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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O GAVIÃO LOUCO / Jean Carrière
O GAVIÃO LOUCO / Jean Carrière

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O GAVIÃO LOUCO

 

A Queda

O primeiro nevão caiu abundantemente por volta dos fins de Novembro. Era um fenómeno precoce, que arrastou as Terras Altas e quase todo o Sul para um Inverno sem precedentes: a estranha pressão do silêncio calafetando com a sua estopa o sangue no fundo dos ouvidos (aldeolas reclusas e casas isoladas não desperdiçavam já os seus ruídos); auroras boreais coladas contra os vidros resplandecentes de placas de gelo; noites voláteis como éter, irrespiráveis. E o longo deslizar das horas no interior dos pátios escondidos, onde já nenhum pássaro saltitava.

 

De entre as gentes do planalto, ao todo uma meia dúzia de famílias abrigadas nas suas pregas mais soalheiras, para quem era habitual o cerco do frio durante uma boa parte do ano, ninguém até então havia conhecido estas estranhas maravilhas da invasão glaciar que trazia de novo àquelas altitudes a lembrança das pretéritas catástrofes e das grandes fomes - nem sequer a velha Alice Despuech, de Mazel-de-Mort, que no entanto tinha a memória marcada por invernos catastróficos. Desta vez não errava muito ao dizer que estava iminente o fim do mundo: foi levada por esta maré glacial, cuja primeira onda galopou até à beira-mar, calcinando tudo à sua passagem, espalhando a desolação nas encostas meridionais mais abrigadas, mutilando as florestas e os parques profundos, abrindo grandes crateras que a Primavera não voltaria a reverdecer. Seis meses mais tarde, nas colinas ensolaradas, os troncos fendidos das oliveiras e os cepos estéreis erguerão contra um céu novo os seus ramos torcidos e as suas garras enegrecidas pelo gelo.

 

Acima de Mazel-de-Mort (que após a morte de Alice não contará mais do que duas almas), começam as altas solidões e, bruscamente, tudo muda, as torrentes desaparecem, as nascentes rareiam, o xisto e o granito dão lugar ao calcário marinho, o solo ilumina-se e dá estalos, como um telhado velho, o ar ácido limpa os pequenos bosques pouco frondosos donde se vê o céu através dos últimos eucaliptos. Logo a seguir, espraia-se a extensão lívida e sem árvores ondulando até ao infinito, com as suas pedras célticas enraizadas na erva morta e corroídas pelo vento oeste, que em incessantes vagas vem bater nos muros velhos das cercas e nos redis vazios.

 

Nos dias calmos, ouve-se sempre o rumor de qualquer coisa a fustigar as rochas; é o vento surpreendido nos desfiladeiros. E, mais próximo, sente-se o roçagar das suas vagas respirando nas praias de liquens e musgo, tão ritmado como a ressaca; no sopé dos cumes, dir-se-iam visitados pela recordação do mar primitivo, erguem-se cruzes que interrogam a fuga dos horizontes com os seus coutos grossos. Há sombras de nuvens que vagueiam com frequência por entre as rochas gigantescas, engolindo de quando em quando imensos pedaços de paisagem, que voltam a iluminar-se num crepitar de insectos, e sente-se imediatamente a dor duma luz crua e voraz.

 

O que melhor revela a milenária rudeza do lugar, mais ainda do que o seu estranho relevo, é o clima: ora ardente, ora glacial, eíe comunica às estações mais belas do ano algo de convulsivo ou de maligno. Mesmo ao longo dos anos de temperatura amena, quando a vegetação árida dos planaltos ondula todo o Inverno sob uma franja de cumes apenas salpicados de branco, e a erva, sazonada por calores precoces, renova os prados amarelos, o regresso inesperado do frio, encurtando a Primavera, faz apodrecer as encostas prematuramente tumefactas pelo excesso de opulência.

 

Em pleno mês de Agosto, no momento em que a parte mais quente do dia estagna no sopé das penedias, nas reentrâncias do planalto e no meio dos castanheiros, apercebemo-nos da miséria das coisas e, por assim dizer, do seu avesso arruinado pela potência da luz: caminhos cinzentos, terrenos miseráveis, cobertos duma pobre vegetação africana, tabiques revestidos de xisto reflectindo o clarão febril e plúmbeo dum dia de tempestade; currais desmantelados sob o peso de enormes lousas que o sol espezinha, e cujos escombros embranquecem no clarão como os ossos de uma carcaça; tectos fendidos, escancarados sobre as ruínas juncadas de ardósias; povoações atacadas aqui e ali pela cárie das construções ocas e enegrecidas pelos espinheiros, elevando as suas frontarias caiadas, umas por cima das outras, num amontoado engenhoso, para do seu alto se divisar o que se passa ao longe. Mas, ao fim da tarde, do lado onde as sombras se alongam, impregnadas dum cheiro a erva, uma maceração mineral, que se distingue da frescura do orvalho pelo seu odor mais peçonhento, escorre dos recessos da terra, invade os vales, transpõe os prados, alcança as hortas, caminha ao longo das vielas.

 

Esta gota de frio infinitesimal mata a estação; dilui rapidamente a espessura dos dias bonitos; com este brusco fim do Verão, o ar claro é de súbito invadido por um estrondo que se assemelha ao de um casco a rebentar.

 

Falta pouco tempo. O próprio Outono não é muitas vezes mais do que um turbilhão de folhas entre duas portas entreabertas, uma soleira tépida e friorenta aberta sobre duas vertentes do ano. Mal o sol começa a declinar, esmagado atrás do vitral dos bosques, e a esmorecer em tons avermelhados e neblinas, um vento marinho, todo em farrapos, rugindo como uma fábrica ou um comboio, penetra pelos corredores do lado sul, arrasta as suas nuvens sujas, arranca as folhas secas das árvores, confunde o incêndio dos espaços longínquos, acabando por apagá-lo. Em poucos dias, ou por vezes numa só noite, a montanha rebenta as amarras que a ligavam às províncias do Sul. Uma bela manhã, depois de o vento ter amainado, depara-se-nos ao abrir a janela uma imensa cripta, silenciosa e vazia; é um mundo de pedras inertes, de encostas nuas, de bosques despidos e brilhantes, cujos ramos desenham, contra o cinzento uniforme do céu, um emaranhado de grades a tinta-da-china. Por entre as aberturas estreitas, desce uma claridade morta que apenas se dissipa com o cair da noite, na altura em que as esteias funerárias, apinhadas em volta das quintas, mergulham na escuridão - uma vez a candeia acesa com mão avara.

 

Mas, por vezes, o Outono era também iluminação repentina da paisagem, donde se retirava a neblina, deixando secar as pedras que, ao encontrarem uma espécie de vida elementar, começavam a fumegar ao sol: flores clandestinas, sob a erva quente, mais pujante e viva do que um banco de anémonas marinhais, e o bulir dos tufos de urtigas ao longo dos muros, ao abrigo dos quais se tinham refugiado os insectos. A manhã vagueava lentamente num céu limpo. Havia no ar uma ressonância calma, transportando duma vertente à outra barulhos de forja, um rumor caseiro de bando que se instala e de rebanho a ocupar os seus domínios de Inverno. Os odores pareciam, enfim, libertos da frágil e encantadora recordação, da dilacerante precaridade dos caminhos em flor que certas noites primaveris haviam enchido não sei de que promessa vaga; os cheiros que então se respiravam substituíam íntimas nostalgias de necessidades gregárias e mais sóbrias: aromas picantes, atraentes, que, emanando da vegetação apodrecida dos bosques, nos detêm com a mesma subtileza do incenso; cheiros acres, que se desprendiam das cascas das árvores e da serradura fresca em plena fermentação, um cheiro feminino em volta dos eucaliptos abatidos, cujo alburno apresentava um leito fofo de folhas secas; cheiros estimulantes de trabalho, aromas de coiro e ferro quente misturados com os fumos ácidos das primeiras fogueiras pairando através dos lugarejos adormecidos na luz abundante, e as horas a correrem lentamente, apenas sensoriáveis, graças ao ranger dum eixo ou às pancadas nítidas duma bigorna que se repercutiam por entre as paredes das ruelas onde luzia ainda a humidade dum aguaceiro nocturno... Todos estes cheiros mergulhavam imediatamente os sentidos numa disponibilidade atenta, como quando atravessamos um subterrâneo ou quando recebemos de súbito, na cara, uma baforada de odor a feno ou a pão acabado de sair do forno. Ainda não tinham recolhido os vasos de gerânios e havia tapetes de cogumelos estendidos à sombra calma das paredes e nos terraços.

 

No entanto, esta paz nem sequer enganava os pássaros sedentários, que se lavavam de manhã mais perto da soleira das portas, sacudindo as penas geladas.

 

Agora, as noites adquiriam uma pureza extraordinária, sideral: o céu, tão negro que parecia não existir atmosfera, como se esta pairasse por cima dos astros mortos, lavava as montanhas e multiplicava as estrelas; e estas, aguçadas e endurecidas por um frio cada vez mais seco, ostentavam agora o tamanho e o brilho de pedras preciosas. à noite, ouvia-se o murmúrio nos vales, para os lados de Saint-Julien: o sopro abafado das torrentes ia atingir em linha recta a floresta definhada e transparente, donde se elevava todas as noites, sempre um pouco mais espesso, um lago de neblina que trazia o silêncio, calava todos os barulhos do vale, encharcava as encostas, e isolava as altas penínsulas minerais na sua serenidade planetária.

 

Estes indícios, que geralmente precedem os invernos muito rigorosos, apressavam as últimas tarefas; as cozinhas, glaciais, embora conservando um resto de brasas sob as cinzas, viam homens de pé antes do romper da madrugada, cada vez mais lenta a embaciar os vidros com a sua cabeleira grisalha; mal se aqueciam com uma malga de café, deslizavam lá para fora aspirando o ar; pequenas nuvens de hálito evaporavam-se em volta das pontas incandescentes dos cigarros; e, pondo às costas com uma sacudidela de ombros o saco contendo o que lhes era preciso para o resto do dia, iniciavam a jornada; logo que a manhã se anunciava, pálida e tranquila, as pedras dos carreiros, esmagadas pelas cardas das botas, faziam ressoar a limpidez da atmosfera como se esta fosse de vidro.

 

Os acampamentos florestais recomeçavam a viver sob uma luminosidade ainda exangue, azulada; e até ao cair da noite ocupavam todos os braços disponíveis. Mas, por mais que trabalhassem, a estação teimava em lhes fazer frente; labutava-se com um pé no meio das folhas mortas e outro já assente na encosta do sono: os dias, pequenos, precipitavam as horas, as árvores passavam como que num sonho; os seus ramos despidos esperavam pela neve, inundavam as ravinas duma bruma cor de violeta onde, de quando em quando, brilhavam riachos de prata: depois do gelo nocturno, as águas, deslizando pelos declives, iam cair sobre os escudos rochosos que forravam os seus flancos.

 

Pouco a pouco, este regime de frios pouco intensos havia recomposto os pequenos bosques impregnados de humidade, e a abóbada celeste tinha-se alargado até aos limites da atmosfera. Tão longe quanto o permitia a vista, para lá das clareiras abertas na floresta por golpes recentes, aparecia um ondular desértico e sem relevo a que o Sol não conseguia dar cor, apesar da falta de nuvens: o céu, condensando-se, tornava-se vítreo como a superfície aprisionada dum lago.

 

à hora da sesta, quando as fogueiras de hastes verdes a espirrar a sua seiva reuniam, no centro das clareiras, grupos de lenhadores que se sentavam nos cepos puxando as facas dos bolsos, o ar que se respirava mantinha, ao contacto com a terra dura e purificada, a mesma secura cinzenta das primeiras horas da manhã; excitava o sangue com a força dum álcool muito puro. No silêncio das florestas, onde nada bulia e sobre as quais os fumos das casas se imobilizavam em redes vaporosas, os golpes dum machado solitário retiniam por cima dos bosques altos, tão sonoros como a nave duma catedral. Mas desde o começo da tarde que se sentia a desprender-se do solo um fluido amargo que penetrava até à medula, e a luz, já de si fraca, enfraquecia ainda mais.

 

Numa noite da última semana de Novembro, quando as bruscas acelerações das serras mecânicas (eram as primeiras da época) continuavam ainda a roncar sob os telheiros com estampidos de moto-cross, as folhas secas começaram de repente a cair: era uma multidão de pequenos flocos saltando de todos os lados, aliás semelhantes ao granizo. E não tardou que o espaço cor de antracite ficasse crivado de outros tufos ainda maiores; desciam lentamente, tão lentamente como algodão, e poisavam ao de leve no solo.

 

As Terras Altas acabavam de mergulhar nos meses de escuridão: apesar da intensa luminosidade de certos dias de Inverno, quando a paisagem de neve faísca sob o azul resplandecente do céu, e as velhas casas ficam na sombra, imersas num perpétuo crepúsculo em que cada minuto que passa arrasta consigo o negrume dum frio de subterrâneo. Não é que os habitantes desta região sejam particularmente friorentos: há até quem não se importe de deixar a porta escancarada quando está um frio de rachar; ou que todos os invernos tragam consigo obrigatoriamente temperaturas siberianas. Mas a maioria destas cabanas com muralhas de fortaleza estão enfiadas nas profundezas dos vales, ou escondidas em buracas; as suas janelitas, ao nível do planalto, mal se vêem; os quartos do rés-do-chão, quase sempre cavado no flanco da montanha, ou encostado à vertente mais abrigada, têm como parede de fundo a própria rocha, cujas saliências sobressaem de quando em quando. São estas, integradas na construção, que, ao longo do ano, impregnam a casa duma atmosfera agreste cuja origem não é só o frio; encontramos essa mesma aspereza na paisagem e no clima. E até talvez no próprio povo

 

* Para Samuel Reilham, tudo começou numa certa noite de Novembro, em 1948, precisamente no ano em que se fizeram sentir estes grandes frios. Na verdade, nessa altura, ele chamava-se, muito simplesmente, José Reilham.

 

É um adolescente um pouco gordo para a idade e para a raça a que pertence; vai para dois anos que deixou a escola e agora trabalha no campo com os pais. Trabalhar no campo é uma maneira de dizer: nesta região, seria melhor chamar-lhe deserto; mas voltaremos a falar disso.

 

Para já, ei-lo ocupado a rachar lenha e a fazer feixes com o pai e o irmão mais velho, na mata de faias, lá para os lados do desfiladeiro de Ferrières, entre Saint-Julien d’Arpon e Barre-de-Cévennes, um dos lugares mais solitários destas serras: só visto.

 

Há três semanas que os trabalhos de Inverno são executados com uma pressa louca. Tudo anuncia um desses nevões precoces que se prolongam até à. Primavera: os bosques estão demasiado silenciosos, não se ouve nem uma folha a bulir; os corvos esperam no cocuruto das árvores secas, e também eles não ousam mover-se, tão quietos como se estivessem empalhados; o céu não tem movimento, e está forrado de desagradáveis espirais em forma de flocos, semelhantes àquelas que se formam à tona da água suja da barreira; há uma secura estéril no ar, cuja intensidade parece no entanto atenuar-se; dir-se-ia que o frio perde a sua agressividade e se esconde. Numa palavra, aquela espessura anormal das peles de cebola, assim como o desaparecimento dum certo pássaro, que devia estar aqui, mas que já deu largas ao seu voo... Toda a gente se recorda do Inverno de 82, quando foram vistos alguns lobos nas imediações: as coisas tinham-se apresentado como agora. Esta imobilidade geral não pode pressagiar nada de bom.

 

Com lobos ou sem lobos, o certo é que se torna indispensável encarar as coisas de frente; trata-se de ganhar a corrida a uma estação dura e interminável, eujo fim, imprevisível, chega sempre demasiado cedo; durante a qual, no entanto, é preciso acender o lume de qualquer maneira: através das zonas florestais devastadas, esvoaçam as cavacas e as serras afadigam-se num massacre de troncos, quando, na última sexta-feira do mês, por volta das quatro horas, a neve começa a cair: as vastas extensões de matas e florestas que ondulam em volta da garganta de Ferrières desaparecem rapidamente no meio dum céu cinzento.

 

Os três lenhadores têm à sua frente, pelo menos, uma hora de caminho para chegar a casa; o percurso é bastante acidentado, a noite aproxima-se; os habitantes das Terras Altas não gostam de ser surpreendidos longe de casa por um tempo assim: deram-se mesmo há pouco alguns desastres.

 

Mal se apercebeu dos primeiros flocos, o velho Reilham disse aos filhos que seria melhor porem-se a caminho. Depois de atarem o saco, de machado na mão e com um feixe de lenha ao ombro, deixam o bosque e partem através das encostas de erva rasa, que começara a tingir-se de cinzento; o descampado domina lá do alto o espaço dum vale já envolto em trevas.

 

É uma cova de eucaliptos dispersos, de entulho e de pastagens magras, rodeada de todos os lados por vertentes austeras. O lugar, embora de dimensões imponentes, é de uma solidão ingrata e sem perspectiva, fechada sobre si mesma pelos majestosos contrafortes dos planaltos; empoleiradas aqui e ali, pequenas como ninhos de vespa, vistas de tão longe, divisam-se fazendas desertas, quintas desabitadas defendidas por currais em ruínas. Não há luar nem fumo que indique o menor sinal de vida. Não há nada a não ser as ravinas abruptas e descarnadas dum vale que durante três estações do ano mergulha no entorpecimento das encostas desabrigadas ou das neves tardias; sente-se que a vida acabou por se retirar duma morada que já não lhe convinha.

 

No entanto, há algo que acaba de se iluminar na escuridão do vale; é uma dessas pequenas manchas fuliginosas, sequiosas de luz, que é costume ver-se a carbonizar nas regiões onde não há electricidade; os grandes farrapos de neve que se desfraldam na direcção do espaço fazem-na cintilar e até desaparecer por momentos: é Maheux, onde, durante o Inverno, se costuma acender uma luz à noite, diante da janela, enquanto os homens não regressam a casa.

 

Maheux é um conjunto de construções como se encontram um pouco por toda a parte ao longo da região; aninhadas nos cantos menos verosímeis competindo na ruína, são as vítimas dos silvados, das raízes e das ervas daninhas, que já conquistaram uma parte das dependências e que esperam a primeira oportunidade para se apoderar da casa inteira, expulsando os seus habitantes, se acaso ainda lá os houver; e é sem dúvida por causa do seu difícil acesso e pelas características de uma localização que parece ter sido escolhida precisamente pelas suas inúmeras dificuldades que lhes chamam «loucuras» Antigamente este termo significava prodigalidades e extravagâncias rústicas; neste caso, é antes um meio termo, como se para habitar essas paragens fosse preciso uma semidose de loucura para não se ficar completamente louco.

 

E com efeito é de espantar que uma pequena vida conserve as suas brasas e mantenha os seus fatos limpos no meio de tanta desolação; há aí uma espécie de incompatibilidade tão evidente que causa arrepios; e chegamos a perguntar que terrível austeridade não exigirá das pessoas este rude comércio com o mundo. As frontarias desventradas vomitam feno; o vento infiltra-se sob as abóbadas escancaradas, fendidas; vigas enegrecidas por séculos de fumo agitam os seus cotos patéticos acima dos escombros, que já de si têm algo de trágico; dir-se-ia que estes casebres foram estripados por um bombardeamento. As suas ruínas não têm tempo de envelhecer calmamente na cumplicidade da verdura; o que ainda o ano passado estava de pé desfaz-se hoje em migalhas; o gelo, a chuva, o sol encarregar-se-ão de fazer uma papa destas ossadas negras misturadas com o estuque morto, e bem morto, há muito tempo. Por vezes, acontece cair uma parte inteira de parede à vista do morador embasbacado, que nada mais tem a fazer, senão abandonar a casa ou contentar-se com as dependências intactas, perante este cerco programado. É a pobreza do

 

1)-Folies, eifi’português loucuras, é o nome que se dá á certas ervas daninhas que abundam nestas serras. (N. do T.).

 

material a responsável por tais desabamentos espontâneos, pedras secas gretadas ou xistos quebradiços, duma indústria rudimentar, onde a mais pequena fenda desencadeia um processo de degradação acelerado pela intempérie.

 

Para completar o conjunto, resta o pequeno cemitério para uso familiar; há quem seja digno dum cenário apavorante, com equívocas saliências de terra tumefacta, com os seus túmulos contrariados por movimentos subterrâneos, como esses cemitérios da Escócia ou da Europa Central, lugares da predilecção dos vampiros e dos licantropos.

 

As campas, aqui, estão geralmente alinhadas nas proximidades da casa (vêem-se das janelas, e é-se obrigado a passar junto delas de manhã à noite), talvez para manter o moral dos vivos durante os transes quotidianos, lembrando-lhes que todos esses aborrecimentos acabarão mais cedo ou mais tarde, ou então para facilitar as coisas, encurtando o derradeiro trajecto quando chegar a hora; a menos que isso tenha sucedido apenas por falta de imaginação das pessoas. As urtigas, que abundam nos lugares húmidos, multiplicam-se com uma rara exuberância.

 

Há obstáculos por toda a parte, um sol africano, sombras que têm o fresco travo da Armórica: é isto as Terras Altas. Os velhos morrem, as crianças vão-se embora, as casas fecham-se: é esta a sua história.

 

O fundo deste vale de Josaphat (que os três Reilham alcançam dando grandes passadas sob a neve cada vez mais abundante) é atravessado por um pequeno regato, quase sempre seco no Verão; vê-se agora serpentear entre eucaliptos definhados a sua coluna vertebral embranquecida pelo sol; já não se sente sequer o marulhar da água por entre as pedras, nem o rumor do vento através da folhagem para dar uma aparência de vida a esta cratera em fogo. O vento, lá em cima, deitado na erva, solta algumas lufadas antes que o Sol se esconda e suspira depois ao crepúsculo, semelhante a um estranho animalzinho que tivesse perdido a cabeça e mordesse a cauda sem razão. Durante o resto do dia, pesa um calor medonho sobre este deserto de calhaus onde a altitude age como uma lente defronte do Sol. é o triunfo do reino mineral: os insectos voltejam, aquecidos ao rubro, mas este esvoaçar metálico não é senão o feroz prolongamento do reino mineral; perguntamos a nós próprios a partir de que ilusão a vida deixa de parecer uma vida.

 

O Sol declina no céu circular; a sombra imensa do planalto avança e engole cerca de metade do vale. Do outro lado, na crista do flanco iluminado, um redil inundado de luz abre sobre o vazio uma boca e duas órbitas negras como as dum crânio, acrescentando a esta solidão uma expectativa misteriosa, É a hora em que milhões de insectos em contraluz se revestem de uma cor prateada na atmosfera imóvel.

 

Nesse momento, não podemos pensar em tudo o que se passa para lá das montanhas sem sentirmos um travo de nostalgia no coração - mesmo, e sobretudo, se estivermos ao par disso só pelo que ouvimos dizer; neste mundo fascinante e tumultuoso de ruas e fábricas, cinemas e cafés, percorrido por uma multidão lançada para um futuro constantemente renovado ; na doçura de viver e deixarmo-nos viver nas colinas cobertas de jardins marítimos; nas noites que pretendem ser um prolongamento do Verão, cheias de aromas e indolências. Tudo isso está tão longe e é tão diferente do que o silêncio e a solidão destas montanhas primitivas oferecem continuamente aos nossos olhos...

 

Longos dias vazios, encostas desérticas, um perpétuo encontro com o mundo abandonado ao seu torpor geológico, e que tanto se poderia considerar o princípio como o fim: esta terrível inércia é comunicativa. Quando passeamos o olhar em todas as direcções sem nada encontrarmos, a não ser esta ondulação a perder de vista, plantada por uma mão cega, não é necessário sermos grandes filósofos para nos interrogarmos sobre a existência, e sentir a sua ambiguidade perante esta imensidade morta; o homem, aqui, não tem outra solução, salvo a de se debruçar sobre si próprio, e, por sua vez, fazer também de morto; sabe-se que é inútil acrescentar alguma coisa a tudo isto para viver, e que é igualmente inútil construir frases: estamos lá, temos é de ir para a frente, sem nos tentarmos iludir. Três mil anos de hesitações não serviram absolutamente para nada, a não ser para complicar ainda mais as coisas; a situação nada evoluiu quanto ao essencial. O único problema de facto importante foi precisamente aquele que ficou sem solução; por conseguinte, fica posto (quando alguém se preocupa com isso) em termos absolutos, quer dizer, no seu mais baixo nível, o único que afinal importa: uma questão de vida ou de morte. Estes solitários (convém não esquecer que são os herdeiros daqueles que trataram Deus por tu, tal como no Antigo Testamento; para lhe arrancarem, a bem ou a mal, uma resposta) são a inocência personificada: apenas aceitam argumentos incontestáveis; as subtilezas da Sorbonne não passam de esgares de palhaços (ou uma forma de gozar, de matar a sua lebre, dizendo que têm direito a outra), às quais se responde aqui com um simples encolher de ombros.

 

Por seu lado, as mulheres vestem-se de negro dos pés à cabeça, de luto pela sua própria juventude aos vinte anos; à força de lutarem com uma existência que as amarra como os fatos que trazem no corpo, e lhes não dá sequer tempo para respirar, a não ser à hora da morte, sentem, ainda com mais irritação do que os homens, a mesma repugnância instintiva em relação a esferas sobre as quais não têm uma influência concreta; elas não dispõem dos meios necessários para resolverem os seus problemas segundo soluções a longo prazo; a espécie de problemas que a vida lhes põe exige respostas imediatas. Daí a sua desconfiança em relação a valores abstractos, esta abstinência em reduzir o essencial da vida ao seu aspecto prático, apesar de não serem mais estúpidas do que as outras; é que vivem obcecadas pelo medo do futuro e, para ludibriarem esta ideia fixa, recorrem a mesquinhices inacreditáveis.

 

Atormentadas de manhã à noite pelas tarefas caseiras, que apenas diferem dos trabalhos forçados por lhes parecerem naturais, dando à luz apressadamente entre duas barreiras, enterrando os seus mortos entre duas colheitas, não dispõem daquilo a que nos meios privilegiados se chama «um minuto para si». Nem sequer lhes passa pela cabeça que se possa começar precisamente a viver a partir do momento em que cessem estas tiranias, nessa região enigmática onde desabrocham novas exigências entre as quais é permitido escolher a disciplina que se pretende, visto elas serem tão inúteis umas como as outras.

 

Além disso, elas não podem tolerar senão alimentos modestos (no sentido próprio e figurado): se alguma coisa tem paladar, acham que isso é mau gosto; qualquer sabor lhes parece esquisito. Se há um acontecimento que as obriga a abandonar a sua toca não sabem onde se hão-de abrigar, agem como um caracol fora da casca. Senhoras do seu forno, nas imediações do qual gozam dessa autoridade competente e hostil que confere uma ocupação territorial, é longe deste instrumento que elas se tornam subalternas, ficando de súbito cansadas, embora não estejam a trabalhar, ociosas e tímidas, sentadas em frente dum copo de limonada na esplanada dum café, como quem está prestes a receber uma graça ou se lhe depara a beleza. A partir do momento em que as manifestações da vida nada têm a ver com o trabalho, aquelas apresentam-se-lhes sob um aspecto extravagante, um pouco caricatural, que desperta facilmente nestes montanheses modos e trejeitos boçais, como o rir de gengivas descarnadas que se esconde atrás da mão.

 

Estas mulheres passam, sem transição, duma adolescência murcha, como que recozida por um sol funesto ou comida pela febre, a uma secura activa e sem idade. No fim da vida, o seu lugar em casa é um banco; põem-nas de parte e não se lhes toca mais até ao momento em que se eclipsam sem cerimoniais.

 

Nestes vales isolados, a vida não é sensível senão aos movimentos das estações; vai girando lentamente sobre si própria para se reencontrar todos os anos no mesmo ponto de partida: nada mudou, nem para bem nem para mal. As diferenças apenas dependem do tempo que faz: verões mais quentes que esgotam as nascentes, esvaziam as cisternas; neves precoces que bloqueiam os caminhos antes de tempo, ou então outras mais tardias que dão ao Inverno prolongamentos lúgubres, sendo apenas derretidas pelas primeiras chuvas

5 da Primavera. Com a continuação, todos estes anos acabam por se assemelhar uns aos outros. As pessoas não conseguem lembrar-se exactamente da época em que isto ou aquilo sucedeu: a morte dum cão por mordedura de víbora, uma mata de lárices incendiada pela pólvora à entrada do famoso cemitério, a visita excepcional dum parente de passagem pela região, que anunciou acontecimentos estranhos e irreais. Já nem sabem sequer a própria idade: ou se é novo ou se é velho, tais condições de vida não permitem que haja mais idades. Está-se vivo, são os outros que morrem, ou melhor, que deixam de viver, o que é muito diferente.

 

Apenas o serviço militar ou a guerra (e nem sempre) conseguem dar alguma realidade a estas grandes evidências abstractas e necessárias, que se chamam Paris, a França, o mundo. E, então, uma Torre Eifel de cobre vermelho, uma cápsula de obus trabalhada à navalha, ou a cabeça dum negro com um barrete de zuavo pintada na tampa de uma caixa de chocolate em pó ou ainda a estátua da Liberdade ou uma baleia encarnam estas entidades duma vez para sempre: não vale a pena insistir. E para quê, afinal? Não nos encontramos do mesmo lado da realidade; trata-se sem dúvida duma realidade diferente: aquela que se nos depara aqui encontra-se incontestavelmente tão longe da realidade do século como a Lua.    

 

Um exemplo: certa manhã, uns senhores muito ricos resolveram que era preciso cuidar dos cretinos das Terras Altas (era assim que os consideravam): estes idiotas a babarem-se e com ares extasiados que encontramos às vezes, lá em cima, sentados ao pé duma árvore, mantendo com as borboletas ou com o vento misteriosos diálogos, impedem-nos de dormir. Cuidar deles, isto é, tentar ajustar o comportamento de um tipo que vive no meio das suas cabras, num isolamento quase total, ao de um sujeito qualquer, embrutecido pelas multidões, pelos bares ou pelo cinema. Vê-se logo que não se trata do mesmo animal. Curados, quer dizer, aptos à estupidificação geral, reenviam-nos para o lugar donde os trouxeram. Resultado: alguns deles ficam loucos de vez, e já não são as carícias do vento que lhes interessam; outros desaparecem na natureza sem se lhes conseguir mais deitar a mão: em consequência de tudo isto, certo dia, uns caçadores fazem uma descoberta macabra em qualquer curral ou, ao levantarem a cabeça, num bosquezinho nauseabundo; a maioria cai no desamparo mais negro; já nem sequer são capazes de guardar as cabras ou de se entreter com as borboletas. Talvez que todo o seu mal proviesse apenas do facto de serem mais sensíveis do que os seus conterrâneos: despojaram-nos, em nome dum outro fantasma, dos seus próprios fantasmas, estes já experimentados, que os protegiam; é como se as pessoas se divertissem, em nome da higiene, a lavar os esquimós sujeitos a constipações. Chegou-se demasiado tarde à conclusão de que o seu pertenso cretinismo era na verdade uma maneira apropriada de compreender o mundo: o SEU mundo. Isto dá que pensar. é um flagrante delito de feitiçaria moderna. E se a bruxaria representa, entre outras coisas, um uso oblíquo da realidade, deve considerar-se a maioria das vezes como feiticeiro aquele que lança o fogo e não quem é queimado.

 

De qualquer maneira, o universo onde evoluem os últimos construtores de faisses reduzidos a manter obscuras lutas com fatalidades que uma terra miserável pode suscitar no estado puro, quase divino, não é certamente iluminado por um sol normal, nem as suas noites são semeadas de constelações vulgares. Nada lhes interessam verdades forjadas não importa onde, tendo por objectivo uma causa que, por definição, lhes é estranha; nem sequer se têm de preocupar se o seu peso e as suas medidas estão de acordo com as regras em vigor; de resto, isso não constitui problema para eles. um desentendimento fatal entre dois partidos que não lutam pelos mesmos interesses e não falam a mesma língua.

 

Estamos em 1948: no cimo desta pesada fortaleza de granito, de florestas densas, de estepes áridas, ora grandes como dedos polegares fustigavam-lhe o rosto, mais ou menos intactas (nunca o foram duma maneira tão total como após a guerra, que acaba de despovoar, pela terceira vez em menos de cem anos, esta província deserdada, quer devido às mortes, quer pelo êxodo a que conduz o regresso da paz); mas isso deixará de ser assim a partir da altura em que as nações interessadas em «estar ao nível do seu tempo» espalharem a sua quinquilharia pelos quatro cantos do mundo, quando as cabras do planalto parirem ao som de transístores.

 

(’) -Paredes de apoio que permitem a cultura dum flanco de montanha; espaço entre estas paredes. (N. do T.).

 

De momento, ainda são ermos povoados de pequenas tribos montanhesas ou de velhos javalis celibatários; esses lugares parecem tão monstruosos que se imagina travarem-se aí estranhos combates, que são evidentemente combates estranhos: ninguém lhes conhecerá a verdadeira causa, nem sequer os indivíduos do próprio meio. Trata-se de lutas corpo a corpo, sem piedade, que um motivo insignificante basta para desencadear. Algumas acabam mal, muito mal até, envolvendo mesmo pessoas que não são completamente loucas. Não há trave mestra ou viga acessível que não tenha já despertado, pelo menos uma vez, a tentação de nela atar uma corda maldita; e por aqui existem muitas de grande reputação nesse sentido.

 

Mas o que há lá em cima de mais impressionante é o silêncio; os ruídos que um ouvido atento é capaz de captar no alto das montanhas ainda o tornam mais sensível, ou mais doloroso, segundo o estado de espírito em que nos encontramos. O vento respira (metáfora indispensável ao bom equilíbrio do espírito, diante deste panorama de outeiros despidos que se estendem a perder de vista na sua terrível impassibilidade telúrica) , as folhas estalam sob a chuva, um animal qualquer remexe-se na cama de palha, as castanhas caem com os seus ouriços por entre os ramos das árvores: não há nada que cause um sobressalto a não ser essas chicotadas nas folhas; as árvores secas, entrelaçadas, rangem como traves velhas; ouve-se muito ao longe o uivar das fragas entre as quais deslizam serpentes ou se aninham enormes lagartos, e, muito mais próximo, o estalar das ervas altas pejadas de insectos, sob um sol a pino. Todos estes barulhos pertencem ao silêncio: medem a sua espessura, revelam a sua profundidade, fornecem-lhe a sua consistência. Mas nenhum deles é humano.

 

As estradas passam demasiado longe destes vales suspeitos para que ali chegue o ruído dos raros automóveis que as utilizam. Também não é uma região onde se oiça com facilidade o som dos sinos; as aldeias estão profundamente aninhadas nela, as distâncias são grandes, os obstáculos numerosos, as vertentes demasiado escarpadas para que se possa ouvir tocar ao longe, como é frequente acontecer nas planícies calmas, quando o som se propaga através dos campos, nessas manhãs campestres em que os galos enrouquecem, subitamente desocupadas e endomingadas, graças aos. límpidos repiques perdidos na verdura. Aqui, os domingos não têm qualquer sabor especial. Em todas as épocas, e durante os sete dias da semana, há sempre um silêncio igual; e nada o povoa a não ser esta respiração indiferente do mundo, com a qual terá de se contentar até ao fim, Mas a vida que se leva aqui é dura, oferece tão poucas distracções, que é no cerne das próprias odisseias que ela encontra a sua afirmação peremptória, a sua mais viva razão de ser.

 

Esta atitude revela a obstinação infeliz dos humilhados e dos marginalizados: uma longa história recheada de perseguições, de troças, de vexames - sem esquecer as negligências e os abandonos actuais-, acabou por criar o hábito, senão o gosto, das causas desesperadas. Quando já não se trata de resistir aos dragões do rei, dando caça aos refractários, é este mundo ingrato que se torna indispensável vencer, e sozinhos, desarmados. Isto não se pode levar a cabo sem um certo heroísmo, o qual não está hoje de forma alguma na moda. Também não surpreende que a maioria dos jovens montanheses torcesse o nariz perante uma situação que eles consideravam anacrónica, preferindo soluções medíocres, mas seguras. É por isso que eles metem a chave debaixo da porta sempre que se lhes oferece o ensejo de trocarem o machado ou a charrua pela primeira farda de funcionário que lhes aparece.

 

A não ser que tenham algumas contas a ajustar com um desses demónios que tanto se comprazem numa solidão tão completa, e em companhia do qual vão tentar o impossível. E com as armas de que dispõem, as únicas em que confiam: o machado, a picareta, o arado ou a espingarda,, se isso for necessário. As palavras e as ideias não lhes interessam: identificam-nas com protestos grosseiros e com os desmentidos grotescos da política (ou da religião).

 

As pessoas que encontramos com mais frequência nas Terras Altas são criaturas silenciosas, que aplicam o mesmo silêncio ao cumprimento de todas as suas tarefas. Ninguém sente qualquer desejo de pôr a vida a nu: de contar seja o que for a alguém. Fica-se sozinho em face da montanha a reconstruir caminhos, sozinho no fundo dos poços, sozinho a caçar tordos no planalto ou a apanhar a lebre que irá melhorar a refeição normal, sozinho através dos bosques que abate ou da mata de giestas que desbrava; só, com esse demónio que nos empurra para a luta, quando, afinal, seria tão simples pegar na trouxa e virar as costas a esta terra sem futuro, a esta vida sem alegrias, como o fazem tantos outros. De resto, se perguntarmos a estes homens solitários qual a razão da sua absurda teimosia, eles não nos saberão dar uma resposta, ou então respondem coisas sem nexo; eles próprios são incapazes de se explicar. E é compreensível que sejam assim: o nível em que se situa tal espécie de desafio é tão primitivo, ou tão inconsciente, que impede o principal interessado de fazer dele uma representação preliminar, ou de extrair daí qualquer significado simbólico (os actos falhados na origem, que morrem nas cascas, são bastante férteis nesta espécie de decadência).

 

Mas é tamanha a desproporção entre o objectivo desejado - e confessado de boa fé: cava-se um poço porque se tem necessidade de água - e a raiva do esforço, a paixão, os anos que se gastam e se sacrificam nesse sentido, que é perfeitamente legítimo interrogarmo-nos acerca da natureza real do lucro. (Refiro-me, bem entendido, a um espectador eventual.)

 

Agora, os três homens (que deixámos a meia encosta) atingiram o fundo do vale onde a torrente rumina a sua água negra libertando vapores: lá no alto, nos cabeços, ainda há pouco estava fresco, mas, no fim da descida, a atmosfera, embelezada por um frio agreste, enche-se subitamente duma humidade glacial, pesada como chumbo; torna o hálito fumegante e paralisa o rosto; nestas paragens, mesmo no Verão, há um autêntico pântano de frio estagnado desde o romper do dia.

 

Eis finalmente os primeiros eucaliptos: o riacho já não está longe. No pequeno bosque um pouco fosforescente, reina uma penumbra semelhante às das igrejas; é a hora indecisa em que o céu está mergulhado na escuridão e apenas a terra dá um pouco de claridade. O chão macio, acolchoado de fresco, abafa os passos e quase não range debaixo dos pés. Ziguezagueando por entre as árvores, o carreiro apagado pela neve torna-se irreconhecível e ramifica-se em muitas outras veredas confusas: os homens apenas se podem guiar pela encosta, agora cada vez mais íngreme e escorregadia; carregando aqueles utensílios que se prendem a todo o passo no matagal, é fácil perder o equilíbrio (há realmente um trajecto mais fácil: aquele que eles seguem habitualmente quando levam para a quinta os carregamentos de trigo ou de madeira, um caminho que desce por uma encosta suave, o qual, porém, nunca mais acaba de desdobrar as suas curvas duma ponta à outra da vertente; e esta noite estão mortos por chegar a casa!)

 

Aquelas escorregadelas bruscas, que dão cabo dos rins, levam o primeiro da fila a praguejar como um carroceiro: Abel, conhecido na região pelo Reilham mais velho, a quem o triplo privilégio da estatura (é enorme, bate o pai em altura aí uns dois palmos), da idade (vinte e seis anos) e do temperamento (é um autêntico urso) confere liberdades, e principalmente liberdades de linguagem, bastante grandes em relação à educação que recebeu; na verdade, Reilham é um velho huguenote, muito arreigado aos seus princípios, nomeadamente no capítulo da religião: no seio destas famílias onde a Bíblia é lei há já alguns séculos, onde se está muito agarrado às tradições, visto conhecerem-lhes o valor, serem para eles a única garantia moral, o único sentimento de segurança no meio de tantas tribulações, não se brinca com o céu, e ainda menos fazendo um uso imoderado das invectivas que nele se inspiram demasiado. Outrora, ao menor deslize, apanhava uma semana de castigo a acarretar água - que era preciso ir buscar a casa do diabo mais velho para economizar a da cisterna. Mas logo que o filho curou a ferida com o pêlo do mesmo cão, a partir da altura em que ele começou a brincar com troncos de árvores como se fossem fósforos (voltaremos a falar nisto mais tarde), o velho, foi assim mesmo, passou apenas a abanar a cabeça e a afinar a garganta um pouco mais do que seria necessário, apenas para mostrar que se achava presente, e que desaprovava.

 

Quando chegam acima do riacho, já é quase noite; mas este falso crepúsculo que emana da terra resiste à obscuridade mais tempo do que se possa imaginar. A ravina é tão abrupta e profunda que, por assim dizer, nunca se vê o Sol; é o abrigo de todas essas plantas que proliferam nos sítios húmidos e sombrios, atraindo sobretudo os fetos; as suas folhas, orvalhadas pela geada, começam a vergar-se ao peso do espesso cobertor de neve: devem ter caído uns bons dez centímetros em meia hora. José Reilham vai a pensar que, com um vendaval assim, as pessoas terão de ficar durante bastante tempo a aquecer-se, sem fazer nada. Descem através deste emaranhado, pisando as ramagens frondosas e calcando as hastes já cortadas; tal ginástica é suavizada com palavrões que dão um pouco de animação a este cemitério vegetal. Acordado de repente, um grande pássaro que já se encontrava aninhado na sua árvore, preparado para passar a noite, fugiu rapidamente, sem fazer, no entanto, o mais pequeno barulho: é caso para perguntar como é que ele conseguiu raspar-se tão depressa por entre o labirinto da folhagem; voltou depois a aparecer um pouco mais longe, voando ao longo do leito do riacho, à procura de outra morada.

 

Sente-se um frio glacial irradiando do vale pejado de rochas onde sussurra uma água negra e luzidia, que fumega como se estivesse a ferver e engole os flocos de neve com uma voracidade calma. Os três homens desembocam finalmente na ponte; estão de tal maneira contentes por não ter sido necessário desviarem-se do caminho, ao longo da descida, que, depois de haverem poisado os fardos, vão urinar na neve intacta, que estala entre os seus pés com um ruído cada vez mais grave.

 

Ainda há claridade suficiente para se distinguir a tosca assembleia de troncos, ou melhor, o manto lívido e imaculado com que a neve os cobriu e guarneceu, assim como a tudo em redor, com excepção da água; estes troncos encontram-se entalados entre dois enormes rochedos que os sustém, modelando uma espinha de paquiderme: dir-se-iam dois monstros ajoelhados no fundo duma cripta com um cadafalso gigante apoiado no dorso. Esta noite, o aglomerado de troncos tem algo de sinistro e ameaçador.

 

É a partir daqui que tudo se complica. Dizer-se que bastava terem mudado de caminho, haverem escolhido outro em vez daquele que atravessa a ravina e passa numa ponte de granito sem histórias... Mas não nos antecipemos.

 

Em Maheux, as cartas parecem ter sido jogadas duma vez para sempre: um jogo que não dava ensejo a muitas combinações e não prometia muitas surpresas. Por este lado não havia grande coisa a esperar, e não se via bem que trunfo é que podia cair do céu propiciando-lhes alguma vantagem, ainda que pequena, na partida. Não havia grandes alegrias, nem grandes tristezas: apenas um nunca mais acabar de aborrecimentos, isso sim, mas basta haver pequenas satisfações para nos sentirmos com direito a um lugar no mundo. No fim de contas estavam bem assim; mas não era isso que os levava longe, não os levava afinal a parte nenhuma; dum ponto de vista que não é forçosamente o ideal, esta situação tinha antes tendência a transformar-se num ciclo vicioso. Mas do mesmo modo que um gato é um gato e que dois mais dois continuam a ser quatro, no fim de contas a vida prossegue. Quando é possível comer carne estragada, e só Deus sabe se a comemos ou não, só um grande idiota pode pensar que o apetite depende da qualidade do alimento: seria antes o contrário. Tomando as coisas à letra, José Reilham comeu a sua ração de carne.

 

Foi antes da guerra de 40; mas, nesses lares pobres, uma simples torta de pão esfregada com um dente de alho e temperada com um fio de óleo de noz constituía um alimento tão raro como em tempo de racionamento; quando este veio esvaziar todos os armários em benefício de algumas caves, aquela região estava tão esfomeada que não sentiu nenhuma diferença. O regime das castanhas cozidas sairá vencedor da miséria geral, de tal modo que nessa altura os habitantes das Terras Altas terão a ilusão de fazer parte do número de privilegiados; seria difícil voltarem a estar tão mal servidos como dantes, quando três quartos dos Franceses se empanturravam.

 

Os dois jovens destruidores de ninhos gozavam dessa saúde campestre, corada e prematura, com as maçãs do rosto sempre a luzir, predispostos a congestionarem-se e a morrerem com um ataque cardíaco a partir dos cinquenta anos, apesar da frugalidade das refeições: não conheciam o bife, e pouco mais do que o odor agreste dos guisados da caça que apanhavam. Esta falta de proteínas essenciais abria à sua juventude os horizontes ilimitados dos apetites insatisfeitos: os dois rapazes conseguiam manejar a funda com mão de mestre; atiravam com ela em volta da estrumeira, onde desciam e deambulavam os abutres, gordos como pombos e, quando derrubavam algum, depenavam-no e assavam-no lá em cima, às escondidas, no meio dos xistos e das giestas, debaixo do sol e fustigados pelo vento das manhãs de Abril, límpidas e frescas como a água das nascentes; com uma face gelada e a outra a arder, partilhando a luz, sentiam-se embriagados. O cheiro acre do Sarotnamnus purgans, essa giesta enfezada que consegue vingar a uma altitude onde já não existe vegetação, mergulhava os dois Robinsons Crusoés na deliciosa perturbação do sangue; deixavam-se cair na erva áspera, indolentes e de corpos abandonados, como se fossem raparigas, e, voltando a cabeça, seguiam o trajecto das nuvens; limpo pelo vento, o céu brilhava; para lá dos taludes, a erva luzidia ondulava, falando-lhes também de longas viagens. Mas o calor do Verão e o frio do Inverno eram suficientes, dada a sua diferença, para desdobrar o espaço mágico necessário às verdadeiras aventuras. Um tempo fabuloso que não era da época! Tempo das estações ligadas às paisagens, unindo-se aos seus contornos, ;acrescentando a sua própria geografia à geografia sonolenta dos campos, do mesmo modo que as nuvens elevam montanhas desconhecidas, fascinantes, acima das altitudes terrestres. Quando o coração for destruído, as distâncias serão abolidas, e não haverá oceanos suficientes para lhe inspirarem novos desejos. Desde que o Verão continue a ser quente e o Inverno frio, as pessoas contentar-se-ão em se tornar ainda mais animalescas do que já foram: animalescas como Adão. Qual é o interesse de pegar no machado? E porquê herdar essa maldita doença de meter o nariz em toda a parte, de escarafunchar na vida como se esta fosse um brinquedo, para ver como é que funciona? Que rica ocupação. Não será muito mais agradável bronzearmo-nos ao sol e aceitarmos as coisas como elas são? Mas não, isso seria demasiado simples; os filhos de Adão preferiram a cadeia, e tudo apenas pelo prazer de inchar os bíceps em frente dum espelho. O sol de Outubro reavivava as cores dos gerânios alinhados ao longo dos muros, em volta do terraço; as pessoas permaneciam quietas só pelo prazer de os olhar.

 

As noites de Junho aromatizavam a viela florida, a folhagem das árvores e as plantas estavam imóveis sob o caramanchão, não se notava o menor movimento no ar. Tudo se encontrava mergulhado numa tal calma que era difícil imaginarmo-nos ao ar livre, na presença sempre mais ou menos agressiva do mundo (a mais pequena corrente de ar torna-se por vezes numa angústia terrível), mas sim numa estufa infinita, protegida, como se todo o universo se tivesse tornado subitamente confortável: aquela calma prolongava-se até às estrelas, e os bichinhos aproveitavam-na para se entregarem aos seus afazeres nocturnos. Dir-se-ia que também eles sentem que, nesses momentos, se pode andar com segurança pelo mundo; reina aí uma doçura misteriosa, a intimidade da primeira noite da criação, quando todas as espécies se encontravam reunidas no mesmo lugar, e se conheceram umas às outras sem ter corrido uma gota de sangue. Respira-se com tanta liberdade que a maldição original parece desfrutar de uma trégua incompreensível.

 

Se soubéssemos - é uma maneira de falar, pois seria preciso saber sem saber: outra quimera-, se ele soubesse, ele, José Reilham, não teria nunca pegado naquele estúpido machado nem que lhe tivessem dado todo o ouro do mundo; teria, pelo contrário, continuado durante o resto da vida a rebuscar castanhas e a apanhar lenha no bosque, feito parvo, e a comer o pão que o diabo amassou, até ao fim dos seus dias. Não seria preferível? Tu sabias muito bem, meu pobre amigo, que tudo o que te poderia acontecer de melhor não valia dez reis de mel coado. Lembra-te: quando o presente mostrava tantas exigências, quem é que se apoquentaria com o futuro (ele já leu esta frase em qualquer sítio, mas onde?), com a morte, com o espaço, com as constelações, com a natureza perturbada do mundo, e com toda essa trapalhada?

 

Mas aí está: Deus, o acaso, o destino e tudo o mais que quiserem vai-lhe passar uma rasteira. Os outros dois já chegaram à ponte; dando passos miúdos, pois o chão parece uma pista de gelo. O velho começa a subir do outro lado. Abel, esse, parou, em parte para gozar o espectáculo: este molengão, que até em cima dum banquinho sente vertigens, deve estar neste momento em maus lençóis; tem vontade de fumar. Poisa o feixe de lenha no chão e o machado entre as pernas, faz um cigarro com uns restos de tabaco que trazia no fundo do bolso, molha-o com saliva, acende-o com um isqueiro de gasolina, que deita um cheiro dos diabos, soltando a sua pequena chama tenebrosa e vermelha; os bocadinhos de tabaco inflamam-se encarquilhando-se, deixam cair cinzas; Abel deita o fumo pelas narinas: sob o enorme bigode hirsuto, continua a desenhar-se o mesmo riso montanhês de gengivas descarnadas, a sangrar e sem dentes: desde que se sentou já fez saltar com a navalha uma dúzia de pedaços de madeira podre.

 

José avança, recua, hesita, volta a hesitar; se tivesse de atravessar as cataratas do Niagara sobre uma corda não se encolheria mais de medo. Flocos grandes como dedos polegares fustigavam-lhe o rosto, que ele ia limpando com o cotovelo. Este gesto foi o suficiente para destravar a armadilha.

 

Os outros dois viram-no largar tudo o que levava nas mãos, fazer uma pirueta e cair no precipício lançando um grito agudo de mulher.

 

É do outro lado da sua infância que ele cai. Nunca mais voltará a recompor-se.

 

Foi no princípio do século xix que os Reilham abandonaram os cumes do Aigoual, onde, lá para os lados de Camprieu, os seus antepassados se haviam abrigado das perseguições, para se fixarem em Maheux; uma data que pode ser verificada, assim como as iniciais do defunto, gravadas por mão desajeitada sobre uma laje de xisto colocada no topo do túmulo mais antigo: 1808, uma vintena de anos após o édicto de tolerância que restituía oficialmente aos huguenotes as suas casas, ou o que restava delas. Mas é provável que a origem das construções seja bastante anterior a esta data.

 

Ao redor dum primitivo curral de ovelhas, como que elevado acima do solo pelos anos, quando na realidade foram as camadas sucessivas de estrume dos animais detritos de todas as espécies que subiram o seu nível, ou simplesmente a partir duma pirâmide selvagem onde se abrigavam pastores e madeireiros, a vida foi-se organizando pouco a pouco, prolongando paredes, alargando aberturas para tapar outras, acrescentando uma ala, agregando construções ao acaso, quando a família ou o pequeno rebanho aumentava, e não se podia fazer outra coisa.

 

Esta proliferação de edifícios que se amontoam desordenadamente uns sobre os outros é uma perfeita ruína; o que eu quero dizer é que é impossível imaginarmos que já foram novos e concebidos segundo um determinado plano. Dá antes ideia de que os construíram com detritos ou assentaram em escombros, e que se foram aglomerando num conjunto, de geração em geração, como esses amontoados anárquicos constituídos por esqueletos de certas espécies marinhas que vivem em colónia.

 

De resto, nenhum deles apresenta ornamentos ou requintes supérfluos; não há nada aí que denuncie graciosidade ou uma concessão ao inútil, por mais pequena que seja. Tudo indica pelo contrário uma ocupação brutal dos lugares, por pessoas que tinham manifestamente mais que fazer do que dedicar-se a elegâncias e floreados. Vê-se bem que foi tudo improvisado e, ao mesmo tempo, feito sem qualquer preocupação de aliança com uma terra em que o pouco que dela se tira é arrancado à força, e que por isso não pode nunca inspirar sentimentos amigáveis ou paixões gratuitas.

 

é pela sua agressividade que estas muralhas, por vezes gigantescas, se harmonizam com a paisagem, que, naturalmente, é hostil a maior parte do ano; e esta harmonia não é procurada pelo habitante, mas imposta do exterior, pelo lugar em si. Se alguma aliança existe, esta é duma espécie selvagem, rude, a que une os abrigos primitivos aos rochedos que lhe deram origem e à barbárie de que nunca conseguiram libertar-se.

 

Nos finais do século passado, uma pequena tribo duns oito mendigos (incluindo o velho que se mumificava no seu canto chupando um cachimbo, a mãe e a filha, duras como ferro, os dois ou três rapazolas saltadores de sebes, que passavam mais tempo no meio das cabras do que nos bancos da escola) vivia nestas ruínas, e tenho a certeza de que eram capazes de arranjar o necessário para subsistir. Mal, isso é um facto, no entanto regularmente: bajana, desde o dia um de Janeiro até ao S. Silvestre (castanhas brancas cozidas em água); evidentemente que seria difícil encontrar um nível de vida mais baixo, sobretudo na região dos vales e dos desfiladeiros onde a agricultura só é possível em socalcos: o povo mais miserável de França, como disse Michelet.

 

Mas por mais pobremente que tenham vivido até agora, sem conseguirem pôr um tostão de lado para assegurar o futuro, ou dar a si próprios os pequenos prazeres que lhes propunham as lojas das aldeias onde iam fazer negócio no mercado com os produtos das suas quintarolas, ignorando as mesas bem postas, as dispensas ricamente fornecidas, os armários cheios de roupa, como tinham os artesãos, apoiavam-se, apesar de tudo, numa pobreza bastante estável, e pouco se preocupavam ainda com os problemas de dinheiro. Embora estas regiões, estes cantões e, finalmente, estas quintas perdidas nas profundezas das montanhas ou nos confins dos planaltos tivessem de se manter a si próprias, e se encontrassem mais ou menos separadas do mundo exterior, não se tratava exactamente de miséria, mas sim de uma frugalidade tradicional, a que se tinham habituado sem perderem a decência, visto toda a gente ou quase toda se queixar do mesmo mal.

 

Desde os tempos mais remotos que a troca fazia as vezes de dinheiro, de que quase não precisavam, a não ser para pagar o necessário, por vezes o supérfluo: o café, o açúcar, o tabaco, a pólvora, o chumbo para a caça e o fato de veludo áspero que vestiam no dia do casamento e que cinquenta anos depois levavam para a cova; na lareira havia geralmente uma pequena caixa de ferro que só abriam em último caso e onde tinham acumulado alguns centavos para os remédios; mas o homem de sobrecasaca e calças negras gozará durante muito tempo dum respeito um pouco trocista: se cruzava a soleira da porta três vezes ao longo duma vida, era o fim do mundo, e a sua ciência servia-lhe sobretudo para verificar que o morto já não respirava.

 

O progresso técnico, porém, apertando as suas malhas em volta destas aldeolas onde se vivia uma vida vegetativa e obstinada, abrindo estradas onde antes serpenteavam caminhos sulcados pelas águas, facilitando o acesso às cidades e multiplicando as tentações, virá modificar de repente os velhos hábitos; irá fazer sentir-se cruelmente a falta de dinheiro, a humilhação de o não ter, a angústia de não o poder ganhar enquanto se leva uma «existência de condenado», o desejo raivoso de o arranjar de qualquer maneira. Nestas montanhas, há um abandono brutal de interesse por uma certa maneira de viver, um desprendimento repentino em relação a estes horizontes seculares é o fim duma civilização.

 

A vida destas serras empobreceu rapidamente, retirou-se, drenada pelos vales, mais humanos e acessíveis aos movimentos do século. Foram os jovens os primeiros a quem o isolamento começou por desagradar, desiludidos por uma indigência sem esperança, solicitados pela mudança; estimulados pela efervescência das cidades onde estavam instaladas pequenas manufacturas prósperas, iniciaram a deserção das Terras Altas, e abandonaram sem remorsos uma existência subitamente desprovida de atractivos. Muitas das famílias que ali viviam encontravam-se numa pobreza tal que não levaram senão os trapos que tinham, dentro das carroças que eles próprios puxavam, deixando a apodrecer os móveis carunchosos, e muitas vezes a chave a enferrujar na fechadura. Não foi preciso muito tempo para que as árvores começassem a crescer nas cozinhas, furando com os ramos os telhados fendidos.

 

A guerra de 14-18 despovoou rapidamente os últimos baluartes da solidão; em 1920, Maheux não contava senão um habitante: Reilham, o Taciturno, nascido em 1895, o último desta linhagem em vias de extinção, que ele acabou por restaurar casando com uma prima afastada, aliás perguntamos a nós próprios porquê, visto ele nunca sair da sua toca e nunca dizer nada, excepto algumas orações que pronunciava com uma voz surda no momento de se sentar à mesa. Apesar de apenas a ter visto antes uma única vez (foi em Florar, por altura dum negócio de heranças: ela havia herdado um bosque incluído na propriedade do Taciturno, cujos limites continuavam indecisos), com certeza tinha achado oportuno juntar-se-lhe, não por causa do bosque, que pouco valia, mas em consideração pelos seus modos reservados e pela imperturbável segurança camponesa que havia mostrado ao debater o litígio e ao defender os seus direitos.

 

O casamento foi tratado por correspondência; vivia em Bessèges, com um pai bêbado e dois irmãos mineiros (que trabalhavam na mina e tinham menos de vinte anos). Era uma adolescente de olhos vermelhos, pálida e de ombros febris, que havia substituído com eficiência a mãe, morta de cansaço: loiça para lavar, limpeza de paredes a esboroarem-se, aldeolas superpovoadas, ruas sujas, apitos de fábricas, um universo de fuligem, de salários baixos, de dívidas no merceeiro, contas da farmácia, sentinelas que se colocavam à porta das tabernas, donde traziam os desgraçados a cambalear: pior que os livros de Zola. Chegaram as primeiras cartas de Reilham: comparando-o com os outros, era Virgílio, era a Arcádia e a folhagem das heras; ao abri-las e ao lê-las no meio de toda esta miséria abominável, a priminha julgou estar a abrir uma janela sobre a floresta: escritas num papel bafiento, essas cartas cheiravam-lhe a cogumelos frescos.

 

Imediatamente, a jovem escrava caiu na armadilha do céu azul, do ar puro, das águas cristalinas e das pradarias em flor: o estilo destas missivas chegava a ser tão florido como os campos de narcisos que evocavam; a sua ortografia, tanto quanto ela podia julgar, era irrepreensível, mostrava a seriedade do carácter, a rectidão das intenções - ai!; a letra pomposa, toda ataviada com arabescos e enfeites artísticos, tinha qualquer coisa de celestial, de alado, que o seu pobre coração conhecia a léguas, uma lágrima ao canto do olho, o raminho de violetas, a quadra de pé quebrado: tudo qualidades necessárias para que ela pudesse entrever, além do fim do seu calvário, as felicidades supremas duma vida campestre em companhia deste coração delicado e robusto, alternadamente poeta e camponês.

 

Assim, três meses mais tarde, a pobre rapariga, que não parecia destinada a tornar-se numa montanhesa, encontrou-se lá em cima, no meio das nuvens, mas não como havia imaginado: o céu estava permanentemente cinzento, o ar era gélido, a água era realmente límpida, mas tinha de ir buscá-la longe, muito longe, e quanto às famosas pradarias em flor tratava-se duma muralha enorme, que elevava as suas vertentes nuas a mil metros de altitude. Andava com os pés enfiados na lama o dia inteiro, um barrete de pano na cabeça, um balde cheio de água em cada mão, já grávida de (Abel) e mais cansada do que nunca; não tardou a perguntar a si mesma se realmente havia ganhado com a troca, e se, no fim de contas, a aldeola onde vivera, a imundície, o barulho e a embriaguez não seriam preferíveis a esta medonha solidão, a este convívio tão lúgubre com um lenhador duma sobriedade exemplar, é verdade, mas tão sóbrio em palavras, como em bebidas: em primeiro lugar, tudo dava a entender que nunca tinha existido naquela casa nada que se bebesse, excepto água; depois, também nada dava a entender que o marido, porque a infeliz era de facto casada, tivesse a menor tendência para o romance ou para brincar com as musas.

 

Fora de casa desde o romper da madrugada, fazia um tempo que nem os cães podiam sair à rua estava uma Primavera execrável, o que ainda complicava mais a vida-, com o machado e a enxada ao ombro, apenas um punhado de castanhas como merenda, ou um pedaço de queijo metido no saco (raramente levava as duas coisas ao mesmo tempo), não voltava senão à noite, meio morto de cansaço, de frio, e provavelmente de fome, e todos os dias se repetia a mesma cena: a cabeça inclinada sobre o caldo vegetal quotidiano, as mãos cruzadas, resmungava entre dentes qualquer coisa que devia ser parecida com uma acção de graças, engolia a austera refeição de nariz metido no prato, sem pronunciar uma palavra, e depois ia direito para a cama, onde mergulhava imediatamente num sono não menos austero, que se assemelhava bastante à morte; como tinha o nariz tapado, dormia de barriga para o ar, com a boca muito aberta, como os cadáveres. De poesia, nem sombras! Quanto a brincadeiras, ainda menos: a sobriedade abrangia a cama. Dentro de pouco tempo estava mais morto que vivo. Ela acabou mesmo por admitir que ele chegava a ser sinistro, reservado: mas como diabo é que tinha conseguido escrever-lhe cartas tão sentimentais, tão romanescas? Só se não fora ele o autor dessas missivas que ela relia cada vez mais perplexa. Durante muito tempo interrogou-se acerca das trevas misteriosas da alma humana, tentando explicar a atitude contraditória do marido como sendo um excesso de timidez, mas não ousava dizer-lhe fosse o que fosse, pois ele metia-lhe medo. Até à altura em que, ao remexer no celeiro, encontrou um embrulho dissimulado sobre uma trave; não lhe pareceu tão poeirento como tudo o resto que ali se encontrava, e isto espevitou-lhe a curiosidade: e se fosse dinheiro? Em Bessèges não faltava quem afirmasse que os habitantes da montanha, tão avarentos, seriam capazes de morrer na mais negra miséria em cima dum colchão recheado de notas de banco.

 

Qual! Era apenas um maço de jornais, uma velha colecção de La Vetté des Chaumières; de que ela folheou alguns números: funesta iniciativa! Sentiu que o sangue lhe deixara de circular na cara: o essencial da sua correspondência amorosa encontrava-se ali imprimido, frases inteiras, preto no branco (cinzento no amarelo: eram jornais muito velhos); no lugar do marido, saber-se descoberta, bastar-lhe-ia para morrer de vergonha. Foi essa a única razão que a impediu de lhas atirar à cara nessa mesma noite, quando ele chegou. O assunto ficou por aí, mas aquilo estava-lhe atravessado na garganta e, pouco a pouco, a noção de ter sido enganada, exacerbando-se, degenerou num rancor tenaz, tanto mais tenaz quanto as condições em que vivia não lhe permitiam esquecer o incidente: não havia água, pelo menos água corrente, nem electricidade, nem sequer conforto ou dinheiro; apenas um futuro tão limitado como esse lugar onde vivia, sem horizontes, sem vizinhos, sem ninguém com quem pudesse desabafar, a não ser este surdo-mudo, e que ainda por cima a tinha mistificado. Além disto, um clima assustador, sobretudo para uma rapariga dos vales, quase da planície... Era bem pior que em Bessèges.

 

Pela ordem natural das coisas, o inferno mineiro donde o Taciturno a havia tirado tornou-se, em contrapartida, num paraíso terrestre que ela enfeitou de recordações qual delas mais maravilhosa. Que saudades sentia desses fumos, desse rumor fabril que haviam inflamado o cenário da sua juventude! Aqui: o silêncio. Já nem sequer sentia o tempo a passar; neste desfiladeiro deserto onde a vista se esmagava contra os imensos parapeitos do planalto, e onde as nuvens projectavam sombras frias e movediças que a deprimiam mais do que qualquer outra coisa, os dias assemelhavam-se duma maneira depressiva: dir-se-ia que escorregavam sobre a sua vida sem trazerem outra mudança, a não ser a das estações do ano, enquanto ela permanecia imóvel, impotente para retardar o seu desfecho, encurralada na interminável agonia das horas, ao mesmo tempo que à sua volta se ia acelerando o movimento circular.

Tinha nascido Abel. Por vezes, parava estupefacta ao vê-lo já correr por entre as ervas; é verdade que ele tinha nascido quase sem ela dar por isso. Novembro de 1922: dores num quarto glacial, com a assistência duma parteira, mamuda e espartilhada, de respiração sibilante, que pedia insistentemente café e fumava sem interrupção; uma guinada forte nos rins, que a obrigara a arquejar, e, por fim, o desaparecimento instantâneo das dores e ao mesmo tempo das forças, como se tivessem sido vertidas naquele pedaço de carne independente, que por seu lado ia gritando, umas palmadas nesse boneco engelhado, a escorrer água, feio que metia medo, que em seguida desabrochava como uma crisálida adquirindo as suas formas, as suas cores naturais, a miar com fome; durante toda aquela carnificina, o pai, de pé junto à cama, todo orgulhoso, consciente da sua paternidade, muito embaraçado perante aquela confusão, empurrado para um canto pelas cotoveladas daquela mulher com braços de cozinheira, que não suportava maridos; ali estava ele, culpado e canhestro, vagamente cornudo. Ainda mal se tinha de pé e logo o ciclo infernal recomeçou ainda pior do que até então, agravado por contínuas lavagens de roupa, baldes de água para acarretar, mamadas que se esgotaram rapidamente num peito já de natureza moribundo. As recordações foram caindo cada vez mais depressa no passado, as estações do ano chegavam cada vez mais cedo. Quer Abel tiveisse três meses ou três anos, dir-se-ia que isso nada adiantava, e foi preciso que, ao fim de oito anos, ela ficasse à espera dum segundo filho para compreender que estes três anos tinham durado oito. Mas, além das barrelas, das varizes e dos primeiros reumatismos, que mais se tinha passado durante estes oito anos?

 

Nada. Realmente, nada, nem sequer a compensação das suas desilusões sentimentais e dos seus dissabores domésticos, nem mesmo a aquisição desses pequenos objectos tão úteis em caso de angústias morais, essas pequenas coisas que costumamos namorar com os olhos, que amimamos ao longo do dia, sobretudo nos maus momentos: o conforto, os tarecos, é ainda o que há de melhor para lutar duma maneira eficaz contra o absurdo gritante da existência.

 

O Taciturno continuava a merecer a alcunha; a água era à mesma fria, o clima rude, a terra ruim, o porta-moedas permanecia vazio. Se comprava uma insignificância, isso provocava um escarcéu, discutia-se o assunto durante seis meses. A situação não melhorara, a tendência era até para a piorar, pois ao fim de dez anos não se têm as mesmas razões que no primeiro dia para se esperar que as coisas mudem. Quando ela se sentia sem forças e sem coragem, deitava-se, e ali ficava sem se mexer durante três dias, alegando que tinha «nuvens na cabeça».

 

O filho tardio nasceu de parto prematuro na altura dos gelos e das nortadas de Fevereiro, no ano da graça de 1931. Era ainda mais feio que o irmão, só pesava dois quilos e meio, o que não representava muito para uma criança do sexo masculino. Na verdade era um miúdo ruivo, de compleição leitosa, em que o desenvolvimento genital muito deixou a desejar. Não era só nesse aspecto que as coisas não funcionavam bem. Uma parte das nuvens que a mãe tinha na cabeça deviam ter emigrado para a dele: ficava muito tempo a fixar o vácuo com os olhos esbugalhados; a sua posição natural era de rabo para o ar e com a cabeça para baixo, como um sempre-em-pé cujo lastro houvesse sido posto por engano na parte de cima e não na de baixo. Tinha uma cabeça enorme, de bebé intelectual: além disso, durante muito tempo, temeram que ficasse idiota.

