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Frank Alwin ergueu as mãos, ligadas por algemas, com muita dificuldade, e arrancou o bigode postiço. Através do pesado telão ouvia-se vagamente o som da orquestra que tocava enquanto o público deixava o teatro.
O chefe da contra-regra entrou apressadamente no palco.
— Sinto muito — desculpou-se ele — não sabia que já haviam baixado o pano. Esta noite parece que a peça terminou mais cedo.
Frank anuiu e ficou olhando o homem meter uma chave especial nas algemas, abri-las e guardá-las no seu bolso.
Há menos de cinco minutos atrás, Frank Alwin ainda estivera metido na pele do famigerado e mau Conde Larska, que é surpreendido ao assaltar um banco no Brasil, sendo preso pela corajosa e invencível polícia criminal.
Perdido em seus pensamentos, ele ainda ficou parado ali mesmo, por algum tempo. O pessoal de cena rearrumou o cenário, para o dia seguinte, e lentamente as luzes da ribalta foram apagadas. Quando finalmente ele entrou naquele aposento caiado de branco, de onde saía um longo corredor para os camarins dos artistas, viu que estava sendo esperado por uma mocinha, já vestida para sair. O pequeno papel que ela fazia na peça, já terminara há mais de uma hora. Ao vê-la, Frank não pensou em nada especial. A única coisa que lhe veio à mente, naquele instante, é que ele não devolvera ao chefe da contra-regra o grande maço de dinheiro que, no último ato da peça, roubara do cofre do banco, e que ainda se encontrava no seu bolso.
......
Ele sorriu para aquela mocinha de aparência tímida, hesitou um momento, depois meteu a mão no bolso. Tirou algumas cédulas do dinheiro, que dobrou cuidadosamente.
—Marguerite — disse ele, como se ainda estivesse representando — isto é para você!
Ela olhou-o admirada, quase consternada, quando ele ele colocou-lhe aquelas cédulas na mão, mas ele apenas riu para si mesmo, enquanto subia a escada que ia dar no seu camarim, tomando sempre dois degraus de uma vez.
Somente quando ele chegara praticamente ao topo é que deu-se conta do que tinha arranjado. Como é que pudera esquecer-se disso!? Praguejando, correu novamente escada abaixo, mas a mocinha já desaparecera. Chateado, subiu novamente para o seu camarim, onde já o esperava seu amigo, Wilbur Smith. Sentado confortavelmente numa poltrona, este fumava um cigarro depois do outro, enchendo o ambiente de fumaça. Smith, ex-oficial militar, era agora agente de polícia da Polícia de New York.
Olá, Frank — disse Wilbur. — Que cara é essa? O que aconteceu?
Eu sou um idiota! — gemeu Alwin, deixando-se cair pesadamente na poltrona diante de sua mesa de maquilagem.
Em muitas circunstâncias posso até concordar com você, mas, por outro lado, você também é um excelente ator. Afinal, qual foi a besteira que fez?
—Nada, é que essa garota...Smith sorriu, condescendente.
0 E daí? Que há de mal nisso? Quem é ela? Desculpe, não estou querendo meter-me nos seus assuntos particulares. Mas... desde quando você resolveu ter escrúpulos nesse sentido?
0 Não diga besteiras! — retrucou Frank, irritado. —Não é nada do que você está pensando. Ela é uma garota muito simpática, de nossa companhia... Bem, é claro que posso contar a você o que houve. O nome dela é Maisie Bishop e tem um pequeno papel na peça que está em cartaz
0 Wilbur fez que entendera
0 —Eu já a vi no palco. Ela é realmente muito bonitinha. Mas o que é que você tem com ela?
0 Frank não respondeu logo.
0 Ela me procurou esta tarde — começou ele — eu já estava até pronto para entrar em cena. Pareceu-me muito preocupada, e contou-me que estava em grandes dificuldades. A família, parece, está passando um grande aperto, e ela pediu-me que lhe emprestasse algum dinheiro. Naquele momento, naturalmente, eu não tinha tempo para dar-lhe atenção, pois tinha que descer para esperar por minha deixa. Mas prometi que a ajudaria, e acabei esquecendo-me inteiramente disso.
0 Ora, por que não vai procurá-la? Tenho certeza que não vai ser difícil saber o seu endereço.
0 É claro que não. Mas olhe isso aqui! — ele meteu a mão no bolso e retirou o grande maço de cédulas, colocando-o em cima da mesinha. — Isto, naturalmente, é dinheiro falso, que nós usamos no palco, em cena.
Quando a vi esperando no vestíbulo, tive essa idéia tola — ou melhor, eu ainda estava um tanto absorvido pelo espetáculo que acabara naquele momento, e a nossa conversa — ou, se você quiser, nossa combinação, parecia completamente apagada de minha memória. Pensei apenas em fazer uma brincadeira com ela, e dei-lhe meia dúzia destas notas. Só queria era fazer um gracejo. Wilbur Smith riu.
— Ora, só por isso não precisa ficar de cabelos brancos... Basta ir procurá-la em sua casa. Mas mesmo se ela acabar presa por passar dinheiro falso, certamente terei meios de livrar você e ela de encrencas. Prometo. Portanto
0 risco não é tão grande assim — ele levantou-se e foi até a mesinha de maquilagem, onde pegou o alentado maço de cédulas bancárias. Os seus valores eram bastante altos.
— É de espantar que vocês usem um papel-moeda tão bem impresso, em cena.
Frank estava justamente passando creme no rosto, para retirar a maquilagem. De repente estacou.
Pois é, eu também já notei isso. De qualquer modo, não é o dinheiro que normalmente usamos na peça. Parece até que se trata de dinheiro verdadeiro — limpou a mão numa toalha, pegou uma das notas, examinando-a atentamente. — A marca d'água parece exatamente igual à -de uma nota legítima. Gostaria de saber de onde vieram estas notas. Jamais vi cédulas tão fabulosamente imitadas. Receio apenas que alguém receba o dinheiro de Maisie como verdadeiro, e que só mais tarde se verifique o engano. Wilbur, você não poderia fazer-me o favor de ir procurá-la urgentemente, para falar com ela? Sei que mora num subúrbio conhecido. O porteiro da saída dos artistas poderá verificar o seu endereço correio.
0 Realmente muito curioso — disse Smith, esfregando uma das notas entre dois dedos. — Eu também nunca vi dinheiro falso tão bem-feito. Mas... santo Deus, o que é isso?
Ele virara a nota, e olhava horrorizado para o seu verso.
—O que é que você tem? — perguntou Alwin, preocupado.
O agente criminal apontou para uma marca amarela, que fora impressa no verso da cédula.
—O que é isso?
—O que é que você acha? — perguntou Wilbur. Havia algo de estranho na sua voz.
-— Parece a imagem de algum ídolo.
— Nisso você tem razão. É a imagem do Hades Dourado.
— O quê? Não entendi! O que foi que você disse que era?
0 O Hades Dourado. Você nunca ouviu falar do Hades?
0 Claro — Frank sorriu. — É aquele lugar para onde mandamos as pessoas de quem não gostamos!
0 Exatamente... Em outras palavras, o inferno. Mas também o deus dos
infernos, ele mesmo, chama-se Hades
— ensinou Smith. — Só que para os antigos romanos ele era Plutão.
0 Mas por que "dourado"?
0 Até agora tive apenas três oportunidades de ver marcas semelhantes carimbadas em dinheiro. Nos dois primeiros casos, o seu dourado era mais forte — Smith pegou as cédulas da mesa, contando-as cuidadosamente.
— Aqui nós estamos com sessenta e nove mil dólares!
0 Mas você acha realmente que se trata de dinheiro legítimo? — perguntou Frank, um pouco ofegante.
0 Disso não tenho a menor dúvida — retrucou o agente de polícia. — As notas são verdadeiras. Onde foi que você as recebeu?
0 De quem as recebo sempre, do chefe da contra-regra.
0 Preciso falar com esse garotão. Pode mandar chamá-lo?
0 Se ainda não foi para casa — Frank falou com o porteiro pelo interfone. — Hainz já foi embora? Como? Está saindo, nesse instante? Por favor, peça-lhe o favor de dar um pulinho aqui no meu camarim.
0 Quando o chefe da contra-regra entrou no camarim, seu olhar imediatamente dirigiu-se ao dinheiro sobre a mesa, e tratou logo de se apoderar do mesmo
0 Eu sabia que tinha esquecido alguma coisa, quando lhe retirei as algemas, Mr. Alwin! Vou logo guardar esse dinheiro, pois...
0 Um momento — interveio Wilbur Smith — você me conhece bem, não, Hainz?
0 Claro — o homem sorriu amarelo. — Naturalmente nunca tive contato com o senhor, profissionalmente falando, mas ainda assim sei quem é.
0 Onde arranjou esse dinheiro?
0 O dinheiro? Quer dizer estas cédulas aqui?
0 Sim.
0 Onde o arranjei? — repetiu Hainz. — Bem,comprei-o na loja de artigos para o teatro, da qual adquirimos todos nossos objetos de cena. O dinheiro para a cena, que eu tinha disponível na contra-regra, não me pareceu mais suficiente, por isso tratei de comprar mais algum. Quando estive na loja, notei que estavam terminando um cartaz de propaganda do filme "Riqueza que Perverte", e pude ver que eles estavam utilizando este tipo de notas para emoldurar o cartaz.
0 E de onde o dono dessa loja tem esse dinheiro?
0 Não sei... de alguma outra firma, suponho.
0 Como posso falar com ele? Tem o seu endereço particular?
— Tenho — Hainz tirou um livrinho de endereços do bolso, e procurou a direção. — E que, às vezes, preciso dele com urgência.
Depois que Hainz saiu, Wilbur Smith olhou, muito preocupado, para o seu amigo.
0 Tire logo essa maquilagem, para podermos sair à rua! Se você não se importa, vou ficar com este dinheiro. Termine logo com isso, para irmos até a cidade, jantar.
0 Que diabo significa tudo isso?
0 Durante o jantar eu lhe conto tudo — retrucou Wilbur Smith, evasivamente.
Capítulo 2
Meia hora mais tarde os dois amigos estavam sentados a uma mesa de restaurante, um diante do outro. Wilbur Smith não sabia muita coisa sobre as notas com aquelas marcas amarelas misteriosas, mas tudo que sabia contou a Frank Alwin.
— Quando vi uma marca carimbada como esta pela primeira vez, ela realmente
era dourada. Havia sido aplicada no verso de uma nota de mil dólares, com uma espécie de purpurina dourada. Além disso, pintada em verde, lia-se, logo abaixo, a palavra "Hades". Esta cédula de mil dólares veio parar em minhas mãos de modo muito curioso. Num bairro afastado morava uma pobre mulher que trabalhava como camareira num hotel do Brooklyn. E ela contou-me uma história muito estranha. Quando certa noite estava voltando para casa, um homem aproximou-se dela, colocando várias notas de dinheiro em sua mão, e, sem dizer uma só palavra, seguiu adiante. Espantada, correu até sua casa, acendeu a luz, e examinou aquele presente. Ao contar as notas, verificou que se tratava de uma soma de cem mil dólares. Ela não quis acreditar no que via, e achou que alguém quisera divertir-se às suas custas. Achou, como você, que se tratava de dinheiro falso, colocou-o debaixo do seu travesseiro, decidindo no dia seguinte verificar se realmente se tratava de dinheiro legítimo. Entretanto naquela noite acordou, pois ouviu que havia alguém no seu quarto. Quis gritar por socorro, mas uma voz ordenou-lhe que ficasse quieta. Logo acenderam uma lanterna de bolso, e a mulher pôde ver três homens, com máscaras pretas, em volta de sua cama.
Frank franziu a testa e olhou o agente criminal, como que duvidando.
— Você não está querendo divertir-se às minhas custas, está?
Wilbur Smith sacudiu a cabeça.
0 Não, estou falando sério. Os homens perguntaram-lhe onde estava o dinheiro. Ela estava sem fala de tão assustada, ao ver o revólver que lhe era apontado, mas logo indicou o travesseiro. E desmaiou. Quando voltou a si o dinheiro sumira, menos uma única cédula, que os ladrões, na pressa, não deviam ter visto. No dia seguinte ela levou a nota à delegacia de polícia mais próxima, e contou sua estranha história. Meu chefe não acreditou nela. Achou que a nota devia ter sido roubada por ela no hotel, onde trabalhava, supondo que mais tarde sua consciência lhe doera, razão por que inventara aquela história, na esperança de escapar ao castigo.
0 E o que aconteceu então?
—Fui encarregado da elucidação do caso, e fiz averiguações no hotel. Não faltava dinheiro algum, e a gerência garantia que se tratava de uma mulher honesta. Era muito pobre, sim, mas absolutamente confiável. A única coisa que pudemos fazer foi restituir-lhe aquela nota de mil dólares. Foi nessa ocasião que vi, pela primeira vez, a marca do Hades Dourado. Da segunda vez, aconteceu em circunstâncias parecidas, também muito estranhas. Encontramos cédulas com esta marca carimbada em poder de um certo Henry Laste, um jogador profissional. Um policial o detivera, devido ao seu estado de completa embriaguez, na rua,levando-o a delegacia. Por acaso, eu estava também chegando naquele momento. Quando revistamos os bolsos do homem, encontramos oito dessas notas, cada uma de mil dólares. Fizemos o possível para que ele ficasse sóbrio novamente, e então ele contou-nos uma história muito estranha, quase inacreditável. Disse que sua mulher encontrara estas cédulas entre as páginas de um livro, que adquirira em determinada livraria. Ele deu este depoimento mais ou menos às oito horas da manhã, e eu estive presente quando o mesmo foi levado a termo. Imediatamente fui até a casa dele, para inquirir a mulher. Eles moravam num apartamento alugado. Quando batemos na porta, não obtivemos resposta. Imaginei logo que alguma coisa devia ter acontecido, e me dirigi ao administrador do prédio, pedindo-lhe que abrisse a porta com sua chave-mestra.
?A mulher estava em casa?
0 Sim, nós a encontramos, no apartamento, mas já estava morta. Fora atingida por uma bala disparada por uma pistola automática, bem no coração. Todos os quartos haviam sido revistados, com gavetas reviradas e armários
escancarados. Casacos, calças e outras roupas estavam espalhados pelo chão...
0 Ah, você está falando do famoso caso de assassinato Higgins.
0 Sim, do famigerado caso Higgins.
0 E você descobriu outras cédulas no apartamento?
0 Não. Queríamos acusar formalmente o homem deter cometido o assassinato, mas não foi-lhe difícil apresentar um álibi. Ele estivera num inferninho, desses cassinos clandestinos, onde bebera demais. A uma hora da madrugada o policial o encontrara caído na rua, e, dez minutos depois das duas, foi cometido o homicídio. Excepcionalmente fora possível constatar a hora do crime com tanta
exatidão. O tiro que matara a mulher fora disparado de curtíssima distância, e tivera tanta força que atravessara a mulher, indo bater num despertador, sobre a mesinha de cabeceira. Os ponteiros haviam parado às dez para as
duas.
Os dois ficaram sentados, um diante do outro, por longo tempo, em silêncio. Nos seus ouvidos ecoavam as vozes indistintas das conversas das pessoas presentes no restaurante, e o ruído de talheres e pratos. De repente Frank Alwin deu-se conta de que também corria perigo.
0 Agora entendo — disse ele, devagar. — Todas as pessoas que entraram em contato com estas cédulas carimbadas foram...
? Assaltadas — interrompeu-o Wilbur. — E por esta razão, Frank, esta noite você vai ser vigiado muito de perto por mim.
Eles eram amigos há muitos anos. O ator Frank Alwin tornara-se o astro do Teatro Coliseu-Magestíc, e o agente criminal Wilbur Smith tinha no seu currículo mais êxitos que a maioria dos outros representantes da Chefia de Polícia de New York.
Durante a guerra, Frank Alwin ficara no Serviço de Informações do Serviço Secreto, e se não fosse um ator tão importante, possuidor de uma fortuna apreciável, com certeza também teria se destacado na polícia tanto quanto o seu amigo.
0 Tudo isso me parece muito sinistro — disse Alwin,depois de algum tempo. — Afinal, quem foi esse tal Plutão?
0 O deus das profundezas. E eu fiquei sabendo que hoje em dia, realmente, ainda existem pessoas excêntricas que o adoram. Seria interessante estudar a literatura a este respeito, para ficarmos sabendo que papel ele teve real
mente na mitologia antiga.
Neste momento um garção aproximou-se da mesa deles.
— Mr. Aíwin, telefone para o senhor.
Frank levantou-se e Wilbur Smith fez menção de acompanhá-lo.
— Pare com isso! — riu Frank. — Eles certamente não poderão dar-me um tiro pelo telefone. E de nenhuma maneira poderão apoderar-se do dinheiro, pois o mesmo está com você.
Passaram-se dois minutos e Frank Alwin não voltava. Depois de cinco minutos Wilbur ficou inquieto e fez sinal a um garção.
— Por favor, vã até o vestíbulo e veja se Mr. Alwin ainda está na cabine telefônica.
O garção voltou logo depois.
— Mr. Alwin não está lá.
?Diabo, o que quer dizer isso? Ela não está lá? Wilbur Smith levantou-se rapidamente, empurrando a cadeira para o lado, e correu para o vestíbulo. O porteiro, a quem fez uma série de perguntas, não sabia dizer se Mr. Alwin havia saído.
—Deixei o meu posto por uns cinco minutos. Antes de sair, entretanto, vi um carro parado diante da porta, e quando voltei o mesmo não estava mais ali.
Smith correu para a rua deserta, mas não havia ninguém, até onde podia ver. A entrada do clube era iluminada por duas grandes lâmpadas. Na beira da calçada Smith viu alguma coisa que lhe chamou a atenção, foi até 0 lugar, abaixou-se e apanhou o objeto. Um olhar foi suficiente — era o chapéu de Frank, amassado e úmido. Ele levou-o mais para perto da luz, e enfiou a mão por dentro. Ao retirá-la, estava vermelha de sangue.
Capítulo 3
Degraus — dois, três, quatro — e mais uma vez quatrro degraus. Patamar de escada. Virar. Um degrau — dois degraus — três degraus — quatro degraus — totalizando onze degraus — patamar — não, a escada terminara...
Uma chave girou na fechadura. O ruído de uma porta abrindo. Um golpe de ar frio, com cheiro de mofo, passou pelo seu rosto -— depois seguiram adiante.
Tudo isto viera lentamente ã consciência — ou pelo menos à semiconsciência de Frank Alwin, enquanto eles o carregavam escada abaixo. Sua cabeça ainda não trabalhava com muita precisão, caso contrário ele não teria começado a contar somente no segundo degrau. A cabeça doía-lhe terrivelmente, e havia alguma coisa colada,cobrindo-lhe o rosto, como se alguém o tivesse coberto de algum spray de borracha líquida. Quando quis se mexer, sentiu uma dor cortante no braço, que ia desde o pulso até 0 cotovelo. Mas a cabeça era o pior. As veias pulsavam-lhe nas têmporas, era como se lhe houvessem serrado o crânio ao meio, e as duas metades estivessem numa fricção constante. O suplício era quase insuportável. Gostaria de poder gritar alto, mas sentia instintivamente que devia manter-se em silêncio. Tinha a impressão de que os que o carregavam o faziam com o máximo de cuidado. Finalmente deitaram-no numa cama.
Colchão de molas, travesseiro úmido — constatou ele, automaticamente. Alguém acendeu uma lâmpada, e aquela luz branca, ofuscante, depois da escuridão, provocou-lhe uma dor de cabeça ainda pior. Ele gemeu, virou-se para o outro lado, e, ao fazê-lo, gemeu ainda mais alto.
— Diabos! — disse alguém. — Olhe só meu paletó! Manchas de sangue não se consegue lavar. Vou ter que queimá-lo. Acho que foi uma bobeira golpear esse cara e depois arrastá-lo até aqui embaixo. Por que, afinal, não o deixamos simplesmente caído na rua?
—Porque Rosie tem razão — respondeu uma voz, que parecia mais profunda e nada simpática.
—Rosíe! — repetiu o primeiro, rindo zombeteiro.
Frank Alwin perguntou-se quem poderia ser Rosie. Apesar da violenta dor de cabeça, fez um esforço para lembrar-se.
E lembrou-se agora que saíra do restaurante, porque... porque... No momento não conseguia lembrar-se por que saíra para a rua, Só lhe ficara uma recordação muito indistinta dos acontecimentos. De qualquer modo, ele agora estava aqui, deitado nesta cama, e ainda vivia... o que já era alguma coisa. Mas esses dois há pouco falavam de Rosie...
0 Já lhe disse, Rosie tem razão — disse o homem de voz rouca. — Esse Smith é um sujeito perigoso, o mais perigoso de New York, e nós temos sérios motivos para manter distância dele.
0 E Peter Corelly? O que há com ele? — perguntou o primeiro.
0 segundo não respondeu. Parecia estar refletindo no caso. Depois de muito tempo, disse:
—Peter Corelly? É claro que Peter Corelly é perigoso, mas dificilmente o colocarão num caso que já está nas mãos de Wilbur Smith. Além do mais, este, provavelmente, é um caso difícil demais para Peter Corelly.
Mais uma vez houve uma pausa, e Alwin ouviu que alguém lavava as mãos. O homem cantarolava baixinho. Curioso como todo mundo começa a cantarolar, sempre que corre água de uma torneira.
?Mas tudo isso são apenas suposições — falou o outro novamente, e sua voz parecia ainda mais depreciativa que antes. — Será que Rosie está pensando que Wilbur Smith vai encerrar sua perseguição, justamente quando seu amigo está em perigo? E como é que ele pode saber, aliás, que nós não o liquidamos de uma vez? Rosie achou que íamos matar dois coelhos com uma só cajadada, mas até agora não conseguimos agarrar nem um coelho. Esse pobre coitado nem está com a grana, e ainda por cima está vivo!
Novamente um longo silêncio.
0 Sim — resmungou o outro — parece que é isso.Talvez vamos ter que mudar nosso plano. Ele disse realmente ter dado o dinheiro a Smith? Ou ele estava tão atordoado que nem mais sabia o que estava dizendo?
0 Ele sabia muito bem o que estava dizendo — respondeu o primeiro. — O dinheiro está com Wilbur Smith, e desse jeito muda tudo.
Frank tentou desesperadamente ter uma idéia clara do que se passara com ele, nestas últimas horas, ou nos últimos minutos. Quando, afinal, ele dissera que Wilbur Smith estava com o dinheiro? Não conseguia lembrar-se mais dos poucos minutos quando, durante o transporte, recobrara os sentidos. Mas não duvidava de que o homem dizia a verdade, e gemeu novamente.
Um dos dois aproximou-se da cama, inclinando-se para ele.
—Ei, você aí! Está se sentindo melhor?
Era o da voz desagradável.
Frank fez um esforço enorme para abrir os olhos, e, depois de uma tentativa quase sobre-humana, finalmente conseguiu. Só não pôde reconhecer muita coisa, pois o homem tinha o rosto coberto por um lenço de seda.
—Você teve sorte — ouviu o gangster dizer — pois se fosse por mim já deveria estar morto. Está numa pequena casa, construída especialmente para mim. Mora-se muito bem aqui, com bastante conforto. Pois, se quiser,
pode até tomar um banho frio, para refrescar-se.
Frank Alwin gemeu novamente, depois não ouviu mais nada, pois mais uma vez perdeu os sentidos por alguns momentos. O homem de cara meio coberta sentou-se na borda da cama, virando o prisioneiro inerte de costas, e erguendo cuidadosamente uma de suas pálpebras, disse:
—Pensei até que ele já embarcara. Afinal você nem o golpeou com tanta força, Sammy?
Seu companheiro riu. Ele era menor e mais atarracado que o outro, mas ainda assim seus movimentos eram bem mais rápidos. Com cuidado e cautela, ele examinou os ferimentos da cabeça de Alwin.
?Não é nada sério, só que perdeu um pouco de sangue — ele olhou em volta do aposento. As paredes consistiam de tijolos aparentes, sem argamassa. — Pode até ser muito bom aqui — disse ele então — mas fico contente em saber que não preciso ficar o tempo todo aqui dentro. Tom, se algum dia nós tivermos que nos esconder, este é o último esconderijo que vou escolher. Sei que aqui há um banheiro, e uma biblioteca com muitos livros, como até uma dispensa com conservas para muito tempo. É possível esconder-se aqui pelo menos por um ano, usando de cuidado. Eu naturalmente também achei que era uma idéia fabulosa de Rosie, quando ele mandou arrumar este lugar. Ele mesmo planejou toda a construção, mandou buscar pedreiros no México, que depois levou novamente de volta. Ninguém em New York sabe como esta casa foi construída. Tenho que conceder que Rosie agiu com muita inteligência.
0 Não sei porque você vive falando de Rosie!
0 Mas você mesmo acabou de elogiá-lo! Aliás...agora me lembro... — Sammy olhou para duas grandes malas de cabine de navio, que se encontravam a um canto do aposento. — Rosie quer que a gente arrume isso aqui um pouco.
0 Arrumar! — repetiu Tom. — Por que ele não vem até aqui para fazer tudo sozinho? Afinal, isso não tem tanta pressa — ele ficou pensando por um momento. — Mas talvez fosse bom mesmo se nós fizéssemos o que Rosie pediu. Ele disse que há coisas nessas duas malas que nós podemos usar. E também coisas bem perigosas, se caírem em mãos erradas. Podemos carregar esse troço amanhã para o Templo. E então Rosie poderá convencer aquele bobalhão de permitir que se mande isso tudo para a casa dele.
0 Quem seria esse bobalhão?, perguntou-se Alwin. Ele ouviu quando alguém colocou uma cadeira contra a parede.
—Mas agora já está ficando realmente tarde, porque é que Rosie não vem? — perguntou um dos dois.
De repente ouviu-se um sinal, de fortes batidas. Parecia vir do teto e era como se alguém batesse com uma bengala num chão de pedra. Alwin ficou imaginando o que poderia haver por cima desse aposento subterrâneo.
0 E só falar do capeta, que ele aparece — disse Sammy. — Venha, Tom, tenho certeza que ele não vai descer. Afinal, o que é que ele poderia fazer com esse sujeito aqui?
0 Claro, podemos deixá-lo sozinho por alguns momentos. Deixe a luz acesa. E vamos ver o que é que Rosie tem para nos contar.
