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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O GENERAL DO EXÉRCITO MORTO / Ismail Kadaré
O GENERAL DO EXÉRCITO MORTO / Ismail Kadaré

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

"Os corpos de dezenas de milhares de soldados ocultos sob a terra esperaram sua vinda por tantos anos, e eis que ele finalmente chegou, como um novo Messias, abundantemente munido de mapas, de listas e de indicações infalíveis para retirá-los da lama e devolvê-los a suas famílias. Foram outros generais que conduziram aquelas intermináveis colunas de soldados à derrota e à destruição. Ele viera arrancar do esquecimento e da morte o pouco que subsistira."

Incumbido da "nobre missão" de resgatar as ossadas de seus soldados caídos em território inimigo, um general italiano sem nome chega a uma Albânia de chuva, lama e nevoeiro acompanhado de um padre. À medida que vê sua missão cada vez mais dificultada pelas intempéries e pelo persistente ressentimento da população, o general se depara com a sombria realidade da guerra e com a futilidade de sua missão. Pelos olhos de seu personagem, Ismail Kadaré revela com inteligência um país desolado e muitas vezes incompreensível. Exemplo maior de uma literatura então recém-libertada dos cânones literários soviéticos, O general do exército morto é uma verdadeira alegoria que mostra uma Albânia desconhecida do Ocidente e, na época, até de seus próprios habitantes. O romance representou um marco na literatura albanesa, revelando para o mundo o imenso talento de Kadaré; é até hoje considerado uma de suas obras mais expressivas.

 

 

 

 

Primeira Parte


I

Uma chuva misturada com flocos de neve caía sobre a terra estrangeira. A pista de cimento, as construções e os guardas do aeroporto estavam encharcados. A neve derretida banhava a planície e as colinas circundantes, fazendo brilhar o asfalto negro do calçamento. Em qualquer outra estação aquela chuva monótona pareceria a alguém uma triste coincidência. Mas o general não estava nada surpreso. Vinha à Albânia a fim de assegurar o repatriamento dos restos de seus compatriotas tombados em todos os cantos do país durante a última guerra mundial. As negociações entre os dois governos tinham sido iniciadas na primavera e os contratos definitivos assinados somente no final do mês de agosto, quando, justamente, os primeiros dias cinzentos começam a aparecer. Agora era o outono. Era a estação das chuvas, o general sabia. Antes da partida informara-se a respeito do clima do país. Aquele período do ano era úmido e chuvoso. Mas mesmo que o livro que lera sobre a Albânia tivesse lhe informado que, lá, o outono era seco e ensolarado, essa chuva não lhe pareceria insólita. Ao contrário. Ele sempre pensara, na verdade, que sua missão só poderia ser cumprida com mau tempo. É possível que suas leituras e os filmes que lhe voltavam à memória não tivessem relação com sua melancolia, mas a viagem de avião e o dia enfadonho a haviam acentuado.

Através da janelinha observava longamente o aspecto ameaçador das montanhas. A todo instante seus cumes agudos pareciam prontos a rasgar o ventre do aparelho. Por todo lado um relevo recortado, pensava o general. Naquele solo, parecia não haver um único lugar onde colocar o pé. Era dentro daqueles abismos e sobre aquelas escarpas, sucessivamente encobertos e revelados pela bruma, sob aquela chuva, que jaziam os soldados que tinha vindo buscar. Por um momento tivera o sentimento de que seria impossível cumprir sua missão. Em seguida fizera um esforço para se recompor. Ao aspecto ameaçador e hostil daquelas montanhas opusera o sentimento de orgulho que ela lhe inspirava. Milhares de mães aguardavam os despojos de seus filhos. E era ele quem iria lhes trazer. Faria tudo que estivesse ao seu alcance para executar dignamente aquela sagrada tarefa. Nenhum de seus compatriotas deveria ser esquecido, nenhum deveria ser abandonado naquela terra estranha. Oh! Era uma nobre missão. Durante a viagem, frequentemente repetira as palavras que uma grande dama lhe pronunciara antes da partida: "Como um pássaro soberbo e solitário, voareis sobre aquelas montanhas silenciosas e trágicas, para arrancar de suas gargantas e garras nossos infelizes meninos."

E agora a viagem se aproximava do fim. Depois que deixaram para trás as montanhas e sobrevoaram vales e planícies, o general se sentiu um pouco aliviado.

O avião aterrissou sobre a pista inundada. Sinais luminosos vermelhos, em seguida verdes; depois novamente vermelhos, depois verdes. Um soldado de capote. Um outro. Do edifício do aeroporto, vinham alguns homens de impermeável na direção do avião que terminava sua corrida.

O general foi o primeiro a descer. O padre que o acompanhava seguiu-o. Um vento úmido bateu-lhes violentamente no rosto e eles levantaram as golas dos casacos.

Um quarto de hora mais tarde, seus automóveis corriam rapidamente em direção a Tirana.

O general virou a cabeça na direção do padre sentado a seu lado, o qual, com o rosto desprovido de qualquer expressão, olhava em silêncio através do vidro da porta. Sentiu que nada tinha a lhe dizer e acendeu um cigarro. Em seguida, dirigiu de novo o olhar para o lado de fora. Os contornos daquela terra estrangeira pareciam-lhe refratados, distorcidos pela água que escorria serpenteando sobre o vidro.

Uma locomotiva apitou ao longe. Como a via férrea estava escondida por um talude, o general se perguntou de que lado passaria o trem. Viu a composição desembocar, lentamente superar a velocidade do carro, e seguiu-a com os olhos até que o último vagão se perdesse dentro do nevoeiro. Virou-se em seguida na direção do companheiro, mas seu rosto lhe pareceu ainda sem expressão. Percebeu que continuava sem ter nada a lhe dizer. Notou, por outro lado, que não lhe restara nenhum tema para meditação. Esgotara-os todos durante a viagem. No fundo, valia mais a pena não se entregar a novas reflexões. Estava cansado. Já era o bastante. Melhor verificar pelo espelho se seu uniforme estava em ordem.

A noite caía quando entraram em Tirana. Um espesso nevoeiro parecia suspenso acima dos edifícios, dos lampadários e das árvores desfolhadas dos parques. O general havia se recomposto um pouco. Através do vidro enxergava numerosos passantes andando depressa sob a chuva. "Há muitos guarda-chuvas neste país!", observou. Teria adorado trocar algumas impressões, pois o silêncio começava a incomodá-lo, mas não sabia como proceder para quebrar o mutismo de seu companheiro. Ao longo da calçada, do seu lado, viu uma igreja, depois uma mesquita. Do outro, erguiam-se edifícios em construção cercados por andaimes. Os guindastes, com os faróis acesos, tinham o aspecto de monstros de olhos vermelhos movendo-se dentro do nevoeiro. O general chamou a atenção do padre para a igreja e a mesquita. Este não mostrou o menor interesse. O general concluiu que, no momento, nada seria suscetível de arrancá-lo de sua apatia. Quanto a si próprio, sentia-se de melhor humor, mas com quem poderia conversar? O funcionário albanês que os acompanhava estava sentado no assento dianteiro, bem na frente do padre. O deputado e o representante do ministério que os recepcionaram no aeroporto seguiam-nos em um outro carro.

Chegando ao hotel Dajti, o general se sentiu imediatamente à vontade. Foi para o quarto que lhe haviam reservado, barbeou-se e trocou de uniforme. Depois pediu à mesa telefônica que o pusesse em comunicação com os seus.

Foi juntar-se em seguida ao padre e aos três albaneses, que haviam-se instalado no hall em torno de uma mesa. A conversação versava sobre assuntos variados mas indiferentes. Cada um evitava abordar questões políticas e sociais. O general estava ao mesmo tempo amável e grave. O padre falava pouco. O general deu a entender que era o mais importante dos dois enviados, muito embora a reserva do padre deixasse pairar alguma dúvida a esse respeito. Evocou as belas tradições de que se orgulhava a humanidade quanto às sepulturas dos combatentes. Citou os gregos e os troianos, que concluíam tréguas para inumar seus mortos com solenidade. O general mostrou-se muito entusiasmado com o objeto de sua missão. Era uma tarefa piedosa e pesada que iria realizar com sucesso. Milhares de mães esperavam seus filhos. Desesperavam-se havia mais de vinte anos. Mesmo que, é verdade, essa espera tivesse mudado um pouco de natureza. Hoje não eram mais os filhos vivos que estavam esperando. Mas também se pode, do mesmo modo, esperar por mortos! Era ele quem levaria a essas mães inconsoláveis as cinzas de seus filhos, que parvos generais não souberam conduzir com habilidade em combate. Estava orgulhoso disso e faria tudo que estivesse ao seu alcance para não decepcioná-las.

— General, a ligação...

Ele se levantou com presteza. — Desculpem-me, senhores — disse, e se dirigiu aos escritórios do hotel com um passo largo e majestoso.

Voltou com a mesma postura altaneira. Estava radiante. Seus companheiros haviam pedido conhaque e café. A conversação animara-se. O general novamente deu a entender que era ele quem dirigia a missão, pois o padre, embora graduado coronel, era, naquela circunstância, apenas um representante espiritual. Ele era o chefe e, como tal, cabia-lhe o privilégio de orientar a conversação sobre os temas de sua escolha, como as marcas de conhaque, as diferentes capitais, os cigarros. Sentia-se como um peixe dentro d'água naquele salão, atrás das pesadas cortinas, ao som daquela música estranha, talvez mesmo mais do que estranha. Sempre apreciara o conforto e as vantagens materiais; também experimentava bastante atração por viagens ao exterior, que lhe evocavam, pelo contraste, toda a calma e a doçura do lar.

Havia algo de inebriante no luxo dos grandes hotéis internacionais, nas grandes linhas ferroviárias ou aéreas longínquas, nos aeroportos embandeirados com os pavilhões de dezenas de países, nas línguas estrangeiras.

O general estava encantado. Ele mesmo não tinha explicação para aquela baforada imprevista de bem-estar. Era a alegria do viajante ao encontrar um refúgio após uma estrada perigosa em meio ao mau tempo. O conhaque naquele pequeno copo cor de âmbar expulsava cada vez mais de sua memória o aspecto ameaçador das montanhas que, por momentos, mesmo agora que se achava sentado àquela mesa, vinha-lhe, inquietante, ao espírito. "Como um pássaro soberbo e solitário!..." Teve de repente o sentimento de seu poderio. Os corpos de dezenas de milhares de soldados ocultos sob a terra esperaram sua vinda por tantos anos, e eis que ele finalmente chegou, como um novo Messias, abundantemente munido de mapas, de listas e de indicações infalíveis para retirá-los da lama e devolvê-los a suas famílias. Foram outros generais que conduziram aquelas intermináveis colunas de soldados à derrota e à destruição. Ele viera arrancar do esquecimento e da morte o pouco que subsistira. Correria de cemitério em cemitério, procuraria em todos os campos de batalha até encontrar os desaparecidos. Em sua luta contra a lama ele não conheceria revés; tinha a seu favor a força mágica concedida pelas estatísticas exatas.

Representava um grande país civilizado e sua obra tinha de ser plena de grandeza. Na tarefa que iria desempenhar havia algo da majestade dos gregos e troianos, da solenidade dos funerais homéricos.

O general bebeu uma nova dose. E a partir daquela noite, todos os dias, todas as tardes, lá longe, em seu país, todos os que esperavam iriam dizer ao pensar nele: "Neste momento, ele está procurando. E aqui estamos nós passeando, indo ao cinema, ao restaurante, enquanto ele percorre em todos os sentidos aquela terra desconhecida, para encontrar nossos infelizes rapazes. Oh! É um trabalho bem pesado o dele! Mas ele vai conseguir. Não foi enviado em vão. Que Deus o ajude!"


II

A enxada afundou no solo com um barulho surdo. O padre fez o sinal-da-cruz. O general fez uma saudação militar. O velho operário dos serviços municipais suspendeu de novo sua ferramenta e a abateu com força.

"Pronto, começou!", disse consigo o general, emocionado, contemplando os primeiros punhados de terra úmida que se amontoavam a seus pés. Era o primeiro túmulo que abriam e estavam todos ali de pé, em volta, quase petrificados. O perito albanês, um elegante jovem louro de rosto emaciado, tomava notas em um caderninho. Dois dos outros operários fumavam um cigarro, o terceiro um cachimbo e o último, o mais jovem, observava a cena com um ar pensativo, apoiado sobre o cabo de sua enxada. Precisavam aprender a maneira de proceder nesse trabalho de exumação e seguiam atentamente a abertura da tumba.

O general tinha os olhos fixos sobre os montes de terra que não paravam de crescer aos pés do operário. Eram negros, fofos e deles desprendia um ligeiro vapor.

"Esta aí é a terra estrangeira", disse consigo. "A mesma lama negra de qualquer outro lugar, as mesmas pedras, as mesmas raízes e o mesmo vapor. Uma terra como todas as outras. E no entanto estrangeira."

Atrás deles, sobre o calçamento, os carros passavam em grande velocidade emitindo de tempos em tempos o grito de suas buzinas. O cemitério, como a maior parte dos cemitérios militares, situava-se ao longo da estrada. Do outro lado, vacas pastavam e seus raros mugidos se propagavam através do vale.

O general estava perturbado. O monte de terra não parava de aumentar e, ao fim de meia hora, o velho operário estava dentro da fossa até os joelhos. Saiu para descansar um pouco, o exato tempo de permitir que um de seus colegas removesse com a pá a terra que havia retirado com a enxada, e em seguida voltou para dentro do buraco.

No alto do céu uma revoada de gansos selvagens passou acima de suas cabeças.

Um aldeão, puxando o cavalo pela rédea, passou caminhando sozinho pelo calçamento. Aparentemente ignorando a natureza do serviço no qual estavam ocupados, gritou-lhes: — Bom trabalho! Do pequeno grupo que fazia um círculo em torno da fossa, ninguém respondeu e o camponês seguiu seu caminho.

O general observou sucessivamente a terra cavada e os rostos dos operários, tranquilos e graves.

"O que estarão pensando?", perguntou-se. "Estes cinco terão que exumar um exército inteiro."

Mas nada podia ser lido em suas fisionomias. Dois deles acenderam um novo cigarro, o terceiro sugava ainda o cachimbo, e o último, o mais jovem, sempre apoiado no cabo da enxada, tinha o mesmo olhar ausente.

O velho operário, agora afundado até a cintura, escutava as explicações do perito. Após alguns instantes de discussão, recomeçou a trabalhar.

— O que ele está dizendo? — perguntou o general.

— Não compreendi bem — respondeu o padre.

Todos, no pequeno grupo, guardavam um silêncio de morte.

— É uma sorte que não tenha começado a chover! — falou o padre.

O general ergueu os olhos. De todos os lados a bruma encobria o horizonte e não dava para se dizer se as formas mais escuras que se distinguiam ao longe, muito longe, eram desenhadas pelo nevoeiro ou por enormes montanhas.

O operário, à medida que cavava, entrava cada vez mais profundamente na terra. O general observava sua cabeça encanecida a oscilar na cadência dos golpes da enxada.

"Vê-se que ele entende deste trabalho. Claro, caso contrário não teria sido encarregado de conduzir a equipe de operários que vai realizar as escavações." O general adoraria que o operário cavasse ainda mais depressa, que as tumbas fossem abertas o mais cedo possível e que o mais cedo possível todos os mortos fossem achados. Estava impaciente para ver os outros operários começando também a cavar. Então ele puxaria suas listas e elas iriam se cobrindo de cruzinhas vermelhas, uma para cada soldado encontrado.

A enxada agora batia no solo com um barulho abafado que parecia jorrar das entranhas da terra. O general sentiu subitamente uma inquietude invadir todo seu ser.

"E se não acharem nada lá no fundo! Se os mapas não estiverem corretos e formos obrigados a cavar em dois, em três, em dez lugares diferentes, para encontrar um único soldado!"

— E se nós não encontrarmos nada? — disse ao padre.

— Mandamos cavar em outro lugar. Pagaremos o dobro, se for preciso.

— Não se trata de preço. A única coisa que conta é encontrarmos todos os que estamos procurando.

— Nós os encontraremos. Temos de encontrá-los.

O general, perplexo, retomou: — Parece até que ninguém lutou neste lugar e que este solo só foi remexido pelas pacíficas vacas marrons que pastam nele.

— Sempre se tem esta impressão depois — diz o padre. — Mais de vinte anos já se passaram.

— É de fato um tempo bem longo e é isso que me preocupa.

— Ora, e por quê? — perguntou o padre. — O solo aqui é firme e o que está enterrado não se desloca com o passar dos anos.

— Sim, está certo, mas não sei por que não consigo imaginar que eles estejam aqui, bem perto de nós, só a dois metros de profundidade.

— É porque você nunca esteve na Albânia durante a guerra — disse o padre.

— Foi de fato tão terrível?

— Sim, foi terrível!

O velho operário tinha agora quase todo o corpo afundado na terra. O pequeno círculo havia se acercado ainda mais em volta dele. O perito albanês, com o corpo dobrado em dois acima do fosso, não parava de lhe dar instruções.

A pá, em contato com os cascalhos, emitia um som fraco. O general acreditava estar ouvindo os fragmentos dos relatos feitos por antigos combatentes que tinham ido vê-lo antes da partida, interessados na busca das sepulturas de seus camaradas tombados na Albânia.

“Meu punhal, ao atingir os cascalhos, produzia um som que me fazia estremecer. Eu tentava rasgar a terra com todas as minhas forças, mas meu instrumento improvisado era impotente naquela luta desigual contra o solo. Com muito esforço conseguia extrair um punhado de lama e me dizia com desgosto: "Ah! Se tivesse sido lotado na engenharia eu teria uma pá e poderia cavar depressa, mais depressa'', pois a poucos passos de onde eu me encontrava meu colega estava deitado de costas, com as pernas pendentes acima de um fosso cheio de água pela metade. Tirei o punhal que ele trazia no cinturão e me pus a cavar com as duas mãos ao mesmo tempo. Queria que a fossa fosse muito profunda, pois essa tinha sido sua vontade. Ele me dissera: "Se eu for morto do seu lado, me enterre o mais profundamente possível. Tenho medo que os cães e os chacais me descubram, como daquela vez em Tepelene.1

Lembre-se daqueles cachorros!" "Sim, eu me lembro", respondia, fumando meu cigarro. E agora que ele estava morto, eu me dizia enquanto cavava: "Não se preocupe, sua fossa vai ser profunda. "Terminado meu trabalho, aplanei a terra o melhor que pude, sem deixar na superfície o menor indício, com medo de que seu corpo pudesse ser descoberto e desenterrado. Em seguida, virando as costas para o crepitar das metralhadoras, me afastei dentro da noite e, marchando, me virei mais uma vez na direção das trevas onde acabara de abandoná-lo e lhe disse em pensamento: "Não tenha medo, ninguém vai achá-lo."

— Nada ainda, parece — diz o general dominando mal seu nervosismo.

— Ainda não se pode chegar a uma conclusão — diz o padre —, mas não é o caso de desesperar.

— De todo modo, na guerra não é costume enterrar os mortos tão profundamente.

— Talvez seja sua segunda sepultura. Às vezes acontecia de serem exumados e enterrados uma segunda ou até uma terceira vez.

— É possível, mas se as tumbas forem tão profundas jamais terminaremos.

— Pode ser que precisemos contratar trabalhadores suplementares, nem que seja temporariamente — diz o padre. — Em certos casos, uns vinte de uma vez.

— Algumas vezes até mais!

— Sim, pode ser o caso.

— É até possível que em certos dias nos vejamos obrigados a contratar uns cem.

— Nunca se pode saber!

— Mas estes cinco operários ficarão permanentemente a nosso serviço?

— Ficarão, está estipulado no contrato.

— Mas afinal, o que estão fazendo? — retomou o general. — Ainda não acharam nada?

— A profundidade máxima foi atingida — diz o padre. — Se houver qualquer coisa, é neste momento ou nunca.

— Temo que isso esteja começando mal.

— Talvez uma camada do subsolo tenha cedido! — diz o padre.

O perito inclinou-se ainda mais sobre o interior da fossa. Os outros se aproximaram.

— Pronto! Achei! — gritou o velho operário com uma voz que subia do fundo da fossa, abafada e cavernosa pois falara com a cabeça abaixada.

— Ele achou — repetiu o padre.

O general deu um profundo suspiro. Os outros operários saíram de seu torpor. O mais jovem dentre eles, o que permanecera de pé, sonhador, apoiado sobre o cabo da pá, pediu um cigarro a um de seus camaradas e acendeu-o.

O velho operário começou a depositar as ossadas, pazada por pazada, sobre as bordas da fossa. Não havia nada de impressionante no aspecto daqueles restos. Misturados à terra fofa, eles tinham o aspecto de tocos de madeira. Em toda a volta flutuava o aroma da terra revolvida.

— O desinfetante! — gritou o perito. — Tragam o desinfetante!

Dois trabalhadores apressaram-se em direção ao caminhão estacionado atrás do automóvel, em um dos lados da estrada.

O perito, que descobrira um pequeno objeto no meio das ossadas, estendeu-o ao general segurando-o com uma pinça.

— É um medalhão. Não toque nele, por favor.

O general aproximou o rosto e enxergou com esforço a imagem da Virgem.

— O medalhão de nossos soldados! — disse em voz baixa.

"Você sabe por que usamos esse medalhão?"; me disse um dia. "Para que nossos restos possam ser identificados se formos mortos. "E ele sorriu com ironia. "Está achando que vão mesmo procurar nossos restos? Pois bem, digamos que um dia isso aconteça. Você acha que este pensamento me consola? Não existe maior hipocrisia do que essa procura de cinzas, tão logo a guerra termina. No que me diz respeito, este favor não me interessa. Que me deixem tranquilo, lá onde eu cair. Vou atirar por aí esta droga de medalhão." De fato, um belo dia ele o jogou fora e não usou mais nenhum.”

Assim que a desinfecção terminou, o perito anotou as medidas de cada osso e passou um momento fazendo cálculos em seu caderninho, mantendo a caneta atravessada entre seus longos dedos magros.

"Altura, 1m73." — Exatamente — constatou o general, depois de verificar a concordância com a indicação que tinha em sua lista.

— Embrulhem as ossadas — diz o perito aos trabalhadores.

O general seguiu com os olhos o velho escavador que, cansado, foi se sentar numa pedra na beira da estrada, tirou do bolso a tabaqueira e começou a enrolar um cigarro.

"Por que este homem está me olhando desse jeito?", disse consigo o general.

Alguns minutos mais tarde, começaram a cavar em cinco lugares diferentes ao mesmo tempo.

— Não estamos mais nos orientando — diz o general —, tenho a impressão de que nos metemos em um beco sem saída.

— E se déssemos mais uma olhada em nossos mapas?

— Não se compreende nada. Os números das listas estão misturados.

— Aparentemente, os esquemas das tumbas foram executados às pressas, durante a retirada.

— É possível.

— E se fizéssemos uma tentativa virando à direita? Onde será que vai dar este caminho plano?

— Nas terras da cooperativa vizinha.

— Vamos tentar por lá.

— É perda de tempo.

— E esta maldita lama, ainda por cima!

— De todo modo, é preciso tentar mais uma vez virando à direita.

— Este caminho não vai nos levar a lugar nenhum.

— Deixou de ser uma busca, virou uma grande complicação.

— Quanta lama!

— E nós só estamos marcando passo.

As vozes inquietas, ao mesmo tempo que os passos, foram-se distanciando na planície.

 

________________

1 Pequena cidade da Albânia.


III

No final de vinte dias, eles voltaram para Tirana.

A tarde caíra. O automóvel verde parou em frente ao hotel Dajti, debaixo da cortina de grandes pinheiros que se eleva diante do edifício. O general foi o primeiro a colocar o pé no chão. Tinha o ar cansado, abatido, a expressão tensa. Pelo menos era o aspecto que lhe dava a iluminação de néon do letreiro do hotel. Seu olhar fixo parou por um instante sobre o carro. "Se pelo menos tivessem limpado a lama", refletiu com irritação. Mas eles tinham acabado de chegar e ele não podia reclamar com o motorista que o automóvel estava sujo. O general sabia muito bem, mas afastava de seu espírito essas razões.

Galgou rapidamente os degraus da escadaria, apanhou sua correspondência no escritório, solicitou uma ligação telefônica para sua família e dirigiu-se lentamente ao quarto.

O padre subira diretamente ao seu. Uma hora mais tarde, depois de tomar banho e trocar de roupa, os dois estavam sentados a uma mesa, no salão do primeiro andar.

O general pediu um conhaque. Era sábado. Da taberna do subsolo subiam os sons da orquestra de dança. Casais jovens, descendo para a taberna ou subindo, apareciam de vez em quando no fundo do salão. Também no hall, pessoas iam e vinham. O salão tinha um ar austero com suas cortinas escuras e suas grandes poltronas.

— Nossa primeira excursão finalmente terminou — diz o general.

— Sim, finalmente.

— O que você acha, conseguiremos terminar este trabalho em um ano, como previsto?

— Como posso saber? — respondeu o padre com distanciamento. — Vai depender das dificuldades que vamos encontrar, do tempo também. De todo modo, espero que no próximo ano, a esta época, tenhamos terminado.

— Também é minha opinião — retomou o general. — No começo, devemos concentrar nossas buscas nas proximidades das cidades, mas as dificuldades serão maiores nos campos do interior do país e sobretudo nas áreas afastadas das montanhas.

— Você está em melhor situação do que eu para avaliar — diz o padre.

— Vai ser difícil, nas montanhas.

— É o que temo também.

— Mas para eles também o trabalho não foi fácil.

— De fato.

— Amanhã vou estudar novamente os mapas para estabelecer um plano para nossa segunda excursão.

— Contanto que não faça mau tempo.

— Não se pode fazer nada. Estamos na estação.

O padre bebia tranquilamente seu chocolate segurando a xícara entre o polegar e o indicador com sua mão de dedos afilados.

"Um belo homem", pensou o general observando o perfil severo e o semblante impassível do padre. Depois, subitamente, perguntou-se: "Quais teriam sido suas relações com a viúva do coronel? Seguramente, houve alguma coisa entre eles. Ela é bonita, deslumbrante mesmo. Principalmente de maiô." Ele se lembrou da vez em que fizera alusão ao padre, e ela não conseguira conter o rubor e havia baixado os olhos. "Quais podem ter sido suas relações?", perguntou-se de novo o general, sem desviar o olhar do rosto de seu companheiro.

— Apesar de todos os nossos esforços, não conseguimos encontrar os despojos do coronel Z. — deixou escapar, num tom desinteressado.

— Nem todas as esperanças estão perdidas — respondeu o padre inclinando a cabeça. — Continuo confiante.

— Vai ser difícil, pois ignoramos as circunstâncias de sua morte.

— De fato, não vai ser fácil — concordou secamente o padre —, mas estamos apenas no começo das nossas buscas, temos tempo à nossa frente.

"Até que ponto terá aprofundado suas relações com a viúva do coronel?", perguntou-se mais uma vez o general. "Teria curiosidade de saber o quanto este reverendo padre se comprometeu com uma bela mulher."

— Temos que encontrar os restos do coronel a qualquer preço — retomou. — As cinzas de todos os oficiais superiores foram repatriadas há muito tempo. É o único que ainda não foi encontrado. E sua família espera ansiosamente o resultado de nossas buscas, sobretudo sua mulher.

— Sim — diz o padre —, ela tem grande interesse.

— Você foi ver o túmulo do coronel? Um túmulo suntuoso, em mármore, que a família mandou construir.

— Sim, estive lá antes da minha partida.

— É um monumento verdadeiramente imponente — prosseguiu o general —, com uma estátua e platibandas de roseiras vermelhas e brancas plantadas em toda a volta. Mas está vazio.

O padre se calou. Os dois permaneceram um longo momento em silêncio. O general bebia o conhaque em pequenos goles, passeando o olhar à sua volta, um olhar que lhe fazia compreender o quanto a atmosfera daquele lugar lhe era estranha.

Sentiu-se de repente inteiramente só. Só, em meio às tumbas de seus compatriotas mortos. Diabo! Queria expulsar do pensamento a visão daquelas tumbas, as sepulturas de seus "irmãos", não pensar mais naquilo, de forma alguma. Os 15 dias que acabara de passar no meio delas, na companhia do padre, tinham sido o bastante. Seu desejo agora era livrar-se delas, sequer trazê-las à lembrança. Era a noite de sábado. Tinha vontade de relaxar, de se distrair. Mas o que poderia fazer, sozinho com este padre mudo e negro como um corvo sentado diante dele? Teria adorado, por que não, ir dançar, mas não ficaria estranho para um general estrangeiro, ainda por cima encarregado de uma missão governamental? E depois, essa missão era fúnebre. Sentia-se de mau humor. Ou talvez fosse efeito do cansaço. De todo modo, ele não se via em uma pista de dança. Ainda mais por se achar no meio de um povo com o qual seus soldados tinham-se batido, numa luta atroz. Sim, estava de fato exausto. Todas essas estradas em péssimo estado, essas tumbas enlameadas, umas sobre as outras em alguns lugares, espalhadas em outros, essa lama eterna tão deprimente, essas casamatas semidestruídas (das casamatas assim como dos soldados, aliás, só sobravam esqueletos), e depois a confusão criada pelas tumbas dos militares de outros países misturadas às nossas, os procedimentos legais a serem preparados, as quitações a serem estabelecidas com os representantes dos serviços municipais, as formalidades de pagamento de divisas ao banco, tantas amolações chegando todas de uma vez! O mais delicado era distinguir nossos mortos no meio dos mortos dos diferentes exércitos. Com frequência surgiam contradições entre os testemunhos. Os velhos confundiam acontecimentos e combates de diferentes guerras. Nada que apresentasse um caráter de certeza. Só a lama detinha a verdade.

O general bebeu uma nova dose. — A gente se perde com todos esses exércitos — disse à meia-voz, como se falasse sozinho.

Lançou um olhar em volta. O salão, como de hábito, estava tranquilo. Apenas um pouco mais longe, em um lado da sala, um grupo de jovens contava alguma história, rindo de vez em quando. Deles, só via as costas. No fundo, um rapaz e uma moça, aparentemente namorados, estavam sentados um ao lado do outro. Olhavam-se nos olhos, só raramente trocando algumas palavras. O homem tinha uma cabeça regular, a testa alta e oblíqua, o maxilar inferior bastante largo. "Tipo alpino", disse consigo o general.

O barman estava em pé atrás do balcão. Sua cabeça, inteiramente redonda, de expressão serena, se destacava entre dois pratos cheios de maçãs e laranjas.

Um homem magro entrou, com uma pasta na mão. Sentou-se em uma mesa próxima do rádio.

— O de sempre — disse ao garçom.

Enquanto o garçom lhe preparava um café, o homem tirou da pasta um grosso caderno e começou a escrever. Tinha o maxilar estreito e as maçãs do rosto magras. Quando ele aspirava o cigarro, suas bochechas afundavam.

— Então são estes os albaneses — diz o general como se estivesse retomando uma discussão interrompida. — Homens exatamente como os outros. Ninguém jamais acreditaria que na guerra eles se tornam ferozes como animais selvagens.

— Oh, quando se pensa como eles se transformam em combate...

— E dizer que eles são tão pouco numerosos.

— Não são tão poucos assim — diz o padre.

Outro homem de testa obliqua entrou no salão.

— Que diabo de tarefa essa de que nos encarregaram! — diz o general. — Não posso encontrar ninguém na rua ou no café sem me perguntar na mesma hora qual deve ser a forma de seu crânio. Você me compreende? Há certos dias que não vejo mais cabeças, só crânios sobre os ombros das pessoas.

— Desculpe-me, vou me permitir fazer esta observação, mas eu acho que você está bebendo um pouco demais — disse amavelmente o padre, olhando-o fixamente com seus olhos cinzentos.

Nesse momento, o general teve a impressão de que a cor dos olhos dele se confundia com a da tela da TV instalada no fundo do salão. "De uma TV que nunca funciona!", diz para si o general. "Ou, mais precisamente, de uma tela que reproduz sempre o mesmo programa, totalmente incompreensível."

Olhou por um instante seu copo transparente, fazendo-o virar entre os dedos.

— E na sua opinião, o que eu deveria fazer? — diz, com uma certa irritação. — Que conselho você me daria? Tirar fotos para mostrá-las a minha mulher quando eu voltar, ou então escrever um diário e anotar nele as curiosidades do país? Hein? O que você me diz?

— Eu não disse nada disso. Eu simplesmente observei que talvez você esteja bebendo um pouco demais.

— Quanto a mim, acho espantoso você não beber, muito espantoso mesmo.

— Nunca tomei bebida alcoólica — diz o padre.

— Não é razão para não beber agora. Faça como eu, beba todas as noites para esquecer o que vê durante o dia.

— E por que eu deveria esquecer o que vejo de dia?

— Porque temos a mesma pátria desses infelizes — diz o general batendo com o dedo no guardanapo. — Não tem pena deles?

— Por favor, não me ofenda — diz o padre. — Amo meu país tanto quanto você.

O general sorriu. — Você sabia — diz — que eu notei que as ideias que temos trocado nos últimos três dias lembram estranhamente os diálogos de certas peças de teatro modernas, por sinal muito entediantes?

O padre sorriu, por sua vez. — É da natureza das coisas. As ideias de quem quer que seja sempre se parecem, em algum aspecto, com os diálogos dos dramas ou das comédias.

— Você gosta do teatro atual?

— Sim, até certo ponto.

O general olhou-o fixamente por um longo momento antes de desviar o olhar.

— Meus infelizes soldados — falou de repente, como se estivesse saindo de um sonho. — Meu coração se parte ao pensar neles. Eu me sinto como um pai adotivo cercando de cuidados os filhos que outros abandonaram. Às vezes sentimos por essas crianças mais ternura do que por nossos próprios filhos. Mas o que eu posso fazer por eles? Como vingá-los?

— Também eu tenho o coração partido — diz o padre.

— Mesmo sangrando, meu coração também bate de ódio. Somos impotentes com apenas essas listas e esses depoimentos em nossas mãos. Nada fazemos senão correr atrás de suas mortes. E temos que buscá-los um a um. É triste ter chegado a esse ponto.

— É o destino.

O general assentiu com a cabeça. "Uma vez mais como no teatro!", diz para si. "Este padre parece feito de metal. Com tudo isso, eu adoraria saber se ele se mostrou tão metálico assim com a bela viúva do coronel Z." Ficou imaginando como o padre se comportaria a sós com aquela mulher tão bonita, de que maneira teria suspendido a batina para se ajoelhar diante dela. "Ela teria sentido atração por ele, ou foi apenas o interesse que a aproximou? Será que houve de fato alguma coisa entre eles?... Mas, no fundo, pouco importa!"

Uma voz, vinda do rádio do salão, chamou sua atenção. Ele aguçou o ouvido. O albanês lhe parecia uma língua rude. Com frequência o ouvira sendo falado nos cemitérios, pelo pessoal local que vinha ajudar nos trabalhos de exumação.

"E, seguramente, esses mortos também devem ter escutado essa língua fatal. Deve ser o noticiário falado, neste instante", pensou. Captava, de fato, palavras que lhe eram familiares: "Tel-Aviv, Bonn, Laos..."

"Quantas cidades espalhadas mundo afora!", diz consigo. E seu pensamento voltou-se de novo para todos os soldados que vieram à Albânia de regiões tão diversas. Com etiquetas de metal enferrujado, cruzes, marcas sobre o solo, os nomes escritos de qualquer maneira. Mas as tumbas, em sua maior parte, não tinham nenhum sinal distintivo. Pior ainda, a maioria dos mortos que procuravam sequer' tinha sepultura. Estavam amontoados dentro de valas comuns, atirados diretamente na lama. E ainda havia os que nem ao menos repousavam no solo enlameado, mas que existiam apenas nas listas.

Eles haviam encontrado os restos de um dos seus no museu de uma cidade minúscula do sul. O museu havia sido fundado por alguns cidadãos extremamente ligados ao passado de sua cidade natal. No interior de uma profunda célula da velha cidadela, tinham descoberto, entre outros vestígios, restos humanos. Durante semanas, no café, os arqueólogos amadores formularam hipóteses as mais variadas quanto à origem daquelas cinzas. Dois deles estavam até mesmo escrevendo um artigo para uma revista contendo teses ousadas e eruditas, quando chegou o pequeno grupo de procuradores de cinzas. O perito fizera uma visita por acaso ao museu e lá havia imediatamente reconhecido o esqueleto com o medalhão. (Em seu artigo, os amadores arriscaram duas hipóteses a respeito da origem desse objeto: tratava-se, diziam, ou de um ornamento, ou de uma moeda da época romana.) Mas a visita do perito ao museu pôs um fim em todas as conjeturas. Um único ponto ainda precisava ser elucidado: como o soldado tinha feito para se introduzir no impenetrável labirinto da cidadela, e por quê.

— Eu me pergunto quem poderia ser esse soldado — diz o general.

— Qual? — perguntou o padre.

— Aquele que descobriram dentro da cidadela.

— Mas nós não identificamos o nome dele?

— Sim — diz o general —, mas eu gostaria muito de saber se ele é um daqueles cujos pais vieram pessoalmente nos ver.

— Veio tanta gente pedir que nos interessássemos por seus próximos! — diz o padre. — Como lembrar de todos os nomes?

— De fato, não é possível. E além do mais, há muitos nomes idênticos entre eles. As listas são excessivamente longas e, de minha parte, não consigo mais me lembrar de nenhuma recomendação.

— Era um soldado como tantos outros — diz o padre.

— Para que servem afinal todos esses nomes e essas fichas antropométricas tão detalhadas? — diz o general. — Afinal, como um monte de ossadas pode ter ainda um nome?

O padre balançou a cabeça como se quisesse afirmar: "Não podemos fazer nada, é isso mesmo!"

— Eles todos deveriam ter o mesmo nome, se estão usando um medalhão idêntico no pescoço — retomou o general.

O padre não respondeu. Da taverna, os sons da orquestra continuavam subindo até eles. O general não parava de fumar.

— É horrível pensar como puderam matar nossos homens — diz, como num sonho.

— De fato.

— Mas nós também matamos muitos deles.

O padre se calou.

— Sim, nós também matamos muitos deles — repetiu o general. — Achamos tumbas deles em todo o país. Seria triste e humilhante encontrar apenas os cemitérios isolados de nossos soldados em toda parte.

O padre fez um gesto com a cabeça sem contudo dar a entender se era ou não da mesma opinião que o general.

— Mísera consolação — diz o general.

O padre balançou de novo a cabeça como se dissesse: "Não há nada que se possa fazer."

— Não estou compreendendo você — diz o general —, você acha ou não acha que isso é um consolo para nós?

O padre afastou suas mãos abertas. — Sou um homem de religião, não posso aprovar o homicídio.

— Ah! — disse o general. Os dois namorados se levantaram e saíram do salão. — Nós nos trucidamos uns aos outros de maneira cruel — retomou o general. — Aqueles demônios eram verdadeiramente valentes no combate.

— Isso tem explicação — diz o padre. — No caso deles, não se trata de coragem consciente. Tem a ver com a psicologia.

— Não estou compreendendo — diz o general.

— Mas é simples — prosseguiu o padre. — Na guerra, alguns são guiados pela razão, seja ela sólida ou precária; outros, por seus instintos.

— Sim!

— Os albaneses são um povo rude e atrasado. Mal acabam de nascer e já lhes põem um fuzil dentro do berço, para que essa arma se torne parte integrante de suas existências.

— Isso se vê — diz o general. — Chegam a segurar os guarda-chuvas como se fossem fuzis.

— Tornando-se um componente de seu ser desde a infância — prosseguiu o padre —, um elemento constitutivo de suas vidas, o fuzil influi diretamente na formação da psicologia dos albaneses.

— É curioso.

— Mas, quando se nutre uma espécie de culto por um objeto, obviamente se tem vontade de usá-lo. E qual é o melhor uso que se pode dar a um fuzil?

— Matar, evidentemente — diz o general.

— Isso mesmo. Os albaneses sempre apreciaram matar ou ser mortos. Quando não encontraram inimigo contra quem lutar, mataram-se entre si. Já ouviu falar da vendeta deles?

— Sim.

— É um instinto atávico que os empurra para a guerra. É a natureza deles que a procura, a exige. Na paz, os albaneses entorpecem, dormitam, como as serpentes no inverno. É somente em combate que sua vitalidade desabrocha.

O general balançou a cabeça.

— A guerra é a condição normal deste país. É por isso que seus habitantes são tão ferozes, temíveis, e que, quando lutam, não conhecem nenhum limite.

— Em outras palavras, este povo, com essa sede de aniquilamento ou autodestruição que o devora, está destinado a desaparecer — diz o general.

— Naturalmente.

O general ainda estava bebendo. Ele agora articulava as palavras com dificuldade.

— Você odeia os albaneses? — perguntou de repente.

O padre deu um arremedo de sorriso.

— Não, por quê?

O general se curvou para poder falar-lhe ao ouvido. O padre fez um ligeiro gesto de repugnância ao sentir seu hálito impregnado de álcool.

— Como, por quê? — diz o general baixando a voz. — Sei muito bem que você os odeia tanto quanto eu, mas não nos interessa dizer isso neste momento.


IV

Desejaram-se boa noite e o general, tão logo fechou a porta do quarto, sentou-se a uma pequena mesa sobre a qual se projetava a lâmpada de um abajur. Apesar da hora tardia, não estava com sono. Sua pasta estava sobre a mesa, e ele estendeu automaticamente a mão para pegá-la. Tirou dela as listas de militares mortos e começou a folheá-las. Havia um grande pacote e elas estavam presas em maços de quatro, cinco ou dez. Percorria-as e, pela centésima vez, relia, ao dar com os olhos, os títulos em maiúscula de cada lista: "Regimento da Glória", "Segunda Divisão", "Segunda Companhia do Exército", "Divisão de Ferro", "3º Batalhão Alpino", "3-Unidade Especial", "4º Regimento da Guarda", "Divisão da Vitória", 7ª Divisão de Infantaria", " “Batalhão Azul" (unidade punitiva)... Parou um instante na última lista. O nome do coronel Z. estava no alto, vindo depois, em ordem alfabética, os nomes dos outros mortos, oficiais, suboficiais e soldados, classificados por pelotões e companhias. "O Batalhão Azul, um bonito nome", pensou o general.

Pôs de lado as listas nominais básicas e tirou outras, cheias de anotações e de pequenas cruzes vermelhas na margem. Eram listas que continham indicações concretas que deviam facilitar a busca dos despojos. Nelas, os militares não estavam agrupados segundo suas formações, mas, sim, de acordo com os lugares onde tinham caído, e havia ao lado de cada nome uma anotação correspondente a uma indicação nos mapas topográficos, bem como a altura de cada um e as características de sua arcada dentária. Os nomes dos que já haviam sido encontrados estavam marcados com cruzinhas vermelhas, mas estas ainda eram raras.

"Eu deveria transcrever estes resultados para as listas básicas e fazer um balanço da primeira excursão", disse consigo o general, "mas já está muito tarde."

Não sabendo o que fazer, retomou inconscientemente sua leitura. Nas listas que continham as indicações detalhadas, em seguida aos títulos vinham suas traduções entre parênteses, e todos esses nomes de vales, de gargantas, de planaltos, de cursos de água e de cidades lhe pareceram sobrenaturais e macabros. Tinha o sentimento de que esses lugares, cada um numa medida diferente, tinham repartido aqueles mortos e que ele tinha vindo agora para se apropriar deles.

De novo seu olhar se fixou sobre uma das listas. Era a "lista de desaparecidos", e o nome do coronel Z. constava ainda no alto. "Um metro e oitenta e dois, primeiro incisivo direito de ouro", leu o general; depois examinou a lista até o final. "Um metro e setenta e quatro, dois pré-molares faltando; 1m65, molares da arcada superior faltando; 1m90, ponte metálica dos incisivos; 1m71, dentição completa; 2m 10! Este aí deve ser seguramente o mais alto da lista. Quem pode saber qual a altura do maior de todos! Quanto ao mais baixo, vejamos, sua altura... sei muito bem: 1m51, é o regulamento. Os mais altos são em geral do 42º Regimento da Guarda, os mais baixos, dos Caçadores Alpinos. Mas que bobagens são essas que estão me passando pela cabeça!"

Apagou a luz e se deitou. Não conseguiu adormecer. "Não devia ter tomado aquele maldito café no final da noite", lamentou.

Fixava a vista no teto branco do quarto, varrido intermitentemente pelos faróis dos carros que passavam pela avenida. A luz, atravessando as cortinas não totalmente abaixadas, projetava-se em listras sobre o teto, e ele tinha a impressão de estar vendo acima dele a tela de um aparelho de raios X, no qual desconhecidos eram examinados, um depois do outro.

"As listas estão lá, sobre a mesa, espalhadas", pensou, e sentiu um calafrio com esse pensamento. "Teria feito bem em trazer minha mulher comigo. Estaríamos agora deitados aqui, lado a lado no escuro, falaríamos em voz baixa e eu lhe confiaria todas as minhas aflições. Mas ela teria medo, como nos últimos dias antes da minha partida para a Albânia."


Aqueles últimos dias tinham sido muito diferentes dos de sua existência habitual, cheios de um elemento novo e desconhecido. O mau tempo voltara e ele mal tinha retornado do mar quando o primeiro visitante havia se apresentado em sua casa. Estava lendo no escritório quando a empregada anunciou que alguém o aguardava na sala.

O homem estava em pé próximo à janela. A tarde caía do lado de fora e as árvores produziam, no jardim, o efeito de um amontoado de palha envolto em sombra. Ao ouvir a porta se abrir, o visitante virou-se e saudou o general.

— Desculpe incomodá-lo — disse, com uma voz rouca e profunda —, mas fui informado de que o senhor em breve partirá para a Albânia para trazer os restos de nossos compatriotas que repousam lá.

— Exatamente — diz o general. — Espero partir dentro de uma quinzena.

— Eu teria um pedido a lhe fazer —, retomou o homem, e tirou de uma bolsa um mapa amarrotado da Albânia. — Eu fiz a guerra nesse país durante dois anos como soldado.

— Em qual unidade? — perguntou o general.

— Divisão de Ferro, 5º batalhão, pelotão dos metralhadores.

— Estou escutando — diz o general.

O desconhecido curvou-se sobre o velho mapa desdobrado e, depois de ter procurado por um momento, encostou o indicador sobre um ponto.

— Foi neste local, durante uma campanha importante em pleno inverno, que meu batalhão foi destruído pelos milicianos albaneses. Dos nossos, os que escaparam da morte naquela noite se dispersaram em todas as direções. Junto comigo estava um companheiro ferido. Ele morreu pouco depois do dia nascer, enquanto eu o arrastava na entrada de um vilarejo abandonado. Eu o enterrei sozinho da melhor maneira que pude, atrás da pequena igreja do vilarejo, e fui embora. Só isso. Ninguém suspeita dessa tumba. É por isso que vim procurá-lo. Quando o senhor passar por lá, eu lhe suplico que recolha seus restos e traga-os com os outros.

— O nome dele deve seguramente figurar na "lista dos desaparecidos" — diz o general. — As listas são muito precisas, mas mesmo assim o senhor fez bem em me procurar, pois há sempre pouca chance de encontrar "desaparecidos". Nesses casos, o sucesso é frequentemente uma obra do acaso.

— Eu preparei também um pequeno desenho, do jeito que consegui — falou o desconhecido, tirando da bolsa um pedaço de papel no qual rabiscara com caneta alguma coisa parecida com uma igreja e, atrás dela, duas setas e a inscrição com tinta vermelha da palavra "tumba". — A uma pequena distância vê-se uma fonte — prosseguiu —, e do lado direito, um pouco mais longe, um cipreste, logo ali — e ele fez uma nova marca sobre o mapa, perto da igreja.

— Está bem — diz o general. Eu lhe agradeço.

— Sou eu que devo lhe agradecer — disse o outro. — Era o meu melhor amigo.

Ele queria acrescentar alguma coisa, talvez um detalhe, mas o ar grave e severo do general impediu-o de falar mais. Em seguida o desconhecido se despedira sem que o general lhe perguntasse sua identidade ou sua ocupação. E isso tinha sido só o começo.

Todas as tardes, ele escutava a campainha tocar continuamente e novos visitantes enchiam sua sala. Era gente das mais diversas condições, de todas as profissões, mulheres, pais idosos de soldados, antigos combatentes, e todos eles tinham o mesmo ar tímido e a mesma expressão do rosto quando se sentavam no grande sofá, esperando ser recebidos. Depois ainda vieram outros, de inúmeras cidades e províncias. Esperavam na sala com um ar ainda mais constrangido e tinham muita dificuldade de se expressar, e todas as informações que podiam fornecer sobre os entes queridos mortos na Albânia eram bastante sumárias e incertas.

O general tomava nota em um caderno de tudo o que lhe diziam, repetindo sempre:

— Não se preocupem. As listas elaboradas pelo Ministério da Guerra são muito precisas, e graças às indicações detalhadas que elas contêm não vamos deixar de encontrar nenhum dos que estamos procurando. De todo modo, estou tomando nota das informações que estão me trazendo. Elas podem ser úteis.

Eles iam embora depois de agradecer e, no dia seguinte, era de novo a mesma coisa. Vinham outros, com a capa de chuva encharcada. Apesar de andarem com o maior cuidado sobre o espesso tapete, acabavam deixando as pegadas dos sapatos. Alguns temiam que seus próximos não constassem das listas, outros exibiam telegramas recebidos do comando durante a guerra e que traziam a data e o local onde o soldado havia "tombado no campo de honra"; outros enfim — os pais velhos, sobretudo —, sem conseguir acreditar que seus filhos pudessem ser encontrados unicamente com a ajuda das informações que constavam nas listas, iam embora desesperados, depois de suplicar ao general mais uma vez que não poupasse nenhum esforço em suas buscas.

Todos tinham sua pequena história para contar, e o general os escutava pacientemente, um de cada vez: desde as mulheres que já tinham se casado de novo e que, sem que seus novos maridos soubessem, interessavam-se pelo destino de seus primeiros esposos, até os jovens de vinte anos, de suéter e capa de chuva, que nunca tinham conhecido os pais mortos na guerra.

Na última semana antes da partida, o número de visitas aumentou ainda mais. Ao chegar da rua, o general encontrava sua sala abarrotada de gente. A peça parecia um corredor de clínica cheio de doentes esperando ser examinados, mas o silêncio ali era ainda mais completo. Os visitantes permaneciam mudos durante horas, com os olhos fixos no chão sobre os desenhos do tapete e só levantavam a cabeça quando um recém-chegado entrava e ia se sentar num canto.

Outros, camponeses vindos de longe, apresentavam-se carregando no braço grandes sacolas que colocavam junto dos pés; outras vezes, diante da porta de entrada, o que chamava a atenção do general assim que descia do automóvel eram as bicicletas apoiadas nas barras da cerca de ferro e, de vez em quando, um carro estacionado junto da calçada. Depois ele ia diretamente para a sala, onde o cheiro acre das roupas de lã grossa molhadas dos camponeses, misturado com o perfume de alguma dama elegante, lhe arranhava a garganta. Assim que entrava, todos se levantavam respeitosamente sem dizer uma palavra, sabendo perfeitamente que ainda não era o momento de lhe falar.

— Papai — perguntavam seus filhos quando o general, depois de ter tirado o sobretudo, se sentava na mesa da sala de jantar —, quem é toda essa gente?

O general, rindo, tratava de esclarecer a curiosidade deles com uma brincadeira. Mas eles insistiam.

— Eles estão indo para a guerra, papai? — perguntava seu filho.

— Não, eles já estiveram lá.

— Mas então o que estão vindo fazer aqui?

— Eles têm parentes militares no estrangeiro e querem mandar cartas e encomendas.

Em seguida, quando acabava o almoço, ia para a sala onde os visitantes, em ordem, lhe expunham seu caso. Como seus relatos se pareciam! E o que escutava deles tornara-se tão familiar que, todos os dias, tinha a impressão de reviver em pensamento o dia anterior. Frequentemente, as mulheres que se afligiam com o destino de seus filhos ou maridos não conseguiam conter os soluços e então o general ficava cada vez mais nervoso.

