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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O GRANDE GATSBY / F. Scott Fitzgerald
O GRANDE GATSBY / F. Scott Fitzgerald

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Nas manhãs de domingo, enquanto os sinos das igrejas repicavam nos vilarejos ao longo da costa, todos retornavam à casa de Gatsby com suas respectivas acompanhantes e passeavam alegremente pelo gramado.
— Ele é contrabandista de bebidas1 — diziam as moças, movendo-se entre os coquetéis e as flores de seu anfitrião. — Uma vez, matou um homem que descobriu que ele era sobrinho de Von Hindenburg2 e primo em segundo grau do diabo. Faça o favor de me alcançar o vinho rosé, querida, e me sirva um último gole naquela taça de cristal.
Certa vez, preenchi os espaços vazios de uma agenda com os nomes dos convidados de Gatsby naquele verão. Agora é uma agenda antiga, esfarelando nas dobras, com o título: “Agenda em vigor: 5 de julho de 1922”. Mas ainda consigo ler os nomes em cinza e estes lhes darão uma impressão mais exata, superior às minhas generalidades, daqueles que aceitavam a hospitalidade de Gatsby e a retribuíam com o sutil tributo de não saberem nada a seu respeito.
De East Egg, portanto, vinham os Chester Becker e os Leech, além de um homem chamado Bunsen, que conheci em Yale, e o dr. Webster Civet, que morreu afogado no verão passado em Maine. Também havia os Hornbeam, os Willie Voltaire e um clã inteiro chamado Blackbuck, que tinha o costume de se agrupar num canto e empinar o nariz feito um bando de cabras a qualquer um que se aproximasse. E os Ismay e os Chrystie (ou melhor, Hubert Auerbach e a esposa do sr. Chrystie) e Edgar Beaver, cujo cabelo, dizem, ficou totalmente branco numa tarde de inverno, sem nenhuma razão.
Clarence Endive era de East Egg, pelo que eu me lembro. Ele veio uma vez só, metido num par de knickerbockers brancas,a e meteu-se numa briga no jardim com um mendigo chamado Etty. De pontos mais afastados da ilha vinham os Cheadle e os O. R. P. Schraeder, e os Stonewall Jackson Abram da Geórgia, e os Fishguard e os Ripley Snell. O velho Snell frequentou a casa de Gatsby três dias antes de ir preso, cambaleando tão bêbado pela estrada de cascalho que o automóvel da sra. Ulysses Swett passou por cima de sua mão direita. Os Dancie também compareciam, assim como S. B. Whitebait, que já havia passado dos sessenta, e Maurice A. Flink, os Hammerhead e Beluga, o importador de tabaco, acompanhado das filhas.
De West Egg vinham os Pole, os Mulready e Cecil Roebuck e Cecil Schoen e Gulick, o senador do estado, e Newton Orchid, que dirigia a Films Par Excellence, e Eckhaust e Clyde Cohen e Don S. Schwartz (o filho) e Arthur McCarty, todos de algum modo ligados à indústria do cinema. E os Catlip e os Bemberg e G. Earl Muldoon, irmão daquele Muldoon que posteriormente estrangulou a esposa. O promotor Da Fontano também era habitué, além de Ed Legros e James B. (“Rot-Gut”)b Ferret e os De Jong e Ernest Lilly — estes vinham para apostar e, quando Ferret era visto perambulando pelo jardim, significava que ele perdera tudo e que as ações da Associated Traction teriam que lucrar muito no dia seguinte.
Um homem chamado Klipspringer frequentava Gatsby com tamanha assiduidade que ficara conhecido como “o hóspede” — duvido que ele tivesse outra residência. Da classe teatral compareciam Gus Waize e Horace O’Donavan e Lester Myer e George Duckweed e Francis Bull. De Nova York vinham os Chrome e os Backhysson e os Dennicker e Russel Betty e os Corrigan e os Kelleher e os Dewar e os Scully e S. W. Belcher e os Smirke e os rapazes Quinn, agora divorciados, e Henry L. Palmetto, que se suicidou saltando na frente do trem do metrô em Times Square.
Benny McClenahan sempre chegava com quatro garotas. Que nunca eram as mesmas fisicamente, mas eram tão idênticas umas às outras que inevitavelmente pareciam repetir-se. Esqueci seus nomes — Jaqueline, eu acho, ou Consuela, ou Gloria ou Judy ou June, e seus sobrenomes variavam entre melodiosos nomes de flor ou de mês e os austeros sobrenomes dos maiores capitalistas do país, com quem elas, pressionadas, confessariam ter algum parentesco.
Além de todas essas pessoas, lembro-me de que Faustina O’Brien compareceu pelo menos uma vez, e também as garotas Baedeker e o jovem Brewer, que teve seu nariz arrancado na guerra, e o sr. Albrucksburger e a srta. Haag, sua noiva, e Ardita FitzPeters e o sr. P. Jewett, ex-diretor da Legião Americana, e a srta. Claudia Hip, com um homem que se dizia seu motorista, e um príncipe de algum lugar, que chamávamos de Duke, e de cujo nome eu me esqueci, se é que já cheguei a saber.
Toda essa gente frequentava a casa de Gatsby no verão.

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Às nove horas de uma manhã do fim de julho, o luxuoso carro de Gatsby veio sacolejando pela estrada pedregosa e alcançou o meu portão, emitindo uma melodia súbita com sua buzina de três notas. Era a primeira vez que ele me visitava, embora eu já tivesse comparecido a duas de suas festas, passeado em seu hidroavião e, após muita insistência, frequentado sua praia particular sistematicamente.
— Bom dia, meu velho. Já que vamos almoçar juntos, pensei que podíamos dar um passeio antes.
Ele se equilibrava sobre o para-choque do automóvel com aquela engenhosidade de movimentos tipicamente americana — que vem, eu suponho, da ausência de trabalho braçal na juventude e, mais ainda, da graciosidade disforme de nossos esportes nervosos e esporádicos. Essa característica vivia transbordando de sua conduta meticulosa sob a forma de inquietação. Ele nunca estava totalmente parado; havia sempre um tamborilar de dedos em algum lugar, ou o abrir e fechar impaciente de uma mão.
Ele me viu olhando com admiração para seu carro.
— É uma beleza, não é, meu velho? — Ele se afastou para me dar uma visão melhor. — Ainda não tinha visto o meu carro?
Eu já o tinha visto. Assim como todo mundo. Era de uma intensa cor creme e um brilho niquelado, avultado aqui e ali em seu comprimento já enorme por caixas de chapéus, de comida e de ferramentas, e encimado por um labirinto de para-brisas que refletiam uma dúzia de sóis. Sentados atrás de muitas camadas de vidro, sob uma espécie de capota esverdeada de couro, partimos em direção à cidade.
No decorrer daquele mês, havia conversado com Gatsby meia dúzia de vezes e descobrira, para minha decepção, que ele tinha pouco a dizer. De modo que a minha primeira impressão, de que ele era uma pessoa de importância indefinida, havia progressivamente desaparecido e ele se tornara apenas o proprietário da exagerada mansão ao meu lado.
Então veio aquela desconcertante carona. Ainda não havíamos alcançado West Egg quando Gatsby decidiu deixar inconclusas suas frases elegantemente formadas, batendo com hesitação no joelho de sua calça cor de caramelo.
— Escute aqui, meu velho — ele irrompeu de maneira imprevista —, qual é a sua opinião sobre mim, afinal?
Um tanto coagido, recorri às evasivas generalizadas que a pergunta exigia.
— Bem, vou lhe contar algo sobre a minha vida — ele interrompeu. — Não quero que você tenha uma ideia errada de mim a partir dessas histórias que ouve.
Então ele estava por dentro das acusações bizarras que davam sabor às conversas em sua casa.
— Por Deus, o que eu vou lhe contar é a mais pura verdade. — Sua mão direita ergueu-se repentinamente para pedir que o castigo divino o atestasse. — Sou filho de uma família rica do Meio-Oeste, todos já falecidos. Fui criado nos Estados Unidos, mas educado em Oxford porque foi lá que meus antepassados sempre estudaram. É uma tradição familiar.
Ele me fitou com o canto do olho — e eu soube imediatamente por que Jordan Baker achara que ele estava mentindo. Gatsby acelerou as palavras “educado em Oxford”, ou mesmo as engoliu, sufocando-as, como se isso já lhe tivesse causado problemas no passado. Diante dessa hesitação, seu depoimento inteiro caiu por terra, e fiquei imaginando se não havia algo de estranho naquele sujeito, afinal de contas.
— Que parte do Meio-Oeste? — perguntei casualmente.
— San Francisco.
— Ah.
— Minha família inteira morreu e eu herdei uma fortuna.
Seu tom de voz era solene, como se a lembrança da súbita extinção de um clã ainda o assombrasse. Por um momento, julguei que ele estivesse brincando, mas só de fitá-lo me convenci do contrário.
— Depois disso, vivi como um jovem rajá em todas as capitais da Europa: Paris, Veneza, Roma. Colecionei joias, principalmente rubis, cacei animais de grande porte e pintei um pouco, tudo por prazer, na tentativa de esquecer uma coisa triste que me acontecera tempos antes.
Com algum esforço, consegui conter uma risada incrédula. As próprias frases soavam tão gastas que não me evocavam imagem alguma, exceto a de um “personagem” de turbante que exalava serragem por todos os poros enquanto perseguia um tigre pelo Bois de Boulogne.
— Então veio a guerra, meu velho. Foi um grande alívio e eu fiz o máximo possível para morrer, mas parecia ter uma vida enfeitiçada. Quando o conflito começou, aceitei o posto de primeiro-tenente. Na floresta de Argonne, assumi o comando dos poucos soldados que restaram no meu batalhão de artilharia e avancei tanto que se formou, de ambos os lados, um vácuo de oitocentos metros por onde a infantaria não conseguia penetrar. Permanecemos ali por dois dias e duas noites, cento e trinta homens com dezesseis metralhadoras Lewis e, quando a infantaria enfim chegou, encontraram a insígnia de três divisões alemãs entre as pilhas de mortos. Fui promovido a major e todos os governos aliados me condecoraram. Inclusive Montenegro, a pequena Montenegro, em pleno mar Adriático!
Pequena Montenegro! Ele enfatizou essas palavras e assentiu com a cabeça — abrindo um sorriso. Aquele sorriso abarcava toda a história atribulada de Montenegro e se solidarizava com as bravas lutas do povo montenegrino. Apreciava sem restrições a cadeia de circunstâncias nacionais que propiciara esse tributo do pequeno e cálido coração nativo. Minha incredulidade agora se transformara em fascínio; era como folhear atabalhoadamente uma dúzia de revistas.
Ele meteu a mão no bolso e me mostrou um pedaço de metal pendurado numa fita.
— Esta é a de Montenegro.
Para o meu espanto, a coisa tinha um ar de autenticidade. “Orderi di Danilo”, dizia a legenda circular: “Montenegro, Nicolas Rex”.3
— Vire a medalha.
— Major Jay Gatsby — eu li. — Pelo extraordinário heroísmo.
— Aqui tem outra coisa que eu sempre carrego. Uma lembrança dos tempos de Oxford. Foi tirada no Trinity Quad.c Esse homem à minha esquerda é hoje conde de Doncaster.
Era uma fotografia de meia dúzia de rapazes de blazer reunidos sob uma arcada com uma porção de pináculos ao fundo. Lá estava Gatsby, parecendo um pouco (nem tanto) mais jovem, com um taco de críquete na mão.
Então era tudo verdade. Pude vislumbrar as peles de tigre expostas em seu palazzo no Grande Canal; vi Gatsby abrindo um baú de rubis que serviam para confortar, com suas profundezas vermelhas, os tormentos de seu coração partido.
— Vou lhe pedir um grande favor hoje — ele disse, guardando com satisfação seus suvenires no bolso —, então achei que você deveria saber algo a meu respeito. Não queria que pensasse que eu era um ninguém. Veja, sempre estive entre estranhos porque ando pelo mundo tentando esquecer as coisas tristes que me aconteceram. — Ele hesitou. — Você vai ficar sabendo hoje à tarde.
— No almoço?
— Não, depois. Acontece que eu fiquei sabendo que você vai levar a senhorita Baker para tomar um chá.
— Quer dizer que você está apaixonado pela senhorita Baker?
— Não, meu velho, não é isso. Mas a senhorita Baker consentiu gentilmente em lhe falar sobre esse assunto.
Eu não tinha a mais vaga ideia do que era “esse assunto”, mas estava mais irritado do que interessado. Eu não havia convidado Jordan para o chá a fim de conversar sobre o sr. Jay Gatsby. Tinha certeza de que o favor seria algo absolutamente grandioso, e por um instante me arrependi de ter botado os pés naquele gramado superpovoado.
Ele não me diria mais nenhuma palavra. Sua correção ia crescendo conforme nos aproximávamos da cidade. Passamos por Port Roosevelt,4 onde tivemos vislumbres de navios transatlânticos com faixas vermelhas, e aceleramos ao longo de um cortiço de paralelepípedos, ladeado por tabernas abarrotadas e escuras com aquele dourado opaco do começo do século. Então o vale das cinzas se abriu de ambos os lados e, enquanto passávamos, tive um vislumbre da sra. Wilson debruçada na bomba de gasolina com ofegante vitalidade.
Com os para-choques abertos feito asas, lançamos luz em metade de Astoria — apenas metade, pois enquanto fazíamos o retorno entre as pilastras do elevado, ouvi o familiar “vrum-vrum-paf!” de uma moto e um policial frenético encostando em nosso carro.
— Certo, meu velho — gritou Gatsby. Nós desaceleramos. Sacando um cartão branco da carteira, ele o abanou diante do homem.
— Está tudo bem — concordou o policial, acenando com o quepe. — Da próxima vez, prometo reconhecê-lo, senhor Gatsby. Mil desculpas!
— O que era isso? — eu perguntei. — A foto de Oxford?
— Certa vez fiz um favor para o comissário, e desde então ele me manda todos os anos um cartão de Natal.
Atravessamos a magnífica ponte, com a luz do sol através das vigas produzindo uma ondulação constante sobre os carros em movimento, enquanto a cidade se erguia para além do rio em pilhas brancas e torrões de açúcar, construída num puro desejo incorruptível. A partir da ponte Queensboro,d a cidade é sempre vista como pela primeira vez, em sua primeira e louca promessa de todos os mistérios e belezas do mundo.
Um homem morto passou ao nosso lado num carro fúnebre atulhado de flores, seguido por duas carruagens com a cortina abaixada e outras conduções mais animadas que transportavam os amigos do morto. Eles nos olharam com os olhos trágicos e os finos lábios superiores típicos do Sudeste europeu, e fiquei feliz em saber que a visão do esplêndido automóvel de Gatsby fora agora incluída em seu passeio sombrio. Enquanto cruzávamos a ilha de Blackwell,e uma limusine nos ultrapassou, conduzida por um motorista branco e ocupada por três negros modernos, dois rapazes e uma moça. Soltei uma gargalhada alta quando suas órbitas amareladas se revolveram para nós, em esnobe rivalidade.
“Tudo pode acontecer agora que cruzamos esta ponte”, eu pensei, “tudo mesmo...”
Mesmo Gatsby podia acontecer, sem que isso causasse nenhum espanto em particular.
Meio-dia frenético. Em um arejado porão na rua 42, encontrei-me com Gatsby para almoçar. Ofuscado pela recém-saída claridade da rua, localizei-o vagamente na antessala, conversando com um desconhecido.
— Senhor Carraway, este é meu amigo, o senhor Wolfshiem.
Um judeu pequeno de nariz achatado ergueu sua enorme cabeça e me olhou do alto de seus dois tufos de pelos que floresciam em suas narinas. Levei um instante para localizar seus minúsculos olhos à meia-luz.
— ...Então dei uma boa olhada nele — disse o sr. Wolfshiem, apertando-me firmemente a mão — e sabe o que fiz?
— O quê? — perguntei com cortesia.
Mas é claro que ele não se dirigia a mim, pois largou minha mão e cobriu Gatsby com seu nariz expressivo.
— Dei o dinheiro a Katspaugh e falei: “Certo, Katspaugh, não lhe pague um centavo até ele calar a boca”. Ele calou a boca na hora.
Gatsby nos tomou pelo braço, um de cada lado, e adentrou o restaurante, enquanto o sr. Wolfshiem engolia a continuação de uma nova frase e caía numa distração sonâmbula.
— Uísque e soda? — ofereceu o maître.
— É um belo restaurante — disse o sr. Wolfshiem, admirando as ninfas presbiterianas pintadas no teto. — Mas eu prefiro aquele no outro lado da rua!
— Sim, uísque, por favor — assentiu Gatsby, e então ao sr. Wolfshiem: — Lá é muito quente.
— Quente e pequeno, é verdade — disse o sr. Wolfshiem —, mas cheio de lembranças.
— De que restaurante vocês estão falando? — perguntei.
— Do velho Metropole.
— Do velho Metropole — remoeu o sr. Wolfshiem melancolicamente. — Cheio de rostos mortos e enterrados. Cheio de amigos que partiram para sempre. Nunca vou me esquecer da noite em que atiraram em Rosy Rosenthal. Éramos seis à mesa, e Rosy havia comido e bebido a noite toda. Quando já era quase de manhã, o garçom veio com um olhar esquisito e disse que alguém queria falar com ele lá fora. “Certo”, disse Rosy, erguendo-se da cadeira, mas eu o puxei de volta. “Deixe aqueles sacanas virem até aqui, Rosy, se querem pegá-lo. Mas, por Deus, não ouse sair desta sala.” Já eram quatro da madrugada e, se erguêssemos as persianas, veríamos a luz do dia.
— Ele saiu? — perguntei, com ingenuidade.
— É claro que sim. — O nariz do sr. Wolfshiem me fulminou, indignado. — Ao chegar à porta, ele se virou para trás e disse: “Não deixem o garçom levar meu café!”. Então foi à calçada, onde o receberam com três tiros na barriga e fugiram.
— Quatro deles foram para a cadeira elétrica — eu disse, lembrando-me do caso.
— Cinco, com Becker. — Suas narinas se voltaram para mim com ar interessado. — Soube que você está procurando um licação nas necócios.f
A justaposição desses dois comentários foi desconcertante. Gatsby respondeu em meu lugar:
— Ah, não — ele exclamou —, não é este o homem.
— Não? — o sr. Wolfshiem pareceu desapontado.
— Este é só um amigo. Falei que conversaríamos sobre isso em outra ocasião.
— Me desculpe — disse o sr. Wolfshiem. — Peguei o homem errado.
Um suculento picadinho chegou à mesa e o sr. Wolfshiem, esquecido da atmosfera nostálgica do velho Metropole, passou a comer com sensibilidade feroz. Enquanto isso, seus olhos percorriam lentamente o salão — ele completou o círculo virando-se para inspecionar as pessoas bem atrás de nós. Não fosse a minha presença, acho que se abaixaria para dar uma olhada debaixo da nossa própria mesa.
— Ouça, meu velho — disse Gatsby, reclinando-se em minha direção —, me desculpe por tê-lo aborrecido esta manhã, no carro.
Ele abriu aquele sorriso de novo, mas dessa vez tentei resistir.
— Não gosto de mistérios — respondi — e não entendo por que você não chega honestamente e me diz o que quer. Por que precisa passar pela senhorita Baker?
— Ah, não é nada proibido — ele me garantiu. — A senhorita Baker é uma grande atleta, você sabe, e nunca faria nada de errado.
De repente ele consultou o relógio, levantou-se de um salto e disparou pelo salão, deixando-me à mesa com o sr. Wolfshiem.
— Ele foi telefonar — disse o sr. Wolfshiem, seguindo-o com os olhos. — É um bom sujeito, não? Bonito de se ver e um perfeito cavalheiro.
— É.
— É um homem de Oggsford.
— Ah.
— Ele estudou em Oggsford, na Inglaterra. Você conhece a universidade de Oggsford?
— Já ouvi falar.
— É uma das mais famosas do mundo.
— Você conhece Gatsby há muito tempo? — perguntei.
— Há muitos anos — ele respondeu com ar satisfeito. — Tive o prazer de conhecê-lo logo após a guerra. Percebi que estava diante de um homem de fina estirpe depois de conversarmos por uma hora. Eu disse a mim mesmo: “É o tipo de homem que todos gostariam de levar para casa e apresentar à mãe e à irmã”. — Ele fez uma pausa. — Vejo que está olhando para as minhas abotoaduras.
Eu não estava olhando para elas, mas passei a fazê-lo. Eram lascas de marfim estranhamente familiares.
— São feitas dos mais finos espécimes de molares humanos — ele me informou.
— Ora! — eu as examinei. — É uma ideia muito interessante.
— É. — Ele escondeu os punhos por baixo do casaco. — De fato, Gatsby é muito cuidadoso com as mulheres. Não ousaria sequer olhar para a esposa de um amigo.
Assim que o protagonista dessa confiança instintiva retornou à mesa e sentou-se, o sr. Wolfshiem bebeu seu café de uma vez e levantou-se.
— Adorei o almoço — ele disse —, e agora irei deixá-los, meus jovens, antes que eu comece a abusar da hospitalidade de vocês.
— Não seja tolo — disse Gatsby, sem sombra de entusiasmo. O sr. Wolfshiem ergueu a mão numa espécie de bênção.
— Você é muito educado, mas pertence a outra geração — ele anunciou de forma solene. — Fiquem aqui conversando sobre seus esportes, suas namoradas e... — ele supriu o substantivo com outro aceno. — Quanto a mim, tenho cinquenta anos de idade e não irei importuná-los mais com a minha presença.
Quando ele terminou de cumprimentar Gatsby e virou-se para ir embora, seu trágico nariz estava trêmulo. Fiquei imaginando se havia dito algo que o ofendera.
— Às vezes ele fica sentimental — explicou Gatsby. — Hoje é um desses dias. Trata-se de uma figura singular de Nova York, um cidadão da Broadway.
— Mas, afinal, ele é ator?
— Não.
— Dentista?
— Meyer Wolfshiem?5 Não, é um apostador. — Gatsby hesitou e então acrescentou, calculadamente: — Foi ele quem fraudou a World’s Series de 1919.6
— Fraudou a World’s Series? — repeti.
Aquela informação me deixou abalado. Eu me lembrava, é claro, de que a World’s Series fora fraudada em 1919, mas, se alguma vez cheguei a pensar no assunto, considerava-o algo que simplesmente acontecera, resultado de alguma inevitável cadeia de eventos. Nunca me ocorreu que um só homem poderia ludibriar a fé de cinquenta milhões de pessoas — com a obstinação de um ladrão explodindo um cofre.
— E como é que ele fez isso? — perguntei após um minuto.
— Ele apenas viu a oportunidade.
— Por que não foi preso?
— Ninguém consegue apanhá-lo, meu velho. É um sujeito esperto.
Insisti em pagar a conta. Quando o garçom veio me trazer o troco, reconheci Tom Buchanan em meio ao salão abarrotado.
— Venha comigo um minuto — eu disse —, preciso cumprimentar um amigo.
Assim que nos viu, Tom ergueu-se num salto e deu meia dúzia de passos em nossa direção.
— Por onde você andou? — ele protestou vivamente. — Daisy está furiosa por não ter telefonado.
— Este é o senhor Gatsby, senhor Buchanan.
Eles deram um breve aperto de mãos, e Gatsby deixou transparecer um olhar estranhamente tenso e constrangido.
— Mas enfim, como vai? — perguntou Tom. — Por que resolveu vir tão longe só para comer?
— Eu estava almoçando com o senhor Gatsby.
Voltei-me em direção ao sr. Gatsby, mas ele não estava mais lá.
Foi num dia de outubro de 1917...
(contou Jordan mais tarde, sentada aprumadamente no salão de chá do Plaza Hotel)
...eu estava indo de um lugar para o outro, caminhando tanto pela calçada quanto pela grama. Dava preferência à grama pois usava uns sapatos ingleses com cravos de borracha na sola que viviam grudando no chão liso. Eu também vestia uma saia xadrez nova que levantava ligeiramente com o vento e, sempre que isso acontecia, as bandeiras vermelhas, brancas e azuis diante de todas as casas se retesavam e faziam um tut-tut-tut-tut em desaprovação.
A bandeira mais ampla de todas e o gramado mais extenso eram os da casa de Daisy Fay. Tinha apenas dezoito anos, dois a mais do que eu, e era de longe a garota mais popular de Louisville. Costumava vestir-se de branco e tinha um pequeno conversível da mesma cor. O telefone tocava o dia todo, e os excitados oficiais de Camp Taylor7 viviam solicitando o privilégio de monopolizá-la naquela noite. “Nem que seja por uma hora!”
Naquela manhã, ao me aproximar da casa de Daisy, vi que o conversível branco se encontrava fora da garagem, e ela estava sentada nele com um tenente que eu nunca havia visto. Estavam tão entretidos entre si que não me viram até que eu chegasse a menos de dois metros de distância. “Olá, Jordan”, ela disse de repente. “Por favor, venha cá.”
Senti-me lisonjeada por ela querer falar comigo, pois, de todas as garotas mais velhas, era Daisy quem eu mais admirava. Ela perguntou se eu estava indo para a Cruz Vermelha fazer curativos. Eu estava. Nesse caso, será que eu poderia avisar que hoje ela não iria? Enquanto Daisy falava, o oficial olhava para ela do jeito que todas as mocinhas gostariam de ser olhadas algum dia, e por me parecer tão romântico é que me lembro desse incidente até hoje. Seu nome era Jay Gatsby, e não tornei a vê-lo nos quatro anos seguintes. Mesmo ao encontrá-lo em Long Island, não notei que era o mesmo homem.
Isso foi em 1917. No ano seguinte, eu mesma arrumei uns namorados e comecei a disputar campeonatos, de modo que já não via Daisy com tanta frequência. Ela costumava sair com uma turma um pouco mais velha, isso quando saía com alguém. Havia uma história louca circulando a seu respeito: dizia-se que, numa noite de inverno, a mãe a encontrara fazendo as malas para ir a Nova York despedir-se de um soldado que estava indo para a guerra. Ela foi naturalmente proibida de ir, mas passou várias semanas sem falar com os pais. Depois disso, nunca mais saiu com soldados, apenas com alguns rapazes da cidade, míopes e de pés chatos, que não conseguiram entrar no Exército.
No outono seguinte, ela estava novamente alegre, mais do que nunca. Ganhou uma festa de debutante após o armistício, e em fevereiro estava supostamente noiva de um sujeito de New Orleans. Em junho, casou-se com Tom Buchanan, de Chicago, com tal pompa e circunstância como jamais se vira em Louisville. Ele veio acompanhado de uns cem convidados em quatro veículos privativos, alugou um andar inteiro do hotel Muhlbachg e, na véspera da cerimônia, presenteou-a com um colar de pérolas avaliado em trezentos e cinquenta mil dólares.
Eu fui dama de honra. Entrei no quarto de Daisy meia hora antes do jantar de noivado e a encontrei deitada na cama com seu vestido florido, tão bela quanto as noites de junho. E tão bêbada quanto um gambá. Tinha uma garrafa de Sauterne numa mão e uma carta na outra.
— Me dê os parabéns — ela resmungou. — Eu nunca tinha ficado bêbada antes, mas, nossa, como é bom.
— O que houve, Daisy? — Eu estava verdadeiramente assustada; nunca tinha visto uma garota naquele estado.
— Aqui, querida. — Ela vasculhou a lixeira ao lado da cama e sacou de dentro um colar de pérolas. — Leve isto aqui lá embaixo e devolva a quem quer que seja o dono. Diga a todo mundo que Daisy mudou de ideia. Diga assim: “A Daisy mudou de ideia!”.
Ela se pôs a chorar, e chorou e chorou. Eu saí às pressas e topei com a criada da mãe de Daisy, que me ajudou a trancar a porta e dar-lhe um banho frio. Ela não queria largar a carta. Levara consigo à banheira e a espremera até virar uma bola encharcada, só me permitindo deixá-la sobre a saboneteira quando notou que o papel estava se desfazendo como flocos de neve.
Ela não disse mais uma palavra. Nós lhe demos amônia para cheirar, botamos gelo em sua testa e a enfiamos de volta no vestido, de modo que, meia hora depois, quando saímos do quarto, as pérolas estavam de novo em seu pescoço e o incidente ficara para trás. No dia seguinte, às cinco da tarde, ela se casou com Tom Buchanan sem ao menos pestanejar, e partiu para uma viagem de três meses pelos Mares do Sul.
Topei com eles em Santa Barbara após a lua de mel, e acho que nunca vi uma garota tão louca pelo marido. Quando ele saía da sala por um minuto, ela olhava ao redor com apreensão e perguntava: “Cadê o Tom?”, revestindo-se de uma expressão completamente distraída até vê-lo retornando. Ela se deitava na areia com a cabeça pousada no colo de Tom, acariciando seu rosto e o observando com um prazer insondável. Era tocante vê-los juntos — aquilo me fazia rir de um jeito contido e fascinado. Isso foi em agosto. Uma semana depois que eu deixei Santa Barbara, Tom bateu numa caminhonete na estrada de Ventura e perdeu uma das rodas dianteiras do carro. A garota que estava com ele também saiu nos jornais, pois havia quebrado o braço — era uma das camareiras do Santa Barbara Hotel.
Em abril, Daisy teve uma filha e eles foram morar na França por um ano. Encontrei-os numa primavera em Cannes e depois em Deauville, e então eles voltaram a Chicago com a intenção de se estabelecer por lá. Daisy era popular em Chicago, como você sabe. Eles andavam com uma turma leviana, todos jovens, ricos e loucos, mas ela saiu de lá com a reputação absolutamente irretocável. Talvez porque não bebesse. É uma grande vantagem não beber quando se está entre pessoas que exageram na dose. Você consegue refrear a língua e, melhor ainda, programar qualquer pequena transgressão sua para o momento exato em que todos estão alterados demais para reparar ou dar importância. Talvez Daisy nunca tivesse traído Tom — e, ainda assim, havia algo em sua voz...
Bem, há mais ou menos umas seis semanas ela ouviu o nome Gatsby pela primeira vez em anos. Foi quando lhe perguntei — lembra? — se você conhecia o Gatsby que morava em West Egg. Depois que você saiu, ela foi ao meu quarto, me acordou e perguntou: “Que Gatsby?”, e, quando o descrevi, sonolenta, ela anunciou com a voz mais estranha do mundo que deveria ser o mesmo homem que ela conhecera. Só então relacionei esse Gatsby com o oficial sentado no conversível de Daisy.
Quando Jordan Baker terminou de me contar essa história, já havíamos deixado o Plaza fazia meia hora e estávamos passeando numa carruagem pelo Central Park. O sol havia se posto por trás dos imponentes edifícios onde viviam as celebridades do cinema na área das West Fifties, e as límpidas vozes das crianças, que já se agrupavam feito grilos na grama, se erguiam através do cálido crepúsculo:

Eu sou o sheik da Arábia.
O seu amor me pertence.
À noite, quando você estiver dormindo,
Vou me esgueirar no seu quarto...h

— Que coincidência esquisita — eu disse.
— Não foi coincidência nenhuma.
— Como assim?
— Gatsby comprou aquela casa pois sabia que Daisy estava do outro lado da baía.
Então não eram só as estrelas que ele cobiçara naquela noite de junho. Ele se revelara totalmente para mim, saído de repente do útero de seu esplendor despropositado.
— Gatsby quer saber — prosseguiu Jordan — se você convidaria Daisy para jantar em sua casa e o deixaria dar uma passada por lá.
A simplicidade do pedido me comoveu. Ele havia esperado cinco anos e comprado uma mansão onde partilhava a luz das estrelas com mariposas ocasionais — tudo para poder, um dia, dar uma passada no quintal de um estranho.
— E eu precisava saber de tudo isso para um favor tão pequeno?
— Ele está com medo porque esperou demais. Pensou que você pudesse ficar ofendido. Você vê, no fundo ele não é tão durão.
Alguma coisa me incomodava.
— Por que não pediu para você promover o encontro?
— Ele quer que Daisy veja a mansão — ela explicou. — E a sua casa é bem ao lado.
— Ah!
— Acho que ele esperava vê-la numa de suas festas, em alguma noite — prosseguiu Jordan —, mas ela nunca apareceu. Então ele passou a perguntar casualmente às outras pessoas se alguém a conhecia, e eu fui a primeira que ele encontrou. Foi naquela noite em que ele me mandou chamar no baile, e você precisa ver o quanto ele me enrolou até ir direto ao ponto. É claro que eu sugeri de imediato um almoço em Nova York, e achei que ele enlouqueceria de vez: “Não quero ir longe demais!”, ele repetia. “Quero vê-la o mais próximo de casa.”
— Quando eu disse que você era amigo íntimo de Tom, ele quase desistiu. Não sabia muita coisa a respeito de Tom, embora tenha assinado um jornal de Chicago por vários anos só pela chance de poder topar com o nome de Daisy.
Já havia escurecido e, ao passarmos por baixo de uma pequena ponte, pousei meu braço sobre o ombro dourado de Jordan, puxei-a em minha direção e a convidei para jantar. De repente, eu não estava mais pensando em Daisy e Gatsby, mas naquela moça clara, forte e determinada, que tinha de lidar com um ceticismo universal e que se alojava confortavelmente no círculo dos meus braços. Uma frase ressoou em meus ouvidos numa espécie de excitação impetuosa: “Existem apenas os perseguidos e os perseguidores, os ocupados e os fatigados”.
— E Daisy precisa ter alguma coisa na vida — murmurou Jordan para mim.
— Ela quer se encontrar com Gatsby?
— Não é para ela ficar sabendo. Gatsby não quer que ela saiba. Você só tem que convidá-la para tomar chá.
Passamos por uma barreira de árvores escuras e depois pela fachada da rua 59, um quarteirão de luzes pálidas e delicadas que se refletiam através do parque. Ao contrário de Gatsby e de Tom Buchanan, eu não tinha nenhuma garota dos sonhos para projetar em todas as cornijas e letreiros luminosos, então puxei a garota ao meu lado, apertando-a em meus braços. Sua boca exausta e desdenhosa arriscou um sorriso, então puxei-a novamente, dessa vez para junto do meu rosto.
a Calças curtas do início do século xx que geralmente passavam um pouco dos joelhos e eram utilizadas com meias longas.
b Termo que designa bebida alcoólica adulterada ou de qualidade inferior.
c Pátio central do Trinity College, em Oxford.
d A ponte Queensboro atravessa o East River, ligando o distrito de Queens a Manhattan. Ela cruza a antiga ilha de Blackwell.
e Localizada no East River, a ilha de Blackwell é hoje conhecida como Roosevelt Island. Lá houve uma penitenciária (1832-1935), um manicômio e inúmeros hospitais.
f “Um licação nas necócios” e “Oggsford”, em vez de “uma ligação nos negócios” e “Oxford”, são tentativas de emular o sotaque judeu nova-iorquino.
g Alusão ao hotel Seelbach, fundado em Louisville em 1905.
h “Sheik of Araby”, canção de 1921 composta por Harry B. Smith e Francis Wheeler (letra) em parceria com Ted Snyder (melodia). Foi inspirada no filme O sheik (1921), com Rodolfo Valentino no papel principal. Tornou-se um standard popular de jazz e até os Beatles gravaram uma versão.

5
Naquela noite, ao voltar para West Egg, pensei por um instante que minha casa estava pegando fogo. Eram duas da madrugada e toda a borda da península ardia de luz, conferindo um ar de irrealidade ao bosque e lançando faíscas alongadas sobre os fios elétricos que margeavam a estrada. Virando a esquina, vi que a claridade vinha da casa de Gatsby, iluminada do porão ao teto.
De início, pensei que se tratava de mais uma festa, ou de uma multidão enlouquecida que decidira brincar de “esconde-esconde” ou de “sardinha em lata”a com a casa inteira disponível. Mas não havia barulho. Só o vento nas árvores, que soprava os fios elétricos e fazia as luzes oscilarem repetidas vezes, como se a casa estivesse piscando para a escuridão. Enquanto meu táxi sumia de vista, Gatsby veio andando pelo gramado em minha direção.
— A sua casa está parecendo a Feira Mundial — eu disse.
— Você acha? — ele voltou os olhos para trás, distraído. — Estava dando uma arejada nos quartos. Vamos para Coney Island,1 meu velho. Com o meu carro.
— Já está tarde.
— Bem, e se a gente desse um mergulho na piscina? Passei o verão inteiro sem usá-la.
— Preciso ir dormir.
— Certo.
Ele esperou, olhando-me com reprimida sofreguidão.
— Falei com a senhorita Baker — eu disse, após um instante. — Vou ligar amanhã para Daisy e convidá-la para vir tomar um chá.
— Muito bem — ele retrucou, descuidado. — Não quero incomodá-lo.
— Que dia é melhor para você?
— Que dia é melhor para você? — ele me corrigiu imediatamente. — Não quero incomodá-lo, você sabe.
— Que tal depois de amanhã?
Ele refletiu por um instante. E então, com relutância:
— Preciso mandar cortar a grama.
Ambos olhamos para o quintal: havia uma linha bem definida onde terminava o meu denso matagal e começava o jardim dele, mais escuro e bem cuidado. Presumi que ele estivesse se referindo ao meu espaço.
— E tem mais uma coisinha — ele disse de maneira incerta, e então hesitou.
— Você prefere adiar para mais tarde? — perguntei.
— Ah, não é isso. Quer dizer... — Ele foi tateando diversas formas de iniciar a frase. — É que, eu fico pensando... veja bem, meu velho, você não ganha muito dinheiro, não é?
— Não muito.
Aquilo pareceu encorajá-lo e ele prosseguiu com mais segurança.
— Foi o que imaginei, se me perdoa a... Você sabe, eu gerencio um pequeno negócio nas horas vagas, uma espécie de bico, entende? E pensei que, se você ganha pouco... você vende títulos, não é, meu velho?
— Estou tentando.
— Bem, isso pode interessá-lo. Não tomaria muito do seu tempo e você poderia fazer um bom dinheiro. Acontece que é uma coisa meio confidencial.
Hoje percebo que, em outras circunstâncias, essa conversa poderia ter sido um ponto de virada em minha vida. Porém, como se tratava de uma oferta óbvia e grosseiramente ligada a um serviço a ser prestado, não tive saída senão refutá-la ali mesmo.
— Estou ocupado demais — respondi. — Fico muito agradecido, mas não posso me comprometer com outros trabalhos.
— Você não teria que fazer nenhum negócio com o Wolfshiem. — Evidentemente ele achava que eu estava me esquivando da tal “licação nas necócios” mencionada no almoço, mas lhe garanti que não era o caso. Ele aguardou mais um instante, na esperança de que eu puxasse conversa, mas eu estava absorto demais para reagir, de modo que ele voltou desanimadamente para casa.
Aquela noite me deixara tonto e feliz; devo ter caído num sono profundo assim que entrei em casa. Dessa forma, não sei se Gatsby foi ou não a Coney Island, ou por quantas horas ele continuou “dando uma arejada” nos quartos enquanto sua casa resplandecia ostensivamente. Na manhã seguinte, telefonei para Daisy do escritório e convidei-a para tomar um chá em casa.
— Não traga o Tom — avisei.
— O quê?
— Não traga o Tom.
— Quem é “Tom”? — ela perguntou inocentemente.
No dia combinado, caía uma chuva torrencial. Às onze da manhã, um homem de capa de chuva arrastando um cortador de grama bateu à minha porta e disse que o sr. Gatsby o havia mandado aparar a grama. Percebi então que esquecera de chamar a empregada finlandesa para servir o chá, então fui ao centro de West Egg para procurá-la entre as encharcadas vielas caiadas e comprar algumas xícaras, limões e flores.
As flores eram desnecessárias, pois às duas da tarde Gatsby me mandou uma verdadeira estufa com infinitos vasos. Uma hora depois, a porta se abriu nervosamente e Gatsby irrompeu em minha casa, metido num terno branco de flanela, camisa prateada e gravata dourada. Ele estava pálido e havia marcas escuras de insônia debaixo de seus olhos.
— Está tudo em ordem? — ele perguntou de imediato.
— A grama ficou boa, se é o que você quer saber.
— Que grama? — ele indagou, com o olhar vazio. — Ah, a grama do jardim.
Ele olhou pela janela mas, a julgar por sua expressão, não acho que tenha visto coisa alguma.
— Ficou ótimo — ele observou vagamente. — Li no jornal que a chuva deve dar trégua lá pelas quatro horas. Acho que foi no The Journal.2 Você tem tudo o que precisa em termos de... em termos de chá?
Conduzi-o até a despensa, onde encarou minha finlandesa com ar de reprovação. Juntos examinamos os doze bolinhos de limão da confeitaria.
— Acha que são suficientes? — perguntei.
— É claro, claro! Estão ótimos... — ele acrescentou, de forma vazia —, meu velho.
A chuva amainou por volta das três e meia e converteu-se em uma névoa úmida, através da qual magras gotas caíam feito orvalho. Gatsby folheou com o olhar perdido um volume da Economia, de Clay,3 sobressaltando-se com os passos da finlandesa que faziam tremer o chão da cozinha e espiando ocasionalmente através das janelas embaçadas, como se uma série de acontecimentos invisíveis, porém alarmantes, estivesse em curso lá fora. Por fim, ele se levantou e anunciou, numa voz hesitante, que estava indo embora.
— Mas por quê?
— Ninguém vai aparecer para o chá. Já está tarde! — Ele consultou o relógio como se tivesse um compromisso urgente em qualquer lugar. — Não posso esperar o dia todo.
— Não seja bobo, faltam só dois minutos para as quatro.
Ele sentou com ar de infelicidade, como se o tivessem empurrado, e naquele momento ouvimos um som de motor dobrando a esquina. Ambos nos levantamos e, um tanto angustiado, saí para o quintal.
Sob as gotejantes e desnudas árvores de lilases, um carro avançava pela entrada. Parou. O rosto de Daisy, inclinado sob um chapéu de três pontas cor de lavanda, ergueu-se para mim com um sorriso alegre e arrebatador.
— É aqui mesmo que você mora, meu querido? Tem certeza aboluta?
A reverberação excitante de sua voz caiu como um tônico em meio a toda aquela chuva. Por um instante, tive que seguir unicamente seu som, de cima a baixo, só com os ouvidos, antes de poder distinguir as palavras. Uma mecha de cabelo úmido caía sobre seu queixo como um borrifo de tinta azul, e sua mão estava coberta de gotas translúcidas quando a ajudei a sair do carro.
— Você está apaixonado por mim — ela sussurrou em meu ouvido —, ou por que me pediria que viesse sozinha?
— É o segredo do castelo de Rackrent.4 Diga ao seu chofer para ir embora e voltar daqui a uma hora.
— Volte daqui a uma hora, Ferdie. — Então, com um sussurro grave: — Seu nome é Ferdie.
— E a gasolina, lhe afeta o nariz?
— Acho que não — ela respondeu inocentemente. — Por quê?
Entramos na casa. Para minha imensa surpresa, a sala estava vazia.
— Bem, isso é engraçado — exclamei.
— O que é engraçado?
Ela se virou ao ouvir uma batida leve e respeitosa na porta da frente. Fui abrir. Gatsby, pálido feito a morte, as mãos afundadas nos bolsos do casaco, estava parado sobre uma poça d’água e olhava tragicamente no fundo dos meus olhos.
Com as mãos ainda nos bolsos, ele passou reto por mim e seguiu para o vestíbulo, então se virou de repente como se estivesse na corda bamba e desapareceu na sala. Não era nem um pouco engraçado. Ciente das fortes batidas do meu coração, empurrei a porta em direção à chuva cada vez mais densa.
Por meio minuto, não houve ruído algum. Então ouvi um murmúrio abafado e parte de uma risada, seguidos pela voz de Daisy em tom claramente artificial:
— Que felicidade revê-lo!
Uma pausa; ela durou uma eternidade. Eu não tinha o que fazer no vestíbulo, então fui até a sala.
Gatsby, as mãos ainda nos bolsos, reclinava-se sobre o consolo da lareira numa atitude tensa e forçada de quem aparenta estar à vontade, quase entediado. Sua cabeça pendia para trás de tal forma que se apoiava num relógio quebrado sobre a lareira, e dessa posição ele encarava Daisy com os olhos agitados. Ela estava sentada, assustada porém graciosa, na ponta de uma cadeira dura.
— Já nos conhecíamos — murmurou Gatsby. Seus olhos me fitaram por um instante e seus lábios se afastaram numa fracassada tentativa de rir. Por sorte, o relógio escolheu aquele segundo para oscilar perigosamente à pressão de sua cabeça, de modo que ele se virou e o apanhou com as mãos trêmulas, colocando-o de volta no lugar. Então se sentou rigidamente com o cotovelo no braço do sofá e o queixo apoiado na mão.
— Desculpe-me pelo relógio — ele disse.
Meu próprio rosto foi tomado por um intenso rubor tropical. Não conseguia evocar um único lugar-comum dos milhares que povoavam a minha mente.
— É um relógio velho — eu respondi, de forma idiota.
Por um instante, pareceu-nos que ele havia de fato se despedaçado no chão.
— Não nos vemos há muitos anos — disse Daisy, com o tom de voz mais prosaico possível.
— Vai fazer cinco anos em novembro.
O caráter automático da resposta de Gatsby nos deteve por ao menos um minuto. Desesperado, propus que me ajudassem com o chá na cozinha, ao que ambos se levantaram, quando então a demoníaca finlandesa chegou com tudo pronto numa bandeja.
Em meio à bem-vinda confusão de xícaras e bolos, estabeleceu-se certa decência física entre nós. Gatsby foi refugiar-se num canto e, enquanto eu e Daisy conversávamos, ficou nos observando diligentemente com os olhos tensos e infelizes. Contudo, como a calma não era um fim em si, inventei uma desculpa na primeira oportunidade e me levantei.
— Aonde você vai? — perguntou Gatsby, imediatamente alarmado.
— Já volto.
— Preciso falar uma coisa com você antes.
Ele me seguiu precipitadamente até a cozinha, fechou a porta e murmurou: “Oh, meu Deus”, de um jeito infeliz.
— O que foi?
— É um grande erro — ele disse, negando enfaticamente com a cabeça —, um erro terrível.
— Você está constrangido, só isso. — E por sorte acrescentei: — Daisy também está constrangida.
— É mesmo? — ele perguntou, incrédulo.
— Tanto quanto você.
— Não fale tão alto.
— Você está agindo como um garoto — exclamei, impaciente. — Não só isso, mas está sendo grosseiro. Deixou Daisy sozinha na sala.
Ele ergueu a mão para interromper minhas palavras, olhou-me com uma reprovação antológica e, abrindo a porta com cuidado, voltou para a sala.
Eu saí pelos fundos — exatamente como Gatsby havia feito em sua volta nervosa ao redor da casa, meia hora antes — e corri para uma enorme árvore escura e nodosa, cuja folhagem compacta servia como guarda-chuva. Estava outra vez chovendo torrencialmente, e meu terreno irregular, com a grama bem aparada pelo jardineiro de Gatsby, abundava em pequenos brejos lamacentos e pântanos pré-históricos. Não havia nada para olhar dali, exceto a mansão gigantesca de Gatsby, então fiquei observando-a por meia hora, como Kant diante de seu campanário de igreja.5 Um cervejeiro a construíra no auge de seu desvario, havia dez anos, e aparentemente se oferecera para pagar cinco anos de impostos de todos os casebres vizinhos caso os proprietários cobrissem seus telhados de palha. Talvez a recusa geral tenha destruído seu sonho de Estabelecer Família — e precipitado seu rápido declínio. Seus filhos venderam a casa com a coroa de flores ainda à porta. Os americanos, embora almejem (e até cobicem) a condição de servos, sempre abominaram a condição de camponeses.
Meia hora depois, o sol voltou a brilhar e o automóvel do dono da mercearia contornou a entrada de Gatsby com os ingredientes para o jantar dos empregados — do qual ele por certo não experimentaria uma só garfada. Uma criada tornou a abrir as janelas superiores da casa, aparecendo por um instante em cada uma delas e, debruçada no grande balcão central, cuspiu pensativamente no jardim. Era hora de voltar. Enquanto chovia, tive a impressão de ouvir o murmúrio de suas vozes erguendo-se de quando em quando em arroubos de emoção. Mas, quando parou de chover, senti que o silêncio havia tomado a casa também.
Entrei — após fazer todo barulho possível na cozinha, faltando apenas empurrar o fogão —, mas não acredito que eles tenham se dado conta. Estavam sentados um em cada ponta do sofá, entreolhando-se como se uma pergunta tivesse sido proferida, ou estivesse no ar, e não havia mais vestígios de constrangimento. O rosto de Daisy estava borrado de lágrimas; quando me viu entrar, ela deu um salto e passou a enxugá-lo com um lenço diante do espelho. O rosto de Gatsby, porém, deixava transparecer uma mudança desconcertante. Ele literalmente ardia; sem emitir uma só palavra ou gesto de júbilo, irradiava uma felicidade nova que preenchia toda a sala.
— Ah, olá, meu velho — ele disse, como se não me visse há anos. Pensei por um momento que fosse me cumprimentar.
— Parou de chover.
— É mesmo?
Quando ele se deu conta do que eu dizia — que havia gotas cintilantes de sol por toda a sala —, sorriu feito um meteorologista, feito um eufórico patrono da luz recorrente, e transmitiu a notícia a Daisy:
— O que me diz disso? Parou de chover.
— Fico feliz, Jay. — Sua voz, de uma beleza dolorida e nostálgica, se referia unicamente àquela alegria inesperada.
— Quero que você e Daisy venham à minha casa — ele disse. — Gostaria de lhe mostrar onde vivo.
— Tem certeza de que quer que eu vá?
— Claro que sim, meu velho.
Daisy subiu para lavar o rosto — e só tarde demais me lembrei, humilhado, das minhas toalhas —, enquanto Gatsby e eu esperávamos no gramado.
— Minha casa está bonita, não acha? — ele perguntou. — Veja como a fachada inteira reflete a luz do sol.
Eu concordei, dizendo que era esplêndida.
— É. — Seus olhos a examinaram em cada porta arqueada e torre retangular. — Levei três anos juntando dinheiro para comprá-la.
— Pensei que você tinha herdado a sua riqueza.
— E herdei, meu velho — ele disse mecanicamente —, mas perdi a maior parte no grande pânico: o pânico da guerra.
Creio que ele mal sabia do que estava falando, pois quando lhe perguntei qual era seu ramo de negócios, ele respondeu: “Isso é assunto meu”, antes de perceber que não era uma resposta apropriada.
— Ah, já trabalhei em várias áreas — corrigiu-se. — Estive no ramo farmacêutico e depois trabalhei com petróleo. Mas atualmente não estou em nenhum deles. — Ele me olhou com mais atenção. — Quer dizer que você reconsiderou a proposta que lhe fiz aquela noite?
Antes que eu pudesse responder, Daisy surgiu à porta e as duas fileiras de botões de seu vestido brilharam à luz do sol.
— É aquela coisa enorme ali atrás? — ela exclamou, apontando para a mansão de Gatsby.
— Gostou?
— Adorei, mas não entendo como você pode morar ali sozinho.
— Está sempre cheia de pessoas interessantes, dia e noite. Pessoas que fazem coisas interessantes. Pessoas famosas.
Em vez de tomar o atalho pelo estreito, descemos a rua e entramos pelo portão principal. Com gemidos de encanto, Daisy admirou esse ou aquele aspecto da silhueta feudal contra o céu, admirou o jardim, o perfume intenso dos narcisos, o perfume fresco dos pilriteiros e das ameixas-japonesas, e o perfume pálido e dourado das valerianas vermelhas. Era estranho chegar à escadaria de mármore e não ouvir o farfalhar de vestidos subindo e descendo, nem outro barulho além do canto dos pássaros.
Lá dentro, ao caminharmos pelas salas de música à la Maria Antonieta e pelos salões de estilo Restauração, tive a impressão de que havia convidados escondidos atrás de cada sofá e mesa, com ordens de respirar em silêncio até terminarmos de passar. Quando Gatsby fechou a porta da “Biblioteca Merton College”,b podia jurar que ouvi o homem dos Olhos de Coruja dar uma gargalhada fantasmagórica.
Fomos para o andar de cima. Percorremos uma série de dormitórios de época envoltos em seda cor-de-rosa e lavanda, repletos de flores frescas, além de quartos de vestir, salas de bilhar e toaletes com banheira — então entramos num quarto onde um homem desgrenhado de pijama fazia exercícios vigorosos no chão. Era o sr. Klipspringer, o “hóspede”. Eu o tinha visto de manhã perambulando na praia com um ar nervoso. Por fim, chegamos ao aposento de Gatsby, uma suíte com escritório6 onde nos sentamos e bebemos uma taça de Chartreuse que ele tirou de um armário embutido na parede.
Ele não havia tirado os olhos de Daisy um segundo sequer, e acho que estava reavaliando sua casa a partir das reações expressas em seus olhos amáveis. Às vezes, Gatsby também admirava seus bens com um ar deslumbrado, como se, na presença real e estarrecedora de Daisy, nada disso fosse verdadeiro. A certa altura, ele quase tropeçou num lance de escadas.
Seu quarto era o mais simples de todos — exceto pela penteadeira, que tinha artigos de toucador feitos de ouro maciço. Com imenso deleite, Daisy apanhou a escova e penteou seus cabelos, ao que Gatsby sentou, esfregou os olhos e deu risada.
— É a coisa mais engraçada, meu velho — ele disse, hilariante. — Eu não consigo... Quando tento...
Gatsby havia claramente passado por dois estados de espírito e agora entrava num terceiro. Depois do constrangimento e da alegria irracional, ele se enchia de perplexidade com a presença dela. Passara tanto tempo pensando naquela ideia, sonhando-a em todos os detalhes e cobiçando-a com unhas e dentes, por assim dizer, que atingira certa intensidade inconcebível. Agora, em contrapartida, ele se prostrava como um relógio exaurido.
Recuperando-se em um salto, ele abriu as portas de um guarda-roupa pesado e mostrou seus ternos, roupões e gravatas amontoados, e suas camisas empilhadas às dúzias, feito tijolos.
— Há um sujeito na Inglaterra que compra roupas para mim. Ele me envia uma seleção de peças a cada começo de estação, na primavera e no outono.
Gatsby apanhou uma pilha de camisas e começou a atirá-las em nossa direção, uma a uma, camisas finas de linho, de seda pura e de flanela, que perdiam a dobra ao cair e cobriam a mesa numa bagunça multicolorida. Enquanto as admirávamos, ele trazia mais peças e aquela montanha farta e macia ia crescendo — camisas listradas, com arabescos e quadriculadas nas cores coral, verde-maçã, lavanda e alaranjado, com monogramas em índigo. De repente, com um grito contido, Daisy afundou a cabeça nas camisas e começou a chorar copiosamente.
— São camisas bonitas — ela soluçou, a voz abafada em meio às pregas grossas de tecido. — Eu fico triste porque nunca... nunca vi camisas tão bonitas.
Depois de conhecermos a casa, pretendíamos passear pelos arredores para ver a piscina, o hidroavião e as flores de verão — mas lá fora voltara a chover, então nos resignamos e ficamos observando a superfície corrugada do estreito.
— Se não fosse pela neblina, daria para enxergar a sua casa do outro lado da baía — disse Gatsby. — Há sempre uma luz verde brilhando a noite toda na extremidade do seu cais.
Daisy tomou o braço de Gatsby, mas ele parecia absorto no que acabara de dizer. Talvez lhe ocorresse que o significado colossal daquela luz se esvaíra para sempre. Comparada à enorme distância que o separava de Daisy, a luz lhe parecera antes muito próxima, quase a ponto de tocá-la. Tão próxima quanto uma estrela da lua. Agora era de novo uma luz verde no cais. Sua coleção de objetos mágicos havia diminuído.
Comecei a andar pela sala, examinando inúmeros objetos indistintos à meia-luz. Pendurado na parede sobre a mesa, o retrato de um homem velho em trajes náuticos me chamou a atenção.
— Quem é ele?
— Esse aí? É o senhor Dan Cody, meu velho.
O nome me soou vagamente familiar.
— Ele já morreu. Era meu melhor amigo.
Havia um pequeno retrato de Gatsby aos dezoito anos, também em trajes náuticos, junto à escrivaninha — ele jogava a cabeça para trás, num gesto desafiador.
— Adorei — exclamou Daisy. — Um topete pompadour! Você nunca me disse que tinha um topete pompadour. E um iate.
— Veja isto — disse Gatsby rapidamente. — São recortes de notícias a seu respeito.
Eles ficaram lado a lado examinando os recortes. Eu estava prestes a pedir para ver os rubis quando o telefone tocou, e Gatsby atendeu.
— Sim... Bem, não posso falar agora... Não posso falar agora, meu velho... Eu disse uma cidade pequena... Ele deve saber o que é uma cidade pequena... Bem, então ele não serve para nós, se Detroit é a sua ideia de cidade pequena...
Ele desligou.
— Venha cá, rápido! — gritou Daisy junto à janela.
Ainda chovia, mas a escuridão se dissipara a oeste e havia uma onda de nuvens espumosas, douradas e róseas, sobre o mar.
— Olhe — ela sussurrou, e depois de um instante —, eu queria pegar uma dessas nuvens cor-de-rosa, colocar você nela e arrastá-lo por toda parte.
Fiz menção de partir, mas eles não quiseram nem saber; talvez minha presença os fizesse sentir mais satisfatoriamente sozinhos.
— Já sei — disse Gatsby —, vamos pedir para Klipspringer tocar piano.
Ele saiu da sala gritando “Ewing!” e retornou em poucos minutos acompanhado de um jovem constrangido e um pouco cansado, com óculos de aros grossos e cabelos loiros escassos. Ele agora estava decentemente vestido com uma camisa esporte aberta, tênis e calças de brim de um matiz nebuloso.
— Interrompemos os seus exercícios? — perguntou Daisy educadamente.
— Eu estava cochilando — exclamou o sr. Klipspringer, com um espasmo de constrangimento. — Quer dizer, eu estive cochilando. Então acordei e...
— Klipspringer sabe tocar piano — irrompeu Gatsby. — Não é, Ewing, meu velho?
— Não toco muito bem. Eu não... eu mal sei tocar. Estou totalmente sem prát...
— Vamos descer — ordenou Gatsby, apertando um interruptor. O cinza das janelas sumiu e a casa resplandeceu por inteiro.
Na sala de música, Gatsby acendeu um abajur solitário ao lado do piano. Acendeu o cigarro de Daisy com um fósforo trêmulo e sentou-se a seu lado num sofá na outra ponta da sala, onde não havia luz, exceto aquela refletida pelo piso reluzente do vestíbulo.
Quando Klipspringer terminou de tocar “The love nest”,c virou-se para trás e, desanimado, procurou Gatsby em meio à penumbra.
— Estou sem prática, como você pode ver. Como eu lhe disse, não posso tocar. Estou totalmente sem prát...
— Não fale tanto, meu velho — ordenou Gatsby. — Toque!

De manhã,
E à noite,
Não é que nos divertimos...d

Lá fora, o vento soprava forte e ouvia-se um tênue barulho de trovão ecoando pelo estreito. Todas as luzes brilhavam em West Egg; os trens elétricos, repletos de gente, voltavam para casa em meio à chuva, vindos de Nova York. Era um momento de profunda transformação humana e a excitação florescia no ar.

Uma coisa é certa, e nada mais
Os ricos ficam mais ricos e os pobres ficam mais... férteis.
Enquanto isso,
No intervalo...e

Quando levantei para me despedir, vi que a expressão de êxtase retornara ao rosto de Gatsby, embora lhe tivesse ocorrido uma vaga incerteza quanto à dimensão de sua felicidade atual. Quase cinco anos! Mesmo naquela noite, deve ter havido momentos em que Daisy não esteve à altura dos seus sonhos — não por culpa dela, mas pela vitalidade colossal de sua ilusão, que havia atingido um patamar além dela, além de tudo. Ele se rendeu a essa ilusão com uma paixão criativa, complementando-a o tempo todo, enfeitando-a com todo tipo de plumas coloridas que encontrava pelo caminho. Nem as maiores lufadas de fogo e vento seriam capazes de competir com aquilo que um homem pode guardar em seu coração etéreo.
Enquanto eu o observava, ele se aprumou de modo visível. Tomou a mão de Daisy e debruçou-se com um ímpeto de emoção, tão logo ela sussurrou algo ao seu ouvido. Creio que a voz de Daisy, com seu entusiasmo oscilante e febril, o prendia sobretudo por não conseguir ser superada em sonhos — aquela voz era uma música imortal.
Eles já não faziam caso de minha presença, porém Daisy ergueu o rosto e estendeu-me a mão; Gatsby já não tomava o menor conhecimento de mim. Olhei mais uma vez e eles me retribuíram o olhar vagamente, tomados pela intensidade da vida. Então saí da sala e desci os degraus de mármore rumo à chuva, deixando-os juntos lá dentro.
a Sardines-in-the-box é uma brincadeira similar ao esconde-esconde, só que ao contrário: em vez de uma criança procurar as outras, todas procuram uma só.
b O nome “Biblioteca Merton College” refere-se literalmente à biblioteca dessa faculdade em Oxford, mas no romance Nick a põe entre aspas para indicar um gracejo próprio ou o título que Gatsby dá à biblioteca. Talvez esse nome esteja escrito na porta.
c “The love nest” (1920), do musical de George M. Cohan, Mary. Letra de Otto Harbach e música de Louis A. Hirsch.
d “Ain’t we got fun?” (1921), foxtrote muito popular na época, composto por Richard A. Whiting (melodia), Raymond B. Egan e Gus Kahn (letra). No original: “In the morning,/ In the evening,/ Ain’t we got fun...”.
e Da mesma música. No original: “One thing’s sure and nothing’s surer/ The rich get richer and the poor get... children/ In the meantime,/ In between time...”.

6
Mais ou menos naquela época, um jovem e ambicioso repórter de Nova York bateu à porta de Gatsby perguntando se ele tinha algo a dizer.
— Algo a dizer sobre o quê? — perguntou Gatsby educadamente.
— Ora, uma declaração qualquer que você queira fazer.
Descobriu-se, após cinco confusos minutos, que o jornalista ouvira o nome de Gatsby na redação, relacionado a um contexto que ele não podia revelar ou não compreendera de todo. Aquele era seu dia de folga e, com louvável iniciativa, havia saído para “apurar”.
Era uma aposta aleatória, e ainda assim o instinto do repórter estava certo. A notoriedade de Gatsby, difundida pelas centenas de pessoas que se beneficiaram de sua hospitalidade e se tornaram, portanto, autoridades em seu passado, havia crescido ao longo do verão até que ele ficasse a um passo de se tornar notícia. Lendas contemporâneas como a do “oleoduto subterrâneo até o Canadá”1 se vinculavam a ele, e havia um insistente boato de que ele não morava numa casa, mas num bote que parecia uma casa e fora transportado às escondidas ao longo do estreito de Long Island. Por que exatamente essas invenções eram motivo de orgulho para James Gatz, de North Dakota, não é fácil dizer.
James Gatz — era esse o seu nome verdadeiro, ao menos oficialmente. Ele decidira mudá-lo aos dezessete anos, no momento específico que marcava o início de sua carreira — quando viu o iate de Dan Cody baixar âncora na parte mais traiçoeiramente rasa do lago Superior. Era James Gatz que perambulava na praia aquela tarde, metido num blusão verde rasgado e calça de brim, mas foi Jay Gatsby que pediu um bote emprestado, encostou no Tuolomee e informou Cody que uma ventania iria apanhá-lo e destroçá-lo dali a meia hora.
Suponho que ele já tinha escolhido o nome havia tempos, mesmo então. Seus pais eram fazendeiros preguiçosos e fracassados — sua imaginação nunca os reconhecera como pais. A verdade era que Jay Gatsby de West Egg, Long Island, havia saído da própria concepção platônica de si mesmo. Ele era um filho de Deus — frase que, se de fato significava alguma coisa, era exatamente isso — e devia ocupar-se dos negócios de seu Pai,a a serviço de uma beleza vasta, vulgar e libertina. Então ele inventou precisamente o Jay Gatsby que um menino de dezessete anos seria capaz de inventar, e foi fiel a essa concepção até o fim.
Por mais de um ano ele vagou pela costa sul do lago Superior como catador de conchas e pescador de salmão, ou qualquer outra ocupação que lhe proporcionasse comida e lugar para dormir. Seu corpo moreno e calejado suportava naturalmente aqueles dias intensos de trabalho, meio brutais, meio preguiçosos. Gatsby conheceu as mulheres muito cedo, mas elas o mimaram e por isso ele se tornou desdenhoso — das moças virgens porque eram ignorantes e das outras porque ficavam histéricas com coisas que ele, em seu egocentrismo avassalador, tomava como certas.
Mas seu coração vivia em uma turbulência constante. As ideias mais grotescas e fantásticas o perseguiam à noite, antes de dormir. Um universo de ostentação inefável se formava em sua mente enquanto os ponteiros do relógio avançavam no lavatório e a lua banhava de luz úmida suas roupas bagunçadas no chão. Todas as noites ele acrescentava algo à estrutura de suas fantasias até que a sonolência soterrasse essa cena vívida num abraço de esquecimento. Por um tempo, as ilusões lhe propiciaram um escape para a imaginação; eram uma alusão satisfatória à irrealidade da realidade, uma promessa de que a rocha do mundo estava assentada numa asa de fada.
Um pressentimento de glória futura o levara, meses antes, ao pequeno Colégio Luterano de St. Olaf, ao sul de Minnesota.b Ele passou duas semanas lá, consternado com a feroz indiferença dos professores ao seu destino estrondoso, ou mesmo ao próprio destino, e acabou por desdenhar o trabalho de zelador com o qual pagaria sua matrícula. Então se deixou levar de volta ao lago Superior, e ainda procurava uma ocupação no dia em que o iate de Dan Cody baixou âncora na área mais rasa da costa.
Cody tinha cinquenta anos e era um subproduto das jazidas de prata do Yukon, tendo participado de todas as corridas de metal desde 1875. Os negócios com o cobre de Montana que o tornaram várias vezes milionário o deixaram ainda fisicamente robusto, mas à beira da debilidade e, com isso em mente, um número infinito de mulheres tentou apartá-lo do dinheiro. As circunstâncias nada agradáveis pelas quais a jornalista Ella Kaye conseguiu dar uma de madame de Maintenon2 diante de suas fraquezas, despachando-o para o mar num iate, eram comuns na imprensa sensacionalista de 1902. Nos últimos cinco anos de vida, ele velejara por todo canto minimamente hospitaleiro da costa, antes de transformar a vida de James Gatz na baía de Little Girl.
Para o jovem Gatz, descansando sobre os remos e admirando o parapeito do convés, o iate representava toda a beleza e glamour do mundo. Acredito que ele tenha sorrido para Cody — talvez já tivesse descoberto que as pessoas gostavam dele quando sorria. Em todo caso, Cody lhe fizera algumas perguntas (uma delas trouxe à tona seu novo nome) e descobriu que era um rapaz esperto e extravagantemente ambicioso. Poucos dias depois, levou-o a Duluth e comprou-lhe um sobretudo azul, seis pares de calças de brim e um quepe de iatismo. E quando o Toulomee zarpou para as Índias Ocidentais e a Costa da Berbéria,c Gatsby foi junto.
Haviam-no alocado para uma função vaga e pessoal — enquanto esteve com Cody, foi comissário de bordo, imediato, capitão, secretário e até carcereiro, pois o Dan Cody sóbrio sabia quanta prodigalidade o Dan Cody bêbado podia cometer, e precavia-se dessas eventualidades depositando mais e mais confiança em Gatsby. O arranjo durou cinco anos, durante os quais o barco deu três voltas pelo continente. Teria durado eternamente, não fosse o fato de que Ella Kaye subiu a bordo certa noite, em Boston, e uma semana depois Dan Cody morreu de maneira inóspita.
Lembro-me de seu retrato no quarto de Gatsby: um homem grisalho e ruborizado com um rosto duro e vazio — o típico pioneiro libertino, que no passado trouxera de volta à Costa Leste a violência selvagem dos saloons e bordéis da fronteira. Era indiretamente por sua causa que Gatsby bebia tão pouco. Às vezes, em festas animadas, as mulheres esfregavam champanhe em seu cabelo; de sua parte, Gatsby adquiriu o hábito de deixar a bebida em paz.
E foi de Cody que ele herdou uma grande riqueza — um legado de vinte e cinco mil dólares que jamais chegou a receber. Nunca pôde entender os artifícios legais usados contra ele, mas o que sobrou dos milhões de Cody foi inteiramente para Ella Kaye. A ele restou apenas uma educação singularmente refinada; o vago contorno de Jay Gatsby fora agora preenchido pela substancialidade de um homem.
Gatsby me contou tudo isso bem mais tarde, mas decidi registrá-lo aqui para desfazer aqueles primeiros e loucos rumores sobre seu passado, que não eram nem minimamente verdadeiros. Além disso, ele me contou sua história num momento de confusão, quando estive a ponto de acreditar em nada e em tudo a seu respeito. Então aproveitei essa breve pausa enquanto Gatsby, por assim dizer, retomava seu fôlego, para esclarecer essa série de mal-entendidos.
Foi também uma pausa em meu envolvimento com seus problemas. Por várias semanas, não o vi nem ouvi sua voz ao telefone — passei a maior parte do tempo em Nova York, flanando com Jordan e tentando agradar a sua tia senil —, mas por fim, num domingo à tarde, resolvi passar em sua casa. Havia chegado fazia não mais que dois minutos quando um homem trouxe Tom Buchanan para tomar um drinque. Fiquei alarmado, é claro, mas o que me surpreendeu é que não houvesse acontecido antes.
Eram três pessoas e estavam a cavalo — Tom, um homem chamado Sloane e uma bela mulher em trajes marrons de ginete, que já estivera lá.
— É um prazer recebê-los — disse Gatsby, parado no pórtico. — Fico feliz com a visita.
Como se eles se importassem!
— Venham, sentem-se. Aceitam um cigarro ou charuto? — Andou rapidamente pela sala, tocando sinetas. — Trarei algo para vocês beberem em um minuto.
Ele estava profundamente afetado com a presença de Tom. Mas, em todo caso, não sossegaria até arrumar uma bebida para os convidados, presumindo de forma vaga que eles haviam vindo para isso. O sr. Sloane dispensou a bebida. Uma limonada? Não, obrigado. Um pouco de champanhe? Não quero nada, obrigado... Me desculpe...
— Fizeram um bom passeio?
— Há belas trilhas por aqui.
— Na certa os automóveis...
— É.
Movido por um impulso irresistível, Gatsby voltou-se para Tom, que havia sido apresentado como um estranho.
— Acho que já nos conhecemos, senhor Buchanan.
— Ah, sim — disse Tom num jeito rispidamente educado, mas era óbvio que não se lembrava. — É verdade. Lembro-me muito bem.
— Há mais ou menos duas semanas.
— Claro. Você estava com Nick.
— Conheço sua esposa — continuou Gatsby, de modo quase agressivo.
— É mesmo?
Tom virou-se para mim.
— Você mora por aqui, Nick?
— Na casa ao lado.
— É mesmo?
O sr. Sloane não participou da conversa e continuou largado desdenhosamente em sua poltrona; a mulher também não disse uma palavra — até que, de repente, após dois uísques com soda, se fez simpática.
— Nós todos iremos comparecer a sua próxima festa, senhor Gatsby — ela sugeriu. — O que me diz?
— Ótimo, será um prazer recebê-los.
— Que bom — disse o sr. Sloane, sem demonstrar gratidão. — Bem, acho que é hora de irmos para casa.
— Por favor, não se apressem — Gatsby os encorajou. Ele agora assumira o controle de si mesmo e gostaria de saber mais sobre Tom. — Por que vocês não... por que não ficam para o jantar? Não seria nenhuma surpresa se aparecesse por aqui mais gente de Nova York.
— Você venha jantar comigo — disse a moça com entusiasmo. — Vocês dois.
Aquilo me incluía. O sr. Sloane levantou-se.
— Vamos — ele disse, dirigindo-se apenas à esposa.
— É sério — ela insistiu. — Adoraria tê-los em casa. Temos bastante espaço.
Gatsby olhou para mim interrogativamente. Ele queria ir, mas não tinha reparado que o sr. Sloane já decidira em contrário.
— Acho que não vou poder ir — eu disse.
— Bem, então venha você — ela pediu, concentrando-se em Gatsby.
O sr. Sloane sussurrou alguma coisa ao pé do seu ouvido.
— Não ficará tarde se sairmos agora — ela insistiu, em voz alta.
— Não tenho cavalo — respondeu Gatsby. — Costumava montar na época do Exército, mas nunca cheguei a comprar um. Terei que segui-los em meu carro. Com licença, volto em um minuto.
Fomos sem Gatsby até o pórtico, onde Sloane e a mulher começaram uma discussão inflamada.
— Meu Deus, e não é que o homem vai mesmo? — exclamou Tom. — Será que não percebe que ela não quer que vá?
— Mas ela disse que quer.
— Haverá um grande jantar festivo e ele não conhece ninguém. — Tom franziu as sobrancelhas. — Fico imaginando de onde diabos ele conhece Daisy. Por Deus, posso ter ideias antiquadas, mas as mulheres de hoje em dia circulam demais para o meu gosto. Elas acabam conhecendo todo tipo de gente esquisita.
De súbito, o sr. Sloane e a mulher desceram os degraus e montaram seus cavalos.
— Vamos — disse o sr. Sloane para Tom —, estamos atrasados. Temos que ir.
E então, para mim:
— Diga a ele que não pudemos esperar, certo?
Tom e eu nos cumprimentamos, troquei um aceno indiferente com os outros dois e eles trotaram às pressas pela entrada da casa, desaparecendo sob a folhagem de agosto no exato instante em que Gatsby surgia à porta de chapéu e casaco leve.
Tom ficara claramente incomodado com as andanças solitárias de Daisy, pois no sábado seguinte ele a acompanhou à festa de Gatsby. Talvez sua presença tenha conferido àquela noite um caráter singularmente opressivo — destacando-se em minha memória das outras festas de Gatsby naquele verão. Eram os mesmos convidados, ou pelo menos o mesmo tipo de convidados, a mesma profusão de champanhe, a mesma comoção colorida e dissonante, mas havia um desconforto no ar, uma aridez penetrante que nunca esteve lá. Ou talvez eu tenha me habituado às festas e passado a aceitar West Egg como um mundo em si mesmo com suas próprias regras e celebridades, sem nada que lhe fizesse frente, pois era tudo involuntário. E agora me via forçado a analisar tudo de novo, através dos olhos de Daisy. É invariavelmente triste ver com novos olhos situações às quais você já havia despendido esforços para se ajustar.
Eles chegaram ao anoitecer e, enquanto passeávamos entre centenas de convidados entusiasmados, Daisy cantarolava baixinho.
— Essas coisas me deixam tão animada — ela sussurrou. — Se quiser me beijar em algum momento, Nick, é só dizer e ficarei feliz em atendê-lo. Basta chamar o meu nome. Ou me apresentar um cartão verde. Estou distribuindo cartões...
— Olhe bem à sua volta — sugeriu Gatsby.
— Estou olhando. É uma noite marav...
— Você precisa ver o rosto de todas essas pessoas de quem já ouviu falar.
Os olhos arrogantes de Tom perscrutaram a multidão.
— Não costumamos sair muito de casa — ele disse. — Na verdade, eu estava justamente pensando que não conheço uma única alma aqui dentro.
— Talvez conheça aquela moça. — Gatsby apontou para uma mulher estonteante que mais parecia uma orquídea, dificilmente humana, sentada com pompa sob uma ameixeira branca. Tom e Daisy olharam com aquela sensação irreal que temos ao reconhecer alguma celebridade do cinema, até então etérea.
— Ela é linda — disse Daisy.
— O homem inclinado sobre ela é seu diretor.
Ele os conduziu cerimoniosamente de grupo em grupo:
— Senhora Buchanan... e senhor Buchanan... — Após um instante de hesitação, ele acrescentou: — O jogador de polo.
— Ah, não — protestou Tom imediatamente —, de maneira alguma.
Mas era óbvio que aquela alcunha agradava a Gatsby, de modo que Tom permaneceu “o jogador de polo” pelo resto da noite.
— Nunca vi tantas celebridades — exclamou Daisy. — Gostei daquele homem — como se chama mesmo? —, aquele com o nariz azulado.
Gatsby o identificou, informando que era um pequeno produtor.
— Bem, em todo caso gostei dele.
— Eu realmente preferia não ser o jogador de polo — disse Tom amigavelmente. — Gostaria de poder olhar para todas essas pessoas famosas do alto de meu... de meu anonimato.
Daisy e Gatsby foram dançar. Lembro-me de ficar surpreso com seu jeito altivo e conservador de bailar o foxtrote — eu nunca o tinha visto dançar. Então eles caminharam até a minha casa e passaram meia hora sentados nos degraus, enquanto, a pedido de Daisy, eu permanecia de vigia no jardim.
— Para o caso de haver um incêndio ou uma inundação — ela explicou —, ou qualquer outro ato da natureza.
Tom retornou de seu anonimato quando nos organizávamos para o jantar.
— Vocês se importam se eu me sentar com aquela turma logo ali? — ele perguntou. — Tem um sujeito contando umas histórias muito engraçadas.
— Vá em frente — respondeu Daisy com alegria —, e se quiser anotar algum telefone, aqui está o meu lápis dourado...
Após um instante, ela olhou para trás e me contou que a garota era “comum, mas bonita”, e eu percebi que, excetuando-se aquela meia hora que passara a sós com Gatsby, ela não estava se divertindo.
Havíamos escolhido uma mesa particularmente bêbada. A culpa era minha — Gatsby saíra para atender o telefone e eu havia me divertido com essas mesmas pessoas duas semanas antes. Mas o que outrora me entusiasmara agora apodrecia em pleno ar.
— Está se sentindo bem, senhorita Baedeker?
A referida garota tentava, sem sucesso, tombar sobre o meu ombro. Diante da pergunta, ela se aprumou e abriu os olhos.
— Ahn?
Uma mulher robusta e letárgica, que até então tentava convencer Daisy a jogar golfe com ela no clube, falou em defesa da srta. Baedeker:
— Ah, ela está bem agora. Quando toma uns cinco ou seis coquetéis, costuma gritar desse jeito. Eu sempre falo para ela parar de beber.
— Eu parei de beber — afirmou a acusada, só por falar.
— Todo mundo ouviu os seus gritos, então eu disse para o doutor Civet: “Alguém aqui precisa da sua ajuda, doutor”.
— Ela ficou muito agradecida, tenho certeza — disse outro amigo, sem um pingo de gratidão —, mas você lhe molhou todo o vestido ao meter a cabeça dela na piscina.
— Se tem uma coisa que eu odeio é meterem a minha cabeça na piscina — balbuciou a srta. Baedeker. — Uma vez, em Nova Jersey, quase me afogaram.
— Então você devia parar de beber — retrucou o dr. Civet.
— Olha quem está falando! — gritou a srta. Baedeker agressivamente. — A sua mão está tremendo. Eu nunca deixaria você me operar!
E assim por diante. A última lembrança que tenho foi de estar com Daisy observando o diretor de cinema e sua estrela. Eles continuavam sentados sob a ameixeira branca e seus rostos quase se roçavam, separados apenas por um pálido e tênue fio de luar. Ocorreu-me que ele passara a noite toda se debruçando em sua direção só para alcançar essa proximidade, e, enquanto eu o observava, venceu o último degrau e a beijou na bochecha.
— Eu gosto dela — disse Daisy —, é muito encantadora.
Mas o resto da festa lhe desagradava — e não havia o que discutir, já que não se tratava de gestos, mas de emoções. Daisy estava chocada com West Egg, esse lugarzinho inaudito que a Broadway havia engendrado num vilarejo de pescadores de Long Island —, chocada com o vigor brutal que se ocultava por trás dos velhos eufemismos e com o destino absolutamente importuno que forçava os moradores a viver nessa espécie de atalho que levava de nada a lugar algum. Ela via naquela simplicidade algo terrível que não conseguia explicar.
Sentei-me ao lado de Tom e Daisy nos degraus, enquanto eles esperavam o carro. A frente da casa era um verdadeiro breu; a luz da porta projetava apenas um minúsculo retângulo sobre a branda e escura madrugada. Às vezes uma sombra se mexia por trás da veneziana de algum quarto de vestir, dando lugar a outra sombra e a uma infinita sucessão delas, que passavam rouge e pó de arroz diante de um espelho invisível.
— Afinal, quem é esse Gatsby? — perguntou Tom de repente. — Algum figurão contrabandista?
— Onde você ouviu isso? — perguntei.
— Em lugar nenhum. Eu presumi. Você sabe que muitos desses novos-ricos não passam de contrabandistas.
— Não o Gatsby — eu disse, sucinto.
Ele ficou calado por um instante. Esmagou com o pé uns pedregulhos da entrada da casa.
— Bem, ele deve ter se desdobrado para juntar essa turma exótica.
Uma brisa soprava a névoa cinzenta da gola de pele do casaco de Daisy.
— Pelo menos são mais interessantes do que as pessoas que nós conhecemos — ela disse, com esforço.
— Você não parecia tão interessada.
— Mas estava.
Tom deu risada e voltou-se para mim.
— Você reparou na cara que Daisy fez quando aquela moça lhe pediu que a metessem debaixo do chuveiro?
Daisy resolveu acompanhar a música com um sussurro rouco e melodioso, conferindo às palavras um novo sentido, que jamais tiveram e nunca mais terão. Quando a música se erguia, a voz de Daisy irrompia docemente em seu encalço, como fazem as vozes de contralto, e cada mudança de tom exalava no ar um pouco de sua magia cálida e humana.
— Gostaria de saber quem é Gatsby e o que ele faz — insistiu Tom. — E acho que vou conseguir descobrir.
— Posso te dizer agora mesmo — ela respondeu. — Era proprietário de drugstores, de uma rede de drugstores. Que ele mesmo construiu.
A vagarosa limusine veio avançando pela entrada.
— Boa noite, Nick — disse Daisy.
Ela desviou o olhar e procurou o topo iluminado da escadaria, onde “Three o’clock in the morning”, uma valsa simples e triste daquele ano, emanava da porta aberta. Havia, na própria informalidade da festa de Gatsby, possibilidades românticas totalmente ausentes de seu mundo. O que se passava naquela música que parecia atraí-la de volta para dentro? O que iria acontecer agora, naquelas horas indistintas e incalculáveis? Talvez surgisse algum convidado incrível, uma pessoa infinitamente rara e feita para ser admirada, uma garota radiante de verdade que pudesse, com um único olhar a Gatsby, num momento mágico de encontro, anular aqueles cinco anos de devoção inabalável.
Naquela noite, fiquei até tarde. Gatsby me pediu para esperar até que estivesse livre, e eu me demorei no jardim aguardando a volta dos remanescentes de uma inevitável festa na praia, trêmula e exaltada, após a qual as luzes se apagaram nos quartos de hóspedes. Quando ele enfim desceu a escada, sua pele bronzeada estava singularmente esticada, e seus olhos estavam brilhantes e exaustos.
— Ela não gostou — ele disse de imediato.
— É claro que gostou.
— Não gostou — ele insistiu. — Ela não se divertiu.
Ele ficou em silêncio, e reconheci sua inefável tristeza.
— Estou me sentindo distante dela — afirmou. — É difícil fazê-la entender.
— Você quer dizer, a dança?
— A dança? — Ele afastou essa hipótese com um estalar de dedos. — Meu velho, a dança não importa.
Gatsby não esperava outra coisa de Daisy senão que encarasse o marido e dissesse: “Nunca te amei”. Após apagar quatro anos com essa frase, então ambos poderiam tomar medidas mais práticas. Uma delas era que, após a separação, Daisy retornaria a Louisville com Gatsby e se casaria em sua terra natal — como se fosse há cinco anos.
— E ela não consegue entender — ele disse. — Ela costumava entender. Ficamos sentados por horas...
Ele se deteve e passou a andar de lá para cá num caminho desolado de cascas de frutas, lembranças abandonadas e flores esmagadas.
— Veja, eu não pediria tanto assim dela — arrisquei. — Não dá para repetir o passado.
— Como assim, não dá para repetir o passado? — ele gritou, incrédulo. — É claro que dá!
Ele olhou furiosamente ao redor, como se o passado estivesse escondido à sombra de sua casa, bem ao alcance da mão.
— Vou refazer tudo como era — ele disse, assentindo de um jeito decidido. — Ela vai ver só.
Gatsby falou bastante sobre o passado e entendi que desejava recuperar alguma coisa, talvez a ideia de si mesmo, que perdera ao se apaixonar por Daisy. Desde então, sua vida fora confusa e desordenada, mas, se ao menos ele pudesse retornar a um determinado ponto de partida e refazê-lo vagarosamente, talvez conseguisse descobrir o que era...
...Numa noite de outono, cinco anos antes, eles estavam descendo a rua enquanto as folhas caíam, e chegaram a um lugar onde não havia árvores e a calçada era prateada de luar. Pararam por ali e se olharam. Era uma noite fresca repleta daquela excitação misteriosa que ocorre nas duas grandes mudanças de estação. As luzes silenciosas das casas sussurravam na escuridão e havia certa inquietude nas estrelas. Com o canto dos olhos, Gatsby reparou que os blocos da calçada formavam uma escada perfeita que levava a um lugar secreto entre as árvores — que ele poderia escalar, se estivesse sozinho, e lá de cima sugar o seio da vida, absorvendo o incomparável leite de seu assombro.
Seu coração bateu mais rápido quando o rosto de Daisy se aproximou do seu. Gatsby sabia que, após beijá-la, associando para sempre suas fantasias inexprimíveis àquela respiração fugaz, seu espírito nunca mais seria divertido como o espírito de Deus. Portanto ele esperou, ouvindo por mais um segundo o som do diapasão que tinia ao tocar numa estrela. Então a beijou. Ao toque de seus lábios, ela se abriu como uma flor e a encarnação se completou.
De tudo o que ele me disse, em meio a um sentimentalismo alarmante, lembro-me de uma coisa: um ritmo elusivo, um fragmento de palavras perdidas que já ouvira antes. Por um instante, tentei formular uma frase e meus lábios se entreabriram feito os de um homem tolo, como se detidos por outros obstáculos além de um sopro de surpresa no ar. Mas não consegui dizer nada, e minha quase lembrança se fez incomunicável para sempre.
a Negócios de seu Pai: alusão ao comentário feito pelo jovem Jesus a seus pais, quando o encontram no templo discutindo com os doutores da Lei (Lucas 2:49).
b O Colégio Luterano de St. Olaf fica em Northfield, Minnesota, e foi fundado em 1874.
c No sentido literal, é a costa mediterrânea do norte da África, mas, segundo o biógrafo Matthew J. Bruccoli, o autor provavelmente se refere à Barbary Coast, zona portuária de San Francisco que se desenvolveu após a Corrida do Ouro de 1849. Era um bairro marcado pela prostituição, apostas e criminalidade, onde hoje se localizam Chinatown, North Beach, Jackson Square e o Financial District.

