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Evidentemente, não aconteceu nada entre aquele instante e o nascer do sol. Fui embora assim que surgiu a luz do dia e passei o terreno em revista mais uma vez. Havia pegadas por tudo, da beira da água até a entrada de carros. Ao longo da entrada de carros, parte do gramado estava cortado onde carros haviam sido manobrados sem cuidado algum.
Peguei um dos carros da garagem emprestado e estava de volta a São Francisco antes de a manhã terminar.
No escritório, pedi que o Velho pusesse um detetive atrás de Jack Garthorne e mandasse o velho chapéu, a lanterna, a sandália e o resto das minhas lembranças serem examinados em busca de impressões digitais, pegadas, marcas de dentes e tudo o mais que fosse possível. Também pedi que a nossa filial de Richmond procurasse pelos Garthorne. Então fui atrás do meu assistente filipino.
Ele estava sombrio.
– O que houve? – perguntei. – Alguém bateu em você?
– Ah, não, senhor! – protestou ele. – Mas talvez eu não seja um detetive muito bom. Tentei seguir um sujeito, mas ele virou numa esquina e desapareceu.
– Quem era ele e o que estava fazendo?
– Não sei, senhor. Tinha quatro carros com homens saindo de dentro deles naquele porão onde eu disse que moram os chineses estranhos. Depois que eles entram, um homem sai. Está com o chapéu por cima de um curativo na parte de cima do rosto e sai caminhando rapidamente. Tento segui-lo, mas ele vira naquela esquina, e onde está ele?
– A que horas aconteceu tudo isso?
– À meia-noite, talvez.
– Pode ter sido mais tarde do que isso, ou mais cedo?
– Pode.
Meus visitantes, sem dúvida; e o homem que Cipriano havia tentado seguir pode ter sido aquele que eu havia derrubado. O filipino não tinha pensado em anotar as placas dos carros. Não sabia se os motoristas eram brancos ou chineses, nem a marca dos carros.
– Você se saiu bem – garanti a ele. – Tente novamente esta noite. Vá com calma que você chegará lá.
De lá, fui até um telefone e liguei para a central de polícia. Fiquei sabendo que a morte de Dummy Uhl não havia sido registrada.
Vinte minutos depois, estava batendo os nós dos dedos na porta da frente de Chang Li Ching.
Não foi o chinesinho de pescoço fino quem abriu a porta para mim dessa vez. Em seu lugar, um jovem chinês com marcas de varíola no rosto e um amplo sorriso.
– Você quer ver Chang Li Ching – disse ele antes que eu pudesse falar, recuando para que eu entrasse.
Entrei e fiquei esperando enquanto ele fechava todas as grades e trancas. Fomos até Chang por um caminho mais curto do que o de antes, mas que ainda era longe de ser direto. Por um tempo, eu me diverti tentando mapear o caminho mentalmente enquanto ele seguia, mas, como estava muito complicado, acabei desistindo.
A sala forrada de cortinas de veludo estava vazia quando meu guia me levou para dentro, curvou-se, sorriu e me deixou lá. Sentei-me numa cadeira perto da mesa e esperei.
Chang Li Ching não fez teatro materializando-se em silêncio nem nada do gênero. Escutei seus chinelos macios no chão antes que ele abrisse as cortinas e entrasse. Estava sozinho, com o bigode branco encrespado num sorriso de avô.
– O Dissipador de Hordas honra a minha humilde residência novamente – cumprimentou-me, seguindo por bastante tempo com o mesmo tipo de conversa sem sentido que eu tinha sido obrigado a ouvir na primeira visita.
A parte do Dissipador de Hordas foi bem boa – caso tenha sido uma referência aos feitos da noite anterior.
– Sem saber quem era até ser tarde demais, agredi um dos seus empregados ontem à noite – disse eu, quando ele deu os floreios por encerrados por um tempo. – Sei que não há nada que eu possa fazer para me redimir de um ato tão terrível, mas espero que você deixe que eu corte a minha garganta e sangre até a morte numa das suas latas de lixo como uma espécie de pedido de desculpas.
Um pequeno som de suspiro que poderia passar por um riso contido perturbou os lábios do velho, e o chapéu púrpura se mexeu em sua cabeça redonda.
– O Dispersador de Saqueadores sabe tudo – sussurrou ele, suavemente – mesmo do valor do barulho para afastar demônios. Se ele diz que o homem que atacou foi um empregado de Chang Li Ching, quem é Chang para negar isso?
Experimentei usar a minha outra arma.
– Não sei muito... nem mesmo por que a polícia ainda não ficou sabendo da morte do homem que foi assassinado aqui ontem.
Uma de suas mãos fazia pequenos cachos em sua barba branca.
– Não fiquei sabendo dessa morte – disse ele.
Pude adivinhar o que estava a caminho, mas quis ver eu mesmo.
– Você pode perguntar ao homem que me trouxe aqui ontem – sugeri.
Chang Li Ching pegou uma baqueta acolchoada da mesa e bateu um gongo suspenso que ficava na altura de seu ombro. Do outro lado da sala, as cortinas se abriram para o chinês com o rosto marcado que havia me levado até ali.
– A morte honrou nossa cabana ontem? – perguntou Chang em inglês.
– Não, Ta Jen – respondeu o homem de rosto marcado.
– Foi o nobre homem que me trouxe até aqui ontem – expliquei. – Não este filho de um imperador.
Chang fingiu surpresa.
– Quem recepcionou o Rei dos Espiões ontem? – perguntou ao homem que estava porta.
– Eu o trarei, Ta Jen.
Sorri para o homem de rosto marcado, ele sorriu de volta, e Chang sorriu com benevolência.
– Um excelente gracejo – disse ele.
Realmente.
O homem de rosto marcado curvou-se e começou a recuar através das cortinas. Sapatos soltos fizeram barulho nas tábuas atrás dele, que se virou. Um dos grandes lutadores que eu havia visto no dia anterior apareceu acima dele. Os olhos do lutador brilhavam de excitação, e sílabas chinesas grunhidas saíram de sua boca. O chinês de rosto marcado respondeu. Chang Li Ching silenciou-os com uma ordem severa. Tudo isso em chinês – fora do meu alcance.
– O Grão-Duque dos Caçadores de Homens permitirá que seu servo se retire por um instante para resolver seus aflitivos problemas domésticos?
– Claro.
Chang fez uma reverência com as mãos unidas e falou com o lutador:
– Você permanecerá aqui para garantir que o Grande não seja perturbado e que qualquer desejo que ele expresse seja satisfeito.
O lutador curvou-se e deu um passo para o lado, para que Chang passasse pela porta com o homem de rosto marcado. As cortinas caíram sobre a porta atrás deles.
Não desperdicei saliva com o homem na porta, mas acendi um cigarro e fiquei esperando que Chang voltasse. O cigarro já estava na metade quando ouvi um tiro no edifício, não muito longe.
O gigante na porta fez uma cara feia.
Ouvi mais um tiro e o barulho de pés correndo no corredor. O rosto do homem de rosto marcado apareceu por entre as cortinas. Ele lançou grunhidos para o lutador, que me olhou de cara feia e protestou. O outro insistiu.
O lutador fez mais uma cara feia para mim, resmungou “Espere aqui” e saiu com o outro.
Terminei o cigarro ao som abafado de lutas que pareciam vir do andar de baixo. Houve mais dois tiros, distantes um do outro. Pés passaram correndo pela porta da sala em que eu estava. Talvez dez minutos tivessem se passado desde que eu havia sido deixado sozinho.
Descobri que não estava sozinho.
Do outro lado da sala, em frente à porta, as cortinas que cobriam a parede se mexeram. O veludo azul, verde e prateado estufou um centímetro e voltou para o lugar.
O movimento aconteceu pela segunda vez talvez uns três metros mais adiante na parede. Não houve qualquer movimento por um tempo, e então percebi um tremor no canto.
Alguém estava andando entre as cortinas e a parede.
Deixei-o avançar, ainda atirado na cadeira com as mãos vazias. Se a protuberância significava problemas, qualquer ação da minha parte apenas apressaria as coisas.
Acompanhei os movimentos por toda aquela parede e até a metade da outra, onde sabia que estava a porta. Então não consegui vê-los por algum tempo. Tinha acabado de concluir que o intruso havia saído pela porta quando as cortinas se abriram, e ele apareceu.
Ela não chegava a ter um metro e quarenta de altura – um bibelô vivo da estante de alguém. Seu rosto era uma minúscula forma oval de beleza maquiada, com a perfeição ressaltada pelos cabelos muito negros lisos e sedosos perto das têmporas. Brincos de ouro balançavam ao lado das bochechas macias e uma borboleta de jade enfeitava-lhe os cabelos. Estava coberta do queixo aos joelhos por um casaco cor de alfazema que reluzia pedras brancas. Meias cor de alfazema apareciam sob as calças curtas cor de alfazema, e os pés minúsculos vestiam chinelos da mesma cor em formato de gatinhos, com pedras amarelas à guisa de olhos e plumas fazendo as vezes de bigode.
Toda essa descrição com comentários sobre moda tem o objetivo de dizer que ela era incrivelmente graciosa. Entretanto, ali estava ela – não era uma escultura ou uma pintura, mas uma pequena mulher viva com medo nos olhos negros e dedos minúsculos mexendo nervosamente na seda da peça de roupa que lhe cobria o peito.
Por duas vezes, veio na minha direção – apressando-se com os desajeitados passos rápidos das chinesas de pés tornados minúsculos –, virando a cabeça para olhar para as cortinas sobre a porta.
A essa altura, eu estava de pé, indo ao seu encontro.
Não sabia muito inglês. Não entendi a maior parte do que balbuciou para mim, embora tenha compreendido que “ce aiuda” poderia querer dizer “você me ajuda?”
Assenti com a cabeça, segurando-a sob os cotovelos quando ela tropeçou em cima de mim.
Ela falou mais naquela língua que não deixava a situação nem um pouco mais clara – a menos que “essaua” quisesse dizer escrava e “leuá imóa” significasse levar embora.
– Você quer que eu a tire daqui? – perguntei.
Sua cabeça, perto do meu queixo, subiu e desceu, e a boca que lembrava uma flor vermelha formou um sorriso que deixou todos os sorrisos de que eu conseguia me lembrar parecendo caras feias.
Ela falou mais um pouco. Não entendi nada. Tirando um dos cotovelos da minha mão, levantou a manga, expondo um antebraço que um artista havia passado uma vida inteira esculpindo em marfim. Na pele, cinco manchas roxas com formato de dedos terminavam em cortes onde as unhas haviam perfurado a pele.
Ela deixou a manga cair novamente e me disse mais algumas palavras. Elas não significaram coisa alguma para mim, mas soavam de um jeito bonito.
– Tudo bem – eu disse, tirando a arma para fora. – Se você quer ir, vamos.
Ela aproximou as duas mãos da arma, empurrando-a para baixo, e falou empolgada perto do meu rosto, terminando com o movimento de uma mão pelo colarinho – fazendo o gesto de uma garganta sendo cortada.
Sacudi a cabeça de um lado para o outro e levei-a em direção à porta.
Ela empacou, com os olhos arregalados de medo.
Levou uma das mãos até o meu bolso do relógio. Deixei-a pegar o relógio.
Pôs a ponta minúscula de um dedo sobre o doze e circulou o mostrador três vezes. Achei que tinha entendido aquilo. Trinta e seis horas a partir do meio-dia seria meia-noite da noite seguinte – quinta-feira.
– Sim – eu disse.
Ela olhou para a porta e me levou até a mesa onde estavam as coisas para o chá. Com um dedo mergulhado em chá frio, começou a desenhar no tampo decorado da mesa. Duas linhas paralelas que compreendi como sendo uma rua. Outro par de linhas cruzava com elas. O terceiro par cruzava o segundo e ficava paralelo ao primeiro.
– Waverly Place? – chutei.
Seu rosto balançou para cima e para baixo, alegremente.
No que supus ser o lado leste do Waverly Place, ela desenhou um quadrado – uma casa, talvez. No quadrado, desenhou o que poderia ser uma rosa. Franzi a testa olhando para aquilo. Ela apagou a rosa e, no lugar, desenhou um círculo torto, fazendo marcas nele. Achei que tinha entendido. A rosa era um repolho. Aquela coisa era uma batata. O quadrado representava o armazém que eu havia visto no Waverly Place. Balancei a cabeça afirmativamente.
Seu dedo atravessou a rua e desenhou um quadrado do outro lado. Então, seu rosto se voltou para o meu, implorando para que eu a compreendesse.
– A casa em frente ao armazém – disse eu, lentamente. Então, quando ela bateu no meu relógio de bolso, completei: – À meia-noite de amanhã.
Não sei o quanto ela entendeu, mas acenou com a cabecinha até os brincos balançarem como pêndulos malucos.
Com um rápido movimento, segurou a minha mão direita, beijou-a e desapareceu atrás das cortinas de veludo numa corrida cambaleante e saltitante.
Usei meu lenço para limpar o mapa do tampo da mesa e estava fumando em minha cadeira quando Chang Li Ching voltou, aproximadamente vinte minutos depois.
Fui embora logo depois disso, assim que trocamos alguns cumprimentos malucos. O homem de rosto marcado me acompanhou para fora da casa.
No escritório não havia nada de novo para mim. Foley não havia conseguido seguir O Whistler de noite.
Voltei para casa para dormir o que não havia dormido na noite anterior.
Às 10h10 da manhã seguinte, Lillian Shan e eu chegamos à porta de entrada da agência de empregos de Fong Yick, na Washington Street.
– Dê-me apenas dois minutos – eu disse ao sair do carro – e então entre.
– É melhor manter o motor ligado – sugeri ao motorista. – Podemos ter de sair correndo.
Na agência de Fong Yick, um homem grisalho e magro, que imaginei ser o Frank Paul do Velho, mascava um charuto enquanto conversava com meia dúzia de chineses. Do outro lado do balcão castigado, um chinês gordo os observava entediado através de imensos óculos de aros de aço.
Olhei para o grupo. O terceiro tinha o nariz torto – era um homem baixo e atarracado.
Empurrei os demais e fui até ele.
Não sei o que ele tentou aplicar em mim – jiu-jitsu, talvez, ou seu equivalente chinês. De qualquer maneira, ele se encolheu e movimentou as mãos rigidamente espalmadas.
Dominei-o e segurei-o pela nuca, com um dos braços dobrados atrás do corpo.
Outro chinês se atirou em minhas costas. O homem magro e grisalho fez alguma coisa no rosto dele, e o chinês foi para um canto e permaneceu lá.
Esta era a situação quando Lillian Shan entrou.
Mostrei o rapaz com nariz achatado para ela.
– Yin Hung! – ela exclamou.
– Hoo Lun não é um dos outros? – perguntei, apontando para os espectadores.
Ela sacudiu a cabeça enfaticamente e começou a falar muito velozmente em chinês com meu prisioneiro. Ele respondeu com a mesma velocidade, olhando-a nos olhos.
– O que vocês irão fazer com ele? – perguntou ela, numa voz meio estranha.
– Entregá-lo à polícia até que o delegado de San Mateo venha buscá-lo. Você conseguiu arrancar alguma coisa dele?
– Não.
Comecei a empurrá-lo em direção à porta. O chinês de óculos bloqueou a passagem, com uma mão para trás.
– Não vai dar – disse ele.
Atirei Yin Hung em cima dele, que caiu de encontro à parede.
– Saia! – gritei para a garota.
O homem grisalho parou dois chineses que saíram correndo em direção a porta, mandando-o para o lado oposto – batendo de costas com força contra a parede.
Saímos da agência.
Não houve nenhum problema na rua. Entramos no táxi e percorremos uma quadra e meia até a central de polícia, onde arranquei o meu prisioneiro do carro. O fazendeiro Paul disse que não iria entrar, que havia gostado da animação, mas que agora precisava cuidar de interesses próprios. Seguiu a pé pela Kearny Street.
Com metade do corpo para fora do táxi, Lillian Shan mudou de idéia.
– A menos que seja necessário – disse ela – prefiro não entrar também. Ficarei esperando por você aqui.
– Certo – respondi e empurrei meu prisioneiro pela calçada e a escada do edifício.
Lá dentro, desenvolveu-se uma situação curiosa.
A polícia de São Francisco não estava particularmente interessada em Yin Hung, embora, é claro, estivesse disposta a guardá-lo para o delegado do distrito de San Mateo.
Yin Hung fingiu que não sabia falar inglês, e eu estava curioso para saber que tipo de história ele tinha para contar, de modo que fui até a sala de reuniões dos detetives onde encontrei Bill Thode, do esquadrão de Chinatown, que fala um pouco da língua.
Ele e Yin Hung se falaram durante um tempo.
Então Bill olhou para mim, riu, mordeu a ponta de um charuto e recostou-se na cadeira.
– Segundo ele, – disse Bill – aquela Wan Lan e Lillian Shan tiveram uma briga. No dia seguinte, Wan Lan não é vista em lugar nenhum. A garota Shan e Wang Ma, sua empregada, dizem que Wan Lan foi embora, mas Hoo Lun diz a este sujeito que viu Wang Ma queimando umas roupas de Wan Lan.
– Então Hoo Lun e este sujeito acham que alguma coisa está errada e, no dia seguinte, têm certeza disso, porque este sujeito dá pela falta de uma pá das suas ferramentas de jardinagem. Encontra-a novamente naquela noite, e a pá ainda está molhada e com terra úmida. Ele diz que nada havia sido cavado em lugar nenhum perto da casa – não do lado de fora, pelo menos. Então ele e Hoo Lun pensam em conjunto, não gostam da conclusão a que chegam e decidem que é melhor dar o fora antes de ter o mesmo destino de Wan Lan. E é isso.
– Onde está Hoo Lun agora?
– Ele disse que não sabe.
– Então Lillian Shan e Wang Ma ainda estavam na casa quando esses dois foram embora? – perguntei. – Elas ainda não haviam viajado para a Costa Leste?
– É o que ele diz.
– Ele tem alguma idéia de por que Wan Lan foi morta?
– Não que eu tenha conseguido tirar dele.
– Obrigado, Bill! Você pode avisar o xerife que está com ele?
– Claro.
Evidentemente, Lillian Shan e o táxi haviam partido quando saí pela porta da central de polícia.
Voltei para o saguão e usei uma das cabines telefônicas para ligar para o escritório. Ainda não havia qualquer relatório de Dick Foley – nada de importante – e nada do detetive que estava tentando seguir Jack Garthorne. Havia chegado um telegrama da filial de Richmond. Dizia que os Garthorne eram uma família local rica e conhecida, que o jovem Jack freqüentemente estava com problemas, que havia agredido um fiscal da Lei Seca durante uma batida num café alguns meses antes, que seu pai o havia deserdado e expulsado de casa, mas acreditava-se que a mãe lhe enviava dinheiro.
Isso se encaixava com o que a garota havia me dito.
Um bonde me levou até o estacionamento onde eu havia deixado o conversível que tinha pegado emprestado da garagem da garota na manhã anterior. Fui até o edifício de Cipriano. Ele não tinha nenhuma informação importante para mim. Havia passado a noite em Chinatown, mas não tinha descoberto nada.
Estava começando a ficar mal-humorado e segui com o conversível para o Oeste, passando pelo Parque Golden Gate até o Ocean Bulevar. O caso não estava andando com a rapidez que eu gostaria.
Deixei o conversível deslizar pelo bulevar a uma boa velocidade, e o ar salgado espantou parte do meu desânimo.
Um homem ossudo de bigode avermelhado abriu a porta quando toquei a campainha da casa de Lillian Shan. Eu o conhecia – era Tucker, um assistente do delegado.
– Alô – disse ele. – Que você quer?
– Estou correndo atrás dela também.
– Continue correndo – sorriu ele. – Não me deixe impedi-lo.
– Não está aqui, é?
– Não. A sueca que trabalha aqui disse que ela entrou e saiu meia hora antes de eu chegar aqui, e estou aqui há mais ou menos dez minutos.
– Está com uma ordem de prisão contra ela? – perguntei.
– Pode apostar! O motorista falou.
– É. Eu o ouvi – eu disse. – Sou o rapaz brilhante que o apanhou.
Passei mais cinco ou dez minutos conversando com Tucker e entrei no conversível novamente.
– Você liga para a Agência quando pegá-la? – pedi, fechando a porta.
– Pode apostar.
Voltei no conversível para São Francisco.
Logo depois de Daly City, um táxi passou por mim, seguindo em direção ao Sul, e o rosto de Jack Garthorne olhava pela janela.
Pisei nos freios e acenei com o braço. O táxi deu meia-volta e voltou na minha direção. Garthorne abriu a porta, mas não saiu.
Saí do carro e fui até ele.
– Há um assistente do delegado esperando na casa da srta. Shan, se é para lá que você está indo.
Seus olhos azuis se arregalaram, e então se estreitaram, com ele me olhando com desconfiança.
– Vamos para o acostamento ter uma conversinha – convidei.
Ele saiu do táxi e atravessamos até duas pedras de aparência confortável do outro lado da estrada.
– Onde está Lil... a srta. Shan? – perguntou ele.
– Pergunte ao Whistler – sugeri.
Aquele loirinho não era muito bom. Levou muito tempo para pegar a arma. Deixei-o ir até o fim.
– O que você quer dizer? – disse ele.
Eu não tinha querido dizer nada. Só queria ver como ele reagiria à observação. Fiquei em silêncio.
– O Whistler está com ela?
– Acho que não – admiti, embora tenha detestado fazer isso. – A questão é que ela teve de se esconder para não ser enforcada pelos assassinatos que o Whistler armou.
– Enforcada?
– É. O assistente que a está esperando em casa tem uma ordem de prisão... por assassinato.
Ele guardou a arma e fez sons engasgados com a garganta..
– Eu irei até lá! Contarei tudo o que sei!
Partiu em direção ao táxi.
– Espere! – eu disse. – Talvez seja melhor você antes me dizer o que sabe. Estou trabalhando para ela, como você sabe.
Ele deu meia-volta e voltou.
– Sim, é verdade. Você vai saber o que fazer.
– Agora, o que você realmente sabe, se é que sabe alguma coisa? – perguntei, com ele de pé diante de mim.
– Eu sei de tudo! – ele gritou. – Sobre as mortes, a bebida e...
– Calma! Calma! Não há por que desperdiçar todo esse conhecimento com o motorista.
Ele se acalmou, e eu comecei a interrogá-lo. Passei quase uma hora obtendo todas as informações.
A história de sua jovem vida, conforme ele me contou, começou com a sua partida de casa depois de cair em desgraça ao agredir o fiscal da Lei Seca. Ele havia vindo para São Francisco para esperar até que seu pai se acalmasse. Enquanto isso, a mãe o mantinha com fundos, mas não mandava todo o dinheiro que um jovem numa cidade grande poderia usar.
Essa era a sua situação quando ele conheceu O Whistler, que sugeriu que um rapaz com a fachada de Garthorne poderia conseguir dinheiro fácil com o contrabando de bebida se fizesse o que ele mandasse. Garthorne estava disposto a isso. Ele não gostava da Lei Seca – havia provocado a maior parte dos seus problemas. A idéia de contrabando de bebidas lhe pareceu romântica – tiros no escuro, sinais de luz a bombordo, e assim por diante.
Aparentemente, O Whistler tinha barcos, bebidas e clientes à espera, mas seus recursos de desembarque eram precários. Estava de olho numa pequena angra na costa que era um ponto ideal para trabalhar. Não era nem muito perto nem muito longe de São Francisco. Era abrigada dos dois lados por pontas rochosas e protegida da estrada por uma casa grande e cercas vivas altas. Se tivesse o uso dessa casa, seus problemas não mais existiriam. Ele desembarcaria a bebida na angra, passaria tudo pela casa, reembalaria a mercadoria lá dentro inocentemente, embarcando-a pela porta da frente nos automóveis e levando tudo para a cidade sedenta.
A casa, disse ele a Garthorne, pertencia a uma garota chinesa chamada Lillian Shan, que não queria nem vendê-la nem alugá-la. Garthorne deveria conhecê-la – O Whistler já havia lhe dado uma carta de apresentação escrita por uma antiga colega de aula da garota, uma colega que havia decaído muito desde os dias na universidade – e tentar atingir um grau de intimidade que lhe permitisse fazer uma oferta pelo uso da casa. Isto é, ele deveria descobrir se ela era o tipo de pessoa que poderia receber uma oferta mais ou menos franca de participação nos lucros do esquema de O Whistler.
Garthorne havia cumprido a sua parte, ou a primeira etapa, e se tornara bastante íntimo da garota, quando ela partiu subitamente para a Costa Leste, enviando-lhe um bilhete dizendo que estaria viajando por vários meses. Isso era ótimo para os contrabandistas de bebida. Ao ligar para a casa no dia seguinte, Garthorne ficou sabendo que Wang Ma havia viajado com a patroa e que os outros três empregados tinham ficado responsáveis pela casa.
Isso era tudo o que Garthorne sabia de primeira mão. Ele não havia participado no desembarque da bebida, embora gostasse de ter participado. Mas O Whistler havia dito que ele devia se manter afastado, para que pudesse prosseguir com seu papel principal quando a garota retornasse.
O Whistler disse a Garthorne que havia comprado a ajuda dos três empregados chineses, mas que a mulher, Wan Lan, havia sido morta pelos dois homens numa briga por causa da divisão do dinheiro. O desembarque de bebida foi feito através da casa uma vez durante a ausência de Lillian Shan. Seu retorno inesperado estragou tudo. Parte do carregamento ainda estava dentro da casa. Tiveram de prendê-la, junto com Wang Ma, num armário até tirarem tudo. O estrangulamento de Wang Ma havia sido acidental – uma corda apertada demais.
A pior complicação, no entanto, foi que outro carregamento estava marcado para desembarcar na angra na noite da terça-feira seguinte, e não havia como informar ao barco que o local estava fechado. O Whistler mandou chamarem nosso herói e mandou que tirasse a garota do caminho e a mantivesse longe da casa até as duas horas da manhã de quarta-feira.
Garthorne a convidara para irem até Half Moon para naquela noite jantarem. Ela havia aceitado. Ele fingiu ter problemas com o motor e a mantivera longe da casa até as duas e meia. Mais tarde, O Whistler lhe dissera que tudo havia ocorrido sem qualquer problema.
Depois disso, tive de adivinhar o que Garthorne estava tentando dizer – ele gaguejou e balbuciou, deixando as idéias se confundirem mais do que nunca. Acho que o resumo era o seguinte: ele não havia pensado muito na questão ética de suas atitudes com a garota. Ela não o atraía em nada – era dura e séria demais para parecer realmente feminina. E ele não havia fingido – não havia levado adiante o que poderia ser chamado de flerte com ela. Então, subitamente se deu conta do fato de que ela não estava tão indiferente como ele. Isso havia sido um choque – um choque que ele não podia suportar. Tinha visto as coisas com clareza pela primeira vez. Antes pensava na situação simplesmente como uma disputa de inteligências. O afeto tornava tudo diferente – muito embora a afeição estivesse toda de um lado.
– Disse a O Whistler hoje à tarde que tudo estava acabado – encerrou ele.
– O que ele achou disso?
– Não gostou muito. Na verdade, eu tive de bater nele.
– E agora? O que você está pensando em fazer?
– Eu estava a caminho para ver a srta. Shan, dizer-lhe a verdade, e então... então pensei que era melhor eu desaparecer por uns tempos.
– Acho melhor mesmo. O Whistler pode não gostar que batam nele.
– Não vou me esconder agora! Vou me entregar e dizer a verdade.
– Esqueça isso! – aconselhei. – Isso não vai adiantar nada. Você não sabe o bastante para ajudá-la.
Isso não era exatamente a verdade, porque ele sabia que o motorista e Hoo Lun ainda estavam na casa no dia seguinte ao da partida dela para a Costa Leste. Mas eu não o queria fora do jogo ainda.
– Se eu fosse você, – continuei – escolheria um lugar calmo para me esconder e ficaria lá até eu conseguir entrar em contato. Você conhece algum lugar assim?
– Sim – disse ele, lentamente. – Tenho uma... uma amiga que pode me esconder... perto... perto do Bairro Latino.
– Perto do Bairro Latino? – Poderia ser Chinatown. Tentei uma artilharia de precisão. – No Waverly Place?
Ele deu um salto.
– Como você sabia?
– Sou um detetive. Sei de tudo. Já ouviu falar em Chang Li Ching?
– Não.
Tentei não rir de seu rosto intrigado.
A primeira vez que vi esse malandro, ele estava saindo de uma casa em Waverly Place, com o rosto de uma chinesa pouco visível na porta atrás dele. A casa era em frente ao armazém. A garota chinesa com quem eu havia falado na casa de Chang havia me aplicado uma conversa de escravidão e feito um convite para a mesma casa. O bondoso Jack ali havia caído no mesmo truque, mas não sabia que a garota tinha alguma coisa a ver com Chang Li Ching, não sabia que Chang existia, não sabia que Chang e O Whistler eram parceiros de jogo. Agora Jack está com problemas e vai se esconder com a garota!
Não desgostei desse ângulo do jogo. Ele estava indo para uma armadilha, mas isso não era um problema para mim – ou melhor, eu esperava que fosse me ajudar.
– Qual é o nome da sua amiga? – perguntei.
Ele hesitou.
– Qual é o nome da mulher pequenina cuja porta fica em frente ao armazém? – simplifiquei.
– Hsiu Hsiu.
– Tudo bem – encorajei-o em sua tolice. – Vá para lá. É um excelente esconderijo. Agora, se eu quiser enviar um garoto chinês com um recado, como ele poderá encontrar você?
– Há um lance de escada à esquerda de quem entra. Ele terá de pular o segundo e o terceiro degraus, porque eles têm algum tipo de alarme, assim como o corrimão. No segundo andar, ele terá de virar à esquerda de novo. O corredor é escuro. A segunda porta à direita – no lado direito do corredor – dá para um quarto. No lado oposto do quarto há um armário, com uma porta escondida atrás de roupas velhas. Normalmente há gente no quarto a que se chega por essa porta, de modo que ele terá de esperar pelo momento de atravessá-lo. Esse quarto tem uma pequena varanda do lado de fora, à qual se pode chegar pelos dois lados das janelas. Como as laterais da varanda são fechadas, se ele se abaixar, não poderá ser visto nem da rua nem das outras casas. Na outra ponta da varanda há duas tábuas soltas no piso. Descendo por elas, chega-se a um pequeno ambiente entre uma parede e outra. O alçapão ali dará em outro exatamente igual, onde eu provavelmente estarei. Tem outro caminho de saída do quarto inferior por um lance de escada, mas eu nunca fui por ele.
Que bela bagunça! Parecia um jogo de criança. Mas mesmo com toda aquela cobertura no bolo, o nosso jovem tolo não havia desconfiado de nada. Levava tudo a sério.
– Então é assim que se faz! – eu disse. – É melhor você ir para lá assim que possível e ficar lá até receber o meu mensageiro. Você o reconhecerá pela venda que usa num dos olhos, e talvez seja melhor eu lhe dar uma senha. Acidental – esta será a palavra. A porta da rua... é trancada?
– Não. Nunca a vi trancada. Há quarenta ou cinqüenta homens chineses – ou talvez cem – morando naquele prédio, de modo que eu acho que a porta nunca esteja trancada.
– Ótimo. Agora, dê no pé.
Às 22h15 daquela noite eu estava abrindo a porta em frente ao armazém em Waverly Place – uma hora e três quartos antes do encontro que havia marcado com Hsiu Hsiu. Às 21h55, Dick Foley havia ligado dizendo que O Whistler havia entrado na porta vermelha da Travessa Spofford.
Encontrei o lado de dentro na escuridão e fechei a porta devagar, concentrando-me nas orientações infantis que Garthorne havia me passado. O fato de eu saber que eram orientações bobas não me ajudava, já que eu não conhecia nenhum outro caminho.
A escada foi meio problemática, mas passei pelo segundo e o terceiro degraus sem tocar no corrimão e segui subindo. Encontrei a segunda porta no corredor, o armário no quarto atrás dela e a porta no armário. Dava para ver luz entrando pelas frestas. Não consegui ouvir nada.
Empurrei a porta – o quarto estava vazio. Um lampião a óleo fedia ali. A janela mais próxima não fez barulho nenhum quando eu a levantei. Aquilo foi pouco artístico – um rangido teria impressionado Garthorne com seu perigo.
Abaixei-me bem na varanda, de acordo com as instruções, e encontrei as tábuas soltas do piso que abriram um buraco negro. Entrei com os pés primeiro, deslizando num ângulo que facilitou a descida. Parecia ser um tipo de rampa cortada diagonalmente na parede. Era abafado, e eu não gosto de buracos estreitos. Desci rapidamente, entrando num ambiente pequeno, longo e estreito, como se tivesse sido posto dentro de uma parede grossa.
Não havia nenhuma luz. Minha lanterna mostrou um ambiente de mais ou menos cinco metros e meio de comprimento por um metro e vinte centímetros de largura, mobiliado com uma mesa, um sofá e duas cadeiras. Olhei embaixo do único tapete no chão. O alçapão estava lá – uma peça tosca, que não tinha a pretensão de fazer parte do piso.
Deitado de barriga para baixo, pus um ouvido no alçapão. Nenhum barulho. Levantei-a alguns centímetros. Encontrei escuridão e um fraco murmúrio de vozes. Abri a porta completamente, abaixei-a com facilidade até o chão e enfiei a cabeça e os ombros na abertura, descobrindo então que era um arranjo duplo. Havia outra porta abaixo, sem dúvida dando para o teto do quarto abaixo.
Desci com cuidado, e a porta cedeu sob o meu pé. Eu poderia ter subido novamente, mas, como eu já havia mexido nela, achei melhor seguir em frente.
Pus os dois pés em cima. Dei um impulso para baixo. Caí na luz. A porta caiu sobre a minha cabeça. Agarrei Hsiu Hsiu e pus uma mão sobre a sua boca minúscula para que ela ficasse em silêncio.
– Olá – disse eu ao perplexo Garthorne. – Hoje é a noite de folga do meu garoto de recados, de modo que eu mesmo vim.
– Olá – gaguejou ele.
O quarto, percebi, era uma cópia daquele do qual eu havia caído, mais um espaço entre duas paredes, embora esse tivesse uma porta de madeira sem pintura numa das pontas.
Entreguei Hsiu Hsiu a Garthorne.
– Mantenha-na em silêncio – ordenei – enquanto...
O barulho na fechadura da porta me fez ficar em silêncio. Saltei em direção à parede no lado das dobradiças da porta no momento em que ela se abriu – a pessoa que entrava ficou escondida de mim pela porta.
A porta se abriu completamente, mas não tanto quanto os olhos azuis de Jack Garthorne ou a sua boca. Deixei a porta voltar e saí atrás da minha arma empunhada.
Diante de mim estava parada uma rainha!
Era uma mulher alta de corpo ereto e porte altivo. Um toucado em forma de borboleta coberto com objetos roubados de uma dúzia de joalherias aumentava sua altura. Seu vestido era cor de ametista, filigranado de ouro em cima e enfeitado com um verdadeiro arco-íris embaixo. Mas as roupas não eram nada!
Ela era – talvez eu consiga esclarecer assim: Hsiu Hsiu era um exemplo perfeito de beleza feminina. Ela era a própria perfeição! Mas então surgiu aquela rainha, e a beleza de Hsiu Hsiu desapareceu. Virou uma vela acesa ao sol. Ainda era bonita – mais bonita do que a mulher na porta, se fôssemos comparar – mas ninguém mais prestava atenção a ela. Hsiu Hsiu era uma garota bonita: aquela mulher real na porta era... não sei como descrever.
– Meu Deus – Garthorne sussurrou com secura. – Jamais imaginei!
– O que você está fazendo aqui? – desafiei a mulher.
Ela não me ouviu. Estava olhando para Hsiu Hsiu como uma tigresa deve olhar para uma gata de rua. Hsiu Hsiu olhava para ela como uma gata de rua deve olhar para uma tigresa. Garthorne estava com o rosto coberto de suor e sua boca parecia a boca de um homem doente.
– O que você está fazendo aqui? – repeti, aproximando-me de Lillian Shan.
– Estou onde é o meu lugar – disse ela, lentamente, sem desviar o olhar da escrava. – Voltei para o meu povo.
Aquilo era um monte de bobagem. Voltei-me para o espantado Garthorne.
– Leve Hsiu Hsiu para o quarto de cima e mantenha-na em silêncio, nem que precise estrangulá-la. Quero conversar com a srta. Shan.
Ainda zonzo, ele empurrou a mesa para baixo do alçapão, subiu em cima dela, subiu até o teto e estendeu as mãos para baixo. Hsiu Hsiu chutou e arranhou, mas eu a levantei até ele. Então fechei a porta pela qual Lillian Shan havia entrado e encarei-a.
– Como você chegou aqui? – perguntei.
– Fui para casa depois que deixei você, sabendo o que Yin Hung iria dizer, porque ele havia me dito na agência de emprego. Quando cheguei em casa... quando cheguei em casa, resolvi vir para cá, onde é o meu lugar.
– Bobagem! – eu a corrigi. – Quando chegou em casa, você encontrou uma mensagem de Chang Li Ching pedindo... mandando que você viesse para cá.
Ela olhou para mim e não disse nada.
– O que Chang queria?
– Ele achou que talvez pudesse me ajudar – disse ela. – E então eu fiquei aqui.
Mais bobagem.
– Chang disse que Garthorne estava em perigo... que tinha brigado com O Whistler.
– O Whistler?
– Você negociou com Chang – acusei, sem prestar atenção na pergunta dela. Ela provavelmente não conhecia O Whistler por esse nome.
Ela sacudiu a cabeça, chacoalhando os enfeites em sua cabeça.
– Não houve negociação nenhuma – ela disse, encarando-me com firmeza demais.
Não acreditei nela. E disse isso.
– Você deu a sua casa a Chang, ou o uso dela, em troca da promessa dele de que – o idiota foram as primeiras palavras em que pensei, mas mudei o discurso – Garthorne ficaria a salvo d’O Whistler e você ficaria a salvo da lei.
Ela se empertigou.
– Dei, sim – disse ela, calmamente.
Percebi que estava fraquejando. Lidar com aquela mulher que parecia uma rainha não era tão simples quanto eu gostaria. Forcei-me a me lembrar de que a conheci quando ela era sem graça como o diabo em roupas masculinas.
– Você deveria levar uma surra! – rosnei para ela. – Você já não teve problemas suficientes sem se misturar com um bando de seqüestradores? Você viu O Whistler?
– Havia um homem lá em cima – ela disse. – Não sei o nome dele.
Procurei no bolso e encontrei o retrato tirado quando ele foi para San Quentin.
– É ele – disse ela quando viu a foto.
– Belo sócio você escolheu – enfureci-me. – Que valor você acha que tem a palavra dele ou qualquer coisa?
– Não aceitei a palavra dele para nada. Aceitei a palavra de Chang Li Ching.
– É ruim igual. Os dois são parceiros. Qual foi a sua negociação?
Ela travou novamente, ereta, tensa e com o olhar frio. Porque ela estava se afastando de mim com aquela coisa de princesa manchu, fiquei irritado.
– Não seja uma idiota a vida inteira! – implorei. – Você acha que fez um acordo. Eles a enganaram! Para quê você acha que estão usando a sua casa?
Ela tentou me desprezar com o olhar. Tentei atacar por outro ângulo.
– É o seguinte: você não se importa com quem faz negociações. Faça uma comigo. Ainda estou uma sentença de prisão à frente de O Whistler, o que quer dizer que se a palavra dele vale alguma coisa, a minha deve ser altamente valiosa. Diga qual foi o acordo. Se for razoavelmente decente, prometo sair rastejando daqui e esquecer tudo. Se você não me disser nada, vou esvaziar uma arma na primeira janela que encontrar. E você ficaria surpresa com quantos policiais um tiro pode atrair nesta parte da cidade e como eles chegarão aqui rapidamente.
A ameaça tirou parte da cor do seu rosto.
– Se eu contar, você promete que não fará nada?
– Você não entendeu parte do que eu disse – lembrei-a. – Se eu achar que o acordo for razoavelmente decente, não farei nada.
Ela mordeu os lábios, contorceu os dedos, e então contou tudo.
– Chang Li Ching é um dos líderes do movimento antijaponês na China. Desde a morte de Sun Wen, ou Sun Yat-Sem, como ele é chamado no Sul da China e aqui, os japoneses aumentaram o controle no governo chinês até ficar maior do que jamais foi. É o trabalho de Sun Wen que Chang Li Ching e seus amigos estão levando adiante.
“Com o próprio governo contra eles, sua necessidade imediata é armar patriotas em número suficiente para resistir à agressão japonesa quando chegar o momento. É para isso que a minha casa é usada. Fuzis e munições são carregados em barcos lá e enviados para navios localizados em alto-mar. Esse homem que você chama de O Whistler é o proprietário dos navios que transportam os armamentos para a China.”
– E a morte das suas empregadas? – perguntei.
– Wan Lan era espiã do governo chinês, para os japoneses. A morte de Wang Ma foi um acidente, acho eu, embora ela também fosse suspeita de espionagem. Para um patriota, a morte de traidores é algo necessário, você compreende? O seu povo também é assim quando o seu país corre perigo.
– Garthorne me contou uma história de contrabando de bebidas – eu disse. – O que você acha disso?
– Ele acreditou nessa história – disse ela, sorrindo suavemente para o alçapão pelo qual havia saído. – Disseram-lhe isso porque não o conheciam o bastante para confiar nele. Por isso não o deixavam ajudar com os carregamentos.
Pousou uma das mãos no meu braço.
– Você irá embora e não dirá nada? – ela pediu. – Essas coisas são contra as leis do seu país, mas você não iria contra as leis de outro país para salvar a vida do seu próprio país? Quatrocentos milhões de pessoas não têm o direito de combater uma raça estrangeira que as explora? Desde os dias de Taou-kwang, meu país tem sido um joguete nas mãos de nações mais agressivas. Algum preço é alto demais para os chineses patriotas pagarem para acabar com esse período de desonra? Você ficará no caminho da liberdade do meu povo?
– Espero que eles vençam – eu disse –, mas você foi enganada. As únicas armas que passaram pela sua casa passaram dentro de bolsos! Levaria um ano para passar um carregamento de navio por lá. Talvez Chang esteja contrabandeando armas para a China. É provável. Mas elas não passam pela sua casa.
“Na noite em que eu estava lá, passaram cules9 pela casa... entrando, não saindo. Vieram da praia e foram embora em carros. Talvez O Whistler esteja levando as armas para Chang e trazendo cules de volta. Ele pode conseguir qualquer valor, de mil dólares para cima, para cada um que desembarca. É nisso que deve se resumir o negócio todo. Ele leva as armas para Chang e traz suas próprias coisas, cules e, sem dúvida, um pouco de ópio, obtendo seu maior lucro na viagem de volta. O negócio das armas não envolveria dinheiro suficiente para fazê-lo se interessar.
“As armas devem ser todas embarcadas num píer, legalmente, disfarçadas como outra coisa. A sua casa é usada para o retorno. Chang pode ou não estar ligado ao negócio de cules e ópio, mas é certo que ele só deixa O Whistler fazer o que quiser se O Whistler levar suas armas. Então, como pode ver, você foi enganada!”
– Mas...
– Mas, nada! Você está ajudando Chang com a sua participação no tráfico de cules. E a minha tese é a de que as suas empregadas não foram mortas por serem espiãs, mas porque não quiseram trair você.
Ela estava pálida e pareceu perder o equilíbrio. Não deixei que se recuperasse.
– Você acha que Chang confia em O Whistler? Os dois pareceram ter um relacionamento amigável?
Eu sabia que Chang não podia confiar no sujeito, mas queria algo específico.
– Nã-ã-o – respondeu ela, lentamente. – Ouvi falarem alguma coisa a respeito de um barco desaparecido.
Isso era bom.
– Os dois ainda estão juntos?
– Sim.
– Como eu chego lá?
– Descendo esta escada, atravessando o porão, seguindo reto, e subindo dois lances de escada no outro lado. Eles estavam numa sala à direita da escada no segundo andar.
Graças a Deus eu finalmente recebia instruções claras e diretas!
Saltei sobre a mesa e bati no teto.
– Desça, Garthorne. E traga a sua acompanhante.
– Nenhum de vocês saia daqui antes de eu voltar – disse eu ao idiota e a Lillian Shan quando estávamos todos reunidos novamente. – Vou levar Hsiu Hsiu comigo. Vamos lá, irmãzinha, quero que você converse com qualquer homem mau com quem eu cruzar. Vamos ver Chang Li Ching, entendeu? – Fiz caretas. – Um grito seu, e... – pus meus dedos em torno do pescoço dela e apertei levemente.
Ela riu, o que estragou um pouco o efeito do gesto.
– Até Chang – ordenei, levando-a em direção à porta segurando-a por um ombro.
Descemos até o porão escuro, encontramos a escada do outro lado e começamos a subir os degraus. Nosso progresso era lento. Os pés amarrados da garota não eram feitos para caminhar rapidamente.
Uma luz fraca estava acesa no primeiro andar, onde tivemos de virar para subir até o segundo andar. Tínhamos acabado de fazer a curva quando ouvi passos atrás de nós.
Ergui a garota dois degraus acima, para longe da claridade, e me agachei atrás dela, segurando-a no lugar. Quatro chineses vestindo roupas comuns amassadas desceram até o saguão do primeiro piso, passaram pela nossa escada sem olhar para cima e seguiram em frente.
Hsiu Hsiu abriu sua boca que lembrava uma flor vermelha e soltou um grito agudo que poderia ser ouvido em Oakland.
Xinguei, soltei-a e comecei a subir a escada. Os quatro chineses vieram atrás de mim. No final da escada, à frente, surgiu um dos imensos lutadores de Chang – com um punhal de trinta centímetros na mão. Olhei para trás.
Hsiu Hsiu estava sentada no primeiro degrau, olhando por cima do ombro e fazendo diferentes tipos de gritos e berros, o rosto de boneca coberto de prazer. Um dos amarelos que subia a escada estava sacando uma pistola automática.
Minhas pernas me empurraram em direção ao devorador de homens no topo da escada.
Quando se agachou acima de mim, atirei contra ele.
A minha bala arrancou-lhe a garganta.
Bati em seu rosto com a minha arma quando ele passou caindo por mim.
Uma mão me agarrou pelo tornozelo.
Agarrando-me ao corrimão, levei o outro pé para trás. Alguma coisa o parou. Nada me parou.
Uma bala arrancou parte do teto quando cheguei ao topo da escada e saltei para a porta à direita.
Depois de abri-la, entrei correndo.
O outro dos enormes devoradores de homens me agarrou – agarrou os meus mais de noventa quilos como um garoto agarra uma bola de borracha.
Do outro lado da sala, Chang Li Ching passou os dedos gorduchos pelo bigode fino e sorriu para mim. Ao seu lado, um homem que eu sabia ser O Whistler levantou-se da cadeira com o rosto carnudo se contorcendo.
– O Príncipe dos Caçadores é bem-vindo – disse Chang, acrescentando alguma coisa em chinês ao devorador de homens que estava me segurando.
O devorador de homens me pôs novamente de pé e se virou para fechar a porta para os meus perseguidores.
O Whistler sentou-se novamente, sem qualquer contentamento, com os olhos cheios de veias injetadas sobre mim e o rosto inchado.
Enfiei a arma nas minhas roupas antes de atravessar a sala em direção a Chang. Ao atravessar a sala, notei uma coisa.
Atrás da cadeira de O Whistler, as cortinas de veludo estufaram muito pouco, não o bastante para ser percebido por alguém que não as tivesse visto se mexerem antes. Chang não confiava nem um pouco em seu aliado!
– Tenho algo que quero lhe mostrar – disse eu ao velho chinês quando já estava diante dele, ou melhor, diante da mesa que estava diante dele.
– Deveras privilegiado é o olho que pode olhar para qualquer coisa trazida pelo Pai dos Vingadores.
– Ouvi dizer – disse eu, pondo a mão no bolso – que tudo o que parte para a China não chega ao destino.
O Whistler saltou da cadeira novamente, a boca numa careta, o rosto assumindo um tom de rosa sujo. Chang Li Ching olhou para ele, que voltou a se sentar.
Mostrei a fotografia de O Whistler junto a um grupo de japas, com a medalha da Ordem do Sol Nascente no peito. Na esperança de que Chang não tivesse ouvido falar do golpe e não soubesse que a medalha era falsa, larguei a fotografia sobre a mesa.
O Whistler esticou o pescoço, mas não conseguiu ver a foto.
Chang Li Ching olhou para ela por um longo instante sobre a mão fechada, com os velhos olhos espertos e gentis, o rosto tranqüilo. Não moveu nenhum músculo do rosto. Nada mudou em seus olhos.
As unhas da mão direita lentamente cortaram uma ferida vermelha nas costas da mão esquerda fechada.
– É verdade – disse ele, baixinho – que se adquire sabedoria na presença de sábios.
Ele abriu as mãos, pegou a fotografia e mostrou-a ao grandalhão. O Whistler olhou para ela. Seu rosto ficou cinza, e os olhos saltaram para fora.
– Ora, isso... – começou ele, parando em seguida, deixando a fotografia cair em seu colo, e deixou cair os ombros, num gesto de derrota.
Isso me intrigou. Eu imaginava que teria de discutir com ele, de convencer Chang que a medalha não era falsa, como de fato era.
– Você pode ter o que quiser em pagamento por isso – Chang Li Ching disse para mim.
– Quero Lillian Shan e Garthorne liberados, quero o seu amigo gordo aqui e qualquer outra pessoa envolvida nos assassinatos.
Os olhos de Chang se fecharam por um instante – o primeiro sinal de cansaço que vi em seu rosto redondo.
– Pode ter tudo isso – disse ele.
– A negociação que você fez com a srta. Chang não vale mais, é claro – destaquei. – Posso precisar de algumas provas para garantir o enforcamento dessa criança – disse, acenando com a cabeça para O Whistler.
Chang sorriu com ar pensativo.
– Isso, sinto muito, não será possível.
– Por quê...? – comecei, parando em seguida.
Vi que não havia mais uma protuberância atrás de O Whistler; Uma das pernas da cadeira brilhava à luz. Uma piscina vermelha se espalhou no chão embaixo dele. Não precisei ver as suas costas para saber que ele não poderia mais ser enforcado.
– Assim é diferente – eu disse, chutando uma cadeira até perto da mesa. – Agora vamos falar de negócios.
Sentei-me e teve início a reunião.
Dois dias depois, tudo estava esclarecido, satisfazendo a polícia, a imprensa e a opinião pública. O Whistler havia sido encontrado numa rua escura, morto havia horas por um corte nas costas, morto numa guerra de contrabando de bebidas, pelo que ouvi dizer. Hoo Lun foi encontrado. O chinês com dente de ouro que havia aberto a porta para Lillian Shan foi encontrado, Outros cinco foram encontrados. Esses sete, com Yin Hung, o motorista, acabaram sendo condenados à prisão perpétua. Eram todos homens de O Whistler, e Chang os sacrificou sem pestanejar. Tinham tão poucas provas sobre a cumplicidade de Chang como eu, de modo que não poderiam revidar, mesmo se soubessem que Chang havia me dado a maioria das provas que eu tinha contra eles.
Ninguém, além da garota, de Chang e de mim, sabia coisa alguma cobre a participação de Garthorne. Assim, ele ficou de fora, com liberdade para passar a maior parte do seu tempo na casa dela.
Eu não tinha nenhuma prova que pudesse apresentar contra Chang, nem consegui obter nada. Independentemente do patriotismo dele, eu teria dado o meu olho direito para botá-lo atrás das grades. Seria algo de que se orgulhar. Mas, como não tinha havido qualquer chance de prendê-lo, eu tive de me contentar com uma negociação segundo a qual ele me entregou tudo, exceto ele próprio e seus amigos.
Não sei o que aconteceu com Hsiu Hsiu, a escrava que gritava. Ela merecia terminar bem. Eu poderia voltar ao Chang para perguntar sobre ela, mas mantive distância. Chang havia descoberto que a medalha na foto era falsa. Recebi um bilhete dele:
Saudações e Muito Apreço ao Revelador dos Segredos:
Aquele cujo fervor patriótico e cuja estupidez inata se combinaram para cegá-lo, levando-o a destruir uma valiosa ferramenta, confia que as fortunas do tráfico mundano não voltarão jamais a pôr sua débil inteligência em oposição à irresistível vontade e ao impressionante intelecto do Imperador dos Decifradores.
Pode-se interpretar esse bilhete como quiser. Mas eu conheço o homem que o escreveu, e não me importo de admitir que parei de comer em restaurantes chineses e que se nunca mais precisar ir a Chinatown, melhor.
6 Mudo (N.T.)
7 Assoviador (N.T.)
8 Change (N.T.)
9 Operários chineses não especializados. (N.E.)
Corkscrew
Fervendo como um bule de café antes de estarmos a oito quilômetros de distância de Filmer, o ônibus me levou em direção ao sul, para o calor abrasador e a amarga poeira branca do deserto do Arizona.
Eu era o único passageiro. O motorista estava com tão pouca vontade de conversar como eu. Durante toda a manhã, viajamos pela região repleta de cactos e salpicada de folhas secas sem dizer nada, exceto quando o motorista reclamava da necessidade de parar para por mais água em sua máquina barulhenta. O veículo arrastava-se pela areia fofa, seguindo um caminho sinuoso entre plataformas íngremes de terra avermelhada, atravessando arroios secos onde pedaços de algarobeiras poeirentas pareciam renda branca à luz forte do sol e contornando barrancos escarpados.
O sol subia no céu abrasador. Quanto mais alto, maior e mais quente ficava. Fiquei imaginando quanto mais quente teria que ficar para explodir os cartuchos na arma sob o meu braço. Não que isso tivesse alguma importância – se ficasse um pouco mais quente, todos explodiríamos de qualquer maneira: carro, deserto, chofer e eu seríamos todos eliminados da existência num relâmpago explosivo. E eu não me importava com isso!
Era esse o meu estado de espírito quando subimos uma longa ladeira, ultrapassamos o topo de uma crista e descemos para Corkscrew.
Corkscrew nunca deve ter sido de impressionar. Principalmente naquela tarde de domingo incandescente. Uma rua de terra seguindo a beirada curva do Cañon Tirabuzón, do qual, por tradução, a cidade tirou o nome.10 Era chamada de cidade, mas vilarejo seria um elogio: quinze ou dezoito edifícios velhos ao longo da rua irregular, com cabanas caindo aos pedaços apoiadas neles, como que se agachando para correr em disparada.
Na rua, quatro automóveis empoeirados cozinhavam ao sol. Entre dois edifícios, pude ver um curral no qual meia dúzia de cavalos acumulava seus excrementos sob um telheiro. Não havia qualquer pessoa à vista. Até mesmo o motorista do ônibus, que carregava um saco de correspondência murcho e aparentemente vazio, desaparecera num edifício com o nome Empório Adderly.
Depois de pegar as minhas duas malas cobertas de poeira, subi e atravessei a rua até onde uma placa gasta pelo tempo, na qual mal dava para ler as palavras Cañon House, estava pendurada sobre a porta de uma casa de tijolo cru de dois andares e telhado de ferro.
Atravessei a ampla varanda sem tinta e sem ninguém e abri uma porta empurrando-a com o pé, entrando numa sala de jantar onde uma dúzia de homens e uma mulher comiam sentados a mesas forradas com oleado. Num dos cantos do ambiente ficava a mesa do caixa e, na parede atrás, um escaninho de chaves. Entre o escaninho e a mesa, um homem rechonchudo cujos últimos fios de cabelos tinham exatamente o mesmo tom de sua pele amarelada sentado num banquinho fingiu não me ver.
– Um quarto e muita água – eu disse, largando as malas.
– Posso lhe dar um quarto – rosnou o homem pálido –, mas a água não vai adiantar nada. Mal vai ter bebido a água e se lavado e já vai estar com sede e sujo de novo. Onde diabos está aquele livro de registro?
Como não conseguiu encontrar o livro de registro, empurrou um envelope velho por sobre a mesa em minha direção.
– Registre-se no verso deste envelope. Vai ficar conosco por algum tempo?
– Provavelmente.
Uma cadeira foi derrubada atrás de mim.
Virei-me enquanto um homem esguio com enormes orelhas vermelhas se levantava com a ajuda das mãos sobre a mesa.
– Senhó i senhôs – declamou ele, solenemente. – Chegô a hora di disistchi du camin du mal i trabaiá. Chegô a lei no Condad Orilla!
O bêbado me fez uma reverência, virou os seus ovos com presunto e se sentou novamente. Os demais clientes aplaudiram batendo as facas e os garfos nas mesas.
Examinei-os enquanto eles me examinavam. Era um grupo variado: peões com a pele machucada pelo clima, trabalhadores braçais desajeitados, homens com a pele pálida de quem trabalha à noite. A única mulher no ambiente não era do Arizona. Era uma garota magra de mais ou menos 25 anos de idade, com olhos escuros brilhantes, cabelos escuros curtos e uma beleza distinta que denotava uma comunidade maior do que aquela. Você já a viu, ou as irmãs dela, nas cidades grandes, onde a movimentação continua depois que terminam as sessões de teatro.
O homem que estava com ela era trabalhador do campo – um jovem esbelto de vinte e poucos anos, não muito alto, com olhos azuis claros que se destacavam no rosto bronzeado. Seus traços eram perfeitos demais, com sua nítida regularidade.
– Quer dizer que o senhor é o novo assistente de xerife? – perguntou o homem pálido atrás de mim.
Alguém havia guardado bem o meu segredo!
– Sim. – Escondi minha irritação com um sorriso para ele e todos os demais. – Mas troco a minha estrela imediatamente por aquele quarto e aquela água de que estávamos falando.
Ele me guiou através do salão de jantar até o andar de cima, para um quarto com paredes de madeira nos fundos do segundo andar, disse “Aqui está” e me deixou.
Fiz o que pude com a água do jarro sobre o lavatório para me livrar da imundície que havia acumulado. Então catei uma camisa cinza e um terno de tecido grosso nas malas e guardei a arma no coldre sob o ombro esquerdo, onde não ficaria secreta.
Em cada bolso lateral do casaco, pus uma nova pistola automática 32 – coisinhas pequenas e de cano curto que não eram muito mais do que brinquedos. O tamanho diminuto permitia que eu as carregasse perto das mãos sem revelar o fato de que meu arsenal não se resumia à arma sob o ombro.
*
O salão de jantar estava vazio quando desci novamente. O pálido pessimista que gerenciava o local enfiou a cabeça por uma porta.
– Alguma chance de eu conseguir algo para comer? – perguntei.
– Muito pouca – disse ele, fazendo sinal com a cabeça para uma placa que dizia Refeições das 6h às 8h, das 12h às 14h e das 17h às 19h.