Depois que eles haviam fechado a porta atrás de si, sem fazer ruído, Frank conseguiu virar a cabeça, a muito custo. Encontrava-se num porão espaçoso, retangular, que fora, aparentemente, construído muito recentemente. Sobre o chão cimentado havia tapetes macios. Qualquer pessoa notaria logo que não se tratava de um porão comum. Naquele aposento limpo e bem ventilado havia três camas. Numa delas encontrava-se Alwin. As outras duas ficavam de ambos os lados da porta. No centro da sala havia uma mesa grande, muito simples, com duas cadeiras e uma poltrona. Estas peças e as duas grandes malas de cabine eram o único mobiliário.
Bem defronte da porta de entrada, do outro lado do aposento, havia uma segunda porta. Provavelmente ela devia dar no banheiro, do qual o homem falara anteriormente.
Com uma força de vontade extraordinária, Alwin conseguiu escorregar até a borda da cama, sentando-se. Tudo à sua volta girava. Sentia-se tão mal que parecia na iminência de desmaiar novamente, mas reuniu todas as suas forças para evitá-lo. Sobretudo, o que o impedia de pensar claro, era essa terrível dor de cabeça. Mesmo assim ele pretendia revistar o aposento em busca de armas, que os outros, negligentemente, poderiam ter deixado para trás — mas ainda estava fraco demais para isso.
Depois de ficar sentado, com muito custo, durante alguns instantes, deixou-se cair para trás novamente, na cama, sentindo-se tão bem com isso que, por enquanto, não pensava mais em fazer uma nova tentativa para levantar. Com muito cuidado tateou a cabeça com a mão e descobriu que a mesma havia sido enfaixada superficialmente. No momento sabia que não lhe restava outra coisa a não ser ficar deitado ali, muito quieto, para se refazer daquela fraqueza tremenda. E dormiu.
Acordou quando a porta se abriu e os dois homens voltaram a entrar. Tom estava zangado e vinha praguejando a respeito da mala de cabine. Aparentemente Rosie não se deixara intimidar. Apesar dos dois falarem sobre ele, de modo depreciativo, aquele homem certamente deveria ter um papel importante.
— Muito bem, o que vamos fazer com esse cara aqui??perguntou Sammy, de repente.
Frank sabia que estavam falando dele.
0 Vamos dar-lhe um tempo até amanhã de noite, para ver o que é que se pode fazer com Smith.
0 Você acha que podemos dar-lhe uma lição?
0 Smith? Mas é claro. Ele está com o dinheiro. Rosie falou, e quando Rosie fala está falado.
0 E, isso muda tudo. Essa história se complica por que este cara aqui já não serve para nada. E aliás, só para constar, esse já é o terceiro erro que Rosie cometeu nestes últimos três meses.
Eles se recolheram ao outro lado do aposento e ficaram falando em voz baixa, de modo que Frank não conseguiu mais ouvi-los. Escutou apenas que estavam puxando uma daquelas malas de cabine para um lado, para abrir a outra, e ficaram revirando o seu interior.
Frank ficou com os olhos fechados. Ainda sentia-se muito fraco. Depois de algum tempo a porta foi fechada. Os dois homens haviam saído do aposento, e novamente havia um silêncio profundo.
Capítulo 4
— Sinto muito ter que incomodá-lo.
Muito cedo, de manhã, Wilbur Smith aparecera, chapéu na mão, diante da porta de um pequeno quarto. O homem mais idoso que lhe abrira a porta, colocara um velho casacão por cima do pijama, e olhou aquele visitante inesperado, com olhos ainda cheios de sono, e piscando muito.
0 Por favor...
0 Aqui está meu cartão.
O homem pegou-o e leu.
?O senhor é da polícia! — disse ele, assustado. — Por que...? O que aconteceu?
0 Nada de especial...
0 Não me diga que Maisie...
0 Não há nada que sua filha tenha feito de errado. Suponho que é o pai de Miss Maisie Bishop?
0 Entre... vou acender a luz. Trata-se do dinheiro? — perguntou o velho, preocupado, enquanto conduzia o visitante para uma salinha pequena, simplesmente mobiliada, mas muito simpática. — Eu também não entendi isso direito. Sabe, Maisie dirigiu-se a Mr. Alwin porque ele sempre se mostrou muito simpático com ela. Sim, mas eu mesmo fiquei muito espantado, quando ela trouxe aquele dinheiro para casa. Não sabia que ele era tão rico. Imaginei logo
que se tratava de um engano. Foi por isso que Mr. Alwin mandou-o para cá?
Wilbur Smith sacudiu a cabeça.
?Não, não é exatamente isso, mas se o senhor não se importa, eu gostaria de falar com sua filha
Ele esperou, bastante tenso, e respirou aliviado, ao ouvir a voz da moça. Logo em seguida ela entrou na sala. Estava bonita, mas bastante pálida. Trazia as notas do dinheiro na mão.
?É por isso que quer falar comigo? — perguntou ela, erguendo as cédulas. Mr.Alwin deu-me as mesmas— garantiu ela, muito agitada. — Logo imaginei que ele se enganara, mas naturalmente não poderia pensar que ele logo fosse avisar a polícia...
— Sobre isso, quero, antes de mais nada, tranqüilizá-la, só vim até aqui para ter certeza de que não lhe aconteceu nada — retrucou Smith, amavelmente. — Não precisa preocupar-se pelo dinheiro. Vou apenas precisar dessas cédulas por alguns dias, e então, se nada acontecer, eu lhe devolverei o dinheiro.
0 Para mim foi bastante penoso ter que pedir dinheiro a Mr. Alwin — afirmou Miss Bishop. — Mas meu pai está em dificuldades financeiras, e nós já estamos devendo alguns meses de aluguel. Primeiro me dirigi a todos os nossos conhecidos, para procurar ajuda, antes de me dirijirir a Mr. Alwin. É horrível, quando se precisa pedir dinheiro a alguém!
0 Ora, não se preocupe tanto com isso — acalmou-a Wilbur Smith. — Eu estava muito preocupado é com a senhorita...
— Como assim? — perguntou ela, rapidamente. — O senhor está preocupado com minha segurança?
Ele examinou as notas muito bem e verificou que cada cédula tinha aquele carimbo amarelado no verso.
— Veja aqui, é exatamente o mesmo papel-moeda! e para espanto de Maisie ele tirou do seu bolso, o grosso maço de notas que recebera de Frank. — Poderá verificar pessoalmente que os números são seqüenciais, e combinam com a numeração destas outras aqui. Vou .anotá-los — Smith anotou os números no seu livrinho de notas, arrancando depois a página. — Conserve esse bilhete, estes são os números das cédulas que me entregou.
Como já disse, receberá o dinheiro de volta, caso, entrementes, não acontecer nada de especial. Até então... — ele pegou sua carteira. — Diga-me, por favor, que importância pretendia pedir emprestada de Mr. Alwin, para que eu possa adiantar-lhe o dinheiro — quando ele viu que ela enrubesceu, não pôde deixar de rir. — Olhe, faça de conta que estou lhe entregando esse dinheiro, a mando de Frank Alwin.
Mas então veio-lhe a idéia terrível de que Alwin provavelmente já estava morto há bastante tempo.
Em voz baixa ela disse uma importância relativamente pequena. Ele tirou o dobro do montante de sua carteira, pondo o dinheiro sobre a mesa.
Capítulo 5
Quando Wilbur Smith apareceu no seu birô, nesta manhã, depois de duas ou três horas de sono, encontrou diversos repórteres esperando por ele. Smith tinha a sua maneira particular de lidar com a imprensa, e estes métodos geralmente se mostravam eficientes.
0 Sim, rapazes — confirmou ele — é realmente um fato que Mr. Alwin desapareceu. Não foi mais visto por ninguém desde a noite de ontem. Este é um assunto bastante misterioso, mas eu já tenho um indício seguro.
0 Existe alguma ligação entre este caso e o assassinato Higgins? — perguntaram.
0 Existe. Não sei como teve essa idéia, mas acertou na mosca, ao presumir esta ligação. Alwin é um bom amigo meu, e vocês podem ter certeza de que não vou descansar até pôr as mãos no criminoso, ou criminosos.
Mas para que vocês não embrulhem tudo, para depois ter que publicar desmentidos, vou contar-lhes exatamente o que aconteceu — Smith contou então o que se passara com ele e Alwin, como o fora buscar para jantar, depois do espetáculo, e de como Frank Alwin fora chamado ao tele
fone, e não mais regressou. Entretanto não disse uma só palavra a respeito daquelas notas de dinheiro com o carimbo do Hades dourado.
Achou que seria melhor assim, pelo menos no momento. Poderia informar os jornais sobre isso, mais tarde, se fosse o caso. No momento não tinha interesse em prevenir o misterioso criminoso, levando-o a tomar suas precauções.
Mas seus cálculos foram para o brejo, pois de repente alguém, lá do fundo, perguntou:
— Mas, Smith, afinal que história é essa sobre o Hades dourado?
Wilbur Smith olhou de um para o outro.
— Quem perguntou? — quis saber ele, cortante.
Um dos repórteres dirigiu-se lentamente até a sua mesa, pondo uma carta sobre a mesma.
— Recebemos esta carta, hoje de manhã.
Smith pegou na carta — o papel era da melhor qualidade — e leu o curto recado, escrito a máquina:
Avisem Wilbur Smith. Se quiser salvar o seu amigo, não deverá continuar suas averiguações sobre o Hades dourado.
Smith ficou olhando longamente aquelas poucas linhas.
0 Quando receberam esta carta?
0 Há cerca de meia hora, antes de eu sair do jornal. Foi enviada ao redator de notícias locais, por correio pneumático. Entregaram-me a carta para informá-lo. Que ligação tem tudo isso com o Hades dourado?
Smith sorriu.
0 Isso é uma coisa que eu também gostaria de saber, meu rapaz! Por enquanto ainda estou tateando no escuro. Se incomoda se eu ficar com esta carta?
0 Mas esta certamente não é a primeira vez que o senhor ouve alguma coisa sobre o Hades dourado, é? — perguntou o repórter, insistente. — Se ainda não consegue ver as coisas muito claramente, tudo bem, mas o senhor pelo menos poderia dizer-nos o que sabe, Mr. Smith!
Wilbur Smith encarou o repórter, com franqueza.
— Isso seria exatamente o que esses sujeitos gostariam de ficar sabendo... É esta a razão desta carta, e por Isso mesmo não lhes direi nada disso. Talvez Alwin ainda esteja com vida, pois eles o raptaram e provavelmente exigirão algum resgate. É possível que o matem, se eu prosseguir nas investigações do caso. Uma coisa, entretanto, é certa: a razão desta carta é atiçar a imprensa sobre mim, para ocupar-se do caso. Os gangsters naturalmente presumiam com razão que vocês tentariam fazer com que eu lhes dissesse tudo que sei sobre o Hades dourado, para publicação. Mas nessa armadilha eu não caio!
Smith dispensou os repórteres e foi até a sala ao lado. () seu chefe, um homem de cabelos grisalhos, Mr. Flint, "ouviu o seu relato, sem interrompê-lo.
— Mas isso parece até um romance policial muito inleressante — disse o chefe.
—Sim, claro — concordou Wilbur Smith. — Nunca tivemos nada disso. Em comparação, o caso da "Mão Negra " é brincadeira de criança e um homicídio no China-Town uma bagatela.
Flint coçou o queixo.
—Sabe o que eu faria, no seu lugar? Procuraria trazer Peter Corelly, para esclarecer este caso.
0 Peter Corelly! — interveio Smith. — Claro, o senhor tem razão. Ainda nem pensara nele. Vou mandar pedir lhe para que me procure.
0 Onde está o dinheiro? — perguntou o chefe.
0 No meu cofre. Vou buscá-lo, para o senhor.
Poucos minutos mais tarde Flint tinha as cédulas na mão, examinando-as atentamente.
0 Antes de mais nada, naturalmente o senhor terá que averiguar como este dinheiro foi parar naquele teatro.
O senhor disse que já falou com o chefe da contra-regra?
0 Falei. Apenas terei que procurar o comerciante de quem ele disse ter adquirido as notas. Também levarei as cédulas ao Banco Central para que sejam verificadas. Lá também poderei ficar sabendo para que banco estas notas foram distribuídas. Quando chegarmos a este ponto, provavelmente também já saberei por que o dinheiro tem este misterioso carimbo e por que cada um que o tem no bolso tem que contar com transtornos desse tipo.
Ele pôs o dinheiro no bolso, voltou ao seu birô, para deixar um recado telefônico para Corelly, depois deixou o edifício da Polícia Central. O guarda que estava de plantão na entrada viu quando Smith chamou um táxi, saindo no mesmo.
Três horas mais tarde o agente criminal foi encontrado, aparentemente morto, numa casa desabitada perto da Jamaica Street. Depois de o terem transportado a um hospital, Peter Corelly revistou as roupas dele, porém as cédulas misteriosas haviam sumido.
Capítulo 6
0 Um tiro atravessando o ombro direito, ambas as pernas quebradas, além disso, fratura do crânio, comoção cerebral e alguns ferimentos e hematomas pelo corpo — informou Peter Corelly ao chefe, quando retornou do hospital. — O ferimento no ombro provavelmente terá cura rápida. O médico apenas tem algumas dúvidas quanto à fratura de crânio. Não foi possível examinar Wilbur Smith mais demoradamente, porém o seu estado parece ser bastante sério.
0 Ele chegou a recobrar os sentidos? — perguntou Flint, brincando nervosamente com sua caneta.
0 Sim, parece que sim.Peter Corelly era alto, e dava a impressão de um homem melancólico, meio ranheta. Andava meio curvado para a frente, o que dava à sua figura magra algo de frágil, enganando a maioria dos que o viam pela primeira vez. Eles o tinham por pouco enérgico e até mesmo doentio, mas ele não era nem uma coisa nem outra. Sempre parecia estafado e com sono, e dava-se perfeita conta da impressão que provocava, o que o fazia analisar os outros com muita segurança.
Corelly já esclarecera alguns casos policiais muito importantes. Mostrara-se especialmente capaz, tendo agido com muita presença de espírito e grande inteligência, ao prender Madame Recamier é demonstrar amplamente a mm culpa. Neste caso escandaloso, muitas personalidades Importantes haviam sido desmascaradas. Em outra ocasião ele perseguira Eddie Polsoo oito mil milhas, depois que este fugira, levando consigo a fortuna de Mrs. Stethman. E Eddie teve ocasião de sentir na própria carne o que se escondia realmente por trás da aparente letargia de Corelly.
— Já lhe disse tudo que sei sobre este caso, Corelly - disse o chefe. — Smith também não sabia mais que isso. Veja se consegue agarrar esse bando, e já não é sem tempo. Esta gente não recua nem mesmo diante da polícia. Um de nossos agentes foi seqüestrado e deixado em petição de miséria, e isso em plena luz do dia! Por estes fatos podemos concluir que se trata de uma grande organização, que sem dúvida alguma é mais forte e perigosa do que Willuir Smith presumia.
Corelly fez que entendera.
?Quer dizer que terei que me dedicar a este caso? Foi por isso que me explicou tudo, em detalhes, não?
Flint olhou-o de frente.
- Parece até que isso não lhe agrada. Sinceramente, eu nunca o entendo. Sei que freqüentou a universidade, e que podia ter se dedicado a uma outra profissão. Mas já que resolveu trabalhar conosco, sou de opinião que poderia mostrar um pouco mais de interesse pelo seu trabalho!
Corelly fez um esforço para esconder um bocejo.
— Claro, eu estou aqui, pelo simples fato de ter que ganhar a vida fazendo alguma coisa. Essa é a única explicação. Não é muito agradável ficar metendo o nariz, constantemente, nos assuntos de outras pessoas, por isso não posso dizer que esse trabalho me entusiasme exatamente.
Logo imaginei que teria que tratar desse caso. Certamente Smith vai precisar de algumas semanas até poder agir novamente, isto é, se é que vai voltar a ter saúde para isso...
- O senhor é um pessimista! — disse Flint, irritado.?E agora trate de começar o seu trabalho!
Peter Corelly foi ao birô de Wilbur Smith, escolheu a poltrona mais confortável, sentou-se e imediatamente caiu no sono. Três funcionários entraram, um após o outro, e quando o viram saíram novamente na ponta dos pés. Porém quando Flint, por acaso, entrou no escritório, ficou furioso, pegou Corelly pelos ombros, sacudindo-o até acordar.
— Pode me dizer o que significa isso? — perguntou ele, severo. — Está levando essa sua indiferença longe demais! Pensei que tivesse saído imediatamente para perseguir os assassinos do seu colega.
Corelly olhou-o, piscando os olhos, depois espreguiçou-se.
0 O senhor tem toda razão — disse ele — mas é que não dormi absolutamente nada nestas últimas três noites, pois já estava tratando desse caso. Portanto não é de estranhar que eu esteja com um pouco de sono.
0 Como é que pode tratar do caso, sem antes ter sido encarregado do mesmo? — perguntou Flint, espantado. — Afinal eu só lhe contei o acontecido, em maioresdetalhes, ainda há pouco.
0 Já estou na pista dessa história há uma semana —retrucou Corelly, bocejando. — E se não estivesse com tanto sono, talvez até pudesse ter prevenido Smith antes —ele olhou o relógio. — De qualquer modo, nos próximos
quinze minutos não vai acontecer nada. Depois disso tenho um encontro marcado.
Flint fechou a porta do birô, com energia
0 Muito bem, agora o senhor vai me contar tudo que sabe sobre esse caso!
0 Bem, isso não é exatamente muita coisa — começou Corelly, sacudindo a cabeça. — Só que eu entrei nesse caso de maneira diferente da de Smith. Também cheguei a ver as notas do dinheiro com o carimbo do Hades dourado no verso. Tudo começou há cerca de seis meses. Nessa ocasião eu andava atrás de Tony Mepelli, que enterrara um punhal nas costas de um outro gangster, durante o desjejum, e depois sumiu. Por determinadas razões,
era necessário, para minhas averiguações, que eu morasse num bairro pobre da cidade. Para isso aluguei um quarto e na mesma pensão morava também uma moça, que era operária de uma fábrica. Não era bonita, nem mesmo interessante, mas a gente podia confiar nela. Além disso, ela tinha uma visão otimista da vida, e se existe alguma coisa que torna esta vida digna de...
0 Pare com essas suas lorotas filosóficas —interrompeu-o o chefe, irritado — e limite-se aos fatos!
0 A moça chamava-se Madison. Se a Madison Square levava este nome por causa dela ou vice-versa, não liquei sabendo. Certa noite ela ia à reunião de uma dessas sociedades religiosas, a qual pertencia, porém mal se afastou alguns passos da casa, um homem aproximou-se dela, surgido da escuridão, como lhe parecera. Naturalmente ela estava acostumada a ouvir gracinhas de homens que se aproximavam dela, mas pouco se importava com isso. Já estava pronta a dizer-lhe algumas palavras desagradáveis, quando ele meteu-lhe um pacote na mão. "Que os deuses Ihe tragam sorte!", disse ele baixinho, desaparecendo novamente na escuridão. Ela não conseguira ver o seu rosto, mas quando a interroguei ela me garantiu que devia tratar-se de um homem culto. Por acaso eu vinha descendo a escada, quando ela voltou para casa, e então contou-me tudo detalhadamente. Primeiro pensei que lhe tivessem posto um tijolo na mão, ou uma bomba, e dei-lhe o conselho de levar o pacote ao meu quarto — ou melhor? ao meu ateliê. Pois ali eu fazia o papel de um pobre mas talentoso pintor. Quando, entretanto, abri o pacote, apareceram quatro grossos maços de notas — cada um de trinta mil dólares. Olhamos um para o outro, muito espantados, e depois, mais espantados ainda, para o dinheiro sobre a mesa. Quando o examinei melhor, notei que as notas tinham um carimbo no verso. Era uma espécie de ídolo, e à tinta do
carimbo havia sido acrescentada purpurina dourada, porém via-se imediatamente que era um trabalho bastante amadorístico.
?E era realmente dinheiro bom?
?Sem a menor dúvida. Eu geralmente só tenho pouco dinheiro na mão, mas sei distinguir muito bem uma cédula falsa de uma verdadeira. A moça estava fora de contentamento. Ela era dessas pessoas simples que ainda acreditam em milagres. E logo notei que, secretamente, ela já pensara num grande plano. Queria mandar construir uma enorme casa, para oferecer um lar às mulheres que têm que ganhar a vida. Pois é... O otimismo de uma alma simples sempre me...
- Não comece novamente a mudar de assunto! — interveio Flint, áspero. — Conte o resto.
- Bem — disse Corelly, que não se deixava intimidar facilmente, retomando o seu informe — ela estava firmemente convencida de que este presente lhe caíra do céu, e começou logo a discutir questões importantes comigo, como, por exemplo, se os quartos de dormir deviam ser pintados de branco, ou se azul-claro ficaria mais bonito. Finalmente levou o dinheiro consigo para o
quarto, e eu saí para a rua. Eu ainda estava muito espantado com tudo aquilo, e decidira ir dormir mais cedo naquela noite. Mas acabei dando com Tony Mepelli. Ele já tomara bastante conhaque, e o seu andar denunciava isso de longe. Aliás, muitas vezes já me dei conta de que as pessoas, quando bebem...
0 Isso agora não vem ao caso... quero que me conte essa história até o fim!
0 Certo, como o senhor sabe, nessa ocasião consegui prender Tony, trancafiando-o numa cela. E depois que me desincumbi de minha tarefa, pensei que poderia voltar ao meu quarto. Tencionava ainda fazer minhas malas, dormir aquela noite tranqüilamente, e, na manhã seguinte, me mudar dali. Era quase uma hora quando cheguei à pensão. Admirado, verifiquei que ainda havia luz na sala de estar da dona da pensão. Até gostei disso, pois assim
poderia ainda pagar o meu aluguel. Quando abri a porta, logo vi a moça. Ela estava esperando por mim, e contou-me uma história muito estranha. Logo depois que eu saíra de casa, um carro parará diante da porta. Dele descera um
homem idoso, com uma pasta preta. Disse ser diretor geral do Nationalbank, informando que fora tirado da cama pel cavalheiro que lhe dera o dinheiro, porque o seu benfeitor temia que ela pudesse perdê-lo. Por isso pedira a ele, o diretor geral, que viesse receber a importância para depositá-la em nome da moça no banco. Ele deu-lhe até um recibo. Ela mostrou-me um formulário impresso do banco. Até aí tudo estava em ordem. O papel também ha via sido assinado com o nome do diretor geral do Nationalbank. E o recibo era de cento e vinte mil dólares.
0 E o que aconteceu depois?
0 Nada. Ela não ouviu mais nada nem sobre o dinheiro nem sobre o diretor.
0 Naturalmente — achou Flint.
0 Pois é...
0 Tudo isso é muito estranho. Não entendo por que primeiro lhe dão o dinheiro, para retomá-lo logo em seguida. O senhor tem uma explicação para isso?
0 Jamais elaboro teorias — retrucou Corelly. — Isso só me atrapalha o trabalho. Para mim, bastam alguns fatos. Quando, há uma semana atrás, fiquei sabendo que... —
De repente ele estacou, e perguntou: — O senhor conhece um certo Fatty Storr?
O chefe fez que sim.
Conheço. Fatty é inglês. Bastante alto, mas parendo pouco saudável... pior ainda que o senhor! Nós o conhecemos bastante bem. Costuma passar dinheiro falso. Ultimamente não tenho mais ouvido falar dele.
A|K•lidaram-no de Fatty (gordão), porque é tão magro.
- No momento está em grandes dificuldades. Há poucos dias foi visto na rua. Estava muito bem vestido, o que sempre leva a concluir que ele está agindo, fazendo o seu "negócio". Estava parado diante de uma grande loja l< departamentos. Tirou uma nota de sua carteira, dobrou-a cuidadosamente, para colocá-la no bolsinho do colete. Foi visto...
- Afinal, quem foi que o viu? — perguntou Flint, impaciente.
Fui eu — explicou Corelly, na maior cara de pau pois eu o vinha seguindo, já que esta é a melhor maneira para...
Mas por que não disse isso logo?
- Bem, ele entrou na loja, fez uma compra não multo grande, e entregou uma nota de mil dólares à caixa. É possível que pudesse demorar algum tempo para que uma nota tão grande fosse trocada. Talvez, também, Fatty tenha calculado mal um certo murmúrio que passou entre os balconistas. De qualquer modo, ele saiu rapidamente da loja, e lentou fugir. Quando se virou, viu-me e parou de andar.
Ficou à sua espera? — perguntou Flint. P'eter Corelly sacudiu a cabeça.
- Quando eu disse que ele parou de andar, quis dizer que começou a correr. E isso Fatty sabe fazer muito bem. Depois de pouco tempo eu o perdi num labirinto de ruas e becos, porém mais tarde encontrei-me com ele
novamente, por acaso. Ele disse que pagara com uma cédula verdadeira, e eu o levei de volta à loja. A princípio ele recusou-se a entrar, mas eu apliquei-lhe minha conversa. Fala os com o gerente. O dinheiro de Fatty fora aceito
pela caixa, e eu pedi para que me mostrassem a nota. Ao virá-la
logo vi o carimbo do Hades dourado. "Mas esse é o homem", disse o gerente. "Ele foi embora sem esperar pelo iroco. Quer dizer que ele roubou o dinheiro?" "Ela é falsa?", quis saber eu. O gerente negou. "Não é muito freqüente que nos paguem com uma nota de mil dólares, mas nós temos nossos métodos de verificar a autenticidade do dinheiro. A nota é verdadeira." Quem ficou mais espantado com isso foi o próprio Fatty.. Quase desmaiou quando ficou sabendo que estava passando dinheiro legítimo. Levei-o comigo à delegacia de polícia, mas no caminho ele perdeu a pose e começou a chorar, por causa das muitas notas de dólares que ele dera a um garotinho.
0 Uma história incrível — resmungou Flint — e que fica cada vez mais complicada. O que é que o senhor achadisso tudo?
0 Isso ainda não posso dizer, neste momento, pois estou justamente tentando descobrir alguma coisa.
0 Quer dizer, então, que o senhor já se ocupa desse caso há algum tempo? — perguntou Flint, irritado, e ainda um tanto incrédulo.