7
Foi quando a curiosidade acerca de Gatsby chegou ao ápice que as luzes de sua casa deixaram de se acender no sábado à noite — e, tão misteriosamente quanto começara, sua carreira de Trimálquioa chegou ao fim. Só aos poucos me atinei que os automóveis que aportavam esperançosamente à sua entrada ficavam só um minuto e iam embora a contragosto. Supondo que ele poderia estar doente, fui até lá conferir — um mordomo desconhecido de rosto repugnante me encarou da porta com um ar desconfiado.
— O senhor Gatsby está doente?
— Não. — Depois de uma pausa, ele acrescentou “senhor” de um jeito indiferente e relutante.
— Faz um tempo que não o vejo e fiquei preocupado. Diga a ele que o senhor Carraway passou por aqui.
— Quem? — ele perguntou rudemente.
— Carraway.
— Carraway. Certo, darei o recado.
E bateu a porta com força.
Minha finlandesa informou que Gatsby despedira todos os empregados da casa havia uma semana, substituindo-os por meia dúzia de outros, que nunca haviam estado no centro do vilarejo para serem subornados pelos comerciantes. Estes, ao contrário, encomendavam uma quantidade moderada de suprimentos pelo telefone. O garoto da mercearia relatou que a cozinha parecia um chiqueiro, e a opinião geral do vilarejo era que os novos serviçais não eram empregados de verdade.
No dia seguinte, Gatsby me ligou.
— Estava viajando? — perguntei.
— Não, meu velho.
— Ouvi dizer que você demitiu todos os empregados.
— Não queria ninguém que pudesse fofocar. Daisy tem vindo me visitar com frequência, durante a tarde.
Portanto, diante da reprovação de Daisy, toda a hospitalidade de Gatsby ruíra como um castelo de cartas.
— É um pessoal para quem Wolfshiem estava tentando arrumar emprego. São todos da mesma família e cuidavam de um hotelzinho.
— Entendo.
Ele estava telefonando a pedido de Daisy — será que eu toparia almoçar na casa dela no dia seguinte? A srta. Baker estaria lá. Meia hora depois, a própria Daisy me ligou e pareceu aliviada de saber que eu iria. Havia algo no ar. E, ainda assim, eu não podia acreditar que eles escolheriam essa ocasião para fazer uma cena — sobretudo o tipo de cena aflitiva que Gatsby havia esboçado no jardim.
O dia seguinte foi provavelmente o último dia tórrido daquele verão, e o mais quente de todos. Quando meu trem emergiu do túnel em direção à luz do sol, só os apitos cálidos da Companhia Nacional de Biscoitos quebraram o silêncio fervente do meio-dia. Os assentos de palha do vagão borbulhavam à beira da combustão; a mulher ao meu lado transpirava delicadamente por toda a extensão de sua blusa branca, e, enquanto o jornal empapava entre seus dedos, ela se rendeu ao calor bestial com um grito de desolação. Seu livro de bolso caiu no chão.
— Meu Deus! — ela arfou.
Eu o apanhei do chão com uma mesura exausta e o devolvi à dona, segurando-o pelas pontas com o braço esticado, a fim de deixar claro meu desinteresse pelo objeto — mas todos à minha volta, incluindo a mulher, ficaram invariavelmente desconfiados.
— Quente! — disse o condutor a alguns rostos conhecidos. — Que calor!... Quente!... Quente!... Quente!... Está quente demais para você? Está quente? Está...?
Ele me devolveu o bilhete com uma mancha escura de suor dos seus dedos. E pensar que, nesse calor, houvesse gente interessada em beijar lábios ardentes ou ter alguém para se aninhar no colo, encharcando a frente do pijama!
...Uma brisa leve soprava pelo vestíbulo da casa dos Buchanan, levando o barulho do telefone até a porta, onde eu e Gatsby aguardávamos.
— O corpo do patrão? — rugiu o mordomo ao telefone. — Me desculpe, madame, mas não podemos providenciá-lo: com esse calor do meio-dia, está quente demais para tocá-lo!
O que ele realmente disse foi:
— Sim... Sim... Vou ver.
Ele devolveu o fone ao gancho e veio em nossa direção, vagamente satisfeito, para apanhar os nossos rígidos chapéus de palha.
— A madame está esperando no salão! — ele gritou, apontando desnecessariamente a direção. Naquele calor, qualquer gesto supérfluo era uma afronta ao resguardo geral de energia.
A sala, bem revestida por uma série de toldos, era escura e fresca. Daisy e Jordan estavam estendidas num sofá enorme, como ídolos de prata oferecendo seus vestidos brancos à brisa melodiosa dos ventiladores.
— Não conseguimos nos mexer — elas disseram em uníssono.
Os dedos de Jordan, empoados de branco sobre a pele bronzeada, enlaçaram os meus por um instante.
— E o senhor Thomas Buchanan, o atleta? — perguntei.
Na mesma hora ouvi sua voz rouca, abafada e áspera ao telefone do vestíbulo.
Gatsby ficou parado no centro do tapete vermelho e lançou à sua volta um olhar fascinado. Daisy olhou para ele e soltou uma gargalhada doce e empolgada; uma fina nuvem de pó de arroz emergiu de seu peito e perdeu-se no ar.
— Parece que é a namorada de Tom ao telefone — sussurrou Jordan.
Ficamos em silêncio. A voz no vestíbulo ergueu-se, irritada:
— Muito bem, então não venderei meu carro a você... Não tenho nenhuma obrigação... e não admito que venha me incomodar com esse assunto em plena hora do almoço!
— Está segurando o botão do gancho — disse Daisy com sarcasmo.
— Não está, não — eu garanti. — É uma negociação legítima. Calhou de eu saber a seu respeito.
Tom escancarou a porta, bloqueou o espaço com seu corpo por um instante e então irrompeu na sala.
— Senhor Gatsby! — Ele estendeu sua enorme mão aberta com uma antipatia bem disfarçada. — Prazer em vê-lo, senhor... Nick...
— Prepare um drinque gelado para nós — gritou Daisy.
Assim que ele saiu da sala, Daisy se levantou, foi até Gatsby e puxou seu rosto, beijando-o na boca.
— Você sabe que eu te amo — ela sussurrou.
— Esqueceu que há uma dama presente? — disse Jordan.
Daisy olhou em volta, hesitante.
— Você pode beijar o Nick também.
— Que garota baixa e vulgar!
— Eu não me importo! — exclamou Daisy, remexendo na lareira de tijolos. Então se lembrou do calor e sentou-se culpadamente no sofá, no instante em que uma governanta de banho recém-tomado entrou conduzindo uma garotinha pelas mãos.
— Mi-nha pre-ci-o-sa — ela cantarolou, estendendo os braços. — Venha com a mamãe que te ama tanto.
Liberada pela governanta, a criança cruzou a sala correndo e afundou a cabeça timidamente no vestido da mãe.
— Mi-nha pre-ci-o-sa! A mamãe sujou de pó de arroz os seus lindos cabelos loiros? Agora fique de pé e diga: “Como vai, pessoal?”.
Um de cada vez, Gatsby e eu nos inclinamos para cumprimentar aquela pequena e relutante mão. Depois, ele seguiu olhando para a criança com surpresa. Acho que, até então, ele não havia cogitado a sério sua existência.
— Me vestiram antes do almoço — disse a criança, voltando-se avidamente para Daisy.
— É porque sua mãe queria se gabar de você. — O rosto de Daisy inclinou-se em direção àquele pescoço branco e pequeno. — Você é um sonho. O sonho lindo da mamãe.
— Eu sou — admitiu a criança com tranquilidade. — A tia Jordan também está de vestido branco.
— Você gosta dos amigos da mamãe? — Daisy virou a filha para trás, a fim de que desse uma boa olhada em Gatsby. — Eles são bonitos?
— Cadê o papai?
— Ela não se parece com o pai — explicou Daisy. — Mas se parece comigo. Tem o meu cabelo e o formato do meu rosto.
Daisy voltou a recostar-se no sofá. A governanta deu um passo à frente e tomou a mão da menina.
— Venha, Pammy.
— Até logo, querida!
Olhando para trás com relutância, a disciplinada menina aceitou a mão da governanta e foi levada para fora da sala, justamente quando Tom retornava com quatro drinques de gim e limão repletos de gelo.
Gatsby apanhou seu copo.
— Parecem muito refrescantes — afirmou, com uma tensão visível.
Bebeu em goles ávidos e exagerados.
— Li em algum lugar que o Sol está ficando mais quente a cada ano que passa — disse Tom alegremente. — Parece que em breve a Terra irá de encontro ao Sol... não, espere aí, é justamente o oposto: o Sol está ficando cada vez mais frio.
— Venha comigo — sugeriu a Gatsby em seguida —, quero lhe mostrar o lugar.
Acompanhei-os até o alpendre. Na água esverdeada e estagnada pelo calor, um único barco a vela navegava devagar em direção ao frescor do oceano. Os olhos de Gatsby o seguiram momentaneamente; ele ergueu a mão e apontou para o outro lado da baía.
— Eu vivo exatamente defronte a você.
— É verdade.
Nossos olhares baixaram em direção aos roseirais, ao gramado tórrido e às algas remanescentes dos dias de calor na costa. Lentamente, os flancos brancos do barco iam de encontro ao limite azul e frio do céu. Do lado de lá ficavam o oceano recortado e as ilhas abundantes e abençoadas.
— Aí está um bom esporte — disse Tom, assentindo com a cabeça. — Eu queria poder passar uma meia hora com ele por lá.
Almoçamos na escura sala de jantar, também protegida do calor, e engolimos toda a nossa alegria nervosa com um gole de cerveja gelada.
— O que vamos fazer hoje à tarde? — indagou Daisy — E amanhã, e nos próximos trinta anos?
— Não seja mórbida — disse Jordan. — A vida começa outra vez na brisa fresca do outono.
— Mas faz tanto calor — insistiu Daisy, à beira das lágrimas —, e tudo está tão confuso. Vamos todos à cidade!
Sua voz se debatia contra o calor, enfrentando-o e dando forma à sua falta de sentido.
— Já ouvi falar de gente que transformou um estábulo em garagem — Tom disse a Gatsby —, mas sou o primeiro a transformar uma garagem em estábulo.
— Quem quer ir à cidade? — insistiu Daisy. Os olhos de Gatsby flutuaram em sua direção. Então ela exclamou: — Ah, você parece tão calmo.
Os olhares se cruzaram e eles ficaram se olhando fixamente, sozinhos no mundo. Com esforço, ela conseguiu desviar os olhos para a mesa.
— Você sempre parece tão calmo — ela repetiu.
Daisy acabara de confessar que o amava, e Tom Buchanan percebeu. Ficou atônito. Sua boca se entreabriu e ele olhou para Gatsby, depois para Daisy, como se acabasse de reconhecer na esposa alguém de um passado distante.
— Você me lembra um homem de anúncio — ela prosseguiu inocentemente. — Sabe, esses homens de anúncio...
— Certo — interveio Tom depressa —, estou morrendo de vontade de ir à cidade. Vamos, estamos todos indo à cidade.
Ele se levantou, o olhar ainda fulminante se movendo da esposa para Gatsby. Ninguém se mexeu.
— Vamos lá! — Ele se deixara irritar um pouco. — Qual é o problema, afinal? Se vamos até a cidade, é bom sairmos agora.
Sua mão, trêmula pelo esforço de autocontrole, levou aos lábios o último gole de cerveja do copo. A voz de Daisy nos fez levantar e sair em direção à tórrida entrada de cascalho.
— Nesse exato momento? — ela protestou. — Assim, do nada? Não vamos deixar ninguém fumar um cigarro antes?
— Todo mundo fumou o que precisava durante o almoço.
— Ei, vamos nos divertir — ela implorou ao marido. — Está quente demais para brigar.
Ele não respondeu.
— Faça como quiser — ela disse. — Venha, Jordan.
As duas subiram para se aprontar enquanto nós três ficamos ali, remexendo os tórridos pedregulhos com os pés. Um contorno prateado da lua já pairava no céu a oeste. Gatsby arriscou dizer algo e mudou de ideia, mas só depois que Tom já havia se virado e o encarava com expectativa.
— Seu estábulo fica aqui perto? — perguntou Gatsby, não sem esforço.
— A uns quinhentos metros descendo a estrada.
— Ah.
Uma pausa.
— Não consigo entender essa coisa de ir à cidade — irrompeu Tom, furioso. — As mulheres enfiam essas ideias na cabeça e...
— Devemos levar algo para beber? — gritou Daisy de uma janela no andar de cima.
— Vou pegar um uísque — respondeu Tom. E foi para dentro.
Gatsby voltou-se para mim com severidade:
— Não posso dizer nada nesta casa, meu velho.
— Ela tem uma voz indiscreta — observei. — E cheia de...
Hesitei.
— A voz dela é cheia de dinheiro — ele falou de repente.
Era isso mesmo. Eu nunca tinha me dado conta. Era uma voz cheia de dinheiro — era esse o charme inesgotável e oscilante de sua fala, o ritmo, a música de címbalos... Lá no topo do palácio branco a filha do rei, a garota de ouro...
Tom saiu de casa com uma garrafa embrulhada numa toalha, seguido por Daisy e Jordan, que usavam pequenos e apertados chapéus de tecido metalizado e carregavam capas leves nos braços.
— Vamos todos no meu carro? — sugeriu Gatsby. Ele sentiu o calor do estofamento verde de couro. — Devia tê-lo deixado na sombra.
— É de câmbio normal? — perguntou Tom.
— É.
— Bem, então você leva o meu cupê e me deixa dirigir o seu carro até a cidade.
A ideia não agradou a Gatsby.
— Acho que não tem gasolina suficiente — ele objetou.
— Tem, sim — disse Tom ruidosamente. Olhou para o medidor. — E se faltar gasolina, posso parar numa drugstore. Pode-se comprar qualquer coisa numa drugstore hoje em dia.
Seguiu-se uma pausa a esse comentário que parecia sem sentido. Daisy olhou zangada para Tom, e pelo rosto de Gatsby passou uma expressão indefinida, a um só tempo decididamente desconhecida e vagamente reconhecível, como se só eu tivesse ouvido alguém descrevê-la em palavras.
— Vamos, Daisy — disse Tom, impelindo-a para o carro de Gatsby. — Eu te levo para passear neste vagão de circo.
Ele abriu a porta, mas ela se afastou do alcance de seus braços.
— Você leva Nick e Jordan. Nós iremos atrás no cupê.
Ela andou até Gatsby, tocando seu casaco com a mão. Eu, Jordan e Tom nos sentamos no banco da frente do carro de Gatsby. Tom experimentou a nova embreagem e disparamos rumo ao calor opressivo, deixando-os para trás.
— Vocês viram aquilo? — perguntou Tom.
— Vimos o quê?
Ele me fulminou com os olhos ao atinar, por fim, que eu e Jordan sabíamos o tempo todo.
— Vocês pensam que eu sou idiota, não é? — ele sugeriu. — Talvez eu seja, mas tenho... uma espécie de sexto sentido, às vezes, que me diz o que fazer. Pode ser que vocês não acreditem nessas coisas, mas a ciência...
Ele se deteve. Surpreendido por uma circunstância imediata, acabou se afastando da beira de um abismo hipotético.
— Fiz uma pequena investigação sobre esse sujeito — ele prosseguiu. — Podia ter ido mais fundo, se soubesse que...
— Quer dizer que você foi a um médium? — perguntou Jordan, bem-humorada.
— O quê? — Confuso, ele ficou nos encarando enquanto dávamos risada. — Um médium?
— Sobre Gatsby.
— Sobre Gatsby! Não, não fui. Eu disse que fiz uma pequena investigação a respeito de seu passado.
— E descobriu que ele é um homem de Oxford — completou Jordan.
— Um homem de Oxford! — Ele estava incrédulo. — Que piada! Ele usa um terno cor-de-rosa.
— Ainda assim, é um homem de Oxford.
— Só se for de Oxford, Novo México — bufou Tom, com desdém —, ou algo do tipo.
— Escute, Tom. Se você é tão esnobe, por que o convidou para almoçar? — perguntou Jordan, zangada.
— Foi Daisy que convidou. Ela o conhecia de antes do nosso casamento, Deus sabe como!
Estávamos todos irritados por haver passado o efeito da cerveja e, cientes disso, percorremos um bom trecho do caminho em silêncio. Então, quando os olhos desbotados do dr. T. J. Eckleburg despontaram no horizonte, lembrei-me do aviso de Gatsby sobre a gasolina.
— Temos o suficiente para chegar à cidade — disse Tom.
— Mas há uma oficina mecânica logo ali — protestou Jordan. — Não quero me ver em apuros neste calor de fritar.
Tom pisou nos freios a contragosto e paramos de forma abrupta e poeirenta sob o letreiro “Wilson”. Após um instante, o proprietário surgiu de dentro e encarou o automóvel com um olhar cadavérico.
— Ei, nós precisamos de gasolina! — gritou Tom com grosseria. — Acha que paramos só para admirar a vista?
— Estou doente — disse Wilson, sem se mover. — Passei o dia doente.
— Qual é o problema?
— Estou esgotado.
— Bem, eu devo abastecer sozinho? — Tom perguntou. — Você parecia muito bem ao telefone.
Com esforço, Wilson deixou a sombra e o batente da porta que lhe suportava o peso, e, respirando pesadamente, desenroscou a tampa do tanque. À luz do sol, seu rosto estava verde.
— Não quis interromper seu almoço — disse. — Mas eu estava precisando de dinheiro e fiquei imaginando o que você ia fazer com seu carro velho.
— O que você acha deste? — perguntou Tom. — Comprei-o na semana passada.
— É um belo carro amarelo — disse Wilson, estendendo a mão para pegar a bomba.
— Quer comprar?
— Quem me dera — Wilson sorriu debilmente. — Não, mas posso tirar um dinheiro com aquele outro.
— E para que você quer o dinheiro, assim de repente?
— Cansei de viver aqui. Quero ir embora. Minha esposa e eu queremos ir para o Oeste.
— Sua esposa? — exclamou Tom, surpreso.
— Faz uns dez anos que ela só fala nisso. — Ele se recostou por um momento na bomba, protegendo os olhos da claridade. — E agora ela vai comigo, mesmo se não quiser. Vou levá-la embora.
O cupê passou voando, deixando para trás uma nuvem de poeira e o vislumbre de um aceno.
— Quanto eu lhe devo? — perguntou Tom friamente.
— É que nos últimos dias fiquei sabendo de uma coisa esquisita — comentou Wilson. — É por isso que quero sair daqui. Por isso tenho te incomodado com o carro.
— Quanto eu lhe devo?
— Um dólar e vinte centavos.
Aquele calor implacável e cortante estava começando a me confundir, pois passei por maus momentos até perceber que suas suspeitas ainda não recaíam sobre Tom. Ele descobrira que Myrtle tinha uma segunda vida num mundo à parte, e o choque o adoecera fisicamente. Encarei Wilson e depois Tom, que havia feito uma descoberta similar menos de uma hora antes — e me ocorreu que não havia diferença entre os homens, de raça ou de inteligência, mais profunda do que entre doentes e sãos. Wilson estava tão doente que parecia culpado, imperdoavelmente culpado — como se houvesse acabado de engravidar uma moça pobre.
— Vou vender aquele carro para você — disse Tom. — Amanhã à tarde alguém virá trazê-lo.
O lugar já era vagamente perturbador, mesmo na claridade ofuscante da tarde, e então me virei para trás como se houvesse alguém no meu encalço. Sobre as pilhas de cinzas, os olhos gigantes do dr. T. J. Eckleburg mantinham a vigilância, mas notei, após um instante, que outros olhos nos encaravam a uns cinco metros de distância com uma intensidade peculiar.
Em uma das janelas superiores da oficina, as cortinas haviam sido afastadas e Myrtle Wilson espiava o carro lá embaixo. Estava tão absorta que nem se deu conta de que a observavam, e as emoções dominavam seu rosto, uma a uma, feito objetos numa fotografia lentamente revelada. Sua expressão era curiosamente familiar — uma expressão que eu já vira em muitas mulheres, mas em Myrtle Wilson parecia despropositada e inexplicável, até que me dei conta de que seus olhos, com um terror invejoso, não estavam fixados em Tom, mas em Jordan Baker, que ela tomara por sua esposa.
Não há confusão maior que a de um espírito simples e, conforme nos distanciávamos, Tom sentiu uma violenta pontada de pânico. Sua esposa e sua amante, até uma hora atrás seguras e invioladas, estavam fugindo intempestivamente de seu alcance. O instinto o fazia pisar no acelerador com o duplo propósito de alcançar Daisy e deixar Wilson para trás, portanto disparamos rumo a Astoria a oitenta quilômetros por hora até que, entre as vigas emaranhadas do elevado, vislumbramos o indolente cupê azul.
— Os cinemas da rua 50 são muito frescos — comentou Jordan. — Adoro Nova York nas tardes de verão, quando todo mundo está fora. Há algo de sensual, algo de maduro, como se uma porção de frutas raras fosse cair a qualquer momento em nossas mãos.
A palavra “sensual” teve o efeito de inquietar ainda mais Tom, porém, antes que ele pudesse arriscar um protesto, o cupê parou de repente e Daisy gesticulou para que encostássemos.
— Para onde vamos? — ela gritou.
— Que tal o cinema?
— Está quente demais — Daisy reclamou. — Mas vocês podem ir. Nós vamos dar uma volta e encontraremos vocês depois. — Não sem esforço, ela aguçou sua esperteza. — Encontraremos vocês em alguma esquina. Eu serei o homem fumando dois cigarros.
— Não vamos discutir isso aqui — disse um impaciente Tom, assim que um caminhão buzinou atrás de nós. — Me sigam até o lado sul do Central Park, em frente ao Plaza.
No caminho, ele virou várias vezes para trás, a fim de certificar-se da presença do cupê, e reduziu a velocidade sempre que o automóvel era detido pelo tráfego, até que tornasse a aparecer. Acho que temia que eles escapassem por uma rua transversal e sumissem de sua vida para sempre.
Mas não o fizeram. E todos nós tomamos a incompreensível decisão de continuar o debate numa suíte do Plaza Hotel.
A discussão prolongada e tumultuada que acabou nos levando àquele quarto me foge à memória, embora eu tenha a nítida lembrança física de que, em seu decurso, minha roupa íntima grudava feito uma cobra ensopada pelas minhas pernas, e que gotas intermitentes de suor corriam pelas minhas costas. A ideia partiu de Daisy, que sugeriu que alugássemos cinco banheiros e tomássemos banhos frios, e acabou assumindo a forma mais tangível de “um lugar para tomar uísque com hortelã”.b Ninguém deixou de observar que era uma “ideia maluca” — mas todos a comunicamos em coro ao desnorteado recepcionista, pensando (ou fingindo pensar) que estávamos sendo engraçados...
O quarto era amplo e sufocante, e, embora já fosse quatro da tarde, o ato de abrir as janelas só permitiu a entrada de um sopro quente vindo do parque. Daisy foi até o espelho e ficou de costas para nós, ajeitando o cabelo.
— É uma suíte bacana — murmurou Jordan respeitosamente, e todos deram risada.
— Abram mais uma janela — ordenou Daisy, sem virar para trás.
— Não há mais janelas.
— Nesse caso, vamos telefonar para pedir um machado...
— O melhor a fazer é esquecer o calor — disse Tom, impaciente. — Ele fica dez vezes pior quando você resmunga.
Ele desembrulhou a garrafa de uísque da toalha e a pôs sobre a mesa.
— Por que não a deixa em paz, meu velho? — comentou Gatsby. — Foi você que quis vir à cidade.
Houve um momento de silêncio. A lista telefônica escorregou do suporte e se esborrachou no chão, enquanto Jordan murmurava: “Mil perdões” — só que dessa vez ninguém deu risada.
— Eu pego — me ofereci.
— Já peguei. — Gatsby examinou a lombada partida ao meio, resmungou um “humm” interessado e atirou a lista à cadeira.
— É uma de suas expressões preferidas, não? — disse Tom asperamente.
— Qual?
— Toda essa coisa de “meu velho”. Onde foi que aprendeu isso?
— Escute aqui, Tom — disse Daisy, virando-se do espelho —, se você pretende fazer comentários pessoais, irei embora em um minuto. Ligue para a recepção e peça um pouco de gelo para o uísque.
Assim que Tom ergueu o fone do gancho, o calor sufocante explodiu em som e ouvimos os portentosos acordes da “Marcha nupcial” de Mendelssohn, que emanava do salão abaixo de nós.
— Imagine casar num calor desses! — gritou Jordan melancolicamente.
— E ainda assim... eu me casei em meados de junho — recordou Daisy. — Louisville em junho! Alguém desmaiou. Você lembra quem desmaiou, Tom?
— Biloxi — ele respondeu secamente.
— Um homem chamado Biloxi... “Blocks” Biloxi. Ele confeccionava caixotes, é sério, e era de Biloxi, Tennessee.
— Ele foi parar na minha casa — completou Jordan — porque eu morava a duas casas da igreja. E ficou lá umas três semanas, até que o papai o obrigou a ir embora. No dia seguinte, papai morreu. — Depois de um instante, ela acrescentou: — Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
— Conheci um Bill Biloxi do Memphis — observei.
— Era primo dele. Conheci toda a árvore genealógica da família dele antes de ir embora. Me deu um taco de alumínio que uso até hoje.
A música cessou assim que a cerimônia teve início, e agora uma longa salva de palmas subia pela janela, seguida por gritos ocasionais de “Êê — êê — êê”, e finalmente por um estrondo de jazz, dando início ao baile.
— Estamos ficando velhos — disse Daisy. — Se fôssemos jovens, nos levantaríamos para dançar.
— Lembre-se de Biloxi — alertou Jordan. — De onde você o conhecia, Tom?
— Biloxi? — Ele fez um esforço para lembrar. — Não o conhecia. Era amigo de Daisy.
— Não era, não — ela negou. — Nunca o tinha visto antes. Ele veio no automóvel particular.
— Bem, ele me falou que te conhecia. Disse que fora criado em Louisville. Asa Bird o trouxe no último minuto e perguntou se tínhamos onde acomodá-lo.
Jordan sorriu.
— Acho que ele estava tentando filar uma carona. Me disse que era representante da sua classe em Yale.
Tom e eu nos entreolhamos, sem entender.
— Biloxi?
— Em primeiro lugar, não tínhamos nenhum representante de classe...
Os pés de Gatsby não sossegavam, dando pancadas breves e angustiadas no chão, e Tom o encarou de súbito.
— A propósito, senhor Gatsby, me disseram que o senhor é um homem de Oxford.
— Não exatamente.
— Ah, sim, quer dizer, você estudou lá.
— É, estudei.
Uma pausa. Então a voz de Tom, incrédula e ofensiva:
— Deve ter ido na mesma época em que Biloxi esteve em New Haven.
Outra pausa. Um garçom bateu à porta e entrou com um balde de gelo e hortelã picada, mas não chegou a romper o silêncio com seu “obrigado” e com o barulho cuidadoso da porta sendo fechada. Um detalhe significativo estava prestes a ser finalmente esclarecido.
— Já te disse que estudei em Oxford — disse Gatsby.
— Eu ouvi, mas queria saber quando.
— Em 1919, e só fiquei cinco meses. É por isso que não posso me considerar um legítimo homem de Oxford.
Tom olhou em volta para ver se compartilhávamos de sua descrença. Mas estávamos todos olhando para Gatsby.
— Foi uma oportunidade que deram a alguns oficiais após o armistício — ele continuou. — Ganhamos o direito de frequentar qualquer universidade na Inglaterra ou na França.
Tive vontade de me levantar e dar um tapinha em suas costas. Era um daqueles instantes de restauração absoluta da fé em Gatsby que eu já experimentara antes.
Daisy levantou-se e, sorrindo debilmente, foi até a mesa.
— Abra a garrafa de uísque, Tom — ela ordenou —, e eu vou preparar um drinque para você. Garanto que não terá a sensação de ser tão idiota... Vejam esta hortelã!
— Só um momento — irrompeu Tom —, tenho mais uma pergunta para o senhor Gatsby.
— Vamos lá — disse Gatsby educadamente.
— Que tipo de confusão você está procurando na minha casa, afinal?
Eles enfim falavam às claras e Gatsby ficou contente.
— Ele não está procurando nenhuma confusão — interveio Daisy, olhando, desesperada, de um para o outro. — Você é que está procurando confusão. Por favor, controle-se.
— Me controlar, eu? — repetiu Tom, incrédulo. — Suponho que o certo é ficar de braços cruzados e deixar o senhor Ninguém de Lugar Nenhum fazer amor com a sua esposa. Bem, se é essa a ideia, vocês podem ir desistindo... Hoje em dia, as pessoas começam desprezando a vida em família e as instituições, e logo estão jogando tudo para o alto e defendendo casamentos entre brancos e pretos.
Ruborizado pelo discurso exaltado, ele se viu sozinho, de pé, como o último baluarte da civilização.
— Aqui somos todos brancos — murmurou Jordan.
— Sei que não sou tão popular. Não dou festas na minha casa. Ultimamente, parece que para ter amigos é preciso transformar a própria casa em chiqueiro.
Mesmo zangado, como aliás estávamos todos naquele quarto, tive vontade de rir sempre que ele abria a boca, tão completa era a transição de libertino para pedante.
— Eu também tenho algo a lhe dizer, meu velho — começou Gatsby. Mas Daisy adivinhou suas intenções.
— Por favor, não fale! — ela interveio, em vão. — Por favor, vamos todos para casa. Por que não vamos embora?
— Boa ideia — eu me levantei. — Vamos, Tom. Ninguém aqui está a fim de beber.
— Quero ouvir o que o senhor Gatsby tem a me dizer.
— Sua esposa não te ama — disse Gatsby — e nunca te amou. Ela me ama.
— Ficou louco? — exclamou Tom mecanicamente.
Gatsby caiu de joelhos, exaltado.
— Ela nunca te amou, ouviu? — gritou. — Só se casou com você porque eu era pobre e ela estava cansada de esperar. Foi um erro terrível, mas no fundo ela nunca amou ninguém além de mim!
Nesse ponto, eu e Jordan tentamos sair, mas Tom e Gatsby, rivalizando na firmeza, insistiram que ficássemos — como se nenhum deles tivesse o que esconder e como se fosse um privilégio compartilhar indiretamente de suas emoções.
— Sente-se, Daisy — a voz de Tom arriscou, sem sucesso, um timbre mais paternal. — O que está acontecendo? Quero saber.
— Eu já disse o que está acontecendo — afirmou Gatsby. — Está acontecendo nos últimos cinco anos, e você não sabe.
Tom voltou-se para Daisy de forma agressiva:
— Faz cinco anos que você está saindo com esse sujeito?
— Saindo, não — respondeu Gatsby. — Nós não podíamos nos encontrar. Mas continuávamos nos amando esse tempo todo, meu velho, sem você saber. Às vezes eu ria muito — mas não havia nada de sorridente em seus olhos — só de pensar que você não sabia.
— Chega. — Tom uniu a ponta dos dedos como um padre e recostou-se na cadeira.
— Você está louco! — explodiu, por fim. — Não posso falar sobre o que aconteceu há mais de cinco anos, pois eu ainda não conhecia Daisy, e mesmo assim não vejo como você possa ter conseguido chegar a um quilômetro dela, a menos que trouxesse as compras pela porta dos fundos. Mas o resto é mentira. Daisy me amou quando nos casamos e ainda me ama.
— Não ama — disse Gatsby, meneando a cabeça.
— Ama, sim. O problema é que às vezes ela põe umas ideias tolas na cabeça e não sabe o que está fazendo. — Ele assentiu sabiamente. — E mais: eu também a amo. De vez em quando dou uma de minhas escapadas e caio no ridículo, mas sempre volto para ela e, no fundo, sei que a amei esse tempo todo.
— Você é revoltante — disse Daisy. Ela se voltou para mim e sua voz, descendo uma oitava, preencheu toda a sala com um escárnio faiscante: — Sabe por que fomos embora de Chicago? Incrível que ele ainda não o tenha brindado com a história dessa pequena escapada.
Gatsby aproximou-se e ficou ao lado dela.
— Está tudo acabado, Daisy — ele disse solenemente. — Nada disso importa. Apenas lhe diga a verdade, que você nunca o amou, e tudo se apagará para sempre.
Ela lhe lançou um olhar vazio:
— Ora... como eu poderia amá-lo... talvez?
— Você nunca o amou.
Ela hesitou. Seus olhos pousaram sobre Jordan e mim, numa espécie de apelo, embora ela afinal entendesse o que estava prestes a fazer — e como se nunca, em nenhum momento, tivesse tido a intenção de fazê-lo. Mas já estava feito. Era tarde demais.
— Nunca te amei — ela disse, com uma perceptível relutância.
— Nem em Kapiolani?1 — perguntou Tom de repente.
— Não.
Vindos do salão lá embaixo, acordes abafados e sufocantes subiam em bolsas quentes de ar.
— Nem quando te carreguei por toda a descida do Punch Bowl2 para não molhar os seus pés? — Havia uma ternura ríspida em sua voz... — Daisy?
— Por favor, não. — Sua voz era fria, mas o rancor já tinha passado. Ela olhou para Gatsby. — Ah, Jay — ela disse, mas sua mão tremia ao tentar acender um cigarro. De súbito, lançou o cigarro e o fósforo aceso no carpete.
— Ah, você está pedindo demais! — ela gritou para Gatsby. — Eu te amo agora, não é o suficiente? Não tenho culpa do que aconteceu no passado. — Ela começou a soluçar, desamparada. — Eu amei, sim, o meu marido, e amei você também.
Os olhos de Gatsby abriram e fecharam.
— Você me amou também? — ele repetiu.
— Até isso é mentira — disse Tom, agressivo. — Ela nem sabia que você estava vivo. Ora... Há coisas entre mim e Daisy que você nunca vai saber, coisas que nenhum de nós poderá esquecer.
Aquelas palavras pareceram atingir Gatsby fisicamente.
— Quero conversar com Daisy a sós — insistiu. — Ela está muito agitada e...
— Mesmo sozinha não posso dizer que nunca amei Tom — ela confessou numa voz deplorável. — Não seria verdade.
— É claro que não — concordou Tom.
Ela se voltou para o marido:
— Como se fizesse alguma diferença para você — disse.
— É claro que faz. Vou cuidar melhor de você daqui para a frente.
— Você não entendeu — disse Gatsby, com uma pontada de pânico. — Você não vai mais cuidar dela.
— Ah, não? — Tom arregalou os olhos e deu risada. Agora já conseguia se controlar. — E por que não?
— Daisy está se separando de você.
— Besteira.
— Estou, sim — ela disse, fazendo um esforço visível.
— Não está se separando de mim! — As palavras de Tom de repente tombaram sobre Gatsby. — Não por um charlatão que teria que roubar a aliança para colocar no seu dedo.
— Não aguento mais! — gritou Daisy. — Ah, por favor, vamos embora!
— Quem é você, afinal? — irrompeu Tom. — É da turma do Meyer Wolfshiem, isso eu sei. Fiz uma pequena investigação acerca de seus negócios, e irei mais fundo amanhã.
— Pode ficar à vontade, meu velho — disse Gatsby com firmeza.
— Descobri o que eram essas suas drugstores.3
Tom se voltou para nós e falou rapidamente:
— Ele e esse tal de Wolfshiem compraram uma porção de drugstores de esquina aqui e em Chicago, onde vendiam etanol no balcão. Foi um de seus pequenos embustes. Reconheci-o como contrabandista desde a primeira vez que o vi, e não estava nem um pouco equivocado.
— E daí? — disse Gatsby educadamente. — Parece que o seu amigo Walter Chase não era tão escrupuloso assim quando aceitou entrar no negócio.
— E você o largou na sarjeta, não é? Deixou-o ficar um mês preso em Nova Jersey. Deus! Você precisa ouvir Walter falando de você.
— Ele veio até nós sem um tostão. Ficou bem feliz de poder ganhar uns trocados, meu velho.
— Não me chame de “meu velho”! — gritou Tom. Gatsby não respondeu. — Walter podia acabar com vocês denunciando inclusive suas apostas ilegais, mas Wolfshiem o intimidou tanto que ele calou a boca.
Aquela expressão a um só tempo desconhecida e familiar retornou ao rosto de Gatsby.
— Esse negócio com as drugstores não é nada — prosseguiu Tom lentamente —, mas sei que está metido em algo que Walter tem pavor de me contar.
Voltei-me para Daisy, que olhava aterrorizada de Gatsby para o marido, e depois olhei para Jordan, que começara a equilibrar um objeto invisível, porém fascinante, na ponta do queixo. Então me voltei para Gatsby e fiquei assustado com sua expressão. Ele parecia — digo isso sem validar os boatos infames que circulavam em seu jardim — alguém capaz de “matar um homem”. Por um instante, sua expressão só podia ser descrita dessa maneira fantástica.
A expressão se desvaneceu e Gatsby passou a dirigir-se freneticamente a Daisy, negando tudo e defendendo sua honra até de acusações que nem sequer haviam sido formuladas. Mas a cada palavra Daisy se afastava mais e mais, de modo que ele cedeu, e apenas um sonho morto continuou resistindo conforme a tarde terminava, tentando tocar o que não era mais tangível, buscando de forma melancólica e desanimada o rastro perdido daquela voz na sala.
A voz voltou a implorar que fossem embora.
— Por favor, Tom! Não aguento mais.
Seus olhos assustados garantiam que qualquer intenção, qualquer bravura que ela tenha demonstrado, tudo isso desaparecera em definitivo.
— Vocês dois podem ir para casa, Daisy — disse Tom. — No carro do senhor Gatsby.
Ela olhou para Tom, agora apavorada, mas ele insistiu com um escárnio magnânimo:
— Pode ir. Ele não vai incomodá-la. Acho que já percebeu que esse flertezinho presunçoso chegou ao fim.
Eles saíram sem dizer uma palavra, despedaçados e acidentados, isolados, como fantasmas, de nossa própria piedade.
Depois de um instante, Tom levantou-se e tornou a embrulhar a garrafa de uísque, ainda intocada.
— Alguém quer um gole? Jordan? ...Nick?
Eu não respondi.
— Nick? — ele tornou a perguntar.
— O quê?
— Quer um gole?
— Não... Acabo de lembrar que hoje é meu aniversário.
Eu estava completando trinta anos. Diante de mim se estendia a estrada portentosa e ameaçadora de uma nova década.
Eram sete horas quando entramos no cupê e partimos para Long Island. Tom falou sem parar, exultante e risonho, mas sua voz estava tão distante de nós quanto o clamor de estranhos nas calçadas ou o burburinho do elevado. A empatia humana tem limites, e estávamos aliviados de poder deixar para trás toda aquela trágica discussão, assim como as luzes distantes da metrópole. Trinta anos — a promessa de uma década de solidão, uma lista cada vez menor de amigos solteiros, uma bagagem cada vez menor de entusiasmo e os cabelos também cada vez mais ralos. Mas Jordan estava ao meu lado, e ela, ao contrário de Daisy, sempre fora esperta o bastante para não cultivar sonhos esquecidos de outra época. Enquanto atravessávamos a ponte escura, seu rosto pálido caiu preguiçosamente no meu ombro e o impiedoso golpe dos trinta desapareceu com a pressão reconfortante de sua mão.
Então rumamos em direção à morte através do frescor do crepúsculo.
A principal testemunha do inquérito foi o jovem grego Michaelis, proprietário da cafeteria vizinha às pilhas de cinzas. Por causa do calor, ele havia dormido até depois das cinco, quando foi à oficina e encontrou George Wilson doente — doente de verdade, tão pálido quanto seu cabelo e tremendo da cabeça aos pés. Michaelis aconselhou-o a ir para a cama, mas Wilson se recusou, dizendo que desse jeito perderia uma porção de clientes. Enquanto o vizinho tentava persuadi-lo, explodiu uma barulheira violenta no andar superior.
— Minha esposa está trancada lá em cima — explicou Wilson calmamente. — Vai ficar lá até depois de amanhã, quando iremos embora daqui.
Michaelis ficou atônito; haviam sido vizinhos por quatro anos e Wilson nunca parecera minimamente capaz de fazer uma coisa dessas. Em geral ele era um desses homens exaustos: quando não estava trabalhando, sentava-se numa cadeira à porta de casa e ficava vendo as pessoas e carros passarem. Quando alguém lhe dirigia a palavra, ele sempre ria de um jeito cordato e entediante. Wilson pertencia à esposa, e não a si mesmo.
De modo que Michaelis naturalmente tentou descobrir o que havia ocorrido, mas Wilson não dizia nada — em vez disso, começou a lançar olhares curiosos e desconfiados ao vizinho e perguntar-lhe onde estava em determinados horários de determinados dias. Quando este último já começava a ficar constrangido, um grupo de operários passou pela porta rumo a seu restaurante, de modo que Michaelis aproveitou a oportunidade para escapar, dizendo que voltaria mais tarde. Mas não voltou. Ele deve ter se esquecido, só isso. Quando saiu de novo, pouco depois das sete, lembrou-se da conversa ao ouvir a voz da sra. Wilson, berrando e ralhando no andar térreo da oficina.
— Vamos, pode bater em mim! — ele a ouviu gritar. — Pode me empurrar e me bater, seu homenzinho imundo e covarde!
Então ela saiu correndo em direção à penumbra, gesticulando e gritando — e antes que ele pudesse dar um passo para fora de sua porta, tudo estava acabado.
O “automóvel da morte”, como os jornais o apelidaram, não chegou a parar; ele se materializou em meio à densa escuridão, sofreu um trágico e breve solavanco e desapareceu na curva seguinte. Mavro Michaelis não estava seguro nem quanto à cor — ao primeiro policial, disse que era verde-claro. Um outro carro, que ia na direção contrária, parou a uns cem metros dali e o motorista correu para onde Myrtle Wilson jazia estatelada, a vida brutalmente interrompida, com os cabelos negros misturados à poeira.
Michaelis e o motorista foram os primeiros a acudi-la, mas, assim que rasgaram sua blusa, ainda empapada de suor, viram que o seio esquerdo estava dependurado livremente como um trapo, e que não havia necessidade de checar o pulso. A boca estava escancarada e um pouco rasgada nos cantos, como se ela tivesse engasgado ao libertar a enorme vitalidade que acumulara por tanto tempo.

Vimos os três ou quatro automóveis e toda aquela multidão quando ainda estávamos a certa distância.
— Um acidente! — disse Tom. — Que bom. Até que enfim Wilson vai ter algum trabalho com que se ocupar.
Ele desacelerou, ainda sem a intenção de parar, até que, ao chegarmos à porta da oficina, alguns rostos mudos e solícitos o fizeram brecar automaticamente.
— Vamos dar uma olhada — ele disse, hesitante. — Só uma olhada.
Eu agora conseguia distinguir um gemido oco e incessante que emanava da oficina, um som que, conforme saíamos do cupê e caminhávamos em direção à porta, consistia nas palavras: “Oh, meu Deus!” pronunciadas à exaustão, num lamento ofegante.
— Algo muito grave aconteceu por aqui — disse Tom, excitado.
Ficamos na ponta dos pés e, vencendo um círculo de cabeças, enxergamos o interior da oficina, iluminada por uma única lâmpada amarela numa cesta oscilante de metal. Então Tom soltou um ruído gutural e, com um violento empurrão de seus braços musculosos, abriu caminho para o interior da oficina.
O círculo voltou a se fechar num murmúrio contínuo de reprovação; passou-se um minuto até que eu pudesse enxergar alguma coisa. Os recém-chegados bagunçaram a fila e eu e Jordan fomos empurrados subitamente para dentro.
O corpo de Myrtle Wilson, embrulhado num lençol e depois em outro, como se sofresse calafrios naquela noite quente, jazia numa escrivaninha junto à parede, e Tom, de costas para nós, estava debruçado sobre ele, imóvel. Próximo a Tom havia um policial motociclista anotando nomes numa caderneta com muita diligência e correção. De início não consegui distinguir a origem das palavras exaltadas e queixosas que ecoavam ruidosamente através da oficina vazia — então vi Wilson parado à soleira saliente da porta de seu escritório, balançando-se para a frente e para trás e segurando o umbral com ambas as mãos. Um homem falava com ele em voz baixa e tentava, de vez em quando, pousar a mão em seus ombros, mas Wilson não ouvia nem enxergava. Seus olhos vagavam da luz oscilante para a mesa ocupada junto à parede, e então retornavam à lâmpada e ele emitia um grito alto, terrível e incessante:
— Oh, meu De-eus! Oh, meu De-eus! Oh, meu De-eus! Oh, meu De-eus!
Imediatamente Tom ergueu a cabeça com um movimento abrupto e, após examinar a oficina com os olhos vidrados, grunhiu um comentário incoerente ao policial.
— M-A-V... — o policial dizia — O...
— Não, R... — corrigiu o homem — M-A-V-R-O...
— Ei, você — resmungou Tom ferozmente.
— R... — disse o policial — O...
— G...
— G... — ele ergueu os olhos assim que a mão enorme de Tom caiu pesadamente em seu ombro. — Que foi, colega?
— O que houve? É o que eu quero saber.
— Atropelamento. Morreu na hora.
— Morreu na hora — repetiu Tom, os olhos fixos no vazio.
— Ela correu para o meio da pista. O filho da mãe nem parou.
— Eram dois carros — disse Michaelis. — Um indo e outro vindo, entende?
— Indo para onde? — perguntou o policial com avidez.
— Um para cada lado. Então ela... — sua mão tentou apontar para o lençol mas parou no meio, deixando-se cair ao lado do corpo. — Ela saiu correndo e o carro que vinha de Nova York a pegou em cheio, a uns cinquenta ou sessenta quilômetros por hora.
— E como se chama esta oficina? — perguntou o policial.
— Não tem nome nenhum.
Um negro pálido e bem vestido se aproximou:
— Foi um carro amarelo — ele disse. — Um carro grande e amarelo. Novinho.
— Você viu o acidente? — perguntou o policial.
— Não, mas um automóvel passou por mim na estrada a mais de sessenta por hora. Acho que a uns oitenta ou até cem.
— Venha cá para eu anotar o seu nome. Abram caminho, pessoal. Preciso pegar o nome dele.
Algumas dessas palavras devem ter chegado a Wilson, que ainda balançava na porta do escritório, pois de repente um novo tema encontrou ressonância em seus gritos ávidos:
— Nem precisam me falar sobre o carro! Eu sei bem qual é o carro!
Observando Tom, reparei num feixe de músculos se retesando em seus ombros, por dentro do casaco. Ele caminhou rapidamente até Wilson e, parando à sua frente, agarrou-o com firmeza pelos antebraços.
— Você tem que se controlar — ele disse, com uma frieza apaziguadora.
Wilson pousou os olhos em Tom; pôs-se na ponta dos pés e teria caído de joelhos se Tom não o estivesse segurando firme.
— Escute — disse Tom, chacoalhando-o de leve. — Acabo de chegar de Nova York, há menos de um minuto. Estava naquele cupê de que lhe falei. O carro amarelo que você viu hoje cedo não era meu. Entendeu? Passei a tarde inteira sem vê-lo.
Apenas eu e o negro estávamos próximos o bastante para ouvir o que ele disse, mas o policial captou alguma coisa pelo tom de voz e ergueu seus olhos truculentos.
— O que está havendo? — perguntou.
— Sou amigo dele. — Tom virou a cabeça, mas manteve as mãos firmes no corpo de Wilson. — Ele disse que conhece o carro que a atropelou... Era um carro amarelo.
Algum estranho impulso fez o policial lançar um olhar desconfiado para Tom:
— E de que cor é o seu carro?
— É azul, um cupê.
— Nós viemos direto de Nova York — eu acrescentei.
Alguém que dirigia logo atrás de nós confirmou a informação e o policial deu as costas.
— Agora, se você puder me confirmar de novo o seu nome...
Erguendo Wilson como uma boneca, Tom o conduziu ao escritório, acomodou-o numa cadeira e voltou.
— Se alguém puder vir lhe fazer companhia — ele irrompeu de forma autoritária. Ficou observando enquanto os dois homens mais próximos dele se entreolhavam e iam para dentro da sala, desanimados. Tom fechou a porta atrás deles e desceu o único degrau, evitando olhar para a mesa. Quando passou por mim, ele sussurrou:
— Vamos embora.
Constrangidos, abrimos caminho com a ajuda dos braços autoritários de Tom e vencemos a multidão que só aumentava. Passamos por um médico apressado de maleta em punho que havia sido chamado meia hora antes, numa louca demonstração de esperança.
Tom dirigiu devagar até que viramos na curva — então ele pisou no acelerador e o cupê disparou através da noite. Após um tempo, ouvi um tênue e rouco soluço e vi que as lágrimas rolavam abundantemente em seu rosto.
— Aquele maldito covarde! — gemeu. — Ele nem parou o carro.
A casa dos Buchanan veio subitamente ao nosso encontro em meio às árvores escuras e farfalhantes. Tom estacionou junto ao pórtico e ergueu os olhos para o segundo andar, onde duas janelas irradiavam luz por entre as videiras.
— Daisy está em casa — ele disse. Conforme saíamos do carro, olhou para mim e franziu a testa.
— Eu devia tê-lo deixado em West Egg, Nick. Não há nada que possamos fazer esta noite.
Uma mudança havia se operado em Tom, que falava de forma grave e decidida. Conforme percorríamos a estrada enluarada de cascalhos até o pórtico, ele dispôs sobre a situação em poucas e bruscas frases.
— Vou chamar um táxi para levá-lo pra casa, e enquanto isso é melhor você e Jordan irem comer alguma coisa na cozinha, se estiverem com fome. — Ele abriu a porta. — Entrem.
— Não, obrigado. Mas ficaria agradecido se você me chamasse um táxi. Vou esperar aqui fora.
Jordan pousou a mão no meu braço:
— Não quer entrar, Nick?
— Não, obrigado.
Eu estava me sentindo mal e queria ficar sozinho. Mas Jordan insistiu mais um pouco.
— Ainda são nove e meia — ela disse.
Eu não entraria naquela casa por nada neste mundo; já tivera o suficiente de todos eles por um dia, e de repente isso incluía Jordan também. Ela deve ter captado alguma coisa em minha expressão, pois virou-se abruptamente e galgou os degraus do pórtico em direção à casa. Fiquei sentado por uns minutos com as mãos na cabeça até ouvir o mordomo lá dentro pegar um telefone e chamar um táxi. Então atravessei devagar a entrada da casa, com a intenção de esperar no portão.
Não andara nem vinte metros quando ouvi meu nome e Gatsby saiu de trás de dois arbustos. Àquela altura, eu devia estar bastante perturbado, pois só conseguia pensar na luminosidade de seu terno cor-de-rosa sob a luz da lua.
— O que está fazendo? — perguntei.
— Estou aqui parado, meu velho.
Por algum motivo, pareceu-me uma ocupação abominável. De minha parte, ele poderia estar prestes a assaltar a casa; não ficaria surpreso se visse os rostos sinistros da “turma do Wolfshiem” atrás dele, em meio à densa folhagem.
— Você viu alguma confusão na estrada? — ele perguntou após um minuto.
— Vi.
Gatsby hesitou.
— Ela morreu?
— Morreu.
— Foi o que imaginei. Disse a Daisy que era o que eu achava. É melhor que o choque venha de uma só vez. Ela aguentou muito bem.
Ele falava como se a reação de Daisy fosse a única coisa que importava.
— Voltei a West Egg por uma estrada secundária — ele continuou — e deixei o carro na garagem. Acho que ninguém viu a gente, mas é claro que não posso ter certeza.
Àquela altura, eu o odiava tanto que não julguei necessário dizer que ele estava errado.
— Quem era a mulher? — ele perguntou.
— Seu nome era Myrtle Wilson. O marido é o dono da oficina. Como diabos isso foi acontecer?
— Bom, eu tentei virar o volante, mas... — Ele parou, e de súbito entendi a verdade.
— Daisy estava dirigindo?
— Estava — ele disse após um instante —, mas é claro que eu vou assumir a culpa. Veja bem, quando saímos de Nova York ela estava muito nervosa e achou que dirigir poderia acalmá-la. Então essa mulher veio correndo justo quando estávamos ultrapassando um carro vindo da outra direção. Foi tudo num piscar de olhos, mas tive a impressão de que ela queria falar com a gente, como se nos conhecesse. Bem, de início Daisy desviou da mulher em direção ao outro carro, mas então perdeu a coragem e virou de volta. No instante em que a minha mão tocou o volante, senti o impacto. Deve tê-la matado instantaneamente.
— Rasgou-a pela metade...
— Não me conte, meu velho. — Ele recuou. — Em todo caso, Daisy pisou no acelerador. Tentei fazê-la parar, mas ela não conseguiu, até que eu puxei o freio de mão. Então ela tombou no meu colo e eu peguei o volante.
— Amanhã ela estará bem melhor — disse Gatsby logo em seguida. — Ficarei aqui esperando para ver se ele irá incomodá-la com aquela coisa desagradável de hoje à tarde. Ela se trancou no quarto e, se ele tentar alguma brutalidade, combinou de acender e apagar a luz várias vezes.
— Ele não vai encostar nela — eu disse. — Não está com a cabeça nisso.
— Não confio nele, meu velho.
— Você vai ficar quanto tempo esperando?
— A noite inteira, se for preciso. Em todo caso, até todos irem dormir.
Então me ocorreu um novo pensamento. Suponhamos que Tom descobrisse que Daisy estava dirigindo. Ele poderia ver uma relação entre os fatos — podia imaginar qualquer coisa. Olhei para a casa; havia duas ou três janelas acesas no andar de baixo e a luz rosada do quarto de Daisy refletindo no térreo.
— Não saia daqui — eu disse. — Vou ver se há algum sinal de tumulto.
Caminhei de volta pela beira do gramado, percorrendo com cuidado o caminho de cascalho, e subi pé ante pé os degraus do alpendre. As cortinas da sala estavam abertas e vi que não havia ninguém no aposento. Atravessando o pórtico onde jantáramos naquela noite de junho três meses antes, aproximei-me de um pequeno retângulo de luz que julguei ser a janela da copa. A persiana estava fechada, mas descobri uma fenda no umbral.
Daisy e Tom estavam sentados na mesa de jantar, com um prato de frango frito frio e duas garrafas de cerveja diante deles. Tom falava gravemente e, em toda a sua seriedade, pousou a mão sobre a dela. De vez em quando, ela erguia os olhos e meneava a cabeça em consentimento.
Eles não estavam felizes, visto que ninguém chegou a encostar no frango ou na cerveja — mas também não pareciam infelizes. Havia um clima inequívoco de intimidade natural naquela cena, e qualquer um poderia jurar que estavam conspirando.
Enquanto eu me afastava do pórtico na ponta dos pés, ouvi o táxi tatear seu caminho pela estrada escura em direção à casa. Gatsby estava esperando onde eu o deixara, na entrada.
— Está tudo calmo? — ele perguntou, ansioso.
— Está. — Eu hesitei. — Você devia ir para casa comigo e dormir um pouco.
Ele fez que não com a cabeça.
— Vou ficar esperando até Daisy ir deitar. Boa noite, meu velho.
Ele meteu as mãos nos bolsos do casaco e retornou avidamente ao escrutínio da casa, como se minha presença profanasse a santidade de sua vigília. Então fui embora e o deixei parado à luz do luar — vigiando coisa alguma.
a Personagem de Satyricon, de Petrônio. É um milionário que oferece um banquete em sua casa com todo tipo de iguarias exóticas.
b No original, “mint julep”. Pode ser traduzido como “julepo”, bebida com uísque, açúcar, gelo e menta.

8
Passei a noite em claro; uma sirene de nevoeiro ressoou sem parar pelo estreito, e oscilei quase febril entre a realidade grotesca e pesadelos violentos e assustadores. Perto do amanhecer, ouvi um táxi encostando na entrada de Gatsby, ao que imediatamente saí da cama e fui me vestir — senti que precisava dizer-lhe alguma coisa, alertá-lo contra algo, e de manhã seria tarde demais.
Ao cruzar o gramado, vi que a porta da frente de Gatsby ainda estava aberta e ele se escorava numa mesa do vestíbulo, prostrado de tristeza ou de sono.
— Não houve nada — ele disse debilmente. — Fiquei esperando, e lá pelas quatro ela foi até a janela, ficou parada por um instante e então apagou a luz.
Sua casa nunca me pareceu tão grande quanto naquela madrugada, quando passamos em revista todos os salões em busca de cigarros. Afastamos cortinas que eram como tendas, e tateamos inúmeros palmos de parede escura em busca de interruptores de luz — a certa altura, tropecei com estrondo e caí nas teclas de um piano fantasmagórico. Havia um inexplicável acúmulo de poeira por toda parte e os quartos estavam mofados, como se não tivessem sido arejados por um bom tempo. Sobre uma mesa desconhecida, achei uma caixa de charutos com dois cigarros velhos e secos.
— Você devia partir — eu disse. — É quase certo que irão rastrear o seu carro.
— Partir agora, meu velho?
— Vá passar uma semana em Atlantic City ou Montreal.
Ele nem sequer considerou a hipótese. Não podia abandonar Daisy até que soubesse o que ela pretendia fazer. Agarrava-se a uma última esperança e eu simplesmente não suportava o fardo de trazê-lo à razão.
Foi naquela noite que ele me contou a estranha história de sua juventude com Dan Cody — e o fez porque “Jay Gatsby” havia se despedaçado feito vidro perante a dura malícia de Tom, e com isso a longa e secreta teatralidade se esgotara. Naquele momento, ele teria me confessado qualquer coisa sem reservas, mas queria mesmo era falar sobre Daisy.
Ela foi a primeira garota “sofisticada” que Gatsby conheceu. Em diversas e obscuras funções, ele havia tido contato com esse tipo de gente, mas sempre existia uma barreira invisível no meio. Daisy lhe parecia extraordinariamente desejável. Ele foi visitá-la, primeiro com outros oficiais de Camp Taylor, e mais tarde sozinho. Ficara impressionado com a casa — nunca havia estado num lugar tão bonito. Mas o que mais o impressionava era o fato de Daisy viver ali — e, para ela, aquilo era tão normal quanto a barraca do alojamento militar onde ele morava. A casa tinha um perfeito ar de mistério, uma insinuação de que havia quartos no andar de cima mais belos e sofisticados do que os outros, de atividades alegres e radiantes acontecendo em seus corredores, e de romances nada bolorentos ou com cheiro de naftalina, mas, pelo contrário, muito frescos, arejados e com o perfume dos reluzentes carros do ano e de bailes cujas flores ainda não haviam murchado. Outra coisa que o excitava era que muitos homens já haviam amado Daisy — e aquilo, a seus olhos, lhe aumentava o valor. Ele sentia a presença deles por toda a casa, preenchendo o ar com suas sombras e ecos de emoções ainda vibrantes.
Mas ele sabia que estava na casa de Daisy por um gigantesco acidente. Por mais glorioso que pudesse ser seu futuro como Jay Gatsby, naquele momento ele era um jovem miserável e sem passado, e a qualquer hora o manto invisível de seu uniforme poderia escapar de seus ombros. Então ele aproveitou o máximo possível. Tomou tudo o que pôde, de modo voraz e inescrupuloso — e acabou tomando a própria Daisy numa noite calma de outubro, só porque não tinha sequer o direito de tocar sua mão.
Gatsby poderia ter sentido desprezo por si mesmo, pois certamente a tomara sob falsos pretextos. Não que ele tenha alardeado uma fortuna inexistente, mas fornecera de propósito a Daisy uma sensação de segurança; deixou-a acreditar que era um homem de estirpe, plenamente capaz de tomar conta dela. Na realidade, Gatsby não possuía recursos — não tinha nenhuma família próspera para apoiá-lo e estava sujeito aos caprichos de um governo impessoal que podia despachá-lo a qualquer hora para qualquer parte do mundo.
Mas Gatsby não sentira desprezo por si mesmo e nada se dera conforme o esperado. Ele talvez pretendesse tomar tudo o que podia e ir embora — mas então descobriu que havia se lançado a uma verdadeira busca ao Graal. Sabia que Daisy era extraordinária, mas não imaginava o quanto uma garota “sofisticada” podia ser extraordinária. Ela se recolheu à mansão, em sua vida rica e completa, deixando Gatsby de mãos vazias. Ele se sentia casado com ela, mas isso era tudo.
Quando se encontraram novamente, dois dias depois, era Gatsby que estava ofegante e se sentia de certa forma traído. O pórtico da casa estava iluminado por uma riqueza que emulava a luz das estrelas; as fibras de vime do canapé chiavam elegantemente conforme Daisy oferecia seus lábios curiosos e encantadores para um beijo. Ela pegara um resfriado, o que deixava sua voz mais rouca e charmosa do que nunca, e Gatsby tinha plena consciência de toda a juventude e mistério que a riqueza detém e preserva, da qualidade de seu vestuário e da presença luminosa de Daisy, que reluzia feito prata — segura, orgulhosa e muito acima das preocupações dos pobres.
— Não saberia lhe dizer o quanto fiquei surpreso ao descobrir que a amava, meu velho. Por um momento, até cheguei a querer que ela me dispensasse, mas ela não o fez porque também estava apaixonada por mim. Daisy me achava inteligente por conhecer coisas que ela não sabia... Bem, ali estava eu, afastando-me das minhas ambições, apaixonando-me cada vez mais, e de repente nada disso importava. De que me adiantaria executar grandes feitos se eu podia me divertir muito mais contando a ela o que eu iria fazer?
Na noite anterior a seu embarque, ele se sentou com Daisy no colo por um bom tempo, em silêncio. Era um dia frio de outono, havia fogo na lareira e suas bochechas estavam rosadas. De quando em quando, ela se mexia e ele ajeitava o braço, e a certa altura ele beijou seu cabelo escuro e brilhante. A noite os tranquilizara por um instante, como se quisesse proporcionar-lhes uma lembrança mais profunda para a longa despedida que o dia seguinte prenunciava. Em todo aquele mês de namoro, eles nunca estiveram tão próximos nem se comunicaram tanto quanto naquela noite em que ela roçou os lábios em seus ombros e ele tocou gentilmente a ponta de seus dedos, como se ela estivesse dormindo.
Gatsby se saiu extraordinariamente bem na guerra. Tornou-se capitão antes mesmo de ir para o front, e após as batalhas de Argonne foi promovido a major e ganhou o comando do batalhão de artilharia. Com o armistício, tentou de todas as formas voltar para casa, mas algum tipo de complicação ou mal-entendido o desviou para Oxford. Agora ele estava preocupado — havia um tom de desespero angustiado nas cartas de Daisy. Ela não entendia por que Gatsby não podia voltar. Sofria com a pressão do mundo lá fora, queria encontrá-lo, sentir sua presença e certificar-se de que estava fazendo a coisa certa, no fim das contas.
Pois Daisy era jovem e seu mundo artificial estava repleto de orquídeas, esnobismo amável e alegre, e orquestras que tocavam o ritmo da vez, resumindo a tristeza e as possibilidades da vida em novas melodias. Todas as noites, os saxofones gemiam os versos desesperados de “Beale Street blues”,1 enquanto uma centena de pares de sapatilhas prateadas e douradas se arrastavam pela poeira resplandecente. À hora cinzenta do chá, havia sempre algum salão pulsando incessantemente numa espécie de febre branda e doce, enquanto rostos jovens circulavam aqui e ali como pétalas de rosas sopradas no chão pelas tristes cornetas.
Em meio a esse universo poente, Daisy voltou a seguir a estação; de repente, estava de novo marcando meia dúzia de encontros por dia com meia dúzia de homens e indo dormir ao amanhecer, com as contas e o chiffon de um vestido de noite enroscados entre orquídeas no chão ao lado da cama. Durante todo esse tempo, algo em seus olhos clamava por uma decisão. Ela queria definir sua vida imediatamente — e essa decisão precisava dar-se por algum tipo de força — de amor, de dinheiro, de praticidade inquestionável — que estivesse à mão.
Essa força tomou forma no meio da primavera, com a chegada de Tom Buchanan. Havia uma grandeza saudável em sua pessoa e em sua posição, e Daisy se sentiu lisonjeada. Havia, sem dúvida, um tanto de resistência e um tanto de alívio. A carta alcançou Gatsby quando ele ainda estava em Oxford.