– Você pode comer no Sapo... se não for exigente – acrescentou em tom azedo.
Saí, atravessei a varanda que estava quente demais para os desocupados e fui até a rua, vazia pelo mesmo motivo. Encontrei o Sapo encostado à parede de um grande edifício térreo de tijolos crus, com Border Palace pintado em toda a fachada.
Era uma cabana pequena – três paredes de madeira socadas contra a parede de tijolos do Border Palace – entulhada com um balcão de almoço, oito bancos altos, um forno, um punhado de utensílios de cozinha, metade das moscas do mundo, um catre de ferro atrás de uma cortina semicerrada e o proprietário. O interior um dia havia sido pintado de branco. Agora tudo tinha uma cor de fumaça e gordura, exceto os cartazes escritos à mão que diziam Refeições a qualquer hora e Não fazemos fiado e informavam o preço de vários tipos de comida. Os cartazes eram amarelo-acinzentados, sujos de moscas.
O proprietário era um homem pequeno, velho, mirrado, moreno, enrugado e alegre.
– Como vai o novo xerife? – perguntou. Quando sorriu, vi que não tinha dentes.
– Assistente – admiti. – E com fome. Como qualquer coisa que você tenha que não me morda de volta e que não demore muito a ficar pronta.
– Claro! – Virou-se para o forno e começou a bater panelas. – Precisamos de xerifes – disse ele, olhando por cima do ombro.
– Tem alguém incomodando vocês?
– Ninguém me incomoda... isso eu posso garantir! – Fez um floreio com uma das mãos magras na direção de um barril de açúcar sob as prateleiras atrás do balcão. – Decididamente, dou um jeito neles!
O cabo de uma espingarda surgiu de dentro do barril. Puxei-o para fora: uma espingarda de cano duplo com os canos cortados curtos. Uma arma perigosa à queima-roupa.
Devolvi-a ao lugar quando o velho começou a arrumar a louça na minha frente.
Com a barriga cheia e um cigarro queimando, saí novamente para a rua tortuosa. Do Border Palace vinha o barulho de bolas de bilhar. Segui o som através da porta.
Num salão grande, quatro homens estavam inclinados sobre duas mesas de bilhar, enquanto cinco ou seis outros os observavam de cadeiras encostadas na parede. Num dos lados, havia um balcão de bar. Através de uma porta aberta nos fundos, dava para ouvir o som de cartas sendo embaralhadas.
Um homenzarrão com a barriga enfiada num colete branco sobre uma camisa com um diamante cintilando no peito veio na minha direção, o rosto vermelho de queixo triplo se abrindo num sorriso profissionalmente jovial.
– Sou Bardell – cumprimentou-me, estendendo uma mão gorda de unhas feitas na qual reluziam mais diamantes. – Esta é a minha casa. Prazer em conhecê-lo, xerife! Por Deus, precisamos do senhor. E espero que possa passar muito do seu tempo por aqui. Esses garotos – disse ele rindo, fazendo sinal com a cabeça para os jogadores de bilhar – às vezes aprontam comigo.
Deixei-o sacudir a minha mão para cima e para baixo.
– Deixe-me apresentá-lo aos rapazes – prosseguiu, virando-se e passando um braço sobre meus ombros. – Esses são vaqueiros do Círculo H.A.R. – acenou alguns de seus anéis para os jogadores de bilhar – exceto por este hombre Milk River, que, por ser domador de cavalos, meio que se julga superior aos demais.
O hombre Milk River era o jovem esbelto que estava sentado ao lado da garota no salão de jantar da Cañon House. Seus parceiros eram jovens – ainda que não tão jovens quanto ele –, marcados pelo sol e pelo vento, com os pés para dentro em botas de saltos altos. Bucky Small era loiro de olhos arregalados. Smith, loiro e baixo. Dunne era um irlandês esguio.
Os homens que assistiam ao jogo eram, na maioria, trabalhadores da Colônia Orilla ou de algum dos ranchos menores das redondezas. Havia duas exceções: Chick Orr – baixo, entroncado, braços pesados, com o nariz disforme, as orelhas feridas, os dentes da frente de ouro e as mãos nodosas de um pugilista – e Gyp Rainey – um indivíduo de queixo fraco e aspecto assustado que tinha cocaína escrito na testa.
Guiado por Bardell, entrei no salão dos fundos para conhecer os jogadores de pôquer. Havia apenas quatro deles. As demais mesas de cartas, de quino e de dados estavam vazias.
Um dos jogadores era o bêbado de orelhas grandes que fizera o discurso de boas-vindas no hotel. O nome dele era Slim Vogel. Era vaqueiro do Círculo H.A.R., assim como Red Wheelan, sentado ao seu lado. Ambos estavam de cara cheia. O terceiro jogador era um homem quieto de meia-idade chamado Keefe. O número quatro era Mark Nisbet, um homem pálido e magro. Era apostador dos pés à cabeça, dos olhos castanhos de sobrancelhas grossas até a confiança esguia de seus dedos magros.
Nisbet e Vogel não pareciam estar se dando muito bem.
Era a vez de Nisbet dar as cartas, e a banca já havia sido aberta. Vogel, que tinha o dobro de fichas de qualquer outro, pediu duas cartas.
– Quero as duas de cima desta vez! – E não disse isso muito gentilmente. Nisbet deu as cartas, sem nenhuma expressão que indicasse que ele havia ouvido o comentário. Red Wheelan pediu três cartas. Keefe desistiu. Nisbet pegou uma carta. Wheelan apostou. Nisbet ficou. Vogel aumentou a aposta. Wheelan ficou. Nisbet aumentou. Vogel bateu de novo. Wheelan caiu fora. Nisbet aumentou novamente.
– Tô apostando que você pegou a sua carta de cima também – riu Vogel para Nisbet do outro lado da mesa, aumentando a banca mais uma vez.
Nisbet pagou para ver. Tinha dois pares, de ases e reis. O vaqueiro, uma trinca de noves.
Vogel riu alto enquanto recolhia as fichas.
– Se eu pudesse manter um xerife cuidando de você o tempo todo, seria ótimo para mim.
Nisbet fingiu estar ocupado arrumando as fichas. Eu o entendi. Tinha jogado com uma mão podre – mas de que outro modo se pode jogar contra um bêbado?
– O que o senhor achou da nossa cidadezinha? – perguntou Red Wheelan.
– Ainda não conheci muita coisa – enrolei. – O hotel, a lanchonete... foi tudo o que vi.
Wheelan riu:
– Então o senhor conheceu o Sapo? Ele é amigo do Slim.
Todo mundo, inclusive Slim Vogel, riu, menos Nisbet.
– Uma vez o Slim tentou levar de graça o equivalente a 25 centavos em bolinhos e café do Sapo. Diz que esqueceu de pagar por eles, mas é mais provável que tenha se escapulido. Enfim, no dia seguinte, o Sapo aparece no rancho com uma espingarda embaixo do braço. Arrastou o instrumento de destruição por 24 quilômetros através do deserto, a pé, para cobrar seus trocados. E cobrou mesmo! Pegou seus 25 centavos entre o curral e o alojamento – na boca do canhão, como se diz!
Slim Vogel sorriu melancolicamente e coçou uma das grandes orelhas.
– O velho filho da mãe veio atrás de mim como se eu fosse um maldito ladrão! Se ele fosse um homem, eu o veria no inferno antes de dar qualquer coisa a ele. Mas o que fazer com um urubu velho que não tem nem dentes para morder?
Seus olhos turvos voltaram para a mesa e o sorriso nos lábios frouxos virou um sorriso de escárnio.
– Vamos jogar – resmungou, fuzilando Nisbet com os olhos. – Agora é a vez de um homem honesto dar as cartas!
Bardell e eu voltamos para a parte da frente, onde os caubóis ainda estavam dando tacadas nas bolas de bilhar. Sentei-me numa das cadeiras encostadas na parede e fiquei ouvindo as conversas ao redor. O papo não era exatamente fluente. Qualquer um podia perceber que havia um estranho presente.
Minha primeira tarefa era superar aquilo.
– Alguém saberia me dizer – perguntei genericamente – onde posso conseguir um cavalo? Um que não seja muito difícil de ser montado por um mau cavaleiro.
– Talvez você consiga um no estábulo do Echlin – Milk River disse lentamente, encarando-me com olhos azuis inocentes. – Mas é pouco provável que ele tenha alguma coisa que viva o bastante se você quiser correr. Olha só... o Peery, lá no rancho, tem um baio que pode servir. Ele não quer se desfazer do animal, mas se você levar um bom dinheiro e mostrar para ele, talvez consiga negociar.
– Você não está querendo que eu compre um cavalo que não vou conseguir domar, né? – perguntei.
Os olhos claros ficaram inexpressivos.
– Eu não estou querendo que você compre nada, moço – disse ele. – Você pediu uma informação. Eu dei a informação. Mas não me custa dizer que qualquer um que consiga ficar sentado numa cadeira de balanço consegue montar aquele baio.
– Está bem. Irei até lá amanhã.
Milk River baixou o taco, franzindo a testa.
– Pensando bem, o Peery vai até o acampamento de baixo amanhã. Olha só... se você não tem nada melhor para fazer, vamos até lá agora mesmo.
– Ótimo – respondi e me levantei.
– Estão indo embora, rapazes? – perguntou Milk River aos companheiros.
– Tamo – disse Smith, casualmente. – Precisamos saltar da cama de manhã bem cedo, então é melhor a gente ir. Vou ver se o Slim e o Red estão prontos.
Não estavam. Deu para ouvir a desagradável voz de Vogel através da porta aberta.
– Estou acampado aqui! Peguei esse réptil no pulo, e é só uma questão de tempo até ele precisá se arriscá a tirá as carta de baixo do baralho pra salvá a própria pele. É exatamente isso que eu tô esperando. Na primeira vez que ele se metê a engraçadinho, vô cortá o pomo de Adão dele!
Smith voltou-se para nós.
– Slim e Red vão ficar mais um pouco. Quando cansarem, pegam uma carona.
Milk River, Smith, Dunne, Small e eu saímos do Border Palace.
A três passos da porta, um homem encurvado de bigode branco usando uma camisa sem colarinho de peito engomado lançou-se sobre mim.
– Meu nome é Adderly – apresentou-se, estendendo uma mão na minha direção e apontando a outra para o Empório Adderly. – Tem um minutinho? Queria apresentar você a algumas pessoas.
Os homens do Círculo H.A.R. seguiam lentamente em direção a um carro na rua.
– Vocês podem esperar uns dois minutinhos? – gritei para eles.
Milk River olhou para trás.
– Podemos. Precisamos abastecer e pôr água no calhambeque. Fique tranqüilo.
Adderly me levou até a loja dele, falando enquanto caminhava.
– Alguns dos melhores elementos locais estão na minha casa... praticamente quase todos os melhores elementos. Eles lhe apoiarão se você impuser o temor a Deus a Corkscrew. Estamos cansados dessa eterna desordem.
Atravessamos a loja, então um quintal e entramos em sua casa. Havia mais ou menos uma dúzia de pessoas lá.
O Reverendo Dierks – um homem alto e muito magro de boca tensa e rosto fino e comprido – fez um discurso para mim. Chamou-me de irmão. Falou de como Corkscrew era um local perigoso e disse que ele e os amigos estavam preparados para emitir mandados de prisão a diversos homens que haviam cometido 61 crimes nos últimos dois anos.
Tinha uma lista deles, com nomes, datas e horários, que leu para mim. Todas as pessoas que eu havia conhecido naquele dia – exceto por aqueles ali – apareciam naquela lista pelo menos uma vez junto com vários outros nomes que não reconheci. Os crimes iam de assassinato a bebedeira e uso de linguajar profano.
– Se o senhor me der esta lista, prometo estudá-la – eu disse.
Ele me entregou o papel, mas não ficaria satisfeito com promessas.
– Adiar até mesmo por uma hora punição a perversidade é como ser cúmplice dessa perversidade, irmão. Você esteve naquela casa de pecado comandada por Bardell. Ouviu o dia santo ser profanado com o som de bolas de sinuca. Sentiu o odor vil de bebida ilegal nos hálitos dos homens. Ataque agora, irmão! Não permita que se diga que você perdoou o mal desde o seu primeiro dia em Corkscrew! Entre naqueles infernos e cumpra o seu dever como homem da lei e cristão!
Ele era um pastor. Eu não queria rir dele.
Olhei para os outros. Todos estavam sentados – homens e mulheres – na beirada das cadeiras. Tinham nos rostos as mesmas expressões que se vê num ringue de boxe pouco antes de soar o gongo.
A Srta. Echlin, mulher do cocheiro, uma senhora de rosto e corpo angulosos, encarou-me com seus olhos duros como pedras.
– E aquela mulher vulgar que se autodenomina Señora Gaia... e as três atrevidas que fingem ser suas filhas! O senhor não é lá um grande assistente de xerife se deixá-las naquela casa uma noite mais... a envenenar os homens do condado de Orilla!
Os demais assentiram vigorosamente.
Srta. Janey, professora, de dentadura e rosto azedo, falou a sua parte:
– E ainda pior do que aquelas... aquelas criaturas... é aquela Clio Landes! Pior, porque pelo menos aquelas... aquelas atrevidas – virou o rosto para baixo, corou e olhou de canto para o pastor – aquelas atrevidas pelo menos são o que são abertamente. Enquanto que ela... quem sabe do que ela realmente é capaz?
– Não sei nada sobre ela – começou Adderly, mas sua mulher o calou.
– Eu sei – gritou. Era uma mulher gorda de buço aparente e cujo espartilho formava dobras e pontas no brilhoso vestido negro. – A Srta. Janey tem toda razão.
– Essa Clio Landes está na sua lista? – perguntei, pois não lembrava de ter visto.
– Não, irmão, não está – respondeu contristado o Reverendo Dierks. – Mas apenas porque é mais sutil do que as outras. Corkscrew realmente ficaria melhor sem ela... uma mulher de padrões morais evidentemente baixos, sem qualquer meio aparente de se sustentar, associando-se com nossos piores elementos.
– Fico contente por tê-los conhecido – disse eu ao dobrar a lista e guardá-la no bolso. – E fico contente de saber que vocês irão me apoiar.
Segui em direção à porta, esperando conseguir sair sem muito mais conversa. Sem chances. O Reverendo Dierks me seguiu.
– Você vai atacar agora, irmão? Vai levar a guerra de Deus imediatamente ao inferno do bordel e da jogatina?
– Alegro-me por ter o apoio de vocês – eu disse –, mas não vai haver nenhuma busca generalizada... pelo menos não tão cedo. Esta lista que o senhor me deu... farei o que acredito que deva ser feito depois de examiná-la, mas não vou me preocupar muito com uma porção de pequenas contravenções que aconteceram um ano atrás. Vou começar do zero. Me interessa apenas o que acontecer a partir de agora. Até mais tarde. – Saí.
O carro dos caubóis estava na frente da loja quando saí.
– Estive reunido com os melhores elementos – expliquei enquanto me sentava entre Milk River e Buck Small.
O rosto moreno de Milk River se enrugou ao redor dos olhos:
– Então você sabe o tipo de ralé que somos – disse ele.
Com Dunne na direção, o carro nos levou para fora de Corkscrew pela ponta sul da rua e seguiu para oeste ao longo do fundo arenoso e pedregoso de um arroio seco. A areia era profunda, e havia muitas pedras. Nosso tempo não foi dos melhores. Depois de uma hora e meia de sacolejos e muito calor naquele arroio, saímos e seguimos até um arroio mais largo e mais verde.
Passando a curva ficavam os prédios do Círculo H.A.R. Saímos do automóvel sob um telheiro baixo, onde já havia outro carro. Um homem muito musculoso de ossos fortes contornou um edifício caiado de branco e veio em nossa direção. Tinha o rosto quadrado e moreno. O bigode baixo e os olhos pequenos e profundos eram escuros. Aquele, descobri, era Peery. Ele gerenciava o rancho para o proprietário, que morava na Costa Leste.
– Ele quer um bom cavalo manso – disse Milk River a Peery –, e pensamos que talvez pudesse lhe vender aquele Rollo que você tem. É o cavalo mais manso de que já ouvi falar.
Peery empurrou o sombreiro de copa alta para trás e se balançou nos calcanhares:
– Quanto você estava pensando em pagar pelo cavalo?
– Se me servir – respondi –, estou disposto a pagar o quanto for preciso para comprá-lo.
– Nada mau – disse ele. – Que tal um de vocês passar uma corda naquele baio e trazer ele até aqui pro moço dar uma olhada?
Smith e Dunne foram juntos, fingindo que não estavam ansiosos.
Os dois vaqueiros voltaram quase que imediatamente, cavalgando, com o baio entre eles, já selado e pronto para ser montado. Notei que os dois seguravam as pontas de uma corda presa ao animal. Era um cavalo desconjuntado e amarelado com uma cabeça triste e caída.
– Aqui está ele – disse Peery. – Experimente e vamos falar de dinheiro.
Atirei o cigarro fora e me aproximei do baio. Ele me lançou um olhar triste, mexeu uma orelha e continuou olhando melancolicamente para o chão. Dunne e Smith tiraram as cordas dele, e eu sentei na sela.
Rollo ficou parado embaixo de mim até os outros cavalos saírem do seu lado.
Então me mostrou do que era capaz.
Levantou direto para o alto – e ficou lá por tempo suficiente para se virar antes de descer. Ficou nas patas da frente e depois nas traseiras e saltou de novo.
Não gostei daquilo, mas não me surpreendi. Sabia que eu era um cordeiro sendo levado para o matadouro. Era a terceira vez que aquilo acontecia comigo. Era melhor eu terminar tudo de uma vez. Mais cedo ou mais tarde, um homem da cidade numa região de gado acaba se vendo sentado sobre um osso desagradável. Sou um homem da cidade, mas consigo montar num cavalo se ele cooperar. Só que quando o cavalo não quer ficar embaixo de mim... o cavalo vence.
Rollo ia vencer. Eu não era bobo o bastante para desperdiçar energia lutando contra ele.
Assim, quando ele empinou de novo, eu saltei, cuidando para não me machucar na queda.
Smith havia apanhado o cavalo amarelo e estava segurando a cabeça dele quando tirei os joelhos da testa e me levantei.
Agachado nos calcanhares, Peery franzia o cenho para mim. Milk River olhava para Rollo com espanto.
– O que foi que você fez com o Rollo para que ele agisse assim? – perguntou Peery.
– Talvez ele só estivesse brincando – sugeri. – Vou tentar de novo.
Mais uma vez, Rollo ficou parado e tristonho até eu montar nele. Então teve uma convulsão embaixo de mim – até eu cair em cima do pescoço e do ombro numa touceira.
Quando me levantei esfregando o ombro esquerdo, que tinha batido numa pedra, Smith estava segurando o baio. Todos os cinco homens tinham as expressões sérias e solenes – sérias e solenes demais.
– Talvez ele não goste de você – opinou Buck Small.
– Pode ser – admiti, subindo na sela pela terceira vez.
A essa altura, o demônio cor de lima começava a se orgulhar do que estava fazendo. Deixou-me ficar montado mais tempo do que antes para poder me atirar longe com mais força.
Estava enjoado quando caí no chão diante de Peery e Milk River. Levei um tempo para me levantar e precisei ficar parado por um instante até conseguir sentir o chão sob meus pés.
– Segure-o um pouquinho – comecei.
O corpanzil de Peery ficou diante de mim.
– Já chega – disse ele. – Não quero que acabe morto.
– Saia do caminho – grunhi. – Eu gosto disso. Quero mais.
– Você não monta mais no meu cavalo – grunhiu ele de volta. – Ele não está acostumado a brincadeiras brutas. Você pode machucá-lo caindo de qualquer jeito.
Tentei passar por ele, que barrou minha passagem com um braço enorme. Levei o punho direito em direção ao rosto moreno dele.
Peery recuou, tentando não cair.
Fui até Rollo e montei nele.
A essa altura, já tinha conquistado a confiança do baio. Éramos velhos amigos. Ele não se importou de me mostrar suas armas secretas. Fazia coisas que cavalo algum seria capaz de fazer.
Caí sobre o mesmo arbusto da outra vez e fiquei lá.
Não sabia se conseguiria me levantar de novo se quisesse. Mas eu não queria. Fechei os olhos e descansei. Já que não havia conseguido o que eu desejava, estava disposto a fracassar.
Small, Dunne e Milk River me levaram para dentro e me deitaram numa cama.
– Não acho que esse cavalo vá me servir – eu disse. – Talvez seja melhor procurar por outro.
– Você não pode desistir assim – aconselhou Small.
– É melhor ficar deitado e descansar, parceiro – disse Milk River. – Você corre o risco de desmontar se começar a se mexer.
Aceitei o conselho.
Quando acordei, já era de manhã, e Milk River estava me cutucando.
– Você consegue se levantar para o café-da-manhã ou quer que a gente traga na cama?
Movimentei-me com cuidado até ver que estava inteiro.
– Posso me arrastar até lá.
Ele se sentou numa cama do outro lado do quarto e enrolou um cigarro enquanto eu vestia os sapatos – as únicas coisas além do chapéu sem as quais eu dormi.
Imediatamente, disse:
– Sempre pensei que alguém que não conseguisse montar um cavalo não podia fazer muita coisa. Agora não tenho mais tanta certeza. Você não consegue montar nem nunca vai conseguir. Não parece ter a menor idéia do que fazer depois que senta no animal! Mas, apesar de tudo, um hombre que deixa um animal derrubá-lo três vezes e ainda agride um sujeito que tenta evitar que a coisa piore não é exatamente um frouxo.
Acendeu o cigarro e partiu o fósforo pela metade:
– Tenho um cavalo alazão que pode ser seu por cem dólares. Ele não gosta de lidar com gado, mas é um bom cavalo, e não é bravo.
Abri o cinto de dinheiro e pus cinco notas de vinte no colo dele.
– É melhor dar uma olhada nele primeiro – protestou.
– Você já o viu – bocejei e me levantei. – Onde é o café?
Seis homens estavam comendo no refeitório quando nós entramos. Três deles eram vaqueiros que eu não tinha visto antes. Nem Peery, nem Wheelan nem Vogel estavam lá. Milk River me apresentou para os estranhos como o assistente de xerife e, entre bocadas da comida que o cozinheiro chinês caolho botava na mesa, a refeição foi dedicada quase que exclusivamente a comentários debochados sobre as minhas habilidades de montaria.
Aquilo me agradou. Eu estava dolorido e tenso, mas meus ferimentos não tinham sido em vão. Eu havia conseguido um lugar naquela comunidade do deserto e talvez até um ou dois amigos.
Estávamos seguindo as fumaças dos nossos cigarros em direção à rua quando patas a galope levantaram poeira no arroio seco.
Red Wheelan desceu do cavalo e cambaleou da nuvem de areia.
– Slim está morto! – disse, com a voz pastosa.
Várias vozes lançaram perguntas para ele, que ficou se balançando, tentando respondê-las. Estava bêbado como um gambá!
– Nisbet atirou nele. Fiquei sabendo quando acordei hoje de manhã. Ele foi morto hoje cedo... na frente do Bardell’s. Saí perto da meia-noite ontem e fui até a Gaia. Fiquei sabendo hoje de manhã. Fui atrás do Nisbet, mas... – baixou os olhos, encabulado, para o coldre vazio – o Bardell pegou a minha arma.
Ele cambaleou de novo. Segurei-o até ele se equilibrar.
– Cavalos! – berrou Peery por cima do meu ombro. – Vamos para a cidade!
Soltei Wheelan e me virei.
– Vamos para a cidade – repeti – mas nada de gracinhas quando chegarmos lá. Este é o meu trabalho.
O olhar de Peery cruzou com o meu.
– O Slim era um de nós – disse ele.
– E quem quer que tenha matado Slim agora é meu – respondi.
Foi tudo o que se falou a respeito do assunto, mas não achei que tivesse sido convincente.
Uma hora depois, estávamos saltando dos cavalos em frente ao Border Palace.
Um corpo comprido e magro enrolado num cobertor estava deitado sobre duas mesas unidas. Metade dos moradores de Corkscrew estava lá. Atrás do bar, surgiu o rosto destruído de Chick Orr, duro e atento. Gyp Rainey estava sentado num canto, enrolando um cigarro com os dedos trêmulos que encheram o piso de farelos de tabaco. Ao seu lado, sem prestar atenção a nada, Mark Nisbet estava sentado.
– Por Deus, como estou contente em vê-lo – Bardell disse para mim, o rosto gordo não tão vermelho como no dia anterior. – Essa coisa de homens se matando na frente da minha porta precisa parar, e você é o homem para isso!
Levantei uma ponta do cobertor e olhei para o morto. Havia um buraquinho em sua testa, acima do olho direito.
– Algum médico o viu? – perguntei.
– Sim – respondeu Bardell. – O Doc Haley o viu, mas não pôde fazer nada. Ele já devia estar morto quando caiu.
– Você pode mandar chamar o Haley?
– Acho que sim. – Bardell chamou Gyp Rainey. – Corra até o outro lado da rua e diga ao Doc Haley que o assistente de xerife quer falar com ele.
Gyp passou de mansinho pelo grupo de caubóis reunido na porta e desapareceu.
– O que você sabe sobre o assassinato, Bardell? – comecei.
– Nada – disse ele, enfaticamente, e prosseguiu com o que sabia. – Nisbet e eu estávamos nos fundos do salão, contando a receita do dia. Chick estava arrumando o bar. Não tinha mais ninguém aqui. Acho que foi mais ou menos à uma e meia da manhã de hoje. Ouvimos o tiro... bem aqui na frente, e corremos para fora, é claro. Como o Chick estava mais perto, chegou primeiro. O Slim estava deitado no meio da rua... morto.
– E o que aconteceu depois disso?
– Nada. Nós o trouxemos aqui para dentro. Adderly e Doc Haley, que mora do outro lado da rua, e o Sapo do lado também tinham escutado o tiro e saíram... e isso foi tudo.
Virei-me para Gyp.
– O Bardell já contou tudo – disse ele.
– Você não sabe quem atirou nele?
– Não.
Vi o bigode branco de Adderly na parte da frente do salão e o fiz falar em seguida. Ele não ajudou em nada. Tinha escutado o tiro, saltado da cama, vestido as calças e os sapatos e chegado a tempo de ver Chick ajoelhado ao lado do morto. Não havia visto nada do que Bardell mencionara.
O dr. Haley ainda não havia chegado quando encerrei a conversa com Adderly, e eu não estava pronto para atacar Nisbet. Ninguém mais ali parecia saber de coisa alguma.
– Volto num instante – eu disse, passando pelos caubóis e saindo pela porta da rua.
O Sapo estava fazendo uma necessária limpeza em seu estabelecimento.
– Belo trabalho – elogiei. – Estava precisando.
Ele desceu do balcão no qual estava de pé para alcançar o teto. As paredes e o piso já estavam limpos, pelo menos em comparação com a situação anterior.
– Não acho que tava tão sujo – sorriu, mostrando as gengivas nuas –, mas depois do xerife entrar pra comer e fazer caretas pro meu bar, que outro remédio se não limpar o lugar?
– Você sabe alguma coisa a respeito do assassinato?
– Claro que sei. Estou na cama e ouço um tiro. Salto da cama, agarro a espingarda e corro até a porta. O Slim Vogel está no meio da rua, e o Chick Orr está de joelhos ao lado dele. Enfio a cabeça para fora. O sr. Bardell e o Nisbet estão de pé nas portas deles. O sr. Bardell pergunta: “Como ele está?” O Chick Orr responde: “Está bem morto”. O Nisbet não diz nada, mas se vira e volta pra dentro. Daí saem o médico e o sr. Adderly, e eu também saio, daí depois o médico olha para ele e diz que ele está morto, e a gente leva ele pra dentro da loja do sr. Bardell.
Era tudo o que o Sapo sabia. Voltei para o Border Palace. O dr. Haley – um homenzinho meticuloso – estava lá.
O barulho do tiro o havia acordado, contou, mas ele não tinha visto nada além do que os outros já haviam me dito. A bala era calibre 38. A morte havia sido instantânea. E era tudo.
Sentei-me num canto de uma mesa de sinuca, de frente para Nisbet. Ouvi pés se mexendo no chão atrás de mim e pude sentir a tensão.
– O que você pode me dizer, Nisbet? – perguntei.
– Nada que possa ajudar – disse ele, escolhendo as palavras lenta e cuidadosamente. – Você esteve aqui à tarde e viu Slim, Wheelan, Keefe e eu jogando. Bom, o jogo seguiu do mesmo jeito. Ele ganhou um monte de dinheiro, ou pelo menos parecia achar que era um monte, enquanto ficamos jogando pôquer. Mas Keefe foi embora antes da meia-noite, e Wheelan, pouco depois. Como ninguém mais entrou no jogo, ficamos com pouca gente para seguir no pôquer. Desistimos e começamos a jogar pra ver quem tirava a carta mais alta. Limpei Vogel... peguei até o último centavo. Era mais ou menos uma hora quando ele saiu, perto de meia hora antes de ser morto.
– Você e Vogel se davam bem?
O olhar do jogador se encontrou com o meu e desviou para o chão.
– Você sabe muito bem que não. Você ouviu ele me insultando. Ele continuou com aquilo... talvez tenha ficado mais agressivo mais para o final.
– E você deixou que ele fizesse isso?
– Exatamente. Ganho a vida com as cartas, não com brigas.
– Então não houve qualquer problema em relação ao jogo?
– Eu não disse isso. Houve um problema. Ele fez menção de pegar a arma depois que eu o limpei.
– E você?
– Fui mais rápido do que ele. Peguei a arma... descarreguei... devolvi... disse para ele dar o fora.
– E você não o viu mais até depois de ele ter sido morto?
– Isso mesmo.
Fui até perto dele e estendi a mão.
– Deixe-me ver a sua arma.
Ele pegou rapidamente a arma por baixo de sua roupa – com a coronha para frente – e a pôs na minha mão. Era uma Smith & Wesson 38 com todas as seis balas carregadas.
– Não a perca de vista – eu disse, ao devolvê-la. – Eu posso precisar dela mais tarde.
Um rugido de Peery me fez virar. Levei as mãos até os bolsos dos casacos, onde estavam os brinquedos calibre 32.
A mão direita de Peery estava perto do pescoço de Nisbet, a uma distância muito curta da arma que eu sabia estar sob seu colete. Espalhados atrás de Peery, seus homens estavam prontos para atacar.
– Talvez essa seja a idéia de um assistente de xerife do que deve ser feito – berrou Peery. – Mas não é a minha! Esse rato matou o Slim. O Slim saiu daqui levando muito dinheiro. Esse rato atirou sem nem mesmo lhe dar a chance de tocar na arma e pegou seu dinheiro sujo de volta. Se vocês acham que nós vamos aceitar...
– Talvez alguém tenha alguma prova que eu desconheça – interrompi. – Do modo como as coisas estão se apresentando, eu não tenho o suficiente para condenar Nisbet.
– Danem-se as provas! Fatos são fatos, e você sabe disso...
– O primeiro fato a que você precisa se ater – interrompi novamente – é o de que sou eu quem está comandando esse espetáculo... e do meu jeito. Alguma coisa contra?
– Muita! – Um velho 45 apareceu em seu punho. Armas brotaram nas mãos de todos os homens atrás dele.
Fiquei entre a arma de Peery e Nisbet, envergonhado com os estalinhos que as minhas 32 iriam fazer em comparação com o rugir das armas diante de mim.
– O que eu gostaria – Milk River havia se afastado dos companheiros e estava apoiando os cotovelos no bar, de frente para eles, com uma arma em cada mão e um toque aveludado na voz arrastada – era que qualquer um que quisesse trocar chumbo com o nosso assistente de xerife esperasse a sua vez. Minha idéia é um de cada vez. Não gosto dessa idéia de encurralá-lo.
O rosto de Peery ficou roxo.
– O que eu não gosto – gritou ele para o garoto – é de um filhote covarde que abandona os homens com quem anda!
O rosto de Milk River ficou vermelho, mas sua voz continuava aveludada.
– Senhor manda-chuva, o que o senhor gosta e desgosta são tão parecidos que eu não consigo ver a diferença. E é bom o senhor lembrar que eu não sou um dos seus vaqueiros. Tenho um contrato com o senhor para domar alguns cavalos por dez dólares a cabeça. Fora isso, o senhor e os seus são estranhos pra mim.
A emoção tinha acabado. A essa altura da conversa, a ação havia morrido.
– O seu contrato expirou há mais ou menos um minuto e meio – dizia Peery a Milk River. – Você pode aparecer no Círculo H.A.R só mais uma vez – quando for buscar o que quer que tenha deixado para trás. Você está acabado!
Empurrou o rosto quadrado na minha direção.
– E você não pense que o caso está encerrado!
Girou nos calcanhares e seguiu para os cavalos.
Uma hora depois, Milk River e eu estávamos sentados no meu quarto na Cañon House conversando. Mandei avisar à sede do condado que o legista tinha uma tarefa ali e encontrei um lugar para guardar o corpo de Vogel até a sua chegada.
– Você pode me dizer quem espalhou a notícia de que eu era um assistente de xerife? – perguntei a Milk River. – Isso era para ser segredo.
– Era? Ninguém teria adivinhado. Durante dois dias, tudo o que o nosso sr. Turney fez foi correr de um lado pro outro dizendo a todo mundo o que ia acontecer quando chegasse o novo assistente.
– Quem é esse Turney?
– É o capataz da terra da Companhia de Colonização de Orilla.
Então tinha sido o gerente local do meu cliente quem havia me delatado!
– Você tem alguma coisa especial para fazer nos próximos dias? – perguntei.
– Nada de mais.
– Tenho uma vaga para alguém que conheça as redondezas e possa me guiar por aqui.
– Eu teria que saber qual é o jogo antes de aceitar – disse ele, lentamente. – Você não é um assistente de xerife comum, e não é daqui. Não é da minha conta, mas eu não quero entrar num jogo às cegas.
Era bastante sensato.
– Vou abrir o jogo para você – ofereci. – Sou detetive particular, da filial de São Francisco da Agência de Detetives Continental. Os acionistas da Companhia de Colonização de Orilla me mandaram para cá. Eles gastaram muito dinheiro irrigando e desenvolvendo suas terras, e agora estão prontos para vendê-las.
“Segundo eles, a combinação de calor e água a tornam uma fazenda ideal, tão boa como o Imperial Valley. No entanto, não está havendo uma grande procura pelas terras. Os acionistas imaginam, então, que o problema é que os moradores nativos dessa parte do estado são tão difíceis que os fazendeiros pacíficos não querem ficar entre vocês.
“Não é segredo para ninguém que as duas fronteiras dos Estados Unidos estão salpicadas de locais tão sem lei hoje como eram antigamente. Há muito dinheiro envolvido na passagem de imigrantes pela fronteira, e é fácil demais, o que atrai muitos homens que não se importam com a origem do dinheiro que ganham. Com apenas 450 inspetores de imigração divididos entre as duas fronteiras, o governo não tem conseguido fazer muita coisa. A estimativa oficial é de que cerca de 135 mil estrangeiros entraram no país no ano passado pelas portas de trás.
“Como esta parte do Condado de Orilla não tem estrada de ferro nem telefone, deve ser uma das principais rotas de contrabando e, portanto, segundo esses homens que me contrataram, cheia de diferentes tipos de marginais. Em outro trabalho há uns dois meses, eu me deparei com um esquema de contrabando e o desmantelei. O pessoal da Companhia de Colonização de Orilla achou que eu poderia fazer a mesma coisa para eles aqui. Então, aqui estou eu para tornar esta parte do Arizona adequada a damas.
“Parei na sede do condado e prestei juramento como assistente de xerife, para o caso de a posição oficial me ser útil. O xerife disse que não tinha assistente por aqui nem dinheiro para contratar um, de modo que me aceitou de bom grado. Mas decidimos que deveria ser segredo.”
– Acho que você vai se divertir muito – Milk River sorriu. – Então vou aceitar essa oferta de emprego. Mas eu não vou ser um assistente de xerife. Vou trabalhar com você, mas não quero me amarrar, para não precisar fazer cumprir leis que eu não gosto.
– Combinado. Agora, o que mais você pode me dizer que eu tenha que saber?
– Bom, você não precisa se preocupar nem um pouco com o Círculo H.A.R. Eles são bem durões, mas não fazem nada de mais.
– Tudo bem quanto a isso – concordei –, mas o meu trabalho é acabar com os criadores de caso, e pelo que vi, eles se encaixam nessa descrição.
– Você vai se divertir muito – repetiu Milk River. – É claro que eles são encrenqueiros! Mas como Peery conseguiria criar gado por aqui sem montar uma equipe à altura dos pistoleiros dos quais o pessoal da sua Companhia de Colonização de Orilla não gosta? E você sabe como são os vaqueiros. Quando estão numa vizinhança difícil, são capazes de tudo para provar que são tão violentos como qualquer outro.
– Não tenho nada contra eles... se eles se comportarem. E o que você sabe sobre esse pessoal da fronteira?
– Acho que Bardell é o seu maior alvo. Depois dele... Big Nácio. Você não o conheceu ainda? É um mexicano grandalhão de bigode preto que comprou um rancho no cañon, a sete ou oito quilômetros deste lado da fronteira. Tudo o que atravessa a fronteira passa por esse rancho. Mas você vai ter que quebrar a cabeça para provar isso..
– Ele e Bardell trabalham juntos?
– Arrã... acho que ele trabalha para o Bardell. Outra coisa que você precisa incluir na sua lista é que esses sujeitos estrangeiros que compram a travessia pela fronteira nem sempre, nem na maioria das vezes, acabam onde gostariam de ir. Hoje em dia não é nada incomum encontrar ossos no deserto ao lado do que foi um túmulo antes de ser aberto pelos coiotes. E os abutres estão engordando! Se o imigrante está levando alguma coisa que valha a pena pegar, se homens do governo calham de estar nas redondezas ou se acontece alguma coisa que deixa os contrabandistas nervosos, eles costumam liquidar o cliente e o enterram ali mesmo.
Nesse instante, o barulho da sineta do jantar no andar de baixo interrompeu a nossa conversa.
Havia apenas oito ou dez pessoas no salão. Nenhum dos homens de Peery estava lá. Milk River e eu nos sentamos a uma mesa de canto. Estávamos no meio da refeição quando a garota de olhos escuros que eu havia visto no dia anterior entrou.
Ela veio diretamente para a nossa mesa. Levantei-me e fiquei sabendo que seu nome era Clio Landes. Era a garota que os melhores elementos queriam ver expulsa da cidade. Deu-me um sorriso brilhante, estendeu a mão magra e forte e se sentou.
– Fiquei sabendo que você perdeu o emprego de novo, seu vagabundo – disse, rindo, para Milk River.
Percebi que não era do Arizona. Seu sotaque era de Nova York.
– Se foi tudo o que ficou sabendo, ainda estou muito à sua frente – disse Milk River, sorrindo em resposta. – Consegui outro emprego... para cavalgar em nome da lei e da ordem.
À distância, ouviu-se o som de um tiro.
Continuei comendo.
Clio Landes disse:
– Policiais não costumam prestar atenção em coisas assim?
– A primeira regra – disse eu – é não deixar nada interferir nas refeições, se for possível.
Um homem de macacão entrou pela porta da rua.
– Nisbet foi morto no Bardell! – gritou.
Milk River e eu fomos para o Border Palace de Bardell, com metade dos outros fregueses correndo à nossa frente, junto com metade da cidade.
Encontramos Nisbet no salão dos fundos, esticado no chão, morto. Tinha no peito, que os homens ao redor haviam desnudado, um buraco provavelmente feito por uma 45.
Os dedos de Bardell agarraram o meu braço.
– Aqueles animais não lhe deram uma chance! – gritou. – Foi assassinato a sangue frio!
– Quem o matou?
– Um dos sujeitos do Círculo H.A.R., pode apostar a vida nisso!
– Ninguém viu nada?
– Ninguém aqui admite ter visto.
– Como tudo aconteceu?
– O Mark estava lá na frente. Eu, o Chick e cinco ou seis homens estávamos lá. Mark veio até aqui. Assim que atravessou a porta... bum!
Bardell sacudiu o punho em direção à janela aberta.
Fui até a janela e olhei para fora. Uma faixa de um metro e meio de terreno pedregoso separava o edifício da escarpa do Cañon Tirabuzón. Havia uma corda trançada amarrada em torno de uma pequena saliência de pedra na beirada do cañon. A corda – com uma das pontas amarradas à saliência – descia seis metros direto pela parede de pedra e desaparecia entre as árvores e os arbustos de uma plataforma estreita que percorria a parede naquele ponto. Chegando àquela plataforma, um homem encontraria uma ampla cobertura para proteger sua fuga.
– O que você acha? – perguntei a Milk River, que estava ao meu lado.
– Uma fuga fácil.
Levantei-me, puxando a corda, que entreguei a Milk River.
– Isso não me diz nada. Pode ser de qualquer um – disse ele.
– O chão lhe diz alguma coisa?
Sacudiu a cabeça de novo.
– Desça até o cañon e veja o que você consegue descobrir – disse eu. – Vou até o Círculo H.A.R. Se não encontrar nada, siga para lá.
Voltei para dentro e fiz mais perguntas. Dos sete homens que estavam no estabelecimento de Bardell na hora do tiro, três me pareceram bastante confiáveis. O depoimento desses três batia com o de Bardell em todos os detalhes.
– Você não disse que iria sair para ver o Peery? – perguntou Bardell.
– Disse.
– Chick, pegue os cavalos! Eu e você vamos até lá com o assistente de xerife, assim como todos os outros homens que quiserem ir. Ele vai precisar de armas para se defender!
– De jeito nenhum! – interrompi Chick. – Eu vou sozinho. Essa coisa de milícia não é comigo.
Bardell fez cara feia, mas concordou com um aceno de cabeça.
– Você está no comando – disse. – Eu gostaria de ir até lá também, mas se você quer fazer diferente, deve estar certo.
Na cocheira em que havíamos deixado os cavalos, encontrei Milk River encilhando-os, e cavalgamos para fora da cidade juntos.
Pouco menos de um quilômetro depois, nós nos separamos. Ele virou à esquerda, seguindo por uma trilha que levava até o cañon, falando por cima do ombro:
– Se chegar lá antes do que pensa, talvez você possa me encontrar seguindo pela ravina onde fica a casa do rancho até chegar no cañon.
Virei no arroio que seguia em direção ao Círculo H.A.R., com o cavalo alto e de pernas longas que Milk River havia me vendido cavalgando com facilidade e rapidez. Estava muito perto ainda do meio-dia para a cavalhada ser agradável. Ondas de calor ferviam do fundo do arroio, o sol queimava meus olhos e a poeira trancava a minha garganta.
Ao atravessar esse arroio até o maior, ocupado pelo Círculo H.A.R., encontrei Peery esperando por mim.
Ele não disse nada, não mexeu um dedo. Ficou apenas montado em seu cavalo, observando a minha aproximação. Tinha duas 45 no coldre nas pernas.
Cheguei ao seu lado e mostrei a corda que havia tirado dos fundos do Border Palace. Ao estendê-la, percebi que sua sela estava sem corda.
– Sabe alguma coisa sobre isso? – perguntei.
Olhou para a corda.
– Parece uma daquelas coisas que os hombres usam para arrastar rezes.
– Não dá para enganar você, não é? – resmunguei. – Já viu esta aqui especificamente?
Levou um minuto ou mais para pensar numa resposta.
– Já – disse, afinal. – Na verdade, perdi esta mesma corda no caminho daqui até a cidade hoje de manhã.
– Sabe onde eu a encontrei?
– Não faz a menor diferença. – Estendeu a mão. – O importante é que você a encontrou.
– Talvez faça diferença – eu disse, tirando a corda do alcance dele. – Eu a encontrei amarrada na parede do cañon atrás do Bardell, por onde você poderia ter descido depois de ter atirado em Nisbet.
Levou as mãos às armas. Virei-me de modo a deixar que ele visse a silhueta de uma das automáticas que eu levava nos bolsos.
– Não faça nada do que possa se arrepender – aconselhei.
– Quer que eu ma-ate esse cara agora? – ouvi o carregado sotaque irlandês de Dunne atrás de mim – Ou va-amos esperar um pouco?
Virei-me e o vi de pé atrás de uma pedra com uma espingarda .30-.30 apontado para mim. Acima de outras rochas, surgiram outras cabeças e outras armas.
Tirei a mão do bolso e a pus sobre o arção da sela.
Peery falou com os outros:
– Ele me disse que atiraram no Nisbet.
– Mas que peninha! – lamentou Buck Small. – Espero que ele não tenha se machucado.
– Ele está morto – informei.
– Quem será que fez isso? – quis saber Dunne.
– Não foi o Papai Noel – opinei.
– Tem mais alguma coisa a dizer? – perguntou Peery.
– Isso não chega?
– Chega. Agora, se eu fosse você, eu voltaria para Corkscrew.
– Você está querendo dizer que não quer voltar comigo?
– Isso mesmo. Se você quiser tentar me levar, então...
Eu não queria tentar, e disse isso.
– Então não tem nada prendendo você aqui – disse ele, apontando para longe.
Sorri para ele e seus amigos, puxei o alazão e comecei a percorrer o caminho de volta.
Alguns quilômetros depois, virei novamente para o sul, encontrei a ponta mais baixa do arroio do Círculo H.A.R. e o segui até o Cañon Tirabuzón. Então comecei a subir em direção ao ponto em que a corda havia sido pendurada.
O cañon fazia jus ao nome. Era uma vala com muito vento, áspera e pedregosa, cheia de árvores e arbustos rasgando o Arizona.
Não havia ido muito longe quando me encontrei com Milk River, que guiava o cavalo na minha direção. Sacudiu a cabeça:
– Absolutamente nada! Eu sou bom rastreador, mas a região aqui é muito pedregosa.
Saltei do cavalo. Então nos sentamos embaixo de uma árvore e fumamos um pouco.
– Como você se saiu? – ele quis saber.
– Mais ou menos. A corda é do Peery, mas ele não quis vir comigo. Acho que podemos encontrá-lo quando for preciso, por isso não quis insistir. Teria sido meio desconfortável.
Olhou para mim com o canto dos olhos claros e disse lentamente:
– Alguém poderia pensar que você está jogando o Círculo H.A.R. contra a equipe do Bardell, encorajando um lado a acabar com o outro, poupando você do trabalho de tomar uma atitude mais forte.
– Talvez você tenha razão. Você acha que seria uma burrice?
– Não sei. Acho que não. Se você está mesmo fazendo isso e se tem certeza de que é forte o bastante para assumir o controle quando precisar.
A noite estava caindo quando Milk River e eu entramos na rua tortuosa de Corkscrew. Como estava tarde demais para irmos jantar na Cañon House, apeamos em frente à espelunca do Sapo.
Chick Orr estava em pé na porta do Border Palace. Virou sua cara amassada para dizer alguma coisa por cima do ombro. Bardell apareceu ao seu lado, olhou para mim com uma pergunta no olhar, e os dois saíram para a rua.
– Algum resultado? – perguntou Bardell.
– Nenhum visível.
– Você não fizeram a prisão? – perguntou Chick Orr, incrédulo.
– Isso mesmo. Convidei um homem para voltar comigo, mas ele disse que não.
O ex-pugilista me olhou de cima a baixo e cuspiu no chão aos meus pés.
– Não é que você é mesmo uma gracinha? – ele resmungou. – Estou morrendo de vontade de acabar com você!
– Vá em frente – convidei. – Não me custa machucar o punho em você.
Seus olhinhos se iluminaram. Dando um passo para frente, veio de mão aberta em direção ao meu rosto. Desviei do caminho e me virei de costas, tirando o casaco e o coldre de ombro.
– Segure isso aqui, Milk River, enquanto eu arrebento a cara desse porco.
Toda Corkscrew veio correndo enquanto Chick e eu nos encarávamos. Éramos muito parecidos em tamanho e idade, mas eu achava que sua gordura fosse mais mole do que a minha. Ele tinha sido profissional. Eu havia brigado um pouco, mas não restavam dúvidas de que ele levava vantagem em esperteza. Em compensação, suas mãos eram tortas e machucadas, enquanto que as minhas, não. E ele era – ou tinha sido – acostumado com luvas, enquanto que punhos nus estavam mais de acordo com o meu estilo.
Ele se agachou, esperando que eu atacasse. Foi o que fiz, tentando fazer fita, atacando com um golpe de direita.
Nada bom! Ele deu um passo para fora em vez de entrar. O golpe de esquerda que eu desferi contra ele passou longe. Ele me atingiu com um soco na maçã do rosto.
Parei de tentar ser mais esperto, joguei as duas mãos contra o corpo dele e fiquei satisfeito quando a carne se dobrou suavemente ao redor. Ele se afastou mais rapidamente do que eu fui capaz de seguir e me fez balançar com um soco no maxilar.
Bateu com a esquerda mais um pouco – no olho, no nariz. A direita dele roçou em minha testa, e eu voltei à carga.
Esquerda, direita, esquerda, enfiei o punho no meio do corpo. Ele bateu no meu rosto com o antebraço e o punho e recuou.
Ele me deu mais alguns de esquerda, cortando meu lábio, abrindo o nariz, fazendo meu rosto arder da testa ao queixo. E quando eu finalmente consegui me livrar daquela mão esquerda, levei um golpe de queixo de direita que pareceu vir do tornozelo dele para estalar o meu maxilar com um choque que me atirou uns doze passos para trás.
Seguindo em meu encalço, ele me acertou por tudo. O ar da noite estava cheio de socos. Empurrei os pés contra o chão e parei o furacão com dois murros logo acima de onde sua camisa se encontrava com as calças.
Ele me acertou novamente com a direita, mas não com tanta força. Ri da cara dele, lembrando que alguma coisa havia estalado em sua mão quando ele me acertou aquele golpe de queixo e voltei a bater nele, atingindo-o com as duas mãos.
Ele se livrou de novo – partindo para um contragolpe com a esquerda. Eu abafei o braço esquerdo dele com o meu direito, continuei segurando e bati com o braço esquerdo, mantendo-o abaixado. A direita dele me atingiu. Deixei. Aquela mão estava morta.
Ele me acertou mais uma vez antes de a briga terminar – com um direto de esquerda pelo alto que veio soltando fumaça no caminho. Consegui ficar de pé, e o resto não foi tão mau. Ele ainda me bateu muito mais, mas sua energia tinha acabado.
Ele caiu depois de um tempo, vítima de um acúmulo de socos em vez de algum em especial, e não conseguiu se levantar.
Seu rosto não tinha uma marca pela qual eu fosse responsável. O meu parecia ter passado por um moedor de carne.
– Talvez eu deva me lavar antes de a gente comer – disse a Milk River ao pegar o casaco e a arma.
– Pelo amor de Deus! – concordou, olhando para o meu rosto.
Um gorducho vestindo um terno Palm Beach se pôs diante de mim, chamando a minha atenção.
– Sou o sr. Turney, da Companhia de Colonização de Orilla – apresentou-se. – É verdade que o senhor não fez uma única prisão desde que chegou aqui?
Esse era o sujeito que havia me anunciado! Eu não gostei disso e não gostei da cara redonda e agressiva dele.
– É – confessei.
– Houve dois assassinatos em dois dias – prosseguiu –, a respeito dos quais você não fez nada, embora nos dois casos as provas pareçam claras o bastante. Você considera isso satisfatório?
Não respondi.
– Deixe-me dizer que não é nem um pouco satisfatório – disse ele, respondendo à própria pergunta. – Também não é satisfatório que você tenha empregado este homem – prosseguiu, apontando um dedo gorducho na direção de Milk River – que é notoriamente um dos homens mais fora-da-lei do condado. Quero que você entenda claramente que, a menos que haja uma distinta melhoria no seu trabalho, a menos que você demonstre alguma disposição para fazer as coisas a que estávamos nos dedicando, essa dedicação terminará!
– Quem você disse que era? – perguntei, quando ele parou de falar.
– Sou o sr. Turney, o superintendente geral da Companhia de Colonização de Orilla.
– E? Bem, sr. Superintendente Geral Turney, os seus proprietários se esqueceram de me falar do senhor quando me contrataram. De modo que eu não faço idéia de quem o senhor seja. Quando tiver alguma coisa a me dizer, diga aos seus proprietários. Se for importante o suficiente, talvez eles repassem para mim.
Ele se empertigou:
– Certamente os informarei de que você tem sido extremamente omisso no cumprimento dos seus deveres, por mais experiente que possa ser em brigas de rua!
– Acrescente um PS – gritei em sua direção enquanto ele se afastava. – Diga-lhes que estou meio ocupado no momento e que não posso usar conselho algum, de quem quer que seja.
Milk River e eu seguimos para a Cañon House.
Vickers, o proprietário pálido e rechonchudo, estava na porta.
– Se você pensa que eu tenho toalhas suficientes para limpar o sangue de cada hombre que leva uma surra, está muito enganado – resmungou ele para mim. – E também não quero lençóis transformados em curativo!
– Nunca vi um sujeito tão desagradável como você – insistiu Milk River enquanto subíamos as escadas. – Parece que não consegue se dar bem com ninguém. Você nunca faz amizades?
– Só com chatos!
Fiz o que pude com água e fita adesiva para recompor meu rosto, mas o resultado ficou muito longe da beleza. Milk River estava sentado na cama, sorrindo e me observando.
Depois que terminei de me remendar, descemos até o Sapo para comer. Havia três fregueses no balcão. Fui obrigado a trocar comentários sobre a briga enquanto comia.
Fomos interrompidos por cavalos correndo na rua. Mais de uma dúzia de homens passaram pela porta, e pudemos ouvi-los sofreando bruscamente, saltando diante do Bardell.
Milk River inclinou-se para o lado até ficar com a boca perto do meu ouvido.
– É a equipe do cañon de Big Nácio. É melhor segurar firme, chefe, ou eles vão arrancar a cidade de debaixo dos seus pés.
Terminamos a refeição e saímos para a rua.
Sob a luz do grande poste acima da porta do Bardell, um mexicano descansava encostado na parede. Era um homem grande, de barba preta, com as roupas enfeitadas com botões prateados e duas armas de cabo branco embainhadas na altura das coxas.
– Você pode levar os cavalos até o estábulo? – pedi a Milk River. – Vou deitar um pouco para me recuperar.
Ele me olhou com curiosidade e seguiu até onde havíamos deixado os cavalos.
Parei diante do mexicano barbudo e apontei para suas armas com o cigarro.
– Você precisa tirar essas coisas quando vem para a cidade – disse eu, num tom simpático. – Na verdade, você não deve sequer trazê-las, mas eu não sou curioso o bastante para olhar sob o casaco de um homem.
A barba e o bigode se separaram para exibir uma curva sorridente de dentes amarelos.
– Talvez se o señor jerife não gosta dessas coisas, ele queira tirar elas de mim?
– Não. Você as tira.
– Eu gosto delas aqui. Uso elas aqui.
– Faça o que eu estou dizendo – disse eu, ainda num tom simpático, e deixei-o, voltando para a espelunca do Sapo.
Debruçando-me sobre o balcão, peguei a espingarda serrada do lugar.
– Posso pegar isso aqui emprestado? Quero transformar um sujeito num crente.
– Sim, senhor, claro! Sinta-se à vontade!
Engatilhei os dois canos antes de sair para a rua.
O mexicano grandalhão não estava por perto. Encontrei-o lá dentro, contando aos amigos o que havia acontecido. Alguns de seus amigos eram mexicanos, alguns, americanos, outros, sabe Deus. Todos estavam armados.
O mexicano grandalhão se virou quando seus amigos me olharam embasbacados. Desceu as mãos em direção às armas ao se virar, mas não as sacou.
– Não sei o que há neste canhão – disse eu, sinceramente, apontando a arma para eles. – Talvez pedaços de arame farpado e raspas de dinamite. Vamos descobrir, se vocês não começarem a empilhar as armas sobre o bar imediatamente... porque eu juro que vou apagar vocês com ela!
Todos empilharam as armas sobre o bar. Não podia culpá-los. Aquela coisa nas minhas mãos os teria machucado muito!
– A partir de agora, quando vierem a Corkscrew, escondam suas armas.
O gordo Bardell abriu caminho entre eles, voltando a exibir um ar alegre.
– Você pode esconder essas armas até os seus clientes se prepararem para deixar a cidade? – pedi a ele.
– Sim! Sim! Com prazer! – exclamou, depois de superar a surpresa.
Devolvi a espingarda ao proprietário e subi até a Cañon House.
Uma porta a um ou dois quartos de distância do meu abriu enquanto eu percorria o corredor. Chick Orr saiu, dizendo “Não faça nada que eu não faria”, por cima do ombro.
Vi Clio Landes de pé do outro lado da porta.
Chick afastou-se da porta, então me viu e parou, fazendo cara feia.
– Você não luta porcaria nenhuma! – disse ele. – Tudo o que sabe fazer é bater!
– É isso mesmo.
Esfregou uma mão inchada na barriga.
– Nunca aprendi a levar aqui embaixo. Foi por isso que não me dei bem no profissional. Mas não compre mais brigas comigo... eu posso machucar você!
Cutucou-me nas costelas com o polegar e passou por mim, descendo a escada.
A porta da garota estava fechada quando passei por ela. No quarto, desencavei papel e caneta. Tinha escrito três palavras do meu relatório quando alguém bateu na minha porta.
– Entre – eu disse, já que havia deixado a porta destrancada para Milk River.
Clio Landes empurrou a porta.
– Está ocupado?
– Não. Entre e sinta-se à vontade. O Milk River vai chegar em poucos minutos.
– Você não está enganando o Milk River, está? – ela perguntou, sem rodeios.
– Não. Não tenho nada contra ele. Está tudo certo com ele até onde eu sei. Por quê?
– Por nada. Eu só achei que talvez você estivesse tentando armar contra ele. Você não me engana. Esses caipiras pensam que você é um fracasso, mas eu sei que não é.
– Obrigado por essas poucas palavras gentis. Mas não saia espalhando a minha sabedoria por aí. Eu já tive publicidade suficiente. O que você está fazendo aqui no meio da roça?
– Tuberculose! – disse ela, batendo no peito. – Um picareta disse que eu duraria mais tempo aqui. Eu acreditei nisso feito uma boba. Viver aqui não é muito diferente de morrer na cidade grande.
– Há quanto tempo você está longe do barulho? – perguntei.
– Há três anos... uns dois no Colorado, depois neste buraco aqui. Parece que faz três séculos.
– Eu estive trabalhando lá em abril por duas ou três semanas – disse eu, estimulando-a a continuar.
– Esteve, é?
Foi como se eu tivesse dito que estive no céu. Ela começou a me fazer perguntas: tal coisa ainda estava assim e assado? Aquilo outro continuava igual?
