este partiu a toda a velocidade, sem abrandar numa curva perigosa, sob o nariz dos basbaques. Cinco minutos mais tarde, era apenas um automóvel semelhante a muitos outros, que rodava nas ruas de Brelim.

—Para onde vamos?—perguntou Peter ao cabo de uns momentos.

—Para casa.

Gerhard imobilizou-se.

—Não vamos directos à estação?

—O guichet dos depósitos está fechado à noite!—disse Ingrid de mau modo.—Temos de esperar até amanhã.

O silêncio tornou a cair, e mais ninguém trocou palavra. Ouvia-se só o ruído do motor, entrecortado de vez em quando pelo grito estridente de um carro que os cruzava em sentido inverso.

E enquanto o “Porsche” atravessava a noite, levando o bando a Altlubastrasse, Louvier, o mais animado da casa, que fazia sempre rir os outros, sempre com uma graça nos lábios, Louvier, que, apesar da profissão que escolhera, amava tanto a vida...

Depois Duranne desviou o curso dos seus pensamentos para um plano mais concreto. Perguntou a si mesmo de que seria feito o dia seguinte. Gostaria de saber as verdadeiras intenções da bela sueca e dos homens do bando. Nada mudara. Continuava entre as mãos deles. Nada mudara... menos um pequeno detalhe... Dois pequenos detalhes, aliás. O bando ainda não recuperara os planos do “KL-X-19”. E, dentro da peúga, encontrava-se uma navalha de mola. Arma que podia ser terrível...

 

Deitado no divã, Duranne estendeu o braço e pegou num maço de cigarros. A lâmpada vermelha iluminava tènuemente o quarto, dando um relevo bizarro aos objectos que o mobilavam. Em frente dele, sobre um divã igual ao seu, Rudy permanecia imóvel. Mas Duranne sabia perfeitamente que o outro não dormia, e que, encarregado de o vigiar, não fechara os olhos toda a noite.

Duranne pensou que horas seriam; esquecera-se de dar corda ao relógio, e não tendo o quarto nenhuma janela, ele não podia distinguir a mínima claridade vinda do exterior, que lhe daria uma ideia aproximada. Dormira durante muito tempo, parecia-lhe, mas não saberia dizer quanto.

Ao acender o primeiro cigarro, sabia que o dia que começava seria decisivo e que precisava de todas as suas faculdades, de toda a sua inteligência para realizar com êxito o audacioso projecto que elaborara, e que o mais pequeno erro, lhe seria fatal.

Aspirou duas ou três baforadas de fumo, ergueu o corpo e sentou-se no divã. Rudy mexeu-se e Duranne distinguiu nitidamente os olhos dele que reluziam na meia penumbra.

Duranne pôs os pés no chão.

—Aonde vais?—perguntou Rudy.

—Olha! Julguei que dormias. Que horas são?

—São horas de dormir!

—Não tenho sono.

Duranne deu uns passos e espreguiçou-se. Rudy apoiou o dedo num botão eléctrico que alimentava o globo do tecto e levantou-se.

—Tenho vontade de dar uma volta para desentorpecer as pernas!—disse Duranne.

—É impossível, não podes sair.

—Porquê?

—São ordens.

—Ah, percebo, reina aqui a confiança mais absoluta.

—Não discutas, que não te serve para nada. Aqui as ordens executam-se e não se discutem.

Duranne notou que ele tinha a mão sobre a coronha da pistola pendurada no cinto. Fingiu não entender o ar agressivo do mexicano, e voltou a estender-se sobre o divã. Ao cabo de uns minutos, Rudy imitou-o, mas deixou acesa a luz do tecto.

—Espero que não me deixem neste buraco durante todo o dia!—disse Duranne ao cabo de momentos.

—Ficarás nele até o chefe dar ordem para que saias.

—O chefe? Qual chefe?

—Ingrid Haldem. Ainda não tinhas percebido que era ela o chefe, não?

—Ah, está bem, julguei que te referias ao outro, ao chefe dela.

Rudy ergueu meio corpo:

—Quem te falou nisso? Que sabes tu?

—Nada. Absolutamente nada. Mas suponho que há um chefe acima dela, que lhe dá ordens. É tudo.

—Não te preocupes com isso. E depois, se sempre queres trabalhar connosco, como disseste ontem à noite, vou-te dar um conselho: aqui mais vale não se ser curioso, compreendeste? Pode ser perigoso.

—Compreendi. Obrigado pelo conselho. De resto, os chefes não me interessam para nada. A mim só me interessa uma coisa: a “massinha”.

—Eras capaz de vender a mãe, pela “massinha”, hem?— lançou de repente Rudy, que parecia mais disposto a conversar.

— Com toda a certeza.

—E a nós também, se tivesses ocasião para isso, não é verdade?

—Ainda não tinha pensado em tal, mas tomo nota da ideia.

