Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A SAGA DAS PEDRAS MÁGICAS
Livro II / Parte II
O GUERREIRO LOBO
Os dias de nevoeiro instalaram-se, pachorrentos e intermináveis. A neve voltou a dominar a paisagem da Terra Antiga e a agravar a minha melancolia. Nesse ano, a fervorosa atividade das quintas terminara mais cedo, pois os homens também haviam regressado da campanha de Verão antes do previsto. Seria um Inverno difícil, tanto no plano social como no econômico, pois não havia espólio de conquistas para dividir e negociar.
Throst ainda recuperou a tempo de fazer duas viagens com o seu Knarr. Foram dias tristes, aqueles em que esteve longe, nos portos de comércio, e eu senti-me aliviada quando ele regressou. A nossa relação continuava fria, muito por minha culpa. Era-me cada vez mais difícil controlar os ímpetos do meu coração e, por isso, preferia manter-me afastada, para não correr o risco de fraquejar e lançar-me aos seus pés, suplicando por um carinho. As noites arrastavam-se, e as recordações atormentavam-me. Por mais que me revoltasse, a minha sina era padecer na solidão.
Dois dias depois da chegada do Knarr, Krum veio visitar-nos. A alegria de reencontrá-lo depressa foi substituída pela preocupação. As novidades que trazia não eram as melhores. A sua relação com Gunnulf deteriorara-se e, já por várias vezes, fora forçado a engolir o orgulho para evitar uma tragédia. Na semana que estivera ausente, a situação piorara. A sua mãe aparecera a chorar na sua casa, suplicando por abrigo. Desde que Halldora se mudara para a propriedade de Freysteinn, Gunnulf perdera todo o respeito pela madrasta e passava o tempo mergulhado em orgias. Quando Anna lhe chamara a atenção, o enteado agredira-a e pusera-a na rua. Signy recolhera a sogra, mas começava a ficar assustada, pois as provocações não paravam. Gunnulf não perdoava a quem lhe fazia frente e, muito menos, a quem lhe voltava às costas.
- Não esperava tomar esta decisão tão cedo, mas não me resta outra solução - concluiu Krum. - Nós sabemos do que o Gunnulf é capaz, e eu não irei arriscar a vida do meu filho por orgulho ou por tolo heroísmo. Vou vender a minha parte da herança e viajar. Este será o meu último Inverno na Terra Antiga.
Throst insistiu para que o primo viesse morar na sua casa, mas Krum estava determinado a continuar na Aldeia de Grim, pelo menos até encontrar um comprador para a sua propriedade. Depois das despedidas, acompanhei-o ao cavalo. Sentia-me apreensiva por ele e pela sua família. Krum sorriu e debruçou-se para me acariciar o rosto, replicando carinhosamente:
- O fardo que carregas já é demasiado pesado, querida prima. Não te apoquentes por nossa causa! O futuro será difícil para todos. Não só na Grande Ilha haverá mudanças. A Terra Antiga está prestes a sofrer o maior abalo da sua história. A separação do Throst e do Gunnulf é inevitável e, quando se concretizar, eu estarei do lado do meu primo, contra os meus irmãos. A vida não é fácil, nem justa! Temos de aproveitar os breves momentos de felicidade com que somos abençoados, para que as dificuldades da vida sejam suportáveis. É irônico pensar que a paz só se impõe através da guerra... Para o bem da Terra, esperemos que as gerações vindouras possuam mais sabedoria do que a nossa!
A noite já tombara sobre nós, apesar de ainda ser cedo. Ao longe, ouvia-se um trovejar ameaçador. Não tardaria a chover. Acenei a Krum, com o coração apertado. Temia pelo futuro do meu primo, do meu amor, da própria Terra Antiga. Quando fechava os olhos, a imaginação fustigava-me com visões de fogo e sangue; Throst a bater-se contra Gunnulf... Throst a morrer...
A minha cabeça estalava de confusão. Quando a Pedra do Tempo me falara, eu vira Throst liderando o seu povo ao lado de Gunnulf. O meu choque fora tão violento que fizera tudo para contrariar essa revelação. Agora, os primos estavam de costas viradas e, mais tarde ou mais cedo, entrariam em conflito. Não fora a minha teimosia em rejeitar a união dos líderes da Terra Antiga que desencadeara esta desgraça? No final, quando Throst defrontasse o guerreiro-urso, não seria eu a responsável pela sua morte?
A vertigem atingiu-me com o ímpeto de um relâmpago. As minhas pernas cederam e tombei desamparada no chão. Senti a cabeça a ser esmagada entre as mãos de um gigante. Ouvi os apelos de Ingrior e de Throst, mas não consegui mover-me. Tremia tanto, que os meus ossos ameaçavam partir-se. Piscava os olhos aflitivamente, mas tudo o que via era ondas de fogo sobre um fundo negro e muitos homens de espadas desembainhadas, lutando desenfreadamente, cabeças decapitadas, membros decepados, ribeiros de sangue... Os gritos de fúria e de dor sobrepunham-se aos estouros dos trovões...
- Catelyn...
- Pequena, luta contra isso! Tu és capaz!
A voz de Throst... O meu Throst! Abracei-o desesperada, decidida a não permitir que ele se desvanecesse. O frio que me macerava finou, enquanto a consciência regressava devagar. Abri os olhos a custo. Estava em casa, perto da fogueira, e Throst esfregava-me energicamente com uma manta, enquanto Ingrior me forçava a engolir um chá quente e doce.
- Já passou, Pequena! Vais ficar bem...
Ouvir tanto carinho na voz de Throst fez-me soluçar. Desprovida de vontade, aninhei-me de encontro ao seu peito e pensei que, se morresse nesse instante, morreria feliz.
- Bebe, Catelyn - insistiu Ingrior. - Vais sentir-te melhor. Tiveste muita sorte! Por pouco não morreste gelada.
Obedeci sem sair do colo de Throst, tentando recordar o que me sucedera. Despedira-me de Krum e mergulhara num delírio torturante. Pela minha demora, os filhos de Thorgrim haviam saído no meu encalço. Encontraram-me desmaiada, à mercê da tempestade que entretanto rebentara.
- Tiveste uma Visão?
Encarei a minha amiga, sem saber o que lhe responder.
- Não sei bem... Doía-me muito a cabeça e, de repente, vi uma grande batalha... muitos mortos, homens feridos, a gritar...
- Calma, minha querida - murmurou Throst, estreitando-me com cuidado. -Já passou...
Procurei o seu olhar e dei por mim a quebrar as regras que me impusera:
- Tu não podes enfrentar o Gunnulf...
- Eu sei, Catelyn - atalhou ele, acariciando-me o rosto.
- O Trygve avisou-me há muitos anos. Eu não sou tão ingênuo e vulnerável como tu pensas. Perdi o rumo uma vez, mas não voltará a acontecer. Não te apoquentes mais com a minha segurança.
Ouvi a cortina do quarto de Ingrior e só então me apercebi de que ela nos deixara. Throst ergueu-me nos seus braços e levou-me para a minha cama, sem que eu tivesse alento para protestar. Enrolou-me nas cobertas quentes e sentou-se ao meu lado, sem me tocar, mas prendendo-me no seu olhar luminoso. Por cima de nós, a coruja branca mirava-nos em silêncio, meio atenta, meio adormecida. Lá fora, o vento fustigava as paredes da casa, e os trovões ecoavam como trompas infernais. A luz dos relâmpagos entrava pelas frestas da madeira e rivalizava com as chamas vivas da fogueira.
- Eu sei que tu estás preocupada... - começou ele, sobressaltando-me. - Quero ajudar-te, mas não conseguirei se não me disseres o que se passa. Falei com a Ingrior, mas ela recusa-se a contar-me. Mandou-me perguntar-te... - Respirou fundo e passou as mãos pelos cabelos dourados. - Eu já não sei o que fazer. Já nem sei o que pensar! Tudo o que aconteceu conosco... - Segurou a minha mão e acariciou a cicatriz que nos unia. - Eu julguei que gostavas de mim... Tanto como eu... - Engoliu em seco e conteve-se de me declarar o seu afeto. - Depois, forcei-me a convencer de que não era verdade. Mas os teus olhos... Os teus olhos, Catelyn... Mesmo agora...
Voltei o rosto para a parede, cerrando os dentes para não gritar. Mal conseguia respirar, e o meu corpo estava tenso como uma tábua. Então, sem aviso, Throst puxou-me de encontro ao seu peito e forçou-me a encará-lo.
- Isto vai acabar e é já! - afirmou com ardor. - Olha para mim, Catelyn! Olha...
E eu olhei... E olhei... As palavras de Krum não me saíam da cabeça - aproveitar os breves momentos de felicidade com que somos abençoados... Poderia eu fazê-lo? Que preço pagaria pela vã ilusão do amor? Que preço seria cobrado a Throst pela minha fraqueza? Os olhos azuis eram estrelas na noite escura. Os seus lábios abriram-se e fecharam-se, sem emitirem um som. Estávamos prisioneiros do nosso fôlego, sem nos atrevermos a mover. Ele tinha medo de que eu recuasse, e eu tinha medo... Eu tinha medo de tudo! A minha mão tocou no seu rosto. Throst segurou-ma e beijou-a. Depois apertou-a dentro da sua, dizendo roucamente:
- Eu sinto que vou enlouquecer Catelyn! Por que estás a fazer isto comigo? Por que me salvaste a vida, apenas para me condenares à angústia de te amar e te perder, cada dia um pouco mais? Eu não suporto esta tortura... Não suporto o teu ódio...
Como podia ele pensar tamanha atrocidade, depois de tudo o que havíamos partilhado? Quando dei por mim, as palavras já me caíam dos lábios como água da nascente:
- Eu não te odeio Throst! Eu adoro-te... Quero-te tanto bem! O guerreiro ficou tenso, e a sua respiração transformou-se num ronco ofegante. Apertou-me o rosto entre as suas mãos, suplicando ansiosamente:
- Não digas isso, Pequena... Não digas se não for verdade! Fechei os olhos e procurei os seus lábios, saboreando o calor doce e trêmulo como se fosse a mais rica iguaria do mundo. Throst não correspondeu de imediato, e eu recuei amedrontada e confusa. Porém, não tive tempo de esboçar uma interrogação. Os lábios másculos seguiram-me e capturaram os meus, num beijo lento, quase casto, que foi crescendo de intensidade à medida que as nossas mãos se atreviam e os nossos corpos ousavam.
O desejo que eu continha há muito explodiu dentro de mim, deixando-me à deriva ao sabor da paixão. Comecei a tremer quando as nossas carícias atingiram uma ferocidade desesperada. Throst deitou-me e deslizou sobre mim. Sem nunca parar de beijar-me, enfiou-se debaixo das cobertas e deliciou-me com o peso do seu corpo e a percepção do seu desejo. A minha cabeça estava perdida. Senti as suas mãos a lutarem com o meu vestido e ergui as ancas para lhe facilitar o acesso. Desejava-o com loucura e não queria esperar para lhe pertencer por completo. Gemi arrebatada de encontro aos seus lábios e mordi-os com fome, impedindo-o de se afastar para respirar. Percebi que ele desapertava o cordão que lhe prendia as calças, e o calor da sua pele fez-me derreter como manteiga no fogo. A última barreira que nos separava fora derrubada...
Subitamente, a voz de Sigarr ecoou na minha mente, fria como a geada de Inverno. Talvez fosse o último recurso da minha resistência, mas não podia ignorá-la. Sabia que esta era a altura ideal. Se Throst entrasse em mim, eu estaria perdida. Instintivamente fechei as pernas e empurrei-o.
- Não, Throst... Não! Pára!
- Pequena...
- Pára! Por favor...
Ele parou, mas não se afastou. Encontrei o seu olhar atormentado e pensei que não teria força para o negar se Throst insistisse uma única vez. A luta entre o querer e o dever era tão forte que me agoniava. Quase gritei quando ele suplicou docemente:
- Deixa-me amar-te, Pequena! Nós dois precisamos disto... Beijou-me com meiguice, e eu correspondi enlevada, sentindo-me ridícula ao forçar um protesto que mais parecia um gemido de prazer:
- Eu não posso...
Throst respirou fundo, lutando contra a própria natureza do seu ser, enquanto replicava ofegante:
- Eu pararei se me deres uma razão! De outra forma, irei amar-te até perdermos as forças!
O que me restava? Não conseguia parar. Não podia continuar. Não tinha coragem de lhe contar a verdade. Não queria mentir-lhe...
- Eu ficarei grávida... - respondi a custo e, para minha surpresa, o seu rosto iluminou-se com um sorriso deslumbrante.
- Isso será maravilhoso! Não tenhas medo, querida! Este será apenas o primeiro dos muitos filhos que eu te quero dar...
Os lábios ternos cobriram os meus, enquanto as mãos fortes subiam pelas minhas pernas, provocando-me delírios com o toque suave dos seus dedos. O meu corpo abriu-se ao de Throst como uma flor ao sol, mas a minha mente continuou a batalhar, num último esforço de penosa lucidez:
- Eu não posso engravidar... A minha missão...
O gigante louro deixou-se tombar ao meu lado, com um impulso brusco que me fez recear a sua ira. Porém, ao seguir este movimento, eu encontrei o olhar azul relampejando de convicção e percebi finalmente o que Ingrior me tentara dizer. Instalada na alma de Throst estava uma força mística que antes não existia. Confirmando o meu pensamento, ele replicou com uma firmeza que me fez estremecer:
- Há algo mais, não é verdade? Existe uma razão... e é tão forte que te manteve afastada de mim, sofrendo e vendo o meu sofrimento...
- Tentei desviar-me, mas ele não consentiu. - Fala comigo, amor! Deixa-me ajudar-te...
- Tu não podes ajudar-me! - arfei desesperada. - Vais odiar-me... Throst inclinou-se para envolver o meu rosto com as mãos, antes de me assegurar:
- Eu jamais te odiarei, Catelyn! Jamais!
Fechei os olhos e rendi-me à sua vontade, entregando à sorte as conseqüências da revelação grotesca. Vi as cores desaparecerem das faces do meu guerreiro e senti o seu corpo estremecer enquanto eu falava. Estava incapaz de encará-lo, quando concluí:
- Eu prefiro morrer a ter de entregar um filho ao Sigarr! Por essa razão não posso arriscar-me a engravidar... Não posso estar contigo...
Experimentei um alívio profundo quando ele me estreitou. Pelo menos não me repudiara! Arrepiei-me quando exclamou com uma resolução inabalável:
- Tu não irás morrer! Eu matarei esse maldito, e tu ficarás livre!
- Não, Throst! - roguei aflitivamente, atrevendo-me a buscar a sua mão. - O Sigarr não pode tombar por esse motivo. Eu dei-lhe a minha palavra! Estaria a arriscar muitas vidas e o destino de um povo se o traísse. Tenho de confiar na minha avó! Tenho de ser paciente...
- Então, seremos ambos pacientes! Eu não permitirei que fujas mais, Catelyn! Esperarei o tempo que for necessário para desfrutar do prazer do teu corpo, mas não prescindirei do conforto da tua companhia, do calor dos teus braços, do ardor dos teus beijos...
- Throst... - Solucei, sem acreditar no que ouvia. - Eu não posso pedir-te tamanho sacrifício! E se a espera for longa? E se for interminável? Tu estás na idade de constituir família. Deves escolher uma mulher e...
- Tu és a única mulher que eu desejo Catelyn! Se eu tiver de viver ao teu lado como um irmão, durante o resto da minha vida, que assim seja! Esta é a minha decisão!
Eu tinha de dizer-lhe que isso não era possível. Devia falar-lhe da minha missão, da minha partida sem regresso, mas não reuni coragem nem força. Estava envolvida numa paz deliciosa, à qual nenhuma magia se podia comparar. Depois de tanto sofrimento, depois de tanta contenção, desfrutar do carinho do homem que eu amava era a minha única ambição.
Quando acordei, pensei que continuava a sonhar. Throst estava deitado ao meu lado, acariciando-me a face com devoção. Por baixo das cobertas, as nossas peles tocavam-se, quentes e desejosas. Os meus dedos deliciaram-se com as batidas exaltadas do seu coração. Pensei que ele era o único homem capaz de se deitar com uma mulher sem a possuir. Não pude conter um sorriso, e Throst correspondeu, perguntando num sussurro:
- O que vai dentro dessa cabecinha linda, que traz tanto brilho ao teu olhar?
Engoli em seco, respondendo com a voz estranhamente enrouquecida:
- Estava a pensar na força do teu controlo.
O seu sorriso desfez-se devagar, enquanto a pressão dos seus dedos se centrava na minha nuca, e as nossas pernas se entrelaçavam.
- Tu conheces tantas ervas... Não existirá uma que... Percebes? Não era o homem apaixonado que falava e sim o macho desesperado para satisfazer o ardor. Eu percebia-o demasiado bem! Corei intensamente e escondi a cabeça no seu peito, fugindo do olhar que me atormentava e do beijo que sentia inevitável.
- Eu não posso... O Sigarr conhece os nossos sentimentos e certamente previu esse truque. Estaria a arriscar demasiado.
Para minha surpresa, Throst aquiesceu com um gemido doloroso:
- Eu compreendo... Tens razão! - Tocou-me no queixo, forçando-me a encará-lo. - Só nos resta esperar! Mas a espera será um doce tormento se me deres o teu carinho!
Não fugi do seu beijo. Eu também o desejava.
Perdemos a noção do tempo, enquanto trocávamos carícias apaixonadas e quase inocentes. Eu queria acreditar que Throst teria a força necessária para respeitar a minha imposição. Se não, estaríamos em queda livre para a desgraça. Foi ele quem tomou a iniciativa de se afastar, lutando para respirar, enquanto murmurava:
- O meu controlo não é soberano, Catelyn! Talvez não faças idéia de como eu te desejo. Não me tentes... Ou nem todos os feiticeiros do mundo conseguirão deter-me!
As reuniões de amigos em casa de Throst eram muito animadas. Em contraste com as orgias perversas de Gunnulf, as festas do senhor da Aldeia do Povo enchiam-se de música, cantorias, histórias, jogos, risos e brincadeiras. As crianças corriam livremente entre nós, e o eco das suas gargalhadas curava qualquer espírito mal-humorado.
Nessa tarde, o motivo da celebração era especial. Krum vendera a sua propriedade e viera morar para perto de nós, numa casa modesta, mas confortável. Signy encontrava-se tão satisfeita como aliviada. O ambiente que se vivia na Aldeia de Grim estava longe de ser tolerável. Os guerreiros de Gunnulf andavam pelas ruas, agredindo os aldeões, insinuando-se às mulheres, comendo e bebendo o que lhes apetecia, onde lhes apetecia, sem respeitarem a privacidade de ninguém.
Horrorizada, escutei o que acontecera à jovem vizinha de Signy na semana anterior. Um dos guerreiros-lobo de Gunnulf batera-lhe à porta e exigira um pote de hidromel. A rapariga morava sozinha com a avó, por isso não se atrevera a protestar. Depois de se servir, o homem arremessara o pote contra a parede, quebrando-o em mil pedaços, e lançara-se sobre a jovem. Se Krum não tivesse acudido aos seus gritos, o animal tê-la-ia violentado. A justiça possuía o rosto de Gunnulf, por isso estava cega e surda. Os homens que rodeavam o líder eram livres para fazer o que bem entendiam, sem sofrerem nenhum castigo.
O reencontro com a minha tia não foi tão agradável como eu desejava. Anna estava diferente da mulher bondosa e alegre que eu conhecera. Dir-se-ia que envelhecera muitos anos em poucos dias. Signy contou-me que a sogra passava o tempo sentada em casa, a olhar para a fogueira sem se mover ou falar, como se estivesse a viver outra vida, dentro da sua própria mente. Diante de mim, Anna não escondia o ressentimento. A minha chegada à Terra Antiga fora o princípio do fim do seu reinado. Esforcei-me para lhe agradar, mas percebi que a estima que todos me devotavam a enfurecia. Por várias vezes, surpreendi Krum a repreender a mãe por uma opinião mais azeda, quando os nossos amigos elogiavam as minhas habilidades e o entusiasmo de Throst. Era óbvio que o que restava de Mairwen era uma humana confusa e amargurada.
Throst não estava longe e atraiu-me para o seu abraço, ao aperceber-se da minha tristeza e constrangimento. A nossa relação tornara-se sublime. Havíamos decidido não partilhar a cama, mas convivíamos como bons amigos e as trocas de carinhos mantinham-me resplandecente de felicidade.
Krum também estava decidido a não permitir que a mãe lhe estragasse o bom humor. Era outro homem, agora que se libertara da sombra tirânica de Gunnulf. Tocou e cantou, acompanhado pelos amigos. A casa estremecia com o batuque animado de dezenas de pés. Fiquei surpreendida quando ele me convidou para dançar:
- Vamos mostrar-lhes como se dança na terra das nossas mães?
Olhei para Throst, como que a pedir o seu consentimento. Senti-me estranha depois de receber um sorriso de anuência. Por que me sentia tão dependente da sua aprovação?
Comecei a dançar e esqueci a timidez e os temores. Outros pares juntaram-se a nós.
Sven resgatou-me dos braços do meu primo, e eu saltitei de mão em mão, acabando por parar diante de Bjorn, que ainda me mirava com alguma mágoa. O anúncio das intenções do irmão, no que respeitava ao meu futuro, fizera-o ferver. A sua indignação iniciara uma discussão violenta, na qual ele acusara Throst de lhe roubar a noiva. Valera a intervenção de Ingrior, que conseguira afastá-los a tempo de evitar que o irmão mais velho perdesse a cabeça. Dias depois, Bjorn decidira falar-me. O seu desânimo era notório. Declarou-se apaixonado por mim, mas entenderia se eu preferisse desposar um homem mais experiente e importante, como Throst. Tentei fazê-lo compreender que eu o amava como a um irmão e que ele merecia uma mulher mais jovem e menos problemática, que o desejasse como homem e vivesse para lhe agradar. A minha sinceridade começava a dar frutos. Agora, que girava alegremente nos seus braços, eu tinha a certeza de que Bjorn depressa esqueceria o seu entusiasmo infantil. Um dia, se os nossos destinos se voltassem a cruzar, ainda nos riríamos muito à custa da recordação desta paixonite!
Throst tocava flauta com os olhos postos em mim. O baile e o riso faziam-me esquecer a ameaça que pendia sobre as nossas cabeças. Fui buscá-lo para dançar e não me apiedei dos seus protestos. Foi o princípio de uma noite memorável... E muitas iguais aqueceram os serões da Aldeia do Povo, durante as semanas geladas que se seguiram.
Bjorn regressou para junto de nós, e a casa ficou mais alegre. Era agradável passar os dias escuros de Inverno a trabalhar na majestosa vela, enquanto observava o treino dos dois irmãos. Depressa percebi que não era só no arco que o filho mais velho de Thorgrim era exímio. Quando os homens se reuniam para se exercitarem, era Throst quem os treinava. Por vezes, eu esquecia-me do trabalho e ficava a observar o corpo forte do meu guerreiro, movendo-se com uma velocidade e uma perícia que nenhum dos seus companheiros conseguia igualar. A memória levava-me de volta à casa onde nasci e à recordação do meu pai e dos meus irmãos, praticando no jardim com o nosso mestre de armas.
Eu imaginava que as provações tivessem afetado a maneira de ser dos meus irmãos. Mas, de todos, Edwin era o que mais me inquietava. Pelo que ouvira a seu respeito, eu concluía que pouco restava do garoto impulsivo e inconseqüente. Agora, Edwin era um condutor de homens, como Throst. E assim como Throst era capaz de despir a pele de líder responsável e de se transformar num rapazinho traquina, sempre disposto a brincar, eu também esperava que o meu irmão tivesse conseguido salvar a inocência da sua alma. Sem ela, não haveria esperança para a união dos povos.
Uma tarde, enquanto Bjorn aguardava que Throst terminasse de discutir um assunto com Krum para iniciarem o treino, peguei numa espada só para sentir o seu peso. Não era muito diferente das espadas usadas pelos guerreiros da minha terra. Arrepiei-me ao recordar que já matara um homem com uma arma igual àquela. Acabara de pousá-la quando Bjorn me desafiou a empunhá-la novamente. Por graça, fiz-lhe a vontade. Depois de soltarmos umas gargalhadas, ele indagou muito sério:
- Tiveste treino com espadas, não é verdade, Pequena? - Antes que eu pudesse impedi-lo, chamou pelo irmão: - Throst... Aposto que não sabes que vivemos com uma guerreira!
Eu ia protestar, mas tive de erguer a arma para deter a sua investida. E o diabrete já não parou. Diante da sua habilidade, eu sentia-me desajeitada e fraca. Contudo, decidi não fazer má figura. Bjorn arremetia devagar e dava-me tempo para recuperar a postura. Dei por mim a apreciar a brincadeira e a corar com as exclamações de espanto dos homens e os aplausos das mulheres.
No dia seguinte, Bjorn tornou a desafiar-me, e aquele pedaço da tarde transformou-se num ritual. Aos poucos, a arma já não me parecia tão pesada, e eu conseguia movê-la com limitada destreza, para divertimento dos nossos amigos.
Passado algum tempo, Throst tomou o lugar do irmão. Fê-lo sem aviso, simplesmente ordenando a Bjorn que se afastasse. Uma investida, e eu estava com a espada na garganta.
- O que se passa Catelyn? - zombou. - Já te vi fazer muito melhor! Pára de tremer! Eu não vou magoar-te. Concentra-te!
Falar era fácil! Eu sentia-me uma fedelha desajeitada diante do chefe viking. Com um pouco de conversa e muita paciência, ele conseguiu transmitir-me confiança.
- Quem foi que te ensinou? Os teus irmãos?
- O Quinn... Principalmente... - respondi, sentindo a ferroada da saudade. - Nós éramos muito aguerridos. Ele gostava de me provocar...
- Eu também gosto!
A terra estava coberta por um manto branco, e os períodos de luz eram tão efêmeros que mal se percebiam. Todo o nosso tempo era ocupado com as tarefas de Inverno. A grande vela vermelha estava quase pronta, e eu tinha esperança de vê-la içada no majestoso Drakkar que o carpinteiro não tardaria a concluir.
Throst levou-nos a visitar o estaleiro, e o artesão disponibilizou algum tempo para explicar a sua arte. Eu achei apaixonante e fiz tantas perguntas que o homem se ofereceu para me ensinar o ofício, enquanto trocava um sorriso significativo com Throst. O seu filho, a quem eu já curara um ferimento grave, quis explicar-me como manejar os instrumentos. Declinei delicadamente, sem evitar o riso. Podia ser curandeira, cozinheira, agricultora, tecedeira e até uma amostra de guerreira, mas aquilo não era para mim!
Eu vivia integrada na vida familiar da casa de Throst e esquecida da existência de Gunnulf e dos seus rufiões. Contudo, quando me deslocava à Aldeia do Povo para curar as maleitas e fazer os partos, não podia ignorar as histórias tenebrosas contadas pelos aldeões. Aparentemente, o líder viking voltara as costas a todos os homens de bem e rodeara-se de uma corja de assassinos. Sem a equilibrada companhia de Throst e Krum, Gunnulf começara a tratar mal os que dele dependiam, exigindo mais do que os aldeões podiam dar e punindo tiranicamente aqueles que lhe desobedeciam. A Aldeia de Grim encontrava-se assombrada pelo medo.
Halldora também era vítima da conversa aguçada. Uma anciã confidenciou-me que a jovem a procurara para que ela lhe preparasse uma mistura de ervas, a fim de evitar a gravidez. Eu não gostava de mexericos, mas não pude esconder o espanto. Halldora casara recentemente... Era mais do que natural que desejasse um filho!
No regresso a casa, ponderei sobre os motivos de Halldora, e o meu coração apertou-se, pois a conclusão só podia ser uma: ela não queria gerar filhos, porque estava casada com um homem que não amava e ainda não perdera a esperança de reconquistar Throst.
Enquanto mordia a raiva, fui surpreendida pela figura alta e loura que me esperava no caminho. Quanto mais tempo passava, mais a visão de Throst me deleitava.
- Aconteceu alguma coisa? - perguntei quando o meu cavalo alcançou o dele.
- E tem de acontecer algo, para que eu procure a companhia da mais bonita das mulheres?
Senti o rosto aquecer e incitei o meu cavalo a continuar, deixando-o para trás. Salientei a ironia ao replicar:
- A mais bonita? Julguei que não passava de um peixe miúdo! Ouvi uma gargalhada fresca, e logo Throst estava ao meu lado.
- Nesse dia, no mercado, tive a certeza de que me tinhas compreendido! Se o teu olhar matasse, eu já não estaria aqui!
- Ainda não está provado que o meu olhar não mate! - forcei uma voz ameaçadora, esboçando uma careta. - Não te esqueças de que sou uma feiticeira...
- Mas também és humana - interrompeu ele de imediato, assumindo ares de entendido. - E uma mulher muito diferente da que resgatei da Casa de Grim. Terei de oferecer-te um espelho para que vejas o quanto cresceste neste ano, Catelyn? Se eu me apaixonei pela menina que me enfrentou com uma espada na mão, imagina o que sinto pela mulher que tenho ao meu lado!
A intensidade do rubor magoava-me as faces. Eu sabia que Throst falava verdade. Desde que curara a garganta e começara a alimentar-me devidamente, o meu corpo recuperara as formas naturais e, para minha grande satisfação, estava mais alta. Muitas vezes, ao usar os vestidos direitos e sem graça, típicos da região, dava por mim a interrogar-me como ficaria dentro de um dos meus vestidos de festa... e do olhar que Throst faria quando me visse surgir, com o cabelo armado no topo da cabeça e os caracóis caindo ao longo do rosto, com o peito redondo e firme espreitando pelo decote avantajado, com a cintura fina e as ancas largas marcadas pela saia rodada... Mas, é claro que isso nunca iria acontecer!
- Queres ir passear na floresta e aproveitar o resto da luz? - perguntou ele subitamente. - Eu trouxe uma merenda. Podemos comer na margem do lago...
Senti vontade de rir e só não o fiz porque sabia como lhe fora difícil escapar às suas responsabilidades para passear comigo. Há bem pouco tempo, eu não poderia imaginar que entrar numa floresta coberta de neve e fazer um piquenique junto a um lago gelado, enquanto a escuridão descia sobre mim, seria o meu ideal de uma tarde romântica. Porém, estar ao lado de Throst, em qualquer circunstância, era a concretização de um sonho bom.
Não tardamos a chegar ao lago onde os jovens vikings se reuniam para nadar, no Verão, e para patinar, no Inverno. Fiquei satisfeita por verificar que estávamos sozinhos. Throst agarrou-me pela cintura e ajudou-me a descer do cavalo. No instante em que o meu corpo deslizou pelo seu e os nossos olhos se encontraram, a chama do desejo acendeu-se no olhar azul, e eu perdi o fôlego. Percebendo a minha ansiedade, ele recuou um passo e estendeu-me a mão.
- Vem! Já patinaste alguma vez?
A resposta era negativa. O Lago Encantado nunca gelava o suficiente para que eu e os meus irmãos desfrutássemos dessa brincadeira.
- Toma, são para ti!
Arregalei os olhos ao ver os patins feitos de madeira e osso que ele me estendia.
- Pertenciam ao Bjorn, mas há muitos anos que não lhe servem. Encontrei-os por acaso e arranjei-os para os teus pés. Experimenta-os!
Throst não parava de surpreender-me. Enquanto eu calçava os patins sobre as botas de pele, que me mantinham os pés deliciosamente quentes, observei com assombro que ele também calçava um par. A tarde prometia!
Depois de escolher um local onde o leito era estreito, Throst deslizou destemidamente até à outra margem. Aquilo não podia ser difícil! Tentei imitá-lo, ignorando o seu apelo para que esperasse, e o resultado foi desastroso. Caí e escorreguei sobre o gelo, gritando horrorizada, tentando a todo o custo cravar as unhas na superfície lisa para deter-me. Contudo, só parei na margem oposta com a cara enterrada na neve. Assim que se certificou de que eu estava inteira, Throst desmanchou-se a rir. Furiosa, abanei os ramos das árvores que pendiam por cima dele com a força da mente, cobrindo-o de uma chuva de branco. O gigante louro parou de rir e simulou indignação:
- Assim não vale! Eu não posso competir contigo nessa Arte! Susteve-me pelos braços e ajudou-me a equilibrar. Colada ao seu corpo, descobri o prazer de deslizar como se estivesse a voar, sentindo o ar fresco a bater-me na cara e uma sensação de embriagante liberdade.
Throst patinava muito bem. Quando elogiei a sua habilidade, respondeu simplesmente:
- Não te esqueças de que eu também já fui uma criança!
Não me era difícil imaginá-lo - um rapaz traquina e sorridente, idêntico a Bjorn, cavalgando pelos campos, patinando no rio, nadando nas águas frias do mar, correndo pelas praias, trepando pelas rochas, subindo às árvores, treinando com as armas... Aprendendo a ser um homem, forte e responsável.
Quando nos cansamos de esquiar, eu estava tonta e não conseguia parar de rir. Assim que Throst me soltou na margem, caí de novo sobre o manto branco. Mal me assegurei de que recuperara o equilíbrio, fui atingida nas costas por uma bola de neve e voltei a tombar. Fiquei estendida no gelo, louca de riso, sentindo a felicidade fluir por mim como sangue novo. Throst aproximou-se e estendeu a sua mão para me ajudar. Não me foi difícil desequilibrá-lo e puxá-lo para o meu lado. Brincamos como dois garotos, com os corações acelerados e as respirações ofegantes a misturarem-se com as gargalhadas. Por fim, voltamos para perto dos cavalos.
- Vamos comer antes que a noite caia. É pena que não possamos fazer uma fogueira. A lenha está demasiado encharcada...
- Apanha uns troncos - não resisti a apelar. - Eu cuidarei do fogo!
- Mas...
Ele deteve-se ao compreender o que eu pretendia. Sentou-se ao meu lado, esperando que executasse o encanto. Eu deixei-o sofrer um pouco à mercê da curiosidade, apreciando o prazer da sua companhia. Recordei com nostalgia o tempo que perdera diante da lareira do meu quarto, na Casa Grande, para aprender o que agora realizava sem ter de pensar. A madeira secava com um sopro e incendiava-se com um olhar.
- Como é que fazes? - perguntou Throst extasiado, quase sem acreditar no que via.
Sorri orgulhosa e falei-lhe nas pequenas partículas.
- Existem alguns truques simples que os humanos também podem executar - concluí. - Se desses uma oportunidade à Ingrior, ela mostrar-te-ia o muito que já aprendeu. - Acendi uma pequena chama na palma da minha mão e estendi-lha, divertida com o seu pasmo. - Não confias em mim? Segura-a!
Throst agarrou no fogo que eu alimentava mentalmente e arquejou extasiado, passando-o de mão em mão.
- Está frio! Como é possível que o fogo seja frio?
- Tudo é possível na magia, se possuíres os meios para executá-la e acreditares que irá resultar. Queres que te pinte o cabelo de verde?
- Não!
Soltei uma gargalhada ante o seu sobressalto. Quando Throst percebeu que eu estava a troçar dele, atacou-me com as pontas dos dedos. Torci-me e rebolei a rir, cheia de cócegas, tentando fugir e suplicando por uma trégua. Ele acabou por condescender e atraiu-me para junto do seu peito. Abraçados e aquecidos pela fogueira, começamos a comer com satisfação. Throst colocava pequenos pedaços de bolo na minha boca e acariciava-me a testa com os lábios. O meu coração estava eufórico. A minha mente fantasiava. O meu corpo deleitava-se com a sua atenção.
- Assusta-me pensar na maneira como o destino brinca conosco
- começou ele, num tom sóbrio. - Cresci com o Krum e o Trygve sem saber... sem nunca desconfiar... Mas é óbvio que tinha de ser! Como explicar as suas habilidades, senão com a magia do sangue?
- Fez uma pausa, e eu não o interrompi desejosa de ouvi-lo desabafar as questões proibidas pela sua mente. - Eu estava com o Gunnulf, quando lhe entregaram a mensagem que nos fez atacar a Enseada da Fortaleza. Não podia imaginar... Quando te vi, Catelyn fiquei assombrado. Tu vivias nos meus sonhos, mas eu não acreditava que fosses real. E, de repente, ali estavas e eu já não sabia o que fazer. Todas as minhas prioridades se tornaram insignificantes. Tirar-te daquele inferno, em segurança, e acorrentar-te a mim, era tudo o que eu desejava. Agora aceito que não podia ter feito outra coisa. A nossa sina foi decidida muito antes de nos conhecermos. O meu sobrinho tem o teu sangue... Krum é nosso primo. A irmã da tua avó deixou a Grande Ilha para se casar com o senhor da Terra Antiga...
Throst podia continuar para sempre a enumerar as loucas coincidências que nos uniam. Mas eu sabia que havia muito mais que nós desconhecíamos. A força que desenvolvera nos últimos meses dava-me uma percepção estranha, que eu não conseguia explicar e que, de certa forma, me angustiava. Sentia que não estava a viver o que verdadeiramente me fora destinado e sim uma alternativa para que, no fim, o futuro encontrasse o equilíbrio que fora destruído no início.
- Fala-me dos teus sonhos - pedi, decidida a não permitir que ele se fechasse. - Fala-me de mim...
Eu estava a pôr o dedo na ferida da sua alma. Throst estremeceu e, por um instante, temi que se retraísse. Porém, depois de respirar fundo, começou lentamente:
- A primeira vez... foi na noite em que enfrentei o Lobo. Jamais esquecerei! A minha mente estava em fogo, e o meu corpo explodia com uma energia que eu não podia reter dentro de mim. A pouca razão que me restava justificava que esse fulgor se devia à mistura de ervas e cogumelos que eu tomara no ritual de iniciação. Mas, no fundo, já sabia que a explicação era muito mais complexa. Depois da luta, tombei numa inconsciência dormente, que me arrastou para um mundo novo, assustadoramente real para fazer parte de um sonho. Vi uma gruta que brilhava como se fosse o quarto das estrelas. No centro, havia um lago de água quente e uma pedra grande e polida, onde eu estava deitado com uma mulher... Uma mulher diferente de todas as que eu conhecia, tão linda, que a simples percepção da sua presença me tirava o fôlego. Essa mulher eras tu, Catelyn...
Tive de cerrar os dentes para que o coração não me saltasse pela boca. O sobressalto foi tão violento que o meu corpo estremeceu e o rosto corou. Throst tivera a mesma Visão que eu! Ansiei que ele continuasse, mas ficou subitamente silencioso, como se ponderasse... Como se acreditasse finalmente que não vivera um sonho e sim uma premonição. Eu quis contar-lhe que tivera a mesma revelação, mas a minha vontade diluiu-se no olhar azul e percebi que, por mais que me esforçasse, não conseguiria falar. Então, Throst prosseguiu:
- Quando despertei, mergulhei numa negação profunda de tudo o que vira e experimentara. - Subiu a manga do casaco para me mostrar a tatuagem do Dragão do Sol, no seu pulso. - Isto apareceu na minha carne sem que houvesse explicação. Senti-me violado, revoltado... - Fez uma pausa, ferido pelas recordações. - Jurei que jamais voltaria a perder o domínio do corpo e da mente. Mas não conseguia impedir-me de sonhar... Vivia obcecado com a tua imagem. Aonde quer que eu fosse, procurava-te em todos os rostos, imaginava-me nos teus braços, desesperava-me com a idéia de te encontrar morta nos despojos de uma aldeia... Por fim, decidi que a loucura tinha de acabar! Forcei-me a esquecer-te; a convencer-me de que tu eras um demônio que os Feiticeiros tinham plantado na minha mente, para me dobrar a vontade. Parei de admitir que pudesses ser real... Até que te encontrei, no mais inesperado dos lugares... E descobri que eras a mais proibida das mulheres.
As emoções que me assolavam eram tão fortes que me impediam de raciocinar com frieza. Eu aceitara a muito custo os sentimentos que nos uniam, mas nunca tomara verdadeira consciência da força do amor de Throst. Agora, fixava o seu olhar e ouvia as palavras de Ingrior - uma luz azul que envolvia o coração do chefe viking; um amor que libertaria os povos da escravidão da guerra...
- Catelyn... - O seu apelo trêmulo despertou-me. - Diz-me a verdade. Acreditas que tu e eu... - Abriu-me os dedos gentilmente para revelar a cicatriz na palma da mão. - Poderás algum dia perdoar-me pelo que eu fiz... pelo que sou...
Toquei-lhe nos lábios para silenciá-lo. A respiração de Throst alterou-se quando lhe acariciei os cabelos rebeldes que se escapavam do gorro de lã e, de seguida, a barba macia e bem aparada. Que sentimento era este que me dominava e fazia esquecer tudo? Que parecia crescer e fortalecer-se a cada instante do dia, até eu pensar que o coração me iria rebentar no peito, incapaz de conter tanta emoção? A custo repliquei:
- Não há nada a perdoar...
E mergulhei na sua boca, devorando-o com toda a fome do meu amor, deliciando-me com as sensações violentas que me sacudiam de cada vez que as nossas línguas se saboreavam. Quebrei o beijo para observar a sua perturbação, a chama do desejo acesa no olhar azul, o tremor do corpo poderoso. Enlacei o seu rosto entre as minhas mãos, murmurando roucamente:
- Ainda duvidas do meu afeto?
Throst gemeu extasiado e puxou-me para o seu colo. Sentada sobre ele, envolvi-lhe o tronco com os meus braços e pernas, enquanto me rendia à fúria do nosso beijo. As suas mãos percorreram-me os braços, as costelas, a curva suave dos seios, a cintura, o ventre, as ancas... e depois fizeram o percurso inverso. A cada toque, eu incendiava e ardia, completamente esquecida de que decidira não provocá-lo, não acordar a nossa paixão, jamais me entregar...
- Preciso de ti, Catelyn! - sussurrou ele junto ao meu ouvido, deslizando os lábios pelo meu pescoço. - Cada dia é um tormento... Nunca estive tanto tempo sem...
Deteve-se, atencioso ao meu pudor, mas eu compreendera-o. Throst nunca estivera tanto tempo sem possuir uma mulher. Confirmar a sua fidelidade deixou-me ainda mais inflamada. Havia uma ânsia no meu ventre impossível de controlar. As minhas ancas pressionavam-se contra ele, como se tivessem vontade própria. Os meus dedos enterravam-se na túnica grossa, ansiosos por arrancá-la. Há muito que eu esquecera o frio. Estava a arder por dentro e por fora.
- Desejo-te, Pequena! - arfou o meu guerreiro, antes de me aprisionar os lábios. - Quero fazer amor contigo... Agora!
Abandonei-me ao seu ardor. A necessidade que nos movia já não podia ser contida.
De repente, um pássaro voou sobre nós soltando um pio agudo e mortificante, tão perto, que sentimos a força das suas asas. Afastamo-nos assustados e, de imediato, Throst esboçou um gesto para me proteger. Porém, o pássaro não era possante e ameaçador, como nos parecera de início. Era uma pequena coruja branca com os olhos carregados de luz.
- Maldição! - praguejou Throst, bufando de frustração. - Eu devia ter morto esta peste quando tive a oportunidade!
- Não! - Forcei-me a reagir, impedindo-o de perseguir a ave que nos observava, pousada numa árvore próxima. - Ela não é uma coruja vulgar!
Perguntei-me por que só agora me dava conta desta evidência. Respirei fundo e chamei o pássaro com a voz da minha mente. De imediato, ele voou ao meu encontro e pousou sobre o braço que o aguardava. Ao meu lado, Throst estava atônito.
- Como é possível...? O que significa isto, Pequena?
A ave revirou os olhos como se troçasse do nosso assombro. Era tão leve que dir-se-ia feita de ar, mas robusta para o seu tamanho insignificante.
- A coruja apareceu na casa do Gunnulf pouco depois de eu chegar. Desde então, segue-me para todo o lado. Já me salvou de muitos apuros... E agora tornou a fazê-lo!
- Estás a dizer que este pássaro te protege? - questionou Throst, à deriva na minha conclusão.
- Ou alguém através dele.
- Não é possível... Isso não faz sentido!
- Estende o braço!
Embora contrariado, ele aquiesceu. Respondendo à minha ordem mental, a coruja levantou vôo, pairou por cima da cabeça de Throst e pousou no seu braço. Os olhos azuis fixaram-me, repletos de confusão.
- Mas quem...?
- Quantas opções existem? - retorqui, com um sorriso nos lábios e o peito cheio de calor.
- Isso é ridículo! - refutou ele implacavelmente, mas sem ânimo para enxotar a ave que lhe trepava até ao ombro. - Se o Hakon desejasse proteger-te, por que enviaria um pássaro, ao invés de te procurar pessoalmente?
- Todos estes anos, tu convenceste-te de que o teu avô vos abandonou por opção. E se isso não for verdade? E se, por alguma razão, ele não puder revelar-se a ninguém?
Como que respondendo à minha insinuação, a pequena coruja soltou um pio longo e triste, antes de se lançar num vôo suave e desaparecer por entre as árvores. O olhar de Throst seguiu-a e depois regressou ao meu. A sua voz tremia quando perguntou:
- Tu acreditas realmente que eu posso mudar o destino do meu povo, Catelyn?
A sua associação de idéias impressionou-me. Confirmei com a cabeça, respondendo com toda a convicção:
- Eu acredito que tu já estás a mudá-lo!
As mulheres da casa e as da aldeia, que se haviam reunido a nós para ajudar a costurar a gigantesca vela, tagarelavam alegremente. Apesar de partilhar da tarefa, parte da minha mente libertara-se e saíra para a rua, enfrentando a bruma que fechara as garras sobre as Terras do Norte. Eu conseguia cheirar o mar no vento, sentir o ar gelado e denso... e ver os abetos abanando ritmicamente por cima do manto branco que cobria a terra, os archotes da Aldeia do Povo, o fumo escapando-se em espiral pelas chaminés das modestas habitações... Podia ver o homem aproximando-se a cavalo, controlando-o como se fizessem parte da mesma essência, com os seus cabelos louros presos dentro do gorro de lã e a capa esvoaçando em redor do corpo. Concentrei-me nele e interiorizei as batidas do seu coração. Em que estaria Throst a pensar?
Cedi à tentação de espreitar e pressenti o seu sobressalto. Ele acabara de desmontar e entrara no estábulo, mas não estava sozinho. Um perfume doce empestava o ar e sobrepunha-se ao cheiro forte dos animais. Eu não precisei de vê-la para reconhecê-la. Halldora voltava a atacar!
O meu choque foi tão violento que me quebrou a concentração. Certamente soltei um grito, pois, quando olhei em redor, as mulheres fitavam-me surpreendidas. Desculpei-me com uma súbita indisposição e, sem lhes dar oportunidade de reagir, pus a capa e corri para a noite. Enquanto as minhas botas se moviam ligeiras sobre a neve, eu repetia que o que tencionava fazer não era correto... Mas não havia força no mundo capaz de deter-me.
A porta do estábulo estava fechada, mas eu distinguia claramente as vozes no interior, por entre os balidos do gado e os relinchos dos cavalos, Halldora dizia:
- Tu não irás casar-te com aquela criatura! Se o tencionasses de verdade, já terias casado!
- Não fales do que não sabes!
A resposta de Throst, gélida e cortante, revelou-me que algo o aborrecera. Provavelmente, Halldora já saltara para o seu pescoço. Encolhi-me na sombra, enquanto a rapariga ripostava:
- Eu tenho a certeza! Só me afastaste porque estavas magoado. Eu entendo! Agi como uma miserável, mas já me arrependi! Perdoa-me! Oh, Throst, tenho tantas saudades tuas!
A voz masculina soou impaciente e quase que pude ver as mãos dele a afastá-la:
- Pára com isso, Halldora! Tu és uma mulher casada! E casaste com o homem que escolheste! Assume de uma vez a tua opção e respeita o teu marido.
- Não entendes Throst? O Freysteinn é horrível! Obriga-me a deitar com ele e a fazer coisas nojentas!
- E isso não é natural? - O tom de Throst provocou-me um calafrio. - As pessoas quando se casam costumam deitar-se... E no amor não existe nojo, Halldora!
- O Freysteinn maltrata-me! - insistiu ela, numa aflição tão declarada que espicaçou a minha piedade. - Queres ver as marcas?
- Não! - Recusou ele, sem a mais pálida compreensão. - Eu já disse que não tenho nada a ver com a tua vida! Se o Freysteinn te trata mal, por que não te divorcias? Apela ao Gunnulf...
- Achas que já não tentei? - Desta vez, Halldora chiou e eu percebi que ela sucumbira às lágrimas. - O Gunnulf mudou! Mete-me medo! Diz que, se eu deixar o Freysteinn, não permitirá que me volte a casar! E eu quero ser feliz, Throst! Só a morte do Freysteinn me poderá salvar. E tens de ser tu a matá-lo, porque mais ninguém conseguirá!
Seguiu-se um silêncio pesado. Levei as mãos aos lábios, percebendo as intenções da maquiavélica rapariga. Ela usava a antipatia dos dois homens para os manipular, mais uma vez.
- Enlouqueceste Halldora? - O rugido de Throst sobressaltou-me. - Eu não irei matar um homem só porque tu não sabes escolher as tuas companhias!
A voz feminina tornou-se doce como o mel, envolvente como o sol de Verão, deliciosa como a brisa do mar... Uma promessa de prazer flutuava em cada palavra:
- E o que te custa? Eu sei que o odeias! E muito mais agora que ele se casou comigo... que se apropriou daquilo que te pertencia! Não sentes raiva sempre que pensas nas suas mãos sobre o meu corpo? Quando o Freysteinn morrer, nós poderemos casar! Eu tenho tido cuidado para não engravidar. Quero os teus filhos, Throst, e os de nenhum outro! O meu plano é perfeito...
Como eu detestava ter razão! Escorreguei pela parede, apertando os lábios com força para não gritar. Lá dentro, Throst vociferava:
- Tu estás completamente maluca! Não admira que o Freysteinn te dê umas palmadas!
- Eu amo-te, Throst! - persistia Halldora, convicta do que desejava. - Por que não admites que também me amas e esquecemos este ano miserável? Eu até... Eu até admito reconsiderar em relação à Pequena. Podes mantê-la por perto para te divertires quando eu estiver indisposta...
Senti vontade de irromper pelo estábulo e esbofeteá-la; pendurar o seu corpo aleivoso no telhado; consumi-la no braseiro da minha ira. Halldora era perversa e engenhosa. Depois de todo o mal que nos fizera ainda se atrevia...
- Sai daqui! Estou cansado dos teus disparates!
A porta do estábulo abriu-se estrondosamente, e a voz de Throst ribombou na noite, furiosa e agressiva. Halldora agarrara-o, e ele libertara-se, empurrando-a para a rua.
- Throst...
- Vai-te embora! Não me agradará dizer ao teu irmão que vieste aqui, mas fá-lo-ei se não partires imediatamente!
Eles estavam tão perto de mim que eu podia estender a mão e tocar-lhes. Ouvi a respiração de Throst, pesada e enraivecida. Vi os olhos tempestuosos de Halldora consumindo a sua figura. E senti um peso no peito ao perceber que esta questão jamais se resolveria.
- Eu vou... - rugiu ela entredentes, enfrentando-o abertamente.
- Mas vou com a certeza de que tu me amas! - Ergueu a mão e acariciou-lhe o rosto. Eu fiquei em pânico ao verificar que ele não a afastava. - Nenhuma vagabunda estrangeira pode extinguir o que sentes por mim! Tu começaste a amar-me no dia em que eu nasci! Só pararás de me amar no dia em que morreres...
A mão de Throst capturou a de Halldora e puxou-a bruscamente contra o seu corpo. Eu contive um gemido a custo, pensando que ele ia beijá-la num ímpeto de raiva. Contudo, a sua voz soou perigosamente baixa e ameaçadora:
- Eu já morri para ti, Halldora! Não te recordas? No porto... Eu morri para ti no porto! Mataste todos os meus sentimentos com o egoísmo e a maldade que vomitas ao respirar. Não te amo! Não te quero! Nem sequer te reconheço como gente! Desaparece da minha frente! Espero que o Freysteinn te dê tudo o que mereces!
Repeliu-a com demasiada força, e Halldora cambaleou num equilíbrio precário. Furiosa, soltou uma saraivada de pragas, antes de correr para o seu cavalo e partir. Throst ficou no mesmo lugar, com os olhos fechados voltados para o céu, forçando-se a serenar. Por fim, soprou o ar com força e começou a andar. Deu três passos e estacou subitamente, olhando em redor. O meu coração falhou uma batida quando os seus olhos pousaram em mim. Como é que ele se apercebera da minha presença? Eu não fizera o menor barulho, não me movera...
- Agora também escutas atrás das portas? - A sua voz estrelejava de irritação. - Eu juro por Thor que jamais entenderei as mulheres!
Tencionou avançar, mas eu detive-o e abracei-o pelas costas. Não tentei justificar-me. Não conseguiria falar, mesmo que soubesse o que dizer. Lentamente, Throst voltou-se e tomou-me nos seus braços. Eu ergui o rosto em busca dos seus lábios e encontrei-os. Entreguei-me à doce loucura, esquecendo qualquer sombra de insegurança. Fiquei à deriva quando ele me afastou quase bruscamente e declarou desorientado:
- Se acreditasses no quanto eu te quero, não terias necessidade de desconfiar do meu amor. Podes ser metade feiticeira, metade mulher, mas quando se trata de sentimentos, não passas de uma criança! Não é só nas feitiçarias que te falta a confiança! Na vida, também não a tens!
Desta vez, Throst conseguira atingir-me no ponto fraco. Impedi-o de se afastar, agarrando-lhe no pulso e colocando a tatuagem da sua linhagem em frente do seu nariz.
- E tu, estás seguro de tudo? Como te atreves a julgar os meus medos, se não tens coragem de enfrentar o teu próprio destino?
A sua mão de ferro fechou-se no meu braço. Arrastou-me para dentro do estábulo, ordenando numa voz nada amistosa:
- Vem comigo!
Subiu para o cavalo malhado e aguardou que eu lhe obedecesse. Como não reagi, gritou impaciente:
- Monta, Catelyn!
Içou-me para a frente do seu corpo e rodeou-me com um braço, antes de incitar o cavalo a galopar. A noite recebeu-nos de braços abertos.
A minha mente relampejava. Eu só podia estar a sonhar! Throst subia a Montanha Sagrada, ao encontro do seu destino. E eu estava com ele! Por mais assustadora que a situação fosse, era impossível conter a excitação que me percorria. Para o bem ou para o mal, chegara o momento.
O tempo mudou subitamente e grossos pingos de chuva encharcaram-nos até aos ossos, como se os Elementos nos banhassem para nos purificar de todo o mal terreno. A luz quente que brotava da terra envolvia-nos na sua magia. As árvores afastavam os ramos frondosos para nos facilitar a passagem. Por entre as folhas extraordinariamente verdes, soprava um som maravilhoso, um cântico celestial. Não muito longe, os Lobos Cinzentos seguiam-nos. Eu ouvia os seus corações a troarem de alegria. O líder da alcatéia regressava a casa.
A gruta, onde supostamente Hakon vivia, estava mergulhada na mais completa escuridão, mas a Pedra do Tempo brilhava, iluminada pelas chamas que brotavam do solo e se espalhavam em centenas de pequenos fogos que ardiam sem se extinguirem debaixo do tenebroso aguaceiro. Quando as mãos fortes do meu guerreiro me rodearam a cintura, fui arrebatada por uma tontura. Os nossos corpos moldaram-se e, apesar da diferença de altura, pareciam que tinham sido forjados para se encaixarem, para se pertencerem, como partes da mesma peça.
- Estás com medo, Catelyn? - perguntou ele, ao sentir-me estremecer.
- Não, Throst! - respondi emocionada. - Eu quero estar ao teu lado...
Entramos no anel de fogo. Throst hesitou, e eu abracei-o com meiguice, sabendo o quanto lhe custava cada passo.
- Eu só estive aqui uma vez - confessou. - Recordo-me de que a Pedra tinha uma força que me roubava a vontade. Era quase impossível resistir à tentação de me unir a ela...
- E agora, sentes essa força?
- Sim... E sinto muito mais...
A energia que nos envolvia tirava-me o fôlego, entrava-me na pele e consumia-me a carne. Mas a impressão estava longe de ser desagradável. Era uma leveza pura, um prazer doce que se misturava com o sangue e dominava a razão. Ao meu lado, Throst murmurou extasiado:
- Estás a brilhar!
E ele também brilhava. Na minha mente já só existiam certezas, e os olhos de Throst revelaram-me que o seu sentimento era igual.
Nós fôramos escolhidos para fazer a paz florescer.
Paramos diante da pedra que dominava o mundo, arquejantes de emoção. Estendi-lhe as minhas mãos e afundei-me no olhar da cor do céu da minha terra.
- Acreditas agora, Throst?
Por cima de nós, os relâmpagos desenhavam padrões irreais, lembrando serpentes que se entrelaçavam num círculo de magia. Os trovões ribombavam como tambores em festa. A chuva caía com tamanho ímpeto que dir-se-ia que todos os rios do céu haviam transbordado. Os Lobos Sagrados cercavam-nos, guardiões da Vontade Divina.
- Eu comecei a acreditar no instante em que te vi, Catelyn! Só demorei a reconhecer que este é o meu destino... Este é o nosso destino!
Os nossos dedos entrelaçaram-se, antes de colocarmos a mão que nos unia pelo sangue sobre a Pedra do Tempo. Um vento selvagem trespassou-nos, sacudindo as roupas e os cabelos como bandeiras. Tudo estava assombrosamente certo! Tudo era deliciosamente perfeito! Os lábios de Throst moveram-se, e a minha mente assimilou as palavras que os meus ouvidos não podiam escutar. Era uma declaração de boas-vindas à sua terra, à sua vida, à sua casa, ao seu coração... Uma profunda, sentida e linda confissão de amor, que eu conhecia de cor sem nunca a ter compreendido. Era esta a mensagem das Runas Sagradas gravadas nas pedras branca e preta do templo da propriedade dos Thorgrim.
Nesse instante, percebi que devotava à Terra Antiga a mesma paixão que dedicava à minha terra, pois fora aqui que Throst nascera e crescera... Fora aqui que a luta sem tréguas, contra os nossos sentimentos mais profundos, resultara numa rendição incondicional. Eu amava Throst e não precisava de dizer-lho, pois sentia-o dentro da minha mente, comungando do meu espírito como se fôssemos um só. Após uma última exclamação de arrebatamento, também ele se entregou à vertigem e abandonou a sua essência humana.
O nosso mundo estilhaçou-se. A energia queimava-nos por dentro e por fora. Tive a certeza de que fôramos atingidos por um relâmpago, mas não senti medo. Os braços de Throst protegiam-me e, dentro deles, nenhum mal conseguiria penetrar. Vi a Pedra do Tempo lá em baixo, sobre a cabeça de um dragão de fogo, e os nossos corpos tombados aos seus pés, desprovidos de consciência. Vi a tempestade alastrar-se pelas Terras do Norte, até engoli-las na sua turbulência... Depois, imagens desconhecidas apossaram-se da trêmula realidade. Conheci a Terra Antiga por outros olhos... Os olhos apaixonados de um filho. Fui devastada por uma sede de liberdade aguerrida, uma paixão pela natureza e pelo mar... Rostos estranhos rodeavam-me, mas todos me inspiravam afeto. Eu estava dentro de Throst, vivendo as suas recordações.
E experimentei, sem rancor ou ciúme, cada uma das suas alegrias e tristezas, dos seus temores e paixões... Os amigos, a cumplicidade com Gunnulf, a devoção incondicional de Krum, as provas de coragem e a transição para a idade adulta, a luta até à morte com o Lobo que lhe completaria a alma, as caçadas temerárias, as travessias a nado na baía gelada, os mergulhos do topo das montanhas escarpadas para o mar, o frio, a fome, a sede... A percepção da sua missão, a negação, o ressentimento, a mágoa, o abandono... O nascimento de Ingrior, o nascimento de Halldora, a morte de Thorgrim, o nascimento de Bjorn, a morte de Elina, a morte de Trygve, o nascimento do sobrinho... O ódio, a determinação, a frustração, a raiva, a fúria de combater, o suor e o sangue, o cansaço... Garrick McGraw... Oliver de Goldheart... Um rosto no meio da multidão, desesperado e irado... O rosto de uma menina pequena e magra, lutando pela vida com uma determinação apaixonada... O meu rosto! O seu corpo dentro do meu... E o coração a bater tão rápido, que magoava o peito. A energia fluindo através de nós, transportando-nos pelo tempo e pelo espaço. E, por fim, a escuridão total. A percepção do vazio. E uma voz bela, tão limpa... carregada de serenidade:
”Do ódio, o amor...
Do amor, o sangue...
Do sangue, três reinos...
Dos três reinos, um só povo...”
Quando despertamos, a tempestade dissipara-se e o céu estava pincelado de estrelas. Ao nosso redor, o fogo acabara de se extinguir e, no interior da gruta, uma luz brilhante e quente chamava-nos. Abri a boca, mas descobri-me demasiado emocionada para falar. E quaisquer palavras seriam vazias para descrever o que se declarava no nosso olhar.
Em silêncio, Throst suspendeu-me nos seus braços e carregou-me para a proteção da caverna. Na entrada, uma fogueira estalava vigorosamente, dando-nos as boas-vindas. Havia comida com fartura, muita fruta e vegetais frescos, mel e água cristalina. Mantas quentes, com padrões belíssimos, aguardavam a fadiga dos nossos corpos. Os livros de Hakon e todo o seu material de estudo e escrita estavam disponíveis para que os consultássemos, mas, como era habitual, o feiticeiro não apareceu para nos saudar.
Throst sentou-se numa manta e manteve-me no aconchego do seu abraço. Era evidente o esforço que fazia para domar a comoção.
- Throst...
- Por favor, meu amor... Não digas nada...
Escondeu o rosto no meu pescoço e começou a chorar. A sua reação assustou-me. O que lhe fora revelado que causara tamanha perturbação? Contudo, não era o momento certo para interrogá-lo. Embalei-o junto do meu peito e respeitei a sua vontade. Pensei que esta seria uma noite longa e torturante para ambos, mas não tardei a verificar que ele adormecera e, logo de seguida, cedi também ao cansaço.
O tempo que dormimos passou sem sonhos. Quando eu despertei, sentia-me descansada e nem me assustei quando me vi envolvida pelo nevoeiro colorido. Como se já soubessem o que iam encontrar, os meus olhos voltaram-se para a parede da caverna. Onde, ainda há pouco, só existia rocha sólida e nua, abria-se agora uma passagem larga e fortemente iluminada. Ao meu lado, Throst deixou escapar uma exclamação de pasmo e ergueu-se, movendo-se por entre a névoa brilhante que nos rodeava, até à entrada do misterioso fenômeno. Lentamente, como se temesse queimar-se, introduziu a mão dentro da luz. A energia faiscou em redor da sua pele e fê-lo recuar, sobressaltado. Só então me encarou, murmurando com declarada perturbação:
- Como é que isto é possível?
Forcei-me a serenar e aproximei-me, enquanto explicava:
- A Montanha tem vontade própria! Está viva... E só revela os seus segredos quando quer... e a quem quer.
Throst franziu o sobrolho, adivinhando o que eu ainda não dissera:
- Tu já percorreste esta passagem, Catelyn?
Confirmei com a cabeça, sussurrando quase imperceptivelmente:
- Nos meus sonhos...
- E o que há do outro lado?
Hesitei debaixo do seu olhar, confusa e receosa, desejosa e excitada, antes de responder:
- O lugar onde tu me encontraste pela primeira vez... nos teus sonhos!
Throst cerrou os olhos e respirou fundo. Eu aguardei pela sua decisão e senti o sangue aquecer quando ele me estendeu a mão, encorajando-me a acompanhá-lo nesta nova aventura.
Quando a luz da gruta nos envolveu, Throst soltou uma exclamação de encanto que ecoou pelas paredes altas e cintilantes. Tudo era exatamente como eu recordava: os cristais de todas as cores que nasciam e floresciam do teto e do chão, a cascata de água que alimentava o lago, a grande pedra negra que acolhia os nossos corpos, num sonho tão maravilhoso como proibido. Estremeci sem querer e Throst amimou-me, procurando o meu olhar.
- Não tenhas receio, querida! Este é um lugar de amor...
- Como pode ser um lugar de amor, se nós estamos condenados a viver separados?
A angústia na minha voz foi suficiente para que ele compreendesse o meu tormento. De imediato, baixou o rosto e beijou-me a testa, os olhos, as faces, até chegar junto dos lábios e afirmar com clareza:
- Nós não estamos condenados! Pode não ser hoje, nem num tempo próximo, mas o nosso amor irá consumar-se sobre aquela pedra! Juro-te, Pequena, que jamais desistirei de lutar pela nossa felicidade!
E beijou-me até me fazer perder o fôlego, até afastar da minha mente todos os fantasmas e cravar a sua convicção no meu âmago. Arrepiei-me quando murmurou na voz quente e profunda que punha a minha cabeça a girar:
- Confias em mim?
Quando os dedos de Throst se moveram ligeiros sobre os cordões do meu vestido, vi-me dividida entre o medo de ceder à sua vontade e a exaltação do momento. Ainda não decidira o que fazer e já estava nua, corada até à alma, sem saber que parte do meu corpo as mãos deviam ocultar. Surpreendendo o meu pudor, ele replicou docemente:
- Não escondas a tua beleza, Catelyn! Tu és a mulher mais perfeita que eu já vi... E assim serás para sempre, pois não haverá outra diante dos meus olhos, no meu coração e na minha cama, a partir deste instante!
- Throst...
