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Series & Trilogias Literarias
É NOITE EM OSLO, e chove sobre a cidade silenciosa e adormecida. Será que ela está mesmo adormecida? Um pingo de chuva atinge o enorme relógio na torre da Prefeitura Municipal e se agarra por um instante à extremidade do ponteiro de minutos, antes de se soltar e cair vinte andares, com um plinc suave sobre o asfalto, e começar a se juntar com os outros pingos que correm nas marcas de pneus. Se seguíssemos esse pingo pelo caminho que ele vai percorrer até um bueiro, nesta noite, em Oslo, ouviríamos um leve som cortando o silêncio. Esse leve som ficaria um pouco mais alto quando o pingo caísse pelo buraco da tampa do bueiro, mergulhando no sistema de esgoto, onde a escuridão é ainda mais densa. E com o pingo de chuva começaríamos a navegar sobre as águas sujas e fétidas do esgoto, através de canos – alguns pequenos e estreitos, outros tão grandes que dá para ficar de pé dentro deles – que percorrem esse ou aquele caminho, bem abaixo do nível do chão, nesta cidade um tanto insignificante, grande, pequena cidade, que é a capital da Noruega. E à medida que esse sistema interno de tubulação nos carregasse mais e mais fundo nas entranhas de Oslo, o som ficaria cada vez mais alto.
Não é um som agradável. Na verdade, parece o som de um consultório de dentista. Como o som da broca forçando caminho pelo esmalte do dente, pelas gengivas, pelas sensíveis terminações nervosas. Às vezes, o ruído é baixo, outras vezes soa como um guincho agudo, dependendo do que a ponta da broca, rodopiante e sólida como um diamante, escava para penetrar.
Mas, seja lá o que for, pelo menos não é o som de uma anaconda sibilando, com sua língua de quase um metro e o estalar de quase meia tonelada de músculos contraídos se retesando; nem o baque ensurdecedor das mandíbulas, do tamanho de uma boia de nadar inflável, fechando-se ruidosamente sobre sua vítima. Só menciono isso por causa do boato de que uma cobra como essa vive aqui embaixo. E porque um par de olhos reptilianos, amarelos e brilhantes, estão visíveis no esgoto ali no escuro, à esquerda. Então, se você já está arrependido de ter vindo, esta é a sua chance de dar o fora. Feche o livro sem fazer barulho e saia do quarto na ponta dos pés, ou se enfie debaixo das cobertas. Esqueça que algum dia ouviu falar do sistema de esgotos de Oslo, daquele som de broca de dentista, ou daquela cobra que devora ratos-d’água, crianças de tamanho médio e, de vez em quando, pequenos adultos, se não forem peludos demais nem tiverem barba.
Então tchau, e viva bem. E feche a porta quando sair.
Pronto. Agora somos só nós.
Vamos continuar por este rio imundo rumo ao sombrio coração da cidade. A esta altura, o barulho já cresceu tanto que se transformou num rugido. Vemos uma luz, mas percebemos que não é nem o paraíso, nem o inferno do dentista, mas algo totalmente diferente.
Na nossa frente há uma máquina que faz um ruído forte e tem uma roda. Um braço de aço sai de dentro dela e desaparece num enorme buraco que foi perfurado no alto do cano de esgoto.
– Já estamos quase lá, rapazes! – diz o maior dos três homens parados em volta da máquina, e que estão iluminando o buraco com suas lanternas. Estão vestidos com botas pretas de couro iguais, calças jeans com as barras levantadas, suspensórios e camisetas brancas. O maior também usa um chapéu-coco. Ele acaba de tirar o chapéu para enxugar o suor, e podemos ver que os três têm a cabeça raspada e uma letra tatuada na testa, acima das espessas sobrancelhas, que de tão juntas parecem uma só.
Ouve-se um leve estalo, e de repente a furadeira começa a gritar como um pirralho mimado.
– Estamos dentro – rosna o homem tatuado com um B, apertando um botão de comando. O ruído da furadeira vai morrendo aos poucos. A ponta dele fica visível, e é uma visão e tanto: ela brilha à luz das lanternas, como se fosse o maior diamante do mundo. Bem, isso provavelmente porque é o maior diamante do mundo, que acabou de ser roubado de uma mina de diamantes na África do Sul.
O sujeito que tem um C tatuado na testa encosta uma escada inclinada que leva até o buraco, no alto, e sobe os degraus com pressa. Os outros dois o observam, ansiosos.
Durante cinco segundos, não acontece absolutamente nada.
– Charlie? – chama o sujeito de chapéu-coco.
Nada acontece por mais três segundos.
Então Charlie aparece de novo. Esforça-se para carregar algo que parece um tijolo, só que é dourado e, obviamente, muito mais pesado. Na lateral aparecem gravadas as palavras: BANCO DA NORUEGA e, um pouco abaixo, em letras menores: BARRA DE OURO NÚMERO 101.
– Ajude-me, Bobbie – pede Charlie, e o homem tatuado com um B corre e pega a barra de ouro.
– E o resto? – pergunta o sujeito de chapéu-coco, soprando o pó que cobre a barra. Ele tem um A tatuado na testa, mas está um pouco difícil de ver a letra nesse momento, porque uma ruga enorme a deixa toda dobrada.
– Isso é tudo, Alfie.
– O quê?
Os três homens conversam em inglês, e tenho certeza de que quem sabe um pouco de geografia está se perguntando por que falam nesse idioma. Afinal, estamos nos esgotos de Oslo, a capital da Noruega, e não é norueguês que as pessoas falam no país? Infelizmente para aqueles que não entendem norueguês, essa é a língua falada pela maioria dos personagens neste livro. Vamos apenas fingir que tomamos uma das pílulas multilíngues do doutor Proktor. Mas, neste caso específico, isso nem sequer será necessário. Por algum motivo, todos já estão falando na nossa língua.
– Esta era a única barra que havia lá dentro, Alfie. O resto do cofre-forte do banco está completamente vazio – diz Charlie.
– Quer dizer que é só isso? Toda a reserva de ouro do maldito banco central da Noruega? – vocifera Bobbie, o sujeito de tamanho médio. Ele deixa cair a barra de ouro, provocando um baque seco, dentro do compartimento de bagagem da máquina.
– Acalme-se, Bobbie – pede Alfie. – Esta aqui parece boa. Ouro puro, maciço, a barra inteira. É melhor irmos pra casa, rapazes.
– Shh! Vocês ouviram isso? – Charlie pergunta.
– Isso o quê?
– Esse sibilo.
– Não se ouvem sibilos nos esgotos, Charlie! Guinchos de ratos e coaxar de sapos, talvez, mas você precisa entrar numa floresta para ouvir sibilos – resmunga Alfie.
– Olhe! – Charlie diz com afobação.
– Olhar o quê? – Alfie pergunta.
– Vocês não viram? Uns olhos amarelos! Eles piscaram e sumiram.
– Caudas de rato vermelhas e patas de sapo verdes, talvez, mas olhos amarelos, você precisa entrar numa flores... – diz Alfie. Ele é interrompido por uma pancada ensurdecedora e fala: – Hum... Talvez estejamos na floresta, rapazes, porque isto aí soou, incontestavelmente, como mandíbulas de cobra se fechando, se é que querem saber. E eu acho melhor que queiram saber, e já!
– Tudo bem, Alfie – Charlie suspira. – Eram mandíbulas de cobra?
– Eram. E a mamãe queria que levássemos algo bacana de Oslo. Que tal uma jiboia?
– Oooooba! – Bobbie solta um grito, puxando um pesado fuzil F16 de metal do compartimento de bagagem. Ok, tudo bem, não é bem um F16, é uma M16. Ele carrega a arma e começa a disparar. A rajada da metralhadora ilumina o esgoto, enquanto as balas assobiam e ricocheteiam no cano.
Os outros dois apontam as lanternas para o ponto onde Charlie viu os olhos amarelos. Mas não veem nada, só um rato tremendo sobre as patas traseiras, pressionando as costas contra a parede.
– Ratos! – sussurra Bobbie.
– Já pegamos o que viemos pegar. Embrulhe, e vamos embora – diz Alfie, pondo o chapéu.
E enquanto seguimos a gota de água mais adiante, no cano de esgoto, rumo à estação de tratamento e ao fiorde Oslo, ouvimos Alfie, Bobbie e Charlie embrulhando seu equipamento para guardá-lo na máquina e dando a partida.
Mas a última coisa que ouvimos é...?
Adivinharam.
Uma cobra sssssssibilando.
Capítulo 2.
A Guarda Secreta assume
o caso
PRECISAMENTE ÀS OITO HORAS DA MANHÃ, o presidente do Banco Central da Noruega, o Banco da Noruega, fez o que costumava fazer toda manhã ao chegar ao trabalho. Primeiro, desceu até o porão mais profundo do país. Passou pela Casa da Moeda real, onde se estampam retratos de reis nas moedas. Desceu até as prensas onde são impressos retratos de noruegueses famosos, a maioria usando bigode, nas cédulas de dinheiro e foi até o fundo mais profundo onde as pessoas guardam seus cofres. Dali, o presidente do banco e o vice-presidente destrancaram e entraram por todas as três portas de aço, até que finalmente pararam diante do cofre-forte contendo todas as reservas de ouro da nação norueguesa.
O presidente do banco proferiu sua ordem habitual:
– Destranque!
– Hã, a chave está com você, Tor – o vice-presidente do banco disse, como de costume, e bocejou.
– Ah, é. É isso mesmo – o presidente do banco falou, como de costume, e destrancou a porta.
Os dois entraram no cofre-forte.
Exatamente quatro minutos e treze segundos depois das oito, ouviu-se um lamento inconsolável chegando do porão mais profundo da Noruega. E eram exatamente quatro minutos e quinze segundos depois das oito quando o presidente do banco cochichou para o vice-presidente:
– Nenhuma palavra a ninguém, entendeu? Não podemos entrar em pânico.
– Mas... mas a reserva de ouro está programada para ser inspecionada na próxima segunda-feira! – foi a resposta desesperada do vice-presidente. – O que vai ser de nós? O que vai ser da Noruega?
– Deixe comigo, só isso – disse Tor, o presidente.
– O que você vai fazer?
O presidente do banco pensou um momento e respondeu:
– Entrar em pânico.
E ambos soltaram um grito estridente.
Eram nove horas da manhã, e o rei estava deitado na cama, como de hábito, assistindo ao noticiário esportivo na televisão. Na tela, o repórter ajeitou os óculos e informou que havia boatos de que o fabulosamente rico Maximus Rublov, dono do time de futebol Chelchester City, na Inglaterra, tentaria comprar Ibranaldovez, o mais caro, melhor e mais mimado jogador de futebol do mundo, um pouco antes das finais do Campeonato Inglês. Mas é claro que ele não tinha como comprar Ibranaldovez. Sim, seguramente Rublov era o homem mais rico do mundo, mais rico do que Billion Gates, Michael Bloombucks e Wampum Buffett juntos. E Rublov era, sim, dono da Finlândia, da Nova Zelândia, de dezoito fábricas que soltavam fumaça espessa e usavam criancinhas magras como operários, de vinte e quatro políticos, do Estádio do Chelchester, de quatro licenças de táxis e de uma bicicleta roubada com vinte e quatro marchas.
Mas tudo isso não adiantava, porque todo mundo sabia que ninguém tinha dinheiro suficiente para comprar Ibranaldovez. Os últimos que haviam tentado chegaram a oferecer um bilhão e novecentos milhões de libras esterlinas, uma colher de prata, o Tajiquistão, três porta-aviões, um arranha-céu recém-lavado e dois aviões de hélice pouco usados. Ao receberem um não, aumentaram a oferta: incluíram a República Dominicana, uma área imobiliária de primeira no centro de Oslo, três gordos talões de cheques de viagem e a Terra da Rainha Maud, sem nem perguntar a ela primeiro. E ainda assim ouviram um sonoro “Não!”.
– Alteza, o presidente do Banco Central está aqui e... – disse o criado à porta.
– Mande entrar – ordenou o rei da Noruega, sem tirar os olhos da tela.
– Não é terrível? – falou, arfando, o presidente do banco, ao entrar às pressas no quarto.
– É – concordou o rei. – Dá para acreditar? Esse dinheiro todo.
– Então o senhor já soube? – o presidente do banco perguntou, espantado, fitando o rei – com perplexidade.
– É claro que sim. Estão noticiando na televisão neste instante – respondeu o rei. – Rublov não precisa nem comprar o Ibranaldovez para derrotar o Rotten Ham. Afinal, trata-se apenas de um time em liquidação na lanterna da quarta divisão.
– Não! Estou falando do assalto! – exclamou Tor, o presidente do banco.
– Que assalto? – perguntou o rei.
– Alguém se mandou com toda a nossa reserva de ouro na noite passada!
– Do que você está falando, Tor? Alguém roubou todo o nosso ouro? Mas, espere aí, nós só tínhamos uma barra, certo? Não temos seguro contra roubo?
– Bem, sim, mas...
– A franquia não é muito alta, certo? – o rei perguntou.
– Não, mas...
– Então acho que você deveria informar isso à polícia, em vez de me incomodar no meio do noticiário esportivo – o rei o repreendeu.
– Não, não, não podemos fazer isso. Vai causar pânico – o presidente do banco observou.
– Que tipo de pânico?
– Pânico financeiro – respondeu.
– Hum... – o rei murmurou, pensativo, pousando o dedo indicador na ponta do queixo. – Creio que eu devia estar doente, de cama, com resfriado, no dia da aula de economia na escola real.
– Entendo. Então, é o seguinte: as pessoas precisam acreditar que podem trocar as notas de papel pelo ouro de verdade que temos no cofre-forte do Banco da Noruega. Se descobrirem que não temos ouro nenhum aqui, todo mundo entrará em pânico. Haverá uma corrida ao banco, todos tentando trocar as notas por ouro, e, xuááá!!!, de repente a moeda da Noruega não vai valer mais nada, e estaremos arruinados e pobres – disse o presidente.
– Isso não seria tããão ruim, seria? De quanta pobreza estamos falando? – o rei perguntou.
– O que está querendo dizer, alteza?
– Bem, ser pobre como a Suécia não seria tão ruim. Não estamos falando em ser tão pobres quanto a Áustria Oriental, estamos? – indagou.
– Áustria Oriental? – O presidente do banco estranhou.
– Lógico. É claro que as coisas estão ótimas na Áustria Ocidental, mas ouvi dizer que nas piores partes da Áustria Oriental muitas famílias não podem nem se dar ao luxo de ter um segundo carro, nem uma casa de férias nas montanhas. E muita gente precisa trabalhar pelo menos oito horas diárias para poder tirar alguns dias de férias na Tailândia.
– Receio que estamos falando em ficar bem mais pobres do que isso, alteza – explicou o presidente do banco.
– O quê? Dê-me uma ideia exata do grau de pobreza.
Frustrado, o presidente do banco pensou em várias maneiras de explicar a delicada situação econômica ao rei, mas todas elas exigiam... bem, algum conhecimento de economia, portanto não adiantavam nada. Ele deu uma olhada rápida no noticiário esportivo e teve um raio de inspiração. Havia um time de futebol, o time da região centro-norte de Londres, uma área com uma das maiores taxas de desemprego e miséria da Inglaterra. Com certeza isso serviria para dar ao rei uma ideia geral da seriedade da situação. O presidente do banco pigarreou, limpando a garganta, e disse:
– Hum... pobres como Rotten Ham?
– Por Deus, homem! – O rei jogou o cobertor de lado, saltou da cama e meteu os pés nas suas pantufas de seda. – Ação imediata! Chame o Exército! Aumente as taxas de juros! Imponha toque de recolher! O que mais podemos fazer?
– Poderíamos... hã, achar a barra de ouro. Precisamos fazer isso até a próxima segunda-feira. É nesse dia que o Banco Mundial virá fazer a sua inspeção anual. Se a barra de ouro não estiver no cofre nesse dia, a notícia se espalhará e estaremos perdidos.
O rei marchou até a porta, abriu-a e berrou:
– Chamem o serviço secreto!
– Nós temos um serviço secreto? – indagou com cautela o presidente do banco, atrás do rei.
– Infelizmente, não posso responder a essa pergunta, Tor. – Ao dizer isso, o rei deu alguns passos até a janela e espiou para fora, vendo toda Oslo. Concluiu que as pessoas estavam andando como sempre nas ruas, e parecia que ninguém sabia de nada. – Se tivermos um serviço secreto, vou mandar chamá-lo e você vai explicar a situação. Entendido? Bom Deus, pobres como o time de futebol de Rotten Ham e o país inteiro da Áustria Oriental...
Faltavam seis minutos para as onze, nessa manhã. Dois homens estavam rigidamente parados, em posição de sentido, no gabinete do rei. Ambos vestiam longos casacos cinzentos, de aparência sinistra, as golas viradas para cima, e óculos escuros, o que fazia que parecessem extremamente secretos. Tão secretos que, se você os visse na rua, é provável que pensasse: “Hum, esses dois parecem o tipo de cara a quem a gente pode seguramente perguntar algo secreto.” Talvez porque fosse possível ver um pedacinho das listras brancas nas laterais das calças, sob os casacos, mas principalmente porque os dois usavam chapéus pretos com borlas grandes e bamboleantes com pena de avestruz da Guarda Real Norueguesa. O que só podia significar uma coisa: deviam pertencer ao serviço secreto da Guarda Real.
– Não precisam ficar em posição de sentido. O rei não vai estar aqui antes de terminar seu café da manhã – disse Tor, o presidente do banco.
Os dois guardas imediatamente relaxaram e começaram a alisar seus bigodes.
– Presumo que vocês sejam do serviço secreto da Guarda Real – falou.
– E o que exatamente leva você a concluir isso? – perguntou o que tinha bigode em forma de guidão de bicicleta, franzindo o cenho com desconfiança.
– Por causa do chapéu com essas coisas moles que parecem crina de cavalo... hã, desculpe, borlas.
– Acho que é melhor manter um olhar especialmente atento neste espertinho. Não acha, Helge? – observou o senhor Guidão.
– Acho que você está certo, Hallgeir – concordou o outro, alisando seu bigode de Fu Manchu. – Além disso, o nome não é mais serviço secreto da Guarda Real. Algum engraçadinho mudou a placa para Gorda Secreta. Aí os vigilantes do peso vieram e desenharam uma enorme mulher gorda na placa... Desculpe, onde eu estava? Bem, em todo o caso, tivemos uma reunião secreta e decidimos manter essas mudanças. Elas só ajudam a garantir o sigilo, certo? Então, falando claramente: se existisse um serviço secreto, seria chamado de Gorda Secreta.
– Exatamente – confirmou o senhor Guidão. – Mas isso é segredo, então não conte para ninguém. E lembre-se de que não dissemos uma única palavra sobre o fato de estarmos na Gorda Secreta. Dissemos, Helge?
– Nem uma única palavra que eu tenha ouvido, Hallgeir – respondeu Fu Manchu. – Porque essa é a primeira regra da Gorda Secreta. Não dizemos uma palavra sobre trabalhar ali. Oooopa, deixe-me fazer uma correção: eles não dizem uma única palavra sobre eles trabalharem ali. Mas isso também é segredo. Entendeu?
– Entendi, Helge.
– Eu não estava falando com você, Hallgeir. Estava falando com o civil.
– Entendi – confirmou o presidente do banco. – Então, vocês dois ouviram o que aconteceu?
– É segredo. Tanto o que aconteceu, como o fato de sabermos o que aconteceu – Helge respondeu.
Nesse exato instante, a porta se abriu e o rei entrou. Helge e Hallgeir se puseram imediatamente em posição de sentido.
– Bom dia, senhores guardas, hã..., senhores gordas – cumprimentou o rei.
– Bom dia, vossa alteza real. Esperamos que o café da manhã tenha sido bom.
– Simplesmente ovos pochê com patê de peito de faisão sobre pão integral que acabou de sair de forno, ligeiramente tostado. Mas estou cheio, escovei os dentes, e estou pronto para ver quem pode nos ajudar a achar o ouro.
O senhor Guidão apagou as luzes da sala, e o senhor Fu Manchu ligou um projetor de slides. Surgiu na parede a figura de um homem alto com uma longa cicatriz na face.
– Primeiro de tudo, esse aí é o sujeito. Seu nome é Harry, e provavelmente seria nossa primeira opção como investigador. Infelizmente, neste momento, ele está no exterior – afirmou o senhor Fu Manchu.
– Dizem que está em Hong Kong, fumando coisas ruins. Um péssimo hábito, alteza – observou o senhor Guidão.
– Sim, com toda certeza. Aí temos essa mulher – continuou o senhor Fu Manchu. O retrato na parede mostrava uma mulher-palito de cabelo preto. Tinha um patim num dos pés. – O nome dela é Raspa, e aparentemente ela consegue viajar através do tempo. Pensamos que talvez ela pudesse voltar para o dia anterior ao roubo e transportar a barra de ouro para um lugar mais seguro.
– Infelizmente, ninguém a vê há séculos. Algumas pessoas dizem que ela desapareceu na época da Revolução Francesa – completou o senhor Guidão.
– E então temos esse sujeito aí – prosseguiu o senhor Fu Manchu, mostrando o slide seguinte. O retrato na parede era quase um borrão. Mostrava um prédio alto com alguma coisa verde na frente. – Esta foto foi tirada por um amador, mas é a única foto conhecida de um homem que supostamente tem superpoderes. Ele consegue se transformar num sapo humano, capaz de saltar dez metros e esticar a língua pelo menos a essa mesma distância. Pensamos que ele poderia apanhar a barra de ouro de volta com a língua. Infelizmente, não sabemos onde ele está.
– Mas é claro que iremos atrás de quem quer que vossa alteza mande que encontremos – concluiu o senhor Guidão.
Silêncio.
– Hein, vossa alteza? – perguntou o senhor Fu Manchu.
Ouviu-se um leve ronco. O senhor Guidão acendeu as luzes.
O rei acordou num sobressalto, atabalhoado:
– Quem sou eu? Onde estou? Não na Áustria, certo? Por favor, não na Áustria Orien...
– Qual deles vossa alteza gostaria que salvasse a Noruega?
– Salvar a Noruega, sim! – o rei exclamou, levantando o dedo indicador. – Só existe uma pessoa neste país que pode salvar a Noruega.
– Só uma, alteza?
O rei ergueu mais dois dedos.
– Ou três. Na verdade, são três. E vocês precisam trazê-las aqui hoje.
– E o que há de tão especial nessas três pessoas que faz vossa alteza pensar que podem salvar a Noruega?
– Porque essas três salvaram o mundo da grande invasão lunar.
– Hã, desculpe... que invasão?
– Você não lembra porque estava hipnotizado, como todo o resto da Noruega. É uma longa história, mas aconteceu, pode acreditar em mim. Eu estava com elas, e elas salvaram o mundo – explicou o rei.
– Quem são essas pessoas? Superagentes secretos? Super-heróis com treinamento de primeira? O time de curling masculino da Noruega?
O rei levantou da cadeira, deu alguns passos até a janela, balançou para a frente e para trás sobre os calcanhares, enquanto observava a capital pela segunda vez. As pessoas ainda estavam agindo de forma perfeitamente normal. Mas não duraria muito, não se ficassem sabendo do roubo do ouro, o que com certeza aconteceria na semana seguinte, quando o Banco Mundial viesse para a inspeção. Áustria Oriental, eeeeca!
– O doutor Victor Proktor, junto com Lise e Bumbão – disse.
Capítulo 3.
O grande recrutamento
ERAM EXATAMENTE DEZESSEIS MINUTOS depois das três da tarde quando Hallgeir (o gorda secreto com bigode de guidão de bicicleta) e Helge (o gorda igualmente secreto com bigode de Fu Manchu) tocaram a campainha da casinha vermelha na avenida Cannon, em Oslo. Os pássaros cantavam e tudo parecia em paz. Bem, tudo estava em paz.
Um homem com uma pança enorme abriu a porta e berrou numa voz amigável, com competência:
– Bem, quem diria? A Gorda Secreta veio nos visitar! O que posso fazer por vocês, rapazes?
– Como você sabia que nós... – começou a falar o senhor Guidão, desconcertado, mastigando a ponta do bigode de tanta irritação.
– Esqueça, Helge. Comandante, sua filha está em casa?
– Lise? Ela es...
Nesse exato instante ouviu-se um grito lancinante em algum lugar dentro da casa.
– É ela! Alguém nos ajude! Temos de salvá-la! – o senhor Guidão gritou, empurrando o comandante para o lado.
Os dois gordas secretos adentraram a casa como um furacão e subiram as escadas em direção ao lugar de onde vinha o terrível e doloroso som. Escancararam a porta, revelando um quarto de menina, e ali ficaram parados observando, em estado de choque. Então, ergueram as mãos no ar para tapar os ouvidos.
Uma menina estava sentada numa cadeira no meio do quarto. Ela não parecia uma superagente. Era uma menina muito comum, de tranças castanhas, algumas sardas e olhos azuis amigáveis que olhavam estarrecidos para cima, para os dois gordas secretos. Havia um suporte de partitura de música diante dela, e algo tubular e preto pendurado na sua boca, produzindo sons horrendos.
– O que... o que está acontecendo? – Hallgeir gritou.
A menina tirou a coisa tubular da boca.
– Como, o que está acontecendo? – Lise retrucou. – Estou praticando clarineta. A Banda Marcial da Escola Dølgen vai tocar “Deus salve a rainha”, amanhã, na reunião da Associação de Pais e Mestres. O que é que vocês querem?
– Hã... Se você é a Lise, então a Noruega precisa da sua ajuda – respondeu Hallgeir.
– Precisa, é? – disse ela, surpresa.
– Sim, hum... Alguém está achando isso, sim senhora – murmurou Helge, olhando com ceticismo ao redor. O quarto de menina tinha aspecto absolutamente normal, com pôsteres de astros pop nas paredes, um globo e um par de bichos de pelúcia que pareciam ainda menos super-heroicos do que a menina.
Eram exatamente vinte e um minutos depois das três quando Hallgeir e Helge circularam pela grama alta da retorcida casa azul que ficava isolada bem no final da avenida Cannon. Eles seguiram as batidas monótonas que vinham dos fundos da casa e, quando dobraram a esquina, depararam com uma visão estranha. Um homem magro, com cabelos bastos, vestindo um jaleco de laboratório e algo que parecia óculos de natação, estava parado debaixo de uma pereira no meio do pátio. Ele se equilibrava sobre uma das pernas e estava concentrado em levantar a outra perna, envolta em algo que parecia uma velha botina de couro costurada a mão, sobre um cepo onde havia um pedaço de lenha e, então, baixava o pé. Ouvia-se uma batida quando o salto da bota atingia o pedaço de madeira, que se partia em dois. Cada pedaço de lenha partido caía de um dos dois lados do cepo. O homem alto, esquelético, chutava primeiro um pedaço, depois o outro. Ambos viajavam pelo ar, atravessando o pátio, até chegarem à parede da casa, onde aterrissavam perfeitamente em cima de uma pilha de lenha cortada.
– Doutor Proktor, presumo?
O homenzinho esquelético endireitou as costas e disse com satisfação para Helge e Hallgeir:
– Vocês viram isso? Bang, bam, cortadas e direto para a pilha de lenha! Estou trabalhando num modelo que vai derrubar árvores inteiras. Pensem no que isso vai fazer pela indústria da madeira. Esperem, é por isso que vocês estão aqui? – O homenzinho estranho se animou ainda mais. – Sim! Vocês devem ter lido a carta que mandei para o ministro de Assuntos de Madeira e Serraria! Estão aqui para comprar o meu invento! É o fim das minhas dívidas!
– Hum... não exatamente, senhor. Estamos aqui para... – disse Hallgeir, ajeitando a borla do chapéu.
– Espere, deixe-me adivinhar! Vocês são do escritório de patentes e vieram ver a minha luva de pontaria, para a qual acabei de fazer um pedido de patente? – disse o doutor Proktor.
– Não, estamos...
– Então, devem ser do time nacional de arremesso de dardos. Mas vocês sabem que seria desonesto usar a luva.
– Professor, estamos aqui para lhe pedir que salve a Noruega que nós conhecemos – interrompeu-o Helge.
Eram exatamente quinze para as quatro quando os representantes da Gorda Secreta encontravam-se parados diante da casinha amarela na avenida Cannon, tocando a campainha. Uma adolescente abriu a porta.
– Bumbão está aí? – Helge perguntou.
– Quem é Bumbão? – foi a resposta da garota.
Helge limpou a garganta e balançou nos calcanhares.
– O Bumbão que estão dizendo que supostamente salvou o mundo de ser invadido por criaturas da Lua, querida.
– Não sou sua querida, esquisitão. E o meu irmão, aquele tampinha, saiu! – a menina continuou, encarando-os com aberta hostilidade. – Vocês são do programa O Maior Mentiroso da Noruega?
– Maior o quê? O que está insinuando? – indagou Hallgeir, olhando por cima dos seus óculos escuros.
– Vocês voltaram para fazer outra entrevista de gozação conosco? – a menina falou.
– Uma entrevista de gozação sobre o quê? – foi a vez de Helge perguntar.
– Sobre Bumbão salvar o mundo, é claro. Vocês sabem o que aconteceu depois que nos enganaram e fizeram a entrevista da outra vez? Minha mãe chorou por três dias, e eu não pude nem aparecer na escola, porque virei alvo de chacota. Falavam: “Olha aí a menina que tem um irmão supermentiroso” e outras coisas assim. – A menina estava tão zangada que as espinhas na sua cara vermelha brilhavam. – Então resolvemos simplesmente fingir que esquecemos tudo sobre o Bumbão, entendem?
– Hã, entendo. Mas para nós é muito importante encontrar o Bumbão. Aonde ele foi? – Hallgeir perguntou.
– Não conhecemos nenhum Bumbão, estou dizendo! Além disso, prometi ao Bumbão, juro por Deus, que não diria a ninguém onde ele está, aquele pateta.
– Jurou por Deus?
– Aquele gnomo ridículo me pagou cinquenta coroas para eu jurar por Deus – contou, fazendo uma careta horrível com os cantos da boca virados para baixo.
Os gordas secretos olharam um para o outro.
– E se nós lhe déssemos cem coroas? – tentou Helge.
– O que vocês acham que eu sou? Ele é meu irmão!
– Tudo bem, então – Hallgeir finalizou, e os dois viraram para ir embora.
– Esperem! – a garota gritou.
Eles viraram de novo.
– Sim?
– Duzentas – ela disse, revirando os olhos e estendendo a mão.
O casal idoso fitou o minúsculo e ansioso garoto ruivo, tão pequeno que mal podia ser visto atrás do balcão da loja em que tinham acabado de entrar.
– Não, não queremos comprar uma asa-delta, só estamos um pouco perdidos. Eu já disse – o homem idoso explicou. – Então, você pode simplesmente fazer o favor de nos dizer que direção devemos tomar para sair deste fim de mundo esquecido por Deus, Trøndelag do Sul, para chegarmos a algum lugar onde exista gente?
– Além de vocês terem um desconto de trinta por cento e um conjunto extra de estacas para poderem usar a asa-delta como barraca, se forem forçados a aterrissar nas montanhas, vão ganhar um saco de carvão! – Bumbão disse, saltando para cima e para baixo do balcão.
– Agora me escute! Minha esposa tem medo de altura, então nós nunca vamos... – o homem continuou.
– E não é só isso! Vocês também ganham um mapa de Trøndelag do Sul, da Suécia Ocidental e metade da Noruega Oriental! – Bumbão gritou.
– Não, não, não! Em que direção fica a rodovia, garoto? – o homem perguntou, berrando.
– Se comprarem uma, só uminha asa-delta, levam um mapa que lhes mostrará como sair daqui, e vocês acharão sozinhos o caminho de volta para Gotemburgo ou Blåfjella-Skjækerfjella nordeste. E, como hoje o dia está lindo, acabei de resolver acrescentar um pacote... não, um não, dois pacotes de mistura de chocolate quente! E então, o que acham?
