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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O HERDEIRO DE SEVENWATERS / Juliet Marillier
O HERDEIRO DE SEVENWATERS / Juliet Marillier

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Os chefes de clã de Sevenwaters são de há muito guardiães de uma vasta e misteriosa floresta, um dos últimos refúgios dos Tuatha De Danann, as Criaturas Encantadas que povoam as velhas lendas. Aí, homens e habitantes do Outro Mundo coabitam lado a lado, separados pelo finíssimo véu que divide os dois reinos e unidos por uma cautelosa confiança mútua. Até à Primavera em que Lady Aisling de Sevenwaters descobre que está grávida e tudo se transforma.
Clodagh teme o pior, uma vez que Aisling já passou há muito tempo a idade segura para conceber uma criança. O pai de Clodagh, Lorde Sean de Sevenwaters, depara-se com as suas próprias dificuldades, vendo a rivalidade entre clãs vizinhos ameaçar as fronteiras do seu território. Quando Aisling dá à luz um filho varÃo - o novo herdeiro de Sevenwaters - Clodagh é incumbida de cuidar da criança durante a convalescença da mãe.
A felicidade da família cedo se converte em pesadelo quando o bebé desaparece do quarto e uma coisa não natural é deixada no seu lugar. Para reclamar o irmÃo de volta, Clodagh terá de entrar nesse reino de sombras que é o Outro Mundo e confrontar o poderoso príncipe que o rege. Acompanhada nesta missÃo por um guerreiro que não é exactamente o que parece, Clodagh verá a sua coragem posta à prova até ao limite da resistência. A recompensa, porém, talvez supere os seus sonhos mais audazes...

 


 


CAPÍTULO UM

Com os dedos entorpecidos pelo frio, atei um pedaço de fita bordada a ouro à volta do espinheiro-alvar e murmurei uma oração aos espíritos que estivessem a ouvir-me.
- Quando o bebé chegar, por favor, não deixem a minha mãe morrer.
Outra fita, mais acima, nos ramos onde rebentava a nova folhagem da Primavera.
- E peço-vos que a criança nasça saudável.
Uma terceira, metida entre dois galhos que me arranharam a pele, abrindo um sulco de sangue vivo.
- E, se puderem, façam com que seja um rapaz. A minha mãe deseja um filho mais do que qualquer outra coisa no mundo.
Tornei a calçar as luvas de pele de carneiro e, por momentos, fechei os olhos e concentrei-me. Naquela clareira da imensa floresta de Sevenwaters, o solitário espinheiro-alvar estava carregado de oferendas: fitas, rendas, fiapos de lã e cordões de contas de madeira. Sabíamos que os espinheiros isolados eram lugares onde os espíritos se reuniam. Até a criança lhe pesar no ventre e já não ser capaz de caminhar até ali em segurança, a minha mãe levara todos os dias uma dádiva para suspender nos ramos da árvore e, com esta, uma oração pedindo que lhe concedessem, por fim, um filho saudável. Agora, era eu quem cumpria o seu ritual.
Chegara a hora de voltar para casa. A minha irmã casava-se no dia seguinte de manhã e havia ainda muito que fazer. Deirdre e eu
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éramos gémeas. Embora Deirdre fosse ligeiramente mais velha, era eu quem tinha herdado a responsabilidade do governo da casa, que a nossa mãe já não conseguia assegurar. Fazia sentido. Deirdre estava de partida. No dia seguinte à tarde, regressaria com o marido, Illann, à casa deste, no Sul, e teria o seu próprio lar para gerir. Eu ficava. Num futuro provável, a minha vida seria preenchida com a orientação da criadagem, a encomenda e controlo de provisões, o desempate de disputas domésticas e a vigia das minhas irmãs mais novas, Sibeal e Eilis. Não era um cenário que eu tivesse previsto, mas a verdade é que ninguém imaginara que a mãe pudesse conceber uma criança numa idade tão avançada. Agora, todos vivíamos em agonia. Para a minha mãe, a gravidez era uma dádiva dos deuses. E nós tratávamos o assunto com pinças, temendo dar voz a uma verdade insuportável: as mulheres da sua idade não davam à luz bebés saudáveis. Muito provavelmente, daí a dois ciclos lunares, ela e a criança estariam ambas mortas.
- Obrigada - murmurei, por cima do ombro, enquanto me afastava do espinheiro e mergulhava na escuridão da floresta. Era importante conservar as boas graças das Criaturas Encantadas, independentemente do que pensássemos a seu respeito. A floresta de Sevenwaters era a casa delas, tanto como era a nossa. Muito tempo antes, a minha família fora encarregada de zelar pela segurança dos que viviam naquele lugar. Tratava-se de um dos últimos refúgios para os povos antigos em toda a região de Erin, porque as grandes florestas estavam a ser derrubadas e convertidas em terras de pasto e. a religião cristã expandira-se profusamente, desalojando druidas e anciãs. Só nos recantos mais secretos e protegidos da terra é que ainda se praticava a antiga fé. Sevenwaters era um deles.
O caminho para casa seguiu o seu percurso sinuoso através dos densos bosques de carvalhos, até começar a descer em direcção à margem do lago. Num outro dia, eu teria apreciado caminhar devagar, absorvendo a paleta infinita de tons de verde, a música delicada dos pássaros, o xadrez de luz e sombra no chão da floresta. Hoje, porém, convinha acelerar o passo porque, ao cair da noite, a casa encher-se-ia de convidados e havia ainda uma longa lista de tarefas por cumprir. Sentia-me na obrigação, perante os meus pais, de asse-
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gurar que os preparativos domésticos corressem tão bem como se fosse a minha própria mãe a dirigi-los. Sabia que o pai teria preferido que o casamento de Deirdre se realizasse mais tarde, talvez no Outono, e não apenas porque a mãe se sentia tão frágil naquele momento. Mas, quando Illann pôs os olhos na minha irmã gémea, quis desposá-la sem demora, e o meu pai considerou a aliança demasiado valiosa para deitar tudo a perder com a insistência de uma espera. Illann era um chefe de clã do Uí Néill do Sul e um parente próximo do Rei Supremo. Tratava-se de um daqueles enlaces que as pessoas consideravam brilhantes. Felizmente, Deirdre parecia gostar quase tanto de Illann como ele gostava dela e fervia de entusiasmo desde o dia em que se tinham conhecido.
Os carvalhos erguiam-se até ao céu e os seus troncos musgosos brilhavam na luz filtrada do Sol. Os meus pés pisavam sem ruído a terra macia do carreiro. No meio das árvores, no limite da visão, moviam-se seres evanescentes, delicados como teias de aranha, rápidos como sombras. Na generosa manta de detritos que cobria as raízes dos grandes carvalhos, minúsculas criaturas agitavam-se na terra, correndo, rangendo, sussurrando. A floresta de Sevenwaters era o lar de muitas vidas: texugo, veado, lebre, escaravelho, toutinegra e libelinha partilhavam-na com esses habitantes que não pertenciam bem ao nosso mundo. Devia ser estranho para Deirdre abandonar tudo aquilo. A herdade do seu noivo, Dun na Ri, fazia fronteira, a Sudoeste, com as terras do nosso pai, mas eu sabia que nenhum lugar podia ser como Sevenwaters.
Assim que chegasse a casa, certificar-me-ia de que os vestidos das minhas irmãs mais novas estariam prontos para o banquete dessa noite. Arranjaria maneira de falar a sós com o meu pai, para ver como se sentia; sabia-o preocupado com o cansaço da mãe e esperava ser capaz de confortá-lo. Tentaria ainda aliviar a minha mãe, informando-a de que tudo estava sob controlo. Por fim, seria preciso falar com os meus dois tios druidas assim que chegassem. Tinha de perguntar a Conor se concordava com os planos feitos para o ritual da Primavera e para a cerimónia dos Punhos Ligados, previstos para o dia seguinte. Ciarán desejaria um lugar onde pudesse encontrar algum sossego. Costumava visitar-nos com muita frequência, para tra-
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balhar com Sibeal na arte druídica, uma vez que daí a poucos anos também ela entraria na comunidade. Educar uma jovem pupila no jardim, ou na paz e silêncio de uma câmara isolada, era uma coisa; enfrentar uma casa apinhada de convidados era outra. Ciarán sentia-se profundamente desconfortável no meio da multidão. Além disso, lembrava-se por vezes de trazer o corvo, e o pássaro perturbava as pessoas.