 

Puseram-lhe o nome de José Samuel. José, a fim de perpetuar a memória do avô materno, o bêbado de Bessèges, que acabara de deixar este mundo (ela tinha-o ido enterrar entre uma crise de nuvens e as primeiras cólicas, desencadeadas sem dúvida pela emoção). Samuel, por ser um herege.

 

Este viria a tornar-se o seu preferido, por diversas razões. Primeira: visto o mais velho ser o perfeito retrato do pai, em pior, não podia haver entre ela e ele uma afinidade verdadeira; a sua fibra, sem hábitos de ociosidade, só pedia qualquer coisa que a fizesse vibrar. Segunda: as crianças concebidas por volta dos trinta anos ou depois representam os últimos cartuchos da juventude, sendo a capacidade de dar à luz a prova menos contestável; mas como esta juventude é muito relativa, no momento em que começa a precoce velhice das gentes do campo, as crianças nascem débeis, e as mães ainda contribuem mais para agravar essa debilidade devorando-as com uma espécie de ternura maníaca, tão esgotante para elas como para a criança. Terceira: o seu rebento tinha uma saúde tão periclitante que ela reconheceu ou julgou reconhecer nisso o prolongamento da sua própria fragilidade; uma fragilidade de ferro, diga-se de passagem: a chuva, o gelo, a neve o vento, os invernos terríveis, os verões bruscos e tropicais obrigavam-na a cometer façanhas quotidianas capazes de matar um boi.

 

Desta vez foi uma tia do seu falecido pai, descoberta e notada pelo espírito de iniciativa que demonstrou ter no dia do enterro que ela própria organizou, que a assistiu durante o parto. «Nem penses em gastar o teu dinheiro com uma dessas curiosas», dissera-lhe ela, «comigo não gastas nada». Apesar da ambiguidade desta frase, ela assegurava ter posto no mundo, ou ajudado a pôr, uma quantidade impressionante de rebentos de ambos os sexos, todos sãos, afirmava ela, e sem as mães terem sofrido, se bem que a descrição desses partos desse mais ideia duma cena de tortura ou dum feito de guerra do que de uma operação natural: sangue pelas paredes, corpos torcidos com dores pavorosas, estertores mórbidos, gritos causados pelos ferros, cesarianas, febres puerpurais, complicações dramáticas, nada faltava ao quadro destas atrocidades, a não ser (o que parecia miraculoso) os resultados fatais que qualquer pessoa tinha o direito de temer. No entanto ela prometeu que tudo correria pelo melhor.

 

Depois de algumas transfusões de sangue e da administração intensiva de soluto de cânfora e outros estimulantes, pelo médico de Florae, que havia sido chamado de urgência, os dias do parto deixaram de ser perigosos. Embora o médico em questão tivesse chegado lá a casa com os braços levantados para o céu e houvesse caído a encolher os ombros, esta perigosa criatura readquiriu o seu prestígio, provocando, com uma mistura feita por ela própria, uma diarreia verde e obrigando o pequeno aborto a engolir uma quantidade enorme de leite puro. Salva a criança, a tia aboletou^se lá em casa durante um mês, arvorando um desdém triunfante.

 

Depois de ter tentado arruinar este lar, sem dúvida pobre mas tranquilo, dedicou-se a escavar as suas bases, criticando sistematicamente o pouco que aí se fazia, a maneira como o faziam, as aptidões do chefe de família, insinuando que ele devia beber às escondidas e profetizando desgraças para o futuro, doenças, toda a espécie de infelicidades irrevogáveis; dizia à sobrinha que, se não tivesse cuidado com os filhos, estes abandoná-la-iam num canto, viúva, miserável, impotente, e que acabaria os seus dias na palha, devorada pelos vermes (a pitonisa estava longe de saber a que ponto eram verídicas as suas predições). Uma vez que tinha criticado e vaticinado até se fartar, já não havia quase nada direito dentro daquela casa, a começar pela própria casa, que dava ideia de ser apenas digna dum curral de porcos; o Taciturno, bem entendido, fora atacado antes das paredes, pois o apetite de destruição desta mulher não tinha limites. Ah! Porque é que ela não se havia antes casado com um simples funcionário, em lugar de se ter metido com um madeireiro, que continuaria madeireiro até ao fim dos seus dias!

 

Por fim, aconselhou-a a vender tudo - se encontrassem alguém suficientemente louco que quisesse comprar este jazigo de família - e a irem morar para bem longe daquela região que enlouquecia as pessoas, daquelas sinistras montanhas, e, como não podia acrescentar o marido à lista, sugeriu que ele fosse para a Guarda Republicana, pois não era demasiado velho para isso (32 anos) e visto ser suficientemente desempenado para exercer tal ofício - ou então que se empregasse como jardineiro nos Países Baixos, que era mesmo ali ao lado e onde as pessoas levavam uma vida regalada. Descreveu então uma existência de sonho - que, vendo-se bem, até era possível concretizar-se, contando que se herdasse uma fortuna ou se ganhasse o primeiro prémio da lotaria nacional -, mas os cravas como ela não estão com meias medidas; era uma maneira como outra qualquer de fazer esquecer as suas imprudências e de pagar a sua diária.

 

Tendo despejado gota a gota o veneno nos ouvidos da sobrinha, a víbora, depois de esgotada a peçonha, desamparou a loja por uma bela manhã, indo reabastecer-se para outro sítio, e perturbar mais uma família.

 

Infelizmente, os seus ditos venenosos e as suas divagações, ainda mais nocivas, não tinham caído em saco roto. E, de facto, havia muito de verdadeiro no seu libelo acusatório. Enroscada na cama, enquanto escutava a chuva a bater nas janelas e o vento, com um sopro profundo que vinha da floresta, a sacudir as portas nos gonzos, ingénua punha-se a dobar esta meada de sonhos que a tia viperina lhe havia deixado ao partir. Já se via instalada num mundo de pomares opulentos, de terras férteis, de águas correntes, de boa vizinhança, de armários e arcas cheios, de tal modo que foi preciso abandonar rapidamente o sonho e voltar à realidade. As nuvens regressaram à sua cabeça, mas, desta vez, com uns laivos de sol iluminando o seu marasmo: o Taciturno, a quem ela numa noite de brincadeira revelou este projecto (venderem tudo e irem-se embora), não se mostrou tão reticente como era de esperar: por trás da sua taciturnidade, talvez ele também estivesse farto de trabalhar que nem um mouro por uma coisa que não valia a pena, de se massacrar a reconstruir paredes despedaçadas pela fusão das neves e pelas tempestades, de ceifar prados cujo declive o obrigava a atar-se a uma árvore como um animal de carga, de comer o que o diabo amassou, e tudo isto para o fim de vinte anos estar tudo como dantes. Assim, prometeu pensar no assunto e vender as coisas àquele que oferecesse mais. Pela primeira vez naquela noite, a mulher sentiu-se no céu.

 

E claro que não apareceu ninguém, ou porque o Taciturno faltou ao prometido, passadas que foram as loucuras daquela noite, ou então porque as pessoas não são assim, tão doidas como parecem: ainda não se estava na época em que um monte de pedras, desde que se encontrasse em plena natureza, atingia um preço astronómico. As nuvens voltaram a tornar-se espessas; os anos passaram, os filhos cresceram, fortalecidos pelos corvos assados e pelas avalanchas de tarefas enfadonhas que se abatiam sobre eles, sempre que faziam uma asneira.

 

Mas a esperança faz viver. Um belo dia receberam uma visita: um citadino de sangue fraco e gostos rústicos palmilhava aquela região, com ideias de acabar aí os seus dias. Andava à procura do deserto, da calma, da vida austera, Maheux vinha mesmo a calhar; já se preparava para meter a mão à bolsa; marcaram uma entrevista com o notário de Floral, e a venda foi fixada para o princípio de Setembro. Estava-se em Julho de 1939. Foi um Verão particularmente tórrido. No interior de todos os cafés das aldeias, nas cozinhas cheias de moscas, ouvia-se o ronco dum bicho esquisito através dos postos de rádio, que a tempestade transformava num espirrar horrível.

 

No dia 10 de Setembro, os Reilham deslocaram-se a Florae. Havia uma multidão no cais da estação: pares abraçados, mulheres com a cara cheia de lágrimas, polícias prontos a fazerem fogo sobre eventuais desertores, crianças que nunca se tinham sentido tão felizes na vida como naquela altura; aproveitavam-se da consternação geral para lançar aos soldados mobilizados mãos-cheias de amores-de-hortelão 0), para que eles se lembrassem da sua terra.

 

- Esse asunto do notário ficará para mais tarde, depois da guerra, quando tivermos dado cabo do Hitler - disse o Taciturno na altura em que o comboio se pôs a andar.

 

Realmente era preciso que ele estivesse muito transtornado para ter falado tanto; apesar deste

 

(*)-Flores características desta região. (N. do T.).

 

projecto tão audacioso, apresentava um ar miserável trazia o fato engelhado, o cabelo hirsuto, a barba azulada, enfim, esse aspecto inexplicável de quem acaba de fugir da prisão, que quase sempre apresentam os civis quando viajam sob autoridade militar - como se a guerra já tivesse acabado.

 

Nascido em 1922, Abel não tinha muito a recear duma guerra que, segundo a opinião de toda a gente, terminaria ao fim de seis meses, e, seria escusado acrescentar, com uma vitória retumbante: era uma especulação imprudente. Mas, como a partida do pai o deixou a braços com a quinta e os trabalhos rudes, passou imediatamente a ter o humor sombrio e a dureza própria dos adolescentes sobrecarregados de responsabilidades.

 

Foi um homem quase feito que Reilham veio encontrar em casa quando, em Julho de 1940, chegou, trazido pela onda heteróclita de criaturas cobertas de poeira, esfomeadas e selvagens, que veio precisamente rebentar naquela região, como se lá em cima, no Norte da França, tivesse caído do céu uma coisa enorme e aterradora, precisamente no meio dum mar humano; ele próprio vinha quase morto por esta gigantesca debandada, pelo pesadelo que ela lhe tinha causado, onde ao mesmo tempo se misturavam a fadiga, a insónia, as caminhadas extenuantes, as estradas tórridas e os comboios bombardeados, mais por isto do que pelos acontecimentos, para ele incompreensíveis, e que considerava catástrofes até certo ponto naturais, inevitáveis, contra as quais nada resta fazer, excepto meter a cabeça entre os ombros sem procurar compreendê-las. Reilham tinha o ar atordoado do pobre diabo que não chegou bem a perceber o que lhe havia acontecido, e se sente incapaz disso; a todas as perguntas que lhe dirigiam, dava mais ou menos a mesma resposta, timidamente, com uns certos laivos de admiração:

 

- Que tareia! Que bela tareia! Estas palavras que ele pronunciava incessantemente, sempre a abanar a cabeça, pareciam indicar o limite extremo das suas faculdades de penetração mental, assim como que uma espécie de fascínio tenebroso que tudo aquilo exercia sobre ele, sem dúvida porque não conseguia levar mais longe a sua investigação. Para além deste brilho vago de lucidez, o seu espírito continuava mergulhado num abismo de confusão e obscuridade, digna do flagelo indiscutível que se abateu sobre a França. Via-se que ele estava ligeiramente escandalizado, mas era apenas como se tivesse assistido à derrota da sua equipa favorita de futebol, sem se notar sequer que fosse o desastre que o impressionasse, antes o escandalizando esta confusão inexplicável.

 

Parecia também bastante contrariado com a perda dum velho canivete que tinha levado consigo e que trazia sempre no bolso, o qual, segundo dizia piscando o olho, não se encontrava certamente perdido para toda a gente.

 

Não fazia grande ideia da guerra em si, do destino da França perante o avanço fulminante dos exércitos alemães, das armas diabólicas de que estes dispunham, e cujo aspecto bizarro e sinistro, somado a uma eficácia espantosa, obcecava aqueles que tinham tido o privilégio de os ver actuar de perto (toda a gente ficara impressionada com a estranha silhueta dos «Stukas», as suas asas quebradas e o trem de aterragem fora da fuselagem, que evocavam irresistivelmente uma espécie de abutres a descer sobre as presas, de garras em riste, bem como com certos blindados de canhões na parte da frente, que metiam bastante respeito), não fazia uma ideia muito clara de tudo isso e talvez nem sequer fizesse ideia nenhuma, tendo-se encontrado no meio de toda aquela confusão como um pacóvio no meio do barulho, incapaz de ver mais alguma coisa para além do que se passava debaixo do seu nariz, as dores de estômago - provocadas pelas rações da tropa e que ele não chegava a digerir-, essas noites em claro, passadas no fundo duma fossa ou no meio das matas, o cúmulo da infelicidade para um homem do campo, que em geral não tem nenhuma inclinação para fazer campismo.

 

A ponto que, após duas ou três noites bem. dormidas na sua cama, já parecia ter esquecido tudo, e, muito fresco e bem disposto, lá partia de madrugada para os seus bosques e pousios, como se nada se tivesse passado, como se apenas os houvesse abandonado na véspera, sem se preocupar com a continuação dos acontecimentos; acerca «dessa bela tareia» que, de qualquer modo, corria o risco de mudar a face do mundo, não se voltou a falar de um ou outro episódio mais concreto «dessa história», termo que ele empregava encolhendo os ombros, indício duma vaga indignação.

 

Durante alguns dias, soprou na região esse vento bárbaro e novo que deixa atrás de si graves prejuízos. Todos os comboios especiais que chegavam, todas as filas de camiões carregados ou de automóveis aos solavancos, no silêncio destes altos desfiladeiros, lembrava o êxodo; os comboios de refugiados atraíam pessoas para a berma das estradas, como antigamente a passagem da Volta à França: era uma espécie de quermesse espectacular, cujo maior atractivo fosse o fim do mundo - ou pelo menos o fim de um mundo. Por todos os caminhos de cabras que serpenteavam pelas encostas da montanha, viam-se descer, ao fim do dia, famílias inteiras que se sentavam nos taludes à espera de notícias mais frescas, comentando a situação com frases sagazes; circulavam os rumores mais fantásticos, acordando antigos terrores em que se misturavam facilmente o maravilhoso e a actualidade; as crianças, excitadas como pulgas por todo este movimento, continuavam entusiasmadíssimas com tudo aquilo, organizavam os seus próprios combates nos matagais, cercando o inimigo invisível, quais soldados infatigáveis. Alta noite, ouvia-se o ranger do cascalho dos caminhos, e, acima do marulhar das águas, elevava-se o sussurro mais nítido das conversas ressoando no ar calmo, quando as pessoas regressavam a penates, uma vez que a sua febre diminuíra, e depois de se certificarem de que a noite havia esgotado as surpresas.

 

Em casa dos Reilham, a guerra tinha posto fim aos belos sonhos. Visto o comprador providencial, sem dúvida desiludido com o seu projecto num momento de lucidez, não mais ter dado sinal de vida, o assunto foi arquivado, à espera de melhores dias: adeus vitelas, vacas, porcos, ninhadas...

 

Paradoxalmente, os anos da ocupação, embora sombrios, tinham assinalado a monotonia da sua existência com uma trégua um pouco mágica, na medida em que modificaram a ordem habitual das ocupações. Feitas as contas, nem por isso conservavam desta época conturbada uma recordação muito desagradável: com a cumplicidade dos acontecimentos, haviam caído sem querer nessa mentalidade infantil que descobre no mal dos tempos a solução miraculosa para os seus problemas e contrariedades, e em particular essa incerteza do amanhã, graças à qual se afasta momentaneamente o espectro da disciplina e dais sanções irrevogáveis: o ar cheirava a terra queimada, às escolas que se fecham, às instituições em suspenso. A partir do momento em que a maior parte das pessoas se queixavam do mesmo mal, os problemas pessoais eram mais facilmente postos de remissa.

 

Julgar-se-ia até que através destas paragens inanimadas onde pesava o torpor dos séculos, onde não se passava nada que ajudasse a viver, se iniciava agora uma espera misteriosa, como se se aproximasse o tempo dos sinais e da Revelação. Sem querer, as pessoas pensavam que nesses cumes desertos apenas visitados pelo vento, se iria produzir não se sabia que surpreendente fenómeno, capaz de transtornar o movimento normal das coisas; era um medo vago, mal definido, que apenas tinha uma longínqua relação com os transes reais que atravessavam, ou com os perigos que ameaçavam o mundo inteiro. O encadeamento das tarefas havia diminuído consideravelmente: aquilo que se fazia hoje não se estava certo de o voltar a fazer amanhã e, quanto ao futuro, tinha-se chegado a um ponto em que o não encaravam sob o ângulo pessoal, mas sim como um apocalipse muito possível que dizia respeito ao conjunto da população, duma maneira global, e que os libertava em parte dos seus próprios temores: para quê alguém inquietar-se consigo mesmo, se todo o mundo estava sujeito ao mesmo? Como é que se pode falar de futuro numa altura em que a Terra inteira está a ferro e a fogo?

 

Até à Libertação tinha-se vivido neste clima de incerteza. As Terras Altas encontravam-se na situação duma praça forte poupada pelos combates, mas num perpétuo estado de sobressalto, e sempre alerta. Entretanto, por uma espécie de compensação, ou de mudança de sorte, esta província miserável, isolada, como se fosse o tecto da França, e deixada ao abandono num período de prosperidade, havia sido menos sensível às sequelas da guerra e à derrota do que algumas regiões mais ricas e mais favorecidas em tempo normal. O seu isolamento, a sua pobreza e o pouco interesse estratégico que oferecia, sem que isso a tivesse poupado às crueldades do ocupante - que via neste deserto de florestas, colocado num ponto alto, a fortaleza ideal do terrorismo -, tudo isso, apesar dê tudo, contribuíra para salvaguardar a sua integridade: uma vez que se tinham habituado a viver e a alimentar-se em circuito fechado, a contentarem-se com pouco, os seus habitantes não se sentiam prejudicados com as restrições, como acontecia com aqueles que anteriormente tinham vivido na abundância. Era a vantagem do magro em relação ao obeso, do pobre em relação ao próspero, do sóbrio, que resiste às doenças do bem-estar, em relação ao imoderado, a quem elas aterrorizam. Bastou que tudo faltasse em toda a parte para que o pouco que possuíam alcançasse de repente um valor inestimável.

 

Logo que os Alemães invadiram a zona sul, as Terras Altas entrincheiraram-se por trás das falésias e dos seus cumes arborizados, onde se ouvia o sussurrar de hóspedes clandestinos e de vaivéns nocturnos. Faziam-se pequenas trocas entre os grupos de famí-

 

lias, uma permuta secular de material para o trabalho e de vitualhas, a qual equilibrava a economia de cada um e contribuía para que esses solitários se aproximassem uns dos outros. Das quintas para as herdades, das pastagens para os redis, as mercadorias eram transportadas às costas e as notícias passavam de boca em boca, como no tempo das sortidas dos dragões ou das grandes invasões.

 

Muitas vezes, durante as longas noites de Inverno, quando a neve bloqueava todas as vias de acesso ao planalto, reuniam-se uns em casa dos outros para resolverem em comum os problemas que se lhes apresentavam naquela altura, para criticar a situação geral ao calor da lareira. Estas pequenas reuniões, idênticas às que faziam os antigos no tempo das guerras religiosas, tinham lugar, a maior parte das vezes, em casa dum tal Mário Despuech, em Mazel-de-Mort, centro nevrálgico donde irradiavam os caminhos principais que levavam até às quintas isoladas. Aí, reunidos ao redor da fogueira, enquanto a tempestade varria essas altitudes desertas, bebia-se o vinho de Clinton, acre e negro como tinta, e comiam-se castanhas assadas jogando às cartas e ouvindo o velho a contar histórias sobre os camisards. Os mais novos entretinham-se a limpar velhas espingardas de carregar pela boca que haviam desencantado no celeiro; já se imaginavam a participar em possíveis emboscadas. Agachados num canto da lareira, os miúdos observavam-nos arregalando os seus olhos de gato, de respiração suspensa. Os velhos, por seu lado, meneavam continuamente a cabeça, e ninguém sabia muito bem se este movimento indicava uma aprovação qualquer ou se era simplesmente um efeito da senilidade.

 

Numa noite de Março de 1943, quando a escuridão do Inverno começava a clarear, embora, nas encostas sombrias, velhas placas de neve dura e incrustada de folhas continuassem a amarelecer os valeiros, a porta abriu-se de repente para dar passagem a um velho pastor de Saint-Julien, que vinha todo suado e a arquejar:

 

- Os boches! Já aí estão! Já chegaram! O homem estava quase a sufocar; foi preciso obrigarem-no a sentar-se e deram-lhe de beber. Por fim lá conseguiu explicar que ao princípio da tarde, subitamente, o zumbido dum grande moscardo tinha feito estremecer os vidros, o que levou toda a gente a precipitar-se para as janelas; e tinham visto da ponte de Saint-Julien, a descer do desfiladeiro de Jalcreste, pela estrada de Cassagnas - a estrada das planícies, aquela que havia sido outrora conquistada pelos bárbaros, pelos realistas enfim, a que fora sempre a estrada dos aborrecimentos -, uma lagarta enorme e esverdeada que serpenteava ao longo das curvas; e enchia todo o vale com um barulho horrível de ferros esmagados: era escoltada por algumas autometralhadoras, responsáveis por todo este tumulto, um grupo de camiões cheios de soldados. Ora esta, o que é que viriam ali cheirar esses malditos escaravelhos?

 

Pois bem, tinham estado à espera de que a neve se derretesse para pilhar a região, desbaratar algumas quintarolas ao acaso, incendiar uma meia dúzia de apriscos que tinham fama de albergarem resistentes e prender manu militari os recalcitrantes que vinham mesmo a calhar para o S. T. O., os quais, por estas bandas, forneciam já à Resistência muito mais partidários do que trabalhadores na Alemanha, Os mais novos, aqueles que tinham limpo as espingardas - os de quarenta, quarenta e um e quarenta e dois anos -, seguiram imediatamente pelo caminho do bosque: as suas sendas, os seus esconderijos e as suas tocas eram-lhes familiares. Para estes montanheses, cuja vida de lenhador obrigava a passar vários meses do ano em cabanas da floresta, isso não constitui uma grande mudança; reuniram-se em grupos nos cumes mais escarpados, no fundo dos vales menos acessíveis da região, e, se não fosse alguns malandros haverem denunciado, duas ou três vezes, as suas deslocações e os locais de reun;ão, eles não teriam conservado senão boas recordações desta aventura, que, para alguns, terminou na ponta duma corda ou nas câmaras de gás.

 

Logo que começaram a receber ordens e na altura em que foi preciso começar a actuar, Abel fez ouvidos de mercador: ele bem queria ser um resistente, mas preferia sê-lo sozinho, juntar-se aos outros e ser obrigado a viver em grupo, isso é que não lhe interessava nada. Era um solitário e pretendia continuar a sê-lo mesmo no maquis.

 

Os chefes do movimento encolhiam os ombros: que se arranjasse! Desde a juventude que sabiam com quem estavam a tratar: com um urso, e que mal sabia falar francês. Nos acampamentos de Villemagne, onde Abel Reilham havia estado constrangido e forçado durante alguns meses, ninguém tinha tido vontade de conviver com este selvagem, que chegava a parecer um pouco atrasado, mas que era forte como um turco, ou como dois turcos, o que não animava de modo nenhum os companheiros a fazerem-lhe partidas. O zelo obscuro que se adivinhava nele fazia com que o designassem de antemão e automaticamente para as tarefas mais difíceis ao ar livre: limpar a neve, abater árvores para o revestimento das minas, arrancar os tocos, cavar trincheiras que não serviam para nada, mas que lhe mandavam abrir para estar entretido com qualquer coisa: tudo isto o tornava feliz. Estava sempre sozinho no seu canto; nunca pronunciava uma palavra; não se misturava com os outros, ficava no campo quando os companheiros iam passear ou correr as tabernas dos arredores, e durante as vigílias entregava-se a misteriosos trabalhos de agulha ou a consertar sapatos; apesar da promiscuidade do acampamento, os seus hábitos continuavam a ser os dum homem da floresta que não se sente atraído pelo vale nem aí fica retido; e até a sua maneira de comer, sentado num tronco longe dos outros, economizando os gestos, como esses pastores’ que partilham a broa e a solidão com os cães, o facto de ser sempre o primeiro a deitar-se e o primeiro a levantar-se, de se embrulhar num cobertor sem se despir, como se estivesse ao relento, dormindo com o nariz voltado para a parede, indiferente à animação da camarata, ou às graçolas que ele poderia ter provocado, fazia com que os outros o sentissem separado, protegido daquilo que o rodeava por uma espécie de inércia animal, primitiva, imperturbável, que dir-se-ia ligada às próprias origens da vida.

 

Foi portanto sozinho e por sua alta recreação que passou a fazer parte da Resistência, vivendo isolado, ou quase, lá em cima durante mais dum ano, nessa mina perdida no planalto, a meio caminho entre Tardonenche e Balazuègnes.

 

Era uma velha construção encalhada como uma arca de pedra no cume dum morro donde fugia, a perder de vista, em direcção a oeste e aos montes de Aubrac, a imensa ondulação dos planaltos. O refúgio era seguro, uma vez que, a partir da entrada do aprisco, rapada até ao osso pelos rebanhos, aos quais por vezes servia de poiso, a região divisava-se por completo, nua e nítida em todas as direcções; e, em caso de alerta, havia, não longe dali, no bordo do planalto, uma espécie de chaminé que se abria a pique, indo desembocar em pleno bosque, uma vintena de metros mais abaixo, e pela qual ele podia fugir.

 

Um saco de passas e a água duma cisterna chegavam-lhe para se alimentar; dormia na palha, parecia insensível às intempéries, ao calor abrasante que assolou aquele deserto durante os dois terríveis meses de Verão, aos nevoeiros e às chuvas contaminadas do Outono, aos frios que as vieram substituir, às noites glaciais e aos ventos que varriam esta estepe e crivavam de correntes de ar as paredes de pedras secas que nenhuma argamassa do mundo poderia juntar; havia enfim essas solidões bárbaras com as quais ele parecia dar-se bem, quando outros mais coriáceos teriam decerto desanimado com uma convivência tão severa: ele, pelo contrário, acomodava-se tão bem ali que só descia a Maheux em último recurso, quando não tinha mais nada para roer - hirsuto, barbudo, a cheirar a carneiro, a feno velho e a gado, sujo de meter medo; parecia um lobo que a fome obrigasse a sair do fojo.

 

No entanto, na época mais dura dos trabalhos do campo, veio em auxílio da família, ajudando-a na ceifa e na floresta, indo ao seu encontro de madrugada, sem correr qualquer risco: nessas altas terras em socalcos, acima dos bosques, a situação era ideal para vigiar o vale e a sua entrada, assim como as serras vizinhas. Mas, ao cair da tarde, voltava ao seu refúgio- vagueando na superfície leitosa do nevoeiro, como o destroço de um navio fundeado ao longe nas noites de luar-, um pouco ébrio com todos aqueles dias de silêncio e por esta solidão pura a que havia tomado gosto, ao ponto de os animais dos bosques se lhe haverem tornado mais familiares do que os próprios semelhantes; todas as manhãs decifrava em volta do redil os sinais que eles haviam inscrito delicadamente na geada.

 

Mais tarde, como um autêntico Robinson destes grandes espaços, tinha mesmo chegado a tentar melhorar as suas instalações, como se, graças aos acontecimentos, ao enraizamento dum estado de guerra incerto e ilimitado, esta vida sem amarras, aberta à liberdade dos horizontes vastos e dos céus instáveis, não devesse nunca acabar.

 

Começou a restaurar o forno arcaico escavado na espessura da muralha, junto à chaminé, cuja abóbada estava meio desmoronada; se a conseguisse arranjar, podia utilizá-la para cozer pães de centeio, que ele nessa altura recheava com tordos apanhados numa armadilha formada por um sistema de pedras chatas e de hastes de madeira que colocava dentro dos tufos de zimbros ou de buxo que havia ali nas redondezas. Limpou a cisterna e calafetou as rachas por onde se escoava a sua reserva de água; substituiu as telhas partidas do telhado, até então constelado de bocados de céu; confeccionou com toros de hera verde, trazidos do depósito de madeiras, uma mesa, bancos e um catre com cordas entrançadas, sobre as quais colocou uma cobertura de feno; e, para cúmulo do luxo, até varreu com um ramo de giestas o chão de terra preta e pulverulenta donde se elevava a cada passo um velho cheiro murcho a esterco de ovelha. Além disto, na lareira limpa, uma panela de ferro enchia o compartimento noite e dia com o seu chiar calmo, restituindo àquele refúgio os penates que as correntes de ar e a desolação das ruínas dele haviam expulsado.

 

Mas eis que por uma bela manhã, em meados de Agosto de 44, quando se encontrava atarefado a reconstruir a parede deste redil de ovelhas, plano como uma eira, donde a vista se estendia até aos confins do planalto, apercebeu-se das silhuetas de dois homens que vinham na sua direcção agitando os braços: era Mário Despuech, acompanhado do Taciturno, que se mantinha contraído, levemente excitado, no rasto duma notícia que parecia ser importante, visto ele ter dado a primazia ao vizinho. E que notícia! Realmente, só um homem com a verbosidade de Despuech é que podia andar de quinta em quinta desde madrugada, a transmiti-la bem fresquinha àqueles que não tinham electricidade nem rádio: os Aliados acabavam de desembarcar na Provençal. Que grande golpe para Hitler! Era mesmo o golpe de misericórdia... O III Reich estoirava por todos os lados ao mesmo tempo... Aquela súcia toda ia bater em retirada, como ratos ofuscados pelo Sol. De qualquer maneira, em breve tudo ia entrar nos eixos; e por aqui, provavelmente, já nada havia a temer.

 

Apesar da sua pequena estatura, Despuech agarrou-o pelos ombros e, falando pausadamente, dava-lhe abanões:

 

- Já não há nada a temer, estás a ouvir, rapaz, estou-te a dizer que já não há nada a temer! Pensa bem que eles agora têm mais que fazer senão andar por aqui a cirandar... E vão ser caçados como coelhos! Que rica debandada... E o teu pai, lá em baixo, sempre enfiado naquele buraco, que não sabia de nada! Vem-te embora, já podes largar esta espelunca. Agora a vida de javali acabou.

 

Reilham, lá do seu canto, acenava com a cabeça, incapaz, é claro, de acrescentar uma única palavra ao que diziam à sua frente. Despuech, olhando para o casebre cheio de remendos, com a janela entaipada pelas tábuas meio podres, arrancadas às ervas rasas, e para os feixes de lenha amontoados até ao telhado de cada um dos lados da porta, e que haviam sido transportados às costas até ali, sabe Deus donde, vendo o toco carcomido da chaminé pela qual se escoava um pouco de fumo, repetia entre dentes, como se estivesse a falar para dentro: «Pronto, agora já se acabou essa vida de animal...»

 

Abel, que ainda não largara a pedra que tinha nas mãos, olhava-o com um ar estúpido. De repente, ficando com o pescoço inchado:

 

- Eu não tenho nada a ver com isso - gritou ele. E, perante os dois homens estupefactos, mergulhou de novo, com uma brusquidão raivosa, na tarefa que interrompera.

 

Depois do fim da guerra, quando a Libertação trouxe para casa os refugiados de 1940 e os resistentes regressaram por fim aos lares, as Terras Altas recuperaram a sua fisionomia habitual: uma região abandonada à solidão dos seus bosques e dos seus matagais, destinada a figurar nos mapas como uma grande mancha pálida, despovoada.

 

Entre Saint-Julien e Maheux, num desses cumes perdidos entre as montanhas, mas onde se escondia um pouco de vida desde há séculos, um grupo de três quintas, com os postigos cerrados e as luzes apagadas, mergulhou em silêncio no princípio do Outono de 1947. A mulher do Taciturno, que passava as tardes sob os castanheiros à cata de cogumelos, escarafunchando no meio dos fetos e dos ouriços rebentados das castanhas, dirigiu-se por acaso para aqueles lados. No dia morno e imóvel, sensível a um resto de Verão, as casas fechadas, o pátio onde enferrujava uma grade de estorroar as terras, fúnebre e retorcida, as ruelas já conquistadas pelas ervas altas de Setembro, tudo lhe fez lembrar de súbito o minúsculo jardim operário do seu torrão natal que o Outono juncava de figos podres, entre ervas altas, iguais àquelas que anunciam irresistivelmente o fim das férias e o princípio da velhice. Pareceu-lhe que acabara de desaparecer meio século de vida num abrir e fechar de olhos, enquanto ela se distraía com quimeras e agitações insignificantes. Assim, ao mesmo tempo que se afadigava em volta do forno, outras vidas, noutros lugares, tinham-se desfeito e refeito de novo, outros destinos haviam-se cumprido. Um dia, não há muito tempo, vira uns miúdos a brincar neste pátio; agora, provavelmente, já eram homens e mulheres, por sua vez com filhos que se divertiam longe dali. Ela tinha-se deixado enraizar por minúsculos afazeres, por hábitos que a indigência e o isolamento haviam transformado em manias, ao ponto de ser incapaz de imaginar outro universo que não aquele; quando os ventos aventureiros empurravam através dos céus nuvens vindas doutros lugares, e, com grandes rajadas, dobravam a erva brilhante, incitando as pessoas a viajar, ela apenas sentia um melancólico vazio, uma ausência sem fim e sem remédio, como se para lá destas paredes bolorentas nada mais existisse. Há já algum tempo que a presença de gente estranha lhe provocava um sentimento de vergonha, e a ideia de voltar a ver os seus (já não davam sinais de vida) nem sequer lhe era agradável. De resto, totalmente submissa a este estar sempre no mesmo sítio, como se fosse uma cabra a quem puseram num prado com uma corda demasiado curta, descia a Saint-Julien muito poucas vezes, preferindo aproveitar um favor de ocasião, dum vizinho ou dum empreiteiro, que lhe aviasse as poucas encomendas que de lá queria; já nem sequer ia às pequenas reuniões paroquiais organizadas com regularidade pelo pastor de Florae. à força de mergulhar nessas pequenas tarefas, o seu horizonte sensível havia-se estreitado de tal modo que ela tinha acabado por esquecer estas grandes realidades brutais que um belo dia fazem a sua invasão e destroem num instante as vidas em que nada se passou e nada se virá a passar.

 

Foi com a morte na alma que nessa noite regressou a casa, e, sentindo um nó na garganta, voltou a repetir os mesmos gestos que fazia todas as noites e pelos quais a sua vida se ia esboroando suavemente. A noite caía; quando a sopa estava pronta e a mesa posta, punha uma cadeira junto da janela de vidros negros e reluzentes, e instalava-se sob o halo tépido do candeeiro, com as mãos ocupadas no tricot, até que a agitação do cão, lá fora, anunciava a chegada dos três homens. Então, arrumava o trabalho no fundo duma gaveta, avivava o fogo parcimonioso com um punhado de cavacos, tirava do armário o pão cortado para a semana, e lançava um breve olhar para os homens, quando estes transpunham a porta trazendo nos fatos o fumo tenaz e acre de faia queimada.

 

José Reilham deixou-se mergulhar nas diversas complicações causadas pelo seu acidente, na interminável convalescença que daí resultou, sem opor a menor resistência. A sua perna doente permitiu-lhe passar o Inverno na cama, com todas as comodidades, a dormitar e a sonhar tranquilamente, vivendo nas nuvens, conforme predestinava a dupla conjuntura da ascendência materna e do seu signo astrológico, o qual a mãe parecia ter-lhe concedido deliberadamente: tanto ela como ele tinham nascido sob o signo do Aquário; signo por excelência dos seres aquosos, marcados toda a vida pela saudade das beatitudes intra-uterinas.

 

Na noite em que havia tido o acidente, Abel transportara-o às costas, meio inconsciente, e com a cara coberta de sangue: tinha a arcada supraciliar seriamente ferida, um dente partido - apenas se apercebera disso dois ou três dias depois, quando encontrou um bocado de esmalte no fundo do prato-, assim como um grande corte no lábio superior, cuja cicatriz lhe pôs na boca um ar indelével de desdém: mesmo quando estava contente, dir-se-ia que tinha vontade de vomitar.

 

Ao vê-lo neste estado - tremia por todos os lados e balbuciava palavras incoerentes-, a mãe soltou alguns gritos, torceu as mãos, bateu com a cabeça contra o pano da chaminé.

 

- Oh! Essa ponte! Essa ponte maldita! Eu bem sabia que havia de acontecer uma desgraça mais cedo ou mais tarde! Caiu a maldição sobre esta casa - repetia ela, dirigindo-se para um armário no qual se pôs a escarafunchar febrilmente.

 

Ao pronunciar estas palavras (um dos principais traços deste carácter astrológico é igualmente o de se exaltar com o pior, por uma espécie de homeopatia instintiva), a sua voz baixara vários tons, assumindo um registo mais grave, cheio de rancores e de subentendidos, no qual pairava a ameaça da «gota que faz transbordar a vasilha». Os dois homens, esfregando os pés contra o bordo da lareira para limparem a neve que se tinha colado às solas das botas, resfolgavam e mantinham-se calados, como se se sentissem culpados do que acontecera. Finalmente, depois de ter feito o barulho suficiente no armário, ela acabou por extrair de lá uma garrafa de água sedativa, colocou junto das brasas uma bacia cheia de água, e agitou-se pelo quarto, executando os gestos habituais de dona de casa com a velocidade mecânica dum autómato.

 

Durante todo este tempo, munido duma expressão solene apropriada às circunstâncias, Reilham examinou as feridas, entregou-se a operações misteriosas sobre a perna magoada, as quais tiveram por efeito arrancar ao rapaz alguns gritos e garantirem ao verdugo que este franganote, no dia seguinte, já se podia levantar.

 

No dia seguinte, o franganote, a quem se tinham contentado em ministrar compressas de água salgada, estava a delirar, cheio de febre, e tinha a perna paralisada; violáceo, brilhante, como se estivesse a nadar em pus, o joelho apresentava o dobro do volume. Com pés de lã, os dois homens mantinham-se junto da cama, enquanto a mãe, sentada à cabeceira, lhe punha pachos na testa com um lenço embebido em água sedativa; cada vez que ela fechava os olhos via à sua frente imagens duma horrível precisão: José-Samuel Reilham, 1931-1948. O padre de Florae. Uma voz que o ar livre faz tremer. Um silêncio entrecortado por soluços e movimentos surdos de algo a rolar, etc... Abria imediatamente os olhos e lançava-se sobre o corpo do filho, que abanava para se certificar de que ainda estava a respirar.

 

Respirava, tal como se respira com quarenta graus de febre, uma comoção cerebral e uma grande infecção em marcha. Mas, com o que se estava a passar lá fora desde as cinco horas da manhã, havia muitas probabilidades - se assim se pode dizer - de que as imagens dramáticas que desfilavam diante dos olhos da única pessoa, apesar de tudo, clarividente da casa se tornassem numa triste realidade: era a mais bela tempestade de neve de há cem anos àquela parte.

 

Abel tentara atravessar o pátio para ir buscar lenha; havia regressado de rastos, fustigado pela enorme bofetada que tinha apanhado: a sua força extraordinária não fora suficiente para o impedir de levantar voo como se fosse um simples lençol. José estava neste momento nas mãos de Deus; começaram a recitar uns versos da Bíblia: o caso estava a seguir por bom caminho.

 

A tempestade glacial, duma violência nunca vista, assolou as Terras Altas durante três dias; três dias que viriam a ser lembrados durante muito tempo. Na verdade nem um tremor de terra teria causado tantos estragos. Julgavam que tudo iria ser destruído ou levado pelo vento: as árvores desenraizadas e os telhados demolidos já não tinham conta; castanheiros centenários que caíam pela base, arrancados por mão de gigante - esta fragilidade insólita tinha algo de demencial, de repugnante -, matas hirsutas, deitadas no chão como um campo de trigo atingido pela tempestade, telheiros derrubados pela explosão do vento sob os tectos de xisto, que amontoava os animais em pânico nos recantos dos redis, telhados destruídos donde saíam enxames de ardósias, não obstante leves como plumas, tubos de gelo descendo ao longo das paredes com bocados de neve que se desfaziam no solo, chaminés decapitadas dos seus chapéus de lousa, troncos de faias ainda verdes que saltavam e se despenhavam em grande confusão do alto da pira com tanta agilidade como se fossem moitas do deserto: tudo parecia estranhamente desprovido de peso sob aqueles ventos que, segundo os cálculos oficiais, teriam atingido cerca de cem quilómetros por hora.

 

Nem pensar portanto em pôr o nariz lá fora, nem sequer em entreabrir uma porta ou uma janela, com medo de que elas fossem arrancadas dos gonzos. Contra este sopro fluido e veloz, duma consistência quase líquida, que queimava tudo à sua passagem e tornava sensíveis como cristal as ramagens persistentes que se ouviam a estalar nos troncos (tílias, castanheiros verdes, zimbros, buxos, azevinho, pinheiros-de-alepo, lárices, cedros, árvores das regiões meridionais tiritavam sob as suas cristas de gelo como lustres de Veneza), era necessário as pessoas barricarem-se, calafetarem as frinchas, os buracos e fechaduras, por mais pequenas que fossem, com papel de jornal, por onde se insinuavam, até nos sítios mais insólitos, montículos de um pó esbranquiçado: esta poeira de neve, empurrada na horizontal entrava por toda a parte, como se fosse areia. Até para dormir, ninguém ousava penetrar nesses quartos da montanha onde mesmo com um tempo normal está um frio sepulcral: nesta altura tinham-se tornado em verdadeiras câmaras frigoríficas. As pessoas aninhavam-se muito quietas dia e noite ao redor das fogueiras impotentes; as chamas para as quais se estendiam as mãos pareciam puramente decorativas. O tempo de levar uma colherada de qualquer coisa fumegante à boca era o bastante para ficar gelada; o vinho em breve fez estalar as garrafas; partiam-no às marteladas; serravam o pão. A lenha começou a faltar, mas, tal como nos navios em perigo se queimam as amuradas, preferiram partir algumas cadeiras e desmantelar uns móveis velhos em lugar de se arriscarem a ir até às reservas de lenha, que naquele momento amaldiçoavam por se encontrarem lá em baixo, tão longe, completamente enterradas na neve inacessíveis com o temporal: este terrível bramido que fazia estalar as encostas e punha os xistos dos telhados a dançar, provocando avalanchas de caliça e de fuligem nas bordas das chaminés, dava de vez em quando tais trombadas nas paredes que as pessoas metiam a cabeça entre os ombros à espera do pior; o pior, acontecesse o que acontecesse, era sair. Mais valia sacrificar alguns móveis do que arriscar a vida.

 

As breves acalmias, durante as quais podiam aventurar-se até a essas malditas reservas - e ir mesmo aos estábulos, que em geral se encontravam junto das casas, e onde as ovelhas deviam estar a engalfinhar-se umas por cima das outras -, essas breves acalmias, longe de sossegarem o temporal, pareciam ao contrário, preparar novas violências, horríveis derrocadas. As rajadas de vento, demasiado brutais para precederem uma calma definitiva, eram como que golpes a anunciar outros golpes, como buracos no meio da tempestade por onde esta insinuava o seu furor num fundo longínquo de estrondos que ainda tornava mais assustador o silêncio. Nessas alturas, ouvia-se sempre qualquer coisa a desabar ao longe; estas balas perdidas do cataclismo eram ao mesmo tempo sinistras e ridículas, uns pequenos e irritantes barulhos de uma coisa a quebrar-se, que pressagiavam o assalto fatal e faziam sobressaltar toda a gente. Ali ficavam, enroscados sob um abrigo, com as crianças e os cães entre os joelhos, atentos às traves do tecto, a calcular a altura em que se ia dar a catástrofe definitiva.

 

Tonificados por esta atmosfera de drama, os velhos dedicavam-se a reconfortar a assistência, demonstrando, com a Bíblia na mão, donde extraiam provas, que aquilo não passava de uma brincadeira comparado com o que se iria seguir; batiam com a palma da mão no Livro: estava tudo escrito ali, preto no branco, era tão claro como a agua da rocha. Acabada a brincadeira então e que se ia ver. Anunciavam calamidades atroas; nuvens de fogo, rios de lava, deslocações de montanhas, continentes completamente engolidos pelos oceanos, culminando tudo com grande beleza, sempre segundo as Escrituras, por uma apoteose de cometas e de fulgurações celestes que poriam fim ao mundo. Aqueles que por infelicidade sobrevivessem a estes imdiscritíveis flagelos cairiam desfeitos em cinzas. E algumas pessoas, antecipando-se a estas sedutoras perspectivas, acharam por bem morrer, talvez para confirmar tais profecias: em Mazel-de-Mort por exemplo, a pobre Alice Despuech foi encontrada hirta no meio das suas cabras que já lhe estavam a comer as saias, e tiveram de a içar para um celeiro por não terem podido enterrá-la. Além disso, um pouco por toda a região central da França, este frio boreal matou vários velhos como quem mata moscas e sobretudo na planície, onde ninguém está habituado a sofrer temperaturas tão baixas. (Para os lados de Montpelher, Nímes, a Camarga transformada em es tepe da Ásia Central, registava vinte e tal graus negativos, que queimaram as oliveiras, apesar da resistência mineral desta árvore).

 

Na manhã do terceiro dia-é uma maneira de dizer-, quando a tempestade parecia estar a acalmar-se, os habitantes das quintas perdidas ao longo do planalto tiveram a surpresa de observar que o dia precisamente, não se levantava. Apesar da hora avançada, não se via a menor luz através das frinchas dos Postigos; estava escuro como breu: talvez fosse o fim do mundo. Mas aperceberam-se de que as chaminés tinham deixado de fumar quando tentaram acender o lume, e foi preciso muito tempo e muitas pazadas para conseguirem desimpedir as aberturas das casas, soterradas até ao tecto por montões de neve gigantescos.

 

Os primeiros que conseguiram abrir caminho até lá fora disseram que alguns desses montes deviam atingir uns dez ou doze metros de altura, sobretudo aqueles que se encontravam encostados aos flancos ou às colinas viradas a norte. Há dezenas e dezenas de anos que não se via coisa igual; lutavam obstinadamente contra os isoladores dos postes eléctricos; caminhavam sem saber por cima dos telhados. Vistos do alto dos morros, os casais e os grupos de quintas pareciam essas aldeias abandonadas do deserto que foram invadidas pelas dunas de areia até ao primeiro andar. O menor obstáculo que não estivesse completamente coberto tornava-se pretexto para as angulosas criações, competindo umas com as outras em delirante fantasia, desafiando as formas mais extraordinárias que se podem imaginar e ao mesmo tempo as leis da gravidade: alinhavam-se paralelamente ao solo, na esteira do furacão, ainda presente nesses trilhos cheios de sulcos, nas estalactites que pareciam olhar inclinando a cabeça, nessas rendas trabalhadas, nessas cristas frágeis, que rendilhavam o bordo dos telhados, as esquinas das paredes, as árvores vestidas de cristal até às extremidades dos ramos, os postes ainda de pé, os fios eléctricos que haviam resistido ao peso da sua bainha de gelo e os grandes diplodoco. Todas estas formas que o vento limara, desbastando-as no mesmo sentido, davam uma curiosa sensação de velocidade petrificada.

 

Em todos os sentidos, a perder de vista e até aos cabeços mais distantes do sul, que permaneciam habitualmente à margem do Inverno, tudo estava coberto de neve, de tal maneira nivelado que os próprios vales pareciam ter sido cumes de montes - uma região que era difícil reconhecer neste ondular desértico cuja maioria dos pontos de referência havia sido apagada: até as rochas negras da floresta de abetos haviam desaparecido sob a sua capa de baetilha. Perante estas solidões geladas onde soprava uma nortada agreste, nas quais não se imaginava que o Verão pudesse voltar a romper, ninguém se julgaria a menos de cem quilómetros do Mediterrâneo, mas sim nos confins das terras habitáveis, numa dessas regiões desoladas onde só os liquens conseguem viver e que são, ao longo do ano, a pátria do gelo e do vento.

 

Precisamente sob a linha do horizonte, aparecia, mergulhado no céu lívido, um halo exangue, fúnebre, ligeiramente prateado: era tudo o que restava do Sol, como se, no decorrer desses três dias horríveis, a Terra se tivesse afastado dele.

 

Essa nortada corrosiva feria a cara, tingia as faces de roxo, trespassava até à medula; com uma temperatura de vinte e cinco graus abaixo de zero, nem o trabalho com a pá fazia aquecer; os fatos, por mais espessos que fossem e por mais forrados que estivessem, apenas ofereciam uma protecção muito relativa; uma vez aberto um caminho até aos redis - muitos dos quais, embora construídos há duzentos ou trezentos anos, tinham acabado por se desmoronar-, depois de terem retirado os animais mortos e dado de comer aos que haviam escapado, voltavam muito depressa para junto do calor das lareiras alimentadas com gravetos de giesta que tinham conseguido recuperar debaixo da neve e que agora crepitavam numa orgia de estalos, de fagulhas e de chamas. Que felicidade extraordinária voltar a ouvir, após três dias de racionamento que haviam parecido longos como séculos, o suspirar dos cães, o ronronar dos gatos, o cantarolar das panelas e o espreguiçar da madeira das paredes sob as ondas de calor que se desprendiam das chamas altas.

 

Em todos os pátios das quintas, já se começava a desimpedir a entrada das portas e a abrir caminho até aos estábulos; quando se entrava aí, sufocava-se no meio duma humidade alcalina e picante, tão densa e tão concentrada que se esperava ir encontrar os animais todos asfixiados. O barulho nítido das pás repercurtia-se nas ruelas, misturado, de quando em quando, com o ruído sedoso da neve a cair dos telhados, numa nuvem de poeira seca. Os gatos, muito circunspectos, de pata no ar, delicados como chineses, sorviam, nas soleiras, imperceptíveis solicitações olfactivas e voltavam a enroscar-se sob os fornos, desconsolados por não terem conseguido decifrar a sua natureza e proveniência. Alguns pombos lavavam-se timidamente em cima da neve suja de palha, à entrada dos currais; descreviam um voo circular batendo as asas e voltavam imediatamente ao seu ponto de partida, desencorajados com o que tinham visto.

 

Durante os dias seguintes, e mesmo durante várias semanas, o céu conservou o seu aspecto vítreo, e a temperatura muito baixa que mantinha o solo atapetado com uma crosta, dando a sensação de que se estava a caminhar sobre vidro em pó, impedia o aquecimento das outras divisões da casa: sempre que alguém entreabria uma porta, sentia-se o frio, armazenado lá atrás, a refluir por entre as pernas como se fosse água gelada. Foi preciso esperar pela Primavera, para que então, com as janelas escancaradas, o ar e o sol pudessem visitar essas cavernas duma ponta à outra, e expulsar o tal fluido glacial que emanava das profundezas das paredes.

 

Após três ou quatro dias de trabalhos forçados, os Reilham tinham conseguido desimpedir o caminho até Saint-Julien, ou pelo menos até aos arredores, onde enormes avalanchas o tornavam completamente impraticável. No meio dos lençóis encharcados em suor, o ferido respirava cada vez com mais dificuldade e já não reconhecia ninguém. Preveniram imediatamente o médico de Florae.

 

Em breve o viram chegar, com umas botas de pescar trutas, vermelho, transpirando, apesar do frio glacial, e armado com o seu sempiterno estojo preto que atirou para cima da cama levantando de novo os braços ao céu. Começou por descompor toda a gente.

- Quem é que me pôs o rapaz neste estado ? Despiu os agasalhos e debruçou-se sobre a vítima, franzindo o nariz com um ar muito absorvido, sem despregar os olhos daquele rosto tumefacto.

 

- Olhem-me só para isto - disse ele entre dentes. Pensos colados às feridas!

 

Apercebeu-se da Bíblia colocada em cima da mesinha-de-cabeceira e abanou a cabeça:

 

- Tenhamos fé, que isto há-de arranjar-se por si, é Jeová quem olha por ele!

 

De repente, virou-se para a família, e depois, franzindo o sobrolho e enchendo as bochechas, disse, positivamente escandalizado:

 

- E não podiam ter-me avisado mais cedo?

 

Olhou-os em silêncio por uns instantes, com certeza para tentar compreender o que se tinha passado naquelas cabeças desde a altura em que se dera o acidente.

 

- É claro, vão-me responder que estava muita neve.

 

Ia fazendo perguntas e dando respostas, falando-lhes na terceira pessoa, como se estivesse a tratar com crianças ou com irresponsáveis, e porque estava demasiado furioso para se lhes dirigir directamente.

 

Pegava no braço do rapaz, tomando-lhe o pulso teve a impressão estranha, quase incómoda, de que era a própria vida que sentia, lutando no fundo da sua prisão como um animal acossado não sabia por quem, por que razão é que resistia -, entretanto, com o polegar e o indicador da outra mão afastava-lhe a pálpebra, pondo a descoberto o olho virado para cima.

 

- Havia muita neve! E enquanto ela caía o rapaz a ir-se desta para melhor. Se ao menos me tivessem telefonado nessa mesma noite.

 

De tempos a tempos ouvia-se uma cabra a dar patadas na parede do estábulo vizinho, como se fosse um homem a tentar aquecer-se. Seca, escura, embrulhada na sua capa, a mãe permanecia imóvel junto da cama, de olhos fixos, silhueta de todas as épocas e reservada a todos os tormentos. Só Deus sabia as contas mirabolantes que naquele momento constituíam o objecto dos seus pensamentos.

 

O médico tirou o sobretudo, escarafunchou na maleta e, como é uso fazer-se nessa profissão, puxou os lençóis e cobertas, sem qualquer delicadeza para com o doente, atitude essa que anima sempre quem está a assistir; um cheiro activo e acre a urina e a febre espalhou-se pelo quarto. Examinou o joelho e o seu esgar acentuou-se:

 

- Já não era sem tempo - disse ele -, que grande porcaria! - Pronunciou algumas palavras terríveis: meniscos, cavidade articular, ligamento femural, etc... Depois, disse ainda entre dentes: - Ainda bem que ele tem isto em perfeito estado; vai-se-lhe espetar um milhão de unidades no rabo.

 

Pôs uma seringa a ferver, pegou num frasquito cheio de pó branco que diluiu com o conteúdo duma ampola, e por fim, depois de ter aspirado a mistura para dentro duma seringa, injectou tudo na gorda nádega do rapaz. Quando espetou a agulha este nem tugiu nem mugiu.

 

- São uma espécie de cogumelos venenosos disse ele mostrando o frasco vazio. - Sem eles nada feito: e pensar-se que foi preciso a guerra para salvar este gajo! É inacreditável!

 

Dir-se-ia que tinha alguma coisa contra alguém, ou que já havia até ultrapassado esse sentimento.

 

Depois limpou as feridas, desinfectou, suturou, pôs um penso limpo, sem a menor reacção da parte do doente. Ignorando os outros dois, acedeu a dirigir-se à mãe:

 

- Ele vai ficar bom, mas estas coisas não se fazem dum dia para o outro. Quando ele já se puder pôr de pé, tem de o levar lá ao consultório.

 

Como ela ficasse calada, continuou:

 

- Está bem, compreendo - disse levantando-se.

- Não faça essa cara: a penicilina não me custou nem um tostão; também não lhe devo nada por isto.-Finalmente fez um lindo gesto com a mão, como se estivesse a apanhar moscas invisíveis.

 

De repente, como se os três tivessem criado uma alma nova, começaram a agitar-se em volta do médico enquanto este arrumava os instrumentos.

 

- Amanhã de manhã cedo volto cá para lhe dar a segunda injecção. Vocês vivem em casa do diabo e não há por aqui ninguém que as saiba dar. E se um dia alguém é mordido por uma víbora, hem?

 

Voltou a examiná-los com o sobrolho franzido, abanando lentamente a cabeça e com os olhos semicerrados, sem conseguir compreender que espécie de gente era aquela, nem qual a natureza dos seus pensamentos.

 

Ali ficaram os três na soleira da porta, a verem-no afastar-se sobre a neve dura e estaladiça, no meio do frio cortante da tarde, e só quando ele desapareceu entraram em casa, como que envergonhados por lhe fecharem a porta nas costas sem terem conseguido manifestar-lhe o seu reconhecimento.

 

«São animais», disse o médico com os seus botões, «por vezes a semelhança é gritante; não há dúvida de que não passamos de animais.»

 

Dois dias depois, após a terceira injecção, a febre diminuiu bruscamente. O médico tinha pedido que instalassem a cama do doente na cozinha, por causa do frio; foi encontrar José apoiado nos cotovelos, pálido e emagrecido, segurando na mão um bocado de dente que exibia em triunfo; falava com a voz mortiça dos convalescentes.

 

- Aposto que te sentes orgulhoso - disse o médico apalpando-lhe o joelho, cuja inflamação se tinha reabsorvido quase por completo, deixando em seu lugar uma grande mancha violácea, com uns laivos amarelos; depois, endireitando-se, dirigiu-se à mãe, única : pessoa presente.

 

- Bem, ei-lo livre de perigo, mas agora não convém que ele se levante; além disso, com um tempo destes, também não perde grande coisa em estar aqui deitado.

 

Sentou-se à mesa, empurrou o copo e a garrafa de branco que a mãe ali pusera em sua intenção, e garatujou umas receitas; em seguida tirou da sacola uma grande caixa vermelha e estendeu-lha.

 

- Tome lá uma coisa para lhe dar genica; faça-o tomar uma ampola antes de cada uma das três refeições principais com um copo de água açucarada. Mas mesmo assim é preciso que coma carne de vez em quando.

 

Deitou uma olhadela resignada na direcção do forno, onde estavam a aquecer umas castanhas embebidas em leite. Percorreu o quarto com os olhos; em tudo aquilo reinava uma limpeza austera, a qual se adivinhava ter sido conquistada com raiva à miséria, e onde a cera era uma espécie de vingança contra as longas privações. No meio do grande silêncio que o tempo fusco e abafado fazia reinar naquele dia em volta da casa, o barulho regular do relógio e os estalidos do fogo na lareira produziam uma sensação estranha de luxo. E, apoiando as mãos na cinta, prestes a levantar-se, o médico acrescentou:

 

-Vai ver que ainda daqui vai sair um rico camponês- disse ele, como se, depois de ter feito um inventário do compartimento, fosse aquela a única conclusão que se impunha ao seu espírito. *

A mãe emitiu um riso seco; dirigiu-se para a lareira e pegou num pote de faiança onde guardou o dinheiro.

 

- O senhor doutor sabe muito bem qual é o valor da terra aqui em cima - disse ela. Os seus dedos curtidos desdobraram uma nota. - Um homem farta-se de trabalhar. - Estendeu a nota no oleado, pondo-se a alisar-lhe as dobras com o polegar. - Ou melhor, um animal - disse ela bruscamente e com violência.

 

Ficou por instantes com as mãos apoiadas nas costas duma cadeira, de cara voltada para a janela; a luz azulada que vinha lá de fora endurecia-lhe os traços e revelava o desenho das rugas. A rapariga de maçãs do rosto cheias, de testa lisa, de coxas fortes, que ele havia tratado nesta mesma casa há um quarto de século atrás, havia-se diluído no tristonho dia-a-dia, para se tornar numa mulherzinha curvada onde até já principiavam a aparecer uns vestígios de bigode e a quem começava a cair o cabelo, a qual se ia transformando lentamente num velho (elexagerava um pouco a sua impresisão, pois na verdade ela sempre lhe parecera gasta, esgalgada, do género cadela magra e ossuda; mas enfim, de qualquer maneira, havia o amor, os atributos distintivos do sexo, com a sua arrogância própria, ao passo que agora... Não podia imaginar certas coisas sem estremecer).

 

- Isto não pode continuar assim - disse ela ainda. - Há dias em que penso que mais valia não ter nascido.

 

O médico levantou-se, deu a volta à mesa e veio colocar-se em frente dela, com as mãos atrás das costas; olhou-a em silêncio.

 

- De que é que vale nascer, quando não há sequer meios para uma pessoa viver? Olhou de novo lá para fora, para essa ferocidade intemporal, quase macabra, que era a neve e as pedras negras; os seus lábios moveram-se ligeiramente, dir-se-ia que estava a chupar uma pastilha, como as pessoas quando sugam pequenos fragmentos que ficaram presos aos dentes.

 

- Sempre perguntei a mim mesmo que diabo é que você veio cheirar cá para cima - disse o médico, pois havia entre ambos uma velha conivência que datava do dia em que ele a havia, também a ela, tirado de maus lençóis; - toda a gente sabe que não há nada a esperar desta região. A maior parte das famílias que se encontravam na vossa situação meteu a chave debaixo da porta. É lamentável, mas não há outro remédio. O Estado já desistiu, toda a gente desiste. Não percebo porque é que o seu marido teima... Não se pode tirar sangue duma pedra; e isto vai de mal a pior. Se eu estivesse no seu lugar, antes que fosse tarde... (Não ganho nada em estar a dizer-lhe isto: os dois juntos têm mais de cem anos. Ninguém os quer, seja lá onde for. Vão morrer aqui como cães.)

 

- Oh! Mas nós...-Encolheu os ombros, como quem diz que vale mais não falar no assunto. Chegou mesmo a soltar uma risada breve e trocista, como se estivesse a fazer pouco de si mesma, só à ideia de que pessoas da sua idade e condição pudessem, em seu perfeito juízo, pôr a hipótese de viverem de outra maneira, a não ser como uma besta de carga. Já não era a primeira vez que o médico notava da parte das famílias mais pobres da região uma atitude semelhante, na qual entrava uma espécie de desprezo por tudo o que não fosse a sua própria miséria, a estreita concepção de vida que aquela lhes provocava; o orgulho de todos eles consistia em se adaptarem cada vez mais aos seus hábitos medíocres, com uma passividade sórdida, transferindo para os filhos as mais ousadas ambições - por vezes só em relação a um deles, a favor do qual sacrificavam todos os outros.

 

- Não, agora já não temos remédio. Habituámo-nos a certas coisas, e já estamos demasiado velhos para mudarmos de costumes. Contando que estejamos na nossa casa, livres de doenças...

 

Lá bem no fundo, apesar da sua falta de coragem e do seu conformismo, adivinhava-se a tranquila segurança do proprietário, a solidez das tradições, talvez até uma certa forma de enraizamento naquela terra, quaisquer que fossem as tiranias incessantes e a decepção que ela lhe causava.

 

Limpou o bordo da mesa com um farrapo e apanhou com a mão as migalhas imaginárias:

 

- O mais velho, esse, lá se vai arranjando sozinho. Lá anda pela montanha! Ia viver com. os javalis, se pudesse! Tenho receio é deste; nunca foi muito forte, e agora pr’ali está deitado! O que lhe faltava agora era ficar toda a vida doente, aqui fechado, sem poder fazer nada senão guardar cabras... Mas não, isso é que eu não quero. - Acrescentou rapidamente em voz baixa:

- Deus também não há-de querer isso. E se o quiser é porque não faz justiça!

 

- Bem - disse bruscamente o médico, pegando na maleta -, não falemos nisso. A justiça de Deus não me diz respeito. Tu enquanto esperas vais fazer-me o favor de ficar na cama sem te mexeres até eu voltar.

 

O adolescente apoiou-se outra vez nos cotovelos e fez que sim com a cabeça; o seu rosto pálido era uma mancha fosforescente no fundo escuro do quarto.

 

- Quanto ao seu futuro, isso se verá mais tarde, quando ele se puser de pé. - Apontou para a nota com o queixo - Sabe muito bem que eu não preciso desse dinheiro. Não é caridade, é egoísmo: não estou para gramar três vezes por semana o seu caminho de cabras, só porque esse estupor tem falta de glóbulos vermelhos. Mas eu já conheço a música toda: a senhora vai meter estes quinhentos paus no bolso, sem dizer nada a ninguém, e compra qualquer coisa para lhe dar forças, pelo menos durante alguns dias. E diga ao seu marido que leia esta receita que escrevi; a propósito, onde é que eles estão agora?

 

- Foram ver se as árvores não sofreram muito; parece que aquilo foi um desastre... A miséria só bate à porta dos pobres!

 

O médico abriu a porta; o frio lá fora era como um bloco de aço, tudo estava cinzento, morto, fora do tempo. Através das Terras Altas, apenas se viam, aninhados aqui e ali, nesse devaneio sem idade, essas ilhotas de vida calafetadas atrás dos seus vidros amarelados, semelhantes às folhas de papel oleado da alta Idade Média, falando de recantos à lareira, de velhas lendas, de espessas bebedeiras, de pesadas refeições espalhadas pelas mesas; mas era apenas um sonho: aqui há sobretudo pessoas que ao longo do ano não metem à boca senão castanhas e que nem sequer têm com que engordar um porco.

 

- Ah! A justiça de Deus é por vezes desconcertante - disse o médico ao despedir-se; mostrava um sorriso melancólico.

 

- Deus escolhe os seus, mas adiante! - disse a mãe com rudeza, como se não se importasse mais com os seus devaneios, e apenas a interessasse estar onde era preciso no momento certo.

 

E, uma vez só com o filho:  

 

- Não gostavas de vir um dia a ser alguém como ele? Vivias na cidade, andarias bem vestido, comerias o que te apetecesse, respeitar-te-iam.

 

- Ai não que não gostava - disse José. - Chamar-me-ia Samuel, como o tio Samuel, lembras-te, aquele que era pastor em Anduze.

 

Foi preciso esperar várias semanas, para que o frio quebrasse o seu cerco.

 

Era sempre o mesmo frio, líquido e escaldante, irrespirável, que queimava e arrancava lágrimas dos olhos mal se punha o nariz fora da porta, sempre o mesmo céu alto e vidrado, sem sol, sob o qual as solidões de neve se prolongavam a perder de vista, como algodão, com a sua brancura lancinante e monótona. No meio de todo este branco sem brilho e sem sombra, e cujo reflexo, apesar de tudo fatigante para os olhos, acabava por roubar a cor a tudo para onde se olhava, apenas ressaltavam, e num raio limitado, traços escuros, de arabescos de ferro forjado, de grelhas de carvão de madeira, as correntes de tinta dos regatos, toda uma sinfonia que também causava sono, indo do preto à sépia, passando pelo verde bronze, com exclusão de todas as outras cores. Tudo era silêncio e imobilidade, salvo, nalguns sítios, onde se viam estranhos fumos, como aqueles que se evolam das nascentes de água quente e das de vapores sulfurosos, que se elevavam em turbilhões até ao cume dos montes.

 

Uma vez reabertos os caminhos, Abel e o pai foram procurar emprego numa serração próxima de Florae, como já o haviam feito nos três invernos anteriores, devido ao agravamento constante da situação económica; que, sendo precária para muitos dos pequenos cultivadores das Terras Altas, se havia tornado catastrófica para os Reilham. As magras colheitas que conseguiam arrancar desta terra sem generosidade ainda eram agravadas pela falta de meios e de braços para fazerem as recolhas a tempo: nunca haviam tido dinheiro suficiente para comprar um cavalo ou uma mula; era o seu vizinho mais próximo, Mário Despuech, quem lhes emprestava o dele quando não lhe era preciso; devido ao atraso, muitas das colheitas estragavam-se, apodrecidas pelo mau tempo, e o rendimento era cada vez mais baixo. O salário que recebiam na serração em troca de alguns meses de trabalho, ainda que modesto, permitia-lhes juntar qualquer coisita e pôr alguns tostões de lado para as ocasiões difíceis. Ainda estava escuro quando os dois homens se levantavam; enfiavam os fatos tesos, engoliam um prato de sopa, ou de bajana, e lá iam eles, cheios de desembaraço, envolvidos pelo nascer do dia e pelo gelo, através do carreiro que rangia sob uma crosta de neve dura, correndo-lhes nas veias um sangue mais novo enquanto faziam esta saudável caminhada até Saint-Julien, onde, por volta das oito horas, passava a camioneta.

 

Era uma carripana antiga, toda desconjuntada, pesada e lenta como uma velha barcaça, cuspindo o vapor pela grelha do radiador, e cujos vidros, assim como os faróis, apresentavam ainda traços do azul-claro com que a tinham lambuzado durante a guerra; cheirava a óleo quente, a gasolina, a coiro empedernido, a cabra, a fartum de ovelha e até a esterco, estes cheiros a estábulo e a garagem, emblemas essenciais das Terras Altas, combinados com tal insistência que teria chegado a parecer caricatural a um estrangeiro. Esta chocolateira, aos solavancos e vibrando por todos os lados, só se enchia até meio, excepto nos dias de feira, e eram quase sempre os mesmos passageiros: cavadores luzidios e vermelhos, carregados de sacos donde saíam gargalos de garrafas já bem encetadas, velhos camponeses com perfis de aves de rapina, de enormes mãos nodosas cor de tijolo, algumas mulheres de cabeças pequenas e cabelos arrepiados que tinham olhos de pega, e que levavam um cesto sobre os joelhos e as mãos fincadas na asa, como se tivessem medo que lho tirassem; os passageiros examinavam com olho crítico os que iam chegando de novo, para, esgotado o assunto, voltarem a cair na sua indiferente sonolência.

 

O vale em breve se alargou entre as altas encostas coroadas de florestas, indo desembocar na intersecção de dois outros vales, no mais vasto dos quais a cidadezinha enovelada sob a neve espalhava os seus fumos e telhados brancos em volta do campanário; na realidade apenas se limitava a uma rua interminável e muito direita, à entrada da qual parava a camioneta para largar a primeira fornada de passageiros que se dispersavam pelos passeios e pelas ruelas onde ressoavam os primeiros sons de pás e onde se viam algumas donas de casa, embuçadas até aos olhos, avançando com pequenos passos prudentes; outras, de pantufas, varriam a soleira da porta, seguidas pelo olhar duma miúda, que, atrás da janela, esmagava o nariz contra os vidros, no círculo húmido da sua respiração. Os dois Reilham só desciam na paragem seguinte, três quilómetros depois, e dirigiam-se para a serração, onde os troncos se empilhavam a uma centena de metros da estrada, entre bocados de madeira de todas as espécies e montes de serradura fresca. Ali, até ao fim do dia, envolvidos pelo barulho estridente das serras e pelo cheiro farinhento da madeira, quente e apetitoso como uma fornada de pão, colocavam os troncos em passadeiras rolantes, tiravam as tábuas, carregavam os camiões, obedientes às ordens que o contramestre lhes gritava aos ouvidos, com a passividade exemplar dos bois.

