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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O GUERREIRO DAS TERRAS ALTAS/ Ruth Ryan
O GUERREIRO DAS TERRAS ALTAS/ Ruth Ryan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O GUERREIRO DAS TERRAS ALTAS

 

Aquilo era uma proeza que parecia tirada de uma lenda...

Merrick MacAndrew tinha consciência da dificuldade da missão, mas estava disposto a fazer qualquer coisa para salvar o seu filho moribundo... incluindo ir à procura de Allegra Drummond à sua terra encantada e raptá-la. Dizia-se que ela possuía um dom especial para curar... e para derreter o coração de Merrick, como pôde confirmar mais tarde.

Embora Allegra Drummond estivesse presa e fosse obrigada a fazer tudo o que aquele corajoso guerreiro escocês lhe pedisse, a nobreza da sua causa tinha feito com que sentisse compaixão por ele. O que não sabia é que, afinal de contas, seria ele quem a prenderia aos seus encantos, de corpo e alma.

 

                   Escócia, 1546

O céu plúmbeo agitava-se com nuvens que anunciavam chuva. Um vento gélido agitava as ervas altas que cresciam nos prados. No entanto, aquele tempo tão agreste não impediu que o povo aproveitasse o dia de mercado. Os que iam a pé olhavam com cautela para as carroças puxadas por cavalos e para as carruagens de feno que lutavam por abrir caminho ao longo das ruelas estreitas que iam dar a Edimburgo.

Nola Drummond, uma jovem viúva, avançava com a sua carruagem puxada por um pónei através da multidão. A sua mãe, Wilona, estava ao seu lado e, na parte traseira, viajavam as três filhas pequenas de Nola sentadas sobre fardos de ervas secas, meadas de linho e cestos de ovos que as mulheres vendiam no mercado. Ao seu lado estavam Bessie, uma velha harpia corcunda, e Jeremy, um troll gordinho de cartola e fraque. Tanto Bessie como Jeremy tinham sido desprezados pelos outros antes de serem aceites por aquela família.

- Olha, mamã - disse a pequena Allegra, que tinha seis anos, apontando para a multidão que se juntava à beira do lago.

Quando aproximaram um pouco mais a pequena carruagem, viram que as mulheres e os meninos choravam ao ver os pescadores tirarem o corpo de um rapaz da água. Nola parou a carruagem e ela e Wilona ajudaram a descer Kylia e Gwenellen, de cinco e três anos, respectivamente.

Incapaz de controlar a curiosidade, Allegra desceu sozinha e desatou a correr à frente dos outros. Quando chegou próximo da beira da água, foi muito fácil deslizar entre a multidão até conseguir ver e ouvir tudo.

- Não! O meu Jamie não! - gritava uma mulher, depois de se atirar para cima do corpo do rapaz, com a voz rouca pelo pranto. - Já enterrei o meu homem e três dos meus filhos. Jamie era a única coisa que me restava neste mundo. Oh, não... Por favor... O meu Jamie não...

Um dos pescadores pôs uma mão sobre o ombro da mulher.

- Lamento muito, Mary, mas o rapaz está morto. Chegámos tarde demais para o salvarmos.

Uma onda de tristeza infinita apropriou-se dos curiosos. Nem sequer os pescadores, queimados pelos anos passados no mar, conseguiram conter as lágrimas ao ver o sentimento com que a mulher chorava.

Contagiada pela emoção que dominava todos os presentes, Allegra aproximou-se da mulher desolada e, antes que alguém pudesse detê-la, pôs as mãos sobre o peito do rapaz.

De imediato, um tremor violento apoderou-se dela à medida que as pontas dos dedos absorviam a frieza do corpo e esta passava através do corpo da pequena. A água do lago estava fria, muito fria.

A tremer, Allegra olhou para a mãe do rapaz.

- O teu Jamie não está morto.

- O que é que estás a dizer? - perguntou a mulher, surpreendida pela afirmação da menina e empurrada pela necessidade de acreditar.

- Que não está morto. Quer voltar para ti, mas precisa de ajuda.

Boquiabertos, todos os presentes contemplaram com um fascínio horrorizado como aquela pequena desconhecida apertava com força as palmas das mãos contra o peito do rapaz. De imediato, este começou a atirar água pela boca. Ao vê-lo, a mãe começou a gritar, mas Allegra não parecia ouvi-la. Estava em transe, a olhar para o jovem com tal intensidade que os seus olhos verdes pareciam arder num fogo interior.

A imagem era desconcertante. Aquela menina, como uma criatura selvagem, com o cabelo a cair aos canudos avermelhados até abaixo da cintura, não prestava atenção aos gritos que a multidão começou a proferir quando ela começou a falar com o rapaz numa língua antiga que até os mais velhos tinham esquecido.

Quando parou de falar, a menina inclinou-se sobre o jovem e comprimiu a sua boca contra a dele. De imediato, o corpo do rapaz começou a tremer.

- Que brincadeira vem a ser esta? - gritou alguém. - Levem essa menina para poupar tanto sofrimento à mãe.

No entanto, antes que a multidão pudesse reagir, o rapaz convulsionou-se violentamente e abriu os olhos.

- Oh, Jamie! - exclamou a mãe, agarrando-o nos braços e apertando-o contra o seu peito. - Bendito seja Deus! É o meu Jamie. O meu Jamie voltou de entre os mortos!

Os curiosos estavam a começar a aproximar-se quando Nola abriu caminho entre eles e agarrou a filha pelo braço.

- Vai imediatamente para a carruagem, menina! - disse-lhe, sacudindo-a com brusquidão. Parecia muito nervosa. - Despacha-te, filha.

Allegra levantou os olhos e viu que a avó já estava a pôr as suas irmãs na carruagem, onde as cobriu rapidamente com peles. Enquanto a mãe e ela entravam para a carruagem, Wilona incitou o pónei com as rédeas e o animal começou a correr a toda a velocidade.

Allegra olhou para a mãe e para a avó e viu expressões idênticas de terror nos rostos das duas mulheres.

- Fiz alguma coisa de mal?

- Não, filha, mas havia muita gente a ver. Tu sabes que não és como as outras meninas.

- Peço desculpa - disse ela, cabisbaixa, mas a mãe de Jamie estava a chorar e, na minha cabeça, ouvia-o também a ele a chorar. Queria voltar para ao pé da mãe. Foi isso que me disse.

Nola pegou na filha ao colo e apertou-a com força.

- Não fizeste nada de mal, Allegra, mas há pessoas que não percebem os teus dons.

- Porquê?

- Porque se esqueceram das tradições de antigamente. Porque afastaram os poderes curativos que guardam no seu coração.

- Pois eu fico contente por nós não o termos feito - replicou a menina muito solenemente. Então, fechou os olhos e encostou-se à mãe, cedendo assim à fraqueza que se apoderou dela.

Nola suspirou e olhou por cima da cabeça da filha para observar o olhar sombrio da mãe.

- Espero que nunca tenhas razões para o lamentares, Allegra.

A lua da meia-noite estava escurecida por nuvens pesadas que formavam redemoinhos num céu tempestuoso. Um cavaleiro solitário fazia ressoar os cascos da cavalgadura sobre os paralelepípedos do pátio. Ao ouvi-lo aproximar-se, os cães começaram a lançar-se contra a porta. Wilona levantou-se da cama e mandou calar os cães. Antes de abrir o ferrolho, olhou através de uma fresta da porta para observar a escuridão da noite. O cabelo solto, alternado de cinzento, emoldurava um rosto endurecido pela preocupação. Quando reconheceu o homem, um primo afastado, abriu a porta de par em par e afastou-se para um lado.

- Que te traz por aqui a estas horas, Duncan?

- Ouvi as pessoas a mexericarem na taberna, Wilona - respondeu o homem, com desconforto, sem conseguir olhar para a anciã nos olhos.

Observou o troll, que estava a dormir ao lado do fogo. Dizia-se que tinha vivido debaixo de uma ponte até ser resgatado por aquelas mulheres bondosas. Ouviu passos na escada e viu Bessie, a velha que todo o povo acreditava ser vidente. Ela também tinha sido uma marginal até ter encontrado refúgio naquela casa.

- Arriscas-te demasiado ao permitir que essas raparigas mostrem os seus dons a toda a gente.

- Allegra teve sempre um bom coração. Não conseguimos detê-la. Terias preferido que deixasse morrer o rapaz, Duncan?

- Não pretendo perceber como tu e os teus possuem tais dons - replicou o homem, - nem

a opinião que me merecem os que dizem que é a marca do diabo, mas temo por ti, Wilona. Vais demasiado longe na hora de aceitares os que toda a gente recusa e as criaturas do mundo etéreo - acrescentou, olhando para Bessie. A velha contemplou-o em silêncio.

- O seu povo recusou-a. Não tinha nenhum lugar para onde ir.

- Vivemos tempos turbulentos - suspirou Duncan. - Tu sabes que a música, a dança e todo o tipo de frivolidades são considerados entretimentos do diabo. Há pessoas que têm intenção de ir a Edimburgo amanhã de manhã para informar deste facto ímpio. Tu e os teus podiam ser mandados para a prisão de Tolbooth ou, pior ainda, ser condenados à morte.

- Que queres que façamos, Duncan? Que sejamos iguais aos outros, seres cruéis e insensíveis? Que viremos as costas a dons tão valiosos, dons que podem beneficiar os outros? Bem sabes que nunca os usamos para nosso próprio benefício.

Duncan abanou a cabeça com tristeza e dirigiu-se à porta. Abriu-a e, antes de sair para a escuridão da noite, parou.

- Nunca te vim visitar. Não soubeste nada por mim. Se me pressionarem, admitirei que somos parentes afastados, como acontece com o clã centenário dos Drummond, mas não submeterei a minha esposa e os meus filhos à ira de uma multidão sedenta de sangue.

- Compreendo, Duncan. Peço desculpa pelos problemas que isto te possa causar.

Depois de fechar o ferrolho da porta, Wilona voltou-se para olhar para a filha, que estava escondida entre as sombras.

- Ouviste?

- Sim - respondeu Nola.

- Sempre tememos que este dia chegasse declarou a anciã. - Pelo bem das meninas, devemos regressar ao Reino Mítico, e devemos fazê-lo agora, para que não haja rasto de nós pela manhã.

- Mas, e o isolamento? Essa foi a razão pela qual nos viemos embora de lá.

- Exactamente, mas o isolamento é preferível aos perigos que enfrentamos aqui.

- E que acontecerá a Bessie e Jeremy? perguntou Nola, observando como o troll se compunha e esfregava os olhos por causa do sono.

- Podem vir connosco se assim o desejarem. Que queres fazer, Bessie? - perguntou à anciã. Esta assentiu. - E tu, Jeremy?

O pequeno troll pôs-se de pé e começou a vestir o seu fraque.

Enquanto Bessie e Jeremy preparavam a carruagem para a viagem até às Terras Altas, Nola e Wilona puseram as três meninas, que dormiam profundamente, num ninho quente de peles na parte traseira. Foram-se embora em silêncio, com os cães a correr atrás da carruagem.

Antes do sol nascer, a casa estava completamente vazia. Mãe, filha e as três netas, juntamente com um troll e uma velha corcunda, partiram sem deixar rasto.

Alguns disseram que aquilo era um sinal inequívoco de que se tinham juntado ao diabo e tinham descido à escuridão. Outros falavam em sussurros sobre um lugar nas Terras Altas que, há muito tempo, tinha sido o lar do seu clã. Uma terra encantada, em que todos os que possuíam dons especiais eram livres de praticar os seus poderes míticos, longe dos olhares curiosos dos incrédulos.

 

                   Reino Mítico, 1559

- Allegra, já trabalhaste mais do que o suficiente.

Kylia afastou uma madeixa de cabelo preto como o azeviche da face e parou ao lado do lugar onde a irmã estava a cavar um rego na horta.

- Agora, anda pescar comigo - acrescentou.

- Eu adorava, mas tenho outro rego para sachar.

- Podes deixar isso para outra altura. Além disso, vais sentir-te tão fresca quando chapinhares descalça no rio comigo!

- Sim, eu gostava muito - admitiu Allegra, secando o suor que lhe cobria a testa. - Assim que acabar isto, vou ter contigo.

- Prometes?

- Prometo.

Kylia sorriu, porque qualquer prazer era sempre maior se o partilhasse com a irmã. Enquanto se dirigia ao rio, a sua irmã mais nova, Gwenellen, atravessou os prados até à estrada, seguida de Jeremy.

- Allegra, eu e Jeremy encontrámos um sítio maravilhoso cheio de bagas no bosque.

- Sim, são as mais doces que encontrámos até agora - afirmou o pequeno troll. - Anda connosco e ajuda-nos a apanhá-las, Allegra.

- Não - replicou ela. - Primeiro, tenho que acabar as minhas tarefas e depois, prometi a Kylia que ia pescar com ela, mas, se vós os dois ainda estiverdes no bosque quando eu tiver acabado isso tudo, vou ajudar-vos.

Gwenellen lançou um sorriso maroto à irmã.

- Anda, deixa-me ajudar-te a acabar as tuas tarefas rapidamente - disse a menina. Antes que Allegra pudesse detê-la, a pequena começou a bater palmas e a cantarolar. - Vão-se embora, ervas daninhas. Façam o que eu quero imediatamente...

Quase em seguida, uma chuva de sementes caiu do céu, seguidas de pentes.

Gwenellen olhou à volta, desolada. Então, levantou a cabeça e gritou:

- Eu não disse sementinhas, mas sim ervas daninhas, e também não foi pente, mas sim imediatamente.

Allegra não conseguiu conter uma gargalhada.

- Oh, Gwenellen! Precisas de praticar mais os teus feitiços.

- Suponho que sim - admitiu a menina, com um sorriso. - Bom, parece que, afinal de contas, terás que arrancar as ervas daninhas da horta de qualquer maneira, mas, quando tiveres acabado, prometes que vais ter connosco?

- Se ainda estiverem no bosque a apanhar bagas, sim.

- Com certeza que estaremos lá um bom bocado - replicou Gwenellen. - Já sabes que nós comemos uma baga por cada uma que atiramos para o cesto.

- Sei, mas procurem não comer demasiadas para que cheguem a tempo para o jantar.

- Lembras-te de alguma vez em que eu tenha chegado tarde para jantar? - respondeu Gwenellen.

Então, com a sua gargalhada doce a ressoar no ar, a menina de cabelos claros desapareceu no bosque a toda a velocidade, seguida de Jeremy, que fazia todos os possíveis para não a perder de vista.

Nesse momento, a avó de Allegra, Wilona, avançou ao longo dos regos delicados da horta. Parou ao lado da neta, que tinha começado uma vez mais a cavar.

- Estás a fazer um bom trabalho, Allegra.

- Eu gosto de ver como os rebentos tenros das plantas abrem caminho através do chão, avó

- respondeu ela, secando a testa com as costas da mão. - O nascimento de cada pequena planta parece-me uma coisa maravilhosa.

- É verdade.

Wilona sorriu. Era tão típico da sua neta mais velha... Allegra tinha o coração mais terno que se podia imaginar. Podia fazer o trabalho de três pessoas e logo a seguir fazer uma nova tarefa só para que as suas irmãs tivessem oportunidade de ir nadar ou apanhar um pouco do sol morno do princípio do Verão.

- Onde estão as tuas irmãs?

- Kylia foi até ao rio. De certeza que já deve estar a chapinhar como um peixe.

- Sim, ela gosta muito da água. Esperemos que se lembre de trazer alguns peixes para o jantar. E Gwenellen?

- Foi ao bosque com Jeremy para procurar bagas - respondeu Allegra, sem mencionar o último fracasso da pequena. Wilona tinha tentado ensinar desesperadamente à neta mais nova as habilidades de que as outras usufruíam com tanta facilidade.

- Gosta muito de guloseimas. Como Jeremy - replicou Wilona, franzindo o sobrolho. - No entanto, não é justo que te deixem a ti com o trabalho todo da horta enquanto elas se estão a divertir.

- A mim não me importa, avó - respondeu Allegra enquanto arrancava umas ervas daninhas. - Não há nenhum outro sítio em que eu goste mais de estar que aqui. Isto é tão agradável para mim como a água para Kylia ou o bosque para Gwenellen.

- Compreendo, porque comigo é a mesma coisa, mas já limpaste o estábulo e apanhaste as ervas para as poções de Bessie.

Quando a avó mencionou Bessie, Allegra sorriu. Os seus dons eram muitos e incluíam a habilidade de cantar como um anjo. Allegra e as irmãs tinham aprendido um grande número de canções de embalar com a anciã, que, quando eram mais novas, tinha o hábito de lhes cantar até adormecerem.

- Quando acabares isto, volta para casa e sirvo-te um pouco do refogado que Bessie e eu estivemos a preparar.

- Está bem, avó - respondeu a jovem. Antes de voltar ao seu trabalho, Allegra deu um beijo à avó na face.

Tinha escolhido aquele lugar para a horta porque estava situado num prado alto, rodeado de ambos os lados pelo bosque. Ali, sob a luz do sol, as couves-flor cresciam até terem o tamanho da cabeça de um homem. As fileiras de couves-flor e de acelgas cresciam junto à salva e ao tomilho.

Allegra fazia um grande esforço para evitar que as ervas daninhas invadissem a horta. Com esmero, dedicava à tarefa várias horas por dia. Além disso, a mãe e a avó tinham-lhe ensinado a construir uma cerca de ramos de cânhamo que ajudava a manter longe as criaturas do bosque. À sua volta, os prados eram um mar de urze cujos rebentos púrpura baloiçavam suavemente com a brisa.

De repente, uma sombra cobriu-a. Assombrada, observou o céu, pensando que talvez se tratasse de um falcão ou de uma nuvem que tivesse escondido o sol. No entanto, o céu mostrava-se limpo e soalheiro, sem uma única nuvem que arruinasse a sua beleza. Também não se via nenhum pássaro. Alarmada, olhou à volta para ver o que tinha causado a sombra.

Demasiado tarde, viu a figura de um homem muito alto, salpicado de sangue, que olhava para ela muito fixamente. Tinha nas mãos um pedaço de tecido aos quadrados, que atirou por cima dela, imobilizando-lhe assim os braços contra as costas e cobrindo-lhe a cabeça para a deixar às escuras e conter os seus gritos.

Allegra tentou soltar-se. Deu pontapés até que o homem lhe imobilizou também as pernas. Então, foi-lhe impossível mexer-se. Sentia-se tão indefesa como uma criança.

Reparou que o homem a punha ao ombro e que desatava a correr pelos prados. Quando chegaram ao bosque, ele parou e montou um cavalo enquanto a segurava com força entre os braços. Pôs o cavalo em andamento e este começou a correr a toda a velocidade, fazendo com que o vento assobiasse cada vez mais forte à sua passagem. Os ramos das árvores batiam contra eles e partiam-se. Allegra ouvia de vez em quando os gemidos asfixiados do cavaleiro, mas, apesar de passarem por rios e escalarem rochas, o seu raptor nunca parou nem abrandou.

Allegra esforçou-se para que o pânico não se apoderasse dela e poder assim depreender onde se encontravam. No entanto, a única coisa que conseguia imaginar era o homem, tão alto como uma árvore, com mãos grandes e ásperas que a magoavam ao segurá-la com tanta força. Lembrava-se que, depois de olhar para ele rapidamente nos olhos, tinha visto que estes estavam cheios de uma escuridão profunda.

Como teria conseguido vencer o dragão? Como era possível que aquele guerreiro fosse ainda mais forte que a criatura poderosa que guardava o seu reino? O pensamento aterrorizava-a.

O cavalo abrandou. Allegra sentiu salpicos de água. Momentos depois, começou a tremer ao sentir que a água lhe ensopava o tecido que a cobria.

A alma caiu-lhe aos pés. Deviam estar no Lago Encantado, a barreira que sempre a tinha mantido a salvo a ela e à sua família do mundo exterior. Quando o seu raptor chegasse ao outro lado, poderia levá-la para qualquer lugar e seria impossível detê-lo.

Tinha que agir nesse instante ou estaria tudo perdido. Concentrando toda a sua energia, visualizou a imagem da mãe. Quando conseguiu ver o seu rosto com clareza, chamou-a mentalmente com todas as suas forças.

Nola estava sentada em frente à roca. Sentia-se muito satisfeita com o desenho que estava a tecer. Aos seus pés estava sentada Bessie. Apesar do aspecto temível da anciã, tinha um bom coração e tinha perdoado há muito tempo os que a tinham insultado e feito troça dela. Em sinal de gratidão pelo refúgio que tinha encontrado no Reino Mítico, dedicava-se de corpo e alma a Nola e à sua família.

A malha que surgia no tear de Nola parecia tecida pelos anjos. Era tão suave como a teia de uma aranha, com espirais delicadas e intrincadas que se entrelaçavam umas nas outras como se fossem tesouros exóticos.

A velha Bessie sorriu.

- Com este tecido poderás fazer um lindo vestido para uma das tuas filhas.

- Sim. Eu gosto de lhes fazer roupas bonitas.

- E por que não? São mais formosas que as flores.

De repente, Nola lançou um grito e levantou a cabeça bruscamente.

-Allegra?

Olhou à volta, à procura da filha. Ao não ver ninguém, olhou para a anciã.

- Ouviste isto, Bessie?

- Não, mas eu não tenho-os teus dons, Nola. Sem esperar mais, Nola afastou-se do tear e

dirigiu-se à porta de casa. No exterior, Wilona estava a tirar o refogado do lume.

- Allegra acabou de me chamar. Viste-a?

- Sim. Estava a arrancar as ervas daninhas da horta. Que se passa? - perguntou Wilona, olhando para a filha com preocupação.

- Qualquer coisa, não sei exactamente o quê - respondeu Nola. De imediato, desatou a correr pelos prados. - Precisa de mim. Ouvi-a gritar o meu nome.

Wilona parou de apanhar madeira e pôs-se a correr atrás da filha, com a anciã a segui-las muito lentamente.

Quando chegaram ao prado, Nola ajoelhou-se e apanhou a enxada de onde Allegra a tinha atirado. Enquanto isso, a mãe ficou a examinar o rasto que a bota de um homem tinha deixado sobre a terra. Então, lançou um grito de terror.

- É um invasor do além. Teve que assassinar o dragão - disse Wilona. - Antes, pareceu-me ouvir um grito, mas, como os cordeiros estavam à minha volta, não tinha a certeza do que se tratava.

- É um bárbaro? - sussurrou Nola.

- Não - respondeu Wilona, pegando num bocado de tecido aos quadrados que tinha encontrado preso à vala de cânhamo. - Um habitante das Terras Altas, a julgar por isto.

- Nenhum habitante das Terras Altas se arriscaria a atravessar o Lago Encantado.

- Talvez nenhum que não fosse especial murmurou Wilona, agarrando o braço da filha.

- Por que razão veio buscar Allegra?

- Não sei, mas temos que o deter antes que atravesse o lago ou estará tudo perdido.

As duas mulheres levaram os dedos à boca e lançaram uma série de assobios agudos. Pouco depois, Kylia chegou a correr ao prado, enquanto Gwenellen saía a toda velocidade do bosque, seguida por Jeremy.

Depois de uma explicação rápida, as quatro mulheres formaram um círculo e juntaram as mãos para entoar um cântico numa língua antiga, enquanto Bessie e Jeremy permaneciam sentados no chão e completavam o coro com as suas vozes.

Merrick MacAndrew nunca tinha visto nada assim. Um instante antes as águas do lago estavam tão claras e calmas que podia ver-se o fundo e, um segundo depois, agitavam-se e formavam remoinhos como se estivessem dentro de um caldeirão que uma bruxa fervia e remexia para fazer um feitiço.

Uma bruxa. Entreabriu os olhos ao olhar para o fardo que tinha nos braços. Talvez no seu jardim tivesse parecido uma deusa, com aquele vestido celestial e o cabelo apanhado numa trança grossa, mas não restava qualquer dúvida de que aquela mulher feroz era a razão da rebelião repentina do lago.

Se não estivesse tão desesperado, teria tido medo. Se a sua vida não significasse nada para ele, voltaria para trás. No entanto, sem o seu filho, a sua existência não fazia sentido e, sem a mulher que tinha nos braços, o seu filho irremediavelmente morreria.

- Bruxa, não me desviarás do meu caminho - murmurou.

Precisamente nesse momento, as ondas furiosas derrubaram-no da sela e lançaram-no para as profundezas. Durante uns instantes, o fardo delicado escapou-lhe das mãos, mas, rapidamente, conseguiu agarrar uma ponta do tecido que o envolvia e puxá-lo.

Allegra tentou libertar-se do tecido que a imobilizava.

- Tem que me soltar já!

- Para que possas fugir? Prefiro ver-te morta a consentir tal loucura.

- Então, acredito que verá o seu desejo cumprido muito em breve - replicou, depois de tossir e cuspir a água quando outra onda a cobriu por completo. - Pelo menos, dê-me a oportunidade de permanecer a flutuar.

Ele estava prestes a recusar-se quando lhe ocorreu um pensamento.

- Sim, farei o que me pedes - afirmou. Em questão de segundos, desenrolou um pouco o tecido que a envolvia e libertou-lhe as mãos e as pernas para a atar firmemente ao seu próprio corpo. - Tens que compreender que, para salvares a tua própria vida, deverás salvar também a minha. Se um de nós morrer, o outro também morrerá.

- Está louco.

- Já me disseram isso.

Uma série de ondas cobriu-os sucessivamente, levando-os daqui para lá como se fossem folhas a voar no meio de uma tempestade. No entanto, o tecido envolvia-os com força e, cada vez que vinham à superfície para tentar respirar fundo, faziam-no juntos.

Ao reparar que qualquer coisa se mexia ao seu lado, Merrick estendeu a mão e agarrou com força uma parte da crina do cavalo. Com o outro braço, agarrou a mulher com força.

- Agarra-te, mulher.

Atravessaram as ondas com tanta força que quase não conseguiam respirar. A água cobria-os e lançava-os com tanto furor que, cada vez que acreditavam ter superado o pior, as ondas envolviam-nos ainda com mais força, batendo neles até os deixar quase sem fôlego.

Por cima do rugido das ondas e da água, Allegra ouviu as notas familiares de um cântico antigo. De imediato, soube que a sua família se juntara para tentar salvá-la. Só de pensar que tinham formado um círculo de protecção, teve uma certa sensação de paz. Entre a voragem das ondas, fechou os olhos e desejou estar no círculo com elas.

De repente, uma parede de água tão alta como as escarpas que rodeavam o lago enterrou-os, fazendo-os rebolar uma e outra vez até que se sentiram pisados e magoados e os pulmões lutavam por encontrar ar.

"Isto é o que se sente ao morrer", pensou Allegra, enquanto chegava ao fundo do lago, agarrada ainda ao desconhecido. Sentiu uma pancada dos cascos do cavalo aterrorizado, que tentava com todas as suas forças chegar de novo à superfície.

Durante um momento, sentiu que a cabeça ia explodir de dor. Então, sentiu que uma onda de escuridão se ia apoderando dela. Uns braços fortes envolveram-na e viu o rosto do seu pai, falecido há já muito tempo e que era descendente das famílias mais nobres da Escócia. Kenneth Drummond tinha conseguido rastrear a sua linhagem até aos tempos dos primeiros reis da Escócia.

Agarrou-se a ele e sentiu como, com braçadas poderosas, a levava até à superfície. Durante vários minutos, permaneceram abraçados, deixando que os pulmões se enchessem de ar. Então, ele desenrolou o tecido que a aprisionava e ergueu-a nos seus braços para a levar até à margem. Nesse momento, a água estava tão serena como o cristal.

- Então, estou morta, pai? - perguntou ela, levando uma mão à cara.

- Nem tu estás morta nem eu sou teu pai. Ao ouvir aquela voz tão severa, Allegra

abriu os olhos e sentiu que a alma lhe caía aos pés. Definitivamente, não era o seu pai. Era o seu raptor.

De qualquer modo, tinha conseguido escapar aos perigos do Bosque da Escuridão e do Lago Encantado para penetrar no Reino Mítico.

Quem seria aquele homem que conseguia vencer um feitiço tão poderoso?

Uma sombra escura passou sobre os prados do Reino Mítico. Um vento repentino levantou-se, alvoroçando o cabelo das mulheres e levantando-lhes as saias dos vestidos. As árvores próximas quase se dobraram ao meio com a força daquele vendaval.

O canto cessou de repente quando todas olharam umas para as outras com um sentimento de medo. Foi Wilona quem falou em primeiro lugar.

- Perdemos Allegra. Já não está dentro dos limites seguros do Reino Mítico. O poder do seu raptor deve ser muito maior que o nosso. Ou, talvez, a sua necessidade seja maior que a nossa.

- Como pode isso ser possível? - perguntou Gwenellen, olhando para a mãe com os olhos azuis como safiras cheios de incredulidade. - Por que não podemos lançar um feitiço que o detenha?

- Anda cá, minha filha - disse Nola, pegando na filha pequena ao colo. A seguir, agarrou na mão da filha do meio. - Há dois poderes que são mais fortes que qualquer outro. O primeiro é o amor. O outro, o ódio.

- Como podemos saber que poder impele o raptor de Allegra? - perguntou Kylia, com os olhos escuros cheios de lágrimas.

- Não podemos sabê-lo - respondeu Nola.

- Então, como poderemos ajudá-la? - quis saber Gwenellen.

Nola abraçou as duas filhas e deu-lhes um beijo na face.

- Podemos enviar pensamentos tranquilizadores a Allegra e uma luz curativa para que a acompanhe através do que o destino tenha reservado para ela. Embora a tua irmã não esteja habituada aos costumes do mundo que há para além do lago, é forte e corajosa. Melhor ainda, tem uma bondade no coração que a ajudará a superar as provas que tenha que enfrentar.

Embora Nola tivesse falado com convicção, sentia uma tristeza profunda no coração. Tinha levado as filhas para o Reino Mítico para as proteger de um mundo de descrentes. Infelizmente, a sua adorada Allegra tinha sido despojada de tudo o que era seguro e familiar para ser lançada ao mundo de que Nola tinha querido afastá-la, um mundo que podia usar a sua inocência e ternura contra si própria, um mundo que tinha tendência para destruir o que não conseguia perceber.

 

Allegra estava deitada à beira do Lago Encantado, tentando desesperadamente respirar fundo. À medida que a sua respiração foi acalmando, sentiu uma dor silenciosa num lado da cabeça. Tocou-se com a mão e sentiu o inchaço que tinha onde o casco do cavalo lhe tinha batido. Com um pouco mais de pontaria, o cavalo tê-la-ia matado.

Fechou os olhos e respirou fundo, tentando acalmar-se. Enquanto isso, traçou círculos suaves à volta das têmporas até conseguir que o inchaço desaparecesse para deixar apenas um pequeno hematoma. Aquele esforço deitou-a abaixo. Ficou tão esgotada que teve que permanecer deitada, muito quieta, até que, a pouco e pouco, foi recuperando as forças.

Ao sentir o calor do sol sobre as pálpebras abriu os olhos. A pouca distância via-se o cavalo. O animal, esgotado pelo esforço de permanecer a flutuar, estava de joelhos sobre a erva, com os olhos cheios de pânico. A pobre criatura estava confusa, desorientada e completamente aterrorizada.

A ternura apoderou-se de Allegra. Obrigou-se a sair da sua letargia e aproximou-se do animal gatinhando. Então, pôs-lhe as mãos sobre a cabeça. Quase em seguida, a respiração do cavalo acalmou-se e pareceu centrar o olhar nela, com um sentimento parecido ao de compreensão. Minutos depois, o cavalo pôs-se em pé e caminhou um pouco, pastando como se nada tivesse acontecido.

Merrick estava deitado onde tinha caído, observando a cena de soslaio. Era exactamente como lhe tinham contado. Aquela mulher possuía realmente o dom de curar. Se antes tinha tido dúvidas, estas tinham desaparecido com a cena que acabava de contemplar.

Quando Allegra se voltou, Merrick já estava de pé em frente a ela. Num abrir e fechar de olhos, pôs-lhe a ponta da espada sobre o coração.

- Não te mexas, mulher.

Ela olhou para ele e, uma vez mais, viu a escuridão que reinava nos seus olhos. Era impossível conseguir ver a alma daquele homem. Era como se ele tivesse fechado uma porta para impedir que a luz entrasse, para evitar que lhe escapasse alguma coisa de si mesmo.

Desesperada, dirigiu o seu olhar para os enfeites que reluziam no punho da espada. Poucos segundos depois, ficaram incandescentes, com um fogo tão cegante que rivalizava com o sol.

Merrick soltou um gemido de dor ao sentir como o fogo lhe queimava a mão e viu-se obrigado a deixar cair a arma. Allegra aproveitou aquele momento de distracção para se voltar e desatar a correr. Enquanto tentava avançar entre as ervas daninhas, reparou que o vestido molhado se lhe colava às pernas e impedia assim o seu avanço. Os ramos das árvores enganchavam-se no cabelo e arranhavam-lhe os braços, mas ela ignorou a dor e continuou a correr até que o ar lhe abrasou os pulmões.

Por trás, uns dedos fortes agarraram-na pelos ombros e empurraram-na. Caiu ao chão do bosque. Quando levantou o olhar, viu que o homem estava de pé ao seu lado, respirando pesadamente.

- O que quer de mim? - perguntou-lhe Allegra, tentando não reflectir nenhum medo na voz. - Por que arriscou a sua vida para vir ao Reino Mítico?

O guerreiro agarrou-lhe os braços e obrigou-a a pôr-se de pé. Allegra tentou resistir, mas ele simplesmente atirou-a para cima dos ombros e começou a andar como se ela pesasse menos que uma pena. Quando chegaram ao sítio onde estava o cavalo, subiu para cima da sela e sentou Allegra à frente dele.

- Vai acompanhar-me à minha fortaleza.

- Por que razão?

O cavaleiro agarrou-a firmemente com os braços, agarrou nas rédeas e pôs o cavalo em andamento. Quando passaram ao lado de um ramo baixo, agachou-se e aproximou os lábios da orelha de Allegra.

- Quero que salves o meu filho, que está gravemente ferido.

Alarmada, Allegra olhou por cima do ombro.

- Posso tentar, mas há muitas coisas que estão fora do meu alcance.

- Tem tento na língua, mulher! - atacou ele. - Não penso ouvir os teus protestos pouco convincentes, porque eu mesmo consegui sentir o poder da tua força. Quero que saibas que, seja qual for o destino do rapaz, o teu será o mesmo. Se ele sobreviver, dou-te a minha palavra de que te devolverei aos teus sã e salva. Se ele morrer, jamais voltarás a ver a tua casa, porque irás juntar-te ao meu filho na morte. É melhor levares as minhas palavras a sério. A minha justiça será rápida e infalível.

Conforme o vento lhe despenteava o cabelo e lhe feria os olhos, Allegra começou a tremer. Sentia que a escuridão se fechava à sua volta e lhe gelava o sangue. Quase conseguia saborear a amargura que envolvia o coração daquele homem como uma ferida infectada. Estava nas mãos de um louco e temia que, fosse qual fosse o destino do filho daquele homem, ela já estivesse condenada.

Merrick olhou para a mulher que tinha nos braços. Por fim, o sono tinha-a vencido e podia estudá-la sem que ela se desse conta.

O hematoma que lhe tinha manchado as têmporas já quase tinha desaparecido, apesar de apenas umas horas antes ter um inchaço do tamanho de um ovo de galinha.

Não parecia uma bruxa. De facto, se não soubesse nada sobre ela, teria acreditado que se tratava de uma dama de berço de ouro. Tinha uma beleza estranha, com uma pele imaculada ligeiramente bronzeada pelo sol e o cabelo cor de fogo. Quando a viu pela primeira vez a trabalhar na horta, tinha o cabelo apanhado numa trança grossa. Depois do seu encontro com o lago agitado, a cabeleira apresentava um aspecto muito alvoroçado. Cobria-a como um véu e as pontas das madeixas que lhe caíam pelas costas acariciavam-lhe as mãos como pincéis da mais fina seda.

Tinha o vestido ainda molhado e este envolvia-lhe o corpo como uma segunda pele. O tecido de que era feito era tão faustoso que parecia muito mais adequado à realeza. Ele não conseguia afastar o olhar da linha do decote e da cavidade escura que havia entre os seus seios firmes e erguidos.

A onda de desejo que se apropriou do seu corpo surpreendeu-o por completo. Desde Catherine, não tinha sentido qualquer interesse por nenhuma mulher. No entanto, tinha consciência de que aquela não era uma mulher. Era uma bruxa e era natural que tentasse lançar-lhe um dos seus feitiços.

Agarrou nas rédeas com força e fez com que o cavalo desse passos mais pequenos. Se a bruxa queria dormir, que dormisse. Quanto a ele, só o impulsionava um único desejo: levá-la para a sua fortaleza tão rapidamente quanto possível.

Conforme os cascos do cavalo repicavam os trilhos do bosque, só conseguia pensar numa ladainha. "Por favor, temos que chegar a tempo de salvar Hamish". A perda de Catherine já tinha sido demasiado dolorosa. Sem o filho, preferia morrer a levar a vida de sofrimento interminável em que a sua vida se transformaria.

Allegra acordou com o som de gritos. Confusa, olhou à volta, tentando perceber as visões estranhas que a rodeavam. Os prados das Terras Altas eram muito parecidos aos do Reino Mítico. A urze balançava-se suavemente sob a brisa e, de um lado, uma cascata fluía num rio impetuoso de muitos metros de altura. Ao longe, distinguiam-se umas casinhas primorosas rodeadas de campos, nos quais as ovelhas pastavam. No entanto, havia ali muita gente. Homens a cavalo, outros que conduziam carroças cheias de feno e de grão. Mulheres que observavam tudo das janelas ou que levantavam o olhar das suas tarefas, frequentemente com crianças gordinhas ao seu lado. Os meninos corriam, perseguindo-se uns aos outros, embora muitos parassem para olhar para eles enquanto passavam.

- Que sítio é este?

- Esta povoação chama-se Berkshire. O meu lar é no castelo de Berkshire - respondeu ele. Então apontou para uns torreões que se adivinhavam à distância.

- Um castelo... É vossa senhoria nobre?

- Exactamente - respondeu ele, abruptamente, quase como se as palavras lhe fossem desagradáveis. - Lorde Merrick Mac André.

Conforme atravessavam a povoação, Allegra reparou que as pessoas os observavam. Embora se mostrassem curiosos, todos ficaram em silêncio. Ninguém lançou exclamações de alegria nem o cumprimentou. Não se trocaram saudações entre o senhor e o seu povo.

Devia-se o silêncio ao facto de partilharem o seu medo pela vida do filho doente ou seria outra a razão?

Sentiu que aqueles desconhecidos partilhavam o sentimento mais forte de todos. O medo. Dela ou do seu senhor?

Atónita, Allegra ergueu-se na cavalgadura quando viu que se aproximavam do sítio que Merrick MacAndrew chamava de sua casa. O castelo de Berkshire era uma fortaleza natural. Estava construído no alto de uma colina, fazendo com que fosse impossível alguém aproximar-se dele tentando passar despercebido. Como estava de costas para a montanha, só havia uma forma de trespassar os seus muros.

À medida que se foram aproximando, Allegra pensou que era uma construção imponente, com as suas torres altas e as suas sentinelas a postos de ambos os lados da porta. Quando entraram no pátio, foram recebidos pelos latidos ferozes de uma matilha de cães. Merrick desceu da sela e os animais rodearam-no abanando a cauda. Então, ajudou Allegra a descer do cavalo e, ao ver a forma como ela se sentia assustada pelos animais, lançou um grito forte e fez com que os cães ficassem em silêncio.

Com muito cuidado, Allegra estendeu a mão para acariciar o pescoço de um dos cães, mas retirou-a rapidamente ao ver que o animal arreganhava os dentes e começava a ladrar. Parecia que naquele sítio até os cães se mostravam hostis.

Nesse momento, a porta abriu-se e a governanta apareceu na soleira da porta.

- Milorde - disse a mulher. - Graças a Deus que estais vivo. Tinham chegado rumores... Vejo que trouxe... - acrescentou, a olhar para Allegra como se se tratasse de um fantasma.

- Trouxe a feiticeira. A senhora MacDonald é a governanta do castelo de Berkshire.

Noutras circunstâncias, a aparência da mulher teria provocado um sorriso em Allegra, dado que a governanta não era mais alta que uma criança. A fita do avental que tinha vestido contornava-lhe a cintura duas ou três vezes e era rematada com um laço enorme.

- Há notícias de Hamish? - perguntou-lhe Merrick, num tom de voz seco.

A anciã abanou a cabeça com tristeza. Depois de observar aquele gesto, Merrick agarrou Allegra pelo pulso.

- Não é preciso preparar um quarto para esta mulher. Até que o meu filho se recupere, não lhe é permitido afastar-se do seu lado. Não tentes fazer nenhum truque, mulher acrescentou num tom de voz mais baixo, para que só Allegra pudesse ouvi-lo, - porque nunca te perderei de vista.

Ao ver que avançavam para ela, a governanta empalideceu. Quando Allegra passou ao seu lado, a anciã benzeu-se.

Uma vez no interior do castelo, Allegra reparou nos tectos altos, nas escadas de madeira imponentes e nas tapeçarias que decoravam as paredes. Centenas de velas reluziam nos castiçais, embora à jovem o castelo parecesse um espaço escuro, cheio de trevas que nenhuma luz parecia penetrar. A opressão que reinava naquele lugar era uma carga pesada para ela.

Não teve tempo de olhar à volta para procurar a fonte de tanta escuridão, porque Merrick, sem lhe soltar o pulso, fê-la subir as escadas e caminhar por um longo corredor até pararem em frente à porta de um quarto. Merrick abriu a porta.

Quando entraram, um criado fez-lhes uma reverência rápida antes de se retirar. Merrick e Allegra ficaram sozinhos em frente à figura pálida que jazia na cama.

- Este é o meu filho Hamish. Deu uma queda e em seguida ficou com febre. Depois, não se levantou mais da cama. Cura-o.

- Há quanto tempo aconteceu tudo isso que me conta? - perguntou Allegra enquanto olhava para o rapaz. Este estava tão pálido, tão imóvel...