O protesto rouco morreu-me na garganta ao ver a sua roupa tombar por cima da minha. Fiquei inerte, respirando aos borbotões, estrangulada de emoção ante a sua nudez magnífica. O corpo forte, a masculinidade declarada, a força que emanava do seu espírito, inflamavam-me a razão. Ele estendeu-me a sua mão e aguardou em silêncio que eu o seguisse. A muito custo consegui mover as pernas, mas quando os meus pés tocaram a água morna e viva, as inibições diluíram-se como por encanto. As bolhas de ar quente faziam cócegas na nossa pele, num convite a mil brincadeiras. Logo nadava ao lado de Throst, sem me lembrar de que existiam sentimentos como a vergonha ou a timidez. A nossa nudez parecia-me abençoada, como se nada houvesse de mais natural e puro.
- Vem!
Segui-o até aonde a água da nascente se fundia com o lago. O meu coração acelerou quando ele me apertou as mãos e prendeu o olhar, declarando solenemente:
- Na noite em que fizemos o nosso pacto, eu entreguei-me a ti cegamente, sem perceber a razão por que aquelas palavras saíam dos meus lábios. Hoje os meus olhos estão bem abertos... Renovo todos os votos que te fiz, Catelyn, e entrego-te o meu coração! Sou teu, meu amor, de corpo e espírito... e estarei ao teu lado, até ao dia da minha morte!
Eu queria chorar. Eu queria rir. Eu queria saltar para o seu pescoço e amá-lo como nenhuma outra mulher o amara antes, ou amaria algum dia. Mas a sombra da fatalidade enegrecia o meu futuro, abria-me uma chaga no peito que nem a magia que nos rodeava nem a certeza da nossa união espiritual podiam sarar. Forcei-me a reagir, replicando:
- O que estás a fazer é uma loucura! Tu tens o direito... tens o dever de procurar a felicidade...
Os dedos de Throst silenciaram-me, enquanto ele retrucava:
- Eu só serei feliz ao teu lado, Pequena! Estou disposto a qualquer sacrifício. A esperar o tempo que for necessário. A enfrentar seja o que for...
Caí nos seus braços e fechei os olhos, deixando-me embalar pelas batidas dos nossos corações. Throst acariciou-me os cabelos e beijou-me a testa, antes de continuar:
- Tu mudaste a minha vida! Eu estava perdido, e tu encontraste-me. Estava cego, e tu abriste os meus olhos. Estava envenenado pelo ódio, e tu encheste o meu peito de amor... Sei que sofres por ti e por mim. Sei que a incerteza e o medo reprimem os teus sentimentos e te impedem de te libertares nos meus braços. Mas, um dia, essas sombras desaparecerão e nada voltará a assombrar a nossa existência!
No regresso, encontramos Ingrior muito inquieta. A percepção revelara-lhe aonde nós fôramos, e a ansiedade fizera-a desesperar. Throst confessou-lhe que estava preparado para assumir o seu destino e Ingrior chorou de alívio e felicidade. Agora, só faltava ”O Que Tudo Vê” manifestar-se e explicar-lhes o motivo do seu longo isolamento. Porém, esse enigma parecia longe de uma resolução.
Throst manteve os desígnios da Pedra do Tempo em segredo. A única vez que me atrevi a questioná-lo, respondeu-me que lhe tinham sido mostrados vários caminhos, acerca dos quais necessitava de refletir. Como a decisão final teria de ser única e exclusivamente sua, nada mais podia dizer-me. Acatei, mas o passar dos dias deixou-me preocupada, e Ingrior partilhava do meu nervosismo. Sentíamos Throst apreensivo e triste, distante dos assuntos da casa e dos amigos. E o tempo parecia fechar-se sobre nós.
Os rumores de que Gunnulf se preparava para se insurgir contra o primo eram cada vez mais consistentes. Os aldeões falavam da chegada de homens das terras onde o gelo nunca derretia; mercenários implacáveis, que vendiam os seus serviços em troca da riqueza que o líder da Terra Antiga tinha para oferecer. Entretanto, a atenção de Throst era constantemente solicitada por guerreiros desconhecidos, de aspecto severo e aterrorizador, que chegavam pela calada da noite e desapareciam com o chefe da Aldeia do Povo durante dias inteiros. Ingrior contou-me que eram mensageiros dos diferentes clãs vikings, alguns de aldeias vizinhas, outros de terras distantes. A minha amiga tinha esperança de que o processo de paz tivesse começado e que já nada o conseguisse deter. Porém, se assim era, por que Throst se rodeava de mistério?
Confusa e sobressaltada com esta estranha azáfama, eu forcei-me a esquecer a ameaça de Halldora. Todavia, duas semanas depois, em pleno mercado, Ingrior e eu fomos atraídas pela confusão que se gerara no recinto da competição de arco. Rompi por entre o povo com o coração apertado e senti a força a fugir-me do corpo, ao ver a concretização dos meus piores temores. Freysteinn discutia com Throst, diante de toda a aldeia, acusando-o de perseguir e seduzir a sua esposa. Mais uma vez, Halldora preparara bem o seu maquiavélico ardil. Throst empurrava o descontrolado guerreiro, ripostando:
- Acalma-te, Freysteinn! Eu nunca toquei na Halldora! E a voz do outro ribombava, carregada de ódio:
- Além de te impores a uma mulher séria, ainda tens a ousadia de a desmentir diante da família e da comunidade? Não passas de um porco nojento, filho de Thorgrim! Não conseguiste os favores da Halldora quando foste seu prometido e agora tentaste usurpá-los...
- É mentira! - gritei e lancei-me em frente, atraindo a atenção da multidão. - A Halldora inventou esta calúnia por despeito, porque o Throst a rejeitou!
Fez-se um silêncio aterrador, enquanto o povo ponderava quanto valia a palavra de uma escrava estrangeira contra a palavra da irmã do líder da Terra Antiga. Engoli em seco ao ver Freysteinn avançar para mim. Throst agarrou-o pelo braço, rugindo afogueado:
- Não sejas louco! Vamos resolver este mal-entendido. Eu dou-te a minha palavra...
- As minhas fezes valem mais do que a tua palavra! - Freysteinn sacudiu o braço e enfrentou o rival. - Não passas de um canalha, de um traidor, de um cobarde miserável! Viraste as costas ao teu líder, depois de conspirares à sua mesa, atraiçoaste a sua confiança, deitaste-te com a estrangeira e, agora, tentaste violentar a minha mulher! Eu não tolerarei mais a tua presença nociva entre os homens de bem!
- Desembainhou a espada com um gesto rápido e firme. - A verdade tem de ser reposta, e eu clamo por justiça! Quando o teu sangue sujar as minhas botas, irei urinar-te para a cara!
Ergueu-se um burburinho ensurdecedor, e o povo apressou-se a afastar-se, dando espaço aos dois homens para decidirem a questão. Tentando impedir o confronto, apelei a Halldora:
- Um deles morrerá por culpa das tuas mentiras! Por que não falas a verdade?
- Tragam essa escrava aqui! - bravejou Gunnulf. - Se as acusações contra o seu amante ficarem provadas, eu quero ter o prazer de lhe cortar a garganta.
Fui arrastada até ao líder viking, por entre a neve e a lama, esperneando e berrando como um cabrito selvagem. Atiraram-me para os seus pés sem a mais leve cortesia. Caí estendida ao comprido e um pé descomunal abateu-se sobre as minhas costas, provocando-me uma dor aguda que me cortou a respiração. A voz de Throst ecoou muito próximo:
- Se tocares num fio de cabelo da minha mulher, Gunnulf, juro que te matarei!
A gargalhada do colosso ribombou por cima de mim:
- As ameaças de um homem morto não me assustam! Acaba com ele, Freysteinn!
O estrépito inconfundível do choque das espadas atingiu-me os ouvidos. Esforcei-me por olhar, mas o pé que me esmagava privava-me de qualquer movimento. Tudo o que enxergava era a pele imunda das botas de Gunnulf. A dor nas minhas costas era tão lancinante, que me punha a cabeça a latejar. Eu tinha de me acalmar! Precisava de me abster deste horror e alcançar a concentração suficiente para usar a Arte e espiar o que se passava. Continuava a ouvir os gritos da disputa e o estouro do metal, mas era-me impossível descobrir a quem pertencia a vantagem, pois os apoiadores de ambos clamavam tão alto que me turvavam a percepção.
Respirar... O segredo estava na respiração. Mas como podia eu respirar, quando todos os meus ossos ameaçavam quebrar-se? Esquecer a dor... Esquecer a dor e respirar. Devagar. Muito devagar. De repente, vislumbrei-os; dois corpos encharcados em lama e suor, movendo-se a tal velocidade, que era quase impossível acompanhar o ritmo das suas armas. Apelei a toda a minha vontade para deslizar a mão pela imundice do solo, até agarrar o meu amuleto. Freysteinn já tinha a alma manchada com o sangue do meu primo. Eu não permitiria que magoasse Throst, nem que, para o impedir, tivesse de o fulminar diante de toda a aldeia.
Contudo, o ímpeto de Throst reprimiu a minha interferência. Havia nele uma força renascida, que os adversários desconheciam. O Lobo Sagrado fora libertado! Na minha mente, as faces dos homens confundiam-se com os focinhos dos lobos: um grande e cinzento, de porte nobre e formidável; outro menor e escuro, com olhos vermelhos, horrendos e aterradores, que salivava sangue e porcaria. Por também ser um guerreiro-lobo, Freysteinn acreditava que podia vencer o rival. Vã convicção! O sangue de Throst era puro e muito mais forte do que o seu.
Freysteinn não tardou a cair, e a sua espada escorregou para longe. Com um movimento rápido, Throst encostou-lhe a lâmina à garganta. Seguiu-se um instante de hesitação, que culminou num profundo silêncio da assistência.
- Isto não tem de acabar assim - decidiu Throst. - Retira as ofensas que fizeste à minha mulher e à minha honra, Freysteinn. Pede-me perdão e eu permitirei que partas. Será lamentável se um guerreiro da tua estirpe encontrar a morte devido à conspiração de uma louca!
Um guerreiro da estirpe de Freysteinn... falso, traiçoeiro e indigno! Um reles criminoso! Mas Throst não partilhava do meu conhecimento, e a sua bondade impelia-o a apiedar-se do abjeto assassino. Eu sentia o coração de Freysteinn a açoitar-lhe o peito, a sua respiração sôfrega, o suor escorrendo pela sua pele, a hesitação rasgando-lhe o orgulho... E, enquanto o burburinho denunciava a perplexidade do povo, a voz esganiçada de Halldora sobrepunha-se às restantes:
- Não te atrevas a desmentir-me, Freysteinn! Não serás homem se cederes a tamanha humilhação!
Freysteinn tremia de ansiedade e raiva. Fixou em Throst o seu olhar rancoroso e rosnou entredentes:
- Eu jamais me submeterei à tua compaixão! Faz o que tens de fazer!
A morte não era uma visão agradável, mas eu regozijei-me por ver a espada da justiça descer até ao peito do derrotado. A multidão gritava, dividida. A inocência de Throst já não era questionada, pois os Vikings acreditavam que os resultados dos duelos eram influenciados pelos deuses e que vencia sempre a parte que detinha a razão. Porém, nunca se observara tal demonstração de benevolência num acerto de honra. Um agravo desta natureza devia ser punido com a morte. A hesitação de Throst estava a confundir o povo.
- Eu não irei matar-te, Freysteinn! - anunciou ele bem alto, para que todos o escutassem. - Este assunto será discutido na próxima Assembléia, e lá pagarás caro pela tua insolência.
As faces do guerreiro prostrado incendiaram-se de raiva e vergonha. A estupefação da multidão atingiu o auge. Throst mal esboçara um passo para se afastar, e já Halldora ordenava:
- Mata-o, Freysteinn! Mata-o!
Throst voltou-se a tempo de conter a investida traiçoeira do adversário. Com um grito irado, decepou-lhe a mão que segurava o punhal e rodou a sua espada, enterrando-a profundamente no ventre do inimigo. O tempo parou quando os dois homens se encararam pela última vez. O silêncio que se abatera sobre o recinto era tamanho, que eu ouvi o corpo de Freysteinn a esmagar-se no solo, quando Throst recolheu a sua espada. Depois, fui ensurdecida pelo uivo penado de um lobo. Ao longe, outro respondeu-lhe com um longo gemido, não de dor, mas de libertação. Suspirei, inundada pelo alívio. Este pesadelo terminara! Finalmente Trygve ia descansar em paz.
Os olhos de Freysteinn escancararam-se, e os seus lábios soltaram um queixume rouco, um apelo angustiado, um lamento sincero pela perda do único sentimento verdadeiro que guardara no seu coração - o amor desesperado e cego por uma mulher que o usara e desprezara:
- Halldora...
O pé libertou-me as costas, mas eu não consegui mover-me. Duas mãos fortes resgataram-me da lama e o cheiro inconfundível de Throst embriagou-me os sentidos. Ficamos abraçados, demasiado emocionados para esboçar um movimento ou proferir uma palavra.
Não muito longe, o corpo de Freysteinn jazia na lama, com o rosto desfigurado num último espasmo de dor. A minha intuição avisava-me de que a sua morte fora apenas o início de algo muito mais grave. Gunnulf estava fora do controlo de qualquer um... Até de Sigarr! Não me parecia credível que o feiticeiro tivesse aprovado esta disputa. Ele saberia que Freysteinn não podia vencer Throst! Aparentemente, o guerreiro-urso decidira agir por conta própria. E a ruptura do Guardião da Lágrima da Lua com o seu protegido não era uma suposição animadora. Eu já conhecia o modo de atuação dos dois conspiradores. Separados, transformavam-se numa dupla ameaça.
Throst estava perturbado. Também ele sabia que este duelo representara a divisão definitiva dos chefes da Terra Antiga e a prova final de que o conflito de vontades não podia ser resolvido sem derramamento de sangue.
Ingrior chegou finalmente, e a sua aflição revelou-me que Throst estava ferido. Ele apressou-se a sossegar-nos:
- São só arranhões. Vamos para casa.
Halldora abeirara-se do cadáver do marido e chorava com a devoção de uma esposa exemplar. Apeteceu-me cuspir-lhe na cara. Throst quedou-se junto dela e vociferou, fustigado pela repulsa:
- Conseguiste o que desejavas! Espero que estejas satisfeita! A resposta veio no mesmo tom:
- Tu és um traidor e morrerás como um traidor! Se o Gunnulf não deixou o próprio irmão impune, também não te perdoará...
Ao meu lado, o grito de Ingrior abafou o vômito de fel de Halldora, e esta aproveitou o abalo da prima para continuar:
- Não sabias, rameira? Na nossa família, as traições pagam-se com a morte!
- Halldora! - O berro de Gunnulf silenciou a irmã, mas o mal estava feito.
Throst gelou, como se a vida se tivesse escapado do seu corpo. Ingrior tapou o rosto com as mãos, e eu tive de ampará-la para que não perdesse os sentidos. O olhar de desafio com que Halldora me enfrentou declarava a sua vitória. Ela sabia do segredo que rodeava o assassínio de Trygve. Talvez tivesse escutado uma conversa entre Gunnulf e Freysteinn, ou talvez o próprio marido lhe tivesse contado. Eu não percebia como uma criatura podia ser tão maldosa, ao ponto de se vangloriar com a morte de um irmão e, ainda menos, como tinha coragem de utilizar essa hedionda revelação para atingir o seu objetivo final - provocar um confronto mortal entre Gunnulf e Throst. Se o antigo namorado não a aceitava de volta, ela preferia vê-lo morto! A sua fome de vingança era cega e insaciável. E, desta vez, parecia que a desgraça seria inevitável, pois os ânimos fugiam do domínio da razão. Throst já rugia:
- De quem está a Halldora a falar, Gunnulf? Do Trygve? Tu mataste o teu próprio irmão?
A multidão sussurrava, horrorizada perante este novo escândalo. Os Vikings não eram indulgentes no julgamento de crimes de sangue, principalmente quando se tratava de familiares. E o comportamento do guerreiro-urso, nos últimos tempos, não pesava a seu favor. Percebendo que a inconfidência da irmã podia causar uma revolta popular, desastrosa para a sua estratégia, o líder da Terra Antiga investiu contra Halldora e esbofeteou-a sem quaisquer contemplações. O ímpeto da sua fúria foi tal que os pés da jovem perderam o chão. Não senti piedade. Se Gunnulf torcesse o pescoço à irmã, a humanidade só teria a lucrar.
- Isso é verdade, Gunnulf? - tornou Throst, tremendo de indignação, enquanto a sua mão regressava ao punho da espada. De imediato, os seus homens imitaram-no. Krum estava entre eles, dominado pela ira. Eu nem me atrevia a imaginar a batalha que se travava dentro do seu peito.
Gunnulf hesitou. Além das vozes exaltadas que apoiavam Throst, os avisos de Sigarr deviam pesar-lhe no espírito. O guerreiro-urso queria que o primo tombasse, mas não pela sua mão. Ergueu a cabeça dignamente e replicou:
- Dou-te a minha palavra que não matei o Trygve.
- Mas ordenaste a sua morte! - acusou Throst, enfurecido. - Diz a verdade!
Gunnulf franziu o sobrolho, alarmado pela sua perspicácia, mas contrapôs friamente:
- A Halldora não está boa da cabeça! Tu próprio acabaste de ser vítima das suas calúnias. Eu já te disse que nada tive a ver com a morte do Trygve! No entanto, se insistes em decidir a verdade pela força, não te voltarei as costas!
Ingrior gemeu desesperada, e eu coloquei-me diante do incendiado Throst, tentando que ele me escutasse. Apesar da sua resistência e do esforço que fazia para me afastar, consegui apelar:
- O Gunnulf está a falar a verdade! Escuta-me, por favor...
O seu olhar azul, faiscante de raiva, parecia estar longe do meu alcance. Porém, depois de um novo apelo, o meu empenho foi recompensado:
- Não caias na armadilha da Halldora. Confia em mim! Vamos para casa... Por favor!
Gunnulf continuava a aguardar a decisão do primo. Muitos supunham que se reprimia por considerar a longa amizade que os unia. Não podiam estar mais enganados! O coração do líder viking transformara-se num rochedo mais gelado do que um glacial.
Throst inspirou profundamente, esforçando-se por se recompor. A voz com que enfrentou os adversários soou fria e ameaçadora:
- Eu vou acreditar em ti, Gunnulf, porque o homem que eu conheci e admirei não seria capaz de um ato tão vil. Contudo, não te perdoarei por teres questionado a minha honra e conspirado a minha morte. A partir deste momento, renego o nosso sangue. Mantém-te longe da minha família e dos meus assuntos... - Os seus braços estreitaram-me, num ímpeto protetor. - E aviso já que o próximo que se atrever a tocar na minha mulher terá a cabeça exposta na entrada da minha propriedade, até muito depois de a carne ter sido consumida dos seus ossos!
O recado era para Arnorr. Fora ele quem me arrastara e cravara o pé nas minhas costas, provando, desta forma violenta, o afeto que teimava sentir por mim! Retribui o seu esgar de ódio e nem pisquei os olhos quando o vi levar a mão ao cinto, pronto a desembainhar a espada. Tal como eu previa, Gunnulf deteve o irmão e forçou-o a recuar. Depois disto, deixei de ver a corja de assassinos, pois a multidão rodeou-nos, cumprimentado Throst pela vitória e enaltecendo a nobreza do seu caráter. Este era o início de uma nova ordem.
Quando eu chegara às Terras do Norte, havia dois chefes na Terra Antiga: dois primos, dois amigos que lutavam lado a lado pelo mesmo objetivo. O povo seguia-os com devoção e prosperava com rapidez. Agora, os apoios dividiam-se entre os primos rivais. Gunnulf era mais poderoso e rico, mas Throst desfrutava da paixão dos seus homens. Em breve, uma tragédia sem precedentes abater-se-ia sobre os filhos da terra.
Em casa, Throst deteve-se apenas o suficiente para que eu me explicasse. Contei-lhes finalmente a revelação que tivera, na noite em que o meu primo lobo me procurara. Descrevi as circunstâncias que tinham culminado no assassinato de Trygve e justifiquei as razões por que guardara segredo até ao presente. No final, Throst declarou num tom que me arrepiou:
- Espero que o Trygve tenha encontrado a paz que merece. O Gunnulf não perde pela demora! Não posso continuar a ignorar os apelos da minha gente e do meu próprio coração. A minha decisão está tomada!
A palavra depressa se espalhou, e a casa do chefe viking encheu-se com o seu povo. A maioria dos guerreiros opinava que ele devia insurgir-se contra a tirania do primo. Afirmavam que Gunnulf fora o verdadeiro derrotado dessa tarde: vira tombar o homem que apoiara, fora traído na confiança pela própria irmã e denunciara à multidão a sua personalidade monstruosa, pois já ninguém o livrava da fama de mentor do assassínio de Trygve, seu meio-irmão. Todos confiavam que o guerreiro-urso era forte, mas não era invencível. A Terra Antiga clamava por um novo líder. E esse líder era Throst.
Afastei-me da confusão e fiquei a observá-los à distância. Os homens acenderam fogueiras até incendiarem a noite. A comida veio de todas as casas da aldeia, e a cerveja regou as gargantas dos guerreiros. Gritaram-se apelos contra Gunnulf e jurou-se obediência e lealdade a Throst. No centro das atenções e da admiração de todos, usando com orgulho a sua majestosa pele de lobo, o neto do Guardião da Lágrima do Sol parecia maior do que a própria vida.
Ingrior aproximou-se e abraçou-me. Tremia e soluçava, assolada por sentimentos contraditórios.
- O Throst nunca desejou isto... Mas já não pode recuar! Eu sei que sempre o incentivei, mas, agora que o momento chegou, estou aterrada. E se estivermos enganados? Se algum mal suceder ao meu irmão, eu jamais me perdoarei! Que os deuses nos ajudem, Catelyn...
Nessa noite eu não dormi. Pressentia que algo de grande dimensão e gravidade estava prestes a sobrevir. Algo que iria mudar as vidas de todos, para sempre.
A manhã negra encontrou-me de olhos abertos. Throst procurou-me finalmente, e eu não evitei o seu beijo. Ele cheirava intensamente a bebida, mas os seus modos e palavras eram firmes:
- Vou viajar durante uns dias - anunciou. - O Krum ficará na propriedade com alguns homens, atento à vossa proteção. A situação poderá ficar feia depois de eu partir.
- Não irás desafiar o Gunnulf, pois não? - inquiri, assustada.
- Apesar do sangue que te protege...
- Eu sei que o Gunnulf é mais forte do que eu - interrompeu Throst, comedido. - Em tantos anos de treino, eu nunca consegui derrotá-lo. Mas nem só de espada na mão se vence uma guerra! As Runas dos videntes falaram a meu favor, e a Pedra do Tempo continua a brilhar no meu espírito. Eu tenho o dever de pôr fim à tirania que o Gunnulf tem imposto ao povo. Há pessoas a morrer de fome e de doença na Aldeia de Grim, porque ele não distribuiu comida e não permite cuidados. Desde o Verão que saqueia as casas, violenta as mulheres e mata quem lhe faz frente. Eu também sou senhor da Terra Antiga, Catelyn! Odin e Thor são testemunhas de que nunca fui um homem ambicioso, mas não posso continuar a fechar os olhos ao meu dever. Todos encararam a vitória desta tarde como o sinal para avançar. O povo está confiante e unido. Tal como tu não podes negar o apelo da tua gente, eu também não posso negar o apelo da minha. Segurou-me a mão e entregou-me o punhal que o seu pai lhe oferecera; o punhal que unira o Homem ao Lobo. Um calafrio percorreu-me o corpo, antes de encontrar o seu olhar.
- Não hesites em usá-lo se necessitares - ordenou. - E nunca saias de casa sozinha! Eu já instruí a Ingrior para que tenha cuidados redobrados com o Trygve. É importante que percebas que eu estou a falar a sério! O perigo é real!
- Então, por que partes, Throst?
”Por que me deixas aqui, com esse monstro sanguinário à espreita? Por que, de repente, o que sentes por mim deixou de ser importante?”
Eu não conseguia evitar o egoísmo apaixonado. Throst acariciou-me os cabelos, percorrendo o meu rosto com o olhar, antes de explicar pausadamente:
- A maior fraqueza do meu povo é a desunião. Cada aldeia age como se fosse um país independente, e, cada chefe de clã, um rei soberano. Se não nos unirmos rapidamente, não sobreviveremos aos povos que estão a organizar-se para lá das nossas fronteiras, no teu país e nos países vizinhos. Os líderes dos clãs vikings manifestaram a vontade de fazer uma aliança e chamaram-me para conversar. A minha presença nessa reunião será crucial para um entendimento. Existem acordos para celebrar e muitas guerras que podem evitar-se pela via do diálogo. Já consegui que reconhecessem a dignidade do gesto do teu irmão Edwin. Foi o primeiro passo! Apesar de o Gunnulf ter estragado a oportunidade, eu acredito que nem tudo está perdido e que a paz com a Grande Ilha ainda é possível.
Perante isto, nada mais me restava senão estreitá-lo nos meus braços, enquanto suplicava:
- Tem cuidado! Volta para mim...
Estremeci quando os seus lábios quentes tocaram na minha orelha
e sussurraram:
- Eu estarei sempre contigo, Pequena... Tu fazes parte de mim! Beijou-me a testa antes de se afastar; um beijo casto e repleto de carinho. Desejei implorar-lhe que ficasse; gritar que o amava com loucura. Mas fiquei em silêncio, vergada pelo peso da responsabilidade. Dentro de poucos meses, eu estaria na Grande Ilha, e Throst seria apenas uma saudosa recordação.
A noite infindável imperava, e a sua tristeza e melancolia refletia-se nas pessoas, mesmo naquelas que tinham nascido e crescido na Terra Antiga. A situação social também não ajudava. A possibilidade de uma guerra entre clãs era cada vez mais consistente.
Throst viajara há algumas semanas, com uma pequena escolta, e os muitos guerreiros que lhe haviam jurado lealdade mantinham-se firmes, guardando as fronteiras da Aldeia do Povo. Todos os dias, habitantes da Aldeia de Grim vinham pedir abrigo. As pessoas amontoavam-se nas casas e já mal existia espaço para dormir, mas ninguém se queixava, pois sabiam que o que ficava para trás era horripilante.
Na propriedade dos herdeiros de Grim reinava o caos. Notícias de roubos, incêndios e assassinatos chegavam com os aldeões. A partida de Throst para ocupar uma posição numa aliança deixara Gunnulf enlouquecido. Sem remorso, ia destruindo, dia após dia, o que a sua família construíra durante gerações. Só um objetivo o movia: reunir um grande exército para esmagar o primo.
A nossa casa estava repleta de mulheres e crianças, e não tínhamos mãos a medir. O meu equilíbrio, tão importante para praticar a Arte, encontrava-se destroçado, perdido entre a angústia e o cansaço. Eu vivera num país enterrado até ao pescoço em escaramuças, mas o meu pai nunca permitira que a insegurança e o medo chegassem à nossa casa. Aqui, tudo acontecia debaixo do meu nariz, e eu não podia fraquejar.
Apesar da neve que caía, saí para libertar a cabeça do alarido constante. Fixei o olhar no vazio e levei a mão à pedra azul, buscando um pouco de serenidade para o espírito. Surpreendi-me ao senti-la palpitar.
De repente, a pequena coruja pousou na cerca. Os seus enormes olhos amarelos rodopiaram ao encontro dos meus e piou baixinho. Depois voou para o ramo de uma árvore, aguardando que eu a seguisse. Os guardas não se encontravam longe, mas, com a ajuda da Arte, nem se aperceberiam da minha transgressão. Num instante, pulei a cerca e corri tão depressa quanto as pernas mo permitiam. Throst iria compreender que esta desobediência tinha um propósito válido. No meu peito, o amuleto aquecia-me com a esperança de rever a minha avó. E não me enganei.
Aranwen esperava-me no cemitério dos antepassados de Throst, linda dentro do seu vestido azul, comprido e esvoaçante, com os longos cabelos, negros e encaracolados, cobrindo-lhe as costas como um manto.
”Minha querida neta!”
Demos as mãos e sorrimos, escutando o suave ondular das árvores ao sabor do vento, apreciando o prazer de estarmos juntas.
”Infelizmente não temos muito tempo. Aqueles que conspiram contra nós vêem longe e, se souberem desta conversa, tudo estará perdido. Chegou o momento de testares a tua coragem, na prova mais difícil que já enfrentaste.”
Respirei fundo e respondi com convicção:
”Eu estou preparada, avó. Sinto a energia pulsar dentro de mim.”
”Temo que, desta vez, o teu poder não seja de grande valia. Infelizmente, nada mais te posso revelar, mas mantém a certeza de que os que te querem bem se encontram a olhar por ti.”
Engoli em seco, com um aperto gelado nas entranhas. Por que tinha de ser posta à prova quando Throst estava longe? De repente, o medo invadiu-me e perguntei impulsivamente:
- O Throst está bem? Tornarei a vê-lo?
Arrependi-me de exteriorizar as emoções tão abertamente, temendo que a minha avó se zangasse com tamanha dispersão. Porém, ela esboçou um sorriso, antes de declarar:
”O amor é o sentimento mais puro da humanidade... e, a paixão, o motivo por que os feiticeiros renegam o mais nobre dos poderes. Quando um homem e uma mulher partilham esses sentimentos são abençoados perante o Criador. Acreditas no vosso amor, Catelyn?”
Colocou os seus dedos sobre os meus lábios, revelando que não desejava uma resposta.
”Presta atenção ao que te vou dizer. Para tua proteção, amanhã beberás um chá preparado com estes ingredientes...”
”Sim, avó.”
”A tua vitória estará garantida se seguires as minhas instruções. Contudo, recorda-te de que correrás perigo de morte se a denunciares ao inimigo.”
”Não entendo...”
”Entenderás no momento certo. Agora, devo partir... E digo-te adeus nesta terra. Quando nos encontrarmos novamente, tu estarás a um passo da missão para que nasceste. Não te esqueças de seguir o teu coração. Ele manter-te-á no bom caminho.”
Se a minha avó tencionava alegrar-me com o anúncio da minha partida, falhara vergonhosamente. Abandonar a Terra Antiga significava dizer adeus a esta realidade que eu aprendera a amar, a uma nova família, a Throst... Aranwen alcançou os meus pensamentos e sorriu. Apertou o meu rosto entre as mãos delicadas e acariciou-me a testa com um beijo.
”Não por muito tempo...”
Sofri um abalo ante a sua insinuação. Como poderia ser...?
- Avó...
O meu apelo tombou no vazio. Aranwen desaparecera e, com ela, toda a luz. Eu estava envolta pela escuridão da noite, pelas brumas da floresta; nas trevas das minhas dúvidas, dos meus temores e desencantos.
Não consegui dormir e passei a manhã em sobressalto, contando o tempo que passava e esmerando-me na preparação do chá. Tinha a certeza de que cumprira ao pormenor as instruções da minha avó, mas não fazia a menor idéia para que servia a infusão, cuja combinação de ingredientes me era desconhecida. O mistério adensava-se e a minha apreensão crescia.
Tomei o chá enquanto Ingrior se despedia de Trygve e certifiquei-me de que tinha o punhal de Throst preso na bainha da minha bota, longe da vista de todos, como ele próprio me ensinara. Mas nem a proximidade deste objeto tão especial me fez sentir segura. Já ouvira os homens murmurarem à boca pequena que há muito que Throst deveria ter regressado; que se verificava um movimento anormal entre as tropas de Gunnulf; que, se os reforços não chegassem nos próximos dias, sofreríamos um ataque e uma derrota esmagadora; que o sanguinário guerreiro-urso não planeava deixar uma alma a respirar na Aldeia do Povo...
Saímos com uma pequena escolta. Na aldeia, aguardavam-nos doentes que requeriam cuidados urgentes. Apesar de nada dizer, eu pressentia o desassossego de Ingrior. Afastarmo-nos da segurança da casa era arriscado, mas não podíamos desleixar os nossos deveres. Os aldeões dependiam de nós e, além disso, se exteriorizássemos os nossos receios, quebraríamos a confiança do povo e lançaríamos o caos, dando a Gunnulf uma amarga vantagem.
As visitas foram um sucesso, mas, como era de esperar, consumiram muito do nosso tempo. Os guerreiros estavam ansiosos por se porem em marcha e ficaram aliviados quando nos viram surgir.
Ao longe, sobre o mar, vislumbramos uma tempestade que se aproximava. Só nos faltava que começasse a chover... Eu não tinha completado o pensamento e já estava encharcada.
- Anseio pelo dia em que partiremos para a Ilha dos Sonhos
- começou Ingrior, referindo-se à maior ilha do arquipélago conquistado pelo irmão e seus guerreiros. - Mal posso esperar para vestir roupas leves, tomar banho no mar, fazer piqueniques na praia...
Ingrior continuou a sonhar alto, e eu escutei-a em silêncio, imaginando uma praia branca, tão extensa que os olhos não conseguiriam vislumbrar-lhe o fim. Os barcos de pesca repousariam na areia macia e, ao seu redor, os pescadores trabalhariam nas artes, apreciando o agradável calor da manhã. No porto, os majestosos Knarr seriam carregados com o produto das boas colheitas e do artesanato local. Haveria uma floresta... Tinha de haver uma floresta luxuriante! E a casa de Throst seria a maior e a mais animada da aldeia, pois ele seria o líder do seu povo. Quando saísse a cavalo, os aldeões deixariam o trabalho para saudar o senhor da terra e oferecer-lhe-iam um jarro de cerveja fresca, pão acabado de cozer, um saboroso queijo de ovelha e dois dedos de conversa. Eu esperaria pelo seu regresso, de braços abertos, ansiosa por envolvê-lo no meu carinho. Mas, primeiro, as crianças correriam para beijá-lo... os nossos filhos! Throst iria erguê-los no ar e rodopiaria até ficar tonto...
Tudo aconteceu tão rápido que eu nem pude recuperar do meu devaneio de inocente e infrutífera felicidade. Guerreiros vestidos de negro, montados em cavalos possantes, saíram das sombras como se feitos de ar. Atacaram sem aviso, e depressa concluí que a nossa escolta era impotente para proteger-nos. Na confusão de gritos e estampidos de metal, perdi Ingrior e encontrei-me rodeada pelos cavaleiros. Um deles agarrou-me pela capa e derrubou-me da montada.
- Usa a magia, Catelyn! - gritou Ingrior de parte incerta.
- Depressa!
Apesar de o manto de neve ter amortecido a queda, eu estava desorientada. Enquanto um dos cavaleiros avançava, a voz de Ingrior ia-se desvanecendo. Não era fácil concentrar-me quando o pânico paralisava todos os meus sentidos. Arquejei aflita, agarrando no amuleto de Aranwen em busca de ajuda. Estava gelado! Abri a boca, mas não ouvi o meu próprio grito. Uma dor aguda perfurou-me a cabeça, e a chama trêmula dos archotes apagou-se. Caí desamparada dentro de uma escuridão profunda... E a realidade desvaneceu-se.
A consciência regressou, lenta e dolorosamente. Soltei um gemido e levei a mão à fronte para avaliar os estragos da pancada. O corte sangrara, mas não era profundo.
Aos poucos, a visão definia formas. Eu estava num sítio apertado que cheirava mal. Uma gruta... Conseguia escutar o rugido do mar bravio, não muito distante... E ouvia o crepitar da madeira na fogueira acesa na entrada, onde se sentava um homem vestido de negro, alto como uma torre. O meu coração parou de bater ao distinguir os seus cabelos cor de fogo e os olhos esverdeados que contrastavam com a pele branca e tatuada. Apesar de não envergar a famosa pele de urso, Gunnulf era inconfundível.
- Finalmente! - rugiu, distorcendo os lábios num sorriso cruel.
- Já pensava que teria de festejar sozinho!
Enquanto o gigante se aproximava, eu forcei-me a acalmar. Tinha de concentrar-me e pensar com clareza, vencer o pânico visceral, esquecer a existência do corpo e chamar toda a energia à minha mente. Não precisava temê-lo! A minha avó velava por mim! Agora, eu compreendia o mistério que envolvera a sua última aparição. Aranwen viera preparar-me para enfrentar o nosso maior inimigo na Terra Antiga. O seu chá fortalecera-me de certeza!
- Não dizes nada, cadela? - berrou Gunnulf, estendendo uma garra e aprisionando-me de encontro ao seu corpo. - Tornaste a ficar muda? Não importa! Não precisas de falar! Só tens de abrir as pernas!
Empurrou-me para o chão e lançou-se sobre mim. Gemi de dor quando embati na rocha sólida e vi as formas retorcerem-se à luz bruxuleante. Cerrei os dentes para evitar gritar todo o ódio e asco que ele me provocava, sabendo que lhe daria uma glória. As mãos enormes ajeitaram-me debaixo do seu corpo, como se eu fosse uma boneca de trapos. Os seus grunhidos eram abafados pelo ribombar dos trovões, filhos da tempestade violenta que fustigava as Terras do Norte.
Qualquer que fosse a razão deste desvario, o caçador escolhera mal a presa! O chefe viking era forte, mas eu chegava para dez iguais a ele! Uma pequena manifestação de magia seria suficiente para cuspi-lo para longe, como o coice de um cavalo. Deixá-lo-ia paralisado enquanto fugia, e os animais selvagens acabariam com a sua raça. Simples e limpo! Enchi o peito de ar, sentindo que reunira o controlo suficiente para atacá-lo.
- Então, bruxa? - rosnou Gunnulf junto do meu rosto, sem pejo em desafiar-me. - Não vais lançar-me um feitiço? Deves estar a arder por dentro, a interrogares-te por que não consegues!
A sua gargalhada deixou-me mergulhada no assombro total... porque eu realmente não conseguia! Nenhuma das habilidades que aprendera e desenvolvera funcionavam. E não era por falta de concentração...
- Vou poupar-te o esforço - continuou ele, triunfante. - O nosso amigo Sigarr certificou-se de que não usarias a tua bruxaria contra mim! Eu não podia arriscar-me a sofrer de uma maleita, neste dia tão especial!
Não contive o horror quando Gunnulf me rasgou o vestido de lã como se não passasse de uma teia de aranha. Eu estava totalmente indefesa, à mercê da sua bestialidade.
Lembrei-me da minha avó e do seu aviso. Aranwen dissera que o meu sucesso dependia do cumprimento das suas recomendações. E eu fizera tudo o que ela me mandara! Tudo! O que teria corrido mal? Sigarr... Os piores receios da minha avó haviam-se concretizado. O maldito feiticeiro descobrira a sua intervenção e anulara-a. Mas eu não podia entregar-me ao desespero! Eu tinha de sobreviver a este tormento!
O monstro nojento lutava com a sua própria roupa, pois a minha já não era um obstáculo. Mantinha-me paralisada, com as mãos sobre a cabeça e as pernas entaladas nas suas. O instinto garantia-me que, se eu resistisse, acabaria por magoar-me muito mais. Decidi não reagir. Esqueceria a existência do corpo, libertaria o espírito e não pensaria no que estava a acontecer. Fechei os olhos para me poupar à visão grotesca e concentrei-me na tempestade, enquanto os rugidos do Viking se misturavam com a trovoada:
- Vamos lá saber o que o Throst viu em ti, sua puta ranhosa! Tenho a certeza de que lhe lançaste um grande feitiço! Só assim se justifica que ele tenha abandonado a minha irmã por tua causa, criatura miserável! Bruxa feia!
Gunnulf continuou a praguejar acerca da minha falta de atributos, enquanto me explorava com a mão violenta e rude, magoando e arranhando, pressionando até quase me partir os ossos. Se eu não lhe agradava... Por que? Se queria ferir Throst, não seria mais fácil matar-me? Mas Gunnulf não podia matar-me. Sigarr não permitiria! Precisava do meu filho para cumprir os seus propósitos... Não! Sigarr não estava a pensar...!? O feiticeiro sabia que Gunnulf não podia dar-lhe o herdeiro que ele tanto ambicionava! Mas, então, por que? Por vingança, porque eu o rejeitara? Pela satisfação da sua insuperável maldade?
Chovia torrencialmente. Os relâmpagos iluminavam a caverna e os trovões fustigavam o ar. Um... e outro... E ainda outro... Gunnulf não teria o prazer de ver o meu desespero. Jamais lhe daria o gozo de me ouvir bradar por piedade! Eu era uma McGraw!
Pensei em Berchan...
”Somos seis, mas somos um só!”
”Mano...”
Apesar de todos os meus esforços, não consegui evitar um queixume quando o monstro de poder e força invadiu o meu corpo. Fechei os olhos, sentindo a cabeça a lascar-se. Luzes coloridas piscavam ao meu redor, como milhares de estrelas ardentes. Pensei que ia desmaiar ao senti-lo investir, estilhaçando os meus ossos. A sua gargalhada rasgou-me a alma:
- Já gemes cadela? Estás a gozar? Pois eu vou dar-te mais! Vou dar-te até suplicares que pare! Grita! Grita por piedade!
Se eu desmaiasse a dor terminaria... Por que não desmaiava de uma vez e libertava a mente deste suplício?
- Estás a perguntar-te o que fará o teu amante quando descobrir a tua desgraça? Ele jamais te vingará, rameira! Esta noite, os meus homens banharam-se no seu sangue! O Throst está morto! Finalmente, morto!
Gunnulf rasgava-me a carne, mas a dor física não se comparava com a provocada pelas suas afirmações. O meu mundo acabara de desmoronar-se. Eu estava em queda livre, girando dentro de um pesadelo sem fim...
- E os bastardos dos McGraw não tardarão a seguir-te até aqui. Mas o Sigarr tratará deles! Um a um, os meus inimigos cairão nas minhas mãos! - Com um ronco animalesco, arrancou-me o amuleto do pescoço. - E este será o meu troféu! Esta pedra trouxe o Throst do mundo dos mortos e tornar-me-á invencível! E tu, bruxa, parirás um filho meu... Um guerreiro feiticeiro...
A loucura estava ao alcance das minhas mãos. A dor mastigava-me e engolia-me num só fôlego. As chamas da fogueira incendiavam-me... Fogo na minha carne, nas entranhas, nas profundezas ainda conscientes da minha mente... Gunnulf mentia! Gunnulf só podia estar a mentir!
O colosso proclamava vitória, invocando o pacto que fizera com Sigarr. Ele cumprira a sua parte, matando Throst. Agora, o feiticeiro iria coroá-lo rei do povo viking. E como o guerreiro-urso não podia gerar filhos, Sigarr assegurara-se de que um herdeiro nasceria com o auxílio da Arte Obscura. Gunnulf seria o rei-urso, e o seu primogênito, o herdeiro do império que se preparava para conquistar.
A voz hedionda falhava... Apesar de saber que o tormento físico se aproximava do fim, o meu espírito jamais encontraria descanso. O meu amor morrera, e as forças do mal condenavam os meus irmãos. Eu ia ficar grávida deste monstro e seria forçada a entregar a criança a Sigarr. E tudo por minha culpa, porque subestimara a força e a perversidade do feiticeiro negro.
Gunnulf alcançou o prazer e perdeu o domínio do corpo, marrando sobre mim qual touro enraivecido. Soltou-me as mãos e empurrou-me as pernas para penetrar mais fundo. A dor arrastava-me ao extremo da loucura. Este homem merecia a morte! Gunnulf tinha de morrer!
Enfrentei a realidade e o que vi ter-me-ia petrificado de terror, se me restasse um laivo de lucidez. O urso estava no olhar do Viking, mas não era o animal belo e majestoso, cuja pele eu conhecia bem, e sim uma besta de olhos em sangue que espumava fel. O espírito de Gunnulf retorcera a dádiva da Natureza e estuprara-a, tal como sucedera com Freysteinn. E esse demônio que habitava a alma selvagem ria-se abertamente da minha desgraça, desaparecendo nos confins do olhar tempestuoso depois de bradar a vitória final.
Gunnulf tombou sobre mim, exausto pelo esforço de possuir uma mulher que não desejava; esgotado pela satisfação que alcançara à custa da lembrança das suas maldades. Puxara as minhas pernas tão acima, que a bota me tocou na mão e o punho frio do punhal me pressionou a carne. Estremeci, assolada por um ódio primitivo e indomável. Gunnulf matara Throst! Mas Throst teria a sua vingança!
Sem hesitação, puxei o punhal da bainha e cravei-o com toda a força no tronco poderoso. O colosso ergueu a cabeça e urrou ensurdecedoramente. Tão rápido quanto conseguiu, saltou de cima de mim e arrancou o punhal da sua carne com um berro dilacerante. Por um instante, deteve-se a olhar incrédulo para a arma ensangüentada. Depois, deixou-a tombar e fixou-me, possuído pelo ódio. O demônio estava de volta!
Eu sabia que morreria se não reagisse. Gunnulf continuava de pé, mas o ferimento que eu lhe infligira fora grave, pois o seu equilíbrio era testado a cada passo. Vacilando, tentou alcançar a espada que jazia perto, mas eu movi-me mais rápido e cheguei primeiro.
No meu espírito, a voz de Berchan sobrepunha-se aos rugidos da criatura: ”Somos seis, mas somos um só...”. E, subitamente, já não era a voz de Berchan e sim outra, tão familiar como amada, que repetia: ”Somos seis, mas somos um só!”. Essa voz encheu-me com uma força que não era minha. Ergui a espada sem esforço, à luz dos relâmpagos. Diante de mim, Gunnulf deteve-se, fulminado por um misto de assombro e horror, que eu só compreendi quando o seu berro me estalou nos ouvidos:
- Não pode ser! Eu matei-te, McGraw! Que bruxaria é esta? Então senti-o. Ele estava no meu corpo, unido ao meu espírito...
Nós éramos um só! A sua força era formidável, e a minha determinação, insuperável. Desta vez, o resultado do confronto seria diferente!
- Não me enganas com os teus truques, bruxa!
Sem acreditar no que via, Gunnulf tentou agredir-me com os punhos. Porém, quem aparou o seu golpe e se desviou, não foi a franzina Catelyn, mas Aled McGraw. Eu sentia a raiva do meu irmão queimando o meu sangue, fundindo-se na minha carne... E deixei-o dominar-me, até me perder na essência da sua existência feroz e pura.
- McGraw...
O grito do guerreiro-urso ecoou pela caverna e perdeu-se na noite. Nas mãos de Aled, que eram as minhas, a espada pingava sangue. Sem hesitar, ele enterrou o metal no ventre de Gunnulf e, desta vez, os lábios do colosso não se moveram. Sabendo que enfrentava a morte, o bárbaro escancarou os olhos para uma realidade que não podia conceber. Diante dele, o espírito de Aled separava-se do meu, e a força do meu irmão abandonava-me o corpo, com um último olhar, um último murmúrio apaixonado:
- Amo-te, irmãzinha...
Eu quis suplicar-lhe que não partisse; que não me deixasse só... Mas, sem o seu vigor, estatelei-me no chão. A dois passos de mim, Gunnulf sucumbiu ao inevitável, caindo de joelhos. Os lábios cruéis esboçaram um movimento mudo de incompreensão, cujo significado eu alcancei. Isto não podia ter-lhe acontecido! Ele fora escolhido pelo Guardião da Lágrima da Lua e gozava da sua proteção! Ele era o guerreiro-urso! Estava destinado a ser rei...
Com um vômito de sangue, Gunnulf perdeu a força e tombou para a frente. A espada enterrou-se por completo no seu tronco, proporcionando-me uma visão de pesadelo ao emergir nas suas costas; o metal brilhando grotescamente em laivos de vermelho-morte e vermelho-fogo... O guerreiro-urso encontrara o seu fim.
O sangue maldito espalhou-se pela pedra, originando uma poça viscosa. A custo, eu arrastei-me para longe, até embater na rocha bolorenta. Tremia descontroladamente, sacudida por soluços de nojo e horror, sem alento para respirar, com dores por todo o corpo e a boca a amargar. A imundice escorria-me pelas pernas. O suor frio inundava-me a pele. O meu pescoço não suportava o peso da cabeça, que latejava como se um exército aguerrido a esquartejasse por dentro. À minha volta, as paredes da gruta giravam e fundiam-se, perdendo a cor e a forma; as chamas da fogueira confundiam-se com as labaredas dos relâmpagos... E o cadáver de Gunnulf, afogado em sangue, trazia-me à memória uma realidade abominável. A semente maligna da besta fora plantada no meu ventre.
Onde estava a minha avó que jurara proteger-me? Onde estava o grande Hakon, que consentira esta desgraça? Não havia a menor dúvida de que da violação resultaria uma gravidez. Sigarr não brincava com os seus objetivos! Eu não podia dar-lhe o filho do dragão, mas dar-lhe-ia um herdeiro para a sua Arte, um guerreiro-feiticeiro... Um futuro rei com as potencialidade de Gunnulf e a força do meu sangue. Moldado pelo Guardião da Lágrima da Lua, o meu filho seria a criatura mais poderosa da Terra... e a mais terrível!
Não! Essa criança não podia nascer!
Levantei-me devagar, arrastando as pernas para caminhar. Sentia o sangue e a porcaria de Gunnulf em mim. Sentia nojo da minha pele. Sentia desprezo pela minha fraqueza. Eu falhara, tal como a maldição profetizara! Gwendalin podia cobrir a Terra de trevas. Gwendalin vencera... Sigarr vencera... A minha avó e todos os Seres Superiores haviam permitido que o mestre da Arte Obscura os enganasse. Pois eu não lhe daria o que ele tanto ambicionava!
Cambaleei para fora da gruta, caindo e erguendo-me, para voltar a cair, embriagada de miséria. E continuei adiante, às cegas, sufocada pela chuva, encandeada pelos relâmpagos, ensurdecida pelos trovões... A lama prendia-me os pés, mas eu avançava, mais e mais, sem rumo nem destino. Estava tudo acabado! Eu falhara! Falhara! Perdera tudo! Só me restava a esperança de derrotar Sigarr...
O vento açoitou-me o corpo, quando a vasta extensão de mar turbulento se abriu diante do meu olhar febril. No fundo do penhasco, as ondas erguiam os seus braços de espuma, chamando:
- Catelyn...
- Catelyn...
- Catelyn!
Como era doce o meu delírio! Quase podia ouvir Throst gritando o meu nome:
- Catelyn!
- Já vou, meu amor - Murmurei, aquecida por uma súbita paz.
- Obrigada pela felicidade...
Deixei-me tombar ao sabor do vento e rasguei o vazio, ao encontro daqueles que amava. Nesse instante de liberdade, consegui sorrir. Sentia-me livre! Estava a voar...
O embate com a água gelada não foi o fim. O mundo enrolou-se em anéis de espuma e gelo. Os meus pulmões contraíram-se e a minha pele ardeu. A agonia perfurou-me os ossos. Havia sofrimento esperando por mim, aonde quer que eu fosse...
Subitamente, uma chama acendeu-se no fundo do mar. O seu brilho cresceu e tornou-se tão intenso que me cegou. Teria finalmente morrido? Um calor morno devassou a minha dor, enquanto duas mãos me agarravam os pulsos e me puxavam ao encontro de um corpo sólido. Pisquei os olhos, ciente de que delirava. Diante de mim encontrava-se um rosto querido, que eu julgara jamais rever. Para provar que era real, a voz de Tristan ecoou na minha mente:
”Tens de seguir o teu destino, Cat! Tens de viver a razão por que nasceste.”
Soube instintivamente que ele ia afastar-me e agarrei-o com todo o ardor do meu desespero.
”Não, Tristan! Eu não quero perder-te outra vez!”
”Sê grande, Cat! Ama com a força com que és amada... E sê feliz!”
Os lábios de Tristan cobriram os meus e uma baforada de ar fresco invadiu-me os pulmões moribundos. Deslizei para fora dos seus braços e os seus dedos ágeis envolveram o meu pulso e capturaram a pulseira que ele próprio me oferecera. O vigor do seu sopro empurrou-me para a superfície. Trespassada pela angústia, vi Tristan afastar-se; a pulseira que representava o nosso amor fechada dentro da sua mão. E a chama extinguiu-se.
Quando a minha cabeça emergiu, esbracejei e abri a boca, buscando ar com agonizante desespero. De imediato, as ondas voltaram a cobrir-me. O gelo rasgava-me de dentro para fora. Agora sim, era o fim...
De repente, o meu corpo foi aprisionado num abraço de ferro. Os relâmpagos revelaram-me Throst, por um instante. Os meus queridos fantasmas regressavam para confortar-me! Encostei-me ao seu ombro e cedi à vertigem. Estava junto do meu amor... Chegara a casa.
Despertei dolorosamente, arrancada com violência ao doce torpor da inconsciência, e encontrei o rosto apavorado de Throst. Ele sacudia-me, enquanto gritava:
- Eu não irei perder-te, Pequena! Acorda! Por favor, Catelyn... Eu teimei em fechar os olhos, mas o seu apelo repetiu-se sem cessar:
- Acorda amor! Eu não posso viver sem ti! Eu não quero viver sem ti!
A sua face tornou-se mais distinta; cada vez menos ilusória. Debilmente, ergui a mão e toquei-lhe, sentindo a sua barba macia a deslizar por entre os meus dedos... E o calor das lágrimas que lhe caíam dos olhos. Throst era real... Throst estava vivo!
- Throst...? - murmurei a custo.
- Meu amor!
Os seus lábios cobriram-me de beijos. Esmagou-me contra o seu peito, entregando-se a um choro convulsivo.
- Pensei... que... te tinha perdido... - soluçou descontrolado.
- Por que não... esperaste? Não me ouviste... chamar-te? Por que fizeste esta... loucura? Foi para... fugires de mim?
Abracei-o com sofreguidão, ripostando atordoada:
- Como podes pensar isso? Como podes pensar isso, meu amor? Só tarde de mais é que me apercebi de que dissera o que jurara jamais dizer.
- O que foi que me chamaste Pequena?
Throst tremia tanto que o seu corpo ameaçava quebrar-se. Os olhos azuis eram cascatas de água, cintilando com o brilho da tempestade. Desesperou com o meu silêncio e insistiu:
- Por favor, Pequena, diz outra vez! Nem que seja só mais uma vez...
- Amo-te, Throst - declarei, afundando-me no seu olhar, sentindo-me livre e plena. - Amo-te com toda a força do meu coração, do meu corpo e da minha alma! Amo-te para além da vida e da morte! Amo-te...
- Catelyn...
Os nossos lábios fundiram-se sem que houvesse barreiras a separar-nos. Foi ele quem se afastou, esfregando-me energicamente com as mãos.
- Deixa-me acender um fogo, querida... Não sobrevivemos a tantas dificuldades, para agora morrermos de frio!
Em pouco tempo, uma fogueira iluminava o abrigo onde nos encontrávamos. Era uma caverna, não muito diferente daquela para onde Gunnulf me arrastara. Porém, nesta havia sinais da presença humana: uma velha arca de madeira, redes e outros utensílios de pesca.
- Onde estamos? - perguntei a meia-voz, sonolenta.
- Num abrigo de pescadores - esclareceu Throst, enquanto me carregava ao colo até perto do calor. - Existem muitos ao longo da costa. Os pescadores utilizam-nos no Verão e, no Inverno, são procurados pelos jovens aventureiros... E por alguns maridos que desejam fugir do pairar incessante das suas esposas.
Ele pretendia gracejar, mas era evidente que este lugar já testemunhara numerosos encontros secretos de amantes furtivos. Fiquei a observá-lo. Throst buscou duas mantas dentro da arca e ajoelhou-se ao meu lado, dizendo:
- Tens de despir essa roupa antes que morras gelada!
Ficou parado, vendo as minhas mãos tocarem a medo no vestido rasgado.
- Queres que eu me afaste, Catelyn? - A sua voz denunciava perturbação.
Eu engoli em seco. Já não havia do que fugir.
- Não - respondi sem ocultar a minha fraqueza. - Quero que me ajudes...
Agradado pela resposta, Throst deslizou os seus dedos pelos meus ombros, com um cuidado indescritível. Os farrapos cederam e a pele nua brilhou, inundada pelo clarão do fogo. Eu desviei o rosto, sem coragem para encará-lo, dividida entre a necessidade de partilhar a minha desgraça e a vergonha de fazê-lo.
- Eu estive na caverna, Catelyn - começou ele com perspicácia.
- Vi o Gunnulf...
Fez uma pausa para permitir que eu digerisse a informação. O meu vestido desapareceu e foi substituído pela manta quente e fofa. Quando amansei a respiração, já Throst se despira e embrulhara na outra manta. Estreitou-me e envolveu-me no seu carinho.
- Não temos de falar, se não desejares - sussurrou, roçando os lábios pelos meus cabelos. - Descansa...
Mas eu não queria descansar, temendo que a sua presença fenecesse, qual sonho bom. Forcei-me a enfrentar a tragédia e contei-lhe tudo, devagar, mastigando a dor, palavra a palavra. Ao contrário do que eu esperava, Throst não se mostrou surpreendido com a aparição de Aled e a mistura das nossas essências, pois entendia a força do afeto que me unia aos meus irmãos. Porém, o plano vil de Sigarr deixou-o arrasado.
As lágrimas escorreram pelo seu rosto pálido, quando piscou os olhos tristes e atormentados, murmurando desesperado:
- Perdoa-me por não ter chegado a tempo de impedir que esses demônios te molestassem! Carregarei essa culpa por toda a eternidade!
- Tu resgataste-me ao mar, pondo em perigo a tua própria vida - repliquei mansamente. - Não foste tu que me falhaste...
- Catelyn... - atalhou Throst, enlaçando o meu rosto. - Não te atormentes querida! Se estiveres grávida, essa criança também possuirá o teu sangue e não terá forçosamente um futuro negro. Nascerá na nossa casa, eu dar-lhe-ei o meu nome e ela crescerá desfrutando de todo o nosso amor, tal como os outros filhos que iremos ter. Mais ninguém saberá a verdade, além de nós dois! E, se o Sigarr vier reclamá-la, eu juro-te que matarei esse desgraçado!
Estas afirmações, além de provarem um amor incondicional, também revelavam a nobreza do seu coração. Abracei-o comovida e deixei-me acalentar na emoção de lhe pertencer. O medo que me devorara, desde o início do pesadelo, desaparecera como por encanto.
- Como foi que tu soubeste? - Perguntei, incrédula. - Como é possível que estejas aqui?
Ele sorriu levemente, levando as minhas mãos aos seus lábios para um longo beijo.
- Não acreditas que eu sou real? Crês que sou um fantasma?
- O Gunnulf disse-me que estavas morto.
- Eu fui avisado acerca da emboscada - explicou Throst, esforçando-se para me acalmar.
- Foste avisado?
Um frêmito de excitação percorreu-me da cabeça aos pés, como se eu pudesse adivinhar o que ele tinha para revelar:
- Sim, Catelyn... Por Hakon! O meu avô voltou.
A reunião com os chefes dos clãs fora um sucesso e, como era de esperar, Throst recebera uma proposta que o forçara a refletir. Os outros líderes vikings viam nele um instrumento de união, reconheciam a sua habilidade de liderança, a sua sabedoria e capacidade para encontrar consensos. Por tal, desejavam que se tornasse um Líder Supremo, o líder dos líderes, que mediasse as discussões, ouvisse as opiniões e sanasse as divergências de amigos e rivais, até que um equilíbrio fosse encontrado. Este parecia ser o único ponto em que todos concordavam, por isso, urgia discutir pormenores e firmar um acordo de honra, que se revelasse indissolúvel. A escolha do local para a celebração dessa aliança também não fora pacífica, mas a Aldeia do Povo acabara por receber a aprovação geral, já que era um solo neutro e a morada de Throst. Assim, os chefes de clã haviam-no acompanhado no regresso a casa.
Gunnulf vira nessa viagem a oportunidade perfeita para eliminar o rival direto e muitos inimigos mortais. Preparara uma engenhosa cilada e aguardara a vitória que lhe daria o domínio do povo nórdico. Porém, não contara com a interferência daquele que a maioria já havia esquecido. Depois de décadas de exílio, Hakon revelara-se finalmente aos humanos, a fim de evitar a morte do neto e a batalha que resultaria na desgraça do seu povo. Diante da gravidade dos avisos do feiticeiro, Throst esquecera o seu dilema emocional, organizara os guerreiros e liderara-os contra os mercenários de Gunnulf. Os caçadores tornaram-se as presas. Os que não fugiram, olharam a morte de frente, num massacre sangrento.
No rescaldo da batalha, Hakon avisara Throst acerca do meu rapto e dissera-lhe onde me procurar. Sem demora, ele precipitara-se ao meu encontro e não tivera dificuldade em encontrar a gruta, guiado pela luz da fogueira. Quando entrara, deparara-se com o cenário horripilante que eu deixara para trás e desesperara ao concluir que chegara tarde. A sua busca agoniada acabara por revelar-lhe o meu rasto. Eu podia imaginar a sua angústia, quando me vira aproximar do precipício, ignorando os seus apelos.
- Felizmente tudo acabou bem, meu amor - murmurou com um suspiro de alívio. - Nós tivemos muita sorte! Mergulhar daquele penhasco, em pleno Inverno, é pura loucura! Já para não falar dos rochedos, existem pedaços de gelo à deriva no mar, afiados como espadas e sólidos como rochas. Além disso, o frio paralisa os músculos num piscar de olhos. Se eu te tivesse perdido na água, nem me teria entregue ao esforço de nadar até à praia...
Toquei-lhe nos lábios, alegre no coração, mas preocupada com o seu arrebatamento.
- Não fales assim... Tu não podes morrer! O teu povo precisa de ti!
- Quantas vezes terei de te dizer que sem ti nada me importa? Icei-me ao encontro dos seus lábios e beijei-o com ternura. Throst correspondeu de igual forma, mas, assim que o beijo começou a escapar ao domínio da razão, afastou-me com firmeza.
- Não me tentes mulher, ou não responderei por mim! - ofegou junto do meu ouvido. - Quero ter a certeza de que estás bem, antes de te convencer a partilhar a minha cama.
Throst já percebera que eu cedera. A admissão do meu amor deixara-o seguro. Nem pensei em protestar da sua insinuação. Não havia razão para nos evitarmos, agora que eu tombara na armadilha de Sigarr, pois o mal já não podia ser remediado. E se, mesmo assim, Throst me desejava, eu não fugiria da breve felicidade com que o destino me presenteava, antes da escuridão tombar sobre a minha existência.
- Como te estás a sentir, Pequena? - insistiu preocupado. - Agora que já aqueceste e parou de chover, podemos regressar à aldeia para que uma curandeira te observe...
- Não, Throst! - A minha negação foi tão rápida que o desconcertou. - Eu não quero voltar... ainda! Juro que estou bem!
Eu já tivera o cuidado de verificar os estragos causados pela brutalidade da imposição de Gunnulf. Apesar de dorida, prodigiosamente, não estava ferida. Mais uma vez, a força do meu sangue recuperara rapidamente as mazelas do corpo. Porém, não me sentia com coragem para enfrentar o povo. Como iriam reagir os Vikings quando descobrissem que uma escrava estrangeira matara o senhor da Terra Antiga?
- Não tenhas medo - aquietou-me Throst, provando mais uma vez a sintonia das nossas mentes. - Eu assumirei a morte do Gunnulf e ficarei ao teu lado. O meu povo é rude, mas tem bom coração. Garanto-te que ninguém falará uma palavra contra ti. - Segurou no meu queixo, forçando-me a encará-lo. - Agora, promete-me que não voltarás a atentar contra a tua vida, por mais desesperada que a situação te pareça. Tu própria me ensinaste que, mesmo quando a morte nos crava as garras na carne, ainda há uma esperança. Jura pelo nosso amor, Catelyn!
Jurei, com a expressão severa de Berchan pairando na minha mente. Se Throst não tivesse chegado a tempo, eu teria arruinado a esperança de dois povos com o meu pavor irresponsável e a minha precipitação imprudente. Agora, que me sentia calma e protegida ao lado do homem que amava; agora, que sabia que o Guardião da Lágrima do Sol voltara para os seus, tinha a certeza de que tudo se resolveria. Felizmente, os terríveis desígnios de Gunnulf haviam fracassado.
- O que podemos nós fazer para impedir o Sigarr de atacar os meus irmãos? - perguntei ansiosa.
Throst refletiu um pouco, antes de responder: - O Edwin não é louco para se aventurar até aqui, nesta altura do ano! Ele sabe que, mais do que uma imprudência, a viagem seria um suicídio. Mas, se tentar, o Hakon tomará providências. Não te preocupes, Catelyn! Colocarei guardas junto à costa para uma eventualidade.
Fez uma pausa, respirando pesadamente. Quando tornou a falar, a sua voz refletia a ira que o assolava:
- Acredito que, durante muito tempo, o Sigarr não se atreverá a aparecer. Se o fizer, eu cortá-lo-ei em pedaços e alimentarei os lobos com a sua carne maldita.
As palavras de Throst afastaram a última sombra maligna que pairava sobre o meu espírito. Ele possuía a capacidade de emendar o que estava errado. Os seus companheiros sabiam-no, por isso o haviam escolhido. Eu não tinha nenhuma dúvida de que, sob a liderança de Throst, o povo viking iria viver uma era de paz e prosperidade. Este pensamento recordou-me a minha própria missão. Sofri um sobressalto ao lembrar-me de que fora incapaz de enfrentar Gunnulf com o poder da magia. Tê-lo-ia perdido? Instintivamente, olhei para a fogueira e as chamas subiram até ao teto da gruta. Throst recuou, soltando uma exclamação de surpresa:
- Por que fizeste isso? Queres assar-nos vivos? Sorri aliviada e enfrentei o seu olhar.
- Só queria certificar-me de que está tudo bem...