Rudy teve um sorriso aberto.

—Mas por isso, fazias mal se te precipitasses a festejá-lo.

—Foi uma simples sugestão da tua parte. Em todo o caso, meto ao bolso 20.000 dólares. Sempre é melhor que nada. Sabes quando poderei eu apanhá-los?

—Não sei. Nem sei se os apanharás algum dia. Em todo o caso, nunca antes do chefe entrar de posse dos planos, —Mas sempre será um lindo massinho de 20.000 dólares...—disse Duranne com voz sonhadora.

Deitado no divã, com os olhos semicerrados, não parava de observar Rudy. O homenzinho tinha o olhar brilhante e Buranne teve a impressão que havia como que um certo ciúme ou inveja nesse olhar. Pensou que acertara e que, se queria saber mais coisas sobre ele, matador profissional a soldo de agentes de informações alemães do Leste, era por aí que devia começar. Ficou uns momentos silencioso e depois disse:

—E tu, Rudy, não serias capaz de venderes a tua mãe por 20.000 dólares?

Rudy cuspiu para o chão.

—Essa... até por 10 marcos.

Anichou-se melhor no divã e continuou com certo rancor:

—Quanto aos teus 20.000 dólares, não tos dão pelos teus bonitos olhos, podes ter a certeza. Mas não te liquidaram porque precisam de tipos como tu.

—Mas foi isso mesmo que eu compreendi—respondeu Duranne com um sorriso.

A conversa foi bruscamente interrompida pelo ranger da chave na fechadura. A porta abriu-se e Gerhard entrou acompanhado pelo chinês. Este último trazia um tabuleiro com uma caneca de café e fatias de pão com manteiga, que pousou numa mesa baixa junto do divã de Duranne. Depois retirou-se.

—Então, dormiu bem?—perguntou o gigante com uma careta em direcção a Duranne.

— Optimamente. Porém, não sei porquê, tenho a impressão que Rudy não pregou olho em toda a noite.

Gerhard perdeu o sorriso ao dirigir-se ao mexicano, que alisava o fato com visível mau-humor.

—Podes ir. Venho render-te.

Quando Rudy saiu, Duranne sentou-se na beira do divã e atacou as fatias de pão e a caneca. Pôs-se a comer em silêncio sob o olhar do novo guardião, sem lhe ligar. Sabia que, por este último, não havia hipótese de saber fosse o que fosse, e que apesar do seu ar de colosso de feira era o braço direito da sueca, e não um simples malfeitor como Peter Schmutz ou Rudy; era, sim, um agente permanente de informações para a Alemanha Oriental, que recebera formação especial nos campos russos de espionagem.

—Quando vejo eu o chefe?—perguntou Duranne de súbito, com grande naturalidade.

—Qual chefe?

—O chefe! Ingrid Haldem. Não há outro, que eu saiba.

—Para que queres tu vê-lo?

—Para ver se recebo a minha “massa”, que diabo!

— —Vê-lo-ás quando voltar da estação. Só então terás—talvez...—a tua massa. Se ela tiver conseguido os planos.

—Ela já foi?

—Neste instante.

Duranne pousou a caneca de café e fitou Gerhard. Compreendeu que não havia nem um minuto a perder e que era nesse momento que devia agir.

O latagão estava defronte dele, calmo, seguro de si. Tal como Rudy, trazia no cinto, ao alcance da mão, uma pistola.

A animação matinal que reinava no hall da estação parecia perfeitamente normal. Quando Peter Schumtz ficou disso convencido, decidiu voltar atrás. Parou junto da grande entrada e aproximou-se do quiosque dos jornais. Estendeu uma moeda à empregada, pegou num diário da manhã, e abriu o jornal que começou a percorrer com o olhar. Era esse o sinal combinado.

Enterrada no assento do táxi estacionado no largo, Ingrid Haldem saltou do carro e dirigiu-se muito naturalmente para a entrada; parou a alguns passos de Peter, fingindo ignorá-lo, tirou da carteira o bâton, e passou-o nos lábios. Peter, mergulhado na leitura do jornal, murmurou-lhe sem erguer os olhos:

—Nada a assinalar. O depósito das bagagens fica ao fundo do hall, à direita.

Ingrid fechou a carteira e atravessou o hall misturando-se na multidão. Quando a percebeu, já afastada, Peter Schmutz dobrou o jornal, e seguiu-a discretamente.

Ao chegar junto do guichet, Ingrid tomou lugar por detrás da fila dos viajantes. Tornou a abrir a carteira e tirou o boletim branco que Duranne lhe entregara. Quando ela o estendeu ao empregado, este deitou-lhe um olhar rápido e desapareceu do lado de lá das prateleiras.