— Chega! — gritou um dia para uma mulher em prantos. — Aqui não é o lugar para a senhora vir se lamentar! Seu filho morreu no campo de honra, no local onde a pátria o enviou. Ele caiu como um bravo.

— Bravura desgraçada! — murmurou.

Num outro dia, um homem muito alto, mal entrando na sala, ainda na porta, gritou: — Sua missão é um embuste!

O general ficou vermelho de raiva. — Isto é linguagem de venais! Saia!

Lá pelo meio da semana notou entre os visitantes que o aguardavam uma mulher muito velha acompanhada de uma menina. Parecia muito abatida e ele foi direto a ela.

— Meu filho ainda está lá — ela diz com uma voz fraca —, meu único filho.

E tirou do bolso um saquinho, que abriu com suas mãos trêmulas. Tirou dali um telegrama amarelado pelo tempo e lhe estendeu. Ele leu a fórmula usual do comando militar que anunciava aos pais a morte de seu filho, e parou no último pedaço da frase: "...morto no campo de honra em Stalingrado."

Ele tentou explicar a ela: — Sinto muito, senhora, mas é para a Albânia e não para a Rússia que vou viajar.

A velha fitou-o por um instante com seus olhos turvos sem, aparentemente, captar o sentido de suas palavras.

— Peço a você por favor — ela retomou — que consiga descobrir onde e quando ele morreu, quem estava junto dele nos últimos momentos, quem lhe deu de beber e quais foram os seus últimos desejos.

O general se esforçou para fazê-la compreender que ele não estava indo para a Rússia, mas a velha continuava sem entender e insistia em seu pedido, enquanto todos na sala se olhavam em silêncio.

"Fique tranquila, cara senhora", interveio finalmente alguém com doçura, "o general fará tudo o que for possível para atendê-la." Então a velha agradeceu e saiu, toda curvada, com a mão apoiada na bengala e a outra no ombro da menina que a acompanhava.

No dia seguinte, um outro demandante mostrou um documento anunciando a morte de um parente na África, mas ao compreender o equívoco, desculpou-se.

Uma tarde, dois dias depois, um homem de expressão particularmente sombria esperou que todo mundo tivesse ido embora.

— Também fui general — falou, com um tom que denotava irritação — e fiz a guerra na Albânia.

Os dois se olharam por um instante com desprezo, um por estar diante de um general vencido, o outro por se encontrar diante de um general de tempos de paz.

— O que deseja? — perguntou friamente o general em serviço.

— Na verdade, coisa nenhuma. Efetivamente, não espero nada de sério de sua parte. Para dizer a verdade, não tenho nenhuma confiança no senhor e, no fundo, acho tudo isso ridículo. Mas a partir do momento que assumiu essa missão, é preciso chegar até o final, que diabo!

— Poderia se expressar mais claramente?

— Eu não tenho nada a acrescentar. Quero simplesmente preveni-lo. Fique sempre alerta. Mantenha a cabeça erguida, jamais a curve diante deles. Eles vão persegui-lo com provocações, zombarias talvez, mas é preciso saber responder. Deve ficar vigilante. Eles vão tentar cobrir de afrontas as cinzas de nossos soldados. Eu os conheço bem. Éramos frequentemente ridicularizados por eles. Caçoavam de nós naquela época. Imagine do que não são capazes agora!

— Não tolerarei de forma alguma comportamentos desse tipo.

O outro o olhou com um ar de comiseração, como se estivesse prestes a lhe dizer: "Pobre coitado!", e saiu sem sequer cumprimentá-lo.

Nos três dias seguintes, os últimos antes da partida, a sala do general esteve continuamente lotada. Cansado desses preparativos, ele agora desejava partir o mais cedo possível. Sua mulher estava extremamente nervosa.

Numa noite em que estavam conversando, deitados um ao lado do outro, ela lhe contou o que estava sentindo: — E se você recusasse essa missão? Tenho a impressão de que a morte entrou dentro desta casa.

Tranquilizou-a o melhor que pôde, mas ele mesmo mal fechou os olhos naquela noite. Tinha a impressão de estar partindo para a guerra no dia seguinte.

Recebeu a última visita no próprio dia de sua partida. Era de manhãzinha, pois tinha que ir muito cedo para o aeroporto. Quando saiu para o jardim para abrir a porta da garagem, avistou dois homens acocorados, enrolados numa coberta grossa, dormindo apoiados na grade. Eram um velho e um homem jovem, seu neto. Vinham de uma região da fronteira, das mais afastadas. Tinham viajado vários dias para finalmente chegar no último trem da noite. Sem ousar tocar a campainha numa hora daquelas, deitaram-se na calçada e dormiram à espera do dia.

O general repetiu pela última vez as palavras que tinha tantas vezes pronunciado: "As listas foram elaboradas com muita minúcia, não se preocupe, nós vamos encontrá-lo." O velho camponês agradeceu com um movimento da cabeça enquanto recolhia a coberta que ele e o neto tinham deixado cair no chão quando foram acordados de repente com o rangido do portão.

Foi tudo. Assim tinham decorrido as duas últimas semanas que o general passara em casa, na volta da praia.


V

Eles partiram novamente. Caía uma chuva fina. Havia duas semanas que percorriam regiões agrestes, com raras cidades. O carro deles seguia na frente. O caminhão transportando os operários e as ferramentas vinha atrás. A estrada era muito movimentada. Aldeões vestidos com seus casacos cintados, feitos de lã grossa e preta, passavam todo o tempo nos dois sentidos, a pé, a cavalo, ou empoleirados na boleia de caminhões. O general observava atentamente o relevo do solo. Tentava imaginar a tática utilizada pelos diversos exércitos em luta durante as guerras de que esse país fora o teatro.

Em uma banca, não longe do centro de um lugarejo, vendiam-se jornais. Uma quantidade de pessoas se aglomerava em volta do local de pagar. Algumas liam em pé, outras percorriam o jornal com os olhos ao se afastar.

— Os albaneses leem muito os jornais — diz de repente o general.

No seu canto, o padre saiu do torpor. — É explicável — respondeu —, pois é um povo isolado, um país cercado de potências adversárias.

— Um país tão pequeno e submetido a um bloqueio... que estranho!

— É verdade, e eles vão ter dificuldade para resistir nessas circunstâncias.

— Um povo surpreendente — diz o general. — Aparentemente, não se pode submetê-lo pela força. Talvez se inclinasse diante da beleza.

O padre começou a rir. — Por que você está rindo?

— Porque você acabou de falar não como um general, mas como um filósofo.

O general observava a paisagem sombria envolta no nevoeiro, os flancos desfolhados das montanhas e a abundância de pedras de todas as dimensões que se amontoavam no solo. Sentiu uma profunda tristeza invadi-lo. Fazia uma semana que viam apenas aquelas encostas rochosas. Sua nudez selvagem dava-lhe a impressão de esconderem um segredo terrível.

— É um país trágico — disse. — Seus trajes também têm qualquer coisa de trágico. Repare nesses casacões pretos e nas saias das mulheres.

— O que você diria se ouvisse os cantos deles? São ainda mais lúgubres. Tem a ver com o destino do país. Não existe povo que tenha conhecido destino mais triste ao longo dos séculos. A isto se deve essa rudeza e essa aspereza.

— Eles não têm canções alegres?

— Não. Muito poucas.

O carro descia uma estrada de montanha. Fazia frio. De vez em quando se ouviam roncos de motor de caminhão. Sobre uma encosta, erguia-se uma fábrica em construção. A paisagem nua fazia com que a obra se destacasse, gigantesca, sobre um fundo de nevoeiro.

— Uma usina de tratamento de cobre — diz o padre.

De tempos em tempos surgiam nos cruzamentos casamatas quadradas, circulares ou hexagonais, com suas aberturas dando para a estrada. A cada curva, o carro entrava em seus campos de tiro e o general ficava olhando as fendas estreitas, abandonadas, na frente das quais a água corria gota a gota.

"Passamos!", dizia consigo, cada vez que o automóvel saía do campo de tiro, mas na curva seguinte uma nova casamata dava a impressão de brotar da terra e o carro parecia ficar de novo sob seu fogo. O general observava a água escorrer pelo para-brisa e às vezes, quando cabeceava com o sono, tinha a impressão de que os vidros do automóvel se quebravam em mil pedaços sob as balas; então acordava com um sobressalto. Mas as casamatas estavam silenciosas e abandonadas. Se alguém as observasse de longe com atenção, podia pensar em esculturas egípcias, com uma expressão ora fria e cheia de desprezo, ora enigmática, de acordo com a disposição de suas aberturas. Quando estas estavam dispostas verticalmente, a fortificação tinha uma expressão feroz e ameaçadora que evocava algum mau espírito; quando, ao contrário, as fendas eram horizontais, sua estranha mímica traduzia a indiferença e o desprezo.


Por volta do meio-dia eles alcançaram a planície e terminaram chegando a um vilarejo de casas caiadas dos dois lados da estrada. A chuva tinha parado. Como de costume, as crianças se juntaram em volta do carro. Chamavam-se umas às outras de longe e vinham correndo de todos os caminhos próximos, na direção da rua principal. O caminhão parou alguns metros atrás do automóvel e os operários foram saltando um depois do outro, e ali mesmo começaram a fazer movimentos para desentorpecer as pernas e os braços.

Os aldeões que passavam paravam para olhar os estrangeiros. Pareciam não ignorar a razão daquela visita. Isto podia ser lido em seus rostos. Sobretudo no das mulheres. A essa altura, o general conhecia bem aquela expressão indecifrável dos olhos dos habitantes. "Nós lhes lembramos a invasão", pensou, "e de uma região para outra, quanto mais os combates foram encarniçados, mais os rostos são enigmáticos."

No final do vilarejo, em um terreno baldio, alinhavam-se numerosas tumbas. O cemitério estava cercado por um muro pequeno, demolido em alguns trechos. "Os que repousam aqui são todos dos nossos", diz para si o general. Sentiu frio e envolveu-se melhor no longo impermeável. Um pouco mais adiante, o padre, imóvel, tinha o ar de uma cruz negra de gravura mexicana. "Compreende-se facilmente como puderam ser cercados", pensou o general. "Seguramente tentaram escapar pela ponte que atravessa o rio e foi lá que eles os apanharam. Quem teria sido o oficial idiota que os meteu nessa arapuca? Os informes não dizem nada a respeito."

O perito albanês procedeu às formalidades de praxe. Mais ao longe se avistavam outras tumbas. Estavam muito próximas do vilarejo e todas tinham uma estrela vermelha na extremidade. O general reconheceu imediatamente os "cemitérios dos mártires", como os habitantes da região chamavam os locais de sepultura dos milicianos. Aqui, sete de seus compatriotas haviam sido enterrados junto dos albaneses. Em pequenas placas de ferro guarnecidas de uma estrela vermelha, escritos com muitos erros de ortografia, podiam-se ler os nomes desses soldados, sua nacionalidade e a data de sua morte, a mesma para todos. Em uma placa de pedra estavam gravadas estas palavras: "Estes soldados estrangeiros morreram como heróis lutando junto dos milicianos albaneses contra as forças do Batalhão Azul, em 17 de março de 1943."

— Sempre esse Batalhão Azul — diz o general, caminhando pelas aleias do cemitério. — É a segunda vez que topamos com o rastro do coronel Z. De acordo com nossas listas, dois homens de seu batalhão devem estar sepultados neste vilarejo.

— É preciso perguntar às pessoas daqui se elas sabem alguma coisa do coronel — diz o padre —, embora em março de 1943 ele ainda estivesse vivo.

— É verdade, mas devemos mesmo assim nos informar.

Enquanto os visitantes estavam ocupados preenchendo os formulários de despesas, os aldeões, sem serem percebidos, tinham-se juntado ao longo do cemitério. Pouco depois, algumas mulheres se aproximaram. As crianças se colocaram ainda mais na frente que os demais e ficaram lá, falando-se ao ouvido, agitando suas cabecinhas louras. Todos seguiam com os olhos as idas e vindas do pequeno grupo dentro do cemitério.

Uma mulher velha, carregando um pequeno barril nas costas, veio na direção deles.

— Vão levá-los embora? — perguntou em voz baixa.

— Sim, vão levar — murmuraram diversas vozes. A velha, com seu fardo sempre nas costas, olhava a cena como os demais aldeões. Num determinado momento, avançou alguns passos e dirigiu-se aos operários:

— Digam a eles que façam o favor de não misturá-los com os outros. Pois os choramos como se fossem nossos, segundo nosso costume.

O general e o padre se viraram para a velha, mas ela já havia lhes dado as costas e estava indo embora. Por alguns instantes ainda viram seu barrilete balançar, mas em seguida ela desapareceu numa curva do caminho.

Os aldeões, espalhados pelo cemitério, estavam tão quietos que mal se percebia sua presença. Observavam com atenção os movimentos daqueles homens que, com as golas dos casacos levantadas por causa do frio, iam e vinham com um ar de quem procura alguma coisa inutilmente.

— Os trabalhos dentro dos dois cemitérios começam amanhã — diz o general. — Hoje vamos procurar os dois soldados do "Batalhão Azul" e esse piloto abatido.

Todo mundo no vilarejo conhecia a história do aviador. Os destroços de seu aparelho ficaram espalhados pelo pequeno bosque do outro lado do vilarejo. O piloto fora enterrado pelos próprios camponeses, perto de seu avião. Da tumba não se distinguia mais nenhum traço, a não ser uma grande pedra que aparentemente indicava a cabeça. Quanto ao avião, restara não mais do que um monte de ferragem enferrujada. Um aldeão lhes contou que todas as peças que podiam ser de algum modo aproveitadas tinham sido pouco a pouco desmontadas, desde os pedaços de borracha e pneus, queimados durante a guerra para servir de iluminação, até as pesadas peças de metal, que se prestavam a uma série de usos.

Dois operários se puseram imediatamente a cavar. O resto do grupo dirigiu-se ao vilarejo.

A chuva cessara havia muito tempo, mas as valas cavadas nos caminhos pelas rodas das carroças e dos tratores continuavam cheias de água. Aqui e ali, erguiam-se montes de feno parcialmente utilizados, ainda encharcados. Entre os ciprestes, divisava-se ao longe o campanário da velha igreja e, de um campo mais além, chegava o ronco surdo de um trator.

Eles almoçaram dentro dos carros, depois foram tomar um café no bar da cooperativa. A sala estava muito enfumaçada e quase não havia mesa livre. Um pequeno rádio gritava, em volume máximo. Os aldeões conversavam em voz alta. Via-se bem que eram gente da planície, de cabelos desbotados pelo sol, de pele enrugada. Seu timbre de voz era diferente do timbre dos habitantes da montanha, mais doce, mais melodioso.

O general, sem parar de saborear seu café, percorria com o olhar os slogans escritos em vermelho nas paredes. Só entendeu as palavras "imperialismo", "revisionismo", "plenário" e o nome de Enver Hoxha, que leu embaixo de uma breve citação.

Pouco depois, o perito veio se juntar a eles. Estava acompanhado de um jovem de paletó de veludo de textura grossa. Os dois se aproximaram da mesa onde estava sentado o general, e o perito fez as apresentações.

— O chefe da cooperativa. O general...

O rapaz fitou o estrangeiro com seus olhos azuis ligeiramente atônitos, e depois olhou para o perito.

— É o seguinte — diz o perito. — Esta semana, pretendemos fazer as buscas nos dois cemitérios militares situados na proximidade de seu vilarejo. É claro que temos nossos próprios operários mas, mesmo assim, para apressar nossos trabalhos, gostaríamos muito, se possível, de contar com a ajuda de vocês.

— Vocês precisam de outros homens? — perguntou o chefe da cooperativa.

— Exatamente.

O jovem pareceu embaraçado por um instante antes de dizer: — O fato é que nossos homens estão neste momento bem ocupados. Estamos em pleno período de preparo da terra e, além do mais, o tabaco e o algodão não estão muito bem este ano. Também...

— Mas isso só tomará uns poucos dias — interrompeu o perito. — E depois, vocês devem saber que os que participarem vão ser regularmente remunerados. Estas pessoas (e o perito mostrou com os olhos o general e o padre) estão dispostas a pagar trinta leks novos para cada tumba aberta e cinquenta para cada tumba que contiver os restos de um dos deles.

— Pagaremos bem — interveio o general.

— Não se trata disso — diz o chefe da cooperativa. — O que eu quero saber é se esse tipo de trabalho tem autorização do governo... quer dizer...

— Não se preocupe com essa questão — interveio o perito. — Tenho uma permissão da presidência do Conselho. Pode olhar...

O rapaz leu o papel que lhe mostraram, depois refletiu um instante.

— De todo modo, vocês precisam se entender com o Comitê Executivo do distrito.

— Entendido! — diz o perito. — Amanhã mesmo, quando formos à cidade.

— De minha parte, posso fornecer dez homens por três ou quatro dias.

— Será suficiente.

O general agradeceu e os visitantes se levantaram. No vilarejo, ninguém sabia nada a respeito dos dois soldados do Batalhão Azul, mortos e enterrados naquele local. Quanto ao coronel Z., os aldeões idosos se lembravam bem dele. Por duas vezes ele passara por lá com seu batalhão e nas duas ocasiões pusera fogo no vilarejo. Os jovens somente se lembravam de ter subido até o alto da colina onde os camponeses estavam refugiados, abandonando bens e gado, e de ter visto lá de cima suas casas queimando.

Ninguém ouvira falar dos dois soldados. O mais provável é que seus próprios camaradas os tivessem enterrado, depois que os habitantes deixaram a cidade.

— Isso não vai nos impedir de encontrá-los — diz o general. — O local onde foram enterrados está indicado com precisão no mapa, mas se insisti em interrogar os aldeões é porque suas informações poderiam ajudar na tarefa.

Ele passou mais de uma hora com o perito albanês tentando determinar, com a ajuda das indicações que figuravam no mapa, o lugar preciso daquelas sepulturas. Finalmente conseguiram. O local coincidia com o estábulo de bezerros da cooperativa. Foram para lá acompanhados de um grupo de empregados, e os operários começaram a cavar depois de afastar os animais do local presumido. Os bezerros olhavam os intrusos com seus bonitos olhos tranquilos, e dentro do estábulo pairava o odor agradável do feno.

Antes de cair a noite, os restos do piloto e dos dois soldados tinham sido encontrados. Os do primeiro foram achados sem muita dificuldade. Quanto aos dois outros, foi preciso abrir uma fossa atrás da outra, e depois que os visitantes se foram, o solo do estábulo ficou deformado como se tivesse sofrido um bombardeio.

Os operários taparam as fossas sem se apressar. Iam dormir no vilarejo. O general, o padre e o perito decidiram, por sua vez, passar a noite em uma pequena cidade a trinta quilômetros dali. Voltariam no dia seguinte bem cedo.


Já anoitecera quando se puseram a caminho. O automóvel andava em baixa velocidade na estrada, iluminando com os faróis ora os choupos da beira do caminho, ora uma carroça voltando dos campos ou uma fazenda cercada por altos caniços.

— Pare! — disse de repente o padre, pois estavam passando diante do cemitério de seus soldados.

O motorista freou.

— O que aconteceu? — perguntou o perito.

O padre, apontando, mostrou ao general uma inscrição no muro do cemitério.

Assim que o carro parou, ele desceu. O general seguiu-o batendo com violência a porta atrás dele. O perito também saiu do carro.

— O que isso quer dizer? — gritou o general mostrando o pequeno muro.

Lia-se esta frase, escrita com carvão em grandes letras maiúsculas desarrumadas: Vejam o destino dos nossos inimigos!

O perito deu de ombros. — Isto foi escrito hoje à tarde — diz. — Não havia nada de manhã.

— Nós sabemos — diz o general —, mas gostaríamos de compreender qual a intenção de seu governo ao incitar provocações afrontosas como esta.

— Não vejo nada de afrontoso nisso — diz calmamente o perito.

O padre tirou do bolso o caderninho, aparentemente para transcrever a frase escrita no muro.

— Como, isso não é uma afronta? — exclamou o general. — Uma inscrição dessas no cemitério dos nossos mortos! Vou fazer um relatório. É uma grave provocação, um gesto odioso.

O perito se virou com irritação. — Há vinte anos vocês escreviam as palavras de ordem do fascismo no peito dos nossos camaradas que vocês enforcavam, e agora ficam revoltados com uma simples frase, provavelmente escrita por algum estudante.

— Não estamos falando do que aconteceu há vinte anos — interrompeu o general.

— No fundo, é uma verdade geral.

— Não estamos falando do que aconteceu há vinte anos.

— Vocês vivem citando os gregos e os troianos. Por que não deveríamos falar do que aconteceu há vinte anos?

— Essas discussões não levam a nada — diz o general. — Venta muito aqui.

Os três se dirigiram com passos rápidos para o carro. As portas se fecharam furiosamente, uma depois da outra, como uma crepitação, e o motorista arrancou. Mas não andaram mais do que cinco minutos.

Ao sair do vilarejo, do outro lado de uma ponte de madeira, a estrada estava bloqueada por uma carroça que perdera uma roda. Dois camponeses estavam no local.

— Desculpem — disse um deles ao perito, que havia descido.

— Não faz mal.

Sempre tentando recolocar a roda, o aldeão perguntou ao perito: — De onde você é?

O perito disse.

— Soubemos esta manhã a razão da sua visita. Todas as mulheres do vilarejo não falam de outra coisa. Começou quando viram os carros chegando.

— Santo Deus, empurre mais um pouco! — gritou o outro camponês, também se esforçando para recolocar a roda.

— Elas estão dizendo que os soldados estrangeiros vão ser tirados das tumbas e levados para a terra deles — prosseguiu tranquilamente o camponês. — E junto com eles vão ser exumados os balistas,2 que vão ser levados para o estrangeiro, bem atrás do sol poente. É verdade?

O perito começou a rir.

— É a conversa que está correndo — continuou o aldeão. — E que, mesmo mortos, eles estão do lado do inimigo como estiveram em vida. Aliados ontem, aliados hoje. É o que estão dizendo lá no vilarejo.

O perito riu de novo.

— Não, não é verdade — respondeu. — Ninguém pretende se preocupar com os balistas mortos.

"Mas continue empurrando, que diabo!", gritou ainda o outro aldeão. A roda não encaixava.

Cães latiam ao longe. Alguém voltava dos campos com uma lanterna na mão. A luz do lampião tremia como se tivesse medo.

— Uma das rodas de vocês resolveu dar problema? — perguntou o recém-chegado, e levantou seu lampião para olhar com surpresa o carro e os estrangeiros.

Houve um silêncio. — Está vindo dos estábulos? — perguntou o outro.

— Estou, lá de longe.

O homem, depois de um tempo parado observando-os, desejou boa noite e se afastou. A luz de sua lanterna projetava manchas claras nos montes de feno que se alinhavam silenciosos na beira do caminho.

Os cães continuavam a latir. — Você faz sempre esse trabalho? — perguntou o camponês ao perito.

Ele balançou afirmativamente a cabeça.

— Sim, já tem algum tempo — esclareceu na hora.

O camponês deu um longo suspiro. — Não é exatamente um trabalho alegre.

O motorista assobiava uma música moderna.

"Vamos, empurre!" A roda finalmente foi encaixada. "Boa noite!"

Eram alguns aldeões voltando dos campos, enxada nas costas.

"Boa noite!" A carroça finalmente liberou o caminho e o carro partiu rapidamente pela estrada.

A noite de outubro caíra sobre a planície. A lua, após tentar sem sucesso emergir das sombras, derramava sua claridade através das camadas esponjosas das nuvens e do nevoeiro que, embebidos, saturados de luz, deixavam-na fluir lentamente, docemente, uniformemente sobre o horizonte e a imensa planície. Naquela hora o céu estava untuoso, e o horizonte, a planície e a estrada pareciam cobertos de manchas de leite.

“Havia certas noites de outono em que o céu adquiria um aspecto estranho, quando mergulhava completamente na claridade indiferente, desolada e lancinante da lua. Deitado na terra, de costas, cada um de nós devia estar se dizendo: "Meu Deus! Que céu!"

O caminho era cheio de depressões que sobressaíam, grandes e negras, quando os focos dos faróis os destacavam na noite.

Ao final de uma hora de estrada, as luzes da cidade surgiram ao longe.

 

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2 Colaboradores albaneses a serviço dos ocupantes italianos e alemães.


VI

O carro parou diante do hotel da Albturist. Nas ruas encharcadas, diante das vitrines iluminadas a néon, via-se um ou outro passante. O vento frio da noite cortava o rosto e os viajantes se apressaram para entrar no hall do hotel. Não faltavam quartos livres, pois a estação chegara ao fim.

— Os senhores desejam quartos dando para o rio? — perguntou o gerente, em inglês capenga.

— Sim, se possível — diz o padre. — Obrigado.

Um empregado de uniforme ajudou-os a subir as malas. — Daqui se tem uma bela vista — diz o padre ao entrar no quarto.

— Já esteve antes nesta cidade?

— Sim.

— Então, quantas vezes já esteve na Albânia?

— Várias vezes em 38-39, a última na metade de 42. Mas a situação que encontrei em cada uma delas foi sempre bem diferente.

O general aproximou-se da janela e afastou as cortinas.

Ao longe, sobre a planície, descia sempre a mesma perturbadora claridade lunar. Fechou a cortina e depois acendeu um cigarro.

— E se descêssemos até o restaurante? — diz o padre.

— Boa ideia.

No corredor encontraram com o perito que saía do quarto com uma toalha sobre o braço.

— Vai descer para jantar? — perguntou-lhe o padre.

— Vou daqui a pouco — respondeu o perito.

— O tenente-general que nós encontramos há 15 dias nas montanhas está lá embaixo no restaurante.

— Verdade?

— Talvez estejam realizando buscas nesta cidade — diz o perito.


Quinze dias antes, quando estavam viajando por uma estrada que ladeava um vasto planalto, o general, silencioso no seu canto quando não estava cochilando, avistou de repente uma coisa estranha.

Sobre o flanco da montanha, escavadores dos serviços municipais vestidos nos seus guarda-pós de algodão azul estavam cavando em quatro ou cinco lugares. Mais ao longe, na estrada, havia um carro estacionado e, um pouco adiante, um caminhão com a parte de trás coberta por toldo. Os dois veículos eram idênticos aos seus. Um homem de uniforme, protegido por um impermeável, estava em pé ao lado do carro verde. Na beira da estrada, outro homem, vestido de preto, estava de costas para o acostamento.

"Que aparição é esta?", perguntou-se o general, com o pensamento ainda embotado. "Será que estou sonhando?"

Teve a impressão de que era ele mesmo, o padre e seus operários que estava enxergando ali. Arregalou os olhos e enxugou com a mão o vidro embaçado. Não era uma aparição.

— Olhe só ali — disse à meia-voz ao padre.

O padre, ao se virar para a direção indicada, fez um gesto de surpresa.

— Pare, por favor — diz o general ao motorista.

Ele parou o automóvel. O general baixou o vidro de seu lado e esticou o braço para o lado direito.

— Olhem esses homens lá em cima — disse ao perito. — O que estão fazendo?

— Estão abrindo tumbas militares.

— Como é possível? Eles não têm o direito de procurar sem nos consultar.

— São os deles que estão procurando — diz o perito.

— Ah! Verdade?

— Há um ano nosso governo fez um contrato com o deles, mas os preparativos atrasaram muito e eles só iniciaram os trabalhos no último verão.

— Ah! Compreendo. É um general também?

— Sim, um tenente-general. O outro é o prefeito de uma cidade deles.

O general sorriu e disse: — Só estava faltando aqui um general acompanhado de um hodja.3

— Não seria nada surpreendente. Os turcos também podem vir aqui um dia pegar seus mortos.

Enquanto o general conversava assim com o perito, os dois estrangeiros, na lateral da estrada, tinham se virado e os olhavam com curiosidade.

 

— Vamos descer — diz o general abrindo a porta do carro. — São colegas nossos. Não há mal nenhum em conhecê-los.

— Ora, por quê? — diz o padre.

— Podemos trocar as experiências que adquirimos neste trabalho — diz, rindo, o general.

Ao se aproximar, notou que o outro general tinha o braço direito amputado. Com sua única mão, a esquerda, segurava um grande cachimbo preto. O civil era um homem corpulento e careca.

Depois das apresentações, conversaram algum tempo em mau inglês, enquanto os dois motoristas de caminhão trocavam algum pequeno favor. Eles abriram e fecharam várias vezes os respectivos capôs e terminaram resolvendo a questão entre eles.

Dez minutos mais tarde, após saudar os novos conhecidos, prosseguiram a viagem.

Era a primeira vez que se reencontravam desde aquele dia.

— Lá estão eles — diz o general, entrando com o padre na sala do restaurante.

Fizeram uma saudação com a cabeça. Os dois outros tinham acabado de jantar e estavam pedindo a conta.

Jantaram praticamente em silêncio. O perito e o padre trocaram algumas raras palavras e o general, com ar contrafeito, parecia melindrado. Mal terminou o jantar, o perito subiu para o quarto.

O general e o padre se levantaram e foram encontrar o outro general e o prefeito que estavam sentados, fumando, no tranquilo hall do hotel.

— Nós nos sentamos aqui todas as noites — diz o prefeito. — Já tem bem uma semana que estamos nesta cidade e é assim que passamos todas as nossas noites. Ir aonde? Dizem que no verão o lugar é agradável e que funcionam alguns estabelecimentos para diversão, mas nesta estação não há turistas estrangeiros e, além do mais, há esse vento frio que sopra do rio, dia e noite.

— Nós podíamos ter vindo para esta cidade antes — diz o general sem braço —, mas o campeonato de futebol ainda não terminou e não nos deram permissão para cavar no terreno do estádio antes do fim do campeonato.

— Vocês podem imaginar um impedimento mais curioso do que esse? — diz o civil.

— No fundo, é razoável — retomou o primeiro. — É bem verdade que talvez pudéssemos ter começado cavando nas laterais sem tocar no terreno do jogo, mas de todo modo não seria nada agradável ouvir os espectadores aplaudindo um gol marcado ao mesmo tempo em que desenterrávamos ossadas.

— Os espectadores, acho, também não teriam gostado muito de ver o espetáculo das tumbas abertas durante a partida — diz o general.

— É bem possível — diz o sem braço —, mas eu não poria minha mão no fogo.

O general fixou o olhar naquela mão, a única, com a qual ele segurava o cachimbo, depois na manga vazia do casaco, cuja extremidade estava enfiada dentro do bolso direito. "Seguramente, o braço deve ter sido amputado na altura do cotovelo", pensou.

— Não consigo compreender como puderam construir o estádio no mesmo lugar do cemitério — diz o padre. — É contra as normas do direito internacional. Vocês deviam protestar.

— Já o fizemos — respondeu o tenente-general —, mas descobrimos que os cadáveres dos nossos soldados não foram enterrados pelas pessoas daqui, mas por nossas próprias forças, e, ainda por cima, que esse trabalho foi realizado à noite; ninguém soube de nada.

— Eu não acredito muito nessa explicação — respondeu o homem em traje civil.

— Também a mim não convence, mas também não poria minha mão no fogo — diz o tenente-general.

O general olhou de novo para o membro amputado.

— Do nosso lado, nunca deparamos com um caso deste tipo — disse.

— E vocês, onde estão procurando? — perguntou o civil.

O general disse o nome da localidade.

— Nós temos aqui trabalho para vários dias — diz o padre. — Vamos ter que realizar buscas em dois cemitérios, um grande e outro um pouco menor.

— Imagino que estejam munidos de listas precisas.

— Sim, de fato.

— Já as nossas foram elaboradas com base apenas em testemunhos verbais.

— Pode-se dizer que estamos procurando no escuro — reclamou o civil.

— Vai ser difícil.

— Sim, muito difícil — diz o tenente-general. — Provavelmente, só encontraremos algumas centenas de despojos e nem conseguiremos identificar a maior parte.

— A identificação não é coisa fácil quando não se tem listas exatas.

— Vocês dispõem com certeza de indicações sobre a altura e a arcada dentária de cada um dos mortos?

— Sim — respondeu o padre.

— Além do mais, todos os seus homens usavam um medalhão, não é?

— Oh, sim, e esse pequeno objeto é de grande utilidade, pois não se decompõe.

— Já as nossas listas sequer trazem a altura dos que estamos procurando, ou seja, não há nada para nos facilitar o trabalho.

— Felizmente existe a fivela metálica do cinturão; isso nos ajuda bastante — diz o civil.

Dois jovens entraram no hall e foram se sentar perto da grande porta envidraçada que dava para o jardim do hotel, aparentemente do lado do rio.

— Qual é a marca do desinfetante que estão usando sobre as cinzas? — perguntou o civil.

— Universal 62.

— É um produto eficaz.

— Não existe nada tão eficaz quanto a terra.

— É verdade. Mas há casos em que só a terra não consegue exercer uma função como essa.

— Já aconteceu de encontrarem corpos intactos?

— Como não!

— A nós também.

— É muito perigoso.

— Sim, o perigo de infecção é constante. Há casos em que os micróbios resistem por muitos anos à destruição e retomam subitamente sua virulência no momento em que os restos estão sendo exumados.

— Já tiveram algum acidente a lamentar?

— Não, não até o momento.

— Nós também não.

— De todo modo, nenhuma precaução deve ser negligenciada.

— Pelo que pude ver até agora, os operários são muito experientes.

— É também minha impressão.

— Vocês tomam um café? — perguntou o tenente-general.

— Não, obrigado. Vou subir e me deitar.

— Eu também vou — diz o civil. — Tenho que escrever uma carta.

Deram boa noite aos dois generais e subiram pela escada coberta com um tapete de veludo vermelho. O hall estava tranquilo. Apenas os dois jovens conversavam no canto oposto e dava para perceber de vez em quando um fragmento ou outro da conversa.

O general virou os olhos para a grande porta envidraçada, atrás da qual estendia-se a noite negra.

— Nós já estamos esgotados, e quem sabe quanto cansaço nos espera ainda!

— O terreno é difícil.

— Sim, muito difícil. Estou aproveitando o nosso trabalho para estudar alguns pontos de tática de guerra moderna em área de montanha. Mas me choco com obstáculos que não consigo superar. Com um terreno destes!

O outro não manifestou nenhum interesse no assunto e o general ficou um tanto surpreso.

— É curioso — retomou o tenente-general —, nesse estádio onde estamos realizando nossas buscas, eu vejo quase todos os dias uma mocinha que vem esperar o namorado enquanto ele está treinando. Quando está chovendo, ela vem de capa de chuva azul, e fica lá, silenciosa, de pé em um canto, entre as pilastras da tribuna, olhando os jogadores correndo na grama. O estádio vazio tem um aspecto triste, lúgubre mesmo, com suas arquibancadas de cimento brilhando sob a chuva e as fossas que desfizeram completamente as bordas do terreno. Quando ela está lá, passo meu tempo a contemplá-la enquanto nossos operários trabalham mais ao longe, e é a única distração que encontrei até agora nesta cidade.

— Ela não se assusta ao ver os restos serem desenterrados?

— Nem um pouco — respondeu o outro. — Ela simplesmente vira o rosto para seguir com os olhos o namorado que corre atrás da bola.

Ficaram ali um bom tempo, afundados em suas poltronas, fumando seus cigarros sem trocar uma palavra.

O general disse, por fim, quase rindo: — Nós somos os mais hábeis coveiros do mundo. Nós vamos encontrar esses mortos onde quer que estejam enterrados. Eles não podem nos escapar.

O outro disse, observando-o: — Pois fique sabendo que há várias noites eu tenho um mesmo pesadelo.

— Eu também tenho maus sonhos.

— Eu me vejo exatamente naquele estádio onde estamos realizando as buscas — retomou o tenente-general. — Só que ele me parece ainda maior e as arquibancadas estão lotadas enquanto estamos cavando o terreno. No meio da multidão está a mocinha de capa azul. A cada nova tumba aberta, a multidão de espectadores aplaude furiosamente e o estádio inteiro se levanta e começa a pronunciar o nome do soldado. Aguço o ouvido na esperança de conseguir identificar o morto, mas os gritos da multidão chegam abafados e a barulheira não me permite identificar nenhum nome. E imagine que isso me acontece quase todas as noites!

— É fácil explicar, você está obcecado pela identificação dos seus mortos.

— Sim, deve ser isso. É uma preocupação muito grave.

O general se lembrou de um sonho parecido que ele próprio tinha frequentemente. Está velho e se tornou porteiro de um cemitério militar no seu país, justamente aquele onde foram reenterrados os restos que trouxe da Albânia. É um grande cemitério, imenso, e pelas aleias que se abrem entre as tumbas vão e vêm milhares de pessoas, com documentos na mão, à procura dos seus. Como aparentemente não os encontram, todas elas começam a balançar a cabeça com um ar ameaçador e ele fica gelado de pavor. Mas exatamente neste momento o padre manda bater o sino e todos se dispersam. Então ele desperta.

Esteve a ponto de contar o seu sonho, mas reanimou-se. — O trabalho que nos aguarda não é nada fácil — disse.

— Sim — respondeu o outro. — O que estamos fazendo é uma espécie de duplicata da guerra.

— Talvez até pior do que o original.

Calaram-se durante um momento. — Alguma vez já foi objeto de provocação? — perguntou o general.

— Não, com exceção talvez de uma vez.

— Como foi que aconteceu?

— Crianças atiraram pedras em nós.

— Pedras!

— Sim.

— E vocês toleraram tamanho ultraje?

— Quem lhe disse que toleramos?

— Isso me surpreende — diz o general. — É um ato bárbaro.

— Foi um caso complicado — diz o tenente-general. — Tínhamos aberto por engano algumas tumbas de albaneses que pensávamos ser dos nossos.

— Ah! De fato!

— Sim, uma história desagradável. Não quero mais pensar nela. Vamos tomar outro café.

— Não vamos fechar o olho esta noite.

— Melhor ainda! Seremos poupados desse tipo de sonho. Pois no fundo, como tudo que se repete, termina se tornando monótono.

— É bem verdade.

Eles pediram mais dois cafés.

 

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3 Professor de uma escola corânica, na Turquia. (N. da T.)


VII

"Isto aconteceu no começo da guerra", começou o dono do café em mau inglês. Trabalhara durante muitos anos em um café de Nova York, e falava essa língua com um forte sotaque americano. O general fizera questão de ouvir a história da prostituta contada por um habitante daquela velha cidade de casas de pedra. Conforme tinham lhe dito, ninguém conhecia melhor os detalhes do que o dono do café, embora gaguejasse ligeiramente e falasse mal inglês.

"Não importa que ele gagueje", pensava o general, "e que massacre um pouco o inglês, pois essa história inteira não está sob o signo do massacre?"

Tinham acabado de ler naquela mesma manhã o nome da prostituta no cemitério militar situado na periferia da cidade. De todos os despojos encontrados até então, era a única mulher, e quando lhe contaram o fato o general ficou curioso para saber da história. Talvez tivesse passado indiferente se não tivesse percebido na cabeça da sepultura uma pedra de mármore com a inscrição consagrada: Morta pela pátria.

Ainda de longe o general distinguira a placa branca. Ela atraía o olhar no meio das cruzes tortas, escurecidas, apodrecidas, e os capacetes enferrujados suspensos na extremidade das tumbas.

— Uma placa de mármore! — exclamara o general. — Um oficial superior? Talvez mesmo o coronel Z.?

Imediatamente se aproximaram da tumba para poder ler a inscrição. Era o nome e o sobrenome de uma mulher e seu lugar de nascimento. Era da mesma província que o general, mas ele não falou disso a ninguém.

— Aconteceu bem no começo — disse o dono do café. — Fui um dos primeiros a saber da novidade. Não é que me interessasse por histórias desse tipo, mas por causa do meu trabalho no café eu era sempre o primeiro a ser informado de qualquer acontecimento. E, mais uma vez, foi o que aconteceu naquele dia. O café estava cheio quando o boato se espalhou, e não se soube quem o lançou. Alguns diziam que tinha sido um militar que havia dormido uma noite no hotel da cidade antes de partir para o front grego, depois de ter tomado uma enorme bebedeira. Outros achavam que tinha sido um tal de Lame Spiri, que só pensava nessas coisas. Mas nada disso tinha importância. Estávamos tão surpresos e perturbados que pouco nos importava saber se a notícia na verdade provinha do soldado ou do vigarista Lame Spiri.

"É preciso dizer que não era fácil nos espantarmos naquela época. Estávamos em guerra e todos os dias ouvíamos histórias inacreditáveis, absurdas. E achávamos que nada mais poderia nos surpreender a partir do dia em que vimos passar pela primeira vez pelas ruas os canhões e as peças de defesa antiaérea com seus longos tubos, fazendo um estrondo tão assustador que tínhamos a impressão de que a cidade inteira iria desmoronar. Ainda mais depois que ocorreu um combate aéreo exatamente em cima das nossas cabeças, sem falar de todas as outras coisas que aconteceram em seguida.

"Um dia, correu o boato de que um aldeão tinha encontrado em uma garganta das montanhas que ficam em volta da cidade o velho Pai Ali caminhando com um bastão na mão, e que o velho teria feito as mais assustadoras profecias. As carcaças dos galos degolados só permitiam prever guerra e sangue. Os pedaços dos animais estavam inteiramente vermelhos e as pessoas, por essa razão, estavam esperando as piores calamidades.

"Em seguida, durante algum tempo, a cidade inteira não parou de falar do piloto inglês abatido na saída da cidade. Eu vi a mão dele com meus próprios olhos; foi só o que restou do seu corpo. Eu vi aquela mão no momento em que foi mostrada à população da cidade, na praça da prefeitura, com um trapo de camisa queimada. Mais parecia um pedaço de madeira amarelada e dava para reparar no dedo anular um anel que não tinha sido tirado. O avião, como eu disse, foi derrubado pela defesa antiaérea quando estava se afastando, depois de bombardear a cidade. Uma das bombas caiu sobre a teqe4 e todos falaram que o piloto tinha sido atingido pela maldição divina.

"E assim, como escutávamos falar de uma porção de episódios desse tipo, os acontecimentos mais inesperados não nos causavam mais muita emoção mas, com tudo isso, a notícia de que iriam abrir uma casa de tolerância conseguiu abalar todo mundo. Esperava-se qualquer coisa, menos isso. A novidade era tão surpreendente que, no começo, a maioria das pessoas nem acreditou. Nossa cidade é muito antiga. Conheceu tempos e costumes os mais diversos, mas nunca poderia esperar uma coisa dessas. E como uma cidade tão velha iria suportar tamanha vergonha, uma cidade que até então tinha vivido com honra? O que iríamos fazer? Essa questão estava deixando as pessoas perturbadas. Alguma coisa desconhecida, nova, espantosa, invadia nossa cidade; como se a ocupação, as casernas abarrotadas de tropas estrangeiras, os bombardeios e a fome não fossem suficientemente pesados para nós. Na ocasião, não compreendíamos que era um pedaço da guerra como qualquer outro, nem mais nem menos do que os bombardeios, as casernas e a fome.

"No dia seguinte ao dia em que a notícia se espalhou, uma delegação de velhos foi até a prefeitura, e, naquela mesma noite, um outro grupo se reuniu no café para preparar 1 uma petição dirigida ao mandatário do imperador fascista em Tirana. Durante horas, sentados exatamente em volta daquela mesa ali, eles escreveram páginas e páginas, enquanto outros ficavam em volta deles tomando um café, fumando, ou entrando e saindo para cuidar da vida, mas depois voltando para perguntar como andava a carta. Muitas mulheres preocupadas mandavam os filhos ver se os maridos não estariam bebendo demais, e eu me lembro daquelas crianças olhando, aturdidas, com os olhos pesados de sono, atrás das grandes vidraças, e depois indo embora, tiritando na umidade da noite.

"Não me lembro de outra vez ter fechado o estabelecimento tão tarde como naquela noite. Finalmente terminaram a carta e alguém a leu. Não me recordo muito bem de tudo o que estava escrito. Só sei que por uma série de razões, enumeradas na sequência uma por uma, os cidadãos honestos da cidade solicitavam ao representante do Duce que anulasse a decisão tomada de abrir uma casa de tolerância, tudo isso em nome da honra e da prosperidade da nossa velha cidade de tão nobres tradições, cuja antiguidade perdia-se na noite dos tempos.

"No dia seguinte a carta foi expedida. "Diga-se de passagem que tinha gente que não queria petição nenhuma e que, em geral, era hostil a qualquer espécie de carta ou de requerimento endereçado ao ocupante. Mas nós não os escutamos. Tínhamos grandes esperanças de que alguma coisa seria feita a nosso favor. Estávamos então no início da guerra e ainda havia muita coisa que não compreendíamos bem.

"É preciso dizer que nossa requisição não foi levada em conta. Alguns dias mais tarde chegou um telegrama: "Casa de tolerância será aberta por razões de ordem estratégica, stop." O velho empregado dos correios, que foi o primeiro a ler o despacho, não captou de imediato o sentido daquela expressão. Alguns disseram que era uma dessas linguagens cifradas muito utilizadas na época e que sempre pareciam tão estranhas. Alguém chegou até a achar que se tratava na verdade da abertura de um segundo front, pois em geral os termos militares não são muito claros. Mas nada disso era verdade e os que escutavam o rádio todas as noites sabiam bem o que queria dizer a expressão "de ordem estratégica'. Depois tudo se esclareceu: era, sem nenhuma dúvida, uma casa de tolerância que ia ser aberta, não um segundo front.

"Alguns dias depois, tivemos os detalhes. A casa ia ser aberta pelas tropas de ocupação e elas viriam do estrangeiro.

"Naquela época, era o único assunto das conversas na nossa cidade. Todos estavam curiosos para saber como seria aquela coisa desconhecida e sobretudo que cara elas teriam. Aqueles que, bastante raros, tinham voltado ao país depois de um período de emigração, satisfaziam a curiosidade dos outros contando ao público atento das mesas do bar histórias sobre o tema. Não era raro se perceber claramente que eles acrescentavam aos episódios reais outros bem menos, e os mais bem informados contavam os casos mais surpreendentes. Quem os ouvisse falando dos bordéis do Japão e de Portugal imaginava que estes países lhes eram tão familiares como a palma da mão e que eles conheciam pelo nome todas as mulheres públicas do mundo inteiro.

"Os que escutavam, sobretudo os que já tinham filhos grandes, ficavam ansiosos e balançavam a cabeça com ar consternado. E, em casa, as mulheres se roíam mais ainda de preocupação, mas não dava para afirmar se era mais pelos maridos ou pelos filhos que estavam tão apreensivas. Os mais velhos consideravam aquele acontecimento como o mais funesto dos presságios e, atormentados pelos mais sombrios pressentimentos, esperavam com o coração apertado um castigo ainda mais severo da parte do Senhor. Claro, teve gente que se alegrou, pois se encontra de tudo nesta terra, mas ninguém teve a audácia de manifestar abertamente seu contentamento. Por exemplo, os maridos que não se entendiam com as esposas, mas também os que eram, por natureza, chegados ao deboche, e sobretudo os jovens, ainda solteiros, que liam romances de amor o dia inteiro e que, quando a noite chegava, não sabiam mais o que fazer do seu tempo. Alguns tentavam se consolar sozinhos e tranquilizar também os outros, afirmando que dali em diante os soldados estrangeiros não incomodariam mais as nossas moças, pois teriam as deles. Mas não era fácil tranquilizar as pessoas.

"Antes mesmo da abertura do bordel, nossas desgraças começaram. Duas pessoas foram presas por dizerem que aquela medida tinha sido adotada com o objetivo de introduzir o modo de vida estrangeiro e corromper os costumes na Albânia, e que estava inserida no vasto plano de desnacionalização e fascistização do país. A partir de então, as pessoas passaram a só falar em voz baixa, e quando se fazia menção à futura casa de tolerância, só os velhos davam livre curso às suas maldições.

"Finalmente elas chegaram. Um veículo militar de cor verde as trouxe. Eu me lembro da cena como se fosse hoje. A noite acabara de cair e meu café estava cheio de gente. No começo não entendi por que os clientes se levantavam das mesas para se aproximar das vidraças e olhar para fora, na direção da praça da prefeitura. Em seguida, algumas pessoas se precipitaram para a rua, outras perguntaram o que estava acontecendo. Muitas mesas se esvaziaram. Era a primeira vez que tanta gente saía sem pagar o que consumiu. Eu também acabei saindo, sem conseguir dominar minha curiosidade. Do outro café que ficava do outro lado da rua, e da associação da infantaria, curiosos tinham saído e se juntado na praça, e estavam observando a cena, em pé na calçada. O caminhão parou exatamente diante do monumento aos mortos da cidade, junto da prefeitura, e elas finalmente desceram do veículo e ficaram olhando em volta, espantadas. Eram seis e pareciam cansadas, enfraquecidas pela longa viagem. Os curiosos, todos em volta, arregalavam os olhos como se se tratasse de animais raros; elas, sem parar de falar, os olhavam com ar tranquilo e sorriso indiferente. Talvez estivessem surpresas por se verem assim, inopinadamente, em uma cidade estranha, toda de pedra, pois nossa cidade ao crepúsculo adquire um aspecto um tanto fantástico, com os contrafortes de sua cidadela e os minaretes se erguendo, silenciosos, e suas flechas cobertas de chapas de ferro reluzindo aos raios do sol poente.

"No entretempo a praça se encheu de gente, sobretudo de crianças que lhes gritavam naquela língua estrangeira algumas palavras aprendidas com os soldados. Os adultos mandavam embora as crianças e as observavam em silêncio. Naquele momento, era difícil avaliar o que de fato estávamos sentindo. Naquela noite, a única coisa que compreendíamos bem era que tudo o que nos haviam contado dos bordéis de Tóquio ou de Honolulu estava muito longe do que estava sendo oferecido a nossos olhos, que era algo muito diferente dos relatos que tinham nos feito, muito mais profundo, mais triste e mais lamentável.

"Acompanhado de alguns estrangeiros e de um empregado da prefeitura, o pequeno grupo, escoltado pelas crianças, se encaminhou como um rebanho dócil em direção ao hotel. Era lá que aquelas estranhas hóspedes de nossa cidade deveriam passar a noite.

"No dia seguinte elas foram instaladas em uma casa de dois andares com um jardinzinho em volta, em pleno coração da cidade. Uma tabuleta indicando o horário de atendimento de civis e militares foi pendurada na porta. Nós só vimos essa tabuleta mais tarde, pois nos primeiros dias a rua ficou deserta, como se a peste estivesse grassando por lá. Ninguém mais passava por ali. Mesmo depois, quando voltou a ser frequentada, aquela rua nos pareceu a mais feia, a mais disforme, a mais sórdida de todas as ruas da cidade. Ela nos provocava uma sensação de coisa estranha, suja, degenerada, de mulher perdida, ora! Depois puseram um soldado para vigiar as pessoas que mudavam de caminho e, pouco a pouco, ao final de alguns dias, elas recomeçaram a passar pelo local; primeiro só as crianças, depois os demais, pois de todo jeito as pessoas tinham suas ocupações e não podiam se dar ao luxo de fazer longas voltas pelas ruas das vizinhanças. Só alguns velhos juraram nunca mais passar por ali, de jeito nenhum.

"Foram de fato dias sombrios e cheios de aflição para todo o mundo. Nossa cidade nunca tinha conhecido mulheres de má vida, e os escândalos de família provocados pelo ciúme ou pela traição sempre tinham sido raros. E eis que naquele momento, sem mais nem menos, uma mancha negra tinha se instalado lá, em pleno coração da cidade. A comoção das pessoas com o anúncio da novidade foi pouca coisa em comparação com a perturbação que sentiram, agora que a casa estava efetivamente aberta. Os homens voltavam cedo para casa e, à noite, o café se esvaziava muito cedo. Se os maridos ou os filhos se atrasavam, as mães e as esposas ficavam loucas de ansiedade. Elas eram uma espécie de tumor bem no meio da cidade. As pessoas não controlavam mais seus nervos e muitos dos homens e dos jovens não conseguiam esconder uma certa perturbação no olhar.