– Não! – o homem rugiu, batendo o punho no balcão com tanta força que sua ansiosa e acrofóbica esposa estremeceu, fazendo seu chapéu escorregar para o lado, onde ficou pendurado num ângulo gozado.
Bumbão falou:
– Posso ver que o senhor precisa de um pouco de tempo para considerar a minha oferta, meu bom homem. Bem, bem, então seria um prazer para mim explicar-lhe como sair daqui. Não deve ser tão difícil. Como pode ver, todo mundo já descobriu como fazer isso. Não há mais ninguém aqui!
E continuou:
– Só me pergunto se eu teria coragem de lhe perguntar se não se incomodariam de botar este cartão-postal no correio para mim logo que chegarem à civilização. É para os meus amigos Lise e doutor Proktor.
A mulher acenou que sim, empurrou o chapéu de volta no lugar e pegou o cartão-postal, enquanto o garoto abria um mapa e começava a explicar ao homem como chegar à civilização. Ela leu o cartão-postal, escrito à mão.
Bumbão ficou parado na frente da loja, acenando, enquanto o carro do casal desaparecia na estrada de terra, levantando uma nuvem de poeira. O som do motor foi sumindo, e tudo o que se podia ouvir era o canto cauteloso de um passarinho vindo das vastas florestas que cercavam o hangar, onde havia uma grande faixa com os dizeres: LIQUIDAÇÃO! ASAS-DELTA COM 30% DE DESCONTO ENQUANTO DURAR O ESTOQUE!!!
Mas, enquanto permaneceu ali parado, ele ouviu algo mais. Uma voz. Uma voz que vinha do ar, de algum lugar distante acima dele.
– Ei, ei, Bumbão! BUMBÃO! Olhe!
Bumbão pôs a mão diante dos olhos para protegê-los do sol e espiou a asa-delta que dava voltas bem em cima dele. Pendurada na asa-delta, balançava uma pessoa vestindo um macacão vermelho apertado, ultrajusto na enorme barriga, usando um par de óculos com lentes tão grossas que pareciam enormes bolas de gude.
– Olhe para mim! Sou eu, Petter! O único Petter que existe! Novo recorde, Bumbão! Voei quase até a Dinamarca e voltei! Um viva para o Petter! – o homem de macacão vermelho justo que, ao que parecia, se chamava Petter, cantava e se gabava, sorrindo para Bumbão, que acenava freneticamente para ele.
– Beleza, Petter! Mas tome cuidado, você não está vendo a... – Bumbão gritou.
Ouviu-se um sinistro rangido, seguido do estalar da estrutura e das asas da asa-delta se espatifando contra a parede da loja, arrebentando a antena de televisão e desabando no chão aos trambolhões.
Bumbão correu até Petter, que já estava de pé em meio aos destroços, tirando cascalho e tufos de grama da sua pança.
– Poxa, Petter, você tem que olhar para onde vai! – repreendeu-o.
– Por que se preocupar? De qualquer modo, eu não consigo enxergar – Petter respondeu, bafejando seus grossos óculos para depois esfregá-los no macacão. – Voei toda a distância até o litoral, Bumbão! Logo, logo vou conseguir chegar à Dinamarca. Aí vou poder comprar para nós uns biscoitinhos dinamarqueses para comer junto com o nosso chocolate quente. Hum, e falando em chocolate quente...
– Vou requentar o que preparamos esta manhã – Bumbão disse, com um suspiro.
Meia hora depois, os dois estavam sentados na cozinha, cada um bebendo da sua caneca, enquanto Petter fitava o tabuleiro de xadrez-chinês em concentração profunda.
– Andei pensando – Petter começou.
– Sim, você está pensando há mais de vinte minutos e não moveu sequer a sua primeira peça. Acho que está mais do que na hora de você... – retrucou Bumbão.
– Não estou falando do xadrez-chinês. Estava pensando que faz um bocado de tempo que você está aqui. Não que eu não goste de ter você por perto, mas...
– Não posso voltar para casa, Petter. Ai, que humilhação, que humilhação! A escola inteira, minha família inteira, todo mundo rindo de mim. Todos os meus amigos...
– Todos eles? Quantos amigos você...
– Tudo bem, tudo bem. Todos os dois... Eles me avisaram. Disseram que eu devia fechar a boca e não ficar contando como salvamos o mundo dos monstros babuínos invisíveis vindos da Lua. Falaram que, de qualquer jeito, ninguém acreditaria em nós. Mas eu, o idiota que sou, eu...
– Não seja tão duro consigo mesmo, Bumbão! Você não é idiota – protestou Petter.
– Sou, sim!
– Não é não. Você é mais esperto do que... do que eu, por exemplo.
– Não, não sou.
– É, sim, decididamente você é, Bumbão!
– Não.
– Sim!
– Ok, tudo bem, sou – Bumbão concordou, tomando um ruidoso gole de chocolate quente.
– Shh! Que som é esse? – disse Petter, olhando para cima.
– Ei, hallo-ou! Foi o gole que eu dei – respondeu Bumbão.
– Não, não esse som, esse outro som! – Petter falou apontando para o teto.
Bumbão escutou e, com toda certeza, havia um flopt-flopt-flop que ia ficando mais alto. Espiou pela janela da cozinha. Uma súbita rajada de vento balançou os pinheiros, levantando poeira da estrada de terra e achatando a grama no chão. O som foi ficando mais e mais forte, e uma sombra ficou parada sobre a relva.
Enquanto Bumbão e Petter continuavam sentados, tomando seu chocolate quente, um veículo suspenso no ar foi lentamente tocando o chão e parou bem diante da janela da cozinha, ao mesmo tempo que a grama, as galinhas e as pinhas eram todas arremessadas para longe.
– O que você supõe que seja? – Petter indagou, tomando um golinho de chocolate.
– Parece um helicóptero – Bumbão respondeu.
A faixa com os dizeres: LIQUIDAÇÃO! ASAS-DELTA COM 30% DE DESCONTO ENQUANTO DURAR O ESTOQUE!!! soltou-se e voou para longe.
– Isso eu estou vendo. Mas quem são os caras dentro dele?
– Pelos óculos escuros e pelos chapéus, eu diria que são do serviço secreto.
– Bem, acho melhor então a gente preparar mais um pouco de chocolate.
Capítulo 4.
Bumbão toma uma decisão
– NÃO, DISSE BUMBÃO.
– Não o quê? – perguntou Hallgeir, ajeitando o chapéu. Tomou ruidosamente um gole do seu chocolate quente e correu os olhos pela cozinha.
– Não, eu não quero assumir esse compromisso.
– Por que não? – indagou Helge, limpando o chocolate do bigode. – O rei está lhe pedindo pessoalmente para salvar a Noruega da ruína financeira!
– Obrigado, mas já salvei a Noruega uma vez, e veja o que aconteceu.
– Mas... eles roubaram as reservas nacionais de ouro. Nosso povo precisa de você, Bumbão! – implorou Helge.
– Precisa, é? Para rir de mim, talvez.
– Rir de você? O que você está querendo dizer? – quis saber Hallgeir.
– Voltem para casa, meus bons homens – Bumbão falou, cruzando os braços. – Voltem para casa e digam ao rei e ao povo da Noruega que, mesmo que eles tenham roubado meu excepcional bom nome e sujado a minha reputação, ainda tenho o meu orgulho. – A voz dele tremia levemente. – Digam-lhes que desta vez eles estão sozinhos, não vai haver nenhum Bumbão para salvar o país. A Noruega está por sua própria conta! Estou indo para as montanhas!
E, ao dizer isso, levantou-se e marchou para fora da casa. Hallgeir e Helge se entreolharam, confusos, e então olharam para Petter.
– Acho que vocês não viram – comentou Petter.
– Não vimos o quê? – perguntou Helge.
– É alguma coisa secreta? – Hallgeir indagou ansioso, parecendo empolgado.
– Não, é no YouTube – explicou Petter.
– Nós só olhamos coisas secretas, segredos políticos e coisas assim – disse Hallgeir.
– Também apareceu na televisão. O Maior Mentiroso da Noruega – explicou Petter.
– Ah, certo. A irmã de Bumbão mencionou o programa – falou Helge.
Dois minutos depois, Petter estava com o computador ligado mostrando um clipe do YouTube. Nele aparecia um repórter parado na avenida Cannon, na frente da casa amarela onde Helge e Hallgeir tinham estado algumas horas antes. O repórter sussurrava, sorrindo para a câmera: “No episódio de hoje de O Maior Mentiroso da Noruega, viemos visitar, em Oslo, a casa da pessoa que dizem ser o maior e, provavelmente, também o menor mentiroso em toda a Noruega. Como sempre, vamos fingir que somos um programa sério e que acreditamos em tudo o que essa pessoa disser. Venham comigo, vamos entrar e encontrar a mãe e a irmã dele...”.
A cena seguinte mostrava duas pessoas num sofá, numa sala de estar bagunçada. Uma delas era a menina com quem Helge e Hallgeir haviam conversado na casa de Bumbão; a outra era uma mulher que vestia um roupão xadrez cor-de-rosa.
– Bumbão começou só exagerando um pouco – observou a mulher, olhando sombriamente para a câmera. – Depois, os exageros foram aumentando cada vez mais. Por fim, contava que ele e seus amigos tinham salvado o mundo e viajado através do tempo numa banheira.
– De quem a senhora acha que ele herdou essa compulsão para mentir? – questionou o repórter.
– Não de mim, em todo caso. Tenho certeza de que é do lado do pai. O avô dele escreveu um livro chamado Animais que você gostaria que não existissem. Mentiras sólidas do começo ao fim – a mãe do menino contou à repórter.
– Do fim ao começo – a irmã acrescentou, com desdém.
A cena seguinte mostrava Bumbão a caminho de um programa de entrevistas, erguendo vitoriosamente os braços enquanto a plateia o ovacionava com entusiasmo.
– Ele não tem a menor ideia de que estão gozando da cara dele – Petter falou, suspirando.
– Bem-vindo ao programa O Maior (tosse!)tiroso da Noruega – cumprimentou-o o repórter, agora vestindo um belo terno. – É de fato verdade que você viajou de volta no tempo até a Batalha de Waterloo?
– É claro – respondeu.
A plateia respondeu aplaudindo, e Bumbão virou-se de frente para ela e fez uma polida reverência.
– Então suponho que tenha conhecido Napoleão, hein? – o repórter perguntou.
– É claro – ele respondeu com um sorriso paciente, e então fechou as mãos juntando as pontas dos dedos. – Sim, por algum tempo, na verdade fui Napoleão. Foi assim que consegui impedir a batalha.
– Então você foi Napoleão e impediu a Batalha de Waterloo, evitando que ela acontecesse? – o repórter insistiu.
– Alguém tinha de fazer isso, e por acaso eu estava lá – Bumbão afirmou com a maior modéstia possível, examinando suas unhas bem roídas.
Ovações calorosas da plateia. Closes mostravam que o pessoal ria tanto que estava praticamente caindo das poltronas.
– Uma salva de palmas para agradecer a Bumbão, vulgo Napoleão! – o repórter exclamou.
Estrondosos aplausos eclodiram, enquanto uma mulher atraente acompanhava o menino, que não parava de acenar e sorrir, para fora do palco.
Quando Bumbão estava fora do alcance da câmera, sem poder ouvir, o repórter virou-se para a objetiva e sussurrou: “Creio que temos um forte candidato para o título de Maior Mentiroso da Noruega. Mas a decisão final é de vocês, telespectadores. Quando votarem...”.
Petter desligou o computador.
– Não é de admirar que para ele já baste e que não queira fazer isso de novo – disse Helge.
– Como vamos convencê-lo? – perguntou Hallgeir.
– Precisamos falar de lutar pelo nosso lar, pela família, pelo rei, pela pátria – Helge sugeriu.
– É, e de manter a nossa moeda norueguesa!
– Bem lembrado, Hallgeir! E então podemos tocar uma música comovente de fundo enquanto dizemos tudo isso, e à medida que a música vai aumentando vamos falando mais alto e mais alto, até ficarmos embargados.
– Bem pensado, Helge. Vamos achar aquele tampinha e... – Hallgeir começou.
Ouviu-se um forte e lamuriento rangido das dobradiças enquanto alguém escancarava a porta. Um segundo depois, ecoou uma forte pancada, enquanto alguém a fechava. Bumbão estava parado diante deles, com uma mochila nas costas.
– Pensávamos que você tinha ido para as montanhas – disse Hallgeir.
– Mudei de ideia – retrucou.
– Ponha para tocar a música comovente. Vou começar a falar do lar, da pátria e... – Helge cochichou apressado para Petter.
– Se vocês acabaram de tomar o chocolate quente, estou pronto para voltar a Oslo agora – declarou o menino.
– O quê? Mas ainda nem cheguei na parte em que fico todo embargado... – começou Hallgeir.
– Nem precisa. Como eu disse, mudei de ideia – explicou Bumbão.
– É mesmo? – Helge quis confirmar.
Bumbão deu de ombros e cutucou o dente da frente com sua unha suja. É mesmo. Asas-delta e xadrez-chinês são coisas legais, tudo bem, mas um roubo de ouro parece bem mais empolgante. Falando sério, quantas canecas de chocolate quente a gente aguenta tomar?
E então, aos trinta e três minutos e vinte e quatro segundos depois das seis e meia, hora local, ouviram-se novamente sons de flopt-flopt-flop acima da aldeia remota, agora quase completamente sem habitantes. Petter ficou parado em cima do morro, acenando-lhes adeus.
Bumbão sentou-se ao lado do piloto, com protetores de ouvido que praticamente cobriam toda a sua minúscula cabeça ruiva com sardas e nariz arrebitado. Ele rogava e implorava uma chance de pilotar o helicóptero, só um tiquinho. Jurou – juro por Deus! – que havia pilotado bombardeiros nas duas guerras mundiais, para não mencionar que havia sido a primeira pessoa menor de idade a pilotar um foguete não tripulado até Saturno e aquelas bandas.
Capítulo 5.
Nossos amigos ficam
sabendo tudo sobre a
missão. Bem, nem TUDO...
O REI PUXOU O CINTURÃO REAL, desconfortavelmente apertado, limpou o pigarro e empurrou para trás sua moderníssima cadeira de grife. Tentara colocar o trono no gabinete, mas o assento era tão alto que acabou espremendo as coxas entre o assento e a escrivaninha. À sua frente estavam as únicas pessoas no reino que sabiam que as reservas de ouro da Noruega haviam sido roubadas: Hallgeir e Helge, da Gorda Secreta; Tor, presidente do Banco da Noruega; doutor Proktor, Lise e Bumbão.
– O ouro precisa estar de volta no cofre do Banco da Noruega na próxima segunda-feira, quando o Banco Mundial vier fazer sua inspeção. Do contrário, estaremos falidos e seremos obrigados a viver como os austríacos orientais. É isso que queremos? Sim ou não? – disse o rei.
– Hã... – Lise murmurou, olhando para o doutor Proktor, que erguia uma sobrancelha, e para Bumbão, que envesgava um olho enquanto coçava pensativamente a costeleta.
– Temos alguma outra opção? – perguntou Bumbão.
– A resposta é não! A Noruega conta com vocês três. A boa notícia é que a meticulosa investigação da Gorda Secreta conseguiu alguma informação, o que quer dizer que vocês não estarão começando do zero – o rei bradou.
Hallgeir começou:
– Os peritos examinaram o buraco no cofre do banco. Os assaltantes devem ter usado uma broca com cabeça de diamante, com um diamante realmente enorme na ponta. O único diamante do mundo grande o bastante para isso foi recentemente roubado em Johannesburgo, na África do Sul.
E prosseguiu:
– Também recentemente conversamos com nossos colegas do serviço secreto brasileiro. Isto é segredo, mas na semana passada as reservas de ouro do Banco Central do Brasil também foram roubadas. As autoridades brasileiras não disseram nada sobre o assunto, porque têm medo de ficar tão pobres quanto os argentinos.
– E, como somos muito espertos, checamos as listas de passageiros que viajaram entre Johannesburgo, Oslo e Brasil nas últimas semanas. E a lista não é tão longa assim. Nada comparado com o congestionamento de tráfego de noruegueses tentando atravessar de carro a fronteira para entrar em Strömstad, na Suécia, para comprar bebidas, já que lá os impostos são mais baixos.
– Ou indo para Kragero, as praias mais turísticas da Noruega – observou Helge.
– Ou para Ål, em Hallingdal, famosa por seu, hã... esqui de cross-country – Hallgeir completou.
– Direto ao ponto – ordenou o rei.
– E só três pessoas estiveram em todos esses três lugares recentemente, e não se trata de três pessoas quaisquer – Helge continuou.
– Ao contrário, são especificamente eles – ressaltou Hallgeir
– Ao que interessa! Vamos ao que interessa! – o rei berrou.
– Como era de esperar, viajaram usando nomes falsos, dizendo que eram os Irmãos Brunch, mas não nos enganaram, não mesmo, não senhoooor. Os três na verdade são – Helge fez uma pausa, olhando em volta para as caras curiosas, para se certificar de que todo mundo estava segurando a respiração – os Irmãos Crunch!
Olhou em volta de novo, com ar triunfal, mas as caras ao seu redor não eram de pessoas chocadas, sequer pareciam muito assustadas.
– Os Irmãos Crunch são conhecidos como os mais terríveis bandidos em toda a Grã e Pequena Bretanha juntas – Hallgeir explicou.
– Bacana! Bandidos terríveis são muito bacanas! – observou Bumbão.
– O que eu fico me perguntando é como esses irmãos conseguiram levar no avião toda a reserva de ouro da Noruega. O ouro é pesado, e eles devem ter pago uma fortuna por causa do excesso de excesso de bagagem – disse o doutor Proktor.
– Foi apenas uma barra de ouro. Então, sem dúvida, estavam dentro do limite de peso – comentou Tor, o presidente do banco, com um pequeno e modesto sorriso.
– Apenas uma barra de ouro? Essa é toda a reserva de ouro da Noruega? – Lise perguntou, erguendo as sobrancelhas, incrédula.
– Encolheu um pouco no decorrer dos anos – admitiu Tor.
– Eu diria que sim – concordou Proktor. – O que aconteceu com o resto do ouro?
– Doces – Tor respondeu com um displicente dar de ombros.
– O ouro se transformou em doces? – perguntou Bumbão.
– Não, em obturações de cáries – Tor explicou. – Depois da Segunda Guerra Mundial, os noruegueses começaram a comer tanto doce que, por volta dos anos 1970, acabou-se todo o ouro dos dentistas. Talvez vocês se lembrem de 1972, o ano da Grande Dor de Dente?
Todo mundo acenou que não com a cabeça. Só o rei assentiu, a mão tocando instintivamente o queixo.
– Foi uma época horrorosa – continuou. – Era possível ouvir os gemidos, grunhidos e gritos de dor desde o Cabo Norte, no extremo norte da Noruega, até o ponto mais ao sul, em Lindesnes. Gente, como se ouvia! O Parlamento teve de aprovar o Ato de Transferência Dentária. E todo o ano, desde então, os dentistas da Noruega vêm consumindo as reservas de ouro do Banco Central. Até que hoje...
– Então todo o nosso ouro está nas bocas dos noruegueses comedores de doces que não escovam os dentes? Isto simplesmente não está certo! – Lise falou, cruzando os braços, brava.
Bumbão enfiou os dedos indicadores nos cantos da boca e abriu-a com tanta força que parecia que a metade de cima da sua cabeça poderia cair ao falar: – É, dá sóóóó ua oiada nis...
E, de fato, sua boca reluzia com o brilho fosco de ouro não escovado.
– Mas se vocês sabem que esse pessoal dos Irmãos Crunch está por trás dos roubos, por que já não os prenderam? – indagou o doutor Proktor.
– Por diversos motivos. Primeiro, não temos nenhuma evidência real, só as passagens de avião – respondeu o presidente do banco.
– Bem, mas eles devem ter escondido o ouro em algum lugar. Basta que a gente dê uma vasculhada na sua garagem, no porão, e... – observou Lise.
– No sótão! O ouro brasileiro está no sótão! Beleza! – Bumbão gritou.
– Tenho certeza de que os Irmãos Crunch provavelmente entregaram o ouro há séculos para quem bolou todo esse plano. De jeito nenhum eles são espertos o bastante para terem armado sozinhos assaltos tão inteligentes. A pergunta é: quem é o cérebro atrás de tudo isso? – perguntou o governador, sacudindo a cabeça.
– A polícia poderia simplesmente prender o Irmãos Crunch e fazê-los dizer a quem entregaram o ouro, certo? – Lise perguntou.
O presidente do banco suspirou.
– Se fosse tão fácil, Lise... Mas eles são duros na queda. Não vão soltar a língua, por mais que você os torture. Não que alguém pensasse em torturá-los, é claro...
– Tortura! Tortura! Tortura! Só um pouquinho? – Bumbão vibrou, saltando para cima e para baixo.
– Infelizmente a ONU determinou que mesmo tortura leve é ilegal – disse o rei com um suspiro, ajeitando seu cinturão apertado. – Então, o único jeito de encontrarmos o ouro é nos infiltrarmos no meio dessa gangue. Em outras palavras, temos de fingir que somos um deles, fazer amizade com eles, ganhar sua confiança, talvez tomando uma cerveja no bar, quando estiverem a fim de contar vantagem. E aí podemos enganá-los e fazer que nos contem onde o ouro está.
– Por que simplesmente não arranjam um agente de polícia na Inglaterra para fazer isso? Quer dizer, eles já falam inglês, certo? – perguntou Lise.
– Nós já falamos com esses “agentes de polícia” – disse Helge.
– Ou a Scotland Yard, como nós os chamamos – completou Hallgeir, com um olhar pretensioso.
– E eles contaram que os Irmãos Crunch são capazes de identificar um policial de verdade a quilômetros de distância. Eles conseguem farejar se você é da polícia – Helge disse.
– É verdade. Policiais cheiram como charutinhos de repolho recheados – afirmou Hallgeir.
– Então a Scotland Yard achou que seria uma boa ideia enganar os irmãos usando crianças ou professores malucos, porque dessa forma eles não sentiriam cheiro nenhum – completou Helge.
– Então, vocês estão entendendo a missão? – o rei perguntou.
– Sim, senhor, alteza, senhor! – afirmou Bumbão, tomando a posição de sentido e batendo continência. – E se um mínimo minúsculo tantinho de tortura acabar sendo necessário, temos permissão para isso? Que tal uns cascudos? Beliscões? Puxões de orelhas? Cócegas gerais?
– Vocês partem para Londres amanhã de manhã, bem cedo. Vão se encontrar com um informante secreto da Scotland Yard, do lado da estátua de Michael Jackson, no Museu de Cera da Madame Tourette, exatamente oito minutos depois da uma. O informante tem mais informação para vocês sobre os Irmãos Crunch. E, lembrem-se, esta é uma missão secreta, de modo que se forem capturados... – disse o rei.
– Ninguém nos salvará! Estou ADORANDO! Simplesmente adorando – exclamou Bumbão.
Lise revirou os olhos, e o doutor Proktor lançou um olhar sério e preocupado para Bumbão.
– Alguma pergunta? – indagou o rei.
– Os irmãos têm alguma característica particular capaz de distingui-los, de modo que seja mais fácil para nós reconhecê-los? – perguntou o doutor Proktor.
O rei olhou para os guardas, que olharam um para o outro, encolheram os ombros, e acenaram que não com a cabeça.
– Nada? – insistiu Lise.
– Nada que possamos lembrar – Hallgeir respondeu. – Apesar de que, agora que você falou sobre isso, acho que cada um deles tem a sua inicial tatuada na testa.
– Mas não sabemos que letras são, então acho que isso não vai ser de muita ajuda – ressaltou Helge.
Com um enorme sorriso, o rei apertou a mão dos nossos heróis, um de cada vez, e desejou-lhes boa sorte. Depois que os três se foram, porém, ele mudou de lugar e se postou do lado da janela. O sorriso tinha sumido.
– Tenho a sensação de que vocês não estão me contando tudo sobre esses Irmãos Crunch – afirmou o rei.
– Como? O que quer dizer com isso? – Helge falou, com ar de inocência.
– Nunca senti o cheiro de charutinhos de repolho em policiais. Acho que vocês estavam mentindo. E, então, estavam? – perguntou o rei.
Helge pigarreou.
– Hã, sim, pode ser que tenhamos mentido.
– Mas só um pouquinho – acrescentou Hallgeir.
– Não queríamos assustar as duas crianças dizendo-lhes que ninguém na Scotland Yard se atreve a chegar perto dos Irmãos Crunch. Ou, pior, perto de... – Helge baixou a voz e sussurrou alguma coisa.
– O quê? – perguntou o rei.
Helge sussurrou de novo.
– O que foi que ele disse? – o rei perguntou a Hallgeir.
– Ele disse... – Então Hallgeir baixou a voz e sussurrou alguma coisa.
– Chega de bobagem! De quem a Scotland Yard não se atreve a chegar perto? – rugiu o rei.
Helge percorreu toda a distância até o rei e cochichou “Mama” no seu ouvido.
Hallgeir se aproximou e cochichou “Crunch” no outro ouvido do rei.
– Mama? Crunch? – o rei perguntou.
– Shh! – Helge disse, olhando em volta com cautela.
– Duplo shh! – reforçou Hallgeir.
– É a mãe dos Irmãos Crunch. É conhecida como a pior coisa que aconteceu em Londres desde a Grande Peste de 1665 – Helge sussurrou.
– Ela vê e ouve tudo, é impossível enganá-la, e é tão horrível que ninguém diz o nome dela em voz alta – falou baixinho Hallgeir.
– Hã, desculpe perguntar – intrometeu-se o presidente do banco. – Mas até que ponto três assaltantes de banco e a mãe deles podem realmente ser horríveis?
– Eles jogam “juntas sangrentas”, sabe?, aquele jogo de baralho, com qualquer um que tente alguma coisa – Hallgeir respondeu, revirando os olhos para trás, de medo.
O presidente do banco e o rei engasgaram em uníssono:
– Sangue nas juntas? – perguntaram, olhando horrorizados para os dois gordas secretos, que cruzaram os braços e assentiram com ar sinistro.
– Na verdade, não é tão sério se você perde só umas quatro ou cinco rodadas. Então eles só batem algumas vezes nas juntas dos dedos com a borda do baralho. Arde um pouquinho e as juntas ficam meio vermelhas – explicou Hallgeir.
– Mas se você perde dez mil rodadas... e um pouquinho de vermelho... – Helge emendou, revirando os olhos de modo que só aparecia o branco deles.
– O que acontece? – quis saber o presidente do banco.
– Um agente da Scotland Yard uma vez tentou se infiltrar na família. Mama Crunch o detectou e jogou juntas sangrentas com ele. O agente perdeu uma bolada de dez mil pancadas nas juntas.
Os gordas sacudiram a cabeça em conjunto.
– E o que aconteceu? – insistiu o presidente do banco.
– Infelizmente, essa informação tem classificação “Proibido para menores de 17” – disse Hallgeir.
– Eu lhe garanto que tenho bem mais de dezessete anos – o rei falou, com a sobrancelha erguida.
– Sim, mas e as pessoas que estão lendo isto agora? – perguntou Hallgeir.
– O quê? Lendo o quê? – o rei indagou.
– Ele não quis dizer nada de especial com isso – Helge interferiu, lançando uma olhar severo para Hallgeir. – Você sabe que isto é segredo, Hallgeir!
– Desculpe, esqueci – Hallgeir falou mansamente.
O rei bufou todo o ar do peito e rugiu:
– Esta é uma ordem real. FAÇAM O FAVOR DE CONTAR LOGO!
– Eles cortaram o pobre sujeito em pedacinhos com o baralho. Ele ficou parecendo uma pilha de parmesão fatiado quando acabaram.
O rei e o presidente do banco ficaram mudos, com os olhos pregados nos dois membros da Gorda Secreta.
– Em que enrascada, em que enrascada fomos meter aqueles três? – gemeu o rei.
– Ah, mas eu tenho certeza de que vão se sair muito bem. Provavelmente, não serão apanhados – observou Hallgeir.
– Também acho que isso não acontecerá – concordou Helge.
Capítulo 6.
A arte de fazer as malas
para viajar... para Londres,
por exemplo
– HÁ UMA ARTE EM FAZER AS MALAS – disse o doutor Proktor, enquanto puxava, em uma prateleira no porão, uma sacola gasta de tacos de golfe. – Aquilo que você não leva é tão importante quanto aquilo que você leva. Contem-me como vocês fizeram as malas, amigos.
– Eu estou levando esta mochila – disse Lise, apontando para uma mochila vermelha de caminhada. – Pus nela itens de higiene, seis mudas de roupa, agasalho de chuva, um canivete, um par de meias de lã para o caso de esfriar, um estojo de primeiros socorros, uma lanterna pequena e um par a mais de bons sapatos, para o caso de precisarmos andar muito.
– Ah! Ela fala como uma viajante profissional, que viajou não só através do espaço, mas também através do tempo! – exclamou o doutor Proktor. – E quanto a você, Bumbão?
– Mais profissional ainda! – o menino respondeu. Apontou para um saco plástico de supermercado já usado que havia colocado em cima de uma bancada de trabalho, ao lado de um conjunto de tubos de ensaio contendo alguma coisa azul glacial que borbulhava e fumegava. – Um par de cuecas quase limpas, removedor de esmalte de unhas, um Monopoly, caso chova, e um frasco de pílulas contra malária do meu avô – falou, todo orgulhoso.
– Pílulas de malária? – o doutor Proktor perguntou. – Não há mosquitos de malária em Londres, Bumbão.
– Ah, então, finalmente, exterminaram o mosquito da malária londrino? Bem, ótimo, porque, para dizer a verdade, eu não tinha certeza da data de validade dessas pílulas. Aqui está escrito 3 de dezembro de 25, mas eu não tinha certeza se era 2025. Achei que podia ser 1925.
– O que você vai fazer com removedor de esmalte de unhas? – perguntou Lise. – Você não usa esmalte na unha.
– Exato! Justamente por isso, se acontecer de eu ser atingido por algum esmalte, quero tirar o mais rápido possível – respondeu.
– E uma escova de dentes e mais de uma muda de roupa de baixo? – Lise insistiu.
– Minha escova de dentes está no bolso de trás. A pasta, pego emprestada de você. E um viajante profissional não gasta roupa de baixo à toa. Além disso, sou um otimista.
– O que você quer dizer com isso?
– Imagino que a gente vá solucionar o caso antes de eu precisar trocar de cueca mais de uma vez.
– Bem, atitude positiva também é uma coisa boa para se levar numa viagem – disse o doutor Proktor. – O que vocês acham que eu deveria levar além do habitual? Lembram-se dos clipes nasais de linguagem que inventei para podermos falar francês? Agora inventei algo ainda melhor. É uma pílula multilíngue que faz que possamos falar e entender inglês por catorze dias. E elas têm sabor de framboesa!
– Bumbão sem dúvida precisa de uma dessas – Lise disse. Na escola, os dois estudavam inglês na mesma classe.
– Hallo, jeg kan elgelsk! – Bumbão replicou, indignado, em norueguês. Depois, corrigiu-se, dizendo numa espécie de noruinglês: – Quer dizer, eu sei inglês!
Bumbão fitou Lise fixamente por alguns segundos antes de dar um leve e desconfortável cutucão na ponta do seu nariz sardento e arrebitado e dizer:
– Ok, tudo bem. Então, só uma pilulazinha multilíngue para mim. O senhor tem alguma outra invenção nova, doutor Proktor?
– Tenho este sapato de cortar lenha, que fiz do seu tamanho, Bumbão! – disse o doutor.
– Eeeeeba! – Bumbão alegrou-se, agarrando o minúsculo sapato.
– Eu estava planejando dar como presente de boas-vindas, junto com isto – falou o doutor Proktor, segurando uma luva igualmente minúscula.
– O que é isso? – Bumbão quis saber.
– O que parece? Obviamente, é uma luva de pontaria para pessoas que usam a mão direita – explicou o doutor.
– Oh, então está certo, é claro – observou o menino, calçando a luva.