Conversamos por um tempo, e descobri que eu conhecia alguns de seus amigos. Dois deles eram vigaristas de alta classe. Um era um magnata do contrabando de bebidas, e o resto, uma mistura de agentes de apostas, trambiqueiros e coisas do gênero.
Não consegui descobrir qual era o golpe dela. Ela falava uma mistura de gírias de ladrões e inglês de ensino secundário, e não revelava muito sobre si mesma.
Estávamos nos dando bem quando Milk River chegou.
– Os meus amigos ainda estão na cidade? – perguntei.
– Estão. Eu os ouvi conversando no Bardell. Parece que você ficou ainda mais impopular.
– O que houve agora?
– Os seus amigos entre os melhores elementos não estão gostando muito da sua brincadeira de dar as armas de Big Nácio e dos seus hombres para o Bardell cuidar. A opinião geral é de que você tirou as armas das mãos direitas deles e devolveu nas mãos esquerdas.
– Só as tirei para mostrar que podia fazer isso – expliquei. – Eu não queria as armas. Eles teriam conseguido outras de qualquer maneira. Acho que vou descer e aparecer um pouco para eles. Não vou demorar muito.
O Border Palace estava barulhento e movimentado. Nenhum dos amigos de Big Nácio prestou atenção em mim. Bardell atravessou o salão para me dizer:
– Que bom que você fez os rapazes recuarem. Isso me poupou muitos problemas.
Assenti com a cabeça e saí. Dei a volta ao redor da cocheira, onde encontrei o vigia noturno abraçado a um fogãozinho de ferro no escritório.
– Tem alguém que possa ir até Filmer com uma mensagem agora à noite?
– Talvez eu consiga alguém – respondeu ele, sem entusiasmo.
– Dê-lhe um bom cavalo e mande-o até o hotel assim que possível – solicitei.
Sentei-me na beirada da varanda da Cañon House até que um rapaz de pernas compridas e mais ou menos dezoito anos chegou montado num cavalo malhado, perguntando pelo assistente de xerife. Saí da sombra sob a qual estava sentado e fui até a rua, onde podia conversar a sós com o garoto.
– O velho disse que você queria mandá uma coisa pra Filmer.
– Você pode sair daqui em direção a Filmer e depois atravessar até o Círculo H.A.R.?
– É, claro, posso sim.
– Então, eu quero que você faça o seguinte. Quando chegar, diga a Peery que Big Nácio e os homens dele estão na cidade e que eles podem estar a caminho de lá antes do amanhecer.
– Vô fazê isso, claro.
– Isto é para você. A conta do estábulo, pago depois – disse eu, pousando uma nota na mão dele. – Tome seu rumo, e não deixe a informação chegar a mais ninguém.
De volta ao quarto, encontrei Milk River e a garota sentados ao redor de uma garrafa de bebida. Conversamos e fumamos um pouco, e então o grupo se separou. Milk River disse que estava no quarto ao lado do meu.
A batida dos nós dos dedos de Milk River na porta me tiraram da cama para sentir o frio das cinco e pouco da manhã.
– Isso aqui não é uma fazenda! – resmunguei, deixando-o entrar. – Agora você está na cidade. A gente dorme até o sol nascer.
– O olho da lei nunca deve dormir – disse ele, sorrindo para mim, batendo os dentes, já que não estava vestindo muito mais do que eu. – O Fisher, que tem um rancho para aqueles lados, mandou um mensageiro dizer que tem uma batalha acontecendo no Círculo H.A.R. Ele bateu na minha porta, em vez de na sua. Vamos até lá, chefe?
– Vamos. Consiga algumas espingardas, pegue água e os cavalos. Vou até o bar do Sapo pedir o café da manhã e um almoço para levarmos.
Quarenta minutos mais tarde, Milk River e eu estávamos fora de Corkscrew.
A manhã foi ficando mais quente conforme cavalgávamos, com o sol formando compridos desenhos cor de violeta no deserto, erguendo o orvalho numa névoa suave. As algarobas soltavam um leve perfume, e até mesmo a areia – que mais tarde estaria agradável como um fogão empoeirado – exalava um cheiro fresco e prazeroso.
Conforme nos aproximamos das construções do rancho, três pontos azuis com abutres sobrevoando e um animal em movimento surgiram no horizonte por um momento numa elevação distante.
– Um cavalo que deveria ter um cavaleiro, mas não tem – disse Milk River.
Mais adiante, passamos por um sombreiro mexicano furado de balas, e então o sol cintilou num punhado de cartuchos de metal vazios.
Um dos edifícios do rancho estava transformado numa pilha negra carbonizada. Ali perto, outro dos homens que eu havia desarmado no Bardell estava deitado de costas, morto.
Uma cabeça envolta em ataduras surgiu no canto de um edifício, e em seguida seu proprietário apareceu, com o braço direito numa tipóia e um revólver na mão esquerda. Atrás dele, corria o cozinheiro chinês caolho, balançando um cutelo.
Milk River reconheceu o homem com o curativo na cabeça.
– O que conta, Red? Andou brigando?
– Um pouco. Tiramos toda a vantagem possível do aviso que você mandou, e quando Big Nácio e seu bando apareceram pouco antes do amanhecer, tocaiamos todos eles no campo. Como levei dois tiros, fiquei em casa enquanto o resto dos rapazes seguiu para o sul. Se você ouvir com atenção, pode escutar um tiro vez em quando.
– Vamos segui-los ou iremos na frente? – perguntou Milk River.
– Nós conseguimos ir na frente?
– Talvez. Se Big Nácio estiver correndo, vai chegar no rancho dele ao anoitecer. Se descermos pelo cañon, talvez consigamos chegar antes. Ele não vai conseguir muita velocidade tendo que se livrar de Peery e dos rapazes no caminho.
– Vamos tentar fazer isso.
Com Milk River à frente, passamos pelas construções do rancho e seguimos pelo arroio, entrando no cañon no ponto em que eu havia entrado no dia anterior. Um pouco depois, o passo melhorou, e conseguimos acelerar o passo e melhorar o nosso tempo.
Ao meio-dia, paramos para deixar os cavalos descansar, comer uns sanduíches e fumar um pouco. Depois seguimos em frente.
Em seguida, o sol começou a se arrastar à nossa direita, e as sombras cresceram no cañon. Elas já haviam atingido a parede leste quando Milk River parou à frente.
– É depois dessa próxima curva.
Descemos dos cavalos, bebemos um pouco de água, assopramos a areia das nossas espingardas e seguimos a pé na direção de uma moita de arbustos que cobria a próxima curva do cañon.
Depois da curva, o chão do cañon seguia ladeira abaixo até uma bacia redonda. As laterais da bacia desciam suavemente até o chão do deserto. No meio havia quatro construções de tijolos crus. Apesar da exposição ao sol do deserto, elas pareciam de algum modo úmidas e escuras. De uma delas saía uma fina coluna de fumaça. Não se via homem ou animal por perto.
– Vou dar uma olhada lá embaixo – disse Milk River, passando-me o chapéu e a espingarda.
– Certo – concordei. – Eu lhe dou cobertura. Mas se alguma coisa acontecer, é melhor você sair do caminho. Não sou o atirador de espingarda mais confiável do mundo!
Na primeira parte do trajeto, Milk River teve bastante cobertura. Seguiu adiante rapidamente. Quando a vegetação que escondia os edifícios diminuiu, seu ritmo ficou mais lento. Deitado no chão, ele rastejava de moita a pedra, de monte de terra a arbusto.
A dez metros da construção mais próxima, ficou sem lugares para se esconder. Então deu um salto e correu para se abrigar ao lado da construção.
Nada aconteceu. Milk River ficou encostado na parede agachado por longos minutos e daí começou a percorrer o caminho até os fundos.
Quando ele deu a volta num canto, um mexicano surgiu.
Não consegui enxergar sua expressão, mas vi seu corpo retesar. Levou a mão à cintura.
A arma de Milk River entrou em ação.
O mexicano caiu. O aço brilhante de sua faca cintilou por cima da cabeça de Milk River e fez barulho ao pousar sobre uma pedra.
Milk River fugiu do alcance da minha vista e foi para o outro lado do edifício. Quando o vi novamente, ele estava correndo para a entrada escura do segundo edifício.
Raios de fogo saíram pela porta ao seu encontro.
Fiz o que pude com as duas espingardas – erguendo uma barragem à frente dele –, despejando chumbo na porta aberta o mais rápido que consegui. Esvaziei a segunda espingarda exatamente quando ele chegou perto demais da porta para que eu arriscasse mais um disparo.
Larguei a espingarda e fui até o meu cavalo, correndo para ajudar o meu assistente maluco.
Ele não precisava de socorro. Tudo havia terminado quando cheguei.
Ele estava tirando outro mexicano e Gyp Rainey do prédio sob a mira dos revólveres.
– Eis o resultado da colheita – saudou-me. – Pelo menos não encontrei mais nenhum.
– O que você estão fazendo aqui? – perguntei a Rainey.
Mas o viciado seguiu olhando taciturno para o chão e não respondeu.
– Vamos amarrá-los e dar uma olhada por aí – decidi.
Milk River fez a maior parte dos nós, já que tinha mais experiência com cordas. Ele os amarrou de costas um para o outro, e fomos explorar os arredores.
Exceto por muitas armas de todos os tamanhos e mais munição do que o suficiente, não encontramos nada muito emocionante até chegarmos a uma porta pesada – trancada com tábuas e cadeado – instalada metade na fundação da construção principal e metade na encosta em que o prédio estava situado.
Encontrei um pedaço quebrado de picareta enferrujado e usei-o para arrebentar o cadeado. Depois tiramos a tábua e abrimos a porta.
Sete homens saíram ansiosos de um porão sem ar ou luz, na nossa direção; falando uma miscelânea de idiomas.
Usamos as armas para fazê-los parar. Seguiram tagarelando, emocionados.
– Silêncio! – gritei.
Compreenderam o que eu queria dizer, mesmo sem entender a palavra. O falatório parou, e nós os revistamos. Todos os sete pareciam estrangeiros – e formavam um bando de criminosos de aparência cruel.
Milk River e eu tentamos falar com eles em inglês primeiro. Depois, com o espanhol que conseguimos formular entre nós dois. Ambas as tentativas provocaram muito falatório da parte deles, mas nada em uma das duas línguas.
– Tem mais alguma? – perguntei a Milk River.
– Só me resta o dialeto dos índios Chinook.
Não ajudaria muito. Tentei lembrar algumas palavras que costumávamos acreditar que fossem francês nas forças armadas.
A pergunta “Que désirez-vous?” abriu um amplo sorriso no rosto de um homem de olhos azuis.
Entendi “Nous allons aux Etats-Unis” antes de a velocidade com que ele me lançou as palavras me deixar tão confuso a ponto de não reconhecer mais nada.
Isso era engraçado. Big Nácio não tinha informado àqueles sujeitos que eles já estavam nos Estados Unidos. Imagino que pudesse lidar melhor com eles enquanto pensassem que ainda estavam no México.
– Montrez-moi votre passeport.
O pedido arrancou um protesto furioso do Olhos Azuis. Disseram-lhes que não havia necessidade de passaportes. Era por não terem os passaportes que estavam pagando para entrar clandestinamente.
– Quand êtes-vous venu ici?
Hier queria dizer ontem, independentemente do que eram as outras palavras da resposta dele. Então Big Nácio tinha ido direto a Corkscrew depois de atravessar aqueles homens pela fronteira e enfiá-los naquele porão.
Trancamos os imigrantes de volta no porão, com Rainey e o mexicano junto. Rainey uivou feito um lobo quando tirei a seringa e a coca dele.
– Dê uma olhada nas redondezas enquanto dou um jeito no cara que você matou – eu disse a Milk River.
Quando ele voltou, o mexicano estava arrumado a meu contento: escarrapachado numa cadeira perto da porta da frente da construção principal, com as costas viradas para a parede e um sombreiro caindo sobre o rosto.
– Tem poeira subindo a alguma distância – relatou Milk River. – Não me surpreenderia se tivéssemos companhia perto do anoitecer.
Fazia uma hora que a escuridão havia se instalado quando eles chegaram.
Àquela altura, alimentados e descansados, estávamos prontos para eles. Um lampião queimava dentro da casa. Milk River estava lá dentro, dedilhando um bandolim. A luz que saía pela porta da frente aberta mostrava difusamente o mexicano morto – uma estátua de um dorminhoco. Atrás dele, escondido no canto da casa exceto pela testa e os olhos, eu estava encostado na parede.
Pudemos ouvir a nossa companhia muito antes de vê-los. Dois cavalos – que faziam barulho por dez – vinham extremamente rápido.
Big Nácio, à frente, estava fora da sela com um pé na porta antes da pata dianteira do cavalo – que empinou com a violência usada pelo dono para fazê-lo parar – tocar o chão novamente. O segundo cavaleiro chegou logo atrás.
O homem de barba viu o cadáver. Saltou na direção dele, agitando o chicote e rugindo “Arriba, piojo!”
O som do bandolim parou.
Eu me levantei.
Os bigodes de Big Nácio curvaram-se de espanto.
Seu chicote prendeu num botão da roupa do morto, e o laço da outra ponta estava preso a um dos seus punhos. Big Nácio tinha a outra mão sobre a coxa.
Eu estava com a arma na mão fazia uma hora. Estava perto. Tive tempo para escolher o alvo. Quando sua mão tocou a coronha da arma, dei um tiro que atravessou mão e coxa.
Enquanto ele caía, vi Milk River derrubar o outro sujeito com uma coronhada na nuca.
– Parece que nós formamos uma boa equipe – disse o rapaz queimado de sol enquanto se abaixava para tirar as armas dos inimigos.
Os palavrões vociferados pelo barbudo tornavam a conversa difícil.
– Vou botar este que você derrubou na geladeira – eu disse. – Fique de olho no Nácio. Daremos um jeito nele quando eu voltar.
Arrastei o mexicano desmaiado até a metade do caminho do porão, quando ele voltou a si. Conduzi-o pelo restante do caminho com a arma, mandei-o entrar, mandei os outros prisioneiros para longe da porta, que fechei e tranquei com a barra.
Quando voltei, o barbudo tinha parado de berrar.
– Tinha alguém vindo atrás de vocês? – perguntei, ajoelhando-me ao lado dele e cortando suas calças com o canivete.
Em resposta a essa pergunta, recebi várias informações a respeito de mim mesmo, de meus hábitos e meus ancestrais. Nada era verdade, mas foi bastante divertido.
– Talvez seja melhor dar um tiro na língua dele – sugeriu Milk River.
– Não. Deixe-o gritar! – Voltei-me novamente para o barbudo. – Se eu fosse você, responderia à pergunta. Se acontecer de os cavaleiros do Círculo H.A.R. terem seguido vocês até aqui e nos pegarem desprevenidos, é certo que você será linchado.
Ele não havia pensado nisso.
– Si, si. Aquele Peery e os hombres dele. Eles seguir-mucha rapidez!
Sobrou algum outro homem além de você e aquele outro?
– Não! Ningún!
– Milk River, faça o máximo de fogo que conseguir aqui na frente, enquanto eu tento fazer este aqui parar de sangrar.
O rapaz pareceu decepcionado.
– Nós não vamos armar nada para esses caras?
– Só se formos obrigados.
Quando terminei os dois torniquetes no mexicano, Milk River já havia construído uma grande fogueira que iluminava os prédios e a maior parte da bacia ao redor. Eu pretendia esconder Nácio e Milk River dentro da casa, para o caso de não conseguir dominar Peery. Mas não deu tempo. Tinha acabado de explicar meu plano a Milk River quando ouvi a voz grave de Peery vindo de fora do círculo de luz da fogueira.
– Todo mundo com as mãos para cima!
– Calma! – alertei Milk River, ficando de pé. Mas não levei as mãos para o alto.
– A emoção acabou – gritei. – Aproximem-se.
Dez minutos se passaram. Peery aproximou-se da luz. Tinha o rosto quadrado sujo e amargo. Seu cavalo estava totalmente coberto de espuma lamacenta. Segurava as armas nas mãos.
Atrás dele vinha Dunne – também sujo, sério e com as armas a postos.
Não havia ninguém atrás de Dunne. Logo, os outros estavam espalhados ao nosso redor na escuridão.
Peery inclinou-se sobre a cabeça de seu cavalo para olhar para Big Nácio, deitado sem fôlego e imóvel no chão.
– Está morto?
– Não... levou um tiro na mão e na perna. Tenho alguns amigos dele trancados à chave lá dentro.
À luz da fogueira, era possível ver círculos vermelhos de raiva surgirem ao redor dos olhos de Peery.
– Pode ficar com os outros – disse ele, asperamente. – Este aqui nos basta.
Eu o compreendi.
– Vou ficar com todos eles.
– Não confio nem um pouco em você – Peery rosnou para mim. – Vou me certificar de que a carreira de Big Nácio se encerre aqui mesmo. Vou eu mesmo cuidar dele.
– Nada feito!
– Como você acha que vai me impedir de levá-lo? – disse ele, dando uma risada perversa. – Você não está pensando que eu e o irlandês estamos sozinhos, está? Se não acredita que está encurralado, tente alguma coisa!
Eu acreditava nele, mas...
– Isso não faz diferença alguma. Se eu fosse um vaqueiro comum ou um rato do deserto ou qualquer cara solitário sem ligações, você acabaria comigo rapidinho. Mas eu não sou, e você sabe que não. Estou contando com isso. Você vai ter que me matar para pegar o Nácio. Simples assim! Não acho que você o queira tanto assim para ir tão longe.
Ele me encarou por um instante. Então mandou o cavalo na direção do mexicano. Nácio sentou-se e começou a implorar para que eu lhe salvasse.
Lentamente, levei a mão para a arma que tinha presa ao coldre do ombro.
– Pare! – ordenou Peery, com as duas armas perto da minha cabeça.
Sorri, tirei a arma e virei-a lentamente até estar na mesma altura das duas dele.
Ele manteve a pose tempo suficiente para ambos suarmos bastante. Não foi nada tranqüilo!
Uma luz fraca surgiu em seus olhos injetados. Não adivinhei o que estava por vir antes que fosse tarde demais. A arma em sua mão esquerda afastou-se de mim – e explodiu.
Um buraco se abriu na cabeça de Big Nácio, que caiu para o lado.
O sorridente Milk River tirou Peery da cela com um tiro.
Eu estava sob a arma da mão direita de Peery quando ela disparou. Agora estava engatinhando sob as patas de seu cavalo empinado. Os revólveres de Dunne dispararam.
– Para dentro! – gritei para Milk River, dando dois tiros no cavalo de Dunne.
Balas de espingarda voaram por tudo, por cima, em volta, por baixo de nós.
No interior iluminado, Milk River abraçava o chão, lançando fogo e chumbo das duas mãos. O cavalo de Dunne caiu. Dunne se levantou – levou as mãos ao rosto – e caiu ao lado do cavalo.
Milk River suspendeu a artilharia por tempo suficiente para que eu me aproximasse dele dentro da casa.
Enquanto eu quebrava o vidro de um lampião, apagando a chama, ele batia a porta. Balas ressoaram na porta e na parede.
– Fiz bem de atirar naquele sujeito? – perguntou Milk River.
– Foi um bom trabalho! – menti.
Não havia por que chorar sobre o leite derramado, mas eu não queria Peery morto. A morte de Dunne também fora desnecessária. A hora adequada para o uso das armas é depois de a conversa ter fracassado, e eu ainda não havia esgotado os argumentos quando esse rapaz de pele morena entrou em ação.
As balas pararam de fazer furos em nossa porta.
– Os rapazes estão pensando em conjunto – imaginou Milk River. – Não devem ter lá muita munição, se estão atirando no Nácio desde de manhã cedo.
Encontrei um lenço branco no bolso e comecei a enfiar uma ponta no cano de uma espingarda.
– Para quê é isso? – perguntou Milk River.
– Conversar. – Fui até a porta. – E você terá que se segurar até eu terminar.
– Nunca vi um hombre tão chegado numa conversa – reclamou ele.
Abri uma nesga da porta com cautela. Nada aconteceu. Passei a espingarda pela abertura e acenei-a à luz da fogueira que ainda queimava. Nada aconteceu. Abri a porta e saí.
– Mandem alguém para conversar! – gritei para a escuridão.
Uma voz que não reconheci xingou e começou a ameaçar:
– Você vai ver...
A fala foi interrompida bruscamente.
Algo metálico cintilou num lado.
Buck Small, com os olhos saltados envoltos em círculos escuros e uma mancha de sangue numa das faces, aproximou-se da luz.
– O que vocês estão pensando em fazer? – perguntei.
Ele me olhou taciturno e disse:
– Estamos pensando em acabar com o Milk River. Não temos nada contra você. Você está fazendo o que ganha para fazer. Mas o Milk River não precisava matar o Peery!
– Vocês estão buscando confusão, Buck. Os dias loucos de desordem terminaram. Até agora, estão limpos. Nácio os atacou, e vocês fizeram o que era certo quando massacraram os cavaleiros dele por todo o deserto. Mas vocês não têm direito de brincar com os meus prisioneiros. O Peery não quis entender isso. E se nós não o tivéssemos matado, ele teria sido enforcado depois!
“Quanto ao Milk River: ele não deve nada a vocês. Ele derrubou Peery sob os tiros de vocês... com muita desvantagem! Vocês estavam com todas as cartas contra nós. O Milk River correu um risco que nem eu nem você teríamos corrido. Vocês não têm nada do que reclamar.
“Tenho dez prisioneiros lá dentro, um monte de armas e munição para botar nelas. Se você me obrigar, vou distribuir as armas entre os prisioneiros e deixá-los lutar. Prefiro perder todos a deixar vocês ficarem com eles.
“Tudo o que vocês podem conseguir brigando conosco é muita dor – quer saiam ganhando ou perdendo. Esta parte do Condado de Orilla foi deixada ao Deus dará por mais tempo do que a maior parte do sudoeste. Mas esses dias acabaram. Tem dinheiro de fora entrando e gente de fora chegando. Vocês não vão conseguir impedir! Quem tentou isso antigamente fracassou. Você vai conversar com os outros sobre isso?”
– Vou – disse ele, afastando-se na escuridão.
Entrei.
– Acho que serão sensatos – disse a Milk River. – Mas não dá para saber. Por isso, talvez seja melhor você dar uma espiada e ver se encontra um caminho pelo assoalho até a nossa prisão subterrânea, porque eu não estava brincando quando falei em dar armas aos nossos prisioneiros.
Vinte minutos depois, Buck Small estava de volta.
– Você venceu – disse ele. – Queremos levar Peery e Dunne conosco.
Nunca nada fora tão bom como a minha cama na Cañon House na noite seguinte, de quarta-feira. A luta teatral com o cavalo amarelo, a briga com Chick Orr, as cavalgadas a que não estava acostumado e que vinha fazendo... tudo isso me deixou com mais dores do que o Condado de Orilla tinha de areia.
Nossos dez prisioneiros estavam descansando num velho depósito a céu aberto de Adderly, vigiados por voluntários dos melhores elementos, sob a supervisão de Milk River. Imaginei que eles estariam seguros lá até que os inspetores da imigração – a quem mandei avisar – fossem buscá-los. A maioria dos homens de Big Nácio tinha morrido no confronto com o pessoal do Círculo H.A.R., e eu duvidava que Bardell conseguisse reunir homens suficientes para tentar abrir a minha prisão.
Eu acreditava que os cavaleiros do Círculo H.A.R. iriam se comportar razoavelmente bem a partir de agora. Ainda havia dois detalhes em aberto, mas o fim do meu trabalho em Corkscrew não estava distante. De modo que não me senti insatisfeito com o meu trabalho ao tirar as roupas e deitar na cama para desfrutar o sono que estava merecendo.
Consegui dormir? Não.
Tinha acabado de me acomodar quando alguém começou a bater na porta.
Era o meticuloso dr. Haley.
– Fui chamado até a sua prisão provisória há alguns minutos para dar uma olhada em Rainey – disse o médico. – Ele tentou fugir e quebrou o braço numa briga com um dos guardas. Isso não é nada grave, mas a situação dele é. Ele precisa de cocaína. Não acho que seja seguro deixá-lo sem as drogas por mais tempo.
– Ele está mal mesmo?
– Está.
– Vou até lá falar com ele – eu disse, começando a me vestir com relutância. – Eu lhe dei algumas doses a caminho do rancho... o bastante para que ele não desabasse. Mas agora preciso de mais algumas informações, e ele não vai levar nada enquanto não falar.
Ouvimos os gritos de Rainey antes mesmo de chegarmos à cadeia.
Milk River estava conversando com um dos guardas.
– Chefe, ele vai ter um ataque se você não lhe der um remédio – ele me disse. – Agora ele não consegue arrancar as talas do braço porque eu o amarrei, mas ele está completamente doido!
O médico e eu entramos. O guarda ficou segurando uma lanterna no alto para que pudéssemos enxergar.
Num dos cantos da sala, Gyp Rainey estava sentado na cadeira em que havia sido amarrado por Milk River. Espumava nos cantos da boca. Estava se contorcendo de cólica.
– Pelo amor de Deus, me dê uma dose! – gemeu Rainey.
– Me dê uma mão, doutor. Vamos carregá-lo para fora.
Nós o erguemos, com cadeira e tudo, e o levamos para fora.
– Agora pare com essa choradeira e preste atenção – ordenei. – Você matou o Nisbet. Eu quero saber direitinho como foi. A história toda vai lhe dar uma dose.
– Eu não matei ele! – gritou Rainey.
– Isso é mentira. Você roubou a corda de Peery enquanto nós estávamos no Bardell na segunda-feira de manhã, falando sobre a morte de Slim. Você amarrou a corda onde ficasse parecendo que o assassino tivesse fugido pelo cañon. Daí você ficou parado na janela até Nisbet entrar no salão dos fundos... e o matou. Ninguém desceu por aquela corda – ou Milk River teria encontrado algum sinal disso. Você vai confessar?
Ele não quis confessar. Gritou, praguejou, implorou e negou saber do assassinato.
– De volta aonde você estava antes – eu disse.
O dr. Haley pousou a mão no meu braço.
– Não quero que pense que eu estou interferindo, mas devo alertá-lo que o que você está fazendo é perigoso. Acredito e tenho o dever de avisá-lo de que você está pondo a vida deste homem em perigo ao recusar-lhe a droga.
– Sei disso, doutor, mas preciso correr esse risco. Se estivesse tão mal, ele não estaria mentindo. Quando a abstinência da droga bater de verdade, ele vai falar!
Com Gyp Rainey de volta à prisão, voltei ao meu quarto. Mas não para a cama.
Clio Landes estava esperando por mim, sentada no quarto – eu havia deixado a porta destrancada – com uma garrafa de uísque. Estava cerca de três quartos embriagada – um daqueles tragos melancólicos.
Era uma pobre garota doente, com saudade de casa, longe de seu mundo. Enchia-se de álcool, lembrava dos pais mortos, de episódios tristes da sua infância, acontecimentos infelizes de seu passado, e chorava por causa deles.
Eram quase quatro da manhã de quinta-feira quando o uísque finalmente atendeu às minhas preces, e ela caiu no sono em meu ombro.
Peguei-a no colo e levei-a pelo corredor até seu quarto. No instante em que cheguei à porta, o gordo Bardell subiu as escadas.
– Mais trabalho para o xerife – disse ele, alegremente, seguindo em frente.
O sol estava alto, e o quarto, quente, quando acordei com o barulho familiar de alguém batendo na porta. Desta vez era um dos guardas voluntários – o garoto de pernas compridas que havia levado o aviso a Peery na segunda à noite.
– O Gyp qué vê ocê. – O rosto do garoto estava exausto. – Ele qué você mais do que já vi um homem querê qualqué coisa.
Rainey estava acabado quando cheguei até ele.
– Eu matei ele! Eu matei ele! – gritou para mim. – O Bardell sabia que o Círculo H.A.R. iria revidar o assassinato de Slim. Ele me fez matar o Nisbet e culpar o Peery para que você enfrentasse eles. Ele tinha tentado antes e não conseguiu nada!
“Me dê uma dose! Juro por Deus que esta é a verdade! Eu roubei a corda, amarrei no lugar e atirei no Nisbet com a arma do Bardell, quando o Bardell mandou ele lá atrás! A arma tá embaixo da lata de lixo nos fundos do Adderly. Me dê a dose!”
– Onde está o Milk River? – perguntei ao garoto de pernas compridas.
– Acho que dormindo. Ele saiu quando o dia nasceu.
– Está bem, Gyp! Fique firme até o doutor chegar. Vou mandá-lo vir aqui!
Encontrei o dr. Haley em casa. No minuto seguinte, ele estava levando uma injeção para o viciado.
O Border Palace só abria depois do meio-dia. Estava com as portas trancadas. Subi pela rua até a Cañon House. Milk River apareceu no instante em que pisei na varanda.
– Olá, jovem companheiro – cumprimentei-o. – Alguma idéia de onde está seu amigo Bardell?
Ele me olhou como se nunca tivesse me visto antes.
– Que tal você descobrir sozinho? Estou cansado de fazer as coisas para você. Pode encontrar uma enfermeira nova, moço, ou ir para o inferno!
As palavras saíram com cheiro de uísque, mas ele não estava bêbado o bastante para explicar tudo aquilo.
– Qual é o seu problema? – perguntei.
– O problema é que eu acho que você é um maldito...
Não deixei a coisa continuar.
Ele afastou a mão direita para o lado quando entrei.
Prensei-o contra a parede com o quadril antes que ele pudesse sacar a arma e o segurei pelos braços.
– Você pode ser um lobo mau com a sua pistola – rosnei, sacudindo-o, muito mais irritado do que estaria se ele fosse um estranho –, mas se tentar alguma gracinha comigo, vou lhe dar umas palmadas!
Os dedos magros de Clio Landes afundaram em meu braço.
– Pare com isso! – ela gritou. – Pare com isso! Por que vocês não se comportam direito? – disse para Milk River e eu. – Ele está chateado hoje de manhã. Ele não quis dizer isso!
Eu também estava chateado.
– Eu estava falando sério – insisti.
Mas afastei-me dele e entrei. Lá dentro, encontrei o pálido Vickers.
– Qual é o quarto do Bardell?
– 214. Por quê?
Passei por ele e subi a escada.
Segurando a arma numa das mãos, usei a outra para bater na porta.
– Quem é? – perguntou ele.
Respondi.
– O que você quer?
Disse que queria conversar com ele.
Bardell me deixou esperando por alguns minutos antes de abrir. Estava completamente vestido da cintura para baixo. Da cintura para cima, usava um casaco sobre a camiseta de baixo, e uma das suas mãos estava no bolso do casaco.
Seus olhos saltaram quando viram a arma na minha mão.
– Você está preso pelo assassinato de Nisbet! – informei. – Tire a mão do bolso.
Ele tentou fazer de conta que pensava que eu estava brincando.
– Pelo assassinato de Nisbet?
– Arrã. Rainey contou tudo. Tire a mão do bolso.
Seus olhos desviaram dos meus para trás da minha cabeça, com um lampejo de triunfo.
Venci-o no primeiro tiro por um fio de cabelo, já que ele havia perdido tempo esperando que eu caísse naquele velho truque.
Sua bala cortou meu pescoço.
A minha o atingiu onde a camiseta estava esticada sobre o peito gordo.
Ele caiu, remexendo no bolso, tentando tirar a arma para dar mais um tiro.
Eu poderia tê-lo desarmado, mas ele ia morrer de qualquer maneira. Aquela primeira bala tinha atingido seu pulmão. Atirei de novo.
O corredor ficou cheio de gente.
– Chamem o médico! – gritei.
Mas Bardell não precisava do médico. Estava morto antes de eu terminar a frase.
Chick Orr surgiu do meio das pessoas e entrou no quarto.
Eu me levantei, botando a arma de volta no coldre.
– Não tenho nada contra você, Chick, ainda – eu disse, lentamente. – Você sabe melhor do que eu se há alguma coisa ou não. Se eu fosse você, sairia de Corkscrew sem perder muito tempo fazendo as malas.
O ex-pugilista me olhou pelas pálpebras semicerradas, esfregou o queixo e estalou a língua.
– Se alguém perguntar por mim, digam que fui fazer uma viagem – disse ele, voltando pelo meio das pessoas.
Quando o médico chegou, levei-o até meu quarto, onde ele me fez um curativo no pescoço. O ferimento não foi muito profundo, mas sangrou bastante.
Depois que ele terminou, tirei roupas limpas da mala e me despi. Quando fui me lavar, descobri que o médico havia usado toda a minha água. De casaco, calças e sapatos, desci para pegar mais na cozinha.
O corredor estava vazio quando subi novamente, a não ser por Clio Landes.
Ela passou por mim sem me olhar deliberadamente.
Então me lavei, me vesti e prendi a arma no coldre. Mais um detalhe do caso a ser resolvido, e tudo estaria terminado. Como pensei que não precisaria mais dos brinquedinhos calibre 32, guardei-os. Mais um detalhe e acabado. Estava contente com a idéia de sair de Corkscrew. Não gostava do lugar, nunca tinha gostado e gostava menos ainda desde a briga com Milk River.
Estava pensando nele quando saí do hotel – e o vi de pé do outro lado da rua.
Um passo. Uma bala levantou poeira perto dos meus pés.
Parei.
– Vamos lá, gorducho! – gritou Milk River. – Sou eu ou você!
Virei-me lentamente para encará-lo, procurando por uma saída. Mas não tinha uma.
Seus olhos estavam como fendas iluminadas. Seu rosto, uma apavorante máscara selvagem. Era impossível argumentar com ele.
– Sou eu ou você! – repetiu, atirando novamente em direção aos meus pés. – Prepare o seu ferro!
Parei de procurar por uma saída e saquei a minha arma.
Ele me deu uma oportunidade justa.
Sua arma desceu até mim enquanto a minha subiu até ele.
Apertamos os gatilhos juntos.
O fogo saltou em minha direção.
Beijei o chão – com o lado direito todo dormente.
Ele estava me encarando – perplexo. Parei de encará-lo e olhei para a minha arma – a arma que havia apenas soltado um estalido quando apertei o gatilho!
Quando olhei para cima novamente, ele estava vindo na minha direção, lentamente, com a arma pendurada ao lado do corpo.
– Resolveu se garantir, hein? – Levantei a minha arma para que ele pudesse ver o gatilho quebrado. – Bem feito para mim por deixá-la sobre a cama ao descer para buscar água.
Milk River soltou sua arma e agarrou a minha.
Clio Landes veio correndo do hotel até ele.
– Você não está...?
Milk River enfiou minha arma no rosto dela.
– Você fez isso?
– Fiquei com medo que ele... – ela começou.
– Sua...! – Com as costas da mão aberta, Milk River bateu na boca da garota.
Ele deitou-se ao meu lado, com a expressão de um menino. Uma lágrima caiu sobre a minha mão.
– Chefe, eu não...
– Não tem problema – assegurei-lhe, sinceramente.
Não entendi nada mais do que ele disse. Meu lado estava deixando de ficar dormente, e nova a sensação que surgia não era agradável. Tudo estava se revirando dentro de mim...
Eu estava na cama quando voltei a mim. O dr. Haley estava fazendo coisas desagradáveis à lateral do meu corpo. Atrás dele, Milk River segurava uma bacia com mãos trêmulas.
– Milk River – sussurrei, porque foi o máximo que consegui fazer. Ele se inclinou na minha direção.
– Pegue o Sapo. Ele matou o Vogel. Cuidado... fique com a arma apontada para ele. Fale em legítima defesa... talvez confesse. Prenda-o com os outros.
Dormi novamente.
Era noite e havia uma suave luz de abajur no quarto quando voltei a abrir os olhos. Clio Landes estava sentada ao lado da cama, olhando fixamente para o chão, tristonha.
– Boa noite – consegui dizer.
Senti muito por ter dito qualquer coisa.
Ela chorou por cima de mim e pediu perdão insistentemente pelo truque com a minha arma. Não sei quantas vezes a perdoei. Aquilo virou uma maldita chateação.
Tive que fechar os olhos e fingir que havia desmaiado para fazê-la se calar.
Eu devo ter dormido um pouco, porque quando olhei ao redor novamente, já era dia, e Milk River estava na cadeira.
Ele se levantou, sem olhar para mim, com a cabeça abaixada.
– Vou embora, Chefe, agora que você está se recuperando bem. Mas quero que você saiba que se eu soubesse o que aquela... tinha feito na sua arma, eu jamais teria atirado.
– Qual era o problema com você, afinal? – grunhi para ele.
– Acho que estava maluco – resmungou ele. – Tomei alguma, e então Bardell me encheu a cabeça com coisas sobre você e ela e disse que você estava me fazendo de bobo. E... e eu simplesmente fiquei louco, acho.
– Ainda acredita nisso?
– Deus, não, Chefe!
– Então quem sabe você pára com essa bobagem, se senta e fala coisa com coisa? Você e a garota ainda estão brigados?
Estavam – muito obscena e enfaticamente.
– Você é um grande panaca! – eu disse. – Ela é uma estranha aqui, sentindo saudade de sua Nova York. Eu falava a língua dela e conhecia as pessoas que ela conhecia. Foi tudo o que houve...
– Mas esse não é o problema, Chefe! Qualquer mulher que fizesse...
– Que besteira! Está certo, foi um truque sujo. Mas uma mulher que faz uma coisa dessas por você vale um milhão por quilo. Agora saia daqui, encontre essa Clio e a traga de volta com você!
Ele fingiu estar indo contra a sua vontade. Mas ouvi a voz dela quando ele bateu em sua porta. E os dois me deixaram deitado em minha cama de dor por uma hora inteira antes de se lembrarem de mim. Entraram caminhando tão juntos que tropeçaram um nos pés do outro.
– Agora vamos falar de negócios – resmunguei. – Que dia é hoje?
– Segunda-feira.
– Você pegou o Sapo?
– Eu fiz o que você pediu – disse Milk River, dividindo a única cadeira com a garota. – Agora ele está na sede do condado... foi com os outros. Engoliu aquela isca da legítima defesa e me contou tudo. Como você descobriu, Chefe?
– Descobri o quê?
– Que o Sapo tinha matado o pobre Slim. Disse que o Slim foi lá naquela noite, acordou-o, comeu um dólar e dez centavos de comida dele e o desafiou a cobrar. Os dois discutiram, Slim sacou a arma, o Sapo se assustou e atirou nele... Depois disso, Slim fez o favor de sair cambaleando pela porta para morrer. Mas como você conseguiu adivinhar?
– Eu não devia revelar meus segredos profissionais, mas vou fazer isso desta vez. O Sapo estava fazendo faxina quando entrei para perguntar o que ele sabia do assassinato, e ele tinha esfregado o chão antes de limpar o teto. Se isso tinha algum significado, era o de que ele fora obrigado a limpar o chão e havia transformado a limpeza numa faxina geral para disfarçar. Então talvez Slim tenha sujado o piso de sangue.
“A partir daí, o resto veio com facilidade. Slim deixou o Border Palace num estado de espírito violento, sem um centavo depois de ter começado ganhando, humilhado pelo triunfo de Nisbet no saque da arma, ainda mais amargurado por tudo o que vinha bebendo durante o dia. Naquela tarde, Red Wheelan o fizera lembrar da vez em que o Sapo o havia seguido até o rancho para cobrar 25 centavos. O que seria mais provável do que ele levar toda sua irritação para a espelunca do Sapo? O fato de que Slim não havia levado um tiro da espingarda não significava coisa alguma. Nunca levei fé naquela espingarda em primeiro lugar. Se o Sapo estivesse contando com aquilo para sua proteção, não a teria deixado tão à vista, sob uma prateleira onde não era fácil pegá-la. Imaginei que a arma estivesse lá para efeito moral e que ele tinha outra para uso, escondida.
“Outro ponto que vocês não perceberam foi que Nisbet parecia estar contando uma história verdadeira... nem um pouco parecida com o que ele contaria se fosse culpado. As histórias de Bardell e Chick não eram tão boas, mas é bem possível que eles realmente acreditassem que Nisbet havia matado Slim e estivessem tentando acobertá-lo.”
Milk River sorriu para mim, puxando a garota para mais perto dele.
– Você não é completamente burro – disse ele. – Quando viu você pela primeira vez, Clio me avisou para não tentar nenhuma gracinha.
Sua expressão foi dominada por um olhar distante.
– Pensem em todos os que morreram e ficaram feridos e foram presos... tudo por causa de um dólar e dez centavos. Que bom que o Slim não comeu cinco dólares de gororoba. Ele teria despovoado completamente o estado do Arizona.
10 Tirabuzón é saca-rolhas em espanhol. Em inglês, corkscrew. (N.T.)
Tulip
Eu estava sentado num buraco de raiz que o vento havia produzido ao derrubar um abeto uns dois anos antes, observando uma raposa vermelha no abrigo de uma moita murcha de amoras silvestres decidir o que fazer a respeito do cheiro de gambá levado até a clareira por uma brisa que também havia, até um instante antes, levado o som de guinchos de ratos do mato. Então a raposa virou a cabeça para a direção de onde tinha vindo e desapareceu habilmente de vista, andando como andam as raposas, com uma delicadeza que faz tudo parecer imprevisto, mas sem pressa. Pensei que os cães estavam soltos; cachorros fazem muito barulho no meio do mato e, na época, eu acreditava que as raposas tratavam cães e pessoas com o mesmo tipo de cautela altiva, mas logo ouvi passos de um homem.
Tulip empurrou para o lado alguns arbustos a cerca de quatro metros de onde a raposa tinha estado e apareceu na clareira.
– Oi, Papai – disse ele, ao me ver, abrindo um amplo sorriso e completando ao chegar mais perto: – Você está mais magro do que nunca, mas eles nunca vão matar você, não é?
– Como você me encontrou? – perguntei.
Ele apontou o polegar na direção da casa.
– Alguém me disse que talvez eu o encontrasse aqui, mas se você está se escondendo, não me importo de saltar e gritar “achei”. – Olhou para a espingarda em minha mão. – Para que é isso? A temporada de caça terminou.
– Ainda há corvos.
Ele sacudiu os ombros enormes.
– Só um tolo atira em algo que não quer comer. Como foi no xilindró?
– Você está perguntando para mim?
Ele sorriu:
– Nunca estive em prisões federais. Só estaduais e locais. Como são as cadeias federais?
– A nata da sociedade, acho eu. Mas qualquer prisão é um buraco quando se está dentro dela.
– E eu não sei? Já contei da vez em que eu...
– Ah, pelo amor de Deus – disse eu, abaixando-me para pegar o banquinho em que estava sentado.
– Tudo bem – disse ele, bem-humorado. – Lembre-me de contar mais tarde. Onde você conseguiu esse troço? – perguntou, olhando para o banquinho, uma estrutura de metal dobrável com assento verde-escuro e compartimentos fechados com zíper embaixo.
– Gokey.
– O que é esse negócio verde e marrom nos lados?
– Fita adesiva enrolada no metal para evitar que ele brilhe muito no meio do mato.
Ele sacudiu a cabeça afirmativamente.
– Você se sai bem sozinho, mas acho que não se pode esperar que um homem da sua idade se agache no chão.
– Você também está com mais de cinqüenta – disse eu.
– Você é muito mais velho do que isso.
– Bobagem, vou fazer 58 este ano.
– É o que eu estou querendo dizer, Papai! Você precisa se cuidar.
Ficou parado na beira do buraco de raiz enquanto eu voltava uns dez metros para pegar o pote que havia pendurado no galho de um jovem bordo.
– E o que é isso? – perguntou, enquanto eu voltava abrindo a tampa.
– Trapos ensopados em essência de gambá – expliquei. – Faz com que os veados se aproximem bastante, talvez porque eliminem o cheiro de gente. Eu estava experimentando com raposas.
– Às vezes você é incrivelmente infantil – disse ele enquanto me seguia através da clareira.
Ele me seguiu ao longo da trilha de caça pelo meio do bosque e pelo caminho que levava até a casa através do jardim de pedras. Enfiei o pote numa fenda entre as duas pedras, com uma terceira sobre ela, descarreguei a espingarda e subi até a varanda. Havia duas velhas malas de couro e uma mochila verde-escura na varanda, do lado de fora da porta.
– Para que é isso? – perguntei. – Eu mesmo só estou fazendo uma visita.
– Que tipo de amigos são eles se um amigo seu não é amigo deles? De qualquer maneira, vou ficar só uns dois dias. Você sabe que não consigo agüentar muito mais do que isso.
– Nem pensar. Estou tentando começar um livro.
– Era sobre isso que eu queria falar com você. – Pôs uma mão nas minhas costas e me empurrou em direção à porta. – Eu posso falar aqui fora mesmo, mas você precisa estar sentado com uma bebida na mão.
Levei-o para dentro da casa, deixei a espingarda e o banco dobrável num canto do hall de entrada e lhe servi uma bebida. Quando ele me olhou curioso, eu disse:
– Não bebo nem um gole há três anos.
Ele mexeu seu uísque com soda como as pessoas costumam fazer quando querem ouvir o barulho do gelo.
– Provavelmente é melhor assim – disse ele. – Não lembro de você beber bem.
Dei uma risada e guiei-o até uma poltrona vermelho-escura. Estávamos na sala de estar, um ambiente espaçoso decorado em tons de marrom, vermelho, verde e branco com um belo Vuillard sobre o aparelho de televisão.
– Não é este o tipo de coisa que incomoda ex-bêbados, mas sim ouvir que eles não bebiam tanto assim, no fim das contas.
– Bem, na verdade, você...
– Corta essa. Sente-se e deixe-me dizer por que você vai voltar para a cidade depois do jantar. Comecei um livro e...
– Não foi o que você me disse lá fora – disse ele.
– Ãhn?
– Você disse que estava tentando começar um livro. É sobre isso que quero conversar com você. É uma bobagem da sua parte... sempre foi uma grande bobagem da sua parte, Papai... não ver que eu...
– Olhe aqui, Tulip... se ainda insiste que este é o seu nome... eu nunca vou escrever uma palavra sobre você se puder evitar. Você é um homem chato e tolo que anda por aí fazendo coisas chatas e tolas sobre as quais acha que algum dia alguém vai querer escrever. Qualquer coisa que alguém fizesse por esse motivo sempre seria chata e tola. E de onde, pelo amor de Deus, você tirou a idéia de que os escritores saem por aí em busca de coisas sobre o que escrever? O problema é organizar o material, não obtê-lo. A maioria dos escritores que conheço tem assuntos demais; estão soterrados de coisas que jamais conseguirão escrever.
– Palavras – disse ele. – Se você tem tanta coisa sobre o que escrever, por que não escreve há tanto tempo?
– Como você sabe se estou escrevendo ou não?
– Não pode estar. As revistas costumavam ser cheias de coisas suas. Hoje tudo o que vejo são republicações de seus primeiros textos, e cada vez menos disso.
– Eu não existo só para escrever. Eu...
– Você está mudando de assunto – disse ele. – Estamos falando sobre a sua obra. Não me importo se você quer perder parte do seu tempo brincando com animaizinhos ou se transformando em herói indo para a cadeia, mas... Olhe aqui, Papai, você não foi para a cadeia só por causa da experiência, foi? Porque eu poderia ter lhe poupado muito tempo e incomodação contando tudo o que você precisa saber.
– Aposto que sim – respondi.
Ele deu de ombros, bebeu, limpou os lábios com um grosso polegar e disse:
– Isso é exatamente como um monte de outras coisas que você diz: não quer dizer absolutamente nada. Você só diz da boca para fora. Vocês, escritores, têm mais palavras do que... – Ele olhou ao redor e pareceu gostar do que viu. – Este lugar é muito bom. De quem é?
– De umas pessoas chamadas Irongate.
– Amigos seus?
– Não, nunca ouvi falar neles.
– Certo, que engraçado – disse ele. – Eles estão por aqui?
– Até onde sei, ainda estão na Flórida.
– Isso torna ainda mais sem sentido você ter me dito que eu não posso ficar aqui por uns dias. Como eles são?
– São pessoas.
– Você pode ser um escritor interessante, mas não fala como tal. Que tipo de pessoas eles são? Pessoas jovens? Pessoas velhas? Pessoas canhotas?
– A Paulie provavelmente tem pouco mais de trinta, Gus é alguns anos mais velho.
– Só os dois? Não têm filhos?
– Por que você não escreve essas respostas para que a gente não precise falar tudo de novo quando vier o rapaz do censo? Três filhos, com idades variando de dezesseis a talvez doze.
Seus olhos acinzentados se iluminaram.
– Dezesseis, é? E ela só tem pouco mais de trinta? Casamento à base de espingarda, é?
– Como eu vou saber? Só os conheço desde que saí do exército.
– E que exército foi aquele! – Disse ele, levantando-se com o copo vazio. – Não se preocupe. Eu mesmo me sirvo. Você esqueceu do pouco que sabia sobre servir bebidas desde que parou de beber. Lutamos uma senhora guerra nas Aleutas, não foi? Vamos ver, você não veio embora antes de mim?
– Eu voltei em setembro de 45.
– Então fazia quase sete anos que eu não via você. – Trouxe a bebida até a poltrona vermelha e sentou-se novamente
– Fazia mais tempo do que isso. A última vez que vi você foi em Kiska, e a última vez que estive lá foi em 44.
– Quarenta e quatro? 45? Que diferença faz? O que você é? Um maldito historiador passando pela vida com um calendário nas mãos? Conte mais sobre esses Irongate. Eles têm dinheiro?
– Ah, então você não gosta de lembrar de Kiska... Acho que têm. Não sei quanto.
– O que ele faz?
– Pinta quadros, mas não é disso que vive. Acho que o pai deixou dinheiro para ele.
– O pai dele parece um cara legal.
– Mas de qualquer modo, você não vai aplicar o golpe neles.
Ele me encarou, com o rosto anguloso genuinamente surpreso sob os cabelos grossos curtos e loiros.
– Que golpe?
– Qualquer golpe. Nada de idéias, Tulip.
– Nossa, macacos me mordam – disse ele. – Sabe, isso é o pior do sistema prisional. Põe um homem em contato com os elementos criminosos mais baixos, e quando menos se espera, ele está vendo maldade e trapaças em qualquer lugar. Não que você algum dia tenha tido o hábito de ver o melhor nos seus companheiros, mas...
– Além disso – eu disse –, o FBI provavelmente continua de olho em mim e...
– Aí é diferente – ele interrompeu. – Por que você não disse antes?
– Eu não queria assustar você.
– Me assustar? Sem chance! Na verdade, estou muito bem no momento, suando em seda, como os rapazes costumavam dizer, só que não era exatamente isso que eles diziam.
– Onde você conseguiu a grana?
– Lembra daquele major maluco que queria que fôssemos criar gado nas Aleutas depois da guerra, e disse que podia acertar com Maury Maverick para que ele nos alugasse uma das ilhas por pouco dinheiro?
– Pelo amor de Deus, você não fez aquilo? Com os custos de transporte, o...
– Não, eu só me lembrei disso. Qual era o nome do major?
– Você só se lembrou disso para desviar da minha pergunta sobre onde você conseguiu o dinheiro que diz ter.
– Ah, isso! Consegui esse dinheiro no caminho Oklahoma-Texas.
– Viúva de um magnata do petróleo?
Ele riu.
– Você é uma figura, Papai.
– Experiência na prisão. Havia uns caras esperando julgamento por isso em West Street no verão passado.
Tulip pareceu surpreso.
– Meu Deus, como é que um cara sai descumprindo leis para tirar dinheiro de mulheres?
– Deve haver alguma maneira.
Fui até a cozinha, onde Donald estava descascando legumes na pia enquanto sua mulher, Linda, abaixava o volume do rádio para que uma música chamada “Cry” não fizesse tanto barulho, e disse a eles:
– O sr. Tulip, ou o coronel Tulip, se ele ainda se chama assim, já que foi tenente-coronel no exército, vai passar a noite aqui, ou talvez um ou dois dias. Vocês podem instalá-lo?
– Você quer que ele fique no quarto ao lado do seu? – perguntou Donald. – Ou naquele quarto amarelo no corredor?
– Pode ser no quarto amarelo. Obrigado.
Tulip levantou-se quando voltei à sala e falou:
– Sabe, Papai, eu estive pensando. Preciso telefonar para uma garota que conheço em Everest, e ela tem uma irmã bonitinha. Quem sabe eu não pergunto se elas...
– Ah, claro, e você deve ter alguns conhecidos na vizinhança também. Eu posso desencavar alguns nomes, e junto talvez consigamos trazer umas vinte ou trinta pessoas para cá facilmente.
– Foi só uma idéia – disse ele, seguindo até a ponta da mesa para se servir de mais uma bebida. – Enfim, eu queria mesmo era falar sobre o seu trabalho. Foi para isso que vim.
– Não foi, não. Você veio para falar de você.
– Bom, é a mesma coisa, de certa maneira. – Voltou para a poltrona, sentou-se, cruzou as pernas e me olhou de cima a baixo. – Papai, você quer me dizer por que sempre fica assim de mau humor quando alguém fala alguma coisa sobre o seu trabalho de escritor?
– Não, não quero – respondi sinceramente. – Vá direto ao ponto. O que você tem feito que acha ser tão incrivelmente fascinante?
– Não é bem assim. – Havia um toque do que poderia ser constrangimento em sua voz sempre rouca. – Às vezes acho que você não me entende. Você algum dia cruzou com Lee Branch, em Shemya?
– Não que eu lembre. Por quê?
– Por nada, eu só estava pensando. Ele era aviador do XXII. Era um cara legal. Fui visitá-lo por um tempo depois que saí.
Tulip tinha me contado da visita, mas deu a Branch uma irmã chamada Paulie – eu havia mencionado Paulie Irongate – e fez a casa deles um pouco parecida com a dos Irongate, embora a tenha situado em outro estado. Sua história tinha espingardas, como a que estava nas minhas mãos quando ele me encontrou na clareira onde eu estivera observando a raposa.
Tulip costumava ser prolixo – principalmente quando relatava uma de suas histórias –, mas o cerne do que ele me contou, não com as suas palavras e sem os pensamentos que ele afirmou ter tido na ocasião, foi que Lee Branch disse: “A bandeira está tremulando”, e abaixou a cabeça um pouco para espiar sob a aba do chapéu, através das pontas das tifas.
Cinco patos surgiram negros contra um céu cinzento de novembro, exibindo a parte branca sob as asas ao passarem por cima das iscas e virando ao sabor do vento.
Tulip disse:
– Atire, homenzinho.
A espingarda Fox calibre 20 parecia uma arma delicada em suas mãos grandes. Ele atirou sem se levantar de onde estava sentado, no chão, sob o salgueiro moribundo, primeiro o cano esquerdo, depois o direito, quando o primeiro pato manteve-se momentaneamente imóvel ao pé de um ângulo de vôo agudo demais. As duas aves caíram juntas na água. Uma estava morta. A outra nadou três quartos de um pequeno círculo e morreu.
Lee Branch, de pé, passou a arma mais pesada para a direita, atirou, engatilhou e atirou novamente. Ambas as aves caíram. Uma delas perdeu muitas penas. Lee sorriu para Tulip, que estava recarregando.
– Acho que estamos com sorte hoje, sueco.
Tulip olhou com complacência para os patos mortos sobre a grama seca ao seu lado e para os quatro no lago.
– Arrã. – Tateou o bolso à procura de cigarros. – Mas você quase destruiu o primeiro.
– Eu devia ter esperado mais tempo. Gosto de uma arma que salta na mão. Acho que vou arranjar uma calibre 10. – Lee recarregou a arma de caça belga e pousou-a com cuidado. – De quem é a vez de ir buscar?
Tulip apontou para Lee e recostou-se na grama. Lee Branch tinha 28 anos, os cabelos escuros repartidos no meio, agora escondidos pelo chapéu de caça, e olhos escuros brilhantes. Não era pequeno, mas sua agilidade esguia – mesmo em roupas de montaria abrindo caminho através de urzes para o outro lado da minúscula ilha onde haviam escondido o barco – fazia-no parecer menor do que era.
Quando voltou com as aves, Tulip estava deitado de costas, fumando com os olhos fechados.
– Um dos seus era outro pato do mato – disse Lee, estendendo o pássaro.
– Eu sei – respondeu Tulip, abrindo um olho para espiar o pato através da fumaça. – Eles seriam bonitos demais para se matar se os homens não tivessem fome sempre. – Atirou o cigarro na água por cima das tifas e estendeu os braços no chão. – Você não estava brincando, garoto. Isso aqui foi tudo o que você tinha dito que seria.
Lee começou a falar. Então se agachou, com os olhos escuros alertas.
– O que você quer dizer com foi? – perguntou. – É. – Uma pausa. – Será. – Pareceu muito jovem.
Tulip fechou os olhos novamente.
– Não sei, menino. Há quanto tempo estou aqui?
– Uma semana. Dez dias. Não sei. Que diferença isso faz? Quando conversávamos sobre você vir para cá depois da guerra, nós não...
Tulip se contorceu e franziu o cenho, mas não voltou a abrir os olhos.
– Está bem, está bem, mas você não acha que todo mundo deveria se ater a todos aqueles planos pós-guerra que fazem no exército?
– Claro que não, mas isto... Isto é diferente, não é, sueco?
– Isto é ímpar – disse Tulip.
– E então?
– Ninguém tem todas as respostas.
– Não estou tentando prender você aqui, mas... Escute aqui, sueco, não é porque a casa é da Paulie, é?
– Não.
– Porque ela gosta de você e gostaria que você ficasse.
– Que bom que ela gosta de mim – disse Tulip. – Porque eu gosto muito dela.
– E não é isso?
– Não.
Lee provavelmente arrancou um galhinho do salgueiro e partiu-o com o polegar.
– Um cara mais velho como você não deveria ficar zanzando por aí só por zanzar.
– Eu sei. Eu não gosto de zanzar, só que as coisas sempre me lembram de alguma coisa em outro lugar. – Abriu os olhos e se sentou, pousando a espingarda no colo. – Você não usa esta arma aqui. Quer vender?
– Eu a daria para você, mas é da Paulie. Pergunte a ela.
Tulip sacudiu a cabeça.
– Ela é maluca como o irmão. Ela a daria para mim.
– O que você é? O último dos confederados ou coisa parecida? Que não aceita presentes de mulheres?
– Imagino que o senhor não tenha conhecido muitos confederados. Paulie era muito apaixonada pelo marido?
Lee olhou para Tulip, que estava olhando para os chamarizes no lago.
– Na verdade, não sei. Ele era um cara muito bom. Você não o conheceu, não é?
– Ele foi morto antes da minha chegada. Ainda estavam falando nele.
– Gostavam dele. – Lee jogou fora o galho de salgueiro quebrado. – Por que você perguntou isso a respeito de Paulie?
– Sou do tipo metido, só isso.