 

Enquanto isto, no seu ninho de águia, a mãe e o filho aproveitavam a sua solidão, ele para se empanturrar na cama com todas as espécies de petiscos que a mãe lhe cozinhava às escondidas, graças aos tostões que tinha conseguido amealhar ao longo dos anos, ou ganhar por aqui e por ali vendendo queijos ou cogumelos, e a mãe para o incitar constantemente à carreira que ele parecia ter escolhido, mas que na realidade ela lhe havia imposto desde o princípio da sua convalescença fazendo-lhe gozar as vantagens duma profissão honrada e respeitada por todos. Se a medicina dos corpos lhe havia parecido reclamar aptidões brilhantes, ao serviço de longos anos de estudo árduo, a das almas, em contrapartida, era, segundo lhe parecia, perfeitamente acessível; não havia nada de concreto nem de grave contra tal profissão. No serviço de Deus era sempre possível uma pessoa safar-se, mesmo cometendo alguns erros, ficando indeciso por vezes; ao passo que, tratando-se dos órgãos que a vida, frágil e complexa, contém em si, a história era outra; só os melhores venciam, e ela duvidava das capacidades do filho.

 

Interrogava-se a propósito desse seu tio Samuel, que ela apenas tinha encontrado uma vez, pouco antes da sua morte; realmente, ele também não tinha ar de ser uma águia. No entanto isso não o impedira de ser padre, de ostentar no pulso um soberbo relógio de ouro, de viver numa casa toda bem arranjada, cheia de livros e de discos, e de que ele próprio era proprietário! (Na verdade, aquele diabo enviuvara por três vezes e de todas tinha herdado.) Além disso, seria assim tão preciso ser-se uma sumidade para se entrar para o serviço de Deus? Esses senhores, em geral, pareciam apenas uns bons funcionários, gordos, pontuais, de voz untuosa e gestos estudados, exibindo, nalguns casos, esse ar um pouco seco dos salvadores de almas, mas, fosse como fosse, todos pareciam muito satisfeitos com a sua sorte. Assim, aquilo que Samuel José - a inversão dos nomes já era um grande passo - não conseguisse obter pela inteligência, consegui-lo-ia pela devoção, por todas essas qualidades que é possível adquirir quando se trata de puxar a brasa à sua sardinha. O cálculo não era mau: se o rei dos imbecis resolve ser vaidoso, encontra na sua vaidade com que mover montanhas. Evidentemente que era preciso que Samuel fosse um vaidoso; não era a guardar cabras ou a fazer feixes de lenha que ele tinha ocasião de o mostrar.

 

- Não me digas que pensas ficar enfiado neste buraco o resto dos teus dias! Não temos ninguém com quem falar, nunca sabemos o que se passa... E além disso, hoje em dia, as raparigas já não querem rapazes da montanha; abandonam-nos à sua selvajaria e preferem ir viver para a cidade. Se isto continua assim, nestas terras perdidas, qualquer dia só há gente solteira : mas não vale a pena eu estar para aqui a dizer-te o que é que tens de fazer.

 

- Não se cansava de lhe repetir estas coisas de manhã à noite, obrigava-o a saber de cor páginas inteiras da Bíblia, bem como a engolir papas e tisanas, onde deitava mais açúcar do que aquele que o resto da família consumia durante o ano inteiro: nessa altura considerava-se que o açúcar era bom para o cérebro. Ela julgava, ou por outra, esperava que esses alimentos, terrestres e espirituais, estimulassem a inteligência do jovem doente, e lhe fornecessem os meios necessários para realizar a sua grande ambição.

 

Nesse regime, não foi propriamente a ambição de Samuel José que adquiriu importância, mas sim o seu ventre, as bochechas e o rabo, enfim todos os sítios onde se concentra a gordura naqueles que não fazem exercícios suficientes e que não primam pela imaginação. Pois, lá no seu íntimo, o convalescente não estava muito encantado com as perspectivas. Viver na cidade, ter bons fatos, comer o que lhe apetecesse, ser respeitado, tudo isso é muito bonito, mas implica também grandes responsabilidades, uma constante necessidade de atenção que lhe causava vertigens; só a ideia de ter de discursar para uma assembleia de fiéis lhe provocava suores. Porque diabo é que as coisas eram tão complexas, tão aborrecidas? Porque é que as pessoas não continuavam a viver como se fossem crianças, contentando-se com o estritamente necessário? No fundo, se bem que nada o destinasse para ser um homem da montanha, e que ele próprio não sentisse amor pela terra, perguntava a si mesmo se não seria preferível arrastar-se pelos bosques e guardar as cabras a dedicar-se a uma tarefa que lhe parecia ser insuportável e para a qual não tinha sido feito. Mas a mãe, na sua raiva de ver consumado aquilo que sempre desejara em vão durante toda a vida, cansava-o tanto e de tal maneira, predizia-lhe um futuro tão sombrio, pintando de negro tudo o que dizia respeito à terra, para embelezar a vida que se fazia nas cidades, que o desgraçado já não sabia para que lado se virar. Era um grande indeciso; daqueles que só pensam nas montanhas quando estão à beira-mar, e que por sua vez só sonham com ondas azuis quando se encontram no meio das florestas; que têm saudades da neve no Verão e que no Natal choram por Julho. Assustado com a ideia de deixar o seu refúgio, de passar o resto da vida a vegetar, estes sentimentos contraditórios afligiam-no de tal maneira que acabava por sentir um grande vazio na cabeça. E, chupando no dedo para se consolar, embrenhava-se em meditações vizinhas do nada, tendo no entanto o cuidado de deixar a Bíblia aberta sobre a cama, passeando de vez em quando um olhar mortiço pelas suas páginas, para que a mãe o deixasse em paz. Mas tudo isto o roía como um, verme a uma batata, e as alternâncias contínuas de medíocre avidez e de desdém pela sua condição apodreciam lentamente o seu coração.

 

A mãe achara por bem variar-lhe as ementas, fazia pudins flan, bolos de arroz, tudo isto às escondidas dos outros dois, aos quais ela teria tirado o pão da boca com essa soberana tranquilidade de espírito que permitem as grandes paixões; e ele, cada vez com menos apetite, em tudo notava o mesmo gosto desenxabido que as pessoas sentem quando estão convalescentes, depois de terem tido febre. Parecia-lhe mais do que nunca que as coisas não voltariam a ser o que eram dantes, e que havia de arrastar consigo até ao fim dos seus dias uma fadiga e um peso inauditos. Dir-se-ia que o desastre que sofrera, em plena puberdade, quando se sente um vazio na alma e as borbulhas começam a aparecer na cara, tinha provocado em si perturbações irreparáveis e que não mais voltaria a ser como era. Agora havia uma barreira intransponível a separá-lo da infância - em Setembro ainda lá estava, dizia ele, como se porventura se referisse a outro país -, do outro lado da qual tinha caído no dia do acidente.

 

Vinham-lhe à lembrança as palavras de Alice Despuech, que ele ouvira um dia, ali mesmo: «Até aos dezasseis anos é o paraíso; depois já não é nada.» (Ela tinha nascido numa herdade encantadora, onde havia frescura e sombras, para os lados de Saint-Jean-du-Gard.) Era realmente preciso que isso fosse mesmo uma evidência para que uma mulher quase camponesa fizesse uma tal confissão: porque é que ninguém dizia nada sobre isso? Porque é que as pessoas se entretinham com esse jogo estúpido que consiste em dar importância a coisas que a não merecem e em adiar o essencial até ao esquecimento? Porque é que eles consentiam em envelhecer de repente, com pretextos tão fúteis como o da vaidade social de terem uma casa sua, etc. ? Na verdade ele não conseguia compreender nada disso, a não ser que não valesse a pena crescer. Quando interrogava a mãe sobre este assunto:

 

- As coisas são assim mesmo, tu não vais mudar nada - respondia-lhe ela com brusquidão, como se temesse que todos esses pesares e constrangimentos enfraquecessem as ambições que tinha em relação a ele; e acrescentava: -De qualquer maneira foi Deus que assim quis.

 

Mas nessas alturas a sua expressão era tão estranha e torturada que o filho tinha vontade de lhe perguntar qual era exactamente o significado que ela atribuía a essa palavra «Deus».

 

Noites de doze horas de sono - dum sono demasiado pesado para ser saudável - apenas lhe traziam um repouso passageiro, de pouca duração: na altura em que acordava sentia-se mais ou menos bem; mas, quase logo a seguir, o cansaço espalhava-se-lhe pelos membros, chegando até a atingir-lhe os dedos, cujas articulações lhe doíam. Logo que acabava de tomar o pequeno-almoço, começava a leitura da Bíblia, e imediatamente a cabeça enchia-se-lhe de fumo, os olhos ardiam-lhe; as frases perdiam o sentido, as palavras tornavam-se ilegíveis. Caía pouco a pouco no torpor dessas horas cinzentas e silenciosas contadas pelo relógio, como que hipnotizado pela paisagem incolor e coberta de gelo, colada aos vidros, donde não conseguia desprender os olhos.

 

O que o impressionava mais nesta Bíblia era uma velha gravura que servia de marcador e que representava um pequeno pastor com um cajado na mão, sorrindo à cabeça dum rebanho de carneiros tão gordos como o seu dono. Quando era mais novo, tinha-se-lhe gerado no espírito uma confusão entre a situação de padre (pastor) e a de guardador de ovelhas (pastor); confusão perfeitamente legítima. Sem dúvida ele próprio tinha-se identificado com este pastorzinho, e havia experimentado um autêntico bem-estar à vista dessas luxuriantes pastagens entre as quais aquele sorria, imaginando ao mesmo tempo uma vida simples e paradisíaca. Esta confusão dupla de que ele era um pouco vítima, sempre que olhava para essa gravura, provocava-lhe uma vaga atracção para as coisas religiosas, atracção essa que ele interpretou mais tarde por uma vocação para a qual a mãe o empurrara.

 

Um dia, no princípio de Janeiro, ela trouxe-lhe de Saint-Julien uma laranja embrulhada num papel de seda; o rapaz colocou-a sobre a cama com uma tímida admiração: que diria o pai se entrasse naquele momento e visse a laranja? Cheirou-a e apalpou-a, tomou-lhe o peso com a mão durante muito tempo, mas não ousou comê-la, preferindo guardá-la debaixo da travesseira a fim de recomeçar a operação de vez em quando, pois o cheiro da laranja permitia-lhe entrar no reino proibido das coisas já passadas: a laranja do Natal que é costume distribuir pelos meninos das escolas- a única laranja que ele comia em todo o ano-, e cuja casca se entretinha a espremer diante da chama duma vela para de lá ver sair uma girândola de faíscas bem cheirosas. Mas o fruto acabou por apodrecer e teve de o deitar fora.

 

Em meados de Janeiro, o tempo mudou de feição, os dias tornaram-se escuros outra vez. Tal como um rio no momento em que vai transbordar, o céu calmo estalou por todos os lados e pôs-se lentamente em movimento; as nuvens espessas vieram com as suas carrancas mornas lá do fundo do oeste; eram grandes nuvens marítimas que cheiravam a chuva, a degelo ou a essas neves esponjosas e húmidas que muitas vezes trazem consigo o fim do Inverno.

 

Houve dois ou três dias de nevoeiro durante os quais a temperatura subiu e se manteve à volta de zero graus; nevou uma noite inteira; e depois, na manhã seguinte, ao abrir os olhos, Samuel José viu na pequena janela, sem portadas interiores, rasgada na parede junto à porta, uma claridade avermelhada, resplandecente, que se prolongava pela argamassa da parede. Sentiu por instantes o coração a transbordar duma alegria violenta, um grande desejo de liberdade, e, com o corpo agitado pela esperança, sob os pesados cobertores, teve a extraordinária impressão de que estava a acordar na madrugada dum dia bonito do mês de Agosto, quando tudo está calmo e nem uma folha se mexe no ar azul, lavado pela noite. Era domingo, e ninguém, ao contrário do que era habitual, se tinha ainda levantado; por fim ouviu-se o ranger das traves, uma porta a abrir-se e os passos da mãe a descer as escadas. Quando ela abriu as portadas de madeira das janelas da cozinha, foi como se do coração do Inverno acabasse de nascer um Verão radioso e puro.

 

Um sol vermelho, novo como o mundo, fazia faiscar nas vidraças os fetos cinzelados pela geada. O céu azul vivo contornava violentamente a cobertura palhetada dos telhados, com uma espessura leitosa e suculenta à vista, e que lembrava, mais do que qualquer outra coisa, a leveza estaladiça dos bolos folhados e as doçuras do chantilly; no ar imóvel reinava o fresco quebrar do gelo, mas já se via raiar na sua transparência o calor das manhãs de neve ensolaradas.

 

Um pouco por toda a parte, as pessoas ficavam à soleira das portas, aquecendo-se ao sol e olhando a vida que timidamente se lavava e ia regressando ao interior das aldeias, acompanhada de cacarejes e bater de asas. Após uma tão prolongada penitência de céu cinzento, de horizontes acanhados, de dias reclusos (não se via o sol há praticamente três meses), teriam ali ficado durante horas a contemplar o céu, dum azul total e ofuscante, e todas aquelas cores de que ele tingia a neve, ainda mais luminosas que nos dias de Verão. O frio, seco e vivo, espalhava-se pelas ruas e nos pátios das quintas pairava uma transpiração acre a faia, que vinha do fundo das lareiras; à medida que o dia ia aquecendo, tudo se impregnava dum cheiro a casca de árvore, primaveril e selvagem, que se exalava dos troncos e dos lugares onde se serrava a lenha, ao ar livre. Toda a gente sentia no seu íntimo algo semelhante àquilo que Noé e a família experimentaram no momento da retirada das águas. Era um estranho desejo alegre, leve, volátil como álcool, mas não se sabia de que desejo se tratava talvez, por causa desse céu profundo e límpido, fosse

o de ir para muito, muito longe dali.

 

Em breve o doente se começou a levantar e a dar alguns passos arrastando a perna que, naturalmente, após três meses de completa imobilidade, se encontrava ancilosada; (sobretudo que ele não fatigue o joelho, havia escrito o médico na ordem que deixara.) Esta rigidez - real - que poderia ter-se curado por meio duma reeducação adequada, ou por uma intervenção cirúrgica, transformou-se numa doença crónica que serviu admiravelmente os desígnios da mãe, assim como o carácter apático do filho: coxeava de muito boa vontade, pois isso permitia-lhe passar o tempo na ociosidade e ficar com a consciência limpa, enquanto o resto da família andava ali a esfolar. Abel arranjara-lhe uma muleta rudimentar, talhada numa tábua com uma fenda para enfiar a mão e uma almofada de coiro na extremidade superior que ele punha debaixo do braço. Quem o via assim coxo, com um ombro no ar, diria que ele nunca tinha feito outra coisa durante toda a vida; era um coxo nato: instalara-se na sua enfermidade como quem se senta num sofá.

 

Estava-se em Março, o Inverno definhava a olhos vistos, a neve, sorvida pelas encostas esponjosas, desaparecia, deixando aqui e ali alguns medalhões brancos sobre o fundo azul-escuro das montanhas. O chão negro começou a escorrer água; as grandes lajes, as falésias, as muralhas de xisto, envernizados pelas águas das nascentes, brilhavam ao sol intermitente, fustigadas pelo forte vento do oeste que fazia de novo flutuar as Terras Altas sob um céu de mar alto; manchas de luz percorriam as planícies, a navegar sobre as suas suaves ondulações, desaparecendo nos vales onde iam inundar por alguns instantes uma janela, o fundo obscuro de um quarto, o cobre rutilante de um caldeirão ou de um relógio, alguns flocos de poeira debaixo de uma cama ou o rosto de alguém que espreitava lá para fora. A transparência do ar limpava até aos confins do horizonte a paisagem, que se tornava numa maqueta imensa onde se distinguiam todos os pormenores, com as suas flotilhas de nuvens a aprofundar ainda mais as perspectivas. Tudo entrava em movimento nessa Primavera amarga e roxa, a queimar já a terra no meio das clareiras de sol que se deslocavam lentamente e em redor das quais se enredava um círculo de sombras frias. A floresta respirava com a majestade do oceano; ao longo das encostas brotavam torrentes de lama, como se fossem mucosidades de um corpo em trabalho de parto. Paredes grossas esbarrondavam-se bruscamente para cima dos caminhos, espalhando em leque pedras e areia, que fumegavam, assim, como a terra. Em certos dias, nevoeiros nórdicos rastejavam pela montanha, rasgavam-se em farrapos ao atravessar a floresta e penduravam as suas pérolas nos galhos dos pinheiros, a recordar os cheiros do Outono, a húmus e a cogumelos frescos; e, de um dia para o outro, abatia-se sobre tudo um calor febril que se acumulava no fundo dos valeiros, a despertar verduras precoces, a perturbar o sangue, a penetrar a terra aberta como um ventre sob o tapete das ervas amareladas e murchas. No dia seguinte, por vezes nesse mesmo dia, voltava de novo o céu plúmbeo do Outono, cheio de rumores e movimentos, o cheiro agreste dos atalhos nos bosques nus e luzidios, com a chuva a martelar de vidros embaciados e as rajadas de vento gelado que faziam bater as portadas e espalhavam as cinzas da lareira.

 

Era ainda um daqueles anos em que se passa sem transição e brutalmente do Inverno para o estio e em que as pessoas idosas falavam das primaveras de outros tempos, com as sebes brancas e pilriteiros, que lhes perfumavam ainda a lembrança, as águas livres e saltitantes sobre as quais faziam girar os moinhos em miniatura, quando as férias da Páscoa fechavam as escolas durante quinze dias e abriam os caminhos dos bosques rutilantes de luz, os relvados selvagens através dos quais eles haviam corrido, na época em que o seu coração desejava viver e pulsava com uma alegria agora dolorosa de recordar. Logo no fim da juventude todos tinham a impressão de que, à medida que o tempo passava, mais as estações se alteravam, definhavam logo à nascença, como se o reino do frio e da escuridão, servos da morte, se estendesse pouco a pouco sobre elas, cedendo cada vez menos espaço aos dias bonitos. Talvez também a infância

- porque é a infância que se trata quando nos referimos às estações - fosse apenas uma máquina de ilusões destinada a envenenar o resto da vida com a lembrança das estações maravilhosas que não tinham realmente existido. Mas com o mesmo pudor feroz e plebeu que selava os lábios até à morte, ninguém se entregava nunca a estes sentimentos, fazendo-lhes apenas referências estritamente materiais e interessadas; limitavam-se a emitir considerações azedas acerca das vantagens incontestáveis dos tempos antigos no que respeitava às colheitas, que estes tempos desastrosos de agora faziam correr o perigo de apodrecer na terra e em que se adivinhava uma onda de recriminações em relação aos novos, à sociedade dos tempos actuais, cúmplices daquela deterioração geral.

 

Finalmente, em Maio, chegaram os primeiros calores, pesados e deprimentes, como que mal adaptados a essa paisagem tão nua e severa como um panorama de Inverno, onde a Primavera se ficava pelos valeiros e só chegava às alturas em tímidas pinceladas. Em breve esses calores quase doentios se transformaram em trovoadas que rondavam sem rebentar por cima dos planaltos, num céu de Gólgota.

 

Chamados pelos trabalhos da estação, os dois Relham abandonaram a serração de Florae; saindo pela madrugada e só regressando à noitinha, derreados por aquela corrida incessante com o fim de recuperarem o tempo perdido e manterem-se ao ritmo dos trabalhos da época, iam imediatamente para a cama depois de haverem resmungado umas vagas orações, enquanto engoliam à pressa a ceia, de modo que Samuel José e a mãe continuavam a ficar sós durante o dia inteiro, sem nenhuma alteração nos seus pequenos hábitos, formando ambos um clã do qual os outros tudo ignoravam. Teriam, de resto, ficado muito admirados se acaso soubessem que um ministro de Deus em potência dormia sob o seu tecto e engordava sem vergonha à custa das coisas boas que a mãe, defraudando o orçamento, lhe preparava na ausência deles e que nem sequer chegavam a cheirar; à noite, quando entravam, o maroto já tinha jantado e a mãe tomara a precaução de limpar cuidadosamente a mesa e de fazer desaparecer até os menores vestígios da refeição.

 

- Ele não tem apetite? - inquiria Abel entre duas colheradas de sopa, com uma voz de trovão, feita para atravessar os valeiros ou arrancar os bois à sua sonolência.

 

- Não, não, não tenho fome - respondia Samuel, que ruminava sentado na sua cadeira, a fingir que lia a Bíblia; a ruga de desprezo deixada pela cicatriz sobre o seu lábio superior conferia uma certa plausibilidade a essa falta de apetite, apesar da barriga e das bochechas de abade. Nesse momento a mãe arranjava sempre qualquer coisa para fazer lá fora; apalpava no bolso do avental o pequeno caderno que a não deixava nunca e no qual apontava as despesas e as receitas clandestinas em misteriosas abreviaturas:

 

  1. S. d. B. M.

118 B. 200 Cn. b. d. C.  

80 E. 150

  1. 3/12 360 P. 150
  2. 160 D. 100 R. 118

 

e que queria dizer:

 

Cogumelos Serra da Boa Memória 118

Castanhas bosque dos Carvoeiros 80

Queijos, 3 dúzias 360

Diversos 160

Resto (lucros) 118

Maio 1949

Talho 200

Mercearia 150

Farmácia 150

Diversos 100 ÍL18

 

Também ali assentava, à mistura, receitas de cozinha económicas, as datas em que semeava os alfobres, as luas que se lhe afiguravam mais propícias, assim como uma contabilidade completa dos boiões do doce de melaço (que lhe não custava nem um centime, porque as uvas eram da latada) e de sacos de cogumelos secos, reserva que guardava, para vender nos meses difíceis, num armário fechado à chave, no fundo do sótão. Claro que a costela que acabava de grelhar para Samuel lhe pesava na consciência quando via o outro filho preocupado com a saúde do irmão, tanto mais que, para o seu estômago de lenhador, meia libra de carne não seria de mais; por isso experimentava sempre um certo mal-estar à hora da ceia e, temendo ser traída pelo cheiro de certos cozinhados que nada tinham a ver com a sopa de castanhas cozidas que lhes servia (embora tivesse tomado a precaução de fazer os molhos ou de grelhar a costeleta ao ar livre, no fogareiro abrigado pelo alpendre onde fazia a barreia), ou mesmo imaginando que seria possível ler no seu rosto a composição exacta das refeições de Samuel, o dinheiro gasto com elas durante meses e todas as acrobacias que não parava de fazer para conseguir esse dinheiro, eclipsava-se como um rato e tentava esquecer os remorsos e apaziguar as suas inquietações indo tirar o leite às cabras.

 

Chegou o mês de Junho, enchendo a clareira com calor húmido e rumorejante onde zumbiam moscas, exasperando as seivas que fizeram brotar quase de repente a verdura das faias; era um tempo doentio e soturno, de névoas acinzentadas que esfumavam os horizontes e deformavam as perspectivas. Logo pela manhã, o céu, sem profundidade, assumia uma tonalidade baça, sujo por essa neblina trémula que se observá sobre os pântanos quando faz muito calor; o brilho pérfido e gorduroso dos xistos fazia pesar naquele vasto funil uma atmosfera de trovoada. Todos os insectos pareciam meio paralisados, com excepção das moscas, que as emanações da barreia e de peixe de água doce, provenientes das grandes balsas, excitava tanto como a carne podre excita os abutres. Nem o menor sopro de vento, nenhum pássaro a pipilar sobre o restolho - a não ser os corvos que voavam lentamente numa linha perpendicular às falésias contra as quais se repercutiam os seus gritos pré-históricos, indo abater-se sobre as carcaças das árvores secas para meditarem durante horas acima desse mundo solitário e esfarrapado.

 

José não podia mais aguentar-se entre quatro paredes; sentia-se esquisito e oprimido logo ao acordar. Pela manhã, só tinha um desejo: sair, abandonar aquela casa cujas paredes grossas, apesar de manterem a frescura, aumentavam ainda mais a sua sensação de abafamento. Ao mesmo tempo havia a mãe, sempre atrás dele, a apaparicá-lo, a vigiá-lo, e que o incomodava agora como uma presença maléfica. Passava as noites muito agitado, sem conseguir descansar e, por certo, os sonhos que tinha contribuíam muito para aumentar a impressão desagradável que aquela mulher lhe causava: sonhava que uma bela rapariga vinha estender-se na sua cama, mesmo encostada a ele, e poisava a boca carnuda sobre o seu lábio mutilado. Naturalmente que essa sensação maravilhosa o excitava ao máximo, a ponto de experimentar em sonhos uma extraordinária sensação de realidade, sem qualquer deformação onírica, com a pressão dos seios dela sobre o seu peito, o cheiro a madressilva dos cabelos e a tepidez do hálito sobre a sua cara; e isto impressionava-o a ponto que os seus nervos ficavam como que aveludados de prazer, mas, de súbito, apercebia-se com horror de que essa jovem era a mãe, e apodrecia-lhe logo entre os braços. Ou então, sempre em sonhos, encontrava-se fechado no sótão, do qual só podia fugir por uma abertura, e ouvia alguém ou alguma coisa a subir as escadas; a porta abria-se e lá atrás divisava-se uma silhueta imóvel, coberta da cabeça aos pés por um véu negro, e, muito embora não lhe pudesse ver o rosto, sabia que se tratava da mãe, que vinha de luto para lhe anunciar que ele ia morrer; noutras ocasiões não era a mãe que estava atrás da porta, mas sim aquela coisa que tanto temia: um caixão ao alto e entreaberto, contendo lá dentro essa incrível putrefacção que o perseguia. Acordava aos berros e julgava sentir um cheiro suspeito em volta da cama. Havia ainda outro sonho que se repetia com frequência: estava suspenso no vácuo, por cima das falésias, preso à mão da mãe e, de repente, caía, segurando sempre essa mão, que se soltara do braço e vinha agarrada à dele como uma pata de frango. Em todas as circunstâncias, a mãe aparecia-lhe sempre vestida de preto, ou a chorar, ou com flores na mão, imóvel e espectral, como uma encarnação da morte ou uma profetisa da infelicidade.

 

Antes de o calor, lá fora, se tornar sufocante, coxeava até junto dos primeiros castanheiros que dominavam as dependências da quinta e, todo alagado em suor, pois agora o menor esforço o deixava ofegante e lhe esvaía imediatamente as forças, sentava-se encostado a uma árvore, com a muleta poisada na relva e a Bíblia, apenas simbólica sobre os joelhos. Contemplava com pasmo os telhados cinzentos de Maheux a seus pés, sobre os quais a luz baça deslizava sem brilho; as encostas fronteiras, que pareciam querer desabar sobre eles, mercê de uma alteração das perspectivas, as pesadas rochas dos seus contrafortes; e essa aliança agreste de pedregulhos e telhados a esbarondarem-se prolongava o seu mal-estar como se estivesse com febre ou delírio e tudo o que o rodeava se tornasse uma fonte de angústia - a sua própria angústia.

 

Nesses momentos, a ideia de ficar ali toda a vida era-lhe insuportável. Instintivamente, mergulhava o olhar no pequeno cemitério, cem metros abaixo da quinta, e à luz deslumbrante do dia, no meio do silêncio das pedras que desciam ao longo das encostas e lhe fazia martelar nos ouvidos o rumor inquietante do sangue, perante este achatamento das perspectivas, esta falta de profundidade da paisagem (poderia agora tocar com a mão nas faias da vertente oposta, quando ainda no ano passado a distância que o separava delas se lhe afigurava muito maior), perante este desabar de rochas sobre os telhados que esmagavam com a sua arrogância secular, semelhantes a uma excrescência segregada por uma doença mineral (e talvez os homens não fossem mais do que uma doença mineral), perante esta loucura da vida no meio deste deserto de fogo, estes enormes lagartos verdes cujo caminhar mecânico e desajeitado recordava brutalmente que durante dois ou três milhões de anos os sáurios se haviam contado entre os verdadeiros senhores deste planeta, a sua angústia tornava-se ainda mais ameaçadora, sentia o peito apertado como que num torno, percorriam-lhe o ventre dores agudas, uma garra maligna apertava-lhe a garganta e acelerava-lhe as pulsações; uma lucidez singular, emanação venenosa e subtil do mal-estar anterior, mostrava-lhe de súbito que, sobre tudo quanto tinha debaixo dos olhos, incluindo ele próprio, se estendia o reino plácido, implacável, de uma monstruosidade universal cujo horror ultrapassava tudo quanto se podia imaginar: era como se a Criação se voltasse contra si própria para se devorar à dentada, com uma raiva de aniquilamento que não conseguia nunca satisfazer, porque a fatalidade universal fornecia a esse furor uma matéria inesgotável para devorar; só havia uma e única verdade: esse trabalho discreto que se realizava ali perto, debaixo da terra, nesse rectângulo coberto de ortigas. Tudo o resto era fumo!

 

Certa manhã essa angústia levou-o tão longe que, julgando chegada a derradeira hora, se pôs a chorar; lágrimas de terror corriam-lhe pelo rosto crispado, enquanto mordia os dedos para não gritar.

 

«As moscas mortas infectam e fazem fermentar o óleo do perfumador; uma certa dose de loucura vence a sabedoria e a glória.»

 

(Eclesiastes)

 

À tarde, durante a hora da sesta, acordava em sobressalto, sob a força de uma ideia que fazia subitamente irrupção no seu espírito completamente desarmado pela sonolência, ideia essa que seria preciso escrever em letras maiúsculas, que ocupassem todo o campo da sua consciência:

 

QUE VEM FAZER DEUS NO MEIO DE TUDO ISTO?

 

Ficava ali, na penumbra do quarto, espantado, erguido sobre o cotovelo, com o coração a bater como o de um cavalo, semelhante a um animal a quem tivessem vibrado uma pancada atrás das orelhas. As palavras assumiam toda a importância, a ideia encolhia-se e tornava a encontrar o seu lugar entre outras que voltavam à tona e lhe restituíam as suas dimensões normais; o que Deus vinha ali fazer: a coisa não fazia sentido nenhum.

 

O facto de existirem padres e pastores denunciava ainda durante um momento o choque desse puro absurdo que vinha das profundezas. E depois, por simples contágio, o facto de ele ser pastor afigurava-se-lhe uma coisa aborrecida e estranha.

 

Errava durante toda a tarde, com a muleta, no ar viscoso que envolvia a aldeia e punha os pulmões à beira de uma leve asfixia - a impressão de respirar o pouco oxigénio contido nesse líquido espesso, apenas o bastante para não asfixiar-, as mãos inchadas, a testa a luzir com um suor gorduroso, a sentir o olhar da mãe a pesar-lhe sobre os ombros como um fardo, a espreitá-lo lá do fundo da gruta fresca da cozinha onde se conservava emboscada como uma aranha no centro da sua teia.

 

Acocorado na eira, sobre o pó da erva requeimada, construía pequenas torres de pedra, enchia-as de ervas secas, lançava-lhe o fogo e gozava avidamente o espectáculo do fumo a escapar-se pelos interstícios. Em seguida, com a precisão de um cuco que sai da caixa do relógio à hora exacta, o que o irritava deveras, a mãe afastava a cortina contra as moscas e surgia na soleira da porta; dirigia-se para ele no meio do calor espesso adocicado pela hortelã brava que vinha misturar-se ao odor mais forte das giestas. Não suportava aquela maneira que ela tinha de caminhar arrastando os pés, nem a mão escura e áspera que lhe poisava sobre a nuca ou sobre os cabelos, nem a voz cansada e um pouco lamentosa com que lhe dizia (e que se coadunava tão bem com o arrastar cansado das pantufas):

 

- Que estás tu a fazer, meu filho! Se o teu pai te visse!

 

Oh! Aquele tom de censura! Seria capaz de a mandar para o diabo se a irritação, e por vezes até uma espécie de ódio que ela lhe inspirava, não se houvesse transformado numa piedade atroz por causa da dedicação animal que sentia por ele.

 

- Como queres tu que ele me veja? E, de qualquer modo, que tem ele com isso?

 

- E a tua Bíblia, José, a tua Bíblia!...

 

Como se ele não soubesse bem que se chamava José! Esse nome ridículo dizia bem com aquela voz quebrada e com as grossas pantufas de homem donde saíam os ossos magros dos tornozelos. A Bíblia! José e a sua Bíblia! Só ele no mundo é que possuía uma Bíblia. Por todo o lado as pessoas murmuravam que o segundo dos rapazes de Maheux passeava debaixo das árvores com a Bíblia. Toda a gente estava ansiosa por a discutir com ele. Viriam de Paris senhores importantes que diriam com a mão sobre o peito: então tu nessa idade já leste a Bíblia? Inaudito! Deveria ser levado em triunfo! Juliette Clement, a prima de Sete (a rapariga dos lábios carnudos que em sonhos lhe beijava a cicatriz parecia-se com ela), havia de ficar louca por ele.

 

Ele fazia assim desfilar diante dos olhos uma porção de imagens, qual delas mais ridícula, como quem toca numa ferida dolorosa, e isso levava-o inevitavelmente ao auge do desespero: era o prazer amargo de conhecer as suas limitações e de se ataecar cada vez mais na própria estupidez. Pobre mulher! Ele observava. Observava aquele rosto ansioso e consternado a inclinar-se para o seu e aquela pele estranhamente» fina para uma camponesa, os seus olhos sempre um pouco húmidos, aquela cabeça de formiga, com ossos frágeis, que se tinha a impressão de poder esmagar entre os dedos como uma noz e de cujos pensamentos ele sabia muito bem ser o centro.

 

- Ora essa, a minha Bíblia, a minha Bíblia... Bem vês que estou a reflectir.

 

- Os miolos até te podem arder, de tanto pensares. Os camponeses e o seu terror do fogo.’ Bem gostaria

 

ele de queimar tudo, de provocar qualquer cataclismo que modificasse a sua vida totalmente para não precisar de matar a cabeça de manhã à noite!

 

- Isso sim! Deixa-me em paz, já te disse que não há perigo nenhum. Mas se tens medo vai-me buscar água.

 

E ela ia buscar água, a arrastar os pés, de costas curvadas, os braços caídos, a repetir de si para si: mas porque faz ele isto, arrisca-se a pegar fogo, se o pai o visse ficava doido, porque faz ele isto, não estará maluco? Se o médico o visse fazer estes disparates e se o pastor soubesse... - indecisa entre a inquietação de que ele «não desse nada e a secreta esperança de que um comportamento tão estranho fosse precisamente um desses sinais por que se reconhecem os destinos fora do comum.

 

Sozinho no pequeno atalho de Ferrières, o Taciturno avançava seguindo a borda da ribanceira debruada por um vestígio de muro, no meio daquele nevoeiro cerrado que começa a iluminar-se e muitas vezes precede os dias quentes de Setembro; apesar da rapidez com que cai o crepúsculo, são talvez esses os mais belos dias do ano. Dir-se-ia que a terra, encharcada de sol durante semanas de calor brutal, aproveita a primeira suavidade do fim de estação para ressumar todo o mel desse calor acumulado em si. O ar vermelho e espesso tem o sabor da polpa dos frutos e sente-se correr dentro dele o perfume das latadas como se fosse um xarope.

 

Sim, iria com certeza fazer muito calor naquele dia: embora o nevoeiro escondesse ainda completamente o Sol, o velho montanhês transpirava ao caminhar como se se estivesse em pleno Verão.

 

Saíra de Maheux mesmo ao raiar do dia, equipado com a sua célebre espingarda de carregar pela boca e a rede onde se baloiçava já uma narceja que acabara de matar, talvez a única peça de caça em que aquela escopeta arcaica era capaz de acertar, para se ir reunir em Mazel-de-Mort a um bando de caçadores que se juntava todos os anos na abertura da caça: Despuech, em cuja casa tinham habitualmente lugar as jantaradas tradicionais, Boutonnet, de Barre-de-Cevé- * nes, que falava com uma voz cansada e parecia sempre vítima de males incuráveis, os irmãos Roux, de Saint-Julien, vermelhos e asfixiados, como todos os comedores de carne de porco, Sauveplane, de Florae, com um furo na testa, de um tiro que apanhara na batalha do Mame e no qual se via pulsar uma veia à flor da pele, dois ou três rapazolas, também de Florae, todos ufanos por possuírem uma «Robuste» de repetição e que davam largas a esse orgulho constelando de chumbos os sinais de trânsito ou de caça proibida; e finalmente alguns velhotes que vinham ali unicamente para encherem a pança; esses não precisavam de espingarda, nem de cão, nem de licença nem da abertura da caça para encherem a rede; desde o dia 1 de Janeiro até ao dia de S. Silvestre, percorriam os bosques, passavam pelo coador os ribeiros e forneciam a todos os restaurantes da região tudo quanto era susceptível de se esfolar, depenar, estripar, pôr de conserva, meter no forno, assar, pôr de molho ou em salmoura.

 

Depois, nessa noite, terminada a festa, Reilham traria para Maheux o cavalo que o amigo lhe emprestava na altura das lavouras ou nas sementeiras do Outono; a partir do dia seguinte, e durante uma quinzena, navegaria com o animal através das altas encostas, revolvendo a terra, de braços esticados sobre o arado, encontrando por vezes na fadiga a sensação de que eram os próprios músculos que arrancavam os torrões e cavavam os sulcos. Mas semelhante fadiga era agradável; não se cansava de ver abrirem-se à sua frente aqueles dois lábios de terra vermelha, os quais, se chovera havia pouco, se tornavam tão macios e lisos como manteiga. Seria capaz de continuar a lavrar até aos confins do horizonte só pelo prazer de ouvir o tilintar das ferraduras do cavalo sobre as pedras e de sentir estremecer até aos ombros aquele bico reluzente e limpo sobre o qual se concentrava toda a força dos seus braços multiplicada pela do animal. Nunca ousaria confessar fosse a quem fosse que a melhor parte da colheita era aquela. Nem sequer perguntava a si próprio se esta seria boa ou má, melhor ou pior do que a precedente; esse género de preocupações nunca lhe alterara o sentimento de plenitude, de áspera consolação que experimentava ao unir o seu esforço ao do cavalo para romper a crosta dura do restolho, para fazer esboroar-se aquela superfície torrada, estalada, coberta de pêlos curtos e rijos, de rasgar aquela camada morta sob a qual uma vida silenciosa e cativa esperava pelo ar, pelo sol e pela chuva para brotar de novo em hastes frágeis e trémulas que o vento da Primavera faria ondular seis meses mais tarde, quando começassem a avermelhar nas pontas como o pêlo dos cachorros novos.

 

Enquanto seguia o atalho através do nevoeiro, guiando-se pelo muro duplo de pedras redondas que surgiam na sua frente à medida que avançava, no centro de uma espécie de halo mais claro que o ia acompanhando, como se a sua presença bastasse para dissolver essa espessura pastosa no raio de alguns metros, reflectia, com o espírito tranquilo e esvaziado por esse trajecto quase maquinal que, no meio da bruma sem surpresas, lhe deixava livre o curso dos pensamentos. Recordava esses momentos tão agradáveis da sua vida, que o ciclo das estações oferecia periodicamente ao céu vasto e aos grandes espaços, a essa navegação nas alturas, fustigada pelos choviscos e pelo vento, ou cega pelo Sol - essa vida que ele jamais se disporia, ao cabo e ao resto, a trair ou a perder. Era por isto que ia aguentando, por isto que nunca quisera partir, se recusara a vender, que escrevera a esse tal sujeito da cidade, sem dizer nada a ninguém, a fim de embargar a venda. Se um dia a mulher viesse a saber nunca lho perdoaria. Claro, havia aquele atraso que jamais conseguia remediar, aquela corrida desenfreada atrás das estações, cujo ritmo não era capaz de alcançar, as colheitas meio perdidas, a terra levada pelas enxurradas e que era preciso acarretar de novo em cestos, as encostas íngremes que tinha de subir e descer de manhã à noite para recolher o feno ou alimentar o fogo, havia a tristeza do sol e a solidão da alma, o silêncio do mundo e a incerteza do futuro, havia a pobreza, essa pobreza que morava em casa deles desde o nascimento até à morte como uma companheira fiel e que acabavam por amar, essa pobreza da terra, da mesa, do vestuário, essa pobreza dos gestos e das palavras, essa pobreza que toda a gente odiava e recusava com raiva. A pobreza, e depois? Não falavam noutra coisa, como se não valesse mais comer uma côdea sentado à porta como um homem livre do que alimentar-se de lagosta numa prisão; porque, enfim, ninguém me diga que essa gente não vive numa prisão. Não me queiram convencer de que essa gente é feliz. Podem andar vestidos como lordes, passear de carro, ir ao cinema, fazer toda a espécie de pândegas, a verdade é que andam tristes, estão sempre doentes ou furiosos contra alguém: lutam por dá-cá-aquela-palha, fazem guerras e revoluções, etc; quando os vemos caminhar nas ruas, encostados uns aos outros, ficamos a perguntar a nós mesmos para onde é que vão, seja como for, parece que lhes não dá prazer ir para onde vão nem fazerem o que fazem e é talvez por isso que acabam por lutar. Lutam porque se aborrecem e querem que os outros vão combater ao lado deles; mas que lutem sozinhos, se isso lhes apetece! Porventura qualquer deles se interessou algum dia por nós? No Verão, ainda por aí aparecem às vezes, passeiam na floresta, enchem tudo de papéis gordurosos, pegam fogo às matas e dizem, a olhar para as montanhas: como isto é lindo! ah! que lindo! Que quer isto dizer, que lindo? Dizem-no assim à toa, para mostrar que são inteligentes e que valem mais do que nós. E toca a bater com as portinholas dos carros, a fazerem travagens que levantam poeira e a tirar fotografias: é a igreja, o cavalo, a fonte, os carneiros, o redil, o pastor, e lá vão eles montanha a cima, a dormir em tendas. E, ao cabo de dois dias de chuva, tratam de arrumar a tenda e põem-se ao fresco; e atam lenços à volta do pescoço, põem óculos escuros, livros debaixo do braço, enfim, uma palhaçada! E, sempre como se lhes tivessem pegado fogo ao rabo, correm de um lado para o outro; agora é a senhora que tem enxaquecas e quer ir para a praia, e pronto, lá vão eles para a beira-mar, a comerem areia e a assarem ao sol como sardinhas, até apanharem moléstias.

 

Avistou, meia afogada na bruma, a silhueta de um pastor, imóvel, à beira do caminho, com a sua capa preta que o tornava parecido com um pinheiro pequeno; o pinheiro cresceu e era mesmo um pinheiro. Tinha de voltar para trás: não havia pinheiro nenhum antes da encruzilhada de Mazel-de-Mort; iludido pelo nevoeiro, devia ter passado além sem dar por isso. Por fim, percorridos cem metros, encontrou o atalho. As alvéolas levantavam voo à sua passagem, rentes à terra, para irem poisar mais longe, em cima das pedras. Molhados pelo nevoeiro, os arbustos soltavam um cheird amargo a medicamentos.

 

Amanhã, decerto, começaria por lavrar a Terra Gande, uma parcela empoleirada lá em cima, à beira do planalto, perdida em pleno céu e próxima das nuvens, erguida por uma onda do terreno que atirava de repente com o homem e com o cavalo para o vento das grandes distâncias; uma terra argilosa, de pele requeimada e carne poeirenta, onde chocalhavam essas placas de lousas que se vão amontoando, de geração em geração, nas depressões do terreno, mas que voltam sempre a aparecer à superfície, como se o arado andasse a lavrar um cemitério imenso e as pessoas caminhassem sobre ossos. O centeio, ali, crescia pouco, com clareiras, nos pontos onde a pedra forma uma calçada tão compacta que aflora ao nível da terra. Encontram-se ali muitas vezes estrelas-do-mar, ouriços, espirais de conchas incrustadas no calcário como se fossem medalhas - restos de antigos mares, segundo parece. No outro extremo do campo, mais para o interior do planalto, um antigo dólmen servia de abrigo aos pastores e aos caçadores, os quais haviam escrito os seus nomes com pedaços de pau queimado até ao cimo da abóbada, que deixava ver pedaços de céu. Algumas dessas inscrições datavam do princípio do último século, do tempo das guerras do Império. No auge do calor do dia come-se um naco de queijo na frescura do abrigo, com as costas apoiadas nas pedras frias; lá fora, a luz intensa faz tremular o horizonte, esfuma de azul as montanhas, excita os insectos; espera-se ainda um pouco, saboreando de tempos a tempos uns goles de vinho ácido, depois guarda-se a garrafa ao fresco, debaixo de uns farrapos, no fundo do saco, e volta-se para o seio da fornalha pegajosa, e de novo os sulcos do arado sobem até ao cimo da cabeça, num cortejo de moscas e de cheiros fortes que o cavalo deixa atrás de si, com os flancos envernizados pela transpiração e a boca branca de espuma.

 

De súbito, num cômoro afastado, ouviram-se cães a ladrar com aquele tom ansioso e precipitado que eles têm para levantar a caça; logo a seguir estalaram dois tiros sem eco, absorvidos pelo nevoeiro.

 

De súbito, num cômoro afastado, ouviram-se cães copadas estendiam os ramos sobre a relva aveludada da encosta. A bruma perdia pouco a pouco a sua consistência; em certos pontos quase desaparecera, abrindo-se então uma zona onde as coisas surgiam com uma nitidez surpreendente, um relevo desusado. Depois tornava-se de novo espessa e engolia tudo, com excepção de uma pequena clareira em que a visibilidade não excedia alguns passos. Por fim, todo aquele cinzento se transformou em amarelo, se iluminou e, sobre o rosto reluzente de suor, Reilham sentiu vagamente o calor do sol; depois de uma curva do atalho, desembocou no bosque de onde a névoa se retirava lentamente, deixando-o em plena luz.

 

Na frente dele, à luz matinal levemente velada, desdobrava-se um vasto panorama de montanhas, umas a cavalo nas outras, cobertas de florestas, vendo-se nas vertentes mais próximas o brilho reluzente e prateado dos telhados de ardósia, semelhantes a grandes escamas de peixe. O muro baixo de granito que corria ao longo do atalho fumegava no meio das urtigas e não havia tufo de erva que não tivesse a cobri-lo uma pequena teia de aranha constelada de gotículas irisadas à contraluz pelos raios oblíquos.

 

- Do interior dos bosques, que haviam recuperado toda a profundidade dos seus ecos, partiam tiros que revelavam isso mesmo. Os cães, loucos de desejo, ladravam em tons agudos, lancinantes.

 

Ao avistar os telhados de Mazel-de-Mort, ao fundo de uma grande planície cercada de bosques, Reilham saltou o muro baixo e cortou caminho através das estevas ; o seu cheiro quente e acre sufocava-o - talvez, quem sabe, fosse a fadiga da manhã e o facto de haver caminhado tanto tempo em jejum que lhe faziam parecer esse odor tão forte e estonteante. Parou por momentos, com os pés atravessados na descida, para limpar a testa alagada em suor e, poisando a espingarda sobre a relva, ao erguer-se de novo, sentiu uma tontura; inúmeros pontos negros dançavam-lhe diante dos olhos em todas as direcções. Olhou estupidamente em redor, como que admirado de se encontrar ali.

 

As giestas começavam a secar pouco a pouco; à entrada da quinta avistavam-se, num terceiro relvado, uns quatro ou cinco automóveis estacionados no meio de máquinas agrícolas mais ou menos desmanteladas e cujos varais apontados para o céu lembravam canhões antiaéreos. Por cima de tudo pairava um grande pássaro ameaçador, de asas em acento circunflexo, interessado por qualquer minúscula presa; iriam os varais abrir fogo sobre ele? No momento em que se baixava para agarrar na espingarda, Reilham teve por momentos a sensação estranha, bruscamente desagradável, de uma confusão de épocas, de uma mistura muito singular e cativante de esperas de caça e de manhãs de guerra em que os homens patrulhavam ao longo dos bosques esbranquiçados de gelo ou no meio das terras de beterraba, lamacentas e tristes, que pareciam feitas de propósito para sofrer os desgastes da guerra, para servirem de funil aos obuses e de fossas aos cadáveres. Tão forte era esta impressão, tamanha era a sua curiosidade de lhe seguir o progresso dentro de si, a ponto de se imaginar ainda com a farda militar, que agarrou na espingarda e percorreu os últimos trezentos metros sem dar por isso. O cheiro a café quente que se evolava através da porta da cozinha vinha ainda acrescentar a tudo isto uma confusão suplementar: quando penetrou no compartimento de tecto baixo, ainda bastante escuro, não teria ficado muito adnrrado se o ruído confuso das conversas, o entrechocar de latas dos cantis dentro dos sacos, o estalido seco e nítido das culatras que os jovens manobravam marcialmente, anunciassem uma patrulha a sair para os postos avançados na floresta das Ardenas numa fria manhã de Inverno de 40. Isto era tanto mais estranho porquanto se estava hoje a 10 de Setembro e fazia exactamente dez anos naquele dia que aquela aventura espantosa, cujos meandros nunca percebera, começara para ele, como de resto para a maior parte dos que se encontravam ali presentes nessa manhã; depois de haver distribuído alguns apertos de mão e bebido uma chávena de café, sentiu dissipar-se aquela impressão e, com grande surpresa sua, experimentou uma certa nostalgia, uma vaga tristeza, algum aborrecimento ao pensar que um dia de caça terminaria infalivelmente numa cama - como se de um verdadeiro dia de guerra, se devesse esperar algo de mais importante; como se nada pudesse substituir a maravilhosa impressão de liberdade, de irresponsabilidade, de apreensão, numa palavra: de incerteza, que acabava de sentir através dessa confusão da realidade actual ao longo da misteriosa ladeira das recordações.

 

- Estávamos só à tua espera - disse Despueeh, poisando-lhe a mão no ombro;-vamos lá, o dia vai ser duro.

 

- Sim, sim, o dia vai ser duro - respondeu ReiIham erguendo-se, com as pernas um pouco pesadas; e mais uma vez, um bocado aturdido pelo calor do fogão, o cheiro dos guisados e da caça que saturava a atmosfera, o ruído das cadeiras a arrastar, o barulho dos pés, repetiu maquinalmente, numa voz que não parecia inteiramente a sua:

 

- Sim, o dia vai ser duro.

 

No momento em que ia transpor a porta, Despueeh segurou-lhe no braço.

 

- A propósito do cavalo, quero dizer-te uma coisa; uma coisa importante para ti. Falaremos disso esta noite.

 

- Ah, sim ? - respondeu Reilham. - E porque não agora? Se é alguma coisa aborrecida mais vale que a digas já.

 

Despueeh encheu de ar as bochechas e desatou a rir.

 

-Lá isso é, bastante aborrecida...

Bateu-lhe nas costas e continuou a fungar de riso.

- Grande malandro! Sempre na lua, hem? Pensas que os outros são como tu? Vamos lá embora! Logo à noite estaremos mais sossegados para falar do caso. -E foi-o empurrando para fora; entretanto, Maria Preta, a filha, fazia um barulho dos diabos com a loiça; parecia furiosa. Era uma rapariga magra, de pele escura e ar de poucos amigos, mas que, segundo se dizia, trabalhava como um homem. Mal saíram todos, bateu com a porta e voltou para junto do fogão, encolhendo os ombros.  

Os homens regressaram cerca da uma da tarde, no meio de um calor quase tórrido e de um sol abrasador. Um céu tão puro e calino anunciava belos dias de Outono; por toda a parte se ouviam cantar as cotovias por cima das terras de cultura.

 

Após terem pendurado as espingardas e empilhado as peças mortas sobre a arca do pão, os homens foram lavar as mãos lá fora, numa celha de água gelada que nascia lá em cima, no prado, no meio de um ninho de juncos e era conduzida até à quinta através de troncos cavados no centro e cobertos de musgo; essa fonte que corria sem parar tanto de Inverno como de Verão era o orgulho do seu proprietário e causava inveja a todos numa região onde se era obrigado, na maioria dos casos, a contar com o céu para abastecer as cisternas. Os créscimos dessa água alimentavam um lago artificial, cujas margens, com remendos de barro, estavam crivadas de buracos feitos pelos carneiros; a água sobrava ainda para regar os canteiros de legumes de uma horta cercada de muros de pedras sobrepostas. Sob as janelas havia também flores em canteiros guarnecidos de calhaus redondos.

 

Para os Reilham aquela quinta representava uma espécie de paraíso terrestre e Despueeh reinava ali como um Deus misericordioso; era evidente que, sem o auxílio dele, nunca teriam podido sobreviver. De cada vez que vinha a Mazel-de-Mort, Reilham sentia-se tão pouco à vontade como um vilão em casa do seu senhor; mal se atrevia a sentar-se, apesar da jovialidade amável que lhe manifestava o amigo.

 

Os homens entraram um por um, puxaram cadeiras e instalaram-se à volta da mesa em silêncio. Os cães dormiam já nos cantos, entorpecidos pela frescura da laje. Começaram por beber, em boiões de mostarda, uma aguardente com forte sabor a mosto. De quando em quando um deles falava numa voz forte, como quem se dirige a um surdo. Certos rostos, inclinados para a frente e iluminados obliquamente, pareciam cobertos por uma máscara de argila vermelha, acima da qual surgia uma tira de pele lívida, de um branco frágil e doentio que tinha a indecência das partes secretas do corpo escondidas da vista e invioladas pelo sol.

 

De pé, junto ao fogão, com os braços cruzados e o rosto inexpressivo, a Maria Preta,observava-os um após outro, com a frieza de um comprador de gado, esperando ordens da raça dos senhores para exercer as suas funções domésticas: a um sinal de cabeça que lhe dirigiu o pai, foi direita à arca sobre a qual estavam colocados dois grandes pratos de enchido; pô-los no meio da mesa depois de afastar os copos e as garrafas bruscamente, sempre de rosto fechado, servindo-os a todos com um zelo carrancudo, a roer um imaginário freio, a ruminar talvez um ódio secreto contra aquela assistência. Depois regressou ao seu posto de observação enquanto os comensais, desdobrando lentamente os guardanapos e abrindo os canivetes com a ponta da unha, começavam a oficiar em frente dos pratos.

 

Durante grande parte da refeição comeram em silêncio, como se se tratasse de um repasto fúnebre; e, de resto, na maneira de cortar o pão em pequenos cubos, de mastigar cada bocado sem pressa, quase como quem não tem apetite, bebendo de olhos semicerrados, com prudência e respeito, reinava uma espécie de solenidade ritual que conferia à refeição um certo ar de religiosidade.

 

Lá para o fim, graças ao vinho e aos temperos fortes, os espíritos aqueceram e o tom das conversas subiu; contaram primeiro histórias de caça, que não tardaram a degenerar em discussões políticas, e isto logo deu aso a um extravasar de mau humor geral, à condenação em bloco do sistema, dos sindicatos, dos partidos, acabando todos por recorrer, de um modo inteiramente platónico, ao regime da tábua rasa, da limpeza pelo vácuo, como se aquilo fosse um eco longínquo e moribundo das antigas virtudes revolucionárias, hoje completamente esquecidas.

 

Despuech, dirigindo-se a Reilham, que sentava sempre a seu lado, inquiriu:

 

- Não fazes como nós?

 

Esmigalhava uma fatia de pão no prato e regava os bocado e a comida demasiado forte empatava-lhe a roso; no fim das refeições, antes da salada ou dos pêlarãcms, muitos tinham este hábito.

 

Reilham sacudiu a cabeça; estas comezainas que se prolongavam pelo dia fora cansavam-no sempre um bocado e a comida demasiado forte empatava-lhe a digestão. Mal tocara nas lebres guisadas. O rumor confuso das vozes, o fumo, o ranger das cadeiras, o pouco vinho que bebera quando a verdade é que nunca bebia, tudo isto se vinha juntar à sensação de enfartamento, acompanhada de um certo enjoo, que pesava sobre a sua digestão e acabava por lhe causar tonturas: estava ansioso por sair, por caminhar, por respirar um bocado de ar fresco.

 

De súbito, recordou-se do cavalo, daquilo que Despuech dissera pela manhã no momento da partida. No seu entusiasmo, mal pensara nisso, esforçando-se por não aprofundar o assunto, com receio de qualquer complicação. Agora, estava a ver que regressaria sozinho a Maheux. Fosse por que motivo fosse, não tinha cavalo. No dia seguinte, não iria navegar através dos grandes espaços, não teria nenhum sulco a abrir, nenhuma vibração nos braços, como se a terra estivesse viva e começasse a estremecer; não sentiria aquela saudável fadiga, que é melhor do que o leito mais fofo, quando se deitasse à noite. A Terra Grande, lá no alto, ficaria inculta, morta, o seu restolho lívido ao abandono? Não se lembrava das colheitas, da catástrofe que isso representaria para ele e para os seus se não arranjasse um animal para trabalhar.

 

Lá no alto... Via-a estender-se e subir à sua frente, essa terra junto ao céu, com o seu abrigo miserável de pedras secas, a longa e poderosa ondulação de terreno que a erguia até às nuvens, o fim da leira, que deixava uma pessoa à mercê do vento do largo, numa liberdade maior, nesse desfiladeiro onde principiava a vastidão da paisagem, semelhante aos movimentos amplos das ondas do oceano a desenrolarem-se sem fim em volta dos continentes.

 

Nada o irritava tanto como essa ideia, a um tempo tão suave, tão firme, tão embriagadora. Enquanto se esforçava por escutar o que lhe dizia o companheiro, perguntou de súbito a si mesmo, com uma intensidade singular, como estaria a luz lá no alto, naquele mesmo instante; qual seria o ângulo do Sol em relaçção à encosta e até que distância a negra sombra do dolmén teria avançado no chão. Só de imaginar que tudo aquilo existia na solidão, enquanto ele ali estava a empanturrar-se, causava-lhe uma estranha ansiedade no peito, como que causada por uma absurda forma de amor, tão perturbante e funda como a atracção que se sente por um certo rosto humano; fosse como fosse, nada se lhe afigurava tão importante como o que se estava passando lá em cima naquele momento, mesmo que não se passasse nada - talvez mesmo porque não se passava ali nada.

 

Nesta altura, reparou que Despuech lhe estava precisamente a falar do cavalo. A imagem do campo com o seu abrigo rústico encontrava-se tão presente no seu espírito que teve de fazer um esforço real para regressar junto dos convivas e prestar atenção ao que o outro lhe dizia.

 

- Diz outra vez, por favor. Com todo este barulho não percebi nada.

 

- Caramba, nem ouves quando alguém te fala; nunca se sabe em que estás a pensar. Já te disse que a Maria...

 

Em que penso; porque hei-de pensar assim como eles? Nunca o fiz em toda a minha vida. Antes queria estar lá em cima com o cavalo, a lavrar; ou sentado em frente ao cabeça, à espera; à espera que caia a noite.

 

Pela primeira vez na vida, assaltou-o a ideia bizarra de não voltar a casa nessa noite e de ir dormir lá no alto, no meio da música das estrelas e dos grilos. Sentiu uma mão a sacudir-lhe o ombro.

 

- Então? Não tens nada a dizer a. isto? Despuech, muito vermelho, sorria estupidamente e não conseguia fixar nele os seus olhos claros, que se desviavam um pouco ao fitarem as pessoas, como sucede a quem está um tudo nada embriagado.

 

- Ora essa é muito boa - retorquiu Reilham -, muito boa mesmo. Com que então...

 

Sem haver escutado, tinha a impressão de se recordar de que o amigo lhe estava a oferecer o cavalo para sempre; era como se tivesse gravado as palavras dele sem as compreender. O cavalo era um presente

 

da Maria. Agora estava a perceber.

 

- Da Maria, estás a compreender, é da Maria... Porque a Maria e o Abel... Hem? É preciso explicar tudo, não? Raios me partam, estou mesmo contente - afirmava o outro. - Ainda há bons momentos na vida.

 

Depois, perante o olhar mal-humorado da filha, baixou o tom e disse ao ouvido do amigo:

 

- Se não te importas, dá-se a notícia noutro dia; a Maria não está hoje disposta.

 

Desatou a fazer projectos de futuro. A perspectiva de casar a filha e a influência benéfica do vinho aliavam-se para lhe fazer encarar tudo com optimismo; falava em restaurar uma sociedade tradicional, mas assente na comunidade dos interesses e na fraternidade; o egoismo, a estupidez, o isolamento de cada um é que eram em parte responsáveis pela nossa situação actual; as Terras Altas haviam-se desagregado malha a malha, família após família, e ninguém movera um dedo para impedir semelhante escândalo; não interessa saber o que acontecerá daqui a mil anos, o que é preciso é ver o que se está a passar agora: seremos nós felizes? O nosso trabalho terá algum sentido se não formos capazes de assegurar o futuro dos nossos filhos? Se cada um viver só para si, acaba por embrutecer, por ruminar só ideias negras, os anos passam a correr e um belo dia encontramo-nos sozinhos tudo quanto fizemos de nada serviu, nem sequer para vivermos comodamente: fica-se mais pobre no fim do que se era no princípio. Ao cabo e ao resto, as tribos patriarcais tinham uma certa razão de ser - basta que as pessoas se reunam à volta da mesa a beber uns copos ou a molhar a sopa juntos para que surja de novo a velha alegria, quando habitualmente, é a morte que preside às nossas refeições; acabamos até por nos convencermos de que é para ela que se trabalha: viver-se só para nós é o mesmo que viver para a nossa própria morte; mas não vamos tão longe. É preciso procurar uma solução para remediar isto. Mais tarde falaremos de religião e de filosofia.

 

Uma vez casados os filhos, porque se não há-de lavrar a terra em comum e dividir o fruto da colheita? Uma espécie de Kolkoze, afinal! O trabalho seria mais fácil, aumentava-se o rendimento e todos ficariam contentes.

 

Reilham procurava fixar a atenção, mas sentia-se cada vez mais distraído, preocupado, como se nada daquilo lhe dissesse respeito e houvesse algo de muito mais importante, de muito mais urgente a fazer

- mas sentia-se incapaz de dizer o quê; dormir, talvez... Não, era mais leve, mais embriagador do que a vontade de dormir. Ele sentia-se ao mesmo tempo fatigado e desejoso de se ir embora. Perpassava-lhe pelo cérebro uma porção de pensamentos desencontrados, todos eles estranhos e indiferentes, e contudo esse cavalo, essa terra, o futuro da quinta, maior segurança para os seus, que poderia haver de mais importante para ele? Porém, por detrás dessa agitação estéril, reinava uma espécie de calma estranha, lunar, que o atraía e lhe dava já uma impressão maravilhosa de repouso. Sim, sim, ir-se embora, caminhar sob o céu vasto, pôr um pouco de ordem nas ideias, era isso de que ele precisava. Ergueu-se bruscamente.

 

- Tenho de ir dar a notícia à velhota - declarou. - E de resto é quase noite. - No meio do barulho das conversas ouvia a própria voz a ressoar desagradavelmente, como quando se têm os ouvidos tapados.

Eram seis horas da tarde. O sol abandonara a janela e, no pátio já sombrio, só continuava iluminado o cimo do muro da granja. «É a mesma luz lá do alto», disse consigo, e mais uma vez experimentou a mesma perturbação, semelhante a um espasmo de imperceptível receio.

- Não vais deixar-nos já - declarou Despuech. Ainda temos de comer as frituras e o vinho espumoso.

 

- Ah, bem - respondeu Reilham. E sentou-se docilmente.

 

Enquanto o pai ia buscar o vinho, Maria serviu as frituras; aproximou-se dele. Tinha um ar ao mesmo tempo irónico e furioso. Mas poisou-lhe rapidamente a mão no braço.

 

- Um dia destes vou visitar a sua mulher. Para conversarmos.

 

E dali a pouco, já na soleira da porta, no momento de partir, Reilham ainda disse:

 

- Obrigado pelo cavalo. A velhota é que vai ter uma surpresa! - depois beijou-a três vezes nas duas faces.

 

- Também temos de dar um abraço - acrescentou Despuech, atraindo-o a si.

 

- Mesmo   assim - observou   Maria -,   ele   podia acompanhar-te no dia de hoje, que selvagem!

 

- Bem   sabes   que   não   gosta   de   companhia retorquiu Despuech. - Não és tu que o vais modificar; já deves contentar-te com o facto de o teres caçado.

 

Preso à porta do estábulo, o cavalo, enorme, escavava o chão como se também ele estivesse impaciente por caminhar no meio das ervas, na frescura perfumada da tarde: o cheiro dos prados húmidos vinha até eles. Reilham agarrou na cabeçada do animal e este deslocou-se pesadamente, começando a caminhar atrás dele.

 

Ao chegar ao cimo do prado, voltou-se, estupefacto por haver percorrido já todo aquele caminho: a quinta era minúscula. Mal esta desapareceu atrás de uma prega do terreno, ele sentiu-se bruscamente liberto de um incómodo, tendo apenas, por fim, o céu imenso só para ele.

 

- Agora, tu - disse Maria para o pai, quando regressavam para junto dos convidados. - Trata de ter cobro na língua e não digas nada a estes bêbados.

 

Há anos que ela dizia não querer casar; os outros pensavam que, dado o seu feitio, quem a não queria eram os rapazes.

 

O dia caíra rapidamente. O bosque que ele atravessara pela manhã em sentido inverso estava agora escuro, porém, mais acima, ao desembocar na encosta descoberta, deparou-se-lhe de novo a claridade do céu, onde tremeluzia uma estrela para as bandas do poente. Atrás dele, as pedras do caminho estalavam e rebolavam sob as patas do cavalo: não havia outro ruído além daquele martelar pesado e lento, sem eco, que lhe acompanhava a marcha. Era contudo àquela hora que começam a elevar-se os cantos de todos os insectos nocturnos; sobretudo em noites suaves como aquela. Mas nada se ouvia - além do baque surdo das ferraduras que faziam tremer a terra e rolar as pedras. Ele sentia a transpiração escorrer-lhe pelo pescoço e molhar-lhe a testa, a qual, ao evaporar-se, lhe causava uma certa frescura. De súbito, parou, julgando ter deixado a rede de caça em casa de Despuech. Mas não, onde tinha ele a cabeça? Levava-a ali ao seu lado, cheia com a caça que lhe coubera na distribuição - muito embora ele próprio só tivesse conseguido matar aquela narceja de madrugada; durante alguns dias, em casa dos Reilham, haveria fartura. Sobretudo para Abel. O José não comia quase nada. José. Tentou pensar em José, mas, caso curioso, não o conseguia de verdade. Dir-se-ia que a imagem do filho mais novo se recusava a formar-se dentro da sua tabeça. Tratava-se de uma impressão muito singular: a impressão de que a discreta passagem de uma borracha, discreta mas muito eficaz, apagara definitivamente da sua memória a imagem do filho. Até mesmo a ideia de ter filhos se lhe afigurava uma coisa absurda. Caminhou durante um bom bocado, sempre a ruminar outras ideias igualmente singulares, sentindo-se completamente deslocado, como se a sua consciência se tivesse enganado na pessoa, sem que ele se desse conta, e houvesse emigrado para outro corpo, abandonando o seu conteúdo supérfluo. Que significava ter um filho? Ou ter uma mulher? Ninguém tem nada. Pequenos pontos brancos fugiam-lhe diante dos olhos, com a rapidez decrescente das balas tracejantes. No cimo da encosta esteve um bocado a resfolegar, com o coração alvoroçado pela subida íngreme. A sua boca, cheia de uma saliva pastosa e amarga, movia-se sozinha, como se possuísse uma vida independente. Nesse instante, o cavalo tropeçou numa raiz; ele voltou-se para trás; que animal estranho, aquele: a cabeça lembrava um estojo de qualquer aparelho musical. «Este cavalo pertence-me, disse consigo. Mas também essa ideia não tinha corpo. Julgava estar a reproduzir uma lição aprendida de cor, da qual não compreendia nada. Empregava uma teimosia de bêbado a repeti-la: em vão; as palavras deslizavam, era como se fugissem diante do esforço do pensamento, que ficava ali, estupidamente, a remoer no vácuo.

 

De repente, como se lhe passassem os fumos do álcool, julgou abrir os olhos e ver diante de si uma grande extensão deserta que não reconheceu imediatamente; experimentou um momento de pânico a tentar reunir as ideias, para deter essa queda vertiginosa fora do seu universo familiar; provavelmente tinha-se perdido, com o espírito ofuscado por todos esses fenómenos bizarros, e abandonara o atalho sem dar por isso. Recordou-se de ter parado um instante no alto da encosta para tomar fôlego; depois disto, mais nada, um buraco escuro. Recomeçara a andar talvez maquinalmente. «Mas que estou eu a fazer aqui? Até onde e para onde vou eu a caminhar assim?» O seu terror começava a dissipar-se: sentia-se sobretudo admirado por se encontrar ali, num lugar desconhecido que a Lua ascendente iluminava com uma claridade pacífica. Tudo era silêncio em seu redor; o vento fraco, quase tépido, agitava em lufadas acariciadoras as hastes das gramíneas no meio das quais se encontrava; um pouco adiante, subia na leve fosforescência da noite o imenso tapete de um campo coberto de restolho. Nem uma árvore, nem um arbusto, nada, a não ser aquele movimento da terra que se erguia para o céu como uma enorme vaga lisa sobre a qual deslizava a noite.