– O que é uma... luva de pontaria? – Lise quis saber.
– Você não sabe nem isso? – perguntou Bumbão, boxeando o ar à sua frente com a luva.
– Não. O que é? – ela voltou a indagar.
– É... uma luva realmente gostosa, que mantém a sua mão direita quentinha se a esquerda não estiver fria. Você pode usar para dar socos no ar e evitar tomar friagem nos dedos, o que poderia causar artrite. Neste caso, você teria de segurar o talher com a mão esquerda ou com os dedos do pé quando estivesse comendo na casa dos pais – Bumbão explicou.
– Bem, antes de tudo, é uma luva com a qual você pode jogar estes três dardos – disse o doutor Proktor, com um sorriso amarelo, mostrando três pequenos dardos: um amarelo, um laranja e um preto. – E, dentro de um raio de dez metros, eles acertarão com uma diferença máxima de um milímetro em relação ao ponto que você está mirando.
– Lógico, isso também, é claro – Bumbão falou, e continuou socando o ar para que não houvesse a menor dúvida de que a luva também servia muito bem para isso. – Inventou mais alguma coisa nova?
– Hum... Além de um aplicativo que joga par ou ímpar, inventei um congelante – o doutor Proktor disse, olhando em volta.
– Isso já não foi inventado? – Lise perguntou.
– Não como este – ele respondeu, segurando um tubo de ensaio contendo a substância borbulhante, azul glacial. – Se você beber isto, ocorrerá uma reação com o ácido do seu estômago e dos seus rins, de modo que qualquer coisa que você solte com seu xixi congelará, virará gelo e poderá ser quebrada, não importa do que seja feita.
– Fala sério! – Bumbão exclamou, batendo palmas de contentamento.
– Contanto que você não faça xixi nos seus próprios sapatos – cortou Lise.
– Vou levar junto um frasquinho. Mas, então, acho que é isso – o doutor Proktor comentou.
– Não inventou nada para mim? – perguntou Lise.
Os outros dois olharam para ela.
– Ah, tem razão. Acho que o Bumbão sempre acaba dando um jeito de testar os inventos – falou o doutor Proktor, parecendo ligeiramente desapontado consigo mesmo.
– Isso na realidade não é tão ruim. Afinal, ele tem mais prazer de fazer isso do que eu – Lise declarou, sorrindo.
– Poderíamos levar algum pó de soltar pum para Lise – sugeriu Bumbão. – E uma grande lata de feijão torrado. Feijão, feijão, a fruta mágica – cantou. – Quanto mais você come, mais forte fica a sua buzina!
– Não! Nada de feijão, nada de puns. Fazer xixi já é mais do que suficiente – protestou Lise, resolutamente.
– Só um pacote – Bumbão implorou. – Imagine só, Lise, depois de encontrarmos o ouro e estivermos comemorando com a rainha no Palácio de Buckingham, você bem-vestida, toda chique. Depois de dançar com um ou outro príncipe que a leva para um romântico passeio ao luar pelos jardins, você pode impressioná-lo soprando todas as folhas do jardim com um único pum.
– Não, obrigada! Esqueçam que perguntei – disse a menina.
– Mas, Lise, o jardineiro da rainha nos pediria de joelhos esse invento! Talvez o doutor Proktor conseguisse finalmente ganhar algum dinheiro com ele – insistiu Bumbão.
– Bem, já que os americanos não querem usar o pó para mandar seus astronautas para o espaço, acho que podemos levar um pacote para os britânicos. Afinal, não ocupa muito espaço – falou o doutor.
– Gelatina! – Juliette Margarina, a namorada do doutor Proktor, chamou da cozinha. E foi na hora certa, porque tinham acabado de empacotar as coisas.
– Agora, pessoal, vocês tomem cuidado lá em Londres. E você, prometa tomar conta deles direitinho. – Juliette pediu, a fisionomia mostrando preocupação, enquanto os observava mergulhando de cara na gelatina.
– Tá, tá bom – o doutor Proktor falou.
– Não estava falando com você, Victor, estava falando com a Lise – explicou Juliette.
– Tá, tá bom – Lise assegurou-lhe com um sorriso.
– Não há o que temer. Esses caras, os Crunch, nem são os piores do mundo, só os piores da Grã e da Pequena Bretanha. E nós somos três das pessoas mais inteligentes da avenida Cannon – Bumbão falou, tentando em vão conter um arroto. Eles brindaram com seu refrigerante de pera predileto. Depois, Juliette abraçou-os, e cada um foi para sua casa: Bumbão para a casa amarela, Lise para a vermelha e o doutor Proktor desceu para o porão, para ajustar a última sintonia fina das invenções que pretendia levar.
Quando Bumbão entrou na sala de estar, sua mãe resmungou, sem tirar os olhos da televisão:
– Você de novo?
– Também estou feliz em ver você, mamãe.
– Shh! – sua irmã Eva rosnou. – Está passando Reforma Total.
– Amanhã vou largar do seu pé. Estou indo para Londres – ele disse, entrando na cozinha para tomar um copo de leite.
– Você pode me trazer duas fatias de pão com salame, uma xícara de chá e três fatias com Nutella para a sua irmã? E depressa, estamos morrendo de fome aqui – a mãe gritou.
Quando Bumbão voltou com uma bandeja trazendo o que a mãe havia pedido, sua irmã Eva lhe entregou uma nota de duzentas coroas recém-passada.
– Para mim? – ele perguntou, o rosto se iluminando.
– Para você... me comprar alguma coisa em Londres, seu gnomo! Um creme chamado Cuco Limpo.
– Que tipo de creme é esse?
– Creme de espinhas.
– Eu achava que você já tinha espinhas suficientes – disse Bumbão.
– Creme antiespinhas, então, seu cérebro de nabo! E trate de comprar, porque, senão, nada de ter o seu quarto de volta. Está dito.
– Meu quarto? – admirou-se Bumbão.
– É isso mesmo – disse a mãe com a boca cheia de salame. – Você sumiu por tanto tempo que não pude impedi-la de tomar posse do seu quarto.
– Mas... mas ela já tem o quarto dela – Bumbão retrucou, sem entender.
– E daí? Agora ela tem dois. E daí? Uma garota precisa de espaço para as roupas. Mas tenho certeza de que ela vai deixar você dormir lá esta noite. Certo, Eva? – a mãe falou.
– Acho que sim – Eva fungou. – Mas, se você tocar em alguma coisa, vamos vender você para um circo ambulante.
– Fique com o seu dinheiro e as suas espinhas! Não compro para você mais do que um saquinho de chá inglês! – ele falou, amassando a nota de duzentas coroas e jogando-a de volta para a irmã.
A menina pôs a mão sobre a boca, horrorizada.
– Você ouviu isso, mamãe?! Você ouviu o que esta aberração acabou de dizer para a sua única filha?
– Mostre algum respeito pela sua irmã, Bumbão. E faça o favor de lavar a louça na cozinha. Como você pode ver, acumulou muita coisa, já que você ficou fora um tempão – a mãe resmungou, aumentando o volume da televisão.
Bumbão foi para o dormitório que não era mais seu, tirou a escova de dentes do saquinho plástico de supermercado, escovou os dentes – os que tinham ouro e os que não tinham –, arrancou a roupa e se meteu na cama.
Ficou ali deitado de olhos fechados, imaginando os sons que seus amigos estavam fazendo: doutor Proktor martelando, furando e fervendo no seu porão; Juliette roncando de leve no quarto dos dois; e Lise tocando clarineta do outro lado da avenida Cannon.
Neste mesmo instante, Lise tinha acabado de praticar e também se enfiava sob as cobertas.
Então Bumbão sentou-se diante da janela, como costumava fazer, e levantou os dedos na frente da lâmpada da escrivaninha, para projetar sombras que se transformavam em figuras sobre a fina cortina. Ele tinha quase certeza de que Lise assistia às suas encenações de teatro de sombras. E a peça dessa noite falava de três amigos que iam atrás de três bandidos e de toda a reserva de uma única barra de ouro de um pequenino país. E, antes de ela adormecer, os três heróis pegaram os bandidos, o ouro, metade do reino e pelo menos duas princesas.
Capítulo 7.
O Museu de Cera de
Madame Tourette e o
Rei do Pop
ERA EXATAMENTE MEIO-DIA. Um típico dia londrino. Uma típica chuva londrina caía sobre a cidade. E, como era exatamente meio-dia, o Big Ben, que é um biiiiig relógio muito preciso, que fica numa biiiig torre no meio de Londres, começou a badalar. E, quando deu a última de suas típicas doze badaladas de relógio londrinas, abriu-se a porta de um quarto de hotel, na Regent Courtyard Badger’s Dingle Bottom Crossing.
– Olhem esta vista. Dá para ver o rio Tâmisa, a ponte de Westminster e o Big Ben! – disse Lise, deixando a porta do quarto aberta e correndo até a janela.
– Menores no beliche de cima! – Bumbão berrou, empurrando o doutor Proktor para o lado.
– Ach, rapazinho, non creio que têniam camas sobrepostas – o doutor Proktor disse com um sotaque engraçado de escocês. Bumbão paralisou onde estava, estupefato, e o doutor continuou, aparentemente sem perceber nada: – Tem camas para você e Lise no dormitório. Vou dormir aqui fora, no sofá-cama.
O menino fez uma careta e descarregou:
– Sofá-cama? Camas sobrepostas? Do que está falando?
O doutor Proktor suspirou e colocou sua sacola de golfe no sofá.
– Ah, eu só tinha duas pílulas para o inglês da rainha. Então, dei as duas para vocês. Tomei uma de...
– Escocês – Bumbão completou. – Mesmo assim: cama sobreposta?
– O inglês da Escócia é um pouco diferente, Bumbão, mas tenho certeza de que você conseguirá me compreender.
– Bem, contanto que não comece a vestir saia de escocês e a tocar gaita de foles – o menino observou, voando para o dormitório.
– Ei, pessoal! Temos de ir para o Museu de Cera de Madame Tourette. Deve haver um pouco de fila para entrar, e precisamos chegar no horário – falou Lise.
– Tá, tá, tááá! – Bumbão gritou do quarto, onde tinha passado um tempinho pulando numa das camas, antes de ir para a outra para também dar alguns pulos. – Esta aqui é mais elástica – concluiu. – Tudo bem se eu ficar com a cama do lado da janela, Lise?
– Sim, claro. Mas o que você faria se eu tivesse dito não? – ela falou, com um suspiro.
– Então, obviamente, você poderia ter ficado com a cama do lado da parede. Eu sou bastante razoável – foi a resposta dele. – Ei, consigo alcançar o teto!
– Vamos logo – Lise o apressou.
– Só preciso trocar de roupa.
– Bumbão! Se quisermos chegar a tempo...
– Estou pronto!
Lise e o doutor Proktor olharam. Bumbão estava parado na porta, vestindo um paletó de tweed e um esquisito boné de feltro xadrez tão ridículo quanto os chapéus com borlas de crina de cavalo da Gorda Secreta.
– O que há de errado? – Bumbão perguntou. – Verdadeiros detetives precisam de disfarces e de nomes secretos em código, certo? Então, de agora em diante, vocês podem me chamar de Sherl. – Enfiou um cachimbo curvo na boca. – E você, Lise, pode ser Ockolmes. E o doutor pode ser...
– Doutor Luva? – sugeriu Lise, pensando nas luvas de pontaria.
Bumbão coçou a costeleta.
– Não, tem de ser algo tipo escocês. Doutor MacKaroni.
– Macaroni? Isso não é italiano? – estranhou Lise.
– Sim, tão italiano quanto MacElangelo ou MacO’Polo. E o sabor é muito mais gostoso – ele respondeu.
– Estão prontos, pessoal? Sherl? Ockolmes? – Está na hora de ir – falou o doutor MacKaroni.
Com toda a certeza, havia uma fila de turistas esperando para entrar no Museu de Madame Tourette.
Depois de comprarem os ingressos, nossos três amigos entraram no museu de cera. Abriram caminho a cotoveladas no meio da multidão e de celebridades de cera em tamanho real. O doutor Proktor apontava Elvis, Marilyn Monroe, John F. Kennedy e Winston Churchill.
– Ei, eu já fui esse sujeito aí – falou Bumbão, apontando para uma figura baixinha de uniforme e chapéu tricórnio.
– Isso mesmo, esse é Napoleão – concordou o doutor Proktor.
– Uh! É impossível dizer aqui quem está vivo e quem é feito de cera – disse Lise, estremecendo.
– Ali, olhem lá! É Ibranaldovez! – Bumbão falou, apontando o dedo.
Pararam na frente de uma estátua de cera com uniforme de futebol.
– Tem certeza? A cara não parece tanto com a de Ibranaldovez – Lise observou.
– Não, mas isto é a cara dele – Bumbão falou, mostrando a mão da estátua de cera. Os dedos da estátua estavam todos fechados num punho, exceto o dedo médio, esticado para cima.
– Esta é a figura do Michael Jackson – afirmou o doutor Proktor. Parou e correu os olhos pela sala, mas nem ele nem Lise localizaram o informante secreto. Bumbão nem sequer olhava em volta. Estava preocupado demais estudando aquela estranha figura de cera. O homem vestia uma jaquetinha curta de cetim. Uma das mãos estava posicionada bem sobre a virilha, exatamente como jogadores de futebol formando barreira na cobrança de falta. Ele segurava o chapéu com a outra mão, na qual usava uma luva prateada.
– Essa é uma luva de pontaria? Por que ele está parado nessa posição esquisita? – Bumbão perguntou, semicerrando os olhos.
– Bobo! Essa luva era a marca registrada dele. Ele está fazendo o passo de dança moonwalk – Lise explicou.
– Ah, certo – assentiu o menino, virando-se para a multidão, que passava com pressa por eles. – Mas, se este é supostamente um encontro secreto, por que estamos nos encontrando num lugar mais lotado do que uma escada rolante em Tóquio?
– Porque é possível esconder-se no meio de uma multidão, do mesmo jeito que peixes se escondem no meio de um cardume. Ninguém nota com quem você fala, e o barulho é tanto que ninguém consegue ouvir o que você diz – falou a estátua de Michael Jackson.
– Eu não estava falando com você, Michael – disse Bumbão.
– O quê? – perguntou Lise.
– Eu disse que não estava falando com ele – respondeu Bumbão, apontando atrás de si com o polegar.
Lise virou-se e percebeu que a figura não só era muito semelhante a Michael Jackson, mas parecia que estava viva, tão viva que ela achou totalmente normal que continuasse falando.
– Agora escutem, porque vou sentir câimbras nas duas pernas a qualquer momento, ok? Vocês encontrarão os Irmãos Crunch num pub em Eastburnwickside, chamado O Leão, o Hamster e o Carro-de-Boi Muito Torto do Senhor Woomblenut que Costumava Vender Cerveja de Trigo no Velho Moinho – disse Michael Jackson.
– Desculpe! Não prestei muita atenção. Pode repetir? – pediu Lise.
– Simplesmente peguem um táxi e digam que estão indo ao Leão na rua Buck. Agora, saiam daqui antes que eu caia – sussurrou Michael Jackson.
O doutor Proktor disse, começando a se afastar:
– Vamos!
– Ei, Michael! Será que eu poderia... hã, ganhar um autógrafo? – pediu Bumbão.
– Vamos embora! Ele está morto! – disse Lise, puxando Bumbão e indo atrás do doutor Proktor.
– Morto? Ele estava falando conosco!
– Não era o Michael Jackson! Esse sujeito não é o verdadeiro... ah, deixa pra lá!
– Mas eu quero um suvenir! Por favor? – ele implorou.
– Vamos embora! – Lise sibilou.
Emburrado, Bumbão seguiu os outros dois. Mas, na saída, parou, animou-se de novo e apontou o dedo:
– Como aquela! Quero uma daquelas! – exclamou.
Num balcão havia suvenires do museu de cera e máscaras de celebridades à venda.
– Bem, então vá depressa – disse o doutor Proktor.
Bumbão abriu caminho até o balcão.
– Desculpe, adorável senhora! – falou para a vendedora, que estava parada de costas para ele, lixando as unhas. Ela virou-se e olhou em volta, acima da cabeça de Bumbão, surpresa por não ver ninguém.
– Aqui embaixo, mulher Torre Eiffel – Bumbão disse, gesticulando de baixo.
Ela viu-o e iluminou-se com um sorriso.
– Uma máscara de Napoleão, por favor! – ele pediu.
– Desculpe, amiguinho, mas as de Napoleão acabaram, vendemos todas.
– Hum – Bumbão esfregou a ponta do queixo. – Você tem a de alguma outra pessoa pequena que tentou dominar o mundo? Que tal Júlio César? Gengis Khan? Adolf Hitler? Alexandre, o Grande? Ou deveríamos dizer Alexandre, o Pequeno?
– Ah, infelizmente, as coisas estão acabando por aqui, mas temos Maximus Rublov – ela respondeu.
– Ele conseguiu dominar o mundo? – quis saber Bumbão.
– Bem, ele acabou de comprar as Casas do Parlamento e metade do resto da Inglaterra. E mais, é dono do time de futebol de Chelchester City, então fizemos uma máscara dele para a final do Campeonato Inglês.
A vendedora apontou para uma prateleira onde havia camisas de futebol azuis do Chelchester City e réplicas do troféu, para o caso de alguém querer levar para casa e dizer que ganhou o campeonato. Ao lado havia a máscara de um sujeito de testa proeminente, cabelos começando a escassear, sobrancelhas estreitas que pareciam ter sido raspadas com meticulosa precisão e cavanhaque.
– Esse aí é o Rublov? Você não tem ninguém um pouquinho mais atraente que tenha conseguido dominar o mundo? Um pouco mais parecido comigo? – Bumbão perguntou.
– Ah, contanto que o homem tenha carisma, as pessoas não se importam tanto com a aparência, sabe – riu a vendedora. – E é fato bem conhecido que nada dá mais carisma do que o dinheiro.
– Então vou levar! – afirmou Bumbão.
Capítulo 8.
O Leão, o Hamster, e...
olhe, o nome é comprido,
então simplesmente leia
o capítulo, ok?
COMO SEMPRE, o pub que estamos chamando simplesmente de O Leão estava superbarulhento. O barman, de pé, junto às torneirinhas, tirava cervejas, enquanto as pessoas brindavam, falavam sobre futebol, motores de carros e por quantos gols de diferença o Chelchester City venceria o Rotten Ham no jogo final do Campeonato Inglês. Coisas assim. Coisas sobre as quais não estavam falando incluíam bolsas costuradas a mão, perfume francês e o mais recente casamento real. Como vocês podem imaginar, havia mais homens do que mulheres no Leão. Alguns cantavam uma canção que dizia que o fulano era um bom companheiro, mas de repente toda a cantoria e o falatório cessaram. Alguém escancarou a porta, as dobradiças gemeram, e voltou a fechá-la, batendo-a.
Um sujeitinho minúsculo, vestindo um paletó de tweed e um... bem, como já descrevemos... um boné esquisito de feltro xadrez, estava de pé na entrada. Ele tirou um cachimbo da boca, dirigiu-se ao bar, escalou uma das altas banquetas junto ao balcão e lançou um olhar severo para o barman.
– Meu bom homem, me dê o refrigerante mais forte que tiver.
O barman continuou lustrando o copo, que já parecia bem limpo.
– O mais forte, senhor?
– Não entende inglês? – Bumbão falou, tirando o chapéu e colocando-o sobre o balcão. – Não quero aquela lavagem aguada habitual, preciso de algo que me jogue para cima, algo que borbulhe no meu nariz e arranhe a minha garganta, que me faça sentir que passou um formigueiro por ela. Com gelo, sem soda.
– Hum, que tal tomar uma coca com gelo e uma rodela de limão? – sugeriu o barman.
– Beleza. Mas dose dupla – Bumbão retrucou.
– Dose dupla, senhor?
– DUAS rodelas de limão, seu estraga-prazeres! – disse, girando na banqueta e dando uma olhada mais detalhada no pub e na clientela, que ainda tinha os olhos fixos nele. Então, falou alto o bastante para todo o mundo ouvir: – E nem tente me dar coca diet, ou arranco a sua cabeça de estraga-prazeres de cima do seu pescoço, entendeu?
O barman encheu um copo e colocou-o diante de Bumbão, que o agarrou, inclinou a cabeça para trás, escancarou a boca, tomou tudo num só gole e, com uma batida, pôs o copo vazio de volta sobre o balcão.
– Manda outra – o menino grunhiu, apontando o copo, os olhos arregalados e a voz soando estranhamente sufocada pelo gás carbônico.
O barman encheu outra vez o copo, e Bumbão virou-o mais uma vez.
Um homem com um boné do time MILLWALL foi até o bar e sentou ao lado dele.
– Você joga duro, estranho – disse o homem com voz de uísque.
– Duro é o único jeito que eu sei jogar – retrucou Bumbão, olhando o reflexo da cara do homem no espelho atrás das prateleiras de garrafas.
– O que está fazendo aqui? Você não parece ser do pedaço – o homem perguntou.
– Correm boatos de que é o lugar onde podem ser encontrados os melhores jogadores de dardos deste lado do Tâmisa – Bumbão respondeu, encolhendo os ombros.
– E se for o caso?
– Eu sou o melhor jogador de dardos do outro lado do Tâmisa. Estou querendo desafiá-lo. – respondeu, agarrando um palito de dentes e começando a mastigá-lo.
O homem à sua frente mostrou um leve sorriso.
– Você? Você é tão pequeno. Como é que pode lançar bem?
Bumbão cuspiu o palito no copo de refrigerante vazio.
– Quer descobrir?
– Não, obrigado, sujeitinho. Charlie Crunch não rouba trocados de gente insignificante – o homem disse, tirando o boné.
O menino fitou a cabeça raspada do homem, a sobrancelha única, a letra C tatuada na testa.
– Deixe-me adivinhar. Você é Charlie Crunch.
– Pode ser.
– E se eu disser que tenho aqui no bolso cinquenta libras com o retrato da rainha?
O garoto e o homem observaram-se. E, sem desviar o olhar um milímetro sequer, Bumbão pegou um amendoim do prato sobre o balcão, jogou-o no ar, inclinou a cabeça para trás, rápido como um raio, e abriu tanto a boca que os maxilares estalaram. O amendoim chegou na altura máxima e começou a cair de volta. Ele envesgou os olhos, acompanhando a trajetória. Todas as outras pessoas também envesgaram os olhos. Estavam todas olhando o amendoim enquanto caía, e caía, e caía. O trajeto todo, até atingir a ponta do narizinho arrebitado de Bumbão e saltar fora da boca.
– Ha! – Bumbão exclamou, endireitando-se. – Viram isso? No centro do alvo, toda vez! – E apontou triunfante a ponta do seu nariz.
Um murmúrio atônito espalhou-se pelo pub.
– Vamos ver o seu dinheiro, sujeitinho – disse Charlie Crunch, rindo alto.
Bumbão tirou uma nota grande e lisa do bolso da calça e colocou-a sobre o balcão.
– Acho que afinal vou sim tirar dinheiro de gentinha insignificante. Vamos jogar dardos – falou Charlie Crunch, continuando a rir alto.
Bumbão e Charlie Crunch tomaram suas posições a pouco mais de dois metros da face do alvo de dardos (para ser totalmente exato: dois metros, trinta e três centímetros vírgula um, que, segundo a Federação Mundial de Dardos, é a distância oficial reconhecida, afinal). Os outros frequentadores do pub juntaram-se em torno deles e assistiram atentos, enquanto Charlie semicerrou um dos olhos, fez pontaria com o dardo espremido entre o indicador e o polegar... e arremessou.
TUNK!
Os espectadores aplaudiram. O dardo havia perfurado a região onde estava marcado vinte. Era o número mais alto no alvo. Mas o dardo de Charlie estava meio do lado de fora.
Bumbão tomou seu lugar na linha de arremesso.
– Você vai arremessar com uma luva na mão? – Charlie zombou.
Ele não respondeu. Simplesmente mirou o pontinho vermelho no centro do alvo, dobrou o braço para trás e arremessou.
TUNK!
O dardo se fixou ali, vibrando, o mais perto do centro do alvo a que se pode chegar.
– Ha, ha! – Bumbão bradou. – Pode comer poeira, Charlie Crunch, agora que você é o SEGUNDO MELHOR jogador deste lado do Tâmisa!
– Você não conhece as regras, sujeitinho? – Charlie perguntou, erguendo a sobrancelha. – Isto só lhe dá cinquenta pontos. O meu dardo acertou a região tripla de vinte, o que dá sessenta.
– Hã? Ah, é claro! É óbvio que eu sabia disso. Eu... hã, só queria lhe dar uma lambuja para animar as coisas – falou Bumbão.
– Obrigado – Charlie agradeceu, tomou posição e arremessou. TUNK! Outro triplo vinte.
Bumbão se curvou e cochichou para uma pessoa que estava assistindo, um homem de boné vagabundo e sem dentes na frente:
– Deu um branco mental! Hum... Qual é mesmo o máximo de pontos que se pode conseguir num arremesso?
– Triplo vinte – respondeu o desdentado.
– É claro – concordou Bumbão, fazendo pontaria. E arremessou. TUNK! Seu dardo pousou grudado nos dois de Charlie.
– Triplo vinte! – a plateia ovacionou. Charlie tinha 120, e Bumbão, 110.
Mas, antes de as ovações diminuírem, Charlie se adiantou e arremessou. Seu dardo caiu tão perto dos dois primeiros que os três vibraram juntos por alguns momentos.
– Triplo vinte! – a plateia exclamou. Charlie ergueu as duas mãos sobre a cabeça e recebeu as ovações do público.
Bumbão se adiantou e fez pontaria.
– Nem precisa jogar. Não há como você conseguir tantos pontos quanto... – disse o sujeito desdentado.
Mas Bumbão já havia arremessado. Seu dardo caiu no triplo vinte, desta vez tão perto dos outros dardos que um deles se soltou do alvo e caiu no chão.
Um murmúrio percorreu a plateia.
– Tudo bem, tudo bem – disse Bumbão, passando a nota que estava em cima do balcão para Charlie, que o encarava, a cara toda vermelha.
– Está tentando me deixar com raiva, sujeitinho? – Charlie rosnou.
– Hein? – Bumbão olhou inocentemente para Charlie, que parecia pensar em estrangulá-lo.
– Você ganhou! – o sujeito desdentado cochichou no ouvido dele. – O dardo que caiu era o dele. Isto significa que ele perde esses pontos. Você realmente conhece as regras?
– Não, mas, falando sério, Charlie, eu estava imaginando se você podia trocar uma nota de duzentas libras para mim. Então poderia lhe pagar um drinque.
Charlie Crunch espichou a cabeça para o lado e disse:
– Alguma coisa aqui está errada. Esse cara não conhece as regras, mas joga dardos como campeão mundial. Não, melhor que um campeão mundial. Usando uma luva!
Ele agarrou Bumbão pelo cabelo, deixou-o ereto no ar e segurou-o a um braço de distância à sua frente.
– Quem você é, realmente? Como sabia que eu estaria aqui? Você é...
Foi interrompido por um grito com sotaque notavelmente escocês de uma das mesas do fundo.
– K’ramba, rpa’z! É não Tartan-Sherl, famoso assaltante mundial de bancos?
Todo mundo na sala virou-se para ver quem tinha dito essas palavras. Era um homem alto, muito magro, de barba, sentado à mesa, usando algo que suspeitosamente parecia uma peruca, e algo que parecia ainda mais suspeitamente um par de óculos de natação. Ao seu lado estava uma menina de nariz tão grande que dava para pensar que ela o tinha colado na cara. Debaixo do nariz havia um pequeno, porém grosso e cabeludo, bigode. Não era o tipo de coisa que se vê todo dia numa garotinha.
– Quietos, vocês dois! Não me entreguem! – Bumbão ordenou.
– Hum, é exatamente o que estamos fazendo! Estamos ENTREGANDO você! – gritou a menina.
– Hã, hã... – ele murmurou e curvou-se na direção do homem desdentado. – Está me dando um branco. Qual é a próxima fala?
– Hein? – o desdentado não entendeu.
– Estou vendo, rapazola, que você... hã, não sabe o que deveria dizer agora – o magricela sentado à mesa disse, levantando-se. – Bem, eu fou chamar o Scotland Yard para eles vierem prenderem você. Sim, pelos céus se eu non fou fazer isto agora mesmo, só se alguém me impede com um soco ou um chute. Chute bem forte de verdade. Mas quem faz isto?
– Oh, era isso! – Bumbão sussurrou e abriu caminho pelo salão lotado. Saltou sobre a mesa, levantou um pé e bateu o salto no tampo dela.
Um murmúrio percorreu de novo o pub de nome comprido demais quando a mesa se partiu em dois pedaços com um crack! ensurdecedor. Seguiu-se outro murmúrio quando uma segunda pancada do salto do campeão de dardos partiu a mesa em quatro pedaços. Depois oito. Depois dezesseis. Depois... bem, quantos vocês acham?
Aí Bumbão começou a chutar os fragmentos de mesa, que voaram pelo ar até acabarem arrumados direitinho como uma pilha de lenha do lado do bar. Então, virou-se para o escocês e para a menina de nariz esquisito e bigode, que estava tremendo, encostada na parede, ergueu o dedo indicador no ar e advertiu:
– Vocês não vão chamar a polícia agora, depois de tudo isto, não é? Não vão chamar, se sabem o que é melhor para vocês.
– Sim, Tartan-Sherl – a menina guinchou com uma vozinha tão patética que daria para pensar que só fingia mesmo estar com medo. – Você é um vilão tão sacana e provoca tanto medo em nós que estamos quase fazendo xixi nas calças. E, como sabemos o que é melhor para nós, bem... bem... – A menina expirou o ar no bigode um par de vezes. Parecia estar tentando lembrar o resto da fala, antes de continuar: – Simplesmente vamos embora sem chamar ninguém.
– Excelente! E já que hoje eu estou de bom humor, vou deixar vocês irem embora sem chutar essas cabeças de estraga-prazeres. Saiam já daqui! – ordenou Bumbão.
E precisamente – ou, pelo menos, mais ou menos precisamente – dois segundos depois, estavam do lado de fora.
Bumbão voltou-se para a turba estarrecida e ergueu os braços no ar, vitorioso.
– Barman, uma rodada do refrigerante mais forte para todo mundo! Por minha conta! E pode botar a mesa na minha conta também! E sirva alguma coisinha especial aqui para o meu novo amigo, o Charlie!
– Mas... – Charlie começou.
– Não, eu me recuso absolutamente a pegar qualquer dinheiro seu, Charlie. Já tenho dinheiro de sobra! – interrompeu-o Bumbão.
Charlie Crunch fitou-o desconfiado por um segundo, e então abriu um grande sorriso.
– Deixe-me ao menos lhe pagar uma cerveja. Que tal uma Guinness, Tartan-Sherl? – perguntou.
– Obrigado, Charlie, mas só bebo... hã, coisa forte – respondeu o menino.
Os dois sentaram-se à mesa e foram servidos de coca-cola e cerveja.
– Então, você está no ramo de assalto a bancos, hein? – Charlie falou, enxugando a espuma do lábio superior.
– É, sim. Estou sempre à procura de outros assaltantes que queiram a companhia de um bandido habilidoso como eu em empreitadas criminosas – disse Bumbão.
– Que pena! Só colaboramos com gente que tenha um registro provado de assaltos de verdade – Charlie falou, encolhendo os ombros.
– Ah, é? E como exatamente eles fazem isso? – indagou Bumbão, pondo o copo sobre a mesa.
– Eles nos convidam para uma empreitada criminosa que eles planejaram, e não o contrário.
– Ah, entendo. É claro, tenho algumas empreitadas criminosas planejadas pela frente – Bumbão disse, e arrotou alto.
– Tem?
– Claro, sou um assaltante, não sou?
– Como o quê?
– Como... hã, o dinheiro mais fácil que você possa imaginar. Vou tirar de velhinhas e bebês.
– Como o quê, eu disse! – Charlie insistiu com impaciência.
– Tirando de velhinhas e bebês, eu disse! – Bumbão repetiu.