- É claro que está! O Sigarr não pode interferir com o teu poder. Se assim fosse, mais depressa o faria com a feiticeira que o traiu. Esse monstro só protegeu o Gunnulf da tua ação! Porém, esqueceu-se de que, além de feiticeira, tu também és humana... e muito especial! Por falar nisso... - Procurou dentro da sua bolsa e estendeu-me a pedra azul de Aranwen. - O cordão está partido, mas podes remendá-lo.
Deslizei o amuleto por entre os meus dedos, refletindo tristemente:
- Foi a minha mãe que teceu este cordão, antes de eu nascer. Até hoje, sempre resistiu à vontade dos meus inimigos. Não entendo como o Gunnulf conseguiu quebrá-lo sem dificuldade!
Throst levou a minha mão aos seus lábios, observando sobriamente:
- Isso já não tem importância, querida! Graças a ti, o Gunnulf não fará mal a mais ninguém! - Deteve-se por um instante, cravando os olhos no meu pulso nu. - Onde está a tua pulseira?
Eu senti um aperto no peito, ao trazer à memória o meu derradeiro encontro com Tristan e a forma como ele se despedira e me libertara do último elo que nos unia. Respondi simplesmente:
- Perdi-a no mar.
Depois de uma breve pausa, Throst entrelaçou os dedos nos meus, como se precisasse de permissão para me tocar, murmurando tão baixo que mal o escutei:
- Sinto muito.
Apertei a sua mão e fixei o olhar no fogo crepitante. Throst precisava de saber o que me ia no coração... e eu também necessitava de admitir em voz alta aquilo que, há muito, aceitara na intimidade da minha mente. Comecei num tom sumido, que foi crescendo em convicção:
- O Tristan foi meu irmão, meu amigo... um homem especial em todos os momentos! Nunca poderei esquecê-lo... Mas o seu amor não fazia parte do meu destino. A minha vida sempre te pertenceu, Throst! E o amor que sinto por ti não é igual ao que sentia por Tristan. Entendes?
Throst aninhou-me e embalou-me no seu carinho, sussurrando comovido:
- Sim... E respeito os teus sentimentos! Arrepia-me pensar que te encontrei no momento exato em que o Tristan deixou de poder oferecer-te a sua proteção. Ele foi um homem valoroso cuja coragem não será esquecida!
Depois destas confissões emocionadas, o silêncio tombou sobre nós. Eu sentia-me exausta e Throst ainda lutava para dominar a agitação. Certamente pensava nas conseqüências do regresso do avô. O seu tom firme não ocultava o cansaço quando determinou:
- Vamos dormir. Amanhã temos de regressar cedo. Espero que os homens encontrem o corpo do Gunnulf e o levem para a aldeia. Senão, quando a fogueira se extinguir, os lobos terão um farto repasto.
Fui acordada pela sombra que se movia à entrada da gruta. De imediato, revivi o pesadelo da manhã em que Goldheart me surpreendera com Tristan. Escancarei os olhos à penumbra e gritei com toda a força, temendo ver o espectro de Gunnulf a avançar para nos matar. Throst saltou ao meu grito, empunhando a sua espada. Não conteve uma gargalhada, antes de se dirigir à fogueira decrépita para espevitar o fogo. Eu já recuperara a consciência e vira que a sombra pertencia ao seu cavalo malhado, que o seguira. Deitei-me, mas continuei a tremer. Quando Throst regressou à manta, apercebeu-se do meu tormento e amimou-me contra o seu peito.
- Já passou querida - murmurou carinhosamente - Está tudo bem, Catelyn! Eu estou aqui!
Abracei-o como se o seu corpo fosse, o último refúgio da Terra. Os dedos fortes brincavam com os meus caracóis, enquanto a sua voz suave me acariciava a alma:
- Combaterás mais facilmente os teus medos se falares acerca deles.
Teimei no silêncio, e ele provou que me conhecia bem:
- Assustaste-te porque recordaste a noite em que te escondeste com o soldado do Edwin numa gruta e o Goldheart vos emboscou?
Confirmei e, sem saber porquê, dei por mim a confessar:
- Esse soldado era o Tristan.
Throst não se manifestou logo. A sua voz tremia um pouco quando indagou:
- O Tristan foi o teu primeiro homem?
Engoli em seco. Era evidente que muito do que eu lhe ocultara, ele concluíra sozinho. E, agora, já não fazia sentido esconder-lhe o que quer que fosse.
- Sim...
Ante o meu constrangimento, Throst retorquiu:
- Não interpretes mal a minha curiosidade, Catelyn. Quando fizemos amor... Eu comecei por pensar que o Goldheart se havia imposto a ti, noutra ocasião que não aquela que surpreendi. Mas depois concluí que não podia ser. A maneira como correspondeste ao meu toque mostrou-me que não sentias repulsa. Portanto, tinhas de possuir uma boa experiência no amor. A tua primeira vez foi nessa noite, na caverna?
Eu sentia as faces a arder. Engasgada pelo embaraço, acabei por revelar:
- Foi a única vez... Antes de ti!
Throst respirou fundo e beijou-me a testa. O seu carinho ajudou-me a descontrair. Quando ele pressionou a minha mão de encontro ao seu coração, almejei que a noite jamais findasse.
- Pequena... - hesitou, perante a rouquidão da própria voz.
- Não podes imaginar como tenho sofrido... Desejando-te e contendo-me... Mas compreendo que necessites de recuperar a confiança! Quero que saibas que eu esperarei o tempo de que tu precisares...
Silenciei-o com um beijo, confiante de que ele me respeitaria sempre. A violação de Gunnulf não me deixara temerosa e amarga perante a união dos corpos, como Throst receava. A vontade de partilhar o seu ardor continuava acesa e, eu tinha a certeza, o seu amor e carinho saberiam destruir todos os vestígios da bestialidade do guerreiro-urso.
Junto do meu homem, tudo era prazer, beleza e alegria. Todavia, mesmo que eu reunisse coragem para lho confessar, não teria alento. O calor dos seus braços envolvia-me numa paz doce que me embalava os sentidos. Eu era forçada a lutar para conservar os olhos abertos.
- Dorme, minha doce Catelyn! - sussurrou ele, apercebendo-se do meu esforço para me manter acordada. - Descansar nos teus braços é tudo por que anseio esta noite. A vida espera-nos, meu amor... E eu prometo-te que será maravilhosa!
Partimos assim que despertamos e fizemos a maior parte do trajeto em silêncio, abraçados, apreciando o doce sentimento que nos unia; uma magia inigualável e insuperável. Eu decidira aproveitar cada instante da companhia de Throst, até que o destino me chamasse à Grande Ilha. Assumir o nosso amor seria uma bênção, nem que fosse apenas por mais um dia.
Krum veio ao nosso encontro, liderando uma patrulha de busca. O sorriso que ostentava denunciava o seu alívio. Contou-nos que Ingrior estava bem e que apenas um dos nossos homens tombara na emboscada. Mal Gunnulf conseguira o seu intento, desaparecera sem deixar rasto, e os assassinos haviam-se dispersado.
Fomos recebidos com expressões de alívio e alegria. Ao primeiro olhar, percebi que tudo mudara desde o dia anterior. Muitos guerreiros que eu não conhecia encontravam-se na quinta. Vestiam cores diferentes daquelas às quais eu me habituara, tecidos ricos, belas jóias, e cobriam-se com esplêndidas peles de animais. Só podiam ser os chefes dos clãs vizinhos; os novos aliados de Throst. A face mais familiar era a do Viking que nos dera abrigo durante a viagem, na noite em que eu conhecera o prazer nos braços do capitão.
O grito estridente de uma ave provocou-me um sobressalto. Um magnífico falcão voou por cima de nós, e eu escondi-me no abrigo do meu guerreiro, verdadeiramente assustada. Ele sorriu e sossegou-me:
- Não te preocupes Pequena! O Vento está a cumprimentar-nos!
Vento era um nome que fazia justiça ao irrequieto falcão. Segui-o com o olhar para ver a quem pertencia. Senti um frio no ventre ao deparar-me com um bárbaro tão grande como Gunnulf, com o cabelo castanho-escuro, quase negro, comprido e escorrido sobre os ombros. No seu rosto perfeito e nobre, a barba curta desenhava-lhe os lábios e o queixo. Mesmo à distância, compreendi que tinha olhos claros, penetrantes como lâminas afiadas. Mas o que mais me impressionou não foi o seu aspecto formidável... Foi a majestosa pele de urso que envergava.
Não tive tempo de questionar Throst acerca da imponente figura, pois Ingrior saiu de casa e correu para nós, seguida por uma multidão de amigos. Eu fiquei grata por ninguém comentar o fato de eu me encontrar envolta em mantas.
Tal como Throst esperava, o corpo de Gunnulf fora encontrado e devolvido à sua família. Mal desmontáramos e já Arnorr invadia ousadamente a propriedade do primo, exigindo explicações sobre a morte do irmão. Eu guardei silêncio, como Throst me mandara. O abuso de uma escrava não era considerado crime na lei viking. No máximo, o violador seria forçado a pagar uma multa ao dono da propriedade molestada. O povo estimava-me e não me condenaria pelo meu gesto de defesa. Porém, os grandes senhores não seriam tão compreensivos, e quando, inevitavelmente, a minha verdadeira identidade fosse revelada, velhos ódios reacender-se-iam com o fulgor de um incêndio descontrolado.
Throst apertou-me possessivamente contra o seu peito, antes de responder ao primo:
- O teu irmão tentou molestar a minha noiva. Enfrentou-me e morreu.
- O Gunnulf foi apunhalado pelas costas! - acusou Arnorr, bufando rancor, enquanto se voltava para os chefes de clã que escutavam atentamente. - É neste homem, que derrama o seu próprio sangue à traição, que vós depositais a vossa confiança?
Throst não vacilou, interrompendo o rugido do primo com igual ardor:
- A minha dor e o meu ódio estariam mais confortados se eu tivesse decapitado esse cão, a quem chamas irmão, e espetado a sua cabeça numa estaca, à entrada da minha propriedade, como jurei que faria. Só recuei por respeito ao resto da família. Contudo, se houver alguém presente que, diante da visão da sua mulher a ser cobardemente maltratada por outro homem, procedesse de maneira diferente, faça o favor de avançar e de me julgar!
Ninguém avançou. Ninguém falou. Arnorr cerrou os punhos e engoliu a ira ao perceber que perdera. Em menos de nada, desaparecera com a sua escolta.
Depois de se despedir com um beijo suave na testa, Throst partiu ao encontro dos outros líderes, para a reunião decisiva. Ingrior ajudou-me a banhar e cuidou de mim com a devoção de uma mãe. A ela, contei a verdade, omitindo apenas a possibilidade de estar grávida de Gunnulf, por vontade expressa de Throst, que insistira que esse segredo devia morrer conosco.
O meu rapto deixara Ingrior desesperada e a notícia da morte de Gunnulf enchera-a de apreensão, pois continuava a desconhecer o meu paradeiro e o do irmão. Agora, que tudo passara, não continha as lágrimas de alívio. O único pormenor que a sobressaltava era o regresso de Hakon, pois não sabia o que esperar deste súbito e inesperado desenvolvimento.
- O Throst não te disse para onde ele foi? - perguntou ansiosa.
- Eu queria tanto vê-lo...
Expliquei-lhe que o irmão não falara acerca do avô uma palavra a mais do que o necessário. Eu também ansiava por conhecer ”O Que Tudo Vê”, mas devíamos ser pacientes e dar a Throst o tempo de que ele necessitava para sarar as suas feridas. A reconciliação não seria fácil, se é que a haveria!
O enigmático Guardião da Lágrima do Sol despertava em mim um misto de receio e admiração. Desde criança que a sua figura me fascinava e também reconhecia no seu livro o meu verdadeiro professor. O manual de feitiçaria transmitira-me a teoria de um conhecimento que eu só tivera de aprender a pôr em prática. E, na Terra Antiga, ”O Que Tudo Vê” nunca estivera muito longe, velando pela minha segurança. A sua única falha fora permitir que Gunnulf plantasse a semente do mal no meu ventre. Sigarr possuíra a mestria de iludir o seu próprio primo.
Depois de arranjada, decidi ajudar as mulheres que se atarefavam a preparar comida, bebida e alojamento para os ilustres convidados e seus guerreiros. Ingrior pediu-me que a acompanhasse ao templo, onde os líderes se reuniam, para lhes servir a cerveja. Eu retraí-me, temerosa, mas a minha amiga não me permitiu hesitar por muito tempo.
A algazarra ensurdecedora que sacudia as paredes do local sagrado deixou-me ainda mais nervosa. Os homens haviam feito uma pausa na discussão para comer e beber e falavam de assuntos banais: batalhas, conquistas, banquetes, caçadas... e mulheres. O último tópico foi respeitosamente posto de parte quando nós entramos. Tive de cerrar os dentes para evitar que estes batessem, enquanto avançava por entre os corpos gigantescos. Os meus joelhos ameaçavam ceder ao tremor. O ar estava tão quente que me custava a respirar. Só o sorriso de Throst me deu confiança para não fugir.
O guerreiro do falcão encontrava-se sentado ao lado do chefe da Aldeia do Povo, e os seus olhos luminosos cravaram-se em mim como os de um predador prestes a atacar. Mantive o rosto no chão até chegar a Throst. Quando o servi, surpreendi-me por conseguir encher o seu chifre de cerveja sem entornar o pote. Percebendo o meu transtorno, ele atraiu-me delicadamente para o seu corpo e segredou:
- Não te apoquentes, querida. Em breve deixarás de te sentir uma estranha. Além disso, eu estarei sempre por perto para te apoiar.
As suas palavras ajudaram-me a suportar a curiosidade dos homens que servia. Alheia ao meu embaraço, Ingrior circulava por entre os chefes vikings como um peixe na água. Afinal, era uma princesa para o seu povo e todos a respeitavam e acarinhavam. Eu vira-a servir o guerreiro do falcão e ficara aliviada por não ter de abeirar-me dele. Aliás, o colosso e Ingrior pareciam velhos amigos, pois ele cumprimentara-a com um beijo na face e murmurara-lhe algo ao ouvido que a fizera rir com vontade, sem que Throst se afrontasse.
Quando saímos, Ingrior gargalhou ao verificar o meu nervosismo. Mal entramos em casa, forçou-me a beber hidromel, enquanto replicava num tom trocista:
- Estás mais vermelha do que a vela do Drakkar. Não sejas tola, Catelyn! Ninguém irá morder-te! O máximo que pode suceder é invejarem a sorte do Throst. Anda cá, irmãzinha!
O aconchego do seu abraço serenou-me. Instantes depois, reuni coragem para indagar qual a identidade do guerreiro da pele de urso. De imediato, Ingrior abriu um sorriso de orelha a orelha.
- Ainda não sabes? Eu já te falei dele! É Steinarr, o senhor da Terra dos Carvalhos.
Isso explicava muita coisa, mas não o súbito rubor nas faces da minha amiga e o brilho dos seus olhos. O afeto e a admiração que ela devotava a esse homem eram obviamente fortes.
- Ficas corada quando falas dele! - ataquei impiedosamente. Ingrior soltou uma gargalhada fresca e replicou sem constrangimento:
- Não conheço uma mulher que fique indiferente diante do Steinarr! Além de ser um homem muito bem-parecido e poderoso, tem um jeito de falar desconcertante, sem ser ofensivo.
- É casado? - Por que raio perguntara eu aquilo? Era óbvio que um homem como aquele tinha de ser casado! E, além da esposa, devia ter uma infinidade de companheiras.
- Não. - A resposta de Ingrior deixou-me perplexa. - Ao contrário do que estás a pensar, o Steinarr é um homem solitário. A sua grande paixão foi a esposa, mas ela faleceu pouco depois de o filho nascer e ele não tornou a casar-se, nem a procurar um namoro sério. Imagino que se deite por aí, como todos os homens, mas, como tem um herdeiro e uma família numerosa e unida, prefere ocupar-se com o seu povo e a terra, a entregar-se aos atropelos do coração.
Fiz um breve silêncio, denunciando a estranheza. Contudo, sentia-me incapaz de segurar a língua dentro da boca:
- Ele simpatiza contigo! E é evidente que também o aprecias...
- Eu e o Steinarr? - Ingrior tornou a rir com vontade. - Imagino que essa união agradaria ao Throst, mas o Steinarr não é o meu tipo de homem! Acho-o agradável e dedico-lhe uma grande admiração... mesmo algum afeto; mas não poderia amá-lo. Além disso, não acredito que veja mais em mim do que a irmãzinha do Throst! Se, um dia, o Steinarr voltar a casar-se, será com uma mulher jovem e inocente, que ele possa deixar entregue à casa e aos filhos para se dedicar aos seus assuntos. E eu, Catelyn, se um dia tornar a casar-me, não permitirei que o meu marido se afaste por um instante.
Ficou subitamente triste e mergulhou nas suas recordações. Eu apressei-me a mudar de assunto para forçá-la a reagir:
- O que achas que vai acontecer?
Ela sabia que os chefes planeavam eleger um Líder Supremo, cujo principal dever seria juntar os clãs e sanar as divergências, criando condições para a unificação do território e, talvez, a eleição de um rei. Parecia unânime o consenso sobre quem seria o Líder Supremo. Quanto ao rei, talvez nunca houvesse essa eleição, já que o Líder Supremo podia assumir o cargo.
- Estás a dizer que o Throst poderá vir a ser o rei dos Vikings? - arquejei, assustada pela simples possibilidade.
Ingrior suspirou e deixou claro que a idéia também não lhe agradava:
- Continuo a acreditar que o meu irmão é o guerreiro que irá liderar a campanha pela paz. Porém, sinto que ele não nasceu para ser o rei que todos desejam. É um homem forte e sensato, mas possui a alma de um camponês, de um pai de família...
- Talvez seja disso que o teu povo precisa! - observei, pesarosa, pressentindo que essa decisão o afastaria definitivamente de mim.
- Sim - concordou Ingrior. - Mas não é do que Throst precisa! A felicidade do meu irmão está na Ilha dos Sonhos, numa casa nova, contigo ao seu lado, a cuidar da terra e dos filhos que lhe darás; e não dirigindo os destinos de um povo aguerrido e conquistador. Além disso...
A sua hesitação fez o meu coração parar.
- Ingrior...? - incentivei-a a continuar.
A minha amiga engoliu em seco, terminando gravemente:
- Todos esperam que o homem que assuma o reino se case com uma mulher do seu povo. Uma estrangeira não será bem aceite...
- E muito menos se for filha de Garrick McGraw - completei entredentes.
Porém, no fundo, o que me importava esse pormenor? Eu não me esquecera do meu dever! A decisão de Throst, no que respeitava ao filho que Gunnulf me fizera, comovera-me, mas não passava de mera ilusão. Quando eu regressasse a casa, essa criança seria da minha inteira responsabilidade. Apesar de doer admiti-lo, se Throst decidisse desposar uma mulher viking para cumprir a vontade do seu povo, seria muito melhor para todos nós.
- Catelyn. - A doçura de Ingrior arrancou-me do azedume. Se o meu irmão tiver de escolher entre ti e uma coroa, não duvides de que tu serás a escolhida. Não fiques triste, querida! Estamos apenas a fantasiar o que pode ou não acontecer. Por alguma razão, que eu não sei explicar, sinto que o Throst nunca será rei.
As suas palavras trouxeram-me à memória a Visão da Pedra do Tempo e esta nova realidade descoberta.
- Ingrior - balbuciei insegura. - Não sei se devo dizer isto, mas... - Confessei-lhe que vira o guerreiro-urso correndo a par do guerreiro-lobo, na liderança do povo viking. - Quando despertei, fiquei aterrada e revoltada ao pensar que o Gunnulf poderia vir a ser rei. Mas, agora, o Gunnulf está morto... e existe outro guerreiro-urso...
- Contaste isso ao Throst? - interrompeu ela gravemente.
- Não.
- Então, não contes! Mesmo sem querer, uma palavra pode influenciá-lo irremediavelmente, e tal não deve suceder.
Quedamo-nos pensativas, até que Ingrior continuou:
- Agora percebo por que o Sigarr tomou o Gunnulf para seu protegido! Não lhe restava outra opção, visto que o Steinarr era incorruptível. Sabes Catelyn, eu acredito que existem momentos imutáveis no destino. Por mais que se tente enganar a sorte, ela encontra sempre um caminho alternativo para o objetivo final. Estava escrito que o rei do povo viking seria um guerreiro-urso, e o Sigarr decidiu assegurar-se de que o escolhido seria o seu eleito. Mas a Natureza não se deixa manipular tão facilmente! Brevemente teremos a prova da força da Vontade Divina.
Throst regressou no princípio da noite, acompanhado por Krum, Sven e Durin. Não foi preciso cogitar para saber qual o resultado da reunião. O homem radiante que me deixara de manhã estava pálido e exausto. Exclamou, como se anunciasse uma sentença de morte:
- Está feito! Fui eleito Líder Supremo do nosso povo.
Apesar de perturbada, Ingrior foi a primeira a reagir, beijando o irmão e felicitando-o. Seguiu-se Bjorn, que mal se agüentava em pé com o entusiasmo, demasiado excitado por se ter tornado irmão do futuro rei para pensar nas conseqüências que tamanha responsabilidade teria na vida de Throst. Quando todos me encararam, forcei-me a prostrar em reverência, dizendo:
- Desejo muita sorte e prosperidade para o teu reino. Parabéns... As mãos de Throst caíram sobre os meus ombros e ergueram-me.
Fiquei abismada ao confrontar a raiva escondida por trás da cortina azul do seu olhar.
- Deixai-nos sós.
Throst era prontamente obedecido na sua casa e agora também o seria em qualquer lugar das Terras do Norte. Abri a boca, mas não tive tempo de pronunciar o seu nome, pois a voz do Líder Supremo vibrou de indignação:
- Por que raio te ajoelhaste, Catelyn? Tu não és uma escrava nem uma criada! És a minha mulher! Diante de todos, seremos iguais! Só terás de responder perante mim e mais ninguém!
Estremeci, sem saber o que fazer ou dizer. Os seus dedos cravavam -se nos meus ombros e magoavam-me. O nervosismo estalava-lhe na pele. Throst estava frio por fora e em ebulição por dentro, como as montanhas que cuspiam fogo, que eu conhecia dos livros de Berchan.
- Eu não posso ser tua mulher! - reagi por fim, sentindo o coração a rasgar-se. - O Líder Supremo deve escolher uma mulher do seu povo...
- Tu já és uma mulher do meu povo! - ripostou ele, ignorando o meu protesto. - E eu não permitirei que me digam com quem me devo casar! Durante vinte e cinco anos andei à deriva... Agora, sei perfeitamente o que quero!
- Sabes que isso não é possível - objetei, forçando-me a enfrentá-lo. - Quando aceitaste o cargo de Líder Supremo, assumiste um compromisso com o teu povo e a tua terra...
- Sim! - cortou Throst. - Mas foi um compromisso consciente e não um ímpeto arrebatado ou uma imposição social. Ponderei muito antes de dar este passo e deixei claro perante todos os chefes que esta entrega não questionará a minha individualidade. Uma das condições que impus foi poder ceder o lugar a um homem da minha confiança e do acordo de todos, se o falhar, ou se eu próprio desejar retirar-me.
- A pressão dos seus dedos diminuiu bruscamente. - Aceitei esta missão porque sei que posso corrigir o que está errado, mas, assim que for encontrado o caminho da paz, outro mais hábil assumirá a liderança. Eu não quero ser rei, Catelyn! Já lutei de mais, derramei muito sangue, interrompi tantas vidas... - Acariciou-me o rosto com os dedos. - A minha mente não descansa, nem de dia, nem de noite. Esta é a minha oportunidade de redenção. E quero que tu estejas ao meu lado como minha mulher... Como esposa do Líder Supremo!
Perdi o ar e o chão fugiu debaixo dos meus pés. Mal consegui gaguejar:
- T... Throst...
- Casa comigo, Catelyn! - continuou o guerreiro-lobo, com a convicção inabalável da sua alma completa. - Vamos acabar com esta guerra de vontades! Juntos aprendemos a contornar as barreiras que nos separam; juntos acabaremos por destruí-las!
Sim! - gritava o meu coração. Sim! Sim! Sim! Mas eu não podia... Eu não podia!
Apartei-me dos seus braços e sentei-me na cama, gemendo dolorosamente:
- Isto é uma loucura! Mesmo que tu tenhas poder de decisão... Esqueces-te de que a minha missão me afastará desta terra?
Dois passos e ele estava junto de mim, aprisionando as minhas mãos nas suas.
- Tu voltarás para casa, cumprirás o teu dever e vencerás. Eu sinto-o no meu coração! E depois? Não haverá lugar na tua vida para mim?
Eu rodopiava à deriva na sua argumentação, dividida entre o querer e o dever, tão confusa que só pude balbuciar:
- Não sei... Throst, eu não sei!
- Quando nós estivermos separados, terás muito tempo para refletir. E, seja qual for a tua decisão, eu juro que a aceitarei. Mas agora... Agora estamos aqui e aqui ficaremos até meio da Primavera. Vamos ser felizes no tempo que nos resta juntos, Pequena! Por favor! A emoção transcendia-me e impedia-me de raciocinar. Throst desejava desposar-me, mesmo que só por alguns meses; mesmo sabendo-me grávida de outro homem! Como podia eu contrariar o desejo de corresponder à excelência do seu amor?
- E o nome que eu carrego? - Apelei num último fôlego de resistência. - O segredo não morreu com o Gunnulf! O teu povo jamais me aceitará, sendo eu filha do meu pai...
- O meu povo já o fez!
- O quê?
- Eu não poderia exigir franqueza e lealdade aos meus homens se não correspondesse de igual forma. Aqueles que me apóiam diretamente, há muito que sabem que tu és uma McGraw. Os restantes, souberam-no há pouco. Outra das condições que impus para abraçar esta missão foi que te aceitassem e respeitassem como uma igual.
Eu não acreditava nos meus ouvidos!
- Tu disseste aos teus homens que eu sou filha de Lorde Garrick?
- Todos têm bem presente o que tu tens feito por eles e pelas suas famílias. Muitas vozes se ergueram em teu favor, Catelyn! Acredita que és muito estimada na Terra Antiga! Mas, mesmo os mais calculistas, como aqueles que ainda não te conhecem, são forçados a reconhecer os benefícios da nossa união. Esses encaram o nosso casamento como uma aproximação aos teus irmãos, tornando mais fácil a obtenção dos seus favores. Deixa-os pensar o que quiserem, desde que não atrapalhem o nosso amor! - Segurou-me nas faces e eu fui forçada a mergulhar no azul profundo do seu olhar. - Eu amo-te, Catelyn McGraw! Por favor, casa comigo...
A minha mente ainda não recuperara do seu beijo e já os meus lábios suspiravam de felicidade:
- Sim, Throst... Sim...
Eu não fora habituada a rituais de culto, embora os houvesse em abundância na religião da Grande Ilha. Em criança, ouvira falar dos sacrifícios aos quatro Elementos, dos rituais druidas e das cerimônias que abençoavam a mudança das estações, mas nunca tivera permissão para assistir a nenhum deles. O meu primeiro contacto com um verdadeiro cerimonial ocorrera aqui, nesta terra selvagem, no dia da bênção dos guerreiros e dos barcos de guerra, há aproximadamente um ano. Agora, eu estava prestes a assistir a outro ritual. Só que, desta vez, não era uma simples curiosa e sim uma das personagens principais. E estava aterrada!
A partir do instante em que os meus lábios disseram ”sim” a Throst, a minha vida virou-se de pernas para o ar. Um grupo de anciãs levou-me para uma casa vazia e aí me deixaram para passar a noite, sozinha, intrigada e assustada. Pensei que não conseguiria adormecer. Porém, mal o meu corpo repousou na cama, fechei os olhos e só despertei de manhã, fresca e descansada.
As anciãs regressaram trazendo frutas e néctares. Enquanto eu comia, deram-me várias instruções. Até ao término da cerimônia, eu não poderia comer, nem beber, nem falar, nem... Queimaram ervas na fogueira, que depressa espalharam um cheiro intenso e adocicado pela casa, fizeram a minha cabeça girar e entorpeceram-me os sentidos. Muito do que se seguiu caiu no esquecimento, ficando apenas a lembrança dormente do som fantasmagórico das rezas e do brilho de luzes coloridas, que rasgavam o ar e faiscavam como relâmpagos.
Com o aproximar da noite, banharam-me e cobriram-me com óleos perfumados. Esperei ansiosamente pelo meu vestido de noiva e fiquei estupefata quando me começaram a pintar com tintas de cores garridas - as cores das magníficas velas dos barcos vikings. Uma das anciãs entrelaçou fitas de seda e flores secas nos meus cabelos. Outra, com dedos hábeis e rápidos desenhou o Sol e a Lua no meu peito e uma grande serpente sobre o ventre, em redor do umbigo. Para cobrir os seios nus e os quadris, usaram peles de animais, iguais às que forravam os livros do Guardião da Lágrima do Sol. O meu pescoço, pulsos e tornozelos foram enfeitados com colares e pulseiras belíssimos, feitos de âmbar e marfim. Não tocaram no meu amuleto, talvez porque conhecessem o seu significado. Fui envolvida numa rica capa de pele branca e conduzida à porta. A minha mente já recuperara a lucidez suficiente para compreender que chegara o momento da verdade.
Subitamente, Mairwen entrou desembestada na casa, com uma multidão de mulheres indignadas guinchando atrás dela. Estacou à minha frente, sem acreditar no que via: uma criatura misteriosa e selvagem, com os olhos brilhando como estrelas, ansiosa e amedrontada, desejando e receando o que a esperava.
- Tu não podes consentir isto, Catelyn! - vociferou, tremendo como uma folha solta ao vento. - Estás iludida pela chama do amor... Não tens consciência do que estás a fazer!
A anciã incentivou-me a avançar e eu obedeci-lhe prontamente. A minha tia não desistiu, desta vez berrando na língua da Grande Ilha:
- O Throst contou-te o que pretende? O que ele preparou para vós não é um simples casamento! É uma união de corpo e espírito que se perpetuará pela eternidade! Não foi para isso que tu nasceste, Catelyn!
Cravei os olhos em Mairwen e repliquei com a voz da mente:
”E foi para se transformar numa mulher amargurada e egoísta que a tia nasceu? Eu não fugirei do meu destino, mas também não voltarei as costas à felicidade, no tempo de liberdade que me resta, antes de ficar prisioneira de outra vontade e perder o homem que amo. O Throst nunca me enganou, e eu confio plenamente na sua palavra. Ele ama a mulher e não a feiticeira escolhida para salvar o mundo. E é essa mulher que lhe corresponde, com igual paixão. Se é da sua vontade que fiquemos unidos para a eternidade, então sentir-me-ei grata e feliz, pois é igualmente o que eu desejo!”
Mairwen recuou, agredida pelas minhas palavras. E eu entreguei-me aos braços da noite.
O estridor das trompas preencheu o vazio e os tambores rufaram. De imediato, vozes e música ergueram-se, flutuando com o vento, nascendo da própria Terra, do Céu e do Mar. A trovoada ainda vinha longe, mas não faltara ao chamamento.
A minha pele foi apertada pelo ar gelado, mas não senti frio. Os meus pés moveram-se sobre a neve com ligeireza, enquanto eu mantinha a capa fechada, para encobrir o corpo das centenas de olhos que piscavam diante de mim. Um trenó puxado por belos cães-lobo aguardava-me. A anciã, que se tornara a minha sombra, conduziu-o com a destreza de um jovem camponês. Os clarões das fogueiras e dos archotes convertiam a noite no mais brilhante dos dias. Os aldeões, vestidos com as roupas mais vistosas e cobertos de adornos e peles, afastavam-se para nos ceder passagem e curvavam-se em reverência. De entre eles, distingui um rosto familiar, enrugado pela idade. Ao encarar-me, a Velha do Tronco Oco acenou em aprovação e, eu podia jurar, esboçou um sorriso rasgado.
Não tive tempo de surpreender-me com o inesperado encontro, pois logo os meus olhos se arregalavam de pasmo. Uma plataforma, qual altar gigante, fora construída no centro da propriedade, e as pedras branca e negra do templo de Throst, cujas Runas declaravam a mensagem de amor que o meu coração guardava, haviam sido transportadas para cima dela. Como fora possível preparar algo tão fenomenal com tamanha rapidez?
Enquanto o trenó se aproximava, apercebi-me de um homem no altar, projetando a sua sombra sobre as Terras do Norte. Mal contive o sobressalto, atordoada pela energia que provinha do desconhecido.
O seu aspecto velho e frágil não passava de mera ilusão. Ele era bastante alto, mas a idade curvara-lhe os ossos e comera-lhe as carnes. Apoiava-se num bordão de madeira de rara beleza, que faiscava à luz das fogueiras, prenhe de um poder celestial. Os seus cabelos de neve estavam presos atrás da cabeça por uma longa trança que lhe pendia para além da cintura. A barba branca, também entrançada, tocava-lhe no ventre. Envergava vestes compridas e largas, tão alvas como leite, e um manto da mesma cor. Não me surpreenderia se a admirável figura abrisse os braços, se transformasse num pássaro gigante, sobrevoasse a multidão e desaparecesse na vastidão da noite.
- Não tema, menina - murmurou a anciã. - Está diante do grande Hakon da Montanha Sagrada, ”O Que Tudo Vê”, renascido das entranhas da Terra para abençoar o nosso povo.
Eu dispensava a apresentação, pois reconhecera-o de imediato. Apesar de pouco restar da Visão do homem jovem e belo, que me dera a mão e comungara da beleza da natureza, no topo da Montanha Sagrada, era impossível confundir tamanho poder. Surpreendi-me por ver Krum ao seu lado, instruindo os chefes dos clãs vikings para se disporem em círculo, em redor das pedras branca e preta, aguardando a chegada do Líder Supremo.
O trenó parou diante do altar e Krum veio ao meu encontro. Imaginei-o, num futuro distante, com o cabelo branco de sabedoria e um poder fabuloso entre as mãos. Apesar de ter aprendido a arte da guerra, ele nunca conseguira silenciar a magia do seu sangue. Agora assumia-a finalmente, colocando-se ao lado de um dos mais poderosos feiticeiros que habitavam a Terra. O meu primo possuía a coragem, a força e a excelência que faltavam à mãe. A sua voz ecoou na minha mente, tão límpida como a água de uma nascente:
”É uma grande honra acompanhar-te neste momento tão especial, querida prima! Liberta o espírito e nada receies. O teu homem tudo fará por ti, e o vosso amor será recordado em histórias, poemas e canções, que perdurarão ao longo dos séculos.”
Quando Krum terminou, já subíramos a rampa e entrávamos no círculo de guerreiros. Então, vi Throst. Ele vinha da direção oposta, conduzido por Hakon, e o seu corpo fora igualmente pintado e coberto por uma capa de pele branca. Acenou-me levemente e eu retribuí, sabendo que só poderia falar quando o feiticeiro permitisse.
Do topo do altar avistava um mar de gente e mais continuava a chegar. A notícia da benção do Líder Supremo e do seu casamento espalhara-se à velocidade de um relâmpago e todos queriam testemunhar o acontecimento. O fogo do Homem iluminava o manto garrido que se estendia debaixo do meu olhar; uma visão de tirar o fôlego!
A um gesto do feiticeiro, Krum desnudou-me os ombros. Retraí-me instintivamente, trespassada pelo frio e pelo pudor. Porém, sem explicação, o meu sangue aqueceu até a pele suar e o embaraço se desvanecer. Não muito longe, o mesmo sucedia com Throst. Os nossos olhos encontraram-se, e o seu sorriso revelou-me que se agradava do que via. O padrão pintado na nossa carne era igual, nos menores detalhes. A sua nudez também fora encoberta por uma tira de pele, e o seu pescoço e tornozelos, enfeitados com belos adornos. Nos pulsos, o testemunho da sua linhagem mágica salientava-se orgulhoso, ofuscando a suntuosidade dos ricos ornamentos.
Duas cabras, uma branca e uma preta, foram sacrificadas. Por entre os bramidos, gritos, berros e uivos, tive de lutar para me manter lúcida. Piscava incessantemente os olhos, forçando-me a raciocinar, recusando-me a ceder à vertigem que voltava com redobrada força.
No âmago da loucura, vi que um homem se aproximava. Os seus cabelos negros e encaracolados caíam-lhe em redor dos ombros, e os olhos verde-floresta cintilavam mais do que qualquer fogueira. Por cima das suas vestes, um cordão entrançado segurava uma pedra branca. Eu estava a ter uma Visão... Uma Visão partilhada! A partir da Grande Ilha, Berchan lançava a sua mente ao encontro da minha! Envolveu o meu rosto com as mãos delicadas e beijou-me a testa. O meu irmão era um homem perfeito e belo, cuja essência extravasava sabedoria. Não moveu os lábios, mas a sua voz acariciou-me o coração:
”Amo-te muito, irmãzinha! Brevemente estaremos juntos...”
Tão inesperadamente como surgira, a imagem desvaneceu-se. Ao regressar à realidade, vi que o sangue dos animais já fora recolhido em taças e as carcaças levadas, para a carne ser assada e servida aos homens após a celebração.
A trovoada aproximava-se enquanto o Guardião da Lágrima do Sol erguia a taça cerimonial ao céu, e o seu corpo velho e encurvado se transformava num gigante. Besuntou as Runas das pedras com sangue e dirigiu-se a Throst. As minhas pernas fraquejaram perante a luz ardente que se derramava sobre a lâmina do punhal que mudara o rumo das nossas vidas e de todo um povo. Ao som dos tambores e dos cânticos que dominavam a noite, Hakon invocou a presença dos seus deuses e dos mais profundos poderes ancestrais. Throst estendeu-lhe a mão, e o feiticeiro cortou-a, com um lanho rápido e limpo. De imediato, eu senti a dor latejante na minha carne, onde a cicatriz em forma de Crescente sarava e fendia, à mercê da Vontade que nos unia. Rangi os dentes e apertei a mão, percebendo-a encharcada, ao mesmo tempo que o sangue de Throst escorria para a taça.
O feiticeiro desenhou um símbolo na testa do neto com o líquido viscoso, antes de se deter à minha frente. Forcei-me a encará-lo, esperando encontrar o azul da pedra de Aranwen no seu olhar, e sobressaltei-me ao constatar que os olhos do Guardião eram mais brancos do que o luar. Como era possível? Não era ele ”O Que Tudo Vê”? Como podia cavalgar, guerrear e presidir a rituais... Como podia ele ver, se era cego?
A voz de Hakon soou dentro de mim - uma brisa de Verão, suave e doce; uma tempestade de Inverno, forte e determinada:
”Olha-me com o espírito aberto e saberás que nada tens a recear! Sê bem-vinda à minha família, Catelyn da Floresta Sagrada da Grande Ilha!”
Fui transportada para o topo da Montanha; a minha mão dentro da mão de Hakon, o jovem da minha Visão de criança. Ao nosso redor, estendia-se uma paisagem de estonteante beleza. Envolvida por uma paz transcendental, respondi simplesmente:
”É uma honra, venerável Hakon, Guardião da Lágrima do Sol!”
”Sei o que temes, sei o que procuras, sei o que desejas... A seu tempo tudo se esclarecerá. Agora, desfruta do presente ao lado do teu homem. O vosso desejo de se pertencerem, em corpo e espírito, está prestes a concretizar-se. Finalmente, o equilíbrio será restaurado!”
Hakon desenhou o símbolo de sangue na minha testa e afastou-se, dirigindo-se à multidão com um cântico vibrante. A comoção atingira o rubro quando o feiticeiro esboçou um sinal para que os guerreiros se aproximassem de Throst.
Por coincidência, ou não, o guerreiro-urso foi o primeiro a jurar fidelidade ao Líder Supremo. O seu sangue pingou para a taça da cerimônia e a sua espada foi banhada com a essência do pacto. Ajoelhado diante de Throst, Steinarr proferiu votos de obediência e lealdade, em seu nome, em nome do seu povo e da sua terra, debaixo do juízo severo do Sol e da Lua, entregando-se ao castigo implacável dos deuses, caso a sua vontade e devoção esmorecessem por um instante. Quando o líder da Terra dos Carvalhos e o Líder Supremo juntaram as mãos, unindo os seus destinos até à morte, eu fui invadida por uma estranha exaltação, uma vontade louca de gritar. O meu coração batia a rebate, sobrepondo-se aos tambores que rufavam, abafando a trovoada que estourava por cima das nossas cabeças. E, quando eu já pensava que a tensão me iria enlouquecer, o colossal viking parou diante de mim, trespassando-me com um olhar verde-cristalino que me roubou o fôlego e subtraiu o que restava da minha força.
Como num sonho, ouvi Steinarr apresentar-se e declarar-me a sua dedicação, de forma clara, sem uma incerteza na voz vigorosa e quente. Era impossível que ele não se apercebesse da minha perturbação. Só por um prodígio eu ainda me sustinha de pé! Lembrei-me de como as palavras de Ingrior me haviam parecido estranhas. Não acreditara que um homem pudesse provocar sentimentos tão fortes numa mulher, sem que existisse um envolvimento emocional. Enganara-me! Apetecia-me fugir a sete pés e assustei-me ao concluir que a minha inquietação não se devia ao receio, e sim à intensidade do olhar enigmático, que me devassava a alma. Quando o guerreiro-urso declarou que daria a vida por mim, eu tive a certeza de que ele era sincero; quando manifestou a devoção de um servo, eu reconheci o seu ardor como verdadeiro. Senti-me aliviada quando terminou e desejei não ter de voltar a enfrentá-lo.
Um a um, os outros chefes de clã imitaram Steinarr. E tudo o que estes juravam perante o Líder Supremo, juravam também diante de mim. Com o pacto, eu recebia a fidelidade e a obediência do povo viking. No entanto, como o meu sangue não se misturara com o deles, eu não assumia qualquer compromisso de lealdade. Desta forma, Throst concedia-me a liberdade de partir para cumprir a minha missão e a autonomia para escolher o meu rumo, depois de a tormenta findar.
Após os votos do último guerreiro, Hakon submeteu a taça ao olhar dos deuses e declamou um cântico aguerrido e instigador, ao qual a multidão correspondeu. De entre os pontos coloridos, eu distingui perfeitamente Ingrior. A minha amiga levou a sua mão aos lábios e ao peito, declarando-me o seu afeto, inequivocamente recíproco. Fora ela a verdadeira defensora do amor inquebrantável, que durante tanto tempo permanecera escondido e silenciado no meu coração e no coração de Throst. Fora ela quem me forçara a encarar a verdade, ao conduzir-me ao cume da Montanha Sagrada, diante da Pedra do Tempo. Fora ela quem me salvara a alma, quando a minha vontade ameaçara render-se ao Guardião da Lágrima da Lua. E fora ela, sem dúvida, quem me devolvera a esperança, a harmonia e o domínio da minha convicção.
No instante em que a nossa ligação espiritual atingia o auge, uma presença familiar interpôs-se no elo de energia. Pasmei ao perceber que Berchan não partira. Ele mantivera-se ligado a Ingrior, fundindo-se na sua essência para assistir ao ritual. Os dois existiam como uma única entidade e as suas emoções pulsavam ao mesmo ritmo, misturando-se com as minhas. A doçura desta partilha restituiu-me o equilíbrio emocional e, quando ”O Que Tudo Vê” veio ao meu encontro para conduzi-me até Throst, eu já recuperara a serenidade.
A tempestade cobria a aldeia, o céu ardia e o ar eriçava-me os pêlos do corpo. Hakon falava da origem das estrelas, do princípio e do fim das coisas, nascer no mar e retornar a ele, cravando cada palavra no cerne da minha alma. Os olhos de Throst levavam-me de volta a casa, num dia ensolarado de Verão; os seus cabelos eram searas de trigo maduro; o seu corpo, um hino de masculinidade. Eu nunca o assimilara assim, tão perfeito e selvagem. O poder do líder do povo viking fluía pelo meu sangue; a mais pura força da natureza! E era só minha!
Na bandeja que Krum segurava repousavam duas braceletes de prata, gravadas com os símbolos mágicos da família de Throst e os nossos nomes em Runas. As mãos do meu amado tocaram no meu rosto e deslizaram-me pelo pescoço, até se deterem sobre as representações do Sol e da Lua. Escutei, de coração aberto, cada um dos seus votos, e os meus lábios abriram-se finalmente para entoar, como um cântico, os meus próprios votos, enquanto acariciava o Sol e a Lua no seu peito. Apertamos as mãos e repetimos o juramento de sangue - um homem e uma mulher, unidos num só corpo e espírito, na vida e na morte, para toda a eternidade. Era isso que Throst desejava. Era isso que eu desejava.
A bracelete entrou no meu pulso como se um artesão mágico a tivesse entalhado por medida. Nesse momento de avassaladora satisfação, jurei que, acontecesse o que acontecesse, jamais a tiraria. E o meu coração sabia que Throst fazia a mesma promessa. Quando o seu corpo reclamou o meu, abracei-o e retribuí o ardor do seu beijo. A chuva caiu finalmente, quente sobre a nossa pele. Abri os olhos e encontrei o olhar do meu marido e senhor. A nossa união fora perfeita!
Throst tomou-me nos braços e avançou até à extremidade do altar, permitindo que a multidão nos aclamasse. Eu sentia a sua respiração aprofundar-se, à medida que a impaciência crescia. Apesar da solenidade do ritual e da importância que todos os nossos gestos e palavras tinham para o povo, nós ansiávamos por ficar sozinhos.
O caminho até ao topo da Montanha Sagrada dir-se-ia não ter fim. Já não chovia, e a luz que brotava do solo colava-se à nossa pele.
A Pedra do Tempo enviou o nevoeiro denso e colorido, palpitante de vida, para nos receber. Atraiu-nos como se nos chamasse... Como se ordenasse: O vosso primeiro encontro abençoado deverá ser aqui, aos meus pés! E foi para lá que Throst me carregou. Deitou-me na terra úmida e quente e repousou o corpo sobre o meu, murmurando rouca e imperativamente:
- Perdoa-me, meu amor, mas eu não posso esperar mais...
- Eu não quero que esperes! - respondi com o mesmo ardor. Fundimos os nossos lábios, num beijo arrebatado. As mãos de Throst percorreram o meu corpo, preparando-o para receber a força do seu desejo. Gemi extasiada ao perceber a urgência que o dominava. Eu também sentia essa ansiedade; a dor maravilhosa que antecipa a união de dois corpos consumidos pela paixão.
- Eu tenho medo de te magoar, Catelyn... - Arfou, ainda assombrado pelas recordações do que ficara para trás.
Mergulhei no azul profundo do seu olhar e arqueei o corpo, subjugada por uma fome primitiva e violenta.
- Irás magoar-me se parares...
- Então, não pararei!
Senti que a vida se iniciava no instante sublime em que o corpo de Throst entrava no meu. A sensação foi tão intensa que me bloqueou o raciocínio. Gritei dentro da sua boca e assimilei o seu grito. Eu estava a morrer! Estava a nascer...
A Pedra do Tempo chamejava. O nevoeiro colorido envolveu-nos num manto protetor e quente, protegendo-nos da maldade do mundo.
- Amo-te, Catelyn...
- Throst...
- Amo-te!
Nada do que eu recordava podia comparar-se com o sentimento que me devastava. Todo o ardor reprimido durante meses tormentosos libertava-se de uma só vez e engolia-me. O prazer entrou em mim, cobrindo-me como uma onda que não me permitia respirar. Senti a libertação de Throst e juntei-me a ele, enterrando os dedos nos seus cabelos e costas, pressionando-me de encontro ao corpo ardente que convulsionava. E vi luz, água, ar, fogo e sangue, toquei as estrelas e tornei-me parte delas. Soube, nesse instante, que o mundo era demasiado pequeno para conter o nosso amor.
- Catelyn...
A voz doce e tão amada despertou-me. Throst suspirou de alívio, ao verificar que eu recuperava a consciência, e murmurou abalado:
- Desculpa, querida! Exigi demasiado de ti. Foram muitas emoções de uma só vez... Estavas exausta, e eu ainda te tomei como um animal enlouquecido!
Ao encarar o seu rosto belo e o olhar de céu e de mar, fui incapaz de dominar a emoção. Lancei os meus braços em redor do seu pescoço e afundei a cabeça no seu peito, sacudida por soluços violentos. A minha mente ardia, enquanto as palavras eram disparadas, diretamente do coração: ”Eu sou tua... E tu és meu! Só meu... Para sempre, meu amor!”
E chorei! Chorei com o ímpeto de um recém-nascido que experimenta o primeiro fôlego de vida. Chorei com a paixão de uma mulher que se sente completa, preenchida de felicidade.
- Pequena... Amor...
O meu pranto estava a assustá-lo. Eu percebia-o na sua voz e no tremor do seu corpo. Forcei-me a serenar, acariciando-lhe o rosto enquanto sussurrava:
- Eu estou bem, querido...
- Estás a chorar, Catelyn! - replicou ele de imediato. - Eu sabia que iria magoar-te!
- Não, Throst! - Amimei-o com adoração; o meu sorriso iluminando todos os recantos da minha alma. - Eu choro porque estou feliz.
Os seus dedos trêmulos percorreram-me as faces, enquanto franzia a testa, confuso.
- Mas... Tens lágrimas a cair dos olhos!
- Eu sei...
- Então...?
- A sombra que me encobria a alma dissipou-se finalmente - justifiquei engasgada. - A dor roubou-me as lágrimas... Mas a felicidade trouxe-as de volta. Tu fizeste de mim uma mulher completa. Amo-te, Throst! Amo-te...
O meu marido chorou comigo, e os nossos lábios procuraram-se, uma e outra vez, até todas as brumas se desvanecerem. Ficamos abraçados, em silêncio, partilhando de uma harmonia que só dois espíritos gêmeos podem alcançar. Aos poucos, tomei consciência de que ele me trouxera para o interior da morada de Hakon. Reconheci a mão carinhosa e talentosa de Ingrior na decoração bela e confortável, que transformara a gruta num quarto digno de um rei. Throst interrompeu a minha observação, ordenando com firmeza:
- Vamos comer. Não quero que tornes a desmaiar...
- E por que pensa que desmaiei de fraqueza e não de prazer, senhor, meu marido?
Senti-me corar ante a minha própria ousadia, mas o sorriso de Throst revelou-me o quanto apreciara a provocação. Segurou-me no queixo, sussurrando roucamente:
- Quer levar-me à loucura, senhora, minha esposa? Devoramos com satisfação o repasto que nos aguardava. Estávamos ambos esfomeados, pois não comíamos desde que se iniciara a preparação para o ritual. Os cestos com frutas, carne assada e pão, e os potes de cerveja e mel, esvaziaram-se, enquanto falávamos da cerimônia que abençoara o nosso amor, tão felizes que não conseguíamos parar de rir. Por fim, Throst avivou a fogueira, e eu ajeitei as mantas para descansarmos. Já deitada nos seus braços, acariciei-lhe o pulso, atrevendo-me a confessar-lhe o desejo de tatuar aquele desenho na minha pele. Longe de se arreliar, ele sorriu e beijou-me as mãos, respondendo mansamente:
- A tua vontade cobre-me de satisfação, querida. Porém, infelizmente, não posso tomar essa decisão. Só o Guardião da Lágrima do Sol tem poder para transmitir a sua herança. Mas estou certo de que acederá ao teu pedido, se lho manifestares. Sei que lhe agradas muitíssimo.
Quedei-me em silêncio, pensativa. Tudo indicava que o avô e o neto já haviam conversado. Saberia Throst a razão por que Hakon se isolara? O meu marido adormecera, por isso fiquei com as perguntas entaladas na garganta. Apesar de desconhecer a verdade, eu tinha a certeza de que esse mistério escondia um segredo terrível. Forcei-me a engolir a curiosidade e decidi que não o confrontaria com tais questões. Se Throst decidisse partilhar a sua experiência, fá-lo-ia por sua iniciativa.
Abri os olhos devagar, sentindo uma comichão morna no nariz. Pensei que Throst brincava comigo e resmunguei com sono. Porém, ele também acabara de despertar e depressa percebemos que o nevoeiro colorido nos rodeava, quente e perfumado, forçando-nos a segui-lo. A passagem que conduzia ao quarto do dragão estava aberta e irradiava um brilho chamejante, enquanto um som suave, semelhante a um cântico divino, trespassava a rocha. A mão do meu marido fechou-se na minha e encorajou-me a levantar.
O nevoeiro guiou-nos até à mais bela das grutas, pairou sobre o lago e deteve-se na pedra destinada a tornar-se o nosso leito de amor.
A melodia maravilhosa que nos embalava provinha da queda-d’água. Arrepiei-me ao adivinhar o que estava prestes a acontecer. Throst respirava pesadamente e não hesitou em atrair-me para os seus braços, declarando:
- Não tenhas medo, Catelyn! Foi para este momento que nascemos. O nosso amor unirá as nossas terras e os nossos povos. Será perfeito... Como tu, minha querida esposa!
Ele possuía o dom de me acalmar, de destruir todos os meus receios. Mal entrei na água, esqueci a responsabilidade esmagadora que pairava sobre nós e entreguei-me ao seu carinho. A chuva fizera uma sopa de tinta, terra, sangue e suor na nossa pele e demoramos a banhar-nos, ofertando à água sagrada o produto do ritual de amor, vibrando com a paixão que nos atingia e suplantava, naquele lugar mágico, desvendado somente para os nossos olhos. Exploramos sem pressa cada recanto dos nossos corpos, descobrindo como agradar, dando e recebendo. Senti-me a mais formosa das mulheres, quando o mais belo e poderoso dos homens exclamou:
- O teu corpo mudou muito desde a primeira vez que eu o toquei... Cresceste Catelyn! És uma mulher linda e sensual... Tão perfeita como uma deusa!
- E o teu corpo não mudou nada... - gemi arrebatada, procurando os seus lábios. - Desde então, não se passou um dia em que eu não desejasse tocá-lo... Assim...
O seu rugido extasiado pôs fim às confissões. A rocha moldou-se ao meu corpo como um colchão de penas de ganso. O nevoeiro colorido invadiu-me os pulmões e misturou-se com o sangue. A união dos nossos corpos incendiou-me os sentidos, e logo a lentidão da descoberta se transformava num frenesi arrebatado. Eu ouvia os meus gemidos misturando-se com os de Throst, ecoando pela gruta. Via o rosto amado perturbado pelo mesmo prazer que me destroçava. E sentia o ardor na mão, enquanto o corte se abria e libertava a força da minha vida.
- Throst...
A sua mão cobriu a minha e arrastou-a para dentro de água.
- Sou teu, meu amor... - sussurrou ele junto dos meus lábios.
- Teu, de corpo e espírito...
Gritei o seu nome tão alto que deixei de ouvir a minha própria voz. Perdida numa espiral de sensações, o meu espírito separou-se da carne, rodopiando por entre a névoa brilhante que se fragmentava em mil cores, para depois tombar num mergulho vertiginoso. Eu estava rodeada por água, e a transparência tingia-se de vermelho. Estava em queda livre e a vastidão do mar aguardava-me. Muitas luzes iluminavam a noite do mundo. Eu era a tempestade que rebentava sobre as ondas bravias. Eu era o sal que se misturava na água. Eu era o sangue que se derramava no mar. Eu era Catelyn e Throst, vida e morte, princípio e fim, prazer e dor.
A Grande Ilha surgiu diante de mim como um gigante erguendo-se do mar. O meu clamor estremeceu a Terra, quando a onda de sangue se esmagou contra os penhascos e invadiu as praias. Numa batida de coração, vi casas, campos semeados e terra virgem; vi homens e animais, florestas e rios. E a força que me dominava começou a sugar-me de volta - rios e florestas, animais e homens, terra virgem e campos semeados, casas... e a grande fortaleza que abrigava os McGraw; um quarto, uma cama ricamente adornada com o brasão da minha família e dois amantes ondulando ao sabor da tumultuosa paixão; Edwin perdido num prazer desatinado, rugindo alto o nome da sua amada... Mas não era Melody que bailava lascivamente por cima do seu corpo, cravando-lhe as unhas afiadas no peito, onde a pedra vermelha pulsava com a força do seu coração! Uma chuva de cabelos em chamas revelou a pele de leite das costas da sua amante, antes de a minha mente ser violentamente arrebatada de volta ao mar, empurrada de regresso à Terra Antiga, cavalgando uma vaga de luz que devolveu a transparência azul ao mar e penetrou nas entranhas da terra, até à Montanha Sagrada, subindo pela Pedra do Tempo e espalhando-se pelo céu.
A fúria dos Elementos não podia comparar-se com o temporal que me varria, no instante em que a razão invadiu o meu corpo. O sentimento que me ardia no peito era maior do que o mar, maior do que a Terra, maior do que o céu...
Tudo foi esquecido, exceto a delirante sensação de plena entrega. O espírito do meu homem fundia-se no meu, e a sua vida entrava em mim, escaldante como um rio de fogo. Nada podia ser mais perfeito. Nada podia ser mais mágico!
Na Terra Antiga, tal como na Grande Ilha, o casamento era uma cerimônia muito importante, que envolvia não só as famílias dos noivos, mas toda a comunidade. Durante alguns dias, consegui esquecer a sombra da guerra e os sussurros do ódio, e fui verdadeiramente feliz. Porém, o sonho maravilhoso não tardou a desmoronar-se na dura realidade. Os chefes dos clãs deviam regressar às suas aldeias, e era importante que o Líder Supremo os acompanhassem, para ser apresentado ao povo. Eu casara com Throst para aproveitar o tempo que nos restava, e agora ele ia viajar, sem saber quando regressava.
O meu marido andava triste e apreensivo. E eu tinha a certeza de que a sua angústia era a minha. Fiquei sem fôlego quando ele me anunciou que partiria no dia seguinte e que esta seria a nossa última noite, talvez durante várias semanas. Quando terminamos de fazer amor, as lágrimas inundavam-me os olhos, mas eu escondi-as para não o incomodar com o meu tormento. Porém, a nossa ligação não admitia segredos. Depois de um longo suspiro, Throst exclamou:
- Eu não agüento isto! Vem comigo, Catelyn! Por favor! Ergui-me sobre um braço, temendo ter ouvido mal e desejando que ele repetisse o pedido mil vezes, para que eu pudesse responder-lhe mil e uma que sim.
- Eu sei que será uma viagem dura, mas tu montas bem a cavalo e és forte. Além disso, eu estarei ao teu lado... e o povo adorará conhecer-te...
- Estás a tentar convencer-me? - perguntei, mal contendo a alegria.
- É claro que nos acampamentos haverá sempre um abrigo para te protegeres...
- Throst, eu vou!
Ele quedou-se em silêncio e depois soltou um longo suspiro de alívio. A força do seu abraço denunciava satisfação, e não tardou a entregar-se a um sono reparador. Eu permaneci acordada, recordando os últimos acontecimentos, enquanto brincava com os anéis dourados dos seus cabelos. Tudo fora maravilhoso, à exceção da Visão grotesca de Edwin e Gwendalin. A memória do corpo alvo da feiticeira subjugando o meu irmão fez-me estremecer de horror. Não era possível! Não fazia sentido!
Eu partilhara a minha agonia com Throst, e ele esforçara-se por me sossegar, alvitrando que talvez eu estivesse equivocada; que tal barbaridade não podia ser mais do que uma alucinação, provocada pelos meus receios mais profundos, pois a sua mente fizera o mesmo percurso que a minha e nada vira de semelhante. Devíamos congratularmo-nos por o nosso amor ter sarado a ferida aberta no mar. A paz preparava-se para abrir os olhos e inspirar o primeiro sopro de vida. Nada devia assombrar a nossa conquista!
Eu tentava seguir o seu conselho, mas não conseguia parar de buscar uma justificação para a loucura que testemunhara. A ser verdade, Edwin fora iludido por Gwendalin. O meu irmão pensara que fazia amor com Melody, sem desconfiar de que aninhava nos seus braços a causadora da nossa desgraça... a sua própria tia! A simples idéia repugnava-me. Não! Berchan jamais permitiria que tal acontecesse! Ele teria pressentido a presença da bruxa e chamado o irmão à razão. Throst estava certo! Essa monstruosidade não passara de um delírio, ao qual eu não iria devotar nem mais um pensamento!
Aninhei-me no peito do meu marido e procurei o conforto da sua mão. Com sono, Throst entrelaçou os nossos dedos e murmurou uma declaração de amor. Foi o suficiente para dissipar as nuvens negras que, por um instante, haviam encoberto a minha felicidade. Fechei os olhos e adormeci, sentindo-me novamente em paz.
Enquanto me ajudava a arrumar o necessário para a viagem, Ingrior desabafou:
- Eu não quero parecer egoísta por desejar a tua companhia, mas, sinceramente, não concordo que acompanhes os homens, Catelyn. É uma grande imprudência! A paz caminha ao lado da guerra, e nunca se sabe quando ocorrerá um novo ataque.
- Crês que existe algum risco? - repliquei surpreendida. - O Throst propôs um acordo muito digno ao Arnorr. O vosso primo será louco se recusar!
- O Arnorr sempre foi matreiro. A sua discrição e subserviência nunca me convenceram! Ele é tão ambicioso e ruim como o Gunnulf. Agora que assumiu a liderança, não hesitará em vender a alma para se vingar. Jamais se vergará à vontade do Throst. O Arnorr odeia o meu irmão!
Forcei-me a reprimir o medo e a manter a firmeza:
- O vosso avô viajará conosco. Se não houver segurança junto de ”O Que Tudo Vê”, então não haverá em nenhum lugar do mundo!
Perante os meus argumentos, ela estreitou-me nos braços, murmurando carinhosamente:
- Nada te fará demover, não é verdade? Esbocei um sorriso, beijando-a na face.
- O meu lugar é ao lado do Throst, para o bem e para o mal. O meu coração não me perdoaria se o deixasse partir sem mim!
Ingrior segurou o meu rosto e prendeu-me o olhar.
- O vosso amor enche-me de alegria, querida irmã! Sei que o tempo que tiverdes de viver separados não será fácil, mas recorda-te que, após essa provação, a felicidade estará à vossa espera. Não duvides da tua força. Tu vais vencer!
Dir-se-ia que as suas palavras ocultavam um conhecimento real.
- O Hakon contou-te o que irá acontecer?
- Sabes que o futuro é uma névoa em perpétuo movimento. Tenho a certeza de que o meu avô te falará durante a viagem. Confia em ti, Catelyn, e tudo correrá bem!
A nossa proximidade denunciava que havia algo mais que ela relutava em dizer-me; algo íntimo, que a incomodava. Confrontada com esse pressentimento, Ingrior forçou um sorriso nervoso.
- Não é nada, Catelyn... Pelo menos, nada de importante! Pode esperar pelo teu regresso...
- Eu ainda não me fui embora - insisti. - Diz-me o que te atormenta!
Pensei que ela continuaria a resistir, mas, depois de uma breve hesitação, confessou:
- Todas as noites, eu sou perseguida pelo mesmo sonho. Eu sonho... com um homem...
Sofri um sobressalto, adivinhando o que se passava mesmo antes de ouvi-la:
- Ele tem o teu rosto! Os mesmos cabelos negros, compridos e encaracolados, os olhos verdes e brilhantes... E ao pescoço, usa um fio igual a esse, mas com uma pedra branca. Durante muito tempo, acreditei que me deixara fascinar pelas histórias do teu irmão Berchan e que lhe dava vida no meu sono. Porém, na noite do teu casamento, aconteceu algo inexplicável. Eu podia senti-lo na minha pele, Catelyn! O seu calor, o seu cheiro...
- O Berchan esteve presente na cerimônia - interrompi, apiedando-me do seu tormento. - Veio visitar-me em espírito... e eu tenho a certeza de que ele utilizou a tua energia para permanecer algum tempo. Sinto muito se te perturbou... - Detive-me bruscamente, ao aperceber-me, pela força do rubor da minha cunhada, da verdadeira natureza da sua perturbação. Pasmei quando se ergueu e me voltou as costas, replicando:
- Eu não quero falar mais acerca disso, Catelyn! Desculpa, mas não posso... Ainda não! Estou muito confusa! Preciso de pensar...
Nesse instante, Krum irrompeu pela casa e agarrou a minha sacola, apelando:
- Vamos, prima! Temos uma longa viagem à nossa frente. Enquanto me despedia de Ingrior, murmurei ao seu ouvido:
- Nem penses que te deixarei escapar! Conversaremos em breve! Trocamos um sorriso significativo, e eu suspirei, preparando-me para enfrentar esta nova aventura. O Líder Supremo aguardava-me, com um brilho especial no olhar. Usava a túnica onde eu bordara o desenho da sua tatuagem e, sobre os ombros largos, a pele do majestoso Lobo Cinzento ordenava: ”Apressa-te, filha da Grande Ilha! Já perdemos demasiado tempo!”
Até empreender esta viagem, eu não tivera consciência da verdadeira dimensão desta terra selvagem, do seu poder e beleza cruel. Montanhas cobertas de neve, que se sobrepunham até aonde os olhos podiam alcançar; penhascos de gelo, que entravam profundamente dentro do mar; florestas densas e impenetráveis, de árvores sólidas e centenárias; animais estranhos, como eu nunca vira, uns tão perigosos que os homens eram forçados a manter-se afastados e outros tão dóceis que era possível descer do cavalo e tocar-lhes, tudo isto alimentava a minha curiosidade insaciável e despertava o meu encanto.
Os meus companheiros de jornada eram guerreiros duros, que já haviam travado inúmeras batalhas e enfrentado incontáveis tempestades, em terra e no mar. De início, apercebi-me de que mantinham um certo distanciamento e até alguma hostilidade, no que se referia à minha pessoa, apesar de nenhum contestar a vontade de Throst. Contudo, com o passar dos dias, habituaram-se à minha presença e, depois de verificarem que não teriam de fazer paragens constantes por minha causa, praticamente esqueceram-me.