 

Mantinha-se imóvel, atento a essa paz nocturna, que pouco a pouco o invadia e lhe proporcionava o que estivera desejando durante todo o dia: não pensar em nada, descansar das suas fadigas, estar livre de projectos, flutuar nessa claridade de sonho, tal como uma barca ao sabor das águas dormentes.

 

Depois, insensivelmente, qualquer coisa orientou o seu espírito, o cenário retomou o seu aspecto familiar, o restolho cinzento o seu lugar habitual à beira do planalto, a paisagem a sua profundidade invisível. E, ao mesmo tempo que a reconhecia, foi como se se houvesse recordado do caminho percorrido que o conduzira, inconscientemente, até à Terra Grande. «Cá estou, cheguei, agora que vou fazer?» Mas não era muito importante fazer fosse o que fosse. Avançou uns passos, sentiu estalar a erva seca debaixo dos pés; tinha a cabeça tão leve como um casulo vazio. Sentia uma dor longínqua bater dentro dele algures, como um ferro em brasa, mas tornava-se difícil localizá-la. Uma única coisa o intrigava ainda: aquele barulho que marulhava continuamente aos seus ouvidos, semelhante ao ruído de um fio de alta tensão.

 

Veio-lhe ao espírito uma ideia infantil: montar no cavalo e deixar-se conduzir até ao cimo da encosta, para de lá descobrir mais terras ao longe. Voltou-se, o cavalo já ali não estava. Sentiu uma angústia pueril, logo dissipada por uma sensação de imatura inconsciência. «Oh, minha mãe! Agora é que vão ser elas!» Continuava a avançar pelo meio do campo; os grilos calavam-se à sua passagem: só escutava o ciciar eléctrico e contínuo. à sua direita, no fim do campo de restolho, abria-se um buraco negro, oval, na muralha cinzenta do nevoeiro: o dólmen. Como tudo era simples! Mas porque não se lembrara disso mais cedo? Pensar que havia levado quase meio século para ali chegar - ou, mais precisamente, para ali regressar! Sentia-se muito fraco, um pouco enjoado; as pernas, que a fadiga tornara insensíveis, sustentavam-no sem que ele tivesse a impressão de contribuir para isso com qualquer esforço. «O cavalo está exausto», disse consigo. E pensou, por um instante, que esse corpo renascido lhe não pertencia, que o que existia nele de intacto se encontrava inteiramente refugiado no cimo de um edifício prestes a ruir. Uma vez em face do dólmen, apoiou-se à parede, dobrou as pernas, sentiu o chão debaixo dos rins com uma sensação inexprimível de bem-estar. «Pronto, afinal isto não é assim tão mau, declarou em voz alta, com um risinho inquieto. «Mas, mesmo assim, que trapalhada!» Uma vaga sensação de culpa, como a de um garoto que faltou à escola, vinha alterar-lhe imperceptivelmente a calma, mas encolheu os ombros, e esse simples gesto libertou-o de todos os fardos inúteis, tal um astronauta que acaba de se libertar do peso da gravidade.

 

Semelhante a um mar quase imóvel, a noite respirava, envolta numa poeira azul; o seu hálito tépido, repassado dos perfumes da terra aromatizada pelas plantas, tocava-lhe o rosto com uma ternura serena e maternal. Onde não chegava o luar, as estrelas cintilavam; haviam-se acendido quase por todo o céu, como as luzes de uma cidade ao cair da noite.

 

O restolho desdobrava na frente dele a sua eira vasta e inclinada, evocando irresistivelmente a ideia de partida, de um abandono possível da terra, para um destino sem fim - para essa imensa cidade palpitante, situada para lá dos séculos. Esperar ali, para sempre, mas o quê? Talvez a partida empedrada nessa comprida espinha geológica, feita para receber ou lançar qualquer coisa, que evocava o torpor atento de um cais, de uma rampa, de um trampolim.

 

O sopro grave no fundo dos seus ouvidos atenuava-se pouco a pouco; desde que se sentara, parecia-lhe ter as ideias mais claras e mais leves, libertas não sabia de que peso. Mal o afloravam e logo o deixavam agradavelmente disponível. Algumas delas eram recordações recentes e desvaneciam-se mal tentava capturá-las, quais pétalas levadas pelo vento. Outras caras tinham sido apagadas, tal como a de José, havia pouco; impossível obrigá-las a reaparecer. Tudo quanto vivera nos últimos anos, até hoje, se lhe afigurava longínquo, fluido, infinitamente improvável. Quanto não andara! Tinha a impressão de haver deixado ate seus havia uma eternidade. Para ele, eram já estranhos; haviam ido reunir-se a essa imensa fila de rostos entrevistos ao longo da vida, e sobre os quais se fechava indiferentemente a água turva da memória. Dir-se-ia que tinham morrido há muito. Agora, ele estava a tocar o fundo do mar; acabava de chegar ao seu destino. Já não precisava de esperar por nada nem por ninguém. Essa noite imensa, aberta por cima da sua cabeça, e tão acolhedora, a Lua tranquila cujas manchas cinzentas formavam uma fisionomia que contemplava tristemente a terra, essas extensões fosforescentes, essas pedras brancas, transformavam-se no cenário imutável da sua vida, como se nunca houvesse saído daquele lugar.

 

E teria de facto saído dali alguma vez? Sentia-se na verdade perplexo. Como toda essa agitação para viver ou sobreviver importava agora pouco! A prova é que dela não restava quase nada. Furtivamente, recordou as madrugadas de névoa na Moselle, quando os soldados acendiam brasidos de carvão nos pátios das quintas abandonadas, dentro de barricas de óleo cortadas no sentido do comprimento; a guerra, os blindados, a debandada; o regresso, o misto de felicidade e decepção que se experimenta ao reencontrarmos tudo o que deixámos atrás de nós, mas não tal qual imaginamos que seria agora; a estranha satisfação de arrotear a terra durante horas e horas, sulco a sulco, com a mira num lucro que não era a colheita, mas sobretudo o silêncio, cinquenta anos de silêncio atrás de cada gesto e de todos os esgares; e, hoje, a consciência desse silêncio. Mas porquê, meu Deus, porquê?

 

Bruscamente, ergueu o corpo com os cotovelos apoiados na parede do dólmen: uma recordação acabava de o assaltar subitamente, a da mãe, a cortar o feno com o foicinho, ali, a poucos metros do dólmen. «Mãe!» gritou ele. Sentia qualquer coisa a incomodá-lo por baixo do nariz, um líquido tépido, que limpou com as costas da mão. Viu-se de novo sentado junto daquela mesma parede. Devia ter, talvez, quatro ou cinco anos; estava-se no fim de Agosto, uma vez que a mãe andava na ceifa; contemplava os corvos a crocitar, voando em círculos por cima dos rochedos em forma de torre que dominavam o vale: e sentiu-se extraordinariamente... como direi? Que estranho instante aquele! Extraordinariamente feliz; mas não, não se tratava de um sentimento nem de uma recordação, era outra coisa: estava um dia tão lindo! Aquele azul profundo, as falésias, o voo dos corvos, a mãe, curvada no meio das espigas, era isso que estava por detrás de cinquenta anos de gestos e esgares, era disso que era feito aquele silêncio. E estava ali, estivera sempre ali, como um princípio inacabado, uma semente por germinar, uma promessa não cumprida... E agora tinha de morrer. Morrer, quando um dia havia existido AQUILO...

 

Sentiu uma verdadeira tontura interior, a impressão de que uma luz brutal iluminava o centro de um quarto escuro, revelando as paredes nuas, o tecto nu, o chão nu: um quarto vazio. Era a sua própria cabeça que estava vazia. Cada vez mais leve e cada vez mais vazia, E aquela luz ofuscante não iluminava nada. Voltava ao ponto de partida, ao cabo de cinquenta anos, para descobrir um quarto vazio. Meio século vazio, nada lá dentro, nem fora, nada em parte alguma, mas, na origem, como um minúsculo tufo de erva ressequida no meio do deserto, um garotinho sentado junto a uma parede, a ver flutuar os corvos por cima das falésias. Tudo se passava como se ele tivesse entrevisto a realidade do mundo apenas durante uns segundos. Ao voltar-se, no fim do rego lavrado, iludido pelo cansaço, parecia-lhe ir encontrá-la. Mas a vida caíra-lhe em cima como uma pedra tumular.

 

Quis dobrar uma perna, mas esta já não lhe obedecia; aquele fio húmido que lhe escorria do nariz e passava sobre a boca tinha um gosto a sal. Mas já não era capaz de mover o braço para o levar ao rosto. Nos seus ouvidos o ruído cessara. Estava a deslizar para uma letargia benéfica, tão agradável como a toca para um animal ferido. Disse ainda uma vez de si para si que ia morrer, porém o que mais o interessava era sobreviver até ao fim daquele traço fino, intacto e inapagável, que o conduzia para esse paraíso misterioso. O desejo de o reencontrar assaltou-o com tal violência que teve um sobressalto das suas últimas forças, como que para se escapar a esse entorpecimento do corpo e da consciência. Foi um instante de delírio, um desfilar de imagens rápidas e de uma beleza cruel. O vento forte da noite estival atirava-lhe à cara os perfumes da terra, deliciosos e pungentes. Tudo está ali, tudo ali continua, disse consigo; o velho sol também lá estava, com os seus chicotes de ouro, a frescura amarga da alfazema esmagada sob as narinas. A aliança, a secreta e incompreensível aliança com todas as coisas. Fora pois isto o que ele viera procurar ali. Era o primeiro dia da sua vida, dentro do qual se enroscava de novo, com uma renúncia pacífica, para nele se abismar numa sonolência de embrião.

 

Foi nesse momento que a sua vida lhe apareceu como um pequeno e estranho objecto, esquisito e ameaçador, abolida toda a ideia de espaço e duração

- sem que tivesse a certeza de que vivera algum dia ou de que abandonara aquele lugar, ou mesmo de que havia escapado àquele invencível fascínio que ele sempre exercera sobre si - e então sentiu-se aliviado de todo o horrível peso da existência.

 

Tombou suavemente para o lado, fechando um olho e conservando o outro desmedidamente aberto, com um fio negro, que brilhava à luz da lua, a escorrer-lhe do nariz. A sua boca sorveu ainda um pouco de ar, a abrir-se e a fechar-se como a das rãs, à tona de água, antes de uma tempestade.

 

No dia seguinte, mesmo ao romper da madrugada, Despuech foi tirado do sono por um tropear abafado que abalava a terra por baixo da sua janela; ao ouvir relinchar, ergueu-se da cama. Era o cavalo; a corda da cabeçada pendia-lhe entre as pernas; o animal fugira, pelos vistos; mas, para haver encontrado sozinho o caminho da cavalariça, não devia ter ido muito longe. «Não passou além do velho atalho», disse consigo. «Pois bem, já sabes o que tens a fazer.» Levou consigo o cão.

 

- Que aconteceu, que história é essa? - inquiriu a filha quando o viu regressar dali a uma hora, com um ar cansado e pensativo; já tinha visto o cavalo na estrebaria.

 

- Como queres tu que eu saiba? Vou descer até Saint-Julien; aquece-me uma chávena de café.

 

As cadeiras dos convidados encontravam-se ainda em volta da mesa; sem querer, ele contemplava aquela que Reilham ocupara na véspera. «Ele tinha um aspecto esquisito», disse consigo. Bebeu o café e dirigiu-se a Saint-Julien, onde deixou o carro; o trajecto a pé até Maheux afigurou-se-lhe muito comprido; ainda eram só nove horas, mas o sol já queimava; dir-se-ia o pino do Verão; não se recordava de jamais ter feito tanto calor no mês de Setembro. O tempo quente trazia-lhe à ideia coisas desagradáveis. Estava morto por chegar lá a cima, empurrar a porta e deparar-se-lhe o outro a almoçar tranquilamente: «Sim, senhor, podes gabar-te de me teres pregado um destes sustos!» Mas lá estava o cavalo, obstáculo insuperável, a arruinar todas estas esperanças, e então imaginava outra cena: «O quê? Ele não ficou consigo? Estávamos a julgar que tivesse dormido em sua casa»... etc. «Talvez tivesse simplesmente adormecido lá em cima», disse para consigo, olhando os bosques que se estendiam desde Maheux até Mazel-de-Mort. E durante o último quilómetro essa hipótese afigurou-se-lhe capaz de resistir às piores objecções, mesmo à do cavalo; restituiu-lhe um pouco de coragem. Em todo o caso, era um argumento que sempre servia para amortecer o choque. Ao passar perto do antigo cemitério, não pôde impedir-se de lançar uma olhadela aos túmulos cobertos de urtigas; o seu aspecto abandonado, inofensivo à força de ser vetusto, reconfortou-o; a sua impressão era de que nada no mundo conseguiria desalojar aquelas urtigas do seu domicílio; mas, por outro lado, podia igualmente imaginar alguém a expulsá-las à enxada. «Estou a ficar idiota», exclamou em voz alta.

 

Diante da quinta, não se via vivalma; tudo estava silencioso, pacífico - escandalosamente pacífico.

 

«Ele está ali», pensou, «atrás daquela porta, a tomar o café.» No momento de entrar, teve uma breve hesitação, como se, no caso de arrepiar caminho e voltar para casa, como se nada fosse, esta indiferença obrigasse o destino a entrar nos eixos - melhor, a nunca haver saído deles-, como se fosse possível alterar o passado, como se o facto de abrir aquela porta equivalesse a cometer um acto irremediável, a retomar desde a véspera uma série de acontecimentos anódinos e, com um lançamento de dados, precipitar tudo na derrocada. Depois, atirou-se de cabeça,

 

- Bons dias a todos! - exclamou, metendo a cabeça pela porta entreaberta; embora se tivesse esforçado por empregar um tom que não deixava qualquer dúvida quanto à equanimidade do seu estado de espírito e benevolência das suas intenções, pareceu-lhe que gritara com força de mais, traindo-se com aquelas três palavras; teve de fazer um esforço considerável para manter uma expressão natural: a dona da casa estava só na cozinha, a escolher uma salada de chicória brava.

 

Despuech avançou dois ou três passos. Tinha desejado tão ardentemente ver Reilham sentado àquela mesa, que a sua ausência enchia o compartimento com um testemunho assustador.

 

«Ele morreu», disse consigo, «é inútil inventar histórias; ele morreu ontem à noite, algures no planalto, entre a minha casa e esta.»

 

A mulher poisou devagarinho a faca no meio da salada; ele fitou-a gravemente, quase sem indulgência, e ela sentiu pesar nesse olhar uma aterradora solicitude.

 

As batidas começaram logo no fim da manhã.

 

Durante esse tempo, as mulheres das vizinhanças vieram cacarejar todas juntas na cozinha, qual delas mais optimista, atordoando-se com as suposições mais absurdas. Algumas afirmavam ter visto nessa manhã muito cedo um homem a vaguear para as bandas do Aigoual; talvez o Taciturno houvesse perdido a memória e andasse a errar pelas florestas impenetráveis; afinal, ele sempre tivera um feitio bastante estranho.

 

Outras pensavam antes que ele devia ter sido assaltado por ladrões ou ciganos que o houvessem despojado do fato, deixando-o amarrado debaixo de alguma moita. Outras falavam em paixão súbita e fuga premeditada: enquanto a mulher para ali estava a lamentar-se, talvez ele já fosse a caminho das Americas. Já se tinham visto coisas mais extraordinárias; pais de família, irrepreensíveis até aos cinquenta anos, e que um belo dia, enraivecidos como animais, atiravam tudo para trás das costas e iam atrás das primeiras saias que topavam na sua frente, e isso era uma coisa que acontecia sempre aos mais sisudos...

 

Mas, à medida que as horas passavam e a noite ia chegando, as imaginações esgotavam-se, secavam-se, ao longo daquela espera que cada uma das mulheres, no seu foro íntimo, ia achando cada vez mais pesada e fatigante; então, com uma espécie de resignação instintiva e comunicativa, estabelecia-se um silêncio entrecortado de suspiros, de pequenas fungadelas, de estalidos de cadeiras, que ninguém ousava interromper, o qual pesava sobre a casa como que a preparar a entrada da desgraça.

 

O corpo só foi descoberto ao cabo de três dias de buscas. Quem poderia adivinhar que ele tinha ido morrer lá em cima, tão longe da herdade, tão longe de tudo? Foi por acaso que acabaram por dar com ele.

 

Tinha feito muito calor; exposto ao sol durante três dias inteiros, exalava já um cheiro terrível.

 

Trouxeram-no numa maca, com a cabeça envolta num saco.

 

O cortejo parou em frente da porta; ao ver o saco, Maria interrogou o pai com o olhar.

 

- Foram os corvos - disse Despuech a meia voz.

- Fiquem todas na cozinha, ela não pode vê-lo.

 

As pessoas que aguardavam à porta retiraram-se precipitadamente para o interior da casa.

 

Para se subir para o quarto tinha-se de atravessar a cozinha. No momento em que ouviu ranger as botas dos homens ajoujados com o fardo macabro, a mãe quis erguer-se da cadeira de braços onde duas mulheres se esforçavam por a manter sentada; estabeleceu-se à volta dela uma terrível confusão. «Aguentem, aguentem», dizia um dos homens, a ofegar. A escada era tão íngreme que o corpo escorregava dentro da maca. Tombou uma cadeira; no meio daquelas respirações entrecortadas, do raspar dos pés e do roçagar de roupas, produziu um ruído tremendo. Dir-se-ia que estavam a lutar com o morto, ou talvez com a própria morte. Aquele combate silencioso tinha algo de sinistro que desafinava os nervos de toda a gente.

 

Espalhou-se pelo compartimento um cheiro a cravo; para combater a pestilência, uma mulher lembrara-se de despejar perfume no chão, mas este, ligado a imagens tão horríveis, parecia atroz e não dava outro resultado além do de tornar ainda mais insidioso o mau cheiro. Essa mistura de flores mortas e de carne putrefacta dava volta ao estômago, a ponto de uma rapariga ter de ir vomitar lá fora; José saiu sobre os calcanhares, prestes a vomitar também. Receava acima de tudo ser obrigado a ver o pai pela última vez. «Com este calor», murmurou alguém, «deviam metê-lo imediatamente no caixão». O rapaz ficou uns momentos sentado no pátio, com a cabeça entre as mãos; aniquilado pela abominável realidade da morte, a realidade da vida afigurava-se-lhe acidental e inconcreta; no espaço de alguns segundos acabava de perder a confiança em tudo. Contemplava as mãos com horror: era pois aquilo a morte: uma subtil ruptura de equilíbrios que entregava subitamente um corpo vivo a outras leis diferentes das suas, que quebrava, denunciava uma solidariedade da espécie para estabelecer uma relação hostil entre o despojo de um homem e aqueles que o haviam amado. Era essa incompreensível precipitação, essa presença do perigo, igualmente incompreensível, esse combate contra um inimigo invisível e omnipotente; era esse odor que alertava um sentido mais vigilante do que todos os outros sentidos e cuja terrível majestade se manifestava até no desgosto - como se, com um pouco de atenção, pudéssemos acabar por discernir dentro dele não só certas repugnantes modificações físico-químicas, como ainda uma metamorfose solene e fundamental, a confusa renúncia à sobrevivência de qualquer coisa.

 

Enquanto a luta silenciosa prosseguia no primeiro andar, fazendo ranger lentamente as traves, uma após outra, a mulher, de mãos a tapar o rosto, baloiçava o busto para a frente e para trás, numa espécie de movimento de embalar horroroso: dava-lhe a impressão de que passear a sua dor no espaço deste vaivém contribuía para a atenuar, para expulsar do seu espírito certas imagens; de súbito, imobilizou-se, cedendo ao horror dessas imagens que se lhe impunham com tanta força e de forma tão exacta, como se uma intuição infalível lhe houvesse permitido apreender tudo quanto haviam tentado ocultar-lhe; o horror dominava o seu desgosto e parecia até perverter-lhe a natureza, transformando o desaparecido num objecto de repulsa intolerável; verificara-se nessa coisa macabra e fétida, que acabavam de envolver num lençol e de colocar sobre a cama, uma substituição violenta que o seu espírito não tivera ainda tempo de aprender nem o esquecimento de atenuar. Graças a esse cadáver desfigurado e sem dúvida já a fervilhar de vermes, a inimiga, deixando o seu antro habitual, dominava com insolência a casa dos vivos, exibindo em pleno dia os seus obscenos atributos.

 

Acabou por se ouvir um lamento animal e regular, interrompido de tempos a tempos por frases breves, ditas à toa, em que o sentido prático da dona de casa se revelava - «fechem a janela do quarto por causa das moscas, o café está no fundo do armário, à esquerda, vistam-lhe o fato preto, os animais não comem desde ontem, etc...», contrapondo este que fazia parecer o seu canto fúnebre vagamente cómico, estereotipado, como que independente do drama, e quase profissional, dada a sua normalidade.

 

- Se ela continua a gritar assim vou ter uma crise de nervos - disse uma das mulheres.

 

E foi chorar lá para fora, tapando os ouvidos: essa não era lá da terra.

 

Caía a noite quando o médico veio passar a certidão de óbito.

 

- Vai ter um trabalho difícil, esse que o espera

- declarou-lhe Despuech ao acompanhá-lo até ao quarto; no corredor o cheiro tornara-se já insuportável.

 

- Mas que raio foi ele fazer lá para cima? Não podia morrer na sua cama como toda a gente?

 

Aproximou-se do cadáver com um lenço sobre o nariz. Nunca vira nada assim, era horrível.

 

- Caramba! - exclamou a meia voz; para além do nojo, sentia um certo desprezo; e, para além do desprezo, alguma indiferença: num décimo de segundo, três graus de conhecimento.

 

Com excepção dos arranhões que mutilavam a face (mas que só por si não bastariam para provocar a morte), o corpo não apresentava nenhum sinal de violência; de resto, todos aqueles golpes haviam sido infligidos post mortem. No entanto, nos orifícios do nariz, descobriu vestígios de sangue. «Epistaxe espontânea», disse consigo, «mas não suficiente para lhe salvar a vida. Congestão cerebral. Causa provável: hipertensão (isto era o cúmulo, para quem só comia castanhas), ou aneurisma, tendo sofrido, antes do icto apopléctico, amnésia provável, momentânea, talvez delírio, paralisia, paragem do coração... Perdera sem dúvida o norte e fora tranquilamente morrer no ramo mais alto da sua árvore.»

 

Regou abundantemente o corpo com formol, bem como a cama e o sobrado do quarto. Desceu para lavar as mãos e beber um copo de aguardente. Todos o fitavam com uma espécie de receio. Chamou de parte Despuech e Abel Reilham.

 

- Vocês nunca o deviam ter posto no quarto. Agora, que está feito, está feito; têm de me desinfectar tudo isto depois e de queimar a enxerga. Que ninguém entre ali até o meterem no caixão; amanhã de manhã, venho cá tratar disso. Tu, vens comigo - disse para José-, dormes em minha casa.

 

Em Florae, na casa do doutor, num quarto desconhecido e bem arranjado, ele dormiu de um sono só, sem sonhos; a emoção, a fadiga e a estranheza do lugar contribuíram para isso, de forma que ele julgou nunca ter dormido tão bem na sua vida, As janelas tinham cortinas cor-de-rosa que lembravam duas rapariguinhas impecavelmente vestidas. Sentia-se ali muito longe da morte, no meio daqueles livros, daqueles tapetes, daquelas gravuras, daquela ordem, daquela limpeza, daquelas rapariguinhas. A sua família era a morte.

 

O enterro estava marcado para o princípio da tarde; voltaram lá acima logo de manhã. O tempo continuava extraordinariamente bonito e quente para a época. O doutor era obrigado a parar de dez em dez metros a fim de esperar por José, que coxeava lamentavelmente no meio das pedras; de quando em quando, perdia a paciência: «Vamos, despacha-te!», e lá seguia, a resmungar contra o sol, contra o Verão e a medicina; estava alagado em suor; tudo quanto iria passar-se em volta daquele cadáver dispunha-o mal. Sentadas naquela espécie de gruta que era a cozinha, algumas pessoas tomavam café, em silêncio, com a dona da casa, para quem a morte do marido parecia agora uma coisa assente. Ao ver entrar o filho mais novo, estendeu-lhe os braços e apertou-o contra o peito, cerrando os olhos. «O pior está passado», disse consigo o médico. «Chegou a altura em que a principal interessada já esgotou todas as lágrimas; actualmente deve estar a descobrir o mundo sob outra luz; a morte assemelha-se a um destes cataclismos que avivam as cores do mundo e restituem às coisas uma espécie de mocidade. Ninguém resiste a este curioso fenómeno.» Sentia-se igualmente agastado por aqueles abraços convencionais e era sobretudo sensível ao que eles tinham de teatral. Quanto ao cheiro, acabou-se, era suportável, sem dúvida graças ao formol, bem como ao alecrim que uma velhota espalhava de quando em quando sobre o lume; mas ainda assim era preciso, ao cabo e ao resto, ser-se totalmente desprovido de imaginação, como todas aquelas mulheres, para não se distinguir atrás do odor farmacêutico do formol e do alecrim um cheiro horrível a caça morta que evocava um significado muito diferente.

 

Porém o mais difícil estava por fazer: ainda não tinham trazido o caixão; fora um velho marceneiro, agora retirado em Saint-Julien, quem se encarregara de fabricar um e de o transportar até ali na sua carroça. «Talvez tivesse surgido alguma chatice», disse consigo o médico, a quem esta maneira de pensar as coisas pusera de bom humor. Consultou o relógio.

 

- Já onze horas - disse entre dentes. - Talvez fosse melhor alguém ir ver o que se passa.

 

Não lhe apetecia estar mais tempo diante daquelas mulheres silenciosas e vestidas de negro que bebiam café e esperavam pelo caixão com uma serenidade impressionante, enquanto o querido finado se ia liquefazendo por cima das suas cabeças; tinha a impressão de que elas seriam capazes de esperar pelo seu próprio caixão com a mesma calma. E essa calma

- como de resto todas as tradições fúnebres populares - afigurava-se-lhe muito equívoca, muito inquietante, e talvez mais significativa do que as revoltas mais espectaculares do espírito perante a morte. («Digamos que isto é um escândalo...» A coisa parecia não ter importância perante aquela aceitação pacífica, carnal, que se adivinhava atrás da dor daqueles seres primitivos e que sugeria uma aliança obscura com a morte, situada muito para além de todas as exigências da cultura e de todas as ambições do cristianismo.)

 

Saiu, dirigindo-se para o cemitério: havia já um certo tempo que ouvia soar a picareta. O ouvido habituava-se contra vontade a esse ruído regular e calmo que não perturbava o silêncio senão para lhe vir acrescentar aquela paz inigualável dos trabalhos da horta e das manhãs no campo, que não conseguia identificar a uma tarefa lúgubre.

 

A dita tarefa estava quase no fim; enterrado até à barriga (como todo o bom coveiro que se preza), Abel tratava de alisar o fundo da cova que cavava desde manhã, pela fresca. Parecia todo entregue ao seu trabalho: exactamente como um sujeito que está a sachar legumes ou a construir a casa. Ao nível da sua cabeça, via-se espetada uma garrafa de vinho palheto que emprestava à cena uma espécie »de bonomia teatral e até certo ponto fabricada; a única coisa de estranhar era o traje do homem; naquele meio tempo, vestira-se para o funeral. Calçara umas botas pretas de cano alto, pusera umas calcas também negras (e demasiado estreitas, que lhe deixavam os tornozelos à mostra), uma camisa branca de colarinhos virados e, claro está, uma gravata preta: arregaçara as mangas da camisa (que se lhe colara à pele das costas, encharcadas em suor) e o casaco deixara-o pendurado na porta do cemitério. A sua aparência era a de um misto de noivo de aldeia e de carrasco. Ou talvez, por causa do bigode à mexicana, de condenado à morte a quem obrigavam a cavar a própria cova.

 

Nesta altura, chegara aos alindamentos; tivera tão pouco espaço para cavar a sepultura do pai entre aqueles velhos túmulos que por vezes a picareta encontrava uma caveira ou desenterrava um osso; e continuava a encontrá-los; parava então de cavar para apanhar o bocado do antepassado e atirava-o para um canto da cova. Ao avistar o médico, poisou a picareta e pôs-se a enrolar um cigarro entre as mãos de carregador; uma espécie de sorriso sanguinolento descobria-lhe as gengivas de velho.

 

- Assim fica mais acompanhado - declarou piscando o olho, a apontar para os ossos com um movimento do queixo.

 

O médico não respondeu nada, contentando-se em abanar a cabeça como quem aprova; não havia grande coisa a acrescentar a uma tal evidência. Observou pela primeira vez que Abel gaguejava levemente: o princípio de cada período era lento, hesitante, e o resto da frase saía-lhe de um jacto, com uma velocidade brusca, quase colérica (talvez, de facto, estivesse sempre encolerizado, sabe-se lá contra quem ou contra o quê, coisa que nem ele próprio saberia).

 

- Por hoje basta - disse o médico. - Devias ir sacudir as pulgas a esse marceneiro. Se queres vou contigo.

 

Encontraram o homem a meio caminho, a empurrar a carroça sobre a qual vinha amarrado o caixão; já não podia mais.

 

- Fizeram bem em vir - declarou ele. - Julguei que nunca mais cá chegava; vejam-me só este peso. É castanho. Foi o que cresceu do sobrado de um quarto de dormir.

 

Acariciou o caixão com ternura.

 

- A última vez que fiz um caixão como este foi para um carniceiro de Vébron; um tipo enorme, grande comedor e bebedor de cerveja.

 

- Estou a ver - respondeu o médico maliciosamente.

 

- Eu tinha-lhe tirado as medidas, mas, no momento de fechar a tampa, o morto pôs-se a empurrá-la com os ombros e com a barriga. Ainda tinha engordado mais durante a noite!

 

- Inchado - rectificou o médico.

 

- Seja. Inchado, se prefere. Para o fechar, tive de me sentar em cima dele com toda a família, como quem fecha uma mala, porque eu sozinho era muito leve.

 

- Deve ter sido um espectáculo divertido - observou o doutor com uma voz suave.

 

- Não é cá o velho que te dará esse trabalho - disse Abel. - Tens muito pouco que meter dentro desse caixote.

 

Enfiou-se entre os varais da carroça e o cortejo pôs-se em marcha.

 

- Depois desta história, tiro sempre as medida’s com uma grande margem; sobretudo no Verão (acompanhou a palavra Verão com um gesto largo em volta do ventre, como se evocasse um obeso ou uma mulher grávida); isso evita-me surpresas.

 

- É uma excelente precaução - concordou o médico a limpar a testa.

 

Ouviam-se crocitar os corvos; erguendo os olhos, avistou-os a esvoaçar por cima das suas cabeças, lá no cimo das falésias. O céu estava de um azul fixo; florestas, rochedos, fragas, tudo cintilava de luz, até as encostas cobertas de erva requeimada luziam como sílex. O médico sentiu-se bruscamente como se fosse um estranho ali. Levemente flutuante também: era sem dúvida da fadiga, ou da falta de sono. Apenas prestava uma atenção distraída às lucubrações macabras que o homem ia desfiando a seu lado (com deleite profissional, segundo parecia, tanto mais que os caixões rendiam, pelos vistos, muito mais dinheiro do que o fabrico de portas e janelas). Tudo isto se tornara demasiado abstracto, de repente; parecia nada ter de real senão o voo dos corvos afogado no azul muito puro de uma manhã de Verão. E até o incidente que teve lugar um pouco adiante (quando a carroça, em virtude de o atalho ser estreito, despejou a carga no fundo de uma ravina a pique, sendo preciso que Abel e o velho o fossem lá buscar ao fundo, com grande acompanhamento de pragas) lhe deixou uma ideia de irrealidade - aumentada ainda pelo espectáculo mais do que insólito desse caixão a escorregar pela ravina abaixo a toda a velocidade, diante do qual as ervas secas se afastavam brutalmente, até que o fúnebre trenó foi chocar com um ruído surdo contra uma árvore que estremeceu até ao cimo dos ramos (e isto, naturalmente, trouxe-lhe à ideia Baudelaire). Em contrapartida, o homem dos caixões ficou com um ar absolutamente desolado perante os estragos sofridos pela sua obra, sobretudo a tampa, rachada a todo o comprimento; pôs-se a andar tristemente em volta dela, a examinar os vestígios do choque, os vergões nas pranchas laterais, com uma expressão de sofrimento tão intensa como se se tratasse da sua própria epiderme: «Castanho velho que secou durante cinco anos! Que pouca sorte!...» Desmoralizava-o sobretudo a racha da tampa, que parecia tê-lo atingido no ponto mais sensível. Chegara mesmo a falar em retroceder até Saint-Julien, a fim de fabricar outra «pelo mesmo preço». «Seja como for, da próxima vez passaremos sem caixão...»

 

... O pastor fizera a sua entrada em cena... (Mas como diabo se chamava ele? Qualquer coisa como Barthélemy, o que era um nome bastante fino para um pastor)... cerca da uma hora da tarde; em frente da porta, fechara o guarda-sol, sob o qual se abrigara durante a subida. No momento em que afastava o reposteiro contra as moscas, ouvira-se distintamente, atrás dele, o ruído de fritura produzido pelos insectos que crepitavam ao sol como azeite a ferver. Ele fizera um gesto como que a pedir desculpa do guarda-sol e, a meia voz, dirigiu-se ao médico e a duas ou três pessoas que não eram da família: «Na verdade, o vale de Josafá não seria mais aflitivo, que calor tremendo...»

 

Ao ver o pastor, a mãe recomeçara a chorar: desde a véspera que, não havendo recebido novas visitas, tivera tempo de se habituar ao desgosto; porém a chegada do pastor fizera-a recuar algumas semanas atrás, talvez até uns meses, e tudo se passava como se o* marido acabasse de morrer nesse mesmo instante. Seria preciso que os nossos entes queridos morressem na presença de todos os amigos para não termos de sofrer o desgosto da sua morte sempre que nos encontramos com alguém que os conheceu e que não voltamos a ver depois que eles desapareceram. «Senhor padre, senhor padre, oh, senhor padre!» - «É uma prova terrível que Deus lhe manda, minha senhora...» Ela, um pouco confusa ao ouvir aquela voz meticulosa e branca, cheirando provavelmente a hortelã ou a acaju; ele, curvado para a viúva, com as mãos cruzadas, de unhas polidas e brilhantes, a envolvê-la nessa caridade luxuosa e intimidante, nessa voz sedosa, artificial, enriquecida pelo brilho dos óculos, das unhas e dos dentes irrepreensíveis, dos sapatos e mesmo da testa aljofrada de gotas imperceptíveis e discretas, erguendo-se também por vezes, a fim de lançar sobre a assistência um olhar cuja benevolência se empanava de súbito, o olhar de um homem levemente incomodado por três quartos de hora de marcha ao sol a trepar um atalho abrupto, e sem dúvida também pelo cheiro a verniz rançoso, exalado pelo caixão ainda quente, que o acolhera ao entrar no compartimento - um cheiro, observara o médico, singularmente parecido com o tremendo odor que se aglomerava atrás da porta, lá em cima.

 

... A filha de Despuech (cujo pai ela sabia prestes a rebentar com uma cirrose se não parasse de beber) fora buscar copos e limpava-os com uma energia furiosa, antes de os colocar sobre a mesa; uma criaturinha ágil e negra como uma formiga, que dava a impressão de circular naquela casa como se fosse sua. Enquanto a formiga deitava nos copos uma mistura de água e café frio, Barthélemy continuara a prodigalizar consolações metafísicas à viúva, com a mesma voz confidencial de quem estivesse a dizer-lhe obscenidades ou como se tivesse vergonha de declarar certas coisas em voz alta, diante de toda a gente. A maior parte das pessoas parece sempre incomodada quando se lhe começa a falar do reino de Deus: já têm suficientes aborrecimentos cá na terra para se preocuparem com considerações mais ou menos vagas acerca das recompensas ou das sanções aleatórias que os devem aguardar além-túmulo. é provavelmente essa a razão pela qual os ministros de Deus sentem repugnância em vender o seu peixe em lugares que não foram destinados a isso e onde se arriscam a ser enxovalhados ou linchados se contarem histórias de salteadores.

 

... Seguiu-se um silêncio um tanto prolongado, durante o qual, como uns olhos que se habituam à escuridão, o ouvido acabara por discernir de novo o concerto dos insectos, um pouco atenuado pelo reposteiro contra as moscas. Nada bulia. Dava a impressão de que as pessoas esperavam alguma coisa ou alguém; em todo o caso, não havia razão nenhuma para ficarem para ali sem se mexerem nem falarem, olhando fixamente para o chão ou para a paisagem. Era essa, sem dúvida, a sua maneira de conversarem pela derradeira vez com o morto, de evocarem a recordação dele, consagrando-lhe instintivamente alguns minutos de silêncio. Essa imobilidade e esse silêncio eram tão impressionantes que o próprio Barthélemy não ousava fazer um gesto nem pronunciar a mínima palavra, como se a presença do morto, tornada sensível por esse extraordinário silêncio, aniquilasse por momentos a sua autoridade espiritual. Segurava a Bíblia nas mãos cruzadas, à altura do ventre, e olhava para o chão, tal como os outros. Por fim, Despuech erguera-se levemente, e todos compreenderam, pelas suas feições terrivelmente lisas, que chegara o momento. As pessoas levantaram-se por sua vez, umas após outras, e Barthélemy, que parecia ter recuperado de súbito o seu ascendente, poisara as duas mãos nos ombros da viúva, como que para lhe transmitir, através de um fluido magnético, a força das suas certezas e a soberana tranquilidade que emanava da sua pessoa,  da sua aparência impecável,   do brilho   dos óculos, do vinco das calças, do orvalho delicado que lhe aljofrava a testa. «Apenas o sofrimento é capaz de dar à nossa vida o significado que a própria felicidade não consegue oferecer-lhe...» Abel Reilham e o marceneiro de Saint-Julien tinham saído com Despuech, e o médico fora espontaneamente atrás deles. «A sua ajuda não será de mais», declarara-lhe o fabricante de caixões ao subirem a escada; com a sacola da ferramenta a tiracolo, assemelhava-se a um inofensivo canalizador que viesse ali desentupir uma retrete; mesmo na altura de entrar no quarto, o doutor tivera uma espécie de revelação. Perguntava a si próprio se o cadáver a liquefazer-se no meio desse fedor húmido e farmacêutico não valeria mais, na sua realidade implacável, do que todas as perversões mentais causadas pela recusa dessa evidência, por muito intolerável que isso fosse. «Seguir este caminho até ao fim...», dissera consigo, mas logo tudo se confundira, e ele sentiu até que ponto o menor esforço da consciência faz com que esta tropece nos mais antigos obstáculos.

 

... Ele pretendera a todo o custo calafetar aquela fenda da tampa por uma questão de brio profissional e ainda porque «aquilo não era decente em relação ao morto». Fora preciso, é claro, entreabrir as portadas para deixar entrar um pouco de luz, e de forma a que o velho pudesse lidar à sua vontade, mas, se bem que quanto ao cheiro se tivesse lucrado com a mudança, pois a atmosfera tornara-se menos pesada graças à corrente de ar, por outro lado havia certas coisas cuja vista se dispensaria, muito embora o corpo estivesse embrulhado num lençol - por exemplo, as manchas escuras que sujavam o colchão e o travesseiro - e que a luz viera revelar ou, pelo menos, deixara entrever (porque, afinal, à parte essas manchas, não se via grande coisa); mas era incrível a maneira como falava à imaginação aquela figura estendida debaixo de um lençol, «cheia da sua importância», como quase todos os cadáveres, aos quais o inchaço daquela ignóbil combustão empesta qualquer coisa da majestade imperial. Uma vez terminado o conserto da tampa, tinham colocado o caixão ao lado da cama, sobre duas cadeiras, de molde a puderem fazer deslizar o corpo lá para dentro, erguendo apenas um pouco o lençol. Uma questão de higiene. Quanto a mudar-lhe a roupa, nem pensar nisso, apesar do desejo manifestado pela mulher: o processo de decomposição ia já muito adiantado. O corpo caíra enfim dentro do caixão com um barulho mole. E foi nesse momento que se ouviu abrir a porta da cozinha, lá em baixo, e o barulho de uma disputa ressoou no vão da escada; era sobretudo a vez do pastor que dominava a vozearia, uma voz feminina e gritante, irreconhecível, inteiramente em desacordo com os óculos cercados de oiro, o sangue-frio profissional e as competências sacerdotais, cuja infalibilidade aquele instrumento brilhante parecia garantir. «Madame Reilham, por favor.’ Madame Reilham, não pode fazer uma coisa dessas! Madame Reilham, isso não é razoável... tinha-me prometido...» Parece que ele abrira os braços para a impedir de passar e que tentava chamá-la à razão com os seus cacarejares de galinha assustada que traíam, sob a aparência de ministro do Poder e da Glória, uma solteirona envinagrada, sujeita a crises de nervos. O caso é que a viúva não se deixara impressionar por aquelas artimanhas, escapando-se rapidamente dos braços abertos de Barthélemy, cujos óculos haviam caído ao chão no meio da luta; o que ela queria era assistir à cerimónia de meter o corpo no caixão e nada no mundo a poderia fazer desistir dessa ideia fixa. Não é impunemente que se vive ao lado de alguém durante um terço de século; e, ainda que nem sempre tudo tenha corrido bem, fica sempre qualquer coisa. Os outros, lá em cima, ao calcularem o que se estava passando, tinham-se apressado a fechar o caixão, mas, uma vez dentro do quarto escuro, negra e encarquilhada, como se, após trinta anos de trabalhos forçados, três dias e três noites de desgosto houvessem bastado para a fazer mirrar de repente, ela obrigara-os a entreabrir a tampa para olhar pela última vez o seu companheiro de infortúnio. Evidentemente que nunca teria sucedido isto nem o que se seguiu se o velho maníaco não houvesse retardado o fechar do caixão com a sua teimosia em tapar a fenda, receando que esta produzisse mau efeito nos futuros clientes. As sete ou oito pessoas que se encontravam na cozinha tinham subido por sua vez, bem como Barthélemy; e, atrás deste, branco como a cal, o jovem coxo, que não passou da entrada da porta. Silêncio total, como há pouco; lá fora, o grande concerto dos insectos; milhões de cigarras, proclamando o negro triunfo do estio (sobre longas áreas tão calcinadas como os planaltos da Etiópia, gládios, pináculos, facas serrilhadas, mandíbulas, máquinas de guerra, combates impiedosos de cavaleiros-lagostas, genocídios, tudo para glória de um Deus-Minotauro). Barthélemy, um pouco amarrotado pela disputa na escada e atingido no seu prestígio, parecia ter bruscamente envelhecido alguns anos: tirara os óculos para os limpar e só se lhe viam os olhos míopes, encarquilhados, de pálpebras franzidas e um pouco inflamadas. Despojado do emblema da sua autoridade, parecia nu, amachucado, vulnerável; uma ostra sem concha. Por fim, o médico agarrou no braço da viúva. «Pronto, já chega», e ordenava aos outros dois que fechassem o caixão. No momento em que o velho se preparava para apertar os parafusos, a viúva curvara-se para ele e dissera-lhe qualquer coisa ao ouvido; o velho, parecendo perturbado, fitara-a com um ar estranho; ela falara-lhe de novo em voz baixa e então ele sacudira a cabeça, dizendo: «Bem, vamos tentar», e retirara os parafusos um por um; as pessoas, retendo a respiração, olhavam sem compreender; perguntavam a si próprios o que iria passar-se e se a viúva não teria endoidecido de repente. Não, ela queria apenas recuperar o lençol, e o velho obedecera perante uma assistência petrificada; por sorte, a manobra fez-se sem dificuldades porque o lençol ficara quase inteiramente enrolado por cima do corpo quando este deslizara para dentro do caixão; o velho limitara-se a puxá-lo, entreabrindo a tampa; ela arrancou-lho das mãos como é costuma fazer-se com a roupa suja que está à vista, quando chega inesperadamente uma visita, e metera-o debaxo da cama, feito numa bola; Barthélemy puxara do lenço, que apoiava discretamente sobre a parte inferior da cara; de resto, houve mais quem o imitasse. É certo que só quem tivesse o estômago muito sólido resistia a não vomitar as tripas. O médico, que se encontrava junto da janela, observava maquinalmente a empena de um telhado coberto de escamas pardas que brilhava sob a luz baça da tarde; pensava nas ruas desertas dessas pequenas cidades montanhesas entaladas no meio de altas escarpas, onde ele visitava a sua clientela sem nunca ter encontrado aquilo a que chamava, na sua linguagem filosófica, uma «liberdade» - esse desígnio tenaz de recusar tudo em bloco, de pôr tudo em questão continuamente e de viver nessa recusa sem no entanto a revestir de qualquer significado espiritual ou metafísico.

 

Perante esse pátio vazio, afogado em calor, ele pensava nas herdades miseráveis, vazias e silenciosas, como esta naquele momento, em todas as casas em ruínas onde a vida se escondia como a água nas cisternas, nas quais reinava o tédio, tendo a morte à sua direita e à esquerda a inutilidade - a irrealidade a que, coisa curiosa, ele ia ficando cada vez mais sensível, à medida que envelhecia. A irrealidade fascinante e confusa dessas encostas e desses planaltos desertos, dessas falésias milenárias, dessas extensões escalvadas, às quais os cavalos cossacos e os clarões de incêndio teriam talvez emprestado um sentido peremptório. A irrealidade trágica da existência vivida por esses homens e por essas mulheres cúmplices da sua própria morte; imaginava os nascimentos, as sestas pesadas, as relações sexuais larvadas entre esses seres que não sabiam sublimar a natureza - ou o faziam tão mal -, assegurando unicamente a sobrevivência da espécie, as velhices e as agonias nos grandes leitos fúnebres, no fundo dos quartos sombrios e húmidos como jazigos. A escandalosa realidade dessa religião hoje exangue, evocada apenas com os lábios e as mais das vezes somente com o fim de manifestar um. mau-humor legítimo em face das maiorias triunfantes, políticas ou religiosas (como bem o demonstravam os estudos demográficos). A irrealidade desse país, profundo no que encerrava de trágico, irritante e superficial no que tinha de folclórico e de complacente, país esse cuja rusticidade nunca lhe sugerira de modo algum o lírico aparato tradicional, antes pelo contrário, lhe evocava uma aliança obscura com a terra; bastava contemplar essas muralhas cheias de aberturas mais estreitas do que profundas, indiferentes à paisagem em volta, ou fazendo pesar sobre ela essa vigilância cega das construções africanas de barro, crivadas de buracos semelhantes a alvéolos de gigantescos insectos, para se sentir como os homens dessas montanhas eram pouco mais livres, pouco mais independentes das fatalidades obscuras do mundo e dos seus mecanismos do que os eternos insectos que neste momento estavam incendiando os desertos com o seu crepitar. Todas essas vidas obedeciam às mesmas leis ferozes, giravam em redor da mesma gravidade; a ilusão dos gestos, das palavras, dos costumes - das cerimónias como esta - nunca havia conseguido mascarar por completo aos seus olhos o programa implacavelmente inscrito, para os determinar, no passado desses mesmos insectos de rosto trágipo vestidos de negro, talvez a fim de se confundirem com o negrume essencial das montanhas; o artifício, levado ao paroxismo, podia fornecer uma ilusão nos Campos Elísios, em Paris, diante dos enormes arranha-céus de Nova Iorque ou mesmo no interior dos grandes santuários católicos - apesar dos monstruosos élictros de cigarra dos oficiantes; ali, porém, em virtude da escassa margem concedida ao artifício e à gratuidade «pela força das circunstâncias», em virtude de certas causas fáceis de determinar: económicas, históricas, climáticas, a necessidade cega do universo, a sua inércia, o seu torpor, a fatalidade ininteligível das suas leis, parecia pesar com mais força, mais directamente do que nunca sobre a vida dos homens, comandar os seus actos, dominar o seu silêncio, triunfar na austeridade da sua condição - até mesmo nesses leitos, altos como catafalcos, e que evocavam muito mais as agonias do que as carícias. Sentia-se a morte aflorar por toda a parte, não sob essa forma delirante e mítica, muito deliberadamente circunscrita, concentrada, e por isso mesmo sempre controlada, que as civilizações solares sabem tão bem impor; mas sim sob formas vagas, imprecisas, semelhantes a uma emanação venenosa, à qual os habitantes de uma casa já não fossem sensíveis; a opressão que sempre lhe haviam inspirado esses quartos gelados, essas cozinhas escuras, incrustadas na rocha, em cujo interior a vida se escoava em lugar de ser vivida, esses pátios cegos, cercados de muros vetustos, por cima dos quais os horizontes se mantinham prisioneiros dos flancos a pique, imutáveis como o destino, parecia provocada por algo de muito mais profundo e ameaçador do que uma banal impressão de desconforto, de penúria, de solidão.

 

Ainda jovem, muito embora natural daqueles sítios - donde apenas se ausentara durante o período dos estudos e da guerra-, experimentara muitas vezes a mesma impressão confusa ao penetrar nesses lares rebarbativos, rudes, e ao medir o pouco espaço cedido àquilo que permite aos homens lutar contra o que existe de incómodo e de trágico na sua condição, àquilo que neles faz esquecer o animal; àquilo que os coloca no universo como um fenómeno irredutível às leis objectivas. Sentira-se obcecado pelos pensamentos deles, pelos seus projectos, pelas suas próprias obsessões, a ponto de não poder por vezes deixar de lhes fazer certas perguntas que nunca se devem exprimir nos meios dominados por preocupações estritamente materiais, sob pena de se parecer suspeito, lunático ou frívolo; e as respostas que obtinha na maioria dos casos revelavam uma indiferença, uma banalidade que ele considerava revoltante e muito assustadora; tais respostas evocavam, não tanto a inconsciência desses seres perante a sua precária condição humana - isso explicar-se-ia facilmente, visto encontrarem-se atormentados por dificuldades concretas da sua própria condição -, mas sobretudo uma espécie de passividade que não era resignação - antes uma submissão passiva e de um certo ponto de vista extremamente vantajosa em relação às considerações mais convencionais, mais medíocres e mesmo mais sórdidas da pequena sociedade burguesa ocidental, racionalista e míope, e cujo forte não eram de modo algum as obsessões metafísicas; porém o que podia iludir alguém em Paris ou Bordéus (onde ele tirara o curso de medicina) revelava-se ainda mais terrível entre esses trabalhadores rurais a quem faltavam os acessórios* da respeitabilidade e da vaidade sociais; os filhos dos burgueses não manipulavam os ossos dos seus antepassados como fazia Abel Reilham, ainda há pouco, com tanta desenvoltura, nem as suas viúvas se preocupavam com mortalhas sujas: o que aqueles manipulavam com desenvoltura eram os testamentos, nas famílias em que dois e dois são rigorosamente quatro, mesmo em face de um morto (mas tudo vinha a dar no mesmo).

 

Claro, havia ainda aquilo que não estava à vista: os suicídios equívocos, inexplicáveis, os originais cuja originalidade consistia em ficarem calados durante setenta e cinco anos, mas como saber-se o que escondia esse silêncio? Nada, talvez, ou então alguns descontentamentos ridículos e trágicos; ele tentava persuadir-se de que esses homens e essas mulheres dissimulavam dentro de si qualquer coisa cuja presença eles próprios ignoravam...

 

Ao observar a vida e a morte desses camponeses durante vinte e cinco anos, percebendo muito bem que eles, para sobreviverem, tinham de imitar o que havia de mais detestável no progresso e de renegar o que existia de mais admirável nas suas tradições, concluíra que, entre o tumulto das grandes cidades e o silêncio daqueles planaltos, a diferença não era assim tão grande como se poderia supor: tratava-se apenas de uma diferença de densidade, não de qualidade; aqui, como em Nova Iorque, o animal puxava para o mesmo lado. Uma fotografia da urbe gigante tirada de madrugada revelava a mesma vacuidade, a mesma vigilância cega de insecto, como se a terra desértica apenas estivesse povoada de autómatos. E, quando havia assistido à electrificação daqueles territórios, sentira o desejo repreensível e inconfessável de pensar qualquer coisa parecida com isto: «Também vocês já perderam o comboio...» Em face da injustiça e da miséria, tal atitude era um verdadeiro crime; essa a razão por que odiava cada vez mais a sociedade de consumo, e não somente pelas injustiças que ela engendrava, mas antes por ter tornado suspeito, talvez definitivamente, qualquer acto, qualquer pensamento que não tivessem por fim exclusivo a sua abolição.

 

Mas não havia apenas os homens...

 

Havia esse país de pedras ruiniformes, de altas planícies célticas, de gargantas e lugares pre-lrstóricos, em que o ouvido, quase contra vontade, se punha à escuta de bramidos monstruosos, havia o seu clima brutal, todo ele feito de contrastes, esses cumes enegrecidos pelo Inverno, essas eiras tórridas na presente estação - e até esses burgos pobremente industriais, com a sua única rua em que de um lado e doutro se contemplavam as fachadas apodrecidas no silêncio de morte das tardes intermináveis -, a recordação dos seus beirais decrépitos, cobertos de caca de andorinha pesava sobre os seus anos de escola primária; mesmo nas horas de movimento na rua, o canelado das telhas mantinha uma serenidade intemporal, um deslizar pacífico da eternidade por cima das épocas, o que o fascinava. Por todo o lado, nas quintas e nos casais, pairava a mesma opressão mineral. Tal como a morte, a rocha eterna aflorava por toda a parte, até no meio das paredes; levantava o solo de terra batida, encostava-se a uma chaminé, pesada, compacta, hostil... Essa intimidade entre os homens e aquele mundo elementar como que emergido das primeiras idades da Terra, na sua adolescência, exercia sobre ele um encanto profundo e mórbido: havia uma tal incompatibilidade entre o espírito humano» e essa amarga irrupção da matéria no estado bruto, uma tal contradição entre as leis frágeis, incertas que a governavam e as imutáveis propriedades daquela, que uma tal promiscuidade acabara por o escandalizar e encher de angústia, apesar do amor que nutria por esse bocado do planeta abandonado que lhe parecia serem as Terras Altas - amor infeliz, amor equívoco da vítima por quem a esmaga, gracejava ele por vezes. E, com o decorrer dos anos, tudo isso se cristalizara e endurecera em volta de uma mesma obsessão: também, quando ainda jovem, afigurava-se-lhe por vezes despertar de um sonho em pleno dia, bruscamente pressionado pela ideia da morte e pelas imagens ignóbeis que esta trazia consigo, como se existisse nele algo que tornava, essa realidade inaceitável - e perfeitamente irreal-, e igualmente lhe acontecia com frequência sofrer uma impressão de irrealidade vertiginosa perante a vida e o mundo - tanto mais ininteligíveis para o espírito e inaceitáveis uma e outra porquanto eram explicadas pela própria ciência; mas vão lá fazer compreender estas coisas aos imbecis! como se se sentisse encharcado numa aventura que lhe não dizia respeito e, em face do que ela tinha de acidental e de aleatório - não havia qualquer razão para que as coisas, «tudo isso», fossem diferentes do que eram-, existisse em si (e em todos os homens, de resto, embora...) algo de imutável, de estranho à vida, ao mundo e à morte que constituía a suprema evidência, algo que se opunha ao que o mundo, a vida e a morte tinham de imutável, ao que no homem sofre inexoravelmente as leis cegas do mundo: cansaço, lassidão, decrepitude, fim. Quantas vezes não surpreendera ao espelho, por detrás daquela máscara coberta de rugas, a mesma atenção concentrada que era a sua há perto de cinquenta anos, a qual também ela não era solidária dessa máscara arruinada, como se o tempo e a experiência não exercessem sobre ela qualquer domínio? Eis o que ele sentia em face da realidade irreal do mundo: esse apetite de realidade intelectual ou espiritual que lutava desesperadamente dentro desse corpo irreal e precário, como um homem aferrolhado dentro de uma casa a arder. Sonho, ilusão? Pouco importava... Era isso, no homem, em todos os homens, iria jurar, aptidão ou realidade, que sobrepunha a pergunta: «como viver?» a esta outra: «porquê viver?» E sem dúvida que, também ele, se teria deixado iludir pelas aparências se houvesse exercido a sua profissão em Paris onde o sonho dos homens se prolonga nas pedras e nas instituições. Aqui, porém, em face destas solidões minerais, destas construções humanas que lhes prolongavam a hostilidade em vez de lhes oporem o seu conforto, perante a vida rudimentar que elas abrigavam, como se aqueles homens obedecessem apenas ao impulso que ela comunicara aos seus antepassados cem mil anos atrás, era essa irrealidade dramática que triunfava, e cujos efeitos ele sentira tão violentamente havia pouco, no meio desses homens e dessas mulheres que lhe haviam dado a impressão de estarem a representar uma comédia bastante estranha diante do cadáver decomposto de um deles; algo se pusera em movimento dentro de si, fazendo apelo à testemunha privilegiada para quem o comportamento desses seres e a forma dos seus corpos não eram menos estranhos do que o cadáver absurdo em redor do qual se agitavam.

 

Fosse sonho ou ilusão, essa... «realidade do espírito» tinha também no fundo qualquer coisa de insólito, assaz perturbador...

 

Acendeu um cigarro: fumara de mais nessa noite; tanto pior para o seu coração (pensar assim no coração, sem mais nem menos, e depois ter estado durante tanto tempo de tal forma absorvido por pensamentos gloriosos, causava-lhe sempre o mesmo efeito: não medo, mas sim surpresa. Era sempre a mesma coisa: quando o corpo gozava ou não sofria, o espírito - o que se passa dentro da cabeça-, entregue a si próprio, soltava logo as asas e esquecia o seu invólucro: não era sem espanto que lhe reencontrava os mecanismos e todas as contingências). Afinal de contas, ainda de calções, já se sentia admirado; admirado com o mundo, admirado por se encontrar ali; a única coisa que não lhe causava admiração nessa época era precisamente essa capacidade de admiração, como se apenas ela fosse incontestável e se justificasse necessariamente. Mas, ao cabo e ao resto, nada era assim tão simples, e essa capacidade de admiração, essa faculdade de recusa, de tudo pôr em causa, afigurava-se-lhe por vezes tão estranha, tão irreal, como aquilo que ela punha em causa; posta de novo em causa por sua vez, dir-se-ia que se devorava a si própria, que só existia para assumir a sua própria negação, e tudo se passava portanto como nos labirintos, onde se volta sempre a passar pelos mesmos sítios, ou como nas gaiolas giratórias dentro das quais os esquilos se enraivecem numa corrida extenuante e imóvel...

 

Mas com que facilidade aquilo a que costumamos chamar a vida tinha sempre a última palavra... Com que facilidade as coisas se reencontravam no seu lugar habitual e com o seu aspecto necessário, convincente como essas rochas que dominavam o burgo e se assemelhavam a térmites gigantescas, sobre as quais, do seu terraço na cidade, ele via o dia apagar-se. Tal como a sua mulher, quando punha a mesa para o jantar: viver à superfície das coisas, eis o que prometiam os gestos pacíficos dessa mulher que ia e vinha à luz do crepúsculo.

 

Atirou com o cigarro para a escuridão do jardim, perfumado pelas rosas de Setembro; a faúlha descreveu uma longa curva e imobilizou-se no meio do saibro: perfume das rosas, faúlha, tudo isso lhe recordava as primaveras passadas, as rosas desaparecidas com aqueles que lhes aspiravam as emanações, enquanto apanhavam pirilampos na erva húmida. Criança morta pelo adulto, e da qual não restava talvez mais do que essa dúvida apaixonada: tudo isto de nada pode servir, nem o sofrimento nem a alegria... Existe uma realidade atroz, fundada sobre tudo aquilo que a nega: o tempo, a velhice, a morte. Situação intolerável. Mas não há situação intolerável à qual o destino dos homens não consiga habituar-se. Viver à superfície das coisas... Mas os gestos seculares desta dona de casa, como em todos os lares onde se acende uma luz, deixavam entrever, tal como um destroço à tona das vagas, a evocação pungente da felicidade, muito mais do que essa própria felicidade... Porque nada é inocente neste mundo: a que medonha ausência a nossa experiência da vida - a terrível memória contaminante - não acaba por nos conduzir?... Tudo aconteceu já pelo menos uma vez: como viver à superfície das coisas quando a cada momento a vida nos obriga a reencontrar um segredo perdido!

 

Daí, sem dúvida, a sua preferência pelos cavalos cossacos, pelas invasões marcianas, pelas épocas catastróficas, as quais, como por magia, transformam homens em crianças. A sua melhor recordação: as manhãs de Inverno, nessa herdade alemã, onde carregava estrume na sua qualidade de prisioneiro de guerra. O inferno da guerra, é certo. E o inferno da paz? Nunca ninguém fala dele, nações hipócritas! Só uma paz tempestuosa nos impede de morrer a fogo lento. Ou então lá estamos nós a suprimir os palavreados redentores, como o louco da fábula a serrar o ramo onde nos encontramos sentados. Grotesco.

- Grotesco?

 

Ela imobilizara-se, a mexer a salada, cujo odor picante e fresco chegava até ali - todo o outro hemisfério florescia nessa palavra um pouco canalha, estimulante, vagamente irónica, Quantas realidades na irrealidade!

 

- Aquela comédia. Um verdadeiro teatro em volta de um cadáver. Não calculas. A vinte quilómetros daqui. Julguei sonhar.

 

Ainda tinha diante dos olhos o gesto daquela mulher a enrolar o lençol sujo e a metê-lo debaixo da cama. Essa implacável afirmação da vida perante a morte... Esse gesto que concordava tão bem com os actos de violência que a vida cometia há tantos centos de milhões de anos, com essa determinação cega, assustadora, que assegura o desenvolvimento das espécies, essa permanência absurda sobre a terra... para acabar naquele crepitar de insectos, lá fora, como no gesto dessa mulher, numa tarde de Setembro, num quarto fúnebre cristão...

 

- Esse enclausuramento do espírito das pessoas simples, estás a perceber, essa faculdade de esquecimento, quase imediato... A desproporção que existe entre esse morto - para quem a esfera solar deveria ter explodido para fazer a vontade a Shakespeare e... e esse lençol que lhe arrancavam... essa negação do valor da vida, muito mais do que a sua afirmação, mercê do pouco valor que a perda desta parece representar para quase toda aquela gente; para mim, talvez... esse gesto destruía muito mais aquele miserável do que toda a corrupção... Eu sei... melhor do que ninguém...que um morto não é nada, mas quem pode gabar-se de uma objectividade tão completa, tão teórica? Foi o gesto dessa mulher que veio sancionar a morte do marido - que ela amava!

 

Impressão idêntica se observa quando um segundo nascimento é desejado ou esperado num desses inúmeros lares em que se ouve dizer ao pai ou à mãe, a propósito do primeiro filho: «nunca se sabe o que pode acontecer», como quem encara a troca de um carro! As razões que o escandalizavam eram mais obscuras do que a boçalidade. Tudo se passava como se, dentro dele, algo houvesse sido subitamente iludido ou insultado.

 

Iludido, sobretudo... Assim, por vezes, na época da sua «puberdade» religiosa (nascera católico), despertava em sobressalto, sacudido por uma ideia com tanta violência como se alguém o tivesse acordado puxando-lhe por um braço: bastava um cadáver de bebé asiático (preto ou neolítico) para aniquilar radicalmente só por si todas as probabilidades de um plano de criação divina, segundo o qual nem um só cabelo cai das nossas cabeças... Não era de cabelos que se tratava na história do mundo, mas sim de milhares de cadáveres de criaturas intermediárias a que o acaso ou a providência não haviam permitido o acesso à consciência, que não tinham tido tempo de se tornarem homens, mas que no entanto eram homens... Havia razões de sobra para se acreditar numa grande mentira, da parte de um deus que, se acaso existisse, não passaria de um brincalhão de mau gosto: a sua criação, como disse Nietzsche, não era «mais do que uma porção de dores e de falta de lógica que faria baixar a cotação total do devir».

 

O acaso, só o idiota acaso poderia ser o responsável pelo pouco valor da consciência e da existência humanas, que já não valiam muito aos olhos dos próprios homens...

 

O que sobretudo o impressionara hoje - essa estranha impressão de irrealidade que tanto lhe custava a explicar a si próprio, como se acabasse de desembarcar de outro planeta, onde as coisas se passassem de modo diferente e das quais conservasse apenas uma vaga lembrança...

 

- O que me impressionou foi a naturalidade com que essa gente enterra um dos seus... Era tudo tão escabroso! Tudo muito natural. Aquele açougueiro endomingado... Parecia-me que havia ali um tremendo mal-entendido... Uma espécie de farsa inútil! Falei em teatro sem querer. Se um deles começasse a fazer... qualquer coisa de inteiramente absurdo - a urinar no caixão, a arrancar a orelha do vizinho para a comer

- não me teria surpreendido muito...

 

Recordava o tal carniceiro endomingado, a amontoar os ossos dos antepassados num canto da cova que acabava de escavar («assim fica mais acompanhado»), o caixão louco a vogar pelo meio das urzes (Bunuel não faria melhor), os óculos emblemáticos desse pastor reluzente até à ponta das unhas (e que se chamava Barthélemy), a sua voz longínqua, trémula, que o ambiente lá de fora acompanhava com um coro de insectos: «o morte, onde está a tua vitória?

 

Õ morte, onde está o teu aguilhão?», essas palavras transportadas no espaço pelo calor cheio de odores solenes, Abel Reilham, depois de encher a cova, a arrancar uma ardósia ao telheiro vizinho para lhe gravar por cima, com uma chave de parafusos, as iniciais do defunto, as datas do nascimento e da morte, espetando-a depois com o tacão à cabeceira da campa misteriosa identidade, entregue à indiferença das urtigas, do sol e da chuva...

 

- Perguntei a mim próprio o que tínhamos nós vindo fazer no meio de tudo aquilo: morte, vida, era como se eu tivesse caído da Lua; durante umas poucas de horas esqueci tudo; afigurava-se-me que via as coisas pela primeira vez: nem trágicas, nem cómicas, e incompreensíveis.

 

Não era uma novidade o que sentia, pois acontecia-lhe divertir-se a provocar esse fenómeno, tentando, por exemplo, reencontrar, para além da memória e dos hábitos adquiridos, o aspecto primitivo e ininteligível de uma determinada coisa (como sucede a todos os grandes exilados, obcecados por sensações perdidas). Porém, no caso presente, tudo sucedera sem a sua intervenção e com a violência de qualquer coisa que se revela.

 

- Aquilo assaltou-me no caminho, como se fosse uma vertigem, e dissipou-se um pouco no momento em que me debrucei à janela para observar maquinalmente aquele telhado coberto de chumbo a brilhar... pouco antes passara-se aquela história do lençol... Uma espécie de colapso mental, sabes, como o que às vezes é provocado por uni esgotamento, pela insónia, ou qualquer outra coisa assim.

 

O que mais o perturbava agora era que, no fundo, esse sentimento de irrealidade, essa vertigem, não se reportava menos aos seus semelhantes do que esse cadáver mutilado pelos corvos; e não era tanto em face da morte que ele se sentia como um estranho, mas sim em face da vida - da vida sobre a Terra: uma série de circunstâncias fortuitas a terminarem nessa irreparável enormidade: ele mesmo, a consciência da sua própria existência, o testemunho acabrunhante e irrecusável que esta lhe impunha, que se impunha a ela mesma - que teria podido não ser e que era irremediavelmente.

 

- Porque me olhas tu assim? De cotovelos afastados, segurando com dois garfos um tufo de salada por cima do prato, ela fitava-o com a inquietação irónica de uma mulher de quarenta e cinco anos para quem o rosto do interlocutor representa um segundo e implacável espelho; porém, desta vez, fitara-o com uma insistência um pouco exagerada - esse género de olhar terrível que examina outra coisa para além de nós-, como se o marido a fitasse sabendo-a com um cancro.

 

Ele baixou os olhos, a desdobrar lentamente o guardanapo, acabando por sorrir.

 

- Estava a pensar - declarou - nas nossas últimas férias antes da guerra. Outubro em Veneza, as manhãs de nevoeiro na lagoa, os derradeiros turistas, ingleses, claro: estou numa idade em que se tem necessidade de convenções. Isto foi há dez anos, depois houve a guerra... Achas que ainda existem aquelas maravilhosas orquestras fora de moda?

 

Veneza... Acabava de pensar nisso como ainda há pouco se lembrara do seu coração: primeiro intrigado, indeciso. A Itália representava para o seu espírito como o afluxo de uma suavidade admirada de se encontrar no mundo.

 

Partiram para Veneza dali a quinze dias: havia lá muitos americanos e pouco nevoeiro. Do Lido avistava-se Veneza, ao longe; o médico observava as gaivotas com os binóculos.

 

No regresso soube que o Reilham mais novo tinha arranjado emprego como secretário ou qualquer coisa no género em casa do pastor.

 

Nos primeiros tempos José ia ver a mãe todos os sábados; tomava um carro às onze horas e, com os três quartos de hora de trajecto a pé, chegava lá a tempo de se sentar à mesa.

 

Ela, viúva, ele, em Florae, o Abel - sempre celibatário-, a quem as ceifas do Outono não deixavam descansar um momento, andava longe, na floresta desde manhã até à noite, dormindo em qualquer cabana de lenhador. Não tardou que ela se encontrasse quase sozinha e a única consolação que preenchia o vácuo dos seus dias eram as escassas horas que passava com o filho todas as semanas.