0 Sim, é isso aí. Que Fatty não quisesse dizer mais do que disse, naturalmente é compreensível, mas ele pediu-me insistentemente para que o soltássemos. Dizia, lamuriando-se, que precisava procurar o garotinho a quem
dera todas aquelas cédulas legítimas. É que quando me vi ra, para livrar-se do dinheiro que ele julgava ser falso, entregou-o a um menino que passava. Mandei que ele fosse trazido hoje aqui para a Yard, porque Wilbur Smith pretendia interrogá-lo. Provavelmente os agentes da delegacia, entrementes, já o conduziram para cá.
— Então faça-me o favor de ver onde ele está metido agora, e, caso esteja aqui, traga-o para falar comigo.
Capítulo 7
Peter Corelly foi até a cela, onde o prisioneiro fora metido.
Fatty estava com um aspecto terrível. Os dias de prisão o tinham deixado assim. Ele tinha uma testa estreita, e usava o cabelo grisalho penteado para trás. Estava sentado numa cadeira, e, quando Corelly entrou, acompanhado de dois policiais, ele o olhou, de cara feia.
0 Acho que vocês já me seguraram bastante tempo! E não têm absolutamente direito de fazê-lo. Sou um cidadão britânico, e vou queixar-me ao embaixador inglês sobre a maneira como me trataram aqui, seu... seu sujeito sujo!
Ora, Fatty — disse Corelly, queixando-se. — Será que é tão difícil comportar-se decentemente? Venha comigo, o chefe quer lhe falar. Nele você pode confiar... ele sempre está mais inclinado a fechar um olho que eu, pois U-in mulher e filhos para criar.
Fatty fez uma cara feia, mas seguiu o agente de polícia ao birô de Flint.
- Aqui está o indivíduo! — disse Corelly.
Flint fez um sinal com a cabeça para o prisioneiro, a quem já conhecia há muitos anos.
0 Observe o desenvolvimento insuficiente da testa, o deslocamento das têmporas e a forma generalizada e hirdocéfala da...
0 O senhor pode deixar sua conferência sobre antropologia para mais tarde, quando eu não estiver presente!?interveio-lhe o chefe na palavra. — Muito bem, rapaz, agora nós vamos ter uma conversinha, você e eu. Você foi agarrado com o dinheiro que roubou...
?O que está dizendo? — irritou-se Fatty. — Por que diz que eu o roubei? O dinheiro que tinha comigo era dinheiro bom, e o senhor não pode me acusar de passar dinheiro legítimo.
0 Mas não é absolutamente por isso que nós o culpamos. Você foi preso porque estava de posse de uma grande soma de dinheiro. Não importa se se trata de cédulas falsas ou legítimas, mas que as mesmas presumivelmente não foram conseguidas de maneira honesta.
0 Nós o conhecemos bem demais — interveio Corelly — e sabemos perfeitamente que seria incapaz de ganhar dinheiro com o suor do seu rosto. Só é capaz mesmo de suar, quando foge da gente.
0 Muito bem, Fatty, conte-nos tudo que sabe. Caso contrário será acusado de homicídio.
0 Eu... mas eu não matei ninguém! — gaguejou o
prisioneiro, assustado.
0 Claro, é fácil afirmar isso, mas o dinheiro que trazia no bolso está sujo de sangue.
0 Está querendo brincar comigo!
0 Não, absolutamente não. O chefe está falando com Ioda a franqueza. Pelo que sabemos até agora, trata-se de dois, talvez até de três homicídios, que têm relação com este dinheiro. Mas eu ainda não sabia disso quando o prendi. Portanto, não nos venha com evasivas, conte-nos tudo que sabe. E preciso que saiba claramente de uma coisa: precisamos do seu depoimento, e se não quiser fazê-lo,
0 único prejudicado será você mesmo, pois só piorará a sua situação. Sei que é um sujeito inteligente, e sabe muito bem que nem eu nem o chefe brincaríamos com uma coisa dessas, especialmente tratando-se de assassinatos.
Fatty ficou pensando por um momento.
0 O que é que querem saber?
0 Antes de mais nada, diga-nos como entrou na posse desse dinheiro. E o que foi que aconteceu, realmente, quando eu o perseguia?
Fatty olhou para os dois agentes, de lado, desconfiado. Ele tinha muita experiência no trato com a polícia, e era bastante vivo e esperto.
— Muito bem, vou dizer-lhes tudo que sei, mas não vou dedurar ninguém, ou melhor, ninguém que faça os mesmos negócios que eu.
O chefe concordou com a cabeça.
0 Pode ficar sossegado, não vou perguntar-lhe onde adquire o seu dinheiro falso.
Ótimo, então está tudo bem — disse Fatty, aliviado. — Eu recebo o dinheiro de um determinado fornecedor. Nós nos encontramos num lugar combinado, e ele me entrega as cédulas, em maços, embrulhadas. Num destes embrulhos sempre há duzentas notas. Sempre que eu preciso de dinheiro, mando-lhe uma carta, e ele me espera, de noite, num subúrbio afastado de New York, em um lugar onde há poucas patrulhas policiais, e sobretudo onde ninguém nos conhece. Estou lhes contando tudo isto em detalhes, pois, do contrário, o que vou lhes contar não me seria acreditado. Há cerca de uma semana atrás eu escrevera aesse homem, e nós nos encontramos uma noite antes de eu ser preso.
. Nossa maneira de negociar, ao longo destesanos, é a seguinte: Eu lhe mando dinheiro legítimo, ele aparece no lugar combinado, e me entrega o falso. Às ve
zes, entretanto, procedemos de maneira diferente. Quando há policiais por perto, continuamos andando rua acima, e isso sempre na direção norte, para que mais tarde possamos nos reencontrar. Quando, portanto, eu cheguei ao local combinado, da última vez, havia um policial parado bem perto. De acordo com o combinado eu continuei andando, para o norte. Andei mais ou menos um quilômetro, mas não vi o outro em nenhum lugar. Pensei que não nos tivéssemos encontrado porque havia gente demais na rua.!Então cheguei a uma região bastante solitária, seguindo ao longo de um muro liso, bastante alto. Ali parei um pouco. Pensei que meu amigo me tivesse seguido, e logo apareceria. Esperei mais ou menos cinco minutos, sempre de olho, para ver se não aparecia algum policial De repente ouvi um barulho do outro lado do muro, como se a corda de
um arco tivesse sido esticada e solta, e logo alguma coisa caiu bem junto dos meus pés. Fatty fez uma pausa de efeito.
0 E o que era, afinal? — perguntou Peter Corelly.
0 Uma seta, ou melhor, uma seta curta, obtusa,
como as que podem ser vistas no Museu de Etnografia.
Levantei-a e verifiquei que haviam amarrado um pacotinho na mesma. Decidido, arrebentei o cordão e fui até o poste mais próximo, para ver, sob a luz, o que aquele pacote continha, e achei o dinheiro dentro dele.
0 E não havia mais nada no pacote?
?Não. Naturalmente pensei que se tratava do dinhclro falso, que meu amigo lançara por cima do muro para mim, e fui adiante, quando, ao dobrar uma esquina, vi dois homens brigando, aos socos, entre si.
- Agora vem uma parte interessante — disse Corelly, siqnificativamente. — Eu já imaginava que você iria encontrar esses dois homens que brigavam...
?Como não queria me envolver na briga, atravessei para o outro lado da rua.
?Como o Fariseu da Bíblia — murmurou Corelly.
- Pare de interromper a todo instante! — o chefe disse, irritado. — Continue, Fatty!
E então ouvi chamaram o meu nome, e quem me i chamava era...
O seu amigo, aquele que lhe devia trazer o dinheiro falso — concluiu Corelly. — Eu o conheço. É um certo Cathcart.
Fatty olhou-o assustado, quase apavorado.
Fique sossegado, eu sei que foi Cathcart porque, na manhã seguinte, ele foi encontrado, mais morto que vivo, nos limites de Jersey City, pela polícia. Como ele foi pii.ii ali, certamente devem saber muito bem os sujeitos que o deixaram naquele estado deplorável. E então, o que fez depois?
- Eu dei no pé — disse Fatty muito francamente. —
Não participei de nada disso, e não quis me envolver.
?Muito bem, então tudo está resolvido — achou o chefe. — O que fez com o dinheiro?
- Eu o dei a um garotinho, quando fui seguido por Mr. Corelly. Estou lhe dizendo a pura verdade. Ao correr pela rua, ultrapassei o menino. Ele carregava uma bolsa grande, a tiracolo, parecida com uma dessas bolsas usadas pelos carteiros para recolherem as cartas nas caixas do Correio. Enfiei o dinheiro nessa bolsa e disse-lhe que ele o levasse para o seu pai. Acreditem ou não, é a mais pura verdade.
Você seria capaz de reconhecer esse rapaz? — Mas é claro — retrucou Fatty, quase ofendido. — Acham por acaso que ando por aí de olhos vendados?
Flint olhou para Peter Corelly.
0 Muito bem, Corelly, o que acha do caso? Acredita nessa história?
0 Acredito. Sou de opinião que tudo aconteceu assim mesmo. Mas quero avisá-lo, Fatty, você está correndo um enorme perigo. Se ficar andando por New York sem proteção policial provavelmente será assassinado.
Fatty fez uma cara de espanto.
— Está querendo só me amedrontar...
Corelly sacudiu a cabeça, foi até a porta, abriu-a e chamou o policial que trouxera Fatty.
— Leve-o de volta à delegacia. Que o soltem, se ele quiser. Mas talvez seja melhor esperar até escurecer. Aceite meu conselho, Fatty. Suma de New York, o mais depressa que puder.
Fatty olhou para o agente criminal e sorriu, ironicamente.
0 Já sei o que está querendo! Mas vou ficar em New York, até conseguir ter de volta aqueles duzentos mil dólares!
0 Esta é a maior tolice que poderia cometer! — disse Peter, ao fechar a porta atrás dele.
0 O que pretende fazer? — perguntou o chefe.
0 Vou esperar pelos próximos acontecimentos. Logo, logo, vai acontecer alguma coisa. Essa coisa ainda não terminou absolutamente, e...
O telefone tocou. Flint foi atender.
— Quem está falando? — perguntou ele, franzindo a testa, e escutando por algum tempo. — Quando foi isso? O que está dizendo? Mas o gerente não a reconheceu? Muito bem, vou mandar um agente, que resolverá tudo isso.
Ele pôs o fone no gancho e olhou para Corelly.
0 O senhor conhece Miss José Bertram?
0 Está falando da filha do grande banqueiro? Sim, eu a conheço tanto quanto é permitido a uma pessoa do povo conhecer os membros da nata da alta sociedade. Mas porque pergunta?
0 Ela acaba de ser presa pelo detetive particular da firma Rhyburn.
0 Como é que esses idiotas puderam prendê-la? Ninguém pode ser tão imbecil para prender a filha do rico Bertram! Afinal, o que dizem que ela fez?
0 Dizem que ela tentou trocar uma nota falsa de cem dólares.
Capítulo 8
Quando Peter Corelly chegou à firma Rhyburn, foi Imediatamente conduzido para onde se encontrava a detida. EIa estava tremendamente irritada, o que deu a entender em palavras mais do que claras. Mulheres irritadas geralmente ficam feias, mas com Miss Bertram o caso era justamente o contrário. Peter Corelly ficou parado, chapéu na mão, olhando-a, admirado.
Como sempre estava curvado para a frente, com os Ombros meio caídos. Ela o olhou, não menos admirada, viu o seu seu olhar cansado e ouviu a sua voz melancólica.
O chefe de polícia lastima que a senhorita seja envolvi nesse assunto desagradável, Miss Bertram. Ele mandou-me até aqui, para resolver tudo.
Ela fez que entendera, mordeu os lábios e olhou-o hostilmente. No momento ela estava simplesmente irritada com todos os órgãos de segurança e ordem pública. Lentamente colocou novamente a luva, que momentos antes tirara tambem devagar.
?É revoltante que eu tenha sido detida aqui, mesmo por um minuto. Isso naturalmente só pode mesmo acontecer em New New York, e ainda por cima por simples determinaço de um tal indivíduo! — ela apontou para o deprimido detetive particular da firma, que se encontrava, de cabeça baixa, a um canto da sala. — É simplesmente ridículo, que uma coisa dessas possa acontecer.
0 Mas... minha querida miss... — começou Corelly.
0 Eu não sou sua querida miss! — gritou-lhe ela, violenta. ? E não admito que me ofenda desse modo. Meu pailogo estará aqui, e ainda hoje irei procurar o chefe da polícia para me queixar.
Peter Corelly suspirou fundo, fechou os olhos e realmente não dava a impressão de estar muito feliz com aquilo ludo. Mesmo a irritada e ofendida Miss Bertram teve que rir, ao olhá-lo.
Ele voltou-se para o agente de polícia que, por deternação.do do detetive da casa, efetuara a detenção.
O senhor pode soltar a moça, ela é conhecida da polícia.
Miss Bertram, que já se acalmara mais ou menos, voltou a ficar encolerizada.
?Como é que o senhor pode dizer que eu sou conhecida da polícia?! — gritou ela, ofendida.
Mas a paciência de Corelly agora também chegara ao fim.
— Muito bem, agora a senhorita vai me ouvir — ele respirou fundo e continuou — aqui nesta grande cidade há milhões de pessoas, e de acordo com a Constituição uma é igualzinha à outra. Um mal-entendido desses pode perfeitamente acontecer. A senhorita entra numa loja, onde ninguém a conhece, e se então paga o que comprou com uma nota falsa, não pode deixar de ser detida. Afinal quem é a senhorita, para não ser detida se faz algo ilegal? Acho que sabe muito bem: diante da lei somos todos iguais. Mas a senhorita, Miss Bertram, comporta-se como se fosse melhor que as outras pessoas, e como se tivesse que haver uma polícia especial só para si. Se acredita que isto está de acordo com os costumes americanos, isso é apenas a sua opinião. Eu vim aqui para livrá-la dessa situação, eu a trato
da maneira mais cortês, e a senhorita não pára de gritar!
Miss Bertram não sabia exatamente o que deveria dizer. Diante dela estava um agente da polícia, mãos nos quadris, olhando-a de cara feia e passando-lhe um sermão! E isso, mesmo sabendo que ela era filha do mais importante banqueiro de New York, um multimilionário que tinha uma posição de liderança na sociedade.
Depois de ter pensado por algum tempo, a moça respondeu de modo bem mais calmo. Os que estavam em volta, e haviam testemunhado seu comportamento anterior, entreolharam-se, espantados.
0 Muito bem, eu não peço que me tratem de modo diferente que qualquer outra pessoa. Realmente foi um erro tolo de parte da loja. Mas realmente eu nunca estive aqui antes, nem teria vindo, se não quisesse presentear minha camareira pelo seu aniversário. Ela me disse que gos
tara muito de determinado vestido que vira na vitrine. E por isso mesmo não entendo, porque me censura desse modo — terminou ela, e esta última parte da sentença já era novamente altiva.
0 É porque sou pago para isso, para que cuide da ordem, e para pôr as pessoas nos seus devidos lugares —retrucou Corelly. — Estou nisso para proteger os filhos dos pobres e para conduzir os malfeitores ao devido castigo. E este homem aqui — ele apontou para o nervoso gerente — é um dos filhos dos pobres, que eu tenho que proteger, se bem que apenas em sentido figurado.
Miss Bertram lançou um olhar para aquele homenzinho encabulado, e de repente deu-se conta do lado cômico da situação. E teve que rir.
— O senhor tem razão, eu deixei-me levar... sinto muito... Ah, mas aí vem meu pai!
Ela atravessou a sala, ao encontro de um senhor de meia-idade. (George Bertram devia ter cerca de cinqüenta Cinco anos, linha uma barba cortada em pêra, e vestia-se esmeradamente. O seu rosto dava a impressão de que era bem mais moço. Principalmente os seus olhos inteligentes, benevolentes, fascinavam. Ele era um dos melhores financistas da cidade, e trabalhava com grandes valores e especulações para muita gente.
Minha querida menina, certamente tudo foi muito desagradável para você. Como é que isso foi possível?
Bem, a culpa foi minha — respondeu ela, amavelmente. No primeiro instante fiquei muito irritada e me deixei levar, em vez de explicar calmamente, aqui ao gerente, quem eu sou.
Mas, afinal, o que foi que você fez? — perguntou ele.
Quando ela explicou-lhe o que acontecera, ele olhou-a, espantado.
??Uma nota falsa?... — repetiu ele, incrédulo. — Não consigo entender como você entrou na posse de uma cédula desse tipo...
Naturalmente fui apanhar o dinheiro no seu banco. Quando vim para a cidade, passei por lá, e retirei dinheiro para minhas compras.
?Gostaria de ver essa nota.
Deram-lhe a nota confiscada e George Bertram examinou-a detidamente.
?Sim, é realmente uma falsificação. Você ainda tem outras notas, das que retirou do banco?
Ela abriu a sua bolsa e entregou-lhe mais quatro cédulas.
?Estas são legítimas — declarou o banqueiro. —Mas, naturalmente, é bem possível que ainda tivéssemos mais dinheiro falso no banco. Só fico admirado que o caixa,ao descontar o seu cheque, não o tivesse notado imediatamente. Dutton é um dos meus melhores funcionários, simplesmente não posso acreditar como ele deixou passar esta nota, sem ter notado a falsificação. Você tem certeza absoluta que não tinha mais dinheiro na bolsa quando saiu de casa, esta manhã?
Ela hesitou um momento.
Acho que é bem possível. Agora que você perguntou, eu me lembro... — ela contou o dinheiro. — Sim, eu ainda tinha dinheiro na bolsa. Era uma nota... preciso pensar onde a recebi...alguém trocou-me uma cédula maior...
Ela ergueu as sobrancelhas, enquanto tentava lembrar-se.
—No momento não interessa, realmente, de onde a senhorita recebeu esse dinheiro falso, Miss Bertram — disse Corelly, amavelmente — porém, se lhe fosse possível nos dar informações mais precisas sobre isso, eu ficaria muito contente. De qualquer modo amanhã, durante o dia, irei procurá-la em sua casa.
Ela riu... e aquela risada era música para seus ouvidos.
0 Sim, por favor, faça isso... naturalmente, nessa oportunidade, poderá fazer-me mais uma conferência sobre os Direitos Humanos.
0 Que direitos? — perguntou Mr. Bertram, espantado.
0 Nada, é que eu tive uma pequena conversa com... Mas o senhor nem sequer me disse o seu nome.
0 Peter Corelly. Aqui está meu cartão. Raramente tenho oportunidade para usar um cartão de visita, geralmente me basta mostrar a carteira que me identifica como agente criminal.
0 O senhor é uma pessoa curiosa... — disse ela,dando-lhe a mão em despedida.
Este homem intransigente a interessava, e ela quase lamentava um pouco que, ao contrário, o seu interesse por ela não parecia ser muito grande. A profissão dele, e sua maneira correta e distinta de falar, não pareciam combinar muito bem. Ele devia ter uma certa formação e cultura, e sobretudo tinha um enorme autocontrole, uma qualidade que ela justamente admirava muito, devido à sua própria e quase incontrolável impulsividade.
0 Então, não se esqueça de me visitar! — gritou-lhe ela da janela do seu elegante carro. — Espero ainda poder aprender alguma coisa com o senhor!
0 Isso não será necessário! — gritou-lhe ele de volta,erguendo a mão.
Depois que o carro partiu ela ainda voltou-se, e, para sua decepção, notou que ele não ficara olhando para ela, mas que já lhe voltara as costas. Ele conversava com o dono da loja.
0 Mr. Rhyburn — dizia Corelly — eu o livrei de uma grande enrascada. Mas realmente não o entendo... qualquer um que enxerga um pouco, logo teria visto que esta moça não tinha pago suas compras propositadamente com dinheiro falso.
0 Ora, Mr. Corelly — começou Mr. Rhyburn,defendendo-se — esse é um assunto muito difícil e complicado.Não imagina os prejuízos que eu tenho anualmente com dinheiro falso. Eu nunca vira Miss Bertram antes...
Apesar dela estar entre minhas clientes.
Mas o senhor não acabou de me dizer que ela nunca viera à sua loja?
E é isso mesmo, mas, além dessa loja aqui, tenho também, sob outra razão social, uma livraria, em outro bairro da cidade. Comprei a loja, quando o antigo proprietário faleceu. E ali, Miss Bertram é uma boa freguesa. Posso confiar no senhor, que não mencionará o que estou lhe contando? Eu mando-lhe todas as novas edições e ela faz a escolha em casa. Realmente para mim foi muito penoso que isso tivesse acontecido. Mas, como já disse,tivemos muitos aborrecimentos com dinheiro falso, além do que ainda há outros problemas. Há dois meses atrás arrombaram a livraria, quando a maior parte do estoque de livros ficou arruinada.
?O que o senhor me conta parece muito estranho.Conheço o mundo do crime muito bem e sei que essa gente não mostra exatamente muito interesse literário... a não ser quando se chateiam atrás das grades.
? Mas é a pura verdade, Mr. Corelly — garantiu Rhyburn . Pensei até que o senhor soubesse do caso.Não creio que o senhor jamais tenha presenciado um caos como aquele que encontrei quando, de manhã, abri a loja.Todos os livros haviam sido derrubados das prateleiras, e Jogados ao chão, na maior desordem. Inclusive os armários, de obras raras, haviam sido esvaziados...
?O cofre arrombado e todo o dinheiro roubado —interrompeu-o Corelly, lacônico.
Não, e é isso justamente que é muito estranho nesse caso... o cofre nem sequer foi tocado pelos arrombadores
E agora Corelly aguçou melhor os ouvidos. Este assalto estranho o interessava.
?O senhor não vai me dizer que os arrombadores não queriam dinheiro...
?É isso mesmo. Mas, mesmo assim, sofremos grandes perdas, pois meu estoque não estava segurado. Corelly tirou o seu livrinho de notas.
?Data?
Rhyburn disse-a sem pestanejar. Ele anotara a data infeliz para sempre na sua cabeça.
Muito bem, então tudo está resolvido — disse Corelly,depois de ter coberto duas páginas com suas anotações. — O senhor me permite dar uma olhada nos seus livros, especialmente referentes à semana anterior ao arrombamento?
0 Mas é claro, Mr. Corelly.
0 Muito bem, nesse caso estarei na sua livraria esta tarde, às cinco horas
Capítulo 9
Peter Corelly estava mergulhado em seus pensamentos, enquanto, a passos largos, seguia em direção ao Northern Hospital, para informar-se sobre o estado do seu colega.
— Sim, Mr. Smith já recobrou os sentidos, e acho até que já está fora de perigo — informou o médico. — Gostaria de falar com ele? Se não estender demasiadamente a conversa, poderá fazê-lo.
Smith havia sido colocado num quarto particular. Sua cabeça estava completamente envolta em bandagens.
— Olá, o que é que você quer? Veio para registrar meus últimos desejos?
— Ora, parece que você já está novamente bastante bem, não? — Corelly puxou uma cadeira para junto da cama. — Mas não posso deixar de concordar que eles o deixaram mesmo em petição de miséria.
0 Tem razão, e fui mesmo bastante idiota por ter caído nessa armadilha. Foi burrice minha. Não duvido nada que eles não tenham dado boas gargalhadas de minha ingenuidade. Eles haviam colocado dois táxis à minha espera, e eu tomei logo o primeiro!
0 Mas também é inacreditável que uma coisa dessas possa acontecer em plena luz do dia, em New York!
0 Pois aconteceu. O motorista, aliás, nada fez que pudesse despertar suspeitas, a não ser que, de vez em quando, escolhia o caminho mais curto. De repente o carro entrou numa garage. No instante seguinte, fecharam a porta atrás de nós. Eu pulei para fora, mas, ainda antes que pudesse puxar meu revólver, eles já tinham me agarrado. E isso é tudo de que consigo me lembrar,
— Depois disso, eles o carregaram até uma casa abandonada, sem naturalmente serem vistos, e, pelo que eu imagino, porque achavam que você estivesse morto.
?Chegou a ver as pessoas que o atacaram? Poderia descrevê-los?
?Não?retrucou Wilbur, convicto. — Não consigo lembrar-me de nada. Só sei que se tratava de uma garage muito grande... Ainda vi quando um homem aproximou-se, do outro lado, com um galão de gasolina na mão. Naturalmente mandaram que fizesse isso, para não despertar suspeitas em mim. E ainda antes que eu pudesse fazer uma idéia concreta do que estava acontecendo, eles me derrubaram com um golpe certeiro. O dinheiro, naturalmente,eles tiraram do meu bolso.
?Claro.
? E agora tomou conta do caso?
?Sim. Já achei alguns indícios. Aliás, este é realmente um caso muito interessante.
Corellv contou o que acontecera com a moça que, de repente,recebera, de presente, uma fortuna de cento e vinte mil dólares, e também a outra história sobre Fatty.
Wilbur Smith ficou escutando, muito interessado.
?Um caso que parece bruxaria. Jamais me aconteceu coisa igual. O que é que você acha de tudo isso?
Aules de responder, Corelly levantou-se, foi até a a porta do quarto e fechou-a por dentro.
?Para mim este caso não é exatamente novo! Quando penso no carimbo no verso das notas, a imagem do Hades dourado... Deve tratar-se de alguma sociedade secreta, algum culto.
?Que espécie de culto secreto?
?Existem muitos cultos dos mais esquisitos, mas o mais difundido é sem dúvida uma espécie de culto satânico. Provavelmente vai achar que estou maluco, mas trata-se de fenômenos que podem ser explicados. Durante o grande processo conta a Camorra, por exemplo, fez-se alguma luz sobre um curioso culto ao diabo, na Itália. Coisa parecida existiu também no norte da Inglaterra, e também no sul da Rússia. E cada um desses cultos tem seus sacerdotes e um ritual especial.
?Mas... — começou Smith, entretanto não conseguiu expor seu ponto de vista.
?Espere um pouco. Antes de mais nada, quero mencionar que os adoradores do demônio se esforçam especialmente em difundir a imagem do deus que eles adoram.Esta é uma constatação feita em todas estas ocasiões. No norte da Inglaterra eles imprimiram o ídolo nos envelopes usados em sua correspondência, e isso de uma maneira que pudesse sempre ser coberto pelo selo. Os adoradores do deus satânico Nick, no sul da Rússia, mandaram gravar a fogo a imagem do mesmo nas solas dos seus sapatos. Também ali difundiu-se, pela primeira vez, o hábito de carimbar a imagem do ídolo nas costas de cédulas de dinheiro.