- Uma semana. Talvez duas - replicou ele, encolhendo os ombros.

- Tanto tempo... - disse Allegra, arqueando uma sobrancelha. - E onde estáveis vós, milorde?

- No campo de batalha, a lutar contra os invasores - respondeu Merrick, franzindo ainda mais profundamente o sobrolho. - Quando regressei e descobri o sucedido, jurei encontrar alguém que pudesse salvá-lo. Agora, faz o que te pedi.

De repente, ouviram-se passos apressados avançando pelo corredor. Um homem alto e de cabelo loiro parou na soleira.

- Merrick! Primo, os criados acabam de me dizer que voltaste. Não me irás dizer que entraste no Reino Mítico e que sobreviveste para o contar, não é verdade?

- Contar-te-ei isso tudo mais tarde, Mordred. Neste momento, tenho que me ocupar da feiticeira.

Outro homem apareceu na soleira da porta e ficou a olhar para Allegra, completamente boquiaberto. Era mais alto que Merrick, com os ombros muito largos. Usava sobre os ombros uma túnica mal posta, que nem sequer estava apertada. Também tinha as botas sem atacadores. Para Allegra, era completamente aterrador. Tinha um olhar vazio e, quando faiou, a sua voz era como a de uma criança.

- Voltaste, primo.

- Sim, Desmond. Com a feiticeira. Allegra começou a tremer ao sentir que os três homens a estavam a observar. Havia muita escuridão naquele lugar. Maldade. Parecia rodeá-la. Era uma sensação nova para ela e era completamente aterradora. Tinha ouvido falar de escuridão que podia envenenar a alma e o coração de um homem, mas até àquele momento, tinha sido apenas uma coisa de que lhe tinham falado a sua mãe e a sua avó.

- Ouviste, mulher? Trata do meu filho.

Tentando ignorar os três homens, Allegra voltou-se e sentou-se à beira da cama do rapaz. A seguir, pôs-lhe as mãos nas têmporas. De imediato, sentiu que o calor da febre abria caminho através dela, quase lhe abrasando a carne.

Fechou os olhos e tentou ordenar as imagens que recebia da mente do rapaz. Havia tantas pessoas e acontecimentos a agitar-se na mente do menino que ela ficou muito fraca e bastante aturdida.

- Quem é a dama formosa de cabelo dourado que está ao lado dele?

Desmond ficou boquiaberto e virou-se para o irmão, que o avisou que ficasse em silêncio. Por sua vez, Merrick contorceu-se até transformar o seu rosto numa imagem de desolação.

- Vês a mãe de Hamish?

- Se tiver os olhos da cor do céu e uma cicatriz em forma de meia-lua em cima da sobrancelha, então foi a mãe dele que vi por um momento antes de desaparecer.

Allegra ficou em silêncio. Procurou concentrar-se, apesar das distracções. Havia demasiado calor no corpo do rapaz. Era muito mais que uma simples febre. Que seria que alimentava aquele fogo? O medo? Uma poção malvada?

- Vou precisar de casca de salgueiro, essência de erva-cidreira, anémona dos bosques e água fresca de um rio das Terras Altas.

- Vi-te curares-te apenas tocando-te - replicou Merrick com impaciência. - Para que precisas dessas coisas?

- A doença do seu filho é mais do que uma simples febre ou que uma queda de uma árvore. O seu filho está gravemente doente, milorde. Deseja que se cure ou que simplesmente regresse das portas da morte?

Sem aviso prévio, Merrick agarrou-a com força pelo braço e obrigou-a a pôr-se de pé. Parou a poucos centímetros dela, tenso de fúria, queimando-lhe a face com o seu fôlego abrasador.

- Não arrisquei a minha vida para lutar contra a tua língua viperina, mulher. Terás tudo o que precisas, mas não te esqueças que, se descobrir que estás a gozar comigo, farei com que pagues muito caras as tuas brincadeiras.

Quando a soltou, voltou-se para chamar a governanta, que chegou a correr.

- A nossa feiticeira quer casca de salgueiro, essência de erva-cidreira, anémona do bosque e água fresca. Encarrega-te de que tragam tudo rapidamente.

- Sim, milorde.

- Vais precisar de mais alguma coisa? perguntou ele a Allegra.

- De momento é suficiente.

A jovem voltou-se e, mais uma vez, sentou-se na cama do rapaz. Sabia que, se olhasse, encontraria hematomas nos braços. As mãos de Merrick eram tão fortes que poderia facilmente partir-lhe os ossos com uma só mão. Havia uma violência tão forte no seu interior... Embora a mantivesse sob controlo, pressentia-se, fervendo sob a sua pele, ameaçando surgir a cada momento e abrasar quem estivesse perto dele.

Seria a sua ira a causa da escuridão que reinava no castelo ou seria essa escuridão a causa da sua ira?

Se queria abrir-se por completo às necessidades do rapaz, teria que pôr de lado o medo que lhe inspirava o pai. No entanto, tornava-se muito desconcertante tê-lo tão perto, nas suas costas, avaliando todos e cada um dos seus movimentos. Era uma distracção que não se podia permitir, sobretudo quando lhe estava a custar tanto concentrar-se.

A mãe do rapaz já não habitava a terra dos vivos. Estava já do outro lado, disso tinha a certeza, mas, pelo gesto aflito do seu rosto, a viagem não tinha sido pacífica. De repente, passou-lhe pela cabeça que talvez lorde MacAndrew tivesse participado na sua morte. Isso explicaria por que a mãe estava tão perto do filho, como se desejasse protegê-lo do mesmo destino cruel.

Pôs as mãos sobre a cabeça do rapaz e fechou os olhos. Tentou esquecer o homem que estava atrás de si e os seus problemas de concentração na dor do rapaz. De imediato, sentiu-se transportada até aos prados das Terras Altas. Ouviu a voz de um rapaz a gritar de emoção. Viu que Hamish subia a uma árvore. Com a segurança de um felino, ia de ramo em ramo. De repente, Allegra sentiu uma distracção momentânea. Teria sido uma recordação? Haveria alguém em cima dele, escondido entre os ramos? Fosse homem ou animal, parecia escuro e horripilante. Teria assustado o rapaz? Teria sido empurrado?

Investigou um pouco mais. O brilho de um líquido sombrio numa taça de prata. Conteve a respiração. Então, a imagem desapareceu e sentiu uma sensação fugaz de medo. O rapaz tinha escorregado. Ele mesmo compreendeu que tinha perdido o equilíbrio. Então, caiu ao chão.

Allegra absorveu a pancada que o rapaz sentiu ao cair sobre a erva. Tal como o menino via o céu às voltas em redor, sentiu que as paredes do quarto começavam às voltas. Sentiu vontade de deixar tudo, mas não se atreveu a afastar-se do rapaz depois de ter alcançado uma ligação tão íntima.

Mais uma vez, sentiu mais alguma coisa. Uma recordação. Um rosto estava a olhar para o rapaz. O sussurro de uma voz que lhe provocou calafrios. Então, antes que ele se pudesse agarrar à recordação, esta desapareceu.

Muito lentamente, as nuvens pararam de dar voltas. O rapaz tentou pôr-se de pé. Allegra acalmou-se também.

- Hamish? - dizia uma voz de mulher. Estás bem?

- Sim - respondeu o rapaz, pondo-se de pé.

- Queres voltar a subir à árvore?

- Não. Tenho que ir para casa.

- Ainda não. Anda. Subimos juntos. -Não.

O rapaz recusou-se, embora não soubesse bem porquê. Só tinha a certeza de que tinha que voltar para casa. Naquele mesmo instante, enquanto o medo ainda o tivesse preso pela garganta. Lutava por uma razão.

- A senhora MacDonald disse que a cozinheira estava a fazer bolachas como eu gosto. Cobertas de mel. Não posso atrasar-me.

Hamish desatou a correr em direcção à fortaleza do pai.

Ao sentir uma nova onda de calor, Allegra perguntou-se se o rapaz teria tido outra recordação. Só tinha durado um instante, mas tinha sido o suficiente para lhe causar um terror absoluto. A faísca transformou-se numa chama que começou a arder tão violentamente que obscureceu todos os pensamentos menos um.

Perigo, perigo. Tinha que ir para casa imediatamente...

O rapaz desatou a correr. Fazia-o tão rapidamente que o coração batia com força contra o peito e o ar abrasava-lhe a garganta. No entanto, Allegra só conseguia distinguir uma coisa: o rapaz sentia que tinha que chegar à casa do pai. Havia qualquer coisa muito importante que tinha que lhe dizer assim que regressasse da batalha. A sua própria vida e a de todos os do castelo dependia disso.

Ao sentir movimentos na porta, Allegra levantou o olhar. Viu que a governanta dava instruções a alguns criados para que pusessem uma mesa ao lado da cama do rapaz. Depois de perder a ligação com o rapaz, os pensamentos do menino escaparam-lhe por completo. Respirou fundo para tentar acalmar-se.

- Trouxemos-te o que pediste - anunciou a mulher minúscula.

- Obrigada - respondeu Allegra, apesar de ter que começar de novo com o rapaz.

Afastou as mãos do menino e olhou para a governanta. Teve que virar a cabeça para esconder o sorriso que ameaçava desenhar-se nos seus lábios. A pobre mulher estava demasiado aterrorizada para entrar no quarto. Ficou ao lado da porta e daí dava instruções aos criados. Estes pareciam igualmente assustados. Mexiam-se com tanta rapidez que estiveram prestes a chocar uns contra os outros no seu desejo de fugir. Aliviada, Allegra pensou que pelo menos não haveria demasiadas interrupções, à excepção, é claro, da de lorde Merrick MacAndrew. Nesse momento, ele passeava-se de um lado para o outro com um copo de cerveja na mão.

Parou para olhar para ela e Allegra sentiu-se como se estivesse a ver o diabo em pessoa. Tanta ira, tanta escuridão...

Esvaziou de um gole o copo e começou de novo a passear de um lado para o outro. Então, Allegra reparou que os primos de MacAndrew também tinham ficado. Estavam os dois sentados entre as sombras, a olhar para ela com uma concentração férrea. Talvez quisessem proteger o seu senhor da bruxa malvada.

Allegra compreendeu que aquela ia ser uma noite muito longa. A cada minuto que passava, sentia que as forças a iam abandonando.

 

Quando os outros abandonaram, por fim, a sala, Allegra sentiu-se muito agradecida. A sua única distracção a partir de então seria Merrick MacAndrew, que a rondava como se se tratasse de um anjo vingador.

Moeu a casca de salgueiro até se transformar num pó muito fino e deitou-a num copo de água. A seguir, levou-o aos lábios do rapaz.

De imediato, Merrick impediu-a de o fazer, agarrando-lhe o pulso com a mão.

- Espera, mulher. Que é isso que vais dar ao meu filho?

- Uma poção para a febre.

- Prova-a tu antes de lha dares a beber.

- Eu não preciso...

- Eu disse que tu tens que beber isso primeiro.

- Muito bem - disse Allegra. Então, bebeu um gole da poção. - Agora, ides desperdiçar horas valiosas à espera de ver se morro antes de me permitirdes administrar esta poção ao vosso filho?

- Chega de insolências, mulher! - atacou Merrick, cheio de frustração. - Encarrega-te dele.

Muito suavemente, Allegra pôs o copo sobre os lábios do rapaz e observou com satisfação que depressa estava vazio. A seguir, centrou a sua atenção na erva-cidreira e na anémona dos bosques. Rapidamente, moeu ambas as ervas. No entanto, com cada volta da mão no almofariz sentia que as suas forças a iam abandonando.

Quanto a Merrick, estudava os preparativos com um olhar cauteloso.

- Que vais fazer com essas ervas daninhas?

- São ervas medicinais. A anémona do bosque alivia o inchaço e a erva-cidreira ajudará o seu filho a pôr os pensamentos em ordem. Parece um pouco confuso.

- Leste os seus pensamentos? - perguntou-lhe, entreabrindo os olhos.

- O meu dom não é esse, mas há alguns pensamentos misturados com a dor que sou capaz de distinguir. Talvez seja da pancada que recebeu na cabeça ou talvez haja qualquer coisa que continua a causar-lhe muito medo e que bloqueia tudo, inclusive a sua cura.

- Consegue ouvir a minha voz? - disse Merrick, com um sentimento profundo.

Pela primeira vez desde que o seu caminho se atravessara com o daquele homem, Allegra viu o brilho da profundidade da sua dor, uma coisa que tinha conseguido esconder-lhe até então.

- Não sei. Quem sabe se os que estão do outro lado nos podem ouvir?

- Do outro lado? - perguntou ele, empalidecendo imediatamente. - Então, está morto?

- Não, milorde. Não está morto, mas afastou-se muito desta vida.

- Porquê?

- Alguns vão até lá porque é um lugar de cura. Outros, para se prepararem para uma vida que é muito diferente da que conheceram aqui.

- Não permitirás que parta, compreendes-me? - disse MacAndrew, agarrando Allegra pelo pulso. A jovem sentiu uma mistura de ira e de frustração a fluir-lhe pelas veias. Faz um feitiço ou o que for preciso para que fique comigo. Se fracassares, mulher, já sabes o que te acontecerá.

- Sim - replicou ela, soltando-se imediatamente. - Já me deixou isso muito claro, milorde. Agora sugiro-lhe que trate do seu filho.

- Que trate dele? Como?

- Fale com ele como um pai fala com o seu filho. Chame-o. Faça-lhe saber que está aqui, à espera que regresse da sua paragem nesse outro lugar. Incentive-o a regressar consigo.

Durante um momento, Merrick limitou-se a olhar para ela com desaprovação. Então, pareceu pôr de lado a ira que sentia contra ela e ajoelhou-se ao lado da cama. A seguir, começou a tocar suavemente na testa do filho. Quando por fim falou, a sua voz vibrava de sentimento.

- Hamish, filho, estou aqui. Nada te pode magoar, rapaz. Deixa os teus medos e volta para mim. Por favor, Hamish, preciso de ti ao meu lado. És tudo o que me resta no mundo.

Allegra chegou-se para o lado para observar e ouvir Merrick, completamente assombrada. Quando falava com o seu filho, lorde MacAndrew tornava-se um homem completamente diferente. O ser brutal que impunha a sua vontade aos outros desaparecia sob a aparência de um pai dedicado. Allegra sentia que ele não estava a fingir. O amor que sentia pelo filho era uma coisa viva e evidente. Apesar de tudo, a jovem decidiu que não esqueceria que Merrick MacAndrew podia transformar-se num ser brutal. Ela tinha uma série de hematomas que o provavam.

Como estava a tremer, aproximou-se da lareira com as mãos estendidas, mas, apesar de estar tão perto do fogo, o calor não conseguiu entrar. A sensação vertiginosa que se apoderou dela ao tocar no rapaz não a abandonava. Sentia-se tão leve como o ar, como se pudesse sair a voar até alcançar as vigas de madeira do tecto.

Agarrou-se ao encosto de uma cadeira e ficou completamente imóvel. Tentou manter-se serena, mas sentia um murmúrio estranho na cabeça. De repente, umas estrelinhas pequenas começaram a pairar diante dos seus olhos. Eram muito brilhantes e deixavam escapar umas faíscas que a cegavam. Nunca antes tinha experimentado algo semelhante.

Como se viesse de um lugar longínquo, ouviu a voz de MacAndrew a chamá-la.

- Que estás a fazer agora, mulher? Não consentirei nenhum truque. Anda cá para tratares do meu filho.

Allegra queria responder-lhe, mas, embora abrisse a boca, não conseguiu pronunciar nenhuma palavra. Em vez de falar, sentiu que a sala ficava completamente às escuras e sentiu-se como se caísse num abismo profundo e tenebroso.

Uns braços fortes agarraram-na antes que caísse ao chão. Sentiu que a levantavam e que a aninhavam contra um tórax forte. Nem sequer conseguiu levantar uma mão em sua defesa quando sentiu que a deitavam sobre uma cama.

Havia vozes, muitas vozes, à sua volta. Todas elas falavam incoerentemente. De repente, distinguiu a voz aguda da governanta.

- Bem, milorde, não me parece estranho que a pobre rapariga tenha desmaiado. Quanto tempo esteve sem comer?

- Não tivemos tempo para comer - replicou o raptor com voz impaciente.

- Não tiveram tempo para comer? Nem para vestir roupa seca? - respondeu a mulher. Allegra sentiu que lhe tiravam as botas e que uns dedos quentes lhe tiravam as meias húmidas e frias. - Olhe para ela. Está ensopada. Agora, terá que sair, milorde. Não ficaria bem que ficasse aqui enquanto lhe tiro a roupa e a envolvo num tecido seco.

- Não tenho intenção de perder esta mulher de vista até que Hamish se recupere.

- Muito bem, milorde, mas, para preservar o seu pudor, vossa senhoria permanecerá na varanda até ter vestido uma camisa de dormir seca.

Allegra ouviu o som de umas botas que atravessavam impetuosamente a sala. Então, sentiu que a governanta começava a tirar-lhe o vestido molhado e a roupa interior. Quando abriu os olhos, a anciã recuou, com uma primeira expressão de surpresa, a seguir, de medo e, por último, de resignação. Apertou os lábios e regressou à cama, decidida a completar a sua tarefa.

- Nunca... nunca antes tinha desmaiado sussurrou Allegra, tocando na cabeça.

- Sem dúvida nunca terás estado antes tanto tempo sem comer. Mandei uma criada trazer-te um pouco de sopa e umas bolachas.

- Obrigada, senhora MacDonald.

- Assim de perto, não pareces uma bruxa - comentou a mulher, com um sorriso.

- És pouco mais que uma menina...

- Tenho dezanove anos. Quando a minha mãe tinha a minha idade, já era mãe de três filhas.

- Eu também. Casei-me quando tinha treze anos - disse a mulher, enquanto a ajudava a vestir uma camisa de dormir suave e quente.

Depois, envolveu-a num xaile. - Assim ficarás mais quente.

- Obrigada. Onde estou? - perguntou Allegra, depois de olhar à volta.

- Continuas no quarto do rapaz. Preparei-te uma cama perto da dele. O senhor não quer que te afastes do menino - acrescentou, em voz mais baixa.

- Sois muito amável, senhora MacDonald.

- Estás aqui para curar o nosso Hamish. Só por isso, farei tudo para que te sintas confortável, rapariga.

- Embora tenha medo de mim?

- Será que és capaz de ler o meu pensamento? - perguntou-lhe a mulher, a olhar para ela de soslaio.

Allegra desatou a rir.

- Não é preciso, senhora MacDonald. Não consegue esconder lá muito bem os seus sentimentos.

- És uma bruxa, rapariga?

- Talvez. Não sei - respondeu Allegra. O sorriso tinha-lhe desaparecido dos lábios.

- Não é essa a razão pela qual vives no Reino Mítico? Para poderes esconder os teus segredos do resto dos mortais?

- Não. O Reino Mítico foi o lar do nosso clã há centenas de anos. Eu vivi lá desde muito nova. A minha mãe e a minha avó dizem que nos refugiámos lá porque o mundo exterior receia e despreza o que não consegue compreender. Há muitas pessoas que nos castigariam por sermos diferentes.

- Como te chamas, rapariga?

- Allegra. Allegra do clã Drummond.

- Ah! Na verdade, é um clã muito antigo e honrado, Allegra Drummond.

Quando uma sombra se reflectiu sobre a cama, as duas mulheres levantaram o olhar. Pelo gesto de contrariedade que se reflectia no rosto de Merrick MacAndrew, Allegra não teve dúvida alguma de que tinha ouvido a conversa toda.

- Vejo que já estás suficientemente boa para mexericar com a minha governanta. Isso significa também que já podes tratar do meu filho?

- Pedi que lhe tragam uma sopa e umas bolachas - disse a senhora MacDonald, cruzando os braços. - Além disso, a cozinheira preparou o jantar para vossa senhoria no salão de festas, milorde, onde Mordred e Desmond o esperam.

- Diga à cozinheira que me sirva o jantar aqui mesmo, senhora MacDonald.

- Aqui? Mas a rapariga...

- Está aqui por minha vontade. Jantará comigo. Então, quando tiver recuperado as forças, ficará a cuidar do meu filho.

- Sim, milorde - disse a mulher, embora lançasse um olhar de preocupação a Allegra antes de partir para cumprir as ordens do seu senhor.

Quando regressou, vinha seguida de meia dúzia de criados. Enquanto dois punham uma mesa diante da lareira e a enfeitavam com linho fino, cristal delicado e prata, os outros começaram a pôr a comida no aparador.

No momento em que tudo estava preparado, a governanta mandou os criados embora antes de se dirigir de novo ao seu senhor.

- O jantar está servido, milorde. Vai beber cerveja?

- Sim, e esta mulher também. Ajudá-la-á a aquecer-se.

- Sim, milorde - respondeu a mulher. Depois de encher dois copos, chegou-se para o lado da mesa. - Ficarei para lhe servir eu mesma a comida.

- Não é preciso, senhora MacDonald. Fará mais falta no salão de festas. Encha os nossos Pratos com uma selecção dos bons pratos da cozinheira. Se quisermos mais, servimo-nos nós mesmos.

Sim, milorde.

Depois de fazer o que o seu senhor lhe tinha pedido, a anciã lançou um último olhar de preocupação a Allegra antes de sair do quarto. Quando a ama se foi embora, Merrick assustou Allegra ao levantá-la da cama ao colo.

Que está a fazer? - perguntou ela, atónita.

Não quero que voltes a desmaiar.

O seu hálito quente acariciou como uma pena a face da jovem, provocando-lhe uma onda de prazer surpreendente por todo o corpo. Pela primeira vez desde há horas, não tinha frio.

Não sabia o que fazer com os braços. Para não os pôr à volta do pescoço dele, agarrou as mãos com força, mas, como ele estava a aninhá-la tão apertadamente contra o seu corpo, não conseguiu evitar descansar o rosto contra a maçã-de-adão da garganta de MacAndrew. Inspirou o aroma que emanava do seu corpo forte e pareceu-lhe tão potente que lhe subiu de imediato à cabeça.

Aquele era um tipo diferente de enjoo. Embora a mente parecesse andar às voltas, o mais estranho de tudo era que se sentia muito concentrada. Uma parte do seu ser queria afastar-se dele, mas a outra empenhava-se em permanecer exactamente assim.

Jamais tinha abraçado um homem, à excepção do seu pai. No entanto, ele não tinha vivido o suficiente para que Allegra se lembrasse muito bem dele, excepto em sonhos. Antes, quando Merrick a tinha montado sobre o seu cavalo, tinha temido que as sensações se apoderassem dela. Naquele instante, nos braços de MacAndrew, não era o medo que sentia que a preocupava, mas algo muito diferente, algo tão estranho que precisaria de tempo e de distância para o compreender.

- Senta-te aqui - anunciou ele enquanto a sentava numa cadeira que tinha mandado pôr junto ao fogo. - Isto - acrescentou, entregando-lhe a taça, - e o fogo, ajudar-te-ão a aquecer.

Deu a volta à mesa e sentou-se em frente dela. Então, pegou no seu copo e bebeu. Allegra fez o mesmo e sentiu o calor da cerveja a abrir caminho pelas veias.

Embora a camisa de dormir fosse muito modesta e a cobrisse por completo, não conseguia esconder o corpo esbelto e jovem que pulsava debaixo dela. Nem sequer o xaile conseguia esconder o volume suave dos seios. Os pés nus lembraram a Merrick que, à exCepção da camisa de dormir, a jovem estava completamente nua. Não era uma imagem em que tivesse desejado pensar, mas depois de esta se ter alojado na sua mente, parecia impossível desalojá-la.

Pousou o copo sobre a mesa e olhou para ela de um modo que fez com que o coração de Allegra batesse a toda a velocidade. Então, Merrick pestanejou e o olhar desapareceu. Ou será que teria sido fruto da imaginação de Allegra?

A jovem inclinou-se para comer. Depois de comer uns quantos bocados de cordeiro, levantou o olhar e sorriu.

- A comida está deliciosa. Acho que está tão boa como a da minha avó.

- Devo aceitar as tuas palavras como um elogio?

- Sim. A minha avó faz umas bolachas que se desfazem na boca e cozinha um peixe do lago que dá vontade de chorar por mais.

- Ensinou-te os seus segredos?

- Tenta, mas queixa-se frequentemente que, embora as minhas irmãs e eu tenhamos dons, o da cozinha não é um deles. Além disso, há Jeremy, um pequeno troll que vive connosco, porque não tem casa.

- Ouvi dizer que os trolls são criaturas muito desagradáveis.

- Não, Jeremy não é assim, embora talvez fosse noutra altura. Agora, dedica-se simplesmente a apreciar a beleza do Reino Mítico.

- E as tuas irmãs também são feiticeiras?

- Todas temos dons, embora sejam diferentes. Eu sou a que melhor consegue curar, embora as minhas irmãs consigam sarar as feridas mais simples. Kylia vê o passado e, em certas alturas, o futuro. O que é mais impressionante é que consegue olhar para o coração de um homem e ver o bem ou o mal. Quanto a Gwenellen... Ela ainda não descobriu os seus dons, mas tenho a certeza de que o fará em breve.

- Dizem que a tua irmã Kylia é capaz de ver o que um homem guarda no seu coração. E se vir que há nele bem e mal?

- Veria as duas qualidades, mas nunca o julgaria. Kylia é demasiado doce para julgar os outros.

- E tu, Allegra? - perguntou, pronunciando o nome com a suavidade e a doçura do mel. És tão doce como a tua irmã ou és uma bruxa que deve ser temida?

Allegra olhou para ele nos olhos e fez com que ele sentisse o calor ardente da sua ira.

- Vossa senhoria é como os outros, milorde? Deseja usar o meu dom quando lhe convier e a seguir chamar-me nomes cruéis quando não lhe fizer falta?

Merrick afastou o olhar e alcançou o seu copo. As palavras de Allegra deixaram-no sem saber o que dizer e sentiu vergonha. No entanto, não estava disposto a pedir desculpa àquela mulher de língua afiada.

- Estamos a perder tempo a falar, mulher. Acabemos de jantar rapidamente para que possas voltar a concentrar a tua atenção no meu filho.

Allegra tremeu ao sentir que o frio se apoderava dos seus ossos. A pequena trégua que parecia ter existido entre eles dissolveu-se como a bruma que frequentemente pairava por cima do Lago Encantado até que o sol se encarregava de a dissipar.

Uma vez mais, o homem que estava sentado do outro lado da mesa era o nobre exigente de sempre e ela, quer quisesse quer não, era a sua cativa involuntária.

 

Merrick ficou muito pensativo, enquanto Allegra acabava de jantar mergulhada num silêncio frio. Por que tinha que se sentir culpado por tê-la chamado de bruxa? Por acaso não era isso o que ela era? Apesar de tudo, parecia estar tão magoada... e furiosa. Não conseguia evitar comparar a sua atitude com a que tinha mostrado quando falava da sua família. Tinha havido tanta doçura nela... Os olhos tinham ficado iluminados de um modo que pareciam tão verdes como os lagos das Terras Altas. Durante um instante, as faces tinham ficado coradas e com uma aparência tão fresca e colorida como as flores do seu jardim.

Era natural que sentisse falta da sua família. Por acaso não sentia ele saudades do seu lar quando estava na guerra? É claro, no seu caso a decisão de ficar ou partir era sua, uma opção que Allegra não tinha tido. No entanto, tratava-se de um assunto completamente diferente. O destino tinha-o obrigado a fazer o que tinha feito. Sentia remorsos por tê-la levado para tão longe de casa. Afastou-os rapidamente. Não se podia permitir sentir nada por ninguém que não fosse Hamish. Se a bruxa curasse o seu filho, voltaria a estar muito em breve com as suas irmãs no Reino Mítico.

Tinha-lhe parecido um sítio muito estranho. Frondoso e verde, com flores brilhantes que cresciam até ficarem maiores que um homem e que perfumavam o ar como o quarto de uma amante. Na verdade, não se tratava somente de o ar ser mais doce, mas também de a luz dar uma cor especial às coisas, como se tocasse tudo com ouro e pedras preciosas. Até as gotas de água do Lago Encantado reluziam como pérolas.

Tinha visto criaturas que não tinha contemplado em nenhum sítio das Terras Altas. Cavalos alados, pequenos e delicados, embora suficientemente fortes para transportar uma mulher ou uma criança. Pelo menos, tinha-lhe parecido que eram cavalos. Sempre que os tinha visto, desvaneciam-se quase imediatamente. Também tinha contemplado pequenas fadas que brincavam entre os ramos das árvores. Tinha visto que tinham uma pequena auréola de luz à sua volta e tinha ouvido as suas vozes, que sussurravam e riam. No entanto, tal como os cavalos, desapareciam quase ao mesmo tempo que apareciam, por isso, tinha-se perguntado se na verdade as tinha visto ou se tinham sido apenas fruto da sua imaginação.

Então, tinha visto Allegra a tratar da sua horta e não tinha prestado atenção a mais nada. Ao princípio, recusou-se a acreditar no que via. Por que ia uma bruxa tratar da horta numa terra encantada? Não podia simplesmente ordenar às plantações que crescessem e limitar-se a ver cumprido o seu desejo? No entanto, ali estava ela, absorta no seu trabalho, dando-lhe tempo para admirar a sua beleza estranha.

Usava um vestido de uma bela cor verde, enfeitado com fios dourados, que parecia ter sido tecido pelos anjos. Este envolvia um corpo perfeito, dócil e esbelto, embora com suaves curvas. O cabelo avermelhado caía-lhe Pelas costas apanhado numa trança grossa entre cujas madeixas havia uma fita verde. Nos pés, tinha uns lindos chinelos, embora manobrasse a enxada que tinha na mão com o fervor de uma camponesa. Esse facto tinha acrescentado mais interesse ao fascínio que sentia.

Parecia incoerente que alguém tão encantador pudesse trabalhar até ter calos e bolhas nas mãos.

Durante um momento, tinha-se sentido tão absorto na sua beleza que tinha estado prestes a cair preso no seu encanto. No entanto, pensar em Hamish e no que tinha que fazer para salvar o filho tinha endurecido o seu coração.

O mesmo tinha estado prestes a acontecer quando a levou até à mesa. Sentir a pressão suave daquele corpo leve contra o seu tinha-o conduzido a pensamentos nos quais era melhor não se centrar. Imaginou-se deitado ao lado dela, gozando sobre o seu corpo, e esteve prestes a perder o controlo. Quando lhe tinha roçado suavemente a garganta com a boca, tinha sentido que se afogava num mar de sensações.

Inclusive naquele instante, ela parecia um paradoxo, completamente abotoada naquela camisa de dormir recatada, enquanto que o cabelo lhe caía pelo rosto e ombros como uma cascata e lhe cobria as costas como um véu de fogo.

Teria que se lembrar de que devia proteger o seu coração daquela mulher. Afinal de contas, apesar da sua presunção de inocência, não era uma donzela vulgar. Com certeza que conhecia todos os truques para roubar o coração, o pensamento e a alma de um homem. Pelo bem de Hamish, Merrick sabia que tinha que ser forte.

Não tinha medo dela. Era um guerreiro experiente e sabia bem como enfrentar o inimigo.

Quando se deu conta de que ela tinha falado, levantou o olhar, muito sobressaltado.

- Perdoa-me. Estava mergulhado nos meus pensamentos.

- Dizia que o jantar renovou as minhas forças e que estou disposta a tratar da tarefa de que me incumbiu quando me trouxe aqui. Chegou o momento de tratar do seu filho.

Merrick levantou-se da mesa e seguiu-a. A seguir, sentou-se numa poltrona e observou com interesse como ela se sentava sobre a cama do rapaz.

Espalhou a poção que tinha preparado sobre a testa do rapaz e a seguir levantou-lhe suavemente a cabeça e esfregou-lhe um POUCO mais sobre a nuca. Merrick sentiu uma comichão leve sobre a sua própria pele e perguntou-se o que sentiria se ela o tocasse assim. Parecia-lhe sentir aqueles dedos compridos e delicados sobre a sua pele, acariciando-o, excitando-o. Zangado consigo mesmo, pôs de lado aqueles pensamentos para observar e aprender os costumes da bruxa.

Tocou com as pontas dos dedos nas têmporas de Hamish e fechou os olhos. Permaneceu assim um bom bocado. Merrick perguntou-se o que estaria a sentir. O rosto expressivo da jovem mostrava uma gama ampla de emoções. Num momento sorria, no seguinte franzia o sobrolho, presa de uma concentração profunda. Mostrava-se relaxada durante um suspiro e, logo a seguir, contorcia o rosto de dor. Tanta dor...

De repente, Merrick compreendeu. Seria possível que estivesse a sentir tudo o que o seu filho estava a reviver?

De repente, a jovem abriu os olhos e olhou para Hamish. Então, começou a entoar um cântico numa língua antiga. As palavras não significavam nada para Merrick, mas achou-as muito tranquilizadoras. A voz de Allegra, que tinha um timbre muito baixo, era quase hipnótica. Teve que enfrentar a necessidade de fechar os olhos e deixar que aquela voz tão sugestiva se apoderasse dele. Para o evitar, começou a estudar cada um dos seus movimentos com grande cuidado. Se lhe parecesse que ameaçava o rapaz de alguma forma, cairia sobre ela como um anjo vingador.

Os olhos de Allegra estavam fixos no rosto de Hamish com tal intensidade que pareciam atirar faíscas. Pronunciava aquelas palavras antigas como se estivesse presa a um transe. Então, de repente, começou a falar com o rapaz na sua própria língua.

- Hamish, sei que estás dividido entre o teu desejo de permanecer onde estás, na companhia dos que te oferecem tranquilidade, e o desejo de regressar à vida de que uma vez usufruíste. Não tens que ter medo de nada. Seja qual for o mal que te ameaçou alguma vez, desapareceu. Aqui estarás rodeado dos que te amam e eles preocupar-se-ão com o teu bem estar e segurança. O teu pai está mesmo aqui, ansioso por falar contigo.

Ao ouvir aquelas palavras, Merrick pôs-se de pé e aproximou-se da cama para olhar para o filho. Embora o rapaz continuasse com as Pálpebras fechadas, estas pareciam mexer-se levemente, como se Hamish estivesse diante de uma luz muito forte.

- Está tudo bem, Hamish. Podes voltar. Anda ver o teu pai, que está à tua espera há muito tempo para conversar contigo. Deixa-o descansar, Hamish. Volta para ele...

De repente, o rapaz abriu os olhos. Merrick deixou cair o copo que tinha estado a segurar até àquele momento entre os dedos. Este estatelou-se no chão, derramando a cerveja por toda a parte, ao mesmo tempo que Merrick caía de joelhos e lançava um grito de felicidade.

- Hamish, meu filho! Voltaste para mim. Com lágrimas a escorrer pelas faces, pegou

no filho ao colo e apertou-o com força contra o seu corpo.

Allegra afastou-se da cama, não só para dar a pai e filho a intimidade que mereciam, mas também porque a fraqueza voltara a apropriar-se dela. Daquela vez, a razão não era a falta de comida ou a dificuldade da viagem. Era o preço que tinha tido que pagar por usar o seu dom. Atravessar para o outro lado supunha uma portagem muito pesada para quem passava a ponte.

Dirigiu-se à mesa e sentou-se numa das cadeiras. Depois de pousar os braços em cima da mesa, descansou neles o queixo e deixou que as primeiras palavras do rapaz a reconfortassem.

- Estás... em casa... pai.

- Sim, Hamish.

- Por quanto tempo? Só até à próxima batalha?

- Não te posso assegurar isso, meu filho. Não falemos dessas coisas agora. Neste momento estou em casa contigo e tu voltaste para mim. Receava ter-te perdido, meu filho - sussurrou Merrick, emoldurando com as mãos o rosto do filho. - A senhora MacDonald disse-me que caíste de uma árvore.

- Sim? Não me lembro - disse o rapaz, depois de pensar durante um instante.

- Não interessa. Agora que estás de novo comigo, nada interessa, Hamish - respondeu Merrick, abraçando de novo o filho.

Permaneceram assim os dois durante muito tempo. Merrick não parava de embalar o filho nem o rapaz de abraçá-lo, como se encontrasse consolo na fortaleza do pai. Quando a governanta entrou no quarto seguida de vários criados, pai e filho levantaram o olhar. Ao vê-los juntos, a mulher lançou um grito de alegria.

- Bendito seja o Senhor, milorde! O nosso Hamish finalmente acordou e sorri!

- É verdade, senhora MacDonald. Merrick sorria enquanto a anciã acariciava suavemente o rosto do pequeno, como se quisesse ter a certeza. Então, a mulher desatou a chorar e começou a secar os olhos com o avental.

Os criados rodearam os três e começaram a aplaudir e a rir. Muito rapidamente, a notícia estendeu-se por todo o castelo e todos os seus habitantes se aproximaram do quarto do rapaz para partilhar as boas notícias.

Mordred e Desmond pararam à porta.

- Então, é verdade - disse Mordred, depois de se aproximar da cama para apertar a mão do seu primo. - O rapaz regressou ao mundo dos vivos. Não te parece maravilhoso, Desmond?

- Sim - afirmou o visado, apertando suavemente o ombro do rapaz.

Hamish soltou-se e interrogou o pai com o olhar. Merrick limitou-se a pegar-lhe ao colo para o embalar. Quando começaram a chegar mais pessoas, Merrick começou a sentir-se um pouco perplexo pela reacção do seu filho. Hamish tinha sido sempre demasiado audaz. Tinha escalado árvores sem medo, saltando como se pudesse voar sem receio algum dos perigos. Sempre se tinha negado a aceitar as indicações dos pais e, no entanto, naquele momento mostrava-se tímido, assustado como um rato encurralado.

Embora o rapaz parecesse contente por ver toda a gente, também se mostrava cauteloso e agarrava com força a mão do pai. Às vezes, quando havia demasiadas pessoas a rodear a cama, encolhia-se, completamente aterrorizado.

Merrick decidiu que era resultado do acidente sofrido. Muito em breve passaria e o rapaz voltaria a ser o mesmo de antes.

A pouco e pouco, foi reparando que as emoções iam tomando conta do filho. Quando Hamish conteve um bocejo e começou a fechar os olhos, Merrick deu ordens à governanta e a todos os outros para que partissem.

- Agora estás de novo connosco - sussurrou a mulher, com lágrimas nos olhos, renitente em obedecer à ordem do seu senhor. Voltaste para junto de todos os que te amam.

- É como se me tivessem tirado dos ombros o peso do mundo - disse Merrick, dirigindo-se a Mordred e a Desmond, que ainda continuavam ao lado da cama.

- Sim - respondeu Mordred. - Arriscaste tudo e ganhaste o maior prémio de todos. Nem a ameaça dos monstros nem o temor do desconhecido conseguiram evitar que fosses à procura da bruxa e que a trouxesses aqui para que usasse a sua magia.

A bruxa.

Merrick olhou à volta e viu que Allegra estava sentada à mesa, com o rosto entre as mãos. Estaria a chorar?

Aproximou-se dela e assustou-se muito ao ver que estava a dormir profundamente. Quando lhe tocou suavemente no ombro, a jovem não se mexeu.

Atónito, pôs uma mão sobre a sua, mas, de imediato, retirou-a, muito surpreendido. Estava tão fria que podia ser esculpida em pedra. Merrick, muito alarmado, inclinou-se sobre a jovem e pegou-lhe ao colo. De imediato, sentiu que o frio começava a apoderar-se dele.

- Senhora MacDonald.

Ao ouvir que a chamava, a mulher voltou-se. Quando viu que o seu senhor tinha a jovem ao colo, aproximou-se deles rapidamente.

Merrick estava a tremer de frio. Nunca antes tinha sentido uma coisa semelhante. Parecia vir-lhe em ondas provenientes do corpo da mulher que tinha ao seu colo e estava a deixá-lo gelado até ao tutano. Como era possível que alguém estivesse tão frio e continuasse vivo? Estaria a jovem Allegra a morrer?

Este pensamento deixou-o aterrorizado.

Que preço tinha pago exactamente pela vida do seu filho?

- Mande um dos criados acender a lareira, senhora MacDonald! - exclamou com impaciência. - A seguir, quero que me tragam a cerveja mais forte que tivermos.

- Que se passa com a rapariga, milorde?

- Não sei - respondeu Merrick enquanto se ajoelhava para depositar a jovem na cama. Então, com muito cuidado, envolveu-a em peles. - Está tão pálida, tão quieta, mas, quando lhe meço a pulsação na garganta, assim - explicou, enquanto lhe punha um dedo sobre a garganta, - ainda a sinto. É muito fraca, mas dá-me esperança de que possamos salvá-la.

- Não estás a falar a sério, pois não, Merrick? - disse Mordred, incrédulo. - Essa mulher não é como o resto de nós. Seria melhor que mantivesses distância dela, não sejas tu enfeitiçado por essa criatura. É isso que queres?

- Sabes bem que não, mas o que sei é que, graças a esta mulher, consegui recuperar o meu filho. Agora, devo fazer tudo o que possa para lhe devolver o favor. Se for necessário, removerei o céu e a terra para conseguir salvá-la.

- Isto é uma loucura - murmurou Mordred enquanto o seu irmão e ele saíam do quarto atrás da governanta.

Quando já estava fora do quarto, continuou a murmurar. Dizia que talvez o seu primo já estivesse enfeitiçado. As suas palavras fizeram com que a governanta olhasse por cima do ombro para o seu senhor e os criados começassem a falar entre eles em voz muito baixa da mulher perigosa que andava à solta entre eles.

Merrick não fez caso dos comentários. Continuou a esfregar as mãos de Allegra entre as suas enquanto lhe sussurrava:

- Oxalá conhecesse o feitiço que te faria recuperar a saúde, rapariga, tal como tu devolveste a do meu Hamish.

Durante toda a noite, enquanto Hamish dormia tranquilamente, Merrick permaneceu sentado ao lado da cama de Allegra. Cada vez que um criado entrava no quarto para atiçar o fogo, Merrick vertia várias gotas de cerveja entre os lábios da rapariga.