– Você poderia ser um pouco mais claro, sujeitinho?
– Bem, sim. Há uma, hã, velha senhora, entende. E uma criança, sabe? – começou.
Charlie curvou tanto sobre a mesa que o C na sua testa quase tocou a ponta do cabelo ruivo de Bumbão.
– Sim?
– Bem, ela, hã, ela... hã, a avó da criança, ela geralmente a leva para passear no carrinho pelo Hyde Park toda a manhã, por volta das nove horas.
– E cadê o dinheiro nisso aí? – Charlie perguntou, cético.
– No carrinho.
– No carrinho?
– É, sim. Essa avó é podre de rica, mas morre de medo de ter a casa assaltada, então leva o dinheiro junto sempre que sai para dar um passeio com a criança – falou Bumbão, depois inclinou-se para trás na cadeira e tomou um gole de refrigerante. – A avó pensa: “Quem teria coragem de assaltar uma velhinha com um bebê em plena luz do dia?”. E quem teria coragem de fazer isso?
– He, he, he – Charlie deu uma risadinha. Eu conheço alguém. Tudo bem, sujeitinho, me dê os detalhes.
– Eu tive de inventar os detalhes na hora – Bumbão explicou mais tarde, deitado no sofá, já no quarto de hotel, enquanto o doutor Proktor tirava a peruca e Lise arrancava o nariz falso com o bigode grudado. – Então disse que essa vovozinha estaria no Hyde Park às nove horas amanhã de manhã.
– E você espera que nós façamos o papel da avó com o neto? – Lise perguntou com um grunhido. Depois foi ao banheiro escovar os dentes, porque era hora de os engenhosos agentes secretos dormirem.
– Com um carrinho de bebê cheio de dinheiro? – perguntou o doutor Proktor suspirando e pondo sua touca de dormir.
– Ei, eu tinha de inventar alguma coisa! – Bumbão insistiu, tirando as meias. – Se tudo correr bem, Charlie prometeu que eu poderia participar de um dos assaltos deles. E assim que eu estiver fazendo parte da gangue, poderei começar a obter informações, certo? – Cheirou as meias e fez uma careta.
– Onde vamos arranjar o dinheiro para encher um carrinho de bebê amanhã de manhã? Se é para estarmos no parque às nove, os bancos ainda nem vão estar abertos! – Lise ressaltou.
Bumbão juntou as mãos atrás da cabeça e contemplou os dedos dos seus pés.
– Relaxem, tenho uma solução. Simplesmente confiem em Tartan-Sherl, gente!
O doutor Proktor ficou vermelho e disse:
– Sinto muito por essa aí, Bumbão. Eu estava tentando chamar você de T-O-R-D-E-N-S-K-J-O-L-D, em homenagem ao mais famoso herói naval norueguês de todos os tempos. Mas, aí, desde que tomei aquela pílula multilíngue, a minha língua simplesmente non contsegue mais ditzer algunos sons norueguetses.
Lise botou a cara para fora pela porta do banheiro e parou de escovar os dentes por um minuto.
– Você acabou de dizer que tem uma solução, Bumbão? Ótimo! – disse com sarcasmo. – A única coisa com que podemos contar é provavelmente um plano em que você é o único que se diverte e acaba como herói! – Desapareceu de volta dentro do banheiro, e ambos ouviram mais ruídos de escovação.
– Lise, é claro que você também vai se divertir. Amanhã é você quem vai fazer o papel principal – falou Bumbão.
– É mesmo? – ela gritou. Por um momento, o banheiro ficou em silêncio, até que berrou: – E se algo sair errado amanhã?
– Relaxe, é um plano à prova de água, à prova de balas. Nada vai sair errado! Porque não há nada que possa sair errado! – ele respondeu.
Depois disso, o menino achou que não havia mais muita coisa para discutir. E tampouco o Big Ben, aparentemente, porque deu onze badaladas. Quinze minutos depois, todos estavam na cama. Pode ser que não tenham adormecido logo. Mas, quando o Big Ben badalou doze vezes, já estavam todos dormindo.
Capítulo 9.
O ínfimo e ridículo roubo
O SOL DA MANHÃ BRILHAVA no grande parque no meio de Londres, o Hyde Park, e eram exatamente – não, não exatamente –, eram mais ou menos nove horas. Uma velha senhora caminhava com um carrinho de bebê por uma das trilhas de pedestres que cruzam o parque.
Podia-se ver alguém sentado – ou sentada – num banco segurando um jornal diante do rosto. O estranho era que, quando se observava mais de perto, via-se a mão que segurava o lado esquerdo do jornal, grande e peluda, enquanto a mão que segurava o lado direito era minúscula, sem pelos e muito branca. O jornal era The Daily Observer of Times, o mais grosso e mais largo jornal do hemisfério Ocidental. E se tivéssemos visão de raios X e pudéssemos ver, através de todas as páginas, textos sobre políticos britânicos que haviam feito algo errado, a decoração floral em Harrogate, o técnico do time de futebol do Rotten Ham, que na verdade era um pescador de camarão que nunca tinha jogado futebol, poderíamos perceber que não era só uma ou duas, mas quatro pessoas escondidas atrás do jornal.
E essas pessoas por acaso estavam sentadas na sequência da ordem alfabética dos seus nomes: Alfie, Bobbie, Charlie. E Maximus Rublov. Espera um pouco! Rublov estava junto? Bem, em todo caso, era um sujeitinho minúsculo, a imagem escrita e escarrada de Rublov.
– São eles? – sussurrou Alfie.
Nenhuma resposta.
– Sherl!
– Ah, sim, esse sou eu – disse o sujeitinho minúsculo, ajustando sua máscara de Rublov.
– Perguntei se aquela velha ali com o carrinho de bebê é ela! – falou Alfie.
Rublov, que na verdade era Sherl, que na verdade era Bumbão, tirou a cara do jornal para espiar.
– Sim, são eles. Sincronizem os relógios!
– Por quê?
– Porque é... hã, é bom ter os relógios sincronizados...
– Vá logo em frente com isso, seu tampinha! – Alfie ordenou.
– Sim, vou sim, é claro.
Bumbão largou o jornal, deu um pulo, descendo do banco do parque, e correu na direção do carrinho de bebê, gritando em alto e bom som para que todo mundo em volta pudesse ouvir suas palavras:
– Isto é um assalto mascarado em plena luz do dia! Entregue o carrinho do bebê imediatamente, ou as coisas não vão ficar nada boas para a senhora! Nem para o seu neto!
A esquisita mulher arrumou o vestido, o gorro e os óculos de natação, e gritou de volta, num tom igualmente alto e claro:
– Que terrível! Que pavoroso! Não atire em mim com essa... hã, pistola.
E aí acrescentou, com voz bem mais baixa:
– Cadê a pistola que você deveria ter?
– Eles não tinham uma arma para eu pegar emprestada – Bumbão respondeu num cochicho. – Só finja que está desmaiando!
E, com isso, a esquisita velha caiu na grama, a saia escorregando para o lado, revelando um par de pernas exageradamente finas e peludas.
Bumbão debruçou-se sobre o carrinho e olhou o rosto de Lise. Ela usava uma touca de bebê e chupava uma enorme chupeta rosa. Parecia furiosa.
– E você chama isto de papel principal? – sibilou.
Bumbão agarrou-a e tentou erguê-la e tirá-la do carrinho.
– Quer fazer o favor de mostrar um pouco de resistência, sim?! – cochichou.
Lise bateu na cabeça dele e começou a berrar.
– Não tanta resistência assim! E me ajude a tirar você do carrinho, você pesa meia tonelada! – gemeu Bumbão.
Com isso, ambos tombaram para trás. Lise rolou para longe pela grama, gritando com toda a força. Então ouviram uma voz de homem chamando:
– Ei, aí! O que está acontecendo?
Bumbão se pôs de pé, agarrou o carrinho de bebê e começou a andar.
– Pare!
Ele virou-se. Havia um homem de uniforme preto. Primeiro pensou que devia ser um cavaleiro andante que havia perdido o cavalo, já que usava um capacete preto na cabeça e tinha um chicote na mão. Mas aí percebeu que a coisa era séria e começou a correr.
– Pare em nome da lei! – o homem gritou.
Era um policial!
O coração de Bumbão começou a bater com a mesma rapidez com que suas pernas martelavam o chão atrás do carrinho de bebê.
– Tiras! – sibilou ao passar pelo banco do parque. O Daily Observer of Times foi jogado no ar, e três homens de jeans e suspensórios saíram correndo junto com Bumbão e o carrinho de bebê.
Ouviram um apito soando atrás deles.
– Ele está com reforços – Charlie bufou.
Bumbão virou-se para olhar e, com toda certeza, agora havia três policiais correndo atrás deles. E a polícia estava chegando perto. Mesmo assim, os Irmãos Crunch começaram a diminuir a velocidade.
– Mais depressa! O que vocês estão fazendo, caras? – Bumbão perguntou.
– Somos assaltantes de bancos, estamos fora de forma – Charlie arquejou.
Estavam chegando perto da descida de uma ladeira, e os policiais estavam a apenas seis ou sete metros atrás deles.
– Pulem pra dentro! – Bumbão falou, saltando para dentro do carrinho.
– Hein? – Charlie não entendeu.
– Pulem pra dentro, agora!
Com isso, os três irmãos saltaram para dentro do carrinho de bebê e começaram a descer a ladeira. Alfie e Bobbie agarravam-se com força a uma das laterais, enquanto Charlie estava sentado dentro do carrinho, com as pernas penduradas para fora, do lado de trás. Bumbão estava sentado na frente, tentando guiar, inclinando-se para a esquerda ou para a direita. Desciam cada vez mais rápido, e o oscilante carrinho de bebê ameaçava tombar sinistramente cada vez que Bumbão se virava para mantê-los na estreita trilha de asfalto. A trilha acabou se alargando um pouco. Bumbão olhou para trás e viu que os policiais iam ficando cada vez menores, até que finalmente desistiram de correr.
– Eeeeeba! – gritou Bumbão, fechando os olhos e curtindo a sensação do vento e do sol entrando pelos furos da sua máscara de borracha.
– Hã, Sherl... – disse Alfie.
Delicioso vento, deliciosa velocidade, deliciosa liberdade.
– Sherl! – Alfie chamou, insistindo.
– Ah, sim, sou eu, né? – Bumbão respondeu, abrindo os olhos. O carrinho tinha diminuído a velocidade. Estavam no pé da ladeira. Cinco policiais bloqueavam o caminho na frente deles, todos de braços cruzados.
– Segura aí! – falou Bumbão, dando um salto para o lado esquerdo em cima do chapéu-coco de Alfie, enterrando-o em cima dos olhos.
– Não consigo ver nada! – reclamou Alfie, agitando os braços, enquanto o carrinho de repente virava para a esquerda. Tão de repente que Bumbão e o chapéu estavam prestes a voar, quando Bobbie agarrou a lapela do paletó de lã dele no último instante e segurou-se nele.
O carrinho, com os quatro dentro, saiu do parque numa corrida desenfreada, até chegar a uma praça de pedestres pavimentada. A multidão toda pulou para o lado, e eles quase atropelaram um homem de pé em cima de um caixote, gritando que o fim do mundo estava perto. Bumbão não queria mais continuar a fuga, pois acabavam de descer para a rua, uma rua movimentada, com carros e ônibus passando por eles a toda a velocidade, e cada um deles do lado errado da rua! Afinal de contas, estavam na Inglaterra.
Por um segundo escaparam de serem esmagados por um enorme Rolls-Royce branco!
Bumbão respirou fundo e pulou em cima da cabeça de Bobbie, agarrando freneticamente sua careca lisa. Quando estava quase se soltando, conseguiu agarrar a narina de Bobbie com as duas mãos. Ouviu o irmão do meio gemer, enquanto o carrinho virava para desviar do tráfego na última hora, correndo até o lado oposto da rua.
E lá foram dar exatamente na traseira de um ônibus vermelho de dois andares, parando com uma suave batida.
– Ufa! – disse Bumbão.
– Ufa! – falou Bobbie.
– Onde estamos? O que está acontecendo? – Temos que dar o fora daqui! – gritou Charlie, puxando seu chapéu, tentando trazê-lo de volta para cima para que pudesse enxergar.
Viraram-se e viram os cinco policiais correndo pela rua na direção deles. Três haviam perdido o capacete engraçado, mas todos tinham o cassetete nas mãos. Sopravam um apito, todos com a cara vermelha de tão zangada. Não se pareciam em nada com os policiais que Bumbão vira nos folhetos turísticos de Londres. Não havia nenhuma chance de que ele e os Irmãos Crunch, totalmente fora de forma, conseguissem se safar.
O ônibus começou a andar, e Bumbão tossiu por causa do escapamento. Então, para sua surpresa, percebeu que começaram a se mover de novo.
Virou-se e viu Bobbie Crunch dando-lhe um sorrisinho. Bobbie tinha agarrado o cabo de madeira que servia de corrimão na traseira do ônibus, e que de repente se transformara num reboque para eles.
Ouviu-se uma voz vinda do alto-falante no teto do ônibus:
– Bem-vindos a este passeio guiado por Londres. Se olharem à sua direita, verão o Speaker’s Corner, o lugar onde qualquer um pode fazer um discurso, e o Hyde Park. Passaremos por Trafalgar Square, pelo Buckingham Palace, o palácio da rainha, e...
Os policiais atrás deles não corriam mais. Estavam parados, dobrados para a frente, com as mãos nos joelhos, arfando e bufando tanto que as costas subiam e desciam.
– Eeeeeba! – Bumbão gritou pela segunda vez nesse dia, mesmo sendo ainda nove e dez da manhã.
Um rosto surgiu na parte de cima do ônibus.
– Esqueçam o Speaker’s Corner! Ei, todo o mundo, vejam quem está aqui embaixo! É o Maximus Rublov!
Mais rostos apareceram na parte de cima do ônibus. Aparentemente, havia assentos na plataforma do teto.
– Ô, Rublov! Que é que há? Você não tem dinheiro para comprar um bilhete de ônibus? – outro turista falou.
– Não, pois vou comprar o Ibranaldovez! – berrou Bumbão, ficando de pé no carrinho e fazendo uma galante mesura.
De repente, ele perdeu o equilíbrio quando o carrinho virou para a esquerda e se soltou do ônibus.
Agora Bumbão e os Irmãos Crunch desciam correndo uma ruela de pedrisco que ia ficando mais e mais estreita, mais e mais escura à medida que desciam. Os pedriscos faziam os dentes dele baterem dentro da boca.
– On-de es-ta-mos? – conseguiu dizer.
Exatamente nesse momento o carrinho de bebê virou para a direita, ficando de frente para o muro de pedra de uma construção. Justo no momento em que Bumbão teve certeza de que iam bater, abriu-se um alçapão. Eles continuaram correndo por uma trilha e chegaram até o chão de um porão. Entraram de cara numa enorme e preta pilha de carvão.
– Estamos em casa! – anunciou Charlie.
Bumbão tossiu, arrastou-se para fora do carrinho capotado e esfregou os olhos tirando a fuligem. Enquanto estava parado esfregando os olhos, percebeu que todos ficaram quietos. Ninguém dizia uma palavra. Devia haver alguma coisa na sala que fazia que os irmãos, em geral tagarelas, não...
Ele abriu os olhos. Deu de cara com um par de pernas que eram pelo menos tão peludas quanto as que tinha visto no parque, mas grossas como troncos de árvore. Foi olhando lentamente para cima, mais alto, mais alto, e os pelinhos na sua nuca se arrepiaram.
– Mama – sussurrou Charlie.
Ela, cujo nome podia ser apenas sussurrado, tinha dois braços monstruosos, que estavam cruzados sobre o seu monstruoso peito. Acima dele havia uma cabeça de mulher que parecia ter saído de uma fôrma de waffles, porque era larga como um limpa-neve e coberta, camada sobre camada, por uma pele cheia de pregas, superficial. E um par de olhos atentos, brilhantes, parecendo dois pedaços de carvão no meio das dobras de pele.
– Mama – sussurrou Bobbie.
Ouviu-se um leve estalido – pop – quando Alfie finalmente conseguiu arrancar o chapéu-coco da cabeça e enxergar de novo.
– Mama – murmurou.
Mas a mulher não prestava atenção neles. Seus olhos estavam focados no pequeno ruivo.
– Então, o que é você? – crocitou, a voz parecendo um dragão médio com um problema ligeiramente acima da média de controlar a raiva e um caso grave, adiantado, de laringite.
– Eu so-sou... eu so-sou... – começou Bumbão, a voz tremendo – Eu sou Bumb–Sherl! Sou Sherl! E sou um bandido. Mas não um desses bandidos dignos de confiança. Um bandido comum, até a alma, na verdade.
– Melhor para você – a mulher falou, inclinando-se por cima de Bumbão. E não é que ela também tinha um bafo de dragão? – Porque eu sou... – começou, e aí baixou a voz até virar um sussurro rangente perto do ouvido dele – Mama Crunch.
– Gulp! – Bumbão deixou escapar, involuntariamente.
– E espero que você não seja um maricas, senhor Sherl, porque agora está na hora de comer. Sacou?
Sherl olhou para os outros três, que pareciam realmente aterrorizados.
– Hã... estou imaginando... o que vamos comer, senhora Crunch – disse Bumbão.
Mama Crunch se endireitou e soltou uma risada que parecia alguém tentando dar partida no carro quando está tudo gelado lá fora.
– É, aposto que sim.
Capítulo 10.
A verdade sobre
a Monopolinésia
BUMBÃO E OS IRMÃOS CRUNCH estavam sentados em torno da mesa de jantar. A sala era ligeiramente inclinada para noroeste, desde que uma bomba tinha entrado direto pelo telhado durante a Segunda Guerra Mundial. A bomba não havia explodido, mas esmagou a mesinha de café e quebrou as duas lentes dos óculos do vovô Crunch e seu copo de uísque quase cheio. Ele estava tirando um cochilo no sofá, depois de passar a tarde fazendo alguns roubos. Desde então, pouca coisa mudara na sala de estar. Até mesmo as janelas ainda estavam cobertas com as cortinas de blecaute que haviam sido penduradas para impedir que os soldados alemães usassem alguma luz nos prédios para os orientar na pontaria. Agora, as cortinas de blecaute serviam para impedir que qualquer pessoa olhasse para dentro e descobrisse onde os Irmãos Crunch moravam. A única luz na sala de estar inclinada vinha do forno a carvão.
– Finja que está gostando – sussurrou Charlie. Ele encheu a boca com um punhado de comida e deu um soquinho em Bumbão, que estava sentado quieto, a fitar o prato que Mama Crunch enfiara na sua frente, dizendo que era peixe do fundo do mar e chips de unha do pé.
– Hã, e o molho, o que é? – Bumbão perguntou, enfiando o garfo numa coisa cinzenta e pegajosa que cobria o peixe.
– Esse molho é chamado tosse do vovô – respondeu Charlie, e fez uma careta ao dar uma mordida. – Mas não creio que o catarro do vovô tenha realmente esse gosto...
– Shh! – disse Alfie.
Estavam escutando os sons vindos da cozinha, onde Mama Crunch ainda fervia e fritava.
– Ontem estava pior. Comemos cachorro-quente – Charlie falou.
– Cachorro-quente? Sanduíche de cachorro-quente? – indagou Bumbão.
– Era mais como um buldogue raquítico aquecido com couve-flor. Isto aqui tem gosto de...
Foram interrompidos por Bobbie, que se debruçou e vomitou debaixo da mesa.
Alfie apontou com a cabeça na direção do prato de Bumbão.
– Não tem saída, Sherl. É melhor você comer a tosse do vovô do que ter de encarar a – diminuiu a voz até virar um sussurro – Mama. – Voltou a erguer a voz: – Pode acreditar.
– Acredito – Bumbão disse, olhar fixo no prato. – Bem, então acho que é melhor eu acabar logo com...
– Isso mesmo, exatamente – observou Charlie.
– O quê, exatamente? – indagou Bumbão.
– Infelizmente, a coisa não acaba quando você termina de comer isso aí.
– Não acaba? O que acontece depois?
– A pior parte – Alfie falou com uma voz grave, fúnebre, que fez os copos de água vibrarem.
– O pudim de Birmingham – os irmãos disseram todos juntos.
– Shh! Ela vem vindo... – alertou Bobbie.
A porta da cozinha se abriu, e o enorme corpo de Mama Crunch entrou. Ela dirigiu-se diretamente a Bumbão.
– O que é isso? – bufou com o seu bafo fedido de dragão derramando da sua imensa boca.
Bumbão enfiou com rapidez o garfo na boca.
– Tenho primeiro que admirar a sua comida, senhora Crunch – ele falou, mastigando devagar. – Peixe do fundo do mar delicioso, senhora Crunch, derrete na boca! E a senhora simplesmente vai ter que me contar como conseguiu chips de unha do pé tão crocantes e a Tosse do Vovô tão... hã, pegajosa.
– Estou perguntando: o que é isso? – berrou a mulher, cujo nome deve ser apenas sussurrado, jogando um monte de notas sobre a mesa. – O carrinho de bebê está cheio de dinheiro de Monopoly!
De repente, todo ruído de mastigar e bater de pratos cessou, e todo mundo olhou para Bumbão.
– Dinheiro de Monopoly? – sibilou Alfie, fechando um dos olhos e lambendo lentamente a longa faca de cabo preto que segurava na mão.
– Ah, sim, não é ótimo? Dinheiro real de Monopoly. – Bumbão falou, deleitando-se com sua cara de sabichão.
– Mas ele não vale nada! – Bobbie observou.
– Não vale? – Bumbão contestou, olhando para Bobbie com ar de surpresa, e falou: – Ah, você está pensando no dinheiro que usam naquele jogo... como é mesmo o nome?
Olhou ao redor, mas não obteve resposta, apenas olhares ameaçadores das faces vermelhas à sua volta.
– Monopoly! – Bumbão exclamou. – Ah, mas aquilo é dinheiro falso de Monopoly. Este aqui é dinheiro real de Monopoly.
– E qual é a diferença? – quis saber Charlie.
– Bem, obviamente, estas notas autênticas têm marca-d’água – respondeu.
Alfie empurrou o chapéu-coco para trás, segurou uma das notas contra a luz e disse:
– Não estou vendo nenhuma marca-d’água.
– É claro que não, ela é feita de água – retrucou Bumbão.
– Que absurdo é esse? Dinheiro de Monopoly é dinheiro de brinquedo, seja falso ou real – intrometeu-se Mama Crunch.
– Esse é um mal-entendido muito comum, senhora Crunch – Bumbão explicou, levantando um chip de unha do pé. Era amarelo e branco e tinha a aparência exata de... bem, uma velha e usada unha do pé. – Mas, quando criaram o jogo Monopoly, copiaram o dinheiro usado na Monopolinésia.
– Monopolinésia? – Mama Crunch repetiu, baixando os braços ao lado do corpo, de um jeito que Bumbão pôde ver seus grossos bíceps.
– É – Bumbão respondeu, esmagando um chip de unha do pé entre os dentes e dando um rápido sorriso.
– Não existe país chamado Monopolinésia – Alfie falou baixinho.
Bumbão não parava de mastigar. Então, disse:
– Se os monopolinésios pudessem ouvir você, ficariam realmente ofendidos, Alfie.
– Ah é? – replicou Alfie. Ele levantou o queixo e passou a faca pela garganta, fazendo um som arrepiante. Pequenos chumaços de restolho negro espirraram em cima do peixe, parecendo pimenta. – E o que eles fariam?
– Provavelmente, não muita coisa – Bumbão respondeu, encolhendo os ombros. – Porque eles são tímidos, sabe?, os monopolinésios. E tão pequenos... O país deles não passa de um pequeno atol no Pacífico, em algum ponto entre Togaparte e Guano Dinamarquês.
Nesse exato momento, Bumbão sentiu algo grande, pesado e morno assentar-se na sua nuca. Mama Crunch tomara o assento na cadeira ao lado da sua, e o braço dela, envolvendo-o, o fez lembrar de uma enorme cobra anaconda que ele tinha encontrado uma vez.
– Escute aqui, senhor Sherl, meus garotos podem não ser os mais brilhantes alunos de geografia, mas, infelizmente para o senhor, cursei o ensino médio e a escola de prendas domésticas, e nunca ouvi falar de nenhuma Monopolinésia! Então vou partir o senhor em pedacinhos e botá-lo na gaiola dos passarinhos. Alfie, passe-me a faca...
– Com todo o respeito, senhora Crunch – Bumbão falou, rindo histericamente, enquanto seu coração batia como uma cartolina nos aros de uma bicicleta. – Lembre-se de que a Monopolinésia é tão pequena que nem mesmo possui assento na ONU. Eles só têm um posto de observador lá no fundo, sem nenhum direito a voto e sem chave dos banheiros. E se algum exército atacar a Monopolinésia, nenhum outro o ajudará, porque de que adiantaria colocar-se ao lado de um país tão pequeno e insignificante. É assim que as coisas são e sempre foram para nós, que somos pequenos em estatura. – Olhou para cima, fitando Mama Crunch com expressão de grande tristeza. – E é por isso que os monopolinésios se escondem e fingem não existir. É difícil achar alguma informação sobre o país em qualquer lugar.
Mama Crunch pegou a faca que Alfie lhe estendia e apertou o braço em volta de Bumbão com um pouco mais de força.
– Entendo, senhor Sherl. O senhor está alegando que um país inteiro consegue dar um jeito de se manter em segredo?
– Não acreditam em mim? – ele perguntou, a voz soando meio engasgada. – Experimentem olhar no Google! Se acharem lá alguma coisa sobre o país de Monopolinésia, dou a você a minha parte do assalto. E não é pouca coisa. Na última vez que chequei a taxa de câmbio, um monopólio valia treze libras inglesas.
Mama Crunch encostou a ponta da faca na garganta de Bumbão, que engasgou e sentiu seu pomo de adão arranhar a ponta da faca na subida e na descida. Fechou os olhos e esperou ser transformado em comida de passarinho.
– Verifique, Charlie – a voz de dragão ordenou.
Bumbão ouviu dedos digitando um telefone celular, enquanto o braço de Mama Crunch apertava ainda com mais força o seu pescoço. Já, já ele ia perder a consciência. A sala ficou em completo silêncio. Abriu os olhos. Tudo estava preto. Será que já tinha morrido? Caput, acabado, finito? Um cheiro esquisito. Não podia ser o céu, a não ser que o céu cheirasse a meias molhadas que tinham ficado dentro de um saco plástico tempo demais.
– Sherl tem razão – ouviu uma voz dizendo ao longe. – Nenhum resultado para o país Monopolinésia.
A pressão aliviou. E Bumbão percebeu que toda a sua cabeça estava sendo empurrada para dentro da axila nua de Mama Crunch. Aí o braço sumiu, e tudo ficou leve outra vez. Bumbão começou a arfar, em busca de ar.
– Olha aí, estão vendo? Agora vocês acreditam? – arquejou.
– Hum... Vamos descobrir logo, logo se o dinheiro vale alguma coisa. Venham, vamos levá-lo ao banco para ver se podemos trocar por libras inglesas decentes – murmurou Mama Crunch, usando a faca como palito de dentes.
– Não, não, está louca? – berrou Bumbão. – Se trocarmos agora, a Scotland Yard vai seguir a pista do dinheiro e chegar diretamente até nós. O que temos de fazer é pôr o dinheiro numa conta bancária aqui em Londres e encomendar uma lavagem de dinheiro por intermédio da Suíça. Aí poderemos trocá-lo por libras inglesas, daqui a alguns dias, quando o dinheiro voltar, já lavado.
– LAVAR o dinheiro? Você ficou maluco? Ele vai encolher! – Charlie exclamou.
– Calma, calma, Charlie. Lavagem de dinheiro só quer dizer confundir os idiotas da polícia mandando o dinheiro dar um pequeno passeio para eles não saberem de onde veio originalmente – explicou Mama Crunch.
– Exato – assentiu Bumbão, mesmo que para ele não estivesse totalmente claro como funcionava a lavagem de dinheiro. – Aliás, por é que vocês acham que ainda estou solto? Passo por uma lavagem dos pés a cabeça às sextas-feiras, a cada duas semanas. Isso é recomendado a todos os assaltantes.
– Hum... – murmurou Mama Crunch. – No fim das contas, as coisas que esse pequenino está dizendo podem não ser tanta bobagem. Vamos depositar o dinheiro no banco. Mas, se houver alguma coisa suspeita, então não vamos usá-lo para alimentar os passarinhos, senhor Sherl.
– Não? – Bumbão disse, engasgando.
– Não, o senhor não vai se safar dessa tão facilmente. Vamos levá-lo direto para a mesa de pôquer – falou Mama Crunch.
– Juntas sangrentas – Charlie soltou uma risadinha.
– Vamos lá, vamos até o banco – disse Alfie.
– Ei, não tão depressa! Primeiro temos de comer o pudim de Birmingham – disse Mama Crunch, erguendo a mão. E foi para a cozinha.
– Bela tentativa, Alfie – sussurrou Bobbie, e deu um pesado suspiro.
Então, a porta da cozinha abriu-se outra vez e Mama Crunch entrou com um grande prato com algo em cima que balançava e tremia, como uma água-viva que alguém tivesse enchido com uma bomba de bicicleta.
– Podem cair de cara!
Bumbão olhou para o seu prato, no qual o dragão colocara um enorme pedaço. Não havia escapatória. Pegou um pouquinho com sua colher. Fechou os olhos. Enfiou a colher na boca e pensou em gelatina com toda a força. Pensou com tanto empenho que não só conseguiu sentir o sabor de gelatina, mas pôde ouvir os pássaros cantando na pereira do doutor Proktor e seus amigos batendo papo, o sol aquecendo sua face, a alegria de saber que ainda havia pelo menos um metro e meio de gelatina no prato de servir. Pegou outra colherada, desta vez maior, e mais outra.
– Ah, que pudim delicioso, adorável senhora Crunch! A senhora precisa me dar a receita, senão vou ter de roubá-la da senhora – falou de boca cheia.
Ergueu os olhos para a senhora Crunch, parada por cima dele com os braços cruzados. Observou a expressão vigilante do rosto dela primeiramente mudar para descrença. E quando deu ainda outra mordida, fazendo um barulhinho que fez, seria possível ver – se você olhasse mesmo de perto – um leve sorriso entre as dobras de pele naquela cara ríspida e carrancuda. O sorriso durou um segundo e sumiu.
– Basta de comer! Agora vamos ao banco! – ela ordenou.
Capítulo 11.
Um depósito muito louco
ERAM EXATAMENTE... na verdade, não tenho muita certeza do horário, mas já era meio tarde. E ainda estamos em Londres. Um velho e enferrujado Hillman Spitfire Roadster estava estacionado na rua Newscorphamptonshire, do outro lado da rua do Banco Midclay Barkland Gordon. Tudo bem, já basta. Não vão aparecer mais compridos nomes ingleses neste capítulo.
Charlie Crunch estava sentado ao volante e Bumbão, vulgo Sherl, ao seu lado.
– Obrigado por me emprestar sua arma emprestada – agradeceu Bumbão.
– É só uma pistola de água. Para que você precisa dela? Só está indo depositar o seu dinheiro – respondeu Charlie.
– Velhos hábitos, sabe? Nós, assaltantes, nos sentimos nus dentro do banco sem uma arma – Bumbão explicou, espiando dentro da sacola com o dinheiro do Monopoly.
Respirou fundo e tentou não pensar em pássaros famintos nem em juntas sangrando. Aí colocou sua máscara de Maximus Rublov, abriu a porta do carro e saltou. Olhou ao redor e atravessou correndo a rua molhada de chuva. Conferiu seu reflexo na porta espelhada antes de entrar no pequeno banco quase vazio.
– Posso ajudar? – perguntou a senhora atrás do balcão, quando Bumbão chegou perto e ficou na ponta dos pés, na frente dela, para ser visto.