– Não quis dizer que você não deveria ter feito isso. Meu Deus, como é difícil conversar com as pessoas!
Tulip encolheu os ombros largos.
– Você pode falar comigo sobre qualquer coisa, só que talvez haja algumas coisas sobre as quais não deveria.
– Você quer dizer coisas sobre você e Paulie?
Tulip virou a cabeça e olhou atentamente para o jovem.
– Ah, o típico irmão mais novo.
Lee corou, riu e disse:
– Vá para o inferno. – E então, depois de uma curta pausa: – Mas foi o que você quis dizer, não foi?
Tulip sacudiu a cabeça.
– Não acho que haja muito sobre o que não falar.
Paulie Horris deu a volta numa árvore alta do outro lado do lago, fez uma concha com as mãos e gritou:
– Ei, assassinos. O sol já baixou. Vocês estão dez minutos ilegais.
Os dois se levantaram, acenaram para ela, recolheram as espingardas e os patos mortos e voltaram para o barco pelo meio das urzes. Tulip ficou de pé na popa e o impeliu na direção dos chamarizes. Por duas vezes, Lee Branch pareceu prestes a dizer alguma coisa, mas não falou até estar inclinado na lateral do barco para apanhar um pato artificial. Daí perguntou:
– Você não está apenas sendo idiota, está?
Inclinando-se para recolher dois chamarizes enquanto o barco passava por eles, Tulip respondeu:
– Pare de resmungar.
Lee endireitou-se e disse claramente:
– O fato de o marido dela ser um herói de guerra e esse tipo de coisa. Você não está deixando isso incomodar você, está?
– Tsc, tsc, tsc. E eu pensei que já tinha ouvido de tudo – disse Tulip.
O rosto de Lee corou novamente. Ele riu e falou:
– Não adianta nada conversar com você.
Os dois então recolheram o resto dos chamarizes.
Enquanto Tulip impelia o barco para o abrigo, Paulie Horris contornou uma moita de sumagre na ponta oposta do lago e caminhou até o cais de pedra para encontrá-los. Era uma mulher de trinta anos de idade, alta e com cabelos e olhos escuros, vestindo uma saia de lã cinza e um casaco de couro de três quartos.
– A senhora é uma mulher muito elegante, sra. Horris – cortejou Tulip.
– Muito obrigada, senhor – disse ela, fazendo uma reverência.
Lee guardou os chamarizes no abrigo de barcos, enquanto Tulip amarrava o barco para que não batesse no cais se ventasse. Então, cada um carregando alguns dos patos, caminharam lado a lado, com a garota entre os dois, em direção à casa.
Depois de terem percorrido mais ou menos cem metros, Lee Branch revelou à irmã:
– O sueco vai embora.
O tom dele fez com que ela virasse o rosto repentinamente e perguntasse:
– Sim?
– Acho que sou um tolo – disse Lee. – Mas pensei que nós... Bem, enfim, ele está falando em ir embora. – Chutou um pouco de cascalho.
Ela parou, e os dois pararam com ela. Virou-se para Tulip, e estava bem pálida.
– Ele – começou e hesitou – ele tentou me usar para que você ficasse?
– É um jeito tolo de pensar nisso, Paulie – falou Tulip.
Ela olhou para os pés e, num tom bem baixo, disse:
– É. Acho que é – e voltou a caminhar no mesmo passo de antes.
Os três voltaram para a casa e, depois de levar seus patos até a cozinha, Tulip subiu para o quarto e começou a escrever uma carta para uma garota em Atlanta.
Querida Judy:
Você provavelmente ficará surpresa por saber de mim depois de todos esses anos, mas, por alguma razão, tenho pensado muito em você nesses últimos dez dias. Como terei de ir a Atlanta em breve, de qualquer maneira, pensei que...
Donald havia entrado na sala para dizer que o jantar estava pronto enquanto Tulip contava sua versão da história. Tínhamos passado para a sala de jantar, e Tulip havia falado durante a maior parte da refeição, terminando de comer quando já estávamos prontos para a sobremesa – torta de nozes. Claro que ele nunca havia ido a Atlanta, embora afirmasse que tivera a intenção de ir. No caminho para lá, ele parou em Washington e acabou profundamente envolvido com algo relacionado a uma organização de veteranos – ou uma organização de veteranos em potencial. Àquela altura, não tinha mais tanta certeza de que Judy ainda estaria em Atlanta depois de todos aqueles anos mesmo que ele tivesse lembrado o endereço dela corretamente e, claro, Paulie não estava por perto para lembrá-lo de Judy.
– Tudo bem – eu disse quando ele terminou –, mas isso não tem muito a ver com você. Você não tem muita importância nessa história. A menos, é claro, que queira admitir que, assim que começa a se envolver com as coisas ou as pessoas, você inventa uma fantasia que chama de memória de algum outro lugar para arrastá-lo para longe de qualquer espécie de responsabilidade.
Tulip baixou o garfo cheio de torta e disse:
– Não sei por que perco meu tempo conversando com você. Olhe aqui, eu contei como me senti em relação a Paulie e em relação à garota de Atlanta. Eu...
– O que você me diz sobre o que passou pela sua cabeça não tem nada a ver com coisa alguma. Não estou levando nada daquilo em consideração.
Ele sacudiu a cabeça.
– Você é um horror. Não me admira que escrever não tenha muito a ver com a vida, se é assim que fazem os escritores.
– Vá em frente e coma – eu disse. – São os seus pensamentos sobre a vida que não têm muito a ver com a vida. Por que você acha que virou as costas para Paulie?
Ele respondeu enquanto mastigava um pedaço de torta:
– Bom, eu sempre fui um cara do tipo “ame-as-onde-as-encontra-e-deixe-as-onde-as-amou” e...
– Foi o que eu quis dizer. E você espera que eu chame isso de pensamentos?
Ele deu outra garfada na torta e sacudiu a cabeça novamente.
– Você é um horror.
– Você acha que ela tinha razão ao pensar que o irmão havia feito a mesma coisa com Horris?
– Nunca pensei nisso. Olhe aqui, Papai, se há um lado homossexual em Lee, não acho que ele tenha se dado conta disso algum dia. Ele não é um mau garoto.
– O maior problema de pessoas como você não é o fato de os seus pensamentos serem tão infantis, mas o fato de que vocês impedem que as pessoas pensem ao seu redor.
– Eu sei. Não peguei as interjeições adequadas dos trechos meia-boca de freudismo que você leu em algum livro e compreendeu mal com a intenção de extrair o melhor de você. As garotas são melhores nisso, não são?
– Não as que eu conheço. Acho que não tenho sorte.
– Bem, depois de eu descansar um pouco, vou tentar conseguir alguns telefones. Nunca gostei muito do tipo de pequenas com quem você andava, exceto talvez por...
– Detestaria pensar que eu andava com o tipo de pequenas de que você gosta. Vai querer o café aqui ou na sala de estar?
Voltamos para a sala de estar, onde Donald nos serviu o café. Donald Poynton era um negro de estatura mediana de 35 anos com um rosto escuro muito bonito. Eu gostava dele. Tinha um excelente senso de humor que não usava muito, a menos que conhecesse a pessoa. Ele disse:
– Os cachorros estão na cozinha se você os quiser.
– Não tem pressa – respondi. – Mande-os para dentro quando você terminar, a não ser que eles estejam atrapalhando você.
– O seu problema – começou Tulip, depois que Donald havia saído, corrigindo-se em seguida. – Um dos seus problemas é que você sempre tem certeza de que me entende.
– Não acho que eu entenda muito você. A diferença entre nós é que eu acho que não há muita coisa em você que valha a pena compreender.
Atravessei a sala para pegar charutos enquanto ele dizia:
– Ah, então você não acha que valha a pena compreender a todos?
– Teoricamente, sim. Mas há a questão do tempo envolvida, e não posso contar em viver mais do que cinqüenta ou sessenta anos. – Levei o pote de vidro de charutos até ele, que pegou um.
– São seus? Ou vêm com a casa? – perguntou.
– Meus.
– Que bom. Os seus charutos são provavelmente a única coisa a seu respeito de que sempre gostei, ou você achava que era do seu cabelo? Se você não tivesse tanta certeza de que havia me compreendido daquela vez em Baltimore, não teríamos enfrentado todo aquele problema.
– Ah, aquilo? Aquilo não foi realmente um problema.
Ele mordeu a ponta do charuto e ficou me encarando com ar sombrio.
– Às vezes é difícil falar com você, Papai. Não é de admirar que tenham mandado você para a cadeia.
– Você se preocupa demais com aquela vez em Baltimore, com ter começado com o pé esquerdo comigo. Eu teria me esquecido daquilo há anos se você não ficasse relembrando sempre. Por que você não esquece isso?
– Seu filho da puta condescendente – disse ele, rindo quando eu ri. – Você fica realmente irritado ao pensar que é apenas humano.
– Não gosto dessa palavra apenas, a menos que você queira dizer, é claro, que o Everest tem apenas 8.800 metros de altura ou que a baleia azul é apenas o maior animal ou...
– O que você está tentando fazer? – perguntou ele, com desprezo. – Exibir-se para mim? Se você vai começar um daqueles discursos chatos sobre o futuro da raça humana e o potencial desperdiçado da humanidade, eu vou dormir. Talvez você não esteja velho demais para falar essas coisas, mas eu estou velho demais para ouvi-las. – Ele estourou numa risada. – Ei – disse, ainda rindo –, eu finalmente li algo que você escreveu. Um amigo me deu em São Francisco. É um horror.
– O que é?
– Está na minha mala. Mostro para você amanhã. Não quero estragar falando sobre isso. É incrível! Eu sempre soube que você era maluco, mas... – disse, sacudindo a cabeça.
– Quer uma bebida? Quem sabe uma dose de brandy? Você fica todo chateado quando pensa no que aconteceu em Baltimore, exatamente como quando eu falei em Kiska. Acho que há muitas coisas no seu passado sobre as quais você não gosta de pensar.
– É a segunda vez esta noite que você fala em Kiska – disse ele. – E isso certamente não seria uma dessas coisas. O que você espera que eu faça? Você sabe que eu nunca apelei para a hierarquia, mas, de qualquer maneira, eu era um tenente-coronel, e você era um reles sargento que tentou...
– Não havia nenhum capote de oficiais japoneses na ilha na ocasião, se é que houve algum.
– Eu mesmo os vi. Não me diga isso.
– Dois sujeitos que haviam sido alfaiates na vida civil estavam cortando aqueles bons cobertores japoneses e os costurando como capotes de oficiais com insígnias falsas e tal, e os garotos os estavam vendendo nos barcos por 125 pratas cada, ou o equivalente em bebida, o que não dava muita coisa em bebida na época.
– Você está falando sério?
– Estou. E você estragou tudo na busca de um estoque de capote que nunca existiu. Tínhamos muitos dos cobertores, mas você sabia disso.
– Você está mentindo – disse ele. – Só por isso vou pegar aquele texto que você escreveu. Onde estão as minhas malas?
– No quarto amarelo. Vire à direita no topo da escada e siga até o final do corredor.
Ele saiu, subiu a escada e logo ouvi seus passos acima da minha cabeça. Quando voltou, tinha um pedaço de papel amarelado na mão.
– Aqui está – disse ele. – E se você conseguir ler isso sem rir, é um gozador ainda mais cara-de-pau do que eu.
O recorte pertencia a um semanário que havia deixado de existir no período da depressão do começo dos anos 30.
– É uma resenha de livro – eu disse.
– É um horror – disse ele.
Eu li.
Do extraordinário caos de adivinhações, ambigüidades, charlatanismo e imprecisões que é a história da Rosacruz, Arthur Edward Waite, em A irmandade da Rosacruz (William Rider and Son, Londres, 1924), tentou criar uma organização e uma avaliação de informações. Exaustivamente meticuloso, amplamente experiente em pesquisa mística, ele foi bem-sucedido ao descreditar uma vasta quantidade de bobagens acumulada por estudantes entusiasmados que viram em cada alquimista, cada cabalista e cada mágico um autêntico Irmão da Rosacruz.
Os fatos de Waite parecem ser sempre fatos, embora a leitura que faça de suas implicações não seja sempre convincente. Assim, embora ele demonstre claramente não haver prova concreta da existência da ordem Rosacruz antes do aparecimento, em 1614 e 1615, respectivamente, dos anônimos Fama Fraternitatis R :. C :. e Confessio Fraternitatis R :. C :., e, em 1616, do Casamento químico de Johann Valentin Andreae, ele nega que Andreae pudesse ter sido um dos fundadores da ordem. Para comprovar essa negação, ele cita Vita ab Ipso Conscripta, em que Andreae, listando o Casamento químico entre os escritos dos anos 1602-1603, caracteriza-o como uma brincadeira jovial que se originou de outros monstros ridículos: “uma ilusão divertida, que pode espantar por ter sido considerada verdadeira por alguns, e interpretada com muita erudição, com bastante tolice, e para demonstrar o vazio do que foi aprendido”.
Waite sugere que o texto do Casamento químico foi interpolado com seu simbolismo rosacruciano depois que seu autor leu Fama e Confessio. Ele faz vistas grossas à alternativa mais provável de que o desconhecido autor ou autores daqueles dois manifestos tiraram seus simbolismos do Casamento químico. Não é de todo improvável que eles tenham visto o manuscrito durante os quatorze anos que se passaram entre sua composição e a primeira impressão de que se tem registro. Nesse caso, é claro, a teoria prevalecente de que Andreae foi o pai da Rosacruz seria correta, embora sua concepção fosse resultado de uma brincadeira. Nesse sentido, não há por que pensar que Fama e Confessio estejam excluídos, se não especialmente incluídos, nos “outros monstros ridículos” que o panfleto de Andreae originou.
Não obstante sua própria crença contrária, nada há na disposição feita por Waite das provas que comprove o fato de que uma ordem corporativa de Rosacruzes cujos membros não eram conscientemente impostores existiu antes do século XVIII, quando a ordem parece ter crescido lado a lado – se não mais intimamente misturada – à Maçonaria Especulativa. Em Clavis Philosophiae et Alchymiae Fluddanae, de 1633, Robert Fludd, tão bem informado no assunto como qualquer outro, parece ter resumido os resultado de dezessete anos ou mais de investigações na frase: “Afirmo que todo Theologus da Igreja Mística é um verdadeiro Irmão da Rosacruz, onde quer que ele possa estar e sob qualquer obediência que seja da política das Igrejas”. Isso certamente não indica que Fludd conhecesse alguma corporação legítima.
A Ordem da Rosa Vermelha e da Cruz Dourada organizada, ou reorganizada, por Sigmund Richter na Alemanha, em 1710, indubitavelmente se transformou na crença de seus melhores membros em uma autêntica ordem Rosacruz. Desde então até os dias de hoje (Waite dedica um capítulo aos Rosacruzes americanos) há provas da existência mais ou menos esporádica de grupos de homens que empregaram o nome e os símbolos da Rosacruz para significar o que quer que desejassem, para promover quaisquer que fossem os propósitos que calhassem ter, alquímicos, médicos, teosóficos ou o que fosse. De ligações entre grupos, mesmo entre contemporâneos, de qualquer linhagem merecedora do nome, há poucos rastros. A Pedra e a Palavra significaram qualquer coisa para qualquer homem, conforme sua preferência.
Waite opta por descobrir alguma linha contínua de propósito místico que vai do início da Rosacruz até os dias atuais. Felizmente, ele não manipula provas para avalizar qualquer de suas teorias. Ele dispensou ficções sempre que as reconheceu, independentemente de suas origens, alcançando por esses meios uma história erudita – e com o máximo de verdade possível num campo tão confuso – de um símbolo que vem fascinando mentes adeptas à teosofia ou ao ocultismo desde o começo do século XVII.
Quando terminei a leitura e ergui o olhar, Tulip disse:
– Você não mudou a expressão. Não me diga que gostou.
– Quem gosta de alguma coisa que escreveu no passado? Mas com exceção de um ou dois pontos... Ah, bem, eu era um sujeito erudito nos idos de 1924, não era?
– Hummm. E você certamente tinha a atenção voltada para os fatos do dia-a-dia também, hein? O povão deve ter sofrido muito tentando descobrir o que fazer da vida até surgir esse texto para lhe dar uma direção.
– E você acha que isso nos iguala por sua idiotice em relação a Kiska? – perguntei.
– Bom, se você quer brincar assim, tudo bem, é claro, mas pensei que isso me deixava com uma certa vantagem.
– Posso ficar com uma cópia? Tinha me esquecido disso.
– Pode ficar com essa. Não o culpo por querer queimá-la.
– Você disse que conseguiu isso com um sujeito de São Francisco?
– De um cara chamado Henkle ou coisa parecida. Você o conhece? Ele disse que costumava andar com você.
– Eu provavelmente o conheço, mas não me lembro do nome dele. Comecei a escrever em São Francisco.
– Foi o que ele disse. Ele contou algumas histórias muito boas sobre você, principalmente uma sobre você estar ligado a uma dupla de mafiosos em Chinatown e...
– Agora eu me lembro dele, um sujeito chamado Henley ou coisa parecida que eu costumava ver perto do Radio Club. Imagino que os mafiosos sejam Bill e Paddy, a menos que isso seja apenas um toque que você tenha acrescentado à história.
– Eu não acrescento toque nenhum. Só estou contando o que o homem disse.
– Essa é uma das declarações mais improváveis que já ouvi, mas tudo bem. Isso foi no tempo em que, se a pessoa administrava um estabelecimento, tinha de ter um guarda-costas quer precisasse ou não, apenas por uma questão de status. Bill tinha um chinês gorducho de meia-idade meio fruta que me ofereceu emprestado se eu quisesse intimidar alguém – tipo quebrar uma perna ou coisa parecida –, mas me disse para não estragá-lo oferecendo dinheiro. “Cinco ou dez dólares de gorjeta são o suficiente”, disse ele. “Mas não o estrague dando-lhe dinheiro.” Incluí esse chinês no roteiro de um filme de Hollywood nos anos 30, mas tínhamos um diretor machão que não filmava bichas, de modo que tivemos de mudá-lo um pouco.
Tulip assentiu.
– Esse Hembry, ou qualquer que seja o nome dele, me contou sobre o atirador florzinha. Também me contou que você tinha uma garota chamada Maggie Dobbs que era noiva de um sujeito em Tóquio e que...
– Ele gostava de conversar, né?
– É. Tinha alguma coisa na voz dele, e pessoas com alguma coisa na voz sempre gostam de conversar. Acho que ele meio que admirava você.
Os cães vieram da cozinha com Donald. Os Irongate tinham dois poodles marrons e um preto. Um dos marrons, Jummy, era enorme para um poodle. Eles se aproximaram para brincar um pouco comigo e depois voltaram para ver quanto carinho conseguiam arrancar de Tulip. Donald desejou boa noite e levou as coisas do café embora.
Coçando a cabeça de um dos cachorros, Tulip olhou para Donald e disse:
– Ele caminha bem.
Lembrei que essa era uma das coisas que Tulip sempre notava nas pessoas. Ele próprio era um homem de altura apenas mediana, mas que tinha uma postura tão ereta que parecia mais alto, apesar do peito e dos ombros sólidos. Caminhava com uma espécie de impulso para frente consciente, como se determinado a nunca ser empurrado para trás ou perder o equilíbrio. Alguém – acho que foi seu amigo dr. Mawhorter – disse um dia que ele poderia ter ido a qualquer lugar se tivesse uma bússola.
– Costumava ser um excelente peso-médio quinze ou dezesseis anos atrás. Lutou na Filadélfia com o nome de Donny Brown.
– Nunca ouvi falar nele.
– Ele era muito bom mesmo assim. Mas diz que não tinha as mãos para o negócio, e que é um jeito difícil de um homem negro ganhar a vida, a menos que acredite que vá chegar ao topo rapidamente ou não saiba fazer mais nada.
– É um jeito difícil de ganhar a vida na Filadélfia independentemente da cor. É uma cidade difícil até para pegar um táxi, não é? É preciso ir até o meio-fio e acenar os braços para chamar a atenção deles.
Os cães concluíram que tinham conseguido toda a atenção que poderiam obter de Tulip naquele instante e o deixaram. Jummy foi se deitar no lugar de sempre, atrás do sofá, e Meg aninhou-se para passar a noite no chão, na ponta do sofá. Cinq, o preto, ainda tinha características de filhote, e começou a se mover de um lugar para outro à caça do ponto ideal para se deitar, dando preferência a locais em que apanhasse o vento que entrava por baixo da porta.
– Você realmente tem problemas – eu disse a Tulip. – Por que você não... – Interrompi quando uma buzina tocou na entrada de carros.
Tony Irongate entrou carregando duas mochilas de lona. Largou-as na porta quando os cães se reuniram ao seu redor. Era um garoto pequeno, magro e forte de quatorze anos com olhos castanhos e um rosto de pele muito clara.
– Oi – disse. – O que você sabe de Paulie e Gus?
– Eles devem chegar amanhã à noite ou na quarta-feira – respondi, apresentando-o a Tulip em seguida.
Tony passou pelos cachorros para apertar a mão de Tulip e então me contou:
– Ganhei um novo arco-e-flecha de Mingey Baker. Tem muita força, mas as flechas escorregam quando miro para baixo. Podemos arrumar isso?
– Deve ser simples.
– Ótimo. Vamos fazer isso amanhã? Imagino que Sexo e Lola ainda não apareceram.
– Ainda não.
– Bom, vou tomar um leite e ir para a cama. Quer alguma coisa da cozinha?
– Não, obrigado – agradeci.
– Vejo vocês de manhã – ele disse para nós dois, pegando as mochilas de lona e saindo, acompanhado pelos cães.
– Que história é essa de Sexo? – perguntou Tulip.
– É o apelido que ele deu para a irmã mais velha este mês. Ela está na idade de querer saber as coisas e tem feito muitas perguntas.
– E você as tem respondido. Rapaz, sou capaz de ver você passando a língua pelos lábios e a enchendo de respostas. Ela é boa de cama? Algumas meninas são.
– Ei, ei, não é nada disso. Isso não tem nada a ver com sim ou não. É algo num nível que você provavelmente não iria compreender.
– Se não é nada disso, é certo que eu não compreenderia – concordou. – Eu mesmo sou do tipo sim ou não.
– Eu sei – eu disse. – Como é uma personalidade dominante, você anda por aí achando que está conseguindo uma grande variedade, mas, na verdade, quando olha para as coisas como elas realmente são, é só masturbação de um jeito ou outro, exceto por uma ou outra vez em que você foi enganado.
Ele riu.
– Vou ter que pensar nisso. O que é mais do que posso dizer a respeito da maioria das coisas que você me fala. Você acha que é por isso que às vezes é chato? Não realmente chato, mas mais chato do que deveria ser.
– Com a sua cabeça e o seu jeito de agir, devia ser sempre chato.
– Não se usa a mente nisso, Papai. Não quando se tem qualquer outra coisa. Isso é só para escritores. Olhe só, aproveitando o assunto, um dia você me deu um conselho que disse que a sua mãe havia lhe dado. Lembra disso?
– Ela só me deu dois conselhos na vida, e ambos eram bons. “Nunca ande num barco sem remos, filho”, disse ela, “mesmo que seja o Queen Mary. E não perca seu tempo com mulheres que não sabem cozinhar, porque é pouco provável que elas sejam muito melhores em outros quesitos.”
– Sabe que a sua mãe estava morta e que em seu túmulo, anos antes, chegaram a pensar em construir o Queen Mary.
– Ela era meio escocesa. E alguns deles conseguem prever o futuro – eu disse.
– Tudo bem, mas era do outro conselho que estávamos falando. Há mais verdade nele do que imaginei no começo, mas ele não está sempre certo.
– Não há muitas coisas que estejam sempre certas.
Ele se levantou e foi até a mesa do canto.
– Vou preparar a minha saideira agora para poder fugir rapidamente para a cama se você continuar falando desse jeito. Você é um chato de galochas quando fica filosófico, Papai. Por que não continuamos simplesmente falando sobre sexo? – disse, voltando a sentar-se com a bebida na mão.
– Tulip – comecei –, você está parecendo um homem que quer me contar sobre uma garotinha que conheceu em Boston e...
– Bem, na verdade foi em Memphis que eu a vi pela primeira vez, mas...
– E espero que eu pareça um homem que não vai ficar ouvindo, mas que está prestes a ir para a cama e ler um pouco antes de cair no sono.
– Tudo bem – disse ele, de bom humor. – Não estou com pressa para desabafar nada do peito, embora essa garota com que cruzei em Memphis não soubesse cozinhar coisa alguma e botasse alho em tudo.
– Você costumava gostar de alho.
– Claro que gosto, mas tem muitas péssimas cozinheiras no mundo que acham que conseguem deixar qualquer coisa boa simplesmente enchendo de alho. Daí, se reclamamos, elas sorriem como se tivessem nos apanhado fazendo algo errado e dizem: “Ah, então você não gosta de alho?” A que horas você se levanta de manhã?
– Mais ou menos às oito, nesta época do ano, mas você não precisa...
– Me chame quando acordar. Vou tomar café com você. Algum motivo especial para não me contar que os Irongate estavam a caminho de casa?
– Não. Só a minha falsidade de sempre.
Ele terminou a bebida enquanto eu desligava as luzes, e subimos juntos para o andar de cima. Olhei o quarto e o banheiro dele para ver se estava tudo em ordem, disse boa noite e fui para o meu próprio quarto no final do corredor. Cinq, o jovem poodle preto, havia se acomodado confortavelmente perto do pé da minha cama e, depois que eu tirei a roupa, aproximou-se para ganhar o carinho de boa noite. Então deitei-me na cama e li Essay in Physics de Samuel com a educada carta de Einstein recusando-se a encontrar no Éter de Dois Estados assunto digno da atenção de um cientista.
Eu queria pensar em Tulip depois, mas acabei concentrado na idéia de um universo em expansão ser apenas uma tentativa de disseminar clandestinamente a idéia do infinito novamente e em quais rearranjos seriam necessários na matemática se um, a unidade, o item avulso, não fosse considerado um número, exceto talvez como uma conveniência para a realização de cálculos. Logo estava com muito sono. Apaguei a luz e fui dormir.
Tony estava na sala de jantar quando desci para tomar o café-da-manhã, comendo arenque defumado e lendo um dos jornais. Dissemos bom dia, e eu me sentei com outro dos jornais. Donald me trouxe suco de laranja, arenque defumado e torradas. Eu estava na metade da refeição quando Tulip se uniu a nós. Então eu e o garoto o deixamos terminando sozinho e fomos para a varanda olhar o novo arco-e-flecha sobre o qual ele havia me falado na noite anterior.
– É brutal – disse Tony, entregando-o a mim. – Claro que todos são brutais, mas este é brutal de verdade. – Era uma espécie de cruza entre uma besta e a coisa que o pessoal da Pensilvânia oeste costumava fazer com molas de automóveis. – Tem toda a força do mundo, mas... está vendo?... a flecha escorrega para baixo se a gente vira ele. – Seus olhos escuros estavam brilhando. Ele gostava de armas.
– Podemos arrumar isso colocando um trequinho aqui para segurar a flecha para trás até você soltar o gatilho, mas eu não me incomodaria com isso. Você não vai atirar muito para baixo. Por que você simplesmente não prende um pedacinho de fita adesiva na flecha quando precisar mantê-la no lugar? De qualquer maneira, não é possível carregar e engatilhar essas coisas rapidamente, e, com um pedaço de fita adesiva, duvido que perca alguma coisa em força ou precisão.
– Bom, se você realmente acha isso – disse ele, lentamente. – Mas...
Baixei o olhar para ele.
– Mas talvez eu só esteja tentando me livrar do trabalho? Pare de falar como o Tulip.
Ele riu e comentou:
– O seu amigo Tulip é uma figura, né?
– De certo modo, sim. Mas você precisa entender que ele e eu estamos sempre jogando, e você provavelmente estará mais perto dos fatos se não acreditar em nenhum dos dois completamente. Na maior parte do tempo ele tenta parecer um pouco pior do que é, e eu tento parecer um pouco melhor. Velhos conversando sobre acontecimentos antigos costumam fazer muito isso e, de qualquer maneira, uma porção de besteiras masculinas é só para impressionar mulheres e crianças, quando não apenas para impressionar um ao outro, ou talvez eles mesmos.
– Você já me disse isso antes – ele falou.
– O que não impede que seja verdade – disse eu. – Vamos lá, vamos levar esta coisa para trás da garagem e experimentar. – Descemos da varanda, as persianas ainda não estavam abertas, e atravessamos o gramado, que apresentava a consistência usual do começo da primavera, em direção à via de cascalho depois da garagem, onde os bordos pareciam ainda a um mês de florescerem. – Tulip tem algumas coisas boas. Uma de que sempre gostei foi a sua educação. Ele é um homem de Harvard, sabia?
Andando ao meu lado carregando o arco-e-flecha e a bolsa de couro que veio junto, Tony disse, “É sério?”, num tom que não consegui compreender direito. Nem sempre eu entendia Tony.
– Sim. Não sei nada sobre a família de Tulip ou de onde ele veio. Ele me contou coisas em que eu não quis acreditar. Mas, de qualquer maneira, ele esteve em Harvard por quatro anos e, quando se formou, acreditava ser um homem culto até se deparar no ano seguinte em Jacksonville com um sujeito chamado Eubanks que lhe explicou que ser um homem culto era mais do que passar por uma universidade, embora talvez isso seja um primeiro passo necessário. Tulip nunca havia pensado nisso, mas acreditou em Eubanks, mandou tudo para o alto e deixou de ser um homem culto.
– Gostei disso também – disse Tony. Então começamos a treinar no arco-e-flecha apoiados num toco de árvore que usamos como alvo para várias outras armas antes: o chão se erguia num aclive atrás dele até a colina acima do velho pomar. Era uma arma realmente cruel: arremessava suas flechas de aço de três polegadas com força e, depois que pegamos o jeito da coisa, com precisão. Tony sorriu para mim.
– É legal, não é?
Assenti.
– Hummm.
Seu sorriso se abriu ainda mais.
– E seria uma idiotice reclamar que não serve para nada além disso, não seria?
– Para nós, sim.
Ele suspirou e concordou.
Quando voltamos para a casa, Tulip estava lendo um jornal e tomando uma xícara de café no ambiente castanho e branco do primeiro andar que por algum motivo era chamado de gabinete, um belo ambiente cheio de janelas com vista para a ponta do gramado que sumia por entre as árvores.
Ergueu o olhar do jornal para o arco-e-flecha.
– Vocês não estão recuando um pouco no tempo? – perguntou. – Andei lendo a respeito de armas de raio, explosivos, desintegradores e...
– São fases que acabam se autodestruindo, como a pólvora – disse eu. Quer dar uma caminhada até o lago?
– Claro. – Terminou o café e se levantou.
Encontrei um casaco para ele – ainda fazia frio –, e nós três atravessamos o gramado até o caminho que levava ao lago. Alguns dos pintassilgos que ainda não haviam voltado para o norte raspavam o chão sob um comedouro, e um dos passarinhos que vivia na nogueira descia rapidamente seu tronco. Um chapim piou, e três deles voaram hesitantemente em nossa direção.
– Estão atrás de sementes de girassol – disse Tony a Tulip. – Ele lhes dá comida na mão.
– É o seu lado São Francisco – disse Tulip. – É um velhote que leu demais. Sempre foi.
O menino riu para ele. Estava andando entre nós dois.
– Você já o viu fazendo o número de moscas amestradas? É muito legal.
– Posso imaginar – disse Tulip. – De muitas maneiras, o Papai é, na verdade, um garoto engraçadinho. Queria poder lhe contar sobre uma ocasião numa cidade perto de Spokane...
– Tony é uma das pessoas na frente de quem podemos conversar – eu disse. Estávamos andando ao longo do caminho enlameado. Era largo o bastante para seguirmos lado a lado. Alguns dos arbustos pareciam quase prontos para desabrochar; sempre ficam assim, por semanas e semanas antes de acontecer qualquer coisa.
– Você quer dizer que eu posso contar a ele sobre aquela vez no Coeur d’Alenes? – perguntou Tulip.
– Não sei o que você tem em mente, mas pode contar. Sobre as moscas, não há nada demais. Você viu como elas gostam de coçar as asas. Se tomar cuidado para não espantá-las com a sombra das mãos quando começar e coçá-las gentilmente nas asas, elas gostam e ficam por perto. É só isso.
– Tudo bem – disse Tulip. – Isso é por que você acha que elas gostam. Agora, por que você acha que você gosta?
– Se for verdadeira a teoria de que os insetos irão acabar dominando o mundo, é melhor já ter alguns amigos entre eles.
– Ele não é um velho fóssil desagradável? – Tulip perguntou ao garoto. Sacudiu a cabeça. – Ainda lembro quando ele tinha cabelos.
– Vocês dois se conhecem há muito tempo, não é? – perguntou Tony.
– Há tempo suficiente, mas você não precisa pensar que somos muito bons amigos. É só que de vez em quando ele aparece onde quer que eu esteja e fica por alguns dias. Nunca por muito tempo.
– Você sabe quando eu apareço e por que não fico por muito tempo – disse Tulip num tom meio truculento por cima da cabeça do garoto.
Como eu não disse nada, Tony perguntou:
– Você sabe?
– Ele é maluco – respondi. – Eu sei, é verdade, mas ele é maluco mesmo assim.
– Isso é fácil de dizer – disse Tulip com indiferença.
– Ei – disse Tony –, você acabou de dizer que eu era uma das pessoas na frente de quem vocês podiam conversar. Vocês não estão conversando na minha frente. Onde quer que vocês estejam conversando, certamente não é na minha frente.
Tulip cutucou o ombro de Tony com o cotovelo.
– Um jovem engraçadinho, hein? Seu sem-vergonha! – Fez uma careta para mim por cima da cabeça do garoto. – Vamos contar tudo para o garoto e ver o que ele diz a respeito?
– Se você quiser – disse eu. – Mas você precisa saber que eu tenho a minha opinião, independentemente de quem diz o quê.
– Eu sei disso. Você é um inimigo da democracia.
– Não sou um inimigo, embora não confie muito no seu valor em pequenos grupos. Não saia por aí dizendo que sou um inimigo da democracia. Vão acabar me botando na cadeia de novo.
– Eis algo com que se preocupar em manhãs sombrias antes de tomar o café. Olhe aqui, Papai, por que não falamos nisso de modo mais realista? Eu...
– Realista é uma daquelas palavras que, quando surgem numa discussão, fazem pessoas sensatas apanharem os chapéus e irem para casa – eu disse a Tony. – Como você se saiu com aquela luminária com que estava trabalhando?
Ele havia tido uma idéia – em parte por causa da curiosidade infantil, em parte por causa de um livro sobre simetria dinâmica que seu pai tinha em casa, em parte por saber que ninguém levava muita fé nas teorias de iluminação aceitas atualmente – de que uma folha de metal reflexivo curvado nas duas pontas numa espécie de espiral em ângulo reto poderia se tornar um abajur economicamente viável. Ele estava ignorando alguns fatores de calor, é claro, ou esperando lidar com eles acidentalmente, mas, afinal, qual teoria de iluminação não faz isso?
– Aquilo? Nunca cheguei a fazer nada a respeito.
Os cães nos alcançaram quando chegamos à encruzilhada do caminho – à esquerda, subia-se uma colina até o novo santuário de pássaros dos McConnell, à direita, ia-se para o lago. Fizeram uma grande e breve festa conosco e seguiram em frente correndo até onde partes do lago – já fazia algumas semanas que todo o gelo havia derretido – eram visíveis através de árvores ainda nuas. A maior parte das sempre-verdes estava do outro lado. Era um lago de três ou quatro hectares com duas pequenas ilhas no meio – com não mais do que três metros e meio de profundidade na parte mais funda – e alguns robalos de bocas grandes, lúcios, peixes-sol, cobras, sapos e tartarugas na temporada. Nunca havia comido cobras, e os robalos tinham muito gosto de lama, mas as outras coisas eram boas de comer. A água ficava quente demais no verão para as trutas. Não há oxigênio suficiente para elas na água quente. Pensei novamente em como o lago parecia com a descrição que Tulip fizera do lago da mulher Horris, embora ele tivesse dado àquele um cais de pedra, enquanto que esse tinha apenas um píer de madeira de três metros coberto de lona.
– Um pedaço de papelão com papel alumínio colado seria tão bom como um metal reluzente – eu disse. – O principal é a base e a parte de cima com encaixes em espiral para guiá-lo. O papel pode ser melhor de certa maneira, mais fácil de cortar ou colar quando você começar a descobrir que comprimento dá mais luz.
– Você acha que eu devo seguir em frente com isso, então? Pensei que talvez eu não soubesse o bastante sobre o que estava fazendo. Mas eu gostaria de tentar, se você acha que não tem problema.
– Acho que vale a pena tentar – respondi. – Saber o que se está fazendo é apenas parte de um bom trabalho. Usar o que se sabe – e não apenas o que se sabe sobre o negócio em questão – para descobrir coisas que não se sabe é o que faz um bom trabalho. Quase é um resultado muito bom: é só quando você consegue o que é conhecido pelo senso comum e começa a aceitar isso como uma meta que está com problemas. É essa a diferença entre um carpinteiro e um homem que está realmente fazendo alguma coisa.
– Meu pai era carpinteiro – disse Tulip. – Não acho que eu deveria deixar você falar assim.
– Seu pai era ou batedor de carteiras ou cafetão. – Havíamos saído do caminho de cascalho e estávamos indo em direção ao pequeno píer na beira do lago. Eu estava olhando para Tulip, mas não consegui descobrir se ele já havia visto aquele lago antes.
– Mas não era bom o bastante nessas coisas para ganhar a vida em tempo integral com isso. Na maior parte do tempo, precisava trabalhar como carpinteiro. – Fez um sinal com a cabeça na direção do lago, olhando para mim de lado, quase como se soubesse o que eu estava pensando. – Aquele lago de Lee de que eu estava falando parecia com este, só que tinha um cais de pedra, e a cabana ficava perto da água, em vez de longe como esta. E o lago deles é maior.
O que ele chamou de cabana costumava ficar na beira do lago até que os Irongate a mudaram para uma parte mais seca do terreno. E as coisas sempre eram maiores nas histórias de Tulip. Só estava faltando o cais de pedra.
Os cães entravam e saiam da água, fazendo seu exame rotineiro da margem. A seis metros da ponta de uma das ilhotas, um casal de gansos quase a caminho do Canadá observava a nós ou aos cães; nessa época do ano, gansos selvagens tinham mais curiosidade do que timidez.
– O que mais me incomoda – disse Tony – é que o começo da espiral vai ficar perto demais da lâmpada, a menos que a coisa toda seja muito grande.
– Você está pensando num monte de espiral – eu disse. – E talvez precise de muito menos. De qualquer maneira, o seu fotômetro vai dizer qual é o melhor comprimento. Se você quer algo com o que se preocupar, talvez deva pensar numa espiral tridimensional em vez da bidimensional que estamos cogitando.
O garoto fechou os olhos escuros e então os abriu para perguntar:
– Mas como se faz a luz sair da espiral tridimensional? Ela a prende, ou pelo menos a maior parte dela, não? E não tenho exatamente certeza sobre como se mantém essa espiral – da forma como você se refere a ela – em três dimensões.
A minha matemática não era boa o suficiente para responder qualquer de suas perguntas, e eu comentei isso, acrescentando:
– Claro que talvez não estejamos diante de um problema matemático, afinal. Tem quem considere a topologia um ramo da matemática, mas eu acho que essas pessoas são malucas e que nós podemos estar indo em direção à topologia. Não me refiro apenas a nós; estou me referindo a qualquer um que esteja brincando com questões em torno da luz.
Tony deu uma risadinha alegre quando eu disse topologia, como se tivesse mencionado um velho amigo. Durante um inverno, ele ficava escutando enquanto Gus e eu atribuíamos dimensões aos escultores e passávamos horas conversando sobre pintura ter a ver com o relacionamento espacial das superfícies dos objetos e nada mais. Eu gostava de topologia: alguns anos antes, havia escrito uma história numa faixa de Moebius, feita para ser lida de qualquer trecho até aquele trecho novamente e para ser uma história completa e lógica independentemente de por onde se começasse. Ela havia funcionado muito bem – não era perfeita, que história o é? Mas muito bem.
Tulip havia atirado um pedaço de pau na água para Cinq ir buscar a nado. Os cães costumavam nadar bastante até Jummy ter alguns tumores extirpados de suas orelhas, e a água parecia incomodá-las muito, e os outros dois não faziam o que ele não fazia. Cinq agora nadava atrás do pedaço de pau – a cabeça erguida para fora da água, como os poodles costumam nadar mesmo quando não estão preparados. Jummy e Meg entravam e saíam da água numa curva da margem do lago.
Tony disse a Tulip, imagino que maliciosamente:
– Tivemos uma idéia para uma luminária, e...
Observando a cabeça preta que nadava, Tulip disse:
– Se o Papai está envolvido pode ser interessante de alguma maneira, mas é impraticável. Se não for impraticável agora, será em algum momento. Ele é um velho tagarela com muitas teorias e vai desperdiçar um monte do seu tempo se você permitir. – Caminhou para a direção de onde Cinq estava voltando com o pedaço de pau.
– Ele está ficando de mau humor – eu disse ao garoto.
– Bom, você se esquivou do que ele queria falar quando começamos a caminhada. Você ficou dizendo que dava para falar sem problemas, mas se esquivou mesmo assim.
– Esperava que todos notassem isso – eu disse.
– É para o seu próprio bem – disse Tulip, voltando para perto de nós. Estávamos sentados no pequeno píer, e eu acendia um cigarro. – Não faz diferença para mim, ou pelo menos não muita diferença.
– Eu devia me levantar e sair correndo – eu disse a Tony. – É o que as regras mandam fazer quando alguém diz que alguma coisa é para o seu próprio bem.
Tulip resmungou e sentou-se ao nosso lado, estendendo a mão para os meus cigarros.
– Você não acha que as coisas às vezes ficam cansativas? – perguntou. – Saia daqui! – disse ele a Cinq, que chegou molhado com um pedaço de pau na boca. Era um bom cão, apesar de muito filhote, e afastou-se um pouco para se sacudir e deitar-se na grama e ficar mordendo o pedaço de pau. Tulip acendeu o cigarro no meu e me olhou por cima. – Todas essas besteiras não estão nos levando a lugar algum. Estão nos deixando exatamente onde estávamos antes.
– E isso é ruim?
– Isso é ruim – afirmou ele com uma certeza tranqüila –, e você pode brincar o quanto quiser, mas sabe que é.
Tony sentou-se com as pernas cruzadas no píer e ficou nos olhando com brilhantes olhos escuros que fingiam não estar nos observando. Ele não sabia no que estava metido, mas sabia que estava, e gostava disso. Era um bom menino. A maior parte do eu falei foi para ele, e acho que Tulip percebeu e entrou no jogo. Eu sempre derrotei Tulip não falando, ou, pelo menos, não falando sobre as coisas que ele queria falar.
– Desta vez, ele pensa que me pegou de jeito – eu disse a Tony. – Acabei de sair da prisão. O último dos meus programas de rádio saiu do ar enquanto eu estava cumprindo a pena, e as autoridades estaduais e federais me impuseram pesadas penhoras de imposto de renda. Hollywood está fora de cogitação durante essa caça às bruxas. Então ele imagina que eu vou ter que escrever outro livro – o que não exige muita imaginação – e aparece arrastando sua vida insuportável e chata atrás dele para que eu escreva sobre ela.
– Você nunca conseguiria botar tudo num único livro – Tulip disse simplesmente.
– Nunca vou botar nada dela em qualquer livro, se puder evitar – disse eu não tão simplesmente, porque gostava mais ainda de Tulip quando ele dizia coisas como aquelas. – Olhe só – eu estava falando com Tony novamente, ou talvez com Tulip através dele –, estive em duas guerras, ou pelo menos no exército enquanto elas estavam acontecendo, e em prisões federais, tive tuberculose por sete anos, fui casado quantas vezes quis, tive filhos e netos e, exceto por uma breve história razoavelmente boa, porém sem sentido, a respeito de um tuberculoso indo para Tijuana passar a tarde e a noite longe do seu hospital perto de San Diego, jamais escrevi uma palavra sobre qualquer dessas coisas. Por quê? Tudo o que posso dizer é que não são para mim. Talvez não ainda, talvez nunca. Eu costumava tentar de vez em quando, e acho que tentei bastante, como tentei muitas coisas, mas essas histórias nunca ficavam muito significativas para mim.
– Entendo por que você não seria muito bom assunto para um livro – disse Tulip –, mas, de certo modo, é isso que estou falando desde o começo.
– Bom, se eu não sou, por que você é? – perguntei.
– Meu Deus – disse ele, seriamente. – Eu sou mais interessante!
– Não acho que seja, mas este não é um ponto discutível. De qualquer maneira, não tem nada a ver com o que estou falando.
– Que bom que um de nós sabe sobre o que você está falando – Tulip disse em tom melancólico. Então perguntou para Tony: – Você sabe do que ele está falando?
O garoto sacudiu a cabeça.
– Mas ele está chegando a algum lugar.
– Você é jovem – disse Tulip. – Você tem tempo para ficar esperando enquanto ele faz isso. – Então se virou para mim, porque estivera pensando no que eu havia dito: – Que história é essa de netos? Isso é uma novidade desde que nos vimos pela última vez, não é?
– É. Uma menina há uns dois anos e um menino em janeiro, desde que saí da cadeia. Eu ainda não o conheço.
– Que bom. Que bom. Eles estão na Califórnia? – perguntou. Quando assenti, prosseguiu: – A filha de quem você gostava tanto?
– Eu gostava dos meus dois filhos.
Tulip levantou a grossa sobrancelha loira para Tony:
– Ele sabe ser um velho limitado de vez em quando, né? – Voltou-se novamente para mim. – Sou um analfabeto. Você vai ter que me explicar por que ser um personagem mais interessante não me torna alguém melhor sobre quem escrever. Você não precisa explicar, mas terá que fazer isso se quiser que eu entenda você.
– Vamos tentar assim – disse eu para ou através do garoto –, estou num hospital para doenças pulmonares em 1920, numa escola indígena na Estrada Puyallup nos arredores de Tacoma, em Washington. A maioria de nós era o que acabou ficando conhecido como veteranos inválidos da Primeira Guerra Mundial, mas a Administração dos Veteranos não tinha um hospital próprio naquela época. Talvez ainda sequer estivesse organizada por esse nome. Então, o Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos tomou conta de nós em seus hospitais. Nesse, mais ou menos metade de nós éramos tuberculosos, a outra metade era o que então se chamava de vítimas de trauma de guerra, segregados em termos de dormitório alimentação, porque imagino que era preciso manter algum tipo de controle sobre eles – algo que não tínhamos muito – e porque eles poderiam pegar tuberculose de nós. Era um bom hospital administrado com negligência, e acho que quem ficou tranqüilo venceu a doença. É dos tuberculosos que estou falando. Não sei como os traumatizados de guerra (malucos, na nossa gíria) se saíram, embora os mais conscienciosos, os que procuraram a cura, morreram dela. O major encarregado do hospital era conhecido por ser bêbado, mas não me lembro de nenhuma evidência disso. Lembro, porém, que ele tinha medo da recém-formada Legião Americana, e usávamos isso em nosso favor sempre que ele tentava ser rígido, embora eu ache que a maioria de nós pertencesse a outra organização, chamada Veteranos Inválidos. Nossa defesa padrão contra toda tentativa de impor qualquer controle sobre nós era a declaração – feita de má vontade ou triunfantemente, resmungada ou gritada, dependendo de quem era a tentativa e de quais eram as circunstâncias – Não estamos mais no exército! Nossos médicos e enfermeiras – a maioria também recém-saídos do exército – ficaram cansados de ouvir isso, mas demorou para que nos cansássemos de dizê-lo. Recebíamos oitenta ou sessenta dólares por mês como compensação do governo – não lembro os valores exatos –, embora imagine que devesse variar com o nosso grau de doença, já que os termômetros eram chamados de varinhas de compensação; cigarros suficientes para ajudar, embora não o bastante para manter um fumante razoavelmente inveterado completamente abastecido; casa e comida de graça, é claro; e não precisávamos de muitas roupas. Não era uma vida ruim. Toda bebida era ilegal na época – exceto pela dose ocasional que dava para arrancar de uma enfermeira ou um médico –, e as coisas que comprávamos eram muito ruins, mas fortes. As luzes eram apagadas provavelmente às dez da noite, mas o quarto que eu dividia com um garoto de Snohomish havia sido a sala da diretoria nos velhos tempos de escola indígena e estava no mesmo circuito elétrico do banheiro, de modo que bastava pendurarmos um cobertor na janela para podermos jogar pôquer até a hora que desejássemos. Pelo que me lembro, entrávamos e saíamos do hospital quando queríamos, precisando apenas de um passe para passar a noite em Seattle, por exemplo, embora houvesse períodos em que devíamos estar disponíveis. De qualquer maneira, a maioria de nós achava aquilo muito melhor do que trabalhar para ganhar a vida. Às vezes ficávamos duros. Lembro de Branquelo Kaiser – um loiro atarracado do Alasca que tinha a maior parte das doenças conhecidas pelo homem, capaz de bater como um bate-estaca, embora os nós de seus dedos se despedaçassem feito biscoitos água e sal – pegar um cassetete emprestado de mim – eu havia chegado ao hospital depois de um período trabalhando para uma agência de detetives em Spokane, e estamos sempre recolhendo coisas do tipo na juventude – e devolvê-lo na manhã seguinte com dez dólares. Quando li num jornal vespertino a notícia de que um homem havia sido espancado e roubado em cento e oitenta dólares na Estrada Puyallup – que ia de Tacoma a Seattle – na noite anterior, mostrei-a ao Branquelo, que comentou que as pessoas roubadas sempre exageravam nas quantias. Às vezes, ficávamos cheios da grana: havia um rapaz moreno magro e com uma cara chupada chamado Gladstone que finalmente recebeu seu bônus do exército – uma quantia considerável, embora eu não lembre mais o valor – e gastou tudo com dois carros usados e a obra completa de James Gibbons Huneker porque queria ser culto, e eu havia lhe dito que Huneker era cultura. Na maior parte do tempo, sentíamos tédio. Acho que nos entediávamos com muita facilidade. Não quero dizer que nos sentíssemos muito entediados – embora isso pudesse ocorrer às vezes –, mas apenas entediados. O clima por lá é muito bom, sabe. Chove pelo menos uma vez por dia entre setembro e maio, mas raramente com força. E não fica muito frio, de modo que não há por que se preocupar com um sobretudo. Mas é preciso levar uma capa de chuva quando se sai...
Os três cães começaram a latir e correr a partir de três lugares diferentes no caminho pelo qual chegamos e desapareceram numa curva fazendo barulho.
– Chegou visita – disse eu.
– Do e Lola, imagino – completou Tony.
Tulip atirou a ponta do cigarro, que assoviou e se dissolveu no lago.
Em seguida, os três poodles apareceram correndo de volta na curva do caminho com as meninas Irongate atrás deles. Do era uma loira esguia de dezesseis anos, Lola, uma garota gorducha muito bonita de olhos e cabelos escuros e rosto rosado de doze. Lola parecia com o pai e Tony. Do não se parecia com ninguém que eu conhecesse, embora tenham me dito – todo mundo precisa puxar a alguém na maioria das famílias – que ela lembrava uma de suas tias. Disseram “Oi” a Tony, beijaram-me e cumprimentaram Tulip com apertos de mão.
– Aqueles dois vão chegar hoje à noite – disse Lola. Estava empolgada.
– Jamais pensariam em nos dizer se pretendem chegar para o jantar ou depois – disse Do. Estava empolgada.
– Devemos nos preocupar com o jantar – disse Tony. Estava empolgado.
Eu disse que não havia problema. E não havia, porque eu não tinha visto os pais Irongate desde que saíra da prisão; eles simplesmente me mandaram avisar que a casa e qualquer dinheiro de que precisasse estariam à minha disposição e que eles voltariam da Flórida assim que Gus terminasse de pintar por lá.
Tulip me encarou, perguntando silenciosamente se estaria atrapalhando. Comecei a sacudir a cabeça negativamente, mas pensei melhor no caso – ou pelo menos de modo diferente: por que deixá-lo pensando que eu queria que ele ficasse? – e encolhi os ombros.
Lola sentou-se no píer perto de mim e perguntou, esperançosa:
– Estamos interrompendo alguma coisa?
Vestia calças de esqui azuis escuras e um casaco curto em tom escarlate.
– Não – respondi.
Sentando-se novamente, Tulip disse:
– Acho que o Papai estava contando a história da vida dele. Não sei.
– Papai? – perguntou Do, olhando então para mim. – Ah, é você. – Deu uma risada. Tinha um sorriso firme e simpático. – Gostei disso – disse a Tulip.
Lola encostou-se em mim e disse:
– Quero ouvir a história da sua vida, Papai.
– Não vai ouvir de mim, querida.
– Você chama todo mundo de querida.
– Eu costumava chamar todo mundo de docinho – eu disse. – Mas agora acho que querida é mais refinado.
– Estamos interrompendo, não é? – disse Do. Ainda estava de pé, parecendo mais alta e mais magra do que era, num casaco longo marrom uns dois tamanhos maiores do que o dela. – Não estamos, Tony?
O irmão, olhando primeiro para mim, respondeu:
– Bem, estão.
– Vocês não estão fazendo nada – disse Tulip. – Se o Papai quiser continuar com o que estava dizendo, vai continuar. Se não quiser, vai fingir que vocês o interromperam. Sente-se e deixe que ele decida.
Do sentou-se.
– Você estava na parte em que estavam entediados e chovia – disse Tony.
– Bem, a chuva não era muito importante – eu disse. – Não era esse tipo de chuva. E não acho que o tédio fosse importante também. Nenhum de nós tinha estado tempo o bastante fora do exército e devíamos estar acostumados com isso. Estou falando – expliquei a Lola e Do – de um hospital para doenças pulmonares em Tacoma logo depois da Primeira Guerra Mundial. A última vez que vi Pavlova dançar foi nessa época em Tacoma, embora isso não tenha nada a ver com o resto. Quanto ao tédio, sequer tenho certeza se me lembro. Talvez eu apenas saiba que devíamos nos sentir assim. Alguém disse aos cidadãos de Tacoma que eles estavam nos negligenciando, e em dois ou três domingos, recebemos visitas. Histórias de atrocidades eram populares na época, principalmente as sobre línguas de soldados sendo cortadas fora, e costumávamos convencer serventes do hospital a se sentarem em cadeiras de rodas e nos deixarem assustar os visitantes ingênuos empurrando-os até eles, ou fazê-los felizes, o que freqüentemente era a mesma coisa, com os horrores mais fantásticos em que podíamos pensar.
“Um ex-fuzileiro chamado Bizzarri e eu éramos muito bons amigos. Há uma brincadeira que, sabe Deus por quantos anos, décadas ou séculos é feita em acampamentos de lenhadores e de operários de construção, em qualquer lugar em que homens precisam trabalhar e morar juntos até se cansarem, em que dois homens criam uma falsa animosidade que atinge o clímax numa luta de socos, num tiroteio, ou numa briga de faca, dependendo de onde se dê, e então, em vez de lutarem, eles riem da platéia reunida e vão embora abraçados. Bom, esse Bizzarri e eu armamos uma dessas, alimentando a situação cuidadosamente até estarmos com a maior parte do hospital muito interessada, alguns ficando de um lado, outros, de outro, naquela história que havia acontecido entre dois amigos que um dia haviam sido próximos. Então armamos a nossa violenta exibição final: trocamos uns cutucões que ficaram na margem entre o falso e o real, mas fomos ambos inteligentes demais e deixamos de lado o riso para entrar na briga de verdade. Paramos a tempo de dar a nossa risada, mas nunca voltamos a ser muito bons amigos depois disso.
“Um filipino de cujo nome me esqueci estava praticando para se tornar um jogador trapaceiro profissional. Na vida civil, aparentemente perdia o salário todas as noites de sábado numa casa de jogatina chinesa. Ele tinha um baralho de cartas marcadas que costumávamos permitir que usasse no jogo de pôquer de vez em quando, já que a maioria de nós conhecia as marcas melhor do que ele. Um dia, ele se envolveu numa briga – jogadores trapaceiros precisam ser muito sensíveis em questões de honra –, e seu rival teve de esperar que o filipino fosse até o quarto buscar um par de luvas de pelica, imagino que para proteger a pele, já que não eram acolchoadas nas palmas, não tinham costuras de reforço e ficavam um pouco apertadas demais para permitir que suas mãos se fechassem adequadamente. Gostávamos de coisas desse tipo, acho que vivíamos entediados.”
Eu estava tendo um pouco de dificuldade. Falar através de Tony parecia tornar as coisas mais fáceis para mim, como Tulip provavelmente percebera, mas eu não havia conseguido encontrar a chave para essa nova combinação. Não quero dizer que Do e Lola fossem uma platéia antipática. Não eram. Gostavam de mim, e a cadeia havia inclusive me dado algum glamour, mas aquilo sobre o que eu estava falando, ou tentando falar, não tinha nada a ver com isso. Alguém que falasse com mais facilidade provavelmente teria continuado como antes, ignorando-as, mas eu precisava, ou pelo menos pensava que precisava, encontrar algum modo de incluí-las. Eu poderia ter interrompido a história, é claro, esperando para continuar quando estivesse novamente apenas com Tony e Tulip, mas acho que estava com vontade de falar. Então continuei, fazendo o melhor possível para incluí-las no caminho.