Estaria a ajudá-la a aliviar o frio? Parecia-lhe que sim. Agarrou-lhe com força na mão e perguntou-se se na verdade teria havido alguma mudança nela ou se simplesmente lhe parecia que sim, porque era isso que queria que acontecesse.

Aquela mulher era responsabilidade sua. Se não tivesse sido por ele, ela ainda continuaria a viver calmamente no seu reino escondido. Em tempos de necessidade não podia abandoná-la.

No entanto, parecia que havia muito pouco que pudesse fazer por ela. O fogo, a cerveja e as diversas camadas de peles pareciam fazer muito pouco contra os dedos gélidos da morte que a tinham apanhado.

Por fim, desesperado por tirá-la daquele abismo de gelo, fez a única coisa que lhe ocorreu. Deslizou por entre as peles e deitou-se ao lado dela. Então, abraçou-a, esperando assim transmitir-lhe o calor do seu próprio corpo.

 

Allegra estava perdida no Vale da Bruma, tremendo na escuridão. A névoa rodeava o seu corpo como um sudário. Tentava ver o sol, mas tinha a visão nublada. Queria chamar o seu cavalo alado para que a levasse a casa, mas a voz não parecia conseguir sair da garganta.

Tinha perdido toda a sua energia, ficando débil e vulnerável. Tinha frio, tanto frio... Sem a família para tratar dela, estava condenada. Muito em breve, o frio penetrar-lhe-ia os ossos e quebrá-los-ia como se fossem raminhos frágeis. O sangue tornar-se-ia espesso e ficaria mais lento e, então, o coração, ao ver-se privado do seu valioso combustível, simplesmente pararia.

Apesar de tudo, mesmo sabendo o preço que se veria obrigada a pagar, teria conseguido recusar ao guerreiro a vida do seu único filho? Tinha visto a profundidade da sua dor. Tinha sentido que a súplica desesperada de um pai lhe chegava até ao mais fundo do coração. Por acaso não tinha arriscado ele a sua própria vida pela do rapaz ao desafiar os perigos do Lago Encantado e do Reino Mítico para ir procurá-la? Ela não podia ser menos corajosa que o guerreiro. Tinha decidido desafiar as Parcas e lutar para lhe entregar o que mais desejava no seu coração.

Por isso, via-se obrigada a pagar um preço. Estava paralisada pelo frio e, devido à sua condição debilitada, era-lhe impossível conseguir parar a sua destruição insidiosa. Levantou a cabeça para o céu e procurou ver os rostos da sua família, que estava tão, tão longe...

Nesse momento, sentiu uma labareda de fogo garganta abaixo. A avó tinha-lhe dito uma vez que a amabilidade de um desconhecido era um feitiço muito poderoso. Allegra engoliu aquele calor agradecida e sentiu que lhe dava uma chama ténue de esperança.

À medida que as horas foram passando e que o frio se ia apropriando uma vez mais dela, sentiu que a obrigava a engolir mais fogo. Então, precisamente quando o gelo ameaçava derrotá-la, as nuvens afastaram-se e viu por fim aparecer o sol.

O calor começou a dar-lhe vida. Ao princípio, não era mais que uma leve sensação, mas suficientemente poderosa para a ajudar a elevar o espírito. Se fosse capaz de se agarrar àquele calor conseguiria escapar do Vale da Bruma.

Uma coisa quente e forte envolveu-a, dando-lhe força para ir à procura da luz. Embora a força fosse um pouco fraca e vacilante, era suficientemente firme para a sustentar. Allegra agarrou-se a ela com todas as suas forças. E, por fim, adormeceu.

Quando Allegra acordou, ficou deitada muito quieta, aproveitando o calor que a envolvia como se estivesse no casulo de uma borboleta. De qualquer modo, embora a sua família não tivesse tratado dela, tinha escapado do Vale da Bruma. Graças à amabilidade de alguém, tinha sobrevivido.

Ouviu o batimento constante do seu coração e regozijou-se com o som. Estava viva. Viva. De repente, sentiu o batimento de um segundo coração, que palpitava em uníssono com o seu.

Abriu de imediato os olhos. À medida que os olhos se acostumavam à penumbra que reinava no quarto iluminado apenas pelas brasas que ardiam na lareira, deu-se conta de que não estava sozinha na cama. Uns braços fortes envolviam-na. Um fôlego quente acariciava-lhe o cabelo e enviava-lhe o seu calor por todo o corpo.

- Vejo que, por fim, acordaste - disse a voz de Merrick. Não tinha sido mais que um sussurro, mas tinha-lhe provocado calafrios pelo corpo todo.

Sentiu uma sensação estranha ao saber que ele tinha estado a vigiá-la enquanto dormia.

- Por que está vossa senhoria... - perguntou, tentando afastar-se dele. No entanto, Merrick agarrou-a com força contra o seu corpo. - Por que está vossa senhoria aqui, na minha cama?

- Não me ocorreu outro modo de te aquecer.

- Foi o senhor? - respondeu, compreendendo que o homem que tinha considerado seu inimigo tinha sido quem a tinha salvo.

- Estavas tão fria que temia que estivesses morta. Estavas? - perguntou ele, a olhar para ela através dos olhos entreabertos.

- Não. Estava... noutro lugar.

- Pelo que parece, não se tratava de um sítio muito quente ou amistoso, mas não interessa. Agora, voltaste.

Em vez de se levantar da cama, limitou-se a compor-se um pouco, por isso, Allegra teve que lhe pôr a mão no peito para evitar que a esmagasse. Por seu lado, Merrick levantou uma mão para lhe afastar o cabelo da cara.

- Acontece-te frequentemente essa coisa de viajares para outro lugar?

Ao sentir o contacto da sua pele, Allegra começou a tremer, embora daquela vez não fosse pelo frio. De facto, com a carícia da sua mão, o calor parecia ter aumentado. Perguntou-se o que lhe devia contar.

Depois de um momento de dúvida, respondeu:

- Só me acontece quando me vejo obrigada a usar todo o poder que há em mim.

- Sinto muito, então. Não me tinha dado conta do quanto te tinha pedido. Só sabia que faria tudo o que fosse necessário para salvar o meu filho. Hamish deve ter estado mais perto da morte do que tinha imaginado, se foi preciso todo o teu poder para conseguires que regressasse.

Allegra não soube o que a surpreendeu mais, se a desculpa ou que aceitasse sem questionar a sua explicação.

- Acredita em mim?

- Depois de ver o que fizeste pelo meu filho, estou disposto a acreditar um pouco. Quer sejas uma bruxa ou uma feiticeira, não me importa.

- Eu não sou bruxa nenhuma, milorde. Sou uma simples mulher que aprendeu a usar certos poderes que toda a gente tem no seu interior.

Uma simples mulher? Merrick duvidava. Apesar de tudo, não podia negar o modo como o seu corpo estava a responder à proximidade de Allegra. Se fosse outra mulher, podia fazer sentido a tentação de ceder à necessidade de dar prazer a si mesmo e a ela. Não podia esquecer-se que aquela jovem podia tecer um matagal à sua volta sem que ele fosse capaz de o impedir.

- Se o que dizes é verdade, por que não possui toda a gente tais poderes?

- A minha avó diz que é porque as pessoas se esqueceram.

- E como é que tu te lembraste? - perguntou ele, sorrindo.

Allegra tentou não prestar atenção ao seu sorriso, uma coisa que não era fácil. Preferia mil vezes que franzisse o sobrolho. Pelo menos, então, conseguia lembrar-se que ele era o bruto que tinha a levado até ali contra a sua vontade. Quando sorria daquela forma, sentia qualquer coisa a despertar dentro dela.

- Aprendi com a minha mãe. E ela aprendeu com a sua. Talvez os que não tiveram mãe tenham sido os primeiros a esquecer.

Tarde demais, quando viu que o sorriso se lhe gelava no rosto, lembrou-se da mulher que tinha visto junto à cama do jovem Hamish.

- Outros - acrescentou, rapidamente, simplesmente não prestaram atenção ou envergonharam-se dos poderes que possuíam. Segundo a minha mãe, os que tinham perdido o poder começaram a perseguir os que ainda o tinham.

- Por isso é que vives no Reino Mítico? Para evitar a perseguição?

- A vida lá é muito mais simples. Aceitamos o que temos sem questionar ou nos arrependermos.

- Vivem lá outros como tu?

- Não. Só a minha família, Bessie e Jeremy.

- Não há nenhum homem além desse troll convosco?

- E que necessidade temos de homens? replicou ela. - Que podem fazer por nós que não possamos fazer nós mesmas?

- Podem proteger-vos, caçar para o vosso sustento e construir-vos casas para viver.

- Protegemo-nos a nós mesmas, milorde, embora os únicos perigos provenham do exterior do nosso reino. Quanto à comida e casa, nós mesmas tratamos disso.

- Vi a tua horta e também o quanto trabalhas para lavrar o solo e teres colheitas.

- Não me importo de trabalhar arduamente, e o mesmo se passa com as outras mulheres da minha família. Está a ver? DesenvenciLhamo-nos muito bem sozinhas. Não precisamos de homens.

- Sim, estou a ver, mas parece-me que a tua mãe não te contou tudo.

Allegra viu nos olhos de Merrick algo um pouco escuro e sagaz que a deixou atónita.

- Não compreendo.

- Os homens servem para outras coisas sussurrou ele, baixando a cabeça até a sua boca estar a poucos centímetros da de Allegra. - Como isto...

Os lábios de Merrick acariciaram os de Allegra tão suavemente como as asas de uma borboleta. Viu que ela abria os olhos de surpresa, sem saber que a sua própria reacção tinha sido muito parecida. Só tinha tido a intenÇão de a perturbar. No entanto, depois daquele contacto doce soube que queria muito mais. Antes que a jovem pudesse afastá-lo, apertou-a firmemente contra o seu corpo e aprofundou o beijo.

Que sabores tão exóticos encontrou! Uma doçura que ansiava por explorar mais atentamente. Allegra sabia ao sol do Verão, quente e abrasador. A água da chuva, pura, limpa e fresca. Nunca antes tinha imaginado que os lábios de uma mulher pudessem ser tão suaves. Tão perfeitos.

Não tinha planeado aquilo, mas, depois de sentir os lábios de Allegra sob os seus, já não houve volta atrás. Sentiu-se completamente perdido no seu sabor.

Quanto a Allegra, não conseguia pensar. A única coisa que conseguia fazer era afundar os dedos no pêlo do tronco de Merrick e agarrar-se a ele quando o quarto pareceu começar às voltas em seu redor.

Por que batia o seu coração àquela velocidade? Que tinha acontecido à sua vontade? Por que se sentia satisfeita ali, nos braços daquele homem, permitindo-lhe tantas liberdades?

Perdida no beijo, suspirou. Nunca tinha imaginado que os lábios de um homem pudessem ser tão habilidosos. Com o mais ligeiro movimento, eram capazes de conseguir fazer fervilhar o sangue e fundir os ossos. Sentia que a pulsação se tinha acelerado e perguntou-se se o seu pobre coração poderia continuar a bater àquela velocidade sem explodir com o esforço.

Quando ele continuou a beijá-la até Allegra ficar sem fôlego, a jovem deixou escapar um gemido. Em resposta, ele gemeu também e aprofundou ainda mais o beijo, até os corações de ambos estarem prestes a explodir.

Lenta, muito lentamente, Merrick encontrou força de vontade para levantar a cabeça e quebrar o contacto.

- Que me fizeste? - perguntou, a olhar para ela completamente perplexo. Então, pareceu lembrar-se do aviso do seu primo. - Mulher, enfeitiçaste-me.

Rapidamente, afastou as peles e levantou-se da cama. Ao chegar à porta, parou.

- Vou mandar a senhora MacDonald enviar um criado com qualquer coisa de comer para ti e para o meu filho.

- E um cavalo - gritou-lhe Allegra, quando conseguiu articular uma palavra. - Como já fiz o que me mandou, deve cumprir a sua promessa de me devolver à minha família.

- Já te disse que sou um homem de palavra. O cavalo será preparado em seguida.

Com isso, voltou-se e saiu do quarto. Sentia-se furioso consigo mesmo por se ter esquecido um só instante de como podia ser perigosa aquela mulher. Inclusive naquele momento, com a distância que havia entre eles, continuava a desejá-la. Tremiam-lhe as mãos, por isso, agarrou-as com força enquanto avançava.

Se permitisse que ela o seduzisse com o seu encanto, Allegra usaria muito em breve os seus poderes para o controlar. Era essencial encontrar força para resistir.

No entanto, era mais fácil dizer isso à sua mente que ao seu corpo. Com um único beijo, excitou-se completamente. Havia qualquer coisa de tão inocente, tão doce, em Allegra Drummond... Teria jurado que ela nunca tinha estado com um homem. Mais que isso, Merrick tinha desejado ser o primeiro homem dela. Nos momentos que tinha passado ao seu lado, tinha desejado encher-se com tanta bondade, com tanta inocência. Dar e receber até que os dois estivessem saciados. No entanto, como podia saber se ela era verdadeiramente uma donzela ou se aquilo era apenas um plano engenhoso da sua parte para o apanhar? Era magia, pura e simples, por isso faria bem em livrar-se dela imediatamente.

Preso à confusão, rugiu a um criado, gritou à pobre senhora MacDonald e, muito rapidamente, teve todos os criados a andar de um lado para o outro, ansiosos por cumprir os desejos do seu senhor.

Nos aposentos de Hamish, Allegra passeava à frente do fogo, a tentar perceber o que tinha acabado de acontecer. Merrick MacAndrew tinha estado a beijá-la até ela estar prestes a perder os sentidos. Depois tinha-se ido embora furioso e acusando-a de o ter enfeitiçado.

Na verdade, era ela quem tinha caído presa de um feitiço lançado por um guerreiro teimoso e intratável. Os sentimentos estranhos que tinha despertado nela tinham-na deixado a tremer de medo. Nunca antes tinha conhecido as carícias de um homem, os seus beijos, e desconhecia que pudessem afectá-la daquela maneira.

Durante os breves instantes que tinha tido poder sobre ela, Allegra tinha sentido que os seus próprios poderes diminuíam até ao ponto de se sentir completamente indefesa. Aquela não era uma sensação de que gostasse.

No entanto... Tocou suavemente nos lábios. Embora tivesse passado algum tempo desde que ele a tinha beijado, ainda conseguia saboreá-lo. Sentia uma comichão estranha onde a tinha tocado. Sentia um calor líquido no seu interior. Qual era o seu poder? Como se chamava?

Era um homem estranho. Tinha-a levado até ali contra a sua vontade. Tinha-a intimidado, tinha-a chamado de bruxa e tinha-a observado como a um vilão. No entanto, aquele mesmo homem passara a noite na sua cama, aquecendo-a com o seu próprio corpo, fazendo-a regressar por pura teimosia da beira da escuridão total.

E claro, estava-lhe muito agradecida por isso, mas não deviam nada um ao outro. Allegra também tinha feito o seu filho regressar da beira dessa mesma escuridão.

O seu filho. Afastou-se do fogo e ajoelhou-se junto à cama do rapaz. Tinha boa cor de cara e respirava normalmente. Estava prestes a afastar-se dele quando sentiu qualquer coisa que a perturbou. Tocou-lhe nas têmporas com as pontas dos dedos e ficou imóvel. Na mente do rapaz havia uma grande tortura. Pressentia umas nuvens pretas e tempestuosas que tapavam a luz.

Tinha acontecido qualquer coisa ao rapaz. Algum conflito tinha-o deixado terrivelmente assustado. Fosse o que fosse, ainda não estava resolvido. Enquanto não estivesse, a escuridão continuaria a nublar-lhe a mente.

Pôs-se de pé e cruzou os braços, perdida nos seus pensamentos. Os demónios do rapaz não lhe diziam respeito. Com o amor de todos os que o rodeavam, encontraria rapidamente uma solução no seu devido tempo. Além disso, o dom de Allegra era curar as pessoas, não era ler-lhes o pensamento.

Tinha feito o que o pai do rapaz lhe tinha pedido. Por isso, sem mais demora, devia regressar à segurança do Reino Mítico e ao amor da sua família, especialmente depois do beijo. Precisava de se afastar de Merrick MacAndrew e do seu estranho poder.

- Trouxe-te bolachas e cerveja - disse a senhora MacDonald, conforme entrava no quarto seguida de uma criada a quem indicou que pousasse a bandeja sobre a mesa.

- Muito obrigada, senhora MacDonald replicou Allegra, voltando-se e tentando recuPerar a compostura.

- Como dormiu o rapaz ontem à noite?

- Muito bem, como pode ver - respondeu a jovem enquanto apontava para a cama do raPaz.

- Sim - sussurrou a governanta, com um sorriso. - O castelo inteiro rejubila de felicidade pela boa sorte do nosso senhor, especialmente dado que pai e filho sofreram tanta dor.

- Dor?

- Claro. Tu não sabes - disse a mulher enquanto indicava à criada que se fosse embora. Quando esta fechou a porta, baixou um pouco mais o tom de voz. - A mãe do rapaz foi encontrada morta depois de ter caído da varanda.

- Como aconteceu uma coisa dessas?

- Não há explicação para isso, pelo menos nenhuma que seja aceitável - respondeu a senhora MacDonald, muito angustiada, - mas sei o que muitos pensam. Que o senhor foi o causador de uma coisa tão desprezível.

- Porquê?

- Alguns dizem que, quando ele teve medo do comportamento estranho da sua esposa e ameaçou encerrá-la para o seu próprio bem, a senhora preferiu deixar de viver a ceder. Outros acham que ele simplesmente chegou ao limite da paciência e tratou do assunto pessoalmente.

Allegra levou as mãos à garganta. Uma coisa daquelas era impensável na sua terra encantada, mas tinha ouvido relatos que a sua mãe e a sua avó lhe contavam sobre os espíritos sombrios que viajavam pela Terra e que convenciam os mortais a aceitarem a sua maldade.

- Acredita nisso, senhora MacDonald?

- Eu sei como lhe chamam os outros. Espada das Terras Altas. Um guerreiro cruel e duro. No entanto, não foi sempre assim. Quando era um rapazinho como Hamish, era amável e encantador, mas mudou. Tanto a esposa como ele mudaram.

- Em que sentido?

- A senhora começou a comportar-se de um modo... estranho. Alguns dizem que ficou louca. Frequentemente percorria o castelo ou os jardins de noite, como se os demónios a perseguissem.

- E o jovem Hamish? Ficou afectado com isso tudo?

- Ao princípio, acreditávamos que estava bem, mas vejo que ele também está a começar a mudar. Como o pai está frequentemente na guerra, houve... lapsos.

- Lapsos?

- Alturas em que o rapaz parecia afastar-se de nós. Parece ir para algum lugar da sua mente e então não se lembra de nada do que disse ou fez - explicou a mulher enquanto torcia as mãos. - A morte de lady Catherine deixou o senhor e o filho sozinhos. Milorde esteve longe do castelo durante mais de um ano da última vez, a lutar numa batalha a seguir à outra. Embora o seu povo lhe esteja muito agradecido, nós, que vivemos no castelo de Berkshire, damo-nos conta do que a ausência do senhor está a fazer ao filho. Não é que culpemos o senhor, dado que ele deve ocupar-se da segurança de todos os seus, mas talvez prefira estar tanto tempo longe de casa, porque, quando regressa e olha para Hamish, é à sua adorada Catherine que vê. Essa é razão suficiente para que um homem decida distanciar-se de quem lhe causa dor até conseguir encontrar alguma paz.

- Acredita mesmo que ele alguma vez poderá encontrar a paz se provocou a morte à sua esposa?

- Isso é uma coisa que eu não sei. Bom - disse para mudar de assunto, como se sentisse que já tinha falado demais, - já te limpei o vestido e está pronto para a tua viagem de volta a casa. Os criados não fazem mais nada senão falar dele, porque é mais fino que qualquer outro que tenham visto alguma vez.

- A minha mãe trabalha com um tear, faz o tecido e os vestidos que eu e as minhas irmãs usamos. Aprendeu com a mãe, que trabalhava para a realeza.

- Então não é de estranhar que seja tão deslumbrante. Bem, assim que o rapaz acordar, deverás chamar um criado. Milorde ordenou que os seus homens de confiança te escoltem até casa.

- Obrigada, senhora.

Quando a anciã partiu, Allegra, sem prestar atenção nenhuma à comida, continuou a passear. De repente, sentia-se muito agitada.

O relato da morte misteriosa tinha-a emocionado profundamente. Por acaso não tinha sentido ela a escuridão quando pôs o pé pela primeira vez no castelo de Berkshire? Não podia saber se o lorde tinha estado metido no assunto, já que lhe era impossível olhar para dentro do seu coração, mas, e o menino? Parou para o estudar. Era tão jovem, tão doce, e sem uma mãe no mundo em quem pudesse confiar!

Procurou imaginar a sua vida sem a mãe nem a avó. Não havia nada que não lhes pudesse confiar. Tinha a certeza de que a sua família estaria a lamentar-se pela sua perda tanto como as saudades que ela tinha deles. Sentia-o no coração. Ansiava estar com elas. Se não dissesse nada sobre os problemas que avassalavam o rapaz, podia voltar a estar no reino Mítico no dia seguinte de manhã.

E claro, o rapaz teria que enfrentar os seus demónios sozinho, já que só lhe restava o pai. um pai que tinha estado ausente uma grande parte da sua jovem vida. Apesar de tudo, Merrick MacAndrew era um homem forte e capaz, um guerreiro queimado em mil batalhas, que sabia tudo sobre a luta contra o inimigo. Um homem justo que ficara toda a noite com ela e a tinha feito regressar do Vale da Bruma. Além disso, estava a fazer tudo para cumprir a sua palavra e devolvê-la a casa.

No entanto, poderia lutar contra os demónios internos de uma criança? Estaria capacitado para ensinar o filho a lutar contra os terrores que o espreitavam de noite?

Talvez, se não tivesse sabido o terrível destino da mãe, não sentisse tanta ansiedade ao ter que deixar o jovem Hamish sozinho com os seus problemas. Pôs as pontas dos dedos sobre as têmporas para tentar acalmar a tempestade que rugia no interior da sua cabeça. Por que tinha que se preocupar tanto com os outros? Tinha sido sempre a sua maior fraqueza e acabava sempre por lhe causar problemas.

Depois de passear durante mais um momento, soltou um suspiro de resignação e tirou a camisa de dormir. Pôs o seu próprio vestido e começou a preparar-se para a viagem até casa.

 

- Aqui tens, filho - disse a senhora MacDonald, depois de entrar no quarto seguida de uma criada. - O senhor em pessoa deu ordens para que comas muito para recuperares as forças. Mara trouxe-te papas com mel.

Enquanto a jovem criada pousava a tigela sobre a mesa, a velha governanta aproximou-se da cama do rapaz.

- Tens forças suficientes para te sentares à mesa?

- Acho que sim - respondeu o menino. Então, compôs-se e, depois de se agarrar à anciã, atravessou a sala para se dirigir à mesa. Quem é aquela dama tão formosa? - acrescentou, referindo-se a Allegra.

- É a feiticeira.

- A feiticeira? Tens nome?

- Claro que sim. O meu nome é Allegra Drummond - respondeu a jovem, aproximando-se dele e sorrindo.

- Allegra - disse o menino, depois de pensar por um instante. - Esse nome significa "alegre". Estás cheia de alegria?

- Suponho que sim, pelo menos a maior parte do tempo. Como é que sabes o significado do meu nome?

- A minha mãe ensinou-me os significados de muitos nomes. Disse-me que o meu significa "presente do céu" - explicou. Quando se sentou, indicou uma cadeira a Allegra.

A jovem sentou-se e aceitou um copo de vinho quente que a criada lhe ofereceu.

- Tens sorte em teres tido uma mãe tão sábia.

- A tua mãe também era sábia?

- Ainda o é.

- Ainda está viva? - perguntou o rapaz, depois de comer uma colherada de papa muito lentamente. - E conta-te histórias e canta para ti até adormeceres?

- Fazia isso quando eu era mais nova.

O menino ficou um pouco pensativo e a seguir disse:

- O meu pai disse-me que caí de uma árvore.

Allegra assentiu. Sentia-se satisfeita pela forma como o menino se expressava. Parecia um rapaz esperto e alegre. Talvez se tivesse preocupado em vão.

- Quantos anos tens tu, Hamish?

- Cinco. Ou será que já tenho seis? - perguntou à governanta.

- Ainda tens cinco, meu filho.

- E porque é que eu precisava de uma feiticeira? - quis saber o pequeno, referindo-se de novo a Allegra.

- Magoaste-te. Caíste num sono muito profundo e os que gostam de ti recearam que não conseguisses acordar sem a minha ajuda.

- E é mesmo verdade que o meu pai está em casa, senhora MacDonald? Ou será que isso foi só um sonho?

- Não foi um sonho, meu amor. O teu pai está muito contente por estar em casa contigo.

Hamish baixou a cabeça, mas não sem que Allegra se apercebesse do sorriso de felicidade que lhe iluminou os olhos. Comeu várias colheradas de papa antes de afastar o prato.

- Isso não é suficiente nem para um passarinho, meu filho - disse a senhora MacDonald.

- Como mais um pouco depois, senhora MacDonald.

Allegra acabava de beber o seu copo de vinho quando Merrick MacAndrew entrou a toda a velocidade no quarto seguido dos primos.

- Mordred e Desmond ofereceram-se para te levar a casa.

Allegra sentiu um calafrio. Olhou para a varanda, perguntando-se se seria por que ameaçava uma tempestade. Ao ver que não havia nuvens, voltou-se para MacAndrew.

- Agradeço-lhe, milorde, mas, por que não manda comigo um batalhão dos seus guerreiros?

- O meu irmão e eu não precisamos de guerreiros - replicou Mordred com altivez.

Allegra tentou sorrir, mas não conseguiu fazê-lo.

- Devo elogiá-los. Não há muitos homens que consentissem em viajar ao Reino Mítico sem levar um exército.

- O nosso primo fê-lo - respondeu Mordred, - e conseguiu. Além disso, Merrick assegurou-nos que matou o dragão que guarda as margens do Lago Encantado.

- O que o faz pensar que só havia um dragão?

O sorriso de Mordred gelou-lhe nos lábios. Naquele momento, Merrick voltou a intervir:

- Dás-me a tua palavra de honra que os meus primos não sofrerão quaisquer maus-tratos quando chegarem ao teu reino? De que não haverá tempestades repentinas nem monstros a surgir das profundidades do lago?

- Garanto-te que, quando chegar a minha casa, a minha família estará à espera para me receber. Encarregar-se-ão de dar uma festa aos meus guarda-costas antes de estes empreenderem o caminho de volta para casa.

- Isso deixa-me mais descansado - disse Merrick. Então, olhou para o seu filho e iluminou-se-lhe o olhar. - Vejo que estiveste a comer, Hamish.

- Sim, pai.

- Parece estar completamente recuperado comentou Merrick, dirigindo-se a Allegra.

- Estivemos a conversar enquanto comia respondeu ela, ignorando a sua inquietação. O rapaz tem uma mente muito rápida.

- Já me tinham dito isso. Toma - respondeu ele, estendendo a Allegra uma capa com capuz. - Era da minha esposa. Pedi à senhora MacDonald que a procurasse para a tua viagem de volta a casa.

- Obrigada. É muito generoso da sua parte, milorde.

Quando Allegra estendeu a mão para agarrar na roupa, os seus dedos cruzaram-se com os de MacAndrew. O calor que sentiu foi tão forte como se lhe tivesse caído um raio em cima. Merrick também se perguntou se teriam saltado faíscas ou se teria sido imaginação sua. Fosse o que fosse que tivesse acontecido, deixou-o mais inquieto do que estava disposto a admitir. Ainda sentia nos dedos um formigueiro forte pelo contacto.

Allegra voltou-se. Enquanto punha a capa, as mãos tremiam-lhe, mas depressa recuperou a compostura. Quando se voltou, não se percebia nenhuma confusão no seu rosto. Não estava disposta a ceder perante o estranho encanto que Merrick MacAndrew possuía. Sobre isso, pensaria na viagem para casa.

Merrick fez-lhe uma reverência, embora com muito cuidado para não voltar a tocar nela.

- Agradeço-te, Allegra Drummond, por teres curado o meu filho. Agora, desejo-te uma viagem sem percalços até casa.

- Eu também lhe agradeço, Merrick MacAndrew, por ter cumprido a sua palavra. Oxalá Hamish e vossa senhoria continuem bem.

Ao ouvir Allegra pronunciar o seu nome, o rapaz chamou-a.

- Feiticeira, posso passear pelos jardins?

- Não vejo por que não - respondeu ela, embora acredite que devias permanecer perto de casa até que te sintas um pouco mais forte. Talvez devas deixar que um criado te acompanhe, pelo menos hoje.

- Fá-lo-ei - disse o rapaz. Levantou-se da cadeira e desatou a rir quando a senhora MacDonald lhe ofereceu o braço. - Vens passear comigo?

- Há muito tempo que esperava por este dia, filho. Não há nada que me pareça mais importante que passar uma hora com o meu pequeno Hamish no jardim - afirmou a mulher.

Antes de partirem, a anciã aproximou-se de Allegra e apertou-lhe a mão na sua.

- Que Deus te abençoe, rapariga. Devolveste às nossas vidas a luz do sol. Que tenhas uma boa viagem até casa - acrescentou, antes de se ir embora.

- Obrigada, senhora MacDonald - respondeu Allegra. Então, a anciã e o menino desapareceram pelo corredor.

Enquanto ela abandonava também o quarto, ladeada por Mordred e Desmond, sentiu que um calafrio se apoderava dela. Apesar de tudo, continuou a andar, acompanhada também por Merrick, até à porta que dava para o pátio.

Já no exterior, dirigiu-se ao cavalo, que um pajem já lhe tinha preparado. Antes de poder subir para a sela, Mordred apareceu ao seu lado, pronto a ajudá-la. No momento em que sentiu as mãos dele à volta da sua cintura, sentiu que um gélido calafrio a fazia tremer violentamente. Conforme aceitava as rédeas do pajem, teve que fazer um grande esforço para se recompor.

Merrick aproximou-se dela e, ao ver a sua palidez, perguntou-lhe:

- Que se passa? Estás bem?

- Sim. Foi só um calafrio - respondeu ela, pondo o medo de lado. Afinal de contas, muito em breve estaria com a sua família.

- Nesse caso, desejo-te uma boa viagem. E a vós também, meus primos.

Mordred sorriu antes de subir para o cavalo e pô-lo em andamento. Desmond, impassível, esperou que Allegra seguisse o seu irmão. Precisamente quando a jovem incitava o animal, ouviu-se o grito de uma mulher.

- Milorde! - uivava a senhora MacDonald.

- Venha depressa.

- Um momento - disse Merrick. Rapidamente, agarrou nas rédeas do cavalo de Allegra. - Não te vais embora até sabermos o que aconteceu.

Antes que a jovem pudesse protestar, Merrick obrigou-a a descer bruscamente da sela e agarrou-a com força pelo pulso. Então, começou a puxá-la enquanto seguia os criados todos até ao jardim.

Ao chegar lá, viram o rapaz deitado na erva, preso de convulsões violentas. A anciã estava ao seu lado, torcendo as mãos. Tinha os olhos cheios de terror.

- Santo Deus, milorde! É Hamish. Venha rápido. O rapaz está possuído.

Os criados retrocederam, completamente aterrorizados. Enquanto Merrick avançava puxando Allegra, muitos deles começaram a murmurar:

- É o trabalho da bruxa.

- Ou do diabo.

- São as duas a mesma pessoa. E agora ela também transformou o pobre rapaz num demónio.

- Estaria muito melhor entre os mortos. Agora acabará da mesma forma que a sua pobre mãe.

Allegra não prestou atenção nenhuma aos comentários e permaneceu imóvel ao lado de Merrick, que se tinha ajoelhado ao lado do filho para lhe pegar ao colo.

- Calma, meu filho. Hamish, eu estou aqui. Diz-me o que tens.

O menino continuou a gemer e a contorcer-se, como se estivesse a sofrer uma dor insuportável. Frenético, Merrick olhou para Allegra. O tom da sua voz era uma acusação.

- Disseste-me que estava curado.

- Eu fiz o que me pediu e fi-lo acordar do seu sono profundo.

- Isso não é suficiente - replicou Merrick. Então, agarrou-a violentamente pelo pulso e fê-la ajoelhar-se ao seu lado. - Vais descobrir o que se passa com o meu filho, mulher, e vais fazê-lo agora mesmo!

Allegra sentiu a picada da humilhação ao reparar que todos fechavam o círculo à sua volta, ansiosos por ver como punha em prática a sua magia. De repente, lembrou-se de quando era menina e teve que ouvir os murmúrios de uma multidão zangada quando, inocentemente, salvou um rapaz de se afogar.

- Primeiro, tem que mandar toda a gente embora.

- Atreves-te a dar-me ordens? - replicou Merrick, cheio de fúria. No entanto, rapidamente se deu conta de que não estava em posição de discutir com ela. - Senhora MacDonald, encarregue-se de que todos os criados entrem no castelo. Quanto a vós, primos, já não precisarei de vós hoje. Quando a mulher estiver pronta para partir, faço-vos saber isso.

- Penso que é melhor ficarmos - respondeu Mordred.

Desmond assentiu.

- Não - insistiu Merrick. - Ide-vos embora agora mesmo. Ordeno-vos isso.

Mordred estava prestes a protestar quando viu uma expressão gélida nos olhos do primo. Depois de lançar um último olhar a Allegra, voltou-se e regressou ao castelo acompanhado de Desmond.

Quando estavam sozinhos, Allegra tirou a capa e tocou nas têmporas de Hamish com as pontas dos dedos. De imediato, as convulsões violentas cessaram e ficou tão imóvel como se estivesse morto. Então, a jovem fechou os olhos e concentrou-se.

Franziu o sobrolho e tentou encontrar uma forma de atravessar as brumas que nublavam a mente do pequeno.

- Aqui há muita escuridão.

- E qual é a causa disso? - perguntou Merrick. - Medo? Ira?

- Acho que medo, embora esteja misturado com muitas outras emoções. Ira... e vergonha.

- Vergonha? E de que tem que se envergonhar o meu filho?

- Não tenho a certeza, mas penso que se envergonhou de fugir do seu próprio medo.

Sente-se culpado porque não ficou e o enfrentou como faria um guerreiro - disse Allegra, abrindo os olhos. - Quando olha para vossa senhoria, vê o rosto da mãe. No entanto, ele também é filho do seu pai. Admira-o muito e quer imitá-lo.

- Sei que te dei a minha palavra de honra que te devolveria a casa se tu me devolvesses o meu filho. Se insistires em partir, não terei outro remédio senão cumprir a minha palavra, mas gostava de te pedir um favor. Ficava-te muito agradecido se ficasses e ajudasses o meu filho a lembrar-se do seu medo, para que consiga enfrentá-lo e seguir com a sua vida em frente - sussurrou, quase a suplicar-lhe.

Allegra compreendeu o quanto significava para um homem tão orgulhoso pedir-lhe uma coisa dessas. Como senhor do castelo, podia dar-lhe uma ordem e ela não teria outro remédio senão obedecer. Afinal de contas, ela era sua prisioneira. Não havia ninguém no castelo nem na povoação que a ajudasse sem o consentimento do senhor.

- E se, ao ajudar Hamish a lembrar-se do seu medo, o puser em perigo?

- Ele e eu enfrentaremos qualquer perigo. Quero recuperar o meu filho e que fique bem.

De repente, Allegra captou um ligeiro movimento atrás de Merrick e viu uma luz suave transformar-se na encantadora mulher loira que tinha visto ao lado da cama de Hamish. A mulher estendia as mãos, como se lhe estivesse a implorar que ficasse. Rapidamente, a imagem desapareceu.

Que se teria passado naquele castelo para fazer com que aquela mulher vivesse mais para além do tempo que lhe estava destinado? Que assunto estranho estava ainda por resolver no castelo?

Allegra permaneceu em silêncio durante um instante antes de responder.

- Por muito que tenha saudades do meu lar no Reino Mítico, não posso partir deixando este menino indefeso perante esses medos desconhecidos sem fazer o que puder para o ajudar. Não tenho a certeza se conseguirei encontrar o caminho através do labirinto que ocupa a sua mente, porque, como já lhe disse, esse não é o meu dom. meu dom é curar, mas dou-lhe a minha palavra de que vou tentar.

Merrick estudou-a profundamente. A jovem viu que os seus olhos estavam cheios de compaixão.

- Serás obrigada a pagar o mesmo preço que antes?

- Sim. Não posso negar que o esforço me passará factura. Cada vez que uso o meu dom, tenho que pagar. Este esforço, com toda a certeza, irá debilitar-me, mas não me esgotará como antes. A viagem ao outro lado é o que requer mais esforço, muito mais que a viagem do passado ao presente.

- Está bem. Ocupar-me-ei de que seja preparado o quarto que há em frente ao de Hamish para ti. Poderás pedir à senhora MacDonald o que precisares. Tanto comida como ervas; seja o que for, ser-te-á proporcionado.

Merrick levantou-se com o menino ao colo e dirigiu-se ao castelo seguido de Allegra. Quando ela levantou os olhos, viu que a governanta e o resto dos criados os observavam com ansiedade das portas e janelas.

O que se tinha passado? Embora não tivesse culpa do que tinha acontecido ao pequeno, havia muitos que a culpariam se acontecesse alguma coisa de mal a Hamish. Estariam a observá-la para ver se, na verdade, era uma bruxa. Até a culpariam de coisas que estavam fora do seu alcance, como o mau tempo, as pragas ou a crueldade dos outros. Uma vez mais, pôs-se em perigo por alguém que quase não conhecia e tudo por causa do seu coração terno e piedoso.

Será que não ia aprender nunca?

 

Conforme entravam no castelo, Merrick começou a dar ordens aos gritos aos seus criados, que se apressaram a cumpri-las. Allegra seguiu Merrick até ao quarto de Hamish e observou como tapava o pequeno com peles. A jovem usou rapidamente o que sobrava das ervas que lhe tinham levado na noite anterior, moeu-as e atirou-as para dentro de um copo com água quente. Quando a infusão ficou pronta, aproximou o copo dos lábios do pequeno e ajudou-o a beber.

- Por agora, milorde - disse, quando acabou

- creio que deveríamos deixar dormir o seu filho. Fez uma viagem longa e exaustiva e tanto a mente como o corpo continuam esgotados.

Merrick caiu de joelhos e pegou na mão do filho entre as suas.

- Parte-me o coração vê-lo tão atormentado.

- Sim - respondeu Allegra, ajoelhando-se também do outro lado da cama, - mas o sono é muito reparador, tanto para a mente como para o corpo. Suspeito que, quando acordar, não se lembrará de nada do que aconteceu no jardim.

- Se não se lembrar de nada, como poderás ajudá-lo?

- Todos temos recordações que esquecemos, milorde, mas a nossa mente tem-nas guardadas no mais profundo do nosso ser. Algumas vezes, quando menos esperamos, as recordações regressam à superfície. Primeiro, tenho que ganhar a confiança de Hamish. Depois, talvez consiga encontrar o caminho através das brumas da sua mente até encontrar o que o perturba.

- Milorde - disse a governanta, da porta, contemplando a cena com ansiedade, - como me pediu, o quarto em frente a este está preparado.

- Obrigado, senhora MacDonald. De que é que precisas? - perguntou Merrick a Allegra.

- Tenho que enviar uma missiva à minha família para lhes garantir que estou bem e que já não estou aqui contra a minha vontade. Pedirá a um dos seus homens que vá entregá-la?

- Por que não podes apaziguar os temores da tua família simplesmente com um pensamento? - replicou ele, sorrindo pela primeira vez desde aquela manhã.

- Isso só é possível em momentos de perigo extremo. Sei que a minha família sentiu a vossa presença no nosso reino e que se uniu para me proteger contra a sua força.

- Por isso se produziu aquela tempestade sobre as águas do lago? Foram elas que a enviaram?

- Sim, e podiam ter feito mais, mas receavam magoar-me também. O facto de se recusar a soltar-me diminuiu os seus poderes.

- Que sorte a minha! Está bem. Escreve a tua carta e farei com que um dos meus homens a leve a tua casa.

- Não será preciso arriscar a vida atravessando o Lago Encantado. Se a puser num saco de pelica, atravessará o lago até à outra margem, onde a minha família a encontrará.

- Tantos segredos - replicou Merrick, com um sorriso. - Isso significa que estás a começar a confiar em mim?

- Tanto como vossa senhoria confia em mim, milorde.

- És uma mulher muito inteligente - replicou ele, soltando uma gargalhada. - Nunca conheci ninguém como tu.

- E o senhor é um homem muito duro, mas acredito que também justo - disse Allegra, conforme se punha de pé e sacudia a saia. Vou precisar de um pergaminho e de uma pena. A minha família já está preocupada há muito tempo.

Merrick olhou para a governanta, que continuava a observar a cena da porta, e para a criada, Mara, que estava ao seu lado.

- Dêem-lhe tudo o que precisar - disse.

Quando a anciã deu as ordens à criada, Allegra olhou para Merrick. Observou que ele estava a olhar para ela de um modo que lhe provocou um rubor vivo nas faces. Apesar da distância que havia entre eles, sentia-o quase como se lhe estivesse a tocar. Quase que conseguia saborear os seus lábios...

"Um pouco mais da sua magia", pensou, enquanto seguia a governanta até ao quarto. Aquele homem tinha poderes muito estranhos.

Merrick permaneceu ao lado da cama do filho. Se fosse sincero consigo mesmo, tinha que admitir que, no pátio do castelo, tinha experimentado um momento de tristeza quando a jovem estava prestes a partir. Então, num abrir e fechar de olhos, como se lhe estivesse a ser concedido o seu desejo, tinha aparecido uma razão de peso para que ficasse.

Devia permanecer alerta. Havia qualquer coisa naquela bruxa que lhe tocava num ponto sensível. Seria muito fácil enganar a si mesmo e acreditar que ela era simplesmente uma jovem doce e inocente. No entanto, qualquer mulher possuidora de uma magia tão potente como a sua poderia persuadir um homem a acreditar em qualquer coisa. Podia ser que, muito em breve, Merrick começasse a acreditar que as bruxas não tinham interesse nenhum em seduzir os homens mortais, embora toda a gente soubesse que não era assim.