0 Parece até que você está me querendo contar uma história fantástica. Afinal, de onde tem todos esses conhecimentos?
0 Ora, a gente vive e aprende — observou Corelly um pouco superior. — Naturalmente existe muita literatura sobre isso, mas basta até você olhar em alguma enciclopédia o verbete "Culto Demoníaco".
0 Então você é de opinião que...
0 Sim, eu creio que também aqui na América exista um desses cultos satânicos. Entretanto, parece ser uma forma meio bastarda dos cultos conhecidos.
—Ouviu alguma coisa sobre Alwin? — perguntou Wilbur.
Sem querer, movimentou sua cabeça um pouco para o lado, e gemeu de dor.
—Não. Não temos qualquer notícia dele. Mas eu suponho que eles o estejam mantendo prisioneiro em algum lugar.
—Pois eu acho que ele está morto — disse Wilbur, calmo. — Peter, eu garanto a você que logo que estas minhas costelas quebradas estiverem novamente mais ou menos coladas, eu me levanto daqui. Já não agüento ficar nesta cama. E então vou buscar o assassino de Frank Al]win. Não deixarei de tentar absolutamente nada, ainda que
isto me leve toda a vida. Você pode apostar, que eu o apanharei!
0 Você é mesmo um sujeito curioso — Corelly suspirou. — Se eu estivesse em seu lugar, estaria pensando em coisas bem diferentes, que não fossem tão sanguinolentas...
0 Mas você não está no meu lugar. E eu prefiro que você me conte mais alguma coisa sobre esse culto satânico maluco.
— Da próxima vez acho que já terei mais coisas para lhe informar — disse Corelly, pegando o seu chapéu. —Esta tarde vou visitar o professor Cavan. É possível que, então, venha a ficar sabendo de mais algumas coisinhas...
0 Com todos os diabos, quem é esse Cavan? Corelly ergueu os ombros.
0 É realmente incrível tudo que você não sabe! Está falando sério, dizendo que não conhece o professor Cavan?
0 Jamais ouvi falar dele. Quando foi que você o conheceu?
0 Ainda ontem.
Corelly levantou a mão e saiu do quarto.
Capítulo 10
Frank Alwin devia ter dormido, depois que os dois homens o haviam deixado sozinho. Acordou com dores de cabeça e estava com uma fome terrível. Quando se levantou, sentiu dores por todo o corpo, mas agora já se encontrava bem mais forte.
Aparentemente aquele pessoal devia ter estado novamente aqui, enquanto ele dormira, pois sobre a mesa haviaum pacote de cream-crackers, queijo e uma garrafa de cerveja.Nunc a uma refeição parecera-lhe tão gostosa.
Ele olhou em volta com mais atenção, e também foi dar uma olhada no banheiro. Naquele aposento havia um armário com roupas, e no mesmo também encontrou toalhas banho. Lentamente e com muito cuidado ele despiu-se e depois de ter tomado um banho quente sentiu-se novamente fortalecido e refrescado.
Os.seus bolsos haviam sido revistados. Apesar disso lhe haviam deixado seu relógio de ouro. Os ponteiros apontavam para doze, mas ele não sabia se era meia-noite ou meio- dia, uma vez que nenhuma luz do sol penetrava no aposento subterrâneo. Havia apenas uma lâmpada nua, multo fraca, dependurada no teto.
Ele tentou matar o tempo, examinando melhor a sua prisão, e acabou fazendo descobertas muito interessantes. Através de uma abertura na parede do banheiro, pela qual passou esgueirando -se com dificuldade, apoiado nos joelhos e nas mãos, chegou a uma pequena cela, quadrada, que não parecia ter qualquer fim específico. E não tinha, além da saída primitiva para o banheiro, qualquer outra, pelo que pareceu a Alwin. mas nisso ele se enganava. Numa das paredes encontrava-se uma porta corrediça, que, enlretanto, agora estava fechada. Aquele aposento, mais parecendo um calabouço, tinha no máximo metro e meio de diâmetro, e não tinha qualquer iluminação. Não poderia ser um quarto de guardados, com essa diminuta entrada, pensou Frank, mas então notou que se tratava realmente de um poço de ventilação. Um fluxo de ar fresco vinha do alto, e é o que tornava habitável aquele porão no qual Alwin se encontrava prisioneiro.
Ele lembrou-se agora que o ar estivera quente e com cheiro de mofo, quando o haviam carregado para dentro do porão. Só mais tarde o ar melhorara muito. Provavelmente os homens então tinham aberto as palhetas do duto de ventilação, lã no alto.
Ele foi tateando pela parede, dando de encontro a uma forte barra de ferro, que ia da metade de uma parede ã oposta, mais acima havia outra barra, e ainda uma terceira. Não era portanto apenas um poço de ventilação, também era possível abandonar o porão por aqui. Fazendo um tremendo esforço, começou a subir, e enquanto subia foi contando os degraus de ferro, embutidos.
Logo no começo estivera cético, pois a barra de baixo parecia estar encravada muito frouxamente na parede, mas quanto mais subia mais seguras estavam as barras. Depois de ter subido quarenta e oito barras, a sua mão alcançou o vazio. Somente depois de tatear um pouco mais ao seu redor, descobriu uma espécie de pequena plataforma, para a qual subiu. Era triangular, e só dava exatamente espaço para que ele pudesse sentar-se. Procurou na parede atrás de si e encontrou uma porta de madeira. Era muito baixa, mas teria sido possível esgueirar-se pela mesma, se conseguisse abri-la. Infelizmente estava muito bem trancada. Ele entendeu imediatamente que aquele era o seu único caminho de fuga, se é que havia algum.
Com os pés ficou procurando no escuro novamente as barras de ferro, descendo outra vez ao porão. Estava fraco e cansado, e ao chegar novamente à sua prisão, teve que descansar bastante, antes de poder fazer uma nova tentativa. Normalmente ele trazia seu molho de chaves no bolso, mas este lhe havia sido tirado, e em todo aquele aposento ele não achou nada que pudesse fazer as vezes de uma chave. Entretanto, notou agora, num canto abaixo do teto, o duto de ar, que antes não lhe chamara a atenção.
Quando sentiu-se novamente um pouco melhor, fez uma segunda investida. Desta vez levou consigo a barra de ferro inferior, que estava muito frouxa na parede e fora fácil puxar para fora, arrastando-a consigo, para a plataforma lá no alto. Foi um esforço longo, cansativo, até que, finalmente conseguiu arrombar a portinhola baixa, mas finalmente conseguiu.Esgueirou-se através das farpas de madeira quebrada e, encontrou-se num sótão. Através de uma janelinha redondano telhado abaixo ele pode ver o gramado verde lá embaixo. A julgar pela altura, a casa tinha apenas um andar, além do térreo.
De repente ele parou de fazer as averiguações e ficou escutando. Ouviu vozes.deviam ser os dois homens que o haviam levado ao porão.
Mal se deitara na cama, a porta abriu-se e os dois entraram. Um deles trazia uma bandeja com comida, e o outro colocou dias garrafas de cerveja em cima da mesa. Como das vezes anteriores, os dois haviam coberto o rosto com lenços de seda.
?Olá, disse um deles, e Frank reconheceu pela voz que se tratava de Tom. ?Então, como está se sentindo?
?Bastante bem — respondeu Frank.
?Espero que continue assim. Nós trouxemos comida, que está na mesa — Tom olhou em torno, depois voltou o olhar para Alwin. — Achou o banheiro? Aliás, eu gostaria de dizer-lhe uma coisa, rapaz! — e sua voz agora parecia ameaçadora. — Você está numa situação muito delicada e, se sair vivo daqui, pode se dar por feliz. Aliás, já devia estar morto, e se Rosie... se um amigo meu não tivesse feito tantas besteiras...
?Acho que não faz sentido se lhes digo que estão cometendo um crime muito grave — interrompeu-o Frank.
?Pare com essa besteira! Seria melhor se pensasse que talvez ainda cometeremos um crime bem mais grave. Ainda está com vida, e deveria fazer tudo para continuar assim. Você não é um bom amigo de Wilbur Smith? Você poderia facilmente fazer com que ele não se ocupasse mais com o Hades dourado. Ele também ainda está vivo...
?O que está está dizendo? — perguntou Frank. — Vocês não se atreveriam a...
?Por que esse espanto? Naturalmente que nós nos atrevemos. E quase tudo teria dado certo se Rosie, ou melhor, se um de nós não tivesse cometido um erro Tão grosseiro, ninguém teria ficado ferido. Smith sabe de muita coisa... Se ele continua metendo o nariz onde não é chamado, naturalmente vamos ter que tomar as nossas precauções. Mas as coisas, provavelmente, não chegarão a tanto.Por isso, talvez fosse melhor se você lhe escrevesse. Diga-lhe numa carta que contará tudo que sabe, quando voltar a vê-lo. . Comunique-lhe também que está passando bem. Que ele pare com suas investigações até que você consiga falar com ele. O dinheiro nós não queremos, e aliás, ele já não está mais em poder dele. Só queremos que ele pare com suas averiguações. Vai escrever-lhe isso? Afinal, é um rapaz inteligente, não é, Alwin? Frank sacudiu a cabeça.
— Não — declarou ele, decidido. — Que Smith faça tranqüilamente o que acha que deve ser feito, para acabar com os crimes de vocês. Se vocês, ao que parece, o têm nas mãos, e o soltarem, certamente ainda se arrependerão.
Tom ficou olhando-o, longamente.
— Muito bem, eu ainda não matei ninguém a sangue-frio, mas talvez você vai ser o primeiro.
Ele virou-se e foi até uma das grandes caixas, na qual Sammy estava procurando alguma coisa. Trocaram algumas palavras em voz baixa e depois saíram.
Frank apenas conseguira entender: "Às nove horas, depois da cerimônia...". Deixado sozinho, ele comeu, pois estava faminto. Depois esperou algum tempo, ficou escutando, e quando não ouviu mais nenhum ruído, subiu novamente a escada improvisada, revistando o sótão bastante baixo. Mas em nenhuma parte ele achou uma saída. Entretanto, havia uma possibilidade, e Frank estava firmemente decidido a experimentá-la. Durante toda a tarde ele trabalhou com tanto empenho como jamais trabalhara em sua vida. Os braços e as pernas doíam-lhe, quando às sete horas voltou ao porão, deitando-se sonolento e completamente exausto na cama.
Sua principal preocupação era de que não poderia adormecer. Apesar disso estava meio adormecido, quando ouviu batidas acima de sua cabeça — e imediatamente estava completamente desperto. Ficou escutando atentamente. Era o mesmo ruído que ele ouvira na primeira noite, quando os dois homens estavam esperando por Rosie. Hesitou mais um minuto, depois calçou os sapatos, subiu pelo duto de ar, esgueirou-se pela portinhola em ruínas, estendeu-se de barriga no chão do sótão, colando o ouvido no assoalho.
Naquela tarde ele hesitara em destruir o teto do andar que ficava abaixo, pois se a argamassa caísse do teto, en-j quanto houvesse gente lá embaixo, ele seria descoberto sem dúvida alguma.
Porém agora a sua curiosidade tornara-se grande demais. Procurou nos bolsos e encontrou uma caneta. Cuidadosamente afastou uma das tábuas, que já soltara de tarde, e fez um furo com a ponta da caneta, conseguindo um orifício naquele teto relativamente fino de reboco, de modo que podia olhar para baixo. Porém não conseguiu ver outra coisa a não ser um chão recoberto de ladrilhos pretos e brancos. Agora ele aumentou o buraco, tendo um cuidado eíctremo para evitar que o reboco caísse lá embaixo. De vez em quando parava de trabalhar e ficava escutando, ma.s não ouvia qualquer ruído. Pouco a pouco ele foi alargando aquele orifício no teto, de tal modo que acabou do ta^nanho de sua mão.
E então, de repente, ele ouviu passos no andar de baixo, e procurou ficar o mais quieto possível. Agora ele podia ver tudo muito bem. Lá embaixo havia um pequeno salão. O teto era sustentado, ao comprido, por uma fila de colunas ccjríntias. Na entrada do salão, em toda a largura e altura do recinto, havia um pesado reposteiro de veludo. Diante deste, sobre um soquete de mármore, havia uma pequena Estátua, coberta com um lençol de seda branca.
Enquanto Frank ainda olhava aquilo tudo atentamente, o reposteiro de veludo azul-escuro de repente foi puxado pana um lado, e dois homens entraram. Ambos vestiam dois longos hábitos marrons, que iam da cabeça aos pés. Capuzes, como os usados pelos monges, escondiam-lhe as cabeças. Frank ficou olhando aquela aparição, espantado. Eles aproximaram-se do soquete de mármore, dando mestras de grande reverência, juntando as mãos e curvando as cabeças. Lentamente se aproximaram até ficarem bem próximos do soquete. O primeiro dos dois, que também «era o mais alto, deixou-se cair de joelhos; o segundo aproximou-se ainda mais do bloco de mármore e puxou o lenço branco de seda de cima da estátua.
Fascinado, ele seguia todos os movimentos daqueles dois homens, que, diante do altar, prestavam reverência ao ídolo. Ele fez um esforço para ouvir as palavras que estavam sendo ditas. Não conhecia a voz que ouvia, de qualquer modo não era de nenhum dos dois homens que o haviam trancado no porão. A voz soava cheia e bonita, mas ainda assim parecia tremer de excitação. Sim, o homem parecia tomado de um entusiasmo extático.
— Hades, grande deus do mundo subterrâneo, Doador da Riqueza, ouve o teu servo! Tu, deus poderoso, através de cuja influência e graça o homem que aqui se rebaixa e ajoelha diante do teu altar chegou a grande riqueza, ouve sua prece e sê-lhe misericordioso, pois ele deseja repartir sua riqueza com os pobres, para que o teu nome se torne cada vez mais poderoso. Ó Plutão, temido deus do mundo subterrâneo, dá um sinal ao teu escravo, de que tu o escolheste!
O mais alto dos dois ergueu a cabeça e olhou para a estátua dourada. Através do furo que fizera, Frank podia ver as costas do homem. A única luz neste templo estranho vinha de duas lâmpadas que ficavam de ambos os lados do altar. Além disso, no altar ainda devia haver luzes embutidas, que iluminavam o ídolo, de modo que este parecia resplandecer.
Por um instante houve um silêncio total, depois ouviu-se uma voz que parecia vir de muito longe, soando oca e sobrenatural. Evidentemente ela ecoava na direção da figura de ouro.
— Os teus sacrifícios me são agradáveis, e eu sei que tu me serves lealmente. Tu deves dar àqueles que são meus sacerdotes, aquilo que mais prezas, pois então alcançarás muitas graças e o teu nome será inscrito em letras de ouro no grande livro do Hades.
O homem alto jogou-se ao solo e ficou durante muito tempo nessa posição, depois levantou-se e ambos recuaram lentamente do altar. Assim como vieram, desapareceram por trás da cortina de veludo azul. Frank respirava, excitado. Havia um suor frio na sua testa. Sem fazer ruído esgueirou-se de volta ao duto de ar, e deixou-se escorregar escada abaixo. Teve tempo suficiente, pois, quando a porta foi novamente aberta, ele já se acalmara inteiramente. Fingiu que estava dormindo, e ouviu as duas vozes já suas conhecidas.
Não, nenhum destes homens tomara parte naquela cerimônia fantástica, isso ele poderia apostar. Ficou bem quieto, sob seu cobertor, quando um chegou-se, na ponta dos pés, perto de sua cama, porém teve que usar de toda a sua força de vontade para não se mexer. Ele não duvidava absolutamente que esta gente acabaria com ele, logo que isto fosse conveniente aos seus planos. Ele segurou a barra de ferro que trouxera consigo com mais força, pois estava decidido a vender a sua vida o mais caro possível, se fosse o caso. Mas eles pareciam estar satisfeitos com o que puderam constatar.
— Por que demorou tanto para você falar, Tom?
O outro respondeu baixinho. Frank conseguiu entender alguma coisa como "microfone".
Depois houve um ruído de alguma coisa arrastada, e ele presumiu que eles estavam carregando para fora uma daquelas duas grandes caixas. A porta fechou-se com um estrondo, e giraram a chave na fechadura.
Tom e Sammy carregaram a pesada mala-armãrio para cima, e colocaram-na do lado de fora no hall de colunas do pequeno templo grego.
O edifício era rodeado de um grande parque, que entretanto tinha só poucos gramados abertos, pois consistia, em sua maior parte, de grandes árvores e arbustos menores, formando um matagal espesso. E em toda a redondeza não era possível ver-se qualquer tipo de habitação humana.
Tom tirou um lenço do bolso e limpou o suor da testa.
— O que vai acontecer agora, com aquele sujeito, lá embaixo no porão? — perguntou ele apontando com o polegar para a porta, pela qual eles haviam saído e que ia dar na cripta.
— Ele não nos serve para nada, até Rosie é da mesma opinião. Além do mais ele é um perigo para nós.
Os dois ficaram olhando, um para o outro, durante algum tempo, em silêncio— Eu não consigo fuzilar um homem a sangue-frio —disse Tom. — Mas, se eu lhe dou uns socos antes, ele talvez parta para cima de mim... e então a coisa vai ser fácil.
Sammy concordou.
— Vamos buscar o segundo caixote para cima, depois liquidamos com o sujeito.
Precisaram de algum esforço para carregar aquela segunda caixa para cima. Colocaram-na no vestíbulo de colunas, bem perto da primeira.
Depois os dois ficaram sentados ainda uns dez minutos nos degraus de mármore diante do templo, para respirar um pouco. A noite estava quieta, o céu claro e cheio de estrelas. As sombras escuras de duas árvores e a silhueta do templo formavam um fundo fantasmagórico para os dois homens, que estavam pensando na desagradável tarefa que ainda tinham diante de si. E quanto mais esperavam, menos ficavam com disposição para executar a mesma— Rosie deu ordem para que o próximo pagamento do depósito seja feito na Filadélfia — disse Tom, como se quisesse apenas dizer alguma coisa para quebrar o silêncio.
Sammy apenas resmungou alguma coisa ininteligível. Tom ergueu-se e puxou um revólver do bolso, fazendo o cano rebrilhar ameaçadoramente.
— Vem! — disse ele, decidido.
Eles desceram a escada, abriram a porta do porão e entraram. No escuro, Tom encaminhou-se diretamente para a cama, e sua mão agarrou o cobertor.
— Levante-se daí!
Ele puxou o cobertor para trás, mas não encontrou ninguém por baixo. Havia apenas papéis e livros, espalhados por igual sobre o colchão. Sam praguejou.
— Ele fugiu! — gritou ele, correndo escada acima.
Uma das caixas, no hall de colunas, estava vazia.
Capítulo 12
No dia seguinte, Peter Corelly tinha muito que fazer, muito mais que esperava.
Quando ele afirmara que conhecia o professor Cavan há apenas um dia, ele exagerara um pouco. É que ele não quisera dizer que se interessava pelo professor Cavan só desde ontem. Aquele homenzinho baixo, de barba estropiada, cabeça calva e madeixas grisalhas atrás, era muito conhecido em New York. Usava constantemente óculos de aros de ouro. Curioso era que ele tivesse uma grande fortuna, pois normalmente não era comum que os sábios tivessem a boa sorte de ganhar muito dinheiro.
Aliás, também Wilbur Smith conhecia o professor, pelo menos de nome. Que ele não se lembrara logo de que conhecia Cavan podia-se facilmente atribuir às suas circunstâncias momentâneas. Depois que Peter Corelly saíra, entretanto, ele logo se lembrara de quem era esse professor Cavan.
"Cavan...", ficou pensando Wilbur Smith e olhou para o teto pintado de branco, como se ali existisse uma grande enciclopédia que ele pudesse folhear. Ele não era aquele especialista em mitologia clássica? Claro, e Peter poderia pedir a ele que o informasse sobre tudo que queria saber a respeito desse velho Hades.
Se havia alguém na cidade que soubesse tudo a res-
peito dos deuses gregos, e que pudesse dar sua contribuição para a elucidação desse caso complicado, com o qual ambos os agentes de polícia se ocupavam, sem dúvida era o professor Cavan.
Quando este homem sábio, há algum tempo atrás, chegara a New York, o mundo científico imediatamente o aceitou em suas fileiras, e a sociedade de New York o festejava. Isso fora há três anos. Sua sabedoria, uma fascinante conversa, e não por último sua fortuna, tinham-lhe aberto todas as portas. Logo no primeiro ano, três universidades diferentes ofereceram-lhe uma cadeira de livre-docente, mas ele recusou todas, amável mas firmemente.
Morava num palacete luxuoso na Riverside Drive, e tinha uma enorme criadagem. Até mesmo Peter Corelly, que dificilmente se deixava impressionar com riquezas, ficou perplexo, quando chegou à casa de Cavan. Um mordomo imponente, que a julgar pelas aparências devia ser inglês, o recebeu. Ele parecia representativo e tinha maneiras muito corteses.
Corelly foi conduzido ao escritório do professor, e encontrou o homenzinho atrás de uma escrivaninha enorme, imponente, coberta de livros abertos, documentos, papéis e manuscritos. Cavan, que estava justamente escrevendo, levantou os olhos, quando o mordomo introduziu Corelly. Pegou no cartão de visita e leu-o, segurando o mesmo muito próximo das lentes dos seus óculos. Depois tirou os mesmos e recostou-se em sua cadeira, afetando um sorriso muito amável.
0 Por favor, sente-se, Mr. Corelly. James... — voltou-se ele para o mordomo — uma cadeira para o cavalheiro. Aceita uma xícara de chã?
0 Não, obrigado — retrucou Peter. — Esta é uma bebida à qual eu ainda não me acostumeiÓ, mas isso é uma pena — achou Cavan. — Ê uma bebida maravilhosa, que nos deixa alertas e vivos, de modo que podemos trabalhar com muito empenho, sem sentirmos qualquer cansaço. — James, o senhor pode ir!
— quando a porta fechou-se atrás do mordomo, ele olhou, mais uma vez, o cartão de visitas. — Mr. Corelíy, suponho que o senhor veio me procurar para falar sobre um determinado assunto da mitologia grega. Ou melhor, acho que sei do que se trata — ele olhou para Corelly com um sorriso estranho. — O senhor está querendo saber alguma coisa a respeito do Hades dourado, não é mesmo?
Normalmente Corelly tinha um perfeito controle sobresi mesmo, porém neste instante foi-lhe impossível esconder seu espanto. Ele julgara que o que se sabia a respeito desse misterioso caso criminal era apenas do conhecimento dos agentes da polícia.
O professor parecia satisfeito com a impressão que causara com suas primeiras palavras.
0 Mr. Corelly, eu não sou nenhum vidente, só que leio muito bem todos os jornais. Ontem de noite dei com uma pequena reportagem no Evening Herald, que tratava do assunto. Parece que um redator desse jornal recebeu
uma carta...
0 Sim, claro — respondeu Corelly, rápido. — A carta dizia respeito a Mr. Wilbur Smith, eu sei, e foi-lhe entregue.
0 Certo, é isso que dizia a reportagem. Muito bem, Mr. Corelly, o que posso fazer pelo senhor?
0 Eu gostaria de pedir-lhe para que me explicasse, o mais exatamente possível, que papel o deus grego Hades— ou Plutão, como era chamado pelos Romanos — representava ou ainda representa. Eu também estudei, mas na
turalmente não tenho conhecimentos especializados sobre mitologia grega. Por isso agradeceria muito, se me pudesse esclarecer sobre este ponto.
Cavan balançou a cabeça, afirmativamente.
0 Eu jã imaginava que o senhor viria perguntar-me sobre isso.
0 Sei que o senhor é grande conhecedor dos antigos cultos de deuses, que se conservaram até nossos dias —ou talvez fosse melhor eu dizer — que nestes últimos tempos vêm ressurgindo.
O professor anuiu novamente.
0 — Eu realmente tenho estudado este assunto. É de espantar quantos desses antigos cultos se conservaram até nossos tempos. Alguns entre eles têm um grande número de fiéis, ou melhor dizendo, de sacerdotes, e nos mesmos
ainda são usados rituais muito bem determinados. Por exemplo, na Noruega, ainda existem adoradores do velho deus pagão Troll, que ê uma espécie de diabo da Saga escandinava. Na Rússia formou-se um culto secreto com
discípulos de Baba Yaga, também um ídolo mitológicoCheguei até a identificá-lo com o deus Cronos, da antigamitologia grega. Na Inglaterra e na América vive um grande número de pessoas muito desagradáveis, que geralmente tiveram ou têm uma vida pregressa muito movimentada e ruim, e que se identificam e adoram esse taldeus da mitologia grega, como seu patrono Isso quer dizer também que eles praticam um determinado culto com ele?
0 Sim, eles o adoram, mais ou menos como os Parses adoravam o sol.
0 E naturalmente lhe atribuem forças sobrenaturais?
0 Sim, claro. Porém estas coisas não são fáceis deintuir. Existem três grupos de adoradores do Hades. Por vários motivos, este deus exerce um fascínio muito maior sobre determinadas pessoas que qualquer outro ídolo da
antiga mitologia.
0 Quer dizer que há, realmente, adoradores do Hades aqui na América, ou mais precisamente, no estado de New York?
0 Sim, há — retrucou o professor e olhou Corelly novamente de modo estranho. — Alguns deles são seus discípulos entusiásticos, tendo-se legado de corpo e alma ao mesmo, absolutamente conscientes do que estão fazendo. Já outros são menos fanáticos. O senhor não deve esquecer — terminou ele, com um sorriso — que Hades, ou Plutão, entre outros também é o deus da riqueza.
0 Gostaria de fazer-lhe uma pergunta direta. O senhor, pelo que sei, frequenta aqui a melhor sociedade.
Conhece, entre esta gente, adoradores do Hades, quero dizer, pessoas que pertençam a uma seita dessas? Antes de me responder, devo dizer-lhe que não quero saber o nome delas.
0 Eu até gostaria de poder dar-lhe seus nomes, se os soubesse, mas felizmente não tenho nada com estas coisas diretamente. Minhas atividades culturais e científicas se estendem a outro território. Sei, naturalmente, que estas seitas existem, porque tenho ouvido falar delas, como quase todo mundo, mas não me interessei muito por estes absurdos. E onde é possível encontrar estas associações de adoradores do Hades — só Deus sabe.