Ingrid Haldem esforçou-se por dominar os nervos que sentia exacerbados: o coração batia-lhe desordenadamente e as fontes latejavam. Julgou por momentos que o empregado estava a telefonar para a polícia. Mas este já se aproximava com uma mala negra de pele, pousando-a no balcão; arrancou-lhe a etiqueta e empurrou-a para Ingrid.

Enquanto atravessava o hall esforçando-se por caminhar sem se apressar, sabendo perfeitamente que a precipitação a fazia perder o domínio de si mesmo, tinha a impressão de nunca mais chegar à saída e de que alguém se ia precipitar sobre ela arrancando-lhe a maleta. Mas conseguiu atingir o passeio sem obstáculos, e entrou para o táxi onde Peter já tinha tomado lugar.

—A caminho!—ordenou, com voz ligeiramente trémula.

O táxi começou a andar, deu a volta ao largo e entrou pela Heerstrasse. Quando teve a certeza de que tudo se passara sem incidentes e que nenhum carro os seguia, decidiu-se a abrir a mala.

Com intensa emoção pegou num molho de chaves e procurou abar a fechadura. Ao fim de algumas tentativas o fecho cedeu. Então,' com um nervosismo que já não procurava ocultar, começou a tirar camisas de homem, um par de sapatos, gravatas e diversas peças de roupa interior. Deitou tudo de qualquer maneira para o banco, impaciente por descobrir os planos que Klauss escondera no fundo da mala. Empalideceu de súbito, cheia de estupefacção. Na mala não havia planos nenhuns. Unicamente vestuário de homem. Nem o mínimo papel.

—O pulha!—exclamava rangendo os dentes, entregue a uma fúria doida.—O pulha! Levou-nos a todos!

—E que é que se faz agora ?—perguntou Peter timidamente.

Ingrid Haldem parecia não ter ouvido a pergunta. Estava aterrada e aquela descoberta parecia tê-la privado de acção. De olhos fitos na mala, só sabia repetir: “O pulha! O pulha!”

Depois ergueu impetuosamente o tronco, de olhos espantados.

—Preciso avisar o chefe imediatamente.

Com a maleta na mão, Ingrid Haldem atravessou o hall de mármore cor-de-rosa e dirigiu-se ao elevador. O prédio em que acabava de entrar era um prédio ultramoderno e luxuoso no bairro de Friednau. Sobre a espessa alcatifa que cobria os azulejos pretos e brancos, não se via um grão de poeira.

A porta automática do elevador fechou-se silenciosamente atrás dela e tornou a abrir-se no terceiro andar. Ingrid deu uns passos em direcção a uma larga porta guarnecida de pele cinzenta onde se via uma placa com esta inscrição: Doktor Hermann Krieg.

Ingrid Haldem apoiou um dedo nervoso na campainha. Segundos mais tarde uma rapariga de baía branca apareceu.

—Queria falar com o dr. Krieg. É urgente.

—Tem hora marcada?

—Não, mas se lhe entregar isto, ele recebe-me.

E estendeu-lhe uma folha de papel onde escrevera um nome. A rapariga deitou-lhe um olhar, fez-lhe sinal para entrar e mandou-a esperar na sala de espera.

Ingrid ficou de pé e passou os olhos pelas pessoas que esperavam a sua vez. Havia três mulheres da alta sociedade berlinense, instaladas em maples, lendo as revistas ou figurinos. Ergueram a cabeça para observarem a recém-chegada e tornaram a mergulhar nas suas leituras.

Uns minutos mais tarde a porta abriu-se e a rapariga fez-lhe sinal para a seguir. Atravessaram uma sala, outra mais pequena, e Ingrid entrou para um gabinete decorado com bom-gosto e discrição, onde as paredes claras tinham por única ornamentação alguns quadros de mestres.

Mal a rapariga se afastara, a porta tornou a abrir-se e o dr. Krieg apareceu. Era um homem baixo, gorducho, barrigudo, bastante calvo. Fechou a porta à chave e tirou os óculos.

—Está doida, ou quê? Vir aqui!!!—gritou, com uma ira que não procurava dissimular.

—Precisava falar imediatamente consigo...

O homem interrompeu-a bruscamente.

—Mas eu proibira-a de vir aqui fosse sob que pretexto fosse! Desde quando são as minhas ordens discutidas?

Dominou-se, e pareceu abrandar um pouco.

—Suponho, em todo o caso, que se ousou infringir as minhas ordens, e tomou um risco destes, não foi sem forte razão. Que se passa?

—Klauss levou-nos...

—O que é que diz? , —Conseguimos apanhá-lo ontem à noite, graças a um agente duplo, um tal Blanchard, com quem ele queria negociar os planos.

—E então?—impacientou-se Krieg.

—Antes de o abater, Klauss entregou-lhe, contra 150.000 dólares falsos, uma senha de depósito da Estação de Char-): lottenburg. Escondera os planos numa mala que deixara lá.