"No começo, diga-se de passagem, ninguém frequentou o tal lugar. Seguramente, elas devem ter ficado surpresas e devem ter comentado entre si que aquele era um povo bem esquisito para pensar tão pouco em mulheres. Talvez até tenham compreendido que eram estrangeiras naquele país e, portanto, vistas com os mesmos olhos que as tropas de ocupação, inimigas de todos.

"O primeiro a visitar a casa de tolerância foi o vigarista do Lame Spiri. Na tarde em que ele foi lá pela primeira vez, a notícia se espalhou na mesma hora pois, quando saiu, as janelas das casas vizinhas já estavam cheias de gente a espiá-lo, com os olhos saltando das órbitas, com se o Cristo tivesse ressuscitado. Lame Spiri caminhou orgulhosamente pela rua sem parecer minimamente perturbado. Chegou até a fazer um sinal com a mão a uma delas que, com os cotovelos no parapeito de uma janela, o seguia com os olhos enquanto ele se afastava. Foi nesse momento que uma velha atirou-lhe de uma janela um balde de água que, contudo, não o alcançou. As velhas beliscavam as próprias bochechas, amaldiçoando-as com esse gesto de braço estendido, a mão levantada e dirigida para a pessoa maldita, com os dedos afastados, característico das nossas mulheres. Mas aparentemente as moças não entenderam o sentido e começaram a rir.

"Foi assim que as coisas se passaram no princípio. Depois as pessoas foram-se acostumando com aquela nova situação. Teve gente que, em noites mais escuras, começou a ir até lá às escondidas, àquela casa que tantos tormentos nos causava. Elas, por assim dizer, foram-se introduzindo em nossa existência.

"Com frequência, à noite, elas apareciam no balcão. Fumavam e olhavam com olhar ausente os morros em toda a volta, pensando provavelmente em seus países longínquos. Ficavam por um bom tempo assim na penumbra até que o muezim,5 do alto do minarete, tivesse cantado o ezan com uma voz monótona e que todo mundo tivesse voltado para suas casas.

"No final de algum tempo nossa animosidade contra elas cessou. Alguns até mesmo começaram a ter pena delas. Declaravam em sua defesa que, no fundo, elas eram mobilizadas, nem mais nem menos do que todos os outros soldados, e eram mantidas pelo orçamento do Exército. Às vezes, por causa disso, chegava a acontecer alguma desgraça. Como por exemplo o ginasiano que, entre outros, foi preso por ter falado em "militarização das putas". E o que elas podiam fazer, aquelas infelizes?

"Assim, parece que fomos nos acostumando pouco a pouco com a presença delas. As pessoas não ficavam mais mortificadas quando as encontravam por acaso em uma loja ou domingo na igreja, com exceção das velhas que rezavam dia e noite para que uma bomba "do inglês', como elas diziam, caísse em cima daquela casa maldita.

"Estávamos sob a ocupação, havia muito motivo para sofrimento em nossa existência, aquele era apenas mais um que vinha se juntar aos demais.

"Como se elas fossem felizes, as coitadas! "O front ítalo-grego não ficava longe e, à noite, escutava-se o canhão rugir. Nossa cidade servia de parada para as tropas novas que iam para o front substituir as unidades, bem como para as que estavam voltando.

"Muitas vezes, uma tabuleta pendurada na porta fechada da casa trazia esta inscrição: Amanhã não receberemos civis, e então todo mundo compreendia que um movimento de tropas estava sendo preparado para o dia seguinte, se bem que esse aviso fosse completamente inútil, pois nenhum civil frequentava aquele local durante o dia, e menos ainda quando havia militares; com exceção, é claro, de Lame Spiri, que tinha sua entrada liberada a qualquer hora do dia.

"Nesses dias, nós às vezes passávamos pela rua só para ver os soldados que voltavam do front, sujos, a barba crescida, fazendo fila. Eles não se afastavam da fila mesmo que começasse a chover, e com certeza teria sido mais fácil desalojá-los das trincheiras do que daquela fila longa, triste e tortuosa que aumentava interminavelmente. Para se distrair durante aquela espera sob a chuva, trocavam gracejos vulgares, coçavam os piolhos, se xingavam com palavras grosseiras e discutiam sobre o número de minutos que iriam passar lá dentro. Não devia ser nada agradável para elas, mas era preciso que se submetessem pois, afinal, elas estavam mobilizadas.

"Lá pelo final da tarde a fila começava a diminuir. O último soldado finalmente ia embora e a rua recuperava a tranquilidade. Normalmente, no dia seguinte daquelas jornadas extenuantes elas pareciam exaustas, tinham o rosto amarelo e a expressão mais desnorteada do que nunca. Podia-se dizer que os soldados chegados do front descarregavam sobre aquelas infelizes todo o abatimento, chuva, lama e derrotas das trincheiras, para irem embora em seguida aliviados e satisfeitos como se tivessem se desembaraçado de um pesado fardo; enquanto elas permaneciam ali na nossa cidade, não longe do front, à espera de outros soldados para absorver até o final o fel da retirada.

"Talvez tudo pudesse ter continuado durante muito tempo desse jeito e nada de extraordinário ter acontecido, pois a vida precisa seguir seu curso. Talvez elas pudessem ter passado todo o período da guerra na nossa cidade assistindo ao decorrer de seus dias mornos, ao som da voz arrastada dos hodjas e recebendo longas filas de soldados que o destino dispersaria em seguida sabe Deus para onde. Sim, as coisas poderiam perfeitamente ter-se passado assim se o filho de Ramiz Kurti, um belo dia, não tivesse rompido com a noiva.

"Nossa cidade não é grande e fatos desse gênero provocam muito barulho. Devo acrescentar que em todo o país há poucas cidades e vilarejos onde se contam menos divórcios do que aqui. O rompimento do filho de Ramiz com a noiva causou grande escândalo. Por muitas noites seguidas a família de Ramiz Kurti, toda reunida, foi à casa dele para deliberar sobre o caso e obrigar o filho de Ramiz, por intermédio de toda sorte de ameaças, a reatar com a noiva. O filho obstinava-se. Não queria por nada no mundo ceder às instâncias de sua família. Mas o que havia de pior é que ele se recusava a revelar a razão de sua frieza e os seus tentavam sem sucesso descobri-la. Ele passava o dia inteiro em estado de prostração, silencioso, pensativo, emagrecendo e empalidecendo a olhos vistos, como se estivesse sob o efeito de algum feitiço.

"Enquanto isso, a família da moça pedia explicações. Seus parentes, tão numerosos quanto os do rapaz, reuniam-se para discutir o caso. Mandaram mensageiros duas vezes a Ramiz Kurti para perguntar a razão do rompimento. Mas o motivo não se revelava e eles voltavam, aborrecidos, deixando claro que não tolerariam que sua honra fosse pisoteada. Isso significava que estavam dispostos a desistir da palavra em favor das armas. E, com efeito, chegou até a ocorrer um tiro, mas em circunstâncias bem diferentes do que se temia.

"Pois justamente naqueles dias, enquanto os representantes das duas famílias entabulavam suas últimas discussões, e quando, de parte a parte, sentia-se que a antiga amizade, selada pelas bodas dos dois jovens quando ainda se encontravam no berço, estava se transformando em inimizade, descobriu-se o verdadeiro motivo da ruptura. Era simples porém vergonhoso: o filho de Ramiz Kurti encantara-se por uma mulher da casa de tolerância.

"Mais tarde, nós quebramos muitas vezes a cabeça para tentar adivinhar a verdadeira natureza de suas relações com aquela estrangeira. Apaixonara-se de fato? Ou teria sido ela que se tomara de amores por ele? Só Deus sabe o que houve entre eles. Jamais se soube a verdade.

"No mesmo dia em que o rumor se propagou, bem no começo da noite, Ramiz Kurti, com o rosto pálido, sem chapéu, com a bengala na mão, desceu do bairro alto e foi na direção da casa fechada. Ia andando com olhar vidrado e é possível que não estivesse em perfeita consciência. Imaginem a surpresa delas ao ver aquele velho de rosto pálido, empurrando com sua bengala o portão do jardinzinho para entrar. Elas estavam sentadas na varanda e, assim que o velho subiu os degraus da escadaria, uma delas teve um acesso de riso; mas, quem pode saber por quê, os comentários divertidos das outras congelaram nos lábios e um silêncio de morte caiu sobre elas. O velho mostrou com a ponta da bengala aquela que seu filho vinha visitando (aparentemente a reconhecera pelos cabelos) e a mulher, dócil, foi se dirigindo para o quarto, pensando se tratar de um cliente comum. O velho seguiu-a. Em seguida, enquanto estava começando a tirar a roupa, ela levantou a cabeça e olhou o rosto alterado do velho, parecido com uma máscara. E aí ela deu um grito de espanto. Talvez o velho não tivesse atirado com o revólver se ela não tivesse gritado. Na verdade, o grito pareceu arrancar o velho de seu estado de inconsciência. Ele atirou três vezes, depois largou a arma e partiu como um bêbado em meio aos berros das mulheres.

"Ramiz Kurti foi enforcado três dias mais tarde. Seu filho desapareceu.

"Estávamos em outubro e um vento frio soprava dia e noite dos desfiladeiros das montanhas circundantes. Apesar de tudo, funerais com flores e coroas, música e detonações de tiros de fuzil foram organizados para a vítima. Os fascistas conseguiram arregimentar na rua e nos cafés um monte de pessoas e obrigou-as a engrossar o cortejo. Nós andávamos em silêncio e o vento nos cortava o rosto. Ela foi colocada sobre um veículo militar, em um bonito caixão vermelho. A banda militar entoou uma marcha fúnebre e as companheiras da vítima choraram.

"Os habitantes de nossa cidade nunca tinham seguido o cortejo fúnebre de uma estrangeira e menos ainda o de uma mulher daquela condição. Estávamos atordoados e experimentávamos uma sensação de vazio no coração. Eu olhava para as nuvens no alto do céu enquanto caminhava e pensava no destino dela. Que fatalidade teria feito com que aquela coitada tivesse vindo de tão longe atrás desses soldados de capacete e, depois de errar de localidade em localidade da retaguarda, acabasse na nossa cidade, onde estaria destinada a terminar seus dias e a arrastar na desgraça outras também.

"Foi enterrada no cemitério militar, ‘o cemitério dos irmãos’, como era chamado, e colocaram sobre o túmulo essa placa de mármore que vocês viram de manhã. Gravaram a fórmula consagrada: Morta pela pátria, a mesma que se pode ler na cabeceira de todos os túmulos de soldados.

"Alguns dias mais tarde chegou uma ordem da capital e a casa de tolerância foi fechada. Eu me lembro como se fosse hoje daquela manhã fria em que elas foram esperar na praça da prefeitura, com suas malas na mão, o veículo militar que viria apanhá-las. Os passantes paravam na calçada para olhá-las. Elas estavam bem juntinhas umas das outras, com as golas dos casacos levantadas por causa do frio, ar perdido, mais desamparadas do que nunca.

"Elas subiram no caminhão e quando o veículo começou a andar algumas pessoas lhes fizeram um tímido sinal com a mão. Elas responderam a essa saudação, mas o gesto não tinha nada a ver com o gesto familiar às mulheres dessa condição; tinha um significado muito diferente, no qual era possível perceber amargura e cansaço. Ficamos lá olhando para elas, mas não conseguimos sentir alívio. Na verdade, sempre achamos que festejaríamos o dia de sua partida com um banquete. Mas as coisas eram bem diferentes. O que iríamos ganhar com seu afastamento? A guerra castigava por todo lado, os fascistas montavam guarda diante de nossas portas e não tínhamos nada de melhor a esperar sob o ocupante.

"Deus sabe para onde foram expedidas aquelas desgraçadas; seguramente para alguma outra cidadezinha próxima do front, lá onde as tropas que estariam se dirigindo à linha de frente e as que estariam voltando faziam uma parada por uma noite. E com certeza sua existência ia ser novamente preenchida pelas longas filas de soldados extenuados e imundos despejando sobre elas toda a amargura e a umidade do front."

 

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4 Espécie de convento muçulmano. (N. da T.)

5 Aquele que do alto dos minaretes conclama os muçulmanos às orações. (N. da T.)


VIII

O general, em pé na entrada de sua tenda, contemplava o horizonte cinzento. As camadas de nevoeiro ora subiam, ora desciam sobre as vertentes abruptas, às vezes encobrindo certos espaços e revelando outros. Havia instantes em que as nuvens baixavam a ponto de roçar o topo da tenda. O general, com a gola do casaco levantada, escutava atrás de si o ruído da lona que parecia tremer por causa do vento.

O carro estava estacionado a alguns passos dali, e um pouco mais ao longe, atrás da tenda dos operários, o caminhão. O cemitério não tinha limites bem determinados. Os córregos que serpenteavam em volta tinham erodido a terra, cada um do seu lado, para carregá-la para outro lugar, mais abaixo, no vale.

Ouvia-se o martelar cadenciado das picaretas sobre o solo duro. Vez por outra um grupo se formava em um ponto e então o general concluía que um novo despojo tinha sido trazido à tona. Naquele momento, adivinhava, estavam desinfetando os restos encontrados, e o perito se curvava para medir o comprimento do esqueleto, enquanto o padre marcava o nome com uma cruz, e, se a altura não correspondesse à que estava anotada, ele acrescentava um ponto de interrogação.

O general imaginava nos mínimos detalhes o que estava acontecendo lá com o pequeno grupo; desde o rosto imóvel do padre até os gestos do perito enrolando e desenrolando seu metro entre as mãos. Quando o grupo demorava a se dispersar, o general se dizia: "Vão medir uma segunda vez. Provavelmente vai haver um novo ponto de interrogação na lista."

Depois um dos operários se apressava em direção à tenda e voltava de lá com um saco de náilon, um bonito saco azul com duas listras brancas e uma tarja preta na borda, da marca Olympia, confeccionado sob encomenda. O perito segurava o medalhão com a pinça que ele sustentava com seus longos dedos afilados e o jogava dentro de uma caixa de metal.

“Um dia resolveram nos submeter a uma revista rigorosa, para controlar se de fato estávamos todos com nossos medalhões. Alguém tinha contado que meu camarada jogara fora o seu. — O que você fez do seu medalhão? — perguntou-lhe o tenente, mandando-o desabotoar a túnica. — Não tenho a menor ideia, devo ter perdido. — Perdeu? Aposto como foi você mesmo que jogou fora. Vagabundo! Vai morrer como um cachorro e ninguém vai poder reconhecer sua carcaça. E nós é que vamos levar a culpa! Vá! Marche! Está preso! — berrou. Dois dias depois, entregaram ao soldado um outro medalhão.”

Quando, por outro lado, o grupo se dispersava, isso significava que os despojos tinham sido colocados no saco de náilon e que uma etiqueta fora colada com o número do soldado e o da lista. Em seguida, o mesmo operário levava o saco para a tenda, e o ruído surdo e cadenciado das picaretas afundando no solo úmido recomeçava.

"Quem será esse que acabaram de encontrar?", perguntava-se o general, olhando os homens se reunindo novamente no meio do cemitério. E a cada novo morto exumado ele revia em pensamento aquela multidão de rostos silenciosos e sombrios na sala, longe, lá em sua casa, naqueles dias de tempo ruim, quando mal havia voltado do mar. Todos os que tinham vindo vê-lo falavam de seus próximos. Uns se estendiam mais, outros eram menos loquazes, outros, ainda, traziam consigo uma quantidade de fotos, de grossos pacotes de cartas, outros, enfim, não tinham nada, salvo um breve comunicado do Ministério da Guerra.

O general, com frio, agasalhou-se melhor na capa e voltou o olhar para o nordeste.

"É daquele lado que está o monumento", pensou, "no cruzamento das estradas, no local onde se escuta o murmurinho do regato de um velho moinho abandonado. Com tempo claro, dá para distingui-lo daqui. Hoje ele está mergulhado no nevoeiro."

Quando as camadas de nevoeiro se dissipavam ele ficava esperando, de uma hora para outra, ver o monumento aparecer no alto, bem no alto, delgado, revestido de placas de pedra calcinadas e, mais ao longe, na saída do vilarejo, o moinho queimado e abandonado, com a água do córrego, a única coisa que não pôde ser queimada nem destruída. Na parte da frente da coluna, em maiúsculas mal desenhadas, estavam gravadas as palavras: Por aqui passou o infame Batalhão Azul, que queimou e massacrou esta cidade, matou nossas mulheres e nossas crianças e enforcou os homens nestes postes. À memória de seus mortos, o povo ergueu este monumento. O vilarejo tinha se transferido mais para baixo, no vale, e apenas os postes telefônicos continuavam no lugar, mais ou menos altos dependendo do relevo do solo, com os revestimentos de betume na parte inferior, alguns com uma trave de apoio oblíqua e os fios ainda esticados no espaço: os mesmos postes, segundo se dizia, onde o coronel Z. enforcara homens com as próprias mãos.

Mas aqueles postes também estavam encobertos pela camada de nevoeiro, e o general, do lugar onde se encontrava, não via nada. Parecia que, lá adiante, um imenso pano branco tinha sido jogado sobre o monumento, os postes, o velho moinho e os arcos semidestruídos, como antes de uma inauguração.

— Você vai pegar um resfriado — diz o padre entrando na tenda. — O tempo está úmido e venta muito.

O general se juntou a ele. Estava na hora do almoço.

— E então? Como foram as coisas?

— Bem — diz o padre. — Se amanhã o pessoal da cooperativa do vilarejo nos ajudar na outra margem do córrego, em quatro dias poderemos levantar acampamento.

— Eu acho que os homens virão, as mulheres e os velhos talvez não, pois para eles abrir sepulturas é um ato desumano.

— Talvez as mulheres e os velhos também venham. Não se pode descartar que este trabalho lhes cause uma satisfação secreta.

— Eu ficaria surpreso — disse o general. — Alguém pode sentir satisfação abrindo tumbas?

— Para eles é como se fosse uma vingança tardia.

O general levantou os ombros.

— Ainda por cima, é um trabalho que rende dinheiro. Nós pagamos bem e os aldeões têm interesse em trabalhar para nós. Com o salário de alguns dias de trabalho eles podem comprar um radinho. Eles adoram isso.

— Eu reparei — diz o general. — Sempre põem seus aparelhos no volume máximo. Não teria sido má ideia nós mesmos trazermos transistores.

— Não pensamos nisto.

— Estou começando a me cansar desta barraca — diz. — E além do mais, o tempo está ficando mais frio a cada dia. Espero que esta seja a última vez que a fincamos nesta região.

— Ainda nos falta, creio, fazer buscas em um ponto, um lugar nas montanhas altas, perto de uma estrada estratégica agora desativada.

— É?

— Sim, dos homens que garantiam o controle da estrada, ou de uma ponte, nem sei mais.

— Então eles devem ser muito numerosos.

— Sim, há um monte, e eu penso em deixar isso para o próximo ano, não deve ter graça subir lá no alto com um tempo desses.

O general apanhou os recipientes térmicos. Almoçaram muito pouco, só alimentos desidratados, em silêncio. Depois o general se estendeu em seu leito de campanha. O padre apanhou um livro e começou a ler.

"O que será que ele fez com a mulher do coronel?", perguntou-se o general observando o perfil do padre e sua cabeleira negra e sedosa em que não brilhava sequer um fio grisalho.

"Como ela era encantadora!", ficou se lembrando, com as mãos sob a nuca e os olhos fixos na lona que balançava docemente acima do leito. A chuva recomeçara a cair.

"O céu estava azul, inteiramente azul", pensava, olhando a lona rosada, obliqua, acima de sua cabeça. "E embaixo daquele céu, aquela mulher era tão bonita que se pode afirmar não haver pessoa mais graciosa no mundo."

Tinha o sentimento de que aquela visão remontava muito mais para trás no passado, e não apenas ao mês de agosto último, quando, num fim de tarde glorioso, em que o sol estava vermelho como um enorme olho fatigado e as primeiras manchas da noite, leves e ainda incertas, cintilavam aqui e ali no horizonte. A larga calçada na beira do mar estava cheia de gente e eles se sentaram com todo o grupo no terraço do grande hotel para contemplar o pôr do sol, os barcos e as gaivotas sobre o mar. Iam para lá todos os dias admirar o crepúsculo, e era somente quando o sol desaparecia dentro do mar e quando se acendiam ao longo da costa os grandes letreiros dos hotéis e das casas noturnas, menores e verticais, que eles se levantavam para passear com as crianças na praia.


Naquela tarde, o terraço estava cheio de gente e os raios do sol produziam nos copos reflexos arroxeados. Sobre o que falavam? Tinha dificuldade de se lembrar. Era uma dessas conversas banais que tornam um dia inteiro e não deixam outro traço senão garrafas vazias sobre as mesas, essas garrafas de suco de fruta com seus rótulos coloridos.

Em um determinado momento teve a sensação de estar sendo olhado com insistência de uma mesa vizinha. Virou-se lentamente e seu olhar cruzou pela primeira vez com o daquela mulher, depois com o de uma senhora idosa, os de um homem, e por fim os de um outro homem ainda. Visivelmente aquelas pessoas estavam falando dele. Depois de terem trocado entre si alguns acenos de cabeça, olharam para ele novamente com a mesma insistência, enquanto a mulher esboçava um sorriso. Ao cabo de um instante, um dos senhores se levantou de repente e veio em sua direção, com uma expressão pouco à vontade.

— General!

Foi assim que ficara conhecendo a família do coronel Z. Tinham todos vindo àquela praia unicamente para encontrá-lo: aquela bela mulher, a viúva ainda jovem do coronel, a velha senhora, sua mãe e os dois primos afastados.

— Fomos informados de que foi encarregado dessa santa e sublime missão — disse a velha senhora —, e estamos felizes em conhecê-lo.

— Aliás, é por isso que viemos aqui.

— Nós nunca desistimos de tentar encontrá-lo até o final da guerra — retomou a velha senhora. — Por três vezes mandei pessoas atrás de seus vestígios e todas as vezes elas voltaram de mãos vazias. A quarta nos enganou, embolsou o dinheiro e desapareceu. Quando ouvimos dizer que o senhor estava indo para aquele país, sentimos nossas esperanças renascendo. Ah! Sim! Meu filho! Agora estamos depositando todas as nossas esperanças, nossas grandes esperanças no senhor.

— Farei o melhor que puder, madame. Não pouparei nenhum esforço.

— Ele era tão moço e dotado de tantas virtudes! — prosseguiu a velha, e seus olhos se encheram de lágrimas. — Todo mundo achava que ele tinha o estofo de um gênio militar. Foi também o que nos disse o ministro da Guerra, quando veio nos dar as condolências. Foi uma grande perda, uma perda muito cruel para todos nós. Mas era meu filho e, naturalmente, é em mim que essa perda dói mais. Você também, Betty, claro, eu lhe peço perdão, minha querida. Você se lembra da última vez que ele veio da Albânia, para aquelas férias de 15 dias? Quinze dias apenas e nós tivemos que celebrar o casamento de vocês às pressas, pois o tempo era curto. Ele tinha funções tão importantes que não podia se ausentar por mais tempo daquele maldito país. Você se lembra, Betty?

— Sim, mãe, como poderia esquecer?

— Você se lembra como você chorava muito lá no alto da escada enquanto ele vestia o uniforme, que eu procurava consolá-la e também me tranquilizar, quando de repente nos chamaram ao telefone. Era do Ministério da Guerra, o avião ia decolar em meia hora. Nosso queridinho desceu as escadas aos saltos, deu um beijo em cada uma e partiu. Oh!, me desculpe — disse a velha dama. — Peço perdão por desabafar assim, eu sou muito sensível, sempre fui.

Nos dias que se seguiram, suas relações se estreitaram e a família do coronel se juntou ao seu grupo. Jogavam tênis, tomavam banho de mar, faziam passeios de barco e à noite iam dançar juntos nas boates da costa. A mulher do general não achava aquela nova amizade ao seu gosto mas, como era do seu feitio, nada deixava transparecer. Ficava contrariada de ver o marido passear com tanta frequência com Betty na beira do mar, e a silhueta perfeita, a voluptuosa cabeleira loura e todos os atrativos daquela mulher não deixavam de estimular seu ciúme.

— Adoraria saber do que vocês falam durante tanto tempo juntos — ela disse um dia.

— Do coronel — respondeu. — Só dele.

— Que a mãe fale dele o dia inteiro, posso perfeitamente admitir, mas que ela só faça isso, ela...

— Não é bonito vindo de você — interrompeu. — Essas pessoas estão muito abaladas, pedem que eu as ajude, é o mínimo que posso fazer.

— Posso muito bem imaginar qual é a única preocupação da viúva do coronel! Ela dá a entender à praia inteira que espera ansiosamente o retorno das cinzas do marido; ela só fala dele, em toda parte e em todos os momentos. Essa ligação exagerada a um marido morto há vinte anos e com quem ela viveu não mais do que 15 dias tem uma só explicação.

— O que você quer dizer?

— Pois bem! Apenas que está querendo enganar a sogra, que ficou gagá com a idade. A pobre velha acredita piamente que a nora não faz outra coisa senão pensar no querido desaparecido e isso, claro, lhe serve de grande consolo.

— E daí? — perguntou, fingindo não ter compreendido.

— Como, e daí? A velha condessa é imensamente rica e não tem herdeiros. Vai morrer um belo dia, não muito distante e deixar um testamento.

— Não quero saber de histórias desse tipo. Tenho que trazer as cinzas do coronel. É esta a minha missão, e é tudo.

— Missão maldita — disse a mulher.

Depois Betty subitamente desapareceu durante dois dias, e quando voltou, o general notou uma certa frieza misturada a um ar de abatimento.

— Onde você estava? — perguntou, quando a encontrou na frente do hotel.

Ela estava com roupa de banho e usava óculos escuros em forma de máscara. Ele não pôde deixar de notar que, sob a pele bronzeada, ela enrubescera ao pronunciar o nome do padre.

Ela contou que a sogra havia lhe pedido insistentemente que fosse procurar o padre em seu nome, para recomendar que se interessasse pela busca do filho; que finalmente conseguira encontrá-lo; que, enfim, a sogra havia se tranquilizado e...

Mas ele não estava mais escutando. Contemplava, aturdido, seu corpo semidespido, e foi então que se perguntou pela primeira vez qual teria sido a natureza de suas relações com o padre.

Depois os dias foram se escoando, inundados de sol. A velha mãe do coronel continuava a discorrer sobre as virtudes do filho que, dizia, tinha sido o caçula do Ministério da Guerra, e sobre a antiguidade de sua família. Vez por outra Betty desaparecia da praia, e quando reaparecia, sempre com o mesmo ar cansado e distante, o general se fazia novamente a mesma pergunta.

O grupo passava as tardes no grande terraço do hotel. Uma atriz de cinema, que tinham acabado de conhecer, lhe disse: — General, não existe homem mais estranho do que você nesta praia. Um véu de mistério o cobre, e quando eu penso que depois destes dias esplêndidos vai partir para recolher mortos lá longe, na Albânia, tremo de horror. Você me lembra o herói de uma balada de um poeta alemão cujo nome me escapa e que estudamos no ginásio. Sim, exatamente, o herói que se levanta do túmulo para cavalgar ao luar. Às vezes tenho a impressão de que você virá de noite bater na janela do meu quarto. Oh! Que horror!

Começaram a rir, com o espírito ausente, enquanto seus companheiros observavam o pôr do sol, maravilhados. A mãe do coronel só fazia falar do filho e repetir sem parar: "Como ele era sensível a tudo que é bonito sobre a terra!" E ela enxugava os olhos com o lenço.

Betty estava como sempre sedutora e enigmática, e o céu sempre azul; apenas o horizonte, de tempos em tempos, aqui e ali, se manchava de nuvens negras carregadas de chuva, se encaminhando para o leste, na direção da Albânia...

O general se levantou. Não havia ninguém sob a tenda. Não se ouvia mais o barulho das gotas na lona. Aparentemente, tinham voltado ao trabalho. Ele saiu da tenda. Do lado de fora, o nevoeiro, sempre denso, ocultava os contornos do solo, e o general dirigiu seu olhar para o sudeste, do lado onde devia estar erguido o monumento e os postes telefônicos com seus fios esticados no espaço.


IX

O padre acendeu a lâmpada de petróleo e colocou-a na mesinha. Sua sombra e a de seu companheiro oscilavam, cortadas em duas, nas laterais oblíquas da tenda.

— Brrr! Que frio! — falou o general. — Esta maldita umidade penetra até a medula.

O padre começou a abrir uma lata de conservas. — Vamos ter que aguentar até amanhã.

— Gostaria que já fosse amanhã, para poder escapar daqui. Estou cansado de viver como um selvagem, e depois temos necessidade de tomar um banho.

— Se ao menos não fizesse tanto frio.

— É um trabalho que devia ser feito no verão — diz o general. "Mas então não teria sido possível", pensou o general, "pois assim que o contrato foi concluído nós iniciamos os preparativos, que ainda não tinham terminado quando as chuvas começaram."

— O tempo está de fato pouco propício para um trabalho desse tipo, mas o caso é que ele não pôde começar mais cedo. Os governos têm suas razões...

— Melhor dizendo, quando o diabo se mete...

O general desdobrara sobre a mesa o mapa detalhado do cemitério e fazia algumas marcações com um lápis.

— E os dois outros, onde estarão?

— Quem?

— O outro general e o prefeito.

— Quem sabe! — diz o padre. — Talvez ainda estejam cavando no estádio onde os deixamos.

— O trabalho deles não vai ser fácil. Além do mais, dão a impressão de ser muito mal organizados.

— Já em nosso país, tudo funciona a contento. Nós somos os coveiros mais modernos do mundo.

O padre não respondeu.

— Mas também somos bem sujos — acrescentou o general.

Do lado de fora veio um canto na escuridão da noite. Primeiro baixinho, produzido por vozes surdas e graves, depois subindo, adquirindo cada vez mais força, vindo se chocar com a tenda como a chuva ou o vento nas noites de outono. Parecia que a lona, se dobrando sob um peso, sentia um calafrio.

— São os operários cantando — diz o general, levantando os olhos do mapa.

Aguçaram os ouvidos por um instante. — É um costume muito difundido entre os albaneses de certas regiões — diz o padre. — Quando estão em grupos de três ou quatro, começam a cantar em coro. É um hábito antigo entre eles.

— Talvez estejam cantando por ser noite de sábado.

— É bem capaz. Além do mais, eles receberam o pagamento hoje e com certeza compraram uma garrafa de raki de algum aldeão de passagem.

— Também já notei que eles gostam muito de tomar um traguinho vez ou outra — diz o general. — Deve ser porque o trabalho que estão fazendo também os deprime. Tanto tempo longe de casa!

— Quando eles bebem, geralmente começam a contar histórias — diz o padre. — O mais velho conta episódios de guerra.

— Teria sido um miliciano?

— Creio que sim.

— Então este trabalho deve fazê-lo reviver os anos de guerra.

— Provavelmente — diz o padre. — Além disso, para esses homens é como uma necessidade da alma em momentos como esses. Dá para imaginar maior satisfação para um antigo combatente do que arrancar seus antigos inimigos das tumbas? É como um prolongamento da guerra.

A melodia do canto se arrastava languidamente, e o coro de acompanhamento a envolvia por completo, como uma túnica macia e quente que pretendesse protegê-la das trevas e da umidade da noite. Depois o coro foi sumindo e uma voz isolada se elevou.

— É ele — diz o general. — Está ouvindo?

— Estou.

— Ele tem uma bela voz. Mas o que está dizendo?

— É um velho canto guerreiro — respondeu o padre. — É um canto grave.

— É verdade. Você consegue entender a letra?

— Claro. Um soldado albanês tombado na África. Quando o país estava sob a dominação turca, os albaneses tinham que fazer o serviço militar nos cantos mais remotos do Império Otomano.

— Ah, sim, você já me falou sobre disso.

— Se você quiser posso tentar traduzir.

— Por favor.

O padre ficou um instante escutando atentamente. — É difícil traduzir fielmente, mas o sentido é mais ou menos o seguinte: "Eu caí ferido de morte, meus camaradas, caí do outro lado da ponte de Meca."

— É então um canto que tem como fundo o deserto — diz o general, como se estivesse sonhando, e, em sua memória, o deserto ia se desenrolando até o infinito como um tapete deslumbrante. Ele tentou andar sobre aquele tapete como tinha feito 25 anos antes, em seu uniforme de tenente.

O padre continuou a traduzir: "Vá procurar minha mãe e diga que estou mandando vender nosso boi de pelo preto."

Do lado de fora, o canto rarefazia-se, rarefazia-se como se fosse desaparecer, depois bem depressa retomava ímpeto, envolvendo-se no coro e finalmente batendo contra as laterais oblíquas da tenda.

"Se minha mãe perguntar por mim..."

— E então, o que vão dizer à mãe?

O padre prestou atenção por um momento. — O sentido é mais ou menos este — prosseguiu o padre: "Se minha mãe pedir notícias minhas, diga que seu filho arranjou três esposas" e "que um grande número de convidados participou das núpcias", em outras palavras, que ele levou três balas e que os corvos e as gralhas se atiraram sobre seus despojos.

— Mas é horrível! — diz o general.

— Eu não o preveni?

Lá fora, o canto, como se fosse uma mola sendo esticada, distendia-se ao máximo para finalmente se partir.

— Seguramente vão recomeçar daqui a pouco — diz o padre. — Quando começam a cantar, não acabam tão facilmente.

De fato, a melopeia recomeçou na tenda vizinha. De início, só se ouviu a voz aguda, lancinante, do velho operário, depois uma outra respondeu; por fim, o coro cobriu o canto com seu manto e elevou-se dentro da noite, harmonioso e soberbo.

Ficaram escutando muito tempo sem falar. — E este canto agora — perguntou afinal o general —, qual é o tema?

— A última guerra — diz o padre.

— A guerra em geral?

— Pelo que entendo, um comunista caído depois de ter sido cercado por nossas tropas. É a ele que o canto é dedicado.

— Não seria por acaso o tal rapaz que se atirou sobre um tanque, de quem vimos o busto em dois ou três lugares?

— Acho que não. A canção falaria.

— Não está se lembrando do jovem que, segundo dizem, se jogou sobre um tanque como se fosse um tigre para tentar abrir a torre?

— Não, vimos tantos bustos desse tipo!

— Pois eu me lembro bem — diz o general. — Me contaram que foi ao tentar abrir a torre do tanque que ele foi ferido de morte por um outro que vinha atrás.

— Ah, sim, acho que me lembro vagamente.

Na outra tenda, tinham recomeçado a cantar.

— Há alguma coisa de lancinante nesses cantos que dá tristeza, muita tristeza — diz o general.

— Sim, é de fato pungente. É a voz primitiva das gerações passadas.

— Eu estremeço ao ouvir, eles me apavoram.

— O folclore épico deles é todo assim — diz o padre.

— Só o diabo saberia dizer o que esses povos exprimem em seus cantos — diz o general. — Podemos cavar e entrar facilmente no solo deles, mas quanto a penetrar em sua alma, jamais.

O padre se calou e fez-se um longo silêncio dentro da tenda. Do lado de fora, o canto prosseguia com as mesmas melodias e o general tinha o sentimento de que aqueles sons o envolviam de todos os lados.

— Vão cantar ainda muito tempo? — perguntou.

— Como posso saber? Talvez até de manhã.

— Escute bem — diz o general —, se alguma vez fizerem alusão a nós nos seus cantos, tome nota.

— Claro — diz o padre, e dá uma olhada no relógio. — É tarde.

— Não estou com sono. Vamos beber. Talvez nos venha também vontade de cantar.

— Não posso beber — diz o padre.

O general balançou a cabeça com um ar de quem lamenta.

— Não existe melhor ocasião para aprender a beber. Inverno, uma tenda na montanha, a solidão...

Lá fora o canto ora se elevava, ora esmorecia para depois aumentar mais uma vez. O general tirou uma garrafa de sua mochila.

— Lamento — disse —, vou beber sozinho. — Enquanto enchia o copo, sua sombra aumentada se destacou na parede da tenda.

O padre se deitou. O general bebeu duas talagadas seguidas, depois acendeu um fogareiro a petróleo e colocou em cima uma cafeteira. Há muito tempo se acostumara a fazer o próprio café quando estava sozinho. A bebida que preparou lhe pareceu amarga.

Ficou alguns instantes com as mãos cruzadas, depois saiu da tenda e ficou lá, em pé, diante da entrada. Uma chuva fina continuava a cair e a noite estava tão silenciosa e negra que ele teve o sentimento de não se encontrar em parte alguma. O canto que vinha da tenda vizinha tinha parado há alguns minutos. "Talvez tenham se concedido alguns minutos de descanso", disse consigo. "Decerto vão recomeçar."

De fato, pouco tempo depois o canto novamente se elevou como uma flecha dentro da noite. A voz do velho operário, destacando-se da dos companheiros, foi subindo cada vez mais alto e finalmente parou, ficando suspensa por um instante e depois se quebrando subitamente para cair e se perder no meio das outras, como uma faísca que tomba sobre a brasa de uma lareira.

Um clarão explodiu em algum lugar ao longe, iluminando durante uma fração de segundo a tenda branca mais afastada e, ao lado, sobre o terreno em declive, o caminhão inclinado, dando a impressão de que podia se precipitar na descida. Depois tudo mergulhou dentro da noite.

O general escutava o canto se esforçando para adivinhar o sentido. Era, como os outros, um canto triste e grave.

"Talvez estejam evocando os companheiros mortos", pensou o general. Um dos visitantes que veio vê-lo antes da partida lhe dissera que os albaneses frequentemente dedicavam as canções aos companheiros mortos. "Quem pode saber o que este velho operário rumina dentro da cabeça", diz consigo. "Ele abre tumbas aqui e ali e delas recolhe lembranças de guerra. Seguramente, ele deve me detestar. Posso lê-lo em seu olhar. Nós dois somos inimigos mortais, mas sinto apenas desprezo em relação a ele. E, afinal de contas, ele não passa de um operário. Um braçal que abre tumbas seis dias na semana e canta no sétimo. E se eu tivesse que cantar uma canção dessas sobre os mortos que eu recolho, quem sabe que coisa horrível não iria sair..."

Os operários cantaram ainda por muito tempo. Os cantos se encadeavam como os elos de uma corrente e o general ficou ali, escutando. Só voltou para a tenda quando sentiu o frio penetrá-lo até a medula.


X

O general dormiu as poucas horas que lhe restavam até de manhã com um sono agitado.

Foi acordado pelas vozes dos operários ocupados em arrancar do solo gelado os pinos da tenda. Eles a jogaram inteiramente molhada dentro do caminhão, sobre as grandes caixas, ao lado das pás e das picaretas.

Os dois motoristas tinham ligado os motores de seus veículos para aquecê-los.

O padre se levantou primeiro e preparou o café. Ficou escutando o agradável ronronar do fogareiro, com a pequena chama piscante iluminando intermitentemente seu rosto. Através da entrada da tenda, penetrava a pálida luz da aurora.

O general sentiu saudade de casa. Ele saudou o padre.

— Bom dia — respondeu o padre. — Dormiu bem?

— Não, não muito. Fez muito frio, sobretudo depois de meia-noite.

— Eu também tiritei. Toma um café?

— Com prazer, obrigado.

O padre botou o café nas xícaras; o general se levantou e se vestiu.

Um quarto de hora mais tarde, tinham saído da tenda e os operários estavam empenhados em desmontá-la. A chuva tinha parado, mas o terreno estava encharcado e as fossas abertas do grande cemitério estavam cheias de água até a metade.

— Parece que não vai mais chover — diz o padre, quando estavam entrando no carro.

No leste, por trás das nuvens altas, o sol subia no horizonte como uma mancha ora pálida, ora brilhante.

O general começou a cochilar. Fazia mais de duas horas que estavam na estrada quando o motorista freou bruscamente.

O general limpou a umidade do vidro e viu, bem no meio da estrada, um pequeno aldeão em seu casaco preto cintado, com o braço estendido para eles. O caminhão parou fazendo cantar os pneus poucos metros atrás do automóvel.

O motorista botou a cabeça para fora da janela. — Não temos lugar, meu filho! — gritou.

Mas o menino disse-lhe rapidamente algumas palavras mostrando com a mão o lado da estrada.

— Quem é aquele? — perguntou o padre.

O general baixou mais o vidro para ver melhor. Na beira da estrada um velho camponês, com uma túnica preta nas costas, estava sentado em cima de uma grande pedra. Tinha um lenço grande aberto nos joelhos e estava comendo um pão de milho com queijo e cebola. Enquanto o garoto conversava com o motorista, o velho observava os dois veículos com expressão curiosa. Diante dele, no acostamento, estava um caixão. A alguns passos, um jumento todo sujo de lama estava parado ao lado do acostamento.

— O que está acontecendo? — perguntou o general.

O perito, fora do caminhão, discutia com os dois aldeões. O velho sacudiu as migalhas do lenço e se levantou com esforço. O perito se aproximou da janela do carro.

— E aí? — perguntou o general.

— São os restos de um soldado.

— Um dos nossos?

— Sim — diz o perito mostrando o caixão. — Ele trabalhava com estes aldeões quando foi morto.

O general abriu a porta e desceu do carro. O padre o seguiu.

— Não entendi bem — disse o padre, aproximando-se do camponês.

— Ele estava a serviço deste aldeão que o empregava em seu moinho — diz o perito. — Foi lá que o mataram.

— Ah — diz o padre —, deve ser um desertor ou então um dos numerosos casos desse tipo que ocorreram depois da nossa capitulação.

O perito, depois de interrogar o aldeão, voltou para informar: — É um desertor. O general, que não entendera as últimas palavras trocadas, aproximou-se do grupo em passo lento, ar grave. Era uma postura que fazia questão de adotar cada vez que estava em presença de camponeses albaneses.

— Afinal, qual é a situação? — perguntou o general.

Agora que os dias frios e deprimentes e aquela tenda plantada nos morros pertenciam ao passado e que portava seu uniforme novo, sentia-se novamente tomado pelo sentimento de importância.

O aldeão tinha o rosto emaciado e olhos cinzentos, cansados. Tirou tranquilamente o saco de tabaco, encheu o cachimbo e o acendeu com o isqueiro de pedra. O general pousou os olhos sobre os dedos do velho, avermelhados e magros como fiapos, e sobre as grandes mãos ainda poderosas. O menino continuava lá, de pé, com os olhos arregalados de admiração diante do general.

— Há três horas estamos esperando aqui — diz o aldeão. — Saímos de casa antes de o sol nascer. Me disseram ontem que os carros iam passar pela estrada e eu decidi vir esperar vocês com meu neto. Nós paramos uma porção de carros antes dos seus, mas todos os motoristas nos disseram que não estavam transportando mortos. Alguns chegaram até a achar que éramos loucos.

— Foram vocês que o enterraram? — perguntou o general.

— Sim — respondeu o velho. — Quem mais podia ter feito isso? Ele morava com a gente.

— Ah, quer dizer que ele morava com vocês? Mas eu gostaria de saber, se possível, que tipo de acordo fizeram com ele. O que um soldado de um grande exército regular podia estar fazendo no meio de vocês, quer dizer, como foi possível ter ficado aqui por livre vontade e gostar? Vocês são aldeões, não são?

O perito traduziu, simplificando, as palavras do general. O camponês tirou o cachimbo dos lábios e olhou para o general direto nos olhos.

— Ele era meu empregado na fazenda. Todo mundo pode confirmar isso.

O general fez uma expressão de descontentamento e ficou vermelho com a ofensa. Só naquele momento compreendeu então o que havia acontecido. Lançou ao moleiro um olhar oblíquo, como para dizer: "Você é muito esperto, camponês!" e acendeu nervosamente um cigarro, não sem partir dois ou três fósforos.

— É um desses desertores — explicou-lhe o padre — que trabalharam como empregados em fazendas de albaneses.

O general fez uma careta ao ouvir a palavra "desertor". Estava muito irritado.

— Como se chamava ele? — perguntou o perito.

— Não tenho a menor ideia — diz o camponês. — Nós o chamávamos de "Soldado" simplesmente, e esse nome ficou com ele até o fim.

— Quando foi exumado? — perguntou o perito.

— Anteontem — respondeu o camponês. — Ouvi falar que estavam vindo buscá-los e decidi desenterrá-lo para entrega a vocês. Achei que era melhor que o infeliz repousasse no país dele.

— Nunca o viu usando um medalhão redondo?

— Uma medalha? — perguntou o moleiro espantado. — Ele não era dos que ganham medalhas. Quanto a trabalho não havia outro igual, mas a guerra não era seu forte, não mesmo!

— Não, paizinho, não era uma medalha — interrompeu o perito, sorrindo —, um medalhão! Alguma coisa parecida com uma moeda com a imagem da Virgem Maria em cima.

O aldeão deu de ombros. — Não, nunca encontrei. Catei seus ossos um a um, mas não achei nada parecido.

— Você agiu bem — diz o padre. — Cumpriu seu dever como bom cristão.

— E quem mais podia ter feito isso? — diz o camponês. — Claro que era eu que tinha que fazer.

— Nós lhe agradecemos — diz o padre — em nome da mãe desse soldado.

O velho se aproximou do padre, que lhe pareceu um homem afável e bondoso, e começou a lhe falar mostrando de vez em quando com a mão o caixão grosseiramente talhado em madeira verde de carvalho.

— Eu o fabriquei ontem — diz — e esta manhã, antes de o sol nascer, pegamos a estrada com o menino. Foi muito difícil fazer o trajeto do moinho até a estrada principal. A lama ia até os joelhos. O jumento caiu duas vezes. Olhe só em que estado ele ficou! E não foi fácil colocá-lo em cima das patas novamente!

O padre o escutava com atenção. — E o soldado, foi você que o matou? — perguntou de repente o padre com uma voz tranquila, olhando-o fixamente.

O aldeão fez um gesto de espanto e tirou o cachimbo da boca. Depois começou a rir.

— Você está bem da cabeça? E por que eu o mataria?

O padre sorriu também, com o ar de quem diz: "São coisas que acontecem."

O moleiro explicou-lhe brevemente como o soldado havia sido morto pelas unidades punitivas do "Batalhão Azul" no mês de setembro de 1943. Depois, aparentemente voltando à pergunta do padre, seu olhar se tornou pensativo.

— Que coisas são essas que eles estão dizendo, meu filho? — disse, à meia-voz, ao perito.

— Eles são estrangeiros, paizinho, os costumes deles são diferentes dos nossos.

— A gente tem tanto trabalho, faz todo esse caminho e...

— Não ligue não, meu paizinho — diz-lhe um dos operários que descera do caminhão para pegar o caixão. — Agora vamos nos despedir, temos que ir embora.

Enquanto o velho aldeão conversava com o perito e os operários dos serviços municipais suspendiam o caixão para colocá-lo no caminhão, o general, que se apressava para entrar no carro, fez subitamente meia-volta.

— Ele está pedindo indenização? — perguntou ao perito.

O perito enrubesceu. — Não!

— Ele tem todo o direito. Estamos prontos para pagar o que ele está pedindo.

— Mas ele não pediu nada!

O general, acreditando ter encontrado um meio de se vingar, ao menos um pouco, da afronta que recebera do camponês, insistiu.

— Pode dizer a ele que pretendemos remunerá-lo.

O perito hesitou. — Desejamos pagar pelo seu serviço — diz o padre ao moleiro em tom adocicado. — Que quantia acharia justa?

O moleiro contraiu o rosto e levantou a cabeça. — Eu não quero nada — disse secamente.

— Afinal você se esforçou muito, perdeu muitas horas nesse trabalho, gastou material.

— Nada — repetiu o camponês.

— Nós pagamos bem — interveio o general.

— Deus seja louvado, não estou passando necessidade — diz o moleiro.

— Mas durante tanto tempo você garantiu a subsistência desse soldado... Talvez pudéssemos fazer um cálculo.

O aldeão sacudiu seu cachimbo. — Eu também devo a ele — diz —, não lhe paguei o último salário. Talvez até pudesse entregá-lo a vocês!

O moleiro virou as costas e foi até o jumento.

Como o carro estava arrancando, o menino murmurou algumas palavras na orelha do velho e ele então começou a agitar a mão na direção do carro.

— Esperem, demônios!, eu ia esquecendo! Tenho ainda uma coisa dele para entregar a vocês —, e meteu a mão debaixo da túnica.

— Vai pedir dinheiro — diz o general ao ver o velho lhe fazer um sinal. — Estão vendo? Eu tinha certeza!

— O que é? — perguntou o perito, que tinha descido do carro.

— Um caderno — diz o velho. — Ele às vezes escrevia nele. Tomem!

O perito pegou o caderno. Era um caderno comum de estudante, escrito com letra miúda.

— Suas últimas vontades, provavelmente — diz o velho —, caso contrário não teria me dado ao trabalho de entregá-lo a vocês. Quem sabe o que aquele coitado rabiscou aí dentro... Talvez tenha legado a alguém suas cabras e seus carneiros. Não quis perguntar a ele. Mas mesmo que ele tivesse animais, os lobos com toda certeza os devoraram.

— Obrigado — diz o perito. — Com certeza vamos poder descobrir o nome dele.

— Nós todos o chamávamos de "Soldado" — diz o velho. — Ninguém pensou em perguntar como se chamava. Vão! Boa viagem! Passem bem!

— Mais um diário — diz o general, folheando o caderno que o perito lhe entregara. — Quantos nós já encontramos?

— É o sexto — diz o padre.

Os veículos arrancaram um depois do outro e o general, tendo se virado, viu o velho aldeão ficar um momento imóvel olhando na direção deles, depois fazer meia-volta, empurrar o jumento à sua frente e começar a andar com o neto ao lado.

O general se encolheu no fundo do carro e, sem nada de melhor para fazer, começou a ler.


XI

O general se encolheu no fundo do carro e, sem nada de melhor para fazer, começou a ler.


12 de fevereiro de 1943


Nunca mais quis saber de diário desde a época em que, ainda no ginásio, me apaixonei por uma garota e me tornei motivo de chacota dos meus colegas que descobriram o que eu escrevera. Eu me revejo durante o recreio, entre as aulas de história e de matemática, quando alguém lançou de uma janela do terceiro andar as páginas do meu caderno. Depois de flutuarem no ar como folhas de árvores, elas se espalharam no pátio, onde todos começaram a apanhá-las para lê-las. Eu corria, fora de mim, de um lado para o outro do pátio para arrancá-las das mãos deles, mas não conseguia alcançá-los e só conseguia provocar suas gargalhadas, enquanto ela, em lágrimas, ia se queixar à diretoria.

Mas como aqueles dias me parecem hoje perdidos no passado! Essas recordações produzem em mim o efeito dos velhos livros amarelados e empoeirados que o meu avô lia às tardes. Era mesmo eu, aquele menino que corria de bicicleta pelas ruas da vizinhança e era sempre o primeiro a comprar a entrada para o novo filme no cinema do bairro? Não consigo acreditar.

É uma tarde de inverno, eu estou sentado à moda turca diante do fogo e não consigo entender como um soldado como eu, da Divisão de Ferro, pôde ficar reduzido a serviçal de um moleiro albanês e colocar na cabeça um desses gorros brancos que os camponeses daqui usam.

— O que é que você está escrevendo aí? — me perguntou o moleiro soltando uma baforada do cachimbo preto de buxo.

Todos aqui me chamam de "Soldado" e ninguém jamais pensou em perguntar meu nome. A mulher do moleiro me chama assim e a filha única deles, Christine, também. Creio até que foi ela quem me chamou por esse nome pela primeira vez. Aconteceu no dia em que nosso batalhão foi posto em fuga pelos milicianos e eu saí correndo através da floresta, depois de ter atirado meu fuzil no mato, sem contudo me afastar do canal, pois eu bem sabia que os canais sempre iam dar em algum lugar habitado. Eu não estava enganado. Era exatamente a levada do moinho onde estou neste momento, e quando bati na porta velha, a jovem albanesa que me abriu a porta gritou, surpresa: — Papai! É um soldado! Foi assim que começou para mim, nesse dia de inverno, esta curiosa vida de empregado de fazenda num país estrangeiro.