Cavan levantou-se e estendeu a mão ao seu visitante.
— Passe bem, Mr. Corelly!
Peter Corelly não tinha absolutamente intenção de já ir embora, mas não lhe restou outra coisa senão despedir-se do professor e sair.
Capítulo 13
Naquela noite Corelly jantava com Flint, no aristocrático clube deste último.
— Eu tinha esperanças de que o senhor conseguisse maiores informações de Cavan — disse o chefe, chateado. — Passei toda a tarde tratando com o Promotor Geral do Estado a respeito deste caso. E não tínhamos absolutamente uma ideia clara do que entender sobre o chamado culto do Hades dourado. Por isso mesmo, seria muito interessante se pudéssemos obter maiores detalhes. O Promotor Geral tem Cavan como um homem inteligente, muito competente, e conhecedor dos mais variados ramos da ciência e da cultura. Como ele o conhece superficialmente, provavelmente tentará, por seu lado, conseguir a ajuda do professor para o nosso caso.
Corelly não estava propriamente de bom humor. Por isso suspirou.
0 Eu nem cheguei a entrar em detalhes com ele. Antes que pudesse mencionar os pontos importantes, ele já estava me dando a mão, como se me dispensasse.
0 É uma pena. Ele poderia ter-nos prestado uma grande ajuda.
— E claro, e desde então tenho quebrado a cabeça, para arranjar uma maneira de fazer com que Cavan nos dê sua colaboração. Ele tem dinheiro demais, portanto não tem qualquer interesse financeiro em tirar proveito dos seus conhecimentos. Por outro lado, também é bem possível que ele realmente já me disse tudo que sabe a respeito dos adoradores do Hades.
— O senhor chegou a averiguar quem é o chefe da contra-regra daquele teatro, e, sobretudo, quem foi que lhe entregou aquele dinheiro carimbado?
— Sim, eu esclareci duas coisas que me pareceram especialmente importantes. Em primeiro lugar, a procedência do dinheiro, e, em segundo, a história de Fatty. Tanto o chefe da contra-regra como Fatty disseram a verdade. O homem, de onde haviam vindo as cédulas para o teatro, também faz cartazes para cinemas. Recebera justamente uma encomenda de um cartaz para um novo filme que trata de dinheiro e riqueza, e então tivera a ideia de emoldurar o tal cartaz, em toda a volta, com as cédulas daquele dinheiro, que ele julgava de imitação. Como, entretanto, não tinha mais daquele dinheiro de mentira em mãos, mandou o filho ao seu fornecedor habitual. O rapaz voltou
antes de ser esperado, e contou ao pai uma história a respeito de um homem que ele encontrara no caminho, e que lhe enfiara um pacote na bolsa. O pai abriu-o, e verificou que se tratava de um enorme maço de dinheiro. Naturalmente o cartazista imaginou que se tratava das cédulas de imitação para o seu cartaz de cinema, e realmente acabou colando uma grande quantidade dessas notas de mil dólares na tabuleta. A polícia agora está ocupada em retirar estas notas valiosas do cartaz, usando água morna, para descolá-las. Porém havia tantas notas no pacote, que o homem nem chegou a usar a metade no seu placará. Por isso entregou o que sobrou ao chefe da contra-regra do teatro, já que o dinheiro parecia-lhe quase perfeito, e este lhe pedira há tempos uma boa quantidade de bom dinheiro de imitação.
0 Então a história de Fatty está correta?
0 Está. Na sua fuga ele encontrou-se com o filho do cartazista. Só há mais uma coisa que eu gostaria de...
Mas Corelly de repente estacou, olhando fixamente para a entrada do clube.
Uma moça entrava e vinha atravessando lentamente o grande salão do restaurante — seguida de Mr. Bertram, seu pai, que vinha com uma expressão muito preocupada no rosto.
Mas Peter Corelly só via a filha do banqueiro, que lhe parecia muito bonita naquele seu elegante, mas discreto, vestido longo. Parecia quase que ela sentira o seu olhar, pois de repente voltou a cabeça olhando para a sua mesa. E quando ela cumprimentou-o com uma leve inclinação da cabeça, ele imediatamente pôs-se de pé. Ele pôde ver que ela dizia alguma coisa ao seu pai, quando então também Bertram se virou, curvando-se ligeiramente na direção de Corelly. Depois os dois desapareceram no salão que ficava
ao lado.
— Por que não se senta, Peter! Já está dando na vista... — disse Flint, nervoso.
Só agora Corelly notou que continuava de pé, e murmurou uma desculpa.
— Este era o banqueiro Bertram e sua filha — obser
vou o chefe. — Suponho que o senhor resolveu aquele assunto desta manhã, para satisfação geral?
Corelly não prestou atenção à pergunta, e ficou olhando a porta, observando os que entravam — aparentemente Bertram estava dando um banquete no pequeno salão, e Peter estava interessado em saber quem eram os convidados do banqueiro. Por que queria saber disso com tanto empenho, nem ele mesmo sabia. Era uma intuição, simplesmente. O primeiro a quem reconheceu foi Willy Boys, que passou apressadamente entre as mesas, com sua cara avermelhada, como se temesse chegar atrasado, e logo atrás vinha uma mulher, que Peter não conhecia. O chefe disse que se tratava de
uma das mais importantes damas da sociedade novaiorquina.
— Olhe só quem também foi convidado! — disse Corelly, cutucando Flint. O último que se dirigia à pequena festa no salão ao lado era o professor Cavan. Vinha muito bem vestido. Ao entrar no clube pela porta giratória, trazia uma capa sobre o braço e na mão a cartola. Entregou ambas as coisas a um mensageiro, que as levou ao garderobe. Depois, muito ereto, e com passos firmes, atravessou o restaurante. Era aparente que ele estava consciente de que todos os olhos o observavam.
— O senhor acha que ele se mostraria mais pronto a nos ajudar, se nós lhe confiássemos tudo? — perguntou Corelly, quando o professor desapareceu naquele pequeno salão.
0 Por que não lhe faz uma nova visita, quando então poderá comunicar-lhe — não digo tudo — mas pelo menos os pontos mais importantes — aconselhou o chefe.
0 Sim, vou tentar isso, nestes próximos dias.
Flint gostava de ficar longamente à mesa, gozando a refeição. Corelly, ao contrário, não se importava muito com isso. Toda aquela sequência interminável de pratos já lhe havia sido mais que suficiente, e ele achou melhor desistir
da sobremesa.
Desculpou-se com o chefe, e deixou o clube.
Capítulo 14
Mal Peter Corelly passara pela porta giratória para a rua, lembrou-se de que Frank Alwin havia jantado neste clube com Wilbur Smith, na noite em que desaparecera.
Um sequestro destes naturalmente seria impossível, agora, a uma hora tão cedo da noite. As ruas estavam cheias de gente, e havia um agente policial postado a poucos passos da entrada. Mantinha as mãos nas costas, e observava o trânsito. Perto dali estava estacionada uma luxuosa limusine, e Corelly reconheceu logo o mordomo do professor Cavan, que conversava com o motorista. De qualquer modo, Peter antes ainda foi informar-se com o porteiro — e era realmente o carro do professor. Ele não quis deixar passar esta oportunidade sem tirar-lhe algum proveito, pois talvez o pessoal O mordomo ficou observando aquela cena, sorrindo Também o policial vira o que estava acontecendo, e agora
de Cavan era menos discreto do que ele.
O mordomo tocou seu chapéu, quando Corelly aproximou-se.
0 Boa noite. O senhor não é o cavalheiro que há poucos dias visitou o professor? Ele está agora no clube,jantando.
0 Eu sei. Eu vi quando ele entrou. Mas que lindo carro!
0 Sim, é um dos mais luxuosos que já foi importado aos Estados Unidos. O senhor deveria pedi-lo emprestado uma vez, ao professor, para fazer uma pequena excursão nele.
Corelly riu.
0 Mas eu nem conheço o professor suficientemente para fazer-lhe um tal pedido. De qualquer modo é um carrão maravilhoso.
0 É mesmo. Só sua decoração interna custou uma pequena fortuna — garantiu o mordomo, orgulhosamente, abrindo a porta da limusine e apontando para dentro. —
Infelizmente não é possível acender a luz. O professor ficou preso, com seu guarda-chuva, no fio elétrico, rompendo-o. Só notamos isto esta noite, quando já estávamos prontos para sair. Mas sinta só o maravilhoso estofado de couro...
Corelly já colocara um dos seus pés no interior do carro, quando aconteceu um pequeno incidente. Um homem saiu das sombras, com passos incertos, gritando em voz muito alta:
— Olá, Peter! Meu querido rapaz, como é que você vai?
Corelly virou-se. Era evidente que aquele homem estava embriagado. Também era estranho que ele o chamasse pelo seu primeiro nome. Só Wilbur Smith, e ocasionalmente o seu chefe, é que tinham esse costume. Peter fez questão de ver mais de perto esse sujeito que tomava esta liberdade para com ele.
0 E como é que vai o bom velho Smith? — gritou o estranho, roucamente. E logo cambaleou, só não caindo porque Corelly o amparou.
0 O que é isso? Afinal, o que está querendo, seu pau-d'água? — perguntou Peter, severo. — Afinal meu ombro não é travesseiro!
0 Como é que vai o velho Wilbur Smith? — repetiu o homem, com a língua engrolada. Mas logo murmurou alguma coisa no ouvido de Corelly. Os dois ficaram parados, assim, por alguns segundos.
se aproximou.
0 Leve este homem até a delegacia! — ordenou-lhe Corelly. — Eu vou ajudá-lo, para que consiga tirá-lo, com segurança, daqui do meio da rua.
0 Não sei por que essa gente se dá tanto trabalho com um bêbado... — resmungou o mordomo.
Ele estava decepcionado, pois havia esperado um fim muito mais excitante para aquela aventura.
O embriagado, entretanto, achou aquilo tudo muito excitante.
— Peter — murmurara ele ainda há pouco, ao ouvido do agente policial — se você entrar nesse carro, certamente não escapará. Eu sou Frank Alwin!
Capítulo 15
Corelly levou o "prisioneiro" até a esquina mais próxima, onde dispensou o policial e chamou um táxi. Empurrou Frank Alwin para dentro do mesmo, e sentou-se ao seu lado— E então, Mr. Alwin — disse ele, quando o carro já arrancara novamente — agora poderá me contar como tudo aconteceu.
Frank recostou-se no banco do táxi e riu, nervosamente.
— Fui perseguido durante todas estas últimas vinte e quatro horas... Não estou absolutamente embriagado, somente exausto e faminto.
Corelly ficou pensando que talvez agora fosse perigoso levar Alwin a um restaurante. Por isso levou o ator até sua própria casa, e encomendou a comida de um restaurante próximo. Frank Alwin ainda estava tão fraco, que precisou ficar deitado num sofá, enquanto comia. Finalmente matara a sua fome, e entregou, satisfeito, a bandeja.
— Muito bem, agora posso contar minha história...
Corelly ficou escutando o que ele dizia, por mais ou menos meia hora, sem interrompê-lo.
— É uma história fantástica! Se ela me tivesse sido contada por outra pessoa, eu não acreditaria numa só pa
lavra do que me disse. Muito bem! E os rostos dos dois homens, quer dizer que não conseguiu vê-los?
Alwin sacudiu a cabeça.
0 E não tem a menor ideia, nenhum indício de como poderia identificar essa gente?
0 Não. Só uma coisa é certa: quando trepei por cima do muro, um dos dois me alcançou, e quis me segurar. Bati-lhe com a barra de ferro. O golpe passou bem junto de sua cabeça, mas acertou em cheio na sua mão, e deve er ferido seriamente o polegar. Isso pelo menos pude deduzir pelo que ele, logo em seguida, gritou para o seu comparsa.
0 Mas, por favor, agora diga-me tudo! — insistiu Corelly. — Está com alguma coisa na mente que ainda não quer me confiar. Por que não queria que eu entrasse naquele carro?
Alwin agora já parecia um pouco recuperado, mas ainda estava bastante exausto. Suas roupas estavam sujas, e ele não se barbeara. Fraqueza e sono de repente o dominaram, e ele fechou os olhos.
— Boa noite — murmurou ainda, e logo estava dormindo firme.
Capítulo 16
Mr. Flint, o chefe da Polícia Criminal, tinha terminado o jantar, e pedido a conta ao garção, quando Peter Corelly apareceu novamente no clube, para informá-lo sobre os últimos acontecimentos.
— Infelizmente não consegui tirar mais nada dele, ele simplesmente adormeceu. De qualquer modo, tenho para lhe contar uma história espantosa, que poderá parecer-lhe inacreditável.
Flint ficou escutando, pasmado— Realmente, isso até parece uma história de índios do velho oeste. Não acha que Frank Alwin possa apenas ter sonhado tudo isso, num pesadelo, enquanto estava febril?
Peter sacudiu a cabeça, decididamente.
0 Não, eu o conheço, e ele é um homem muito sério e confiável. Durante a guerra Alwin ficou três anos servindo no Serviço Secreto.
Eu já esquecera disso. Agora que o menciona, lembro-me que todos tinham uma excelente opinião sobre ele. Melhor, pois se agora três homens tão competentes como o senhor, Alwin e Wilbur Smith trabalharem de mãos dadas, certamente terão uma chance bern maior de esclarecer o mistério e os crimes do Hades dourado. Aí vem o banqueiro Bertram e seus convidados!
Corelly olhou interessado para onde ele indicara. Ca-van e Bertram foram os últimos a deixar o salão de festas, atravessando o restaurante. O professor parecia de muito bom humor, contrastando com a cara de poucos amigos de George Bertram.
— Onde é que ficou a moça? — perguntou Flint.
Corelly também estava admirado. Os dois homens esperaram por algum tempo, junto da porta giratória, depois ela apareceu.
— Epa! — disse Corelly, mais para si mesmo. — Aí tem alguma coisa que não vai bem!
Era evidente que José Bertram chorara, pois tinha os olhos muito avermelhados. Até mesmo o seu porte e o andar demonstravam que ela estava abatida. Os três deixaram o clube, saindo juntos.
Sem desculpar-se com o seu chefe, Corelly foi até o salão de festas.
0 Ué, o que foi que aconteceu aqui, Luigi? — perguntou ele ao maitre.
0 O senhor se refere à moça? — o italiano baixinho sorriu. — Aparentemente uma história de amor. Ela teve uma discussão com o pai. A princípio pensei que não fosse nada sério, mas de repente ela deixou a mesa, muito agitada, e quando voltou não tocou mais em nada. Aliás, não era para menos, a sobremesa não prestava mesmo. Nosso chefe de cozinha hoje não teve um dia muito inspirado.
Mais, Corelly não conseguiu saber. Quando voltou para sua mesa, Flint já tinha desaparecido. Peter pensou na sua combinação com José Bertram, e resolveu ir visitá-la na manhã seguinte.
Uma moça chorar durante um jantar, afinal de contas não era muito surpreendente, especialmente tratando-se de Miss Bertram, que já dera mostras do seu temperamento facilmente irritável. Mas para Peter Corelly ela não era simplesmente uma moça qualquer, que pudesse ser comparada com outra. E era estranho que ele sentisse isso, já que geralmente não se entusiasmava com muita facilidade, nem se deixava influenciar.
Afirmar que Peter tenha se apaixonado por José Bertram à primeira vista não seria muito correto. Antes desta noite, ele vira a moça apenas em duas outras ocasiões, e em circunstâncias que não eram exatamente favoráveispara ela. Porém a impressão que ela deixara fora suficiente para despertar o seu interesse. E durante a conversa com Flint, na realidade Peter não deixara de pensar um minuto nela. Mas isso não era amor, era simplesmente um interesse fora do comum. Ele não se queixava, nem maldizia as circunstâncias, por ela pertencer a uma camada social mais elevada que ele, já que o seu pai era um ricaço e ela, portanto, lhe seria inatingível. Ao contrário, ele sentia-se socialmente no mesmo pé que ela, e a fortuna do seu pai pouco o impressionava
Capítulo 17
O banqueiro Bertram tinha três propriedades — uma grande mansão em New York, uma villa fabulosa em Long Island e uma propriedade rural em New Jersey. E foi para lá que se dirigiu Peter na manhã seguinte.
A família consistia apenas do próprio banqueiro e sua filha. Apesar de José viver muito bem com seu pai, em perfeita harmonia, ela tinha a sua própria residência, que tomava toda uma ala da grande mansão, enquanto o seu pai vivia na outra.
O carro de Corelly subia aquele longo caminho ladeado de árvores majestosas que ia dar do grande portão até a entrada da casa, e sem querer pensou novamente naquela cena, vivida ontem, quando encontrara Miss Bertram, pela primeira vez naquela loja. Ele teria gostado muito de saber por que ela chorara no clube, mas duvidava muito de que seria capaz de levar a conversa de hoje para este assunto.
Um criado em libré de luxo recebeu o seu cartão.
— Miss Bertram o espera, pelo que sei. Ela pediu-me que o conduzisse ao salão de estar. Por favor, acompanhe-me.
Peter estava bastante surpreso.
— Mr. Corelly — anunciou o criado.
José aproximou-se alguns passos, mas de repente parou e ficou olhando para o visitante, horrorizada. Havia espanto, até medo, na expressão do seu rosto, de modo que Peter teve que esconder e abafar um sorriso.
0 Certamente não me esperava? — perguntou ele.
0 Eu... eu... — começou ela, desconcertada. — Não, eu esperava... Tem alguma coisa de especial para falar comigo? Gostaria de me dizer alguma coisa?
Agora naturalmente foi a vez de Corelly ficar admirado. Ele viu que ela empalidecera, sentando-se na cadeira mais próxima. Isto aconteceu tão de repente, que ele ficou inquieto. Ele já pudera observar este tipo de sintoma muitas vezes, em sua profissão. Mas ela precisou de apenas alguns segundos, para controlar-se, e levantou-se sorrindo.
— Afinal eu lhe pedira para vir me visitar. O senhor precisa desculpar meu comportamento estranho, mas esta manhã estou com uma violenta dor de cabeça. Por favor, sente-se.
Peter sentou-se, mas não sentia-se muito bem. Ele achou que havia uma nuance pouco amistosa no tom de sua voz. O seu rosto parecia mais uma máscara, onde não havia a menor expressão de algum sentimento pessoal. Ela mantinha-se completamente na defensiva, e devia ter uma razão muito especial para isso. Mas por que isso acontecia, ele não conseguiu descobrir. Por isso resolveu terminar sua visita o mais depressa possível. E como sempre, ele foi muito franco.
0 Miss Bertram, a senhorita está com medo.
0 O senhor está enganado — respondeu ela, rígida, sentando-se ereta. — Do que eu deveria estar com medo? Por acaso acha que eu possa ter medo do senhor?
0 Não, claro que não, mas mesmo assim está com medo, e deve haver um motivo muito forte para isso.
Ele mordeu o lábio e olhou-a muito sério, quase solenemente. Primeiro enfrentou o seu olhar, teimosamente, mas depois baixou os olhos.
0 Mr. Corelly, não entendo por que se preocupa com coisas que não são de sua conta. Fiquei muito contente que me veio procurar, pois até lhe pedi que o fizesse, mas acho desagradável que me... que me... — ela estacou,
pois não encontrou logo a palavra correta. — Bem, que me fale dessa maneira tão íntima.
0 Sim. Está com medo! É incrível, eu jamais pensaria que uma coisa dessas fosse possível — disse ele. — Eu daria tudo para poder ajudá-la a sair dessa situação difícil. Sei que aconteceu alguma coisa.
Ela olhou-o atentamente e espantada, depois franziu a testa. Pela primeira vez, desde que ele chegara, apareceu alguma cor no rosto dela.
— O senhor está dizendo que daria tudo para me ajudar? — repetiu ela, perguntando. — Isso me soa muito estranho! Pois não tenho absolutamente qualquer problema. Por que o senhor deveria me ajudar?
Ele não respondeu. Pois tinha a impressão de que ela apenas estava dizendo isto para evitar que a conversa terminasse.
José foi até a janela e olhou para fora.
— Estou esperando outra visita, que não deve tardar
— comunicou-lhe ela, depois de algum tempo. — Espero que não me julgue descortês, se eu agora encerrar esta conversa.
Ele ergueu-se e deu um passo para ela.
— Miss Bertram, eu só vim até aqui com a intenção de renovar nosso conhecimento, e isso naturalmente em circunstâncias mais agradáveis. Se fosse possível, eu teria gostado de fazer-lhe algumas perguntas. £ claro, eu não a
conheço o bastante para ter o direito de me imiscuir em seus assuntos particulares. Também não tenho o direito de pedir respostas a minhas perguntas, nem de impor-lhe minha ajuda. Entretanto, se tiver problemas e dificuldades, eu
estou...
Ela voltou-lhe rapidamente a cabeça e respondeu, baixinho, quase suplicando:
— Por favor, agora vá! Eu... eu sei que está falando sério, mas infelizmente o senhor não pode me ajudar. Passe bem!
Corelly hesitou mais um momento, depois pegou o seu chapéu e foi até a porta. Ele já colocara a mão na maçaneta, quando ela chamou-o de volta. Estendeu-lhe a mão que ele segurou.
— Passe bem! — disse ela mais uma vez. — Se eu realmente, algum dia, estiver numa situação difícil, talvez lhe pedirei para... — ela estacou e ergueu os ombros. — Mas, de que serviria isso?! — perguntou ela, quase com
fervor. — Minhas dificuldades afinal são tão... Afinal, de que se trata mesmo, Mr. Corelly?
Ele sentiu a tremenda tensão em que ela se encontrava.
0 De que se trata? — repetiu ela, agitada, quando ele não respondeu. — Mais cedo ou mais tarde eu terei que me casar, e um homem é tão bom ou tão ruim quanto outro qualquer...
0 Então... quer dizer que se casará? Esta é sem dúvida uma explicação suficiente. Ainda me permite perguntar-lhe quem é o felizardo?
Ela olhou-o e os seus lábios se contraíram, depreciativos.
0 Ele é o escolhido dos deuses — disse ela, amarga.
Peter respirou fundo.
0 Terá sido o Hades dourado que determinou isso?
Ela estremeceu e ficou muito vermelha no rosto.
— Como é que o senhor sabe disso? — perguntou ela, sem quase conseguir articular as palavras. E sem dizer mais nada ela deixou a sala.
Ele esperou até que a porta se fechasse atrás dela, depois também saiu. Mas enquanto dirigia o carro em dire-ção ao portal no fim do grande jardim, ele passou pelo mordomo do professor Cavan.
— Pelo amor de Deus — pensou ele, horrorizado —será que ela vai casar-se com esse sujeito velho?!
De repente lembrou-se da observação de Frank Alwin: "Eu o feri no polegar!".
No momento em que tencionava pedir ao motorista que parasse o carro, lembrou-se de que isso era desnecessário.
Apesar da velocidade com que seu automóvel passara, ele tivera ocasião de ver claramente que o mordomo trazia a mão enfaixada.
Capítulo 18
Três homens estavam reunidos num quarto particular do Northern Hospital, comparando suas anotações e notícias.
— Frank — disse Wilbur Smith — não podemos deixar você andar livremente por aí. Você tem que ficar escondido.
O ator riu.
— Não vejo do que está rindo — continuou Smith, teimosamente. — O bando está atrás de você. Eles ainda não acharam um meio de acabar com você, caso contrário neste momento já estaria morto. Você sabe demais, e é bem provável que eles pensem que ainda sabe mais do
que é o caso — ele voltou-se para Corelly. — E então, Peter, já esteve na livraria de Rhyburn?
Corelly fez que sim.
— A história está ficando cada vez mais clara, mas quanto mais eu me ocupo dela, mais Miss Bertram fica incriminada. Vocês ainda se lembram do caso Higgins, quando a mulher daquele jogador profissional foi assassinada? Pois bem: naquela ocasião, Laste disse em seu depoimento que sua mulher encontrara as notas de dólares num livro que comprara naquela tarde na livraria de Rhyburn. Na noite seguinte a livraria foi arrombada. A mulher lia muito, e conseguiu comprar aquele volume com um bom desconto, já que a capa estava com manchas de tinta, razão pela qual o vendedor lembrava-se muito bem do assunto, e porque eu também logo consegui ficar sabendo de um ponto muito importante. Vocês naturalmente se lembram que Rhyburn mandava uma seleção para que Miss Bertram pudesse fazer sua escolha em casa. Ela ficava com os livros que escolhia, e mandava os outros volumes de volta. E o livro que Mrs. Laste comprou, fazia justamente parte daqueles que haviam sido enviados à casa de Miss Bertram. Não há dúvida que Mrs. Laste encontrou no mesmo, escondidas entre suas páginas, aquelas notas de mil dólares. Provavelmente era uma soma ainda bem maior que aquela que ela disse ao marido, uma vez que sabia que ele logo perderia tudo no jogo.
0 E qual sua explicação para isso? — perguntou Wilbur Smith. — Você acha que Miss Bertram colocou o dinheiro entre as páginas do livro, esquecendo-se disso depois? Ou acha que ela escondeu as notas propositadamente entre as páginas do livro, mandando-o depois de
volta à livraria?
0 Eu ainda não tenho uma teoria que possa explicar o caso — retrucou Corelly. — Aliás, prefiro só me ocupar com fatos.
Peter parecia um pouco nervoso, e isso não era normal com ele. Wilbur logo deu-se conta disso.
0 É estranho que todos estes acontecimentos ocorreram dentro de vinte e quatro horas: a devolução dos livros por Miss Bertram, a venda para Mrs. Laste e finalmente o arrombamento da livraria. E menos de doze horas depois, Mrs. Laste foi assassinada com um tiro.
0 Precisamos descobrir três coisas — declarou Wilbur, depois de pensar por alguns instantes. — Antes de mais nada temos que encontrar aquele templo no jardim, e depois temos que descobrir quem é Rosie.
0 Eu me ocuparei, especialmente, com este último problema — interveio Frank Alwin. — Quando, durante a guerra, estive em Washington, tive contato com Lazarus Manton, que, apesar do seu nome estranho, é um excelente agente policial. Não sei que posto atualmente deve
ter na Scotland Yard. De qualquer modo passei-lhe um telegrama.