—E então ?—repetiu Krieg com voz metálica.

—Aqui está a mala!—disse Ingrid, abrindo-a sobre a mesa.—E nada de planos!...

Entregue a uma cólera indescritível, o dr. Krieg bateu com o punho na mesa.

—E liquidaram-no! Bravo! Foi um lindo trabalho!

- Cumprimento-a, Fraulein Haldem! Liquidaram Klauss antes de terem os planos nas mãos! Bela vitória!

O homenzinho deu a volta ao gabinete, incapaz de dominar os nervos. Depois voltou-se bruscamente para a sueca e bateu pela segunda vez com o punho na mesa.

—E agora quem é que nos vai dizer onde estão escondidos os planos?—rugiu ele.

Depois continuou o passeio, à roda da mesa, como uma borboleta à roda de um candeeiro.

Ingrid Haldem permaneceu muda. O homem veio colocar-se na frente dela. Chegava-lhe aos ombros. Ergueu-se nos bicos dos pés, como um galo nas suas esporas.

—Tinha-a por um óptimo agente, Fraulein Haldem. Confiei-lhe a direcção de uma equipa. Demonstrei-lhe a minha confiança ao depor nas suas mãos o caso Klauss! Constato agora que me enganei redondamente. Quanto aos seus homens, são um bando de incapazes!

Teve um gesto raivoso, com a mão, afastou-se uns passos, e continuou:

—E quem é esse tipo de que me falou, esse Blanchard?

—Um agente duplo, creio...

—Crê!—exclamou Krieg, com ironia.—Com que então, crê? Menina Haldem, no nosso ofício, nunca se pode “crer”, tem de se ter a certeza dos factos!

—Não sei ao certo quem ele é, mas é um agente duplo, um aventureiro que tentou primeiro apanhar os planos por sua própria conta, e que nos caiu nas mãos.

—E o que lhe faz “crer” tal coisa? Que é um aventureiro, e não um agente especial do 2.º Bureau, do I. S., ou do C. I. A.?

—Foi ele que matou Roger Méral, o director do Deutsche Woche.

Uma bomba de hidrogénio que tivesse caído sobre o telhado do prédio não teria causado maior estupefacção do que a que se espalhou na expressão do chefe das informações para a Alemanha Oriental. Ficou vários segundos sem pronunciar palavra. Depois avançou de novo para a sueca e começou a falar lentamente, ao ritmo dos passos, destacando cada sílaba da palavra com um furor mal contido:

—Fraulein Haldem, não só agiu como uma novata, não só se deixou levar por Klauss, como o seu Blanchard a levou igualmente, e troçou de si como de um anjinho!

Parou, com o fôlego perdido, mas respirou fundo e continuou, quase gritando:

—O seu Blanchard é um agente especial! Não foi ele quem suprimiu Méral, fui eu! Fui eu, entende-me? Fui eu que mandei liquidar Méral, para que a senhora tivesse o campo livre! Mandei vir um especialista de Leipzig, chamado Otto Scheiniger, já que quer saber tudo, que contactou com Méral para o escritório dele, e depois se introduziu em sua casa e abateu-o com três balas no ventre!

—Mas então?...—gaguejou Ingrid.

—Então essa maleta que traz estupidamente atrás de si, é do seu amigo Blanchard, que lhe entregou uma senha de depósito que tinha na carteira!

Ingrid Haldem sentiu as pernas dobrarem-se-lhe e ficou aterrada, sob um sentimento indescritível de raiva e de humilhação.

 

O latagão continuava de pé, no meio do quarto, a quatro metros de Duranne. E Duranne, sentado no divã, também não se mexera. Mas a sua mão esquerda, escondida pela colcha, agarrara a navalha de mola, de Werner Klauss.

Duranne quebrou o silêncio.

—Lembras-te do tipo que vocês deram a comer aos ratos, Gerhard?

O outro olhou-o sem compreender.

—Chegou a altura de pagarem, Gerhard!

—De pagar o quê?—perguntou o colosso, entalando maquinalmente as mãos no cinto, a dois dedos da pistola.

—Vou-te matar...—disse Duranne suavemente.

Gerard fitou-o, admirado, e depois começou a sorrir. Primeiro, sem convicção. Admirado daquela brincadeira. Mas pouco a pouco a expressão modificou-se-lhe. O seu instinto fez-lhe compreender que Duranne não brincava e que o perigo que o ameaçava era real. Duranne tinha nos olhos aquele fulgor inquietante, da ave de rapina que se vai deitar sobre a presa. Depois viu-lhe de súbito na mão o brilho de uma lâmina.

Gerhard retirou as mãos do cinto, para agarrar na pistola. Mas nesse mesmo instante, tal como um boneco que salta da caixa, Duranne saltou do divã e lançou a navalha com todo o ímpeto.