— Se você puder ajudar no meu trabalho — me diz o moleiro — eu garanto que terá como viver e comer, e vai ter a minha proteção, ainda por cima. Estou ficando velho e não consigo mais fazer muita coisa com minhas mãos. Meu único filho entrou para a Resistência. Mas estou lhe advertindo, nada de escapadas, caso contrário ele vai queimar você.

Provavelmente estava se referindo à filha e eu prometi, com toda a honestidade, que se ele consentisse, estava disposto a trabalhar com ele até o final da guerra.

Mas, de repente, me olhando com um olhar severo e penetrante, me disse: — Escute, infeliz, será que você não é um espião? — Espião, eu? — perguntei estupefato. — Se eu ficar sabendo de qualquer coisa, você está perdido, eu o enforco em um poste do celeiro.

Foi esse o nosso contrato. Já se passou um mês desde então e eu agora tenho um monte de tarefas: apanho lenha na floresta, limpo o córrego do moinho, ceifo o feno, recoloco as telhas do telhado no lugar, limpo e engraxo as engrenagens, encho e esvazio os sacos.

Os colegas do batalhão e todos os meus certamente imaginam que estou morto. Se me vissem neste estado, eu, um antigo soldado "de ferro", todo sujo, branco de farinha, com este gorro em cima da cabeça, ficariam chocados e terminariam com certeza caindo no riso.


25 de fevereiro de 1943


Está fazendo muito frio. O vento soprou o dia inteiro com tal violência que parecia que ia arrancar o moinho de suas fundações. Trabalha-se muito pouco. O inverno está tão rigoroso que raros são os aldeões que se arriscam a ir até o moinho e moer um saco de milho ou trigo. Os campos estão desertos este ano. Muitos vilarejos próximos foram queimados ou abandonados. Os poucos camponeses que chegam contam coisas horríveis.

Às vezes fico muito tempo ouvindo o mugido do vento que abafa o ronco da levada e então tenho a impressão de que o vento está uivando no mundo inteiro.


28 de fevereiro de 1943


Nevou na noite passada. Nunca tinha visto uma neve tão bonita. Finalmente o vento parou de assobiar e agora tudo está branco e calmo. É difícil acreditar que as pessoas estão em guerra no mundo, apesar de ela estar tão próxima.

Quando será que ela vai acabar?


9 de março de 1943


O moleiro me trata bastante bem. É preciso dizer que, de minha parte, eu faço todos os seus trabalhos de boa vontade. Ontem consertei um pedaço do telhado estragado pelo vento. O moleiro ficou muito contente comigo. Ele me disse: — Você é muito despachado, Soldado. Em seguida, depois de me olhar dos pés à cabeça, acrescentou com um tom brincalhão: — Só não tem, eu acho, competência para a guerra. Fiquei vermelho até as orelhas. Era a primeira vez que alguém fazia alusão à minha deserção.

— Isto não é verdade — respondi, envergonhado. — Não tenho vontade de combater porque não consigo sentir esta guerra, só isso.

Ele me deu um tapa nas costas. — Não quis ofendê-lo — disse ele, sorrindo. — Falei por falar. No fundo, você fez bem em deixar de ser reverente aos fascistas.

Aquelas palavras me assombraram o espírito o dia inteiro. Por que o moleiro me disse aquilo? Ele mesmo ajuda os milicianos e detesta os fascistas.

Só que os albaneses sentem um profundo respeito pela bravura, mesmo que seja do inimigo. Eles desprezam os covardes e, aparentemente, eu lhes dei a impressão de ser um destes. Um grandão como eu, de 1m82, covarde!

Lamento sinceramente passar por um medroso aos olhos deles. Tenho vergonha sobretudo diante de Christine. Ela é tão jovem e bonita. Ainda não tem 17 anos, e toda vez que a vejo sinto meu coração se esvaziar como um pneu de bicicleta que estoura de repente. Isso mesmo!


20 de março de 1943


Hoje aconteceu uma coisa extraordinária. Fui cortar lenha na floresta e, quando estava voltando, vi um homem sentado na soleira da porta, na frente do moinho. Retive meus passos e escutei, perplexo. O homem assobiava uma música do meu país. Eu me aproximei e reconheci nos farrapos os restos do seu uniforme. Eu gritei: — Ei! Amigo! Olá! Ele parou de assobiar e se levantou bruscamente. Nunca tínhamos nos visto, mas nos atiramos nos braços um do outro como velhos conhecidos, e nos sentamos juntos na soleira. Eu lhe perguntei: — De qual regimento você é?

— Do regimento "A Glória".

— Eu, da "Divisão de Ferro".

— Nós éramos! — disse. — Quanto ao que somos agora, é uma outra história.

Começamos a rir. — Como você está se virando? — eu perguntei. — Faz muito tempo que escapou?

— Quatro meses. E você?

— Pouco mais de dois.

— É aqui que você trabalha?

— É.

— Um lugar bonito! Parece a Suíça.

— Você veio com quem?

Ele deu uma risada. — Com o meu "patrão". Nós trouxemos dois sacos de milho para moer.

— Quais são as novidades? — eu perguntei. — Estou completamente isolado e não sei de nada do que está se passando no mundo. Como vai a guerra? Quando ela vai acabar?

— Segundo dizem, não vai demorar. Os nossos seguramente não vão aguentar por muito tempo.

— E nós? O que vai acontecer conosco?

— Quando a guerra acabar, nós vamos voltar para casa.

— Não vamos ter que prestar contas por termos nos esquivado assim?

— Você está doido? Que ideia! Prestar contas a quem? São os que nos mandaram para cá que terão que nos levar de volta.

Estas palavras me reconfortaram um pouco e nós acendemos um cigarro.

— Há uma quantidade de soldados como nós na região. Um monte! Os camponeses albaneses têm grande necessidade de ajuda porque a maior parte dos seus filhos está na Resistência. Os aldeões ficam encantados de empregar os nossos. Tenho visto companheiros nossos fazendo toda sorte de serviço, desde trabalhar nas lavouras e cuidar dos rebanhos até tomar conta de crianças. Isso mesmo, até babás!

— Imagine só! — eu disse, rindo. — E por que não? Você mesmo não diz que já é um milagre nos oferecerem a possibilidade de sobreviver? Não fosse isso, estaríamos apodrecendo no fundo de alguma fossa, sem que ninguém soubesse sequer onde nossos ossos estavam espalhados!

— É bem verdade.

— E com relação a mulheres, como você está fazendo? — perguntou.

— Nada.

— Sobre este capítulo é preciso apertar o cinto, não são encontradas em lugar nenhum. Um dos nossos andou se engraçando demais com uma moça da região e foi posto na porta da rua depois de ter recebido uma boa sova.

Eu me calei.

— Mas você, meu caro, acho que está com a vida feita — lançou ele, me olhando sorridente com seus olhos cinzentos e maliciosos. — Eu vi ainda agora a filha do seu patrão. Uma beleza!

— Está louco? Nem ouso pensar nisso. Você mesmo acabou de dizer como é arriscado.

— Sim, sim, eu disse, mas tenho a impressão de que aqui é diferente. É um lugar bonito, pacífico. Eu repito, parece que estamos na Suíça.

— E os punhos do moleiro, não chegou a ver?

Ele soltou uma palavra qualquer e nós dois desatamos a rir.

De dentro do moinho chegava o ronronar monótono da pedra triturando o grão.

Ele puxou a tabaqueira e enrolou um cigarro como fazem os camponeses daqui. Depois enrolou um outro para mim, pois eu ainda não aprendi como fazer.

— Escute — ele me disse, com os olhos semicerrados, pensativo. — Não ouviu falar nada a respeito do "Batalhão Azul"?

Eu estremeci. — Não — respondi à meia-voz. — Por quê?

— Parece que ele opera em algum lugar da Albânia central.

— Muito longe daqui?

— Sim, bem longe — respondeu —, mas o diabo sabe como as coisas podem virar — e ele coçou a nuca.

— Você crê que eles podem chegar até estas paragens?

— Vai saber! É preciso esperar qualquer coisa.

Ele fumou o cigarro em silêncio alguns instantes.

— Talvez não passem por aqui — retomei —, ou também pode ser que os milicianos os ponham fora de combate.

— Pode ser, mas apesar dos frequentes choques com as milícias e das pesadas perdas que sofreram, recebem reforços a cada vez.

— Quantos são eles?

— Novecentos, e todos fascistas furiosos. Em qualquer lugar em que põem o pé, é só massacre e terror. Quanto a nós, os desertores...

— O quê? — perguntei, e senti ficarem mais lentas as batidas do meu coração.

— Fuzilamento no ato, claro.

— Santa Virgem! — falei, num murmúrio.

Ficamos lá ainda um tempo, junto da porta, falando de uma coisa e de outra. Meu moleiro e o aldeão, no interior do moinho, entretinham-se com uma longa conversa. Quando o milho acabou de ser moído, os dois visitantes se foram, cada um com um saco às costas, o aldeão na frente, o soldado atrás. Nós lhes desejamos boa viagem.


2 de abril de 1943


Agora é primavera e nós temos muito o que fazer. De toda a vizinhança, camponeses vêm trazer seu grão para ser moído, alguns a pé, outros a cavalo ou num jumento. Cada vez que eu escuto o tilintar dos sininhos dos animais, fico feliz em ver gente, pois a solidão me pesa.

O moleiro é um homem bom e justo, mas tem o defeito de ser excessivamente avarento com as palavras. Notei que os albaneses em geral não são muito loquazes, sobretudo os homens. Ele não faz outra coisa o dia inteiro senão dar cachimbadas, e só Deus sabe os pensamentos que passam por trás dos vapores da fumaça. Converso mais com a mulher dele, a "tia Frosa", como eu a chamo. Ela me pergunta um monte de coisas, sobre meus pais, meus parentes, minha casa. Quando lhe falo sobre a vontade enorme que sinto de revê-los, ela me olha balançando a cabeça com ar de compreensão.

— Coitadinho —, diz, à meia-voz, e vai-se embora amassar o pão ou lavar a louça.

— E agora que você não está lá, quem cuida dos seus animais?

Comecei a rir. — É que nós não temos animais.

— Nem mesmo vacas?

— Não, nem mesmo vacas. Nós moramos na cidade.

— E depois, mesmo que tivesse, agora que não está lá, os lobos já teriam devorado todas elas. Ah, meu filho, hoje em dia os próprios homens estão se devorando como feras, nem podemos falar dos lobos.

Não achei nada para lhe dizer.

Num outro dia, ela me perguntou sobre o meu medalhão.

— O que é isto pendurado no seu pescoço, menino? Parece uma moeda turca grande.

Eu ri. — É uma espécie de emblema que nós soldados carregamos, para que nos identifiquem se morrermos na guerra. Aqui, exatamente em cima da imagem da Virgem Maria, tem um número. Está vendo?

Tia Frosa colocou os óculos, uns óculos bem engraçados com uma lente quebrada.

— E quem dá isso a vocês?

— Nossos chefes.

— Que um raio os parta! — disse ela, e foi embora resmungando.

É dessas coisas que eu falo com a tia Frosa. Quanto a Christine, eu a vejo raramente e lhe falo com menos frequência ainda. É com ela, claro, que adoraria conversar, tanto mais que a esta altura estou me virando muito bem em albanês. Mas ela nunca é vista no moinho. Passa o dia inteiro ocupada com a casa e no tempo que sobra está tricotando. Mesmo quando vem nos avisar que a refeição está pronta, não fica mais do que um instante na porta. Com seus olhos doces e sombrios, ela me lança um olhar furtivo e depois vira o rosto rapidamente e, antes de ela desaparecer, eu ainda vejo por um segundo seus cabelos castanhos.

Às vezes, sem sequer descer até o andar de baixo, ela nos chama da janela: — Pai! O almoço está pronto!

Se por acaso eu me encontro no corredor, ela grita para mim: — Soldado, avise meu pai, a comida está servida!

Quando estamos todos sentados em volta da grande mesa baixa, ela nunca levanta os olhos. Eu também não, aliás, eu não ouso levantar o nariz do prato.

Depois fico pensando nela a tarde inteira; às vezes saio e fico diante da porta, e deixo meu olhar se perder na noite enquanto escuto o barulhinho do riacho; e fico ali a sonhar.


17 de abril de 1943


Os camponeses continuam a chegar para mandar moer seus grãos. Eles contam que estão acontecendo coisas inacreditáveis nas zonas liberadas pelos milicianos. Estão sendo criadas umas espécies de "conselhos", que nunca tinham sido vistos até hoje; estão distribuindo o trigo dos ricos; alguma coisa nova, que eu não consigo entender o que é, está nascendo.


25 de abril de 1943


Hoje Christine sorriu para mim. Na noite passada, ladrões tentaram entrar no moinho. Estávamos todos dormindo quando Balo, o cachorro grande, começou a latir. Eu acordei sobressaltado.

Eu me perguntava o que poderia estar acontecendo e sentia arrepios me percorrendo o corpo. Era muito tarde, por volta da meia-noite, e a essa hora ninguém ousaria meter o nariz fora de casa.

Balo agora estava latindo com mais raiva, e eu escutei um ligeiro estalo na escada de madeira. Do primeiro andar, alguém estava descendo para o vestíbulo onde eu dormia. Era o moleiro. Com uma das mãos ele me fez sinal para segui-lo, e eu vi que, com a outra, estava segurando uma longa carabina. Tratei de pegar um grande bastão e saí atrás dele. Meu coração estava aos pulos.

"E se forem eles?", me dizia. "E se alguém me denunciou?"

O moleiro parou atrás da porta e ficou prestando atenção. Eu disse comigo: "Se fossem eles, não estariam tomando tantas precauções!"

De repente, percebemos um ligeiro rangido, em seguida alguma coisa rachou, se quebrou.

— Ladrões! — murmurou o moleiro, e abriu a porta. Deu dois passos do lado de fora, dentro da noite, e atirou. Oh! Deus! Nunca tinha escutado um fuzil produzir tamanha detonação, nem cuspir uma chama como aquela! Que velha marca de arma aquela! O moleiro colocou a arma no ombro uma segunda vez e atirou na direção do moinho. O eco do tiro se repetiu ao longe, devolvido pelo desfiladeiro da montanha vizinha.

Ouviu-se um barulho de passos vindo do moinho. O moleiro se precipitou, com o corpo curvado para a frente. Eu o segui, com meu porrete na mão.

Nós corremos por um bom tempo, antes de pararmos, sem fôlego.

— Eles fugiram — disse o moleiro. — Vamos para casa.

Nós voltamos sem trocar uma palavra.

— E aí? — perguntou tia Frosa quando chegamos na casa. Todas duas, mãe e filha, estavam no vestíbulo, em plena escuridão, e eu consegui perceber que a primeira segurava na mão um bastão.

— Ladrões! — disse o moleiro.

— Ladrões! — eu me ouvi repetir, e descubro no fundo da minha alma um sentimento secreto de satisfação e orgulho.

Nunca poderia imaginar que fosse possível sentir alguma alegria em perseguir ladrões no meio da noite, com o tronco curvado para a frente.

— Que a peste os leve! — disse tia Frosa. — Como se a gente já não tivesse contrariedade suficiente!

— Lógico, estamos em guerra — disse o moleiro. — Você ficou com medo, Christine?

— Sim, pai — confessou ela.

E eu me dei conta de que nunca ouvira voz tão doce, tão sedutora. Tentei enxergar seus olhos na escuridão, mas foi em vão.

— Então, Soldado, boa-noite — diz o moleiro, e ele foi o primeiro a subir a escada.

Elas o seguiram. O último degrau tremeu e o silêncio voltou à casa.

No dia seguinte de manhã, ao olhar a porta do moinho, nós vimos que a fechadura tinha sido forçada, e não sei por que eu senti um vazio no coração.


25 de maio de 1943


Eu sonho com uma porção de coisas, mas é principalmente Christine que ocupa meu pensamento. Um monte de ideias loucas me atravessa o espírito. Sei perfeitamente que são loucuras, mas mesmo assim gosto de ficar com elas na cabeça.

Ontem, lá pela metade do dia, eu estava deitado perto do córrego e, como não sabia o que fazer, fiquei jogando pedrinhas na água. Os plátanos farfalhavam à minha volta e eu me deixei embalar.

De repente ouvi um grande barulho, passos, vozes, apitos, cascos de cavalos. Dei um pulo e o que eu vi? Uma longa coluna dos nossos estava quase chegando no moinho. Eu quis fugir, mas não sei por que minhas pernas não obedeceram à minha vontade. Fiquei lá como se estivesse pregado no lugar. Eles vieram na minha direção e me cercaram de todos os lados.

— É esse o moinho? — perguntou um deles me fazendo um sinal às escondidas.

— Sim — respondi, espantado.

— Vamos! Quero vê-lo transformado em cinzas! — gritou, se precipitando antes dos outros.

Os outros homens o seguiram. Eu me juntei a eles. Não sei como, mas minhas pernas se desprenderam de repente e eu me senti vivo e ágil como se meu corpo tivesse sido liberado de um feitiço. Invadiu-me a mesma febre e ferocidade que me acometeram no ano passado, quando queimamos seis aldeias inteiras durante a campanha de inverno.

Nós nos precipitamos, uivando como possessos. Dois homens puseram fogo no moinho. Alguns outros agarraram o moleiro e o arrastaram para fora. Foi posto diante da entrada do moinho e fuzilado.

Eu pensei em Christine. Subi os degraus da escada da casa de quatro em quatro. Alguns soldados estavam trazendo tia Frosa para baixo com as mãos e os pés atados. Ao me ver, cuspiu no meu rosto e me lançou: — Cachorro imundo! Espião! Mas eu não estava me importando. Só estava pensando em Christine. Corri para o quarto dela e me atirei sobre a cama. Todo o seu corpo tremia.

— Não! Soldado! Não!

Mas o sangue tinha me subido à cabeça. Tinha que fazer depressa, tinha pouco tempo.

Afastei a colcha, rasguei com raiva a camisa leve e me joguei sobre ela.

— Soldado! Soldado!

Eu acordei sobressaltado. Era a voz de Christine me chamando. Junto de mim, como antes, a água tranquila marulhava e dava para sentir o aroma do feno. Eu havia dormido alguns instantes.

— Soldado! Soldado!

Fui na direção da casa com um passo pesado. Christine apareceu na janela do moinho.

— Minha mãe está chamando — ela me diz.

Eu ainda estava esfregando os olhos. Se ela soubesse o sonho que eu acabara de ter!


24 de junho de 1943


Os habitantes de Gjirokastër estão evacuando a cidade e não param de se espalhar pela vizinhança. Eles chegam, extenuados, com suas mochilas nas costas. As mulheres carregam as crianças nos braços e os velhos se arrastam com dificuldade. É o pânico. Eles dizem que a cidade vai ser incendiada. Alguns afirmam que vai ser explodida com minas. Em suma, estão esperando coisas terríveis.

Os fugitivos se refugiam nos campos. Alguns vão até as regiões liberadas, outros permanecem nas zonas sem nenhum controle, como o vilarejo perto do nosso moinho.

A cidade de Gjirokastër é bombardeada todos os dias. Às vezes eu subo no grande plátano que fica depois do córrego e observo a cidade. Parece que ela se içou montanha acima se agarrando com unhas e dentes e que não quer se soltar de jeito nenhum. Eu servi lá com meu regimento durante anais de um ano e conheço todas as suas ruas e ruelas, todos os proprietários de cabarés e vendedores. Também conheço duas prostitutas do bairro de Varosh.

A cidade é geralmente bombardeada às nove e meia da manhã e de tarde, às quatro horas. Quando não tenho nada para fazer, eu subo no alto dessa árvore uma meia hora antes dos aviões se aproximarem, e eu os espero escrutando o horizonte à minha volta. Do lado direito eu vejo Grihoti, o vilarejo onde nossa divisão está acantonada, com suas grandes casernas novas, a colina alta que domina a cidade, e, no seu ponto mais alto, a teqe isolada, cercada de ciprestes; avisto embaixo, na direção do leito pedregoso do rio, a igreja e o cemitério cristão, a ponte onde eu montei guarda nem sei quantas noites, o aeroporto militar; em seguida, entre o rio e a colina da Santa Trindade, os bairros que ficam sobre o flanco da montanha cheia de leitos cavados por torrentes, e as pontes que ligam entre si as diferentes partes da cidade.

Os aviões são pontuais. Eles vêm do norte e normalmente desembocam pela garganta de Tepelene. A defesa antiaérea de Grihoti é a primeira a abrir fogo. O barulho das detonações não chega até nós; só vemos a fumaceira branca dos obuses explodindo. Depois é a defesa antiaérea da colina da teqe que entra em ação, mas ela também não causa muito problema ao voo dos aviões. Eles navegam tranquilamente em direção à cidade, e eu imagino nesse momento o som estridente das sirenes em Gjirokastër e a descida precipitada das pessoas para os abrigos. É espantoso que o pavor e o horror que se abatem sobre a cidade possam ser causados só por essas três coisinhas que voam cintilando ao sol, como moedas de prata atiradas no alto do céu.

As últimas a atirar são as peças instaladas sobre as altas torres da cidadela. Daqui é possível seguir muito bem a manobra dos pilotos, que primeiro diminuem a altitude, depois mergulham em voo rasante sobre o aeroporto militar, para subir e mergulhar de novo largando de cada vez suas pesadas bombas.

Daqui se avistam as colunas de fumaça negra subindo das casas destruídas; depois, os aviões indo embora por onde vieram, tranquilos e brilhantes, como se nada tivesse acontecido.

Tudo isso só pode ser visto de dia, pois de noite a cidade desaparece no blecaute. Ele engole primeiro as ruas, as casas baixas, a ponte dos cavalos sobre o rio; depois, pouco a pouco, por etapas e começando por baixo, engole os diferentes bairros, as pontes sobre as torrentes e finalmente a cidadela, os campanários e os minaretes com seus ninhos de cegonha no alto.

Ontem de noite, enquanto eu olhava a cidade mergulhando na escuridão e desaparecendo como se nunca tivesse visto o dia, fiquei pensando no azar que nós tivemos de viver numa época assim tão sinistra, que nos obriga a viver nas trevas, que nos força a nos esconder de nós mesmos. E eu me lembrei de uma noite parecida, há uns três meses, quando nossa companhia passou pela primeira vez por Gjirokastër durante uma marcha em direção ao sul.

Aconteceu numa noite quente, enquanto a chuva caía e quando mal tínhamos chegado nas casernas de Grihoti; apesar de estafados, imundos e muito abatidos, pedimos para ser levados à casa de tolerância. Nosso comando nos deu permissão. Como por encantamento, na mesma hora toda nossa vitalidade voltou, e naquele estado, com a barba de vários dias, cobertos de lama, sem sequer tirar a arma das costas, de novo nos pusemos em forma e saímos pela grande porta da caserna. O prostíbulo ficava no centro da cidade e ainda precisávamos andar mais de um quilômetro para chegar lá. Mas naquele instante não sentíamos mais as pernas pesadas. Caminhávamos em fileiras sobre o calçamento escuro, falando bobagens e implicando uns com os outros; não precisávamos de mais nada para sermos felizes. Era proibido cantar à noite, caso contrário só Deus sabe a barulheira que teríamos feito. Marchar em grupo durante uma noite de verão, numa estrada sem perigo e com a arma desengatilhada é de fato um momento de felicidade na vida de um soldado. Eu me lembro como se fosse hoje. Um dos nossos assobiava uma antiga melodia e eu via à minha direita, enquanto caminhava, a silhueta lúgubre do monte da Lunxheria parecendo tão próximo que parecia poder ser tocado com o braço estendido; e à minha direita erguia-se o Mali Gjerë5 inteiramente negro, no qual devia estar encostada a cidade.

Ao passarmos pela ponte que atravessa o rio, fomos parados pelas sentinelas do nosso posto de barreira e depois, para continuar seguindo adiante, deixamos o calçamento e tomamos um atalho.

Chegando ao bairro baixo de Varosh, começamos a subir as ruas de ladeira. A cidade parecia morta. A maioria dos postigos estava fechada; as raras janelas abertas recortavam sobre as paredes retângulos escuros. Nossas pesadas botas ressoavam ruidosamente sobre as calçada, e por trás das persianas e das pesadas portas, os habitantes seguramente deviam estar tremendo de medo à ideia de que um novo massacre pudesse talvez acontecer. Se eles soubessem aonde estávamos indo!

Finalmente chegamos à "casa". A noite estava muito escura e o ar pesado nos agoniava. Paramos diante da porta. O oficial que nos guiava empurrou o batente e entrou.

A casa estava silenciosa e escura. Aparentemente, não havia nenhum cliente lá dentro.

— Talvez estejam dormindo — disse um dos nossos, inquieto.

Estávamos todos preocupados, pois nosso oficial não voltava.

— Mesmo que estejam roncando vão ter que acordar, não quero nem saber — disse alguém.

— Isso mesmo — reclamou um outro. — Estamos uniformizados e exigimos respeito. Até porque só estamos aqui de passagem.

— Hoje estamos aqui, amanhã não sabemos se vamos estar — disse uma vozinha fanhosa.

Mas a porta se abriu, o oficial saiu e nós nos amontoamos em volta dele.

— E então? — falou alguém de dentro da escuridão.

— Olhem só — diz o oficial. — Vocês vão entrar imediatamente. Só que é proibido fazer algazarra, do contrário voltamos do mesmo jeito que viemos. Vamos! Em fila!

Nós nos pusemos em fila de qualquer jeito, e Deus sabe que espécie de coluna conseguimos formar! Estávamos loucos para entrar.

— Atenção! — diz o oficial. — Está muito escuro lá dentro, as janelas estão abertas porque está calor e não se pode acender a luz. Que ninguém pense em acender o isqueiro ou riscar um fósforo, ou vai se arrepender! Há um posto de controle com um ninho de metralhadoras bem perto daqui.

— Compreendido — disseram duas ou três vozes. — Não precisamos de luz. Podemos nos virar sem ela.

— Isso mesmo, não é de luz que precisamos, é de...

— Cale a boca, idiota! — rosnou o oficial. — Silêncio! Andem! Os cinco ou seis primeiros!

Houve um empurra-empurra e eles foram se embrenhando na escuridão do pátio.

— Não misturem seus fuzis! — gritou o oficial. Depois se virou para nós: — Que os próximos seis me sigam! — disse.

Eu era um deles. Entramos e alguém fechou a porta atrás de nós. Como se estivéssemos bêbados, atravessamos o pátio ladrilhado, subimos a escada e chegamos a um cômodo de onde partia um longo corredor. Estava um breu e se sufocava ali, embora as portas e as janelas dos quartos estivessem todas abertas.

— Silêncio! — disse uma voz de mulher, certamente a patroa.

As cegas, colados uns aos outros como bagos de um mesmo cacho, não sabíamos onde nos meter. No meio da escuridão, escutei nosso oficial sussurrando algumas palavras à patroa; decerto ela o estava levando para o quarto da mais bonita. Depois ouviram-se passos sobre o assoalho e meus companheiros foram entrando não se sabe aonde, como se a escuridão os engolisse, e ao final de alguns segundos me vi sozinho no corredor. Às apalpadelas, fui avançando no escuro; ouvi um gemido, depois um outro, o sangue me subiu à cabeça e eu me enfiei pela primeira porta aberta e percebi o ruído de uma respiração ofegante. Saí na mesma hora e me vi diante de uma outra porta. Em meio às trevas, distingui vagamente uma forma branca em um canto do quarto. Entrei, dei dois passos e parei.

— Venha — me disse uma voz doce. Eu avancei um pouco, timidamente, estendi os braços e a toquei. Ela estava inteiramente nua. Minhas mãos deslizaram sobre seu corpo úmido de suor. Senti meus olhos se enevoarem e não consegui encontrara cama.

— Tire a sua arma — me disse ela docemente. Desfiz-me de meu fuzil e o apoiei na parede. Então ela se deitou.

Eu não distinguia seu rosto na escuridão, mas a julgar por sua voz e seu busto, ela devia ser muito jovem.

— Desculpe — eu lhe disse alguns minutos mais tarde, enquanto descansava um pouco nos seus braços —, desculpe estar tão sujo.

— Ah! Não tem importância — ela disse com um tom indiferente, dando a entender que há muito tempo já se acostumara com o suor dos soldados.

— Para onde vocês vão? — me perguntou.

— Para o sul, para o front.

Ela se calou. Foram as únicas palavras que trocamos. Tentei sem sucesso distinguir seus traços, mas eles se embaralhavam, se esmaeciam como essas imagens de filmes que ficam confusas quando ocorre algum problema com o projetor. Levantei-me lentamente, apanhei meu fuzil, coloquei-o nas costas e me virei mais uma vez para aquela forma esbranquiçada estendida no canto.

— Boa-noite — eu lhe disse.

— Boa-noite — me respondeu uma voz indiferente. Saí. Tateando, encontrei a escada e desci. Os que haviam terminado esperavam fora fumando em silêncio, com o fuzil entre os joelhos, sentados nos bancos de pedra que ladeavam a porta.

Uma hora mais tarde, marchávamos pela estrada principal, mas nessa hora já não falávamos mais, apenas escutávamos o barulho irregular de nossos passos ressoando no calçamento; estávamos novamente abatidos, esgotados, imundos de lama de dar medo.

— Maldita escuridão! — falou alguém como num sonho, mas ninguém lhe respondeu e nós continuamos nossa marcha em silêncio até Grihoti.

Muito tempo mais tarde, aconteceu de passarmos novamente por Gjirokastër e naturalmente pedimos para ser levados àquela "casa". Nos disseram que ela tinha sido fechada. Não sei mais muito bem por que, mas parece que houve uma confusão lá dentro. Mataram uma das pensionistas e em seguida as outras tiveram que ser evacuadas. Então me lembrei novamente daquela moça com quem tinha passado um momento no escuro, numa noite de céu muito carregado, e disse comigo que talvez tivesse sido ela. Mas também poderia ter sido uma outra. Havia, eu creio, cinco ou seis. Sete no máximo.


29 de junho de 1943


Nestes últimos tempos, Christine ficou ainda mais bonita e eu sinto um aperto no coração cada vez que a vejo. Anteontem ela estava lavando os pés no riacho. Que pés bonitos! Mas tudo nela me parece bonito. Sobretudo seus olhos. Olhos escuros e aveludados que têm qualquer coisa da doçura da noite. Eu mesmo não saberia descrever. Mas, neles, nada posso ler. Absolutamente nada. Tenho a impressão de que, em geral, nada se pode ler nos olhos das moças albanesas. É como se fossem hieróglifos. Hieróglifos assustados. Ou será que só nós, soldados estrangeiros, temos essa impressão?


13 de julho de 1943


Na noite passada, tropas passaram na estrada de Gjirokastër. Elas estavam indo para o norte. Percebiam-se daqui os focos luminosos dos faróis. Aparentemente, um regimento transferido para outro lugar.


21 de julho de 1943


O vilarejo vizinho está abarrotado de balistas. Os aldeões que vêm mandar moer seus grãos contam que há uma semana os balistas se instalaram no vilarejo como se estivessem em casa. Não fazem outra coisa senão se empanturrar o dia todo e passar a noite cantando. Eles depenam esses infelizes aldeões. É uma sorte nosso moinho ser um tanto afastado, do contrário eles estariam aqui.

Seja como for, o moleiro me disse que se eu avistar seus gorros brancos com uma grande águia na frente, devo na mesma hora me esconder. Ele deu o mesmo conselho a Christine.

Às vezes fico imaginando: "E se os balistas viessem e Christine e eu tivéssemos que nos esconder por aí, no mesmo local; ela teria medo, eu apertaria suas mãos nas minhas para tranquilizá-la, eu a sentiria perto de mim, e ficaríamos os dois sozinhos, juntinhos um do outro..."

Mas não aconteceu nada de parecido. Nos filmes se veem muitas vezes casos assim, mas temos de saber que filmes e vida são coisas muito diferentes...

Apesar de tudo, tenho uma vontade enorme de ir ao cinema.


3 de agosto de 1943


Ontem a crepitação das metralhadoras não parou a tarde inteira. À noite, os balistas foram embora do vilarejo. Os milicianos voltaram para lá e o "conselho" foi reformado. É o que nos disseram dois aldeões que chegaram ao moinho de madrugada. Christine me olhou hoje com doçura. Nos últimos tempos nota-se nela alguma coisa misteriosa, perturbadora, que só faz aumentar seu encanto.

Sonho com ela todas as noites. Eu a amo, tenho certeza. Já não tenho mais dúvidas a esse respeito. E meu amor é sem esperança, sem a menor esperança, pois no fundo sou apenas um soldado de um exército derrotado, um empregado doméstico, um estrangeiro, um zero à esquerda, em suma. É isso o que o Duce e o fascismo fizeram de mim.


6 de agosto de 1943


Christine vai se casar dentro de uma semana. Fiquei sabendo inteiramente por acaso. Eu não sabia que ela já estava noiva havia muito tempo, e ontem, quando tia Frosa estava apanhando água no riacho, eu lhe disse, só para poder trocar umas palavras: — Ultimamente a senhora tem passado o dia inteiro pregada no trabalho de tecer, qual a razão disso?

— Ora, é que o dia está se aproximando, o dia está se aproximando, meu menino.

— O dia de quê?

— Como, o dia de quê? Então você não sabe que vamos casar nossa filha na semana que vem?

— Não — respondi —, eu não sabia.

Mas minha voz fraquejou de tal maneira que tia Frosa levantou os olhos para mim e me olhou fixamente por um instante. Primeiro eu fiz um esforço para dominar minha perturbação, mas depois disse comigo: "Dane-se, por que eu deveria disfarçar meu sofrimento?"

Não saberia dizer se ela se deu conta ou não do choque que me causou, mas o fato é que ela me fitou mais uma vez e disse: — Pois é, filho! O tempo passa e as meninas chegam à idade de se casar. Você também, quando tiver voltado para casa, logo que a guerra acabar. A sua mãe vai casá-lo com uma moça bem bonita, bonita como um anjo.

Ao ouvir estas palavras por pouco não segurei minha cabeça com as mãos, pois tive a impressão de que ela estava querendo me consolar e minha dor se tornou ainda mais aguda.

Fui me sentar na beira do córrego e disse, falando sozinho: "Christine, você vai se casar." Nada mais.


20 de agosto de 1943


Os dias se sucedem, monótonos em sua uniformidade. O outono vai chegar daqui a pouco e Deus sabe o que ele vai nos trazer.

Christine se casou. Domingo passado, os parentes do noivo vieram buscá-la. Seis homens a cavalo, todos armados. As estradas estão muito perigosas e os albaneses, que mesmo em tempos de paz viajam com o fuzil às costas, nos tempos que correm não se separam mais de suas armas nem por um instante. Não houve bodas. Os homens se sentaram em volta da mesa baixa e mal tomaram um pouco de raki, pois tinham um longo caminho a percorrer. Eu também fui convidado, mas os convivas não me dirigiram a palavra, foi como se eu não estivesse lá.

Dois dias atrás eu quis dar um presentinho para Christine. Mas dar o quê? Eu não tenho nada! Bem que tentei talhar uma faca na madeira como os albaneses fazem, mas perdi meu tempo. Foi então que pensei em lhe oferecer meu medalhão. Ela já havia olhado para ele umas duas ou três vezes, intrigada.

— Tome, estou lhe dando, para se lembrar de mim.

Ela o segurou e o olhou com alegria.

— É a Santa Virgem!

— É sim.

— Quem foi que lhe deu? A sua mãe?

— Não, os meus superiores.

— E por quê?

— Para que me identifiquem quando for morto.

Ela começou a rir. — E como é que sabe que será morto?

— Está certo, se por acaso eu for morto!

— Christine! — chamou tia Frosa, do pátio.

Christine me agradeceu e saiu correndo. Foi assim que eu lhe dei o único objeto que possuía. Para que teria me servido? De toda maneira estou perdido. Estou vivo, mas perdido, e o que adianta ser achado depois de morto?

Por volta do meio-dia os amigos do recém-casado se levantaram, colocaram as armas a tiracolo e subiram em suas montarias. Um dos animais, um cavalo branco, ricamente enfeitado para a circunstância, era destinado a Christine. Christine chorava. Tia Frosa também chorava e o moleiro fumava seu cachimbo sem falar. Depois os pais beijaram a filha. Eu permaneci um pouco à parte, em silêncio, à espera ao menos de um olhar dela, ali, no último momento. Mas ela tinha os olhos inchados de lágrimas e seus ombros tremiam. Como estava bonita! Eu também quis cumprimentá-la, mas não sei por que não tive coragem de me aproximar dos cavalos; talvez por causa da atitude distante dos cavaleiros ou então devido à grande perturbação que me invadiu, eu nem sei. A única coisa que sei é que me mantive afastado, me sentindo atordoado; ninguém reparou em mim, e eu me senti mais estrangeiro e supérfluo do que nunca.

Os cavaleiros caíram na estrada. Christine se virou uma última vez para nos olhar e depois os cavalos se embrenharam nos matos. Primeiro foram as crinas que desapareceram de nossa vista, depois os troncos dos cavaleiros e por fim os longos canos de seus fuzis. Nós fizemos meia-volta sem dar uma palavra. O moleiro e sua mulher entraram em casa. E eu fui para a beira do canal e me deitei com o peito encostado na terra, sentindo o coração pesado; e de repente caí em prantos.

Estava chorando sem nem sequer saber por quê. Nem era tanto pela partida de Christine, era mais pela minha própria sorte que eu estava derramando aquelas lágrimas, e eu nem sabia dizer por quê.


24 de agosto de 1943


Nas últimas noites tem havido um contínuo vaivém de tropas na estrada de Gjirokastër. Tudo leva a crer que alguma coisa importante está para acontecer. Os camponeses que vêm ao moinho contam que os campos estão novamente se enchendo de fugitivos das cidades; há refugiados por todo lado e parece até que eles trazem consigo um cheiro de cinzas. Coisas horríveis estão sendo previstas.

Há quem diga também que o "Batalhão Azul" chegou à região. Alguns afirmam que ele estaria reprimindo do outro lado da Lunxheria, outros dizem que está agindo ainda mais próximo. As noites estão de novo lúgubres. Eu durmo mal e me levanto toda hora para vigiar.

A vontade de rever Christine me persegue.


1º de setembro de 1943


Sopra um vento de outono. Sinto-me constantemente presa de uma profunda tristeza e temo nunca mais poder sair daqui. Eu só tenho 22 anos e sinto como se estivesse para sempre perdido em um deserto.

Às vezes me sento na margem do canal. É o meu local preferido.

Fico olhando a água correr tranquila, ora levando uma folha, ora um galhinho, ora apenas alguns reflexos.

Eu revejo aqueles dias de operações executadas por nossa divisão nos campos albaneses. Então eu me lembro dos canais que nós encontrávamos pelo caminho. Nem sei por que aqueles canais tranquilos dos vilarejos albaneses, cavados com enxada pelos próprios camponeses só com a força dos braços, me perturbavam tanto. Eram eles que mais me traziam ao espírito, de forma clara e precisa, os dias dos tempos de paz. Eu passeava por suas margens com o fuzil nas costas com uma sensação de mal-estar. Bem no fundo de mim mesmo, eles revolviam alguma coisa pouco clara. Eu sentia que eles despertavam em mim um instinto atávico, e que me empurravam para fazer qualquer coisa.

Eu me lembro de um livro que li quando ainda estava no ginásio. Não me lembro mais quem era o autor. Falava dos instintos profundamente dissimulados dos cães de guarda, que ressurgem em alguns deles de tempos em tempos. Era uma coisa análoga que eu sentia quando passeava ao longo daqueles córregos. Naquela época cruel, eles ressuscitavam na minha alma antigos sentimentos caídos no esquecimento. Eles me chamavam. Eu sentia soar em mim seu murmúrio eterno, e foi seguramente ao longo de um canal que nasceu, primeiro muito vagamente, depois de maneira cada vez mais clara, a ideia da deserção.

E agora eu venho muitas vezes me sentar na beira desse riacho e fico me dizendo que talvez dias melhores e mais calmos ainda virão para nós, antigos soldados que não sabem mais quem são nem para onde o destino os levará.


5 de setembro de 1943


Calma. As folhas começaram a amarelar. Esta manhã, acima de nossas cabeças, muito alto no céu, centenas de aviões voaram para o nordeste.

Quem sabe de que região do mundo estão vindo e que outra vão bombardear! Os céus estão abertos em todos os lugares.

 

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5 Montanha no sul da Albânia.


XII

As notas paravam ali. Lia-se ainda a data de 7 de setembro de 1943, mas ela havia sido apagada. Aparentemente, ele desistira de prosseguir com o diário. Talvez não tivesse nada de especial para escrever, ou simplesmente tivesse se desinteressado.

O general jogou o caderno no banco com desgosto.

— Alguma coisa de interessante? — perguntou o padre.

— Anotações de um misto de sentimental e choramingas.

O padre apanhou o caderno e o abriu na primeira página. — Não se acha seu nome em lugar nenhum — diz o general. — Tem apenas sua altura: 1m82.

— Vejam só! Exatamente a altura do coronel Z.! — diz o padre.

Eles se olharam um instante e depois desviaram a vista. — Seu regimento e seu batalhão aparecem em algum lugar?

— Não, só a divisão, a "Divisão de Ferro". Nenhuma outra indicação.

— Estranho!

— E algumas linha sobre o "Batalhão Azul", mas nada do coronel Z.

— As notas datam de 1943 — diz o padre folheando o caderno. — Em que mês ele faz menção ao "Batalhão Azul"?

— No começo e no fim do diário, ou seja, em fevereiro e setembro.

— Em setembro o coronel já estava morto — diz o padre.

— Sim, evidentemente.

O padre começou a ler. O general, lembrando-se do relato do velho aldeão, imaginava como o diário talvez pudesse ter terminado. O "Batalhão Azul" passou por aquelas paragens e seus homens, furiosos por terem sido derrotados, chegaram uma tarde ao moinho e, com certeza, alguém lhes contou que um desertor estava escondido ali. Eles procuraram o soldado e o descobriram escondido entre os sacos, coberto com uma camada de farinha, inteiramente branco, como se tivesse antecipadamente se envolvido num sudário. Eles o levaram para fora empurrando-o adiante deles com os canos das metralhadoras, e assim, sempre de costas, foi sendo empurrado até chegar ao canal do moinho. Ele ia tropeçar e cair no córrego, mas quando estava a dois passos da borda, eles atiraram; ele caiu e só a cabeça mergulhou na água. Depois um pequeno turbilhão se formou em torno dela como se ela fosse uma grande pedra, e a lenta correnteza foi puxando seus cabelos como se fossem estranhas algas negras.

"Deve ter sido só isso o que aconteceu", diz consigo o general dando uma tragada no cigarro. "Que outro fim podia ter um desertor?"

— Então? — perguntou o general quando o padre fechou o caderno, uma hora depois.

O padre levantou os ombros. — Um diário como tantos outros — diz.

— É verdade — diz o general —, ele não contém nada de especial. Como eu lhe disse, um choramingas.

— Dois dos outros diários eram mais interessantes — diz o padre.

— Fica evidente que com soldados como esse, que jogam as armas nos riachos para em seguida se enrabichar pela primeira moça que aparece, nunca podíamos ter ganho a guerra — diz o general com raiva... — Bonito soldado! — acrescenta, depois de um curto silêncio.

— Esses diários de soldados têm elementos comuns — diz o padre.

— É natural, uma vez que são homens de uniforme que os escreveram. Contudo, diferem em seu fundo. Lembra do primeiro que achamos? Que espírito guerreiro! Sentia-se em cada linha a mão e o espírito do combatente.

O padre fez um sinal de aprovação com a cabeça. — Evidentemente, encontrava-se aqui e ali alguma vilania, mas no conjunto o espírito combativo prevalecia.

— Quando eu digo que eles têm alguma coisa em comum, estou pensando na forma — diz o padre. — Os diários que encontramos são naturalmente diferentes. Eles têm de análogo apenas o fim, ou seja, o fato de que nenhum continuou a escrever.

— Exatamente. Apenas a morte é comum a todos.

— Embora esse infeliz, em vez de ser morto honrosamente lutando, tenha se reduzido a ser fuzilado como desertor e a cair com a cara mergulhada num riacho — diz o padre.

— Você leu o que ele escreveu sobre os canais? — perguntou o general.

— Li sim — diz o padre. — Ele esperava encontrar ali a salvação, mas era a morte que o espreitava.

— Ninguém escapa do castigo de Deus.

O general acendeu um cigarro. O motorista buzinava insistentemente. Um longo rebanho de ovelhas atravessava a estrada. Dois pastores com seus longos cajados tentavam dividir o rebanho em dois para deixar os carros passarem.

— Eles vieram hibernar — diz o padre.

O general observava os montanheses de alta estatura, em suas pesadas túnicas de pele de carneiro negro e capuz na cabeça.

— Você se lembra daqueles dois tenentes reduzidos a pastores de ovelhas em uma aldeia albanesa? De qual divisão faziam parte? Dos caçadores alpinos, acho.

— Não me lembro mais — diz o padre.

— Um fenômeno curioso esse que se produziu no nosso exército na Albânia — prosseguiu o general. Verdadeiramente curioso! Ou, para ser mais exato, vergonhoso.

— Está querendo falar dos nossos militares que fizeram trabalhos forçados para os camponeses albaneses para poder sobreviver?

— Sim, sobretudo após nossa capitulação, essa prática adquiriu proporções maciças. Eu tive oportunidade de ler um relatório do quartel-general a esse respeito. É qualquer coisa de inacreditável.

— É verdade — diz o padre. — Aconteceram coisas lamentáveis.

— Mas nós mesmos topamos com casos desse tipo. Quantas vezes não ficamos vermelhos de vergonha ao ouvir dizer que nossos soldados tinham chegado a lavar roupa ou a tomar conta das galinhas na casa de camponeses albaneses? Há duas horas esse pastor ou moleiro, já nem sei mais, fez meu sangue subir.

O padre novamente aquiesceu.

— Você falou que ocorreram coisas ridículas, mas mais do que ridículos esses episódios são tristes. Na guerra, é complicado fazer a divisão entre o trágico e o grotesco, o heroico e o triste.

— Há quem se esforce para explicar esse tipo de coisa — diz o general. — Tentam justificar a atitude das nossas divisões que permaneceram aqui, bloqueadas após a capitulação. "Não havia barcos", dizem, "os mares estavam fechados. O que podiam fazer aqueles infelizes? Afinal de contas, eles precisavam sobreviver de alguma maneira." Certo, que sobrevivessem! Mas sem arrastar na lama a dignidade de seu país! — exclamou o general, revoltado. — Um oficial de um grande exército, mesmo vencido, aceitar tomar conta de galinhas! Onde já se viu!

— No início, muitos venderam as armas — diz o padre. — Eles venderam ou trocaram às vezes por um gase6 de milho ou um saco de feijão.

— Você estava aqui nessa época?

— Não. Mas me contaram. Parece que os revólveres eram entregues por um pedaço de pão e um pouco de vinho, pois os albaneses tinham bem menos apreço pelas pistolas do que pelos fuzis. Os fuzis eram vendidos mais caro, a um preço que podia chegar até um saco de pão. Já as metralhadoras, as metralhadoras leves e as granadas, eram dadas praticamente por nada, por um ovo, um par de opingas7 rasgados, duas cebolas, ou no máximo meio quilo de soro de leite.

— Quanta indignidade! — diz o general. O padre ia prosseguir, mas o general o interrompeu: — É por essa razão que os albaneses tendem a nos menosprezar. Você viu como aquele pastor ou moleiro, sei lá, me ofendeu.

— Eles adoram armas. Não podem conceber que alguém venda seu fuzil por um pedaço de pão.

— E as armas pesadas?

— Elas praticamente não tinham nenhum preço no mercado, pois caíam nas mãos dos milicianos. Era possível trocar um morteiro por um frango.

— Que vergonha! — diz o general. — Em outras palavras, desde os primeiros dias de nossa capitulação, abriu-se na Albânia uma verdadeira feira de armas.

— É exatamente isso, uma verdadeira feira. Os albaneses desde sempre tiveram uma paixão ávida pelas armas, e essa avidez, bem entendido, só fez crescer durante a guerra. Eu creio que seus ancestrais devem ter sonhado com uma feira assim durante séculos.

— Dizem que mais de dez mil fuzis foram vendidos ou trocados por víveres.

— Talvez até mais — diz o padre.

— Foi de fato um dos aspectos mais insólitos dessa guerra.

— E saiba que naquele ano ocorreram mais acidentes deploráveis do que nunca — retomou o padre. — As crianças brincavam com armas de verdade e às vezes, numa discussão, estouravam os próprios miolos com alguma granada. Às vezes, durante o dia, as mulheres de um bairro ficavam se xingando de uma casa para outra como é seu hábito e, quando a noite chegava, os homens da casa faziam crepitar as metralhadoras através das janelas e claraboias e aí ocorria uma bela carnificina...

— Você não está exagerando?

— Nem um pouco. Uma grave psicose acometeu todo mundo aqui. Os albaneses pareciam embriagados, todos os seus antigos instintos tiveram livre curso e eles se tornaram mais perigosos do que nunca.

— Talvez porque estivessem no meio do fogo da batalha, e feridos ainda por cima — diz o general. — É o que fazem os leões quando são atingidos pela primeira bala.

O padre estava pronto para responder, mas o general prosseguiu: — E depois, naquela época, os albaneses aparentemente estavam prevendo novos perigos. Seus vizinhos podiam se atirar sobre eles a qualquer momento.

— Os albaneses exageram sempre os perigos que os ameaçam — diz o padre.

— Há, contudo, uma coisa que não sei explicar. Qual a razão de não terem nos perseguido sem trégua depois da capitulação? Chegaram a fazer exatamente o contrário, ou seja, eles protegeram nossas infelizes tropas contra os nossos antigos aliados que passavam nossos homens pelas armas assim que encostavam as mãos neles. Você se lembra disso?

— Sim, eu me lembro — diz o padre.

— Existe até um documento a esse respeito — retomou o general. — Eu penso no apelo que os milicianos lançaram a todo o povo albanês no momento da nossa capitulação. Eles pediam que não deixassem morrer de fome nossos soldados que, às dezenas de milhares, vagavam como mendigos em frangalhos pelas estradas da Albânia. Eu mesmo cheguei a ler esse apelo e isso sempre me pareceu um enigma. O que pode tê-los levado a se comportar dessa maneira, eles que nos detestavam tanto? Ou será que tudo era simplesmente demagogia?

— Demagogia grosseira — diz o padre. — Eu mesmo fiquei surpreso com essa atitude.

— Nós éramos inimigos jurados — diz o general. — Enquanto estivemos em guerra, eles se atiraram furiosamente sobre nós, e eis que, sem mais nem menos, lançam um apelo como aquele.

— É mesmo — diz o padre, pensativo.

— Nosso exército na Albânia teve um lamentável epílogo — prosseguiu o general. — Todos aqueles militares de uniforme, com suas armas, seus galões e suas medalhas viram-se convertidos em empregados domésticos, fazendo trabalhos forçados, serviços de lavoura. Enrubesço de vergonha quando penso no tipo de trabalho que eles se viram obrigados a fazer. Você se lembra? Alguém chegou até a nos falar de um coronel que lavava roupa e tricotava meias para uma família albanesa.

— Sim — diz o padre. — Algumas vezes me perguntei se também o coronel Z. não teria entrado para o serviço de alguma família de aldeões, e se não estaria, ainda hoje, tomando conta de um rebanho de cabras.

— Eu me pergunto o que Betty teria feito se o visse num estado desses — diz o general rindo.

O padre, à guisa de resposta, contentou-se em sorrir. Eles falaram ainda por um momento, mas a maior parte do trajeto transcorreu em silêncio. As estradas estavam cobertas de folhas mortas amareladas ou apodrecidas. As primeiras volteavam de cá para lá de acordo com o vento; as outras moviam-se um pouco, com esforço, depois ficavam inertes, coladas ao solo como se carregassem o peso da água e da lama, sem viço e espalhadas pela calçada, parecendo estar à espera da morte.