Já era manhã em Long Island e nos pusemos a abrir o resto das janelas do térreo, preenchendo a casa com uma luz que oscilava entre o cinzento e o dourado. A sombra de uma árvore desceu abruptamente em meio ao orvalho e pássaros invisíveis começaram a cantar entre as folhas azuis. Havia um movimento lento e brando no ar, que não se podia chamar de vento, mas que prenunciava um dia fresco e agradável.
— Não acho que ela chegou a amá-lo. — Gatsby virou-se da janela e olhou para mim desafiadoramente. — Lembre-se, meu velho, de que ela estava muito exaltada ontem à tarde. Ele lhe disse aquelas coisas de um jeito que a assustou, como se eu fosse uma espécie de vigarista barato. E o resultado é que ela mal sabia o que estava dizendo.
Sentou-se melancolicamente.
— É claro que ela pode tê-lo amado por um breve período, quando eram recém-casados... e me amar ainda mais, entende?
De repente, ele fez uma observação curiosa:
— Em todo caso, foi apenas pessoal.
O que se pode concluir disso, exceto haver uma intensidade incomensurável em sua concepção daquele caso amoroso?
Gatsby retornou da França quando Tom e Daisy ainda estavam em lua de mel, e empreendeu uma deprimente porém inevitável viagem a Louisville com os últimos recursos que poupara do Exército. Passou uma semana na cidade, percorrendo as ruas onde seus passos e os de Daisy se uniram nas noites de novembro e revisitando os lugares afastados onde estacionaram seu carro branco. Assim como a casa de Daisy sempre lhe parecera mais misteriosa e alegre do que as outras, a ideia daquela cidade também se revestia de uma beleza melancólica, mesmo que Daisy não estivesse mais lá.
Gatsby partiu com a impressão de que a encontraria caso tivesse procurado melhor — de que estava deixando Daisy para trás. O vagão de passageiros — ele não tinha um tostão — era muito abafado. Saiu para o vestíbulo aberto e sentou-se numa cadeira dobrável, enquanto a estação lhe escapava e dava lugar a uma sucessão de fundos de edifícios desconhecidos. Depois o trem atravessou os campos primaveris, sendo acompanhado brevemente por um bonde repleto de gente que deve ter visto uma vez, na rua, a magia pálida de seu rosto.
Agora a ferrovia fazia uma curva e se afastava do sol, que, ao descer no horizonte, parecia abençoar a cidade evanescente onde Daisy uma vez respirou. Desesperado, ele estendeu a mão para fora, como se quisesse agarrar um mísero filete de ar, salvando um fragmento do local que Daisy tornara tão encantador. Mas tudo passava rápido demais diante de seus olhos embaçados, e ele sabia que tinha perdido aquele detalhe da paisagem, o melhor e mais puro, para sempre.
Eram nove da manhã quando terminamos o café e saímos para o pórtico. A noite trouxera uma considerável mudança no clima e havia um toque de outono no ar. O jardineiro, último dos empregados originais de Gatsby, aproximou-se do pé da escada.
— Vou esvaziar a piscina hoje, senhor Gatsby. Logo as folhas irão começar a cair e teremos problemas com os canos.
— Hoje não — ele respondeu. E voltou-se para mim, a título de justificativa: — Sabe de uma coisa, meu velho? Não usei a piscina nenhuma vez neste verão.
Eu consultei o relógio e me levantei:
— Meu trem sai em vinte minutos.
Eu não queria ir à cidade. Não estava em condições de encarar um expediente de trabalho, mas não era só isso — eu não queria deixar Gatsby sozinho. Perdi aquele trem e depois outro, até que enfim consegui sair de lá.
— Eu te ligo mais tarde — falei.
— Faça isso, meu velho.
— Ligarei lá pelo meio-dia.
Descemos lentamente os degraus.
— Acho que Daisy também vai ligar. — Ele me olhou ansiosamente, na expectativa de minha anuência.
— Acho que sim.
— Bem, adeus.
Apertamos as mãos e eu me afastei. Pouco antes de alcançar a cerca, lembrei-me de uma coisa e me virei para trás.
— É uma gente ordinária — gritei, através do gramado. — Você vale muito mais do que todos eles juntos.
Até hoje fico feliz por ter dito isso. Foi o único elogio que lhe fiz, pois o reprovara do começo ao fim. Primeiro ele assentiu com a cabeça de forma educada, e então abriu aquele sorriso radiante e sábio, como se houvéssemos concordado nesse ponto o tempo todo. Seu vistoso paletó cor-de-rosa se destacava contra os degraus brancos, e me lembrei da primeira vez que visitei sua casa ancestral, três meses antes. O gramado e a entrada estavam apinhados de gente que apostava em sua malícia — e ele havia ficado de pé naqueles degraus, ocultando seu sonho inocente, enquanto se despedia de todos.
Agradeci a Gatsby pela hospitalidade. Estávamos sempre lhe agradecendo por isso — eu e os outros.
— Adeus — eu gritei. — Adorei o café, Gatsby.
No trabalho, passei um tempo tentando listar as cotas de uma quantidade interminável de ações, mas acabei cochilando em minha cadeira giratória. Fui despertado pelo telefone pouco antes do meio-dia, e ergui o rosto empapado de suor. Era Jordan Baker; ela costumava me ligar àquela hora porque, de outro modo, suas perambulações em hotéis, clubes e casas de amigos tornariam impossível localizá-la. Em geral, sua voz ao telefone era revigorante e calma, como se um trecho de grama do campo de golfe entrasse voando pela janela do escritório, mas naquela manhã sua voz era seca e áspera.
— Não estou mais na casa de Daisy — ela disse. — Estou em Hempstead2 e vou para Southampton esta tarde.
Fora provavelmente educado de sua parte sair da casa de Daisy, mas aquilo me irritou, e seu comentário seguinte me deixou petrificado.
— Você não foi muito legal comigo ontem à noite.
— Teria feito alguma diferença?
Momento de silêncio. E então:
— Em todo caso, quero te ver.
— Eu também.
— Digamos que eu não vá a Southampton e apareça na cidade hoje à tarde?
— Não. Hoje à tarde não.
— Certo.
— Hoje à tarde é impossível. Vários...
Passamos um tempo nessa conversa, e então de repente não estávamos mais conversando. Não sei qual de nós desligou o telefone com um golpe seco, mas sei que não me abalei. Não conseguiria tomar um chá com Jordan naquela tarde, mesmo que jamais voltasse a vê-la nesta vida.
Liguei para Gatsby poucos minutos depois, mas deu ocupado. Tentei quatro vezes; por fim, uma exasperada telefonista da central me disse que a linha estava reservada para receber um interurbano de Detroit. Apanhando minha tabela de horários, fiz um pequeno círculo em torno do trem das quinze e cinquenta. Então me recostei na cadeira e tentei raciocinar. Ainda era meio-dia.
Naquela manhã, quando o trem passou pelas pilhas de cinzas, troquei deliberadamente de lado no vagão. Imaginei que haveria uma multidão de curiosos por ali, com garotinhos procurando manchas escuras em meio à poeira e uma porção de fofoqueiros repetindo várias vezes o que aconteceu, até que o incidente se tornasse menos real inclusive para eles e não houvesse mais como contá-lo, e assim o fim trágico de Myrtle Wilson fosse esquecido. Agora quero retroceder um pouco e narrar o que houve na oficina depois que saímos de lá, na noite anterior.
Foi com dificuldade que localizaram a irmã de Myrtle, Catherine. Naquela noite, ela deve ter quebrado sua promessa de não beber, pois quando chegou à oficina estava embotada de álcool e incapaz de entender que a ambulância já havia ido para Flushing.a Quando enfim conseguiram convencê-la, ela desmaiou imediatamente, como se essa fosse a parte mais intolerável da coisa toda. Por bondade ou curiosidade, algum desconhecido a levou de carro até o velório da irmã.
Até bem depois da meia-noite, uma multidão variável se amontoou na entrada da oficina, enquanto, lá dentro, George Wilson se balançava para a frente e para trás na cadeira do escritório. Houve um momento em que a porta se abriu, e ninguém resistiu a dar uma espiada. Por fim, alguém disse que aquilo era uma vergonha e fechou a porta. Michaelis e outros homens estavam com ele; no início, quatro ou cinco pessoas, e, depois, só duas ou três. Mais tarde, Michaelis teve que pedir ao último desconhecido restante que esperasse mais uns quinze minutos, enquanto ele ia para casa fazer um bule de café. Depois disso, ficou sozinho com Wilson até o amanhecer.
Por volta das três da madrugada, a natureza dos resmungos incoerentes de Wilson sofreu uma mudança — ele ficou mais quieto e passou a falar sobre o carro amarelo. Disse que tinha um meio de identificar o dono do carro, e então deixou escapar que, meses antes, sua esposa voltara da cidade com o rosto machucado e o nariz inchado.
Porém, ao perceber o que havia dito, ele se retraiu e voltou a gritar “Oh, meu Deus!” com sua voz lastimosa. Michaelis fez uma patética tentativa de distraí-lo.
— Vocês estavam casados havia quanto tempo, George? Olhe para mim, tente ficar parado um minuto e responda a minha pergunta. Há quanto tempo estavam casados?
— Vinte anos.
— Tiveram filhos? Vamos, George, sente-se direito, eu lhe fiz uma pergunta. Vocês tiveram filhos?
Uma porção de besouros marrons e cascudos insistia em bater contra a luz mortiça e, sempre que Michaelis ouvia um carro cortando a estrada, pensava naquele que não freara algumas horas antes. Ele não queria voltar para a oficina porque a mesa de trabalho trazia as manchas de onde estava o corpo, então perambulava desconfortavelmente pelo escritório — antes de amanhecer, já conhecia de cor todos os objetos — e, de vez em quando, sentava-se ao lado de Wilson na tentativa de acalmá-lo.
— Você vai a algum tipo de igreja, George? Mesmo que não a frequente mais? Talvez eu possa ligar e pedir para um padre vir falar com você. Que tal?
— Não tenho religião.
— Você devia ter, George, para ocasiões como esta. Provavelmente já foi à missa pelo menos uma vez. Não se casou numa igreja? Preste atenção, George, olhe para mim. Você não se casou numa igreja?
— Isso faz muito tempo.
O esforço de responder quebrou o ritmo de seu balanço — por um instante, ele ficou parado. Então aquela expressão meio consciente, meio perplexa, retornou aos seus olhos embotados.
— Abra aquela gaveta — ele disse, apontando para a escrivaninha.
— Qual delas?
— Aquela ali. Aquela.
Michaelis abriu a gaveta mais próxima. Não havia nada além de uma pequena e caríssima coleira de cachorro, feita de couro com tiras de prata. Parecia nova.
— Isto aqui? — ele perguntou, erguendo a coleira.
Wilson olhou para o objeto e assentiu com a cabeça.
— Encontrei ontem à tarde. Ela tentou me explicar o que era, mas eu sabia que havia algo suspeito.
— Quer dizer que a sua esposa comprou esta coleira?
— Estava em cima da cômoda, embrulhada em papel de seda.
Michaelis não viu nada de estranho naquilo e deu a Wilson uma dúzia de razões para a esposa ter feito a compra. Mas evidentemente ele já havia ouvido várias dessas explicações da boca de Myrtle, pois tornou a dizer “Oh, meu Deus” num sussurro — fazendo com que seu consolador deixasse no ar inúmeras outras explicações.
— Então ele a matou — disse Wilson. Sua boca escancarou-se de súbito.
— Quem?
— Tenho um jeito de descobrir.
— Você está sendo mórbido — disse o amigo. — Passou por uma situação terrível e não sabe o que está dizendo. É melhor ficar quieto por aqui até amanhecer.
— Ele a matou.
— Foi um acidente, George.
Wilson balançou a cabeça, em negativa. Estreitou os olhos e abriu ligeiramente a boca sugerindo um altivo “Hum!”.
— Eu sei — afirmou, num tom decidido. — Sou desses caras que confiam nos outros e não pensam mal de ninguém, mas quando fico sabendo de alguma coisa, é porque sei mesmo. Foi o homem daquele carro. Ela saiu correndo para falar com ele, mas ele não parou.
Michaelis havia presenciado a mesma cena, mas não lhe ocorrera dar-lhe um significado especial. Acreditava que a sra. Wilson estava fugindo do marido, e não tentando parar um automóvel específico.
— Mas como ela pode ter feito isso?
— Era uma mulher intensa — disse Wilson, como se isso respondesse à pergunta. — Ah-h-h...
Ele tornou a balançar na cadeira e Michaelis ficou de pé, girando a coleira na mão.
— Quem sabe eu possa telefonar para algum amigo seu, George?
Era uma tentativa desesperada — ele estava quase certo de que Wilson não tinha amigos: era completamente absorvido pela esposa. Pouco depois, ficou aliviado ao notar uma mudança na sala, uma luz azulada despontando na janela, e viu que a manhã não tardaria a chegar. Por volta das cinco horas, o ambiente ficou azul o bastante para poderem apagar a luz.
Os olhos vazios de Wilson se voltaram para as pilhas de cinzas, onde pequenas nuvens cinzentas assumiam formas fantásticas e corriam para lá e para cá com a brisa leve da manhã.
— Eu conversei com ela — Wilson balbuciou, após um longo silêncio. — Falei que ela podia me enganar, mas não podia enganar a Deus. Levei-a até a janela — ele fez um esforço para se levantar, andou até a janela dos fundos e pressionou o rosto contra o vidro — e lhe disse: “Deus sabe o que você está fazendo, tudo o que você faz. Você pode me enganar, mas não pode enganar a Deus!”.
De pé ao seu lado, Michaelis viu espantado que ele olhava para os olhos do dr. T. J. Eckleburg, que haviam acabado de surgir, desbotados e gigantescos, daquela noite que se dissipava.
— Deus está vendo tudo — repetiu Wilson.
— É só um outdoor — Michaelis lhe garantiu. Algo o fez afastar-se da janela e voltar a se concentrar na sala. Wilson, por sua vez, ficou ali por um bom tempo, o rosto colado à vidraça, assentindo para a penumbra.
Lá pelas seis horas, Michaelis estava exausto e ficou feliz de ouvir o som de um carro parando lá fora. Era um dos acompanhantes da noite anterior que havia prometido voltar, de modo que ele preparou um café da manhã para todos — que foi partilhado apenas entre ele e o desconhecido. Wilson estava mais calmo e Michaelis foi para casa dormir; assim que acordou, quatro horas depois, foi correndo para a oficina e Wilson não estava mais lá.
Seus passos — ele estava a pé — foram posteriormente traçados até Port Roosevelt e depois a Gad’s Hill,3 onde comprou um café e um sanduíche que não comeu. Ele devia estar cansado e andando muito lentamente, pois não chegou a Gad’s Hill antes do meio-dia. Até ali foi fácil rastrear seus passos — garotos aludiram a um homem “agindo feito doido” na rua e inúmeros motoristas se intimidaram com seu olhar assustador no acostamento da estrada. Então ele sumiu por completo durante três horas. A polícia, com base no que disse Michaelis, de que ele “tinha um jeito de descobrir”, supôs que ele estivesse peregrinando pelas oficinas da região, perguntando sobre um carro amarelo. Por outro lado, nenhum dono de garagem chegou a se apresentar na polícia, e talvez ele tivesse um jeito mais fácil e confiável de descobrir o que queria. Lá pelas duas e meia, foi visto em West Egg, onde perguntou o caminho para a casa de Gatsby. De modo que, àquela altura, ele já sabia o nome de Gatsby.
Às duas horas, Gatsby vestiu seu traje de banho e avisou o mordomo que, se alguém telefonasse, ele estaria na piscina. Parou na garagem para pegar um colchão inflável que alegrara seus convidados por todo o verão, e aceitou a ajuda do motorista para enchê-lo. Então deu instruções de que o conversível não fosse removido sob nenhuma circunstância — o que era estranho, pois o para-choque da frente precisava de reparos.
Gatsby apoiou o colchão nos ombros e foi caminhando em direção à piscina. Parou uma vez para ajeitá-lo, ao que o motorista lhe perguntou se precisava de ajuda, mas ele fez que não com a cabeça e desapareceu entre as árvores amareladas.
Ninguém telefonou, mas o mordomo ficou sem dormir esperando uma ligação até as quatro da tarde — muito tempo depois de haver alguém para recebê-la. Sou da opinião de que o próprio Gatsby estava ciente de que ninguém lhe telefonaria, e talvez nem se importasse mais. Se isso é verdade, deve ter percebido que perdera seu bom e velho mundo, pagando um preço alto por viver tanto tempo com um único sonho. Deve ter erguido os olhos para um céu desconhecido por entre as folhas ameaçadoras, e estremecido ao notar que a rosa é uma coisa grotesca e que a luz do sol castiga violentamente a grama que acaba de brotar. Um novo mundo, palpável sem ser real, onde vagavam pobres fantasmas, respirando sonhos como se fossem ar... como aquela figura cinzenta e fantástica que deslizava em sua direção por entre as árvores amorfas.
O motorista, que era um dos protegidos de Wolfshiem, ouviu os disparos — mais tarde confessou não ter dado importância ao barulho. Fui direto da estação à casa de Gatsby e minha escalada ansiosa pelos degraus da frente foi a primeira coisa que os deixou alarmados. Mas eles já sabiam, tenho certeza. Sem dizer praticamente nada, corremos os quatro (eu, o motorista, o mordomo e o jardineiro) rumo à piscina.
Havia um movimento débil e quase imperceptível na água conforme ela vertia de um cano, abrindo caminho rumo ao escoadouro na outra extremidade. Em meio a pequenas marolas que mal podiam ser chamadas de ondas, o colchão ocupado boiava à deriva. Uma breve rajada de vento que mal corrugaria a superfície da água era suficiente para perturbar acidentalmente seu trajeto já acidental. O cair das folhas o fazia girar lentamente, traçando, como a perna de um compasso, um fino círculo vermelho na água.
Foi só depois que saímos com o corpo de Gatsby em direção à casa que o jardineiro viu o cadáver de Wilson caído na grama, um pouco distante, e o holocausto estava completo.
a Flushing é um bairro do distrito de Queens, a oeste de Long Island, onde há um famoso cemitério.

9
Dois anos depois, lembro-me do resto daquele dia, e daquela noite, e do dia seguinte, apenas como uma sucessão interminável de policiais, fotógrafos e jornalistas que entravam e saíam da casa de Gatsby. Estendeu-se uma corda no portão principal e um policial ficava a postos para afastar os curiosos, mas os moleques logo descobriram que era possível entrar pelo meu quintal, de modo que sempre havia alguns deles apinhados e boquiabertos diante da piscina. Naquela tarde, alguém com ar convencido, talvez um detetive, usou a expressão “lunático” ao debruçar-se sobre o corpo de Wilson, e a súbita autoridade de sua voz deu o tom das notícias que saíram nos jornais da manhã seguinte.
Muitas dessas reportagens eram um pesadelo — grotescas, circunstanciais, sensacionalistas e mentirosas. Quando, no inquérito, Michaelis mencionou as suspeitas de Wilson sobre a esposa, pensei que a história toda viria à tona numa pasquinada eufórica — mas Catherine, que podia ter dito algo, não se manifestou. Ela também demonstrou um surpreendente traço de caráter — encarou o investigador com os olhos decididos sob as sobrancelhas desenhadas e jurou que a irmã nunca tinha visto Gatsby, que era completamente feliz com o marido e que jamais se comportara de forma duvidosa. Ela mesma se convenceu disso e chorou um lenço inteiro, como se a mera sugestão do ato fosse mais do que ela podia suportar. Wilson foi então reduzido a um homem “louco de tristeza”, para que o caso pudesse permanecer o mais simples possível. E ficou por isso mesmo.
Mas toda essa parte me parecia remota e desimportante. Eu era a única pessoa ao lado de Gatsby. A partir do momento em que liguei para a polícia de West Egg reportando a catástrofe, todas as conjecturas e questões práticas a seu respeito foram encaminhadas a mim. De início, fiquei surpreso e confuso; depois, como ele permanecia deitado, sem se mover ou falar, hora após hora, me dei conta de que eu era o responsável por Gatsby, pois ninguém mais estava interessado — quer dizer, interessado no sentido pessoal e intenso a que todo mundo teria o direito ao morrer.
Liguei para Daisy meia hora depois de encontrarmos o corpo, de forma instintiva e automática. Mas ela e Tom haviam partido no início da tarde, levando bagagem.
— Não deixaram nenhum endereço?
— Não.
— Nem disseram quando pretendem voltar?
— Não.
— Tem alguma ideia de para onde foram? Como posso entrar em contato com eles?
— Não sei. Não sei dizer.
Eu queria chamar alguém para ficar ao seu lado. Queria ir à sala onde ele estava e confortá-lo: “Vou arrumar alguém para ficar com você, Gatsby. Não se preocupe. Confie em mim e eu chamarei alguém para você...”.
O nome de Meyer Wolfshiem não estava na lista telefônica. O mordomo me deu seu endereço comercial na Broadway e liguei para o serviço de informações, mas, quando consegui o número, já passava das cinco e ninguém atendeu.
— Pode tentar mais uma vez, por favor?
— Já tentei três vezes.
— É muito importante.
— Me desculpe. Acho que não tem ninguém lá.
Retornei à sala de estar e pensei por um instante que todos aqueles policiais que enchiam a casa eram visitantes ocasionais. Porém, embora eles afastassem os lençóis e olhassem para Gatsby com um ar comovido, seu protesto seguiu ecoando na minha cabeça:
— Escute aqui, meu velho, você precisa arrumar alguém para ficar do meu lado. Precisa se esforçar. Não posso passar por isso sozinho.
Alguém começou a me fazer perguntas, mas saí correndo e subi as escadas, examinando apressadamente as partes destrancadas de sua escrivaninha — ele nunca havia me dito, com todas as palavras, que seus pais estavam mortos. Mas não havia nada — só o retrato de Dan Cody, testemunha de violências passadas, me encarando da parede.
Na manhã seguinte, mandei o mordomo a Nova York com uma carta para Wolfshiem, pedindo informações e rogando-lhe que viesse no próximo trem. Enquanto escrevia, o pedido me pareceu supérfluo. Eu tinha certeza de que ele viria correndo ao ver a notícia nos jornais, assim como tinha certeza de que Daisy me enviaria um telegrama antes do meio-dia — mas nem o telegrama nem o sr. Wolfshiem chegaram; ninguém apareceu além de mais policiais, fotógrafos e repórteres. Quando o mordomo trouxe de volta a resposta do sr. Wolfshiem, passei a nutrir um sentimento de desafio, de desprezo solidário a Gatsby contra todos eles.

Prezado sr. Carraway,
Foi um dos choques mais terríveis de minha vida, mal posso acreditar que é verdade. Um ato tão maluco assim nos faz pensar. No momento não posso ir até aí, pois estou ocupado com um negócio muito importante e não posso me envolver nisso agora. Se houver algo que eu possa fazer mais tarde, me envie uma carta através de Edgar. Sinto-me desnorteado ao ouvir notícias desse tipo, e estou completamente arrasado.
Atenciosamente,
meyer wolfshiem

E um rápido adendo, na sequência:

Me informe sobre o funeral e tudo o mais, pois não conheço ninguém da família.

Quando o telefone tocou naquela tarde, e a telefonista anunciou uma ligação interurbana de Chicago, pensei que finalmente seria Daisy. Mas do outro lado da linha havia uma voz masculina, muito débil e distante.
— Aqui é o Slagle...
— Pois não? — O nome me era desconhecido.
— Belo recado, não? Recebeu meu telegrama?
— Não recebi telegrama nenhum.
— O jovem Parke está em apuros — ele disse rapidamente. — Foi preso no instante em que entregava os títulos no guichê.1 Os policiais receberam uma circular de Nova York com todas as dicas cinco minutos antes. O que você sabe sobre isso, hein? Nunca se sabe o que vai acontecer nessas cidades do interior...
— Ei! — Eu interrompi, ofegante. — Escute, aqui não é o senhor Gatsby. O senhor Gatsby está morto.
Fez-se um longo silêncio do outro lado da linha, seguido por uma exclamação... e um breve chiado quando a conexão foi perdida.
Acho que foi no terceiro dia que chegou um telegrama assinado por Henry C. Gatz, vindo de uma cidade em Minnesota. Dizia apenas que o emissor estava a caminho e pedia que o funeral fosse adiado até sua chegada.
Era o pai de Gatsby, um velho solene, indefeso e consternado, metido num casaco comprido e barato em pleno calor de setembro. As lágrimas corriam incessantemente de seu rosto agitado e, quando apanhei sua mala e o guarda-chuva, ele passou a puxar a barba rala e grisalha com tanta força que tive dificuldade em lhe tirar o casaco. Ele estava à beira de um colapso, de modo que o levei à sala de música e pedi que se sentasse, enquanto lhe arrumava algo para comer. Mas ele não queria comer e suas mãos trêmulas derrubaram o copo de leite.
— Fiquei sabendo pelo jornal de Chicago — ele explicou. — A história inteira estava no jornal. Vim o mais rápido que pude.
— Eu não sabia como encontrá-lo.
Seus olhos vazios se moviam incessantemente pela sala.
— Foi um maluco — acrescentou. — Ele devia estar doido.
— Aceita um café? — perguntei.
— Não quero nada. Já estou melhor, senhor...
— Carraway.
— Bem, já estou melhor. Onde eles colocaram Jimmy?
Levei-o à sala de estar onde estava o corpo do filho, e o deixei por lá. Alguns moleques haviam vencido os degraus e espiavam o vestíbulo; quando lhes contei quem havia chegado, eles foram embora, relutantes.
Após um instante, o sr. Gatz abriu a porta e saiu da sala, a boca entreaberta, o rosto levemente ruborizado, as lágrimas brotando isoladas e dispersas. Ele chegara a uma idade em que a morte já não implicava necessariamente um choque intolerável e, quando olhou ao redor pela primeira vez e viu a grandiosidade e o esplendor do vestíbulo, além dos salões que se abriam em outras salas, o pesar se misturou a um orgulho assombrado. Ajudei-o a se instalar num quarto no andar de cima; enquanto ele tirava o casaco e o colete, informei que todos as providências haviam sido adiadas até sua chegada.
— Não sei bem o que você prefere, senhor Gatsby...
— Meu nome é Gatz.
— ...Senhor Gatz. Talvez o senhor queira levar o corpo de volta para o Oeste.
Ele balançou a cabeça em negativa.
— Jimmy sempre preferiu o Leste. Ele alcançou seu status aqui no Leste. Você era amigo do meu filho, senhor...?
— Sim, éramos muito próximos.
— Ele tinha um grande futuro pela frente, você sabe. Era muito jovem, mas tinha uma inteligência enorme.
Ele apontou para a própria cabeça e eu concordei.
— Se não tivesse morrido, seria um grande homem. Um sujeito como James J. Hill.2 Ele teria ajudado a construir o país.
— É verdade — eu disse, constrangido.
Gatz tateou a colcha bordada, tentando afastá-la da cama, e se deitou, rígido — dormindo na mesma hora.
Naquela noite, um sujeito obviamente assustado telefonou, perguntando-me quem eu era antes de se identificar.
— Aqui é o senhor Carraway — eu disse.
— Ah! — Ele parecia aliviado. — Aqui é o Klipspringer.
Também fiquei aliviado, pois era a esperança de mais um amigo de Gatsby no enterro. Eu não queria que o serviço saísse nos jornais e atraísse uma multidão de curiosos, então decidi chamar algumas pessoas por conta própria. Todas foram difíceis de encontrar.
— O funeral é amanhã — eu informei. — Às três da tarde, aqui na casa dele. Gostaria que você repassasse a informação para quem possa se interessar.
— Pode deixar — ele interrompeu, apressadamente. — Acho que não verei ninguém por esses dias, mas, se houver oportunidade...
Seu tom de voz me deixou desconfiado.
— Mas você vem, certo?
— Bem, certamente vou tentar. Liguei por causa de...
— Só um segundo — interrompi. — Que tal me dizer que vem com certeza?
— Bem, a verdade é que... Veja, estou hospedado na casa de uns amigos aqui em Greenwich3 e eles esperam que eu fique com eles amanhã. É que vai haver uma espécie de piquenique ou algo assim. É claro que farei o possível para dar uma escapada.
Soltei um “arrã” incontrolável que ele deve ter ouvido, pois prosseguiu nervosamente:
— Liguei porque esqueci um par de sapatos aí. Fico pensando se daria muito trabalho mandar o mordomo trazê-los. Veja bem, é um par de tênis, e eu fico meio indefeso sem eles. Envie aos cuidados de B. F....
Não escutei o resto do nome, pois bati o telefone.
Depois disso, senti muita pena de Gatsby — um certo cavalheiro a quem telefonei deu a entender que ele teve o que merecia. No entanto, a culpa foi minha, pois era um dos que costumavam zombar cruelmente de Gatsby à custa de sua bebida, e eu devia ter pensado melhor antes de lhe telefonar.
Na manhã do enterro, fui ver Meyer Wolfshiem em Nova York; não estava conseguindo contatá-lo de nenhuma outra forma. Na porta que eu empurrei, seguindo a indicação do ascensorista, estava escrito: “Suástica Companhia Holding”,4 e de início parecia não haver ninguém lá dentro. Mas, depois que gritei “olá?” várias vezes, em vão, uma discussão irrompeu atrás de uma divisória, e em seguida uma judia amável apareceu numa porta e me examinou com os olhos pretos e hostis.
— Não há ninguém aqui — ela disse. — O senhor Wolfshiem está em Chicago.
A primeira parte da afirmação era obviamente falsa, pois começaram a assobiar desafinadamente “The rosary” lá dentro.a
— Por favor, diga que o senhor Carraway está aqui para vê-lo.
— Não posso trazê-lo de Chicago, posso?
Naquele momento, uma voz, sem dúvida alguma de Wolfshiem, gritou “Stella!” do outro lado da porta.
— Deixe seu nome no balcão — ela disse rapidamente. — Eu lhe darei o recado assim que ele voltar.
— Mas eu sei que ele está aqui.
Ela deu um passo em minha direção e pôs a mão na cintura, indignada:
— Vocês, jovens, acham que podem chegar e entrar em qualquer lugar quando bem entendem — ela ralhou. — Já estamos perdendo a paciência. Quando eu digo que ele está em Chicago, é porque ele está em Chicago.
Mencionei o nome de Gatsby.
— Ah! — Ela me examinou outra vez. — Você podia... Qual é o seu nome?
Ela desapareceu. Num instante Meyer Wolfshiem apareceu solenemente na porta, com os braços estendidos. Levou-me ao seu escritório, observando com um tom de voz reverente que era um momento triste para todos nós, e me ofereceu um charuto.
— Lembro-me do dia em que o conheci — ele contou. — Um jovem major recém-saído do Exército e coberto de condecorações de guerra. Estava tão falido que precisava continuar usando o uniforme, pois não tinha como comprar roupas normais. Na primeira vez em que o vi, ele estava no bilhar Winebrenner, na rua 43, pedindo emprego. Não se alimentava havia vários dias. “Venha almoçar comigo”, eu disse. Em meia hora ele devorou mais de quatro dólares em comida.
— Você iniciou Gatsby nos negócios?
— Não só isso. Eu o criei.
— Ah.
— Ergui-o do nada, direto da sarjeta. Vi na hora que era um jovem de boa aparência, educado, e quando me contou que havia frequentado Oggsford, soube que me seria muito útil. Consegui que ele ingressasse na Legião Americana, onde formou sua reputação. Imediatamente fez um trabalho para um cliente meu em Albany. Ficamos assim — ele esfregou os dois indicadores inchados —, sempre próximos em tudo.
Fiquei imaginando se essa parceria incluía a manipulação da World’s Series de 1919.
— Agora ele está morto — eu falei, após um instante. — Você era seu amigo mais próximo, então sei que gostaria de ir ao funeral hoje à tarde.
— Gostaria, sim.
— Bem, então venha.
Os pelos de seu nariz tremularam de leve, e seus olhos se encheram de lágrimas conforme ele balançava a cabeça:
— Não posso. Não posso me envolver nisso — disse.
— Não há nada com que se envolver. Está tudo acabado.
— Quando um homem é assassinado, não gosto de me meter de forma alguma. Fico de fora. Em meus anos de juventude, era diferente: se um amigo meu morria, não importava como, eu ficava ao seu lado até o fim. Você pode achar piegas, mas é verdade: até o mais amargo fim.
Percebi que, por uma razão desconhecida, ele estava decidido a não ir ao enterro, então me levantei.
— Você foi à universidade? — ele me perguntou de repente.
Por um instante, pensei que ele iria me propor “um licação nas necócios”, mas apenas assentiu com a cabeça e apertou minha mão.
— É preciso demonstrar a amizade quando a pessoa ainda está viva, e não depois que morreu — observou. — Quando isso ocorre, minha regra particular é deixar tudo para trás.
Quando saí do escritório, o céu havia escurecido e tive que voltar a West Egg debaixo de chuva. Após trocar de roupa, fui à casa ao lado e encontrei o sr. Gatz andando de lá para cá no vestíbulo, muito agitado. O orgulho do filho e de suas posses crescia cada vez mais, e agora ele queria me mostrar uma coisa.
— Jimmy me mandou esta foto. — Com os dedos trêmulos, ele tirou a carteira do bolso. — Veja só.
Era uma foto da casa, lascada nos cantos e repleta de impressões digitais. Ele me mostrou cada detalhe com avidez. “Veja só!”, e procurava sinais de admiração em meus olhos. Gatz já havia se gabado tanto daquela foto que, a seus olhos, ela devia ser mais real do que a própria casa.
— Jimmy me mandou pelo correio. Acho que é uma foto muito bonita. Causa boa impressão.
— Ótima. Quando foi a última vez que o viu?
— Ele foi me visitar há dois anos e comprou a casa onde moro hoje. É claro que estava falido quando saiu de casa, mas vejo agora que havia um motivo. Ele sabia que tinha um grande futuro pela frente. E assim que sua vida deu certo, foi muito generoso comigo.
Ele parecia relutante em guardar a foto e a segurou por mais um minuto, demoradamente, diante dos meus olhos. Então a devolveu à carteira e tirou do bolso uma edição surrada e velha de um livro chamado Hopalong Cassidy.5
— Veja só, ele lia isto quando era garoto. Este livro diz tudo.
Gatz abriu o livro pela contracapa e o virou para o meu lado. Na última folha de guarda, havia a palavra agenda e a data 12 de setembro de 1906. E embaixo:

Levantar da cama ...... 6h
Musculação e escalada ...... 6h15 às 6h30
Estudar eletricidade etc. ...... 7h15 às 8h15
Trabalhar ...... 8h30 às 16h30
Beisebol e esportes ...... 16h30 às 17h
Praticar oratória, postura e como alcançá-la ...... 17h às 18h
Estudar invenções necessárias .... 19h às 21h

resoluções gerais
Não perder tempo no Shafters e no [nome indecifrável]
Parar de fumar e mascar chicletes
Tomar banho em dias alternados
Ler um livro ou revista edificante por semana
Economizar 5 dólares 3 dólares por semana
Tratar melhor os meus pais

— Achei este livro por acaso — disse o velho. — Ele diz tudo, não é?
— É mesmo.
— Jimmy estava destinado ao sucesso. Sempre vinha com resoluções ou coisas do tipo. Você reparou no que ele disse sobre aprimorar o intelecto? Ele fazia isso muito bem. Certa vez, disse que eu comia feito um porco, então eu bati nele.
Gatz relutou em fechar o livro, lendo cada item em voz alta e olhando avidamente para mim. Acho que ele esperava que eu copiasse a lista para usá-la em meu proveito.
Pouco antes das três, o ministro luterano veio de Flushing e eu passei a olhar mecanicamente pela janela, à espera de outros automóveis. O pai de Gatsby também. Conforme o tempo passava e os empregados apareciam e se punham a postos no vestíbulo, seus olhos começaram a piscar com inquietação e ele falou da chuva de um jeito preocupado e hesitante. O ministro consultou várias vezes o relógio, de modo que o chamei de lado e pedi que esperasse mais meia hora. Mas não adiantou. Ninguém apareceu.
Lá pelas cinco horas, nossa procissão de três veículos chegou ao cemitério e parou ao lado do portão, sob um denso chuvisco — primeiro o carro fúnebre, terrivelmente negro e molhado, depois a limusine em que estávamos eu, o sr. Gatz e o ministro, e em seguida a caminhonete de Gatsby, de onde saíram quatro ou cinco empregados e o carteiro de West Egg, molhados até os ossos. Quando ultrapassamos o portão e entramos no cemitério, ouvi o barulho de um carro estacionando e o som de alguém chapinhando no nosso encalço através do chão empapado. Olhei para trás. Era o homem com os óculos de coruja que eu encontrara três meses antes admirando os livros da biblioteca de Gatsby.
Eu não tornara a vê-lo desde então. Não sei como ficou sabendo do funeral, tampouco sei seu nome. A chuva toldava seus óculos de lentes grossas; ele os tirou do rosto para enxugá-los e ver a lona protetora sendo desenrolada sobre a cova de Gatsby.
Tentei pensar em Gatsby por um momento, mas ele já se achava muito distante. Além disso, não conseguia deixar de pensar, sem ressentimentos, que Daisy não mandara nenhuma mensagem ou flores. Ouvi alguém sussurrar vagamente: “Abençoados os mortos sobre os quais cai a chuva”, e o homem com os óculos de coruja respondeu: “Amém”, numa voz firme.
Dispersamo-nos rapidamente pela chuva, em direção aos carros. No portão, o homem com os óculos de coruja veio falar comigo.
— Não pude ir ao velório — ele observou.
— Ninguém pôde.
— Não diga! — ele exclamou. — Por quê, meu Deus? Eles costumavam aparecer às centenas.
Ele tirou os óculos do rosto e os enxugou outra vez, de ambos os lados.
— Aquele pobre filho da puta — disse.
Uma das minhas lembranças mais vivas é a de voltar para casa no Natal, vindo da escola e, mais tarde, da faculdade. Os que iam além de Chicago se reuniam na velha e obscura Union Station às seis horas de uma noite de dezembro, junto a alguns amigos locais, já envolvidos em suas próprias festividades de Natal, para uma breve despedida. Lembro-me dos casacos de pele das garotas saídas do colégio da sra. Fulana ou Sicrana, das conversas com a respiração congelada, dos acenos ao divisar velhos conhecidos, dos preparativos de fim de ano: “Você vai ficar na casa dos Ordway? Nos Hersey? Nos Schultze?”, e dos compridos bilhetes verdes bem seguros em nossas mãos enluvadas. E, por fim, lembro-me dos vagões amarelados e escuros da ferrovia de Chicago, Milwaukee e St. Paul, parados nos trilhos ao lado do portão, tão alegres quanto o próprio Natal.
Assim que adentrávamos a noite de inverno e a neve de verdade, a nossa neve, começava a cair lá fora e cintilar contra as janelas, e as luzes débeis das pequenas estações de Wisconsin iam passando, uma súbita sensação revigorante surgia no ar. Respirávamos fundo para absorvê-la conforme voltávamos do jantar através dos vestíbulos frios, indescritivelmente conscientes, por uma estranha hora, de nossa identificação com essa região, antes de nos misturarmos a ela outra vez.
É esse o meu Meio-Oeste — não o dos campos de trigo, das pradarias ou das cidades perdidas dos suecos,b mas dos retornos emocionantes de trem da minha juventude, dos postes de luz e dos sinos na escuridão glacial, e das sombras de guirlandas refletidas na neve pelas janelas iluminadas. Sou parte disso, e um tanto cerimonioso com a lembrança daqueles longos invernos, um tanto indulgente por ter crescido na casa dos Carraway, numa cidade onde as residências ainda são chamadas pelo nome da família, há décadas. Hoje percebo que, afinal, esta é uma história do Oeste — Tom, Gatsby, Daisy, Jordan e eu éramos todos do Oeste, e talvez tivéssemos uma deficiência em comum que nos tornava sutilmente inadaptáveis para a vida no Leste.
Mesmo quando o Leste me empolgava, mesmo quando eu estava totalmente ciente de sua superioridade diante das cidades entediantes, dispersas e inchadas para além de Ohio, com suas intermináveis inquisições que poupavam apenas as crianças e os muito velhos — mesmo então, o Leste tinha para mim um caráter distorcido. Sobretudo West Egg, que ainda figura em meus sonhos mais fantásticos. Vejo-a como uma cena noturna de El Greco: centenas de casas a um só tempo convencionais e grotescas, apinhadas sob um céu carrancudo e ameaçador e uma lua pálida. Em primeiro plano, quatro homens sérios de terno caminham pela calçada levando uma maca com uma mulher bêbada num vestido branco de noite. Pendendo para o lado da maca, sua mão resplandece de joias. Sombriamente, o cortejo se dirige a uma casa — a casa errada. Mas ninguém sabe o nome da mulher e ninguém se importa.
Após a morte de Gatsby, o Leste me pareceu assim amaldiçoado, distorcido para além do poder corretivo de meus olhos. Assim, quando a névoa azulada das folhas secas subiu ao ar e o vento castigou as roupas endurecidas no varal, decidi que era hora de voltar para casa.
Havia algo a ser feito antes de partir, algo embaraçoso e desagradável que talvez fosse melhor ter sido esquecido. Mas eu queria deixar as coisas em ordem e não apenas confiar que esse mar prestativo e indiferente levasse para longe a bagunça que deixei para trás. Fui ver Jordan Baker e falei longamente sobre o que se passara entre nós, e o que acontecera comigo em seguida, e ela ficou o tempo todo escutando em absoluto silêncio numa cadeira larga.
Ela vestia um traje de golfe, e me lembro de ter achado que daria uma boa ilustração, o queixo ligeiramente erguido com elegância, os cabelos da cor das folhas de outono, o rosto com o mesmo matiz castanho da luva sem dedos largada em seu joelho. Quando terminei, ela me contou, sem maiores comentários, que estava noiva de outro homem. Eu duvidava disso, embora houvesse vários homens com quem ela poderia se casar só com um aceno de cabeça, mas fingi estar surpreso. Por um minuto, imaginei se não estava cometendo um erro, então repensei tudo rapidamente e me levantei para dizer adeus.
— Em todo caso, foi você que me dispensou — disse Jordan de repente. — Você me dispensou por telefone. Não dou a mínima para você agora, mas naquela época foi uma experiência nova e me senti um pouco desnorteada.
Nós nos cumprimentamos.
— Ah, e você se lembra — ela acrescentou — de uma conversa que tivemos uma vez sobre direção?
— Por quê? Não exatamente.
— Você disse que um mau motorista só está seguro até encontrar outro mau motorista, certo? Bem, eu encontrei outro mau motorista, não? Quer dizer, fui descuidada ao fazer uma aposta tão errada. Pensei que você fosse uma pessoa honesta e justa. Pensei que fosse esse o seu orgulho secreto.
— Eu tenho trinta anos — respondi. — Há cinco anos já passei da idade de poder mentir para mim mesmo e chamar isso de honra.
Ela não respondeu. Zangado e um pouco apaixonado por ela, além de tremendamente arrependido, fui embora.

Certa tarde, no fim de outubro, vi Tom Buchanan. Ele estava caminhando à minha frente pela Quinta Avenida com seu jeito alerta e agressivo, as mãos um pouco afastadas do corpo como se para evitar o contato, a cabeça balançando para lá e para cá, adaptando-se aos seus olhos impacientes. Assim que eu diminuí o passo para evitar alcançá-lo, ele parou e franziu a testa em direção à vitrine de uma joalheria. De súbito, ele me viu e aproximou-se com a mão estendida.
— Qual é o problema, Nick? Não vai apertar minha mão?
— Não. Você sabe o que penso de você.
— Você está louco, Nick — ele disse rapidamente. — Louco de pedra. Não sei qual o seu problema.
— Tom — eu perguntei —, o que você disse a Wilson naquela tarde?
Ele me encarou sem dizer palavra, e eu sabia que estava certo sobre aquelas horas inexplicadas. Fiz menção de ir embora, mas ele se adiantou e agarrou o meu braço.
— Eu lhe contei a verdade — ele disse. — Wilson apareceu quando estávamos prestes a partir e, quando mandei avisar que não estávamos, tentou forçar o caminho subindo as escadas. Estava louco o bastante para me matar, caso eu não lhe tivesse contado quem era o dono do carro. Ele não largou o revólver o tempo todo em que esteve na casa... — Ele fez uma pausa desafiadora. — E se eu tivesse mesmo contado? Aquele sujeito fez por merecer. Ele jogou areia nos seus olhos assim como fez com Daisy, mas era um cara durão. Ele atropelou Myrtle como se fosse um cachorro e nem parou o carro.
Não havia nada que eu pudesse dizer além de algo indizível: era tudo mentira.
— E se você acha que eu não tive a minha cota de sofrimento... Veja só, quando fui me desfazer daquele apartamento e vi aquela maldita caixa de biscoitos de cachorro no aparador, eu sentei e chorei como um bebê. Por Deus, foi horrível...
Eu nunca seria capaz de perdoá-lo ou de gostar dele, mas vi que seus atos eram, a seus olhos, inteiramente justificáveis. Tudo decorrera de forma descuidada e confusa. Eles eram todos descuidados e confusos. Eram descuidados, Tom e Daisy — esmagavam coisas e criaturas e depois se protegiam por trás da riqueza ou de sua vasta falta de consideração, ou o que quer que os mantivesse juntos, e deixavam os outros limparem a bagunça que eles haviam feito...
Apertei a mão de Tom; me pareceu tolo não fazê-lo, pois tive a súbita impressão de que estava lidando com uma criança. Então ele entrou na joalheria para comprar um colar de pérolas — ou talvez apenas um par de abotoaduras —, livre para sempre da minha sensibilidade provinciana.
A mansão de Gatsby ainda estava desocupada quando fui embora — a grama do jardim havia crescido até alcançar a minha. Um certo taxista do centro admitiu nunca ter feito uma corrida que passasse por ali sem encostar um minuto e apontar para a mansão; talvez tivesse sido ele quem levou Daisy e Gatsby até East Egg na noite do acidente, e talvez tenha inventado uma história por conta própria. Eu não queria escutá-la e evitei sua companhia ao descer do trem.
Decidira passar as noites de sábado em Nova York, pois aquelas festas resplandecentes e estonteantes de Gatsby permaneciam comigo tão nitidamente que eu ainda podia ouvir música e risadas de seu jardim, fracas e incessantes, e os carros indo e vindo pela entrada da casa. Certa noite, ouvi um carro de verdade por lá, e vi seus faróis iluminando os degraus da entrada. Mas não cheguei a investigar. Era provavelmente um derradeiro conviva que estivera fora o tempo todo, viajando nos confins do mundo, e não sabia que a festa havia acabado.
Na última noite, com as malas prontas e o carro vendido ao dono da mercearia, voltei para admirar outra vez aquele gigantesco e incoerente fracasso de residência. Sobre os degraus brancos, uma palavra obscena rabiscada por algum moleque com um caco de tijolo se destacava à luz do luar, e eu a apaguei, esfregando os sapatos com força na pedra. Então perambulei até a praia e me estiquei na areia.
Àquela hora da noite, os estabelecimentos ao longo da costa estavam fechados e já não havia quase nenhuma luz, exceto o brilho obscuro e indefinido de uma barca cruzando o estreito. Conforme a lua subia no céu, as casas insignificantes passaram a se dissolver até que, pouco a pouco, meus pensamentos desaguaram na antiga ilha selvagem que surgira aos olhos dos marinheiros holandeses neste exato lugar — o seio verde e frondoso de um Novo Mundo. Suas árvores extintas, aquelas que cederam lugar à casa de Gatsby, outrora estimularam os sonhos derradeiros e mais ambiciosos dos homens; por um momento transitório e mágico, alguém deve ter prendido o fôlego à vista deste continente, compelido a uma contemplação estética que não compreendia e tampouco desejava, face a face, pela última vez na história, com algo proporcional à sua capacidade de maravilhar-se. Enquanto estava ali, remoendo esse velho e desconhecido mundo, pensei no assombro de Gatsby ao ver pela primeira vez a luz verde da extremidade do cais de Daisy. Ele havia percorrido um caminho enorme até chegar a esse jardim azulado, e seu sonho lhe deve ter parecido tão próximo que dificilmente o deixaria escapar. O que ele não sabia é que já estava fora de seu alcance, em algum ponto da vasta obscuridade que seguia além da cidade, onde os campos escuros da república se estendiam através da noite.
Gatsby acreditava na luz verde, no futuro orgástico que, ano após ano, costuma recuar diante de nós. Ontem fomos iludidos, mas não importa — amanhã correremos mais rápido, esticando nossos braços mais além... E numa bela manhã...
E assim avançamos, botes contra a corrente, impelidos incessantemente de volta ao passado.
Nas manhãs de domingo, enquanto os sinos das igrejas repicavam nos vilarejos ao longo da costa, todos retornavam à casa de Gatsby com suas respectivas acompanhantes e passeavam alegremente pelo gramado.
— Ele é contrabandista de bebidas1 — diziam as moças, movendo-se entre os coquetéis e as flores de seu anfitrião. — Uma vez, matou um homem que descobriu que ele era sobrinho de Von Hindenburg2 e primo em segundo grau do diabo. Faça o favor de me alcançar o vinho rosé, querida, e me sirva um último gole naquela taça de cristal.
Certa vez, preenchi os espaços vazios de uma agenda com os nomes dos convidados de Gatsby naquele verão. Agora é uma agenda antiga, esfarelando nas dobras, com o título: “Agenda em vigor: 5 de julho de 1922”. Mas ainda consigo ler os nomes em cinza e estes lhes darão uma impressão mais exata, superior às minhas generalidades, daqueles que aceitavam a hospitalidade de Gatsby e a retribuíam com o sutil tributo de não saberem nada a seu respeito.
De East Egg, portanto, vinham os Chester Becker e os Leech, além de um homem chamado Bunsen, que conheci em Yale, e o dr. Webster Civet, que morreu afogado no verão passado em Maine. Também havia os Hornbeam, os Willie Voltaire e um clã inteiro chamado Blackbuck, que tinha o costume de se agrupar num canto e empinar o nariz feito um bando de cabras a qualquer um que se aproximasse. E os Ismay e os Chrystie (ou melhor, Hubert Auerbach e a esposa do sr. Chrystie) e Edgar Beaver, cujo cabelo, dizem, ficou totalmente branco numa tarde de inverno, sem nenhuma razão.
Clarence Endive era de East Egg, pelo que eu me lembro. Ele veio uma vez só, metido num par de knickerbockers brancas,a e meteu-se numa briga no jardim com um mendigo chamado Etty. De pontos mais afastados da ilha vinham os Cheadle e os O. R. P. Schraeder, e os Stonewall Jackson Abram da Geórgia, e os Fishguard e os Ripley Snell. O velho Snell frequentou a casa de Gatsby três dias antes de ir preso, cambaleando tão bêbado pela estrada de cascalho que o automóvel da sra. Ulysses Swett passou por cima de sua mão direita. Os Dancie também compareciam, assim como S. B. Whitebait, que já havia passado dos sessenta, e Maurice A. Flink, os Hammerhead e Beluga, o importador de tabaco, acompanhado das filhas.
De West Egg vinham os Pole, os Mulready e Cecil Roebuck e Cecil Schoen e Gulick, o senador do estado, e Newton Orchid, que dirigia a Films Par Excellence, e Eckhaust e Clyde Cohen e Don S. Schwartz (o filho) e Arthur McCarty, todos de algum modo ligados à indústria do cinema. E os Catlip e os Bemberg e G. Earl Muldoon, irmão daquele Muldoon que posteriormente estrangulou a esposa. O promotor Da Fontano também era habitué, além de Ed Legros e James B. (“Rot-Gut”)b Ferret e os De Jong e Ernest Lilly — estes vinham para apostar e, quando Ferret era visto perambulando pelo jardim, significava que ele perdera tudo e que as ações da Associated Traction teriam que lucrar muito no dia seguinte.
Um homem chamado Klipspringer frequentava Gatsby com tamanha assiduidade que ficara conhecido como “o hóspede” — duvido que ele tivesse outra residência. Da classe teatral compareciam Gus Waize e Horace O’Donavan e Lester Myer e George Duckweed e Francis Bull. De Nova York vinham os Chrome e os Backhysson e os Dennicker e Russel Betty e os Corrigan e os Kelleher e os Dewar e os Scully e S. W. Belcher e os Smirke e os rapazes Quinn, agora divorciados, e Henry L. Palmetto, que se suicidou saltando na frente do trem do metrô em Times Square.
Benny McClenahan sempre chegava com quatro garotas. Que nunca eram as mesmas fisicamente, mas eram tão idênticas umas às outras que inevitavelmente pareciam repetir-se. Esqueci seus nomes — Jaqueline, eu acho, ou Consuela, ou Gloria ou Judy ou June, e seus sobrenomes variavam entre melodiosos nomes de flor ou de mês e os austeros sobrenomes dos maiores capitalistas do país, com quem elas, pressionadas, confessariam ter algum parentesco.
Além de todas essas pessoas, lembro-me de que Faustina O’Brien compareceu pelo menos uma vez, e também as garotas Baedeker e o jovem Brewer, que teve seu nariz arrancado na guerra, e o sr. Albrucksburger e a srta. Haag, sua noiva, e Ardita FitzPeters e o sr. P. Jewett, ex-diretor da Legião Americana, e a srta. Claudia Hip, com um homem que se dizia seu motorista, e um príncipe de algum lugar, que chamávamos de Duke, e de cujo nome eu me esqueci, se é que já cheguei a saber.
Toda essa gente frequentava a casa de Gatsby no verão.
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Às nove horas de uma manhã do fim de julho, o luxuoso carro de Gatsby veio sacolejando pela estrada pedregosa e alcançou o meu portão, emitindo uma melodia súbita com sua buzina de três notas. Era a primeira vez que ele me visitava, embora eu já tivesse comparecido a duas de suas festas, passeado em seu hidroavião e, após muita insistência, frequentado sua praia particular sistematicamente.
— Bom dia, meu velho. Já que vamos almoçar juntos, pensei que podíamos dar um passeio antes.
Ele se equilibrava sobre o para-choque do automóvel com aquela engenhosidade de movimentos tipicamente americana — que vem, eu suponho, da ausência de trabalho braçal na juventude e, mais ainda, da graciosidade disforme de nossos esportes nervosos e esporádicos. Essa característica vivia transbordando de sua conduta meticulosa sob a forma de inquietação. Ele nunca estava totalmente parado; havia sempre um tamborilar de dedos em algum lugar, ou o abrir e fechar impaciente de uma mão.
Ele me viu olhando com admiração para seu carro.
— É uma beleza, não é, meu velho? — Ele se afastou para me dar uma visão melhor. — Ainda não tinha visto o meu carro?
Eu já o tinha visto. Assim como todo mundo. Era de uma intensa cor creme e um brilho niquelado, avultado aqui e ali em seu comprimento já enorme por caixas de chapéus, de comida e de ferramentas, e encimado por um labirinto de para-brisas que refletiam uma dúzia de sóis. Sentados atrás de muitas camadas de vidro, sob uma espécie de capota esverdeada de couro, partimos em direção à cidade.
No decorrer daquele mês, havia conversado com Gatsby meia dúzia de vezes e descobrira, para minha decepção, que ele tinha pouco a dizer. De modo que a minha primeira impressão, de que ele era uma pessoa de importância indefinida, havia progressivamente desaparecido e ele se tornara apenas o proprietário da exagerada mansão ao meu lado.
Então veio aquela desconcertante carona. Ainda não havíamos alcançado West Egg quando Gatsby decidiu deixar inconclusas suas frases elegantemente formadas, batendo com hesitação no joelho de sua calça cor de caramelo.
— Escute aqui, meu velho — ele irrompeu de maneira imprevista —, qual é a sua opinião sobre mim, afinal?
Um tanto coagido, recorri às evasivas generalizadas que a pergunta exigia.
— Bem, vou lhe contar algo sobre a minha vida — ele interrompeu. — Não quero que você tenha uma ideia errada de mim a partir dessas histórias que ouve.
Então ele estava por dentro das acusações bizarras que davam sabor às conversas em sua casa.
— Por Deus, o que eu vou lhe contar é a mais pura verdade. — Sua mão direita ergueu-se repentinamente para pedir que o castigo divino o atestasse. — Sou filho de uma família rica do Meio-Oeste, todos já falecidos. Fui criado nos Estados Unidos, mas educado em Oxford porque foi lá que meus antepassados sempre estudaram. É uma tradição familiar.
Ele me fitou com o canto do olho — e eu soube imediatamente por que Jordan Baker achara que ele estava mentindo. Gatsby acelerou as palavras “educado em Oxford”, ou mesmo as engoliu, sufocando-as, como se isso já lhe tivesse causado problemas no passado. Diante dessa hesitação, seu depoimento inteiro caiu por terra, e fiquei imaginando se não havia algo de estranho naquele sujeito, afinal de contas.
— Que parte do Meio-Oeste? — perguntei casualmente.
— San Francisco.
— Ah.
— Minha família inteira morreu e eu herdei uma fortuna.
Seu tom de voz era solene, como se a lembrança da súbita extinção de um clã ainda o assombrasse. Por um momento, julguei que ele estivesse brincando, mas só de fitá-lo me convenci do contrário.
— Depois disso, vivi como um jovem rajá em todas as capitais da Europa: Paris, Veneza, Roma. Colecionei joias, principalmente rubis, cacei animais de grande porte e pintei um pouco, tudo por prazer, na tentativa de esquecer uma coisa triste que me acontecera tempos antes.
Com algum esforço, consegui conter uma risada incrédula. As próprias frases soavam tão gastas que não me evocavam imagem alguma, exceto a de um “personagem” de turbante que exalava serragem por todos os poros enquanto perseguia um tigre pelo Bois de Boulogne.
— Então veio a guerra, meu velho. Foi um grande alívio e eu fiz o máximo possível para morrer, mas parecia ter uma vida enfeitiçada. Quando o conflito começou, aceitei o posto de primeiro-tenente. Na floresta de Argonne, assumi o comando dos poucos soldados que restaram no meu batalhão de artilharia e avancei tanto que se formou, de ambos os lados, um vácuo de oitocentos metros por onde a infantaria não conseguia penetrar. Permanecemos ali por dois dias e duas noites, cento e trinta homens com dezesseis metralhadoras Lewis e, quando a infantaria enfim chegou, encontraram a insígnia de três divisões alemãs entre as pilhas de mortos. Fui promovido a major e todos os governos aliados me condecoraram. Inclusive Montenegro, a pequena Montenegro, em pleno mar Adriático!
Pequena Montenegro! Ele enfatizou essas palavras e assentiu com a cabeça — abrindo um sorriso. Aquele sorriso abarcava toda a história atribulada de Montenegro e se solidarizava com as bravas lutas do povo montenegrino. Apreciava sem restrições a cadeia de circunstâncias nacionais que propiciara esse tributo do pequeno e cálido coração nativo. Minha incredulidade agora se transformara em fascínio; era como folhear atabalhoadamente uma dúzia de revistas.
Ele meteu a mão no bolso e me mostrou um pedaço de metal pendurado numa fita.
— Esta é a de Montenegro.
Para o meu espanto, a coisa tinha um ar de autenticidade. “Orderi di Danilo”, dizia a legenda circular: “Montenegro, Nicolas Rex”.3
— Vire a medalha.
— Major Jay Gatsby — eu li. — Pelo extraordinário heroísmo.
— Aqui tem outra coisa que eu sempre carrego. Uma lembrança dos tempos de Oxford. Foi tirada no Trinity Quad.c Esse homem à minha esquerda é hoje conde de Doncaster.
Era uma fotografia de meia dúzia de rapazes de blazer reunidos sob uma arcada com uma porção de pináculos ao fundo. Lá estava Gatsby, parecendo um pouco (nem tanto) mais jovem, com um taco de críquete na mão.
Então era tudo verdade. Pude vislumbrar as peles de tigre expostas em seu palazzo no Grande Canal; vi Gatsby abrindo um baú de rubis que serviam para confortar, com suas profundezas vermelhas, os tormentos de seu coração partido.
— Vou lhe pedir um grande favor hoje — ele disse, guardando com satisfação seus suvenires no bolso —, então achei que você deveria saber algo a meu respeito. Não queria que pensasse que eu era um ninguém. Veja, sempre estive entre estranhos porque ando pelo mundo tentando esquecer as coisas tristes que me aconteceram. — Ele hesitou. — Você vai ficar sabendo hoje à tarde.
— No almoço?
— Não, depois. Acontece que eu fiquei sabendo que você vai levar a senhorita Baker para tomar um chá.
— Quer dizer que você está apaixonado pela senhorita Baker?
— Não, meu velho, não é isso. Mas a senhorita Baker consentiu gentilmente em lhe falar sobre esse assunto.
Eu não tinha a mais vaga ideia do que era “esse assunto”, mas estava mais irritado do que interessado. Eu não havia convidado Jordan para o chá a fim de conversar sobre o sr. Jay Gatsby. Tinha certeza de que o favor seria algo absolutamente grandioso, e por um instante me arrependi de ter botado os pés naquele gramado superpovoado.
Ele não me diria mais nenhuma palavra. Sua correção ia crescendo conforme nos aproximávamos da cidade. Passamos por Port Roosevelt,4 onde tivemos vislumbres de navios transatlânticos com faixas vermelhas, e aceleramos ao longo de um cortiço de paralelepípedos, ladeado por tabernas abarrotadas e escuras com aquele dourado opaco do começo do século. Então o vale das cinzas se abriu de ambos os lados e, enquanto passávamos, tive um vislumbre da sra. Wilson debruçada na bomba de gasolina com ofegante vitalidade.
Com os para-choques abertos feito asas, lançamos luz em metade de Astoria — apenas metade, pois enquanto fazíamos o retorno entre as pilastras do elevado, ouvi o familiar “vrum-vrum-paf!” de uma moto e um policial frenético encostando em nosso carro.
— Certo, meu velho — gritou Gatsby. Nós desaceleramos. Sacando um cartão branco da carteira, ele o abanou diante do homem.
— Está tudo bem — concordou o policial, acenando com o quepe. — Da próxima vez, prometo reconhecê-lo, senhor Gatsby. Mil desculpas!
— O que era isso? — eu perguntei. — A foto de Oxford?
— Certa vez fiz um favor para o comissário, e desde então ele me manda todos os anos um cartão de Natal.
Atravessamos a magnífica ponte, com a luz do sol através das vigas produzindo uma ondulação constante sobre os carros em movimento, enquanto a cidade se erguia para além do rio em pilhas brancas e torrões de açúcar, construída num puro desejo incorruptível. A partir da ponte Queensboro,d a cidade é sempre vista como pela primeira vez, em sua primeira e louca promessa de todos os mistérios e belezas do mundo.
Um homem morto passou ao nosso lado num carro fúnebre atulhado de flores, seguido por duas carruagens com a cortina abaixada e outras conduções mais animadas que transportavam os amigos do morto. Eles nos olharam com os olhos trágicos e os finos lábios superiores típicos do Sudeste europeu, e fiquei feliz em saber que a visão do esplêndido automóvel de Gatsby fora agora incluída em seu passeio sombrio. Enquanto cruzávamos a ilha de Blackwell,e uma limusine nos ultrapassou, conduzida por um motorista branco e ocupada por três negros modernos, dois rapazes e uma moça. Soltei uma gargalhada alta quando suas órbitas amareladas se revolveram para nós, em esnobe rivalidade.
“Tudo pode acontecer agora que cruzamos esta ponte”, eu pensei, “tudo mesmo...”
Mesmo Gatsby podia acontecer, sem que isso causasse nenhum espanto em particular.
Meio-dia frenético. Em um arejado porão na rua 42, encontrei-me com Gatsby para almoçar. Ofuscado pela recém-saída claridade da rua, localizei-o vagamente na antessala, conversando com um desconhecido.
— Senhor Carraway, este é meu amigo, o senhor Wolfshiem.
Um judeu pequeno de nariz achatado ergueu sua enorme cabeça e me olhou do alto de seus dois tufos de pelos que floresciam em suas narinas. Levei um instante para localizar seus minúsculos olhos à meia-luz.
— ...Então dei uma boa olhada nele — disse o sr. Wolfshiem, apertando-me firmemente a mão — e sabe o que fiz?
— O quê? — perguntei com cortesia.
Mas é claro que ele não se dirigia a mim, pois largou minha mão e cobriu Gatsby com seu nariz expressivo.
— Dei o dinheiro a Katspaugh e falei: “Certo, Katspaugh, não lhe pague um centavo até ele calar a boca”. Ele calou a boca na hora.
Gatsby nos tomou pelo braço, um de cada lado, e adentrou o restaurante, enquanto o sr. Wolfshiem engolia a continuação de uma nova frase e caía numa distração sonâmbula.
— Uísque e soda? — ofereceu o maître.
— É um belo restaurante — disse o sr. Wolfshiem, admirando as ninfas presbiterianas pintadas no teto. — Mas eu prefiro aquele no outro lado da rua!
— Sim, uísque, por favor — assentiu Gatsby, e então ao sr. Wolfshiem: — Lá é muito quente.
— Quente e pequeno, é verdade — disse o sr. Wolfshiem —, mas cheio de lembranças.
— De que restaurante vocês estão falando? — perguntei.
— Do velho Metropole.
— Do velho Metropole — remoeu o sr. Wolfshiem melancolicamente. — Cheio de rostos mortos e enterrados. Cheio de amigos que partiram para sempre. Nunca vou me esquecer da noite em que atiraram em Rosy Rosenthal. Éramos seis à mesa, e Rosy havia comido e bebido a noite toda. Quando já era quase de manhã, o garçom veio com um olhar esquisito e disse que alguém queria falar com ele lá fora. “Certo”, disse Rosy, erguendo-se da cadeira, mas eu o puxei de volta. “Deixe aqueles sacanas virem até aqui, Rosy, se querem pegá-lo. Mas, por Deus, não ouse sair desta sala.” Já eram quatro da madrugada e, se erguêssemos as persianas, veríamos a luz do dia.
— Ele saiu? — perguntei, com ingenuidade.
— É claro que sim. — O nariz do sr. Wolfshiem me fulminou, indignado. — Ao chegar à porta, ele se virou para trás e disse: “Não deixem o garçom levar meu café!”. Então foi à calçada, onde o receberam com três tiros na barriga e fugiram.
— Quatro deles foram para a cadeira elétrica — eu disse, lembrando-me do caso.
— Cinco, com Becker. — Suas narinas se voltaram para mim com ar interessado. — Soube que você está procurando um licação nas necócios.f
A justaposição desses dois comentários foi desconcertante. Gatsby respondeu em meu lugar:
— Ah, não — ele exclamou —, não é este o homem.
— Não? — o sr. Wolfshiem pareceu desapontado.
— Este é só um amigo. Falei que conversaríamos sobre isso em outra ocasião.
— Me desculpe — disse o sr. Wolfshiem. — Peguei o homem errado.
Um suculento picadinho chegou à mesa e o sr. Wolfshiem, esquecido da atmosfera nostálgica do velho Metropole, passou a comer com sensibilidade feroz. Enquanto isso, seus olhos percorriam lentamente o salão — ele completou o círculo virando-se para inspecionar as pessoas bem atrás de nós. Não fosse a minha presença, acho que se abaixaria para dar uma olhada debaixo da nossa própria mesa.
— Ouça, meu velho — disse Gatsby, reclinando-se em minha direção —, me desculpe por tê-lo aborrecido esta manhã, no carro.
Ele abriu aquele sorriso de novo, mas dessa vez tentei resistir.
— Não gosto de mistérios — respondi — e não entendo por que você não chega honestamente e me diz o que quer. Por que precisa passar pela senhorita Baker?
— Ah, não é nada proibido — ele me garantiu. — A senhorita Baker é uma grande atleta, você sabe, e nunca faria nada de errado.
De repente ele consultou o relógio, levantou-se de um salto e disparou pelo salão, deixando-me à mesa com o sr. Wolfshiem.
— Ele foi telefonar — disse o sr. Wolfshiem, seguindo-o com os olhos. — É um bom sujeito, não? Bonito de se ver e um perfeito cavalheiro.
— É.
— É um homem de Oggsford.
— Ah.
— Ele estudou em Oggsford, na Inglaterra. Você conhece a universidade de Oggsford?
— Já ouvi falar.
— É uma das mais famosas do mundo.
— Você conhece Gatsby há muito tempo? — perguntei.
— Há muitos anos — ele respondeu com ar satisfeito. — Tive o prazer de conhecê-lo logo após a guerra. Percebi que estava diante de um homem de fina estirpe depois de conversarmos por uma hora. Eu disse a mim mesmo: “É o tipo de homem que todos gostariam de levar para casa e apresentar à mãe e à irmã”. — Ele fez uma pausa. — Vejo que está olhando para as minhas abotoaduras.
Eu não estava olhando para elas, mas passei a fazê-lo. Eram lascas de marfim estranhamente familiares.
— São feitas dos mais finos espécimes de molares humanos — ele me informou.
— Ora! — eu as examinei. — É uma ideia muito interessante.
— É. — Ele escondeu os punhos por baixo do casaco. — De fato, Gatsby é muito cuidadoso com as mulheres. Não ousaria sequer olhar para a esposa de um amigo.
Assim que o protagonista dessa confiança instintiva retornou à mesa e sentou-se, o sr. Wolfshiem bebeu seu café de uma vez e levantou-se.
— Adorei o almoço — ele disse —, e agora irei deixá-los, meus jovens, antes que eu comece a abusar da hospitalidade de vocês.
— Não seja tolo — disse Gatsby, sem sombra de entusiasmo. O sr. Wolfshiem ergueu a mão numa espécie de bênção.
— Você é muito educado, mas pertence a outra geração — ele anunciou de forma solene. — Fiquem aqui conversando sobre seus esportes, suas namoradas e... — ele supriu o substantivo com outro aceno. — Quanto a mim, tenho cinquenta anos de idade e não irei importuná-los mais com a minha presença.
Quando ele terminou de cumprimentar Gatsby e virou-se para ir embora, seu trágico nariz estava trêmulo. Fiquei imaginando se havia dito algo que o ofendera.
— Às vezes ele fica sentimental — explicou Gatsby. — Hoje é um desses dias. Trata-se de uma figura singular de Nova York, um cidadão da Broadway.
— Mas, afinal, ele é ator?
— Não.
— Dentista?
— Meyer Wolfshiem?5 Não, é um apostador. — Gatsby hesitou e então acrescentou, calculadamente: — Foi ele quem fraudou a World’s Series de 1919.6
— Fraudou a World’s Series? — repeti.
Aquela informação me deixou abalado. Eu me lembrava, é claro, de que a World’s Series fora fraudada em 1919, mas, se alguma vez cheguei a pensar no assunto, considerava-o algo que simplesmente acontecera, resultado de alguma inevitável cadeia de eventos. Nunca me ocorreu que um só homem poderia ludibriar a fé de cinquenta milhões de pessoas — com a obstinação de um ladrão explodindo um cofre.
— E como é que ele fez isso? — perguntei após um minuto.
— Ele apenas viu a oportunidade.
— Por que não foi preso?
— Ninguém consegue apanhá-lo, meu velho. É um sujeito esperto.
Insisti em pagar a conta. Quando o garçom veio me trazer o troco, reconheci Tom Buchanan em meio ao salão abarrotado.
— Venha comigo um minuto — eu disse —, preciso cumprimentar um amigo.
Assim que nos viu, Tom ergueu-se num salto e deu meia dúzia de passos em nossa direção.
— Por onde você andou? — ele protestou vivamente. — Daisy está furiosa por não ter telefonado.
— Este é o senhor Gatsby, senhor Buchanan.
Eles deram um breve aperto de mãos, e Gatsby deixou transparecer um olhar estranhamente tenso e constrangido.
— Mas enfim, como vai? — perguntou Tom. — Por que resolveu vir tão longe só para comer?
— Eu estava almoçando com o senhor Gatsby.
Voltei-me em direção ao sr. Gatsby, mas ele não estava mais lá.
Foi num dia de outubro de 1917...
(contou Jordan mais tarde, sentada aprumadamente no salão de chá do Plaza Hotel)
...eu estava indo de um lugar para o outro, caminhando tanto pela calçada quanto pela grama. Dava preferência à grama pois usava uns sapatos ingleses com cravos de borracha na sola que viviam grudando no chão liso. Eu também vestia uma saia xadrez nova que levantava ligeiramente com o vento e, sempre que isso acontecia, as bandeiras vermelhas, brancas e azuis diante de todas as casas se retesavam e faziam um tut-tut-tut-tut em desaprovação.
A bandeira mais ampla de todas e o gramado mais extenso eram os da casa de Daisy Fay. Tinha apenas dezoito anos, dois a mais do que eu, e era de longe a garota mais popular de Louisville. Costumava vestir-se de branco e tinha um pequeno conversível da mesma cor. O telefone tocava o dia todo, e os excitados oficiais de Camp Taylor7 viviam solicitando o privilégio de monopolizá-la naquela noite. “Nem que seja por uma hora!”
Naquela manhã, ao me aproximar da casa de Daisy, vi que o conversível branco se encontrava fora da garagem, e ela estava sentada nele com um tenente que eu nunca havia visto. Estavam tão entretidos entre si que não me viram até que eu chegasse a menos de dois metros de distância. “Olá, Jordan”, ela disse de repente. “Por favor, venha cá.”
Senti-me lisonjeada por ela querer falar comigo, pois, de todas as garotas mais velhas, era Daisy quem eu mais admirava. Ela perguntou se eu estava indo para a Cruz Vermelha fazer curativos. Eu estava. Nesse caso, será que eu poderia avisar que hoje ela não iria? Enquanto Daisy falava, o oficial olhava para ela do jeito que todas as mocinhas gostariam de ser olhadas algum dia, e por me parecer tão romântico é que me lembro desse incidente até hoje. Seu nome era Jay Gatsby, e não tornei a vê-lo nos quatro anos seguintes. Mesmo ao encontrá-lo em Long Island, não notei que era o mesmo homem.
Isso foi em 1917. No ano seguinte, eu mesma arrumei uns namorados e comecei a disputar campeonatos, de modo que já não via Daisy com tanta frequência. Ela costumava sair com uma turma um pouco mais velha, isso quando saía com alguém. Havia uma história louca circulando a seu respeito: dizia-se que, numa noite de inverno, a mãe a encontrara fazendo as malas para ir a Nova York despedir-se de um soldado que estava indo para a guerra. Ela foi naturalmente proibida de ir, mas passou várias semanas sem falar com os pais. Depois disso, nunca mais saiu com soldados, apenas com alguns rapazes da cidade, míopes e de pés chatos, que não conseguiram entrar no Exército.
No outono seguinte, ela estava novamente alegre, mais do que nunca. Ganhou uma festa de debutante após o armistício, e em fevereiro estava supostamente noiva de um sujeito de New Orleans. Em junho, casou-se com Tom Buchanan, de Chicago, com tal pompa e circunstância como jamais se vira em Louisville. Ele veio acompanhado de uns cem convidados em quatro veículos privativos, alugou um andar inteiro do hotel Muhlbachg e, na véspera da cerimônia, presenteou-a com um colar de pérolas avaliado em trezentos e cinquenta mil dólares.
Eu fui dama de honra. Entrei no quarto de Daisy meia hora antes do jantar de noivado e a encontrei deitada na cama com seu vestido florido, tão bela quanto as noites de junho. E tão bêbada quanto um gambá. Tinha uma garrafa de Sauterne numa mão e uma carta na outra.
— Me dê os parabéns — ela resmungou. — Eu nunca tinha ficado bêbada antes, mas, nossa, como é bom.
— O que houve, Daisy? — Eu estava verdadeiramente assustada; nunca tinha visto uma garota naquele estado.
— Aqui, querida. — Ela vasculhou a lixeira ao lado da cama e sacou de dentro um colar de pérolas. — Leve isto aqui lá embaixo e devolva a quem quer que seja o dono. Diga a todo mundo que Daisy mudou de ideia. Diga assim: “A Daisy mudou de ideia!”.
Ela se pôs a chorar, e chorou e chorou. Eu saí às pressas e topei com a criada da mãe de Daisy, que me ajudou a trancar a porta e dar-lhe um banho frio. Ela não queria largar a carta. Levara consigo à banheira e a espremera até virar uma bola encharcada, só me permitindo deixá-la sobre a saboneteira quando notou que o papel estava se desfazendo como flocos de neve.
Ela não disse mais uma palavra. Nós lhe demos amônia para cheirar, botamos gelo em sua testa e a enfiamos de volta no vestido, de modo que, meia hora depois, quando saímos do quarto, as pérolas estavam de novo em seu pescoço e o incidente ficara para trás. No dia seguinte, às cinco da tarde, ela se casou com Tom Buchanan sem ao menos pestanejar, e partiu para uma viagem de três meses pelos Mares do Sul.
Topei com eles em Santa Barbara após a lua de mel, e acho que nunca vi uma garota tão louca pelo marido. Quando ele saía da sala por um minuto, ela olhava ao redor com apreensão e perguntava: “Cadê o Tom?”, revestindo-se de uma expressão completamente distraída até vê-lo retornando. Ela se deitava na areia com a cabeça pousada no colo de Tom, acariciando seu rosto e o observando com um prazer insondável. Era tocante vê-los juntos — aquilo me fazia rir de um jeito contido e fascinado. Isso foi em agosto. Uma semana depois que eu deixei Santa Barbara, Tom bateu numa caminhonete na estrada de Ventura e perdeu uma das rodas dianteiras do carro. A garota que estava com ele também saiu nos jornais, pois havia quebrado o braço — era uma das camareiras do Santa Barbara Hotel.
Em abril, Daisy teve uma filha e eles foram morar na França por um ano. Encontrei-os numa primavera em Cannes e depois em Deauville, e então eles voltaram a Chicago com a intenção de se estabelecer por lá. Daisy era popular em Chicago, como você sabe. Eles andavam com uma turma leviana, todos jovens, ricos e loucos, mas ela saiu de lá com a reputação absolutamente irretocável. Talvez porque não bebesse. É uma grande vantagem não beber quando se está entre pessoas que exageram na dose. Você consegue refrear a língua e, melhor ainda, programar qualquer pequena transgressão sua para o momento exato em que todos estão alterados demais para reparar ou dar importância. Talvez Daisy nunca tivesse traído Tom — e, ainda assim, havia algo em sua voz...
Bem, há mais ou menos umas seis semanas ela ouviu o nome Gatsby pela primeira vez em anos. Foi quando lhe perguntei — lembra? — se você conhecia o Gatsby que morava em West Egg. Depois que você saiu, ela foi ao meu quarto, me acordou e perguntou: “Que Gatsby?”, e, quando o descrevi, sonolenta, ela anunciou com a voz mais estranha do mundo que deveria ser o mesmo homem que ela conhecera. Só então relacionei esse Gatsby com o oficial sentado no conversível de Daisy.
Quando Jordan Baker terminou de me contar essa história, já havíamos deixado o Plaza fazia meia hora e estávamos passeando numa carruagem pelo Central Park. O sol havia se posto por trás dos imponentes edifícios onde viviam as celebridades do cinema na área das West Fifties, e as límpidas vozes das crianças, que já se agrupavam feito grilos na grama, se erguiam através do cálido crepúsculo:

Eu sou o sheik da Arábia.
O seu amor me pertence.
À noite, quando você estiver dormindo,
Vou me esgueirar no seu quarto...h

— Que coincidência esquisita — eu disse.
— Não foi coincidência nenhuma.
— Como assim?
— Gatsby comprou aquela casa pois sabia que Daisy estava do outro lado da baía.
Então não eram só as estrelas que ele cobiçara naquela noite de junho. Ele se revelara totalmente para mim, saído de repente do útero de seu esplendor despropositado.
— Gatsby quer saber — prosseguiu Jordan — se você convidaria Daisy para jantar em sua casa e o deixaria dar uma passada por lá.
A simplicidade do pedido me comoveu. Ele havia esperado cinco anos e comprado uma mansão onde partilhava a luz das estrelas com mariposas ocasionais — tudo para poder, um dia, dar uma passada no quintal de um estranho.
— E eu precisava saber de tudo isso para um favor tão pequeno?
— Ele está com medo porque esperou demais. Pensou que você pudesse ficar ofendido. Você vê, no fundo ele não é tão durão.
Alguma coisa me incomodava.
— Por que não pediu para você promover o encontro?
— Ele quer que Daisy veja a mansão — ela explicou. — E a sua casa é bem ao lado.
— Ah!
— Acho que ele esperava vê-la numa de suas festas, em alguma noite — prosseguiu Jordan —, mas ela nunca apareceu. Então ele passou a perguntar casualmente às outras pessoas se alguém a conhecia, e eu fui a primeira que ele encontrou. Foi naquela noite em que ele me mandou chamar no baile, e você precisa ver o quanto ele me enrolou até ir direto ao ponto. É claro que eu sugeri de imediato um almoço em Nova York, e achei que ele enlouqueceria de vez: “Não quero ir longe demais!”, ele repetia. “Quero vê-la o mais próximo de casa.”
— Quando eu disse que você era amigo íntimo de Tom, ele quase desistiu. Não sabia muita coisa a respeito de Tom, embora tenha assinado um jornal de Chicago por vários anos só pela chance de poder topar com o nome de Daisy.
Já havia escurecido e, ao passarmos por baixo de uma pequena ponte, pousei meu braço sobre o ombro dourado de Jordan, puxei-a em minha direção e a convidei para jantar. De repente, eu não estava mais pensando em Daisy e Gatsby, mas naquela moça clara, forte e determinada, que tinha de lidar com um ceticismo universal e que se alojava confortavelmente no círculo dos meus braços. Uma frase ressoou em meus ouvidos numa espécie de excitação impetuosa: “Existem apenas os perseguidos e os perseguidores, os ocupados e os fatigados”.
— E Daisy precisa ter alguma coisa na vida — murmurou Jordan para mim.
— Ela quer se encontrar com Gatsby?
— Não é para ela ficar sabendo. Gatsby não quer que ela saiba. Você só tem que convidá-la para tomar chá.
Passamos por uma barreira de árvores escuras e depois pela fachada da rua 59, um quarteirão de luzes pálidas e delicadas que se refletiam através do parque. Ao contrário de Gatsby e de Tom Buchanan, eu não tinha nenhuma garota dos sonhos para projetar em todas as cornijas e letreiros luminosos, então puxei a garota ao meu lado, apertando-a em meus braços. Sua boca exausta e desdenhosa arriscou um sorriso, então puxei-a novamente, dessa vez para junto do meu rosto.
a Calças curtas do início do século xx que geralmente passavam um pouco dos joelhos e eram utilizadas com meias longas.
b Termo que designa bebida alcoólica adulterada ou de qualidade inferior.
c Pátio central do Trinity College, em Oxford.
d A ponte Queensboro atravessa o East River, ligando o distrito de Queens a Manhattan. Ela cruza a antiga ilha de Blackwell.
e Localizada no East River, a ilha de Blackwell é hoje conhecida como Roosevelt Island. Lá houve uma penitenciária (1832-1935), um manicômio e inúmeros hospitais.
f “Um licação nas necócios” e “Oggsford”, em vez de “uma ligação nos negócios” e “Oxford”, são tentativas de emular o sotaque judeu nova-iorquino.
g Alusão ao hotel Seelbach, fundado em Louisville em 1905.
h “Sheik of Araby”, canção de 1921 composta por Harry B. Smith e Francis Wheeler (letra) em parceria com Ted Snyder (melodia). Foi inspirada no filme O sheik (1921), com Rodolfo Valentino no papel principal. Tornou-se um standard popular de jazz e até os Beatles gravaram uma versão.