Krum mantinha-se ao meu lado, e foi através da sua voz que eu consolidei o amor e o respeito pelo país dos Vikings. Apesar de Throst não se afastar, os outros chefes solicitavam com freqüência a sua atenção e, por isso, pouco ou nada conversávamos enquanto viajávamos. Todavia, eu não me importava. A sua presença, à distância de um olhar, chegava para me manter feliz. De noite, os guerreiros partilhavam tendas e aqueciam-se no calor das fogueiras. Eu acompanhava-os às refeições e ouvia as conversas, os planos e as opiniões respeitantes ao futuro. Era fácil compreender por que estes homens rudes, de personalidade forte, haviam escolhido Throst para liderá-los. Não raramente, a conversa incendiava-se e o controlo perdia-se, mas o Líder Supremo estabelecia um equilíbrio, impedia os confrontos e apontava soluções para as divergências.
Steinarr cavalgava quase sempre ao lado de Throst. Krum explicou-me que muitos do seus companheiros haviam temido que o grande viking refutasse a decisão da maioria quanto à escolha do líder, visto ser ele o mais poderoso dos chefes de clã. Contudo, partira do próprio guerreiro-urso a iniciativa de jurar lealdade ao amigo. E eu pressentia que a cumplicidade que os unia não era fingida.
A pequena coruja branca viajou conosco, dentro da sacola do seu protetor, o Guardião da Lágrima do Sol. Tal como eu suspeitara, o inteligente pássaro fora os olhos e os ouvidos do feiticeiro, atentos às vidas dos que dependiam do seu cuidado. Agora, o seu excelente esforço era recompensado com um merecido descanso, e a sua única preocupação era vigiar os movimentos de Vento, para saber quando era seguro levantar vôo.
O entusiasmo que eu acalentara pela presença de Hakon foi esmorecendo com o passar dos dias, conseqüência do seu silêncio indiferente. Pelo menos, a animosidade que Throst sempre manifestara pelo avô parecia apaziguada. Certo dia, atrevi-me a questioná-lo, e ele respondeu-me que Hakon era apenas mais um entre os seus companheiros, com uma missão a desempenhar na jornada. Contudo, a sua voz insegura denunciou que muitos sentimentos ainda combatiam no seu peito. Mesmo que esta ferida sarasse, as cicatrizes jamais desapareceriam.
Encarei a primeira visão de uma aldeia com apreensão. As pessoas fitavam-me com curiosidade, mas também com muita desconfiança. Ser apresentada como a esposa do Líder Supremo não melhorou a situação. Os meus traços não deixavam dúvidas quanto à origem estrangeira. Esforcei-me para manter a firmeza, mas os sussurros nas minhas costas revelavam-me que a escolha de Throst não era bem acolhida. Todavia, a providência não tardou a cuidar para que tudo se alterasse. Assim que as minhas habilidades de curandeira foram solicitadas, o gelo derreteu-se. Os aldeões cercaram-me maravilhados, murmurando que a mulher pequenina do Líder-Lobo tinha mãos mágicas. Nas aldeias que se seguiram não tive descanso. Quando não acompanhava as curandeiras locais na cura das maleitas, estava a trocar experiências, a ensinar e a aprender com aquelas mulheres de modos rudes, mas de grande coração.
A Aldeia dos Carvalhos, morada de Steinarr, era muito maior e mais bem organizada do que a Aldeia de Grim. Beneficiava da proximidade de portos vizinhos e prosperava com o comércio dos mais variados produtos. O chefe viking desfrutava da devoção do seu povo, não só na sua aldeia, mas em todas as aldeias da Terra dos Carvalhos. Perante a vastidão do seu poderio, percebi a rivalidade que o afastara de Gunnulf. Steinarr fora uma ameaça intolerável às ambições do senhor da Terra Antiga.
Tal como Ingrior já me contara, a família do guerreiro-urso era interminável: irmãos, irmãs, tios e tias, primos e primas, espalhados pelos quatro cantos da sua propriedade. Forcei-me a escutar aquele homem perturbador, quando me explicou amavelmente que a sua esposa fora vítima de uma doença súbita e fulminante, ainda o filho mal aprendera a andar. O carinho na sua voz justificava por que não tornara a casar-se.
O herdeiro de Steinarr era um rapagão alto e forte, chamado Ivarr. Tinha cabelos escuros e olhos de um verde-cristalino. Com apenas cinco anos, parecia uma miniatura do pai e ninguém o segurava. Era talentoso no manejo da espada e vencia com facilidade alguns rapazes mais velhos. Com os animais, era um portento. Todos lhe obedeciam, encantados pela voz dominadora. O garoto deliciou-me, e desejei, um dia, poder dar a Throst um filho igualmente habilidoso e aguerrido, para ver nos seus olhos o orgulho que brilhava no olhar de Steinarr.
Outro familiar do guerreiro-urso que me impressionou foi a sua irmã Geimy, dona de uma beleza estonteante; a mais bela mulher da aldeia, de acordo com a opinião geral. A sua fisionomia era muito parecida com a de Steinarr, e o seu corpo, um digno representante da raça nórdica, alto e escultural, com volumosos seios, cintura marcada e ancas largas. Somando a estes atributos o fato de ser culta, dominar as Runas e alguma arte curativa, além de ser irmã do chefe viking, seria de esperar que fosse cobiçada por incontáveis pretendentes. E na realidade era! Só que, aos vinte anos, ainda não se casara e não tencionava fazê-lo. Geimy era uma guerreira! Desde pequena que pegava em armas ao lado dos homens e enfrentava qualquer inimigo com uma perícia devastadora. As suas proezas na guerra contra os Vândalos encontravam-se imortalizadas em poemas cantados pelos Skald, que me fascinavam.
Geimy também demonstrou grande interesse por mim e divertiu-me saber a razão. Contou-me que, quando era criança, uma vidente previra que o seu destino a levaria até um país de clima mais ameno, para os braços de um belo guerreiro, admirado e temido. O fato de eu ser estrangeira era, para ela, motivo de atração. Quis que eu lhe falasse da minha terra e ficou maravilhada com o que ouviu. Quando nos despedimos, declarou-me o seu afeto e prometeu que nunca me esqueceria. A sua gentileza foi sinceramente correspondida.
As minhas regras não apareceram no dia esperado, nem nos seguintes. As dores habituais chegaram e partiram, sem que existisse um vestígio do sangue que me libertaria da sombra da violação de Gunnulf. Perguntei-me muitas vezes, enquanto Throst descansava nos meus braços, se ele já se interrogara acerca do assunto. Não tinha a certeza se os homens estavam ao corrente destes assuntos íntimos das mulheres, mas ele deveria, pelo menos, questionar-se sobre a minha permanente disponibilidade para o amor.
De aldeia em aldeia, segurei muitas vezes nas mãos a solução para o meu mal. Porém, não me esquecia de que a vingança de Sigarr seria implacável e esmagadora. Nenhum alvo do meu afeto estaria a salvo, e o próprio destino do mundo ficaria comprometido. A ambição de enfrentar o Guardião da Lágrima da Lua era loucura. Logo, só me restava vergar a esta triste sina.
Os primeiros sinais de enjôo surgiram sem o menor aviso. Estávamos em campo aberto, e os guerreiros haviam feito uma pausa para descansar os cavalos e comerem o veado caçado nessa noite. Não muito longe, Throst conversava com Krum e outros dois chefes. Para não enjoar diante dos homens, afastei-me o mais rapidamente que pude e procurei abrigo por trás de uma árvore solitária. Aí, permiti que as contrações desesperadas do meu estômago libertassem o pouco que conseguira engolir. Enquanto me esforçava para recuperar o fôlego e a compostura, uma voz possante trespassou-me os ouvidos:
- Comeu algo que a indispôs, senhora?
Pisquei os olhos para afastar as lágrimas causadas pela aflição e encarei Steinarr, profundamente alarmada. Ele estendia-me um lenço de linho impecavelmente limpo, para que eu o usasse. Aceitei e agradeci, mantendo uma distância segura. Ao fim de tanto tempo, o guerreiro-urso ainda me intimidava. Como não respondi, ele achou-se no direito de continuar:
- O Throst foi muito imprudente ao permitir-lhe que nos acompanhasse! Esta não é uma viagem para uma dama tão jovem e delicada. Se adoecer, será imperdoável!
Ergui a cabeça dignamente e forcei-me a enfrentá-lo:
- Se eu adoecer, tomarei precauções para que não seja incomodado, senhor!
Os lábios de Steinarr abriram-se num grande sorriso, por debaixo da barba escura.
- Não percebeu a minha intenção, senhora! Sei perfeitamente de que fibra é feita. As suas façanhas e habilidades não me são estranhas. Há muito que ouço falar da menina da Grande Ilha que teve a coragem de enfrentar o Gunnulf e deu a volta à cabeça do Throst, conseguindo restituir-lhe a vida, quando os braços da morte já o haviam usurpado. Todos aqueles que convivem consigo a estimam... E mesmo os que a invejam pela sua perfeição, têm de admitir admiração por si. O que eu pretendia dizer era que devia estar recolhida dentro de uma casa quente, desfrutando do conforto que merece, e não a enfrentar a dureza de uma campanha.
Eu mal podia respirar. Steinarr escolhera cuidadosamente as palavras, mas eu entendia bem a extensão da sua admiração e a intensidade do olhar verde. E não estava a gostar!
- O meu lugar é ao lado do meu marido - ripostei com uma firmeza gélida. - Nenhum conforto deste mundo se compara ao consolo da sua companhia!
O sorriso de Steinarr manteve-se. A minha aspereza não parecia incomodá-lo.
- Nesse caso, senhora, apenas devo felicitar o Throst pela sua sorte...
- Catelyn...
A voz amada cobriu-me de alívio. Os braços do meu marido envolveram-me protetora e possessivamente. Abracei-o de imediato, tentando disfarçar o nervosismo.
- O que aconteceu querida? - O olhar azul escureceu ao fixar o amigo. - Steinarr estavas a importunar a minha mulher?
- De maneira nenhuma! - retorquiu o gigante viking, absolutamente controlado. - A tua esposa sentiu-se indisposta, e eu só tentei ajudá-la porque estava próximo e ouvi a sua agonia. Dizia-lhe que foi uma imprudência fazer esta viagem, tão longa e dura.
O coração do meu amor ribombou de encontro ao meu ouvido, e o seu corpo estremeceu, enquanto a raiva se diluía no sangue. Throst estava com ciúmes de Steinarr! Vê-lo descontrolar-se por minha causa, apesar de imprudente, não deixava de ser agradável.
- Hoje montarás comigo, Catelyn! - frisou. - Quero ter a certeza de que estás bem!
Déramos dois passos, quando o guerreiro-urso exclamou, num tom solene e sóbrio:
- Escolheste com sabedoria, Throst! A Catelyn é uma grande mulher!
Eu devia reconhecer que Steinarr era um homem de vontade firme e muita franqueza! O meu marido mirou-o por cima do ombro e limitou-se a responder:
- Eu sei!
Nesse dia, montei diante de Throst e mantive-me bem próximo, absorvendo cada batida do seu coração. A aldeia aguardava-nos ansiosamente, e fomos recebidos com entusiasmo. Com o passar do tempo, o meu enjôo desapareceu e consegui provar algumas das iguarias do banquete de recepção ao Líder Supremo, antes de me recolher na casa preparada especialmente para nós. Dispensei as escravas e procurei o conforto das mantas quentes. Lá fora, a festa atingira o auge, e a música misturava-se com a euforia do povo. Era correto que Throst ficasse até ao fim da celebração, mas eu pressentia que, desta vez, ele não o faria. E não me enganei!
Depois de se assegurar de que eu me encontrava bem, o meu marido deslizou para debaixo das cobertas. O seu ardor apaixonado igualava o desespero. Ele não se esquecera da investida de Steinarr e queria definir o seu território; demonstrar que eu lhe pertencia e destruir os seus próprios receios e inseguranças. Não parei de segredar-lhe o quanto o amava e desejava e, assim que descansamos, Throst apertou-me junto do peito, confessando emocionado:
- A idéia de te perder deixa-me louco! Preciso de ti, Pequena!
- Por que estás com ciúme, Throst? - perguntei sem rodeios.
- Não confias em mim?
Ele suspirou e aconchegou-me contra a sua pele nua e suada pela força da nossa paixão.
- É claro que confio em ti! Mas não consigo controlar-me! Angustia-me, para além da razão, pensar que a Primavera se aproxima e que tu irás partir...
- Tu prometeste! - Ergui-me sobre um braço, assustada pela sua hesitação. - Sabes que eu tenho de regressar à Grande Ilha!
Throst acariciou-me o rosto devagar, com a tristeza vincada no semblante.
- Sei... E cumprirei a minha palavra, Catelyn, se é esse o teu desejo... mesmo que isso signifique arrancar o meu coração do peito!
Mergulhei no seu pescoço e afundei-me no desespero. Como iria o nosso amor sobreviver a esta separação? Conseguiria eu convencer os meus irmãos de que a minha vida pertencia a um bárbaro nórdico? Poderia Edwin aceitar que o Viking que o enfrentara no último Verão era o único homem que eu desejava? Longe da obscuridade destes pensamentos, Throst continuou:
- Porém, quando o teu destino estiver cumprido, eu irei buscar-te onde quer que estejas e regressarás à nossa casa e aos meus braços. Se isso demorar anos, saberei suportá-los com valentia. Eu nasci para te amar, Catelyn! E mesmo que a morte reclame o meu corpo, em tempos que estão para vir, o meu espírito permanecerá ligado ao teu, pois, diante do Sol e da Lua, nós dois somos apenas um.
Os enjôos persistiram e agravaram-se, dissipando qualquer dúvida sobre a minha gravidez. Para evitar o vômito, eu recusava a comida e enfraquecia, dia após dia. Sentia-me exausta e cavalgava com grande esforço. Apesar de tudo, os meus lábios nunca se abriram para protestar. Foi um alívio ouvir Throst anunciar o regresso a casa.
É óbvio que eu poderia ter usado a magia ou apenas o poder da pedra azul para amenizar a indisposição. Porém, não o fiz. A minha mente atormentada decidira-se a castigar o corpo pela vida que crescia no meu ventre. Mesmo que esquecesse que estava grávida de um monstro e pensasse que a criança era inocente dos pecados dos pais, não podia ignorar que albergava em mim aquele que, pela mão do mestre da Arte Obscura, seria o maior inimigo da humanidade.
Deitar-me com o meu marido era cada vez mais difícil. E ele sentia o meu distanciamento e sofria em silêncio. Por fim, desistiu de procurar o prazer e contentou-se em dormir aninhado no meu peito. A sua rendição deixou-me ainda mais triste. Throst temia magoar-me e não percebia que o que me restava era a partilha desses momentos mágicos, em que a dor se desvanecia e tudo o que importava era o nosso amor.
Estávamos a dois dias de casa quando a minha vida sofreu outra reviravolta. Throst seguia na frente do grupo, com os principais chefes de clã, e eu ficara para trás, repetindo que agüentaria até ao fim. Porém, cada passo do cavalo era um tormento desmesurado. A minha garganta estava seca, e a cabeça, cheia de lágrimas, mas eu recusava-me a chorar. Ninguém poderia afirmar que o Líder Supremo escolhera uma mulher fraca!
A minha teimosia acabou por me perder. Uma dor extrema rasgou-me as entranhas, com a ferocidade de uma espada de fogo. Eu comecei a escorregar do cavalo, sem reunir alento para pedir ajuda. A minha mente vociferava, mas o corpo já não lhe obedecia. Agora que o desespero me forçava a apelar à magia, esta desamparava-me. No último instante, quando tudo parecia perdido, uma mão de ferro rodeou a minha cintura e descarregou-me energia no corpo. Caí nos braços de um homem que, apesar de aparentar ter a idade do mundo, possuía a solidez de um rochedo. Os seus olhos sem vida desceram sobre o meu rosto, enquanto Hakon detinha os companheiros com um apelo imperativo:
- Parem imediatamente e montem um abrigo. A senhora está indisposta.
Foi tudo o que ouvi, antes de a escuridão me devorar a consciência.
- Avó...
Ao meu apelo débil, respondeu uma voz que, apesar de não ser falada, era clara e terna:
”A Aranwen não pode ajudar-te, criança!”
Pisquei os olhos, tentando afugentar a névoa, enquanto estendia uma mão na esperança de encontrar o meu amado.
- Throst...
”O Throst está com os homens. Ele não queria deixar-te, mas era essencial que nós ficássemos sós!”
Finalmente, distingui a figura de Hakon. Estremeci receosa, ao constatar que estava nua, e puxei a manta até ao queixo. Não tive tempo de raciocinar, pois o feiticeiro já afirmava:
”A salvação dessa criança foi uma tarefa árdua! A queda do cavalo teria sido fatal... Não desejas a tua filha, Catelyn?”
Perdi o fôlego, trespassada pela confusão. Teria escutado mal? Uma filha? Mas, se Sigarr engendrara esta perversão, certamente assegurara-se de que Gunnulf conceberia um rapaz...
”A tristeza e a raiva cegaram-te, Catelyn? A verdade está tão longe do teu espírito que não consigas alcançá-la? Não prestaste atenção às palavras da tua avó?”
Os dedos do feiticeiro roçaram-me na testa, numa carícia quase imperceptível. Eu senti os raios do Sol a rasgarem o véu do denso nevoeiro que me cobria a percepção e, de imediato, as palavras de Aranwen começaram a fazer sentido. O meu coração acelerou até quase me saltar pela boca. Apertei a carne do meu ventre, cega pelas lágrimas, enquanto o improvável... o impensável, o impossível, me caía dos lábios num sopro de louca esperança:
- O chá que eu tomei... Evitou que eu concebesse do Gunnulf? ”O seu efeito terminou nessa mesma noite. No dia seguinte eras uma mulher fértil.”
- Então... - Eu temia proferir as palavras que exprimiam a minha grande ansiedade. - Na noite do meu casamento...
”Tu e o Throst geraram uma filha; a criança que tanto te esforças para odiar!”
Eu ouvia. Eu desejava... Mas não conseguia acreditar! A razão continuava a rebelar-se:
- Isso é impossível! Eu própria já preparei esse chá... Os ingredientes são diferentes!
”Conheces todos os segredos da magia, Catelyn?”
A sua questão deixou-me a tremer. Hakon não mentia! Agora que as brumas se haviam dissipado, eu enxergava com clareza todos os pormenores daquele dia tortuoso. Sigarr preparara o seu plano com cuidado, mas não contara com a intervenção dos meus protetores. Aranwen impedira que eu concebesse e Hakon evitara a morte do neto. Vendo que o assassínio de Throst falhara e que Gunnulf morrera, Sigarr apressara-se a desaparecer. Porém, permanecia convicto de que a semente do mal crescia no meu ventre. Isso manter-nos-ia seguras, a mim e à minha bebê, até que ela nascesse. Quando viesse reclamar o filho de Gunnulf, Sigarr encontraria a filha de Throst que, imaginava eu, não teria nenhuma serventia para os seus nefastos propósitos.
Sem pensar no que fazia, abracei o Guardião da Lágrima do Sol e desatei a chorar. O seu desconforto inicial passou-me despercebido. Quando recuperei a compostura, já Hakon me acariciava os cabelos com o carinho de um pai. Arfei, esforçando-me por ganhar fôlego. Esta felicidade não era só minha, e eu mal podia esperar para partilhá-la.
- Tenho de dizer ao Throst...
- Não, Catelyn! - Era a primeira vez que o feiticeiro falava, e a sua voz rebentou na minha cabeça, qual onda gigante a esmagar-se na areia fina da praia. - Não podes!
Fiquei presa aos seus olhos sem vida, ouvindo a sentença da minha condenação:
”O Throst deve continuar a pensar que essa criança é do Gunnulf, para tua proteção, pela segurança da vossa filha e pela preservação da sua própria vida!”
Isto não era justo! Eu estava grávida do meu marido! Eu esperava uma filha do amor e não do ódio! Jamais conseguiria enganar Throst; olhar nos seus olhos, sabendo o mal que lhe causava!
”Terás de encontrar essa força dentro de ti! Se lhe contares a verdade, arriscarás tudo aquilo por que lutaste. O Throst dificilmente te deixará partir, se souber que carregas a sua primogênita no ventre. E, se tu não regressares à Grande Ilha, condenarás o teu povo à morte. Por outro lado, se o convenceres de que não tens opção, ele abrirá mão do seu próprio destino e deixará o seu povo desamparado para te seguir. Mas tu sabes o que espera o guerreiro-lobo na Grande ilha! Poderás salvá-lo uma segunda vez? Infelizmente não, Catelyn! Além disso, esqueces-te de que és uma feiticeira? O Conselho Superior apenas tolerou a vossa união porque, de momento, nada pode fazer para contrariá-la. Se se insurgissem contra ti, quem combateria Gwendalin? Porém, no momento em que a missão para que te criaram estiver concluída, eles virão...»
Quedei-me, muda de horror. Por um instante, estivera num pátio ensolarado, desfrutando da brisa perfumada da felicidade. Todavia, enquanto o Guardião da Lágrima do Sol falava, as portas iam-se fechando na minha cara, até me deixar na mais completa escuridão. Agora, no vazio negro e gélido do desespero, só a minha mente reunia alento para se insurgir:
”Por que me ajudou? Por que me deixou sonhar, se sabia que não havia esperança?”
”Eu não disse que não havia esperança! Os destinos são tão incontáveis como os pensamentos e dependem das ações daqueles que influenciam as nossas vidas. Porém, apenas as vontades mais fortes prevalecem. Deverás combater as forças negativas; mas no momento certo e nunca antes, ou arriscar-te-ás a perder tudo. Por enquanto, os olhos do Bem e do Mal estão postos em ti. Espera que se distraiam. Tu encontraste a resposta uma vez... Eu acredito que voltarás a fazê-lo!”
”O senhor já viu o futuro...”
”Eu vejo muitos futuros! Estar um passo adiante do inimigo é uma vantagem e não uma garantia de sucesso. Não me julgues onipotente, criança! Sem a ajuda dos que defendem a causa do bem, há muito que eu teria perecido. Inimigos poderosos movem-se nas sombras. Contrariá-los tornou-se a minha missão de vida, depois que perdi tudo. E não baixarei as mãos enquanto tiver força para lutar... Nem permitirei que tu o faças!”
Deixei-me tombar na manta e escondi o rosto, incapaz de segurar a revolta:
”Eu estou a lutar desde o dia em que nasci! Sempre que obtenho uma vitória, o mundo torna a ruir em cima da minha cabeça. Começo a perguntar-me o porquê de tanto sofrimento. Por que tenho de obedecer a uma sina tão cruel, se tudo o que amo e desejo me é arrancado das mãos, mal tenho oportunidade de tocar-lhe? O senhor fala-me em força... Eu já não tenho força!”
”Tens sim, filha da Grande Ilha! Olha para mim!”
A firmeza de Hakon arrancou-me da consumição. Senti-me flutuar numa quietude amena, no instante em que as suas mãos envolveram as minhas.
”Já possuis maturidade suficiente para entenderes o que eu te vou revelar, Catelyn. Nunca te questionaste como seria a tua vida, se o Conselho Superior não tivesse decidido transformar uma humana numa feiticeira?”
Eu habituara-me a aceitar que perdera o controlo da minha vida no dia em que Fiona nascera. E o tempo ensinara-me a não tomar nada como garantido e a esperar sempre o pior. As minhas certezas já haviam sofrido mais trambolhões e cambalhotas do que um grão de areia na rebentação do mar. Porém, os últimos desenvolvimentos tinham-me convencido de que o quebra-cabeças estava resolvido, todas as personagens identificadas, as intenções declaradas, os caminhos revelados... Eu não podia estar mais enganada! A principal chave do enigma, aquela que verdadeiramente comandava a nossa sorte, nunca estivera muito longe, mas escapara-se por entre os meus dedos como o ar gelado da noite.
Elina avisara a filha acerca da terrível criatura e do seu imenso poder. Eu vira-a pela primeira vez na noite em que combatera os
Vândalos para salvar Bjorn e os companheiros; e fora o seu rosto que se refletira na Lua, durante a agonizante viagem de Throst, após ter enfrentado Edwin. Ingrior chamava-lhe ”A Senhora da Lua”, mas o seu verdadeiro nome era Aesa, Sacerdotisa da Arte Obscura, irmã mais velha de Sigarr, prometida de Hakon desde o nascimento... e sua inimiga mortal.
Foi o Guardião da Lágrima do Sol que lançou luz sobre a escuridão que me atormentava, desde o primeiro instante em que o meu destino fora revelado:
- O Sigarr contou-te a verdade acerca do teu passado, mas de forma a não comprometer os seus próprios interesses. Tudo começou quando nós éramos jovens e apaixonados pela vida; quando ele era muito diferente do feiticeiro que hoje conheces. A paixão pela Arte Obscura já morava no seu peito, mas encontrava-se sufocada pelo amor que devotava à tua avó. Porém, apesar de simpatizar com Sigarr, Aranwen não queria saber de namoricos. Estava empenhada em provar que a convivência entre Feiticeiros e Humanos era necessária e vantajosa para ambas as raças, e em fomentar a paz entre as tribos de homens. Eu era o seu mentor nessa nobre missão e o meu primo ressentia-se da nossa proximidade... E não era o único!
”A minha prima Aesa era uma jovem muito bela e inteligente, mas sem qualquer apego pelos assuntos dos Homens. O fato de o meu trabalho estar a adiar a nossa união enfurecia-a e a amizade pura e sincera que me unia a Aranwen provocava-lhe um ciúme irracional, alimentado pela língua venenosa da sua melhor amiga, a tua tia Gwendalin.
”A maldade de Gwendalin viu na ingenuidade de Aesa uma presa fácil para as suas intrigas. Não tardou a convencê-la de que o único objetivo de Aranwen era seduzir-me para se apoderar do meu poder, enquanto, ao mesmo tempo, a instigava contra a vontade do pai. Por que o Guardião da Lágrima da Lua elegera Sigarr para herdeiro, sendo ela a primogênita? Se era tão poderosa e capaz como o irmão, por que fora preterida só porque nascera mulher? Herdando a Lágrima da Lua, depois de me desposar, Aesa poderia reunir os dois cristais e teria o Conhecimento Divino ao alcance das suas mãos. O rumo dos acontecimentos era, para Gwendalin, prova suficiente de que a amiga estava a ser vítima de uma vil conspiração.
”Longe de imaginar as transformações que o espírito da minha noiva sofria, eu entregava-lhe o cristal do Sol para que treinasse a Arte e, com igual inocência, Sigarr colocava nas suas mãos o cristal da Lua.
Quando se encontrava com o irmão, Aesa não perdia uma oportunidade de lhe acicatar o ciúme. Porém, a sua insistência teve um resultado inesperado. A pressão de Sigarr enfureceu Aranwen e arrefeceu o afeto que partilhavam. Não muito depois, a tua avó conhecia o teu avô, voltava as costas ao cargo de Sacerdotisa Superior e escolhia uma existência humana.
”Eu ainda estava atordoado pelo arrebatamento da minha amiga, sempre tão sensata e racional, quando sofri outro abalo. Enlouquecido pela raiva, Sigarr assumiu-se como um servo da magia proibida e enfrentou a exclusão com um sorriso nos lábios.
”Estes reveses aproximaram-me de Aesa, e a nossa relação ganhou um novo fôlego. Contudo, o futuro que me estava destinado não era o que todos esperavam. A Pedra do Tempo revelou-me que também eu abandonaria os meus sonhos e ambições por amor a uma humana. Com Aranwen, eu continuaria a perseguir a paz, e a nossa determinação floresceria quando uma frota viking aportasse na Grande Ilha e os dois povos compreendessem quão proveitosa seria uma aliança, consolidando-a com o casamento dos herdeiros dos clãs dominantes: o meu neto... e a neta de Aranwen.
”Ao despertar para a realidade, mergulhei numa negação profunda. Tinha obrigações para com o meu povo e a minha família, objetivos para superar como Sacerdote Superior do Conselho Feiticeiro, a responsabilidade de Guardião da Lágrima do Sol, a palavra que dera a Aesa... Não iria deitar tudo a perder!
”De imediato, procurei o Mestre Supremo do Conselho Superior para que encontrássemos uma solução que contornasse a sorte profetizada. A sua opinião foi imperativa. Eu devia desposar Aesa sem demora, instalar-me na Ilha Sagrada e esquecer a existência da raça humana. Agradeci pela orientação, decidido a segui-la ao pormenor, sem sonhar que Aesa escutava nas sombras e conhecia o meu dilema.
”O casamento foi marcado, mas havia compromissos assumidos, aos quais eu não podia faltar. Dias depois, representei o Mestre Supremo num encontro de líderes... E ela foi a primeira pessoa que eu vi, ao entrar no salão. Chamava-se Ingá e era tão bela como a Pedra do Tempo me revelara. Viera acompanhar o pai, um ancião sábio e nobre, portador de uma doença que exigia atenção constante. Mais do que a sua beleza, eu fui surpreendido pelo seu cuidado, pela bondade dos seus gestos... e pela inteligência revelada em cada palavra, quando intervinha a pedido do pai. Os seus argumentos deixavam-me sem resposta, e o seu olhar cortava-me a respiração. Talvez a magia da
Montanha estivesse conosco, naquela manhã luminosa. A verdade é que descobri o significado da palavra paixão e a razão por que os Humanos matam e morrem por amor.
”Durante vários dias, eu só tive olhos e ouvidos para Ingá. No fim da Assembléia, ela veio ao meu encontro e declarou-me a sua profunda admiração... e como lamentava o fato de pertencermos a raças diferentes, pois sabia que os homens sagrados não podiam unir-se às mulheres simples. A sua ousadia deixou-me arrasado. A força que nos atraía era inegável, mas a minha vontade prevaleceu. Regressei a casa, ignorando a dor que me rasgava o peito, e tornei a procurar o Mestre Supremo para lhe confessar a minha fraqueza. Ficou decidido que eu não voltaria a pisar a Terra.
”Na véspera do meu casamento, chegou à Ilha Sagrada a notícia de um ataque do povo vândalo à aldeia de Ingá. Quando dei por mim, galopava em direção ao povoado destruído, assombrado pela imagem de Ingá violentada, mutilada, morta... Mas ela sobrevivera, apesar de muito ferida. Mal a abracei, percebi que não suportaria abandoná-la uma segunda vez. Reneguei ao meu poder e a uma vida de privilégios e glória, sem o menor arrependimento, pois sabia que estava a cumprir o meu destino e a iniciar um novo e apaixonante desafio.
”Aesa recusou-se a escutar-me. Enterrada nos destroços dos seus sonhos, com o coração em cinzas e a alma em fogo, estrondeou o seu ódio e prometeu-me guerra até à morte. Decidida a destruir o futuro profetizado, voltou-se para Gwendalin e alimentou-lhe o rancor contra a irmã. Se Gwendalin matasse Cinaed e a sobrinha, a linha de descendência ficaria arruinada e a paz que eu tanto desejava jamais se concretizaria.
”Felizmente, a tua mãe encontrava-se entregue aos cuidados dos druidas quando a desgraça se deu. Após a condenação de Gwendalin, Aesa decidiu que teria de ser ela a cuidar da própria vingança. Diante dos demais, comportava-se como uma viúva consumida pelo desgosto. Mas, longe da percepção dos Feiticeiros, entregava-se à aprendizagem da magia negra, e aliava-a aos ensinamentos que obtivera dos cristais do Sol e da Lua. A sua força crescia a cada dia e, quando sentiu que estava preparada, não hesitou em atacar-me.
”Eu vivia com a Ingá numa casa modesta da Aldeia de Grim e ganhava o pão com o ofício de curandeiro. O nosso amor fora abençoado com uma filha, e os meus dias eram ensolarados de felicidade. Apesar de tudo, a vida era dura e não me permitia pensar no que deixara para trás. Não voltara à Montanha, nem a falar com os Feiticeiros, por isso desconhecia o destino trágico de Aranwen e de Cinaed. E também não podia imaginar a ameaça que avançava contra o meu lar.
”O choque foi brutal quando, certa noite, ao regressar a casa, encontrei Ingá estendida no chão e Elina a chorar nos braços de Aesa. Prostrei-me aos seus pés e implorei que me matasse, mas que poupasse a bebê. Porém, Aesa não desejava a minha morte! Queria ver-me desgraçado, sofrendo até ao último suspiro. Partiu, deixando-me cego e condenado à solidão. A maldição que me lançara ditava a morte de qualquer ente de sangue humano que fixasse o meu olhar.
”Desejei acompanhar a minha amada no esquecimento, mas o choro de Elina forçou-me a reagir. Eu padeceria a dor de vê-la crescer longe de mim, odiando-me pela minha ausência, acreditando que o pai a abandonara, mas não a desampararia à mercê do inimigo. Ingá viveria na nossa filha e, depois dela, nos nossos netos, que lutariam pela paz e venceriam.
”Agarrado a essa convicção, vendei os olhos para que a morte não se espalhasse pela aldeia e levei Elina à Casa de Grim, suplicando ao senhor da terra que a educasse como se fosse sua filha. Depois, subi a Montanha Sagrada e enfrentei a Pedra do Tempo. Descobri que o conserto do futuro era a única forma de contrariar a maldição e que muitas das minhas habilidades ainda podiam ser recuperadas, com treino e dedicação. Não me restava tempo para lamentar a minha desventura.
”Consciente de que a sua devoção à Arte Obscura fora desmascarada e que tal a impedia de regressar para junto dos seus, Aesa aventurou-se até à Floresta Sombria, o coração do território vândalo, levando uma proposta para Mottull, o mais terrível inimigo do povo viking.
”Os dias passaram-se. As semanas seguiram-se. Os meses transformaram-se em anos...
”Sob a proteção e orientação de Aesa, a pequena comunidade de bárbaros tornou-se o horror das Terras do Norte. Os Vândalos conquistaram território e prosperaram. Aesa desfrutava finalmente da admiração que sempre almejara, e Bror, o filho que dera a Mottull, reinaria após a morte do pai. O convívio com os Humanos apaziguara o seu rancor pela raça, mas o ódio que me devotava não esmoreceu. Quando Gwendalin lhe pediu ajuda para extinguir a descendência de Aranwen, ela condescendeu com agrado. Mas primeiro urgia livrar Gwendalin da morte precoce e restituir-lhe a juventude. No entanto, esse sortilégio estava para além dos conhecimentos de Aesa. Só existia um mestre da Arte Obscura capaz de lhe valer.
”Sigarr concordou em treinar Gwendalin, exigindo as pedras mágicas de Aranwen em troca. Os seus planos eram ambiciosos. O cristal da Lua revelara-lhe que o rei do povo viking seria um guerreiro-urso e falara-lhe da profecia do filho do dragão. Enquanto Aesa e Gwendalin se distraíam com a obsessão de vingança, Sigarr preparava a sua própria invencibilidade.
”Tal como eu, o Conselho dos Seres Superiores tentou impedir que os conspiradores espalhassem a desordem pelo mundo, mas as nossas forças combinadas não foram suficientes para deter o progresso do mal. Informada acerca do acontecimento impulsionador da paz, Aesa certificou-se de que o encontro dos Vikings da Terra Antiga e dos Aliados da Grande Ilha se transformaria num pesadelo de sangue que os dividiria irremediavelmente.
”A distorção da sorte foi um sucesso. A causa da paz afundou-se com vencidos e vencedores, o que era seguro passou a ser incerto e o equilíbrio das forças do Universo cedeu ao caos. Se algum dia o meu neto e a neta de Aranwen se encontrassem, seria para falarem de ódio e não de amor. Vitoriosa no seu objetivo, Aesa despertou para outra questão. A descoberta da existência das pedras mágicas criadas pela tua avó abria-lhe novas e excitantes expectativas. Por que não lutar pelo que lhe fora roubado no berço? Ela conhecia bem os segredos dos dois cristais e, com o poder das pedras, nem eu, nem Sigarr, teríamos força para enfrentá-la, e a sabedoria do dragão da Montanha seria só sua.
”Sem desconfiar das intenções da irmã, Sigarr fortaleceu a sua posição. O senhor da Terra Antiga não se atrevia a fazer-se ao mar ou a dar um passo em terra, sem o seu conselho e salvaguarda, o futuro rei viking era moldado nas suas mãos e o líder dos guerreiros-lobo, a última esperança do Homem, vergava-se à sua vontade. Na Grande Ilha, Gwendalin preparava-se para apagar os vestígios daquela que se atrevera a desprezá-lo, e a interferência do Conselho Superior fora neutralizada. Sigarr confiava que a vitória estava tão próxima que não poderia escapar-lhe. Contudo, o nascimento da tua irmã revelou-lhe que se enganara. Já muito fora feito para contrariá-lo, e o destino retorcia-se entre duas forças.
”Aesa viu nesse instante a oportunidade de interferir. Percebendo a distração dos seus aliados e inimigos, lançou uma maldição contra os portadores das pedras mágicas e colocou todos os intervenientes a jogarem o seu jogo, sem o saberem. A traição de Gwendalin, motivada pela mesma cobiça que a movia, era mais do que previsível, mas não a preocupava. Deixá-la-ia afrontar Sigarr e provar a sua ira. Assim que as sete pedras estivessem reunidas, Aesa faria a sua aparição.
”Decidida a guardar o prêmio para si, Gwendalin atraiu Gunnulf à Enseada da Fortaleza, à revelia de Sigarr, prometendo-lhe a cabeça do teu pai. O seu plano era perfeito e tudo deveria ter acabado naquela manhã, com a morte de Garrick McGraw, de Oliver de Goldheart e da descendência de Aranwen. Porém, a Vontade Divina não se deixa manipular facilmente, e aqueles que o mal desejava que jamais se encontrassem ficaram frente a frente.
”Pouco mais posso dizer-te que tu já não saibas. Sigarr percebeu a ameaça que se aproximava e tentou suprimi-la. Porém, quando o enfrentaste e venceste, ele idealizou outro plano, muito mais ambicioso. Matar Throst para impedir a vossa união era imprescindível, e tanto Sigarr como Aesa o tentaram. Mas o teu coração guiou brilhantemente os teus passos! O vosso primeiro contacto com a Pedra do Tempo libertou-me da maldição. Porém, eu ainda tinha muito que fazer antes de poder regressar ao mundo dos Homens.
”Eu conhecia as intenções de Sigarr e tive de esperar pelo momento certo para agir. Agora, o meu primo regressará das sombras para descobrir que perdeu, e, quanto a Aesa, não lhe resta opção senão permanecer quieta, aguardando que o sortilégio que lançou sobre ti e os teus irmãos dê frutos. Vence Gwendalin e também derrotarás Aesa. A resolução desta história está suspensa nas tuas mãos, Catelyn...”
Quando Hakon terminou, eu compreendi que o meu verdadeiro destino fora deturpado para que o mal pudesse ser combatido. A batalha onde Thorgrim perecera fora provocada por Aesa, para que jamais existisse união entre os povos. Se os Vikings tivessem aportado na Grande Ilha, eu teria sido prometida a Throst e viajado até à Terra Antiga para me tornar sua esposa. O meu presente era apenas um remendo do que deveria ter sido. Mas não valia a pena olhar para trás! Ainda existiam muitos pontos para dar na sorte e, quando eu terminasse, a minha vida não seria uma manta de retalhos, mas uma peça sólida, que nem a mais afiada das lâminas conseguiria rasgar. Todavia, por enquanto, a minha intuição avisava-me de que os sobressaltos estavam longe de finar e que vencer as forças do mal não seria uma tarefa simples.
- Existe algo mais... - murmurei sem fôlego, enquanto o meu espírito absorvia a percepção dos mistérios ocultos, apenas ao alcance de ”O Que Tudo Vê”. - Algo que correu mal! Diga-me!
O feiticeiro suspirou e quedou-se num silêncio impenetrável. Só após uma longa pausa, permitiu que eu alcançasse o seu pensamento:
”A Gwendalin está muito forte. Tem usado os ensinamentos de Sigarr com sabedoria e o seu controlo da magia negra aumenta a cada dia. O seu último movimento foi hábil e imprevisível. Na noite em que a ferida que dividia os povos foi sarada, um grande mal foi igualmente gerado. Mal, que só poderá ser combatido com o amor que vive dentro de ti.”
Um vento gélido trespassou-me, e fui assaltada pela Visão de um homem alto e poderoso, empunhando uma espada. Tinha um enorme dragão tatuado no peito e dezenas de Runas espalhadas pelo corpo. Do topo do seu crânio rapado crescia uma trança loura com reflexos de fogo. Só reconheci o guerreiro atemorizador pelos olhos que lhe agraciavam os traços severos do rosto. Eram os olhos de Edwin!
- Não...
”Lamento... Lamento por todos nós!”
Fui suplantada pelo horror e pela gravidade da revelação. A Visão que eu tanto me esforçara por ignorar não fora um delírio! O ato repulsivo que eu presenciara na noite do meu casamento tivera conseqüências terríveis. Gwendalin estava grávida do meu irmão... do próprio sobrinho! Que abominação podia nascer da união de sangue de um homem tão poderoso com uma feiticeira maldita? A monstruosa criatura enganara Edwin, tal como enganava todos os homens, inclusive Oliver, a quem convencera de que não podia gerar filhos para evitar submeter-se à sua cama. Fizera-se passar por Melody no leito do meu irmão, enquanto a mente de Berchan permanecia na Terra Antiga, distraída com a minha felicidade. Eu só não percebia porquê! Por que não escolhera ela outro pai para o seu filho? Decerto existiam guerreiros tão valorosos como Edwin, que dariam tudo para desfrutar do seu corpo.
”O teu irmão é a imagem viva do vosso avô. E a paixão de Gwendalin é a única razão por que o Edwin ainda vive.”
Pálida como um cadáver, revi a derradeira visita de Edwin à Casa Grande. Na altura, eu era demasiado jovem e inocente para compreender... Mas Hakon tinha razão! Gwendalin derretera-se diante do meu irmão. E o desprezo de Edwin avigorara ainda mais a fome da predadora. Ao preparar a desgraça dos seus inimigos, ela certificara-se de que o sobrinho estaria longe. Quando o meu irmão viesse chorar os seus mortos, nada a impediria de deitar as mãos à sua alma destroçada. Mas a bruxa subestimara o amor que unia os McGraw, e a presença de Edwin na Enseada da Fortaleza desequilibrara a sorte. Agora, Gwendalin assegurara-se de que os seus desejos não lhe escapariam por entre os dedos.
Esmagada pela ansiedade, eu perguntei o que já se tornara óbvio: ”Existe uma razão para a minha filha ter sido gerada ao mesmo tempo que o filho de Gwendalin, não é verdade?”
”No instante da concepção, essa menina ficou ligada ao primo de uma forma que nenhum ser conseguirá explicar. Se tudo correr bem, nunca se encontrarão. Após a derrota de Gwendalin, eu entregarei o rapaz aos Seres Superiores, para que o eduquem longe dos humanos. Apesar de não ser um feiticeiro de sangue puro, a sua força será tão bestial como a sua habilidade, por isso ele não se sentirá deslocado na Ilha Sagrada. Devotará a vida ao estudo e será feliz.”
- Esse rapaz não é só filho da Gwendalin! - argumentei indignada. - O Edwin não permitirá que o afastem do seu primogênito...
- A Arte Obscura viverá no seu sangue, ansiosa por libertar-se - replicou ”O Que Tudo Vê” mansamente. - Sem a orientação adequada, ele será tão perigoso como a mãe.
Eu sustive a respiração ante esta nova ameaça, forçando-me a avançar para além do medo.
- O senhor disse-me o que irá acontecer se tudo correr bem... E se assim não for?
”Também a tua filha terá de receber uma orientação especial. Se o filho de Gwendalin não for controlado, só a prima poderá impedir o mal de tornar a espalhar-se pela Terra. O teu ventre carrega uma grande responsabilidade, Catelyn...”
A minha resposta foi instintiva e violenta; um rugido enraivecido:
- Eu não permitirei que brinquem com o destino da minha filha como brincaram com o meu! A minha menina será livre, nem que, para isso, eu tenha de escondê-la num convento cristão!
Não tive alento para negar o conforto das mãos de Hakon. O simples toque deixou-me em paz; a flutuar num espaço vazio e fresco, pincelado de estrelas brilhantes.
”Acredita que este não é o momento de te rebelares. O Bem e o Mal estão à distância de um pensamento. Prometo que não estarás sozinha, se o que tanto temes se concretizar.”
Fixei o olhar azul profundo de um jovem louro e robusto. Hakon abria-me a sua alma, e eu sentia a esperança crescer até me tirar o fôlego. Ele, que tudo perdera, não parara de lutar, não se entregara ao desespero, não fenecera na dor... Pois eu também não desistiria, nem da minha missão, nem da felicidade e do amor, enquanto o meu coração batesse!
- Irá ajudar-me? - perguntei ansiosa, inspirando uma brisa perfumada quando ele sorriu.
”Eu vi-te nascer, Catelyn! O meu afeto por ti não é menor do que o afeto que me une aos meus netos. Sempre segui os teus passos e continuarei a fazê-lo, mesmo que a distância nos separe.”
Parei de respirar quando ele introduziu a mão dentro da túnica e revelou uma bola de luz, cuja cintilação me cegou por um instante. Instintivamente, ergui a minha mão ao encontro do seu calor, e o brilho parou de magoar-me. A Lágrima do Sol tinha uma beleza diferente da Lágrima da Lua. Tornava-se impossível decidir qual dos cristais era mais belo, pois eram tão diferentes quanto a magia que brotava do seu interior e tão iguais que se completavam.
”Sei que estás pronta e desejosa de aprender. Não temas, criança! A chama do conhecimento será tão generosa contigo como sempre foi comigo. Amanhã, voltaremos a conversar. Agora dorme, recupera a força e partilha-a com a vida que cresce no teu ventre.”
Hakon tencionou afastar-se, mas eu detive-o, tocando timidamente no desenho que lhe rodeava o pulso. Não precisei de falar, pois ele adivinhou-me a intenção e disse gravemente:
”A marca do dragão é um compromisso de sangue para além da vida, e não um mero adorno ou sequer uma prova de amor. Não se pode negar esta responsabilidade quando se nasce com ela, mas tu não carregas o fardo desta obrigação, filha da Grande Ilha.”
Eu respondi-lhe com a mente, mas poderia ser a voz do meu coração a replicar:
”Para mim, não será um fardo. Será uma graça, Guardião!”
Hakon assumiu uma expressão estranha, mista de satisfação e apreensão. O meu coração quase parou quando ele aquiesceu:
”No momento certo...”
Throst entrou no abrigo pouco depois de o avô sair. Deslizou silenciosamente para o meu lado, receando despertar-me. Mas eu ainda não adormecera. Aninhei-me, deitei a cabeça no seu peito e recebi um beijo emocionado.
- O Hakon garantiu-me que ficarás bem... Assustaste-me tanto, Pequena!
Quedei-me, suspensa no olhar do pai da minha filha, pensando que, se a nossa felicidade não estivesse assombrada por tantas ameaças, eu seria a mais abençoada das mulheres. Sabia que não devia adiar o que tinha de ser feito, mas a dor estrangulava-me. A simples omissão parecia-me um agravo imperdoável. Enchi o peito de ar e confessei:
- Eu estou grávida, Throst.
Reparei que ele apertava os maxilares e sustinha a respiração.
- Eu sei, meu amor - respondeu, estreitando-me com cuidado.
- Já me tinha apercebido...
Comecei a chorar. Era-me impossível conter as emoções que se revolviam dentro de mim: alegria misturada com tristeza, euforia misturada com pesar. Throst embalou-me, murmurando docemente:
- Não estejas triste, querida! Verás que essa criança ainda nos trará muita felicidade! De manhã, eu anunciarei que estamos à espera de um filho e faremos uma grande festa...
Como eu ansiava por lhe declarar que esta criança era o seu contentamento e o meu, porque era o fruto do nosso amor! Respirei fundo e forcei-me a acalmar. Ceder ao desespero, quando ainda havia um raio de Sol que rasgava as nuvens, era um erro grosseiro. Eu tinha de ser paciente e astuta para mudar o destino de novo... e de novo; quantas vezes fossem necessárias, até derrotar os seres malditos!
Throst adormeceu, embalado pela melodia dos nossos corações. Eu fiquei acordada, de olhos escancarados à escuridão, deslizando os dedos pelas ondas indomáveis dos seus cabelos de ouro. Sem despertá-lo, repousei a sua mão sobre o meu ventre. Um calor doce entrou em mim e não contive um sorriso de terna satisfação. No futuro negro e incerto, quando o desespero me suplantasse, eu teria o amparo destas recordações para tornar a solidão suportável.
Quando entramos na Aldeia do Povo, a oscilação de energia atingiu-me como uma bofetada. Havia algo de estranho no ar... Temi que Arnorr fosse o responsável pela agitação, pois possuía apoiadores suficientes para causar distúrbios e uma frota que faria frente a qualquer opositor. Porém, a razão era outra. Há dois dias, o mar feroz atirara um barco de encontro aos rochedos gelados. Alguns náufragos haviam alcançado terra firme e tinham sido encontrados, quase moribundos, pelos guerreiros que Throst incumbira de patrulhar a costa. Entre eles, encontrava-se um homem sobre o qual ninguém se atrevera a assumir uma posição sem consultar o Líder Supremo. O prisioneiro recusara-se a falar e fizera-os passar um mau bocado. Agora, estava enclausurado numa casa fortemente guardada, separado dos companheiros de infortúnio.
- Espera aqui, Catelyn! - ordenou Throst enquanto o conduziam para a dita casa.
Eu desmontei e aproveitei para desentorpecer os músculos cansados. Não voltara a sentir dores desde a noite em que conversara com Hakon. A partir daí, fora bastante cuidadosa e nenhum dos guerreiros se importara com o andamento lento, após conhecerem a razão. A gravidez da mulher do Líder Supremo fora motivo para uma celebração que, eu tinha a certeza, se repetiria na aldeia. Também me forçara a comer. Com a ajuda de Krum, encontrara as ervas necessárias à preparação do chá que amenizava os sintomas do enjôo e depressa recuperara as forças. A minha filha tinha de desenvolver-se e tornar-se um bebê forte e saudável... Grande como o pai!
Throst regressou pálido e perturbado. Franzi a testa quando ele começou:
- O homem está muito maltratado, Catelyn... Feriu-se gravemente nas rochas, e a febre dominou-o. Mesmo assim, ofereceu tamanha resistência que os meus homens tiveram de amarrá-lo, para que não pusesse em perigo a sua própria vida ou a de um deles.
Devia tratar-se de alguém muito importante, senão os Vikings já lhe teriam encostado um punhal à garganta! Sofri um baque quando o meu marido continuou:
- Eu quero que venhas vê-lo... Quero que me digas se o reconheces.
Enquanto Throst falava, a imagem do prisioneiro chegou até mim como uma carícia de vento. Sem sequer pensar, desatei a correr e entrei desembestada na casa, já com o apelo a cair-me dos lábios:
- Stefan!
Ajoelhei-me junto da cama e envolvi o seu rosto inconsciente nas minhas mãos. Mesmo púrpura de febre, com os lábios inchados e rebentados e os cabelos num completo desalinho, era impossível não reconhecer o meu irmão tão amado, que tanta falta me fizera nas noites que eu passara acordada, fustigada pela angústia e pela saudade.
- Meu querido... - apelei, sem me aperceber de que continuava a falar a língua nórdica. - Stefan, por favor, desperta! Eu estou aqui!
O meu marido ordenou que desamarrassem o meu irmão e o transportassem com cuidado para a nossa casa. Calculei que os outros tivessem esboçado uma interrogação, porque Throst replicou irritado:
- Este homem é meu cunhado e será recebido na minha terra com as honras que merece!
Throst não exagerara quando dissera que Stefan estava maltratado. O corpo do meu irmão tinha as marcas dos cortes infligidos pelos rochedos, queimaduras provocadas pelo frio e um golpe profundo no sobrolho, talvez produto da pancada que o deixara inconsciente. Ingrior acalmara-lhe a febre, assim como a quatro dos seus companheiros, mas o quinto não sobrevivera. Segundo ela, Stefan lutara bravamente contra a doença, mas acabara por ceder nessa manhã.
Antes de sair ao encontro dos outros chefes, Throst fez-me prometer que não me cansaria demasiado. Ingrior e Krum cumpririam as minhas instruções. Percebi-o apreensivo e, apesar da euforia do reencontro, eu também partilhava da sua angústia. A presença de Stefan significava que os laços que nos uniam iriam começar a rasgar-se, até sermos forçados a dizer adeus.
Nessa noite, obtive a primeira vitória. Stefan abriu os seus grandes olhos, brilhantes de febre, e encarou-me como se visse através de mim.
- Cat...?
- Sim, querido! Eu estou aqui! - Era estranho o esforço que fazia para falar a minha própria língua. - Vais ficar bom. Procura a força dentro de ti e luta!
E ele lutou, com a entrega e a coragem de um homem que já sofrera muito e estava preparado para enfrentar qualquer provação. Aceitava os chás quentes e os xaropes amargos que eu lhe enfiava pela garganta abaixo, sem protestar. Muitas vezes, as suas mãos cravavam-se com força na cama, forçando o corpo a obedecer à disciplina da mente e a não estrebuchar de dor. Stefan nunca seria um druida, mas usava os seus próprios recursos com perícia.
- O teu irmão possui uma vontade muito forte - murmurou Ingrior, enquanto refrescava a testa e o peito de Stefan. - Sobreviver a um naufrágio nestas águas é uma façanha! Não há dúvidas de que o vosso sangue é o mesmo.
Tocou na pedra amarela, com tanto cuidado e atenção, que eu adivinhei os seus pensamentos.
- Continuas a sonhar com o Berchan?
O rosto de Ingrior pegou fogo. Olhou em redor para se certificar de que estávamos sozinhas, antes de confirmar, hesitante:
- Depois do Trygve, eu acreditei que não voltaria a interessar-me por nenhum homem. Quando os sonhos começaram, senti-me culpada... mas eles teimaram contra a minha vontade, até que, por fim, eu já os desejava como um conforto para a solidão. Nunca tive coragem de confessar-tos, porque, até ao dia do teu casamento, julguei que não passassem de fantasias, de invenções da minha mente baseadas nas tuas histórias. É tolice sonhar com um homem que não conheço... e que é impossível...
Ingrior estava atrapalhada, e o meu coração apertou-se quando vi os seus olhos úmidos. Ter-se-ia ela enamorado do meu irmão sem o conhecer? Berchan fora muito imprudente ao usá-la para assistir à cerimônia! A ligação que se estabelecera entre ambos quebrara as regras físicas, e, se Ingrior já devaneava, esse fenômeno marcara-a profundamente.
- Por que dizes que é impossível? - perguntei com cautela, sem pretender dar-lhe esperanças.
A minha cunhada esboçou um sorriso irônico e um gesto frustrado:
- Olha para mim, Catelyn! Olha para a minha vida! Na remota probabilidade de, um dia, conhecer o teu irmão, acreditas que ele se apaixonaria por mim?
Eu não queria iludi-la, mas a sua insegurança parecia-me ridícula.
- Tu és uma mulher linda, Ingrior! Não te menosprezes...
- E o teu irmão é um druida!
- Também tu serás, se seguires o caminho do estudo. O teu sangue é tão forte como o do Berchan. E o casamento não está proibido aos Druidas! - Por que raio dissera eu isto?
- Se o teu irmão decidir casar-se, escolherá uma jovem do vosso povo, que não tenha conhecido homem... E nunca uma mulher como eu! - Ela esbracejou, impaciente, e o seu rosto desfigurou-se de dor.
- Esta conversa é inútil! O meu coração morreu com o Trygve...
Entregar-lhe a última mensagem do marido, nestas circunstâncias, parecia-me até cruel. Contudo, eu não podia deixar de cumprir a vontade do meu primo, pois também eu desejava, com todas as minhas forças, que Ingrior reencontrasse a felicidade.
Ao escutar-me, o olhar da minha amiga denunciou o seu sobressalto. Sem uma palavra, levantou-se e refugiou-se no quarto. Eu contive o impulso de segui-la, perguntando-me se a minha tentativa de ajudá-la não acabara de empurrá-la para uma armadilha sentimental. Afinal, mesmo que, por um capricho do destino, Berchan e Ingrior se conhecessem, era bastante improvável que o meu irmão se enamorasse, não por causa do passado dela, mas porque as suas únicas paixões eram o estudo e a meditação. E eu temia que isso nunca mudasse.
Os meus olhos testemunhavam algo que eu jamais me atreveria a fantasiar - Throst e Stefan treinando amigavelmente a arte do combate, trocando opiniões e experiências, enquanto os companheiros do meu irmão se misturavam com a guarda do Líder Supremo.
Stefan falava fluentemente a língua viking e, à noite, em redor da mesa, mantinha todos suspensos com as histórias que contava sobre a Grande Ilha, o nosso povo e a nossa cultura. Bjorn era o ouvinte mais entusiasmado, com um rol de perguntas inesgotável. Curiosamente, Ingrior, sempre tão alegre e comunicativa, era quem menos participava. Surpreendia-a muitas vezes com os olhos molhados, sofrendo com a aproximação da minha partida.
Em privado, o meu irmão fez-me revelações esclarecedoras e dolorosas. Tal como eu desconfiava, Goldheart limitara-se a revistar a Aldeia dos Sábios e lançara-se no nosso encalço. Logo depois, Stefan e Berchan precipitaram-se ao encontro de Edwin, temendo pela minha vida. Entretanto, Edwin surpreendera os planos do Conde a tempo de salvar Tristan. Ao organizar o meu resgate, instruíra os irmãos para que permanecessem no barco durante o confronto, já que Berchan não sabia pegar numa arma e Stefan não era um guerreiro experiente. Tristan recebera a mesma ordem, devido à sua fraqueza, mas ninguém o conseguira segurar a bordo.
O rescaldo da batalha fora sangrento. O nosso pai vivera o suficiente para pedir perdão aos filhos, antes de fechar os olhos. No pouco tempo que se passara deste então, Edwin assumira o comando da família e dos Aliados, usando os seus conhecimentos para reunir uma força fabulosa de homens, armas e barcos, e celebrar alianças com outros povos, guerreiros e mercadores.
Agora, a Grande Ilha convivia pacificamente com a coroa. O representante que o rei enviara, após a morte de Oliver, nada tinha em comum com o maléfico Conde de Goldheart. Era um homem justo e sensato, que permitia o desenvolvimento da terra e o bem-estar do povo. Não hesitara em entregar a sua confiança aos McGraw, que logo provaram ser sobejamente merecedores. Só havia um sítio onde os meus irmãos não conseguiam penetrar: a sombria floresta que outrora nos pertencera.
A Floresta Sagrada fora o local que Myrna escolhera para fundar um reino de sombras e medo. Ao seu lado, encontrava-se um homem poderoso e temível, que enfrentava os McGraw com a ferocidade de um rancor demente: Lorde Cearnach McKie. Cada soldado que empunhava a espada pela feiticeira e o seu consorte possuía a força de dez guerreiros bem treinados. Falava-se de rituais de bruxaria e pactos com o mundo negro, a fim de criar um exército invencível que brevemente cobriria as ilhas de trevas e, de seguida, a Terra. Era urgente intervir e detê-los, mas, para isso, os meus irmãos precisavam de mim.
Não fiquei surpreendida quando Stefan me disse que a percepção de Berchan sempre lhe garantira que eu estava bem. Também, há muito que eles sabiam que a batalha da Enseada da Fortaleza fora provocada por Myrna, mas isso não aplacara o ressentimento de Edwin. A traição de Gunnulf, apesar de previsível, fortalecera as suas reservas e inflamara a sua ira.
Desde que descobrira o meu paradeiro, após o confronto com Throst, o nosso irmão mais velho preparava a sua frota de guerra para uma ofensiva à Terra Antiga. Berchan tentara convencê-lo de que essa não era a maneira correta de me resgatar, mas Edwin estava cada dia mais obstinado e nada o demovia de atacar assim que o mar se tornasse navegável. Por essa razão, Stefan lançara-se nesta aventura suicida, enfrentando as águas geladas com um barco e um punhado de homens, convicto de que o confronto com os Vikings devia ser evitado a todo o custo e um verdadeiro acordo de paz devia ser firmado.
Surpreendi-me ao saber que Stefan se casara e fora pai de um vigoroso rapaz. E ainda mais por conhecer a sua eleita. Pulga, a rapariga que ajudara Tristan a resgatar-me da fortaleza, declarara-se filha ilegítima de Lorde Cearnach. Quando McKie soubera da gravidez da jovem camponesa que tomara à força, mandara matá-la e à sua própria filha. A mãe de Pulga, ou melhor, de Enya, conseguira salvar a menina antes de ser barbaramente assassinada. Enya crescera na rua, lutando para sobreviver, conhecendo, odiando e esperando. Agora, erguia armas ao lado do marido, contra o tirano que era o seu próprio pai.
A sorte de Melody deixou-me boquiaberta e apreensiva. A minha amiga nunca se perdoara pela morte de Aled e não voltara a permitir que Edwin se aproximasse. O seu parto complicara-se e, no final, soubera que não poderia gerar mais filhos. Certa de que jamais daria a Edwin o herdeiro que ele tanto desejava, acatara a sua sorte como uma punição e entrara para um convento, ansiando por expiar a culpa. Enya era a única pessoa com autorização para visitá-la; o seu único contacto com o mundo e com o filho, que Edwin criava como se fosse seu.
Finalmente, Stefan contou-me que, na noite do meu casamento, tinham encontrado Edwin desmaiado e com o peito a sangrar. A pedra vermelha desaparecera do seu pescoço, o que os levara a desconfiar de um ataque de Myrna. Edwin alegara que não se lembrava de nada, mas os irmãos conheciam-no bem e sabiam que ele mentia. Stefan e Berchan suspeitavam de algo terrível, e eu decidi que os rodeios eram inúteis:
- Eu sei o que aconteceu nessa noite...
Só desconhecia que Gwendalin adquirira mais um troféu. Afinal, outra coisa não seria de esperar! Edwin sucumbira à maldição, não pela sua condição de guerreiro, como eu julgara de início, mas vítima do seu espírito apaixonado e do caráter impulsivo. O meu irmão devotara toda a sua vida a um amor que se revelara uma desventura. Dir-se-ia que estava escrito nas estrelas que Melody jamais lhe pertenceria.
Ao tomar conhecimento da odiosa verdade, Stefan chorou como uma criança. Eu quedei-me em silêncio, permitindo que ele se acalmasse, interrogando-me sobre quantos mais desgostos e sobressaltos nós ainda sofreríamos até ao fim da nossa conversa.
- Às vezes penso que a nossa avó nos condenou quando criou estas malditas pedras! - murmurou o meu irmão, enquanto recuperava o fôlego. - Se o Berchan não me tivesse forçado a jurar que a manteria no pescoço, eu já a teria atirado ao mar!
- A nossa avó criou as pedras mágicas movida pelo desejo de praticar o bem - repliquei. - Ela não é culpada pelo nosso infortúnio. É apenas uma vítima do mal, tal como nós! Tudo o que Aranwen ambicionava era a felicidade. E pagou essa aspiração com a vida! Nós herdamos a sua luta e não podemos renunciá-la. Devemo-lo a todos os que já morreram e aos que ainda irão tombar em nome da liberdade. Nós não vamos desistir, Stefan!
O meu irmão envolveu-me o rosto com as suas mãos e mirou-me longamente, antes de afirmar:
- Não, querida irmãzinha, nós não vamos desistir!
- Além disso - forcei-me a prosseguir, apesar do nó que me apertava a garganta. - Nós ainda estamos em vantagem. A bruxa só tem três pedras...
- Quatro. A bruxa tem quatro pedras, Cat! Deixei cair o queixo, abanando a cabeça em negação.
- Mas como...?
- Para entrar no convento, a Melody teve de fazer uma prova de devoção, ou o que raio lhe queiras chamar! O padre exigiu-lhe a pedra do Aled, e ela entregou-a sem nos consultar. - Stefan esforçou-se por apaziguar o meu horror. - A Melody não podia saber o mal que daí adviria! Em que lugar uma pedra mágica estaria mais bem protegida da cobiça de uma feiticeira, do que num convento? Mas o padre não passava de um impostor e, como tantos outros que temos combatido, encontrava-se sob o domínio de Myrna. O Edwin ficou possesso! Se o seu coração ainda lutava pela Melody, deixou de fazê-lo nesse instante. Pouco resta do Edwin que conheceste, Cat! Acho que só um milagre o fará voltar a ser quem era. E agora eu compreendo a sua agonia! Como proceder em relação a essa criança, será um dilema digno dos grandes sábios. Contudo, eu não aceitarei que a matem e estou certo de que todos concordarão comigo. - Fez uma pausa e obteve de imediato o meu assentimento.
- Esse será o primeiro filho do Edwin, pelo qual o nosso irmão tanto anseia, e nós temos obrigação de salvá-lo do seu destino e da própria mãe.
Todavia, para salvar o filho de Edwin e os nossos filhos, impunha-se contrariar a maldição de Aesa. Partilhar essa monstruosidade com Stefan era quebrar as regras, mas eu já não podia carregar tamanho fardo sozinha. Além disso, se eu morresse ao enfrentar Gwendalin, Stefan seria a última esperança dos McGraw e tinha de conhecer os planos do inimigo para se defender. Ele escutou de sobrolho franzido. Concordou com as interpretações que eu fizera e também lhe pareceu claro o destino reservado a Berchan:
- O poder do Berchan reside na sua mente. Creio que a maldição fala na privação da memória ou da razão... Temo que o nosso irmão esteja condenado a enlouquecer.