– Oh, não muito – respondeu, tirando a pistola de água do cinto e pondo-a sobre o balcão, enquanto empurrava um bilhete pelo vidro do guichê. Levara muito tempo para decidir o que devia dizer, e agora lhe ocorreu que podia ter gasto um pouco mais de tempo pensando. O bilhete dizia:
ISTO É UM DEPÓSITO! Aceite este dinheiro, abra uma conta e me dê um recibo real de 150 mil monopólios. Sim, eu sei que essa moeda não existe de verdade, mas faça o que eu digo, senão disparo esta pistola, que você não deve achar que é um brinquedo. Leia o resto do bilhete só se tiver hipermetropia. Obrigado.
Como ainda está lendo, isto significa que você TEM hipermetropia e TALVEZ tenha visto que está escrito “Made in Taiwan” na pistola. Mas você tem que saber que em Taiwan também fazem coisas de verdade, e isto NÃO é uma arma de brinquedo. Juro por Deus. Ou juro por qualquer coisa, sei lá. Tenha um bom dia.
Ela levou um bocado de tempo lendo o bilhete. Depois leu de novo. Aí balançou a cabeça e começou a digitar no teclado.
Bumbão olhou em volta com nervosismo e tentou sorrir naturalmente para a câmara de vigilância no teto e para o guarda que estava parado no canto, meio adormecido.
– Aí está, senhor. E obrigada por fazer negócios conosco – disse a mulher, entregando o recibo.
– O dinheiro encontra-se na conta, e está tudo em ordem – Bumbão falou, mergulhando de cara na nova leva de pudim de Birmingham que Mama Crunch pusera à sua frente.
– Maravilha! Estamos ricos! – exclamou Bobbie, lendo o recibo.
Ele deu uma risada e cutucou com o cotovelo Alfie e Charlie, um sentado de cada lado, à mesa de jantar, na sala da família Crunch, com as cortinas pretas fechadas. Lá fora tinha começado e parado de chover três vezes e escurecera.
– Bem, há ricos e ricos – disse Mama Crunch, agarrando o recibo. – Não estamos exatamente milionários. O aluguel e as contas do aquecimento não se pagam sozinhas. Senhor Sherl, Londres é supercara, quase tão cara quanto Tóquio. Em alguns dias vou ser obrigada a mandar meus garotos voltar a fazer algumas batidas de carteira básicas. Senão, vamos ter de voltar direto para o albergue de pobres do senhor Dickens.
– Bem, de qualquer maneira, somos monopolários – comentou Bumbão, escavando o pudim de Birmingham. – E isto aqui está ainda melhor que a gelatina do doutor Pro... hã, quer dizer, doutor MacKaroni, senhora Crunch. A senhora por acaso não teria um pouquinho mais, teria?
Mama Crunch riu, batendo nas costas de Bumbão com força suficiente para o pudim quase subir de volta, e desapareceu na cozinha.
– Toma! Isto aqui é seu! – disse Alfie, estendendo um enorme charuto aceso para Bumbão. Ele aceitou o charuto e deu uma tragada, fazendo o sinal de V de vitória com os dedos. Seu rosto foi ficando lentamente azul.
– E então? – perguntou Alfie.
E mais azul.
– E então? – indagou Bobbie.
E aí de um azul-marinho, azul-escuro. Uma gota de suor rolou até a pontinha arrebitada do seu nariz.
– Fale conosco, Sherl – gritou Charlie, preocupado.
E quando Bumbão finalmente falou, fez isso inspirando, e sua voz soou como um chocalho mortífero:
– Gosto de viver perigosamente. Vou fumar o resto do charuto sozinho na cama.
Apagou o charuto no prato de pudim e apoiou a testa contra o tampo da mesa.
– Agora que estamos discutindo sobre perigo... – disse, à medida que o tom azul da sua pele foi desaparecendo. – Caras, vocês leram sobre o diamante que foi roubado na África do Sul? – Levantou a cabeça e olhou para os irmãos. – Agora, esses aí são assaltantes que gostam de viver perigosamente! Pergunto a mim mesmo quem poderia ter feito aquilo, porque foi impressionante. Foi sim, foi sim... – Serviu-se de mais pudim. – Suponho que o mundo nunca vai saber quem são esses superassaltantes...
– He, he... – riu Charlie, olhando para os irmãos. – Superassaltantes, ouviram isso, rapazes?
– He, he... Não somos pouca coisa, hein? – falou Bobbie.
A colher de Bumbão parou a meio caminho da boca.
– O quê? Vocês estão brincando. Não estão querendo dizer que... que vocês... caras...
– He, he... E não foi só o diamante que roubamos, hein, rapazes? – Alfie completou.
– Não só o diamante? – Bumbão exclamou, estarrecido.
– Necas – confirmou Alfie, apagando seu charuto. – A reserva de ouro do Brasil, a reserva de ouro da Noruega. Atacamos em três partes diferentes do mundo em três semanas.
– Vocês são bandidos acima da média! Caras, vocês são os meus ídolos! Para quem fizeram todos esses serviços?
– Por que está perguntando isso? – quis saber Alfie.
Bumbão enfiou a colher na boca.
– Vocês não são suficientemente espertos para fazerem isso por conta própria, então... – Bumbão parou de comer. Olhou para cima. Viu todos os três observando-o. – Quer dizer, suficientemente tolos para fazerem isso por conta própria, he-he-he.
– Então... É iiiiisso que você está querendo dizer? – Alfie perguntou lentamente.
– Claro! É muito mais inteligente fazer o serviço e ser pago por ele do que ser o idiota que precisa guardar o diamante e todo aquele ouro enquanto agentes secretos de pelo menos três países estão tentando encontrar. Certo? – Bumbão respondeu, engasgando.
– Ah! O sujeito para quem fizemos o serviço não é tão tolo quanto você pensa – disse Charlie.
– Quem foi? – Bumbão perguntou depressa.
– Você não precisa ficar metendo seu nariz de amendoim nisso. Mas ele está guardando o ouro em um lugar que ninguém pode encontrar – respondeu Alfie.
– Puxa! Então deve estar trancado atrás de três grossas portas blindadas num cofre de banco tão protegido que não dá nem para chegar perto – observou Bumbão.
– He, he... – riu Charlie.
– He, he... – riu Bobbie.
– He, he... – riu Alfie.
– Vocês não estão querendo dizer que ele realmente tem um cofre assim? – Bumbão perguntou, arregalando os olhos.
– Você não entraria lá de jeito nenhum, sujeitinho! É considerado o cofre mais seguro do mundo. À prova de roubo, à prova de bomba atômica, até mesmo à prova de Irmãos Crunch – falou Alfie.
– É isso aí. Ele resiste absolutamente a tudo. É impossível arrombá-lo. Tem raios infravermelhos e ultrarriscamarelos que mesmo para um sujeito do seu tamanho são impossíveis de atravessar – confirmou Bobbie.
– É isso aí! E mesmo que algum fantasma invisível que conhecesse todos os códigos conseguisse entrar, o cofre interno possui detectores de movimento que disparam no instante em que o diamante ou algum ouro é movido – acrescentou Charlie.
– Uau! Onde fica o cofre? – indagou Bumbão.
Um polegar e um indicador fortes estavam beliscando uma das suas orelhas, fazendo-o erguer-se do seu assento. Os dedos eram de Mama Crunch, que acabara de entrar e agora cochichava no ouvido de Bumbão:
– Você tem orelhas muito grandes para um sujeito tão pequeno, miudinho. Grandes demais, se quer saber. E você sabe o que dizem? A curiosidade matou o gato.
– Dizem isso, é? – ele gemeu, os olhos cheios de lágrimas por causa da dor.
– Então, se não quiser terminar como o gato, talvez deva se concentrar em comer.
– Boa sugestão, senhora Crunch! Na verdade, uma sugestão brilhante – concordou.
Ela o soltou, e Bumbão caiu sentado na cadeira.
Olhou em volta. A sala estava sinistramente silenciosa. Olhares arrepiantes espiavam-no.
– Bem, bem – falou, esfregando as mãos uma na outra. – Puxa, já é tarde! Acho que devo agradecer pela deliciosa refeição.
Saltou da cadeira e caminhou com passos ligeiros em direção à porta, na esperança de que ninguém gritasse “Pare!” ou “Quieto aí!”.
– Pare! – gritou Alfie.
– Quieto aí! – gritou Bobbie.
Os pés de Bumbão congelaram no chão. Ele não queria nem pensar no que viria a seguir.
– Você esqueceu isto.
Bumbão virou-se devagar, agarrando o charuto.
– Vou ver se consigo não tocar fogo na cama esta noite, he-he!
Exatamente três segundos depois, ele estava do lado de fora.
Capítulo 12.
O Serviço Ainda Mais
Secreto de Sua Alteza Real
A NEBLINA HAVIA DESCIDO como uma espessa sopa de ervilhas sobre as ruas de Londres, e Bumbão voltava apressado para o hotel pela escuridão da cidade. As ruas e as vielas, que tinham estado atulhadas de gente e cheias de vida durante o dia, eram agora um labirinto, sem pessoas, iluminadas apenas por algumas lâmpadas de rua com um cinzento chapéu de neblina. E os poucos sons que podia ouvir não eram nem um pouco singelos nem acolhedores. Ruído de pingos, de estalos, de farfalhar, de suspiros profundos de algumas gotas caindo de cornijas, calhas e peitoris. Queixas e lamúrias abafadas atrás de portas e paredes. Um guincho alto, enregelante, chegando de algum lugar.
– Será que não foi aqui? – murmurou para si mesmo e virou à esquerda.
Caminhou mais um pouco.
– Será que não foi aqui? – murmurou e virou à direita.
Disse isso mais para ouvir a própria voz, e também para se convencer de que sabia onde estava, porque não tinha a mínima ideia. E as vielas pareciam cada vez mais estreitas, escuras e desertas.
– Será que não foi aqui? – murmurou de novo.
– Não, com certeza não foi.
Estava prestes a simplesmente continuar andando, quando lhe ocorreu que a última resposta não tinha vindo dele. A voz viera de algum lugar logo atrás dele.
Bumbão virou-se, e uma figura de chapéu e capa saiu do meio das trevas.
– Ui! – exclamou Bumbão, girando para correr. Mas uma segunda figura saiu do meio das trevas à sua frente. Também usava chapéu e capa com a gola levantada. Estava cercado!
– Quem... quem são vocês? – Bumbão perguntou, buscando uma saída.
– Jack. Jack Jekyll – respondeu o primeiro.
– Ripper. Ripper Hyde – disse o segundo.
E se aproximaram ainda mais.
– E... o que vocês querem é... é, hã... – começou Bumbão.
– Queremos o que você tem – afirmou Jekyll, enfiando a mão dentro da capa em busca de algo.
– Mas... tudo o que eu tenho é um pedaço de chiclete meio mascado e embrulhado num papel – falou, pressionando suas costas contra a parede. – Bem, também tenho este charuto. Praticamente inteiro, não fumado. Artigo de primeira. Enrolado nas coxas de uma belíssima enroladora de charutos cubana. Então não quero me separar dele. Sou um fumante inveterado. Mas podem ir em frente, é só pegar.
– O que estamos dizendo é que queremos a informação que você tem – disse Jekyll, segurando a coisa que tinha tirado da capa. Era um cartão comercial com o retrato dele. Ao lado do seu nome, no retrato, estava escrito em letra maiúscula: SAMSSAR.
– Trabalhamos para o Serviço Ainda Mais Secreto de Sua Alteza Real – informou Hyde. – E temos estado em contato com os nossos colegas noruegueses, Helge e Hallgeir. Andamos seguindo você desde que aterrissou em Londres.
– Ah, é? – falou Bumbão, aliviado.
– Sim! Mas por que você está neste beco? Fica longe do seu hotel – Jekyll observou.
– Ah, é isso? – Bumbão falou, enfiando o charuto na boca. – Eu só queria dar um passeiozinho noturno para clarear a mente. – Bateu de leve com o dedo na testa. – E há muito cérebro aqui para clarear, então é preciso um passeio extralongo.
– Podemos voltar para o seu hotel agora para discutir o caso? – indagou Jekyll.
– Claro – concordou Bumbão.
Ficaram ali parados, entreolhando-se por alguns segundos.
– Podem ir na frente – orientou Bumbão.
E eles foram.
O doutor Proktor e Lise abriram a porta. Bumbão apresentou-os aos dois agentes britânicos.
– Por favor, esqueçam nossos nomes. Chamem-nos de Agente Um e Agente Dois – começou Jekyll, tirando a capa.
– Sem zero zero na frente? – perguntou Lise.
– Zero zero? Por que haveria de ter? – perguntou Hyde, parecendo surpreso e arrumando a gravata.
– Sem nenhum motivo. Vocês estão vindo de um casamento? – ela indagou.
– O que você está querendo dizer?
– Bem, é que vocês estão vestindo... hã, smoking.
Os dois homens obviamente não tinham ideia do que ela estava falando.
– Vamos começar. O que aconteceu? – disse Hyde. Sentaram-se e explicaram tudo. Lise falou sobre o dinheiro que tinham tirado do jogo Monopoly de Bumbão e posto no carrinho de bebê, dos disfarces, do assalto de mentira no parque. Bumbão descreveu a fuga da cena, o depósito no banco e o cofre bancário superseguro sobre o qual os Irmãos Crunch lhe falaram, onde eram guardados o ouro e o diamante.
– Hum... – disse Jekyll, alisando seu bigode de guidão de bicicleta enquanto escutava a descrição que Bumbão fazia do cofre. – Só existe um cofre em Londres e que é o melhor, no mundo inteiro e tem tanto raios infravermelhos como raios ultrarriscamarelos e detectores de movimento. E é o cofre do Banco dos Muito Ricos.
– E onde fica? – perguntou o doutor Proktor.
– Ah, não fica longe – respondeu Hyde.
– Mais exatamente é bem ali – falou Jekyll, indo até a janela e apontando o lugar.
Todos os outros correram para ele. A neblina havia-se dissipado milagrosamente, à típica moda inglesa, e Londres se estendia debaixo deles, cintilando na escuridão.
– Ali? – perguntou Bumbão.
– Ali – disse Jekyll.
– Dentro do Big Ben? – perguntou Lise.
– O banco propriamente dito fica no prédio do Parlamento, sob a torre. O governo costumava reunir-se naquele prédio, mas ele foi comprado e agora é um banco privado – explicou Hyde.
– Alguém comprou o Parlamento? Quem... – o doutor Proktor perguntou com seu sotaque escocês.
– Quem vocês acham? Só há uma pessoa disposta a pagar seja lá o que for para obter exatamente o que deseja – interrompeu Hyde.
– Rublov! Maximus Rublov – disse Lise.
– Acertou em cheio! – afirmou Jekyll.
– Mas... por que Rublov concordaria em guardar o ouro roubado? Até está escrito Banco da Noruega na barra de ouro – indagou o doutor Proktor.
– Elementar, meu caro doutor Proktor. Maximus Rublov deve estar por trás de todos os assaltos. Os Irmãos Crunch estavam trabalhando para ele – explicou Lise.
– Mas... por que um homem rico como ele haveria de querer tanto dinheiro? – o doutor Proktor perguntou.
– Igualmente elementar – disse Lise, e calou-se. Limitou-se a ficar observando os outros parados, coçando a cabeça. – Vamos lá, não sejam tão obtusos – continuou Lise.
– Mas é claro – disse o doutor Proktor dando um tapa na testa.
– O quê? O quê? – gritou Bumbão, pulando impaciente.
– Ela quer dizer que ele precisava de dinheiro extra para comprar o supercaro jogador de futebol que ninguém tinha dinheiro para comprar – explicou o doutor Proktor.
– Ibranaldovez – falou Lise.
Passaram-se alguns segundos de silêncio enquanto todos absorviam a ideia.
– Tudo bem. Mas então encontramos a reserva de ouro da Noruega. Agora vocês, do serviço secreto, podem prender Rublov e recuperar para nós a nossa barra de ouro do Banco da Noruega – disse Bumbão.
Jack Jekyll estalou os lábios e balançou a cabeça. Hyde balançou a cabeça e estalou os lábios.
– Não podemos simplesmente prender um homem importante como Rublov sem nenhuma evidência – explicou Jekyll.
– Então ele vai comprar todo o Palácio de Buckingham e despejar a rainha junto com todo o seu Serviço Ainda Mais Secreto de Sua Alteza Real – contestou Hyde.
– Então a rainha estaria desempregada, e nós também – prosseguiu Jekyll.
– O que significa que, infelizmente, não podemos ajudar vocês – concluiu Hyde.
– Na verdade, é bem o contrário – recomeçou Jekyll, esticando a cabeça e torcendo as sobrancelhas para Hyde de um jeito engraçado. – Se vocês estiverem planejando arrombar o Banco dos Muito Ricos para pegarem de volta sozinhos sua barra de ouro, vamos ter de prender vocês.
– Ach, mas nom temos plános nenhum para – começou o doutor Proktor, mas foi interrompido pela voz exageradamente aguda de Hyde:
– Então é melhor irmos indo antes de ouvir que algum de vocês está sugerindo algo assim.
– Mas se vocês por acaso encontrarem algum bem roubado no cofre de banco de Rublov, ficaríamos emocionadíssimos, porque teríamos a evidência de que precisamos para colocá-lo na cadeia – continuou Jekyll.
– Antes que ele tenha chance de comprar o Palácio de Buckingham – disse Hyde, vestindo sua capa. Um pedaço de papel voou do bolso e pousou no chão, diante do doutor Proktor.
– Hum... Que estranho! Por acaso trouxemos conosco as plantas baixas do cofre do banco, que infelizmente acabei de perder, deixei cair no chão. Que coincidência esquisita! Quase dava para pensar que suspeitávamos de Rublov nesses assaltos. Bem, em todo o caso, tenham uma boa noite – encerrou Jekyll.
– O que significou tudo aquilo? – Bumbão perguntou assim que Jekyll e Hyde se foram.
– Você não entendeu? Eles querem que nós arrombemos o cofre para arranjar para eles a evidência de que precisam contra Rublov – explicou Lise.
O doutor Proktor, que abrira a folha de papel que Jekyll deixara cair e estudava os diagramas na planta, disse:
– Mas receio que possa ser muito, muito difícil.
– Quanto difícil? – Lise perguntou, o cenho franzido de preocupação.
– Quase impossível – replicou o doutor Proktor com voz pesarosa.
– Eeeeeba! Vamos nessa! – Bumbão comemorou.
Capítulo 13.
Um plano que não podia
dar errado de jeito nenhum
A LUA OBSERVAVA LONDRES a seus pés quando o Big Ben soou pesadamente três vezes. E como o relojoeiro Edward John Dent, que construíra o relógio em algum momento em 1853, fizera um serviço muito meticuloso, isso significava que eram exatamente três horas da madrugada. Londres dormia, mas era grande a atividade no quarto de hotel dos nossos três amigos.
– O que mais você está vendo? – o doutor Proktor perguntou enquanto estudava os diagramas que haviam recebido de Hyde e Jekyll.
– O lugar está absolutamente infestado de guardas – disse Lise, que estava sentada no parapeito da janela, olhando para fora com um binóculo. – Eles estão espalhados em volta de todo o prédio do Parlamento e na entrada da torre do Big Ben. Além disso, também os vi entrando e saindo pelas tampas de bueiros. Eles têm um estetoscópio em volta do pescoço.
– É aquela coisa que os médicos põem no nosso peito para escutar as batidas do coração? – perguntou Bumbão, que estava de pé em cima de uma cadeira ao lado do doutor Proktor, olhando os desenhos.
– Sim, aquela coisa que os médicos põem no nosso peito para escutar as batidas do coração. Mas esses guardas estão usando os estetoscópios dentro dos esgotos para escutar se há alguém cavando para abrir caminho até o cofre por baixo do chão – o doutor respondeu.
– É isso! E há holofotes iluminando o espaço aéreo acima do telhado, no caso de alguém tentar invadir por cima – disse Lise, apontando o binóculo para o céu.
– Em outras palavras, mesmo que conseguíssemos passar através de três portas de aço trancadas, blindadas, ainda precisaríamos atravessar uma sala cheia de feixes de laser se movendo de um lado para outro, tão próximos quanto as cordas da rede de camarões de uma traineira. E se você interrompe um único feixe, o alarme dispara! – disse o doutor Proktor, com ar cansado, apontando de volta para as plantas no chão para mostrar a Bumbão que era impossível. Mas Bumbão não desistia.
– Você disse que há um interruptor que desliga os lasers?
– Sim, mas escute, Bumbão! – disse o doutor Proktor exausto, passando a mão no rosto e apontando. – O interruptor fica aqui, na parede atrás de todos os lasers. Você não consegue chegar nele sem disparar o alarme. Eles pensaram em tudo!
– Hum... Se conseguirmos passar, o que virá em seguida? – refletiu Bumbão, coçando a costeleta esquerda com a mão direita.
O doutor Proktor revirou os olhos.
– Então você estará na sala onde fica a porta do cofre. E sensores de movimento detectarão você lá e lhe darão trinta segundos para abrir a porta antes de o alarme disparar.
– Por que fizeram isso desse jeito? – quis saber Bumbão.
– Se alguém permanecer lá por trinta segundos sem conseguir abrir a porta do cofre, então provavelmente não deveria estar lá. Em outras palavras, é um invasor. Certo?
– Muito esperto. E a porta e a fechadura?
– A porta é feita do aço mais grosso que existe, aço de Uddevalla. A combinação da fechadura tem treze números e quatro letras e muda automaticamente de hora em hora.
– Entendi. Mas isso não parece tão difícil, não é?
Em resposta, o doutor Proktor fechou os olhos, jogou a cabeça para trás e gemeu alto.
– Vamos lá, doutor, há jeito para tudo! Pelo menos quando se é um gênio. E você é. Pense nisso e venha com o assalto a banco perfeito. Agora! – falou Bumbão.
– Se eu tivesse quatro meses, talvez. Mas isso precisa acontecer nos próximos dois dias, se quisermos levar o ouro de volta para a Noruega a tempo da inspeção do Banco Mundial na segunda-feira! E mesmo que conseguíssemos superar tudo isso, o que já é impossível, para não mencionar o fato de que precisamos entrar de algum jeito no cofre...
– Sim! Ótimo! Estamos no cofre! O que acontece em seguida? – perguntou Bumbão.
O doutor Proktor piscou os olhos. Por um segundo, parecia que estava prestes a chorar. Mas, em vez disso, começou a rir como um homem que realmente perdera a razão.
– Você não se lembra do que Hyde e Jekyll disseram? – o doutor Proktor finalmente respondeu. – O alarme dispara no instante em que o ouro ou o diamante é removido. E, como você pode ver pela planta, só há uma saída, e ela leva direto para os braços dos guardas de Rublov. E para onde você acha que o caminho segue a partir daí?
– Para os Irmãos Crunch. Juntas sangrentas. Queijo parmesão ralado – Lise disse em tom tenebroso.
Bumbão não parecia escutar. Apontou para a planta no chão.
– E este caminho aqui?
O doutor Proktor debruçou-se sobre o diagrama.
– Desculpe, mas é apenas a escada que leva para a torre, Bumbão. Trezentos e trinta e quatro degraus que levam até o relógio. Ela está lá para que o relojoeiro possa acertar o Big Ben.
– Hum... Acho que tenho uma ideia – disse Bumbão, coçando a costeleta direita com a mão esquerda.
– Ah, sim? – falou o doutor Proktor.
– Ah, não! – disse Lise.
– Ah, é! – afirmou Bumbão, saltando da cadeira e correndo até a janela do hotel. – Não vamos fugir pela porta de entrada, percebem? Vamos subir lá no alto.
Apontou para o Big Ben. Os feixes de luz dos holofotes varriam-no de um lado a outro.
– E como vamos sair de lá? – perguntou Lise.
– Nós, não! Vou invadir sozinho, porque, com o meio de transporte que vamos usar, não haverá lugar para ninguém além do pequeno euzinho e do sujeito que vai pilotar o veículo de fuga – respondeu.
– Que tipo de veículo? E de quem você está falando? Quem vai pilotar? – o doutor Proktor perguntou, intrigado.
– Estou falando de um amigo meu que precisa sair um pouco mais. Vou ligar para ele – respondeu Bumbão, esfregando as mãos.
– Sair um pouco mais de onde? – o doutor Proktor voltou a questionar, ainda intrigado.
– Daquela aldeia no fim do mundo. Alguém sabe o código de área de Trøndelag do Sul? – perguntou.
– Você não es-tá se refe-fe-fe-rindo...? – Lise gaguejou.
– Você não está se referindo...? – Victor Proktor grunhiu.
E então, em uníssono, ambos disseram:
– VOCÊ ESTÁ LOUCO, BUMBÃO!
Capítulo 14.
O roubo do ouro
O RELÓGIO ACIMA DO GUICHÊ do senhor Stumbleweed, no Banco dos Muito Ricos, mostrava exatamente – e agora quero dizer exatamente – 2:16:23:14 da tarde, ou pouco mais que duas e quinze, quando a porta da frente do banco se abriu.
Entrou um homem trajando cartola e uma elegante roupa de pinguim. Não uma roupa de pinguim mesmo, uma casaca, mas havia algo de bastante pinguinesco naquilo. Carregava uma maleta atada ao pulso. Ao seu lado, uma menina muito jovem, elegantemente vestida, com um chapéu de sol decorado como um prato de frutas que não deviam ser de verdade. Como também devia ser falsa a estola de pele de marta em volta do seu pescoço.
Dirigiram-se direto para o guichê onde estava sentado o senhor Stumbleweed e lhe perguntaram se podiam alugar um cofre particular. Ele informou a quantia astronômica anual que o banco cobrava por um cofre particular, e eles escutaram sem desmaiar nem protestar. Então ele e dois guardas armados escoltaram os dois novos clientes até o porão. Lá, o senhor Stumbleweed destrancou não só uma, mas três portas de aço, e de repente estavam dentro da sala de cofres. Os cofres particulares eram do tamanho de caixas de sapatos empilhadas e cobriam duas paredes da sala.
– Ninguém sem autorização pode ter acesso a esta sala. E é claro que prometemos completa discrição. Nem nós nem ninguém saberá os valores guardados no seu cofre – explicou o senhor Stumbleweed com satisfação.
– Bom saber que o bánco eh seguro – disse o novo cliente com seu acentuado sotaque escocês. – Mas, diga-me, não estamos aqui praticamente no sanctum mais sagrado?
– Presumo que esteja se referindo ao cofre do banco, senhor MacKaroni – disse o senhor Stumbleweed com um sorriso. – Bem, está no meio do caminho, mas ainda falta passar pelos feixes de laser, os detectores de movimento e uma porta feita de autêntico aço de Uddevalla. Quer dizer, o senhor teria de atravessar tudo isso se o senhor e sua sobrinha estivessem planejando arrombar o cofre – falou com um sorriso lacrimoso, ao qual os dois novos clientes responderam com um sorriso e um polido meneio. – Então lhes daremos o cofre bancário particular 67. Uma chave principal e uma chave reserva. Se quiserem colocar alguma coisa no cofre agora, os guardas e eu esperaremos lá fora – ao dizer isso, entregou ao senhor MacKaroni duas chaves.
– Obrigado – agradeceu o senhor MacKaroni.
Enquanto o senhor Stumbleweed esperava do lado de fora da porta blindada, ouviu a maleta do senhor MacKaroni ser aberta e fechada e a porta do cofre ser trancada de novo. Tinha de admitir que ocasionalmente ficava curioso, desejando dar uma espiada no que os clientes guardavam nos seus cofres particulares. Diamantes? Ouro? Seus testamentos? Cartas de amor secretas? Mas não era da sua conta. Assim, quando o senhor MacKaroni saiu com a maleta, que parecia bem mais leve, naturalmente o senhor Stumbleweed não fez nenhuma pergunta. Embora não existisse nenhuma regra que proibisse pensar sobre o assunto. Na sua cabeça, ele imaginou que eram joias. Talvez relíquias de família: esmeraldas, rubis, opalas e outras quinquilharias preciosas.
Quando os dois deixaram o banco, o relógio acima do guichê do senhor Stumbleweed marcava 2:34:41:09 da tarde, ou pouco mais de duas e meia.
Bumbão acordou e se espreguiçou. Melhor, tentou se espreguiçar, mas não era fácil conseguir isso no lugar onde estava. Retorceu-se e olhou os números no seu relógio brilhando na escuridão silenciosa: 2:40 da tarde. Em outras palavras, pouco mais de duas e meia. Era hora de pôr mãos à obra. Mas levantar não foi exatamente algo fácil. Estava deitado, espremido em uma coisa que não era muito maior do que uma caixa de sapatos. Um dos pés estava adormecido. Vasculhou por baixo do corpo com a mão até achar o que procurava: uma das chaves, a chave reserva, do cofre. Conseguiu enfiá-la na fechadura pelo lado de dentro, girou e abriu com cautela. Espremeu o corpo e saiu pela abertura. Uma vez livre, pulou. Tentou pousar suavemente, mas esqueceu que um dos pés estava adormecido e acabou desabando sobre o chão de concreto.
Ficou ali deitado um tempo, olhando para o alto, para o cofre acima da sua cabeça. E pensou que de vez em quando, muito de vez em quando, não era ruim ser o menor menino que as pessoas já tinham visto.
Levantou-se, mas o pé continuava adormecido e parecia um espaguete flácido debaixo dele, de modo que precisou sentar. Olhou novamente o relógio: 2:43. Tinha exatamente dezessete minutos até a hora combinada. Tirou um pequeno frasco do bolso: FLUIDO CONGELANTE DO DOUTOR PROKTOR, abriu-o e derramou o conteúdo goela abaixo. Então fez uma careta e lembrou a si mesmo que precisava pedir ao professor para adicionar um pouco mais de açúcar da próxima vez.
Levantou-se, e desta vez o pé o sustentou, ainda que com dificuldade.
Virou à direita. Seguiu pelo corredor, como havia planejado, e, com toda a certeza, o corredor virava duas vezes à esquerda e então uma vez à direita, como no diagrama. Ouviu um chiado que foi tornando-se mais forte. Percebeu que estava chegando perto. E ali, no fim do corredor, viu algo na parede que parecia um interruptor de luz, mas ele sabia que não era. Bumbão parou de repente. Mesmo sem conseguir enxergar nada, só um corredor vazio, sabia que ali, bem na sua frente, espreitava uma ameaça invisível. Tirou o charuto que ganhara de Alfie Crunch, acendeu-o com o isqueiro que o doutor Proktor lhe deu e endureceu. Inalou a fumaça e exalou-a rápida e vigorosamente, bem à sua frente. E então pôde vê-los: os feixes de laser.
Inalou e exalou várias vezes, até o espaço à sua frente estar cheio de fumaça e ele poder ver o padrão formado pelos feixes. Eles vinham das paredes, do piso e do teto, formando um matagal espinhoso tão espesso e denso que seria impossível, mesmo para o menor dos meninos que alguém já tivesse visto, conseguir passar sem tocar nenhum dos feixes. Ele mal podia ver o interruptor do outro lado, através da teia de feixes de laser. Mas havia uma minúscula abertura ali.
Bumbão conferiu o relógio. Faltavam catorze minutos. Enfiou a mão dentro do outro bolso da calça e tirou a luva de pontaria azul e três dardos. Calçou a luva e fez pontaria. Lançou o dardo. TUNK!
O dardo passou pelo matagal de feixes, mas errou o interruptor por um centímetro.
O menino agarrou o dardo número 2.
O porão do banco não era muito quente, mesmo assim ele sentiu o suor escorrendo pelas suas costas. O dardo tremia na sua mão.
– Vamos lá, Bumbão – sussurrou para si mesmo, e arremessou.
TUNK! O dardo grudou na parede, à distância de um fio de cabelo do interruptor, vibrando. Mas fez deslocar o primeiro dardo ao penetrar, e Bumbão pôde ver a extremidade amarela do primeiro dardo começando a ceder.
O dardo ia desgrudar da parede e cair. E, se isso acontecesse, atingiria um dos feixes de laser, que passava logo abaixo do interruptor.