Não tinha intenção alguma de se tornar vítima dos seus encantos. A sua única preocupação seria Hamish. Não descansaria até que o rapaz estivesse bom e fosse feliz outra vez.

Fervorosamente, desejou que os poderes de cura daquela mulher pudessem curar a mente tal como o corpo, porque o estado do seu filho era muito preocupante. Nos cantos mais escondidos e escuros da mente, albergava o temor terrível de que Hamish tivesse herdado a loucura da mãe.

Allegra entrou em bicos de pés no quarto do pequeno e ajoelhou-se ao lado da cama. Ouviu atentamente e confirmou que o menino respirava suave e constantemente. Como parecia dormir calmamente, levantou-se e saiu do quarto. Pela manhã, tinha a intenção de se dirigir ao bosque mais próximo para apanhar as plantas e as ervas que precisaria para a cura.

No corredor, as velas iluminavam tenuemente o espaço ao mesmo tempo que vertiam cera sobre o chão e desenhavam sombras estranhas nas paredes. Quando estava prestes a passar à frente da escada, parou bruscamente. O que a fez olhar por cima do ombro não foi tanto o som, mas sim o pressentimento. Parecia-lhe que alguém estava a segui-la. Antes de se dar conta, sentiu que alguém a empurrava bruscamente por trás e a fazia cair escada abaixo. Durante um instante, ficou deitada sobre o chão duro de madeira, sentindo que tudo andava à roda. À medida que a cabeça foi ficando mais clara, tocou-se e sentiu que lhe estava a começar a nascer um galo. Sentou-se e olhou à sua volta, mas não viu ninguém.

Durante uns minutos, permaneceu sentada até que teve a certeza de que se podia pôr em pé. Com um suspiro suave de resignação, pôs-se de pé e subiu de novo as escadas para se dirigir ao seu quarto.

Enquanto se metia na cama, soube, sem dúvida nenhuma, que a sua queda não tinha sido nenhum acidente. Alguém lhe estava a deixar muito claro que não era bem-vinda no castelo de Berkshire. Aquele acto de crueldade deliberado só reafirmou ainda mais a sua resolução de ficar e ajudar o menino. Pressentia que ali havia muito mais do que tinha previsto.

- O que é isto? - perguntou Allegra, quando a senhora MacDonald entrou no seu quarto seguida de uma procissão de criadas.

Uma delas levava uma tina suficientemente profunda para poder sentar-se. Depois de a colocar sobre várias capas de tecido, a rapariga foi-se embora enquanto as outras mulheres esvaziavam baldes de água quente na tina até esta ficar cheia. Quando a tarefa estava terminada, olharam todas à volta com ansiedade, como se estivessem em perigo mortal. Pareciam desejosas de sair do quarto da bruxa.

A criada que estava acostumada a tratar de Hamish entrou no quarto com um montão de vestidos e acessórios femininos.

A governanta olhou com uma certa inquietação para as ervas que Allegra tinha apanhado no jardim e no campo mais próximo.

Havia tantas que o quarto estava perfumado com a sua fragrância.

- O meu senhor ordenou-me que me encarregasse de lhe arranjar estes vestidos. Mara é uma criada preguiçosa e mal-humorada, mas também é uma costureira com muito talento. Ela encarregar-se-á de fazer isso.

- Eu sou apenas uma feiticeira - replicou Allegra. - Que necessidade tenho eu de vestidos deslumbrantes?

- O senhor ordenou que se junte a ele esta noite no salão de festas para jantar.

- Compreendo - disse a jovem, a olhar para os vestidos e para os chinelos com desinteresse. - Escolha por mim, senhora MacDonald. Agora tenho que preparar uma poção para o menino.

Enquanto ela se ocupava a moer as folhas de várias ervas num almofariz, a governanta escolheu um belo vestido da cor da urze.

- Creio que este servirá, Mara. Este ficará muito bem à menina. Se for demasiado grande para ela, usa uma destas fitas para lhe ajustar a cintura - disse a anciã, depois de lhe entregar um xaile de cor marfim, entrelaçado com fitas de cor malva. - E penso que esse xaile servirá para a agasalhar do frio naquela sala tão grande.

A senhora MacDonald viu que a criada, cautelosa, olhava de esguelha para a poção que Allegra estava a preparar. Percebia o seu medo e receio, dado que ela mesma os sentia, mas o senhor do castelo tinha decidido confiar naquela feiticeira e, pelo que a anciã tinha visto, Allegra Drummond parecia muito interessada em curar o menino.

Agarrou a criada pelo braço e sacudiu-a.

- Escuta, Mara. Atenderás todas as necessidades da menina ou o senhor saberá da tua atitude. Entendido?

- Sim, senhora MacDonald.

- Bom. Além disso, penteia também a menina, se for possível - comentou a mulher, enquanto olhava para a cabeleira abundante que caía sobre as costas de Allegra. Sabia que seria necessária mais habilidade que a que Mara possuía para domar aquele mar de fogo. No entanto, a criada faria o que lhe tinha pedido e qualquer coisa era melhor que o aspecto que a feiticeira tinha naquele momento, pois parecia-se mais com uma criatura selvagem que acabava de sair dos bosques das Terras Altas.

A senhora MacDonald saiu do quarto, com a mente ocupada pelas dúzias de tarefas que requeriam a sua atenção.

Quando Allegra acabou o que estava a fazer às ervas, olhou para a criada e estudou-a cuidadosamente.

- Por onde começamos, Mara?

- Se lhe parecer bem, pelo banho, milady.

- Sim, acho que tens razão - replicou Allegra. Tirou o vestido e meteu-se na água quente da tina, afundando-se nela presa por puro deleite.

- Deram-me ordens para lhe lavar o cabelo, milady - disse Mara, a vários passos de distância, enquanto olhava para ela com desdém.

- Muito bem. Nesse caso, não queremos desobedecer a uma ordem, não é verdade? disse. Então, fechou os olhos e mergulhou na água, molhando assim completamente o cabelo antes de voltar à superfície. - Podes começar a lavar, Mara.

A criada começou a aplicar o sabão e a esfregar o cabelo de Allegra, afastando com muito cuidado as madeixas enquanto o fazia.

- Já os encontraste? - perguntou-lhe Allegra, sem conseguir resistir.

- O quê?

- Os chifres.

- Os chifres, milady?

- Não era disso que estavas à procura, Mara?

- Sim, milady.

- Não tens nada a temer - replicou Allegra, depois de soltar uma gargalhada. - Não há chifres, nem asas. Não sou nenhuma santa, nem nenhuma pecadora, mas apenas uma mulher, como tu.

- Como eu? - repetiu a criada, não muito convencida. - Importa-se de se enxaguar, milady? - acrescentou, um pouco zangada.

Allegra mergulhou de novo na água e esfregou o cabelo até estar enxaguado. Quando saiu da tina, viu que a criada olhava para ela de cima a baixo. Parecia que não havia maneira de a jovem ter a certeza até ver por si mesma que, efectivamente, não era mais que uma simples mulher.

Allegra pôs-se em frente à lareira, enquanto a criada a ajudava a vestir uma camisa, a combinação, as meias e os chinelos. Quando já estava vestida, sentou-se para que a criada lhe pudesse escovar o cabelo. Pareceu que tinha passado muito tempo até Mara ficar satisfeita.

Por fim, a rapariga levou Allegra até a um espelho.

- Olhe-se, milady.

Allegra ficou surpreendida. À excepção do reflexo no Lago Encantado, nunca se tinha visto como a viam os outros e muito menos com tanta clareza.

Passou as mãos pela saia e em seguida levou-as ao cabelo.

- És uma bruxa, Mara?

- Milady?

- Tenho a certeza de que és capaz de fazer magia com as mãos. Como se explica que tenhas transformado um nabo numa rosa?

- Que coisas mais estranhas diz, milady! exclamou a rapariga, olhando para ela com uma certa suspeita. - Já alguma vez tinha visto a sua própria beleza?

- Não tenho interesse nenhum no meu aspecto - replicou Allegra, voltando-se. - A minha mãe disse-me que a única coisa que importa é o que há nos nossos corações. Agora acrescentou, depois de pegar numa terrina de ervas moídas, - tenho que me ir embora. Já perdi tempo suficiente em prazeres. Está na hora de ir ver como está Hamish.

- Eu posso levá-la, milady - disse a criada, tentando agarrar na terrina.

- Não. Eu mesma irei.

Com o sobrolho franzido, Mara pôs-lhe o xaile sobre os ombros e dirigiu-se à porta.

- É melhor não demorar muito. O senhor janta exactamente ao pôr-do-sol.

- Lá estarei. Obrigada, Mara.

A criada pareceu muito surpreendida pela gratidão de Allegra. Nunca ninguém lhe tinha agradecido por realizar as suas tarefas.

Quando Allegra se foi embora, a jovem criada apanhou o vestido que Allegra tirara e estudou as fibras douradas e os pontos delicados e uniformes. Era um tecido tão formoso, tão suave e delicado como se tivesse sido tecido pelos anjos... ou pelas bruxas.

Aquele pensamento fez com que Mara ficasse imóvel. Esperava algo muito diferente da rapariga simples e simpática que se comportara com ela com tanta naturalidade. Apesar de tudo, era bom lembrar-se que aquela dama a quem tinha que servir não era como as outras. Era esperta, astuta e engenhosa. No entanto, não era a única.

- Então, Merrick? Tu sobreviveste ao Reino Mítico - disse um guerreiro do grupo que estava ao lado da lareira, apreciando a sua cerveja.

- Sim - respondeu ele, observando a multidão que se tinha reunido no salão de festas.

- Foi como nos contaram? Há monstros no lago e brumas malignas que podem cegar um homem?

- Eu não vi nenhuma bruma, mas havia um dragão. E uma dúzia ou mais de guerreiros.

- Estás a dizer que sozinho conseguiste matar um dragão e uma dúzia de homens armados?

- Não estava a pensar na minha própria segurança, mas no bem de Hamish. E, como podem ver, continuo vivo - respondeu Merrick enquanto olhava para um grupo de mulheres do povo, muitas das quais não voltara a ver desde que tinha enterrado a sua esposa. - Vejo que esta noite vêm acompanhados das vossas esposas.

- Os teus primos asseguraram-nos que seriam bem-vindas. As nossas mulheres não queriam perder a oportunidade de ver uma verdadeira bruxa - comentou um dos homens, depois de soltar uma gargalhada.

- Acredito que não a chamarás assim, Malcolm - atacou Merrick, franzindo o sobrolho.

- Ouvi dizer que tirou Hamish do seu sono profundo - prosseguiu o homem, como se não tivesse ouvido nada.

-Sim.

- E que agora está possuído.

- Simplesmente caiu no jardim.

- Ouvimos dizer que lhe deu um ataque.

- O rapaz ainda continua muito fraco e... Merrick interrompeu o seu discurso ao ver

que chegava Allegra. Durante um momento, a única coisa que conseguiu ver foi a inclinação orgulhosa da sua cabeça enquanto inspeccionava todos os presentes. Tinha o cabelo entrelaçado com fitas e apanhado para um lado, de modo que este lhe caía sobre o peito. O vestido, da cor da urze, parecia tingir-lhe as faces de um rubor que a favorecia.

Ao seu lado estava Hamish. O menino, agarrado à mão da jovem, parecia estar completamente apavorado.

Mordred seguiu a direcção do olhar de Merrick e escarneceu:

- A bruxa roubou-te a voz, primo?

Merrick não prestou atenção às brincadeiras do primo e atravessou a sala com passos largos. Ao chegar ao lado de Hamish, pegou-lhe ao colo.

- Sentes-te com força suficiente para jantar connosco, filho?

- Sim, pai. A feiticeira disse-me que estive a dormir grande parte do dia. Agora, sinto-me muito descansado.

- Fico contente, Hamish - disse Merrick. Antes de se voltar para olhar para Allegra, depositou um beijo na face do filho. - Vejo que a senhora MacDonald encontrou qualquer coisa para vestires.

- Sim. Tenho que o felicitar. Foi um plano muito astucioso.

- Um plano muito astucioso? Não entendo a que te referes.

Allegra observou as mulheres, que tapavam a boca com as mãos para cochichar com as que estavam ao seu lado, e os homens, que olhavam para ela com franca curiosidade.

- Agora percebo por que insistiu em que me juntasse a vós no salão de festas, milorde.

- O que é que percebes?

- Sim, devia ter-me dado conta do que estava a tramar - replicou, erguendo um pouco mais a cabeça e as costas. - Pela ansiedade que se reflecte nos rostos dos seus convidados, vejo que vou ser o entretenimento do serão desta noite.

 

A expressão atónita de Merrick transformou-se em desaprovação.

- Mulher, enganas-te. Não é o que parece...

Antes que pudesse acabar a frase, a governanta entrou para anunciar que todos deviam tomar os seus lugares para que os criados começassem a servir o jantar.

- Já sei o quanto vossa senhoria insiste em jantar exactamente ao pôr-do-sol - disse a mulher, sorrindo-lhe. - Não está contente por ver o seu filho levantado?

Merrick engoliu a sua própria frustração pela chegada inoportuna da governanta. Na verdade, não devia nenhuma desculpa à feiticeira.

- Sim, senhora MacDonald - disse.

- Nesse caso, milorde, quando se sentar no lugar de honra, começaremos a servir o jantar. Penso que esta noite estará de acordo comigo em que a cozinheira se superou em honra do seu filho, por ter acordado do seu sono.

Enquanto Merrick levava o filho por entre as mesas, ouviu os sussurros e as gargalhadas contidas dirigidas à mulher que avançava atrás deles. Havia quase uma sensação evidente de medo e excitação entre os convidados do jantar.

- Achas que fará um feitiço?

- Talvez te transforme num sapo, Duncan.

Aquele comentário provocou muitas gargalhadas. Duas mulheres da povoação, conhecidas pelo seu gosto pela bisbilhotice, riam enquanto tapavam a boca.

- Não parece uma bruxa.

- E que aspecto tem uma bruxa? Já alguma vez viste alguma, Lisa?

- Não, mas mexe-se como uma bruxa. Vês? Sem nenhum esforço. É como se estivesse a flutuar.

- Sim. E olha para as mãos. Tem os dedos longos e afiados. No entanto, com um estalo desses dedos, é capaz de fazer um feitiço de imagens escuras e aterradoras.

- E por que não? As bruxas estão próximas do diabo.

Merrick compreendia aqueles comentários, já que ele era culpado dos mesmos temores ridículos. No entanto, muitas das suas noções desvaneceram-se após conhecer a mulher que havia por trás do mito. Por isso, magoava-o saber que Allegra era submetida a um tratamento tão cruel por parte do seu próprio povo. Quer fossem empurrados pelo medo quer pela ignorância, tinham que compreender que as suas palavras eram dolorosas para quem as ouvisse.

Quando alcançaram a mesa principal, Mordred e Desmond já estavam à espera deles. Embora cumprimentassem Hamish com entusiasmo, fizeram-no com mais contenção com Allegra. Parecia que eles também tinham reservas sobre a sua convidada.

Em vez de se sentar no seu lugar à mesa, Merrick pediu a todos que ficassem em silêncio. Os convidados calaram-se e os criados pararam o seu trabalho, surpreendidos pela reacção do seu senhor.

- É muito gratificante para mim ver tantos amigos que vieram aqui esta noite para celebrar o regresso do meu filho das portas da morte. Agrada-me também que tenham vindo para agradecer à mulher que o curou.

Mandou Allegra e o filho sentarem-se e, a seguir, sentou-se do outro lado do pequeno.

Então, indicou aos criados que continuassem a servir o jantar e a encher os copos. De imediato, os rumores voltaram a reatar-se. Os convidados comentavam o facto de lorde MacAndrew ter agradecido publicamente à bruxa.

- Achas que o enfeitiçou?

- Por que não? É o que se espera de alguém da sua índole.

- Garanto-te que é perigosa - dizia uma anciã ao marido enquanto estudava o modo como Allegra sorria para Hamish. - Não olhes para ela nos olhos, Rupert, ou também te roubará a tua vontade.

- Garanto-te que ficaria encantado de me submeter aos seus desejos - comentou Rupert para um dos cavalheiros, - desde que sorrisse para mim daquele modo doce.

- Eu estava a pensar o mesmo - replicou o visado, entre gargalhadas. - É uma bruxa muito graciosa.

Enquanto os dois homens sorriam, as suas esposas não paravam de observar Allegra como um predador a olhar para a presa que vai atacar.

- Pelo que sabemos - disse uma, - podia ser uma bruxa velha e feia que assumiu o aspecto de uma donzela jovem e formosa para seduzir as suas vítimas.

- Se essa mulher for velha e feia, eu ficaria encantado de me tornar um avozinho sem dentes - replicou o marido.

Este comentário fez com que todos os homens desatassem a rir e as damas ficassem completamente furiosas.

- E, então, Hamish - disse Mordred, depois de beber um gole de cerveja e observar o seu primo. - Sentes-te descansado?

- Sim - respondeu o rapaz, depois de lançar um sorriso ao pai. - Dei à senhora MacDonald a minha palavra de honra de que comeria mais do que comi ao pequeno-almoço hoje de manhã. Ela disse-me que tinha comido menos que um passarinho.

- Demora tempo até que as pessoas recuperem o apetite depois de estarem doentes afirmou Merrick, observando o filho também com um sorriso. - Tem calma, filho.

- Mas já voltou, pai - explicou Hamish, a olhar para Allegra. - A poção que ela me obrigou a beber deu-me muita fome.

- Fico contente - disse ela.

- Uma poção? - perguntou Merrick, entreabrindo os olhos.

- Apenas uma infusão de ervas.

- Que ervas? - atacou Merrick.

- Genciana, hortelã e camomila. São todas curativas e calmantes e devem fazer com que Hamish durma esta noite sem ter pesadelos.

Enquanto falava, Allegra agarrou numa coxa de ave de uma bandeja e cortou vários pedaços, que pôs no prato do rapaz juntamente com um pouco de verdura.

Mordred observou como o pequeno comia tudo.

- Se estivesse no teu lugar, teria cuidado, rapaz. Depois de tanto tempo sem comeres, vais ficar doente com tanta comida.

- Devo preocupar-me, feiticeira? - perguntou o menino a Allegra.

- Não, Hamish. Não nos excederemos, mas precisas de comida para recuperares as forças.

Ela cortou-lhe várias vezes pedaços de carne de ave e em todas o menino comeu tudo o que lhe dava. Finalmente, o pequeno dirigiu-se a ela com um sorriso.

- Dás-me agora a minha recompensa?

- É claro.

Allegra partiu metade de uma bolacha e cobriu-a com mel antes de a dar ao pequeno. Enquanto Hamish punha o primeiro pedaço na boca, Merrick olhou com uma expressão acusadora para Allegra por cima da cabeça do pequeno.

- Chantageaste-o com mel?

- Onde está o mal, milorde?

- Como sabias que Hamish adora bolachas cobertas de mel? - perguntou-lhe ele, franzindo o sobrolho.

- Por acaso não gostam todas as crianças de doces, milorde? - replicou ela.

Contra a sua vontade, Merrick assentiu e começou a comer, embora daquela vez fosse ele quem tivesse pouco apetite. Não havia outro remédio senão confiar naquela mulher, embora o pensamento não fosse nada tranquilizador. Apesar do conhecimento que tinha das ervas e de ter feito com que Hamish acordasse, perturbava-o a facilidade com que parecia passar de uma mulher normal a bruxa. Tinha lido a mente do rapaz. Apostava que sim. Provavelmente sabia coisas sobre o pequeno que nem sequer o próprio Merrick sabia.

Incomodava-o, mas não tinha outro remédio senão confiar nela. Precisava dela desesperadamente. Custava-lhe muito a ter que confiar em qualquer pessoa, mas especialmente naquela bruxa.

Quando o silêncio abriu caminho entre eles, Allegra sentiu um calafrio. Ali estava de novo. Muito perto. Possivelmente naquela mesma mesa. A escuridão. A maldade. Olhou para Merrick e deu-se conta de que ele a contemplava lançando faíscas pelos olhos enquanto Mara lhe servia a comida. De repente, Mordred dirigiu-se a ela.

- O que achas do castelo de Berkshire? Alguma vez tinhas visto uma coisa tão grandiosa?

- Parece-me impressionante - respondeu Allegra, tentando libertar-se dos seus pensamentos escuros, - embora não tenha tido muitas oportunidades de ver mais do que o quarto de Hamish e o meu.

- Tenho a certeza de que nos próximos dias o verás na sua totalidade e também a povoação. Certamente, primo, há rumores de que a nova rainha de Inglaterra acabará na Torre como a sua mãe.

- Não acredito - disse Allegra. - Embora consiga pressentir que Elizabeth viverá muito tempo, tais coisas não nos importam a nós, que vivemos no Reino Mítico. O nosso isolamento protege-nos do mundo que há para além das nossas fronteiras.

- Lamentarás tanta inocência se os ingleses decidirem invadir o teu reino pacífico - predisse Merrick, com voz profunda.

- E por que haviam de querer fazê-lo? Não ternos nada que ninguém queira.

- Se acreditas nisso, és mais inocente do que pareces. Os ingleses não precisam de nenhuma razão para invadir, apenas do prazer que obtêm ao matar os que são mais fracos que eles mesmos.

- Sim, ouvi falar de homens que matam por puro prazer - sussurrou Allegra, empalidecendo subitamente. - Levam a escuridão nas suas almas.

- Pergunto-me que dirias a todos os homens que há nesta sala que tomaram as vidas de outros homens no campo de batalha. Eu mesmo, para começar. Deveria ser julgado com dureza por isso?

- Vossa senhoria é um guerreiro, milorde respondeu Allegra, depois de escolher com muito cuidado as suas palavras, consciente de que o filho de Merrick estava a ouvir. - O seu empenho é nobre, dado que arrisca a sua própria vida para proteger os inocentes.

- E se o meu primo também se divertisse a matar? - perguntou-lhe Mordred, rindo-se.

Allegra viu que os olhos de Merrick se enchiam de ira. Deliberadamente, obrigou-se a olhar para ele nos olhos. O que observou neles aliviou-a profundamente.

- Não importa o que os outros pensem, milorde. O senhor faz o que faz pelo seu sentido de honra.

- Falas como se conhecesses o meu primo - replicou Mordred.

- Não. Poder-se-ia dizer que somos desconhecidos, mas algumas coisas são impossíveis de esconder.

- Que coisas? - quis saber Mordred. Allegra afastou o olhar. Tinha sentido um calafrio a percorrer-lhe as costas. Por que experimentava sensações tão desagradáveis com os próprios parentes de Merrick?

- Volto a perguntar - insistiu Mordred, com um tom gélido na voz. - Que coisas são impossíveis de esconder?

Allegra parou um momento para se recompor antes de responder.

- Um coração puro e um malvado.

- E tu afirmas poder ver o que se esconde no coração de um homem?

- Eu não afirmo nada.

Depois daquela resposta, embora outros fizessem algumas tentativas por reatar a conversa, esta interrompeu-se por completo. Allegra sentiu um alívio profundo quando, pouco depois, Mordred disse:

- Vamos, Desmond. Está na hora de irmos cumprimentar os convidados do nosso primo.

Allegra observou como se afastavam os dois irmãos. Mordred à frente, seguido de Desmond, que se comportava com ele como um menino dócil. Rapidamente perderam-se entre os comensais, que, depois de vários copos de cerveja, tinham começado a fazer muito barulho.

Um pouco mais tarde, Allegra viu que Mordred voltava a aproximar-se da mesa principal, seguido de um grupo de cavalheiros e das suas damas. O primo de Merrick dirigiu-se directamente a Allegra.

- Há várias pessoas entre os nossos convidados que padecem de doenças. Suplicam-te um favor.

Merrick franziu o sobrolho.

- Esta mulher é minha convidada, Mordred. Não esperava que te comportasses assim. Não vou consentir isto.

A expressão do rosto de Mordred não mudou, embora os olhos se escurecessem de ira contida.

- O meu pedido é sincero, primo. Além disso, afinal de contas, esta dama é uma feiticeira. Não te parece que estarias enganado se deixasses que todas estas pessoas boas sofressem desnecessariamente?

Allegra podia ver perfeitamente o desafio que havia nos olhos de Mordred e desejou poder escapar daquela armadilha. Pela bondade que havia no seu coração, tentava sempre ver o lado bom dos outros. Talvez aquele homem não soubesse o que lhe estava a pedir. Mordred não tinha consciência de que, por um breve entretenimento, ela teria que pagar um preço por aquele jogo. Aparentemente, também não se importava.

Examinou os rostos das pessoas que o acompanhavam e fixou-se no de um cavalheiro de certa idade que estava de um lado, como se se sentisse envergonhado de fazer parte daquele grupo. Antes de conseguir evitar, o seu coração teve piedade dele.

- Você, senhor, tem uma dor dolorosa na garganta.

Depois de se recuperar da surpresa, o cavalheiro concordou.

- É verdade. E é muito incómoda.

- Prepare uma infusão de tomilho. Tranquilizará e curará a sua garganta. De manhã, sentir-se-á muito melhor.

- Muito obrigado, minha senhora.

- Não tem de quê, senhor.

- Pode curar a minha dor de cabeça? - perguntou-lhe um homem calvo e gordinho, que se apoiava sobre um bastão.

- Como vai poder fazer esta mulher o que mais ninguém conseguiu? - atacou a esposa.

- Toda a vida sofreu de fortes dores de cabeça, embora pareça que pioraram nestes últimos anos.

Allegra tocou na testa do velho com as pontas dos dedos e franziu o sobrolho.

- Sim, percebo que lhe dói agora mesmo.

O velho assentiu conforme a esposa o agarrava pelo braço e o puxava com a esperança de o afastar dali.

Allegra fechou os olhos e deixou-se levar pela dor do homem. Minutos mais tarde, recuou, visivelmente esgotada. De imediato, o homem voltou-se para a mulher.

- Bendito seja o Senhor! A dor desapareceu. Desapareceu num abrir e fechar de olhos.

- A sério? - perguntou-lhe a mulher, assombrada. - Estás a falar a sério?

- Sim. Que Deus a abençoe, senhora. Pela primeira vez em muitos anos, a minha dor desapareceu.

Embora contra a sua vontade, a esposa fez uma leve inclinação de cabeça a Allegra.

- Obrigada.

Um murmúrio foi abrindo caminho através dos convidados que enchiam o salão de festas. Toda a gente se aproximou da mesa para ver melhor o que se passava.

- E eu? - perguntou a Allegra uma das cuscuvilheiras do povo. Era uma mulher bastante volumosa e usava uma roupa cor-de-rosa, com uma cintura mínima e o busto muito comprimido.

- Que é que lhe dói?

- Aqui - respondeu a mulher, tocando no peito. - A cada passo que dou, quase não consigo respirar.

- Quer mesmo que a cure? - perguntou-lhe Allegra, agarrando a mão da mulher entre as suas.

- Claro.

- Nesse caso, você deve fazer exactamente o que lhe digo. Quando chegar a casa esta noite, deve tirar o espartilho que tanto a aperta e alargar um pouco as costuras dos seus vestidos. Assim garanto-lhe que jamais voltará a ter problemas de respiração.

Ao ouvir aquelas palavras, todos os presentes começaram a rir às gargalhadas.

- Oh! É uma bruxa malvada e horrível! exclamou a mulher. Ao ouvir as gargalhadas dos outros, escandalizada, voltou-se e saiu a correr da sala de jantar seguida do marido.

Merrick limpou as lágrimas que as gargalhadas lhe tinham provocado e sussurrou umas palavras ao ouvido de Allegra.

- Tinha-me enganado ao preocupar-me contigo. Devia ter imaginado que não tolerarias disparates.

Allegra limitou-se a olhar para a multidão, perguntando-se se haveria mais alguém que se atrevesse a pô-la à prova.

Ao ver que Hamish continha um bocejo, Merrick pôs um braço à volta do filho.

- Estás cansado, meu filho?

- Sim, pai.

- Então, vou à procura da senhora MacDonald. Ela leva-te para a cama.

Allegra aproveitou a oportunidade para escapar.

- A governanta está demasiado ocupada para isso, milorde. Tem convidados de que ocupar-se. Se não tiver nada a objectar, eu adorava levar Hamish para o seu quarto e ficar com ele até adormecer.

- Então, não haverá mais poções?

- Esta noite não, embora não possa prometer nada para depois.

Merrick olhou para ela demorada e pensativamente antes de concordar.

- Muito bem. Podes tratar do meu filho.

Beijou o pequeno e observou como Hamish dava a mão a Allegra. Enquanto os dois se dispunham a sair do salão de festas, todos os presentes esticaram as cabeças para os ver partir. Mordred, por sua vez, esperou até os dois terem saído da sala. Então, virou-se de novo j"ara o primo.

- É melhor teres cuidado. O teu filho parece estar a ganhar muita afeição à feiticeira.

- E que mal tem isso, primo?

- Não sabes nada sobre ela. Era melhor desconfiares dessas poções que lhe dá.

- Tomarei cuidado, Mordred. Desmond aproximou-se um pouco mais deles. A voz tremia-lhe de inquietação.

- Que sabes dela, Merrick?

- Além do facto de que sabe entreter os convidados? - acrescentou Mordred, soltando uma gargalhada.

- Isso foi uma tolice da tua parte, Mordred

- atacou Merrick. - Não a trouxe aqui para que gozem com ela.

- Eu não queria fazer mal nenhum - replicou ele. - Desmond receia e desconfia da bruxa. Para o acalmar, diz-nos o que sabes dela, primo.

- Muito pouco - admitiu Merrick, - embora possa garantir que é a donzela mais inocente de toda a Escócia ou a mais astuta de todas as bruxas.

Todos ficaram em silêncio quando o bobo da povoação entrou no salão e começou a tocar alaúde. Os convidados ouviram atentamente enquanto falava nas suas canções de grandes batalhas, guerreiros valentes e donzelas apaixonadas. Embora Merrick estivesse habituado a gostar desse tipo de entretenimento, naquela noite não conseguia parar de pensar na feiticeira. Tinha visto no cansaço do pequeno Hamish a desculpa perfeita para se afastar daquele grupo de curiosos. No entanto, a verdade era que no momento em que tinha abandonado o salão de festas, o encanto da noite tinha desaparecido.

Naquele breve espaço de tempo, tinha começado a desejar estar ao seu lado, ouvir a sua voz e apreciar a musicalidade da sua gargalhada. Não era só o pequeno Hamish que tinha começado a sentir uma grande afeição pela feiticeira.

Ter consciência disso não lhe agradou nada. De facto, envergonhava-se de admitir que estava a cair de boa vontade no feitiço de uma mulher que sabia ser uma bruxa.

 

- Vais-me contar uma história, Allegra? perguntou-lhe Hamish, que já estava deitado num ninho quente de peles.

- Está bem. O que gostavas de ouvir?

- Fala-me sobre a tua casa.

- Eu vivo num lugar que se chama o Reino Mítico - disse ela enquanto se sentava sobre a cama do rapaz. - É um lugar maravilhoso, com um tempo ameno e umas cores tão vivas que cegam os olhos. A erva é frondosa e verde e as flores crescem tanto como um homem.

- Quem vive lá contigo?

- A minha mãe, a minha avó e as minhas duas irmãs, Gwenellen e Kylia, juntamente com uma doce anciã chamada Bessie e um troll que se chama Jeremy.

- Um troll? E que aspecto tem?

- Não é muito mais alto que tu e tem uns olhos pretos ferozes e um longo cabelo escuro que temos que lhe cortar com frequência para que não tropece ao caminhar.

- E que mais? - perguntou Jeremy, rindo-se.

- Usa um fraque e uma cartola muito alta que a minha mãe lhe fez. Embora possa meter medo a algumas pessoas, tem o coração tão puro como o de uma criança e um espírito amável e generoso.

- Não tens pai?

- Não, morreu quando as minhas irmãs e eu éramos muito pequenas.

- Como morreu?

- A defender a minha mãe.

- Alguém queria matá-la?

- Sim.

- Porquê? Era má?

- Não, mas alguns pensavam que sim. Há uma grande diferença, Hamish. Há pessoas que são verdadeiramente más e outras que toda a gente acredita que o são porque vivem a sua vida de um modo diferente. A minha mãe, tal como a sua, tem dons que fazem com que algumas pessoas tenham medo delas.

- Que tipo de dons?

- Ela conhece muito bem as plantas e as ervas curativas. Tem o poder de acalmar o vento e de provocar ondas sobre as águas do lago. E, quando uma das minhas irmãs ou eu estamos em perigo, pressente-o.

- Tu também tens esses poderes, Allegra?

- Tenho alguns, tal como as minhas irmãs.

- E o povo tem medo de ti?

- Algumas pessoas sim.

- Achas que te tentariam matar?

- Talvez.

- A minha mãe está morta - murmurou o pequeno, com voz triste.

- Sim, já ouvi dizer.

- Ela não era má, Allegra. Por que teve que morrer?

- Todos temos que morrer, Hamish.

- Achas que ela tinha algum dom?

- Tenho a certeza disso.

- Eu nunca a vi a acalmar o vento ou a provocar ondas sobre as águas do lago... Que tipo de dons achas que tinha?

- A minha mãe disse-me que o dom mais importante de todos é o amor.

- Sim... A minha mãe gostava muito de mim.

- Vês? Esse é um dom que ela te deu e que tu poderás passar aos teus.

- Sim? Como?

- Amando as pessoas tão aberta e generosamente como a tua mãe gostou de ti.

- Eu gosto muito do meu pai - disse o menino, depois de uma pequena pausa.

- Vês? Já estás a passar os dons de tua mãe a outros.

- Acreditas que amarei os outros do modo como amo a minha mãe e o meu pai?

- Talvez um dia, sim.

- Tu amas alguém, Allegra?

- Sim, claro. A minha avó, a minha mãe e as minhas irmãs.

- Não tens marido nem filhos? -Não.

- Talvez um dia, sim - afirmou ele, imitando-a.

- Oh, Hamish, és um menino adorável! exclamou Allegra, inclinando-se sobre ele para o beijar. - Agora - acrescentou, compondo-se para o agasalhar bem, - fecha os olhos. Eu ficarei aqui até adormeceres.

- Vais-me cantar uma canção?

- Se quiseres...

Allegra começou a cantar-lhe uma canção de embalar que a sua mãe lhe cantava com frequência quando era criança. A voz doce da jovem envolveu o pequeno, apaziguando os seus temores e incentivando-o a dormir.

Pouco depois, o menino adormeceu profundamente.

Ela levantou-se e esticou o vestido. Quando se virou, lançou uma exclamação de surpresa ao reparar que havia uma sombra ao lado da porta.

- Milorde - sussurrou.

Perguntou-se há quanto tempo estaria ali, observando-os e ouvindo. Por que não teria sentido ela a sua presença antes?

Quando tentou contorná-lo para abandonar o quarto, ele agarrou-a pelo braço e fê-la parar. A sua voz tinha um sentimento profundo.

- Nunca foi minha intenção humilhar-te publicamente ou exibir-te diante de desconhecidos por diversão - disse.

- Se vossa senhoria o diz.

- É verdade. Dou-te a minha palavra de honra. Só queria que estivesses presente no jantar pelo bem do meu filho.

- Muito bem. Acredito.

Uma vez mais, Allegra tentou abandonar o quarto e, de novo, ele impediu-a com um breve contacto. Só durou um instante, mas ele sentiu como o calor que emanava daquele vínculo traçava um atalho de fogo que se dirigia directamente ao seu interior.

- Que vou fazer contigo, Allegra?

- Fazer, milorde? - replicou ela, perguntando-se também pelas estranhas sensações que se agitavam no seu interior pelo modo como Merrick lhe tinha tocado.

- Se fosses uma simples mulher, podia confiar nos meus sentimentos, mas és uma... disse. Ao ver que ela franzia os lábios, engoliu a palavra odiada. - Rogo-te que me perdoes - acrescentou, fazendo-lhe uma ligeira reverência. - Estou a atrasar o teu descanso.

Allegra ergueu a cabeça e passou ao seu lado como uma rainha. Merrick tinha pensado que podia deixá-la passar, e assim teria sido se o seu génio não se tivesse apropriado do seu bom-senso. Precisamente quando chegava à porta do quarto, ele agarrou-a pelos ombros e obrigou-a a voltar-se.

- Enfeitiçaste-me? - perguntou-lhe, com o rosto cheio de ira.

- Enfeitiçá-lo? Que quer dizer?

- Eu acho que sim, que me enfeitiçaste. É a única explicação para o que me aconteceu.

- O que quer que lhe tenha acontecido, só a si diz respeito, milorde - atacou ela, sacudindo-se para se afastar dele.

- A sério? É isso que pensas? - replicou ele, avançando para ela e fazendo-a retroceder para o quarto até sentir uma parede nas suas costas. - Desde Catherine, não houve mulher cujo nome pudesse lembrar durante mais de uma noite. No entanto, tive que abandonar os meus convidados, porque não conseguia parar de pensar em ti. Porquê, Allegra?

- E por que me pergunta isso a mim? Não acreditará que eu posso controlar o seu comportamento, não é verdade?

-Oxalá pudesse...

Merrick estendeu uma mão e agarrou-lhe o pulso com força. Aquele foi o seu primeiro erro. Depois de lhe ter tocado, tornou-se impossível parar. Pôs-lhe a outra mão sobre os ombros, mas, em vez de a manter afastada, apertou-a contra o seu corpo.

- Tenho que voltar a saborear os teus lábios, Allegra.

-Não.

A rapariga tentou afastar-se dele, mas não era rival para a fortaleza de Merrick. Com um movimento rápido, ele imobilizou-a e esteve prestes a levantá-la do chão enquanto cobria a boca dela com a sua.

Havia carácter naquele beijo, tanto da parte dela como da dele. Tão apaixonado e potente como a palmada nas costas de um inimigo. Merrick deleitou-se com ele e permitiu-se saborear a mistura de paixões que estava há tanto tempo à espera. Sentiu que o desejo se apoderava dele, avivando ainda mais as chamas. Quando sentiu que o sangue se agitava nas têmporas, levantou a cabeça, incapaz de acreditar no que acabava de experimentar. A cabeça continuava às voltas e o seu corpo vibrava de necessidade. Como conseguia provocar-lhe uma jovenzinha tais sensações?

Allegra ficou imóvel e tentou acalmar a sua respiração agitada. Como conseguiria enfrentar o encanto daquele homem? Apenas tocando-a podia conseguir que se lhe desfizessem até os ossos, mas com um beijo conseguia transformar-lhe o sangue em fogo. Tinha o poder de lhe roubar a razão, de tal maneira que se tornava impossível opor-se a ele. No entanto, devia fazê-lo. Bruscamente, afastou a cabeça.

- Não tem qualquer direito a tomar tais liberdades. Vá-se embora imediatamente do meu quarto.

Em vez de responder, Merrick agarrou-a mais uma vez entre os seus braços, decidido a silenciar o seu protesto. Daquela vez, quando a beijou, suavizou as mãos que a agarravam pelos ombros e até mesmo o beijo.

Uma vez mais, saboreou a doçura que emanava de Allegra e não conseguiu resistir a beber dos seus lábios. Prolongou o beijo até que ela suspirou e, sem se dar conta, pôs-lhe os braços à volta da cintura e abraçou-se a ele.

O quarto estava às voltas ou era fruto da sua imaginação? O chão tinha-se aberto debaixo dos seus pés ou era simplesmente o seu corpo que estava a vibrar? Nem sabia nem lhe interessava. A única coisa que contava era aquele homem, aquele beijo, aquele momento absolutamente surpreendente.

Se tivesse continuado a tratá-la com arrogância, com carácter, teria resistido. No entanto, ser testemunha daquele lado tão terno de Merrick deixava-a completamente indefesa. Teve que se conter para não gemer de puro prazer pelos seus beijos.

Merrick sentiu a mudança que se produziu nela e aproveitou-se disso. Apesar da sua inocência, conseguia saborear o despertar do desejo. Sentia como a paixão se ia apoderando de Allegra, atraindo-o mais contra o seu corpo feminino. Mudou o ângulo do beijo e aprofundou-o. Então, agarrou nos braços da jovem e subiu-os até ao pescoço. Quando baixou as suas próprias mãos, acariciou-lhe suavemente as costas, deixando que os polegares encontrassem o volume doce dos seus seios.

Ao reparar que ela continha a respiração, acalmou-a com carícias suaves ao longo das costas, embora sem deixar de lhe devorar os lábios. Por fim, Allegra voltou a relaxar e permitiu que a tocasse à vontade.

Era absolutamente deliciosa. Reticente, mas ousada. Uma inocente sedutora. Uma bruxa que parecia desconhecer por completo o poder que tinha sobre ele.

Naquele momento, esse poder estava a conduzi-lo por atalhos muito perigosos. A onda de desejo surpreendeu-o por completo. A necessidade de a possuir fez com que o sangue lhe palpitasse com força nas veias. Um homem mais sábio saberia que devia afastar-se dela imediatamente, antes que os dois ultrapassassem os limites. Como podia ser sensato com uma mulher como aquela nos braços? Como podia pensar quando o sabor de Allegra o tinha embriagado de desejo?

Beijou-a durante um segundo mais e, então, reunindo todas as forças que lhe sobravam, levantou a cabeça e afastou-se dela.

Ouviu a jovem lançar um pequeno gemido de frustração e sentiu um certo prazer nisso. Talvez não tivesse sido o único que se tinha sentido perdido no momento. Recuou.

- Agora, vou deixar-te, tal como me ordenaste, para voltar para junto dos meus convidados.

Voltou-se e dirigiu-se às escadas. Pôs a mão no corrimão e sentiu como esta ainda vibrava por ter tocado em Allegra.

A jovem fechou a porta do quarto e apoiou-se contra ela, à espera que a fraqueza passasse. Então, apesar do quanto lhe tremiam as pernas, aproximou-se da cadeira que havia junto à lareira e sentou-se.