A lâmina fendeu o ar como uma flecha, silvando, e foi-se — do homem enterrando-se até ao cabo.

Gerard não teve Primeiro nenhuma reacção, e imobilizou os olhos e depois deu uns passos em frente Com o cabo de marfim Para fora da garganta, parecia um vendedor de sabores exibindo-se numa feira. Abriu a boca e teve um soluço: uma golfada de sangue jorrou e inundou-lhe o pescoço. Pôs-se a sacudir a cabeça, como um touro, e a mão direita Procurou, tacteante, apanhar a pistola; mas esta caiu-lhe aos Pés e ele continuou a sacudir desesperadamente a cabeça, com soluços cada vez mais fortes.

Duranne avançou para agarrar a arma. Com um pontapé Gerhard emPurrou-a> fazendo-a desaparecer para debaixo do divã.

Foi o seu último gesto de autodefesa. Caiu sobre os joelhos cuspindo sangue, e alongou-se, sobre o cimento com o peso' de um quadrúpede que se deita, agitando lentamente braços e pernas.

No momento em que Duranne se precipitava para apanhar o “P-38”uma chave rangeu na fechadura. Deu um salto em direcção à porta e colou-se à parede. A porta abriu-se devagarinho e Rudy apareceu na umbreira, de revólver em punho. O pé de Puranne distendeu-se. A ponta do sapato atingiu o mexicano no osso do pulso e fê-lo gritar de dor. Largou a arma enquanto, guiado por um antigo reflexo de gangster enviava um pontapé magistral ao ventre do seu adversário. O golpe apanhou Duranne apenas na anca, mas na altura teve a sensação de que acabavam de lhe partir os ossos da bacia. Dobrou-se para a frente. Rudy atirou-lhe o joelho à cara- Duranne evitou o segundo golpe por um triz, deitando-se de lado, enquanto o mexicano, tendo perdido o controle do seu centro de gravidade, girava sobre uma perna, como um pião. Duranne apanhou-o entre as pernas, com o chamado golpe de tesoura, e apertou-o com toda a força dos seus braços. O fim veio rápido. O rosto pálido do meXicano tornou-se terroso. Os olhos saltaram-lhe das órbitas a língua fendeu-se na boca. Ouviu-se um súbito estalar, seguido de um estertor e quase logo em seguida as forças do homenzinho abandonaram-no. Duranne acabava de lhe rachar a nuca.

O francês levantou-se, segurando a anca, e foi apanhar a pistola. A seus pés, Rudy esfriava, e um pouco adiante, Gerhard num mar de sangue, agitava-se ainda de vez em quando, erguendo espasmòdicamente a sua enorme massa de carne.

Duranne saiu do quarto, fechou a porta à chave atrás de si, e meteu pelo corredor. Na altura em que chegava à escada, um ruído de passos abafados imobilizou-o e uma sombra furtiva passou precipitadamente à sua frente. Seguiram-se alguns segundos de silêncio, e depois o barulho leve de um fecho ferrugento.

Mas tal como o gavião de que usava o nome, Duranne precipitou-se e caiu sobre a presa. Com um violento pontapé fez voar a porta que não tinham tido tempo de fechar à chave, e com a mão procurou o interruptor ao longo da parede. Uma iluminação crua, provinda de um tubo de néon, inundou o quarto.

Encandeado, de princípio, Duranne só viu os móveis, vários maples postos contra a parede, uma mesa com um posto emissor, um armário de metal, e ao canto, uma enorme secretária onde se destacava o telefone. Mas de repente vislumbrou-o, imóvel, encolhido, meio escondido atrás das costas de um maple, com os seus olhos em bico formando apenas uma fenda no rosto amarelo.

Duranne avançou lentamente para ele, com as mãos pendendo ao longo do corpo.

Com um salto o chinês refugiou-se por detrás da secretária, pronto a defender-se. Na mão segurava uma lâmina de aço, cuja ponta era tão afiada como uma lâmina de barba.

Duranne continuou a avançar. Parou na altura da secretária, apoiou-se com força nela, e empurrou o pesado móvel, fazendo-o deslizar de uma vez; contra a parede. Sem ter tido tempo de analisar o que se passava, o chinês viu-se apanhado. Um clarão de pânico perpassou-lhe nos olhos. Encolheu-se ainda mais, e, tal como um gato perseguido, saltou ao rosto de Duranne com rapidez fulminante.

Num relâmpago, Duranne viu passar a garra de aço a uns centímetros dos seus olhos. Mas com um movimento rápido e preciso, a sua mão agarrou e torceu o pulso armado. O chinês teve uma espécie de gemido e deixou cair o instrumento. Com o pé, Duranne atirou a arma que deslizou para debaixo da secretária.