Os carros passavam em cima delas a toda velocidade.

 

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6 Um qase equivale a quarenta quilos. (N. da T.)

7 Sapatos de couro com as pontas viradas para cima. (N. da T.)


XIII

Vários dias depois, eles estavam de novo no salão do hotel Dajti, sentados um diante do outro, de cada lado de uma mesa. Da taberna do subsolo subiam os sons da orquestra, e o general sentia, difusa, a presença da vida estrangeira em torno deles. Tinha as feições abatidas e o olhar mais perdido do que normalmente.

— Eu dormi muito mal a noite passada — diz. — Tive um sonho estranho.

— O que foi? — Eu via aquela prostituta, aquela cuja história o dono do cabaré nos contou, lembra?

— Sim — diz o padre.

— Foi justamente com ela que sonhei. Ela estava morta, estendida num caixão. Enquanto isso, do lado de fora, uma multidão de soldados, também em caixões, esperavam sua vez diante da porta da casa.

— Que sonho horroroso!

— E, no entanto, tudo aquilo me parecia perfeitamente natural. Como estava passando por ali, eu perguntava a alguém: "Esses soldados que estão esperando, estão indo ou voltando do front?" Alguém me respondia que uns estavam voltando e outros indo. Então eu lhes dizia: "Os que estão partindo para o front vão sair da fila, pois primeiro têm que lutar, só depois terão direito a se distrair. Os que estão voltando podem permanecer na fila."

— Um pesadelo — diz o padre.

— Numa outra noite eu vi em sonho o coronel Z. Ele me dizia, com um sorriso irônico: "Você acha que eu meço 1m82? Pois bem, você está enganado, senhor, esta não é a minha altura." "Então quanto você mede?", eu lhe perguntava. Ele começava de novo a rir e depois dizia, num tom mal-humorado: "Não vou dizer!"

O general tirou do bolso o maço de cigarros e acrescentou: — Tenho tido quase toda noite esse tipo de pesadelo.

— É sinal de estafa.

— De fato. A última excursão foi extenuante. Mais do que as outras.

— Nada podemos fazer — diz o padre. — E não chegamos ao final da nossa labuta. Ainda temos uma porção de viagens pela frente.

— Parece que nos transformamos em peregrinos da Idade Média. Estamos caminhando, sempre caminhando, sem entrever o fim da nossa estrada.

— As famílias estão aguardando. Elas colocam todas as esperanças em nós.

— Elas acham que nós tiramos os mortos da terra apertando um botão — diz o general em tom irritado. — Não têm a menor ideia do que acontece.

— Não é culpa delas — diz o padre. O general tamborilava os dedos na mesa. — E se fôssemos dar uma volta? — propôs o padre. — A noite está bonita.

Eles desceram os degraus e foram na direção do prédio da universidade. Havia um movimento incomum de carros na larga avenida. Na saída da ponte, no cruzamento da avenida com a rua Marcel-Cachin, as luzes dos faróis bifurcavam-se. Umas viravam à esquerda, em direção ao bairro da maior parte das embaixadas, as outras continuavam em frente em direção à praça Skanderbeg.

Caminharam até o edifício da Presidência do Conselho, depois voltaram pelo mesmo caminho. Dos dois lados da grande avenida, operários estavam ocupados arrancando mimosas e, em seu lugar, plantando pinheiros dentro de grandes covas abertas.

— São os preparativos da festa — diz o padre. — É por isso que estão trabalhando até tão tarde.

— De onde trouxeram esses pinheiros?

— Das montanhas, suponho.

Diante da escadaria do hotel, encontraram o prefeito, o companheiro do outro general.

— Então, como vão vocês?

— Bem, obrigado, e vocês?

— Tudo bem. Por onde anda seu general? — perguntou o padre.

— Atualmente está na Albânia central. Nós prosseguimos com nossas buscas nas planícies dessa região. E vocês?

— Tiramos uns dias de descanso.

— Fizeram bem. Eu vou tomar o avião amanhã. Recebi um comunicado anteontem. Minha mulher está doente. Acredito que esteja de volta em uma semana. Não posso me ausentar muito tempo. Nosso trabalho vai de mal a pior.

Sempre falando, foram subindo os degraus. O prefeito os saudou e foi para o elevador. Eles voltaram e tornaram a se sentar no salão.

O general pediu conhaque e acendeu um cigarro. Trouxeram-lhe uma garrafa. Ele encheu o copo e bebeu. Diante de seus olhos começaram a dançar os contornos obsedantes do solo e, acima, as sepulturas.

— Não consigo entender por que os restos de nossos camaradas têm de ser devolvidos às famílias. Não acredito que esse tenha sido o último desejo deles, como pretendem alguns. Para nós, veteranos, essas manifestações de sentimentalismo são bem pueris. Um soldado, vivo ou morto, só se sente à vontade entre seus camaradas. Portanto, deixem-nos juntos. Não os separem. Que suas tumbas unidas mantenham vivo em nós o espírito guerreiro que existiu no passado. Não escutem os amedrontados sempre prontos a sair gritando à vista de uma gota de sangue derramado. Acreditem em nós, somos antigos combatentes.

O general sentia o álcool lhe subir à cabeça. "Eu tenho no momento todo um exército de mortos sob minhas ordens", pensava. "Só que, à guisa de uniforme, eles todos têm um saco de náilon. Sacos azuis com duas listras brancas e uma tarja preta em volta, fabricação especial da firma Olympia. E esses sacos são enfiados dentro dos caixões, pequenos caixões de dimensões determinadas, estipuladas no contrato assinado com os serviços municipais. No princípio havia só uns poucos pelotões de caixões, depois, gradualmente, companhias e batalhões foram sendo formados e estamos agora em vias de completar os regimentos e as divisões. Um exército inteiro embrulhado em náilon." "E o que vou fazer?", falou entre os dentes.

— Você não parece estar em seu estado normal — observou o padre. — Talvez esteja com febre.

— Não, não é nada — respondeu o general que, talvez pelo cansaço, sentia o álcool fazer efeito mais rapidamente do que de hábito. — Não é nada — repetiu. — Apenas sinto vontade de beber, mas você, padre, coronel, seja lá o que for, está querendo me impedir. O que você quer de mim, hein?

O general se tornou de repente agressivo. Às vezes tinha acessos assim quando bebia.

— Não suporto controle. O que você quer de mim, fale! — praticamente gritou o general.

O homem magro que usualmente ficava sentado escrevendo na mesa próxima do aparelho de rádio virou a cabeça.

— Absolutamente nada, meu caro. Eu não o impeço de fazer nada e nem estou lhe pedindo nada. Nem sequer cogitaria — disse secamente o padre.

— Então só tem que ficar aí e me ver bebendo.

— É inútil fazer um escândalo — disse o padre.

O general ainda levantou o copo mais uma vez. O padre agora não o amolaria mais. Além disso, ele era o chefe.

Pôs-se a sonhar com seu exército. Com seu exército azul, com duas listras brancas e tarja preta. "O que farei dos meus soldados?", pensou. "Eles são numerosos, muito numerosos, e com certeza sentem frio em seus capotes de náilon. Seus generais idiotas os abandonaram e os largaram nas minhas costas. Eu podia ter ganho muitas batalhas com eles."

Tentou rememorar as batalhas que estudara na Escola Militar para escolher as que poderia ter ganho com as forças que tinha hoje sob suas ordens. Começou a desenhar planos sobre o maço de cigarros, traçando as posições das tropas, as linhas de ataque, os pontos decisivos de assalto. O padre, silencioso, o olhava rabiscar e bebia um chocolate. O general começou pelos tempos antigos. Primeiro cercou César, depois passou diante do exército de Carlos Magno, depois se colocou inopinadamente à frente de Napoleão e o fez retroceder. Mas não estava satisfeito. Sentia-se melindrado pelo fato de que, se ele ganhava todas as batalhas dos tempos antigos, era devido à superioridade das armas modernas de que dispunha e não graças a seu talento de general. Imaginou então os combates das últimas guerras. Desembarcou em uma porção de costas e sitiou diversas capitais. Seus soldados saltaram na Normandia, no paralelo 38 na Coreia. Ele os fez entrar na terrível selva do Vietnã e os tirou de lá sãos e salvos. Ganhou batalhas que a história considerava perdidas. Se ganhava todas era porque conduzia suas tropas com habilidade e nunca as abandonava à própria sorte. Ele, sim, sabia comandar. Estava justamente fazendo um estudo sobre a guerra em terreno montanhoso. E além do mais, ele tinha valentes, oh, sim, valentes soldados. "Eles são bravos", pensou, "exatamente por não terem nada a perder", e recomeçou a beber. O maço de cigarros estava preto de tantos rabiscos, mas uma nova batalha lhe veio à mente. No início foi obrigado a recuar, mas, conseguindo mais reforços de mortos ainda não anotados nas listas (justamente os mais ferozes em combate), acabou ganhando também.

— É isso mesmo — murmurou, satisfeito. — Quem ousaria enfrentar o Grande Exército de náilon?


XIV

O general acordou inteiramente moído. Levantou-se e abriu as persianas. Era uma manhã fria. As nuvens estavam altas, imóveis no céu cinzento. Apoiou-se contra o vidro e sentiu uma ligeira vertigem. "Há algo de errado comigo", disse consigo. "Será que vai me dar aquela coisa de novo? Foi assim que começou, daquela vez na África. No início achei que era por conta do clima, mas ele não tinha nada a ver."

Olhou para fora. O outono estava chegando ao fim. As árvores do parque diante do hotel estavam inteiramente desfolhadas. Há muito tempo, com toda certeza, ninguém se sentava nos bancos verdes. A não ser as folhas mortas. Mas elas não iam demorar a apodrecer. O general conhecia bem os uniformes dos diferentes exércitos da OTAN. Mas só agora notava que suas tonalidades imitavam as diversas nuances das folhas do outono. Primeiro verdes, puxando para o marrom-claro, para se tornar em seguida amarelo acobreado; quando apodreciam, tornavam-se pretas.

"Uniformes pretos, não acredito que existam", pensou o general. "Ou melhor, não existem mais, pois no passado foi o dos fascistas."

No meio do parque, perto da pista de dança circular, as cadeiras molhadas estavam arrumadas em pilhas, e a pista, agora vazia e deserta, parecia grande e triste. O estrado da orquestra e o chão estavam atapetados de folhas mortas que os varredores iam juntando em um monte.

"Há algo de errado sim", falou consigo mesmo o general, descendo a escada para ir tomar o café da manhã.

— Você parece doente — lhe disse o padre assim que se sentaram à mesa. — Talvez esteja precisando de um pouco de repouso.

— Nem sei direito o que eu tenho — disse o general —, mas o fato é que não estou me sentindo nada bem. Eu acho que me lembro de tê-lo ofendido ontem à noite. Peço desculpas, eu tinha bebido demais.

— Não foi nada — disse o padre amavelmente.

— Que droga de tempo faz neste país!

— Talvez seja melhor eu partir sozinho amanhã. As buscas no litoral serão, eu acho, muito menos penosas do que nas montanhas — disse o padre.

— Eu também penso assim.

— Descanse um pouco. Seria muito bom se fosse ao teatro ou à ópera à noite.

— Venho dormindo mal. Eu devia tomar um sonífero.

Eles saíram para a grande avenida e começaram a andar para lá e para cá na frente do hotel, sobre a larga calçada ladeada de grandes pinheiros. Rapazes e moças passavam em pequenos grupos, aparentemente estudantes apressando-se para as aulas.

— Que trabalho odioso foi esse de que nos encarregaram? — disse o general como se retomasse uma discussão interrompida. — Para mim seria mais fácil retirar faraós ainda enterrados nas pirâmides do que cavar dois metros de profundidade para exumar esses soldados.

— Esse pensamento não o deixa em paz. Talvez seja por isso que não está se sentindo bem.

— A guerra aqui não foi como todas as guerras — retomou o general —, ela não se desenrolou nos fronts. Ela se infiltrou em toda parte, como um verme, em cada célula deste país, e é por isso que foi especificamente diferente em comparação com outros lugares.

— É porque os albaneses, exatamente por sua natureza, têm a guerra na alma — disse o padre. — Atiram-se a ela com total consciência. A guerra constitui, por assim dizer, uma função orgânica desta nação, ela intoxicou-lhe o sangue da mesma maneira que o álcool outras pessoas. Eis por que a guerra aqui foi verdadeiramente horrível. E depois, a questão não está apenas aí. Sempre houve guerras entre os povos e sempre haverá; mas existem povos que, por diversas razões, e no caso dos albaneses, o papel primordial foi provavelmente desempenhado pelas circunstâncias que cercaram o processo de formação de sua psicologia ao longo dos séculos, existem povos, eu estava dizendo, que se atiram à guerra com um ardor desenfreado e são justamente estes os mais perigosos.

— Você já me falou disso — disse o general.

— Sim, eu me lembro.

— Vê-se que é um de seus temas preferidos. Por que não escreve um trabalho, como eu mesmo estou fazendo?

— Não — respondeu o padre —, acho que é um assunto interessante para discussão, mas penso que estou me tornando aborrecido por voltar constantemente a ele.

— Não, de maneira alguma. Eu o ouço falar com prazer. Estávamos falando do espírito belicoso dos albaneses.

— Sim — disse o padre. — Ao longo de toda sua história os albaneses percorreram seu país com armas de fogo nos ombros. Seus montanheses, que levavam uma vida patriarcal e que até outro dia ainda viviam como na Idade da Pedra, estão equipados com as mais modernas armas. Pense então no contraste! Como eu já lhe disse: sem guerra e sem armas esse povo enfraquece, suas raízes ressecam e ele terminaria desaparecendo.

— Enquanto que com armas e através da guerra, ele se regeneraria?

— É no que eles acreditam, mas é justamente pelas armas que desaparecerão ainda mais rapidamente.

— Segundo você, a guerra para eles é uma espécie de ginástica que fazem para desentorpecer os membros e se manter em forma?

— Durante algum tempo, sim — disse o padre.

— Em outras palavras, com ou sem armas, este povo está condenado a desaparecer.

— Aparentemente, sim. O governo deles erigiu o antiquíssimo pendor para a guerra em princípio de sua política, e é uma felicidade para os vizinhos o fato de os albaneses não passarem de dois milhões.

O general se calou e acendeu um cigarro.

— Você se lembra dos cantos daqueles escavadores nas noites que passamos na barraca? — retomou o padre. — Você deve se lembrar da tristeza e do abatimento que sentíamos ao escutá-los.

— Eu me lembro — disse o general —, há coisas que não se esquecem facilmente.

— Seus cantos têm como tema predominante a destruição e a morte. É uma particularidade de sua arte. Nós a encontramos nas canções, em seus costumes, em toda sua existência. É, geralmente, uma característica comum a todos os povos balcânicos; mas nos albaneses ela é mais pronunciada do que em qualquer outro povo. Até a bandeira nacional tem como único símbolo o sangue e o luto.

— Você fala desses assuntos com paixão — observou o general.

— Durante muito tempo me dediquei a essas questões — respondeu o padre. — Oscar Wilde dizia que as pessoas das classes inferiores têm necessidade de cometer crimes, pois eles provocam as sensações fortes que os mais abastados obtemos através da arte. Este epigrama pode muito bem ser aplicado aos albaneses, com a única diferença de que é preciso substituir a palavra "crime" pela palavra "guerra" ou então "vingança". Pois é preciso reconhecer, com toda objetividade, que os albaneses não são criminosos de direito comum. Os assassinatos que cometem são sempre conformes às normas ditadas por antigos usos. A vendeta deles se parece com uma peça de teatro composta de acordo com todas as regras de uma tragédia, com um prólogo, uma tensão dramática que vai crescendo sem parar e um epílogo, que implica necessariamente em morte. Essa vendeta pode ser representada como um touro furioso se lançando sobre as montanhas e devastando tudo à sua passagem. Só que eles penduram em seu pescoço uma quantidade de ornamentos e joias que correspondem à sua concepção de beleza, de tal modo que possam, ao mesmo tempo, desfrutar satisfações estéticas quando o animal dispara e começa a semear a morte por toda a parte.

O general escutava atentamente.

— A vida dos albaneses — prosseguiu o padre — é como um grande espetáculo dirigido segundo antigos costumes. O albanês vive e morre como se interpretasse um papel, e a única diferença é que os cenários da peça são os planaltos ou as montanhas onde eles passam a vida numa penúria atroz. Com muita frequência, ele morre porque certos usos devem ser respeitados e não por razões objetivas. A vida que transcorre em meio a tantas provações e privações sobre esses rochedos, essa vida que não consegue eliminar nem o frio, nem a fome, nem a avalanche, se extingue subitamente, em consequência de uma palavra imprudente, de uma brincadeira ousada demais, ou de um olhar de cobiça lançado a uma mulher. A vendera é muitas vezes desencadeada sem a menor paixão, unicamente para obedecer ao costume. E mesmo quando o vingador mata sua vítima, ele não está fazendo nada além de aplicar um parágrafo da coletânea dos costumes particulares do país. Esses antigos artigos enredam-nos durante toda a existência, até que um belo dia os fazem tropeçar. E aí eles caem para não se levantar mais. Por isso é que os albaneses, século após século, não fazem outra coisa senão representar uma sangrenta peça de teatro.

Eles ouviram passos atrás deles. Era o perito.

— Procurei vocês no hotel — ele disse.

— O que está acontecendo?

— Temos que rever amanhã alguns processos com os representantes da direção dos serviços municipais. Eles nos esperam às dez horas.

— Está bem — disse o general.

O padre olhava atentamente o perito, procurando adivinhar se ele havia escutado suas últimas palavras.

— Estávamos falando de seus costumes — disse ele, em tom tranquilo. — Eles são muito interessantes.

O perito riu.

— Ele estava me falando da vendeta — disse o general. — É psicologicamente muito interessante.

— Não tem nada de interessante nisso — interrompeu o perito. — Há estrangeiros que acham que a vendeta e outros costumes perniciosos são explicados pela psicologia dos albaneses, mas é um absurdo. Esses costumes nos foram impostos por nossos antigos opressores e pela religião.

— Ah! — disse o padre.

— Sim. Alguns estrangeiros se dedicam com muito zelo a estudar a questão da vendeta entre nós, mas só o fazem com um objetivo determinado.

— É que essa questão apresenta um interesse científico — interveio o padre.

— Não é minha opinião. A verdadeira intenção é preparar a opinião pública para o aniquilamento do povo albanês e espalhar a ideia.

— Não acredito, não acredito — disse o padre com um sorriso forçado.

O perito deu alguns passos junto com eles, despediu-se e foi embora.

O general retomou a discussão com o padre. — Você explica a questão dos costumes — disse ele — baseando-se unicamente em elementos psicológicos, mas eu creio que, do mesmo modo, não se podem excluir certos motivos objetivos de ordem histórica e militar. Você sabe no que este povo me faz pensar? Em um desses animais selvagens que, quando o perigo se aproxima, antes de saltar ficam imóveis em estado de tensão extrema, com os músculos retesados e todos os sentidos em alerta. A mim parece que este país esteve exposto a inúmeros perigos e que esse estado de alerta se tornou para ele uma segunda natureza.

— É justamente o que eles chamam de vigilância — disse o padre.

Ele continuou a falar mas o general não estava mais escutando.

— Tenho a impressão de que estamos falando muito deles — disse, finalmente. — No fundo, pouco nos importam os problemas deles. Que se exterminem todos, e tão rápido quanto quiserem.

O padre afastou as mãos abertas.

— Devíamos é tratar de examinar um pouco melhor nossa tarefa — retomou o general —, nossa miserável tarefa, que nos esgotou e que não estamos conseguindo executar. Eu acho até que há uma espécie de sorte contrária, alguma coisa sinistra se abatendo sobre nosso trabalho.

— Não — disse o padre —, não vejo nada disso. Nossa missão é sublime.

— Tenho a impressão de estarmos vagando pelo país como um tumor móvel. Estamos nos intrometendo no meio dos habitantes e atrapalhando o trabalho deles.

— Talvez esteja aludindo ao atraso dos trabalhos do aqueduto por alguns dias?

— Não — disse o general. — Não estou pensando só nisso. Há qualquer coisa de estranho e maléfico no nosso trabalho.

— De forma alguma — disse o padre.

— Já lhe passou pela cabeça que esses infelizes que estamos procurando com tanto desvelo talvez preferissem que os deixássemos em paz?

— É um absurdo — disse o padre. — Nossa missão é tão nobre, tão humana! Qualquer um se sentiria orgulhoso de realizá-la.

— Mas mesmo assim há alguma coisa errada nela, uma certa ironia, por menor que seja.

— Não — disse o padre. — Não é nada disso. Talvez, na sua qualidade de militar, você tenha outros motivos para se sentir afetado.

— Que razões eu poderia ter?

— Talvez seja melhor nem falar disso. É possível até que você não tenha vontade de admitir esses motivos.

O general deu um sorriso forçado. — Ainda as razões psicológicas? — disse. — Aparentemente, você aprecia a psicanálise. Já ouvi muito falar dela, mas para dizer a verdade não sei muita coisa. Nós militares não gostamos muito desse tipo de sutileza.

— Sim, eu entendo — falou o padre, como quem diz "gosto não se discute".

— Mas, afinal, como é que você explica esse mal-estar que me acometeu? Adoraria ouvir seu raciocínio, é um prazer ouvi-lo falar. E pode deixar, eu prometo que não vou me ofender, seja lá o que você disser.

— Está bem, já que insiste, eu vou dar a minha opinião — disse o padre com a maior calma. — Você tem esse sentimento de opressão porque, no mais fundo da sua alma, lamenta não ter estado você mesmo à frente de nossas divisões na Albânia. E fica se dizendo que talvez tudo tivesse se passado de forma diferente sob seu comando, que em vez de conduzir nossas tropas à derrota e à destruição, você teria voltado dessa prova com honras. É por isso que tantas vezes desdobra seus mapas, se debruça sobre eles tantas horas, ou rabisca esquemas táticos em maços de cigarros. Na realidade, você deplora cada derrota, revive cada revés, e retrospectivamente se vê no lugar dos desafortunados oficiais que comandaram nossas tropas; e então você acalenta o mais insensato dos sonhos: o de converter nossas derrotas em vitórias...

— Chega — disse o general. — Será que sou algum psicopata para você ficar escavando assim minha alma?

O padre deu um sorriso.

O general ficou sombrio. — Não, eu não tenho nenhuma razão secreta — retomou lentamente. — Até porque não sou nenhuma mocinha inocente para imaginar que a procura dos restos de militares tombados na guerra pudesse se parecer de alguma maneira com um passeio sentimental. Sempre foi bem claro que esta seria uma tarefa árdua e sinistra. Também me dei conta de que seria ajudado nessa tarefa pelo amor e pelo ódio que existem ao mesmo tempo dentro de mim. O amor por esses infelizes soldados e o ódio por seus assassinos. Quando entrei em casa, voltando do Ministério da Guerra no dia em que fui encarregado dessa missão, ouvi ressoar dentro do meu coração as notas de uma música. Era uma música fúnebre, solene. Mais tarde, no momento em que comecei a folhear os dossiês, senti que daquelas longas e intermináveis listas emanava um sopro de ódio e de vingança. Cheguei perto do globo terrestre e localizei a Albânia. Senti uma satisfação sádica ao ver que este país era tão pequeno, não maior do que um ponto. Depois, novamente senti o ódio me invadir. Esse diabo de país, pouco mais do que um ponto sobre o mapa, havia feito nossas belas e valorosas crianças comerem poeira. Tive vontade de partir o quanto antes para essa região selvagem e atrasada, e de conhecer esse povo que eu imaginava como um bando de bárbaros. Achei que passearia orgulhosamente no meio deles, olhando-os com ódio e desprezo, como que lhes dizendo: "Olhem só sua obra, seus selvagens!" Eu visualizava a cerimônia solene da transferência das cinzas, o olhar vago e estarrecido dos albaneses, um olhar atabalhoado de culpa de quem, depois de ter quebrado um bonito vaso de valor, fica ali parado contemplando-o com o canto do olho, desgostoso. Os caixões dos nossos soldados passariam no meio deles, mostrando-lhes que mesmo a nossa morte é mais bonita do que a vida deles. Mas, quando chegamos aqui as coisas foram muito diferentes. Você sabe melhor do que eu. Nosso orgulho foi a primeira coisa a se dissipar, depois bem depressa não sobrou mais nada de solene em tudo isso e, finalmente, minhas últimas ilusões evaporaram; agora andamos por aí em meio à indiferença geral, sob olhares enigmáticos e irônicos, lamentáveis bufões da guerra, mais dignos de pena do que todos os que lutaram e foram vencidos neste país.

O padre não respondeu e o general se arrependeu de ter falado.


Percorreram o resto do caminho em silêncio. As últimas folhas continuavam a cair sobre a calçada. Eles cruzavam por passantes. O general teve um sentimento de mal-estar e solidão. Repugnava-lhe falar desses assuntos. Era melhor se lembrar dos dias sombrios que passaram nas estradas e dentro das barracas, encharcados de chuva e tiritando na ventania, sob o olhar enigmático dos camponeses vestidos em seus pesados casacões de lã preta; ou daquela noite em que o padre, presa sabe-se lá de que pesadelo, gritou de susto; ou daquele campo de batalha agora afundado no lago artificial de uma central hidrelétrica; do cemitério submerso nas águas e dos reflexos vermelhos, completamente vermelhos, daquelas águas no crepúsculo; e finalmente daquele crânio com todos os dentes de ouro cintilando ao sol quando os operários o desenterraram, e do sorriso sarcástico que ele parecia estar mostrando para tudo que estava em volta.

Em passo vagaroso, chegaram até a esplanada que se estende diante do prédio da universidade. Viraram à direita, do lado do teatro da Ópera, e começaram a galgar a aleia ladeada de tílias que sobe serpenteando em direção à colina de São Procópio.

Dos dois lados do caminho as valetas estavam cheias de folhas mortas, e as estátuas do grande parque pareciam tremer sob as árvores nuas.

Chegando no alto avistaram, junto da outra vertente e cercado de colinas, o lago artificial estendendo-se ao comprido, com suas numerosas e pequenas enseadas de contornos variados. Sobre a lateral arredondada do morro erguia-se uma igreja e, ao lado, um café ao ar livre. Em toda a volta da pista de dança, altos ciprestes tremulavam sob o vento norte. Num canto havia uma grande pilha de caixas onde se lia, pintadas de preto, as palavras Birra Korea.

— Não deve fazer muito tempo que este lago foi construído — disse o padre. — Este estabelecimento também não existia antes.

— É um belo local.

— É, de fato. Daqui se avista praticamente toda Tirana.

Deram as costas para o lago e começaram a olhar a cidade. O impermeável do general fazia barulho com o vento.

Eles detiveram o olhar sobre a grande avenida que cortava a cidade em duas. Um choupo balançava, tapando com um de seus galhos ora a visão do edifício da Presidência do Conselho, ora a do Comitê Central. Quando o vento soprava mais forte, o galho chegava a cobrir a torre do relógio, que parecia colada no minarete da mesquita; depois ele escondia uma parte da praça Scanderbeg, deslizava sobre o edifício do Comitê Executivo e finalmente tocava no Banco do Estado.

— Eu li num livro sobre a Albânia que o conjunto arquitetônico do segmento superior da grande avenida representa o feixe de varas do fasces lictoris, o símbolo fascista — disse o general apontando para a frente.

— Exatamente — disse o padre.

— Pois é, mas já há alguns minutos estou tentando em vão descobrir essa semelhança.

— Olhe com mais atenção — disse o padre esticando também o braço. — A avenida se parece com o cabo do feixe, aquela grande construção da Reitoria representa a cabeça que ultrapassa a machadinha propriamente dita, o teatro da Ópera representa as costas, enquanto o estádio — e o padre esticou o braço para a direita — imita o corte em forma de arco.

— É curioso — disse o general. — Eu continuo não percebendo essa semelhança.

— Talvez porque seja necessário observar mais do alto do que desta colina — disse o padre. — E além do mais, e isso é o essencial, depois da guerra os albaneses tentaram suprimir esta semelhança.

— Destruindo parte do conjunto?

— Não, ao contrário — disse o padre. — Eles construíram novos prédios no conjunto, e assim obtiveram o resultado desejado.

— Eu imagino que o que veio confundir a representação do feixe foi este bairro imponente construído do lado esquerdo — disse o general.

— De fato é um bairro todo novo — disse o padre —, e eu creio que foi batizado com o nome de "Primeiro de Maio".

— Em uma palavra, havia aí uma espécie de selo gigantesco em pleno coração da capital.

— Foi antes da guerra que os comunistas, ao sobrevoar pela primeira vez a cidade, se deram conta desse efeito e decidiram imediatamente dar a ordem de desfazer a representação do feixe.

— E eles não notaram nada antes?

— Não sei lhe responder.

Eles caminharam na aleia asfaltada que corre ao longo da igreja. Em um dos bancos verdes fixados na beira do caminho, um rapaz e uma moça estavam sentados lado a lado. Com o olhar vago, ela havia encostado a cabeça no ombro do companheiro, que lhe acariciava os joelhos.

— Vamos descer — disse o general. — Está soprando um vento frio.


XV

Os veículos deixaram a estrada pavimentada e, depois de dobrar à direita no meio de campos plantados, trafegavam agora ladeando as vinhas da fazenda. O general, com um mapa topográfico aberto sobre os joelhos, de vez em quando dirigia os olhos para fora. Ele sabia que, naquele exato momento, na cabine do caminhão que vinha atrás, o perito tinha sobre os joelhos um mapa idêntico e que, como ele, olhava de tempos em tempos através da janela para reconhecer o local preciso onde deveriam parar.

“À direita há uma fileira de grandes choupos e se olharmos na sua direção avistamos, logo depois deles, as construções da fazenda de um bei e, mais adiante ainda, um moinho. O local fica exatamente junto das árvores. Para que as tumbas que cavamos pudessem ser encontradas mais facilmente, nós as dispusemos em forma de V, com a ponta virada para o mar. Cinco de um lado, cinco de outro e na ponta o adjunto do tenente.”

— Diga-lhe para ir na direção dos choupos — disse o general.

O padre traduziu para o chofer. Quando desceram do carro, o vento balançava as grandes árvores. O padre, à frente do grupo, foi o primeiro a se dirigir ao local das tumbas. Já estava caminhando quando ouviu de repente alguém dar um grito de surpresa.

— O que está acontecendo? — perguntou o general ao alcançá-lo.

— Olhe — disse o padre —, olhe lá.

O general voltou os olhos para o local que lhe indicaram. — O que significa isso? — disse ele com raiva.

Junto aos choupos estavam dispostas duas fileiras de tumbas abertas, reunidas na ponta em forma de V. Aparentemente, as fossas tinham sido cavadas uma ou duas semanas antes, pois as últimas chuvas as tinham deixado com água até o meio.

— Não estou entendendo nada — disse o padre. — Alguém veio abrir estas tumbas antes de nós — disse o general, com a voz trêmula.

— Aí está o perito — disse o padre. — Vejamos o que ele tem a dizer.

— O que está acontecendo? — perguntou o perito, aproximando-se também.

O general, sem dizer nada, mostrou-lhe as fossas. O perito olhou-as por um instante e depois encolheu os ombros.

— Que estranho! — disse em voz baixa.

— Foram abertas sem nossa autorização, à nossa revelia — disse o padre. — O que tem a nos dizer?

O perito levantou os ombros novamente.

— Quando vão cessar essas provocações? — reclamou o general. — Vou relatar imediatamente o caso às autoridades.

— Nada posso lhe dizer de imediato — disse o perito. — Mas espero esclarecer tudo o mais breve possível. Queiram ter um pouco de paciência.

— Faça o favor! — disse o general, furioso.

Os operários e os dois motoristas, que também tinham se aproximado, olhavam para a terra, estupefatos.

— Nunca nos aconteceu nada parecido — disse o mais velho dos dois.

O perito contou as fossas pela segunda vez, passando o mapa de uma mão para a outra.

— Escute — disse, virando-se para o motorista —, pegue seu caminhão e vá até a fazenda. Traga alguém de lá, qualquer pessoa serve. Diga-lhes que somos da Presidência do Conselho e que é para tratar de uma questão importante.

— Entendido — disse o motorista.

— Vamos ver se o pessoal da fazenda tem alguma coisa para contar — disse o perito.

— Nunca poderia esperar uma coisa dessas — disse o general com uma expressão aborrecida. — É uma grave provocação. As leis internacionais devem ser respeitadas por todos.

— Por enquanto não posso lhe dizer nada — repetiu o perito. — Tudo o que posso lhe garantir é que se alguém ousou cometer um ato desses com intenção insultuosa, vai ser punido segundo nossas leis.

— Não importa qual tenha sido a intenção — disse o padre —, continuará sendo uma grave profanação.

— Não vou deixar este caso passar em branco — insistiu o general. — Era quase certo que eu acabaria sendo objeto de provocações, mas nunca poderia imaginar que chegariam a esse ponto.

— Você não foi objeto de nenhuma provocação — disse o perito.

— E isso, e isto o que é? — Com a mão trêmula, o general lhe mostrava as fossas.

— Vamos resolver isso imediatamente. Enquanto isso, os operários, em pé diante das fossas, espantavam-se com aquela inusitada disposição.

— É a primeira vez que nos deparamos com um cemitério assim, em forma de V.

— Esquisito!

— É com esta formação que as cegonhas voam — disse o velho operário. — Nunca as viram no outono?

Ouviu-se ao longe o motor do caminhão voltando. Havia alguém na cabine ao lado do motorista.

— Faço votos de que agora tudo se esclareça — disse o perito.


O chofer desceu e veio abrir a porta do lado do desconhecido. Tão logo pisou no chão, ele olhou para todos atentamente, um por um.

— Você trabalha nesta fazenda? — perguntou-lhe o perito.

— Sim.

— Há muito tempo?

— Sim, muito.

— Sabe alguma coisa sobre estas tumbas de soldados?

O homem lançou um olhar para as fossas abertas. — O que todo mundo aqui sabe — disse.

— Ou seja?

— Que são tumbas de soldados estrangeiros e que há mais de vinte anos elas estão aí.

— Como se explica então que...

— Vieram abrir faz uns dez dias.

— É justamente o que estamos querendo saber — disse o perito. — Quem foi que abriu há dez dias?

O homem novamente passeou o olhar pelos operários, o general, o padre, depois pelos veículos.

— Você viu com seus próprios olhos os que abriram estas tumbas? — perguntou de novo o perito.

O outro parecia hesitar em responder. Depois, de uma vez só, declarou: — Vocês estão brincando comigo?

— Como? O que você está querendo dizer?

— Você sabe melhor do que eu.

O perito fez um gesto de espanto. Todos em volta tinham se calado, estarrecidos. Só se ouvia o farfalhar dos choupos.

— Por favor, poderia nos dizer simplesmente quem abriu estas tumbas há dez dias?

O homem da fazenda lançou ao perito um olhar furioso.

— Ora, mas foram vocês que abriram! — disse com um tom seco.

O perito sentiu o suor brotando na testa.

— Todos vocês — prosseguiu o outro —, e mostrou com o dedo os operários dos serviços municipais, o general, o padre e os motoristas.

Todos se entreolharam, confusos.

— Foi difícil tirar de lá esse aí? — disse alguém em voz baixa ao motorista do caminhão.

— Escute — disse o perito dirigindo-se ao homem da fazenda —, não é que você tenha alguma coisa a ver...

— Chega! Não me venha com histórias! — interrompeu o outro com os olhos faiscando de raiva. — Se está pensando que pode me enrolar, está muito enganado! Você acha que só porque tem instrução pode ficar me fazendo de bobo?

Ele lançou ao perito um olhar cheio de desprezo e, virando-lhe as costas, começou a andar de volta para a fazenda.

O velho operário gritou: — Espere um pouco, camarada!

— Ei, você aí! Espere! — chamou o motorista do caminhão.

— Vocês deviam ter vergonha — bradou o homem da fazenda, virando-se. — Acham que as pessoas são imbecis? Estão achando por acaso que não foram vistos quando vieram há dez dias, e vocês mesmos começaram a cavar da manhã à noite?

— Só nos faltava essa — falou o padre à meia-voz.

— Quem? Nós quem?

— Sim, vocês, quem mais poderia ser? Vocês estavam aí com o mesmo carro verde e esse caminhão com um toldo.

— Ah! Mas espere um pouco — disse de repente o perito. — Você estava exatamente aqui quando essas escavações ocorreram?

— Não, mas vimos de longe.

O perito balançou a cabeça. — Acho que agora estou entendendo — disse.

— Sim, seguramente devem ser os outros. Que confusão!

— O que aconteceu afinal?

— Aquele general de braço amputado e seu acompanhante devem ter passado por aqui antes de nós.

— Então teriam sido eles que fizeram isso?

— Pessoalmente, tenho certeza. Não pode haver outra explicação.

O homem da fazenda, gesticulando muito, falava aos operários e motoristas.

— Como é possível? — disse o general.

— Eles não têm nem mapas, nem indicações precisas. Talvez tenham achado que essas tumbas eram dos deles!

— De todo modo, eles podiam ter interrogado os habitantes. Além do mais, há os medalhões — disse o padre.

— É justamente o que me espanta — disse o perito mordendo o lábio inferior.

— É uma grave profanação — disse o general.

— Não é a primeira vez que isso acontece com eles — retomou o perito. — Em Tirana alguém me contou que eles tinham aberto por engano, em algum lugar do sul, duas tumbas de balistas e que num outro local tinham começado a escavar num velho cemitério muçulmano.

— E levaram os restos?

— Sim, claro.

— É fantástico — disse o general. — Será que essa gente está em seu juízo perfeito? O que os leva a agir dessa maneira?

— Talvez tenham um motivo — disse o perito com um ar pensativo. — Eu tenho uma dúvida.

— Qual?

O perito hesitou em responder. — Você suspeita de uma fraude da parte deles? — disse o padre.

O perito sorriu. — Não posso acrescentar nada, desculpem.

— Talvez tenham feito tamanha confusão no trabalho deles que, não achando mais nada, decidiram pilhar as primeiras tumbas que encontraram pelo caminho.

— Eles mesmos nos confessaram que estão procurando no escuro.

— Se são capazes de fazer isso, não se pode mais considerá-los representantes governamentais encarregados de uma missão mas, sim, simples aventureiros — disse o general com raiva.

— E o mais grave é que esses restos que eles recolhem são imediatamente expedidos — disse o perito.

— Está querendo dizer que não poderemos recuperar deles essas onze tumbas?

— Vai ser difícil, se as cinzas já tiverem sido expedidas. — Em outras palavras, os restos dos soldados vão ser distribuídos a famílias estrangeiras em vez de entregues às famílias certas! — bradou o general. — É de enlouquecer!

— Tudo leva a crer que eles já tomaram as providências — disse o padre —, deve ser por isso que eles têm tanta pressa de expedir as cinzas que recolhem.

— E quando não descobrem as deles, passam a mão em tudo que vão encontrando. Bonito!

O general estava furibundo. — Vamos embora — disse depressa. — Não temos mais nada para fazer aqui.

Subiram nos veículos e pegaram a estrada que levava ao mar, na direção em que apontava o pequeno cemitério em forma de V.


XVI

A costa estava triste e deserta. Fortificações de cimento armado emergiam da areia úmida, e mais atrás, quase junto das falésias rochosas, avistavam-se outras, mais imponentes.

Os operários dos serviços municipais estavam ocupados em retirar as estacas das barracas, e estranhas marcas permaneceram na areia endurecida pelas águas ao removerem a primeira; parecia que um animal de garras enormes tinha revirado o solo naquele lugar.

A primeira barraca foi dobrada e atirada no caminhão, dentro das grandes caixas, e eles começaram a retirar as estacas da outra.

Um vento frio soprava do mar. O general olhou na direção do norte, do lado onde apareciam por trás das casamatas os primeiros casarões da praia, as pequenas estações da estrada de ferro do verão e a serie de casas de repouso e de grandes hotéis, a maior parte fechada naquela estação.

O padre e ele tinham vindo recolher os restos dos soldados de seu país tombados no primeiro dia da guerra. Durante toda a semana, nada tinham feito senão correr ao longo da costa, parando nos diversos pontos de desembarque, pois cada um desses pontos tinha seu próprio cemitério.

Ele se lembrava muito bem daquele primeiro dia da guerra, na primavera de 1939.8

Na época, ele se encontrava na Africa. Naquela noite, o rádio anunciara a notícia: as tropas fascistas, dizia a voz, tinham desembarcado na Albânia e o povo albanês havia acolhido pacificamente, até com flores, as gloriosas divisões que lhe traziam a civilização e o bem-estar.

Depois os primeiros jornais começaram a chegar, seguidos de revistas cheias de fotos e reportagens sobre o desembarque. Descreviam a esplêndida primavera daquele ano, o mar e o céu radiosos da Albânia, as praias, o horizonte tão límpido, o amor dos albaneses, os costumes e as graciosas danças populares do país. Não passava um dia sem que os jornais e as revistas não falassem desse país, e à noite os soldados sonhavam em ser transferidos para a Albânia, para aquela costa tão pacífica à sombra das oliveiras eternas.

O general se lembrava que, naquela época, também teve vontade de ser designado para a Albânia, mas ficou doente e permaneceu em seu país ao voltar da África.

"Mesmo assim", disse consigo, "o destino também reservou para mim uma participação nessa guerra, só que bem mais tarde. É agora que tenho de fazê-la, neste terreno tão difícil, num tempo em que o mundo inteiro está em paz."

Os operários estavam terminando de dobrar a segunda tenda quando o general entrou no carro. O padre o seguiu.

— Eles terminaram? — perguntou o general.

— Acho que sim.

— Então vamos embora!

O carro arrancou lentamente. Ouviu-se o ronco do motor do caminhão. O motorista do carro botou a cabeça para fora da janela para olhar para trás. O motor do caminhão funcionava ora normalmente, ora em baixa rotação; e de repente, parou.

— Parece que não quer arrancar — disse o motorista, freando. — Vou ver se posso ajudá-los.

O general também botou a cabeça para fora e avistou os operários tentando empurrar o caminhão e o motorista do carro correndo até eles. O veículo avançava penosamente, os operários continuavam a empurrar e dava para ouvi-los gritar de vez em quando: "Vamos! Força!" Instantes depois o caminhão ultrapassou o automóvel. Os operários continuavam a empurrar, soltando gritos de encorajamento. Seus pés deslizavam na areia e o general viu, durante um segundo, o esforço estampado em seus rostos suados e nos músculos tensos dos braços e das costas coladas na carroceria. As grandes caixas e o monte de pás e picaretas sacolejavam, como sempre, na parte de trás.

— É a primeira vez que esse caminhão tem problema com o motor — disse o general.

— É verdade, deve ser por causa do frio — respondeu o padre. — Faz dois dias e duas noites que não saem do lugar. E não parou de ventar.

— Não há nada pior do que um carro enguiçado.

O padre se calou. De repente se ouviu o ronco do motor que havia recomeçado a funcionar. O motorista do carro, coberto de suor, voltou correndo.

— Droga de caminhão! Foi difícil fazer pegar!

Pouco depois o carro ultrapassou o caminhão de novo e o general avistou os operários sacolejando em cima das grandes caixas, com seus cigarros na boca.

Passaram diante dos casarões da praia que agora pareciam frios e tristes com suas persianas baixadas, e ao longo das construções modernas dos hotéis e dos restaurantes de verão, fechados há muito tempo. Os terraços dos estabelecimentos balneários projetavam-se para o mar, com suas mesas e cadeiras arrumadas em pilhas altas num canto, vestígios abandonados do verão.

— Deve ser bem agradável aqui no verão — disse o general.

— Também tenho essa impressão. Mas também acho que não deve ser tão alegre, sobretudo para as mulheres, tomar banho de mar e passear nas proximidades dessas fortificações.

O general olhou atentamente. — Eu creio que a despeito da modernização dos meios de defesa, parte dessas fortificações ainda conserva hoje em dia sua importância militar.

— Os albaneses gostam de repetir que seu país é uma cidadela às margens do Adriático — disse o padre.

O general se virou para o lado do litoral. — Você me falou que o mar só trouxe infelicidade aos albaneses e que é por isso que eles não gostam dele.

— Exatamente — disse o padre. — Os albaneses são como esses animais que têm medo de água. Eles gostam de se pendurar nos rochedos e nas montanhas. É lá que se sentem em segurança.

A estrada se afastava cada vez mais da linha desenhada pela costa, e agora as pequenas estações de trem de verão e as esparsas casas brancas tinham se escondido de suas vistas.

— Dos soldados mortos no primeiro dia da guerra, só nos falta um, o último, para procurar no litoral.

— Que estranho. Por que será que ele ficou separado, só ele, longe dos outros?

— Quem pode saber o que se passou — disse o general tirando um mapa da sacola. — É aqui o local em que ele deve estar — e fez uma marca com lápis vermelho no mapa.

— Acho que vamos chegar lá em uma hora.

— Talvez antes. Depois do que, terminamos.

— Fora algumas buscas isoladas, temos só mais uma excursão nesta região — disse o padre.

— Sim, em uma área não muito alta da montanha. Ainda assim, é uma excursão difícil.

— Pouco importa — disse o padre. — O importante é que esse trabalho chegue ao fim o mais cedo possível.

— Está louco para chegar em casa?

— Claro. Você não?

— Eu não penso em outra coisa — disse o general. — Mal contenho minha impaciência. Mas ainda é muito cedo para falar disso. Ainda nem completamos a quarta parte da tarefa.

— É verdade.

O general suspirou. — Ainda é muito cedo — repetiu —, muito cedo.

O padre aquiesceu.

"Você não está mais aguentando. Tem gente esperando-o", pensou o general.

— Faz muito tempo que não os vemos — retomou em voz alta.

— Quem?

— O outro general e o prefeito dele.

— Sabe o bom Deus onde estarão fazendo as escavações.

— Seguramente em algum outro estádio, a menos que não seja em alguma avenida. Tenho a impressão de que o trabalho deles não vai muito bem.

— Da maneira como se dedicam, não creio que consigam deixar este país antes de uns dois anos.

— É problema deles — disse o general. — Para nós, o que importa é que não subtraiam mais nenhum dos nossos.

Ficaram em silêncio todo o resto do trajeto.


O mosteiro em que estavam indo procurar a tumba do soldado isolado situava-se no alto de uma pequena colina bem acima do ponto em que a estrada se bifurcava; ela seguia de um lado rumo norte e, do outro, à esquerda, margeando o litoral.

Eles desceram do carro e começaram a subir o morro. O general conduzia o pequeno grupo, o padre e o perito vinham logo depois; atrás deles os operários dos serviços municipais, com suas ferramentas às costas, fechavam a marcha. Os dois motoristas se sentaram cada um sobre uma pedra na beira da estrada e acenderam um cigarro.

Diante da construção do mosteiro destacavam-se alguns túmulos imponentes, antigas sepulturas dominadas por grandes cruzes com inscrições em latim. O velho pórtico estava fechado. Sobre uma pedra embutida acima da entrada estavam gravadas as palavras Societas Jesus.

O perito albanês bateu várias vezes até que se ouviram passos vindos do interior. Um monge de cabelos brancos, num hábito preto e com um capuz triangular sobre a cabeça apareceu na soleira.

— Bom dia, meu pai — disse o perito.

— Bom dia — respondeu o monge.

— Está aqui a tumba de um soldado estrangeiro morto em 1939. Viemos exumar seus restos.

O velho monge estudou-os um por um, o general, o padre e os operários com suas picaretas sempre nos ombros.

— Temos uma ordem escrita do governo e a autorização do arcebispo — disse o perito, tirando os documentos da sua carteira.

O monge baixou os olhos cinzentos com pálpebras inferiores inchadas por pequenas bolsas e se pôs a ler os papéis, mexendo os lábios como se estivesse mastigando alguma coisa.

— Muito bem — disse. — Sigam-me. Vou conduzi-los imediatamente.

Eles seguiram seus passos ao longo do muro até os fundos do mosteiro, onde se elevava a igreja.

— Chegamos. É essa tumba aí — disse o monge.

Era uma sepultura modesta. Na extremidade, uma cruz de pedra e um capacete. O verniz do capacete estava corroído há muito tempo, os lados estavam enfiados na terra e, com toda certeza, na primavera, quando crescia a grama fresca, ele devia ficar encoberto pelo mato.

Um dos operários o arrancou do chão com a pá. Outros dois começaram a retirar a cruz, enquanto os dois últimos já começavam a cavar.

— Por que essa tumba está isolada, longe das outras? — perguntou o general.

— É que esse soldado foi morto em circunstâncias singulares por um homem chamado Nik Martini — disse o velho monge com sua voz profunda, abafada.

Ao ouvir o ancião pronunciar o nome de Nik Martini, o general lançou ao padre um olhar interrogador.

— Um montanhês desconhecido — explicou o padre. — Eu vi com meus próprios olhos quando ele foi atingido. Nik atirava daquela colina lá em cima.

Eles se viraram e seus olhos se detiveram sobre um ponto alto que, abrupto como um torreão, erguia-se além da estrada.

— Houve algum recrutamento por estes lados? — perguntou o general.

— Não — respondeu o monge. — Essa região, daqui até o mar, é desabitada e ninguém poderia imaginar que desembarcariam tropas tão perto de nós.

— A que distância estamos da costa?

— A dez quilômetros — disse o ancião. — Provavelmente o desembarque foi feito no maior silêncio. Ninguém podia imaginar que tropas se instalariam nesse local perdido. Nik Martini foi o único a saber e só Deus sabe de que fonte obteve a informação.

— Mas quem era esse homem?

— Um montanhês, um simples montanhês — disse o monge, falando em tom monocórdio, como se repetisse maquinalmente palavras sabidas de cor. — Naquele dia, eu o avistei vindo de longe pelo calçamento. Ele andava com o fuzil no ombro e, como nós nos conhecíamos, fui a seu encontro. "Aonde você vai, Nik?", gritei-lhe. "Vou lutar", me respondeu. "Sozinho?" "É, sozinho." Eu quis impedi-lo e, descendo para a estrada, me postei diante dele e disse me persignando: "Paz às criaturas do Senhor!" Ele me lançou um olhar furioso e fez um gesto com a mão como se fosse pegar o fuzil. "Saia do meu caminho, padre!", me disse em tom ameaçador. Depois voltou os olhos para o campanário e, sem uma palavra, se dirigiu ao mosteiro. Eu o segui. Nós dois trepamos no alto do campanário de onde se descortinava a costa; ela formigava de tropas. "Eles desembarcaram." Eu lhe disse: "Volte para casa, Nik!" "Não, não vou voltar!", respondeu, e começou a arquejar como uma fera. Ele desceu novamente. Eu o vi chegar rapidamente até a estrada e começar a subir até uma elevação do terreno.

— E depois, ele lutou sozinho? — perguntou o general.

— Sim, sozinho. Metralhou durante mais de uma hora. Ele atirava raramente, e suas balas assobiavam no ar a longos intervalos. A estrada estava negra de tropas, e ele atirava, atirava sempre. Não havia meio de desalojá-lo de lá, até que um obus de morteiro o atingiu.

— Foi então que o mataram?

— Não, isso foi o que nós pensamos de início, quando seu fuzil se calou. Contudo, mais tarde ficamos sabendo que ele reapareceu dez quilômetros mais longe, sobre uma outra saliência de terreno, e que ainda lutou durante uma hora.

— Posso bem acreditar — disse o general. — Uma posição como esta é virtualmente inexpugnável. Dá para sustentar um dia inteiro se não for desalojado pela artilharia.

— Eles bem que tentaram escalá-la — disse o monge —, e foi justamente nessas tentativas que esse soldado foi morto. Das janelas do mosteiro nós seguíamos com os olhos os vãos esforços dos soldados para subir. Mais tarde, depois de transportar para cá o camarada morto envolvido no capote e enterrá-lo, decidiram bombardear a posição com tiros de morteiro.