Cada vez que Merrick a tocava ou beijava, o encanto que exercia sobre ela era mais forte e o seu poder de resistência, muito mais fraco. Não tinha defesa contra isso. No entanto, o que mais a envergonhava era que não se importava.

Fechou os olhos e encostou a cabeça, perdida por completo nos seus pensamentos. Se Merrick não tivesse encontrado a força necessária para partir, teria permitido que ficasse, que tomasse todas as liberdades que quisesse. Estava a enfrentar forças que estavam para além do seu controlo. Era Merrick quem tinha o poder, e ela mostrava-se completamente indefesa contra ele.

No corredor escuro, uma sombra parou em frente à porta do quarto de Allegra. Era como receara. Merrick MacAndrew sentia-se atraído pela bruxa.

Outra complicação.

Aquilo da esposa tinha sido um assunto bastante simples. Era uma mulher fraca e fantasiosa. O filho não era muito melhor. Um rapaz tão pequeno podia desaparecer com muita facilidade. No entanto, aquela mulher tinha o poder e a magia do seu lado, forças muito poderosas.

Apesar de tudo, se a feiticeira fosse encontrada morta no próprio castelo, talvez na própria cama do seu senhor, alguém acreditaria nas suas afirmações de inocência?

Talvez fosse muito melhor que Merrick tivesse sobrevivido aos perigos do Reino Mítico e que tivesse regressado com a feiticeira. Assim ver-se-ia humilhado diante do seu povo e despojado de todo o seu poder antes de enfrentar o desafio mais importante.

No seu quarto, Allegra sentiu que uma sombra passava perto dela e que a deixava gelada. Levantou-se rapidamente e dirigiu-se à porta. Abriu-a e apareceu a escuridão, mas não conseguiu ver nada. No entanto, a sensação estranha persistia. A escuridão e a maldade reinavam naquele castelo.

Despiu-se rapidamente e meteu-se na cama, cobrindo-se completamente com as peles para combater o frio. Precisamente quando estava a começar a adormecer, sentiu que estava alguém no quarto. Quando se levantou rapidamente da cama e atravessou a toda a velocidade o quarto, ouviu passos. Agarrou num pau em chamas da lareira e levantou-o para enfrentar o intruso.

O quarto estava vazio.

Pôs-se a correr para a porta e foi até ao corredor, mas não viu nada. Voltou a deitar-se na cama, mas foi-lhe impossível dormir. Em parte devia-se ao facto de se sentir mal ali, no castelo de Berkshire, mas também se devia à cena que tinha protagonizado com Merrick MacAndrew.

Que ia fazer com aquele homem? Pior ainda, que podia fazer acerca daqueles sentimentos estranhos que a perturbavam tanto?

A magia de Merrick estava a derrotar a sua. Aquilo podia ser mortal, especialmente porque lhe dava a sensação de que havia alguém no castelo que lhe desejava muito mal.

Podia partir a qualquer momento. Já não era uma prisioneira entre os muros daquela fortaleza, mas, de certo modo, continuava a ser prisioneira de Merrick MacAndrew. De certo modo, ele tinha-se apropriado da sua vontade, conseguindo fazer com que abraçasse a sua causa e a do seu filho doce e inocente.

Se fosse mais sensata, levantaria uma barreira em torno do seu coração antes que fosse demasiado tarde. No entanto, tendo em conta como se comportava quando o senhor do castelo de Berkshire estava por perto, provavelmente era já demasiado tarde para isso.

 

- Bom dia - disse a governanta, ao ver Allegra a descer as escadas seguida do pequeno Hamish. - Onde vais com esse cesto no braço?

- Pensei que Hamish e eu podíamos ir passear pelo jardim e, se quiser andar um pouco mais, podíamos ir até aos prados apanhar mais ervas.

- Mara pode encarregar-se disso se lhe disseres o que precisas.

- Mara?

- Sim, ela conhece as ervas que se usam para cozinhar. Podia ir buscar-te o que precisas.

- Muito obrigada, senhora, mas acho que o ar fresco me dá energia e acredito que também fará bem a Hamish.

Ao lembrar-se do último passeio que o menino dera pelo jardim, a anciã não conseguiu esconder a sua preocupação.

- Não penso que seja sensato e, se o soubesse, o senhor também não acharia.

- Ficarei muito atenta ao menino, senhora MacDonald. Asseguro-lhe que não o perderei de vista.

A governanta olhou para ela com uma certa suspeita antes de mexer no cabelo do menino.

- Nesse caso, ide dar o vosso passeio. Quando regressarem, vou certificar-me de que a cozinheira tenha preparado a tua sopa e as tuas bolachas preferidas, Hamish.

O menino sorriu e agarrou-se à mão de Allegra enquanto avançavam para a saída. Allegra sentia os olhares hostis dos criados enquanto passavam. Parecia que ninguém estava disposto a confiar-lhe o filho do senhor do castelo. Na verdade, podia ser que a sua preocupação fosse mais por si mesmos. Consideravam-na o inimigo e tinham formado uma muralha para a manter no exterior.

Quando estavam no jardim, começaram a andar por um atalho de pedra, parando ocasionalmente para cheirar uma rosa ou para observar como os pássaros chapinhavam na fonte que havia no centro. Havia alguns bancos colocados entre as árvores e as flores.

- Oh, Hamish - disse Allegra. - Com um pouco de esforço, este lugar podia ser muito lindo.

- Era o lugar preferido da minha mãe. Às vezes lembro-me dela aqui sentada, à espera que o meu pai regressasse da povoação.

- É bom ter recordações agradáveis, não é verdade?

- Sim. Oxalá conseguisse lembrar-me de mais...

Allegra escolheu um banco de pedra que havia sob uma velha árvore que estendia os seus ramos como uma abóbada.

- Vamos sentar-nos aqui para desfrutar da vista - disse ela. Foi então que reparou na palidez do rapaz. - Estás cansado?

- Sim. Preciso de um momento para recuperar o fôlego.

- Muito bem. O tempo que passaste na cama deixou-te um pouco fraco, mas, quanto mais andares e brincares, mais forte te sentirás.

- Reza para que assim seja... Pergunto-me de que árvore caí - comentou o menino.

- Não te lembras?

- Não. Achas que alguma vez me vou lembrar?

- Com certeza que sim. Deves dar-te tempo, Hamish - recomendou ela, pondo-lhe um braço à volta dos ombros. - Muito em breve começarás a lembrar-te de muitas coisas.

Nesse instante viram que Merrick se dirigia a eles, acompanhado pelos primos.

Merrick franziu o sobrolho e obrigou-se a não olhar para o aspecto de Allegra, com o cabelo penteado pelo vento e as faces coradas pela luz do sol. Tinha passado a noite mais longa da sua vida, a pensar em como a tinha tido nos braços. Horas depois ainda conseguia saborear a doçura dos seus lábios. Tinha sido uma tortura estar a pensar nela ao mesmo tempo que se perguntava se ele teria ocupado também os pensamentos da jovem.

- Quando a senhora MacDonald me disse que estavas no jardim, fiquei muito preocupado, meu filho - disse ele, dirigindo-se a Hamish. - Não tenho a certeza de que o meu filho devesse estar aqui tão cedo - acrescentou, a olhar para Allegra.

- Sim - afirmou Mordred. - Já sabes o que lhe aconteceu da última vez que tentou dar um passeio pelo jardim.

Hamish levantou o olhar e protegeu os olhos dos raios de sol com uma mão.

- Que me aconteceu?

Antes que alguém pudesse impedi-lo, Mordred ajoelhou-se diante de Hamish.

- Perdeste a memória no jardim. Aconteceu quando estavas a passear com a senhora MacDonald.

- A memória? Ora! Parece haver tantas coisas de que não me consigo lembrar...

- Não interessa - disse Merrick, afastando Mordred do lado do pequeno para remexer no cabelo do menino do modo como a governanta estava habituada a fazer. - A tua feiticeira ajudou-te a superá-lo.

Mordred pôs-se de pé e sorriu para Allegra da forma mais encantadora.

- És uma mulher surpreendente. Aqueles truques que fizeste ontem à noite para os convidados do meu primo foram muito divertidos.

- Eram truques, feiticeira? - perguntou-lhe o menino.

- Não, não eram truques, Hamish - respondeu Allegra. Então, observou Mordred com um olhar gélido. - Mas parece que o divertiram.

- Claro que sim - replicou Mordred. Então, pegou na mão do pequeno. - Dado que saíste para respirar ar puro, por que não vamos caminhar um pouco, rapaz?

- A feiticeira prometeu não se afastar do meu lado - respondeu o pequeno. - Vens connosco, Allegra?

- Claro que sim - respondeu ela. - Desde que prometas avisar-me quando estiveres cansado.

Allegra levantou-se e seguiu Merrick e Mordred, que tinham Hamish entre ambos. Embora Desmond caminhasse ao seu lado, tão alto como um gigante, não disse nada conforme avançavam por um atalho que levava a uma parte do jardim mais afastada do castelo.

Quando viu um arbusto de genciana, Allegra inclinou-se para tirar um pouco e atirou-a para o cesto.

- Estás a planear uma poção? - perguntou-lhe Mordred.

- Talvez.

- Para que é boa essa planta? - perguntou-lhe Merrick.

- É calmante e levanta os ânimos aos que a tomam em infusão ou até se a usarem à volta do pulso.

- Será que tu precisas dela?

- Não, eu não, mas pensei que podia aliviar os nervos da senhora MacDonald.

- Entendo. Tens intenção de curar todos os habitantes do castelo de Berkshire, Allegra?

- Não recusarei ajuda a quem ma peça.

- A sério? - perguntou Mordred. - E se eu te pedisse uma poção para que uma certa dama me aquecesse? Podias dar-ma?

- Eu não percebo nada dos assuntos do coração - replicou ela enquanto apanhava um pouco de lavanda e de manjerona.

- Queres dizer que não havia um exército de homens a bater à porta de tua casa no Reino Mítico?

- Não - respondeu Allegra, apanhando também um pouco de poejo para pôr no cesto.

- Não. Não vive lá mais ninguém além da família de Allegra - comentou Hamish, a olhar para ela com adoração.

- É uma pena que estivesses tão isolada disse Mordred. - Isso explica por que pareces conhecer tão pouco dos costumes deste mundo

- acrescentou, olhando para ela antes de se voltar para o primo com um sorriso nos lábios. - No entanto, tenho a certeza de que encontrarás um homem que esteja disposto a ensinar-te como usar as tuas armas femininas.

- Prefiro a sinceridade - replicou Allegra, depois de apanhar vários ramos de alecrim.

- A sinceridade não faz parte do jogo dos amantes - comentou Mordred, rindo-se.

- Por acaso considera que o amor é um jogo? - perguntou Allegra.

- Exactamente. O amor requer perder o coração. Quanto ao meu, nunca foi tocado, portanto, como pode perder-se?

- Já chega desta conversa estúpida - interveio Merrick. Falou com um tom de voz tão duro que fez com que o sorriso se gelasse nos lábios do primo.

Ao ver que Merrick franzia o sobrolho, Mordred recuou.

- Sim. Tinha-me esquecido de teu sentido de honra, primo. Agora, Desmond e eu vamos à povoação. Temos alguns recados para fazer disse Mordred. Bateu carinhosamente na cabeça de Hamish e Allegra ficou surpreendida quando lhe pegou na mão e a levou aos lábios.

- Muito obrigado pelo prazer da tua companhia, Allegra. Foi um passeio muito divertido. Espero sinceramente que possamos voltar a fazê-lo... Talvez possa mostrar-te o resto dos jardins antes de jantarmos esta noite.

Antes que Allegra pudesse recusar, os dois homens afastaram-se. Merrick ficou a observá-los atentamente. Quando se voltou para olhar para Allegra, tinha os olhos tão escuros como as nuvens de uma tempestade.

- Não fazia ideia de que o meu primo e tu tinham ficado tão bons amigos - comentou, pegando no filho ao colo. - Está na hora de voltarmos para casa, Hamish. A cozinheira já preparou a tua sopa e as tuas bolachas. - E Allegra?

- Só tem o cesto meio cheio. Tenho a certeza de que tem coisas melhores para fazer do que ver-te a jantar.

- Não me importa...

Allegra interrompeu a frase ao ver que Merrick se voltava e se afastava dela com o menino ao colo. Pouco depois, tinham desaparecido no interior do castelo, deixando Allegra sozinha no jardim.

Enquanto ela continuava a passear e a encher o cesto, pensou no comportamento estranho de Merrick. Na noite anterior mostrara-se tão terno que ela tinha começado a acreditar que o tinha julgado mal. No breve passeio pelo jardim, voltara a comportar-se como o homem que a tinha tirado à força do seu reino e que a tinha levado para longe.

"Homens", pensou, enquanto abandonava o jardim e começava a passear pelos prados. A sua vida no Reino Mítico era muito mais simples sem eles.

- Cerveja, milorde? - perguntou-lhe a governanta.

Merrick estava em frente à lareira do salão de festas, a olhar para as chamas.

- Sim, obrigado - respondeu, aceitando imediatamente o copo que a governanta lhe oferecia. - Onde estão o meu filho e a feiticeira?

- Virão dentro de instantes. A feiticeira queria que o menino tomasse uma infusão antes do jantar.

- Uma infusão? Outra poção?

- Sim, milorde, mas o rapaz não pareceu importar-se. De facto, disse que estava muito boa.

- Uma infusão feita de ervas daninhas. Perdemos todos a cabeça?

- Tal como o senhor, eu apressei-me demasiado a julgá-la, milorde, mas os criados contaram-me que o único assunto de conversa na povoação é a mulher que pode curar os seus males. A garganta que tanto doía a Tavish deixou de o incomodar depois de tomar uma infusão de tomilho e as dores de cabeça de Logan desapareceram desde que lhe tocou na cabeça. Há dúzias de pessoas que clamam para que ela lhes cure os males.

- Tudo isso a distrai da razão pela qual aqui está. A mim não me importa mais ninguém a não ser Hamish.

- Não está a falar a sério, milorde - disse a governanta. Quando ele olhou para ela com dureza, corou. - Oh, sei que arriscou a vida para a trazer até aqui e curar o seu filho, mas não acredito que se importe tão pouco com os outros como afirma.

Merrick encolheu os ombros e esvaziou de um gole o seu copo. Quando a governanta levantou o jarro para voltar a enchê-lo, perguntou-lhe:

- Que é isso que tem atado à volta do pulso, senhora MacDonald?

- Genciana, senhor - sussurrou a mulher. A feiticeira disse-me que me ajudaria a acalmar.

- E ajudou?

- Acabo de a pôr, milorde. Amanhã de manhã logo se vê. Ah! Aqui vêm o seu filho e a feiticeira. Deixaste o senhor à espera, rapariga. Já sabes que gosta de jantar exactamente ao pôr-do-sol.

- Sim, obrigada, senhora MacDonald.

- Sirvo-te um pouco de cerveja antes de me ir embora?

- Não é preciso. Eu mesma me sirvo. Boa noite, milorde - disse para Merrick.

Fez-lhe uma inclinação de cabeça rápida. Allegra estava tão bela como as rosas do jardim. Estava embelezada com um vestido cor-de-rosa claro e o cabelo caía-lhe sobre as costas numa cascata de caracóis entrelaçados com fitas.

- Allegra diz que o ar fresco me pôs um pouco de cor nas faces, pai - disse Hamish, puxando a manga de Merrick para obter a sua atenção. - Que te parece a ti?

- Penso que tem razão - respondeu Merrick, afastando o olhar da jovem para observar o seu filho. - Pareces tão saudável como um guerreiro.

- A sério? - perguntou o menino, encantado.

- Sim, acredito que esse pequeno passeio te fez muito bem.

Allegra serviu-se de um pouco de cerveja num copo e voltou-se para olhar para pai e filho.

- Nesse caso, talvez queira juntar-se a nós quando formos à povoação de carroça.

- Achas que isso é sensato?

- Hamish estava a queixar-se de que há muito tempo que não vê os amigos. Pensei que talvez se o vissem e compreendessem que já se recuperou da queda, pudessem vir ao castelo com alguma frequência para brincar com ele.

- Não vou consentir que ande por aí a subir às árvores.

- Queres dizer que não poderei voltar a fazê-lo nunca mais? - perguntou o menino.

- Sim, é isso que quero dizer. Olha o que te aconteceu da última vez, filho. Achas que eu deixava que voltasses a correr um risco tão grande outra vez?

- Espero que não esteja a falar a sério, milorde.

- Digo o que quero dizer e quero dizer o que digo, mulher - atacou Merrick, depois de pousar o copo tão violentamente que o seu conteúdo se derramou. - Amo demasiado o meu filho para o ver magoar-se outra vez. Proibi-o que fosse com os rapazes da povoação subir às árvores e que fosse ao bosque, onde pode espreitar o perigo.

- Então, vai tê-lo sempre aqui, escondido no castelo durante o resto da vida, para que não se magoe?

- Se for preciso, sim. Quem me vai impedir? Eu sou o senhor de Berkshire. A minha palavra é lei. Não vou consentir que uma... disse, interrompendo-se em seguida. Tinha estado prestes a voltar a chamar-lhe bruxa. -... Que uma mulher desbocada me diga o que é bom ou mau para o meu filho.

Hamish contemplava-os, perguntando-se a que se devia uma ira tão repentina. Quando a governanta voltou a entrar na sala para anunciar que o jantar estava prestes a ser servido, olhou para os olhos do seu senhor e, ao ver a ira que se reflectia neles, voltou a sair apressadamente.

Minutos mais tarde, quando os criados entraram com as bandejas de comida para o jantar, Merrick indicou a Allegra que se sentasse à sua direita e ao seu filho, à sua esquerda, antes de tomar o seu lugar na cabeceira da mesa.

Quando o jantar foi servido, Allegra ficou a remexer a comida no prato. Sentia-se muito desconfortável com o modo como Merrick a observava.

- Quer um pouco de pão, senhora? - perguntou-lhe um dos criados. Allegra aceitou o que o criado lhe oferecia. A seguir, dirigiu-se ao senhor. - Mais cordeiro, milorde?

Merrick disse que não queria mais, o que deixou o criado completamente boquiaberto. Não se lembrava de nenhuma ocasião em que o senhor tivesse recusado um segundo pedaço de carne.

- Mais cerveja, milorde? - perguntou-lhe a senhora MacDonald.

-Sim.

Quando a governanta lhe encheu o copo até metade, olhou para ela de forma tão irada que fez com que a mulher o enchesse até à borda.

- Acabei de jantar, pai. Posso comer agora uma bolacha coberta de mel?

- Sim, claro que podes. No teu quarto. -Mas eu...

- No teu quarto, rapaz. Agora mesmo. Quando o menino se levantou da mesa, Allegra fez o mesmo.

- Tu ficas - atacou Merrick. -MasHamish...

- Hamish vai para o quarto com a senhora MacDonald.

Sem dizer uma palavra, a anciã agarrou na mão do rapaz e levou-o da sala de jantar depois de ordenar aos criados que partissem também.

Quando estavam sozinhos, Merrick recostou-se na cadeira e, enquanto bebia um gole de cerveja, olhou para Allegra.

- Como foi o teu passeio com o meu primo?

- Recusei a sua amável oferta. Precisava de tempo para preparar uma infusão para Hamish. Afinal de contas, o rapaz é a razão da minha presença no castelo.

- Vejo que não te parece bem o meu desejo de evitar perigos desnecessários ao meu filho.

- Não, não é isso, mas os métodos que emprega, senhor. Seria capaz de o fechar à chave, a pensar que assim pode isolá-lo do mundo. No entanto, a única coisa que conseguiria seria evitar que pudesse transformar-se no homem que tanto admira.

- De quem se trata?

- De si, milorde.

- Pensa que pode adoçar a pancada com adulações? Não sou homem a quem se deva admirar. Matei homens no campo de batalha. Fui um marido que não conseguiu proteger a sua esposa. Um pai que abandonou o seu único filho em vez de enfrentar a dura tarefa de o educar sozinho.

- Julga-se com demasiada dureza, milorde. Vi quanto os outros o admiram.

- Como sabe?

- Falam da sua coragem no campo de batalha. Mais de uma vez, sua senhoria interpôs-se entre um homem ferido e a espada de um inimigo. Quanto ao seu filho, vi-o com ele. É paciente, amável e carinhoso.

- E, na tua opinião, demasiado protector.

- Talvez.

- Diz-me uma coisa, Allegra. Estás a dizer-me que trancar as pessoas de quem mais gostamos para as protegermos está errado?

-Sim.

- Então, como explicas o facto de que, em nome do amor, as tuas irmãs e tu tenham estado a viver todos estes anos numa terra isolada, longe dos que lhes poderiam fazer mal?

Um minuto depois, Allegra estava demasiado atónita para responder. Por fim, conseguiu falar.

- Não é a mesma coisa - replicou. Então, levantou-se da mesa.

- Não? - respondeu Merrick. Ao ver que partia, agarrou-a bruscamente pelo braço e obrigou-a a voltar-se. - Ao princípio, pensei que estavas simplesmente a fingir inocência, mas os teus beijos dizem-me uma coisa muito diferente. És uma mulher, Allegra, com sentimentos de mulher e, no entanto, não tens defesa alguma contra eles por teres estado tão protegida.

- Vê coisas que não existem, milorde. Eu não sinto nada por si. Por conseguinte, não preciso de defesa alguma.

- Queres que te prove que te enganas?

- Proíbo-o de me tocar ou de me beijar da forma como o fez ontem à noite - atacou ela. Então, conseguiu soltar-se dele e recuou, com os olhos cheios de medo.

- Proíbes-me? Proíbes-me?

Com um movimento brusco, agarrou-a rudemente pelo braço e baixou a cabeça para lhe cobrir os lábios com um beijo.

De imediato, a paixão abriu caminho entre eles, com a força e a impetuosidade de uma tempestade, aquecendo-lhes o sangue, atravessando-lhes a carne. Nenhum dos dois teria ficado surpreendido se tivesse visto relâmpagos a iluminar o tecto da sala de jantar ou trovões a fazer eco pelos corredores. Era como se a fortaleza inteira tremesse por causa de um assalto.

Allegra queria enfrentá-lo, mas, no momento em que os lábios dele tocaram nos seus, a fraqueza apoderou-se dela e deixou-a a tremer de necessidade.

Como podia ser tão hábil a boca de um homem? O simples roçar dos seus lábios provocava-lhe frio e calor e enchia-a de sentimentos muito confusos, fazendo com que a cabeça andasse à roda.

Merrick continuou a beijá-la até ela sentir o sangue a palpitar-lhe nas têmporas. Temia que, a qualquer momento, começasse a arder e se transformasse em cinzas.

Escapou-lhe um gemido dos lábios e Merrick levantou a cabeça. Durante um momento, pareceu custar-lhe, como se estivesse a sair de uma caverna funda.

Tinha um olhar apaixonado e feroz nos olhos que se tornava aterrador pela sua intensidade.

- Deixa-me. -Mas eu...

- Deixa-me, mulher! Agora mesmo!

As pernas de Allegra tremiam tanto que, enquanto se dirigia à porta, receava que se dobrassem e que caísse ao chão.

-Allegra...

Ao ouvir o timbre profundo da voz de Merrick, a jovem voltou-se.

- Esta noite, antes de te retirares - acrescentou ele, - fecha a tua porta com o ferrolho.

- Sim - respondeu ela, embora não compreendesse a razão da violência repentina de Merrick, e foi-se embora da sala de jantar sem dizer uma só palavra.

Allegra acordou de um sono profundo com a sensação de que havia alguém do outro lado da porta. Endireitou-se, completamente aterrorizada, justamente quando o puxador começava a girar. Felizmente, o ferrolho aguentou e, embora a porta abanasse bastante, permaneceu firmemente fechada.

Ela levantou-se da cama e escutou do outro lado da porta passos a afastarem-se.

Sem conseguir parar de tremer, atravessou o quarto e pôs um cavaco de lenha no lume, observando como as chamas começavam a lamber o tronco. Abraçou-se a si mesma e perguntou-se quem teria querido entrar no seu quarto enquanto dormia e porquê. Poderia ter sido um criado, com a intenção de avivar o fogo, ou poderia ter sido outra pessoa, com um propósito muito mais sinistro.

Tinha tantos inimigos naquele sítio... Na verdade, receava não ter um único amigo.

Voltou a meter-se na cama e ouviu atentamente os sons da noite. Quanto mais depressa ajudasse o pequeno Hamish a recuperar as suas recordações, mais depressa poderia regressar à segurança do Reino Mítico. Decidiu que depositaria todas as suas energias naquela tarefa, já que, se não se fosse embora rapidamente daquele lugar, receava não só perder o coração, mas também a vida.

 

- Milorde - disse a governanta enquanto entrava no escritório de Merrick retorcendo as mãos, - tenho que falar com vossa senhoria.

Merrick recusou-se a levantar os olhos dos livros de contas que tinham ocupado a sua energia nos últimos dias. Encerrara-se em si mesmo, frio e distante.

- Que é que se passa, senhora MacDonald?

- É a feiticeira. Está no jardim, a cavar a terra.

- Sim? E qual é o problema?

- Não está bem, milorde. Está a fazer o trabalho de uma criada.

- Se é isso que quer fazer, que assim seja.

- Há mais uma coisa, milorde.

- Diz-me, ama.

- O seu filho está a trabalhar com ela. O menino tem as mãos e os joelhos muito sujos.

Estão os dois a rebolar no barro como se... como se fossem bárbaros.

Merrick afastou-se da secretária enorme e passou ao lado da anciã com uma expressão de nojo no rosto.

- Eu trato disso - disse.

Dirigiu-se ao jardim, mas não viu ninguém à sua volta. Precisamente quando estava prestes a voltar-se, ouviu gargalhadas. Usou o som como guia e seguiu um dos atalhos do jardim até que chegou a uma parte de terra que havia do outro lado, no meio de um canteiro repleto de flores silvestres. Reparou que a terra tinha sido remexida e que tinham sido postas muitas plantinhas em filas ordenadas. Então, viu Allegra e Hamish, ajoelhados ao lado um do outro.

- Fiz bem, Allegra? - perguntava-lhe o pequeno, sentado na terra.

- Claro que sim. É verdade que nunca tinhas trabalhado num jardim?

Nesse momento, Hamish viu o pai e pôs-se de pé, com o rosto iluminado pela alegria.

- Olha, pai! Allegra deixou-me ajudá-la a plantar as suas ervas.

- Estou a ver.

Allegra pôs-se de pé e sacudiu a saia, mas evitou olhar para Merrick nos olhos.

- Pensei que, quando me tiver ido embora, será bom se houver um jardim de ervas.

Quando se tivesse ido embora... Aquelas palavras provocaram em Merrick uma sensação estranha no coração. Recusou-se a pensar no inevitável.

- Allegra está a ensinar-me os nomes de todas as plantas e a sua utilidade. Já plantámos tomilho, salva e alecrim e, logo que possamos encontrar plantas novas, disse-me que acrescentaremos camomila e hortelã.

Merrick voltou-se para Allegra, tentando não reflectir emoção alguma na voz.

- E como estás a pensar evitar que as criaturas do bosque comam as tuas plantas tenras?

- Quando tivermos acabado de as plantar, farei uma cerca de paus e de ramos verdes de salgueiro. Isso deve conseguir detê-los.

- Ora... Parece que pensaste em tudo.

Merrick sentia-se fascinado por um pequeno grão de terra que Allegra tinha na face. Perguntou-se como reagiria ela se se aproximasse para lho limpar com o dedo. Na verdade, o problema era que não confiava ter a força de vontade suficiente para lhe poder tocar, por isso, agarrou as mãos para não o fazer.

- Por que não pediste a um dos criados que te ajudasse?

- Isso não seria justo para a senhora MacDonald. Ela precisa da ajuda deles em casa. Além disso, eu gosto de trabalhar na terra e pensei que faria bem a Hamish aprender a tratar das suas próprias necessidades.

- Pareces o meu primeiro professor. Quando Mordred, Desmond e eu andávamos a estudar, ensinou-nos que um guerreiro deve saber não só como ocupar-se das suas necessidades, mas também das dos homens que tem a seu cargo. Por isso, levaram-nos aos três para um lugar diferente do bosque e disseram-nos que tínhamos que caçar para comer, preparar a comida e encontrar um lugar seguro para dormir e que regressássemos ao fim de quinze dias.

- Quantos anos tinhas? - perguntou Allegra.

- Nove.

Allegra não teve tempo de evitar que Hamish agarrasse na mão do pai e começasse a mostrar-lhe as plantas e a recitar-lhe as propriedades que cada uma tinha e as doenças que podia curar.

Ela seguiu-os, mergulhada nos seus pensamentos. Enquanto ela tinha vivido a salvo no

Reino Mítico, Merrick tinha estado a aprender as tarefas de um guerreiro quando era apenas uma criança. Não tinha tido tempo para prazeres infantis como pescar num rio ou nadar num lago. Em vez disso, tinha aprendido a pôr a vida em perigo para proteger os que amava.

Quando chegaram ao fim do rego, Merrick ajoelhou-se para poder olhar para o filho nos olhos.

- Este trabalho não te parece aborrecido?

- Isto é um trabalho? - perguntou Hamish, muito surpreendido. - Allegra tinha-me dito que era um jogo.

- E tu acreditaste, rapaz?

- Sim. É muito mais divertido que subir às árvores.

- Sentes saudades disso? - continuou Merrick, sentindo-se um pouco culpado.

- Sim.

- Gostavas de voltar a subir a uma?

- Sim, pai. Quando estiver mais forte e tu me deres o teu consentimento.

- Nesse caso, prometo pensar nisso. Agora, que te parece se levássemos Allegra à povoação?

- Na carruagem do pónei?

- Se quiseres...

- Sim! - exclamou o menino. Então, olhou para si mesmo e para o vestido sujo que Allegra usava. - Mas primeiro temos que nos lavar.

- É verdade. Não acredito que quisésseis que o povo inteiro olhasse para vós como dois mendigos.

- Vamos, Allegra - disse Hamish, agarrando na mão da jovem. - Vamos lavar-nos para que te possa mostrar o povo de Berkshire.

Enquanto Allegra se afastava com o rapaz, sentiu que Merrick a estava a observar e ficou surpreendida pela excitação que sentiu no seu interior. De imediato, descartou aquele sentimento. Não era causado por Merrick. Afinal de contas, desde a noite em que lhe tinha ordenado que se fosse embora, tinha ficado fechado nos seus aposentos, recusando-se até a juntar-se a eles para as refeições.

Não, não era o homem, mas simplesmente o facto de que conseguia ver um pouco do seu mundo antes de regressar ao seu.

- Bom, decerto que estás com melhor aspecto do que quando te vi pela última vez disse Merrick alegremente, ao ver o filho a descer as escadas a correr para se dirigir à carruagem. Talvez se tivesse enganado ao preocupar-se com o pequeno. Parecia em forma, saudável, e tinha uma boa cor na cara. - Sobe

- acrescentou, enquanto ajudava o menino a subir para o banco de madeira. Virou-se para Allegra, que estava muito ocupada a envolver-se num xaile. Antes de ela levantar o olhar, agarrou-a e pô-la na carruagem.

Ao ver o rubor que lhe cobria as faces, não conseguiu resistir. Aproximou-se dela e sussurrou:

- És leve como uma pena, Allegra. Embora eu não goste de o admitir, sinto-me bem ao ter-te nos meus braços.

Aquele estado de espírito tão alegre e animado era tão estranho que Allegra não conseguiu encontrar resposta. Estava a acomodar-se no banco quando Merrick subiu para a carruagem.

Ao vê-lo, Hamish pareceu encantado.

- Pai, vais conduzir tu mesmo a carruagem em vez de montares o teu cavalo?

- Sim, que necessidade temos de um criado nos levar?

Aceitou as rédeas que o pajem lhe estendia e bateu com elas no cavalo. O animal pôs-se a andar, puxando a pequena carruagem.

Hamish virou-se para olhar para Allegra.

- O meu pai diz que, quando eu for mais crescido, me deixa segurar as rédeas da carruagem.

- Isso vai ser óptimo! No entanto, parece-me que isso não será suficiente. Quando tiveres idade suficiente para isso, quererás algo muito mais importante, até que possas fazer as coisas que fazem os adultos.

- Sim, como brandir uma espada e partir para a guerra contra os invasores.

Ao ouvir aquelas palavras, Allegra viu que Merrick olhava para o rapaz.

- Não tenhas tanta pressa em crescer, filho.

- Será que tu não a tinhas, pai?

- Sim, mas então os tempos eram muito diferentes. Depois de perder o meu pai na guerra, o que mais desejava era proteger a minha mãe. Teria dado a minha vida para a proteger.

- Quando eu tinha nove anos, a minha vida era muito calma - comentou Allegra. De repente, sentiu uma ternura profunda pelo homem que estava sentado ao seu lado. - A minha maior preocupação era saber se o meu jardim de ervas sobreviveria a uma seca.

- E sobreviveu?

Allegra sentiu o calor do seu olhar e reparou que a coxa de Merrick se colava contra a sua. Embora ela tentasse manter-se imóvel, o ombro dele roçava no seu ao puxar as rédeas. A cada contacto, a jovem sentia o calor que nascia entre eles.

- Sim, o meu jardim seguiu em frente e os meus dias continuaram a ser simples e livres de preocupações.

- Então, talvez a tua mãe tivesse razão ao levar-te e às tuas irmãs para o Reino Mítico. As nossas vidas aqui nas Terras Altas foram marcadas pela guerra.

- Fazeis-me sentir culpada pela vida em paz que tive.

- Não é minha intenção que te sintas assim, Allegra - disse Merrick, cobrindo-lhe uma mão com a sua.

Talvez fosse a sua carícia ou o tom da sua voz. Talvez fosse o facto de que a tivesse chamado pelo nome, mas, fosse qual fosse a razão, Allegra sentiu que o coração se alvoroçava no peito como se fosse um pássaro enjaulado.

- Esse é o tipo de vida que eu desejo para Hamish. Na verdade, é o que todos os pais querem para os seus filhos. O que qualquer homem deseja para as pessoas que ama.

Allegra sentiu-se muito emocionada pela paixão que havia na voz de Merrick. A pouco e pouco, continuaram a avançar pelo atalho e, ao fim de um momento, descobriram Mordred e Desmond à distância. As suas espadas brilhavam sob os raios de sol.

- Estão a lutar? - perguntou Allegra.

- Não. Estão simplesmente a pôr em prática as suas habilidades como guerreiros respondeu Merrick.

- Porquê? Será que não praticam o suficiente quando estão no campo de batalha?

- Sim, mas um guerreiro deve estar sempre em forma para enfrentar o seu inimigo, sobretudo quando uma pessoa perdeu o pai nas mãos dos invasores.

- É isso o que sentis?

- Talvez não com tanta paixão como os meus primos. Eles não só perderam os seus pais, mas também o seu lar.

- No entanto, vós abristes-lhes as portas da vossa casa de par em par.

- E como não havia de o fazer? O pai deles era irmão do meu pai. Eles sabem que terão sempre um lugar ao pé de mim e dos meus.

Allegra continuou a observar o brilho das espadas dos dois irmãos até os perderem de vista. Uma vez mais, sentiu um calafrio, como se uma sombra tivesse escondido o sol.

Sentiu-se muito agradecida quando dobraram uma curva do caminho e se encontraram às portas da pequena povoação de Berkshire. Viam-se muitas pessoas que percorriam de um lado ao outro a praça.

- Há muita gente.

- Sim, hoje é dia de mercado. Quando era criança, este era o dia em que eu mais gostava de vir.

- Comigo passava-se a mesma coisa - comentou Allegra. - É uma das poucas memórias de infância que tenho, antes de termos fugido para o Reino Mítico.

Merrick parou a carruagem e ajudou Hamish e Allegra a descer. Enquanto Allegra alisava a saia, um homem aproximou-se e puxou-lhe a mão. A uma distância segura, observava-os um grupo numeroso de curiosos.

- Senhora, tomei a infusão de tomilho e a garganta, que me doía há mais de uma semana, curou-se imediatamente.

- Fico contente por ter conseguido ajudá-lo, senhor - disse Allegra.

- Foi mais que uma simples ajuda. Disse à minha esposa que foi um milagre. Agradeço-lhe muito isso, senhora - replicou o homem, inclinando-se diante dela.

As suas palavras fizeram com que a multidão se aproximasse um pouco mais e observasse a cena em silêncio.

Allegra pôs o braço à volta dos ombros de Hamish e seguiu Merrick através das bancas, que ofereciam aos compradores frangos, gansos, cordeiros, renda, bordados e todo o tipo de mantimentos.

A jovem aproximou-se de uma banca em que uma anciã estava a tecer uma túnica fina.

- És tu a quem chamam feiticeira? - perguntou-lhe a mulher, de repente.

-Sim.

- Ouvi falar de ti - afirmou a mulher. De imediato, parou de mexer as agulhas.

Allegra aproximou-se da anciã e viu que tinha a menina dos olhos coberta por uma nuvem branca.

- Há quanto tempo és cega?

- Toda a vida.

- Eu gostava muito de fazer milagres, mas não tenho poderes para isso. A única coisa que posso fazer é curar o que está ferido.

A anciã estendeu as mãos e tocou suavemente no rosto de Allegra.

- Eu não preciso de nenhuma cura. Vivi toda a vida na escuridão. Tenho a certeza de que a luz me causaria muita dor depois de todos estes anos. No entanto, embora não tenha o dom da vista, sinto um coração puro e limpo, que não foi tocado pelas maldades deste mundo.

Ao ouvir as palavras da anciã, o povo começou a murmurar. Todos observavam surpreendidos como a anciã, que era considerada vidente, abraçava Allegra e lhe sussurrava qualquer coisa ao ouvido que só ela conseguiu ouvir.

Quando Allegra se voltou, tinha lágrimas nos olhos. Alarmado, Merrick tocou-lhe suavemente no braço.

- Que se passa, Allegra? Que te disse essa velha harpia que te causou tanta dor?

- Não é nada. Só a amabilidade de uma desconhecida. Penso que esta túnica é perfeita para Hamish. Que dizeis, milorde?

Merrick não respondeu. Limitou-se a depositar uma bolsa de moedas na mão da anciã. Quando agarrou na túnica, sussurrou-lhe:

- Milorde, esta rapariga é um presente especial que deveis guardar como se fosse um tesouro. Mas tende cuidado. Encarreguei-vos de a guardar com muito cuidado.

Merrick agradeceu-lhe e continuou a andar, observando como a multidão aceitava Allegra e o pequeno Hamish. Enquanto iam avançando de banca em banca, admirando os doces, as rendas e os animais, o povo rodeava-os e fazia comentários agradáveis e até se atrevia a tocar na rapariga à sua passagem.

Encontraram vários criados do castelo no mercado. A certa altura, enquanto várias pessoas rodeavam Allegra, a criada Mara entregou um doce ao pequeno Hamish, sorrindo. O rapaz devorou-o de uma só vez.

Apesar de Merrick se ter obrigado a participar do espírito alegre do dia, passeando com Allegra e com o filho e conversando com toda a gente, não conseguiu tirar as palavras da anciã da cabeça. Estaria a gozar com a doçura de Allegra ou será que aquelas palavras eram um aviso de que o perigo estava muito perto?

Encolheu os ombros para se livrar da sua inquietação. A anciã tinha falado sempre por meio de parábolas. Nem tinha tempo nem paciência para se preocupar com a última coisa que lhe tinha dito.

O sol estava prestes a atingir a linha do horizonte, enchendo a terra de sombras. Merrick bateu suavemente no pónei com as rédeas e obrigou-o a sair do atalho para atravessar os prados.

- Por que nos desviamos do caminho? perguntou Allegra.

- Pensei que assim podia mostrar-te tudo o que puder do campo que rodeia o castelo. Do outro lado deste prado há outro atalho que nos levará directamente ao castelo. Sempre adorei este sítio - disse, enquanto admirava os campos cobertos de urze. - Estava habituado a brincar aqui quando era pequeno e foi onde mais tarde me ensinaram a usar a espada, o arco e o punhal.

Allegra reparou que levava a espada pendurada no cinto e um punhal metido por baixo do mesmo.

- Precisais mesmo dessas armas só para visitar a povoação em dia de mercado?

- Achas que os invasores avisam antes de atacar? - replicou ele. - Olha à tua volta, mulher. Essas árvores podiam esconder um exército de bárbaros. Até estes campos de urze podem esconder o inimigo entre as suas flores doces. O perigo pode bater-nos à porta sem aviso prévio e pode espreitar em qualquer parte. O homem sábio está sempre de guarda contra o inimigo, embora seja desconhecido e não esteja à vista.

- Perdoai-me, não queria...

Allegra interrompeu as suas palavras quando sentiu que Hamish caía sobre ela com o peso de uma rocha. Instintivamente, abraçou o pequeno para o proteger.

- Rápido! Pare a carruagem!

Enquanto pronunciava essas palavras, começou a lutar para não perder o rapaz. Fizeram-lhe falta todas as suas forças para o segurar, porque, uma vez mais, o menino tinha abandonado tudo o que era quente e reconfortante para deslizar para o mundo da escuridão.

 

Merrick parou a carruagem rapidamente e saltou dela para se dirigir ao outro lado e tirar o filho do colo de Allegra. Enquanto o pousava sobre a urze, observou, impotente, como o corpo do menino estava de novo preso às convulsões.

- Ajuda-o! - gritou para Allegra. -Sim.

Ela ajoelhou-se ao lado do menino e pôs-lhe as pontas dos dedos sobre as têmporas. Quando estabeleceu uma ligação com ele, sentiu que uma emoção predominava na sua mente sobre todas as outras. O medo. Corria-lhe pelas veias como dedos gelados que o deixavam frio e apavorado.

- Que se passa? O que sente?

- Tem medo.

- De quê? Mostra-me o que o assusta e asseguro-te que o matarei com prazer.

- Oxalá fosse assim tão simples. Duvido que até Hamish possa dar nome ao seu terror. É qualquer coisa que viu, que ouviu e que ocupa um lugar na sua mente, embora sem tomar uma forma concreta, pelo menos não uma forma que eu consiga distinguir.

- Consegues ajudá-lo? Podes fazer com que volte a recuperar a consciência?