Louco de medo, o asiático lutou e atirou-lhe um formidável pontapé ao baixo ventre. Duranne atirou-se, agarrou-lhe o tornozelo, e puxou. Literalmente arrancado do chão, o respeitável sr. Chuen-Lee perdeu o equilíbrio e a cabeça bateu pesadamente no cimento. Mas Duranne não o largou. Por sua vez atirou-lhe um pontapé às costelas, mas teve a impressão de que o sapato se enfiava num saco de nozes. O chinês deu um grito logo abafado e começou com soluços secos. Durante um minuto, Duranne repetiu aplicadamente a operação. Depois largou-o de repente, o chinês caiu como um monte de trapo, e imobilizou-se.

Do mesmo modo que se se tratasse de pôr fora de combate um animal perigoso, Duranne puxou o “P-38” e friamente disparou-lhe três balas na cabeça.

Segundos depois, encontrava-se na rua. O “Porsche” estava estacionado na beira do passeio e a chave de contacto encontrava-se presa ao volante. Deslizou para o interior do veículo, pôs o motor em marcha e acelerou.

Uns 20 minutos mais tarde o “Porsche” deixava o bou-levard e seguia por uma rua estreita e transversal que descia em direcção ao rio, cortando a Levetzwstrasse.

Duranne parou o carro junto do passeio e desceu. A anca doía-lhe ainda e parecia dormente. Esforçou-se por dominar a dor e começou a caminhar com naturalidade. Dobrada a esquina, distinguiu um carro da Berliner Politzei estacionado diante do nº 17, em redor do qual os basbaques discutiam e esperavam.

Tal como previra, os polícias ainda se encontravam por ali. Continuou a avançar pelo passeio do outro lado e passou diante do carro da polícia sem parar. Só parou duzentos metros adiante, entrando num pequeno café. Viam-se vários consumidores, a maior parte operários, que encostados ao balcão discutiam com o dono. Duranne compreendeu logo que eles falavam do caso.

Mandou vir um café e pediu licença para telefonar. Quando o patrão lhe indicou onde se encontrava a cabina telefónica, percorreu rapidamente a lista e compôs um número. Logo uma voz soou no aparelho:

—Alô! Berliner Politzei!

Duranne falou em alemão.

—Os assassinos da Levetzowstrasse escondem-se na Altlu-berstrasse, no nº 11!

- Hallo ? Wassagensie ?Hallo ? Deutsche Politzei, hallo ?(X)

Duranne repetiu:

—Os assassinos da Levetzowstrasse escondem-se no nº 11 da Altluberstrasse. Despachem-se!

—Hallo? Hallo "—enervou-se de súbito a voz do polícia. — Wer sind sie ? Wer sind sie ? (2)

Duranne desligou suavemente e saiu da cabina. Bebeu de um gole a chávena de café, atirou uma moeda para o balcão e encontrou-se na rua. Acendeu tranquilamente um cigarro, e esperou. A sua espera foi de curta demora. Viu de súbito

 

(l)-Alô? Que diz? Alô? Aqui, Polícia, alô?

(2)-Alô? Quem fala? Quem é o senhor?

 

um polícia montando uma motocicleta chegar de escantilhão e parar diante do nº 17. Dois minutos depois saiu acompanhado de polícias fardados e outros à civil, que se instalaram no carro da polícia precipitadamente.

Quando o carro, escoltado pela moto, desapareceu, Duranne aproximou-se, afastou os basbaques e entrou resolutamente no edifício. Viu uma porta envidraçada ao fundo do corredor, bateu e entrou sem esperar resposta. Mal fechara a porta atrás de si, surgiu uma velhinha, enrolada num xaile preto, com uma cabeleira branca caindo-lhe sobre os ombros. Era magra, quase transparente, e o seu rosto miúdo tinha a imobilidade de uma estátua; percebia-se que se encontrava ainda debaixo da comoção da noite anterior. —Já lhes disse tudo o que sabia—disse ela assim que o viu.

Duranne compreendeu que ela o tomava por um inspector.

—É um desastre para mim, esta história. Uma casa com tão boa reputação há mais de 30 anos. Acha que haverá pessoas que ainda queiram alugar-me o andar, depois disto ?

—Com certeza!—respondeu Duranne, conciliador.

—Mas sabe como são as pessoas... tão más, e tão más-línguas... Ainda hão-de dizer que eu estava de conivência com o assassino!...

—Mas a senhora não tem nada com o assunto, não deve ralar-se!

A velhinha abanou a cabeça com ar pouco convencido. Depois continuou, com ar cada vez mais cansado:

—Ainda quer interrogar-me mais uma vez?

—Não, não, nada disso! Queria simplesmente saber se tem outra chave do apartamento.

—Mas eu entreguei as duas ao seu colega, sr. inspector!

—Bem sei, mas não tem uma terceira chave, por acaso? Uma daquelas chaves-gazua ? Os meus colegas foram-se embora e eu esqueci-me lá de uma coisa.