Quanto à sua própria sorte, Stefan não tinha dúvidas. Não se considerava um guerreiro, e tudo o que se relacionava com hostilidade e morte revirava-lhe as entranhas, devassava-lhe a essência...
- Eu morrerei a combater, Cat - murmurou sombriamente.
- Não! - objetei com convicção. - Tu não morrerás! Eu não acredito que a maldição tenha força para dobrar a vontade do Berchan e, mesmo que o faça, não conseguirá dobrar a minha! Eu não falharei, Stefan! Eu não falharei!
Caímos nos braços um do outro e estreitamo-nos com força. Pensei em como Stefan era especial. Eu amava todos os meus irmãos, mas Edwin e Berchan sempre haviam mantido uma parte do seu espírito fora do meu alcance. Stefan não! Nós éramos como almas gêmeas, sem segredos. Eu sabia que podia dar-lhe tudo, que receberia igual.
Depois de um longo e emotivo silêncio, ele introduziu o assunto que eu me esforçava por evitar:
- O que irás fazer em relação à tua nova vida, Cat? É evidente que não foste forçada a casar-te com o Throst. O grande amor que vos une está declarado em cada olhar, em cada gesto... Confesso que fiquei assustado quando soube que esperavas um filho, mas depois de conviver convosco, vi que não poderia ser diferente. Sei que o Berchan também ficará feliz por ti, mas o Edwin não será tão compreensivo. Para ele, o Throst será sempre um vassalo do Gunnulf, um assassino do nosso povo, um traidor da sua palavra, o raptor e o violador da irmã que ele tanto ama. Ser-lhe-á difícil... talvez impossível, entender o que vos aconteceu e acreditar no empenho do Throst pela paz.
Encolhi os ombros e fixei o vazio, enquanto as lágrimas me rolavam pelo rosto.
- Não tens de te preocupar, Stefan - ripostei dolorosamente.
- Mesmo que consigamos vencer a Myrna, eu não voltarei para o Throst.
Confuso, o meu irmão hesitou antes de continuar
- Não estou a perceber! É evidente que o amas... E estás à espera do seu filho! Pensei que pretendias lutar com todas as tuas forças pela vossa felicidade, Cat!
Engoli em seco, buscando as palavras certas para explicar a minha agonia:
- Eu serei feliz se souber que o Throst está bem. É verdade que o amo, Stefan! E, por isso, devo afastar-me. Se o Throst e o Edwin se enfrentarem, um deles morrerá... O próprio Hakon avisou-me! Se eu não me mantiver firme nesta resolução, a desgraça será inevitável. Só me resta esperar que, um dia, se descubra uma maneira de contrariarmos esta adversidade.
De novo, Stefan pensou longamente antes de exprimir a sua opinião:
- O Throst não permitirá que tu te afastes. Sei que só concorda com a tua partida porque acredita que haverá um regresso. Se não voltares, ele irá atrás de ti! Não estamos só a falar do amor que vos une, mas também do seu primogênito, que tu carregas no ventre
- O Throst pensa que o bebê não é dele... - As palavras caíram-me dos lábios, tão amargas como as lágrimas. - Ele julga que eu estou grávida do Gunnulf...
A história era tão complexa como odiosa, mas o meu irmão assimilou-a com rapidez. Quando terminei, ele estava mais pálido do que a Lua e abanava a cabeça reprovadoramente.
- Isso não é justo, Cat! Não é justo para ti, nem para o Throst... Stefan foi forçado a render-se perante a conspiração de Sigarr.
Abraçou-me com força e beijou-me a testa, murmurando:
- Sinto muito, irmãzinha! Comecei por odiar o fato de estares casada com um Viking, mas, depois de conhecê-lo, tudo mudou. Parte-se-me o coração ao pensar que a vossa separação é inevitável... Mas tu tens razão! Se o Throst pisar a Grande Ilha, o Edwin persegui-lo-á sem piedade; se tu teimares em regressar aqui, o nosso irmão atacará esta terra e qualquer esforço para conquistar a paz será inútil.
- Eu ainda não desisti, Stefan - confessei. - Se conseguir convencer o Edwin da nobreza do Throst e da força do nosso amor, talvez ele se compadeça. Tenho de tentar!
- E eu espero sinceramente que venças esta dificuldade, irmãzinha, e tudo farei para te ajudar! Mas temo que o maior dos empenhos seja em vão. O Edwin está irredutível, cego pelo ódio, sequioso de sangue, esfomeado por vingança... Fechou o coração e esqueceu o brilho do Sol. Alimenta-se da própria infelicidade e teima que aqueles que o rodeiam devem partilhar da mesma miséria. Quando parti, a nossa relação estava insustentável. Agora, que lhe desobedeci, nem posso imaginar como irá receber-me.
Todos os chefes de clã haviam regressado às suas propriedades, à exceção de Steinarr. O guerreiro-urso e o guerreiro-lobo uniam esforços para combater uma nova ameaça: Arnorr.
O irmão de Gunnulf concentrava toda a sua energia na preparação de uma ofensiva. Para além dos acordos já estabelecidos com os mercenários do Norte, chegavam até nós rumores de alianças com os Vândalos, que comprovavam o seu desvario. Na posse de informações fornecidas por Arnorr, relativamente à força e localização dos guerreiros do Líder Supremo, os Vândalos tornar-se-iam adversários terríveis, capazes de comprometer tudo aquilo por que Throst lutava. As notícias agravavam-se com a suspeita da presença de uma poderosa feiticeira junto de Arnorr, cuja identidade não desafiava a imaginação. Aesa saíra do seu covil e preparava-se para atacar o herdeiro do Guardião da Lágrima do Sol.
Hakon mantinha-se junto das tropas, elevando-lhes a confiança. O seu apoio seria uma sólida vantagem neste confronto anunciado. Agora que o conhecia, eu não duvidava de que ele lutaria até ao último sopro de vida para defender os seus.
Outra novidade que abalou o povoado foi a união de Halldora a Bror, rei dos Vândalos. O meu coração apertou-se ao verificar o quanto esta revelação afetara Throst. Na força da raiva, cheguei a ponderar se ele ainda acalentaria a esperança de desposar a prima, após a minha partida. Mais tarde, confirmei que tais suspeitas eram infundadas, até maldosas e injustas, quando o remorso me forçou a confessar-lhe o mal que pensara. Throst não se zangou e até se riu do meu amuo ciumento. Enlaçou-me na força da sua paixão, sussurrando ao meu ouvido:
- Não tens de preocupar-te com a Halldora, nem com nenhuma outra mulher, meu amor.
Os meus poderes continuavam a desenvolver-se a bom ritmo, graças à Lágrima do Sol e à orientação de Hakon. O meu mestre exigia muito, mas a minha determinação tudo vencia. A destruição de Gwendalin assumia contornos de obsessão. Eu não sentiria piedade nem remorso no momento em que extinguisse a sua amaldiçoada vida. E depois seria a vez de Sigarr... e de Aesa! Nenhum dos responsáveis pela minha desgraça descansaria impune!
Quando Stefan abordou a necessidade de regressarmos à Grande Ilha, eu gelei ao ver o olhar de Throst escurecer. Steinarr ergueu as sobrancelhas, sem esconder a sua surpresa. Era a primeira vez que ele ouvia falar nesse assunto.
Nessa noite, enquanto Stefan combinava com Throst os pormenores da viagem, eu saí para respirar ar fresco. Encostei-me à cerca e perdi o olhar na floresta. Esta terra bravia e misteriosa mudara a minha vida, mas eu também a transformara num lugar melhor. Agora, havia uma esperança para o povo viking... As lágrimas da Terra Antiga misturavam-se com as minhas, enquanto ambas agonizávamos de saudade, mesmo antes da despedida.
- Está a recordar coisas tristes, senhora?
De imediato, comecei a tremer como uma tola. Por que raio este homem me intimidava? Limpei o rosto com a palma da mão, ignorando o lenço que Steinarr me estendia, e forcei-me a responder:
- Pelo contrário, senhor! Mas não irei aborrecê-lo com os meus pensamentos...
- Catelyn... - Ouvir o meu nome nos seus lábios deixou-me imóvel de pavor. - Você jamais me aborrecerá! Sabe disso, não sabe?
Enfrentei-o, determinada a deixar claro que tais familiaridades me desagradavam:
- E o senhor sabe que não é correto falar-me nesses termos! Eu sou uma mulher casada!
- Então, por que se vai embora? Não é por falta de amor!
- O guerreiro-urso reduziu perigosamente a distância que nos separava. - O Throst adora-a... e a sua retribuição é evidente! - Inclinou a cabeça para mergulhar no meu olhar. - Eu não sou um homem de meias-palavras, Catelyn! Encantei-me por si no primeiro instante em que a vi. Mas as minhas esperanças não duraram um bater de coração, pois soube de imediato que era tarde. Quando lhe jurei lealdade, prometi a mim próprio que nunca irei deixá-la desamparada. Não me interprete mal, senhora! Não pretendo ofendê-la! Sou um homem rude, sem jeito para a poesia. Quero apenas que entenda o quanto eu a admiro. O Throst é um homem de sorte a quem amo como a um irmão. A seu tempo, aprenderei também a amá-la como a uma irmã. Já percebi que a incomodo, mas nada tem a recear. Jamais tentarei algo que possa magoá-la ou ofender o Throst.
Eu estava petrificada, sem saber como reagir. Queria sentir-me afrontada, mas não conseguia. Steinarr era, como ele próprio admitia, um homem direto e sincero, que dizia o que pensava e assumia a sua posição perante todos. Isso era digno de admiração! O guerreiro-urso era também um homem muito atraente, detentor de uma beleza pura e selvagem. Se um pintor pretendesse um modelo para representar a raça viking, ele seria o escolhido.
- Não respondeu à minha pergunta, Catelyn, por isso atrevo-me a repeti-la - continuou, ignorando o peso do meu silêncio. - Por que parte?
Rangi os dentes. Esta conversa já fora longe de mais!
- Porque devo, senhor!
- Deve? Pensei que o seu dever era manter-se ao lado do seu marido e do seu povo!
Estremeci, desconfortável, e não pude segurar a língua:
- O meu amor por Throst é inquestionável, e o meu afeto por esta terra e o seu povo, algo de novo, mas muito forte! Porém, como deve saber, todos nascemos com um destino traçado. E o meu impõe-me que eu regresse à Grande Ilha para cumprir uma missão.
Por que raio lhe estava a dar explicações? Com o coração a martelar o peito, tentei mover os pés... Era inútil! Cativa do olhar cristalino, fui forçada a suportar a sua insistência:
- Mas voltará à Terra Antiga, certamente? Ou irá para o novo arquipélago onde o Throst pretende estabelecer-se?
Onde estava o meu marido que não vinha salvar-me? Por que é que eu não conseguia voltar as costas ao chefe viking e terminar com este tormento?
- Eu não posso responder-lhe - retorqui impaciente. - Não sei o que o destino me reserva.
Steinarr hesitou antes de continuar:
- Quando esteve na minha casa, a Catelyn teve oportunidade de conhecer Ivarr, o meu filho. O que pensou dele?
Não evitei um sorriso, satisfeita com a súbita mudança de assunto.
- Encantou-me! O senhor tem razões para ser um pai muito orgulhoso!
- E sou! - O guerreiro-urso tornou a hesitar, o que nele era estranho. - O que eu lhe quero dizer... é que o meu filho ainda não tem uma prometida. Seria uma honra para mim unir a minha família à vossa, se vós tiverdes uma filha.
Nos muitos dias passados com Steinarr, eu aprendera que ele não era um homem insensato ou precipitado. Se fazia esta proposta, era porque ponderara bastante. E eu compreendia as suas razões. Steinarr era o chefe da maior e mais próspera propriedade das Terras do Norte, e Throst era o Líder Supremo. Um deles seria rei. A união das duas famílias evitaria conflitos futuros e colocaria Ivarr na liderança do povo viking, caso Throst decidisse continuar como Líder Supremo e não gerasse um filho varão. Só a custo consegui perguntar:
- Não deveria discutir esse assunto com o meu marido, senhor?
- Já o fiz - volveu ele serenamente. - Mas o Throst decidiu confiar a decisão à sua esposa. O porquê só ficou esclarecido quando eu tomei conhecimento da sua iminente partida, senhora.
Eu sabia que a situação era delicada e que uma palavra mal escolhida podia provocar um grande transtorno. Respirei fundo, respondendo ponderadamente:
- Sinto ter de declinar a sua oferta, por mais honrosa e tentadora que seja. Como já lhe disse, eu vou regressar à minha terra e ignoro se voltarei à Terra Antiga.
Pensei que o rosto de Steinarr se fosse fechar, esboçar indignação ou ultraje, mas, ao invés disso, abriu-se num amplo sorriso.
- Você voltará, Catelyn! Eu estou tão seguro disso como da noite que nos envolve e do ar que respiramos. O primogênito do Throst cresce no seu ventre, e o seu coração está cheio de amor. Qualquer que seja a tarefa que a espera, o tempo irá reconduzi-la aos braços do seu marido.
A segurança de Steinarr abalava-me com a intensidade de uma tormenta. Desprovida de argumentos para contradizer a sua convicção, eu objetei instintivamente:
- O meu pai combinou o meu casamento com um homem que eu abominava. Não irei impor igual sofrimento aos meus filhos. Se estiver destinado que os nossos filhos se casem, senhor, então que o façam por amor e não por imposição dos pais.
Quando terminei, estava sem voz. Steinarr já não sorria, mas os seus olhos cintilavam como estrelas. Depois de um breve silêncio, confessou:
- Apesar de o meu casamento ter sido combinado, eu casei por amor, Catelyn! Quando olho para si, vejo a minha mulher... com tanta clareza que sinto vontade de chorar. A sua recusa faz todo o sentido, e eu respeito-a... Mas não desistirei! Quando o momento chegar, estou convicto de que os nossos filhos saberão expressar a nossa vontade, sem que nós tenhamos de manifestá-la. Até lá... - Estendeu a mão e segurou a minha. - Desejo-lhe toda a felicidade, do fundo do meu coração. Nunca me cansarei de repetir o quanto o Throst é afortunado.
Antes que eu pudesse recuar, Steinarr encostou os lábios aos meus dedos, arrepiando-me com o seu ardor. Eu estava prestes a puxar pela minha mão quando ele a soltou voluntariamente.
- É melhor entrar em casa, Catelyn! - A sua voz tremia, denunciando uma forte comoção. - Tem de pensar na saúde do seu filho. Lamento tê-la detido por tanto tempo. Até amanhã...
Embrenhou-se na noite, sem me dar tempo para reagir. Só depois de a figura imponente se confundir com as sombras, é que os meus pés se dignaram a acatar as ordens da mente.
- O Steinarr procurou-me para falar acerca dos nossos filhos... Estávamos na cama e a noite já ia avançada. Busquei o olhar de Throst para estudar a sua reação. As sobrancelhas louras ergueram-se interrogativamente.
- E qual foi a tua resposta? Suspirei antes de responder:
- Os casamentos combinados são um grande risco! Não resultou comigo, nem contigo, nem com a Ingrior, nem com o meu irmão Aled... Posso dar-te muitos exemplos! Eu prefiro que os meus filhos escolham os seus companheiros.
- Os nossos filhos - corrigiu Throst com um beijo. - Teremos tantos que será impossível contá-los pelos dedos!
Não contive o riso. E depois as lágrimas. Percebendo o meu tormento, ele estreitou-me no seu carinho, replicando:
- Não penses na nossa separação, querida! Vamos desfrutar de cada instante...
Falar era fácil! Aninhei-me no seu calor, reunindo coragem para desfazer a dúvida:
- Essa união seria do teu agrado, não é verdade? O Steinarr é um homem poderoso... Tem muita influência junto do povo...
Throst moveu-se o suficiente para me murmurar ao ouvido:
- O que te vou dizer ainda é segredo. Sabes que eu não desejo ser rei... mas como Líder Supremo devo nomear um sucessor que reúna o consenso do povo; um homem de poder, mas inteligente e íntegro, admirado por todos, dentro e fora do seu clã; um homem preparado para a guerra, mas que não viva obcecado por ela. A Pedra do Tempo falou-me de um guerreiro-urso, mas, mesmo que não o tivesse feito, o Steinarr seria sempre a minha escolha. - Fez uma pausa para recuperar o fôlego. - Não me foi fácil convencê-lo! Ao contrário do que possas pensar, ele não é ambicioso e aguerrido, como o Gunnulf. É um homem ponderado e justo, que respeita os valores mais sagrados e encontra a felicidade junto dos seus. Mas, tal como nós, não pode fugir ao seu destino. Quando o momento chegar, os outros chefes irão segui-lo com igual ou maior dedicação do que aquela que me devotam. Eu serei o seu Primeiro Homem, o equivalente a um nobre da tua terra, e irei administrar o novo arquipélago, para onde viajarei em breve. O Steinarr ficará aqui e será rei do povo viking.
Senti-me aliviada e satisfeita. Sem a responsabilidade esmagadora que pesava sobre os ombros de um rei, Throst poderia dedicar-se à terra e à família e fazer as coisas simples que tanto prazer lhe davam. Agora, que eu conhecia Steinarr, também concordava que ele era a escolha certa. Como sempre, Throst decidira com sabedoria. E a vontade da Pedra do Tempo cumprir-se-ia, mais uma vez.
Continuamos a falar, e a conversa levou-nos à Ilha dos Sonhos. Permiti-me fantasiar com o meu marido, até que a inocência da imaginação se dissolveu no nosso ardor. O corpo másculo há muito que recuperara e ansiava por agradar-me novamente. Os seus dedos provocavam-me cócegas, e ele teve de abafar o meu riso, antes que eu acordasse toda a casa. Enquanto me torcia, Throst aproveitou para me puxar para cima do seu corpo. A minha barriga já se notava, e ele temia magoar-me com o seu peso. Eu gostava de amá-lo assim, controlando o nosso prazer, poderosa e imensamente feliz. Enquanto o meu sangue se transformava num rio de fogo, o meu espírito clamava que eu jamais poderia desistir deste amor. Sem Throst nada fazia sentido.
O dia chegou finalmente, sombrio mas livre de tormenta. A minha viagem até ao porto foi feita por entre aldeões chorosos e saudosos, que me desejavam o melhor e suplicavam que eu regressasse depressa. Bjorn beijou-me à saída de casa e partiu a galope no seu cavalo, para que ninguém o visse fraquejar. A minha tia não apareceu para me desejar boa sorte, provando que jamais me perdoaria pela intromissão que destroçara a perfeição do seu mundo.
O Knarr estava pronto para partir. Stefan não escondia o seu entusiasmo por viajar num barco viking. Os amigos mais chegados iam acompanhar-nos, e Steinarr ficava encarregue da defesa da aldeia, pois os inimigos andavam agitados e todo o cuidado era pouco. Despedir-me do líder da Terra dos Carvalhos foi tão estranho como os nossos restantes encontros. Ele beijou-me a mão e exclamou, com um brilho intenso no seu olhar incrivelmente luminoso:
- Até breve, Catelyn! Sei que a ausência não será longa. Tornei a abraçar Ingrior, sentindo o meu coração a sangrar. Já tudo fora dito, mas fiz questão de repetir:
- Não importa o que aconteça, tu serás sempre a minha irmã! Amo-te muito!
- Eu também te amo muito, Catelyn! - soluçou ela por entre lágrimas. - Tem cuidado!
Colocou um colar no meu pescoço, e eu emocionei-me ao verificar que representava o símbolo da sua linhagem: o magnífico dragão com os olhos postos no Sol.
- Devemos ir, Pequena! - avisou Throst. - Temos de aproveitar a maré.
Apartei-me de Ingrior e permiti que o meu marido me conduzisse. Ao nosso lado, Steinarr exclamou, num tom grave e baixo que poucos, além de nós, puderam escutar:
- Se ela fosse minha, Throst, jamais a deixaria partir!
Throst parou, e o seu corpo ficou tenso. Fixou o amigo, retrucando com frieza:
- Mas ela não é tua! A Catelyn é dona da sua vontade e sempre assim será!
- Estás a correr um grande risco! - insistiu Steinarr sem se demover.
A mão do meu marido incentivou-me a avançar. Eu não olhei para trás. Se deixar esta terra e a sua gente me era tão insuportável, o que sentiria quando chegasse o momento de me despedir de Throst?
Esta memória assombrou-me, noite após noite, estação após estação: O rosto encharcado de Krum ao despedir-se de nós... As expressões pesarosas de Sven, Durin, Sigmund, Ormarr e muitos outros; homens fortes, de personalidade dura, com os olhos inundados pela tristeza da separação. E Throst...
Imaginei, até ao último instante, como seria o adeus final. Receava e ansiava, ao mesmo tempo, que Throst me apertasse nos seus braços e gritasse que eu lhe pertencia e que jamais permitiria que o abandonasse. O que faria eu se isso acontecesse? Não sabia! Estava a uma batida de coração de ser eu própria a quebrar todos os juramentos, todas as regras, e suplicar-lhe que me levasse para a sua casa, onde desejava que a nossa filha nascesse e crescesse. Mas a presença serena de Hakon ajudou-me a manter o equilíbrio.
E o meu marido tornou a surpreender-me. Começou por entregar-me o seu punhal e forçou-me a prometer que o manteria sempre comigo. Depois, acariciou-me o ventre com um cuidado que quase me fez gritar, deslizou o meu amuleto por entre os seus dedos e, por fim, apertou-me as faces nas suas mãos, mergulhando no meu olhar. Com o azul do céu da minha terra sobre a cabeça, vi a dor trespassá-lo. As minhas lágrimas caíram em cascata, cegando-me, mas teimei em guardar na mente cada pormenor do rosto amado... diante de mim pela última vez.
Throst beijou-me a testa, e eu esperei pelo calor dos seus lábios nos meus. O desespero sufocou-me quando ele se afastou. As suas mãos quebraram o último elo, e o meu coração desfez-se. Parado à minha frente, como se aguardasse em agonia que eu mudasse de idéias, o meu marido murmurou, estrangulado pela emoção:
- Amo-te, Pequena... Hoje... Sempre...
Stefan entrelaçou os seus dedos nos meus, e eu senti-os insuportavelmente quentes, contrastando com o frio que me enregelava.
- Eu cuidarei dela, Throst.
A voz do meu irmão pareceu-me muito distante. Throst acenou com a cabeça e recuou. Não me deu o ansiado beijo. Não derramou uma lágrima. Não voltou a falar. Permaneceu imóvel e apenas os seus olhos denunciaram a infinita tristeza que o consumia. Percebi que o azul do céu da minha terra jamais igualaria a beleza do seu olhar. Compreendi que trocaria de bom grado todo o meu poder pelo aconchego dos seus braços. Mas era tarde de mais...
Eu já ouvia o galope estrondoso dos cavalos que se aproximavam, por trás de mim. Edwin e Berchan vinham ao meu encontro. Ia finalmente abraçá-los, mas o meu coração chorava de tristeza e não de alegria, pois a minha razão de viver desvanecia-se ante o meu olhar. Ainda vislumbrava Throst, alto e imponente, segurando o leme do Knarr, tão forte e orgulhoso como a majestosa vela vermelha que eu ajudara a tecer e que, agora, se aliava ao vento para empurrá-lo para longe. Junto dele, como sempre, estava Krum, o primo que eu descobrira na mais hostil das circunstâncias e que conquistara, de imediato, o meu afeto. Krum seria o apoio de Throst nesta provação e em todos os dias da sua vida... Os dias que eu não voltaria a testemunhar.
- Cat!
Fui erguida no ar e esmagada contra o peito de Edwin. Abracei-o com toda a força e libertei a emoção que me devassava.
- Irmãzinha! Pensei que te tinha perdido, Cat! Minha querida irmã!
Choramos juntos e beijamo-nos até perdermos o fôlego. Stefan manteve-se afastado, aguardando uma repreensão pela sua desobediência. Porém, quando nos acalmamos, Edwin puxou o irmão para si e estreitou-o emocionado. Só então eu vi o homem vestido de branco, com o cabelo negro caindo sobre os ombros e os olhos denunciando uma comoção que não lhe era permitido exteriorizar.
Corri para Berchan e enlacei-o pelo pescoço. Ele abraçou-me, e o seu coração troou de encontro à minha face. Eu sabia que, de todos nós, Berchan fora quem mais padecera, forçado a sufocar os seus sentimentos dentro do peito, a ser o mais forte, a superar-se a si próprio e a esquecer que não passava de um homem. Quando recuperou a compostura, ele afastou-se para me encarar. Eu não lhe ouvira um soluço, sequer um gemido, mas o seu rosto estava banhado em lágrimas. A sua alma abriu-se, e eu retribuí, partilhando a minha vivência. Num simples fôlego, os segredos desvaneceram-se e um alívio terno espalhou-se pelo meu sangue.
”Sente o vento, irmãzinha... Ele leva para longe, mas também traz de volta. Não estás sozinha. A tua luta é a nossa luta; não só nesta batalha, mas em todas as guerras da nossa vida.”
Os meus irmãos permitiram que eu me instalasse com calma na nova casa, a segunda fortaleza do antigo domínio de Lorde Cearnach McKie. Depois, reunimo-nos no salão, e Edwin repetiu acaloradamente o que Stefan já me contara com toda a moderação. Não contive o choro quando ele me entregou a pedra colorida que pertencera a Tristan e que eu própria recolhera do fundo do lago e lhe colocara ao pescoço, há muitos anos, num tempo em que a inocência era a nossa força. Edwin apertou as minhas mãos nas suas e continuou, com a voz a tremer:
- O Tristan confiou-me que, se morresse em combate, desejava que as cinzas do seu corpo fossem lançadas ao mar. Eu próprio satisfiz a sua vontade. Ele foi um querido irmão e um grande homem. Estou certo de que gostaria que fosses tu a guardar o seu amuleto. O Tristan amava-te com devoção, Cat!
- Eu sei... - respondi a custo. - E eu amei-o também... até ao fim!
Sustive o fôlego, em sobressalto, quando o olhar de Edwin se deteve na bracelete que testemunhava o meu casamento.
- Onde está a pulseira que o Tristan te ofereceu? Os selvagens roubaram-ta?
- Não - apressei-me a negar, sem saber muito bem o que dizer.
- Perdia-a no mar...
Confundindo a minha insegurança com receio, o meu irmão rugiu com toda a convicção:
- Eu juro que irei apagar da tua mente este ano terrível, Cat! Já não tens de usar esses símbolos de vassalagem...
Recuei à pressa, impedindo-o de arrancar o presente de Ingrior do meu pescoço.
- Estes não são símbolos de vassalagem! - repliquei impetuosamente. - Representam a casa que me recolheu e que tão bem me tratou. Tu estás enganado acerca do povo viking, Edwin! Eu fui muito feliz na Terra Antiga e, se não fosse pela minha missão de vida, não teria regressado, pois amo os que lá deixei como uma segunda família.
Ao terminar, eu percebi que acabara de lançar um archote aceso para cima de um fardo de palha seca. O rosto de Edwin enrubesceu, enquanto o seu olhar verde se estreitava. Após um silêncio constrangedor, mastigou entredentes:
- Quem é o bárbaro que trazia a tua pedra ao pescoço? Dei por mim engasgada, e Stefan veio em meu auxílio:
- O seu nome é Throst, filho de Thorgrim. É um grande guerreiro entre o seu povo, um líder empenhado na unificação da raça viking. Foi ele quem salvou a nossa irmã das garras de Goldheart e a acolheu, durante o tempo em que ela esteve afastada de nós. Foi também ele quem se insurgiu contra Gunnulf e lhe impôs a derrota. Os seus homens salvaram-me quando naufraguei, e eu desfrutei da hospitalidade da sua casa...
Edwin voltou-se devagar para encarar o irmão. O que escutava estava longe de agradá-lo. Eu sentia a energia no ar, fluindo com a intensidade de uma tempestade prestes a rebentar.
- Depois de tantos elogios, devo concluir que tu fizeste amizade com essa gente, Stefan?
A frieza e a resolução de Stefan incharam-me de orgulho:
- Eu sei que te ressentes contra esse homem, porque te impediu que matasses o Gunnulf. Mas recorda-te que numa batalha tens de obedecer ao teu líder e defendê-lo, mesmo que não concordes com as suas ordens.
- Por vontade do Throst - intrometi-me imprudentemente -, o vosso acordo nunca teria sido quebrado. Ele é um homem de honra, tal como tu, Edwin!
Definitivamente, essa era a última coisa que ele esperava ouvir!
- Estás a comparar-me a um bárbaro, Cat? - A sua voz soou ofendida e irada. - Estás a dizer que esse selvagem... esse Throst, mereceu o teu respeito e admiração?
Engoli em seco, sentindo um nó nas entranhas. Quisera ser eu a informar Edwin acerca do meu casamento, pensando que poderia tocar no seu coração. Porém, agora que o momento chegara, o medo ameaçava devorar-me. Senti o espírito de Berchan fortalecendo-me e respondi, num tom tão firme que me surpreendeu:
- O Throst mereceu muito mais do que o meu respeito e admiração! Mereceu o meu amor incondicional! Nós casamos, e eu estou grávida.
Se eu tivesse espetado um punhal no peito do Edwin, as conseqüências não seriam tão violentas. As suas faces mudaram do rubro para o branco, num mero piscar de olhos, e a comoção que o trespassou fê-lo cambalear. A sua voz estava perigosamente baixa, quando recuperou o suficiente para mastigar:
- O que estás para aí a dizer, Catelyn McGraw? Tu casaste com um Viking? Tu emprenhaste de livre vontade da raça que matou o nosso pai, o Aled... o Tristan...?
- O amor não escolhe raças, Edwin! - interrompeu Berchan solenemente. - Nem religião, nem espaço, nem tempo! Tu sabes isso!
Edwin encarou-o, incrédulo, enquanto o seu choque era rapidamente suplantado pela fúria.
- Não te atrevas a comparar o meu amor pela Melody com esta aberração, irmão! Eu não raptei a Melody, não a fiz prisioneira da minha vontade, nem a desonrei e emprenhei!
Senti-me afundar no desespero. Acalentara a tênue esperança de que Edwin conseguisse ver através do ódio, mas tornava-se óbvio que ele jamais aceitaria o meu casamento, não importava quanto tempo passasse ou os argumentos que eu utilizasse... Expliquei-lhe que Throst não me raptara, apenas pretendera proteger-me; que eu não fora tratada como uma prisioneira na sua casa e que ele nunca, NUNCA, se impusera como homem. Mas era o mesmo que gritar para uma pedra e esperar resposta. Edwin só ouvia os seus próprios berros:
- Como és capaz de proferir tais infâmias? - agitava os punhos cerrados, espumando de raiva. - Tu, que acabaste de dizer que amavas o Tristan?
Stefan antecipou-se-me mais uma vez:
- A Cat era uma criança quando o Tristan a cortejou! Ela amou-o como irmão e amigo e tê-lo-ia amado como homem, se a vida o permitisse. Mas o Tristan morreu! Não podes condenar a nossa irmã por se ter apaixonado pelo homem que a salvou, abrigou e...
- Lorde Garrick e Aled estão mortos! - cortou Edwin, descontrolado. Eu temi que ele fosse investir contra Stefan, mas foi para mim que se voltou. - Agora, sou eu o chefe desta família, Cat, e jamais permitirei a tua união com esse bárbaro assassino! Podes ter o teu filho, se o desejas, porque também ele é um McGraw, mas não tornarás a ver esse homem! E não se falará mais neste assunto, à minha frente ou nas minhas costas!
O que mudara? A necessidade de uma resposta levou-me ao convento onde Melody se enclausurara. Uma mulher vestida com um traje negro, que apenas revelava o rosto, veio ao nosso encontro. Enya apertou-me a mão ao aperceber-se do meu temor, tentando confortar-me com a convicção de que nada havia a temer dos Irmãos Cristãos. Eu não partilhava da sua segurança. Eu era uma feiticeira; uma maldita aos olhos dessa fé.
O nosso percurso foi como Enya descrevera que seria - uma longa caminhada por corredores sombrios e gelados onde, por detrás das pesadas paredes de pedra, ecoavam cânticos lúgubres, qual atormentado choro de um condenado. Enquanto avançava, com a respiração meio suspensa e o coração a bater descompassado, eu recordava a sensação de intensa felicidade que me envolvera ao entrar na Aldeia dos Sábios. Aqui, jamais me sentiria em casa. Aqui, não passava de uma intrusa abominável.
A freira que guiou os nossos passos deixou-nos num quarto tão pequeno, que mais parecia a cela de um prisioneiro. Este não tinha janelas, e o Sol mal espreitava por uma fresta onde dificilmente caberia uma mão. O espaço encontrava-se vazio, à exceção de um banco de pedra que servia de cama às noviças durante o período de recolhimento. Uma cruz de madeira, pregada na parede no sítio exato onde a fraca luz incidia, era o único ornamento.
Fui sacudida por uma sensação de tormento e sacrifício. Muitas lágrimas haviam sido derramadas neste lugar. Estas paredes nuas já tinham presenciado muitos gemidos de angústia, muitos uivos de abandono e desespero. Caminhei até à cruz e toquei-lhe com as pontas dos dedos. Uma brisa fresca surgiu de lugar nenhum, soprou todos os meus temores e deixou-me em paz, enquanto as palavras de Berchan ecoavam na minha mente e uma Visão de liberdade - Terra, Água, Ar e Fogo - se misturava com o bater do meu coração.
”Existe apenas uma Força Divina, um Poder Criador... A nossa Deusa Mãe, o Deus dos Cristãos, o Deus dos Vikings, o Deus dos Mouros, é o mesmo e um só Deus. Porém, as diversas culturas humanas têm modos distintos de entender a Sua mensagem, de aplicar a Sua Lei, de sentir o Seu amor, de provar-Lhe a devoção. Assim, cada povo do mundo decidiu que a sua religião seria a única verdade, e o seu Deus, o único e verdadeiro Deus. Não entendem que a dessemelhança reside na Humanidade e não no Criador. Todos os dias, os Homens morrem defendendo, não a Verdade de Deus, mas os seus próprios interesses e egoísmos. Temo que seja demasiado tarde para perceberem que todos estendemos a mão para a mesma Luz... E a disparidade do seu brilho é nossa ilusão, porque a vemos com olhos diferentes.”
A pesada porta de madeira abriu-se e duas mulheres entraram. Uma estava vestida como a que nos guiara até ao quarto; a outra trajava de branco e, se não fosse pela expressão inconfundível do seu olhar, eu jamais teria reconhecido Melody.
- Cat? - murmurou ela hesitante, com as lágrimas a saltar-lhe dos olhos. - Cat, querida... És mesmo tu? Pensei que estivesses morta! Oh, Cat!
Abraçamo-nos impetuosamente, e eu também sucumbi ao choro. Senti os ossos de Melody, frágeis sob as minhas mãos, tal como há muitos anos quando ela agonizara à beira da loucura, depois da partida de Edwin. Estaria a minha amiga condenada a morrer em vida, tantas e tantas vezes quantas o cruel destino o desejasse?
- Cat... - Os seus dedos deslizaram carinhosamente pelo tecido delicado que me cobria o ventre. - Tu estás... de esperanças?
Por um breve instante, vislumbrei uma pálida chama perdida no fundo do olhar celeste, que me devolveu a esperança de salvar Melody. Eu sabia que estava a ser avaliada pela freira e que todo o cuidado era pouco se queria tornar a ver a minha cunhada, por isso esbocei um sorriso, confirmando com uma serenidade estudada:
- Depois da batalha fui viver para outro país. Lá, conheci um valoroso guerreiro que me desposou. Estou à espera do nosso primeiro filho.
Simples e limpo; nada revelado que pudesse melindrar a mente fervorosa que me julgava. Entristecia-me enganar Melody com a ilusão de uma linda história de amor, mas ela já tinha problemas e angústias que chegassem para várias vidas.
- E quando regressaste, Cat?
- Há poucos dias. Já conheci o nosso Aled! É um rapagão lindo e forte!
O pequeno era a imagem viva do pai. Emocionara-me a maneira como o garoto se apegara a mim, como se sempre me tivesse conhecido. Quando o abraçava e beijava os longos cabelos ondulados, eu pensava que o sacrifício do meu irmão não fora vão. O seu filho nascera e seria um belo homem, digno e corajoso. Um dia, quando tivesse idade para compreender, contar-lhe-íamos o gesto nobre do seu pai, que salvara as vidas de todos nós.
- Sim - respondeu Melody com um sorriso débil e triste. - Ele será um bom homem, como o pai! E o Edwin saberá educá-lo na Fé do Senhor e fará dele um grande guerreiro.
Enya juntou-se à conversa para partilhar com a irmã as últimas travessuras do pequeno Aled. Afligiu-me constatar que, em vez de se entusiasmar e se alegrar com os progressos do filho, Melody reagia como se a vida fora do convento fizesse parte de uma realidade estranha e temerosa. E, mal Enya começara a falar, já a freira pigarreava, anunciando que era tempo de partirmos. Mordi a língua, que teimava um protesto, e despedi-me de Melody. Ela apertou as minhas mãos e, a custo, qual criança que confessa uma falha grave, murmurou sumidamente:
- Já deves saber o que aconteceu à pedra verde... Eu sinto muito! Não podia imaginar que causaria tanto mal...
- Não te preocupes - sosseguei-a piedosamente. - Nós havemos de reavê-la!
Deixei o convento, ciente de que tudo o que eu vira e ouvira era um erro brutal. Melody acreditava que o seu amor fora amaldiçoado e que os seus sonhos haviam provocado muita desgraça. Não se perdoava pela morte de Aled, nem desculpava Edwin por não conseguir parar de amá-lo. Fugir fora a sua solução para o problema. Isolava-se do mundo, arrancava o coração do peito, castigava o corpo e a alma e, um dia, a dor desapareceria. Ela estava enganada, mas arriscava-se a descobri-lo tarde de mais! O filho crescia sem o seu carinho e orientação. Edwin amargava, carregando a culpa pela morte do irmão e a rejeição da mulher que amava. E a própria Melody definhava em vida. Eu tinha de fazer alguma coisa... Mas o quê? Como podia ajudar Edwin e Melody, se nem sequer sabia como contrariar a minha própria desventura?
Ao observar Stefan, Enya e o pequeno Bryan, eu sentia uma ternura imensa acalentar-me o coração. Stefan merecia toda a felicidade deste mundo! Nas minhas fantasias, sempre o imaginara assim, dedicado à família, um pai extremoso como o nosso nunca soubera ser, e um marido apaixonado e carinhoso. Ainda recordava o brilho no olhar de Enya, quando eu lhe perguntara por Stefan, na fortaleza de Goldheart. Decerto fora-lhe penoso revelar a sua verdadeira identidade e abrir o coração, depois de tantos anos de sofrimento; como também não devia ter sido fácil para Stefan assumir a sua paixão, diante das adversidades que o perturbavam. Mas, felizmente, estes dois barcos haviam encontrado um porto seguro, e o seu amor era uma bênção, nos dias conturbados que vivíamos.
A indiferença do Edwin magoava-me. O homem apaixonado pela vida estava amargo e corroído pelo rancor. Eu também o surpreendia a observar Stefan e Enya, mas o seu olhar denunciava a consternação que a alegria do nosso irmão lhe causava. Eu não duvidava de que Edwin ainda amava Melody, mas era óbvio que já desistira de sonhar. Agora, vivia para o ódio e para a guerra, com a obsessão de recuperar o que a feiticeira nos roubara.
- Vais desistir do nosso irmão, Cat? - Berchan chegava sempre assim, silencioso e em comunhão com o que o rodeava, como se fizesse parte de tudo; como se fizesse parte de mim.
Fui ferida pela lembrança do momento em que Edwin me arrancara a pedra de Tristan da mão, como se eu me tivesse tornado indigna de guardá-la. Contudo, não havia ressentimento na minha voz quando retorqui:
- O Edwin já foi abandonado demasiadas vezes, nesta vida. Sei que é isso que ele espera de mim, mas não irei rebelar-me para satisfazer a sua ira. Ele pode ter desistido de mim, mas eu não desistirei dele!
Berchan assentiu com a cabeça, sentando-se ao meu lado, em frente à lareira.
- Não esperava outra coisa de ti... Tu és a força que nos une. Só tu poderás ajudar o nosso irmão. O Edwin recusa-se a acreditar que uma criança foi gerada naquela noite. O seu maior sonho era ter um filho, e não aceita que o herdeiro que tanto deseja esteja amaldiçoado. Revolta-se contra o destino que o condenou tão cruelmente, forçando-o a dar vida àquele que, num futuro negro, será o seu maior inimigo.
A angústia de Berchan era também a minha. Se nós perdêssemos a batalha, o filho de Gwendalin seria o senhor do mundo. Se a ganhássemos e conseguíssemos resgatar o menino, Edwin teria de contar-lhe a verdade acerca do seu sangue; isso, se convencêssemos os Feiticeiros a deixá-lo ficar conosco. Partilhando o meu pensamento, Berchan concluiu:
- Se alcançarmos a vitória e sobrevivermos ao cataclismo, a sorte do mundo quedar-se-á nas mãos da tua filha. Só ela terá poder para controlar o primo.
Eu tinha a certeza de que ele dizia muito menos do que sabia. Suspirei pesadamente, mastigando entredentes:
- Antes de nascer, a minha filha já está condenada a viver um pesadelo semelhante ao meu. Ainda não se formou por completo, e já tem uma missão de vida ou de morte, assombrando o seu futuro. Isso revolta-me! Olho para Stefan e Enya, e o meu coração chora, pois recordo o amor que fui forçada a abandonar e penso que jamais poderei conceder à minha menina a mesma felicidade de que o Bryan desfruta. Ela crescerá sem pai, em permanente sobressalto...
- No entanto, quando tiver idade suficiente, entenderá a tua decisão e respeitará o sacrifício que fizeste para salvar o seu pai. E também aprenderá a aceitar o seu destino, tal como tu aceitaste!
Cega pelas lágrimas, senti o meu coração murchar. Eu jamais me renderia ao destino da minha filha. Porém, havia uma guerra que eu já perdera. Pensar que não tornaria a ver Throst era uma condenação pior do que a morte.
- Acreditas que o acordo de paz poderá ser reafirmado? - perguntei ansiosamente. - Os homens que agora comandam os destinos dos Vikings são muito diferentes de Gunnulf. Será trágico se o Edwin colocar as questões pessoais à frente dos interesses da nossa terra!
Berchan ponderou antes de dizer:
- Tens de compreender que não foi fácil para o nosso irmão entrar em diálogo com os responsáveis pela morte do pai, do Aled e de tantos amigos... Mas fê-lo por vontade dos Aliados e para o bem do povo. Quando aquele homem maldito o traiu, a confiança do Edwin nos Vikings morreu. De nada valerá dizer-lhe que o Líder Supremo ou o futuro rei são diferentes. Se tu queres que ele veja mais longe, terás de dar-lhe tempo para sarar as suas feridas. Insistir, neste momento, só piorará a situação.
- Eu sei. Mas a minha única esperança é provar-lhe que o Throst é um homem bom, merecedor do seu respeito...
- Cat... - Berchan deteve-me, forçando-me a encará-lo. - Isso não depende de ti! Não penses que o Edwin fechou os olhos e os ouvidos ao que se passa no Norte. Agora, mais do que nunca, ele estará atento a todas as decisões do Líder Supremo do povo viking, não só para prever a existência de uma eventual ameaça ou para ponderar a renovação do acordo, mas também porque esse homem conquistou o teu coração. O vosso casamento enfureceu o Edwin, é verdade, mas também o intrigou. As razões por que um homem que só podia receber o teu ódio, mereceu o teu amor, irão batalhar na sua cabeça. Todos os passos do Throst serão julgados e só o próprio Throst poderá provar o seu valor.
Fechei os olhos, fustigada por uma tempestade de emoções.
- O que é que eu posso fazer, Berchan? - gemi dolorosamente.
- Sê paciente - aconselhou ele, sem hesitar. - Combate o ódio do Edwin com o teu amor, a sua impaciência com compreensão, a raiva com moderação. O nosso irmão convenceu-se de que o seu coração morreu. Se conseguires despertá-lo para a vida, estarás perto da vitória.
- Mas isso pode demorar anos...
- Sim - concordou Berchan sobriamente. - Pode demorar mais do que tu e o Throst podem suportar!
Afundei o rosto no seu peito e solucei desolada. Para ele, era fácil falar! O seu coração não conhecia o extremo tormento que me mortificava.
- Nunca te apaixonaste, Berchan? - surpreendi-me a indagar. Também o meu irmão não esperava por essa pergunta. Franziu o sobrolho antes de responder:
- Não, eu nunca experimentei esse sentimento que perturba o vosso discernimento e governa as vossas vidas. Há quem me julgue abençoado por essa ignorância... Porém, como amante do conhecimento, eu acredito que viver sem sentir a mais forte das emoções não é uma bênção, é uma falha!
A sua explicação foi tão esclarecedora que eu me atrevi a insistir:
- Crês que seja possível amar uma pessoa sem conhecê-la? Saber que se encontrou uma alma gêmea, após um simples contacto espiritual?
Esta questão deixou-o estranhamente alarmado. A sua mente, que até então estivera aberta à minha, fechou-se como uma concha importunada por um predador.
- Por que perguntas isso, Cat?
Berchan sabia perfeitamente ao que eu me referia e tentava ganhar tempo para preparar a sua defesa. Mas eu já decidira que não lhe daria tréguas! Sem mais rodeios, continuei:
- Na noite do meu casamento tu estabeleceste um elo profundo com a Ingrior...
- Fi-lo porque essa jovem possuía a energia necessária para eu me manter ligado a ti - atalhou o meu irmão, com um brilho alarmado no olhar. - A minha intrusão não lhe causou nenhum dano!
- Ela viu-te, Berchan! Ela sentiu-te! E, desde então, não parou de pensar em ti.
Surpreendi-me ao verificar que a sua indiferença inabalável se estilhaçava como gelo fino debaixo do calor do sol. Apressei-me a prosseguir, antes que ele recuperasse:
- Eu não quero saber como ou quando isso começou! Só quero que saibas que a Ingrior se enamorou de ti. Ela tem um percurso sentimental trágico...
- E, por isso, segurou-se à ilusão de um homem que sabe que não pode possuir - cortou Berchan, com uma frieza pouco habitual.
- A possibilidade de nos encontrarmos é quase tão escassa como a de existir algo entre nós dois. Para mim, ela não passou de um meio para atingir um fim. Sinto muito se errei, mas não resisti a aproximar-me de ti, Cat. Apaga esse sorriso tolo do teu rosto! Entre mim e essa mulher existem todas as barreiras que te separam do Throst e outras ainda mais elevadas. Estás a esquecer-te de quem eu sou?
- Disseste que ambicionas experimentar o amor...
- Experimentá-lo! Não concretizá-lo! Eu não desistiria do meu futuro por uma mulher, mesmo uma especial como a neta de ”O Que Tudo Vê”! Achas que me contentaria com as limitações de uma existência humana, quando tenho diante de mim a perspectiva do conhecimento, da força e do poder dos sábios? Não te iludas a meu respeito, irmãzinha! Eu abdiquei de tudo nesta vida para chegar onde estou. O tempo tornou-me frio e ambicioso. Já não posso voltar atrás!
Esta faceta de Berchan desgostava-me. Enquanto o meu irmão falava, refletiam-se nele o egoísmo e a arrogância dos Seres Superiores. A sua mente estava dominada pela disciplina, e só o grande amor que me devotava o forçara a quebrar as regras. Porém, apressava-se a esclarecer que não voltaria a fraquejar. Ao contrário de mim, ele desejava ardentemente o que lhe fora destinado. Os druidas acalentavam a esperança de que Berchan sobrevivesse ao duelo com Gwendalin e se tornasse um condutor de homens - a voz dos Feiticeiros na Terra.
- Eu não estou iludida! - repliquei, tentando sacudir-lhe a consciência. - Conheço bem a tua nobreza e bondade. És tu quem te iludes, se pensas que algum dia poderás ser mais do que um moço de recados para os Feiticeiros. O fato de nós termos sangue misto pode tornar-nos especiais aos olhos dos Homens, mas nunca aos olhos dos Seres Superiores. Para eles, nós não passamos de bastardos, frutos de ligações proibidas dos proscritos pela sua lei.
- Não fales assim, Cat! - ralhou o meu irmão, indignado e ferido nas suas convicções. - Os Seres Superiores concederam-te a maior das graças ao tornarem-te sua igual!
- Eles não me fizeram nenhum favor! - volvi, recordando as palavras de Throst. - Pelo contrário! Deturparam o meu destino para que eu servisse os seus propósitos...
- Deram-te conhecimento e poder... as dádivas mais preciosas do Universo!
- Estás enganado, Berchan! - murmurei, esgotada pelo seu fervor obstinado. - As dádivas mais preciosas do Universo são aquelas que eles me negaram: o conforto de um lar, o amor do meu marido e a alegria da minha filha.
Ao despedir-me de Hakon, ele surpreendera-me por não me exigir a restituição da Lágrima do Sol. Apertara as minhas mãos sobre o cristal e falara à minha mente:
”Confio-te o meu poder, como te confio a minha vida e as vidas dos povos da Terra. Confia em ti com igual convicção. Quando tiveres de fazer algo, não percas tempo a pensar se serás ou não capaz. Simplesmente fá-lo! Que a força do dragão te acompanhe, Catelyn da Grande Ilha. E que o calor ao sol te proteja e ilumine nos dias de desespero.”
Treinar a Arte com a Lágrima do Sol era um desafio sem fim, que me mantinha ocupada e distraída da cruel realidade. Edwin continuava intransigente no trato, apesar dos meus esforços de reconciliação. Depois do meu desabafo, Berchan também se isolara, como se a sua crença na vitória estivesse abalada. Talvez pensasse que a minha fraca opinião acerca dos Seres Superiores iria prejudicar o meu desempenho. Ou talvez eu me tivesse revelado uma decepção aos seus olhos, ao menosprezar o poder que ele tanto ambicionava. Conversar com Stefan era um conforto, mas ultimamente Edwin não permitia que o nosso irmão sossegasse. Mal chegava a casa e abraçava a família, Stefan já estava de partida para outra missão arriscada. Certa vez em que o marido nem tivera tempo de descalçar as botas, eu surpreendi Enya a chorar, e a sua aflição forçou-a a desabafar: ficaria Edwin satisfeito se a morte afastasse a felicidade do irmão dos seus olhos?
Tudo o que eu amava e em que acreditava parecia ruir sobre a minha cabeça. Noutros tempos, até poderia ter pensado que esta atribulação fazia parte da maldição de Aesa ou de um feitiço perverso de Gwendalin; poderia mesmo ter baixado a cabeça e mastigado a minha pouca sorte. Porém, eu já não acreditava em coincidências, e a luz que me iluminava a percepção revelava-me sombras de um futuro que se construía em cima das cinzas da minha existência na Terra. Eu já perdera o amor do meu companheiro. Quando perdesse o amor da minha família, nada me prenderia à herança humana e só me restaria entregar-me à vontade dos Seres Superiores.
Numa das noites em que o meu corpo descansava na cama, e a mente batalhava dentro da Lágrima do Sol, o espírito de Aranwen veio até mim e serenou o meu tormento. Demos as mãos, e a melodia doce da sua voz aqueceu-me a alma:
”Afasta a dor e o descontentamento do teu coração, querida. Inspira a brisa fresca que o mar te oferece e aquece-te com o carinho do Sol. Ilumina o teu rosto com um sorriso e enfrenta o futuro sem temor. Os nossos iguais não podem tocar-te, porque tu não lhes pertences como eu lhes pertenci. A força do teu coração é a magia mais poderosa do Universo. Tu és o meu orgulho, minha neta... Tu és a minha vitória!”
Entorpecida por um calor agradável, eu deslizei por entre o céu e o mar, embriagando-me de azul e branco até todas as sombras me abandonarem. Ao longe, uma majestosa vela garrida ondulava orgulhosamente ao sabor do vento, suspensa num navio de um único mastro. O seu destino era um grande arquipélago rochoso, que escondia uma mancha de verde e castanho, rodeada por um círculo de areia clara. Pequenos pontos fumegantes revelaram-se casas de madeira e colmo - casas de Vikings... No topo da mais alta montanha da ilha, uma grande pedra cintilava com as cores do arco-íris. À sua volta, outras pedras sem brilho inclinavam-se para adorá-la. Lancei-me ao encontro desse resplendor, irresistivelmente atraída pela sua beleza, desejando banhar-me na luz colorida. Porém, no instante em que toquei a pedra, fui envolvida por uma escuridão quente, rasgada por uma chuva de bolas de fogo. Sobressaltei-me alarmada. Eu regressara ao princípio de tudo! De imediato, senti a sua presença, o poder extremo, a força sem igual. Voltei-me lentamente, convicta de que iria encontrar o aterrador dragão, o Guardião da Montanha. Contudo, era Hakon quem me esperava.
Despertei com o nascer do Sol, afundada num desconforto terrível. Enquanto a consciência regressava dolorosamente ao corpo, eu apercebi-me de que a cama estava encharcada. O meu coração saltou no peito ao compreender o que isso significava. A minha filha ia nascer!
Gritei a plenos pulmões por ajuda, enquanto afastava as cobertas. De repente, os meus olhos assimilaram com estranheza a visão dos meus próprios pulsos, descobertos pelas mangas largas da camisa de dormir. Pisquei-os com força, lutando para respirar, perturbada até à alma. Não era uma ilusão! Tatuada na minha carne, com toda a sua magia e beleza, estava a herança do Guardião da Lágrima do Sol.
- Força, menina! Está quase! Força...
Eu nunca poderia agradecer o suficiente a Edwin por ter trazido Bretta novamente para o seio da nossa família. Apesar de ser uma velha resmungona, ela era também uma companheira preciosa e a melhor parteira que uma mulher podia desejar, quando um parto se complicava. O meu sofrimento arrastava-se desde manhã e tornava-se intolerável. Sem nunca se impacientar, as mãos de Bretta tinham o toque da seda, e as suas palavras incitavam-me a lutar para além do que julgava possível, reanimando forças que eu já dera como extintas.
- Respira, Catelyn... Isso, menina... Agora! Força!
Enya segurava-me a mão e, no meu delírio, pareceu-me ouvir a voz de Ingrior fluir dos seus lábios. Onde estaria a minha irmã de coração?
- Força!
Onde estaria Throst...?
A dor rasgou-me pelo meio e, subitamente, desapareceu. Dei por mim longe do meu corpo, mirando-me com a indiferença de uma desconhecida. A mulher deitada na cama estava feita num farrapo, com o rosto corado encharcado em lágrimas e o corpo esgotado alagado em suor. Ao lado, a janela fechada não era suficiente para me deter. Enfrentei a noite e cavalguei o vento, sobre a terra e sobre o mar, num bater de coração, num sopro de êxtase. E lá estava ele...
Throst dormia um sono atormentado, agitava-se e arfava em agonia. Os seus olhos azuis escancararam-se à escuridão, e ficou sentado na cama, fixando-me como se me pudesse ver.
- Pequena...?
As lágrimas tombaram pelo seu rosto. Eu toquei-lhe e senti a sua pele quente e úmida. Throst era real... Eu não podia estar junto dele! A nossa filha precisava de mim!
No momento em que a sua mão se estendia para retribuir a carícia, eu fui sugada para longe. O apelo desesperado do meu amor feriu-me a alma, enquanto o meu nome ecoava no vazio, misturando-se com os berros de uma mulher que estrebuchava, por entre suor e sangue. A confusão que nos rodeava era tão extrema como a que eu deixara para trás. Uma estranha sensação de reconhecimento apoderou-se de mim quando olhei em redor. Aproximei-me para observar melhor e uma chuva de cabelos vermelhos revelou o rosto da agonizante jovem. Mal contive um grito. É claro que eu reconhecia este quarto! Era o meu antigo quarto! E esta era Gwendalin! A força do seu berro trespassou-me como um ferro em brasa:
- Edwin...
A dor arrastou-me de volta ao meu corpo. Bretta gritava. Enya limpava-me o rosto com um pano. As outras mulheres atarefavam-se com vasilhas de água e toalhas secas, murmurando rezas protetoras. Isto tinha de acabar antes que fosse tarde de mais! Eu queria esta filha! Eu queria a filha de Throst!
Gritei o nome do meu amado, sem perceber o que fazia. O seu rosto, doce e belo, aquecia-me o espírito. Eu amava-o com toda a força do meu ser. E era esse amor que nascia de mim...
Fui invadida por um alívio imenso e fechei os olhos, vencida pelo cansaço. Então, o choro agudo de uma voz vibrante preencheu o meu mundo, e eu senti que renascia com a minha menina. Bretta deitou-a no meu peito e vi pela primeira vez o seu rosto, perfeito e angelical.
Se o meu marido estivesse presente, cumprira os rituais de aceitação e atribuição de nome. Depois, ofereceria um amuleto protetor à sua primogênita e bendiria o nosso amor. Mas Throst não estava conosco. De manhã, ele pensaria que tivera um delírio ou que vira uma aparição. Ou talvez compreendesse que o meu espírito procurara o conforto da sua presença e sofresse... O que ele jamais saberia era que o nosso encontro, apesar de efêmero, me dera alento para viver.
O meu quarto estava em festa. Dois dias após o nascimento de Edwina, eu já recuperara as forças e encarava a vida com um novo ânimo. Enya viera fazer-me companhia e trouxera Bryan. Berchan e Stefan chegaram pouco depois com o irrequieto Aled, que ansiava por conhecer a prima. Bretta ralhava por causa do barulho, mas nada incomodava a minha filha quando tinha a barriga cheia. Edwina dormia a sono solto, aninhada no meu peito, sem nenhum protesto pelo entusiasmo da família.
A algazarra finou assim que Edwin entrou no quarto. Ordeiramente, todos se despediram e saíram. O meu irmão pareceu hesitar antes de se aproximar. A nossa relação estava morna, mas a harmonia de outrora parecia irremediavelmente perdida. Ele continuava magoado e, sempre que me olhava, os seus olhos refletiam a dor da traição. Esperara que eu me comportasse como a viúva de Tristan. Jamais acreditaria que o próprio Tristan desejara que eu fosse feliz.
Estendi-lhe uma mão e Edwin aceitou-a, sentando-se finalmente ao meu lado. O meu sorriso deu-lhe confiança para se abeirar da sobrinha e espreitar. Vi que os seus olhos ficavam molhados e não resisti a acariciar-lhe o rosto. Temi que ele se afastasse, mas, ao invés, Edwin abraçou-me com carinho e beijou-me. Entreguei-me à emoção e chorei com ele.
- Sei que lutaste como uma grande guerreira para superar esta batalha - murmurou, forçando-se a recompor. - Estamos todos muito orgulhosos de ti! E eu quero agradecer-te por teres dado o nome da nossa mãe à tua menina.
O nó que me estrangulava a garganta impediu-me de responder. Edwin concentrou a sua atenção na sobrinha, e eu convidei-o a pegar-lhe. Ele segurou-a desajeitadamente, mas com o mesmo cuidado com que tocaria no seu bem mais precioso. Subitamente, Edwina abriu os olhos e sorriu. O rosto do meu irmão iluminou-se, e eu estremeci ao ouvi-lo sussurrar:
- Tens os olhos do teu pai, pequenina! Serás uma mulher alta, loura... linda! Teremos de armar um exército para afastar os pretendentes da nossa porta!
Engoli em seco, esforçando-me para não soluçar. Se ouvir Edwin gracejar era uma novidade nos tempos que corriam, ouvi-lo falar sobre o assunto proibido era uma vitória sem precedentes. Encorajada pela comoção que colocava lágrimas nos nossos olhos e sorrisos nos nossos lábios, atrevi-me a confessar:
- O Throst não sabe que é o pai...
O maxilar de Edwin contraiu-se, e eu temi ter estragado tudo. Porém, depois de suspirar longamente, ele acenou com a cabeça e respondeu:
- Eu sei... Tenho de admitir que, apesar de tudo, esse Viking teve um gesto nobre. Os nossos irmãos contaram-me... Acerca do Gunnulf... E do feiticeiro maldito que te armou uma cilada... - O esforço que fazia para controlar a indignação era tão extremo, que lhe cobria a testa de suor. -Juro-te, Cat... Se esse bruxo se atrever a dar um passo na direção da minha sobrinha, eu cortá-lo-ei às postas!
A determinação e a raiva na sua voz revelavam quão sérias eram as suas intenções. Apertei-lhe a mão, profundamente agradecida por esta trégua, enquanto retorquia:
- Agora que nasceu, acredito que a Edwina já nada tem a temer. O Sigarr não se atreverá a desafiar o Hakon, raptando a sua bisneta. E eu também tenho uma palavra a dizer!
Edwin quedou-se pensativo, ponderando o futuro. Berchan contara-lhe a minha história e, pela primeira vez, eu sentia que esta lhe tocava o coração. Decidi aproveitar este momento, em que as suas defesas estavam baixas, para abordar outro assunto, igualmente delicado, que de forma alguma podia ser ignorado:
- O teu filho já nasceu Edwin. É um rapaz...
Antes que eu pudesse continuar, o meu irmão desatou num pranto convulsivo. Sem saber o que fazer, recolhi Edwina dos seus braços e deitei-a na cama. Edwin afundou a cabeça entre as mãos, gemendo dolorosamente. Eu deixei-o desabafar e só depois prossegui:
- Nós não podemos deixar-nos abater, mano! Vamos recuperar o teu filho e não permitiremos que os Feiticeiros o levem. Será educado dentro da nossa família, dar-lhe-emos muito amor e nada lhe ensinaremos além dos valores mais nobres. Ele tornar-se-á um valoroso guerreiro e nunca sentirá a tentação de rejeitar o caminho da honra. Se as Forças Divinas decidiram que os nossos filhos ficarão ligados até ao fim das suas vidas, tentaremos que eles se unam pelo amor e não pelo ódio!
Tremendo sem controlo, Edwin acariciou o rosto adormecido da minha filha. Só depois me encarou, perguntando sufocado:
- Achas... Que isso... É possível? Diz-me a verdade, Cat! Ainda posso ter... Esperança?
- Temos de superar um desafio de cada vez e acreditar que tudo vai acabar bem - respondi com a maior firmeza possível. - O amor pode vencer todas as barreiras!
As minhas palavras pareceram assombrá-lo. Desviou os olhos, antes de contestar:
- Isso não é verdade! Existem barreiras que nem o amor mais sincero e puro pode transpor. - Era óbvio que o seu espírito se afundava num pântano de tristeza. - Eu sei que tu tens visitado a Melody... Obrigado! Ela precisa de uma amiga.
- Edwin, por que não tentas...
- Não, Cat! - Ele deteve-me com um gesto suplicante. - Eu tenho de respeitar a escolha da Melody, por mais que esta me doa. O nosso amor foi amaldiçoado, porque nunca deveria ter nascido. Nós cometemos muitos erros por culpa da nossa paixão. E estamos a pagar por eles...
Neguei com a cabeça, objetando sobriamente:
- Não! Vós estais a castigar-vos, cada um como sabe e pode, pelos infortúnios do destino. Tu tens de aceitar o passado e lutar pelo futuro, Edwin, ou jamais viverás em paz.
Se enfrentar Gwendalin era uma tarefa colossal, enfrentar Gwendalin e as tropas de Lorde Cearnach era o que qualquer perito em estratégia militar chamaria uma loucura. Tal como a nossa família conseguira manter a floresta inexpugnável durante décadas, Cearnach McKie aproveitara as vantagens da densa vegetação e dos seus incontáveis segredos e, com a proteção da bruxa, criara um reino de horror impenetrável.
Ninguém que se atrevera a entrar no bosque regressara com vida. Edwin enviara os seus melhores espiões para a morte e concluíra que era inútil. Por mais brutal e suicida que pudesse parecer, a idéia de uma invasão em força era a única alternativa. Para tal, o meu irmão planeava utilizar os túneis do penhasco. Segundo ele, as grutas que desembocavam na floresta e que haviam sido usadas pelos nossos antepassados para atividades menos lícitas serviriam agora uma causa mais nobre. Se conquistássemos a Casa Grande, a feiticeira não nos escaparia, e McKie e os seus guerreiros achar-se-iam cercados
Apesar de tudo, eu não estava convencida. Mesmo que atravessássemos impunemente os túneis, Gwendalin iria detectar-nos mal pisássemos a floresta. Eu podia cegá-la, mas não sem saber onde se escondiam os perigos, e não por muito tempo, pois esgotar-me-ia antes de enfrentá-la. Portanto, era fundamental conhecer a posição das tropas e as armadilhas de Lorde Cearnach. A idéia surgiu-me espontaneamente. Se nenhum homem sobrevivia às artimanhas da floresta, enviaríamos um animal. Hakon fizera-o para se manter informado das minhas atividades. Eu também poderia fazê-lo, se encontrasse o pássaro certo.
A busca não chegou a iniciar-se. Mal anoiteceu, uma velha amiga de plumagem branca pousou no parapeito da varanda do meu quarto e mirou-me com os seus olhos amarelos, repletos de significado. O entendimento que me unia à pequena coruja reafirmou-se de imediato. Tal como prometera, Hakon velava por mim. A rapidez com que respondera ao meu apelo era um enigma que talvez nunca encontrasse resposta.
Berchan desenhara um círculo no chão e, no seu interior, um grande olho rodeado de penas. Nós sentamo-nos em redor do símbolo mágico, de mãos dadas e olhos fechados. Os nossos corpos descansavam na pedra, aquecidos pelo calor da lareira e envolvidos pela chama tremeluzente das velas, mas os nossos espíritos sobrevoavam o território que nos pertencera, desvendando os segredos da noite através da visão de uma ave encantada.