- Posso tentar.

Allegra fechou os olhos e começou a mexer as pontas dos dedos em círculos, partilhando assim com o menino a sua força e calma interior. À medida que os tremores foram recuando e o corpo do menino ficou imóvel, ela começou a cantar na língua antiga.

Merrick ficou em silêncio, observando e ouvindo. As palavras, que lhe estavam a começar a parecer muito familiares, tranquilizavam-no também, embora não soubesse porquê. Na verdade, o simples facto de Allegra estar ali, a lutar pelo seu filho, reconfortava-o. Se havia alguém capaz de curar o menino de corpo e alma era Allegra. Isso era uma coisa de que tinha a certeza absoluta.

Pareceu-lhe que tinha passado uma eternidade até que um leve movimento dos olhos sob as pálpebras indicasse que o menino estava prestes a regressar do mundo das trevas. Por fim, Hamish abriu os olhos e olhou para Allegra e para Merrick, confuso.

- Que se passou? Voltei a perder a memória como disse Mordred?

- Não, exactamente. Foi como se tivesses adormecido - mentiu Allegra, para não assustar mais o pequeno do que já estava. - Comeste ou bebeste alguma coisa hoje que pudesse ter-te enfraquecido?

- Bebi um pouco de leite de cabra e comi uns doces que os criados me deram.

- Passa-se alguma coisa que te pudesse ter causado medo, Hamish?

- Não sei - respondeu o pequeno enquanto se endireitava debilmente. De repente, o olhar do pequeno ficou preso a um grupo de árvores que havia atrás deles. Olhava para elas fascinado. - Podiam ter sido essas as árvores a que estava a subir quando caí?

- Se calhar. Talvez pudéssemos perguntar a Mara para que nos dissesse exactamente onde isso aconteceu - disse Allegra.

- E se não for este o lugar do acidente? perguntou Merrick. - Então, o quê?

- Pode ter sido qualquer coisa que Hamish ouviu. Uma palavra. Uma frase que lhe bloqueasse a memória.

- Pensa, Hamish - ordenou Merrick ao seu filho. - Lembras-te de alguma coisa?

- Não... Por favor, podemos ir já para casa?

- Sim, se te sentires com forças suficientes para ires sentado na carruagem.

Merrick pegou no menino ao colo e pô-lo suavemente sobre o assento da carruagem. Então, ajudou Allegra a subir.

Quando agarrou nas rédeas, reparou com satisfação que Allegra tinha pegado no menino ao colo e o estava a apertar com força contra o seu peito. Tinha havido outra mulher que tinha gostado assim do rapaz e o tinha abraçado com tanto carinho. Naquele momento, jazia numa campa.

Um calafrio apropriou-se dele. Lembrou-se das palavras da mulher cega. Tinha sido um estúpido ao tomá-las tão levianamente. Naquele momento, quando a fortaleza já se vislumbrava à distância, jurou solenemente a si mesmo que faria todos os possíveis para manter a salvo a feiticeira e o seu filho de tudo o que pudesse ameaçar magoá-los.

Já no pátio do castelo, Merrick entregou as rédeas ao moço das cavalariças e tirou Hamish do colo de Allegra.

Quando entrou no castelo, a ama aproximou-se deles a correr. No momento em que viu que o seu senhor levava o pequeno Hamish ao colo, lançou um grito de desespero.

- Que aconteceu ao menino, senhor? - perguntou, sem parar de retorcer as mãos. - Caiu outra vez?

- Não, senhora MacDonald, não caiu. Está simplesmente cansado.

- A cozinheira fez umas bolachas especiais para lhe dar as boas-vindas, milorde - disse a mulher, aliviada.

- Agradeça-lhe da nossa parte - respondeu Merrick. Começou a subir as escadas e parou de repente, como se lhe tivesse ocorrido um pensamento. - Em vez de jantarmos no salão, vamos jantar nos meus aposentos - acrescentou, a olhar para o filho. - Que te parece, rapaz?

- Ficaremos sozinhos? Só Allegra, tu e eu?

- Se assim o quiseres.

- Sim, eu gostava muito, pai - afirmou o menino, abraçando-se a ele com força.

- Então, considera-o feito. Senhora MacDonald - ordenou à criada, - acenda o fogo na lareira já.

Quando Allegra e Merrick chegaram aos aposentos deste último, meia dúzia de criados estava a encarregar-se de cumprir as ordens do seu senhor. Punham a mesa à frente da lareira, juntamente com uma rede completamente coberta de peles.

Merrick pousou Hamish sobre a rede e cobriu-o com as peles. A seguir, serviu-lhe um copo de vinho quente.

- Toma, filho. Isto vai ajudar-te a aquecer. Ofereceu um segundo copo a Allegra, que o aceitou muito agradecida.

Enquanto a jovem se dirigia ao fogo, Merrick observou-a atentamente. De repente, reparou que estava muito pálida, por isso aproximou-se dela e falou-lhe em voz muito baixa, para que Hamish não conseguisse ouvi-lo.

- Perdoa-me, Allegra. Por causa do medo que tinha pelo meu filho, tinha-me esquecido do que ajudá-lo supõe para ti. Talvez prefiras retirar-te para o teu quarto.

- Não. Só tenho um pouco de frio. O fogo e o vinho muito em breve porão em funcionamento a sua magia.

- És tu que tens magia, Allegra. Não quero sequer pensar no que teria acontecido a Hamish sem ti.

- Não deveis preocupar-vos com isso. Sem pensar, pôs-lhe uma mão sobre o braço e surpreendeu-se muito ao sentir um calor forte que abria caminho pelas veias. Quando se afastou dele, Merrick agarrou-lhe na mão. Os olhos ardiam-lhe com um brilho que a imobilizava até quando tentava afastar-se dela.

- Tu também o sentes, não é verdade, Allegra?

- Não sei a que se refere, senhor.

- Não? Eu acredito que sim. Não podes negar as faíscas que saltam entre nós quando nos tocamos.

-Não sei...

- Aqui está tudo, milorde - anunciou a governanta enquanto entrava no quarto seguida dos criados. Estes levavam um festim digno da realeza.

Merrick olhou para eles fixamente e afastou-se de Allegra. Então, ficou a observar com impaciência como punham a comida sobre o aparador. Quando estava tudo preparado, os criados puseram-se de um lado enquanto Merrick, Allegra e o jovem Hamish se sentavam à mesa. Então, os criados, sob a supervisão da governanta, começaram a encher os pratos e os copos antes de se retirarem. Só a governanta ficou para os servir.

- Tenho que perguntar à cozinheira o que faz para que o cordeiro fique tão tenro - comentou Allegra.

- Ficará encantada. É um motivo de orgulho para ela.

- Assim deve ser. A minha mãe e a minha avó ficarão muito contentes quando souberem que ganhei interesse pela cozinha, já que tinham perdido a esperança de que assim fosse.

- A maioria das raparigas não tem qualquer interesse pela cozinha até que um homem lhes roube o coração - comentou a governanta, lançando um olhar perspicaz à jovem. - É então que pensam em como lhe podem agradar. Pode ser que haja um homem no teu coração?

Quando Merrick levantou a vista para olhar para ela, Allegra sentiu que corava vivamente. Durante um momento, ele pareceu desfrutar do rubor que cobria as faces da jovem. Então, sussurrou-lhe em voz muito baixa, para que só ela pudesse ouvi-lo:

- Espero que assim seja.

As palavras de Merrick fizeram com que corasse ainda mais. Ele, para evitar envergonhá-la mais, pegou numa bolacha e dirigiu-se de novo à governanta.

- Acredito que esta noite a cozinheira se superou. Dê-lhe meus parabéns, senhora MacDonald.

- Sim, milorde. A cozinheira preparou as bolachas com mel para o menino. Para si, milorde, fez com açúcar e passas.

Quando por fim acabaram de jantar, Merrick voltou a pôr o filho na rede ao lado da lareira. Então, pediu à governanta que lhe servisse uma cerveja. De imediato, a anciã encheu-lhe um jarro e ofereceu-lho. A seguir, chamou os criados para que levantassem a mesa.

- Vai precisar de mais alguma coisa, milorde? - perguntou-lhe a governanta, quando acabaram.

- Não, senhora MacDonald. Obrigado por tudo.

A anciã pestanejou, como se não tivesse a certeza de conseguir acreditar no que acabava de ouvir. Acabava mesmo de lhe agradecer o senhor do castelo? Fez-lhe uma ligeira reverência.

- É um prazer servi-lo, milorde. Boa noite.

- Boa noite, senhora MacDonald. Quando estavam sozinhos, Allegra viu que Hamish continha um bocejo.

- Queres que te leve para o teu quarto, Hamish? - perguntou-lhe.

- Não. Só uns minutos mais, por favor.

Merrick assentiu, dando-lhe assim a sua autorização. Então, o menino bateu suavemente no espaço vazio que ficava sobre a rede.

- Queres sentar-te comigo, Allegra? Eu gostava que me falasses um pouco mais da tua casa.

- Se quiseres - disse ela. Então, aproximou-se da rede e sentou-se. - Que queres saber?

- Tens o teu próprio cavalo?

- Sim. chama-se Raio de Sol. É um lindo cavalo com asas. Tem uma bonita cor dourada e a crina e a cauda prateadas.

- Com asas? - perguntou o rapaz, atónito. Queres dizer que consegue voar?

- Sim. Ainda me lembro da primeira vez que montei sobre a sua garupa. Voou tão alto que eu tive medo que nos estivéssemos a dirigir ao sol. No entanto, ele limitou-se a voltar-se e a regressar ao nosso reino. Aterrou suavemente no sítio de que tínhamos partido. Foi uma experiência deliciosa que aproveitei muitas vezes depois disso.

- Pode levar-te também a sítios muito remotos?

- Não. Não pode sair do Reino Mítico. Se saísse de lá, os caçadores ficariam desejosos de o caçarem para o venderem.

- Se eu visitasse o teu reino, achas que o Raio de Sol me levaria a voar em cima dele um bocadinho?

- Não vejo por que não. Quer dizer, desde que o teu pai não pusesse nenhuma objecção.

- Opunhas-te, pai?

- A mim parece-me que seria muito divertido montar um cavalo pelo céu - disse. Sabia que Allegra não estava a mentir, porque ele mesmo tinha visto aqueles cavalos alados.

- Deixavas-me montar o Raio de Sol?

- Suponho que sim, desde que Allegra me assegurasse que não te faria nenhum mal.

- É uma criatura muito doce.

Merrick olhou para a jovem que estava sentada ao lado do seu filho. Nada no mundo poderia ser mais doce que Allegra. Nesse momento, a única coisa que ele desejava era poder abraçá-la e encher-se daquela doçura. Sentiu que o coração dava um salto, por isso, olhou para o jarro de cerveja para esconder os seus pensamentos.

- As tuas irmãs também montam o Raio de Sol? - quis saber Hamish.

- Não. Elas têm os seus próprios cavalos alados.

- E a tua mãe e a tua avó?

- Elas não precisam de cavalos alados respondeu Allegra, com um sorriso misterioso. - Elas conseguem voar sozinhas.

Merrick levantou a cabeça subitamente. Então, entreabriu os olhos. Viu que Hamish parecia encantado.

- Viste-as voar? - perguntou o pequeno. -Sim.

- Têm asas?

- Não. Não precisam de asas, porque não voam propriamente. Simplesmente... aparecem.

- Como? - quis saber Hamish. Estava encantado.

- Não sei. Esse é um dos dons que nem as minhas irmãs nem eu possuímos.

- Não interessa - disse o menino, batendo-lhe suavemente na mão. - É suficiente teres um cavalo alado que te leve pelos céus. Espero que, algum dia, possa visitar o teu reino e montar o Raio de Sol.

- Eu adorarei mostrar-to - sussurrou-lhe Allegra, acariciando-lhe suavemente o cabelo. Então, juntou a face à do menino. - Ias adorar a minha casa e a minha família, Hamish.

Como o pequeno não respondeu, Allegra levantou a cabeça e olhou para ele. Viu que o menino tinha os olhos fechados e que respirava muito tranquilamente. Então, levantou-se da rede e chamou Merrick.

- Hamish adormeceu.

- Vou levá-lo para o quarto dele. Merrick pousou o jarro e aproximou-se do rapaz para lhe pegar ao colo. Seguido de Allegra, levou Hamish para o quarto. Assim que o deixou em cima da cama, Allegra tapou-o com uma pele grossa e deu-lhe um beijo na face, de um modo tão natural que parecia que passava a vida a fazer isso.

Ao ver a cena, Merrick sentiu uma onda de ternura. Quando saíram do quarto do rapaz, avançaram juntos pelo corredor até que chegaram ao quarto de Allegra. Antes que ela pudesse entrar, Merrick tocou-lhe suavemente no braço. Ao sentir uma forte onda de calor, baixou rapidamente a mão.

- Muito obrigado, Allegra.

- Por quê?

- Por tudo o que fazes para reconfortar o meu filho. Não podes imaginar o quanto me assustei ao ver que o seu corpo se contorcia daquela maneira, como se estivesse a sentir uma dor forte.

- Não tem importância.

Quase sem se dar conta, pôs-lhe a mão nas costas. Quando sentiu que ele dava um salto, retirou-a rapidamente, mas, antes que pudesse afastá-la de todo, ele agarrou-a entre as suas. O calor que tinha surgido entre ambos, segundos antes, transformou-se numa chama que nenhum dos dois conseguiu ignorar.

Allegra tentou recuar, mas Merrick impediu-a. Ela olhou para ele nos olhos e observou a paixão que havia latente entre eles. Era como se ele conseguisse devorá-la apenas com um olhar...

De repente, Mordred e Desmond apareceram no alto das escadas.

- Aqui estás, primo - disse Mordred, com um sorriso amplo. - Estivemos à espera no salão de festas.

- E também estivestes a beber grandes quantidades de cerveja, se bem me parece replicou Merrick. Sentia-se furioso pela interrupção.

- Sim, é verdade. Vá, Desmond, parece que interrompemos o nosso primo - comentou Mordred, ao observar a cena de Allegra e Merrick. - Vais juntar-te a nós no salão?

- Sim - respondeu Merrick, sem parar de olhar para Allegra. - Ide vós. Eu irei ter convosco em seguida.

Depois de os observar durante um instante, os dois homens voltaram-se e desceram as escadas. Iam a rir-se.

Quando desapareceram, Merrick recuou.

- Volto a advertir-te como fiz na outra noite para que feches o ferrolho da tua porta, Allegra - disse-lhe.

- Não percebo.

Ele voltou-se. Estava decidido a pôr entre eles toda a distância que fosse possível.

- Há alturas em que não é preciso perceber. É suficiente fazeres o que te peço, dado que eu sou o senhor desta fortaleza. Disse-te que feches o ferrolho da porta, não aconteça que a cerveja me transtorne o cérebro e me faça irromper mais tarde no teu quarto.

Sem acrescentar mais nada, Merrick começou a descer as escadas, como se estivesse possuído pelos demónios. Embora não gostasse da ideia de ir beber com os seus primos, parecia-lhe mais sensato que a primeira coisa que lhe tinha passado pela cabeça.

 

Allegra entrou no seu quarto e fechou o ferrolho. Então, cruzou os braços e começou a passear à frente da lareira. Sentia-se profundamente perturbada.

Por que se mostrava Merrick tão zangado sempre que se tocavam? A sua reacção era completamente oposta à dela. Quando ele lhe tocava, Allegra sentia-se como se estivesse a desfazer-se. Aquecia-lhe o sangue e o coração enchia-se de sentimentos estranhos que não era capaz de expressar por palavras.

Quando a beijava... A sua cabeça andava às voltas só de pensar nisso. Quando a beijava, queria que aquele beijo se prolongasse até ao infinito e que não acabasse nunca. Embora se envergonhasse de o admitir, desejava que a tocasse por toda a parte. As suas carícias tinham qualquer coisa de muito especial. Ao princípio, tinham-na assustado, mas, só de pensar que Merrick podia tocá-la e beijá-la, sentia um formigueiro pelo corpo todo.

Com uma só carícia, Merrick conseguia deixá-la completamente debilitada. Com um beijo, arrebatava-lhe a capacidade de pensar, de raciocinar.

Apertou as mãos contra as faces. Sentia-se tão sozinha... Oxalá a sua mãe e a sua avó estivessem ao seu lado. As duas poderiam ajudá-la a pôr em ordem aqueles pensamentos que tanto a perturbavam.

Parou em frente à varanda e olhou para as estrelas que titilavam no céu. Lentamente, começou a sentir que já não estava sozinha. Embora a sua família estivesse muito longe, escutá-la-ia e compreendê-la-ia.

- Oh, mãe - sussurrou. Então, viu uma estrela que era muito mais brilhante que as outras. - Que vou fazer com estes sentimentos? Seria mau se me entregasse a eles? O pensamento de estar com Merrick, de me deitar com ele, afigura-se-me quase assustador. Se o fizer, perderei os meus poderes?

Como se quisessem responder-lhe, as estrelas começaram a reluzir no céu. Allegra esfregou os olhos e ajoelhou-se na varanda, à espera de ouvir a voz da mãe. Mas a única coisa que ouviu foi o silêncio da noite. Cobriu-a por completo, tranquilizando-a e acalmando-a até que, esgotada, adormeceu.

O seu descanso foi ocupado por sonhos muito realistas. A sua mãe, jovem e livre, corria por um prado de urze até um jovem bonito, que estava à espera com os braços abertos. Abraçou-a e levantou-a no ar. Então, começou a dar voltas e mais voltas até que Nola se sentiu completamente zonza e começou a gritar e a rir. Pôs os braços à volta do pescoço do homem e começaram a beijar-se. Muito suavemente, ele depositou-a sobre a erva. Ao princípio, Nola parecia um pouco inquieta, mas, com palavras suaves e beijos ternos, ele conseguiu apaziguar os seus temores até que ela aceitou contente o amor que partilhavam.

Allegra acordou. Sentia-se muito reconfortada pelo sonho. A sua mãe tinha amado um homem com todo o seu coração e, apesar desse amor, os seus poderes não tinham diminuído, mas tinham ficado mais fortes com o nascimento de cada uma das suas filhas.

A jovem olhou à volta, perguntando-se quanto tempo teria estado ali deitada, no frio do jardim. Quando entrou no quarto, viu que o fogo continuava aceso na lareira. Teriam sido apenas minutos?

Ficou muito quieta, perguntando-se se na verdade teria sonhado ou se a sua mãe, ao sentir a inquietação que se apropriara dela, lhe tinha enviado aquelas imagens para a tranquilizar.

- Oh, mãe... Obrigada por me mostrares essas imagens de ti e do pai. Sinto-me muito contente por saber que não sou a única que está a experimentar estes sentimentos, que não são únicos para mim, mas que todos os que amam os sentem.

Baixou a cabeça, perguntando-se o que devia fazer com aquilo que acabava de conhecer. Odiava a ignorância. Ela, que sabia tanto de ervas e de plantas, do trabalho da horta e como curar corpos e almas, desconhecia tudo sobre os homens e as mulheres e como enfrentar os seus sentimentos. Devia falar com Merrick para lhe confessar o que sentia ou era melhor manter tudo em segredo no seu coração?

Fechou os olhos e tentou contactar de novo a mãe e a avó. Tinha a certeza de que elas teriam a resposta para todas as suas perguntas.

Merrick estava sentado numa cadeira ao lado do lume, com um jarro de cerveja na mão. Aos seus pés, os cães dormitavam. Mordred estava de um lado, descansando uma mão sobre a lareira.

- E, então, Merrick, quanto tempo pensas ter aqui essa bruxa?

- E a ti que te importa isso?

- Os homens começam a falar.

- Sobre quê?

- Sobre o facto de tu teres mudado desde que a bruxa aqui está. Houve um tempo em que eras o guerreiro mais forte das Terras Altas. Agora, pareces satisfeito por preencheres os teus dias com passeios pelo jardim e visitas ao mercado.

- Como te atreves a falar-me assim? - atacou Merrick, pondo-se imediatamente de pé e agarrando o primo pelo peitilho da túnica.

Mordred soltou-se e recuou.

- Alguém tem que te dizer o que se comenta nas tuas costas.

- E tu, Desmond? - perguntou Merrick ao seu outro primo. - Tu também dizes essas coisas?

Desmond encolheu os ombros.

- Ouvimos os dois os rumores - disse Mordred, depois de pousar o seu jarro.

- Rumores?

- Sim. Uns dizem que suavizaste - replicou Mordred, com um sorriso manhoso nos lábios. - Outros dizem que... estás enfeitiçado.

- E tu acreditas nisso?

- Eu penso que estás preocupado com o teu filho, como estaria qualquer homem, mas também és o senhor de todos estes povos. Não podes permitir que os temores que sentes pela tua vergonha te impeçam de defender as nossas fronteiras dos invasores.

- Neste momento não vejo nenhum que ameace as nossas terras. Como te atreves a sugerir que estou a falhar ao meu povo?

- Então, pensa nisto que te vou dizer. Talvez tenhas que te resignar ao facto de que o teu filho sofreu feridas na queda que vão continuar a provocar-lhe essas perdas de memória. Se for assim, o melhor que podes fazer é deixar que a bruxa volte para casa agora mesmo, antes que encha a cabeça dele, e a tua também, de tolices. A menos, é claro, que haja uma outra razão para que impeças que se vá embora.

- Que outra razão?

- Penso que sabes ao que me refiro, primo. É uma mulher atraente. Por que não te divertes com ela e acabas com este assunto de uma vez por todas?

- Essa é a tua forma de agir, Mordred, não a minha. Desde que éramos crianças, não paravas de te vangloriar por te teres deitado com todas as raparigas da povoação.

- E é verdade, garanto-te - afirmou Mordred, muito orgulhoso. - Além disso, há as raparigas das povoações vizinhas. Parece que elas também não conseguem resistir aos meus encantos, porque plantei a minha semente da montanha até ao vale. Tu podias fazer o mesmo, primo, se deixasses essa maldita noção de honra do guerreiro.

- Parece-te mais honroso deitares-te com as mulheres por desporto, Mordred?

- Ocorre-te razão melhor para o fazer? replicou Mordred, com uma gargalhada. - Se gostas dessa bruxa, por que não te deitas com ela? A seguir poderás ordenar-lhe que se vá embora e poderás continuar a ocupar-te do teu povo. A menos, é claro, que prefiras envelhecer no jardim e deixar que outro seja o senhor dos teus vassalos.

Em vez de responder, Merrick pousou o jarro de cerveja sobre a mesa com uma pancada forte e foi-se embora do salão.

Mordred observou-o enquanto se ia embora. Então, voltou-se para Desmond com um trejeito pensativo no rosto.

- É pior do que tínhamos pensado. Não é que ele simplesmente deseje essa feiticeira. Penso que está apaixonado por ela. Estúpido!

- exclamou, antes de lançar uma gargalhada.

- Essa mulher é uma bruxa e, antes de acabar com ele, tê-lo-á cegado de tal maneira que Merrick nem sequer verá o inimigo que tem em frente às suas próprias portas. Isso é uma coisa que nos beneficia, irmão. Se o nosso primo for incapaz de ver, o inimigo terá por fim a possibilidade de ganhar o desafio.

Merrick fechou-se no quarto e pousou a sua manta escocesa em cima de uma cadeira. Enquanto se dirigia à lareira, tirou a túnica e atirou-a para um canto do quarto. Contendo uma série de palavrões, tirou as botas e mandou-as com um pontapé até à parede oposta.

Estava prestes a tirar as meias quando captou um movimento ao lado da varanda. Atravessou o quarto rapidamente e imobilizou a figura contra a parede, enquanto aplicava o punhal que levava na mão contra uma garganta.

- Allegra... Por Deus, mulher - disse, sentindo um calafrio ao saber que tinha estado prestes a cortar-lhe o pescoço. - O que estás a fazer no meu quarto?

-Milorde...

Ela tinha pronunciado as palavras com um grito contido. Quando Merrick baixou as mãos, a jovem afastou-se dele, aninhando-se contra a pedra fria da varanda. Allegra nunca tinha visto tanta fúria numa pessoa e não tinha defesa alguma contra ela.

- Volto a perguntar-te. O que estás aqui a fazer?

- Precisava de saber que magia possui...

- Magia? De que estás a falar?

- Cada vez que me toca - respondeu ela, procurando acalmar o ritmo louco do seu coração, - sinto-a. Um calor incrível, uma fraqueza que se apodera de mim e que me afecta até o pensamento. Quando se aproxima demasiado de mim, não consigo pensar.

- E eu que tinha pensado que era o teu feitiço que estava a agir - replicou Merrick, depois de lançar um som que tanto podia ser uma gargalhada de prazer como de gozo.

- Eu não tenho magia que se possa comparar com a vossa. Diga-me de que se trata.

Merrick olhou para a faca que tinha na mão e pousou-a em cima de um aparador. A mão não parava de tremer. Flectiu os dedos antes de os dobrar para cerrar o punho.

- Trata-se simplesmente da atracção entre um homem e uma mulher. Alguns chamam-lhe desejo.

- Não, eu conheço bem essa palavra. Isto é algo muito mais profundo que a atracção. Seja qual for o encanto, apropriou-se do meu coração e não sei como libertá-lo. O que se passa é que... O que se passa é que quero deitar-me ao seu lado. Copular...

Embora as palavras da jovem o perturbassem até ao mais fundo do seu ser, Merrick negou-se a reconhecê-lo, dado que fazê-lo seria admitir que ele tinha a mesma fraqueza. Voltou-se.

- Não fazes mais que dizer tolices, Allegra. Agora, vai-te embora. Deixa-me sozinho.

- Tolices? - repetiu ela, sentindo-se como se a tivesse esbofeteado. - É isso o que pensais? Que, pela minha ignorância, não me podeis levar a sério?

Quando Allegra viu que Merrick continuava de costas, deu um passo para ele e a seguir parou, erguendo a cabeça com tanto orgulho quanto conseguiu reunir.

- Muito bem. Talvez possa recusar o que lhe ofereço. Não tenho forma alguma de comparar os meus sentimentos com nada, dado que vós sois o primeiro homem que me tocou. Talvez o sangue me fervesse assim por qualquer outro homem. Talvez o beijo de qualquer outro homem tivesse o poder de me deixar a mente bloqueada, embora duvide. No entanto, quero que saiba uma coisa, Merrick MacAndrew. Eu não desejo qualquer homem. Só a vós e, visto que não parece que deseje corresponder aos meus afectos, não haverá nenhum outro.

Quando a jovem passou ao lado de Merrick, ele agarrou-a pelo braço e obrigou-a a voltar-se. A luz do fogo, Merrick confirmou que tinha os olhos cheios de lágrimas.

- Oh, Allegra! - sussurrou, sentindo que o coração se partia.

Sem pensar, agarrou-a pelo braço e puxou a jovem para pôr a testa contra a dela.

- A tua inocência e a tua honestidade humilham-me.

- Não goze comigo - replicou ela, tentando soltar-se.

- É isso o que pensas? - perguntou Merrick. Começou a acariciar-lhe suavemente os braços, alimentando assim o fogo que ia crescendo entre eles. Daquela vez, em vez de o enfrentar, deu-lhe as boas-vindas, sabendo que era o mesmo que se passava com ela. Tentei com todas as minhas forças negar o que sinto, porque ceder a isso seria como aproveitar-me da tua bondade e inocência uma coisa que jamais seria capaz de fazer. Não posso esquecer que estás aqui porque eu te obriguei. Seria impensável forçar-te mais ainda. Receber o que me ofereces seria o maior prazer da minha vida, mas deves ser tu a tomar essa decisão.

- Estais a dizer que... que me desejais?

- Desesperadamente, embora tenha tentado escondê-lo também desesperadamente.

-Oh...

Allegra inclinou-se sobre ele e ofereceu-lhe os seus lábios. Merrick agarrou-os com uma paixão que os surpreendeu a ambos. Começou a acariciá-la enquanto afundava a boca na dela até os dois começarem a respirar descontinuamente.

- Deves ter a certeza - sussurrou ele.

Viu que o medo nublava os olhos da jovem, mas não pareceu afastar-se.

- Só tenho a certeza de uma coisa e é que estou disposta a seguir-te aonde tu me quiseres levar.

- E se te vires rodeada de mais paixão e perigos do que esperavas?

- Confio em que tu me ajudarás a superá-lo sem que me aconteça mal nenhum - murmurou Allegra enquanto lhe acariciava suavemente a face.

- Santo Deus, Allegra, que fiz eu para merecer uma coisa tão boa como isto?

- Seja o que for que tenhamos feito ou não, o que há entre nós é merecido e bom.

Como resposta, ele beijou-a com tanta paixão que a única coisa que Allegra conseguiu fazer foi agarrar-se a ele e deixar-se levar. Quando Merrick levantou a cabeça, ela levantou as mãos e emoldurou-lhe o rosto e puxou-o docemente para desfrutar de outro beijo. Não queria que o prazer acabasse.

Por fim, com a respiração entrecortada, Merrick sussurrou algumas palavras no interior da boca de Allegra.

- Eu avisei-te, Allegra. Agora que libertaste a besta, não haverá maneira de voltar a pô-la na jaula.

 

A boca de Merrick, tão quente e hábil, cobriu a de Allegra com um beijo arrebatador. Enquanto isso, as mãos rudes e fortes do guerreiro acariciavam-na por toda a parte, lançando fogo por todos os sítios em que tocavam.

Allegra tremeu, incapaz de fazer mais nada a não ser agarrar-se a ele enquanto punha em prática a sua magia. Uma vez mais, estava a nublar-lhe a mente e a roubar-lhe a vontade. Daquela vez, não ofereceria resistência. Era precisamente o que desejava, o que tinha ansiado tão desesperadamente.

A língua de Merrick uniu-se à sua, saboreando-a, batendo-se em duelo com ela até que Allegra suspirou de puro prazer. Não lhe soltou a boca, como se nunca se fosse cansar do seu sabor.

Aquilo era o paraíso. Nos braços de Allegra sentia-se como se estivesse no seu próprio reino mítico. Eram uns braços dos quais não desejava afastar-se nunca mais.

Precisamente quando ela começou a descontrair-se, a boca começou a baixar um pouco mais, deixando beijos húmidos na pele da garganta. Com um gemido de prazer, Allegra arqueou o pescoço e agarrou-lhe a cintura para não cair.

Durante um segundo, não soube o que fazer com as mãos. Merrick estava nu da cintura para cima e o tacto da sua pele provocava-lhe um formigueiro agradável nas palmas das mãos e acelerava-lhe os batimentos cardíacos. Então, por fim, permitiu que as mãos vagueassem ao sabor do prazer pelo corpo do seu amante e gozou das sensações que o contacto lhe provocava.

Pareceu-lhe que o quarto começava a mexer-se, a andar às voltas. Teve que fechar os olhos para não enjoar.

- Quando comecei a sentir esta paixão, pensei que me tinhas enfeitiçado.

- E eu a pensar que o feitiço era teu!

- E agora que estás aqui, nos meus braços, continuo a acreditar que me enfeitiçaste - sussurrou ele, a olhar para ela nos olhos com tal paixão que a fez tremer por antecipação.

- Passa-se o mesmo comigo...

- Oh, Allegra! Minha formosa e cativante Allegra... Transformaste-te em algo tão belo para mim... - murmurou Merrick enquanto depositava beijos doces e húmidos sobre as pálpebras, as faces e a ponta do nariz da jovem. - Sou tão bruto que temo magoar-te.

- Tu nunca me poderias magoar, Merrick. És demasiado bom...

- Se é isso que pensas... é porque és demasiado confiante.

Uma vez mais, apropriou-se da boca da jovem, daquela vez com um beijo que pareceu esvaziá-la por completo ao mesmo tempo que a enchia. Um beijo que a comprometia com ele plenamente e que a obrigou a pôr-lhe os braços à volta do pescoço e a gemer de impaciência.

Merrick acariciou-lhe os braços, as costas, deixando que os polegares roçassem na plenitude dos seios de Allegra. Ela sentiu que o pulso começava a bater com força e sentiu uma onda de calor que a deixou fraca e trémula.

-Oh...

- Cala-te, amor...

Baixou a cabeça e aprisionou o seio da jovem entre os seus lábios. Apesar da barreira que o tecido constituía, ela sentiu que o calor daquele beijo chegava até ao centro do seu ser. Sentia-se a arder. Uma necessidade poderosa ia crescendo dentro dela, uma necessidade que a fazia tremer da cabeça aos pés.

- Preciso de te ver. Toda...

Pôs as mãos sobre o decote do vestido e, com um puxão forte, arrancou-o e atirou-o ao chão. Rapidamente, desatou as fitas da camisa e esta caiu também ao chão. Quando Allegra viu o modo como brilhavam os olhos de Merrick, sentiu que a timidez e a vergonha que podia ter sentido até então desapareciam e eram substituídas pelo orgulho de saber que era precisamente a mulher que desejava. Havia tanto amor naqueles olhos escuros que não paravam de olhar para ela...

- Minha formosa e deliciosa Allegra. Tiras-me o fôlego...

De imediato, começou a tocar-lhe até que ela sentiu as pernas a enfraquecerem e os joelhos a começarem a dobrar-se. Com muito cuidado, levou-a até à cama e deitou-a. Então, apoiado sobre um cotovelo, contemplou-a a seu bel-prazer à luz do fogo. Tinha a carne tão pálida e perfeita como o mármore. Os olhos brilhavam como se as chamas ardessem neles. A sua cabeleira feroz e avermelhada parecia convidá-lo a tocá-la... Assim fez. Enredou os dedos entre os caracóis enquanto lhe dava beijos apaixonados sobre o rosto, o pescoço, a garganta e até mais abaixo, fazendo com que ela gemesse de prazer e se agarrasse a ele.

Começou a mordiscar-lhe o lóbulo da orelha até ela soltar uma gargalhada pelas sensações inesperadas que experimentou, mas, de imediato, as gargalhadas transformaram-se em gemidos de prazer quando, com hábeis movimentos de língua, Merrick a deixou louca.

A seguir, ele apropriou-se de novo da sua boca. A paixão que crescia entre eles ia aumentando até ao ponto de os corpos de ambos começarem a cobrir-se de uma película fina de suor. Merrick não parou de se mexer sobre ela, beijando-lhe os seios e baixando mais a boca até alcançar o ventre pálido e firme. Quando baixou um pouco mais, os gemidos de prazer de Allegra tingiram-se de necessidade.

Algumas faíscas saltaram da lareira quando uma cavaca deslizou, mas nenhum dos dois se deu conta. Estavam tão absortos um no outro que nem viam nem ouviam nada. Só se viam um ao outro e a única coisa que ouviam era os suspiros suaves e as promessas doces junto aos batimentos estrondosos de dois corações, perdidos no gozo do amor acabado de encontrar. O mundo parecia ter-se reduzido àquele quarto, àquela cama, àquele momento.

Merrick sentiu a mudança que se ia produzindo nela. Já não era a donzela tímida. Tinha-se visto envolta na mesma loucura que se apropriara dele. Por fim, podia fazer tudo o que até então só tinha sonhado.

Com a boca, levou-a por cima da primeira onda de prazer. Não lhe deu tempo para que se recuperasse e, rapidamente, começou a fazê-la subir de novo até ao topo do gozo.

Allegra não soubera o que esperar. Talvez beijos ternos ou o tacto da pele áspera das mãos de Merrick sobre o seu corpo. No entanto, aquilo ultrapassava tudo o que tinha imaginado até então. Sentia que o corpo lhe ardia. A sua imaginação estava cheia de imagens exóticas e eróticas ao mesmo tempo. Nunca tinha experimentado uma necessidade como aquela. Não conseguia parar de lhe tocar como ele a tocava a ela.

Enquanto o fazia, ouviu um gemido de prazer. Embriagada pela necessidade, continuou com a boca até que o sentiu tremer junto a ela. Saber que era a razão de Merrick estar a experimentar tanto prazer era algo maravilhoso.

Allegra estava a tremer de necessidade. Sentia que o seu corpo estava vivo, cheio de um desejo tão afiado como. a lâmina de um punhal. Queria mais ainda. Arqueou o corpo para o dele e agarrou-se com força às peles que cobriam a cama. Enquanto se contorcia e rebolava sob o corpo de Merrick, sentiu que ele, a pouco e pouco, a ia levando até à beira da loucura. Apesar de tudo, Merrick continha-se, desejando prolongar o prazer. Era a única coisa que podia dar-lhe em troca do lindo presente que lhe tinha oferecido.

- Há tanto tempo que sonho com isto... Desejava abraçar-te, beijar-te, estar deitado ao teu lado... E agora, estás aqui, meu amor...

Amor. Allegra sentiu que aquela palavra se enrolava à volta do seu coração e o aquecia do mesmo modo que os beijos de Merrick lhe tinham aquecido os lábios.

- Diz as palavras, Allegra. Diz que és minha. Só minha...

-Sou tua, só tua...

A necessidade que Merrick sentia era demasiado grande. O desejo era demasiado assustador. Tinha que a possuir naquele mesmo instante ou explodiria pela necessidade terrível que se apoderara dele. Sem parar de olhar para ela nos olhos, penetrou-a. Então, quando ela conteve a respiração, ficou completamente imóvel.

- Santo Deus, como me pude esquecer de que és uma donzela? Perdoa-me, meu amor.

- Não... - sussurrou ela, com um sorriso. Eu também o desejo. Desejo-te. Só a ti...

- Minha doce e formosa Allegra...

O suor foi cobrindo a testa de Merrick a medida que foi cedendo às necessidades que lutavam por se libertar dentro dele Embora tentasse ser delicado, era demasiado tarde para a gentileza. As necessidades que se tinham negado durante tanto tempo apropriaram-se de ambos.

Com a respiração tensa, os corações prestes a explodir, começaram a mexer-se, a gozar. Começou o desenfreamento, quase se misturando com a dor, até que, por fim, unidos num abraço apaixonado, alcançaram o topo do prazer. Então, começaram a voar.

Permaneceram deitados, ainda unidos, sobre o ninho de peles. Nenhum dos dois era capaz de encontrar uma razão para se mexer. Continuaram assim, à espera que o mundo voltasse a assentar à sua volta.

Merrick levantou o rosto da garganta de Allegra e viu que lágrimas brilhavam nas pestanas da jovem. Preso pelo remorso, endireitou-se.

- Perdoa-me, Allegra. Fiz-te mal...

- Não - sussurrou enquanto lhe acariciava a face. - Só estou inquieta.

- A sério? Então, não te fiz mal?

- Não. É sempre assim o acto sexual?

- Pode sê-lo - murmurou ele, depois de lhe beijar docemente as têmporas. - Quando as pessoas que o partilham sentem uma coisa muito profunda uma pela outra.

- É isso que se passa comigo - murmurou ela ao mesmo tempo que lhe traçava o contorno dos lábios com o dedo.

- Por isso te estou muito agradecido, Allegra.

-Eu também...

Allegra adorava sentir o tacto do corpo quente e húmido de Merrick sobre o seu. Desejou com toda a sua alma permanecer assim durante toda a noite. No entanto, certamente ele esperaria que ela se fosse embora depois de acabarem. Aquele pensamento foi-lhe tão doloroso que mordeu os lábios. Quando começou a levantar-se da cama, Merrick agarrou-a para a impedir de se afastar.

- Aonde vais?

- Acho que chegou o momento de me ir embora.

- Porquê?

- Porque... porque já acabámos.

- É isso que achas, Allegra? Que só queria usar-te para a seguir te pedir que te fosses embora?

- Não sei, milorde.

- Oh, Allegra... Minha doce e maravilhosa Allegra. Nesta cama não quero que me chames assim. Aqui, sou simplesmente o homem que te adora. Além disso, copular com uma pessoa não é só isto.

-Não? -Não.

- Então, o que é?

- É desejar tocar um no outro. Com frequência. Intimamente. Sussurrar tolices para ver como o outro sorri. É isso, meu amor... disse Merrick. De imediato, esboçou um sorriso. - Vês? Não podes negar que gostas quando te chamo meu amor.

Allegra corou vivamente.

- É verdade, mas não é preciso que o faças para me agradares, milorde... Penso que me vai custar um pouco a chamar-te outra coisa que não "milorde".

- Chama-me pelo meu nome...

- Então, Merrick.

- Outra vez.

- Merrick... Merrick, meu amor...

- Oh, Allegra! - exclamou ele, abraçando-a e beijando-a docemente nas têmporas. - Minha Allegra. Minha doce, adorável e encantadora Allegra.

Quando Merrick voltou a deitá-la sobre a cama, ela lançou um grito de surpresa.

- Vamos fazê-lo outra vez?

- Queres?

- Sim, mas não sabia que isso era possível

- replicou ela, com um sorriso.

Merrick não conseguiu conter uma gargalhada.

- Eu sou o senhor destas terras. Declaro que, esta noite, nos teus braços, minha bruxa maravilhosa, tudo é possível.

Então, já não precisou de mais palavras. Demonstrou-lhe, do único modo que sabia, que era um homem de palavra.

 

- Tantas cicatrizes! - exclamou Allegra, aninhando-se nos braços de Merrick, enquanto lhe percorria o corpo com as mãos. São todas das batalhas?

-Sim...

Depois de uma noite de amor, Merrick sentia-se completamente satisfeito. No entanto, quando sentiu as mãos de Allegra por cima do seu corpo, começou a ficar excitado outra vez. Como era possível? Estava surpreendido por a sua doce inocência poder ser tão tentadora. Parecia que nunca se ia cansar dela. Allegra tinha-o enfeitiçado, mas ele estava demasiado apaixonado para se importar.

- Esta deve ter doído muito - disse a jovem enquanto lhe acariciava uma linha grossa de carne nodosa que se cruzava com outra.

- Sim. É de uma lança que esteve prestes a empalar-me, mas sobrevivi, como podes ver.

- Como consegues suportar voltar às batalhas uma e outra vez sabendo que serás obrigado a suportar tanta dor?

- Prefiro suportar a dor que ver o meu filho submetido a um invasor.

- Não te incomoda que o teu próprio povo te chame Espada das Terras Altas?