O caminho tornou-se mais estreito, ondulando entre pequenas matas quase compactas de sabugueiros. As formas graciosas e curvadas dos troncos esguios lembravam dríades inclinadas. Uma brisa fez estremecer a folhagem. De súbito, senti um arrepio de frio. Alguém me observava; sentia-o. Olhei à minha volta, mas não vi vivalma.
- Quem está aí? - chamei.
Não houve resposta, apenas o sussurro das folhas e o assobio de um pássaro a riscar o céu. Senti um calafrio. A nossa casa estava muito bem vigiada; os homens de armas do meu pai eram peritos. Além disso, a floresta protegia os seus. Ninguém ali entrava clandestinamente. Se era um membro da nossa família, porque é que não respondera ao meu chamamento?
Algo se moveu num bosque cerrado de carvalhos grossos, a cerca de cento e cinquenta metros do trilho. Estaquei, semicerrando os olhos. O movimento cessou. Avancei mais três passos no caminho e parei de novo, sentindo um formigueiro de pânico na pele. Estava ali alguém. Não era um veado nem um javali; era outra coisa.
Deixei-me ficar muito quieta, espreitando para o fundo negro por baixo da copa das árvores, mas só conseguia ver manchas de luz e de sombra. Ao abrigo da ramagem gigante dos carvalhos, abriam-se distâncias e profundidades, como se existissem passagens para um reino ainda mais vasto do que a vastidão da floresta podia abarcar. Dizia-se, é claro, que nos confins da floresta de Sevenwaters se encontravam portais de uma natureza muito peculiar: ligações ao Outro Mundo. Atravessar um deles seria uma viagem tão arriscada como prodigiosa, porque do outro lado o tempo não fluía da mesma maneira. Um homem ou uma mulher ausentavam-se por uma noite e, no regresso, descobriam que tinham voado cem anos
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no mundo dos humanos. Também havia quem se demorasse metade da vida junto das Criaturas Encantadas e voltasse ao nosso mundo em menos de meia estação. Era sensato não perder o rumo nesses meandros da floresta, a não ser que o desejo de aventura falasse mais alto do que tudo o resto.
Algo me chamou a atenção. Não era bem um movimento, talvez fosse... uma presença. Seria um homem de pé, encostado ao tronco de uma árvore imponente, um homem encapuçado, envolvido numa capa cinzenta, cor de prata?
- Quem está aí? - chamei. - Mostra-te e anuncia-te! Enquanto falava, ocorreu-me que, se o meu interlocutor me
obedecesse, eu não estaria equipada para lidar com a situação. Não sabia lutar e só trazia comigo uma simples faca de cortar legumes. Levantando a saia, desatei a correr.
Durante algum tempo, ouvi apenas o som dos meus passos no trilho macio. Ou será que havia duas séries de passos? Corri mais depressa, e quem me seguia acelerou para igualar o ritmo. Comecei a ficar ofegante; atrás de mim, alguém respirava, inspirando e expirando, sem abandonar a sua firme perseguição. Sentia o coração a saltar no peito; a pele a transpirar de medo. Parecia que as árvores à minha volta se sacudiam e rodopiavam e que o espaço entre elas se dilatava, como que a convidar-me a abandonar o trilho e a vaguear ao acaso.
- Não vou permiti-lo - murmurei para mim mesma. - Não
vou mesmo.
Não me pareceu que tivesse algum efeito.
Uma voz falou-me, então, em pensamento. Clodagh! Clodagh, onde estás? Isto fez-me tropeçar numa pedra e estendi-me ao comprido no caminho, a cabeça numa tontura de pânico. Instantes depois, percebi que não tinha sido uma provocação de quem me perseguia, mas a voz familiar da minha irmã gémea. Soergui-me, afastando os cabelos dos olhos, e nesse momento soube que, se alguém - uma presença do Outro Mundo ou um patife humano - me seguira até ali, esse alguém já se tinha ido embora. À minha volta, a floresta estava, de novo, em paz. Os pássaros cantavam. As folhas sussurravam na brisa ligeira. O caminho prolongava-se em linha recta. Sobre
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a abóbada de ramos dos carvalhos compridos, o Sol iluminava um dia perfeito, de Primavera.
Respirei fundo várias vezes antes de responder. Tinha a saia muito rasgada e, no joelho direito, um arranhão ensanguentado. Por momentos, fechei os olhos com força, empurrando o que acabara de acontecer para um recanto fechado da memória. Era um problema com o qual não podia, por agora, lidar. Estava simplesmente demasiado ocupada.
Deirdre? Respondi ao apelo da minha irmã, recorrendo a esse dom que todos os gémeos da família possuíam: um dom que nos permitia comunicar em silêncio, de mente para mente. O meu pai tinha esse talento. A sua irmã gémea, a tia Liadan, vivia do outro lado do mar, na Bretanha, e conseguiam partilhar pensamentos e notícias desde a infância. O que se passa?, perguntei-lhe, fazendo um esforço para me levantar e coxear em direcção a casa.
É o meu cabelo! Pus camomila na água efícou ressequido como uma tojeira! Não me posso casar neste estado! Onde estás, Clodagh? Preciso de ti!
Lembrei a mim própria que a minha irmã gémea deixaria Sevenwaters no dia seguinte, para começar uma vida completamente nova, numa casa que não lhe era familiar. Vai correr tudo bem, Deirdre, disse-lhe, listou a regressar do espinheiro. Não entres em pânico, encontraremos uma solução.
Voltei a recuperar o ritmo. Dali a pouco, o telhado alto da torre de pedra onde vivíamos surgiu à distância, por cima de uma suave cortina de árvores. A nossa casa era uma fortaleza construída para não deixar entrar os invasores. A floresta misteriosa que a cercava e o imenso lago que lhe lambia os pés eram só por si dissuasores do assalto armado. O meu pai tinha fundado aldeias fortificadas em zonas estratégicas da floresta, cada uma chefiada por um homem livre, com o seu pequeno exército de homens de armas. Era uma medida necessária, uma vez que Sevenwaters se situava precisamente no meio das duas facções rivais do clã do Uí Néill.
O meu pensamento regressou à figura que eu tinha avistado sob a copa das árvores. Será que um espião conseguira entrar na floresta sem passar pelas sentinelas? E o que esperava essa pessoa ganhar com isso? Estremeci, imaginando que me raptavam e me mantinham
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refém e que o preço do resgate seria obrigarem o meu pai a renunciar ao controlo das suas terras, ou algo ainda pior. Talvez não fosse uma boa ideia dar longos passeios sozinha. As pessoas eram, de facto, raptadas. Lembrava-me da história terrível de uma rapariga que fora levada dessa maneira. Quando a família decidiu, por fim, corresponder às exigências dos raptores, ela já tinha sido morta. A história dizia que a sua cabeça cortada fora lançada por cima do muro da casa do pai.
Absorvida por aquele episódio, saí de baixo do arvoredo e choquei contra um homem alto, envolto num manto cinzento. Duas mãos fortes agarraram-me nos ombros com violência. Gritei.
O homem largou-me abruptamente. Recuei, preparando-me para fugir dele e correr até à segurança da minha casa.
- Ui! - disse alguém, numa voz arrastada e preguiçosa, e vi um segundo homem atrás do primeiro, com as mãos nos ouvidos.
- Foi barulhento. Parece-me que perdeste o jeito com as senhoras, Aidan.
Aidan. Respirei fundo, horrorizada, e olhei para cima, vendo que o homem que me tinha agarrado era precisamente aquele cuja chegada a Sevenwaters eu aguardara com ansiedade, desde que o meu primo Johnny nos enviara a notícia de que estaria presente no casamento. Tinha imaginado melhores cenários para o nosso reencontro.
- Aidan! - exclamei, com um sorriso desajeitado. - Bem-vindo de novo! Estava a pensar noutra coisa e tu assustaste-me. Então, Johnny já chegou?
Tinha sido tola. Todos os homens de Johnny usavam mantos cinzentos, para melhor se confundirem com os tons da floresta. Tanto Aidan, que eu já conhecia, como o outro guerreiro, que era um estranho para mim, os traziam postos. Ambos exibiam marcas faciais: tatuagens em torno dos olhos e do nariz que representavam certas criaturas - a de Aidan, uma cotovia; a do companheiro, uma raposa - e eram usadas como símbolo da identidade individual e insígnia da irmandade por todos os membros do bando de guerreiros de Johnny.