 

Quer chovesse quer fizesse sol, lá ia ela colocar-se ao fundo do atalho para espreitar a chegada da camioneta, auscultava os rumores da estrada, iludida a cada instante pelos barulhos da torrente - suspensa por todas as suas fibras logo que aquela desembocava à saída da curva, duzentos ou trezentos metros antes da paragem, atenta ao barulho do motor, da velocidade hesitante desse calhambeque que parecia não avançar nada, como se hesitasse em parar ou não (a paragem era facultativa), perscrutando ansiosamente através dos vidros até o avistar; então, como se a coisa deixasse de ter interesse, voltando bruscamente as costas, com as mãos juntas sobre o peito, cruzava as pontas do xaile e começava a trepar sozinha o etaIho, em parte por disfarce, em parte movida por não se sabe que vago rancor que ela se dava ao luxo de sentir, uma vez adquirida a certeza da chegada do filho - talvez no intuito de ele perceber bem até que ponto a desgostava a sua ausência. Mas, ao mesmo tempo que representava para si própria - e para ele, - esta pequena comédia do reencontro, sentia, como quem é vítima do próprio embuste, o frio de uma espécie de despeito, ou de cansaço, a invadi-la toda: desde a partida do filho que só vivia para aquele minuto, contava os dias, para não dizer as horas, que dele a separavam; e, chegando o momento, a alegria de estar com ele descambava imediatamente numa desilusão indefinida, numa estranha impotência em gozar da sua presença, como se, ao sacrifício de o esperar durante a semana, viesse juntar-se já, irremediavelmente, o desânimo de o ver partir de novo. Era como se já não existisse nela a vida suficiente para alimentar a menor ilusão.

 

Uma vez lá em cima, acocorava-se em frente da porta para tirar a chave de baixo de uma pedra - uma chave enorme, apesar de nada haver que mudar naquela cabana: o filho pensava na minúscula chave de segurança que o senhor padre trazia consigo -pendurada numa corrente, essa, muito significativa; «valia mais que a deixasses na porta», disse-lhe ele um dia com brusquidão-, abria por fim essa porta revelando os odores que a atmosfera cuidada em que ele vivia durante a semana tornavam mais agressivos ainda; incomodativos, mesmo... o cheiro animal das pessoas que vivem junto dos bichos - ou até, porque não dizê-lo, como bichos: estava a pensar no irmão. Essas cozinhas que cheiram a ’estábulo, por mais limpás que estejam... aqueles fatos que o fumo dos álamos impregna do cheiro a mato e a esterco, o qual se sente por toda a parte; agora, que se servia de um quarto de banho, observava a mãe de soslaio, perguntando a si próprio como é que ela se lavava.

 

- Senta-te, senta-te... dá cá o teu saco...

 

Ela afadigava-se, pensando reencontrar nos gestos que fazia por causa dele, frutos de uma longa cumplicidade, a sua alegria intacta, punha a mesa, servia-Ihe o almoço, até o enfartar: no prato atulhado de comida, exibia-se, indecente, como essa camada de gordura amarela que afoga todas as iguarias, a miséria pura com todo o seu cortejo de preconceitos idiotas, de compensações ridículas, de ingenuidades horripilantes - pungentes... Ele bem sabia que ela tirava o sangue das veias para lhe preparar aquela única refeição por semana - que elaborava com grande antecedência: tinha a impressão de estar a engolir qualquer coisa dela mesma, não só porque a mãe continuava a privar-se de tudo por causa dele, a sacrificar-lhe talvez todas as suas economias, mas também mercê de uma flagrante correlação entre a sua tacanhez, o seu retraimento de velha componesa, e tudo quanto ele adivinhava que ela fazia depender desse almoço.

 

- Mas, santo Deus! Não consigo comer tudo isto!

 

A mãe fazia um gesto com a mão, que parecia significar: «As pessoas como tu não têm obrigação de acabar o que está no prato.» Imóvel, diante do fogão, parecendo ter adquirido nas feições qualquer semelhança com este, ao cabo de trinta anos de convívio, ou tirar dele a pouca energia de que ainda dispunha, via-o comer, ouvia-o falar da sua nova vida, sentindo-se subjugada mesmo sem querer, a despeito do estranho desprendimento interior que a invadia: após a travessia desse deserto semanal, bebia-lhe as palavras, naturalmente, sempre, no entanto, a sentir-se partilhada entre uma devoção incondicional e uma repugnância secreta por todas essas excentricidades intelectuais tão vãs como irritantes, que lhe pareciam escandalosamente significar o desinteresse pelas riquezas, as quais, por outro lado, era como se lhe pertencessem de direito... Mistério um pouco monstruoso para o seu cérebro d© formiga. De repente, ele parava com a boca cheia, ainda entusiasmado pela sua excitação verbal:

 

- E tu ? Não comes nada ?

 

- Já comi... Já comi... Anda, continua...

 

Tinha tempo de comer quando ele se fosse embora. Às vezes, quando fazia mau tempo, o rapaz dormia lá e só regressava a Florae no dia seguinte pela manhã, de forma a tomar conta do seu posto meia hora antes de dar início às suas obrigações: entre estas competia-lhe tocar o sino todas as manhãs e varrer a igreja; mas ele falava sobretudo à mãe acerca dos trabalhos de arrumação, de correspondência e de escrita aos quais o pastor o queria habituar: Barthélemy, homem de letras e apaixonado pela história - a pequena história -, consagrava as horas livres a estudar as figuras da região que se haviam notabilizado pelas armas ou pela influência durante as guerras religiosas; de tempos a tempos, publicava monografias acerca delas, o que lhe granjeava a estima dos eruditos, e as quais gostava de ler ainda inéditas nos serões que frequentava em casa das melhores famílias da região. Estava naquele momento a trabalhar numa obra mais importante, o Teatro Sagrado das Cevènnes, a qual era aguardada com muito interesse nesses meios sensíveis à sobrevivência de um passado heróico, onde a autoridade das suas fontes de informação e a clareza do seu estilo o haviam muitas vezes distinguido. O seu altruísmo tinha-lhe granjeado todos os sufrágios, sobretudo a dedicação de que acabava de dar provas recolhendo em sua casa esse jovem estropiado, filho de uma família que caíra na miséria e a favor do qual não poupava tempo nem trabalho: embora não lhe passasse pela cabeça que o seu protegido pudesse ambicionar um cargo inacessível às suas fracas habilitações, queria fazer dele um bom secretário, consolidar a sua educação, alargar-lhe os conhecimentos; depois não faltariam livrarias protestantes onde o colocar. Que mais poderia ambicionar um montanhês com pouca instrução?

O Outono entrou no seu período triunfal. A metamorfose dos bosques começava sempre pelos cumes, onde os maciços de cores incandescentes, brotando do seio das verduras, iluminavam as encostas e acendiam rapidamente a combustão ardente da floresta.

 

Dias calmos, preocupações com o futuro, saciados como frutos maduros; céu puro, sem uma ruga, o fumo a subir dos bosques ainda espessos, onde soava em surdina o golpe dos machados e o estalar das árvores que iam sendo abatidas; ervas e tufos de urtigas silvavam junto aos muros como uma fogueira de vides: os últimos insectos, nesses ninhos abrigados, aproveitavam até ao fim os restos que o Verão deixara atrás de si ao retirar-se, focos isolados como que a marcar o rasto de um incêndio, continuando a crepitar até chegarem as primeiras chuvas do Outono.

Os muros, envernizados pela humidade do lado* da sombra - mordidos por um frio que vinha de mais longe do que essa sombra-, fumegavam ao sol, lançando chispas das lascas de mica. Pátios de quintas, atravancados de alfaias agrícolas penduradas nas paredes ou abandonadas a enferrujar pelos cantos, carroças abandonadas, cobertas de estrume até meio, troncos à espera de serem transformados em lenha luzidios no ar lavado da manhã, que emprestava a todas as coisas uma presença contundente, uma nitidez mágica, ingénua, e as galinhas, todos os animais domésticos, sensíveis à atmosfera da época, passeavam-se com lentidão no meio daquela desordem artesanal e sápida das horas ociosas que preparavam - não se sabia o quê; talvez uma lenta e imperceptível decantação das cores e dos volumes - a chegada dos invernos medievais, esses das planícies flamengas ou das landes céltícas, como uma vitória a longo prazo da moderação, da paciência e da idade sobre a loucura da Primavera ou do amor ruinoso do estio.

 

As primeiras névoas subiam cada vez mais alto, percorrendo os vales à procura de crepúsculos cada vez mais vermelhos. Os jardins do vale perdiam agora também a folhagem com a elegância e a nobreza desesperada dos aristocratas; as grades fechadas e as persianas cerradas das moradias de férias apresentavam os sinais de um luto recente, pareciam ter sido testemunhas de uma agonia patética; essa consternação maravilhosa dos parques, com os seus maciços de rosas apodrecidas e as suas alamedas atapetadas de oiro, não podiam deixar de significar o desaparecimento de uma criatura jovem de grande beleza, vítima de uma morte ambígua, a arranhar os lençóis com as unhas, num espasmo terrivelmente semelhante ao da víbora. Num canto, exótico e transido, um caqui despojado das folhas teimava em exibir os frutos vermelhos na sua maior parte já estragados, muito embora ainda feéricos no meio da desolação geral.

 

Todas as manhãs, antes de visitar os doentes, o médico fazia um pouco de exercício a analisar o saibro do jardim e, de faces vermelhas, mãos engadanhadas, nariz a pingar, queimava as folhas mortas; o fumo perdia-se, quase invisível, num céu baço e frio, do qual o Sol não dissipara ainda as brumas. Solitário atrás de um banco, um regador vazio comunicava a esse fundo de jardim uma atmosfera presbiterial e melancólica

- de uma melancolia fim de século: o local assemelhava-se o jardim do Colégio de Saint-Stanislas, em N., onde, cerca do ano de 1909, o médico fizera o internato. Eis como, dizia ele consigo, começa e acaba a barbárie do Verão - a barbárie da vida: nesse despojamento exangue, berço de uma consciência friorenta, inglesa, especificava ele-, dedicada ao desenvolvimento do egocentrismo e do pudor, antes de desaparecer de um palco em que a peça era por vezes de gosto duvidoso.

 

Abel Reilham quase terminara o abate das árvores: Dezembro estava à porta. Em breve a floresta ficaria vazia e sonora como essas salas de baile que se esvaziam dos seus ornamentos e se fecham durante todo o Inverno.

 

Instigado pela aproximação dos frios, acontecia-Ihe cada vez com mais frequência, para adiantar o trabalho, passar a noite fora, numa dessas cabanas de madeira que os lenhadores abandonam no fim dos cortes ou com a chegada das primeiras neves. Ao romper do dia, quando os vidros sujos do janelo começavam a empalidecer, ele repelia os cobertores, abandonava o catre mal seguro, acendia o lume num velho fogareiro de ferro todo enferrujado, sobre o qual aquecia a sopa que a mãe lhe preparara para vários dias, cerrava a porta, respirava o ar frio e tónico da madrugada, enrolava o primeiro cigarro. Na penumbra da clareira, os troncos das faias já sem ramos alinhavam-se de forma harmoniosa, ofereciam uma espécie de segurança em face do mistério sempre um pouco inquietante da floresta silenciosa: era a hora em que não corria um sopro de vento. Sentado no degrau de madeira da porta, engolia a sopa quente em pequenos sorvos ruidosos, de costas curvadas, com o boné de caçador enterrado até às orelhas, e um grosso cachecol de lã à volta do pescoço: ficava sempre surpreendido em face da rapidez com que esse mundo incolor ia clareando, trocava a sombra pela luz numa gradação todavia difícil de perceber; as primeiras rajadas de vento que varriam o fumo do fogareiro anunciavam geralmente a chegada do Sol; ele pegava no machado, dirigia-se ao local do corte e assim que a luz horizontal, dum vermelho gelado, incendiava o cimo das montanhas, lentamente, aquecendo os músculos ainda entorpecidos pelo sono e pelo frio da noite, atacava uma árvore pela base, num brotar de casqueiras que cada mordedura do aço na madeira estilhaçava, Até ao meio-dia trabalhava assim sem descanso, insensível à fadiga, quase sem esforço, na embriaguez do movimento contínuo dos braços que pareciam regular o seu ritmo pelo latejar do sangue - inconsciente do tempo que passava, das horas que eram, cego a tudo o que o rodeava, como que despojado de si próprio, pela sequência dos golpes profundos que abalavam o arcaboiço das árvores e faziam tremer o solo debaixo dos pés. No momento em que o Sol atingia o zénite, sentia o estômago vazio a reclamar a comida como um animal dotado duma vida independente: os movimentos regulares do machado acabavam por comunicar aos seus braços um frenesi insaciável que o dominava mais imperiosamente do que a fome. Endireitava-se, limpava a cara reluzente de suor, de costas voltadas para o Sol, atento, pela primeira vez no dia, ao rumor dos outros campos perdidos na floresta, e que a hora da pausa acalmava por todo o lado; de longe em longe, penachos de fumo azul subiam do meio dos bosques, espraiavam-se por cima deles em ténues nebulosas perfeitamente imóveis. Ouvia-se o martelar de um machado teimoso, algures sob as ramadas cujo eco tornava difícil localizar os ruídos, e o estrépito duma «Homélite», igual ao de uma motoreta a subir os altos e baixos de terreno com arranques de acelerador; algumas árvores desabavam ainda com um ruído de pano rasgado, seguido dum choque surdo; depois o silêncio recaía sobre a floresta tranquila, como uma estranha trégua no meio dum combate; vozes, e às vezes cantos, acrescentavam a esta paz uma feliz descontracção, a atmosfera das tribos que depuseram as armas para se entregarem a ocupações caseiras ao aproximarem-se os grandes frios. Sentado sobre as folhas mortas e as lascas de madeira seca que exalavam um perfume a chá e a cogumelos, Abel, apoiado ao dorso quase humano duma rocha, saboreava a tepidez do sol enquanto fazia a digestão da sopa e do pão molhado; dormitava assim até ao momento em que os bosques retomavam a sua actividade; por vezes observava um lagarto imóvel como ele, espalmado sobre a rocha a alimentar com essas últimas horas de sol a sua carne gelada, mal se distinguindo da pedra onde se encontrava colado, imóvel como ele, indiferente a tudo que não fosse o seu instinto de conservação. Uma sombra passava; o homem erguia a cabeça, via uma nuvem a atravessar o céu, depois, como que tomado por uma súbita inspiração, retomava o trabalho até ao cair da noite, como se a passagem da nuvem tivesse bastado para desencadear dentro dele um gosto obscuro pela aventura, instintivamente ligado ao do esforço e do movimento.

 

A chegada da noite era talvez um dos momentos de que mais gostava; uma vez empilhados os troncos, prontos a serem levados (agora pelo cavalo que lhe oferecera o futuro sogro: economia de tempo, menos fadiga inútil, já não era preciso puxar ou segurar a corda, a carga já não caía pelas encostas a baixo) arrumava os instrumentos de trabalho, acendia o fogareiro: as noites eram geladas, Abel fazia pequenos consertos, confortado, apesar da fadiga da noite, pela mesma sensação de plenitude e segurança que sentia de madrugada - e que experimentara quotidianamente seis ou sete anos atrás, quando os acontecimentos o haviam obrigado a partir para longe, vivendo só, lá no alto, nessa cabana de pastores abandonada, onde fazia o que queria sem que ninguém lhe alterasse os hábitos nem contrariasse os desejos. Aqui, era a mesma coisa: livre, feliz como um rei; nada de discussões nem contas a prestar - escarrava, arrotava, quando lhe dava na gana - pois então! Pouco antes da noite, pegava na velha escopeta do pai (levava-a para toda a parte), ia dar uma volta pelos bosques, para tentar caçar uma codorniz, um melro, ou qualquer outro pássaro empoleirado: a escopeta só acertava num alvo aproximado e imóvel. Essa marcha ao lusco-fusco espevitava nele instintos do caçador de espera; ao sair do bosque, diante duma extensão parda e confusa, acocorava-se ao abrigo dum maciço de giestas, a perscrutar o espaço onde se desenhavam ainda, negros como tinta de escrever, os arabescos dos ramos altos sobre os quais se podia distinguir nitidamente uma presa; no azul vivo e muito escuro do poente, os pontos líquidos das estrelas começavam a tremeluzir através das árvores. Como se lhe fosse preciso muito tempo para atravessar o silêncio, o respirar da torrente chegava até ele amplificando-se com a noite. Ao longe, por vezes, arquejava o ruído dum motor emudecido de repente atrás duma prega de terreno, quando o veículo dava uma curva. Ouvia-se também ladrar um cão, ainda mais longe, lá para as bandas das quintas perdidas no planalto, talvez quando regressava a casa um caçador... O latido, que o frio e a escuridão da noite pareciam afastar mais ainda, vinha trazer àquela espera duma caça hipotética uma doçura misteriosa, dir-se-ia brotar do fundo da infância. Escutava-o, sentindo de repente subir à sua volta o frio da terra, incapaz de compreender o que significava este mal-estar ao mesmo tempo estranho e agradável que se insinuava dentro dele de cada vez que ouvia um cão ladrar assim ao cair da noite.

 

Regressava então - sempre de mãos vazias, aliás -, acendia uma vela, jantava ao calor do fogareiro um pedaço de pão e queijo, de cotovelos apoiados nas coxas, a cabeça entre os ombros, numa atitude que a fadiga tornava pensativa. Após o último cigarro do dia, fumado junto ao fogareiro, a ouvir respirar a floresta e suspirar o lume, embrulhava-se num cobertor e adormecia logo - com um sono tão desprovido de vida como a morte.

 

Outras vezes, um vento frouxo, soprando em rajadas, levantava-se no meio da noite, e fazia estalar os tabiques fracos da barraca e ranger os ramos duma faia contra o zinco do telhado; arrancado ao sono por esse raspar cadenciado, levantava-se para ir ver o que se passava lá fora, atraído contra sua vontade por esse rumor grave, marítimo, que emprestava à noite já pronta para a largada a amplidão e a majestade do mar alto: quando abria a porta, recebia no rosto, como uma baforada de salpicos na escotilha dum barco, o cheiro húmido e profundo dos bosques que esse vento levantava com a aproximação da chuva.

 

Nessas noites, o céu era um vasto campo de nuvens em movimento; corriam do Sul ao assalto das montanhas, torciam-se em rasgões diante da Lua, que também parecia navegar contra a corrente dessa cavalgada silenciosa, atravessando com rapidez os sucessivos buracos do céu, tão negros como a água dum lago. Essa maré alta que vinha instalar a chuva nos cumes durante vários dias, por vezes semanas inteiras, precipitava a chegada do Inverno mais do que os frios secos, os quais eram uma garantia do bom tempo até ao fim do ano.

 

Não lhe desagradava trabalhar nesse universo de folhas encharcadas e de bruma que esbatia tudo à sua volta num raio de alguns metros. Não se tratava dessas chuvas pesadas da Primavera ou do início do Outono, que fazem transbordar as torrentes, devastam as encostas, escavam os caminhos, fustigam as paredes no sentido horizontal, rufam contra os vidros e afogam a paisagem, retendo os mais intrépidos junto à lareira; era mais uma lenta penetração aérea da floresta por meio duma cacimba pouco mais densa do que o nevoeiro e que ele não desgostava de respirar, quando, a cada machadada, a árvore por cima da sua cabeça soltava um brusco chuveiro em todo o perímetro da copa. Nessas tardes de chuva, em que a noite caía mais depressa, aproveitava para descer a Maheux, a renovar as provisões para toda a semana; apesar do conforto relativo que ali reencontrava, esse regresso àquilo que para ele representava a vida civil não lhe agradava nada; a despeito da insistência da mãe, voltava no dia seguinte para os bosques logo de madrugada, munido dum pão, de alguns queijos, de sopa e vinho palhete, aspirando gulosamente o ar friodos grandes espaços, como se lhe faltasse o fôlego por ter passado uma única noite dentro duma casa nor. znaL ’

 

- Oh! Ele não é mau rapaz - dizia a seu respeito a mãe quando encontrava alguma vizinha pelo caminho ao ir esperar José, e que, sabendo-a viúva, com o filho mais novo em Florae, lhe perguntava notícias do mais velho - mas é tal qual o pai, Deus o tenha em descanso, nunca se sabe o que lhe vai na cabeça, se está contente ou não... Já em pequeno era assim: sempre a correr pelos bosques como um selvagem... Calcule que até fugiu algumas vezes da escola, mas o pai nunca o soube: já tinha bastante com que se preocupar. Era tão forte e tão brusco que a professora tinha medo dele; e os companheiros também, no entanto nunca fez mal a uma mosca. Mas era assim, sempre a correr pelos caminhos e pela floresta, era a única coisa que o interessava e não melhorou com a idade. Quando cá está não diz palavra à mesa, nem bons-dias nem boas-noites. É isto: nem sei que tenho aquele filho. A floresta é tudo o que lhe interessa e não lhe peçam mais nada. Precisa de gastar a energia, de se mexer, não pode estar quieto; se o deixassem deitava a baixo todas as árvores da região.

 

- E quando é que se casa?

 

- Ah! Quando é que se casa... Deixe-me aqui... Conheço uma que se arrisca a ficar muito tempo à espera... E se ao menos ele fosse religioso como o pai que Deus haja, que nunca se sentou à mesa diante de mim uma só vez, durante trinta -anos, sem se benzer... E tenho a certeza, cá para mim, de que foi morrer lá em cima talvez para estar mais perto de Deus, lá na sua ideia...

 

Certa manhã, ao abrir os olhos, apercebeu-se com espanto de que o dia nascera sem ele dar por isso, e hav:a talvez algumas horas, a avaliar pela intensidade da luz que, coada pelos vidros, penetrava no interior da cabana: uma intensidade insólita, de resto e que deixava como que uma palpitação esbranquiçada diante dos olhos. Ficou perplexo, deitado no catre, entorpecido pelo estranho bem-estar que lhe prolongava o sono e ao qual se juntava uma certa qualidade do silêncio que não sentia vontade de perturbar. O frio duro e baço da atmosfera fazia-lhe fumegar o hálito mais do que o costume; dir-se-ia que a parte de cima dos cobertores também estava gelada, tesa como os fatos húmidos que ficam ao relento. Enfim, após haver ruminado durante muito tempo o calor mantido pelos cobertores, decidiu levantar-se: teve de empurrar várias vezes, a fim de repelir com a porta o friso que chiava atrás desta como se fosse estopa; embora o céu estivesse coberto, a deslumbrante brancura que cobria toda a terra fez-lhe piscar os olhos; dominado pelo espectáculo, respirava esse frio cintilante que deslumbra o sangue e queima o rosto sem mesmo pensar em fechar de novo a porta e enfiar a canadiana: florestas, montanhas, a perder de vista, apresentavam essa brancura sem gradações nem sombras sobre a qual cada árvore assumia um aspecto feérico, sobrenatural, e, mais do que todas, esses pinheiros negros que pareciam tirados dum conto natalício, com os seus ramos piramidais a vergarem uns por baixo dos outros sob a sua almofada de neve, os quais os nossos olhos enfeitam irresistivelmente com velas e ornamentos multicolores.

 

Passado um bocado, fechou a porta, acendeu o seu fogareiro pela última vez naquela estação, almoçou, fumou um cigarro, vagamente ocioso pela hora tardia e por esta mudança de ambiente que o forçava, a partir de agora, a interromper a tarefa de cortar árvores, a fazer a trouxa e a regressar a casa. Ao dobrar os cobertores e ao arrumar as suas coisas, parava de tempos a tempos para deitar uma olhadela pela janela coberta de gelo, ou pela porta que deixara entreaberta, como se ainda não tivesse compreendido muito bem o que significava para ele a mudança de estação, sendo-lhe indispensável observar de novo para se compenetrar disso. Antes de partir pôs algumas cavacas de lado, dentro da cabana, para o caso - muito improvável - de ser obrigado, durante o Inverno, a passar ali a noite. E, além disso, com essa lenha empilhada atrás do fogareiro, a barraca parecia menos vazia...

 

Com estas primeiras neves, as visitas de José à mãe começaram a espaçar-se. O rapaz não tinha coragem de subir lá a cima todos os sábados, nem de reencontrar, após uma hora de caminho com os pés enfiados na lama, os pedregulhos ou o vento gelado, a atmosfera de pobreza, o seu cheiro habitual a sopa e a barreia, o seu ritual, as suas mesquinhices exasperantes e, ainda por cima, essa mentalidade incorrigível da qual ninguém se consegue libertar, nem sequer aqueles que de lá saíram - como se tivessem a nostalgia da miséria!

 

Para compensar a sua ausência, escrevia-lhe bastantes vezes, falava, nas cartas, dos horários da camioneta perturbados pelo estado das estradas, além disso invocava o frio, a lama, os pedregulhos do caminho e o mal que o Inverno fazia à sua perna doente, a perda de tempo e a fadiga, incompatíveis com a boa marcha do seu trabalho; este argumento irresistível servia de capa a motivos muito menos confessáveis, e apenas as privações do Inverno podiam tornar os deveres familiares numa tarefa penosa. O desconforto, a lama do caminho, o cheiro e os gestos da mesquinhez, o quarto gelado onde dormia, ainda eram menos: ele ter-se-ia acomodado por uma espécie de fidelidade amarga e desesperada, do mesmo modo que se enternecia - de longe - com a sua mãe. Mas era sobretudo essa mentalidade que começava a arrepiá-lo seriamente: não tinha sido preciso muito tempo para esgotar o entusiasmo infantil que sentia quando causava espanto à mãe, ou ao deslumbrar qualquer pessoa de quem ele não podia esperar nada a não ser o respeito irritante pelos resultados concretos e o secreto desprezo dos meios para os obter, do mesmo modo que os seus fins reais escapavam à esfera da pobre mulher; tentava, com um regozijo mórbido, representar-se a maneira como esta concebia o seu trabalho em casa do padre. Embora tivesse astuciosamente insistido no aspecto imaterial da sua actividade, o rapaz continuava persuadido de que ela o imaginava, lá no seu íntimo, a pregar caixotes, a serrar madeira, deixando às Potências Superiores o cuidado de exercer por cima da cabeça dele as suas excentricidades, enquanto alardeavam a tal respeito a impassibilidade maliciosa do maquinista no seu canto diante dos cacarejes e das caretas dos comediantes.

 

Este mal-entendido fundamental entre o que a sua mãe desejava para ele, e o que ela havia desejado para si própria toda a vida, pensando que era esse também o objectivo do filho, quando na verdade este andava a fazer uma descoberta inquieta do mundo, cada vez mais perturbado diante das suas incertezas e contradições, tornara-lhe rapidamente insuportável o facto de se encontrar durante muito tempo na presença dela - sobretudo lá em cima, em casa, no seu antro, onde ela exibia, com a obscena inconsciência das pessoas que nos educaram, certas maneiras de ser e de pensar cuja inépcia lhe teria talvez sido revelada por meio de um ambiente diferente do seu e que o instinto lhe aconselhava a dissimular. Agora, que vivia num meio burguês confortável, alheio a estas contingências, que compreendia mal os malefícios, e até, ele já se apercebera disso, que as considerava, apesar da religião, ou talvez por causa dela, com um certo desdém, estas surgiam-lhe cada vez com mais veemência sempre que entrava em casa e que passava brutalmente do mundo das realidades abstractas para o das tiranias mais sórdidas. Não se encontrava ainda há tempo suficiente num clima de à vontade e de liberdade de espírito, nem adquirira a desenvoltura que esta confere, para aí descobrir uma vulgaridade mais subtil e mais odiosa.

De momento, receava sobretudo conservar em si definitivamente, as marcas indeléveis e inibitórias da sua origem niserável; o ser toda a vida um pobretanas que triunfasse por caridade e apenas à custa do seu esforço, mas cheirando sempre à pobreza, que viria a trair-se, cedo ou tarde, através dos seus reflexos de pobre, mais horríveis ainda nos que conseguem fazer fortuna: antigos camponeses com êxito no comércio - ou que haviam sabido tirar proveito da guerra - e nos quais se percebia bem que seriam precisas duas ou três gerações para que desaparecesse neles o desejo de voltar ao contrário o prato de porcelana de Limoges para comer o queijo: assim faziam os seus e ele receava que lhe acontecesse o mesmo.

 

A própria mãe, temendo que o mau estado do caminho lhe fizesse mal à perna, animava-o a não vir, aconselhando-o, com a morte na alma, a deixar passar o Inverno. Quando a neve derretesse e a sua situação se consolidasse, para voltar então a vir fazer-lhe companhia todos os sábados. O patife, naturalmente, não esperou que lho dissessem duas vezes ela viu-o primeiro chegar de quinze em quinze dias, depois de três em três semanas, em breve de quatro em quatro, e tanto mais pressuroso em lhe conceder a noite e uma parte da manhã de domingo por quanto era preciso compensar de certo modo as faltas passadas ou até as futuras que ele já previa. Chegou o fim do Inverno, voltaram os dias bonitos: ele não regressou. Estabelecera-se o hábito.

 

Quanto ao irmão, praticamente nunca o via. Quer em sua casa quer em Florae, fazia todo o possível por evitá-lo. Era um verdadeiro suplício observar-lhe as maneiras, passar mais de dez minutos na sua companhia; um suplício que alguém pudesse vê-los juntos na rua. A natureza sempre prega cada partida! Imaginem os lugares onde ela às vezes nos faz nascer! Poderia jamais haver alguma coisa de comum entre os dois! A infância já ia longe com as suas alianças efémeras, a sua solidariedade ilusória; as tomadas de consciência que tarde ou cedo lhe sucedem transformam-se muito depressa em ajustes de contas. Depois do seu desastre, e mesmo muito antes, havia passado tanta água sob a ponte que se tinham tornado estranhos um para o outro; foi ainda preciso, para que tal frase   não   seja   uma   comparação   humilhante,   que este camponês impenetrável não se tornasse estranho para consigo mesmo, como se fosse um animal. Saber. Que diabo é que se passaria na sua cabeça? Na verdade passar-se-ia alguma coisa? Um javali possuirá meios para se encontrar uma vez na vida em presença de si próprio? «Ele não existe», dizia consigo, aterrado - mas o que o aterrava não dizia respeito à pessoa do seu irmão... Era algo mais geral e mais vago. Uma preocupação recente. Quando o outro se aproximava dele   para   o   atrapalhar,   exalando-lhe   para   a   cara aquele hálito de coveiro, que tinha um cheiro a selvagem, a nicotina fria, a carrascão, a resina acre

- sempre a resina de faia, que cheira a vaca -, sentia mais raiva que repugnância. Raiva surda, impotente, que o continuava a embriagar no decorrer da refeição ou durante o serão que os havia acidentalmente reunido, e que ele suavizava como podia, mergulhando cada vez mais nela, observando a sua vítima, o modo como ele enrolava o cigarro, com a boca muito aberta devido à minúcia da operação, a língua a tremer entre o nu luzidio das gengivas, dum cor-de-rosa húmido e vulnerável de cabra teimosa... esse boné sempiternamente enterrado sobre as suas orelhas congestionadas, roxas, enrugadas como uma membrana de morcego; as suas manápulas de pedreiro, gretadas pelo cimento, duras como ele, tão compactas que não deixavam transparecer qualquer sinal de vida, nem circular ~o mínimo calor, de tal modo que se tinha a impressão de apertar a mão gasta duma estátua; e ouvia com uma espécie de horror voluptuoso a sua respiração asmática, complicada com uma multidão de pequenos silvos auxiliares que os brônquios tapados deixam escapar. De tempos a tempos, o animal cuspia para o lume grandes escarros negros que reavivavam a raiva do irmão, e até o esclareciam um pouco: era, em parte, a raiva de que nada conseguisse penetrar esta inocência cósmica, mineral.

 

Durante todo este Inverno, sabendo-o na serração, José fazia tudo para nunca sair a uma hora em que corresse o risco de dar de caras com ele; só temia uma coisa, era ouvir de repente atrás de si a voz do colosso: «Olá, José! Qu’andas por aqui a fazer?» E ele, José, respondia-lhe também em voz alta, como se costuma falar aos senis, às crianças ou aos atrasados mentais. Cinco minutos de pesadelo, durante os quais ele tinha de manter uma conversa difícil, extenuante, de fingir uma atitude na qual punha todas as suas forças para concentrar a atenção e se conformar à imagem que o outro devia ter dele - sem de resto saber qual era -, com medo de se sentir criticado ao ridículo aos olhos do lenhador, cujo vocabulário não devia contar cem palavras! Já por várias vezes que tinha sido obrigado a entregar-se a este exercício esgotante   em público.   Estes breves encontros,   que lhe impunham uma tensão   considerável,   submetiam os seus nervos a uma dura prova, e depois ficava cansado durante várias horas; saía disto deitado a baixo, no sentido próprio e figurado, como se a posição acrobática que tinha de infligir ao seu espírito houvesse implicado uma grande perda de energia muscular. Voltava ao seu posto humilhado e deprimido, fazendo gestos desordenados e com rompantes de voz que não eram habitualmente   os   seus,   sequelas   das   acrobacias, e tinha de impor a si mesmo novas violências para retomar sem transição a sua aparência civilizada, ainda menos natural que a outra. Estendido na cama, onde recuperava as forças, tentava imaginar qual seria o comportamento do seu patrão e modelo em circunstâncias semelhantes;   mas,   para seu desespero concluía que o seu raciocínio não tinha razão de ser, pois nem Barthélemy nem ninguém com um mínimo de   educação   corria   o   risco   de   se   preocupar   com um   irmão   deste   género.   Mergulhava   o   resto   do dia num abismo de desespero. Estudava-se ao espelho, escrevia, recopiava,   e detestava a sua escrita. Lia, mas não compreendia nada, e odiava-se através da leitura. Ia fechar-se no templo, e puxava raivosamente o lustro aos bancos, para se punir e se libertar do seu ódio; esta tarefa servil era a única de que ele se achava digno. Era-lhe necessária uma boa noite de sono para recuperar um pouco de esperança no futuro. Foram-lhe precisas igualmente mais quatro estações (e os afastamentos da família que as suavizaram) para cicatrizar as feridas profundas.

 

Por alturas da Páscoa do ano seguinte, como José tivesse feito grandes progressos no vocabulário e na elegância, Barthélemy, que andava com uma ideia fixa, fez-lhe a surpresa de o levar com ele durante quinze dias para a Suíça, onde tinha alguns parentes dum ramo emigrado, que haviam enriquecido com o negócio do chocolate e dos livros, numa proporção equilibrada.

 

Após duas mudanças de comboio, tomaram um rápido duma velocidade diabólica, que ligava no espaço de algumas horas a Espanha à Suíça. Ao passar a fronteira, José, que viajava pela primeira vez na vida, teve a feliz ideia de observar que as árvores, as nuvens, as estradas e as casas que desfilavam ao longo da linha do caminho de ferro tinham qualquer coisa de suíço: algumas vacas suíças pastavam a erva suíça vendo passar o comboio. Até o Sol, aqui, era de essência suíça: o seu rosto vermelho emergia dos cumes de açúcar cristalizado e de creme fresco com uma espécie de bondade exemplar, como se as potências superiores suíças o tivessem anexado. Dir-se-ia também que Barthélemy se metamorfoseava, resplandecia com um novo brilho: o brilho suíço. Ao descer do comboio, ao tomar um táxi, ao entrar no vestíbulo do hotel, quase tão vasto como o da estação, José, estupefacto, apercebeu-se que Barthélemy não era francês, mas sim suíço: parecia que entre o luxo* azafamado desta cidade, a limpeza sobrenatural das suas ruas e a pessoa do seu patrão existia uma afinidade misteriosa. A admiração que tinha por ele aumentou com uma respeitosa perplexidade: José perguntou a si mesmo se Deus não seria também suíço. De manhã, depois de sumptuosos pequenos-almoços, congressos, trabalhos; o pastor tomava notas que o seu factotum em seguida passava a limpo e classificava. A tarde era consagrada aos passeios, às visitas, às mundanidades. Os óculos de Barthélemy lançavam chispas; ele próprio despedia raios de luz. Durante este tempo, José diminuía a olhos vistos; estas actividades, estes encontros, esta efervescência davam-lhe a sensação de ser tão leve como uma palha; não era diante dos Alpes que ele se sentia pequeno, mas sim no meio de todos esses armazéns, hotéis, bancos, automóveis, cujo funcionamento harmonioso ultrapassava o seu entendimento. Todas estas riquezas o humilhavam, sobretudo porque não conseguia imaginar claramente o número incalculável de prodígios que havia sido necessário multiplicar ao longo dos séculos para obter tais resultados.

 

Uma tarde entraram numa espécie de drugstore que, com as suas fotografias de aldeias árabes e de palmeiras nas montras, era ao mesmo tempo uma agência de viagens, e onde o próprio silêncio parecia concebido e realizado pela técnica à qual se devia este laboratório de luxo.

 

Entre os clientes (pareciam duma gravidade singular), circulavam jovens tão sofisticadas como a decoração, e cujo uniforme azul-pálido, assim como o impertinente barrete, lembravam hospedeiras do ar - ou um exército de salvação vestido pela Coco Chanel; tratava-se na verdade de hospedeiras do céu, e esta agência era de certa maneira a da Grande Viagem: a livraria religiosa onde o pastor acabava de levar imprudentemente José pertencia a um dos seus primos, cujos arrebatamentos místicos haviam sublimado na obra sagrada e na colecção edificante os lucros fabulosos realizados com o chocolate, tal como uma rosa no meio das imundícies.

 

Era um homem duma altura espantosa, solene, de cara agradável, com umas unhas largas e chatas das constituições insaciáveis, senhor de vastas superfícies de carne difíceis de alimentar, lisas e inexpressivas como a virtude donde procediam; esta imobilidade epidérmica dava uma grande impressão de solenidade: qualquer que fosse a sua intenção, tinha o ar de anunciar a má notícia.

 

- O meu primo e eu precisamos de falar - disse Barthélemy a José, passado um bocado. - Vê lá então se encontras estes Mvros.

 

Deu-lhe para a mão uma lista de obras impossíveis de encontrar, ou esgotadas, e os dois homens fecharam-se num gabinete de promotor americano para aí conspirarem tranquilamente.

 

José ficou sozinho entre estas jovens suíças leitosas que ele não imaginava capazes de possuírem um sistema digestivo semelhante ao das francesas; as suas barrigas das pernas roliças, carnudas e sensuais na sua bainha de seda, as suas nucas frisadas, os seus lábios atómicos entraram em acção. Já não sabia para onde olhar, tão bonitas eram todas elas, dos pés à cabeça. As pontas dos seus dedos tremiam como acontece aos bebedores de vinho branco; não parava de puxar do lenço e fingia que se assoava, quer com vergonha do seu lábio defeituoso, quer para dissimular a sua tremura. A loira rechonchuda que o estava a atender estendia-lhe de tempos a tempos um livro, com um ar acariciador, como se dentro do livro estivesse um bilhetinho a marcar um encontro ou a chave do seu quarto. José sentia-se trespassado; tinha a impressão de que se a sua carne frustrada entrasse em contacto com a da jovem helvética que se agitava sob o seu nariz, num frufru eléctrico de sedas escondidas, ele incendiar-se-ia de repente, ou explodiria. Logo que a recolha dos livros (réplicas aproximadas dos que estavam indicados na lista, mas que ele venerava devido à sua proveniência) terminou, a rapariga tirou-lhos da mão. Ele sentiu os dedos dela em contacto com os seus. Esse gesto foi uma descarga de alta tensão, e, embora ele se não carbonizasse, isso não quer dizer que não tivesse o coração e os rins em ignição.

 

- Faz-me o favor, vem comigo por aqui...

 

Até ao Monte Branco.’ E ainda por cima levando-a às costas!

 

Caminhava atrás dela, no paraíso da sua maneira de andar, contendo a respiração, como um cão de caça magnetizado pelo respirar da lebre. Imaginava a vida privada da rapariga; influenciado pelo ambiente e iluminação íntima do seu lugar de trabalho, via-a a viver no luxo, a ignorar os humildes, a repelir um exército de tigres, a abandonar-se aos desejos dum jovem monstro cínico, muito despachado, blasé de nascença. Ela, depois de lhe ter entregado os livros, voltou a ignorá-lo, passando a ocupar-se, atenta e delicadamente, de outro cliente. A vida abandonou-o como a água deixa a areia: longe desta fonte, tudo se tornava árido para ele. Pensou até seriamente em voltar para a sua herdade natal, para aí morrer longe das crueldades da civilização.

 

- O que é que achas desta livraria ? - perguntou o pastor quando saíram deste lugar de delícias e de sofrimento.

 

José, com uma voz fraca, soltou um som inarticulado, como se tivesse sido assaltado por uma fraqueza geral.

 

- Eu já sabia que ias gostar disto - respondeu o pastor, interpretando o gemido de José no sentido que lhe convinha. E, com um ar desprendido, acrescentou:

- Se tudo correr bem até lá, talvez venhas fazer aqui um estágio de algumas semanas em Outubro.

 

O barulho que o pastor obteve em resposta era igualzinho ao outro, mas um ouvido mais atento teria descoberto que na verdade este era exactamente o contrário do primeiro, como se o sangue que corria nas veias do eleito, perante esta perspectiva encantadora, o tivesse transformado num comentário eloquente.

 

Foi uma noite horrível (voltaram para França no dia seguinte). Sempre que se lembrava das pernas roliças, das ancas, do peito e de toda essa polpa quente que se dilatava e respirava lá por baixo, tais imagens desencadeavam nele descargas dum delicioso veneno: o seu sangue e os seus nervos espalhavam-lhe pelo corpo o desejo e um estranho sofrimento. Ele não era capaz, no nível de evolução sexual em que se encontrava (tristes desabafos solitários), de imaginar o que quer que fosse de preciso em relação à rapariga: tinha simplesmente desejo de a comer.

 

Sempre que pensava: vou passar algum tempo no meio destas raparigas, sentia, na cama, exactamente o que sentiria se o tivessem empurrado para o vazio: um violento espasmo de angústia, o ventre comprimido pela queda, uma contracção interna, uma impressão que se situava entre o revolver das entranhas como quando se tem medo e esse formigueiro íntimo, equívoco - desagradável -, que anuncia o desencadear da vaga de prazer.

 

Depois sentia como que uma corrente de ar gelado, soprando sobre as suas meninges superexcitadas, a apagar-lhe o entusiasmo: era o «se tudo correr bem até lá» que o pastor tinha dito que toldava severamente a sua esperança e o seu ardor. Estava-se em Abril. Contava os dias pelos dedos. Faltavam seis meses para entrar no Paraíso. Seis meses para assumir uma autoridade máscula, para cair completamente nas boas graças de Barthélemy; era preciso andar na linha; não se atrapalhar com coisas inúteis; desembaraçar-se de certas limitações que já não eram de modo nenhum compatíveis com as suas novas relações, nem com a viragem brusca que acabava de mudar a sua vida. O irmão. A mãe. Sobretudo o irmão. Imaginá-lo com aqueles seus sapatões e aqueles modos saloios a desembarcar nesta Jerusalém terrestre, nesta caixinha de bombons! «Qu’andas por aqui a fazer, José?» Para já não ia fazer nada; mais valia estar quieto, guardar segredo: o triunfo rebentaria em seguida, com a violência dum escândalo. É claro que iria roer-se com vontade de falar nisso - de falar de qualquer coisa que de longe ou de perto estivesse relacionado com ELA: Guilherme Tell, Jean-Jacques Rousseau, o leite Nestle; e tantas outras capas de protecção e baforadas de oxigénio, neste meio familiar tão detestável, tão degradante quando se está apaixo! nado e se sente a necessidade de nos rodearmos de relvados e rosas. Primeiro acto de vontade: saber fugir a tais infantilidades. Durante estes seis meses era em si próprio que iria buscar força, coragem, vontade, era em si próprio que iria respirar o cheiro dela - o cheiro deles, o cheiro dessa cidade, e dessa Suíça, pois tudo isso fazia parte dum todo - sentindo um prazer ainda mais subtil do que aquele que experimentam os que encontraram um tesouro e o guardam só para si: prova de coragem, garantia de sucesso.

 

Voltava-se, tornava-se a voltar e dava saltos na cama, cheio de impaciência, como se isso pudesse acelerar as coisas. Por vezes, apurava o ouvido, julgando sentir passos no corredor do hotel: não havia nenhuma razão para que uma empregada da livraria, loira (a sua), morena ou ruiva, não interessava, que, conhecendo a sua morada e sabendo que no dia seguinte ele ia deixar a Suíça, viesse ao hotel, assim, a meio da noite, sob um pretexto qualquer... Oh! Meu Deus! Era preciso que as coisas corressem bem! E iam correr... O rapaz acalmou-se. De qualquer maneira, estas raparigas... Eram doutra raça, respiravam saúde, juventude. As pessoas daqui não deviam envelhecer: eram imortais, como na América. Era mesmo impossível imaginar que estas maravilhas vestidas de mulher fizessem chichi... A pobreza é que cheira mal, que vai ao quarto de banho, que é velha. Oh! Lavar-se, enroscar-se neste corpo divino, engoli-lo, ou ser engolido... E as coisas lá iam cada vez melhor.

 

Os primeiros calores faziam-se sentir de novo através das aldeias e dos burgos, suaves e indolentes logo de manhã, quando se atravessavam os jardins; não se dava por que se tinha saído da cama, e sentia-se a juventude palpitar no sangue, sob este céu imenso, aberto ao mundo inteiro e a todas as promessas - um calor incómodo, sensual no falso Verão da tarde; chegando mesmo a ser deprimente, como se o aroma quente e apimentado do passeio de asfalto, respirado através duma janela, prometesse uma aventura votada logo à nascença à solidão e à vã expectativa. Que promessa é que havia a esperar destes burgos mortais, destas montanhas de silêncio? Que aventura se podia aguardar do abafamento sussurrante da tarde, com todas as persianas fechadas, quando se está prostrado na penumbra como uma velha sequestrada, imaginando os gestos, os murmúrios, o sopro do amor, com a certeza amarga e irrevogável de que não existe nada no mundo que valha as suas zaragatas ou as suas desconfianças, e sobretudo a secura orgulhosa de pensar nisso ou de o experimentar. O ouvido à escuta capta o barulho de passos que se aproximam e se afastam: acontecerá alguma vez que alguém pare? Mas como é que todos esses casais fúnebres das Terras Altas conseguiram encontrar-se, deitar-se na mesma cama - com o obsceno puritanismo daquela terra! Nascidos para morrer, para apodrecer. E, durante esse tempo sem carícias em que tu agonizas, há pessoas que se amam com todas as suas forças e que tu julgas estarem do outro lado do mundo!

 

Em volta da cidadezinha de tectos avermelhados sob a luz directa, o olhar não descortinava nenhum espaço verde, uma árvore nova, nem sequer o mais pequeno relvado fresco, luminoso: não se via nada a não ser essa pelada amarela das encostas, a floresta descarnada, o emaranhado das matas desabitadas, nesta região exasperante que levava mais tempo do que as outras a encontrar a Primavera, e a vinha colher demasiado tarde como um fruto sorvado; a sua pobreza e a rudeza do seu clima arrastavam-na sempre na cauda das estações.

 

Com este calor precoce, as montanhas e os seus cumes tinhosos, devastados ou com aspecto disso, evocavam a ruína árida das crateras de minas gigantes, e o seu tapete de erva amarela pisada, uma má zona industrial, com os seus baldios, os seus aterros carbunculosos, os seus vales colonizados e as suas águas sujas, sob a neve desértica dos cumes; tudo reforçava esta sensação de miséria necessitada e utilitária: a abundância dos postes eléctricos e os seus reservatórios anárquicos, tirando encanto à paisagem, contaminando as herdades e as quintarolas, sujando as suas fachadas; as enormes cisternas de alcatrão à beira das estradas, manchando as valetas forradas de ervas com charcos sujos; os montes de cascalho nos terraços de garagem, as máquinas de arranjar as estradas, imobilizadas como os trípodos de Wells por uma epidemia fulminante - ou o lugar que outrora haviam ocupado e que era fácil de reconhecer pelas manchas de óleo que tinham sido a causa da sua desaparição; constituindo tudo isto a marca das regiões votadas ao despotismo operário das Pontes e Calçadas, que condenam um país eternamente às obras; sem esquecer os corrimãos das varandas pintados de mínio e deixados mesmo assim; ou ainda pior: esses tectos de chapa de ferro fundido tão miseráveis e fracos como um homem que tivesse saído para a rua em cuecas. Ou como esses jogadores de pétan que usavam alpergatas e casacos de lã, eles e o seu modo de falar desordenado, desgraçado, cuja falsa bonomia não conseguia senão esconder em parte a cobardia, a mesquinhez, o egoísmo... Eles e o seu hálito anisado, a cheirar a tabaco... Eles e as velhas de bigode que vão ao mercado a arrastar os chinelos, com o seu eterno saco de tela encerada enfiado no braço e o porta-moedas na mão - porque não os vossos penicos ? -, como dois órgãos inseparáveis a que se reduzia o princípio do seu sistema vital. Quanto às garotas, com nomes que cheiram a naftalina, de totó arrepiado, com as triplas saias pretas e o peito chato como uma tábua: Teresa, Marta, Elisa, pequenas velhas de cinco anos, de pernas esguias, olhos muito juntos e bocas sem lábios, de sangue fraco por os pais serem primos, com uma pequena pérola no buraco das orelhas, o que lhes dá um ar de defuntas, estão iludidas até aos vinte anos - e com a condição de não se lhes tocar - para levarem um quarto de século a ter dois filhos... A sua Primavera terá sido de curta duração: era vê-las nessa altura a atravessar a rua a correr, com a cabeça pejada de Mgoudis, a pele

 

(J) - Jogo de bolas muito praticado no Sul da França’”(n. do T.)

 

das coxas a espreitar pela racha do roupão, rindo cem esse riso escatológico que associa e submete tradicionalmente o sexo às servidões subalternas... ó raça atrofiada, gasta, doente, desdentada, como ele a detestava agora, o suíço de Maheux!

 

A Suíça, os seus panoramas de primeira classe, os seus lagos publicitários, as suas montanhas de sindicato de iniciativa, as suas prostitutas assépticas, tinham vencido muito depressa essa província arruinada, causticada, enegrecida, que ele mal reconheceu após quinze dias de ausência: foi preciso algum tempo para que ela recuperasse as suas dimensões normais. De momento tudo lhe parecia minúsculo, limitado, remeloso; aquilo que se julgava serem montanhas, não passava duma modesta cadeia de colinas exageradas por uma infância sedentária. Os edifícios climatizados do Novo Mundo apagarão da sua memória as florestas do Velho, a infância e a pobreza misteriosas.

 

Uma carroça roda e geme na rua, do outro lado do jardim, como a carreta dos enterros: não se vê vivalma no burgo de província, que a hora da sesta entala entre duas encostas abruptas. Ouve-se de quando em quando o disco de aço duma serra a zunir, e os pássaros de Maio a saltitar com um barulho de unhas no bordo da goteira, mesmo por cima da janela, sem soltarem um pio. Ao longe, de repente, um feixe de gritos que se solta em frente das escolas, à hora do recreio. Um sino - na Câmara, no colégio, na igreja? -, três badaladas, três longos toques espaçados, fúnebres, resignados como esse tempo morto que medem, ou registam, e que vão repetindo de vale em vale, de lugar em lugar, essas três badaladas inalteráveis, inertes como um dobre, eles próprios impotentes perante a surda e lenta derrocada que as arrasta e tudo aspira para a destruição: três badaladas duma serenidade extraterrena, repugnante como a calma dos cemitérios, nervosamente repetidos como um desafio, algures em casa, no escritório sem dúvida, por um relógio de pêndulo cristalino, buliçoso, afadigado vigilante: Barthélemy em pessoa. Três pequenos tinidos rápidos e breves que parecem dar conta de tudo, decididos a levar as coisas até ao fim, aconteça o que acontecer, com toda a energia, sem se deixarem conter. Três pequenas pancadas que resolvem os problemas da humanidade, calmos e limitados, como todas as empresas de credulidade que se esfalfam e rebentam. Por trás, mostrando uma calma definitiva, junto da qual parece irrisória toda esta vitalidade cristalina e tola, o sino repete outra vez as suas três e lentas badaladas intemporais, como ligadas às rochas eternas e ao ondular das altas solidões quaternárias onde a era dos relógios corresponderá a alguns milímetros de erosão.

 

Ouviu-se tocar ao portão do jardim: foi como se o feitiço se tivesse dissipado, como se este timbre límpido e fraco houvesse feito levantar a cortina sobre o teatro irresistível da vida quot’diana. «Lá vêm as lambisgóias...», pensou José Reilham.

 

Madame Barthélemy recebia algumas senhoras da paróquia várias vezes por semana para organizar com elas as quermesses e as vendas de caridade. Pouco tempo depois, bateram à porta do seu quarto; era Madame Barthélemy com ares misteriosos.

 

- Estão a perguntar por si, José - nos primeiros tempos só o tratava por José Samuel, que para ela era uma combinação ainda mais lastimável do que o seu nome usual, a que se tinha finalmente resignado. E com uma voz confidencial, arqueando as sobrancelhas, como se lhe estivesse a anunciar alguma coisa estranha e vergonhosa: - É o seu irmão... - E, perante o ar bruscamente contrariado de José: - Não, não, tenha calma, parece que não é nada de grave... Depois a sua cara transformou-se numa expressão de comiseração compreensiva... -Não sabia que tinha um irmão assim... quer dizer, muito mais velho que você.

 

- Ele só tem trinta anos - respondeu José - mas, compreende, trinta anos nos bosques...

 

«Trinta anos de quê, Senhor!» pensou Madame Barthélemy, «estes pastores são uns autênticos lobos». José seguiu-a, furioso. «Donde é que este agora saiu, não me faltava mais nada...»

 

Abel enchia o fundo do corredor: ataviado, limpo, peludo e, milagre, com o boné, que parecia minúsculo entre as suas manápulas grandes e grossas como tijolos. José cerrou os dentes. Estava à espera do fatal: «Olá, José; qu’andas tu por aqui a fazer?», já estava pronto a responder torto a este idiota; mas lembrou-se de repente que não via a mãe há pelo menos quatro meses, e esse facto tirava-lhe de momento o direito de descompor o irmão, sobretudo em presença de Madame Barthélemy.

 

- O que é que se passa - disse ele encostando simbolicamente e por três vezes as suas faces às de Abel; teve a sensação de que estava a beijar uma lima grossa.

 

O gigante fitava-o abanando a cabeça para cima e para baixo dizendo: «aha... aha...», como se José tivesse cometido qualquer má acção de vulto e ele se preparasse para lhe aplicar um castigo.

 

- Então o que é isso de aha, aha - disse José, aborrecido, o que é que isso quer dizer...

 

- Bem, até já - disse Madame Barthélemy, delicada e compadecida. - Vá com o seu irmão para a saleta.

 

- Fazes favor... - disse José, mostrando com um sinal de cabeça a porta da sala, mas sem se mexer do sítio onde estava. Madame Barthélemy decidiu-se a deixá-los. «Aha, aha...», continuava o outro sempre a abanar a cabeça, com os olhos fixos nos do seu irmão, como um surdo-mudo que tivesse um segredo terrível.

 

- Bem, ouve lá - disse José, sobrenaturalmente calmo, resignado com tudo. - Vamo-nos sentar neste quarto, e explicas-me tudo isso em sossego.

 

Tinha acabado de decidir que falaria ao irmão como se ele fosse uma criança, e isso trazia-lhe uma estranha serenidade.

 

Abel seguiu-o baixando a cabeça como se fosse a passar sob um tecto demasiado baixo para a sua altura, torcendo o boné num gesto rápido e mecânico. José pôs-se de lado para o deixar entrar, fechou a porta atrás de si e encostou-se a ela:

 

- Primeiro que tudo, como é que está a mãe-, perguntou ele com decência; tinha os braços atrás das costas e com uma mão agarrava a maçaneta de cobre, fazendo-a rodar levemente, como se se preparasse para sair e a presença dos dois nesta sala fosse muito passageira, acidental, até imaginária.

 

O «aha...» voltou a fazer-se ouvir, assim como o amarrotar de boné, que José contemplava com um ar meditativo, sentindo que a exasperação se estava a apoderar dele, e ao mesmo tempo fascinado com a rapidez com que aquelas grandes mãos patudas faziam girar o boné. Passado um bocado não foi capaz de*se conter:

 

- Pára com isso, peço-te, estás-me a pôr doente; fala duma vez!

 

Com uma obediência espantosa, Abel enfiou o boné no bolso e decidiu sentar-se; nesse momento achou as palavras que queria pronunciar.

 

- É, precisamente sobre a mãe...-Afastou as mãos num gesto de impotência.

 

- Espero que ela não esteja doente - disse José, por sua vez seguro à maçaneta da porta, como há pouco o irmão ao boné. - Vou vê-la um dia destes. Tenho tido muito trabalho, e além disso... - subitamente sentiu vontade de lhe dar um murro, de deitar a baixo o adversário, de acabar duma vez por todas estas dependências e estas familiaridades intoleráveis. - Há outra coisa que eu te vou dizer, mas com a condição de não contares nada à mãe, ouviste? é que eu vou-me embora.

 

Largou a maçaneta da porta e começou a andar lentamente de um lado para o outro, como se a importância da notícia autorizasse momentaneamente a sua presença ali.

 

- Sim, compreendes, a Suíça, é outra coisa... Vou tomar conta duma livraria religiosa, se passar nos exames...

 

Parou, sem coragem para continuar com as explicações, as suas semimentiras, diante duma pessoa que não parecia absolutamente nada impressionada com a novidade e continuava de olhos fixos, fitando os seus com a mesma expressão estúpida.

 

- Bom, já sabes o suficiente. Então o que é que me querias dizer? E não continues com isso do: aha... aha...

 

«Tenho a certeza absoluta de que não percebeu nada do que eu disse.» Olhou para ele como se fosse um objecto; tinha de se conformar: nunca havia de conseguir surpreender aquele ignorante. E, no entanto, o verdadeiro êxito é a vingança, é espantar antes de tudo aqueles que nos conheceram numa altura em que não éramos nada.

 

- Bem - disse Abel, longe de todos estes problemas, - bem... - Bateu na testa com o punho fechado, deu um estalo com a língua, abriu a boca, e esperou um instante antes de gritar:-Aquilo não anda bom lá por dentro - como se houvesse um desacordo entre os seus gestos e o seu pensamento.

 

- Não é preciso gritares assim, eu não sou surdo... Segundo um processo rigorosamente idêntico, Abel

 

bateu outra vez na testa, deu um estalido com a língua, abriu a boca e repetiu mais baixo:

 

- Aquilo não anda bom lá por dentro...

 

Hipnotizado, apesar da sua impaciência, pelo funcionamento misterioso do pensamento neste ser rudimentar, José não reagiu imediatamente a esta notícia, como que adoptando o ritmo mental do irmão. «Se as árvores pensam, dizia ele fleumaticamente com os seus botões, deve ser assim tal e qual.»

 

- Porquê, o que é que ela faz?

 

O que é que ela fazia? Ah! Tudo começara certa noite. Ao chegar a casa, encontrara-a sentada em frente do forno, como se fosse surda. «Mãe... (tinha -se posto em pé para explicar o drama por gestos, e abanara José agarrando-o por um ombro), o que é que se passa...?» Silêncio. Não se mexia, não dizia nada. Abanara-a (abanava José) Então, então... Passado um bom bocado tinha acabado por conseguir falar... com as duas mãos na cabeça: não sei... Nessa mesma noite tinha comido a sua sopa, como era costume, «e depois: pronto! Dantes era sempre a última a ir deitar-se, mas desta vez foi direita à cama, sem dizer uma única palavra, deixando tudo pr’ali, a colher no meio do prato, sem ter levantado a mesa, nem nada. No dia seguinte, mal tinha raiado a manhã, já estava na cozinha, a preparar a sua merenda, como se nada fossse.

 

- E não te disse nada?

 

- Nada, absolutamente nada.

 

Tinha-lhe perguntado como é que estava: e ela havia-lhe deitado cá uns olhos! Insistira. Mas agora já não era como dantes.

 

No auge da acção, Abel recomeçou a vociferar abanando o irmão e fazendo muitos gestos, como todos os simplórios que não têm confiança nas suas próprias palavras:

 

- Horas inteiras, estás a ouvir, ali sentada sem falar, a olhar para o lume ou para o nada...

 

E quando lhe falavam, nessas alturas, mostrava sempre aquele olhar mau, como se lhe tivessem roubado a camisa que trazia no corpo!

 

- O melhor é chamar o médico - disse José, interrompendo-o bruscamente, como se ele fosse uma criança que estivesse à beira de fazer uma asneira irreparável, ou de dizer uma verdade inconveniente. É claro que eu pago a consulta...

 

Mas não era só isso! Por vezes ela desaparecia: e era impossível saber onde é que se ia meter. Ou então ficava de cócoras lá fora, e entretinha-se a fazer torres de pedra, que depois enchia de palha, lançando-lhes fogo.

 

- Bem, bem, já compreendi - disse José, que sentia aumentar a sua agitação. - Eu vou lá vê-la.- Abria a porta - Amanhã. Vou lá amanhã. Diz-lhe isso.

 

Acompanhou o irmão até ao portão do jardim, pedindo a Deus que essas senhoras da caridade não escolhessem esse momento para fazerem a sua entrada. Abel não parecia ter pressa de se ir embora. Pôs-se ali no meio do passeio, e, para fazer durar o seu prazer, começou a enrolar um cigarro.

 

José, nervoso, deitou uma olhadela rápida para o horizonte:

 

- Bem, vai lá, até amanhã; agora tenho de ir trabalhar. E não te esqueças, hem: nem uma palavra a respeito da Suíça.

 

Fechou o portão e voltou para casa. Ao chegar ao cimo das escadas, antes de entrar, voltou-se para trás: o irmão continuava no mesmo sítio, em frente da grade

- mais ou menos a uns dez metros dele; com o cigarro pendurado ao canto da boca, bigode trocista, imóvel e andrajoso como um espantalho, a olhar estupidamente na direcção dos degraus: o vazio bovino dos traços indicava a profundidade da concentração mental. Podia apostar-se que naquele momento se encontrava a ruminar as declarações enigmáticas do irmão; enigmáticas ou estranhas: o cigarro que tinha na boca nem sequer estava aceso.

 

Uma mancha de óleo ou de resina movia-se ao de leve na sua testa; devia ser uma sombra, visto estar a mexer-se.

 

- De que é que ele está à espera - murmurou José entre dentes.

 

A sua irritação havia dado lugar a um mal-estar indefinível. Olhava para esta face tenebrosa e impenetrável com uma espécie de espanto, tal como se a estivesse a ver pela primeira vez. Por trás de Abel, do outro lado da rua, estavam as casas, desocupadas, sem relevo como o cenário dum teatro, mortas, a esta hora turva do dia em que o céu se apresenta como uma praia de areia seca sobre a qual vem morrer a luz extenuada. Onde tudo se encontra deserto e silencioso: planaltos, aldeias, quintas - seres humanos. Uma evidência melancólica despida de sentido. Sacudiu-se e, voltando as costas, meteu-se em casa, aliviado por encontrar de novo a frescura e a obscuridade relativas do vestíbulo.

 

«Além de tudo», disse para si, quase maquinalmente, «Deus é capaz de lá ter as suas razões». Aquela escada nunca lhe havia parecido tão difícil de subir. No seu quarto, onde o esperava a secretária pejada de livros e de papelada, sentiu-se de repente fatigado, desiludido com muitas coisas, até com a Suíça, irreal. Tendo chegado à conclusão, após uma olhadela através das vidraças, de que aquele animal já se tinha ido embora - para as suas florestas antidiluvianas -, deixou-se cair em cima da cama e acendeu um cigarro : é que ele tinha começado a fumar depois da viagem à Suíça. Fumava às escondidas, com um prazer tão pérfido como se estivesse a folhear livros pornográficos.

 

Não era tanto o sabor do tabaco que lhe agradava, mas sim os condimentos que ele punha no gesto de fumar, imitando os trejeitos e as atitudes estereotipadas dos brutamontes sexuais e alcoólicos da literatura policial, na qual ele se começava a iniciar clandestinamente; tudo isto para se vingar daquilo que não era e gostaria de ser.

 

Batia com o fundo do cigarro na unha do dedo polegar, para comprimir o tabaco; depois de o acender, deixava-o a pender do canto da boca, fechando um olho ao mesmo tempo, como faziam os malandros, e depois de fumado atirava-o pela janela com um piparote. Imaginava que toda esta comédia o tornava mais viril, e que uma testemunha do sexo feminino, deliciosa e invisível, que o observava na solidão do seu quarto- é caso para perguntar como e sobretudo com que fim-, não deixaria de ser subjugada por esta desenvoltura irresistível de grande conquistador.

 

Hoje o cigarro libertador tinha um travo desagradável: apenas o do tabaco. Com as mãos atrás das costas, deixava-o consumir-se sozinho entre os lábios, até que a cinza lhe caiu no pescoço; então levantou-se aborrecido, julgando ter ouvido bater à porta do quarto, precisamente no momento em que sentiu a queimadura na pele. Não, afinal, não era ninguém... Quem mais é que o viria visitar a não ser o irmão! Voltou a cair naquela sonolência crepuscular da tarde, nas águas turvas à tona da qual flutuavam inspirações venenosas, à espera duma consciência entorpecida, desarmada, como os répteis que abandonam o seu buraco à hora em que os pássaros estão a dormir.

 

Foi a primeira vez que desceu do autocarro sem que ela ali estivesse, negra e definhada - a ansiedade em pessoa -, à sua espera; sentiu-se meio aliviado, meio inquieto, em frente deste carreiro solitário que lhe dava a impressão de que a mãe estava morta, de tal modo a sua imagem permanecia ligada ao momento em que ele chegava lá a cima, a este aterro assaltado pelos fetos, a este castanheiro enorme sob o qual ela se abrigava quando estava a chover. Começou a subir por ali a cima, com o casaco debaixo do braço e um frasco de água-de-colónia na mão, de novo surpreendido com o acanhamento espectacular que a viagem, a ausência, a mudança tinham causado à paisagem: como estas montanhas, outrora semelhantes aos Himalaias, pareciam agora mirradas ao lado das que ele havia visto ao longe, na Suíça... A espinha óssea, os flancos descarnados, mediocremente arborizados, os seus horizontes estreitos - velhos, gastos, pobres, domesticados pelas suas travessias, perfurados pelas minas: um arrabalde meridional decididamente sem envergadura.

 

Ao chegar ao ponto de onde se avistava a quinta, parou um instante para respirar. Como tudo havia mudado, em poucos meses... Precisamente no momento em que se nos deparam de novo as coisas, vêmo-las como se o fizéssemos pela primeira vez; essa impressão não dura muito tempo, mas é o suficiente para as descobrirmos tal como elas são, de súbito destruídas, depreciadas pelas rivalidades arrogantes e desprovidas de qualquer sentimento de piedade. Nunca até então o conjunto e a disposição das construções lhe havia provocado uma tal impressão de ruína, de abandono, de tristeza: paredes rachadas, postigos cinzentos, empenados pela chuva, desbotados pelo sol, e que há cento e cinquenta anos não eram pintados: havia mesmo um a cair, lá em baixo, meio arrancado dos gonzos, sinistro... Os seus tectos encontravam-se vergados, perdendo as escamas como répteis mortos... E esta confusão indescritível, no pátio, que nem uma flor alegrava, mas que em contrapartida continha um monte de lixo que ninguém se tinha sequer dado ao trabalho de esconder ou de deitar para longe. Duma das janelas pendia um pano rasgado. Por todo o lado só se viam silvas, urtigas, manhosas, felpudas, devoradoras de cascalho, plantas vorazes farejando a porcaria, como que atraídas pelas ruínas que lhe ficavam próximas...

 

O conjunto oferecia o aspecto do terreno vago e do bairro de lata, sujo, mal afamado, pouco mais decente do que essas tocas onde se abrigam carraças e vagabundos. E, em volta de tudo aquilo, a soberana indiferença do mundo: o azul perfeito do céu, pletórico de pureza, inocente de toda esta miséria, responsável por uma venenosa esperança - como se a Terra constituísse uma prisão intolerável para a maioria dos homens, e apenas fosse possível aí viver com o espírito longe dali -, a suavidade da temperatura, a limpidez do ar imóvel, deixando transparecer o azul da vegetação nova - o estremecimento da verdura a nascer, ainda um pouco pálida e engelhada, viscosa de seiva... Reino cuja pista se perdia, apenas existindo sob a forma de cenário, vã e convencional...

 

Esta decrepitude do lugar, cuja aceleração era muito mais imaginária que real, era sentida por ele como se não passasse do prolongamento duma falha moral congénita; ela encontrava nele correspondências longínquas e desesperadas, mas menos amargas do que seria de esperar... precisamente por serem desesperadas.

 

O cão veio ter com. ele a gemer, também ele pelado, remeloso, servil, lamentável: era toda a sua infância degenerada que saltava aos seus pés agitando a cauda, bicho-escravo agradecido ao seu dono por este não lhe bater.

 

Resolveu continuar o caminho: não tinha ido ali naquela manhã para se deixar seduzir pelas astúcias da fidelidade - ou pela da renúncia; nem para se unir às causas da sua insuficiência, ou do seu pessimismo (o facto de pôr causas no plural traía um lapso estranho: tinha pensado ao mesmo tempo em «conhecer» e em «tomar o partido de»).