5
Naquela noite, ao voltar para West Egg, pensei por um instante que minha casa estava pegando fogo. Eram duas da madrugada e toda a borda da península ardia de luz, conferindo um ar de irrealidade ao bosque e lançando faíscas alongadas sobre os fios elétricos que margeavam a estrada. Virando a esquina, vi que a claridade vinha da casa de Gatsby, iluminada do porão ao teto.
De início, pensei que se tratava de mais uma festa, ou de uma multidão enlouquecida que decidira brincar de “esconde-esconde” ou de “sardinha em lata”a com a casa inteira disponível. Mas não havia barulho. Só o vento nas árvores, que soprava os fios elétricos e fazia as luzes oscilarem repetidas vezes, como se a casa estivesse piscando para a escuridão. Enquanto meu táxi sumia de vista, Gatsby veio andando pelo gramado em minha direção.
— A sua casa está parecendo a Feira Mundial — eu disse.
— Você acha? — ele voltou os olhos para trás, distraído. — Estava dando uma arejada nos quartos. Vamos para Coney Island,1 meu velho. Com o meu carro.
— Já está tarde.
— Bem, e se a gente desse um mergulho na piscina? Passei o verão inteiro sem usá-la.
— Preciso ir dormir.
— Certo.
Ele esperou, olhando-me com reprimida sofreguidão.
— Falei com a senhorita Baker — eu disse, após um instante. — Vou ligar amanhã para Daisy e convidá-la para vir tomar um chá.
— Muito bem — ele retrucou, descuidado. — Não quero incomodá-lo.
— Que dia é melhor para você?
— Que dia é melhor para você? — ele me corrigiu imediatamente. — Não quero incomodá-lo, você sabe.
— Que tal depois de amanhã?
Ele refletiu por um instante. E então, com relutância:
— Preciso mandar cortar a grama.
Ambos olhamos para o quintal: havia uma linha bem definida onde terminava o meu denso matagal e começava o jardim dele, mais escuro e bem cuidado. Presumi que ele estivesse se referindo ao meu espaço.
— E tem mais uma coisinha — ele disse de maneira incerta, e então hesitou.
— Você prefere adiar para mais tarde? — perguntei.
— Ah, não é isso. Quer dizer... — Ele foi tateando diversas formas de iniciar a frase. — É que, eu fico pensando... veja bem, meu velho, você não ganha muito dinheiro, não é?
— Não muito.
Aquilo pareceu encorajá-lo e ele prosseguiu com mais segurança.
— Foi o que imaginei, se me perdoa a... Você sabe, eu gerencio um pequeno negócio nas horas vagas, uma espécie de bico, entende? E pensei que, se você ganha pouco... você vende títulos, não é, meu velho?
— Estou tentando.
— Bem, isso pode interessá-lo. Não tomaria muito do seu tempo e você poderia fazer um bom dinheiro. Acontece que é uma coisa meio confidencial.
Hoje percebo que, em outras circunstâncias, essa conversa poderia ter sido um ponto de virada em minha vida. Porém, como se tratava de uma oferta óbvia e grosseiramente ligada a um serviço a ser prestado, não tive saída senão refutá-la ali mesmo.
— Estou ocupado demais — respondi. — Fico muito agradecido, mas não posso me comprometer com outros trabalhos.
— Você não teria que fazer nenhum negócio com o Wolfshiem. — Evidentemente ele achava que eu estava me esquivando da tal “licação nas necócios” mencionada no almoço, mas lhe garanti que não era o caso. Ele aguardou mais um instante, na esperança de que eu puxasse conversa, mas eu estava absorto demais para reagir, de modo que ele voltou desanimadamente para casa.
Aquela noite me deixara tonto e feliz; devo ter caído num sono profundo assim que entrei em casa. Dessa forma, não sei se Gatsby foi ou não a Coney Island, ou por quantas horas ele continuou “dando uma arejada” nos quartos enquanto sua casa resplandecia ostensivamente. Na manhã seguinte, telefonei para Daisy do escritório e convidei-a para tomar um chá em casa.
— Não traga o Tom — avisei.
— O quê?
— Não traga o Tom.
— Quem é “Tom”? — ela perguntou inocentemente.
No dia combinado, caía uma chuva torrencial. Às onze da manhã, um homem de capa de chuva arrastando um cortador de grama bateu à minha porta e disse que o sr. Gatsby o havia mandado aparar a grama. Percebi então que esquecera de chamar a empregada finlandesa para servir o chá, então fui ao centro de West Egg para procurá-la entre as encharcadas vielas caiadas e comprar algumas xícaras, limões e flores.
As flores eram desnecessárias, pois às duas da tarde Gatsby me mandou uma verdadeira estufa com infinitos vasos. Uma hora depois, a porta se abriu nervosamente e Gatsby irrompeu em minha casa, metido num terno branco de flanela, camisa prateada e gravata dourada. Ele estava pálido e havia marcas escuras de insônia debaixo de seus olhos.
— Está tudo em ordem? — ele perguntou de imediato.
— A grama ficou boa, se é o que você quer saber.
— Que grama? — ele indagou, com o olhar vazio. — Ah, a grama do jardim.
Ele olhou pela janela mas, a julgar por sua expressão, não acho que tenha visto coisa alguma.
— Ficou ótimo — ele observou vagamente. — Li no jornal que a chuva deve dar trégua lá pelas quatro horas. Acho que foi no The Journal.2 Você tem tudo o que precisa em termos de... em termos de chá?
Conduzi-o até a despensa, onde encarou minha finlandesa com ar de reprovação. Juntos examinamos os doze bolinhos de limão da confeitaria.
— Acha que são suficientes? — perguntei.
— É claro, claro! Estão ótimos... — ele acrescentou, de forma vazia —, meu velho.
A chuva amainou por volta das três e meia e converteu-se em uma névoa úmida, através da qual magras gotas caíam feito orvalho. Gatsby folheou com o olhar perdido um volume da Economia, de Clay,3 sobressaltando-se com os passos da finlandesa que faziam tremer o chão da cozinha e espiando ocasionalmente através das janelas embaçadas, como se uma série de acontecimentos invisíveis, porém alarmantes, estivesse em curso lá fora. Por fim, ele se levantou e anunciou, numa voz hesitante, que estava indo embora.
— Mas por quê?
— Ninguém vai aparecer para o chá. Já está tarde! — Ele consultou o relógio como se tivesse um compromisso urgente em qualquer lugar. — Não posso esperar o dia todo.
— Não seja bobo, faltam só dois minutos para as quatro.
Ele sentou com ar de infelicidade, como se o tivessem empurrado, e naquele momento ouvimos um som de motor dobrando a esquina. Ambos nos levantamos e, um tanto angustiado, saí para o quintal.
Sob as gotejantes e desnudas árvores de lilases, um carro avançava pela entrada. Parou. O rosto de Daisy, inclinado sob um chapéu de três pontas cor de lavanda, ergueu-se para mim com um sorriso alegre e arrebatador.
— É aqui mesmo que você mora, meu querido? Tem certeza aboluta?
A reverberação excitante de sua voz caiu como um tônico em meio a toda aquela chuva. Por um instante, tive que seguir unicamente seu som, de cima a baixo, só com os ouvidos, antes de poder distinguir as palavras. Uma mecha de cabelo úmido caía sobre seu queixo como um borrifo de tinta azul, e sua mão estava coberta de gotas translúcidas quando a ajudei a sair do carro.
— Você está apaixonado por mim — ela sussurrou em meu ouvido —, ou por que me pediria que viesse sozinha?
— É o segredo do castelo de Rackrent.4 Diga ao seu chofer para ir embora e voltar daqui a uma hora.
— Volte daqui a uma hora, Ferdie. — Então, com um sussurro grave: — Seu nome é Ferdie.
— E a gasolina, lhe afeta o nariz?
— Acho que não — ela respondeu inocentemente. — Por quê?
Entramos na casa. Para minha imensa surpresa, a sala estava vazia.
— Bem, isso é engraçado — exclamei.
— O que é engraçado?
Ela se virou ao ouvir uma batida leve e respeitosa na porta da frente. Fui abrir. Gatsby, pálido feito a morte, as mãos afundadas nos bolsos do casaco, estava parado sobre uma poça d’água e olhava tragicamente no fundo dos meus olhos.
Com as mãos ainda nos bolsos, ele passou reto por mim e seguiu para o vestíbulo, então se virou de repente como se estivesse na corda bamba e desapareceu na sala. Não era nem um pouco engraçado. Ciente das fortes batidas do meu coração, empurrei a porta em direção à chuva cada vez mais densa.
Por meio minuto, não houve ruído algum. Então ouvi um murmúrio abafado e parte de uma risada, seguidos pela voz de Daisy em tom claramente artificial:
— Que felicidade revê-lo!
Uma pausa; ela durou uma eternidade. Eu não tinha o que fazer no vestíbulo, então fui até a sala.
Gatsby, as mãos ainda nos bolsos, reclinava-se sobre o consolo da lareira numa atitude tensa e forçada de quem aparenta estar à vontade, quase entediado. Sua cabeça pendia para trás de tal forma que se apoiava num relógio quebrado sobre a lareira, e dessa posição ele encarava Daisy com os olhos agitados. Ela estava sentada, assustada porém graciosa, na ponta de uma cadeira dura.
— Já nos conhecíamos — murmurou Gatsby. Seus olhos me fitaram por um instante e seus lábios se afastaram numa fracassada tentativa de rir. Por sorte, o relógio escolheu aquele segundo para oscilar perigosamente à pressão de sua cabeça, de modo que ele se virou e o apanhou com as mãos trêmulas, colocando-o de volta no lugar. Então se sentou rigidamente com o cotovelo no braço do sofá e o queixo apoiado na mão.
— Desculpe-me pelo relógio — ele disse.
Meu próprio rosto foi tomado por um intenso rubor tropical. Não conseguia evocar um único lugar-comum dos milhares que povoavam a minha mente.
— É um relógio velho — eu respondi, de forma idiota.
Por um instante, pareceu-nos que ele havia de fato se despedaçado no chão.
— Não nos vemos há muitos anos — disse Daisy, com o tom de voz mais prosaico possível.
— Vai fazer cinco anos em novembro.
O caráter automático da resposta de Gatsby nos deteve por ao menos um minuto. Desesperado, propus que me ajudassem com o chá na cozinha, ao que ambos se levantaram, quando então a demoníaca finlandesa chegou com tudo pronto numa bandeja.
Em meio à bem-vinda confusão de xícaras e bolos, estabeleceu-se certa decência física entre nós. Gatsby foi refugiar-se num canto e, enquanto eu e Daisy conversávamos, ficou nos observando diligentemente com os olhos tensos e infelizes. Contudo, como a calma não era um fim em si, inventei uma desculpa na primeira oportunidade e me levantei.
— Aonde você vai? — perguntou Gatsby, imediatamente alarmado.
— Já volto.
— Preciso falar uma coisa com você antes.
Ele me seguiu precipitadamente até a cozinha, fechou a porta e murmurou: “Oh, meu Deus”, de um jeito infeliz.
— O que foi?
— É um grande erro — ele disse, negando enfaticamente com a cabeça —, um erro terrível.
— Você está constrangido, só isso. — E por sorte acrescentei: — Daisy também está constrangida.
— É mesmo? — ele perguntou, incrédulo.
— Tanto quanto você.
— Não fale tão alto.
— Você está agindo como um garoto — exclamei, impaciente. — Não só isso, mas está sendo grosseiro. Deixou Daisy sozinha na sala.
Ele ergueu a mão para interromper minhas palavras, olhou-me com uma reprovação antológica e, abrindo a porta com cuidado, voltou para a sala.
Eu saí pelos fundos — exatamente como Gatsby havia feito em sua volta nervosa ao redor da casa, meia hora antes — e corri para uma enorme árvore escura e nodosa, cuja folhagem compacta servia como guarda-chuva. Estava outra vez chovendo torrencialmente, e meu terreno irregular, com a grama bem aparada pelo jardineiro de Gatsby, abundava em pequenos brejos lamacentos e pântanos pré-históricos. Não havia nada para olhar dali, exceto a mansão gigantesca de Gatsby, então fiquei observando-a por meia hora, como Kant diante de seu campanário de igreja.5 Um cervejeiro a construíra no auge de seu desvario, havia dez anos, e aparentemente se oferecera para pagar cinco anos de impostos de todos os casebres vizinhos caso os proprietários cobrissem seus telhados de palha. Talvez a recusa geral tenha destruído seu sonho de Estabelecer Família — e precipitado seu rápido declínio. Seus filhos venderam a casa com a coroa de flores ainda à porta. Os americanos, embora almejem (e até cobicem) a condição de servos, sempre abominaram a condição de camponeses.
Meia hora depois, o sol voltou a brilhar e o automóvel do dono da mercearia contornou a entrada de Gatsby com os ingredientes para o jantar dos empregados — do qual ele por certo não experimentaria uma só garfada. Uma criada tornou a abrir as janelas superiores da casa, aparecendo por um instante em cada uma delas e, debruçada no grande balcão central, cuspiu pensativamente no jardim. Era hora de voltar. Enquanto chovia, tive a impressão de ouvir o murmúrio de suas vozes erguendo-se de quando em quando em arroubos de emoção. Mas, quando parou de chover, senti que o silêncio havia tomado a casa também.
Entrei — após fazer todo barulho possível na cozinha, faltando apenas empurrar o fogão —, mas não acredito que eles tenham se dado conta. Estavam sentados um em cada ponta do sofá, entreolhando-se como se uma pergunta tivesse sido proferida, ou estivesse no ar, e não havia mais vestígios de constrangimento. O rosto de Daisy estava borrado de lágrimas; quando me viu entrar, ela deu um salto e passou a enxugá-lo com um lenço diante do espelho. O rosto de Gatsby, porém, deixava transparecer uma mudança desconcertante. Ele literalmente ardia; sem emitir uma só palavra ou gesto de júbilo, irradiava uma felicidade nova que preenchia toda a sala.
— Ah, olá, meu velho — ele disse, como se não me visse há anos. Pensei por um momento que fosse me cumprimentar.
— Parou de chover.
— É mesmo?
Quando ele se deu conta do que eu dizia — que havia gotas cintilantes de sol por toda a sala —, sorriu feito um meteorologista, feito um eufórico patrono da luz recorrente, e transmitiu a notícia a Daisy:
— O que me diz disso? Parou de chover.
— Fico feliz, Jay. — Sua voz, de uma beleza dolorida e nostálgica, se referia unicamente àquela alegria inesperada.
— Quero que você e Daisy venham à minha casa — ele disse. — Gostaria de lhe mostrar onde vivo.
— Tem certeza de que quer que eu vá?
— Claro que sim, meu velho.
Daisy subiu para lavar o rosto — e só tarde demais me lembrei, humilhado, das minhas toalhas —, enquanto Gatsby e eu esperávamos no gramado.
— Minha casa está bonita, não acha? — ele perguntou. — Veja como a fachada inteira reflete a luz do sol.
Eu concordei, dizendo que era esplêndida.
— É. — Seus olhos a examinaram em cada porta arqueada e torre retangular. — Levei três anos juntando dinheiro para comprá-la.
— Pensei que você tinha herdado a sua riqueza.
— E herdei, meu velho — ele disse mecanicamente —, mas perdi a maior parte no grande pânico: o pânico da guerra.
Creio que ele mal sabia do que estava falando, pois quando lhe perguntei qual era seu ramo de negócios, ele respondeu: “Isso é assunto meu”, antes de perceber que não era uma resposta apropriada.
— Ah, já trabalhei em várias áreas — corrigiu-se. — Estive no ramo farmacêutico e depois trabalhei com petróleo. Mas atualmente não estou em nenhum deles. — Ele me olhou com mais atenção. — Quer dizer que você reconsiderou a proposta que lhe fiz aquela noite?
Antes que eu pudesse responder, Daisy surgiu à porta e as duas fileiras de botões de seu vestido brilharam à luz do sol.
— É aquela coisa enorme ali atrás? — ela exclamou, apontando para a mansão de Gatsby.
— Gostou?
— Adorei, mas não entendo como você pode morar ali sozinho.
— Está sempre cheia de pessoas interessantes, dia e noite. Pessoas que fazem coisas interessantes. Pessoas famosas.
Em vez de tomar o atalho pelo estreito, descemos a rua e entramos pelo portão principal. Com gemidos de encanto, Daisy admirou esse ou aquele aspecto da silhueta feudal contra o céu, admirou o jardim, o perfume intenso dos narcisos, o perfume fresco dos pilriteiros e das ameixas-japonesas, e o perfume pálido e dourado das valerianas vermelhas. Era estranho chegar à escadaria de mármore e não ouvir o farfalhar de vestidos subindo e descendo, nem outro barulho além do canto dos pássaros.
Lá dentro, ao caminharmos pelas salas de música à la Maria Antonieta e pelos salões de estilo Restauração, tive a impressão de que havia convidados escondidos atrás de cada sofá e mesa, com ordens de respirar em silêncio até terminarmos de passar. Quando Gatsby fechou a porta da “Biblioteca Merton College”,b podia jurar que ouvi o homem dos Olhos de Coruja dar uma gargalhada fantasmagórica.
Fomos para o andar de cima. Percorremos uma série de dormitórios de época envoltos em seda cor-de-rosa e lavanda, repletos de flores frescas, além de quartos de vestir, salas de bilhar e toaletes com banheira — então entramos num quarto onde um homem desgrenhado de pijama fazia exercícios vigorosos no chão. Era o sr. Klipspringer, o “hóspede”. Eu o tinha visto de manhã perambulando na praia com um ar nervoso. Por fim, chegamos ao aposento de Gatsby, uma suíte com escritório6 onde nos sentamos e bebemos uma taça de Chartreuse que ele tirou de um armário embutido na parede.
Ele não havia tirado os olhos de Daisy um segundo sequer, e acho que estava reavaliando sua casa a partir das reações expressas em seus olhos amáveis. Às vezes, Gatsby também admirava seus bens com um ar deslumbrado, como se, na presença real e estarrecedora de Daisy, nada disso fosse verdadeiro. A certa altura, ele quase tropeçou num lance de escadas.
Seu quarto era o mais simples de todos — exceto pela penteadeira, que tinha artigos de toucador feitos de ouro maciço. Com imenso deleite, Daisy apanhou a escova e penteou seus cabelos, ao que Gatsby sentou, esfregou os olhos e deu risada.
— É a coisa mais engraçada, meu velho — ele disse, hilariante. — Eu não consigo... Quando tento...
Gatsby havia claramente passado por dois estados de espírito e agora entrava num terceiro. Depois do constrangimento e da alegria irracional, ele se enchia de perplexidade com a presença dela. Passara tanto tempo pensando naquela ideia, sonhando-a em todos os detalhes e cobiçando-a com unhas e dentes, por assim dizer, que atingira certa intensidade inconcebível. Agora, em contrapartida, ele se prostrava como um relógio exaurido.
Recuperando-se em um salto, ele abriu as portas de um guarda-roupa pesado e mostrou seus ternos, roupões e gravatas amontoados, e suas camisas empilhadas às dúzias, feito tijolos.
— Há um sujeito na Inglaterra que compra roupas para mim. Ele me envia uma seleção de peças a cada começo de estação, na primavera e no outono.
Gatsby apanhou uma pilha de camisas e começou a atirá-las em nossa direção, uma a uma, camisas finas de linho, de seda pura e de flanela, que perdiam a dobra ao cair e cobriam a mesa numa bagunça multicolorida. Enquanto as admirávamos, ele trazia mais peças e aquela montanha farta e macia ia crescendo — camisas listradas, com arabescos e quadriculadas nas cores coral, verde-maçã, lavanda e alaranjado, com monogramas em índigo. De repente, com um grito contido, Daisy afundou a cabeça nas camisas e começou a chorar copiosamente.
— São camisas bonitas — ela soluçou, a voz abafada em meio às pregas grossas de tecido. — Eu fico triste porque nunca... nunca vi camisas tão bonitas.
Depois de conhecermos a casa, pretendíamos passear pelos arredores para ver a piscina, o hidroavião e as flores de verão — mas lá fora voltara a chover, então nos resignamos e ficamos observando a superfície corrugada do estreito.
— Se não fosse pela neblina, daria para enxergar a sua casa do outro lado da baía — disse Gatsby. — Há sempre uma luz verde brilhando a noite toda na extremidade do seu cais.
Daisy tomou o braço de Gatsby, mas ele parecia absorto no que acabara de dizer. Talvez lhe ocorresse que o significado colossal daquela luz se esvaíra para sempre. Comparada à enorme distância que o separava de Daisy, a luz lhe parecera antes muito próxima, quase a ponto de tocá-la. Tão próxima quanto uma estrela da lua. Agora era de novo uma luz verde no cais. Sua coleção de objetos mágicos havia diminuído.
Comecei a andar pela sala, examinando inúmeros objetos indistintos à meia-luz. Pendurado na parede sobre a mesa, o retrato de um homem velho em trajes náuticos me chamou a atenção.
— Quem é ele?
— Esse aí? É o senhor Dan Cody, meu velho.
O nome me soou vagamente familiar.
— Ele já morreu. Era meu melhor amigo.
Havia um pequeno retrato de Gatsby aos dezoito anos, também em trajes náuticos, junto à escrivaninha — ele jogava a cabeça para trás, num gesto desafiador.
— Adorei — exclamou Daisy. — Um topete pompadour! Você nunca me disse que tinha um topete pompadour. E um iate.
— Veja isto — disse Gatsby rapidamente. — São recortes de notícias a seu respeito.
Eles ficaram lado a lado examinando os recortes. Eu estava prestes a pedir para ver os rubis quando o telefone tocou, e Gatsby atendeu.
— Sim... Bem, não posso falar agora... Não posso falar agora, meu velho... Eu disse uma cidade pequena... Ele deve saber o que é uma cidade pequena... Bem, então ele não serve para nós, se Detroit é a sua ideia de cidade pequena...
Ele desligou.
— Venha cá, rápido! — gritou Daisy junto à janela.
Ainda chovia, mas a escuridão se dissipara a oeste e havia uma onda de nuvens espumosas, douradas e róseas, sobre o mar.
— Olhe — ela sussurrou, e depois de um instante —, eu queria pegar uma dessas nuvens cor-de-rosa, colocar você nela e arrastá-lo por toda parte.
Fiz menção de partir, mas eles não quiseram nem saber; talvez minha presença os fizesse sentir mais satisfatoriamente sozinhos.
— Já sei — disse Gatsby —, vamos pedir para Klipspringer tocar piano.
Ele saiu da sala gritando “Ewing!” e retornou em poucos minutos acompanhado de um jovem constrangido e um pouco cansado, com óculos de aros grossos e cabelos loiros escassos. Ele agora estava decentemente vestido com uma camisa esporte aberta, tênis e calças de brim de um matiz nebuloso.
— Interrompemos os seus exercícios? — perguntou Daisy educadamente.
— Eu estava cochilando — exclamou o sr. Klipspringer, com um espasmo de constrangimento. — Quer dizer, eu estive cochilando. Então acordei e...
— Klipspringer sabe tocar piano — irrompeu Gatsby. — Não é, Ewing, meu velho?
— Não toco muito bem. Eu não... eu mal sei tocar. Estou totalmente sem prát...
— Vamos descer — ordenou Gatsby, apertando um interruptor. O cinza das janelas sumiu e a casa resplandeceu por inteiro.
Na sala de música, Gatsby acendeu um abajur solitário ao lado do piano. Acendeu o cigarro de Daisy com um fósforo trêmulo e sentou-se a seu lado num sofá na outra ponta da sala, onde não havia luz, exceto aquela refletida pelo piso reluzente do vestíbulo.
Quando Klipspringer terminou de tocar “The love nest”,c virou-se para trás e, desanimado, procurou Gatsby em meio à penumbra.
— Estou sem prática, como você pode ver. Como eu lhe disse, não posso tocar. Estou totalmente sem prát...
— Não fale tanto, meu velho — ordenou Gatsby. — Toque!

De manhã,
E à noite,
Não é que nos divertimos...d

Lá fora, o vento soprava forte e ouvia-se um tênue barulho de trovão ecoando pelo estreito. Todas as luzes brilhavam em West Egg; os trens elétricos, repletos de gente, voltavam para casa em meio à chuva, vindos de Nova York. Era um momento de profunda transformação humana e a excitação florescia no ar.

Uma coisa é certa, e nada mais
Os ricos ficam mais ricos e os pobres ficam mais... férteis.
Enquanto isso,
No intervalo...e

Quando levantei para me despedir, vi que a expressão de êxtase retornara ao rosto de Gatsby, embora lhe tivesse ocorrido uma vaga incerteza quanto à dimensão de sua felicidade atual. Quase cinco anos! Mesmo naquela noite, deve ter havido momentos em que Daisy não esteve à altura dos seus sonhos — não por culpa dela, mas pela vitalidade colossal de sua ilusão, que havia atingido um patamar além dela, além de tudo. Ele se rendeu a essa ilusão com uma paixão criativa, complementando-a o tempo todo, enfeitando-a com todo tipo de plumas coloridas que encontrava pelo caminho. Nem as maiores lufadas de fogo e vento seriam capazes de competir com aquilo que um homem pode guardar em seu coração etéreo.
Enquanto eu o observava, ele se aprumou de modo visível. Tomou a mão de Daisy e debruçou-se com um ímpeto de emoção, tão logo ela sussurrou algo ao seu ouvido. Creio que a voz de Daisy, com seu entusiasmo oscilante e febril, o prendia sobretudo por não conseguir ser superada em sonhos — aquela voz era uma música imortal.
Eles já não faziam caso de minha presença, porém Daisy ergueu o rosto e estendeu-me a mão; Gatsby já não tomava o menor conhecimento de mim. Olhei mais uma vez e eles me retribuíram o olhar vagamente, tomados pela intensidade da vida. Então saí da sala e desci os degraus de mármore rumo à chuva, deixando-os juntos lá dentro.
a Sardines-in-the-box é uma brincadeira similar ao esconde-esconde, só que ao contrário: em vez de uma criança procurar as outras, todas procuram uma só.
b O nome “Biblioteca Merton College” refere-se literalmente à biblioteca dessa faculdade em Oxford, mas no romance Nick a põe entre aspas para indicar um gracejo próprio ou o título que Gatsby dá à biblioteca. Talvez esse nome esteja escrito na porta.
c “The love nest” (1920), do musical de George M. Cohan, Mary. Letra de Otto Harbach e música de Louis A. Hirsch.
d “Ain’t we got fun?” (1921), foxtrote muito popular na época, composto por Richard A. Whiting (melodia), Raymond B. Egan e Gus Kahn (letra). No original: “In the morning,/ In the evening,/ Ain’t we got fun...”.
e Da mesma música. No original: “One thing’s sure and nothing’s surer/ The rich get richer and the poor get... children/ In the meantime,/ In between time...”.

6
Mais ou menos naquela época, um jovem e ambicioso repórter de Nova York bateu à porta de Gatsby perguntando se ele tinha algo a dizer.
— Algo a dizer sobre o quê? — perguntou Gatsby educadamente.
— Ora, uma declaração qualquer que você queira fazer.
Descobriu-se, após cinco confusos minutos, que o jornalista ouvira o nome de Gatsby na redação, relacionado a um contexto que ele não podia revelar ou não compreendera de todo. Aquele era seu dia de folga e, com louvável iniciativa, havia saído para “apurar”.
Era uma aposta aleatória, e ainda assim o instinto do repórter estava certo. A notoriedade de Gatsby, difundida pelas centenas de pessoas que se beneficiaram de sua hospitalidade e se tornaram, portanto, autoridades em seu passado, havia crescido ao longo do verão até que ele ficasse a um passo de se tornar notícia. Lendas contemporâneas como a do “oleoduto subterrâneo até o Canadá”1 se vinculavam a ele, e havia um insistente boato de que ele não morava numa casa, mas num bote que parecia uma casa e fora transportado às escondidas ao longo do estreito de Long Island. Por que exatamente essas invenções eram motivo de orgulho para James Gatz, de North Dakota, não é fácil dizer.
James Gatz — era esse o seu nome verdadeiro, ao menos oficialmente. Ele decidira mudá-lo aos dezessete anos, no momento específico que marcava o início de sua carreira — quando viu o iate de Dan Cody baixar âncora na parte mais traiçoeiramente rasa do lago Superior. Era James Gatz que perambulava na praia aquela tarde, metido num blusão verde rasgado e calça de brim, mas foi Jay Gatsby que pediu um bote emprestado, encostou no Tuolomee e informou Cody que uma ventania iria apanhá-lo e destroçá-lo dali a meia hora.
Suponho que ele já tinha escolhido o nome havia tempos, mesmo então. Seus pais eram fazendeiros preguiçosos e fracassados — sua imaginação nunca os reconhecera como pais. A verdade era que Jay Gatsby de West Egg, Long Island, havia saído da própria concepção platônica de si mesmo. Ele era um filho de Deus — frase que, se de fato significava alguma coisa, era exatamente isso — e devia ocupar-se dos negócios de seu Pai,a a serviço de uma beleza vasta, vulgar e libertina. Então ele inventou precisamente o Jay Gatsby que um menino de dezessete anos seria capaz de inventar, e foi fiel a essa concepção até o fim.
Por mais de um ano ele vagou pela costa sul do lago Superior como catador de conchas e pescador de salmão, ou qualquer outra ocupação que lhe proporcionasse comida e lugar para dormir. Seu corpo moreno e calejado suportava naturalmente aqueles dias intensos de trabalho, meio brutais, meio preguiçosos. Gatsby conheceu as mulheres muito cedo, mas elas o mimaram e por isso ele se tornou desdenhoso — das moças virgens porque eram ignorantes e das outras porque ficavam histéricas com coisas que ele, em seu egocentrismo avassalador, tomava como certas.
Mas seu coração vivia em uma turbulência constante. As ideias mais grotescas e fantásticas o perseguiam à noite, antes de dormir. Um universo de ostentação inefável se formava em sua mente enquanto os ponteiros do relógio avançavam no lavatório e a lua banhava de luz úmida suas roupas bagunçadas no chão. Todas as noites ele acrescentava algo à estrutura de suas fantasias até que a sonolência soterrasse essa cena vívida num abraço de esquecimento. Por um tempo, as ilusões lhe propiciaram um escape para a imaginação; eram uma alusão satisfatória à irrealidade da realidade, uma promessa de que a rocha do mundo estava assentada numa asa de fada.
Um pressentimento de glória futura o levara, meses antes, ao pequeno Colégio Luterano de St. Olaf, ao sul de Minnesota.b Ele passou duas semanas lá, consternado com a feroz indiferença dos professores ao seu destino estrondoso, ou mesmo ao próprio destino, e acabou por desdenhar o trabalho de zelador com o qual pagaria sua matrícula. Então se deixou levar de volta ao lago Superior, e ainda procurava uma ocupação no dia em que o iate de Dan Cody baixou âncora na área mais rasa da costa.
Cody tinha cinquenta anos e era um subproduto das jazidas de prata do Yukon, tendo participado de todas as corridas de metal desde 1875. Os negócios com o cobre de Montana que o tornaram várias vezes milionário o deixaram ainda fisicamente robusto, mas à beira da debilidade e, com isso em mente, um número infinito de mulheres tentou apartá-lo do dinheiro. As circunstâncias nada agradáveis pelas quais a jornalista Ella Kaye conseguiu dar uma de madame de Maintenon2 diante de suas fraquezas, despachando-o para o mar num iate, eram comuns na imprensa sensacionalista de 1902. Nos últimos cinco anos de vida, ele velejara por todo canto minimamente hospitaleiro da costa, antes de transformar a vida de James Gatz na baía de Little Girl.
Para o jovem Gatz, descansando sobre os remos e admirando o parapeito do convés, o iate representava toda a beleza e glamour do mundo. Acredito que ele tenha sorrido para Cody — talvez já tivesse descoberto que as pessoas gostavam dele quando sorria. Em todo caso, Cody lhe fizera algumas perguntas (uma delas trouxe à tona seu novo nome) e descobriu que era um rapaz esperto e extravagantemente ambicioso. Poucos dias depois, levou-o a Duluth e comprou-lhe um sobretudo azul, seis pares de calças de brim e um quepe de iatismo. E quando o Toulomee zarpou para as Índias Ocidentais e a Costa da Berbéria,c Gatsby foi junto.
Haviam-no alocado para uma função vaga e pessoal — enquanto esteve com Cody, foi comissário de bordo, imediato, capitão, secretário e até carcereiro, pois o Dan Cody sóbrio sabia quanta prodigalidade o Dan Cody bêbado podia cometer, e precavia-se dessas eventualidades depositando mais e mais confiança em Gatsby. O arranjo durou cinco anos, durante os quais o barco deu três voltas pelo continente. Teria durado eternamente, não fosse o fato de que Ella Kaye subiu a bordo certa noite, em Boston, e uma semana depois Dan Cody morreu de maneira inóspita.
Lembro-me de seu retrato no quarto de Gatsby: um homem grisalho e ruborizado com um rosto duro e vazio — o típico pioneiro libertino, que no passado trouxera de volta à Costa Leste a violência selvagem dos saloons e bordéis da fronteira. Era indiretamente por sua causa que Gatsby bebia tão pouco. Às vezes, em festas animadas, as mulheres esfregavam champanhe em seu cabelo; de sua parte, Gatsby adquiriu o hábito de deixar a bebida em paz.
E foi de Cody que ele herdou uma grande riqueza — um legado de vinte e cinco mil dólares que jamais chegou a receber. Nunca pôde entender os artifícios legais usados contra ele, mas o que sobrou dos milhões de Cody foi inteiramente para Ella Kaye. A ele restou apenas uma educação singularmente refinada; o vago contorno de Jay Gatsby fora agora preenchido pela substancialidade de um homem.
Gatsby me contou tudo isso bem mais tarde, mas decidi registrá-lo aqui para desfazer aqueles primeiros e loucos rumores sobre seu passado, que não eram nem minimamente verdadeiros. Além disso, ele me contou sua história num momento de confusão, quando estive a ponto de acreditar em nada e em tudo a seu respeito. Então aproveitei essa breve pausa enquanto Gatsby, por assim dizer, retomava seu fôlego, para esclarecer essa série de mal-entendidos.
Foi também uma pausa em meu envolvimento com seus problemas. Por várias semanas, não o vi nem ouvi sua voz ao telefone — passei a maior parte do tempo em Nova York, flanando com Jordan e tentando agradar a sua tia senil —, mas por fim, num domingo à tarde, resolvi passar em sua casa. Havia chegado fazia não mais que dois minutos quando um homem trouxe Tom Buchanan para tomar um drinque. Fiquei alarmado, é claro, mas o que me surpreendeu é que não houvesse acontecido antes.
Eram três pessoas e estavam a cavalo — Tom, um homem chamado Sloane e uma bela mulher em trajes marrons de ginete, que já estivera lá.
— É um prazer recebê-los — disse Gatsby, parado no pórtico. — Fico feliz com a visita.
Como se eles se importassem!
— Venham, sentem-se. Aceitam um cigarro ou charuto? — Andou rapidamente pela sala, tocando sinetas. — Trarei algo para vocês beberem em um minuto.
Ele estava profundamente afetado com a presença de Tom. Mas, em todo caso, não sossegaria até arrumar uma bebida para os convidados, presumindo de forma vaga que eles haviam vindo para isso. O sr. Sloane dispensou a bebida. Uma limonada? Não, obrigado. Um pouco de champanhe? Não quero nada, obrigado... Me desculpe...
— Fizeram um bom passeio?
— Há belas trilhas por aqui.
— Na certa os automóveis...
— É.
Movido por um impulso irresistível, Gatsby voltou-se para Tom, que havia sido apresentado como um estranho.
— Acho que já nos conhecemos, senhor Buchanan.
— Ah, sim — disse Tom num jeito rispidamente educado, mas era óbvio que não se lembrava. — É verdade. Lembro-me muito bem.
— Há mais ou menos duas semanas.
— Claro. Você estava com Nick.
— Conheço sua esposa — continuou Gatsby, de modo quase agressivo.
— É mesmo?
Tom virou-se para mim.
— Você mora por aqui, Nick?
— Na casa ao lado.
— É mesmo?
O sr. Sloane não participou da conversa e continuou largado desdenhosamente em sua poltrona; a mulher também não disse uma palavra — até que, de repente, após dois uísques com soda, se fez simpática.
— Nós todos iremos comparecer a sua próxima festa, senhor Gatsby — ela sugeriu. — O que me diz?
— Ótimo, será um prazer recebê-los.
— Que bom — disse o sr. Sloane, sem demonstrar gratidão. — Bem, acho que é hora de irmos para casa.
— Por favor, não se apressem — Gatsby os encorajou. Ele agora assumira o controle de si mesmo e gostaria de saber mais sobre Tom. — Por que vocês não... por que não ficam para o jantar? Não seria nenhuma surpresa se aparecesse por aqui mais gente de Nova York.
— Você venha jantar comigo — disse a moça com entusiasmo. — Vocês dois.
Aquilo me incluía. O sr. Sloane levantou-se.
— Vamos — ele disse, dirigindo-se apenas à esposa.
— É sério — ela insistiu. — Adoraria tê-los em casa. Temos bastante espaço.
Gatsby olhou para mim interrogativamente. Ele queria ir, mas não tinha reparado que o sr. Sloane já decidira em contrário.
— Acho que não vou poder ir — eu disse.
— Bem, então venha você — ela pediu, concentrando-se em Gatsby.
O sr. Sloane sussurrou alguma coisa ao pé do seu ouvido.
— Não ficará tarde se sairmos agora — ela insistiu, em voz alta.
— Não tenho cavalo — respondeu Gatsby. — Costumava montar na época do Exército, mas nunca cheguei a comprar um. Terei que segui-los em meu carro. Com licença, volto em um minuto.
Fomos sem Gatsby até o pórtico, onde Sloane e a mulher começaram uma discussão inflamada.
— Meu Deus, e não é que o homem vai mesmo? — exclamou Tom. — Será que não percebe que ela não quer que vá?
— Mas ela disse que quer.
— Haverá um grande jantar festivo e ele não conhece ninguém. — Tom franziu as sobrancelhas. — Fico imaginando de onde diabos ele conhece Daisy. Por Deus, posso ter ideias antiquadas, mas as mulheres de hoje em dia circulam demais para o meu gosto. Elas acabam conhecendo todo tipo de gente esquisita.
De súbito, o sr. Sloane e a mulher desceram os degraus e montaram seus cavalos.
— Vamos — disse o sr. Sloane para Tom —, estamos atrasados. Temos que ir.
E então, para mim:
— Diga a ele que não pudemos esperar, certo?
Tom e eu nos cumprimentamos, troquei um aceno indiferente com os outros dois e eles trotaram às pressas pela entrada da casa, desaparecendo sob a folhagem de agosto no exato instante em que Gatsby surgia à porta de chapéu e casaco leve.
Tom ficara claramente incomodado com as andanças solitárias de Daisy, pois no sábado seguinte ele a acompanhou à festa de Gatsby. Talvez sua presença tenha conferido àquela noite um caráter singularmente opressivo — destacando-se em minha memória das outras festas de Gatsby naquele verão. Eram os mesmos convidados, ou pelo menos o mesmo tipo de convidados, a mesma profusão de champanhe, a mesma comoção colorida e dissonante, mas havia um desconforto no ar, uma aridez penetrante que nunca esteve lá. Ou talvez eu tenha me habituado às festas e passado a aceitar West Egg como um mundo em si mesmo com suas próprias regras e celebridades, sem nada que lhe fizesse frente, pois era tudo involuntário. E agora me via forçado a analisar tudo de novo, através dos olhos de Daisy. É invariavelmente triste ver com novos olhos situações às quais você já havia despendido esforços para se ajustar.
Eles chegaram ao anoitecer e, enquanto passeávamos entre centenas de convidados entusiasmados, Daisy cantarolava baixinho.
— Essas coisas me deixam tão animada — ela sussurrou. — Se quiser me beijar em algum momento, Nick, é só dizer e ficarei feliz em atendê-lo. Basta chamar o meu nome. Ou me apresentar um cartão verde. Estou distribuindo cartões...
— Olhe bem à sua volta — sugeriu Gatsby.
— Estou olhando. É uma noite marav...
— Você precisa ver o rosto de todas essas pessoas de quem já ouviu falar.
Os olhos arrogantes de Tom perscrutaram a multidão.
— Não costumamos sair muito de casa — ele disse. — Na verdade, eu estava justamente pensando que não conheço uma única alma aqui dentro.
— Talvez conheça aquela moça. — Gatsby apontou para uma mulher estonteante que mais parecia uma orquídea, dificilmente humana, sentada com pompa sob uma ameixeira branca. Tom e Daisy olharam com aquela sensação irreal que temos ao reconhecer alguma celebridade do cinema, até então etérea.
— Ela é linda — disse Daisy.
— O homem inclinado sobre ela é seu diretor.
Ele os conduziu cerimoniosamente de grupo em grupo:
— Senhora Buchanan... e senhor Buchanan... — Após um instante de hesitação, ele acrescentou: — O jogador de polo.
— Ah, não — protestou Tom imediatamente —, de maneira alguma.
Mas era óbvio que aquela alcunha agradava a Gatsby, de modo que Tom permaneceu “o jogador de polo” pelo resto da noite.
— Nunca vi tantas celebridades — exclamou Daisy. — Gostei daquele homem — como se chama mesmo? —, aquele com o nariz azulado.
Gatsby o identificou, informando que era um pequeno produtor.
— Bem, em todo caso gostei dele.
— Eu realmente preferia não ser o jogador de polo — disse Tom amigavelmente. — Gostaria de poder olhar para todas essas pessoas famosas do alto de meu... de meu anonimato.
Daisy e Gatsby foram dançar. Lembro-me de ficar surpreso com seu jeito altivo e conservador de bailar o foxtrote — eu nunca o tinha visto dançar. Então eles caminharam até a minha casa e passaram meia hora sentados nos degraus, enquanto, a pedido de Daisy, eu permanecia de vigia no jardim.
— Para o caso de haver um incêndio ou uma inundação — ela explicou —, ou qualquer outro ato da natureza.
Tom retornou de seu anonimato quando nos organizávamos para o jantar.
— Vocês se importam se eu me sentar com aquela turma logo ali? — ele perguntou. — Tem um sujeito contando umas histórias muito engraçadas.
— Vá em frente — respondeu Daisy com alegria —, e se quiser anotar algum telefone, aqui está o meu lápis dourado...
Após um instante, ela olhou para trás e me contou que a garota era “comum, mas bonita”, e eu percebi que, excetuando-se aquela meia hora que passara a sós com Gatsby, ela não estava se divertindo.
Havíamos escolhido uma mesa particularmente bêbada. A culpa era minha — Gatsby saíra para atender o telefone e eu havia me divertido com essas mesmas pessoas duas semanas antes. Mas o que outrora me entusiasmara agora apodrecia em pleno ar.
— Está se sentindo bem, senhorita Baedeker?
A referida garota tentava, sem sucesso, tombar sobre o meu ombro. Diante da pergunta, ela se aprumou e abriu os olhos.
— Ahn?
Uma mulher robusta e letárgica, que até então tentava convencer Daisy a jogar golfe com ela no clube, falou em defesa da srta. Baedeker:
— Ah, ela está bem agora. Quando toma uns cinco ou seis coquetéis, costuma gritar desse jeito. Eu sempre falo para ela parar de beber.
— Eu parei de beber — afirmou a acusada, só por falar.
— Todo mundo ouviu os seus gritos, então eu disse para o doutor Civet: “Alguém aqui precisa da sua ajuda, doutor”.
— Ela ficou muito agradecida, tenho certeza — disse outro amigo, sem um pingo de gratidão —, mas você lhe molhou todo o vestido ao meter a cabeça dela na piscina.
— Se tem uma coisa que eu odeio é meterem a minha cabeça na piscina — balbuciou a srta. Baedeker. — Uma vez, em Nova Jersey, quase me afogaram.
— Então você devia parar de beber — retrucou o dr. Civet.
— Olha quem está falando! — gritou a srta. Baedeker agressivamente. — A sua mão está tremendo. Eu nunca deixaria você me operar!
E assim por diante. A última lembrança que tenho foi de estar com Daisy observando o diretor de cinema e sua estrela. Eles continuavam sentados sob a ameixeira branca e seus rostos quase se roçavam, separados apenas por um pálido e tênue fio de luar. Ocorreu-me que ele passara a noite toda se debruçando em sua direção só para alcançar essa proximidade, e, enquanto eu o observava, venceu o último degrau e a beijou na bochecha.
— Eu gosto dela — disse Daisy —, é muito encantadora.
Mas o resto da festa lhe desagradava — e não havia o que discutir, já que não se tratava de gestos, mas de emoções. Daisy estava chocada com West Egg, esse lugarzinho inaudito que a Broadway havia engendrado num vilarejo de pescadores de Long Island —, chocada com o vigor brutal que se ocultava por trás dos velhos eufemismos e com o destino absolutamente importuno que forçava os moradores a viver nessa espécie de atalho que levava de nada a lugar algum. Ela via naquela simplicidade algo terrível que não conseguia explicar.
Sentei-me ao lado de Tom e Daisy nos degraus, enquanto eles esperavam o carro. A frente da casa era um verdadeiro breu; a luz da porta projetava apenas um minúsculo retângulo sobre a branda e escura madrugada. Às vezes uma sombra se mexia por trás da veneziana de algum quarto de vestir, dando lugar a outra sombra e a uma infinita sucessão delas, que passavam rouge e pó de arroz diante de um espelho invisível.
— Afinal, quem é esse Gatsby? — perguntou Tom de repente. — Algum figurão contrabandista?
— Onde você ouviu isso? — perguntei.
— Em lugar nenhum. Eu presumi. Você sabe que muitos desses novos-ricos não passam de contrabandistas.
— Não o Gatsby — eu disse, sucinto.
Ele ficou calado por um instante. Esmagou com o pé uns pedregulhos da entrada da casa.
— Bem, ele deve ter se desdobrado para juntar essa turma exótica.
Uma brisa soprava a névoa cinzenta da gola de pele do casaco de Daisy.
— Pelo menos são mais interessantes do que as pessoas que nós conhecemos — ela disse, com esforço.
— Você não parecia tão interessada.
— Mas estava.
Tom deu risada e voltou-se para mim.
— Você reparou na cara que Daisy fez quando aquela moça lhe pediu que a metessem debaixo do chuveiro?
Daisy resolveu acompanhar a música com um sussurro rouco e melodioso, conferindo às palavras um novo sentido, que jamais tiveram e nunca mais terão. Quando a música se erguia, a voz de Daisy irrompia docemente em seu encalço, como fazem as vozes de contralto, e cada mudança de tom exalava no ar um pouco de sua magia cálida e humana.
— Gostaria de saber quem é Gatsby e o que ele faz — insistiu Tom. — E acho que vou conseguir descobrir.
— Posso te dizer agora mesmo — ela respondeu. — Era proprietário de drugstores, de uma rede de drugstores. Que ele mesmo construiu.
A vagarosa limusine veio avançando pela entrada.
— Boa noite, Nick — disse Daisy.
Ela desviou o olhar e procurou o topo iluminado da escadaria, onde “Three o’clock in the morning”, uma valsa simples e triste daquele ano, emanava da porta aberta. Havia, na própria informalidade da festa de Gatsby, possibilidades românticas totalmente ausentes de seu mundo. O que se passava naquela música que parecia atraí-la de volta para dentro? O que iria acontecer agora, naquelas horas indistintas e incalculáveis? Talvez surgisse algum convidado incrível, uma pessoa infinitamente rara e feita para ser admirada, uma garota radiante de verdade que pudesse, com um único olhar a Gatsby, num momento mágico de encontro, anular aqueles cinco anos de devoção inabalável.
Naquela noite, fiquei até tarde. Gatsby me pediu para esperar até que estivesse livre, e eu me demorei no jardim aguardando a volta dos remanescentes de uma inevitável festa na praia, trêmula e exaltada, após a qual as luzes se apagaram nos quartos de hóspedes. Quando ele enfim desceu a escada, sua pele bronzeada estava singularmente esticada, e seus olhos estavam brilhantes e exaustos.
— Ela não gostou — ele disse de imediato.
— É claro que gostou.
— Não gostou — ele insistiu. — Ela não se divertiu.
Ele ficou em silêncio, e reconheci sua inefável tristeza.
— Estou me sentindo distante dela — afirmou. — É difícil fazê-la entender.
— Você quer dizer, a dança?
— A dança? — Ele afastou essa hipótese com um estalar de dedos. — Meu velho, a dança não importa.
Gatsby não esperava outra coisa de Daisy senão que encarasse o marido e dissesse: “Nunca te amei”. Após apagar quatro anos com essa frase, então ambos poderiam tomar medidas mais práticas. Uma delas era que, após a separação, Daisy retornaria a Louisville com Gatsby e se casaria em sua terra natal — como se fosse há cinco anos.
— E ela não consegue entender — ele disse. — Ela costumava entender. Ficamos sentados por horas...
Ele se deteve e passou a andar de lá para cá num caminho desolado de cascas de frutas, lembranças abandonadas e flores esmagadas.
— Veja, eu não pediria tanto assim dela — arrisquei. — Não dá para repetir o passado.
— Como assim, não dá para repetir o passado? — ele gritou, incrédulo. — É claro que dá!
Ele olhou furiosamente ao redor, como se o passado estivesse escondido à sombra de sua casa, bem ao alcance da mão.
— Vou refazer tudo como era — ele disse, assentindo de um jeito decidido. — Ela vai ver só.
Gatsby falou bastante sobre o passado e entendi que desejava recuperar alguma coisa, talvez a ideia de si mesmo, que perdera ao se apaixonar por Daisy. Desde então, sua vida fora confusa e desordenada, mas, se ao menos ele pudesse retornar a um determinado ponto de partida e refazê-lo vagarosamente, talvez conseguisse descobrir o que era...
...Numa noite de outono, cinco anos antes, eles estavam descendo a rua enquanto as folhas caíam, e chegaram a um lugar onde não havia árvores e a calçada era prateada de luar. Pararam por ali e se olharam. Era uma noite fresca repleta daquela excitação misteriosa que ocorre nas duas grandes mudanças de estação. As luzes silenciosas das casas sussurravam na escuridão e havia certa inquietude nas estrelas. Com o canto dos olhos, Gatsby reparou que os blocos da calçada formavam uma escada perfeita que levava a um lugar secreto entre as árvores — que ele poderia escalar, se estivesse sozinho, e lá de cima sugar o seio da vida, absorvendo o incomparável leite de seu assombro.
Seu coração bateu mais rápido quando o rosto de Daisy se aproximou do seu. Gatsby sabia que, após beijá-la, associando para sempre suas fantasias inexprimíveis àquela respiração fugaz, seu espírito nunca mais seria divertido como o espírito de Deus. Portanto ele esperou, ouvindo por mais um segundo o som do diapasão que tinia ao tocar numa estrela. Então a beijou. Ao toque de seus lábios, ela se abriu como uma flor e a encarnação se completou.
De tudo o que ele me disse, em meio a um sentimentalismo alarmante, lembro-me de uma coisa: um ritmo elusivo, um fragmento de palavras perdidas que já ouvira antes. Por um instante, tentei formular uma frase e meus lábios se entreabriram feito os de um homem tolo, como se detidos por outros obstáculos além de um sopro de surpresa no ar. Mas não consegui dizer nada, e minha quase lembrança se fez incomunicável para sempre.
a Negócios de seu Pai: alusão ao comentário feito pelo jovem Jesus a seus pais, quando o encontram no templo discutindo com os doutores da Lei (Lucas 2:49).
b O Colégio Luterano de St. Olaf fica em Northfield, Minnesota, e foi fundado em 1874.
c No sentido literal, é a costa mediterrânea do norte da África, mas, segundo o biógrafo Matthew J. Bruccoli, o autor provavelmente se refere à Barbary Coast, zona portuária de San Francisco que se desenvolveu após a Corrida do Ouro de 1849. Era um bairro marcado pela prostituição, apostas e criminalidade, onde hoje se localizam Chinatown, North Beach, Jackson Square e o Financial District.