– Então o governo abriu, ou reabriu, um hospital perto de San Diego. O velho hospital do exército no qual havia sido instalado o Camp Kearney. Quatorze de nós fomos transferidos para lá. Imagino que os indisciplinados mais difíceis. Fomos num vagão-dormitório isolado e apanhamos mais alguns membros em Portland. Entre nós, havia dois que se julgavam, ou diziam se julgar, viciados: um perneta chamado Austen – achavam que ele tinha tuberculose no osso e ficavam cortando pedaços de sua perna – e um ruivo feioso chamado Quade, com tuberculose intestinal. Branquelo e eu estávamos duros, mas entre as doenças dele estava alguma coisa de errado com os rins, e o médico de Tacoma havia lhe dado um pouco de pó branco para levar, enrolado em pacotinhos, como droga. Então nós os vendemos para Austen e Quade durante a viagem, e eles cheiraram e ficaram, ou acharam que ficaram, chapados durante todo o caminho até San Diego. No hospital de Camp Kearney, deparamo-nos com nosso inimigo: o regulamento. Chegamos lá tarde da noite e fomos acordados bem cedo por um servente que queria amostras de urina antes de acabar seu turno. Essa foi fácil, é claro: dissemos aonde ele devia ir para colher suas amostras de urina, voltamos a dormir, e ele terminou o turno sem as amostras. Então descobrimos que não apenas precisávamos de passes para deixar o hospital – Tijuana, logo do outro lado da fronteira, tinha sido um dos principais motivos de irmos para lá –, como eles eram difíceis de conseguir. Além disso tudo, como recém-chegados, nós teríamos que passar duas semanas numa ala de quarentena antes de termos direito a pedir qualquer coisa, até mesmo permissão para andar pelo hospital. Nos revoltamos alegremente e anunciamos que estávamos saindo do hospital e indo para San Diego. A administração nos chamou para uma reunião, diminuiu o período de quarentena para dez dias, pelo que me lembro agora, mas não abriu mão das outras regras. Então fizemos nossa própria reunião, a essa altura quase todos sonhando animadamente com San Diego e Tijuana e com a Cruz Vermelha local para nos abrigar quando ficássemos duros. Naquele momento passou por nós uma das funcionárias civis do hospital, uma garota bonita vestindo uma blusa listrada e saia escura com belas pernas em meias de seda, com um fio puxado atrás de uma delas, e a nossa revolta se dissipou; decidimos que talvez o hospital não fosse tão mau, afinal – e sempre poderíamos ir embora quando quiséssemos – e mandamos Branquelo, que então havia virado nosso porta-voz, entrar e dizer ao oficial comandante que iríamos ficar. (Nenhum de nós jamais conseguiu qualquer coisa com a garota bonita. Não tenho muita certeza se algum de nós chegou a se esforçar muito.) Um de nós, esqueci qual, a essa altura havia se convencido sinceramente de que nossa revolta tinha razão e desapareceu na direção de San Diego. Os demais nos acomodamos à nova rotina de um novo hospital. O Branquelo não ficou conosco muito tempo. Depois de algumas semanas, ele e outro sujeito voltaram da cidade bastante bêbados numa noite, e ele agrediu um médico – talvez porque o médico deu uma dose de apomorfina ao companheiro do Branquelo por causa da bebedeira – e acabou sendo expulso. Pensamos em ir embora com ele, mas nada aconteceu, e ele seguiu seu caminho.
“Como o hospital ficava na beira de um deserto, sapos-bois viravam bichos de estimação e batalhas entre cascavéis e lagartos foram realizadas num vagão abandonado ou num trilho próximo sem uso. Os lagartos sempre venciam, mas a maioria dos otários apostava nas cobras no começo. Quando acabaram as apostas nas cobras, paramos de realizar as brigas. Também havia Tijuana para onde irmos a cada duas semanas. Ainda não me lembro muito de San Diego, exceto que era bonita de ver ao descer a colina em direção a ela entre casas de estuque cor-de-rosa e azuis claras, o U.S. Grant Hotel e as lojas de tônicos, onde se comprava e bebia uma grande variedade de medicamentos patenteados de alto nível alcoólico naqueles tempos de Lei Seca. Acho que li bastante no hospital, mas não consigo lembrar de uma única coisa que tenha lido lá. Sei que me divertia em Camp Kearney, mas quando as corridas se encerraram em Tijuana, acho que em maio, pedi para ser liberado do hospital, e eles me atenderam. Não podiam dizer que eu estava curado, só fui finalmente derrotar minha tuberculose cinco ou seis anos depois, de modo que escreveram máxima recuperação atingida e me deixaram sair.”
Quando parei de falar para acender um cigarro, Lola perguntou:
– Para onde você foi?
– Shhh – fez Tony.
– De volta a Spokane, porque me deram uma passagem de trem para lá e porque eu queria ver algumas pessoas. Depois, fui para Seattle por uma ou duas semanas. Era uma cidade barulhenta, mas eu gostava disso na época. Então segui para São Francisco, onde eu pretendia ficar no máximo por dois meses antes de ir para casa, em Baltimore. Mas fiquei em São Francisco por sete ou oito anos e nunca voltei para Baltimore, exceto para fazer visitas curtas. Mas onde eu quero chegar é que – eu estava falando com Tony e Tulip novamente – de tudo isso, tirei apenas um conto curto e relativamente sem sentido sobre um tuberculoso que vai a Tijuana para um tranqüilo passeio durante o dia. E isso é mais material do que tirei de guerras e prisões. E você – virei-me para Tulip – só pode me trazer esse tipo de coisa: de um jeito ou de outro, toda a sua maldita vida foi assim, o que pode ser ótimo, mas não para mim. Eu não sei o que fazer com isso.
– Na verdade – disse Tulip –, eu nunca tive tuberculose, e os três sujeitos de que me lembro que se chamavam Branquelo eram diferentes do seu, embora um deles tenha dirigido um time de beisebol semiprofissional em que joguei na terceira base num verão e tenha sumido com o nosso dinheiro. Mas posso ver por que nada do que aconteceu com você prestou. Tudo estava acontecendo com o cara errado. É preciso pensar que tudo vem pela mente, e é claro que as coisas ficam chatas quando se racionaliza tudo absurdamente desse jeito. – Olhou para Tony. – Não estou certo, garoto?
Tony olhou para Tulip e para mim e não disse coisa alguma.
– Você e as suas emoções imaturas que não suportam o peso do raciocínio – disse eu num tom meio didático porque estava cansado daquela acusação. – Nenhum sentimento pode ser muito forte se precisa ser protegido da razão. Como agressores de mulheres bêbados chorando por causa de um passarinho aleijado.
– E esse Branquelo que dirigia o time de beisebol? – perguntou Lola.
Tony fez shhhh de novo.
– Nem sempre sei sobre o que você está falando, Papai – disse Tulip. – Mas você não pode simplesmente escrever as coisas como elas aconteceram e deixar os seus leitores tirarem o que quiserem delas?
– Claro, esse é um jeito de escrever, e se tomar cuidado para não se comprometer, você pode convencer diferentes leitores a ver todos os tipos de diferentes significados no que escreveu, já que, no final, quase tudo pode ser simbólico de qualquer outra coisa, e eu li muita coisa desse tipo e gostei, mas não é o meu jeito de escrever e não há por que fingir que seja.
– Você é rígido demais – disse Tulip. – Não disse que você deveria deixar seu leitor se descontrolar desse jeito, embora eu não consiga ver problema algum em deixá-los fazer o seu trabalho por você, se quiserem, mas...
– Não basta querer tornar isso lucrativo – eu falei. – Embora seja provável que consiga boas críticas.
– Dinheiro, dinheiro – disse Tulip, o que teria sido engraçado da parte dele, exceto pelo fato de que estávamos discutindo, e em discussões tem-se a tendência a dizer coisas que ajudem o seu lado a vencer.
– Claro, dinheiro – repliquei. – Quando escrevemos, queremos fama, fortuna e satisfação pessoal. Queremos escrever o que queremos escrever e sentir que é bom e vender milhões de cópias e ter todo mundo cuja opinião valorizamos achando que é bom e queremos que isso continue por centenas de anos. É pouco provável que algum dia consigamos todas essas coisas, e é pouco provável que desistamos de escrever ou cometamos suicídio se não conseguirmos, mas isso é, e deveria ser, o nosso objetivo. Qualquer coisa menos é meio insignificante.
Do, que estava se preparando seriamente para virar uma mulher e achava que as mulheres deviam tentar evitar que homens brigassem, falou, enquanto Tony fez cara feia para ela:
– Disse a Donald que almoçaríamos cedo. Tudo bem com isso?
– Para mim, tudo bem – eu disse, olhando para o relógio de pulso: 11h45. – Querem voltar para a casa agora?
– Papai, algum dia eu lhe disse que há certas questões em que eu não concordo com você? – disse Tulip enquanto nos levantávamos.
Os cães haviam desaparecido no meio do mato atrás do lago. Voltamos pelo caminho com Tulip e Do à frente, Lola, Tony e eu caminhando lado a lado atrás deles. Quando passávamos pela velha casa de bombas feita de pedra – agora transformada em casa de defumação – e atravessávamos o gramado dos fundos em direção à casa, Tony perguntou:
– Você não chegou ao final do que estava dizendo, chegou?
– Não, não tenho certeza de que tenha chegado perto disso. Acho que acabei desviando do assunto. Grosso modo, há dois tipos de pensamentos no mundo: os que usamos para tentar argumentar sobre alguma coisa e ganhar uma discussão e os que usamos para descobrir coisas. Vamos tentar novamente alguma hora.
– Posso escutar? – perguntou Lola.
– É claro – respondi, ganhando um rápido sorriso de Tony, que achou que eu não estava falando sério.
Então comecei a pensar na primeira vez em que tinha visto Tulip na vida, na casa de Mary Mawhorter em Baltimore, em 1930. Eu tinha ido passar uma semana na cidade no caminho de Nova York para meu primeiro trabalho em Hollywood – meu pai ainda era vivo, e minha irmã também morava em Baltimore – e, claro, havia procurado por Mary, que era então uma pediatra, e Tulip era uma das pessoas na casa dela na noite em que fui visitá-la. Acho que ele estava comandando um bando de estivadores negros, nos píeres da Ferrovia da Pensilvânia em Sparrow’s Point e, conforme me lembro, ele tinha sido jogador da terceira base das equipes inferiores dos Yankees, mas foi obrigado a desistir porque não havia futuro naquele ramo enquanto Red Rolfe continuasse jogando. Entretanto, Red Rolfe não foi para o Yankees até tempos depois e devia estar ainda jogando na defesa em Darthmouth quando conheci Tulip, de modo que há chances de eu estar misturando Tulip com um sargento do exército que conheci no estande de tiros de Sea Girt em 1942. Eu bebia muito naquela época, em parte porque ainda estava confuso com o fato de que os sentimentos, as conversas e as ações das pessoas não tinham muito a ver uns com os outros, e grande parte das minhas lembranças é vaga. Mas o padrão Red Rolfe se aplica a Tulip, mesmo que as datas não batam.
Ele gostava de Mary – era uma morena alta de pele clara, muito bonita e querida –, mas, por vaidade masculina ou seu tipo de humor, estava tentando conquistá-la do jeito difícil, sem fazer muito progresso na ocasião. Ela era uma garota bem-humorada, mas levava a profissão com muita seriedade, e ele, não. Ele disse que precisava de um exame médico e queria ser seu paciente. Ela respondeu que não tratava adultos e que, de qualquer modo, ele apenas queria “brincar de médico” com ela e que isso era coisa de criança. Os dois haviam feito disso o principal assunto das disputas que travavam então. Ela falou muito sobre ele quando voltei à sua casa mais tarde naquele mesmo dia, depois de os outros terem ido embora. Ela sempre falava bastante, e nunca usava uma palavra de três sílabas quando podia encontrar uma de quatro sílabas para substituí-la – aquele tipo de jargão profissional que ouvimos muito de médicos e outros que acreditam haver algo de esotérico em relação ao próprio trabalho –, mas era querida e não e importava se o interlocutor simplesmente ficasse deitado, fumando um cigarro, dizendo “Arrã” de vez em quando e deixando-a tagarelar. Era uma garota querida. Parecia gostar de Tulip.
Na época, ele estava com quase trinta anos – apenas uns dois a mais do que Mary – e já acreditava que sua vida havia sido interessante e que alguém deveria escrever sobre ela. Eu não me importei muito com isso, porque já escrevia fazia oito anos e estava acostumado às pessoas me contando histórias, enredos e tramas, aos quais eu fingia escutar educadamente enquanto pensava em outra coisa, mas acho que ainda me irritava com o senso comum de que todos os escritores deviam ser sujeitos pálidos sentados em escrivaninhas e trabalhando com papéis, e me pareceu que aquele jovem rude estava se mostrando insistente demais, de modo que não nos demos muito bem. Não tanto porque eu fosse brigão quando bebia, mas sim por ter me esquecido de não ser. Também não sei se ele estava igualmente bêbado. As pessoas precisam estar muito bêbadas para que eu perceba. Até mesmo agora, que não bebo mais.
É assim que me lembro da parte significativa do que foi dito e feito naquela noite, embora tenha sido há muito tempo, e não sei o quanto eu possa ter mudado as coisas para me deixar melhor ou provar o meu lado da história. De qualquer maneira, havia talvez uma dúzia de pessoas lá e, depois que venci as saudações, os apertos de mão e as palavras de apresentação, Mary deixou-me num canto com Tulip enquanto foi buscar algo para bebermos, e ele disse:
– Então esta é sua cidade natal também, é?
– É. Fui criado aqui. Exceto por um curto período na Filadélfia, embora eu tenha nascido no sul do estado.
– Está longe há muito tempo?
– Dez ou onze anos, acho.
– Vai achar a cidade muito chata agora.
– Já era antes.
– Mas está pior agora – disse ele.
– Que cidade não está?
– Mas não é sobre isso que quero conversar com você. – Então eu soube que ele queria conversar comigo sobre alguma coisa.
Mary voltou com as nossas bebidas e uma garota miúda de olhos castanhos de Catonsville, que disse querer que eu visitasse uma amiga dela em Pasadena, mas continuou conversando comigo por causa de Tulip. Ela finalmente se afastou, e ele disse:
– Olhe aqui. Você escreve, e eu não. Mas você está bem perto de ser o meu tipo de escritor, e eu gostaria de conversar com você.
Isso não era um problema. Eu gostava de Tulip e ainda gosto, embora não tanto quanto ele imagina.
– Eu ando por aí muito mais do que você – afirmou ele. – E vejo muitas coisas.
Então começou a ser um problema. Em primeiro lugar, eu não achava que ele andasse por aí muito mais do que eu. E em segundo lugar, mesmo naquela época eu não achava que isso fosse a resposta, a menos que se quisesse escrever tabelas de horários de trens a partir de experiências reais. Todo mundo tem 24 horas por dia, não mais e raramente menos, e qualquer maneira de passar o tempo me parece tão satisfatória quanto qualquer outra, dependendo, é claro, da sua própria natureza. Então eu disse “Ah, é?” e comecei a olhar ao redor.
– Olhe aqui – ele insistiu. – Não quero dizer que você só conheça bibliotecas e faculdades e esse tipo de coisa. Eu não o estaria importunando se você fosse desse tipo de escritor. Mas eu tenho muita coisa aqui – revelou, literalmente batendo no peito.
– Então encontre um escritor com muita coisa aqui – aconselhei, batendo na cabeça –, e você encontrará um bom parceiro.
– Ah, pelo amor de Deus – disse ele, com desprezo, e Mary, que viu que não estávamos nos dando muito bem, aproximou-se. – O seu amigo é meio sensível – ele disse a ela.
Mary riu e pôs um longo braço ao redor de cada um de nós:
– Querem me falar a respeito?
Nós dois recusamos e então ele disse para mim:
– Deixe-me dar um exemplo. Deixe-me contar uma dessas coisas para você entender o que estou querendo dizer.
– Se não for muito terrível, por que não deixa ele lhe contar? – disse Mary, e eu sabia que ela estava falando muito sério, porque só havia usado uma palavra com mais de duas sílabas na frase, e isso não era seu jeito natural de falar. – Pronto, vou pegar bebidas – acrescentou, recolhendo nossas taças e se afastando.
– Tudo bem, então – eu disse, e ele me contou a primeira das muitas histórias que me contou ou tentou me contar a partir dali.
Essa era sobre algumas pessoas pobres em Providence que pareciam todas ter o tipo de sentimento certo sobre tudo o que acontecia com elas ou ao redor delas, e muita coisa acontecia, mas elas seguiam tendo os sentimentos adequados, de modo que nada daquilo me disse muita coisa. Mary voltou com as nossas bebidas e ficou ouvindo os dois terços finais da história. Tulip não disse coisa alguma quando terminou de contar, e ela também não.
– É legal – eu disse. – Mas não é meio literária?
Tive a impressão de que o rosto de Tulip corou um pouco, sob o profundo bronzeado que ganhara trabalhando nas docas, e ele concordou:
– Acho que eu a enfeitei um pouco, talvez demais.
Como segui sem dizer palavra:
– Mas aconteceu de verdade, sabia?
Então, como continuei sem dizer coisa alguma:
– Como posso saber quanto enfeitar as coisas?
Mary disse:
– Não é necessário mostrar-se tão insuportável – o que era mais próximo de seu jeito normal de falar e me fez pensar que ela estava ansiosa para que eu escutasse Tulip, mas não se importava muito com o que eu achasse dele.
– O que vocês querem? – perguntei aos dois.
Mary riu e disse:
– Você sabe o que eu quero. Desembuche.
Tulip fez cara feia para mim e passou a mão de dedos grossos pelos cabelos.
– Por quanto tempo você vai ficar na cidade? – perguntou.
– Mais três ou quatro dias. Talvez um ou dois dias depois disso, embora eu queria ir a Santa Mônica para ver meus filhos.
– Quantos você tem? – ele perguntou.
– Dois. Um menino de oito, e a menina deve estar com quatro agora. Muita gente pára depois de ter um de cada.
A garota de Catonsville se aproximou e disse:
– Vocês são dois homens tão simpáticos e passaram a noite toda escondidos neste canto, só conversando um com o outro.
Disse isso para mim e para Tulip, de modo que o deixei com ela, afastando-me na companhia de Mary.
Tulip gritou para nós dois:
– Eu posso entrar em contato com você através da doutora, não posso?
Mary e eu assentimos, e eu perguntei:
– Qual é o problema dele?
Ela sacudiu a cabeça.
– É difícil conceber que ele tenha algum problema. Imagino que o que o envolveu lá atrás tenha sido sua preocupação com a congruência. Ele dedica uma atenção considerável às várias teorias que um curso de eventos de certa maneira consecutivos – embora não necessariamente cronológicos – por mais diferentes que possam parecer, dá à vida – ou a qualquer vida, aliás, incluindo talvez principalmente a sua própria... uma... ou talvez a... forma. Mas não há exatamente um problema com ele.
– Ah – disse eu. – E ele quer que eu arrume as contas e faça um colar para ele?
– Você ou alguma outra pessoa.
– O que ele imagina que as pessoas façam com suas próprias vidas?
– É claro que você não é ingênuo o suficiente para esperar que as pessoas tenham qualquer noção do que ocupa outras pessoas ou mesmo possuam qualquer consciência de que as outras pessoas têm quaisquer ocupações interiores – disse ela.
E ela era bonita o bastante, e eu tinha bebido o suficiente, para que o que ela me disse parecesse sensato, então mudei de assunto, e começamos a falar sobre nós, e isso foi bom. Então, algumas pessoas se juntaram a nós, ou nós nos juntamos a elas, e isso também foi bom. Tudo estava bom naquela ocasião.
Mais tarde, Tulip me encontrou numa espécie de sala de estar nos fundos do segundo andar – Mary tinha uma antiga casa de três andares perto da Cathedral Street – com uma garota meio loira miúda chamada sra. Hatcher ou algo que o valha. Depois que ela saiu, ele disse:
– Queria conversar com você, mas não queria estragar nada.
– Para dizer a verdade, não sei se você estragou ou não.
– Ah, então tudo bem – disse ele, sentando-se. Começou a me oferecer um cigarro e viu que eu já tinha um. Eu enchi o copo da semiloira e dei a ele. Era o período da Lei Seca, é claro, e Baltimore parecia estar bebendo mais scotch e menos uísque do que eu lembrava. – Nós não nos damos bem, não é? – disse ele, depois de tomar sua bebida. – E é uma pena, porque acho que poderíamos fazer um ao outro muito bem.
Eu devo ter encolhido os ombros – sempre faço isso – e dito algo sobre o fato de uma das coisas boas de ser homem era que a humanidade podia sobreviver a qualquer coisa.
– Claro, claro – disse ele. – Não estou dizendo que é importante. Só estou dizendo que é uma pena. Não é nem mesmo uma grande pena, se isso incomoda você, mas pequena, como ter somente sapatos marrons para usar com calças azuis.
Não acreditei nele – ou não acredito agora, que é quando estou tentando me lembrar do que aconteceu na ocasião –, de modo que fiquei quieto, exceto pelos barulhos que estava fazendo respirando ou fumando. Não quero dizer que não acreditei no que ele disse, mas não acreditei que sentisse aquilo. E mesmo na ocasião, no dia em que o conheci, e alcoolizado como eu estava, desconfiei que ele poderia vir a representar um lado meu. O fato de ele ser um lado meu não era um problema, é claro, já que todo mundo é em algum grau um aspecto de todo mundo, ou como alguém poderia algum dia esperar compreender qualquer coisa a respeito de qualquer outra pessoa? Mas as representações me pareciam – pelo menos parecem agora, e imagino que eu tivesse uma vaga noção disso na época – artifícios dos velhos e cansados, ou dos mais velhos e mais cansados, para encontrar alívio, como um simbolismo consciente ou imagens gravadas. Acredito que, quando estamos cansados, devemos descansar, e não tentar enganar a nós mesmos e aos nossos clientes com bolhas coloridas de sabão.
[Tulip nunca foi completado, e o manuscrito termina aqui. Mas Hammett evidentemente escreveu o final do livro. Ei-lo, L.H.]
Dois ou três meses mais tarde, fiquei sabendo que Tulip estava num hospital em Minneapolis, onde tinha tido uma perna amputada. Fui vê-lo e mostrei-lhe isto.
– Acho que está legal – disse, depois de ler. – Mas parece que você não entendeu direito.
As pessoas quase sempre pensam isso.
– Mas lerei novamente se você quiser – acrescentou. – Li apressadamente desta primeira vez, mas vou ler novamente com mais cuidado, se você quiser.
O grande golpe
Encontrei Paddy, o Mexicano na espelunca de Jean Larrouy.
Paddy – um afável vigarista que parecia o Rei da Espanha – mostrou-me seus grandes dentes brancos num sorriso, empurrou uma cadeira com o pé para que eu me sentasse e disse à garota com quem estava dividindo a mesa:
– Nellie, conheça o detetive com o maior coração de São Francisco. Esse baixinho gorducho é capaz de fazer qualquer coisa para qualquer pessoa, desde que possa mandá-los para a cadeia no final. – Virou-se para mim, acenando com o charuto para a garota: – Nellie Wade. E você não vai conseguir nada contra ela. Ela não precisa trabalhar... seu velho é contrabandista de bebidas.
Era uma garota magra, de vestido azul – pele branca, olhos verdes, cabelos castanhos curtos. Sua expressão taciturna ganhou beleza quando ela estendeu a mão sobre a mesa para mim e nós dois rimos de Paddy.
– Cinco anos? – perguntou.
– Seis – corrigi.
– Caramba! – disse Paddy, sorrindo e chamando um garçom. – Algum dia vou conseguir enganar um detetive.
Até agora, ele havia enganado a todos – nunca havia passado a noite numa cela.
Olhei para a garota novamente. Seis anos antes, essa Angel Grace Cardigan havia ludibriado meia dúzia de garotos da Filadélfia. Dan Morey e eu a havíamos apanhado, mas como nenhuma de suas vítimas quis depor contra ela, acabou ficando livre. Era uma menina de dezenove anos na época, mas já trabalhava como vigarista experiente.
No meio da pista, uma das garotas de Larrouy começou a cantar “Tell Me What You Want and I’ll Tell You What You Get”.11 Paddy, o Mexicano virou a garrafa de gim nos copos de ginger ale que o garçom havia trazido. Bebemos, e entreguei a Paddy um pedaço de papel com um nome e um endereço escritos a lápis.
– Itchy Maker pediu que eu lhe entregasse isto – expliquei. – Eu o vi na prisão de Folsom ontem. Disse que é a mãe dele. Quer que você a procure e veja se ela precisa de alguma coisa. Imagino que quer dizer que você deve lhe dar a parte dele do último golpe que vocês dois aplicaram.
– Você me magoa – disse Paddy, enfiando o pedaço de papel no bolso e servindo mais gim.
Virei o segundo gin-ginger ale e me ajeitei na cadeira, preparando-me para me levantar e caminhar de volta para casa. Naquele instante, quatro clientes de Larrouy chegaram da rua. Ter reconhecido um deles me manteve sentado. Era alto e magro e todo embonecado com o que um homem bem vestido devia usar. Olhos penetrantes, rosto forte, lábios finos como fios de faca sob um bigode pequeno e pontudo – Bluepoint Vance. Perguntei-me o que ele estava fazendo a quase cinco mil quilômetros de seus campos de caça de Nova York.
Enquanto pensava, virei-me de costas para ele, fingindo estar interessado na cantora, que agora apresentava “I Want to Be a Bum”.12 Atrás dela, num canto, vi outro rosto familiar que pertencia a outra cidade – Happy Jim Hacker, roliço e rosado matador de Detroit duas vezes condenado à morte e duas vezes perdoado.
Quando olhei para frente de novo, Bluepoint Vance e seus três companheiros haviam se acomodado a duas mesas de distância. Estava de costas para nós. Estudei seus parceiros.
De frente para Vance sentou-se um jovem gigante de ombros largos, cabelos ruivos, olhos azuis e um rosto avermelhado que era bonito de uma forma rude e selvagem. À sua esquerda, uma garota morena de olhar esquivo usando um chapéu de abas caídas. Estava conversando com Vance. A atenção do gigante ruivo estava completamente voltada para a quarta pessoa da mesa, à sua direita. Ela merecia.
Não era nem alta, nem baixa, nem magra, nem gorda. Estava usando uma túnica russa preta, debruada de verde, com pingentes prateados. Um casaco de pele preto estava atirado sobre a cadeira atrás dela. Provavelmente tinha uns vinte anos. Tinha os olhos azuis, a boca vermelha, os dentes brancos, as pontas dos cabelos que apareciam sob o turbante preto-verde-e-prateado castanhas e tinha um nariz. Sem exagerar nos detalhes, era bonita. Eu comentei. Paddy, o Mexicano concordou, e Angel Grace sugeriu que eu fosse até lá e dissesse a Red O’Leary que a achava bonita.
– O famoso Red O’Leary? – perguntei, escorregando na cadeira para esticar o pé embaixo da mesa entre Paddy e Angel Grace. – Quem é a bela namorada dele?
– Nancy Regan. E a outra é Sylvia Yount.
– E o bonitão de costas para nós? – sondei.
Procurando a perna da garota embaixo da mesa, o pé de Paddy bateu no meu.
– Não me chute, Paddy – pedi. – Vou ser bonzinho. Enfim, não vou ficar aqui para sair machucado. Vou para casa.
Despedi-me deles e segui em direção à rua, mantendo as costas viradas para Bluepoint Vance.
Na porta, tive de abrir caminho para deixar dois homens entrarem. Ambos me conheciam, mas não me cumprimentaram – Sheeny Holmes (não o veterano que roubou Moose Jaw no tempo das diligências) e Denny Burke, o Rei da Ilha dos Sapos de Baltimore. Uma bela dupla – nenhum deles pensaria em matar alguém a menos que tivesse lucro e proteção política garantidos.
Do lado de fora, segui em direção à Kearny Street, passeando, pensando que a espelunca de Larrouy estava cheia de velhacos naquela noite e que parecia haver mais do que uma pequena quantidade de visitantes distintos em nosso meio. Uma sombra numa porta interrompeu meus pensamentos.
A sombra fez “Pssss!”
Parei e examinei a sombra até ver que era Beno, um jornaleiro viciado que me deu algumas dicas de vez em quando no passado – algumas boas, outras fajutas.
– Estou com sono – resmunguei, juntando-me a Beno e sua braçada de jornais na porta – e já ouvi a história sobre o mórmon que gaguejava. Então, se é isso que você tem em mente, diga logo, que eu sigo em frente.
– Não sei nada de mórmon nenhum – protestou –, mas sei de outra coisa.
– E aí?
– Pode dizer “E aí?”, mas o que quero saber é o que eu ganho com isso.
– Deite-se nesta bela porta e tire uma soneca – aconselhei, voltando para a rua. – Você vai estar melhor quando se acordar.
– Ei! Escute aqui. Tenho algo para você. Juro por Deus!
– E aí?
– Escute aqui! – Aproximou-se, sussurrando. – Tem um golpe armado para o Banco Seaman’s National. Não sei qual é a história, mas é real... Juro por Deus. Não estou enganando você. Não sei de nenhum nome. Sabe que eu diria se soubesse. Juro por Deus. Me dá dez paus. O que eu disse vale isso, não vale? É quente... juro por Deus!
– É, quente como a droga que você usou!
– Não! Juro por Deus! Eu...
– O que é o golpe, então?
– Eu não sei. Tudo o que sei é que o Banco Seaman’s vai ser roubado. Juro por...
– Onde você ficou sabendo disso?
Beno sacudiu a cabeça. Pus um dólar em sua mão.
– Tome mais uma e pense no resto da história – eu disse. – E se for divertido o bastante, eu lhe dou os outros nove dólares.
Caminhei até a esquina, franzindo a testa com a história de Beno. Sozinha, parecia com o que provavelmente era – um conto criado para tirar um dólar de um investigador particular crédulo. Mas não estava completamente sozinha. A espelunca de Larrouy – apenas uma numa cidade que tem várias delas – estava apinhada de vigaristas que constituíam ameaças à vida e à propriedade. Valia dar uma conferida, principalmente porque a empresa de seguros do Banco Seaman’s National era cliente da Agência de Detetives Continental.
Virei a esquina e, mais ou menos cinco metros depois de entrar na Kearny Street, parei.
Da rua de que tinha acabado de sair, ouvi dois estampidos – disparos de uma pistola pesada. Voltei pelo caminho que tinha vindo. Quando dobrei a esquina, vi homens se reunindo em grupo mais acima. Um jovem armênio – um garoto ágil de dezenove ou vinte anos – passou por mim, seguindo na outra direção, andando despreocupadamente, com as mãos nos bolsos, assoviando baixinho “Brokenhearted Sue”.
Juntei-me ao grupo – que estava se transformando numa multidão – ao redor de Beno. Beno estava morto, com o sangue que saía de dois buracos em seu peito manchando os jornais amassados embaixo dele.
Voltei ao Larrouy’s e olhei para dentro. Red O’Leary, Bluepoint Vance, Nancy Regan, Sylvia Yount, Paddy, o Mexicano, Angel Grace, Denny Burke, Sheeny Holmes e Happy Jim Hacker – nenhum deles estava lá.
Voltei para perto de Beno. A polícia chegou, fez perguntas, não descobriu nada, não encontrou qualquer testemunha e partiu, levando o que restava do jornaleiro junto.
Fui para casa e para a cama.
De manhã, passei uma hora no arquivo da Agência, fuçando na galeria de fotos e nos registros. Não tínhamos nada sobre Red O’Leary, Denny Burke, Nancy Regan, Sylvia Yount, e apenas alguns palpites sobre Paddy, o Mexicano. Também não havia lá qualquer investigação aberta a respeito de Angel Grace, Bluepoint Vance, Sheeny Holmes e Happy Jim Hacker, mas suas fotos estavam lá. Às dez horas – horário de abertura dos bancos –, parti na direção do Seaman’s National, levando as fotos e a dica de Beno.
O escritório de São Francisco da Agência de Detetives Continental fica num prédio de escritórios da Market Street. O Banco Seaman’s National ocupa o térreo de um alto edifício cinzento na Montgomery Street, o centro financeiro de São Francisco. Normalmente, já que não gosto sequer de sete quadras de caminhada desnecessária, eu teria pegado um bonde. Mas, como havia uma espécie de engarrafamento na Market Street, parti a pé, virando na Grand Avenue.
Depois de mais algumas quadras caminhando, percebi que havia alguma coisa errada com a parte da cidade para onde eu estava indo. Para começar, havia barulho – rugidos, pancadas, ruídos de explosões. Na Sutter Street, um homem passou por mim segurando o rosto com as duas mãos e gemendo enquanto tentava botar um maxilar deslocado de volta no lugar. Estava com a bochecha lanhada.
Desci a Sutter Street. O trânsito estava trancado até a Montgomery Street. Homens de cabeças descobertas corriam excitados ao redor. Os ruídos de explosões ficaram mais claros. Um carro cheio de policiais passou por mim, a uma velocidade mais rápida do que o trânsito permitia. Apareceu uma ambulância, soando a sirene e subindo nas calçadas onde o trânsito estava pior.
Atravessei a Kearny Street movimentada. Do outro lado da rua, dois patrulheiros corriam. Um estava com a arma na mão. Os ruídos de explosão pareciam uma orquestra de tambores à frente.
Entrando na Montgomery Street, vi poucos pedestres à minha frente. O meio da rua estava cheio de caminhões, carros de passeio, táxis – todos abandonados. Na quadra seguinte – entre as ruas Bush e Pine –, era feriado no inferno.
O espírito de festa era mais alegre na metade da quadra, onde o Banco Seaman’s National e a Companhia Fiduciária Golden Gate ficavam frente a frente.
Durante as seis horas seguintes, fiquei mais ocupado do que uma pulga numa gorda.
Mais tarde, naquele dia, fiz um intervalo no trabalho de cão de caça e fui até o escritório para uma conferência com o Velho. Ele estava recostado na cadeira, olhando pela janela, batendo na mesa com o lápis amarelo de sempre.
Homem alto e rechonchudo de setenta e poucos anos, aquele meu chefe, com um rosto de bigode branco, rosado e ar de avô, doces olhos azuis atrás de óculos sem aros, tinha menos calor humano do que a corda de um carrasco. Cinqüenta anos perseguindo vigaristas para a Continental o haviam desprovido de tudo exceto do cérebro e de uma máscara educada e gentil de fala mansa e sorridente que era sempre igual, quer as coisas estivessem bem ou mal – e significava o mesmo tanto em um caso quanto no outro. Nós que trabalhávamos para ele orgulhávamo-nos de seu sangue frio. Costumávamos dizer que era capaz de cuspir pedras de gelo em julho e o chamávamos entre nós de Pôncio Pilatos, porque sorria educadamente quando nos mandava para a crucificação em trabalhos suicidas.
Ele se virou da janela quando entrei, fez sinal com a cabeça para que me sentasse numa cadeira e alisou o bigode com o lápis. Sobre a sua mesa, os jornais vespertinos alardeavam a notícia sobre o roubo duplo do Banco Seaman’s National e a Companhia Fiduciária Golden Gate em cinco cores.
– Como está a situação? – perguntou, como quem pergunta sobre o clima.
– A situação está um horror – respondi. – Havia pelo menos 150 bandidos envolvidos no ataque. Eu mesmo vi cem deles, ou ao menos creio que vi, e havia montes deles que não cheguei a ver... plantados onde poderiam saltar e morder quando fossem necessários dentes novos. E morderam. Surpreenderam a polícia e fizeram gato e sapato deles, indo e vindo. Assaltaram os dois bancos às dez em ponto, tomaram conta de toda a quadra, expulsaram as pessoas razoáveis e derrubaram os demais. O roubo em si foi mamão com açúcar para um bando daquele tamanho. Vinte ou trinta deles em cada um dos bancos enquanto os outros cuidavam da rua. Restou apenas embrulhar a pilhagem e levar para casa.
“Está havendo uma reunião de empresários altamente indignados por lá agora. São acionistas ensandecidos, aos berros, querendo o fígado do chefe de polícia. A polícia não fez milagre, isso é certo, mas não há departamento de polícia preparado para enfrentar um golpe desse tamanho, não importa quão bem acreditem que estejam. A coisa toda durou menos de vinte minutos. Devia haver mais ou menos uns 150 marginais envolvidos, armados até os dentes, com todo o ataque minuciosamente planejado. Como fazer para mandar policiais suficientes para lá, avaliar a trama, planejar a ação e executá-la em tão pouco tempo? É fácil dizer que a polícia deveria se antecipar, manter uma equipe para cada emergência, mas esses mesmos que estão berrando ‘Lixo’ agora seriam os primeiros a gritar ‘Roubo’ se tivessem os impostos aumentados em meia dúzia de centavos para pagar mais policiais e equipamentos.
“Mas a polícia perdeu, não há dúvidas quanto a isso, e várias cabeças vão rolar. Os carros blindados não serviram para nada, a troca de granadas foi meio a meio, já que os bandidos também sabiam jogar. Mas as verdadeiras desgraças foram as metralhadoras da polícia. Os banqueiros e acionistas estão dizendo que alguém mexeu nelas. Quer tenham sido deliberadamente sabotadas ou apenas negligenciadas, ninguém sabe, mas só uma delas disparava, e não muito bem.
“A fuga foi em direção ao norte, da Montgomery à Columbus. Ao longo da Columbus, o comboio se dispersou, alguns carros por vez, por ruas laterais. A polícia caiu numa emboscada entre a Washington e a Jackson e, quando conseguiu se livrar dela a tiros, os carros dos ladrões estavam espalhados por toda a cidade. Muitos já foram pegos desde então... vazios.
“Ainda não se tem o cálculo final do prejuízo, mas, neste momento, o placar está mais ou menos assim: a quantia roubada vai chegar a sabe Deus quantos milhões. Foi o maior montante já obtido com armas civis. Dezesseis policiais foram mortos, e o triplo disso saiu ferido. Doze espectadores inocentes e bancários morreram, mais ou menos o mesmo número de pessoas ficaram feridas. Dois bandidos e cinco alvos que tanto podem ser marginais quanto espectadores se aproximaram demais do local. Entre os ladrões, teve sete mortes de que sabemos e 31 presos, a maioria com algum sangramento.
“Um dos mortos foi Fat Boy Clarke. Você se lembra dele? Saiu atirando da sala de audiência de um tribunal em Des Moines há três ou quatro anos. Enfim, no bolso dele encontramos um pedaço de papel, um mapa da Montgomery Street entre a Pine e a Bush, a quadra do assalto. No verso do mapa havia instruções datilografadas, dizendo exatamente o que fazer e quando. Um X no mapa mostrava onde ele deveria estacionar o carro no qual chegou com seus sete homens, e havia um círculo onde ele deveria ficar com eles, atento à movimentação em geral e às janelas e telhados dos prédios do outro lado da rua em particular. Os pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 no mapa marcavam portas, escadas, uma janela e assim por diante, que deveriam ser usadas como abrigo caso fosse preciso trocar tiros com aquelas janelas e telhados. Clarke deveria prestar atenção à parte da Bush Street, mas se a polícia chegasse pela Pine Street, ele deveria levar seus homens para lá, distribuindo-os entre os pontos marcados a, b, c, d, e, f, g e h. (Seu corpo foi encontrado no ponto marcado como a.) A cada cinco minutos durante o roubo, ele deveria mandar um homem até um automóvel parado na rua num ponto marcado no mapa com uma estrela para conferir se havia novas instruções. Deveria dizer a seus homens que, se ele fosse morto, um deles deveria se reportar ao carro, e um novo líder seria providenciado para o grupo. Quando o sinal de fuga fosse emitido, ele deveria mandar um de seus homens até o carro em que haviam chegado. Se o carro ainda estivesse pronto para sair, o homem deveria dirigi-lo, sem ultrapassar o carro à sua frente. Se estivesse fora de combate, o homem deveria se reportar ao carro marcado com a estrela para receber instruções sobre como conseguir outro veículo. Imagino que tenham contado com encontrar muitos carros estacionados para isso. Enquanto Clarke estivesse esperando pelo carro, ele e seus homens deveriam atirar o máximo possível contra todos os alvos em seu distrito, e nenhum deveria entrar no carro até que ele se aproximasse deles. Então ele deveria sair pela Montgomery até a Columbus para... branco.
“Está vendo?” – perguntei. – “Estamos falando em 150 atiradores divididos em grupos comandados por líderes, com mapas e tabelas de horários definidos o que cada homem deveria fazer, mostrando o hidrante atrás do qual ele deveria se ajoelhar, a pedra sobre a qual deveria ficar, onde deveria cuspir... tudo, menos o nome e o endereço do policial no qual deveria atirar! Menos mal que Beno não tenha me dado os detalhes... eu teria descartado tudo como imaginação de um viciado!
– Muito interessante – disse o Velho, sorrindo suavemente.
– A tabela de horário do Fat Boy foi a única que encontramos – continuei a história. – Vi alguns amigos entre os mortos e presos, e a polícia ainda está identificando outros. Alguns são talentos locais, mas a maioria parece ser importada. Detroit, Chicago, Nova York, St. Louis, Denver, Portland, Los Angeles, Filadélfia, Baltimore... todas parecem ter enviado delegações. Assim que a polícia finalizar as identificações, farei uma lista.
“Dos que não foram apanhados, Bluepoint Vance parece ser o principal ponto de contato. Ele estava no carro que dirigiu as operações. Não sei quem mais estava lá com ele. O Shivering Kid estava envolvido nas festividades, e acho que o Alphabet Shorty McCoy, embora eu não tenha conseguido vê-lo direito. O sargento Bender me disse que viu Toots Salda e Darby M’Laughlin no assalto, e Morgan viu o Dis-and-Dat Kid. É um bom corte transversal do desenho do golpe: atiradores, vigaristas e seqüestradores de todos os pontos do mapa.
“A delegacia de polícia ficou a tarde toda parecendo um matadouro. A polícia não matou nenhum de seus hóspedes, pelo menos que eu saiba, mas certamente os está transformado em crentes. Repórteres de jornal que gostam de fazer render o que chamam de investigação difícil devem estar por lá agora. Depois de levarem algumas pancadas, alguns dos hóspedes falaram. Mas o diabo é que eles não sabem muito. Sabem alguns nomes – Denny Burke, Toby the Lugs, Old Pete Best, Fat Boy Clarke e Paddy, o Mexicano foram citados –, e isso ajuda um pouco, mas nem todo o poder de pancada da polícia pode revelar algo mais.
“A trama parece ter sido organizada assim: Denny Burke, por exemplo, é conhecido como um malandro de Baltimore. Bom, Denny fala com oito ou dez sujeitos aptos ao negócio, um por vez. ‘Que tal conseguir uns trocados na Costa?’, pergunta a eles. ‘Fazendo o quê?’, quer saber o candidato. ‘Fazendo o que mandarem’, responde o Rei da Ilha dos Sapos. ‘Você me conhece. Estou dizendo que é o golpe mais rápido que já foi feito, uma moleza... perfeito. Todos os envolvidos vão voltar para casa podres de ricos... e todos vão voltar para casa se obedecerem às instruções. É tudo o que vou dizer. Se não gostar disso... esqueça.’
“E esses sujeitos conheciam Denny. Bastava ele dizer que o trabalho era bom. De modo que concordaram em participar. Ele não lhes disse nada. Cuidou para que tivessem armas, deu a cada um uma passagem para São Francisco e vinte dólares e lhes informou onde deveriam se encontrar aqui. Na noite passada, ele os reuniu e lhes informou que iriam trabalhar hoje de manhã. Àquela altura, todos haviam se movimentado pela cidade o suficiente para perceber que ela estava borbulhando com talentos de fora, incluindo magnatas como Toots Salda, Bluepoint Vance e o Shivering Kid. Então, hoje de manhã eles saíram, com o Rei da Ilha dos Sapos à frente, para fazer a parte que lhes cabia na operação.
“Os outros capturados contam variações do mesmo tema. A polícia encontrou espaço na cela apertada deles para infiltrar alguns informantes. Como poucos dos bandidos conheciam uns aos outros, os informantes não tiveram dificuldades, mas a única coisa que conseguiram acrescentar ao que já tínhamos foi que os prisioneiros estão esperando por uma entrega no atacado hoje à noite. Parecem acreditar que o bando vai invadir a prisão e libertá-los. Isso é provavelmente uma bobagem, mas, de qualquer maneira, dessa vez a polícia vai estar preparada.
“Esta é a situação no momento. A polícia está varrendo as ruas, prendendo todo mundo que esteja mal barbeado ou que não apresente um certificado de serviço assinado pelo padre, com atenção especial a trens, barcos e automóveis saindo da cidade. Mandei Jack Counihan e Dick Foley no caminho de North Beach para dar uma batida nas espeluncas e ver se descobrem alguma coisa.”
– Você acha que Bluepoint Vance foi o cabeça do roubo? – perguntou o Velho.
– Espero que sim... nós o conhecemos.
O Velho virou a cadeira para que pudesse olhar novamente pela janela e ficou batendo na mesa com o lápis, pensativo.
– Infelizmente, acho que não – disse ele, num tom gentilmente apologético. – Vance é um criminoso esperto, cheio de recursos e determinado, mas sua fraqueza é comum ao seu tipo. Seus talentos são todos para a ação, e não para o planejamento com antecedência. Ele já realizou algumas operações de vulto, mas sempre acreditei que havia outra mente trabalhando por trás delas.
Eu não podia contestar aquilo. Se o Velho dizia que alguma coisa era de alguma maneira, então provavelmente era, porque era daquele tipo cauteloso que olha pela janela num dia de aguaceiro e diz “Parece estar chovendo”, para a possibilidade remota de alguém estar atirando água de cima do telhado.
– E quem é esse arquiladrão? – perguntei.
– Você provavelmente saberá disso antes de mim – respondeu com um sorriso simpático.
Voltei para a delegacia e ajudei a cozinhar mais prisioneiros em óleo quente até mais ou menos oito horas, quando meu apetite me lembrou que eu não havia comido nada desde o café da manhã. Resolvi isso e depois voltei para o Larrouy’s, caminhando lentamente, para que o exercício não interferisse na digestão. Passei três quartos de hora no Larrouy’s e não vi alguém que me interessasse em especial. Alguns conhecidos estavam lá, mas nenhum se mostrou ansioso por se relacionar comigo – em círculos criminosos, nem sempre é bom ser visto falando com um detetive depois da realização de um trabalho.
Sem conseguir nada por lá, subi a rua até o Wop Healy’s – outro buraco. Tive a mesma recepção – ganhei uma mesa e fui deixado sozinho. A banda do Healy’s tocava “Don’t You Cheat” com toda dedicação, enquanto os clientes mais atléticos se exercitavam na pista de dança. Um dos dançarinos era Jack Counihan, ocupando os braços com uma garota grande de pele escura com um rosto agradável de feições rudes e estúpidas.
Jack era um rapaz alto e magro de 23 ou 24 anos que havia entrado para a Continental alguns meses antes. Era seu primeiro emprego, e ele só conseguira porque o pai havia insistido que, se o filhinho quisesse manter acesso ao patrimônio da família, teria que largar de mão a idéia de que se formar raspando na faculdade era trabalho suficiente para uma vida inteira. Assim, Jack entrou para a Agência. Achava que a vida de detetive fosse divertida. Apesar do fato de que preferia pegar o homem errado a usar a gravata errada, era um jovem promissor. Um rapaz agradável, magro, porém musculoso, com cabelos macios, rosto e modos de cavalheiro, corajoso, com pensamentos e gestos rápidos, cheio da alegria do tipo não-estou-nem-aí intrínseca à sua juventude. Era meio atirado, evidentemente, e precisava de um pouco de controle, mas eu preferia conviver com ele a trabalhar com muitos veteranos que conhecia.
Meia hora se passou sem nada me interessar.
Então entrou no Healy’s um garoto – um menino pequeno, vestido de modo vulgar, com as pernas das calças muito bem passadas, os sapatos muito bem engraxados e um rosto pálido insolente com um estrabismo pronunciado. Era o garoto que eu havia visto caminhando tranqüilamente pela Broadway no instante depois de Beno ter sido morto.
Recostando-me na cadeira para que o chapelão de uma mulher ficasse entre nós, observei o jovem armênio andar por entre as mesas até uma localizada em um canto, com três homens sentados. Conversou com eles – talvez uma dúzia de palavras, por alto – e se afastou para outra mesa, onde um homem de nariz arrebitado e cabelos pretos estava sentado sozinho. O garoto se atirou na cadeira em frente ao nariz arrebitado, disse algumas palavras, demonstrou desprezo pelas perguntas do nariz arrebitado e pediu uma bebida. Depois de esvaziar o copo, atravessou o salão para conversar com um homem com cara de pássaro, e então saiu do Healy’s.
Segui-o até a rua, passando pela mesa em que Jack havia se sentado com a garota, olhando para ele. Do lado de fora, vi o jovem armênio a meia quadra de distância. Jack Counihan me alcançou e passou por mim. Com um cigarro Fatima nos lábios, gritei para ele:
– Tem um fósforo, parceiro?
Enquanto acendia o cigarro com um fósforo da caixa que ele me deu, falei por trás das mãos:
– O cara vestindo aquela roupa de festa... vá trás dele. Vou seguir atrás de vocês. Não o conheço, mas se apagou o Beno por falar comigo ontem à noite, ele me conhece. Nos calcanhares dele!
Jack guardou os fósforos e saiu atrás do garoto. Dei uma pista a Jack e o segui. Então uma coisa interessante aconteceu.
A rua estava relativamente cheia de gente, a maioria homens, alguns caminhando, alguns vadiando nas esquinas e em frente a lanchonetes. Quando o jovem armênio chegou à esquina de um beco onde havia uma luz, dois homens foram falar com ele, afastando-se um do outro de forma que o garoto ficou entre os dois. O menino teria continuado caminhando, aparentemente sem prestar atenção, mas um deles o parou, esticando o braço diante dele. O outro homem tirou a mão direita do bolso e a abanou no rosto do garoto, de modo que o soco-inglês niquelado cintilasse sob a luz. O garoto abaixou-se rapidamente sob a mão ameaçadora e o braço estendido e atravessou o beco, caminhando, sem sequer olhar para os dois homens que agora se aproximavam atrás dele.
Pouco antes de eles o alcançarem, outro homem os alcançou – um sujeito de costas largas, braços longos e aspecto simiesco que eu nunca havia visto. Cada braço pegou um dos homens. Agarrando-os pela nuca, ele os afastou do garoto, sacudiu-os até derrubar seus chapéus, bateu seus crânios um contra o outro, fazendo um barulho que parecia um cabo de vassoura se quebrando, e arrastou seus corpos inertes para dentro do beco. Enquanto isso tudo acontecia, o garoto seguiu caminhando alegremente pela rua, sem olhar para trás uma única vez.
Quando o racha-crânios saiu do beco, vi seu rosto sob à luz – um rosto de pele escura bastante enrugado, largo e achatado, com músculos maxilares salientes como abscessos sob suas orelhas. Cuspiu no chão, ajeitou as calças e saiu gingando pela rua atrás do garoto.
O garotou entrou no Larrouy’s. O racha-crânios o seguiu. O garoto saiu e, atrás dele – talvez a uns seis metros de distância – veio o racha-crânios. Jack os havia seguido até o Larrouy’s, enquanto eu os esperava do lado de fora.
– Ainda levando recados? – perguntei.
– Sim. Ele falou com cinco homens lá dentro. Tem muitos guarda-costas, não tem?
– É – concordei. – E você tome muito cuidado para não ficar entre eles. Se eles se separarem, irei atrás do racha-crânios e você segue com o cara.
Então nos separamos e partimos atrás do nosso alvo. Eles nos levaram a todos os buracos de São Francisco, a cabarés, restaurantes baratos, salões de bilhar, bares, pensões de quinta categoria, casas de penhores, cassinos clandestinos e coisas do gênero. Em todos os lugares, o garoto encontrou sujeitos com quem trocou sua dúzia de palavras e, entre uma parada e outra, deparava-se com eles em esquinas.
Eu teria gostado de seguir um daqueles caras, mas não queria deixar Jack sozinho com o garoto e seu guarda-costas – eles pareciam ser muito importantes. E não podia me arriscar a envolver Jack com um dos outros, porque não era seguro para mim andar muito perto do garoto armênio. Assim, continuamos agindo como no começo, seguindo a nossa dupla de buraco em buraco, com a noite virando manhã.
Passavam alguns minutos da meia-noite quando eles saíram de um hotelzinho na Kearny Street e, pela primeira vez desde que os encontramos, eles caminharam juntos, lado a lado, até a Green Street, onde viraram para Leste, ao longo do Telegraph Hill. Depois de meia quadra, subiram a escada da entrada de uma decrépita casa de cômodos e desapareceram para dentro. Juntei-me a Jack Counihan na esquina em que ele havia parado.
– Todos os cumprimentos foram distribuídos – palpitei –, ou ele não teria chamado o guarda-costas. Se não acontecer nada dentro da próxima meia hora, vou embora. Você vai ter que ficar vigiando o lugar até de manhã.
Vinte minutos depois, o racha-crânios saiu da casa e desceu pela rua.
– Vou atrás dele – eu disse. – Você fica com o garoto.
Dez ou doze passos depois de sair da casa, o racha-crânios parou. Olhou de volta para a casa, erguendo o rosto para observar os andares superiores. Então Jack e eu ouvimos o que o tinha feito parar. Na casa, um homem estava gritando. Não era um grito tão alto em termos de volume. Mesmo agora, mais forte, mal atingia os nossos ouvidos. Mas, naquele grito – naquele único lamento – estava contido um sentimento de horror à morte. Ouvi os dentes de Jack baterem. O que ainda resta da minha alma tem pele calejada, mas, mesmo assim, minha testa se franziu. O grito era muito fraco para o que dizia.
O racha-crânios se moveu. Cinco passos rápidos o levaram de volta à casa. Ele não tocou em um dos seis ou sete degraus da entrada. Foi da calçada ao vestíbulo num salto que nenhum macaco conseguiria superar em velocidade, agilidade ou silêncio. Um minuto, dois minutos, três minutos, e a gritaria parou. Mais três minutos, e o racha-crânios estava saindo da casa novamente. Fez uma pausa na calçada para cuspir e ajeitar as calças. Então saiu gingando rua abaixo.
– Ele é todo seu, Jack – eu disse. – Vou falar com o garoto. Ele não vai me reconhecer agora.
A porta da rua da casa de cômodos estava escancarada. Atravessei-a e fui parar num corredor, onde uma luz fraca vinda do andar de cima delineava um lance de escada. Subi os degraus e me virei em direção à frente da casa. Os gritos tinham vindo da frente – deste ou do terceiro andar. Havia uma boa chance de o racha-crânios ter deixado a porta do quarto destrancada, assim como não havia parado para fechar a porta da rua.
Não tive sorte no segundo andar, mas a terceira maçaneta que experimentei cuidadosamente no terceiro andar girou na minha mão e afastou a beirada da porta do batente. Diante daquela fresta, esperei por um instante, sem ouvir coisa alguma além de um forte ressonar em algum lugar no final do corredor. Encostei a mão na porta e a abri mais alguns centímetros. Nenhum barulho. O quarto estava escuro como as perspectivas de um político honesto. Deslizei a mão para depois do batente, por alguns centímetros de papel de parede, encontrei um interruptor de luz, que apertei. Dois globos no meio do quarto lançaram uma fraca luz amarelada sobre o quarto ordinário e o jovem armênio, que jazia morto em cima da cama.
Entrei no quarto, fechei a porta e fui até perto da cama. Os olhos do menino estavam arregalados e saltados. Tinha um ferimento numa das têmporas. A garganta estava aberta numa fenda vermelha que ia literalmente de orelha a orelha. Ao redor da fenda, nos poucos pontos não banhados em vermelho, seu pescoço magro exibia manchas escuras. O racha-crânios havia derrubado o garoto com um golpe na têmpora e o sufocado até achar que ele estava morto. Mas o garoto se recuperara o suficiente para gritar – não o bastante para evitar gritar. O racha-crânios tinha voltado para terminar o serviço com uma faca. Três faixas de sangue na roupa de cama mostravam onde a faca havia sido limpa.
O forro dos bolsos do menino estava para fora. O racha-crânios os havia virado. Revistei suas roupas, mas não me surpreendi com a falta de sorte – o assassino havia levado tudo. Não consegui coisa alguma no quarto – algumas roupas, mas nem um único item de onde pudesse retirar qualquer informação.
Com a busca encerrada, fiquei no meio do quarto coçando o queixo e pensando. No corredor, uma tábua do assoalho estalou. Três passos para trás em meus solados de borracha me botaram dentro do armário mofado, fechando a porta entreaberta menos de um centímetro atrás de mim.
Alguém bateu na porta do quarto enquanto eu tirava a arma do coldre na cintura. Bateram de novo, e uma voz feminina disse:
– Garoto, ei, Garoto!
Nem a batida nem a voz eram altas. A fechadura estalou com o girar da maçaneta. A porta se abriu e emoldurou a garota de olhar esquivo que havia sido chamada de Sylvia Yount por Angel Grace.
Seus olhos trocaram a aparência furtiva por surpresa quando pousaram no garoto.
– Minha nossa! – gritou e desapareceu.
Estava com metade do corpo para fora do armário quando a ouvi voltar pé ante pé. De volta ao meu buraco, fiquei esperando, os olhos fixos na abertura. Ela entrou rapidamente, fechou a porta em silêncio e inclinou-se sobre o garoto morto. Suas mãos se moveram por cima dele, explorando os bolsos cujos forros eu havia botado de volta para dentro.
– Maldito azar! – disse ela em voz alta depois de terminar a busca infrutífera, saindo da casa.
Dei-lhe tempo para chegar à calçada. Ia em direção à Kearny Street quando saí da casa. Segui-a pela Kearny até a Broadway e pela Broadway até o Larrouy’s. O Larrouy’s estava movimentado, principalmente perto da porta, com clientes entrando e saindo. Eu estava a mais ou menos um metro e meio da garota quando ela parou um garçom e perguntou, num sussurro excitado o bastante para que eu pudesse ouvir:
– O Red está aqui?
O garçom sacudiu a cabeça:
– Não apareceu esta noite.
A garota saiu da espelunca, caminhando apressadamente sobre os saltos até um hotel na Stockton Street.
Enquanto eu olhava através da fachada de vidro, ela foi até a recepção e falou com o recepcionista, que sacudiu a cabeça. Ela falou de novo, e ele lhe deu um papel e um envelope, no qual ela escreveu com a caneta que havia ao lado da caixa registradora. Antes de eu ter que me deslocar para uma posição mais segura, de onde pudesse cobrir sua saída, vi em que escaninho o bilhete foi colocado.
Do hotel, a garota foi de bonde até a esquina da Market com a Powell e depois caminhou pela Powell até a O’Farrel, onde um jovem de rosto rechonchudo vestindo um sobretudo cinza deixou o meio-fio para lhe dar o braço e levá-la até um ponto de táxi na O’Farrel Street. Deixei-os partir, anotando o número do táxi – o rapaz de rosto rechonchudo parecia mais um cliente do que um amigo.
Faltava pouco para as duas da manhã quando voltei para a Market Street e subi ao escritório. Fiske, que cuida da Agência à noite, disse que Jack Counihan não havia dado sinal; nada mais havia sido registrado. Pedi que ele me arrumasse um agente e, em dez ou quinze minutos, ele conseguiu tirar Mickey Linehan da cama e botá-lo no telefone.
– Escute aqui, Mickey – eu disse. – Escolhi a melhor esquina para você passar o resto da noite. Então prenda as fraldas e se arraste até lá, está bem?
Em meio a seus resmungos e palavrões, dei a ele o nome e o número do hotel da Stockton Street, descrevi Red O’Leary e lhe disse em que escaninho o bilhete havia sido colocado.