Bumbão agarrou o terceiro e último dardo preto, e nem teve tempo de mirar, simplesmente lançou-o o mais rápido que pôde. O dardo amarelo soltou-se nesse exato momento. Ele o acompanhou com os olhos. Parecia que estava caindo em câmera lenta na direção do feixe logo abaixo. E atingiu o feixe. Pelo menos, atingiu o lugar onde o feixe costumava estar. Aí caiu no chão.
Bumbão ficou ali parado, olhando em frente. Os feixes de laser haviam sumido. E o dardo preto estava enfiado no meio do interruptor, tremendo.
Passou a mão na testa para enxugar o suor e olhou o relógio. Treze minutos. Aí começou de novo a correr.
A coisa está tão empolgante que parece uma idiotice terminar o capítulo aqui, mas é exatamente isto que eu planejava fazer.
Capítulo 15.
A grande escapada
JÁ DE VOLTA?
Ok! Então Bumbão conseguiu passar pelos feixes de laser, os quais conseguiu desligar, e entrou correndo na sala, diante do cofre mais seguro do mundo, com a porta feita de autêntico aço de Uddevalla e uma fechadura com combinação de treze números e quatro letras.
Ao entrar na sala, notou um relógio na parede que já havia começado uma contagem regressiva. Ele sabia que os detectores de movimento o haviam detectado e que, se não abrisse a porta de aço dentro de trinta segundos, o sistema concluiria que ele era um invasor, o que no caso seria uma conclusão absolutamente correta. Então, o alarme dispararia. Em vinte e sete segundos. Vinte e seis...
Bumbão sabia que não era possível adivinhar os treze números e as quatro letras. Então, desabotoou as calças e mirou a fechadura da porta de aço. Segundo o doutor Proktor, o fluido congelante azul glacial levava apenas três minutos para misturar-se com o ácido do estômago e passar pelo fígado, pela bexiga, pelos rins e por outros órgãos internos até estar pronto para ser expelido na forma de xixi. Bumbão fez força, tentando começar o fluxo. Vinte segundos.
– Venha, venha – murmurou.
Dezesseis segundos. Forçou ainda mais, gemendo, mas nem sempre é fácil fazer xixi quando você sabe que precisa fazer.
Tinha ouvido falar que, quando a gente não consegue fazer xixi, pensar em água corrente pode ajudar. Então, pensou numa torneira pingando, em água de chuva jorrando de uma calha, em uma fonte borbulhante. Mas não vinha nada.
Doze segundos. Um rio de tamanho médio. Um rio grande. Uma cachoeira. Nove segundos. Niágara, Cataratas Vitória, Cataratas do Iguaçu, tudo de uma vez.
Sete segundos. Alguma coisa tinha de acontecer. O mais rápido possível.
– Ok, psicologia reversa – murmurou para si mesmo, fechando os olhos e pensando com toda a força que absolutamente não podia fazer xixi, não num lugar público, não dentro do Banco dos Muito Ricos.
Quatro segundos. Que escândalo! Ele seria alvo de zombaria nos jornais. Manchete: GAROTO FAZ XIXI NA PORTA DE AÇO MAIS SEGURA DO MUNDO. PREFEITO DE UDDEVALLA FURIOSO!
Um feixe amarelo, reto como um feixe de laser, saiu jorrando, atingindo a porta de aço e a fechadura.
Bumbão não se atreveu a olhar o relógio, simplesmente fez xixi o mais depressa que pôde. O feixe parou. Ele ergueu o pé com o sapato de cortar lenha e chutou a fechadura.
Ouviu um som semelhante ao de pedacinhos de gelo caindo e quebrando-se numa calçada; o tilintar, o ressoar, o ranger, o rugir de algo sendo destroçado em mil pedaços.
Segurou a alça de ferro na porta e puxou-a para si. Ela tinha de abrir. E ela realmente abriu.
Ergueu os olhos para o relógio na parede. Ele tinha parado em 0,5 segundo.
Estremeceu e escancarou a porta. E viu exatamente o que esperava ver. O cofre continha uma pilha de barras de ouro reluzindo à luz da porta. Um gigantesco diamante, do tamanho de uma bola de futebol, no topo da pilha, brilhava como uma bola de discoteca.
Bumbão olhou o relógio. Tinha onze minutos para achar a barra de ouro do Banco da Noruega e sair dali.
Entrou correndo no cofre. Estava prestes a mover o diamante quando lembrou que não podia tocar em nada, pois imediatamente o alarme dispararia. Em vez disso, agachou-se e leu o que estava escrito nas barras de ouro que podia ver na pilha.
Banco Central do Brasil. Banco Central do Brasil. Banco Central do Brasil. Banco Central do... E se a barra de ouro do Banco da Noruega estivesse em algum lugar no meio da pilha e ele não conseguisse achá-la? Deveria simplesmente pegar uma das barras de ouro do Brasil no lugar dela? Bumbão escutou as vozes dentro da sua cabeça. A voz da sua mãe dizia: “Que diferença faz? Ouro é ouro, e o Brasil, pelo jeito, tem de sobra”. E a voz de Lise dizia: “Não, Bumbão! Tirar dos outros é roubo, não importa quão desesperado você esteja!”.
Olhou novamente o relógio. Seis minutos para as três. Ele detestava relógios!
Foi quando viu parcialmente escondido na pilha, mas com algumas letras visíveis: –NCO DA N– alguma coisa. A letra seguinte parecia curva. Provavelmente um O. Ele queria espalhar para os lados as barras de ouro que estavam no caminho, mas sabia que os guardas chegariam ali em poucos segundos depois que o alarme disparasse, assim precisava primeiro ter toda a certeza de que era a barra certa. –NCO DA NO– Não podia ser outra coisa: era Banco da Noruega. Ou podia?
Começou a dizer baixinho os nomes de países o mais rápido que podia. Porém, as únicas possibilidades de nomes iniciados com NO eram Nova Zelândia e Nova Caledônia. E não se sabia que tivessem tido suas barras de ouro roubadas. Portanto, isso significava que as chances eram muito boas de estar escrito BANCO DA NORUEGA na barra.
Levantou-se. Faltavam dois minutos e meio para as três. Ele tinha um compromisso às três em ponto. E se o doutor Proktor não tivesse cometido nenhum erro ao estimar o tempo que Bumbão levaria para chegar lá, agora era o momento perfeito para dar o fora!
Quando ele empurrou a primeira barra de ouro para o lado, ouviu o alarme começar a gritar. Caramba, o ouro era realmente pesado! Derrubou duas barras e pegou aquela que tinha visto. Soltou um grito: “Eeeeeba!”, porque, com toda certeza, estava escrito BANCO DA NORUEGA na lateral. Enfiou a barra de ouro na pequena mochila que trazia nas costas e saiu correndo do cofre. Correu de volta pelo mesmo caminho pelo qual chegara, mas, ao passar pela sala com os cofres particulares e as três portas de aço, virou à esquerda, em vez de à direita, e deu de cara com uma porta que não era feita de aço, mas de madeira comum. Na porta estava escrito: TORRE DO RELÓGIO. Podia ouvir berros e botas correndo, agitação e algazarra pelas escadas dos escritórios do banco acima dele.
O menino ergueu o sapato de cortar lenha e deu chutes rápidos e furiosos na porta até que ela rapidamente se transformou numa pilha de lascas e pedaços de madeira. Então, começou a correr escada acima o mais depressa que suas minúsculas pernas conseguiam carregá-lo com a pesada barra de ouro.
Trezentos e trinta e quatro degraus, dissera o doutor Proktor. Não teve a sensação de serem tantos assim quando discutiram o assunto no quarto do hotel, mas, se era para conseguir, então precisava subir pelo menos dois degraus por segundo! Suas coxas ardiam. Os degraus pareciam não acabar nunca, mas Bumbão não desistiu. Para cima, para cima, em círculos, cada vez mais alto.
E, quando finalmente acabaram, ele se viu numa plataforma com uma punhado de engrenagens de todos os tamanhos possíveis, que zuniam, e giravam, e tiquetaqueavam, e estalavam. Bumbão achou a pequena escotilha que estava procurando na parede, abriu-a e debruçou-se para fora. O vento bateu no seu rosto.
– Ah! ah! – murmurou com um sorriso.
Ao olhar para baixo, viu formiguinhas correndo de um lado para outro, gesticulando e gritando. E, quando olhou para o outro lado do rio Tâmisa, viu o sol brilhando numa janela que ele sabia que era a janela do quarto de hotel onde o doutor Proktor e Lise, elegantemente vestidos com uma casaca de pinguim e uma falsa estola de marta, observavam pelo binóculo. Então, levantou os olhos para o céu azul, onde a engenhoca que viera voando da Dinamarca em breve o pegaria, bem debaixo dos focinhos dos cães de Rublov. Fugir voando como o melhor, o mais corajoso, o mais ousado e o mais atraente assaltante de bancos do mundo! Olhou para baixo. Esperava que a notícia de que o Banco dos Muito Ricos estava sendo roubado tivesse se espalhado e que as câmeras de televisão estivessem rapidamente no lugar para registrar a Grande Escapada.
Bumbão arrastou-se para fora pela escotilha e pousou no ponteiro das horas do Big Ben, que ficava logo abaixo da abertura, apontando horizontalmente para o número três. Lise havia percebido que seria melhor planejar a fuga para as três horas, exatamente, de modo que ele pudesse ficar de pé em segurança no ponteiro das horas, que estaria reto, na horizontal.
O garoto vasculhou o céu. A esta altura, já devia ter conseguido localizar Petter. Podia ouvir os passos chegando perto pelas escadas. “Venha logo, Petter! Venha logo!” – resmungou para si mesmo.
Nesse momento, sentiu algo vibrar no seu bolso. Tirou dele o telefone celular.
– Aqui, Bumbão. Oi, é o Petter.
Bumbão engasgou.
– Não me diga que você está ligando para dizer que está um pouco atrasado, Petter?
– Não, não.
– Ótimo! – disse Bumbão, aliviado.
– Não, não vou me atrasar um pouco. Vou me atrasar muito.
– O quê? O que aconteceu? – berrou.
– Sabe, a Inglaterra, a chuva, coisas assim.
– Chuva? Aqui o dia está lindo! – Bumbão gritou.
– Peguei um vento frontal sobre o mar do Norte, sabe? E chuva quando cheguei ao litoral inglês. A asa-delta ficou ensopada e... acho que andei pegando meio pesado no chocolate quente nos últimos tempos. Simplesmente ganhei muito peso, Bumbão.
– Você está... você não vai conseguir chegar... – gemeu Bumbão.
– Aterrissei num campo. Não há ninguém por perto e...
Exatamente nesse momento, o Big Ben começou a bater as horas, afogando no seu som o resto do que Petter dizia. O relógio reverberava, trovejava e latejava, o ponteiro pequeno vibrava. Tudo isso aconteceu tão depressa que Bumbão perdeu o equilíbrio e caiu. Abriu os braços em desespero. Seus minúsculos dedos conseguiram agarrar o ponteiro das horas. Ele mal conseguia se segurar. Olhou para baixo e viu seu celular caindo e caindo na direção das formigas humanas e carros de brinquedo lá embaixo, e não sentiu mais vontade de gritar “ah, ah!”. Tampouco queria saber a que altura estava do chão, mas Lise lhe dissera: noventa e seis metros.
Os dedos de Bumbão já estavam começando a desgrudar do ponteiro das horas. Certamente ele era um garoto bastante forte, mas, com a pesada barra de ouro na mochila, e os dedos cada vez mais suados, o que aconteceria? Estou só perguntando. Você tem ideia?
Capítulo 16.
Uma vaca, uma miragem
e a grande dúvida
– ALÔ? – Petter berrou no telefone.
Parecia que realmente ventava muito onde Bumbão estava. Soou um forte estrondo.
– Bumbão? – Petter berrou.
Mas agora só se ouvia silêncio do outro lado da linha e o ruído de discagem.
Abatido, Petter enfiou seu telefone de volta no bolso e olhou ao redor. Mas seus óculos estavam tão embaçados por causa da chuva que não conseguiu ver quase nada. Tirou os óculos e concluiu que ainda estava num campo deserto e encharcado de chuva em algum lugar da zona rural da Grã-Bretanha. Ele não via um lugar tão deserto desde... bem, desde que deixara a Noruega, ao amanhecer.
Bumbão, Lise e o doutor Proktor haviam ligado para Petter na noite anterior. Deram-lhe instruções sobre como chegar até o Big Ben em Londres e pegar Bumbão em cima do ponteiro das horas exatamente às três da tarde. Petter não sabia de mais nada. Bumbão apenas lhe dissera alguma coisa sobre a reserva de ouro doméstica bruta e que era importante.
Petter puxou o elástico da cintura da sua cueca para cima – era a única peça de roupa que ainda tinha partes secas – e secou os óculos. Depois, colocou-os e observou ao redor. Agora podia ver um pouco mais, mas nada do que via era animador: uma asa-delta encharcada como ele, uma vaca também encharcada a ruminar, parecendo entediada, além de uma miragem que se movia pesadamente na sua direção. Era uma mulher vestindo um agasalho esportivo, não muito diferente do dele, originalmente concebido para a prática de esqui cross-country. A miragem foi ficando cada vez maior, até que, quando já estava grande o bastante, parou bem na frente de Petter. E era uma miragem e tanto, porque – imagine só? – também começou a falar com ele.
– Como vai? – cumprimentou-o.
Petter fixou os olhos. A miragem era uma mulher que tinha quase a mesma idade dele, com o cabelo molhado, escorrido, usando óculos com as lentes mais grossas que já tinha visto numa mulher.
– Eu... eu... – Petter começou, surpreso por estar respondendo a uma miragem. – Eu sou Petter. Sou o primeiro e único Petter. E você, quem é?
– Sou Petronella. Esta asa-delta é sua?
Petter fechou um pouco um dos olhos e olhou para a mulher chamada Petronella. Acenou que sim com a cabeça: a asa-delta era realmente dele.
– Sim, eu vendo asas-delta.
– É mesmo? Eu gosto de asa-delta. E também trabalho com vendas. Velhos carros Hillman – falou a miragem, apontando com o dedo para um lugar.
Os tufos de neblina tinham ficado um pouco menos densos, e Petter conseguiu ver uma casa de fazenda no alto de um morro. Na frente da casa, distinguiu os contornos dos velhos carros usados à venda.
– Você vende muitos? – perguntou Petter.
– Não há mais ninguém para quem vender. Todo mundo mudou para a cidade. Sou a única que restou aqui – ela disse, balançando a cabeça.
Petter assentiu. Ia dizer isso justo para ele? Ele sabia muito bem.
– Quer tomar um chá? – a miragem perguntou.
– O quê? – perguntou Petter.
– Gostaria de tomar um chá?
– Ah! Será que você não tem chocolate quente? – disse Petter, quando finalmente entendeu o inglês que ela falava.
A miragem que dizia chamar-se Petronella abriu um largo sorriso.
– Você também prefere chocolate quente em vez de chá?
Petter acenou lentamente que sim. Só podia ser uma miragem: uma mulher que gostava de asas-delta e de chocolate quente! Era bom demais para ser verdade. E se por acaso ela também gostasse de jogar xadrez chinês, aí ele saberia com toda a certeza que estava sonhando.
– Venha, vamos fazer um chocolate quente – falou, estendendo para Petter a mão mais branca que ele já vira, tão branca que era quase transparente. Mas era uma mão. Ela não era uma miragem. Agora ele estava segurando aquela mão e não sentia a menor vontade de algum dia soltá-la. E um pensamento maravilhoso passou-lhe pela cabeça: essa talvez tenha sido a aterrissagem fracassada mais bem-sucedida de toda a sua vida de voos de asa-delta.
Os dois caminharam pelo campo rumo à casa de fazenda com os carros Hillman enferrujados no alto do morro. E então Petter pensou que Bumbão provavelmente estava exagerando. Sem dúvida, apanhá-lo naquele relógio mastodonte em Londres não podia ser tão importante.
Vou morrer, pensou Bumbão. Vou morrer por causa da droga do clima da Inglaterra e de um amigo que está levemente acima do peso e que mora em Trøndelag do Sul.
Ele se retorceu, mas suas mãos e seus pés estavam bem amarrados à cadeira onde se encontrava sentado.
O motivo de Bumbão ter tanta certeza de que morreria era que o homenzinho à sua frente tinha acabado de dizer isso.
– Você vai morrer – dissera o homem, e soara bastante convincente.
O garoto fitou o rosto familiar do homem. Familiar porque Bumbão tinha uma máscara igualzinha a ele. Testa proeminente, linha dos cabelos recuando, sobrancelhas estreitas, aparadas de maneira precisa e dolorosa, e cavanhaque. O pequeno Maximus Rublov em carne e osso.
Atrás dele, no sofá sob a pálida luz da sala de estar da família Crunch, estavam sentados os Irmãos Crunch, fitando-o com olhar frio e acusatório. E atrás deles, de braços cruzados, estava aquela cujo nome as pessoas apenas com muita cautela ousam sussurrar.
– Mate-me aqui, mate-me aqui – pediu Bumbão. – Se realmente quer me matar, por que você não me deixou cair do Big Ben? Dois segundos a mais, eu teria me soltado e você teria economizado toda essa matança, eu teria sido poupado destas cordas e você teria sido poupado de ter que amarrá-las e...
– Calado! – berrou Rublov com tanta força que as cortinas de blecaute tremularam. – Meus guardas salvaram você por dois simples motivos, seu pigmeu sardento! Primeiro, porque você carrega uma barra de ouro na sua mochila. Segundo, porque antes de morrer você vai me contar quem mais estava participando desse roubo.
– Quem mais? – disse Bumbão com o sorriso mais sarcástico que conseguiu dar. – Não confio em outros assaltantes, senhor Rublov, trabalho sozinho.
Rublov cruzou os braços e, pensativo, correu um dedo enluvado pelos lábios.
– Você é mesmo um assaltante, senhor Sherl? Se é que esse é o seu nome de verdade. Tem certeza de que não trabalha para a Scotland Yard? Nem para o Serviço Ainda Mais Secreto de Sua Alteza Real?
– A polícia? – Bumbão falou, rindo tanto que sentiu as obturações nos molares estalando. – Duvido muito que uma carreira na polícia fosse adequada para um mestre...
– Calado! De qualquer modo, você vai morrer! A única escolha que tem é se vai ser uma morte sem dor ou... por juntas sangrentas – ao dizer isso, Rublov deu um sorriso amarelo.
Bumbão engasgou. Pavor e horror! Ele seria ralado como queijo parmesão se não falasse! Ah, se estivesse calçando o seu sapato de cortar lenha... Mas eles o tiraram quando o capturaram. Agora o sapato estava em cima da mesinha de café, junto com a sua luva de pontaria, os dardos e o frasco contendo o fluido congelante do doutor Proktor.
Rublov percorreu toda a distância até a cadeira de Bumbão e baixou a voz:
– Ou talvez você estivesse roubando o ouro para alguém que queira comprar Ibranaldovez bem debaixo do meu nariz? Se for isso, já perdeu, seu ínfimo gnomo, porque a compra será concretizada hoje às cinco da tarde. O ouro foi todo despachado do cofre uma hora atrás. Então você pode muito bem desistir e me contar tudo.
– Então Lise estava certa. Era para isso que você precisava de todo aquele dinheiro, para comprar o melhor jogador de futebol do mundo antes da final de sábado do Campeonato Inglês – disse Bumbão.
– Não sei quem é essa tal de Lise, mas deixe-me explicar – falou Rublov com tal menosprezo que seus dentes afiados e molhados brilharam. – O time do Rotten Ham mal tinha uma microchance de nos vencer antes de termos o melhor jogador do mundo na nossa equipe. Agora eles têm ainda menos. – Soltou uma risada arquejada, estridente.
– Mas por que você está disposto a pagar tanto para ganhar um... um jogo de futebol?
– Com certeza alguém como você deve entender isso, Sherl – falou Rublov, erguendo uma das suas sobrancelhas exageradamente aparadas.
– Alguém como eu? – perguntou Bumbão.
– Sim. Você era alvo de gozação na escola por ser pequeno, não era?
– Sim, claro – respondeu, compreendendo a situação por um momento.
– Muito bem, então, estou certo de que pode imaginar como me senti quando meu pai me mandou de Moscou para a Inglaterra, para um internato ridiculamente caro para garotos de classe alta, não? Ele pensava que lá eu ia aprender a me comportar como uma pessoa rica, para que um dia estivesse preparado para herdar todo o dinheiro dele. Mas tudo que aprendi foi odiar aqueles malditos esnobes que só gozavam de mim porque eu não era igual a eles!
– Sim, suponho que estejamos ambos em situação ruim, Maximus – Bumbão disse com um suspiro. – Mas talvez especialmente eu, porque estou prestes a morrer. Então o que me diz de simplesmente me desamarrar e...
– Shh! – interrompeu-o Maximus, com o olhar rígido e fixo à frente dele, e continuou, com a voz trêmula de emoção: – Eles não me deixavam jogar no time de futebol da escola porque eu era baixinho.
– Com toda a certeza era porque você não jogava muito bem... – começou Bumbão.
– Silêncio! Mas agora eles podem ficar na casa banal de classe alta deles com esposa e filhos descontentes e ver quem vai ganhar o Campeonato Inglês! Quem é o melhor agora, hein? – Rublov pegou uma bengala com cabo de prata e tocou com ela a base do queixo de Bumbão. – Quem, Sherl, quem? Diga!
– Hã... Ibranaldovez? – arriscou Bumbão.
– Seu idiota! O dono da equipe é o melhor! E esse sou eu, Sherl! Eu, Maximus Rublov!
– Vamos supor que sim – falou Bumbão, dando um puxão para ver se a corda que o amarrava tinha-se soltado um pouco. Não tinha. Suspirou novamente. – Mas será que você já pensou no que vai acontecer quando a polícia encontrar as barras de ouro e descobrir que você usou esse ouro para comprar o Ibranaldovez? Está escrito nas barras de onde elas vêm, e isso provará que foi você quem roubou.
– É claro que pensei nisso, seu banana! Ninguém jamais saberá de onde veio o ouro, porque eu derreti tudo!
– Der-re-teu? – Bumbão falou, engasgando.
– É claro! Todas aquelas barras de ouro brasileiras viraram moedas de ouro como esta – Rublov tirou orgulhosamente uma moeda do bolso e segurou-a na frente de Bumbão. Trazia o perfil sem queixo de Maximus Rublov e nela estava escrito: 1 RUBLOV.
– Vou pagar pelo Ibranaldovez com estas moedas. O mundo inteiro estará usando esta moeda daqui a alguns anos, Sherl. Tudo o que tenho a fazer primeiro é comprar países. A Noruega, obviamente, está no topo da minha lista de compras.
– Você está planejando comprar a Noruega?
– Claro! Comprar um país é mais fácil do que você pensa. E a Noruega não vai custar muito quando o Banco Mundial descobrir que vocês não têm mais nenhuma reserva de ouro. E você sabe com que dinheiro estou planejando comprar a Noruega? Com a mesmíssima barra de ouro que roubei dos noruegueses! Não é uma jogada divertida e esperta? – Rublov soltou de novo sua risada forte e estridente.
– Então você também derreteu a nossa barra de ouro?
– Não! Aí está o inesperado. O fazedor de moedas disse que havia nitrato fosfato de carbossídio demais no ouro norueguês – respondeu Rublov.
– E o que é nitrat....? – quis saber Bumbão.
– Não tenho ideia. Mas, aparentemente, as moedas sairiam moles demais, meio como moedas de chocolate. Então mandamos o ouro para outro ourives, que está refundindo a sua barra de ouro neste exato instante...
– Oh, NÃO!
– Oh, sim! E não é um ourives qualquer. É a mulher que está fazendo o troféu do Campeonato Inglês para ser entregue ao time vencedor após o jogo final no sábado. Você não percebe? Isto é ultraesperto! Se a polícia der uma busca na minha casa à procura de barras de ouro, só encontrará um troféu de ouro, e saberá que o ganhei de forma justa e honesta destroçando o Rotten Ham. Ha, ha, ha!
– Maximus Rublov, venho por meio desta declará-lo mentalmente instável – falou Bumbão, balançando a cabeça.
– Eu não sou mentalmente instável – sibilou Rublov.
– Ah, não? Bem, se você tem um plano tão grandioso, então não precisa de mim para dizer nada – retrucou Bumbão.
Rublov coçou seu extremamente bem aparado cavanhaque.
– Sabe, Sherl? No fim das contas você não é tão bobo. Você tem toda a razão: posso me virar muito bem sem nenhuma informação sua.
– Ótimo! Então, quem sabe eu possa simplesmente ir embora? Tenho de me encontrar com alguém no cinema e... – disse Bumbão.
– Ir embora? – Rublov arreganhou um sorriso. – O que dizem vocês, as massas miseráveis e imundas? Virou-se para olhar a família Crunch. – Devemos deixar este ser insignificante ir embora?
– Nã na ni na não! – responderam todos em coro.
– Foi o que pensei – falou Rublov, pegando seu casaco e seu chapéu. – Preciso ir, mas estou deixando você aos cuidados de – baixou a voz até virar um sussurro – Mama Crunch.
A porta se fechou, batendo atrás dele, e a mãe-dragão se aproximou. Soltou seu bafo de comida podre em cima de Bumbão. Beliscou sua bochecha com o polegar e o indicador enquanto dizia:
– Então, você achou que podia enganar a Mama elogiando generosamente o pudim dela, hein? Seu pedacinho de carne miserável de pessoa extremamente patética! Vou agora à mercearia comprar espaguete, é o prato predileto dos garotos. Espaguete com o quê? O que você acha?
– Que-que-queijo parmesão? – chutou Bumbão, com os dentes batendo.
– Correto, senhor Sherl. Então, apronte-se... – Ela girou a mão num gesto amplo na direção do sofá, de modo que a gordura da parte de cima do braço balançou e sacudiu, enquanto os três filhos respondiam em uníssono:
– JUNTAS SANGRENTAS!
Capítulo 17.
A Batalha das Juntas
Sangrentas. Ops, desculpe:
a GRANDE Batalha das
Juntas Sangrentas
– NÃO ADIANTA! Estamos vasculhando Londres há quatro horas e não encontramos nosso minúsculo Bumbão em lugar nenhum – gemeu o doutor Proktor, olhando o relógio.
– Mas em algum lugar ele tem de estar – retrucou Lise, com determinação.
Estava começando a escurecer, e Lise e o doutor Proktor voltaram para a praça por onde começaram a procura. Era fácil saber qual era: no meio da praça havia uma coluna tão alta que era impossível identificar que estátua era aquela no alto, mas o doutor Proktor disse que era de um sujeito chamado Nilsen, ou Nelson, algo assim, não o apresentador de O Maior Mentiroso da Noruega, mas um marinheiro relativamente famoso.
– Contanto que Bumbão esteja vivo – Lise sussurrou, e o professor viu uma lágrima escorrer no canto de um dos olhos dela.
– Notifiquei a Scotland Yard. Também devem estar procurando por ele. Você verá – disse o doutor Proktor.
– E pensar que eu estava com inveja dele! – Lise continuou sussurrando.
– Estava? Por quê? – perguntou o doutor Proktor.
– Porque eu nunca posso fazer a coisa mais maluca. Sempre tenho de ser a pessoa sensata, correta, cuidadosa, que precisa tomar conta do Bumbão. Também quero ser doida, e me divertir, e ter o mundo inteiro tomando conta de mim!
– Mas, Lise, sem você jamais teríamos conseguido fazer todas as coisas que realizamos juntos.
– Sem mim Bumbão não teria ficado prisioneiro onde quer que ele esteja, no lugar onde vai morrer! Só porque eu estava com inveja e não queria que ele fosse um sucesso tão tremendo todas as vezes! – fungou Lise.
– Hmm... E agora você está se sentindo culpada porque acha que o seu desejo se tornou realidade? – concluiu o doutor Proktor.
– Sim! – bradou Lise, e começou a chorar alto.
– E você pensa que isso faz de você uma pessoa má? Será que acha que o nosso pequenino Bumbão nunca teve inveja de você em nada?
– De mim? O que há para ter inveja de mim? – estranhou Lise, enxugando as lágrimas com a manga do casaco.
– Fico pensando se o nosso pequenino Bumbão não gostaria de ter pais como os seus, de ser alguém que todo mundo considera bacana e tudo mais, e de ser inteligente e autoconfiante como você é.
– Autoconfiante? Eu não...
– Ah, você é, sim. – O doutor Proktor tirou os óculos de natação e os desembaçou. – Você simplesmente tem o tipo de autoconfiança que não é invasiva e não fica demais debaixo dos holofotes. Mas é bem mais que isso, garota. E você vai acabar descobrindo sozinha.
– Vou?
– Prometo. – Victor Proktor recolocou seus óculos de natação e deu um tapinha na cabeça de Lise. – E lembre-se de que vocês dois se adoram mais do que um tem inveja do outro.
– Sim, nós nos adoramos! – disse Lise enfaticamente.
O doutor Proktor assentiu.
– Agora vamos voltar para o hotel, comer alguma coisa e dar uma descansada.
– Depois precisamos procurar mais! Você acha que ele está... – disse Lise, terminando de secar as lágrimas.
– Bumbão ficará bem. O garoto sempre tem um ás na manga – disse o doutor Proktor, fazendo de tudo para mostrar a Lise um sorriso reanimador.
Alfie Crunch embaralhou as cartas lentamente, olhando o tempo todo para Bumbão com um sorriso ameaçador.
– Você já se perguntou por que o queijo parmesão tem cheiro de chulé, miudinho? – indagou, enquanto começava a distribuir as cartas para Bobbie, para Charlie, para Bumbão e para si próprio.
– Não – respondeu Bumbão, balançando alegremente as pernas e os braços na cadeira. É claro que ia morrer, mas pelo menos não estava mais amarrado. E, quem sabe?, talvez juntas sangrentas não fosse algo tão cruel como todo mundo achava.
– É porque o parmesão é feito de gente que perdeu no jogo de juntas sangrentas. Elas ficam tão apavoradas que começam a suar, especialmente nos dedos dos pés, que são a última parte a ser cortada – explicou Charlie.
– Tem cheiro de chulé porque é feito de chulé – completou Bobbie, rindo baixinho.
– As pessoas não sabem o que estão botando no seu espaguete – falou Alfie, olhando suas cartas com satisfação. – Mas, ultimamente, alguns restaurantes para os quais vendemos têm dito que o parmesão está com muito cheiro de chulé. – Apontou um punhado de máscaras de dormir dentro do chapéu-coco sobre a mesa. Em cada uma delas estava impresso BRITISH AIRWAYS em letras brancas. – Na realidade, são para cobrir os olhos quando você está tentando dormir no avião, coisas assim. Nós os afanamos na classe executiva, no nosso voo para casa depois do assalto no Brasil. Se as vítimas não tiverem de assistir a si mesmas sendo transformadas em queijo parmesão, os pés não suam, certo?
– Su-su-superinteligente! – disse Bumbão, examinando suas cartas. Três de ouro, cinco de paus, oito de espadas, dez de copas e um valete de ouro que o encarava da carta com olhar tristonho. Não tinha nada. As suas juntas já estavam doendo.
– Então, você vai entrar com quanto, coisa insignificante? – perguntou Alfie.
– Na-na-nada. Estou fora – respondeu Bumbão.
– Você precisa pelo menos pingar, e a aposta mínima é cinco – disse Charlie.
– Bom, então acho que vou entrar... com cinco – Bumbão disse com relutância, coçando a costeleta.
– Tudo bem, vamos mostrar nossas mãos – ordenou Alfie.
Todo mundo baixou as cartas na mesa. Charlie tinha um par de noves. Alfie, um par de quatros. E Bobbie não tinha nada, exatamente como Bumbão.
– São cinco pancadas em você, coisa insignificante – falou Alfie.
– Isso é trapaça! – contestou Bumbão.
Alfie baixou sua sobrancelha única sobre seu par de olhos irados como uma sarjeta.
– Você não está acusando um inglês de não jogar honestamente, está, sujeitinho?