 

Mas a negra condescendência foi a mais forte: acocorou-se e, com um nó na garganta, acariciou o animal louco de gratidão. «Tu, ao menos, não precisas de ser alguém, de causar espanto aos pategos, nem de andar atrás das saias das raparigas suíças...» Atravessou o pátio, acompanhado pelos saltos e pelos latidos quase incómodos do cão. Mas como é que era possível que toda esta barulheira não atraísse a sua mãe à porta? Estaria ainda deitada às onze horas da manhã?

 

Entrou bastante preocupado; apesar do tempo magnífico, talvez por sua causa, o compartimento estava escuro, húmido, cheirava a lume apagado, a cinza fria: o fogão nem sequer estava aceso - sinistro, como se com ele se tivesse apagado obrigatoriamente a vida desta casa que havia acabado por se identificar com o seu velho tirano de ferro fundido. Ouviu estalar ligeiramente as traves; um gato não teria feito mais barulho. Subiu enquanto a ia chamando, para não a assustar. A mulher apareceu finalmente ao cimo das escadas, desceu prudentemente degrau após degrau, dando menos impressão de fraqueza do que de uma grande fragilidade que tornava todos os seus gestos mais lentos: parecia que se iria partir ao menor choque, como se fosse feita de vidro.

- Ah! És tu...

 

Acolheu-o tão placidamente como se se tivessem separado na véspera. Ela falava com uma voz um pouco indolente.

 

Ele beijou-a perturbado; o vestido e o xaile que envolviam os seus ombros pareciam estar directamente em contacto com os ossos. Caminhou à frente dele, abriu a porta e deitou uma olhadela lá para fora.

- Está muito frio aqui... Não acendes o lume? Voltou a fechar a porta; havia qualquer coisa que parecia incomodá-la.

 

- Não vês que ele está debaixo da mesa? Procurava o cão.

 

- O lume... Oh! Sabes, só para mim... Acendo-o à noite. Mas como estás cá...

 

Começou a preparar as coisas, partiu alguns cavacos, amarrotou um jornal velho.

 

- O Abel disse-te que eu vinha cá hoje ?

 

- Ahn! Ah? Sim... disse...

 

Abanou a cabeça como se estivesse a reflectir.

 

- E tu recebeste os meus postais?

 

- Recebi, recebi... São lindos. A velha sorria.

 

Os postais estavam alinhados na prateleira da chaminé: Genebra, o jacto de água do lago, Thonon, Evian... Imagens calmas dum mundo em ordem, no qual se experimentava a segurança longínqua - uma amostra das potências superiores ocultas.

 

Um rolo de fumo elevou-se da grelha do fogão; ela abriu a janela para facilitar a tiragem. O cheiro do fogo, misturado com essa quietude matinal e ensolarada mal se ouvia o crepitar da lenha seca em chamas-, suspendeu por uns instantes o curso das coisas e do tempo. Ele sentiu uma sensação de bem-estar e de leveza - vida reencontrada na sua nascente fresca, ainda não contaminada pela doença mortal dos homens. Enquanto a mãe espertava o lume, ele ia olhando pela janela, surpreendido com este instante de paz maravilhosa e sobrenatural que se prolongava em si, não ousando pensar muito, nem fazer um movimento falso, com medo de dissipar este encantamento frágil.

 

Estas sensações íntimas no fundo eram tão ridículas como dolorosas: era como se mantivesse toda a sua vida à margem do verdadeiro mundo, à margem da vida, à margem da beleza e da verdade, mas perdido para ele e para elas, sem conseguir mergulhar de novo completamente na inocência original - da qual no entanto se abeirava em instantes semelhantes àquele. á entrada do Reino, nas fronteiras do mundo interdito, testemunha infeliz, que nunca conseguia entrar lá dentro... Lembrou-se do seu acidente, da sua vida passada, quando momentos assim de plenitude eram moeda corrente: mas havia sempre o grão de areia que estragava tudo, o castigo, e em seguida tudo se corrompia num abrir e fechar de olhos. Talvez Abel... Suspirou:

 

- Toma Já isto, que é para te pores bonita... Estendeu-lhe o frasco de água-de-colónia. Ela pegou nele e encostou-o ao peito.

- Não o queres cheirar?

 

Observava-a, à espera de ver o menor sinal que tornasse aquela cara bruscamente estranha, que o tornasse estranho para consigo mesmo. Ela apresentava simplesmente um ar preocupado e indolente.

 

- Oh.’ Se foste tu que escolheste, deve cheirar bem...

 

Os seus olhares cruzaram-se ou, melhor, ele tentava descortinar nos olhos da mãe uma conivência, um sinal de inteligência mudo que fosse uma resposta à interrogação que punha nos seus: «Deves calcular por que razão é que eu estou aqui hoje; diz qualquer coisa ou dá-me a entender que compreendes...» Mas nestes olhos minguados pela velhice, como que a nadarem no meio de um ninho de rugas, nessas falsas lágrimas que humedecem continuamente os olhos de certos animais, não havia nada a não ser uma vivacidade feia sobre a qual o seu próprio olhar já não teria qualquer influência. O silêncio alargou-se entre eles, denso, inquietante, palpável como uma capa impermeável através do qual seria impossível comunicar.

 

- Bem; é só isso que tens para me contar? Ao menos estás contente por me ver?

 

Ela abanou de novo a cabeça sem responder; o seu sorriso infantil, ligeiramente cruel na face de uma velha, foi-se diluindo pouco a pouco, sendo insensivelmente substituído por essa expressão preocupada que devia ter-se tornado a sua expressão natural. Continuava a apertar o frasco contra o peito; ele tirou-lho suavemente das mãos e poisou-o sobre a mesa. Depois, maquinalmente, como se estivesse a fazer festas a um cão, acariciou-lhe os cabelos. Este gesto de ternura inútil causou-lhe náuseas. Por fim acocorou-se diante dela:

 

- Diz-me lá, ao menos sabes quem eu sou?

 

À espera duma possível mudança, fingia que estava a brincar.

 

- És o José - disse ela muito séria.

 

Pôs-se de pé e fitou-a pensativamente durante um grande bocado, sem que ela prestasse atenção... Teria preferido que a mãe não respondesse nada, em vez de ter ficado assim. Indolente, longínqua, preocupada com um pensamento minúsculo que lhe roía o cérebro pouco a pouco, ali estava ela, sentada à sua frente, presente-ausente, tão morta como um cadáver, pequena boneca animal onde a vida se fazia sentir cada vez mais discretamente, cuja pele estava cada vez mais fina, os ossos cada vez mais delicados, ocos como os dos pássaros - e a consciência cada vez mais superficial.

 

De repente, ele pensou que ela ia morrer como tinha nascido, como tinha vivido: para nada. Foi como se, com uma sacudidela, se houvesse libertado dum fardo incómodo. Agarrou-a pelos ombros, duas nozes nas palmas das suas mãos, das mais pequenas, e disse lentamente, com precaução:

 

- Enquanto preparas o jantar, vou dar uma volta lá por fora, está bem? Até já... - Deu-lhe uma palmadita com a mão e saiu.

 

Um pouco para lá da soleira, aproximou-se de duas ou três marcas de cinza no meio de umas pedras enegrecidas, no mesmo sítio onde outrora, cheio de angústia e de aborrecimento, se divertia a jogar esse jogo idiota e fúnebre. As torres que ela tinha tentado construir haviam desabado, depois de haver ardido a erva de que estavam cheias, salvo uma, onde o fogo não pegara: era lastimável a falta de jeito e o modo grosseiro como haviam sido construídas. Eram até um pouco disformes, monstruosas, como esses trabalhos feitos por crianças atrasadas ou débeis mentais. Se fosse necessário uma prova...

 

Com todas as suas forças, deitou a baixo a torre com um pontapé, e espezinhou as ruínas calcinadas das outras, levantando uma nuvem de cinzas. «Um patife.» Sentou-se ao sol, sobre um pequeno muro que rodeava uma antiga horta, e, com a cabeça entre as mãos, contemplou o anfiteatro das encostas queimadas pela neve, onde a Primavera tardia começava a semear manchas verdes por aqui e por ali; mais acima, estavam falésias, que deixavam ver através das suas passagens estreitas o pus avermelhado do planalto; e ainda mais acima, coroando o cume da montanha com uma faixa negra, presença misteriosa contra o céu, a floresta - a floresta de abetos. O seu coração, num brusco esforço de raiva, batia-lhe na boca. Julgando-se a si próprio, examinava-se friamente.

 

- Um malandro. Não passo dum malandro. Tal como uma velha embarcação abandonada que navega entre duas águas ou se solta do cais e parte à deriva, também ela se tinha acabado por desprender docemente desta prisão que seria igualmente o seu túmulo; nem louca, nem sã, entre duas águas, nesta mistura disforme da verdade e do delírio. Trinta anos de espera iludida, de sofrimento, de esperanças destruídas, de manhã à noite com esta muralha enorme, implacável como a morte, sempre à frente dos olhos.

 

Fizesse ele o que fizesse, agora já era demasiado tarde, ninguém lhe podia valer.

 

- Tudo o que se fizesse era em vão!

 

Ele cerrava os punhos, tomado duma nova cólera, desconhecida, amarga e estimulante, como os grandes ventos pagãos da Primavera, soprando sobre os planaltos.

 

Passou a tarde com ela, tendo resolvido não voltar a Florae senão no outro dia, ou mesmo dali a dois dias: os Barthélemy, compreendendo, não ficariam preocupados.

 

Quando acabou de comer o prato de ”bajana, depois de ela ter mastigado a sua ração de pé, sozinha, antes de o servir, segundo a boa norma da segregação dos sexos, transmitida através do sangue lançou-se numa grande tarefa de salvação.

 

Começou por abrir de par em par as portas e as janelas: ao menos que o ar e o sol pudessem entrar e circular à vontade dentro daquela casa, renovando esta atmosfera de sepulcro que pesava nos ombros como uma chapa de chumbo... Ele teria desmanchado a casa pedra por pedra para a reconstruir mais longe, onde ela se sentisse possuída de uma alma nova. Em lugar desta solução ideal, limitou-se a pôr tudo em ordem, limpou, tirou o lixo espalhado pelo pátio, queimou os detritos amontoados por baixo das janelas, assim como muitas quinquilharias inúteis que atravancavam o pardieiro. No quarto da mãe, entalado entre a parede e o armário, encontrava-se o colchão sob o qual havia repousado o corpo do pai.

 

Foi a primeira coisa que ele queimou; atirou-o por uma janela que dava para as traseiras da casa, depois, tendo levado aquele traste para longe, regou-o com petróleo e deitou-lhe fogo. Imperturbável, olhou para ele enquanto ardia. Em seguida, fez mão baixa noutras velharias que vieram alimentar o auto-de-fé; experimentava uma satisfação amarga ao ver as chamas vermelhas a devorarem e a reduzirem a cinzas os objectos que durante tanto tempo haviam sido cúmplices da miséria, de tiranias e de resignações intoleráveis. E não eram apenas as casas que reclamavam medidas de higiene radicais. A sua raiva de queimar parecia inextinguível: se ele pudesse deitar fogo a todas as dependências, sentir-se-ia satisfeitíssimo: além disso, sempre tinha experimentado um gosto estranho e bastante mórbido pelo fogo, pelos incêndios - nem que fossem incêndios em miniatura. Queima-se o que se pode.

Naquele momento, tinha medo de que esta limpeza fosse transtornar por completo a pobre mulher, ela que tinha a mania de guardar tudo, nem que fosse um pedaço de guita... Mas ela deixou-o fazer tudo sem protestar, e até se ofereceu para dar uma ajuda.

- Não, não, hoje é o teu dia de descanso... Instalou-a lá fora, numa velha cadeira de palhinha desencantada no celeiro, com o tricot no colo, o cão preso ao seu lado, de modo que não fosse preciso andar à procura dele: sem dúvida que este animal miserável se tornara para ela numa obsessão tirânica

- Vamos lá fazer entrar uns ares de Primavera em casa...

 

De tempos a tempos, interrompia a tarefa para lhe dar dois dedos de conversa, ou para vir espreitá-la duma janela. Absorvida pelo seu tricot, parecia calma, e não se mexeu da cadeira durante toda a tarde; com um movimento familiar às mulheres que fazem malha, levantava o trabalho a intervalos regulares para deixar correr o fio, afastando os cotovelos e erguendo ao mesmo tempo os olhos por cima dos óculos para se assegurar maquinalmente da presença do cão. Para lá desta estreita margem de consciência, não se devia dar muito bem conta do que se passava à sua volta. E no fundo talvez fosse melhor assim.

 

Abel regressou ao cair da noite. Pareceu não notar a presença do irmão nem as proezas de arrumação e limpeza que este tinha cometido durante a sua ausência; um pouco acima da quinta, numa cova no meio das rochas, os detritos acabavam de se consumir e, com a humidade da noite, o fumo começava a tornar-se branco.

 

Mal chegou, comeu a sopa e foi-se logo deitar; ao entrar, tinha sondado com um longo olhar de hervíboro a cara do irmão, para ler nela o relatório da situação, mas este, exasperado por aquele campónio não ter sequer lançado um olhar sobre tudo aquilo que ele havia feito em tão pouco tempo, manteve uma expressão de mármore.

 

No dia seguinte de manhã, José levantou-se muito cedo, um pouco cansado mas satisfeito consigo mesmo; a madrugada azul espreitava à janela. Entreabriu os postigos, recebeu na cara a frescura deliciosa da verdura amansada pelas emanações da quinta que o seu nariz desabituado captou com uma sensibilidade aguda. O que dominava sobretudo era o cheiro a feno; dir-se-ia que ele lhe restituía a profundidade oculta e ilimitada das pradarias onde havia secado. Além desta sensação subtil e da baforada de esperança violenta que a acompanhava, experimentava um sentimento difuso, estranho, hesitando se se tratava duma presença no ar ou de uma ausência impalpável que tornava a atmosfera mais nova, mais luminosa, mais fácil de respirar. E depois, lembrando-se de que era domingo, sentiu-se muito esquisito.

 

Ao olhar para o pátio limpo das silvas e livre das imundícies, teve a agradável surpresa de verificar o que a soma dos pequenos esforços para obter um tal resultado lhe ocultara até então, mas que de repente o recompensava.

 

Pela segunda vez desde a véspera, sentiu-se invadido por uma onda de bem-estar, e ali estava debruçado à janela, olhando para aquele pátio, mais limpo do que o havia encontrado ao chegar, vendo as ruelas entre as dependências sem ervas, graças aos seus cuidados, saboreando o resultado do seu trabalho, atento à estranha plenitude, que nascia em si, deste pequeno mundo matinal tão calmo, mais acolhedor graças a si.

 

Mesmo assim era curioso este acordo insubstituível dos sentidos e do mundo que, às vezes - muito raramente -, por motivos misteriosos e influências acidentais, se realizava de novo; os sentidos maravilhados saciavam-se nesta nascente miraculosa que não acedia a correr, após longas etapas de secura, senão durante alguns segundos, como oásis refrescantes cada vez mais espaçados no tempo. Tal como esses doentes sempre à espera dos sinais de qualquer melhora ou de uma recaída fatal, e mestres na arte de interpretar o funcionamento do seu corpo quanto a ameaças de morte ou promessas de felicidade, tinha acabado por concluir que o fenómeno em questão parecia estar ligado à profundidade e à duração do seu sono, o qual se manifestava ao mesmo tempo por uma impressão de leveza, de ausência do corpo, e de um empolgante relevo das perspectivas: o cenário de teatro voltava a encontrar a sua profundidade primitiva. Durante alguns instantes, Adão respirava, vinda do Este do Paraíso, uma baforada do país natal proibido.

 

Sem esperar que o encanto desaparecesse por si, interrompeu a sua contemplação, vestiu-se, desceu as escadas, pronto a crer que a menor operação física ou mental da manhã seria influenciada pelo signo da metamorfose redentora. Outro sinal clínico do fenómeno: um optimismo levemente delirante. Admirado por se ter libertado do seu torpor habitual, a consciência, tal como acontece a uma pessoa num estado de embriaguez, eliminava todas as contrariedades, dourava todas as pílulas, dava-se ao luxo de encarar as piores catástrofes com uma serenidade oriental: a mãe ia curar-se daquele torpor; por seu lado, ele encarregar-se-ia de a vir visitar mais vezes, de a levar a viajar; dar-lhe-ia dinheiro, ia restaurar aquela casa à sua custa, passaria ali as férias, etc...

 

Enquanto Deus olhar por nós, tudo há-de correr pelo melhor.

 

Eram seis horas da manhã; a mãe ainda não estava curada mas ainda dormia. Abel não tardou a ir ter com ele à cozinha. José decidiu passar imediatamente aos actos, e a mostrar-se o mais possível indulgente para com o irmão. Tomaram o pequeno-almoço sentados um em frente do outro.

 

Com toda a calma, José começou a explicar ao irmão mais velho qual era a sua opinião acerca destas anomalias, e quais as medidas que deviam tomar.

 

- Segundo penso, não é nada de grave. Apenas um mal passageiro: é nesta idade que as mulheres têm mais problemas. Ao que parece, o sangue. O doutor Stéphan foi para fora e só vem no fim da semana; e chamarmos o seu substituto, que nem conhece a mãe... Mas de qualquer maneira ele vem.

 

Abel ouvia-o; era tudo o que podia fazer. O que o não impedia de orquestrar esse solilóquio com um contraponto de estalidos e barulhos de sucção que fazia com a língua, enquanto ia enfornando autênticas pazadas de castanhas, ao ritmo de uma locomotiva que engole carvão a todo o vapor.

 

Sentindo renascer em si uma espécie de curiosidade infantil em face daquela fenomenal inconsciência e receando que aquelas boas disposições desaparecessem antes de tempo, José agarrou no braço do irmão por cima da mesa e disse:

 

- Ouve-me com atenção: o que é preciso, agora, é distraí-la, fazer-lhe companhia, falar com ela, e não a deixar muito tempo sozinha. Por minha parte, reconheço que não devia ter estado tanto tempo sem a vir visitar. Mas que queres tu, nem sempre se pode fazer aquilo que se quer. Vou passar a vir cá mais vezes, prometo-te. Tenho a certeza que tudo se há-de arranjar; vais ver que ela vai melhorar...

 

Calou-se por uns momentos; ouviu-se o barulho do sobrado a tremer no curral ao lado: era o cavalo a sacudir-se das moscas.

 

- E... E... E a Suíça ? - vociferou Abel de repente; José teve um sobressalto.

 

«Ora esta, o animal, ainda por cima, lembra-se do que eu lhe disse», pensou siderado.

 

- Não fales tão alto, vais acordá-la... Ora, em primeiro lugar, isso de ir para a Suíça é só daqui a quatro ou cinco meses, e julgo que ela se vai curar até lá, se é que está realmente doente. E além disso, nessa altura, as coisas estarão diferentes cá em casa, não achas?

 

Abel lançou-lhe uma olhadela cujo sentido se adivinhava nem que fosse a oitenta metros.

 

- Talvez... -respondeu Abel com fleuma.

 

«é inacreditável. Hoje está a compreender tudo o que lhe digo, mesmo os subentendidos...»

 

- A propósito, como está a Maria?

 

Abel, que se tinha posto a enrolar um cigarro, deu um estalo com a língua:

 

- Vai indo, vai indo...

 

- E então para quando é esse casamento?

 

- é... é... em Outubro. De... de... pois das colheitas. Para uma pessoa se casar é preciso dinheiro.

 

- De qualquer maneira vai ser melhor para ti. Realmente é de mais passar uma vida inteira sempre sozinho, todo o dia...

 

Levantou-se da mesa, atravessou a sala e abriu a porta. Como o mundo era bonito, que manhã,! Na verdade sentia a impressão de que estava a renascer, de não viver senão através da leve existência das coisas, de não ter vida própria, entregando-se por completo a tudo para onde olhava. Os corvos esvoaçavam lentamente em redor das falésias, como detritos à superfície de um redemoinho. Abel veio fumar o seu cigarro para a soleira da porta.

 

- Vai estar um lindo dia - disse José.

 

Abel abanou a cabeça, cuspiu para o chão e calcou o escarro com o pé.

 

- Vem ver o que eu fiz ontem. - Pegou-lhe pelo braço e conduziu-o; os dois irmãos deram uma volta pelas dependências. A erva cortada na véspera e molhada do orvalho já cheirava a feno. Na parte de baixo das encostas cobertas de prados e de giestas havia uma crista de névoa muito leve a orlar o leito do riacho; o vale ainda se encontrava mergulhado na sombra. Voltaram ao pátio.

 

- Bem sei que não tens tempo para te ocupares de tudo isto. Hoje, se quisesses, podíamos limpar os currais e a casa da lenha. Aquilo deve estar cheio de bichos... Se tivesses visto a porcaria que eu tirei do fundo da lareira... Havia baratas por toda a parte e ratos que nunca mais acabavam... Queimei tudo na estrumeira...

 

Começaram pelos estábulos e trabalharam sem descanso. Tinham prendido as três cabras cá fora; e estas, indiferentes, trincavam a hera do muro e, de tempos a tempos, voltavam a cabeça na direcção dos dois homens, mostrando o seu impenetrável olhar de pedra.

 

A mãe levantara-se por volta das nove horas; tinha aberto ao de leve os postigos das janelas do quarto e pouco tempo depois ouviram-na a acender o lume do fogão. «Bom sinal», pensou José, pois a saúde dela dependia estritamente do bom funcionamento da lareira.

 

Amontoaram no meio da eira o feno e a palha podres, sacos velhos e juta bolorentos e todas as velharias e inutilidades que lhes apareciam à frente; quando lhe deitaram o fogo, soltou-se da fogueira um fumo amarelo e espesso como creme. José contemplava com avidez as pesadas volutas que inchavam e subiam lentamente, através do ar calmo. Quase que sentia vontade de ali ficar uma semana; ainda havia tanta coisa para limpar e arranjar, naquela casa. Pensava também numa pequena frase que tinha atraído a sua atenção na Viagem pelas Cevènnes a Cavalo num Burro, do impagável Stevenson: «... quando o presente mostra tantas exigências, quem é que se iria preocupar com o futuro?» Parecia-lhe que, desde o dia anterior, o tempo, imóvel, como que domado por estes trabalhos rústicos, se espraiava à sua volta sem se mexer como a água calma dum lago. «Eu podia mandar dizer aos Barthélemy que não posso deixar a minha mãe sozinha e doente enquanto o médico não vier vê-la...»

 

Antes de ir para a mesa, lavou-se lá fora com água fria, de tronco nu; o sol começava a aquecer terrivelmente.

 

Era meio-dia, as sombras encontravam-se agora imobilizadas sob a luz quase vertical, e depois de .almoçar já se lhe adivinhava o seu imperceptível movimento de fuga no outro sentido.

 

A mãe tricotava em frente da porta, sentada na velha cadeira de palhinha, fazendo os mesmos gestos da véspera, mas José, agora, que havia terminado as arrumações da casa, já não se ocupava a escolher trastes, a queimar porcarias, a andar num constante vaivém da cave para o celeiro, a mudar móveis de lugar e a levantar nuvens de poeira; sentara-se lá fora, num degrau do alpendre, e olhava para diante de si, sem pensar em nada, Abel, esse, ninguém o ouvia; devia estar a dormitar na sua cadeira. A luz escorregava no telhado em frente, terna e oleosa.

 

José levantou-se bruscamente e entrou na cozinha.

 

- Daqui a bocado vou-me embora - anunciou ele. - Há um autocarro por volta das duas e meia.

 

Abel arrotou. Nas suas mãos circulavam moscas velozes.

 

- Bem, se houver qualquer problema previne-me. No fim da semana volto cá com o doutor Stéphane; assim saberemos definitivamente o que é que devemos fazer.

 

Saiu, com o casaco debaixo do braço, deu um beijo à mãe, tocando-lhe nos cabelos com as pontas dos dedos:

 

- Daqui em diante tens-me cá todos os sábados, como dantes, está bem? Prometes-me que te portas bem...

 

Ela riu-se e voltou ao seu trabalho depois de lançar um olhar discreto para o cão.

 

Abel acompanhou o irmão até ao pequeno cemitério; depois da morte do pai, José ainda ali não havia parado nenhuma vez. Entrou por uns momentos. As ervas daninhas tinham devorado quase por completo a placa de xisto na qual Abel havia gravado as iniciais; viam-se enormes caracóis que ali tinham feito a sua morada. As urtigas, mais vigorosas do que nunca, viviam tranquilamente por cima dos mortos, alimentando-se da sua decomposição sem qualquer pensamento dissimulado. Saiu e fechou o modesto portão que rangeu; franzindo os olhos e olhando para o irmão, parecia reflectir.

 

- Tu nunca vais à igreja... Nem nunca rezas as orações que o pai nos ensinou. Aposto que não abres uma Bíblia há anos.

 

O outro baixou os olhos e traçou com a ponta do sapato um semicírculo na poeira.

 

- Se calhar nem acreditas em Deus.

 

Naquela altura Abel apresentava um olhar interrogativo; depois sorriu um pouco ironicamente, abrindo a boca e mostrando as gengivas nuas - terrivelmente vulneráveis:

 

- É verdade... é verdade... mas isso não é comigo, isso diz-te mas é respeito a ti.

 

- E a cova? -perguntou José com raiva. - Isso não te faz nada, saberes que vais para a cova?

 

- A cova... Qual cova?

 

Sem se voltar, José apontou com o polegar para as sepulturas alinhadas atrás de si:

 

- Aquilo, meu caro, essa cova cheia de vermes, onde vais comer a terra e onde os bichos te vão comer a ti. De vez em quando pensas nisso, não é verdade? Comido, devorado, desapareces... E depois é o nada, o zero, o abismo... Volatilizado...

 

Falava com uma voz surda e precipitada:

 

- Como se tu alguma vez tivesses existido. Como essa formiga, olha, basta pisá-la - e zás, esmagou o bicharoco; - já está! Adeus bosques e magustos! Adeus tudo o que te dá prazer. Zás! A cova, estás a ouvir, a cova, como um cão, como uma besta... De merda. És só merda, como eu, como toda a gente, se não fores ainda pior...

 

Deu um encontrão no gigante consternado e estúpido que o fitava com um ar embasbacado, e lentamente, afastando-se dele, pôs-se a caminho. Olhou ainda uma vez para trás antes de começar a descer a ladeira, e teve de gritar por causa da distância.

 

- És burro de mais para compreender! Mas reflecte bem nisto: é tudo merda. A tua cova - uma caca!

 

Cerrava os punhos com uma inveja odiosa ao ver que tanta inocência era o privilégio da maioria.

 

- Caca! Caca! Caca!

 

Sacudido por um soluço de raiva, com o coração cheio de desespero, desapareceu envolto na tripla invectiva.

 

Sentia-se demasiado infeliz, demasiado enojado para regressar directamente a casa do pastor. Foi acabar o dia e consumar o que considerava uma execução na capital na esplanada dum café, a beber canecas de cerveja e a espreitar as coxas das raparigas sentadas na sua frente.

 

à noite havia baile debaixo dos plátanos. Veio rondar no escuro, fez uma conquista e foi dormir com ela. Era a primeira vez. (até aí a Suíça só lhe alimentara a imaginação). Sentiu-se esquisito. Leve. Como se estivesse curado. A pequena tinha umas coxas formidáveis e um ar estúpido; não se atreveu a perguntar-lhe se era sempre assim da primeira vez. Tinha achado a sua vocação.

 

Ele que não havia esperado que o tempo e tudo o que este traz lhe viesse a ensinar que o supremo grau de sabedoria era ter sonhos suficientemente grandes para os não perder de vista enquanto corria atrás deles.

 

FAULKNER (Sartoris)

 

Enfim, o homem conta passar três quartos da sua vida a sofrer para descansar no último quarto; e a maior parte das vezes morre de miséria sem conseguir saber em que alturas está o seu plano!

 

RIMBAUD

 

(Carta de 6 de Janeiro de 1886)

 

O vento tinha escancarado o postigo, sem dúvida porque estava mal fechado; um luar azul, fosforescente como leite, encheu o quarto de repente.

 

Encolhida debaixo dos cobertores, sentia arrepios, e instintivamente, procurando a segurança duma outra tepidez, estendeu a mão entre os lençóis, mas ao seu lado não havia senão um lugar vazio e frio: onde é que ele estaria a uma hora destas? Sentou-se na cama, interrogando com os ouvidos o silêncio da casa e a noite inconstante que a envolvia, mas não conseguiu ouvir senão as pancadas do seu coração a ecoar surdamente no peito.

 

Logo que chegava a Primavera, Abel ficava como esses animais que estiveram muito tempo adormecidos debaixo da terra, por causa do frio do Inverno, dos dias brancos e silenciosos, das noites seladas pelos gelos, mas que, apenas se fazem sentir os primeiros sinais de vida da nova estação, não conseguem continuar por mais tempo a dormir na sua toca, enquanto, cá fora, um mundo de árvores de folhagem nova, de águas livres, de céu ventilado, se prepara para a grande travessia. ..

 

De repente o quarto mergulhou na escuridão, não conservando claridade senão no rectângulo vertical da janela: acabava de passar uma nuvem diante da Lua, apagando bruscamente a noite. Se ao menos chovesse... A mulher levantou-se, calçou as pantufas, enfiou um roupão e dirigiu-se para a janela.

 

Estava uma noite luminosa, cheia de vento e movimentada; no céu negro e brilhante, uma nuvem solitária corria a toda a velocidade de norte para sul, semelhante a um animalzinho tresmalhado que se tivesse dirigido às cegas para o objectivo do seu destino. Com o tempo que estava no Norte não era para amanhã que vinha chuva: há dois meses que não caía uma gota de água; no fundo das cisternas sonoras, as bombadas aspiravam o vazio. Os jornais falavam duma seca da Primavera jamais vista. Ia ser bonito!

 

O seu coração deu um salto: lá em cima, mesmo na perpendicular da sua cabeça, tinha acabado de se mexer qualquer coisa. Ela não gostava de estar sozinha, sobretudo à noite, nesta casa enorme, cheia de estalidos e de barulhos insólitos - sozinha com esta velha doida cujas noites sem sono excitavam os fantasmas.

 

Saiu do quarto, caminhou às apalpadelas pelo corredor até que recebeu na cara uma corrente de ar frio que subia do vão da escada. Lá em baixo o silêncio; lá em cima o silêncio também. «Ela deve ter-se levantado da palha», disse consigo. Subiu o mais silenciosamente possível a escada de moleiro que conduzia ao sótão - onde verificou com esforço que se tinham esquecido de fechar a porta à chave! Entreabriu-a rapidamente, perscrutando a penumbra do celeiro, que era iluminado apenas por um albóio sem postigo. Na enxerga, fora da dobra dos lençóis, julgou ver a forma da cabeça; a sogra dormia, respirava. Mas, quando os seus olhos se habituaram ao escuro, a forma pareceu-lhe suspeita, assim como o silêncio absoluto do catre de palha; precipitou-se, de mãos à frente, sobretudo com medo de que o inimigo emboscado num canto lhe saltasse em cima de surpresa como uma grande aranha: ninguém! A cama estava desocupada, o celeiro vazio, desceu a toda a pressa.

 

Na cozinha também não estava ninguém. Mas onde é que se teriam metido os dois? Sentiu-se invadida pelo medo e acendeu um candeeiro de petróleo. O trinco da porta estava tirado, a espingarda não se encontrava no seu lugar habitual, pendurada na trave, a canadiana também não se via no cabide: Abel devia ter aproveitado aquele luar extraordinário para ir caçar. A mãe, abandonada aos seus demónios nocturnos, talvez andasse a fazer das suas; ia arrepender-se de ter deixado a porta aberta! Contando que aquele diabo não tivesse desencantado os fósforos: era uma mania que ela tinha. A palha, em plena noite, e com aquele vento... Não, os fósforos continuavam no seu lugar, numa caixa de ferro metida no fundo da gaveta. O que é que teria passado, agora, pela cabeça àquela maluca?

 

Saiu: não precisava de lanterna para ver; lá fora estava tão claro que se podia ler o jornal com aquela luz e havia um frio vivo e seco, uma noite de Abril prateada, salpicada de estrelas a tremeluzir. Aconchegou ao pescoço os virados do roupão e chamou:

 

- Mãe, mãe, onde está?

 

O vento apagava a sua voz, e, em resposta, o cão gemeu. Soltou-o; «Busca, busca...»

 

O animal não demorou muito tempo a descobrir a velhota do outro lado da eira, agachada junto do pequeno muro, na posição duma múmia indiana, dura, gelada, com os olhos fixos e muito abertos - estava como morta.

 

- Mas o que é que ela ali está a fazer! Que coisa mais triste! Obrigarem-na a sair da cama em plena noite, quando estava tão bem dentro de casa...

 

Sempre a resmungar, levantou-a, pegando-lhe por baixo das axilas, impressionada com a leveza deste frágil feixe de ossos onde custava a crer que ainda houvesse vida.

 

Aqueceu-lhe uma xícara de leite, meteu-a na cama, no seu antigo quarto no primeiro andar, de onde a tinham mudado por ela sujar a cama: uma vez não são vezes. Se por acaso ela morresse naquela noite com um golpe de ar, ao menos que fosse na sua própria cama.

 

Voltou a deitar-se, gelada até aos ossos, e não voltou a adormecer senão de madrugada, agitada pelos mesmos pensamentos que outrora não paravam de obcecar a sogra.

 

Mas com ela a coisa era diferente: a Idade Média, a água das nascentes, as barreias no rio, o lume, todo esse folclore humilhante, grotesco e extenuante, hoje em dia isso era bom para os Parisienses. Embora as Terras Altas estivessem em vias de se tornar na residência secundária da França, no seu reservatório de oxigénio, no seu regresso às origens, para não dizer na sua reserva paleolítica, em contrapartida os naturais daquela região não pensavam senão em tubos fluorescentes e em formica.

 

E além disso o pai dela não era eterno. (ele bem tinha insistido para irem viver com ele, mas Reilham recusara-se); mais cedo ou mais tarde, quando ele morresse, Maheux vendido ou entregue às silvas se ninguém o quisesse, continuaria com as terras e iria para Mazel-de-Mort, onde podia voltar a criar ovelhas, pois havia ali pastagens, além de uma capoeira, um pomar, boa terra.  

 

E água.

 

Quando se levantou, às oito horas, foi para se ver obrigada a lavar os lençóis e o colchão que a sogra sujara. Mas ela fizera decerto aquilo de propósito, pois havia emporcalhado tudo, como se pretendesse vingar-se. Embora a culpada fosse insensível a isso, Maria não lhe poupou admoestações nem gritos.

 

- Tenho a certeza de que fez isto de propósito, sua malvada! Já que é assim vai continuar no sótão; e então já pode fazer as porcarias todas que quiser na palha...

 

Obrigou-a a subir lá para cima, para o seu antro; um pouco mais tarde, levou-lhe a papa de castanhas esmagadas em leite de cabra; a velha dormia, ou fingia dormir. Poisando a malga no chão, Maria debruçou-se sobre ela, e ao sentir o cheiro, teve um sobressalto:

 

- Vá, levante-se, e veja se ao menos agora é razoável.

 

Como tentasse puxá-la para cima, a velha deu um salto com a rapidez duma serpente e mordeu-a cruelmente no braço.

 

- Porca!

 

Afastou-a brutalmente com um encontrão; a cabeça bateu no canto dum baú velho que segurava a palha, com um grande barulho de concha a partir-se. Gelada, louca de terror, julgando que a tinha morto, Maria fugiu atirando com a porta, desceu a escada de escantilhão, e precipitou-se lá para fora para se acalmar.

 

Que grande complicação! Com que cara ia aparecer ao marido quando ele chegasse?

Conseguiria manter um ar normal? Ela, que era agora uma assassina? Já se via entre dois polícias. Que escândalo, que vergonha... Talvez fosse presa. Tudo isto por causa duma velha doida raivosa a quem ela servia de criada há meses! Mas por que razão é que se tinha ido ali meter!

 

Para cá e para lá, torcendo as mãos, muito preocupada, não ousava entrar em casa. Mas, ao fim da manhã, os gemidos que julgou ouvir obrígaram-na a decidir-se, e, de ouvido à escuta no vão da escada, escutou efectivamente a morta a resmungar como era costume. Então os seus nervos deram de si, deixou-se cair numa cadeira e desatou a chorar. Não podia impedir que as lágrimas viessem desenterrar desgostos esquecidos, tornando-os ainda mais amargos.

 

O seu casamento. Ninguém tinha assistido a ele como se fosse vergonhoso uma pessoa casar-se depois dos trinta anos. Após dois «sins» murmurados à pressa,   ele fora   festejar o acontecimento   com um copo de hortelã e água,   que bebeu na taberna de Saint-Julien-d’Arpaon, e um assado de porco em casa dela, em Mazel-de-Mort- ao qual assistiram: uma sogra já então desaparafusada,   o seu pai igualmente enfraquecido, quer pela dieta, quer por aquilo que o obrigava a fazê-la, e um jovem cunhado distraído, ausente, que mal tocara nos pratos. E o mais engraçado é que ela estava grávida, ela, que já era quase tão velha como um trapo, e no entanto ei-la inchada como essas raparigas frescas,   carnudas e ingénuas que na igreja escondem as barrigas enormes sob véus brancos. Algum tempo atrás ele tinha-a encontrado na mercearia de Saint-Julien, e pegando num lenço de seda, todo desbotado do sol, que se encontrava na montra no meio dos cartuchos e dos frascos de perfume barato, metera-o à força no seu cabaz, dizendo! «Vá, vá lá... toma, leva...»

 

Uma semana mais tarde, arrancou-lhe, igualmente à força, a paga do seu presente; quando ela andava a guardar as cabras numa azinhaga coberta de erva tenra, que cheirava a pilriteiro e convidava aos abandonos, apanhara-a de surpresa. Uma vaga curiosidade, em breve saciada, e sobretudo o desejo de se vingar de muitas humilhações, haviam-na levado a entregar-se-lhe; uma pastora violada atrás duma moita não era uma coisa frequente nesta região de puritanas... Não tinham sido mal sucedidos, ao contrário do que acontecia com todos os principiantes: depois, um mês mais tarde, casamento. Era possível confundir as datas. Uma criança pode muito bem nascer um ou dois meses adiantada.

 

Infelizmente ele nasceu mesmo fora de tempo e morreu ao fim de três dias. Isso tinha-se dado no ano anterior. Enterraram-no à cabeceira do avô, uma pequena múmia, pouco maior do que um coelho esfolado, e à laia de consolação o médico declarara que ela não podia voltar a ter filhos. Demasiado velha, demasiado endurecida, como o tojo estéril dos planaltos sobre os quais não chovia há semanas.

 

As tempestades do Outono haviam abatido a lomba da sepultura azinha, e com ela o seu desgosto prematuro desfez-se igualmente, como se o casamento e a sua breve maternidade não tivessem passado de uma ilusão sem futuro.

 

Naquela mesma noite, quando o marido chegou, arrastando a perna, ela anunciou-lhe - e exibia uma espécie de desafio na maneira como falava - que a nascente já quase não dava água: apenas um escorrimento chupado pelas vespas e rodeado de borboletas, como nas piores horas de calor; mesmo assim ela tinha conseguido recuperar a maior parte enfiando mais profundamente no talude o canudo que drenava a nascente. Mas só obtivera um mísero balde, após duas horas de espera e de impaciência! Se ao menos houvesse um tanque coberto para recolher a água, como em Mazel-de-Mort...

 

- Em que é que pensavam os teus antepassados? Rabugento, ele não deu resposta; ela encolheu os ombros e, resolvida a arreliá-lo, continuou:

 

- Ao menos caçaste alguma coisa?

 

- Furioso, atirou com a arma para cima da mesa.

 

- Nada! Não há nada!

 

Realmente havia as lebres do planalto que saltavam ao luar e que o arrancavam da cama em plena noite, mas com aquela espingarda velha qualquer presa se tornava quimérica.

 

No Outono, quando andava no corte da madeira e as profundezas da floresta traziam até ele o eco das caçadas, poisava o machado e, com o coração cheio de raiva e de desejo, apurava o ouvido, cativado por esses sons secos e nervosos que lhe pareciam ser o privilégio das armas modernas. Ah!, se ele tivesse uma espingarda como a do sogro, essa maravilhosa «Robusto» com dois canos de aço azulado, de calibre dezasseis, leve e forte como um raio, isso é que seria uma felicidade para Maheux!

 

Ela afastou a espingarda, poisou a terrina no seu lugar, mexeu a sempiterna mistura de leite e castanhas e serviu-lhe a sua ração.

 

-’Enquanto esperas, meu pobre Reilham, contenta-te com bajana, como o teu pai e como o teu avô. Mas tens de confessar que te arriscaste a uma multa para voltares com o saco vazio... Já tivemos bastantes chatices com esta. Se por acaso um destes dias os guardas te apanham...

 

Ele pôs-se a vociferar e a bater com o punho na mesa.

 

As veias do pescoço começaram-lhe a inchar, ficando de tal maneira escuras que ela preferiu calar-se e comportar-se comedidamente durante o resto da noite. Embora ele nunca lhe tivesse batido, ela estava sempre de sobreaviso; esta violência condensada na maioria dos homens, como um animal prestes a saltar, metia-lhe medo. Por instinto sabia opor a estas explosões repentinas uma placidez doméstica a toda a prova.

 

No dia seguinte de manhã, ainda estava escuro quando Reilham foi à nascente.

 

Situada a cerca dum quilómetro da quanta, a meio caminho entre esta e o riacho, constituía o ponto nevrálgico de Maheux, o seu coração, quase a sua razão de ser: era ali que iam dar de beber aos animais, outrora, no tempo em que as nascentes brotavam em profusão - pelo menos segundo a memória confusa e enriquecedora do passado; além disso parece que as mulheres iam ali lavar a roupa, e que no Verão as pessoas também se lavavam nessas águas esfregando o corpo com folhas de saponária. Uma gamela de madeira esverdeada e pegajosa, com vários metros de comprimento, hoje completamente podre e cheia de ervas, recolhia a água onde ziguezagueavam os insectos (aquáticos perseguidos pelas libelinhas; nas noites quentes, havia sempre ali uma rela para responder às corujas da floresta, e os seus apelos trocavam-se através dos corredores que sulcam a espessura da noite. Mas depois, com o correr dos anos, as reservas da montanha pareciam ter-se esgotado-a menos que a memória fizesse batota -, o seu caudal continuava parcimonioso mesmo na estação das chuvas, para se tornar incerto logo que chegava o bom tempo: era apenas um pingue-pingue caprichoso e intermitente a que os caçadores deram o nome de «cantata» e que só serve para atrair as serpentes e encher a bilha quando a cisterna está vazia.

 

De qualquer maneira, se o tempo não mudasse depressa, a água da nascente já não chegaria para encher nada; Abel substituiu o balde, que na véspera a Maria Preta tinha posto na bica, por um regador que havia trazido consigo, depois correu até ao riacho.

 

O seu leito silencioso fazia colear uma brancura esquelética através das árvores; as águas ao baixarem tinham deixado a embranquecer ao sol o tapete viscoso que cobre as rochas das margens; aqui e ali, fontanários cheios duma água estagnada, que deviam ser alimentados por infiltração subterrânea, exalavam um cheiro desagradável a lodo e a decomposição vegetal.

 

É claro que ele tinha passado por enormes verões abrasadores, poeirentos e calcinados como cal, durante os quais as pessoas eram obrigadas a dormir ao relento, de tal modo a atmosfera dos quartos era irrespirável, e as folhas encarquilhadas pendiam lamentavelmente dos ramos, desde Maio às tempestades do Outono; no entanto não se lembrava de ver o riacho secar tão cedo. Voltou a subir pensativamente até à nascente. O sol matinal avermelhava o cimo das florestas; no céu, de um azul totalmente puro, não havia o menor movimento, nada que trouxesse indícios de uma promessa de chuva.

 

Na passagem, parou para pegar no balde cheio e deitou uma olhadela para o fundo do regador que ali pusera: o recipiente mal tinha recolhido três ou quatro litros de água em vinte minutos.

 

Se não caísse uma chuvada dentro de alguns dias seriam obrigados a ir a Saint-Julien buscar água: oito quilómetros, ao todo, com um pipo de cinquenta litros num carro de mão a desconjuntar-se - sem. contar com a troça de todos esses idiotas por detrás das janelas. Cerrou os punhos.

 

Durante toda a noite, Maria percebeu que ele se rebolava na cama. Aos primeiros clarões da manhã, já ele estava levantado e remexia, lá em baixo, na arrecadação; ela levantou-se e, da janela, viu-o a descer em direcção à nascente equipado com toda a espécie de ferramentas. Havia um nevoeiro pouco espesso que lambuzava as pedras e anunciava um dia quente. Quando, por sua vez, ela desceu a meio da manhã com o balde, ouviu ao longe o barulho da picareta, que se transmitia através da atmosfera purificada.

 

Abel estava a cavar um buraco bastante grande, no género daqueles que é costume revestir de argila e onde se recolhe a água da chuva para dar de beber às ovelhas.

 

Maria olhou para a cova com um ar estupefacto; seria que ele imaginava que ela ia fazer a sopa e lavar a roupa com aquela água cheia de bichos?

 

- E o cimento, meu Deus, com que é que eu o hei-de aplicar?

 

Cabisbaixa, como que despeitada, ela foi-se embora.

 

Meio enterrados no chão, os vestígios do bebedouro assinalavam o lugar ideal para fazer o tanque; assim, o seu nível superior ficaria, sem perigo de enganos, resvés à nascente, que se encontrava a uma dezena de metros.

 

Fez saltar à machadada a madeira carunchosa e podre; os bocados de tábua desprendiam-se da sua orla de ervas mortas e raízes com um agradável barulho de pano a rasgar-se. Até à profundidade de um metro, a terra era arenosa e rangia, ligeiramente húmida e fácil de cavar. Em seguida, a picareta encontrou a rocha, provocando um som abafado, mas o filão não era compacto: grandes pedaços de granito azul misturados com areia, entre os quais a alavanca de mineiro penetrava facilmente. Logo que conseguia lascar um bloco, pegava nele com as mãos e, levantando-o com um irresistível esforço de rins, colocava-o no bordo da cova.

 

De vez em quando a Maria Preta vinha deitar uma vista de olhos à obra; de rosto fechado, completamente inexpressivo, via-o trabalhar um bocado e depois ia-se embora sem se dignar abrir a boca.

 

O sogro de Abel, quando subia a Maheux, mostrava-se mais loquaz. Agora era um homem cansado, que dava passos pequenos e ofegava ligeiramente.

 

- És um ás - dizia ao genro. - É pena que a tua casa não esteja ao mesmo nível do tanque; senão podias levar até lá a água, como os meus pais fizeram na minha.

 

Observando-lhe o corpo emagrecido, as olheiras roxas, Reilham pensava: é pena que tenhas cara de quem vai bater a bota qualquer dia. E, com um orgulho calmo, sentia pulsar nas veias uma força invencível.

 

Em meados de Maio, fez-se ouvir, por duas ou três vezes, um estrondo de tempestade; vinha lá do fundo de Aubrac, de Rodez, de Albi. Mas o tempo sempre quente amordaçava-a antes de ela conseguir amadurecer, e viam-se as montanhas enormes, cor de ardósia, mergulhar por trás do horizonte. O céu da manhã colava aos vidros o seu azul inalterável.

 

Reilham acabara por tomar gosto a este trabalho de cabouqueiro: os seus braços reencontravam pouco a pouco a mesma cadência que tinham em plena floresta, quando sentia vibrar neles, a cada golpe de machado, a árvore até ao cimo.

 

De manhã cedo já estava a trabalhar; o barulho da picareta soava com nitidez na atmosfera límpida. A despeito da hora relativamente matinal, o céu começava a branquear e o disco incandescente do Sol palpitava como uma superfície de metal em fusão, movediça e percorrida de um tremular oleoso e feroz.

 

A meio do dia, quando ele parava para comer algumas castanhas e beber um copázio de agua-pé, de que o sogro lhe oferecia um garrafão de tempos a tempos, um véu leitoso, subindo lentamente de sul ou de oeste, cobria como uma teia a pupila imensa do céu, que se velava por completo tomando o aspecto dum vidro despolido que ainda cegava mais do que o Sol. Então, tudo se calava no vale, nem um insecto voava, nenhum pássaro se mexia, não se ouvia senão o débil cair das gotas de água no recipiente. Por vezes, ao levantar os olhos, Reilham avistava um bútio ou um gavião a pairar num remoinho das grandes altitudes com uma estranha lentidão, ao mesmo tempo solene e ameaçadora. Largava cuidadosamente a picareta, pegava na espingarda poisada no chão, fazia pontaria durante muito tempo. O ar mole e escaldante absorvia quase imediatamente a detonação, vagamente repercutida através dos flancos da montanha. Mas a ave de rapina parecia indiferente, e, sempre que ele disparava sobre ela, não fazia mais do que mudar lentamente de rumo, com um ar desdenhoso, como se a pólvora negra que Reilham usava nesta velha espingarda não tivesse força suficiente para dar tiros a tão grande altura. Distinguia-se perfeitamente a sua cabeça delgada e ágil de pássaro bélico, que parecia independente do resto do corpo e da amplidão das asas, fixada a esta carlinga como a cabeça do tripulante dentro de um planador. «Maldito», gritava Reilham, e atirava com a espingarda para o chão, maldizendo a velhice da arma e este pássaro duma calma insolente que continuava a descrever os seus círculos perfeitos, lá em cima, a uma altura quase vertiginosa.

 

O fosso propriamente dito ficou terminado em dez dias. Com os seus seis metros de comprimento, três de largura e outros tantos de profundidade, assegurava uma reserva de água suficiente para substituir a cisterna em períodos de seca. Sem perda de tempo começou a fazer o emadeiramento das paredes e, durante vários dias mediu, serrou, uniu, pregou; utilizava para este fim as tábuas que o pai havia posto de lado, talvez há uns trinta ou quarenta anos, com o fim de substituir o soalho dum quarto desde aí desabitado, projecto esse que não se cumprira, como todos os projectos de seu pai. Um dia também tinha resolvido cavar um poço não muito longe da barraca, julgando encontrar água, assim, à sorte, possivelmente porque tinha visto um poço naquele sítio, em sonhos. Naturalmente, abandonou as escavações ao fim de alguns dias, para mergulhar de novo na sua Bíblia, e acabaram por encher o buraco de lixo. De outra vez, quando ele, Abel, era pequeno e o irmão ainda estava no berço, ouviram a meio da noite, após dois ou três dias de tempestades, uma barulheira medonha; ele precipitara-se, louco de terror, para o quarto da mãe, com o irmão, que também acordara sobressaltado, nos braços, gritando quase a sufocar: a parede de um quarto, que estava encostado à montanha, e onde felizmente ninguém dormia, acabava de desabar sob a pressão duma verdadeira torrente de lama que se havia acumulado ali. A cama estava meio sepultada sob as pedras e a caliça; foi preciso tirar todos estes escombros e a lama que os envolvia, às pàzadas e com um carrinho de mão. Enquanto não construíam outra vez a parede, puseram em frente da cavidade aberta um cobertor velho: ainda hoje lá estava preso ao chão por uma fila de pedras. Por seu lado, o sobrado também ameaçava ruína: não substituíram senão o do quarto, mas como era preciso haver um tecto para se abrigarem, decidiram-se a pôr-lhe umas escoras. O remendo aguentou-se até ao momento em que os bichos do caruncho, principais habitantes da casa, deram cabo dele; mas isso foi o menos: remendaram o remendo, e assim por diante, até que o monte das escoras se tornou mais pesado do que aquilo que sustinha, acabando por desabar sob o seu próprio peso. A partir do momento em que a montanha irrompeu pela quinta, os miúdos tinham pesadelos horríveis; a mãe - a mulher que naquele momento escoucinhava na palha e se sujava como um coelho que acabamos de matar - acompanhava-os à noite ao quarto, e a vela que levava numa das mãos protegendo a chama com a outra, projectava nas paredes estranhas formas que se mexiam, saltavam para o tecto ou recuavam precipitadamente até ao fundo do quarto, para onde eles entravam atrás dela; uma vez aninhados debaixo dos cobertores pesados de humidade, e que cheiravam a palha podre, mãe e vela retiravam-se, deixando os dois companheiros aterrados e transidos a sondar o silêncio nocturno com medo de uma avalancha definitiva pela qual seriam engolidos. Velando o sono dos pais e acalmando os seus desejos, estava pendurado na parede, por cima da cama, o único luxo da casa, um desses amuletos que proclamam verdades eternas em muitos lares huguenotes do campo: «O Senhor é o meu pastor, nada me faltará» - «Viste o teu irmão, viste o teu Senhor» - «Felizes vós que sois pobres, pois vosso será o reino dos céus», etc...

 

O deles ensinava: «Redimi-vos, ó filhos de Adão, através dessas coisas transitórias que não são as vossas, o que é vosso não passa.»

 

Devia ser por essa razão que não se consertava nada naquela casa.

 

: Em breve chegou Junho; o trabalho aproximava-se do fim: só faltava aplicar o cimento. O céu continuava limpo de quaisquer sinais de tempestade. Quotidianamente, por volta do meio-dia, tomava a mesma cor vitrada e plúmbea, mas as noites esplêndidas restituíam-lhe a sua água, se assim se pode dizer. A madrugada limpa cheirava a feno; um sol abundante, levemente dilatado devido à imobilidade do ar, inundava o vale e aquecia as pedras até ao momento em que essa teia subia dos lados do oeste como uma enorme pálpebra morta de onde tombava um dia pálido e sem vida que impunha o silêncio aos insectos e fazia pesar sobre o mundo a espera morna e vaga dos astros que se apagavam.

 

Muitas vezes, o lento pairar dum gavião nesta água turva acentuava o torpor geral com o seu peso estranho. O tiro partia, abafado e mole, como que tornando tangível a sua impotência para atirar chumbos ou qualquer outra coisa ofensiva para onde quer que fosse. O pássaro nem mesmo parecia acusar a sua passagem nas proximidades; continuava imperturbavelmente no seu voo planado, a circular no céu da pré-história, espiando com a pequena cabeça móvel os movimentos possíveis de uma presa.

 

A silhueta da ave de rapina levada pelas camadas de ar ascensionais recortava-se contra o céu lívido com uma nitidez angulosa, uma negrura inquietante: tudo se quedava, como se os animais e até o menor insecto sentissem pairar sobre o silêncio estupefacto do vale essa ameaça oculta que agita as capoeiras e alimenta as superstições rústicas. O homem, vagamente enfeitiçado por este alvo perfeito e quase imóvel, que parecia escarnecer dele, seguia ainda durante um momento com os olhos as evoluções lentas do gavião - provavelmente um terço, a julgar pelo tamanho do seu corpo. Insensivelmente, os círculos descritos pelo pássaro levavam-no a sobrevoar uma outra região; Reilham voltava a si, baixava os olhos, examinava a sua obra, as tábuas espalhadas em volta, com uma espécie de espanto. Esta interrupção deixava-o por um instante desocupado, um pouco disponível; dava a volta ao fosso a arrastar os pés, ia e vinha, pegava num utensílio qualquer, hesitava; voltava a olhar duas ou três vezes na direcção onde o objecto da sua cobiça havia desaparecido lá no alto, no extremo dessa praia deserta e sem fim, antes de se decidir a retomar o trabalho interrompido; enrolava um cigarro, aspirava gulosamente o fumo, e imediatamente voltava a encontrar o seu entusiasmo habitual.

 

As vezes conseguia matar um corvo ou uma pega; pedia à mulher para os cozer: ela fazia-o sem dissimular a sua repugnância, e não teria tocado naquela porcaria nem por todo o ouro do mundo. Enquanto ele engolia o cozido com grandes garfadas, ela observava-o assustada. Sempre lhe haviam dito que os corvos eram sobretudo apreciadores de cadáveres, e ela não podia deixar de pensar no sogro, naquelas faces desfeitas pelas bicadas.

 

Uma noite, quando se levantou da mesa para se ir deitar, ele declarou:

 

- Acabei o ré... revestimento; amanhã vou comprar cimento.

 

Depois, debruçando-se sobre ela e dando-lhe um pequeno encontrão:

 

- Vamos, vais ter a tua água, toda a que quiseres! Ela esperou que ele saísse da sala para murmurar:

 

- Sim, a um quilómetro de distância... Meu pobre Reilham...

 

A compra do cimento levou-lhe quase a totalidade das economias: não foi muito, é verdade, menos de vinte mil francos. Uma vez pagos os sacos e as armações de ferro, ficou com uma nota de cinco mil francos, que a Maria Preta fez desaparecer habilmente. Em caso de necessidade, ela não podia contar de maneira nenhuma com a ajuda do pai, que, depois da doença, se encontrava, ele próprio, em dificuldades, e havia sido obrigado a dar parte das terras a meias.

 

- Se ao menos o teu marido não fosse teimoso! Aqui, tudo se havia de arranjar, vivendo todos juntos; os encargos não seriam tão grandes, bem sabes. E depois, enfim, metida nesse buraco, não é vida para ti. Tudo o que ele faz ou nada... Na verdade, não compreendo o que é que o mantém lá...

 

O velhote dirigia-se à janela e interrogava os céus na direcção de Maheux, como se pretendesse descobrir ali a resposta. Em seguida voltava-se para a filha, abanando a cabeça: «Minha pobre Maria, vai lá...» E, antes de ela se ir embora, fazia tudo para lhe meter na mão uma nota de cem francos.

 

À noite quando chegava a casa, observava o marido à socapa, quando ele no fim da refeição enrolava um cigarro muito torto e a deitar tabaco por todos os lados, com as grandes mãos salpicadas de cimento, enquanto a ponta da sua língua ia acompanhando esta manobra delicada com uma série de pequenas tremuras de contentamento e desejo. Também ela gostaria de saber o que é que o obrigava a continuar ali. A sua liberdade, a sua completa solidão, tão útil às pequenas manias, afinal o quê, ao certo? Com um Reilham, fosse lá alguém saber...

 

No entanto, a dez quilómetros dali, para lá das encostas íngremes, tudo teria sido muito mais fácil: suportar aquelas coisas durante toda a vida não seria o suficiente para ficar completamente doida? Essas escarpas enormes faziam-lhe mal, e ela compreendia a razão pela qual a sogra não tinha resistido a este ambiente nem a este isolamento. Quem sabe quando e como é que isso começou a afectá-la, dizia de si para si ao olhar para a muralha opressora. Parecia-lhe que desde o nascimento à morte toda a sua vida se encontrava implacavelmente resumida a esta encosta amarelada, a qual lhe inspirava um horror irreprimível.

 

Havia três ou quatro dias, depois de terminado o tanque, que Reilham passava o tempo a agitar-se dum lado para o outro; tapava um buraco aqui, betumava o caixilho duma janela, mas via-se bem que não estava a fazer aquele trabalho com gosto, que era sobretudo por ociosidade que assim procedia, e para utilizar o cimento. Ela tinha reparado que o seu entusiasmo havia subitamente esmorecido. Vendo-o andar por ali de manhã à noite como um cão doente, ocioso apesar da espátula e da colher de pedreiro, ela suspirava por que ele fosse outra vez trabalhar para a floresta.

 

De tempos a tempos, precipitava-se para dentro de casa como um doido, arrancava a espingarda pendurada na trave, a qual estava sempre carregada; «Um destes dias ainda me matas!» - «Já te disse que o cão é submisso!», e o tiro partia debaixo das janelas. Esta excitação que ele manifestava sempre que avistava um pássaro pairando sobre a quinta intrigava Maria e não lhe parecia uma atitude justificada.

 

- O que é que te passa pela cabeça? Dir-se-ia que viste um lobo no redil! Que eu saiba não tens criação na capoeira... Porque é que te entreténs a gastar pólvora? Deixa lá o pássaro em paz.

 

Mesmo no meio da eira, de espingarda na mão, seguia com os olhos a pequena ave de rapina, depois, sem pronunciar palavra, voltava à cozinha e carregava outra vez a arma. Apresentava um ar estranho, um pouco distraído. Mas não era a matar gaviões que se enchia a dispensa. Nem sequer a fazer tanques ou a tapar os buracos das paredes. Ao cabo de uma semana de biscatos e de tiros aos gaviões, ela já lá não tinha absolutamente nada, e um dia, quando o marido vinha a chegar com a espingarda ainda fumegante:

 

- Se não fazes qualquer coisa até à ceifa, não chegaremos lá. O teu cimento derreteu como manteiga as nossas últimas economias.

 

Sentou-se em frente dele, e disse chamando a si toda a sua coragem:

 

- Eu não queria chatear-te, mas... Tens de te empregar, Reilham. Não é com alegria que te digo isto... Se não arranjas depressa algum dinheiro...

 

De boca aberta, com a espingarda sobre os joelhos, observou-a atentamente, com um ar de quem não compreendeu o que ela lhe dizia. Maria impacientou-se :

 

- Então, é preciso explicar-te tudo? Já não temos dinheiro nenhum, estás a ouvir, nem um tostão; se o meu pai de vez em quando não me desse uma nota ou duas... Este ano, nem um cogumelo, absolutamente nada! Castanhas, sempre castanhas, não te sentes já farto ? E se a colheita for fraca ? E se um de nós adoece? Se acontece alguma coisa à tua mãe, nem sequer temos dinheiro para lhe pagarmos um caixão!

 

A voz dela começou a estrangular-se - com uma ansiedade há já muito tempo reprimida. Levantou-se, e pôs-se a andar pela sala com nervosismo.

 

- Há meses e meses que eu esperava que chegasse este momento. Há outros que se arranjaram melhor do que nós, que não puderam continuar a manter esta vida e se foram embora: olha, não vou mais longe, na semana passada, os Rouvière, sabes, que viviam ao pé de Cassagnas. Ele foi para guarda republicano. Tem a tua idade, e tu não és pior do que ele...

 

Reilham levantou-se e pendurou a espingarda na trave; as suas mãos tremiam.

 

- Tenho pena de ter de te dizer tudo isto, mas sou   obrigada...   Depois   das   colheitas,   vamos   ver como é que vão as coisas, mas, agora, tens de arranjar trabalho; senão nem com dinheiro ficas para comprar o tabaco e a pólvora para os teus gaviões... Já só tenho o suficiente para comprar petróleo, o óleo de noz acabou-se e não temos açúcar nem café... E eu, e eu...

 

Deixou-se cair numa cadeira, com a cara escondida nas mãos, e pôs-se a chorar. Continuava a falar com uma voz irada, entrecortada de pequenos soluços:

 

- Mas tu não te importas, tu, há quinze ou vinte anos que andas a esfolar para nada! O teu pai morreu e a tua mãe endoideceu, só o teu irmão é que teve juízo. Deixei-te fazer o tanque sem dizer nada, mas julgas por acaso que é muito agradável ir buscar água a

um quilómetro... Já não posso mais, Reilham, já não posso mais! E sempre sozinha todo o dia, com aquela doida lá em cima... E o meu pai doente, sozinho também em Mazel-de-Mort, quando tu podias muito bem ir viver lá para baixo, criávamos galinhas, plantávamos legumes, podíamos vender ovos, queijos... Que queres tu fazer aqui? Nem sequer há uma flor ou um canteiro de salsa! Nada a não ser aquela encosta ali defronte... Eu também vou dar em doida, se não nos vamos embora daqui, deste maldito lugar!

 

Quando levantou os olhos, já não estava ninguém no quarto. Correu para a porta:

 

- Reilham!

 

Ele dirigia-se com grandes passadas para a nascente, com a espingarda a tiracolo.

 

- Reilham! Anda cá! Ouve-me!

 

Em breve ele desapareceu atrás duma prega de terreno.

 

à noite não voltou para casa; ela roía-se de inquietação; que loucura é que ele seria capaz de fazer, depois que tudo o que ela lhe havia dito? Ir-se embora assim sem dizer palavra... Finalmente, de manhã, ouviu a porta a abrir-se, e ao descer encontrou em cima da mesa da cozinha uma lebre ainda mole e quente, com a cabeça meio arrancada: devia-a ter morto à queima-roupa.

 

Ele encontrou trabalho para os lados de Marvéjols, em casa dum amigo do sogro, cujo filho acabava de ser chamado para cumprir o serviço militar e que precisava a todo o custo de alguém que o ajudasse a colher as pêras. Além de cama e mesa, recebia quinhentos francos por dia: foi uma mina durante três semanas, o tempo que durou a colheita. As horas suplementares aumentaram um pouco o pecúlio, e ele ganhou exactamente onze mil e quinhentos francos e com que «carregar a escopeta»; não tinha gasto senão o necessário para a pólvora e o seu tabaco. Eis o que iria calar o bico à Maria Preta durante uns tempos. Se não viessem tempestades violentas que estragassem o trigo antes da ceifa, a colheita não iria ser assim tão desastrosa como era de prever, devido à seca. Uma vez terminadas as lavras e as sementeiras, viria o tempo, marcado no seu espírito como uma pedra branca, dos trabalhos na mata e dos cortes: uns trinta hectares de faias, além de mais uma dezena de coníferas incluídas nos bens da comuna, iriam encher um pouco mais a caixa de ferro e a casa de lenha para o Inverno.

 

Uma coisa, porém, o preocupava: o mês dos nevões, que o obrigavam a ir para a serração. Mas é preciso ir-se vivendo. Quanto a ir mendigar a sua vida aos outros... No regresso, escarrou na direcção de Mazel-de-Mort. Ovos, legumes, queijos... Ele lá se arranjaria.

 

- Ah! És tu...

 

Ela veio ao seu encontro, estendeu-lhe a face, três vezes; não a vendo há três semanas, naquela altura achou-a com uma cara engraçada, como se os traços do seu rosto tivessem aproveitado a sua ausência para se transformarem, se tornarem exagerados, para incharem, o que dava aos seus olhos uma expressão de alegria animal e manhosa.

 

Atirou o dinheiro para cima da mesa (não tinha ficado senão com uma nota de mil francos).

 

- Estás a ver - disse. - Estavas preocupada sem razão

 

Ela cerrou os lábios e, suspirando, meteu o dinheiro na caixa de ferro. Ele perguntou notícias do que restava da mãe, lá em cima no sótão.

 

- Já não come quase nada - respondeu ela - e está enraivecida! Todas as vezes que lhe levo o prato de bajana, ela tenta morder-me. Agora, que estás cá, és tu que vais levar-lhe a comida: já não posso suportar aquele cheiro...

 

Jantaram uma salada de tomates em silêncio naturalmente tinham vindo de Mazel-de-Mort, onde ela fora duas ou três vezes por semana durante a sua ausência, com o pretexto de passar o tempo. Tentava obrigá-la a falar, para se certificar de que tinha reconquistado a sua situação, mas o silêncio caía de novo entre eles, apenas perturbado pelo crepitar dos insectos, seco como um carapau, apesar da frescura e da obscuridade da cozinha, pronto a inflamar-se à menor faísca, tanto lá fora, onde o vale não era senão um turbilhão em brasa, como no interior da casa, onde se ouviam, acima do ferver do azeite que crepitava por detrás da cortina contra as moscas, as pancadas ameaçadoras e profundas do relógio.

 

Abel serviu-se de beber; e teve de fazer duas tentativas para conseguir levantar a bilha.

 

Estarrecido, viu correr areia no seu copo.

 

Maria, muito pálida, olhava para ele.

 

- Mas o que é isto - resmungou ele entredentes: sem tropeçar numa única sílaba. Era a emoção que o impedia de gaguejar.

 

Uma enorme e poderosa cólera acumulava-se no compartimento como uma carga eléctrica. Lentamente levantaram-se os dois. Caiu um garfo no chão fazendo um barulho assustador, como se tudo fosse explodir de repente por reacção.

 

- É a tua nascente, Reilham.

 

Com o beiço a tremer, o pescoço inchado, o rosto apopléctico, ele abria a boca toda para expectorar a torrente de cólera à mistura com a decepção que o sufocava, mas com uma voz branda, irreconhecível, ela impôs-lhe silêncio:

 

- Acalma-te. Senta-te e ouve-me. Depois farás o que te apetecer.

 

Mesmo assim, a sua voz tremia um pouco. Mais do que o tom exangue, foi esse tremor que acalmou a cólera do marido, o esforço que ela devia ser obrigada a fazer para conservar o sangue-frio e não se desfazer em lágrimas diante dele. É que Abel dava-se perfeitamente conta de que em momentos como este a assustava. Mas então porquê esta provocação inútil? De que é que ela se queixava?

 

- Há uma semana que a nascente não deita nem pinga de água. Foi só areia que encontrei.


- O tanque - disse ele com uma voz morta.

 

- O teu tanque, a pouca água que lá está dentro ficou com um sabor esquisito (era verdade: seria preciso deixá-lo encher pelo menos uma vez, e limpá-lo). Há uma semana que eu vou a Saint-Julien todas as tardes com o carro de mão e um garrafão. Tive de levar as minhas cabras para Mazel-de-Mort, assim como o teu cavalo.

 

O silêncio dos insectos encheu a sala. As pancadas surdas do velho relógio pareciam aumentar a tensão entre eles e atingi-los em pleno coração; tentando engolir, Maria deixou escapar um pequeno cacarejo de galinha.

 

- Vê só, meu pobre Reilham, o que eu tenho para te oferecer quando regressas.

 

Abatido, com a cabeça vazia, ficou um momento sentado sem pronunciar palavra. Por fim, levantando-se, pegou maquinalmente na espingarda antes de sair. ’ -Onde é que vais com este calor?