7
Foi quando a curiosidade acerca de Gatsby chegou ao ápice que as luzes de sua casa deixaram de se acender no sábado à noite — e, tão misteriosamente quanto começara, sua carreira de Trimálquioa chegou ao fim. Só aos poucos me atinei que os automóveis que aportavam esperançosamente à sua entrada ficavam só um minuto e iam embora a contragosto. Supondo que ele poderia estar doente, fui até lá conferir — um mordomo desconhecido de rosto repugnante me encarou da porta com um ar desconfiado.
— O senhor Gatsby está doente?
— Não. — Depois de uma pausa, ele acrescentou “senhor” de um jeito indiferente e relutante.
— Faz um tempo que não o vejo e fiquei preocupado. Diga a ele que o senhor Carraway passou por aqui.
— Quem? — ele perguntou rudemente.
— Carraway.
— Carraway. Certo, darei o recado.
E bateu a porta com força.
Minha finlandesa informou que Gatsby despedira todos os empregados da casa havia uma semana, substituindo-os por meia dúzia de outros, que nunca haviam estado no centro do vilarejo para serem subornados pelos comerciantes. Estes, ao contrário, encomendavam uma quantidade moderada de suprimentos pelo telefone. O garoto da mercearia relatou que a cozinha parecia um chiqueiro, e a opinião geral do vilarejo era que os novos serviçais não eram empregados de verdade.
No dia seguinte, Gatsby me ligou.
— Estava viajando? — perguntei.
— Não, meu velho.
— Ouvi dizer que você demitiu todos os empregados.
— Não queria ninguém que pudesse fofocar. Daisy tem vindo me visitar com frequência, durante a tarde.
Portanto, diante da reprovação de Daisy, toda a hospitalidade de Gatsby ruíra como um castelo de cartas.
— É um pessoal para quem Wolfshiem estava tentando arrumar emprego. São todos da mesma família e cuidavam de um hotelzinho.
— Entendo.
Ele estava telefonando a pedido de Daisy — será que eu toparia almoçar na casa dela no dia seguinte? A srta. Baker estaria lá. Meia hora depois, a própria Daisy me ligou e pareceu aliviada de saber que eu iria. Havia algo no ar. E, ainda assim, eu não podia acreditar que eles escolheriam essa ocasião para fazer uma cena — sobretudo o tipo de cena aflitiva que Gatsby havia esboçado no jardim.
O dia seguinte foi provavelmente o último dia tórrido daquele verão, e o mais quente de todos. Quando meu trem emergiu do túnel em direção à luz do sol, só os apitos cálidos da Companhia Nacional de Biscoitos quebraram o silêncio fervente do meio-dia. Os assentos de palha do vagão borbulhavam à beira da combustão; a mulher ao meu lado transpirava delicadamente por toda a extensão de sua blusa branca, e, enquanto o jornal empapava entre seus dedos, ela se rendeu ao calor bestial com um grito de desolação. Seu livro de bolso caiu no chão.
— Meu Deus! — ela arfou.
Eu o apanhei do chão com uma mesura exausta e o devolvi à dona, segurando-o pelas pontas com o braço esticado, a fim de deixar claro meu desinteresse pelo objeto — mas todos à minha volta, incluindo a mulher, ficaram invariavelmente desconfiados.
— Quente! — disse o condutor a alguns rostos conhecidos. — Que calor!... Quente!... Quente!... Quente!... Está quente demais para você? Está quente? Está...?
Ele me devolveu o bilhete com uma mancha escura de suor dos seus dedos. E pensar que, nesse calor, houvesse gente interessada em beijar lábios ardentes ou ter alguém para se aninhar no colo, encharcando a frente do pijama!
...Uma brisa leve soprava pelo vestíbulo da casa dos Buchanan, levando o barulho do telefone até a porta, onde eu e Gatsby aguardávamos.
— O corpo do patrão? — rugiu o mordomo ao telefone. — Me desculpe, madame, mas não podemos providenciá-lo: com esse calor do meio-dia, está quente demais para tocá-lo!
O que ele realmente disse foi:
— Sim... Sim... Vou ver.
Ele devolveu o fone ao gancho e veio em nossa direção, vagamente satisfeito, para apanhar os nossos rígidos chapéus de palha.
— A madame está esperando no salão! — ele gritou, apontando desnecessariamente a direção. Naquele calor, qualquer gesto supérfluo era uma afronta ao resguardo geral de energia.
A sala, bem revestida por uma série de toldos, era escura e fresca. Daisy e Jordan estavam estendidas num sofá enorme, como ídolos de prata oferecendo seus vestidos brancos à brisa melodiosa dos ventiladores.
— Não conseguimos nos mexer — elas disseram em uníssono.
Os dedos de Jordan, empoados de branco sobre a pele bronzeada, enlaçaram os meus por um instante.
— E o senhor Thomas Buchanan, o atleta? — perguntei.
Na mesma hora ouvi sua voz rouca, abafada e áspera ao telefone do vestíbulo.
Gatsby ficou parado no centro do tapete vermelho e lançou à sua volta um olhar fascinado. Daisy olhou para ele e soltou uma gargalhada doce e empolgada; uma fina nuvem de pó de arroz emergiu de seu peito e perdeu-se no ar.
— Parece que é a namorada de Tom ao telefone — sussurrou Jordan.
Ficamos em silêncio. A voz no vestíbulo ergueu-se, irritada:
— Muito bem, então não venderei meu carro a você... Não tenho nenhuma obrigação... e não admito que venha me incomodar com esse assunto em plena hora do almoço!
— Está segurando o botão do gancho — disse Daisy com sarcasmo.
— Não está, não — eu garanti. — É uma negociação legítima. Calhou de eu saber a seu respeito.
Tom escancarou a porta, bloqueou o espaço com seu corpo por um instante e então irrompeu na sala.
— Senhor Gatsby! — Ele estendeu sua enorme mão aberta com uma antipatia bem disfarçada. — Prazer em vê-lo, senhor... Nick...
— Prepare um drinque gelado para nós — gritou Daisy.
Assim que ele saiu da sala, Daisy se levantou, foi até Gatsby e puxou seu rosto, beijando-o na boca.
— Você sabe que eu te amo — ela sussurrou.
— Esqueceu que há uma dama presente? — disse Jordan.
Daisy olhou em volta, hesitante.
— Você pode beijar o Nick também.
— Que garota baixa e vulgar!
— Eu não me importo! — exclamou Daisy, remexendo na lareira de tijolos. Então se lembrou do calor e sentou-se culpadamente no sofá, no instante em que uma governanta de banho recém-tomado entrou conduzindo uma garotinha pelas mãos.
— Mi-nha pre-ci-o-sa — ela cantarolou, estendendo os braços. — Venha com a mamãe que te ama tanto.
Liberada pela governanta, a criança cruzou a sala correndo e afundou a cabeça timidamente no vestido da mãe.
— Mi-nha pre-ci-o-sa! A mamãe sujou de pó de arroz os seus lindos cabelos loiros? Agora fique de pé e diga: “Como vai, pessoal?”.
Um de cada vez, Gatsby e eu nos inclinamos para cumprimentar aquela pequena e relutante mão. Depois, ele seguiu olhando para a criança com surpresa. Acho que, até então, ele não havia cogitado a sério sua existência.
— Me vestiram antes do almoço — disse a criança, voltando-se avidamente para Daisy.
— É porque sua mãe queria se gabar de você. — O rosto de Daisy inclinou-se em direção àquele pescoço branco e pequeno. — Você é um sonho. O sonho lindo da mamãe.
— Eu sou — admitiu a criança com tranquilidade. — A tia Jordan também está de vestido branco.
— Você gosta dos amigos da mamãe? — Daisy virou a filha para trás, a fim de que desse uma boa olhada em Gatsby. — Eles são bonitos?
— Cadê o papai?
— Ela não se parece com o pai — explicou Daisy. — Mas se parece comigo. Tem o meu cabelo e o formato do meu rosto.
Daisy voltou a recostar-se no sofá. A governanta deu um passo à frente e tomou a mão da menina.
— Venha, Pammy.
— Até logo, querida!
Olhando para trás com relutância, a disciplinada menina aceitou a mão da governanta e foi levada para fora da sala, justamente quando Tom retornava com quatro drinques de gim e limão repletos de gelo.
Gatsby apanhou seu copo.
— Parecem muito refrescantes — afirmou, com uma tensão visível.
Bebeu em goles ávidos e exagerados.
— Li em algum lugar que o Sol está ficando mais quente a cada ano que passa — disse Tom alegremente. — Parece que em breve a Terra irá de encontro ao Sol... não, espere aí, é justamente o oposto: o Sol está ficando cada vez mais frio.
— Venha comigo — sugeriu a Gatsby em seguida —, quero lhe mostrar o lugar.
Acompanhei-os até o alpendre. Na água esverdeada e estagnada pelo calor, um único barco a vela navegava devagar em direção ao frescor do oceano. Os olhos de Gatsby o seguiram momentaneamente; ele ergueu a mão e apontou para o outro lado da baía.
— Eu vivo exatamente defronte a você.
— É verdade.
Nossos olhares baixaram em direção aos roseirais, ao gramado tórrido e às algas remanescentes dos dias de calor na costa. Lentamente, os flancos brancos do barco iam de encontro ao limite azul e frio do céu. Do lado de lá ficavam o oceano recortado e as ilhas abundantes e abençoadas.
— Aí está um bom esporte — disse Tom, assentindo com a cabeça. — Eu queria poder passar uma meia hora com ele por lá.
Almoçamos na escura sala de jantar, também protegida do calor, e engolimos toda a nossa alegria nervosa com um gole de cerveja gelada.
— O que vamos fazer hoje à tarde? — indagou Daisy — E amanhã, e nos próximos trinta anos?
— Não seja mórbida — disse Jordan. — A vida começa outra vez na brisa fresca do outono.
— Mas faz tanto calor — insistiu Daisy, à beira das lágrimas —, e tudo está tão confuso. Vamos todos à cidade!
Sua voz se debatia contra o calor, enfrentando-o e dando forma à sua falta de sentido.
— Já ouvi falar de gente que transformou um estábulo em garagem — Tom disse a Gatsby —, mas sou o primeiro a transformar uma garagem em estábulo.
— Quem quer ir à cidade? — insistiu Daisy. Os olhos de Gatsby flutuaram em sua direção. Então ela exclamou: — Ah, você parece tão calmo.
Os olhares se cruzaram e eles ficaram se olhando fixamente, sozinhos no mundo. Com esforço, ela conseguiu desviar os olhos para a mesa.
— Você sempre parece tão calmo — ela repetiu.
Daisy acabara de confessar que o amava, e Tom Buchanan percebeu. Ficou atônito. Sua boca se entreabriu e ele olhou para Gatsby, depois para Daisy, como se acabasse de reconhecer na esposa alguém de um passado distante.
— Você me lembra um homem de anúncio — ela prosseguiu inocentemente. — Sabe, esses homens de anúncio...
— Certo — interveio Tom depressa —, estou morrendo de vontade de ir à cidade. Vamos, estamos todos indo à cidade.
Ele se levantou, o olhar ainda fulminante se movendo da esposa para Gatsby. Ninguém se mexeu.
— Vamos lá! — Ele se deixara irritar um pouco. — Qual é o problema, afinal? Se vamos até a cidade, é bom sairmos agora.
Sua mão, trêmula pelo esforço de autocontrole, levou aos lábios o último gole de cerveja do copo. A voz de Daisy nos fez levantar e sair em direção à tórrida entrada de cascalho.
— Nesse exato momento? — ela protestou. — Assim, do nada? Não vamos deixar ninguém fumar um cigarro antes?
— Todo mundo fumou o que precisava durante o almoço.
— Ei, vamos nos divertir — ela implorou ao marido. — Está quente demais para brigar.
Ele não respondeu.
— Faça como quiser — ela disse. — Venha, Jordan.
As duas subiram para se aprontar enquanto nós três ficamos ali, remexendo os tórridos pedregulhos com os pés. Um contorno prateado da lua já pairava no céu a oeste. Gatsby arriscou dizer algo e mudou de ideia, mas só depois que Tom já havia se virado e o encarava com expectativa.
— Seu estábulo fica aqui perto? — perguntou Gatsby, não sem esforço.
— A uns quinhentos metros descendo a estrada.
— Ah.
Uma pausa.
— Não consigo entender essa coisa de ir à cidade — irrompeu Tom, furioso. — As mulheres enfiam essas ideias na cabeça e...
— Devemos levar algo para beber? — gritou Daisy de uma janela no andar de cima.
— Vou pegar um uísque — respondeu Tom. E foi para dentro.
Gatsby voltou-se para mim com severidade:
— Não posso dizer nada nesta casa, meu velho.
— Ela tem uma voz indiscreta — observei. — E cheia de...
Hesitei.
— A voz dela é cheia de dinheiro — ele falou de repente.
Era isso mesmo. Eu nunca tinha me dado conta. Era uma voz cheia de dinheiro — era esse o charme inesgotável e oscilante de sua fala, o ritmo, a música de címbalos... Lá no topo do palácio branco a filha do rei, a garota de ouro...
Tom saiu de casa com uma garrafa embrulhada numa toalha, seguido por Daisy e Jordan, que usavam pequenos e apertados chapéus de tecido metalizado e carregavam capas leves nos braços.
— Vamos todos no meu carro? — sugeriu Gatsby. Ele sentiu o calor do estofamento verde de couro. — Devia tê-lo deixado na sombra.
— É de câmbio normal? — perguntou Tom.
— É.
— Bem, então você leva o meu cupê e me deixa dirigir o seu carro até a cidade.
A ideia não agradou a Gatsby.
— Acho que não tem gasolina suficiente — ele objetou.
— Tem, sim — disse Tom ruidosamente. Olhou para o medidor. — E se faltar gasolina, posso parar numa drugstore. Pode-se comprar qualquer coisa numa drugstore hoje em dia.
Seguiu-se uma pausa a esse comentário que parecia sem sentido. Daisy olhou zangada para Tom, e pelo rosto de Gatsby passou uma expressão indefinida, a um só tempo decididamente desconhecida e vagamente reconhecível, como se só eu tivesse ouvido alguém descrevê-la em palavras.
— Vamos, Daisy — disse Tom, impelindo-a para o carro de Gatsby. — Eu te levo para passear neste vagão de circo.
Ele abriu a porta, mas ela se afastou do alcance de seus braços.
— Você leva Nick e Jordan. Nós iremos atrás no cupê.
Ela andou até Gatsby, tocando seu casaco com a mão. Eu, Jordan e Tom nos sentamos no banco da frente do carro de Gatsby. Tom experimentou a nova embreagem e disparamos rumo ao calor opressivo, deixando-os para trás.
— Vocês viram aquilo? — perguntou Tom.
— Vimos o quê?
Ele me fulminou com os olhos ao atinar, por fim, que eu e Jordan sabíamos o tempo todo.
— Vocês pensam que eu sou idiota, não é? — ele sugeriu. — Talvez eu seja, mas tenho... uma espécie de sexto sentido, às vezes, que me diz o que fazer. Pode ser que vocês não acreditem nessas coisas, mas a ciência...
Ele se deteve. Surpreendido por uma circunstância imediata, acabou se afastando da beira de um abismo hipotético.
— Fiz uma pequena investigação sobre esse sujeito — ele prosseguiu. — Podia ter ido mais fundo, se soubesse que...
— Quer dizer que você foi a um médium? — perguntou Jordan, bem-humorada.
— O quê? — Confuso, ele ficou nos encarando enquanto dávamos risada. — Um médium?
— Sobre Gatsby.
— Sobre Gatsby! Não, não fui. Eu disse que fiz uma pequena investigação a respeito de seu passado.
— E descobriu que ele é um homem de Oxford — completou Jordan.
— Um homem de Oxford! — Ele estava incrédulo. — Que piada! Ele usa um terno cor-de-rosa.
— Ainda assim, é um homem de Oxford.
— Só se for de Oxford, Novo México — bufou Tom, com desdém —, ou algo do tipo.
— Escute, Tom. Se você é tão esnobe, por que o convidou para almoçar? — perguntou Jordan, zangada.
— Foi Daisy que convidou. Ela o conhecia de antes do nosso casamento, Deus sabe como!
Estávamos todos irritados por haver passado o efeito da cerveja e, cientes disso, percorremos um bom trecho do caminho em silêncio. Então, quando os olhos desbotados do dr. T. J. Eckleburg despontaram no horizonte, lembrei-me do aviso de Gatsby sobre a gasolina.
— Temos o suficiente para chegar à cidade — disse Tom.
— Mas há uma oficina mecânica logo ali — protestou Jordan. — Não quero me ver em apuros neste calor de fritar.
Tom pisou nos freios a contragosto e paramos de forma abrupta e poeirenta sob o letreiro “Wilson”. Após um instante, o proprietário surgiu de dentro e encarou o automóvel com um olhar cadavérico.
— Ei, nós precisamos de gasolina! — gritou Tom com grosseria. — Acha que paramos só para admirar a vista?
— Estou doente — disse Wilson, sem se mover. — Passei o dia doente.
— Qual é o problema?
— Estou esgotado.
— Bem, eu devo abastecer sozinho? — Tom perguntou. — Você parecia muito bem ao telefone.
Com esforço, Wilson deixou a sombra e o batente da porta que lhe suportava o peso, e, respirando pesadamente, desenroscou a tampa do tanque. À luz do sol, seu rosto estava verde.
— Não quis interromper seu almoço — disse. — Mas eu estava precisando de dinheiro e fiquei imaginando o que você ia fazer com seu carro velho.
— O que você acha deste? — perguntou Tom. — Comprei-o na semana passada.
— É um belo carro amarelo — disse Wilson, estendendo a mão para pegar a bomba.
— Quer comprar?
— Quem me dera — Wilson sorriu debilmente. — Não, mas posso tirar um dinheiro com aquele outro.
— E para que você quer o dinheiro, assim de repente?
— Cansei de viver aqui. Quero ir embora. Minha esposa e eu queremos ir para o Oeste.
— Sua esposa? — exclamou Tom, surpreso.
— Faz uns dez anos que ela só fala nisso. — Ele se recostou por um momento na bomba, protegendo os olhos da claridade. — E agora ela vai comigo, mesmo se não quiser. Vou levá-la embora.
O cupê passou voando, deixando para trás uma nuvem de poeira e o vislumbre de um aceno.
— Quanto eu lhe devo? — perguntou Tom friamente.
— É que nos últimos dias fiquei sabendo de uma coisa esquisita — comentou Wilson. — É por isso que quero sair daqui. Por isso tenho te incomodado com o carro.
— Quanto eu lhe devo?
— Um dólar e vinte centavos.
Aquele calor implacável e cortante estava começando a me confundir, pois passei por maus momentos até perceber que suas suspeitas ainda não recaíam sobre Tom. Ele descobrira que Myrtle tinha uma segunda vida num mundo à parte, e o choque o adoecera fisicamente. Encarei Wilson e depois Tom, que havia feito uma descoberta similar menos de uma hora antes — e me ocorreu que não havia diferença entre os homens, de raça ou de inteligência, mais profunda do que entre doentes e sãos. Wilson estava tão doente que parecia culpado, imperdoavelmente culpado — como se houvesse acabado de engravidar uma moça pobre.
— Vou vender aquele carro para você — disse Tom. — Amanhã à tarde alguém virá trazê-lo.
O lugar já era vagamente perturbador, mesmo na claridade ofuscante da tarde, e então me virei para trás como se houvesse alguém no meu encalço. Sobre as pilhas de cinzas, os olhos gigantes do dr. T. J. Eckleburg mantinham a vigilância, mas notei, após um instante, que outros olhos nos encaravam a uns cinco metros de distância com uma intensidade peculiar.
Em uma das janelas superiores da oficina, as cortinas haviam sido afastadas e Myrtle Wilson espiava o carro lá embaixo. Estava tão absorta que nem se deu conta de que a observavam, e as emoções dominavam seu rosto, uma a uma, feito objetos numa fotografia lentamente revelada. Sua expressão era curiosamente familiar — uma expressão que eu já vira em muitas mulheres, mas em Myrtle Wilson parecia despropositada e inexplicável, até que me dei conta de que seus olhos, com um terror invejoso, não estavam fixados em Tom, mas em Jordan Baker, que ela tomara por sua esposa.
Não há confusão maior que a de um espírito simples e, conforme nos distanciávamos, Tom sentiu uma violenta pontada de pânico. Sua esposa e sua amante, até uma hora atrás seguras e invioladas, estavam fugindo intempestivamente de seu alcance. O instinto o fazia pisar no acelerador com o duplo propósito de alcançar Daisy e deixar Wilson para trás, portanto disparamos rumo a Astoria a oitenta quilômetros por hora até que, entre as vigas emaranhadas do elevado, vislumbramos o indolente cupê azul.
— Os cinemas da rua 50 são muito frescos — comentou Jordan. — Adoro Nova York nas tardes de verão, quando todo mundo está fora. Há algo de sensual, algo de maduro, como se uma porção de frutas raras fosse cair a qualquer momento em nossas mãos.
A palavra “sensual” teve o efeito de inquietar ainda mais Tom, porém, antes que ele pudesse arriscar um protesto, o cupê parou de repente e Daisy gesticulou para que encostássemos.
— Para onde vamos? — ela gritou.
— Que tal o cinema?
— Está quente demais — Daisy reclamou. — Mas vocês podem ir. Nós vamos dar uma volta e encontraremos vocês depois. — Não sem esforço, ela aguçou sua esperteza. — Encontraremos vocês em alguma esquina. Eu serei o homem fumando dois cigarros.
— Não vamos discutir isso aqui — disse um impaciente Tom, assim que um caminhão buzinou atrás de nós. — Me sigam até o lado sul do Central Park, em frente ao Plaza.
No caminho, ele virou várias vezes para trás, a fim de certificar-se da presença do cupê, e reduziu a velocidade sempre que o automóvel era detido pelo tráfego, até que tornasse a aparecer. Acho que temia que eles escapassem por uma rua transversal e sumissem de sua vida para sempre.
Mas não o fizeram. E todos nós tomamos a incompreensível decisão de continuar o debate numa suíte do Plaza Hotel.
A discussão prolongada e tumultuada que acabou nos levando àquele quarto me foge à memória, embora eu tenha a nítida lembrança física de que, em seu decurso, minha roupa íntima grudava feito uma cobra ensopada pelas minhas pernas, e que gotas intermitentes de suor corriam pelas minhas costas. A ideia partiu de Daisy, que sugeriu que alugássemos cinco banheiros e tomássemos banhos frios, e acabou assumindo a forma mais tangível de “um lugar para tomar uísque com hortelã”.b Ninguém deixou de observar que era uma “ideia maluca” — mas todos a comunicamos em coro ao desnorteado recepcionista, pensando (ou fingindo pensar) que estávamos sendo engraçados...
O quarto era amplo e sufocante, e, embora já fosse quatro da tarde, o ato de abrir as janelas só permitiu a entrada de um sopro quente vindo do parque. Daisy foi até o espelho e ficou de costas para nós, ajeitando o cabelo.
— É uma suíte bacana — murmurou Jordan respeitosamente, e todos deram risada.
— Abram mais uma janela — ordenou Daisy, sem virar para trás.
— Não há mais janelas.
— Nesse caso, vamos telefonar para pedir um machado...
— O melhor a fazer é esquecer o calor — disse Tom, impaciente. — Ele fica dez vezes pior quando você resmunga.
Ele desembrulhou a garrafa de uísque da toalha e a pôs sobre a mesa.
— Por que não a deixa em paz, meu velho? — comentou Gatsby. — Foi você que quis vir à cidade.
Houve um momento de silêncio. A lista telefônica escorregou do suporte e se esborrachou no chão, enquanto Jordan murmurava: “Mil perdões” — só que dessa vez ninguém deu risada.
— Eu pego — me ofereci.
— Já peguei. — Gatsby examinou a lombada partida ao meio, resmungou um “humm” interessado e atirou a lista à cadeira.
— É uma de suas expressões preferidas, não? — disse Tom asperamente.
— Qual?
— Toda essa coisa de “meu velho”. Onde foi que aprendeu isso?
— Escute aqui, Tom — disse Daisy, virando-se do espelho —, se você pretende fazer comentários pessoais, irei embora em um minuto. Ligue para a recepção e peça um pouco de gelo para o uísque.
Assim que Tom ergueu o fone do gancho, o calor sufocante explodiu em som e ouvimos os portentosos acordes da “Marcha nupcial” de Mendelssohn, que emanava do salão abaixo de nós.
— Imagine casar num calor desses! — gritou Jordan melancolicamente.
— E ainda assim... eu me casei em meados de junho — recordou Daisy. — Louisville em junho! Alguém desmaiou. Você lembra quem desmaiou, Tom?
— Biloxi — ele respondeu secamente.
— Um homem chamado Biloxi... “Blocks” Biloxi. Ele confeccionava caixotes, é sério, e era de Biloxi, Tennessee.
— Ele foi parar na minha casa — completou Jordan — porque eu morava a duas casas da igreja. E ficou lá umas três semanas, até que o papai o obrigou a ir embora. No dia seguinte, papai morreu. — Depois de um instante, ela acrescentou: — Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
— Conheci um Bill Biloxi do Memphis — observei.
— Era primo dele. Conheci toda a árvore genealógica da família dele antes de ir embora. Me deu um taco de alumínio que uso até hoje.
A música cessou assim que a cerimônia teve início, e agora uma longa salva de palmas subia pela janela, seguida por gritos ocasionais de “Êê — êê — êê”, e finalmente por um estrondo de jazz, dando início ao baile.
— Estamos ficando velhos — disse Daisy. — Se fôssemos jovens, nos levantaríamos para dançar.
— Lembre-se de Biloxi — alertou Jordan. — De onde você o conhecia, Tom?
— Biloxi? — Ele fez um esforço para lembrar. — Não o conhecia. Era amigo de Daisy.
— Não era, não — ela negou. — Nunca o tinha visto antes. Ele veio no automóvel particular.
— Bem, ele me falou que te conhecia. Disse que fora criado em Louisville. Asa Bird o trouxe no último minuto e perguntou se tínhamos onde acomodá-lo.
Jordan sorriu.
— Acho que ele estava tentando filar uma carona. Me disse que era representante da sua classe em Yale.
Tom e eu nos entreolhamos, sem entender.
— Biloxi?
— Em primeiro lugar, não tínhamos nenhum representante de classe...
Os pés de Gatsby não sossegavam, dando pancadas breves e angustiadas no chão, e Tom o encarou de súbito.
— A propósito, senhor Gatsby, me disseram que o senhor é um homem de Oxford.
— Não exatamente.
— Ah, sim, quer dizer, você estudou lá.
— É, estudei.
Uma pausa. Então a voz de Tom, incrédula e ofensiva:
— Deve ter ido na mesma época em que Biloxi esteve em New Haven.
Outra pausa. Um garçom bateu à porta e entrou com um balde de gelo e hortelã picada, mas não chegou a romper o silêncio com seu “obrigado” e com o barulho cuidadoso da porta sendo fechada. Um detalhe significativo estava prestes a ser finalmente esclarecido.
— Já te disse que estudei em Oxford — disse Gatsby.
— Eu ouvi, mas queria saber quando.
— Em 1919, e só fiquei cinco meses. É por isso que não posso me considerar um legítimo homem de Oxford.
Tom olhou em volta para ver se compartilhávamos de sua descrença. Mas estávamos todos olhando para Gatsby.
— Foi uma oportunidade que deram a alguns oficiais após o armistício — ele continuou. — Ganhamos o direito de frequentar qualquer universidade na Inglaterra ou na França.
Tive vontade de me levantar e dar um tapinha em suas costas. Era um daqueles instantes de restauração absoluta da fé em Gatsby que eu já experimentara antes.
Daisy levantou-se e, sorrindo debilmente, foi até a mesa.
— Abra a garrafa de uísque, Tom — ela ordenou —, e eu vou preparar um drinque para você. Garanto que não terá a sensação de ser tão idiota... Vejam esta hortelã!
— Só um momento — irrompeu Tom —, tenho mais uma pergunta para o senhor Gatsby.
— Vamos lá — disse Gatsby educadamente.
— Que tipo de confusão você está procurando na minha casa, afinal?
Eles enfim falavam às claras e Gatsby ficou contente.
— Ele não está procurando nenhuma confusão — interveio Daisy, olhando, desesperada, de um para o outro. — Você é que está procurando confusão. Por favor, controle-se.
— Me controlar, eu? — repetiu Tom, incrédulo. — Suponho que o certo é ficar de braços cruzados e deixar o senhor Ninguém de Lugar Nenhum fazer amor com a sua esposa. Bem, se é essa a ideia, vocês podem ir desistindo... Hoje em dia, as pessoas começam desprezando a vida em família e as instituições, e logo estão jogando tudo para o alto e defendendo casamentos entre brancos e pretos.
Ruborizado pelo discurso exaltado, ele se viu sozinho, de pé, como o último baluarte da civilização.
— Aqui somos todos brancos — murmurou Jordan.
— Sei que não sou tão popular. Não dou festas na minha casa. Ultimamente, parece que para ter amigos é preciso transformar a própria casa em chiqueiro.
Mesmo zangado, como aliás estávamos todos naquele quarto, tive vontade de rir sempre que ele abria a boca, tão completa era a transição de libertino para pedante.
— Eu também tenho algo a lhe dizer, meu velho — começou Gatsby. Mas Daisy adivinhou suas intenções.
— Por favor, não fale! — ela interveio, em vão. — Por favor, vamos todos para casa. Por que não vamos embora?
— Boa ideia — eu me levantei. — Vamos, Tom. Ninguém aqui está a fim de beber.
— Quero ouvir o que o senhor Gatsby tem a me dizer.
— Sua esposa não te ama — disse Gatsby — e nunca te amou. Ela me ama.
— Ficou louco? — exclamou Tom mecanicamente.
Gatsby caiu de joelhos, exaltado.
— Ela nunca te amou, ouviu? — gritou. — Só se casou com você porque eu era pobre e ela estava cansada de esperar. Foi um erro terrível, mas no fundo ela nunca amou ninguém além de mim!
Nesse ponto, eu e Jordan tentamos sair, mas Tom e Gatsby, rivalizando na firmeza, insistiram que ficássemos — como se nenhum deles tivesse o que esconder e como se fosse um privilégio compartilhar indiretamente de suas emoções.
— Sente-se, Daisy — a voz de Tom arriscou, sem sucesso, um timbre mais paternal. — O que está acontecendo? Quero saber.
— Eu já disse o que está acontecendo — afirmou Gatsby. — Está acontecendo nos últimos cinco anos, e você não sabe.
Tom voltou-se para Daisy de forma agressiva:
— Faz cinco anos que você está saindo com esse sujeito?
— Saindo, não — respondeu Gatsby. — Nós não podíamos nos encontrar. Mas continuávamos nos amando esse tempo todo, meu velho, sem você saber. Às vezes eu ria muito — mas não havia nada de sorridente em seus olhos — só de pensar que você não sabia.
— Chega. — Tom uniu a ponta dos dedos como um padre e recostou-se na cadeira.
— Você está louco! — explodiu, por fim. — Não posso falar sobre o que aconteceu há mais de cinco anos, pois eu ainda não conhecia Daisy, e mesmo assim não vejo como você possa ter conseguido chegar a um quilômetro dela, a menos que trouxesse as compras pela porta dos fundos. Mas o resto é mentira. Daisy me amou quando nos casamos e ainda me ama.
— Não ama — disse Gatsby, meneando a cabeça.
— Ama, sim. O problema é que às vezes ela põe umas ideias tolas na cabeça e não sabe o que está fazendo. — Ele assentiu sabiamente. — E mais: eu também a amo. De vez em quando dou uma de minhas escapadas e caio no ridículo, mas sempre volto para ela e, no fundo, sei que a amei esse tempo todo.
— Você é revoltante — disse Daisy. Ela se voltou para mim e sua voz, descendo uma oitava, preencheu toda a sala com um escárnio faiscante: — Sabe por que fomos embora de Chicago? Incrível que ele ainda não o tenha brindado com a história dessa pequena escapada.
Gatsby aproximou-se e ficou ao lado dela.
— Está tudo acabado, Daisy — ele disse solenemente. — Nada disso importa. Apenas lhe diga a verdade, que você nunca o amou, e tudo se apagará para sempre.
Ela lhe lançou um olhar vazio:
— Ora... como eu poderia amá-lo... talvez?
— Você nunca o amou.
Ela hesitou. Seus olhos pousaram sobre Jordan e mim, numa espécie de apelo, embora ela afinal entendesse o que estava prestes a fazer — e como se nunca, em nenhum momento, tivesse tido a intenção de fazê-lo. Mas já estava feito. Era tarde demais.
— Nunca te amei — ela disse, com uma perceptível relutância.
— Nem em Kapiolani?1 — perguntou Tom de repente.
— Não.
Vindos do salão lá embaixo, acordes abafados e sufocantes subiam em bolsas quentes de ar.
— Nem quando te carreguei por toda a descida do Punch Bowl2 para não molhar os seus pés? — Havia uma ternura ríspida em sua voz... — Daisy?
— Por favor, não. — Sua voz era fria, mas o rancor já tinha passado. Ela olhou para Gatsby. — Ah, Jay — ela disse, mas sua mão tremia ao tentar acender um cigarro. De súbito, lançou o cigarro e o fósforo aceso no carpete.
— Ah, você está pedindo demais! — ela gritou para Gatsby. — Eu te amo agora, não é o suficiente? Não tenho culpa do que aconteceu no passado. — Ela começou a soluçar, desamparada. — Eu amei, sim, o meu marido, e amei você também.
Os olhos de Gatsby abriram e fecharam.
— Você me amou também? — ele repetiu.
— Até isso é mentira — disse Tom, agressivo. — Ela nem sabia que você estava vivo. Ora... Há coisas entre mim e Daisy que você nunca vai saber, coisas que nenhum de nós poderá esquecer.
Aquelas palavras pareceram atingir Gatsby fisicamente.
— Quero conversar com Daisy a sós — insistiu. — Ela está muito agitada e...
— Mesmo sozinha não posso dizer que nunca amei Tom — ela confessou numa voz deplorável. — Não seria verdade.
— É claro que não — concordou Tom.
Ela se voltou para o marido:
— Como se fizesse alguma diferença para você — disse.
— É claro que faz. Vou cuidar melhor de você daqui para a frente.
— Você não entendeu — disse Gatsby, com uma pontada de pânico. — Você não vai mais cuidar dela.
— Ah, não? — Tom arregalou os olhos e deu risada. Agora já conseguia se controlar. — E por que não?
— Daisy está se separando de você.
— Besteira.
— Estou, sim — ela disse, fazendo um esforço visível.
— Não está se separando de mim! — As palavras de Tom de repente tombaram sobre Gatsby. — Não por um charlatão que teria que roubar a aliança para colocar no seu dedo.
— Não aguento mais! — gritou Daisy. — Ah, por favor, vamos embora!
— Quem é você, afinal? — irrompeu Tom. — É da turma do Meyer Wolfshiem, isso eu sei. Fiz uma pequena investigação acerca de seus negócios, e irei mais fundo amanhã.
— Pode ficar à vontade, meu velho — disse Gatsby com firmeza.
— Descobri o que eram essas suas drugstores.3
Tom se voltou para nós e falou rapidamente:
— Ele e esse tal de Wolfshiem compraram uma porção de drugstores de esquina aqui e em Chicago, onde vendiam etanol no balcão. Foi um de seus pequenos embustes. Reconheci-o como contrabandista desde a primeira vez que o vi, e não estava nem um pouco equivocado.
— E daí? — disse Gatsby educadamente. — Parece que o seu amigo Walter Chase não era tão escrupuloso assim quando aceitou entrar no negócio.
— E você o largou na sarjeta, não é? Deixou-o ficar um mês preso em Nova Jersey. Deus! Você precisa ouvir Walter falando de você.
— Ele veio até nós sem um tostão. Ficou bem feliz de poder ganhar uns trocados, meu velho.
— Não me chame de “meu velho”! — gritou Tom. Gatsby não respondeu. — Walter podia acabar com vocês denunciando inclusive suas apostas ilegais, mas Wolfshiem o intimidou tanto que ele calou a boca.
Aquela expressão a um só tempo desconhecida e familiar retornou ao rosto de Gatsby.
— Esse negócio com as drugstores não é nada — prosseguiu Tom lentamente —, mas sei que está metido em algo que Walter tem pavor de me contar.
Voltei-me para Daisy, que olhava aterrorizada de Gatsby para o marido, e depois olhei para Jordan, que começara a equilibrar um objeto invisível, porém fascinante, na ponta do queixo. Então me voltei para Gatsby e fiquei assustado com sua expressão. Ele parecia — digo isso sem validar os boatos infames que circulavam em seu jardim — alguém capaz de “matar um homem”. Por um instante, sua expressão só podia ser descrita dessa maneira fantástica.
A expressão se desvaneceu e Gatsby passou a dirigir-se freneticamente a Daisy, negando tudo e defendendo sua honra até de acusações que nem sequer haviam sido formuladas. Mas a cada palavra Daisy se afastava mais e mais, de modo que ele cedeu, e apenas um sonho morto continuou resistindo conforme a tarde terminava, tentando tocar o que não era mais tangível, buscando de forma melancólica e desanimada o rastro perdido daquela voz na sala.
A voz voltou a implorar que fossem embora.
— Por favor, Tom! Não aguento mais.
Seus olhos assustados garantiam que qualquer intenção, qualquer bravura que ela tenha demonstrado, tudo isso desaparecera em definitivo.
— Vocês dois podem ir para casa, Daisy — disse Tom. — No carro do senhor Gatsby.
Ela olhou para Tom, agora apavorada, mas ele insistiu com um escárnio magnânimo:
— Pode ir. Ele não vai incomodá-la. Acho que já percebeu que esse flertezinho presunçoso chegou ao fim.
Eles saíram sem dizer uma palavra, despedaçados e acidentados, isolados, como fantasmas, de nossa própria piedade.
Depois de um instante, Tom levantou-se e tornou a embrulhar a garrafa de uísque, ainda intocada.
— Alguém quer um gole? Jordan? ...Nick?
Eu não respondi.
— Nick? — ele tornou a perguntar.
— O quê?
— Quer um gole?
— Não... Acabo de lembrar que hoje é meu aniversário.
Eu estava completando trinta anos. Diante de mim se estendia a estrada portentosa e ameaçadora de uma nova década.
Eram sete horas quando entramos no cupê e partimos para Long Island. Tom falou sem parar, exultante e risonho, mas sua voz estava tão distante de nós quanto o clamor de estranhos nas calçadas ou o burburinho do elevado. A empatia humana tem limites, e estávamos aliviados de poder deixar para trás toda aquela trágica discussão, assim como as luzes distantes da metrópole. Trinta anos — a promessa de uma década de solidão, uma lista cada vez menor de amigos solteiros, uma bagagem cada vez menor de entusiasmo e os cabelos também cada vez mais ralos. Mas Jordan estava ao meu lado, e ela, ao contrário de Daisy, sempre fora esperta o bastante para não cultivar sonhos esquecidos de outra época. Enquanto atravessávamos a ponte escura, seu rosto pálido caiu preguiçosamente no meu ombro e o impiedoso golpe dos trinta desapareceu com a pressão reconfortante de sua mão.
Então rumamos em direção à morte através do frescor do crepúsculo.
A principal testemunha do inquérito foi o jovem grego Michaelis, proprietário da cafeteria vizinha às pilhas de cinzas. Por causa do calor, ele havia dormido até depois das cinco, quando foi à oficina e encontrou George Wilson doente — doente de verdade, tão pálido quanto seu cabelo e tremendo da cabeça aos pés. Michaelis aconselhou-o a ir para a cama, mas Wilson se recusou, dizendo que desse jeito perderia uma porção de clientes. Enquanto o vizinho tentava persuadi-lo, explodiu uma barulheira violenta no andar superior.
— Minha esposa está trancada lá em cima — explicou Wilson calmamente. — Vai ficar lá até depois de amanhã, quando iremos embora daqui.
Michaelis ficou atônito; haviam sido vizinhos por quatro anos e Wilson nunca parecera minimamente capaz de fazer uma coisa dessas. Em geral ele era um desses homens exaustos: quando não estava trabalhando, sentava-se numa cadeira à porta de casa e ficava vendo as pessoas e carros passarem. Quando alguém lhe dirigia a palavra, ele sempre ria de um jeito cordato e entediante. Wilson pertencia à esposa, e não a si mesmo.
De modo que Michaelis naturalmente tentou descobrir o que havia ocorrido, mas Wilson não dizia nada — em vez disso, começou a lançar olhares curiosos e desconfiados ao vizinho e perguntar-lhe onde estava em determinados horários de determinados dias. Quando este último já começava a ficar constrangido, um grupo de operários passou pela porta rumo a seu restaurante, de modo que Michaelis aproveitou a oportunidade para escapar, dizendo que voltaria mais tarde. Mas não voltou. Ele deve ter se esquecido, só isso. Quando saiu de novo, pouco depois das sete, lembrou-se da conversa ao ouvir a voz da sra. Wilson, berrando e ralhando no andar térreo da oficina.
— Vamos, pode bater em mim! — ele a ouviu gritar. — Pode me empurrar e me bater, seu homenzinho imundo e covarde!
Então ela saiu correndo em direção à penumbra, gesticulando e gritando — e antes que ele pudesse dar um passo para fora de sua porta, tudo estava acabado.
O “automóvel da morte”, como os jornais o apelidaram, não chegou a parar; ele se materializou em meio à densa escuridão, sofreu um trágico e breve solavanco e desapareceu na curva seguinte. Mavro Michaelis não estava seguro nem quanto à cor — ao primeiro policial, disse que era verde-claro. Um outro carro, que ia na direção contrária, parou a uns cem metros dali e o motorista correu para onde Myrtle Wilson jazia estatelada, a vida brutalmente interrompida, com os cabelos negros misturados à poeira.
Michaelis e o motorista foram os primeiros a acudi-la, mas, assim que rasgaram sua blusa, ainda empapada de suor, viram que o seio esquerdo estava dependurado livremente como um trapo, e que não havia necessidade de checar o pulso. A boca estava escancarada e um pouco rasgada nos cantos, como se ela tivesse engasgado ao libertar a enorme vitalidade que acumulara por tanto tempo.

Vimos os três ou quatro automóveis e toda aquela multidão quando ainda estávamos a certa distância.
— Um acidente! — disse Tom. — Que bom. Até que enfim Wilson vai ter algum trabalho com que se ocupar.
Ele desacelerou, ainda sem a intenção de parar, até que, ao chegarmos à porta da oficina, alguns rostos mudos e solícitos o fizeram brecar automaticamente.
— Vamos dar uma olhada — ele disse, hesitante. — Só uma olhada.
Eu agora conseguia distinguir um gemido oco e incessante que emanava da oficina, um som que, conforme saíamos do cupê e caminhávamos em direção à porta, consistia nas palavras: “Oh, meu Deus!” pronunciadas à exaustão, num lamento ofegante.
— Algo muito grave aconteceu por aqui — disse Tom, excitado.
Ficamos na ponta dos pés e, vencendo um círculo de cabeças, enxergamos o interior da oficina, iluminada por uma única lâmpada amarela numa cesta oscilante de metal. Então Tom soltou um ruído gutural e, com um violento empurrão de seus braços musculosos, abriu caminho para o interior da oficina.
O círculo voltou a se fechar num murmúrio contínuo de reprovação; passou-se um minuto até que eu pudesse enxergar alguma coisa. Os recém-chegados bagunçaram a fila e eu e Jordan fomos empurrados subitamente para dentro.
O corpo de Myrtle Wilson, embrulhado num lençol e depois em outro, como se sofresse calafrios naquela noite quente, jazia numa escrivaninha junto à parede, e Tom, de costas para nós, estava debruçado sobre ele, imóvel. Próximo a Tom havia um policial motociclista anotando nomes numa caderneta com muita diligência e correção. De início não consegui distinguir a origem das palavras exaltadas e queixosas que ecoavam ruidosamente através da oficina vazia — então vi Wilson parado à soleira saliente da porta de seu escritório, balançando-se para a frente e para trás e segurando o umbral com ambas as mãos. Um homem falava com ele em voz baixa e tentava, de vez em quando, pousar a mão em seus ombros, mas Wilson não ouvia nem enxergava. Seus olhos vagavam da luz oscilante para a mesa ocupada junto à parede, e então retornavam à lâmpada e ele emitia um grito alto, terrível e incessante:
— Oh, meu De-eus! Oh, meu De-eus! Oh, meu De-eus! Oh, meu De-eus!
Imediatamente Tom ergueu a cabeça com um movimento abrupto e, após examinar a oficina com os olhos vidrados, grunhiu um comentário incoerente ao policial.
— M-A-V... — o policial dizia — O...
— Não, R... — corrigiu o homem — M-A-V-R-O...
— Ei, você — resmungou Tom ferozmente.
— R... — disse o policial — O...
— G...
— G... — ele ergueu os olhos assim que a mão enorme de Tom caiu pesadamente em seu ombro. — Que foi, colega?
— O que houve? É o que eu quero saber.
— Atropelamento. Morreu na hora.
— Morreu na hora — repetiu Tom, os olhos fixos no vazio.
— Ela correu para o meio da pista. O filho da mãe nem parou.
— Eram dois carros — disse Michaelis. — Um indo e outro vindo, entende?
— Indo para onde? — perguntou o policial com avidez.
— Um para cada lado. Então ela... — sua mão tentou apontar para o lençol mas parou no meio, deixando-se cair ao lado do corpo. — Ela saiu correndo e o carro que vinha de Nova York a pegou em cheio, a uns cinquenta ou sessenta quilômetros por hora.
— E como se chama esta oficina? — perguntou o policial.
— Não tem nome nenhum.
Um negro pálido e bem vestido se aproximou:
— Foi um carro amarelo — ele disse. — Um carro grande e amarelo. Novinho.
— Você viu o acidente? — perguntou o policial.
— Não, mas um automóvel passou por mim na estrada a mais de sessenta por hora. Acho que a uns oitenta ou até cem.
— Venha cá para eu anotar o seu nome. Abram caminho, pessoal. Preciso pegar o nome dele.
Algumas dessas palavras devem ter chegado a Wilson, que ainda balançava na porta do escritório, pois de repente um novo tema encontrou ressonância em seus gritos ávidos:
— Nem precisam me falar sobre o carro! Eu sei bem qual é o carro!
Observando Tom, reparei num feixe de músculos se retesando em seus ombros, por dentro do casaco. Ele caminhou rapidamente até Wilson e, parando à sua frente, agarrou-o com firmeza pelos antebraços.
— Você tem que se controlar — ele disse, com uma frieza apaziguadora.
Wilson pousou os olhos em Tom; pôs-se na ponta dos pés e teria caído de joelhos se Tom não o estivesse segurando firme.
— Escute — disse Tom, chacoalhando-o de leve. — Acabo de chegar de Nova York, há menos de um minuto. Estava naquele cupê de que lhe falei. O carro amarelo que você viu hoje cedo não era meu. Entendeu? Passei a tarde inteira sem vê-lo.
Apenas eu e o negro estávamos próximos o bastante para ouvir o que ele disse, mas o policial captou alguma coisa pelo tom de voz e ergueu seus olhos truculentos.
— O que está havendo? — perguntou.
— Sou amigo dele. — Tom virou a cabeça, mas manteve as mãos firmes no corpo de Wilson. — Ele disse que conhece o carro que a atropelou... Era um carro amarelo.
Algum estranho impulso fez o policial lançar um olhar desconfiado para Tom:
— E de que cor é o seu carro?
— É azul, um cupê.
— Nós viemos direto de Nova York — eu acrescentei.
Alguém que dirigia logo atrás de nós confirmou a informação e o policial deu as costas.
— Agora, se você puder me confirmar de novo o seu nome...
Erguendo Wilson como uma boneca, Tom o conduziu ao escritório, acomodou-o numa cadeira e voltou.
— Se alguém puder vir lhe fazer companhia — ele irrompeu de forma autoritária. Ficou observando enquanto os dois homens mais próximos dele se entreolhavam e iam para dentro da sala, desanimados. Tom fechou a porta atrás deles e desceu o único degrau, evitando olhar para a mesa. Quando passou por mim, ele sussurrou:
— Vamos embora.
Constrangidos, abrimos caminho com a ajuda dos braços autoritários de Tom e vencemos a multidão que só aumentava. Passamos por um médico apressado de maleta em punho que havia sido chamado meia hora antes, numa louca demonstração de esperança.
Tom dirigiu devagar até que viramos na curva — então ele pisou no acelerador e o cupê disparou através da noite. Após um tempo, ouvi um tênue e rouco soluço e vi que as lágrimas rolavam abundantemente em seu rosto.
— Aquele maldito covarde! — gemeu. — Ele nem parou o carro.
A casa dos Buchanan veio subitamente ao nosso encontro em meio às árvores escuras e farfalhantes. Tom estacionou junto ao pórtico e ergueu os olhos para o segundo andar, onde duas janelas irradiavam luz por entre as videiras.
— Daisy está em casa — ele disse. Conforme saíamos do carro, olhou para mim e franziu a testa.
— Eu devia tê-lo deixado em West Egg, Nick. Não há nada que possamos fazer esta noite.
Uma mudança havia se operado em Tom, que falava de forma grave e decidida. Conforme percorríamos a estrada enluarada de cascalhos até o pórtico, ele dispôs sobre a situação em poucas e bruscas frases.
— Vou chamar um táxi para levá-lo pra casa, e enquanto isso é melhor você e Jordan irem comer alguma coisa na cozinha, se estiverem com fome. — Ele abriu a porta. — Entrem.
— Não, obrigado. Mas ficaria agradecido se você me chamasse um táxi. Vou esperar aqui fora.
Jordan pousou a mão no meu braço:
— Não quer entrar, Nick?
— Não, obrigado.
Eu estava me sentindo mal e queria ficar sozinho. Mas Jordan insistiu mais um pouco.
— Ainda são nove e meia — ela disse.
Eu não entraria naquela casa por nada neste mundo; já tivera o suficiente de todos eles por um dia, e de repente isso incluía Jordan também. Ela deve ter captado alguma coisa em minha expressão, pois virou-se abruptamente e galgou os degraus do pórtico em direção à casa. Fiquei sentado por uns minutos com as mãos na cabeça até ouvir o mordomo lá dentro pegar um telefone e chamar um táxi. Então atravessei devagar a entrada da casa, com a intenção de esperar no portão.
Não andara nem vinte metros quando ouvi meu nome e Gatsby saiu de trás de dois arbustos. Àquela altura, eu devia estar bastante perturbado, pois só conseguia pensar na luminosidade de seu terno cor-de-rosa sob a luz da lua.
— O que está fazendo? — perguntei.
— Estou aqui parado, meu velho.
Por algum motivo, pareceu-me uma ocupação abominável. De minha parte, ele poderia estar prestes a assaltar a casa; não ficaria surpreso se visse os rostos sinistros da “turma do Wolfshiem” atrás dele, em meio à densa folhagem.
— Você viu alguma confusão na estrada? — ele perguntou após um minuto.
— Vi.
Gatsby hesitou.
— Ela morreu?
— Morreu.
— Foi o que imaginei. Disse a Daisy que era o que eu achava. É melhor que o choque venha de uma só vez. Ela aguentou muito bem.
Ele falava como se a reação de Daisy fosse a única coisa que importava.
— Voltei a West Egg por uma estrada secundária — ele continuou — e deixei o carro na garagem. Acho que ninguém viu a gente, mas é claro que não posso ter certeza.
Àquela altura, eu o odiava tanto que não julguei necessário dizer que ele estava errado.
— Quem era a mulher? — ele perguntou.
— Seu nome era Myrtle Wilson. O marido é o dono da oficina. Como diabos isso foi acontecer?
— Bom, eu tentei virar o volante, mas... — Ele parou, e de súbito entendi a verdade.
— Daisy estava dirigindo?
— Estava — ele disse após um instante —, mas é claro que eu vou assumir a culpa. Veja bem, quando saímos de Nova York ela estava muito nervosa e achou que dirigir poderia acalmá-la. Então essa mulher veio correndo justo quando estávamos ultrapassando um carro vindo da outra direção. Foi tudo num piscar de olhos, mas tive a impressão de que ela queria falar com a gente, como se nos conhecesse. Bem, de início Daisy desviou da mulher em direção ao outro carro, mas então perdeu a coragem e virou de volta. No instante em que a minha mão tocou o volante, senti o impacto. Deve tê-la matado instantaneamente.
— Rasgou-a pela metade...
— Não me conte, meu velho. — Ele recuou. — Em todo caso, Daisy pisou no acelerador. Tentei fazê-la parar, mas ela não conseguiu, até que eu puxei o freio de mão. Então ela tombou no meu colo e eu peguei o volante.
— Amanhã ela estará bem melhor — disse Gatsby logo em seguida. — Ficarei aqui esperando para ver se ele irá incomodá-la com aquela coisa desagradável de hoje à tarde. Ela se trancou no quarto e, se ele tentar alguma brutalidade, combinou de acender e apagar a luz várias vezes.
— Ele não vai encostar nela — eu disse. — Não está com a cabeça nisso.
— Não confio nele, meu velho.
— Você vai ficar quanto tempo esperando?
— A noite inteira, se for preciso. Em todo caso, até todos irem dormir.
Então me ocorreu um novo pensamento. Suponhamos que Tom descobrisse que Daisy estava dirigindo. Ele poderia ver uma relação entre os fatos — podia imaginar qualquer coisa. Olhei para a casa; havia duas ou três janelas acesas no andar de baixo e a luz rosada do quarto de Daisy refletindo no térreo.
— Não saia daqui — eu disse. — Vou ver se há algum sinal de tumulto.
Caminhei de volta pela beira do gramado, percorrendo com cuidado o caminho de cascalho, e subi pé ante pé os degraus do alpendre. As cortinas da sala estavam abertas e vi que não havia ninguém no aposento. Atravessando o pórtico onde jantáramos naquela noite de junho três meses antes, aproximei-me de um pequeno retângulo de luz que julguei ser a janela da copa. A persiana estava fechada, mas descobri uma fenda no umbral.
Daisy e Tom estavam sentados na mesa de jantar, com um prato de frango frito frio e duas garrafas de cerveja diante deles. Tom falava gravemente e, em toda a sua seriedade, pousou a mão sobre a dela. De vez em quando, ela erguia os olhos e meneava a cabeça em consentimento.
Eles não estavam felizes, visto que ninguém chegou a encostar no frango ou na cerveja — mas também não pareciam infelizes. Havia um clima inequívoco de intimidade natural naquela cena, e qualquer um poderia jurar que estavam conspirando.
Enquanto eu me afastava do pórtico na ponta dos pés, ouvi o táxi tatear seu caminho pela estrada escura em direção à casa. Gatsby estava esperando onde eu o deixara, na entrada.
— Está tudo calmo? — ele perguntou, ansioso.
— Está. — Eu hesitei. — Você devia ir para casa comigo e dormir um pouco.
Ele fez que não com a cabeça.
— Vou ficar esperando até Daisy ir deitar. Boa noite, meu velho.
Ele meteu as mãos nos bolsos do casaco e retornou avidamente ao escrutínio da casa, como se minha presença profanasse a santidade de sua vigília. Então fui embora e o deixei parado à luz do luar — vigiando coisa alguma.
a Personagem de Satyricon, de Petrônio. É um milionário que oferece um banquete em sua casa com todo tipo de iguarias exóticas.
b No original, “mint julep”. Pode ser traduzido como “julepo”, bebida com uísque, açúcar, gelo e menta.

8
Passei a noite em claro; uma sirene de nevoeiro ressoou sem parar pelo estreito, e oscilei quase febril entre a realidade grotesca e pesadelos violentos e assustadores. Perto do amanhecer, ouvi um táxi encostando na entrada de Gatsby, ao que imediatamente saí da cama e fui me vestir — senti que precisava dizer-lhe alguma coisa, alertá-lo contra algo, e de manhã seria tarde demais.
Ao cruzar o gramado, vi que a porta da frente de Gatsby ainda estava aberta e ele se escorava numa mesa do vestíbulo, prostrado de tristeza ou de sono.
— Não houve nada — ele disse debilmente. — Fiquei esperando, e lá pelas quatro ela foi até a janela, ficou parada por um instante e então apagou a luz.
Sua casa nunca me pareceu tão grande quanto naquela madrugada, quando passamos em revista todos os salões em busca de cigarros. Afastamos cortinas que eram como tendas, e tateamos inúmeros palmos de parede escura em busca de interruptores de luz — a certa altura, tropecei com estrondo e caí nas teclas de um piano fantasmagórico. Havia um inexplicável acúmulo de poeira por toda parte e os quartos estavam mofados, como se não tivessem sido arejados por um bom tempo. Sobre uma mesa desconhecida, achei uma caixa de charutos com dois cigarros velhos e secos.
— Você devia partir — eu disse. — É quase certo que irão rastrear o seu carro.
— Partir agora, meu velho?
— Vá passar uma semana em Atlantic City ou Montreal.
Ele nem sequer considerou a hipótese. Não podia abandonar Daisy até que soubesse o que ela pretendia fazer. Agarrava-se a uma última esperança e eu simplesmente não suportava o fardo de trazê-lo à razão.
Foi naquela noite que ele me contou a estranha história de sua juventude com Dan Cody — e o fez porque “Jay Gatsby” havia se despedaçado feito vidro perante a dura malícia de Tom, e com isso a longa e secreta teatralidade se esgotara. Naquele momento, ele teria me confessado qualquer coisa sem reservas, mas queria mesmo era falar sobre Daisy.
Ela foi a primeira garota “sofisticada” que Gatsby conheceu. Em diversas e obscuras funções, ele havia tido contato com esse tipo de gente, mas sempre existia uma barreira invisível no meio. Daisy lhe parecia extraordinariamente desejável. Ele foi visitá-la, primeiro com outros oficiais de Camp Taylor, e mais tarde sozinho. Ficara impressionado com a casa — nunca havia estado num lugar tão bonito. Mas o que mais o impressionava era o fato de Daisy viver ali — e, para ela, aquilo era tão normal quanto a barraca do alojamento militar onde ele morava. A casa tinha um perfeito ar de mistério, uma insinuação de que havia quartos no andar de cima mais belos e sofisticados do que os outros, de atividades alegres e radiantes acontecendo em seus corredores, e de romances nada bolorentos ou com cheiro de naftalina, mas, pelo contrário, muito frescos, arejados e com o perfume dos reluzentes carros do ano e de bailes cujas flores ainda não haviam murchado. Outra coisa que o excitava era que muitos homens já haviam amado Daisy — e aquilo, a seus olhos, lhe aumentava o valor. Ele sentia a presença deles por toda a casa, preenchendo o ar com suas sombras e ecos de emoções ainda vibrantes.
Mas ele sabia que estava na casa de Daisy por um gigantesco acidente. Por mais glorioso que pudesse ser seu futuro como Jay Gatsby, naquele momento ele era um jovem miserável e sem passado, e a qualquer hora o manto invisível de seu uniforme poderia escapar de seus ombros. Então ele aproveitou o máximo possível. Tomou tudo o que pôde, de modo voraz e inescrupuloso — e acabou tomando a própria Daisy numa noite calma de outubro, só porque não tinha sequer o direito de tocar sua mão.
Gatsby poderia ter sentido desprezo por si mesmo, pois certamente a tomara sob falsos pretextos. Não que ele tenha alardeado uma fortuna inexistente, mas fornecera de propósito a Daisy uma sensação de segurança; deixou-a acreditar que era um homem de estirpe, plenamente capaz de tomar conta dela. Na realidade, Gatsby não possuía recursos — não tinha nenhuma família próspera para apoiá-lo e estava sujeito aos caprichos de um governo impessoal que podia despachá-lo a qualquer hora para qualquer parte do mundo.
Mas Gatsby não sentira desprezo por si mesmo e nada se dera conforme o esperado. Ele talvez pretendesse tomar tudo o que podia e ir embora — mas então descobriu que havia se lançado a uma verdadeira busca ao Graal. Sabia que Daisy era extraordinária, mas não imaginava o quanto uma garota “sofisticada” podia ser extraordinária. Ela se recolheu à mansão, em sua vida rica e completa, deixando Gatsby de mãos vazias. Ele se sentia casado com ela, mas isso era tudo.
Quando se encontraram novamente, dois dias depois, era Gatsby que estava ofegante e se sentia de certa forma traído. O pórtico da casa estava iluminado por uma riqueza que emulava a luz das estrelas; as fibras de vime do canapé chiavam elegantemente conforme Daisy oferecia seus lábios curiosos e encantadores para um beijo. Ela pegara um resfriado, o que deixava sua voz mais rouca e charmosa do que nunca, e Gatsby tinha plena consciência de toda a juventude e mistério que a riqueza detém e preserva, da qualidade de seu vestuário e da presença luminosa de Daisy, que reluzia feito prata — segura, orgulhosa e muito acima das preocupações dos pobres.
— Não saberia lhe dizer o quanto fiquei surpreso ao descobrir que a amava, meu velho. Por um momento, até cheguei a querer que ela me dispensasse, mas ela não o fez porque também estava apaixonada por mim. Daisy me achava inteligente por conhecer coisas que ela não sabia... Bem, ali estava eu, afastando-me das minhas ambições, apaixonando-me cada vez mais, e de repente nada disso importava. De que me adiantaria executar grandes feitos se eu podia me divertir muito mais contando a ela o que eu iria fazer?
Na noite anterior a seu embarque, ele se sentou com Daisy no colo por um bom tempo, em silêncio. Era um dia frio de outono, havia fogo na lareira e suas bochechas estavam rosadas. De quando em quando, ela se mexia e ele ajeitava o braço, e a certa altura ele beijou seu cabelo escuro e brilhante. A noite os tranquilizara por um instante, como se quisesse proporcionar-lhes uma lembrança mais profunda para a longa despedida que o dia seguinte prenunciava. Em todo aquele mês de namoro, eles nunca estiveram tão próximos nem se comunicaram tanto quanto naquela noite em que ela roçou os lábios em seus ombros e ele tocou gentilmente a ponta de seus dedos, como se ela estivesse dormindo.
Gatsby se saiu extraordinariamente bem na guerra. Tornou-se capitão antes mesmo de ir para o front, e após as batalhas de Argonne foi promovido a major e ganhou o comando do batalhão de artilharia. Com o armistício, tentou de todas as formas voltar para casa, mas algum tipo de complicação ou mal-entendido o desviou para Oxford. Agora ele estava preocupado — havia um tom de desespero angustiado nas cartas de Daisy. Ela não entendia por que Gatsby não podia voltar. Sofria com a pressão do mundo lá fora, queria encontrá-lo, sentir sua presença e certificar-se de que estava fazendo a coisa certa, no fim das contas.
Pois Daisy era jovem e seu mundo artificial estava repleto de orquídeas, esnobismo amável e alegre, e orquestras que tocavam o ritmo da vez, resumindo a tristeza e as possibilidades da vida em novas melodias. Todas as noites, os saxofones gemiam os versos desesperados de “Beale Street blues”,1 enquanto uma centena de pares de sapatilhas prateadas e douradas se arrastavam pela poeira resplandecente. À hora cinzenta do chá, havia sempre algum salão pulsando incessantemente numa espécie de febre branda e doce, enquanto rostos jovens circulavam aqui e ali como pétalas de rosas sopradas no chão pelas tristes cornetas.
Em meio a esse universo poente, Daisy voltou a seguir a estação; de repente, estava de novo marcando meia dúzia de encontros por dia com meia dúzia de homens e indo dormir ao amanhecer, com as contas e o chiffon de um vestido de noite enroscados entre orquídeas no chão ao lado da cama. Durante todo esse tempo, algo em seus olhos clamava por uma decisão. Ela queria definir sua vida imediatamente — e essa decisão precisava dar-se por algum tipo de força — de amor, de dinheiro, de praticidade inquestionável — que estivesse à mão.
Essa força tomou forma no meio da primavera, com a chegada de Tom Buchanan. Havia uma grandeza saudável em sua pessoa e em sua posição, e Daisy se sentiu lisonjeada. Havia, sem dúvida, um tanto de resistência e um tanto de alívio. A carta alcançou Gatsby quando ele ainda estava em Oxford.

Já era manhã em Long Island e nos pusemos a abrir o resto das janelas do térreo, preenchendo a casa com uma luz que oscilava entre o cinzento e o dourado. A sombra de uma árvore desceu abruptamente em meio ao orvalho e pássaros invisíveis começaram a cantar entre as folhas azuis. Havia um movimento lento e brando no ar, que não se podia chamar de vento, mas que prenunciava um dia fresco e agradável.
— Não acho que ela chegou a amá-lo. — Gatsby virou-se da janela e olhou para mim desafiadoramente. — Lembre-se, meu velho, de que ela estava muito exaltada ontem à tarde. Ele lhe disse aquelas coisas de um jeito que a assustou, como se eu fosse uma espécie de vigarista barato. E o resultado é que ela mal sabia o que estava dizendo.
Sentou-se melancolicamente.
— É claro que ela pode tê-lo amado por um breve período, quando eram recém-casados... e me amar ainda mais, entende?
De repente, ele fez uma observação curiosa:
— Em todo caso, foi apenas pessoal.
O que se pode concluir disso, exceto haver uma intensidade incomensurável em sua concepção daquele caso amoroso?
Gatsby retornou da França quando Tom e Daisy ainda estavam em lua de mel, e empreendeu uma deprimente porém inevitável viagem a Louisville com os últimos recursos que poupara do Exército. Passou uma semana na cidade, percorrendo as ruas onde seus passos e os de Daisy se uniram nas noites de novembro e revisitando os lugares afastados onde estacionaram seu carro branco. Assim como a casa de Daisy sempre lhe parecera mais misteriosa e alegre do que as outras, a ideia daquela cidade também se revestia de uma beleza melancólica, mesmo que Daisy não estivesse mais lá.
Gatsby partiu com a impressão de que a encontraria caso tivesse procurado melhor — de que estava deixando Daisy para trás. O vagão de passageiros — ele não tinha um tostão — era muito abafado. Saiu para o vestíbulo aberto e sentou-se numa cadeira dobrável, enquanto a estação lhe escapava e dava lugar a uma sucessão de fundos de edifícios desconhecidos. Depois o trem atravessou os campos primaveris, sendo acompanhado brevemente por um bonde repleto de gente que deve ter visto uma vez, na rua, a magia pálida de seu rosto.
Agora a ferrovia fazia uma curva e se afastava do sol, que, ao descer no horizonte, parecia abençoar a cidade evanescente onde Daisy uma vez respirou. Desesperado, ele estendeu a mão para fora, como se quisesse agarrar um mísero filete de ar, salvando um fragmento do local que Daisy tornara tão encantador. Mas tudo passava rápido demais diante de seus olhos embaçados, e ele sabia que tinha perdido aquele detalhe da paisagem, o melhor e mais puro, para sempre.
Eram nove da manhã quando terminamos o café e saímos para o pórtico. A noite trouxera uma considerável mudança no clima e havia um toque de outono no ar. O jardineiro, último dos empregados originais de Gatsby, aproximou-se do pé da escada.
— Vou esvaziar a piscina hoje, senhor Gatsby. Logo as folhas irão começar a cair e teremos problemas com os canos.
— Hoje não — ele respondeu. E voltou-se para mim, a título de justificativa: — Sabe de uma coisa, meu velho? Não usei a piscina nenhuma vez neste verão.
Eu consultei o relógio e me levantei:
— Meu trem sai em vinte minutos.
Eu não queria ir à cidade. Não estava em condições de encarar um expediente de trabalho, mas não era só isso — eu não queria deixar Gatsby sozinho. Perdi aquele trem e depois outro, até que enfim consegui sair de lá.
— Eu te ligo mais tarde — falei.
— Faça isso, meu velho.
— Ligarei lá pelo meio-dia.
Descemos lentamente os degraus.
— Acho que Daisy também vai ligar. — Ele me olhou ansiosamente, na expectativa de minha anuência.
— Acho que sim.
— Bem, adeus.
Apertamos as mãos e eu me afastei. Pouco antes de alcançar a cerca, lembrei-me de uma coisa e me virei para trás.
— É uma gente ordinária — gritei, através do gramado. — Você vale muito mais do que todos eles juntos.
Até hoje fico feliz por ter dito isso. Foi o único elogio que lhe fiz, pois o reprovara do começo ao fim. Primeiro ele assentiu com a cabeça de forma educada, e então abriu aquele sorriso radiante e sábio, como se houvéssemos concordado nesse ponto o tempo todo. Seu vistoso paletó cor-de-rosa se destacava contra os degraus brancos, e me lembrei da primeira vez que visitei sua casa ancestral, três meses antes. O gramado e a entrada estavam apinhados de gente que apostava em sua malícia — e ele havia ficado de pé naqueles degraus, ocultando seu sonho inocente, enquanto se despedia de todos.
Agradeci a Gatsby pela hospitalidade. Estávamos sempre lhe agradecendo por isso — eu e os outros.
— Adeus — eu gritei. — Adorei o café, Gatsby.
No trabalho, passei um tempo tentando listar as cotas de uma quantidade interminável de ações, mas acabei cochilando em minha cadeira giratória. Fui despertado pelo telefone pouco antes do meio-dia, e ergui o rosto empapado de suor. Era Jordan Baker; ela costumava me ligar àquela hora porque, de outro modo, suas perambulações em hotéis, clubes e casas de amigos tornariam impossível localizá-la. Em geral, sua voz ao telefone era revigorante e calma, como se um trecho de grama do campo de golfe entrasse voando pela janela do escritório, mas naquela manhã sua voz era seca e áspera.
— Não estou mais na casa de Daisy — ela disse. — Estou em Hempstead2 e vou para Southampton esta tarde.
Fora provavelmente educado de sua parte sair da casa de Daisy, mas aquilo me irritou, e seu comentário seguinte me deixou petrificado.
— Você não foi muito legal comigo ontem à noite.
— Teria feito alguma diferença?
Momento de silêncio. E então:
— Em todo caso, quero te ver.
— Eu também.
— Digamos que eu não vá a Southampton e apareça na cidade hoje à tarde?
— Não. Hoje à tarde não.
— Certo.
— Hoje à tarde é impossível. Vários...
Passamos um tempo nessa conversa, e então de repente não estávamos mais conversando. Não sei qual de nós desligou o telefone com um golpe seco, mas sei que não me abalei. Não conseguiria tomar um chá com Jordan naquela tarde, mesmo que jamais voltasse a vê-la nesta vida.
Liguei para Gatsby poucos minutos depois, mas deu ocupado. Tentei quatro vezes; por fim, uma exasperada telefonista da central me disse que a linha estava reservada para receber um interurbano de Detroit. Apanhando minha tabela de horários, fiz um pequeno círculo em torno do trem das quinze e cinquenta. Então me recostei na cadeira e tentei raciocinar. Ainda era meio-dia.
Naquela manhã, quando o trem passou pelas pilhas de cinzas, troquei deliberadamente de lado no vagão. Imaginei que haveria uma multidão de curiosos por ali, com garotinhos procurando manchas escuras em meio à poeira e uma porção de fofoqueiros repetindo várias vezes o que aconteceu, até que o incidente se tornasse menos real inclusive para eles e não houvesse mais como contá-lo, e assim o fim trágico de Myrtle Wilson fosse esquecido. Agora quero retroceder um pouco e narrar o que houve na oficina depois que saímos de lá, na noite anterior.
Foi com dificuldade que localizaram a irmã de Myrtle, Catherine. Naquela noite, ela deve ter quebrado sua promessa de não beber, pois quando chegou à oficina estava embotada de álcool e incapaz de entender que a ambulância já havia ido para Flushing.a Quando enfim conseguiram convencê-la, ela desmaiou imediatamente, como se essa fosse a parte mais intolerável da coisa toda. Por bondade ou curiosidade, algum desconhecido a levou de carro até o velório da irmã.
Até bem depois da meia-noite, uma multidão variável se amontoou na entrada da oficina, enquanto, lá dentro, George Wilson se balançava para a frente e para trás na cadeira do escritório. Houve um momento em que a porta se abriu, e ninguém resistiu a dar uma espiada. Por fim, alguém disse que aquilo era uma vergonha e fechou a porta. Michaelis e outros homens estavam com ele; no início, quatro ou cinco pessoas, e, depois, só duas ou três. Mais tarde, Michaelis teve que pedir ao último desconhecido restante que esperasse mais uns quinze minutos, enquanto ele ia para casa fazer um bule de café. Depois disso, ficou sozinho com Wilson até o amanhecer.
Por volta das três da madrugada, a natureza dos resmungos incoerentes de Wilson sofreu uma mudança — ele ficou mais quieto e passou a falar sobre o carro amarelo. Disse que tinha um meio de identificar o dono do carro, e então deixou escapar que, meses antes, sua esposa voltara da cidade com o rosto machucado e o nariz inchado.
Porém, ao perceber o que havia dito, ele se retraiu e voltou a gritar “Oh, meu Deus!” com sua voz lastimosa. Michaelis fez uma patética tentativa de distraí-lo.
— Vocês estavam casados havia quanto tempo, George? Olhe para mim, tente ficar parado um minuto e responda a minha pergunta. Há quanto tempo estavam casados?
— Vinte anos.
— Tiveram filhos? Vamos, George, sente-se direito, eu lhe fiz uma pergunta. Vocês tiveram filhos?
Uma porção de besouros marrons e cascudos insistia em bater contra a luz mortiça e, sempre que Michaelis ouvia um carro cortando a estrada, pensava naquele que não freara algumas horas antes. Ele não queria voltar para a oficina porque a mesa de trabalho trazia as manchas de onde estava o corpo, então perambulava desconfortavelmente pelo escritório — antes de amanhecer, já conhecia de cor todos os objetos — e, de vez em quando, sentava-se ao lado de Wilson na tentativa de acalmá-lo.
— Você vai a algum tipo de igreja, George? Mesmo que não a frequente mais? Talvez eu possa ligar e pedir para um padre vir falar com você. Que tal?
— Não tenho religião.
— Você devia ter, George, para ocasiões como esta. Provavelmente já foi à missa pelo menos uma vez. Não se casou numa igreja? Preste atenção, George, olhe para mim. Você não se casou numa igreja?
— Isso faz muito tempo.
O esforço de responder quebrou o ritmo de seu balanço — por um instante, ele ficou parado. Então aquela expressão meio consciente, meio perplexa, retornou aos seus olhos embotados.
— Abra aquela gaveta — ele disse, apontando para a escrivaninha.
— Qual delas?
— Aquela ali. Aquela.
Michaelis abriu a gaveta mais próxima. Não havia nada além de uma pequena e caríssima coleira de cachorro, feita de couro com tiras de prata. Parecia nova.
— Isto aqui? — ele perguntou, erguendo a coleira.
Wilson olhou para o objeto e assentiu com a cabeça.
— Encontrei ontem à tarde. Ela tentou me explicar o que era, mas eu sabia que havia algo suspeito.
— Quer dizer que a sua esposa comprou esta coleira?
— Estava em cima da cômoda, embrulhada em papel de seda.
Michaelis não viu nada de estranho naquilo e deu a Wilson uma dúzia de razões para a esposa ter feito a compra. Mas evidentemente ele já havia ouvido várias dessas explicações da boca de Myrtle, pois tornou a dizer “Oh, meu Deus” num sussurro — fazendo com que seu consolador deixasse no ar inúmeras outras explicações.
— Então ele a matou — disse Wilson. Sua boca escancarou-se de súbito.
— Quem?
— Tenho um jeito de descobrir.
— Você está sendo mórbido — disse o amigo. — Passou por uma situação terrível e não sabe o que está dizendo. É melhor ficar quieto por aqui até amanhecer.
— Ele a matou.
— Foi um acidente, George.
Wilson balançou a cabeça, em negativa. Estreitou os olhos e abriu ligeiramente a boca sugerindo um altivo “Hum!”.
— Eu sei — afirmou, num tom decidido. — Sou desses caras que confiam nos outros e não pensam mal de ninguém, mas quando fico sabendo de alguma coisa, é porque sei mesmo. Foi o homem daquele carro. Ela saiu correndo para falar com ele, mas ele não parou.
Michaelis havia presenciado a mesma cena, mas não lhe ocorrera dar-lhe um significado especial. Acreditava que a sra. Wilson estava fugindo do marido, e não tentando parar um automóvel específico.
— Mas como ela pode ter feito isso?
— Era uma mulher intensa — disse Wilson, como se isso respondesse à pergunta. — Ah-h-h...
Ele tornou a balançar na cadeira e Michaelis ficou de pé, girando a coleira na mão.
— Quem sabe eu possa telefonar para algum amigo seu, George?
Era uma tentativa desesperada — ele estava quase certo de que Wilson não tinha amigos: era completamente absorvido pela esposa. Pouco depois, ficou aliviado ao notar uma mudança na sala, uma luz azulada despontando na janela, e viu que a manhã não tardaria a chegar. Por volta das cinco horas, o ambiente ficou azul o bastante para poderem apagar a luz.
Os olhos vazios de Wilson se voltaram para as pilhas de cinzas, onde pequenas nuvens cinzentas assumiam formas fantásticas e corriam para lá e para cá com a brisa leve da manhã.
— Eu conversei com ela — Wilson balbuciou, após um longo silêncio. — Falei que ela podia me enganar, mas não podia enganar a Deus. Levei-a até a janela — ele fez um esforço para se levantar, andou até a janela dos fundos e pressionou o rosto contra o vidro — e lhe disse: “Deus sabe o que você está fazendo, tudo o que você faz. Você pode me enganar, mas não pode enganar a Deus!”.
De pé ao seu lado, Michaelis viu espantado que ele olhava para os olhos do dr. T. J. Eckleburg, que haviam acabado de surgir, desbotados e gigantescos, daquela noite que se dissipava.
— Deus está vendo tudo — repetiu Wilson.
— É só um outdoor — Michaelis lhe garantiu. Algo o fez afastar-se da janela e voltar a se concentrar na sala. Wilson, por sua vez, ficou ali por um bom tempo, o rosto colado à vidraça, assentindo para a penumbra.
Lá pelas seis horas, Michaelis estava exausto e ficou feliz de ouvir o som de um carro parando lá fora. Era um dos acompanhantes da noite anterior que havia prometido voltar, de modo que ele preparou um café da manhã para todos — que foi partilhado apenas entre ele e o desconhecido. Wilson estava mais calmo e Michaelis foi para casa dormir; assim que acordou, quatro horas depois, foi correndo para a oficina e Wilson não estava mais lá.
Seus passos — ele estava a pé — foram posteriormente traçados até Port Roosevelt e depois a Gad’s Hill,3 onde comprou um café e um sanduíche que não comeu. Ele devia estar cansado e andando muito lentamente, pois não chegou a Gad’s Hill antes do meio-dia. Até ali foi fácil rastrear seus passos — garotos aludiram a um homem “agindo feito doido” na rua e inúmeros motoristas se intimidaram com seu olhar assustador no acostamento da estrada. Então ele sumiu por completo durante três horas. A polícia, com base no que disse Michaelis, de que ele “tinha um jeito de descobrir”, supôs que ele estivesse peregrinando pelas oficinas da região, perguntando sobre um carro amarelo. Por outro lado, nenhum dono de garagem chegou a se apresentar na polícia, e talvez ele tivesse um jeito mais fácil e confiável de descobrir o que queria. Lá pelas duas e meia, foi visto em West Egg, onde perguntou o caminho para a casa de Gatsby. De modo que, àquela altura, ele já sabia o nome de Gatsby.
Às duas horas, Gatsby vestiu seu traje de banho e avisou o mordomo que, se alguém telefonasse, ele estaria na piscina. Parou na garagem para pegar um colchão inflável que alegrara seus convidados por todo o verão, e aceitou a ajuda do motorista para enchê-lo. Então deu instruções de que o conversível não fosse removido sob nenhuma circunstância — o que era estranho, pois o para-choque da frente precisava de reparos.
Gatsby apoiou o colchão nos ombros e foi caminhando em direção à piscina. Parou uma vez para ajeitá-lo, ao que o motorista lhe perguntou se precisava de ajuda, mas ele fez que não com a cabeça e desapareceu entre as árvores amareladas.
Ninguém telefonou, mas o mordomo ficou sem dormir esperando uma ligação até as quatro da tarde — muito tempo depois de haver alguém para recebê-la. Sou da opinião de que o próprio Gatsby estava ciente de que ninguém lhe telefonaria, e talvez nem se importasse mais. Se isso é verdade, deve ter percebido que perdera seu bom e velho mundo, pagando um preço alto por viver tanto tempo com um único sonho. Deve ter erguido os olhos para um céu desconhecido por entre as folhas ameaçadoras, e estremecido ao notar que a rosa é uma coisa grotesca e que a luz do sol castiga violentamente a grama que acaba de brotar. Um novo mundo, palpável sem ser real, onde vagavam pobres fantasmas, respirando sonhos como se fossem ar... como aquela figura cinzenta e fantástica que deslizava em sua direção por entre as árvores amorfas.
O motorista, que era um dos protegidos de Wolfshiem, ouviu os disparos — mais tarde confessou não ter dado importância ao barulho. Fui direto da estação à casa de Gatsby e minha escalada ansiosa pelos degraus da frente foi a primeira coisa que os deixou alarmados. Mas eles já sabiam, tenho certeza. Sem dizer praticamente nada, corremos os quatro (eu, o motorista, o mordomo e o jardineiro) rumo à piscina.
Havia um movimento débil e quase imperceptível na água conforme ela vertia de um cano, abrindo caminho rumo ao escoadouro na outra extremidade. Em meio a pequenas marolas que mal podiam ser chamadas de ondas, o colchão ocupado boiava à deriva. Uma breve rajada de vento que mal corrugaria a superfície da água era suficiente para perturbar acidentalmente seu trajeto já acidental. O cair das folhas o fazia girar lentamente, traçando, como a perna de um compasso, um fino círculo vermelho na água.
Foi só depois que saímos com o corpo de Gatsby em direção à casa que o jardineiro viu o cadáver de Wilson caído na grama, um pouco distante, e o holocausto estava completo.
a Flushing é um bairro do distrito de Queens, a oeste de Long Island, onde há um famoso cemitério.

9
Dois anos depois, lembro-me do resto daquele dia, e daquela noite, e do dia seguinte, apenas como uma sucessão interminável de policiais, fotógrafos e jornalistas que entravam e saíam da casa de Gatsby. Estendeu-se uma corda no portão principal e um policial ficava a postos para afastar os curiosos, mas os moleques logo descobriram que era possível entrar pelo meu quintal, de modo que sempre havia alguns deles apinhados e boquiabertos diante da piscina. Naquela tarde, alguém com ar convencido, talvez um detetive, usou a expressão “lunático” ao debruçar-se sobre o corpo de Wilson, e a súbita autoridade de sua voz deu o tom das notícias que saíram nos jornais da manhã seguinte.
Muitas dessas reportagens eram um pesadelo — grotescas, circunstanciais, sensacionalistas e mentirosas. Quando, no inquérito, Michaelis mencionou as suspeitas de Wilson sobre a esposa, pensei que a história toda viria à tona numa pasquinada eufórica — mas Catherine, que podia ter dito algo, não se manifestou. Ela também demonstrou um surpreendente traço de caráter — encarou o investigador com os olhos decididos sob as sobrancelhas desenhadas e jurou que a irmã nunca tinha visto Gatsby, que era completamente feliz com o marido e que jamais se comportara de forma duvidosa. Ela mesma se convenceu disso e chorou um lenço inteiro, como se a mera sugestão do ato fosse mais do que ela podia suportar. Wilson foi então reduzido a um homem “louco de tristeza”, para que o caso pudesse permanecer o mais simples possível. E ficou por isso mesmo.
Mas toda essa parte me parecia remota e desimportante. Eu era a única pessoa ao lado de Gatsby. A partir do momento em que liguei para a polícia de West Egg reportando a catástrofe, todas as conjecturas e questões práticas a seu respeito foram encaminhadas a mim. De início, fiquei surpreso e confuso; depois, como ele permanecia deitado, sem se mover ou falar, hora após hora, me dei conta de que eu era o responsável por Gatsby, pois ninguém mais estava interessado — quer dizer, interessado no sentido pessoal e intenso a que todo mundo teria o direito ao morrer.
Liguei para Daisy meia hora depois de encontrarmos o corpo, de forma instintiva e automática. Mas ela e Tom haviam partido no início da tarde, levando bagagem.
— Não deixaram nenhum endereço?
— Não.
— Nem disseram quando pretendem voltar?
— Não.
— Tem alguma ideia de para onde foram? Como posso entrar em contato com eles?
— Não sei. Não sei dizer.
Eu queria chamar alguém para ficar ao seu lado. Queria ir à sala onde ele estava e confortá-lo: “Vou arrumar alguém para ficar com você, Gatsby. Não se preocupe. Confie em mim e eu chamarei alguém para você...”.
O nome de Meyer Wolfshiem não estava na lista telefônica. O mordomo me deu seu endereço comercial na Broadway e liguei para o serviço de informações, mas, quando consegui o número, já passava das cinco e ninguém atendeu.
— Pode tentar mais uma vez, por favor?
— Já tentei três vezes.
— É muito importante.
— Me desculpe. Acho que não tem ninguém lá.
Retornei à sala de estar e pensei por um instante que todos aqueles policiais que enchiam a casa eram visitantes ocasionais. Porém, embora eles afastassem os lençóis e olhassem para Gatsby com um ar comovido, seu protesto seguiu ecoando na minha cabeça:
— Escute aqui, meu velho, você precisa arrumar alguém para ficar do meu lado. Precisa se esforçar. Não posso passar por isso sozinho.
Alguém começou a me fazer perguntas, mas saí correndo e subi as escadas, examinando apressadamente as partes destrancadas de sua escrivaninha — ele nunca havia me dito, com todas as palavras, que seus pais estavam mortos. Mas não havia nada — só o retrato de Dan Cody, testemunha de violências passadas, me encarando da parede.
Na manhã seguinte, mandei o mordomo a Nova York com uma carta para Wolfshiem, pedindo informações e rogando-lhe que viesse no próximo trem. Enquanto escrevia, o pedido me pareceu supérfluo. Eu tinha certeza de que ele viria correndo ao ver a notícia nos jornais, assim como tinha certeza de que Daisy me enviaria um telegrama antes do meio-dia — mas nem o telegrama nem o sr. Wolfshiem chegaram; ninguém apareceu além de mais policiais, fotógrafos e repórteres. Quando o mordomo trouxe de volta a resposta do sr. Wolfshiem, passei a nutrir um sentimento de desafio, de desprezo solidário a Gatsby contra todos eles.

Prezado sr. Carraway,
Foi um dos choques mais terríveis de minha vida, mal posso acreditar que é verdade. Um ato tão maluco assim nos faz pensar. No momento não posso ir até aí, pois estou ocupado com um negócio muito importante e não posso me envolver nisso agora. Se houver algo que eu possa fazer mais tarde, me envie uma carta através de Edgar. Sinto-me desnorteado ao ouvir notícias desse tipo, e estou completamente arrasado.
Atenciosamente,
meyer wolfshiem

E um rápido adendo, na sequência:

Me informe sobre o funeral e tudo o mais, pois não conheço ninguém da família.