- Chegámos há pouco tempo - respondeu Aidan, observando-me com alguma perplexidade. Perguntei-me se não me teria es-
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quecido, desde a passada Primavera, quando viera a Sevenwaters como membro da escolta do meu primo e mostrara por mim um interesse especial. - Não queria assustar-te. Estás bem?
Aidan continuava a ser tão atraente como eu me lembrava: alto, de ombros largos, rosto forte e bem desenhado, um sedoso cabelo castanho e olhos quentes. Era, de longe, o mais bonito de todos os homens de Johnny, pensei; pelo menos, de todos aqueles que eu já tinha conhecido. O meu primo liderava guerreiros de elite. Dirigia um centro que oferecia treino em todos os aspectos do combate, e os seus guardas pessoais eram os melhores entre os melhores. Como herdeiro do meu pai, Johnny passava uma parte do ano connosco, em Sevenwaters, e trazia sempre um destacamento de cinco ou seis guardas com ele. O companheiro de Aidan estava a olhar para mim. Tinha de responder à pergunta que Aidan me fizera. Mas, quando abri a boca, o homem moreno antecipou-se.
- Esta deve ser uma das múltiplas primas de Johnny: o vermelho ofuscante do cabelo confirma-o. Mas qual delas será? Não é a criança; não é a vidente; não é a mais velha, que nós já conhecemos. E a aleijada está em Harrowfield. De maneira nenhuma poderia ser a jovem que se casa amanhã. Deduzo que seja aquela que mencionaste mais vezes do que seria apropriado, Aidan. Disseste-me que ela tinha um talento. Qual era? Ah, é verdade, competências domésticas, lavar e cozinhar, esse género de coisas. - Seguiu-se um bocejo espalhafatoso. - Desculpem-me, mas não consigo imaginar nada de mais aborrecido.
Era o mesmo que dar-me um estalo na cara. Empenhei-me numa réplica.
- Cathal! - Aidan corou de embaraço. - Por favor, ignora o meu amigo - acrescentou, virando-se para mim. - Continuo a tentar educá-lo na arte subtil das boas maneiras, mas até agora ainda não lhe entrou na cabeça.
- Somos guerreiros, não cortesãos - retorquiu Cathal, com um enfado calculado. - Não precisamos de boas maneiras no campo de batalha.
- Mas não estás no campo de batalha, és um convidado na casa de um respeitado chefe de clã - exclamei, incapaz de controlar
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a minha irritação. - E nós gostamos de conservar um nível básico de cortesia. O meu primo devia estar muito ocupado a fazer-te um resumo das nossas características pessoais e, por lapso, esqueceu-se de mencioná-lo.
Cathal examinou-me com atenção.
- Clodagh, lamento a rudeza do meu amigo - disse Aidan, oferecendo-me o braço. - Chama-se Cathal e, tal como eu, é de Whiteshore. Johnny deixou-o na Ilha o ano passado e talvez devesse ter lá ficado este ano também. Perdoa-nos se te arreliámos.
- Fala por ti - ripostou Cathal.
Eu não sabia bem se queria apresentar-me a um indivíduo tão desagradável, mas era uma filha da casa e, tratando-se de um amigo de Aidan, por muito estranho que isso me parecesse, cabia-me, pelo menos, fazer o frete.
- Sou Clodagh, a terceira filha de Lorde Sean e Lady Aisling disse, com firmeza. - Sejam bem-vindos a Sevenwaters. Não esperava vê-los aqui em baixo.
A margem do lago ficava a alguma distância da fortaleza, na base de uma encosta coberta de erva, com a floresta de ambos os lados. Se era verdade que tinham acabado de chegar, deviam estar a descarregar as bagagens e a instalar-se.
- Cathal queria caminhar à beira do lago - disse Aidan.
- Ainda pareces arreliada, Clodagh. Garanto-te que Johnny só fala bem de ti e das tuas irmãs e que estamos todos familiarizados com as regras da casa de Lorde Sean. Peço desculpa, em nome de Cathal, pelas suas palavras imponderadas. São tudo cantigas e nenhuma substância.
- Vindo de um bardo, é um comentário surpreendente - retorquiu Cathal, contemplando o lago, como se não tivesse qualquer interesse na conversa.
Na Primavera e Verão anteriores, os companheiros de armas de Aidan tinham-no persuadido uma ou duas vezes a tocar harpa para nós, a seguir ao jantar. Era um músico de talento, coisa que muito me admirou. Os homens de Johnny eram guerreiros profissionais. A essência da arte do bardo era a criação; a do guerreiro, a destruição. Pareceu-me que dedicar-se a ambas podia encher o espírito de um homem de perguntas incompatíveis.
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- Espero que toques outra vez para nós, enquanto aqui estiveres - disse-lhe.
Aidan sorriu, revelando uma covinha no canto dos lábios.
- Só se tu tocares também - replicou, com os olhos castanhos a dançar.
- Talvez - respondi, pensando em todas as razões por que ansiara pelo seu regresso e decidindo que a presença de Aidan em Sevenwaters iria, de uma maneira geral, compensar a do ofensivo Cathal. - O noivo da minha irmã, Illann, preparou a vinda de músicos da sua própria casa para as festividades. Mas creio que Johnny ficará aqui algum tempo; haverá muitas oportunidades.
- Se olhares assim para Aidan, ele não recusará tocar para ti
- disse Cathal. - Está sempre pronto a cortejar mulheres prometedoras com uma ou duas canções de amor bem esgalhadas. Mas não o leves a sério, é o meu conselho.
- No caso improvável de eu achar que o teu conselho me pode ser útil, pedi-lo-ei - retorqui, num tom que, esperava eu, fosse definitivo. - E podes guardar para ti os teus comentários pessoais a respeito das minhas irmãs. Se tornar a ouvir essas observações, eu...
- Tu o quê? - arqueou as sobrancelhas. - Vais contar ao pai? Dar-me uma palmada na cara? Fugir a gritar?
- Pára com isso, Cathal! - Aidan parecia desolado. - Ele não disse uma única palavra a sério, Clodagh. Podemos escoltar-te até casa?
- Só um momento - retorqui, virando-me para Cathal. - vou pedir a Johnny que te mande embora imediatamente - disse-lhe, embora soubesse que não podia, no fundo, esperar que o meu primo satisfizesse um pedido daquela natureza. A colocação dos seus homens obedecia sempre a razões estratégicas. E a estratégia também se aplicava quando estes o acompanhavam a um casamento de família.
- Conheço o elevado nível de exigência que ele impõe aos seus guardas pessoais. Não se limita ao manejo das armas, à observação e à leitura de rastos no terreno. É uma exigência que se aplica ao modo como vives toda a tua vida. Se costumas ser rude com as
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pessoas, não consigo perceber por que motivo te conservou ao seu lado. Deves ter alguma qualidade que é perfeitamente invisível para quem vê de fora, como eu.
Estava à espera de uma réplica mordaz, mas Cathal limitou-se a encolher os ombros. Enquanto regressávamos a casa, e Aidan me envolveu numa conversa acerca de música, o seu amigo caiu num silêncio profundo.
Deirdre estava no quarto que partilhávamos desde crianças. Embora a nossa casa fosse uma fortaleza, o interior tinha sido confortavelmente equipado e incluía um grande número de aposentos privados. Sibeal e Eilis partilhavam a alcova do lado. Daí a dois dias, eu ficaria com o nosso quarto só para mim.
A minha irmã gémea estava sentada na cama, com a cabeça afundada nas mãos, a chorar. Não se enganara a respeito do cabelo. Ela e eu tínhamos herdado os caracóis flamejantes da nossa mãe, que podiam ser deslumbrantes se tratados com cuidado, mas tinham uma tendência para se tornarem selvagens à mínima provocação. Via-se que a camomila não fora uma boa ideia.
Entre soluços, Deirdre disse qualquer coisa a respeito de Illann achar que ela era feia e decidir que, afinal, já não se queria casar, e eu percebi que era esse o pior receio que o dia seguinte lhe reservava.
- Que disparate - contestei, sentando-me ao seu lado com o braço sobre os seus ombros. - Temos praticamente um dia inteiro até à cerimónia dos Punhos Ligados. Há tempo de sobra para arranjar o teu cabelo.
A longa sequência de tarefas que ainda tinha pela frente desfilou no meu espírito, mas decidi, naquele momento, ignorá-la.