– A mão do Bobbie está tão ruim quanto a minha! – protestou Bumbão.
– E daí? Estamos jogando contra você como uma equipe. Você precisa vencer nós três. As regras são essas, e ninguém aqui recebeu nenhuma carta a mais. Todos temos cinco cartas. Então não diga que não é justo. Apresente suas juntas, seu brócolis anão!
Bumbão estendeu uma mão trêmula com o punho fechado.
– Po-po-posso usar aquela máscara para os olhos?
– Não! São cinco pancadas apenas, seu fracote! – disse Alfie, agarrando o baralho e golpeando sonoramente as juntas de Bumbão com ele. Uma, duas, três, quatro, cinco vezes.
– Ui, ui, ui, ui, ui – gemeu Bumbão, puxando a mão de volta.
Tinha doído mesmo, e as juntas dos seus dedos já estavam vermelhas.
– Ai, não tem jeito. O sujeitinho parece que vai chorar. Será que devemos chamar Mama Crunch e perguntar se ela pode trazer um pudinzinho de Birmingham para fazer você se sentir melhor? – disse Alfie, com um risinho sarcástico.
– He, he! – riu Bobbie.
– He! Tosse! He! – riu Charlie.
Bumbão não parava de piscar, mas as lágrimas não sumiam.
– Não é justo! Vocês não estão jogando pelas regras internacionais oficiais de juntas sangrentas! – reclamou, a voz soando como se estivesse à beira das lágrimas.
– Que regras? – indagou Alfie com uma fungada depreciativa.
– Bem, por exemplo, a regra diz que você tem de bater com as cartas viradas para cima! – falou Bumbão, enxugando os olhos com a manga, enquanto Alfie distribuía a rodada seguinte. – É claro que dói muito mais. Mas não, isso é típico inglês. Vocês têm de fazer tudo de um jeito diferente: dirigir do lado errado, usar jardas em vez de metros, escrever tudo de um modo engraçado, não falar nenhuma língua estrangeira...
– Cala a boca e joga! A aposta mínima dobra a cada vez, então agora é dez – ladrou Alfie.
– Dez – disse Bumbão, e espalhou as cartas sobre a mesa.
– Você tem um par de dez? Nada mau – observou Alfie.
– Ha! – Bobbie mostrou seus três reis.
Bumbão estendeu o punho direito e Alfie ergueu o baralho. Então, reconsiderou. Grunhiu e virou o baralho de modo que as cartas ficassem viradas para cima e acertou as juntas de Bumbão com elas.
– Ui! – gritou Bumbão. E depois: – Ui! Ui! – E em seguida: – Uuuuuuuui! – Desta vez gritou tão alto que tremeu o prato de porcelana pendurado na parede com a figura do príncipe herdeiro e da princesa.
– Parece que o sujeitinho tinha razão! Realmente dói muito mais se você segue as regras internacionais! – exclamou Charlie, tapando os ouvidos.
– Incrível! De agora em diante, vamos jogar pelas regras internacionais! – disse Alfie, caprichando bastante na última pancada, tirando um fio de sangue de duas juntas de Bumbão. Embaralhou e distribuiu de novo as cartas, enquanto o menino enxugava mais lágrimas e soprava as juntas.
– Ha! – exclamou Bobbie ao ver suas cartas.
– Sim! – disse Charlie ao ver suas cartas.
– Dá para acreditar nisso? – exultou Alfie ao ver suas cartas.
– Pôquer de bolada – explicou Bumbão.
– Hein? – os três irmãos disseram juntos, olhando para ele.
– Aposto mil pancadas e digo, pôquer de bolada!
– Mil pancadas e pôquer do quê?
– Pôquer de bolada. Isto significa que distribuímos as cartas outra vez, mas a bolada permanece e você precisa ter no mínimo um par de valetes para continuar. Qualquer um que não possa ir em frente leva cinquenta pancadas nas juntas – respondeu.
– Eu não quero cinquenta pancadas nas juntas – falou Bobbie.
– Nem eu! – disse Charlie, estremecendo.
– Ótimo! Então está todo mundo dentro. Distribua as cartas de novo, Alfie – ordenou Bumbão.
– De jeito nenhum, estou gostando da minha mão! – protestou Alfie.
– Foi você que disse que de agora em diante jogaríamos pelas regras internacionais e que um inglês sempre joga honestamente – insistiu Bumbão.
Alfie fitou Bumbão por alguns segundos, furioso, depois resmungou alguma coisa para si mesmo, juntou as cartas, embaralhou-as novamente e distribuiu mais uma rodada.
– Aposto duas mil pancadas, e digo bolada – falou Bumbão depois de olhar as cartas dele.
Os irmãos soltaram gemidos.
Depois de seis rodas de boladas como essa, Alfie estava realmente louco da vida.
– Chega de brincadeira! Há dez mil pancadas na mesa, e isso significa que o perdedor vai virar queijo parmesão não só uma, mas três vezes seguidas! Então esta foi a última rodada de bolada. Agora vamos JOGAR! Certo?
Os irmãos observaram o ruivinho dar de ombros e dizer:
– Por mim, tudo bem.
Alfie embaralhou as cartas com o maior cuidado, mantendo um olho em Bumbão.
– Você não andou se queixando de ter toda vez uma mão ruim, miudinho. Deveria ter reclamado. A maioria das pessoas com quem jogamos me acusa de ajeitar as cartas.
– Nunca me ocorreu. Subo a minha aposta para mais dez mil pancadas. Alguém vai entrar? – Bumbão disse, pegando suas cartas.
– Eu! – os três irmãos gritaram em uníssono.
Bobbie foi o primeiro a mostrar as cartas: um par de três.
Alfie revirou os olhos e mostrou três valetes.
– Uma trinca, valetes! – gabou-se.
– Bom, mas não o bastante! Uma seguida bate uma trinca! Ha! ha! – Charlie disse com júbilo, batendo as cartas na mesa: um seis, um sete, um oito, um nove e um dez.
Os irmãos se viraram e olharam para Bumbão, tensos. Mas Alfie, que havia repartido as cartas, não parecia realmente tenso. No entanto, ficou ainda mais surpreso do que os outros dois quando Bumbão jogou os dois braços para o ar e berrou:
– Ganhei!
– Impossível! Vamos ver as suas cartas, seu ínfimo ruibarbo – chiou Alfie.
Bumbão pôs as cartas sobre a mesa. Por alguns segundos, a sala ficou em absoluto silêncio. Depois, Alfie começou a rir, seguido de Bobbie e de Charlie.
– Você só tem um par de dois! – observou Bobbie.
– Mais um três de paus. E a dama de copas! – respondeu Bumbão satisfeito.
– Isso não adianta nada. Você é o último! – disse Charlie.
– Você é queijo parmesão – falou Alfie.
– De jeito nenhum – retrucou Bumbão.
– De jeito nenhum?
– Rapazes, vocês estão esquecendo que estamos jogando pelas regras internacionais.
– E daí? – indagou Alfie.
– Caras, como vocês são autênticos jogadores de pôquer internacional de competição, tenho certeza de que conhecem as regras – prosseguiu, apontando para as cartas de Charlie. – Primeiro, não se conta como seguida uma sequência em que as cartas vão de baixo para cima, como de seis a dez. Segundo o parágrafo dezenove, uma seguida oficial tem de ir de cima para baixo, como de seis a dois.
– Que droga! – resmungou Charlie, coçando a cabeça.
– Além disso... – continuou Bumbão, batendo no par de três de Bobbie com o seu três de paus e entoando vitoriosamente: – Três de paus! Três de paus.
– Hein? O que você está fazendo? – quis saber Bobbie.
– Exatamente o que diz a minha carta. Descendo o pau no seu par de três. Se você desce o pau num par de três, você os reduz à metade do tamanho, transformando-os em um e meio. E isto significa que o meu par de dois bate o seu par de uns e meios. Simples matemática!
– Você é esperto, miudinho. Mas isso não adianta, porque eu tenho três valetes! – disse Alfie.
Bumbão ergueu triunfante a sua dama de copas e a agitou no ar, com expressão de provocação.
– O que tem ela? – resmungou Alfie.
– Eu uso a dama de copas como trunfo contra você, porque ela é a mãe desses três valetes e diz que já está na hora de os três valetezinhos irem para a cama.
– Que monte de besteiras! – Alfie retrucou, pondo-se de pé.
– Ah é? – insistiu Bumbão. – Vocês querem que eu conte para – baixou a voz – Mama Crunch – e voltou a erguer a voz – que os meninos dela desrespeitaram a dama de copas? E que estão trapaceando no juntas sangrentas?
Um silêncio total encheu a sala durante exatamente seis segundos e meio. Então Alfie Crunch baixou sua cabeça careca.
– Droga! – exclamou, estendendo o punho cerrado.
– Ugh! – disse Bobbie, estendendo o punho cerrado.
– Droga e ugh! – murmurou Charlie, estendendo o punho cerrado.
Bumbão fez um teste, dando uma batida com o baralho na borda da mesa.
– Gostaria de sugerir que vocês usassem as máscaras de dormir, porque a coisa pode ficar realmente feia! – avisou.
– Obrigado! – agradeceu Charlie, e pôs uma máscara de dormir da British Airways.
– Obrigado – disse Bobbie, e pôs uma máscara de dormir da British Airways.
– Obrigado – falou Alfie, e pôs uma máscara de dormir da British Airways.
– Todos prontos? – perguntou Bumbão. – Agora vou dizer baixinho um uni-duni-tê para ver por qual de vocês vou começar, e aí vamos em frente.
Os irmãos ficaram sentados, mudos, esperando ansiosamente para saber qual deles seria transformado primeiro em queijo parmesão. Charlie foi o primeiro a perder a paciência.
– Ele já começou a bater em algum de vocês?
– Seu bobo! Você já teria ouvido se ele tivesse começado! – respondeu Alfie.
– Quanto tempo pode levar para dizer um uni-duni-tê? – perguntou Bobbie.
– Parece que muito tempo – respondeu Alfie.
– Rapazes, o que vocês estão fazendo? E onde está o miudinho? Vocês já o transformaram em queijo parmesão? – ouviram uma voz grave, familiar, perguntando.
Os três tiraram as máscaras de dormir.
Mama Crunch estava parada na entrada da sala de estar, segurando as sacolas da mercearia.
Mas nem sinal de Bumbão. Nem do seu sapato de cortar lenha, nem da luva de pontaria, nem dos dardos.
– Ele se foi! – gritou Alfie.
– Ele deu no pé! – berrou Bobbie.
– Ele se mandou! – sussurrou Charlie.
Capítulo 18.
Este capítulo específico não
tem título. Espero que você
sobreviva
– PODE SOLTAR AGORA – pediu Bumbão.
Ele acabara de entrar no quarto de hotel. Foi recebido pelo alegre doutor Proktor e abraçado por Lise, que soluçava de alegria.
– Estávamos com tanto medo por você. Pensamos que você ia morrer! – Lise fungou, abraçando ainda mais forte o seu pequeno amigo.
– Vou morrer se você não me soltar logo – falou Bumbão, como se estivesse sufocando.
Lise suspirou e, com relutância, o soltou.
– Conte-nos o que aconteceu! – pediu o doutor Proktor.
E Bumbão contou. É claro que pode ter exagerado um pouco nisto ou naquilo. Mas, se não exagerasse, não seria Bumbão.
– Então você se esgueirou para fora no meio das juntas sangrentas? – perguntou o doutor, rindo.
– É, sim. Mas agora temos de nos apressar, porque, enquanto conversamos, Rublov está derretendo as barras de ouro para transformá-las no troféu do Campeonato Inglês! – respondeu Bumbão.
– Tarde demais – disse Lise. Ambos olharam para ela, que apontou para a tela da televisão.
E lá estava Rublov. Atrás dele, estava uma mulher alta, loira, de vestido curto, com a mão levemente pousada sobre um dos ombros dele, com um diamante do tamanho de um ovo médio no dedo anelar. Ibranaldovez estava atrás da mulher, bocejando e olhando as horas. Um repórter esportivo segurava um microfone diante de Rublov. E, atrás de tudo, eles viram o troféu. Havia uma fita em volta dele, e o brilho era de ouro puro. Lise aumentou o volume.
– Quanto pagou por essa maravilha, Rublov?
– Ela? – Rublov disse, fazendo um gesto sobre o ombro com o polegar. – Ou ele, mais atrás? Ha, ha, ha! Mais do que paguei pela Finlândia e pela Nova Zelândia, posso lhe garantir.
– Está planejando marcar gol contra o Rotten Ham no sábado? – o repórter perguntou a Ibranaldovez.
– Só se ele dobrar o meu salário – respondeu arfando e olhando de novo as horas.
– Claro que dobro, meu garoto! Você quer mais alguma coisa? – perguntou Rublov.
– Ela – disse o melhor jogador de futebol de mundo, apontando para a loira.
– Ótimo! Contanto que eu ganhe isto – falou Rublov, dando palmadinhas no grande troféu.
A loira olhou hesitante de Rublov para Ibranaldovez por um momento, antes de resolver apenas sorrir e seguir com a brincadeira.
Lise resmungou algo, parecendo ofendida. Então baixou novamente o volume.
– Bem, não dá para ganhar sempre, mas pelo menos fizemos o nosso melhor pelo rei e pela pátria. Quando é o próximo voo para Oslo? – perguntou Bumbão.
– Amanhã, às oito e meia da manhã. Acho que podíamos muito bem começar a fazer as malas – falou Lise.
Começaram a mover-se lentamente na direção do dormitório, mas pararam quando ouviram o doutor Proktor pigarrear alto.
– Hum!
Ele sentou-se no sofá, a fisionomia coberta de rugas de concentração.
– O que é, professor? – indagou Lise.
– Ah, eu estava só pensando.
– Isto a gente pode ver, mas pensando o quê? – ela cutucou.
– Estava pensando que, se temos mesmo de fazer as malas, seria bacana incluir o ouro que viemos procurar.
– Mas o ouro está ali – falou Lise, apontando para o troféu do Campeonato Inglês que, por acaso, naquele momento, estava sendo focalizado em close na televisão. – E nós estamos aqui.
Bumbão se animou.
– Por acaso isso quer dizer um assalto? – perguntou, esfregando as mãos com entusiasmo.
– Esqueça, Bumbão. Aquele troféu está tão bem guardado que nem mesmo com as suas ideias malucas ou as invenções do doutor Proktor conseguiríamos pegar – disse Lise.
– Lise está certa, como sempre – concordou o doutor Proktor.
– Claro que estou! A única pessoa que vai para casa com aquele ouro é quem ganhar o estúpido jogo do Campeonato Inglês – a menina ironizou.
– Exatamente – concordou o doutor Proktor.
Lise congelou e fitou-o sem entender. Ele sorriu. Então parecia que ela estava começando a entender. E aí, absolutamente apavorada, falou:
– Você... não está querendo dizer... que...?
– Claro que estou – o doutor Proktor respondeu, irradiando satisfação.
– Não está querendo dizer o quê? Alôôô? Será que alguém pode me dizer do que vocês estão falando? – Bumbão perguntou, olhando de Lise para o professor.
– Estamos falando que o doutor está sendo um completo e desvairado lunático! – respondeu Lise, sem tirar os olhos do professor.
– He, he! Essa já é velha! Mas, neste momento, de que jeito ele está sendo lunático? – quis saber Bumbão.
– Deixem-me explicar para vocês. Sentem-se e prestem bastante atenção... – pediu o doutor Proktor.
Capítulo 19.
Doutor Proktor fica louco
(ou melhor: fica mais
louco do que já é)
O SOL ACABARA DE NASCER sobre o campo de treinamento que o Rotten Ham estava usando. Ou Buscapés de Rotten Ham, que era o nome oficial inteiro do time. Ou simplesmente “Pés”, como alguns poucos torcedores locais da Zona Norte Central de Londres os chamavam. Ou “Pés Fedidos”, como os chamavam os muitos adversários pelo resto de Londres. No geral, ninguém fora de Londres jamais ouvira falar do time, então não o chamavam de nada. A razão para torcer pelo Rotten Ham ou odiá-lo era que, além de ter os jogadores mais baratos e portanto os piores de Londres, eles também jogavam o futebol mais chato da cidade. Quase nunca marcavam gols, embora, por outro lado, quase nunca deixavam ninguém marcar contra eles. A razão disso era que, quase sempre, conseguiam meter um pé na bola antes que o adversário conseguisse metê-la no gol, daí o apelido depreciativo: “Pés Fedidos”.
Hoje estavam praticando marcar gols.
– Não, não, não! O gol está bem ali! Estão vendo? Joguem! – berrava Eggy Losern, o técnico do Rotten Ham, batendo suas botas de chuva na grama.
Eggy Losern vinha de uma antiga linhagem de pilotos de rebocadores marítimos, mas foi para o mar como pescador de camarões. Enquanto estava no oceano Antártico, descobriu como atrair os camarões para as redes usando uma engenhosa tática de defesa por zona. A meta era atraí-los tão devagar que eles acabavam adormecendo e nadando direto para a rede, como sonâmbulos. Ele tinha certeza de que essa técnica “chata” podia ser usada também no campo de futebol, então renunciou ao seu posto no navio e voltou para terra firme. Pediu uma chance para treinar o pior time da Inglaterra, o Rotten Ham. E como ninguém mais queria treiná-lo, conseguiu o emprego no mesmo dia.
Egg vinha tendo o maior sucesso. O Rotten Ham passara de pior time da Inglaterra para apenas o quarto pior em apenas dois anos. E esse peculiar pescador de camarão, que ainda se vestia como pescador, com seu chapéu amarelo de pesca oceânica e longas botas de borracha, ganhara respeito e o apelido de Camarão. E, este ano, Camarão e os Pés Fedidos tinham aberto caminho aos tropeções até a final do Campeonato Inglês, com uma combinação de obstinação, inacreditável sorte e um futebol tão absolutamente chato que seus oponentes simplesmente ficavam parados em campo, bocejando, e nem percebiam quando o Rotten Ham conseguia chutar a bola no gol.
Mas Camarão sabia que, infelizmente, isso não daria certo contra a equipe do Chelchester City. Rublov deixara isso bem claro. Ele entendera a tática do Rotten Ham e planejava dar aos seus jogadores duas xícaras de café forte antes do começo do jogo, para que permanecessem bem acordados. Além disso, o Chelchester City havia comprado Ibranaldovez, de modo que marcariam gol, não importando quão zoneada estivesse a defesa do Rotten Ham. Camarão sabia que seus jogadores teriam de marcar mais de um gol desta vez. Mas como? Como?
O técnico alinhou seus jogadores na linha divisória do campo para o treinamento, observando como trabalhavam a bola até a grande área e chutavam a gol. Quer dizer, chutavam a bola. Ou a grama da grande área. Não que importasse o que seus pés acertavam, uma vez que as bolas, de um jeito ou de outro, não entravam no gol.
– Rapazes, eu até tirei o goleiro! Olhem! O gol está vazio como um pote de lagosta – Camarão resmungava, arrancando seu chapéu de pescador.
– Não é tão fácil! – gritou o capitão Nero Manzona, agitando as mãos no ar, desesperado; mãos assustadoramente enormes.
Camarão ouviu um TUNK claro atrás de si. Depois, um som alto de assobio, como se algum tipo de projétil tivesse passado zunindo ao seu lado. Em seguida, um uooosh quando o projétil acertou o meio do gol e escorregou pela rede. O projétil quicou algumas vezes no chão antes de parar.
Era uma bola de futebol.
Camarão virou-se lentamente.
E viu uma coisa muito estranha.
Um sujeitinho ruivo, minúsculo, vestindo um paletó de tweed, um chapéu esquisito, pontudo, feito do mesmo material, e sapatos diferentes, um deles parecendo uma espécie de bota de couro costurada a mão. O sujeito estava ali parado, com os braços ao lado do corpo e um sorriso de satisfação nos lábios. Atrás dele havia um homem alto, magro, esguio, vestindo um traje de pinguim e uma coisa que Camarão apostava que eram óculos de natação. Parada ao lado deles estava a única dos três que parecia mais ou menos normal: uma menina de tranças, expressão séria, com uma bola de futebol debaixo do braço.
– Quem fez aquilo? – Camarão perguntou.
– Sherl – respondeu o homem com óculos de natação, apontando para o sujeitinho ruivo. Nome completo: Beckadona Hamarooney Sherl, também chamado Bota da Noruega. E eu sou seu agente, Hamish MacKaroni.
– Saiam já do meu campo de treinamento! – ordenou Camarão, apontando a saída.
– Ockolmes! – o tal de MacKaroni disse, e a garotinha rolou a bola que segurava até o tal de Beckadona Hamarooney Sherl, que entrecerrou um olho, como se estivesse mirando o gol, e levantou o minúsculo pé com a bota costurada a mão como se fosse chutar. De uma distância de trinta metros, sem nem correr para pegar impulso. Camarão deu um riso de chacota e voltou-se para seus jogadores.
– Certinho, agora tragam suas bolas para mais perto do gol, e vamos ver se...
TUNK!
Zunido!
Uooosh!
Camarão observou a bola, que quicou algumas vezes dentro do gol, perto da primeira. Virou-se novamente.
O ruivinho estava sentado na grama, soprando o dedão da sua bota costurada a mão.
– E então? – perguntou MacKaroni. – Parece um jogador que você poderia usar, hein?
– Quanto? – perguntou Camarão.
– O que você pode oferecer? – o estranho agente com sotaque escocês perguntou.
– Quarenta e oito libras e um par de chuteiras quase de graça.
– Como está vendo, o garoto já tem suas próprias chuteiras.
– Certinho. Quarenta e oito libras mais graxa de sapatos, então.
– Por esse preço, você pode ter os dois.
– Os dois? – Camarão perguntou, confuso.
– Sim, Sherl e Ockolmes – MacKaroni apontou a menina de tranças.
– Uma menininha? Ela sabe jogar?
– Absolutamente nada! Não suporto esse jogo – respondeu a menina.
– Shh, Lise! – disse o tal de MacKaroni, ajustando seus óculos de natação. – Se eu vender Sherl, a garota tem de ter permissão para sentar no banco dos reservas durante a final do campeonato no sábado. Sherl tem acessos de calor, epilepsia e carbúnculos marsupiais se ela e eu não estivermos por perto.
– Você também vai sentar no banco?
– Você tem um gandula? – perguntou Mackaroni.
– O Rotten Ham não pode se dar a esse luxo – Camarão disse, rindo.
– Não tem problema. Eu fico de gandula. Aqui está o nosso contrato – disse o sujeito que dizia se chamar MacKaroni, tirando uma folha de papel enrolada de dentro do bolso do paletó.
Camarão pôs os óculos que estavam pendurados numa cordinha em torno do pescoço e leu.
– Bem, o que você me diz? – perguntou MacKaroni.
– Na verdade, não sei... – Camarão respondeu, hesitante.
– O que há para pensar? – gritou o ruivinho. – Você não só ganha três pessoas pelo preço de uma, mas também um conjunto extra de estacas de barraca e um saco de carvão! E isso não é tudo. Como o dia hoje está lindo, acabei de decidir que vou adicionar um pacote... não, um não, dois pacotes de chocolate quente! O que me diz?
Camarão encarou o garoto.
– Eu digo: tudo bem!
– Eeeeeba! – gritou a menina de aparência normal.
– Eeeeeba! – gritou o agente do jogador com sua aparência anormal, o novo gandula do Rotten Ham.
– Eeeeeba! – gritou o ruivo Bota da Noruega com sua cara de bebê.
– Ainda não há razão para comemorar. Pegue seu uniforme de treino, porque estamos na reta final. Não há muito tempo. Sábado é... bem, já, já – falou Camarão.
Capítulo 20.
A grande final
ERA UM BELO SÁBADO DE MAIO, exatamente às 6:28 da manhã. De acordo com todos os almanaques aprovados, sancionados pelo governo, era a hora em que o sol deveria nascer e brilhar sobre o Observatório de Greenwich e sobre Londres. Mas o sol já ia alto no céu. Porque ele sabia, como todos os habitantes de Londres, que hoje era o dia do jogo final do Campeonato Inglês, o que significava ter de chegar cedo para garantir um bom lugar.
Assim, na hora em que as pessoas afluíam aos borbotões para o enorme Estádio de Wobbley, o sol tinha se posicionado de maneira a poder ver o gol dos dois lados, e não tinha a menor intenção de sair dali até o jogo acabar. Os dois lados compridos inteiros do estádio e os dois lados curtos quase inteiros estavam cobertos de camisas azuis, de gorros azuis e de cachecóis azuis, carregando bandeiras azuis. Comiam cachorro-quente, tomavam cerveja e cantavam canções dizendo como o Chelchester City era bom. O único lugar que não era completamente azul era a parte de baixo das arquibancadas, atrás de um dos gols. Ali havia um pequeno grupo vestido de branco que cantava canções dizendo que o Rotten Ham na verdade não era tão ruim. Pelo menos num dia bom. Um sujeito chamado Tony liderava os cânticos. Ele estava sem camisa. Era um artista, um tatuador da rua Rotten Ham, e trazia o emblema do clube – um pedaço de presunto podre (que é, afinal, o que quer dizer Rotten Ham) – tatuado no peito todo, junto com o nome do time: ETERNAMENTE ROTTEN HAM. Infelizmente, as letras estavam ao contrário, da direita para a esquerda, pois Tony as tinha tatuado usando um espelho.
Tony e os outros cantavam:
Pés, meu time dos Pés, a flor da Inglaterra tu não és
Mas o jogo ainda não começou, desistir eu não vou
Quem sabe tudo mudou, quem sabe fazemos um gol
Avante com fé, poderoso tu és, meu grande time dos Pés!
Camarão estava sentado na frente dos seus jogadores, no vestiário sob as arquibancadas, escutando a canção. Podiam ouvir os torcedores vestidos de azul rindo a não mais poder daquela letra bem pouco inspirada. Os jogadores do Rotten Ham estavam sentados com a cabeça apoiada nas mãos, olhando o chão. Alguns tremiam mais do que vara verde, porque nunca antes tinham jogado diante de um público tão grande. E o jogo seria transmitido pela televisão para o mundo inteiro! Ai, ai, ai!
– Certo – disse Camarão, arrumando seu chapéu amarelo de pesca oceânica e esfregando as mãos. – Já está quase na hora do pontapé inicial. Estamos prontos, Pés?
Nenhuma resposta.
– Estamos prontos, Pés? Nero? Responda! – repetiu.
– Hã... Muito prontos, acho – respondeu Nero, puxando para cima sua faixa de capitão, que tinha escorregado mais uma vez pelo seu braço longo e esquelético.
– É assim que deve ser! Esta é a atitude que eu quero ver! Algum de vocês não está ansioso, à espera deste jogo, com pressa para sair daqui e entrar naquele mísero campinho? – berrou Camarão.
Todos os jogadores, exceto o ruivinho, acenaram que sim com a cabeça.
– Acho que vocês não entenderam bem a minha pergunta. Vou dizer mais claramente: algum de vocês gostaria de não ter chegado até aqui, na final? – falou Camarão mais uma vez.
– Sim – responderam todos, exceto... bem, vocês sabem quem.
– É mesmo? Vocês acham melhor simplesmente ir para casa e esquecer tudo a entrar em campo e levar uma surra do melhor time de toda a Inglaterra e do jogador mais caro do mundo? – disse Camarão, irritado.
– Sim! – todos os jogadores gritaram em uníssono, mesmo o minúsculo ruivinho, embora apenas levado pela convicção dos outros.
A cabeça de Camarão afundou no meio das mãos em desespero.
– Idiotas! A resposta certa é “não!”. Vocês erraram três respostas em três! Certo, vamos fazer mais uma tentativa... – berrou, irritadíssimo.
– Não! – berraram todos os jogadores.
Camarão revirou os olhos.
– Ainda nem fiz a pergunta! Certo, vamos esquecer as perguntas. Agora vem a prédica motivacional. Então, prestem muita atenção e imaginem música inspiracional, subindo num crescendo, como num filme de Hollywood. Certo?
Levantou-se, limpou a garganta e fechou os olhos, concentrado.
– Vamos ver. Sim, lá vai: lutaremos nos mares e oceanos, lutaremos no ar, lutaremos nas praias, lut...
– Dá licença? – pediu Nero Manzona.
– Sim? – disse Camarão.
– A programação diz que o jogo é em Wobbley. Que negócio é esse de oceanos e praias? Estamos no estádio errado?
– Idiota! – rugiu Camarão, batendo o pé para expressar sua raiva, ainda que a bota de pescador não fizesse muito barulho.
A porta se abriu, e lá estava um homem de meia-idade, de cabelo ralo, vestindo shorts que tremulavam soltos em torno de um par de coxas incrivelmente finas.
– Saia! Estou aqui fazendo a prédica motivacional para os meus jogadores! – rosnou Camarão.
– E estou aqui para avisar que, se vocês não entrarem em campo em dez segundos, o jogo vai começar sem vocês – disse o homem.
Camarão o encarou e disse:
– O que você está dizendo?
– Todo mundo está esperando por vocês – disse o homem de cabelo ralo e coxas finas.
– Acho que é o juiz – sugeriu a menina de tranças.
Camarão olhou desconfiado para o relógio. Deu uma batidinha. Pôs junto ao ouvido.
– Hum, parece que o meu relógio parou. Vou ter de fazer a prédica motivacional depois do jogo, rapazes. E... hã, menina. Vamos trucidá-los, Pés!
Todos os jogadores saíram correndo pela porta, pelo túnel, e entraram debaixo do tremendo barulho do Estádio de Wobbley.
O doutor Proktor (vulgo Hamish MacKaroni) e Lise (vulga Ockolmes) sentaram-se ao lado de Camarão, no banco junto à linha lateral.
– Onde estão os outros reservas? – perguntou o doutor Proktor.
– Que reservas? E você acha que podemos nos dar ao luxo de pagar gente para não jogar? – ele respondeu com outra pergunta.
– Mas, e se alguém se... hã, machucar? – foi a vez de Lise perguntar.
– Eles não têm permissão para se machucar – respondeu Camarão. – Será que dá para vocês pararem de me perturbar para eu poder me concentrar?
Ibranaldovez estava parado no meio do campo, pronto para dar a saída, mas olhava para baixo, encarando Bumbão.
– É sério? Você vai jogar? Pensei que você era o mascote. Vou ter de tirar você das minhas chuteiras depois do jogo – rosnou.
E então, exatamente quarenta e três segundos depois das quatro horas, quarenta e três segundos depois do programado, soou um apito que deu início à grande final do Campeonato Inglês.
O cronômetro do jogo acabara de passar dos quarenta e três minutos quando Camarão gemeu de desespero, pois aquilo não podia estar acontecendo. O Chelchester City ficou todo o tempo com a posse da bola. Fizeram dois gols em impedimento, acertaram três bolas na trave, cobraram dezesseis escanteios, e as casas de apostas estavam pagando quinhentos para um, em caso de vitória deles. Em outras palavras, era um milagre o placar ainda estar zero a zero. Ibranaldovez chutou, e Camarão deu um pulo no ar de empolgação na lateral do campo quando a bola bateu no travessão. Sentou de novo na pontinha do banco, impulsionando o outro lado para cima e jogando Lise no ar. Ela aterrissou de volta dando um pequeno soluço.
– Faltam dois minutos para o meio-tempo! A gente tem de aguentar o zero a zero até lá! Por favor, oh, por favor! – disse Camarão, mais para si mesmo.
O goleiro do Buscapés de Rotten Ham passou a bola para Nero Manzona.
– Manda a bola pro carinha ruivo! – gritou Camarão.
– Beckadona Hamarroney Sherl – corrigiu o doutor Proktor.
– Seja lá o que for. Manda a bola pra ele!
Nero tentou, mas não era tão fácil conseguir essa façanha. Primeiro, ele precisava ter o controle da bola e depois mandá-la para onde queria. Para não mencionar todos aqueles caras vestidos de azul em cima dele o tempo todo. Eles eram realmente duros! Mas aí ele viu o garotinho ruivo que tinha ficado parado o jogo todo no círculo central, esperando a bola. Sim, aquele tal de Beckumoonie Shirley, ou seja lá qual fosse o seu nome, tinha chegado a deitar na grama por algum tempo quando o Chelchester City estava no auge da pressão. O sujeitinho tinha arrancado uma folha de grama, enfiado entre os dentes e ficado deitado, com as mãos cruzadas atrás da nuca, olhando para o céu azul.