– Pode não ser a casa de Red, mas a possibilidade justifica a cobertura – eu disse. – Se você o pegar, tente não perdê-lo antes de eu conseguir mandar alguém para tirá-lo das suas mãos. – Desliguei em meio à explosão de xingamentos que o insulto provocou.
A delegacia de polícia estava movimentada quando cheguei lá, embora ninguém ainda tivesse tentado invadir a cadeia do andar de cima. Novos lotes de figuras suspeitas eram trazidos a cada poucos minutos. Havia policiais uniformizados e à paisana por tudo. A sala dos detetives parecia uma colméia.
Trocando informações com os detetives policiais, contei-lhes sobre o garoto armênio. Estávamos organizando um grupo para ir até o corpo quando a porta do capitão se abriu, e o Tenente Duff entrou na sala de reuniões.
– Allez! Oop! – disse ele, apontando um dedo grosso para O’Gar, Tully, Reecher, Hunt e eu. – Tem algo que vale a pena ver na Fillmore.
Nós o seguimos até um automóvel.
Uma casa de madeira cinza na Fillmore Street era o nosso destino. Havia um monte de pessoas no meio da rua olhando para a casa. Um camburão da polícia estava parado na frente, e policiais uniformizados entravam e saíam.
Um cabo de bigode ruivo saudou Duff e nos levou para dentro da casa, explicando no caminho:
– Os vizinhos nos telefonaram, reclamando da briga, e quando chegamos aqui, por Deus, não havia mais briga alguma.
Tudo o que havia na casa eram quatorze homens mortos.
Onze deles tinham sido envenenados – overdoses de drogas na bebida, disse o médico. Os outros três tinham sido mortos a tiros, em intervalos, ao longo do corredor. Pela aparência dos corpos, eles haviam bebido – todas –, e os que não haviam bebido, fosse por temperança ou natureza desconfiada, tinham sido mortos ao tentarem fugir.
A identidade dos corpos nos dava uma idéia de a que estavam brindando. Eram todos ladrões – haviam brindado com veneno o roubo do dia.
Não conhecíamos todos os homens na ocasião, mas todos conhecíamos alguns deles, e mais tarde os registros nos disseram quem eram os outros. A lista completa era uma espécie de Quem é Quem no Reino dos Vigaristas.
Tinha o Dis-and-Dat Kid, que havia fugido de Leavenworth apenas dois meses antes. Sheeny Holmes; Snohomish Shitey, supostamente morto como herói na França em 1919; L. A. Slim, de Denver, sem meias e sem cuecas, como sempre, com uma nota de mil dólares costurada em cada ombreira do casaco; Spider Girucci vestindo um colete de malha de aço sob a camisa e com uma cicatriz que ia do topo da cabeça ao queixo, onde seu irmão o havia cortado anos atrás; Old Pete Best, um ex-deputado; Nigger Vohan, que uma vez ganhou US$ 175 mil num jogo de dados em Chicago – Abracadabra tatuado nele em três lugares; Alphabet Shorty McCoy; Tom Brooks, cunhado de Alphabet Shorty, que inventou a agitação de Richmond e comprou três hotéis com os lucros; Red Cudahy, que assaltou um três da Union Pacific em 1924; Denny Burke; Bull McGonickle, ainda pálido depois de quinze anos na penitenciária de Joliet; Toby the Lugs, companheiro de Bull, que costumava se vangloriar de ter batido a carteira do presidente Wilson num teatro de vaudevile em Washington; e Paddy, o Mexicano.
Duff olhou para eles e assoviou.
– Mais alguns golpes como este – disse ele –, e vamos todos ficar sem emprego. Não vai mais haver bandidos contra os quais precisemos defender os cidadãos pagadores de impostos.
– Que bom que você gostou – eu disse. – Eu... eu detestaria ser um policial de São Francisco nos próximos dias.
– Por quê?
– Olhe para isso... uma grande peça de traição. Essa cidade está cheia de rapazes malvados que, neste exato momento, estão esperando que esses presuntos levem a eles a parte que lhes cabe do roubo. O que você acha que vai acontecer quando ficarem sabendo que não vai haver nada para o pessoal? Vai haver mais de cem marginais soltos por aí ocupados em conseguir grana para fugir. Vai haver três roubos por quarteirão e um assalto em cada esquina até o valor da passagem ser levantado. Deus abençoe vocês, meu filho, porque você vai suar para receber o salário!
Duff encolheu os ombros largos e passou por cima de corpos para chegar ao telefone. Quando terminou, telefonei para a Agência.
– Jack Counihan ligou há alguns minutos – disse Fiske, dando-me um endereço na Army Street. – Ele disse que pôs os homens dele lá, com companhia.
Liguei pedindo um táxi e disse a Duff:
– Vou sair um pouco. Dou uma ligada para cá se houver alguma novidade ou não. Você espera?
– Se não demorar muito.
Livrei-me do táxi a duas quadras do endereço que Fiske havia me dado e caminhei pela Army Street para me encontrar com Jack Counihan, plantado numa esquina escura.
– Dei azar – foi o cumprimento que recebi. – Enquanto eu estava telefonando da lanchonete, alguns dos meus amigos escaparam.
– É? Qual é a história?
– Bom, depois que o gorila saiu da casa na Green Street, ele foi de bonde até uma casa na Fillmore Street, e...
– Que número?
O número que Jack me deu era o da casa da morte de onde eu havia acabado de sair.
– Nos dez ou quinze minutos seguintes, mais ou menos dez ou quinze caras entraram na mesma casa. A maioria chegou a pé, sozinho ou em dupla. Então dois carros chegaram juntos, com nove homens dentro – eu contei. Eles entraram na casa, deixando os automóveis na frente. Um táxi passou um pouco depois, e eu o parei, para o caso do meu amigo sair motorizado.
“Não aconteceu coisa alguma por pelo menos meia hora depois que os nove sujeitos entraram. Então parece que todo mundo dentro da casa ficou expansivo, houve uma boa quantidade de gritaria e tiroteio. Durou tempo suficiente para acordar toda a vizinhança. Quando parou, dez homens, eu contei, saíram correndo da casa, entraram nos carros e foram embora. O meu homem era um deles.
“Meu leal táxi e eu saímos atrás deles, que nos trouxeram até aqui e entraram naquela casa ali embaixo, na frente da qual ainda está parado um dos carros. Depois de meia hora, mais ou menos, achei que era melhor eu dar sinal de vida. Assim, deixei o meu táxi na esquina, onde ainda está, com o taxímetro ligado, e fui até o Fiske. Quando voltei, um dos carros havia saído... e eu, pobre de mim!... não sei com quem ele saiu. Sou um imbecil?”
– Claro! Você devia ter levado os carros com você até o telefone. Fique de olho no que sobrou enquanto reúno um esquadrão força bruta.
Fui até a lanchonete e liguei para Duff, relatando onde eu estava e acrescentando:
– Se você trouxer a sua turma junto, talvez tenhamos lucro. Dois carros cheios com os homens que estavam na casa da Fillmore Street e não ficaram por lá vieram para cá, e parte deles talvez ainda esteja aqui, se você for rápido.
Duff trouxe seus quatro detetives e uma dúzia de policiais uniformizados com ele. Cercamos a casa pela frente e por trás. Não perdemos tempo tocando a campainha. Simplesmente derrubamos as portas e entramos. Tudo estava escuro no interior, até as lanternas o iluminarem. Não houve resistência. Normalmente, os seis homens que encontramos lá dentro teriam quase acabado conosco apesar de estarmos em maior número. Mas eles estavam mortos demais para isso.
Olhamos uns para os outros boquiabertos.
– Isso está ficando monótono – reclamou Duff, mordendo um pedaço de tabaco. – O trabalho de todo mundo é mais ou menos o mesmo o tempo todo, mas estou cansado de entrar em quartos cheios de bandidos mortos.
O catálogo ali tinha menos nomes do que o outro, mas eram nomes maiores. O Shivering Kid estava ali – agora ninguém mais iria receber todo o dinheiro de recompensa oferecido por sua captura; Darby M’Laughlin, com os óculos de aros casco de tartaruga tortos no nariz e dez mil dólares em diamantes nos dedos e na gravata; Happy Jim Hacker; Donkey Marr, o último dos Marr de pernas arqueadas, todos matadores, pai e cinco filhos; Toots Salda, o homem mais forte do Reino dos Vigaristas, que um dia havia fugido com dois policiais de Savannah a quem estava algemado; e Rumdum Smith, que matou Lefty Read em Chicago, em 1916 – com um rosário enrolado no pulso esquerdo.
Ali não houve um envenenamento cavalheiresco – aqueles rapazes haviam sido abatidos com uma espingarda .30-.30 equipada com um silenciador caseiro rudimentar, mas eficiente. A espingarda estava sobre a mesa da cozinha. Uma porta ligava a cozinha à sala de jantar. Diretamente em frente à porta, portas duplas – escancaradas – davam para a sala na qual estavam os ladrões mortos. Estavam todos perto da parede da frente, deitados como se tivessem sido enfileirados contra a parede para serem abatidos.
A parede coberta com papel cinza estava toda respingada de sangue, cheia de buracos onde algumas balas haviam atravessado a estrutura completamente. Os olhos jovens de Jack Counihan perceberam uma mancha no papel que não fora acidental. Estava perto do chão, ao lado do Shivering Kid, e a mão direita de Kid estava manchada de sangue. Ele havia escrito na parede antes de morrer – com os dedos mergulhados no próprio sangue e no de Toots Salda. As letras tinham interrupções e falhas nas partes em que os dedos haviam secado e estavam tortas e desordenadas, porque ele deve ter escrito no escuro.
Ao preencher as lacunas, descontando os tremores e adivinhando onde não havia qualquer indicação para nos guiar, conseguimos formar duas palavras: Big Flora.
– Isso não significa nada para mim – disse Duff –, mas é um nome, e a maioria dos nomes que temos agora pertence a homens mortos. Então está na hora de acrescentarmos nomes à nossa lista.
– O que vocês acham que aconteceu? – perguntou O’Gar, sargento-detetive da Divisão de Homicídios, olhando para os corpos. – Os parceiros os pegaram de surpresa, puseram-nos contra a parede, e o atirador na cozinha os abateu... bim-bim-bim-bim-bim-bim?
– É o que parece – concordamos.
– Dez deles vieram para cá da Fillmore Street – eu disse. – Seis ficaram aqui. Quatro foram para outra casa... onde parte deles não está eliminando a outra parte. Tudo o que precisamos fazer é seguir os corpos de casa em casa até restar apenas um homem... e é capaz de ele mesmo terminar o serviço para nós, deixando a grana para ser recuperada nos pacotes originais. Espero que vocês não precisem ficar acordados a noite toda para encontrar os restos desse último marginal. Vamos lá, Jack, vamos para casa dormir um pouco.
*
Eram exatamente cinco da manhã quando puxei os lençóis e me deitei na cama. Dormi antes de a última tragada de fumaça do meu Fatima de boa noite sair dos pulmões. O telefone me acordou às 5h15.
Era Fiske falando:
– Mickey Linehan acabou de ligar para dizer que o seu Red O’Leary chegou ao hotel há meia hora.
– Mande prendê-lo – eu disse, e voltei a dormir às 5h17.
Com a ajuda do despertador, rolei para fora da cama às nove, tomei café da manhã e fui até o departamento de detetives para ver como a polícia havia se saído com o ruivo. Não muito bem.
– Ele nos parou – contou o capitão. – Ele tem álibis para a hora dos roubos e para os fatos da noite passada. E nós não podemos sequer acusar o filho da mãe de vadiagem. Ele tem um meio de vida. É vendedor do Dicionário Enciclopédico Universal de Conhecimento Útil e Valioso Humperdickel, ou coisa do gênero. Começou a distribuir os panfletos no dia anterior ao golpe e, na hora do acontecido, estava tocando campainhas e pedindo que comprassem seus malditos livros. Enfim, há três testemunhas que afirmam isso. Na noite passada, esteve num hotel das onze às quatro e meia da manhã de hoje, jogando cartas, e tem testemunhas. Não encontramos porcaria alguma com ele ou em seu quarto.
Pedi o telefone do capitão emprestado para ligar para a casa de Jack Counihan.
– Você poderia identificar algum dos homens que viu nos carros na noite passada? – perguntei depois de tirá-lo da cama.
– Não. Estava escuro, e eles se moviam muito rápido. Mas consegui ter certeza quanto ao meu amigo.
– Não consegue, é? – perguntou o capitão. – Bom, eu posso mantê-lo aqui por 24 horas sem qualquer acusação, e vou fazer isso, mas terei de soltá-lo, a menos que você consiga desencavar alguma coisa.
– E se você o soltar agora? – sugeri, depois de pensar com meu cigarro por alguns minutos. – Como conseguiu um monte de álibis, não teria por que se esconder de nós. Vamos deixá-lo sozinho o dia inteiro... dar-lhe tempo para ter certeza de que não está sendo seguido... e então vamos atrás dele à noite. E ficaremos atrás dele. Alguma informação sobre Big Flora?
– Não. Aquele garoto que foi morto na Green Street era Bernie Bernheimer, também conhecido como o Motsa Kid. Acho que era um ladrãozinho... andava com outros ladrõezinhos... mas não era muito...
O toque do telefone o interrompeu. Ele disse “Alô? Sim. Só um instante” e o estendeu por cima da mesa para mim.
Uma voz feminina:
– Aqui é Grace Cardigan. Liguei para a sua agência, e me disseram onde encontrá-lo. Preciso vê-lo. Você pode me encontrar agora?
– Onde você está?
– Na estação telefônica da Powell Street.
– Estarei aí em quinze minutos – eu disse.
Liguei para Agência, falei com Dick Foley e pedi que ele me encontrasse na esquina da Ellis com a Market imediatamente. Então devolvi o telefone ao capitão, disse “Até mais tarde” e fui até a cidade para cumprir meus compromissos.
Dick Foley estava na esquina combinada quando cheguei lá. Era um pequeno canadense moreno que ficava com quase um metro e meio em seus sapatos de saltos altos, pesava menos que 45 quilos, falava como um telegrama de escocês e era capaz de seguir uma gota de água salgada da Golden Gate a Hong Kong sem jamais perdê-la de vista.
– Você conhece Angel Grace Cardigan? – perguntei.
Ele economizou uma palavra sacudindo a cabeça horizontalmente.
– Vou encontrá-la na estação telefônica. Quando eu terminar, vá atrás dela. É uma mulher inteligente e vai estar procurando por você, de modo que não vai ser moleza, mas faça o que puder.
Os cantos da boca de Dick caíram, e ele foi tomado por um de seus raros acessos de tagarelice.
– Quanto mais difíceis parecem, mais fáceis são – disse ele.
Seguiu atrás de mim a caminho da estação. Angel Grace estava esperando de pé na porta. Seu rosto estava mais taciturno do que eu jamais havia visto e, portanto, menos bonito – exceto por seus olhos verdes, que continham fogo demais para depressão. Tinha um jornal enrolado em uma das mãos. Não falou, sorriu, ou mexeu a cabeça.
– Vamos até o Charley’s, onde podemos conversar – eu disse, passando com ela por Dick Foley.
Não tirei um murmúrio dela até estarmos sentados um em frente ao outro à mesa de uma das cabines do restaurante e o garçom ter saído com os nossos pedidos. Então ela abriu o jornal sobre a mesa com as mãos trêmulas.
– Isto aqui é verdade? – perguntou.
Olhei a matéria para que seu dedo trêmulo apontava – um relato do que havia sido descoberto nas ruas Fillmore e Army, mas um relato cauteloso. Num passar de olhos, dava para perceber que nenhum nome havia sido revelado, que a polícia havia censurado a história um bocado. Enquanto fingia ler, eu me perguntava se seria vantajoso dizer à garota que a história era falsa. Como não consegui ver qualquer lucro evidente com isso, poupei minha alma de uma mentira.
– Praticamente exato – admiti.
– Você esteve lá? – ela havia empurrado o jornal para o chão e estava inclinada sobre a mesa.
– Com a polícia.
– O... – sua voz embargou. Os dedos brancos agarravam a toalha de mesa em dois montinhos entre nós. Limpou a garganta. – Quem estava...? – foi até onde conseguiu ir desta vez.
Uma pausa. Esperei. Baixou os olhos, mas não antes de eu ver lágrimas apagarem o fogo que havia neles. Durante a pausa, o garçom veio, serviu nossa comida e foi embora.
– Você sabe o que eu quero perguntar? – disse, rapidamente, com a voz baixa e engasgada. – Ele foi? Ele foi? Pelo amor de Deus, me diga!
Pesei as duas – mentira e verdade, mentira e verdade. Mais uma vez, a verdade triunfou.
– Paddy, o Mexicano foi morto... assassinado... na casa da Fillmore Street – respondi.
As pupilas de seus olhos se encolheram ao tamanho da cabeça de um alfinete para depois se dilatarem novamente até quase cobrirem as íris verdes. Não emitiu som algum. Sua expressão estava vazia. Pegou um garfo e levou uma porção de salada até a boca... e mais uma. Estendendo o braço, tirei o garfo de sua mão.
– Você só está derramando tudo na roupa – resmunguei. – Não dá para comer sem abrir a boca para pôr a comida dentro.
Ela estendeu as mãos em cima da mesa, em busca das minhas, trêmula, segurando as minhas mãos com dedos que se contorciam tanto que as unhas me arranharam.
– Você não está mentindo para mim? – disse ela, meio entre soluços, meio tagarela. – Você é um cara legal! Foi legal comigo daquela vez na Filadélfia! O Paddy sempre dizia que você era um detetive legal! Você não está me enganando?
– Estou falando sério – garanti a ela. – O Paddy era muito importante para você.
Ela assentiu melancolicamente, recompondo-se, afundando numa espécie de estupor.
– O caminho para vingar-se por ele está aberto – sugeri.
– Você quer dizer...?
– Fale.
Ela ficou me encarando inexpressivamente por um bom tempo, como se estivesse tentando entender o que eu havia dito. Li a resposta em seus olhos, antes que ela a transformasse em palavras.
– Como eu gostaria de poder fazer isso. Mas sou filha de Paperbox-John Cardigan. Não é do meu feitio entregar alguém. Você está do lado errado. Eu não posso mudar de lado. Gostaria de poder. Mas sou uma Cardigan. Vou passar cada instante desejando que você os pegue. E os pegue de jeito, mas...
– Os seus sentimentos são nobres, ou pelo menos as suas palavras – ironizei. – Quem você pensa que é? Joana D’Arc? O seu irmão Frank estaria na cadeia agora se o parceiro dele, Johnny, o Encanador, não o tivesse dedurado aos policiais de Great Falls? Caia na real, queridinha! Você é uma ladra entre ladrões, e os que não traem são traídos. Quem matou o seu Paddy, o Mexicano? Comparsas dele! Mas você não vai se vingar deles porque não seria correto. Meu Deus!
Meu discurso só intensificou a depressão em seu rosto.
– Eu vou me vingar – disse ela. – Mas não posso, não posso ser uma traidora. Não posso contar a você. Se você fosse um pistoleiro, eu... enfim, qualquer ajuda que eu conseguir, será do meu lado do jogo. Deixe estar, está bem? Sei como você se sente, mas... você pode me dizer quem mais além... quem mais foi... foi encontrado naquelas casas?
– Ah, claro! – resmunguei. – Eu digo tudo para você. Deixo você me tirar até a última gota. Mas você não deve me dar nenhuma pista, porque pode ir contra a ética da sua altamente honrosa profissão!
Como mulher que é, ignorou tudo o que eu disse e repetiu:
– Quem mais?
– Nada feito. Mas farei o seguinte, vou dizer dois que não estavam lá... Big Flora e Red O’Leary.
Seu ar anestesiado desapareceu. Estudou meu rosto com olhos verdes escuros e selvagens.
– O Bluepoint Vance estava? – ela perguntou.
– O que você acha? – respondi.
Estudou meu rosto mais um pouco e então se levantou.
– Obrigada pelo que você me contou – disse. – E por se encontrar comigo assim. Espero que vocês vençam.
E saiu para ser seguida por Dick Foley. Comi meu almoço.
Às quatro horas daquela tarde, Jack Counihan e eu paramos nosso automóvel alugado no campo de visão da porta da frente do hotel Stockton.
– Ele limpou a barra com a polícia, então não tem motivo para ter se mudado, acho – eu disse a Jack. – E eu prefiro não mexer com o pessoal do hotel, pois não os conheço. Se ele não aparecer até mais tarde, teremos que partir contra eles.
Nós nos acomodamos, fumamos cigarros, tentamos adivinhar qual seria o próximo campeão dos pesos-pesados e discutimos onde comprar gim de boa qualidade e o que fazer com ele. Falamos sobre a injustiça da nova regra da Agência segundo a qual, para efeitos de gastos em serviço, Oakland não era considerado fora da cidade e outros assuntos empolgantes do gênero, que nos ocuparam das quatro da tarde até pouco depois das nove da noite.
Às 9h10, Red O’Leary saiu do hotel.
– Deus é bom – disse Jack, saltando de dentro do carro para fazer o trabalho a pé enquanto eu ligava o motor.
O gigante cabeça de fogo não nos levou muito longe. Foi engolido pela porta da frente do Larrouy’s. Quando consegui estacionar o carro e entrar na espelunca, tanto O’Leary quanto Jack haviam se sentado. A mesa de Jack era na beirada da pista de dança. A de O’Leary, do outro lado do estabelecimento, encostada na parede, perto de um canto. Um casal loiro e gordo estava deixando uma mesa naquele canto quando entrei, de modo que convenci o garçom a me deixar ficar com aquela.
O rosto de O’Leary estava virado três quartos para mim. Ele observava a porta da frente com uma seriedade que subitamente virou felicidade quando uma garota apareceu. Era a garota que Angel Grace havia chamado de Nancy Regan. Eu já disse que ela era bonita. Bom, ela era. E o chapeuzinho azul coquete que escondia todo o seu cabelo não prejudicava em nada a sua beleza naquela noite.
O ruivo se levantou atabalhoadamente e empurrou um garçom e alguns clientes para fora do caminho enquanto ia ao encontro dela. Como recompensa por seu entusiasmo, recebeu alguns xingamentos que não pareceu escutar e um sorriso de olhos azuis e dentes brancos que era... bem... bonito. Levou-a até sua mesa e acomodou-a numa cadeira de frente para mim, sentando-se muito de frente para ela.
Sua voz era um rugido barítono, do qual meus ouvidos bisbilhoteiros não conseguiram identificar palavra alguma. Ele parecia estar contando muitas coisas a ela, que prestava atenção como se estivesse gostando do que ouvia.
– Mas, Reddy, meu querido, você não devia ter feito isso – ela disse uma vez. Sua voz – eu conheço outras palavras, mas vamos nos ater a esta – era bonita. Apesar do perfume de almíscar, tinha qualidade. Quem quer que fosse aquela mulher de pistoleiro, ou ela tinha tido um bom começo de vida, ou havia aprendido muito bem. Vez ou outra, quando a banda parava para respirar, eu pegava algumas palavras, mas elas não me diziam nada exceto que nem ela nem seu companheiro brigão tinham qualquer coisa um contra o outro.
O lugar estava quase vazio quando ela entrou. Às dez horas, estava relativamente lotado, e dez horas é cedo para os clientes do Larrouy’s. Passei a prestar menos atenção à garota de Red – ainda que ela fosse bonita – e mais aos meus outros vizinhos. Ocorreu-me que não havia muitas mulheres à vista. Ao tentar confirmar essa impressão, encontrei poucas mulheres em proporção ao número de homens. Homens – homens com caras de rato, homens com maxilares quadrados, homens de queixo frouxo, homens pálidos, homens mirrados, homens de aparência engraçada, homens com jeito de durões, homens comuns – sentados em dois a uma mesa, em quatro, mais homens entrando – e pouquíssimas mulheres.
Esses homens conversavam uns com os outros como se não estivessem muito interessados no que estavam dizendo. Olhavam casualmente ao redor, com olhares que ficavam mais vazios ao se aproximarem de O’Leary. E aqueles olhares casuais e entediados sempre pousavam em O’Leary por um ou dois segundos.
Voltei a direcionar minha atenção a O’Leary e Nancy Regan. Ele estava sentado um pouco mais ereto na cadeira do que antes, mas era uma postura tranqüila e suave. E embora seus ombros estivessem um pouco arqueados, não havia tensão neles. Ela lhe disse alguma coisa. Ele riu, virando o rosto para o centro do salão, para que parecesse não estar rindo apenas do que ela havia dito, mas também daqueles homens sentados ao seu redor, esperando. Foi uma risada sincera, jovial e despreocupada.
A garota pareceu surpresa por um instante, como se algo na risada a intrigasse. Então prosseguiu com o que quer que fosse que estivesse contando a ele. Concluí que ela não sabia que estava sentada sobre dinamite. O’Leary sabia. Cada centímetro e cada gesto seu diziam “Sou grande, forte, jovem, durão e ruivo. Quando vocês quiserem se mexer, estarei aqui.”
O tempo passou. Alguns poucos casais dançavam. Jean Larrouy percorria o salão com uma preocupação sombria em seu rosto redondo. Estava com a casa cheia de clientes, mas preferiria que estivesse vazia.
Mais ou menos às onze horas, levantei-me e acenei para Jack Counihan. Ele se aproximou, trocamos um aperto de mãos e cumprimentos, e ele se sentou comigo à mesa.
– O que está acontecendo? – perguntou ele, encoberto pelo barulho da banda. – Não estou vendo nada, mas tem alguma coisa no ar. Ou estou sendo neurótico?
– Você logo vai ficar. Os lobos estão se reunindo, e Red O’Leary é o cordeiro. Há cordeiros mais mansos, mas essas figuras ajudaram a roubar um banco, e quando chegou o dia do pagamento, não havia nada em seus envelopes, nem mesmo os envelopes. Espalharam a informação de que talvez Red soubesse o porquê. Isso explica a situação. Agora estão esperando, talvez por alguém, talvez até terem bebida suficiente dentro deles.
– E estamos sentados aqui porque é a mesa mais próxima do alvo das balas de todos esses sujeitos quando a tampa explodir? – perguntou Jack. – Vamos para a mesa do Red. É ainda mais perto, e eu gosto bastante da aparência da garota que está com ele.
– Não seja impaciente, você vai se divertir – prometi. – Não faz sentido matarem esse O’Leary. Se negociarem com ele de modo cavalheiresco, nós vamos embora. Mas se começaram a atirar coisas nele, você e eu vamos liberar ele e a namorada.
– Bem falado, meu amigo! – Ele sorriu, com o contorno dos lábios muito branco. – Há algum detalhe, ou vamos simplesmente libertá-los discretamente?
– Está vendo a porta atrás de mim, à direita? Quando a coisa estourar, irei até lá abri-la. Você cuida do meio do caminho. Quando eu gritar, você dá a Red toda a ajuda de que ele precisar para chegar até lá.
– Sim, senhor! – Ele olhou ao redor para os bandidos ali reunidos, umedeceu os lábios e olhou para a mão que segurava o cigarro. Estava trêmula. – Espero que você não pense que sou um medroso – disse ele. – Mas não sou um velho matador como você. Fico incomodado com essa matança em potencial.
– Incomodado o caramba – eu disse. – Você está morto de medo. Mas nada de bobagens, hein! Se você tentar fazer um drama, vou acabar com o que quer que esses gorilas deixem sobrar de você. Faça o que eu mandar e nada mais. Se tiver qualquer idéia brilhante, guarde-a para me contar depois.
– Ah, a minha conduta será extremamente exemplar! – assegurou-me.
Já era quase meia-noite quando chegou o que os lobos estavam esperando. O último resquício de indiferença fingida abandonou as expressões que vinham ganhando tensão gradualmente. Cadeiras e pés se arrastaram com os homens se afastando um pouco das mesas. Os músculos deixaram os corpos prontos para a ação. As línguas lamberam os lábios, e os olhos observaram atentamente a porta da frente.
Bluepoint Vance estava entrando no salão. Entrou sozinho, acenando com a cabeça para conhecidos de um lado e outro, carregando o corpo alto com elegância, tranqüilamente, em sua roupa bem cortada. Seu rosto de traços marcantes estava sorridente e autoconfiante. Aproximou-se sem pressa e sem demora da mesa de Red O’Leary. Eu não podia ver o rosto de Red, mas os músculos de seu pescoço ficaram tensos. A garota sorriu cordialmente para Vance e estendeu-lhe a mão. Foi um gesto natural. Ela não sabia de nada.
Vance desviou o sorriso de Nancy Regan para o gigante ruivo – um sorriso que parecia o de um gato para um camundongo.
– Como estão as coisas, Red? – perguntou.
– Tudo ótimo – respondeu ele, asperamente.
A banda havia parado de tocar. De pé ao lado da porta da rua, Larrouy secava a testa com um lenço. Na mesa à minha direita, um brutamontes atarracado de nariz quebrado vestindo um terno listrado respirava pesadamente entre os dentes de ouro, com os úmidos olhos cinzentos saltados para O’Leary, Vance e Nancy. Ele não estava de forma alguma sozinho – havia muitos outros na mesma pose.
Bluepoint Vance virou a cabeça e chamou um garçom:
– Traga uma cadeira.
O garçom trouxe a cadeira, que pôs no lado desocupado da mesa, de frente para a parede. Vance sentou-se, atirando-se na cadeira, inclinando-se indolentemente para Red, com o braço esquerdo enganchado sobre as costas da cadeira, a mão direita segurando um cigarro.
– Bem, Red – disse, depois de estar assim instalado –, você recebeu notícias minhas?
Falou com a voz suave, mas num tom suficientemente alto para que os ocupantes das mesas próximas escutassem.
– Nenhuma. – A voz de O’Leary não fingia amizade ou cautela.
– O quê? Nada de grana? – O sorriso de lábios finos de Vance se abriu, e seus olhos escuros tinham um brilho alegre, mas nada agradável. – Ninguém deu nada para você dar para mim?
– Não – respondeu O’Leary enfaticamente.
– Meu Deus! – disse Vance, com o sorriso na boca e nos olhos ficando mais profundo, e ainda menos agradável. – Isso é ingratidão! Você me ajuda a cobrar, Red?
– Não.
Eu estava irritado com aquele ruivo – não tinha certeza se deveria deixá-lo sair quando a tempestade irrompesse. Por que não tinha armado sua saída... inventado uma história fantasiosa que Bluepoint seria obrigado a aceitar? Mas não... aquele garoto O’Leary tinha um orgulho tão infantil de sua fama de durão que precisava exibi-la, quando deveria estar usando a cabeça. Se fosse apenas a sua própria carcaça que estivesse correndo o risco de levar uma surra, tudo bem. Mas não era justo que Jack e eu também tivéssemos que sofrer. Ele era um pedaço valioso demais para perdermos. Teríamos que nos machucar muito para salvá-lo das recompensas que ele merecia por sua própria teimosia. Não havia justiça na situação.
– Tenho muito dinheiro para receber, Red – disse Vance num tom distante e debochado. – E preciso desse dinheiro. – Tragou o cigarro, soprou casualmente a fumaça no rosto do ruivo e seguiu falando lentamente. – Sabia que a lavanderia cobra 26 centavos só para lavar um pijama? Eu preciso de dinheiro.
– Durma de cueca – disse O’Leary.
Vance riu. Nancy Regan sorriu, mas de um jeito perplexo. Ela parecia não saber do que se tudo se tratava, mas desconfiava de que era sobre alguma coisa.
O’Leary inclinou-se para frente e falou deliberadamente, alto o bastante para qualquer um escutar:
– Bluepoint, não tenho nada para dar a você... nem agora nem nunca. E isso vale para qualquer outro que esteja interessado. Se você ou eles pensam que lhes devo alguma coisa, tentem pegar. Vá para o inferno, Bluepoint Vance! Se não gosta disso, tem os seus amigos aqui. Chame-os!
Que jovem idiota de primeira! Só uma ambulância lhe serviria... e eu acabaria sendo arrastado junto.
Vance sorriu maldosamente, com os olhos faiscando para o rosto de O’Leary.
– Você gostaria disso, Red?
O’Leary levantou os ombros enormes e os soltou em seguida.
– Não me importo com uma briga – disse. – Mas gostaria que Nancy ficasse de fora. – Virou-se para ela: – É melhor sair, querida, vou ficar ocupado.
Ela começou a dizer alguma coisa, mas Vance estava falando com ela. Falou em voz baixa e não fez qualquer objeção quanto a ela sair. O que disse foi que ela se sentiria solitária sem Red. Mas entrou intimamente nos detalhes dessa solidão.
A mão direita de Red O’Leary estava sobre a mesa. Subiu até a boca de Vance. A mão estava fechada quando chegou lá. Um golpe desses é complicado de acertar. O corpo não consegue imprimir muita força. Teria que depender dos músculos do braço, e não dos melhores deles. Ainda assim, Bluepoint Vance foi derrubado da cadeira, caindo sobre a outra mesa.
As cadeiras do Larrouy’s se esvaziaram. A festa havia começado.
– Fique alerta – resmunguei para Jack Counihan e, fazendo de tudo para parecer o homenzinho gordo e nervoso que eu era, corri em direção à porta dos fundos, passando por homens que se moviam calmamente para O’Leary. Eu devia estar parecendo um medroso assustado, porque ninguém me parou, e cheguei à porta dos fundos antes de o bando ter se aproximado de Red. A porta estava fechada, mas não trancada. Virei de costas para ela, com o cassetete na mão direita e a arma na esquerda. Havia vários homens na minha frente, mas de costas para mim.
O’Leary estava se levantando diante da mesa, o rosto vermelho durão cheio de desafio, o corpanzil equilibrado na ponta dos pés. Do nosso lado, Jack Counihan estava de pé com o rosto virado para mim, a boca se contorcendo num sorriso nervoso, os olhos dançando de alegria. Bluepoint Vance estava novamente de pé. Um fio de sangue escorria de seus lábios finos pelo queixo. Tinha os olhos indiferentes. Olhava para Red O’Leary com a expressão pragmática de um lenhador avaliando a árvore que está prestes a derrubar. O bando de Vance observava Vance.
– Red! – Gritei, em meio ao silêncio. – Por aqui, Red!
Os rostos se viraram para mim – todos os rostos do lugar – milhões deles.
– Vamos lá, Red! – gritou Jack Counihan, dando um passo para frente, com a arma na mão.
A mão de Bluepoint Vance avançou para a abertura de seu casaco. A arma de Jack disparou contra ele. Bluepoint havia se atirado no chão antes de o garoto apertar o gatilho. A bala passou longe, mas o disparo de Vance tinha sido prejudicado.
Red levantou a garota com o braço esquerdo. Uma grande pistola automática surgiu em seu punho direito. Não prestei muita atenção nele depois disso. Estava ocupado.
A casa de Larrouy estava repleta de armas – pistolas, facas, cassetetes, socos-ingleses, cadeiras e garrafas quebradas e diversos utensílios de destruição. Alguns homens levaram as armas para mexer comigo. O objetivo do jogo era me afastar da minha porta. O’Leary teria gostado daquilo. Mas eu não era um jovem desordeiro de cabelos de fogo. Estava com quase quarenta anos e dez quilos acima do peso. Tinha o gosto pela tranqüilidade que vem com a idade e o peso. Tranqüilidade foi o que menos consegui.
Um português vesgo feriu meu pescoço com uma faca que estragou a minha gravata. Atingi-o com um golpe acima da orelha com a lateral da arma antes que ele conseguisse escapar e vi a orelha se desprender da cabeça. Um garoto sorridente de mais ou menos vinte anos saltou para as minhas pernas – um movimento de jogo de futebol americano. Senti seus dentes no joelho que levantei. Senti-os quebrarem. Um mulato com a pele marcada de catapora empurrou um cano de arma por cima do ombro do homem à sua frente. Meu cassetete esmagou o braço do sujeito à frente.
Disparei duas vezes – uma quando uma arma foi apontada a trinta centímetros do meu peito, outra quando descobri um homem de pé em cima de uma mesa não muito longe mirando cuidadosamente a minha cabeça. No mais, confiei em meus braços e pernas e economizei munição. A noite era uma criança, e eu tinha apenas doze balas – seis na arma e seis no bolso.
Foi um belo saco de gatos. Soco de direita, soco de esquerda, chute, soco de direita, soco de esquerda, chute. Sem hesitar, sem procurar por alvos. Deus providenciará que sempre haja um alvo para a sua arma ou o seu cassetete acertar e uma barriga para o seu pé.
Uma garrafa conseguiu encontrar a minha testa. Meu chapéu me protegeu um pouco, mas o golpe não me fez muito bem. Fiquei tonto e quebrei um nariz, quando devia ter quebrado um crânio. O ambiente parecia abafado, mal ventilado. Alguém devia avisar Larrouy disso. Que tal essa porrada nas têmporas, loirão? Esse rato à minha esquerda está chegando perto demais. Vou atraí-lo inclinando-me para a direita para acertar o mulato e depois vou me atirar de costas em cima dele com tudo. Nada mal! Mas não consigo continuar assim a noite toda. Onde estão Red e Jack? Assistindo de longe?
Alguém me atingiu no ombro com alguma coisa – um piano, pela sensação. Não consegui evitar. Outra garrafa atirada levou meu chapéu e parte do escalpo. Red O’Leary e Jack Counihan saíram empurrando todo mundo, arrastando a garota entre eles.
Enquanto Jack levava a garota pela porta, Red e eu abrimos um pouco de espaço à nossa frente. Ele era bom nisso. Eu não o acompanhei, mas deixei-o fazer todo o exercício que queria.
– Muito bem! – gritou Jack.
Red e eu passamos pela porta e a batemos. Não permaneceria fechada nem que estivesse trancada. O’Leary atirou três vezes contra ela para dar aos demais algo no que pensar, e fugirmos.
Estávamos numa passagem estreita iluminada por uma lâmpada relativamente clara. Na outra ponta havia uma porta fechada. No meio do caminho, à direita, uma escada levava para cima.
– Seguimos adiante? – perguntou Jack, que estava à frente.
– Sim – respondeu O’Leary.
– Não – disse eu. – Vance já deve ter mandado bloquear aquela passagem, se os policiais não o fizeram. Vamos para cima... para o telhado.
Chegamos à escada. A porta atrás de nós se abriu num estouro. A luz se apagou. A porta na outra ponta da passagem se abriu. Nenhuma luz entrou por qualquer das portas. Vance ia querer luz. Larrouy deve ter acionado o interruptor, tentando evitar que sua espelunca fosse destruída.
A passagem escura fervilhava em tumulto enquanto subíamos a escada usando o tato como guia. Quem quer que houvesse entrado pela porta dos fundos estava se misturando com os que nos seguiam – misturando-se com golpes, xingamentos e alguns tiros ocasionais. Mais poder a eles! Subimos a escada com Jack à frente, a garota em seguida, depois eu, e, por último, O’Leary.
Galantemente, Jack guiava o caminho para a garota:
– Cuidado com o degrau, meia volta à esquerda agora, apóie a mão na parede e...
– Cale a boca! – resmunguei. – É melhor ela cair do que todo mundo lá atrás nos alcançar.
Chegamos ao segundo andar. Estava uma escuridão absoluta. O prédio tinha três andares.
– Perdi os degraus – reclamou Jack.
Tateamos no escuro, atrás do lance de escada que deveria nos levar em direção ao telhado. Não o encontramos. A confusão lá embaixo estava se acalmando. A voz de Vance dizia a seus capangas que eles estavam se misturando e perguntava aonde tínhamos ido. Ninguém parecia saber. Nós também não.
– Vamos lá – resmunguei, abrindo caminho pelo corredor escuro em direção aos fundos do prédio. – Precisamos ir para algum lugar.
Ainda havia barulho lá embaixo, mas a briga tinha acabado. Homens falavam em pegar lanternas. Tropecei numa porta no final do corredor e a abri. Era um ambiente com duas janelas, pelas quais vinha um brilho suave das luzes da rua. Parecia muito claro depois do corredor. Meu pequeno rebanho me seguiu para dentro, e fechamos a porta.
Red O’Leary estava do outro lado do cômodo, com a cabeça para fora por uma janela aberta.
– É a rua dos fundos – sussurrou. – O único jeito de descer é caindo.
– Alguém à vista? – perguntei.
– Não estou vendo ninguém.
Olhei ao redor – cama, duas cadeiras, cômoda e uma mesa.
– Vamos atirar a mesa pela janela – eu disse. – Vamos jogá-la o mais longe que conseguirmos e esperar que o barulho os leve até lá fora antes que eles resolvam olhar aqui em cima.
Red e a garota estavam garantindo um ao outro que ainda estavam inteiros. Ele se afastou dela para me ajudar com a mesa. Nós a balançamos, impulsionamos e soltamos. Ela foi muito bem, batendo direto na parede do prédio em frente, caindo num pátio onde fez muito barulho sobre uma pilha de metal, uma coleção de latas de lixo ou qualquer outra coisa lindamente ruidosa. Dava para ouvir a uma quadra e meia de distância.
Nos afastamos da janela quando uma porção de homens saiu pela porta dos fundos do Larrouy’s.
Sem ter encontrado qualquer ferimento em O’Leary, a garota havia voltado sua atenção para Jack Counihan, que tinha um corte na bochecha. Ela estava mexendo no corte com um lenço.
– Quando você terminar isso – dizia Jack –, irei lá fora ficar com um desses do outro lado.
– Eu nunca vou terminar se você continuar falando e mexendo a bochecha.
– É uma ótima idéia – exclamou ele. – São Francisco é a segunda maior cidade da Califórnia. Sacramento é a capital do estado. Você gosta de geografia? Devo falar sobre Java? Não conheço, mas tomo o café de lá. Se...
– Bobo! – disse ela, rindo. – Se você não ficar parado, vou parar agora.
– Não é uma boa idéia – disse ele. – Vou ficar parado.
Ela não estava fazendo nada além de limpar o sangue do rosto dele, sangue que seria melhor deixar ali para secar. Quando terminou esse procedimento perfeitamente inútil, afastou a mão lentamente, observando com orgulho os resultados quase imperceptíveis. Quando passou a mão perto da boca dele, Jack inclinou a cabeça para frente e beijou a ponta de um dos dedos.
– Bobo! – ela repetiu, afastando a mão.
– Pare com isso, ou arrebento você – disse Red O’Leary.
– Vá se catar – disse Jack Counihan.
– Reddy! – gritou a garota, tarde demais.
A direita de O’Leary voou. Jack levou o soco no nariz e caiu no chão. O ruivo girou nos calcanhares para me enfrentar.
– Tem algo a dizer? – perguntou.
Sorri para Jack e olhei para Red.
– Estou envergonhado por ele – respondi. – Apanhar de um lutador de segunda que começa com a direita.
– Quer experimentar?
– Reddy! Reddy! – implorava a garota, mas ninguém a estava escutando.
– Se você vai começar com a direita – eu disse.
– Eu vou – prometeu ele. E cumpriu.
Eu me exibi, tirando a cabeça do caminho e pousando o indicador no queixo dele.
– Isto aqui podia ser um soco-inglês – eu disse.
– Ah é? Este aqui é.
Consegui ficar abaixo da esquerda dele, levando um golpe do antebraço na nuca. Mas isso meio que acabou com as acrobacias. Parecia que, no mínimo, teria que ver o que seria capaz de fazer a ele. A garota agarrou o braço de Red e não largou.
– Reddy, querido, você já não brigou o bastante por uma noite? Não consegue ser sensato, mesmo sendo irlandês?
Fiquei tentado a acertar-lhe o queixo enquanto sua parceira o segurava.
Ele riu para ela, abaixou a cabeça para beijá-la na boca e sorriu para mim.
– Sempre tem uma outra oportunidade – disse, bem-humorado.
– É melhor darmos o fora daqui se pudermos – eu disse. – Você fez barulho demais para estarmos seguros.
– Não se afobe, baixinho – ele disse. – Segurem-se em mim, e eu levo vocês para fora.
Que grande vagabundo. Não fosse por Jack e eu, não haveria como nos segurarmos nele àquela altura.
Fomos até a porta, ficamos ouvindo e não escutamos nada.
– A escada até o terceiro andar deve ser em frente – sussurrei. – Vamos atrás dela agora.
Abrimos a porta com cuidado. A luz que passou por nós até o corredor foi suficiente para revelar a promessa do vazio. Caminhamos silenciosamente pelo corredor, Red e eu segurando nas mãos da garota. Esperava que Jack ficasse bem, mas ele mesmo tinha se nocauteado, e eu tinha meus próprios problemas.
Eu não sabia que o Larrouy’s era grande o bastante para ter três quilômetros de corredor. Mas tinha. Era um quilômetro e meio de escuridão até o topo da escada pela qual havíamos subido. Não paramos para ouvir as vozes lá embaixo. Ao final da outra metade do caminho, o pé de O’Leary encontrou o primeiro degrau do lance de escada que levava para cima.
Só então se ouviu um grito no topo do outro lance de escada.
– Todos para cima... eles estão lá em cima!
Uma luz branca brilhou sobre o sujeito que gritou, e um irlandês falou com ele lá debaixo.
– Desça aqui, seu falastrão.
– A polícia – sussurrou Nancy Regan, e nós subimos correndo a nossa recém-encontrada escada até o terceiro andar.
Mais escuridão, exatamente como a que havíamos deixado para trás. Ficamos parados no topo da escada. Não parecia que tínhamos companhia.
– O telhado – eu disse. – Vamos acender uns fósforos.
Num canto, a nossa fraca chama de fósforo encontrou uma escada pregada à parede, levando a um alçapão no teto. O mais rapidamente possível, chegamos ao telhado do Larrouy’s, fechando o alçapão atrás de nós.
– Tudo bem até agora – disse O’Leary. – E se o traidor do Vance e os policiais ficarem brincando mais um pouco... estamos feitos.
Guiei o caminho pelos telhados. Saltamos três metros para o prédio seguinte, subimos um pouco para o próximo e encontramos do outro lado deste uma saída de incêndio que ia até um pátio estreito com uma abertura que dava para a rua dos fundos.
– Isso deve servir – eu disse, descendo a escada.
A garota veio atrás de mim, seguida por Red. O pátio para o qual saltamos estava vazio – era uma passagem estreita de cimento entre dois edifícios. A base da saída de incêndio rangeu ao se aproximar do chão com o meu peso, mas o barulho não chamou atenção alguma. Estava escuro, mas não era uma escuridão absoluta.
– Quando chegarmos à rua, nós nos separamos – disse-me O’Leary, sem uma palavra de gratidão por minha ajuda, a ajuda que ele não parecia saber que precisara. – Você faz a sua parte, que nós fazemos a nossa.
– Arrã – concordei, pensando na situação. – Vou fazer o reconhecimento do beco primeiro.
Com cuidado, escolhi o caminho até o final do pátio e arrisquei o topo da minha cabeça sem chapéu para espiar a rua dos fundos. Estava tudo calmo, mas, no canto, um quarto da quadra acima, dois vagabundos pareciam vagabundear atentamente. Não eram policiais. Pus os pés na rua e acenei para eles. Não conseguiriam me reconhecer àquela distância, com aquela iluminação, e não havia por que pensarem que eu não pertencia ao grupo de Vance, se fosse este o caso deles.
Quando eles começaram a vir na minha direção, voltei para o beco e assoviei para Red. Ele não era o tipo de sujeito que alguém precisava chamar duas vezes para uma briga. Aproximou-se exatamente quando os outros chegaram. Peguei um. Ele pegou o outro.
Como queria criar um tumulto, tive de trabalhar feito uma mula para consegui-lo. Aquelas criaturas eram duas presas fáceis. Não havia um grama de briga numa tonelada deles. O que ficou comigo não soube o que fazer com o meu ataque. Estava com uma arma, mas deixou-a cair logo no começo, e, na briga, ela foi chutada para longe de seu alcance. Ele ficou firme enquanto eu suava sangue para segurá-lo em posição. A escuridão ajudou, mas mesmo assim não foi fácil fingir que ele estava resistindo enquanto eu o posicionava atrás de O’Leary, que não estava tendo dificuldade alguma com o capanga dele.
Finalmente, consegui. Eu estava atrás de O’Leary, que tinha empurrado o dele contra a parede com uma das mãos e se preparava para socá-lo novamente com a outra. Prendi a mão esquerda no pulso do meu parceiro de briga, girei seu braço até ele se ajoelhar, saquei a arma e atirei nas costas de O’Leary, logo abaixo do ombro direito.
Red cambaleou, empurrando o cara dele contra a parede. Eu bati no meu com a coronha da arma.
– Ele acertou você, Red? – perguntei, segurando-o com um braço e atingindo seu prisioneiro na cabeça.
– Sim.
– Nancy – chamei.
Ela correu até nós.
– Segure o outro lado dele – eu disse. – Fique de pé, Red, e vamos conseguir escapar numa boa.
Ainda estava muito cedo para deixá-lo mais lento, embora seu braço direito estivesse imóvel. Corremos pela rua dos fundos até a esquina. Estávamos sendo perseguidos antes de chegarmos ao destino. Rostos curiosos nos olhavam na rua. Um policial localizado a uma quadra começou a caminhar em nossa direção. Com a garota ajudando O’Leary de um lado e eu do outro, corremos por meia quadra para longe do patrulheiro, até onde eu deixara o automóvel que Jack e eu havíamos usado. A rua já estava movimentada quando consegui fazer o motor funcionar, e a garota tinha acomodado Red com segurança no banco traseiro. O policial deu um grito e atirou para o alto atrás de nós. Deixamos o local.
Como ainda não tinha um destino em especial, depois do primeiro impulso de velocidade necessário, diminuí o ritmo, virei em várias esquinas e parei o veículo numa rua escura depois da Van Ness Avenue.
Red estava caído num canto do banco de trás, com a garota o segurando, quando me virei e olhei para eles.
– Aonde vamos? – perguntei.
– Para um hospital, um médico, alguma coisa! – gritou a garota. – Ele está morrendo!
Eu não acreditava nisso. Se estava morrendo, era por sua própria culpa. Se tivesse sido grato o bastante para me levar junto como amigo, eu não precisaria ter atirado nele para poder ir junto como enfermeiro.
– Para onde, Red? – perguntei a ele, cutucando seu joelho com o dedo.
Ele falou com a voz pastosa, dando o endereço do hotel da Stockton Street.
– Isso, não – protestei. – Todo mundo na cidade sabe que você está hospedado lá. Se voltar, será apanhado. Para onde?
– Para o hotel – ele repetiu.
Então me levantei, sentei-me no banco e me inclinei para conferir seu estado. Ele estava fraco. Não devia ter muito mais resistência. Intimidar um homem que podia estar morrendo não era muito cavalheiresco, mas eu havia investido muito trabalho nele, tentando fazer com que me levasse até os amigos, e não pretendia desistir no meio do caminho. Por um tempo, pareceu que ainda não estava fraco o bastante, como se eu tivesse de atirar nele de novo. Mas a garota se aliou a mim e, juntos, finalmente conseguimos convencê-lo de que sua única aposta segura era ir a algum lugar onde ele pudesse receber o tipo de cuidado necessário. Nós não o convencemos – nós o esgotamos, e ele cedeu porque estava fraco demais para continuar discutindo. E me deu um endereço perto do Holly Park.
Torcendo pelo melhor, apontei o carro para lá.
*
Era uma casa pequena numa fileira de casas pequenas. Tiramos o garotão do carro e o carregamos entre nós até a porta. Ele quase conseguiria percorrer o trajeto sem a nossa ajuda. A rua estava escura. Não havia qualquer luz na casa. Toquei a campainha.
Nada aconteceu. Toquei de novo. E mais uma vez.
– Quem é? – perguntou uma voz rude lá de dentro.
– O Red se feriu – eu disse.
Houve um instante de silêncio. Então a porta abriu alguns centímetros. Pela abertura, veio um facho de luz do interior, o bastante para mostrar o rosto achatado e os músculos maxilares salientes do racha-crânios que havia sido guardião e carrasco do Motsa Kid.
– Que diabos? – perguntou.
– O Red foi atacado. Eles o acertaram – expliquei, empurrando o gigante manco para frente.
Nós não conseguimos entrar de imediato. O racha-crânios ficou segurando a porta como estava.
– Esperem – disse ele, fechando a porta na nossa cara. Ouvimos sua voz lá de dentro: – Flora. – Isso era bom. Red havia nos levado ao lugar certo.
Quando abriu a porta novamente, escancarou-a, e Nancy Regan e eu levamos nosso fardo até o hall de entrada. Ao lado do racha-crânios, uma mulher usando um vestido decotado de seda preta – Big Flora, imaginei.
Ela media mais de um metro e 75 em seus chinelos de saltos altos. Eram chinelos pequenos, e notei que suas mãos sem anéis eram pequenas. O resto não era. Tinha ombros largos, peitos volumosos, braços grossos, com pescoço rosado que, apesar de toda sua suavidade, era musculosa como a de um lutador. Tinha mais ou menos a minha idade – em torno de quarenta anos –, os cabelos curtos muito encaracolados e muito amarelos, a pele muito rosada, e um rosto bonito e brutal. Seus olhos profundos eram cinzentos, os lábios, carnudos, bem desenhados, o nariz, largo e encurvado o bastante para lhe dar uma aparência forte, e tinha queixo suficiente para sustentá-lo. Da testa à garganta, sua pele cor-de-rosa era recheada por músculos suaves, grossos e fortes.
Aquela Big Flora não era de brinquedo. Tinha a aparência e a postura de alguém capaz de ter comandado o roubo e as traições que aconteceram. A menos que seu rosto e seu corpo mentissem, ela tinha força de vontade, física e mental para isso de sobra. Era feita de um material mais forte tanto do que o do brutamonte simiesco ao seu lado quanto do que o do gigante ruivo que eu estava segurando.
– E então? – perguntou, depois de a porta fechar atrás de nós. Sua voz era profunda, mas não masculina. Uma voz que combinava com sua aparência.
– Vance o atacou no Larrouy’s. Levou um tiro nas costas – eu disse.
– Quem é você?
– Levem-no para a cama – enrolei. – Temos a noite toda para conversar.
Ela se virou, estalando os dedos. Um velhinho desenxabido apareceu rapidamente de uma porta nos fundos. Seus olhos castanhos eram muito assustadores.
– Vá lá para cima – ela ordenou. – Arrume a cama e consiga água quente e toalhas.
O velhinho subiu a escada feito um coelho reumático.
O racha-crânios assumiu o lado de Red em que estava a garota, e ele e eu carregamos o gigante até um quarto onde o homenzinho corria de um lado para outro com bacias e toalhas. Flora e Nancy Regan nos seguiram. Estendemos o ferido de barriga para baixo sobre a cama e tiramos sua roupa. Ainda corria sangue do buraco da bala. Ele estava inconsciente.
Nancy Regan desmoronou.
– Ele está morrendo! Chamem um médico! Ah, Reddy, meu querido...
– Cale a boca! – disse Big Flora. – Esse maldito idiota devia morrer... ir ao Larrouy’s hoje à noite! – Ela pegou o homenzinho pelos ombros e atirou-o em direção à porta. – Desinfetante e mais água – gritou atrás dele. – Dê-me a sua faca, Pogy.
O sujeito simiesco tirou do bolso um punhal com uma lâmina comprida que havia sido afiada até ficar estreita e fina. Foi esta faca, pensei, que cortou a garganta do Motsa Kid.
Com ela, Big Flora tirou a bala das costas de Red O’Leary.
O simiesco Pogy manteve Nancy Regan num canto do quarto enquanto a operação era realizada. O homenzinho assustado ajoelhou-se ao lado da cama, alcançando à mulher tudo o que ela pedia e limpando o sangue de Red que escorria do ferimento.
Fiquei ao lado de Flora, fumando cigarros do maço que ela havia me dado. Quando levantava a cabeça, eu passava o cigarro da minha boca para a sua. Ela enchia os pulmões com uma tragada que consumia metade do cigarro e assentia. Então eu tirava o cigarro de sua boca. Ela soprava a fumaça e voltava ao trabalho. Eu acendia outro cigarro com o que havia sobrado daquele e me aprontava para sua próxima tragada.
Seus braços nus tinham sangue até os cotovelos. Estava com o rosto encharcado de suor. A situação estava um horror, e a operação demorou muito. Mas, quando ela se ajeitou para a última tragada, a bala estava fora de Red, o sangramento havia cessado, e ele tinha um curativo.
– Graças a Deus acabou – eu disse, acendendo um dos meus próprios cigarros. – Essas coisas que você fuma são terríveis.
O homenzinho assustado limpava tudo. Nancy Regan havia desmaiado numa poltrona do outro lado do quarto, e ninguém estava prestando atenção a ela.
– Fique de olho nesse senhor enquanto eu me lavo, Pogy – Big Flora disse ao racha-crânios, fazendo sinal com a cabeça na minha direção.
Fui até a garota, esfreguei suas mãos, joguei um pouco de água em seu rosto e a fiz despertar.
– A bala saiu. Red está dormindo. Ele vai comprar brigas de novo dentro de uma semana – eu disse.
Ela deu um salto e correu até a cama.
Flora entrou. Tinha se lavado e havia trocado o vestido preto manchado de sangue por um conjunto de quimono verde, que se entreabria aqui e ali, mostrando a roupa de baixo.
– Fale – ordenou, de pé na minha frente. – Quem, o quê e por quê?
– Sou Percy Maguire – respondi, como se esse nome, que eu tinha acabado de inventar, explicasse tudo.
– Isso é quem – disse ela, como se o meu nome falso não explicasse coisa alguma. – Agora diga o quê e por quê.
O simiesco Pogy, de pé ao seu lado, olhou para mim de cima a baixo. Sou baixo e gorducho. Meu rosto não assusta nem uma criança, mas é uma testemunha mais ou menos sincera de uma vida que não foi repleta de refinamento e gentileza. A diversão da noite havia me decorado com manchas roxas e arranhões e havia deixado marcas no que sobraram das minhas roupas.
– Percy – repetiu ele, mostrando os dentes amarelos e separados num sorriso. – Meu Deus, companheiro, os seus pais deviam ser daltônicos!
– Isso é o quê e por quê – insisti com a mulher, sem prestar atenção ao grunhidos vindo do zôo. – Sou Percy Maguire, e quero os meus 150 mil dólares.
Os músculos de suas sobrancelhas caíram sobre seus olhos.
– Você tem 150 mil dólares, é?
Assenti para seu rosto bonito e brutal.
– É – respondi. – Foi para isso que vim.
– Ah, você não os tem? Você os quer?