 

Sem dar resposta, ele mergulhou na fornalha. O cheiro acre das giestas lançava-lhe à cara baforadas de ar sufocantes. O céu era como um lago de mercúrio a ferver; o horizonte, deformado por uma tremura de caldeira, diluía-se no ar viscoso: nem sequer se distinguia a linha que o separava do céu. Entre os flancos da ravina, o calor era tal que se tinha a impressão de escorregar numa espécie de xarope de plantas. Os seus ouvidos pareciam estar calafetados com algodão; o barulho dos insectos afluía por vezes como um imenso turbilhão de faíscas por cima dum braseiro. Já não havia sequer um insecto em volta da nascente, nem o menor sinal de vida: um tanque branco, esquelético, abandonado - morto.

 

Meteu lá a mão para tactear a areia que a Maria Preta lhe havia dado a beber, mas retirou-a rapidamente, como se tivesse sido mordido por um bicho: seco, escaldante, aquecido ao rubro! «Maldita fonte!»

 

Assaltado por uma raiva impotente, disparou - um estrondo frouxo e inútil no enorme rugido do calor um tiro para o ar, para esse céu de cólera e de negação que lhe tirava a água e o pão da boca à medida que ele lhos ia arrebatando. Mas o céu estava vazio, não havendo maneira de se abrir: nem sequer um gavião sobre o qual pudesse descarregar o desejo de matar que segredava aos seus ouvidos. Com um pontapé, partiu o cano de madeira da nascente, resvés ao talude: «Puta! Toma, grande puta!» Todas as economias e o suor do ano anterior para nada! Todo este trabalho de cão para encontrar à chegada um tanque vazio e uma nascente estragada! Esta recusa das coisas... Esta recusa da terra em se abandonar, em conceder a sua riqueza e o seu favor! Esta má vontade estranhada nos objectos - olhava com ódio para a arma, que não tinha força suficiente para abalar a abóbada celeste-, dissimulada no mundo; estas surpresas, merda, que nos espiam a cada instante, estas armadilhas, estes desgostos, estes dissabores, nunca se recebe um presente da Providência, nem a menor graça do céu, nem sequer uma pequena chuvada para encher a cisterna! Ah! Meu Deus, se ao menos descesses cá a baixo!

 

Feroz, a suar em bica como um toiro de combate, procurava à sua volta um objecto qualquer que lhe saciasse o furor; aos seus olhos deparou-se-lhe uma faia muito enfezada que se encontrava um pouco mais longe, sozinha no meio da encosta, assustada, pronta a fugir.

 

Abel precipitou-se sobre ela, a árvore pareceu encolher-se ao vê-lo aproximar-se; ele agarrou no tronco e, com uma irresistível torção, fez-lhe estalar as raízes. O barulho macio e profundo recompensou-o do terrível esforço que acabava de fazer com uma onda e um jacto de gozo. >;

 

Naquela noite não voltou para casa. Maria pensou que ele tinha ido acalmar-se calcorreando os bosques, a caçar: contanto que não caísse nas mãos dum guarda! Imaginava toda a espécie de violências, mas, ao amanhecer, acabou por adormecer de cansaço.

 

A cor cinzenta da madrugada mal começava a recortar os trevos e os corações das janelas das casas de Saint-Julien quando as pessoas que moravam ao longo da rua que ligava a aldeia à estrada nacional ouviram, no seu semi-sono, um rolar surdo e rangente sob as suas janelas, para voltar a passar noutro sentido um momento depois, esmagando o cascalho do caminho com um som mais surdo do que à ida. Quem assim empurrava parecia trazer um grande peso no coração: não parava de resmungar sozinho, em voz baixa, como um ébrio.

 

No entanto ele não tinha senão bebido água: um grande copázio, mesmo há pouco, que lhe havia enfraquecido um pouco as pernas; até aproveitara esta hora em que não andava ninguém na rua para se lavar na fonte, enquanto o pote enchia; era para economizar um pouco a sua ração do dia: tanto para a cozinha, tanto para a Maria Preta se lavar, tanto para isto, tanto para aquilo, custava os olhos da cara, maldita! Os três quartos de hora a descer com os recipientes vazios, ainda se suportava; mas pôr lá em cima uma carga que a encosta multiplicava! Ia uma pessoa a suar em bica durante uma hora e um quarto pelo menos, sem contar com os solavancos que os calhaus e as ravinas do atalho provocavam nos braços, ao ponto de chegar a casa com os varais do carro de mãos nas omoplatas; ele bem tinha feito a experiência no mês anterior, ao carregar os sacos de cimento, e era isto que o esperava todas as manhãs enquanto não caísse uma boa chuvada que viesse encher a cisterna e obrigar a nascente a deitar água. Caramba. Enquanto este maldito céu não se cobrisse de nuvens! Se o céu tivesse o mínimo de susceptibilidade, o olhar que ele lhe lançava tê-lo-ia obrigado a rasgar-se de um lado ao outro. Mas aquele maldito céu, onde as estrelas se começavam a apagar, conservava uma limpidez, uma serenidade escandalosa.

 

Em tudo isto, a culpa em parte era dele: se tivesse tomado as mesmas precauções que os antigos, a cisterna estaria naquele momento meio cheia. A água, no tempo do pai, ninguém a atirava fora por gosto, ele até se lembrava que antes da guerra era o velho que a distribuía, bilha por bilha, e, atada à corrente do relógio, trazia, sempre a chave do cadeado que prendia a alavanca da bomba. Além disso, nessa época, na maioria das quintas onde não havia água corrente, a cisterna estava fechada, e ninguém achava isto extraordinário; hoje as mulheres só fazem o que lhes dá na cabeça, e eis o resultado. E, ainda por cima, esta malfadada nascente a secar em pleno Verão; ao longo de mais de trinta anos nunca uma coisa assim tinha acontecido, e logo havia de lhe suceder isto a ele, maldita vida!

 

Sim, no entanto, dera-se um caso semelhante: em 1928. Um Verão que deixara na sua memória uma grande mancha negra de sol. Um calor dos diabos, a terra estava dura como cimento, os caminhos e as moitas cobertos de pó, as cigarras, endoidecendo, continuavam a cantar depois do pôr do Sol. Ele só tinha sete anos, mas obrigavam-no a cumprir aquela tarefa enfadonha de ir buscar água a Saint-Julien como fazia toda a gente; trazia-a então em garrafões, todos de tamanhos diferentes, a que a mãe chamava senhoras joanas, «Disseste merda? Para castigo, vais buscar água a Saint-Julien! Disseste puta, para castigo vais apanhar lenha a Ferrières! Para a próxima vez, não dizes asneiras, senão eu ensino-te, ouviste?» Traziam o irmãozito dentro do carro de mão - o mesmo que ainda usava, naturalmente: mas como é que eles haviam de conseguir pôr dinheiro de lado para comprar um novo? Ah!, não, ele está enganado... o miúdo não podia descer a Saint-Julien no carro de mão, pois em 1928 ainda não era nascido. A certa altura tudo se confunde.

 

Parecia-lhe que cada vez que a roda do carro de mão dava uma volta, os seus pensamentos se iam desenrolando como um fio. Uma vez desmanchado o novelo, recomeçava a dividir as rações de água necessárias para o consumo diário: tanto para a cozinha, tanto para a Maria se arranjar, tanto para isto, tanto para aquilo: encontrava-se de tal modo absorvido por estes cálculos que não deu porque estava a falar em voz alta: «Não te deve chegar para regares o jardim!», disse uma voz brincalhona no azul acinzentado da madrugada no momento em que ele atravessava a ponte da Mimente, empurrando o carro de mão.

 

Era Deleuze, um dos carteiros da comuna, que tentava a sua sorte com as minhocas vermelhas, junto da ponte, antes de entrar ao serviço às sete horas. ReiIham largara os varais do carro, surpreendido e embaraçado; os dois homens trocaram algumas banalidades. As libelinhas voltejavam à superfície da água, agitada de quando em quando pelas rabanadas insolentes das trutas à cata de alimento.

 

Reilham puxou do tabaco, enrolou um cigarro, lambeu o papel:

 

- Tu estás-te nas tintas para a seca - chupou o cigarro antes de o acender-, vives ao pé da água!

 

Dali podiam ver-se, na madrugada que se coloria a olhos vistos, os canteiros de legumes da horta limitada pelo verde vaporoso e estriado das hastes amarelas dos salgueiros que a abrigavam do vento. Um canteiro de sanfeno separava-a da casinha do carteiro, que tinha encostado ao alpendre um friso de coelheiras. Toda esta opulência comestível que aromatizava a verdura, calma, a rebentar bem ordenada, assim de manhã cedo, era fascinante para um homem do deserto obrigado a transportar a água de que se servia, enquanto outros tinham um rio a correr debaixo da cama!

 

- Tu também vives ao pé da água - disse o carteiro com um ar entendido, olhando preguiçosamente para a sua isca comida pelas trutas.

 

- Ao pé de quê! - disse Reilham atordoado.

 

O carteiro com uma voz de quem repete e se esforça por convencer:

 

- Já te disse: tu vives ao pé da água.

 

Reilham olhava fixamente para Deleuze, que parecia visivelmente satisfeito por ter causado sensação.

 

- Estás mas é a gozar comigo.

 

- Eu não gozo com ninguém. Sabes com certeza que o meu pai era empregado da Câmara, em Florae.

 

- E depois?

 

- Era ele que se ocupava do cadastro. Um dia, quando andava à procura do número de uma parcela, deu com os olhos na tua quinta. Maheux, era o que estava escrito no registo, vale de Maheux. Acima da tua quinta, havia outra palavra no mapa. Sabes como é que se chama a montanha nesse sítio?

 

O carteiro lançou a linha na água; ouviu-se o pequeno «ploc» líquido.

 

- Chama-se Aiqualette; parece que vem do latim, como Aigoual, e isso quer dizer «aquoso».

 

- A... acouso?

 

- Sim, aquoso, que quer dizer que ali há água. Além disso, a tua nascente tem de se alimentar dum veio subterrâneo. Os antigos sabiam o que diziam; se chamaram a esta montanha Aiqualette, lá tinham as suas razões. Estou convencido de que por baixo da tua casa há muita água. Mas, claro, é preciso procurá-la.

 

A Aiqualette. Água debaixo da sua quinta. Procurá-la. Reilham contemplava os canteiros de legumes que, lá em baixo, pareciam zombar dele.

 

Sentia a cabeça a encher-se de flores e de verdura; no espaço dum relâmpago, entreviu uma espécie de oásis que se assemelhava ligeiramente aos que se viam na velha Bíblia ilustrada do pai, que ele costumava folhear em pequeno.

 

- Eu, se fosse a ti, sabia o que tinha a fazer, em vez de me matar a acarretar água. Havia de a fazer sair da terra um pouco acima da casa e trazia-a até cá a baixo. Ê muito simples.

 

- E se a nascente não dá mais água?

 

- Precisamente: a nascente é uma coisa e a montanha outra; mesmo quando tudo se encontra seco, lá existe sempre água, imagina. A prova é que em Combelle, onde o terreno é todo de granito, o riacho nunca seca; olha para ali: ele desagua entre os choupos, lá em baixo, estás a ver? Tudo o que fica do lado oeste é calcário: um verdadeiro naco de queijo gruyère. É precisamente em frente, na encosta, que deves cavar: no granito, podes ter a certeza de que encontras. Exactamente ali. Além disso todas as minas abandonadas acabam por se encher.

 

Reilham, realmente, lembrava-se de que quando estava em Villemage havia descoberto por acaso, no fundo do vale de Bonheur, uma velha galeria, com o lastro de cimento manchado de óleo, onde se enferrujavam as porcas do guindaste, completamente invadida pela água; uma vagoneta voltada jazia no meio das giestas, aumentando a impressão de mal-estar que este lugar inspirava a toda a gente, como se os seus antigos ocupantes o tivessem evacuado a toda a pressa. Na verdade esta caverna escancarada, cheia até ao cimo de uma água escura e gelada, comunicava à imaginação uma espécie de terror irreprimível; admitia-se que houvesse lá em baixo abismos misteriosos, um verdadeiro mundo abandonado a uma eternidade de trevas inertes, líquidas e frias. Pairava em volta desta mina um malefício de lugar proibido. As pessoas eram para lá atraídas contra vontade; os homens que eram mandados para aquelas redondezas para cortarem lenha acabavam sempre por ir para a abertura da mina, tentando sondar com os olhos a cavidade verde-mar onde a própria luz, embora a água fosse perfeitamente límpida, parecia penetrar com repugnância. Também se lembrava dos poços que o pai resolvia cavar, para desistir dentro em pouco.  

 

- Achas que o veio é profundo?

 

- Não sou bruxo, nem percebo de poços, mas o que te posso dizer é que, se vivesse lá em cima, é certo e sabido que havia de ter água à farta.

 

Agua em Maheux. Estas palavras possuíam algo de mágico; tal hipótese situava-se há muito ao nível das utopias, para já nem falar dos milagres irrealizáveis - esse género de coisas que nunca se tomam a séro, como seja a descoberta dum tesouro ou o primeiro prémio da lotaria nacional-, cujas virtudes imaginárias ultrapassavam de longe as suas vantagens reais. A água a correr duma torneira sem preocupações de economizar, água corrente, fresca, viva, e não essa água morta, tenebrosa e pesada das cisternas isso afigurava-se-lhe tão incrível como pretender ressuscitar um cadáver. A tal ponto que o colosso olhava para o seu interlocutor com a cabeça baixa, fixando um e outro olho, a tentar descobrir qualquer laivo de malícia, a menor expressão suspeita; mas não, não havia nada que denunciasse semelhante intenção, o outro mostrava um ar perfeitamente convencido do que estava a dizer: «Morrer de sede sobre um mar de água é o cúmulo! Eu, no teu lugar, não hesitava nem um minuto: e afinal o que é que arriscas?»

 

Deram seis horas na Câmara de Saint-Julien. Após uma última olhadela de cobiça para os legumes do carteiro, Reilham pegou nos varais do carro de mão e os dois homens separaram-se.

 

- Quando tiveres encontrado água, convidas-me para um copo em tua casa - gritou-lhe Deleuze de longe.

 

Os primeiros carros começaram a circular na estrada.

 

Empurrando o seu carro de mão, Reilham sentia uma espécie de contracção esquisita a roer-lhe as entranhas, parecia-lhe que a sua carga era mais leve agora do que antes de ter parado na ponte; pensava nesses canteiros de legumes. Mas havia ainda outra coisa que ele não conseguia explicar. Era uma espécie de movimento imperceptível na barriga, parecido com as cócegas de excitação que, em pequeno, eram provocadas pela aproximação das férias e a partida para as grandes aventuras florestais. De qualquer maneira, esta estranha excitação fez-lhe perder de tal modo a noção do espaço e do tempo, que se viu de repente embasbacado no cimo da encosta e quase a chegar a casa, sem se dar conta do caminho, percorrido como por encanto.

 

Clarões de luz acinzentada e laranja-vivo cobriram o céu no momento em que o Sol cor de brasa e já escaldante, embora ainda muito baixo, emergiu lentamente das cinzas do horizonte, tal como um planeta monstruoso engendrado pela terra e ainda avermelhado pelo fogo central. Bastava ver esses depósitos de cinzas a sujar cada vez mais o horizonte todos os dias para se adivinhar uma enorme quantidade de calor acumulado lá dentro, prestes a incendiar tudo o que se encontrava sobre a área imensa e amarelada dos planaltos.

 

Lá em cima passaram alguns corvos, indolentes, manhosos, que poisaram sobre os velhos castanheiros acima da quinta. Reilham estendeu o pescoço: não havia nenhum gavião à vista. Depois da sua ida para Marvéjols, não voltara a ter ocasião de andar à caça deles: atirar com uma espingarda má a um alvo inacessível. Agora, tinha mais que fazer; uma tarefa difícil, acerca da qual ainda não falara a ninguém, esperava-o no fundo daquele vale. A Aiqualette. A água corrente; frutos, legumes, ovos, criação...

 

Antecipadamente, saboreava o sucesso da sua solidão orgulhosa.

 

Logo que ela o sentiu chegar, veio à porta; tinha os olhos vermelhos e pisados, sinal de que não dormira ou que estivera a chorar.

 

- Podias ter-me dito que não vinhas ficar a casa... Parou indecisa:

 

- Mas estás a suar em bica! Vai mudar de roupa senão ainda te passas desta para melhor... Está escrito que esta quinta te há-de matar, a ti e a mim!

 

Poisando o carro de mão, calmamente, deixou-a falar; depois, levantando a mão num gesto que lhe não era familiar:

 

- Se me der prazer bater a bota, é cá comigo... Pegou no barril e foi instalá-lo num sítio fresco, na

 

cozinha, em cima de duas cadeiras; depois, endireitando-se, congestionado e com a voz entrecortada pelo esforço:

 

- Contanto que não te falte nada, que tenhas o teu barril de água fresca todas as manhãs...

 

Viu-o sair acabrunhado: onze mil e quinhentos francos até à ceifa, e cinquenta litros de água por dia para a casa, e ele ainda tinha o desplante de declarar que não lhe faltava nada! Mas em que é que iria dar toda esta teimosia e aquelas suas ilusões?

 

Sentou-se à mesa e pôs-se a descascar ervilhas

- que tinham vindo de casa do pai, naturalmente -, intrigada com a calma desusada que ele mostrara. Que nova loucura esconderia aquela atitude? Em que empresa diabólica é que ele se ia lançar? Agora tinha medo dele; não propriamente de ser espancada, de sofrer maus tratos ou qualquer coisa semelhante. A sua violência era suficientemente ruidosa para não ultrapassar certos limites; e ela não duvidava de que ele possuíssse um código de honra obscuro que transferia para uma espécie de exibição pessoal o excesso dessa violência. Não, era mais grave que isso. Ela tinha medo de que ele enlouquecesse.

 

Quarenta e oito horas depois, no princípio da manhã, uma explosão surda abanou o solo e repercutiu-se entre as paredes do vale: era Reilham a dar o primeiro tiro de pedreira para descobrir a mina.

 

- O que contas tu fazer com essa pólvora?

 

Espantada de o ver comprar todo o seu stock de pólvora, a velha lojista de Ferrières, que também vendia cartuchos ou o material para os fabricar às pessoas daquela região, há mais de meio século, e expunha os cigarros e o tabaco de qualquer maneira, no armário da cozinha, observava-o através dos seus pequenos óculos redondos e brilhantes; uns pêlos de bigode aos cantos dos lábios como as barbas do peixe-gato conferiam a esta cara ligeiramente bochechuda e muito amarela algo de asiático e mercantil que a rapaziada atribuía outrora à venda prolongada do «Pano Chinês».

 

Sem responder, Reilham contou mil e quinhentos francos em cima do oleado da mesa (tinha-os ido surripiar naquela noite do mealheiro). Vinte e cinco sacos de pólvora negra de uma libra, era quanto bastava para furar a rocha durante algum tempo; à razão de meia libra por explosão, representava portanto cerca de meio cento de cargas, e era muito menos caro que a dinamite, certamente mais eficaz, mas ao preço a que ela estava, mais o rastilho, não era para as suas posses - enquanto, com pólvora negra, bastava uma pitada e um papel de jornal amarfanhado em saca-roIhas para fazer as vezes de mecha; é claro que tinha de correr um bocado, mas aquilo funcionava muito bem, fizera a experiência logo naquela manhã com o resto da pólvora que sobejara dos gaviões e dos corvos. Uma explosão um tanto ou quanto mole, lenta, bastante decepcionante do ponto de vista do barulho, uma nuvem de fumo que partia à deriva e exalava um cheiro nauseabundo, um velho odor a batalha e a terra remexida que pairava ainda por uns instantes em volta do rochedo destruído, cujos buracos recentes lembravam um sofrimento mudo, horrível, inexprimível. A picareta e a alavanca de mineiro não deviam ter descanso, lá em cima, nesse bosque de faias que dominava Maheux, a quinhentos ou seiscentos metros, cujo solo fofo e coberto de musgo falava de frescuras secretas, e que de qualquer maneira deviam ir buscar a algum sítio o necessário para conservarem o seu viço. à parte o acarretar da água que o ocupava durante duas horas todas as manhãs, mas era esse o salário da vitória, podia, pelo menos até às colheitas, consagrar-se inteiramente a esta tarefa que o destruía tanto como ele havia de destruir aquela montanha.

 

No momento em que ia a sair da loja, lembrou-se de que quase não tinha tabaco, e pôs mais três francos em cima do balcão cheio de moscas; pegou no maço, e, com o saco cheio de pólvora, abriu a porta, encontrando-se de repente envolvido por uma atmosfera de fornalha.

 

- Queres ficar com o filão todo para ti ?

 

Trocista, encarnação perfeita da pobreza conformada, mercantil e assexuada, a velha veio por trás dele, em passos miúdos, para fechar a porta. Fazendo de conta que não ouvia, ele voltou-se lentamente sobre si mesmo, como um barco demasiado carregado, e mergulhou no visco deslumbrante da tarde.

 

O mato começava a uma centena de metros da quinta; rapado até ao osso pela passagem dos rebanhos, estendia as suas omoplatas de calcário, consteladas de excrementos de ovelha, duma ponta à outra do planalto; estalava e soava sob os pés como bocados de porcelana.

 

Aquela mancha esverdeada que corria lá ao fundo, mesmo em frente, contra o flanco este do planalto, e atapetava até meio uma prega de erosão, era a Aiqualette.

 

Agora, que trazia em si aquele nome, sentia-se possuído, como um homem apaixonado, pelo nome daquela que o traz obcecado. O próprio nome fazia pensar nessas aves pernaltas do paraíso que, abrindo as plumas, executam danças guerreiras à beira dos pântanos, sobre as pernas finas como hastes de vidro. Sempre que pensava nisso, esta ideia saltava e voava no seu cérebro com um bater de asas multicolores.

 

Parou para enrolar um cigarro, poisou o saco à sombra dum cedro, antes de acender o isqueiro: cuidado com a pólvora! Mais para a direita, mesmo acima das falésias e precisamente ao mesmo nível do mato, um rectângulo vermelho e amarelo formava um remendo no planalto: a Terra Grande, cujo trigo novo já havia coberto por três vezes a recordação macabra que a maculava. Os buracos subterrâneos marcavam-na com peladas aqui e ali, terra magra, ossuda como o tórax de um animal escanzelado, oriental, famélico, cujo pêlo gasto assegurava no entanto a sobrevivência e a vida de três pessoas. Tinha sido ali que matara aquela enorme lebre no mês anterior; nessa noite, quando estava de atalaia no dólmen diante do qual morrera o pai, tinha-se acalmado um pouco ao atirar sobre o bicho quase à queima-roupa: pum! Nem sequer se dobrou; caiu morta e esticadinha.’

 

Para a direita, cortando a norte a maior parte das Terras Altas, como um enorme aterro cujos perfis telúricos o calor apagava por instantes, ficava o monte Lozère, quase inteiramente calvo, desértico, planetário; a uma altitude inferior e mais perto, dominando a Ponte de Monvert do lado da sua vertente norte, e os esqueletos cavernosos de Saint-Julien aninhados no sopé da vertente sul, o Bougès arredondava a sua espinha cabeluda, encimada pela faixa negra dos abetos. No cume do Aigoual, esse baluarte granítico atrás do qual, a essa hora, o horizonte meridional arde e crepita de cigarras, até ao Lozère, cujas cavernas gigantescas branqueiam o horizonte como uma neve doentia e febril, cinquenta quilómetros de céu, de planaltos, de florestas tórridas tremiam e desidratavam-se à luz poeirenta. Para os lados do leste, cujo céu ligeiramente mais carregado parecia reflectir os campos de alfazema do Contadour, uma nuvem de fumo negra subia dos terrenos das queimadas.

 

Este fumo longínquo, inclinado sobre o horizonte, que lembrava vagamente a época dos bombardeamentos sobre o Ródano, emprestava de súbito à paisagem esse papel de segundo plano que os acontecimentos históricos lhe impõem por momentos; era como se este fumo traísse de repente a verdadeira natureza dessa paisagem habitualmente inviolada pelo tempo, e que ele agora envolvia, chamava a si de súbito, não se sabe com que pressa.

 

Reilham levantou-se muito cedo, entre as três e as quatro horas da manhã, para ir buscar a água e para que o barril estivesse no seu lugar antes que o calor e a mulher viessem complicar tudo; no regresso, tra- tou de fazer o menos barulho possível, reconfortando-se, após este esforço que lhe deixava as pernas um pouco moles, com uma malga de leite e algumas castanhas, e depois seguiu para a Aiqualette.

 

O sol horizontal enchia o bosque duma luz vermelha, ainda não suficientemente quente para secar o orvalho que cobria as plantas; atravessou grandes charcos de cheiros imóveis, ainda frios da noite, e que conservaram o aspecto nocturno das coisas. Quando chegou ao lugar das escavações, viu-se de repente envolvido por uma luz resplandecente que aquecia contra as suas omoplatas a transpiração da subida. Enrolando o primeiro cigarro, observava com uma calma satisfação os progressos alcançados na véspera, surpreendido de os achar mais importantes do que esperava; toda esta terra e estas rochas arrancadas ao flanco da montanha causavam-lhe uma curiosa satisfação, como se se tratasse duma obra concreta, rentável, e não unicamente aquele trabalho, imaginário, talvez inútil. Mas ele apenas se interrogava sobre a oportunidade e o êxito da sua empresa quando esta o não açambarcava fisicamente: antes de adormecer, por vezes, no instante exacto em que caía no sono, quando se encontrava face a uma realidade desconhecida e hostil que parecia tornar tudo estranho e vão. Depressa a pá e a picareta encontraram uma zona de granito bastante compacta que foi preciso quebrar com a alavanca; porém só utilizava a pólvora em último caso. Geralmente bastava fazer penetrar a alavanca uma dezena de centímetros e fazer força na outra extremidade para deslocar o bloco, que rolava para junto do montículo de terra com um barulho surdo. Quando o bloco, demasiado pesado, profundamente enraizado na terra, resistia, ele resignava-se a empregar a pólvora, e apenas utilizava a mecha estritamente necessária, sendo obrigado a correr até às primeiras árvores, distantes uns dez metros dali, para se abrigar. Por vezes, acontecia que a engenhoca, feita à pressa, deflagrava em falso; Reilham recomeçava a operação, dirigindo insultos ao céu - que mesmo assim não se entreabria para o castigar com a sua cólera, tal como antes também lhe não concedia os seus benefícios; nesse momento, sem querer, olhava na direcção das falésias, como que a procurar uma vítima mais concreta para a sua fúria, e se acaso, por cima do cume da montanha, pairava no céu sereno um gavião ou qualquer outra ave de rapina, a sua ira acalmava-se, as imprecações calavam-se imediatamente nos seus lábios, estava de novo tomado pela sua velha obsessão, largando o instrumento de trabalho e dirigindo-se para uma faia onde estava pendurada a espingarda, sem desviar os olhos daquele alvo vivo e obcecante que durante alguns momentos o fazia esquecer tudo.

 

Apoiava o cano da arma num ramo de árvore, fazia pontaria durante muito tempo, saboreando esse minuto em que tinha a sua presa à frente do cano da espingarda experimentando a ilusão de que dispunha dum poder misterioso. Finalmente o tiro partia, insignificante, ridículo, quebrando imediatamente o encanto, e deixando-o, sempre que isto acontecia, carrancudo e desocupado até o seu olhar cair novamente nas escavações e nessa abertura que começava a desenhar-se contra a montanha. E, depois de ter carregado outra vez a velha espingarda, voltava ao trabalho, vagaroso, a arrastar os pés, até sentir de novo vontade de trabalhar; em geral escolhia estes momentos de hesitação para fazer um intervalo, e então enrolava lenta- mente um cigarro, riscava um fósforo ou friccionava com a palma da mão a roda do isqueiro, acendendo na mesma chama o cigarro e o rastilho que ia quebrar a paz matinal com uma lenta e surda explosão cuja poeira e o fumo desciam preguiçosamente a encosta, entrepondo entre ela e o sol um véu amarelado donde saía uma luz de eclipse.

 

Por volta do meio-dia poisava as ferramentas, quando as ondas de um calor espesso e gorduroso enchiam até cima a imensa depressão do vale, extraindo das eravas e da terra remexida cheiros secos e violentos; ia sentar-se à sombra duma faia, puxava da garrafa, bebia um gole de água ainda suficientemente fresca, roía algumas castanhas, um bocado de queijo duro e alcalino, mastigando com os olhos, ao mesmo tempo que comia, a terra amontoada diante dele e o montão de rochas - cuja importância parecia diminuir à medida que o seu cansaço aumentava, por uma espécie de compensação negativa. Antes de retomar o trabalho, fazia uma sesta até às duas horas; a maior parte das vezes apanhava um escaldão na cara que o obrigava a acordar bruscamente; acontecia-lhe com frequência ficar um tanto ou quanto atarantado, quer por ainda se encontrar meio a dormir, quer porque o Sol, no seu movimento tinha, modificado substancialmente o lugar, iluminando-o com uma luz desconcertante. De boca aberta, os braços e os ombros caídos, observava estupidamente a escavação envolta numa luz que a rocha viva reflectia duma maneira ofuscante.

 

Lentamente como se o fizesse contra vontade, voltava a pegar na ferramenta e, pouco a pouco, o dia continuava a correr ao ritmo dos seus braços até às praias verdes de frescura e de sombra onde encalhava à noite.

 

Era a hora em que o mundo à sua volta começava a viver docemente com todas as suas plantas e animais; a seguir à terrível fúria solar que escalavrava a paisagem, fazendo sobressair as chagas e os desgastes do tempo com uma indecência oriental, piolhosa, confundindo a zona de trabalho com os casebres arruinados, a atmosfera reencontrava um pouco da frescura líquida da manhã, a humidade do sereno subia lá do fundo já violáceo onde principiavam a acender-se, aqui e ali, visíveis da mina, as luzes amareladas, que a noite próxima revelava, das quintas e dos casais. Em cada noite surgia nesse instante um estímulo pacífico e mais caseiro, o desejo de estarmos sentados à mesa com outras pessoas, de comer e beber em companhia delas, de atravessar lentamente as aldeias rumorejantes de vozes e conversas, à hora em que as raparigas esticam os lábios na sombra perfumada pela brilhantina dos cabelos ou pelas sombras adocicadas e amorosas das tílias - a hora em que os cinquentões peludos gastam a jogar a pétanque os seus últimos cartuchos políticos ou sexuais, a hora em que os velhos sentados debaixo dos plátanos abanam as cabeças, a exprimir as suas antigas censuras, esquecidos de que vão morrer nessa noite e que essas histórias breves não virão a ter a mínima importância.

 

Mais longe, à beira-mar ou nas moitas em redor dos bailes públicos, outros há a quem pouco interessa que isso tenha ou não tenha importância e que se beijam em cadeia, gozando crapulosamente, como gatos.

 

Depois de arrumar as ferramentas e de as embrulhar num oleado para que não ficassem molhadas com o orvalho da manhã, ele descia em grandes passadas satisfeitas, pisando as ervas amolecidas pela humidade e o chão elástico que lhe tornava a fadiga mais leve e mais fácil de suportar. A realidade que trazia consigo - a batalha contra a montanha, temperada de grandes horizontes e dessa flutuação incomparável de aventura que acompanha um vasto futuro incerto fazia-lhe esquecer o que o aguardava lá em baixo, em frente da porta, a realidade dos lábios apertados, do nariz triste, das mãos em garra, ávidas de manipular outra coisa além de promessas e para quem as incertezas líricas nada significavam: a realidade odienta que conta e que especula, congenitamente frustrada, crivada de cobiças como uma almofada de alfinetes, reduzindo tudo à propriedade imediata das coisas, avara na cama, em face da morte a quem nada se empresta, ou apenas se promete, eternas constipadas intestinais, que recusam igualmente ceder o que quer que seja ao mundo desde que não possam contar antecipadamente os míseros juros do empréstimo; perdendo tudo para ganharem uma ninharia à custa da miséria e preferindo a poupança e a medíocre ciência dos carrascos da bolsa à loucura que caminha de mãos nas algibeiras vazias e que apenas tem por bagagem a sua imaginação. «Acabas por nos deixar a pedir... Hás-de acabar como a tua mãe, ainda esta manhã ela me mordeu... O teu irmão, esse, viu as coisas, e deve estar por lá a gozar na Suíça... E eu que estava tão bem sozinha em Mazel-de-Mort... Se achas que nos vais salvar lá por estares a fazer um buraco na montanha, se achas que vai tudo ficar muito bonito, lá porque conseguiste fazer correr água depois de não sei quantos anos de trabalhos forçados... Estás a enterrar-te cada vez mais enquanto os outros enriquecem, conseguem vencer, e nós continuamos na mesma, à espera que o céu despeje a sua cornucopia. As vezes pergunto a mim mesma se não serás doido.»

 

Uma noite, sem lhe dar resposta, como costumava fazer, arranjou uma trouxa com o cobertor, meteu o tabaco no bolso, pegou em dois ou três punhados de castanhas, agarrou na lanterna, e foi dormir lá para cima, sob o céu salpicado de estrelas, no meio dos incontáveis barulhos da noite. A Lua deslizava nas folhagens brilhantes, cintilava na erva em mil bocados. A noite estava tão calma que nem sequer se ouvia a floresta a respirar. Para lá do mundo dos homens neutralizado pelas trevas e pelo sono, os trinados dos rouxinóis, através da obscuridade luminosa, formavam um outro universo duma faustosa serenidade, desinteressada das diferenças que ocasionavam a desventura dos homens. O barulho dum motor, de vez em quando, fazia-se sentir por uns minutos, impuro, acidental, como as películas de sujidade que flutuam aqui e ali nas águas claras; imediatamente o ronronar indiscreto voltava a sumir-se nos côncavos da montanha, a noite readquiria a sua serenidade estelar, luxuosa, inumana, estranha ao tempo, sem memória, sem começo nem fim - semelhante ao rosto inexpressivo duma divindade.

 

Uma bela noite, quando se preparava para adormecer, avistou na outra vertente do vale uma multidão de luzinhas azuis, como um rasto de pó fosforescente, que subia a encosta ao longo da orla do bosque; apoiado nos cotovelos, seguiu com o olhar a ascensão deste brilho da mesma natureza que o das estrelas, o qual, com essa liberdade e impertinência que os animais e as coisas adquirem na ausência do homem, fazia evoluir precisamente debaixo do seu nariz uma pitada de Via Láctea. Logo que este pó de estrelas atingiu o cume da montanha, desapareceu pouco a pouco, misturado com a noite azulada de Verão, e ele ali ficou durante muito tempo, de pescoço estendido, retendo o ar nos pulmões, com os olhos fixos na direcção em que essas faíscas vivas haviam desaparecido, deixando no seu espírito um vazio e uma grande leveza uma fina punhalada de solidão no mais fundo do seu peito, como se tivesse pena de não poder ir atrás delas.

 

Depois de algumas horas dum sono mineral, logo que sentia o frio da manhã a abater-se-lhe sobre os ombros, erguia-^se, espreguiçava-se, e libertava-se ruidosamente das suas ruminações íntimas, elevadas e insignificantes, e alegrava-se ao deitar uma olhadela para o lugar da recompensa e dos progressos do seu labor quotidiano. O dia pálido e incolor, que roçava a crista das montanhas ainda na penumbra, fazia sobressair pouco a pouco as manchas, mais claras na erva, dos rochedos britados e do monte de areia cinzenta.

 

Os primeiros pássaros empoleiravam-se nos ramos e dedicavam-se a fazer perseguições e ajustes de contas entre os diferentes andares da árvore ou do bosquezinho que habitavam. Sentia-se subir através da mata o cheiro das giestas molhadas - um cheiro frio, picante. O mundo em volta dele continuava a viver da

 

sua maneira habitual, que não era a mesma dos homens, descuidada e sem projectos, completamenteI entregue à glória dum instante de criação que durava há alguns milhões de anos.

 

Mas no entanto era preciso voltar ao mundo dos homens, descer a Saint-Julien com o carro de mão e o pipo, passar debaixo das janelas das pessoas adormecidas que tinham água nas cozinhas e que ele via de vez em quando a regarem as suas capuchinhas e o feijão, num perfume de terra húmida que parecia o prolongamento natural do cheiro a pão quente que saía do respiradouro da padaria - e que todos os dias lhe fazia crescer água na boca, de tal maneira que uma manhã, não se sentindo com coragem de resistir à tentação, agachado junto do respiradouro, estendeu ao padeiro estupefacto uma moeda de dez soldos em troca da qual recebeu um pãozinho estaladiço e quente que devorou com o nariz enfiado no miolo como um cão esfomeado que mete o focinho na sopa.

 

Além do mais, a quantidade de trabalho que fazia diariamente arrasava-o por completo; ele nunca tinha dado muita importância à comida, mais sequioso de ar livre e de grandes espaços do que de uma mesa bem guarnecida. Porém a sua frugalidade começava a reclamar uma base mais substancial do que essa fraca e insípida bajana que lhe inchava o estômago, mas que lhe não dava qualquer conforto aos músculos. Também tinha adquirido o hábito - ou mais exactamente, readquiriu-o, pois ele já havia explorado habilmente e durante muito tempo alimentação natural no decorrer do longo isolamento no desfiladeiro de Ferrières - de pôr armadilhas em todos os tufos de giestas, a duzentos ou trezentos metros do acampamento, apanhando todas as manhãs algumas narcejas espalmadas por terem passado a noite entre duas pedras, que ele assava imediatamente como nos bons velhos tempos em que disparava a fisga perto da fossa. Com três dentadas não deixava ficar senão o bico e as patas; isso dava-lhe um pouco mais de ânimo para atacar a montanha, formiga carnívora gigante cujas pancadas de picareta desnorteavam os seus microscópicos homólogos, que, acarretando os grandes ovos brancos, se precipitavam para buracos mais profundos.

 

Chegou a meio de Agosto sem ter dado por que se haviam passado três semanas desde que começara as escavações na Aiqualette. E, no entanto, a galeria media agora sete ou oito metros de profundidade; por vezes, de manhã, ao acordar, olhava para a cavidade do cimo dos montões de terra e de rochas, e parecia-lhe incrível ter realizado tal proeza sozinho e em tão pouco tempo: e afigurava-se-lhe sempre que mal começara a trabalhar.

 

Agora, que atingira aquela profundidade, o avanço da escavação - embora trouxesse certas vantagens como a frescura, a penumbra e, em caso de mau tempo, ou de tempestades nocturnas, a de poder dormir em sítio seco - por outro lado criava novos problemas. Entre eles, o escoramento: seria muito imprudente, embora a rocha fosse bastante compacta para se segurar sozinha, continuar a cavar e sobretudo a abalar a abóbada com explosões sem a escorar com uma trave improvisada. As escoras, tinha-as ele mesmo à mão de semear, nessas faias que torciam os seus músculos nodosos e acetinados em volta da galeria, no meio dos granitos que pareciam querer imitar; estes haviam-lhes dado um tom acinzentado. Duas travessas verticais e uma horizontal, com intervalos de um metro, sendo a última reforçada, consoante a necessidade, por um poste central, ofereciam uma segurança mais ou menos ilimitada: de resto, não dera ele as suas primeiras provas na arma de sapador na mina de Villemagne, para o escoramento da qual lhe haviam pedido que cortasse toros durante dias inteiros? Ele sabia fazer o corte em bisel das escoras e conhecia a arte do revestimento como ninguém; de- cididamente a sorte reserva-nos cada surpresa! Quem é que lhe havia de dizer que tudo aquilo lhe iria ser útil um dia?

 

Havia ainda outra coisa: era preciso que a galeria conservasse uma ligeira rampa para o exterior: por outras palavras, tornava-se absolutamente indispensável cavar a subir.

 

Chegara a esta conclusão idiota e capital numa bela manhã, ao tentar fazer rolar para o exterior um grande bloco de rochedo que à primeira vista parecia muito difícil de deslocar e se recusava categoricamente a sair; depois de o regar copiosamente de insultos, acabara a fazer-lhe festas: sem este incidente ter-se-ia apercebido de que a galeria apresentava tendência para descer em direcção ao interior da montanha? Nesse caso, quando atingisse a toalha de água, como poderia esta chegar ao cimo da subida senão mediante meios artificiais, complicados e dispendiosos? Nesse dia, passara uma parte da manhã a confeccionar um nível provisório com uma garrafa de limonada, no meio da qual colara duas tiras de adesivo paralelas que indicavam o lugar onde devia imobilizar-se a bolha de ar uma vez cheia a garrafa. A garrafa, essa, e o adesivo, que datavam do acidente do irmão e que ele fora desencantar num buraco da parede do sótão, mesmo por cima da cabeça da mãe, acocorada na palha, de olhos fixos, mas ainda não morta nem recozida, apesar do calor asfixiante que reinava debaixo das traves do tecto, naquela estação: «Não achas que devíamos tirar a velha lá de cima? Tens de metê-la no hospício; bem vistas as coisas, é tua mãe e não minha. Depois do trabalho que tenho, só me faltava ir levar-lhe a sopa e limpar-lhe o rabo no

meio daquele fedor e ainda por cima só com um litro de água!»

 

Desta vez a guerra estalara francamente entre os dois.

 

O problema da iluminação começava a pôr-se relativamente ao fundo da galeria, onde a luz demorava cada vez mais a chegar de manhã, escurecendo muito rapidamente à noite, tanto por causa da profundidade crescente como pelo facto de os dias serem cada vez mais curtos, facto sensível desde o princípio do mês de Agosto; ele trabalhava à luz vacilante de duas velas que perseguiam todos os seus movimentos com sombras desordenadas. Calculara que a iluminação subterrânea lhe custasse dez soldos por dia, o que não era uma fortuna, mas, fosse como fosse, era indispensável encontrar o mais depressa possível o veio de água.

 

Embora menos grave, o último problema era talvez o mais aborrecido: deitar lá para fora o entulho da mina. Até ali arrastara as pedras ou fizera-as rolar quando eram muito pesadas; mas, doravante, a distância a percorrer tornava esta tarefa cada vez mais fastidiosa.

 

Impunha-se a utilização dum veículo qualquer que lhe poupasse todas essas manobras incómodas, esses vaivéns intermináveis, com aquelas lajes pesadas a empurrar-lhe o estômago ou os sacos de juta cheios de calhaus. E estes, naturalmente, rebentavam mesmo, malditos!

 

O carrinho de mão.

 

Essa era a única solução.

 

Mas, nesse caso, era preciso levá-lo lá para baixo todas as manhãs, senão como é que havia de transportar o tonel? Ao pescoço, como um barril de aguardente na coleira dum são bernardo? Seria já suficientemente penoso levá-lo até ali, a corta-mato, através dos matagais, dos troncos, dos rochedos, por uma encosta com erva que lhe dava pelo nariz! Repetir essa façanha todos os dias seria uma autêntica loucura. Examinava as mãos, depois espalmava-as no peito: a máquina, apesar de sólida, mais cedo ou mais tarde, se continuasse naquele ritmo, acabaria por rebentar... Sentiu-se invadido por uma súbita sensação de desencorajamento. Saiu a passos lentos da mina, parou no cimo do cone de entulho, na luz ofuscante de Agosto, e, como se acabasse bruscamente de perder a confiança em si próprio, no que fazia, todas essas rochas empilhadas umas em cima das outras ou caídas na erva, essa boca negra aberta na montanha, tudo se lhe afigurou inútil, arrepiante e estranho - sim, na verdade, aquilo era a obra de um semilouco. Perguntou a si próprio se todos esses esforços serviriam para alguma coisa, se não perdera o tempo e o trabalho ao lançar-se sem reflectir numa tarefa tão audaciosa, que pouco a pouco mostrava estar acima das suas forças; enquanto olhava para o entulho da mina aos seus pés, tinha a impressão de que eram as ruínas do edifício imaginário que construíra que acabavam de se desmoronar só por causa dum carro de mão. As ruínas do seu projecto.

 

Foi sentar-se encostado a uma árvore, sentindo dentro de si um enorme vazio; nem sequer experimentava aquele desejo de fumar que recompensava habitualmente uma fase de trabalho levada a bom termo. Nem tão-pouco a vontade de disparar com uma espingarda má sobre um alvo inacessível: o pequeno gavião pairava tranquilamente na vertical da mina, e ele não esboçava um gesto em direcção à espingarda, que pendia, carregada, dum ramo. Que voasse até querer, o maldito, ele estava farto de tudo. Deixou-se invadir por ideias sonolentas e não se mexeu mais; só de pensar que teria de descer a Maheux, para ir buscar o carro de mão, sentia um peso enorme, o peso de uma tarefa impossível, sobre-humana. Via-se curvado na subida, com a montanha a pesar-lhe sobre os ombros, atrelado a um carro, no qual, quando se voltava para ver o que o tornava assim pesado, a mulher e a mãe tinham tomado lugar. Tentava obrigá-las a sair, mas elas resistiam, agarrando-se às tábuas com unhas e dentes.

 

De repente, ficou com os varais na mão e viu com terror o carro, onde gesticulavam as duas mulheres, a resvalar pela descida, cada vez com mais velocidade. Soltou um gemido rouco, como se ele próprio evitasse a queda com uma sacudidela violenta, e despertou subitamente. Era quase noite; devia ter adormecido de cansaço e tivera um pesadelo.

 

Julgou ouvir um barulho anormal e pôs-se à escuta: era apenas o vento que soprava de quando em quando entre as árvores. Vento era coisa que ele não ouvia há muito tempo - nem um sopro nas últimas semanas: o Verão era apenas um bloco enorme de calor que afogava tudo como uma grande cuba de gordura a ferver. Esses fracos suspiros que agitavam as folhas das faias pareciam tão prometedores e miraculosos como a linguagem do mar após a travessia do deserto. Ergueu-se, e sentiu desejo de ir fumar um cigarro lá no alto, por cima da mina, no cume da montanha, onde essa ressaca de ar fresco devia trazer notícias dos grandes espaços.

 

A noite, cheia de estrelas por cima da sua cabeça, era completamente negra do lado oeste - a não ser, de vez em quando, nos momentos em que uma cintilação luminosa, de intensidade variável, revelava a arquitectura e os sucessivos planos de montanhas e de lugares desconhecidos cujas imagens a retina não tinha tempo de fixar, revelando apenas, à luz de cada um destes clarões, uma sucessão de cavernas fosforescentes suspensas entre o céu e a Terra. Essa iluminação silenciosa e irregular lembrava, mais do que uma trovoada ao longe, os clarões intermitentes e de intensidade desigual que os bombardeamentos faziam palpitar à noite por cima do Ródano e das cidades do leste.

 

Sentado num cepo, no meio da clareira descarnada que coroava o alto da crista, fumou pensativamente um cigarro, à cata do menor indício, do menor salto do vento, do mais pequeno aumento de luminosidade do pestanejar eléctrico que parecia anunciar a aproximação da trovoada, que talvez estivesse iminente nas encostas do Aubrac ou por cima do Rodez e que acabaria por desabar ali, modificando a face do Verão. Porém a lenta repetição dos relâmpagos continuava a iluminar brevemente e sem barulho os cenários de nuvens verticais e, pouco a pouco, foi enfraquecendo, até cessar por completo, deixando o fundo da paisagem mergulhado na escuridão, como um palco de teatro quando se apagam as luzes da ribalta. O pouco vento que soprava ainda voltara agora a rasar o chão; havia um silêncio extraordinário, não se ouvia nenhum canto de insecto nem qualquer roçagar nas ervas: dir-se-ia que toda a criatura viva abandonara as alturas, ficando ali como último ocupante. Sentiu um estranho mal-estar à ideia de ficar sozinho mais tempo no meio desses bosques silenciosos, em face desse horizonte tenebroso e mudo, sob o céu negro e sem lua onde tremeluziam estrelas dispersas mais raras, ao que parecia, do que nas outras noites, como se o próprio céu sofresse nessa noite uma espécie de deserção. Decidiu, para já, não passar a noite ao relento e dormir dentro da galeria: essa noite morta, deserta, acabrunhada por um estranho torpor, causava-lhe um mau pressentimento, e talvez os momentos desagradáveis por que passara nessa tarde contribuíssem de certo modo para isso; mas, uma vez enroscado no fundo do seu túnel, onde, depois de acender a vela, fumou o último cigarro, experimentou um estranho bem-estar por se ver rodeado, protegido do exterior por milhares de toneladas de rocha; lá dentro, ele era como uma toupeira no seu buraco: depois de apagar a vela e de se embrulhar no cobertor, adormeceu no fundo do corredor subterrâneo, como uma criança entre os braços da mãe.

 

A meio da noite, uma explosão tremenda arrancou-o brutalmente ao sono; com o choque, imaginou que tudo explodira e que ia ficar enterrado sob os escombros da mina; com o coração a bater como um cavalo, correu lá para fora, sendo acolhido por um imenso clarão ofuscante que rasgou a escuridão para lá deixar cair de novo a paisagem que lhe havia arrebatado por um instante; o clarão fulminante foi seguido de enorme estrondo a ecoar nessas cavernas nebulosas que se haviam formado por cima do planalto enquanto ele dormia. O rugido repercutia-se nessas cavidades que os seus ecos haviam aberto aos ouvidos por todo o céu; julgou sentir a terra tremer-lhe debaixo dos pés. Cada trovão vinha ressoar no meio do vale com a violência duma bomba. O que os tomava talvez mais aterradores era o facto de não cair uma só gota de chuva; nem sequer havia vento. Não era de resto a primeira vez que ele assistia a uma dessas trovoadas secas que assustam as mulheres, as crianças e os animais, com a violência e a frequência dos seus relâmpagos e que muitas vezes pegam fogo às granjas ou à floresta. Por vezes, quando se produzia um relâmpago, dir-se-ia que o céu se abria com um ruído de pano a ser rasgado, mas raivosamente. Fechava então os olhos e metia a cabeça entre os ombros. Sentia um verdadeiro ódio por esse arraial gratuito de barulho e de electricidade que sacudia e incendiava ias alturas da noite com as suas salvas, sem despejar sequer uma gota de água, o cabrão! E pensar que essas nuvens podiam fazer cessar imediatamente as suas preocupações! Acabariam as idas a Saint-Julien, as perdas de tempo, o esforço; a cisterna encher-se-ia (com todos os telhados que a alimentavam, bastaria para isso uma noite); a fonte recomeçaria a correr, o tanque também se encheria, ele iria buscar o carro de mão no dia seguinte de manhã, sem que a mulher o aborrecesse com as suas incessantes recriminações, e talvez ela acedesse a ser novamente mulher, visto que há meses, apesar do tanque, apesar da lebre, apesar dos onze mil e quinhentos francos, nada se modificara. A trovoada continuava a dar largas à sua fúria - um verdadeiro fogo-de-artifício nocturno que iluminava o planalto com a sua luz fria, só para aborrecer as pessoas e semear o terror entre os animais.

 

- Se julgas que me metes medo - gritou ele entre dois trovões.

 

Saiu, de cabeça nua, e escarrou para o céu; gostaria que esse tivesse um rosto, que fosse uma pessoa para poder insultá-lo melhor. Era essa talvez uma das razões pelas quais ele mais detestava o universo, quando este lhe dava a impressão de contrariar a sua vontade: ser uma coisa vazia, e não uma pessoa qualquer, para a qual ele pudesse estender o punho e dirigir insultos.

 

Mas de que lhe valia estar-se a cansar para nada? O melhor seria voltar para a gruta, permanecendo lá toda a noite.

 

Estava sempre a tempo de ver os resultados da trovoada quando amanhecesse.

 

Fartou-se de dar voltas debaixo do cobertor, como um cão no fundo da sua casota, sem conseguir adormecer. Ora pensava que o melhor era desistir, pôr a chave debaixo da porta, deixar aquilo e arranjar emprego na mina de carvão; ora voltava a ganhar coragem, decidido a prosseguir a obra, sem se importar com o futuro, descendo a Maheux logo de madrugada, para trazer o carro de mão; iria buscar água com dois garrafões de dez litros, um em cada mão: a Maria Preta que se arranjasse. Pensou em utilizar o cavalo atrelado a um carro improvisado, como faziam outrora nas minas de carvão; mas ele duvidava de que a galeria cheia de escoras desse facilmente passagem ao animal, e desconfiava de que este teria medo de penetrar naquele buraco escuro: se já era difícil fazê-lo entrar no aprisco, cuja porta era muito mais baixa e estreita do que a do seu curral de Mazel-de-Mort!

 

De vez em quando levantava-se para ir saber novas da tempestade: continuava a mesma algazarra, os mesmos clarões ofuscantes, nos quais se materializavam as árvores, os rochedos, as montanhas, os abismós e as nuvens, e julgou ouvir a voz do pai, numa noite em que houvera uma tempestade horrível que tinha destruído a colheita: «E diante do Senhor, soprou um vento forte e violento que abria as montanhas e despedaçava as rochas: o Criador não estava presente no vento.» Ele encolheu os ombros. Seria possível que o Eterno não estivesse no meio de toda esta confusão? E de resto onde é que ele arranjaria sítio para se meter?

 

Voltou a deitar-se, e de novo se deixou de envolver pelas engrenagens das suas obsessões, sem conseguir fugir delas por intermédio do sono.

 

Então levantava-se, acendia a vela, enrolava um cigarro, puxava algumas fumaças amargas, mas era o seu próprio fel que lhe vinha à boca, com a tristeza e com a vingança impotente. Para passar o tempo, deu algumas pancadas na rocha com a picareta, mas fê-lo duma maneira frouxa, sem convicção; é preciso lembrarmo-nos de que ele se sentia bastante fraco, pois não tinha comido nada além daquele punhado de castanhas na manhã do dia anterior; exactamente, pois nessa altura estava-se na segunda parte da noite. Saiu lá para fora, a correr, julgando ter ouvido o crepitar da folhagem; não, era apenas uma rajada de vento que torcia as árvores e levantava turbilhões de poeira e de folhas secas, mesmo assim, porém, o seu pai ainda seria capaz de afirmar que o Criador também estava ausente deste vento brutal que fustigava os bosques e lhe lançava punhados de areia à cara. Os homens obrigaram sempre as coisas a dizer aquilo que lhes convém: bom, só o que é Deus, e mau o que não é. Ele nunca disse grande coisa; o bom e o mau estão tão bem misturados na Terra que perguntamos a nós próprios onde raio pretende Ele chegar.

 

No limite das forças, até no limite da cólera, estendeu os braços em direcção a essas pesadas nuvens negras que se acumulavam por cima das Terras Altas: Oh! Se ao menos chovesse... Mas ele não sentia entre os dedos afastados senão um vento seco quase tépido a deslizar como se fosse areia. Maldita estação! Maldita terra! Maldito deserto onde os cereais, amanhã de manhã, estariam esmagados no chão por esse vento estúpido, obtuso como uma manada de toiros! E o pai, imagine-se, nunca se sentava à mesa diante da sopa de castanhas sem suspirar com uma voz moribunda, extenuada: «Senhor, agradecemos-te as benesses que nos dás.» Se lhe agradecêssemos antes as chatices, a vida não passaria de uma longa acção de graças. Agora, portanto, devíamos ou não acreditar, tal como Elias na sua caverna do monte Horeb, que o Senhor não estava nessa chama vermelha que se via a aumentar e a estender-se, atiçada pelo vento, nesta terra entre Maheux e Mazel-de-Mort, onde o raio acabava de se abater, comunicando sem dúvida o fogo às moitas e às ervas secas? Se o incêndio, não se contentando em queimar alguns hectares de terra, saltasse o leito do riacho, devorando os bosques cerrados, estaria Ele presente neste novo desastre? Foi nessa altura da noite que a tromba de água veio mesmo a propósito para dar a sua resposta grosseira, e não era preciso ser-se um grande sábio para descobrir que o Eterno também não podia tomar parte neste dilúvio brutal, cego, que, embora tivesse afogado imediatamente o incêndio no desfiladeiro de Ferrières, por outro lado, como para se pagar deste serviço, esmagava a colheita no solo. Deus não destrói o trigo dos homens; de resto, é provável que Ele não se interesse absolutamente nada por aquilo que brota na terra.

 

Apoiado contra o parapeito de granito da sua gruta, Reilham tentava iniciar-se na lógica implacável do mundo. Olhava, à luz dos relâmpagos, as torrentes de água a caírem e a rolarem no chão, a encherem os lagos subterrâneos e as cisternas, revigorando os bosques ressequidos e arrastando para os vales a terra dos campos cultivados. Pois não é verdade que sempre lhe tinham ensinado, em criança, que Deus tirava com uma mão o que havia dado com a outra? «O Senhor deu-ma, o Senhor voltou a tirar-ma, bendito seja o nome do Senhor.» Merda!

 

Voltou a deitar-se, desanimado, cansado de tanto absurdo, e desta vez adormeceu imediatamente, como acontece muitas vezes quando chove muito.

 

Já era dia quando se levantou: um dia cinzento, de céu baixo, e regado por uma chuvinha fina e fresca. Lá fora, aspirou uma boa lufada de ar húmido, que cheirava a húmus, a caracóis e a madeira molhada. Ouvia-se um ventinho a estremecer nas árvores. Era como um murmúrio suave e leve que talvez apenas anunciasse o fim dos aborrecimentos e provavelmente também o começo de novos desastres, pois é sempre assim que acontece. Então embrulhou-se no cobertor, visto haver um pouco de frio, e pôs-se à entrada da mina, a ouvir o rumor do mundo, o delicioso estremecimento da chuva na folhagem, o gotejar sobre as folhas, toda uma música que depois dos meses de trabalho, de aborrecimento, de seca, falava uma linguagem que sabia a reconciliação e a paz. Não era necessário misturar o Eterno a todas estas histórias de nuvens, de vento, de relâmpagos e de trovões. O Eterno dissimulava-se nessas coisas. O Eterno faz um jogo de tal modo incompreensível que perguntamos a nós próprios se todas essas noções não serão falsas.

 

Um pouco mais tarde, por volta das sete ou oito horas, quando se dirigia a casa para comer qualquer coisa (nunca tinha tido tanta fome na sua vida), a paisagem começou a clarear e a dilatar-se, os pássaros sacudiam as penas trocando pequenos sons enferrujados. O vento, soprando levemente, arrastava consigo, aqui e ali, poças de céu, dum azul soberbo, novo, brilhante como esmalte.

 

Logo que a mulher o sentiu chegar, abriu a porta e deu alguns passos na sua direcção; estava com um aspecto esquisito.

 

- A mãe morreu esta noite - disse ela lentamente.

E poisou-lhe a mão no ombro.

 

Os prejuízos eram consideráveis: mais de metade da colheita perdida. Foi preciso esperar dois ou três dias de sol para que se visse arrebitar um pouco o pêlo dos campos. A nascente borbotava, a cisterna estava quase repleta, o tanque não tardaria a encher-se também, a estação salvara-se, mas a caixa de ferro é que nunca ficaria cheia.

 

Ele tinha pressa de despachar a rotina das colheitas, enfadonha pelos carregos que era preciso fazer: a terra cultivada mais perto da quinta achava-se a meia hora de caminho. Um dia, tudo isso se transformaria.

 

Entretanto, era preciso enterrar a velha, fabricar um caixão, abrir a cova - atrás do cemitério, onde agora não cabia mais ninguém-, mandar chamar o doutor Stéphane para ele «assinar a certidão».

 

«Estas coisas sucedem muitas vezes no fim do Verão», declarara ele enquanto assinava o papel; e, empurrando o documento com o dedo sobre o oleado, pareceu surpreendido ao ver toda a gente levantar-se logo, para se dirigir ao quarto onde haviam depositado a defunta, para que as más-línguas não os criticassem por causa do sótão. Toda a gente, é como quem diz, eram só três: o marido, a mulher e o sogro. O mais novo contentara-se em enviar um telegrama: «Impossível comparecer em virtude do muito trabalho. Estou convosco de todo o coração. José Samuel Reilham.» A assinatura dos momentos solenes.

 

Mas que interessava ao médico que a velha fosse enterrada imediatamente, sem terem prevenido o pastor? Primeiro, ela estava morta havia dois ou três dias, e quem morre durante uma trovoada começa a decompor-se mais depressa, se bem que, com a magreza dela... Poderia porventura fazê-la voltar à vida o facto de Barthélemy ou outro qualquer vir recitar-lhe sobre o corpo as suas jeremiadas, aquele corpo de velha todo encarquilhado que não pesava mais do que um molho de gravetos carunchosos? Tinham simplesmente aproveitado a presença dele a fim de assistir à cerimónia alguém fora da família. Digamos que isso a tornava menos triste, sobretudo porque o médico vinha bem vestido, de sapatos pretos, chapéu na mão, gravata e tudo. Ele pedira uma Bíblia para ler algumas palavras à beira do túmulo: «Não é esta a religião em que fui educado, mas não importa, devemos-lhe isso a ela»; e acrescentara: «E também o devemos a nós próprios.» Estes doutores não perdem ocasião para dizerem a sua piada. No momento de começar a prelenga, curvara-se de súbito para a Maria Preta e, com um ar estranho, perguntara como se chamava a defunta, enfim, qual era o seu nome próprio.

 

Esta agora... Ela, então, indecisa, olhara para o marido, de pescoço esticado, a piscar os olhos. Despuech não dizia palavra; ele também não sabia, ou não se lembrava.

 

Julieta, era isso mesmo. Julieta. Mas não, que ideia. Abel sacudira a cabeça com um ar entendido: «Sim senhor, garanto-te que ela se chamava Julieta, sei perfeitamente, ela era minha mãe, não era tua!» Tinham acabado mesmo por discutir: «Trocas tudo: desde que fostes lá para cima para o teu poço já nem sequer sabes quantas orelhas tens.» Ela queria a todo o custo que a sogra não se chamasse Julieta, imaginem! Por fim, o médico resolveu a questão: fica Julieta. E fizera o seu pequeno discurso começando por ler uma passagem da Bíblia. Uma passagem que ele, Abel, sabia de cor; era aquela que o velho lia com mais frequência, uma vez por semana, às vezes duas: «A boa fama vale mais do que um bom perfume, e o dia da morte mais do que o do nascimento. Vale mais ir a uma casa de luto do que ir a uma casa em festa; porque é esse o fim do homem e o que vive toma o caso a sério. Vale mais a dor do que o riso; porque com um rosto triste o coração pode estar contente. O coração dos justos está na casa de luto e o coração dos insensatos na casa em festa.» Palavras religiosas, sim senhor...

 

No momento em que o médico consultara o relógio para se ir embora tinham-lhe perguntado quanto deviam pela visita, pelo incómodo. Ele não quis levar nada. «Não lhe levei nada pelo trabalho de trazer ao mundo o mais novo, a si também, não vai querer agora que eu lhe leve dinheiro por morrer!» E parecia furioso ao dizer aquilo; olhara uma vez mais para o caixão no fundo da cova, via-se um bocado de fazenda preta a sair por uma fenda, devia ser isso que o intrigava, depois apertara-lhes rapidamente a mão, pedindo desculpa por não ficar até ao fim, de não ajudar a acabar de encher a cova, e lá partira, com a cabeça inclinada de lado, direito sobre as pernas compridas, elegante, para um homem que já devia andar nos sessenta.

 

Dali a uma hora o sogro fora-se por sua vez embora; pelos vagares com que caminhava, com aquela enorme barriga que agora tinha, embora não comesse grande coisa, levaria bem quatro horas a chegar a casa. Ficaram pois ambos sós na cozinha, ociosos e desocupados àquela hora desusada, em que era costume andarem nos seus trabalhos, cada um para seu lado. e ainda por cima com os fatos-de-ver-a-Deus: na verdade, aquilo parecia uma tarde de domingo ou um dia de festa, aquele descanso dos músculos que deixava transparecer a fadiga; e os próprios pensamentos eram demasiado fluidos para puderem subir até aos lábios. Ele saíra para fumar um cigarro na soleira da porta. A Primavera outonal florescia o céu com pequenas nuvens alegres, semelhantes a um campo de malmequeres; era um céu de arvéolas, de cotovias, de andorinhas, fresco, líquido, azulado, que dava vontade de ir por esses caminhos fora, de conhecer outras terras, de ver a erva à beira das estradas, a ondular sob a carícia do vento, de escutar o roçagar dos choupos na planície. Ele, ouvindo respirar atrás de si, voltara-se: ela fitava o grande dorso da montanha à sua frente, apertava os lábios, engelhava o nariz, uma espécie de careta como quem disfarça a vontade de rir ou de dizer uma graçola: ele não percebia nada, mas de repente viu que os olhos da mulher se enchiam de lágrimas silenciosas; depois esta, tapando a boca, disse: «Agora estamos sós.» Desajeitadamente, ele rodeou-lhe os ombros com o braço, coisa que não voltara a suceder desde o dia em que morrera a criança: «Não, não estás só, tens-me a mim. E por que razão não dizes ao teu pai que venha viver connosco?» Ela desprendera-se lentamente: «Eu estou só, tu estás só, estamos para sempre sós. E morremos como cães! Bem dizia o teu irmão; ouvi-o falar com o doutor da última vez que cá esteve, ou talvez fosse com o pastor, não me lembro bem. Dizia que nós não somos nada. Absolutamente nada. Só esta montanha, que se ergue à nossa frente, representa qualquer coisa para nós. Mais valia sermos uma pedra do que aquilo que somos. Se ao menos...» Olhara em volta abanando a cabeça: que procuraria ela? «Ainda se ao menos, o quê?» Ela limpou os olhos, dobrou o lenço, enfiou-o no bolso do avental. «Não, agora já não é possível, não vale a pena. Sabes tu, sem filhos, a vida de uma mulher...» Voltou para a cozinha. Ele veio ter com ela dali a pouco; estava a cortar as batatas que o pai lhe trouxera para dentro de uma caçarola com água a ferver; nem sequer se voltou quando ele lhe disse (porque tinha de dizer qualquer coisa): «Se eu não encontrar água antes da Primavera vamos embora daqui.» Vestiu a canadiana: a noite ia ser fria lá no alto. Mas estava morto por voltar a encontrar-se só, por se atirar ao trabalho, interrompido havia três dias - por acabar com essas coisas esquisitas que ela lhe fazia remexer dentro da cabeça, em vez de ser ele a remexer a areia e a rocha: ao cabo e ao resto, isso valia mais do que todas essas desgraças. Enquanto durassem as colheitas ele não poderia dedicar à sua paixão mais do que duas horas todas as tardes e outras duas de manhã cedo, o que justificava dormir acampado na galeria; assim, encontrava-se junto do trabalho e poupava tempo. Foi o que ele dissera à mulher ainda há pouco, no momento de partir, um pouco embaraçado por a deixar sozinha a curtir as lágrimas e as ideias negras, mas acabou-se, tratava-se apenas da sogra e, por um lado, até devia constituir um alívio para ela ver-se livre daquelas tarefas nojentas: quando não se trata de uma pessoa do mesmo sangue, diz-se que a carne se revolta contra a carne. De resto, ele não suportava ver-se naquela cama, entre quatro paredes, quando tinha lá em cima à sua espera as ferramentas e a pólvora, paradas havia três dias, desde domingo pela manhã, após a trovoada. O carro de mão chiava e dava solavancos atrás dele, à medida que ia subindo a montanha e a paisagem à sua volta se ampliava; ele tinha a impressão de se reencontrar a si mesmo, de respirar mais livremente, de ouvir melhor, de ter mais olfacto, uma perspectiva mais nítida das coisas, aquela sensação de bem-estar que faltava nos outros sítios.

 

Fez um petardo de mina um pouco mais forte do que o costume, carregou-o com quanta pólvora lhe restava, cerca de quinhentos gramas, para ver se conseguia desembaraçar um pouco o campo de trabalho essa parede cinzenta e adormecida que havia três dias não largava uma grama de rocha: vais ver, minha linda, o que apanhas nas trombas! Encheu o buraco, torceu a mecha de papel de jornal com o resto da pólvora dentro, deixou um orifício na carga bem atacada para a meter e, assim que a acendeu e a viu crepitar, pulou cá para fora, como se tivesse o diabo nos calcanhares.

 

Um bom diabo: aquele era sempre um momento deveras excitante; saltava de rocha em rocha, agachava-se atrás da árvore, com o coração a bater, o pescoço esticado, a boca aberta, à espera da deflagração, como se toda a montanha fosse explodir.

 

Nessa tarde de terça-feira, a montanha não explodiu, mas foi quase a mesma coisa; abraçando o tronco da faia atrás da qual se abrigava, sentiu o estrondo ressoar-lhe dentro do peito e, alguns décimos de segundo mais tarde, esse pequeno intervalo que fazia com que a explosão tivesse qualquer coisa de vivo e de imperfeito, uma nuvem de fumo e de poeira veio coroar a sua emoção com uma estranha embriaguez; talvez por ter estado longe dali durante três dias, havendo duplicado a carga da pólvora para festejar o seu regresso, aquela sensação nunca fora tão aguda e excitante. Já o fumo se dissipara havia um bocado e ainda ele se achava profundamente impressionado.

 

Lá adiante, o resultado fora igual ao estrondo; via-se o chão coberto de lascas de rocha, quase até à entrada. Entre duas lajes pesadas, soltas da parede pela explosão, a luz trémula da vela revelou uma mancha escura; aproximou a chama: era areia! Sustendo a respiração, estendeu o braço, mergulhou freneticamente os dedos na fenda: tudo seco!

 

Desiludido durante um momento, não tardou a reanimar-se, dedicando grande parte do serão a transportar lá para fora, com o carro, os frutos da explosão. Não sentia sono; pelo meio da noite pegou na espingarda e foi pôr-se de atalaia, nessa clareira atravancada de cepos, no meio da qual assistira à formação da trovoada.