Quando o telefone tocou naquela tarde, e a telefonista anunciou uma ligação interurbana de Chicago, pensei que finalmente seria Daisy. Mas do outro lado da linha havia uma voz masculina, muito débil e distante.
— Aqui é o Slagle...
— Pois não? — O nome me era desconhecido.
— Belo recado, não? Recebeu meu telegrama?
— Não recebi telegrama nenhum.
— O jovem Parke está em apuros — ele disse rapidamente. — Foi preso no instante em que entregava os títulos no guichê.1 Os policiais receberam uma circular de Nova York com todas as dicas cinco minutos antes. O que você sabe sobre isso, hein? Nunca se sabe o que vai acontecer nessas cidades do interior...
— Ei! — Eu interrompi, ofegante. — Escute, aqui não é o senhor Gatsby. O senhor Gatsby está morto.
Fez-se um longo silêncio do outro lado da linha, seguido por uma exclamação... e um breve chiado quando a conexão foi perdida.
Acho que foi no terceiro dia que chegou um telegrama assinado por Henry C. Gatz, vindo de uma cidade em Minnesota. Dizia apenas que o emissor estava a caminho e pedia que o funeral fosse adiado até sua chegada.
Era o pai de Gatsby, um velho solene, indefeso e consternado, metido num casaco comprido e barato em pleno calor de setembro. As lágrimas corriam incessantemente de seu rosto agitado e, quando apanhei sua mala e o guarda-chuva, ele passou a puxar a barba rala e grisalha com tanta força que tive dificuldade em lhe tirar o casaco. Ele estava à beira de um colapso, de modo que o levei à sala de música e pedi que se sentasse, enquanto lhe arrumava algo para comer. Mas ele não queria comer e suas mãos trêmulas derrubaram o copo de leite.
— Fiquei sabendo pelo jornal de Chicago — ele explicou. — A história inteira estava no jornal. Vim o mais rápido que pude.
— Eu não sabia como encontrá-lo.
Seus olhos vazios se moviam incessantemente pela sala.
— Foi um maluco — acrescentou. — Ele devia estar doido.
— Aceita um café? — perguntei.
— Não quero nada. Já estou melhor, senhor...
— Carraway.
— Bem, já estou melhor. Onde eles colocaram Jimmy?
Levei-o à sala de estar onde estava o corpo do filho, e o deixei por lá. Alguns moleques haviam vencido os degraus e espiavam o vestíbulo; quando lhes contei quem havia chegado, eles foram embora, relutantes.
Após um instante, o sr. Gatz abriu a porta e saiu da sala, a boca entreaberta, o rosto levemente ruborizado, as lágrimas brotando isoladas e dispersas. Ele chegara a uma idade em que a morte já não implicava necessariamente um choque intolerável e, quando olhou ao redor pela primeira vez e viu a grandiosidade e o esplendor do vestíbulo, além dos salões que se abriam em outras salas, o pesar se misturou a um orgulho assombrado. Ajudei-o a se instalar num quarto no andar de cima; enquanto ele tirava o casaco e o colete, informei que todos as providências haviam sido adiadas até sua chegada.
— Não sei bem o que você prefere, senhor Gatsby...
— Meu nome é Gatz.
— ...Senhor Gatz. Talvez o senhor queira levar o corpo de volta para o Oeste.
Ele balançou a cabeça em negativa.
— Jimmy sempre preferiu o Leste. Ele alcançou seu status aqui no Leste. Você era amigo do meu filho, senhor...?
— Sim, éramos muito próximos.
— Ele tinha um grande futuro pela frente, você sabe. Era muito jovem, mas tinha uma inteligência enorme.
Ele apontou para a própria cabeça e eu concordei.
— Se não tivesse morrido, seria um grande homem. Um sujeito como James J. Hill.2 Ele teria ajudado a construir o país.
— É verdade — eu disse, constrangido.
Gatz tateou a colcha bordada, tentando afastá-la da cama, e se deitou, rígido — dormindo na mesma hora.
Naquela noite, um sujeito obviamente assustado telefonou, perguntando-me quem eu era antes de se identificar.
— Aqui é o senhor Carraway — eu disse.
— Ah! — Ele parecia aliviado. — Aqui é o Klipspringer.
Também fiquei aliviado, pois era a esperança de mais um amigo de Gatsby no enterro. Eu não queria que o serviço saísse nos jornais e atraísse uma multidão de curiosos, então decidi chamar algumas pessoas por conta própria. Todas foram difíceis de encontrar.
— O funeral é amanhã — eu informei. — Às três da tarde, aqui na casa dele. Gostaria que você repassasse a informação para quem possa se interessar.
— Pode deixar — ele interrompeu, apressadamente. — Acho que não verei ninguém por esses dias, mas, se houver oportunidade...
Seu tom de voz me deixou desconfiado.
— Mas você vem, certo?
— Bem, certamente vou tentar. Liguei por causa de...
— Só um segundo — interrompi. — Que tal me dizer que vem com certeza?
— Bem, a verdade é que... Veja, estou hospedado na casa de uns amigos aqui em Greenwich3 e eles esperam que eu fique com eles amanhã. É que vai haver uma espécie de piquenique ou algo assim. É claro que farei o possível para dar uma escapada.
Soltei um “arrã” incontrolável que ele deve ter ouvido, pois prosseguiu nervosamente:
— Liguei porque esqueci um par de sapatos aí. Fico pensando se daria muito trabalho mandar o mordomo trazê-los. Veja bem, é um par de tênis, e eu fico meio indefeso sem eles. Envie aos cuidados de B. F....
Não escutei o resto do nome, pois bati o telefone.
Depois disso, senti muita pena de Gatsby — um certo cavalheiro a quem telefonei deu a entender que ele teve o que merecia. No entanto, a culpa foi minha, pois era um dos que costumavam zombar cruelmente de Gatsby à custa de sua bebida, e eu devia ter pensado melhor antes de lhe telefonar.
Na manhã do enterro, fui ver Meyer Wolfshiem em Nova York; não estava conseguindo contatá-lo de nenhuma outra forma. Na porta que eu empurrei, seguindo a indicação do ascensorista, estava escrito: “Suástica Companhia Holding”,4 e de início parecia não haver ninguém lá dentro. Mas, depois que gritei “olá?” várias vezes, em vão, uma discussão irrompeu atrás de uma divisória, e em seguida uma judia amável apareceu numa porta e me examinou com os olhos pretos e hostis.
— Não há ninguém aqui — ela disse. — O senhor Wolfshiem está em Chicago.
A primeira parte da afirmação era obviamente falsa, pois começaram a assobiar desafinadamente “The rosary” lá dentro.a
— Por favor, diga que o senhor Carraway está aqui para vê-lo.
— Não posso trazê-lo de Chicago, posso?
Naquele momento, uma voz, sem dúvida alguma de Wolfshiem, gritou “Stella!” do outro lado da porta.
— Deixe seu nome no balcão — ela disse rapidamente. — Eu lhe darei o recado assim que ele voltar.
— Mas eu sei que ele está aqui.
Ela deu um passo em minha direção e pôs a mão na cintura, indignada:
— Vocês, jovens, acham que podem chegar e entrar em qualquer lugar quando bem entendem — ela ralhou. — Já estamos perdendo a paciência. Quando eu digo que ele está em Chicago, é porque ele está em Chicago.
Mencionei o nome de Gatsby.
— Ah! — Ela me examinou outra vez. — Você podia... Qual é o seu nome?
Ela desapareceu. Num instante Meyer Wolfshiem apareceu solenemente na porta, com os braços estendidos. Levou-me ao seu escritório, observando com um tom de voz reverente que era um momento triste para todos nós, e me ofereceu um charuto.
— Lembro-me do dia em que o conheci — ele contou. — Um jovem major recém-saído do Exército e coberto de condecorações de guerra. Estava tão falido que precisava continuar usando o uniforme, pois não tinha como comprar roupas normais. Na primeira vez em que o vi, ele estava no bilhar Winebrenner, na rua 43, pedindo emprego. Não se alimentava havia vários dias. “Venha almoçar comigo”, eu disse. Em meia hora ele devorou mais de quatro dólares em comida.
— Você iniciou Gatsby nos negócios?
— Não só isso. Eu o criei.
— Ah.
— Ergui-o do nada, direto da sarjeta. Vi na hora que era um jovem de boa aparência, educado, e quando me contou que havia frequentado Oggsford, soube que me seria muito útil. Consegui que ele ingressasse na Legião Americana, onde formou sua reputação. Imediatamente fez um trabalho para um cliente meu em Albany. Ficamos assim — ele esfregou os dois indicadores inchados —, sempre próximos em tudo.
Fiquei imaginando se essa parceria incluía a manipulação da World’s Series de 1919.
— Agora ele está morto — eu falei, após um instante. — Você era seu amigo mais próximo, então sei que gostaria de ir ao funeral hoje à tarde.
— Gostaria, sim.
— Bem, então venha.
Os pelos de seu nariz tremularam de leve, e seus olhos se encheram de lágrimas conforme ele balançava a cabeça:
— Não posso. Não posso me envolver nisso — disse.
— Não há nada com que se envolver. Está tudo acabado.
— Quando um homem é assassinado, não gosto de me meter de forma alguma. Fico de fora. Em meus anos de juventude, era diferente: se um amigo meu morria, não importava como, eu ficava ao seu lado até o fim. Você pode achar piegas, mas é verdade: até o mais amargo fim.
Percebi que, por uma razão desconhecida, ele estava decidido a não ir ao enterro, então me levantei.
— Você foi à universidade? — ele me perguntou de repente.
Por um instante, pensei que ele iria me propor “um licação nas necócios”, mas apenas assentiu com a cabeça e apertou minha mão.
— É preciso demonstrar a amizade quando a pessoa ainda está viva, e não depois que morreu — observou. — Quando isso ocorre, minha regra particular é deixar tudo para trás.
Quando saí do escritório, o céu havia escurecido e tive que voltar a West Egg debaixo de chuva. Após trocar de roupa, fui à casa ao lado e encontrei o sr. Gatz andando de lá para cá no vestíbulo, muito agitado. O orgulho do filho e de suas posses crescia cada vez mais, e agora ele queria me mostrar uma coisa.
— Jimmy me mandou esta foto. — Com os dedos trêmulos, ele tirou a carteira do bolso. — Veja só.
Era uma foto da casa, lascada nos cantos e repleta de impressões digitais. Ele me mostrou cada detalhe com avidez. “Veja só!”, e procurava sinais de admiração em meus olhos. Gatz já havia se gabado tanto daquela foto que, a seus olhos, ela devia ser mais real do que a própria casa.
— Jimmy me mandou pelo correio. Acho que é uma foto muito bonita. Causa boa impressão.
— Ótima. Quando foi a última vez que o viu?
— Ele foi me visitar há dois anos e comprou a casa onde moro hoje. É claro que estava falido quando saiu de casa, mas vejo agora que havia um motivo. Ele sabia que tinha um grande futuro pela frente. E assim que sua vida deu certo, foi muito generoso comigo.
Ele parecia relutante em guardar a foto e a segurou por mais um minuto, demoradamente, diante dos meus olhos. Então a devolveu à carteira e tirou do bolso uma edição surrada e velha de um livro chamado Hopalong Cassidy.5
— Veja só, ele lia isto quando era garoto. Este livro diz tudo.
Gatz abriu o livro pela contracapa e o virou para o meu lado. Na última folha de guarda, havia a palavra agenda e a data 12 de setembro de 1906. E embaixo:

Levantar da cama ...... 6h
Musculação e escalada ...... 6h15 às 6h30
Estudar eletricidade etc. ...... 7h15 às 8h15
Trabalhar ...... 8h30 às 16h30
Beisebol e esportes ...... 16h30 às 17h
Praticar oratória, postura e como alcançá-la ...... 17h às 18h
Estudar invenções necessárias .... 19h às 21h

resoluções gerais
Não perder tempo no Shafters e no [nome indecifrável]
Parar de fumar e mascar chicletes
Tomar banho em dias alternados
Ler um livro ou revista edificante por semana
Economizar 5 dólares 3 dólares por semana
Tratar melhor os meus pais

— Achei este livro por acaso — disse o velho. — Ele diz tudo, não é?
— É mesmo.
— Jimmy estava destinado ao sucesso. Sempre vinha com resoluções ou coisas do tipo. Você reparou no que ele disse sobre aprimorar o intelecto? Ele fazia isso muito bem. Certa vez, disse que eu comia feito um porco, então eu bati nele.
Gatz relutou em fechar o livro, lendo cada item em voz alta e olhando avidamente para mim. Acho que ele esperava que eu copiasse a lista para usá-la em meu proveito.
Pouco antes das três, o ministro luterano veio de Flushing e eu passei a olhar mecanicamente pela janela, à espera de outros automóveis. O pai de Gatsby também. Conforme o tempo passava e os empregados apareciam e se punham a postos no vestíbulo, seus olhos começaram a piscar com inquietação e ele falou da chuva de um jeito preocupado e hesitante. O ministro consultou várias vezes o relógio, de modo que o chamei de lado e pedi que esperasse mais meia hora. Mas não adiantou. Ninguém apareceu.
Lá pelas cinco horas, nossa procissão de três veículos chegou ao cemitério e parou ao lado do portão, sob um denso chuvisco — primeiro o carro fúnebre, terrivelmente negro e molhado, depois a limusine em que estávamos eu, o sr. Gatz e o ministro, e em seguida a caminhonete de Gatsby, de onde saíram quatro ou cinco empregados e o carteiro de West Egg, molhados até os ossos. Quando ultrapassamos o portão e entramos no cemitério, ouvi o barulho de um carro estacionando e o som de alguém chapinhando no nosso encalço através do chão empapado. Olhei para trás. Era o homem com os óculos de coruja que eu encontrara três meses antes admirando os livros da biblioteca de Gatsby.
Eu não tornara a vê-lo desde então. Não sei como ficou sabendo do funeral, tampouco sei seu nome. A chuva toldava seus óculos de lentes grossas; ele os tirou do rosto para enxugá-los e ver a lona protetora sendo desenrolada sobre a cova de Gatsby.
Tentei pensar em Gatsby por um momento, mas ele já se achava muito distante. Além disso, não conseguia deixar de pensar, sem ressentimentos, que Daisy não mandara nenhuma mensagem ou flores. Ouvi alguém sussurrar vagamente: “Abençoados os mortos sobre os quais cai a chuva”, e o homem com os óculos de coruja respondeu: “Amém”, numa voz firme.
Dispersamo-nos rapidamente pela chuva, em direção aos carros. No portão, o homem com os óculos de coruja veio falar comigo.
— Não pude ir ao velório — ele observou.
— Ninguém pôde.
— Não diga! — ele exclamou. — Por quê, meu Deus? Eles costumavam aparecer às centenas.
Ele tirou os óculos do rosto e os enxugou outra vez, de ambos os lados.
— Aquele pobre filho da puta — disse.
Uma das minhas lembranças mais vivas é a de voltar para casa no Natal, vindo da escola e, mais tarde, da faculdade. Os que iam além de Chicago se reuniam na velha e obscura Union Station às seis horas de uma noite de dezembro, junto a alguns amigos locais, já envolvidos em suas próprias festividades de Natal, para uma breve despedida. Lembro-me dos casacos de pele das garotas saídas do colégio da sra. Fulana ou Sicrana, das conversas com a respiração congelada, dos acenos ao divisar velhos conhecidos, dos preparativos de fim de ano: “Você vai ficar na casa dos Ordway? Nos Hersey? Nos Schultze?”, e dos compridos bilhetes verdes bem seguros em nossas mãos enluvadas. E, por fim, lembro-me dos vagões amarelados e escuros da ferrovia de Chicago, Milwaukee e St. Paul, parados nos trilhos ao lado do portão, tão alegres quanto o próprio Natal.
Assim que adentrávamos a noite de inverno e a neve de verdade, a nossa neve, começava a cair lá fora e cintilar contra as janelas, e as luzes débeis das pequenas estações de Wisconsin iam passando, uma súbita sensação revigorante surgia no ar. Respirávamos fundo para absorvê-la conforme voltávamos do jantar através dos vestíbulos frios, indescritivelmente conscientes, por uma estranha hora, de nossa identificação com essa região, antes de nos misturarmos a ela outra vez.
É esse o meu Meio-Oeste — não o dos campos de trigo, das pradarias ou das cidades perdidas dos suecos,b mas dos retornos emocionantes de trem da minha juventude, dos postes de luz e dos sinos na escuridão glacial, e das sombras de guirlandas refletidas na neve pelas janelas iluminadas. Sou parte disso, e um tanto cerimonioso com a lembrança daqueles longos invernos, um tanto indulgente por ter crescido na casa dos Carraway, numa cidade onde as residências ainda são chamadas pelo nome da família, há décadas. Hoje percebo que, afinal, esta é uma história do Oeste — Tom, Gatsby, Daisy, Jordan e eu éramos todos do Oeste, e talvez tivéssemos uma deficiência em comum que nos tornava sutilmente inadaptáveis para a vida no Leste.
Mesmo quando o Leste me empolgava, mesmo quando eu estava totalmente ciente de sua superioridade diante das cidades entediantes, dispersas e inchadas para além de Ohio, com suas intermináveis inquisições que poupavam apenas as crianças e os muito velhos — mesmo então, o Leste tinha para mim um caráter distorcido. Sobretudo West Egg, que ainda figura em meus sonhos mais fantásticos. Vejo-a como uma cena noturna de El Greco: centenas de casas a um só tempo convencionais e grotescas, apinhadas sob um céu carrancudo e ameaçador e uma lua pálida. Em primeiro plano, quatro homens sérios de terno caminham pela calçada levando uma maca com uma mulher bêbada num vestido branco de noite. Pendendo para o lado da maca, sua mão resplandece de joias. Sombriamente, o cortejo se dirige a uma casa — a casa errada. Mas ninguém sabe o nome da mulher e ninguém se importa.
Após a morte de Gatsby, o Leste me pareceu assim amaldiçoado, distorcido para além do poder corretivo de meus olhos. Assim, quando a névoa azulada das folhas secas subiu ao ar e o vento castigou as roupas endurecidas no varal, decidi que era hora de voltar para casa.
Havia algo a ser feito antes de partir, algo embaraçoso e desagradável que talvez fosse melhor ter sido esquecido. Mas eu queria deixar as coisas em ordem e não apenas confiar que esse mar prestativo e indiferente levasse para longe a bagunça que deixei para trás. Fui ver Jordan Baker e falei longamente sobre o que se passara entre nós, e o que acontecera comigo em seguida, e ela ficou o tempo todo escutando em absoluto silêncio numa cadeira larga.
Ela vestia um traje de golfe, e me lembro de ter achado que daria uma boa ilustração, o queixo ligeiramente erguido com elegância, os cabelos da cor das folhas de outono, o rosto com o mesmo matiz castanho da luva sem dedos largada em seu joelho. Quando terminei, ela me contou, sem maiores comentários, que estava noiva de outro homem. Eu duvidava disso, embora houvesse vários homens com quem ela poderia se casar só com um aceno de cabeça, mas fingi estar surpreso. Por um minuto, imaginei se não estava cometendo um erro, então repensei tudo rapidamente e me levantei para dizer adeus.
— Em todo caso, foi você que me dispensou — disse Jordan de repente. — Você me dispensou por telefone. Não dou a mínima para você agora, mas naquela época foi uma experiência nova e me senti um pouco desnorteada.
Nós nos cumprimentamos.
— Ah, e você se lembra — ela acrescentou — de uma conversa que tivemos uma vez sobre direção?
— Por quê? Não exatamente.
— Você disse que um mau motorista só está seguro até encontrar outro mau motorista, certo? Bem, eu encontrei outro mau motorista, não? Quer dizer, fui descuidada ao fazer uma aposta tão errada. Pensei que você fosse uma pessoa honesta e justa. Pensei que fosse esse o seu orgulho secreto.
— Eu tenho trinta anos — respondi. — Há cinco anos já passei da idade de poder mentir para mim mesmo e chamar isso de honra.
Ela não respondeu. Zangado e um pouco apaixonado por ela, além de tremendamente arrependido, fui embora.

Certa tarde, no fim de outubro, vi Tom Buchanan. Ele estava caminhando à minha frente pela Quinta Avenida com seu jeito alerta e agressivo, as mãos um pouco afastadas do corpo como se para evitar o contato, a cabeça balançando para lá e para cá, adaptando-se aos seus olhos impacientes. Assim que eu diminuí o passo para evitar alcançá-lo, ele parou e franziu a testa em direção à vitrine de uma joalheria. De súbito, ele me viu e aproximou-se com a mão estendida.
— Qual é o problema, Nick? Não vai apertar minha mão?
— Não. Você sabe o que penso de você.
— Você está louco, Nick — ele disse rapidamente. — Louco de pedra. Não sei qual o seu problema.
— Tom — eu perguntei —, o que você disse a Wilson naquela tarde?
Ele me encarou sem dizer palavra, e eu sabia que estava certo sobre aquelas horas inexplicadas. Fiz menção de ir embora, mas ele se adiantou e agarrou o meu braço.
— Eu lhe contei a verdade — ele disse. — Wilson apareceu quando estávamos prestes a partir e, quando mandei avisar que não estávamos, tentou forçar o caminho subindo as escadas. Estava louco o bastante para me matar, caso eu não lhe tivesse contado quem era o dono do carro. Ele não largou o revólver o tempo todo em que esteve na casa... — Ele fez uma pausa desafiadora. — E se eu tivesse mesmo contado? Aquele sujeito fez por merecer. Ele jogou areia nos seus olhos assim como fez com Daisy, mas era um cara durão. Ele atropelou Myrtle como se fosse um cachorro e nem parou o carro.
Não havia nada que eu pudesse dizer além de algo indizível: era tudo mentira.
— E se você acha que eu não tive a minha cota de sofrimento... Veja só, quando fui me desfazer daquele apartamento e vi aquela maldita caixa de biscoitos de cachorro no aparador, eu sentei e chorei como um bebê. Por Deus, foi horrível...
Eu nunca seria capaz de perdoá-lo ou de gostar dele, mas vi que seus atos eram, a seus olhos, inteiramente justificáveis. Tudo decorrera de forma descuidada e confusa. Eles eram todos descuidados e confusos. Eram descuidados, Tom e Daisy — esmagavam coisas e criaturas e depois se protegiam por trás da riqueza ou de sua vasta falta de consideração, ou o que quer que os mantivesse juntos, e deixavam os outros limparem a bagunça que eles haviam feito...
Apertei a mão de Tom; me pareceu tolo não fazê-lo, pois tive a súbita impressão de que estava lidando com uma criança. Então ele entrou na joalheria para comprar um colar de pérolas — ou talvez apenas um par de abotoaduras —, livre para sempre da minha sensibilidade provinciana.
A mansão de Gatsby ainda estava desocupada quando fui embora — a grama do jardim havia crescido até alcançar a minha. Um certo taxista do centro admitiu nunca ter feito uma corrida que passasse por ali sem encostar um minuto e apontar para a mansão; talvez tivesse sido ele quem levou Daisy e Gatsby até East Egg na noite do acidente, e talvez tenha inventado uma história por conta própria. Eu não queria escutá-la e evitei sua companhia ao descer do trem.
Decidira passar as noites de sábado em Nova York, pois aquelas festas resplandecentes e estonteantes de Gatsby permaneciam comigo tão nitidamente que eu ainda podia ouvir música e risadas de seu jardim, fracas e incessantes, e os carros indo e vindo pela entrada da casa. Certa noite, ouvi um carro de verdade por lá, e vi seus faróis iluminando os degraus da entrada. Mas não cheguei a investigar. Era provavelmente um derradeiro conviva que estivera fora o tempo todo, viajando nos confins do mundo, e não sabia que a festa havia acabado.
Na última noite, com as malas prontas e o carro vendido ao dono da mercearia, voltei para admirar outra vez aquele gigantesco e incoerente fracasso de residência. Sobre os degraus brancos, uma palavra obscena rabiscada por algum moleque com um caco de tijolo se destacava à luz do luar, e eu a apaguei, esfregando os sapatos com força na pedra. Então perambulei até a praia e me estiquei na areia.
Àquela hora da noite, os estabelecimentos ao longo da costa estavam fechados e já não havia quase nenhuma luz, exceto o brilho obscuro e indefinido de uma barca cruzando o estreito. Conforme a lua subia no céu, as casas insignificantes passaram a se dissolver até que, pouco a pouco, meus pensamentos desaguaram na antiga ilha selvagem que surgira aos olhos dos marinheiros holandeses neste exato lugar — o seio verde e frondoso de um Novo Mundo. Suas árvores extintas, aquelas que cederam lugar à casa de Gatsby, outrora estimularam os sonhos derradeiros e mais ambiciosos dos homens; por um momento transitório e mágico, alguém deve ter prendido o fôlego à vista deste continente, compelido a uma contemplação estética que não compreendia e tampouco desejava, face a face, pela última vez na história, com algo proporcional à sua capacidade de maravilhar-se. Enquanto estava ali, remoendo esse velho e desconhecido mundo, pensei no assombro de Gatsby ao ver pela primeira vez a luz verde da extremidade do cais de Daisy. Ele havia percorrido um caminho enorme até chegar a esse jardim azulado, e seu sonho lhe deve ter parecido tão próximo que dificilmente o deixaria escapar. O que ele não sabia é que já estava fora de seu alcance, em algum ponto da vasta obscuridade que seguia além da cidade, onde os campos escuros da república se estendiam através da noite.
Gatsby acreditava na luz verde, no futuro orgástico que, ano após ano, costuma recuar diante de nós. Ontem fomos iludidos, mas não importa — amanhã correremos mais rápido, esticando nossos braços mais além... E numa bela manhã...
E assim avançamos, botes contra a corrente, impelidos incessantemente de volta ao passado.
Nas manhãs de domingo, enquanto os sinos das igrejas repicavam nos vilarejos ao longo da costa, todos retornavam à casa de Gatsby com suas respectivas acompanhantes e passeavam alegremente pelo gramado.
— Ele é contrabandista de bebidas1 — diziam as moças, movendo-se entre os coquetéis e as flores de seu anfitrião. — Uma vez, matou um homem que descobriu que ele era sobrinho de Von Hindenburg2 e primo em segundo grau do diabo. Faça o favor de me alcançar o vinho rosé, querida, e me sirva um último gole naquela taça de cristal.
Certa vez, preenchi os espaços vazios de uma agenda com os nomes dos convidados de Gatsby naquele verão. Agora é uma agenda antiga, esfarelando nas dobras, com o título: “Agenda em vigor: 5 de julho de 1922”. Mas ainda consigo ler os nomes em cinza e estes lhes darão uma impressão mais exata, superior às minhas generalidades, daqueles que aceitavam a hospitalidade de Gatsby e a retribuíam com o sutil tributo de não saberem nada a seu respeito.
De East Egg, portanto, vinham os Chester Becker e os Leech, além de um homem chamado Bunsen, que conheci em Yale, e o dr. Webster Civet, que morreu afogado no verão passado em Maine. Também havia os Hornbeam, os Willie Voltaire e um clã inteiro chamado Blackbuck, que tinha o costume de se agrupar num canto e empinar o nariz feito um bando de cabras a qualquer um que se aproximasse. E os Ismay e os Chrystie (ou melhor, Hubert Auerbach e a esposa do sr. Chrystie) e Edgar Beaver, cujo cabelo, dizem, ficou totalmente branco numa tarde de inverno, sem nenhuma razão.
Clarence Endive era de East Egg, pelo que eu me lembro. Ele veio uma vez só, metido num par de knickerbockers brancas,a e meteu-se numa briga no jardim com um mendigo chamado Etty. De pontos mais afastados da ilha vinham os Cheadle e os O. R. P. Schraeder, e os Stonewall Jackson Abram da Geórgia, e os Fishguard e os Ripley Snell. O velho Snell frequentou a casa de Gatsby três dias antes de ir preso, cambaleando tão bêbado pela estrada de cascalho que o automóvel da sra. Ulysses Swett passou por cima de sua mão direita. Os Dancie também compareciam, assim como S. B. Whitebait, que já havia passado dos sessenta, e Maurice A. Flink, os Hammerhead e Beluga, o importador de tabaco, acompanhado das filhas.
De West Egg vinham os Pole, os Mulready e Cecil Roebuck e Cecil Schoen e Gulick, o senador do estado, e Newton Orchid, que dirigia a Films Par Excellence, e Eckhaust e Clyde Cohen e Don S. Schwartz (o filho) e Arthur McCarty, todos de algum modo ligados à indústria do cinema. E os Catlip e os Bemberg e G. Earl Muldoon, irmão daquele Muldoon que posteriormente estrangulou a esposa. O promotor Da Fontano também era habitué, além de Ed Legros e James B. (“Rot-Gut”)b Ferret e os De Jong e Ernest Lilly — estes vinham para apostar e, quando Ferret era visto perambulando pelo jardim, significava que ele perdera tudo e que as ações da Associated Traction teriam que lucrar muito no dia seguinte.
Um homem chamado Klipspringer frequentava Gatsby com tamanha assiduidade que ficara conhecido como “o hóspede” — duvido que ele tivesse outra residência. Da classe teatral compareciam Gus Waize e Horace O’Donavan e Lester Myer e George Duckweed e Francis Bull. De Nova York vinham os Chrome e os Backhysson e os Dennicker e Russel Betty e os Corrigan e os Kelleher e os Dewar e os Scully e S. W. Belcher e os Smirke e os rapazes Quinn, agora divorciados, e Henry L. Palmetto, que se suicidou saltando na frente do trem do metrô em Times Square.
Benny McClenahan sempre chegava com quatro garotas. Que nunca eram as mesmas fisicamente, mas eram tão idênticas umas às outras que inevitavelmente pareciam repetir-se. Esqueci seus nomes — Jaqueline, eu acho, ou Consuela, ou Gloria ou Judy ou June, e seus sobrenomes variavam entre melodiosos nomes de flor ou de mês e os austeros sobrenomes dos maiores capitalistas do país, com quem elas, pressionadas, confessariam ter algum parentesco.
Além de todas essas pessoas, lembro-me de que Faustina O’Brien compareceu pelo menos uma vez, e também as garotas Baedeker e o jovem Brewer, que teve seu nariz arrancado na guerra, e o sr. Albrucksburger e a srta. Haag, sua noiva, e Ardita FitzPeters e o sr. P. Jewett, ex-diretor da Legião Americana, e a srta. Claudia Hip, com um homem que se dizia seu motorista, e um príncipe de algum lugar, que chamávamos de Duke, e de cujo nome eu me esqueci, se é que já cheguei a saber.
Toda essa gente frequentava a casa de Gatsby no verão.
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Às nove horas de uma manhã do fim de julho, o luxuoso carro de Gatsby veio sacolejando pela estrada pedregosa e alcançou o meu portão, emitindo uma melodia súbita com sua buzina de três notas. Era a primeira vez que ele me visitava, embora eu já tivesse comparecido a duas de suas festas, passeado em seu hidroavião e, após muita insistência, frequentado sua praia particular sistematicamente.
— Bom dia, meu velho. Já que vamos almoçar juntos, pensei que podíamos dar um passeio antes.
Ele se equilibrava sobre o para-choque do automóvel com aquela engenhosidade de movimentos tipicamente americana — que vem, eu suponho, da ausência de trabalho braçal na juventude e, mais ainda, da graciosidade disforme de nossos esportes nervosos e esporádicos. Essa característica vivia transbordando de sua conduta meticulosa sob a forma de inquietação. Ele nunca estava totalmente parado; havia sempre um tamborilar de dedos em algum lugar, ou o abrir e fechar impaciente de uma mão.
Ele me viu olhando com admiração para seu carro.
— É uma beleza, não é, meu velho? — Ele se afastou para me dar uma visão melhor. — Ainda não tinha visto o meu carro?
Eu já o tinha visto. Assim como todo mundo. Era de uma intensa cor creme e um brilho niquelado, avultado aqui e ali em seu comprimento já enorme por caixas de chapéus, de comida e de ferramentas, e encimado por um labirinto de para-brisas que refletiam uma dúzia de sóis. Sentados atrás de muitas camadas de vidro, sob uma espécie de capota esverdeada de couro, partimos em direção à cidade.
No decorrer daquele mês, havia conversado com Gatsby meia dúzia de vezes e descobrira, para minha decepção, que ele tinha pouco a dizer. De modo que a minha primeira impressão, de que ele era uma pessoa de importância indefinida, havia progressivamente desaparecido e ele se tornara apenas o proprietário da exagerada mansão ao meu lado.
Então veio aquela desconcertante carona. Ainda não havíamos alcançado West Egg quando Gatsby decidiu deixar inconclusas suas frases elegantemente formadas, batendo com hesitação no joelho de sua calça cor de caramelo.
— Escute aqui, meu velho — ele irrompeu de maneira imprevista —, qual é a sua opinião sobre mim, afinal?
Um tanto coagido, recorri às evasivas generalizadas que a pergunta exigia.
— Bem, vou lhe contar algo sobre a minha vida — ele interrompeu. — Não quero que você tenha uma ideia errada de mim a partir dessas histórias que ouve.
Então ele estava por dentro das acusações bizarras que davam sabor às conversas em sua casa.
— Por Deus, o que eu vou lhe contar é a mais pura verdade. — Sua mão direita ergueu-se repentinamente para pedir que o castigo divino o atestasse. — Sou filho de uma família rica do Meio-Oeste, todos já falecidos. Fui criado nos Estados Unidos, mas educado em Oxford porque foi lá que meus antepassados sempre estudaram. É uma tradição familiar.
Ele me fitou com o canto do olho — e eu soube imediatamente por que Jordan Baker achara que ele estava mentindo. Gatsby acelerou as palavras “educado em Oxford”, ou mesmo as engoliu, sufocando-as, como se isso já lhe tivesse causado problemas no passado. Diante dessa hesitação, seu depoimento inteiro caiu por terra, e fiquei imaginando se não havia algo de estranho naquele sujeito, afinal de contas.
— Que parte do Meio-Oeste? — perguntei casualmente.
— San Francisco.
— Ah.
— Minha família inteira morreu e eu herdei uma fortuna.
Seu tom de voz era solene, como se a lembrança da súbita extinção de um clã ainda o assombrasse. Por um momento, julguei que ele estivesse brincando, mas só de fitá-lo me convenci do contrário.
— Depois disso, vivi como um jovem rajá em todas as capitais da Europa: Paris, Veneza, Roma. Colecionei joias, principalmente rubis, cacei animais de grande porte e pintei um pouco, tudo por prazer, na tentativa de esquecer uma coisa triste que me acontecera tempos antes.
Com algum esforço, consegui conter uma risada incrédula. As próprias frases soavam tão gastas que não me evocavam imagem alguma, exceto a de um “personagem” de turbante que exalava serragem por todos os poros enquanto perseguia um tigre pelo Bois de Boulogne.
— Então veio a guerra, meu velho. Foi um grande alívio e eu fiz o máximo possível para morrer, mas parecia ter uma vida enfeitiçada. Quando o conflito começou, aceitei o posto de primeiro-tenente. Na floresta de Argonne, assumi o comando dos poucos soldados que restaram no meu batalhão de artilharia e avancei tanto que se formou, de ambos os lados, um vácuo de oitocentos metros por onde a infantaria não conseguia penetrar. Permanecemos ali por dois dias e duas noites, cento e trinta homens com dezesseis metralhadoras Lewis e, quando a infantaria enfim chegou, encontraram a insígnia de três divisões alemãs entre as pilhas de mortos. Fui promovido a major e todos os governos aliados me condecoraram. Inclusive Montenegro, a pequena Montenegro, em pleno mar Adriático!
Pequena Montenegro! Ele enfatizou essas palavras e assentiu com a cabeça — abrindo um sorriso. Aquele sorriso abarcava toda a história atribulada de Montenegro e se solidarizava com as bravas lutas do povo montenegrino. Apreciava sem restrições a cadeia de circunstâncias nacionais que propiciara esse tributo do pequeno e cálido coração nativo. Minha incredulidade agora se transformara em fascínio; era como folhear atabalhoadamente uma dúzia de revistas.
Ele meteu a mão no bolso e me mostrou um pedaço de metal pendurado numa fita.
— Esta é a de Montenegro.
Para o meu espanto, a coisa tinha um ar de autenticidade. “Orderi di Danilo”, dizia a legenda circular: “Montenegro, Nicolas Rex”.3
— Vire a medalha.
— Major Jay Gatsby — eu li. — Pelo extraordinário heroísmo.
— Aqui tem outra coisa que eu sempre carrego. Uma lembrança dos tempos de Oxford. Foi tirada no Trinity Quad.c Esse homem à minha esquerda é hoje conde de Doncaster.
Era uma fotografia de meia dúzia de rapazes de blazer reunidos sob uma arcada com uma porção de pináculos ao fundo. Lá estava Gatsby, parecendo um pouco (nem tanto) mais jovem, com um taco de críquete na mão.
Então era tudo verdade. Pude vislumbrar as peles de tigre expostas em seu palazzo no Grande Canal; vi Gatsby abrindo um baú de rubis que serviam para confortar, com suas profundezas vermelhas, os tormentos de seu coração partido.
— Vou lhe pedir um grande favor hoje — ele disse, guardando com satisfação seus suvenires no bolso —, então achei que você deveria saber algo a meu respeito. Não queria que pensasse que eu era um ninguém. Veja, sempre estive entre estranhos porque ando pelo mundo tentando esquecer as coisas tristes que me aconteceram. — Ele hesitou. — Você vai ficar sabendo hoje à tarde.
— No almoço?
— Não, depois. Acontece que eu fiquei sabendo que você vai levar a senhorita Baker para tomar um chá.
— Quer dizer que você está apaixonado pela senhorita Baker?
— Não, meu velho, não é isso. Mas a senhorita Baker consentiu gentilmente em lhe falar sobre esse assunto.
Eu não tinha a mais vaga ideia do que era “esse assunto”, mas estava mais irritado do que interessado. Eu não havia convidado Jordan para o chá a fim de conversar sobre o sr. Jay Gatsby. Tinha certeza de que o favor seria algo absolutamente grandioso, e por um instante me arrependi de ter botado os pés naquele gramado superpovoado.
Ele não me diria mais nenhuma palavra. Sua correção ia crescendo conforme nos aproximávamos da cidade. Passamos por Port Roosevelt,4 onde tivemos vislumbres de navios transatlânticos com faixas vermelhas, e aceleramos ao longo de um cortiço de paralelepípedos, ladeado por tabernas abarrotadas e escuras com aquele dourado opaco do começo do século. Então o vale das cinzas se abriu de ambos os lados e, enquanto passávamos, tive um vislumbre da sra. Wilson debruçada na bomba de gasolina com ofegante vitalidade.
Com os para-choques abertos feito asas, lançamos luz em metade de Astoria — apenas metade, pois enquanto fazíamos o retorno entre as pilastras do elevado, ouvi o familiar “vrum-vrum-paf!” de uma moto e um policial frenético encostando em nosso carro.
— Certo, meu velho — gritou Gatsby. Nós desaceleramos. Sacando um cartão branco da carteira, ele o abanou diante do homem.
— Está tudo bem — concordou o policial, acenando com o quepe. — Da próxima vez, prometo reconhecê-lo, senhor Gatsby. Mil desculpas!
— O que era isso? — eu perguntei. — A foto de Oxford?
— Certa vez fiz um favor para o comissário, e desde então ele me manda todos os anos um cartão de Natal.
Atravessamos a magnífica ponte, com a luz do sol através das vigas produzindo uma ondulação constante sobre os carros em movimento, enquanto a cidade se erguia para além do rio em pilhas brancas e torrões de açúcar, construída num puro desejo incorruptível. A partir da ponte Queensboro,d a cidade é sempre vista como pela primeira vez, em sua primeira e louca promessa de todos os mistérios e belezas do mundo.
Um homem morto passou ao nosso lado num carro fúnebre atulhado de flores, seguido por duas carruagens com a cortina abaixada e outras conduções mais animadas que transportavam os amigos do morto. Eles nos olharam com os olhos trágicos e os finos lábios superiores típicos do Sudeste europeu, e fiquei feliz em saber que a visão do esplêndido automóvel de Gatsby fora agora incluída em seu passeio sombrio. Enquanto cruzávamos a ilha de Blackwell,e uma limusine nos ultrapassou, conduzida por um motorista branco e ocupada por três negros modernos, dois rapazes e uma moça. Soltei uma gargalhada alta quando suas órbitas amareladas se revolveram para nós, em esnobe rivalidade.
“Tudo pode acontecer agora que cruzamos esta ponte”, eu pensei, “tudo mesmo...”
Mesmo Gatsby podia acontecer, sem que isso causasse nenhum espanto em particular.
Meio-dia frenético. Em um arejado porão na rua 42, encontrei-me com Gatsby para almoçar. Ofuscado pela recém-saída claridade da rua, localizei-o vagamente na antessala, conversando com um desconhecido.
— Senhor Carraway, este é meu amigo, o senhor Wolfshiem.
Um judeu pequeno de nariz achatado ergueu sua enorme cabeça e me olhou do alto de seus dois tufos de pelos que floresciam em suas narinas. Levei um instante para localizar seus minúsculos olhos à meia-luz.
— ...Então dei uma boa olhada nele — disse o sr. Wolfshiem, apertando-me firmemente a mão — e sabe o que fiz?
— O quê? — perguntei com cortesia.
Mas é claro que ele não se dirigia a mim, pois largou minha mão e cobriu Gatsby com seu nariz expressivo.
— Dei o dinheiro a Katspaugh e falei: “Certo, Katspaugh, não lhe pague um centavo até ele calar a boca”. Ele calou a boca na hora.
Gatsby nos tomou pelo braço, um de cada lado, e adentrou o restaurante, enquanto o sr. Wolfshiem engolia a continuação de uma nova frase e caía numa distração sonâmbula.
— Uísque e soda? — ofereceu o maître.
— É um belo restaurante — disse o sr. Wolfshiem, admirando as ninfas presbiterianas pintadas no teto. — Mas eu prefiro aquele no outro lado da rua!
— Sim, uísque, por favor — assentiu Gatsby, e então ao sr. Wolfshiem: — Lá é muito quente.
— Quente e pequeno, é verdade — disse o sr. Wolfshiem —, mas cheio de lembranças.
— De que restaurante vocês estão falando? — perguntei.
— Do velho Metropole.
— Do velho Metropole — remoeu o sr. Wolfshiem melancolicamente. — Cheio de rostos mortos e enterrados. Cheio de amigos que partiram para sempre. Nunca vou me esquecer da noite em que atiraram em Rosy Rosenthal. Éramos seis à mesa, e Rosy havia comido e bebido a noite toda. Quando já era quase de manhã, o garçom veio com um olhar esquisito e disse que alguém queria falar com ele lá fora. “Certo”, disse Rosy, erguendo-se da cadeira, mas eu o puxei de volta. “Deixe aqueles sacanas virem até aqui, Rosy, se querem pegá-lo. Mas, por Deus, não ouse sair desta sala.” Já eram quatro da madrugada e, se erguêssemos as persianas, veríamos a luz do dia.
— Ele saiu? — perguntei, com ingenuidade.
— É claro que sim. — O nariz do sr. Wolfshiem me fulminou, indignado. — Ao chegar à porta, ele se virou para trás e disse: “Não deixem o garçom levar meu café!”. Então foi à calçada, onde o receberam com três tiros na barriga e fugiram.
— Quatro deles foram para a cadeira elétrica — eu disse, lembrando-me do caso.
— Cinco, com Becker. — Suas narinas se voltaram para mim com ar interessado. — Soube que você está procurando um licação nas necócios.f
A justaposição desses dois comentários foi desconcertante. Gatsby respondeu em meu lugar:
— Ah, não — ele exclamou —, não é este o homem.
— Não? — o sr. Wolfshiem pareceu desapontado.
— Este é só um amigo. Falei que conversaríamos sobre isso em outra ocasião.
— Me desculpe — disse o sr. Wolfshiem. — Peguei o homem errado.
Um suculento picadinho chegou à mesa e o sr. Wolfshiem, esquecido da atmosfera nostálgica do velho Metropole, passou a comer com sensibilidade feroz. Enquanto isso, seus olhos percorriam lentamente o salão — ele completou o círculo virando-se para inspecionar as pessoas bem atrás de nós. Não fosse a minha presença, acho que se abaixaria para dar uma olhada debaixo da nossa própria mesa.
— Ouça, meu velho — disse Gatsby, reclinando-se em minha direção —, me desculpe por tê-lo aborrecido esta manhã, no carro.
Ele abriu aquele sorriso de novo, mas dessa vez tentei resistir.
— Não gosto de mistérios — respondi — e não entendo por que você não chega honestamente e me diz o que quer. Por que precisa passar pela senhorita Baker?
— Ah, não é nada proibido — ele me garantiu. — A senhorita Baker é uma grande atleta, você sabe, e nunca faria nada de errado.
De repente ele consultou o relógio, levantou-se de um salto e disparou pelo salão, deixando-me à mesa com o sr. Wolfshiem.
— Ele foi telefonar — disse o sr. Wolfshiem, seguindo-o com os olhos. — É um bom sujeito, não? Bonito de se ver e um perfeito cavalheiro.
— É.
— É um homem de Oggsford.
— Ah.
— Ele estudou em Oggsford, na Inglaterra. Você conhece a universidade de Oggsford?
— Já ouvi falar.
— É uma das mais famosas do mundo.
— Você conhece Gatsby há muito tempo? — perguntei.
— Há muitos anos — ele respondeu com ar satisfeito. — Tive o prazer de conhecê-lo logo após a guerra. Percebi que estava diante de um homem de fina estirpe depois de conversarmos por uma hora. Eu disse a mim mesmo: “É o tipo de homem que todos gostariam de levar para casa e apresentar à mãe e à irmã”. — Ele fez uma pausa. — Vejo que está olhando para as minhas abotoaduras.
Eu não estava olhando para elas, mas passei a fazê-lo. Eram lascas de marfim estranhamente familiares.
— São feitas dos mais finos espécimes de molares humanos — ele me informou.
— Ora! — eu as examinei. — É uma ideia muito interessante.
— É. — Ele escondeu os punhos por baixo do casaco. — De fato, Gatsby é muito cuidadoso com as mulheres. Não ousaria sequer olhar para a esposa de um amigo.
Assim que o protagonista dessa confiança instintiva retornou à mesa e sentou-se, o sr. Wolfshiem bebeu seu café de uma vez e levantou-se.
— Adorei o almoço — ele disse —, e agora irei deixá-los, meus jovens, antes que eu comece a abusar da hospitalidade de vocês.
— Não seja tolo — disse Gatsby, sem sombra de entusiasmo. O sr. Wolfshiem ergueu a mão numa espécie de bênção.
— Você é muito educado, mas pertence a outra geração — ele anunciou de forma solene. — Fiquem aqui conversando sobre seus esportes, suas namoradas e... — ele supriu o substantivo com outro aceno. — Quanto a mim, tenho cinquenta anos de idade e não irei importuná-los mais com a minha presença.
Quando ele terminou de cumprimentar Gatsby e virou-se para ir embora, seu trágico nariz estava trêmulo. Fiquei imaginando se havia dito algo que o ofendera.
— Às vezes ele fica sentimental — explicou Gatsby. — Hoje é um desses dias. Trata-se de uma figura singular de Nova York, um cidadão da Broadway.
— Mas, afinal, ele é ator?
— Não.
— Dentista?
— Meyer Wolfshiem?5 Não, é um apostador. — Gatsby hesitou e então acrescentou, calculadamente: — Foi ele quem fraudou a World’s Series de 1919.6
— Fraudou a World’s Series? — repeti.
Aquela informação me deixou abalado. Eu me lembrava, é claro, de que a World’s Series fora fraudada em 1919, mas, se alguma vez cheguei a pensar no assunto, considerava-o algo que simplesmente acontecera, resultado de alguma inevitável cadeia de eventos. Nunca me ocorreu que um só homem poderia ludibriar a fé de cinquenta milhões de pessoas — com a obstinação de um ladrão explodindo um cofre.
— E como é que ele fez isso? — perguntei após um minuto.
— Ele apenas viu a oportunidade.
— Por que não foi preso?
— Ninguém consegue apanhá-lo, meu velho. É um sujeito esperto.
Insisti em pagar a conta. Quando o garçom veio me trazer o troco, reconheci Tom Buchanan em meio ao salão abarrotado.
— Venha comigo um minuto — eu disse —, preciso cumprimentar um amigo.
Assim que nos viu, Tom ergueu-se num salto e deu meia dúzia de passos em nossa direção.
— Por onde você andou? — ele protestou vivamente. — Daisy está furiosa por não ter telefonado.
— Este é o senhor Gatsby, senhor Buchanan.
Eles deram um breve aperto de mãos, e Gatsby deixou transparecer um olhar estranhamente tenso e constrangido.
— Mas enfim, como vai? — perguntou Tom. — Por que resolveu vir tão longe só para comer?
— Eu estava almoçando com o senhor Gatsby.
Voltei-me em direção ao sr. Gatsby, mas ele não estava mais lá.
Foi num dia de outubro de 1917...
(contou Jordan mais tarde, sentada aprumadamente no salão de chá do Plaza Hotel)
...eu estava indo de um lugar para o outro, caminhando tanto pela calçada quanto pela grama. Dava preferência à grama pois usava uns sapatos ingleses com cravos de borracha na sola que viviam grudando no chão liso. Eu também vestia uma saia xadrez nova que levantava ligeiramente com o vento e, sempre que isso acontecia, as bandeiras vermelhas, brancas e azuis diante de todas as casas se retesavam e faziam um tut-tut-tut-tut em desaprovação.
A bandeira mais ampla de todas e o gramado mais extenso eram os da casa de Daisy Fay. Tinha apenas dezoito anos, dois a mais do que eu, e era de longe a garota mais popular de Louisville. Costumava vestir-se de branco e tinha um pequeno conversível da mesma cor. O telefone tocava o dia todo, e os excitados oficiais de Camp Taylor7 viviam solicitando o privilégio de monopolizá-la naquela noite. “Nem que seja por uma hora!”
Naquela manhã, ao me aproximar da casa de Daisy, vi que o conversível branco se encontrava fora da garagem, e ela estava sentada nele com um tenente que eu nunca havia visto. Estavam tão entretidos entre si que não me viram até que eu chegasse a menos de dois metros de distância. “Olá, Jordan”, ela disse de repente. “Por favor, venha cá.”
Senti-me lisonjeada por ela querer falar comigo, pois, de todas as garotas mais velhas, era Daisy quem eu mais admirava. Ela perguntou se eu estava indo para a Cruz Vermelha fazer curativos. Eu estava. Nesse caso, será que eu poderia avisar que hoje ela não iria? Enquanto Daisy falava, o oficial olhava para ela do jeito que todas as mocinhas gostariam de ser olhadas algum dia, e por me parecer tão romântico é que me lembro desse incidente até hoje. Seu nome era Jay Gatsby, e não tornei a vê-lo nos quatro anos seguintes. Mesmo ao encontrá-lo em Long Island, não notei que era o mesmo homem.
Isso foi em 1917. No ano seguinte, eu mesma arrumei uns namorados e comecei a disputar campeonatos, de modo que já não via Daisy com tanta frequência. Ela costumava sair com uma turma um pouco mais velha, isso quando saía com alguém. Havia uma história louca circulando a seu respeito: dizia-se que, numa noite de inverno, a mãe a encontrara fazendo as malas para ir a Nova York despedir-se de um soldado que estava indo para a guerra. Ela foi naturalmente proibida de ir, mas passou várias semanas sem falar com os pais. Depois disso, nunca mais saiu com soldados, apenas com alguns rapazes da cidade, míopes e de pés chatos, que não conseguiram entrar no Exército.
No outono seguinte, ela estava novamente alegre, mais do que nunca. Ganhou uma festa de debutante após o armistício, e em fevereiro estava supostamente noiva de um sujeito de New Orleans. Em junho, casou-se com Tom Buchanan, de Chicago, com tal pompa e circunstância como jamais se vira em Louisville. Ele veio acompanhado de uns cem convidados em quatro veículos privativos, alugou um andar inteiro do hotel Muhlbachg e, na véspera da cerimônia, presenteou-a com um colar de pérolas avaliado em trezentos e cinquenta mil dólares.
Eu fui dama de honra. Entrei no quarto de Daisy meia hora antes do jantar de noivado e a encontrei deitada na cama com seu vestido florido, tão bela quanto as noites de junho. E tão bêbada quanto um gambá. Tinha uma garrafa de Sauterne numa mão e uma carta na outra.
— Me dê os parabéns — ela resmungou. — Eu nunca tinha ficado bêbada antes, mas, nossa, como é bom.
— O que houve, Daisy? — Eu estava verdadeiramente assustada; nunca tinha visto uma garota naquele estado.
— Aqui, querida. — Ela vasculhou a lixeira ao lado da cama e sacou de dentro um colar de pérolas. — Leve isto aqui lá embaixo e devolva a quem quer que seja o dono. Diga a todo mundo que Daisy mudou de ideia. Diga assim: “A Daisy mudou de ideia!”.
Ela se pôs a chorar, e chorou e chorou. Eu saí às pressas e topei com a criada da mãe de Daisy, que me ajudou a trancar a porta e dar-lhe um banho frio. Ela não queria largar a carta. Levara consigo à banheira e a espremera até virar uma bola encharcada, só me permitindo deixá-la sobre a saboneteira quando notou que o papel estava se desfazendo como flocos de neve.
Ela não disse mais uma palavra. Nós lhe demos amônia para cheirar, botamos gelo em sua testa e a enfiamos de volta no vestido, de modo que, meia hora depois, quando saímos do quarto, as pérolas estavam de novo em seu pescoço e o incidente ficara para trás. No dia seguinte, às cinco da tarde, ela se casou com Tom Buchanan sem ao menos pestanejar, e partiu para uma viagem de três meses pelos Mares do Sul.
Topei com eles em Santa Barbara após a lua de mel, e acho que nunca vi uma garota tão louca pelo marido. Quando ele saía da sala por um minuto, ela olhava ao redor com apreensão e perguntava: “Cadê o Tom?”, revestindo-se de uma expressão completamente distraída até vê-lo retornando. Ela se deitava na areia com a cabeça pousada no colo de Tom, acariciando seu rosto e o observando com um prazer insondável. Era tocante vê-los juntos — aquilo me fazia rir de um jeito contido e fascinado. Isso foi em agosto. Uma semana depois que eu deixei Santa Barbara, Tom bateu numa caminhonete na estrada de Ventura e perdeu uma das rodas dianteiras do carro. A garota que estava com ele também saiu nos jornais, pois havia quebrado o braço — era uma das camareiras do Santa Barbara Hotel.
Em abril, Daisy teve uma filha e eles foram morar na França por um ano. Encontrei-os numa primavera em Cannes e depois em Deauville, e então eles voltaram a Chicago com a intenção de se estabelecer por lá. Daisy era popular em Chicago, como você sabe. Eles andavam com uma turma leviana, todos jovens, ricos e loucos, mas ela saiu de lá com a reputação absolutamente irretocável. Talvez porque não bebesse. É uma grande vantagem não beber quando se está entre pessoas que exageram na dose. Você consegue refrear a língua e, melhor ainda, programar qualquer pequena transgressão sua para o momento exato em que todos estão alterados demais para reparar ou dar importância. Talvez Daisy nunca tivesse traído Tom — e, ainda assim, havia algo em sua voz...
Bem, há mais ou menos umas seis semanas ela ouviu o nome Gatsby pela primeira vez em anos. Foi quando lhe perguntei — lembra? — se você conhecia o Gatsby que morava em West Egg. Depois que você saiu, ela foi ao meu quarto, me acordou e perguntou: “Que Gatsby?”, e, quando o descrevi, sonolenta, ela anunciou com a voz mais estranha do mundo que deveria ser o mesmo homem que ela conhecera. Só então relacionei esse Gatsby com o oficial sentado no conversível de Daisy.
Quando Jordan Baker terminou de me contar essa história, já havíamos deixado o Plaza fazia meia hora e estávamos passeando numa carruagem pelo Central Park. O sol havia se posto por trás dos imponentes edifícios onde viviam as celebridades do cinema na área das West Fifties, e as límpidas vozes das crianças, que já se agrupavam feito grilos na grama, se erguiam através do cálido crepúsculo:

Eu sou o sheik da Arábia.
O seu amor me pertence.
À noite, quando você estiver dormindo,
Vou me esgueirar no seu quarto...h

— Que coincidência esquisita — eu disse.
— Não foi coincidência nenhuma.
— Como assim?
— Gatsby comprou aquela casa pois sabia que Daisy estava do outro lado da baía.
Então não eram só as estrelas que ele cobiçara naquela noite de junho. Ele se revelara totalmente para mim, saído de repente do útero de seu esplendor despropositado.
— Gatsby quer saber — prosseguiu Jordan — se você convidaria Daisy para jantar em sua casa e o deixaria dar uma passada por lá.
A simplicidade do pedido me comoveu. Ele havia esperado cinco anos e comprado uma mansão onde partilhava a luz das estrelas com mariposas ocasionais — tudo para poder, um dia, dar uma passada no quintal de um estranho.
— E eu precisava saber de tudo isso para um favor tão pequeno?
— Ele está com medo porque esperou demais. Pensou que você pudesse ficar ofendido. Você vê, no fundo ele não é tão durão.
Alguma coisa me incomodava.
— Por que não pediu para você promover o encontro?
— Ele quer que Daisy veja a mansão — ela explicou. — E a sua casa é bem ao lado.
— Ah!
— Acho que ele esperava vê-la numa de suas festas, em alguma noite — prosseguiu Jordan —, mas ela nunca apareceu. Então ele passou a perguntar casualmente às outras pessoas se alguém a conhecia, e eu fui a primeira que ele encontrou. Foi naquela noite em que ele me mandou chamar no baile, e você precisa ver o quanto ele me enrolou até ir direto ao ponto. É claro que eu sugeri de imediato um almoço em Nova York, e achei que ele enlouqueceria de vez: “Não quero ir longe demais!”, ele repetia. “Quero vê-la o mais próximo de casa.”
— Quando eu disse que você era amigo íntimo de Tom, ele quase desistiu. Não sabia muita coisa a respeito de Tom, embora tenha assinado um jornal de Chicago por vários anos só pela chance de poder topar com o nome de Daisy.
Já havia escurecido e, ao passarmos por baixo de uma pequena ponte, pousei meu braço sobre o ombro dourado de Jordan, puxei-a em minha direção e a convidei para jantar. De repente, eu não estava mais pensando em Daisy e Gatsby, mas naquela moça clara, forte e determinada, que tinha de lidar com um ceticismo universal e que se alojava confortavelmente no círculo dos meus braços. Uma frase ressoou em meus ouvidos numa espécie de excitação impetuosa: “Existem apenas os perseguidos e os perseguidores, os ocupados e os fatigados”.
— E Daisy precisa ter alguma coisa na vida — murmurou Jordan para mim.
— Ela quer se encontrar com Gatsby?
— Não é para ela ficar sabendo. Gatsby não quer que ela saiba. Você só tem que convidá-la para tomar chá.
Passamos por uma barreira de árvores escuras e depois pela fachada da rua 59, um quarteirão de luzes pálidas e delicadas que se refletiam através do parque. Ao contrário de Gatsby e de Tom Buchanan, eu não tinha nenhuma garota dos sonhos para projetar em todas as cornijas e letreiros luminosos, então puxei a garota ao meu lado, apertando-a em meus braços. Sua boca exausta e desdenhosa arriscou um sorriso, então puxei-a novamente, dessa vez para junto do meu rosto.
a Calças curtas do início do século xx que geralmente passavam um pouco dos joelhos e eram utilizadas com meias longas.
b Termo que designa bebida alcoólica adulterada ou de qualidade inferior.
c Pátio central do Trinity College, em Oxford.
d A ponte Queensboro atravessa o East River, ligando o distrito de Queens a Manhattan. Ela cruza a antiga ilha de Blackwell.
e Localizada no East River, a ilha de Blackwell é hoje conhecida como Roosevelt Island. Lá houve uma penitenciária (1832-1935), um manicômio e inúmeros hospitais.
f “Um licação nas necócios” e “Oggsford”, em vez de “uma ligação nos negócios” e “Oxford”, são tentativas de emular o sotaque judeu nova-iorquino.
g Alusão ao hotel Seelbach, fundado em Louisville em 1905.
h “Sheik of Araby”, canção de 1921 composta por Harry B. Smith e Francis Wheeler (letra) em parceria com Ted Snyder (melodia). Foi inspirada no filme O sheik (1921), com Rodolfo Valentino no papel principal. Tornou-se um standard popular de jazz e até os Beatles gravaram uma versão.

5
Naquela noite, ao voltar para West Egg, pensei por um instante que minha casa estava pegando fogo. Eram duas da madrugada e toda a borda da península ardia de luz, conferindo um ar de irrealidade ao bosque e lançando faíscas alongadas sobre os fios elétricos que margeavam a estrada. Virando a esquina, vi que a claridade vinha da casa de Gatsby, iluminada do porão ao teto.
De início, pensei que se tratava de mais uma festa, ou de uma multidão enlouquecida que decidira brincar de “esconde-esconde” ou de “sardinha em lata”a com a casa inteira disponível. Mas não havia barulho. Só o vento nas árvores, que soprava os fios elétricos e fazia as luzes oscilarem repetidas vezes, como se a casa estivesse piscando para a escuridão. Enquanto meu táxi sumia de vista, Gatsby veio andando pelo gramado em minha direção.
— A sua casa está parecendo a Feira Mundial — eu disse.
— Você acha? — ele voltou os olhos para trás, distraído. — Estava dando uma arejada nos quartos. Vamos para Coney Island,1 meu velho. Com o meu carro.
— Já está tarde.
— Bem, e se a gente desse um mergulho na piscina? Passei o verão inteiro sem usá-la.
— Preciso ir dormir.
— Certo.
Ele esperou, olhando-me com reprimida sofreguidão.
— Falei com a senhorita Baker — eu disse, após um instante. — Vou ligar amanhã para Daisy e convidá-la para vir tomar um chá.
— Muito bem — ele retrucou, descuidado. — Não quero incomodá-lo.
— Que dia é melhor para você?
— Que dia é melhor para você? — ele me corrigiu imediatamente. — Não quero incomodá-lo, você sabe.
— Que tal depois de amanhã?
Ele refletiu por um instante. E então, com relutância:
— Preciso mandar cortar a grama.
Ambos olhamos para o quintal: havia uma linha bem definida onde terminava o meu denso matagal e começava o jardim dele, mais escuro e bem cuidado. Presumi que ele estivesse se referindo ao meu espaço.
— E tem mais uma coisinha — ele disse de maneira incerta, e então hesitou.
— Você prefere adiar para mais tarde? — perguntei.
— Ah, não é isso. Quer dizer... — Ele foi tateando diversas formas de iniciar a frase. — É que, eu fico pensando... veja bem, meu velho, você não ganha muito dinheiro, não é?
— Não muito.
Aquilo pareceu encorajá-lo e ele prosseguiu com mais segurança.
— Foi o que imaginei, se me perdoa a... Você sabe, eu gerencio um pequeno negócio nas horas vagas, uma espécie de bico, entende? E pensei que, se você ganha pouco... você vende títulos, não é, meu velho?
— Estou tentando.
— Bem, isso pode interessá-lo. Não tomaria muito do seu tempo e você poderia fazer um bom dinheiro. Acontece que é uma coisa meio confidencial.
Hoje percebo que, em outras circunstâncias, essa conversa poderia ter sido um ponto de virada em minha vida. Porém, como se tratava de uma oferta óbvia e grosseiramente ligada a um serviço a ser prestado, não tive saída senão refutá-la ali mesmo.
— Estou ocupado demais — respondi. — Fico muito agradecido, mas não posso me comprometer com outros trabalhos.
— Você não teria que fazer nenhum negócio com o Wolfshiem. — Evidentemente ele achava que eu estava me esquivando da tal “licação nas necócios” mencionada no almoço, mas lhe garanti que não era o caso. Ele aguardou mais um instante, na esperança de que eu puxasse conversa, mas eu estava absorto demais para reagir, de modo que ele voltou desanimadamente para casa.
Aquela noite me deixara tonto e feliz; devo ter caído num sono profundo assim que entrei em casa. Dessa forma, não sei se Gatsby foi ou não a Coney Island, ou por quantas horas ele continuou “dando uma arejada” nos quartos enquanto sua casa resplandecia ostensivamente. Na manhã seguinte, telefonei para Daisy do escritório e convidei-a para tomar um chá em casa.
— Não traga o Tom — avisei.
— O quê?
— Não traga o Tom.
— Quem é “Tom”? — ela perguntou inocentemente.
No dia combinado, caía uma chuva torrencial. Às onze da manhã, um homem de capa de chuva arrastando um cortador de grama bateu à minha porta e disse que o sr. Gatsby o havia mandado aparar a grama. Percebi então que esquecera de chamar a empregada finlandesa para servir o chá, então fui ao centro de West Egg para procurá-la entre as encharcadas vielas caiadas e comprar algumas xícaras, limões e flores.
As flores eram desnecessárias, pois às duas da tarde Gatsby me mandou uma verdadeira estufa com infinitos vasos. Uma hora depois, a porta se abriu nervosamente e Gatsby irrompeu em minha casa, metido num terno branco de flanela, camisa prateada e gravata dourada. Ele estava pálido e havia marcas escuras de insônia debaixo de seus olhos.
— Está tudo em ordem? — ele perguntou de imediato.
— A grama ficou boa, se é o que você quer saber.
— Que grama? — ele indagou, com o olhar vazio. — Ah, a grama do jardim.
Ele olhou pela janela mas, a julgar por sua expressão, não acho que tenha visto coisa alguma.
— Ficou ótimo — ele observou vagamente. — Li no jornal que a chuva deve dar trégua lá pelas quatro horas. Acho que foi no The Journal.2 Você tem tudo o que precisa em termos de... em termos de chá?
Conduzi-o até a despensa, onde encarou minha finlandesa com ar de reprovação. Juntos examinamos os doze bolinhos de limão da confeitaria.
— Acha que são suficientes? — perguntei.
— É claro, claro! Estão ótimos... — ele acrescentou, de forma vazia —, meu velho.
A chuva amainou por volta das três e meia e converteu-se em uma névoa úmida, através da qual magras gotas caíam feito orvalho. Gatsby folheou com o olhar perdido um volume da Economia, de Clay,3 sobressaltando-se com os passos da finlandesa que faziam tremer o chão da cozinha e espiando ocasionalmente através das janelas embaçadas, como se uma série de acontecimentos invisíveis, porém alarmantes, estivesse em curso lá fora. Por fim, ele se levantou e anunciou, numa voz hesitante, que estava indo embora.
— Mas por quê?
— Ninguém vai aparecer para o chá. Já está tarde! — Ele consultou o relógio como se tivesse um compromisso urgente em qualquer lugar. — Não posso esperar o dia todo.
— Não seja bobo, faltam só dois minutos para as quatro.
Ele sentou com ar de infelicidade, como se o tivessem empurrado, e naquele momento ouvimos um som de motor dobrando a esquina. Ambos nos levantamos e, um tanto angustiado, saí para o quintal.
Sob as gotejantes e desnudas árvores de lilases, um carro avançava pela entrada. Parou. O rosto de Daisy, inclinado sob um chapéu de três pontas cor de lavanda, ergueu-se para mim com um sorriso alegre e arrebatador.
— É aqui mesmo que você mora, meu querido? Tem certeza aboluta?
A reverberação excitante de sua voz caiu como um tônico em meio a toda aquela chuva. Por um instante, tive que seguir unicamente seu som, de cima a baixo, só com os ouvidos, antes de poder distinguir as palavras. Uma mecha de cabelo úmido caía sobre seu queixo como um borrifo de tinta azul, e sua mão estava coberta de gotas translúcidas quando a ajudei a sair do carro.
— Você está apaixonado por mim — ela sussurrou em meu ouvido —, ou por que me pediria que viesse sozinha?
— É o segredo do castelo de Rackrent.4 Diga ao seu chofer para ir embora e voltar daqui a uma hora.
— Volte daqui a uma hora, Ferdie. — Então, com um sussurro grave: — Seu nome é Ferdie.
— E a gasolina, lhe afeta o nariz?
— Acho que não — ela respondeu inocentemente. — Por quê?
Entramos na casa. Para minha imensa surpresa, a sala estava vazia.
— Bem, isso é engraçado — exclamei.
— O que é engraçado?
Ela se virou ao ouvir uma batida leve e respeitosa na porta da frente. Fui abrir. Gatsby, pálido feito a morte, as mãos afundadas nos bolsos do casaco, estava parado sobre uma poça d’água e olhava tragicamente no fundo dos meus olhos.
Com as mãos ainda nos bolsos, ele passou reto por mim e seguiu para o vestíbulo, então se virou de repente como se estivesse na corda bamba e desapareceu na sala. Não era nem um pouco engraçado. Ciente das fortes batidas do meu coração, empurrei a porta em direção à chuva cada vez mais densa.
Por meio minuto, não houve ruído algum. Então ouvi um murmúrio abafado e parte de uma risada, seguidos pela voz de Daisy em tom claramente artificial:
— Que felicidade revê-lo!
Uma pausa; ela durou uma eternidade. Eu não tinha o que fazer no vestíbulo, então fui até a sala.
Gatsby, as mãos ainda nos bolsos, reclinava-se sobre o consolo da lareira numa atitude tensa e forçada de quem aparenta estar à vontade, quase entediado. Sua cabeça pendia para trás de tal forma que se apoiava num relógio quebrado sobre a lareira, e dessa posição ele encarava Daisy com os olhos agitados. Ela estava sentada, assustada porém graciosa, na ponta de uma cadeira dura.
— Já nos conhecíamos — murmurou Gatsby. Seus olhos me fitaram por um instante e seus lábios se afastaram numa fracassada tentativa de rir. Por sorte, o relógio escolheu aquele segundo para oscilar perigosamente à pressão de sua cabeça, de modo que ele se virou e o apanhou com as mãos trêmulas, colocando-o de volta no lugar. Então se sentou rigidamente com o cotovelo no braço do sofá e o queixo apoiado na mão.
— Desculpe-me pelo relógio — ele disse.
Meu próprio rosto foi tomado por um intenso rubor tropical. Não conseguia evocar um único lugar-comum dos milhares que povoavam a minha mente.
— É um relógio velho — eu respondi, de forma idiota.
Por um instante, pareceu-nos que ele havia de fato se despedaçado no chão.
— Não nos vemos há muitos anos — disse Daisy, com o tom de voz mais prosaico possível.
— Vai fazer cinco anos em novembro.
O caráter automático da resposta de Gatsby nos deteve por ao menos um minuto. Desesperado, propus que me ajudassem com o chá na cozinha, ao que ambos se levantaram, quando então a demoníaca finlandesa chegou com tudo pronto numa bandeja.
Em meio à bem-vinda confusão de xícaras e bolos, estabeleceu-se certa decência física entre nós. Gatsby foi refugiar-se num canto e, enquanto eu e Daisy conversávamos, ficou nos observando diligentemente com os olhos tensos e infelizes. Contudo, como a calma não era um fim em si, inventei uma desculpa na primeira oportunidade e me levantei.
— Aonde você vai? — perguntou Gatsby, imediatamente alarmado.
— Já volto.
— Preciso falar uma coisa com você antes.
Ele me seguiu precipitadamente até a cozinha, fechou a porta e murmurou: “Oh, meu Deus”, de um jeito infeliz.
— O que foi?
— É um grande erro — ele disse, negando enfaticamente com a cabeça —, um erro terrível.
— Você está constrangido, só isso. — E por sorte acrescentei: — Daisy também está constrangida.
— É mesmo? — ele perguntou, incrédulo.
— Tanto quanto você.
— Não fale tão alto.
— Você está agindo como um garoto — exclamei, impaciente. — Não só isso, mas está sendo grosseiro. Deixou Daisy sozinha na sala.
Ele ergueu a mão para interromper minhas palavras, olhou-me com uma reprovação antológica e, abrindo a porta com cuidado, voltou para a sala.
Eu saí pelos fundos — exatamente como Gatsby havia feito em sua volta nervosa ao redor da casa, meia hora antes — e corri para uma enorme árvore escura e nodosa, cuja folhagem compacta servia como guarda-chuva. Estava outra vez chovendo torrencialmente, e meu terreno irregular, com a grama bem aparada pelo jardineiro de Gatsby, abundava em pequenos brejos lamacentos e pântanos pré-históricos. Não havia nada para olhar dali, exceto a mansão gigantesca de Gatsby, então fiquei observando-a por meia hora, como Kant diante de seu campanário de igreja.5 Um cervejeiro a construíra no auge de seu desvario, havia dez anos, e aparentemente se oferecera para pagar cinco anos de impostos de todos os casebres vizinhos caso os proprietários cobrissem seus telhados de palha. Talvez a recusa geral tenha destruído seu sonho de Estabelecer Família — e precipitado seu rápido declínio. Seus filhos venderam a casa com a coroa de flores ainda à porta. Os americanos, embora almejem (e até cobicem) a condição de servos, sempre abominaram a condição de camponeses.
Meia hora depois, o sol voltou a brilhar e o automóvel do dono da mercearia contornou a entrada de Gatsby com os ingredientes para o jantar dos empregados — do qual ele por certo não experimentaria uma só garfada. Uma criada tornou a abrir as janelas superiores da casa, aparecendo por um instante em cada uma delas e, debruçada no grande balcão central, cuspiu pensativamente no jardim. Era hora de voltar. Enquanto chovia, tive a impressão de ouvir o murmúrio de suas vozes erguendo-se de quando em quando em arroubos de emoção. Mas, quando parou de chover, senti que o silêncio havia tomado a casa também.
Entrei — após fazer todo barulho possível na cozinha, faltando apenas empurrar o fogão —, mas não acredito que eles tenham se dado conta. Estavam sentados um em cada ponta do sofá, entreolhando-se como se uma pergunta tivesse sido proferida, ou estivesse no ar, e não havia mais vestígios de constrangimento. O rosto de Daisy estava borrado de lágrimas; quando me viu entrar, ela deu um salto e passou a enxugá-lo com um lenço diante do espelho. O rosto de Gatsby, porém, deixava transparecer uma mudança desconcertante. Ele literalmente ardia; sem emitir uma só palavra ou gesto de júbilo, irradiava uma felicidade nova que preenchia toda a sala.
— Ah, olá, meu velho — ele disse, como se não me visse há anos. Pensei por um momento que fosse me cumprimentar.
— Parou de chover.
— É mesmo?
Quando ele se deu conta do que eu dizia — que havia gotas cintilantes de sol por toda a sala —, sorriu feito um meteorologista, feito um eufórico patrono da luz recorrente, e transmitiu a notícia a Daisy:
— O que me diz disso? Parou de chover.
— Fico feliz, Jay. — Sua voz, de uma beleza dolorida e nostálgica, se referia unicamente àquela alegria inesperada.
— Quero que você e Daisy venham à minha casa — ele disse. — Gostaria de lhe mostrar onde vivo.
— Tem certeza de que quer que eu vá?
— Claro que sim, meu velho.
Daisy subiu para lavar o rosto — e só tarde demais me lembrei, humilhado, das minhas toalhas —, enquanto Gatsby e eu esperávamos no gramado.
— Minha casa está bonita, não acha? — ele perguntou. — Veja como a fachada inteira reflete a luz do sol.
Eu concordei, dizendo que era esplêndida.
— É. — Seus olhos a examinaram em cada porta arqueada e torre retangular. — Levei três anos juntando dinheiro para comprá-la.
— Pensei que você tinha herdado a sua riqueza.
— E herdei, meu velho — ele disse mecanicamente —, mas perdi a maior parte no grande pânico: o pânico da guerra.
Creio que ele mal sabia do que estava falando, pois quando lhe perguntei qual era seu ramo de negócios, ele respondeu: “Isso é assunto meu”, antes de perceber que não era uma resposta apropriada.
— Ah, já trabalhei em várias áreas — corrigiu-se. — Estive no ramo farmacêutico e depois trabalhei com petróleo. Mas atualmente não estou em nenhum deles. — Ele me olhou com mais atenção. — Quer dizer que você reconsiderou a proposta que lhe fiz aquela noite?
Antes que eu pudesse responder, Daisy surgiu à porta e as duas fileiras de botões de seu vestido brilharam à luz do sol.
— É aquela coisa enorme ali atrás? — ela exclamou, apontando para a mansão de Gatsby.
— Gostou?
— Adorei, mas não entendo como você pode morar ali sozinho.
— Está sempre cheia de pessoas interessantes, dia e noite. Pessoas que fazem coisas interessantes. Pessoas famosas.
Em vez de tomar o atalho pelo estreito, descemos a rua e entramos pelo portão principal. Com gemidos de encanto, Daisy admirou esse ou aquele aspecto da silhueta feudal contra o céu, admirou o jardim, o perfume intenso dos narcisos, o perfume fresco dos pilriteiros e das ameixas-japonesas, e o perfume pálido e dourado das valerianas vermelhas. Era estranho chegar à escadaria de mármore e não ouvir o farfalhar de vestidos subindo e descendo, nem outro barulho além do canto dos pássaros.
Lá dentro, ao caminharmos pelas salas de música à la Maria Antonieta e pelos salões de estilo Restauração, tive a impressão de que havia convidados escondidos atrás de cada sofá e mesa, com ordens de respirar em silêncio até terminarmos de passar. Quando Gatsby fechou a porta da “Biblioteca Merton College”,b podia jurar que ouvi o homem dos Olhos de Coruja dar uma gargalhada fantasmagórica.
Fomos para o andar de cima. Percorremos uma série de dormitórios de época envoltos em seda cor-de-rosa e lavanda, repletos de flores frescas, além de quartos de vestir, salas de bilhar e toaletes com banheira — então entramos num quarto onde um homem desgrenhado de pijama fazia exercícios vigorosos no chão. Era o sr. Klipspringer, o “hóspede”. Eu o tinha visto de manhã perambulando na praia com um ar nervoso. Por fim, chegamos ao aposento de Gatsby, uma suíte com escritório6 onde nos sentamos e bebemos uma taça de Chartreuse que ele tirou de um armário embutido na parede.
Ele não havia tirado os olhos de Daisy um segundo sequer, e acho que estava reavaliando sua casa a partir das reações expressas em seus olhos amáveis. Às vezes, Gatsby também admirava seus bens com um ar deslumbrado, como se, na presença real e estarrecedora de Daisy, nada disso fosse verdadeiro. A certa altura, ele quase tropeçou num lance de escadas.
Seu quarto era o mais simples de todos — exceto pela penteadeira, que tinha artigos de toucador feitos de ouro maciço. Com imenso deleite, Daisy apanhou a escova e penteou seus cabelos, ao que Gatsby sentou, esfregou os olhos e deu risada.
— É a coisa mais engraçada, meu velho — ele disse, hilariante. — Eu não consigo... Quando tento...
Gatsby havia claramente passado por dois estados de espírito e agora entrava num terceiro. Depois do constrangimento e da alegria irracional, ele se enchia de perplexidade com a presença dela. Passara tanto tempo pensando naquela ideia, sonhando-a em todos os detalhes e cobiçando-a com unhas e dentes, por assim dizer, que atingira certa intensidade inconcebível. Agora, em contrapartida, ele se prostrava como um relógio exaurido.
Recuperando-se em um salto, ele abriu as portas de um guarda-roupa pesado e mostrou seus ternos, roupões e gravatas amontoados, e suas camisas empilhadas às dúzias, feito tijolos.
— Há um sujeito na Inglaterra que compra roupas para mim. Ele me envia uma seleção de peças a cada começo de estação, na primavera e no outono.
Gatsby apanhou uma pilha de camisas e começou a atirá-las em nossa direção, uma a uma, camisas finas de linho, de seda pura e de flanela, que perdiam a dobra ao cair e cobriam a mesa numa bagunça multicolorida. Enquanto as admirávamos, ele trazia mais peças e aquela montanha farta e macia ia crescendo — camisas listradas, com arabescos e quadriculadas nas cores coral, verde-maçã, lavanda e alaranjado, com monogramas em índigo. De repente, com um grito contido, Daisy afundou a cabeça nas camisas e começou a chorar copiosamente.
— São camisas bonitas — ela soluçou, a voz abafada em meio às pregas grossas de tecido. — Eu fico triste porque nunca... nunca vi camisas tão bonitas.
Depois de conhecermos a casa, pretendíamos passear pelos arredores para ver a piscina, o hidroavião e as flores de verão — mas lá fora voltara a chover, então nos resignamos e ficamos observando a superfície corrugada do estreito.
— Se não fosse pela neblina, daria para enxergar a sua casa do outro lado da baía — disse Gatsby. — Há sempre uma luz verde brilhando a noite toda na extremidade do seu cais.
Daisy tomou o braço de Gatsby, mas ele parecia absorto no que acabara de dizer. Talvez lhe ocorresse que o significado colossal daquela luz se esvaíra para sempre. Comparada à enorme distância que o separava de Daisy, a luz lhe parecera antes muito próxima, quase a ponto de tocá-la. Tão próxima quanto uma estrela da lua. Agora era de novo uma luz verde no cais. Sua coleção de objetos mágicos havia diminuído.
Comecei a andar pela sala, examinando inúmeros objetos indistintos à meia-luz. Pendurado na parede sobre a mesa, o retrato de um homem velho em trajes náuticos me chamou a atenção.
— Quem é ele?
— Esse aí? É o senhor Dan Cody, meu velho.
O nome me soou vagamente familiar.
— Ele já morreu. Era meu melhor amigo.
Havia um pequeno retrato de Gatsby aos dezoito anos, também em trajes náuticos, junto à escrivaninha — ele jogava a cabeça para trás, num gesto desafiador.
— Adorei — exclamou Daisy. — Um topete pompadour! Você nunca me disse que tinha um topete pompadour. E um iate.
— Veja isto — disse Gatsby rapidamente. — São recortes de notícias a seu respeito.
Eles ficaram lado a lado examinando os recortes. Eu estava prestes a pedir para ver os rubis quando o telefone tocou, e Gatsby atendeu.
— Sim... Bem, não posso falar agora... Não posso falar agora, meu velho... Eu disse uma cidade pequena... Ele deve saber o que é uma cidade pequena... Bem, então ele não serve para nós, se Detroit é a sua ideia de cidade pequena...
Ele desligou.
— Venha cá, rápido! — gritou Daisy junto à janela.
Ainda chovia, mas a escuridão se dissipara a oeste e havia uma onda de nuvens espumosas, douradas e róseas, sobre o mar.
— Olhe — ela sussurrou, e depois de um instante —, eu queria pegar uma dessas nuvens cor-de-rosa, colocar você nela e arrastá-lo por toda parte.
Fiz menção de partir, mas eles não quiseram nem saber; talvez minha presença os fizesse sentir mais satisfatoriamente sozinhos.
— Já sei — disse Gatsby —, vamos pedir para Klipspringer tocar piano.
Ele saiu da sala gritando “Ewing!” e retornou em poucos minutos acompanhado de um jovem constrangido e um pouco cansado, com óculos de aros grossos e cabelos loiros escassos. Ele agora estava decentemente vestido com uma camisa esporte aberta, tênis e calças de brim de um matiz nebuloso.
— Interrompemos os seus exercícios? — perguntou Daisy educadamente.
— Eu estava cochilando — exclamou o sr. Klipspringer, com um espasmo de constrangimento. — Quer dizer, eu estive cochilando. Então acordei e...
— Klipspringer sabe tocar piano — irrompeu Gatsby. — Não é, Ewing, meu velho?
— Não toco muito bem. Eu não... eu mal sei tocar. Estou totalmente sem prát...
— Vamos descer — ordenou Gatsby, apertando um interruptor. O cinza das janelas sumiu e a casa resplandeceu por inteiro.
Na sala de música, Gatsby acendeu um abajur solitário ao lado do piano. Acendeu o cigarro de Daisy com um fósforo trêmulo e sentou-se a seu lado num sofá na outra ponta da sala, onde não havia luz, exceto aquela refletida pelo piso reluzente do vestíbulo.
Quando Klipspringer terminou de tocar “The love nest”,c virou-se para trás e, desanimado, procurou Gatsby em meio à penumbra.
— Estou sem prática, como você pode ver. Como eu lhe disse, não posso tocar. Estou totalmente sem prát...
— Não fale tanto, meu velho — ordenou Gatsby. — Toque!