— Antes de mais nada temos que vigiar a estação de Filadélfia. As palavras ouvidas por Frank na última noite em sua prisão devem ter um significado especial. Você chegou a tomar alguma providência nesse sentido, Peter?
Corelly fez que sim.
0 É uma tarefa bastante difícil. Mandei colocar dois agentes ali, mas só ficaria satisfeito se pudesse dispor de mais homens para isso.
0 Onde mandou colocar os dois? — perguntou Smith.
0 Nas salas de espera. Eu também sou de opinião que podemos esperar o próximo golpe, na estação de Filadélfia. Chego a dedicar algumas horas, pessoalmente, todas as tardes, a isso. Mas o que deveria vigiar? Alwin não tem
como nos ajudar, para reconhecermos os dois homens, e como não sabemos exatamente o que eles poderão fazer,não tenho muita esperança de conseguir alguma coisa, desse modo.
Capitulo 19
Apesar do seu pessimismo, Peter Corelly, no dia seguinte, estava na estação. Sentara-se num banco, de modo a poder melhor observar a multidão que passava diante dele num fluxo ininterrupto. E ao fazê-lo demonstrou que tinha um sexto sentido.
Por puro instinto, voltou sua atenção para um homem de meia-idade, que carregava alguns pacotes sob o braço. Parecia cansado, deixou-se cair num lugar desocupado, e colocou os pacotinhos em cima do banco. Não havia nada de suspeito naquele homem, e Corelly novamente voltou sua atenção para a escada, pela qual descia um grande número de pessoas. Quando seu olhar voltou a cair sobre o banco, notou que outro homem sentara-se junto do que viera com os pacotes, ficando entretanto apenas um minuto, logo levantando-se e indo embora. Corelly conseguia ver os dois apenas por trás — o segundo pareceu-lhe conhecido, apesar de no momento não conseguir identificá-lo. O homem com os pacotes olhou para o relógio e, indeciso, levantou-se, depois de ter olhado em volta, irresoluto.
Corelly pôde observar que o homem dirigiu-se a uma das passarelas que iam dar nas plataformas de embarque e desembarque. Até agora, não tinha nenhum motivo espe-
ciai para suspeitar dele, nem quando, já próximo da passarela, uma moça aproximou-se dele. Os dois conversaram por algum tempo, e ele pôde deduzir, pela atitude do homem, que a moça devia ser-lhe estranha. Depois de algum tempo, ambos dirigiram-se a um banco, nas proximidades. O homem colocou os pacotes sobre o mesmo e contou-os. A moça ficara parada ao lado. Em seguida ele pegou um dos pacotes, entregando-lhe o mesmo, com um sorriso.
Mesmo então Corelly não via nada de excepcional no que acontecia. Ele viu quando os dois se separaram. O homem ergueu um pouco o chapéu, e desapareceu na passarela. A moça dirigiu-se a escada. Ela já tinha descido mais ou menos a metade dos degraus, quando Corelly tomou a decisão de segui-la. Perdeu-a, entretanto, de vista, e somente na Sétima Avenida voltou a vê-la. Ela andava apressada, sem olhar nem para um lado nem para o outro. Ele estava justamente pensando se devia continuar seguindo-a, quando de repente um carro parou bem junto dela. Ela abriu a porta, embarcou, e logo o carro pôs-se novamente em movimento. No mesmo instante Peter tomou uma decisão. Ele era um excelente corredor e ainda antes do carro ter andado uns vinte metros, pulou em cima do estreito estribo.
— Sinto muito ter que incomodá-la — começou ele,
friamente — mas eu...
De repente estacou, pois aquela moça era simplesmente José Bertram. Um pacotinho, do qual ela já havia retirado o papel de embrulho, estava no seu colo. Continha um grosso maço de notas de dinheiro. Sem perder mais tempo, Corelly abriu a porta da limusine e sentou-se ao lado de José. Ele pegou nas cédulas, sem que ela o impedisse, virou a de cima, e reconheceu o carimbo do Hades dourado.
Mesmo agora, nem uma palavra foi trocada entre eles. Peter parecera ter perdido a fala. José olhava para a frente, diretamente às costas do motorista. Só quando o carro parou diante de um guarda de trânsito, que regulava o fluxo de automóveis num cruzamento, ela inclinou-se para a frente, dando instruções ao motorista, que logo mudou de direção, subindo a Quinta Avenida, até que ela bateu na repartição de vidro. Antes disso ela metera as notas do dinheiro numa das fundas bolsas laterais do interior do carro, como se lhe fosse indiferente o que acontecesse com as mesmas, depois disso.
?Vamos até o parque, disse ela.
Em silêncio foram caminhando, um ao lado do outro. Peter não sabia como iniciar a conversa, e ela, aparentemente, encontrava-se na mesma situação.
0 Mr. Corelly — perguntou ela, finalmente — quanto é que o senhor sabe sobre todo este assunto?
0 Sobre o Hades dourado? Creio que o bastante, Miss Bertram. Mas espero que possa ficar sabendo ainda mais, por seu intermédio.
Ela apertou os lábios, como se temesse poder revelar o seu segredo.
0 Eu não posso dizer-lhe nada. E afinal, de que adiantaria? Este dinheiro me pertence. Afinal, não é nenhum delito trazer consigo uma grande soma, nem mesmoem New York.
0 Só que já é algo especial, quando se possui notas de dinheiro com o carimbo do Hades dourado no verso de cada uma — respondeu Peter, severo — pois dinheiro com esta marca tem uma relação direta com um homicídio
cruel.
Ela olhou-o, assustada.
0 Homicídio! — repetiu ela, insegura. — O senhor não está falando sério?
0 Estou... Com um homicídio e muitas outras coisas desagradáveis. Estas cédulas têm relação com o famigerado crime conhecido por Caso Higgins, e também tiveram importante papel no sequestro de Mr. Alwin...
0 Mas eu não entendo nada disso — retrucou ela,
espantada. — Eu sabia, naturalmente, que tudo isso era
uma terrível tolice, sendo até totalmente despropositado,
mas que um assassinato... Não, não tinha a menor noção
disso. Por favor, diga-me que não é assim!
José ficara parada, olhando-o desesperada. Ele pôs a mão no seu braço, mas ela recuou, assustada.
— Miss Bertram, por que não permite que eu a ajude? É o meu maior desejo. Gosto de ajudar aos outros, mas com a senhorita ainda há outra coisa. Posso falar-lhe como a um irmão... Por que não confia em mim?
Ela sacudiu a cabeça.
0 Não, o senhor não pode fazer isso, não pode me ajudar — disse ela desanimada. — No fundo não sou eu quem está precisando de ajuda.
0 Quem é, então?
0 Isso eu não posso nem devo dizer-lhe. Mas gostaria de fazê-lo... Oh, é horrível!
Ele tomou-a pelo braço e conduziu-a para um caminho deserto.
??Diga-me, pelo menos, desde quando sabe de alguma coisa a respeito do Hades dourado.
0 Há dois dias.
Ele fez que entendera.
— Isso quer dizer que ficou sabendo disso durante o jantar do seu pai, no clube?
Ela olhou-o, rapidamente.
0 Por favor, responda à minha pergunta, foi mesmo durante esse jantar?
0 Antes disso eu não sabia nada certo, só tinha suspeitas, mas naquela noite estas se tornaram certeza.
0 Foi quando ficou sabendo que teria que se casar?— perguntou ele, depois de breve hesitação.
Ela fez que sim. Mas a pergunta sobre o seu casamento parecia sem grande importância, se relacionada com uma outra coisa, muito maior e mais séria.
— Agora preciso voltar — disse ela. — Por favor, não me acompanhe, nós estamos sendo vigiados — ela estendeu-lhe a mão e voltou-se para ir embora. — Se precisar de sua ajuda, Mr. Corelly, eu lhe telefono. Tenho o
seu número, que está no seu cartão.
Ela voltou através do parque. Peter seguiu-a devagar. Chegou ainda a ver quando ela embarcou no carro, que logo partiu, depois ele voltou ao seu birô.
Sobre a escrivaninha havia uma carta, mas ele não deu-se ao trabalho de abri-la. Deixou-se cair numa poltrona, colocou os pés em cima da mesa e ficou pensando longamente. E quanto mais pensava, mais ficava admirado, pois deu-se conta de que estava construindo uma teoria — apesar de odiar teorias.
Depois pegou na carta, e a abriu.
Era um pequeno recado de Frank Alwin. Ele não atentara para a caligrafia, caso contrário logo teria aberto o envelope.
Ele leu:
Meu caro Corelly,
acabo de receber o telegrama anexo, em resposta ao meu pedido. O que acha disso?
Cordialmente. Frank Alwin.
Peter desdobrou o formulário do telegrama e rapidamente passou os olhos pelo endereço e o texto cifrado referente ao remetente. O texto dizia:
O único homem que nos é conhecido com a alcunha de "Rosie" é John Cavanagh, geralmente chamado Rosie
Cavanagh. Foi solto, há cerca de quatro anos atrás, da prisão, depois de ter passado dez anos atrás das grades por fraude grave, em Portland. Ele preparara o crime através de sessões espíritas. Cavanagh tem muita cultura, e teve uma instrução excelente. Deve agora estar com cerca de sessenta e cinco anos. Estatura baixa. Possui grandes conhecimentos sobre Mitologia Grega. Pelo que sabemos, no momento, deve estar na Espanha. Maiores averiguações foram determinadas.
Corelly ergueu os olhos do telegrama, levantou-os para o teto, depois voltou a olhar aquele formulário amarelo. E havia um sorriso irónico nos seus lábios
Capítulo 20
O professor Cavan estava limpando colheres de prata, valiosas. Estava em mangas de camisa, tendo enrolado as mesmas, de modo que os seus braços magros ficavam a mostra. Além disso colocara um grande avental branco. Durante o trabalho recitava versos, em grego, de Sófocles. O imponente mordomo inglês estava sentado sobre um canto da mesa, fumando um grosso charuto. O criado acendera um grande cachimbo, e estava ocupado em consertar um carimbo de borracha, sobre a mesa.
0 Rosie — disse o mordomo — se você não parar com este cantarolar idiota, dou-lhe uma pancada na cabeça, que fará você cuspir todos os seus dentes!
0 Deixa-o cantarolar — achou o criado — deixa-o dançar, deixa-o fazer o que quiser, contanto que não diga nada.
O professor sorriu.
0 Ora, vocês nem saberiam onde começar, e logo estariam com água pelo pescoço, se eu não soubesse falar. Aliás eu duvido muito que exista outro homem em toda esta cidade, que tenha uma conversa mais interessante que
a minha.
0 Rosie — disse o mordomo, sem tirar o charuto da boca — você tem uma opinião muito alta de si mesmo. Mas se fosse tão esperto como diz que é, não teria acabado na prisão.
0 Se eu não tivesse acabado na prisão — concedeu Cavan ou Cavanagh — eu não teria me encontrado com você, meu rapaz. E se nós dois não tivéssemos ficado sentados no mesmo banco, costurando sacos para os Correios, você teria continuado arrombando cofres, para cada vez conseguir umas cem libras ou menos, e, em cada três arrombamentos, teria sido agarrado pelo menos uma vez.
— Ê bem possível — disse o mordomo, sem se impressionar. — E o que é que Sam teria feito?
Sammy ergueu os olhos do seu trabalho.
0 Eu teria falsificado velhos mestres e vendido os quadros. Esta é uma maneira simples e tranquila de se ganhar a vida. Eu bem que gostaria de nunca ter pensado em outra coisa.
0 Claro, agora vocês se queixam, e abrem a boca, mas eu sempre lhes disse que teriam que assumir riscos, se quisessem ganhar muito dinheiro.
0 Mas não o tipo de risco que Tom aceita! — Sam chegou ainda a estremecer só com a lembrança. — Jamais vou esquecer aquela mulher... a Laste...
O mordomo franziu a testa.
— Foi tudo culpa dela — retrucou ele. — Se ela não me tivesse arrancado o lenço da cara, podendo me reconhecer... Era ela ou eu! O que é que você acha, Rosie?
O professor estava olhando uma colher resplandecente com olhar crítico.
0 Bem, eu já sou um homem tão idoso, que realmente não me interessa muito o que possa vir a me acontecer. Subiria, se fosse preciso, à cadeira elétrica. Dizem que ali tem-se um fim indolor... Do mesmo modo também
que não me importaria de terminar os meus dias numa prisão americana. Só que você é um pouco apressadinho,Tom — concluiu ele, meio como uma censura, meio como uma desculpa.
0 Todo esse negócio foi um erro seu! — gritou-lhe o mordomo, irritado. — Não foi você que ordenou a esse banqueiro maluco que ele escondesse o dinheiro, para que os deuses pudessem encontrá-lo e distribuí-lo entre os po
bres?
0 Só que nunca lhe disse que ele o colocasse entre as páginas de um livro, dos que sua filha lê — retrucou Rosie. — E como é que eu poderia adivinhar que ela iria devolver os livros à loja? Você poderia ter deixado as coi
sas nesse pé. Afinal de contas ainda viria muito mais, depois disso.
0 Todos nós erramos — disse Sammy, de cara fechada. — Não foi Rosie quem sugeriu que atirássemos o dinheiro por cima do muro, atado numa flecha, mas você,Tom!
Mas eu sugeri ao mesmo tempo que você ficasse do outro lado do muro, para apanhá-lo — retrucou Tom, irritado.
— E eu estaria lá, se soubesse onde o dinheiro iria cair — defendeu-se Sammy, sem deixar de dar atenção ao carimbo. — E logo saí atrás do homem, quando o vi sair correndo.
O professor riu.
0 Parece piada! É fantástico! Um homem, que lida com dinheiro falso... é uma coisa muito censurável! — ele colocou a colher em cima da mesa e olhou para o mordomo, girando a cabeça como uma galinha curiosa. — Você
sabe que eu quase teria me envolvido em sérias dificuldades? Só ontem é que descobri isso.
0 Que dificuldades? — perguntou Tom, abafando um bocejo.
0 Miss Bertram deu-me uma nota de mil dólares para trocar. Foi o que fiz, dando-lhe...
0 Não me diga que foi dinheiro falso? — perguntou o mordomo, áspero. — Seu velho burro, você fez isso?
0 Foi um infeliz acaso, meu rapaz! — retrucou o professor, despreocupado, pegando outra colher. — Dei uma explicação satisfatória — ele levantou-se. — Há uma coisa que vocês agora terão que entender, apesar disso ainda
não ter, ao que parece, penetrado nessas cacholas duras. O negócio agora é o seguinte: ponto final e sumir! Até muita gente esperta já se deu mal só porque deu no pé um pouco tarde demais.
Tom Scatwell olhou para ele, apertando os olhos.
— Ainda não tenho tudo de que preciso — declarou ele, mansamente. — E não irei embora, antes de tê-lo. Temos dinheiro, que ótimo! Custou-nos bastante consegui-lo. Mas o investimento valeu a pena. Gastamos milhares de
dólares para financiar Rosie, e conseguir-lhe uma posição na sociedade. Só a limusine custou vinte mil e a decoração de sua casa outros vinte mil, mas isso, neste momento, é irrelevante. Sim, nós temos dinheiro... mas queremos ainda
mais. O velho está ficando nervoso, não ê, Rosie?
O professor fez que sim.
— Eu diria que está ficando cético, é uma expressão mais correta. Ele sente-se deprimido e aflito. Ontem de noite perguntou-me se os deuses não tinham outros interesses que o de distribuir dinheiro. O que não foi agradá
vel.
— Qualquer dia desses ele abre a boca, e vai nos dedurar — disse Tom Scatwell. — E então acabou, meu caro. Acabou tudo. Precisamos fechar a sua boca, se todos não queremos marchar em linha reta para a cadeira elêtri-ca. Ora, por que essa cara? Nós estamos mesmo todos numa boa enrascada!
0 Eu não, meu caro Tom — retrucou o professor — caso você esteja se referindo àquele homicídio premeditado. Usar força bruta está em desacordo com todos os meusprincípios e métodos. Jamais toquei num só cabelo de al
guém, sempre que queria alguma coisa que me interessasse. Sou um impostor, cometo minhas fraudes - e eleacentuou as palavras, com certo orgulho — isso eu confesso. Uso os antigos cultos e as coisas do ocultismo, tirando
bom dinheiro disso, uma vez que tenho um sentido muito apurado, com respeito às possibilidades técnicas que o ocultismo oferece. Quando, há dois anos atrás, converseisobre isso, pela primeira vez, com George Bertram, discutindo como e se os antigos deuses podiam ter influência no mundo moderno, não tinha ainda a menor noção de que dali iria surgir uma oportunidade tão fantástica.
0 Ele ê mesmo maluco? — perguntou Tom.
0 Acho que não. É apenas muito sensível e influenciãvel... nas suas horas vagas!
Tom Scatwell riu.
O professor passou a mão na barbicha, antes de continuar.
— Um homem que joga em Monte Cario, segundo um sistema, é maluco? Ou vocês têm por doidas pessoas que são supersticiosas, respeitando por exemplo o número treze, ou não passando debaixo de uma escada? Ou as
que se benzem quando vêem um gato preto? Talvez isso seja realmente uma forma de loucura. Mas Bertram não é fraco da cabeça, sua única fraqueza é...
A campainha tocou. Sammy ergueu-se, enfiou o casaco de sua libré, e saiu.
Capítulo 21
Poucos minutos depois Sammy voltava à sala de estar.
0 O porteiro subiu com o vidraceiro — informou ele, e quando Rosie se apressou a tirar seu avental, ele fez-lhe um sinal. — Não se apresse, o homem não significa nada.Mas, afinal, como foi que aconteceu, terem quebrado as
vidraças?
É inacreditável! — queixou-se Rosie. — Três numa só tarde, é espantoso. E ainda dizem que New York tem a melhor polícia do mundo!
0 Realmente é preciso muita coisa para quebrar uma vidraça do terceiro andar — resmungou Scatwell, que na realidade era o chefe da casa. — Esse pessoal deve ter usado estilingues.
0 Foi um incidente estranho — observou Rosie. —Eu estava sentado junto da mesa, lendo, pela terceira vez, a formidável obra de Gibbon — que você, aliás, também devia ler, Tom, pois o estilo é fluente e claro, a construção inatacável, quando de repente partem uma vidraça. Imediatamente pus-me de pé...
0 Ora, acabe com isso! — interveio Tom, irritado. —Ninguém esperava que você se tivesse posto de cabeçapara baixo! Você pode ver quem foi que a quebrou?
0 Não — respondeu Rosie, magoado.
Scatwell escorregou de cima da mesa e foi até a biblioteca de Rosie. Um homem esguio, bem moreno, com espessa cabeleira negra, trabalhava na janela quebrada. Parecia que há mais de uma semana não se barbeara.
Scatwell, que só raramente perdia a compostura, ficou parado ali, sem fala, desconcertado, ao vê-lo, pois esse operário era praticamente o gémeo do homem que ele considerava seu maior e mais perigoso inimigo.
— Olá, Wopsy! — disse ele, finalmente, sem saber o que dizer. — Quanto tempo vai precisar para consertar isso?
O homem sorriu e sacudiu a cabeça. Depois tirou um cartão manchado e sujo de sua blusa, entregando-o a Scatwell.
— "Este homem não fala inglês" — leu Tom.
— É italiano? — perguntou ele na língua desse país.
Certa vez ele se escondera durante quatro anos em Nápoles, e tivera tempo bastante para aprender a língua.
0 Sim — respondeu o homem, imediatamente. — Estou nos Estados Unidos há apenas um mês. Vim direto de Strezza para a casa de meu irmão, que aqui tem um bom negócio. É bom novamente poder falar nossa própria
língua. Meu irmão geralmente só fala inglês, e todos os seus amigos também.
0 O senhor gostaria de ganhar algum dinheiro? —perguntou Scatwell, que de repente tivera uma ideia.
É claro que eu gostaria de ganhar algum dinheiro, e depois voltar para minha pátria, para Strezza. Minha mulher não veio comigo, mas eu lhe prometi que dentro de três anos estaria novamente com ela. Sim, eu faria qual- quer coisa por dinheiro, sempre que se trate de um serviço honesto e decente. Eu venho de uma família muito honrada e...
— Por isso não precisa se preocupar — garantiu-lhe Tom. — É que eu apenas gostaria de fazer uma brincadeira com um amigo meu, entende? E é nisso que o senhor talvez possa me ajudar.
Ele deixou o vidraceiro, e voltou rapidamente para os seus comparsas.
0 Vocês viram aquele homem? — perguntou ele, excitado. — Vocês deram uma boa olhada nele?
0 Sim, eu o vi — disse Sammy.
0 Você não notou nada de especial nele?
Sammy hesitou.
0 Não.
0 Então vá dar uma olhadinha nele, Rosie!
Desta vez o professor não deu-se ao trabalho de primeiro tirar o avental. Saiu da sala mas voltou quase que imediatamente.
— E então? — perguntou Scatwell, tenso.
0 Também não vejo nada de extraordinário nele. Realmente, nada, meu rapaz!
0 Então dê uma olhada melhor nele, já que você é tão cego. Esse cara é um sósia perfeito de Corelly!
0 Corelly? Você acha que poderia ser o próprio Corelly? — perguntou Rosie, espantado. — Talvez ele tenha vindo aqui, neste disfarce?
0 Não seja tão idiota! Eu disse que ele poderia ser sósia de Corelly.
0 Mas por que é que você está tão agitado por causa disso? — quis saber Sammy.
0 E que ele nos poderá ser muito útil, especialmente para mim — retrucou Scatwell. — Suponhamos que a gente corte o seu cabelo, dando-lhe um banho de loja e coisas assim... Ele poderia então aparecer até na Chefia de
Polícia, como Corelly!
Sammy depôs o carimbo e foi até o escritório do professor, para dali observar melhor o vidraceiro. Quando voltou, ergueu os ombros.
0 Não sei dizer se este rapaz se pareça mesmo com Corelly — achou ele — mesmo porque nunca o vi mais de perto, para conhecê-lo bem. Mas o que é que você pretende fazer, Tom?
0 Sim, eu também gostaria de saber disso — interveio o professor. — Qual foi a ideia que você teve? Não podemos correr novo risco, já estamos metidos bem fundo nessa ideia maluca, e sou da mesma opinião que Sammy — quanto mais rápido nós sumirmos daqui, melhor.
0 Eu só vou sumir quando quiser! — gritou-lhe Scatwell. — É bom que saibam disso. Vou agora dar o golpe definitivo, e já estou com o sucesso praticamente garantido.
0 Só que vai haver problemas com a moça — admoestou o professor. — Ela não vai obedecer, assim sem mais nem menos, à ordem dos... deuses.
0 Mas fará o que o seu pai disser. E se eu conseguir que aquele rapaz na outra sala colabore comigo, a coisa está praticamente no papo. Suponhamos que ela fique sabendo que o seu pai está implicado no caso do Hades
dourado, e que poderá acompanhar-nos como co-autor de um homicídio à prisão... Não acham que ela fará tudo para comprar nosso silêncio?
0 E que papel Corelly deverá fazer nisso tudo? — perguntou Sammy.
0 Vocês logo ficarão sabendo disso — Scatwell desviou o assunto. — O negócio agora é saber se o italiano aceita o encargo, e se ele me ajuda...
0 Por que, afinal, você tem que fazer uma coisa dessas? — resmungou Sammy. — Acha que nós teremos que ajudar você, por bem ou por mal, é isso? Vá até lã, e explique-lhe tudo!
O vidraceiro deu a entender que tinha dúvidas, que sentia um certo mal-estar com aquilo tudo.
— É bem possível que se trate de uma brincadeira, mas em minha terra a gente acaba em conflito com a polícia por uma coisa dessas. E eu também não gosto desse tipo de brincadeira. Sou estrangeiro nessa terra, mas sei
bem que a polícia aqui é muito severa.
— Mas nós não queremos que o senhor faça qualquer coisa ilegal, apenas queremos que se vista bem, e que apareça num lugar ou no outro para que seja visto. E se alguém lhe dirigir a palavra, simplesmente não responda. E
para este papel de figurante, o senhor poderá ganhar mil dólares.
Mas o vidraceiro sacudiu a cabeça.
— Não, isso não me agrada. Talvez seja melhor o senhor procurar outra pessoa, que pelo menos conheça a língua da terra.
Com mil e quinhentos dólares, entretanto, ele já não tinha mais tanta certeza, e ao chegarem aos dois mil ele não pôde mais resistir. Ele tinha uma boa memória, e logo entendeu tudo, quando Tom lhe explicou os detalhes. Es-
cutava atentamente, e fazia perguntas pertinentes, mas não quis saber de morar sob o mesmo teto com os três.
0 Naturalmente sei que não poderei ficar em casa de meu irmão. Isso daria na vista, e as pessoas falariam de mim. Talvez o senhor consiga arranjar-me um lugar para dormir. Aqui eu não gostaria de ficar, pois isso não seria
inteligente. Uma brincadeira deixa de ser uma brincadeira se me vêem entrando e saindo constantemente desta casa.
0 Ele tem razão — disse Rosie. — Toda razão. Nós ainda temos aquele quarto de sótão, que Sammy alugou para ocasiões especiais. Ele poderá dormir no mesmo.
Giuseppe Gatti — este era o nome do italiano — foi levado até lá. O professor recortou de uma revista do ano anterior uma foto de Peter Corelly, tirou ele próprio todas as medidas de Gatti, e arranjou as roupas. Giuseppe entretanto fez questão de usar o seu próprio barbeiro, um patrício seu, em quem podia confiar, conforme disse.
Quando mais ou menos às dez horas daquela noite a campainha tocou, Sammy Featherstne abriu a porta e recuou horrorizado.
— Mas... mas... Mr. Corelly! — gaguejou ele.
O visitante, entretanto, respondeu em italiano. Perturbado e confuso, Sammy conduziu-o à sala de Scatwell.
— Olhe só! — disse ele. — Quem é?
Tom levantou-se de um salto.
— Eu sabia que tinha razão. A polícia, e até mesmo Smith serão enganados. Easta que ande um pouco mais curvado para a frente, Giuseppe... Assim! Deixe pender um pouco os ombros — ele mostrou como era. — E ao andar, arraste um pouco os pés.
Durante duas horas eles ensaiaram as particularidades e atitudes de Corelly, e, no final do aprendizado, Scatwell declarou com certeza que Giuseppe não poderia mais ser diferenciado de Corelly.