—É verdade, tenho a minha gazua! Mas tem de ma dar outra vez, porque me serve para todos os outros quartos.

—Não demoro nem 5 minutos.

Ela tornou a abanar a cabeça e desapareceu por detrás de um reposteiro. Reapareceu segundos depois e estendeu-lhe um molho de chaves.

Duranne subiu o lance sem respirar. Chegado ao patamar, abriu a porta sem hesitações, fechando-a em seguida.

No sobrado viam-se ainda distintamente as manchas acastanhadas que o sangue deixara, e os desenhos a giz que a polícia fizera. A janela estava fechada e o quarto cheirava a cinzas frias e a cachimbo apagado. Mas Duranne não se demorou nesse primeiro quarto e passou logo ao outro.

Sem hesitações, mas com certa apreensão, dirigiu-se para a janela. Esta dava para um pátio, e abria-se directamente por sobre um telhado que descia até meia altura do prédio. Duranne abriu-a de par em par, levantou uma placa de zinco ferrugenta, e meteu-lhe o braço por debaixo. Daí retirou uma pasta de couro.

Com emoção que mal podia conter, abriu-a e folheou um grosso dossier vermelho, que tinha por única inscrição a palavra: “Geheimn”. Percorreu rapidamente as primeiras páginas. Não havia engano possível, aqueles eram os planos de um engenho teleguiado, os planos autênticos do “KL-X-19”. Na véspera, Duranne tivera o tempo ajusta de os tirar da gaveta da cómoda e de os ocultar naquele esconderijo de ocasião, antes da chegada de Gerhard.

Duranne tornou a colocar os planos na pequena pasta, e escondeu-a no bolso interior da gabardina. Depois desceu rapidamente as escadas. Parou à porta da velha e entregou-lhe o molho das chaves sem fazer comentários.

Ao sair do prédio abriu caminho entre o povo que se juntara e que continuava parado no passeio como um rebanho de carneiros. Um olhar lançado à direita e à esquerda informou-o de que não havia novidade, nem nada suspeito na rua. Afastou-se então com passos rápidos e entrou no “Porsche”.

Havia pouco mais de cinco minutos que Duranne abandonara o bairro de Altmoabit. Seguia agora pelo Saatwin-klerdamm a velocidade moderada. Tudo se passara com a maior das simplicidades. Com demasiada simplicidade, com demasiada facilidade, mesmo, era o que pensava. Nas barbas dos agentes comunistas, debaixo do nariz da polícia, conseguira arranjar os planos que ali levava consigo, do “KL-X-19”, que extorquira a Werner Klauss. No entanto, apesar de tudo, tinha uma sensação bizarra, como que um pressentimento. Alguma coisa lhe dizia que o perigo ainda não passara de todo.

Com uma travagem brusca imobilizou o “Porsche” diante da luz vermelha. Aproveitou maquinalmente para acender um cigarro e olhou, sem os ver, para os peões que atravessavam a faixa. O sinal passou a verde. Duranne puxou o travão de mão e acelerou. Nervoso, o “Porsche” lançou-se pelo boulevard fora e em menos de 10 minutos atingia a Bernauerstrasse.

A espaçosa avenida que ladeava o Telegersee estava quase deserta, como habitualmente. Duranne acelerou ainda mais e o conta-quilómetros subiu rapidamente a 100. Depois aumentou ainda de velocidade para ultrapassar um “Volksva-gen” que rodava modestamente a 90, e deitou um olhar ao retrovisor para se assegurar que nenhum carro tentava ultrapassá-lo a ele. Foi então que sentiu a garganta apertar-se-lhe e o estômago encolher-se. As mãos crisparam-se-lhe no volante e o “Porsche” raspou perigosamente na borda do passeio.

No banco traseiro, mesmo atrás dele, acabava de surgir o rosto de um homenzinho calvo e bochechudo, que usava óculos, e que se erguia penosamente sobre o estofo da almofada. No mesmo momento o cano frio de uma pistola cravou-se-lhe entre as omoplatas. Depois viu emergir uma segunda cabeça, um belo rosto de cabelos doirados, o rosto de In-grid Haldem.

Tornando a dominar o carro numa fracção de segundo, Duranne encarou os factos com uma incrível rapidez, enquanto uma voz melada, a do dr. Hermann Krieg, se fazia ouvir:

—É muitas vezes quando julgamos ter definitivamente ganho a partida, que a perdemos, sr. Blanchard! Pouco faltou para que o senhor a ganhasse, mas perdeu-a! Apresento-lhe, no entanto, os meus cumprimentos. Foi muito mais forte e muito mais inteligente do que os meus agentes. Obrigou-me a intervir pessoalmente para pôr termo aos seus feitos. Não caiu em nenhum erro, enquanto a cara Ingrid cometeu o de depositar demasiada confiança em você. Mas eu, sr. Blanchard, agente especial do 2.º Bureau, não tenho confiança em ninguém, e você é um homem demasiado perigoso para que o possa deixar com vida.