— E o montanhês, conseguiu se safar? — perguntou o general.

— Nik Martini? — O velho monge ergueu seus olhos cinzentos de expressão enigmática para as colinas. — Não — respondeu —, ele morreu. Nesse dia ele lutou em quatro locais, até o limite extremo de suas forças. Contam que, tendo esgotado seus cartuchos e vendo que os caminhões de soldados estavam indo para Tirana, ele teria dado um uivo, como os montanheses têm costume de fazer quando são atingidos pelo luto de um parente. Cercado de todos os lados, ele foi despedaçado a golpes de punhal.

Fez-se silêncio por alguns segundos. — Nik Martini não tem túmulo — disse o velho monge, acreditando que talvez os visitantes também estivessem procurando a sepultura do montanhês. — Nem vestígio, nem cruz, apenas uma canção que lembra sua história.


— É surpreendente — disse uma hora mais tarde o general, quando estavam indo para Tirana — que um único homem possa ter cogitado lutar contra um exército inteiro.

— Eles consideram uma honra combater isolados — replicou o padre. — É uma antiga tradição deles.

O general acendeu um cigarro e suspirou: — Mais um dia de uma guerra revivida!

O padre nada disse. Ele olhava os campos que se estendiam dos dois lados da estrada. Os ventos do inverno já varriam tudo. Alguns quilômetros adiante, o Adriático reapareceu, à direita desta vez, imponente em sua imensidão.

Pequenas colinas de topo arredondado projetavam-se sobre a orla; viam-se sobre suas vertentes, tumbas esparsas de albaneses mortos no primeiro dia da guerra.


Através de conversas esparsas e de fontes diversas, o general ficou sabendo o que aconteceu naqueles dias sobre as costas dos dois mares que banham a Albânia. Contaram-lhe como a notícia havia se espalhado por todas as regiões e que, de todos os cantos do país, homens em grupos de cinco, de dez, de vinte, com o fuzil nas costas, saíram para lutar. Eles vieram de longe sem que ninguém os tivesse organizado, atravessando montanhas e vales; em seu comportamento havia qualquer coisa de antigo, de muito antigo, que talvez lhes tivesse sido legado como um instinto, de uma geração para outra desde os tempos das lendas de Gjergj Elez Alija; elas diziam que o mal, tal qual um monstro, sempre emergia do mar, sendo preciso exterminá-lo enquanto ainda estava na margem, para impedi-lo de penetrar no interior das terras. Era um sentimento de alerta muito velho que se revelava neles, um temor antigo diante das águas azuis e, de forma mais geral, em relação a todas as regiões planas, que era de onde o mal sempre surgia; e, no mesmo momento em que esses homens — que desceram de suas montanhas para se unir aos restos do exército real ainda em luta — aspiravam o ar do mar e depois o avistavam, imenso, diante deles, já experimentavam um sentimento de perigo, acreditando ouvir no rugido das ondas os sons de uma música guerreira.

E foi assim que, naquele dia, dezenas de guerrilheiros desceram das montanhas. Em suas fileiras havia homens de chapéu de feltro e óculos misturados a montanheses muito altos, montanheses que ainda levavam uma vida patriarcal e que, possivelmente, não se preocupavam em saber qual era o país que os estava atacando nem o inimigo contra o qual iam lutar, pois isso para eles não tinha importância. O essencial era que o mal estava vindo do mar e que era preciso fazê-lo retroceder. Muitos não haviam visto o mar até então e, quando o Adriático surgiu na sua frente, é provável que tenham exclamado: "Como é bonito!" Talvez nem acreditassem que o mal pudesse estar vindo de lá. Em seguida olharam com indiferença o burburinho dos cruzadores ao largo, com seus canhões gigantescos apontados para a costa, os aviões voando baixo, as lanchas de desembarque. Sem mais esperar começaram o combate, como prescreviam seus costumes, e foram tombando, uns mais cedo, outros mais tarde.

Depois, quando o dia já estava terminando, chegaram os retardatários, vindos das regiões mais remotas das montanhas. No estado em que se encontravam, extenuados, exaustos da longa marcha, atiraram-se por sua vez na batalha, ao sol poente, na hora em que os invasores colocavam em ação poderosas bombas para lavar as ruas de Durres do sangue que as fazia brilhar sob os últimos raios.

Os montanheses continuaram a chegar até a noite cair. Alguns vinham sozinhos, e sua silhueta encimada por um fuzil se recortava no alto das colinas. Quando os projetores os descobriam em seus postos de emboscada, eles eram atirados ao chão, ceifados pelas metralhadoras, e permaneciam deitados com a barriga para baixo até de manhã, com os cabelos úmidos de orvalho.

No dia seguinte foram enterrados no local onde caíram e, nessa primavera, suas tumbas surgiram em todos os lugares, como se fossem incontáveis ovelhas espalhadas sobre as colinas que se elevam diante do mar. Nunca se soube seus nomes nem a região de onde vieram. Só os montanheses os reconheceram por seus trajes. Alguns tinham vindo dos longínquos Alpes do Norte, dos territórios onde a família inteira se veste de preto em caso de luto e cobre com um pano preto até a fria e triste sepultura de pedra do morto, para em seguida lhe dedicar um canto. E, desta vez, com toda certeza, os cantos devem ter evocado o mar, longínquo e pérfido.

 

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8 As tropas italianas de Mussolini invadiram a Albânia em 7 de abril de 1939.


Segunda Parte


A primavera voltou, depois foi embora. A vegetação cresceu na terra estrangeira. Cobriu as colinas, brotou nas encostas dos vales e invadiu obstinadamente as estreitas bandas de terra do acostamento das estradas.

Durante toda a primavera o general, o padre e o grupo de escavadores dos serviços municipais correram montes e vales, de região em região. O verão chegou, mas como suas buscas não se haviam mostrado muito produtivas, permitiram-se apenas 15 dias de descanso. Nos meses mais quentes eles exploraram os Alpes do Norte, e depois, tão logo o tempo refrescou um pouco, desceram para as planícies e retomaram suas escavações em algumas regiões que já haviam visitado antes.

O mês de outubro surpreendeu-os de novo nas estradas da Albânia. O tempo ficou ruim de repente e, uma vez mais, o horizonte se encheu de roncos de trovão.

Aquela triste peregrinação se prolongava além de suas previsões. Na conferência de imprensa que o general dera em seu país, no verão, antes de sua segunda partida para a Albânia, os jornalistas lhe haviam feito uma série de perguntas embaraçosas sobre o tempo que ainda seria necessário para completar a missão. Ele havia lhes respondido laconicamente, às vezes com um nervosismo aparente, às vezes com um tom desdenhoso, como para lhes dizer: "Então experimentem vocês, seus valentões, fazer o trabalho que estou fazendo."

O general tinha cada vez mais a impressão de que sua vida se reduzira a uma interminável sucessão de cruzamentos de estradas inundadas e estrangeiras. Viajando por esses caminhos, voltavam-lhe mais e mais à memória fragmentos de longas conversas e enfadonhas recomendações. Todas essas reminiscências lhe atormentavam o espírito, adquirindo a forma de uma coisa torta e monótona. Elas lhe provocavam o efeito de uma escrita inclinada, cujas letras estivessem sendo empurradas para um lado, quase a ponto de desabar com o rosto contra a terra.


XVII

“Habitualmente, nós passávamos o dia todo fumando, apoiados no parapeito da ponte ou sentados na pequena barraca de madeira sobre a qual se lia, acima da porta, as palavras CAFÉ — REFRESCOS, escritas em letras enviesadas pelo proprietário. Nós éramos seis a montar guarda na ponte. Por ali passava uma estrada estratégica construída pelos austríacos durante a Primeira Guerra Mundial e há muito tempo desativada. Tínhamos chegado àquele lugar poucos dias depois da reativação da estrada e da ponte. Os soldados que as haviam restaurado, haviam ao mesmo tempo construído uma casamata e uma pequena caserna. Tudo estava pronto para nós quando chegamos. Tínhamos colocado uma metralhadora pesada dentro da casamata e ficado com uma leve dentro da caserna, para qualquer eventualidade.

A região em volta era triste e deserta. Apenas terras incultas, com pequenas pedras espalhadas e uma árvore aqui e ali. Era um vilarejo bem pequeno, no máximo umas dez casas, estranhas casas de pedra em cujas paredes, no lugar de janelas, abriam-se pequenas seteiras estreitas, parecidas com as do nosso abrigo.

No começo morríamos de tédio. Os veículos militares só passavam raramente e os aldeões demonstravam uma atitude hostil em relação a nós. Durante o dia inteiro não fazíamos outra coisa senão ir e vir ao longo da amurada e brincar de jogar pedrinhas dentro do riacho. À noite montávamos guarda.

Mas um belo dia, pelo caminho da montanha, vimos chegar um homem conduzindo três mulas carregadas de tábuas, caixas e rolos de papelão. Era um mascate que vinha da cidade vizinha. Em dois dias ele ergueu uma barraca bem perto da ponte e pintou de preto, bem em cima da entrada, as palavras "Café — Refrescos': A partir desse dia nós nos tornamos seus fregueses assíduos. Embora só tivesse escrito em cima da porta as palavras "café" e "refrescos, ele vendia na verdade raia e um vinho ruim. Vez por outra os militares que passavam de caminhão paravam diante da barraca para beber alguma coisa; podia-se dizer que o barzinho animara, um pouco que fosse, aquele triste local. As vezes os aldeões também vinham beber. Mas não era o raia do proprietário que os atraía e menos ainda seu vinho vagabundo. Eles tinham uma outra intenção. Vinham trocar seus ovos por cartuchos. Era absolutamente proibido, mas nós fazíamos mesmo assim. À noite, enquanto montávamos guarda, dávamos uma série de tiros para o ar e no dia seguinte pretendíamos haver consumido o dobro dos cartuchos realmente queimados. E as munições assim poupadas eram trocadas pelos ovos.

Mas essas salvas noturnas foram um sinistro augúrio. A verdade é que nós mesmos atraímos o mal. No final de algum tempo, os milicianos começaram efetivamente a nos assediar. Se não fosse a casamata, teríamos sido rapidamente liquidados.

O primeiro dos nossos foi morto sobre a ponte enquanto estava de guarda, uma noite. Os milicianos, ao que parece, tinham tentado explodir a ponte, mas nossa sentinela impediu ao dar o alarme. De manhã nós o encontramos morto junto do parapeito. Estava deitado com uma pose estranha, de boca aberta. Você viu o filme A morte de um ciclista? Pois bem, eu, quando vi, quase dei um grito em plena sala. Aquele corpo, na tela, se parecia muito com essa visão gravada na minha cabeça.

Mal tinham se passado 15 dias e foi a vez do segundo. As circunstâncias foram por assim dizer idênticas. Suspeitávamos que eram os próprios aldeões que atiravam em nós, mas não tínhamos nenhuma prova. Naquele momento, não trocávamos mais nossos cartuchos. Mas já era tarde demais.

Como um terceiro dos nossos homens foi morto, decidimos não mais montar guarda sobre a ponte. Foram enviados reforços para completar nossas perdas e, ao mesmo tempo, recebemos um holofote que foi instalado dentro da casamata; e a ponte passou a ser iluminada a intervalos. Com suas centenas de vigas de ferro negras entrecruzadas que lhe davam o aspecto de uma assustadora centopeia, ela parecia sinistra e assustadora. Às vezes, no meio da noite, eu a olhava se recortar na luz crua e esbranquiçada, e tinha o pressentimento de que ela iria nos engolir a todos, um por um.

Os milicianos continuavam a nos perseguir sem trégua. O quarto dos nossos homens foi morto na mesma noite em que fui ferido. Não me lembro de mais nada, pois fui atingido logo nos primeiros segundos do ataque. Quando recuperei os sentidos, me dei conta de que me haviam posto sobre uma mula que avançava lentamente sobre a ponte. As tábuas estalavam estranhamente sob os ferros. Era de manhã, uma manhã cinza de inverno. Meu olhar atordoado se fixava nas inúmeras cavilhas que desfilavam bem perto de meus olhos, e eu sentia o coração apertado sob ação de alguma coisa pesada e fria, uma sensação que me marcaria para sempre.

Quando a mula saiu da ponte e começou a andar lentamente pela estrada, eu virei com muito esforço a cabeça e olhei pela última vez a casamata, as tristes casas dos aldeões espalhadas pelo planalto, as tumbas de nossos camaradas junto da ponte (a última cova ainda não tinha sido aberta) e a barraca de madeira, bem perto dali, com sua inscrição reles: CAFÉ — REFRESCOS

O general fumava, sentado sobre um bloco de concreto. Embaixo, junto da ponte, os operários procuravam dentro dos espaços deixados pelos grandes blocos quebrados, espalhados por todos os lados, entre os pedaços retorcidos de ferragem enferrujada. A nova ponte havia sido reconstruída algumas centenas de metros mais embaixo, no local onde desembocava a nova estrada, a pouca distância de uma fábrica de azeite. A antiga estrada estava agora cheia de arbustos e de mato.

"A deflagração deve ter sido terrível", disse consigo mesmo o general. A ponte tinha sido cortada em duas e os pesados blocos de concreto tinham voado em pedaços até a casamata e mais longe ainda, até a estrada desativada. Perto da ponte erguia-se ainda a velha barraca de madeira e, em cima da porta, ainda dava para ler as palavras CAFÉ — REFRESCOS. Quando chegaram, na semana anterior, a barraca, bem como a ponte, a casamata e uma parte do calçamento estavam semidestruídas. O papelão que lhe servira de teto estava rasgado em alguns lugares, numerosas pranchas haviam sido arrancadas e boa parte das que ainda se sustentavam estavam podres. Mas, dois dias mais tarde, chegou um vendedor ambulante da NTLUS.9

Ele trouxe cigarros, conhaque e um fogareiro para preparar café. Foi uma sorte inesperada para todo mundo, pois além dos cinco operários habituais, outros sete haviam sido contratados provisoriamente, e todos esses homens, sem contar o motorista, o perito, o padre e o general, iriam passar ali duas longas e cansativas semanas. O vendedor pregou algumas tábuas em dois ou três lugares e segurou com grandes pedras os pedaços de papelão alcatroado para impedir que o vento os levantasse, e em seguida se instalou na velha barraca.

O barzinho trouxe alguma animação ao local. De manhã, os operários tomavam ali o seu café ou um copinho de conhaque antes de começar a trabalhar. Durante o dia, os aldeões ficavam passeando em volta, olhando durante horas inteiras os escavadores trabalhar.

E, exatamente naquele instante, o general estava observando dois deles que pareciam estar explicando alguma coisa ao velho operário, indicando-lhe com a mão um ponto, em algum lugar junto da ponte.

"Quem sabe qual deles teria atirado nas sentinelas?", perguntava-se o general cada vez que aldeões vinham se misturar aos operários ou comprar cigarros na barraca. Já fazia uma semana que estavam lá e ele agora conhecia alguns de vista.

As buscas continuavam do lado de cá da ponte, no nível da estrada, e também junto dos pilares. Apenas as sentinelas haviam sido enterradas embaixo da ponte, pois a maior parte das sepulturas estava localizada nas laterais da estrada, uma atrás da outra, em um terreno cheio de pedaços de ferragens e restos de veículos incendiados. O local parecia de fato propício a emboscadas contra as colunas motorizadas. E tudo isso acontecera antes de os milicianos terem explodido a ponte.

O padre e o perito galgaram o talude. O perito foi até a barraca; o padre foi encontrar o general.

— E então? — perguntou ele.

— Vai tudo bem.

— Corresponde às indicações?

— Perfeitamente.

— Depois de amanhã, vai ser necessário começar nossas buscas do outro lado da ponte.

As gargantas dos morros circundantes estavam envoltas no nevoeiro.

— Tempo horroroso — diz o general.

O padre balançou a cabeça. — Os albaneses têm um provérbio — diz. — "Dentro de uma casa amiga, esquecemos o mau tempo."

— Então não temos a menor chance — diz o general —, ninguém vai nos abrir a porta neste país.

O padre começou a tossir. — Estou com dor de garganta há dois dias.

— Não surpreende, com toda esta umidade.

— Eu devia tomar um remédio.

— Se o inverno for igual ao do ano passado, estaremos em maus lençóis.

— Vai fazer o mesmo tempo — diz o padre.

— Estamos aqui só há pouco mais de um ano, mas tenho a impressão de que passamos aqui a vida inteira.

— A maior parte do nosso trabalho já foi completada.

— Sim, mas quanto mais ele se prolonga, mais se torna deprimente.

— Existe uma "guerra relâmpago", mas aparentemente não existe uma "busca relâmpago".

— Quanto mais fulgurante é a guerra, mais longa a busca dos que tombaram nela. Estamos pregados nesta ponte e não conseguimos nos soltar dela. Não aguento mais essa paisagem.

— Não consigo entender por que os milicianos tanto quiseram destruir esta ponte, explodindo-a a qualquer preço — diz o padre.

— Era de fato uma excelente armadilha, pois, uma vez destruída a ponte, as colunas motorizadas tiveram que mudar de estrada, e nossos homens não foram mais uma presa assim tão fácil.

— Sim, se eles não a tivessem destruído, hoje teríamos provavelmente duas vezes mais tumbas e seríamos obrigados a ficar aqui não 15 dias apenas, mas um mês.

— Felizmente eles não desistiram. Não aguento esta paisagem, com esses aldeões que rondam por aí nos olhando exumar os mortos.

— Eles rondam, de fato — diz o padre. — Deve ser porque este trabalho lhes dá alguma satisfação.

— Eles conheciam as sentinelas da ponte. Foram vizinhos por muito tempo, trocavam seus ovos pelas balas, e seguramente foi um deles que atirou nas sentinelas.

— Ficam perambulando pelos locais do nosso trabalho como que se vangloriando de terem matado as sentinelas — diz o padre. — Você notou um deles, um velho de porte grave e bigode longo, que usa um revólver grande na cintura? Ele vem aqui todas as manhãs e fica desfilando entre os operários.

O general se lembrou. — Um que tem duas ou três medalhas pregadas no peito e anda com a cabeça levantada?

— Sim, é esse mesmo.

— De fato, já reparei nele. O perito me disse que o filho dele foi morto pelos nossos.

— Ah, sim?

— Ele dá a impressão de ser bem velho. Dizem que, ao tomar conhecimento de nossa chegada, pendurou na mesma hora as medalhas no peito, colocou o revólver na cintura e veio para cá rondar. E agora repete a cena todos os dias.

— Os operários albaneses também não escapam desses olhares de desprezo. Ontem, sequer dignou-se a responder ao perito que lhe pediu uma informação.

— É um velho fanático. Provavelmente deve achar que o perito e os operários são nossos aliados.

O padre tossiu discretamente.

— O que eu sei — diz o general em tom de confidência — é que temos que prever qualquer coisa. Eu desconfio desse tipo de psicopata. Nunca se sabe, eles podem ter um acesso, meter a mão na arma e sair atirando em pleno dia!

— É bem possível — diz o padre. — Pode-se esperar tudo de um tipo amalucado como esse aí. É preciso ser prudente.

Ouviu-se de novo o trovão roncar nas gargantas das montanhas próximas.

O general acendeu um cigarro. — Acho o interesse desses aldeões em nossas buscas mais ou menos compreensível — diz. — Um soldado que montou guarda nesta ponte me contou antes de nossa partida um episódio do tempo da guerra. Ainda agora, quando eu estava sentado lá adiante, eu me lembrei de suas palavras talvez pela décima vez.

— Nós lembramos os anos de guerra.

— É natural. Durante a guerra, este povoado viu seu destino ligado ao desta ponte. A proximidade desta construção lhe foi fatal. Depois de destruída a ponte, nossas unidades devastaram sem piedade e fizeram um massacre. Sem esta ponte, a vida neste vilarejo isolado do resto do mundo teria continuado tranquila, e os abalos da guerra não o teriam alcançado. Sim, mas a ponte estava lá e foi a causa de tudo. E eis que agora, sem mais nem menos, nós desembarcamos aqui e começamos a procurar os restos dos nossos soldados.

Era a hora do almoço e os escavadores pararam de trabalhar. O perito conversou alguns instantes com o velho operário antes de ir até o general e lhe dizer: — Duas das tumbas ficaram debaixo do grande bloco de concreto.

— E agora, como faremos?

— Vai ser necessário explodir os blocos com dinamite.

— Mas nós temos dinamite?

— Não, vamos ter que conseguir amanhã na localidade mais próxima.

Eles foram almoçar. Começou a chover à tarde. Os operários, reunidos dentro da barraca fria, toda enfumaçada, olhavam a chuva fina cair.

 

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9 Iniciais albanesas da empresa local que controla restaurantes, bares, vendas de bebidas, confeitarias etc.


XVIII

À noite, o velho operário caiu doente. Começou a se sentir mal durante a tarde, mas não deu importância. Por volta do final do dia, ficou pálido e quis se deitar. Todos pensaram que ele havia simplesmente se resfriado. Foi levado para a casa de um aldeão para se aquecer em frente à lareira. Mas, quando a noite chegou, seu estado se agravou.

Ainda não tinha amanhecido quando alguém arranhou a lona da tenda que abrigava o general e o padre. O general foi o primeiro a acordar.

— Tem alguém aí fora — disse ao padre.

Este se levantou e afastou a lona. Era o perito.

— Desculpe vir incomodá-lo a esta hora.

— Não faz mal. Mas o que aconteceu?

— Eu queria lhe perguntar se posso usar seu carro. Acho que hoje vocês não pensam em descer até a cidade.

— Não. Por que vocês estão precisando do carro?

— O chefe da equipe está passando muito mal. É preciso transportá-lo com urgência à cidade mais próxima.

O padre traduziu ao general as palavras do perito.

— Podem pegá-lo — falou o general.

— Obrigado.

O perito ia se afastando rapidamente, mas o padre o reteve: — O que ele tem? Ele não estava com a aparência boa já ontem à tarde.

— Não tenho ideia — diz o perito.

— Não teria se resfriado?

— Temo que seja uma infecção. Ele se feriu na mão direita.

— Uma infecção? — exclamou o general, levantando a cabeça, surpreso.

O perito saiu.

— O que poderá ser? — perguntou novamente o general.

— Também estou pensando numa infecção — diz o padre. — Ontem à tarde, a pele dele estava terrosa.

— Como ele pôde ter pegado isso?

— Talvez um botão de casaco enferrujado, um osso quebrado. Ontem eles abriram um monte de tumbas.

— Sim, mas ele conhece bem esse tipo de trabalho. É sempre ele que mostra aos outros como tomar cuidado.

— Vai ver não percebeu — diz o padre. — Talvez tivesse lama nas mãos e não notou o machucado.

— Devíamos tê-lo transportado para a cidade ontem mesmo de tarde.

— A estrada estava ruim e há muito tempo desativada. Não é uma viagem fácil, mesmo de dia.

— Mas apesar disso...

— Eles vão chegar a tempo, mesmo hoje. Não acho que deva ser uma coisa perigosa. Hoje em dia existem remédios muito poderosos contra as infecções.

O general meteu-se de novo debaixo de seu espesso cobertor de lã.

— Como está o tempo? — perguntou.

— Encoberto — respondeu o padre.


Quando eles saíram da tenda, alguns operários já estavam trabalhando. Faziam buracos nos blocos arrebentados para poder enfiar os cartuchos de dinamite. Os outros tomavam café em pé diante da barraca. Era domingo, mas ali ninguém se dava conta dos feriados.

— A ausência do perito vai atrapalhar nossos trabalhos — diz o padre. — Os operários não sabem bem onde devem furar.

— Talvez esteja de volta esta tarde, o mais tardar amanhã de manhã.

— É melhor os escavadores não fazerem nada até que ele volte — diz o padre.

— Temo que possa nos acontecer um novo caso.

— Acredita que possa haver outros esqueletos infectados?

— Por que não? É possível que muitos soldados desta coluna estivessem sofrendo de alguma infecção.

— Talvez seja necessário atirar cal nas fossas abertas — diz o general.

— Vamos perguntar isso ao perito. É ele que sabe dessas coisas.

Foram até a barraca e cada um pediu um café. — O micróbio permanece vinte anos debaixo da terra e recupera repentinamente toda sua virulência. É estranho — diz o general.

— Mas é assim mesmo — diz o padre. — Ao primeiro contato com o ar, com o sol, ele readquire vida. — Como uma fera que desperta de seu sono hibernal.

O padre tomava lentamente seu café.

— Eu creio que vai chover à tarde.

E foi de fato um dia lúgubre. Andaram sem rumo a manhã inteira, sem saber o que fazer. À tarde, a chuva recomeçou a cair.

— Se acontecer alguma coisa com ele, vamos ter que assumir uma indenização à família — diz o general.

— Uma pensão vitalícia?

— Sim, é o que estipula o contrato.

O perito voltou no dia seguinte de manhã. O motorista do caminhão foi o primeiro a avistar o automóvel que subia penosamente a estrada de montanha.

— Olhem eles lá! — gritou. — Estão voltando!

O general, o padre e os operários, que estavam todos juntos dentro da barraca para se abrigar da chuva, saíram na mesma hora.

Lá longe na estrada, tentando evitar as pedras que obstruíam o caminho, o carro verde vinha subindo lentamente.

— Ele deve ter ficado bom — diz alguém.

Quando o automóvel estava se aproximando, notaram que estava todo respingado de lama e, quando ele parou, o motorista do caminhão gritou, surpreso: — Mas ele está com um para-lama amassado!

O perito foi o primeiro a descer do carro. Estava pálido, tinha o semblante carregado, os olhos cansados e esgazeados. Com ar ausente, tirou primeiro uma perna, depois a outra, lançando em volta um olhar indiferente.

— Então, o que aconteceu? — perguntou alguém, rompendo o silêncio.

O perito se virou para ele como se a pergunta o espantasse.

— Ele morreu — disse com voz fraca.

— Morreu?

— Sim, morreu. O quê? Vocês não acreditam? — rosnou o motorista ao descer depois do perito.

Ele tinha os olhos vermelhos de uma noite de insônia, as mãos e o rosto sujos de lama.

— Quando foi isso? — disse uma voz.

— Por volta da meia-noite.

— Foi uma infecção terrível — diz o perito, como se estivesse falando sozinho.

O pequeno grupo se encaminhou lentamente para a barraca.

— Vocês tiveram problema com o carro na viagem? — perguntou o motorista do caminhão.

— Não — respondeu o colega —, apenas bati duas ou três vezes nas grandes pedras espalhadas pela estrada. Não fechamos o olho a noite inteira.

Eles entraram na barraca. — Faça um café para eles, não vê que estão acabados? — gritou alguém para o vendedor.

— Bebam também um conhaque, vai lhes fazer bem!

— Está certo, um conhaque!

— Então, amigo, conte um pouco como tudo aconteceu.

O motorista esvaziou o copo com um gole só. — Pode encher novamente — diz ao vendedor. — Que noite! Durante todo o trajeto ele não abriu a boca. Ora batia os dentes, ora ardia. Depois começou a ter vertigens. Nós sugerimos que se deitasse e ele se esticou como pôde no banco de trás, mas nem assim melhorou. Eu, é claro, pisava fundo no acelerador. Só Deus sabe como não fomos parar no fundo de algum barranco! Perguntávamos o tempo todo: "Como está se sentindo?", mas ele não desapertava os dentes. Contentava-se em nos olhar com o ar de quem dizia: "Mal, irmãozinho, mal!" Finalmente chegamos à cidade e imediatamente o levamos para o hospital. A cada meia hora íamos perguntar como ele estava. Todos os enfermeiros nos mostravam uma expressão pouco tranquilizadora. Um deles nos disse: "Vocês deviam tê-lo trazido mais cedo." Nós então compreendemos que a coisa ia mal. Pedimos para vê-lo. Eles não deixaram. A noite tinha caído. Nós corremos de café em café. Estávamos muito agitados para ir descansar em algum hotel. Por volta das 11 horas, voltamos ao hospital para nos informar mais uma vez sobre seu estado. Imaginem a nossa surpresa ao ouvi-los dizer que nós podíamos entrar imediatamente. Perguntamos como ele estava. "Mal", respondeu o enfermeiro, "não vai passar desta noite." Era por isso que tinham nos deixado entrar na mesma hora. Ele não ia durar mais muito tempo. Seu rosto estava lívido, de vez em quando o corpo todo tremia e depois ficava rígido, parecendo de pedra. Ele levantou os olhos para nós, balançando a cabeça. Depois começou a olhar fixamente para o ferimento da mão, como se quisesse lhe dizer: "Foi você que acabou comigo, imundície!" Por volta da meia-noite teve uma crise violenta e morreu logo, depois de sofrer o martírio. Foi assim que aconteceu. Encha de novo meu copo, pelo amor de Deus! Que diabo de história! Ah!

Fez-se o silêncio na barraca. Sobre a cobertura desconjuntada, um pedaço de papelão alcatroado batia com o vento.

— Não consigo acreditar — disse alguém. — Pensar que ele estava aqui conosco há algumas horas, e que não vamos vê-lo mais.

— Sim, esse pobre Reiz nos deixou. Foi levado sem ter sequer se dado conta.

— Ele era bom — diz um outro —, gentil com todos e nada orgulhoso.

— Corajoso.

— Isso ele era mesmo!

— E quem é que vai dar a notícia à mulher dele?

— Não vai ser nada fácil!

— Bem que a infeliz não gostava do trabalho que ele fazia! Parecia que estava pressentindo uma desgraça. Ela lhe dizia em todas as cartas: "Quando é que você vai acabar com essas tumbas?" E ele respondia: "Mais um pouco e vamos terminar.”

— Pobre mulher — diz o motorista. — Uma vez, quando lhe entreguei uma carta dele em Tirana, ela se queixou na minha frente. Vivia sempre preocupada. Ela o havia esperado vários anos durante a guerra, e eis que agora parecia que ele novamente tinha partido para a guerra.

— É o que ele mesmo nos dizia o tempo todo: "Me bati contra os fascistas por tanto tempo, e agora que estão mortos me dão trabalho outra vez."

— É mesmo! Lutou tantos anos contra eles, derrotou-os, mas foram eles que no final acabaram levando a melhor. Que falta de sorte!

— Parece até uma vingança póstuma.

— Eles esperaram vinte anos para se vingar. Sim, pois ele lutou com lealdade, como se luta na guerra, enquanto eles o mataram com uma doença suja, como traidores.

— O inimigo, mesmo morto, não muda.

— Ficam aí como corvos, sem falar — diz o motorista com uma voz rouca, lançando um olhar ressentido ao padre e ao general que estavam em pé, perto das ruínas da ponte, envoltos em seus longos impermeáveis. — Então, estão satisfeitos agora?

— Psiu! — disse alguém. — Nada de falar bobagens, Lilo!

— Devíamos pedir para o enterrarem no cemitério dos mártires.

— Claro. Devíamos telegrafar hoje mesmo ao Comitê do Partido em Tirana.

Um silêncio pesado se instalou de novo dentro da barraca, e ouviu-se o vento que ora batia ora levantava o pedaço rasgado de papelão alcatroado sobre o teto.

— Eles o mataram — disse alguém soluçando. — Eles o levaram!


— Não encontraram nada? — perguntou o padre.

— Não — diz o perito, num tom de voz cansado, andando com precaução em cima dos montes de terra argilosa.

— É estranho — diz o padre. — Vamos cavar em dois outros locais, de cada lado do ponto indicado nos mapas de vocês. Ele deve estar com certeza por aqui.

O general se aproximou. Suas botas estavam cheias de lama e ele as levantava do chão com dificuldade.

— E então? — perguntou ao perito.

— Nada, por enquanto.

— Vamos ter que desistir — diz o general. — Qual era o posto dele?

— Tenente.

— Talvez tenha se arrastado para bem longe daqui, depois de ferido.

— É bem possível — diz o perito.

Gotas de chuva esparsas caíam sobre a lama vermelha acumulada dos dois lados da fossa. Podia-se pensar que tapeçarias vermelhas suspensas no horizonte coloriam o chão com reflexos avermelhados e desagradáveis.

De repente ouviu-se um escavador gritar ao longe: — Pronto! Encontramos!

O perito, avançando lentamente para evitar escorregar, parou diante da fossa que acabara de ser aberta. O padre o seguiu.

Ficaram em volta da tumba aberta um tempo e finalmente o padre voltou, com ar desapontado.

— Tivemos trabalho à toa — disse, com um tom de voz cansado. — Não era um dos nossos.

— Quem era então? — perguntou o general.

— De acordo com o perito, deve ser um piloto inglês.

O perito foi até eles. — Tivemos todo esse trabalho para nada — disse-lhes.

— E agora, o que vamos fazer? — perguntou um dos operários que tinha se aproximado.

— Vamos embora. Não temos mais nada para fazer aqui.

— E o inglês? — perguntou o mais velho dos operários.

— Enterrem-no de novo — diz o padre. — Não temos nada a ver com ele.

O perito se virou para a fossa. — Enterrem-no — ordenou aos escavadores.

Dois deles atiraram as ossadas para dentro da fossa e começaram a cobri-la, enquanto o pequeno grupo se afastava. Quando, ao final de um momento, o general se voltou, os dois homens ainda continuavam a trabalhar e percebia-se de longe suas pás subindo e descendo regularmente. Um pouco mais tarde, quando o general voltou os olhos ainda uma vez para eles, já deviam ter terminado, pois os viu descendo da encosta com os instrumentos nas costas, e não se percebia mais no chão as marcas da tumba que acabara de ser fechada.

— Um dia perdido — diz o general —, inteiramente perdido.


Era uma vez um padre e um general que partiram para uma aventura. Foram apanhar os restos de seus soldados mortos durante uma grande guerra. Eles andaram, andaram, atravessaram bom número de montanhas e planícies, procurando e recolhendo as cinzas. O país era inóspito e malvado. Mas eles não desanimaram e continuaram seguindo adiante. Recolheram a maior quantidade de ossadas que puderam e voltaram para contá-las. Perceberam que ainda faltavam muitas. Então calçaram as botas, puseram as capas de chuva nas costas e puseram de novo o pé na estrada. Eles andaram, andaram, atravessaram de novo bom número de montanhas e planícies. Extenuados, abatidos, sentiram-se esmagados pela árdua tarefa. Nem o vento nem a chuva lhes diziam onde estavam os soldados que estavam procurando. Eles recolheram o que conseguiram e voltaram outra vez para contá-los. Muitos dos que estavam procurando ainda não tinham sido encontrados. Extenuados, exaustos partiram para uma nova e longa viagem. Eles andaram, andaram sem parar. Era inverno e nevava.

— E o urso?

— Então apareceu um urso.

Normalmente, a história que o general repetia consigo mesmo praticamente todas as noites e que, assim que voltasse, pretendia contar a uma das netas, terminava invariavelmente com a pergunta: "E o urso?", pois sua neta, a certa altura, fazia sempre esta pergunta quando escutava uma história.


XIX

Finalmente, no último dia, eles começaram novamente a descer. A estrada agora mergulhava cada vez mais, deixando acima dela os cimos das montanhas.

Estavam terminando a última excursão, a mais penosa. Tinham acabado de realizar buscas em regiões muito remotas e havia dez dias nevava sem parar nas montanhas. Através do vidro, o general olhava se desenrolar o tédio interminável da estrada. Aqui e ali, entre os declives nus e escarpados das montanhas, pequenos vilarejos cobertos de neve surgiam à vista e se escondiam logo depois.

De todos os lados se erguiam montanhas altas e frias, panos de fundo de um cenário de tragédia. De tempos em tempos, sobre as gargantas e os declives nus, viam-se brigadas de moças e rapazes ocupados em desmatar terras novas e preparar campos de cultivo em terraços. Os terraços se prolongavam em círculos em volta dos flancos dos montes como se fossem trincheiras sem fim. A neve ora cessava, ora reaparecia diante de seus olhos sob a forma de placas espalhadas aqui e ali; era uma neve seca, indiferente. À noite dormiam em um vilarejo e de dia retomavam o trabalho.

Foi ali que os Caçadores Alpinos tombaram em massa durante uma vasta operação de inverno. Também havia muitos cemitérios de gente do país.

Esse terreno tinha sido um dos mais difíceis. Os cemitérios estavam cobertos de neve e eles tiveram dificuldade para se orientar apenas com a ajuda de seus mapas topográficos. Parecia que a neve se recusava a permitir o resgate dos que estavam escondidos em seu seio. Ela os envolvera com uma camada delicada, branca e plácida, mas quando as pás e as picaretas começavam o trabalho, tudo se tornava feio; o belo tapete era mutilado, massacrado, feridas escancaradas se abriam em alguns lugares, e ele permanecia assim desfigurado até que uma nova queda de neve viesse curar suas chagas.

A estrada serpenteava, andava em círculos, se enrolava nela mesma, sempre no mesmo lugar, como uma corda que se embaraça e da qual não se acham mais as duas pontas. O automóvel seguia na frente, o caminhão ia atrás com o toldo branco de neve, e ao general parecia que estavam fazendo o mesmo caminho da véspera, e que a única coisa real era essa estrada estreita de montanha que os fazia inexoravelmente andar em círculos sem chegar a lugar nenhum. E agora que sua missão estava chegando ao fim, o general tinha repentinamente a sensação de que nunca mais poderia sair daquelas montanhas.

A cada curva via ressurgirem as mesmas casamatas com suas aberturas, e essas fendas estreitas, ora horizontais, ora verticais, lhe lembravam bocas abertas exprimindo algumas vezes a surpresa, outras vezes uma ironia sarcástica. O general observava essas mímicas de pedra e de novo tinha a impressão de nunca mais poder escapar de sua ironia implacável.

O caminhão, com suas grandes caixas onde se amontoavam centenas de sacos de náilon cheios de ossadas, continuava docilmente seguindo o automóvel. E sobre as caixas estavam sentados, fumando, os escavadores embrulhados em seus casacões de couro. Depois que o velho operário morreu, ninguém mais os ouviu cantar.

O general revia em pensamento as centenas e centenas de caminhões militares que haviam desfilado diante de seus olhos durante sua carreira. Lembrava-se dos soldados enfileirados, sentados na boleia dos caminhões, com o queixo apoiado sobre o cano do fuzil, balançando, balançando sem parar. E agora eles estavam ali, atrás dele, armazenados às centenas em um só caminhão, balançando juntos. A diferença é que não se viam seus queixos nem suas mãos.

Os pensamentos do general giravam em torno do mesmo ponto, da mesma maneira que a estrada se enrolava em volta das montanhas, interminavelmente, como se fosse um colar.

A partir do dia em que avistaram aquela estátua, o padre caiu novamente em seu mutismo e readquiriu o ar sombrio. O general já tinha presenciado aquele mesmo semblante devastado numa manhã em que o padre, saído de um pesadelo, havia gritado de pavor. Essa tinha sido a segunda vez.

Tinham entrevisto a estátua em um cruzamento três dias antes. Ela aparecera de repente, como uma pessoa esperando na beira da estrada que um carro lhe dê carona.

O general voltara-se para o padre para mostrá-la e o vira arregalar os olhos. O padre nunca lhe parecera tão abalado. Ele ficou com a vista fixa na estátua e uma palidez extrema invadiu seu rosto.

— O que você tem? — o general lhe perguntara.

O padre não respondeu. Tinham feito uma curva e a estátua embranquecida pela neve surgiu-lhes bem próxima, por trás dos vidros, ficando por um tempo ao lado do carro, para finalmente desaparecer atrás deles, no cruzamento.

Um pouco mais tarde, o general perguntara ao padre se aquela estátua não lhe teria trazido alguma coisa à lembrança, mas o padre, sem mais explicações, justificara sua perturbação atribuindo-a a uma simples tontura.

Depois disso eles ficaram muito tempo sem falar. A última tumba fora aberta na véspera. As picaretas enterravam-se com esforço no solo que o gelo endureceu, como se não quisesse entregar ao menos o último soldado. Os operários esfregavam as mãos sem parar e batiam com a sola do sapato na neve congelada. O general, com as mãos juntas sobre o ventre, observava os escavadores ocupados em cavar, dizendo consigo que aqueles homens tinham retirado da terra todo o seu exército. Finalmente, o último golpe de picareta foi acertado e, como uma última detonação, o perito albanês emitiu estas palavras: "Um metro e sessenta, exatamente!"

Frequentemente, enquanto observava os operários, o general ficava imaginando de que maneira teria se realizado, na primeira vez, o trabalho que estavam fazendo agora, só que ao contrário. Com as pálpebras pesadas, os olhos quase se fechando, sobretudo no lusco-fusco em que não dá para discernir mais do que as silhuetas dos escavadores, algumas vezes lhe pareceu que não eram eles que estavam cavando ali, mas, sim, os soldados do seu país, os soldados desconhecidos que, vinte anos antes, já haviam feito o mesmo trabalho de sepultar seus camaradas, em sentido inverso. Então ele fechava os olhos e via em pensamento como devia ter sido: frequentemente no meio da noite e, como ferramentas, nada além de baionetas e facões.

Mas era o décimo dia da excursão, eles já estavam descendo e era preciso expulsar esses pensamentos. O cerco das montanhas estava chegando ao fim. A neve seca dava lugar à neve úmida, e a chuva, velha conhecida deles, os aguardava lá embaixo, no vale.

Dentro de pouco tempo estaria de volta a sua casa. Outros cuidariam das cinzas e completariam a tarefa. Sua missão estaria terminada com esta excursão. Agora, funcionários dos serviços municipais e representantes dos dois países iriam se sentar em volta de uma mesa para elaborar um balanço do trabalho realizado. Depois ainda iriam fazer um monte de cálculos complicados, apresentariam uma série de faturas e contas a serem pagas e, para terminar, um relatório definitivo seria finalmente redigido. Em seguida ofereceriam um pequeno banquete, alguns breves discursos oficiais seriam pronunciados, e depois do banquete seria celebrada uma grande missa fúnebre pelas almas dos soldados tombados em guerra. As agências de notícias anunciariam que a missão tinha chegado ao fim e ele mais uma vez tomaria a palavra nas conferências de imprensa, diante de centenas de jornalistas irritantes.

Marceneiros desconhecidos começariam a fabricar milhares de pequenos caixões com as dimensões estipuladas no contrato, e outros empregados colocariam dentro de cada um deles um saco de náilon cheio de ossadas. Divisões, regimentos, batalhões, companhias, unidades de todo tipo estariam confundidas dentro daquele monte de caixões. O próximo passo seria embarcá-los em um grande navio pesadamente equipado para a ocasião, o qual repatriaria o exército agora reduzido a algumas toneladas de cálcio e fósforo.

Todos esses mortos recolhidos nos diferentes cantos da Albânia seriam carregados no navio em fileiras bem arrumadas e, tão logo o navio tivesse chegado ao país natal, suas cinzas seriam redistribuídas pelas diversas regiões que os viram nascer. Seriam todos embarcados e depois desembarcados; inclusive aqueles dois pilotos que tinham sido mortos a tiros de fuzil; e também os quatrocentos homens ceifados pelas metralhadoras dos milicianos ao tentarem atravessar este desfiladeiro; e os 18 que se mataram uns aos outros num vale; e os cinquenta outros retalhados em pedaços por baionetas em plena caserna; e o batalhão completo aniquilado com todas as suas mulas e cujos restos ficaram espalhados no meio das armas e dos arreios; e também aqueles desconhecidos mortos por albaneses desconhecidos; e, para completar, aquela jovem prostituta que foi morta inutilmente, única mulher no meio de todos esses homens, e que também foi tratada como "um soldado" entre tantos outros, uma vez que, afinal de contas, apenas os anatomistas conseguem distinguir um esqueleto de mulher do de um homem.

Quanto aos que não puderam ser encontrados, permaneceriam na Albânia. Mais tarde, talvez, uma outra expedição com um outro general viria buscá-los e novas escavações seriam empreendidas. Ainda havia cerca de duzentos nesse grupo, sendo o principal deles o coronel Z. A nova expedição percorreria por sua vez esses mesmos itinerários deprimentes e intermináveis, até que tivesse recolhido os restos desses infelizes, um por um. Qual seria o pensamento do oficial que iria dirigi-la? (Decerto, não ia ser um general, pois não faria sentido enviar um general para buscar duzentos homens apenas A estrada descia sempre, enrolando-se, sinuosa, em torno das montanhas como havia feito ao subir. Os anéis que ela ia desenhando não paravam de ganhar amplitude e o general teve o sentimento de que tudo finalmente se desembaraçava e que a calma estava de novo se instalando em sua alma.

Na descida, virava-se de vez em quando. As montanhas se afastavam cada vez mais. Seu relevo encobria-se pouco a pouco, tornando-se menos ameaçador. O general as olhava como que dizendo: "Estou farto de sua pressão. Consegui escapar de vocês, consegui!" Depois, dormitando, sentia-se repentinamente presa de um vago terror. Tinha a impressão de que as montanhas iriam estender seus braços gelados para trazê-lo de volta a suas gargantas, onde o vento soprava como no inferno.

Mas ele não voltaria mais lá em cima.


Foram cair em um vilarejo ao mesmo tempo que a noite. Pela primeira vez depois de dez dias, o rosto do general se iluminou com um sorriso. Estava enfim terminado. Dormiriam aqui esta noite e partiriam no dia seguinte para Tirana. Em alguns dias estariam em suas casas.

O general recuperava seu bom humor. Um fluxo tépido de bem-estar, ainda que um tanto hesitante, começava a invadi-lo.

As luzes ainda não estavam acesas no vilarejo. O carro, escoltado por uma multidão de crianças, percorreu a rua principal, toda enlameada. Diante da associação da cooperativa, o motorista diminuiu a marcha e botou a cabeça para fora da janela para perguntar onde ficava a sede do conselho da cooperativa. A garotada, aos gritos, deu-lhe a informação solicitada e, sem mais esperar, vários deles começaram a correr na frente do carro para servir de guia; os outros seguiram atrás e o carro agora andava entre eles, em meio à balbúrdia de suas vozes claras e estridentes.

A sensação de euforia se acentuava cada vez mais. Diante do carro, através do para-brisa, o general via agitarem as perninhas; depois, virando-se, verificou que mais crianças corriam atrás também e deu um sorriso. Parecia que era sobretudo ele que interessava às crianças, ao passo que o padre as deixava indiferentes. Não pôde deixar de se sentir lisonjeado, muito embora esse interesse, bem sabia, se devesse unicamente a seu uniforme.

O gosto para a grandeza, que ainda lhe palpitava em algum lugar bem no fundo, tentava timidamente levantar a cabeça.

O cortejo barulhento, uma vez atravessado o vilarejo, parou diante do edifício do conselho da cooperativa. O motorista e o perito subiram prontamente a escada.

Um minuto depois o caminhão parou atrás do carro e os operários foram saltando um após o outro. Mas o caminhão não atraía muito a atenção dos garotos. Eles colavam os rostos no vidro para tentar enxergar dentro do carro os dois homens imóveis sentados nos assentos escuros. Um deles fumava um cigarro. Do lado de fora, as crianças não conseguiam distinguir mais nada, mas andavam em volta do carro e de vez em quando apertavam contra o vidro seus rostinhos curiosos e espantados.

— Foi neste vilarejo que o coronel Z. provavelmente desapareceu — diz o padre.

— É, parece — diz o general com indiferença.

— Precisamos descobrir alguma coisa sobre esse assunto — diz o padre. — Pelo menos tentar.

O general deu umas duas ou três baforadas do cigarro, uma em seguida à outra.

— Para dizer a verdade, não estou muito interessado em descobrir — diz lentamente. — Esta noite não faço questão de procurar nenhum morto. Por mim, estou muito contente de ver este calvário finalmente terminar, e lá vem você querendo me embarcar de novo nessa história.

— Mas é nosso dever — diz o padre.

— Eu sei, eu sei, mas por enquanto não tenho vontade de pensar nisso. É uma grande noite para nós. Fico surpreso de você não perceber. É uma noite de festa. Eu só quero ficar tranquilo. Um bom banho quente! Eis a minha principal preocupação para a noite. A metade do reino por um banho! — acrescentou rindo.

O general estava de bom humor, de muito bom humor. Aquela longa e penosa peregrinação, que lhe vinha ao espírito como uma visão aterradora, enfim havia terminado. Mas não era uma peregrinação. Era uma caminhada dentro das trevas da morte. Como dizia a velha canção dos soldados suíços: "Nossa vida e uma viagem dentro do inverno, uma viagem dentro da noite!"

O general esfregou as mãos. Ele agora estava a salvo. Podia olhar ao longe, com indiferença, aqueles odiosos montes abruptos.

"Como um pássaro trágico e solitário..." Não se lembrava mais muito bem da frase, que lhe fora dita há muito tempo por uma grande dama ao lhe desejar boa viagem.

O perito saiu do edifício da administração.

— Vocês vão dormir naquela casa — e mostrou-lhes com o dedo uma casinha com um balcão.

Dez minutos mais tarde, o general saiu para o pequeno balcão e apoiou os cotovelos na balaustrada de madeira.

O padre estava no quarto, ocupado em abrir sua mala. Era uma casa de um andar, cercada por um pequeno jardim e, do balcão, descortinava-se parte do vilarejo. O general escutou o tinido de um balde e vozes de mulheres vindo de um poço vizinho, mugidos solitários de vacas, os sons de um rádio acabado de ser ligado e, todo o tempo, os gritos das crianças que brincavam e corriam em todos os sentidos da praça. Naquele momento, as luzes do vilarejo estavam acesas e ouvia-se o ronronar monótono da central elétrica.


A noite teria decorrido como todas as outras, sem lhe deixar nenhuma lembrança particular, se o general não tivesse aspirado o odor característico das cidadezinhas albanesas, esse aroma sutil, quase imperceptível, mas que agora se tornara familiar para ele e que era capaz de distinguir entre tantos outros. O padre tinha saído para recolher informações sobre o coronel Z. e o general, apoiado na balaustrada do balcão, olhava as mulheres tirando água do poço, uma de cada vez. Tudo se desenrolava normalmente embora se ouvisse, ao longe, vindo do centro da cidade, uma batida de tambor e um som de violino que acrescentavam à noite um novo mistério cheio de encantamento.

O general reconheceu o barulho de tambor característico das bodas no país. Não fosse o fim do outono, o general teria sentido essas batidas de tambor como um contraste provocante. Mas ele havia lido num livro sobre a Albânia que os aldeões geralmente celebram os casamentos no outono, assim que terminam as colheitas. Era o segundo ano que o padre e ele iam de vilarejo em vilarejo exatamente nessa época do ano. Uma vez que agora era o começo do inverno, somente os últimos casamentos estavam sendo celebrados, justo aqueles que, por uma razão ou outra, tinham sido adiados, enquanto que, no começo de sua excursão, eles se deparavam com festas quase todos os dias.

Frequentemente, à noite, acontecia ao general perceber através do barulho da chuva o rufar de um tambor e o som de um violino alternadamente alegre e sonhador. Ao escutá-los, com a cabeça enfiada debaixo das cobertas, seu pensamento se voltava para o caminhão sempre estacionado do lado de fora, sob a chuva que caíra a noite inteira em cima do toldo preto. Ficava imaginado o quanto se é estrangeiro em um país que não é o nosso. "Mais estrangeiro do que as árvores plantadas na beira da estrada", dizia consigo, "e elas são apenas árvores; e, com certeza, mais estrangeiro do que as ovelhas, os cães do pastor ou os bezerros que fazem soar seus sininhos quando a noite se aproxima."

Aquela noite também teria se passado como tantas outras se o general, depois de ruminar todas essas ideias na cabeça, não tivesse escutado o padre lhe falar do coronel Z.; escutado este lhe dizer que tinha ido à associação e se sentado a uma mesa com aldeões; e que eles haviam lhe falado sobre o desaparecimento do coronel; e de todas as suspeitas que essas palavras tinham lhe despertado. Mas o general não estava prestando muita atenção às palavras do padre. Ele estava de bom humor.

— Chega — diz ao padre pela terceira vez. — Chega de tudo isso. O que nós precisamos agora é de um pouco de repouso e distração. Não é verdade?

O padre não respondeu.

