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O GUARDANAPO DOS POETAS / Guillaume Apollinaire
O GUARDANAPO DOS POETAS / Guillaume Apollinaire

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O GUARDANAPO DOS POETAS

 

Situado no limite da vida, nos confins da arte, Justin Prérogue era pintor. Uma amiga vivia com ele e poetas o visitavam. Cada um, por sua vez, jantava no atelier, onde o destino colocara, no teto, percevejos, à guisa de estrelas.

Havia quatro convivas que nunca se encontravam na mesa.

David Picard vinha de Sancerre; descendia de uma família judaica cristianizada, como há tantas na cidade.

Léonard Delaisse, tuberculoso, escarrava sua vida de inspirado com uma expressao que era para se morrer de rir.

George Ostreole, os olhos inquietos, meditava, como outrora Hércules, entre as entidades do beco.

Jaime Saint-Félix sabia muitas histórias; sua cabeça era capaz de fazer a volta dos ombros, como se o pescoço fora parafusado no corpo.

E seus versos eram admiráveis.

As refeições não acabavam mais e o mesmo guardanapo servia, um por um, aos quatro poetas, mas, sobre isso, nada se lhes dizia.

O guardanapo, pouco a pouco, foi ficando sujo.

Eis o amarelo de ovo junto a um rastilho sombrio de espinafre. Sta é a curva de uma boca avinhada e estas cinco marcas cinzentas foram deixadas pelos dedos de uma mão em repouso. Uma espinha de peixe rasgou o tecido como se fosse uma lança. Um grão de arroz secou, colado, num ângulo. E a cinza de cigarro escurece certas pares mais que outras.

 

David, olha o teu guardanapo - dizia a amiga de Justin.

- é preciso comprar guardanapos - dizia Justin - Pensa nisso, quando recebermos.

- O teu guardanapo está sujo, David - dizia a amiga de Justin. - Eu o mudarei da próxima vez. A lavadeira não apareceu esta semana.

- Leonard, olha o teu guardanapo - dizia a amiga de Justin. - Podes escarrar no caixão de carvão. Como o teu guardanapo está sujo! Eu o mudarei logo que a lavadeira trouxer a roupa.

- Leonard, quero fazer o teu retrato escarrando - dizia Justin. - Gostaria até de fazer uma escultura.

 

- George, tenho vergonha de te dar sempre o mesmo guardanapo - dizia a amiga de Justin. - Não sei que fim levou a lavadeira, que não há jeito de me trazer a roupa.

- Jaime Saint-Félix, sou obrigada a te dar ainda o mesmo guardanapo. Não tenho outro hoje - dizia a amiga de Justin.

E o pintor fazia rodar a cabeça do poeta durante todo o jantar, escutando muitas histórias.

 

Passaram-se as estações.

Os poetas se serviam, um por um, do guardanapo e seus poemas eram admiráveis.

Léonard escarrava sua vida mais comicamente ainda e David Picard começou também a escarras.

O guardanapo venenoso infectou um a um; depois de David, George e Jaime, mas eles não o sabiam.

Semelhante a um trapo ignóbil de hospital, o guardanapo se manchava do sangue que vinha aos lábios dos poetas, e os jantares não terminavam.

 

Na entrada do outono, Léonard escarrou o resto de sua vida.

Em diferentes hospitais, sacudidos pela tosse, como mulheres excitadas pela voluptuosidade, os outros poetas morreram, com poucos dias de intervalo um do outro. E os quatro deixaram poemas tão belos que pareciam encantados.

Atribuíram as mortes, não à alimentação, mas à fome excessiva e às vigílias líricas. Pois, poderia verdadeiramente, um único guardanapo matar em tão pouco tempo quatro poetas incomparáveis?

 

Mortos os convivas, o guardanapo tornou-se inútil.

A amiga de Justin quis guardá-lo na cesta de roupa suja.

Dobrara-o pensando: - Está mesmo muito sujo e começa a ter um cheiro ruim.

Mas, o guardanapo desdobrado, a amiga de Justin surpreendeu-se e chamou o amigo, que se maravilhou:

- É um verdadeiro milagre! Este guardanapo, tão sujo, que se exibe com tanta complacência, apresenta, graças à sujeira coagulada e às diversas cores, os traços de nosso amigo que morreu, David Picard.

- Não é? - murmurou a amiga de Justin.

Ambos em silêncio, examinaram por alguns instantes a imagem miraculosa e depois, docemente, viraram o guardanapo.

Mas imediatamente empalideceram, vendo aparecer o espantoso aspecto de morrer de rir de Léonard Delaisse, esforçando-se por escarras.

E os quatro cantos do guardanapo ofereceram o mesmo prodígio.

Justin e sua amiga viram George Ostreole indeciso e Jaime Saint-Félix a ponto de contar uma história.

- Largue o guardanapo - disse, bruscamente, Justin Prérogue.

O pano caiu e desdobrou-se no chão.

Justin e sua amiga circularam muito tempo ao redor do guardanapo como astros em torno de seu sol e esta Santa Verônica, com seu quádruplo olhar, incitava-os a fugir, além dos limites da arte, até os confins da vida.

 

                                                                                Guillaume Apollinaire  

 

                      

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