- Uns salpicos de água de lavanda, um entrançado cuidadoso são tudo o que é preciso.
- Não temos o dia todo - alertou Deirdre. - Hoje à noite, há o banquete e a dança. E agora Johnny já cá está...
Talvez não chorasse apenas por causa da sua figura. Deirdre tinha uma grande queda para o drama, mas parecia genuinamente perturbada.
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- Deirdre - disse-lhe com firmeza, - vem sentar-te diante do espelho. Quanto mais depressa começar a arranjar-te o cabelo, mais provável será que recuperes a tua beleza para a festa desta noite.
- Não posso, de maneira nenhuma, apresentar-me na festa murmurou, instalando-se à frente do espelho. Depois, beliscou as faces, tentando puxar um tom rosado. - Estou com um ar exausto. Nunca devia ter escolhido o verde para vestido de casamento. Será que é tarde de mais para...
- Maldição de Morrigan! - exclamei, horrorizada, vendo de relance o meu próprio reflexo no espelho de bronze, por cima do ombro de Deirdre.
Agora já fazia sentido o comentário de Cathal a respeito de eu não poder ser a noiva. No meu cabelo, ainda mais frisado do que o de Deirdre, emaranhavam-se folhas e galhos. Depois da impetuosa corrida ao ar frio, as minhas faces exibiam o tom que ela cobiçava. Os olhos estavam vermelhos, tal como a ponta do nariz. O rasgão no vestido mostrava não só o joelho esfolado, como uma parte considerável da perna. Não era de admirar que Aidan me tivesse dirigido um olhar esquisito quando saí da floresta.
- O quê é? - perguntou Deirdre, distraída da sua angústia.
- O que se passa?
- Nada - resmunguei, usando um pente para separar o cabelo da minha irmã em várias mechas. Ia dar muito trabalho dominar aquela juba, mas prática não me faltava. - A não ser que tenhas em conta o facto de que acabei de cruzar-me com Aidan neste estado.
Aliás, Aidan e Cathal deviam estar a rir-se disso naquele preciso momento.
- Então, Johnny voltou a trazê-lo? É uma excelente notícia, Clodagh. Sei que gostas dele. Até aposto que Aidan perguntou se podia vir. Pareceu-me muito interessado em ti o ano passado. E é um pretendente muito adequado. Isto é, não tem exactamente a mesma linhagem de Illann, mas é filho de um chefe de clã, e eu sei que o pai gostaria de ter uma aliança no Oeste. Pensa só nisto, Clodagh: podíamos casar as duas no mesmo ano!
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- Aidan até pode ser material conjugal de primeira linha - repliquei, implacável, enquanto lhe prendia uma mecha de cabelo -, mas não tenciono casar-me com ele nos próximos tempos. Nem com ninguém, aliás.
Durante algum tempo, tinha sonhado com as memórias do ano passado, os passeios com Aidan pelo jardim, os momentos em que tocara harpa comigo e aqueles em que, tantas vezes, se desviara do seu caminho para me falar. Mas tudo isso acontecera antes de a mãe engravidar. Agora, as coisas eram diferentes e não era importante que eu gostasse de Aidan, ou ele de mim, porque eu sabia que não teria, num futuro imediato, a liberdade de casar, se é que alguma vez voltaria a tê-la.
- Tenho de ficar aqui, Deirdre, como tu sabes. Mesmo se tudo correr bem, a mãe vai continuar frágil e cansada durante algum tempo. Vai precisar de mim. E se as coisas correrem mal... - Nem valia a pena verbalizá-lo. - Esquece - disse-lhe, com uma alegria forçada. - De qualquer modo, o mais provável é ter arruinado a minha oportunidade de causar uma boa impressão a Aidan. Trouxe um amigo horrível com ele. O homem mais rude que tive o azar de conhecer. Não consigo imaginar onde é que Johnny o desencantou. Deve estar a perder o jeito.
Algo se alterou na expressão de Deirdre. Encontrei os seus olhos no espelho.
- Não deves ter estado a chorar apenas por causa do cabelo
- disse-lhe. - Qual é o verdadeiro problema? Johnny?
Era terreno pantanoso e mesmo eu teria de pisá-lo com cuidado.
- Porque é que seria? - reagiu, demasiado rápida na resposta.
- Tu sabes porquê, Deirdre. Durante anos e anos, só gostaste de um homem, e não era Illann. O facto de os primos em primeiro grau não poderem casar não é sequer para aqui chamado. Não seria justo para Illann se o encarasses como uma segunda escolha.
- Isso foi há séculos atrás. Eu ainda era uma criança. Não estás a pensar que acalentei uma paixão secreta por Johnny ao longo destes anos todos, pois não?
Eu sabia que era precisamente o que ela tinha feito, mas não ia afligi-la ainda mais dizendo-o de viva voz. Prendi, então, a última
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mecha de cabelo com ganchos, antes de começar a penteá-lo e a entrançá-lo.
- Estás nervosa, é isso? Por causa da... enfim, da noite do casamento e assim?
- Um bocadinho - respondeu. - Ui, magoaste-me, Clodagh! Mas não ao ponto de chorar por causa disso. Não é como se Illann e eu ainda não tivéssemos... Enfim, aconteceram certas coisas... Tenho a certeza de que vou gostar quando me habituar.
- Tens sorte - repliquei, sem parar de penteá-la. - É o casamento mais vantajoso que o pai podia sonhar para uma das filhas, e tu até gostas de Illann o suficiente para quereres partilhar o seu leito.
- Também chegará a tua hora.
-Já estou à espera que o pai me escolha um velho sinistro, alguém que até seja útil como aliado.
Aquela tentativa de humor não foi muito convincente, nem mesmo para mim.
- Ele não o faria, Clodagh - contestou Deirdre, numa voz séria. - Sabes que o pai não teria sequer insistido na minha união com Illann se eu não gostasse dele. E, tendo em conta o que as relações de Illann farão por Sevenwaters, é uma grande bondade da sua parte.
- É verdade.
Não me parecia que o meu pai tivesse de preocupar-se com os meus potenciais pretendentes. Fosse qual fosse o desfecho do parto, a mãe não seria capaz de retomar as suas tarefas por algum tempo. E se acontecesse o pior, eu teria de estar preparada para assumir a gestão doméstica de Sevenwaters enquanto o meu pai fosse vivo. Embora fosse uma de seis filhas, era inevitável que essa missão recaísse sobre mim.
A minha irmã mais velha, Muirrin, estava casada e vivia em Inis Eala, o quartel-general dos guerreiros de Johnny. Deirdre celebraria a cerimónia dos Punhos Ligados e partiria no dia seguinte. A irmã que nos seguia, Maeve, tinha sofrido lesões graves num incêndio, quatro anos antes, e agora vivia em casa da minha tia, na Bretanha.
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A tia Liadan, mãe de Johnny, era uma curandeira de inigualável talento. Se havia alguém capaz de ajudar Maeve a recuperar o movimento das suas pobres mãos deformadas e a aceitar o rosto mutilado, esse alguém era Liadan. Cathal tinha razão: a minha irmã era uma aleijada. Mas nunca ninguém na nossa família usara aquela palavra horrível.
Quanto às minhas irmãs mais novas, Sibeal era uma erudita, uma vidente - estava destinada a coisas mais elevadas - e Eilis só tinha nove anos. A nossa mãe já nos treinava há anos, a mim e a Deirdre, na expectativa de que ambas nos casássemos e tivéssemos de cumprir capazmente esses deveres nas casas dos nossos maridos.
- O que se passa, Clodagh? - O olhar de Deirdre tornou-se mais penetrante enquanto me observava no espelho. - De repente, pareces triste.
- vou ter tantas saudades tuas - respondi. - Felizmente, podemos continuar a falar uma com a outra mesmo depois de partires. Não sei como aguentaria sem isso. Sempre estiveste aqui. É como se uma parte de mim me abandonasse.
Deirdre não disse nada.
- Vais querer saber o que aconteceu quando a mãe tiver o bebé - continuei. - E poderei dizer-to de imediato.
Não seria uma tarefa fácil, se a mãe e a criança morressem. O elo mental que existia entre mim e a minha irmã significava que a notícia seria dada de uma forma abrupta, sem a possibilidade de pedir a uma terceira pessoa que estivesse presente, ou de convidar o receptor a sentar-se ou a procurar privacidade antes de a mensagem ser entregue.