Eu sentia o meu coração bater mais rápido a cada movimento das suas asas. O vento sustentava o meu ser e tornava-me deliciosamente livre, furiosamente selvagem. Uma fogueira ardia lá em baixo e alguns homens reuniam-se ao seu redor, estranhamente silenciosos, com as expressões apagadas e o olhar vazio. Adiante, outra fogueira...
As árvores enfurecidas estendiam os ramos para se tocarem, espalhando uma mensagem de sangue e morte. A sombra do medo devorava a noite. Gwendalin andava à solta, qual predador voraz, e caçava almas para alimentar a sua fome insaciável. O solo que os seus pés pisavam vomitava vermes e ervas daninhas. A morte galopava ao sabor do vento.
Quando a coruja regressou, nenhum de nós proferiu uma palavra. Estávamos conscientes do poderio militar de Lorde Cearnach e não necessitaríamos de temê-lo, se não soubéssemos que, sob o controlo da feiticeira, cada guerreiro possuía a força de um exército.
Edwin conquistara a Aldeia da Fortaleza há muito, mas nada fizera para erguê-la das cinzas. As poucas casas que haviam resistido ao cataclismo encontravam-se abandonadas e era no forte que as forças Aliadas se organizavam, esperando ansiosamente o regresso do seu líder e o derradeiro combate que lhes devolveria a liberdade.
A nossa viagem foi curta e uma grande festa aguardava-nos. Nessa noite, todos se esforçaram por esquecer que a Grande Ilha oscilava à beira das trevas.
De manhã, Berchan acompanhou-me numa deambulação pelos escombros da aldeia. O cheiro da madeira queimada, do suor e do sangue ainda empestava o ar. Os ratos buscavam abrigo nas ruínas negras e pútridas. Se eu fechasse os olhos, reviveria com fidelidade cada instante do confronto que mudara para sempre a nossa existência. E o momento em que vira Throst pela primeira vez, em carne e osso, quando nós éramos inimigos declarados.
Tanto mudara desde então...
Durante meses, os espiões de Edwin e os comerciantes haviam trazido novas inquietantes acerca da luta sangrenta travada pelos Vikings contra os mercenários do Norte e o povo vândalo. Há poucos dias, soubéramos que os Vândalos tinham finalmente recuado para o interior da Floresta Sombria, e que os clãs vikings se reuniam para eleger um rei. O nome desse rei era Steinarr, senhor da Aldeia dos Carvalhos, o guerreiro-urso que liderara sabiamente o seu povo na guerra e se transformara no horror dos seus inimigos.
E também muito se falava sobre o Primeiro Homem do futuro rei, Throst, filho de Thorgrim, um guerreiro exímio, responsável pela unificação do seu povo, e um verdadeiro herói na frente da batalha contra os Vândalos. Os homens juravam que os dois líderes vikings combatiam como deuses enfurecidos e havia até quem já tivesse visto o Rei a transformar-se num urso e o seu Primeiro Homem sob a forma de um grande lobo de pêlo cinzento.
Eu escutava as descrições incendiadas dos portadores de notícias em silêncio e com a atenção velada, sentindo muitas vezes o olhar de Edwin a queimar-me a pele, sem nunca me permitir transparecer a mínima perturbação. Contudo, por dentro, exultava com a vitória de Throst, que também era minha... E sofria com a distância imposta, cada vez mais dolorosa, cada dia mais insuportável, enquanto o Inverno se acomodava sobre a Grande Ilha.
Os picos das montanhas vestiam-se de neve, mas o frio que nos envolvia não podia comparar-se ao rigor gélido das Terras do Norte. Eu passava muito tempo a olhar para o mar, embalando Edwina nos braços, com o pensamento mergulhado em recordações. Throst fazia-me falta! Só o azul iluminado dos olhos da nossa filha me dava alento para enfrentar o futuro.
Enya também se consumia de saudades de Bryan e Aled, que haviam ficado ao cuidado de Bretta, na segurança do outro forte. Edwin decidira que os sobrinhos deviam permanecer afastados do conflito a qualquer custo, para que o nosso sangue não se extinguisse se nós perecêssemos. Porém, eu recusara separar-me da minha filha. Nenhuma estranha a alimentaria, confortaria ou adormeceria, enquanto existisse um sopro de vida em mim. Além disso, a pequena coruja não mais se apartara de nós, guardando o berço de Edwina com a ferocidade de um cão fiel. E, através dela, o espírito de Hakon encorajava-me a avançar.
Um senhor da guerra experiente como Cearnach McKie teria aguardado que o inimigo enviasse os seus homens para a morte na inexpugnável floresta, durante anos e anos a fio, desgastando a sua força e esgotando toda a esperança. Porém, uma mulher impaciente e uma feiticeira agonizante por poder, como Gwendalin, não se podia dar ao luxo de esperar que as pedras de Aranwen lhe caíssem nas mãos por algum prodígio da sorte. Saber que a magia que almejava se encontrava ao alcance de uma batalha, que ela tinha a certeza de que iria vencer, devia estar a destroçar-lhe os nervos. Pelo menos, era essa a nossa esperança!
Durante dias, Edwin, Stefan e os chefes aliados comandaram os seus homens em pequenas ofensivas, destinadas a irritar McKie e a atiçar Gwendalin. O nosso objetivo era atraí-los para fora da floresta e deixá-los acreditar que poderiam esmagar-nos se atacassem a fortaleza. Uma batalha na planície custaria algumas vidas, mas enfraqueceria a posição dos nossos inimigos e dar-nos-ia a oportunidade de avançar com o plano de Edwin. Só a conquista da Casa Grande e a derrota de Gwendalin poriam fim à guerra.
Nessa tarde cinzenta de Inverno, as trompas soaram em desafio e a planície foi inundada pelos guerreiros de McKie, os seus artefatos de guerra e a sua inequívoca certeza de que iriam tomar o forte, protegidos pela influência da poderosa feiticeira que se mantinha oculta pelo manto verde. Antecipando este ataque, os meus irmãos organizaram uma primeira linha de defesa para impedirem o avanço inimigo.
Chegara o momento para o qual nos havíamos preparado. Edwin e Stefan combateriam pela nossa honra. Berchan cuidaria dos feridos que, em breve, começariam a chegar e entregaria ao Criador os espíritos dos que tombassem. Quanto a mim, restava-me garantir que esta provação seria superada sem que o sangue do meu povo inundasse a terra.
Sofri um forte abalo ao verificar que a pequena coruja branca desaparecera. O espírito protetor de Hakon abandonara-me no instante decisivo. Esforcei-me por não me angustiar com este inesperado percalço e confiei Edwina a Enya. Assumi a minha posição na torre alta, invoquei a força da magia e lancei o poder da minha mente ao encontro dos meus irmãos e dos nossos soldados. Pouco depois, as cornetas sopraram e a batalha começou.
Lorde Cearnach atacou com uma ferocidade implacável, e Edwin defendeu-se com o poder do nosso sangue. Os homens bateram-se, fortalecidos pelos sortilégios de tia e sobrinha. Eu temia pela sorte dos meus irmãos no campo de batalha. As tropas de McKie não se moviam por um ideal; apenas lutavam, porque nada mais podiam fazer. Eram instrumentos de morte e destruição, desprovidos de sentimentos e de consciência; almas capturadas e escravizadas por Gwendalin. Não havia dor no olhar dos guerreiros feridos, que continuavam a combater com os membros decepados e as entranhas de fora. Por mais que me custasse a admitir, o exército sem alma começava a dominar-nos.
A terra banhou-se de sangue e nem a chuva apagou os vestígios da morte. A floresta chorava, e o meu coração pranteava com ela. Muitos guerreiros de McKie haviam rompido as nossas defesas e aproximavam-se perigosamente do forte. A percepção revelou-me que a minha influência já não valia aos guerreiros, pois Gwendalin fraquejava e recuava. Agora, a batalha decidir-se-ia ferro contra ferro, carne contra carne. E, apesar de Edwin me ter ordenado que não saísse, eu não podia ficar de braços cruzados e abandonar a minha gente à sua sorte. Eu era neta de Aranwen, mas também era uma McGraw. Iria combater ao lado dos homens!
O sólido portão abriu-se para me dar passagem, e eu parti sem olhar para trás, sentindo a força do cavalo misturar-se com a minha essência, tornando-nos uma só entidade, poderosa e temível. A pedra azul queimava-me o peito como um ferro em brasa. Diante dos meus olhos estendia-se uma manta de cadáveres, vermelha, verde e preta. Libertei as mãos que controlavam a montada e arrasei com aqueles que tentavam interceptar-me. Eu era o vento que vergava as árvores, eu era a luz que brilhava no firmamento, eu era o fogo que agitava as entranhas da terra. Eu era uma feiticeira de alma humana e ia salvar o meu povo!
Por pouco, não chegara tarde de mais. Os nossos guerreiros estavam a ser esmagados, e Stefan fora ferido. Temendo pelo irmão, Edwin acabara de ordenar a retirada, no momento em que eu fizera a minha apoteótica aparição. Agora, eram os soldados de McKie que fugiam para a proteção da floresta, desorientados e aterrorizados pelo poder mágico que se atrevia a afrontá-los no terreno, quando a sua protetora já recuara.
Os nossos homens recuperavam rapidamente, por isso eu decidi poupar as minhas reservas de energia. O meu corpo começava a ressentir-se e não seria prudente continuar a esforçá-lo, ou arriscar-me-ia a perder a consciência. Evitando os confrontos diretos, aproximei-me dos meus irmãos, assustada pelo sangue que manchava a armadura de Stefan.
- Leva este teimoso para o forte, Cat! - gritou Edwin, por entre o clamor que nos rodeava.
- Eu posso combater! - insistiu Stefan, decidido. - É só o ombro...
- Já mal te agüentas em pé!
- Tu precisas de todos os homens...
Num ímpeto arrebatado, Edwin apertou o seu rosto pálido entre as mãos e vociferou:
- Eu já perdi dois irmãos, Stefan! Não vou perder mais nenhum!
- Eles estão a fugir, Edwin! Se os perseguirmos agora, temos boas possibilidades de...
O som de uma corneta trespassou-nos e gelou o nosso sangue. Não fora soprada da planície, nem do interior da floresta. O toque arrepiante repetiu-se, e Edwin desatou a correr com toda garra até um ponto alto, de onde era possível vislumbrar o mar. Eu estendi a mão a Stefan e supliquei-lhe que montasse comigo. Perante a gravidade da situação, ele não discutiu.
Não tardamos a alcançar Edwin. O nosso irmão fixava o horizonte, pálido de morte, com o horror de um homem que acabara de perder toda a fé, toda a esperança, diante da nova e gigantesca ameaça que sulcava as águas a grande velocidade, com destino à praia. O mar estava infestado de majestosos Drakkar, tripulados por centenas de homens.
Stefan deu voz ao nosso pensamento:
- Como é que isto é possível? Eles nunca se fazem ao mar no Inverno!
Os lábios de Edwin esboçaram um gemido angustiado:
- Nós não temos força para combater McKie e os Vikings... Estamos perdidos!
Eu não reagi de imediato. A minha mente recusava-se a aceitar o que os meus olhos teimavam em impingir-me. Estes não eram simples barcos vikings... Esta era a frota de Throst! A inconfundível vela vermelha liderava a campanha. Mas como? O mar gelado não os aprisionara na Terra Antiga? A não ser... Que Throst já não estivesse a viver no Norte!
- Não - forcei-me finalmente a responder. - Estamos salvos! Como se a minha voz tivesse enfurecido os Elementos, uma densa nuvem negra varreu o céu, deslocando-se com uma rapidez aterradora. O choque de energia não tardou a provocar uma tempestade de relâmpagos, que se lançou contra os navios de guerra. A noite cobriu a terra e um tremendo aguaceiro ruiu sobre o mar.
- Mas o que é isto? - tartamudeou Edwin, embasbacado. - Como é possível...?
- Isto é uma manifestação de bruxaria! - exclamou Stefan, com a voz a tremer. - A Myrna quer afundar os barcos.
Eu podia senti-la! Gwendalin estava muito perto, erguendo os braços para enfurecer as ondas do oceano e lançá-las ao encontro daqueles que a ameaçavam. Os seus cabelos agitavam-se ao vento, qual bandeira ensangüentada, os seus olhos chamejavam poder e o seu riso cruel estourou os meus ouvidos, no momento em que uma onda se abateu sobre um barco e o esmagou contra os rochedos aguçados. Mais se seguiriam se eu não agisse rápido.
A prudência e a fraqueza foram totalmente esquecidas, quando eu desmontei e corri até à beira do penhasco. Não permitiria que Throst e o seu povo... o meu povo... encontrassem a morte de forma tão inglória, nem que, para isso, tivesse de esgotar o último fôlego que vivia em mim!
Arranquei a pedra mágica do pescoço e ergui-a sobre a cabeça, enquanto os meus lábios murmuravam um encanto ancestral. Não saberia Gwendalin que eu já vencera o seu mentor neste jogo? O exercício não passaria de uma reles brincadeira, se eu não me sentisse tão debilitada. Fui fustigada pela chuva, e as chicotadas de vento rasgaram-me a roupa, arrancaram-me cabelos e laceraram-me a pele. A bruxa sabia que possuía a vantagem e empenhava todo o seu ardor neste esforço. Mas eu jamais desistiria! Gwendalin lutava por ódio e vingança... Eu lutava por amor!
Nem pestanejei quando o raio me atingiu. A energia queimou-me por dentro, mas agüentei firme, mesmo quando a dor parecia insuportável, apelando a forças que, até então, dormiam no meu espírito. De repente, vi-a diante de mim, o rosto belo desfigurado por uma careta irada e o corpo voluptuoso suado pelo esforço. E desafiei-a, sem medir as conseqüências:
- Isto é o teu melhor, bruxa?
- Maldita! - vergastou a voz que eu mantivera viva nos meus piores pesadelos. - Irás morrer, Catelyn McGraw! Irás arder no fundo do inferno!
- Talvez... - repliquei. - Mas não ainda!
Agarrei o raio com a força da vontade e arremessei-o para fora da minha carne. A energia ardente atingiu Gwendalin em pleno rosto, e a sua imagem desvaneceu-se. Com um último e extremo esforço, capturei o vento e lancei-o sobre as nuvens, que se rasgaram e dissiparam lentamente. Dois braços fortes rodearam-me, salvando-me de um tombo fatal nas rochas. Não precisei de olhar para saber que Berchan viera ajudar-me. Respirei devagar, assimilando a sua energia para me manter desperta. Não podia desmaiar agora!
A ondulação que quase afundara os barcos embalou-os em segurança até à praia. Assim que os homens saltaram para a água e começaram a correr na areia, reconheci Throst entre eles, envergando orgulhosamente a pele do Lobo Cinzento que habitava a sua alma guerreira.
Edwin reuniu os poucos homens que podia dispensar do confronto contra McKie e bloqueou corajosamente o avanço viking. Ordenou aos irmãos que recuassem para a fortaleza, mas nenhum de nós lhe obedeceu. Berchan observou o ferimento de Stefan e verificou, aliviado, que fora um corte sem conseqüências. A barra do meu vestido serviu para ligá-lo e estancar a hemorragia. Enquanto descansava junto deles, eu interroguei-me sobre o que iria acontecer quando Edwin e Throst se encarassem. Mantive-me firme, de olhos postos na maré humana que avançava, reconhecendo rostos e escutando as suas vozes aguerridas.
A pequena coruja pairou por cima da minha cabeça, antes de regressar ao forte onde Edwina aguardava pela sua proteção. Compreendi a razão por que ela nos abandonara e tentei inutilmente encontrar Hakon entre os seus. Eu necessitava da sua ajuda para despertar a consciência de Throst e convencê-lo a partir. Ele não devia ter vindo! Esta ousadia podia custar-lhe a vida! Mesmo assim, todo o meu ser vibrava de alegria a cada passo corrido que diminuía a distância que nos separava.
Throst gritou uma ordem e Durin soprou a sua corneta. De imediato, todos os Vikings se detiveram. O capitão continuou ao nosso encontro, num passo firme e decidido, acompanhado por Krum. Os olhos azuis, que eu perdera a esperança de rever, tiraram-me o fôlego, antes de se fixarem em Edwin com a intensidade de dois sóis. A poucos passos do líder dos Aliados, Throst estacou e exclamou com firmeza:
- O meu nome é Throst, filho de Thorgrim. Estou aqui para honrar a palavra dada pelo povo viking a Edwin McGraw, por ordem do nosso rei eleito Steinarr... Lutar e morrer lado a lado!
Enquanto Krum traduzia, eu ponderava o muito que custara a Throst engolir o orgulho e proferir estas palavras. Afinal, além de toda a história que os separava, Edwin já tivera a sua vida nas mãos. Orei para que o meu irmão fosse sensato. Eu apercebia-me do seu conflito. Edwin dividia-se entre as questões pessoais e a perspectiva do apoio de mais de uma centena de guerreiros extraordinários. Desta vez, o senhor da guerra venceu o homem, e Edwin retorquiu, no mesmo tom que Throst utilizara:
- O acordo que celebrei com Gunnulf foi ferido pela traição. Porém, considerarei o gesto do vosso rei eleito como uma prova de boa vontade. Aceito o vosso apoio, Throst, filho de Thorgrim... Iremos lutar e morrer lado a lado!
Todos os meus pêlos se eriçaram quando Edwin proferiu os votos que consolidavam o pacto. Por mais que a ajuda dos Vikings fosse decisiva, era inegável que a situação acabara de escapar-se por entre os meus dedos. Tive essa confirmação logo a seguir, quando Throst empunhou a sua espada e a ergueu, gritando a plenos pulmões enquanto me encarava:
- Irei lutar e morrer pela minha senhora!
Não houve tradução, e um coro estrondoso de vozes uniu-se à do líder:
- Iremos lutar e morrer pela nossa senhora!
Em pânico, eu fitei Krum e tentei chamá-lo à razão:
”Não podeis fazer isto! Esta luta não é vossa!”
Sem sequer pestanejar, ele volveu:
”Esta luta pertence a todos os povos livres! Se a serva das trevas vencer, a sombra da escravidão não conhecerá fronteiras. Não te preocupes conosco, prima. Cumpre a tua missão com serenidade e não desprezes aqueles que desejam partilhar do teu destino.”
Eu engoli em seco, cega pelas lágrimas. Krum tinha razão! Se até Edwin fora forçado a espezinhar o seu orgulho, devido às circunstâncias, eu não podia ser egoísta e deixar-me dominar pelo temor. Instintivamente, tomei a espada de Stefan e ergui-a em saudação àqueles homens que o meu pensamento nunca abandonara. Os seus gritos de ovação tornaram-se ensurdecedores, e o amor latejou no olhar de Throst. Porém, eu contive-me de corresponder-lhe. Nessa questão teria de ser irredutível, ou estaria a condená-lo à morte.
Os Vikings instalaram o seu acampamento nas ruínas da Aldeia da Fortaleza. Os nossos soldados regressaram ao forte, esgotados e feridos, mas com a esperança renascida. Apesar de o exército inimigo ter recuado para a segurança da floresta, sofrera baixas consideráveis e demoraria para reorganizar-se, o que nos colocava em vantagem, já que desfrutávamos do reforço dos Homens do Norte. Além disso, todos imaginavam que Edwin planeava uma ofensiva arrasadora que lhes traria uma vitória fácil, embora só os chefes conhecessem o nosso plano. O ideal seria executá-lo nessa mesma noite, mas a minha fraqueza afastou tal possibilidade. Como podia eu enfrentar Gwendalin se mal tinha alento para falar?
Descansei o mais que pude, permitindo que Enya cuidasse de Edwina. Eu tinha a certeza de que Edwin solicitaria a presença de Throst na fortaleza, por isso instruí um dos moços de recados para que me informasse de qualquer novidade. Já era tarde quando o pequeno veio avisar-me de que o seu irmão fora ao acampamento viking chamar o ”Lobo Gigante”. Arranjei-me e desci num piscar de olhos. Eu não podia perder este encontro.
Quando entrei no salão, o olhar dos meus irmãos denunciou-me a apreensão de Berchan, a satisfação de Stefan e a contrariedade de Edwin, que se apressou a dispensar-me:
- A tua presença aqui não é necessária, Cat! Volta para a cama!
- O Edwin tem razão - apoiou Berchan, surpreendendo-me.
- A nossa vantagem diminui a cada instante que passa. Tens de recuperar as forças...
- A nossa irmã tem todo o direito de assistir a esta reunião!
- acudiu Stefan de imediato. - Além de ser uma McGraw, também irá participar na ofensiva e estará mais bem preparada para reagir se conhecer as posições e as intenções de todos os homens.
O meu olhar agradeceu-lhe. Ignorando a recomendação de Berchan e a fúria de Edwin, eu sentei-me num cadeirão e empinei o nariz em desafio. Se eles quisessem livrar-se de mim, teriam de carregar-me até ao quarto! Edwin parecia ponderar essa hipótese, no momento em que as portas se abriram e Throst e Krum entraram. A voz de Berchan ecoou na minha mente, num tom de aceso alerta:
”Não importa o que aconteça, não interfiras! Irás piorar gravemente a tua situação se o fizeres!” Edwin manteve-se severo e gélido ante a saudação dos Vikings, contrariado por Stefan, que os abraçou calorosamente. Por fim, os visitantes cumprimentaram Berchan com deferência - Throst curioso, Krum muito emocionado:
- É um prazer e uma honra conhecer-te finalmente, primo! exclamou na nossa língua. - Espero que, em tempos mais calmos, possamos conversar sem pressa ou constrangimento.
Berchan apertou a mão de Krum e retribuiu o sorriso.
- É também esse o meu desejo, primo!
Throst parou diante de mim, curvou-se e beijou-me a mão, prolongando o contacto até eu desejar esquecer tudo e cair nos seus braços. A minha tentativa de esconder os pulsos foi inútil. Ele viu o bracelete, símbolo da nossa união, e as tatuagens do dragão, herança da sua linhagem. Os seus olhos brilharam e o rosto iluminou-se num sorriso deliciado.
- Devo agradecer-te novamente pela minha vida e pelas vidas dos meus homens, senhora minha - murmurou respeitosamente, atento ao olhar aniquilador de Edwin. - Estou muito feliz por tornar a ver-te!
Krum apertou-me as mãos e ofereceu-me um sorriso que lhe tocou as orelhas.
- É um prazer encontrar-te bem, prima! Todos nós sentimos a tua falta!
O que se seguiu seria digno de registro. Edwin falava, Krum traduzia. Throst falava, Berchan traduzia. E eu assombrava-me ao verificar as semelhanças que existiam entre o meu irmão mais velho e o meu marido. Se, numa eventualidade que eu nem me atrevia a admitir, um dia eles se enfrentassem, era impossível prever qual dos dois venceria... Não, não era! Edwin mataria Throst, não porque fosse mais forte, mas porque o movia um rancor que não escutava a razão. O amor que Throst me devotava seria a sua perda, pois não teria coragem de derramar o meu sangue.
Edwin iniciou a conversa num tom crispado e frio:
- Chamei-te aqui, Throst, filho de Thorgrim, porque me constou que és um homem de honra e não um traidor nojento como Gunnulf. Espero que não existam assuntos pendentes entre nós, quando esta conversa terminar.
Throst respondeu-lhe à altura, justificando que o seu povo não apoiara a traição de Gunnulf e que a sua presença na Grande Ilha definia a posição de Steinarr, rei do povo viking, quanto ao acordo firmado. Todavia, Edwin não estava satisfeito:
- Eu já percebi qual é a vontade do rei Steinarr. Agora, quero saber qual é a vontade do homem que tenho diante de mim. Não vou estar com rodeios. A nossa história de vida separa-nos, muito para além das disputas de Aliados e Vikings. Ambos temos questões pessoais pendentes que tornariam esta reunião impossível em circunstâncias normais. Será que posso confiar realmente em ti, filho de Thorgrim?
O olhar verde chispou de encontro ao olhar azul. Temi que Throst se ofendesse, mas ele permaneceu impassível, mirando-me de relance, antes de retrucar:
- A solução do conflito que vivemos é mais importante do que um acerto pessoal. No que me diz respeito, McGraw, as questões de que falas estão ultrapassadas. Nenhum de nós ganhará em reavivar ódios. Se é da minha lealdade em batalha que duvidas, dou-te a minha palavra de honra que defenderei a tua vida, mesmo à custa da minha, com o mesmo empenho com que defenderei a vida do meu rei, em qualquer circunstância.
Edwin pareceu agradado, mas o seu tom não se suavizou:
- Eu partilho da tua vontade de sanar as nossas divergências. Estou disposto a esquecer as dívidas de sangue e a avançar para um entendimento, para o bem da nossa gente. Porém, antes de mais, quero definir a situação da minha irmã Catelyn. - O meu coração tropeçou ao entender o que ele pretendia. - Tomei conhecimento do que se passou entre vós e devo deixar claro que, apesar de te ser grato pela hospitalidade que manifestaste, fiquei profundamente contrariado por saber que a tomaste para tua mulher...
- Eu apaixonei-me pela tua irmã assim que a vi - cortou Throst, impedindo-o de continuar. - Se sabes o que se passou conosco, compreenderás que casamos porque nos amamos e desejamos ficar juntos. Admito que não foi correto da minha parte ter avançado sem o vosso consentimento, mas desejo remediar essa falha. Farei o que for necessário, segundo as vossas tradições e leis, para que o nosso casamento seja reconhecido por todos e abençoado por vós.
Senti-me à beira de um desmaio quando ele terminou. Tudo o que eu devia evitar estava a acontecer. E o Berchan tinha razão! Interferir agora feriria de morte a reduzida esperança que me acalentava. Edwin não tardou a objetar num tom ferino:
- Segundo a nossa lei, o vosso casamento não é válido nem nunca será! A Catelyn está sob a minha proteção, e eu jamais consentirei nesse desvario! Se realmente desejas a paz, filho de Thorgrim, terás de acatar esta decisão.
Throst fez-se rubro, e eu julguei que era o fim. Quando o seu olhar me procurou, encontrou uma súplica declarada. Porém, apesar de entender a minha mensagem, ele não estava disposto a renunciar ao que lhe pertencia por direito. Respirou fundo e voltou a enfrentar o meu irmão, rebatendo entredentes:
- Para ti o amor é um desvario, McGraw? Acreditas que a união sagrada de um homem e de uma mulher, debaixo do olhar dos deuses, profetizada antes do nascimento de ambos, pode ser contrariada pela má vontade de um homem?
Quando Berchan acabou de traduzir, o rosto de Edwin estava mais afogueado do que o de Throst.
- Este é um assunto onde tu não tens poder de argumentação, filho de Thorgrim - replicou, perigosamente baixo. - Eu não admitirei que te aproximes da Catelyn! Se a minha resolução não te agrada, reúne os teus homens e volta para casa.
Throst cerrou os punhos, e eu receei que ele fosse mandar Edwin para o inferno. Contudo, mais uma vez, o guerreiro-lobo provou a sua moderação, replicando friamente:
- A minha palavra é apenas uma, McGraw! Jurei que lutaria ao teu lado e a nossa divergência em nada altera a minha determinação. Contudo, devo avisar-te de que esta questão não está encerrada! A Catelyn é minha mulher e eu não desistirei dela... Nunca!
Sem permitir resposta, saiu desembestado com Krum a correr atrás, para acompanhá-lo.
Eu sentia-me capaz de agredir Edwin, de lhe arrancar a pele da carne, a carne dos ossos... Por que introduzira ele um assunto tão delicado, num momento em que devíamos celebrar o início de uma trégua? Como pudera expor-me a tamanha humilhação e sofrimento, sem sequer me consultar? Eu estava prestes a atacá-lo com toda a ferocidade da minha indignação, quando Stefan se adiantou:
- Como te atreveste, Edwin? - gritou exaltado. - O homem tinha acabado de te declarar a sua lealdade, pelo amor de Deus! Tens noção do muito que podias ter comprometido com essa tua teimosia alucinada?
- Eu limitei-me a testar a sua sinceridade! - volveu Edwin com indiferença. - Além disso, não podia permitir que esse selvagem pensasse que tinha o direito de exigir os favores da Cat, em troca da sua colaboração!
- Eu não acredito no que estou a ouvir! - Stefan levou as mãos à cabeça, profundamente revoltado. - Não tens respeito por ninguém? Não existem, para ti, sentimentos sagrados? É evidente que eles se amam! O Throst travou uma dura batalha contra si próprio e a opinião do seu povo, pelo amor da nossa irmã! E, quanto a ela, está diante dos teus olhos a crueldade que acabaste de cometer! Após eles terem ultrapassado tantas dificuldades, serás tu que irás impor-lhes a distância? É esse o teu conceito de justiça?
- Eu não vou discutir contigo! - Edwin deu-nos as costas e preparou-se para partir.
- É claro que não! - berrou Stefan descontrolado. - Sempre que o assunto envolve qualquer sentimento profundo, Lorde Edwin McGraw foge como um cachorro amedrontado. - Edwin estacou e eu receei o pior, mas Stefan não se deteve: - Quão ingênuo foi o Throst, ao apelar para a compreensão do seu amor a alguém que deixou o próprio coração morrer! Já mal te reconheço, irmão! Onde está o jovem apaixonado que todos amávamos? Onde está o homem que combatia a injustiça com todas as suas forças? Não podes condenar a felicidade dos outros só porque não tens coragem de buscar a tua! O Throst é um excelente homem e um dos melhores guerreiros que eu tenho a honra de conhecer. Dentro do nosso povo, a Cat não escolheria melhor!
Edwin encarou um Berchan sombrio, uma Catelyn prostrada e um Stefan incandescente de fúria, antes de sair sem se dignar a responder.
Foi Stefan quem procurou Throst para lhe explicar o nosso plano de ataque e as armadilhas da floresta. Eu forcei-me a descansar e a esquecer. A severa disciplina que adquirira na Terra Antiga ajudou-me a concentrar-me apenas na minha missão. Não podia falhar àqueles que confiavam e arriscavam a vida por mim. Tinha de ignorar a minha desdita e seguir em frente.
Nessa noite, enquanto os Vikings cercavam a floresta, nós invadíamos as grutas e percorríamos as entranhas da terra, com a firme convicção de que iríamos travar, na casa onde nascêramos, a batalha que decidiria as nossas vidas.
Edwin ia adiante, assumindo-se como o líder da família. Eu não lhe falava desde a discussão e questionava-me se voltaria a fazê-lo. Era-me impossível exprimir por palavras o quanto ele me magoara. O que pretendera afinal? Mostrar que era ele quem mandava? Provar que a sua vontade imperava sobre a nossa? Eu sabia que devia obedecer-lhe, mas não tinha de ficar contente por isso! Aliviava-me a certeza de que, se o pesadelo terminasse com o nosso triunfo, Stefan não abdicaria da sua felicidade e paz de espírito para definhar junto do frustrado Edwin. Pelo menos um de nós ultrapassaria a maldição com a cabeça erguida.
Berchan seguia ao meu lado, silencioso como uma sombra. Os seus pensamentos estavam vedados, mas eu tinha a certeza de que não divergiam dos meus. Berchan só não se insurgira contra Edwin porque ainda acalentava a esperança de salvá-lo das trevas. Eu já não sabia no que acreditar.
Após o nascimento de Edwina, Edwin aproximara-se bastante. Era louco pela bebê e tratava-a como se fosse sua filha. Porém, a chegada de Throst reavivara a sua mágoa e distorcera-lhe a vontade, colocando-o novamente longe do nosso alcance.
Depois de uma caminhada que me pareceu interminável, o túnel desembocou exatamente onde Edwin previra. Graças ao apoio da coruja, nós sabíamos onde enfrentar a resistência, por isso atacamos com precisão e eficácia, surpreendendo o inimigo. Ao amanhecer, chegamos à Casa Grande, onde esperávamos encontrar Gwendalin vulnerável, já que Lorde Cearnach combatia na frente da batalha. Eu percebi que algo estava errado assim que nos aproximamos. O ar cheirava a morte, tresandava a desgraça... mas o que realmente o empestava era o silêncio. Nunca se ouvira um sossego assim, profundo como uma barreira impenetrável.
Rever a casa onde nasci e cresci causou-me uma forte repulsa. Tudo estava impregnado de maldade, conspurcado pela mão da feiticeira. O jardim mais parecia um pântano esquecido pela esperança. Não existiam flores ou arbustos que tivessem sobrevivido à ocupação de Gwendalin, e até as ervas daninhas dificilmente cresciam na escuridão podre e nauseabunda. Os nossos guerreiros entreolhavam-se apreensivos, enquanto avançávamos, ocultos pelos esqueletos cinzentos das árvores.
Não havia uma janela aberta, mas a porta sólida estava escancarada, meio tombada nos gonzos como se tivesse sido arrombada. A casa encontrava-se mergulhada na mais completa escuridão. Troquei um olhar com Berchan, apenas para confirmar que também ele não detectava a presença de nenhuma criatura viva. Fiz sinal a Edwin para que me deixasse passar. Antes que se acendesse qualquer luz, eu queria certificar-me de que não seríamos vítimas de uma armadilha.
Um vento gélido soprava encostado às paredes, e era dele que provinha o fedor que eu sentira lá fora. Não tardei a perceber a razão e, só a custo, abafei um grito. Sacudida por arrepios de horror, criei uma chama na palma da minha mão, para que todos testemunhassem o pesadelo que se estendia diante de nós. Os guardas da propriedade não nos haviam interceptado porque estavam mortos. Os seus cadáveres jaziam pelo chão, empilhados em posições estranhas que denunciavam uma agonia extrema. Gwendalin continuava a necessitar de alimentar-se de vida e não hesitara em sacrificar aqueles que Lorde Cearnach deixara para protegê-la.
- A bruxa não está aqui - constatei, fixando o assombrado grupo.
- Mas não partiu há muito - informou Stefan, examinando os corpos. - Eles ainda estão quentes!
- Myrna esteve a recolher energia para regenerar o seu poder - concluiu Berchan a meia voz.
- Decerto pressentiu a nossa chegada e fugiu sem demora - continuou Stefan.
- Então, não pode estar longe! - replicou Edwin irado, com a frustração a latejar-lhe nas faces. - Não conseguis descobrir para onde ela foi? Cat? Berchan?
Apesar de falarmos baixo, as nossas vozes ecoavam como trovões. Dei por mim a recordar-me das palavras de Sigarr, com os sentidos bloqueados pela maldade da criatura que destroçara o nosso lar. Gwendalin não tinha respeito pela vida, pela beleza, pela inocência, nem mesmo quando podia usá-las em proveito próprio como o mestre da Arte Obscura fazia. Enquanto Sigarr se rodeava de opulência, a sua pupila aniquilava e consumia tudo em que tocava.
Berchan permaneceu em silêncio, sofrendo para além do meu entendimento, como se os anos de treino intenso não o tivessem preparado para enfrentar tamanho horror. A custo, eu concentrei-me e estudei a energia que nos envolvia. Não existia uma alma viva dentro da casa.
- Preciso de tempo, Edwin - murmurei sufocada. - A pressão é muito grande...
- Eu não estou a pressionar-te, Cat! Fica calma! Talvez a casa nos revele algo acerca do paradeiro da bruxa.
O grito de um soldado fez-nos saltar, alarmados. Corri atrás dos meus irmãos, seguindo as velas suspensas nos castiçais, acesas pelos homens na sua exploração. No salão esperava-nos a maior das comoções. Aquele que fora o espaço de eleição para as festas dos McGraw encontrava-se vazio. Todos os móveis, tapeçarias e peças de arte tinham desaparecido e, também ali, os cadáveres se amontoavam. Porém, não eram soldados de McKie, mas velhos amigos nossos – os criados da casa, que Gwendalin não permitira que partissem após a batalha da Enseada da Fortaleza. Os seus corpos haviam sido mutilados, e o sangue, usado para escrever os nomes dos herdeiros de Aranwen nas paredes nuas.
Enquanto os meus olhos percorriam esta abominação, deparei com uma única cadeira no centro do salão - a cadeira de balouço que pertencera à Senhora Edwina. Sentado nela, estava um esqueleto, vestido com um rico traje de noite. Nenhum dos McGraw precisou de se esforçar para reconhecer o corpo profanado da nossa mãe.
- Maldita! - berrou Edwin, libertando o fulgor do seu ódio.
- Revela-te, criatura hedionda! Enfrenta-nos, se tens um pingo de coragem!
Berchan recolheu-me nos seus braços, enquanto Stefan cobria os restos mortais da nossa mãe com a sua capa. Amparada pelo meu irmão, eu voltei as costas à visão pavorosa e chorei até perder as forças. Ouvi Edwin ordenar que sepultassem a Senhora Edwina no terreno que fora o seu amado jardim e, depois, os guerreiros espalharam-se para se certificarem de que a área estava segura e de que, nem a bruxa nem Lorde Cearnach, tornariam a pisar na nossa propriedade.
Os cadáveres foram removidos para o exterior, onde aguardariam pelas devidas homenagens. Muitos dos nossos criados haviam-se convertido à fé cristã, e eu tinha a certeza de que eles desejariam que um padre estivesse presente para entregar as suas almas a Deus. Já que não pudéramos valer-lhes em vida, pelo menos dar-lhes-íamos um funeral digno.
O tremor de Berchan era indisfarçável. Gwendalin atingira-nos no que guardávamos de mais puro e sagrado. Stefan aproximou-se e pediu-nos que observássemos as paredes. A nossa perturbação não nos permitira reparar num detalhe grave. A bruxa escrevera apenas cinco nomes: Aled, Berchan, Stefan, Quinn e Catelyn. Cinco vítimas! Era óbvio por que razão o nome de Fiona não constava... e adivinhava-se que Gwendalin também tinha outros planos para Edwin, que não a morte. Mesmo ao nosso lado, ele libertou um gemido angustiado:
- Esperava que o meu filho estivesse aqui... Vivo ou morto... Eu só queria encontrá-lo!
Ninguém soube o que responder. Gwendalin certamente fugira com a criança para longe do nosso alcance. Abracei Edwin sem ressentimento, comovida pelo seu desgosto e partilhando da sua dor. Não podíamos continuar zangados. A desunião seria o nosso fim.
- A bruxa também levou a nossa irmã - mastigou Stefan, estrangulado pela impotência. - Lamento, mas acho que não conseguiremos deitar-lhe a mão tão cedo!
Eu sentia-me à deriva, e Berchan estava da cor das vestes que o cobriam. Apesar de tudo, foi Edwin quem reagiu primeiro:
- Não vamos cruzar os braços e chorar só porque falhamos uma ofensiva. Temos de aproveitar esta vantagem. Stefan, tu ficarás aqui com homens suficientes para defender a nossa posição. A Casa Grande não tornará a cair no domínio daquela maldita! Berchan, tu regressarás ao forte com uma pequena escolta. Lá, os homens precisam dos teus cuidados. E tu, Cat... - Segurou-me pelos ombros e fixou o meu olhar. - Virás comigo ao encontro das tropas? A tua presença irá moralizar os guerreiros. A bruxa pode ter escapado, mas nós não perderemos a guerra contra McKie!
Edwin não precisava de esforçar-se para convencer-me. Já que o confronto com Gwendalin não terminara como nós planeávamos, pelo menos lutaríamos pela libertação do nosso povo.
- Muito bem, homens! - continuou ele, reagrupando-os e distribuindo as ordens. - Vamos ao encontro do traidor! Lutaremos com toda a nossa garra para que Cearnach McKie não vislumbre outro amanhecer! Pela paz! Pela Grande Ilha! Pelo nosso futuro!
O clamor ensurdecedor dos soldados abafou o fulgor do líder.
Corremos ao encontro da retaguarda do ataque daquele que fora o melhor amigo do nosso pai, que nos segurara ao colo, que comera à nossa mesa e que, tal como tantos outros, vendera a alma à demoníaca feiticeira. Vestida como os guerreiros, eu misturava-me sem dificuldade, lutando pelo mesmo sonho, entregando a vida com um sorriso nos lábios, para que os nossos filhos pudessem conhecer o calor da paz. Porém, a minha mente não se preenchia com o frenesi que impelia os homens adiante, de espada em riste. O meu instinto avisava-me de que nada do que deixávamos para trás fazia sentido.
Por que razão Gwendalin abandonara a casa, que poderia servir-lhe de refúgio durante muitos dias, e ainda se dera ao trabalho de engendrar tão gigantesca e macabra encenação? Era evidente que a sorte da guerra já não lhe importava. Agora que Lorde Cearnach deixara de servir os seus propósitos, ela desamparara-o, tal como entregara à morte todos os homens que a tinham amado. O filho e Fiona eram os únicos a quem devotava o seu afeto... e a Edwin... Teria a bruxa recuado para poupar a vida do meu irmão, desistindo das suas ambições imediatas para ver o filho crescer e, mais tarde, tentar atrair Edwin usando a criança como isco? Não! Gwendalin jamais desistiria de destruir a nossa família e apoderar-se das pedras mágicas! E o próximo alvo seria Berchan. A maldição assim o ordenava.
Sem a proteção de Gwendalin, os soldados de McKie tombavam como moscas. Nem o esconderijo das árvores os salvava, pois eu sentia o cheiro da traição e forçava-os a enfrentar a sua sorte. Não descansaria enquanto não limpasse a minha floresta desta praga! Muitos já haviam desertado e outros tantos entregavam-se como prisioneiros. Os que não se rendiam pereciam no ferro de Edwin e dos seus bravos. Utilizamos os cavalos que íamos encontrando para avançar sem temor. Já muito perto, os berros aguerridos dos Vikings estrondeavam. Então, de súbito, os meus ouvidos distinguiram claramente o pio longo, agudo e inconfundível da coruja de Hakon, sobrepondo-se ao clamor da batalha.
- Edwin - gritei. - Ouviste?
- O quê?
- A coruja...
- Que coruja, Cat? - retrucou Edwin, enquanto sacudia um inimigo que saltara de uma árvore, tentando derrubá-lo do cavalo, e o trespassava com a espada. - O pássaro não ficou no forte?
O apelo repetiu-se e, desta vez, eu compreendi a razão por que o meu irmão não o escutava. A coruja não viera até nós. O seu alerta destinava-se apenas ao meu espírito.
- Edwina... - murmurei, engasgada pelo pânico, ao recordar o que há pouco concluíra acerca das prioridades da caçadora de pedras mágicas. - A bruxa está atrás do Berchan... Edwin! - bradei, sentindo a ameaça esmagar-nos. - Temos de ir para o forte! Já!
Galopei com o vento, atravessando o campo de batalha durante a noite, alheia ao perigo. Cega de desespero, passei pelos homens de McKie, por Aliados e Vikings, sem os distinguir. A concretizar-se o meu temor, nós estaríamos perdidos! Mesmo que Berchan chegasse a tempo de enfrentar Gwendalin, não conseguiria vencê-la sozinho. A maldição faria mais uma vítima, e a minha filha ficaria à mercê da bruxa.
Quando entrei no forte, com o Sol a erguer-se para um novo dia, questionei-me sobre a minha lucidez. Estaria o cansaço a pregar-me uma partida? Eu não sentia a essência de Gwendalin e via-me rodeada pela normalidade possível de um reduto de guerra, onde os homens se atarefavam com a defesa e a chegada dos feridos. De acordo com os sentinelas, ninguém passara pelo portão sem ser identificado e revistado, como Edwin ordenara. Só me restava encontrar Berchan para acalmar a minha angústia... Fui trespassada por espigões de gelo, quando o meu apelo mental confirmou o pior. O espírito de Berchan lutava desesperadamente contra uma sombra densa que ameaçava devorá-lo... e cedia agonizante, cada vez mais fraco.
Gritei por Edwin e segui o apelo da coruja, que surgia por cima das nossas cabeças e nos conduzia até à torre onde ficava o meu quarto... o quarto de Edwina. Por isso Gwendalin se dera a tanto trabalho! Neste momento, o seu principal objetivo era eliminar a minha bebê, para assegurar o destino do seu filho.
Irrompi pelo quarto, com Edwin empunhando a sua espada atrás de mim, e deparei com dois corpos estendidos no chão. Enya estava desacordada junto do berço de Edwina e, a poucos passos, Berchan jazia prostrado, cinzento como um cadáver. O instinto de socorrê-los foi abruptamente cortado pela percepção de uma mulher majestosa e elegante, que se movia com tal leveza que dir-se-ia que o próprio ar assumira a forma humana.
Gwendalin enfeitara-se como se fosse para um baile. O seu vestido escarlate, decotado e vaporoso, fazia um contraste impressionante com a sua pele branca. Ao pescoço, trazia um colar de ouro com cinco pedras penduradas: uma laranja, uma violeta, uma verde, uma vermelha... e uma branca! Os seus cabelos rubros estavam presos por uma tiara e ganchos que seriam a inveja de uma rainha. Não envelhecera um dia e, se possível, estava ainda mais bonita. Rasgou um grande sorriso, como se jubilasse por encontrar velhos amigos, e cumprimentou-nos na sua voz de rouxinol:
- Mas que prazer inesperado, encontrar os meus enteados reunidos! O vosso irmão ficou tão emocionado por me rever, que até perdeu os sentidos! - Riu do seu próprio gracejo e levou a mão ao pescoço, deslizando a pedra branca por entre os dedos. - O Berchan sabe como agradar a uma mulher! O seu presente deixou-me imensamente feliz. Em breve, terei a maior prova do vosso afeto... as sete pedras no meu colar!
As minhas entranhas contorceram-se e o meu sangue ferveu. Dei um passo em frente e cerrei os punhos, enquanto bradava:
- Se mataste o Berchan, bruxa maldita, eu...
- Minha querida, Catelyn! - cortou ela, fingindo-se horrorizada.
- Tomas-me por uma simplória sem imaginação? Para o druida, a morte seria muito simples, definitiva e reconfortante. Não! O Berchan não está morto! Só está fora do alcance dos mortais... num lugar onde a sua alma virtuosa terá oportunidade de medir forças com os horrores do outro mundo. Estou convicta de que ele irá divertir-se... Tanto como nós! Ergueu uma mão, e eu senti a pressão da sua vontade a esmagar-me os ossos da cabeça. Construí dolorosamente uma proteção, apelando ao treino e aos ensinamentos dos cristais. Por enquanto, a feiticeira não conseguiria vergar-me, mas a minha resistência não perduraria. Há dois dias que eu mal dormia e comia, ao mesmo tempo que me submetia a um esforço físico e mental violento. Estava trêmula e transpirava inquietação. Diante de Gwendalin, enfrentando a derrota de Berchan, toda a minha confiança se desmoronava. Ao meu lado, Edwin experimentava um tormento semelhante. Porém, a sua mente não possuía defesas. O meu irmão era novamente um escravo dos caprichos da bruxa.
- Tive tantas saudades tuas, meu valoroso guerreiro - miou Gwendalin, acariciando-lhe as faces e o peito. - O mais bravo de entre os bravos, o mais puro de entre os puros... O mais belo de entre os belos!
- Os seus lábios, da cor dos morangos maduros, esboçaram um sorriso sedutor. - Acreditas realmente que podes resistir-me, Edwin? Pensas que a tua mente me esconde segredos? Estás a perguntar-te... O que fazer? Entregar a preciosa irmãzinha à morte... ou ceder? Julgas que te deixarei escolher? Tudo o que eu quero está ao meu alcance: a pedra azul no pescoço de uma falhada, e a pedra amarela no pescoço de um imbecil. O que me falta? Oh, sim! Falta-me decidir o que fazer contigo! Mas isso só dependerá de ti, meu amante ardente... Sabes que dei o teu nome ao fruto do nosso amor? O nosso Edwin nasceu com os teus olhos, os teus cabelos, a tua força, a tua garra... e o meu poder!
A dor de Edwin trespassou-me. As lágrimas escorriam pelo seu rosto, mas o corpo não lhe obedecia. Para mim, também era difícil reagir, mas teria de fazê-lo ou estaríamos condenados. Contudo, só no momento certo...
- Tiveste uma linda menina, Catelyn - continuou ela, presenteando-me com a sua atenção. - Uma princesinha abençoada! A filha do líder da alcatéia! O grande Sigarr ficará possesso quando descobrir o logro. Mas não te preocupes! Eu poupar-te-ei ao incômodo de enfrentá-lo. Em breve, o Sigarr morrerá. Porém, lamentavelmente, tu também não viverás o suficiente para testemunhares a minha vitória! Quanto à tua cria...
Esboçou um gesto na direção do berço, e eu reagi instintivamente, rugindo com a exaltação de uma fera atacada:
- Não te atrevas a tocar na minha filha!
- E quem me impedirá? - escarneceu Gwendalin. - Tu?
Ver Edwina em perigo fez-me esquecer a razão. Reuni todo o meu ímpeto num só fôlego e arremessei uma bola de chamas contra a funesta criatura. O meu coração parou quando ela amparou a esfera ardente com um gesto simples, gargalhando estridentemente:
- O nosso mestre ensinou-te bem! - O seu rosto desfigurou-se num esgar de desprezo. - Sinto muito, querida... Mas eu já sei fazer melhor!
Devolveu o fogo e, só a custo, eu consegui proteger-me. Contudo, o esforço arrasou-me e acabei por cair desamparada, destroçada pelos urros hilariantes da minha inimiga:
- Pobre criança! Os teus mentores não te ensinaram a não desperdiçar energia se não puderes recuperá-la rapidamente? A nossa troca de mimos deixou-nos exaustas! Felizmente, eu tive muitas fontes de energia para me restabelecer. Aqueles belos rapazes, cheios de vitalidade, entregaram-se à morte com um sorriso nos lábios; tudo por um beijo meu! Deverias ter aprendido como se faz, em vez de perderes o teu tempo com magias menores!
Enquanto Gwendalin se vangloriava, eu repreendia-me severamente. E se ela se tivesse lembrado de atacar Edwina com o fogo? Eu fora muito imprudente! Tinha de acalmar-me e afastá-la da minha filha a todo o custo! Forcei-me a não reagir quando a bruxa me atirou contra a parede. Fiquei suspensa no ar, sem piscar os olhos, ouvindo-a ronronar:
- Eu podia matar-te já... Mas, seria demasiado fácil, demasiado rápido e sem sabor! Vamos tornar este momento inesquecível, Catelyn...
A espada caiu da mão de Edwin, e o seu corpo possante foi arrastado até Gwendalin. Senhora da sua vontade, ela tocou-lhe no rosto e murmurou enlevada:
- Tens o perfil de um rei, meu amor! - Esticou-se para beijá-lo nos lábios. -Juntos faremos coisas maravilhosas! E o nosso filho será um deus na Terra!
Horrorizada, eu vi os braços do meu irmão estreitarem a bruxa, enquanto a sua boca a devorava com uma paixão violenta. Ela gemeu, arrebatada pelo ardor, e mal teve força para afastá-lo.
- Calma, querido! Ainda temos muito que fazer... - Recuou um passo, apontando para mim. - Para começar, mata essa imbecil! Os seus criadores pagarão caro pela ousadia de me afrontarem com uma criatura tão estúpida!
Eu sabia que a possessão de Edwin era real. Os seus olhos estavam escuros, raiados de sangue, e os seus dentes expostos na boca que espumava de raiva, quando agarrou na espada e carregou sobre mim. Na sua mente, eu assumia a forma de um monstro grotesco que ele devia chacinar. Gwendalin adquiria o controlo dos homens que possuía... E, de todos, Edwin fora o que ela mais marcara! Mas ele ainda era meu irmão! Soltei a voz e clamei:
- Pára, Edwin!
A bruxa vacilou, ao constatar a fragilidade de um domínio que acreditara ser absoluto. De imediato, tentou vergar a minha resistência mas, desta vez, eu reagi. O meu irmão quedou-se diante de mim com a espada erguida, tremendo convulsivamente, atordoado pelo duelo que eu travava com Gwendalin dentro da sua mente.
- Não a deixes controlar o teu espírito! - estrondeei como um trovão. - Liberta-te, Edwin! Tu tens o amor da nossa mãe, o vigor do nosso pai e a magia da nossa avó dentro de ti! Resiste! Luta!
Edwin arremessou a espada para longe, com um uivo lancinante. O ruído do metal ecoou pelo quarto, enquanto ele apertava a cabeça entre as mãos e tombava de joelhos. Concentrei toda a força que me restava no olhar de Gwendalin, e ela guinchou em agonia, recuando para se defender. Livre do seu domínio, eu caí pesadamente no chão e rastejei até ao meu irmão, abraçando-o.
- Nós somos seis, mas somos um só! - arfei, com os olhos cheios de lágrimas, sentindo o seu tormento a rasgar-me a alma.
- Temos de conseguir, Edwin! Temos de salvar o nosso futuro!
Antes que eu pudesse impedi-lo, Edwin atacou a bruxa, berrando enlouquecido. Para não magoar o homem que desejava, Gwendalin foi forçada a paralisá-lo, e essa distração deu-me tempo para arremeter contra ela e afastá-la do berço de Edwina.
Lutamos como gatas assanhadas. A nossa carne rasgou-se e o sangue escorreu. As garras de Gwendalin enterravam-se na minha pele, sem que eu conseguisse contrariar a sua força. Enquanto me cravejava de dor, a bruxa tentava apossar-se da minha vontade, profanando a minha mente. Fui arrastada para a podridão da sua consciência e afundei-me no negrume glacial da sua alma, onde centenas de vozes condenadas se erguiam em gemidos de desespero e uivos de angústia. Os rostos das vítimas de Gwendalin envolviam-me e sugavam-me a vitalidade, procurando um alívio para o seu tormento. A energia obscura entrava em mim e queimava-me as entranhas, ameaçando rebentar-me por dentro. Sigarr ensinara bem a sua pupila, mas ela aperfeiçoara em muito a magia negra. O que lhe faltava em destreza sobrava-lhe em maldade.
A nossa fúria física arrastou-nos até à varanda, sem que nos apercebêssemos. Os nossos corpos suspendiam-se no ar e das nossas mãos brotavam labaredas e gelo, enquanto as duas mentes guerreavam com o ardor do nosso poder. Sobre nós, o céu escureceu, e o Sol cobriu-se com um véu púrpura. A nossa exaltação atraía raios de energia primitiva que se espalhavam pelas ilhas e por cima do mar, carbonizando tudo onde tocavam. A floresta começou a arder, e os gemidos agoniados das árvores rasgaram os ouvidos dos Homens. O solo fendeu-se, e a rocha separou-se, engolindo casas e vidas. O mar recuou e sob a areia formou-se um manto de gelo preto. O líquido ardente que vivia no coração da Terra começou a subir, misturando-se com o pulsar do nosso sangue.
Gwendalin era o demônio de que os Cristãos falavam; um ser grotesco, sedento de dor humana, insaciável por horror, destruição e morte. E a sua força crescia sem controlo, extraída do interior da Terra, das profundezas do mar e do fogo das estrelas. As pequenas partículas eram estupradas na sua essência, para servirem a vontade da feiticeira, sugadas ferozmente até a sua energia se extinguir e nada restar além de um desmesurado vazio, para onde eu era empurrada... onde o fim me aguardava.
O caos que nos envolvia foi atravessado por um pássaro que se lançou sobre mim. As suas asas chicotearam-me o rosto, e a frágil resistência que ainda me sustinha foi irremediavelmente perdida. Esmaguei-me contra a parede do forte e tombei no chão de pedra, com um gemido de dor. Nesse lapso de tempo irreal, reconheci na coruja de Hakon a responsável pela minha derrota e quase enlouqueci de desespero. Era o fim!
O urro vitorioso de Gwendalin abafou o clamor exaltado dos Elementos. As fendas abertas no solo enchiam-se de fogo líquido. Os raios caíam ao nosso redor, espalhando-se como água sobre a pedra. Encarei a inimiga de todos os seres e encontrei-a envolta numa névoa de brilho negro, com os cabelos esvoaçando em labaredas fulgurantes. O seu braço esbelto ergueu-se devagar, enquanto a sua voz vibrante me lacerava a essência, prenhe de ódio e poder:
- Chegou o momento de enfrentares o teu destino, Catelyn da Grande Ilha... Acredita que nunca existiu outro! Este será o maior prazer...
Subitamente, os seus olhos esbugalharam-se e o seu corpo inclinou-se num trejeito agonizante. Sufocada pelo assombro, eu verifiquei que o pescoço elegante da minha inimiga fora trespassado por uma flecha, e o sangue escorria pela sua pele de leite, com o vigor de um riacho no Inverno. O meu olhar seguiu o de Gwendalin e encontrou Throst empoleirado no torreão vizinho, preparando-se para disparar outra vez. Nesse instante eterno, compreendi que a coruja me atacara para abrir caminho ao guerreiro-lobo. Outra flecha já cortava o ar, mas a feiticeira desfê-la em pó antes que a atingisse, apontando os dedos carregados de energia ao arqueiro.
- Não...
O meu grito perpetuou-se no tempo. Uni as mãos e lancei uma bola de fogo contra Gwendalin. Atingida em pleno peito, a bruxa cambaleou e os raios que disparava falharam Throst por um triz. Ele conseguiu segurar-se à pedra e evitar a queda, mas o seu arco tombou no precipício negro. Os olhos da feiticeira pousaram em mim, vermelhos de ira. A minha derradeira investida não lhe infligira um beliscão. Gwendalin agonizava, mas ainda lhe sobrava muita força para atacar. E foi o que fez. Defendi-me fracamente dos jorros de luz que me chicoteavam, mas a minha energia esgotava-se. A voz da bruxa estrondeou na minha mente, sem uma réstia de melodia, apenas agreste e odiosa, reflexo da sua verdadeira natureza:
”Eu sobreviverei a esta batalha... Mas tu não!”
Descobri que não me restava um pingo de magia para me defender. Quando o raio me atingiu, pensei que estava perdida. A dor foi descomunal, mas o meu corpo agüentou-se... Isso significava que o poder de Gwendalin também fraquejava!
Reagindo por puro instinto, rolei sobre mim própria e evitei o outro raio. Uma vontade alheia à consciência guiou a minha mão até à bota. O medo cruzou o olhar da bruxa quando carreguei sobre ela, empunhando o punhal de Throst, que ganhava vida entre os meus dedos, pulsando como se estivesse em brasa; o fogo da justiça ardendo em antecipação. E foi com todo o arrebatamento da minha existência humana que o enterrei no seu coração maldito.
O silvo de Gwendalin estracinhou-me a razão. Senti-me desfalecer e não tive alento para empurrá-la. As garras fiadas voltaram a aprisionar-me, enquanto o seu corpo pendia sobre o parapeito da varanda, fustigado por espasmos de agonia.
”O meu filho irá destruir-vos... Irá destruir-vos a todos...”
íamos cair as duas! Apelei à força que me restava para suster-me nas pernas, mas não foi suficiente. Gwendalin sorriu, confiante de que eu a seguiria até na morte. Porém, no último instante, uma mão de ferro impediu-me de galgar o parapeito. Enquanto o corpo de Gwendalin se despenhava no vazio, eu fui içada de volta à varanda e caí sobre o peito de Edwin. Ficamos deitados no chão, abraçados com desespero, tremendo sem controlo, chorando como crianças.
- A Edwina...? - perguntei entre soluços. O meu irmão apressou-se a sossegar-me:
- A Enya despertou e levou-a para um lugar seguro.
- E o Berchan?
Edwin suspirou e desviou o rosto. Eu afundei-me no seu pescoço e entreguei-me ao pranto.
À nossa volta, o mundo enlouquecera. O céu continuava negro e o Sol era uma bola de fogo. Um fragor ensurdecedor, semelhante ao rugido de um gigante, aproximava-se a grande velocidade. Erguemos o olhar e vimos o mar regressar, sob a forma de uma onda mais alta do que a própria fortaleza. Ouvi o meu irmão soltar uma prece e fechei os olhos. Então, senti-o...
No torreão vizinho, de onde Throst disparara, um corpo resplandecia esplendorosamente. Eu nunca observara uma manifestação do poder de Hakon e perdi o fôlego ao ver a onda deter-se no ar, para depois se espalhar serenamente no fundo rochoso do mar e na praia coberta de gelo negro. A escuridão começou a desvanecer-se e o Sol a libertar-se do aperto mortal. Uma chuva fresca e purificadora regou a terra, acalmando a agonia da floresta e limpando o desespero dos Homens.
- Pequena!
A voz de Throst era o Sol que rompia as nuvens, o bálsamo que curava todas as minhas feridas, um novo fôlego para o meu corpo esgotado. Apartei-me de Edwin e caí nos braços do meu amor, sôfrega pelos seus beijos, ciente de que muito sofrimento nos aguardava a partir do momento em que os nossos lábios se separassem.
Berchan continuava a resistir com bravura às trevas que lhe envolviam o espírito, talvez esperando que eu lhe estendesse a mão. Todavia, presentemente, eu não passava de uma simples humana no limite da força física, sem uma gota de magia na essência, e todo o meu esforço não seria suficiente para levitar um grão de pó. Desesperei, debruçada sobre o seu corpo inanimado. Sempre sonhara com a felicidade que sentiria quando derrotasse a bruxa e libertasse o meu povo. Contudo, a vitória não me trouxera alegria. Era certo que a ameaça findara... Mas o preço do sucesso fora demasiado elevado! A Grande Ilha estava destroçada, o meu povo, ferido na carne e no espírito... e Berchan... O meu irmão estava perdido!
- Talvez não, se agirmos rápido...
Levantei-me ao encontro de Hakon, dividida entre a alegria de vê-lo, a vontade de abraçá-lo e chorar até aliviar a alma, e a gratidão e o respeito pelo seu poder. ”O Que Tudo Vê” enlaçou as minhas mãos nas suas, antes de continuar:
- Não desistas ainda de pôr um sorriso no teu coração, Catelyn... Este é um dia alegre para o mundo. Não permitiremos que seja um dia triste para os seus salvadores.
- O senhor pode ajudar o meu irmão?
O olhar branco do Guardião da Lágrima do Sol fixou o corpo sem sentidos. Lentamente, inclinou-se sobre Berchan e tocou-lhe na testa. O meu coração apertou-se com a ansiedade. O tempo arrastou-se, até que ele murmurou:
- O feitiço que o condena foi lançado através da ligação que o teu irmão possui com o seu amuleto. Precisamos da pedra branca de Aranwen para desfazer o sortilégio.
Eu sofri um novo susto. Ficara tão atrapalhada com a sucessão de acontecimentos que nem me lembrara de que era imprescindível recuperar as pedras mágicas. Cair nos braços de Throst fizera-me esquecer tudo... E ouvi-lo anunciar que tinha de voltar para junto dos seus homens deixara-me desnorteada. Entretanto, Edwin desaparecera, e eu adivinhava que o nosso reencontro não seria pacífico. A minha entrega a Throst amargara-lhe como uma traição.
Quis precipitar-me em busca do colar de Gwendalin, mas Hakon deteve-me:
- O teu irmão já tratou disso!
Nesse instante, Edwin entrou no quarto, trazendo consigo as pedras da nossa avó e o punhal de Throst. Estacou ao surpreender o visitante e mirou-o de alto a baixo, sem disfarçar a indignação:
- Quem é este velho? O que faz aqui? Tire as mãos de cima do meu irmão...
Tive de sacudir Edwin para que ele me escutasse. Não foi fácil convencê-lo de que estava diante de ”O Que Tudo Vê”, o único com poder para salvar Berchan. Há pouco, o meu irmão vira uma figura colossal, envolta em luz e transpirando excelência. Agora, olhava para um ancião e não conseguia segurar a língua:
- Mas... como pode ser? Ele é um velho cego! Desta vez, o Guardião da Lágrima do Sol reagiu:
- A minha cegueira física é menos grave do que a tua cegueira espiritual, jovem! Se abrisses os olhos do teu coração, serias muito mais feliz! - Deteve o protesto de Edwin com um gesto de autoridade e continuou sem contemplações: - Enquanto a tua intolerância se debate com questões menores, a vida do teu irmão afasta-se e o teu filho agoniza. O tempo esgota-se, para todos nós.
Edwin destruiu a distância que os separava, atrevendo-se a segurar-lhe o braço.
- O senhor sabe onde está o meu filho? Suplico-lhe...
- Só sei que o menino se encontra numa cabana, no interior da floresta.
- Mas existem dezenas de cabanas! - exclamei eu, aflita.
- Eu encontro-o! - replicou Edwin, guardando a sua pedra e entregando-me as restantes. - Eu vou trazê-lo para casa, Cat!
O meu irmão partiu, qual rajada de vento. O suspiro profundo do feiticeiro deixou-me angustiada. Quando lhe estendi a pedra branca, senti-me assombrada pela fatalidade.
- Ele vai encontrá-lo, não vai? - perguntei com um nó na garganta.
Hakon abriu a túnica de Berchan e encostou o amuleto mágico ao seu coração.
- Lamento, mas nada mais posso fazer para ajudar o Edwin. Deixemos que o Criador decida o futuro. Agora, dá-me a tua mão, Catelyn. Combinaremos a luz que me resta e a força do teu amor para libertar este jovem da bruma do esquecimento. E oremos para que não seja tarde...
A força do meu amor conduziu Hakon até Berchan. Em bom tempo, pois a minha energia esgotou-se e eu tombei na inconsciência. Despertei na cama, envolvida no carinho de Enya.
O meu primeiro pensamento foi para Edwina e jubilei por encontrá-la ao meu lado. A minha cunhada também estava satisfeita. Depois do grande cataclismo que abalara a ilha, Bretta tivera o cuidado de enviar um mensageiro para avisá-la de que os garotos se encontravam bem. Stefan acorrera à fortaleza e, depois de tudo explicado, como nada mais podia ser feito para ajudar Berchan, reunira os seus homens e partira no encalço de Edwin.