– Escute aqui, irmãzinha, eu quero a minha grana. – Eu precisava endurecer o jogo se quisesse acabar com ele. – Essa troca de Ah-você-tem e Tenho-sim só está servindo para me deixar com sede. Nós participamos do grande golpe, sabe? Depois disso, quando descobrimos que o pagamento era uma batida da polícia, eu disse para o garoto com quem estava trabalhando: “Não se preocupe, garoto, nós vamos pegar a nossa parte. Basta seguir o velho Percy.” Então o Bluepoint me procurou para me aliar a ele, eu disse “Claro”, e eu e o garoto seguimos com ele até cruzarmos com Red naquela espelunca hoje à noite. Daí eu disse ao garoto: “Esses pistoleiros de meia tigela vão acabar com o Red, e isso não vai nos servir para coisa alguma. Vamos levá-lo embora e fazê-lo nos levar até onde a Big Flora está sentada sobre o tesouro. Devemos estar com crédito de uns 150 mil cada um, agora que restaram tão poucos envolvidos. Depois que pegarmos esse dinheiro, tudo bem matar o Red. Mas os negócios vêm antes do prazer, e 150 mil são um bom negócio.” Foi o que fizemos. Abrimos uma saída para o grandão quando ele estava sem nenhuma. O garoto se engraçou com a garota no meio do caminho e acabou nocauteado por Red. Por mim, tudo bem. Se ela valia 150 mil para ele... paciência. Eu vim até aqui com o Red. Arrastei o vagabundo para fora depois que ele levou a bala. Por direito, eu devia receber a parte do garoto também... o que significariam 300 mil para mim... mas me dê os 150 de que falei lá no começo e estamos acertados.
Pensei que aquela história toda podia funcionar. Claro que não estava contando em receber dinheiro algum, mas se os soldados rasos do bando não conheciam aquela gente, por que aquela gente conheceria todo mundo do bando?
Flora disse a Pogy:
– Tire aquele negócio maldito da porta da frente.
Eu me senti melhor depois que ele saiu. Ela não o teria mandado tirar o carro se quisesse fazer alguma coisa comigo imediatamente.
– Tem alguma comida por aqui? – perguntei, sentindo-me em casa.
Ela foi até o topo da escada e gritou para baixo:
– Prepare alguma coisa para a gente comer.
Red ainda estava inconsciente. Nancy Regan estava sentada ao seu lado, segurando uma de suas mãos. Seu rosto estava completamente pálido. Big Flora entrou no quarto de novo, olhou para o inválido, pôs a mão em sua testa e sentiu o pulso.
– Venha para baixo – ela disse.
– Eu... eu prefiro ficar aqui, se puder – disse Nancy Regan. A voz e os olhos demonstravam absoluto pavor de Flora.
Sem dizer uma palavra, a mulherona desceu a escada. Segui-a até a cozinha, onde o homenzinho estava fazendo ovos com presunto no fogão. Percebi que a janela e a porta dos fundos haviam sido reforçadas com pedaços de madeira pesados presos com tábuas pregadas ao chão. O relógio sobre a mesa marcava 2h50 da madrugada.
Flora pegou uma garrafa de bebida e serviu dois copos. Nós nos sentamos à mesa e, enquanto esperávamos pela comida, ela amaldiçoou Red O’Leary e Nancy Regan, porque ele havia se ferido indo a um encontro com ela num momento em que Flora precisava muito de sua força. Amaldiçoou-os individualmente, como um casal, e estava fazendo daquela uma situação racial, ao amaldiçoar todos os irlandeses, quando o homenzinho nos serviu os ovos com presunto.
Havíamos terminado os sólidos e estávamos derrubando os líquidos nas xícaras de café quando Pogy voltou. Tinha novidades.
– Tem uns dois caras andando na esquina, e não estou gostando.
– Policiais ou...? – perguntou Flora.
– Ou – disse ele.
Flora começou a amaldiçoar Red e Nancy novamente. Mas já havia esgotado o estoque de xingamentos. Virou-se para mim.
– Por que diabos você os trouxe até aqui? – perguntou. – Deixando uma trilha de quilômetros atrás de vocês! Por que não deixou o maldito vagabundo morrer quando levou chumbo?
– Eu o trouxe até aqui por causa dos meus 150 mil. Me dê o dinheiro, que eu vou embora. Você não me deve mais nada. Eu não devo mais nada a você. Me dê meu tutu em vez de papo, que eu dou o fora.
– O caramba que você vai fazer isso – disse Pogy.
A mulher me olhou por baixo das sobrancelhas abaixadas e bebeu seu café.
Quinze minutos depois, o velhinho desenxabido apareceu correndo na cozinha, dizendo que tinha ouvido passos no telhado. Seus olhos castanhos opacos estavam sombrios como os de um boi com medo, e os lábios murchos se contorciam sob o bigode branco-amarelado desgrenhado.
Flora xingou-o de tudo e o mandou subir de novo. Levantou-se da mesa e ajustou o quimono verde em torno do corpanzil.
– Você está aqui – ela me disse – e vai ficar conosco. Não tem outro jeito. Está armado?
Admiti que tinha uma arma, mas sacudi a cabeça para o resto.
– Este não é o meu velório... ainda – eu disse. – Serão necessários cento e cinqüenta pilas, em dinheiro vivo, pagos adiantados, para comprar a participação de Percy nisso tudo.
Eu queria saber se o dinheiro do roubo estava ali.
Ouviu-se a voz chorosa de Nancy Regan na escada:
– Não, não, querido! Por favor, por favor, volte para a cama! Você vai se matar, Reddy, querido!
Red O’Leary entrou na cozinha. Estava coberto apenas por um par de calças cinza e o curativo. Seus olhos estavam febris e alegres. Seus lábios secos, esticados num sorriso. Trazia uma arma na mão esquerda. O braço direito estava pendurado, inerte. Atrás dele, vinha Nancy. Ela parou de implorar e se encolheu atrás dele quando viu Big Flora.
– Toque o gongo e vamos lá – riu o ruivo seminu. – Vance está na nossa rua.
Flora aproximou-se dele, pôs os dedos em seu pulso, segurou-o por alguns segundos e assentiu.
– Seu maluco filho da mãe – disse, num tom que era mais de orgulho maternal do que qualquer outra coisa. – Você está pronto para uma briga neste instante. E isso é ótimo, porque você vai ter uma briga.
Red riu – uma risada triunfante que gabava sua dureza – e seus olhos se viraram para mim. O riso os abandonou, e um olhar intrigado os estreitou.
– Olá – disse ele. – Sonhei com você, mas não lembro o que foi. Foi... Espere aí. Vou saber num instante. Foi... meu Deus! Sonhei que foi você que me acertou!
Flora sorriu para mim, a primeira vez que a vi sorrir, e disse rapidamente:
– Pegue ele, Pogy!
Saltei obliquamente da minha cadeira.
O punho de Pogy me acertou na têmpora. Cambaleando pelo quarto, lutando para permanecer de pé, pensei no ferimento na têmpora do Motsa Kid.
Pogy estava em cima de mim quando a parede evitou que eu caísse.
Dei-lhe um murro no nariz achatado. Saiu sangue, mas suas patas peludas me agarraram. Encolhi o queixo e enfiei o topo da cabeça no rosto dele. Senti o perfume forte usado por Big Flora perto de mim. Suas roupas de seda roçaram em meu corpo. Com as duas mãos enfiadas nos meus cabelos, puxou a minha cabeça para trás, esticando meu pescoço para Pogy. Ele me segurou pelo pescoço com as patas. Desisti. Ele não me apertou além do necessário, mas foi péssimo mesmo assim.
Flora me revistou atrás da arma e do cassetete.
– Calibre 38 Especial – disse, identificando o calibre da arma. – Tirei uma bala 38 Especial de você, Red. – As palavras chegavam baixinho até mim através do rugido em meus ouvidos.
A voz do velhinho tagarelava na cozinha. Não conseguia entender nada do que ele estava dizendo. As mãos de Pogy me soltaram. Levei as próprias mãos à garganta. Era um inferno não ter pressão alguma lá. A escuridão afastou-se lentamente dos meus olhos, deixando várias nuvens roxas que flutuavam ao redor. Em seguida, consegui sentar-me no chão. Soube, com isso, que estivera deitado ali.
As nuvens roxas diminuíram até eu conseguir ver o bastante para saber que estávamos em três na cozinha. Encolhida numa cadeira, num canto, estava Nancy Regan. Em outra cadeira, ao lado da porta, com uma pistola escura na mão, o velhinho assustado. Seus olhos estavam desesperadamente amedrontados. A arma e a mão tremiam para mim. Tentei pedir que ele parasse de tremer ou desviasse a arma de mim, mas ainda não conseguia falar nada.
No andar de cima, armas eram disparadas, com os estampidos ampliados pelo tamanho exíguo da casa.
O homenzinho recuou.
– Deixe-me sair – sussurrou ele de repente, de forma inesperada –, e eu lhe dou tudo. Dou mesmo! Tudo... se você me deixar sair desta casa!
Essa frágil luz no fim do túnel devolveu-me o uso do aparelho vocal.
– Pode falar – consegui dizer.
– Eu lhe darei aqueles três lá em cima... aquela mulher demoníaca. Darei o dinheiro, darei tudo... se você me deixar sair. Estou velho. Estou doente. Não posso ir para a prisão. O que eu tenho a ver com os roubos? Nada. É culpa minha que aquela mulher demoníaca...? Você viu como são as coisas aqui. Sou um escravo... eu, que estou perto do fim da minha vida. Abusos, ofensas, agressões... e isso não é tudo. Agora preciso ir para a prisão porque aquela mulher demoníaca é uma mulher demoníaca. Sou um velho que não pode viver numa prisão. Você me deixa sair. Você me faz essa gentileza. Eu lhe darei aquela mulher demoníaca... aqueles outros demônios... o dinheiro que eles roubaram. Eu farei isso, sim! – Disse aquele velhinho em pânico se contorcendo encolhido em sua cadeira.
– Como posso tirá-lo daqui? – perguntei, levantando-me do chão com o olho em sua arma. Tentava me aproximar dele enquanto conversávamos.
– Como não me tirar? Você é amigo da polícia... isso eu sei. A polícia está aqui agora... esperando pela luz do dia antes de entrar nesta casa. Eu mesmo, com meus velhos olhos, os vi prendendo Bluepoint Vance. Você pode me fazer sair sem falar com seus amigos da polícia. Faça o que estou pedindo, e eu lhe darei aqueles demônios e o dinheiro deles.
– Parece bom – respondi, dando um passo descuidado em sua direção. – Mas posso simplesmente sair daqui quando quiser?
– Não! Não! – disse ele, sem prestar atenção ao segundo passo que dei em sua direção. – Mas antes eu lhe entregarei aqueles três demônios. Eu os entregarei vivos, mas sem poder. E o dinheiro deles. Isso eu vou fazer. Depois você me tira daqui... e essa garota aqui. – Fez um sinal com a cabeça para Nancy, cujo rosto branco, ainda bonito apesar do terror, estava dominado pelos olhos arregalados. – Ela também não tem nada a ver com os crimes daqueles demônios. Ela deve ir comigo.
Imaginei o que aquele velho coelho achava que era capaz de fazer. Adotei uma expressão extremamente pensativa enquanto dava mais um passo em sua direção.
– Não se engane – sussurrou ele, ansiosamente. – Quando aquela mulher demoníaca voltar a esta sala, você vai morrer... ela com certeza vai matá-lo.
Mais três passos, e estaria perto o bastante para dominá-lo e pegar sua arma.
Ouvi passos no corredor. Era tarde demais para um salto.
– Sim? – murmurou ele, desesperadamente.
Assenti uma fração de segundo antes de Big Flora entrar pela porta.
Ela estava vestida para a ação, com calças azuis que provavelmente pertenciam a Pogy, mocassins de contas e uma blusa de seda. Uma fita mantinha os cabelos cacheados longe do rosto. Tinha uma arma numa das mãos e mais uma em cada bolso das calças.
A arma que estava em sua mão ergueu-se.
– Você está acabado – disse para mim, num tom objetivo.
Meu recém-adquirido cúmplice disse em voz lamuriosa:
– Espere, espere, Flora! Não aqui, desse jeito, por favor! Deixe-me levá-lo até o porão.
Ela fez uma careta para ele, dando de ombros.
– Seja rápido – disse ela. – Vai estar claro em meia hora.
Eu estava com muita vontade de chorar para rir deles. Eu devia acreditar que aquela mulher deixaria o coelho fazê-la mudar de idéia? Devo ter dado algum valor à ajuda do velho, se não, não teria ficado tão decepcionado quando aquele teatrinho me disse que era uma armação. Mas nenhuma situação em que pudessem me meter podia ser pior do que aquela em que eu já estava.
Assim, fui à frente do homem até o corredor, abri a porta que ele indicou, acendi a luz do porão e desci os degraus rudimentares.
Atrás de mim, ele estava sussurrando:
– Primeiro vou mostrar o dinheiro, depois entregarei aqueles demônios. E você não vai se esquecer da sua promessa, vai? Eu e aquela garota vamos passar livres pela polícia?
– Ah, sim – garanti ao velho palhaço.
Ele apareceu ao meu lado, enfiando uma coronha em minha mão.
– Esconda isso aqui – ele murmurou. Depois que pus aquela no bolso, ele me deu mais uma, tirando-a com a mão livre de debaixo do casaco.
Então me mostrou o dinheiro. Ainda estava nas caixas e sacolas nas quais havia sido tirado dos bancos. Ele insistiu em abrir algumas delas para mostrar a grana – maços verdes presos com as tiras amarelas dos bancos. As caixas e sacolas estavam empilhadas numa pequena cela de tijolos equipada com uma porta fechada a cadeado, cuja chave estava com ele.
Fechou a porta quando terminamos de olhar, mas não a trancou, e me levou de volta até parte do caminho por onde havíamos chegado ali.
– Ali, como você viu, está o dinheiro – disse ele. – Agora, para eles. Você deve ficar aqui, escondido atrás dessas caixas.
Uma repartição dividia o porão pela metade. Ela era ligada por uma passagem sem porta. O lugar onde o velho disse que eu devia me esconder ficava bem ao lado dessa passagem, entre a repartição e quatro caixotes. Escondido ali, eu estaria à direita e um pouco atrás de qualquer um que descesse e caminhasse pelo porão em direção à cela que abrigava o dinheiro. Isto é, eu estaria nessa posição quando fossem atravessar a passagem na repartição.
O velho estava fuçando embaixo de uma das caixas. Tirou de lá um cano de chumbo de meio metro enfiado num pedaço parecido de mangueira de jardim. Deu-me aquilo enquanto explicava tudo.
– Eles vão descer aqui um por vez. Quando estiverem prestes a passar por esta porta, você saberá o que fazer com isto. Então você os terá, e cumprirá a promessa. Não é?
– Ah, sim – respondi, aéreo. Ele subiu e eu me agachei atrás das caixas, examinando as armas que ele havia me dado. E macacos me mordam se eu pudesse encontrar alguma coisa errada nelas. Estavam carregadas, e pareciam estar funcionando. Aquele toque final me confundiu completamente. Eu não sabia se estava num porão ou num balão.
Quando Red O’Leary, ainda sem roupa, exceto pelas calças e o curativo, entrou no porão, tive de sacudir a cabeça violentamente para despertar a tempo de atingi-lo na cabeça quando seu primeiro pé descalço atravessou a passagem. Ele tombou de cara no chão.
O velho desceu apressadamente a escada, sorrindo.
– Rápido! Rápido! – disse ele, sem fôlego, ajudando-me a arrastar o ruivo até a cela do dinheiro. Então pegou dois pedaços de corda e amarrou as mãos e os pés do gigante.
– Rápido! – disse ele novamente enquanto subia a escada, e eu voltava ao meu esconderijo empunhando o cano, perguntando-me se Flora havia me matado e eu agora estava aproveitando as recompensas da minha virtude num paraíso onde poderia me divertir por toda a eternidade batendo em sujeitos que haviam sido maus comigo lá embaixo.
O racha-crânios simiesco desceu e chegou até a passagem. Rachei seu crânio. O homenzinho veio correndo. Arrastamos Pogy até a cela e o amarramos.
– Rápido – disse o velho, sem fôlego, dançando de excitação. – Aquela mulher-diabo é a próxima... e bata com força! – Ele subiu a escada, e pude ouvir seus passos sobre a minha cabeça.
Livrei-me de parte da minha perplexidade, dando espaço para um pouco de inteligência em meu cérebro. Aquela bobagem que estávamos armando não era verdade. Não podia estar acontecendo. Jamais aconteceu daquele jeito. Ninguém fica parado num canto derrubando uma pessoa depois da outra como uma máquina enquanto um velho palhaço esquelético as manda até você. Era idiota demais! Já chegava daquilo!
Passei pelo meu esconderijo, larguei o cano e encontrei outro lugar onde me esconder, embaixo de umas prateleiras, perto da escada. Escondi-me lá com uma arma em cada mão. Aquele jogo que eu estava jogando era – tinha de ser – uma armação. Eu não ia mais ficar parado.
Flora desceu a escada. Atrás dela, trotava o homenzinho.
Flora tinha uma arma em cada mão. Seus olhos acinzentados estavam por toda parte. Vinha com a cabeça abaixada, como um animal a caminho de uma briga. Suas narinas fremiam. O corpo, descendo a escada nem lenta nem rapidamente, estava equilibrado como o de uma dançarina. Mesmo que viva um milhão de anos, jamais me esquecerei da imagem daquela mulher bonita e brutal descendo os degraus irregulares daquele porão. Era um belo animal treinado para briga indo para uma luta.
Ela me viu quando me endireitei.
– Solte as armas! – eu disse, sabendo que ela não obedeceria.
O homenzinho tirou um cassetete da manga e atingiu-a atrás da orelha no instante em que ela apontou a arma da esquerda para mim. Saltei para frente e segurei-a antes que caísse no chão.
– Está vendo! – disse o velho, alegremente. – Você tem o dinheiro e eles. Agora vai tirar a mim e a garota daqui.
– Primeiro vamos guardar ela com os outros – eu disse.
Depois que ele me ajudou a fazer aquilo, eu lhe disse para trancar a porta da cela. Ele obedeceu, e eu peguei a chave com uma mão e o pescoço dele com a outra. Ele se contorceu feito uma cobra enquanto eu passava a mão sobre suas roupas, tirava o cassetete e uma arma e encontrava um cinto de dinheiro preso em sua cintura.
– Tire isso – ordenei. – Você não pode levar nada embora.
Seus dedos mexeram na fivela, tiraram o cinto de debaixo das roupas e o deixaram cair no chão. Estava abarrotado.
Ainda segurando seu pescoço, levei-o para cima, com a garota ainda sentada imóvel na cadeira da cozinha. Foi necessária uma dose dupla de uísque e muita conversa para fazê-la compreender que ela ia sair com o velho e que não devia dizer nada a ninguém, principalmente para a polícia.
– Onde está Reddy? – perguntou, quando a cor finalmente voltou ao seu rosto – que, mesmo na pior das condições, jamais perdeu sua beleza – e os pensamentos, à sua cabeça.
Disse-lhe que ele estava bem e prometi que estaria num hospital antes do final da manhã. Ela não perguntou mais nada. Mandei-a até o andar de cima para pegar o chapéu e o casaco, acompanhei o velho enquanto ele apanhava seu chapéu e depois pus os dois no quarto da frente do térreo.
– Fiquem aqui até eu vir buscá-los – eu ordenei, trancando a porta e guardando a chave ao sair.
A porta e a janela da frente do térreo haviam sido presas com tábuas como as dos fundos. Eu não queria arriscar abri-las, embora já estivesse bem iluminado àquela altura. Subi para o andar de cima, fiz uma bandeira de paz com uma fronha e um estrado de cama, pendurei-a numa janela e esperei até uma voz forte dizer:
– Tudo bem, pode falar.
Então apareci e disse à polícia que os deixaria entrar.
Levei cinco minutos mexendo com uma machadinha para destrancar a porta da frente. O chefe de polícia, o capitão dos detetives e metade da força policial estavam esperando nos degraus da entrada e na calçada quando abri a porta. Levei-os até o porão e entreguei Big Flora, Pogy e Red O’Leary a eles, com o dinheiro. Flora e Pogy estavam acordados, mas em silêncio.
Enquanto os dignatários lidavam com a apreensão, subi para o andar de cima. A casa estava cheia de detetives policiais. Cumprimentei-os ao ir até o quarto em que havia deixado Nancy Rank e o velho. O tenente Duff estava tentando abrir a porta trancada, com O’Gar e Hunt atrás deles.
Sorri para Duff e entreguei-lhe a chave.
Ele abriu a porta, olhou para o velho e a garota – principalmente para ela – e então para mim. Os dois estavam de pé no meio do quarto. Os olhos opacos do velho estavam miseravelmente preocupados, e os azuis da garota, sombriamente ansiosos. A ansiedade não prejudicou sua aparência nem um pouco.
– Se é sua, não a culpo por trancá-la – O’Gar segredou em meu ouvido.
– Vocês podem sair agora – eu disse aos dois no quarto. – Durmam o quanto puderem antes de se apresentarem para o serviço novamente.
Eles assentiram e saíram da casa.
– É assim que a sua Agência equilibra? – disse Duff. – As funcionárias compensam em aparência a feiúra dos funcionários?
Dick Foley apareceu no corredor.
– Como está a sua parte? – perguntei.
– Pronta. A Angel me levou ao Vance. Ele me trouxe até aqui. Eu trouxe os policiais para cá. Eles o pegaram... a pegaram.
Dois tiros soaram na rua.
Fomos até a porta e vimos movimento num carro de polícia na rua. Nos dirigimos até lá. Com algemas nos pulsos, Bluepoint Vance se contorcia, metade no banco, metade no chão.
– Nós o estávamos segurando aqui no carro, o Houston e eu – um policial à paisana explicou a Duff. – Ele tentou fugir, agarrou a arma de Houston com as duas mãos. Eu tive que atirar... duas vezes. O capitão vai ficar furioso! Ele o queria aqui principalmente para acareá-lo com os outros. Mas Deus sabe que eu não teria atirado se não estivesse entre ele e Houston!
Duff chamou o homem à paisana de maldito irlandês desastrado enquanto levantavam Vance no banco. Os olhos torturados de Bluepoint fixaram-se em mim.
– Eu... conheço... você? – perguntou, em meio à dor. – Continental... Nova... York?
– Sim – respondi.
– Não... conseguia... lembrar... Larrouy’s... com... Red?
– É – eu disse. – Peguei Red, Flora, Pogy e a grana.
– Mas... não... Papa... do... poul... os.
– Papa do quê? – perguntei, impaciente, sentindo um arrepio na espinha.
Ele se ajeitou no banco.
– Papadopoulos – repetiu, reunindo agonizante a pouca força que lhe restava. – Eu tentei... atirar nele... eu o vi... indo embora... com a garota... policial... muito rápido... queria...
Suas palavras acabaram. Ele estremeceu. A morte estava muito perto de seus olhos. Um médico de jaleco branco tentou passar por mim para chegar até o carro. Afastei-o e me inclinei, segurando Vance pelos ombros. Estava com a nuca congelada. Tinha o estômago vazio.
– Escute aqui, Bluepoint – gritei para ele. – Papadopoulos? Um velhinho? O cabeça do golpe.
– Sim – disse Vance, e o que restava de sangue vivo em seu corpo saiu com a resposta.
Deixei-o cair de costas no banco e me afastei.
É claro! Como eu havia deixado aquilo passar. O pequeno velhaco – se não fosse ele, com todo seu pavor, o manda-chuva, como poderia ter me entregue os demais um a um? Eles haviam sido absolutamente encurralados. Era uma questão de ser morto lutando ou render-se e ser enforcado. Eles não tinham outra saída. A polícia tinha Vance, que podia dizer e diria que o velhote era o cabeça – não havia sequer uma chance de ele iludir os tribunais com sua idade, sua fraqueza e sua máscara de estar sendo levado pelos outros.
E lá estivera eu... sem escolha a não ser aceitar sua oferta. De outro modo, estaria liquidado. Eu havia sido manipulado por ele, seus cúmplices haviam sido manipulados. Ele os havia traído, como eles o haviam ajudado a trair os outros... e eu o havia mandado embora em segurança.
Agora eu poderia virar a cidade de cabeça para baixo atrás dele – minha promessa havia sido apenas tirá-lo de dentro da casa –, mas...
Que vida!
11 Diga-me o que você quer, e eu lhe direi o que vai conseguir. (N.T.)
12 Quero ser uma vagabunda. (N.T.)
US$ 106 mil de dinheiro sujo
– Sou Tom-Tom Carey – disse ele, arrastando as palavras.
Fiz um sinal com a cabeça para a cadeira ao lado da minha mesa e o examinei enquanto ele ia até ela. Alto, ombros largos, peito forte, barriga enxuta, ele devia pesar quase cem quilos. Seu rosto moreno era duro como um punho cerrado, mas nada havia de mal-humorado nele. Era o rosto de um homem de quarenta e poucos anos que vivia a vida como ela era e gostava muito disso. Seu terno azul era de boa qualidade, e ele o vestia com elegância.
Sentado na cadeira, enrolou um pedaço de papel pardo em torno de uma dose de fumo Bull Durham e terminou de se apresentar:
– Sou irmão de Paddy, o Mexicano.
Achei que talvez ele estivesse dizendo a verdade. Paddy tinha sido parecido com aquele sujeito em aparência e modos.
– Isso faria com que seu nome verdadeiro fosse Carrera – sugeri.
– Sim. – Ele estava acendendo um cigarro. – Alfredo Estanislao Cristobal Carrera, se você quer todos os detalhes.
Perguntei-lhe como se soletrava Estanislao, escrevi o nome num pedaço de papel, acrescentando vulgo Tom-Tom Carey, liguei para Tommy Howd e pedi para que ele visse se o atendente do arquivo conseguia alguma coisa sobre ele.
– Enquanto o seu pessoal abre túmulos, eu lhe digo por que estou aqui – disse o homem moreno com voz arrastada através da fumaça depois que Tommy saiu com o papel.
– Foi uma pena Paddy ter morrido assim – comentei.
– Ele era ingênuo demais para viver por muito tempo – explicou o irmão. – Era esse o tipo de hombre que ele era, da última vez que o vi, há quatro anos, aqui em São Francisco. Eu estava vindo de uma expedição até... não importa onde. De qualquer maneira, eu estava duro. Em vez de pérolas, tudo o que eu havia conseguido na viagem era uma bala de raspão acima do quadril. Paddy estava forrado com mais ou menos quinze mil que tinha acabado de tirar de alguém. Na tarde em que o vi, ele tinha um encontro e não queria levar tanto dinheiro junto. Então deu os quinze mil para que eu guardasse até aquela noite.
Tom-Tom Carey soprou fumaça e sorriu suavemente com a lembrança.
– Esse era o tipo de hombre que ele era – prosseguiu. – Confiava até mesmo em seu próprio irmão. Fui para Sacramento naquela tarde e peguei um trem para o leste. Uma garota em Pittsburgh me ajudou a gastar os quinze mil. Seu nome era Laurel. Ela gostava de uísque com leite. Eu costumava beber isso com ela até ficar enjoado, e nunca mais tive apetite de coalhada desde então. Então quer dizer que há uma recompensa de cem mil dólares por esse Papadopoulos, é?
– E seis. As companhias de seguro estão oferecendo cem mil, a associação de banqueiros, cinco, e a cidade, mil.
Tom-Tom Carey atirou o que restava do cigarro na escarradeira e começou a montar mais um.
– E se eu entregá-lo a você? – perguntou. – Por quantos caminhos o dinheiro terá de passar?
– Nada vai parar aqui – garanti a ele. – A Agência de Detetives Continental não toca em dinheiro de recompensa... e não permite que seus funcionários o façam. Se algum policial participar da prisão, vai querer uma parte.
– Mas se a polícia ficar de fora, é tudo meu?
– Se você o entregar sem ajuda, ou sem ajuda exceto a nossa.
– Farei isso. – Falou de modo casual. – Basta quanto à prisão. Agora à parte da condenação. Se o pegarem, tem certeza de que vocês conseguem crucificá-lo?
– Creio que sim, mas ele terá de enfrentar um júri... e isso quer dizer que qualquer coisa pode acontecer.
A mão escura musculosa que segurava um cigarro escuro fez um gesto displicente.
– Então talvez seja melhor eu tirar uma confissão dele antes de entregá-lo – disse, despreocupadamente.
– Seria mais seguro assim – concordei. – Você deve abaixar esse coldre alguns centímetros. Está com a coronha muito no alto. A saliência aparece quando você se senta.
– Arrã. Você está se referindo ao coldre no ombro esquerdo. Eu peguei de um sujeito depois que perdi o meu. A tira está muito curta. Vou comprar outro agora à tarde.
Tommy entrou com uma pasta rotulada Carey, Tom-Tom, 1361-C. Continha alguns recortes de jornal, os mais velhos eram de dez anos atrás, os mais novos, de oito meses. Eu os li, passando cada um deles ao homem moreno quando terminava. Tom-Tom Carey era descrito nos recortes como soldado da fortuna, contrabandista de armas, caçador ilegal de focas, contrabandista e pirata. Mas era tudo alegado, suposto e suspeito. Havia sido preso várias vezes, mas jamais condenado por coisa alguma.
– Não me tratam corretamente – reclamou placidamente quando terminamos as leituras. – Por exemplo, o roubo daquele barco chinês cheio de armas não foi culpa minha. Fui obrigado a fazer aquilo... fui o traído da história. Depois de embarcarem tudo, não quiseram pagar. Não consegui descarregar. Eu não podia fazer nada além de levar o barco e todo o resto. As companhias de seguro devem querer muito esse Papadopoulos, para oferecerem cem mil por ele.
– É uma barganha, se o apanharem – respondi. – Talvez não seja tudo o que os jornais estão pintando, mas é osso duro de roer. Ele reuniu todo um maldito exército de pistoleiros armados aqui, tomou conta de uma quadra no centro do distrito financeiro, roubou os dois maiores bancos da cidade, resistiu a todo o departamento de polícia, conseguiu fugir, abandonou seu exército, usou alguns de seus tenentes para eliminar mais alguns deles – foi onde seu irmão Paddy levou a pior – e depois, com a ajuda de Pogy Reeve, Big Flora Brace e Red O’Leary, limpou o restante de seus tenentes. E, lembre-se, esses tenentes não eram garotos... eram vigaristas espertos como Bluepoint Vance, o Shivering Kid e Darby M’Laughlin... caras que sabiam o que estavam fazendo.
– Arrã. – Carey não estava impressionado. – Mas foi um fracasso mesmo assim. Vocês recuperaram todo o dinheiro, e ele só conseguiu fugir sozinho.
– Ele deu azar – expliquei. – Red O’Leary deixou-se levar por um acesso de amor e vaidade. Não se pode atribuir isso a Papadopoulos. Não fique pensando que ele não é muito inteligente. É perigoso, e eu não culpo as companhias de seguro por pensarem que irão dormir melhor se tiverem a certeza de que ele não está onde possa fazer mais armações contra seus bancos segurados.
– Não sei muita coisa sobre esse Papadopoulos. Você sabe?
– Não – respondi a verdade. – E ninguém sabe. Os cem mil transformaram em dedos-duros metade dos vigaristas do país. Eles estão tão aflitos atrás dele como nós. Não só por causa da recompensa, mas por causa de sua traição por atacado. E eles sabem tanto a respeito dele quanto nós: que esteve envolvido em uma dúzia de serviços ou mais, que foi o cérebro por trás dos golpes financeiros de Bluepoint Vance e que seus inimigos têm o hábito de morrerem jovens. Mas ninguém sabe de onde ele veio, ou onde é a sua casa. Não pense que eu o esteja transformando numa espécie de Napoleão ou um arquicriminoso de jornal de domingo... mas ele é um velho ladino e cheio de truques. Como você diz, eu não sei muito a respeito dele... mas há várias pessoas sobre quem não sei muita coisa.
Tom-Tom Carey assentiu para mostrar que compreendia a última parte do que eu disse e começou a enrolar seu terceiro cigarro.
– Eu estava em Nogales quando Angel Grace mandou avisar que Paddy havia sido morto – disse ele. – Isso foi há quase um mês. Ela pensou que eu iria correr para cá imediatamente... mas não era da minha conta. Deixei a coisa esfriar. Mas na semana passada, li num jornal sobre essa recompensa oferecida pelo hombre que ela culpava pela morte de Paddy. Isso fez uma diferença. Uma diferença de cem mil dólares. Então eu viajei para cá, conversei com ela e vim até aqui para me certificar de que não vai haver nada entre mim e o dinheiro sujo de sangue quando eu laçar esse Papadoodle.
– Angel Grace mandou você me procurar? – perguntei.
– Arrã... só que ela não sabe disso. Ela arrastou você para dentro da história... disse que era amigo de Paddy, um bom sujeito para um detetive e doido para pegar esse Papadoodle. Então pensei que você seria o sujeito certo para procurar.
– Quando você saiu de Nogales?
– Na terça-feira... semana passada.
– Este – eu disse, puxando da memória – foi o dia seguinte ao assassinato de Newhall do outro lado da fronteira.
O homem moreno assentiu. Nada mudou em sua expressão.
– A que distância de Nogales foi isso? – perguntei.
– Ele foi morto perto de Oquitoa... que fica mais ou menos cem quilômetros a sudoeste de Nogales. Está interessado?
– Não... só que eu estava me perguntando sobre você ter deixado o lugar onde ele foi morto no dia seguinte ao assassinato e ter vindo para cá, onde ele vivia. Você o conhecia?
– Em Nogales me disseram que ele era um milionário de São Francisco que estava visitando o local com um grupo para olhar algumas propriedades mineradoras no México. Eu estava pensando em talvez vender algo para ele depois, mas os patriotas mexicanos o pegaram antes de mim.
– E então você veio para o norte?
– Arrã. O alvoroço meio que estragou as coisas para mim. Eu tinha um belo negócio em... vamos chamar de suprimentos... de um lado para outro através da fronteira. Esse assassinato do Newhall voltou os holofotes para aquela parte do país. Assim, eu pensei em vir para cá, receber esses cem mil e tentar me estabelecer por aqui. Sinceramente, parceiro, eu não mato um milionário há semanas, se é isso que está preocupando você.
– Que bom. Então, pelo que estou entendendo, você está contando em apanhar Papadopoulos. Angel Grace pensou que você o caçaria só para se vingar da morte de Paddy, mas é o dinheiro que você quer. Então você quer jogar comigo e com Angel. É isso?
– Exato.
– Sabe o que vai acontecer se ela souber que você está de parceria comigo?
– Sim. Ela vai ter uma convulsão... é meio neurótica com essa história de ficar longe da polícia, não é?
– É... alguém um dia lhe disse alguma coisa a respeito de honra entre ladrões, e ela jamais largou isso de mão. O irmão dela está cumprindo pena no norte... Johnny, o Encanador o entregou. O namorado dela, Paddy, foi liquidado pelos comparsas. Alguma dessas coisas fez com que ela despertasse? Sem chances. Ela preferiria ver Papadopoulos livre a juntar forças conosco.
– Tudo bem – garantiu-me Tom-Tom Carey. – Ela pensa que sou um irmão leal. Paddy não deve ter contado muito a meu respeito. Vou dar um jeito nela. Você a tem sob vigia?
– Sim... desde que foi libertada – respondi. – Foi detida no mesmo dia em que Flora, Pogy e Red foram presos, mas não tínhamos nada contra ela, exceto que havia sido amante de Paddy, de modo que mandei soltá-la. Quanto você conseguiu arrancar dela?
– Descrições de Papadoodle e Nancy Regan. E só. Ela sabe tanto sobre eles quanto eu. Onde essa garota Regan entra?
– Em quase nada. Exceto que pode nos levar a Papadopoulos. Era a garota de Red. Foi ele aparecer para um encontro com ela que estragou tudo. Quando Papadopoulos escapou, levou a garota junto. Não sei por quê. Ela não estava envolvida nos roubos.
Tom-Tom Carey terminou de enrolar e acender seu quarto cigarro e se levantou.
– Estamos juntos? – perguntou ao pegar o chapéu.
– Se você entregar Papadopoulos, providenciarei para que receba cada centavo a que tem direito – respondi. – E vou lhe dar campo livre. Não vou prejudicá-lo ficando de olho em suas ações.
Ele disse que isso era bastante justo, informou que estava hospedado num hotel na Ellis Street e foi embora.
*
Ao telefonar para o escritório do falecido Taylor Newhall, fiquei sabendo que, se quisesse qualquer informação a respeito de seus negócios, eu teria de ligar para sua residência no interior, alguns quilômetros ao sul de São Francisco. Tentei fazer isso. Uma voz ministerial que se dizia pertencer ao mordomo avisou que o advogado de Newhall, Franklin Ellert, era a pessoa que eu deveria procurar. Fui até o escritório de Ellert.
Era um velho nervoso e irritável, com ceceio e olhos saltados pela pressão alta.
– Há algum motivo – perguntei diretamente – para supor que o assassinato de Newhall seja algo mais do que um ataque de bandidos mexicanos? É possível que ele tenha sido morto propositalmente, e não resistindo a um seqüestro?
Advogados não gostam de ser questionados. Aquele esbravejou, fez caretas, deixou os olhos ainda mais saltados e, é claro, não me deu uma resposta.
– Como? Como? – estourou ele, irritado. – Efplique-fe, fenhor.
Ele olhou furiosamente para mim e para a mesa, mexendo em papéis com as mãos nervosas, como se estivesse em busca de um apito policial. Contei-lhe a minha história – contei a ele sobre Tom-Tom Carey.
Ellert esbravejou mais um pouco, perguntou “O que diabos vofê eftá querendo diver?” e fez uma bagunça completa dos papéis sobre a sua mesa.
– Eu não estou querendo dizer nada – rosnei em resposta. Estou só contando o que foi dito.
– Fim! Fim! Eu fei! – Ele parou de me encarar, e sua voz ficou menos irritada. – Maf não há ravão alguma para fufpeitar de qualquer coiva parefida. De jeito nenhum, fenhor. Não, fenhor!
– Talvez você tenha razão – virei-me em direção à porta. – Mas vou investigar um pouco mais mesmo assim.
– Efpere! Efpere! – Ele se levantou da cadeira e correu para o outro lado da mesa, onde eu estava. – Acho que vofê eftá enganado, mas, fe vai inveftigar, eu goftaria de faber o que vofê defcobrir. Talvef vofê deva me cobrar o que coftuma cobrar pelo que for feito e me manter informado fobre of progrefos. O que lhe parefe?
Respondi que tudo bem, voltei até sua mesa e comecei a questioná-lo. Como o advogado havia dito, não havia nada nos negócios de Newhall que levantasse suspeitas. O morto era multimilionário, com a maior parte de seu dinheiro investido em minas. Ele havia herdado quase metade de sua fortuna. Não havia qualquer transação escusa, nenhum golpe desonesto, nenhuma ilegalidade em seu passado, nenhum inimigo. Era viúvo e tinha uma filha. Ela teve tudo o que quis enquanto ele viveu, e ela e o pai se gostavam muito. Ele havia ido para o México com um grupo de mineradores de Nova York que esperavam vender-lhe algumas propriedades por lá. O grupo havia sido atacado por bandidos e reagido, mas Newhall e um geólogo chamado Parker haviam morrido durante o confronto.
De volta ao escritório, escrevi um telegrama para a nossa filial de Los Angeles, pedindo que um agente fosse mandado a Nogales para investigar a morte de Newhall e os negócios de Tom-Tom Carey. O funcionário ao qual entreguei o telegrama para ser codificado e enviado disse que o Velho queria me ver. Na sala dele, fui apresentado a um homem baixo e rechonchudo chamado Hook.
– O sr. Hook – disse o velho – é proprietário de um restaurante em Sausalito. Na segunda-feira passada, ele contratou uma garçonete chamada Nelly Riley. Ela lhe disse que tinha vindo de Los Angeles. A descrição que o sr. Hook faz dela é bastante parecida com a descrição que você e Counihan fizeram de Nancy Regan. Não é? – perguntou ele ao gordo.
– Certamente. É exatamente o que eu li nos jornais. Ela tem mais ou menos um metro e setenta de altura, estrutura mediana, olhos azuis e cabelos castanhos, tem 21, 22 anos e é bonita. E o mais importante é que é altiva como o diabo... nunca acha que nada está bom o bastante para ela. Ora, quando tentei ser um pouco sociável, ela me disse para segurar minhas “patas sujas”. Então descobri que ela não sabe quase nada a respeito de Los Angeles, embora alegue morar lá há dois ou três anos. Aposto com vocês que é a garota mesmo – disse, e seguiu falando sobre quanto da recompensa ele deveria receber.
– O senhor vai voltar para lá agora? – perguntei.
– Em breve. Preciso parar para tratar da compra de alguns pratos. Depois vou voltar.
– A garota estará trabalhando?
– Sim.
– Então vamos mandar um homem com o senhor... um homem que conheça Nancy Regan.
Chamei Jack Counihan na sala dos detetives e apresentei-o a Hook. Os dois combinaram de se encontrar em meia hora no ferry, e Hook saiu andando pesadamente.
– Essa Nelly Riley não deve ser Nancy Regan – eu disse. – Mas não estamos em condições de deixar passar nem mesmo um centésimo de chance.
Contei a Jack e ao Velho sobre Tom-Tom Carey e a minha visita ao escritório de Ellert. O Velho escutou com a atenção educada de sempre. O jovem Counihan – há apenas quatro meses no negócio de caçar homens – escutou de olhos arregalados.
– Agora é melhor você se apressar e ir ao encontro de Hook – eu disse quando terminei, deixando a sala do Velho com Jack. – E se ela for Nancy Regan... segure-a e não a deixe escapar. – Como não podíamos ser escutados pelo Velho, acrescentei: – E pelo amor de Deus, não deixe a jovem galanteria de jovem levar você a ganhar um soco no queixo desta vez. Finja que é gente grande.
O garoto corou, disse “Vá para o inferno!”, arrumou a gravata e saiu para se encontrar com Hook.
Eu tinha alguns relatórios para escrever. Depois que terminei o serviço, pus os pés sobre a mesa e fiquei apertando um maço de Fatimas e pensando em Tom-Tom Carey até as seis da tarde. Então desci até o States para minha sopa de frutos do mar e meu bife mal passado e fui para casa trocar de roupa antes de seguir a caminho do Sea Cliff para um jogo de pôquer.
O telefone tocou enquanto eu estava me vestindo. Jack Counihan estava no outro lado.
– Estou em Sausalito. A garota não era Nancy, mas consegui outra coisa. Não estou certo sobre como tratar disso. Você pode vir para cá?
– É importante o bastante para deixar de ir a um jogo de pôquer?
– É sim... acho que é algo grande – ele estava empolgado. – Queria que você viesse. Realmente acredito que seja uma pista.
– Onde você está?
– No ferry. Não o Golden Gate, o outro.
– Tudo bem. Vou pegar o primeiro barco.
Uma hora depois, desci do barco em Sausalito. Jack Counihan abriu caminho em meio à multidão e começou a falar:
– Vindo para cá no caminho de volta...
– Espere até sairmos do meio da multidão – aconselhei. – Deve ser mesmo incrível... a ponta do seu colarinho chega a estar virada.
Ele arrumou mecanicamente o defeito em sua vestimenta normalmente imaculada enquanto andávamos até a rua, mas estava muito atento ao que quer que estivesse em sua mente para sorrir.
– Por aqui – disse ele, fazendo-me virar numa esquina. – A lanchonete de Hook fica na esquina. Você pode dar uma olhada na garota, se quiser. Ela tem o mesmo tamanho e tipo da Nancy Regan, mas é só. É uma garota durona que provavelmente foi demitida por deixar o chiclete cair na sopa no último lugar em que trabalhou.
– Tudo bem. Vamos deixá-la de fora. Agora, o que você tem em mente?
– Depois que a vi, comecei a voltar para o ferry. Um barco chegou quando eu ainda estava a umas duas quadras de distância. Dois homens que devem ter chegado nele estavam subindo a rua. Eram gregos, bastante jovens e durões, embora eu normalmente não fosse prestar muita atenção neles. Mas, como Papadopoulos é grego, olhei para esses sujeitos. Eles estavam discutindo sobre alguma coisa enquanto caminhavam. Não falavam alto, mas faziam cara feia um para o outro. Quando passaram por mim, o que estava do lado da sarjeta disse para o outro: “Disse a ele que faz 29 dias”.
“Vinte e nove dias. Contei, e faz exatamente 29 dias que começamos a caçada a Papadopoulos. Ele é grego, e esses sujeitos eram gregos. Quando terminei de contar, dei meia-volta e comecei a segui-los. Eles me fizeram atravessar toda a cidade e subiram uma colina na outra ponta. Entraram num pequeno chalé, de no máximo três ambientes, instalado sozinho numa clareira no meio do mato. A casa tinha uma placa de ‘vende-se’, e as janelas estavam sem cortinas. Não havia sinal de ocupação, mas, no térreo, atrás da porta dos fundos, havia um ponto molhado, como se um balde ou uma panela d’água tivesse sido jogado fora.
“Fiquei escondido nos arbustos até escurecer mais. Então me aproximei. Pude ouvir movimentação de gente lá dentro, mas não consegui ver nada pelas janelas. Elas estão fechadas com tábuas. Depois de um tempo, os dois sujeitos que eu havia seguido saíram, dizendo alguma coisa numa língua que não entendi a quem quer que estivesse dentro do chalé. Como a porta do chalé ficou aberta até os dois desaparecerem, eu não teria conseguido segui-los sem ser visto por quem estivesse lá.
“Então a porta se fechou, e pude ouvir barulho de gente, ou talvez de apenas uma pessoa. Também senti cheiro de comida sendo preparada, e vi fumaça saindo pela chaminé. Esperei e esperei, mas nada mais aconteceu, e eu pensei que era melhor entrar em contato com você.”
– Parece interessante – concordei.
Estávamos passando sob um farol de trânsito. Jack me fez parar, segurando meu braço, e tirou alguma coisa do bolso do sobretudo.
– Olhe! – mostrou. Era um pedaço de tecido azul chamuscado. Poderia ser restos de um chapéu de mulher que tivesse tido três quartos queimado. Olhei para aquilo sob a luz do poste e usei a lanterna para examinar mais de perto.
– Recolhi isto atrás do chalé enquanto estive bisbilhotando por lá – disse Jack. – E...
– E Nancy Regan estava usando um chapéu neste tom na noite em que ela e Papadopoulos desapareceram – completei. – Vamos para o chalé.
Deixamos as ruas iluminadas para trás, subimos a colina, descemos num pequeno vale, viramos num caminho sinuoso e arenoso, que deixamos para atravessar o chão úmido de entre as árvores até uma estrada de terra. Andamos quase um quilômetro dela, e então Jack me guiou ao longo de um caminho estreito que atravessava um escuro aglomerado de arbustos e árvores baixas. Eu esperava que ele soubesse aonde estava indo.
– Estamos quase chegando – sussurrou.
Um homem saltou dos arbustos e me agarrou pelo pescoço.
Minhas mãos estavam nos bolsos do sobretudo – uma segurando a lanterna, a outra, minha arma.
Empurrei o cano da arma na direção do homem – apertei o gatilho.
O tiro estragou meu sobretudo de setenta e cinco dólares, mas tirou o homem do meu pescoço.
Foi sorte. Havia outro homem às minhas costas.
Tentei me desvencilhar dele me contorcendo – não tive muito sucesso –, e senti o fio de uma faca na coluna.
Isso não foi bom – mas foi melhor do que ser atingido pela ponta.
Dei uma cabeçada para trás no rosto dele – errei – e continuei me contorcendo e me debatendo enquanto tirava as mãos dos bolsos e tentava agarrá-lo.
A lâmina de sua faca bateu de lado na minha bochecha. Peguei a mão que a segurava e caí de costas – com ele por baixo.
– Uh! – fez ele.
Rolei, fiquei de quatro no chão, fui atingido de raspão por um soco e me levantei.
Senti dedos segurando meu tornozelo.
Meu comportamento não foi nem um pouco cavalheiresco. Chutei os dedos para longe – encontrei o corpo do homem e chutei duas vezes – com força.
A voz de Jack sussurrou meu nome. Não conseguia vê-lo na escuridão, nem conseguir ver o homem em quem havia atirado.
– Tudo bem por aqui – disse a Jack. – Como você se saiu?
– Por cima. Isso é tudo?
– Não sei, mas vou me arriscar a espiar o que consegui.
Apontei a lanterna para baixo, em direção ao homem sob meu pé, e a acendi. Era um homem magro e loiro, com o rosto sujo de sangue, os olhos avermelhados desviando da luz enquanto ele tentava se fazer de desmaiado.
– Pare com isso! – ordenei.
Uma arma pesada foi disparada nos arbustos – e outra, mais leve. As balas atravessaram as folhagens.
Desliguei a luz, inclinei-me sobre o homem no chão e bati em sua cabeça com a minha arma.
– Agache-se bem – sussurrei para Jack.
A arma menor disparou de novo, duas vezes. Estava à frente, à esquerda.
Aproximei a boca da orelha de Jack.
– Nós vamos até aquele maldito chalé quer queiram, quer não. Fique abaixado e não dê nenhum tiro, a menos que veja no que está atirando. Vá em frente.
Abaixando-me o mais perto do chão possível, segui Jack pelo caminho. A posição agravou o corte nas minhas costas – uma dor escaldante que ia da região entre os ombros até quase a cintura. Dava para sentir o sangue escorrendo pelos quadris – ou pelo menos pensei que dava.
O caminho estava escuro demais para avançarmos furtivamente. Galhos de árvores estalavam sob nossos pés e raspavam contra nossos ombros. Nossos amigos no meio do mato usaram suas armas. Por sorte, o barulho de gravetos se quebrando e de folhas raspando na escuridão absoluta não são o melhor dos alvos. Balas zumbiam aqui e ali, mas não fomos atingidos por nenhuma delas. Nem atiramos de volta. Paramos onde o final do mato deixava a noite num tom de cinza mais fraco.
– Lá está – disse Jack, sobre uma forma quadrada à frente.
– Vamos depressa – resmunguei, correndo em direção ao chalé às escuras.
As pernas compridas e magras de Jack o mantiveram com facilidade ao meu lado enquanto atravessávamos a clareira correndo.
Um vulto masculino surgiu de trás da mancha da construção, e sua arma começou a disparar contra nós. Os tiros foram disparados tão seguidos um do outro que pareciam um longo estampido contínuo.
Puxando o jovem comigo, mergulhei, esparramado no chão, exceto por onde a parte cortante de uma lata vazia manteve meu rosto levantado.
Do outro lado da construção, outra arma foi disparada. De um tronco de árvore à direita, uma terceira. Jack e eu começamos a atirar em resposta.
Uma bala ricocheteou e encheu minha boca de terra e pedrinhas. Cuspi lama e fiz um alerta a Jack:
– Você está atirando alto demais. Abaixe um pouco e aperte o gatilho devagar.
Uma saliência apareceu no contorno escuro da casa. Mandei bala nele.
Uma voz masculina gritou “Au-uuu!”, e então, mais baixo, mas muito amargo: “Ah, maldito... maldito!”
Durante uns dois segundos muito quentes, choveram balas ao nosso redor. Então não houve um som sequer para estragar a quietude da noite.
Quando o silêncio já durava cinco minutos, fiquei de quatro e comecei a engatinhar para frente, com Jack atrás de mim. O terreno não era feito para esse tipo de coisa. Três metros foram o suficiente. Nós nos levantamos e andamos o resto do caminho.
– Espere – sussurrei e, deixando Jack num dos cantos do chalé, dei a volta na casa; não vi ninguém e nada ouvi além dos sons que eu mesmo produzia.
Experimentamos a porta da frente. Estava trancada, mas era frágil. Arrombei-a com o ombro e entrei – com a lanterna e a arma em punho.
A cabana estava vazia.
Ninguém – nenhuma mobília – nenhum traço de coisa alguma nos dois ambientes nus – nada além de paredes de madeira nuas, piso nu, teto nu com uma chaminé atravessada ligada a nada.
Jack e eu paramos no meio do ambiente, olhamos para o vazio e amaldiçoamos aquela espelunca da porta dos fundos à porta da frente. Não tínhamos terminado quando ouvimos passos do lado de fora, uma luz branca brilhou na porta aberta, e uma voz esganiçada disse:
– Ei! Podem sair um por vez... com muita calma!
– Quem disse isso? – perguntei, desligando a lanterna e me aproximando de uma parede lateral.
– Um maldito rebanho de assistentes de xerife – respondeu a voz.
– Você não pode empurrar um deles para dentro e nos deixar dar uma olhada? – perguntei. – Fui estrangulado, esfaqueado e alvo de tiros esta noite a ponto não mais confiar na palavra de ninguém.
Um sujeito esguio de joelhos para dentro e rosto fino e curtido apareceu na porta. Ele me mostrou um distintivo. Peguei minha identificação, e os outros assistentes entraram. No total, havia três deles.
– Estávamos na estrada a caminho de um trabalhinho quando ouvimos o tiroteio – explicou o magro. – O que aconteceu?
Contei o que tinha ocorrido.
– Esta cabana está vazia há um bom tempo – disse ele, depois que terminei. – Qualquer um poderia ter acampado aqui com facilidade. Vocês acham que foi esse Papadopoulos, é? Vamos procurar por ele e seus amigos... principalmente considerando que há essa bela quantia de recompensa.
Vasculhamos no meio do mato e não encontramos ninguém. Tanto o homem que eu havia derrubado quanto aquele em que havia atirado tinham desaparecido.
Jack e eu voltamos para Sausalito com os assistentes de xerife. Procurei um médico e fiz um curativo nas costas. Ele disse que o corte era longo, mas superficial. Então voltamos para São Francisco e nos separamos a caminho de nossas casas.
Assim terminou mais um dia de trabalho.
Eis algo que aconteceu na manhã seguinte. Eu não vi. Ouvi dizer pouco antes do meio-dia e li a respeito nos jornais daquela tarde. Eu não sabia na ocasião que tinha interesse pessoal no assunto, mas mais tarde, sim – de modo que vou registrar aqui onde aconteceu.
Às dez horas daquela manhã, cambaleou pela Market Street um homem nu do topo da cabeça destruída às solas dos pés manchados de sangue. Das costas e do peito nus havia pequenas faixas de carne penduradas, pingando sangue. Seu braço direito estava quebrado em dois lugares. O lado esquerdo da cabeça careca estava afundado. Uma hora depois, ele morreu no hospital de pronto-socorro – sem ter dito uma palavra a ninguém, com a mesma expressão vaga e distante nos olhos.
A polícia seguiu com facilidade a trilha das gotas de sangue. Elas terminavam com uma mancha vermelha num beco ao lado de um hotelzinho pouco depois da Market Street. No hotel, a polícia encontrou o quarto do qual o homem havia saltado, caído ou sido atirado. A cama estava encharcada de sangue. Sobre ela, lençóis rasgados e retorcidos que haviam sido amarrados e usados como cordas. Havia também uma toalha que tinha sido usada como mordaça.
As evidências indicavam que o homem nu havia sido amordaçado, torturado e ferido com uma faca. Os médicos disseram que as faixas de carne tinham sido cortadas, não rasgadas ou arrancadas. Depois que o dono da faca foi embora, o homem nu havia conseguido se libertar de suas amarras e, provavelmente enlouquecido de dor, tinha ou pulado ou caído da janela. A queda havia esmagado o crânio e quebrado o braço, mas ele havia conseguido caminhar uma quadra e meia.
A administração do hotel informou que o homem estava ali havia dois dias. Tinha sido registrado como H. F. Barrows, City. Tinha uma mala de couro preto na qual, além de roupas, produtos para barbear e assim por diante, a polícia encontrou uma caixa de cartuchos calibre 38, um lenço preto com buracos para olhos cortados, quatro chaves mestras, um pequeno pé-de-cabra e uma certa quantidade de morfina, com uma agulha e o resto do kit. Em outra parte do quarto, encontraram o resto de suas roupas, um revólver calibre 38 e duas garrafas de bebida. Não encontraram um centavo.
A hipótese era de que Barrows era um ladrão que havia sido amarrado, torturado e roubado, provavelmente por companheiros, entre as oito e as nove horas daquela manhã. Ninguém sabia nada a seu respeito. Ninguém havia visto seu visitante ou visitantes. O quarto ao lado do dele à esquerda estava desocupado. O ocupante do quarto do outro lado havia saído para o trabalho numa fábrica de móveis antes das sete horas.
Enquanto isso acontecia, eu estava no escritório, sentado para frente na cadeira para poupar as costas e lendo relatórios, todos discorrendo sobre como agentes ligados a diversas filiais da Agência de Detetives Continental seguiam falhando em apresentar quaisquer indicações da localização passada, presente ou futura de Papadopoulos e Nancy Regan. Não havia nada de novo nesses relatórios – eu vinha lendo outros semelhantes havia três semanas.
O Velho e eu saímos para almoçar juntos e, enquanto comíamos, eu lhe contei sobre as aventuras da noite anterior em Sausalito. Tinha o rosto de avô atento de sempre, bem como o sorriso educadamente interessado, mas quando eu estava na metade de história, ele desviou os olhos azuis do meu rosto para a salada, que ficou encarando até eu parar de falar. Então, ainda sem erguer o olhar, disse que sentia muito que eu tivesse me ferido. Agradeci, e continuamos comendo.
Finalmente, ele olhou para mim. A suavidade e a cortesia que ele habitualmente vestia sobre seu sangue frio estavam em seu rosto, seus olhos e sua voz quando ele disse:
– Essa primeira indicação de que Papadopoulos ainda está vivo veio imediatamente após a chegada de Tom-Tom Carey.
Foi minha vez de desviar o olhar.
Olhei para o pãozinho que estava partindo enquanto respondi:
– Sim.
Naquela tarde, recebemos um telefonema de uma mulher na Missão que havia visto acontecimentos misteriosos que, estava segura, tinham alguma coisa a ver com os bem divulgados assaltos a banco. Então fui vê-la e passei a maior parte da tarde descobrindo que metade dos acontecimentos a que ela se referia era imaginária e que a outra metade era o esforço de uma mulher ciumenta tentando descobrir o que o marido andava fazendo.
Já eram quase seis da tarde quando voltei para a Agência. Alguns minutos depois, Dick Foley me chamou no telefone. Estava com os dentes batendo tanto que mal consegui entender o que ele dizia. V-v-occê-p-pode-v-vir-ssspi-spital-haa-rr-b-bor?
– O quê? – perguntei, e ele disse a mesma coisa de novo, ou pior. Mas a esta altura eu sabia que ele estava perguntando se eu poderia ir até o Hospital Harbor.
Respondi que chegaria em dez minutos e, com a ajuda de um táxi, cheguei.
O pequeno detetive canadense me encontrou na porta do hospital. Estava com as roupas e os cabelos pingando de molhados, mas tinha tomado uma dose de uísque, e os dentes tinham parado de bater.
– Maldita idiota, saltou na baía! – ele reclamou, como se fosse culpa minha.
– Angel Grace?