- Ela vai morrer, não vai? - A voz de Deirdre tornara-se estranhamente neutra. - Depois de amanhã, nunca mais voltarei a vê-la.
Os meus olhos arderam de empatia. Não tínhamos conversado acerca do assunto, não da melhor forma. Afloráramos a superfície do problema em vez de admitir para nós próprios, ou entre nós, aquilo que sabíamos que era mais provável que acontecesse.
- Pode ser que consiga ultrapassar isto - repliquei. - Talvez o bebé sobreviva também. A mãe acredita muito nisso.
Deirdre inclinou a cabeça. As suas mãos fecharam-se com força, no colo. Não disse uma palavra.
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- Talvez Illann pudesse trazer-te de volta, para nos fazeres uma visita antes do parto - sugeri, pousando o pente. Seria terrível para a minha irmã gémea se o seu veredicto se concretizasse e não tivesse sequer a oportunidade de dizer adeus.
- Nem quero pensar nisso! - respondeu, com rispidez.
Deirdre sempre fora instável e as suas emoções tumultuosas, como uma tempestade de Outono. Eu era a mais serena; de um modo geral, limitava-me a cumprir o que tinha de ser feito.
- Abomino a ideia de estar presente quando isso acontecer
- acrescentou. - Imagina o que seria vê-la morrer mesmo à nossa frente e não poder fazer nada. Se tiver um rapaz e ele viver e ela não, odiarei essa criança mais do que qualquer outra coisa no mundo.
Deirdre tornou a chorar, o rosto contorcido numa fúria infeliz. Abracei-a, pestanejando com força.
- Isso é um disparate - retorqui, embora tivesse sentido uma coisa fria e sombria a passar por mim quando ela falou. - As pessoas nunca odeiam os bebés, basta olharmos para eles para os amarmos. E é possível que a mãe não morra. Talvez tenha razão e o bebé seja um rapaz, uma dádiva especial dos deuses. Talvez todas aquelas oferendas acabem por surtir efeito.
- Tu não acreditas verdadeiramente nisso, Clodagh. - Deirdre levantou a cabeça e os nossos olhos cruzaram-se no espelho. Impressionou-me aquele olhar; era quase hostil. - Eu quis dizer precisamente aquilo que disse. Se a mãe morrer, nunca mais vou querer voltar. Esquecerei Sevenwaters e concentrar-me-ei em ser a melhor esposa para Illann que puder.
Pensava que conhecia Deirdre melhor do que ninguém, mas ela tinha conseguido chocar-me. Imaginá-la a virar as costas a Sevenwaters e à sua família magoou-me. Não sabia o que dizer, mas tinha a estranha sensação de ter envelhecido de repente. Peguei no pente e voltei à minha tarefa. Nenhuma de nós podia dar-se ao luxo de aparecer diante do resto da casa com sinais de lágrimas no rosto. Cabia a Deirdre brilhar no festim dessa noite, e a mim, vestir uma máscara convincente de felicidade, sobretudo pelo nosso pai.
Enquanto chefe de clã de Sevenwaters, competia-lhe coordenar um conjunto de desafios bem mais exigentes do que os meus: não
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apenas o futuro incerto da mãe e da criança ainda por nascer, mas a possibilidade de o casamento de Deirdre vir a criar ressentimentos entre certos chefes poderosos do Uí Néill do Norte. No mínimo, desconfiariam da nova aliança entre Sevenwaters e o braço meridional do seu clã dividido. Mais graves ainda eram os rumores inquietantes que circulavam por toda a região: as pessoas tinham começado a culpar as Criaturas Encantadas por perdas de provisões, incêndios acidentais, colheitas falhadas e tempestades, como se aquele povo sábio e nobre se tivesse transformado, da noite para o dia, numa presença pérfida e intrometida. Intrigas desta natureza perturbavam o meu pai, uma vez que a nossa terra era há muito um abrigo para os Tuatha De. Não admirava que ele parecesse tão cansado. Nessa noite, Deirdre e eu teríamos de sorrir e manter a cabeça bem erguida. E, no dia seguinte, celebraríamos a cerimónia dos Punhos Ligados com toda a aparência de esperança e de alegria.
- Clodagh - disse Deirdre -, tenho uma coisa para te dizer. Não vais gostar.
- Sim?
- Lamento muito, muito mesmo, Clodagh. Sei que vais. ficar infeliz, mas tenho de fazê-lo.
Pousei o pente, perfeitamente iludida.
- Vamos, desembucha - exclamei. - Seja o que for, não pode ser assim tão mau.
Deirdre baixou os olhos.
- Clodagh, não podemos continuar a fazer isto. Quando eu me for embora, quando estiver na casa de Illann. Não será apropriado.
- Não podemos fazer o quê? Não conseguia imaginar o que era.
- Falar, como nós falamos. Perdoa-me, vou sentir muito a tua falta, mas... Depois de casar, seria... Não me pareceria correcto, Clodagh. Não fiques assim, não é o fim do mundo. Sê prática. E se Illann e eu estivéssemos deitados e, de repente, tu aparecesses ali, entre nós? Não exactamente ali, é certo, mas seria a mesma coisa. Não podemos continuar, é tudo.
Uma coisa fria e dura alojou-se no meu peito.
- Não estás a falar a sério - sussurrei, consciente de que ela não podia, ou não devia, ter dito aquilo.
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- vou ter uma nova casa e uma nova família. - A voz de Deirdre vacilou, mas ela cerrou os dentes. - Terei de concentrar-me nisso. Lamento magoar-te, Clodagh. Mas estou a falar a sério. Não vou deixar-te entrar; não posso. Por favor, não discutas. Já tomei a minha decisão. Não é só por minha causa e de Illann. Preciso de aprender a caminhar pelo meu pé e a enfrentar os problemas sozinha. Habituei-me em demasia a pedir a tua ajuda e a esperar que tu resolvesses as coisas, e agora vou ser uma mulher casada, com a minha casa e... Vamos, dá-me o pente. - Deirdre estava a tentar conter as lágrimas. - Devias mudar de vestido, rasgou-se todo
- disse-me, numa voz trémula. - Andavas a fazer o quê, lá fora? A trepar às árvores?
Eu costumava passar algum tempo com o meu pai, todas as noites, na pequena sala do conselho, a comentar os acontecimentos do dia. Gostava de pô-lo a par dos assuntos domésticos e ele falava-me das suas discussões com os chefes de clã vizinhos, das decisões que tomara a respeito das nossas herdades mais remotas e dos seus rendeiros livres; falava-me do gado que comprara e das viagens que planeava fazer a conselhos e encontros. Por vezes, discutíamos os conflitos que agitavam a nossa região e que, de um modo geral, envolviam as facções rivais do clã do Uí Néill. Já o fazíamos há muito tempo, antes mesmo de a mãe engravidar. No passado, ela fora muitas vezes o terceiro elemento dessas reuniões. Agora que não se sentia bem, faltava-lhe a energia ou a inclinação para conversas daquela natureza, e reuníamo-nos só os dois. Deirdre nunca se interessara por esses assuntos.
O meu pai dizia-me muitas vezes que eu tinha uma boa cabeça para o pensamento estratégico. Eu sabia que não era comum um chefe de clã consultar as filhas a respeito de questões de peso, mas o meu pai não era um homem comum. E, se eu tivesse irmãos, penso que continuaria a confiar em mim e a dar valor à minha opinião, da mesma forma que valorizava a opinião da mãe. Talvez por ter crescido com uma irmã gémea que não tinha medo de tomar decisões arrojadas e de assumir essa responsabilidade. Ou porque se
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tornara chefe de clã aos dezasseis anos e procurara muito o apoio da minha mãe - ela tinha sido o seu amor de infância e casaram-se novos.
Consciente de que nessa noite não teríamos tempo para a nossa conversa de rotina, com o banquete de celebração seguido de música e dança, aproveitei uma oportunidade para falar com ele a meio da tarde, esperando que os dois chefes de clã do Sul com quem se reunira saíssem da sala do conselho, para aí entrar discretamente.
O pai estava sentado, com o queixo pousado numa mão e um documento à sua frente, sobre a mesa. Contemplava o vazio, com um olhar distante. Já se viam fios cinzentos na cabeleira escura e linhas no rosto que não existiam antes da gravidez da mãe. O meu pai era conhecido como um líder forte e sábio, um homem determinado, que sabia ser firme sem nunca deixar de ser justo. Naquele momento, parecia-me exausto e abatido. Os dois cães-lobo eram uma companhia silenciosa; um descansava o focinho nos seus joelhos, o outro estendera-se aos seus pés. Quando entrei, levantaram a cabeça e voltaram a baixá-la.