— Está fazendo uma bela noite. Um pouco de música, um copinho de conhaque...

— Ir aonde? — diz o padre. — Aqui não tem café, a não ser a associação da cooperativa. E você conhece esse tipo de lugar...

Mas o general, sem deixá-lo terminar, fez uma proposta que o deixou pasmo. O padre, diga-se de passagem, não a aprovou. Era a primeira vez que manifestava sua oposição de maneira tão formal. Mas o general lembrou com severidade que era ele o chefe da missão e que, se fosse obrigado, lhe daria uma ordem para segui-lo.

— Temos orgulho de nossa missão, não? Você me repetiu tantas vezes. E nós conseguimos completar esta missão gloriosa. Esta noite eu quero me distrair, ouvir música, ver uma peça de teatro, sei lá! Você me falou, não é, que as bodas neste país são um verdadeiro espetáculo. Ou será que me falou somente dos funerais? Pouco importa. O que conta é que esta noite estou com vontade de me distrair. Se houvesse uma cerimônia fúnebre, nós iríamos, não é? E depois, estou certo de que não vou me aborrecer com estes camponeses! Você mesmo me disse que os albaneses são de uma hospitalidade que beira a mania; portanto, não corremos o risco de ser mal acolhidos.

Sem esperar a resposta, o general vestiu o impermeável e saiu. O padre o seguiu.


XX

A festa estava acontecendo em uma casa situada no centro da cidade. Já de longe o general e o padre viram as luzes fortes que faziam com que a chuva parecesse ainda mais grossa. Apesar do mau tempo, a porta da casa estava inteiramente aberta e havia muita gente debaixo do grande pórtico. As pessoas iam e vinham, e a pequena rua que ia até a casa estava muito animada, cheia de gente cochichando e de uma profusão de barulhos. Os dois homens envoltos em grandes impermeáveis pretos se aproximavam, ambos sem falar, e a rua ressoava sob seus passos; os grandes e pesados passos do general, pisando distraidamente dentro das poças de água, e o passo leve, mais vivo, do padre.

Eles pararam um instante sob o pórtico, diante da porta com os dois batentes abertos, onde alguns jovens em roupas de festa fumavam e conversavam em voz baixa; depois eles entraram no vestíbulo. O general entrou primeiro e o seu impermeável, no espaço de um segundo, brilhou sob as lâmpadas da entrada, refletindo sobre suas costas uma imagem turva que lembrava uma composição abstrata. O padre o seguiu. O corredor estava cheio de mulheres e crianças fazendo um grande alvoroço. O tambor se calou e ouviram-se vozes de homens vindo da peça principal. uma pequena aglomeração se formou dentro do corredor, um mensageiro foi enviado até o local e um velho de ar surpreso saiu do grupo e veio até a frente deles. Ele os saudou colocando a mão sobre o coração e os ajudou a tirar os impermeáveis que, em seguida, pendurou junto das túnicas dos aldeões. Era o dono da casa. Conduziu-os à grande peça e, ao entrarem, todas as pessoas presentes começaram a se agitar em seus lugares, a trocar sussurros, a esticar a cabeça como um canteiro multicolorido que se animasse de repente sob uma brisa forte.

Com efeito, o general não imaginara ficar tão perturbado pela cena que se ofereceu a seus olhos. De imediato, sentiu-se tão desconcertado que, mal entrou, só conseguiu visualizar, embasbacado, uma paleta de manchas de cores vivas e móveis. Foi como se uma forte bofetada o tivesse feito ver mil estrelinhas.

Alguém o conduziu até a mesa, um outro o ajudou a tirar o casaco. Só conseguia saudar e sorrir, com um ar perplexo, para aquelas manchas moventes em volta dele, balbuciando uma ou outra palavra.

Foi somente quando o tambor recomeçou seu ribombo, quando o violino deixou escapar as primeiras notas agudas e quando os convidados se levantaram para dançar, foi somente então que ele se recompôs um pouco. Em meio ao tilintar cristalino dos copos, ouviu uma voz do seu lado dizer em sua língua: "Quer erguer o seu copo?" Ele fez o que lhe diziam. A mesma voz lhe falou ainda, como se quisesse lhe explicar alguma coisa, mas ele ainda não estava em condições de compreender e ele mesmo se surpreendia por se sentir tão desorientado.

A festa, naquele momento, causava-lhe a impressão de um grande organismo poderoso e amorfo respirando, se movimentando, sussurrando, dançando e enchendo toda a atmosfera com seu hálito quente, inebriante e turvo.

Passou-se um certo tempo até o general se sentir inteiramente senhor de si. Ele notava que as crianças fixavam nele uns olhos onde brilhava uma alegria silenciosa. Aproximando as cabeças umas das outras, elas mostravam com o dedo um ponto na sua direção, parecendo contar os botões de seu uniforme ou os galões, pois logo se punham a discutir entre elas e, visivelmente em desacordo, abanavam as cabecinhas.

A primeira pessoa cuja presença o general notou, talvez por inclinação profissional, foi um soldado com a cabeça descoberta, à vontade junto dos convidados. Disseram-lhe que era o irmão da noiva, e que justamente as bodas tinham sido adiadas para esperar que ele obtivesse uma licença. O rapaz, depois de ter puxado a dança várias vezes, agora conversava e ria com as moças. Ele era muito jovem, tinha cabelos louros e pequenos olhos alegres que olhavam para todos os lados.

Depois, aos poucos, o general começou a reparar em tudo que estava à volta. Olhou um por um os velhos circunspectos de fartos bigodes que, sentados à moda turca sobre as almofadas, observavam tudo fumando seus longos chibuques; a noiva de vestido branco, tão graciosa em sua emoção; o noivo, banhado em suor, andando por todos os lados, fazendo as honras da casa; os grupos de mocinhas, rindo e cochichando pelos cantos como se nunca tivessem feito outra coisa e cuja atitude revelava uma promessa de alegrias secretas que nunca seriam plenamente satisfeitas; a expressão blasée dos jovens fumando seus cigarros; os músicos morenos encharcados de suor; todas aquelas mulheres que iam e vinham de um cômodo para o outro com uma expressão muito atarefada; e finalmente as mais velhas, vestidas de preto, com os rostos marcados pelos anos e o olhar carregado de emoção e ternura, alinhadas como uma fileira de pálidos ícones.

Ele agora seguia os movimentos ágeis das pernas e o barulho ritmado dos saltos sobre o assoalho, obedecendo ao vibrante comando do tambor; o murmurinho das anáguas brancas, daquelas anáguas de mil pregas, brancas como a neve dos Alpes que eles tinham acabado de percorrer; os brindes de longas frases confusas que, traduzidas, desproviam-se de quase todo o sentido; os cantos rudes dos homens que lembravam os breves crepúsculos das montanhas e os cantos arrastados, patéticos, das mulheres, cantos que pareciam se apoiar nos robustos ombros dos cantos masculinos, para caminhar ao lado deles, eternamente submissos.

O general passeava o olhar em toda volta sem conseguir pensar em nada. Só fazia beber e sorrir o tempo todo, sem mesmo saber para quem estava sorrindo.

“Eu não sei de qual exército você faz parte, pois nunca soube distinguir uniformes, e agora estou velha demais para aprender, mas você é estrangeiro e pertence a um desses exércitos que mataram os meus. Invasor é a sua profissão, e você é um dos que estragaram a minha vida, que fizeram de mim a velha infeliz que sou hoje, e vem a esta festa estrangeira para se sentar em um canto e ficar falando por entre os dentes. Ninguém entende o que estou lhe dizendo pois todo mundo aqui está contente e não sou eu quem vai estragar a festa. E é exatamente porque não quero perturbar a festa que fico aqui no meu canto a maldizê-lo entre os dentes, em voz baixa, bem baixa, para que ninguém me ouça. Bem que eu gostaria de saber o que o fez vir a esta festa e como suas pernas puderam trazê-lo até aqui. Você está sentado aí, nesta mesa, e rindo como um cretino. Pois levante-se, jogue seu casaco nas costas e vá para a chuva, de onde você veio! Não compreende que está sobrando aqui, maldito?”

As mulheres continuavam a cantar. O general sentia um sopro quente e uma doce emoção lhe inundarem o peito. Tinha a sensação de estar descansando em um banho de sons e luzes. E esses sons e essas ondas de luz que se derramavam sobre ele como se viessem de uma tépida fonte o acalentavam, depuravam seu corpo de toda a lama dos cemitérios, daquela lama que desprendia um odor de mofo e de morte.

Findo seu atordoamento, o general se sentiu de bom humor. Teve vontade de falar, de se atordoar com palavras. Procurou o padre com os olhos. Ele estava sentado numa mesa um pouco mais longe, na frente dele. Parecia extremamente ansioso.

O general se inclinou na direção do padre.

– Como você vê, vai tudo muito bem.

O padre não respondeu. O general ficou rígido. Sentia os olhares das pessoas que estavam em volta caindo sobre ele como se fossem flechas silenciosas. Elas caíam sobre seus bolsos, sobre suas dragonas, mas raramente, muito raramente, sobre seus olhos; flechas escuras e pesadas dos homens e flechas alertas, cintilantes e incertas das moças.

“Como um pássaro ferido mas sempre orgulhoso, voará...”

— É interessante, não é? — diz de novo ao padre.

Que, mais uma vez sem responder, limitou-se a olhar como se dissesse "É possível", e desviou os olhos.

— Esta gente nos demonstra respeito — diz o general. — Nós lhes impomos respeito, embora tenhamos sido seus inimigos.

— A morte é respeitada em toda parte.

— Faz muito tempo que a guerra acabou. O passado foi esquecido. Estou certo de que ninguém nestas bodas está pensando em velhas inimizades.

O padre se calou. O general decidiu não lhe dirigir mais a palavra; contudo, um pedaço da sotaina negra de seu companheiro começou a dançar diante de seus olhos.

"Visivelmente, o padre está se sentindo demais aqui", pensou. "Mas será que eu também não sou? É bem complicado dizê-lo. Mas agora está feito. Nós viemos. Demais ou não, ficou difícil ir embora. Seria mais fácil retirar-se sob o fogo das metralhadoras do que se levantar daqui, jogar o casaco nas costas e ir embora na chuva."

“Você sabe muito bem que está sobrando aqui. Você sente que tem alguém nesta festa o maldizendo, e a maldição de uma mãe nunca é proferida em vão. Apesar do respeito que estão lhe demonstrando, você se dá perfeitamente conta de que nunca deveria ter posto os pés neste local. Tenta inutilmente disfarçar.

Sua mão treme quando você levanta o copo e as sombras que atravessam seus olhos revelam todo o seu terror!”

O tambor recomeçou a rufar. O clarinete atacou sua cantilena, os violinos a seguiram. Novos convidados retardatários chegaram, com suas túnicas encharcadas. O rio transbordado os obrigara a parar no caminho e eles precisaram esperar longas horas antes de poder atravessá-lo. Cumprimentaram uma por uma todas as pessoas presentes e tomaram lugar em volta da grande mesa "É evidente que para essa gente uma festa de casamento representa algo de sagrado", pensou o general, "caso contrário não se arriscariam a viajar de noite com um tempo desses só para participar da alegria de outra pessoa. Deve estar chovendo torrencialmente. Numa noite assim não daria sequer para cavar uma trincheira, pois ela se encheria de água até a metade."

“Parece que você veio recolher os mortos do seu país. Talvez já tenha recolhido bastante e ainda vá achar uma porção, talvez consiga até recolher todos; mas fique sabendo que existe um que jamais será achado, até o final dos tempos, da mesma maneira que eu nunca acharei, para todo o sempre, nem a minha filha nem o meu marido. Como eu gostaria de lhe falar sobre esse que você nunca vai descobrir! Só não o faço porque não quero despertar em todos esses convidados as tristes lembranças da guerra. Como chovia naquela noite! Mais forte do que na noite de hoje. A água jorrava por todos os lados. Não se conseguia cavar uma fossa, pois ela se enchia de água até a metade, de uma água escura como a resina dos pinheiros, que parecia brotar da noite. Mas mesmo assim eu cavei uma fossa. Mas não vou lhe contar nada, para não perturbar a alegria dos outros, e nem mesmo a sua, maldito!”

O general acendeu um cigarro e, coisa estranha, ele lhe pareceu pequeno, impotente, ao lado dos grandes cachimbos de buxo, longos e negros, que os velhos seguravam em suas mãos crestadas, e que de vez em quando sorviam ao falar, como para escandir o ritmo da conversação.

O dono da casa, o ancião que o acolhera no começo da noite no corredor, veio se sentar perto dele trazendo, tal como os outros velhos, o cachimbo na mão e uma medalha presa a uma fita amarela pendurada em cima do grosso casaco de lã preta. O general conhecia bem aquelas medalhas, por tê-las visto inúmeras vezes no peito dos camponeses, e achava que cada uma delas tinha no verso o rosto pálido de um soldado morto do exército deles. Ele sorriu para o rosto vincado de rugas do velho, que lhe fez pensar em um tronco ressecado, gretado, mas ainda vigoroso. Um homem sentado do seu lado, o que o havia convidado no começo a levantar o copo, traduziu-lhe as primeiras palavras do velho. O dono da casa desculpou-se por não ter vindo conversar com ele, pois os convidados continuavam a chegar e era preciso receber todos eles.

O general desmanchou-se em fórmulas de gentileza, balançando a cabeça com deferência. O velho se calou, sorveu lentamente seu cachimbo e depois, com uma voz tranquila, perguntou ao general: — De onde você é? O general lhe respondeu.

O velho sacudiu a cabeça com um ar pensativo dando a entender ao general que nunca tinha ouvido falar daquela cidade, no entanto uma grande cidade, bastante conhecida.

— Tem mulher, filhos? — interrogou de novo o velho.

— Sim, sou casado e tenho dois filhos.

— Que eles tenham uma vida longa!

— Eu lhe agradeço.

O ancião puxou uma nova baforada do cachimbo e algumas rugas profundas se formaram em sua testa. Parecia querer falar, e o general teve a impressão de que ele ia falar justamente aquilo que ele tanto temia ouvir naquela noite.

— Eu sei por que você veio ao nosso país — retomou o ancião com uma voz perfeitamente calma.

E o general sentiu como se um punhal tivesse sido cravado em seu coração.

Desde o começo da noite temera aquela conversa, que poderia se transformar em provocação. E ele tinha se esforçado para esquecer o motivo de sua própria presença, na ilusão de que seu esquecimento provocaria o esquecimento dos outros. Naquela noite, teria gostado de ser não mais do que um simples turista, interessado nos fascinantes costumes de um povo de longo passado, para poder falar deles aos amigos, mais tarde, em seu país. E eis que finalmente este maldito assunto de conversação não podia ser evitado, e o general se arrependia de ter vindo.

— Sim — diz o velho. — Você fez bem em vir buscar os restos de seus soldados mortos. Todas as criaturas do Senhor devem repousar sob o solo que as viu nascer.

O general anuiu com a cabeça. Passado um momento, o dono da casa se levantou cerimoniosamente e se desculpou; ele precisava fazer as honras da casa aos convidados que tinham acabado de chegar.

O general recomeçou a beber, aliviado. Recuperara agora o bom humor. O perigo de provocação parecia ter passado. Podia seguir sem aflições o desenrolar da festa e beber à vontade.

— Está vendo? — repetiu ao padre. (Ele já estava articulando as palavras com menos facilidade.) — Eles nos respeitam. Bem que eu lhe falei. O passado foi esquecido. Como é que você diz?

— Eu digo que em ocasiões como esta não é fácil distinguir o limite entre o respeito aos costumes e o respeito, simplesmente — respondeu o padre.

— Os generais sempre impõem respeito. — O general bebeu outra dose. — Sabe de uma coisa? Está me vindo uma ideia — diz, não sem uma certa malícia, aproximando seu rosto do rosto do padre. — Estou com vontade de me levantar e ir dançar com eles.

— Você está falando sério?

— Sim, por que não?

O padre balançou a cabeça nervosamente. — Não sei o que deu em você esta noite.

O general se irritou. — Chega de bancar a ama-seca. Me deixe em paz, que diabo! Não quero ser controlado por ninguém.

— Mais baixo — diz o padre. — Estão nos escutando.

— Quando é que finalmente será abolida esta detestável prática que consiste em colocar os generais sob controle?

O padre levou a mão à testa como se quisesse dizer: "Só nos faltava essa!"

— Eu vou me levantar e ponto final.

— Mas você nem conhece esta dança, vai fazer ridículo!

— Não, de jeito nenhum. São passos muito simples. E, além do mais, aos olhos de quem parecerei ridículo, destes camponeses?

O padre levou de novo a mão à testa.

“Parece que esta tarde na associação você andou buscando informações. Há muito tempo, me parece, você o vem procurando em vão. Mas por que razão procura tanto esse coronel sinistro? Era amigo seu? Sim, com certeza, uma vez que está tão interessado nele. Você passou a tarde fazendo perguntas a todo mundo no vilarejo. Mas mesmo sabendo que ele deve estar em algum lugar destas paragens, ninguém jamais saberá o lugar preciso em que se encontra. Vai partir sem ele, você não vai levar esse seu amigo, seu miserável amigo que enlutou minha existência. Vá-se embora o quanto antes, pois você é maldito como ele. Sim, claro, você agora está fingindo ser tão manso quanto um cordeiro e, com um sorriso nos lábios, fica olhando as pessoas dançar, mas eu sei o que está tramando! Você acha que um belo dia vai se atirar sobre este país com suas tropas para queimar nossas casas e nos massacrar como fizeram seus camaradas. Você não deveria ter vindo a esta festa. Você deveria ter sentido seus joelhos tremerem no caminho para cá. Nem que fosse por minha causa, uma pobre velha desesperada, com quem o destino foi tão cruel. Mas o que está acontecendo? Você vai entrar na ronda! Tem a audácia de se levantar? Eu o estou vendo até sorrir! É isso mesmo, você está se levantando! E eles o estão acolhendo! O que você está fazendo? Assim é demais! É uma profanação!”

O rufar do tambor explodiu novamente como um ronco de canhão. O clarinete retomou sua lamentação, os violinos o acompanharam com suas vozes delicadas, parecidas com vozes femininas. No centro da sala esboçou-se o embrião de uma farândola, com dois, depois três, depois um número cada vez maior de dançarinos.

O general observou a ronda. Depois observou o padre. Depois de novo a ronda. Depois o padre. A ronda. O padre. A ronda...


Levantou-se. O que tinha que acontecer, aconteceria. Ficou ali, balançando-se como um bêbado, pronto para entrar no círculo dos dançarinos que lhe dava a impressão de ser um círculo de fogo. Esticou duas ou três vezes os braços, mas recolheu-os na mesma hora como se tivesse queimado as mãos. A ronda rodopiava diante dele como um pião e o velho que conduzia a dança dobrava os joelhos, quase se acocorando, e depois se levantava, batendo com o salto do sapato no assoalho como para dizer: "É assim e será sempre assim!"; ele girava um lenço branco, largava a mão do companheiro para fazer uma pirueta, dobrava novamente os joelhos e parecia que ia cair como se as pernas tivessem sido cortadas com uma foice; depois se levantava e caía de novo, como se um raio o tivesse atingido, para se reanimar no mesmo instante com o som do ronco do trovão. O tambor ribombava cada vez com mais raiva, os gritos do clarinete desprendiam-se em vagas que se multiplicavam como soluços saindo da garganta de algum titã e as cordas dos violinos vibravam, desesperadas. O tambor batia cada vez mais rápido, e agora, através da lamentação, parecia que enormes rochedos rolavam do alto das montanhas. O general, sempre em pé, sentiu-se presa de vertigem diante daquele arrebatamento frenético e ofuscante. Não se deu conta do tempo que aquilo durou. Ele viu, no espaço de alguns segundos, como através de um véu, os rostos suados dos músicos, a campânula do clarinete oscilar de baixo para cima como um canhão de defesa antiaérea voltado para um alvo móvel, os olhos fechados dos dançarinos em êxtase. Depois o tambor se calou, as cordas relaxaram e foi como um encantamento; a festa prometia ser um grande sucesso e prosseguir pela noite adentro; mas, no exato momento em que os dançarinos voltavam para seus lugares, um gemido atravessou o alvoroço. O general sentiu uma pontada no coração. A barulheira não havia cessado mas, mesmo assim, coisa curiosa, todo mundo percebeu o grito; ninguém jamais imaginaria que a velha Nice pudesse lançar tal gemido.

Ela soluçava deixando escapar gritinhos agudos. Fez-se subitamente um silêncio tão profundo que se ouviam os soluços convulsivos da velha pontuando seus gemidos. Mas esse silêncio não durou mais do que um instante. O general viu pessoas se precipitarem na direção da velha e se juntarem em torno dela; alguém foi chamado e a infeliz, que chorava desesperadamente Deus sabe por quê, acalmou-se um pouco.

Se a velha tivesse se acalmado como acreditaram o general e os que não estavam perto dela, tudo teria se resolvido e o general talvez tivesse ficado lá por mais tempo, até altas horas, mas a velha Nice recomeçou a chorar. Visivelmente, nada conseguia acalmá-la pois, ao contrário, ela recomeçara a gemer; as vozes que subiam em torno dela eram rapidamente suplantadas pelos gemidos que traspassavam a alegria geral como uma lâmina. Mais gente chegou perto da velha e o general teve a impressão de que quanto mais atenção lhe davam, mais seus gemidos se tornavam lancinantes. Os músicos recomeçaram a tocar, mas a velha Nice deu um grito tão estridente que os instrumentos se calaram, como se tivessem se intimidado. O general viu o grupo que cercava a velha se mover como se sofresse pressão de uma força poderosa, e Nice, escapando finalmente dos que a seguravam, jogar-se para diante. Pela primeira vez o general observou aquela figura emaciada, pálida, de olhos fora da órbita, inchados de lágrimas, e aquele corpinho franzino. "O que está acontecendo com ela? O que ela quer? Por que está chorando?", perguntou o general, repentinamente sóbrio. Mas ninguém lhe respondeu. Algumas pessoas se precipitaram em torno da velha; duas mulheres a seguraram pelos braços e tentaram trazê-la de volta com doçura, mas ela começou a urrar e veio se postar diante do general. Ele viu seu rosto alterado pelo ódio, mas sem adivinhar o motivo. Ela gritou-lhe uma porção de palavras, gesticulou muito, vociferou; ele permaneceu imóvel diante dela, pálido como cera. A cena não durou mais do que alguns segundos, pois a velha foi levada embora, arrastada pelas costas; mas, ao conseguir se soltar, ela foi até a porta e saiu.

O general ficou lá, em pé, e ninguém lhe traduziu as palavras da velha Nice, mas os presentes ignoravam que o padre soubesse albanês. A noiva, em prantos, foi cercada pelos convidados assim como a dona da casa, que se persignava, com o rosto exangue.

— Eu o preveni — diz o padre. — Nós não devíamos ter vindo.

— O que aconteceu? — perguntou o general.

— Este não é o momento para lhe dizer. Explico mais tarde.

— Você tinha razão — diz o general. — Eu fui muito imprudente.

Aquele grupo de gente que, no começo da noite, havia lhe parecido um canteiro multicolorido, a seus olhos transformara-se agora numa escura floresta invernal. As cabeças, os braços, as mãos, os longos dedos se agitavam, se curvavam para um lado e para o outro como galhos desfolhados pelo furacão; e, acima de tudo aquilo, com um grasnado seco, pairava a inquietude.

— Por que eles tinham que vir ao nosso casamento? — diz um dos jovens.

— Psiu! Isto não é coisa que se diga!

— Por que não? — falou um outro. — Tiveram até audácia de entrar na dança.

— Não tínhamos como expulsá-los. É o costume dos nossos pais.

— Que costume! E quanto à pobre Nice, o que ela acha deste costume dos nossos pais?

— Psiu! Não há necessidade de eles escutarem isso!

— Não precisa ter medo — interveio um outro —, há muito barulho, eles não escutariam mesmo que soubessem albanês.

O general e o padre efetivamente não ouviram nada. Eles observavam um por um os rostos que os cercavam. Rapidamente, o general desviou o olhar dos homens e dos jovens e voltou os olhos para as mulheres, que tinham apenas o rosto descoberto sob o lenço preto que envolvia suas cabeças como uma moldura de luto; estavam taciturnas, silenciosas, como se pressentissem novas desgraças.

O general foi invadido por um sentimento de pavor. Por que tinha vindo? Que capricho insensato tinha sido este? Até aquele momento tudo correra bem. As leis o acompanharam e protegeram em toda parte onde tinha ido. Mas, nesta noite correra um risco enorme. Que ideia tinha sido aquela de vir sozinho com o padre a esta festa? Ele se encontrava ali desobedecendo a regulamentos e leis. Poderia lhe acontecer qualquer coisa sem que ninguém fosse responsável.

— Vamos embora — disse de repente. — Vamos embora imediatamente.

— Sim, sim — disse o padre. — Vamos embora. Fomos gravemente ofendidos. Esta velha nos fez as mais afrontosas acusações.

— Então deveríamos lhe responder antes de partir. Mas o que foi que essa velha falou?

O padre ia começar a falar quando o dono da casa veio até eles.

— Sentem-se — disse, estendendo o braço para a mesa e depois fazendo um sinal para as mulheres encarregadas do serviço, que trouxeram raki e meze.10

O general e o padre entreolharam-se e depois se viraram para o dono da casa.

— São coisas que acontecem — disse o velho. — Mas peço por favor que fiquem. Sentem-se.

Constrangidos por estarem ali em pé, sob os olhares da assistência, eles se sentaram. Tiveram assim a impressão de serem menos notados.

Naquela hora, uma certa ordem já fora restabelecida na grande peça e as pessoas tinham se instalado novamente em volta das mesas. O general viu sentar-se a seu lado o homem que tentara traduzir os brindes.

Explicou que Nice era uma velha perturbada, que ficara viúva na última guerra, cujo marido fora enforcado no período das operações punitivas executadas pelo batalhão comandado pelo coronel Z. Disseram-lhe também que o coronel Z. tinha mandado trazer à sua barraca a filha do infeliz. Ela tinha pouco mais de 14 anos e, ao voltar da barraca, de manhãzinha, jogara-se dentro de um poço antes de chegar em casa. Foi justamente na noite seguinte que o coronel desapareceu. Segundo dizem, ignorando a morte da menina, ele foi até a casa dela com a intenção de revê-la. Deixou um soldado montando guarda diante da casa e demorou muito tempo lá dentro, bem mais tempo do que o necessário, mas a sentinela recebera ordem de não se mexer até o dia nascer. No dia seguinte de manhã não encontrou ninguém na casa e ninguém soube o que aconteceu ao coronel. Alguns afirmam que ele teria sido chamado com urgência a Tirana, outros explicam de forma diferente sua ausência, mas os próprios oficiais de seu batalhão se calaram. Dois dias depois, a unidade foi embora da região.

Tudo isso foi dito aos poucos, em frases entrecortadas, que lhe batiam na cabeça como um martelo.

A música recomeçara, mas ninguém se levantou para dançar. As mulheres foram as primeiras a se decidir e as pessoas tiveram a impressão de que o episódio da velha Nice já tinha sido esquecido por todos, salvo por ela mesma. O general ficou ali, sentado na mesa, em estado de estupor que não lhe permitia se concentrar no que quer que fosse. Seu olhar cruzou novamente o do padre.

— Faço questão de saber o que essa velha disse.

O padre fixou sobre ele seu olhar opaco e o general se sentiu pouco à vontade.

— Ela acredita que você seja amigo do coronel Z. E só em olhá-lo fica fora de si.

— Eu, amigo do coronel Z.?

— Sim, foram estas as palavras dela.

— E que a faz imaginar isso?

— Não tenho ideia.

— Talvez porque a noite toda pedimos que procurassem o coronel Z. — disse o general, pensativo, como se falasse sozinho.

— É bem possível — respondeu o padre secamente.

O general fechou o semblante ainda mais. Não via nem ouvia mais nada do que se passava em volta dele.

— Eu vou me levantar — disse de repente. — Vou me levantar e declarar publicamente aqui que não sou amigo do coronel Z. e que, na qualidade de militar, eu execro sua memória.

— E por que você faria isso? Para dar uma satisfação a esses camponeses?

— Não. Eu o farei pelo bom nome e pela honra do nosso exército.

— O bom nome do nosso exército fica manchado por ter sido insultado por uma velha albanesa?

— Eu quero lhes explicar que nem todos os nossos oficiais se fechavam em barracas com mocinhas de 14 anos, negligenciando operações, para finalmente acabar morto pelas mãos de uma mulher.

O padre fez um movimento com as sobrancelhas.

— Nós não viemos aqui para fazer julgamentos desse tipo — disse lentamente. — É àquele lá do alto que cabe julgar.

— Parece que eles realmente acreditam que eu sou amigo dele — retomou o general. — Não está vendo como me observam? Olhe um pouco em volta. Veja os olhos deles.

— Você está com medo? — perguntou o padre.

O general lançou-lhe um olhar furioso. Esteve a ponto de responder agressivamente, mas sentiu cair sobre si a batida do tambor e as palavras estancaram nos lábios.

Na realidade, o general estava com medo. Tinha sido muito precipitado com suas atitudes irrefletidas. Agora era preciso se retirar com prudência. Ele devia imediatamente fazer a distinção entre ele e o coronel Z. Era preciso se livrar do coronel como teria feito com um pedaço de lama colado na bota.

A situação, é bem verdade, parecia estar se normalizando, mas era apenas uma aparência. Ele sentia que no interior desse organismo amorfo alguma coisa fervilhava. Via-se pelos olhares, sentia-se pelos sussurros. Além do mais, no corredor depois da porta estavam alinhados, ao lado das pesadas túnicas e dos casacões, os fuzis dos convidados, suspensos em pregos fixados na parede. O padre havia lhe dito que os assassinatos eram frequentes nas bodas albanesas.

Tinham que agir agora, antes que fosse tarde demais. Se fossem embora intempestivamente, era muito possível que um convidado bêbado atirasse neles pelas costas. Os cães perseguem ainda com mais raiva a presa que foge. Eles precisavam realizar uma retirada prudente.

Com um olhar aturdido, o general percorreu outra vez aquele monte de gente que se agitava, dançava, ria em volta dele; depois seus olhos se detiveram na fileira de velhas que não tinham saído do lugar desde o começo da festa, com seus rostos silenciosos, ligeiramente inclinados como uma sucessão de ícones; cansado, ele então baixou a cabeça e se calou.

O tambor fez ouvir de novo seu ribombo surdo e o clarinete traspassou a festa com seu grito rouco e dilacerante. Os homens, nas mesas, entoavam um canto, e o general revia os crepúsculos rolando do alto das montanhas; ele agora escutava as vozes lancinantes das mulheres que cantavam com a cabeça baixa; era um canto sufocado, entrecortado pelas vozes viris; como o arquejar de uma mulher nos braços do homem que ela ama.

— Eu creio que está mais do que na hora de irmos embora — diz o general.

O padre fez que sim com a cabeça. — É o momento propício.

— Vamos nos levantar discretamente.

— Isso mesmo.

— O importante é ser o mais discreto possível.

— Levante você primeiro. Eu me levanto em seguida.


Era quase meia-noite. A festa estava no auge e ninguém, ninguém ou quase ninguém, pensava mais na velha Nice, quando, de repente, viram-na reaparecer no exato momento em que os dois estrangeiros se preparavam para se retirar. Talvez tenha sido o general o primeiro a notar o seu retorno. Ele teve a sensação da presença dela como um velho caçador fareja a aproximação do tigre na floresta. Vendo as pessoas se agitando e começando a cochichar perto da porta, ouviu imediatamente um grito vindo do fundo de seu ser: "Ela está aí!", e ele se sentiu ruborizar. Desta vez a velha não estava mais chorando, não se ouvia mais a sua voz, mas todo mundo sentia perfeitamente que ela estava lá, na porta. A orquestra continuava a tocar, mas não se escutava mais a música. Um ajuntamento havia se formado diante da porta. Ninguém conseguia entender por que a velha Nice tinha voltado. Talvez em consequência do seu aspecto, talvez devido às suas súplicas, o fato é que as pessoas se afastaram para deixá-la passar e ela foi entrando no salão em meio às exclamações gerais. Estava inteiramente encharcada, suja de lama, no rosto uma palidez de morte, e carregava um saco nas costas.

O general se levantou maquinalmente e foi na direção dela. Adivinhava que era ele que procurava. Postou-se diante dela como esses animais que, farejando de longe a presença do inimigo, ficam enfeitiçados por sua voz e, em vez de fugir, correm para ele.

As pessoas se aglomeraram em torno deles. Estavam todos atônitos. A velha Nice plantou-se diante do general, fixou sobre ele um olhar esgazeado, como se não fosse ele que ela estivesse vendo, mas a sua sombra e, com uma voz entrecortada, misturada a acessos de tosse, dirigiu-lhe algumas palavras.

— Traduzam o que ela está me dizendo! — exclamou o general, como se pedisse socorro.

Mas ninguém atendeu ao seu desejo. Ele lançou um olhar em volta e cruzou com o do padre. O padre se aproximou.

— Ela afirma ter matado há muitos anos um de nossos oficiais superiores e ela pergunta se é você o general que veio recolher os restos dos mortos na última guerra — diz o padre.

— Sim, senhora — diz o general com uma voz incolor.

Ele reuniu todas as suas forças para manter a cabeça erguida diante daquela mulher que o aterrorizava.

A velha Nice acrescentou algumas palavras que o padre não conseguiu traduzir, abafadas pelo burburinho intenso, e antes que alguém esboçasse um gesto para impedir, ela atirou sobre o assoalho, em meio aos clamores assustados das mulheres, bem junto dos pés do general, o saco que estava carregando sobre as costas. O padre agora não tinha mais nada para traduzir; toda tradução seria supérflua e nada poderia ter mais sentido, pois tudo naquele momento se esclarecera e, ao mesmo tempo, nada poderia ser mais horrível do que aquele saco coberto de grandes pedaços de lama negra ainda úmida, que acabara de cair com um barulho surdo sobre o assoalho. As mulheres, apavoradas, afastaram-se bruscamente cobrindo o rosto com as mãos, enquanto as mais velhas se persignavam deixando escapar suspiros aterrorizados.

— Ela o enterrou diante da porta de casa! — gritou alguém.

— Pobre Nice!

Subitamente, a velha deu as costas aos presentes e se foi do mesmo jeito que tinha vindo, encharcada, enlameada, e não ocorreu a ninguém retê-la, pois o que tinha que acontecer já acontecera.

O general não despregava os olhos do chão. Sentia-se aturdido pelo barulho, pelos gritos, pelo horror da cena. De repente, sem que nem mesmo ele soubesse dizer por quê, fez-se um profundo silêncio. Talvez não tenha havido silêncio, mas foi essa a impressão que teve o general. Aos seus pés, e diante de todos os convidados, desenhava-se aquela mancha escura e muda, aquele velho saco cheio de remendos. "Alguém tem que cuidar disso!", pensou. Então, naquele silêncio, abaixou-se lentamente, segurou o saco pela ponta, suspendeu-o assim como estava, coberto de lama, e o deixou cair novamente. Em seguida vestiu o casaco e, segurando novamente o saco, colocou-o sobre o ombro com um gesto lento e saiu, curvado, mortificado sob seu fardo, como se carregasse nas costas toda a vergonha e todo o peso da terra.

 

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10 Espécie de salgadinho.


XXI

O general andava na frente, chafurdando nas poças d'água. O padre o seguia. Subiram a ruazinha, desembocaram na praça do vilarejo, contornaram a velha igreja e, naquela escuridão, de repente perderam o caminho. Voltaram sobre seus passos sem dizer uma palavra, o general sempre à frente. Passaram diante do poço do vilarejo, depois diante da associação e ao lado da igreja, mas sem conseguir achar a casa onde estavam hospedados. Por duas vezes viram-se no mesmo ponto e avistaram o campanário escuro acima de suas cabeças. Ventava tão forte que parecia que o vento e a chuva iam bater os sinos e fazer com que de repente soassem.

A mão que carregava o saco estava inteiramente entorpecida.

 

“Como você parece leve, Betty!”, uma noite ele me disse no parque.

Nós estávamos passeando abraçados, duas noites antes do nosso casamento. Era uma noite de outono, tépida e perturbadora. De tarde havia chovido e as alamedas do parque estavam cheias de pequenas poças d'água. Ele me carregava nos braços como uma criança, me repetindo todo tempo: "Você é tão leve assim, Betty, ou é a felicidade que estou sentindo que me faz ter essa impressão?" Suas botas militares entravam pesadamente, sem precaução, nas poças d'água, fazendo voarem mil gotinhas a imagem da lua que se refletia nelas. "Eu adoraria carregar você nos braços a minha vida inteira, Betty. Exatamente assim." Ele andava e beijava meus cabelos, me dizendo sempre: "Como você é leve, Betty!"

 

"Agora é a sua vez de ser leve. Não há ninguém no mundo mais leve do que você. Três ou quatro quilos, no máximo. Mas mesmo assim você está me partindo a coluna!"

Andaram sem rumo certo por um bom tempo, deram várias vezes a volta no vilarejo, desorientados como dois homens embriagados, tratando de se afastar o mais possível da igreja que reaparecia o tempo todo acima deles, inteiramente negra; só pararam quando quase se chocaram com o radiador do próprio carro, que mal dava para ser visto na escuridão.

Estava estacionado exatamente diante da casa onde tinham sido alojados, e o general, sempre na frente, empurrou a porta do pátio e entrou. Os batentes estalaram ao se fecharem atrás dele. Deu alguns passos, abriu a porta interior e assim que chegou no vestíbulo largou o saco no chão.

À luz pálida de seu isqueiro, subiu a escada fazendo barulho, entrou no quarto, deixou cair no chão o impermeável molhado e se atirou na cama todo vestido. Um instante depois, ouviu a porta do quarto se abrir e depois se fechar novamente e o padre se jogar na outra cama.

Tentou dormir, mas foi em vão. Dedicou-se então a colocar um pouco de ordem em suas ideias, mas também não teve sucesso.

"Eu preciso dormir", pensou. "Dormir. Dormir. Ficar tão tranquilo quanto esse caminhão do lado de fora. Dormir a qualquer preço."

Fechou os olhos com força, mas isso também não adiantou. Quanto mais apertava as pálpebras, mais a escuridão perdia a força, pois a noite, aqui e ali, vazava em manchas e fitas de luz, entrecortadas ora por uma nesga de céu, ora pela extensão azul de uma praia longínqua.

"Eu preciso de escuridão", pensou. "Preciso de uma noite completa, sem manchas, para poder adormecer."

Mas as fitas azuis, brancas, violetas e as manchas vermelhas e amarelas não se apagavam. Elas ficavam ali, diante dele, a poucos centímetros de distância, em qualquer direção que ele virasse a cabeça, bem no centro das trevas.

Levantou-se, tomou um comprimido de luminal e voltou para a cama. Mal tinha começado a dormir, quando acordou sobressaltado. Lá longe, depois da praça, o tambor recomeçara a rufar.

"Será que essa maldita festa ainda continua?", disse consigo mesmo. "O que será que está acontecendo?"

Enfiou a cabeça debaixo das cobertas para não ouvir; de nada adiantou. Acreditava estar vendo uma criaturinha, bem pequena, como um personagem de contos de fadas, acocorada dentro do seu cérebro, tocando um pequeno tambor, desses que os soldados de chumbo carregam. Apesar de tapar os ouvidos, o gnomo estava sempre lá, sentado à moda turca, batendo, batendo o tempo todo, com um ritmo regular, no tambor, bum, bum, tararabum; bum, bum.

Parecia que o tambor estava marcando a marcha de uma coluna de soldados.

"É o meu grande exército que está marchando!", imaginou. Ergueu-se subitamente e falou para si mesmo em voz alta: "Chega!"

Descansou a cabeça no travesseiro, mas, ao final de um minuto, levantou-se e chamou o padre: — Padre! Ei! Padre! Coronel, levante-se!

O padre acordou sobressaltado. — O que está acontecendo?

— Temos que ir embora daqui o mais cedo possível, levante-se!

— Ir embora? Para onde?

— Para Tirana.

— Mas ainda é noite!

— Não faz mal. Vamos embora de qualquer jeito.

— Mas por quê?

As botas do general fizeram estalar o assoalho. — Não está ouvindo? Não está ouvindo o tambor? Eles continuam lá e estou tendo os piores pressentimentos.

— Está com medo? — perguntou o padre.

— Estou — diz o general. — Tenho a impressão de que de um momento para o outro eles virão se reunir diante desta casa e bater o tambor como costumam fazer certos povos para expulsar os maus espíritos.

O general acendeu o isqueiro e começou a fazer a mala.

— Vamos embora — diz o padre.

O general estava trancando a mala.

— Uma dança — murmurava. — Eu quis dançar uma vez com eles e por pouco não resultou em desgraça. Que país, meu Deus!

— Nós não devíamos ter ido.

— Uma única dança que quase se transformou em dança macabra.

O padre resmungou algumas palavras incompreensíveis e eles saíram do quarto. As botas do general rangiam de vez em quando sobre os degraus da escada de madeira. Ele foi diretamente para o pátio e se dirigiu para a porta. O padre vinha um pouco mais atrás, e o general se virou e o viu com um fardo nas costas.

"O saco", pensou.

Foram dar na rua. A chuva tinha parado e a escuridão estava menos densa.

— Que horas são? — perguntou o padre.

O general acendeu o isqueiro. — Quatro e meia.

— Daqui a pouco o sol vai nascer.

Em algum lugar os primeiros galos começaram a cantar. Das montanhas soprava um vento glacial. Um pouco mais adiante, o caminhão desenhava sua sombra negra.

Eles pararam ao lado do carro e dirigiram o olhar para o leste. Dava a impressão de que alguém despejara com um pincel camadas superpostas de tinta branca para absorver a escuridão da noite e substituí-la aos poucos por uma tinta cinzenta, úmida e fria.

— É ali que eles estão dormindo — diz o padre mostrando com a cabeça a casa en frente.

— Acorde o motorista, diga-lhe que não estou passando bem e que temos que partir imediatamente para Tirana.

O padre empurrou a porta do pátio contíguo. Ao abri-la, ouviu-se uma campainha; um cachorro começou a latir em um pátio vizinho, depois um outro lhe fez eco e, alguns instantes mais tarde, todos os cães do vilarejo se juntaram a eles.

Mas mesmo esses latidos não impediam o general de escutar o ribombo do tambor e um rumor longínquo.

As dobradiças da porta do pátio rangeram novamente; o padre saiu de novo, sempre com o saco nas costas.

"Você não se separa deste seu saco por nada no mundo!", pensou o general.

— Ele está se vestindo — diz o padre —, daqui a pouco vai estar aqui.

— Os cachorros! — diz o general.

— Sim, é assim em todos os vilarejos. Quando um começa a latir, todos os outros respondem.

— Latir é a única coisa que sabem fazer — diz o general. — É muito pouco. Se eles soubessem o que tem dentro do nosso caminhão, começariam a uivar para a morte, com certeza! E seria pavoroso.

— Maldito vento! — diz o padre como única resposta. Os cães foram parando de latir, um depois do outro. Ouviu-se ao longe o mugido de uma vaca, ainda não totalmente despertada.

A porta do pátio rangeu de novo e o motorista surgiu no meio da escuridão. Eles se cumprimentaram. O motorista, tossindo por ter repentinamente respirado o ar frio da noite, abriu as portas e o general entrou no carro.

O motorista encaixou bem o saco a seu lado empurrando-o com o pé, e o padre se sentou no banco de trás.

O carro começou a andar. Os focos dos faróis deslizaram sobre as sebes escuras que ladeavam o caminho de cada lado, depois se estenderam diante deles na estrada principal. Assim que o carro começou a andar, o general se enrolou no casaco, encolheu-se no canto e fechou os olhos. Ele agora não escutava mais nada que não fosse o doce ronrom do motor, e tinha apenas um desejo: dormir. Mas não conseguia se impedir de trazer à lembrança, nos menores detalhes, tudo o que havia acontecido na festa.

"Eu preciso dormir", disse consigo. "Não quero me lembrar de nada. Nunca mais quero pôr os pés naquele lugar."

Mas, em pensamento, estava de volta à festa. Estava tirando o impermeável. Ia se sentar à mesa.

O padre, com a cabeça inclinada no peito, cochilava. A estrada, despertada de repente pelos faróis, saía só por um instante do caos da noite, cheia de sono e pálida, e mergulhava de volta logo em seguida. De cada lado apareciam de tempos em tempos as marcações dos quilômetros, todas brancas. Era uma brancura desagradável, que dava arrepios. Ao general, elas causavam a impressão de lápides.

O motorista freou de repente e o padre, surpreso, bateu com a cabeça no banco da frente.

— O que está acontecendo? — perguntou, atordoado.

O general, ainda entorpecido, olhou para fora. O carro havia parado na entrada de uma ponte. Ouvia-se abaixo o barulho da água.

— Por que você parou? — perguntou o padre. O motorista falou alguma coisa a respeito do motor e desceu fazendo a porta bater.

Os faróis projetavam seus focos paralelos entre os parapeitos da ponte. O motorista levantou o capô e se curvou sobre o motor, depois voltou para pegar uma ferramenta. Afastou o saco que o atrapalhava, puxou-o para fora e suspendeu o banco.

O general abriu a porta do seu lado e saiu do carro. Pôs-se a dar grandes passadas em volta do carro. O padre não se mexia. O motorista praguejou entre os dentes e voltou para pegar alguma coisa. O general tropeçou no saco pela segunda vez.

"Este saco", pensou de repente. "É este saco que quase acabou conosco. Até agora tudo vinha correndo bem, e foi só este saco sinistro surgir que tudo começou a dar errado."

— É este saco que está nos trazendo azar — falou, elevando a voz.

— Como é que você disse? — falou o padre.

— Eu disse que este saco está nos dando azar — repetiu o general.

Ao mesmo tempo, ele o empurrou com o pé com toda força.

O saco rolou para baixo e foi se estatelar no fundo, fazendo um grande barulho ao cair na água que corria.

— O que você fez? — bradou o padre saindo precipitadamente do automóvel.

— Este saco era de mau agouro — diz o general respirando com dificuldade.

— Nós o tínhamos finalmente achado! Há dois anos que o estávamos procurando!

— Sim, mas quase nos custou nossas cabeças — diz o general com um tom cansado.

— Você se dá conta do que acabou de fazer? — bradou o padre, acendendo na mesma hora sua lanterna de bolso.

Os dois se aproximaram da beira da estrada e olharam o fundo, de onde subia o barulho da água. As pequenas lâmpadas emitiam não mais que uma tênue claridade sobre o barranco escarpado.

— Não se vê nada — diz o general.

Ele se aproximou do motorista. Todos três procuraram com os olhos por alguns momentos no leito do rio.

— A água deve tê-lo levado — diz o general.

Sua voz traía o cansaço e o arrependimento. O padre lançou-lhe um olhar furioso e foi o primeiro a voltar para o carro.

— Que frio! — diz o general ao motorista. — E ainda mais este vento cortando o rosto!

Entrou no carro depois do padre. O carro voltou a andar. "Ele agora deve estar turbilhonando na correnteza escura como se estivesse num pesadelo", pensou o general. Fechou os olhos para não ver mais as marcações dos quilômetros e tentou dormir.


XXII

Dois dias se passaram. Era o último dia da estada deles na Albânia. O general se levantou tarde. Abriu as persianas. A manhã estava escura.

"Daqui a pouco vão ser dez horas", disse consigo. "Preciso pegar meu bilhete na agência das linhas aéreas. A missa vai ser às 11h15 e o banquete às quatro e meia, creio eu. Tenho um dia cheio pela frente."

O tampo de sua mesa de cabeceira estava cheio de cartas, telegramas, jornais e revistas que ele tinha recebido de casa.

Sobretudo muitas cartas. Às centenas, de todas as regiões de seu país. Elas continham toda sorte de histórias, de episódios da guerra, e às vezes também croquis de uma colina, de uma casa, ou o mapa completo de um vilarejo desenhado por um antigo combatente.

O general jogou envelopes e cartas na cesta de lixo e saiu. Desceu lentamente as escadas, percorreu o macio tapete do hall e, chegando ao escritório, pediu ao porteiro que chamasse o gerente do hotel, que se apresentou logo em seguida.

— Foi avisado de que teremos um pequeno banquete esta tarde?

— Sim, estará tudo pronto às quatro e meia no salão nº 3.

O general perguntou se alguém tinha visto o padre. Responderam que ele havia saído.

Reinava grande animação no hall e diante dos escritórios. Dois telefones tocavam sem parar e, diante dos elevadores, diversas pessoas esperavam, junto de suas malas. Alguns negros estavam sentados nas grandes poltronas, um grupo de chineses acompanhados de duas mocinhas passaram na sala do restaurante e, diante do posto telefônico, duas mulheres louras, austríacas aparentemente, esperavam uma ligação para Viena.

O general entrou no salão onde normalmente tomava café, mas não havia nenhuma mesa livre. Era a primeira vez em sua estada nesse hotel que via tamanha afluência de estrangeiros.

Voltou por onde tinha vindo, com a intenção de sair, e encontrou no hall outros africanos que entravam pela grande porta, com suas malas nas mãos.

Do lado de fora, debaixo dos grandes pinheiros, numerosos carros estavam estacionando.

"Que animação é esta?", perguntou-se descendo a escada. Dobrou à direita e começou a subir a grande avenida em direção aos ministérios.

Chegando à praça Scanderbeg, deparou-se com as bandeiras plantadas em torno do pequeno parque, estalando ao vento. Em cima dos altos postes, nas fachadas dos ministérios e nas colunas do Palácio da Cultura, lâmpadas estavam sendo fixadas e penduravam-se bandeirolas com slogans.

"Ah! Então é isso! A festa nacional deles é depois de amanhã, eu quase esqueci."

As calçadas estavam cheias de gente passeando. A multidão, como de hábito, juntava-se na frente dos cartazes de cinema que se alinhavam diante da grande torre do relógio. Ele olhou tudo bem depressa e, com o espírito ausente, deu mais dois passos e logo se esqueceu dos títulos dos filmes.

Olhou para o relógio de pulso. Eram 11 horas. "Vou apanhar meu bilhete depois da missa", pensou, e virou à esquerda. Diante do banco, exatamente atrás do café Studenti, nos pontos de ônibus, acotovelava-se uma multidão de viajantes. Era o terminal das linhas que serviam os complexos têxteis, os estúdios cinematográficos, o bairro afastado de Laprake e os subúrbios da capital. Havia sempre muita gente nesse local, mas a aglomeração naquele dia era ainda mais densa do que habitualmente, e não se podia dar um passo sem esbarrar em alguém. A igreja onde seria recitado o De profundis estava situada em um ponto mais distante e o general decidiu fazer o resto do trajeto a pé. Caminhava na calçada do meio pensando de novo nas cinzas do coronel.

"Agi precipitadamente, sem refletir." Ele não se lembrava mais muito bem como tinha acontecido. Lembrava-se apenas de ter estado de péssimo humor e meio aturdido. E de ter sentido a alma oprimida sob um grande peso. Mas agora seu gesto lhe parecia, retrospectivamente, inteiramente insensato.

Seja como for, tinha que haver um remédio para o caso. Ia falar sobre isso com o padre. Havia uma quantidade de soldados que media 1m82, a altura do coronel. Quanto aos dentes, podiam facilmente dar um jeito. E quem jamais iria duvidar que os restos do coronel não eram verdadeiramente os dele?

Depois tentou rememorar os soldados que tinham a mesma altura do coronel Z., mas foi em vão. Durante as buscas, cada vez que ouvia o perito dizer em voz alta: "Um metro e oitenta e dois", ele não conseguia se impedir de pensar: "Como o coronel Z."

Ele só se lembrava daquele aviador inglês que descobriram por acaso debaixo de uma vala em uma estrada de aldeia, e que eles reenterraram no mesmo lugar onde o haviam encontrado.