- Faço o que tenho que fazer por eles. Se querem pensar que aprecio as matanças, como vou impedi-los? Luto pela liberdade deles, Allegra, tanto como pela minha. Isso inclui a liberdade de pensar o que quiserem de mim.

- Meu guerreiro valente... Se soubessem a bondade que há no teu coração... - sussurrou Allegra, acariciando-lhe suavemente a testa com a mão.

Merrick agarrou-a e levou-a aos lábios. A luz da lua, os olhos brilharam-lhe de paixão.

- Como ia eu saber que quando invadi o teu reino e te raptei te ias transformar num tesouro para mim?

- Se eu tivesse sabido que o meu raptor me ia roubar o coração, podia ter-me libertado de alguns momentos bastante aterradores. No Lago Encantado, pensei que fosses afogar-me.

- Quase nos afogámos os dois - comentou ele, rindo-se.

- Eras uma visão aterradora. Coberto de sangue e com aspecto mais de gigante que de homem. Como conseguiste derrotar o dragão?

- Tirei-lhe a vida, mas primeiro tive que enfrentar o exército de espadachins que guarda o lago.

- A minha família não tem nenhum exército - disse Allegra, atónita.

- Talvez o tenham disposto a tua mãe e a tua avó sem que tu soubesses.

- Não, Merrick. Que necessidade tínhamos de um exército quando dispúnhamos do dragão? Nenhum homem enfrentaria tal perigo a menos que se visse impelido por uma paixão tão forte como a tua. Descreve-me esse exército de que falas.

- Noutra altura, meu amor - sussurrou Merrick. Abraçou-a e começou a beijá-la suavemente nas têmporas. - Neste momento, tenho uma coisa muito mais importante para fazer.

No entanto, enquanto a beijava, não conseguiu esquecer-se das palavras de Allegra. Se o exército não era da sua família, quem o tinha enviado e com que propósito?

Para a distrair e a si mesmo, começou a beijar-lhe a curva suave da garganta. Allegra tremeu e lançou uma gargalhada.

- Tem cuidado, Merrick. Já sabes onde isso leva.

- Sim... Por acaso isso é uma queixa, meu amor? Foi uma noite de demasiado amor para ti?

- Pelo contrário. Desejo usufruir mais das tuas habilidades.

- Referes-te a isto? - perguntou-lhe Merrick, antes de depositar uma série de beijos húmidos sobre o ombro e a clavícula da jovem, gozando com o modo como gemidos suaves lhe escapavam da garganta. - E a isto? - acrescentou. Com a língua, começou a traçar círculos em redor de um dos seus seios, para logo fazer o mesmo com o outro, até que sentiu que ela continha a respiração quando fechou os lábios em torno de um mamilo erecto.

A paixão entre eles foi crescendo uma vez mais. Foi como uma brasa que, em questão de segundos, se transformou num fogo desenfreado. Já não trocaram mais palavras. Limitaram-se a guiar-se um ao outro na viagem longa e lenta do amor.

- Mordred pensa que devia aceitar o facto de que Hamish talvez nunca se veja livre dos medos que lhe atormentam a mente - disse Merrick enquanto brincava com uma madeixa de cabelo de Allegra.

A noite estava a desaparecer muito rapidamente. Já se via como os dedos rosados da alvorada começavam a apropriar-se do céu.

- E por que te disse Mordred uma coisa tão cruel?

- Não acredito que o fizesse por crueldade, porque gosta muito do meu filho. Simplesmente contou-me os rumores que ouviu. Que o sangue da sua mãe flui através dele, afectando-lhe a mente.

- E que implica isso?

- Toda a gente sabe que Catherine estava louca. Disseram-me que esse tipo de coisas se transmite aos filhos.

- É essa a razão pela qual ninguém fala da mãe de Hamish? Por que acreditam que estava louca? - perguntou Allegra, compondo-se na cama e deixando que o cabelo lhe escorregasse pelos seios.

- Por que faria uma mulher as coisas que ela fez? Quase desde o dia em que nos casámos, passou da rapariga doce do povo por quem eu estava apaixonado a alguém que eu quase não reconhecia. Já não me lembro do número de vezes que ela parecia completamente perdida no interior da sua mente, incapaz de encontrar o caminho de volta. Apesar de todas as mudanças que se produziram nela, eu não estava preparado para o final que teve. Nenhuma pessoa sensata saltaria de uma varanda.

- Pareceu-te que estava assustada naquele dia?

- E como posso sabê-lo? Parecia sempre assustada com qualquer coisa. Um ruído nocturno podia deixá-la a tremer durante horas. Via coisas que mais ninguém via. Ouvia coisas que nenhum de nós ouvia. Tinha todos os sintomas de loucura, mas eu recusei-me a vê-los até ser demasiado tarde.

- Culpas-te pelo que aconteceu?

- Sim. Toda a gente me tinha avisado que a prendesse antes que fizesse mal a si mesma ou aos outros, mas pareceu-me demasiado cruel. Como consequência da minha negligência, o meu filho não tem mãe.

- Ele recorda-a como uma mãe boa e carinhosa.

- E era. Embora muito frequentemente estivesse demasiado cansada para se levantar da cama e atender as necessidades de Hamish, sentia devoção por ele.

- E também sentia devoção pelo marido?

- Pouco depois de nos casarmos, afastou-se de mim. Considerava-me um mau marido por deixá-la tanto tempo sozinha e ir para a guerra. Isso era verdade, e continua a sê-lo, mas não penso desculpar-me por lutar contra os invasores que ameaçam as nossas terras.

- Nem deverias fazê-lo, Merrick. O que fazes é um acto de nobreza e de valentia.

- Ora! - exclamou ele, com um sorriso nos lábios. - Por acaso estás a defender a Espada das Terras Altas?

- Alguém tem que o fazer. Como consegues suportar que não te compreendam?

- Oh, minha pequena bruxa... Talvez tu devesses percorrer estas terras, elogiando nas tuas canções o senhor deste povo.

- Fá-lo-ia se mo pedisses, Merrick.

- Tenho a certeza disso, Allegra.

Com um suspiro, abraçou-a e voltou a beijá-la, embora dessa vez o fizesse com uma paixão que fez com que os dois gemessem de prazer. Contra os lábios de Allegra, sussurrou:

- Como pude viver tanto tempo sem ti no meu mundo?

- E eu sem ti.

- Acho que não te mereço, Allegra - afirmou, depois de a beijar uma vez mais quase com reverência, - mas não tive a força de vontade necessária para recusar o que tu me oferecias tão livremente.

Entre beijos doces e suspiros suaves, levaram-se um ao outro a um lugar onde não existia dor. Um lugar que, desde o princípio dos tempos, tinha oferecido refúgio aos amantes.

- Bom dia, milorde.

Sem aviso prévio, a governanta entrou no quarto do seu senhor, seguida de vários criados que levavam um bom punhado de cavacas para o fogo.

Enquanto avivavam as brasas e acrescentavam as cavacas, Merrick permaneceu deitado na cama, com um braço debaixo da cabeça. Ao seu lado, as peles pareceram ganhar vida quando Allegra se escondeu entre elas e tapou a cabeça.

- Fui ver como está Hamish - dizia a mulher, enquanto percorria o quarto para apanhar a roupa do seu senhor. - Continua a dormir profundamente, milorde.

- Fico contente, senhora MacDonald.

Depois de apanhar a túnica, a capa e as botas do seu senhor, a mulher inclinou-se para afastar um segundo monte de roupa. Quando se endireitou, tinha nas mãos uma combinação delicada de mulher e um vestido rasgado.

- Vai tomar o pequeno-almoço no salão, milorde? - perguntou-lhe. - Ou será que prefere tomar o pequeno-almoço aqui?

- Reunir-me-ei com Hamish e com os meus primos na sala de jantar, senhora MacDonald.

- Sim, milorde. E a feiticeira? - replicou a mulher, olhando insistentemente para o monte de peles que havia ao lado do senhor.

- Penso que ela também descerá à sala de jantar.

- Como queira, milorde. Farei com que Mara lhe prepare um vestido... nos seus aposentos.

A ama dobrou cuidadosamente as roupas de Allegra e colocou-as em cima de um baú, antes de sair do quarto seguida dos criados.

Quando a porta se fechou, Merrick lançou um suspiro de alívio e afastou as peles.

- Por fim estamos sozinhos, Allegra.

- Achas que suspeitou? - perguntou Allegra, ao mesmo tempo que afastava o cabelo da cara.

- Suspeitou? - repetiu ele, morto de riso. De que estás a falar?

- Sabes exactamente do que estou a falar, Merrick. Achas que a senhora MacDonald suspeita que dormi aqui?

- Duvido que suspeitar seja o termo correcto - respondeu, apontando para o monte de roupa que havia sobre o baú. - A pobre mulher esteve prestes a tropeçar no teu vestido e na tua combinação.

- Oh, não... E os criados? Viram-nos também?

- Teria sido impossível não ver as roupas de uma dama ao lado da cama, mas não tenhas medo. Eu sou o senhor deste castelo. Embora mexeriquem, não dirão uma só palavra na tua presença.

- Não percebes? - exclamou Allegra. Levantou-se da cama rapidamente e começou a passear pelo quarto. Estava demasiado alterada para se importar por estar nua. - Isso só piora as coisas. Todos os habitantes do castelo cochicharão sobre nós e rirão nas nossas costas.

- Talvez cochichem - disse Merrick. Não conseguiu evitar esboçar um sorriso ao vê-la ali, com os braços cruzados sobre os seios, a passear pelo quarto completamente nua. Talvez alguém sinta inveja, mas não penso que alguém se ria.

- Como podes encarar este assunto de forma tão ligeira, Merrick?

- Como? - replicou ele. Então, levantou-se da cama e estendeu a mão. - Anda cá, Allegra.

Ela parou de andar de um lado para o outro e aproximou-se dele. Agarrou-lhe na mão que lhe oferecia e, suavemente, Merrick puxou-a e levou-a até à porta. Fecharam o ferrolho.

Quando se voltou para olhar para ela, continuava a sorrir, embora houvesse um fogo nos seus olhos que acelerou os batimentos do coração de Allegra.

- Agora, enquanto te mostro a minha gratidão pelo presente que me deste esta noite, não haverá interrupções.

-Merrick...

As palavras que ia pronunciar morreram-lhe nos lábios quando ele a abraçou e lhe cobriu a boca com a sua. A paixão voltou a abrir caminho entre eles quando, entre gemidos de prazer, se possuíram um ao outro com o frenesi de uma tempestade das Terras Altas.

 

Sem fôlego, Allegra dirigiu-se rapidamente aos seus aposentos, vestida apenas com uma capa que Merrick lhe tinha dado. Ao entrar no quarto, viu que Mara levantava subitamente a cabeça. Um punhado de ervas secas caiu ao chão antes que a criada se voltasse para olhar para ela.

- Que estás a fazer, Mara? - perguntou-lhe Allegra.

- Estava só a limpar as suas ervas, como me ordenou - respondeu a criada. - É melhor que se despache a tomar banho antes que a água arrefeça.

Allegra tirou a capa e meteu-se na água. Então, a criada aproximou-se e começou a lavar-lhe o cabelo.

- Há qualquer coisa que cheira muito bem, Mara. O que é?

- A senhora MacDonald disse-me para usar os melhores óleos perfumados para o seu banho.

- Que amável da parte dela.

- Não penso que tenha tido escolha. Disse que agora que partilha a cama com o senhor, é melhor que todos a tratemos como se fosse uma senhora, porque senão íamos pedir para as ruas da povoação.

Allegra não soube o que lhe doeu mais, se as palavras ou o facto de a governanta ter ido contar aquelas coisas aos criados. De facto, não parecia próprio da governanta. Agarrou a mão da criada e obrigou-a a parar.

- Por acaso vai negar que partilhou a cama com o senhor? - desafiou-a Mara.

- Já não preciso dos teus serviços, Mara. Sai imediatamente dos meus aposentos - atacou Allegra.

- Deve saber que, se me recusar, o senhor mandar-me-á embora e não terei nenhum sítio para onde ir.

Allegra esteve prestes a ter pena dela. No entanto, quando levantou o olhar, não viu remorso, mas desafio nos olhos de Mara. Aquilo só reafirmou a sua resolução.

- Vai-te embora agora mesmo. Não direi nada ao senhor sobre isto.

- Sim. Como queira.

A rapariga partiu imediatamente, deixando Allegra a olhar para ela com incredulidade. O que provocara tanto veneno nas suas palavras? Pensou nas poucas vezes que tinha estado a sós com a criada. Deu-se conta de que a rapariga não tinha respondido nenhuma vez às suas tentativas de ser amável com ela.

Enquanto secava o cabelo com uma toalha, suspirou. A seguir, enquanto punha o vestido, pensou que devia estar preparada para aquele tipo de tratamento. Afinal de contas, ela era uma estranha no castelo e, pior ainda, era considerada uma bruxa. Aquelas pessoas tinham todo o direito de sentir certos desejos de proteger o seu senhor.

Enquanto escovava o cabelo, deu-se conta de que a criada tinha sido cruel com ela deliberadamente. Quantas outras pessoas quereriam que se fosse embora do castelo? Na verdade, a questão era se havia ali alguém que pudesse considerar como amigo.

Antes que o desespero se apoderasse dela, ouviu a voz da mãe, tal como tinha falado anos antes às filhas.

"Há pessoas nesse outro mundo que parecem gozar criando descontentamento. Fazem todos os possíveis por plantar as sementes da desconfiança. Então, tomam o seu lugar e desfrutam vendo, a uma distância segura, como se desenrola a batalha. Tomem cuidado com essas pessoas, porque são verdadeiramente malvadas."

Allegra decidiu não emitir juízos sobre o resto dos habitantes do castelo. Naquele momento, limitar-se-ia a esperar, a observar e a aprender.

- Milorde, milady...

Quando Merrick e Allegra entraram na sala de jantar, a governanta e os criados estavam perfeitamente alinhados junto a uma mesa carregada de comida. Merrick cumprimentou todos com uma leve inclinação de cabeça e ajudou Allegra a sentar-se.

- O menino vai juntar-se a vós? - quis saber a governanta.

- Não. Hoje de manhã parecia muito cansado e pediu que a cozinheira lhe preparasse umas papas.

- Encarregar-me-ei disso em seguida, milorde.

A governanta serviu-lhes vinho e fez uma indicação aos criados para que começassem a servir-lhes a comida.

Allegra sentiu que todos a observavam enquanto lhe serviam a comida. Desejou sinceramente que Hamish estivesse ali, para poder alegrá-la com a sua conversa. Quando sugerira a Merrick que ficaria com o menino no seu quarto para lhe fazer companhia, ele tinha insistido em que o acompanhasse. Até tinha brincado com o facto de se sentir incapaz de enfrentar os mexericos dos criados.

Comeu em silêncio, ansiosa por acabar.

De repente, Mordred entrou a correr na sala de jantar, com Desmond a pisar-lhe os calcanhares.

- Desculpa a interrupção, primo - disse Mordred. Então, parou um momento para recuperar o fôlego.

- É melhor que vás a correr à povoação acrescentou Desmond, preso pela excitação.

- Para quê? Invasores?

- Sim - respondeu Mordred, quase incapaz de controlar a agitação. - Parece que atacaram durante a noite. Queimaram várias cabanas nos subúrbios da povoação.

- Tão perto? Allegra, tu ficas com o meu filho.

- É claro.

- Não te afastes muito do castelo até que eu regresse - pediu-lhe. Então, aproximou-se dela e agarrou-lhe uma mão entre as suas.

- Como tu disseres. Irei agora mesmo fazer-lhe companhia.

Merrick pôs-se de pé imediatamente para a ajudar a levantar-se.

- Eu acompanho-te, Allegra - anunciou. A seguir, voltou-se para a governanta. - Mande o moço das cavalariças aparelhar o meu cavalo.

- Sim, milorde.

- Vêm comigo? - perguntou aos primos.

- Não - respondeu Mordred. - Desmond e eu pensámos que seria melhor irmos às povoações vizinhas para as avisarmos enquanto tu inspeccionas os danos.

Merrick assentiu antes de sair da sala de jantar. Allegra, que caminhava ao seu lado, suspirou.

- Que atrevidos são esses invasores que ousam atacar tão de perto a Espada das Terras Altas!

- Talvez tenham ouvido rumores de que a espada foi enfeitiçada por uma formosa dama. Já te avisei, meu amor, que no castelo de Berkshire não há segredos.

Ao ouvir aquelas palavras, Allegra ficou imóvel.

- Que se passa? - perguntou-lhe Merrick, parando para olhar para ela.

- Nada.

A jovem recuperou a compostura e continuou a andar ao lado dele. No entanto, enquanto subia as escadas, não conseguia parar de pensar no que lhe tinha ocorrido. Se não havia segredos, então alguém sabia o que tinha acontecido à esposa de Merrick.

Decidiu que, enquanto ele estivesse ausente, teria que pensar num modo de descobrir aquele segredo.

- Bom dia, Hamish - disse Allegra, ao entrar nos aposentos do rapaz. Encontrou-o sentado ao lado do fogo, comendo umas papas com mel. - O teu pai foi à povoação - acrescentou, depois de se sentar ao seu lado. - Sentes-te com forças suficientes para ir dar um passeio pelo jardim depois de tomares o pequeno-almoço?

O menino assentiu sem muito entusiasmo.

Alarmada, Allegra tocou-lhe na testa. Hamish parecia estar muito mais frágil do que tinha estado uma hora antes, quando Allegra desceu para tomar o pequeno-almoço. Embora não tivesse febre, o menino estava muito pálido e tinha o olhar apagado.

- Que se passa, Hamish?

- Não sei. Tomei a poção que tu me mandaste, mas não me ajudou.

- A poção?

- Sim. Mara trouxe-ma assim que acordei e disse-me que era para eu tomar antes do pequeno-almoço. Sabia tão mal que quase não consegui bebê-la, mas Mara disse-me que tu te zangarias comigo se não a bebesse toda.

- Oh, Hamish... Mara trouxe-te também as papas?

-Sim.

- Não comas isso - ordenou-lhe, tirando-lhe a tigela das mãos.

- Porquê?

- Porque só te vão pôr mais fraco - respondeu. Então, pôs-se de pé. - Voltarei dentro de cinco minutos com uma coisa que te ajudará.

Quando estava no seu quarto, Allegra trabalhou rapidamente. Moeu folhas de poejo e em seguida fez uma infusão com elas. A seguir, acrescentou leite de cardo. Quando regressou ao quarto de Hamish, deu-lhe a infusão a beber.

- Bebe tudo, até o copo estar vazio.

O menino fez o que lhe ordenou. Allegra tirou-lhe o copo vazio das mãos e pegou-lhe ao colo.

- A infusão demorará um pouco a fazer efeito. Então, vais ver que recuperas as forças. Agora, quero que me prometas uma coisa, Hamish.

O menino olhou para ela com tal confiança que Allegra quase teve medo. Decidiu fazer tudo o que pudesse para conseguir manter o menino a salvo.

- De agora em diante, não tomarás nada a menos que venha directamente das minhas mãos, entendido?

- Sim, mas porquê?

- É parte do feitiço - mentiu. - Eu devo tocá-lo antes de ti. Se for tocado por outra pessoa, a cadeia de magia quebra-se.

O rosto do menino iluminou-se. Então, o pequeno aplaudiu, cheio de excitação.

- Então, para que o feitiço funcione, deve passar das tuas mãos para as minhas?

- Exactamente. E mais uma coisa, Hamish. Ninguém deve saber disto além de nós. De acordo?

-Sim.

Quando o menino se endireitou, Allegra comprovou que as forças pareciam estar a regressar juntamente com a cor das suas faces. Agradeceu por a poção que Mara lhe tinha ministrado não ter tido tempo suficiente de fazer efeito.

Ficou em silêncio, porque o menino era demasiado novo para compreender que alguém lhe quisesse fazer mal. Além disso, não sabia se Mara estava sozinha naquela maldade ou se havia outros. Do que tinha a certeza era que teria que trabalhar rapidamente para descobrir a verdade. A vida do rapaz dependia disso.

- Podemos ir passear agora pelo jardim? perguntou-lhe Hamish.

- Sim. Penso que a luz do sol nos fará muito bem aos dois.

Enquanto atravessavam o castelo, encontraram-se com Mara e com outros criados. Allegra viu como a criada levantava bruscamente a cabeça, como se estivesse surpreendida. Ela limitou-se a sorrir e continuaram a andar.

Quando saíram para o ar livre, Allegra respirou fundo e conduziu Hamish ao longo de um atalho até chegarem a um banco de pedra que havia perto da fonte.

- Vamos sentar-nos aqui e descansar um pouco antes de prosseguirmos.

Quando se sentaram, Allegra fechou os olhos e pensou na sua família. De imediato, uma grande sensação de paz apoderou-se dela.

- Por que sorris? - perguntou-lhe Hamish.

- Estava a pensar na minha família, e isso faz-me sempre sorrir. Fala-me da tua mãe disse ao menino.

- Era muito bonita. Tinha o cabelo como o ouro e os olhos tão azuis como o céu. Quando sorria, eu sentia-me seguro.

- Sei ao que te referes.

- Muitas vezes, não conseguia levantar-se da cama e, quando conseguia, fazia coisas muito estranhas.

- Como por exemplo?

- Uma vez acusou uma criada de ter roubado o anel de ouro que o meu pai lhe ofereceu quando se casaram. No entanto, quando o meu pai o procurou, encontrou-o entre as roupas da cama. Ordenou-lhe que pedisse desculpa à criada.

- Era Mara essa criada?

- Sim. Como sabias? - perguntou o menino, muito surpreendido.

- Ocorreu-me. Que outras coisas estranhas costumava a tua mãe fazer?

- Adormecia à mesa enquanto jantávamos. Caía pelas escadas e dizia que a tinham empurrado, embora não houvesse ninguém perto dela quando ocorria o acidente. Uma noite, saiu a correr para o jardim rasgando a roupa e dizendo que lhe estavam a queimar a carne.

Allegra pensou nas ervas e plantas que cresciam nos prados e nos bosques. Por cada uma que curava, havia outra que, nas mãos erradas, podia causar grande dor. Uma feiticeira que preferisse fazer o mal em vez do bem podia magoar muito com os seus conhecimentos.

- E que fez o teu pai?

- Foi atrás dela e ordenou-lhe que entrasse imediatamente em casa. Quando o fez, trancou-se nos seus aposentos e recusou-se a sair durante vários dias.

- O teu pai deve ter ficado muito magoado ao ver como a tua formosa mãe ia mudando tão drasticamente. Que fazias tu?

- Eu escondia-me.

- Onde?

- No meu esconderijo secreto.

- Vais dizer-me onde é?

- Bom - disse o menino, depois de uma pequena pausa. - Encontrei uma passagem estreita numa das paredes do meu quarto. Descobri que, se ficasse muito quieto, ninguém me conseguia encontrar ali. Enquanto estava no meu esconderijo, ouvia tudo o que se dizia nos aposentos da minha mãe.

- E que ouviste enquanto estavas lá escondido?

O menino ficou em silêncio. Quando olhou para Allegra, tinha uma expressão vazia no rosto.

- Não me lembro.

Allegra percebeu que, pela expressão do seu rosto, o menino lhe estava a dizer a verdade. Fosse o que fosse que tivesse ouvido, estava escondido no fundo da sua memória. Porquê? Talvez porque o que tinha acontecido à sua mãe na sua última noite tivesse sido demasiado terrível para querer lembrar-se ou porque a verdade podia condenar o pai que tanto adorava?

Allegra recusava-se a aceitar aquela segunda possibilidade, mas, no mais profundo do seu coração, sabia que o seu amor por Merrick podia estar a cegá-la para não querer admitir que ele podia ser o culpado da morte da esposa. Por muito dolorosa que fosse a verdade, tinha direito a sabê-la. Tal como os outros.

Ganhara a confiança de Hamish. A seguir, devia descobrir os segredos que o menino guardava num compartimento da sua memória, sem se importar quem pudesse sair prejudicado com isso.

 

- Senhora MacDonald - disse Allegra. De imediato, viu o olhar surpreendido com que a anciã olhou para ela.

- Que estás a fazer na cozinha? - perguntou-lhe a governanta, escandalizada. - Não devias estar aqui. Este não é o lugar adequado para os que são como tu.

- Os que são como eu? Que significa isso?

- É só que... - respondeu a mulher. Olhou à volta, para se assegurar de que estavam sozinhas. - Agora que és tão especial para o senhor, não devias ser vista na cozinha.

- Eu sou a mesma pessoa que era ontem.

- Se é isso o que pensas, rapariga, és uma ingénua. A dama do senhor não deve misturar-se com os criados. Por que vieste aqui?

- Para lhe fazer uma pergunta.

- Pergunta então. Tenho trabalho para fazer.

- Há quanto tempo está Mara a servir no castelo?

- Mara? Há já quatro anos. Desde que perdeu os pais - respondeu, depois de pensar durante um instante. - Lady Catherine ganhou bastante afeição por ela e pediu ao senhor que a trouxesse para viver no castelo, tal como fez com muitos outros que não têm casa. Foi sempre assim.

- Mara cresceu na povoação?

- Sim.

- Costuma voltar lá para visitar os amigos?

- Que eu saiba, não. Prefere a vida do castelo.

Allegra estava prestes a partir quando uma coisa lhe passou pela cabeça.

- Os invasores mataram os pais dela?

- Se bem me lembro, morreram nas suas camas. Alguns dizem que estavam amaldiçoados. Outros, que tinham comido carne rançosa. Fosse qual fosse a razão, meteram-se na cama e na manhã seguinte foram encontrados mortos. Essa é a razão pela qual tenho que suportar essa criada tão preguiçosa. Sei que não tem família.

- E Mara? Ela ficou doente? Como foi que não lhe aconteceu nada?

- Não me lembro. Pergunta-lhe a ela.

- Sim, obrigada, senhora MacDonald. Fá-lo-ei.

Quando Allegra se voltou para se ir embora, a governanta aclarou a garganta.

- Allegra, um momento.

Allegra voltou-se. O tom de voz da mulher suavizou-se.

- Fico muito contente por ver que o senhor e tu encontrastes... consolo um no outro. Está sozinho há demasiado tempo. Embora tu não sejas como nós, vi bondade em ti. Devolveste a alegria à vida do menino e o amor à do senhor. Agora vai-te embora. Tenho trabalho para fazer.

- Sim. Obrigada, senhora MacDonald. Allegra podia ter abraçado a anciã por lhe

dedicar aquelas palavras, mas sabia que, se o fizesse, incomodaria muito a governanta.

Subiu rapidamente aos aposentos de Hamish. Estava decidida a não voltar a deixar o menino sozinho. Tinha encontrado uma amiga na governanta, mas tinha a certeza de que Mara era uma adversária perigosa.

Precisamente quando ia entrar, viu que Mara saía. A criada lançou-lhe um olhar de desprezo antes de descer as escadas. Allegra entrou rapidamente no quarto.

- Hamish, Mara deu-te alguma coisa de comer?

- Disse-me que tu me mandavas uma infusão. Eu disse-lhe que não a beberia das suas mãos e ela respondeu-me que diria ao meu pai que eu me tinha mostrado pouco respeitoso com ela. Acho que não gosta do teu jogo, Allegra.

- Talvez não - sussurrou ela, dando um abraço ao pequeno, - mas estou encantada por te teres lembrado das regras. Agora, uma vez que não há aqui ninguém, por que não me mostras o teu esconderijo?

Cheio de excitação, o menino levou-a ao lado da lareira. Aí, tocou numa das pedras e, de imediato, abriu-se uma porta na parede, deixando a descoberto uma passagem estreita.

Quando entraram nela, o menino tocou noutra pedra e fechou a entrada. Allegra teve que se agachar para não bater com a cabeça. O menino começou a avançar para um ponto de luz que se via à frente deles. Muito em breve, a luz tornou-se mais potente e Allegra compreendeu que tinham chegado ao quarto de Catherine.

Daquele lado não havia porta, apenas uma fenda estreita que permitia ver o espaço que havia entre a cama e a mesinha. Nesse momento, viram Mara a entrar no aposento. Depois de olhar à volta, a criada começou a desfazer a cama e levou as peles para a varanda para as sacudir antes de voltar a pô-las na cama.

Porquê? Allegra não percebia. Aquele quarto estava vazio há mais de um ano. Como se explicava a conduta da criada? Allegra só a via cada vez que Mara passava entre a cama e a mesinha. No entanto, pelos sons que se ouviam, era óbvio que a criada estava a limpar o quarto. Finalmente, quando Mara se foi embora, Allegra inclinou-se sobre Hamish e percebeu que o menino estava muito pálido.

- Que se passa, Hamish? Do que é que te lembraste?

-Mara...

- Anda, diz-me. Que se passa com Mara?

- Como era a dama de companhia da minha mãe, estava sempre nos seus aposentos. Naquela noite... Na noite em que a minha mãe morreu, Mara levou-lhe uma sopa. Quando a minha mãe se recusou a comê-la, Mara pôs-lhe a colher na boca e obrigou-a a comer.

- Tal como tinha imaginado. Vamos, Hamish. Assim que o teu pai voltar da povoação, temos que lhe contar o que te lembraste.

Lentamente, regressaram à saída. Quando Hamish tocou na pedra, saíram de novo para o quarto do rapaz. Allegra sentiu um calafrio. Então, viu Mordred e Desmond de costas para a porta. Alarmou-se ao ver nos seus rostos uma expressão que não conseguiu perceber.

- Que se passa? Aconteceu alguma coisa a Merrick?

- Ainda não - respondeu Mordred, - mas espero que não tarde muito a acontecer.

Ao ouvir aquelas palavras, Allegra recuou, protegendo Hamish com o seu próprio corpo.

- Que quereis dizer com isso? Que fazem aqui?

- É uma sorte que não te tenha ocorrido fechar o ferrolho da porta do quarto do rapaz tal como fazias com a tua porta.

- Éreis vós que vínheis ao meu quarto à noite...

- Sim. Esperávamos assustar-te o suficiente para que fugisses para a tua casa. E tê-lo-ias feito se não tivesses fechado o ferrolho.

- Foi isso que fizestes à esposa do vosso primo?

- Ela era muito mais ingénua que tu. Uma idiota confiante. Com Merrick distraído pelas invasões das nossas fronteiras, lady Catherine não nos criou muitos problemas, especialmente porque ela mesma tinha escolhido a sua dama de companhia e... - interrompeu-se com uma gargalhada cruel, - e porque esta tinha sido instruída por nós. Também não nos teria custado muito a desfazermo-nos do rapaz se tu não tivesses chegado.

- As poções de Mara... Porquê? Por que queríeis magoar uma mulher indefesa e o seu filho?

- Não tinha nada a ver com eles. Tratava-se simplesmente dos passos necessários para alcançarmos um fim.

Allegra sentia a maldade à sua volta. Viva, cheia de escuridão. Ao olhar para aqueles dois homens, viu-a nos seus olhos. De repente, compreendeu tudo.

- Tudo isto tem a ver com Merrick, não é verdade? Odeiam-no, não só porque é poderoso, mas também porque é bom.

- Bem... É precisamente a sua bondade que lhe vai custar a vida - gozou Mordred.

-Não entendo...

- O nosso primo acredita que somos seus servidores leais, porque partilhou a sua casa e a sua mesa connosco - replicou Mordred, com um sorriso artificioso. - Afinal de contas, lutámos ao seu lado e até lhe oferecemos consolo quando perdeu a sua adorada Catherine.

Allegra estendeu a mão e agarrou a mão trémula de Hamish entre as suas.

- Enquanto isso, não faziam mais que engendrar um plano contra ele.

- Tivemos que o fazer, dado que não conseguíamos que morresse em batalha. Esse homem parece estar protegido. Por muitas espadas que enfrente, consegue sempre fugir da morte. Nem sequer foi derrotado pelo exército que enviámos para que fosse ao seu encontro na fronteira do Reino Mítico.

- Fostes vós que enviastes esses guerreiros?

- Sim. Agora, milady, o rapaz e tu vindes comigo.

-Aonde?

- Já vereis.

- Eu irei onde vós quiserdes, desde que prometais deixar Hamish aqui.

- Sim, claro que o deixarei aqui, mas primeiro terei que lhe cortar o pescoço para me assegurar do seu silêncio. É isso que queres?

Mordred balançou-se sobre eles e tentou agarrar o menino, mas Allegra pôs-se à frente do pequeno e impediu-o.

- Primeiro tereis que me matar.

- Como queiras - replicou ele, com uma gargalhada cruel.

Mordred tirou uma faca e agarrou-a pelo braço precisamente quando ela dava um passo para trás. Allegra lançou um grito de dor. Rapidamente, cobriu a ferida para tapar o sangue. Quando Mordred voltou a lançar-se sobre ela, Allegra agachou-se, o que fez com que a lâmina da faca do assassino se afundasse na parede, precisamente ao lado da cabeça da jovem.

Enquanto ele tentava tirar a faca, Allegra agarrou no menino pela mão e desatou a correr com a esperança de chegar à porta.

Antes de conseguir abri-la, arrebataram-lhe Hamish.

Quando se voltou, viu que Desmond tinha o menino ao colo, com a lâmina de uma faca apertada contra a sua carne tenra.

Allegra ficou completamente imóvel.

- Agora, farás o que te dissermos - disse Mordred, - ou o rapaz pagará.

- Ides atirar-me da varanda, como fizestes com Catherine?

- Não acredito que isso seja aconselhável. Duvido que alguém acreditasse que tu fosses capaz de fazer isso, embora pudessem tê-lo engolido se Mara tivesse conseguido dar-te uma das suas poções. Não, decidi que a tua morte e a do rapaz devem ser muito mais dramáticas. Serão encontrados num prado, com os corpos completamente destroçados pelas espadas dos invasores.

- Pareceis muito seguros de vós mesmos. Como ides conseguir fazer com que os bárbaros vão exactamente a esse sítio?

- Neste momento - disse Mordred, depois de soltar uma gargalhada em uníssono com o seu irmão, - Merrick está a contemplar os restos queimados de várias cabanas, do outro lado da povoação, que foram atacadas e queimadas ontem à noite pelos... invasores. Infelizmente, não sobreviveu ninguém.

- E suponho que o vosso irmão e vós se ocuparam disso, não é verdade?

- Sim, uma desgraça, dado que nos vimos obrigados a sacrificar o nosso próprio povo. No entanto, precisávamos de culpar alguém pela tua morte e pela do rapaz. Que coisa melhor que invasores que atacam e que em seguida batem em retirada?

- Como explicareis a morte de Merrick?

- Como amante e pai, podemos ter a certeza de que irá em vosso auxílio, especialmente quando encontrar esta missiva.

Mordred meteu a mão na túnica e tirou um bocado de pergaminho enrolado.

- Quando chegar ao prado, partilhará o vosso destino às mãos dos invasores, que, é claro, escaparão antes que possamos castigá-los. O povo levantará as armas pela indignação das suas mortes e unir-se-á à minha volta, o seu novo líder. Agora, mulher - acrescentou, com um gesto tão aterrador que Allegra desejou esconder-se, - virás connosco até ao jardim e dali iremos até ao prado. Se gritares ou fizeres alguma coisa que possa atrair a atenção dos criados, o meu irmão matará o rapaz. Percebes? - concluiu, torcendo-lhe o braço.

Depois de lançar um grito de dor, Allegra assentiu. Era-lhe impossível falar. O medo tinha-lhe feito um nó na garganta.

- Muito bem - disse Mordred. Entrelaçou um braço no dela. Allegra reparou que, contra as costas, escondido pela manga, havia um punhal pequeno e afiado. - O rapaz e tu serão as armas perfeitas para nos ajudar a conseguir a destruição do nosso querido primo Merrick.

Ao passar ao lado de Mara, Allegra viu que a rapariga fazia uma leve inclinação de cabeça, como se compreendesse o que ia acontecer. Era evidente que a criada conhecia perfeitamente os planos dos dois homens.

Nesse momento, com a vida de Hamish em perigo, Allegra não podia fazer nada para os deter. No entanto, decidiu que quando alcançassem o seu destino encontraria um modo de os enfrentar. Embora a sua maldade a assustasse, sabia que tinha que lhes fazer frente.

Enquanto caminhava ao lado de Mordred, conseguiu estender a mão para tocar em Hamish. Sentiu que o pequeno estava a tremer.

- Força, Hamish. Coração ao alto.

Ao ouvir as suas palavras, Mordred lançou uma gargalhada que lhe gelou o sangue.

- Não, rapaz. Deixa o coração onde está. Seremos nós quem mexeremos nele para to tirarmos para alimentar as raposas do bosque.

Allegra viu como aquelas palavras aterrorizavam o menino. Fosse qual fosse o carinho que Mordred tivesse mostrado pelo menino, tinha desaparecido. Em vez disso, destilava um sentimento profundo de crueldade.

Decidida a evitar que o menino sofresse mais, Allegra parou bruscamente e virou-se para enfrentar Mordred.

- A menos que acedais a parar de atormentar este menino, chamarei a atenção de toda a casa, mesmo que me mateis aqui mesmo.

- Já te disse que farei muito melhor que isso. Corta o pescoço do menino - ordenou ao seu irmão.

- Não! - gritou Allegra. - Por favor, Desmond, suplico-vos. Se deixardes que o menino continue vivo, continuarei a andar em silêncio.

- Esta é a tua última oportunidade - lembrou-lhe Mordred. Então, deu-lhe um empurrão para que continuasse a andar. Já tinham saído do jardim. - Continua a andar em silêncio ou terás o sangue do menino nas mãos.

Em silêncio, Allegra ficou a pensar na sua família. "Oh, mãe, oh, avó! Ajudem-me a encontrar no meu interior a coragem que preciso para enfrentar tanto mal."

Quase de imediato, sentiu uma profunda sensação de paz. Olhou para Hamish, que ia ao colo de Desmond. O menino tinha o rosto maculado pelas lágrimas e os olhos fechados perante o perigo iminente. Allegra jurou que salvaria a vida do rapaz. Para isso, seria capaz de dar a sua própria vida.

 

Merrick pôs o cavalo em andamento para se dirigir a toda a velocidade à fortaleza. A brutalidade do ataque contra os seus vassalos tinha-o deixado completamente aturdido. Primeiro tinham deitado fogo às cabanas para a seguir matarem famílias inteiras enquanto fugiam das chamas. Não tinha saído ninguém com vida.

Aparentemente, os homens tinham sido assassinados com rapidez por flechas que tinham sido disparadas enquanto fugiam das chamas. As mulheres e crianças tinham tido um destino mais cruel. Tinham sido tratadas com brutalidade e torturadas antes de serem assassinadas.

Que espécie de bárbaros era capaz de fazer tais coisas? Aquele povo era apenas uma mão cheia de aldeãos pacíficos. Quando estavam a dormir nas suas casas, tinham sido massacrados como animais. Estava satisfeito por ter pedido a Allegra que ficasse com Hamish. O menino era tão frágil que Merrick receava por ele.

Quando chegou ao pátio do castelo, desmontou e entregou as rédeas a um pajem antes de entrar a correr no castelo. Dirigiu-se directamente aos aposentos do filho, porque precisava de o abraçar durante um instante. A imagem dos mortos que acabava de ver acompanhá-lo-ia durante muito tempo. Ter o filho perto de si ajudaria a superar a dor.

Abriu a porta e olhou à volta, muito surpreendido. O quarto estava completamente revolto. Além disso, havia uma abertura na parede da lareira. Que seria aquilo? Uma passagem? Depois de olhar para o interior, deu-se conta de que conduzia aos aposentos da sua falecida esposa. Assombrado, recuou, perguntando-se por que Hamish nunca tinha mencionado aquilo. Talvez o tivesse descoberto naquele mesmo dia.

Voltou-se e viu que havia um pergaminho em cima da cama do rapaz. Quando o abriu, as palavras pararam-lhe o coração:

Temos a bruxa e o rapaz. Vai até ao prado sozinho ou morrerão.

Quem tinha Allegra e Hamish? Porquê? Era impossível que os invasores tivessem penetrado na sua fortaleza.

Quando se dirigia à porta, viu que havia sangue no chão. Ajoelhou-se e tocou-lhe com a ponta dos dedos. Então, sentiu que a alma lhe caía aos pés. Pensar que o seu filho ou Allegra podiam ter sido feridos encheu-o de raiva. Conteve um palavrão e dirigiu-se rapidamente aos aposentos de Allegra. Aí, encontrou uma das criadas a usar um dos vestidos de Allegra. A rapariga estava a contemplar-se ao espelho.

- Mara, que estás a fazer? - rugiu.

A rapariga recuou e levou uma mão à garganta.

- Eu... não queria fazer mal... Só queria ver que aspecto teria com uma coisa tão elegante...

- Como te atreves a tocar nas coisas da tua senhora? - atacou Merrick, agarrando-a pelo braço. - Diz-me o que se está a passar ou juro que te mato aqui mesmo.

- Eu não fiz nada... Mordred prometeu-me que seria a senhora do castelo se ele conseguisse ser o senhor.

- Mordred? Estás a dizer que isto é obra do meu primo? - perguntou-lhe, soltando-a.

- Sim - replicou, mais encorajada ao ver-se livre. - Já é demasiado tarde para que possa pará-lo. A feiticeira e o rapaz já estarão mortos.

-Não!

Merrick voltou-se e desceu as escadas a correr, com a espada na mão. Quando chegou ao jardim, o medo e a surpresa tinham-no deixado cego de fúria. Embora não soubesse exactamente o que estava a acontecer, tinha consciência de que tinha que encontrar Allegra e Hamish antes que fosse demasiado tarde ou os que lhes tinham feito mal não viveriam para o contar. Se não chegasse a tempo de os salvar, a sua vida não voltaria a ter propósito nem significado.

Enquanto avançavam pelos prados, a mente de Allegra agitava-se de possibilidades. Se fosse capaz de distrair os seus raptores, talvez conseguisse arrancar Hamish dos braços de Desmond e desatar a fugir. No entanto, ali, nos prados, não havia sítio onde se esconder. Era inútil tentar correr. Teria que os enfrentar e lutar, mas como? Não tinha armas com que se defender.

- Aqui está bem - disse Mordred. De imediato, soltou Allegra e tirou a espada da bainha.