- Pai - chamei, fechando a porta atrás de mim e, com ela, o burburinho de vozes que vinha do salão. - Queria saber se precisava que eu mandasse fazer mais alguma coisa. Já está tudo em ordem para o banquete desta noite e para o ritual de amanhã. A maior parte dos convidados já chegou. John disse-me que Muirrin e a sua pequena escolta chegariam aqui pela manhã. Ao que parece, chamaram-na, quando ia a passar, para socorrer uma criança doente na nossa aldeia do Norte. Johnny deixou três homens com ela e trouxe o resto. Já instalámos os convidados todos. Os cavalos foram recolhidos e tratados e Doran acomodou os criados e palafreneiros. Mas ainda não há sinais dos dois chefes do Norte que o pai convidou, Naithi de Davagh e o primo, Colman.
- Hum - murmurou, comprimindo os lábios.
- Acha que não vêm? Sem enviarem sequer representantes? Seria uma grave descortesia.
- Espero que venham, Clodagh. Estendi o convite a esses dois porque, de todos os chefes do Uí Néill do Norte, pareceram-me os mais justos e de espírito mais aberto. E com o vizinho influente,
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Eoin de Lough Gall, longe de casa, pensei que Naithi e Colman estariam preparados para se sentarem à mesa com Illann apenas durante os dois dias que duram as festividades. Pelos vistos, enganei-me. Estão descontentes com o casamento. Zangados, muito provavelmente.
Vi que estava muito preocupado e decidi não falar de presenças difusas a perseguirem-me pela floresta, ou mesmo dos insultos de jovens grosseiros; não enquanto aquela expressão não lhe saísse do rosto.
- Pai, é muito grave, não é? Este problema com os chefes de clã do Norte?
Ele apontou para o banco ao seu lado e eu sentei-me, lembrando-me que passara o dia inteiro de pé e que estava cansada.
- Tratarei do assunto depois do casamento - respondeu.
- Sim, é grave, mas agora Johnny está aqui e vamos pensar numa estratégia. Pareces-me cansada, Clodagh. Tens estado muito ocupada. E deves sentir-te dividida a respeito da partida de Deirdre.
- Eu estou bem, pai. - Tentei sorrir. - Estou a habituar-me a tudo isto. E será menos uma preocupação para a mãe, se eu garantir que tudo seja como ela gostaria que fosse.
Seguiu-se um momento de silêncio. A ideia não expressa pendia sobre nós: era possível que a mãe não voltasse a assumir o governo da casa; era possível que não ficasse connosco muito mais tempo.
- Gostaria que o casamento tivesse sido adiado - confessei, lembrando-me do seu aspecto pálido e esgotado quando fora vê-la ao quarto, mais cedo nesse dia. - Ela cansa-se tão facilmente... Sugeri que abandonasse o jantar mais cedo.
- Ficarei mais descansado quando Muirrin chegar e nos der uma opinião informada acerca do estado da tua mãe - disse-me, esfregando os olhos. - Devo dizer, Clodagh, que embora seja um casamento formidável para a Deirdre, também eu desejava que o tempo tivesse sido outro. É um grande esforço para Aisling neste momento, apesar da eficácia com que te tens ocupado dos preparativos. Ela parece... - interrompeu, sem vontade de verbalizar os seus pensamentos.
Pousei-lhe uma mão no ombro; ele cobriu a minha.
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Eu sei, pai - disse-lhe suavemente. - Mas amanhã à tarde
as festividades já terão terminado. E Muirrin deve ficar até o bebé nascer.
A minha irmã mais velha era uma curandeira; exercia esse ofício, tal como o marido, na comunidade de Johnny, em Inis Eala, onde eram frequentes as lesões de combate. Tínhamos sorte que ela pudesse passar algum tempo em Sevenwaters.
- Fico triste por Maeve não poder estar aqui - comentou o meu pai. - Sei que ela evita estes encontros, mas teria gostado de ver a irmã casar-se. Sinto a falta dela, Clodagh. Vocês são todas preciosas para mim, cada uma à sua maneira. Espero que saibas isso.
- Eu sei, pai.
Ouvi o que ele não estava a dizer-me: que o desejo ardente da nossa mãe por um filho - era inabalável na sua certeza de que a criança que trazia no ventre era um rapaz - podia facilmente significar que gostava menos do que devia das suas seis filhas. Eu já tinha ouvido Eilis, a minha irmã mais nova, dizer que a mãe não a amava tanto como a criança que vinha a caminho. Sibeal tranquilizara-a, explicando-lhe que as mães amam todos os filhos da mesma maneira, sempre. Mas eu própria não acreditava inteiramente nisso.
- E nós adoramo-lo. Temos o melhor pai do mundo. Vai ser estranho, não vai, quando Deirdre já não estiver aqui? E quando Muirrin regressar, ficarão apenas três das suas filhas. E Coll, é claro.
O meu pai sorriu.
- Perguntaste-me se eu precisava que se fizesse mais alguma coisa. Julgo que devia perguntar se posso ficar descansado; se o meu sobrinho terá um comportamento exemplar esta noite, diante dos nossos distintos convidados.
- Aquilo que Coll pode não estar disposto a fazer por mim respondi - fá-lo-á por Johnny. O rapaz tem uma adoração pelo irmão mais velho. Penso que durante algum tempo, pelo menos, teremos direito a um comportamento perfeito.
- Perfeito? Aquela criança? Duvido.
O tom de voz do meu pai era afectuoso. Coll não era indócil, era apenas um rapaz aventureiro. Ele e Eilis metiam-se em sarilhos, e li-
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vravam-se destes, dia sim, dia não. Dava mais vida à casa, o que, a meu ver, era uma coisa boa.
Alguém bateu à porta. Quando abri uma nesga, vi um chefe de clã à espera para falar com o meu pai. Pelo menos, pensei, roubaria uns instantes de repouso no quarto. Mas, para o pai, o trabalho do dia tinha começado de madrugada e só terminaria quando a festa acabasse e todos os convidados se fossem deitar, em paz.
Ninguém suspeitaria, à hora do jantar, que Lorde Sean de Sevenwaters trazia aos ombros aquele tormento. As suas feições vigorosas aparentavam tranquilidade e o sorriso convencia, à cabeceira do banquete. Para acolher todos os convidados, tínhamos posto quatro mesas, uma para a família sobre um estrado encostado a uma parede do salão, as outras dispostas na transversal, no espaço mais amplo daquela ala, a maior e mais imponente da fortaleza.
Tapeçarias bordadas decoravam as paredes; candeias projectavam uma luz quente nas suas cores vivas. O fogo crepitava na lareira, porque as noites de Primavera também podiam ser frias.
Quando Johnny estava connosco, costumava sentar-se à esquerda do pai, e a minha mãe à sua direita. Era uma forma de reconhecer que ele era o herdeiro do meu pai e que, um dia, seria chefe de clã de Sevenwaters. Naquela noite, Johnny cedeu o lugar a Illann, o novo genro, e sentou-se ao lado de Deirdre, à minha frente. Era fácil gostar de Johnny. Era um jovem enérgico, de cabelo castanho cortado rente, um par de olhos cinzentos e firmes e uma tatuagem no rosto que parecia levantar voo e sugeria vagamente a plumagem de um corvo. Sempre fora amável connosco, raparigas, embora nos inspirasse um ligeiro assombro reverencial. Johnny era mais velho, claro; um ou dois anos mais velho do que a nossa irmã mais velha, Muirrin. Era um experiente chefe militar, muito respeitado entre os homens de armas.
Os chefes de clã da região não o viam, porém, com a mesma unânime reverência. Como parente masculino mais próximo - filho primogénito da irmã gémea do meu pai - Johnny era o herdeiro legítimo de Sevenwaters. Mas o pai, Bran de Harrowfield, fora
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em tempos um marginal temido, e os dirigentes locais tinham boa memória. A tia Liadan tinha sido raptada pelos guerreiros de Bran com a minha idade, para poder cuidar dos companheiros de armas feridos. Desse encontro tão pouco prometedor, nascera Johnny e um amor que ainda brilhava como as estrelas do céu nos olhos de Liadan e do seu sisudo marido. Na verdade, uma profecia ditava que o meu primo seria, um dia, o chefe de clã de Sevenwaters. Era do conhecimento geral. Eu não tinha dúvidas de que Johnny desempenharia esse papel na perfeição, e sabia que o meu pai era da mesma opinião. Claro que, se a minha mãe desse à luz um filho saudável, as coisas podiam mudar.