Lembrou-se em seguida do soldado do diário. Ele media exatamente 1m82. Ficou pensando no que aconteceria se eles substituíssem suas cinzas pelas do coronel. Imaginou a acolhida que a família do coronel e todos os seus próximos dariam aos restos daquele simples soldado, o serviço fúnebre grandioso e as exéquias solenes. Betty, de luto fechado, chorando e segurando pelo braço a velha mãe do morto, e a velha senhora não fazendo outra coisa senão falar do filho para todo mundo. Depois as cinzas do infeliz seriam carregadas para o magnífico túmulo de seu assassino, os sinos começariam a tocar, um general pronunciaria um discurso e tudo seria um ultraje à natureza, não passaria de infâmia, logro e profanação. E se de fato os fantasmas e os espíritos existissem, aquele soldado se levantaria do túmulo na mesma noite.

"Não!", disse a si mesmo o general. "Seria melhor encontrar um outro. Com certeza deve existir." Ele apertou o passo.

Não lhe restavam mais do que dois minutos antes da missa. Já enxergava a igreja, uma bela construção moderna, dando quase que diretamente para a rua. Diante do estreito adro, ao longo da calçada, enfileiravam-se luxuosos automóveis de marcas diversas.

"Membros do corpo diplomático", pensou o general, e galgou rapidamente os degraus de mármore. A missa acabara de começar quando ele entrou na igreja. Mergulhou o dedo na pia de água benta que ficava à direita, persignou-se e foi se postar em um dos lados. Olhou para o padre e ouviu-o falar, mas sem conseguir entender nenhuma de suas palavras. Via apenas a forração preta suspensa de todos os lados, como normalmente se faz nessas circunstâncias e, diante do coro, o caixão vazio, também ele envolto em um véu preto. As forrações e os trajes negros do público absorviam a fraca claridade dos círios; e, como as janelas estavam abertas muito no alto e a luz só penetrava fracamente pelos vitrais multicoloridos, a igreja parecia ainda mais escura e fria do que realmente era.

O padre rezava pelas almas dos soldados mortos. A insônia tornara seu rosto mais pálido e seus olhos pareciam cansados e atormentados. Os diplomatas escutavam, atentos, com o rosto rígido e grave, e, misturado ao odor dos círios, um ligeiro perfume flutuava dentro da igreja.

Uma mulher, na frente do general, começou a chorar em silêncio.

"É a mulher de um funcionário da nossa legação", pensou o general, reconhecendo-a.

A voz do padre atingia os quatro cantos da igreja, retumbante, solene: "Requiem aeternam donat eis!”

A mulher, redobrando os soluços, tirou o lenço da bolsa.

"Et lux perpetua luceat eis!", prosseguia o padre levantando os olhos na direção do Cristo na cruz.

Depois sua voz reboou, ainda mais profunda, mais solene: "Requiescant in pace!", disse afinal, e suas palavras ressoaram por todos os cantos da igreja.

"Amém!", disse o diácono. Durante alguns segundos, o general acreditou perceber o ligeiro sussurro dos círios acesos.

"Que descansem em paz!", repetiu, e uma repentina emoção o invadiu.

E assim que o padre, diante da assistência ajoelhada, levantou a hóstia e depois o cálice e se pôs em seguida a comer o pão e a beber o vinho para a salvação daquelas almas, o general acreditou de repente estar vendo os soldados mortos aos milhares, com suas vasilhas de alumínio na mão; eles estavam fazendo fila para a sopa do dia, diante do panelão de feijões, à hora em que os últimos raios do sol poente faziam resplandecer as vasilhas e o aço dos capacetes com reflexos vermelhos, eternos.

"E que a luz eterna os ilumine!", repetiu entre os lábios depois de se ajoelhar, fixando sobre o pavimento de mármore um olhar sombrio, desnorteado.

O sininho tocou e todos se levantaram. "Ite missa est", ressoou a voz do padre. "Deo gratias!", acrescentou o diácono. As pessoas se encaminharam para a saída. Do interior da igreja se ouvia o ruído dos motores começando a funcionar, e quando o general atravessou o portal, os carros dos diplomatas estavam arrancando, um depois do outro. Ele foi esperar o ônibus no ponto que ficava bem diante da igreja.

Uma vez dentro dele, permaneceu em pé no fundo do veículo, perto da grande janela de trás.

— Suas passagens, cidadãos — chamava a trocadora. Ele compreendeu a palavra "passagem" e se lembrou que devia pagar a sua. Meteu a mão no bolso e tirou uma nota de cem leks.

— O senhor não tem troco?

Ele adivinhou o pedido mais do que compreendeu, e fez que não com a cabeça.

— São três leks — diz a trocadora fazendo um sinal com os dedos. — O senhor não tem três leks trocados?

O general sacudiu de novo a cabeça num gesto de negação.

— É estrangeiro, camarada — disse um menino alto com voz calma, dirigindo-se à trocadora.

— É o que estava imaginando — disse ela, e começou a contar seu dinheiro para devolver o troco.

— Deve ser um albanês que voltou dos Estados Unidos — interveio um velho sentado perto da trocadora. — Alguns esquecem por completo nossa língua.

— Não, vovô, é estrangeiro, tenho certeza — insistiu o menino que falava calmamente.

— Escute o que estou lhe dizendo — insistiu o velho —, eu os reconheço só de olhar, é um deles.

O general percebeu que falavam dele e acreditou que o estivessem tomando por um americano.

"Eles podem achar o que bem quiserem", disse consigo mesmo.

O ônibus parou diante do Banco do Estado e, quando os passageiros desceram, ele cruzou de novo com o olhar do velho.

“All right!”, o velho lhe lançou sorrindo, ar satisfeito, antes de se afastar.

O general foi abrindo caminho entre os aldeões que esperavam o ônibus para Kamzë e Yzberish e chegou à grande avenida. Não precisou esperar na agência das linhas aéreas. Tão logo pegou seu bilhete, colocou-o no bolso e saiu novamente.

Na rua Dibër havia uma multidão nas calçadas, sobretudo diante das lojas de frutas e legumes, dos restaurantes e das Grandes Lojas Populares. Ao passar por elas, teve a ideia de comprar uma lembrança.

Parou para olhar as vitrines e depois entrou. Uma quantidade de bibelôs estava exposta sobre as prateleiras e ele os olhou um de cada vez, sem se apressar. Sempre tivera um fraco por esses pequenos objetos folclóricos.

"O que os nossos soldados poderiam ter escolhido ao deixar a Albânia?", se perguntou. "No estrangeiro, todos eles sempre compram praticamente o mesmo bibelô. Seus telegramas também são idênticos. E também suas cartas são quase todas iguais."

De repente, o gnomo recomeçou a tocar o tambor dentro de seu crânio; primeiro em um ritmo lento, depois cada vez mais rápido, mais rápido, mais rápido ainda. Só que agora ele não estava mais sentado à maneira turca dentro da sua cabeça, ele estava de pé, branco, preto e luzidio, com sua túnica vermelha de listras pretas e um barrete na cabeça. E ao mesmo tempo ele estava ali, dentro da vitrine, em pé batendo tambor, todo de porcelana, cintilando, e o general não conseguia desviar os olhos dele.

Ele o apontou com o dedo.

— O montanhês de tambor? — perguntou a vendedora.

O general fez um sinal afirmativo com a cabeça. A mocinha tirou o objeto da vitrine, embrulhou-o e entregou-lhe.

— São 18 leks e vinte, por favor.

Ele pagou e em seguida saiu, na direção da rua das Barricadas.


XXIII

Bum, bum, bum, tarabum...

— Hello!

O general se virou, surpreso. — Hello! — respondeu.

O tenente-general estava ali, diante do hotel, em pé na calçada. Como sempre, tinha a manga esquerda do casacão enfiada no bolso grande e segurava o cachimbo com a única mão.

— Como vai?

— Mal. E você?

— Também não estou me sentindo bem.

O tenente-general deu uma cachimbada, depois tirou o cachimbo da boca e seguiu com os olhos a fumaça que acabara de expirar.

— Antes de mais nada, apesar de já fazer muito tempo, quero lhe pedir desculpas pelo incidente do ano passado; nós recebemos sua reclamação. Pode acreditar que não tive culpa e que fiquei de fato muito aborrecido com o que se passou.

O general dirigiu-lhe um olhar ausente.

— E de quem foi a culpa?

— Do meu adjunto. É dele a culpa de todos os transtornos. Que tal se fôssemos nos sentar em algum lugar? Eu lhe contarei toda essa história em detalhes.

— Lamento, mas não tenho tempo agora. Podemos falar um pouco em pé mesmo.

— Então é melhor deixarmos para esta noite. Mas me diga desde logo, como andou seu trabalho?

— Mal, como eu lhe disse — respondeu o general. — As estradas eram muito difíceis.

— É, eu sei.

— E ainda por cima um de nossos operários morreu.

— Morreu? De quê? Aconteceu algum acidente?

— Não. Uma infecção.

— De qual origem?

— Não ficou muito claro. Uma ossada, talvez, ou um fragmento de metal.

O tenente-general fez um gesto de surpresa. — E vocês com certeza vão ter que dar uma indenização à família dele?

O general fez um sinal afirmativo com a cabeça e, após um curto silêncio: — Nunca tinha visto tantas montanhas! — diz.

— E ainda vai ter que ver mais!

— Não, nós acabamos; foi nossa última excursão.

— Vocês acabaram! Vocês tiveram sorte! Ainda vou ter que ver uma porção delas.

— Montanhas por todo lado e rapazes e moças preparando campos de plantação em terraços. Você os viu?

— Claro. Não fazem outra coisa senão cavar, cavar.

— Desmatam terras novas para cultivar cereais.

— Eu vi um lugar em que semearam dos dois lados da via férrea.

— Eles semeiam em toda parte. Deve ser porque as terras atualmente cultivadas não são suficientes.

— Seguramente estão satisfeitos de nos ver levar nossos soldados.

— Sim. Os terrenos dos cemitérios esvaziados são imediatamente semeados. Isto se chama despojar o solo de seu elemento heroico.

O general começou a rir.

— E o seu trabalho, como vai indo?

— Bem mal — respondeu o outro. — Já faz perto de 18 meses que percorremos a Albânia por montes e vales, mas até o presente sem grandes resultados.

— Contratempos, não foi isso que você disse?

— Sim, inúmeros — disse o tenente-general suspirando. — E, como se não bastasse, nos aconteceu uma história desagradável.

— O que foi?

— Uma história lamentável. Não reparou que estou sozinho? Aliás, eu queria justamente lhe perguntar: onde está seu colega, o reverendo padre?

— Lá em cima, no quarto, creio.

O outro começou a rir. — Tive um pensamento maldoso — disse. — É que o meu prefeito deve estar tendo aborrecimentos.

— O que aconteceu com ele?

— Foi chamado com urgência — disse o tenente-general. — Já faz algumas semanas que suspendemos nossas buscas por causa dele.

— E você não sabe por que ele foi chamado?

— Tenho minhas suspeitas, e é enorme a probabilidade de que eu não esteja enganado. Se esse escândalo estourar na imprensa, a questão vai acabar mal.

— Por um acaso ele teria desviado fundos destinados às buscas?

— É mais grave ainda. Você sabe que não dispomos de listas precisas — retomou o tenente-general. — Além disso, ao que parece, muitas famílias, sobretudo famílias de oficiais, prometeram grandes recompensas aos encarregados das buscas. Naturalmente não a mim — acrescentou rindo. — A mim ninguém teria a audácia de fazer uma proposta dessas. Mas meus subalternos certamente receberam tais ofertas.

— É bem possível — diz o general.

— Mas não é aí que está o mal. Pois, afinal, qualquer um tem o direito de retribuir algum serviço. O mal está em outro lugar, e talvez nada tivesse acontecido se, em vez de despachar os restos dos soldados em contingentes sucessivos, à medida que iam sendo encontrados, nós os tivéssemos juntado de uma vez só, como vocês fizeram.

— De fato, nós agrupamos um exército inteiro — diz o general.

— Se não tivéssemos enviado os nossos em grupos sucessivos, o segredo não teria sido descoberto tão depressa, pois a ninguém teria ocorrido a ideia de verificar se o tamanho de um esqueleto reconstituído a partir da ossada correspondia exatamente à altura do soldado morto.

— E quem foi que constatou?

— Aparentemente uma família descobriu a primeira substituição; e, você sabe como é, basta que uma história desse tipo venha à tona para que tudo se precipite, e aí as suspeitas não param mais.

— Em outras palavras, seus subalternos cometeram erros na identificação dos despojos.

— Na verdade, eu diria que eles batizaram as cinzas de soldados desconhecidos com os nomes que as pessoas lhes tinham particularmente recomendado procurar. Em suma, se essa história for verdadeira, estaremos diante de uma tremenda fraude. Os restos foram enviados a famílias às quais não pertencem.

— E isso foi feito em boa consciência e a sangue-frio.

— Tudo leva a crer que sim, uma vez que não tive mais nenhuma notícia do meu prefeito.

— Ele suspeitou da razão de ter sido chamado?

— Não, ele recebeu um telegrama avisando-o de que a mulher estava de novo doente. Mais tarde eu mesmo recebi uma carta de um amigo do ministério.

— História sinistra — diz o general.

— Há quem diga também que faltava em numerosos crânios uma porção de dentes de ouro que, sem a menor dúvida, deviam estar lá — acrescentou o tenente-general.

— Mas vocês não tinham que redigir um relatório para cada tumba aberta?

— Não — diz o outro. — Nem mesmo mencionar os dentes de ouro ou os anéis de valor que encontrássemos.

— É de fato muito desagradável.

— Estou chegando no meu limite. Estou inteiramente só. Como o invejo por estar partindo amanhã!

O general acendeu um cigarro.

— É sobretudo quando a noite chega que as horas me parecem intermináveis. É ainda mais deprimente do que correr montes e vales e ter que dormir em barracas.

— Não há o que dizer!

— E imaginar que há um ano e meio não fazemos outra coisa senão correr de uma montanha a outra e de um vale a outro, como se fôssemos geólogos! E logo agora, bem no fim, nos acontece essa complicação.

— Você falou muito bem, como geólogos.

— E pense um pouco no mineral que procuramos — diz o tenente-general. — Um elemento que a morte criou.

O general sorriu. — Você vai me desculpar — diz o general olhando o relógio. — Tenho um dia muito carregado.

— Tenho a impressão de que vai ser um dia bem animado para todo mundo.

— Como toda véspera de festa.

— É a maior festa deles, dizem.

— Sim. A festa da libertação, é como a chamam.

— Não quero retê-lo, meu general. Espero que possamos nos rever esta noite.

— Estarei por aqui. Volto ao hotel assim que tiver terminado.

— Então até mais tarde.

O general jogou fora o cigarro e se dirigiu ao elevador mas, no último momento, fez meia-volta e foi na direção do colega.

— Não daria para fazer alguma coisa por aqueles 11? — perguntou-lhe.

O tenente-general encolheu os ombros. — Vai ser difícil, muito difícil — diz.

— Mas por quê? Vocês devem ter os endereços das famílias para as quais foram enviados.

O general sorriu amargamente.

— Fácil de dizer, mas pense bem no drama que seria para essas famílias se lhes pedíssemos para restituir as cinzas!

— Isso é uma razão suficiente?

— Há mais — diz o tenente-general —, isso não é nada comparado às outras complicações de ordem jurídica. De todo modo, esta noite tornaremos a falar disso com mais tempo.

— Está certo — disse o general, e sumiu dentro do elevador.


XXIV

Eram 5h15 quando a recepção chegou ao fim. O general esperou que os convidados tivessem ido embora e, uma vez sozinho com o padre, bebeu de uma só vez dois copos de conhaque; em seguida saiu da sala sem se despedir.

"Mais uma formalidade terminada", disse consigo, aliviado, ao se ver na rua. "Quanto à animação, pode-se dizer que não foi grande coisa, mas de todo modo acabou!"

Em nome de seu povo e de milhares de mães, ele agradecera às autoridades albanesas por todas as facilidades que lhe tinham sido concedidas durante as buscas. O deputado albanês, que os acolhera quando desceram do avião, respondeu que nada tinham feito além de cumprir um dever humanitário em relação a outro país com o qual desejavam viver em paz. Em seguida tinham brindado e, por trás do leve tilintar cristalino dos copos, tinha-se a impressão de ouvir o ronco longínquo do canhão. "Ninguém pode suprimir esse som ensurdecido", dissera consigo mesmo o general, "e todos aqui o percebem sem querer confessar."

Caminhava lentamente no meio da multidão que se apressava nas ruas, e por todos os lados ressoava em seus ouvidos aquele falar estrangeiro misturado ao zumbido da cidade.

Na praça Scanderbeg havia um concerto ao ar livre. Um estrado havia sido construído diante do Palácio da Cultura. Acima do palco, sobre as colunas de mármore, as lâmpadas coloridas instaladas para a ocasião não paravam de piscar.

Abriu caminho através da maré humana e ficou na ponta dos pés para poder ver melhor. Atrás dele, do balcão do edifício do Comitê Executivo, dois projetores despejavam suas luzes sobre as costas da multidão e ouvia-se, vindo um pouco mais de longe, o zumbido de um motor. Aparentemente, estavam passando um filme.

O general, com o espírito ausente, observava os dançarinos evoluindo em cima do palco.

"O ronco vinha de lá", repetiu consigo mesmo, "lá detrás dos copos transparentes de cristal; e não vinha apenas o ronco dos canhões, vinham também a crepitação das metralhadoras, o estalo das baionetas e o tilintar das vasilhas quando a noite está chegando, na hora da distribuição da sopa. Naquele tilintar de copos havia tudo isso, e todos estavam conscientes, todos se davam conta."

Sentiu por um instante doerem-lhe os olhos sob a poderosa luz esbranquiçada dos holofotes. Milhares de cabeças humanas agora projetavam suas sombras sobre a praça, e as manchas escuras resultantes produziam um estranho efeito.

Ele se sentiu presa de calafrios e começou a dar cotoveladas para tentar sair do meio daquela massa humana. Os holofotes se deslocavam continuamente fazendo oscilar uma faixa de luz ofuscante, ora no alto, ora mais abaixo, ora exatamente em cima das cabeças humanas, que então se mexiam, inquietas, fazendo oscilar as sombras.

O general se livrou da multidão e foi andando ao longo do parque, pela avenida que ia até o seu hotel.

Ele revia, sentados frente a frente, os representantes dos dois povos e dos dois Estados, separados apenas por algumas garrafas e algumas bandejas de frutas.

"É apenas isto que nos separa?", se perguntara o general quando eles haviam brindado pela primeira vez. "Nada além destas garrafas coloridas e destas belas frutas frescas, colhidas nos pomares e nos vinhedos do litoral?" Então ele se lembrara dos vinhedos e dos pomares mergulhados na penumbra da noite, de cada lado dos caminhos, a se destacarem, esmaecidos, à luz do luar; e do latido longínquo e solitário de um cachorro e, mais longe ainda, do clarão de alguma fogueira de pastores.

— Há um telegrama para o senhor — diz o porteiro do hotel ao entregar-lhe a chave do quarto.

— Obrigado.

No papel amarelo havia a pequena inscrição Urgente. Ele abriu e leu: "Tomamos conhecimento final sua nobre missão. Favor informar questão coronel. Família Z."

Sentiu o sangue afluir à cabeça. Suas têmporas batiam a ponto de estourar. Fez, contudo, um esforço para se dominar; dirigiu-se lentamente ao elevador e a porta se fechou atrás dele.

"Como é que você foi se meter numa história destas?", disse consigo, olhando-se no espelho. Viu-se pálido, desfigurado, com as rugas indeléveis na testa, aquelas três profundas rugas, a do meio um pouco mais profunda do que as outras duas, parecidas com as linhas que as datilógrafas fazem no final de um relatório.

Entrou no quarto, acendeu a luz; o primeiro objeto que chamou sua atenção foi o pequeno montanhês de porcelana batendo tambor em cima da pilha de cartas e de telegramas amontoados sobre a mesa de cabeceira.

Deitou-se e tentou dormir. Do lado de fora, crepitavam fogos de artifício. As luzes multicoloridas que penetravam através das persianas se projetavam em tiras sobre o teto e sobre as paredes do quarto. Revia-se naquele grande auditório, no quartel, vinte anos antes, quando estivera sentado junto com outros oficiais à longa mesa do conselho de revisão. Acontecia frequentemente chegar-lhes às mãos radiografias de recrutas. Eles as colocavam contra a luz e examinavam as costelas escuras acima de suas cabeças; ouvia-se em seguida uma única palavra, pronunciada com um tom de voz enfastiado e displicente: "Bom!" Normalmente eles diziam "Bom", mesmo que encontrassem uma manchinha entre as costelas. Era somente se as sombras fossem muito visíveis para não poderem ser notadas que eles murmuravam: "Reformado." E continuava assim o dia inteiro, e a cada dia os conscritos, de cabeça raspada, eram encaminhados diretamente para as casernas e, de lá, para o front, onde a guerra acabara de começar.

Os reflexos de luz, cortados em tiras pelas persianas, não paravam de andar em círculos dentro da sua cabeça. Fechou os olhos para não ver mais nada. Mas, mal fechava as pálpebras, aparecia-lhe mais nitidamente ainda a grande peça sem mobília do quartel e, diante da longa mesa, os recrutas aparvalhados, completamente nus, lembrando círios brancos, inteiramente brancos.

O general se levantou. Era a hora do jantar. Saiu para o corredor para procurar o padre. Uma arrumadeira que estava passando disse que ele havia saído. Voltou para o quarto e chamou pelo telefone o porteiro para lhe perguntar se o tenente-general estava no hotel.

No corredor, deu com ele vindo em sua direção.

— Eu estava justamente indo procurá-lo — ele falou —, o porteiro me disse que você estava no quarto.

— Venha, entre, por favor — diz o general dando meia-volta.

— Estava de saída?

— Sim, mas não faz mal.

— Que tal se fôssemos para o salão?

— Como você quiser.

Desceram a escada de mármore lentamente, em silêncio. Embaixo, o hall continuava tão animado quanto de manhã e os dois telefones não paravam de tocar.

— São novas delegações chegando — diz o tenente-general.

Conseguiram com esforço um lugar para sentar, em um canto do salão. Da janela perto deles, que dava para a grande avenida, podiam ver as pessoas passeando, e, no céu, os feixes da luz intensa dos foguetes se abrindo e depois caindo como uma neve espessa e multicolorida sobre a multidão e sobre as árvores escuras do parque; ao cabo de um instante as luzes morriam e tudo mergulhava novamente numa escuridão que parecia ainda mais profunda.

Um dos generais pediu raki, o outro pediu conhaque. Da taberna do andar inferior chegavam os sons da orquestra, e a escada de madeira que ia até lá rangia constantemente sob os passos dos frequentadores que subiam e desciam.

Eles brindaram e começaram a beber. Depois ficaram um bom tempo em silêncio. O general encheu de novo os copos. Parecia mais fácil do que entabular a conversa.

Do lado de fora, os foguetes crepitavam e seus reflexos vez por outra chegavam até a janela.

— Estão festejando a vitória! — diz o general.

— Sim, isso mesmo.

Olharam o céu se iluminar como se um gigantesco e resplandecente capacete estivesse descendo, espalhando mil centelhas, para subitamente empalidecer, esfriar e se apagar no centro da noite.

— Bonita missão essa nossa!

— É ainda mais assustadora do que a guerra — diz o tenente-general. — Eu fiz a guerra, mas isso aqui é muito mais horrível!

O general olhou para a manga vazia enfiada dentro do bolso da túnica.

"Dá para ver muito bem que você fez a guerra!", pensou.

— Isso aqui é a própria guerra — diz o sem braço. — Esses restos constituem sua essência, aquilo que subsiste no final, como o precipitado de uma reação química.

O general sorriu amargamente. Encheu os copos. Eles continuavam ouvindo a música que subia da taberna.

— Você com certeza sabe que os pescadores de pérolas às vezes estouram os pulmões quando mergulham em grandes profundidades. Pois bem, ao executar esse tipo de trabalho, também sentimos o coração explodir.

— É verdade, é lúgubre a ponto de nos fazer explodir. Fomos vencidos pela sombra das armas deles. O que teria se passado se tivéssemos realmente lutado?

— Se nós tivéssemos lutado? Talvez tivesse sido até melhor!

— Sou da mesma opinião.

— Embora a guerra de montanha seja muito desgastante — retomou o general. — Sobretudo em montanhas como essas. Eu comecei um estudo sobre esse assunto, mas desisti no meio do caminho. A guerra aqui seria ainda mais dura do que a que os americanos estão fazendo na selva do Vietnã.

O tenente-general concordou.

— Se nós tivéssemos realmente lutado? — prosseguiu o general. — Aí, então, dentro de vinte anos, jovens colegas nossos viriam procurar nossas cinzas.

"E você não sairia dela com um braço a menos!", pensou.

— E quem sabe não estariam justamente bebendo nesta mesa, falando de nós?

— É bem capaz — aquiesceu o outro.

— Sabe de uma coisa? — diz o general. — Uma vez eu disse ao padre que veio comigo que as conversas que tínhamos me lembravam os diálogos de certas peças de teatro de hoje em dia. Nossos temas também se parecem. Qual a razão de nos expressarmos com frases tão pouco naturais, tão cáusticas, só para causar efeito?

— Porque nós somos homens, e por isto temos nervos — diz o tenente-general com um tom de voz seco.

O general o observou. — Talvez você tenha razão.

— Há pessoas que só apreciam comidas muito temperadas, não é mais ou menos a mesma coisa?

O general começou a rir. Ouvia-se a música subindo do subsolo, e a máquina de café deixava escapar de tempos em tempos um ligeiro assobio de vapor, como uma pequena locomotiva.

— Você se lembra daquele estádio de que lhe falei na noite em que nos conhecemos — diz o tenente-general —, o estádio de nossas buscas naquela época?

— Aquele onde lhe recusaram a permissão de iniciar os trabalhos antes do fim do campeonato?

— Sim, esse mesmo.

— Eu me lembro, sim, vagamente. Vocês começaram a cavar nas laterais, creio, e você me descreveu como a chuva escorria pelas arquibancadas de cimento.

— Sim. As fossas faziam balizas com suas marcas negras em toda a volta dos campos de futebol e de basquete, e a água escorria pelas longas arquibancadas. Mas não era nisso que estava pensando.

— Era em que, então?

— Por um acaso cheguei a lhe falar de uma moça que vinha esperar o namorado todas as tardes nas horas de treino?

— De fato, você me contou alguma coisa a esse respeito, mas não me lembro mais muito bem.

— Pois bem, ela vinha todas as tardes, e quando chovia ela puxava o capuz da capa e ficava lá, num canto do estádio, embaixo dos pilares da tribuna, seguindo com os olhos o noivo correndo pelo campo.

— Ah, sim, estou me lembrando — diz o general. — Ela usava uma capa azul, não é?

— Sim, exatamente — diz o tenente-general. — Ela usava uma bonita capa de chuva azul, e seus olhos eram de um azul ainda mais claro, apesar de um pouco frios, mas creio nunca ter visto olhos tão bonitos. Ela ia lá todos os dias, enquanto continuávamos cavando sem parar até esburacar todo o entorno do terreno.

— E depois, o que foi que aconteceu? — perguntou o general com indiferença.

— Nada, nada de especial. Quando a noite se aproximava os rapazes paravam o treino, e aí um deles passava o braço nos ombros dela e os dois iam embora assim abraçados, juntos. E nesse momento, acredite, eu sentia tamanho vazio em volta de mim, o coração me pesava tanto, que o mundo me parecia deserto e sem nenhum sentido, como aquele estádio escuro e vazio. E isso numa idade como a minha, você acredita?

"Ah! O belo amante!", pensou o general.

— Coisas que acontecem na vida — prosseguiu o outro. — No momento em que a gente menos espera, um sonho louco, insensato, começa a germinar em nossa cabeça como uma flor que brota na beira de um precipício! O que eu podia fazer, eu, um general estrangeiro, e ainda por cima inválido e na hora de ir embora? O que podia fazer com aquela moça estrangeira, eu que tinha vindo a este país para recolher os restos de meus compatriotas?

— Nada, com certeza nada. Mas, com relação a pensar nela, você tinha toda a permissão. Acontece a todo mundo perseguir uma quimera, sobretudo quando se trata de mulheres. Veja, no ano passado, na praia...

— Às vezes — interrompeu o sem braço —, eu atribuía o estado de prostração no qual caíra ao fato de ela ter passado a ocupar inteiramente meu pensamento, mas não conseguia entender minha tristeza. Não era propriamente a moça o que mais me perturbava, mas uma outra coisa, indistinta, abstrata, algo que me atingia indiretamente. Você me compreende?

— Acho que sim. O que o perturbou nela, me parece, foi sua juventude, a própria manifestação de vida. Já faz tanto tempo que percorremos montanhas e vales como hienas farejando a morte onde ela estiver encafuada, procurando mil maneiras de fazê-la sair da toca... que acabamos quase esquecendo de tudo que há de belo nesta terra.

— Talvez você tenha razão. Sempre temos necessidade de nos agarrar a alguma coisa, como o náufrago a uma tábua! E eu me agarrei na imagem daquela mocinha.

O sem braço esboçou um sorriso que morreu nos lábios.

— Uma noite eu resolvi ir a uma festa de casamento deles, e cheguei a me levantar para ir dançar com eles — diz o general.

Mas o outro não o deixou prosseguir.

— Pois bem — retomou —, a despeito dos meus cabelos grisalhos e do meu braço amputado, sabe o que foi que eu fiz quando voltamos um mês depois àquela cidade? Fui sozinho ao estádio uma tarde, exatamente na hora habitual do treino dos jogadores. Mas o estádio estava fechado, não havia treino naquele dia. Mesmo assim pedi ao guarda para entrar e ele me abriu o portão. O estádio estava mais triste e deserto do que nunca. As fossas tinham sido enchidas, mas ainda dava para distinguir as marcas, como se fossem feridas cicatrizadas na superfície do solo. Dei uma volta e cheguei perto dos pilares da tribuna, no local onde a moça costumava ficar esperando em pé. Senti uma tristeza tão profunda me invadir na hora que cheguei a pensar, naquele instante, que toda a minha vida seria esmagada por aquelas arquibancadas úmidas, curvas, aquelas arquibancadas cinzentas, vazias, descrevendo círculos até nunca acabar. Está me escutando?

— Claro — diz o general. — Estou escutando.

Eles bateram os copos e beberam. Do lado de fora, fazia muito tempo que os foguetes não iluminavam mais o céu e, naquela hora, o grande parque que ficava em frente, erguendo-se como uma parede escura dentro da noite, mal dava para ser entrevisto.

Eles estavam sentados de frente um para o outro, sem falar, quando o porteiro lhe entregou um segundo telegrama.

— Do que se trata? — perguntou o tenente-general.

— Um telegrama como os outros. — O general encheu os copos. — Eles ficam enviando uma correspondência atrás da outra, achando que podemos resolver qualquer coisa com essas solicitações.

O tenente-general fixou nele seus olhos cansados e esteve a ponto de lhe fazer uma pergunta, mas julgou preferível calar-se e acender um cigarro.

— Sabe o que uma velha deste país me disse uma noite numa festa de casamento? — perguntou o general. — Que eu tinha vindo aqui para ver como elas casavam os filhos e retornar um dia para matá-los.

— São insinuações despropositadas.

— Insinuações despropositadas? Ah, imagine o que você diria se soubesse o que aconteceu em seguida!

— Beba, colega — diz o tenente-general. — À sua saúde! Eu lhe desejo uma boa viagem de volta. Como o invejo!

— Obrigado, colega.

O general sentia que a embriaguez o tomava. O salão ia se esvaziando pouco a pouco e a escada da taberna estalava mais raramente, mas ainda se ouvia a música.

— E o que aconteceu com o seu reverendo padre? — perguntou de repente o tenente-general.

— Não tenho ideia. Deve estar em algum lugar por aí, respondendo a esses telegramas.

O outro o olhou de novo com surpresa e ia lhe perguntar por que, mas mudou de ideia e disse: — Sabe o que me aconteceu uma vez numa aldeia? O solo era duro, arenoso e salgado. Tínhamos muita dificuldade para cavar. Quando abrimos as tumbas, encontramos os despojos intactos. Foi um espetáculo impressionante. Tivemos que encomendar grandes caixões, como se fossem para mortos de verdade.

— É curioso — diz o general. — De minha parte, nunca vi isso.

— Mas isso não foi tudo — diz o outro. — A história se espalhou por toda a região e depois de alguns dias um aldeão compôs uma canção a respeito.

— Uma canção?

— Claro, uma canção. Cheguei até a transcrever a letra. Está lá em cima no meu quarto. A ideia era mais ou menos a seguinte: que a terra não absorve o corpo dos invasores, ou que se recusa a fazê-lo, ou alguma coisa aproximada. Ao que parece, os albaneses acreditam que é efetivamente assim, eles conhecem mal a química.

— Mas a guerra eles conhecem bem! Chegamos a ouvir uma vez um canto que primeiro tomamos por uma provocação — diz o general. — Mas era uma velha canção, por sinal uma canção de amor.

— Ah, sim? — diz o outro com um tom indiferente.

— A letra era mais ou menos assim: "Oh, linda Hanko, você que é bela como o dia, não fique passeando entre as tumbas senão você vai ressuscitar os mortos."

— Ora vejam — diz o tenente-general.

Conversaram durante muito tempo, sobre variados assuntos, mas a guerra e os cemitérios voltavam constantemente à conversação. "Cada um dos nossos pensamentos tem uma tabuletinha de ferro igual àquelas", pensava o general. "Uma plaquinha com uma inscrição apagada e enferrujada, que mal dá para ser lida. A tabuleta range quando tem vento, o que acontece quase todo o tempo. Como naquele vale onde as placas e as cruzes estavam todas inclinadas para o oeste. E quando nós perguntamos por que elas estavam todas inclinadas no mesmo sentido, os aldeões nos explicaram que era o efeito do vento que soprava sempre na mesma direção."

O salão estava quase inteiramente vazio quando chegou o telegrama seguinte. O general o pegou da mão do empregado e o abriu sem sequer verificar a procedência.

Amassou-o fazendo uma bola, da mesma maneira que o precedente, sem completar a leitura, e o largou no cinzeiro.

— Esta noite você está recebendo telegramas bem misteriosos.

O general não respondeu. O outro deu um suspiro. — Eu temo os telegramas que chegam à noite.

Ainda se ouvia a música vindo de baixo, mas as pessoas que usavam a escada de madeira eram cada vez mais raras.

— Que horas são? — perguntou o general.

— Quase meia-noite.

"É melhor eu não ficar bêbado", pensou. "É tarde. Mas mesmo assim eu ainda posso tomar um ou dois copos.

— Eu gostaria de lhe perguntar — disse, inclinando-se para a orelha do companheiro — se alguma vez já bebeu com um padre.

— Um padre? Não, não que eu me lembre. De todo modo, eu não poria minha mão no fogo.

O general não pôde se impedir de virar os olhos mais uma vez para a manga vazia, enfiada no profundo bolso da túnica.

"Para quem tem apenas uma das mãos, você se arrisca um pouco demais."

— Não, não que eu me lembre — repetiu o tenente-general.

O general sacudiu a cabeça alguns instantes.

— É, a vida é assim — disse, sonhador; um dia se viaja debaixo de chuva, e no dia seguinte, bebe-se alguma coisa com um padre. Não é verdade?

— Sim, com certeza.

— Você realmente tem a mesma opinião que eu?

— Como você pode ter alguma dúvida?

— Desculpe. Peço perdão por estar insistindo.

— Não tem problema.

— Hahã.

O general, com os olhos fixos no cinzeiro, fez um gesto de espanto.


XXV

— Já passa da meia-noite — diz o general —, acho que vão fechar o salão.

— Também tenho esta impressão.

— E se nós subíssemos para o meu quarto? Podíamos ainda conversar um pouco. Mas você está esquecendo a garrafa!

— Claro! Desculpe.

— Se você não tiver nada contra, acho que ela ainda pode nos ser útil.

— Sim, seguramente.

— Estamos prestes a concluir nossa missão e ninguém tem que se meter nas nossas questões.

Subiram, titubeando, a escada do hotel, cada um com uma garrafa na mão.

— Não vamos fazer barulho — diz o general. — Os albaneses se deitam cedo.

— Me dê a chave, tenho a impressão de que suas mãos estão tremendo.

— O essencial é não fazer barulho.

— Pois quanto a mim, preciso de barulho — diz o tenente-general. — O silêncio me assusta. Essa guerra que estamos fazendo é silenciosa como um filme mudo. Prefiro escutar o canhão roncar. Mas estou falando como um personagem de drama, não é verdade?

— Psiu! Tem alguém tossindo.

— Me dê sua chave. Que guerra muda! Pode-se dizer que é uma verdadeira guerra de mortos.

— Entre, por favor. Sente-se. Fico muito contente de você estar aqui.

— Eu também de estar com você.

Sentaram-se à mesa, um diante do outro, e se olharam com emoção. O general encheu os copos.

— Não passamos de duas aves migratórias sentadas mesa bebendo raki e conhaque — diz o tenente-general, perturbado.

O outro fez que sim com a cabeça. Eles ficaram um bom tempo sem falar.

— Nós nos desentendemos por causa do saco — terminou por dizer o general franzindo as sobrancelhas.

Ele começou a olhar fixamente para o colega, parecendo querer se lembrar de alguma coisa. Depois, com um tom de confidência, murmurou: — Eu o empurrei para o abismo.

— Mas você acabou de me dizer que ele estava no quarto!

— Eu estava falando do saco — diz o general.

— Ah, ah, entendo. Evidentemente.

— Ele queria me impedir de jogar o saco na água — retomou o general — e eu queria desesperadamente me livrar daquelas ossadas.

— Muito justo. Afinal de contas, qual a importância de um mero saco? — diz o tenente-general, dando uma baforada no cigarro.

— Sim, mas vá convencê-lo.

— É por isso que você o empurrou para dentro do abismo?

— Não, ele não, o saco.

— Ah, sim! Me perdoe.

"Era uma vez um carro e um caminhão que rodavam sob a chuva", imaginava o general. Depois falou de novo em voz alta: — Era uma vez um carro e um caminhão que rodavam sob a chuva...

— O que você está dizendo? — perguntou o outro. — Você cuida de questões de tráfego?

— Não, é o começo da segunda história que vou contar para a minha neta.

— Você coleciona histórias?

— Claro.

— Como eu imaginava. No meu caso, o problema das fábulas sempre me interessou muito.

— É um problema muito importante.

— Insolúvel!

— É muito gentil de sua parte admiti-lo.

— Já falamos demais — diz subitamente o tenente-general com um tom cortante.

O general o encarou com um ar estupefato, mas na mesma hora seu pensamento passou para outra coisa.

— Tenho quatro padres entre os meus mortos — disse.

— Já eu não tenho nenhum — disse o outro, com um ar contrariado.

— Você também não chegou a ter uma puta.

— Não, puta de fato não.

— Não se aborreça, ainda vai ter tempo de encontrar uma.

— Não é impossível — murmurou o tenente-general.

— Acha-se de tudo sob a terra. Onde é o banheiro?

— Lá. Atrás daquela porta. O general ficou um tempo sozinho, sentado à mesa. Finalmente o outro voltou.

— Uma vez chegamos a achar em um vale, misturadas aos restos de nossos soldados, ossadas de mulas — ele disse.

O general estremeceu. — Primeiro eu protestei junto ao governo albanês. Acreditei que era uma provocação.

— E depois?

— Não era nada disso. Na verdade, tinham sido os nossos que os haviam enterrado às pressas; um de nossos batalhões punitivos.

O tenente-general arrastava as palavras com dificuldade e, sob o efeito da embriaguez, seu rosto se tornara pálido.

— Generais incompetentes! Eu vim recolher os destroços de suas derrotas! — diz o general.

— Não é necessário ofendê-los. A tarefa deles não foi nada fácil.

— A nossa foi ainda menos.

Ficaram ali, durante um tempo, em silêncio.

— Se você tivesse visto o olhar dele! — retomou o general.

— De quem?

— Do motorista albanês.

— E por que ele olhava para vocês? Posso perguntar?

— Quem? O motorista?

— Quem mais poderia ser?

— Não sei. O fato é que ele ficou olhando para nós com um ar estranho enquanto discutíamos.

— As ossadas de mulas são muito diferentes das ossadas humanas. Qualquer um pode distingui-las a olho nu.

— É claro. Creio que o esqueleto humano se compõe de 507 ossos.

— Não é verdade, colega — diz o tenente-general com um ar contrafeito. — Nem sempre é verdade. Veja o meu caso, eu tenho menos.

— Não é possível.

— Mas é assim mesmo — insistiu o outro, com uma voz rouca. — Eu tenho alguns ossos a menos. Sou um inválido, um deficiente.

— Vamos, vamos — consolou-o o general. — Não fique se atormentando assim.

— Eu sou um deficiente — retomou o outro. — Vejo que você não acredita, mas vou prová-lo agora mesmo.

Ele fez um esforço para tirar a túnica com uma das mãos, mas o general o segurou pelos ombros.

— Inútil, colega, inútil! Eu acredito perfeitamente em você. Eu lhe peço perdão, eu lhe peço mil perdões. A culpa é toda minha. É verdadeiramente indesculpável de minha parte.

— Preciso mostrar isso a você e a todos que não acreditam em mim. Vou lhe mostrar imediatamente.

— Psiu! — fez o general. — Acho que estão batendo.

Eles se calaram. Ouviu-se alguém bater.

— Quem pode ser a esta hora?

— Eu sempre tenho medo quando ouço batidas na porta em plena noite — diz o tenente-general. — Foi assim que bateram na minha porta na noite em que eu parti com urgência para o front. Toc! Toc! Toc! Depois, quando eu voltei, tive dificuldade para abrir a porta. Era a primeira vez que eu fazia isso com uma só mão — acrescentou, com um tom confidencial.

O general foi abrir com um passo cambaleante. Era o porteiro.

— Desculpe incomodá-lo a esta hora, mas chegou mais um telegrama para o senhor.

— Está bem. Eu lhe agradeço.

O general abriu enquanto voltava para o meio do quarto.

— Você está me parecendo bem misterioso esta noite — diz o tenente-general. — Todos esses telegramas à noite não são um bom sinal.

— São eles de novo — diz o general. — Parecem muito alarmados.

"Neste momento os telefones brancos devem estar tocando", pensou. "Alô! Alô! Alô! Primeiro eles se telefonam, depois saem correndo de casa como uns alucinados, indo às casas uns dos outros."

Tentava vagamente imaginá-los, reunidos, na casa do coronel, ocupados em prevenir todos os amigos e conhecidos, a velha aparecendo no alto da escada com as mãos em cruz, Betty assustada, pulando fora da cama, e todos eles murmurando: "Aquele miserável ainda não o encontrou, aquele miserável!"

"Eu não sou um miserável, Betty!", respondeu-lhe em pensamento, e depois falou em voz alta:

— Eles vão passar a noite em claro!

— O que é que eles querem? — diz o tenente-general.

— O saco.

— Eu lhe aconselho que o entregue de uma vez e ponha um ponto final nessa história. Todo cuidado é pouco!

"Uma merda!", disse consigo o general. Amassou o telegrama fazendo uma bola e jogou no chão.

— Sabe de uma coisa? — diz. — Temo que o padre seja um espião.

— Pode muito bem ser. Eu é que não poria minha mão no fogo.

Eles se calaram por um bom tempo. Por trás das persianas distinguia-se um luar nebuloso, esbranquiçado.

— É o dia que está nascendo — diz o general.

— Não, são as luzes de néon da avenida.

Ouvia-se, vindo de fora, o leve barulho da chuva batendo em cima do balcão.

— Os telegramas me metem medo — diz o tenente-general com uma expressão aflita. — Eles sempre contêm algo de ruim, de secreto, e ao mesmo tempo omitem outras coisas. Eu me lembro de uma vez, no front, em que um oficial do estado-maior recebeu um telegrama de um amigo que já tinha morrido muito tempo antes.

— Mas o que você está me relatando é lúgubre, colega.

— Psiu! — diz o sem braço. — Está ouvindo?

— Ouvindo o quê?

— Escute! Não está ouvindo nada?

O general aguçou o ouvido. — É a chuva.

— Não é não.

Vindo de longe, de muito longe, ouvia-se um barulho cadenciado e confuso. Depois alguns sons de vozes, breves, cortantes, e, de novo, o barulho da chuva.

— O que será?

— Vamos sair para o balcão — disse o general, e se levantou.

Assim que abriram a porta-janela, o ar frio e úmido da noite gelou-lhes o rosto, e o barulho longínquo e ritmado tornou-se ainda mais nítido.

Agora, os dois tinham passado para o balcão. Caía uma chuva fina e macia. Até a avenida tinha um aspecto lívido sob as luzes frias de néon, e o parque, diante do hotel, aparecia como uma massa negra e inquietante.

— Vem de lá — murmurou o tenente-general, com o rosto descorado. — Olhe!

O general virou a cabeça e estremeceu. No fundo da grande avenida, do lado da universidade, desenhavam-se enormes quadrados escuros que se moviam na direção deles.

O barulho pesado dos passos podia ser ouvido agora mais nitidamente, e as ordens, breves, cortantes, ressoavam, glaciais, na escuridão da noite.

Os dois generais ficaram ali, com os olhos fixos naquela direção. Como as manchas estavam se aproximando da ponte, puderam distinguir os reflexos frios dos capacetes e das baionetas úmidas, as longas colunas de soldados, os oficiais com os sabres à vista, e os espaços vazios entre as companhias e os batalhões. O solo tremia sob as pesadas botas e os breves gritos de comando retumbavam como um tinido de baionetas.

As formações não paravam de se aproximar; toda a grande avenida agora formigava de soldados, e as luzes dos lampadários, alinhados dos dois lados do calçamento, refletiam-se até o infinito sobre os capacetes resplandecentes.

— Um exército — diz o tenente-general. — O que está acontecendo?

— É o exército deles. Provavelmente o ensaio para o desfile de amanhã.

— Para a festa?

— Sim, com certeza.

Ouviu-se ao longe um ronco abafado de motores. — Os tanques! — diz o general.

Os carros de combate apareceram do outro lado da ponte, maciços e negros, com os tubos de seus canhões apontados para a noite.

Agora a grande avenida estava toda tomada por tropas, metais, passos ritmados, ronco de motores e gritos de ordens; e tudo isso, como um único corpo, se dirigia para a praça Skanderbeg.

Assim que a última formação desapareceu por trás dos ministérios e a avenida ficou novamente vazia, silenciosa e pálida sob os lampadários, como depois de uma noite de insônia, eles voltaram para o quarto.

— É um exército inteiro.

— Sim, inteiro.

— Estou com frio.

— Estamos encharcados.

— Beba, general, senão vai pegar um resfriado.

A chuva havia feito com que eles ficassem mais lúcidos. O general levantou a cabeça.

— Você os viu desfilar?

— Vi, sim.

— Eles me lembram meu próprio exército e eu me pergunto como meus soldados desfilariam vestidos em seus sacos azuis de bordas pretas.

— Para mim seria ainda mais difícil — diz o sem braço. — Tenho sob minhas ordens apenas um amontoado sem nexo e disparatado. Mal dá para ser reconhecido.

— O dia está clareando — diz o general. Houve um novo silêncio. — Eu creio ter ouvido um barulho. — Tem alguém andando no corredor.

Eles aguçaram por um instante os ouvidos. O barulho de passos tinha parado.

— Sabe por que eu me indispus com o padre?

— Não — diz o tenente-general.

— Por causa de um esqueleto. Está nos faltando um esqueleto de 1m82.

— Grande coisa! — diz o outro.

Ele levantou rapidamente a cabeça, com um brilho nos olhos.

— Um metro e oitenta e dois? Quer que eu lhe venda um, do tamanho que você precisa?

— Não — diz o general.

— Por que não? Tenho um monte. Eu lhe ofereço um, de amigo para amigo, por apenas cem dólares.

— Não!

— Mas eu tenho um monte exatamente deste tamanho! Tenho até de 1m92, se você quiser. E de dois metros também. E mesmo de 2m15! Nossos soldados eram mais altos do que os seus. Vai querer?

— Não — diz o general. — Não quero.

O tenente-general deu de ombros. — O problema é seu. Só quis ajudar.

O general se levantou e caminhou penosamente até a mala. Abriu-a e esvaziou-a no chão. Listas, cartas e folhas cobertas de notas caíram misturadas com lenços e camisas. Ele pegou um maço de listas e saiu do quarto cambaleando.

"O que será que deu nele?", perguntou-se o tenente-general.

Depois de ter dado alguns passos no corredor deserto, o general parou diante de uma porta.

"Este é o quarto do padre", pensou. "Meu padre!", chamou em voz baixa, dobrando-se em dois para espiar pelo buraco da fechadura. "Meu padre, está me ouvindo? Sou eu! Eu vim para nos reconciliarmos. Não vale a pena brigarmos por causa do coronel. Por que criar um caso por causa de um saco? Podemos dar um jeito nessa história, meu reverendo padre. Pode deixar, nós vamos reconstituir seu coronel. Está de acordo? É do interesse de nós dois, meu padre. Você quer poder dizer: "Como você parece leve, Betty"? Pois bem, vai poder dizer! É com você. Precisa de um esqueleto? Eu tenho um! Eu trouxe as listas, meu padre, está me ouvindo? Elas estão aqui! Há um monte de soldados de 1m82. Levante-se, vamos escolher um. Há um da segunda companhia de metralhadores, um outro nos carros de combate, e mais um outro ainda. Levante-se, vamos examinar as listas detalhadamente. Só que, no nosso soldado, faltam dois incisivos. Não faz mal, nós poderemos mandá-los para o dentista. Eu descobri ainda outros dois ou três. Está me escutando? Todos eles têm 1m82. É verdade, meu padre, não estou mentindo. Um e oitenta e dois, 1m82... Na verdade, creio que também eu meço 1m82."

O general resmungou ainda por muito tempo diante da porta, dobrado em dois, olhando pelo buraco da fechadura. Subitamente, a porta se abriu e uma mulher corpulenta, com uma expressão furiosa, surgiu diante dele. Ela lhe lançou com desprezo: — Você não tem vergonha, na sua idade!...

O general arregalou os olhos. A porta foi batida na sua cara e ele ficou ali um bom tempo, em pé. Depois se abaixou e penosamente recolheu as listas que tinham escorregado de suas mãos e voltou para o quarto.


PENÚLTIMO CAPÍTULO

Ao despontar do dia, assim que o empregado lhe trouxe o último telegrama, eles ainda continuavam bebendo. O general abriu a correspondência, mas não conseguiu decifrar sequer uma letra. Ficou com ela um bom tempo na mão, arregalando os olhos, franzindo a testa, sem compreender nada. O papel do telegrama lhe parecia uma tira de nevoeiro cortada por uma fatia de céu branco. Vacilando, ele amassou o papel, aproximou-se da janela, abriu-a e atirou longe o papel amarfanhado.

O telegrama caiu dando voltas, em meio à penumbra fria da madrugada.


ÚLTIMO CAPÍTULO

Uma chuva misturada com neve caía sobre a terra estrangeira. Os pesados flocos encharcados derretiam tão logo pousavam sobre o concreto da esplanada, diante das construções do aeroporto. Sobre a terra nua, a neve aguentava um pouco mais de tempo, sem conseguir, contudo, formar uma camada branca.

O general, todo paramentado, olhava os flocos pousarem no cimento úmido, saturando-se de água em um instante, depois se dissolvendo e desaparecendo enquanto outros continuavam caindo do céu sem fim.

— Está fazendo frio — diz o deputado albanês que tinha vindo saudá-los.

— Sim, muito frio — diz o padre. — Chegamos e estamos indo embora na estação ruim.

O general olhava o grande avião se aproximar. Uma voz feminina, vinda do alto-falante, pedia que os passageiros atrasados se apressassem, e os empregados do aeroporto empurravam a escada rolante na direção do local onde devia parar o aparelho.

O vento soprava sem parar.

 

 

                                                                  Ismail Kadaré

 

 

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