– Quem mais eu estava seguindo? Entrou no ferry para Oakland. Aproximou-se sozinha da amurada. Achei que ela ia atirar alguma coisa. Fiquei de olho nela. Bingo! Ela saltou. – Dick espirrou. – Fui pateta o bastante de pular atrás dela. Segurei-a. Fomos tirados da água. Lá dentro – disse ele, fazendo sinal com a cabeça molhada para o interior do hospital.
– O que aconteceu antes de ela entrar no ferry?
– Nada. Ficou em casa o dia todo. Saiu direto para o ferry.
– E ontem?
– Passou o dia no apartamento. Saiu à noite com um homem. Hotel de beira de estrada. Voltou para casa às quatro. Dei azar. Não consegui segui-lo.
– Como ele era?
O homem que Dick descreveu era Tom-Tom Carey.
– Bom – eu disse. – É melhor você ir tomar um banho quente em casa e vestir uns trapos secos. – Entrei para ver a quase-suicida.
Ela estava deitada de costas num leito, olhando fixamente para o teto. Tinha o rosto pálido, mas era sempre pálida, e seus olhos verdes não estavam mais taciturnos do que o usual. A não ser pelo fato de seus cabelos curtos estarem escuros por causa da água, não parecia que qualquer coisa fora do normal tivesse acontecido com ela.
– Você pensa nas coisas mais estranhas para fazer – eu disse, ao lado de sua cama.
Ela deu um salto e virou o rosto para mim, espantada. Então me reconheceu e sorriu – um sorriso que emprestou ao seu rosto a beleza que o ar depressivo habitual escondia.
– Você precisa manter o hábito... de aparecer de surpresa? – perguntou. – Quem disse que eu estava aqui?
– Todo mundo sabe. Sua foto está na primeira página de todos os jornais, com a história da sua vida e o que você disse ao príncipe de Gales.
Ela parou de sorrir e ficou me olhando firmemente.
– Já sei! – exclamou, depois de alguns segundos. – Aquele baixinho que saltou depois de mim era um de seus agentes... me seguindo. Não era?
– Eu não sabia que alguém tinha precisado saltar atrás de você – respondi. – Achei que você tivesse chegado à margem depois de terminar de nadar. Você não queria chegar à terra?
Ela não sorriu. Seus olhos começaram a olhar para algo terrível.
– Ah! Por que não me deixaram sozinha? – lamentou, trêmula. – Viver é horrível.
Sentei-me numa cadeirinha ao lado da cama branca e bati levemente na saliência de seu ombro sob os lençóis.
– O que foi? – Fiquei surpreso com o tom paternal que consegui transmitir. – Por que você queria morrer, Angel?
Palavras que queriam ser ditas brilharam em seus olhos, repuxaram os músculos em seu rosto, tomaram forma em seus lábios – mas foi só. O que ela disse saiu com desalento, mas com uma finalidade relutante. As palavras foram:
– Não. Você é da lei, eu sou uma ladra. Vou ficar do meu lado da cerca. Ninguém pode dizer...
– Está bem! Está bem! – exclamei. – Mas, pelo amor de Deus, não me faça escutar mais um daqueles argumentos éticos. Tem alguma coisa que eu possa fazer por você?
– Não, obrigada.
– Não tem nada que você queira me dizer?
Ela sacudiu a cabeça.
– Você está bem agora?
– Sim. Eu estava sendo seguida, não estava? Ou você não teria ficado sabendo disso tão depressa.
– Sou um detetive... eu sei de tudo. Seja uma boa menina.
Do hospital, fui até a delegacia de polícia, ao departamento dos detetives de polícia. O tenente Duff estava substituindo o capitão. Contei a ele sobre o mergulho de Angel.
– Alguma idéia sobre o que ela estava armando? – quis saber depois que terminei.
– Ela está longe demais do centro das coisas para adivinhar. Queria que ela fosse detida por vadiagem.
– Ah é? Pensei que a quisesse solta, para que pudesse pegá-la.
– Agora isso praticamente terminou. Queria tentar deixá-la em cana por trinta dias. A Big Flora está presa, aguardando julgamento. Angel sabe que Flora era integrante do grupo que matou seu Paddy. Talvez Flora não conheça Angel. Vamos ver o que vai sair ao colocarmos as duas juntas por um mês.
– Pode ser – concordou Duff. – Essa Angel não tem meios visíveis de se manter e é claro que não tem nada que sair saltando nas baías por aí. Vou tomar as providências.
Da delegacia de polícia, fui até o hotel da Ellis Street em que Tom-Tom Carey me disse que estava hospedado. Ele não estava. Deixei um recado avisando que voltaria em uma hora e usei essa hora para comer. Quando voltei ao hotel, o homem moreno estava sentado no saguão. Ele me levou até o seu quarto e providenciou gim, suco de laranja e charutos.
– Andou vendo Angel Grace? – perguntei.
– Sim, na noite passada. Nós passamos por todas as espeluncas.
– Você a viu hoje?
– Não.
– Ela saltou na baía hoje à tarde.
– O caramba que fez isso. – Pareceu moderadamente surpreso.
– Ela foi tirada da água. Está bem.
A sombra em seus olhos parecia uma leve decepção.
– É uma garota engraçada – observou. – Eu não diria que Paddy não demonstrou bom gosto ao escolhê-la, mas ela é esquisita!
– Como anda a caça a Papadopoulos?
– Está indo. Mas você não devia ter faltado com a sua palavra. Você meio que me prometeu que não mandaria me seguir.
– Eu não sou o chefão – desculpei-me. – Às vezes o que eu quero não combina com o que o patrão quer. Isso não devia incomodá-lo tanto... você pode se livrar dele, não pode?
– Arrã. É o que eu tenho feito. Mas é uma chatice tremenda ter que ficar entrando e saindo de táxis e usando portas de serviço.
Conversamos e bebemos durante mais alguns minutos. Então deixei o quarto de Carey e o hotel e fui até a cabine telefônica de uma drogaria, onde telefonei para a casa de Dick Foley e dei a ele a descrição e o endereço do homem moreno.
– Não quero que você siga Carey, Dick. Quero que descubra quem está tentando segui-lo... e é nele em quem você deve colar. Pode começar amanhã... primeiro vá se secar.
E assim terminou aquele dia.
Acordei numa desagradável manhã chuvosa. Talvez fosse o tempo, talvez eu tivesse estado alegre demais no dia anterior, enfim, o corte nas minhas costas parecia uma bolha de trinta centímetros de comprimento. Liguei para o dr. Canova, que morava no andar abaixo do meu, e pedi que desse uma olhada no meu ferimento antes que saísse para o consultório no centro da cidade. Ele refez o curativo e me disse para sossegar por alguns dias. Ficou melhor depois que ele mexeu, mas liguei para a Agência e disse ao Velho que, a menos que alguma coisa empolgante acontecesse, eu pretendia ficar em casa me recuperando o dia todo.
Passei o dia recostado diante do aquecedor a gás, lendo e fumando cigarros que não queimavam direito por causa do tempo. Naquela noite, usei o telefone para organizar um jogo de pôquer, que foi muito fraco. No final, eu estava com vantagem de quinze dólares, o que era cerca de cinco dólares menos do que havia custado a bebida que meus convidados tinham consumido.
Minhas costas estavam melhores no dia seguinte, assim como o dia em si. Fui até a Agência. Havia um memorando sobre a minha mesa dizendo que Duff havia ligado e informado que Angel Grace Cardigan tinha sido detida por vadiagem – trinta dias na prisão municipal. Havia uma familiar pilha de relatórios de várias filiais sobre a incapacidade de seus agentes de descobrir qualquer coisa sobre Papadopoulos e Nancy Regan. Eu estava passando os olhos sobre esses relatórios quando Dick Foley entrou na sala.
– Identifiquei – relatou. – Trinta ou 32 anos. Um e setenta. Sessenta. Cabelos loiros, pele clara. Olhos azuis. Rosto magro, arranhado. Rato. Mora numa espelunca na Seventh Street.
– O que ele fez?
– Seguiu Carey por uma quadra. Carey o despistou. Caçou Carey até as duas da manhã. Não o encontrou. Foi para casa. Sigo atrás dele?
– Vá até o pardieiro e descubra quem ele é.
O pequeno canadense ficou fora por uma hora.
– Sam Arlie – disse, ao voltar. – Está lá há seis meses. É supostamente barbeiro... quando está trabalhando... se é que trabalha.
– Tenho dois palpites sobre esse Arlie – disse a Dick. – O primeiro é que é o velho que me cortou em Sausalito na outra noite. O segundo é que alguma coisa vai acontecer com ele.
Como era contra as regras de Dick desperdiçar palavras, ele não disse nada.
Liguei para o hotel de Tom-Tom Carey e falei com o homem moreno.
– Venha até aqui – convidei. – Tenho novidades para você.
– Assim que tomar café e me arrumar – prometeu.
– Quando Carey sair daqui, siga-o – eu disse a Dick depois que desliguei. – Se Arlie conseguir segui-lo agora, talvez aconteça alguma coisa. Tente descobrir.
Liguei para o departamento dos detetives e marquei um horário com o Sargento Hunt para visitar o apartamento de Angel Grace Cardigan. Depois disso, ocupei-me com trabalho burocrático até Tommy chegar para anunciar o homem moreno de Nogales.
– O sujeitinho que está seguindo você – informei-lhe depois que estava sentado e tinha começado a montar um cigarro – é um barbeiro chamado Arlie. – Disse onde Arlie morava.
– Sim. Um sujeito loiro de rosto magro?
Dei-lhe a descrição que Dick havia me dado.
– É esse o hombre – disse Tom-Tom Carey. – Sabe mais alguma coisa sobre ele?
– Não.
– Você fez com que Angel Grace fosse presa por vadiagem.
Como não era nem uma acusação nem uma pergunta, não respondi.
– Melhor assim – continuou o homem moreno. – Eu teria que mandá-la para longe. Ela estava prestes a melar tudo quando eu me aprontasse para jogar o laço.
– Isso vai ser logo?
– Depende de como tudo acontecer. – Ele se levantou, bocejou e sacudiu os ombros largos. – Mas ninguém morreria de fome se decidisse não comer mais enquanto eu não o pegasse. Eu não devia ter acusado você de estar me seguindo.
– Isso não estragou o meu dia.
– Até mais – disse Tom-Tom Carey antes de sair caminhando tranqüilamente.
Fui até a delegacia de polícia, apanhei Hunt e fomos até o prédio de apartamentos da Bush Street em que Angel Grace morava. A administradora – uma gorda exageradamente perfumada com lábios duros e olhos suaves – já sabia que sua inquilina estava na geladeira. De boa vontade, levou-nos até o apartamento da garota.
Angel não era uma boa dona de casa. As coisas estavam limpas, mas bagunçadas. A pia da cozinha estava cheia de louça suja. A cama dobrável estava muito malfeita. Havia roupas e vários tipos de artigos femininos pendurados por tudo, do banheiro à cozinha.
Nos livramos da síndica e passamos o apartamento em revista minuciosamente. Saímos de lá sabendo tudo o que havia para saber sobre o guarda-roupa da garota, e um monte sobre seus hábitos pessoais. Mas não descobrimos nada que apontasse na direção de Papadopoulos.
Naquela tarde ou noite não chegou qualquer notícia sobre a dupla Carey-Arlie, embora eu esperasse ouvir algo de Dick a cada minuto.
Às três da manhã, o telefone da mesa de cabeceira tirou minha orelha dos travesseiros. A voz que saiu do aparelho era a do detetive canadense.
– Fim de Arlie – ele disse.
– Em definitivo?
– Sim.
– Como?
– Chumbo.
– Nosso cara?
– Sim.
– Segue até de manhã?
– Sim.
– Vejo você no escritório – e voltei a dormir.
Quando cheguei à Agência às nove horas, um dos atendentes tinha acabado de decodificar uma carta noturna do agente de Los Angeles que havia sido mandado para Nogales. Era um telegrama longo e suculento.
Dizia que Tom-Tom Carey era muito conhecido ao longo da fronteira. Por cerca de seis meses, ele estivera envolvido em contrabando – armas indo para o sul, bebidas e provavelmente drogas e imigrantes vindo para o norte. Pouco antes de sair de lá na semana anterior, ele havia feito perguntas a respeito de um certo Hank Barrows. A descrição desse Hank Barrows combinava com o H. F. Barrows que havia sido cortado em tiras, caído da janela do hotel e morrido.
O agente de Los Angeles não tinha conseguido muita coisa a respeito de Barrows, exceto que ele vinha de São Francisco, estivera na fronteira por apenas alguns dias e aparentemente havia retornado a São Francisco. O agente não tinha conseguido nada de novo sobre o assassinato de Newhall – os sinais ainda eram de que ele havia morrido resistindo a um ataque de patriotas mexicanos.
Dick Foley entrou na minha sala enquanto eu lia as informações. Quando terminei, ele me deu sua contribuição para a história de Tom-Tom Carey.
– Eu o segui de lá. Até o hotel. Arlie na esquina. Oito horas, Carey saiu. Garagem. Alugou carro sem motorista. Voltou ao hotel. Fez o check out. Duas malas. Saiu pelo parque. Arlie o seguiu num calhambeque. Segui atrás de Arlie. Descemos bulevar. Atravessamos cruzamento. Escuro. Solitário. Arlie pisa fundo. Aproximou-se. Bang! Carey parou. Duas armas saem. Fim de Arlie. Carey volta à cidade. Hotel Marquis. Registra-se como George F. Danby, San Diego. Quarto 622.
– Tom-Tom revistou Arlie depois de matá-lo?
– Não. Não tocou nele.
– E então? Leve Mickey Linehan com você. Não perca Carey de vista. Vou mandar alguém para substituir você e Mickey mais tarde esta noite, se puder, mas ele precisa ser vigiado 24 horas até... – como não sabia o que vinha depois, parei de falar.
Levei a história de Dick até a sala do Velho e contei a ele, terminando:
– Arlie atirou primeiro, segundo Foley, de modo que Carey pode alegar legítima defesa, mas finalmente temos ação, e eu não quero fazer nada para diminuir o ritmo. Por isso, quero manter o que sabemos sobre esse tiroteio em segredo por alguns dias. Não vai melhorar nem um pouco a nossa amizade com o xerife do condado se ele souber o que estamos fazendo, mas acho que vale a pena.
– Se você quer assim – concordou o Velho, atendendo o telefone, que estava tocando.
Ele falou no aparelho e o passou para mim. Era o detetive-sargento Hunt.
– Flora Brace e Grace Cardigan fugiram pouco antes do amanhecer. Há chances de que elas...
Eu não estava com ânimo para detalhes.
– Foi uma fuga limpa? – perguntei.
– Não há qualquer pista sobre elas até agora, mas...
– Pegarei os detalhes quando falar com você. Obrigado – disse e desliguei. – Angel Grace e Big Flora fugiram da prisão – informei ao Velho.
Ele deu um sorriso cortês, como se aquilo não o preocupasse muito.
– Você estava comemorando o fato de ter ação – ele murmurou.
Transformei minha cara feia num sorriso, murmurei “Bem, talvez”, voltei à minha sala e liguei para Franklin Ellert. O advogado disse que ficaria feliz em me ver, de modo que fui até seu escritório.
– E agora? Que progrefos vofê fez? – perguntou ele ansiosamente quando sentei-me ao lado de sua mesa.
– Alguns. Um homem chamado Barrows também estava em Nogales quando Newhall foi morto, e também veio para São Francisco logo depois. Carey seguiu Barrows até aqui. Você leu a respeito do homem que foi encontrado andando nu no meio da rua, todo cortado?
– Li, fim.
– Era Barrows. Então outro homem entra na jogada... um barbeiro chamado Arlie. Ele estava espionando Carey. Carey o matou.
Os olhos do velho advogado saltaram mais alguns centímetros.
– Em que rua? – perguntou de supetão.
– Você quer saber o local exato?
– Quero, fim.
Peguei o telefone, liguei para a Agência, pedi que lessem o relatório de Dick para mim e dei ao advogado a informação que ele queria.
Ele saltou da cadeira. O suor brilhava ao longo das dobras que as rugas formavam em seu rosto.
– A Fenhorita Newhall está lá sozinha! Efe caminho é a menof de um quilômetro da cava dela.
Franzi a testa e desatei a pensar, mas não consegui entender nada.
– E se eu puser um homem lá para cuidar dela? – sugeri.
– Effelente! – Seu rosto preocupado relaxou, até haver no máximo cinqüenta ou sessenta rugas nele. – Ela preferiu ficar lá durante o luto da morte do pai. Vofê vai mandar um homem capacitado?
– O Rochedo de Gibraltar é uma folha ao vento perto dele. Faça um bilhete para ele levar. Seu nome é Andrew MacElroy.
Enquanto o advogado rabiscava o bilhete, usei seu telefone de novo para ligar para a Agência e pedir para a telefonista encontrar o Andy e lhe dizer que eu precisava dele. Almocei antes de voltar à Agência. Andy estava esperando quando cheguei lá.
Andy MacElroy era um homem sólido feito uma rocha – não muito alto, mas forte e com a cabeça e o corpo duros. Era um homem sério e taciturno, com a imaginação de uma máquina calculadora. Sequer tenho certeza de que saiba ler, mas tenho certeza de que quando Andy recebe uma ordem, ele a cumpre e nada mais. Não sabia o bastante para fazer o contrário.
Dei a ele o bilhete do advogado à Srta. Newhall, disse-lhe aonde ir e o que fazer, e os problemas da Srta. Newhall estavam fora da minha mente.
Por três vezes naquela tarde recebi notícias de Dick Foley e Mickey Linehan. Tom-Tom Carey não estava fazendo nada muito emocionante, embora tivesse comprado duas caixas de cartucho calibre 44 numa loja de equipamentos esportivos da Market Street.
Os jornais da tarde trouxeram fotos de Big Flora Brace e Angel Grace Cardigan, relatando a fuga das duas. A história estava tão distante do que de fato havia acontecido como normalmente ocorre com reportagens de jornal. Em outra página, estava um relato sobre a descoberta do barbeiro morto na rua vazia. Ele havia levado tiros na cabeça e no peito, num total de quatro. A opinião das autoridades do município era de que ele havia sido morto reagindo a um roubo, e que os bandidos fugiram sem levar nada.
Às cinco horas, Tommy Howd apareceu na minha porta:
– Aquele tal de Carey quer ver você de novo – disse o rapaz sardento.
– Mande-o entrar.
O homem moreno entrou caminhando tranqüilamente, disse “E aí”, sentou-se e montou um cigarro marrom.
– Alguma coisa especial para esta noite? – perguntou, fumando.
– Nada que eu não possa trocar por algo melhor. Vai dar uma festa?
– Arrã. Tinha pensado nisso. Uma espécie de festa surpresa para Papadoodle. Quer ir junto?
Foi minha vez de responder “Arrã”.
– Pego você às onze... Van Ness com Geary – disse. – Mas vai ter que ser uma espécie de festa fechada... só você e eu... e ele.
– Não. Tem mais um que precisa estar junto. Vou levá-lo comigo.
– Não estou gostando disso. – Tom-Tom Carey sacudiu a cabeça lentamente, franzindo a testa amistosamente por cima do cigarro. – Vocês detetives não deveriam estar em maior número. Precisa ser um e um.
– Você não vai estar em menor número – expliquei. – Esse sujeitinho que vou levar junto está tão do meu lado como do seu. E vai ser bom você ficar tão de olho nele quanto eu... e cuidar para que ele não fique atrás de nenhum de nós, se for possível.
– Então por que você quer levá-lo conosco?
– Engrenagens dentro de engrenagens – sorri.
O homem moreno franziu a testa de novo, desta vez menos amistosamente.
– Os cento e seis mil de recompensa em dinheiro... não estou pensando em dividi-los com ninguém.
– Tudo bem – concordei. – Ninguém que eu levar junto será sócio desse dinheiro.
– Vou aceitar sua palavra quanto a isso. – Levantou-se. – E precisamos vigiar esse hombre, é?
– Se quisermos que tudo corra bem.
– Digamos que ele nos atrapalhe... se meta em nosso caminho. Podemos acabar com ele ou simplesmente dizemos “Feio! Feio!”?
– Ele vai ter que correr seus próprios riscos.
– Parece justo. – Seu rosto duro estava novamente bem-humorado enquanto caminhava até a porta. – Onze horas na Van Ness com a Geary.
Voltei para a sala dos detetives onde Jack Counihan estava atirado numa cadeira, lendo uma revista.
– Espero que você tenha pensado em algo para eu fazer – disse ele, cumprimentando-me. – Estou criando calos de ficar sentado.
– Paciência, filho, paciência... é o que você precisa aprender a ter se algum dia pretende ser um detetive. Ora, quando eu era uma criança da sua idade, recém começando na agência, tive a sorte de...
– Não comece com isso – ele implorou. Então seu rosto jovem e bonito ficou muito sério. – Não entendo por que você me mantém trancado aqui. Sou o único além de você que realmente viu Nancy Regan. Pensei que você me faria sair atrás dela.
– Eu disse ao Velho a mesma coisa – solidarizei-me. – Mas ele tem medo de correr o risco de algo acontecer a você. Ele disse que em todos os seus cinqüenta anos de trabalho como detetive nunca viu um agente tão bonito, além de ser um modelo de moda, um freqüentador da sociedade e herdeiro de milhões de dólares. A idéia dele é que nós o mantenhamos como uma espécie de modelo da Agência e não o deixemos...
– Vá para o inferno – disse Jack, com o rosto vermelho.
– Mas eu o convenci a me deixar usar você nesta noite – continuei. – Então, encontre-me na Van Ness com a Geary antes das onze horas.
– Teremos ação? – ele era pura ansiedade.
– Talvez.
– O que nós vamos fazer?
– Traga a sua arma de espoleta. – Uma idéia passou pela minha cabeça, e eu a verbalizei: – É melhor ir bem vestido... traje de noite.
– A rigor?
– Isso... até o limite... tudo menos a cartola. Agora, quanto ao comportamento: você não é um detetive. Não sei exatamente o que você deve ser, mas não faz qualquer diferença. Tom-Tom Carey estará conosco. Você deve agir como se não fosse nem meu amigo nem dele... como se não confiasse em nenhum de nós dois. Nós seremos falsos com você. A qualquer pergunta que você não souber responder, reaja com hostilidade. Mas não provoque Carey demais. Entendeu?
– Eu... eu acho que sim. – Falou lentamente, franzindo a testa. – Devo agir como se estivesse no mesmo negócio que vocês, mas que, fora isso, não somos amigos. Como se eu não estivesse disposto a confiar em você. É isso?
– Basicamente. Cuide-se. Você estará nadando em nitroglicerina o tempo todo.
– O que está acontecendo? Seja um cara bacana e me dê alguma idéia.
Sorri para ele. Ele era muito mais alto do que eu.
– Eu poderia fazer isso – admiti –, mas acho que o assustaria. Então é melhor não dizer nada. Seja feliz enquanto pode. Tenha um bom jantar. Parece que muitos condenados comem lautos cafés da manhã com presunto e ovos antes de caminharem para o cadafalso. Talvez você queira outra coisa para o jantar, mas...
Faltando cinco minutos para as onze daquela noite, Tom-Tom Carey trouxe um carro de passeio preto até a esquina onde Jack e eu estávamos esperando sob uma neblina que parecia um casaco de pele molhado.
– Entrem – ordenou quando nos aproximamos do meio-fio.
Abri a porta da frente e fiz sinal para Jack entrar. Ele deu início à representação, olhando friamente para mim e abrindo a porta de trás.
– Vou sentado atrás – disse ele, bruscamente.
– Não é uma má idéia – disse eu, sentando-me ao seu lado.
Carey virou-se em seu assento, e ele e Jack se encararam por um tempo. Eu não disse nada, não apresentei um ao outro. Quando o homem moreno terminou de medir o jovem, olhou do colarinho e da gravata do rapaz – as roupas de noite não estavam escondidas pelo sobretudo – para mim, sorriu e disse com a voz arrastada:
– O seu amigo é garçom, é?
Eu ri, porque a indignação que tomou conta do rosto do rapaz e o fez abrir a boca foi natural, e não parte do seu número. Empurrei o pé contra o dele. Jack fechou a boca, não disse nada e olhou para Tom-Tom Carey e eu como se fôssemos espécimes de um tipo inferior de vida animal.
Sorri de volta para Carey e perguntei:
– Estamos esperando por alguma coisa?
Ele disse que não, parou de encarar Jack e pôs o carro em movimento. Levou-nos através do parque, pelo bulevar. O trânsito que seguia na nossa direção e na direção oposta se aproximava e se afastava na noite com névoa espessa. Em seguida, deixamos a cidade e trocamos a neblina pelo céu claro com lua. Não olhei para nenhum dos carros que vinha atrás de nós, mas sabia que num deles deviam estar Dick Foley e Mickey Linehan.
Tom-Tom Carey tirou nosso carro do bulevar para uma via lisa e bem feita, mas não muito percorrida.
– Um homem não foi morto por aqui na noite passada? – perguntei.
Carey assentiu com a cabeça sem se virar e, depois de percorrermos mais meio quilômetro, ele disse “Bem aqui”.
Estávamos andando um pouco mais devagar, e Carey apagou os faróis. Na via, meio iluminada pela lua, meio escurecida pelas sombras, o carro avançou muito lentamente por mais ou menos um quilômetro e meio. Paramos à sombra de arbustos altos que escureciam um ponto da estrada.
– Para fora quem vai desembarcar – disse Tom-Tom Carey, saindo do carro.
Jack e eu o seguimos. Carey tirou o sobretudo e o atirou para dentro do carro.
– É logo depois da curva, nos fundos da estrada – disse. – Maldita lua! Eu estava contando que teria neblina.
Eu não disse nada. Assim como Jack. O rosto do garoto estava branco e alerta.
– Vamos em linha reta – disse Carey, liderando o caminho através da rua até uma cerca alta de arame.
Ele passou por cima da cerca primeiro, depois Jack, depois – o barulho de alguém vindo pela estrada mais à frente me fez parar. Fazendo sinal de silêncio para os dois do outro lado da cerca, encolhi-me atrás de um arbusto. Os passos que se aproximavam eram leves, ágeis, femininos.
Uma garota surgiu à luz da lua logo em frente. Tinha vinte e poucos anos, não era nem alta nem baixa, nem magra nem cheinha. Vestia uma saia curta e um suéter e sua cabeça estava descoberta. Havia terror em seu rosto pálido, na atitude apressada, mas também havia algo mais ali, mais beleza do que um detetive de meia idade estava acostumado a ver.
Quando viu o carro de Carey surgindo sob a sombra, parou abruptamente, com um ruído que foi quase um grito.
Dei um passo à frente e disse:
– Olá, Nancy Regan.
Desta vez, o ruído foi mesmo um grito:
– Ah! Ah!
Então, a menos que o luar estivesse me enganando, ela me reconheceu, e o terror começou a deixá-la. Estendeu as duas mãos para mim, com alívio no gesto.
– E então? – O rugido ursino vinha do grande homem sólido como uma rocha que apareceu da escuridão atrás dela. – O que é tudo isso aqui?
– Olá, Andy – cumprimentei-o.
– Olá – ecoou MacElroy, parado.
Andy sempre fazia o que lhe mandavam fazer. Havia recebido ordens de tomar conta da Srta. Newhall. Olhei para a garota e novamente para ele.
– Esta é a Srta. Newhall? – perguntei.
– É – rugiu ele. – Fui até lá como você mandou, mas ela disse que não me queria... que não iria me deixar entrar na casa dela. Mas como você não falou nada sobre voltar, eu simplesmente acampei do lado de fora, fiquei atento, de olho em tudo. E quando a vi fugindo por uma janela há pouco, segui atrás para tomar conta dela, como você tinha dito que eu deveria fazer.
Tom-Tom Carey e Jack Counihan voltaram para a estrada e se aproximaram de nós. O homem moreno trazia uma pistola automática numa das mãos. Os olhos da garota estavam grudados nos meus. Ela não prestava atenção aos demais.
– O que é tudo isso? – perguntei a ela.
– Eu não sei – ela balbuciou, segurando as minhas mãos, com o rosto perto do meu. – Sim, eu sou Ann Newhall. Eu não sabia. Achei que fosse divertido. E quando descobri que não era, eu não consegui me livrar disso.
Tom-Tom Carey resmungou e mexeu-se, impacientemente. Jack Counihan olhava fixamente para a estrada. Andy MacElroy seguia sólido, esperando a ordem seguinte. A garota em nenhum momento desviou o olhar de mim para qualquer um dos outros.
– Como você se meteu com eles? – perguntei. – Fale rápido.
Eu mandei a garota falar rápido. Ela obedeceu. Durante vinte minutos, ela ficou ali parada soltando palavras numa torrente sem intervalos, exceto pelas vezes em que eu a interrompia para evitar que desviasse do assunto. Era um discurso desordenado, quase incoerente em alguns pontos, e nem sempre plausível, mas durante todo o tempo fiquei com a impressão que ela estava tentando dizer a verdade – a maior parte do tempo.
E nem por uma fração de segundo ela desviou o olhar dos meus olhos. Era como se ela tivesse medo de olhar para qualquer outro lugar.
Dois meses antes, aquela filha de milionário fazia parte de um grupo de quatro jovens que voltava tarde da noite de um compromisso social na costa. Alguém sugeriu que eles parassem num hotel de beira de estrada no caminho – um lugar particularmente da pesada. É claro que isso era seu maior atrativo – ser da pesada era meio que uma novidade para eles. Tiveram uma visão de primeira mão do conceito naquela noite porque, ninguém sabia exatamente como, acabaram envolvidos numa briga menos de dez minutos depois de terem chegado.
O acompanhante da garota a envergonhara demonstrando uma incrível covardia. Havia deixado que Red O’Leary o fizesse ficar de joelhos e batesse nele – e nada fez quanto a isso depois. O outro jovem do grupo não tinha sido muito mais corajoso. Insultada por tamanha submissão, a garota foi até o gigante ruivo que acabara com seu acompanhante e falou alto o bastante para que todos a escutassem:
– Você pode, por favor, me levar para casa?
Red O’Leary atendeu ao pedido com prazer. Ela o deixou a poucas quadras de sua casa na cidade. Disse que se chamava Nancy Regan. Ele provavelmente duvidou, mas ele nunca lhe fazia qualquer pergunta nem se intrometia em suas coisas. Apesar da diferença de seus mundos, um companheirismo genuíno se desenvolveu entre os dois. Ela gostava dele. Era tão gloriosamente arruaceiro que ela o via como uma figura romântica. Ele estava apaixonado por ela. Sabia que ela estava quilômetros acima dela. Assim, ela não tinha dificuldades para fazê-lo se comportar bem.
Os dois se encontravam com freqüência. Ele a levou a todos os buracos da zona da baía, apresentou-a a ladrões, pistoleiros e vigaristas, contou-lhe incríveis histórias de aventuras criminosas. Ela sabia que ele era um ladrão, soube que estava envolvido nos roubos do Seaman’s National e da Companhia Fiduciária Golden Gate no instante em que estouraram. Mas via tudo aquilo como uma espécie de espetáculo teatral. Não via como realmente era.
Ela caiu na real na noite em que estavam no Larrouy’s e foram atacados pelos bandidos que Red havia ajudado Papadopoulos e os outros a traírem. Mas já era tarde demais para sair livre. Ela foi arrastada com Red até o esconderijo de Papadopoulos depois que eu atirei no grandalhão. Ela viu então o que seu homem romântico realmente era e no que ela havia se envolvido.
Quando Papadopoulos fugiu, levando-a com ele, ela estava bem desperta, curada, disposta a nunca mais se envolver com marginais. Era o que ela pensava. Ela pensava que Papadopoulos era o velhinho assustado que aparentava ser – escravo de Flora, um velho inofensivo perto demais do túmulo para ter qualquer mal dentro de si. Estivera gemendo apavorado. Tinha implorado para que ela não o abandonasse, pedira com lágrimas escorrendo por seu rosto enrugado, implorando que ela o escondesse de Flora. Ela o levou para sua casa de campo e o deixou mexer no jardim, a salvo de olhos bisbilhoteiros. Não fazia idéia de que ele sabia quem ela era desde o começo e a conduzira a sugerir esse acerto.
Mesmo depois de os jornais terem relatado que ele havia sido o comandante-em-chefe do exército marginal e de a recompensa de 106 mil dólares ter sido oferecida por sua prisão, ela seguiu acreditando na inocência dele. Ele a convenceu de que Flora e Red haviam simplesmente posto a culpa de tudo nele para receberem condenações mais brandas. Era um velho tão assustado – quem não teria acreditado nele?
Então seu pai havia morrido no México, e a dor passou a ocupar sua mente, excluindo a maior parte das outras coisas até aquele dia, quando Big Flora e outra garota – provavelmente Angel Grace Cardigan – tinha ido até a casa. Ela havia sentido um medo mortal de Big Flora das vezes que a encontrara antes. Agora sentia mais medo ainda. E logo descobriu que Papadopoulos não era escravo de Flora, mas seu senhor. Viu o velho abutre como ele realmente era. Mas não foi esse o final de seu despertar.
Angel Grace havia repentinamente tentado matar Papadopoulos. Flora a contivera. Grace, desafiadora, contou a eles que era namorada de Paddy. Então gritou para Ann Newhall:
– E você, sua maldita idiota, não sabe que eles mataram o seu pai? Não sabe...
Os dedos de Big Flora no pescoço de Angel Grace interromperam o discurso. Flora amarrou Angel e virou-se para a garota Newhall.
– Você está envolvida – disse, bruscamente. – Está envolvida até o pescoço. É melhor seguir conosco, se não... Eis como estão as coisas, queridinha: tanto o velho quanto eu seremos enforcados se formos apanhados. E você vai continuar conosco. Vou providenciar isso. Faça o que a gente mandar, e tudo vai acabar bem. Banque a engraçadinha, e eu dou uma surra dos diabos em você.
A garota não se lembrava de muito mais coisas depois disso. Tinha uma pálida recordação de ir até a porta e dizer a Andy que não queria seus serviços. Fez isso mecanicamente, sem sequer ter de ser forçada pela loira grandalhona de pé logo atrás dela. Mais tarde, no mesmo transe amedrontado, tinha saído pela janela de seu quarto, descido a lateral da varanda coberta por uma parreira e se afastado da casa, correndo pela estrada, sem ir a lugar algum, apenas fugindo.
Foi isso que fiquei sabendo pela garota. Ela não me contou tudo. Disse muito pouco dessas coisas com palavras. Mas foi essa a história que montei combinando suas palavras, a forma como ela as disse e suas expressões faciais com o que já sabia e o que podia adivinhar.
E nem uma vez enquanto falava seus olhos desviaram dos meus. Nem uma vez ela demonstrou saber que havia outros homens na estrada conosco. Ela encarava meu rosto com uma fixação desesperada, como se tivesse medo de não fazer isso, e suas mãos seguravam as minhas como se ela pudesse afundar no chão se as soltasse.
– E os seus empregados? – perguntei.
– Não há nenhum lá agora.
– Papadopoulos convenceu você a se livrar deles.
– Sim... vários dias atrás.
– Então Papadopoulos, Flora e Angel Grace estão sozinhos na casa agora?
– Sim.
– Eles sabem que você escapou?
– Não sei. Acho que não. Eu estava no quarto fazia algum tempo. Não acho que suspeitem que eu ousaria fazer qualquer coisa além do que eles me mandaram fazer.
Fiquei incomodado ao perceber que eu estava encarando os olhos da garota tão fixamente como ela encarava os meus e que, quando quis desviar o olhar, não consegui fazê-lo com facilidade. Tirei os olhos dela e afastei as mãos.
– O resto da história você pode contar depois – resmunguei, virando-me para dar ordens a Andy MacElroy. – Você fica aqui com a Srta. Newhall até voltarmos da casa. Fiquem à vontade no carro.
A garota pôs a mão em meu braço.
– Eu vou...? Você vai...?
– Sim, nós vamos entregar você à polícia – garanti a ela.
– Não! Não!
– Não seja infantil – implorei. – Você não pode sair por aí andando com um bando de bandidos, envolver-se numa porção de crimes e, quando é pega, dizer “Desculpe, por favor” e sair livre. Se você contar toda a história no tribunal, incluindo as partes que não me contou, há chances de você não ser condenada. Mas não há como você escapar da prisão agora. Vamos lá – eu disse a Jack e Tom-Tom Carey. – Precisamos andar depressa se queremos encontrar o nosso pessoal em casa.
Olhando para trás ao escalar a cerca, vi que Andy havia posto a garota no carro e estava entrando.
– Só um instante – gritei para Jack e Carey, que já começavam a atravessar o campo.
– Pensou em outra coisa para matar tempo – reclamou o homem moreno.
Atravessei de novo a estrada até o carro e falei rapidamente e em voz baixa com Andy:
– Dick Foley e Mickey Linehan devem estar pelas redondezas. Assim que sairmos de vista, procure por eles. Entregue a Srta. Newhall a Dick. Diga que a leve com ele e corra atrás de um telefone... chame o xerife. Diga a Dick que ele deve entregar a garota ao xerife, que deve segurá-la para a polícia de São Francisco. Avise que ele não deve entregá-la a ninguém mais... nem mesmo a mim. Entendido?
– Entendido.
– Muito bem. Depois de dizer isso a ele e entregar-lhe a garota, leve Mickey Linehan até a casa dos Newhall o mais rápido que puder. Provavelmente vamos precisar do máximo de ajuda o quanto antes possível.
– Entendido – disse Andy.
– O que você está tramando? – Tom-Tom Carey perguntou em tom suspeito quando voltei para perto dele e de Jack.
– Negócios de detetive.
– Eu devia ter vindo fazer todo o trabalho sozinho – ele resmungou. – Você não fez nada além de perder tempo desde que começamos.
– Não sou eu que estou perdendo tempo agora.
Ele bufou e saiu correndo pelo campo de novo, com Jack e comigo logo atrás. No final do campo havia outra cerca para ser transposta. Depois nos deparamos com uma pequena cerca de madeira, e a casa dos Newhall estava diante de nós – era uma casa grande e branca, refletindo a luz do luar, com retângulos amarelos com persianas fechadas em janelas de ambientes iluminados. Os ambientes iluminados ficavam no térreo. O andar de cima estava no escuro. Tudo estava silencioso.
– Maldito luar! – repetiu Tom-Tom Carey, tirando mais uma pistola automática das roupas, de modo que passou a segurar uma em cada mão.
Jack começou a sacar da arma, olhou para mim, viu que a minha seguia no coldre e deixou a sua no bolso.
O rosto de Tom-Tom Carey era uma máscara de pedra escura – fendas no lugar dos olhos, uma fenda no lugar da boca –, a máscara impiedosa de um caçador de homens, um assassino. Respirava de modo suave, com o peito imenso se mexendo calmamente. Ao seu lado, Jack Counihan parecia um garoto excitado. Tinha o rosto lívido, os olhos arregalados e disformes e a respiração arfante. Mas o sorriso era genuíno, apesar de todo o nervosismo que continha.
– Vamos atravessar até a casa por este lado – sussurrei. – Depois, um de nós vai pela frente, outro por trás, e o terceiro pode esperar para ver onde é mais necessário. Tudo bem?
– Tudo bem – concordou o homem moreno.
– Espere! – exclamou Jack. – A garota desceu pela parreira de uma janela superior. Qual é o problema de eu subir pelo mesmo caminho? Sou mais leve do que vocês dois. Se ainda não deram pela falta dela, a janela deve estar aberta. Dêem-me dez minutos para encontrar a janela, entrar e me posicionar lá dentro. Assim, quando vocês atacarem, eu estarei lá, atrás deles. Que tal? – disse ele, esperando os aplausos.
– E se pegarem você no instante em que você entrar? – protestei.
– Imagine que sim. Eu posso fazer bastante barulho para vocês ouvirem, e vocês podem partir para o ataque enquanto eles se ocupam de mim. Vai funcionar igual.
– Que diabo! – latiu Tom-Tom Carey. – Qual é a vantagem de tudo isso? O outro jeito é melhor. Um de nós na frente, outro nos fundos, arrombando as portas e entrando atirando.
– Se esse jeito novo funcionar, vai ser melhor – opinei. – Se você quer saltar na fornalha, eu não vou impedir, Jack. Não vou privá-lo do seu ato de heroísmo.
– Não! – resmungou o homem moreno. – Nem pensar!
– Sim – eu o contradisse. – Vamos tentar. É melhor dar uns vinte minutos, Jack. Não terá tempo para desperdiçar.
Ele e eu olhamos para os relógios, e ele se virou em direção à casa.
Com a cara fechada e expressão ameaçadora, Tom-Tom Carey colocou-se em seu caminho. Xinguei e me postei entre o homem moreno e o garoto. Jack deu a volta pelas minhas costas e se apressou pelo espaço excessivamente iluminado que nos separava da casa.
– Mantenha os pés no chão – eu disse a Carey. – Há muitas coisas envolvidas neste jogo sobre as quais você não faz idéia.
– Coisas demais! – ele resmungou, mas deixou o garoto ir.
Não havia qualquer janela superior aberta no nosso lado da casa. Jack deu a volta até os fundos e saiu de vista.
Ouvimos um barulho atrás de nós. Carey e eu giramos juntos. Ele levantou as armas. Estendi o braço por cima delas, empurrando-as para baixo.
– Acalme-se – alertei. – Esta é apenas uma das coisas sobre as quais você não sabe.
O barulho havia parado.
– Está tudo bem – chamei baixinho.
Mickey Linehan e Andy MacElroy saíram de debaixo das árvores.
Tom-Tom Carey pôs o rosto tão perto do meu que teria me arranhado se não tivesse se barbeado naquele dia.
– Seu traidor...
– Comporte-se! Comporte-se! Um homem da sua idade – eu o reprovei. – Nenhum desses homens quer nada com o seu dinheiro sujo de sangue.
– Não gosto dessa coisa de bando – ele resmungou. – Nós...
– Nós vamos precisar de toda ajuda possível – interrompi, olhando para o relógio. Disse aos dois detetives: – Vamos nos aproximar da casa agora. Quatro de nós devemos conseguir resolver a questão. Vocês conhecem Papadopoulos, Big Flora e Angel Grace por descrições. Eles estão lá dentro. Não corram qualquer risco com eles... Flora e Papadopoulos são dinamite pura. Jack Counihan está tentando entrar neste momento. Vocês dois cuidam dos fundos da casa. Carey e eu ficaremos com a frente. Vamos começar a jogada. Cuidem para que ninguém fuja. Em frente, marchem!
O homem moreno e eu seguimos para a varanda da frente – uma varanda ampla, coberta por uma parreira num dos lados, iluminada pela luz amarela que vinha das quatro janelas francesas com cortinas.
Não havíamos ainda pisado na varanda quando uma dessas janelas altas se abriu.
A primeira coisa que vi foram as costas de Jack Counihan.
Ele estava abrindo a janela com uma mão e um pé, sem virar a cabeça.
À frente do garoto – olhando para ele do outro lado da sala muito iluminada – estavam um homem e uma mulher. O homem era velho, pequeno, mirrado, enrugado e lamentavelmente assustado – Papadopoulos. Notei que ele havia raspado o bigode branco desgrenhado. A mulher era alta, corpulenta, rosada e loira – uma atleta de quarenta e poucos anos com olhos cinzentos fundos num brutal rosto bonito – Big Flora Brace. Os dois estavam perfeitamente imóveis, lado a lado, observando o cano da arma de Jack Counihan.
Enquanto eu permanecia diante da janela olhando para aquela cena, Tom-Tom Carey, com as duas armas para cima, passou por mim, entrando pela janela e postando-se ao lado do garoto. Eu não o segui para dentro da sala.
Os olhos castanhos assustados de Papadopoulos desviaram para o rosto do homem moreno. Os cinzentos de Flora se moveram para ele deliberadamente, voltando-se então para mim.
– Parados, todos! – ordenei, afastando-me da janela em direção à lateral da varanda, onde a parreira era mais fina.
Inclinando-me por entre as folhas, de forma que meu rosto ficasse livre ao luar, olhei para baixo pela lateral da casa. Uma sombra nas sombras da garagem poderia ser um homem. Estendi um braço ao luar e acenei. A sombra veio na minha direção – Michael Linehan. A cabeça de Andy MacElroy espiou dos fundos. Acenei novamente, e ele seguiu Mickey.
Voltei até a janela aberta.
Papadopoulos e Flora – um coelho e uma leoa – estavam parados olhando para as armas de Carey e Jack. Olharam novamente para mim quando apareci, e um sorriso começou a se formar nos lábios carnudos da mulher.
Mickey e Andy apareceram e ficaram ao meu lado. O sorriso dela morreu numa expressão de raiva.
– Carey, – eu disse – você e Jack ficam como estão. Mickey, Andy, entrem e tomem conta dos nossos presentes de Deus.
Quando os dois detetives passaram pela janela, as coisas aconteceram.
Papadopoulos gritou.
Big Flora atirou-se contra ele, lançando-o em direção à porta dos fundos.
– Vá! Vá! – ela rugiu.
Tropeçando e cambaleando, ele atravessou a sala.
Flora tinha duas armas – que surgiram de repente em suas mãos. Seu corpanzil parecia encher o ambiente, como se por força de vontade ela tivesse se transformado numa gigante. Atacou – avançando diretamente para as armas que Jack e Carey seguravam –, bloqueando o caminho para a porta dos fundos e protegendo o homem em fuga dos disparos.
Um borrão num dos lados era Andy MacElroy se movimentando.
Segurei o braço da arma de Jack.
– Não atire – cochichei em seu ouvido.
As armas de Flora dispararam em conjunto. Mas ela estava caindo. Andy havia se atirado em suas pernas como um homem atiraria uma pedra.
Quando Flora caiu, Tom-Tom Carey parou de esperar.
Sua primeira bala passou tão perto dela que roçou em seus cabelos loiros encaracolados. Mas passou – e atingiu Papadopoulos no instante em que ele atravessava a porta. A bala pegou-o na parte inferior das costas e atirou-o no chão.
Carey atirou de novo – e de novo – e de novo – no corpo estendido.
– Não adianta – rosnei. – Você não vai conseguir matá-lo mais do que isso.
Ele riu e abaixou as armas.
– Quatro em 106. – Todo o seu mau-humor e sua agressividade haviam desaparecido. – São 26 mil e quinhentos dólares que cada uma dessas balas valem para mim.
Andy e Mickey haviam dominado Flora e a levantavam do chão.
Olhei deles para o homem moreno novamente, sussurrando:
– Não acabou tudo ainda.
– Não? – Ele pareceu surpreso. – O que vem agora?
– Fique acordado e deixe sua consciência guiá-lo – respondi, virando-me para o jovem Counihan. – Vamos lá, Jack.
Guiei o caminho pela janela e através da varanda, onde me encostei na balaustrada. Jack me seguiu e ficou parado diante de mim, a arma ainda na mão, o rosto pálido e cansado por causa da tensão. Olhando por cima do ombro dele, dava para ver a sala da qual acabáramos de sair. Andy e Mickey, com Flora entre eles, sentados no sofá. Carey estava de pé meio para o lado, olhando com curiosidade para Jack e eu. Estávamos no meio da faixa de luz que vinha da janela aberta. Podíamos ver o interior – exceto pelo fato de Jack estar de costas – e podíamos ser vistos de lá, mas a nossa conversa não poderia ser ouvida, a menos que falássemos alto.
Estava tudo como eu queria que estivesse.
– Agora conte-me tudo – ordenei a Jack.
– Bom, eu encontrei a janela aberta – o garoto começou.
– Eu sei toda essa parte – interrompi. – Você entrou e contou aos seus amigos – Papadopoulos e Flora – sobre a fuga da garota e disse que Carey e eu estávamos chegando. Você os aconselhou a fingir que os tinha capturado sozinho. Isso faria Carey e eu entrarmos. Com você livre de qualquer suspeita atrás, seria fácil para os três agarrarem a nós dois. Depois disso, você poderia correr até a estrada para dizer a Andy que eu tinha mandado você pegar a garota. Foi um bom plano – exceto que você não sabia que eu tinha Dick e Mickey na manga e não sabia que eu não deixaria você ficar atrás de mim. Mas isso tudo não é o que eu quero saber. Eu quero saber por que você nos traiu... e o que você pensa que vai fazer agora.
– Você está maluco? – Seu rosto jovem estava perplexo, seus olhos jovens, apavorados. – Ou isso é alguma espécie de...?
– Claro, estou louco – confessei. – Não fui louco o bastante para deixar você me levar para aquela armadilha em Sausalito? Mas não estava louco o bastante para não entender tudo depois. Não estava louco o bastante para não ver que Ann Newhall estava com medo de olhar para você. Não estou louco o bastante para acreditar que você poderia ter capturado Papadopoulos e Flora a menos que eles quisessem que você os pegasse. Sou louco... mas com moderação.
Jack riu – uma risada jovem e atrevida, mas aguda demais. Seus olhos não riram com a boca e a voz. Enquanto ria, seus olhos iam do meu rosto para a arma em sua mão e de volta para mim.
– Fale, Jack – pedi baixinho, pondo a mão em seu ombro. – Pelo amor de Deus, por que você fez isso?
O garoto fechou os olhos, engoliu em seco, e seus ombros estremeceram. Quando seus olhos se abriram, estavam duros, brilhantes e cheios de desafio.
– O pior de tudo – disse ele, em tom duro, afastando o ombro da minha mão – é que eu não fui um bandido muito bom, não é? Não consegui enganar você.
Eu não disse nada.
– Imagino que você mereça saber a história – ele continuou depois de uma pequena pausa. Sua voz estava conscientemente monótona, como se deliberadamente evitasse qualquer tom ou acento que pudesse expressar emoção. Era jovem demais para falar naturalmente. – Conheci Ann Newhall há três semanas, na minha própria casa. Ela havia sido colega de escola das minhas irmãs, embora eu não a conhecesse. Nós nos reconhecemos imediatamente, é claro – eu sabia que ela era Nancy Regan, e ela sabia que eu era detetive da Continental.
“Então nós saímos sozinhos e falamos sobre tudo. Ela me levou para ver Papadopoulos. Gostei do velho, e ele gostou de mim. Ele me mostrou como juntos poderíamos acumular montes de riquezas incalculáveis. Aí está. A perspectiva de todo aquele dinheiro devastou minha moral completamente. Falei a ele sobre Carey no instante em que fiquei sabendo dele por você e levei você até aquela armadilha, como você diz. Ele achou que seria melhor se você parasse de nos incomodar antes de encontrar a ligação entre Newhall e Papadopoulos.
“Depois daquele fracasso, ele queria que eu tentasse de novo, mas me recusei a participar de qualquer outro fiasco. Não há nada mais estúpido do que um assassinato que não dá certo. Ann Newhall é inocente de tudo, exceto de tolice. Não acho que ela suspeite que eu tenha tido qualquer coisa a ver com o trabalho sujo além de evitar que todo mundo fosse preso. Isso, meu caro Sherlock, conclui a confissão.”
Eu havia escutado a história do garoto com uma grande demonstração de atenção solidária. Agora eu fechara o rosto para ele e falava acusatoriamente, mas ainda em tom amigável.
– Chega de conversa fiada! O dinheiro que Papadopoulos mostrou a você não lhe comprou. Você conheceu a garota e ficou com o coração mole demais para entregá-la. Mas a sua vaidade, o orgulho de ver a si mesmo como um sujeito muito frio, não deixou que admitisse isso sequer para si mesmo. Você precisava de uma fachada impiedosa. Então, virou carne no moedor de Papadopoulos. Ele lhe deu um papel que você pudesse desempenhar: um vigarista superelegante, um cérebro criminoso, um vilão suave desesperado e todo esse tipo de lixo romântico. Foi assim que você se envolveu, filho. Você se envolveu o máximo possível além do que era necessário para salvar a garota da cadeia, só para mostrar para o mundo, mas principalmente para você mesmo, que você não estava agindo por sentimentalismo, mas conforme seus próprios desejos insaciáveis. Aí está. Olhe para si mesmo.
O que quer que ele tenha visto em si mesmo – o que eu havia visto ou outra coisa – fez seu rosto corar lentamente, e ele não olhou para mim. Olhou para além de mim, para a estrada mais adiante.
Olhei para a sala iluminada atrás dele. Tom-Tom Carey havia avançado para o centro do ambiente, de onde nos observava. Entortei o canto da boca para ele – um alerta.
– Bem – recomeçou o garoto, mas não soube o que dizer em seguida. Mexeu os pés e manteve os olhos afastados do meu rosto.
Endireitei-me e me livrei dos últimos resquícios da minha simpatia hipócrita.
– Me dê a arma, seu rato! – rosnei para ele.
Ele saltou para trás, como se eu o tivesse agredido. A loucura se contorcia em seu rosto. Ergueu a arma na altura do peito.
Tom-Tom Carey viu a arma subir. O homem moreno atirou duas vezes. Jack Counihan estava morto aos meus pés.
Mickey Linehan atirou uma vez. Carey estava caído no chão, sangrando da têmpora.
Passei por cima do corpo de Jack, entrei na sala, ajoelhei-me ao lado do homem moreno. Ele se contorceu, tentou dizer alguma coisa e morreu antes de pronunciar qualquer palavra. Esperei até minha expressão voltar ao normal para me levantar.
Big Flora estava me estudando com seus estreitos olhos cinzentos. Encarei-a de volta.
– Ainda não entendi tudo – disse ela, lentamente. – Mas se você...
– Onde está Angel Grace? – interrompi.
– Amarrada à mesa da cozinha – informou, continuando a pensar em voz alta. – Você fez uma jogada que...
– É – disse eu, amargo. – Sou outro Papadopoulos.
Seu corpanzil estremeceu de repente. A dor cobriu seu belo rosto brutal. Duas lágrimas escorreram de suas pálpebras inferiores.
Macacos me mordam se ela não amava o velho vigarista!
Já passavam das oito quando voltei à cidade. Tomei café-da-manhã e fui até a Agência, onde encontrei o Velho examinando sua correspondência matinal.
– Acabou tudo – disse a ele. – Papadopoulos sabia que Nancy Regan era herdeira de Taylor Newhall. Quando precisou de um esconderijo depois de os assaltos aos bancos fracassarem, fez com que ela o levasse até a casa de campo dos Newhall. Ele tinha duas coisas a seu favor: ela tinha pena dele por vê-lo como um pobre velho usado por gente mal-intencionada e tinha sido, mesmo que inocentemente, cúmplice dos assaltos.
“Em seguida, Papai Newhall precisou ir ao México a trabalho. Papadopoulos viu uma chance de fazer alguma coisa. Se Newhall fosse morto, a garota receberia milhões, e o velho ladrão sabia que poderia tirá-los dela. Ele mandou Barrows até a fronteira para comprar o assassinato com alguns bandidos mexicanos. Barrows providenciou o serviço, mas falou demais. Disse a uma garota em Nogales que precisava voltar a São Francisco para receber uma nota de um velho grego e que depois voltaria e compraria o mundo para ela. A garota passou as informações a Tom-Tom Carey. Carey somou várias vezes dois mais dois e chegou a pelo menos uma dúzia como resposta. Seguiu Barrows até aqui.
“Angel Grace estava com ele na manhã em que ele ligou para Barrows aqui, para descobrir se o seu “velho grego” era mesmo Papadopoulos e onde poderia encontrá-lo. Barrows estava muito cheio de morfina para prestar atenção à razão. Estava tão amortecido pela droga que, mesmo depois que o homem moreno começou a argumentar com um canivete, foi preciso fazer picadinho de Barrows até ele sentir dor. A tortura deixou Angel Grace doente. Depois de tentar fazer Carey parar em vão, ela foi embora. Quando leu nos jornais da tarde como tinha acabado aquele serviço, tentou se suicidar para tirar as imagens da cabeça.
“Carey conseguiu todas as informações que Barrows tinha, mas Barrows não sabia onde Papadopoulos estava se escondendo. Papadopoulos descobriu que Carey havia chegado, você sabe como. Ele mandou Arlie para parar Carey, que não deu uma chance ao barbeiro, até começar a suspeitar que Papadopoulos poderia estar na casa de Newhall. Ele foi até lá, deixando que Arlie o seguisse. Assim que Arlie descobriu qual era seu destino, aproximou-se, disposto a liquidar Carey a qualquer preço. Era o que Carey queria. Matou Arlie, voltou à cidade, me chamou e me levou para ajudá-lo a finalizar as coisas.
“Enquanto isso, Angel Grace, na prisão, fez amizade com Big Flora. Ela conhecia Flora, mas Flora não a conhecia. Papadopoulos havia arranjado uma fuga para Flora. É sempre mais fácil fugir em dupla do que sozinho. Flora carregou Angel com ela, levou-a até Papadopoulos. Angel tentou atacá-lo, mas Flora a impediu.
“Flora, Angel Grace e Ann Newhall, também conhecida como Nancy Regan, estão na prisão municipal – finalizei. – Papadopoulos, Tom-Tom Carey e Jack Counihan estão mortos.”
Parei de falar e acendi um cigarro com calma, observando o cigarro e o fósforo cuidadosamente durante a operação. O Velho pegou uma carta, baixou-a sem ler e pegou outra.
– Eles foram mortos durante as prisões? – Sua voz suave não demonstrava nada além da impenetrável educação de sempre.
– Sim. Carey matou Papadopoulos. Pouco depois, matou Jack. Mickey... sem saber... sem saber coisa alguma exceto que o homem moreno estava atirando em Jack e eu... nós estávamos afastados conversando... atirou em Carey e o matou. – As palavras se enrolavam na minha língua, não saíam direito. – Nem Mickey nem Andy sabem que Jack... Ninguém exceto você e eu sabe exatamente o que... exatamente o que Jack estava fazendo. Flora Brace e Ann Newhall sabiam, mas se dissermos que ele estava cumprindo ordens o tempo todo, ninguém poderá negar.
O velho assentiu o rosto de avô e sorriu, mas, pela primeira vez em todos os anos que eu o conhecia, eu soube o que ele estava pensando. Estava pensando que, se Jack saísse vivo, ele seria obrigado a fazer a terrível escolha entre deixá-lo sair livre ou prejudicar a agência com a divulgação do fato de que um de nossos detetives era um vigarista.
Apaguei meu cigarro e me levantei. O Velho também se levantou e estendeu a mão para mim.
– Obrigado – ele disse.
Apertei sua mão e o compreendi, mas eu não tinha nada que quisesse confessar – nem mesmo através do silêncio.
– Aconteceu assim – eu disse, deliberadamente. – Fiz a jogada de modo que ficássemos com todos os benefícios... mas simplesmente aconteceu assim.
Ele assentiu, dando um sorriso simpático.
– Vou tirar umas duas semanas de folga – eu disse, da porta. Estava me sentindo cansado, exausto.
Dashiell Hammett
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