0 Mas se alguém me dirigir a palavra? — queria saber o italiano. — O que é que eu devo dizer?
0 Ninguém falará com você — acalmou-o Tom. —Mas, mesmo que isso aconteça, simplesmente não responda. Logo, logo, vou levá-lo à presença de uma moça. Eentão bastará que responda a toda pergunta que eu lhe
fizer, com um "sim".
0 Claro, poderei fazer isso.
0 Mais um pouco de treino e prática — achou Scatwell entusiasmado — e eu tenho metade da fortuna de Bertram no meu bolso!
Capítulo 22
Na tarde seguinte Peter Corelly encontrou-se com José Bertram. Ela vinha acompanhada do professor Cavan, estava de novo perfeitamente controlada, radiante e parecia muito divertida. No seu rosto não havia mais nenhum traço daquela depressão que tanto a atormentara no dia anterior. Peter não sabia o que dizer, de tão admirado.
0 Como vai, Mr. Corelly? Eu o vi, esta manhã, na Broadway, mas o senhor nem me deu atenção.
0 Na Broadway? — repetiu ele. — Mas eu nem estive na Broadway esta manhã. Desde ontem mal tenho saído do meu birô.
Ele notou que Cavan o observava, muito interessado.
0 O que foi, professor? — Peter sorriu, e pôs a mão no queixo, no qual colara um band-aid. — Esta manhã, cortei-me um pouco... Isso é tão extraordinário?
0 Não, não, Mr... Eu já esqueci novamente o seu nome. Não, não, Mr. Corelly, eu naturalmente estava olhando-o com insistência, mas na realidade pensava numa coisa bem diferente.
0 O senhor aparentemente está muito ocupado, Mr. Corelly? — quis saber José. — Espero que não ocupado demais.
Na sua voz havia uma nuance — parecia quase que ela implorava.
Ele sacudiu a cabeça.
0 Não tão ocupado que não possa me interessar pelos assuntos de meus amigos — retrucou ele. — A senhorita lembra-se...
0 Sim, eu me lembro — disse ela rapidamente.
Ela pensou que ele iria dar-lhe mais uma vez o seu número do telefone. No momento não havia mais nada a dizer, e ele teve a impressão de que ela desejava interromper a conversa.
Capítulo 23
Aquele rápido encontro com Peter Corelly tinha dado novas forças e coragem a José Bertram, que, além do mais, já se sentia mais confiante.
Depois de ter-se despedido de Peter, ela seguiu ao lado do professor Cavan. Diante da entrada da Inter-State-Bank ela parou.
— Vou visitar meu pai — disse ela ao seu acompanhante. E voltou mais uma vez ao assunto que fora motivo de sua conversa, no caminho. — Espero que fique do meu lado, professor. O senhor certamente não pode acreditar em coisa tão horrível. É impossível que um homem tão inteligente como o senhor seja capaz disso!
O homenzinho levantou os braços, como para se defender.
0 Eu só posso acreditar naquilo que reconheci como a verdade. Existem certos segredos, ocultos aos olhos das pessoas normais, mas visíveis aos olhos dos sensíveis e favorecidos.
0 Está querendo dizer dos favorecidos dos deuses?
— Sim, dos deuses — repetiu ele, solene.
Ela mordeu os lábios.
0 Quer dizer, então, que o senhor não quer me ajudar a livrar meu pai dessas alucinações?
0 Ó, sim, se fossem alucinações. Mas, minha querida, não são. O seu pai é realmente sensível e favorecido, isso eu lhe garanto. Eu mesmo — afirmou ele com a maior convicção — já ouvi Plutão falar. Em palavras claras, com
preensíveis, ele falou ao seu pai.
Ela olhou-o, incrédula, mas ele sustentou o seu olhar, sem piscar.
— Está apenas brincando, não está? O senhor ouviu uma estátua, um ídolo, falar?
Ele inclinou a cabeça para a frente.
0 Quando foi que Plutão aprendeu inglês?
0 Os deuses são fluentes em todas as línguas — re
trucou ele, objetivo.
Ela encolheu os ombros e deu-lhe as costas.
Capítulo 24
O professor voltou, sorrindo, para a sua casa.
Ele tinha muito que contar, e Scatwell ficou escutando, satisfeito, quando Rosie contou-lhe a respeito do encontro com Corelly.
— Mas, mesmo assim, vocês têm que ter muito cuidado, rapazes — disse Cavan, acendendo um cachimbo curto. — Se Corelly ficar desconfiado, e se o seu sósia se mostrar com muita frequência, haverá averiguações, e Giuseppe acaba agarrado. Onde está ele, agora?
0 Foi para o seu quarto — disse Tom. — Há mais ou menos uma hora atrás.
0 Aliás, é bom que você saiba de mais uma coisa. Corelly cortou-se no queixo, do lado esquerdo, junto do lábio. E está usando um band-aid. Você terá que aplicar um também em Giuseppe, quando se encontrarem novamente. Além disso, este rapaz está bem vestido demais. O Corelly verdadeiro parece um vagabundo. Portanto, você tem que tomar cuidado, pois se o homem aparece sempremuito bem vestido, acaba dando na vista.
Scatwell fez que entendera.
— Sammy vai até lá dizer-lhe para que não saia hoje de noite. E pode logo colar-lhe o band-aid no queixo.Mostre-lhe mais uma vez o lugar exato, Rosie.
Cavan apontou para o lugar e indicou de que modo o mesmo fora colado.
Sammy saiu logo para desincumbir-se de sua tarefa. Encontrou Giuseppe Gatti jogando dados consigo mesmo, para matar o tempo.
Capítulo 25
Durante todo o dia José Bertram tinha se enchido de coragem para enfrentar a luta. A tarde passara com uma lentidão insuportável, e ela tentara, inutilmente, matar o tempo, lendo. Finalmente ouviu o carro do seu pai chegando. Logo em seguida ouviu seus passos leves no vestíbulo. Ele subiu a escada e foi para seus aposentos, na outra ala da casa.
Como é que ela deveria começar? Quanto deveria contar-lhe? E até onde ele realmente estava enredado nesta história terrível? George Bertram sempre fora um bom pai para ela. Naquela sua maneira cordial, amável, às vezes um pouco imprevisível, ele fizera tudo que um pai poderia fazer por ela, e José o amava sinceramente. Ele era um homem rico, e podia dar-se a muitos luxos e tolices — mas não a isso. Ele estaria com problemas psíquicos? Ela chegou a estremecer só com essa ideia. Mas, afinal de contas, há muita gente que tem as ideias mais estranhas, e mesmo assim é normal.
Ela tocou a campainha e Jenkins, um inglês que já estava a serviço da família há vinte anos, logo entrou.
— Feche a porta, Jenkins — disse ela. — Eu gostaria de fazer-lhe uma pergunta.
O criado esperou.
— O senhor sabe que jamais lhe fiz perguntas a respeito de meu pai. Teria sido impertinente se o fizesse. Mas agora aconteceu uma coisa muito séria, Jenkins, e eu lhe peço para que me ajude, na medida em que puder fazê-lo.
O que ê que existe naquela parte, rodeada de altos muros, do parque?
O criado sacudiu a cabeça.
0 Sinto muito não poder informá-la sobre isso, porque nem eu mesmo o sei. Nem qualquer outra pessoa
nesta casa tem a menor noção do que há escondido ali.
Quando Mr. Bertram comprou esta propriedade há nove
anos atrás, tudo era um terreno enorme, e o parque que agora está murado era de fácil acesso. Podia-se andar por ali, e eu realmente fui passear muitas vezes por entre aquelas árvores. Mas, quando há quatro anos atrás voltamos da
Flórida, onde passamos o inverno, uma grande parte do parque havia sido rodeada por um muro muito alto. A senhorita, Miss Bertram, nessa época ainda estava no internato. O seu pai mandou fazer aquele portal, e desde então,
pelo que sei, nunca ninguém mais botou os pés naquele parque. Eu acho que ele mandou construir, para si, uma espécie de casa de veraneio, ou algo semelhante. Naturalmente nunca vi nada, nem tampouco as outras pessoas da
casa.
0 Meu pai proibiu que alguém entrasse naquele parque?
0 Sim. Todo criado que não cumprisse a proibição podia contar com a ameaça prévia de ser despedido. Aliás,Mr. Bertram nem precisava ter ameaçado nenhum de nós, uma vez que todos teríamos obedecido sem isso.
0 E nem um jardineiro entra ali?
0 Não. São mais ou menos sessenta hectares que estão ali, totalmente abandonados.
Ela apoiou o queixo nas mãos.
0 E o que é que a criadagem diz sobre tudo isso?
0 Bem, dizem muita coisa... — retrucou Jenkins, hesitando. — Alguns até acham que Mr. Bertram ainda tem...
Desconcertado ele estacou, e José riu baixinho.
— Que ele tem ainda outra família? — perguntou ela.
— Isso não seria tão incomum, tratando-se de um homem rico, mas eu não creio que seja assim.
Ela ficou sabendo pouco mais do que já sabia, e finalmente subiu para trocar de roupa para o jantar. Só raramente ela jantava sozinha com o pai. Geralmente eram convidados o professor ou amigos dos negócios.
Durante o jantar, George Bertram estava monossilábico e nervoso. Certa vez notou que sua filha o olhava seriamente, e baixou a vista, como se tivesse sido flagrado num ato do qual se envergonhava. Não chegaram a nenhuma conversa propriamente dita, e, depois do jantar terminado, ele levantou-se para ir passar, como sempre, o resto da noite no seu escritório.
Porém José o reteve.
0 Pai, eu ainda gostaria de falar um pouco com você, antes que suba...
0 Comigo, querida? — perguntou ele, ligeiramente surpreso. — Você precisa de alguma coisa? Pensei que a sua conta no banco...
0 Não se trata nem de dinheiro nem de vestidos, trata-se de você.
— De mim?
Ele enrubesceu como um garotinho. Este homem grande, adulto, aliás tinha qualquer coisa de infantil na sua maneira de ser. José já muitas vezes ficara impressionada com isso.
— Gostaria de falar com você sobre o Hades dourado— disse ela calma e autoconfiante.
0 O... Hades... dourado? — repetiu ele, quase gaguejando. — Mas, minha querida, este é um assunto que fica um pouco fora do seu alcance.
0 Pois eu acho que ele fica também um pouco fora do seu — retrucou ela, com amabilidade.
Ele raramente se zangava ou irritava, ao falar com ela, mas agora ficou visivelmente agitado, e já estava pronto a repreendê-la com palavras bastante fortes.
— Você não se preocupa com meus desejos, José! É mesmo, você não tem a menor consideração por eles.
Uma noite destas, eu ainda estava pensando que os deuses também poderiam ter escolhido você... — de repente apareceu uma expressão no seu rosto, iluminando-o todo. —
É difícil para você entender que os deuses falaram comigo, que eles escolheram um esposo para você, e que a felicidade que eles lhe concedem, significa para mim a paga pelas minhas doações aos pobres, que Plutão me indica...
mas...
0 Ele se entusiasmara cada vez mais. José o olhava amedrontada, ouvindo o que ele dizia sem dar-lhe atenção, quase como paralisada. Espere, espere! — interrompeu ela, horrorizada. — Os deuses falaram com você? Pai, você sabe o que estádizendo? Você me assustou terrivelmente, quando, dias atrás, me disse que os deuses haviam escolhido um esposopara mim. Quando depois, na manhã seguinte, eu perguntei-lhe sobre isso, e você falou tão séria e objetivamente sobre as imensas somas que você esbanjou...
0 Sob o influxo do bondoso Plutão este dinheiro vai chegar às mãos dos eleitos dos deuses, que são os que mais dele precisam — declarou ele com crescente entusiasmo. — Às vezes a mensagem é de que eu tenho que
entregar o dinheiro ao décimo homem que encontre, depois que o relógio bateu determinada hora. Às vezes também é atirado, com um arco, para o céu, e vai cair ali,onde deve cair.
Ela ergueu-se, rodeou a mesa e colocou um braço em volta do pescoço dele.
0 Sim, sim, pai, foi uma coisa parecida, que você jáme contou, além de dizer que o deus também havia ordenado que abandonasse uma grande soma na estação daFiladélfia.
0 Não, não, não foi assim. O deus falou da Sétima Avenida.
Ela não sabia se ria ou chorava.
0 Na Sétima Avenida... — repetiu ele, solene — noTemplo de Mercúrio, o Palácio do Sucesso, onde as pessoas são carregadas por cavalos de fogo para os confins da terra...
0 Sim, a estação da Filadélfia é mais ou menos semelhante a essa sua descrição, e eu sei que ali devia ser deixado dinheiro. E que milagre este dinheiro abandonado deveria fazer?
Ele olhou-a curiosamente, como se ela achasse que ele não era mais bem normal.
— Ele devia chegar às mãos de pessoas que precisavam dele urgentemente — retrucou ele, curto. — Por favor, não se imiscua em minhas coisas, José!
— E mesmo assim o dinheiro veio ter às minhas mãos! E eu nem precisava dele, pelo menos não naquele momento.
— Em suas mãos?
Espantado, ele olhou-a longamente.
0 Sim... eu fiquei vigiando o seu mensageiro, e tomei o pacote do homem a quem o mesmo foi entregue.
0 Mas... mas... eu não entendo...
— O dinheiro veio ter às minhas mãos, e até agora eu escapei de morrer. Aqui está, olhe! — ela foi até o bufê e abriu uma caixa, que já trouxera antes do seu quarto. Colocou o maço de notas que retirou da mesma em cima da mesa. — Você acredita que os deuses também cometem erros? Eu não teria, naturalmente, recebido este dinheiro, se ele não me tivesse sido destinado?
Ele ficou zangado com o seu tom irônico.
0 Por que você pegou esse dinheiro? — perguntou ele, quase gritando.
0 Infelizmente só consegui recuperar este único pacote, mas talvez minha intervenção tenha salvado a vida do homem a quem o dinheiro fora destinado.
0 Salvado a vida...?
— Sim... salvado a vida — repetiu ela, enfaticamente.
George Bertram olhou-a, confuso. Seu espanto era tão grande que ele chegou a esquecer sua irritação.
— Você poderia me explicar isso melhor, José?
— Pai, eu não quero ser petulante, mas dizem que as pessoas amadas pelos deuses morrem cedo. O que é certo, entretanto, é que elas morrem depressa. Você alguma vez ouviu falar no caso do assassinato Higgins?
Ele franziu a testa.
0 Sim, lembro-me do caso. Mas o que é que ele tem a ver com tudo isso?
0 Vou explicar-lhe o que ele tem a ver. A mulher foi assassinada, porque determinadas pessoas queriam entrar na posse do dinheiro, que na sua opinião seria distribuído aos pobres.
0 Impossível! — gritou ele, ofegante. — Eu...
0 Um detetive que recebeu outro maço de suas cédulas foi quase morto a pancadas e roubado. O dinheiro que você gasta, sob a influência do professor Cavan, arrasta atrás de si um rastro de sangue e de crimes: assassinatos, sevícias, seqüestras, roubos, e tudo em nome dos deuses!
Ele levantou-se de um salto.
0 Eu não acredito numa só palavra do que você está dizendo! — gritou ele, febril. — Você não conseguirá abalar a minha crença, José! Estas coisas ultrapassam a tua compreensão...
0 Eu tenho...
0 Nem mais uma só palavra! Eu já lhe disse que você não abalará a minha crença!
E com estas palavras ele deixou a sala.
Capítulo 26
José seguira o seu pai lentamente, mas ao chegar ao vestíbulo ele já desaparecera. Voltou novamente ao quarto, trancou a porta e vestiu um vestidinho simples. Ela agora estava decidida a descobrir o segredo que encobria aquele parque interno. De uma gaveta de sua penteadeira ela apanhou um pequeno revólver, carregou-o, colocando-o depois na sua bolsa.
Apagou a luz, abriu a porta-francesa que dava do seu quarto para o balcão e saiu para o mesmo. Era bem possível que o seu pai ficasse em casa. Podia perceber uma luz mortiça, vinda do seu escritório, quando iniciou aquela vigília. Depois de uma hora, a luz foi apagada, e poucos minutos após ela o viu no estreito caminho de terra, que levava ao parque murado. Rapidamente ela voltou ao quarto, correu escada abaixo e deixou a casa.
Procurou conservar-se sobre o gramado, para evitar que seus passos fossem ouvidos, e logo em seguida encontrou cobertura por entre os arbustos.
Perdeu o pai de vista, quando este mergulhou no bosque espesso que praticamente ocultava o muro. Mas conseguiu ouvir quando ele pôs a chave na fechadura. Logo em seguida ouviu a porta bater, ao ser fechada novamente. E agora ela podia arriscar-se a avançar.
O muro tinha pelo menos três metros e meio de altura. José entretanto tinha tomado algumas medidas. A mais ou menos cinqüenta passos de distância, pela direita dos arbustos diante da porta, o bosque era mais espesso. Aqui ela escondera uma escada leve, que agora puxou para fora, encostando-a ao muro. Sem dificuldades subiu para o alto, puxou a escada para cima, deixando-a escorregar novamente para baixo do outro lado do muro.
Logo em seguida ela encontrou-se de pé, pela primeira vez, naquele parque misterioso. Prestou bastante atenção no que havia a seu redor, pois era absolutamente necessário que ela encontrasse novamente o caminho de volta para a sua escada. Primeiramente seguiu quase encostada ao muro, até o grande portal do parque, que ela já vira muitas vezes pelo lado de fora, muito antes de amadurecer aquele seu plano, de contrariar as decisões do pai.
Um atalho seguia para o interior do parque, até o templo, que ela ainda não conhecia. O caminho era fácil de ser seguido, a lua estava bastante clara, de modo queela nem precisou acender a lanterna de bolso que trouxera consigo.
Logo alcançou o templo e ficou parada diante daquela visão estranha. Era uma construção pequena, bonita, que se assemelhava, no seu estilo, ao Templo de Atena.
"Pobre Plutão!", pensou ela, sorrindo. Apesar de se tratar de uma história abominável, desde o princípio ela não pudera deixar de ver o lado humorístico da mesma. Era incrível que o deus das profundezas fosse adorado justamente no Templo de Atena!
Não se via ninguém, nem havia qualquer luz. Aparentemente não achavam necessário colocar algum tipo de guarda. Sem fazer ruído ela atravessou o gramado subindo os degraus do vestíbulo de colunas.
A porta de madeira, relativamente grande, estava aberta, e José esgueirou-se para dentro, na ponta dos pés. Logo em seguida encontrou-se diante de uma pesada cortina de veludo. Através de uma fresta penetrava um raio de luz. Ela chegou bem perto e olhou pela mesma.
Entre duas fileiras de colunas ela viu um altar, sobre o qual brilhava uma estátua de ouro. Mas sua atenção foi atraída pelos dois homens que se encontravam diante da mesma. Apesar dos dois usarem hábitos curiosos, ela reconheceu imediatamente aquele homenzinho que se achava ao lado do seu pai. A sua voz tinha um timbre bonito, bem cheio.
— Ó, Hades, deus da riqueza! — dizia ele, estendendo os braços, como implorando. — Dá um sinal a este homem vacilante! Fala, ó Plutão, Senhor das Profundezas, deus da fortuna!
José ficou ouvindo atentamente, mas não veio qualquer resposta. O silêncio já estava ficando opressivo, quando de repente ecoou uma voz — uma voz que soava oca, um pouco estridente, e que parecia sair da própria estátua.
—Estranho, lembre-se da sua promessa! Você me prometeu dar a sua filha ao homem por mim escolhido, para que ela seja a sua mulher. Esta hora agora chegou. Asorte e a felicidade lhe envolvem, meu servo...
O coração de José batia violentamente. Parecia-lhe que estava prestes a sufocar, se não voltasse imediatamente para o ar livre. Seus pensamentos estavam completamente embaralhados. Tropeçando, correu os degraus do vestíbulo abaixo, e caiu ao chão.
Então era esta a solução do mistério — era deste modo que seu pai recebia suas "inspirações"! José levantou-se novamente, e, apesar de estar com os joelhos tremendo, correu para os fundos do templo. Esperava ali encontrar o homem que ainda a pouco respondera em nome do Hades dourado, mas não conseguiu descobrir ninguém. Confusa, parou um instante. O enigma que era importante resolver chegou até a afugentar o seu medo.
Se ela tivesse sabido que num dos cantos do edifício, atrás das cariátides, havia o duto de ventilação, através do qual Frank Alwin fugira, ela talvez tivesse encontrado uma explicação plausível para o mistério. Mas, na realidade, aquele duto não tinha nada a ver com o caso.
Ela pensou rapidamente. A voz do Plutão lhe parecera bastante familiar. Ela soara como se... como se... Sim, claro, o homem devia ter usado um microfone! E o som penetrava de fora para dentro do templo através de um alto-falante, provavelmente por um duto que dava em linha reta na estátua.
José ajoelhou-se, colocou o ouvido junto ao solo, e achou que podia ouvir um ruído muito fraco. A luz prateada do luar, que cobria o parque, possibilitava-lhe ver rapidamente todos os pontos que podiam ser considerados como estação externa de irradiação. A cerca de cinqüenta metros de distância, ela descobriu um grupo maior de arbustos espessos.
Cuidadosamente dirigiu-se para ele, evitando de todos os modos fazer ruído. Conseguiu chegar à beira do pequeno bosque, e então esgueirou-se de arbusto para arbusto. De vez em quando parava, e ficava escutando, mas não ouvia nada. Justamente quando ia dar mais um passo, ouviu inesperadamente uma espécie de leve zunido. Ela assustou-se tanto, que quase deu um grito.
O ruído podia ser unicamente um sinal. Ela suspendeu a respiração, quando pensou nesta simples explicação. Naturalmente, o homem no templo teria que dar um sinal para que o seu cúmplice, que ficava do lado de fora, soubesse quando deveria falar. E como prova de sua suposição, logo ouviu uma voz, muito próxima de onde se encontrava: "Estas são as palavras do deus dos infernos..."
José tirara sua pequena lanterna da bolsa, e iluminou na direção de onde viera a voz. Ali um homem estava deitado de barriga para baixo, com o rosto bem junto do solo e a boca próxima de um microfone. Ela pôde ver um pequeno bloco de cimento, no qual se encontrava embutido tanto o microfone como a campainha para os sinais.
— Tenho a satisfação de ver diante de mim Plutão, ou apenas um dos seus seguidores? — perguntou ela, irônica.
O homem deixou cair o microfone e levantou-se, praguejando.
0 Miss Bertram! — gritou ele.
Ele reconheceu-o pela voz.
0 O senhor é o mordomo do professor, não é?
Ela segurou o feixe de luz, dirigido para o seu vulto, enquanto ele limpava a terra de sua roupa. Depois ela apagou a lanterna novamente. A calma estranha desse homem a preocupava.
0 Bem, Miss Bertram, acho que não vale a pena ficar ainda falando muito sobre tudo isso — disse ele. — Eu acho que a senhorita agora já sabe tudo que há para se saber sobre o Hades dourado.
0 Sim, e também sei tudo a seu respeito! E amanhã, se ainda existe alguma lei neste país...
0 Ora, deixe a lei de fora — respondeu ele, friamente. — Isso não ajudaria a ninguém de nós, muito menos a seu pai!
0 O que quer dizer com isso?
0 O que quero dizer é que a senhorita deve ser sensata, e fazer de conta que tudo isso não passou de um sonho. Faça de conta que nunca chegou a olhar atrás da cena, e execute a ordem do deus.
0 Casando-me com o escolhido? — perguntou ela, erguendo as sobrancelhas.
0 É isso mesmo, deve casar-se com o escolhido, e o escolhido sou eu!
Sem poder falar ela olhou para ele.
0 Com isso apenas se poupará muitas dificuldades, e preservará o seu pai de coisas ainda piores — continuou ele. — Seja sensata, Miss Bertram! Deverá fazer isso de qualquer maneira, pois apenas a senhorita poderá manter o seu pai fora desta história, livrando-nos de muitas dificuldades.
0 Mesmo que eu pudesse fazê-lo, eu não o ajudaria! A nenhum de vocês! Meu pai é inocente dos crimes que vocês cometeram.
0 Isso a senhorita terá que provar. E não será nada fácil.
0 Mesmo que eu quisesse, não poderia poupá-lo. Há um homem na sua pista que não descansará, até levá-los ao lugar onde merecem estar!
0 Um homem... na minha pista? — repetiu Tom Scatwell, irritado. — Pois eu sei quem é: Peter Corelly.
Ela olhou fixamente para o seu vulto na sombra.
0 Não sei o que quer dizer.
0 Não? Ora, Rosie não é tão burro como a senhorita acha.
0 Rosie? — perguntou ela, confusa.
0 Estou falando do professor. Ele é esperto, pode até ser também um criminoso, mas sabe ler muito bem o coração das pessoas. Dificilmente encontrará um psicólogo melhor que ele. Ele viu o olhar com que Corelly a olha sempre, e já julgou o caso.
Ela enrubesceu, e ficou satisfeita que naquela escuridão ninguém podia ver-lhe o rosto.
— O senhor está louco... — disse ela. — Está querendo apenas me ofender... Eu agora vou voltar para procurar o meu pai.
— Só mais um momento, Miss Bertram! — ele pôs a mão sobre o braço dela. — Se Corelly está apaixonado pela senhorita ou não, não faz a menor diferença. Isto é uma coisa que só é do seu interesse, e eu acho que conse
guirei facilmente dar conta dele... depois que estivermos casados. Queira ou não, a senhorita terá que casar comigo, se não quiser ver seu pai sendo julgado, acusado de homicídio. E ainda por cima haverá uma corrida ao banco,
quando se descobrir que ele malbaratou quase um milhão de dólares deste modo, está me ouvindo?
— Sim, estou — murmurou ela, virando-lhe as costas. Scatwell não fez qualquer tentativa de detê-la.
Capítulo 27
Era uma hora da madrugada quando Peter Corelly chegou diante da casa do banqueiro Bertram. José lhe telefonara, e ela mesma abriu-lhe a porta.
Um olhar ao seu rosto pálido, transtornado, denunciou-lhe logo que alguma coisa muito séria havia acontecido.
Ela não o conduziu à sala de estar, porém à biblioteca. Quando ele atravessava o vestíbulo, viu um homem descendo a grande escadaria, que lhe era muito conhecido, pois era o médico mais famoso da cidade.