Nero fez pontaria e tentou chutar a bola para o garoto, mas acabou chutando a grama atrás da bola. E de repente a sua perna estava no meio das pernas de Ibranaldovez.
– Agarra! – gritou Camarão.
Nero se jogou para a frente, fechou os olhos e agarrou Ibranaldovez.
Quer dizer: ele não tinha total certeza de ter agarrado Ibranaldovez. Aparentemente, havia agarrado o ar onde Ibranaldovez tinha estado um segundo antes, porque, quando abriu os olhos de novo, ouviu um rugido de ovação vindo das arquibancadas e viu Ibranaldovez voltando com as mãos erguidas, em sinal de vitória. Pode ter sido por mero acaso que Ibranaldovez pisou na mão de Nero quando partiu com a bola.
– Não! Não! Não! – berrou Camarão.
– Bem, bem – disse o doutor Proktor.
Os times voltaram cada um para o seu lado do campo. Rotten Ham pôs a bola no centro do gramado e esperou que o juiz apitasse para recomeçar o jogo. Bumbão bocejou, cuspiu sua folha de grama e dirigiu-se até a bola junto com seus colegas de equipe.
– Olhe para isso – o doutor Proktor disse a Camarão, que tinha puxado para cima da cara seu chapéu amarelo de pesca oceânica.
Mas Camarão não estava assistindo. Olhava o interior do seu chapéu amarelo de pesca oceânica, sonhando que estava de volta no seu barco de pesca de camarão no oceano Antártico, dentes batendo enquanto puxava as redes, trazendo para bordo outra grande pescaria. Deveria ter ficado naquilo, e não embarcar nesse sombrio país onde tudo era tristeza e...
TUNK!
... miserável
Zunido!
... infelicidade?
A julgar pelo que Camarão podia ouvir enquanto olhava o interior do chapéu amarelo de pesca oceânica, havia gente festejando. Não tanto quanto antes, mas, se não estava enganado, julgou ter ouvido um sujeito chamado Tony cantando algo como “Pés, meu time dos Pés, a flor da Inglaterra tu não és...”.
Abriu os olhos e viu uma pilha de jogadores vestidos de branco. Um sujeitinho ruivo acabou se arrastando para fora da pilha e correu para as arquibancadas, jogando beijos para a galera, tanto para os que estavam de azul como para os que estavam de branco. E Camarão também viu o melhor jogador de futebol do mundo prestes a perder a cabeça.
– Do meio do campo! Você viu essa? – girou MacKaroni, o novo gandula.
E então, com o placar de um a um, o árbitro soou o apito e foram para o intervalo.
Capítulo 21.
Um breve interlúdio
– VOCÊ SÓ PRECISA FAZER ISSO MAIS UMA VEZ – o doutor Proktor cochichou para Bumbão, enquanto Camarão falava, fazia diagramas e apontava para o quadro-branco no vestiário.
– Eu sei, mas nunca vou receber a bola. Isso só aconteceria na saída depois que eles tivessem marcado! – disse Bumbão.
– Tenha paciência! Precisamos ganhar! Daqui vamos direto para o aeroporto com o troféu! – sussurrou Lise.
– É, por falar nisso, vocês pegaram o troféu falso no Museu de Cera de Madame Tourette? – perguntou Bumbão.
– Sim, é claro. Vou levá-lo na minha mala, e estarei esperando no túnel dos jogadores logo depois do jogo. E você, lembra-se do que tem de fazer? – indagou Lise.
– Lembro. Depois de eu receber as ovações da multidão por ter determinado quase sozinho o resultado da final do Campeonato Inglês com o meu fantástico chute e as mocinhas estiverem implorando meus beijos e...
– Vá direto ao ponto! – a menina ordenou.
– Sim, claro. Segurando o troféu, vou ser carregado até o vestiário nos ombros dos meus companheiros de equipe e quando entrarmos no túnel...
– Eu vou desligar as luzes – disse o doutor Proktor.
– No escuro, Bumbão joga o troféu para mim – continuou Lise. – E faço a troca, jogo o troféu falso de volta para você e ponho o verdadeiro, feito do ouro do Banco da Noruega, dentro da mala.
– Aí pegamos o primeiro voo de volta para Oslo, e chegamos em casa bem a tempo de fundir o troféu de volta numa barra de ouro, colocá-lo de volta no cofre, e a inspeção acontecerá sem o menor problema – completou o doutor Proktor.
– E eu serei carregado pelas ruas de Oslo nos ombros do povo, enquanto as meninas jogam rosas vermelhas para mim e caem em lágrimas ao se darem conta de que não posso me casar com todas elas, a não ser que o rei promulgue uma nova lei estabelecendo que eu, Bumbão, na verdade tenho permissão de me casar...
– VAMOS NESSA, ENTÃO! E não esperem demais para começar a trucidá-los, por favor! – berrou Camarão.
Bumbão, com certeza, não tinha a menor intenção de fazer isso.
Capítulo 22.
De volta à final do
Campeonato Inglês
NÃO, BUMBÃO não tinha a menor intenção de esperar. Porque o Rotten Ham ia dar a saída no segundo tempo.
Nero Manzona tocou a bola para Bumbão, que estava pronto, o pé levantado.
TUNK!
– Fiz um pequeno ajuste, sabe? – disse o doutor Proktor (vulgo MacKaroni) para Camarão.
Zunido!
– Mudei a posição do salto, que na verdade é projetado para cortar lenha, para a ponta da bota.
Uooosh!
– Bem bolado, hein? – comentou o doutor Proktor.
Estava dois a um para o Rotten Ham! O delírio tomava conta do pequeno grupo de torcedores do Rotten Ham. Os jogadores mais uma vez enterraram Bumbão sob uma pilha de corpos suados. Bumbão emergiu da pilha e mais uma vez correu para as arquibancadas, jogando beijos para todo lado. Achou até que algumas torcedoras de azul pareciam realmente querer jogar beijos de volta para ele, mas obviamente não ousaram, com medo da represália dos chorões azuis contra um comportamento tão desleal.
Nero deu uma palmadinha na cabeça de Bumbão e falou:
– Tenho certeza de que vou conseguir passar a bola para você algumas vezes. Vamos ganhar esse jogo!
– Com certeza! – concordou Bumbão, concentrando-se em fazer um decente passo de moonwalk sobre a grama, o que não é pouca coisa quando se está calçando uma bota costurada a mão e uma chuteira de futebol. Quando a ovação diminuiu e eles estavam prontos a deixar o Chelchester City dar a saída, Bumbão ouviu uma voz bem no ouvido:
– É sua irmã aquela menina feia ali no banco?
– Ei, ninguém chama a Lise de feia! – falou, virando-se.
Era Ibranaldovez. Ele estava provocando Bumbão.
– A sua irmã é a menina mais feia que já vi, e olha que já vi muitas meninas. Ela é mais feia do que a aldeia de onde venho quando a maré está baixa, e isso é feio demais! E boba! Ela é mais boba do que uma daquelas árvores que vocês colocam na sala de visitas na época do Natal, e isso é uma coisa boba demais! No mínimo. Não, na verdade ela é mais boba ainda. Ha, ha! Ouviu isso? Ela é mais boba do que uma daquelas coisas de árvore! E feia! Já mencionei a parte da maré baixa lá na minha aldeia? Por que a sua cara está tão vermelha, hein?
Bumbão sentia a cabeça fervendo. Ninguém – ninguém! – podia falar da Lise daquele jeito! Nem de nenhum dos seus outros amigos! Nem mesmo de Eva, que realmente era sua irmã. A primeira coisa em que pensou foi que devia acertar um paulada no peito de Ibranaldovez, mas o problema era que ele só chegava até os joelhos do homem.
Então, em vez disso, deu um chute em Ibranaldovez. No traseiro. Simplesmente aconteceu. TUNK!
Um zunido correu pela multidão ao assistir ao melhor jogador do mundo planar no ar, voar por cima do campo e cair nas arquibancadas, e um gemido de dor quando ele aterrissou na área VIP.
– Ibranaldovez acaba de aterrissar no colo de Maximus Rublov! – gritou um repórter de rádio ao microfone.
– O árbitro está dando cartão vermelho ao duplo artilheiro Beckadona Hamarooney Sherl! – uivou um repórter de televisão.
– Sinto muito – disse Bumbão, desabando no banco ao lado de Camarão, de doutor Proktor e de Lise. Desta vez ele parecia realmente arrasado.
– Pode não fazer muita diferença. Estamos ganhando de dois a um, e geralmente somos bons na defesa. Pode dar certo! – falou Camarão.
– Quer dizer, sinto muito ter dado um chute naquele idiota. Eu poderia tê-lo machucado – explicou Bumbão.
– Realmente torço para que o tenha machucado! Para aquele diabo foram só cócegas! Posso vê-lo se mexendo lá em cima! – disse Camarão.
E, de fato, Ibranaldovez estava de volta no campo dez minutos depois. Esfregava sua nádega, mas parecia mais animado do que nunca para marcar um gol.
Duas bolas na trave depois e três bolas seguidas salvas em cima da linha, Camarão olhou o relógio e verificou que só faltava um minuto para o término da partida. Os torcedores do Chelchester se lamuriavam, desesperados, arrancavam tufos de cabelo, roíam as unhas até a segunda junta do dedo.
– Se conseguirmos despachar esse escanteio, ganhamos! – sussurrou Camarão.
O escanteio veio pelo alto, na frente do gol. Dois jogadores saltaram no ar: o goleiro do Rotten Ham e Ibranaldovez.
– Essa é grande! Ele não vai conseguir cabecear a bola! O nosso goleiro alcança mais alto! – sussurrou Camarão.
Então, como se tivesse levado uma joelhada no estômago, o goleiro do Rotten Ham agarrou a barriga e se dobrou em dois. E outra mão se ergueu sobre a cabeça do goleiro. Uma mão muito especial. A mão de Ibranaldovez. E acertou a bola.
– Gol! – berraram os torcedores do Chelchester.
– Mão na bola! – gritaram os torcedores do Rotten Ham.
– Uma mão especial – gritou Maximus Rublov.
– Voleibol! – gritou Camarão.
– Gol – disse o árbitro, apontando para o centro do campo.
Ibranaldovez correu vitorioso para as arquibancadas. Parou na frente do banco do Rotten Ham para curvar-se sobre Bumbão e cochichar triunfante:
– Aquilo não doeu nada, viu só?
Nossos amigos e Camarão ficaram sentados, olhando para a frente, atônitos, enquanto o árbitro mandava o Rotten Ham dar a saída antes de apitar o fim do jogo.
Dois a dois.
– E agora? – perguntou Lise.
– Prorrogação. E você precisa ir se aquecer – respondeu Camarão.
– Eu? – estranhou Lise.
– Você é a única reserva – explicou Camarão, apontando com a cabeça para o gol, onde o goleiro, deitado no chão, apertava a barriga enquanto era colocado numa maca.
Lise engoliu em seco. Estava prestes a alcançar exatamente o que sempre desejara: ter o mundo inteiro olhando para ela.
Capítulo 23.
Prorrogação (Diga-me,
não acaba nunca?)
– NÃO QUERO IR LÁ E... e... fazer papel de idiota na frente de todo mundo! – disse Lise. Chutou a grama com irritação e olhou para as arquibancadas lotadas e todas as câmeras de televisão. – Se meu pé fosse suficientemente pequeno para caber naquela bota, talvez então fizesse algum sentido jogar.
– Eu sei – disse o doutor Proktor, observando o árbitro caminhar para o círculo central, para dar início à prorrogação. – Mas temos de tentar de tudo para ganhar o jogo! Se não tiver vencedor, acontecerá outro jogo no próximo sábado, e será tarde demais.
– Por favor, Lise! Pelo menos você não vai precisar ficar no gol – pediu Bumbão e apontou para a meta, onde Nero Manzona já estava parado, com as luvas e a camisa de goleiro.
Nero nunca havia jogado como goleiro antes, mas, como ninguém mais do time do Rotten Ham também nunca tinha jogado nessa posição, Camarão fizera um rápido unidunitê-salamê-minguê-e-escolho-um-goleiro, e havia caído em Nero.
O árbitro recomeçou o jogo, fazendo soar seu apito. Lise estava jogando de zagueira esquerda. Camarão orientou-a a ficar na frente dos caras de azul o máximo que pudesse e disse que, na verdade, ninguém esperava nada mais dela.
Mas, de vez em quando, é engraçado como o destino pode se intrometer e pôr uma pessoa no lugar certo neste mundo, um lugar ao qual ninguém tem a mínima ideia de que a pessoa realmente pertença. E agora não estou falando de Lise. As poucas vezes em que ela chegou perto da bola, estava correndo na direção errada, olhando na direção errada, sem realmente entender como uma bola rola, quica e se comporta.
Estou falando de Nero Manzona.
– Viu essa defesa? – o locutor de rádio berrou para o comentarista ao lado, depois de Ibranaldovez cabecear a bola para o canto inferior da meta. Mas, num salto de tigre, ali estava Nero, estendendo um daqueles seus braços incrivelmente longos, colocando a mão entre a bola e o chão para espalmá-la por cima do travessão. – Gordon, não vejo uma coisa dessas desde... desde...
– Ponham Manzona na seleção nacional JÁ! – uivou o narrador de televisão quando Nero salvou um chute superdifícil com facilidade. E os torcedores do Chelchester continuavam se lamuriando, arrancando os cabelos, roendo até o toco das unhas, enquanto Nero agarrava, salvava e limpava as mãos.
E já aqui, antes mesmo de você saber o resultado do jogo, vou lhe dar a boa notícia: Nero Manzona teve uma longa e prestigiosa carreira como goleiro da seleção nacional. A não tão boa notícia – bem, falando claramente, a má notícia – é que o jogo já estava quase terminado e não havia nenhum sinal de o Rotten Ham passar pela linha divisória do campo e chegar perto da meta do Chelchester.
– Precisamos fazer alguma coisa! Falta só um minuto e meio para o fim do jogo! – exclamou o doutor Proktor desesperado.
– Detesto relógios – resmungou Bumbão.
Nesse exato momento, a bola rolou na direção de Lise, que estava parada junto à linha lateral, em frente ao banco. A bola parou exatamente na frente do seu pé, e ela ficou olhando para a bola.
– Vamos, Lise! Vá em frente. Dê um finta-Messi, um drible da vaca, um chapéu e aí uma bicicleta! Não é tão difícil assim! – Bumbão berrou do banco.
– Não é? – falou Lise, erguendo cuidadosamente o pé. E não passou disso, porque Ibranaldovez chegou voando pelo ar, chuteiras na frente, direto. Suas chuteiras atingiram Lise e a bola juntos, fazendo que ambos decolassem do campo e acertassem as placas de publicidade, produzindo um barulho assustador.
– Cartão vermelho! – Camarão berrou zangado, saltando do banco. – Prisão perpétua! Cadeira elétrica!
Mas o juiz só marcou falta.
Lise abriu os olhos e, ao olhar para cima, viu três Bumbões e três doutores Proktors, todos olhando para ela, parecendo muito preocupados.
– Dói em algum lugar? – perguntou Bumbão.
– Só o corpo inteiro. E, por favor, dá para vocês pararem de triplicar? – Lise falou.
– Você só bateu levemente a cabeça – explicou o doutor Proktor. – Fique deitada e quieta, Lise. Vou chamar...
– Deitada e quieta? – disse Lise, chutando irritada a placa de propaganda que estava meio em cima dela, e levantou-se. – Temos um jogo a ganhar! – Ao falar isso, caiu sentada.
– Fique deitada, quieta, você está com uma concussão e, de qualquer maneira, é tarde demais para fazer qualquer coisa em relação ao jogo. Aqui, tome um pouco de água – disse o doutor Proktor.
Em vez de pegar a garrafa, Lise franziu o cenho em concentração.
– Nós temos de levar o troféu conosco para casa hoje – afirmou.
– Ela não bateu a cabeça só um pouco – murmurou Bumbão.
– Aquela cobrança de falta é nossa, certo? – ela perguntou.
– Sim, mas, minha cara Lise, mesmo que eu tivesse um sapato de cortar lenha que servisse em você, o local da cobrança fica bem dentro da nossa metade do campo.
Lise levantou-se.
– Lembra o que colocou na mala quando estávamos saindo de casa?
– Hã, hein?
– Me passa o saquinho daquela coisa que eu, tolo, não queria que você trouxesse.
– Está se referindo a... – começou o doutor Proktor.
– Ela está se referindo... – continuou Bumbão.
– Rápido! – gemeu Lise.
O doutor Proktor correu de volta para o banco, abriu a mala, achou o saco e levou-o para Lise, que o abriu toda determinada e despejou o conteúdo na boca. Bumbão lambeu o saco, para se certificar de que o pó tinha sido todo lambido. Então Lise foi falar com Camarão.
– Quero cobrar a falta – declarou.
Camarão suspirou e deu de ombros, dizendo:
– Certinho. De qualquer modo, será o último chute. O árbitro já vai apitar.
– Alô, ouvintes! – disse o locutor de rádio. – Parece que o Rotten Ham está planejando deixar aquela garotinha dar o último chute nesta final tão dramática. Ela está se posicionando. Na verdade, de costas para a bola. Será que está planejando encerrar a partida com uma cobrança de calcanhar? Bem, por que não?
Lise ergueu os olhos para as arquibancadas. Viu todas aquelas faces olhando para ela. Não estava mais nem um pouco nervosa. Seu único pensamento era que não interessava que parecesse impossível, porque ela era capaz de fazer isso! Porque ela era Lise, a primeira e única Lise. Sentiu um borbulhar na barriga. Ela sabia que já, já a coisa ia chegar, e começou a contagem regressiva: seis, cinco, quatro...
Viu o árbitro botar o apito nos lábios e curvou-se toda, até seu traseiro apontar direto para a bola. Lembrou-se do que Bumbão tinha explicado: se o traseiro apontasse demais para o chão, ela levantaria voo no ar, como uma peidonauta.
Dois, um...
E aí veio. A explosão. Aquela que vem depois que você engole um saco inteiro do pó de soltar pum do doutor Proktor.
O locutor de rádio berrou:
– Parece que o calcanhar dela quase não tocou a bola, e no entanto a bola está voando como um projétil!
– Está se dirigindo diretamente para o gol do Chelchester, então o goleiro deverá agarrar. Olha lá, agarrou! – disse um comentarista.
– Mas olhe, Gordon! A bola foi com tanta força que está levando o goleiro junto... Uau! Direto para dentro do gol... rasgando a rede!
– É o pior chute que já vi!
– É o melhor que já vi, Gordon!
– Mas isso é gol! Três a dois para o Rotten Ham!
– E olha lá! O árbitro apitou. Fim de jogo!
– Buscapés de Rotten Ham venceu, Gordon!
– Lise! – Bumbão uivava, pulando para cima e para baixo.
– A melhor do mundo, Lise! – aplaudia o doutor Proktor.
– Ockolmes! – rugia Camarão, correndo para o campo o mais rápido que suas botas de pescador permitiam.
– Pés, meu time dos Pés! – cantavam Tony e os outros torcedores de branco no canto do estádio.
E então, por algum tempo, todos correram em roda, abraçando-se e dizendo uns aos outros que era realmente verdade: haviam ganhado o Campeonato Inglês no Estádio de Wobbley!
Depois que Nero Manzona e os outros jogadores do time receberam da rainha os seus prêmios, carregaram Lise nos ombros pelo estádio, enquanto ela segurava o grande troféu.
– Me carreguem para o vestiário – ordenou, agarrando o troféu.
E, quando estavam no meio do túnel dos jogadores, exatamente quando passaram pelo lugar onde Bumbão estava parado com um sorriso inocente e uma mala aberta, alguém – provavelmente um sujeito com óculos de natação – desligou as luzes e tudo ficou às escuras.
Ouviram-se gritos e urros e houve tumulto, mas, quando as luzes voltaram a acender um instante depois, Lise ainda estava nos ombros dos companheiros de equipe. E o troféu que ela segurava era tão idêntico ao que carregava alguns segundos antes que ninguém desconfiou de que podia ser um troféu diferente.
Enquanto os jogadores tomavam champanhe e comemoravam no vestiário, um táxi londrino preto disparava para o aeroporto. Nele estavam um motorista, três pessoas felizes com as quais estamos muito familiarizados e uma mala contendo um reluzente troféu de Campeonato Inglês com uma fita em volta.
Capítulo 24.
Gelatina. O que mais?
ERA SEGUNDA-FEIRA. Oslo estava banhada do sol de maio. A sineta acabara de tocar após a última aula. Lise e Bumbão caminhavam juntos para casa.
– Como é voltar para casa e não ter mais o seu próprio quarto? – perguntou Lise.
– Isso foi muito esquisito. Eva tinha tirado as coisas dela e disse que eu podia ter meu quarto de volta – respondeu Bumbão.
– É?
– É. Até me deu um abraço. E disse que sentiu um pouquinho a minha falta. Tenho medo de que ela até possa me abraçar de novo uma hora dessas – falou, sentindo um calafrio.
– Bem, mas isso não é bom? Ouvi dizer que um abraço de irmã é uma das coisas mais bacanas do mundo.
– Ser apertado contra aquelas espinhas vermelhas, enormes? Ainda bem que comprei aquele creme para secar espinhas para ela no aeroporto de Londres, hein?
– Foi por isso que você teve de pedir dinheiro emprestado ao doutor Proktor?
– Foi, eu não podia chegar em casa sem levar sequer um saquinho de chá inglês, né? Vou economizar e devolver o dinheiro para o doutor Proktor.
– Hum... – murmurou Lise.
– O que você quer dizer com esse “hum”? – perguntou Bumbão. Ele conhecia Lise muito bem para saber que aquele “hum” não era um simples “hum”.
– Vocês discutem o tempo todo. Mas, sabe? Acho que lá no fundo, no fim das contas, vocês se amam.
– Eu? Amar? Aquela bruxa, a Eva? – Bumbão zombou, revirando os olhos. Mas Lise só deu um sorriso, como que dizendo que ele não a enganava com aquela encenação.
Entraram na avenida Cannon. Nesse momento, uma grande limusine preta encostou ao lado deles, parou, e a porta de trás se abriu.
– Lise e Bumbão! Pulem para dentro!
Um homem que haviam conhecido estava sentado no banco traseiro.
– Estamos indo visitar o doutor Proktor – disse o rei da Noruega. – Congratulações pela missão bem cumprida. A inspeção foi esta manhã, e o Banco Mundial ficou satisfeito com tudo.
– Bem, não tivemos tempo de derreter, então eles devem realmente ter estranhado que a reserva nacional de ouro da Noruega possuísse a forma de um grande troféu – o motorista disse, sorrindo pelo espelho retrovisor.
– Oi, Helge – saudou-o Lise.
– Um dos inspetores pegou o troféu e achou que parecia leve demais para ser ouro sólido – falou o homem sentado no banco do passageiro, na frente. – Mas explicamos que o troféu sempre parece leve depois de uma vitória.
– Oi, Hallgeir – saudou Bumbão.
– E acabamos de receber um telefonema de Londres, dos nossos colegas do Serviço Ainda Mais Secreto de Sua Alteza Real. Eles ainda não têm prova de que Rublov e os Irmãos Crunch roubaram o ouro, mas prenderam Rublov.
– Por quê? – indagou Bumbão.
Helge e Hallgeir deram uma risadinha antes de responder.
– Uma funcionária do banco disse à polícia que Rublov a ameaçou com uma arma quando depositou o dinheiro do jogo Monopoly à força no banco e contou que o banco tem um vídeo das câmeras de vigilância para provar.
– Além disso, testemunhas viram Rublov assaltar uma senhora com um bebê num carrinho no Hyde Park.
– Dizem que ele ficou pendurado na traseira de um ônibus de turismo, pegando carona ilegal sem pagar passagem.
– Ele vai ficar em cana por um bom tempo.
Estacionaram diante do quintal de grama crescida e malcuidada do doutor Proktor. Quando empurraram o portão torto, viram uma grande faixa pendurada entre as árvores de peras onde estava escrito: FESTIVAL DA GELATINA.
E lá estavam todos, sob a faixa. O doutor Proktor e Juliette Margarina, Eva e a mãe de Bumbão, o pai comandante de Lise e sua mãe, a senhora Strobe da escola e Gregor Galvanius.
Sobre a mesa de piquenique, atrás deles, estava a maior forma de gelatina que alguém já tinha visto.
Juliette carregava uma bandeja de champanhe e refresco de pera. Depois que todos se serviram, o rei bateu a colher no seu copo e virou-se:
– Meus caros súditos...
A senhora Strobe pigarreou, erguendo uma sobrancelha e lançando um olhar severo por cima dos óculos.
– Hã, quer dizer, meus caros concidadãos – o rei corrigiu-se rápido. – E caros amigos. Sim, especialmente amigos...
A senhora Strobe assentiu, aprovando, e o rei continuou:
– Tenho um anúncio a fazer. Vem da minha prima em terceiro grau, ou talvez de segundo grau... Alguns até dizem que ela é prima em primeiro grau. Infelizmente, aconteceram coisas que deixam as coisas pouco claras...
A senhora Strobe pigarreou de novo.
– Em todo caso, vamos direto ao que interessa! – o rei apressou-se. – A rainha da Inglaterra decidiu nomear Lise o Valete de Espadas de Nova Gales do Sul, pelo seu extraordinário desempenho durante a final em Wobbley. E o doutor Proktor será sagrado cavaleiro de terceira ordem por ter restaurado a grandeza do Império com sua invenção. A Inglaterra planeja lançar seu primeiro peidonauta ao espaço no próximo mês!
Todos os presentes aplaudiram e gritaram “hurra”, que é o correspondente norueguês para “viva!”. Depois, todos se viraram e olharam para Bumbão.
– Sinto muito, Bumbão! A rainha realmente não considerou apropriado homenagear alguém que é famoso por ter chutado o melhor jogador do mundo para as arquibancadas – disse o rei.
Todos riram.
– Sei, sei. Pelo menos ganhei alguma notoriedade – falou Bumbão, rindo também.
– Exatamente – confirmou o rei, dando uma piscadela marota.
Todos esperavam ansiosos para ouvir o que viria em seguida. Mas o rei demorou, fungou, arrumou o colarinho da camisa, tomou um gole do seu copo. Até que a senhora Strobe pigarreou em sinal de advertência, e ele prosseguiu.
– Certo. Acontece que, quando acabaram de fazer as novas figuras de cera para o Museu de Cera de Madame Tourette, este ano, sobrou um pouquinho de cera. Não muito. Não o suficiente para um primeiro-ministro mediano, por exemplo. Mas o bastante para um sujeitinho que já tem seus próprios fã-clubes na Inglaterra, alguém que todo mundo tem curiosidade de conhecer, perguntando-se o que aconteceu com ele? Mas tudo o que sabem sobre ele é que se chamava Beckadona Hamarooney Sherl.
– Vão fazer uma figura de cera minha? Eu sou famoso! – guinchou Bumbão.
– Mais ou menos. Como você esteve em Wobbley numa incumbência meio secreta, infelizmente, não poderá jamais contar a ninguém que Sherl é você – disse o rei.
– Droga! – exclamou Bumbão.
– Então sugiro um brinde secreto a Sherl! – propôs o rei.
Todos riram e ergueram seus copos para Bumbão, que fez uma profunda reverência antes de esvaziar o refresco de pera do seu copo num único gole, seguido de um nada insignificante arroto.
Sentaram-se todos à mesa.
Enquanto consumiam bem devagar, metro após metro, a melhor gelatina que qualquer um deles já havia comido, Lise cochichou a Bumbão se ele tinha certeza absoluta de que havia trocado o troféu no túnel dos jogadores. Bumbão disse que sem dúvida alguma, que aquela troca de troféu instantânea, no escuro, não era para amadores, mas que não era à toa que ele era o Bumbão. Ou não?
Lise observou o amigo pensativa enquanto ele enfiava mais meio metro ou tanto de gelatina dentro da boca.
– Mas você tem toda a certeza de que... – ela começou.
Não obteve resposta, porque nesse exato momento ouviram uma voz gritando e o zumbido distante de um motor. Todo o mundo olhou em volta, sem conseguir localizar o lugar de onde vinham os sons. Até que alguém por acaso olhou para cima. E ali, bem acima do topo da pereira, viram uma forma triangular se aproximando.
– Olhem para mim! Sou eu, Petter! Eu sou o primeiro e único Petter, e que Petter do caramba eu sou!
– Petter! Quem está aí com você? – Lise gritou para ele.
– Hein?
– A garota ao seu lado?
– Ah, esta é Petronella. A primeira e única Petronella. Uma Petronella do caramba! Foi ela que adicionou o motor à asa-delta. Um verdadeiro motor Hillman! Voamos direto contra o vento frontal! Sobrou alguma gelatina, doutor?
Havia sobrado.
E enquanto nossos amigos comiam, rindo e contando suas inacreditáveis histórias, e Bumbão tentava ensinar a todos a canção dos Pés, o sol da primavera se pôs atrás da casa azul toda torta, bem no final da avenida Cannon.
E com isso, por enquanto, declaramos fim de jogo.
Fim
ou...
Entrementes, do outro lado do mar do Norte, três irmãos jogavam pôquer na cidade chamada Londres. E a mãe deles cobria os ouvidos enquanto eles berravam coisas como:
– É verdade, sim! Você tem uma seguida. Isto significa que precisa seguir até o banheiro e dar a descarga, de modo que eu ganho! Regras internacionais!
– Mas aí meu valete come o seu ás, agora está na barriga dele e o ás é meu!
– Ponha pra frente as juntas!
– Garotos, vocês estão me deixando louca – a mãe resmungou, fugindo para a cozinha para fazer mais pudim de Birmingham.
Na cabaninha que era a sede do clube, Camarão gritou, chamando Nero para ajudá-lo a erguer o troféu e colocá-lo na vitrine, que estivera vazia desde que o Rotten Ham havia sido fundado cem anos antes.
– Chega a ser esquisito. Um troféu assim tão pesado! – Camarão grunhiu enquanto o levantavam.
E muito tempo depois que o Sol havia se posto na Noruega e na Inglaterra e a festa havia acabado, e você e eu já tínhamos ido para a cama, um sujeito chamado Nilsen acordou com o telefone tocando ao lado da sua cama.
– Alô? – ele atendeu bocejando.
– Aí é o apresentador do Maior Mentiroso da Noruega?
– Sim – respondeu, pensando se já tinha ouvido antes a voz do outro lado.
– Tenho uma dica anônima para você. Lembra-se daquele sujeito chamado Bumbão, que esteve no seu programa?
– Aquele que disse que era Napoleão e que salvou o mundo de monstros lunares? Não dá para esquecer com facilidade – falou Nilsen, dando uma risadinha.
– Eu sei. Mas só quero dar para você esta dica supersecreta: ele é Beckadona Hamarooney Sherl – disse a voz.
– O jogador que marcou o gol contra o Chelchester na final do Campeonato Inglês e simplesmente desapareceu?
– Sim. Infelizmente, ele tinha coisas mais importantes a fazer do que ir para a farra na Inglaterra, desfrutar sua glória, ficar rico e famoso e fugir das garotas inglesas que queriam beijá-lo. Mas você pode achar interessante saber que Bumbão, vulgo Sherl, estará em exibição como figura de cera no Museu de Cera de Madame Tourette.
– Isto é totalmente inacreditável! – disse Nilsen, pensando que havia algo de muito familiar naquela voz.
– Você poderia mencionar no seu estúpido programa que Bumbão, no fim, se deu muito bem. Boa noite.
– Percebo. Por acaso, não estou falando com o Bumbão?
Mas a pessoa do outro lado da linha já havia desligado.
Jo Nesbo
O melhor da literatura para todos os gostos e idades