A batalha contra Mckie continuava acesa no interior da floresta. Throst e os seus guerreiros perseguiam os resistentes que se escondiam nas sombras, mas o meu coração não se inquietava com a sua sorte. O guerreiro-lobo estava habituado a caçar. A Floresta Sagrada iria recebê-lo de braços abertos e guiar os seus passos até aos inimigos que tanto a haviam ferido.
As notícias de Berchan eram inquietantes. O seu espírito regressara ao corpo, mas a sua mente não despertara. O meu irmão estava possuído por febres altas e delírios que o faziam gritar como um condenado. Enya forçou-me a banhar e a comer antes de ir ao seu encontro. Hakon, que se mantinha pacientemente vigilante, recebeu-me com um sorriso:
- Alegra-te, Catelyn... Agora que chegaste, o Berchan não tardará a despertar!
De fato, pouco depois, o meu irmão abria os olhos e entregava-se a um choro convulsivo. As suas palavras eram elucidativas da dor que o consumia:
- Perdoa-me, Cat! Eu falhei...
A minha resposta veio direta do coração:
- Não, Berchan! Sem a tua preciosa ajuda, nunca teríamos chegado a tempo. A Edwina estaria morta e a bruxa teria consumado o seu plano.
- A Catelyn tem razão - apoiou Hakon. - Combater Gwendalin não era a tua sina, meu jovem! A tua missão não se pode resumir ao que se passou ou ao que ainda está para vir, pois jamais terminará. Tu és um condutor de Homens, Berchan da Grande Ilha. Até agora, deves orgulhar-te do teu desempenho, mas não poderás descansar. Há muito para fazer, e esperam-te grandes desafios, qualquer que seja o caminho que escolhas.
Entreguei a Berchan as pedras mágicas da nossa avó e não contive o choro ao recordar a forma inglória como Quinn morrera, abatido à traição pelos vassalos da mulher que ele tanto amara. Mas Hakon apaziguou a minha amargura:
”O Quinn foi um bom homem e a sua passagem abalou muitas consciências dormentes. A vitória que vós festejais também lhe pertence. O seu tormento terminou e está preparado para iniciar outra jornada. A morte não é o fim, Catelyn! Tu sabes isso!”
Quando tomou conhecimento dos pormenores do confronto, Berchan ficou mais calmo e satisfeito. Apertou-me as mãos, partilhando o seu entusiasmo:
- Não percas a esperança, irmãzinha! A intervenção do Throst foi fundamental para o nosso sucesso. O Edwin terá de admitir o seu valor. Talvez reconsidere...
- Não podemos parar uma avalanche depois de esta se desencadear - atalhou Hakon. - Temos de esperar que o seu poder destruidor trace um rumo e, só quando a calmaria o permitir, conseguiremos avaliar os estragos e reconstruir o que foi arrasado. O Edwin precisa de tempo e vós tereis de lho dar. Sinto dizer-vos que esta história não termina com a morte de Gwendalin. A guerra contra o mal que não dorme continuará com os vossos filhos e com os filhos destes. Gwendalin era apenas uma entre muitos, cuja ambição desmedida ameaça aquilo que vós conheceis e amais. Grandes vitórias exigem grandes sacrifícios, e só grandes sacrifícios poderão conduzir-vos a novos triunfos.
Nessa noite, o corpo destroçado de Gwendalin ardeu numa pira funerária. As suas cinzas foram cuidadosamente reunidas e guardadas num pote de ferro inviolável, para que o mal que provinha dela não se espalhasse pela terra, pelo mar ou pelo ar. Nós temíamos que o próprio fogo não tivesse tido vigor para purificar uma criatura tão abominável.
Os mensageiros continuavam a anunciar vitórias. Outro reduto de McKie caíra. De Edwin nada sabíamos, mas estávamos conscientes de que a sua tarefa não era fácil. As dezenas de abrigos de guerreiros e caçadores encontravam-se espalhados por toda a propriedade dos McGraw. Gwendalin certamente escolhera com prudência e sabedoria. A busca poderia demorar muitos dias, e eu temia pela sorte do meu sobrinho.
No retiro do meu quarto, enquanto buscava o sono acariciando os dedos pequeninos de Edwina, eu pensei em Throst, e as lágrimas tombaram-me pelas faces. O meu marido salvara-me a vida... Salvara-nos a todos, porque o seu amor o forçara a seguir-me, quando me vira galopar, louca de aflição, na direção da fortaleza. Mais uma vez, a sua pontaria inigualável fora decisiva! Eu desejava sinceramente que a esperança de Berchan não fosse vã; que a coragem e o altruísmo de Throst tivessem tocado o coração de Edwin.
Acabei por adormecer e tombei num sonho atribulado. Pedaços de vivências desordenadas no tempo confundiam-se na minha mente: um grande banquete com muita comida, bebida, música e o riso dos meus amigos; Edwina correndo por entre as flores de um jardim, com os caracóis louros acariciados pelo vento, soltando gargalhadas que me aqueciam o coração; Berchan erguendo a mão numa última despedida, antes de se unir ao sábios e partir para sempre; o corpo de Throst sobre o meu, envolvendo-me no ardor da sua paixão; Steinarr com uma coroa a enfeitar-lhe a cabeça morena e com os olhos cristalinos fixos no mar; Stefan e Enya sentados num enorme tapete de lã, rodeados de crianças risonhas; Melody chorando numa sala nua, escura e gelada, com o corpo sacudido pela tosse; Bryan e Aled aprendendo a montar em dois pôneis garbosos; Dália, já mulherzinha, roubando um beijo a Bjorn; Ivarr esticando o braço para receber um majestoso falcão; Ingrior de mãos dadas com o filho, rodopiando na areia branca de uma praia... O som odioso de duas espadas medindo forças, e o meu rosto assustado, os meus gritos de desespero; Throst e Edwin enfrentando-se, surdos aos meus apelos, com as faces que eu tanto amava desfiguradas pela raiva... Throst a cair. Edwin a investir contra ele. A lâmina brilhante a enterrar-se no peito do guerreiro-lobo... Os olhos azuis a fecharem-se uma última vez...
- Não!
Acordei com o meu próprio berro. Estava banhada em suor e lágrimas e tremia tanto que ouvia os meus ossos a baterem uns contra os outros. A porta da varanda abrira-se, e o vento fustigava as cortinas e passeava-se pelo quarto. Apressei-me a recuperar do susto e a convencer-me de que tal desgraça não passara de um pesadelo. Puxei as cobertas sobre Edwina e corri a fechar a porta. Quando me voltei, levei as mãos aos lábios para abafar um grito de horror. Sigarr estava junto da cama, com a incredulidade e a fúria vincadas no rosto.
Possuída por um medo irracional, corri para Edwina e segurei-a ao colo, apertando-a contra o meu peito. Eu sabia que não recuperara o suficiente para enfrentar o feiticeiro, e chamar por socorro também não era alternativa. Se o Guardião da Lágrima da Lua quisesse, poderia matar-nos às duas sem nenhum esforço, antes que qualquer ajuda chegasse. O seu olhar cortante trespassou-me pelo meio, enquanto a sua voz rosnava, ameaçadoramente baixa:
- Maldita! O que foi que fizeste? Como conseguiste...? Não estava previsto que isto terminasse assim!
Edwina continuava adormecida, e o calor do seu corpo frágil derretia o gelo que me cobria. As batidas rápidas do pequeno coração tiveram o poder de aquietar o meu. Sigarr alimentava-se do horror das suas vítimas. Pois, eu não lhe ofereceria o meu medo! Respirei fundo e fui invadida por uma paz mansa quando o enfrentei. Há muito que o mestre da Arte Obscura fora derrotado.
- O meu destino não segue os seus desígnios - respondi com uma firmeza crescente.
”Tu fizeste um juramento, criatura néscia, e faltaste com a tua palavra!”
”O preço que acordamos foi o filho de um grande guerreiro e não o fruto da violação de um monstro!”
”Um trato é um trato, Catelyn! Mas é lógico que a tua inteligência limitada não tem capacidade para assimilar algo tão simples! A traição corre-te no sangue!”
Eu senti que a raiva me explodia no peito, mas controlei-me, temendo acordar Edwina. Reuni convicção e ataquei:
”As traições são a sua especialidade! É necessária muita ousadia para procurar-me, depois de atentar contra as vidas daqueles que eu amo!”
Os olhos de Sigarr escureceram. Mesmo suspirada na minha mente, a sua voz paralisaria de horror qualquer Homem:
”Eu entreguei-te o meu conhecimento! Estás em dívida para comigo!”
Sustive o seu olhar, revidando com clareza:
”Q proveito que eu tirei dos seus ensinamentos é recompensa suficiente pelo incômodo que sofreu? Se a Gwendalin tivesse vencido, o senhor seria o seu próximo alvo. Eu não lhe devo nada, Sigarr!”
O brilho que envolvia o feiticeiro tornou-se assustador. Aproximou-se devagar, devassando a minha mente com a força da sua ira:
”O véu da estupidez humana que abafa os teus sentidos e sufoca o teu poder jamais te permitirá ver para além dessa existência simplória. Outra coisa não seria de esperar! Um dia lamentarás penosamente o caminho que escolheste! Um dia arrepender-te-ás amargamente de me teres voltado as costas!”
- Chega, Sigarr - rosnei entredentes, tão revoltada que me esqueci de manter a voz baixa. - Não irei tolerar mais as suas ameaças! Se se atrever a voltar a cuspir a sua maldade em cima de mim ou de alguém da minha estima, eu juro que o perseguirei até ao fim do mundo! Agora, saia daqui!
Eu esperava por tudo, exceto o sorriso do feiticeiro. Fui percorrida por um calafrio quando ele rompeu o silêncio, depois de uma pausa propositadamente longa:
- Eu saio, doce Catelyn... - Perigosamente perto, mirou-me de alto a baixo. - Tens razão! A morte de Gwendalin foi recompensa suficiente pelo meu esforço de despertar esse espírito limitado. A escória humana agradece-te, e eu também! Aproveita estes momentos de glória... pois não irão durar!
O lúgubre aviso pairou no ar, enquanto a porta da varanda se escancarava e o Guardião da Lágrima da Lua desaparecia na noite. Tremendo sem controlo e vacilando a cada passo, eu apressei-me a deixar o quarto, estreitando Edwina contra o meu peito. Agora que o perigo passara, o nervosismo ameaçava dominar-me. Precisava de uma palavra de conforto e sabia onde encontrá-la. No quarto de Berchan, Hakon velava o sono do meu irmão. Sentei-me junto deles e desabafei:
”O Sigarr veio buscar o filho de Gunnulf. Acabou de partir com as mãos vazias, depois de largar uma mão cheia de ameaças,”
Como ”O Que Tudo Vê” se manteve em silêncio, eu continuei, devassada pela confusão:
”Antes de o Sigarr chegar, eu tive um sonho horrível! Vi o Edwin e o Throst a lutarem como dois inimigos... E o Edwin matou-o... O Edwin matou-o...”
Hakon suspirou longamente, antes de responder:
”Então, apesar de tudo, o destino não mudou o seu rumo.”
A tristeza do feiticeiro desfez o meu coração. Apertei a sua mão, apelando dolorosamente:
”Foi contra este futuro que o senhor me avisou, não é verdade? Este conflito já lhe havia sido revelado...”
”Lamento!”
Arfei angustiada, com as lágrimas a escorrerem pelas faces. Embalei Edwina e sofri pela nossa desventura. Fizesse o que fizesse, penasse o que penasse, eu estava condenada a perder o meu amor. Enchi o peito de ar e ergui a cabeça, assumindo a única decisão a tomar:
”O Throst não morrerá! Eu encontrarei força para mandá-lo embora. Ele partirá se se convencer de que não existe esperança para o nosso amor. Em breve, encontrará outra mulher e será feliz... E a sua felicidade será a minha, enquanto eu vivo pelo futuro da nossa filha.”
A mão de Hakon pousou no meu ombro, enquanto ele replicava serenamente:
”És uma jovem de grande valor e coragem, Catelyn! Não percas a fé na vontade do Criador, e a luz não se apagará. Mas, agora, terás de ser forte e preparar-te para novas batalhas. A derrota de Gwendalin vai provocar muita agitação entre os mestres da magia negra. Tu és uma ameaça que eles não podem ignorar! E, durante os próximos tempos, eu não poderei valer-te. Depois deste último esforço, a Visão abandonou-me. O meu espírito está tão cego como o meu corpo.”
Eu estava tão obcecada pelos meus problemas que nem me apercebera de que, à minha volta, todos enfrentavam o seu próprio tormento. A convicção de Hakon, que sempre me tranqüilizava, parecia profundamente abalada. Como que a confirmar os meus pensamentos, ele prosseguiu:
”Decidir a sorte dos teus irmãos foi um dilema. Se eu tivesse acompanhado o Edwin, ter-me-ia sido fácil encontrar o teu sobrinho, mas teríamos perdido o Berchan. Ao ficar, eu já sabia que gastaria a energia que me restava e não poderia interferir na sorte do filho de Gwendalin. A escolha que fiz irá influenciar as vidas de todos. Porém, entre a incerteza de um futuro longínquo e a vida deste jovem de valor, eu resolvi salvar o Berchan. Agora, com a imensa escuridão fechada sobre mim, receio ter errado.”
Engoli em seco, comovida pela estima e confiança que Hakon me dedicava. Ele era um exemplo de determinação, coragem e bondade. A sua história dar-me-ia sempre ânimo para continuar a lutar.
”É capaz de prever quando recuperará o seu poder?”
De novo, ”O Que Tudo Vê” hesitou:
”Eu estou a ficar velho, mesmo para os padrões feiticeiros. De cada vez que perco a Visão, a espera pelo seu regresso é mais longa. Temo que, desta vez, a recupere demasiado tarde.”
Refleti nas suas palavras, antes de afirmar:
”Quaisquer que sejam as conseqüências da sua decisão, eu ser-lhe-ei sempre grata pela vida do Berchan. Além disso, nada teremos a recear se o menino for encontrado! E o Edwin não falhará!”
Quando a corneta anunciou a chegada dos cavaleiros, um frio glacial gelou o interior do meu ser e espalhou-se pela pele, até me paralisar. Eu não precisava de descer, nem sequer de espreitar pela varanda, para saber que sucedera uma grande desgraça. Na minha mente, as últimas considerações de Hakon eram tambores de guerra:
”O Edwin está carente de fé! A sua frustração transformou-se em angústia, e a sua angústia, em revolta. Ninguém conseguirá ajudá-lo enquanto ele próprio não reconhecer que precisa de ajuda. Ninguém conseguirá segurar a sua mão se ele não a estender. Tens de encontrar alento no teu coração para não te deixares dominar pela raiva e pelo rancor, Catelyn. O teu irmão vai precisar de ti como do ar que respira. Se lhe faltares, não haverá esperança para o Edwin, nem para a vossa família, nem para o vosso povo, nem para a paz no mundo. Tal como tu, ele é fundamental para o destino da Terra, mas, ao contrário de ti, cedeu ao desespero. É missão de todos nós salvá-lo, pois a sua destruição será o fim de tudo o que construímos.”
Desci as escadas debilmente, agarrada à parede para não escorregar. Qual fantasma, avancei por entre a multidão que se reunira e vi Berchan apoiado no bordão, a falar com Stefan. A sua força ainda não se restabelecera e a sua perturbação era visível ao olhar. De Edwin, nem sinal. Aproximei-me e só então vi o corpo que jazia no chão, envolto numa manta. As lágrimas subiram-me aos olhos, mas não caíram. De imediato, Stefan estreitou-me contra o seu peito. O coração quase lhe saltava pela boca, e a sua voz estava rouca e carregada de amargura, quando desabafou:
- Poderá este pesadelo não ter fim? Estaremos amaldiçoados até à morte e para além dela?
Lentamente, apartei-me do seu abraço e dirigi-me ao cadáver. Assim que afastei a coberta, os caracóis louros brilharam ao sol. O frio dos últimos dias ajudara a conservar a carne intacta. O rosto belo e delicado de Fiona estava sereno, como que mergulhado num sono eterno e reconfortante, e os seus lábios abriam-se num sorriso. Desatei a soluçar, e a mão de Stefan repousou sobre o meu ombro, enquanto a voz de Berchan me acariciava a mente:
”Não te entristeças, Cat! A nossa irmã descansou finalmente. Que encontre nesta nova existência o conforto que lhe foi roubado quando ainda vivia no ventre da nossa mãe.”
Afaguei o rosto pálido e gelado e beijei a testa da menina que eu nunca conseguira amar como uma irmã, mas que sempre me despertara sentimentos fortes. Tal como seria de esperar, a morte de Gwendalin provocara a sua morte. Eu queria acreditar que o espírito de Fiona se libertara do mal que o consumia, pois, de outro modo, não poderia superar o remorso.
- Perdoa-me, irmãzinha... - murmurei, engasgada pelas lágrimas. - Descansa em paz!
Por cima da minha cabeça, a voz de Stefan sentenciou a desgraça que eu já adivinhara:
- Nós chegamos tarde de mais! O berço ainda estava quente. O Edwin está desesperado! Diz que a culpa foi sua...
- A culpa é de todos nós! - repliquei amargurada. - E não é de ninguém! Estava escrito que seria assim.
Stefan franziu o sobrolho e forçou-me a encará-lo.
- Não compreendo, Cat! Sabes quem raptou o pequeno Edwin? Diz-nos depressa, para que possamos partir no seu encalço!
Suspirei, exausta, esmagada pela crueldade da pérfida sorte e pela inevitabilidade do destino. Recordei Sigarr, o seu sorriso e a afirmação fresca, quase entusiasmada: ”A morte de Gwendalin foi recompensa suficiente...”
O mestre da Arte Obscura apercebera-se da nossa debilidade e precipitara-se em busca do que sempre desejara: o filho de um grande guerreiro com uma feiticeira negra; força, destreza, poder e maldade, em quantidades desmedidas, encurralados dentro de um só ser - o herdeiro do seu legado. No fim, a vitória também era sua.
- Sinto muito, Stefan - gemi sumidamente. - Temo que o pequeno Edwin já esteja longe do nosso alcance.
Esforcei-me por confortar Edwin, mas de nada serviu dizer-lhe que, tal como sucedera com Fiona, talvez a salvação do seu filho não dependesse de nós. Ele não aceitou nenhum consolo, nem uma única palavra de confiança para o futuro. Tivera o seu varão ao alcance das mãos e perdera-o para um feiticeiro danado. Restava-lhe carregar essa culpa para o resto da vida.
O peso do silêncio de Hakon revelava-me que também ele se martirizava devido às conseqüências da decisão que tomara. Contudo, eu mantinha a opinião de que ”O Que Tudo Vê” escolhera sabiamente, mesmo tendo a certeza de que Berchan daria de boa vontade a sua vida para que o sobrinho regressasse a casa são e salvo, para que Edwin desfrutasse da alegria de ver o filho a crescer, para que eu não vivesse agoniada pela insegurança do futuro de Edwina, para que a minha filha não crescesse ameaçada por uma sombra destruidora.
Agora, era imperativo organizarmo-nos e partirmos em perseguição de Sigarr, embora eu pressentisse que não seria fácil descobri-lo. Decerto o Guardião da Lágrima da Lua previra a nossa ofensiva e tomara precauções para escapar-nos.
Fiona foi entregue à eternidade com as mesmas honras que os outros membros da família. Na mente de cada McGraw estava a recordação da noite em que nos havíamos reunido no quarto de Berchan, de mãos dadas, concentrando toda a energia na salvação da nossa mãe e da nossa irmãzinha. De uma família de nove, restavam quatro, cada um carregando uma herança cruel e pesada de memórias e objetivos; cada um desejando poder regressar à infância, quando tudo era pleno de alegria e beleza; cada um temendo erguer os olhos e encarar o que o amanhã lhe reservava.
O fim da guerra foi o previsível. Na derradeira batalha, que ocorreu dois dias após o funeral de Fiona, Lorde Cearnach McKie pereceu às mãos de Edwin. E, por alguns dias, a Grande Ilha viveu uma gigantesca celebração que uniu os Aliados aos Vikings.
Os descendentes de Aranwen reuniram-se no quarto de Berchan e sentaram-se de mãos dadas, em redor de um círculo mágico, invocando os seus antepassados. No interior do círculo encontravam-se as sete pedras, unidas por um único fio.
Para os meus irmãos, que nunca tinham visto ou falado com a nossa avó, foi um momento inesquecível. Agora que a harmonia fora reposta, o espírito de Aranwen podia finalmente descansar em paz. Ela despediu-se com uma última recomendação. Apesar de o colar mágico ser o seu legado, aconselhava-nos a destruí-lo, para que mais nenhum mal fosse causado pela cobiça do seu poder. Quando partiu, eu encarei os rapazes e verifiquei que a decisão não seria pacífica.
Edwin foi o primeiro a expressar-se:
- Eu não concordo com a destruição das pedras. Devemos mantê-las escondidas num lugar seguro, ou mesmo separá-las, mas será insensato desperdiçar tamanho poder.
Eu ia contestar, mas Berchan antecipou-se e surpreendeu-me:
- O Edwin tem razão. Nós vencemos esta guerra, mas outras virão, talvez mais difíceis de superar. As pedras devem ser preservadas.
- Mas, Berchan - protestei finalmente, sem a menor convicção.
- A nossa avó...
- A nossa avó está morta - interrompeu Edwin. - Cabe-nos a nós decidir!
- O meu voto vai para a destruição - interveio Stefan serenamente. - A nossa avó, que criou o colar, foi a primeira a reconhecer que errou. Depois de tudo o que já passamos por causa destas pedras, não vejo que bem poderemos extrair delas...
- Estás a esquecer-te de que a filha da Cat está destinada a enfrentar o filho do Edwin? - replicou Berchan, num tom que me deixou a tremer. - Vamos utilizar todos os nossos recursos para impedir que isso aconteça! Mas, se falharmos... - Vi que Edwin baixava o rosto, e o seu olhar escurecia. - Não podemos arriscar-nos a encarar o futuro de mãos vazias!
- Iremos atrair a cobiça dos nossos inimigos! - avisou Stefan, irredutível. - Lembrem-se da feiticeira do Norte que nos lançou a maldição! Quem nos garante que não tornará a fazê-lo? Ou outro, com iguais ambições? Existem muitos feiticeiros condenados, desejosos de deitar as mãos a este poder. Preservar as pedras é demasiado perigoso!
- E o que diremos à pequena Edwina se, um dia, ela necessitar desta magia para salvar o mundo? - revidou Berchan, com um ardor que me confundiu. - Como lhe explicaremos que a nossa cobardia e incapacidade para proteger as pedras nos levou a destruí-las?
- Não se trata de cobardia e sim de prudência, de sensatez - insistiu Stefan, denunciando irritação. - A nossa avó aconselhou-nos...
- Aconselhou-nos - cortou Edwin. - Não ordenou que o fizéssemos! O que é que se passa contigo? Parece que estás com medo da tua própria sombra! Esta pedra está no meu pescoço desde o dia em que eu nasci e não tenciono voltar a separar-me dela!
- Deverá ser a Cat a decidir! - insurgiu-se Stefan, obviamente buscando o meu apoio.
- Sim - concordou Berchan. - Que a Cat decida! Além de ser a única com poder e sabedoria para usar as pedras, é o futuro da sua filha que está aqui em discussão. Qual é a tua opinião, irmãzinha?
Eu sentia-me encurralada entre dois fogos. O instinto forçava-me a concordar com Stefan, mas confundia-me ver os dois homens de força da nossa família a oporem-se à idéia. Edwin deveria ser o primeiro a desejar a destruição das pedras, para que estas jamais fossem usadas contra o seu filho. E Berchan, o mais ponderado de todos nós, também tivera uma opinião clara e contrária à que eu esperava. Saberia de algo que nós desconhecíamos? Por que outra razão manifestaria tal fervor na defesa do legado de Aranwen? Imaginar Edwina a enfrentar a escuridão sem uma luz para guiá-la fez-me recuar na vontade de apoiar Stefan e declarar com a voz a tremer:
- Cada um ficará responsável pela sua pedra, como até aqui. A pedra de Aled será entregue ao seu filho, para que se cumpra a sua vontade, e as de Quinn e Fiona, escondidas para que ninguém, além de nós, conheça o seu paradeiro.
E foi assim que as pedras mágicas de Aranwen sobreviveram à destruição. Durante anos, eu questionei-me acerca das forças que nos moveram naquela noite, para que nos rebelássemos contra a sensatez e a prudência, como o próprio Stefan dissera. A pedra violeta foi enterrada no jardim da Casa Grande, perto do túmulo de Quinn, e a laranja entregue aos cuidados dos druidas. Juramos jamais revelar o verdadeiro poder dos amuletos aos nossos filhos, sem o conhecimento dos outros, e cada um mastigou, uma última vez, em silêncio, as suas opiniões e razões. Só o desejo de não voltar a reunir as pedras era unânime.
- Por quanto mais tempo irás fugir de mim, Pequena?
Fechei os olhos e engoli em seco. Durante dias, fora uma alegria para o meu coração observar Throst à distância, a comemorar com os seus homens e os guerreiros de Edwin. Todavia, eu sabia que não podia continuar a adiar este confronto. Voltei-me para encará-lo, e as minhas pernas transformaram-se em geléia. Eu continuava a amá-lo, tanto ou mais, se isso era possível, do que no dia em que o vira partir para o Norte.
Edwin organizara uma festa na fortaleza para homenagear os líderes que tinham combatido pela nossa causa, e Throst e Krum representavam os Vikings. Não me fora fácil escapar ao olhar do meu marido durante o jantar e, agora que tentara refugiar-me noutra sala, ele seguira-me, com a usual determinação implacável que eu tanto temia.
Debaixo do seu olhar azul, todas as minhas resoluções se reduziram a cinzas. Ele estendeu a mão, e eu comecei a erguer a minha, desejando ardentemente cair no conforto dos seus braços e esquecer tudo. Porém, nesse preciso instante, Edwin entrou na sala.
O meu sobressalto foi tão violento que a força me abandonou. Recuei por puro instinto, e Throst enfrentou o meu irmão com o sobrolho franzido. Edwin estava corado, e eu apercebi-me do esforço que fazia para controlar a fúria e respeitar o guerreiro que lutara ao seu lado e contribuíra para a derrota de Gwendalin.
- O que se passa aqui, Cat? - questionou perigosamente baixo. Eu tinha a certeza de que Edwin passara o jantar a espiar o nosso comportamento. Quando vira Throst seguir-me, pensara que tínhamos marcado um encontro clandestino. Seria inútil tentar convencê-lo do contrário. Muni-me da firmeza que a comoção permitia e respondi friamente:
- Nós precisamos de conversar. Deixa-nos sós, por favor!
A pele do meu irmão tornou-se escarlate. Estreitou o olhar, rosnando ameaçadoramente:
- Já falamos acerca disto...
- Respeita o nosso convidado, Edwin! - exclamei num impulso assanhado. - Deves-lhe mais do que, alguma vez, conseguirás pagar-lhe!
- Eu sei o quanto lhe devo, Cat! - replicou ele, já sem dominar a exaltação da sua voz. - Mas tu não serás o pagamento! As nossas divergências podem ser superadas com acordos de conveniência, mas não com laços de sangue. Empunharei a minha espada por este povo em qualquer batalha, mas não permitirei que tu ou qualquer outro do meu sangue traia a memória dos que amo. Fiz-me entender?
Perguntei-me por quanto mais tempo Throst iria segurar-se sem interferir e desencadear uma tragédia. Respirei fundo e insisti secamente:
- Sai, mano! Por favor!
Edwin enfrentou Throst com o olhar e depois tornou a fixar-me, rugindo com o vigor de um grande predador:
- Sabes o que tens de fazer!
Quando a porta se fechou, a voz do meu marido soou enrouquecida e magoada:
- Isto já foi longe de mais! O teu irmão não tem o direito de nos impor a sua opinião. Tu és a minha mulher e vais regressar comigo...
- Não, Throst!
Desviei-me em pânico, fugindo dos braços que tentavam capturar-me. Se ele me abraçasse, eu segui-lo-ia até aos confins do inferno, sem medir as conseqüências, e condená-lo-ia à morte.
Os olhos lindos denunciaram a sua mágoa ante o meu recuo.
- Pequena...
- Não me chames assim! - ripostei, à beira do desespero. - Eu já não sou a mulher por quem te apaixonaste!
O corpo robusto ficou tenso. Throst desconfiava finalmente do rumo que eu pretendia dar à conversa, mas recusava-se a acreditar. Hesitou antes de retrucar:
- É claro que não és! Eu apaixonei-me por uma mulher cheia de vida, de alegria e vontade de ajudar o próximo. Tu cumpriste a tua missão, mas, em vez de resplandeceres de felicidade, estás triste e amarga. O que correu mal, querida? Deixa-me ajudar-te...
- Não!
- O que quer que seja, nós podemos superá-lo juntos! Eu amo-te, Catelyn! Isso jamais mudará! E tu também me amas! Podes dizer o que quiseres, mas os teus olhos não mentem!
Eu estava nos braços de Throst e, desta vez, não havia fuga. As emoções bloquearam-me a razão, e o meu coração explodiu no peito quando os nossos lábios se encontraram. Eu sonhava com os seus beijos todas as noites; todos os instantes do dia. Dei por mim a corresponder-lhe com a mesma paixão que ele impunha. Era a última vez... A última...
- Não! - Empurrei-o ofegante, com as lágrimas a queimarem-me a pele. - Pára...
A expressão do meu marido era uma mistura de desejo, frustração e sofrimento.
- O que é que se passa, Catelyn? - arquejou. - Diz-me de uma vez, antes que eu enlouqueça!
Desejei morrer quando lhe lancei as palavras como punhais:
- Nós não podemos ficar juntos. Tu tinhas razão! Existem dificuldades que não podem ser superadas!
Throst não se moveu. Respirava pesadamente e negava-se a aceitar o que ouvia, buscando uma justificação para o meu comportamento.
- Quais dificuldades, Catelyn? - inquiriu por fim, num tom assustadoramente calmo. - É por causa do bebê que estás a fazer isto? Quantas vezes terei de jurar-te...
- Eu não quero que jures nada! - gritei atormentada. - Eu liberto-te desse juramento! Eu liberto-te de todos os juramentos...
As lágrimas toldaram-me a voz, e, nesse momento, os olhos de Throst também ficaram molhados. Mal escutei quando indagou: - O que queres dizer com isso? Era o fim da minha vida!
- Quero dizer que... segundo a tua lei, eu tenho direito ao divórcio... e quero... Eu quero o divórcio, Throst!
As lágrimas tombaram pelo rosto do meu homem, e eu senti-me miserável, vil, nojenta. Acabara de trair tudo o que desejava e amava; a razão por que nascera. Throst não se manifestou por algum tempo e o seu silêncio foi pior do que um milhar de chicotadas. Quando falou, fê-lo num tom baixo e gélido:
- O nosso casamento não foi uma união comum... Nós fizemos um pacto de sangue, um juramento que nos liga na vida e na morte. Tu sabias e aceitaste! Eu não posso deixar-te...
- Tu prometeste que aceitarias a minha decisão final - cobrei, lutando para manter a voz perceptível. - Não podes forçar-me a continuar casada contigo!
Inesperadamente, ele avançou e agarrou-me pelos pulsos. Arregaçou-me as mangas do vestido e exibiu o testemunho da sua linhagem, que Hakon me oferecera no dia em que Edwina nascera.
- Eu não te forcei a fazer isto! - observou com ardor. - Por que o solicitaste a Hakon? Certamente porque já não me amas!
- ironizou. - Olha nos meus olhos, Catelyn, diz que não me amas e eu dar-te-ei o divórcio de imediato! Não é isso que tu queres? Fala!
O seu olhar azul era o meu amuleto, a minha proteção contra o mal, o meu refúgio, a minha liberdade, a minha paixão...
- Estou à espera, Catelyn!
Abri a boca decidida a fazer o que tinha de ser feito, mas permaneci muda. Eu amava-o com todas as forças do meu ser e jamais conseguiria negá-lo. Estava sufocada pelas recordações e sentia crescer a necessidade de me abandonar nos seus braços a cada batida descompassada do meu coração.
Throst libertou-me devagar e inspirou o ar com força, forçando-se a recuperar a serenidade. Declarou numa voz tranqüila e decidida:
- Já imaginava que seria assim! Por que não confessas a verdadeira razão deste desvario e acabas com o nosso tormento? O Edwin ameaçou-te, não é verdade? Receias que o teu irmão faça uma loucura. Temes por mim e por ele... Eu conheço-te, Catelyn!
E conhecia-me... bem de mais! O meu assombro foi tão explícito que confirmou as suas suspeitas. Throst praguejou enraivecido e virou-me as costas, apertando a cabeça entre as mãos, como se temesse que esta rebentasse. Eu continuei onde estava, consumida pela aflição. Quase berrei o meu suplício, quando ele começou:
- Depois que o Steinarr foi proclamado rei, eu mudei-me com a nossa família para a Ilha dos Sonhos. A comunidade que dirijo é maior do que a que deixei para trás. Tenho responsabilidades para com eles e devo satisfações ao Steinarr sobre o que se passou aqui, por isso não posso quedar-me mais tempo. - Gesticulou em desalento, antes de mergulhar no meu olhar. - Eu estou disposto a desistir de tudo, se tiver de fazê-lo, para ficar ao teu lado. Resolverei as questões políticas nesta viagem, deixarei a minha herança aos meus irmãos e voltarei para ti, como um homem sem terra e sem nome, para que os teus irmãos me aceitem e nós possamos ser felizes.
Era assim o nosso amor! Como eu estava decidida a sacrificar a minha felicidade para que Throst pudesse viver, também ele se dispunha a desistir da terra, da família, da honra... por mim. Forcei-me a reagir. Eu jamais poderia aceitar tamanho sacrifício. Além de não ter nenhuma garantia de que Edwin concordasse, a frustração do dever renegado ficaria sempre entre nós.
- Volta para a tua terra... - murmurei, resolvida a finar com o nosso tormento, tal como ele suplicara. - Volta para a tua família e para o teu povo. Encontra uma mulher que te ame tanto como tu mereces, que encha a tua casa de filhos e de alegria... Esquece-me, Throst! O teu futuro não é ao meu lado.
As lágrimas caíram pelas faces do meu marido, grossas e pesadas, molhando a túnica que eu bordara com tanto carinho e devoção.
- É isso realmente que desejas, Catelyn?
Enfrentei o seu olhar azul, sabendo que este momento era decisivo e definitivo.
- Sim... - respondi com a firmeza que consegui simular. - É o que eu desejo!
Como num sonho, vi Throst acenar com a cabeça e partir. A porta bateu e eu fiquei sozinha... sozinha como passaria o resto dos meus dias, com o conforto de saber que o meu amor estaria vivo e feliz, ainda que nos braços de outra mulher.
Incapaz de me suster nas pernas, deixei-me escorregar para o chão e entreguei-me ao pranto, sacudida pelo desespero. A porta abriu-se e Stefan entrou desembestado, logo seguido por Berchan. Sentaram-se ao meu lado e cobriram-me de carinho. Edwin também não tardou e imitou-os, segurando a minha mão enquanto dizia:
- Irá doer por algum tempo, Cat, mas depressa concordarás que não poderia ser de outro modo! Estes homens são selvagens, rudes e ignorantes. O Throst jamais te daria a vida que tu mereces! Verás que não tardará a encontrar uma mulher da sua raça e a esquecer-te... E tu deves fazer o mesmo! Existem muitos nobres interessados em cortejar-te, mesmo sabendo que já tens uma filha. Para ti, este será o princípio de uma vida nova e maravilhosa, irmãzinha!
Encarei Edwin, e o ódio que as suas considerações me provocavam refletiu-se no meu olhar. As palavras escaparam-se-me em catadupa, prenhes de raiva e ressentimento:
- Houve um tempo em que eu te admirei como um deus, Edwin! Hoje vejo que não passas de um homem amargo, seco e mesquinho! Eu cumpri a tua vontade e abdiquei do amor... do meu único amor! Mas, se tu te atreveres a falar novamente em casar-me, seja com quem for, eu juro que não voltarás a pôr-me a vista em cima!
Aproveitei a estupefação geral para escapar da sala e me trancar no meu quarto. Ignorei os apelos de Stefan e Berchan e concentrei a minha atenção em Edwina. Ela era tudo o que restava do meu amor... e a minha única razão de viver.
Não preguei olho durante toda a noite, e a manhã encontrou-me banhada em desespero. Confirmando os meus temores, assim que os primeiros raios de luz espreitaram no horizonte, Throst e os seus guerreiros abandonaram a Grande Ilha.
Eu fiquei a ver os barcos a sulcarem o mar, até desaparecerem, embalando Edwina nos meus braços. A pequena coruja branca também partira, e a sua ausência deixara o quarto vazio. Desejei poder voar como ela, carregando a minha filha até à Ilha dos Sonhos. Imaginei Ingrior a semear a terra, Bjorn a cuidar do gado e o pequeno Trygve a brincar na areia da praia. Fora desta felicidade que eu abdicara... E para quê? Para regressar a uma floresta ferida pela morte de centenas de homens? Para retornar a uma casa onde não haveria alegria e cada batida do coração me devolveria recordações abomináveis? Não! A minha filha pertencia ao mar, como o seu pai, e iria ver o azul da liberdade todos os dias.
Decidi não deixar o forte. Stefan já manifestara a vontade de reconstruir a Aldeia da Fortaleza e ali viver com Enya. Eu sabia que eles não me negariam abrigo. Assim, Edwina poderia crescer junto de Bryan e dos outros filhos que o apaixonado casal iria ter, partilhar das brincadeiras dos primos e aprender o valor da amizade e do amor. Observar a felicidade de Stefan e Enya seria um conforto para o meu espírito e uma inspiração para Edwina. Ao contrário de Edwin, eu não desejava a infelicidade dos outros só porque não podia ser feliz.
Existirá um limite para a dor que um ser humano pode suportar?
Enquanto o corpo de Melody descia à terra, interroguei-me a esse respeito, uma, e outra, e outra vez. O padre rezava uma ladainha, mas há muito que eu deixara de escutá-lo. Nem sequer me atrevia a encará-lo, temendo ser tentada a empurrá-lo para dentro do buraco e a provocar o desabamento da terra sobre o seu corpo ocioso. Eu não guardava ressentimentos ao seu Deus, que, afinal, talvez fosse o mesmo que o meu. Revoltava-me, sim, contra os Homens intolerantes e hipócritas que, em nome de Deus, haviam condenado a minha amiga à morte.
A nossa despedida fora triste. Eu partira para a guerra, e Melody ficara prisioneira das sombrias e geladas paredes do convento, sofrendo por saber que o homem que amava, a irmã e a melhor amiga erguiam armas contra o seu pai. Não me era difícil compreender a ambigüidade destes sentimentos, pois, tal como ela, eu nunca me sentira próxima de Lorde Garrick, mas respeitara-o e amara-o à minha maneira, sem nunca deixar de querer-lhe bem, nem mesmo quando ele me traíra e abandonara à mercê da feiticeira. De igual forma, Melody estimara Lorde Cearnach até ao fim, e a notícia da sua morte fora, decerto, muito dolorosa.
Eu não pudera amenizar-lhe o sofrimento porque, após o duelo na Enseada da Fortaleza, fora proibida de entrar no convento. O mesmo sucedeu com Enya, a quem foi dito que a sua alma se conspurcara por habitar com uma feiticeira. As freiras acreditavam que eu era filha do demônio e, sinceramente, eu sentira vontade de me comportar como tal, diante da ignorante intolerância. O nosso afastamento deixara Melody desamparada, entregue à tortura das suas carcereiras, que tudo faziam para convencê-la de que ela atraíra o marido para a morte, pecando contra ele em pensamento.
Na última visita permitida, Enya já encontrara a irmã muito doente. Melody deixara-se consumir pela tristeza, e nem a visão do filho lhe trouxera alento. Essa fora a derradeira vez que o pequeno Aled estivera com a sua mãe. Depois disso, um padre médico fez não sei que atrocidades ao corpo da minha cunhada, enfraquecendo-a, para concluir brilhantemente que a jovem padecia de um mal de espírito. Eu não precisara de vê-la para saber que tudo o que ela necessitava era de ar puro, água fresca, uma boa alimentação, sol e muito carinho. Em vez disso, as freiras fecharam-na numa cela sem luz, com a umidade a escorrer pelas paredes e os bolores a crescerem por toda a parte, para rezar, jejuar e espiar o pecado. Melody não resistira uma semana.
Durante esse suplício, eu tentei, de todas as maneiras, visitá-la e fazer com que aqueles que a guardavam enxergassem a razão. Só obtive ameaças. Nem Edwin, o senhor da região e um convertido à nova fé, conseguira permissão para lhe falar. Se o meu irmão já estava perturbado, esta tragédia deixou-o ensandecido. Renegou todos os votos que fizera, e os irmãos tiveram de impedi-lo de marchar contra o convento e assassinar os religiosos.
E assim finou o grande amor de Melody e Edwin, tragicamente, sem nunca ter sido consumado. O único contacto que os dois haviam ousado, durante os longos anos de espera, anseio e amargura, fora o beijo que eu testemunhara no ribeiro. No entanto, eu não duvidava da intensidade desmesurada dos seus sentimentos. E sentia o tormento do meu irmão, porque também era o meu. Eu não perdera só uma amiga. Perdera uma irmã... e a fé na justiça e na bondade dos Homens! A mulher mais pura que pisara a Grande Ilha estava morta. E morrera pela mão daqueles que haviam jurado a sua salvação.
”Temos de acreditar que a Melody está finalmente em paz.”
Berchan tentava apaziguar a minha revolta, enquanto o padre terminava a oração. Respondi-lhe, com a cabeça cheia de lágrimas:
”O Edwin e a Melody mereciam a felicidade. Até o Aled desejou que assim fosse!”
”Não estava destinado, Cat! Muito poucos conseguem contrariar o que foi determinado e escolher o seu próprio rumo. A cabeça da Melody não era forte... e o Edwin nunca teve coragem de contrariá-la. Permitiu que ela decidisse livremente e agora culpa-se por não a ter forçado a ficar e a assumir o amor que sentiam...”
Esta era mais uma ironia da vida! Edwin perdera Melody, porque lhe concedera liberdade de escolha e, por isso, impunha-me os seus desígnios, confiando que assim me protegeria.
Após o funeral, quando os ânimos se acalmaram, Edwin comunicou-nos que ia partir em busca do filho. Desejei-lhe sorte e abracei-o com um carinho sincero. Tê-lo-ia acompanhado, se não fosse por Edwina, e senti-me aliviada quando Berchan se ofereceu para fazê-lo.
Antes da viagem, Berchan revelou-me o dilema que enfrentava. Os dias da velha fé estavam contados, e a convivência com os padres cristãos tornara-se insustentável e perigosa. Porém, mesmo assim, os Sábios desejavam que ele os seguisse para um destino incerto. Por outro lado, durante a sua visita, Hakon fizera-lhe uma proposta tentadora. ”O Que Tudo Vê” queria transmitir o seu conhecimento antes que a morte o vencesse e, para tal, pretendia tomar três pupilos ao seu cuidado. Berchan seria um dos eleitos, se aceitasse o convite. Eu adivinhei que os outros seriam Krum e Ingrior, mas contive-me de lhe demonstrar o meu entusiasmo. Se o meu irmão desconfiasse que a sua natureza poderia ser posta à prova com a decisão de acompanhar Hakon, certamente fugiria com os druidas para um buraco num penhasco ou uma cova na montanha.
Edwin abalou para uma busca que eu pressentia infrutífera. Sigarr alcançara o que sempre ambicionara e já devia estar bem longe, criando e ensinando o futuro inimigo da Humanidade e dos Feiticeiros. Berchan seguiu o irmão, disposto a refletir e decidir que rumo dar à sua vida. Stefan e Enya ficaram responsáveis pela reconstrução da Aldeia da Fortaleza e pela execução das instruções de Edwin. E eu fiquei... Eu, simplesmente, fiquei!
As estações passaram.
Edwin regressou e partiu. Berchan continuou a acompanhá-lo. Stefan fez um excelente trabalho na recuperação da aldeia, e eu reencontrei alguma alegria ao ajudá-lo.
Após a rejeição instintiva da casa onde nasci, criei coragem para lá voltar e teimei em corrigir o que estava errado. A morada dos meus avós e dos meus pais tornaria a ser um lar de família, e o amor estancaria todo o ódio que se entranhara nas suas paredes. Afinal, a Casa Grande era o símbolo da nossa vitória.
Trabalhei com esforço e, com a ajuda de Enya, consegui recuperar muito do que se perdera. O jardim floriu com o riso das crianças. O suave balir do gado e o relincho dos cavalos de raça alegraram a vida dos camponeses. As barreiras erguidas para nos separarem do ribeiro foram derrubadas, e eu fiz questão de plantar uma árvore debaixo da janela do meu antigo quarto, onde a minha companheira de muitas fugas e brincadeiras encontrara a morte. Quando Edwin e Berchan retornaram, a casa recebeu-os de braços abertos. Havia ainda muito que fazer, mas os primeiros passos estavam dados.
Na Aldeia da Fortaleza também se trabalhava com afinco. A terra foi cultivada e construíram-se barcos de pesca. As casas nasciam à velocidade com que as pessoas se mudavam para o território dos McGraw. O nosso nome era, uma vez mais, respeitado e estimado.
Eu passava os dias intermináveis entre a Casa Grande e o forte, inventando trabalho para esquecer tudo o que perdera. Ao meu colo, Edwina crescia saudável e alegre. Começou a gatinhar e ensaiou os primeiros passos. Aprendeu a dizer ”mamã”, ”sim”, ”não” e, de tanto ouvir Bryan, aprendeu também a dizer ”papá”, antes de completar um ano.
Stefan era para a minha filha a figura paternal, talvez devido à influência do primo, e, para o meu irmão, a afeição da sobrinha era motivo de grande orgulho. Porém, apesar de dizer ”papá” e de acarinhar Stefan, Edwina nunca lhe dirigiu esse título, como se compreendesse que ele era apenas um substituto do verdadeiro progenitor; mas depressa aprendeu a chamar-lhe ”tio”.
Durante esse ano, Edwin esteve em permanente contacto com os Vikings e até se esforçou para aprender a língua nórdica. A aliança fortaleceu-se, e a confiança consolidou-se, muito para além do que eu me atrevera a desejar.
Nunca indaguei acerca do paradeiro de Throst, e os meus irmãos também não abordaram o assunto. Contudo, era impossível ignorar os comentários dos viajantes, que falavam da encantadora Ilha dos Sonhos, outrora desabitada devido ao acesso difícil, feito através de um caminho marítimo invisível, rodeado de rochas pontiagudas e letais, e do excelente trabalho que o Primeiro Homem do Rei Steinarr desenvolvia no local. Sabendo da importância estratégica das ilhas, o Jarl Throst, como lhe chamavam, pretendia revelar a rota segura para a navegação e transformar o arquipélago num importante porto de comércio.
Muitas vezes dei por mim com o olhar perdido na linha do horizonte, onde o azul do céu se fundia com o azul do mar, pensando que o meu marido se encontrava algures, redescobrindo a felicidade... sarando os golpes que eu infligira no seu coração e redescobrindo o amor.
O Verão chegou ao fim.
Edwina celebrou o seu segundo aniversário e tanto aldeões como nobres fizeram questão de prestar homenagem à menina, a quem chamavam ”princesa”. Organizei uma festa na aldeia, muito simples e popular, apenas pelo prazer de conviver com aqueles que tanto entregavam de si para a reconstrução da nossa terra.
Nesse dia, apercebi-me de que era alvo de olhares de admiração e cobiça por parte de homens influentes e poderosos, que também não se esqueciam do fato de eu ser uma McGraw. Stefan confidenciou-me que alguns já haviam manifestado junto deles a vontade de me cortejar. Porém, Edwin mantinha-se firme na resolução de me deixar decidir o meu futuro.
Senti-me aliviada quando a noite me trouxe a tranqüilidade do meu quarto. As emoções do dia tinham esgotado Edwina, que caiu no sono mal eu a deitei na cama. Todavia, foi-me difícil adormecer. Abria e fechava os olhos. Sonhava e despertava.
Mar... Vento... O balanço de um barco... O manto negro do céu, pincelado de estrelas... As cortinas a esvoaçarem, e a luz da Lua a inundar-me a cama, enquanto as mãos fortes do meu amante me deslizavam pelo corpo ansioso, afastando a roupa e reclamando o calor da minha carne.
- Throst...
- Eu não posso viver sem ti, Catelyn! Amo-te tanto!
O seu beijo sabia a mel; sabia a sal e a tempestade. Eu desejava-o com a paixão de uma mulher madura e possuí-o com a fome de uma predadora voraz, até o nosso prazer arrasar o silêncio.
Acordei alagada em suor, com o corpo em fogo, o coração a chicotear-me o peito e a mente a bradar em desespero, perdida entre o ardor do sonho e o gelo da cruel realidade. Eu estava sozinha... E iria continuar sozinha! Throst não voltaria a ser meu...
- Eu não agüento mais! - murmurei afogada em lágrimas.
- Não agüento mais...
Percebi que algo estava errado assim que fixei os rostos solenes que me aguardavam para iniciar a refeição da manhã. As minhas olheiras não escaparam ao olhar perspicaz de Berchan, mas ele sabia qual o mal de que eu padecia. Stefan e Enya não possuíam a sua habilidade, mas conheciam-me sobejamente bem. Por isso, só Edwin me questionou acerca da minha saúde.
Desculpei-me com o aniversário de Edwina e o cansaço provocado pela festa. Alheio a tudo o que se relacionava com o mundo dos sentimentos, Edwin engoliu a justificação e apressou-se a abordar o assunto que originara comoção antes da minha chegada.
O rei dos Vikings encontrava-se nas proximidades, e o convite para uma visita era uma obrigatoriedade diplomática. Edwin pretendia organizar uma cerimônia onde a Aliança seria afirmada diante dos líderes dos dois povos, e um tratado de paz e cooperação, assinado. E, como eu conhecia Steinarr, os seus costumes e gostos, o meu irmão pedia-me que tratasse de tudo. Só a custo não o mandei para o inferno. Como podia Edwin ser tão frio e insensível? Era óbvio que Throst também viria! Revê-lo seria uma tortura insuportável para mim!
Enya foi um apoio inestimável nas semanas que se seguiram. Berchan também me ajudou, enquanto Edwin e Stefan se concentravam nos festejos militares. Ao ultimar os detalhes, eu decidi que desapareceria nos dias em que os Vikings se hospedassem no forte. Ficaria fechada no quarto, inventaria uma doença, faria o que fosse necessário... Mas não queria encarar Steinarr e, muito menos, Throst!
Assim que os barcos surgiram no horizonte, comuniquei aos meus irmãos essa intenção, e nenhum teve coragem de me contrariar. Edwin até me pareceu aliviado. Apeteceu-me esbofeteá-lo pelo seu egoísmo. Depois de todo o meu empenho, o mínimo que ele podia fazer era insistir para que eu recebesse os convidados, nem que fosse apenas por gentileza, antecipando a minha rejeição. Subi para o quarto e dispus-me a enfrentar a reclusão. A companhia da minha filha e de Bretta era tudo do que eu precisava.
Edwina correu para abraçar-me assim que entrei. Eu segurei-a ao colo e dirigi-me à varanda para observar uma última vez os navios que chegavam à praia. Suspirei longamente ao reconhecer a vela garrida do Drakkar de Throst. Fiquei presa a essa visão, sentindo a presença do meu marido como se ele estivesse junto de mim, envolvendo-me no seu calor, e só despertei com o apelo de Edwina. Eu nem podia acreditar nos meus ouvidos, mas a minha filha fez questão de repetir, enquanto pulava de satisfação e erguia o seu dedo pequeno e gorducho, apontando na direção do mar: - Papá!
As lágrimas saltaram-me dos olhos sem que eu sequer pensasse em chorar. E, mais uma vez, Edwina guinchou extasiada:
- É o papá!
Não resisti a espreitar a recepção dos convidados. Afinal, entre eles estavam bons amigos, pessoas que eu estimava profundamente... e Throst.
Enya foi a anfitriã perfeita, afirmando-se com a distinção que lhe fora negada no berço, mas conquistada com o casamento; uma digna McGraw! Só houve um momento em que a sua postura esplendorosa se abalou. Eu não pude deixar de sorrir ao vê-la corar diante de Steinarr. A perturbação que esse homem causava nas mulheres era assombrosa.
Steinarr casara-se com uma rapariga muito bonita, alta e loura, diferente das mulheres por quem se interessara até então. Bera, a sua rainha, estava grávida de poucos meses, mas a barriguinha pontiaguda já se declarava no vestido. Era muito jovem... Talvez ainda nem tivesse quinze anos! Para ela, que nunca saíra do Norte do mundo, a visita à Grande Ilha representava uma aventura excitante e fantástica. O olhar de verdadeira adoração que devotava a Steinarr não guardava segredos quanto ao seu amor. Aparentemente, o fato de o marido ter o dobro da sua idade não a incomodava.
Ivarr acabara de fazer oito anos, mas parecia ter doze. Em pouco tempo, maravilhou a assistência com a sua destreza de cavaleiro. Até Edwin se entusiasmava e aplaudia o rapaz alto e moreno, com uma estranha habilidade para domar animais. Tal como o pai, ele fazia-se acompanhar por um falcão que o seguia para toda a parte e lhe obedecia sem hesitação.
Rever Ingrior provocou-me uma violenta comoção. Desejei correr ao seu encontro e abraçá-la, mas mantive-me fiel à resolução que tomara. Apercebi-me de que ela me buscava com o olhar, em todos os cantos e por entre a multidão. Ficou tão preocupada com a minha ausência que só reparou em Berchan quando já estava diante dele.
Eu senti o sobressalto dos dois. Foi a primeira vez que vi o meu irmão corar de embaraço diante de uma mulher. O rosto de Ingrior também se ruborizou, tornando-a ainda mais atraente aos seus olhos. Ambos ficaram sem saber o que dizer, perdidos no olhar do outro, e foi Krum quem quebrou a magia, ao interpor-se para cumprimentar o primo. Observando-os aos três, para mim era mais do que evidente que estavam talhados para o mesmo destino. E, como que a confirmar a minha reflexão, Hakon aproximou-se deles.
A minha atenção foi desviada para o gigante louro que acabara de entrar, mas um choque aguardava-me. Pendurada no braço de Throst, com uma familiaridade exaltada, encontrava-se Geimy. E, a cada instante, tornava-se evidente que eles estavam comprometidos. O meu coração estilhaçou-se como um pedaço de cerâmica arremessado ao chão, ao vê-los rir com a alegria e a cumplicidade de dois amantes apaixonados. Formavam um par muito bonito! Throst gostava de mulheres rebeldes... e encontrara a sua alma gêmea. A irmã de Steinarr era uma guerreira em busca de paz, tal como ele próprio.
Esta visão doeu-me para além do que eu me atrevia a admitir. Como podia criticar Throst? Não fora eu quem teimara na nossa separação? Não lhe pedira o divórcio? Não lhe dissera para procurar outra mulher? Eu só estava a engolir uma parte do fel que lhe cuspira para a cara.
Voltei as costas à recepção e regressei ao meu quarto. Já vira tudo do que precisava e muito mais do que desejava.
A manhã estava belíssima, cheia de sol, mas o meu humor cobria-me de negro. Edwina choramingava impaciente, suplicando para sair do quarto. A voz do sangue não lhe daria sossego enquanto o homem, a quem não hesitara em chamar ”pai”, se encontrasse por perto.
Eu arrependia-me amargamente por não ter viajado para a floresta. Na Casa Grande, a tentação não me enlouqueceria e não teria visto Throst com Geimy. Sempre que pensava nos dois, sentia vontade de me atirar para os pés do meu marido e suplicar o seu perdão. Por várias vezes, estive a um passo de desgraçar as nossas vidas.
Durante todo o dia, ouvi vozes altas, gargalhadas, música e cânticos. Edwina desistiu de arranhar a porta e sentou-se diante de mim, em silêncio, mirando-me com os grandes olhos azuis, iguais aos do seu pai, carregados de censura e indignação. E assim se manteve, sem pestanejar, quando bateram suavemente à porta. O meu coração saltou e caiu no vazio, ao pressentir Ingrior e Krum, tão distintamente como se estivessem diante de mim. O que fazer? O que fazer?
Quando os seus braços carinhosos me envolveram, eu flutuei de felicidade. As lágrimas de alegria de Ingrior e o riso de Krum eram bálsamos para as minhas feridas. Falamos de coisas tolas, exteriorizando o prazer do reencontro. E, então, Ingrior viu Edwina.
A minha filha estava decidida a arruinar os meus esforços para manter a sua identidade secreta. Enquanto Ingrior soltava exclamações de deleite ao verificar que a sobrinha era igual a Throst, Edwina guinchava de satisfação a palavra ”tia”.
Apesar de impressionado, Krum tinha a sua testa vincada por uma ruga de preocupação e foi ele quem fez a temida mas inevitável pergunta:
- Mas... Não era um rapaz?
Ingrior despertou do encanto para a interrogação. Eu recuei, encurralada e sem coragem para encará-los. Assim que me abraçaram, desatei a chorar sem controlo, sem vontade de parar, desejando despojar-me de toda a angústia que me consumia viva, que me queimava as entranhas, que me destruía a mente...
- Deixa-nos ajudar-te, prima! - murmurou Krum. - Foi para isso que nós viemos! Quando nos disseram que tinhas viajado, ficamos abismados, pois sentíamos a tua presença e sabíamos que nos estavam a mentir.
- O Throst contou-nos o que aconteceu - continuou Ingrior mansamente, temendo assustar-me ainda mais. - Como pudeste mandá-lo embora, sem o autorizares a ver a filha? Por que lhe mentiste acerca do teu afeto... acerca da bebê? Alguém te ameaçou?
Eu caía num abismo profundo e o meu corpo dividia-se em milhares de pedaços, libertando os sentimentos lúgubres. Dei por mim a revelar tudo... absolutamente tudo, sem esquecer um pormenor. Quando terminei, senti-me vazia, aliviada, como se a partilha do meu martírio o tornasse mais suportável. Ingrior chorava baixinho, embalando a sobrinha nos seus braços. Krum abria e fechava a boca, mas o som não saía. A minha voz pairava, exausta pelo esforço:
- Entendeis agora por que não posso vê-lo? Compreendeis por que tive de sustentar que a Edwina é filha do Gunnulf? A única maneira de salvar o Throst é mantê-lo afastado de mim!
- Não pode ser! - replicou Ingrior horrorizada. - Tem de existir outra solução...
- A solução é contar-lhe a verdade! - declarou Krum, de imediato. - O Throst tem o direito de enfrentar o que o espera de olhos abertos.
- Não! - gritei em pânico. - Eu confiei em vós! Tendes de prometer-me que nada lhe direis!
Ingrior parecia tão perdida como eu, mas, quando falou, fê-lo com firmeza:
- O Throst tem vivido num tormento permanente, Catelyn... E tu também! Não é justo que vós sofrais tão violentamente por causa de uma premonição! O Throst e o Edwin já não são dois estranhos que precisem de resolver as suas divergências pela força das armas. Penso que os três devem conversar como adultos que são. A guerra terminou e ambas as famílias juraram esquecer o passado. Esta separação é ridícula!
- Além disso - apoiou Krum -, o Throst não tardará a descobrir que o enganaste e não te perdoará.
Respirei fundo, novamente esmagada pela dor.
- Eu não irei arriscar-me! - teimei, decidida. - Posso suportar a distância, se souber que o Throst está bem... Mas não suportarei viver a chorar a sua morte e a odiar o meu irmão. O Throst irá ultrapassar a tristeza... Eu já o vi com a princesa! A Geimy fará com que ele me esqueça.
- O Throst jamais te esquecerá, Catelyn - ripostou Ingrior, com uma convicção que me arrepiou. - Irá amar-te até morrer!
- E a Geimy não o ama - continuou Krum. - Mas acredito que eles se casarão se tu teimares no divórcio, prima. Ao longo dos anos, construíram uma amizade sólida e têm muito em comum. O Throst quer criar raízes na terra nova e, com o fim dos conflitos e o avançar da idade, a Geimy também decidiu pousar as armas e dedicar-se à vida familiar. Será uma questão de tempo...
Então, era verdade! Só a custo evitei um soluço.
- Eu não entendo a intransigência do teu irmão! - desabafou Ingrior. - Pareceu-me uma pessoa tão sensata, tão justa...
- E assim é - volveu Krum, sem disfarçar o azedume. - Alianças militares, conversas de negócios com um copo de cerveja na mão... isso não o incomoda, porque sabe que está a fazer o melhor para o seu povo. O que ele não admite é que os seus descendentes tenham o sangue daqueles que mataram o seu pai. O Throst perdoou por amor... mas o Edwin não consegue fazê-lo.
Ficamos a remoer em silêncio. Edwina permanecia aninhada no peito de Ingrior, recebendo beijos suaves nos caracóis louros, com a expressão de quem escutara e compreendera tudo. Krum segurou as minhas mãos e levou-as aos seus lábios, murmurando carinhosamente:
- Eu não trairei a tua confiança, prima. Porém, suplico-te que reconsideres! Embora não conheça a gravidade da questão, o Throst sabe que o teu procedimento está a ser manipulado pelo Edwin. Brevemente, o seu rancor fará com que perca a cabeça. E, quando descobrir o que se passa com a filha, irá insurgir-se contra ti. Serás capaz de controlar os ímpetos de dois homens enlouquecidos? Por que não enfrentas a situação agora, enquanto ainda existe algum respeito e tolerância?
Berchan bateu à porta e eu apressei-me a deixá-lo entrar. O seu rosto denunciou surpresa por encontrar Ingrior e Krum no quarto, mas não escondeu a satisfação.
- Eu contei-lhes tudo - confessei temerosa.
O meu irmão acenou em concordância, ponderando com uma tranqüilidade que me surpreendeu:
- Precisarás de aliados nesta luta, qualquer que seja o rumo que decidas tomar. Espero que a união dos que te querem bem te ajude a encontrar a felicidade.
Berchan sentou-se ao nosso lado, e eu depreendi das suas palavras que, apesar de não exprimir a sua opinião para não me influenciar, também ele achava que era tempo de acabar com a farsa. Eu sentia-me cada vez mais confusa... E cada vez mais encurralada!
Durante dois dias o ritual de visitas manteve-se. Ingrior e Krum tinham muito para contar e não se apiedavam da minha inveja, quando os ouvia descrever a paradisíaca ilha onde viviam, coberta de terra fértil, floresta virgem, cursos de água deslumbrantes e um clima tão ameno que o Inverno mais parecia Verão. A tortura prosseguia com a revelação dos projetos de Throst para a região. E ainda com o relato da vitória esmagadora sobre os Vândalos, da coroação de Steinarr, da paz que se respirava... e da saudade que eu deixara no coração do povo.
Berchan esforçava-se por estar conosco. Para ele, que conhecia o mundo através dos livros, era fascinante descobrir uma cultura tão diferente e, ao mesmo tempo, tão igual à nossa, pelas experiências dos nossos convidados. Mas não era apenas a curiosidade intelectual que movia o meu irmão. Ingrior depressa esqueceu a timidez e deliciou-o com a sua personalidade e beleza. Os dois conversavam com tal entusiasmo que se esqueciam de que não estavam sozinhos. E essa aproximação crescente preocupava-me. Eu não queria, de forma nenhuma, vê-los padecer de um tormento semelhante ao meu.
A noite corria adiantada, e o silêncio voltava a reinar por entre as sisudas paredes de pedra. Edwina ressonava baixinho, e eu sofria da vigília que me negava o almejado descanso.
Impaciente, levantei-me e dirigi-me à ala dos hóspedes. Precisava de desabafar e sabia que Ingrior iria escutar-me. Deixei a mente fluir pelos quartos, buscando-a, e não tardei a encontrá-la. Preparava-me para entrar quando verifiquei que ela não se encontrava só. Estava com um homem... um homem cuja aura eu conhecia muito bem. Ingrior estava com Berchan!
Fiquei parada, assombrada, sem saber o que fazer. Eles conversavam, frente a frente. Ingrior falava-lhe de Trygve, do comportamento infame de Gunnulf... E o meu irmão tremia diante das suas lágrimas. A perturbação de ambos fluiu por mim e eu forcei-me a avançar no corredor, antes que eles se apercebessem da minha presença. No meu peito, a euforia misturava-se com a apreensão. Berchan e Ingrior podiam ainda não sabê-lo, mas estavam apaixonados. Teria ele coragem para assumir os seus sentimentos? Ou iria condená-la a sofrer mais uma dolorosa decepção? E o que pensaria Edwin deste desenvolvimento inesperado?
Estaquei subitamente, embriagada pelo cheiro que me entrava pelas narinas. Este era o quarto de Throst! O medo de surpreendê-lo acompanhado depressa findou. O meu amor estava só... E terrivelmente infeliz. Estendi a mão para a porta, mas contive-me a tempo. Throst escolhera uma boa mulher... E eu devia afastar-me!
Movi os pés descalços e rapidamente cheguei às escadas. Se não respirasse o ar fresco da noite, iria sufocar.
Procurei conforto no jardim interior, primorosamente recuperado. Não dera dois passos quando o som pouco cauteloso de vozes inflamadas de entusiasmo me atingiu os ouvidos. Perdi o fôlego ao reconhecê-las. Uma pertencia a Geimy e a outra... A Edwin! Instintivamente, escondi-me nas sombras. O espanto retraía os meus membros, mas, mesmo que eu pudesse recuar, não o faria sem descobrir o que se passava.
Não demorei a perceber que Geimy e Edwin soltavam faíscas de cada vez que se olhavam. Para o meu irmão, era impossível conceber que uma mulher lutasse tão bem como um homem, e a fama da princesa acicatara-lhe a curiosidade. Ao constatar o seu interesse, Geimy não hesitara em desafiá-lo, pretendendo provar-lhe que era tão boa como o melhor dos guerreiros. E o resultado estava à vista!