Nesse mesmo instante, Desmond pôs Hamish no chão. O menino dirigiu-se a Allegra e começou a chorar nos seus braços. Ela deu-lhe um beijo nas têmporas e abraçou-o com força.

- Tens que ser corajoso, Hamish.

- Tenho medo - sussurrou o menino, tentando esconder a cara no ombro de Allegra. Por que nos querem fazer mal os primos do meu pai?

- Porquê, rapaz? - perguntou-lhe Mordred.

- Eu te direi porquê. Desmond e eu passámos a vida toda a partilhar as migalhas da amabilidade do teu pai.

Ao seu lado, Desmond assentiu. Allegra pensou que Desmond acatava todas as ordens que o irmão mais velho lhe dava. De facto, parecia-lhe que Mordred dirigia todos os seus pensamentos.

- Por que pode viver Merrick MacAndrew num grande castelo enquanto a nossa casa está em ruínas? - acrescentou Mordred, cheio de ira. - Porque é que, se todos aprendemos a arte da guerra juntos, teve que ser Merrick o senhor destas terras e não pudemos sê-lo nós?

- Vejo que são os ciúmes que provocam as vossas reacções. Por que pensam que o povo de Berkshire escolheu Merrick como seu senhor?

- Porque o seu pai foi o senhor destas terras antes dele.

- Não, Mordred. Sabes muito bem que essa é uma tradição dos ingleses. Aqui, na Escócia, não se pode herdar o título de lorde. Cada homem deve ganhar a sua própria recompensa e o respeito dos seus. Lembra-te disto, Hamish

- acrescentou, dirigindo-se ao rapaz. - O povo pressentiu no teu pai a habilidade de os conduzir através dos bons e dos maus tempos. O título de lorde é uma honra que recaiu sobre ele não só pela sua habilidade como guerreiro, mas também pela sua bondade e pelo seu sentido de justiça.

- E os primos do meu pai? - perguntou o menino. - Por que não puderam eles ser lordes?

- Porque não são dignos de tal. Estão possuídos pelo mal.

- Atreves-te a dizer que somos malvados, bruxa?

Mordred aproximou-se de Allegra e levantou a mão. Bateu-lhe com tanta força que lhe voltou a cara para o outro lado.

- Não lhe faças mal - disse-lhe Hamish. No seu desejo de defender Allegra, o menino esqueceu-se dos seus medos e agarrou o punho de Mordred antes que pudesse voltar a bater-lhe.

Alarmado, Desmond tirou a faca e levantou-a sobre o rapaz.

- Não, Desmond - ordenou-lhe Mordred. Precisamos que vivam um pouco mais.

- A bruxa disse que somos malvados.

- E tem razão - replicou o irmão, rindo-se.

- Sabes que a bruxa e o menino são simplesmente o isco para caçar o nosso verdadeiro inimigo quando aqui chegar. Quando tivermos acabado com o nosso primo, dar-te-ei o prazer de matar estes dois. O meu irmão gosta de matar - acrescentou, dirigindo-se a Allegra. - Não é verdade, Desmond?

- Sim - replicou ele. - Mordred deixava-me matar animais só pelo gozo que me dava.

Allegra sentiu um calafrio a percorrer-lhe as costas e a envolver-lhe o coração como um punho gelado.

- Eu ensinei-o a caçar para que pudesse desfrutar do desporto de matar - disse Mordred. - A nossa última presa está prestes a chegar, Desmond. Então, a nossa caçada terá acabado.

Merrick atravessou os jardins a correr. Deixou para trás o jardim de ervas que Allegra e Hamish tinham plantado tão cuidadosamente. O lugar era uma lembrança terrível do amor que tinha dedicado àquele pedaço de terra.

Amor... O coração contraiu-se pela dor que lhe provocou aquele pensamento. De boa vontade teria dado a vida pelo seu filho e por Allegra. Amava-a como nunca tinha acreditado que poderia amar alguém. Por sua causa, a vida da jovem, que tinha sido uma vez idílica, poderia acabar em tragédia.

Aquele pensamento fê-lo correr mais rapidamente através dos campos de urze até os pulmões começarem a arder pelo esforço. Quando chegou a um outeiro, viu umas figuras à distância e desatou a correr de novo, a rezar para que não fosse demasiado tarde.

- Vejo que encontraste a nossa carta. Merrick parou bruscamente. Mordred e Desmond estavam ali, armados.

- Allegra, Hamish - disse Merrick, olhando por cima dos homens para onde a mulher estava com o rapaz ao colo. - Vi sangue. Eles fizeram-vos mal?

- Nada de especial - respondeu Allegra. Só um pequeno corte.

- Atira a espada, primo, ou o meu irmão cortará o pescoço do teu filho - ordenou Mordred.

- Não, Merrick! Não fiques desarmado! gritou-lhe Allegra. - Faças o que fizeres, têm intenção de nos matar.

Merrick não prestou atenção às palavras de Allegra. Rapidamente, atirou a espada ao chão.

- Façam comigo o que quiserem, mas imploro-vos que lhes poupem a vida.

- Para que possam dizer a toda a gente o que aconteceu aqui? - perguntou-lhe Mordred, depois de lançar uma gargalhada. - Devem morrer todos hoje mesmo, primo.

Com todas as suas forças, Mordred balançou-se para ele. Merrick saltou para um lado e evitou o pleno impacto, mas, apesar de tudo, a lâmina da espada do primo cravou-se-lhe no ombro. Ao ver que o pai caía de joelhos, sangrando do ombro, Hamish lançou um grito.

- As coisas não te correrão tão bem com o meu irmão, porque ele tem melhor pontaria que eu. Desmond, quando quiseres - disse Mordred, encorajando o irmão a atacar.

Desmond dirigiu-se ao primo com a espada ao alto. Enquanto Merrick tentava evitar o ataque do seu oponente, Allegra começou a concentrar toda a sua energia até que o punho da espada começou a brilhar como o sol. Com um grito de dor, Desmond deixou cair a arma e agarrou a mão, que queimava, contra o seu peito.

- O que é que se passa, Desmond? - perguntou-lhe Mordred, agarrando-o pelo ombro.

- Deve ter sido a bruxa. Usou a sua magia contra mim. Mata-a rapidamente antes que enfeitice os dois.

- Não tenhas medo, irmão - replicou Mordred, com uma gargalhada que gelava o sangue. - Essa bruxa irá suplicar-nos que a matemos antes que tenhamos acabado com ela. Tal como o seu amante - acrescentou. Então, agarrou-a pelo cabelo e puxou com força. IPrimeiro, vamos fazê-la contemplar como morre o seu amante muito, muito lentamente. - Solta-a! - ordenou Merrick. Apesar da dor que sentia, pôs-se de pé e dirigiu-se a eles. - Pára-o, Desmond!

Ao ouvir as palavras do seu irmão, Desmond tirou a faca da cintura e lançou-a. A arma aterrou com um som surdo no meio do peito de Merrick. A cor foi-lhe desaparecendo a pouco e pouco do rosto. Agarrou o cabo da faca com as mãos, mas a dor que sentia era demasiado forte. Com uma expressão de surpresa misturada com dor, voltou a cair de joelhos.

- Agora, bruxa - disse Mordred, - antes que a morte leve o meu querido primo, Desmond e eu vamos mostrar-te o que fizemos às donzelas encantadoras que tiveram que abandonar as suas camas ontem à noite por culpa de um incêndio. Além de nos dar um enorme prazer, tenho a certeza que aumentará consideravelmente a dor de Merrick. Quero que morra a ver como a mulher que ama é humilhada pelos homens em quem confiava.

Allegra sentiu uma repugnância profunda às mãos dos dois homens. Quase não ouvia as gargalhadas de gozo dos dois irmãos enquanto lhe rasgavam a roupa, porque a única coisa que parecia penetrar no seu subconsciente era o choro de Hamish, que estava ajoelhado sobre a erva, junto ao pai. Naquele instante, soube que faria todo o possível por o salvar daqueles loucos, embora se visse obrigada a pagar o preço mais alto.

Nesse momento, Mara chegou a correr. Parou ao lado de Merrick e olhou para ele.

- Está morto?

- Não - respondeu Mordred, rindo-se, mas estará muito em breve. Estamos prestes a dar-lhe mais motivos para experimentar dor.

Allegra aproveitou aquela interrupção para se concentrar. Pôs-se de pé, enfrentando os seus atacantes. Apesar do seu vestido esfarrapado, tinha o porte de uma rainha.

- Diz-me, Mordred - disse. - Que vais fazer quando todos estivermos mortos?

- Serei o senhor destas terras. Tudo isto me pertencerá.

- Prometeste a esta rapariga transformá-la em tua esposa?

- Sim - replicou a criada. - E terei todos os vestidos bonitos que te pertenceram a ti.

- Estúpida - espetou-lhe Mordred. Então, levantou a mão e esbofeteou-a com tal força que a fez cair de joelhos. - Acreditaste mesmo que transformaria uma simples criada na senhora do meu castelo?

A rapariga levou uma mão à boca e ficou surpreendida ao ver que estava manchada de sangue.

- Prometeste-me. Matei os meus pais por ti, para que me trouxessem para viver no castelo e pudesse ganhar a confiança do senhor e da sua família. Ajudei-te a matar a sua esposa e transtornei a mente do menino com as minhas poções.

- Fizeste um bom trabalho, Mara. Ganhaste a tua recompensa.

Sem reflectir nenhum sentimento no rosto, Mordred levantou o braço e afundou a espada no peito da jovem. Então, calmamente, retirou a arma e cravou-a no chão, aos seus pés. Sem fazer caso dos gemidos de Hamish, voltou a olhar para Allegra com uma expressão cruel no rosto.

- Tu não terás tanta sorte. Em vez de te dar uma morte rápida, encarregar-me-ei de que sofras primeiro.

- E o teu irmão? - perguntou-lhe Allegra, sem pestanejar. - Que papel vai ele ter na tua nova vida? Ou será que te verás obrigado a matá-lo também, para que não haja necessidade de partilhar a recompensa que alcançarás com os teus actos malvados?

Desmond franziu o sobrolho. Era evidente que nunca tinha pensado no seu próprio futuro. Rapidamente, voltou-se para o irmão.

- O que vais responder à bruxa?

- Não tenhas medo, Desmond. Tu serás o meu homem de confiança e partilharás comigo a riqueza e o conforto do castelo de Berkshire.

- Mas não serei o lorde.

- Claro que não. Eu sou o mais velho. Além disso, tu nunca terias pensado nisto sozinho. Sem mim, ainda continuarias a viver na cabana do bosque.

- Pois eu gostava da nossa casa... Lembras-te de como a nossa mãe nos deu as boas-vindas quando regressámos da nossa primeira batalha e como chorou connosco a morte do nosso pai?

- Sim. E ter-nos-ia consolado ao longo do Inverno com os seus beijos e abraços até que todos tivéssemos acabado congelados e mortos de fome se eu não tivesse sabido o que fazer.

- O que fazer? Não te entendo, Mordred.

- Nunca entendeste nada. Fui sempre eu quem teve que encontrar uma forma de sobrevivermos. Eu sabia que a mãe de Merrick acolhia todos os que ficavam órfãos. Foi isso que fez connosco quando a nossa pobre mãe encontrou a... morte prematuramente.

Allegra olhou para Mordred, completamente atónita. Embora soubesse que era um assassino de sangue-frio, aquilo ia para além de tudo o que conseguia imaginar.

- Estás a dizer que mataste a nossa mãe, Mordred, para que pudéssemos ir viver para o castelo?

- Por que não? Economizei-lhe uma morte muito mais lenta por falta de mantimentos. Muito em breve, o meu irmão e eu estávamos a viver como senhores.

Quando Desmond se levantou com um rugido e lhe deu um murro na cara, estava a rir-se.

- Não... a nossa mãe não... Ela amava-nos... Gostou de mim como nunca ninguém o fez...

- Sim - atacou Mordred, atónito e furioso, enquanto secava o sangue que lhe saía pelo nariz. - A nossa mãe foi a única mulher capaz de te amar, idiota.

Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, Desmond aproximou-se do irmão e deu-lhe uma cabeçada tão forte que o fez cair sobre a urze. Então, começou a bater-lhe até que o deixou quase sem sentidos.

De repente, Desmond ficou imóvel. Tinha sentido a picada aguda de uma adaga a cravar-se-lhe no peito. Durante um instante, o jovem pareceu demasiado aturdido para conseguir reagir. Então, caiu ao chão.

Mordred afastou o corpo do irmão para um lado e pôs-se de pé. Então, virou o centro da sua ira para Allegra, que tinha aproveitado a distracção para correr para o lado de Merrick.

- Desmond era um simplório. Sem a tua interferência, ter-me-ia servido de boa vontade tal como eu lhe tivesse dito. Tu tinhas que lhe pôr ideias na cabeça. A culpa é tua de eu ter tido que o matar. Agora, bruxa, vais pagar por isso.

Quando tentou agarrar Allegra, uma voz infantil impediu-o. -Não.

- Ora, Hamish! Será que o nosso pequeno cobarde encontrou finalmente coragem?

-Sim...

O menino estava à frente dele. O corpinho tremia-lhe, embora não por Mordred, mas sim pela visão que estava a contemplar.

- Agora me lembro, mamã. Agora me lembro de tudo...

Allegra voltou-se e viu a mulher formosa de cabelos dourados a sorrir ao seu filho com os braços estendidos como se fosse abraçá-lo.

A voz de Hamish tornou-se mais forte.

- Lembro-me da forma como Mordred e Desmond entraram nos teus aposentos depois de Mara te ter obrigado a comer a sopa. Lembro-me como se riam quando te atiraram da varanda. Lembrei-me pela primeira vez no dia em que estava em cima daquela árvore. Mara tinha-me dado uma infusão. Tinha-me dito que me daria asas para voar. Nesse momento, todas as recordações voltaram. Quando caí, desatei a correr aterrorizado. A seguir, voltei a esquecer tudo. No entanto, agora volto a lembrar-me.

A mulher brilhava e reluzia. Então, pegou no filho ao colo e deu-lhe um beijo na face. A seguir, voltou-se e tocou no braço de Allegra. De imediato, a luz tornou-se tão potente que se tornou impossível olhar para ela.

Quando voltou a abrir os olhos, a mulher tinha desaparecido, mas sentia ainda um calor suave no sítio em que lhe tinha tocado.

- Como podes tu saber tudo isso? - perguntou Mordred ao rapaz. - Tu nem sequer estavas lá na noite em que a tua mãe morreu.

- Estava escondido na passagem. Vi e ouvi tudo.

- Então, por que nunca disseste nada?

- Apagou-se-me da mente. Mara veio ao meu quarto e deu-me uma poção para me acalmar. Talvez por isso me tenha esquecido. Talvez tenha sido então que perdi a coragem. Seja qual for a razão, agora lembro-me de tudo e já não tenho medo de ti. Tu mataste a minha mãe - disse Hamish. Então, desatou a correr para ele. - Mas não voltarás a matar.

Mordred levantou um braço para o deter, mas o rapaz afundou-lhe os dentes na carne até ele lançar um grito de dor. Quando conseguiu soltar-se do pequeno, foi puxar da sua espada e descobriu que Allegra a tinha nas mãos.

- Que vais fazer com isso, bruxa? Quase não tens força para a segurar. Como esperas usá-la como arma?

- Tens razão - replicou ela. Então, atirou a espada para um lado. - Não preciso de armas. Estás cheio de maldade, Mordred, e só há uma força mais poderosa.

- Julgas-te mais forte que eu, bruxa?

Tentou agarrá-la, mas ficou muito surpreendido quando as mãos se recusaram a obedecer-lhe. Sentia os dedos tão pesados que quase não conseguia dobrá-los. As pernas também se negavam a mexer-se. Estava imóvel sobre a erva enquanto Allegra levantava os braços e começava a entoar um cântico.

- Poderoso, estende a mão... Arranca este mal da nossa terra...

Embora não houvesse nem uma só nuvem no céu, um raio atravessou o ar e caiu justamente em cima de Mordred. Derrubou-o no chão, onde começou a contorcer-se e a gemer de dor enquanto a carne e os ossos se foram queimando até não haver mais que uma nuvem de fumo. Os trovões começaram a ressoar nas colinas e, quando o som se desvaneceu, o fumo dissipou-se.

Aquele feitiço deixou Allegra completamente esgotada. Precisou de toda a sua energia para cair de joelhos ao lado de Merrick. Viu que o sangue não parava de jorrar da ferida horrenda que tinha no peito e que até o chão que havia por baixo dele se tornara vermelho. Tinha os olhos fechados e estava tão imóvel como um moribundo.

O menino agarrou nas mãos do pai entre as suas e olhou para Allegra.

- Salva-o.

- Oxalá pudesse, Hamish... Oxalá pudesse...

O silêncio foi quebrado pelos soluços do menino, que tentava agarrar-se ao homem que amava mais que a si mesmo.

 

- Por favor, Allegra. Faz qualquer coisa pelo meu pai - suplicou-lhe o pequeno Hamish. - Ajuda-o.

Allegra fez um esforço enorme para tocar nas têmporas de Merrick. Não conseguiu sentir nada. Nem dor, nem confusão nem pensamentos de qualquer tipo. Apenas uma imobilidade que a deixou completamente aterrorizada.

Ficara sem poderes depois de enfrentar Mordred. Sentia-se completamente indefesa para salvar a vida do homem que amava.

Desesperada, levantou o rosto para o céu e gritou:

- Mãe! Avó! Por favor... Venham, por favor. Preciso tanto de vós...

Hamish observou como o último pedaço de cor desaparecia do rosto do pai, deixando a sua cara tão pálida e fria como o granito.

- Está morto, não é? Tal corno aconteceu com a mamã...

- Não, não está morto. Ainda não nos deixou. Só precisa... de ajuda para regressar.

- Tu és a feiticeira. Por que não podes salvá-lo?

- Quero fazê-lo, mas não consigo sozinha...

De repente, ouviu um grande vendaval. O vento bateu com força no campo de urze e duas mulheres embelezadas por vestidos dourados como o sol apareceram ao lado de Allegra.

- Oh... Mãe! Avó! - exclamou Allegra, chorando e rindo de alegria. - Receava que não viessem.

- Como poderíamos deixar de vir? Embora nos tenha levado muito tempo, não há distância nem tempo que nos possa afastar dos que amamos e precisam da nossa ajuda. Tens o coração muito pesado, filha.

- Sim, mãe. Este é Merrick.

- Este é o homem que te tirou do Reino Mítico e te levou para o seu mundo?

- Sim. Chama-se Merrick MacAndrew.

- E agora está no além e tu és livre para regressares a casa, minha filha.

- Não, mãe. Eu nunca ficarei livre de Merrick MacAndrew, porque o levarei para sempre no meu coração.

- No teu coração?

- Sim. Estou apaixonada por ele. Se é mesmo verdade que partiu, só desejo unir-me a ele no outro mundo.

Nola olhou para a mãe por cima da cabeça de Allegra. Então, suspirou e disse:

- Então, não há tempo a perder. Devemos levá-lo para o Reino Mítico, onde os nossos poderes são mais potentes quando se unem aos das tuas irmãs.

- E por que não vieram elas? - perguntou Allegra à sua avó.

- Os seus cavalos alados não podem deixar a segurança do nosso reino e nós tínhamos demasiada pressa para as trazermos connosco, mas não tenhas medo. Estaremos muito em breve com elas. Vamos. Temos que levar Merrick MacAndrew rapidamente para a nossa casa. É esse rapaz sangue deste homem?

- Sim. É o filho de Merrick. Chama-se Hamish.

- Então, a tua força é verdadeiramente poderosa, Hamish, porque o sangue que vai de geração em geração é um vínculo inquebrável. Deves vir connosco - disse-lhe Nola agarrando-o pela mão, - mas deves saber que o que fizermos no nosso reino deixar-nos-á sem forças e que inclusive nos pode custar a vida. Estás disposto a pagar esse preço?

- Sim. Amo o meu pai mais que tudo neste mundo. Mais que a minha própria vida - respondeu o menino.

- Muito bem dito, filho. Agora, anda connosco - ordenou-lhe Nola. Esperou até que todos tivessem entrelaçado as mãos. Então, começou a sussurrar: - Invoco o poder da antiga erudição. Guia-nos através dos céus até ao nosso lar.

Com as mãos unidas, todos se levantaram do chão, formando um círculo com Merrick no seu interior. Voaram como os pássaros por cima de montanhas e nuvens. Ao fim de uns instantes, com a leveza de uma pena, aterraram sobre ums prados verdes, parecidos com os de Berkshire, embora perfumados das mais exóticas fragrâncias. Nas árvores voavam pequenas fadas, com os seus corpos rodeados por uma auréola de luz e as vozes melodiosas tão suaves como o tilintar de uma campainha.

- Allegra... Oh, Allegra! - exclamaram duas raparigas, aproximando-se rapidamente da jovem. - Finalmente estás em casa.

- Estas são as minhas irmãs, Kylia e Gwenellen - explicou Allegra a Hamish.

- Vamos, não há tempo a perder - disse Nola. - Se queremos salvar a vida deste homem, temos que juntar as nossas forças e partilhá-las com ele.

- É isso que tu queres, Allegra? - perguntou-lhe Kylia.

- Sim, mais que tudo neste mundo. Kylia e Gwenellen trocaram um olhar de surpresa antes que a mãe lhes dissesse muito suavemente:

- Allegra perdeu o coração por este homem.

-Ama... Ama-lo? - perguntou-lhe Gwenellen. Não parecia conseguir compreender.

- Sim - murmurou Allegra.

- Então, temos que te ajudar - afirmou Kylia. Rapidamente, agarrou nas mãos das suas irmãs.

- Vamos, Hamish - disse Nola ao pequeno.

- O amor que tens pelo teu pai será a força mais poderosa de todas.

Agarrou na mão do menino e introduziu-o no círculo. As mulheres fecharam os olhos e começaram a entoar um cântico numa língua antiga. Hamish observou-as durante um momento antes de fechar também os olhos. O cântico era-lhe familiar e reconhecia as palavras, como se as tivesse ouvido num sono profundo. Depressa, uniu também a sua voz à delas.

O tempo pareceu parar. Podiam ter estado ali apenas uns minutos ou até horas. De repente, pararam de cantar e abriram os olhos. Todos se sentiam completamente esgotados. Enquanto os outros se inclinavam para olhar para Merrick, Allegra ajoelhou-se ao seu lado e tocou-lhe nas têmporas.

- Agora, todas as tuas feridas estão curadas, meu amor - disse-lhe. - Acorda e volta para ao pé de nós.

Hamish ajoelhou-se ao lado de Allegra e observou como o pai começava a abrir os olhos. A primeira coisa que Merrick viu foi a mulher que estava a olhar para ele. Embora estivesse a sorrir, tinha lágrimas nos olhos. A seguir, olhou para o rapaz que estava ao seu lado, um menino muito bonito, de cabelo loiro e olhos azuis, cujo rosto ficaria para sempre impresso no seu coração.

- Allegra, Hamish... Pensei que tinha morrido - sussurrou com voz rouca. Tocou no peito, mas não havia ferida nenhuma, nem qualquer rasto de dor. - E o ombro também acrescentou, tocando-se para verificar que não existia qualquer ferida. A pouco e pouco, pareceu perceber. Então, um sorriso desenhou-se-lhe nos lábios. - Minha maravilhosa e formosa feiticeira. Isto foi obra tua...

- Não só minha, mas também de toda a minha família e de Hamish.

- Até tu, meu filho? Não me digas que tu também te tornaste feiticeiro?

- Sim, pai. A mãe de Allegra disse-me que precisavam do meu amor.

- Esta é a tua família, Allegra? - quis saber Merrick, ao ver as mulheres que estavam à sua volta.

- Sim. Esta é a minha mãe, Nola, e esta é a minha avó, Wilona. E estas duas raparigas são as minhas irmãs, Kylia e Gwenellen.

- Como posso pagar-vos o presente que me destes? - perguntou Merrick, compondo-se.

- Não queremos pagamento nenhum - respondeu Wilona, em nome de todas. - Os dons que nos deram devem ser usados só para fazer o bem. O que te pedimos é que uses a vida que te devolvemos para fazer só boas obras.

- Isso prometo-vos de todo o coração.

- Agora, tenho a certeza de que vais gostar de comer qualquer coisa - comentou Nola, apontando para a casinha que se adivinhava no horizonte. - Ou talvez o rapaz queira montar um dos nossos cavalos alados enquanto espera pela comida.

Gwenellen levou os dedos à boca e lançou um assobio. Minutos mais tarde, Hamish ficou boquiaberto ao ver que um formoso cavalo alado, branco como a neve, se aproximava deles a voar pelo céu e aterrava nos prados a poucos metros deles.

- Anda, Hamish - disse a menina. - Quero apresentar-te o meu cavalo, Estrela de Luz. Queres montá-lo?

- Sim, por favor! Posso? - perguntou o menino ao pai.

Ao ver o gesto de preocupação de Merrick, Gwenellen disse suavemente:

- Não há razão para teres medo. Eu montarei com ele e evitarei que se magoe.

Merrick assentiu rapidamente.

A rapariga ajudou o menino a sentar-se na sela e a seguir sentou-se atrás dele. Quando sussurrou uma ordem, o animal desdobrou as suas asas e levantou-se no ar.

- Olha, pai! - gritou o menino, cheio de felicidade. A pouco e pouco, o cavalo foi subindo até se perder nas alturas.

- Perdeu o medo - comentou Merrick.

- Sim. Se o tivesses visto a enfrentar os teus primos com a coragem de um guerreiro ter-te-ias sentido muito orgulhoso dele - disse Allegra. - Como te sentes?

- Mais forte e saudável do que alguma vez me senti. Que tipo de magia possuem tu e a tua família?

- É muito potente. Mais forte do que alguma vez imaginei. Não te parece maravilhoso ouvir rir Hamish?

- Sim. Houve uma altura em que receei que não voltasse a ouvir o som da sua voz nem a ver o seu rosto. Nem o teu, Allegra.

Ao contemplar a cena, Wilona agarrou Kylia pela mão.

- Penso que devíamos ir dar uma ajuda à tua mãe com a comida, filha.

- Eu quero ficar - insistiu Kylia. - Não me lembro de alguma vez ter visto um homem nem um menino. Parecem tão diferentes de nós e de Jeremy...

- Sim, são - disse a avó, muito secamente.

- Não são como o que estamos habituados aqui no Reino Mítico. Agora, vamos. Deixemos a tua irmã aproveitar um momento a sós com este forasteiro.

- Eu quero olhar para eles. Quero ver o que fazem os homens e as mulheres apaixonados...

- Noutra altura.

Com isso, Wilona levou a neta para casa. Quando ficaram a sós, Merrick tocou suavemente na face de Allegra.

- Estás muito pálida, meu amor.

- Sim, mas a minha mãe preparará uma refeição que nos devolverá a todos a força que perdemos enquanto estávamos a tratar de ti. Então, dormiremos, porque o descanso cura.

- Como poderei pagar-te pelo que fizeste, Allegra? Primeiro devolveste-me o meu filho e agora deste-me vida.

- Não teria sido possível se não fosses um homem bom e nobre. A oportunidade que recebeste é uma coisa que muito poucos recebem e só é dada aos que a merecem.

Ouviram um grito de alegria e, ao olhar, viram que o cavalo alado estava a aterrar nos prados. Quando Hamish desceu da sua garupa, desatou a correr pelos prados e atirou-se para os braços do pai.

- Viste? Não te parece maravilhoso?

- Sim, claro que vi. Sinto inveja por isso, porque é uma coisa que eu nunca poderei experimentar, filho.

- Achas que posso voltar a montar o Estrela de Luz mais tarde? - perguntou Hamish a Allegra.

- Não vejo por que não. Agora, eu tenho que voltar para a casa da minha mãe para descansar.

Antes de dar um passo, Merrick pegou-lhe ao colo e, apesar dos seus protestos, levou-a assim através dos prados, com Hamish a correr ao seu lado.

Ao chegar a casa, deu-se conta de que toda a família os estava a observar.

- Allegra precisa de descansar.

- Sim - disse Nola. - A sua cama fica naquele quarto.

Levou-a para um quarto pequeno e acolhedor e pousou-a em cima da cama. Quando a aconchegou, Allegra pegou-lhe numa mão entre as suas.

- Promete-me que estarás aqui quando acordar.

- Dou-te a minha palavra de honra... Allegra adormeceu antes de ele sair do quarto.

- Estás muito calado, Merrick MacAndrew

- disse Nola. Tinha-o encontrado no exterior da casa, a observar como Kylia e Gwenellen brincavam com Hamish.

- Estava a pensar.

- Sobre o quê?

- É tudo tão calmo aqui...

- Sim, é verdade.

- O Reino Mítico é um paraíso. Não há fome nem maldade.

- Sim, alguns diriam que é um paraíso.

- Alguns? E porque é que tu não achas que assim seja?

- Não me interpretes mal. Como tu disseste, há muito para saborear no nosso reino, mas por vezes torna-se um pouco solitário. Preocupo-me com o que acontecerá às minhas filhas quando a minha mãe e eu tivermos que as deixar.

- Morrereis um dia? Eu pensava que...

- Que, porque podemos salvar os outros, viveríamos para sempre? Não. A vida e a morte são só algumas das coisas que partilhamos. A mais importante é o amor. A minha filha entregou-te o seu coração, Merrick. Espero que compreendas a enormidade da sua prenda.

- Compreendo, mas, para a merecer, devo estar disposto também a sacrificar a minha própria felicidade pela dela.

Conforme Merrick contemplava o horizonte, Nola voltou-se e regressou a casa, deixando-o sozinho com os seus pensamentos.

Depois de descansar, todos partilharam uma refeição. Um guisado de peixe do Lago Encantado preparado com verduras da horta de Allegra, pão acabado de sair do forno e vinho quente para que a cor voltasse a tingir-lhes as faces. Por último, chá e bolinhos cobertos de mel.

Quando acabaram de comer, Merrick encostou-se na cadeira e abanou a cabeça.

- Percorri terras desde Edimburgo até às Terras Altas, mas nunca saboreei comida tão deliciosa - disse.

Nola sorriu.

- Talvez seja mais a companhia que a comida - replicou.

- Sim, a companhia também é muito boa afirmou, olhando à sua volta. - Agora vejo por que encontrais consolo nesta terra formosa. Não se parece com nada que eu tenha visto antes. Não há discórdias nem se sente o passar do tempo...

- Talvez queiras ficar, Merrick MacAndrew - sugeriu Wilona. - Temos lugar para ti e para o teu filho.

- Oxalá pudesse, mas tenho um dever para com o meu povo. Esperam que os proteja das pilhagens dos invasores. Sem mim, os seus rebanhos minguariam, as suas cabanas arderiam, veriam desfalecer os seus entes queridos e, finalmente, acabariam com as suas vidas escravizadas.

- Não é fácil sobrepor o dever ao prazer comentou Nola, olhando para Allegra. A jovem tinha estado muito calada durante a refeição e, embora tivesse recuperado as forças, continuava a estar muito pálida. - Ficarás pelo menos outra noite, Merrick?

- Não. Não sei quanto tempo passou desde que nos fomos embora de Berkshire. O meu povo estará preocupado. Merecem saber a verdade sobre os meus primos malvados, que assassinaram os seus próprios vizinhos fingindo que tinham sido os invasores.

- Realmente, há muito mal no teu mundo afirmou Nola, pondo-se de pé. - É uma coisa que aqui, no Reino Mítico, quase esquecemos.

- Infelizmente, é uma coisa que eu não posso esquecer - replicou ele. - Talvez chegue um dia em que o bem triunfe sobre o mal, mas, até lá, devo permanecer vigilante e continuar a batalhar com todas as forças que possuo.

- A minha filha esteve, na verdade, a lutar pela tua vida, Merrick MacAndrew. A tua causa é muito nobre.

- Não, sou um guerreiro - replicou ele.

Salvei as vidas de muitos homens no campo de batalha. Não mereço a tua admiração, Nola

- acrescentou. Então, Merrick pôs-se também de pé e agarrou na mão do seu filho. - Agora, Hamish e eu temos que nos ir embora. Se fôsseis tão amáveis como para nos dispensar um cavalo...

- Não precisas de cavalo nenhum, Merrick

- disse Nola, conforme saía de casa. - A minha mãe e eu usaremos o nosso poder para vos devolvermos à tua terra.

Todos os outros se levantaram e saíram atrás de Merrick. Wilona reparou que Allegra tinha uma expressão de profunda tristeza no rosto.

- O que se passa, minha filha? - perguntou-lhe a anciã. - O homem que amas está curado e vai regressar para junto do seu povo. Não era isto que querias?

- Sim - sussurrou Allegra, procurando conter as lágrimas que ameaçavam derramar-se, mas esperava que ele correspondesse ao meu amor e me levasse com ele.

- Talvez te ame demasiado para te pedir que o acompanhes.

- Não percebo.

A anciã limitou-se a abraçar a neta. Então, continuaram a andar atrás dos outros. Quando chegaram ao prado, as mulheres rodearam Merrick e o seu filho.

- Formamos um círculo à vossa volta e unimos os nossos pensamentos aos vossos para vos devolvermos ao vosso lar. Deveis dar a mão e não quebrar o contacto um com o outro até que chegueis à vossa terra. Se não fizerdes assim, regressareis aqui. Entendido?

Merrick anuiu. Então, olhou para Allegra. Estava tão pálida, tão triste... Saber que ele era a causa daquela dor cortava-o como uma faca, mas tinha que permanecer firme, porque sabia que o que estava a fazer era o que estava certo. Não tinha nenhum direito de a afastar de tudo aquilo. Já tinha sofrido demasiado por sua culpa.

Deu um passo em direcção a ela, com cuidado para não lhe tocar. Sabia que, se o fizesse, nunca voltaria a ter forças para a deixar escapar.

Como sabia que os outros estavam a ouvir, esvaziou a sua voz da paixão que lhe ardia no interior.

- A tua mãe só me pediu para passar o resto da vida a fazer o bem. Vou começar neste mesmo instante. Amo-te mais que à minha própria vida, mas o teu lugar é aqui, Allegra. Aqui podes viver alheia à crueldade do mundo exterior.

- Posso dar a minha opinião sobre o assunto?

Abanou a cabeça. Temia, que se Allegra falasse, fracassasse na sua primeira prova. Afastou o olhar dela e dirigiu-se a Nola.

- Tenho o coração cheio de gratidão pelos presentes que me deram a mim e ao meu filho. Agora, despedimo-nos de vós.

Nola entoou o seu cântico.

- Deixai-nos então, se assim tem que ser. Caminhai sempre com fé, esperança e confiança.

Allegra contemplou Merrick e Hamish a levantarem-se lentamente do chão. Foram subindo a pouco e pouco, até não serem mais que um ponto no horizonte. Conteve as lágrimas e ficou a observá-los até os perder de vista. Então, como já não conseguia suportar mais, desatou a correr pelos prados à procura da solidão do seu jardim. Ali estaria condenada a uma vida de solidão.

 

Allegra bateu furiosamente numa erva daninha com a enxada até a arrancar. Então, ocupou-se de outra e de mais outra, até lhe doerem as mãos pelo esforço.

Não tinha imaginado que lhe partiria o coração? Não a tinha avisado a mãe da crueldade do mundo de Merrick? Que estúpida devia ter parecido! Oferecer-se a ele daquela maneira, pedindo-lhe que possuísse não só o seu corpo, mas também o seu coração e a sua a alma...

Merrick tinha-se ido embora e tinha levado uma parte de Allegra com ele.

Aquilo era muito pior que qualquer dor física. Aquela dor tinha-lhe transformado o coração numa ferida infectada que jamais sararia. E tinha sido ela mesma quem a tinha provocado.

Estava à espera, ainda que sem muita convicção, que Merrick virasse costas ao seu mundo e ficasse no dela. Teria sido maravilhoso tê-lo ali, num lugar livre de guerras, das crueldades que tanto o perseguiam. Admirava as razões que tinha exposto para regressar. O que não conseguia perceber era a razão que tinha dado para não a levar com ele.

De repente, ouviu um barulho. Parecia o riso de uma criança. Quando ergueu a cabeça, viu o cavalo alado de Gwenellen a voar por cima da sua cabeça. Assombrada, tapou os olhos com a mão para que o sol não a encadeasse. Havia duas figuras em cima da garupa?

- Não é uma sombra o que estás a ver, meu amor. É Hamish.

Ao ouvir a voz profunda de Merrick, Allegra voltou-se, cheia de alegria.

- Suplicou que a tua irmã o deixasse dar outro passeio e ela teve a amabilidade de o acompanhar.

- Pensei que tu... te ias embora. Como é que...

- A culpa é minha. A tua mãe avisou-nos, a mim e a Hamish, que teríamos que dar a mão até chegarmos a casa, caso contrário voltaríamos aqui.

- Um erro?

- Não, temo que tenha sido deliberado. Falhei na minha primeira prova.

- Prova?

- De nobreza. Queria deixar-te aqui, Allegra, onde estás a salvo de todo o mal. Sei que era o que tinha que fazer, mas não consegui.

- Como não conseguiste?

- Sei que não posso ficar aqui, ainda que isto seja um paraíso. O meu povo precisa de mim. Contudo, se conseguisse persuadir-te a vires comigo, como minha esposa, faria tudo o que estivesse ao meu alcance para que Berkshire fosse tão parecido ao paraíso quanto possível.

- Tua esposa? Queres casar comigo, Merrick?

- Mais que tudo no mundo. Quer dizer, se tu me aceitares. No entanto, tenho que te avisar que frequentemente estou longe do castelo a lutar contra os invasores. Terei que te deixar sozinha no castelo durante longas temporadas e, quando regressar, estarei ferido e cansado. Contudo, dou-te a minha palavra de honra que lutarei até ao último sopro para que estejas a salvo, meu amor. Se formos abençoados com filhos, educá-los-ei para que sejam bons e nobres e para que honrem a sua mãe em todos os aspectos. Se acederes a deixar o teu lar e a aceitar o meu, prometo-te, Allegra, que te amarei a ti, só a ti, até ao fim dos meus dias.

- Oh, Merrick... - sussurrou ela. Deixou cair a enxada e aproximou-se dele. Então, pôs-lhe os braços à volta da cintura e apertou a boca contra a dele. - Não quero mais nada. É muito mais do que alguma vez podia ter sonhado...

- A sério? Estás disposta a deixar tudo isto por mim, Allegra?

Quando ela anuiu, Merrick beijou-a longa, lenta e profundamente. Contra os seus lábios, sussurrou:

- O teu amor generoso espanta-me, Allegra. Agora sei que me devolveste mesmo a vida.

Merrick estava de pé, no meio de um campo de urze, com o seu filho ao lado, a observar as mulheres que, usando belos vestidos às cores, saíam de casa. No meio delas estava Allegra, adornada com um vestido branco de renda tão delicado que parecia ter sido bordado pelos anjos. Na sua formosa cabeleira ruiva, que lhe caía pelas costas numa cascata de caracóis, levava presas umas lindas flores silvestres.

Os outros cantavam enquanto se aproximavam. Eram palavras antigas que pareciam compor um hino à alegria. Contudo, Merrick não ouvia nada. As mulheres sorriam, mas ele não via nenhuma delas. Só tinha olhos para a mulher que era dona do seu coração. Nunca tinha pensado que existisse uma mulher assim, mas ali estava, estendendo as mãos para agarrar as suas.

Quando as tocou, reparou nas bolhas que a enxada lhe tinha provocado e sorriu.

- O que é isto, pequena feiticeira?

- Não me tinha dado conta.

Fechou os olhos por um instante e, quando voltou a abri-los, viu que Merrick estava a olhar muito surpreendido para as suas mãos, porque as bolhas tinham desaparecido. Tinha as mãos tão suaves como a pele de um recém-nascido.

- Nunca paras de me surpreender, Allegra.

- Que assim seja sempre, meu amor. Wilona deu um passo para a frente e pegou

nas mãos unidas de ambos. Então, olhou para os olhos de Merrick, que tinha ido ao seu reino como um inimigo para passar de imediato a ser um deles.

- Foram-nos dados muitos dons - disse.

- O dom da profecia. O de ver o passado e prever o futuro - continuou Kylia.

- O dom de curar, não só o corpo, mas também o coração, a mente e a alma - prosseguiu Nola.

- Sim - afirmou Wilona, - mas o dom mais importante de todos é o do amor. O seu poder é mais forte que o dos outros. Por amor, podemos perdoar o passado e clarificar o futuro. O amor pode falar ao coração do amado melhor que as palavras. O amor pode curar, não só o coração mas também a mente e a alma - acrescentou. Então, pôs as mãos sobre as cabeças de ambos. - Hoje entregais o vosso amor um ao outro. Ao fazê-lo, unis-vos para sempre. Se fordes abençoados, vivereis para ver os filhos dos vossos filhos. Quando esta vida acabar, o vosso amor continuará pela eternidade. Pega no teu filho ao colo, Merrick, e une as tuas mãos às de Allegra. Assim, enviamo-vos aos três para o vosso lar. Só vos pedimos que regresseis frequentemente para nos ver, uma vez que agora tendes duas casas e nós somos a vossa família. Todos os dons que nos foram dados passarão para ti e para os teus.

Merrick pegou em Hamish ao colo e agarrou na mão de Allegra. Quando a família dela começou a cantar, ele contemplou como se afastavam do chão e se dirigiam ao céu.

Enquanto iam pairando por cima dos picos das montanhas e dos campos, abraçou a sua esposa para lhe dar um beijo. Contra os seus lábios, sussurrou:

- Amo-te, minha bruxa maravilhosa. Amar-te-ei toda a eternidade e muito mais que isso.

Allegra estava demasiado emocionada para falar. Tudo parecia um sonho maravilhoso. Aquele homem, que tinha ido à procura dela cheio de raiva, era naquele momento o seu nobre herói. Contudo, era tão real como o amor que sentia no seu coração.

Amor.

Definitivamente, aquele era o maior dom de todos. Pura magia. Allegra levá-lo-ia no coração, junto de Merrick, até ao fim dos tempos.

 

                                                                                Ruth Ryan  

 

                      

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