O meu olhar deslocou-se de Johnny para Deirdre, sentada ao lado da nossa mãe. A minha irmã gémea estava deslumbrante. Não havia vestígios das lágrimas de há pouco. Conseguira convencê-la a deixar-me levantar o cabelo entrançado, o que fazia com que parecesse pelo menos três anos mais velha e muito elegante. Illann não conseguia tirar os olhos dela e os olhares que Deirdre lhe dirigia, com as pálpebras meio descidas, mostravam como apreciava a sua admiração.
A minha mãe fingia que comia, mas não me enganava. O pai não parava de olhar para ela de soslaio, vendo, sem dúvida, o mesmo que eu: as sombras por baixo dos olhos, a pele pálida como a cera, o sorriso forçado enquanto tentava concentrar-se em algo que Illann lhe contava. Sentindo que a irmã de Illann, sentada ao meu lado, me fitava com um olhar estranho, decidi mergulhar na conversa.
- Os músicos da vossa casa são muito bons - declarei.
- Especialmente o do assobio.
- Illann só contrata os melhores.
A irmã lançou um olhar avaliador pelo salão e deteve-se quando os seus olhos encontraram Aidan, que estava sentado ao lado de outros homens vestidos com o azul e o cinzento da escolta pessoal de Johnny. A sua expressão tornou-se mais calorosa; vi que apreciava a beleza de Aidan tanto como eu.
- O meu irmão compreende que muitas casas nesta região não possuam os recursos necessários para manter uma banda permanen-
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te. Penso que lorde Sean devia confiar menos nos bardos errantes. É uma pura questão de sorte descobrir um competente, ou apanhar com um sujeito sem talento nenhum.
- com certeza - repliquei, engolindo a irritação. - É verdade que temos dois druidas na família. Dão jeito para contar uma historieta depois do jantar.
Vi um sorriso passar pelo rosto de Conor. O tio do meu pai era chefe da sua irmandade e líder espiritual da nossa comunidade. Mantinha um grande interesse por problemas estratégicos e costumava visitar Sevenwaters regularmente, para aconselhar o meu pai. Ciarán, o seu meio-irmão, pedira dispensa da noite de festa, tal como eu esperava. Eu tinha-o instalado na pequena câmara, ao lado do quarto de repouso, e sabia que ele se deixaria ali ficar, absorvido pela meditação ou pelo estudo.
- Quanto a bardos errantes, o meu primo tem um músico talentoso entre os seus homens - prossegui, olhando para Johnny e reparando que Gareth, seu amigo próximo, um homem afável de cabelos ruivos, estava de pé atrás dele, de guarda. Johnny tinha posto um guerreiro em cada porta. Até naquele lugar, que era a sua segunda casa, não estava disposto a correr riscos. O que ele fazia tomava-o um amigo cobiçável pelos mais ricos e poderosos. Mas também o transformava num alvo.
- Ai sim? - indagou a irmã de Illann.
- Podemos convencer Aidan a cantar e a tocar mais tarde
- disse Johnny. - A nossa noiva adora harpa. E também toca bem.
Havia nisto algum exagero, porque a minha gémea nunca se esforçara o suficiente nos exercícios necessários à aquisição de um talento técnico. O elogio de Johnny fê-la corar. Estava, de facto, muito bonita. E como éramos praticamente iguais, eu tinha tido o cuidado de vestir-me de uma maneira simples, para Deirdre poder brilhar. Escolhi um vestido azul-esfumado, com uma túnica cinzenta debruada a branco. E prendi o cabelo numa trança única, tendo como único adorno uma fita azul.
- Obrigada, Johnny - respondeu Deirdre, com um sorriso ligeiramente assustado. Ignorava se o meu primo alguma vez se apercebera da devoção que ela sentia por ele.
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Por fim, convenci a mãe a deixar o salão e levei-a para a cama o mais cedo que pude. Eithne, a sua camareira, saiu para preparar uma bebida de ervas e mandei uma outra criada ir buscar água quente.
- Eu fico até elas voltarem - disse à minha mãe, enquanto esta se deixava cair na cama e se livrava dos sapatos.
- Obrigada, Clodagh. Na verdade, já estava a precisar de alguma paz. Esta noite, ainda não parou quieto.
Pegando-me na mão, colocou-a em cima da barriga. A criança pontapeou-me com força, e estremeci de emoção e de surpresa. Mas fiquei assustada. Já era tão forte. Por momentos, vi-o como um adversário, um ser implacável que tiraria a vida à minha mãe sem hesitar, só para salvar a sua.
- Está desejoso de sair e juntar-se às celebrações - comentei. Habituara-me a esconder o medo diante da minha mãe, uma habilidade que, por ironia, tinha herdado dela. Ao longo dos anos, observei-a a resolver tranquilamente crise doméstica após crise doméstica e apanhara-lhe o jeito para disfarçar a inquietude com um ar de competência animada.
- A mãe não comeu nada ao jantar. vou mandar trazer alguma fruta e pão da cozinha.
- Não é preciso tanta preocupação, Clodagh - respondeu-me, com uma centelha da antiga vivacidade na voz. - Os deuses querem que este rapaz nasça em segurança; sei-o desde o início. Porque é que me dariam mais uma oportunidade, passados todos estes anos?
- Mas devia descansar, de qualquer maneira. Quer que eu lhe faça companhia até adormecer? Afinal, não é a primeira vez que ouço uma banda. E é a noite de Deirdre, não a minha.
Uma sombra deve ter passado pelo meu rosto, ou arrefecido a minha voz.
- Gostarias que fosse a tua, Clodagh? Estás infeliz por teres ficado para trás?
Ela recostou-se obedientemente nas almofadas, mas os seus olhos observaram-me, penetrantes.
Sentei-me à beira da cama, olhando para baixo, para as mãos.
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- O facto de Deirdre e eu sermos gémeas não significa que desejamos o mesmo para as nossas vidas, mãe. Por agora, estou feliz por ficar em casa. Tenho muito tempo.
- Tens quase a idade que eu tinha quando me casei com o teu pai - comentou, esboçando um sorriso. - Mas é verdade que Sean e eu nos conhecíamos desde crianças. Houve um tempo em que pensámos que nunca mais voltaríamos a estar juntos, e a ideia quase me partiu o coração, Clodagh. Há quem diga que um amor assim se consome, que não consegue suportar os obstáculos e as provações da vida quotidiana. Mas não é verdade.
Os seus olhos perderam-se num horizonte remoto. Eu sabia o que ela não estava a dizer em voz alta: que o seu desejo de dar um filho varão ao meu pai lançara uma sombra na vida que levavam em conjunto e que agora, pelo menos, ela acreditava que essa sombra estava prestes a dissipar-se.
- Espero que Deirdre e Illann encontrem, com o tempo, essa mesma felicidade - prosseguiu. - Parece-me que já se apreciam muito um ao outro. Aí vem Eithne; vai tu agora, Clodagh. Vi que aquele rapaz encantador, o Aidan, voltou a acompanhar Johnny este ano. E não era o único jovem com os olhos postos em ti durante o jantar, apesar da maneira simples como te vestiste. És muito atenciosa com Deirdre. Espero que ela saiba apreciar a boa irmã que tem.
Regressei ao salão no momento em que estavam a levar a comida para dentro. Entrei discretamente, pela porta de trás, e procurei as minhas irmãs na multidão. Deirdre levantara-se, de mãos dadas com Illann, e preparava-se para liderar a dança. Toda ela parecia uma senhora, com o cabelo levantado e o vestido escuro, castanho-avermelhado. O pai estava a um canto, a falar com um grupo de homens. Johnny, Gareth e Conor reuniram-se aí, juntamente com dois chefes de clã que tinham sido convidados, e não me pareceu que estivessem a falar de casamentos. Quando os fitei, de relance, os meus olhos encontraram os olhos escuros do desagradável Cathal, que se deixara ficar à margem do grupo, a contemplar o salão. O seu olhar passou por mim como se eu lhe interessasse tanto como uma peça de mobília, e uma das mais enfadonhas. Horrorizada,
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senti-me corar e virei-me para tentar localizar as minhas irmãs mais novas.