De manhã,
E à noite,
Não é que nos divertimos...d

Lá fora, o vento soprava forte e ouvia-se um tênue barulho de trovão ecoando pelo estreito. Todas as luzes brilhavam em West Egg; os trens elétricos, repletos de gente, voltavam para casa em meio à chuva, vindos de Nova York. Era um momento de profunda transformação humana e a excitação florescia no ar.

Uma coisa é certa, e nada mais
Os ricos ficam mais ricos e os pobres ficam mais... férteis.
Enquanto isso,
No intervalo...e

Quando levantei para me despedir, vi que a expressão de êxtase retornara ao rosto de Gatsby, embora lhe tivesse ocorrido uma vaga incerteza quanto à dimensão de sua felicidade atual. Quase cinco anos! Mesmo naquela noite, deve ter havido momentos em que Daisy não esteve à altura dos seus sonhos — não por culpa dela, mas pela vitalidade colossal de sua ilusão, que havia atingido um patamar além dela, além de tudo. Ele se rendeu a essa ilusão com uma paixão criativa, complementando-a o tempo todo, enfeitando-a com todo tipo de plumas coloridas que encontrava pelo caminho. Nem as maiores lufadas de fogo e vento seriam capazes de competir com aquilo que um homem pode guardar em seu coração etéreo.
Enquanto eu o observava, ele se aprumou de modo visível. Tomou a mão de Daisy e debruçou-se com um ímpeto de emoção, tão logo ela sussurrou algo ao seu ouvido. Creio que a voz de Daisy, com seu entusiasmo oscilante e febril, o prendia sobretudo por não conseguir ser superada em sonhos — aquela voz era uma música imortal.
Eles já não faziam caso de minha presença, porém Daisy ergueu o rosto e estendeu-me a mão; Gatsby já não tomava o menor conhecimento de mim. Olhei mais uma vez e eles me retribuíram o olhar vagamente, tomados pela intensidade da vida. Então saí da sala e desci os degraus de mármore rumo à chuva, deixando-os juntos lá dentro.
a Sardines-in-the-box é uma brincadeira similar ao esconde-esconde, só que ao contrário: em vez de uma criança procurar as outras, todas procuram uma só.
b O nome “Biblioteca Merton College” refere-se literalmente à biblioteca dessa faculdade em Oxford, mas no romance Nick a põe entre aspas para indicar um gracejo próprio ou o título que Gatsby dá à biblioteca. Talvez esse nome esteja escrito na porta.
c “The love nest” (1920), do musical de George M. Cohan, Mary. Letra de Otto Harbach e música de Louis A. Hirsch.
d “Ain’t we got fun?” (1921), foxtrote muito popular na época, composto por Richard A. Whiting (melodia), Raymond B. Egan e Gus Kahn (letra). No original: “In the morning,/ In the evening,/ Ain’t we got fun...”.
e Da mesma música. No original: “One thing’s sure and nothing’s surer/ The rich get richer and the poor get... children/ In the meantime,/ In between time...”.

6
Mais ou menos naquela época, um jovem e ambicioso repórter de Nova York bateu à porta de Gatsby perguntando se ele tinha algo a dizer.
— Algo a dizer sobre o quê? — perguntou Gatsby educadamente.
— Ora, uma declaração qualquer que você queira fazer.
Descobriu-se, após cinco confusos minutos, que o jornalista ouvira o nome de Gatsby na redação, relacionado a um contexto que ele não podia revelar ou não compreendera de todo. Aquele era seu dia de folga e, com louvável iniciativa, havia saído para “apurar”.
Era uma aposta aleatória, e ainda assim o instinto do repórter estava certo. A notoriedade de Gatsby, difundida pelas centenas de pessoas que se beneficiaram de sua hospitalidade e se tornaram, portanto, autoridades em seu passado, havia crescido ao longo do verão até que ele ficasse a um passo de se tornar notícia. Lendas contemporâneas como a do “oleoduto subterrâneo até o Canadá”1 se vinculavam a ele, e havia um insistente boato de que ele não morava numa casa, mas num bote que parecia uma casa e fora transportado às escondidas ao longo do estreito de Long Island. Por que exatamente essas invenções eram motivo de orgulho para James Gatz, de North Dakota, não é fácil dizer.
James Gatz — era esse o seu nome verdadeiro, ao menos oficialmente. Ele decidira mudá-lo aos dezessete anos, no momento específico que marcava o início de sua carreira — quando viu o iate de Dan Cody baixar âncora na parte mais traiçoeiramente rasa do lago Superior. Era James Gatz que perambulava na praia aquela tarde, metido num blusão verde rasgado e calça de brim, mas foi Jay Gatsby que pediu um bote emprestado, encostou no Tuolomee e informou Cody que uma ventania iria apanhá-lo e destroçá-lo dali a meia hora.
Suponho que ele já tinha escolhido o nome havia tempos, mesmo então. Seus pais eram fazendeiros preguiçosos e fracassados — sua imaginação nunca os reconhecera como pais. A verdade era que Jay Gatsby de West Egg, Long Island, havia saído da própria concepção platônica de si mesmo. Ele era um filho de Deus — frase que, se de fato significava alguma coisa, era exatamente isso — e devia ocupar-se dos negócios de seu Pai,a a serviço de uma beleza vasta, vulgar e libertina. Então ele inventou precisamente o Jay Gatsby que um menino de dezessete anos seria capaz de inventar, e foi fiel a essa concepção até o fim.
Por mais de um ano ele vagou pela costa sul do lago Superior como catador de conchas e pescador de salmão, ou qualquer outra ocupação que lhe proporcionasse comida e lugar para dormir. Seu corpo moreno e calejado suportava naturalmente aqueles dias intensos de trabalho, meio brutais, meio preguiçosos. Gatsby conheceu as mulheres muito cedo, mas elas o mimaram e por isso ele se tornou desdenhoso — das moças virgens porque eram ignorantes e das outras porque ficavam histéricas com coisas que ele, em seu egocentrismo avassalador, tomava como certas.
Mas seu coração vivia em uma turbulência constante. As ideias mais grotescas e fantásticas o perseguiam à noite, antes de dormir. Um universo de ostentação inefável se formava em sua mente enquanto os ponteiros do relógio avançavam no lavatório e a lua banhava de luz úmida suas roupas bagunçadas no chão. Todas as noites ele acrescentava algo à estrutura de suas fantasias até que a sonolência soterrasse essa cena vívida num abraço de esquecimento. Por um tempo, as ilusões lhe propiciaram um escape para a imaginação; eram uma alusão satisfatória à irrealidade da realidade, uma promessa de que a rocha do mundo estava assentada numa asa de fada.
Um pressentimento de glória futura o levara, meses antes, ao pequeno Colégio Luterano de St. Olaf, ao sul de Minnesota.b Ele passou duas semanas lá, consternado com a feroz indiferença dos professores ao seu destino estrondoso, ou mesmo ao próprio destino, e acabou por desdenhar o trabalho de zelador com o qual pagaria sua matrícula. Então se deixou levar de volta ao lago Superior, e ainda procurava uma ocupação no dia em que o iate de Dan Cody baixou âncora na área mais rasa da costa.
Cody tinha cinquenta anos e era um subproduto das jazidas de prata do Yukon, tendo participado de todas as corridas de metal desde 1875. Os negócios com o cobre de Montana que o tornaram várias vezes milionário o deixaram ainda fisicamente robusto, mas à beira da debilidade e, com isso em mente, um número infinito de mulheres tentou apartá-lo do dinheiro. As circunstâncias nada agradáveis pelas quais a jornalista Ella Kaye conseguiu dar uma de madame de Maintenon2 diante de suas fraquezas, despachando-o para o mar num iate, eram comuns na imprensa sensacionalista de 1902. Nos últimos cinco anos de vida, ele velejara por todo canto minimamente hospitaleiro da costa, antes de transformar a vida de James Gatz na baía de Little Girl.
Para o jovem Gatz, descansando sobre os remos e admirando o parapeito do convés, o iate representava toda a beleza e glamour do mundo. Acredito que ele tenha sorrido para Cody — talvez já tivesse descoberto que as pessoas gostavam dele quando sorria. Em todo caso, Cody lhe fizera algumas perguntas (uma delas trouxe à tona seu novo nome) e descobriu que era um rapaz esperto e extravagantemente ambicioso. Poucos dias depois, levou-o a Duluth e comprou-lhe um sobretudo azul, seis pares de calças de brim e um quepe de iatismo. E quando o Toulomee zarpou para as Índias Ocidentais e a Costa da Berbéria,c Gatsby foi junto.
Haviam-no alocado para uma função vaga e pessoal — enquanto esteve com Cody, foi comissário de bordo, imediato, capitão, secretário e até carcereiro, pois o Dan Cody sóbrio sabia quanta prodigalidade o Dan Cody bêbado podia cometer, e precavia-se dessas eventualidades depositando mais e mais confiança em Gatsby. O arranjo durou cinco anos, durante os quais o barco deu três voltas pelo continente. Teria durado eternamente, não fosse o fato de que Ella Kaye subiu a bordo certa noite, em Boston, e uma semana depois Dan Cody morreu de maneira inóspita.
Lembro-me de seu retrato no quarto de Gatsby: um homem grisalho e ruborizado com um rosto duro e vazio — o típico pioneiro libertino, que no passado trouxera de volta à Costa Leste a violência selvagem dos saloons e bordéis da fronteira. Era indiretamente por sua causa que Gatsby bebia tão pouco. Às vezes, em festas animadas, as mulheres esfregavam champanhe em seu cabelo; de sua parte, Gatsby adquiriu o hábito de deixar a bebida em paz.
E foi de Cody que ele herdou uma grande riqueza — um legado de vinte e cinco mil dólares que jamais chegou a receber. Nunca pôde entender os artifícios legais usados contra ele, mas o que sobrou dos milhões de Cody foi inteiramente para Ella Kaye. A ele restou apenas uma educação singularmente refinada; o vago contorno de Jay Gatsby fora agora preenchido pela substancialidade de um homem.
Gatsby me contou tudo isso bem mais tarde, mas decidi registrá-lo aqui para desfazer aqueles primeiros e loucos rumores sobre seu passado, que não eram nem minimamente verdadeiros. Além disso, ele me contou sua história num momento de confusão, quando estive a ponto de acreditar em nada e em tudo a seu respeito. Então aproveitei essa breve pausa enquanto Gatsby, por assim dizer, retomava seu fôlego, para esclarecer essa série de mal-entendidos.
Foi também uma pausa em meu envolvimento com seus problemas. Por várias semanas, não o vi nem ouvi sua voz ao telefone — passei a maior parte do tempo em Nova York, flanando com Jordan e tentando agradar a sua tia senil —, mas por fim, num domingo à tarde, resolvi passar em sua casa. Havia chegado fazia não mais que dois minutos quando um homem trouxe Tom Buchanan para tomar um drinque. Fiquei alarmado, é claro, mas o que me surpreendeu é que não houvesse acontecido antes.
Eram três pessoas e estavam a cavalo — Tom, um homem chamado Sloane e uma bela mulher em trajes marrons de ginete, que já estivera lá.
— É um prazer recebê-los — disse Gatsby, parado no pórtico. — Fico feliz com a visita.
Como se eles se importassem!
— Venham, sentem-se. Aceitam um cigarro ou charuto? — Andou rapidamente pela sala, tocando sinetas. — Trarei algo para vocês beberem em um minuto.
Ele estava profundamente afetado com a presença de Tom. Mas, em todo caso, não sossegaria até arrumar uma bebida para os convidados, presumindo de forma vaga que eles haviam vindo para isso. O sr. Sloane dispensou a bebida. Uma limonada? Não, obrigado. Um pouco de champanhe? Não quero nada, obrigado... Me desculpe...
— Fizeram um bom passeio?
— Há belas trilhas por aqui.
— Na certa os automóveis...
— É.
Movido por um impulso irresistível, Gatsby voltou-se para Tom, que havia sido apresentado como um estranho.
— Acho que já nos conhecemos, senhor Buchanan.
— Ah, sim — disse Tom num jeito rispidamente educado, mas era óbvio que não se lembrava. — É verdade. Lembro-me muito bem.
— Há mais ou menos duas semanas.
— Claro. Você estava com Nick.
— Conheço sua esposa — continuou Gatsby, de modo quase agressivo.
— É mesmo?
Tom virou-se para mim.
— Você mora por aqui, Nick?
— Na casa ao lado.
— É mesmo?
O sr. Sloane não participou da conversa e continuou largado desdenhosamente em sua poltrona; a mulher também não disse uma palavra — até que, de repente, após dois uísques com soda, se fez simpática.
— Nós todos iremos comparecer a sua próxima festa, senhor Gatsby — ela sugeriu. — O que me diz?
— Ótimo, será um prazer recebê-los.
— Que bom — disse o sr. Sloane, sem demonstrar gratidão. — Bem, acho que é hora de irmos para casa.
— Por favor, não se apressem — Gatsby os encorajou. Ele agora assumira o controle de si mesmo e gostaria de saber mais sobre Tom. — Por que vocês não... por que não ficam para o jantar? Não seria nenhuma surpresa se aparecesse por aqui mais gente de Nova York.
— Você venha jantar comigo — disse a moça com entusiasmo. — Vocês dois.
Aquilo me incluía. O sr. Sloane levantou-se.
— Vamos — ele disse, dirigindo-se apenas à esposa.
— É sério — ela insistiu. — Adoraria tê-los em casa. Temos bastante espaço.
Gatsby olhou para mim interrogativamente. Ele queria ir, mas não tinha reparado que o sr. Sloane já decidira em contrário.
— Acho que não vou poder ir — eu disse.
— Bem, então venha você — ela pediu, concentrando-se em Gatsby.
O sr. Sloane sussurrou alguma coisa ao pé do seu ouvido.
— Não ficará tarde se sairmos agora — ela insistiu, em voz alta.
— Não tenho cavalo — respondeu Gatsby. — Costumava montar na época do Exército, mas nunca cheguei a comprar um. Terei que segui-los em meu carro. Com licença, volto em um minuto.
Fomos sem Gatsby até o pórtico, onde Sloane e a mulher começaram uma discussão inflamada.
— Meu Deus, e não é que o homem vai mesmo? — exclamou Tom. — Será que não percebe que ela não quer que vá?
— Mas ela disse que quer.
— Haverá um grande jantar festivo e ele não conhece ninguém. — Tom franziu as sobrancelhas. — Fico imaginando de onde diabos ele conhece Daisy. Por Deus, posso ter ideias antiquadas, mas as mulheres de hoje em dia circulam demais para o meu gosto. Elas acabam conhecendo todo tipo de gente esquisita.
De súbito, o sr. Sloane e a mulher desceram os degraus e montaram seus cavalos.
— Vamos — disse o sr. Sloane para Tom —, estamos atrasados. Temos que ir.
E então, para mim:
— Diga a ele que não pudemos esperar, certo?
Tom e eu nos cumprimentamos, troquei um aceno indiferente com os outros dois e eles trotaram às pressas pela entrada da casa, desaparecendo sob a folhagem de agosto no exato instante em que Gatsby surgia à porta de chapéu e casaco leve.
Tom ficara claramente incomodado com as andanças solitárias de Daisy, pois no sábado seguinte ele a acompanhou à festa de Gatsby. Talvez sua presença tenha conferido àquela noite um caráter singularmente opressivo — destacando-se em minha memória das outras festas de Gatsby naquele verão. Eram os mesmos convidados, ou pelo menos o mesmo tipo de convidados, a mesma profusão de champanhe, a mesma comoção colorida e dissonante, mas havia um desconforto no ar, uma aridez penetrante que nunca esteve lá. Ou talvez eu tenha me habituado às festas e passado a aceitar West Egg como um mundo em si mesmo com suas próprias regras e celebridades, sem nada que lhe fizesse frente, pois era tudo involuntário. E agora me via forçado a analisar tudo de novo, através dos olhos de Daisy. É invariavelmente triste ver com novos olhos situações às quais você já havia despendido esforços para se ajustar.
Eles chegaram ao anoitecer e, enquanto passeávamos entre centenas de convidados entusiasmados, Daisy cantarolava baixinho.
— Essas coisas me deixam tão animada — ela sussurrou. — Se quiser me beijar em algum momento, Nick, é só dizer e ficarei feliz em atendê-lo. Basta chamar o meu nome. Ou me apresentar um cartão verde. Estou distribuindo cartões...
— Olhe bem à sua volta — sugeriu Gatsby.
— Estou olhando. É uma noite marav...
— Você precisa ver o rosto de todas essas pessoas de quem já ouviu falar.
Os olhos arrogantes de Tom perscrutaram a multidão.
— Não costumamos sair muito de casa — ele disse. — Na verdade, eu estava justamente pensando que não conheço uma única alma aqui dentro.
— Talvez conheça aquela moça. — Gatsby apontou para uma mulher estonteante que mais parecia uma orquídea, dificilmente humana, sentada com pompa sob uma ameixeira branca. Tom e Daisy olharam com aquela sensação irreal que temos ao reconhecer alguma celebridade do cinema, até então etérea.
— Ela é linda — disse Daisy.
— O homem inclinado sobre ela é seu diretor.
Ele os conduziu cerimoniosamente de grupo em grupo:
— Senhora Buchanan... e senhor Buchanan... — Após um instante de hesitação, ele acrescentou: — O jogador de polo.
— Ah, não — protestou Tom imediatamente —, de maneira alguma.
Mas era óbvio que aquela alcunha agradava a Gatsby, de modo que Tom permaneceu “o jogador de polo” pelo resto da noite.
— Nunca vi tantas celebridades — exclamou Daisy. — Gostei daquele homem — como se chama mesmo? —, aquele com o nariz azulado.
Gatsby o identificou, informando que era um pequeno produtor.
— Bem, em todo caso gostei dele.
— Eu realmente preferia não ser o jogador de polo — disse Tom amigavelmente. — Gostaria de poder olhar para todas essas pessoas famosas do alto de meu... de meu anonimato.
Daisy e Gatsby foram dançar. Lembro-me de ficar surpreso com seu jeito altivo e conservador de bailar o foxtrote — eu nunca o tinha visto dançar. Então eles caminharam até a minha casa e passaram meia hora sentados nos degraus, enquanto, a pedido de Daisy, eu permanecia de vigia no jardim.
— Para o caso de haver um incêndio ou uma inundação — ela explicou —, ou qualquer outro ato da natureza.
Tom retornou de seu anonimato quando nos organizávamos para o jantar.
— Vocês se importam se eu me sentar com aquela turma logo ali? — ele perguntou. — Tem um sujeito contando umas histórias muito engraçadas.
— Vá em frente — respondeu Daisy com alegria —, e se quiser anotar algum telefone, aqui está o meu lápis dourado...
Após um instante, ela olhou para trás e me contou que a garota era “comum, mas bonita”, e eu percebi que, excetuando-se aquela meia hora que passara a sós com Gatsby, ela não estava se divertindo.
Havíamos escolhido uma mesa particularmente bêbada. A culpa era minha — Gatsby saíra para atender o telefone e eu havia me divertido com essas mesmas pessoas duas semanas antes. Mas o que outrora me entusiasmara agora apodrecia em pleno ar.
— Está se sentindo bem, senhorita Baedeker?
A referida garota tentava, sem sucesso, tombar sobre o meu ombro. Diante da pergunta, ela se aprumou e abriu os olhos.
— Ahn?
Uma mulher robusta e letárgica, que até então tentava convencer Daisy a jogar golfe com ela no clube, falou em defesa da srta. Baedeker:
— Ah, ela está bem agora. Quando toma uns cinco ou seis coquetéis, costuma gritar desse jeito. Eu sempre falo para ela parar de beber.
— Eu parei de beber — afirmou a acusada, só por falar.
— Todo mundo ouviu os seus gritos, então eu disse para o doutor Civet: “Alguém aqui precisa da sua ajuda, doutor”.
— Ela ficou muito agradecida, tenho certeza — disse outro amigo, sem um pingo de gratidão —, mas você lhe molhou todo o vestido ao meter a cabeça dela na piscina.
— Se tem uma coisa que eu odeio é meterem a minha cabeça na piscina — balbuciou a srta. Baedeker. — Uma vez, em Nova Jersey, quase me afogaram.
— Então você devia parar de beber — retrucou o dr. Civet.
— Olha quem está falando! — gritou a srta. Baedeker agressivamente. — A sua mão está tremendo. Eu nunca deixaria você me operar!
E assim por diante. A última lembrança que tenho foi de estar com Daisy observando o diretor de cinema e sua estrela. Eles continuavam sentados sob a ameixeira branca e seus rostos quase se roçavam, separados apenas por um pálido e tênue fio de luar. Ocorreu-me que ele passara a noite toda se debruçando em sua direção só para alcançar essa proximidade, e, enquanto eu o observava, venceu o último degrau e a beijou na bochecha.
— Eu gosto dela — disse Daisy —, é muito encantadora.
Mas o resto da festa lhe desagradava — e não havia o que discutir, já que não se tratava de gestos, mas de emoções. Daisy estava chocada com West Egg, esse lugarzinho inaudito que a Broadway havia engendrado num vilarejo de pescadores de Long Island —, chocada com o vigor brutal que se ocultava por trás dos velhos eufemismos e com o destino absolutamente importuno que forçava os moradores a viver nessa espécie de atalho que levava de nada a lugar algum. Ela via naquela simplicidade algo terrível que não conseguia explicar.
Sentei-me ao lado de Tom e Daisy nos degraus, enquanto eles esperavam o carro. A frente da casa era um verdadeiro breu; a luz da porta projetava apenas um minúsculo retângulo sobre a branda e escura madrugada. Às vezes uma sombra se mexia por trás da veneziana de algum quarto de vestir, dando lugar a outra sombra e a uma infinita sucessão delas, que passavam rouge e pó de arroz diante de um espelho invisível.
— Afinal, quem é esse Gatsby? — perguntou Tom de repente. — Algum figurão contrabandista?
— Onde você ouviu isso? — perguntei.
— Em lugar nenhum. Eu presumi. Você sabe que muitos desses novos-ricos não passam de contrabandistas.
— Não o Gatsby — eu disse, sucinto.
Ele ficou calado por um instante. Esmagou com o pé uns pedregulhos da entrada da casa.
— Bem, ele deve ter se desdobrado para juntar essa turma exótica.
Uma brisa soprava a névoa cinzenta da gola de pele do casaco de Daisy.
— Pelo menos são mais interessantes do que as pessoas que nós conhecemos — ela disse, com esforço.
— Você não parecia tão interessada.
— Mas estava.
Tom deu risada e voltou-se para mim.
— Você reparou na cara que Daisy fez quando aquela moça lhe pediu que a metessem debaixo do chuveiro?
Daisy resolveu acompanhar a música com um sussurro rouco e melodioso, conferindo às palavras um novo sentido, que jamais tiveram e nunca mais terão. Quando a música se erguia, a voz de Daisy irrompia docemente em seu encalço, como fazem as vozes de contralto, e cada mudança de tom exalava no ar um pouco de sua magia cálida e humana.
— Gostaria de saber quem é Gatsby e o que ele faz — insistiu Tom. — E acho que vou conseguir descobrir.
— Posso te dizer agora mesmo — ela respondeu. — Era proprietário de drugstores, de uma rede de drugstores. Que ele mesmo construiu.
A vagarosa limusine veio avançando pela entrada.
— Boa noite, Nick — disse Daisy.
Ela desviou o olhar e procurou o topo iluminado da escadaria, onde “Three o’clock in the morning”, uma valsa simples e triste daquele ano, emanava da porta aberta. Havia, na própria informalidade da festa de Gatsby, possibilidades românticas totalmente ausentes de seu mundo. O que se passava naquela música que parecia atraí-la de volta para dentro? O que iria acontecer agora, naquelas horas indistintas e incalculáveis? Talvez surgisse algum convidado incrível, uma pessoa infinitamente rara e feita para ser admirada, uma garota radiante de verdade que pudesse, com um único olhar a Gatsby, num momento mágico de encontro, anular aqueles cinco anos de devoção inabalável.
Naquela noite, fiquei até tarde. Gatsby me pediu para esperar até que estivesse livre, e eu me demorei no jardim aguardando a volta dos remanescentes de uma inevitável festa na praia, trêmula e exaltada, após a qual as luzes se apagaram nos quartos de hóspedes. Quando ele enfim desceu a escada, sua pele bronzeada estava singularmente esticada, e seus olhos estavam brilhantes e exaustos.
— Ela não gostou — ele disse de imediato.
— É claro que gostou.
— Não gostou — ele insistiu. — Ela não se divertiu.
Ele ficou em silêncio, e reconheci sua inefável tristeza.
— Estou me sentindo distante dela — afirmou. — É difícil fazê-la entender.
— Você quer dizer, a dança?
— A dança? — Ele afastou essa hipótese com um estalar de dedos. — Meu velho, a dança não importa.
Gatsby não esperava outra coisa de Daisy senão que encarasse o marido e dissesse: “Nunca te amei”. Após apagar quatro anos com essa frase, então ambos poderiam tomar medidas mais práticas. Uma delas era que, após a separação, Daisy retornaria a Louisville com Gatsby e se casaria em sua terra natal — como se fosse há cinco anos.
— E ela não consegue entender — ele disse. — Ela costumava entender. Ficamos sentados por horas...
Ele se deteve e passou a andar de lá para cá num caminho desolado de cascas de frutas, lembranças abandonadas e flores esmagadas.
— Veja, eu não pediria tanto assim dela — arrisquei. — Não dá para repetir o passado.
— Como assim, não dá para repetir o passado? — ele gritou, incrédulo. — É claro que dá!
Ele olhou furiosamente ao redor, como se o passado estivesse escondido à sombra de sua casa, bem ao alcance da mão.
— Vou refazer tudo como era — ele disse, assentindo de um jeito decidido. — Ela vai ver só.
Gatsby falou bastante sobre o passado e entendi que desejava recuperar alguma coisa, talvez a ideia de si mesmo, que perdera ao se apaixonar por Daisy. Desde então, sua vida fora confusa e desordenada, mas, se ao menos ele pudesse retornar a um determinado ponto de partida e refazê-lo vagarosamente, talvez conseguisse descobrir o que era...
...Numa noite de outono, cinco anos antes, eles estavam descendo a rua enquanto as folhas caíam, e chegaram a um lugar onde não havia árvores e a calçada era prateada de luar. Pararam por ali e se olharam. Era uma noite fresca repleta daquela excitação misteriosa que ocorre nas duas grandes mudanças de estação. As luzes silenciosas das casas sussurravam na escuridão e havia certa inquietude nas estrelas. Com o canto dos olhos, Gatsby reparou que os blocos da calçada formavam uma escada perfeita que levava a um lugar secreto entre as árvores — que ele poderia escalar, se estivesse sozinho, e lá de cima sugar o seio da vida, absorvendo o incomparável leite de seu assombro.
Seu coração bateu mais rápido quando o rosto de Daisy se aproximou do seu. Gatsby sabia que, após beijá-la, associando para sempre suas fantasias inexprimíveis àquela respiração fugaz, seu espírito nunca mais seria divertido como o espírito de Deus. Portanto ele esperou, ouvindo por mais um segundo o som do diapasão que tinia ao tocar numa estrela. Então a beijou. Ao toque de seus lábios, ela se abriu como uma flor e a encarnação se completou.
De tudo o que ele me disse, em meio a um sentimentalismo alarmante, lembro-me de uma coisa: um ritmo elusivo, um fragmento de palavras perdidas que já ouvira antes. Por um instante, tentei formular uma frase e meus lábios se entreabriram feito os de um homem tolo, como se detidos por outros obstáculos além de um sopro de surpresa no ar. Mas não consegui dizer nada, e minha quase lembrança se fez incomunicável para sempre.
a Negócios de seu Pai: alusão ao comentário feito pelo jovem Jesus a seus pais, quando o encontram no templo discutindo com os doutores da Lei (Lucas 2:49).
b O Colégio Luterano de St. Olaf fica em Northfield, Minnesota, e foi fundado em 1874.
c No sentido literal, é a costa mediterrânea do norte da África, mas, segundo o biógrafo Matthew J. Bruccoli, o autor provavelmente se refere à Barbary Coast, zona portuária de San Francisco que se desenvolveu após a Corrida do Ouro de 1849. Era um bairro marcado pela prostituição, apostas e criminalidade, onde hoje se localizam Chinatown, North Beach, Jackson Square e o Financial District.

7
Foi quando a curiosidade acerca de Gatsby chegou ao ápice que as luzes de sua casa deixaram de se acender no sábado à noite — e, tão misteriosamente quanto começara, sua carreira de Trimálquioa chegou ao fim. Só aos poucos me atinei que os automóveis que aportavam esperançosamente à sua entrada ficavam só um minuto e iam embora a contragosto. Supondo que ele poderia estar doente, fui até lá conferir — um mordomo desconhecido de rosto repugnante me encarou da porta com um ar desconfiado.
— O senhor Gatsby está doente?
— Não. — Depois de uma pausa, ele acrescentou “senhor” de um jeito indiferente e relutante.
— Faz um tempo que não o vejo e fiquei preocupado. Diga a ele que o senhor Carraway passou por aqui.
— Quem? — ele perguntou rudemente.
— Carraway.
— Carraway. Certo, darei o recado.
E bateu a porta com força.
Minha finlandesa informou que Gatsby despedira todos os empregados da casa havia uma semana, substituindo-os por meia dúzia de outros, que nunca haviam estado no centro do vilarejo para serem subornados pelos comerciantes. Estes, ao contrário, encomendavam uma quantidade moderada de suprimentos pelo telefone. O garoto da mercearia relatou que a cozinha parecia um chiqueiro, e a opinião geral do vilarejo era que os novos serviçais não eram empregados de verdade.
No dia seguinte, Gatsby me ligou.
— Estava viajando? — perguntei.
— Não, meu velho.
— Ouvi dizer que você demitiu todos os empregados.
— Não queria ninguém que pudesse fofocar. Daisy tem vindo me visitar com frequência, durante a tarde.
Portanto, diante da reprovação de Daisy, toda a hospitalidade de Gatsby ruíra como um castelo de cartas.
— É um pessoal para quem Wolfshiem estava tentando arrumar emprego. São todos da mesma família e cuidavam de um hotelzinho.
— Entendo.
Ele estava telefonando a pedido de Daisy — será que eu toparia almoçar na casa dela no dia seguinte? A srta. Baker estaria lá. Meia hora depois, a própria Daisy me ligou e pareceu aliviada de saber que eu iria. Havia algo no ar. E, ainda assim, eu não podia acreditar que eles escolheriam essa ocasião para fazer uma cena — sobretudo o tipo de cena aflitiva que Gatsby havia esboçado no jardim.
O dia seguinte foi provavelmente o último dia tórrido daquele verão, e o mais quente de todos. Quando meu trem emergiu do túnel em direção à luz do sol, só os apitos cálidos da Companhia Nacional de Biscoitos quebraram o silêncio fervente do meio-dia. Os assentos de palha do vagão borbulhavam à beira da combustão; a mulher ao meu lado transpirava delicadamente por toda a extensão de sua blusa branca, e, enquanto o jornal empapava entre seus dedos, ela se rendeu ao calor bestial com um grito de desolação. Seu livro de bolso caiu no chão.
— Meu Deus! — ela arfou.
Eu o apanhei do chão com uma mesura exausta e o devolvi à dona, segurando-o pelas pontas com o braço esticado, a fim de deixar claro meu desinteresse pelo objeto — mas todos à minha volta, incluindo a mulher, ficaram invariavelmente desconfiados.
— Quente! — disse o condutor a alguns rostos conhecidos. — Que calor!... Quente!... Quente!... Quente!... Está quente demais para você? Está quente? Está...?
Ele me devolveu o bilhete com uma mancha escura de suor dos seus dedos. E pensar que, nesse calor, houvesse gente interessada em beijar lábios ardentes ou ter alguém para se aninhar no colo, encharcando a frente do pijama!
...Uma brisa leve soprava pelo vestíbulo da casa dos Buchanan, levando o barulho do telefone até a porta, onde eu e Gatsby aguardávamos.
— O corpo do patrão? — rugiu o mordomo ao telefone. — Me desculpe, madame, mas não podemos providenciá-lo: com esse calor do meio-dia, está quente demais para tocá-lo!
O que ele realmente disse foi:
— Sim... Sim... Vou ver.
Ele devolveu o fone ao gancho e veio em nossa direção, vagamente satisfeito, para apanhar os nossos rígidos chapéus de palha.
— A madame está esperando no salão! — ele gritou, apontando desnecessariamente a direção. Naquele calor, qualquer gesto supérfluo era uma afronta ao resguardo geral de energia.
A sala, bem revestida por uma série de toldos, era escura e fresca. Daisy e Jordan estavam estendidas num sofá enorme, como ídolos de prata oferecendo seus vestidos brancos à brisa melodiosa dos ventiladores.
— Não conseguimos nos mexer — elas disseram em uníssono.
Os dedos de Jordan, empoados de branco sobre a pele bronzeada, enlaçaram os meus por um instante.
— E o senhor Thomas Buchanan, o atleta? — perguntei.
Na mesma hora ouvi sua voz rouca, abafada e áspera ao telefone do vestíbulo.
Gatsby ficou parado no centro do tapete vermelho e lançou à sua volta um olhar fascinado. Daisy olhou para ele e soltou uma gargalhada doce e empolgada; uma fina nuvem de pó de arroz emergiu de seu peito e perdeu-se no ar.
— Parece que é a namorada de Tom ao telefone — sussurrou Jordan.
Ficamos em silêncio. A voz no vestíbulo ergueu-se, irritada:
— Muito bem, então não venderei meu carro a você... Não tenho nenhuma obrigação... e não admito que venha me incomodar com esse assunto em plena hora do almoço!
— Está segurando o botão do gancho — disse Daisy com sarcasmo.
— Não está, não — eu garanti. — É uma negociação legítima. Calhou de eu saber a seu respeito.
Tom escancarou a porta, bloqueou o espaço com seu corpo por um instante e então irrompeu na sala.
— Senhor Gatsby! — Ele estendeu sua enorme mão aberta com uma antipatia bem disfarçada. — Prazer em vê-lo, senhor... Nick...
— Prepare um drinque gelado para nós — gritou Daisy.
Assim que ele saiu da sala, Daisy se levantou, foi até Gatsby e puxou seu rosto, beijando-o na boca.
— Você sabe que eu te amo — ela sussurrou.
— Esqueceu que há uma dama presente? — disse Jordan.
Daisy olhou em volta, hesitante.
— Você pode beijar o Nick também.
— Que garota baixa e vulgar!
— Eu não me importo! — exclamou Daisy, remexendo na lareira de tijolos. Então se lembrou do calor e sentou-se culpadamente no sofá, no instante em que uma governanta de banho recém-tomado entrou conduzindo uma garotinha pelas mãos.
— Mi-nha pre-ci-o-sa — ela cantarolou, estendendo os braços. — Venha com a mamãe que te ama tanto.
Liberada pela governanta, a criança cruzou a sala correndo e afundou a cabeça timidamente no vestido da mãe.
— Mi-nha pre-ci-o-sa! A mamãe sujou de pó de arroz os seus lindos cabelos loiros? Agora fique de pé e diga: “Como vai, pessoal?”.
Um de cada vez, Gatsby e eu nos inclinamos para cumprimentar aquela pequena e relutante mão. Depois, ele seguiu olhando para a criança com surpresa. Acho que, até então, ele não havia cogitado a sério sua existência.
— Me vestiram antes do almoço — disse a criança, voltando-se avidamente para Daisy.
— É porque sua mãe queria se gabar de você. — O rosto de Daisy inclinou-se em direção àquele pescoço branco e pequeno. — Você é um sonho. O sonho lindo da mamãe.
— Eu sou — admitiu a criança com tranquilidade. — A tia Jordan também está de vestido branco.
— Você gosta dos amigos da mamãe? — Daisy virou a filha para trás, a fim de que desse uma boa olhada em Gatsby. — Eles são bonitos?
— Cadê o papai?
— Ela não se parece com o pai — explicou Daisy. — Mas se parece comigo. Tem o meu cabelo e o formato do meu rosto.
Daisy voltou a recostar-se no sofá. A governanta deu um passo à frente e tomou a mão da menina.
— Venha, Pammy.
— Até logo, querida!
Olhando para trás com relutância, a disciplinada menina aceitou a mão da governanta e foi levada para fora da sala, justamente quando Tom retornava com quatro drinques de gim e limão repletos de gelo.
Gatsby apanhou seu copo.
— Parecem muito refrescantes — afirmou, com uma tensão visível.
Bebeu em goles ávidos e exagerados.
— Li em algum lugar que o Sol está ficando mais quente a cada ano que passa — disse Tom alegremente. — Parece que em breve a Terra irá de encontro ao Sol... não, espere aí, é justamente o oposto: o Sol está ficando cada vez mais frio.
— Venha comigo — sugeriu a Gatsby em seguida —, quero lhe mostrar o lugar.
Acompanhei-os até o alpendre. Na água esverdeada e estagnada pelo calor, um único barco a vela navegava devagar em direção ao frescor do oceano. Os olhos de Gatsby o seguiram momentaneamente; ele ergueu a mão e apontou para o outro lado da baía.
— Eu vivo exatamente defronte a você.
— É verdade.
Nossos olhares baixaram em direção aos roseirais, ao gramado tórrido e às algas remanescentes dos dias de calor na costa. Lentamente, os flancos brancos do barco iam de encontro ao limite azul e frio do céu. Do lado de lá ficavam o oceano recortado e as ilhas abundantes e abençoadas.
— Aí está um bom esporte — disse Tom, assentindo com a cabeça. — Eu queria poder passar uma meia hora com ele por lá.
Almoçamos na escura sala de jantar, também protegida do calor, e engolimos toda a nossa alegria nervosa com um gole de cerveja gelada.
— O que vamos fazer hoje à tarde? — indagou Daisy — E amanhã, e nos próximos trinta anos?
— Não seja mórbida — disse Jordan. — A vida começa outra vez na brisa fresca do outono.
— Mas faz tanto calor — insistiu Daisy, à beira das lágrimas —, e tudo está tão confuso. Vamos todos à cidade!
Sua voz se debatia contra o calor, enfrentando-o e dando forma à sua falta de sentido.
— Já ouvi falar de gente que transformou um estábulo em garagem — Tom disse a Gatsby —, mas sou o primeiro a transformar uma garagem em estábulo.
— Quem quer ir à cidade? — insistiu Daisy. Os olhos de Gatsby flutuaram em sua direção. Então ela exclamou: — Ah, você parece tão calmo.
Os olhares se cruzaram e eles ficaram se olhando fixamente, sozinhos no mundo. Com esforço, ela conseguiu desviar os olhos para a mesa.
— Você sempre parece tão calmo — ela repetiu.
Daisy acabara de confessar que o amava, e Tom Buchanan percebeu. Ficou atônito. Sua boca se entreabriu e ele olhou para Gatsby, depois para Daisy, como se acabasse de reconhecer na esposa alguém de um passado distante.
— Você me lembra um homem de anúncio — ela prosseguiu inocentemente. — Sabe, esses homens de anúncio...
— Certo — interveio Tom depressa —, estou morrendo de vontade de ir à cidade. Vamos, estamos todos indo à cidade.
Ele se levantou, o olhar ainda fulminante se movendo da esposa para Gatsby. Ninguém se mexeu.
— Vamos lá! — Ele se deixara irritar um pouco. — Qual é o problema, afinal? Se vamos até a cidade, é bom sairmos agora.
Sua mão, trêmula pelo esforço de autocontrole, levou aos lábios o último gole de cerveja do copo. A voz de Daisy nos fez levantar e sair em direção à tórrida entrada de cascalho.
— Nesse exato momento? — ela protestou. — Assim, do nada? Não vamos deixar ninguém fumar um cigarro antes?
— Todo mundo fumou o que precisava durante o almoço.
— Ei, vamos nos divertir — ela implorou ao marido. — Está quente demais para brigar.
Ele não respondeu.
— Faça como quiser — ela disse. — Venha, Jordan.
As duas subiram para se aprontar enquanto nós três ficamos ali, remexendo os tórridos pedregulhos com os pés. Um contorno prateado da lua já pairava no céu a oeste. Gatsby arriscou dizer algo e mudou de ideia, mas só depois que Tom já havia se virado e o encarava com expectativa.
— Seu estábulo fica aqui perto? — perguntou Gatsby, não sem esforço.
— A uns quinhentos metros descendo a estrada.
— Ah.
Uma pausa.
— Não consigo entender essa coisa de ir à cidade — irrompeu Tom, furioso. — As mulheres enfiam essas ideias na cabeça e...
— Devemos levar algo para beber? — gritou Daisy de uma janela no andar de cima.
— Vou pegar um uísque — respondeu Tom. E foi para dentro.
Gatsby voltou-se para mim com severidade:
— Não posso dizer nada nesta casa, meu velho.
— Ela tem uma voz indiscreta — observei. — E cheia de...
Hesitei.
— A voz dela é cheia de dinheiro — ele falou de repente.
Era isso mesmo. Eu nunca tinha me dado conta. Era uma voz cheia de dinheiro — era esse o charme inesgotável e oscilante de sua fala, o ritmo, a música de címbalos... Lá no topo do palácio branco a filha do rei, a garota de ouro...
Tom saiu de casa com uma garrafa embrulhada numa toalha, seguido por Daisy e Jordan, que usavam pequenos e apertados chapéus de tecido metalizado e carregavam capas leves nos braços.
— Vamos todos no meu carro? — sugeriu Gatsby. Ele sentiu o calor do estofamento verde de couro. — Devia tê-lo deixado na sombra.
— É de câmbio normal? — perguntou Tom.
— É.
— Bem, então você leva o meu cupê e me deixa dirigir o seu carro até a cidade.
A ideia não agradou a Gatsby.
— Acho que não tem gasolina suficiente — ele objetou.
— Tem, sim — disse Tom ruidosamente. Olhou para o medidor. — E se faltar gasolina, posso parar numa drugstore. Pode-se comprar qualquer coisa numa drugstore hoje em dia.
Seguiu-se uma pausa a esse comentário que parecia sem sentido. Daisy olhou zangada para Tom, e pelo rosto de Gatsby passou uma expressão indefinida, a um só tempo decididamente desconhecida e vagamente reconhecível, como se só eu tivesse ouvido alguém descrevê-la em palavras.
— Vamos, Daisy — disse Tom, impelindo-a para o carro de Gatsby. — Eu te levo para passear neste vagão de circo.
Ele abriu a porta, mas ela se afastou do alcance de seus braços.
— Você leva Nick e Jordan. Nós iremos atrás no cupê.
Ela andou até Gatsby, tocando seu casaco com a mão. Eu, Jordan e Tom nos sentamos no banco da frente do carro de Gatsby. Tom experimentou a nova embreagem e disparamos rumo ao calor opressivo, deixando-os para trás.
— Vocês viram aquilo? — perguntou Tom.
— Vimos o quê?
Ele me fulminou com os olhos ao atinar, por fim, que eu e Jordan sabíamos o tempo todo.
— Vocês pensam que eu sou idiota, não é? — ele sugeriu. — Talvez eu seja, mas tenho... uma espécie de sexto sentido, às vezes, que me diz o que fazer. Pode ser que vocês não acreditem nessas coisas, mas a ciência...
Ele se deteve. Surpreendido por uma circunstância imediata, acabou se afastando da beira de um abismo hipotético.
— Fiz uma pequena investigação sobre esse sujeito — ele prosseguiu. — Podia ter ido mais fundo, se soubesse que...
— Quer dizer que você foi a um médium? — perguntou Jordan, bem-humorada.
— O quê? — Confuso, ele ficou nos encarando enquanto dávamos risada. — Um médium?
— Sobre Gatsby.
— Sobre Gatsby! Não, não fui. Eu disse que fiz uma pequena investigação a respeito de seu passado.
— E descobriu que ele é um homem de Oxford — completou Jordan.
— Um homem de Oxford! — Ele estava incrédulo. — Que piada! Ele usa um terno cor-de-rosa.
— Ainda assim, é um homem de Oxford.
— Só se for de Oxford, Novo México — bufou Tom, com desdém —, ou algo do tipo.
— Escute, Tom. Se você é tão esnobe, por que o convidou para almoçar? — perguntou Jordan, zangada.
— Foi Daisy que convidou. Ela o conhecia de antes do nosso casamento, Deus sabe como!
Estávamos todos irritados por haver passado o efeito da cerveja e, cientes disso, percorremos um bom trecho do caminho em silêncio. Então, quando os olhos desbotados do dr. T. J. Eckleburg despontaram no horizonte, lembrei-me do aviso de Gatsby sobre a gasolina.
— Temos o suficiente para chegar à cidade — disse Tom.
— Mas há uma oficina mecânica logo ali — protestou Jordan. — Não quero me ver em apuros neste calor de fritar.
Tom pisou nos freios a contragosto e paramos de forma abrupta e poeirenta sob o letreiro “Wilson”. Após um instante, o proprietário surgiu de dentro e encarou o automóvel com um olhar cadavérico.
— Ei, nós precisamos de gasolina! — gritou Tom com grosseria. — Acha que paramos só para admirar a vista?
— Estou doente — disse Wilson, sem se mover. — Passei o dia doente.
— Qual é o problema?
— Estou esgotado.
— Bem, eu devo abastecer sozinho? — Tom perguntou. — Você parecia muito bem ao telefone.
Com esforço, Wilson deixou a sombra e o batente da porta que lhe suportava o peso, e, respirando pesadamente, desenroscou a tampa do tanque. À luz do sol, seu rosto estava verde.
— Não quis interromper seu almoço — disse. — Mas eu estava precisando de dinheiro e fiquei imaginando o que você ia fazer com seu carro velho.
— O que você acha deste? — perguntou Tom. — Comprei-o na semana passada.
— É um belo carro amarelo — disse Wilson, estendendo a mão para pegar a bomba.
— Quer comprar?
— Quem me dera — Wilson sorriu debilmente. — Não, mas posso tirar um dinheiro com aquele outro.
— E para que você quer o dinheiro, assim de repente?
— Cansei de viver aqui. Quero ir embora. Minha esposa e eu queremos ir para o Oeste.
— Sua esposa? — exclamou Tom, surpreso.
— Faz uns dez anos que ela só fala nisso. — Ele se recostou por um momento na bomba, protegendo os olhos da claridade. — E agora ela vai comigo, mesmo se não quiser. Vou levá-la embora.
O cupê passou voando, deixando para trás uma nuvem de poeira e o vislumbre de um aceno.
— Quanto eu lhe devo? — perguntou Tom friamente.
— É que nos últimos dias fiquei sabendo de uma coisa esquisita — comentou Wilson. — É por isso que quero sair daqui. Por isso tenho te incomodado com o carro.
— Quanto eu lhe devo?
— Um dólar e vinte centavos.
Aquele calor implacável e cortante estava começando a me confundir, pois passei por maus momentos até perceber que suas suspeitas ainda não recaíam sobre Tom. Ele descobrira que Myrtle tinha uma segunda vida num mundo à parte, e o choque o adoecera fisicamente. Encarei Wilson e depois Tom, que havia feito uma descoberta similar menos de uma hora antes — e me ocorreu que não havia diferença entre os homens, de raça ou de inteligência, mais profunda do que entre doentes e sãos. Wilson estava tão doente que parecia culpado, imperdoavelmente culpado — como se houvesse acabado de engravidar uma moça pobre.
— Vou vender aquele carro para você — disse Tom. — Amanhã à tarde alguém virá trazê-lo.
O lugar já era vagamente perturbador, mesmo na claridade ofuscante da tarde, e então me virei para trás como se houvesse alguém no meu encalço. Sobre as pilhas de cinzas, os olhos gigantes do dr. T. J. Eckleburg mantinham a vigilância, mas notei, após um instante, que outros olhos nos encaravam a uns cinco metros de distância com uma intensidade peculiar.
Em uma das janelas superiores da oficina, as cortinas haviam sido afastadas e Myrtle Wilson espiava o carro lá embaixo. Estava tão absorta que nem se deu conta de que a observavam, e as emoções dominavam seu rosto, uma a uma, feito objetos numa fotografia lentamente revelada. Sua expressão era curiosamente familiar — uma expressão que eu já vira em muitas mulheres, mas em Myrtle Wilson parecia despropositada e inexplicável, até que me dei conta de que seus olhos, com um terror invejoso, não estavam fixados em Tom, mas em Jordan Baker, que ela tomara por sua esposa.
Não há confusão maior que a de um espírito simples e, conforme nos distanciávamos, Tom sentiu uma violenta pontada de pânico. Sua esposa e sua amante, até uma hora atrás seguras e invioladas, estavam fugindo intempestivamente de seu alcance. O instinto o fazia pisar no acelerador com o duplo propósito de alcançar Daisy e deixar Wilson para trás, portanto disparamos rumo a Astoria a oitenta quilômetros por hora até que, entre as vigas emaranhadas do elevado, vislumbramos o indolente cupê azul.
— Os cinemas da rua 50 são muito frescos — comentou Jordan. — Adoro Nova York nas tardes de verão, quando todo mundo está fora. Há algo de sensual, algo de maduro, como se uma porção de frutas raras fosse cair a qualquer momento em nossas mãos.
A palavra “sensual” teve o efeito de inquietar ainda mais Tom, porém, antes que ele pudesse arriscar um protesto, o cupê parou de repente e Daisy gesticulou para que encostássemos.
— Para onde vamos? — ela gritou.
— Que tal o cinema?
— Está quente demais — Daisy reclamou. — Mas vocês podem ir. Nós vamos dar uma volta e encontraremos vocês depois. — Não sem esforço, ela aguçou sua esperteza. — Encontraremos vocês em alguma esquina. Eu serei o homem fumando dois cigarros.
— Não vamos discutir isso aqui — disse um impaciente Tom, assim que um caminhão buzinou atrás de nós. — Me sigam até o lado sul do Central Park, em frente ao Plaza.
No caminho, ele virou várias vezes para trás, a fim de certificar-se da presença do cupê, e reduziu a velocidade sempre que o automóvel era detido pelo tráfego, até que tornasse a aparecer. Acho que temia que eles escapassem por uma rua transversal e sumissem de sua vida para sempre.
Mas não o fizeram. E todos nós tomamos a incompreensível decisão de continuar o debate numa suíte do Plaza Hotel.
A discussão prolongada e tumultuada que acabou nos levando àquele quarto me foge à memória, embora eu tenha a nítida lembrança física de que, em seu decurso, minha roupa íntima grudava feito uma cobra ensopada pelas minhas pernas, e que gotas intermitentes de suor corriam pelas minhas costas. A ideia partiu de Daisy, que sugeriu que alugássemos cinco banheiros e tomássemos banhos frios, e acabou assumindo a forma mais tangível de “um lugar para tomar uísque com hortelã”.b Ninguém deixou de observar que era uma “ideia maluca” — mas todos a comunicamos em coro ao desnorteado recepcionista, pensando (ou fingindo pensar) que estávamos sendo engraçados...
O quarto era amplo e sufocante, e, embora já fosse quatro da tarde, o ato de abrir as janelas só permitiu a entrada de um sopro quente vindo do parque. Daisy foi até o espelho e ficou de costas para nós, ajeitando o cabelo.
— É uma suíte bacana — murmurou Jordan respeitosamente, e todos deram risada.
— Abram mais uma janela — ordenou Daisy, sem virar para trás.
— Não há mais janelas.
— Nesse caso, vamos telefonar para pedir um machado...
— O melhor a fazer é esquecer o calor — disse Tom, impaciente. — Ele fica dez vezes pior quando você resmunga.
Ele desembrulhou a garrafa de uísque da toalha e a pôs sobre a mesa.
— Por que não a deixa em paz, meu velho? — comentou Gatsby. — Foi você que quis vir à cidade.
Houve um momento de silêncio. A lista telefônica escorregou do suporte e se esborrachou no chão, enquanto Jordan murmurava: “Mil perdões” — só que dessa vez ninguém deu risada.
— Eu pego — me ofereci.
— Já peguei. — Gatsby examinou a lombada partida ao meio, resmungou um “humm” interessado e atirou a lista à cadeira.
— É uma de suas expressões preferidas, não? — disse Tom asperamente.
— Qual?
— Toda essa coisa de “meu velho”. Onde foi que aprendeu isso?
— Escute aqui, Tom — disse Daisy, virando-se do espelho —, se você pretende fazer comentários pessoais, irei embora em um minuto. Ligue para a recepção e peça um pouco de gelo para o uísque.
Assim que Tom ergueu o fone do gancho, o calor sufocante explodiu em som e ouvimos os portentosos acordes da “Marcha nupcial” de Mendelssohn, que emanava do salão abaixo de nós.
— Imagine casar num calor desses! — gritou Jordan melancolicamente.
— E ainda assim... eu me casei em meados de junho — recordou Daisy. — Louisville em junho! Alguém desmaiou. Você lembra quem desmaiou, Tom?
— Biloxi — ele respondeu secamente.
— Um homem chamado Biloxi... “Blocks” Biloxi. Ele confeccionava caixotes, é sério, e era de Biloxi, Tennessee.
— Ele foi parar na minha casa — completou Jordan — porque eu morava a duas casas da igreja. E ficou lá umas três semanas, até que o papai o obrigou a ir embora. No dia seguinte, papai morreu. — Depois de um instante, ela acrescentou: — Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
— Conheci um Bill Biloxi do Memphis — observei.
— Era primo dele. Conheci toda a árvore genealógica da família dele antes de ir embora. Me deu um taco de alumínio que uso até hoje.
A música cessou assim que a cerimônia teve início, e agora uma longa salva de palmas subia pela janela, seguida por gritos ocasionais de “Êê — êê — êê”, e finalmente por um estrondo de jazz, dando início ao baile.
— Estamos ficando velhos — disse Daisy. — Se fôssemos jovens, nos levantaríamos para dançar.
— Lembre-se de Biloxi — alertou Jordan. — De onde você o conhecia, Tom?
— Biloxi? — Ele fez um esforço para lembrar. — Não o conhecia. Era amigo de Daisy.
— Não era, não — ela negou. — Nunca o tinha visto antes. Ele veio no automóvel particular.
— Bem, ele me falou que te conhecia. Disse que fora criado em Louisville. Asa Bird o trouxe no último minuto e perguntou se tínhamos onde acomodá-lo.
Jordan sorriu.
— Acho que ele estava tentando filar uma carona. Me disse que era representante da sua classe em Yale.
Tom e eu nos entreolhamos, sem entender.
— Biloxi?
— Em primeiro lugar, não tínhamos nenhum representante de classe...
Os pés de Gatsby não sossegavam, dando pancadas breves e angustiadas no chão, e Tom o encarou de súbito.
— A propósito, senhor Gatsby, me disseram que o senhor é um homem de Oxford.
— Não exatamente.
— Ah, sim, quer dizer, você estudou lá.
— É, estudei.
Uma pausa. Então a voz de Tom, incrédula e ofensiva:
— Deve ter ido na mesma época em que Biloxi esteve em New Haven.
Outra pausa. Um garçom bateu à porta e entrou com um balde de gelo e hortelã picada, mas não chegou a romper o silêncio com seu “obrigado” e com o barulho cuidadoso da porta sendo fechada. Um detalhe significativo estava prestes a ser finalmente esclarecido.
— Já te disse que estudei em Oxford — disse Gatsby.
— Eu ouvi, mas queria saber quando.
— Em 1919, e só fiquei cinco meses. É por isso que não posso me considerar um legítimo homem de Oxford.
Tom olhou em volta para ver se compartilhávamos de sua descrença. Mas estávamos todos olhando para Gatsby.
— Foi uma oportunidade que deram a alguns oficiais após o armistício — ele continuou. — Ganhamos o direito de frequentar qualquer universidade na Inglaterra ou na França.
Tive vontade de me levantar e dar um tapinha em suas costas. Era um daqueles instantes de restauração absoluta da fé em Gatsby que eu já experimentara antes.
Daisy levantou-se e, sorrindo debilmente, foi até a mesa.
— Abra a garrafa de uísque, Tom — ela ordenou —, e eu vou preparar um drinque para você. Garanto que não terá a sensação de ser tão idiota... Vejam esta hortelã!
— Só um momento — irrompeu Tom —, tenho mais uma pergunta para o senhor Gatsby.
— Vamos lá — disse Gatsby educadamente.
— Que tipo de confusão você está procurando na minha casa, afinal?
Eles enfim falavam às claras e Gatsby ficou contente.
— Ele não está procurando nenhuma confusão — interveio Daisy, olhando, desesperada, de um para o outro. — Você é que está procurando confusão. Por favor, controle-se.
— Me controlar, eu? — repetiu Tom, incrédulo. — Suponho que o certo é ficar de braços cruzados e deixar o senhor Ninguém de Lugar Nenhum fazer amor com a sua esposa. Bem, se é essa a ideia, vocês podem ir desistindo... Hoje em dia, as pessoas começam desprezando a vida em família e as instituições, e logo estão jogando tudo para o alto e defendendo casamentos entre brancos e pretos.
Ruborizado pelo discurso exaltado, ele se viu sozinho, de pé, como o último baluarte da civilização.
— Aqui somos todos brancos — murmurou Jordan.
— Sei que não sou tão popular. Não dou festas na minha casa. Ultimamente, parece que para ter amigos é preciso transformar a própria casa em chiqueiro.
Mesmo zangado, como aliás estávamos todos naquele quarto, tive vontade de rir sempre que ele abria a boca, tão completa era a transição de libertino para pedante.
— Eu também tenho algo a lhe dizer, meu velho — começou Gatsby. Mas Daisy adivinhou suas intenções.
— Por favor, não fale! — ela interveio, em vão. — Por favor, vamos todos para casa. Por que não vamos embora?
— Boa ideia — eu me levantei. — Vamos, Tom. Ninguém aqui está a fim de beber.
— Quero ouvir o que o senhor Gatsby tem a me dizer.
— Sua esposa não te ama — disse Gatsby — e nunca te amou. Ela me ama.
— Ficou louco? — exclamou Tom mecanicamente.
Gatsby caiu de joelhos, exaltado.
— Ela nunca te amou, ouviu? — gritou. — Só se casou com você porque eu era pobre e ela estava cansada de esperar. Foi um erro terrível, mas no fundo ela nunca amou ninguém além de mim!
Nesse ponto, eu e Jordan tentamos sair, mas Tom e Gatsby, rivalizando na firmeza, insistiram que ficássemos — como se nenhum deles tivesse o que esconder e como se fosse um privilégio compartilhar indiretamente de suas emoções.
— Sente-se, Daisy — a voz de Tom arriscou, sem sucesso, um timbre mais paternal. — O que está acontecendo? Quero saber.
— Eu já disse o que está acontecendo — afirmou Gatsby. — Está acontecendo nos últimos cinco anos, e você não sabe.
Tom voltou-se para Daisy de forma agressiva:
— Faz cinco anos que você está saindo com esse sujeito?
— Saindo, não — respondeu Gatsby. — Nós não podíamos nos encontrar. Mas continuávamos nos amando esse tempo todo, meu velho, sem você saber. Às vezes eu ria muito — mas não havia nada de sorridente em seus olhos — só de pensar que você não sabia.
— Chega. — Tom uniu a ponta dos dedos como um padre e recostou-se na cadeira.
— Você está louco! — explodiu, por fim. — Não posso falar sobre o que aconteceu há mais de cinco anos, pois eu ainda não conhecia Daisy, e mesmo assim não vejo como você possa ter conseguido chegar a um quilômetro dela, a menos que trouxesse as compras pela porta dos fundos. Mas o resto é mentira. Daisy me amou quando nos casamos e ainda me ama.
— Não ama — disse Gatsby, meneando a cabeça.
— Ama, sim. O problema é que às vezes ela põe umas ideias tolas na cabeça e não sabe o que está fazendo. — Ele assentiu sabiamente. — E mais: eu também a amo. De vez em quando dou uma de minhas escapadas e caio no ridículo, mas sempre volto para ela e, no fundo, sei que a amei esse tempo todo.
— Você é revoltante — disse Daisy. Ela se voltou para mim e sua voz, descendo uma oitava, preencheu toda a sala com um escárnio faiscante: — Sabe por que fomos embora de Chicago? Incrível que ele ainda não o tenha brindado com a história dessa pequena escapada.
Gatsby aproximou-se e ficou ao lado dela.
— Está tudo acabado, Daisy — ele disse solenemente. — Nada disso importa. Apenas lhe diga a verdade, que você nunca o amou, e tudo se apagará para sempre.
Ela lhe lançou um olhar vazio:
— Ora... como eu poderia amá-lo... talvez?
— Você nunca o amou.
Ela hesitou. Seus olhos pousaram sobre Jordan e mim, numa espécie de apelo, embora ela afinal entendesse o que estava prestes a fazer — e como se nunca, em nenhum momento, tivesse tido a intenção de fazê-lo. Mas já estava feito. Era tarde demais.
— Nunca te amei — ela disse, com uma perceptível relutância.
— Nem em Kapiolani?1 — perguntou Tom de repente.
— Não.
Vindos do salão lá embaixo, acordes abafados e sufocantes subiam em bolsas quentes de ar.
— Nem quando te carreguei por toda a descida do Punch Bowl2 para não molhar os seus pés? — Havia uma ternura ríspida em sua voz... — Daisy?
— Por favor, não. — Sua voz era fria, mas o rancor já tinha passado. Ela olhou para Gatsby. — Ah, Jay — ela disse, mas sua mão tremia ao tentar acender um cigarro. De súbito, lançou o cigarro e o fósforo aceso no carpete.
— Ah, você está pedindo demais! — ela gritou para Gatsby. — Eu te amo agora, não é o suficiente? Não tenho culpa do que aconteceu no passado. — Ela começou a soluçar, desamparada. — Eu amei, sim, o meu marido, e amei você também.
Os olhos de Gatsby abriram e fecharam.
— Você me amou também? — ele repetiu.
— Até isso é mentira — disse Tom, agressivo. — Ela nem sabia que você estava vivo. Ora... Há coisas entre mim e Daisy que você nunca vai saber, coisas que nenhum de nós poderá esquecer.
Aquelas palavras pareceram atingir Gatsby fisicamente.
— Quero conversar com Daisy a sós — insistiu. — Ela está muito agitada e...
— Mesmo sozinha não posso dizer que nunca amei Tom — ela confessou numa voz deplorável. — Não seria verdade.
— É claro que não — concordou Tom.
Ela se voltou para o marido:
— Como se fizesse alguma diferença para você — disse.
— É claro que faz. Vou cuidar melhor de você daqui para a frente.
— Você não entendeu — disse Gatsby, com uma pontada de pânico. — Você não vai mais cuidar dela.
— Ah, não? — Tom arregalou os olhos e deu risada. Agora já conseguia se controlar. — E por que não?
— Daisy está se separando de você.
— Besteira.
— Estou, sim — ela disse, fazendo um esforço visível.
— Não está se separando de mim! — As palavras de Tom de repente tombaram sobre Gatsby. — Não por um charlatão que teria que roubar a aliança para colocar no seu dedo.
— Não aguento mais! — gritou Daisy. — Ah, por favor, vamos embora!
— Quem é você, afinal? — irrompeu Tom. — É da turma do Meyer Wolfshiem, isso eu sei. Fiz uma pequena investigação acerca de seus negócios, e irei mais fundo amanhã.
— Pode ficar à vontade, meu velho — disse Gatsby com firmeza.
— Descobri o que eram essas suas drugstores.3
Tom se voltou para nós e falou rapidamente:
— Ele e esse tal de Wolfshiem compraram uma porção de drugstores de esquina aqui e em Chicago, onde vendiam etanol no balcão. Foi um de seus pequenos embustes. Reconheci-o como contrabandista desde a primeira vez que o vi, e não estava nem um pouco equivocado.
— E daí? — disse Gatsby educadamente. — Parece que o seu amigo Walter Chase não era tão escrupuloso assim quando aceitou entrar no negócio.
— E você o largou na sarjeta, não é? Deixou-o ficar um mês preso em Nova Jersey. Deus! Você precisa ouvir Walter falando de você.
— Ele veio até nós sem um tostão. Ficou bem feliz de poder ganhar uns trocados, meu velho.
— Não me chame de “meu velho”! — gritou Tom. Gatsby não respondeu. — Walter podia acabar com vocês denunciando inclusive suas apostas ilegais, mas Wolfshiem o intimidou tanto que ele calou a boca.
Aquela expressão a um só tempo desconhecida e familiar retornou ao rosto de Gatsby.
— Esse negócio com as drugstores não é nada — prosseguiu Tom lentamente —, mas sei que está metido em algo que Walter tem pavor de me contar.
Voltei-me para Daisy, que olhava aterrorizada de Gatsby para o marido, e depois olhei para Jordan, que começara a equilibrar um objeto invisível, porém fascinante, na ponta do queixo. Então me voltei para Gatsby e fiquei assustado com sua expressão. Ele parecia — digo isso sem validar os boatos infames que circulavam em seu jardim — alguém capaz de “matar um homem”. Por um instante, sua expressão só podia ser descrita dessa maneira fantástica.
A expressão se desvaneceu e Gatsby passou a dirigir-se freneticamente a Daisy, negando tudo e defendendo sua honra até de acusações que nem sequer haviam sido formuladas. Mas a cada palavra Daisy se afastava mais e mais, de modo que ele cedeu, e apenas um sonho morto continuou resistindo conforme a tarde terminava, tentando tocar o que não era mais tangível, buscando de forma melancólica e desanimada o rastro perdido daquela voz na sala.
A voz voltou a implorar que fossem embora.
— Por favor, Tom! Não aguento mais.
Seus olhos assustados garantiam que qualquer intenção, qualquer bravura que ela tenha demonstrado, tudo isso desaparecera em definitivo.
— Vocês dois podem ir para casa, Daisy — disse Tom. — No carro do senhor Gatsby.
Ela olhou para Tom, agora apavorada, mas ele insistiu com um escárnio magnânimo:
— Pode ir. Ele não vai incomodá-la. Acho que já percebeu que esse flertezinho presunçoso chegou ao fim.
Eles saíram sem dizer uma palavra, despedaçados e acidentados, isolados, como fantasmas, de nossa própria piedade.
Depois de um instante, Tom levantou-se e tornou a embrulhar a garrafa de uísque, ainda intocada.
— Alguém quer um gole? Jordan? ...Nick?
Eu não respondi.
— Nick? — ele tornou a perguntar.
— O quê?
— Quer um gole?
— Não... Acabo de lembrar que hoje é meu aniversário.
Eu estava completando trinta anos. Diante de mim se estendia a estrada portentosa e ameaçadora de uma nova década.
Eram sete horas quando entramos no cupê e partimos para Long Island. Tom falou sem parar, exultante e risonho, mas sua voz estava tão distante de nós quanto o clamor de estranhos nas calçadas ou o burburinho do elevado. A empatia humana tem limites, e estávamos aliviados de poder deixar para trás toda aquela trágica discussão, assim como as luzes distantes da metrópole. Trinta anos — a promessa de uma década de solidão, uma lista cada vez menor de amigos solteiros, uma bagagem cada vez menor de entusiasmo e os cabelos também cada vez mais ralos. Mas Jordan estava ao meu lado, e ela, ao contrário de Daisy, sempre fora esperta o bastante para não cultivar sonhos esquecidos de outra época. Enquanto atravessávamos a ponte escura, seu rosto pálido caiu preguiçosamente no meu ombro e o impiedoso golpe dos trinta desapareceu com a pressão reconfortante de sua mão.
Então rumamos em direção à morte através do frescor do crepúsculo.
A principal testemunha do inquérito foi o jovem grego Michaelis, proprietário da cafeteria vizinha às pilhas de cinzas. Por causa do calor, ele havia dormido até depois das cinco, quando foi à oficina e encontrou George Wilson doente — doente de verdade, tão pálido quanto seu cabelo e tremendo da cabeça aos pés. Michaelis aconselhou-o a ir para a cama, mas Wilson se recusou, dizendo que desse jeito perderia uma porção de clientes. Enquanto o vizinho tentava persuadi-lo, explodiu uma barulheira violenta no andar superior.
— Minha esposa está trancada lá em cima — explicou Wilson calmamente. — Vai ficar lá até depois de amanhã, quando iremos embora daqui.
Michaelis ficou atônito; haviam sido vizinhos por quatro anos e Wilson nunca parecera minimamente capaz de fazer uma coisa dessas. Em geral ele era um desses homens exaustos: quando não estava trabalhando, sentava-se numa cadeira à porta de casa e ficava vendo as pessoas e carros passarem. Quando alguém lhe dirigia a palavra, ele sempre ria de um jeito cordato e entediante. Wilson pertencia à esposa, e não a si mesmo.
De modo que Michaelis naturalmente tentou descobrir o que havia ocorrido, mas Wilson não dizia nada — em vez disso, começou a lançar olhares curiosos e desconfiados ao vizinho e perguntar-lhe onde estava em determinados horários de determinados dias. Quando este último já começava a ficar constrangido, um grupo de operários passou pela porta rumo a seu restaurante, de modo que Michaelis aproveitou a oportunidade para escapar, dizendo que voltaria mais tarde. Mas não voltou. Ele deve ter se esquecido, só isso. Quando saiu de novo, pouco depois das sete, lembrou-se da conversa ao ouvir a voz da sra. Wilson, berrando e ralhando no andar térreo da oficina.
— Vamos, pode bater em mim! — ele a ouviu gritar. — Pode me empurrar e me bater, seu homenzinho imundo e covarde!
Então ela saiu correndo em direção à penumbra, gesticulando e gritando — e antes que ele pudesse dar um passo para fora de sua porta, tudo estava acabado.
O “automóvel da morte”, como os jornais o apelidaram, não chegou a parar; ele se materializou em meio à densa escuridão, sofreu um trágico e breve solavanco e desapareceu na curva seguinte. Mavro Michaelis não estava seguro nem quanto à cor — ao primeiro policial, disse que era verde-claro. Um outro carro, que ia na direção contrária, parou a uns cem metros dali e o motorista correu para onde Myrtle Wilson jazia estatelada, a vida brutalmente interrompida, com os cabelos negros misturados à poeira.
Michaelis e o motorista foram os primeiros a acudi-la, mas, assim que rasgaram sua blusa, ainda empapada de suor, viram que o seio esquerdo estava dependurado livremente como um trapo, e que não havia necessidade de checar o pulso. A boca estava escancarada e um pouco rasgada nos cantos, como se ela tivesse engasgado ao libertar a enorme vitalidade que acumulara por tanto tempo.