O estridor das espadas encheu o ar e as exclamações acaloradas incendiaram os ânimos. Escutar o meu irmão a falar com fluência a língua viking para impressionar a rival era espantoso. Esperei que Edwin fosse suficientemente sensato para não permitir o descontrolo da disputa. Se algum deles se magoasse, mesmo que por acidente, o Tratado a firmar no dia seguinte poderia ficar comprometido. Senti-me aliviada quando o ouvi exclamar:
- Estou convencido, princesa! Vamos parar por aqui...
- Está com medo, senhor? - A voz de Geimy vibrava, num desafio sedutor.
Depois de um breve silêncio, ele ripostou:
- Sim, Geimy! Eu estou com medo!
Seguiu-se um rumor abafado e o ruído das espadas a caírem no chão. Sem acreditar nos meus olhos, vi Edwin atrair Geimy para si e roubar-lhe um beijo. Mal contive um grito, dividida entre o assombro, o entusiasmo e a indignação - assombro, pelo arrebatamento temerário do meu irmão; entusiasmo, pois era maravilhoso descobrir que ainda lhe batia um coração dentro do peito; indignação, pelo cinismo que o seu ato implicava para comigo.
Eles afastaram-se devagar, surpreendidos e assustados com o seu próprio arrebatamento. Geimy levou a mão aos lábios e o seu equilíbrio foi posto à prova, enquanto Edwin ofegava. A perturbação do meu irmão provava que há muito não desfrutava de companhia feminina. A sua voz tremia quando falou:
- Sinto muito, Geimy... Eu não pretendia desrespeitá-la... Nem ao seu noivo... Perdoe-me!
Ela demorou a responder, mas fê-lo com calma e num tom moderado:
- O Throst ainda não é meu noivo. O meu irmão concedeu-me liberdade para escolher e decidir... E é o que eu estou a fazer.
Partilhei o sobressalto com Edwin, mas ele depressa recuperou e afirmou:
- Estou certo de que escolherá bem. O Throst é um bom homem e um valoroso guerreiro.
Deixei cair o queixo e mal contive o impulso de avançar e defrontá-lo. Surpreendi-me ainda mais ao ouvir Geimy revidar:
- Se tem tão boa opinião do Throst, por que não permite que ele e a Catelyn sejam felizes?
O semblante do meu irmão endureceu e a paixão apagou-se bruscamente do seu olhar.
- O Throst e a Catelyn nunca seriam felizes. Existem demasiadas questões entre eles.
- Não acha que devem ser eles a decidir se podem, ou não, superar essas questões?
Sustive a respiração. Não me enganara no juízo que fizera de Geimy. Ela era corajosa, forte, inteligente e muito, muito correta. Até agora, eu não conhecera uma mulher, além de mim, capaz de enfrentar Edwin com tamanha ousadia. E eu estava ao seu lado há uma vida!
- Por vezes as pessoas ficam impossibilitadas de pensar com clareza! - insistiu ele, perigosamente baixo.
Se Geimy se apercebeu do perigo, ignorou-o e tornou a atacar com declarado atrevimento:
- O amor costuma ter esse efeito nas pessoas. Alguma vez amou Lorde Edwin?
A pergunta não demonstrava curiosidade e sim crítica. Temi que o meu irmão fosse explodir. Contudo, Edwin limitou-se a resmungar:
- Não vejo que importância a minha vida sentimental possa ter para si, princesa!
Seguiu-se um silêncio pesado e, no lugar de Geimy, eu ter-me-ia retirado. Todavia, mais uma vez, ela fez questão de assumir a sua singularidade:
- Eu não sou uma criança, Lorde Edwin, nem tão-pouco uma das jovens que se pavoneiam à sua volta, mendigando por uma migalha de atenção! Sou uma mulher que já viveu bastante... Já ajudei muitas crianças a nascer e tive muitos moribundos nos meus braços, nos campos de batalha, suplicando por um sorriso enquanto se esvaíam em sangue. Porém, nunca conheci um homem tão perturbado como o senhor! Num momento, é fogo vivo e, no seguinte, um glacial. Lamento por si, porque é óbvio que já foi feliz... Sinto muito se lhe quebraram o coração, mas lembre-se de que a Catelyn não merece penar pela sua desventura... E eu muito menos! Foi um prazer medir forças consigo. Espero que nunca tenhamos de fazê-lo a sério. Desejo-lhe uma boa noite!
Edwin não teve ânimo para responder. Geimy recuperou a sua espada e avançou até perto do local onde eu me encontrava. Só aí Edwin reagiu, apelando por ela e correndo ao seu encontro. Eu tive de suster a respiração, pois conseguiria tocar-lhes se estendesse um braço. O meu irmão era impotente para disfarçar o seu abalo:
- Desculpe se eu fui indelicado. A princesa tem razão... Eu já amei e perdi. Perdoe-me se não consigo tolerar esse assunto. A minha ferida ainda sangra.
- E por que me conta isso? - insurgiu-se ela impiedosamente.
- Mudou de opinião quanto ao meu interesse pela sua vida sentimental?
Estupefata, vi Edwin abrir um sorriso, antes de murmurar num tom baixo e sedutor:
- Dar-me-ia grande prazer saber que desfruto da sua curiosidade. O meu pasmo cresceu quando Geimy asseverou:
- O senhor é um homem muito atraente, Lorde Edwin! Qualquer mulher sem compromisso tem curiosidade em saber se está disponível. Certamente já foi interpelado a esse respeito...
- Nunca de forma tão direta - Interrompeu ele sem desfazer o sorriso.
- Eu não perco tempo com rodeios!
- Eu já percebi isso, Geimy! - O meu irmão avançou um passo e segurou na mão da princesa guerreira. - Sei que aprecia a sinceridade, por isso serei cru na linguagem. Senti-me atraído por si no primeiro instante em que a vi. Julguei que estava comprometida e alegrei-me ao saber que ainda é livre... - Suspirou longamente e libertou-lhe a mão. - Mas o meu sonho foi breve! Os motivos por que não aprovo o casamento da minha irmã são iguais aos que nos separam. Por mais tentado que me sinta, eu não posso cortejá-la.
Apenas o olhar de Geimy denunciou a sua decepção. Ela manteve-se firme quando volveu:
- Sinto muito, por nós dois!
Edwin molhou os lábios, visivelmente desconfortável.
- Também eu... A Geimy é uma mulher muito especial! Se o Throst tiver juízo, não a perderá para outro homem.
A princesa hesitou, e eu podia jurar que ela se esforçava por ocultar o desapontamento. Acabou por esboçar apenas um gesto de saudação e dizer:
- Boa noite, Lorde Edwin!
- Eu acompanho-a ao seu quarto...
- Não é necessário! Eu sei o caminho.
- Eu insisto!
Continuei na sombra e só quando os seus passos se desvaneceram é que me atrevi a respirar livremente. Saí do esconderijo e gelei ao ouvir o apelo de Steinarr, a pouca distância.
- Não me interpretes mal, Catelyn! - apressou-se a justificar.
- Eu não estava a espiá-los! Vim para aqui descansar e refletir, e eles chegaram depois. De todas as minhas irmãs, a Geimy é a que eu mais estimo. Quis certificar-me de que a sua personalidade arrebatada não lhe criaria um embaraço. Confesso que, por um instante, estive quase a interferir, mas depois entendi as razões do teu irmão... Fico satisfeito por saber que ele é um homem honrado e respeitador.
Eu não sentia vontade de tecer elogios a Edwin. Por um instante, tivera esperança... uma louca esperança!
- É um prazer rever-te - continuou ele. - Disseram-me que te encontravas ausente. Quando foi que regressaste?
- Há pouco - forcei-me a responder, agradecendo pela bruma que escondia o rubor das minhas faces. - Não podia faltar à assinatura do Tratado.
Eu decidira enfrentar Throst e conceder-lhe a liberdade para cortejar Geimy. Ela era uma mulher de raça e nobreza. Saberia fazê-lo feliz. Além disso, casar com a princesa viking fortaleceria a posição do Jarl, se bem que Throst não necessitasse de quaisquer artifícios para merecer o amor do seu povo e o afeto do rei.
- Estás muito bonita! - elogiou Steinarr, aproximando-se um pouco mais. - A maternidade fez-te bem! Quando terei o prazer de conhecer o teu filho?
Ponderei inventar uma desculpa, mas resolvi acabar com as mentiras.
- Em breve. Decerto haverá tempo, depois da resolução dos assuntos sérios.
Antes que eu pudesse evitá-lo, já ele capturara a minha mão. Ergueu-a até aos seus lábios, num cumprimento longo e intenso.
- O Throst contou-me que pretendes o divórcio... O que aconteceu ao grande amor que vos unia?
Dei por mim a tremer como uma tola. Só a custo consegui recuperar a minha mão e replicar:
- O senhor ouviu o meu irmão. Existem demasiadas questões entre nós...
- Eu ouvi o teu irmão, é verdade! Mas concluí que essa separação é imposta. Estou errado?
Como eu detestava a sua perspicácia! Forcei-me a contornar a situação:
- Eu sei o quanto estima o Throst. Tenho a certeza de que ficará contente por entregar-lhe a sua irmã!
Steinarr negou com a cabeça, objetando com firmeza:
- O que une a minha irmã ao Throst é amizade, não é paixão. Aquilo que nós acabamos de presenciar, comprova-o. A Geimy ainda não encontrou o amor da sua vida... E o Throst irá amar-te até ao dia da sua morte. E tu, Catelyn? Sofreste um arrebatamento que murchou e feneceu? Ou estás a ser pressionada para te libertares dos laços que te prendem ao meu povo?
Também detestava a sua insistência... Raios! Por que é que eu não ficara na cama?
- Esse assunto diz respeito unicamente a mim e ao Throst! - insurgi-me, com alguma rispidez. - É muito tarde e devo regressar para junto da... do meu filho! Apenas aproveito para felicitá-lo pela coroação e pelo casamento. A sua esposa é muito bonita!
Steinarr sorriu trocista, atacando sem piedade: - E como sabes tu isso, se ainda não a conheceste? Corei brutalmente, justificando-me a custo:
- Já me falaram da sua rainha. E também me disseram que irá ser pai. Os meus parabéns!
Depois de uma pausa sorridente, Steinarr exclamou:
- Tu não sabes mentir, Catelyn! A verdade luta para se libertar por detrás do teu olhar. Não conseguiste convencer-me e não convencerás o Throst! Infelizmente, tal como tu dizes, esse assunto não me diz respeito. Se dissesse, teria um desfecho diferente! Eu sei que os teus cumprimentos são sinceros e agradeço-te pela gentileza. Amanhã terei oportunidade de te apresentar a Bera. E uma jovem encantadora e ama-me com devoção. O que mais posso eu desejar? Houve um tempo em que invejei a sorte do Throst, mas já não a invejo. Sei como dói perder um amor e conheço o tormento que ele enfrenta. Pelo menos, a minha privação foi alheia à vontade humana. O meu amigo viverá o resto dos seus dias a interrogar-se onde errou; padecendo de um mal incurável, de uma ferida que jamais sarará... Por isso a Geimy hesita! O Throst não voltará a ser um homem completo. Parte dele estará sempre contigo... finando a cada instante!
Steinarr tinha razão. Era assim que eu me sentia, partida em duas; uma parte consumindo-se e a outra chorando a perda da metade. Já tudo fora dito, e eu só desejava cair na cama e esconder-me de mim própria... Esta seria a última noite em que dormiria com o coração dentro do peito.
Quantas vezes me imaginara em tempo de paz, com um vestido de cerimônia e os cabelos armados no topo da cabeça, a descer as escadas ao encontro do meu amor? Quantas vezes sonhara com o brilho de admiração no olhar azul e o sorriso trêmulo de ansiedade com que o meu marido me brindaria? Mas a realidade era bem diferente!
O reencontro com Throst foi horrível, apesar de Geimy e Ingrior tentarem aliviar a tensão que se construiu à nossa volta. Depois de um cumprimento gélido, ele agiu como se eu não existisse. Ambos sabíamos que a sua indiferença era um castigo muito mais severo do que a raiva ou o rancor.
A cerimônia de assinatura do Tratado foi belíssima e, se eu não estivesse com um humor tão miserável, tê-la-ia apreciado. Porém, todos os meus pensamentos se centravam em Throst, assim como o meu olhar. A sua troca de carinhos com Geimy era constante. Ou mantinham as mãos dadas, ou ela permitia que a sua cabeça lhe repousasse no ombro, ou Throst tocava-lhe fugazmente na face e nos cabelos... Mas os sorrisos enamorados não abandonavam os seus rostos.
Um padre cristão rezou uma missa na capela da fortaleza, para abençoar a união dos dois povos. Era impossível fugir aos tentáculos da nova fé, e até os Vikings começavam a render-se ao Cristianismo. Enquanto escutava a ladainha que nada mudara com o passar dos anos, eu recordava o que Berchan me confessara. O meu irmão ainda não assumira uma decisão relativamente ao seu futuro, mas a proximidade crescente de Ingrior, Krum e Hakon pouco deixava à imaginação.
Um pequeno entretenimento foi proporcionado pelo falcão de Ivarr. Sem aviso, o pássaro lançou-se sobre o padre e arrancou-lhe o cabelo postiço com as garras, num vôo preciso e delicado. O sacerdote, que poderia ter perdido os olhos, mas escapara sem um beliscão, quase desmaiou de susto. A maioria dos presentes desfez-se em gargalhadas, e Steinarr trespassou o seu varão com um olhar predador. Contudo, Ivarr manteve a postura de espanto e indignação e, só quando todos já se haviam esquecido do incidente, é que ele se atreveu a piscar-me o olho, sabendo que eu apreciara a sua travessura.
Por fim, com os principais chefes de clã dos dois povos como testemunhas, Edwin e Steinarr juraram cooperação e lealdade, na paz e na guerra, num momento de intensa emoção que ficaria perpetuado na história e na memória de muitas gerações.
Quando a cerimônia terminou, começou a festa. Muita comida, cerveja, música e alegria, caracterizavam o banquete. Os habitantes da Grande Ilha e os Vikings misturavam-se. As diferentes línguas, religiões e culturas tinham deixado de ser um fator de discórdia. Assim acreditava o povo, mas eu sabia que o pensamento de Edwin era diferente.
O meu irmão quedava-se, tenso e nervoso, enquanto observava Geimy a mover-se pela festa, conversando, rindo e dançando. Ardia por dentro com vontade de avançar para ela, mas reprimia-se. As suas convicções venciam, mais uma vez, os seus desejos.
Steinarr dançou com a sua esposa e depois veio convidar-me. Eu preparava-me para declinar, quando vi Geimy a deslizar nos braços de Throst. Mastiguei a raiva e o azedume e segurei na mão que o rei viking me estendia. Tentei concentrar-me na música, tentei aplicar-me nos passos, mas foi tudo em vão. Só me apetecia chorar, gritar, desaparecer e nunca mais voltar. Estava a mergulhar num poço fundo e escuro e jamais veria a luz ou sentiria o calor do sol.
- Ainda estás a tempo, Catelyn! - murmurou Steinarr, quando nos aproximamos. - Dói-me ver-te desistir... Quando eu te conheci, fiquei maravilhado pela tua beleza, mas muito mais deslumbrado com a tua força, o teu entusiasmo e coragem. Nunca duvidei que conseguisses alcançar os teus objetivos, porque sentia-te do tamanho do mundo! Foi uma decepção encontrar-te derrotada pela vida. - Paramos de dançar, e o seu olhar capturou o meu. - Se não pertencesses ao Throst, terias sido minha! E eu jamais permitiria que tu me abandonasses...
- O senhor não sabe o que diz! - cortei violentamente, afrontada pela sua ousadia e impertinência. - O senhor não sabe nada acerca de mim!
Libertei-me e corri para longe, tão longe quanto era possível. Eu não agüentava mais esta festa, este convívio que deveria ser uma jubilosa celebração e se revelara um suplício. E já não suportava Steinarr e as suas afirmações, que me fustigavam a alma como as de nenhum outro. Apesar de não simpatizar com o meu casamento e de me declarar a sua cobiça, ele esforçava-se por me mostrar o quanto eu estava a ser injusta e insensata. E conseguia-o! Nem as palavras dos que me queriam bem, conhecedores da verdade, me haviam tocado tão fundo.
A noite fechou-se ao meu redor. O jardim interior, que acobertara a aventura tardia de Edwin e Geimy, seria o refúgio para as minhas lágrimas. Aninhei-me no canteiro onde Steinarr estivera, sabendo que era o lugar mais reservado. Mesmo que a minha ausência na festa fosse notada, eu não queria ser encontrada.
Fiquei paralisada como uma borboleta numa teia, ao ver que Throst me seguira. Entreguei-me sem um protesto, quando ele se sentou ao meu lado e me envolveu nos seus braços. Queria-o tanto que morreria se não devorasse a sua presença. Jubilei ao verificar que ele enchia o peito com o meu perfume. O seu coração galopava debaixo dos meus dedos e o seu corpo tremia tanto como o meu. Throst ainda me amava! Apesar de todo o sofrimento que eu lhe impusera, ele continuava a desejar-me! Mergulhada nesta doce loucura, jurei que me renderia se o meu marido revelasse a sua vontade.
- O Steinarr foi inconveniente contigo? - perguntou roucamente. - Se ele te ofendeu, eu...
- Não, Throst! Eu é que me descontrolei.
Ouvi-o suspirar e aguardei por um beijo. Todavia, a sua idéia era bem diferente:
- Eu pensei muito na nossa última conversa e no teu pedido...
- Enquanto falava, os seus braços perdiam a força, e a sua voz, todo o calor. - Se precisas de liberdade para ser feliz, Catelyn, eu estou disposto a conceder-te o divórcio. És uma mulher livre perante a minha lei. Amanhã, chamaremos Ingrior, Krum e Geimy para testemunharem a nossa separação. Depois, eu partirei e não tornarei a incomodar-te.
As suas palavras feriram-me mortalmente. Agora que eu fraquejara, Throst anunciava que já não me queria. Mordi o lábio para não berrar que o amava e o sabor do sangue espalhou-se pela minha boca. Senti o seu olhar a queimar-me, mas não consegui encará-lo. Limitei-me a acenar em concordância. Era melhor assim...
- Irás casar-te com a Geimy?
Por que raio lhe perguntara isto, neste tom magoado e repleto de agonia? Encontrei o seu olhar azul, confuso e atormentado, e as lágrimas cegaram-me. Throst não me perdoou:
- E o que é que isso te importa Catelyn? Não estás ansiosa por te livrares de mim?
Pisquei os olhos, e as minhas lágrimas formaram uma cascata. Arfei em busca de ar, confusa e assustada. Talvez ainda pudesse remediar a situação...
- Eu só queria dizer que... - a voz saía-me aos borbotões - sei que... a Geimy é uma boa mulher... e que te desejo... Toda a felicidade...
Só então reparei que ele também chorava. Desviou o rosto para esconder a sua fraqueza, murmurando dolorosamente:
- Não existe felicidade longe de ti! Não existe alegria, nem calor... Eu preferia enfrentar a morte, a esta separação, Pequena! Não tenho vergonha de confessar-te... - Fez uma pausa para recuperar o fôlego. - Desde que tu me abandonaste que eu maldigo o dia em que me salvaste...
- Throst... - Eu não suportava ouvi-lo falar assim!
- Por que me devolveste à vida e mostraste a felicidade, para depois me condenares a esta existência desgraçada? O meu coração morreu!
- Pára!
Tentei tapar-lhe a boca, mas Throst afastou-me, libertando a frustração e a dor que já não tinha força para reprimir:
- Maldita sejas Catelyn McGraw! - praguejou entre soluços, limpando as suas lágrimas com brusquidão. - Eu odeio-me e desprezo-me, porque não consigo odiar-te, porque não consigo esquecer-te, porque não consigo parar de amar-te... Raios, mulher! Espero que as tuas razões justifiquem o que estás a fazer... Espero que fiques feliz por saber que fizeste de mim o mais miserável dos homens!
- Não!
Desesperada, lancei-me sobre ele e silenciei-o com os meus lábios. O meu impulso foi tão veemente que tombamos no canteiro. O seu sabor embriagou-me e, nesse instante de puro delírio, compreendi que já não podia parar. Devorei-o com a paixão de uma fêmea no cio, afagando o seu peito e os seus ombros, enquanto saciava a sede com o mais doce dos néctares.
Senti-me tonta quando Throst quebrou o beijo; fustigada pela dor de um cão esfomeado a quem arrancaram o osso dos dentes. Os olhos do meu marido estavam transparentes e o seu rosto era uma máscara de confusão e desejo, quando inquiriu roucamente:
- O que pretendes de mim, Catelyn? Queres enlouquecer-me? Eu sabia o que queria. E Throst também soube, assim que me encarou. Com um ronco selvagem, subjugou-me com o seu peso e apossou-se dos meus lábios, dos seios, das ancas... Com as mãos a tremer, lutamos para afastar as roupas e, em menos de nada, éramos um só. Os nossos gemidos de paixão ecoavam dentro das nossas bocas e o fogo que nos queimava depressa nos empurrou para uma explosão violenta, que sacudiu os nossos corpos até nos arrancar a consciência de tudo o que não fosse a plenitude do nosso amor.
Abri os olhos devagar, apreciando a doce dormência da satisfação física. Pousado num ramo, logo acima das nossas cabeças, um pequeno pássaro dedicava uma suave melodia à Lua. Só então, eu recordei onde nos encontrávamos. Ao invés de assustar-me, rendi-me a um grande sorriso e nem a possibilidade de sermos surpreendidos me afastou do calor do meu marido.
Throst acariciou-me a face para pedir a minha atenção. Diante do seu olhar, eu tomei a decisão final. Senti-o estremecer e aconcheguei-me ao seu abraço para lhe transmitir confiança.
- Catelyn... - apelou temeroso.
Devorei os traços do seu rosto com as pontas dos meus dedos, replicando provocadora: - Por que não me chamas ”Pequena”? Ele piscou os olhos, certificando-se de que não estava a delirar.
- Não brinques com os meus sentimentos - murmurou sufocado. - Diz-me o que eu sonho ouvir. Diz-me que este momento que vivemos não foi só um devaneio de paixão. Diz que me queres, tanto como eu te quero!
Eu tinha plena consciência do perigo que corria, mas estava decidida a enfrentar o destino. Toquei nos seus lábios, retorquindo mansamente:
- Há muito para explicar e este não é o local apropriado. Vamos para o meu quarto. Está lá uma pessoa ansiosa por te conhecer...
Throst compreendeu de imediato o que eu pretendia, e o seu rosto iluminou-se com um sorriso. Beijou-me levemente os lábios, e iniciamos a árdua e infrutífera tarefa de nos arranjarmos. Depois, como amantes furtivos, percorremos os corredores ao coberto das sombras, abafando o riso sempre que tínhamos de esconder-nos dos muitos convidados que circulavam pelo forte.
Assim que chegamos ao meu quarto, eu apertei-lhe a mão para ganhar coragem, antes de chamar por Bretta. Quando a minha fiel companheira abriu a porta e encarou Throst, o seu rosto expressou estupefação. Porém, não demorou a reconhecer nele os traços de Edwina.
- Até que enfim, menina! - exclamou de mãos nas ancas. -Já era tempo de ganhar juízo!
A língua afiada de Bretta dizia sempre o que pensava. Desta vez, o fato de Throst falar um idioma diferente, era uma vantagem. Expulsei-a amigavelmente e fechei a porta atrás de nós.
Era tarde e Edwina já devia estar a dormir. Eu queria justificar-me, antes de apresentar Throst à nossa filha. Contudo, movida pela sua vontade soberana, a menina sentou-se na cama, esfregando os olhos e choramingando com sono:
- Mamã...?
Senti o sobressalto do meu marido como a pancada de um machado. Apercebi-me do seu olhar incrédulo, mas não tive coragem para encará-lo. E, de novo, Edwina provou que não era uma criança vulgar. O seu rosto abriu-se num sorriso de pura euforia, enquanto estendia os braços e gritava a plenos pulmões:
- Papá!
Como num sonho, vi a figura imponente avançar por entre as sombras dos castiçais. Levei as mãos à boca para sufocar o pranto, quando Throst segurou em Edwina e a apertou junto do peito. Deliciada, ela abraçou o pai pelo pescoço, soltando gargalhadas enquanto brincava com os seus cabelos cor de ouro. Mesmo à luz das velas, a palidez do meu marido era declarada. O seu rosto estava encharcado e o corpo era sacudido por soluços de emoção. A sua alma atormentada transpareceu-lhe no olhar azul, ao murmurar numa voz fraca:
- Eu já tinha ouvido rumores... Mas recusei-me a acreditar que tu... Esta criança não é filha do Gunnulf, Catelyn! É minha filha!
Era o fim da odiosa mentira, e eu senti-me imensamente aliviada ao admitir:
- Sim... Ela é tua...
Throst ficou lívido e, assim que conseguiu reagir, retirou do pescoço o amuleto que o seu pai lhe oferecera à nascença e colocou-o no pescoço de Edwina, perguntando:
- Qual foi o nome que lhe deste?
Mal eu lhe respondi, ele voltou-me as costas e saiu para a varanda. Segui-o e observei-o a erguer a filha ao céu, para que recebesse a bênção dos Elementos e dos deuses, como era tradição viking. Os seus votos soaram qual cântico divino, como eu sonhara tantas vezes.
De regresso ao quarto, ciente de que cumprira a sua missão, Edwina inclinou-se na direção do berço, anunciando que desejava dormir. Cuidadoso, Throst deitou-a e ajeitou as cobertas em redor do corpo frágil, com um carinho que me derreteu. Só depois de beijar a filha na testa, tornou a encarar-me. Apesar de adivinhar-lhe a indignação, eu não estava preparada para enfrentar a ira fulgente que palpitava em toda a sua expressão. Ele destruiu a distância que nos separava e agarrou-me pelos ombros, mutilando-me com o seu olhar.
- Como tiveste coragem de fazer-me isto, Catelyn? - inquiriu baixo, num tom que eu nunca escutara. - Por que me escondeste esta felicidade? - Fechou os olhos e tentou coordenar a respiração.
- Catelyn... - A voz faltou-lhe e tudo o que restou foi um queixume sumido. - Odeias-me assim tanto?
Segurei no seu rosto e fixei-lhe o olhar, enquanto soluçava devastada pela emoção:
- Eu não te odeio, Throst... Sabes que eu não te odeio! Tu és o único homem que eu amo... E que sempre amarei...
- Não entendo! - replicou agoniado. - Sinto que estou a enlouquecer...
- Eu não tive escolha - confessei, vergada pelo desespero; tremendo ante a gravidade do que estava prestes a fazer. - Eu só quis proteger-te! O Edwin irá matar-te... Eu não posso perder-te... Eu não posso viver sem ti!
Throst soltou uma exclamação incompreensível e estreitou-me com força, amparando o meu choro convulsivo. Depois, ergueu-me nos seus braços e transportou-me para a cama. Sentou-me no seu colo e continuou a embalar-me como se eu fosse uma criança. Aguardou que eu me acalmasse, antes de objetar apaziguadoramente:
- Por que haveria o Edwin de matar-me? Eu sei que ele discorda da nossa união, mas não o imagino a avançar para tamanha loucura! O teu irmão não pode ignorar que nós somos casados e temos uma filha. - Suspirou profundamente, denunciando impaciência. - Há mais de dois anos que nós sofremos em vão! Vamos regressar a casa como uma família! É certo que o Edwin ficará zangado e ressentido, mas, com o tempo, acabará por se habituar à idéia.
- Não entendes... - balbuciei junto do seu peito, tremendo sem parar. - Eu tive um sonho... uma Visão da tua morte, confirmada pelo teu avô. Tu e Edwin enfrentavam-se como feras enlouquecidas, cegos e surdos à razão, empunhando as vossas espadas como dois inimigos. Ele conseguiu desarmar-te e...
Estava feito! Sucumbi ao pranto, demasiado nervosa para encontrar um equilíbrio.
- Chhh! - murmurou Throst, procurando o meu olhar. - Nós já provamos que uma Visão não é uma realidade inevitável, Pequena! Vamos ultrapassar isto juntos. Eu tenho a certeza de que o nosso amor triunfará!
Os lençóis frios acolheram os nossos corpos e o ardor dos nossos beijos. Eu murmurei o seu nome e repeti que o amava, até perder a voz. Os lençóis aqueceram e todos os meus medos se desvaneceram na segurança da sua convicção. O meu marido amou-me devagar, com a liberdade que a privacidade permitia, desfrutando da união plena que não respeitava os limites da existência física. E eu entreguei-me sem reservas, sabendo que jamais voltaríamos a separar-nos. Para onde Throst fosse, eu também iria... na vida e na morte.
Repousar nos braços do meu guerreiro, ouvindo os nossos corações a regressarem ao ritmo normal, depois de uma jornada de amor, era toda a felicidade de que eu necessitava. Além disso, havia algo mais... Algo forte e inconfundível, que se entranhava na própria essência do meu ser. Sentira essa sensação apenas uma vez, na noite do nosso casamento, mas conhecia bem o seu significado. Este momento mágico tivera conseqüências. Eu acabara de engravidar do homem que amava.
- Edwina... Era o nome da tua mãe?
A voz de Throst provocou-me um frêmito de calor. Agradava-me saber que ele fixara a história da minha vida. Deslizei os dedos pelo seu peito nu, antes de confirmar.
- Edwina - repetiu Throst. - Gosto! É bonito! - Segurou no meu queixo, forçando-me a encará-lo. - Mas eu escolherei o nome do próximo!
Não contive um sorriso. Poderia o meu marido saber que acabara de plantar a sua semente no meu corpo? E por que não? Não era ele neto do Guardião da Lágrima do Sol?
- Virás comigo, Catelyn?
Engoli em seco. Manter-me-ia fiel à decisão que tomara.
- Eu juro que não tornarei a fugir - respondi solenemente.
- Mas terás de deixar-me falar com o Edwin. Eu tenho de fazê-lo compreender... Não posso arriscar-me a perder-te!
Throst beijou-me os cabelos e estreitou-me com tanta força que quase me magoou.
- Não tenhas medo, Pequena! Tu jamais me perderás!
- E a Geimy?
Ouvi-o rir baixinho, antes de retrucar:
- O que é que tem a Geimy?
Era evidente que ele não pretendia facilitar-me a vida.
- Eu pensei que vós estáveis a namorar...
- Tu pensaste aquilo que eu quis! - Throst zombou abertamente do meu espanto. - A Geimy é apenas uma boa amiga. Eu desabafei com ela e com o Steinarr e pedi a sua ajuda. - Gargalhou ao ver o meu olhar furibundo. - Tu assustaste-me, Catelyn! Cheguei a acreditar que a estratégia de fazer-te ciúmes não estava a resultar!
Fingi-me indignada e tentei atingi-lo com palmadas. Throst agarrou-me nas mãos e, rindo sem parar, subjugou-me sob o seu peso. A felicidade do contacto da nossa pele fez-me esquecer de imediato tudo o que não fosse a partilha das emoções.
Despertei sem saber porquê e senti a necessidade imperiosa de respirar o ar fresco, vindo do mar. Saí para a varanda e deleitei-me com a aragem noturna, leve e amena, que carregava a promessa de uma nova vida para lá do horizonte, na Ilha dos Sonhos, ao lado do meu marido e da nossa filha... Um sonho tornado realidade!
Sobressaltei-me ao aperceber-me de uma oscilação na energia que me rodeava; uma leve brisa que não provinha do vento. O meu coração apertou-se ao verificar que não me encontrava sozinha. De um lugar incerto do céu, estendera-se uma ponte de luz. Belas figuras, vestidas de branco e azul, haviam deslizado até à varanda e pairavam diante de mim. Os Seres Superiores davam-se finalmente a conhecer. E a sua chegada, neste preciso momento, não me inspirava nada de bom.
- Pensaste que nos tínhamos esquecido de ti, Irmã? - perguntou com serenidade uma mulher de extrema beleza, que se diferenciava pelas vestes ricas. - A tua missão na Terra foi cumprida com sucesso. É tempo de cortares as amarras que te prendem aos humanos. Tu és uma feiticeira, Catelyn, tal como nós! Não pertences à Grande Ilha nem às Terras do Norte! O teu lugar é na Ilha Sagrada.
O seu companheiro, alto e moreno, vestido de branco, acrescentou:
- Vem conosco, Catelyn! Ainda tens muito que aprender, mas...
- Não! - Retorqui, inquieta e temerosa. - Eu não desejo unir-me a vós! Cumpri o que exigistes de mim... Agora mereço ser feliz!
Os Seres Superiores quedaram-se em silêncio, e o ar adensou-se ao nosso redor. Os seus rostos não escondiam a surpresa e o descontentamento, perante a minha insolência.
- Tu sempre foste uma menina sôfrega por Conhecimento - recomeçou cautelosamente o Mestre Supremo. - Junto de nós, terás acesso a todos os segredos do Universo. Imagina, Catelyn... As respostas que sempre desejaste estarão ao teu alcance!
Eles queriam tentar-me... Mas eu não era Berchan! Não venderia a minha felicidade pela perspectiva de uma existência sábia, mas desprovida de emoções.
- As criaturas de Deus não devem almejar a sabedoria do Criador, ou o equilíbrio estará permanentemente ameaçado - respondi num tom carregado de crítica. - Eu não ambiciono o que vós me ofereceis.
Tive a impressão de que as minhas palavras se esmagavam contra uma muralha de gelo. O Sacerdote e a Sacerdotisa do Conselho Superior entreolharam-se, estabelecendo um diálogo silencioso, ponderando se deviam mudar de estratégia. Foi ela quem falou:
- Poderás ficar, se assim o desejas, mas terás de entregar-nos a tua filha. O filho de Gwendalin está fora do vosso e do nosso alcance e, um dia, regressará para vingar-se. Não podemos arriscar de novo o destino da Terra. A Edwina é a única com poder para enfrentá-lo e deverá receber uma instrução correta, que só nós podemos proporcionar-lhe. Sabes que eu falo a verdade! Conosco, a tua filha estará a salvo até ao dia do grande confronto...
- Não existirá nenhum confronto - rugi entredentes, disposta a defender a minha cria até às últimas conseqüências. - Nós iremos encontrar o Edwin e resgatá-lo! E, se não o acharmos, enfrentaremos as conseqüências das nossas decisões em família, como sempre fizemos. Jamais vos entregarei a minha filha para que a transformem num ser vazio, egoísta e mesquinho, sedento de poder e sem um pingo de sensibilidade. A Edwina será educada pela família e aprenderá os valores humanos; conhecerá a força da amizade e do amor, que vós ignorais...
- Como te atreves a falar-nos dessa maneira, sua ingrata? - trovejou o Mestre Supremo, com tal comoção que os seus olhos chisparam. - Fomos nós quem te demos vida...
- Quem me deu vida foi o Criador, através de Lorde Garrick e da Senhora Edwina McGraw! - desafiei-os sem pestanejar. - O meu destino já estava escrito na Pedra do Tempo, muito antes de vós decidirdes usar-me para corrigir os erros da vossa intolerância; da vossa declarada superioridade que nada mais é do que arrogância...
- Basta!
Uma tempestade eclodiu sobre mim, minando-me a força e a razão. O feiticeiro franziu a testa e os seus olhos transformaram-se em poços de chamas.
- Queres experimentar o mesmo castigo que aqueles que ousaram enfrentar-nos antes de ti? Nós entregamos-te a magia, Catelyn! Só desfrutarás dela enquanto o permitirmos!
Sacudi a cabeça e revidei, sem hesitação ou pesar:
- Eu nunca ambicionei a vossa magia! Só quero viver uma vida sossegada junto da minha família!
- Nós somos a tua família! - declarou a Sacerdotisa Superior, ainda tentando a reconciliação apesar de ofendida.
- A minha família é humana! - afirmei com a convicção da verdade. - A minha família pertence à Grande Ilha e às Terras do Norte!
- Estás a renegar a tua condição de Feiticeira?
- Eu nunca fui uma Feiticeira! - objetei, encurralada e enraivecida. - Jamais poderia ser como vós, seres frios, que castigam quem ama e renegam quem não cumpre a vossa vontade!
A Sacerdotisa tentou argumentar, mas o Mestre Supremo silenciou-a.
- Acabaste de ditar o teu destino, Catelyn McGraw! - estrondeou, vomitando fúria. - Espero que a tua ridícula existência humana justifique tão grande perda!
E, num piscar de olhos, tinham desaparecido.
Sem força nas pernas, deixei-me escorregar para o chão, tremendo desamparada, devassada pelo nervosismo e plenamente consciente da gravidade da posição que assumira. Não só desafiara os seres mais poderosos da Terra, como também comprometera qualquer ajuda futura que se dignassem prover à minha filha. Mas o meu instinto continuava a teimar que esta fora a escolha certa. E o meu coração nunca se enganava!
Despertei com os primeiros raios do Sol a acariciarem-me o nariz e o pio estridente de uma ave marinha junto dos meus ouvidos. Ergui-me num braço, surpreendida por constatar que adormecera na varanda. A gaivota assustou-se e voou, reunindo-se às companheiras que pairavam ao sabor da brisa suave da manhã.
A minha cabeça estava pesada, e uma náusea azeda enfraquecia-me o corpo, como se tivesse abusado da bebida. Recordava-me de ter saído da cama a meio da noite, respondendo a um apelo irresistível. Depois, tudo me parecia confuso, como um sonho... Senti-me gelar, de dentro para fora, enquanto a memória se refrescava. Cruzei os braços em redor do peito para conter o tremor. E se o que eu sofrera tivesse sido mais do que um desvario?
O meu primeiro cuidado foi para Edwina. Forcei-me a ignorar a tontura e precipitei-me para o interior do quarto. Suspirei de alívio ao verificar que a minha filha descansava tranquilamente, com um sorriso nos lábios rosados. Na minha cama, Throst também continuava adormecido, e a visão do seu corpo másculo, enrolado nos lençóis desalinhados pelo nosso amor, deu-me alento para enfrentar os fantasmas que me assombravam. Usei a força da mente para ajeitar as cobertas de Edwina e sosseguei ao verificar que tudo funcionava sem falhas. Confirmava-se que a visita dos Seres Superiores não passara de um pesadelo.
Despi a camisa de noite e comecei a vestir-me. Os sons que chegavam do exterior denunciavam o despertar do forte. O dia não seria fácil e eu tinha de preparar-me para enfrentá-lo. Julguei que Throst ainda dormia e foi com surpresa que encontrei o olhar azul preso no meu corpo. Divertido com o meu rubor, ele murmurou embevecido:
- És muito mais bonita do que eu me atrevia a recordar...
De súbito, a porta do quarto escancarou-se e Edwin entrou desembestado, com o rosto incandescente de raiva. Sem contemplações, apontou para Throst e gritou:
- O que está este homem a fazer na tua cama, Cat? Enquanto eu cobria a roupa interior com o vestido, Throst vestia
atrapalhadamente as suas calças. No berço, Edwina despertava e choramingava assustada. Senti as faces a arderem de embaraço e indignação. Como pudera esquecer-me de trancar a porta? Fora uma imprudência sem perdão! Encarei Edwin e repliquei irritada:
- Terei de recordar-te que ”este homem” é meu marido e pai da minha filha?
Sem hesitar, Throst colocou-se ao meu lado. Quase tombei, estupefata, quando o ouvi falar na língua da Grande Ilha:
- Eu só quero o que me pertence, Edwin! Não sairei daqui sem a minha mulher e a minha filha.
Pensei que o meu irmão fosse explodir. Os seus olhos relampejavam e a sua voz trovejava, quando retrucou:
- Tua mulher? Debaixo de que lei? Da tua lei bárbara? Raptaste a Cat quando ela ainda era uma criança e arrastaste-a para a tua terra!
Com que direito reivindicas um casamento com uma mulher que foi forçada a submeter-se à tua luxúria para conservar a vida?
O tom de Edwin despertou-me para a ameaça. Esta discussão podia ser o início do fim. Sem hesitar, coloquei-me diante de Throst, tentando repor o bom senso:
- Sabes perfeitamente que não foi assim que as coisas se passaram, Edwin! - A minha prioridade era mantê-los afastados. - Eu irei contigo agora, Throst! Vou preparar a Edwina...
- Tu não vais a lado nenhum! - berrou Edwin, trespassado pela ira. - Tu não sabes o que é melhor para ti! Este homem deu-te volta à cabeça! Enfeitiçou-te com os seus cultos pagãos...
- A feiticeira aqui sou eu! - insurgi-me, ofegante. - Depois de tudo por que eu passei, tu não tens o direito de negar-me a felicidade!
- Estarás cega e surda, Cat? Perdeste a razão? O pai e o Aled estão mortos, mas eu não permitirei que envergonhes a família! Afasta-te desse homem...
- Não!
Arrependi-me mal bradei a minha revolta. Edwin desembainhou a espada, mastigando:
- Eu não queria chegar a tanto, mas não me deixas escolha! Empalideci, mas mantive-me firme diante de Throst, escudando-o com o meu corpo.
- Enlouqueces-te, Edwin? Guarda a arma!
- Não é assim que estes selvagens resolvem as disputas de razão?
- rosnou o meu irmão. - Irás continuar a esconder-te atrás de uma mulher como um cobarde, filho de Thorgrim?
As mãos de Throst pousaram nos meus ombros e afastaram-me. Atendendo às circunstâncias, parecia insensatamente calmo.
- Empunha a tua arma, bárbaro! - insistiu Edwin, descontrolado. - Irás pagar por todas as privações que impuseste à minha irmã!
Throst negou com a cabeça e abriu os seus braços, declarando com firmeza:
- Eu não lutarei contigo...
- Então morrerás! - Gritei quando Edwin investiu contra Throst. O meu marido desviou-se a tempo e a espada rasgou o ar. Como num sonho, ouvi-o clamar:
- Eu amo a Catelyn! Deixa-me provar-te que posso fazê-la feliz!
- Eu não entregarei a minha irmã a um homem que brandiu armas contra o meu sangue!
- Vamos acabar de vez com este ódio, McGraw!
Throst esgueirava-se pelo quarto e Edwin perseguia-o; um lobo caçando um coelho. O meu irmão pouco se importava se enfrentava um homem desarmado, se eu estava no caminho, arriscando-me a perder um membro, ou se a sobrinha chorava, aterrada pelo alvoroço. Não se incomodava se me deixava viúva e mortificada de dor. Não se interessava se Edwina perdia o pai, agora que o encontrara. Só desejava a vingança a qualquer custo.
- Parem!
Os meus gritos esbarraram na surdez dos dois homens. Throst esquivou-se de outro golpe e cambaleou para a varanda. Eu segui-os, berrando a plenos pulmões para tentar detê-los e desfaleci, ao ver que o meu irmão prostrara Throst e o imobilizara, erguendo a espada por cima do seu peito com um rugido ensandecido:
- Eu vou dar-te uma última oportunidade, filho de Thorgrim! Se não jurares imediatamente deixar a minha irmã e partir para nunca mais voltar, acabarei contigo sem piedade!
Escusando-se de qualquer defesa, o meu marido respondeu:
- Não é a primeira vez que a minha vida está nas tuas mãos, McGraw! Faz o que a tua consciência te ordena!
- Vais morrer...
- Edwin...
Enquanto o braço do meu irmão recuava para desferir o golpe final, ergui a mão, decidida a usar a magia contra ele. Porém, o meu coração agonizou ao surpreender-me tão impotente como diante de Gunnulf! A minha magia não funcionava! O pesadelo fora real! Eu repudiara os Seres Superiores e estava a ser castigada no instante em que mais necessitava do poder que desprezara. Era o fim...
Não! Eu ainda não estava vencida!
- Edwin... - Lancei-me em frente e cobri o corpo de Throst com o meu. - Não! Suplico-te...
- Sai daqui, Cat!
Eu estava cega pelas lágrimas e mal tinha alento para respirar. Por baixo dos meus dedos, o coração de Throst chicoteava o seu peito.
- Edwin, escuta-me...
- Chega, Cat!
O meu irmão empurrou-me violentamente, e eu caí desamparada, deixando de oferecer qualquer proteção ao meu marido. Mas não desisti:
- Por que estás a fazer isto, mano? Tu sabes o que é o amor! Já o sentiste...
- Vai para dentro!
Os olhos de Edwin chamejavam. Dentro dele, o homem travava uma batalha sem tréguas contra a besta. Era a minha última oportunidade:
- Eu amo-te, Edwin! Não me arranques o coração do peito... Não me condenes a odiar-te!
Cobri o rosto com as mãos e entreguei-me ao desespero da derrota. Desafiara os Feiticeiros e sofrera a sua punição torpe. Agora, ia perder o meu marido... a minha alegria de viver.
Quando ouvi o tinir do ferro contra a pedra do chão, pensei que a minha vida acabara. Afastei os dedos dos olhos para receber a visão grotesca do corpo dilacerado... Porém, Edwin não matara Throst! Ao encará-lo, olhos nos olhos, deixara cair a sua espada e tombara para o lado, enrolando-se sobre si próprio e afundando-se num pranto convulsivo.
Gritei de emoção e caí nos braços que se estendiam, ansiosos por me acolher. Estreitei Throst com a força que me restava e partilhei do seu alívio. O calor do seu beijo assegurou-me que o pesadelo finara. O nosso amor vencera!
A minha mente dissecava a loucura da atitude do meu marido. Throst não reagira como qualquer outro teria feito. Ao colocar a decisão da sua sorte nas mãos de Edwin, ele contrariara a minha Visão de dois guerreiros raivosos, que cruzavam as espadas violentamente, até o vencido perecer. Throst mudara o seu destino, derrotara o ódio e salvara a própria vida, ao recusar-se a enfrentar o meu irmão.
Arrastei-me até Edwin, cujo corpo estremecia perdido no seu próprio pesadelo.
- Acabou! - murmurei comovida. - Está tudo bem, mano!
- Eu não quero perder-te, Cat! - balbuciou ele em resposta, abraçando-me desesperado.
- Tu não irás perder-me...
- Irei, sim! - insistiu Edwin, com a aflição de um garoto abandonado. - Eu irei perder toda a minha família! - E, por entre soluços, confessou a amargura que o devorava: - O Stefan tem o seu mundo, o Berchan vai partir para realizar o seu sonho e tu... Depois do que eu te fiz sofrer, tu vais odiar-me, Cat!
- Mano...
- A Melody está morta... E o Tristan, o Aled, o Quinn... O pai e a mãe... Eu vou ficar sozinho!
- Não! - contestei, forçando-o a encarar-me. - Tu tens o meu amor; tens o amor de todos nós! A vida ainda te reserva muitas alegrias. Não te feches aos que te estimam... Não te feches ao amor! Ninguém poderá compensar-te pelo que já sofreste, mas todos nós iremos ajudar-te a sarar as feridas e a encontrar um novo rumo.
- A Catelyn tem razão. - A voz de Throst soou tranqüila, como a promessa de uma felicidade sólida. - Tu não perdeste a tua família! - Num gesto de absoluta generosidade e entrega, ofereceu-lhe o seu abraço. - Pelo contrário, ganhaste uma nova família... meu irmão!
Edwin ficou tenso, mirando-o incrédulo e pasmado. Eu sabia que a sua hesitação não significava repulsa e sim a emoção da descoberta de uma nova esperança. Levei as mãos à boca para conter a explosão de sentimentos, quando Edwin aceitou o abraço de Throst. Enlacei-os também, suspirando enlevada. Esta era a verdadeira magia - a magia da amizade e do amor. E eu não necessitava do Poder Superior para senti-la fluir por mim.
Quando o resto da família entrou no quarto, atraída pela confusão, ainda estávamos abraçados. Por entre as lágrimas de alegria, vislumbrei um rosto sem idade, com os olhos brancos como a Lua. Hakon sorria diante desta nova vitória. Acenou em aprovação, e a sua voz ecoou dentro de mim:
”Bom trabalho, Catelyn da Ilha dos Sonhos. Podes respirar livremente e descansar. Hoje é o primeiro dia da tua nova vida.”
Este estava a ser o melhor Verão de que eu guardava memória. Nem mesmo na minha infância houvera uma estação tão amena. Os barcos regressavam da faina carregados de peixe. As sementes brotavam mal caíam na terra. Os animais reproduziam-se com freqüência e cresciam, fortes e saudáveis. As pessoas gozavam a paz há muito ansiada e trabalhavam com prazer e sem cansaço.
A Ilha dos Sonhos ficava a pouco mais de dois dias de distância, para os que viajavam da Enseada da Fortaleza, a nova morada de Lorde Stefan McGraw. Eu guardava com carinho o dia em que chegara ao arquipélago e a forma calorosa e festiva como fora recebida. Os melhores amigos de Throst haviam-no seguido nesta aventura, construído casas, quintas e comércio, portos e barcos, transformando a ilha num ponto de paragem obrigatório para os comerciantes.
Nessa manhã, as nossas tarefas foram interrompidas pelo sopro de uma trompa que anunciava a chegada de visitas. Descemos à praia para receber os convidados ilustres: Lorde Edwin McGraw e o Rei Steinarr do Povo Viking.
As crianças brincavam na areia branca e fina. Contá-las, já se tornava difícil. Ivarr, que passara o Verão conosco, era o líder incontestado da pequenada. Aled, Bryan e Eric seguiam-no para toda a parte, fascinados com o poder e a força que emanavam do jovem príncipe. Também eles já possuíam grande destreza no manejo de armas e imitavam as proezas do amigo. Trygve, que seria um homem das artes como o seu pai, dedicava-se a cuidar de Edwina. A minha filha desenvolvia-se com uma celeridade impressionante. Há muito que sabia ler e fazia coisas prodigiosas com a Arte que desabrochava dentro de si. Ela e Trygve costumavam sentar-se junto do feiticeiro da ilha, a observar os três sábios aprendizes. Em pouco tempo, estavam a realizar pequenos truques que maravilhavam os adultos.
Dália veio ao meu encontro, com o rosto delicado e bonito, tão corado que parecia prestes a incendiar-se. Os outros podiam pensar que o seu rubor se devia ao esforço de manter ao seu cuidado a pequenita de Krum, Svana, e as minhas gêmeas, Thora e Freya. Apesar dessa tarefa magnânima, executada com perfeição e devoção, eu adivinhava, pelo brilho dos seus olhos, que a sua agitação tinha outra causa. Bjorn vinha neste barco, e o coração da jovem mal se agüentava no peito, exaltado com a expectativa de rever aquele por quem, há muito, se enamorara.
Thora e Freya...
Dei por mim a recordar a noite acidentada em que dera à luz, há pouco mais de dois anos. Se não fosse a ajuda de Ingrior e o apoio de Throst, eu teria perdido a vida. Decerto os Feiticeiros haviam-me apontado os seus dedos vingativos! A minha gravidez correra bem e as meninas estavam em boa posição para nascer. Ninguém encontrava explicação para o que sucedera, mas as conseqüências tinham sido trágicas. No fim, Ingrior comunicara-me com pesar que, se eu teimasse em ter mais filhos, decerto morreria.
Depois de superar as dificuldades do parto, quase sucumbi à dor da revelação. Ficar incapacitada de dar um filho homem a Throst era um desgosto intolerável. Mergulhei numa tristeza profunda e quase perdi a batalha com a morte. Valeu-me o homem maravilhoso que escolhi para companheiro, que me garantiu que três filhas e a minha companhia eram toda a felicidade que ele desejava. Que conforto lhe daria um varão, dissera, se eu não estivesse ao seu lado para partilhar a velhice? Suplicara-me que lutasse, rogara-me que não o abandonasse. E eu vivera... Por Throst e pelas nossas filhas.
Eu sabia que o meu marido sempre acalentara o desejo de chamar Thor ao seu primeiro filho homem. Como sabíamos que não teríamos mais crianças, ele não hesitou em chamar Thora à mais velha das gêmeas e deixou ao meu cuidado a escolha de um nome para a mais nova. Achei coerente chamar-lhe Freya. Seria a minha homenagem à deusa da paixão e da magia viking, quer ela fosse real ou produto da fértil imaginação do Povo do Norte. Era o nome perfeito para a última filha da última feiticeira nascida na Terra.
Thora e Freya eram bebês muito diferentes de Edwina. Enquanto a menina mais velha tinha a compleição de Throst, as gêmeas eram parecidas comigo, pequenas, mas sólidas, com cabelos negros e grandes olhos verdes. Se Edwina era uma menina contemplativa e meiga, Freya era queixosa e inquieta, e Thora, uma verdadeira gata selvagem. Mesmo no berço se adivinhavam as suas personalidades fortes.
E o tempo encarregava-se de vincar as diferenças. Dália pedia às suas três pupilas que se sentassem, para que ela pudesse assistir ao desembarque: Svana obedecia-lhe de imediato; Freya resmungava contrariada, mas acabava por condescender; Thora aventurava-se numa fuga, ao encontro do grupo dos rapazes, onde se sentia verdadeiramente bem. Quando Dália a segurou, a pequena traquina começou a berrar e a espernear. A jovem agradeceu-me por libertá-la do corpo irrequieto, mas, mesmo no aconchego dos meus braços, Thora continuou a protestar e a lutar para correr na areia. Só se acalmou quando Throst a pegou ao colo. Com a mão livre, o meu marido abraçou-me pela cintura, murmurando trocista:
- A quem sairá ela tão teimosa e irrequieta? Os tios garantem que é igualzinha à mãe!
Voltei o rosto para lhe devolver o sorriso, mas não tive tempo para lhe responder à altura, pois o majestoso Drakkar de Steinarr já aportava na praia e todos corriam para saudar os amigos. Sombra, o belo falcão que nunca abandonava Ivarr, voou para uma árvore próxima, incomodado pelo alvoroço. Vento, o falcão de Steinarr, pousou com elegância numa árvore vizinha e piou em desafio.
Cumprimentei todos com entusiasmo, mas os meus olhos buscavam ansiosamente o meu irmão. Edwin surgiu por fim, ajudando Geimy, que já se movia com dificuldade devido à gravidez avançada. Rodopiei nos braços de Edwin e abracei a minha cunhada, felicitando-a pelo belo rapagão que crescia dentro dela. O meu irmão teria finalmente o filho que tanto desejava... e mais do que esperava, pois eu acabara de aperceber-me de que Geimy esperava gêmeos. Decidi guardar segredo. Esta menina seria uma prenda para ambos.
Não fora fácil para Edwin ceder aos encantos de Geimy. Porém, a princesa viking era uma mulher determinada, de vontade indomável. Como em tudo na vida, tomara a iniciativa, desembainhara as armas e lutara sem tréguas até à rendição de Edwin. O meu irmão tivera de engolir tudo o que dissera sobre os bárbaros do Norte e apagar definitivamente o rancor do seu coração.
Edwin não desistira de procurar o primogênito, e a esposa tornara-se sua companheira de busca. A última investigação conduzira-os ao país da jovem, com a proteção e apoio de Steinarr. Todavia, infelizmente, revelara-se vã. O Guardião da Lágrima da Lua permanecia escondido, longe do alcance da nossa imaginação. Eu já não tinha poder para buscá-lo... Mas mesmo que os Seres Superiores não mo tivessem usurpado, seria inútil utilizá-lo, já que o Guardião da Lágrima do Sol ficava cego quando tentava romper a bruma que envolvia o paradeiro do primo.
O pequeno Edwin devia estar tão alto e forte como a minha Edwina. Que personalidade estaria Sigarr a moldar no filho da feiticeira maldita? Muitas vezes, eu detinha-me a pensar na forma cruel como o destino marcara os dois primos. Tinham sido gerados ao mesmo tempo, nascido no mesmo instante e até partilhado o nome, numa coincidência perturbadora. Eu pressentia que o futuro não lhes reservava nada de bom. Um dia, Edwin enfrentaria Edwina, e um deles morreria. Nessas alturas, eu desejava ardentemente recuperar o poder da Visão. Porém, logo agradecia por tê-lo perdido. Era melhor viver na ilusão do desconhecimento, do que na angústia da incerteza.
- Pai, vem ver a minha noiva!
O apelo de Ivarr arrancou-me do devaneio e deixou-me perplexa. Já não era a primeira vez que ele se referia a Edwina nesses termos. O pequeno príncipe parecia determinado, apesar da tenra idade, em cumprir a vontade que o seu pai manifestara de unir as nossas famílias. Eu sabia que essa hipótese também agradava a Throst, mas temia por Edwina. Eu sempre afirmara que jamais lhe imporia um casamento e tencionava cumprir essa resolução. Porém, tudo parecia encaminhado para que não houvesse alternativa. Tornar-se-ia Ivarr homem suficiente para entender e apoiar o destino da minha filha, quando este lhe batesse à porta?
Uma recepção digna de um rei e da sua comitiva aguardava os recém-chegados. Throst mandara abater boas peças de carne para saciar os estômagos esfomeados e ninguém se poupava à alegria. A música ecoava pela aldeia e a cerveja esbanjava-se em jarros. Ninguém faltou à festa e, depois de comerem e beberem até não poderem mais, todos se entregaram à dança e ao convívio.
Lembrei-me de Stefan. O meu irmão haveria de gostar de estar conosco. Porém, as grandes responsabilidades que assumira perante a coroa impossibilitavam-no de visitar-nos tantas vezes quantas desejava. Depois que Edwin partira em busca do filho, o rei entregara a Stefan a administração do território. A paz acordada com os Vikings permitia que ambos os reinos crescessem e prosperassem em harmonia.
Restava-nos a satisfação da companhia de Bryan durante o Verão, enquanto Enya dedicava a sua atenção aos gêmeos, Quinn e Melody, e a sua barriga crescia pela terceira vez. Eu tinha a certeza de que Stefan concretizaria o seu sonho de possuir uma família numerosa em muito pouco tempo!
A nova religião já dominava os dois povos e a nossa ilha era o único lugar onde um feiticeiro podia erguer a voz sem temor. Os Sábios tinham desaparecido sem deixar rasto. Mas Berchan ficara! Desejava aprender mais sobre o poder antigo, ao lado de Hakon... Contudo, eu sabia que a sua fome de conhecimento fora pouco mais do que um pretexto para ele se quedar.
Durante muito tempo, Berchan tentara negar a atração que sentia por Ingrior. A disciplina em que crescera forçara-o a acreditar que um sábio, para utilizar plenamente as suas capacidades, não podia ceder a distrações tumultuosas como a luxúria. Por outro lado, apesar de se ter apaixonado pelo meu irmão muito antes de conhecê-lo, Ingrior nunca tentara seduzi-lo. Compreendia o seu conflito e respeitava-o. Se Berchan não se declarasse, ela jamais o faria.
O preconceito não era um fator de divisão. Berchan era solidário com o passado de Ingrior e dedicava a Trygve um grande carinho. Aliás, alguém mais distraído poderia tomar o pequeno por seu filho, pois ambos possuíam fisionomias muito semelhantes, testemunho da herança do sangue. E Trygve venerava Berchan. Sempre que o meu irmão estava disponível, o rapaz tornava-se a sua sombra, bebia os seus ensinamentos e delirava com as manifestações de apreço. Era óbvio que só a insegurança mantinha o casal separado.
Nessa noite, encontrei Berchan isolado da festa, observando a multidão que celebrava. Eu bem sabia quem capturava a sua atenção! Ingrior dançava uma música alegre com Durin, e a sua figura encantadora despertava as atenções de muitos homens. Aproximei-me e usei uma das poucas habilidades que não perdera:
”Por que esperas, irmão? Sabes que o passado de Ingrior poderia desencorajar muitos pretendentes entre o nosso povo, mas, entre o seu, não tem nenhuma relevância. Todos a estimam e, com esta paz de que desfrutamos, as propostas não lhe faltarão. Mais tarde ou mais cedo, Ingrior sentir-se-á tentada a reconstruir a sua vida, a dar um irmão ao Trygve e a arranjar um companheiro para a velhice. Irás permitir que outro tome o que tu tanto anseias?”
Berchan não desviou a atenção do baile. A sua mente respondeu-me de forma tão trêmula como os seus lábios o fariam:
”Poderei ousá-lo, Cat? Eu conheço os seus sentimentos, e ela, os meus. Estamos tão próximos e em sintonia que é impossível ocultá-los. Porém, temo que uma aproximação carnal destrua tudo o que nos une. Eu nunca tive uma mulher... Receio decepcioná-la! Não suportaria uma rejeição...”
”A Ingrior jamais te rejeitaria! E, quanto ao resto, não precisas de te preocupar, irmão! O amor conhece de cor o carinho e a paixão. Não precisa que a mente guie os seus passos.”
Mais tarde, enquanto caminhava pela praia com o meu marido, buscando um pouco de privacidade, eu vislumbrei de relance Berchan e Ingrior. Estavam protegidos pela sombra das árvores e trocavam um beijo apaixonado. Em silêncio, despertei a atenção de Throst. Ele sorriu e aumentou a pressão do seu braço na minha cintura, atraindo-me para mais perto. Ambos desejávamos que este fosse o início de uma linda história de amor.
Sentamo-nos nas rochas, olhando o mar, enquanto nos deliciávamos com beijos. A minha felicidade era tão intensa que eu receava exprimi-la, não fosse alguma força maligna tentar apossar-se dela. Enlevado pela emoção, Throst murmurou ao meu ouvido:
- Quero viver o resto da minha vida aqui, contigo e com as nossas filhas. Nunca fui tão feliz, Pequena! Amo-te!
- Eu também te amo, meu querido!
Ele acariciou a pedra azul que pendia do meu pescoço, antes de sussurrar:
- Lamento que tenhas sido forçada a prescindir da tua magia por minha causa.
- Eu não! - Silenciei-o com um beijo. - A Arte dos Sábios é mais do que eu preciso para educar as nossas filhas. Só espero que elas tenham um destino mais leve do que o meu... e a mesma ventura no amor!
Throst sorriu e correspondeu ao meu carinho, devagar, aproveitando cada instante do contacto. Não havia pressa. Nenhum de nós tencionava fugir.
- Lastimo a sorte do Edwin - continuou, com um suspiro profundo. - Ele não conhecerá a felicidade enquanto não encontrar o filho. Temo pelo que o Sigarr possa fazer ao garoto. Ele sempre teve a fama de gostar de rapazes jovens...
Engoli a custo o asco, replicando esperançosa:
- O Sigarr raptou o pequeno Edwin para manipular as suas capacidades. Procurará outras vítimas para satisfazer os seus impulsos nojentos. Além disso, acredito que o meu irmão vai encontrá-los em breve. O Sigarr não conseguirá esconder-se para sempre!
Throst não respondeu, e eu conclui que ele não partilhava da minha esperança e otimismo. Ficamos em silêncio, refletindo sobre o futuro. Foi o meu marido quem tomou a iniciativa de abordar outro assunto que nos inquietava, afirmando com convicção:
- Eu sei que tu desejas que a Edwina escolha o seu companheiro, mas devemos orientá-la na direção do príncipe. O Ivarr será um homem forte e determinado, com influência suficiente para protegê-la de qualquer perigo. Se o Edwin se tornar homem nas mãos do Sigarr, eu nem imagino do que será capaz! Já que os primos estão condenados a enfrentar-se, sentir-me-ei mais seguro se a nossa filha tiver o apoio de um homem de valor.
Fixei o seu olhar, esboçando um sorriso ao declarar:
- Eu também tive o apoio de um homem de valor... O arqueiro que me salvou a vida não foi escolhido pela minha família! No entanto, sem a ajuda desse guerreiro-lobo, nem eu nem o meu povo teríamos vencido!
Throst sorriu de volta, retrucando:
- A ajuda desse guerreiro-lobo não foi desprovida de interesse! Ele sabia o prêmio que o esperava no fim da luta...
- Mas teve de esperar muito para reclamar o seu prêmio! - observei pesarosamente. - Algum dia poderás perdoar-me pelas minhas mentiras e pelo sofrimento que te causei?
Throst acariciou-me o rosto com as pontas dos seus dedos, sussurrando apaixonadamente:
- Não há nada que perdoar! Estarmos juntos é tudo o que me importa! Tu sempre tomaste as decisões certas e, se a espera e as lágrimas nos conduziram até aqui, então é porque tinhas razão. Eu não mudaria nada do que aconteceu conosco, Catelyn! Não correria o risco de esta história poder terminar de outra forma.
Enquanto observava o nascer do Sol enlaçada nos braços do meu marido, eu recordei com saudade aqueles que perdera pelo caminho. E, como era habitual, os pensamentos de Throst não andavam distantes dos meus. Segurei na sua mão e deslizei-a pela minha, para que as palmas ficassem expostas ao olhar. Ele sorriu ao ver as cicatrizes em forma de Crescente, que nos tinham revelado que pertencíamos um ao outro, assim como as tatuagens em redor dos nossos pulsos, legado do Guardião da Lágrima do Sol.
- És minha, Catelyn - asseverou com um ardor apaixonado.
- Para sempre, minha!
Desta vez, fui eu quem se escusou a responder. Estiquei-me ao encontro dos seus lábios e encontrei-os, úmidos e ansiosos.
Diante de nós, o mar estendia-se interminável, forte e poderoso, repleto de segredos ainda por revelar. A história do nosso futuro estava inevitavelmente escrita nas suas ondas. Mas o presente era aqui. Era este momento de plena felicidade, em que o corpo do homem que eu amava cobria o meu e me arrastava para uma espiral de entrega e prazer.
Ambos sabíamos que nada era eterno e que, mais cedo ou mais tarde, as forças obscuras reclamariam a nossa luz. Mas, por enquanto, nada mais importava além do nosso amor, tão completo e perfeito como a nossa vida.
Sandra Carvalho
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