 

A noite estava clara, tranquila, tão leve como se fosse o mês de Abril; viam-se tremer palhetas de prata à superfície da floresta: o fragmento de lua que pairava no céu, como um quarto crescente de bilhete-postal em que se vêem dois namorados a beijar-se, bastava para fazer cintilar a face envernizada das folhas lavadas pela chuva da antevéspera. Recordou-se da nuvem fosforescente que avistara, certa noite, ao subir a montanha em frente da mina, como se aproveitasse a ausência dos homens para se manifestar às coisas da terra. Que seria aquilo? Quando o homem voltava costas, o mundo enchia-se de coisas misteriosas, de estranhas cumplicidades, formavam-se alianças cúmplices, alianças desconhecidas, que ninguém sonhava e das quais não restavam vestígios quando eles voltavam. Mas era preciso uma pupila pura e um ouvido exercitado para as poder distinguir, para lhe perceber o rasto, como outrora ele decifrava as pegadas deixadas pelos visitantes nocturnos em redor dos estábulos de Ferrières. Tal como o caçador imóvel no meio de um campo abandonado surpreende pouco a pouco uma vida ainda intimidada que desperta e se espreguiça, esquecida em breve da ameaça emboscada algures, oferecendo à testemunha oculta, estranha ao meio, o espectáculo insólito de criaturas vivas entregues despreocupadamente à existência - uma existência da qual estão excluídos os homens, mas de que alguns deles conservam uma obscura recordação. O perfume dos cogumelos frescos que espreitavam de sob os cepos carunchosos acabou por o adormecer; foi o grito rouco de uma ave nocturna que o despertou dali a duas horas. Indo deitar-se ao fundo da galeria, adormeceu logo.

 

O Outono foi de curta duração; enormes aves de passagem, voando em formação simétrica, negras e silenciosas, precipitaram a chegada do Inverno. Certa manhã, ao afastar o panai que estendera em frente da abertura da galeria, para que o frio da noite não penetrasse, verificou que nevara um pouco; com excepção dos lugares fundos esfumados pela névoa, a paisagem estava branca a partir de um certo nível. Passavam corvos crocitando no céu pálido e frio, em busca de fortuna, chorando a sua miséria; o grito deles condizia com os sulcos dos campos lavrados que faziam pregas sob a neve fina, salpicada aqui e ali de grumos de terra negra. Via-se um risco de fumo azul a sair da chaminé da quinta. Ainda ontem tudo era luminoso e quente. Agora, como os dias de canícula pareciam longe! Aquele brusco mergulho em pleno Inverno fazia fugir cada vez mais o tempo debaixo dos pés e durante alguns dias as pessoas andavam às voltas; como um animal que não reconhece o abrigo; tinha-se a impressão de que a única estação duradoira era o Inverno. Os dias de sol volvidos afiguravam-se tão misteriosos e fugazes como a longínqua mancha de luz da juventude.

 

Agora, que as noites glaciais, o obrigavam a voltar ao seu leito - mas havia também nesta decisão o propósito de agradar à mulher-, adoptara um novo ritmo de trabalho. Saltava da cama às seis horas, engolia um bom prato de sopa e partia para a floresta, o que, ao cabo e ao resto, sempre era melhor do que o trabalho dos campos: lidava sozinho, embora no meio das árvores nunca estejamos completamente sós.

 

A noite caía depressa, mas, para escavar a mina, ele não precisava da luz do dia. Depois das cinco da tarde, regressando da sua viagem pelos bosques e após desatrelar o cavalo, cujas narinas a mulher via fumegar logo que erguia os olhos da malha, atrás dos vidros, reconfortava-se com uma malga de caldo e voltava lá para cima, sacudir a sua montanha e lascar a rocha, até às onze horas ou meia-noite. Ela esperava por ele para se deitar, sentada junto ao forno, com o nariz mergulhado na malha, julgando sempre ver a sogra naquele mesmo lugar que ocupara durante trinta anos, sempre à espera de alguém ou de alguma coisa.

 

Ele pendurava a canadiana no cabide, poisava a espingarda descarregada, e aproximava-se, fumegante, coberto de lama, corado e a cheirar a pólvora, estendendo as mãos gretadas por cima do forno.

 

- Há três dias que sai metade areia metade rocha; sinto que a coisa já está perto. Um dia destes vês-me chegar molhado como um pinto.

 

Ela encolhia os ombros, dobrava a malha, baixava a tiragem do fogão para que as brasas durassem até de madrugada:

 

- Se é que chegas...

 

Ele detestava aquela voz neutra com que ela lhe respondia; uma voz que denotava a sua ausência de interesse, desanimada, desanimadora. Uma voz desumana. Então enrolava o último cigarro do dia; quanto àquela ameaça ridícula, poucas probabilidades tinha de sofrer um acidente; agora, que estava a cavar no mole, com a dupla vantagem de economizar a pólvora, já quase esgotada, e de provar que seguia na boa direcção-, tratava de escorar tudo com traves quase pegadas umas às outras: a madeira não lhe custava nada, a não ser o trabalho de a cortar. No fundo daquela galeria de trinta e cinco metros, sentia-se mais seguro do que na sua própria cama.

 

A mulher pegava no candeeiro, ele seguia-a pela escada a cima.

 

- Descansa, que não me enterras tão cedo! Penetravam no quarto gelado.

 

- Nem sequer será preciso enterrar-te - murmurava ela enquanto apagava o candeeiro, mas entretanto já ele se pusera a ressonar.

 

Por sorte, naquele ano, não caiu muita neve; havia apenas a suficiente para esconder a terra e permitir que as idas e vindas das lebres ficassem marcadas na crosta dura, conduzindo o caçador às suas tocas: matou três a seguir, mesmo antes do Natal, o que veio perfumar e alegrar a atmosfera rígida e fria da casa. Com o produto da venda de uma delas, ofereceu à mulher um par de pantufas quentes, pelo Natal (ela costumava queixar-se de ter sempre os pés frios). Este presente principesco devia prepará-la para a decisão que ele tomara havia algumas semanas e que não tinha coragem para lhe participar: não voltaria mais a trabalhar na serração; não tornaria para o meio da serradura e do barulho das serras, a ouvir de manhã à noite as chufas de todos esses badamecos de Florae, que fingia não escutar, mas que, embora tivesse a pele dura, acabavam por o irritar a valer: chega-se a uma idade em que se resiste melhor às dores do que às feridas do amor próprio.

 

A floresta, a mina... Para já, punha-se a andar dali para fora. Viria o tempo em que ele, graças à água, alcançaria definitivamente a independência; dentro da sua cabeça tinha já esboçados uma porção de planos: talvez a Primavera... Ao pensar nisso, experimentava sempre o mesmo espasmo de ansiedade no ventre, como se fosse dar um salto no vácuo - talvez porque o facto de pensar no futuro se assemelhe um pouco a um salto na atmosfera.

 

Todas as manhãs a geada vinha colar os seus arabescos muticolores sobre os vidros; o ar, lá fora, tilintava como cristal: ouvia-se o mínimo barulho a deslizar sobre o silêncio com uma grande nitidez: o ladrido de um cão, o tombar mole e fofo da neve que cobria os pinheiros e caía no chão de quando em quando, os pingos do degelo do meio-dia, quando os pálidos raios de sol atravessavam o véu cinzento das nuvens, o ranger de uma carroça, o roncar asmático de uma camioneta algures, lá no alto, a lutar com a encosta íngreme, ou muito simplesmente, ao princípio da tarde, o leve estalido da neve sob a tepidez do sol.

 

Certa vez, quando se encontrava a trabalhar em plena floresta, ouviu um grito estranho no céu e, ao erguer a cabeça, avistou um gavião - ou pelo menos uma ave de rapina, que vogava muito alto, no céu branco e anémico - lá longe. Era a primeira vez que ouvia gritar um gavião; de resto, enfiado dentro do seu túnel, não tivera oportunidade de satisfazer essa mania insólita que a vista daqueles pássaros lhe inspirava. Deixou o machado espetado na árvore, pegou vagarosamente na arma, e, entusiasmado pelas três lebres que apanhara, triplicou também a carga de pólvora: tinham-lhe afirmado que a escopeta era capaz de resistir a uma pressão muito superior à normal, e ele havia-o verificado muitas vezes, entalando a espingarda, por precaução, entre duas rochas e puxando depois o gatilho com auxílio de uma guita. O resultado fora surpreendente: a arma troava com uma voz muito mais máscula e enviava o chumbo a uma distância maior: fora encontrar a mais de sessenta metros riscos de chumbo num tronco de árvore. Agora, atenção! Durante toda a sua vida o velho Reilham andara com uma espécie de termómetro na mão. Para atingir a presa era quase preciso enfiar-lho na boca ou no traseiro. Tinham-lhe aconselhado a nunca ultrapassar os dois gramas de pólvora e ele não era sujeito para experimentar por si próprio se poderia pôr três sem rebentar a fronha. Precaução de zuavo: assim procedera não só em relação à água como a tudo.

 

Abel fez pontaria durante muito tempo, com o cano da espingarda apoiado num ramo, visando a ave, um ponto negro perdido lá no alto do céu de Inverno, que o frio tornava mais vasto, apesar do véu da neblina; quando deu o tiro, sucedeu uma coisa extraordinária: como se tivesse sido atingido, o pássaro executou uma espécie de dança, a bater as asas de uma maneira desordenada e começou a cair em folha morta. Fora atingido! Reilham, largando a espingarda, desatou a correr por cima da neve como um louco, de olhos esbugalhados. O coração batia-lhe como o de um cavalo. Acertara-lhe! Acertara-lhe! O gavião, com efeito, parecia incapaz de recuperar o equilíbrio e de retomar altura; batia as asas, ou antes, debatia-se e continuava a baixar, como se estivesse amarrado a um grande peso. Caramba, com a chumbada que apanhara! O homem corria na neve, enquanto afastava à sua frente os ramos que lhe fustigavam as orelhas geladas, tentando não perder de vista a presa.

 

De súbito, o gavião pareceu recuperar as forças e iniciou um voo planado, escondendo-se atrás de uma crista do planalto, duzentos metros mais adiante. No momento em que o pássaro se sumia, Reilham julgou ver soltar-se dele qualquer coisa, que descia com demasiada rapidez para se tratar de uma pena. Não tardou em chegar ao cimo do cômoro, vermelho, ofegante, fora de si; os seus olhos arregalados reviravam-se a inspeccionar em todas as direcções a brancura baça de neve gelada onde sobressaiam aqui e ali tufos de carqueja acachapados no chão. Nem vestígios de milhafre, claro; nada, além de um pequeno roedor que achou um pouco mais adiante, estendido de costas, morto e ressequido, sabe-se lá há quanto tempo. Apanhou-o, observou-o pensativamente deitado na palma da mão, esse feitiço sem dúvida caído do céu e, impressionado, meteu-o no bolso. Talvez houvesse atingido a ave de rapina numa das garras; nunca o viria a saber; em todo o caso fora um tiro extraordinário: arrancar a presa a um gavião que pairava a semelhante altitude afigurava-se-lhe um feito prodigioso e não pôde impedir-se, nessa mesma noite, de ir relatá-lo à mulher. Mostrou-lhe o pequeno cadáver peludo. Maria observou o rato com um misto de curiosidade e nojo:

 

- Atira-me já isso para o lume, fazes favor ? Até parece que pescaste a Lua!

 

Reilham não disse nada, saiu como se fosse deitar o rato fora e enfiou-o rapidamente num buraco da parede interior do telheiro, onde ninguém o iria descobrir. No momento de adormecer perguntou a si próprio se o gavião teria ido morrer mais longe ou se ficaria simplesmente assustado quando o chumbo lhe batera nas asas. Fosse como fosse, alguma coisa acontecera

- e a que altitude! Acabara por acertar nesse alvo embruxado que, periodicamente, atravessava o céu diante dos seus olhos e despertava nele a mais singular e gratuita das curiosidades.

 

No dia seguinte, como se fosse uma espécie de compensação em que a quantidade substituía a qualidade, matou quatro corvos de tamanho respeitável, com um tiro cada um - o que aos seus olhos conferia secretamente mais valor a essa modesta caça; que ele, de resto nem se deu ao trabalho de ir apanhar, deixando-a desdenhosamente para as raposas. Olhava o céu deserto, fixando o sol baço, a sentir crescer dentro de si o mesmo desejo confuso e insaciável.

 

Sem as cabras, naquele Inverno, talvez tivessem morrido, ou pelo menos ficado anémicos; não que elas dessem ainda leite naquela época - comeram-nas. E o mais engraçado foi ele ter conseguido que a mulher devorasse sem fazer um drama as suas próprias cabras (chamava-lhes «as minhas companheiras»); assaram a primeira que durou uma semana; as outras duas foram salgadas e penduradas no telheiro onde fazia um frio de rachar; todas as manhãs Maria ia cortar um pedaço, duro como pedra, com o qual fazia a sopa ou um guisado. Se fosse preciso teria mesmo cozinhado o cão com a mesma terrível indiferença. O universo em que ambos viviam naquele momento nada tinha a ver com o mundo. Ele só pensava na mina, sacrificava tudo àquela tarefa de louco e ela obedecia-lhe, entrava no jogo com aquela passividade sinistra com que se tratam os doidos e que nos é imposta pelas suas manias e pela sua crueldade.

 

Quando o marido lhe participara que não voltaria a trabalhar na serração de Florae, como fizera nos outros anos, ela não reagira; aliás já não se indignara com o sacrifício das cabras - e também não pestanejou sequer quando o viu certa manhã meter a credencia na carroça de um ferro-velho que andava a passar a pente fino toda a região, despojando as quintas dos móveis antigos; chegara até a arrancar pedras das chaminés e vigas dos tectos para fazer fortuna. No espaço de três meses o homem voltou ali para esvaziar os compartimentos ; ajudava a transportar os móveis cujo produto da venda era gasto logo em alimentos e o resto transformado em fumo no interior de uma mina que ia devorando uma casa e o trabalho de três gerações com a voracidade cega e sem limites de um Moloch.

 

Incomodado por a ver inerte perante um tal holocausto, o homem concedia-lhe alguns instantes do seu tempo, a ver se conseguia reanimar entre ambos um simulacro de relações, falando-lhe com aquela voz rouca que empregam por vezes os carrascos quando se comovem com a sua vítima ou precisam dela para alguma coisa:

 

- Vais ver, ali semearemos legumes, aqui flores; além fica a capoeira, temos de a pôr ao abrigo do vento, que dizes?

 

Que havia ela de dizer? Não era com aquelas manhas grosseiras, a dar-lhe a ilusão de que dispunha de qualquer poder de decisão, que ele a faria sair do seu mutismo, do seu desgosto, da sua indiferença.

 

Ela voltava a sentar-se diante do forno, a fazer malha, naquele quarto despojado de móveis, mais vasto e mais frio do que nunca.

 

E o silêncio voltava a cair sobre eles, instalava-se, coalhava como a banha fria, tão pesado que se tornava cada vez mais difícil removê-lo, quebrá-lo com palavras.

 

Certa noite, no entanto, ao regressar da mina, enquanto despejava água na bacia para se lavar diante dela, a mulher ergueu o nariz do trabalho de malha e fitou-o por momentos do fundo desse silêncio, depois fez um sorriso gelado, terrível, para dizer com uma voz dolente, moribunda, uma coisa que o deixou petrificado; foi obrigado a ir lá para fora para que ela não visse a sua palidez. Tinha até vergonha de dirigir a palavra a si próprio, de ficar a sós com a sua consciência e, para se distrair, entrou na cavalariça, dirigiu-se ao cavalo, fez muito barulho com as ferramentas a fim de se acalmar um pouco. Tudo isto não impedia que ela o tivesse surpreendido a falsear a verdade; sem dúvida fora até lá acima e introduzira-se na galeria enquanto ele trabalhava; já era preciso ter pouca sorte para que ela se lembrasse de entrar precisamente na altura em que ele despejava um balde de água sobre a parede arenosa onde escavava! Como havia de lhe fazer compreender que não era tanto para a enganar que fazia aquilo? O facto de ela o ver entrar todas as noites enlameado até aos cabelos era uma garantia de bom êxito da empresa, uma espécie de justificação. E ela desmascarara-o!

 

Era como se ficasse completamente nu diante dela.

 

Enquanto ia almofaçando o cavalo, sempre no mesmo sítio, sem se dar conta, passou um mau bocado na cavalariça.

 

Deixou cair o braço com a almofaça na mão; talvez ela tivesse razão? Talvez fosse preciso ser-se louco para se encarniçar assim no vácuo, às escuras, para nada, até perder tudo?

 

O tempo passava vertiginosamente. Ontem, era Verão; esta manhã, Outono, à tarde Inverno; no dia seguinte, Primavera, estava-se em Março. Enquanto dissipava o pouco que possuía, outros viviam, enriqueciam, viam aproximar-se com segurança a idade da reforma. Ele consumia a vida e os bens em pólvora preta.

 

Largou a almofaça no chão, encaminhou-se para a porta como um autómato e saiu. O céu estava límpido, fazia um tempo frio e seco, as Terras Altas preparavam-se mais uma vez para verem os grandes céus movediços da Primavera. Dentro do seu peito algo se agitava frouxamente, algo que ali guardara durante muito tempo e que agora estava prestes a morrer. Tinha de se render à razão - às razões dela, da vítima triunfante! Deixar Maheux, deixar tudo o que amava para viver entre uma esposa vencedora (se não me tivesses a mim... O melhor é calares-te) e um moribundo que empalidecia a olhos vistos e não acabava mais de morrer! Mas isto ainda não era o pior.

 

O pior era deixar tudo, de certo modo renegar o que fora até então, dizer consigo que tudo quanto fizera não servira para nada, senão para tornar a queda mais fascinante, o fracasso mais irremediável - cativante como uma nascente envenenada - numa palavra, tornar-se outro homem.

 

De súbito, deixando de passear de um lado para o outro, olhou em volta, como quem acorda de um pesadelo; é quase certo que devia ter tido um momento de confusão extraordinariamente atroz, durante o qual não sabia muito bem quem era nem o que fazia no meio daquela história delirante. A paz nocturna estendia na frente dele os seus grandes espaços azuis. Era ali que ele se sentia testemunha de si próprio, um estranho cheio de espanto! Como era esquisito esse estado intermediário em que não se sentia nem bem nem mal, nem ele próprio nem qualquer outra pessoa. Dir-se-ia que os pés não o sustentavam já, que acabava subitamente de perder todo o peso do corpo.

 

Ficava para ali, sentado no muro baixo e arruinado que cercava a eira, onde o irmão, outrora, outro louco, costumava vir construir as suas torres de fumo...

 

Torres de fumo, eis no que a gente consome a vida: a construir torres de fumo... A atirar com uma espingarda velha sobre alvos inacessíveis... A queimar os móveis, a deixar os campos em pousio e as culturas ao deus-dará para nos confinarmos num desastre irremediável - a cortar atrás de nós as pontes da realidade, a preferirmos a sombra à presa, a castigarmo-nos, a privarmo-nos de tudo, a impedirmo-nos de estar no mundo, no meio dos outros para ficarmos sós em parte nenhuma, era mais ou menos isso o que outrora o doutor Stèphan censurava à sua mulher, sobretudo depois da morte daquela pobre viúva sequestrada em Poitiers-Maheux, a qual vivia também fora do mundo, na sua grutazinha; são trogloditas do pensamento, eis o que nós somos todos e não me venhas fazer acreditar que é água o que esse cretino vertical procura lá na montanha!

 

- Mas que sabes tu disso?

 

- Sei-o porque sou eu a primeira vítima. Escuta, escuta: não há nada de que os homens gostem tanto como daquilo que os mata. Os homens só amam a morte. E Deus não se importa nada com isso. Pelo menos o Deus deles. O nosso. Aquele a quem adoramos. Quem sabe, às vezes penso que a história da criação está ainda por escrever e talvez Deus, se é que existe, vá mudar de táctica. Se acaso Ele não existe, então estamos fritos, porque também nós andámos a escavar a nossa galeria há tanto tempo que a escuridão se fechou atrás de nós quase definitivamente e só uma catástrofe poderia salvar o futuro.

 

- Nunca compreendi de que maneira se pode estar ao mesmo tempo lúcido e embruxado.

 

- Palavra de mulher, palavra luciferina: não se deve confundir a verdade com a explicação da verdade.

 

Porque um miligrama de esperança - aranha venenosa que refaz continuamente a sua teia para nos apanhar - é uma carga mais poderosa do que o poder do universo. E eu não estou assim tão certo de que toda essa gente seja responsável por fazer batota: a realidade é horrível, tanto a que existe de facto como aquela que ambicionam para nós os especialistas.

 

Que se passou naquele momento na sua cabeça? Deve ter tomado a decisão de parar com tudo, de liquidar aquela maldita quinta, de ir atrás da mulher para Mazel-de-Mort. Entrou em casa para lho dizer, mas ela já estava deitada e adormecera, ou estava a fingir que dormia. Ainda se o destino tivesse ajudado... Porém este concede quase sempre os seus benefícios a quem menos precisa deles. Fosse como fosse, ela nunca devia ter feito o que fez. Por um lado, é compreensível; mas não é com vinagre que se apanham moscas e, ao vexá-lo daquela maneira, à vista de toda a gente, era de esperar que ele se revoltasse, que teimasse na sua, se entrincheirasse definitivamente na sua ideia fixa.

 

No dia seguinte pela manhã, logo ao romper do dia, ele subiu lá a cima para ir buscar a ferramenta. Sentia-se sempre um pouco atordoado, hesitante, estranho a si próprio, a nadar entre duas águas, sei lá... Empilhou tudo no carro de mão, ferramentas, pólvora, oleado, candeeiro, e voltou a descer como que em transe, como alguém que acorda de uma prolongada anestesia. Mas precisamente o destino, providência cega, dá muitas vezes um empurrão, mas sempre no sentido para onde nos inclinamos.

 

Parou o carrinho em frente da porta. Chamou por baixo da janela do quarto: «Maria! Maria!» Todo contente por lhe anunciar a novidade. Era uma destas alegrias compensadoras que fazem com que uma pessoa não se afunde por completo. Ela iria ficar radiante e seria o recomeçar de tudo. Maria! Maria! Bem podia ele chamar por ela até ao dia de São Nunca! Entrou, subiu, abriu a porta do quarto: a cama estava vazia e ele não levou muito tempo a compreender que ela voltara para casa do pai quando viu o armário - que escapara até àquele dia de ir parar ao ferro-velho todo aberto, vazio.

 

Desceu as escadas a galope, deu a volta às dependências, foi até à fonte - Maria! Maria! - por descargo de consciência. Voltou a subir a correr, entrou na cozinha, onde o forno apagado e a lareira vazia o aguardavam para lhe tirar todas as ilusões. O facto de que o filho tivesse morrido, que lhe houvesse vendido os móveis e comido as cabras, para ele nada disso tinha qualquer significado: a única coisa que via em tudo isto é que, após uma noite de tortura, vinha restituir-lhe a melhor parte da vida que tinha a consciência de lhe haver roubado ao casar-se com ela, mas a mulher preferira colocá-lo perante o facto consumado: e então, dentro da sua cabeça, o homem fez desfilar todos os factos a seu favor. Em suma, passou a fita ao contrário para retomar as coisas no ponto em que as deixara na véspera, no momento em que sentira faltar-lhe a terra debaixo dos pés. Não havia nenhuma razão para ceder. Agora é que iam ver do que ele era capaz; ah, a patifa! Deixá-lo sozinho depois de tudo quanto fizera por ela! O tanque, a fonte, o trabalho aturado em Marvéjols, os católicos a olharem-no de soslaio quando se sentavam à mesa, e o dito do patrão quando ele se mostrara admirado: «O senhor prior disse-nos que os huguenotes têm um olho no meio da testa.» A chatice de andar com o carro de mão, o cortejo de olhares e de murmúrios nas suas costas, todos aqueles idiotas de Saint-Julien - depois, enfim, a miséria da vida que nos vem à lembrança, essas feridas de amor próprio que nos doem desde a escola primária, as injustiças da sorte que nos persegue enquanto vai bafejando outros... Não seria, pois, legítimo querer tirar uma desforra de todas estas humilhações acumuladas, às quais ninguém prestara atenção durante os tempos de abundância e de bem-estar? Assaltava-o a raiva do macho e, pegando numa cadeira, fê-la em bocados contra a parede.

 

Estendendo o punho cerrado na direcção de Mazel-de-Mort, atirou-se aos restos da cadeira: «Maldita! Maldita! Maldita!» Em seguida deixou-se cair sobre a última cadeira que havia na casa e, com a cabeça entre as mãos, pôs-se a chorar. Numa voz grossa e gutural, entremeada de soluços que abalavam a casa como um mugido de animal doente.

 

Uma Primavera amarga, selvagem, oceânica, que vinha da Aquitânia em lugar de descer o sul, empurrava à sua frente grandes nuvens rápidas de ventres cor de ardósia e sacudia a floresta, espalhando uma espuma de sol intermitente sobre os tapetes de oiro fino da erva nova. A água, correndo por toda a parte, livre e anárquica, envernizava as grandes lajes verticais, os muros na sombra, os cemitérios de urtigas, os campos de batata, exumando palhetas de mica. Um ano de sol e água com praias de calma pelo meio do dia, quentes como uma boca... Os silvedos trocavam pássaros entre si como pedradas. No fundo das poças, dos charcos, o céu de nuvens viajava em superfícies rugosas, geladas, sob aquele vento celta que mugia através dos restolhos como um rebanho de búfalos. A erva prolongava até ao infinito a sua passagem invisível e sonora e, atrás dos vidros azulados, as velhas esticavam o pescoço para seguirem com os olhos a sombra de um imenso navio que atravessava os trigais, ainda tenros, afastando-os. Via-se galopar atrás dele uma horda de pequenas nuvens que escalavam com presteza os taludes e saltavam os muros com a mesma rapidez impetuosa. O vento trovejava nas vielas, nas quelhas, nos alpendres onde se engolfava a ponto de cortar a respiração, dentro dos abismos espelhantes dos poços. O dia transformava-se, metamorfoseava-se em súbitas reviravoltas, explodia em caleidoscópios: primeiro, ao romper de alva, pálido luzir das pedras e dos tectos molhados por uma manhã chuvosa e cor de estanho. Manhas ventosas, enevoadas e soalheiras, antes da escala do meio-dia, em que por vezes o vento lançava a âncora. O casal, toda a aldeia aparecia então, como no estio, em plena claridade, porém o gradeamento severo dos ramos mantinha-lhe a escuridão essencial do Inverno. Nunca chovia à noite, mas o céu abria-se ao contrário, vasto e multicolor, para as bandas do pôr do Sol, do oceano, do oeste sumptuoso, das Americas - a América do Norte, a das estrelas, à qual haviam pertencido aqueles planaltos na era dos trilobitas. As Terras Altas voltavam a ser mar na hora do crepúsculo e o vento rodava na direcção da Estrela Polar.

 

Pela manhã, tinha de levantar-se cedo e de ir beber onde bebiam os javalis; deixara de fazer a barba. Se não tinha mulher, para quê barbear-se? O tanque transbordava de água luzidia e azulada, como a dos glaciares - dura como o aço: depois de lavar a cara, esta ficava insensível durante um bocado. Nos prados em ladeira que cercavam o vale, o vento galopava a anunciar a ascensão do Sol, porque agora o céu cor de alfazema estava todo limpo: fora-se embora a chuva: só vento e sol.

 

Ele espreguiçava-se à luz vermelha e horizontal, esticava os braços, as pernas e os rins, ainda um pouco moídos da fadiga. No entanto, não era a humidade da galeria onde dormia em cima de um molho de palha que lhe enferrujava as articulações: areia e cascalho, um Sara subterrâneo, despejado lá fora por inúmeros carretos, atingindo mais de vinte metros de altura. Ao fim de cada dez carretos, poisava a picareta e a alavanca, cortava troncos e escorava a galeria. Os seus gestos encadeavam-se uns nos outros mecanicamente, um longo repouso das ideias, um olvido do passado, um afastamento voluntário do futuro. O presente imutável pesava à sua volta, alguns milhões de anos concentrados em muitas centenas de toneladas de rocha, e o silêncio - não um silêncio arfante, movediço, mas antes em silêncio mineral, asséptico, em face do qual, por vezes, iludido pelo ruído das próprias pulsações, ele apurava o ouvido a tentar localizar ou surpreender um barulho da nascente, um pingar longínquo. O facto de, lá fora, o mundo mudar, mover-se, luzir, ter cores, afigurava-se-lhe, ao cabo de várias horas de trabalho, uma coisa improvável e, sempre que saía para despejar o carro de mão ou fumar um cigarro, ficava tomado de espanto e a sua vista não se cansava de contemplar o azul e o verde, unidos à sua volta através dessa floresta que o céu cobrira.

 

Por vezes escutava uma voz que o chamava lá de baixo: «Eh lá! Correio!» Era Deleuze que lhe vinha meter por baixo da porta reclamos publicitários - ou muito raramente uma folha cor-de-rosa que ele amarfanhava raivosamente e se apressava a meter no lume: as Finanças, num lugar daqueles, que fossem à merda, pois então! Deitado no catre subterrâneo, percorria os papéis à luz da vela, seduzido pelas cores vivas e pela precisão agressiva desses produtos de um outro mundo: Homélite, MacCulock, um instrumento de trabalho semelhante a um tanque de guerra, que se manipulava em frente das árvores como uma metralhadora.

 

Invadia-o então um sentimento deveras perturbador: o mesmo que experimentava ao ver atravessar o céu, rugindo nas entranhas da sua fuselagem cintilante, um enorme avião, símbolo de uma nova juventude do mundo, nascida lá longe e que sobrevoava os antigos territórios com o esplendor altivo das raças conquistadoras. Nesses momentos sentia-se esmagado no solo, como que coberto de trevas e poeira, furioso contra a máquina, contra essa juventude orgulhosa e veloz que lhe estava para sempre interdita, a ele, que fazia parte da velha raça dos homens-árvores, plantados e enterrados na terra, a ele, que se unia ao mundo no seu ódio e na sua paixão como se unem a terra e o céu, a unha e a carne, numa união forte e dolorosa e no entanto tão irrisória em face desses instrumentos vencedores, de uma eficácia irritante e espectacular.

 

Atirava com os papéis para um canto, enroscava-se debaixo do cobertor, mergulhava no asilo do sono do qual saía algumas horas depois, lavado dessas tentações passageiras, fresco e liso, polido como um calhau da ribeira; subia e descia dez vezes a eito a galeria em todo o seu comprimento a fim de a gozar como um bem adquirido - não por vaidade do que conseguira executar sozinho, mas sim porque a sua obra se lhe afigurava bela e satisfatória em si; aquele túnel subterrâneo, recheado de traves e mergulhando em linha recta no coração da montanha, possuía agora um fim, era uma bela obra, uma busca executada com todas as regras da arte, com um cuidado de maníaco, até o solo era de uma limpeza extrema e seria até mal empregado apenas para tirar água da montanha.

 

Para que outro fim poderia servir, isso ser-lhe-ia muito difícil dizer, mas se fôssemos a suprimir da face da Terra tudo quanto não serve para nada e obceca os homens, não mais acabaríamos, e ele chegara a um ponto em que a perseverança se transforma em teimosia; em que, num terrível momento de dúvida, a ideia de poder ter andado a escavar para nada, de ter dado cabo da vida sem obter qualquer resultado, o obrigava a deitar mãos ao trabalho com uma espécie de cego furor. Imaginava então que a única solução, a única forma de sair daquilo, seria continuar sempre para a frente, mais e mais - até chegar ao outro lado da montanha, com mil diabos!

 

A essa eventualidade - encantadora, sem dúvida, de um ponto de vista simbólico, ao qual apenas serão sensíveis os mais loucos coca-bichinhos - ele sentia (mas é que sentia mesmo!) o sangue gelar-se-lhe nas veias e o coração parar dentro do peito; largando a ferramenta, errava dentro da galeria, ia lá fora dar uma volta, pegava na espingarda para acalmar as ideias. Atravessar a montanha sem encontrar nada, impossível! A Aiqualette não podia estar vazia, uma vez que brotava uma nascente à mesma altitude do túnel no vale de Combebelle, e também a sua fonte, lá em baixo, não, não, ao cabo e ao resto ele não escavara mais do que uns cinquenta metros através de uma montanha que devia medir bem os seus setecentos ou oitocentos metros de largura naquele sítio - porque havia de atormentar-se sem razão? - cava, cava, Reilham, não te deixes influenciar por essas patetices: daqui para o futuro só tens de dar contas a ti próprio, aos teus sonhos, tu que preferes sonhar a compreender o mundo. Talvez porque sabes que não há nada que se possa compreender.

 

Havia já umas cinco ou seis semanas que a Maria Preta se fora embora para Mazel-de-Mort e ele só tivera notícias dela por intermédio do carteiro: «Manda-te dizer que está bem, que podes ir ter com ela quando quiseres.» As pessoas imaginavam que ela tinha ido tratar do pai, que andava muito caído, e que Reilham acabaria por desanimar e ir para a sua companhia. Alguns censuravam o carteiro, considerando-o em parte responsável por aquela triste aventura. «Não é tão triste como isso, devem estar a caçoar comigo,» exclamava ele. «Digam-me só o que pode valer a Maheux, sem água, para um pobretana da aldeia? Nem um centavo... Se um dia conseguirem vender a terra será ainda graças a mim.»

 

O que veio precipitar os acontecimentos foi a visita que Despuech fez ao genro. Teria feito melhor se não tivesse metido o nariz onde não era chamado!

 

Estava uma manhã pesada, febril, a primeira do ano a ameaçar trovoada; o céu apresentava-se carregado, a esmagar o silêncio sob nuvens enormes, um silêncio excitado, cheio de moscas, vespas e mosquitos, coberto por um céu de cimento que parecia prestes a rebentar num torvelinho de relâmpagos azulados.

 

Reilham preparava-se para colocar uma carga; no meio do banco de areia deparara-se-lhe um enorme bloco de pedra, inatacável à picareta. Ouviu vagamente alguém a chamá-lo lá de fora: era o sogro, com uma cara de desenterrado, quase a morrer de asfixia pelo esforço da subida. «Bom dia, bom dia, como passas tu, bem obrigado está um tempo infernal.» Nenhum se atrevia a ir mais longe do que aquilo. Por fim o velho resolveu-se:

 

- Vais adiantado!

 

E abanava a cabeça, não com grande entusiasmo, fixando as centenas e centenas de toneladas de areia, de calhaus, de rochas de tamanho impressionante despejadas sobre a floresta e que haviam acabado por submergir algumas faias cujos ramos se viam ainda ao cimo: Reilham não devia ter consciência do aspecto um pouco monstruoso que assumira a escavação; o outro ficara de boca aberta, a filha contara-lhe, é certo, mas ele tinha de ver para crer.

 

- E em que alturas está isso agora?

 

e Abel principiou a enrolar um cigarro e fez menção de que tudo ia bem. -Não me mostras o teu buraco? O seu buraco!

 

Reilham sentiu qualquer coisa crispar-se dentro de si. No entanto resolveu disfarçar até ao fim e meter o velho na ordem, não com insultos, mas mostrando-lhe o que um homem é capaz de fazer quando não está ainda a pontos de bater a bota como ele.

 

Convidou-o, pois, a entrar, foi acendendo as velas, colocadas de cinco em cinco metros, em latas de conserva pregadas nas vegas: esta iluminação subterrânea não podia deixar de impressionar o velho, que arquejava e cuspia atrás dele, a meter sem dar por isso a cabeça entre os ombros. Voltaram a sair dali a pouco sem que tivessem trocado palavra: Reilham iria jurar que o sogro, convencido pelo que vira, viria às boas, acabando por o felicitar. Porém Despuech não tinha as mesmas razões que ele para admirar a proeza e aguardava os resultados futuros para se manifestar: proezas como aquela, precisamente, era o que mais se via nessa maldita região, que se apaixonava de preferência pelas causas perdidas, pelas batalhas impossíveis de ganhar: passadiços, muros de pedra solta, centenas e centenas de quilómetros construídos pedra a pedra e que equivaliam bem aos sete trabalhos de Hércules. Aquilo por que ele lutara desde sempre

- estradas, electrificação, irrigação, cooperativas, movimentos regionalistas, a independência económica, a dignidade política-, tudo isso condenava o carácter privado e insensato daquela empresa, a desproporção louca entre um resultado incerto e uma soma de trabalho esmagadora - inútil talvez, inútil certamente se aquilo que começara a temer havia pouco se verificasse como certo; inútil e criminosa: o velho pertencia àquela raça de uma rectidão incontestável que guarda dentro de si um ódio feroz a tudo quanto há de irracional na história humana, não por uma questão de avareza mental perante o que é incerto, mas pelo horror de sacrificar aquilo que é em proveito daquilo que talvez nunca venha a ser nada. A escavação no meio das árvores, toda aquela energia que poderia ser aplicada mais inteligentemente noutra coisa, só teria como resultado o desastre para uma família e a ruína das terras (ele verificara pelo caminho o estado de abandono dos campos). O furo aberto na montanha, a vomitar as entranhas cuja secura atestava bem a falta de água ali existente, era como que um buraco aberto na razão do genro, como que um cancro gigante.

 

Começou a falar-lhe, primeiro moderadamente, depois colocando pouco a pouco os pontos nos is, a fazer-lhe compreender que tinha de se mostrar razoável, de se render à evidência: naquela montanha não havia água.

 

- Isso é que há - retorquiu Reilham. - Eu tenho um segredo.

 

- Não sei a que segredo te referes, mas se é aquele de que todos falam, quero dizer-te que estás redondamente enganado.

 

O tom começava a subir entre os dois; nos momentos em que emudeciam, o silêncio cobria-se de moscas como um cadáver.

 

- Tudo isto para nada! - declarava Despuech, com a voz entrecortada e arquejante de quem já pouco pode viver e que vê as coisas como elas são; observava o aterro da mina, abanando a cabeça:

 

Pensar eu que fizeste tudo isto para nada! Parecia descoroçoado e não cessava de repetir: t - Tudo isto para nada!

 

O outro sacudia a cabeça, recusando-se a compreender, entrincheirado no seu segredo:

 

- Eu cá tenho um segredo... Já lhe disse que tenho um segredo...

 

- Qual segredo, qual carapuça! - impacientou-se de repente Despuech. - Olha só para isto, caramba!

 

Curvou-se com esforço e apanhou um punhado de areia num dos últimos montes despejados pelo carrinho de mão, pondo-se a esfregá-la nas mãos:

 

- Que mais queres tu? Ainda não percebeste que nunca encontrarás nada? Nada, ouviste? Não percebeste que não encontraste água porque te enganaste na montanha?

 

Reilham atirou fora o cigarro meio fumado e deixou cair os braços, com as mãos abertas - branco como um lençol. Não se sentia o mais leve sopro de ar; nem uma folha bulia. Era caso para se dizer que se ouviam voar as moscas, como se a floresta fosse toda ela um açougue.


» - Que diz vossemecê ? - gaguejou ele.

 

- ó meu desgraçado, estou a dizer que há meses e meses andas a trabalhar para nada: a Aiqualette é outra crista, a que fica lá atrás.

 

Apontava o morro coberto de bosques que não era a Aiqualette e que, por isso mesmo, parecia de repente revelar aos olhos de todos uma porção de taras e vícios ocultos, a sua insignificância e a sua esterilidade.

 

Ao ver a cara do genro, o velho acrescentou, como que para o consolar:

 

- Podes dizer que se trata do mesmo maciço e que a toalha de água podia muito bem estender-se até aqui. Foi o teu carteiro quem me fez desconfiar do erro ao referir-se à nascente de Combebelle. Ele pensa que ela se encontra na vertente leste de Aiqualette... Eu conheço-a bem, essa nascente, costumava ir lá em miúdo. E posso afirmar-te que entre esta crista e a Combebelle existe outra, que é precisamente a Aiqualette. ..

 

- Ora! A Aiqualette! A Aiqualette! Já começa a chatear-me com a sua Aiqualette... Vou escavar mais para a frente, é o que tenho a fazer.

 

O outro veio respirar-lhe mesmo por baixo do nariz:

 

- Ainda que fosses descobrir lá no fundo as cataratas do Niagara, isso mudava alguma coisa à tua situação? Nem por isso serias menos burro!

 

- E se me apetecer continuar a escavar para nada ? Desmascarara-se!

 

Foi aí que as coisas começaram a azedar-se: seguiu-se uma troca de palavras desagradáveis e logo Despuech desatou a tratar o genro por «você». Você para aqui, você para acolá, como se estivesse a dirigir-se a uma assembleia de pessoas culpadas da mesma teimosia, dos mesmos absurdos; isto era a última etapa antes de chegarem a vias de facto.

 

- Ora, Reilham! Tudo quanto você conseguiu até agora foi tornar a sua mulher infeliz e fechar-se em si próprio para não enfrentar a verdade: você não tem juízo, bem vê que nunca encontrará nada. Mais vale deixar este buraco de uma vez para sempre.

 

- A minha nascente!

 

Deu um passo a trás e empunhou a picareta; sobre o cabo desta viam-se-lhe as falanges crispadas, brancas. Avançou lentamente com uma névoa vermelha a subir-lhe à cabeça. Uma ira que datava de um quarto de século - contava trinta e três anos de existência, num universo que não era verdadeiramente o seu começava a ferver-lhe dentro das veias. Sentia perigar a sua vida, os seus bens, tudo.

 

Despuech tornou-se ainda mais pálido do que ele; tinha os lábios a tremer, as faces, as pálpebras, numa dessas transformações que revolvem as fisionomias e exibem à luz fealdades e abjecções longamente amadurecidas e que num repente explodem em caretas e em rugidos ferozes: o eu intratável em oposição ao outro eu que não suportava. Se não se defendesse, o outro abrir-lhe-ia a cabeça. Recuou alguns passos, sempre seguido pelo genro, cadavérico. Estava agora muito perto da árvore; em dois tempos e três movimentos agarrou na escopeta que pendia de um ramo e apontou-a à barriga do louco que se preparava para o liquidar.

 

- Se dás mais um passo, disparo!

 

A sua voz não era mais do que um sopro inaudível, no limite da asfixia, o que lhe dava um tom estranhamente confidencial.

 

Talvez não valesse a pena matá-lo.

 

Ambos eles brancos - medonhos -, com a lividez dos grandes momentos: nem uma gota de sangue nas veias. Onde diabo se meterá todo esse sangue nos momentos em que o ódio galopa à solta, estilhaçando os crânios, furando barrigas, arrombando cofres? Ambos estavam a proceder estupidamente, mas não a ponto de irem até ao fim. Era a ver qual deles daria primeiro parte de fraco. Fosse como fosse, tanto a espingarda como a picareta baixaram-se ao mesmo tempo.

 

Despuech recuou lentamente para o abrigo das árvores, com os canos da espingarda voltados para o chão; o aço das duas armas apontadas ficara entre eles como um estrago irreparável.

 

Um pouco mais longe, o velho começou a descer a direito. De tempos a tempos, olhava para trás a ver se o outro o seguia. Ao passar em Maheux, atirou com a espingarda para a soleira da porta.

 

A claridade - dúbia, completamente imóvel - caía de cima como se se estivesse dentro de uma cave: sem a menor variação de intensidade havia algumas horas, como se, algures, uma gigantesca avaria planetária houvesse interrompido o movimento dos astros. Nunca o céu tapara de tão perto a Terra com uma abóbada impressionante como aquela; viam-se formar e esmagarem-se umas contra as outras umas espécies de circunvoluções acinzentadas, de aspecto hostil; estava-se à espera de as ver contorcer-se e cuspir como serpentes.

 

Sentindo o estômago apertado por um espasmo de fome, Reiiham desceu à quinta e encontrou a espingarda, carregada, em frente da porta. Sabia perfeitamente que não havia nada para comer dentro do armário, mas tinha necessidade de bater com as portas, de revolver as gavetas, de atirar as prateleiras a baixo, a fim de descarregar os nervos. Todos estes gestos se destinavam a impedi-lo de pensar.

 

A cadeira quebrada no chão, no meio da cozinha, trouxe-lhe à lembrança a fuga daquela puta. Tudo quanto lhe sucedera era culpa dela. Saltou como um louco sobre a última cadeira válida da casa, que dormia tranquilamente no seu canto, e fê-la em bocados num abrir e fechar de olhos. O estrondo aliviou-o tanto como se estivesse a brincar; mais duas ou três descargas de fúria deixaram estendidos, em pensamento, aqueles que tiveram a pouca sorte de lhe vir à ideia: o irmão, que desertara para a Suíça, o pastor, cujos óculos reduziu a estilhaços, o pai e a sua oração idiota ao Eterno que tudo nos deu e que, embora já estivesse feito em pó, foi uma vez mais pulverizado. Um trovão prolongado, que parecia abranger toda a região, abalou a casa e fez tremer durante um instante os vidros dos caixilhos; dir-se-ia que ecoava em todos os abismos da Terra. Subiu ao primeiro andar; ninguém, nem uma côdea de pão debaixo da cama; à falta de uma pessoa humana, foi o leito que ele empurrou para o meio da casa. Os bosques, oscilando através da janela, proporcionaram-lhe, ainda assim, um momento agradável.à sua volta, os objectos, reduzidos à impotência, encolhiam-se nos cantos como animais assustados. Os pontapés que ele vibrava à direita e à esquerda paralisavam de terror os mais corajosos. A certa altura, julgando ouvir um ruído nas entranhas da casa, guardou silêncio. Algo fizera estremecer o chão, mas não fora a trovoada, era o cavalo! Esquecera-se do cavalo! Começou antecipadamente a rilhar os dentes de prazer; via-o já diante de si, a esvair-se de medo e lançou-se em perseguição daquela imagem pela escada abaixo. O animal, pacífico embora faminto, ruminava um sonho de pradarias verdes sob a abóbada escura da cavalariça. Frustrado de afeição, cometeu o erro de confundir uma primeira paulada que ele lhe vibrou no cachaço com um rude sinal de afecto, o que o levou a soltar um fraco relincho de reconhecimento, que teve como consequência redobrar o furor do seu proprietário. «Ah, meu estupor, vais ver o que te faço!» O infeliz encaixou uma data de pauladas e socos na barriga, que estava esticada e sonora como a de todos os animais subalimentados. Demasiado velho, fraco e cansado por tudo quanto passara na vida para fazer frente ao inimigo, cujo comportamento, de resto, o desorientava, o bicho limitou-se a dar dois ou três esticões violentos com a cabeça, que tiveram como resultado partir a corda do cabresto. Fora de si, com a raiva atiçada pelo seu desastramento, Abel preparava-se para o abater a tiro, terminando assim com um crime aquele longo martírio, quando a besta, perdendo a paciência, deu uma parelha de coices que estilhaçaram a porta carunchosa, da estrebaria; e, sem esperar pela resposta, receando sem dúvida as consequências que poderia vir a ter tal ousadia, pôs-se a andar dali para fora, nas barbas do seu carrasco, que ficou de cara à banda. Este ainda pensou em o perseguir para o liquidar definitivamente no meio dos bosques, porém o animal, galvanizado pelo terror, num assomo de juventude, reencontrara as antigas forças, e seria preciso correr durante muito tempo para o alcançar. Que fosse morrer longe! Talvez um raio, atraído por tamanha injustiça, se colocasse do lado do homem, encarregando-se da tarefa de estender por terra o miserável. Reilham voltou a sair para o pátio, de olhos esbugalhados, em busca de qualquer objecto que aparentasse querer resistir-lhe, mas a fuga do cavalo debaixo da trovoada havia roubado a tudo as derradeiras veleidades de resistência, e todas as coisas pareciam como que mortas quando ele se aproximava.

 

O próprio destino, habitualmente sempre pronto a contrariá-lo, na sua passividade agressiva, e a destruir-lhe todos os planos, parecia hoje aceitar a fúria dele e encontrar uma voz para aprovar as suas atitudes, pelo menos era assim que ele interpretava cada trovão, como sendo um clamor a encorajá-lo. Penetrou na queijaria, em busca de algum queijo esquecido para roer, mas encontrou-a deserta, estúpida, a mostrar-lhe descaradamente as formas vazias, e foram estas que pagaram as favas da sua desilusão. Acabou, no entanto, por descobrir, numa prateleira da casa da barreia, uma ratazana morta de velha que trincou raivosamente. Foi contudo essa casa da barreia que o salvou.

 

Nesse momento, ouviu-se uma deflagração atroadora que o atirou contra a parede, acalmando-o instantaneamente. Dir-se-ia que a casa acabava de ser destruída por uma bomba. Precipitou-se para a porta, abriu-a, correu para fora, e a primeira coisa que viu foi uma torrente de fumo branco a sair do telhado arrombado do palheiro. O raio! Ia arder tudo enquanto o diabo esfrega um olho. Agarrou num balde e correu para a bomba: estava desferrada! Momentos antes, teria pago caro este fracasso, mas não eram alturas de pensar em vinganças; tentou levantar a tampa de ferro e mergulhar o balde directamente na cisterna - que por sorte estava cheia até às bordas -, mas tinha-a fechado com um cadeado de ferro no ano anterior, quando exercera represálias sobre a mulher, e não conseguia lembrar-se do lugar onde escondera a chave. Tomado de uma súbita inspiração, desabotoou a braguilha, urinou no balde e despejou este em cima da bomba, agitando esta em seguida freneticamente. Sentiu aumentar a resistência e, ao cabo de um instante, começou a correr uma água ferrugenta. Porém aquilo era o mesmo que querer apagar um braseiro com um dedal! Na palha seca e nas vigas carunchosas, o incêndio propagava-se rapidamente; ainda teve tempo de despejar o balde umas vinte vezes antes de o edifício estar completamente em chamas, até que o telhado ruiu no meio de uma girândola de faúlhas e de fumo preto que subiam para o céu com palpitações azuladas de alta tensão; só parecia obra do diabo. Sem uma intervenção providencial, dentro em pouco Maheux ficaria transformada num montão de ruínas fumegantes.

 

De repente, sentiu-se tomado de um desânimo isento por completo de revolta e, deixando o balde rolar por terra, sentou-se na soleira, a contemplar o sinistro em acção com uma espécie de curiosidade indiferente, como se a casa não fosse dele e tivesse de aguardar o fim do espectáculo para se ir embora dali. Pelo andar da carruagem não teria de esperar muito tempo: o fogo já se pegara ao edifício anexo à casa e ouviam-se estalar as ardósias devido à intensidade do calor.

 

De súbito, os degraus da escada ficaram crivados de gotas de chuva, depois tudo começou a crepitar à sua volta, e a tromba de água que caiu quase miraculosamente dominou o incêndio num abrir e fechar de olhos. Mas o palheiro, assim como uma parte do aprisco, estavam destruídos. Abel ficou um grande bocado imóvel debaixo do aguaceiro, a fitar as travês enegrecidas, enquanto perguntava a si próprio qual seria o poder maligno com quem era obrigado a lutar até pela posse do tecto que o cobria. Que fazer agora? Passar a noite naquela casa vazia, sem móveis, não o seduzia de modo algum. Tentar agarrar o cavalo, abatê-lo a tiro e comê-lo? Ir a Mazel-de-Mort, implorar, fazer ameaças, até conseguir algum dinheiro para continuar a escavar a galeria, prosseguindo essa tarefa problemática (isto no caso de não ser recebido a tiro pelo sogro), diminuiria em grande parte o mérito da vitória; talvez por não comer há muito tempo, todas as ideias que lhe vinham à cabeça se lhe afiguravam absurdas. Enquanto todas estas hipóteses iam sendo abandonadas umas após outras, brotava nele uma consciência das coisas cada vez mais vaga, como se, pouco a pouco, o mundo se fosse esvaziando do seu conteúdo espesso, do seu lado sério, das suas ameaças tremendas, das suas promessas patéticas, para recuperar uma candura, uma permeabilidade desconhecida, remota.

 

O desejo de violência e de carnificina, que ainda há pouco lhe mostrava todas as coisas sob o aspecto de inimigos, cedia agora a vez a uma serenidade sobrenatural que apagava todas as divergências e o mergulhava numa beatitude confortável: diz-se que as pessoas prestes a morrerem de frio na neve experimentam a mesma sensação de leveza irresponsável, de indiferença, de quem se deixa levar ao sabor da corrente... Ele tinha a impressão, estranha apesar de tudo, de ser aquilo para que olhava, de se apropriar do mundo exterior com uma facilidade desconcertante de bêbado ou de criança. As longas privações e as fadigas acumuladas deviam ser em grande parte responsáveis por este desapego, por este estranho avontade, por esta súbita ausência de inquietação e de tensão interior.

Por uma estranha substância, que nunca devemos abstrair do tempo, com risco de nos encontrarmos mortos, ou com um pé na cova; mas, por outro lado, sentia-se dominado por uma irresponsabilidade delirante e, nesse momento, tudo se misturava no seu espírito, o passado, o presente e o futuro, enquanto deslizava num torpor bastante agradável. Ouvia por vezes uma voz gritar ao longe, ou talvez fosse dentro dele: «Não desistas! Não desistas!» Ou então: «Tens de escavar! Tens de escavar!»

 

Ao fim da manhã, saía do túnel do sono, quando um ruído de passos que faziam rolar o cascalho lhe chegou aos ouvidos. Entrou à pressa na cozinha, fechou a porta à chave, procurando fazer o menor barulho possível, e escondeu-se atrás da janela, cuja portada entreaberta lhe permitia olhar lá para fora sem ser visto. Era o carteiro, esse patife do Deleuze, o qual merecia que lhe dessem um tiro; vinha trazer-lhe qualquer reclamo estúpido, ou talvez uma carta do irmão, o foragido da Suíça. Viu-o passar diante da janela e imobilizar-se de repente, petrificado pelo espectáculo: «Merda!» exclamou o outro a meia voz. «O que aconteceu aqui, é incrível!...» Reilham ouviu-o ainda resmungar por entre dentes, depois pôr-se a caminho, parando a cada instante para se voltar, como se não acreditasse no que via. Põe-te a mexer, estupor, deixa-me em paz! Sentiu qualquer coisa a arranhar-lhe o rosto. Era a sua própria mão. Espantado, meteu-a no bolso. Achou debaixo da porta um folheto de propaganda a uma marca de fungicida. Ao longe ouvia-se a voz de Deleuze: «Correio! Correio!» Subiu ao primeiro andar, escancarou a janela do quarto, deixando entrar a jorros a luz brutal que vasculhava os recantos revelando a sujidade, os rastos de poeira, as teias de aranha onde estremeciam ao menor sopro esqueletos de insectos - o que tinha o seu quê de violentamente indiscreto, ou mesmo de blasfematório, como quem exibe à luz do dia as entranhas de um jazigo fúnebre. A madeira da cama quebrada amontoava-se a um canto como se fossem os destroços de um caixão. Uma tremenda fadiga fazia-lhe pesar de novo as pernas. Estendeu o colchão que tombara para o solo e deitou-se nele, de olhos fitos no tecto, deslumbrado pela forte claridade que enchia o quarto. Voltaria lá para cima ao cair da noite. Talvez fosse fazer uma espera à caça. Ficou assim um grande bocado, de olhos muito abertos, a observar o tecto sujo, em que sobressaiam grandes manchas paralelas, lúgubres, amareladas, da cor da urina, que a chuva aí depositara. Aquele céu de estuque morto acabou por lhe causar sonolência; cerrou os olhos e, ao cabo de uns minutos, adormeceu, não sem ter sido agredido de passagem por alguns pensamentos brutais que, felizmente, não teve tempo de aprofundar. Acordou horas mais tarde, com o Sol a iluminar metade da clareira com a sua luz oblíqua, em cujo clarão doirado voltejavam milhares de insectos de todas as espécies. Dirigiu-se para a janela, com as pernas sempre um pouco trémulas, como se de súbito o seu espírito despojado da ideia fixa lhe deixasse todo o corpo à mercê de uma grande fadiga que era talvez menos fadiga acumulada do que o estado normal em que caímos quando temos a infelicidade de não termos que fazer e estarmos conscientes disso. Julgou de repente que era a primeira vez que abria os olhos. Mas que estava a abri-los no escuro, no vácuo, no nada - como quem acorda em sobressalto a meio da noite e à sua volta só vê o escuro, o vácuo, o nada. Pressentiu por um momento que o céu estrelado, a floresta onde outrora lhe era tão agradável viver, respirar, não passavam, ao cabo e ao resto, de uma espécie de embuste... Enfim, foi nessa altura que tudo começou a deteriorar-se rapidamente, como um corpo que apodrece e se decompõe sem que haja qualquer forca no mundo capaz de o ressuscitar, de fazer renascer o sopro de vida que ainda nos liga às ilusões. Nunca reflectira muito no decurso da sua existência. Como dizia um oriental: «Deixo aos outros o cuidado de reflectirem acerca da minha vida. Quanto a mim, contento-me em vivê-la.» O advogado do diabo, ou talvez o próprio diabo, entrou então em cena: só os idiotas conseguem ver sem pestanejar os deuses caírem por terra. Odeio o meu século, não pelo facto de ele deitar por terra as antigas e confusas legiões de deuses, mas sim porque tenta servir-se dos seus destroços para explicar aos homens a sua infelicidade.

 

- Estás a ver esse bastardo dos tempos áureos! Tenho a certeza de que a história dos homens é muitas vezes a história de uma batalha entre uma nevrose cósmica e uma lucidez desesperante - ele não suportou que o acordassem, que o fizessem passar sem transição da eternidade para o tempo, o tempo, sinal de morte, sinal de nada: as categorias dele não eram as nossas, quanto a isso punha eu as mãos no fogo. Tudo o que te digo a seu respeito, de resto, só serve para esboçar o meu próprio retrato e não o dele. Parece que...

 

O doutor Stéphane olhou para a mulher, calando-se.

 

- Em todo o homem existe um gérmen intacto, quem sabe, talvez a prova infalível da sua eternidade, ou algo mais do que isso, no homem e no mundo, que não é o homem nem o mundo, mas sim uma prova informal – informulável -, como se fossem peixes enormes com um índice de refracção absolutamente idêntico ao das águas em que evoluem. Despuech, o sogro, disse-me o seguinte: «Ele nunca foi como as outras pessoas, sabe? No fundo daquela galeria, costumava desenhar a carvão uma quantidade de bonecos, sobre as paredes, quando estava chateado, entre duas escavadelas; não me diga que ele era um gajo como os outros, um homem que é capaz de ficar dias inteiros num buraco de toupeira, ou então a vaguear pela quinta, a atirar aos gaviões. Pobre Maria, não se pode dizer que teve sorte na escolha...» Um homem primitivo, em pleno século xx...

 

A verdade, às vezes, parece que tem os olhos fechados.

 

- Que é isso? Porque me olhas assim?

 

Desta vez era ela que o observava com um ar estranho, como se soubesse que ele tinha um cancro.

 

E que cancro!

 

Em tudo quanto o marido acabava de lhe dizer parecia-lhe distinguir essencialmente duas coisas: a infância e a gravidade, de mãos dadas, como dois obstinados flagelos da Terra.

 

O dia despojado da sua glória e o tempo despido da sua profundidade declinam lentamente na rua deserta, sob os longos trinados dos rouxinóis; o odor quente do asfalto infiltra-se através das persianas - odor semelhante aos dos véus fúnebres, odor das promessas nunca cumpridas, mal acabadas de brotar e logo calcadas aos pés, como há vinte anos, como no tempo em que ele dormitava sobre os livros lá em cima, quando cada sinal o separava um pouco mais da sua vida, nesse quarto que o pastor pusera à sua disposição para ele conquistar o mundo, e finalmente a Suíça, as coxas que esta lhe trazia à lembrança, como de resto tudo quanto se faz sobre a Terra. Alguém devia ter andado a regar em frente da sua porta, talvez um comerciante como ele, condenado pelos fracassos e pela amabilidade profissional à calvície obesa, aos dedos e aos sorrisos ornamentados a oiro quando os negócios prosperam, e eis que a noite se aproxima; ele tem quarenta anos e há mais de quinze que não tinha voltado lá a cima. Avistavam-se dali as montanhas. Para isso bastava subir um pouco, até aos bairros altos da pequena vila de argila rosada, de calcário, e logo se lobrgava o anfiteatro mais próximo, a sua brancura pungente e invernal.

 


Lá em cima já morreram todos, agora foi o doutor Stéphane e a mulher, juntos, num desastre de automóvel, e creio que foi o melhor que lhe podia ter sucedido; e Barthélemy, e Despuech, pouco depois da morte de Reilham. Maria não morreu, ainda vive lá longe, em Mazel-de-Mort, sozinha, que idade terá ela, talvez cinquenta, seca como é, ainda os deve enterrar a todos; de resto já estamos quase enterrados. O que importa afinal, não é aquilo em que ele acreditava dantes, quando ainda me deixava iludir pelas distâncias corporais: chegar a velho, que interessa isso? Mas ao menos viver de uma maneira diferente da minha, a combater ao nível da vida, e não como ele, amarrado ali a vender livros, numa lojeca de província, a respirar todos os dias, sobretudo no Verão, o odor da derrota, de uma espécie de traição indelével. Pelo facto de termos a consciência de haver passado a vida a lidar com idiotas, nem por isso ficamos menos idiotas. O desprezo que recompensa todas essas poucas-vergonhas é uma mistura atroz de desespero e de cobardia.

 

Todas as noites, sobretudo no Verão ou no Inverno, esses grandes extremos do universo remoto e traído, ele odeia o mundo e odeia-se a si próprio ao querer não só explicar todas as coisas como também destruídas, com esse desejo de aniquilamento que corrói os traidores. A Primavera e o Outono são bastante belos na planície, sobretudo quando se entra nos quarenta.

 

Foi a 17 de Maio de 1954 que ele recebeu o telegrama a dar-lhe a notícia: não pudera, ou achara que não valia a pena, deslocar-se por causa da morte da mãe; estar presente na do irmão afigurou-se-lhe uma compensação necessária em memória dos três mortos: decididamente, naquela família, ninguém chegava a velho.

 

O doutor Stéphane viera esperá-lo à estação. A Primavera chuvosa reverdecera extraordinariamente as montanhas.

 

- Como foi que isto aconteceu?

 

Como aquilo acontecera nunca ninguém o soube. Como também nunca se saberá em que dia nem a que horas. Foi preciso subir imediatamente lá a cima; os guardas esperavam-no à entrada da mina. Quando avistou o enorme montão de pedras e areia ficou como que estúpido, petrificado. Havia naquela colina de destroços qualquer coisa de monstruosamente inútil. Para os traidores inteligentes, tudo o que é verdadeiramente inútil parece monstruoso e, no entanto, no que respeita ao homem, só o que é monstruoso corresponde ao mistério do universo. Tudo o resto não passa de uma questiúncula de regateira. Era precisamente isso o que o doutor Stéphane lhe vinha a dizer quando penetraram na galeria atrás dos guardas. Só se podia avançar até uma distância de vinte metros; depois tudo desmoronara, trinta, quarenta talvez cinquenta metros de montanha, e quem sabe há quantos dias. Despuech fora a última pessoa a vê-lo em vida, umas três semanas atrás. Nesse momento a galeria media já mais de sessenta metros de profundidade. Tinha havido aquela tempestade, cujos vestígios se viam ainda na areia, à entrada da mina, e era fácil verificar que nenhum cascalho fora ali despejado depois disso. Para se chegar junto do corpo fora necessário remover centenas e centenas de toneladas de rocha, de terra, de lama até. Redigido o auto, os guardas foram-se embora, no momento em que chegava o pas-tor. Que idiota aquele! «Já cumpriram o vosso dever, meus senhores, o meu começa agora.» Alguns vizinhos do planalto tinham descido até ali para prestarem a derradeira homenagem. Recordo-me da oração dos mortos, balbuciada por Barthélemy em frente do buraco escuro: «Pelo baptismo somos com ele enterrados na sua morte, a fim de que, tal como Cristo ressuscitou dos mortos para glória do Pai, também nós caminhemos de novo para a vida...», e o doutor, a meu lado, ia dizendo de sua justiça: «Buda morreu, durante séculos as pessoas hão-de mostrar a sua sombra dentro de uma caverna; uma sombra enorme e aterradora. Deus morreu, mas os homens hão-de querer mostrar a sua sombra em milhares de cavernas.

 

Foi nesse momento que José Reilham decidiu passar o resto do dia e talvez a noite em Maheux: sabia que não voltaria ali tão cedo ou nunca mais, quem sabe, traçando assim um risco definitivo entre ele e a sua profunda raiz. Desceu com os outros até Saint-Julien, a fim de comprar comida; beijou Maria Despuech, que regressava com o pai a Mazel-de-Mort: «Podias passar a noite connosco e amanhã ias visitar sozinho essas ruínas...» Ele abanara a cabeça, sorrindo: «Não tenho medo dos fantasmas, uma vez que eles não existem...» Ao olhá-la, sentira de repente o coração apertado, pois descobrira nela uma expressão estranha e fugitiva, de juventude e feminilidade, qualquer coisa na fronte e nos olhos, talvez porque o desgosto faz transparecer através dos estragos prematuros uns vestígios cândidos dos desgostos infantis.

 

Comprara uma lata de sardinhas de conserva (em azeite, recordava-se ainda), um naco de salpicão, ovos,

 

manteiga, um pão de segunda, na mesma padaria onde outrora cobiçava os rebuçados de coco multicolores: «Todas as manhãs eu o ouvia passar com o seu carro de mão por baixo da fresta do forno, no tempo das grandes secas. Praguejava como um ladrão, mas que coragem a dele... Era uma verdadeira força da natureza...» Com as compras dentro de um saco de plástico fornecido pelo merceeiro, voltou a subir cerca das três ou quatro horas da tarde, saudado a meio caminho pelo perfume maravilhoso e penetrante das ervas. Entrou em casa. Era pois verdade terem já morrido três. Intimidado, percorreu todos os compartimentos e voltou a sair, a observar os arredores: como tudo aquilo iria ficar de novo no estado selvagem! As ervas gigantes cobriam já os muros e abafavam o centeio; a floresta não tardaria a invadir igualmente todas as clareiras. Os edifícios queimados transbordavam de silvas tão negras como os restos do incêndio. Sentou-se nos degraus da escada. Afinal eles - nós - não tivemos sorte nenhuma. A partir dos mesmos alicerces, tentou imaginar uma vida melhor: mulher, filhos, os pais a envelhecerem em paz junto à lareira, o regresso dos campos, a noite, de enxada ao ombro, um acolhimento de risos e exclamações, trabalhos e prazeres em comum, o sonho da tribo protegida, do tempo recuperado através da simplicidade da existência, viver terra a terra, o perfume, o perfume do mundo, perfume antigo que comove o coração, tudo isto girava dentro dele como os destroços de um naufrágio - e quinze anos depois, na pequena vila de calcário e argila, corroída pelo sol e crivada de excrementos de pássaros, como uma cidade de Espanha, o mal estava ali e teimava em ficar, havia de acompanhá-lo até ao fim.

 

Instalara-se para jantar em frente da porta, onde se sentara a mãe da última vez que ele resolvera limpar a casa, restaurar através dos gestos familiares a glória do seu antigo mundo. A noite estava calma, um pouco fresca, já repleta do som dos grilos e dos rouxinóis. As estrelas, ali, eram diferentes. Nada no mundo é igual ao sítio onde abrimos pela primeira vez os olhos. Isto é uma herança terrível e venenosa. Cerrou os olhos... Há coisas que Deus não deveria permitir-se. Há muito que não acredita em Deus, há muito que, do fundo das ruínas do seu universo, algo clama desesperadamente pela mesma coisa.

 

Fumou até altas horas, quinze, talvez vinte cigarros. Segundo aquilo que lhe contaram e pelo que imagina o doutor Stéphane, adivinha o que se passou: não se pode deixar morrer um homem sem se tentar seguir-lhe as pegadas até ao fim, por muito vagas que sejam.

 

A última carga de pólvora, talvez demasiado forte, um desleixo cometido no momento de acender a mecha, uma faúlha, a carga incendeia-se, ele tenta fugir, demasiado tarde, tudo rebenta, a montanha cai-lhe em cima. Ou então ele fica em frente da mecha a arder, levando assim até ao extremo limite as consequências do seu desafio.

 

Esmagado como uma noz na Sua mão; vencido porque é preciso que todos fiquem vencidos e que a Sua vontade seja feita.

 

No dia seguinte pela manhã, antes de partir de novo para a Suíça, voltara ainda à galeria pela última vez (à luz azulada da aurora, limpara de ervas ruins as sepulturas dos pais, uma dentro do cemitério, a outra atrás do muro, ainda mais trágica de solidão). Levara consigo uma chave de parafusos. A inscrição deve ainda poder ver-se à entrada da gruta, na parte mais lisa da parede rochosa:

 

ABEL REILHAM

1922-1954

 

Enquanto executava o seu pequeno trabalho fúnebre, ia pensando que tudo aquilo quanto se não soube receber e dar em vida temos de o pagar de uma vez à morte. Lamentava não ter junto de si nesse instante uma daquelas raparigas altas, de cabelos lisos e pernas cor de mel que fazem florir os instantes ao acariciarem a vida com os seus longos dedos. Carolina, Dakota ou Virgínia, como as províncias de um Novo Mundo.

As Terras Altas nunca poderão oferecer-lhe outra coisa senão uma tumba; ao cabo e ao resto, não lhe desagradaria ser enterrado ali em cima, diante daquela sepultura selvagem, em frente da qual, nessa manhã, se avistava a espuma azulada dos planaltos, recobertos aqui e ali pela derme sensível e profunda dos trigais, cuja superfície se movia suavemente, comovidamente, acariciada pela fuga perpétua das nuvens.

 

                                                                                Jean Carrière  

 

                      

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