— Meu pai sofreu um ataque de apoplexia — comunicou-lhe ela, calma. — O médico acha que vai levar meses até que esteja novamente recuperado.
Os seus olhos estavam vermelhos, os lábios lhe tremiam, enquanto falava. Corelly não teria nada a dizer a não ser expressar seus sentimentos em palavras convencionais — por isso silenciou.
Ela sentou-se numa poltrona, junto da lareira, na qual havia um fogo baixo, e evitou o seu olhar.
— E eu mesma estou em terríveis dificuldades, Mr. Corelly. O senhor certa vez disse-me que gostaria de me ajudar e que eu me dirigisse ao senhor quando...
Ele estava encostado à lareira e a olhou atentamente.
0 Sim, eu pedi-lhe isso mesmo. Conte-me tudo que quiser, e deixe-me adivinhar aquilo que não quiser dizer. Quando aconteceu esta desgraça?
0 Há cerca de duas horas — informou ela, em voz baixa. — Eu acho que ele teve uma grande preocupação, e além do mais ficou muito zangado... comigo. Olhe, Mr. Corelly, esta noite fui forçada a dizer-lhe uma coisa, o que
não foi fácil... nem para ele, nem para mim.
0 Ele esteve no templo?
Ela ergueu os olhos rapidamente.
0 Quer dizer que sabe do templo?
Ele sorriu.
0 Eu não sabia onde ele ficava, mas tinha minhas suspeitas.
Lentamente ela baixou de novo a cabeça.
0 Meu pai está nas mãos de um bando de criminosos, há dois anos. Eu... eu tive que contar-lhe tudo que descobrira. Houve uma discussão terrível — ela não disse qualquer nome, mas ele naturalmente sabia de quem ela estava falando. — Meu pobre pai! Ele é muito influenciável para essas coisas, e sempre se interessou pelo Ocultismo...
Aliás, chegou até a escrever um pequeno volume a este respeito. O senhor sabia disso?
0 Sim — foi a resposta curta.
0 É intitulado "O Mundo Oculto". Eu acho que foi esse livro que despertou a atenção do bando para ele, e, através do professor, meu pai então foi arrastado para um caso horrível. Não sei quem é o professor... Para mim ele
sempre foi um homem divertido, um tanto vaidoso. E ainda que ele me causasse uma repugnância inexplicável, jamais o teria ligado com crimes tão horríveis. Eu sabia apenas que meu pai e ele eram bons amigos, uma vez que
praticamente todas as noites jantava em nossa casa. Eu até gostava disso, já que meu pai quase não tinha amigos, e só raramente saía para se divertir. Sim, até me sentia aliviada, pois assim não precisava responsabilizar-me sozinha pelo seu bem-estar — ela sorriu, tristemente. — Eles devem ter-se encontrado pela primeira vez quando eu ainda estava no colégio, pois, quando voltei, os dois já eram inseparáveis... Aquele muro alto em volta do parque também já fora construído.
0 Compreendo. Por isso mesmo a senhorita não sabia nada sobre o templo, que fica por trás do mesmo. Isto, a princípio, me pareceu um pouco misterioso.
0 Eu não tinha a menor idéia de sua existência, e muito menos a criadagem sabia do mesmo. O templo deve ter sido erguido sob a direção do professor ou de seus cúmplices, e foram utilizados exclusivamente operários estrangeiros na sua construção. Isto, entretanto, só fiquei sabendo depois que comecei minhas averiguações.
— A senhorita tem alguma idéia de como está a situação financeira do seu pai? — perguntou Peter.
Ficou penalizado quando a viu estremecer.
— Não creio que tenhamos que nos preocupar com isso. Meu pai tem uma fortuna bastante grande. Quando minha mãe morreu, deixou-me um milhão de dólares como herança, os quais estão sendo administrados por fiéis
depositários, de modo que não estou muito preocupada com a situação financeira do banco.
Estas informações deixaram Peter muito aliviado, pois ele temera muito pelo contrário. Curiosamente, achou ele que o nome Bertram, que era honrado e respeitado há três gerações, poderia antes ser relacionado com um homicídio que com uma falência.
— Só quero que me diga mais uma coisa, para que eu fique tranqüilo — pediu ele. — Esta idéia absurda de que a senhorita deve casar-se com o escolhido dos deuses naturalmente está completamente liquidada, depois destas
descobertas?
Para seu espanto ela não respondeu logo, nem olhou para ele.
0 Não está querendo dizei... — começou ele novamente.
0 Estou querendo dizer que este casamento terá que acontecer — declarou ela, muito tensa. — Não sabe que este plano foi arquitetado pelo próprio bando, e que hã represálias ligadas a isso?
Posso imaginar — retrucou ele — mas há milhares de motivos para não cumprir uma promessa feita pelo seu pai. Pelo amor de Deus... isso é uma coisa que não poderá fazer! Só pensar nisso ê insuportávelEla continuava de olhos baixos.
— Eu queria pedir-lhe para me ajudar nessa situação difícil. Porém, antes de mais nada, diga-me se existe uma maneira de manter o nome de meu pai fora dessa história horrível...
Agora ele silenciou. Ele sabia muito bem que isso era impossível, e ela interpretou o seu silêncio corretamente.
0 Está vendo, agora, que eu estou inteiramente nas mãos desses três homens, Mr. Corelly? A palavra do meu pai é só o que há contra a deles, e eles o poderão... Ó, nem quero pensar nisso!
0 Está querendo dizer que eles poderão incriminá-lo, naquele caso de homicídio? Ela anuiu.
— E acha que se se casar com um deles, presumivelmente com o chefe da gang, o seu pai seria deixado em paz? Miss Bertram, a senhorita não conhece a mentalidade desse tipo de criminosos. Aliás, todo este caso já não está
mais em suas mãos, e sim nas mãos das autoridades. Nós temos provas suficientes para...
Ela sacudiu a cabeça, e pela primeira vez olhou-o bem nos olhos.
— Está enganado, Mr. Corelly, os senhores não têm absolutamente provas... apenas teorias. Somente meu pai poderia provar que eles o enganaram e iludiram, e ele...ele...
Ela estacou e levou um lenço aos lábios.
Peter tirou, distraído, um cigarro do bolso, e acendeu-o, antes de notar o que estava fazendo. Fez então menção de jogá-lo na lareira, mas José o impediu.
— Por favor, fume.
Ambos sentiam-se terrivelmente infelizes. Peter sentou-se diante de José e ficou olhando fixamente o fogo na lareira. Ela estava sentada curvada para a frente, apoiando o queixo nas mãos.
— No fundo não deixa de ter razão, Miss Bertram —disse ele, finalmente. — Por isso mesmo nós estamos tão deprimidos. É um fato inacreditável, do qual até agora não temos qualquer prova. Ninguém viu quando Mrs. Laste foi
assassinada, ninguém estava presente quando Wilbur Smith foi massacrado, e nem quando Frank Alwin foi seqüestrado. O que existe ê uma forte suspeita, porém esta suspeita não leva a uma condenação.
Em silêncio ele continuou fumando por algum tempo. Somente o relógio francês, em cima da lareira, seguia o seu tique-taque, fora disso tudo estava quieto— Sim, realmente você não deixa de ter razão, José — disse ele mais uma vez.
Ela olhou-o um tanto confusa, mas aparentemente ele nem se dera conta de que se dirigira a ela usando o seu prenome. Calmamente continuou falando.
0 Durante todo o tempo em que nos ocupamos com este bando, já sabíamos desta dificuldade. Apesar de tudo, tínhamos esperanças de conseguir as provas necessárias, mas até agora existe apenas uma pessoa sob suspeita dire
ta, ou seja, a senhorita.
0 Eu? — perguntou ela, espantada.
0 Existem provas suficientes para condená-la três vezes, mas eu naturalmente sei que isso é bobagem, e que os indícios se baseiam numa mistificação. Sei também que essa gente, em caso de necessidade, e se não tiver nenhum
motivo especial para silenciar, envolverá o seu pai no caso de homicídio, e de uma maneira que tornaria praticamente impossível provar sua inocência.
Novamente houve silêncio, e José levantou-se.
— O senhor mesmo reconhece que eu serei obrigada a seguir as exigências dessa gente — disse ela, fazendo um gesto desesperado — até mesmo em se tratando de um casamento.
Peter levantou-se lentamente. Ele sorriu um pouco, e nos seus olhos havia um brilho estranho.
0 Miss Bertram, nesse caso, sob o signo do Hades dourado, acontecerão mais algumas tragédias.
0 O que quer dizer com isso?
0 O bando consiste de três membros — disse Peter, pensativo. — Rosie Cavan, ou o professor, Tom Scatwell, um outro criminoso inglês, e finalmente temos ainda Sammy Featherstone. Talvez eles ainda tiveram um ajudante quando assaltaram Wilbur Smith, mas isto aqui não vem ao caso. Três pessoas portanto — e se esta história não se passar de modo diferente do que no momento nos parece haverá mais três tragédias para darmos ao Hades
dourado... três casos de acidentes irremediáveis.
No primeiro momento ela não entendeu, mas logo deu um passo para a frente, pôs uma mão no seu braço e olhou-o bem nos olhos.
— Isso você não vai fazer! — gritou ela, muito agitada. — Está ouvindo? Eu não permito que faça isso, de modo algum! Prefiro aceitar a responsabilidade de tudo, que meu pai assuma a responsabilidade, mas não quero
que faça nada tão horrível — ela dera-se conta do que ele tinha em mente. — Você não deve fazer isso. Prometa-me que não o fará, por favor! Ele olhou-a sorrindo.
0 É muito melhor...
0 Peter!
Ele ficou perturbado ao ouvir o seu nome pronunciado por ela.
Agitada, ela aproximou-se ainda mais.
— Se não quiser me deixar ainda mais infeliz, tire estas idéias de sua cabeça, deixe que estes patifes levem o caso à Justiça!
Ele não conseguia falar. Ela interpretou mal o seu silêncio, e agarrou-lhe a mão.
— É preciso que haja uma outra saída! — insistiu ela.— Por favor, não faça isso... por mim! Você ainda há pouco me chamou de José, e eu sei que você me...
De repente ele apertou-a nos braços.
— Querida José — murmurou-lhe ele no ouvido —talvez eu não os mate com um tiro, talvez eu apenas arranje um jeito de envenená-los...
Ela riu, pois agora ela sabia que vencera.
Capítulo 28
Tom Scatwell estava vestindo-se com um apuro excepcional, e ficou escolhendo longamente entre os coletes que o professor, amedrontado, lhe trazia. Tom era um homem alto, muito bonito, de trinta e nove anos de idade. A atitude submissa de Rosie demonstrava que o chefe não estava propriamente de bom humor. Até mesmo o rabu-gento Mr. Featherstone, que nunca recuava diante de uma discussão com o chefe da gang, permanecia em silêncio.
— Quando é que você vai voltar, Tom? — perguntou Rosie.
0 Isso é assunto meu! — resmungou Scatwell.
0 Sammy e eu gostaríamos de saber — desculpou-se o professor — porque temos uma entrevista marcada para
as três horas, esta tarde. Naturalmente gostaríamos que
você estivesse ciente, quando vier.
0 É pouco provável que eu esteja de volta antes das três ou das quatro — disse Scatwell. — Vocês já arrumaram todas as malas?
— Todas — garantiu Cavan. — Quando é que partimos?
0 Não se preocupe com isso. No tempo devido vocês serão informados.
0 Hoje sai um navio — sugeriu Rosie.
0 Não é nesse que vamos, talvez a gente vá para o Canadá.
Rosie ficou observando como Scatwell continuava escovando repetidamente o cabelo e ajeitando a gravata.
0 Tom — começou ele, finalmente — eu estou de caixa baixa. Você poderia dar-me um cheque?
0 Quanto é que você quer?
0 Bem, não sei — respondeu o professor, indeciso.
— Muito bem, então faça-me o favor de resolver! Scatwell olhou o relógio.
— Você está esperando alguém, Tom? — perguntou Cavan.
Scatwell vírou-se para ele, furioso.
—O que é que você tem com isso? — gritou-lhe ele.
— Você está mais agitado e nervoso que um gato. Por que diabo está sempre metendo o nariz nas minhas coisas? Até parece que eu estou querendo enganar vocês!
O professor riu.
—Ora, Tom, não é nada disso. Eu jamais esperaria isso de você. Se alguém se atrevesse a dizer uma coisa dessas sobre você, eu simplesmente o liquidaria.
— Você, liquidar alguém? — repetiu Tom, com desprezo. — Já que faz questão absoluta de saber, estou esperando por aquele italiano. E ele já está tocando a campainha... Faça-o entrar, e depois deixem-me sozinho com ele.
Ele vestira o casaco, e ficou se olhando no grande espelho, quando o visitante entrou.
0 Sente-se, Giuseppe — disse ele, em italiano- —Chegou atrasado.
0 Tive que esperar por um táxi — informou Gatti —porém quase perdi a coragem.
0 Para que precisava de coragem?
0 Para parar um táxi. Fiquei com receio de que pudessem me descobrir.
0 Está com o dinheiro? Bem, agora ouça-me bem.
Vou levá-lo a uma grande casa de campo. Ali irá encontrar-se com uma moça, que o tomará por outra pessoa.
0 Tudo isso é uma brincadeira, não é?
0 É claro que é uma brincadeira — retrucou Scatwell, sarcástico.
0 E o que é que eu devo fazer?
Ficar parado e não abrir a boca. Basta que estejaali, presente, nada mais. Caso a moça lhe dirigir a palavra, simplesmente diga "Sim".
— Certo.
Tom balançou a cabeça, satisfeito.
— Muito bem. Meu carro espera diante da porta, Giuseppe, por isso vamos partir imediatamente. No caminho procure ocultar o seu rosto da melhor forma possível. Não gostaria que fosse visto. Está entendendo?
— Perfeitamente — confirmou o italiano, indo adiante.
Scatwell seguiu-o.
No corredor, o professor esperava. Sorriu e mostrou um talão de cheques que trazia na mão. Scatwell hesitou.
— Isso não tem tempo? — perguntou ele. — Quanto é que você precisa?
— Digamos... cem dólares? — sugeriu o professor, num tom suplicante.
— Depois você preenche a soma — disse Scatwell, e assinou o cheque.
A porta fechou-se atrás deles, e logo em seguida ouviram o carro partir. O professor ficou olhando atrás do automóvel até o mesmo desaparecer, depois foi até o telefone e discou um numero.
— Daqui a vinte e cinco minutos — disse ele.
Foi até o vestíbulo e chamou Sammy. Este apareceu imediatamente.
0 Quando parte o navio? — perguntou Cavan.
0 Às onze e meia.
0 Bem. Então ainda temos tempo. Você reservou a cabine?
— Naturalmente — respondeu Sammy, meio chateado. — Em nome de Miller e Dore. Aqui estão as passagens.
Ele tirou a sua carteira do bolso.
0 Tudo em ordem — disse o professor, rapidamente.
— E agora preencha este cheque.
0 Com que importância?
0 Qual é o saldo da conta dele?
0 Mais ou menos cinqüenta mil dólares.
0 Preencha com quarenta e cinco mil, pois assim estaremos seguros. Eu bem que gostaria de deixar esse porco a zero. Esse criminosozinho sujo!
Enquanto Sammy preenchia o cheque, o professor alisava a sua barba.
0 Você nunca me viu sem esta barba, Sammy?
Parece um pouco estranho, mas você terá que suportar-me de cara limpa.
Sammy saiu levando o cheque, e voltou, depois de vinte minutos, trazendo o dinheiro.
— O que é que você acha daquele cofre no banco?—perguntou ele.
Mas Cavan sacudiu a cabeça.
— Não, obrigado. O carimbo do Hades dourado está em todas aquelas cédulas, e eu não gostaria de andar por aí com elas no bolso. Quarenta e cinco mil dólares já é uma bela soma! Não é tudo que ganhamos, mas, ainda
assim... junto com o restante que já transferimos para a Inglaterra, é o bastante para desaparecer. Aliás, você ainda não me disse se gostou de minha cara nova...
Ele voltou o rosto para Featherstone.
— Pelo amor de Deus! — gritou Sammy, realmente surpreso. — Esta é mesmo a sua cara? Jamais vou reclamar novamente de uma barba, depois de ver você desse jeito!
O professor foi até a janela e olhou para fora.
0 Lá está nosso táxi. Onde estão as malas?
0 Tudo pronto — declarou Sammy, imediatamente.
0 Leve-as para baixo, eu vou logo em seguida.
Ele ainda lançou um olhar de despedida e tristeza para a sua biblioteca, pois Rosie Cavanagh era realmente um amante dos livros. Depois deixou o aposento e fechou a porta.
Quando, algumas horas mais tarde, o "Mauretania" deixava o porto, ele cocou o queixo.
0 Eu acho que deveria ter deixado uma palavrinha para o Tom — achou ele.
0 Eu acho que você leva longe demais a sua cortesia—retrucou Sammy
Capítulo 29
Podia-se dizer muita coisa contra Tom Scatwell, porém era preciso admitir a seu favor que ele tinha planos muito ousados, não tendo medo de nada. Não sabia o que era compaixão nem piedade — mas a brutalidade exigia uma certa coragem, que ele possuía em alto grau. Tinha perfeita noção de que a rede fechava-se sobre ele e que somente um golpe de mestre salvaria os seus
planos de um desastre total.
O seu acompanhante não parava de falar, dentro do carro que os levava à casa de Bertram. Falava da Itália e da vida que levara nesse seu país. Scatwell respondia-lhe monossilabicamente, apesar da conversa do homem nem incomodá-lo nem irritá-lo. Ao contrario, ele a ouvia como um som monótono, calmante, que o estimulava a perseguir suas próprias idéias com maior convicção ainda...
Quando o carro dobrou para subir a aléia da entrada da casa, ele deu suas últimas instruções.
— Vou mandar parar o automóvel a certa distância da casa, e você fica dentro do carro. Logo que me veja saindo da casa com uma moça, desembarca e fica parado por perto. Mas não deverá nem falar nem sorrir. Você terá que ficar simplesmente parado onde estiver. Entendeu bem?
— Sim, signore.
O carro parou a cerca de cinqüenta metros da casa. Geralmente Sammy Featherstone bancara o motorista, porém hoje Tom havia engajado outro homem para isso. Também este homem recebeu suas instruções.
— Você sai do carro agora e desce o caminho de volta até o portal do parque. Se precisar de você, mandarei
buscá-lo.
— Quer que deixe o carro parado aqui mesmo? —perguntou o motorista, surpreso. — Caso quiser...
— Pare de fazer discursos, e faça o que mandei! — retrucou Scatwell. — Se isso lhe custar muita sola de sapato, poderá depois me mandar a conta.
O homem colocou o boné e dirigiu-se à entrada.
— Então, Giuseppe, não se esqueça: quando eu sair da casa com uma moça, você sai do carro!
— Sim, signore — garantiu o italiano.
Capítulo 30
José sabia que Scatwell viria procurá-la esta manhã. Como adivinhara isso, entretanto, não sabia dizer. Desde o desjejum ela estava andando para cima e para baixo, nervosamente, no vestíbulo das colunas. Ela já ouvira o carro, antes mesmo de vê-lo. E agora Scatwell veio ao seu encontro— Eu imaginei que o senhor viria — disse ela, tão autoconfiante que ele ficou espantado.
Ficou parado diante dela, chapéu na mão. Sua atitude demonstrava que ele devia estar nervoso. Pois estava fazendo um jogo perigoso.
— Como está o seu pai? — perguntou, então.
Ela ergueu a mão, num gesto defensivo.
— Por favor, não fale de meu pai! Acho que este não é absolutamente o momento para gentilezas. Que proposta tem para me fazer?
Ele não conseguia ocultar o seu embaraço. Ambos continuavam de pé, no vestíbulo.
0 Não seria melhor entrarmos? — perguntou ele.
0 Não, podemos conversar aqui mesmo. Que proposta tem para me fazer?
0 Uma proposta muito simples — ele fez uma pequena pausa. — Miss Bertram, o jogo acabou, no que nos toca, e queremos sair dessas dificuldades, para evitar um mal ainda maior. Tenho motivos para acreditar que a polícia está na nossa pista. Provavelmente ainda temos umas quarenta e oito horas para chegar à fronteira mexicana. E eu já estou a caminho desse país.
— Com seus amigos?
Ele riu.
— Num caso como este cada um cuida de si. Eles que se virem para escapar. Eu voltarei para New York, retirarei o dinheiro do banco, e depois...
Ele encolheu os ombros.
0 E depois?
0 Todo o resto depende da senhorita, Miss Bertram.
Não tenho nem o desejo nem a intenção de partir sozinho. Nem acredito que tenha que fazê-lo. Se a senhorita se tornar minha mulher, tudo ficará mais fácil. Pois é a única pessoa que tem provas reais contra nós, mas se casar-se
comigo, o seu testemunho será nulo, uma vez que uma esposa não pode testemunhar contra o marido.
0 Entendo. Suponhamos que eu concorde, que outra recompensa me daria além da duvidosa honra de ter que carregar o nome de um criminoso?
Ele apertou os lábios.
— O seu pai, com isso, não mais seria inculpado, Miss Bertram. Não há provas nem contra nem a favor dele. Se a senhorita concordar com minha proposta, e casar-se comigo, eu darei um testemunho insofismável, diante de um amigo comum nosso, que inocentará o seu pai.
0 Diante de um amigo comum? — perguntou ela, desconfiada. — De quem está falando?
0 Peter Corelly. Eu o trouxe comigo.
Ele esperara que sua comunicação a deixaria espantada, mas realmente não estava preparado para o efeito que suas palavras causaram em José. Ela levou a mão à boca, como se quisesse abafar um grito e empalideceu.
0 Mr. Corelly? — perguntou ela, horrorizada. — Mas, eu não compreendo.
0 Ele está aqui... — garantiu ele, satisfeito com a impressão causada.
0 Mas como é que ele poderá ouvir seu testemunho, sem prendê-lo? Isso não é verdade, o senhor apenas está querendo me enganar!
Ele voltou-se um pouco.
— Venha comigo. Não precisa ter medo. Ficará a pouca distância da casa, e poderá chamar alguém, se quiser. Como Peter Corelly e eu nos entendemos, é um assunto que só interessa a nós dois, e agora não vem ao caso. Conforme a senhorita agora poderá verificar, os agentes da polícia de New York não são exatamente infalíveis.
Ela olhou-o, furiosa.
— O que está querendo dizer com isso? Está que rendo insinuar que Mr. Corelly aceitou suborno? Isso é mentira, e o senhor sabe disso tão bem quanto eu!
— Eu não quero insinuar nada — retrucou ele, rápido. — Não estamos tratando, neste momento, de idéias nem de suposições, mas apenas de fatos consumados.
De repente ela foi tomada de um medo terrível. Talvez Peter quisesse esquecer o seu dever, e ajudar este homem em sua fuga. Isto seria ainda pior que aquela sugestão perigosa que ele fizera. Ela estremeceu só com o pensamento.
Quando eles se aproximaram do carro, o italiano desembarcou.
— Quem é? — perguntou ela, quase num murmúrio.
Ela não afastou os olhos daquele homem, enquanto a sua distância até o carro diminuía progressivamente.
— Peter! — disse ela, quase que para si mesma.
Finalmente eles estavam bem próximos — o homem do automóvel, a moça pálida e Tom Scatwell, que parecia muito satisfeito com o resultado de sua aventura.
— Miss Bertram, na presença de Mr. Corelly eu agora cumprirei minha promessa. Conhece o testemunho que pretendo dar? — voltou-se ele para Giuseppe.
— Sim — respondeu o italiano.
Ela imaginou ouvir a voz de Peter — mas, ainda assim, não era exatamente a mesma. Mas ela poderia jurar que aquele homem não era outro que o próprio — este rosto queimado de sol, os ombros um pouco caídos, os olhos divertidos...
— Eu declaro o seguinte — começou Scatwell, de novo. — Mr. Bertram não tem nada a ver com qualquer dos crimes que foram cometidos em nome do Hades dourado. Ele é tão inocente dos mesmos como sua filha. Fui eu quem fuzilou Mrs. Laste, fui eu quem seqüestrou o ator Frank Alwin e mais tarde Wilbur Smith. Em todos estes três casos eu recebi a ajuda de Rosie Cavan e de Sammy Featherstone. Isto basta para a senhorita?
Ele olhou para José. Mas ela não conseguia falar. Os seus olhos estavam fixados no rosto de Peter. Lentamente ela anuiu com a cabeça.
— Sim — disse ela, baixinho, sem entretanto poder afastar os olhos daquele rosto.
Era muito estranho que ele pudesse ficar ali, imóvel, depois de ter ouvido tudo aquilo!
0 Muito bem, vamos partir dentro de dez minutos — disse Scatwell.
0 E por que não agora mesmo?
Scatwell girou sobre si mesmo e olhou para Giuseppe Gatti.
0 Para que ainda quer esperar dez minutos?
0 O que quer dizer isso? — gritou Scatwell, com voz rouca. — Você fala inglês fluentemente... quem é você?
0 Mas que pergunta tola, depois que acabou de meapresentar! Sou Peter Corelly, ora essa!
0 Onde está Gatti?
0 Nunca houve nenhum Gatti. Fui eu que fui consertar as vidraças em sua casa, vidraças que eu quebrei um dia antes. É que eu estava curioso para saber como é que vocês se comportavam naquela casa. Aliás, qualquer pessoa em New York poderá confirmar-lhe que eu falo italiano fluentemente. Eu...
Scatwell puxou um revólver, e Corelly só teve tempo de jogar-se ao chão, quando o tiro ecoou.
Antes de Peter poder sacar de sua arma, Scatwell corria em direção da cerca-viva, que ladeava o caminho de ambos os lados. Ele desapareceu num instante, mas Corelly não fez qualquer tentativa de segui-lo.
— Espero que...
Antes que pudesse continuar, ecoaram três tiros, um logo atrás do outro.
Ele respirou fundo.
— Se Wilbur Smith não perdeu sua frieza — disse ele, secamente — nós acabamos de ver o chefe do Hades dourado pela última vez com vida.
José desmaiou nos seus braços. Ele ainda a segurava, quando Wilbur Smith e Frank Alwin lentamente saíram de trás dos arbustos, para o leito da estradinha. Recolocando os seus revólveres nos coldres.
Edgar Wallace
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