Vimos os três ou quatro automóveis e toda aquela multidão quando ainda estávamos a certa distância.
— Um acidente! — disse Tom. — Que bom. Até que enfim Wilson vai ter algum trabalho com que se ocupar.
Ele desacelerou, ainda sem a intenção de parar, até que, ao chegarmos à porta da oficina, alguns rostos mudos e solícitos o fizeram brecar automaticamente.
— Vamos dar uma olhada — ele disse, hesitante. — Só uma olhada.
Eu agora conseguia distinguir um gemido oco e incessante que emanava da oficina, um som que, conforme saíamos do cupê e caminhávamos em direção à porta, consistia nas palavras: “Oh, meu Deus!” pronunciadas à exaustão, num lamento ofegante.
— Algo muito grave aconteceu por aqui — disse Tom, excitado.
Ficamos na ponta dos pés e, vencendo um círculo de cabeças, enxergamos o interior da oficina, iluminada por uma única lâmpada amarela numa cesta oscilante de metal. Então Tom soltou um ruído gutural e, com um violento empurrão de seus braços musculosos, abriu caminho para o interior da oficina.
O círculo voltou a se fechar num murmúrio contínuo de reprovação; passou-se um minuto até que eu pudesse enxergar alguma coisa. Os recém-chegados bagunçaram a fila e eu e Jordan fomos empurrados subitamente para dentro.
O corpo de Myrtle Wilson, embrulhado num lençol e depois em outro, como se sofresse calafrios naquela noite quente, jazia numa escrivaninha junto à parede, e Tom, de costas para nós, estava debruçado sobre ele, imóvel. Próximo a Tom havia um policial motociclista anotando nomes numa caderneta com muita diligência e correção. De início não consegui distinguir a origem das palavras exaltadas e queixosas que ecoavam ruidosamente através da oficina vazia — então vi Wilson parado à soleira saliente da porta de seu escritório, balançando-se para a frente e para trás e segurando o umbral com ambas as mãos. Um homem falava com ele em voz baixa e tentava, de vez em quando, pousar a mão em seus ombros, mas Wilson não ouvia nem enxergava. Seus olhos vagavam da luz oscilante para a mesa ocupada junto à parede, e então retornavam à lâmpada e ele emitia um grito alto, terrível e incessante:
— Oh, meu De-eus! Oh, meu De-eus! Oh, meu De-eus! Oh, meu De-eus!
Imediatamente Tom ergueu a cabeça com um movimento abrupto e, após examinar a oficina com os olhos vidrados, grunhiu um comentário incoerente ao policial.
— M-A-V... — o policial dizia — O...
— Não, R... — corrigiu o homem — M-A-V-R-O...
— Ei, você — resmungou Tom ferozmente.
— R... — disse o policial — O...
— G...
— G... — ele ergueu os olhos assim que a mão enorme de Tom caiu pesadamente em seu ombro. — Que foi, colega?
— O que houve? É o que eu quero saber.
— Atropelamento. Morreu na hora.
— Morreu na hora — repetiu Tom, os olhos fixos no vazio.
— Ela correu para o meio da pista. O filho da mãe nem parou.
— Eram dois carros — disse Michaelis. — Um indo e outro vindo, entende?
— Indo para onde? — perguntou o policial com avidez.
— Um para cada lado. Então ela... — sua mão tentou apontar para o lençol mas parou no meio, deixando-se cair ao lado do corpo. — Ela saiu correndo e o carro que vinha de Nova York a pegou em cheio, a uns cinquenta ou sessenta quilômetros por hora.
— E como se chama esta oficina? — perguntou o policial.
— Não tem nome nenhum.
Um negro pálido e bem vestido se aproximou:
— Foi um carro amarelo — ele disse. — Um carro grande e amarelo. Novinho.
— Você viu o acidente? — perguntou o policial.
— Não, mas um automóvel passou por mim na estrada a mais de sessenta por hora. Acho que a uns oitenta ou até cem.
— Venha cá para eu anotar o seu nome. Abram caminho, pessoal. Preciso pegar o nome dele.
Algumas dessas palavras devem ter chegado a Wilson, que ainda balançava na porta do escritório, pois de repente um novo tema encontrou ressonância em seus gritos ávidos:
— Nem precisam me falar sobre o carro! Eu sei bem qual é o carro!
Observando Tom, reparei num feixe de músculos se retesando em seus ombros, por dentro do casaco. Ele caminhou rapidamente até Wilson e, parando à sua frente, agarrou-o com firmeza pelos antebraços.
— Você tem que se controlar — ele disse, com uma frieza apaziguadora.
Wilson pousou os olhos em Tom; pôs-se na ponta dos pés e teria caído de joelhos se Tom não o estivesse segurando firme.
— Escute — disse Tom, chacoalhando-o de leve. — Acabo de chegar de Nova York, há menos de um minuto. Estava naquele cupê de que lhe falei. O carro amarelo que você viu hoje cedo não era meu. Entendeu? Passei a tarde inteira sem vê-lo.
Apenas eu e o negro estávamos próximos o bastante para ouvir o que ele disse, mas o policial captou alguma coisa pelo tom de voz e ergueu seus olhos truculentos.
— O que está havendo? — perguntou.
— Sou amigo dele. — Tom virou a cabeça, mas manteve as mãos firmes no corpo de Wilson. — Ele disse que conhece o carro que a atropelou... Era um carro amarelo.
Algum estranho impulso fez o policial lançar um olhar desconfiado para Tom:
— E de que cor é o seu carro?
— É azul, um cupê.
— Nós viemos direto de Nova York — eu acrescentei.
Alguém que dirigia logo atrás de nós confirmou a informação e o policial deu as costas.
— Agora, se você puder me confirmar de novo o seu nome...
Erguendo Wilson como uma boneca, Tom o conduziu ao escritório, acomodou-o numa cadeira e voltou.
— Se alguém puder vir lhe fazer companhia — ele irrompeu de forma autoritária. Ficou observando enquanto os dois homens mais próximos dele se entreolhavam e iam para dentro da sala, desanimados. Tom fechou a porta atrás deles e desceu o único degrau, evitando olhar para a mesa. Quando passou por mim, ele sussurrou:
— Vamos embora.
Constrangidos, abrimos caminho com a ajuda dos braços autoritários de Tom e vencemos a multidão que só aumentava. Passamos por um médico apressado de maleta em punho que havia sido chamado meia hora antes, numa louca demonstração de esperança.
Tom dirigiu devagar até que viramos na curva — então ele pisou no acelerador e o cupê disparou através da noite. Após um tempo, ouvi um tênue e rouco soluço e vi que as lágrimas rolavam abundantemente em seu rosto.
— Aquele maldito covarde! — gemeu. — Ele nem parou o carro.
A casa dos Buchanan veio subitamente ao nosso encontro em meio às árvores escuras e farfalhantes. Tom estacionou junto ao pórtico e ergueu os olhos para o segundo andar, onde duas janelas irradiavam luz por entre as videiras.
— Daisy está em casa — ele disse. Conforme saíamos do carro, olhou para mim e franziu a testa.
— Eu devia tê-lo deixado em West Egg, Nick. Não há nada que possamos fazer esta noite.
Uma mudança havia se operado em Tom, que falava de forma grave e decidida. Conforme percorríamos a estrada enluarada de cascalhos até o pórtico, ele dispôs sobre a situação em poucas e bruscas frases.
— Vou chamar um táxi para levá-lo pra casa, e enquanto isso é melhor você e Jordan irem comer alguma coisa na cozinha, se estiverem com fome. — Ele abriu a porta. — Entrem.
— Não, obrigado. Mas ficaria agradecido se você me chamasse um táxi. Vou esperar aqui fora.
Jordan pousou a mão no meu braço:
— Não quer entrar, Nick?
— Não, obrigado.
Eu estava me sentindo mal e queria ficar sozinho. Mas Jordan insistiu mais um pouco.
— Ainda são nove e meia — ela disse.
Eu não entraria naquela casa por nada neste mundo; já tivera o suficiente de todos eles por um dia, e de repente isso incluía Jordan também. Ela deve ter captado alguma coisa em minha expressão, pois virou-se abruptamente e galgou os degraus do pórtico em direção à casa. Fiquei sentado por uns minutos com as mãos na cabeça até ouvir o mordomo lá dentro pegar um telefone e chamar um táxi. Então atravessei devagar a entrada da casa, com a intenção de esperar no portão.
Não andara nem vinte metros quando ouvi meu nome e Gatsby saiu de trás de dois arbustos. Àquela altura, eu devia estar bastante perturbado, pois só conseguia pensar na luminosidade de seu terno cor-de-rosa sob a luz da lua.
— O que está fazendo? — perguntei.
— Estou aqui parado, meu velho.
Por algum motivo, pareceu-me uma ocupação abominável. De minha parte, ele poderia estar prestes a assaltar a casa; não ficaria surpreso se visse os rostos sinistros da “turma do Wolfshiem” atrás dele, em meio à densa folhagem.
— Você viu alguma confusão na estrada? — ele perguntou após um minuto.
— Vi.
Gatsby hesitou.
— Ela morreu?
— Morreu.
— Foi o que imaginei. Disse a Daisy que era o que eu achava. É melhor que o choque venha de uma só vez. Ela aguentou muito bem.
Ele falava como se a reação de Daisy fosse a única coisa que importava.
— Voltei a West Egg por uma estrada secundária — ele continuou — e deixei o carro na garagem. Acho que ninguém viu a gente, mas é claro que não posso ter certeza.
Àquela altura, eu o odiava tanto que não julguei necessário dizer que ele estava errado.
— Quem era a mulher? — ele perguntou.
— Seu nome era Myrtle Wilson. O marido é o dono da oficina. Como diabos isso foi acontecer?
— Bom, eu tentei virar o volante, mas... — Ele parou, e de súbito entendi a verdade.
— Daisy estava dirigindo?
— Estava — ele disse após um instante —, mas é claro que eu vou assumir a culpa. Veja bem, quando saímos de Nova York ela estava muito nervosa e achou que dirigir poderia acalmá-la. Então essa mulher veio correndo justo quando estávamos ultrapassando um carro vindo da outra direção. Foi tudo num piscar de olhos, mas tive a impressão de que ela queria falar com a gente, como se nos conhecesse. Bem, de início Daisy desviou da mulher em direção ao outro carro, mas então perdeu a coragem e virou de volta. No instante em que a minha mão tocou o volante, senti o impacto. Deve tê-la matado instantaneamente.
— Rasgou-a pela metade...
— Não me conte, meu velho. — Ele recuou. — Em todo caso, Daisy pisou no acelerador. Tentei fazê-la parar, mas ela não conseguiu, até que eu puxei o freio de mão. Então ela tombou no meu colo e eu peguei o volante.
— Amanhã ela estará bem melhor — disse Gatsby logo em seguida. — Ficarei aqui esperando para ver se ele irá incomodá-la com aquela coisa desagradável de hoje à tarde. Ela se trancou no quarto e, se ele tentar alguma brutalidade, combinou de acender e apagar a luz várias vezes.
— Ele não vai encostar nela — eu disse. — Não está com a cabeça nisso.
— Não confio nele, meu velho.
— Você vai ficar quanto tempo esperando?
— A noite inteira, se for preciso. Em todo caso, até todos irem dormir.
Então me ocorreu um novo pensamento. Suponhamos que Tom descobrisse que Daisy estava dirigindo. Ele poderia ver uma relação entre os fatos — podia imaginar qualquer coisa. Olhei para a casa; havia duas ou três janelas acesas no andar de baixo e a luz rosada do quarto de Daisy refletindo no térreo.
— Não saia daqui — eu disse. — Vou ver se há algum sinal de tumulto.
Caminhei de volta pela beira do gramado, percorrendo com cuidado o caminho de cascalho, e subi pé ante pé os degraus do alpendre. As cortinas da sala estavam abertas e vi que não havia ninguém no aposento. Atravessando o pórtico onde jantáramos naquela noite de junho três meses antes, aproximei-me de um pequeno retângulo de luz que julguei ser a janela da copa. A persiana estava fechada, mas descobri uma fenda no umbral.
Daisy e Tom estavam sentados na mesa de jantar, com um prato de frango frito frio e duas garrafas de cerveja diante deles. Tom falava gravemente e, em toda a sua seriedade, pousou a mão sobre a dela. De vez em quando, ela erguia os olhos e meneava a cabeça em consentimento.
Eles não estavam felizes, visto que ninguém chegou a encostar no frango ou na cerveja — mas também não pareciam infelizes. Havia um clima inequívoco de intimidade natural naquela cena, e qualquer um poderia jurar que estavam conspirando.
Enquanto eu me afastava do pórtico na ponta dos pés, ouvi o táxi tatear seu caminho pela estrada escura em direção à casa. Gatsby estava esperando onde eu o deixara, na entrada.
— Está tudo calmo? — ele perguntou, ansioso.
— Está. — Eu hesitei. — Você devia ir para casa comigo e dormir um pouco.
Ele fez que não com a cabeça.
— Vou ficar esperando até Daisy ir deitar. Boa noite, meu velho.
Ele meteu as mãos nos bolsos do casaco e retornou avidamente ao escrutínio da casa, como se minha presença profanasse a santidade de sua vigília. Então fui embora e o deixei parado à luz do luar — vigiando coisa alguma.
a Personagem de Satyricon, de Petrônio. É um milionário que oferece um banquete em sua casa com todo tipo de iguarias exóticas.
b No original, “mint julep”. Pode ser traduzido como “julepo”, bebida com uísque, açúcar, gelo e menta.

8
Passei a noite em claro; uma sirene de nevoeiro ressoou sem parar pelo estreito, e oscilei quase febril entre a realidade grotesca e pesadelos violentos e assustadores. Perto do amanhecer, ouvi um táxi encostando na entrada de Gatsby, ao que imediatamente saí da cama e fui me vestir — senti que precisava dizer-lhe alguma coisa, alertá-lo contra algo, e de manhã seria tarde demais.
Ao cruzar o gramado, vi que a porta da frente de Gatsby ainda estava aberta e ele se escorava numa mesa do vestíbulo, prostrado de tristeza ou de sono.
— Não houve nada — ele disse debilmente. — Fiquei esperando, e lá pelas quatro ela foi até a janela, ficou parada por um instante e então apagou a luz.
Sua casa nunca me pareceu tão grande quanto naquela madrugada, quando passamos em revista todos os salões em busca de cigarros. Afastamos cortinas que eram como tendas, e tateamos inúmeros palmos de parede escura em busca de interruptores de luz — a certa altura, tropecei com estrondo e caí nas teclas de um piano fantasmagórico. Havia um inexplicável acúmulo de poeira por toda parte e os quartos estavam mofados, como se não tivessem sido arejados por um bom tempo. Sobre uma mesa desconhecida, achei uma caixa de charutos com dois cigarros velhos e secos.
— Você devia partir — eu disse. — É quase certo que irão rastrear o seu carro.
— Partir agora, meu velho?
— Vá passar uma semana em Atlantic City ou Montreal.
Ele nem sequer considerou a hipótese. Não podia abandonar Daisy até que soubesse o que ela pretendia fazer. Agarrava-se a uma última esperança e eu simplesmente não suportava o fardo de trazê-lo à razão.
Foi naquela noite que ele me contou a estranha história de sua juventude com Dan Cody — e o fez porque “Jay Gatsby” havia se despedaçado feito vidro perante a dura malícia de Tom, e com isso a longa e secreta teatralidade se esgotara. Naquele momento, ele teria me confessado qualquer coisa sem reservas, mas queria mesmo era falar sobre Daisy.
Ela foi a primeira garota “sofisticada” que Gatsby conheceu. Em diversas e obscuras funções, ele havia tido contato com esse tipo de gente, mas sempre existia uma barreira invisível no meio. Daisy lhe parecia extraordinariamente desejável. Ele foi visitá-la, primeiro com outros oficiais de Camp Taylor, e mais tarde sozinho. Ficara impressionado com a casa — nunca havia estado num lugar tão bonito. Mas o que mais o impressionava era o fato de Daisy viver ali — e, para ela, aquilo era tão normal quanto a barraca do alojamento militar onde ele morava. A casa tinha um perfeito ar de mistério, uma insinuação de que havia quartos no andar de cima mais belos e sofisticados do que os outros, de atividades alegres e radiantes acontecendo em seus corredores, e de romances nada bolorentos ou com cheiro de naftalina, mas, pelo contrário, muito frescos, arejados e com o perfume dos reluzentes carros do ano e de bailes cujas flores ainda não haviam murchado. Outra coisa que o excitava era que muitos homens já haviam amado Daisy — e aquilo, a seus olhos, lhe aumentava o valor. Ele sentia a presença deles por toda a casa, preenchendo o ar com suas sombras e ecos de emoções ainda vibrantes.
Mas ele sabia que estava na casa de Daisy por um gigantesco acidente. Por mais glorioso que pudesse ser seu futuro como Jay Gatsby, naquele momento ele era um jovem miserável e sem passado, e a qualquer hora o manto invisível de seu uniforme poderia escapar de seus ombros. Então ele aproveitou o máximo possível. Tomou tudo o que pôde, de modo voraz e inescrupuloso — e acabou tomando a própria Daisy numa noite calma de outubro, só porque não tinha sequer o direito de tocar sua mão.
Gatsby poderia ter sentido desprezo por si mesmo, pois certamente a tomara sob falsos pretextos. Não que ele tenha alardeado uma fortuna inexistente, mas fornecera de propósito a Daisy uma sensação de segurança; deixou-a acreditar que era um homem de estirpe, plenamente capaz de tomar conta dela. Na realidade, Gatsby não possuía recursos — não tinha nenhuma família próspera para apoiá-lo e estava sujeito aos caprichos de um governo impessoal que podia despachá-lo a qualquer hora para qualquer parte do mundo.
Mas Gatsby não sentira desprezo por si mesmo e nada se dera conforme o esperado. Ele talvez pretendesse tomar tudo o que podia e ir embora — mas então descobriu que havia se lançado a uma verdadeira busca ao Graal. Sabia que Daisy era extraordinária, mas não imaginava o quanto uma garota “sofisticada” podia ser extraordinária. Ela se recolheu à mansão, em sua vida rica e completa, deixando Gatsby de mãos vazias. Ele se sentia casado com ela, mas isso era tudo.
Quando se encontraram novamente, dois dias depois, era Gatsby que estava ofegante e se sentia de certa forma traído. O pórtico da casa estava iluminado por uma riqueza que emulava a luz das estrelas; as fibras de vime do canapé chiavam elegantemente conforme Daisy oferecia seus lábios curiosos e encantadores para um beijo. Ela pegara um resfriado, o que deixava sua voz mais rouca e charmosa do que nunca, e Gatsby tinha plena consciência de toda a juventude e mistério que a riqueza detém e preserva, da qualidade de seu vestuário e da presença luminosa de Daisy, que reluzia feito prata — segura, orgulhosa e muito acima das preocupações dos pobres.
— Não saberia lhe dizer o quanto fiquei surpreso ao descobrir que a amava, meu velho. Por um momento, até cheguei a querer que ela me dispensasse, mas ela não o fez porque também estava apaixonada por mim. Daisy me achava inteligente por conhecer coisas que ela não sabia... Bem, ali estava eu, afastando-me das minhas ambições, apaixonando-me cada vez mais, e de repente nada disso importava. De que me adiantaria executar grandes feitos se eu podia me divertir muito mais contando a ela o que eu iria fazer?
Na noite anterior a seu embarque, ele se sentou com Daisy no colo por um bom tempo, em silêncio. Era um dia frio de outono, havia fogo na lareira e suas bochechas estavam rosadas. De quando em quando, ela se mexia e ele ajeitava o braço, e a certa altura ele beijou seu cabelo escuro e brilhante. A noite os tranquilizara por um instante, como se quisesse proporcionar-lhes uma lembrança mais profunda para a longa despedida que o dia seguinte prenunciava. Em todo aquele mês de namoro, eles nunca estiveram tão próximos nem se comunicaram tanto quanto naquela noite em que ela roçou os lábios em seus ombros e ele tocou gentilmente a ponta de seus dedos, como se ela estivesse dormindo.
Gatsby se saiu extraordinariamente bem na guerra. Tornou-se capitão antes mesmo de ir para o front, e após as batalhas de Argonne foi promovido a major e ganhou o comando do batalhão de artilharia. Com o armistício, tentou de todas as formas voltar para casa, mas algum tipo de complicação ou mal-entendido o desviou para Oxford. Agora ele estava preocupado — havia um tom de desespero angustiado nas cartas de Daisy. Ela não entendia por que Gatsby não podia voltar. Sofria com a pressão do mundo lá fora, queria encontrá-lo, sentir sua presença e certificar-se de que estava fazendo a coisa certa, no fim das contas.
Pois Daisy era jovem e seu mundo artificial estava repleto de orquídeas, esnobismo amável e alegre, e orquestras que tocavam o ritmo da vez, resumindo a tristeza e as possibilidades da vida em novas melodias. Todas as noites, os saxofones gemiam os versos desesperados de “Beale Street blues”,1 enquanto uma centena de pares de sapatilhas prateadas e douradas se arrastavam pela poeira resplandecente. À hora cinzenta do chá, havia sempre algum salão pulsando incessantemente numa espécie de febre branda e doce, enquanto rostos jovens circulavam aqui e ali como pétalas de rosas sopradas no chão pelas tristes cornetas.
Em meio a esse universo poente, Daisy voltou a seguir a estação; de repente, estava de novo marcando meia dúzia de encontros por dia com meia dúzia de homens e indo dormir ao amanhecer, com as contas e o chiffon de um vestido de noite enroscados entre orquídeas no chão ao lado da cama. Durante todo esse tempo, algo em seus olhos clamava por uma decisão. Ela queria definir sua vida imediatamente — e essa decisão precisava dar-se por algum tipo de força — de amor, de dinheiro, de praticidade inquestionável — que estivesse à mão.
Essa força tomou forma no meio da primavera, com a chegada de Tom Buchanan. Havia uma grandeza saudável em sua pessoa e em sua posição, e Daisy se sentiu lisonjeada. Havia, sem dúvida, um tanto de resistência e um tanto de alívio. A carta alcançou Gatsby quando ele ainda estava em Oxford.

Já era manhã em Long Island e nos pusemos a abrir o resto das janelas do térreo, preenchendo a casa com uma luz que oscilava entre o cinzento e o dourado. A sombra de uma árvore desceu abruptamente em meio ao orvalho e pássaros invisíveis começaram a cantar entre as folhas azuis. Havia um movimento lento e brando no ar, que não se podia chamar de vento, mas que prenunciava um dia fresco e agradável.
— Não acho que ela chegou a amá-lo. — Gatsby virou-se da janela e olhou para mim desafiadoramente. — Lembre-se, meu velho, de que ela estava muito exaltada ontem à tarde. Ele lhe disse aquelas coisas de um jeito que a assustou, como se eu fosse uma espécie de vigarista barato. E o resultado é que ela mal sabia o que estava dizendo.
Sentou-se melancolicamente.
— É claro que ela pode tê-lo amado por um breve período, quando eram recém-casados... e me amar ainda mais, entende?
De repente, ele fez uma observação curiosa:
— Em todo caso, foi apenas pessoal.
O que se pode concluir disso, exceto haver uma intensidade incomensurável em sua concepção daquele caso amoroso?
Gatsby retornou da França quando Tom e Daisy ainda estavam em lua de mel, e empreendeu uma deprimente porém inevitável viagem a Louisville com os últimos recursos que poupara do Exército. Passou uma semana na cidade, percorrendo as ruas onde seus passos e os de Daisy se uniram nas noites de novembro e revisitando os lugares afastados onde estacionaram seu carro branco. Assim como a casa de Daisy sempre lhe parecera mais misteriosa e alegre do que as outras, a ideia daquela cidade também se revestia de uma beleza melancólica, mesmo que Daisy não estivesse mais lá.
Gatsby partiu com a impressão de que a encontraria caso tivesse procurado melhor — de que estava deixando Daisy para trás. O vagão de passageiros — ele não tinha um tostão — era muito abafado. Saiu para o vestíbulo aberto e sentou-se numa cadeira dobrável, enquanto a estação lhe escapava e dava lugar a uma sucessão de fundos de edifícios desconhecidos. Depois o trem atravessou os campos primaveris, sendo acompanhado brevemente por um bonde repleto de gente que deve ter visto uma vez, na rua, a magia pálida de seu rosto.
Agora a ferrovia fazia uma curva e se afastava do sol, que, ao descer no horizonte, parecia abençoar a cidade evanescente onde Daisy uma vez respirou. Desesperado, ele estendeu a mão para fora, como se quisesse agarrar um mísero filete de ar, salvando um fragmento do local que Daisy tornara tão encantador. Mas tudo passava rápido demais diante de seus olhos embaçados, e ele sabia que tinha perdido aquele detalhe da paisagem, o melhor e mais puro, para sempre.
Eram nove da manhã quando terminamos o café e saímos para o pórtico. A noite trouxera uma considerável mudança no clima e havia um toque de outono no ar. O jardineiro, último dos empregados originais de Gatsby, aproximou-se do pé da escada.
— Vou esvaziar a piscina hoje, senhor Gatsby. Logo as folhas irão começar a cair e teremos problemas com os canos.
— Hoje não — ele respondeu. E voltou-se para mim, a título de justificativa: — Sabe de uma coisa, meu velho? Não usei a piscina nenhuma vez neste verão.
Eu consultei o relógio e me levantei:
— Meu trem sai em vinte minutos.
Eu não queria ir à cidade. Não estava em condições de encarar um expediente de trabalho, mas não era só isso — eu não queria deixar Gatsby sozinho. Perdi aquele trem e depois outro, até que enfim consegui sair de lá.
— Eu te ligo mais tarde — falei.
— Faça isso, meu velho.
— Ligarei lá pelo meio-dia.
Descemos lentamente os degraus.
— Acho que Daisy também vai ligar. — Ele me olhou ansiosamente, na expectativa de minha anuência.
— Acho que sim.
— Bem, adeus.
Apertamos as mãos e eu me afastei. Pouco antes de alcançar a cerca, lembrei-me de uma coisa e me virei para trás.
— É uma gente ordinária — gritei, através do gramado. — Você vale muito mais do que todos eles juntos.
Até hoje fico feliz por ter dito isso. Foi o único elogio que lhe fiz, pois o reprovara do começo ao fim. Primeiro ele assentiu com a cabeça de forma educada, e então abriu aquele sorriso radiante e sábio, como se houvéssemos concordado nesse ponto o tempo todo. Seu vistoso paletó cor-de-rosa se destacava contra os degraus brancos, e me lembrei da primeira vez que visitei sua casa ancestral, três meses antes. O gramado e a entrada estavam apinhados de gente que apostava em sua malícia — e ele havia ficado de pé naqueles degraus, ocultando seu sonho inocente, enquanto se despedia de todos.
Agradeci a Gatsby pela hospitalidade. Estávamos sempre lhe agradecendo por isso — eu e os outros.
— Adeus — eu gritei. — Adorei o café, Gatsby.
No trabalho, passei um tempo tentando listar as cotas de uma quantidade interminável de ações, mas acabei cochilando em minha cadeira giratória. Fui despertado pelo telefone pouco antes do meio-dia, e ergui o rosto empapado de suor. Era Jordan Baker; ela costumava me ligar àquela hora porque, de outro modo, suas perambulações em hotéis, clubes e casas de amigos tornariam impossível localizá-la. Em geral, sua voz ao telefone era revigorante e calma, como se um trecho de grama do campo de golfe entrasse voando pela janela do escritório, mas naquela manhã sua voz era seca e áspera.
— Não estou mais na casa de Daisy — ela disse. — Estou em Hempstead2 e vou para Southampton esta tarde.
Fora provavelmente educado de sua parte sair da casa de Daisy, mas aquilo me irritou, e seu comentário seguinte me deixou petrificado.
— Você não foi muito legal comigo ontem à noite.
— Teria feito alguma diferença?
Momento de silêncio. E então:
— Em todo caso, quero te ver.
— Eu também.
— Digamos que eu não vá a Southampton e apareça na cidade hoje à tarde?
— Não. Hoje à tarde não.
— Certo.
— Hoje à tarde é impossível. Vários...
Passamos um tempo nessa conversa, e então de repente não estávamos mais conversando. Não sei qual de nós desligou o telefone com um golpe seco, mas sei que não me abalei. Não conseguiria tomar um chá com Jordan naquela tarde, mesmo que jamais voltasse a vê-la nesta vida.
Liguei para Gatsby poucos minutos depois, mas deu ocupado. Tentei quatro vezes; por fim, uma exasperada telefonista da central me disse que a linha estava reservada para receber um interurbano de Detroit. Apanhando minha tabela de horários, fiz um pequeno círculo em torno do trem das quinze e cinquenta. Então me recostei na cadeira e tentei raciocinar. Ainda era meio-dia.
Naquela manhã, quando o trem passou pelas pilhas de cinzas, troquei deliberadamente de lado no vagão. Imaginei que haveria uma multidão de curiosos por ali, com garotinhos procurando manchas escuras em meio à poeira e uma porção de fofoqueiros repetindo várias vezes o que aconteceu, até que o incidente se tornasse menos real inclusive para eles e não houvesse mais como contá-lo, e assim o fim trágico de Myrtle Wilson fosse esquecido. Agora quero retroceder um pouco e narrar o que houve na oficina depois que saímos de lá, na noite anterior.
Foi com dificuldade que localizaram a irmã de Myrtle, Catherine. Naquela noite, ela deve ter quebrado sua promessa de não beber, pois quando chegou à oficina estava embotada de álcool e incapaz de entender que a ambulância já havia ido para Flushing.a Quando enfim conseguiram convencê-la, ela desmaiou imediatamente, como se essa fosse a parte mais intolerável da coisa toda. Por bondade ou curiosidade, algum desconhecido a levou de carro até o velório da irmã.
Até bem depois da meia-noite, uma multidão variável se amontoou na entrada da oficina, enquanto, lá dentro, George Wilson se balançava para a frente e para trás na cadeira do escritório. Houve um momento em que a porta se abriu, e ninguém resistiu a dar uma espiada. Por fim, alguém disse que aquilo era uma vergonha e fechou a porta. Michaelis e outros homens estavam com ele; no início, quatro ou cinco pessoas, e, depois, só duas ou três. Mais tarde, Michaelis teve que pedir ao último desconhecido restante que esperasse mais uns quinze minutos, enquanto ele ia para casa fazer um bule de café. Depois disso, ficou sozinho com Wilson até o amanhecer.
Por volta das três da madrugada, a natureza dos resmungos incoerentes de Wilson sofreu uma mudança — ele ficou mais quieto e passou a falar sobre o carro amarelo. Disse que tinha um meio de identificar o dono do carro, e então deixou escapar que, meses antes, sua esposa voltara da cidade com o rosto machucado e o nariz inchado.
Porém, ao perceber o que havia dito, ele se retraiu e voltou a gritar “Oh, meu Deus!” com sua voz lastimosa. Michaelis fez uma patética tentativa de distraí-lo.
— Vocês estavam casados havia quanto tempo, George? Olhe para mim, tente ficar parado um minuto e responda a minha pergunta. Há quanto tempo estavam casados?
— Vinte anos.
— Tiveram filhos? Vamos, George, sente-se direito, eu lhe fiz uma pergunta. Vocês tiveram filhos?
Uma porção de besouros marrons e cascudos insistia em bater contra a luz mortiça e, sempre que Michaelis ouvia um carro cortando a estrada, pensava naquele que não freara algumas horas antes. Ele não queria voltar para a oficina porque a mesa de trabalho trazia as manchas de onde estava o corpo, então perambulava desconfortavelmente pelo escritório — antes de amanhecer, já conhecia de cor todos os objetos — e, de vez em quando, sentava-se ao lado de Wilson na tentativa de acalmá-lo.
— Você vai a algum tipo de igreja, George? Mesmo que não a frequente mais? Talvez eu possa ligar e pedir para um padre vir falar com você. Que tal?
— Não tenho religião.
— Você devia ter, George, para ocasiões como esta. Provavelmente já foi à missa pelo menos uma vez. Não se casou numa igreja? Preste atenção, George, olhe para mim. Você não se casou numa igreja?
— Isso faz muito tempo.
O esforço de responder quebrou o ritmo de seu balanço — por um instante, ele ficou parado. Então aquela expressão meio consciente, meio perplexa, retornou aos seus olhos embotados.
— Abra aquela gaveta — ele disse, apontando para a escrivaninha.
— Qual delas?
— Aquela ali. Aquela.
Michaelis abriu a gaveta mais próxima. Não havia nada além de uma pequena e caríssima coleira de cachorro, feita de couro com tiras de prata. Parecia nova.
— Isto aqui? — ele perguntou, erguendo a coleira.
Wilson olhou para o objeto e assentiu com a cabeça.
— Encontrei ontem à tarde. Ela tentou me explicar o que era, mas eu sabia que havia algo suspeito.
— Quer dizer que a sua esposa comprou esta coleira?
— Estava em cima da cômoda, embrulhada em papel de seda.
Michaelis não viu nada de estranho naquilo e deu a Wilson uma dúzia de razões para a esposa ter feito a compra. Mas evidentemente ele já havia ouvido várias dessas explicações da boca de Myrtle, pois tornou a dizer “Oh, meu Deus” num sussurro — fazendo com que seu consolador deixasse no ar inúmeras outras explicações.
— Então ele a matou — disse Wilson. Sua boca escancarou-se de súbito.
— Quem?
— Tenho um jeito de descobrir.
— Você está sendo mórbido — disse o amigo. — Passou por uma situação terrível e não sabe o que está dizendo. É melhor ficar quieto por aqui até amanhecer.
— Ele a matou.
— Foi um acidente, George.
Wilson balançou a cabeça, em negativa. Estreitou os olhos e abriu ligeiramente a boca sugerindo um altivo “Hum!”.
— Eu sei — afirmou, num tom decidido. — Sou desses caras que confiam nos outros e não pensam mal de ninguém, mas quando fico sabendo de alguma coisa, é porque sei mesmo. Foi o homem daquele carro. Ela saiu correndo para falar com ele, mas ele não parou.
Michaelis havia presenciado a mesma cena, mas não lhe ocorrera dar-lhe um significado especial. Acreditava que a sra. Wilson estava fugindo do marido, e não tentando parar um automóvel específico.
— Mas como ela pode ter feito isso?
— Era uma mulher intensa — disse Wilson, como se isso respondesse à pergunta. — Ah-h-h...
Ele tornou a balançar na cadeira e Michaelis ficou de pé, girando a coleira na mão.
— Quem sabe eu possa telefonar para algum amigo seu, George?
Era uma tentativa desesperada — ele estava quase certo de que Wilson não tinha amigos: era completamente absorvido pela esposa. Pouco depois, ficou aliviado ao notar uma mudança na sala, uma luz azulada despontando na janela, e viu que a manhã não tardaria a chegar. Por volta das cinco horas, o ambiente ficou azul o bastante para poderem apagar a luz.
Os olhos vazios de Wilson se voltaram para as pilhas de cinzas, onde pequenas nuvens cinzentas assumiam formas fantásticas e corriam para lá e para cá com a brisa leve da manhã.
— Eu conversei com ela — Wilson balbuciou, após um longo silêncio. — Falei que ela podia me enganar, mas não podia enganar a Deus. Levei-a até a janela — ele fez um esforço para se levantar, andou até a janela dos fundos e pressionou o rosto contra o vidro — e lhe disse: “Deus sabe o que você está fazendo, tudo o que você faz. Você pode me enganar, mas não pode enganar a Deus!”.
De pé ao seu lado, Michaelis viu espantado que ele olhava para os olhos do dr. T. J. Eckleburg, que haviam acabado de surgir, desbotados e gigantescos, daquela noite que se dissipava.
— Deus está vendo tudo — repetiu Wilson.
— É só um outdoor — Michaelis lhe garantiu. Algo o fez afastar-se da janela e voltar a se concentrar na sala. Wilson, por sua vez, ficou ali por um bom tempo, o rosto colado à vidraça, assentindo para a penumbra.
Lá pelas seis horas, Michaelis estava exausto e ficou feliz de ouvir o som de um carro parando lá fora. Era um dos acompanhantes da noite anterior que havia prometido voltar, de modo que ele preparou um café da manhã para todos — que foi partilhado apenas entre ele e o desconhecido. Wilson estava mais calmo e Michaelis foi para casa dormir; assim que acordou, quatro horas depois, foi correndo para a oficina e Wilson não estava mais lá.
Seus passos — ele estava a pé — foram posteriormente traçados até Port Roosevelt e depois a Gad’s Hill,3 onde comprou um café e um sanduíche que não comeu. Ele devia estar cansado e andando muito lentamente, pois não chegou a Gad’s Hill antes do meio-dia. Até ali foi fácil rastrear seus passos — garotos aludiram a um homem “agindo feito doido” na rua e inúmeros motoristas se intimidaram com seu olhar assustador no acostamento da estrada. Então ele sumiu por completo durante três horas. A polícia, com base no que disse Michaelis, de que ele “tinha um jeito de descobrir”, supôs que ele estivesse peregrinando pelas oficinas da região, perguntando sobre um carro amarelo. Por outro lado, nenhum dono de garagem chegou a se apresentar na polícia, e talvez ele tivesse um jeito mais fácil e confiável de descobrir o que queria. Lá pelas duas e meia, foi visto em West Egg, onde perguntou o caminho para a casa de Gatsby. De modo que, àquela altura, ele já sabia o nome de Gatsby.
Às duas horas, Gatsby vestiu seu traje de banho e avisou o mordomo que, se alguém telefonasse, ele estaria na piscina. Parou na garagem para pegar um colchão inflável que alegrara seus convidados por todo o verão, e aceitou a ajuda do motorista para enchê-lo. Então deu instruções de que o conversível não fosse removido sob nenhuma circunstância — o que era estranho, pois o para-choque da frente precisava de reparos.
Gatsby apoiou o colchão nos ombros e foi caminhando em direção à piscina. Parou uma vez para ajeitá-lo, ao que o motorista lhe perguntou se precisava de ajuda, mas ele fez que não com a cabeça e desapareceu entre as árvores amareladas.
Ninguém telefonou, mas o mordomo ficou sem dormir esperando uma ligação até as quatro da tarde — muito tempo depois de haver alguém para recebê-la. Sou da opinião de que o próprio Gatsby estava ciente de que ninguém lhe telefonaria, e talvez nem se importasse mais. Se isso é verdade, deve ter percebido que perdera seu bom e velho mundo, pagando um preço alto por viver tanto tempo com um único sonho. Deve ter erguido os olhos para um céu desconhecido por entre as folhas ameaçadoras, e estremecido ao notar que a rosa é uma coisa grotesca e que a luz do sol castiga violentamente a grama que acaba de brotar. Um novo mundo, palpável sem ser real, onde vagavam pobres fantasmas, respirando sonhos como se fossem ar... como aquela figura cinzenta e fantástica que deslizava em sua direção por entre as árvores amorfas.
O motorista, que era um dos protegidos de Wolfshiem, ouviu os disparos — mais tarde confessou não ter dado importância ao barulho. Fui direto da estação à casa de Gatsby e minha escalada ansiosa pelos degraus da frente foi a primeira coisa que os deixou alarmados. Mas eles já sabiam, tenho certeza. Sem dizer praticamente nada, corremos os quatro (eu, o motorista, o mordomo e o jardineiro) rumo à piscina.
Havia um movimento débil e quase imperceptível na água conforme ela vertia de um cano, abrindo caminho rumo ao escoadouro na outra extremidade. Em meio a pequenas marolas que mal podiam ser chamadas de ondas, o colchão ocupado boiava à deriva. Uma breve rajada de vento que mal corrugaria a superfície da água era suficiente para perturbar acidentalmente seu trajeto já acidental. O cair das folhas o fazia girar lentamente, traçando, como a perna de um compasso, um fino círculo vermelho na água.
Foi só depois que saímos com o corpo de Gatsby em direção à casa que o jardineiro viu o cadáver de Wilson caído na grama, um pouco distante, e o holocausto estava completo.
a Flushing é um bairro do distrito de Queens, a oeste de Long Island, onde há um famoso cemitério.

9
Dois anos depois, lembro-me do resto daquele dia, e daquela noite, e do dia seguinte, apenas como uma sucessão interminável de policiais, fotógrafos e jornalistas que entravam e saíam da casa de Gatsby. Estendeu-se uma corda no portão principal e um policial ficava a postos para afastar os curiosos, mas os moleques logo descobriram que era possível entrar pelo meu quintal, de modo que sempre havia alguns deles apinhados e boquiabertos diante da piscina. Naquela tarde, alguém com ar convencido, talvez um detetive, usou a expressão “lunático” ao debruçar-se sobre o corpo de Wilson, e a súbita autoridade de sua voz deu o tom das notícias que saíram nos jornais da manhã seguinte.
Muitas dessas reportagens eram um pesadelo — grotescas, circunstanciais, sensacionalistas e mentirosas. Quando, no inquérito, Michaelis mencionou as suspeitas de Wilson sobre a esposa, pensei que a história toda viria à tona numa pasquinada eufórica — mas Catherine, que podia ter dito algo, não se manifestou. Ela também demonstrou um surpreendente traço de caráter — encarou o investigador com os olhos decididos sob as sobrancelhas desenhadas e jurou que a irmã nunca tinha visto Gatsby, que era completamente feliz com o marido e que jamais se comportara de forma duvidosa. Ela mesma se convenceu disso e chorou um lenço inteiro, como se a mera sugestão do ato fosse mais do que ela podia suportar. Wilson foi então reduzido a um homem “louco de tristeza”, para que o caso pudesse permanecer o mais simples possível. E ficou por isso mesmo.
Mas toda essa parte me parecia remota e desimportante. Eu era a única pessoa ao lado de Gatsby. A partir do momento em que liguei para a polícia de West Egg reportando a catástrofe, todas as conjecturas e questões práticas a seu respeito foram encaminhadas a mim. De início, fiquei surpreso e confuso; depois, como ele permanecia deitado, sem se mover ou falar, hora após hora, me dei conta de que eu era o responsável por Gatsby, pois ninguém mais estava interessado — quer dizer, interessado no sentido pessoal e intenso a que todo mundo teria o direito ao morrer.
Liguei para Daisy meia hora depois de encontrarmos o corpo, de forma instintiva e automática. Mas ela e Tom haviam partido no início da tarde, levando bagagem.
— Não deixaram nenhum endereço?
— Não.
— Nem disseram quando pretendem voltar?
— Não.
— Tem alguma ideia de para onde foram? Como posso entrar em contato com eles?
— Não sei. Não sei dizer.
Eu queria chamar alguém para ficar ao seu lado. Queria ir à sala onde ele estava e confortá-lo: “Vou arrumar alguém para ficar com você, Gatsby. Não se preocupe. Confie em mim e eu chamarei alguém para você...”.
O nome de Meyer Wolfshiem não estava na lista telefônica. O mordomo me deu seu endereço comercial na Broadway e liguei para o serviço de informações, mas, quando consegui o número, já passava das cinco e ninguém atendeu.
— Pode tentar mais uma vez, por favor?
— Já tentei três vezes.
— É muito importante.
— Me desculpe. Acho que não tem ninguém lá.
Retornei à sala de estar e pensei por um instante que todos aqueles policiais que enchiam a casa eram visitantes ocasionais. Porém, embora eles afastassem os lençóis e olhassem para Gatsby com um ar comovido, seu protesto seguiu ecoando na minha cabeça:
— Escute aqui, meu velho, você precisa arrumar alguém para ficar do meu lado. Precisa se esforçar. Não posso passar por isso sozinho.
Alguém começou a me fazer perguntas, mas saí correndo e subi as escadas, examinando apressadamente as partes destrancadas de sua escrivaninha — ele nunca havia me dito, com todas as palavras, que seus pais estavam mortos. Mas não havia nada — só o retrato de Dan Cody, testemunha de violências passadas, me encarando da parede.
Na manhã seguinte, mandei o mordomo a Nova York com uma carta para Wolfshiem, pedindo informações e rogando-lhe que viesse no próximo trem. Enquanto escrevia, o pedido me pareceu supérfluo. Eu tinha certeza de que ele viria correndo ao ver a notícia nos jornais, assim como tinha certeza de que Daisy me enviaria um telegrama antes do meio-dia — mas nem o telegrama nem o sr. Wolfshiem chegaram; ninguém apareceu além de mais policiais, fotógrafos e repórteres. Quando o mordomo trouxe de volta a resposta do sr. Wolfshiem, passei a nutrir um sentimento de desafio, de desprezo solidário a Gatsby contra todos eles.

Prezado sr. Carraway,
Foi um dos choques mais terríveis de minha vida, mal posso acreditar que é verdade. Um ato tão maluco assim nos faz pensar. No momento não posso ir até aí, pois estou ocupado com um negócio muito importante e não posso me envolver nisso agora. Se houver algo que eu possa fazer mais tarde, me envie uma carta através de Edgar. Sinto-me desnorteado ao ouvir notícias desse tipo, e estou completamente arrasado.
Atenciosamente,
meyer wolfshiem

E um rápido adendo, na sequência:

Me informe sobre o funeral e tudo o mais, pois não conheço ninguém da família.

Quando o telefone tocou naquela tarde, e a telefonista anunciou uma ligação interurbana de Chicago, pensei que finalmente seria Daisy. Mas do outro lado da linha havia uma voz masculina, muito débil e distante.
— Aqui é o Slagle...
— Pois não? — O nome me era desconhecido.
— Belo recado, não? Recebeu meu telegrama?
— Não recebi telegrama nenhum.
— O jovem Parke está em apuros — ele disse rapidamente. — Foi preso no instante em que entregava os títulos no guichê.1 Os policiais receberam uma circular de Nova York com todas as dicas cinco minutos antes. O que você sabe sobre isso, hein? Nunca se sabe o que vai acontecer nessas cidades do interior...
— Ei! — Eu interrompi, ofegante. — Escute, aqui não é o senhor Gatsby. O senhor Gatsby está morto.
Fez-se um longo silêncio do outro lado da linha, seguido por uma exclamação... e um breve chiado quando a conexão foi perdida.
Acho que foi no terceiro dia que chegou um telegrama assinado por Henry C. Gatz, vindo de uma cidade em Minnesota. Dizia apenas que o emissor estava a caminho e pedia que o funeral fosse adiado até sua chegada.
Era o pai de Gatsby, um velho solene, indefeso e consternado, metido num casaco comprido e barato em pleno calor de setembro. As lágrimas corriam incessantemente de seu rosto agitado e, quando apanhei sua mala e o guarda-chuva, ele passou a puxar a barba rala e grisalha com tanta força que tive dificuldade em lhe tirar o casaco. Ele estava à beira de um colapso, de modo que o levei à sala de música e pedi que se sentasse, enquanto lhe arrumava algo para comer. Mas ele não queria comer e suas mãos trêmulas derrubaram o copo de leite.
— Fiquei sabendo pelo jornal de Chicago — ele explicou. — A história inteira estava no jornal. Vim o mais rápido que pude.
— Eu não sabia como encontrá-lo.
Seus olhos vazios se moviam incessantemente pela sala.
— Foi um maluco — acrescentou. — Ele devia estar doido.
— Aceita um café? — perguntei.
— Não quero nada. Já estou melhor, senhor...
— Carraway.
— Bem, já estou melhor. Onde eles colocaram Jimmy?
Levei-o à sala de estar onde estava o corpo do filho, e o deixei por lá. Alguns moleques haviam vencido os degraus e espiavam o vestíbulo; quando lhes contei quem havia chegado, eles foram embora, relutantes.
Após um instante, o sr. Gatz abriu a porta e saiu da sala, a boca entreaberta, o rosto levemente ruborizado, as lágrimas brotando isoladas e dispersas. Ele chegara a uma idade em que a morte já não implicava necessariamente um choque intolerável e, quando olhou ao redor pela primeira vez e viu a grandiosidade e o esplendor do vestíbulo, além dos salões que se abriam em outras salas, o pesar se misturou a um orgulho assombrado. Ajudei-o a se instalar num quarto no andar de cima; enquanto ele tirava o casaco e o colete, informei que todos as providências haviam sido adiadas até sua chegada.
— Não sei bem o que você prefere, senhor Gatsby...
— Meu nome é Gatz.
— ...Senhor Gatz. Talvez o senhor queira levar o corpo de volta para o Oeste.
Ele balançou a cabeça em negativa.
— Jimmy sempre preferiu o Leste. Ele alcançou seu status aqui no Leste. Você era amigo do meu filho, senhor...?
— Sim, éramos muito próximos.
— Ele tinha um grande futuro pela frente, você sabe. Era muito jovem, mas tinha uma inteligência enorme.
Ele apontou para a própria cabeça e eu concordei.
— Se não tivesse morrido, seria um grande homem. Um sujeito como James J. Hill.2 Ele teria ajudado a construir o país.
— É verdade — eu disse, constrangido.
Gatz tateou a colcha bordada, tentando afastá-la da cama, e se deitou, rígido — dormindo na mesma hora.
Naquela noite, um sujeito obviamente assustado telefonou, perguntando-me quem eu era antes de se identificar.
— Aqui é o senhor Carraway — eu disse.
— Ah! — Ele parecia aliviado. — Aqui é o Klipspringer.
Também fiquei aliviado, pois era a esperança de mais um amigo de Gatsby no enterro. Eu não queria que o serviço saísse nos jornais e atraísse uma multidão de curiosos, então decidi chamar algumas pessoas por conta própria. Todas foram difíceis de encontrar.
— O funeral é amanhã — eu informei. — Às três da tarde, aqui na casa dele. Gostaria que você repassasse a informação para quem possa se interessar.
— Pode deixar — ele interrompeu, apressadamente. — Acho que não verei ninguém por esses dias, mas, se houver oportunidade...
Seu tom de voz me deixou desconfiado.
— Mas você vem, certo?
— Bem, certamente vou tentar. Liguei por causa de...
— Só um segundo — interrompi. — Que tal me dizer que vem com certeza?
— Bem, a verdade é que... Veja, estou hospedado na casa de uns amigos aqui em Greenwich3 e eles esperam que eu fique com eles amanhã. É que vai haver uma espécie de piquenique ou algo assim. É claro que farei o possível para dar uma escapada.
Soltei um “arrã” incontrolável que ele deve ter ouvido, pois prosseguiu nervosamente:
— Liguei porque esqueci um par de sapatos aí. Fico pensando se daria muito trabalho mandar o mordomo trazê-los. Veja bem, é um par de tênis, e eu fico meio indefeso sem eles. Envie aos cuidados de B. F....
Não escutei o resto do nome, pois bati o telefone.
Depois disso, senti muita pena de Gatsby — um certo cavalheiro a quem telefonei deu a entender que ele teve o que merecia. No entanto, a culpa foi minha, pois era um dos que costumavam zombar cruelmente de Gatsby à custa de sua bebida, e eu devia ter pensado melhor antes de lhe telefonar.
Na manhã do enterro, fui ver Meyer Wolfshiem em Nova York; não estava conseguindo contatá-lo de nenhuma outra forma. Na porta que eu empurrei, seguindo a indicação do ascensorista, estava escrito: “Suástica Companhia Holding”,4 e de início parecia não haver ninguém lá dentro. Mas, depois que gritei “olá?” várias vezes, em vão, uma discussão irrompeu atrás de uma divisória, e em seguida uma judia amável apareceu numa porta e me examinou com os olhos pretos e hostis.
— Não há ninguém aqui — ela disse. — O senhor Wolfshiem está em Chicago.
A primeira parte da afirmação era obviamente falsa, pois começaram a assobiar desafinadamente “The rosary” lá dentro.a
— Por favor, diga que o senhor Carraway está aqui para vê-lo.
— Não posso trazê-lo de Chicago, posso?
Naquele momento, uma voz, sem dúvida alguma de Wolfshiem, gritou “Stella!” do outro lado da porta.
— Deixe seu nome no balcão — ela disse rapidamente. — Eu lhe darei o recado assim que ele voltar.
— Mas eu sei que ele está aqui.
Ela deu um passo em minha direção e pôs a mão na cintura, indignada:
— Vocês, jovens, acham que podem chegar e entrar em qualquer lugar quando bem entendem — ela ralhou. — Já estamos perdendo a paciência. Quando eu digo que ele está em Chicago, é porque ele está em Chicago.
Mencionei o nome de Gatsby.
— Ah! — Ela me examinou outra vez. — Você podia... Qual é o seu nome?
Ela desapareceu. Num instante Meyer Wolfshiem apareceu solenemente na porta, com os braços estendidos. Levou-me ao seu escritório, observando com um tom de voz reverente que era um momento triste para todos nós, e me ofereceu um charuto.
— Lembro-me do dia em que o conheci — ele contou. — Um jovem major recém-saído do Exército e coberto de condecorações de guerra. Estava tão falido que precisava continuar usando o uniforme, pois não tinha como comprar roupas normais. Na primeira vez em que o vi, ele estava no bilhar Winebrenner, na rua 43, pedindo emprego. Não se alimentava havia vários dias. “Venha almoçar comigo”, eu disse. Em meia hora ele devorou mais de quatro dólares em comida.
— Você iniciou Gatsby nos negócios?
— Não só isso. Eu o criei.
— Ah.
— Ergui-o do nada, direto da sarjeta. Vi na hora que era um jovem de boa aparência, educado, e quando me contou que havia frequentado Oggsford, soube que me seria muito útil. Consegui que ele ingressasse na Legião Americana, onde formou sua reputação. Imediatamente fez um trabalho para um cliente meu em Albany. Ficamos assim — ele esfregou os dois indicadores inchados —, sempre próximos em tudo.
Fiquei imaginando se essa parceria incluía a manipulação da World’s Series de 1919.
— Agora ele está morto — eu falei, após um instante. — Você era seu amigo mais próximo, então sei que gostaria de ir ao funeral hoje à tarde.
— Gostaria, sim.
— Bem, então venha.
Os pelos de seu nariz tremularam de leve, e seus olhos se encheram de lágrimas conforme ele balançava a cabeça:
— Não posso. Não posso me envolver nisso — disse.
— Não há nada com que se envolver. Está tudo acabado.
— Quando um homem é assassinado, não gosto de me meter de forma alguma. Fico de fora. Em meus anos de juventude, era diferente: se um amigo meu morria, não importava como, eu ficava ao seu lado até o fim. Você pode achar piegas, mas é verdade: até o mais amargo fim.
Percebi que, por uma razão desconhecida, ele estava decidido a não ir ao enterro, então me levantei.
— Você foi à universidade? — ele me perguntou de repente.
Por um instante, pensei que ele iria me propor “um licação nas necócios”, mas apenas assentiu com a cabeça e apertou minha mão.
— É preciso demonstrar a amizade quando a pessoa ainda está viva, e não depois que morreu — observou. — Quando isso ocorre, minha regra particular é deixar tudo para trás.
Quando saí do escritório, o céu havia escurecido e tive que voltar a West Egg debaixo de chuva. Após trocar de roupa, fui à casa ao lado e encontrei o sr. Gatz andando de lá para cá no vestíbulo, muito agitado. O orgulho do filho e de suas posses crescia cada vez mais, e agora ele queria me mostrar uma coisa.
— Jimmy me mandou esta foto. — Com os dedos trêmulos, ele tirou a carteira do bolso. — Veja só.
Era uma foto da casa, lascada nos cantos e repleta de impressões digitais. Ele me mostrou cada detalhe com avidez. “Veja só!”, e procurava sinais de admiração em meus olhos. Gatz já havia se gabado tanto daquela foto que, a seus olhos, ela devia ser mais real do que a própria casa.
— Jimmy me mandou pelo correio. Acho que é uma foto muito bonita. Causa boa impressão.
— Ótima. Quando foi a última vez que o viu?
— Ele foi me visitar há dois anos e comprou a casa onde moro hoje. É claro que estava falido quando saiu de casa, mas vejo agora que havia um motivo. Ele sabia que tinha um grande futuro pela frente. E assim que sua vida deu certo, foi muito generoso comigo.
Ele parecia relutante em guardar a foto e a segurou por mais um minuto, demoradamente, diante dos meus olhos. Então a devolveu à carteira e tirou do bolso uma edição surrada e velha de um livro chamado Hopalong Cassidy.5
— Veja só, ele lia isto quando era garoto. Este livro diz tudo.
Gatz abriu o livro pela contracapa e o virou para o meu lado. Na última folha de guarda, havia a palavra agenda e a data 12 de setembro de 1906. E embaixo:

Levantar da cama ...... 6h
Musculação e escalada ...... 6h15 às 6h30
Estudar eletricidade etc. ...... 7h15 às 8h15
Trabalhar ...... 8h30 às 16h30
Beisebol e esportes ...... 16h30 às 17h
Praticar oratória, postura e como alcançá-la ...... 17h às 18h
Estudar invenções necessárias .... 19h às 21h

resoluções gerais
Não perder tempo no Shafters e no [nome indecifrável]
Parar de fumar e mascar chicletes
Tomar banho em dias alternados
Ler um livro ou revista edificante por semana
Economizar 5 dólares 3 dólares por semana
Tratar melhor os meus pais

— Achei este livro por acaso — disse o velho. — Ele diz tudo, não é?
— É mesmo.
— Jimmy estava destinado ao sucesso. Sempre vinha com resoluções ou coisas do tipo. Você reparou no que ele disse sobre aprimorar o intelecto? Ele fazia isso muito bem. Certa vez, disse que eu comia feito um porco, então eu bati nele.
Gatz relutou em fechar o livro, lendo cada item em voz alta e olhando avidamente para mim. Acho que ele esperava que eu copiasse a lista para usá-la em meu proveito.
Pouco antes das três, o ministro luterano veio de Flushing e eu passei a olhar mecanicamente pela janela, à espera de outros automóveis. O pai de Gatsby também. Conforme o tempo passava e os empregados apareciam e se punham a postos no vestíbulo, seus olhos começaram a piscar com inquietação e ele falou da chuva de um jeito preocupado e hesitante. O ministro consultou várias vezes o relógio, de modo que o chamei de lado e pedi que esperasse mais meia hora. Mas não adiantou. Ninguém apareceu.
Lá pelas cinco horas, nossa procissão de três veículos chegou ao cemitério e parou ao lado do portão, sob um denso chuvisco — primeiro o carro fúnebre, terrivelmente negro e molhado, depois a limusine em que estávamos eu, o sr. Gatz e o ministro, e em seguida a caminhonete de Gatsby, de onde saíram quatro ou cinco empregados e o carteiro de West Egg, molhados até os ossos. Quando ultrapassamos o portão e entramos no cemitério, ouvi o barulho de um carro estacionando e o som de alguém chapinhando no nosso encalço através do chão empapado. Olhei para trás. Era o homem com os óculos de coruja que eu encontrara três meses antes admirando os livros da biblioteca de Gatsby.
Eu não tornara a vê-lo desde então. Não sei como ficou sabendo do funeral, tampouco sei seu nome. A chuva toldava seus óculos de lentes grossas; ele os tirou do rosto para enxugá-los e ver a lona protetora sendo desenrolada sobre a cova de Gatsby.
Tentei pensar em Gatsby por um momento, mas ele já se achava muito distante. Além disso, não conseguia deixar de pensar, sem ressentimentos, que Daisy não mandara nenhuma mensagem ou flores. Ouvi alguém sussurrar vagamente: “Abençoados os mortos sobre os quais cai a chuva”, e o homem com os óculos de coruja respondeu: “Amém”, numa voz firme.
Dispersamo-nos rapidamente pela chuva, em direção aos carros. No portão, o homem com os óculos de coruja veio falar comigo.
— Não pude ir ao velório — ele observou.
— Ninguém pôde.
— Não diga! — ele exclamou. — Por quê, meu Deus? Eles costumavam aparecer às centenas.
Ele tirou os óculos do rosto e os enxugou outra vez, de ambos os lados.
— Aquele pobre filho da puta — disse.
Uma das minhas lembranças mais vivas é a de voltar para casa no Natal, vindo da escola e, mais tarde, da faculdade. Os que iam além de Chicago se reuniam na velha e obscura Union Station às seis horas de uma noite de dezembro, junto a alguns amigos locais, já envolvidos em suas próprias festividades de Natal, para uma breve despedida. Lembro-me dos casacos de pele das garotas saídas do colégio da sra. Fulana ou Sicrana, das conversas com a respiração congelada, dos acenos ao divisar velhos conhecidos, dos preparativos de fim de ano: “Você vai ficar na casa dos Ordway? Nos Hersey? Nos Schultze?”, e dos compridos bilhetes verdes bem seguros em nossas mãos enluvadas. E, por fim, lembro-me dos vagões amarelados e escuros da ferrovia de Chicago, Milwaukee e St. Paul, parados nos trilhos ao lado do portão, tão alegres quanto o próprio Natal.
Assim que adentrávamos a noite de inverno e a neve de verdade, a nossa neve, começava a cair lá fora e cintilar contra as janelas, e as luzes débeis das pequenas estações de Wisconsin iam passando, uma súbita sensação revigorante surgia no ar. Respirávamos fundo para absorvê-la conforme voltávamos do jantar através dos vestíbulos frios, indescritivelmente conscientes, por uma estranha hora, de nossa identificação com essa região, antes de nos misturarmos a ela outra vez.
É esse o meu Meio-Oeste — não o dos campos de trigo, das pradarias ou das cidades perdidas dos suecos,b mas dos retornos emocionantes de trem da minha juventude, dos postes de luz e dos sinos na escuridão glacial, e das sombras de guirlandas refletidas na neve pelas janelas iluminadas. Sou parte disso, e um tanto cerimonioso com a lembrança daqueles longos invernos, um tanto indulgente por ter crescido na casa dos Carraway, numa cidade onde as residências ainda são chamadas pelo nome da família, há décadas. Hoje percebo que, afinal, esta é uma história do Oeste — Tom, Gatsby, Daisy, Jordan e eu éramos todos do Oeste, e talvez tivéssemos uma deficiência em comum que nos tornava sutilmente inadaptáveis para a vida no Leste.
Mesmo quando o Leste me empolgava, mesmo quando eu estava totalmente ciente de sua superioridade diante das cidades entediantes, dispersas e inchadas para além de Ohio, com suas intermináveis inquisições que poupavam apenas as crianças e os muito velhos — mesmo então, o Leste tinha para mim um caráter distorcido. Sobretudo West Egg, que ainda figura em meus sonhos mais fantásticos. Vejo-a como uma cena noturna de El Greco: centenas de casas a um só tempo convencionais e grotescas, apinhadas sob um céu carrancudo e ameaçador e uma lua pálida. Em primeiro plano, quatro homens sérios de terno caminham pela calçada levando uma maca com uma mulher bêbada num vestido branco de noite. Pendendo para o lado da maca, sua mão resplandece de joias. Sombriamente, o cortejo se dirige a uma casa — a casa errada. Mas ninguém sabe o nome da mulher e ninguém se importa.
Após a morte de Gatsby, o Leste me pareceu assim amaldiçoado, distorcido para além do poder corretivo de meus olhos. Assim, quando a névoa azulada das folhas secas subiu ao ar e o vento castigou as roupas endurecidas no varal, decidi que era hora de voltar para casa.
Havia algo a ser feito antes de partir, algo embaraçoso e desagradável que talvez fosse melhor ter sido esquecido. Mas eu queria deixar as coisas em ordem e não apenas confiar que esse mar prestativo e indiferente levasse para longe a bagunça que deixei para trás. Fui ver Jordan Baker e falei longamente sobre o que se passara entre nós, e o que acontecera comigo em seguida, e ela ficou o tempo todo escutando em absoluto silêncio numa cadeira larga.
Ela vestia um traje de golfe, e me lembro de ter achado que daria uma boa ilustração, o queixo ligeiramente erguido com elegância, os cabelos da cor das folhas de outono, o rosto com o mesmo matiz castanho da luva sem dedos largada em seu joelho. Quando terminei, ela me contou, sem maiores comentários, que estava noiva de outro homem. Eu duvidava disso, embora houvesse vários homens com quem ela poderia se casar só com um aceno de cabeça, mas fingi estar surpreso. Por um minuto, imaginei se não estava cometendo um erro, então repensei tudo rapidamente e me levantei para dizer adeus.
— Em todo caso, foi você que me dispensou — disse Jordan de repente. — Você me dispensou por telefone. Não dou a mínima para você agora, mas naquela época foi uma experiência nova e me senti um pouco desnorteada.
Nós nos cumprimentamos.
— Ah, e você se lembra — ela acrescentou — de uma conversa que tivemos uma vez sobre direção?
— Por quê? Não exatamente.
— Você disse que um mau motorista só está seguro até encontrar outro mau motorista, certo? Bem, eu encontrei outro mau motorista, não? Quer dizer, fui descuidada ao fazer uma aposta tão errada. Pensei que você fosse uma pessoa honesta e justa. Pensei que fosse esse o seu orgulho secreto.
— Eu tenho trinta anos — respondi. — Há cinco anos já passei da idade de poder mentir para mim mesmo e chamar isso de honra.
Ela não respondeu. Zangado e um pouco apaixonado por ela, além de tremendamente arrependido, fui embora.

Certa tarde, no fim de outubro, vi Tom Buchanan. Ele estava caminhando à minha frente pela Quinta Avenida com seu jeito alerta e agressivo, as mãos um pouco afastadas do corpo como se para evitar o contato, a cabeça balançando para lá e para cá, adaptando-se aos seus olhos impacientes. Assim que eu diminuí o passo para evitar alcançá-lo, ele parou e franziu a testa em direção à vitrine de uma joalheria. De súbito, ele me viu e aproximou-se com a mão estendida.
— Qual é o problema, Nick? Não vai apertar minha mão?
— Não. Você sabe o que penso de você.
— Você está louco, Nick — ele disse rapidamente. — Louco de pedra. Não sei qual o seu problema.
— Tom — eu perguntei —, o que você disse a Wilson naquela tarde?
Ele me encarou sem dizer palavra, e eu sabia que estava certo sobre aquelas horas inexplicadas. Fiz menção de ir embora, mas ele se adiantou e agarrou o meu braço.
— Eu lhe contei a verdade — ele disse. — Wilson apareceu quando estávamos prestes a partir e, quando mandei avisar que não estávamos, tentou forçar o caminho subindo as escadas. Estava louco o bastante para me matar, caso eu não lhe tivesse contado quem era o dono do carro. Ele não largou o revólver o tempo todo em que esteve na casa... — Ele fez uma pausa desafiadora. — E se eu tivesse mesmo contado? Aquele sujeito fez por merecer. Ele jogou areia nos seus olhos assim como fez com Daisy, mas era um cara durão. Ele atropelou Myrtle como se fosse um cachorro e nem parou o carro.
Não havia nada que eu pudesse dizer além de algo indizível: era tudo mentira.
— E se você acha que eu não tive a minha cota de sofrimento... Veja só, quando fui me desfazer daquele apartamento e vi aquela maldita caixa de biscoitos de cachorro no aparador, eu sentei e chorei como um bebê. Por Deus, foi horrível...
Eu nunca seria capaz de perdoá-lo ou de gostar dele, mas vi que seus atos eram, a seus olhos, inteiramente justificáveis. Tudo decorrera de forma descuidada e confusa. Eles eram todos descuidados e confusos. Eram descuidados, Tom e Daisy — esmagavam coisas e criaturas e depois se protegiam por trás da riqueza ou de sua vasta falta de consideração, ou o que quer que os mantivesse juntos, e deixavam os outros limparem a bagunça que eles haviam feito...
Apertei a mão de Tom; me pareceu tolo não fazê-lo, pois tive a súbita impressão de que estava lidando com uma criança. Então ele entrou na joalheria para comprar um colar de pérolas — ou talvez apenas um par de abotoaduras —, livre para sempre da minha sensibilidade provinciana.
A mansão de Gatsby ainda estava desocupada quando fui embora — a grama do jardim havia crescido até alcançar a minha. Um certo taxista do centro admitiu nunca ter feito uma corrida que passasse por ali sem encostar um minuto e apontar para a mansão; talvez tivesse sido ele quem levou Daisy e Gatsby até East Egg na noite do acidente, e talvez tenha inventado uma história por conta própria. Eu não queria escutá-la e evitei sua companhia ao descer do trem.
Decidira passar as noites de sábado em Nova York, pois aquelas festas resplandecentes e estonteantes de Gatsby permaneciam comigo tão nitidamente que eu ainda podia ouvir música e risadas de seu jardim, fracas e incessantes, e os carros indo e vindo pela entrada da casa. Certa noite, ouvi um carro de verdade por lá, e vi seus faróis iluminando os degraus da entrada. Mas não cheguei a investigar. Era provavelmente um derradeiro conviva que estivera fora o tempo todo, viajando nos confins do mundo, e não sabia que a festa havia acabado.
Na última noite, com as malas prontas e o carro vendido ao dono da mercearia, voltei para admirar outra vez aquele gigantesco e incoerente fracasso de residência. Sobre os degraus brancos, uma palavra obscena rabiscada por algum moleque com um caco de tijolo se destacava à luz do luar, e eu a apaguei, esfregando os sapatos com força na pedra. Então perambulei até a praia e me estiquei na areia.
Àquela hora da noite, os estabelecimentos ao longo da costa estavam fechados e já não havia quase nenhuma luz, exceto o brilho obscuro e indefinido de uma barca cruzando o estreito. Conforme a lua subia no céu, as casas insignificantes passaram a se dissolver até que, pouco a pouco, meus pensamentos desaguaram na antiga ilha selvagem que surgira aos olhos dos marinheiros holandeses neste exato lugar — o seio verde e frondoso de um Novo Mundo. Suas árvores extintas, aquelas que cederam lugar à casa de Gatsby, outrora estimularam os sonhos derradeiros e mais ambiciosos dos homens; por um momento transitório e mágico, alguém deve ter prendido o fôlego à vista deste continente, compelido a uma contemplação estética que não compreendia e tampouco desejava, face a face, pela última vez na história, com algo proporcional à sua capacidade de maravilhar-se. Enquanto estava ali, remoendo esse velho e desconhecido mundo, pensei no assombro de Gatsby ao ver pela primeira vez a luz verde da extremidade do cais de Daisy. Ele havia percorrido um caminho enorme até chegar a esse jardim azulado, e seu sonho lhe deve ter parecido tão próximo que dificilmente o deixaria escapar. O que ele não sabia é que já estava fora de seu alcance, em algum ponto da vasta obscuridade que seguia além da cidade, onde os campos escuros da república se estendiam através da noite.
Gatsby acreditava na luz verde, no futuro orgástico que, ano após ano, costuma recuar diante de nós. Ontem fomos iludidos, mas não importa — amanhã correremos mais rápido, esticando nossos braços mais além... E numa bela manhã...
E assim avançamos, botes contra a corrente, impelidos incessantemente de volta ao passado.

 

 

                                                                  Scott Fitzgeral

 

 

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