De feições crispadas, olhar fixo, Duranne via apenas a estrada branca que parecia desfilar à sua frente.

—E agora que nos encontramos suficientemente afastados—retomou a voz do dr. Krieg, num tom mais seco—, vai parar o carro, e entregar-me os planos, sr. Blanchard!

Duranne carregou no acelerador. O ponteiro oscilou entre os 120 e os 125. Krieg adivinhou-lhe as intenções.

—Pare!—ordenou de súbito com autoridade.

O “Porsche” continuava a deslizar como um bólide. O ponteiro do conta-quilómetros atingia os 130, depois os 135, e estabilizou-se em 140.

O chefe da espionagem do Leste sentiu gotas de suor correrem-lhe pelas fontes, pois compreendeu de súbito a intenção do homem que ia ao volante, e que este, tal como os pilotos, suicidas japoneses, decidira arrastá-los consigo para a morte. A seu lado, Ingrid Haldem pálida como uma estátua de cera, continuava muda. Krieg voltou-se para ela, de olhos fora das órbitas.

—Passe para a frente e pegue no volante!—gritou-lhe, com o rosto contra o rosto dela.

Mas logo compreendeu a estupidez e a inutilidade das suas palavras, e voltou-se então para Duranne, dizendo-lhe:

—Ouça-me! Garanto-lhe que o deixo ir com vida! Mas pare! Dou-lhe a minha palavra, entende-me? A minha palavra! Juro-lhe sobre a memória de Lenine que lhe faço misericórdia.

—Isso já é mais razoável!—disse Duranne, com os maxilares contraídos.—Aceito o negócio.

Deixou então o pé levantar-se insensivelmente do acelerador. O ponteiro, que- atingira 160, começou a descer. O “Porsche” seguia muito junto à berma da estrada, que descia num declive acentuado que dava para uns campos junto ao lago.

Quando o ponteiro chegou a 80, Duranne afastou discretamente a mão esquerda do volante e fez pressão no fecho da porta. depois, bruscamente, lançou-se para fora do carro, protegendo a cabeça com as mãos e dobrando as pernas sobre si.

Lançado como um projéctil, rolou ao longo do talude durante uns 20 metros, arrancando torrões de terra e de areia. Sentiu uma dor violenta no tornozelo, e o rosto foi chicoteado pelos ramos de um arbusto. Teve a sensação de que os membros se lhe desconjuntavam e que nunca mais parava de rolar. Depois tudo terminou de uma vez, como o o fim de um pesadelo. Mas ainda não tivera tempo de verificar que continuava com vida quando um tremendo estalido soou, seguido de uma série de explosões. Depois tudo mergulhou de novo no silêncio.

Duranne aproximou com esforço a mão do rosto e sacudiu a terra que se lhe colara aos olhos.

Duzentos metros adiante, o “Porsche”, que chocara com um marco, estava em chamas, completamente virado, no fundo do fosso.

Duranne conseguiu pôr-se de pé. Todos os membros lhe doíam e tinha a impressão de que acabava de apanhar uma carga de pancada. Mas foi só quando quis dar um passo em frente que compreendeu ter um tornozelo partido. Esforçou-se todavia por se afastar e arrastou-se pelos campos. Ao cabo de cinco minutos, e após rudes esforços, conseguiu atingir a orla do bosque. Deixou-se cair junto de uma árvore e respirou fundo.

O carro continuava a arder e era agora um braseiro donde se elevavam chamas que atingiam dois metros. O “Volks-vagen” que Duranne ultrapassara 10 minutos antes, apareceu na estrada e parou. Viu duas pessoas descerem dele, e correrem pelo talude abaixo, aproximando-se do “Porsche”. Mas Duranne estava descansado. Era demasiado tarde para apagarem o fogo, e quando os representantes da Berliner Politzei chegassem ao local, nada poderiam fazer senão tentarem identificar dois cadáveres carbonizados.

Desta vez a sua missão estava enfim terminada, definitivamente terminada. Agora só lhe faltava dirigir-se ao quartel-general do Estado-Maior da guarnição francesa, pedir audiência ao comandante e confiar-lhe secretamente os planos do “KL-X-19”, que chegariam discretamente a Paris por via diplomática.

Duranne ergueu-se, tentou pousar o pé no chão, e fez uma careta. Não tinha outra alternativa senão atravessar a floresta de Jungfern a pé para alcançar o campo de aviação de Tegel, que ficava a um quilómetro. Pensou que, com um tornozelo partido, não ia ser tarefa fácil.

 

                                                                                Roland Piguet  

 

                      

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