Aparentemente, um dos músicos de Illann também era malabarista. Enquanto preparavam o salão para a dança, o homem entretinha a multidão, lançando cinco bolas coloridas ao ar e desempenhando uma série de prodígios acrobáticos de crescente dificuldade. Coll e Eilis estavam à frente da turba, a assistir ao espectáculo. A minha irmã mais nova parecia invulgarmente composta e asseada, no vestido verde-pinho, com um debrum de pele de coelho à volta das mangas que eu tinha cosido para ela. O seu olhar intenso denotava concentração. Eu conhecia Eilis o suficiente para saber que ela já queria dominar o mais depressa possível a arte do malabarismo e, em particular, ser melhor nessa arte do que Coll.
Sibeal estava mais atrás, o vestido azul-escuro ajudava-a a fundir-se com as sombras. Não se tratava exactamente de timidez. com a pessoa certa, Ciarán, por exemplo, Sibeal discutia fluentemente uma longa série de temas eruditos. Tal como eu, adorava histórias e música. Mas sempre fora diferente. Os seus dons de vidente faziam com que se sentisse mal na companhia de pessoas como a família de Illann e os chefes de clã convidados, que esperavam que ela tivesse os interesses e as opiniões de uma rapariga comum de doze anos. Conor queria que Sibeal esperasse pelo seu décimo quinto aniversário, pelo menos, para se comprometer com a vida druídica. Confortava-me a ideia de que ela só partiria daí a alguns anos. Era muito madura para a idade, por vezes até surpreendente, e uma boa confidente. Na ausência da minha irmã gémea, a sua companhia seria uma bênção.
Sob as instruções de Deirdre, as pessoas afastaram a mobília para abrir espaço para a dança. Deuses, sentia-me exausta! Não admirava que me tivesse deixado iludir pelos meus próprios delírios nessa manhã, na floresta; provavelmente, tinha caminhado meia adormecida. Não muito longe dali, havia uma porta estreita que dava para um lance de degraus de pedra que conduziam ao telhado. No Verão, era um bom refúgio, com uma vista panorâmica sobre a floresta de Sevenwaters e o voo dos pássaros como única companhia. Entrei disfarçadamente e fechei a porta atrás de mim. Só pre-
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cisava de um momento de pausa e, depois, voltaria a entrar e a sorrir para os convidados.
Não estava completamente escuro. Alguém tinha colocado uma candeia no primeiro degrau e pairava uma música no ar, vinda de cima; era uma ária lenta que eu já tinha tocado, embora não tão bem. Segui a música até à primeira curva das escadas e encontrei Aidan aí sentado, com a harpa no joelho e o sobrolho ligeiramente franzido. Estava vestido para a festa, com uma túnica de lã azul-escura e uma camisa imaculada por baixo, calças simples, de boa qualidade, e botas bem polidas. Trazia o cabelo apanhado com uma fita, na nuca. Parecia ainda mais bonito do que naquela manhã. Lembrei-me do modo como saíra disparada da floresta, como uma banshee NT, e senti-me desconfortável. Já tinha passado muito tempo desde a última vez que Johnny viera a Sevenwaters. Será que a memória do interesse que Aidan sentira por mim nessa altura me estava a iludir? Assim que ele me viu, cobriu as cordas com a mão e a música parou abruptamente.
- Por favor, não pares por minha causa - disse-lhe. - É encantadora.
Aidan fez menção de se levantar, enfiando a harpa por baixo do braço.
- Não te levantes, por favor. Eu vou, se quiseres ficar sozinho. Deuses, parecia a voz de uma rapariga de treze anos desorientada.
As faces de Aidan coraram.
- Estou só a praticar. Johnny espera que eu toque mais tarde. Não me quero enganar.
- Pareceu-me muito bem.
Instalei-me três degraus abaixo dele, prendendo a saia à volta das pernas.
- Essa é a cantiga que eu te ensinei o ano passado - não pude deixar de observar.
Aidan sorriu.

NT Na mitologia irlandesa, a banshee é um espírito feminino, ou fada, que pranteia a morte de alguém. Os seus gritos de dor podem avisar a família que um ente querido morreu longe, ou anunciar que a morte de uma pessoa está para breve.
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- Então, sempre te lembras! Será que podes ouvir, enquanto experimento tocá-la de novo? Ou talvez prefiras voltar à dança?
A dança pode esperar - respondi, perfeitamente consciente
de que era impróprio ficar ali sozinha com ele, embora, de repente, isso não tivesse nenhuma importância.
Os seus dedos moveram-se nas cordas e, quando a melodia arrancou, tive uma estranha sensação, como se eu fosse a harpa e sentisse o toque daquelas mãos no meu corpo, suaves mas seguras. Choquei-me com os meus próprios pensamentos. Tinha de tirar aquelas ideias disparatadas da cabeça e concentrar-me na música. Assim que ele terminasse, voltaria para o salão de imediato.
- Excelente - exclamei, quando Aidan chegou ao fim e me dirigiu um olhar interrogativo. - Melhoraste muito desde o ano passado.
Esperava que o meu rubor não fosse muito visível.
- A sério?
Havia uma doce hesitação no sorriso de Aidan.
- A sério - respondi, devolvendo-lhe o sorriso. - Eu tenho a minha própria série de adornos para a segunda estância. Podias usá-los, como contraste. Queres ouvi-los?
Aidan estendeu-me a harpa, sem uma palavra, e eu mostrei-lhe aquilo que queria dizer, mordendo o lábio de concentração. Não possuía, nem de perto, o mesmo talento musical que ele, e era incómodo tocar nos degraus. Mas Aidan ouviu-me com atenção e, no fim, voltou a pegar no instrumento, para experimentar o que eu tinha sugerido.
- Se fosses buscar a tua harpa, podíamos tocar juntos - propôs.
- Talvez numa outra altura.
Era Deirdre quem devia brilhar nessa noite. Seria injusto para ela se fosse eu a dar espectáculo.
- Estão à espera que eu vá dançar. É melhor que me apresse a fazê-lo, antes que alguém dê pela minha ausência.
- Danças comigo, Clodagh?
- Oh. - A resposta expedita escapou-me de novo. - Não estava a insinuar... Não quis dizer...
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- Eu sei. Na verdade, não sou um grande dançarino. Não tiveste a oportunidade de descobri-lo da última vez que aqui estive, mas é certo que vou pisar-te os dedos dos pés.
Aquela honestidade desarmou-me.
- Aposto que danças tão bem como tocas - desafiei. - Não sei se sabes, mas eu já estive em Inis Eala. Aí, todos dançam.
A comunidade insular de Johnny era constituída por guerreiros ferozes e mulheres enérgicas. As pessoas da ilha trabalhavam duramente e dedicavam-se com o mesmo empenho às horas de diversão.
- É verdade, mas a maior parte fá-lo com mais entusiasmo do que elegância - replicou Aidan, irónico, descendo até ao meu degrau e oferecendo-me a mão livre para me ajudar a descer o resto das escadas. - Se quiseres, tentarei dar o meu melhor.
No salão, o malabarista continuava a enfeitiçar os mais novos, mas os músicos tinham recomeçado a tocar e as pessoas já estavam a dançar. Deirdre levantara bem a cabeça e, de mãos dadas, ela e IIlann avançavam e recuavam, contornavam a fila e passavam por baixo das mãos unidas de outros casais. Aidan guardou a harpa num nicho de parede e ligámo-nos à cauda da fila. Reparei no olhar de Deirdre. A ela, pelo menos, não escapara o facto de eu ter regressado ao salão vinda de uma zona isolada, na companhia de um jovem. Deixá-la pensar o que quisesse. Quando Aidan balbuciou um pesaroso pedido de desculpas por me ter pisado os pés, esqueci os meus problemas e senti-me feliz.
Fiquei com Aidan para uma segunda dança. Não falámos muito
- ele tinha de pensar nos passos. A terceira foi uma jiga e exigia uma concentração tal que não conseguimos articular uma palavra. O salão estava a ficar barulhento. Começara a formar-se uma longa fila de pessoas, no limiar do espaço de dança, que saía em direcção ao pátio, onde se acendera uma fogueira a uma distância segura da casa. Em Sevenwaters, éramos muito prudentes com o fogo, porque tinham passado apenas quatro anos desde o terrível acidente que mutilara Maeve para o resto da vida. Mas fomos aprendendo a lidar com aquela presença, uma vez que constituía um elemento crucial das celebrações mais importantes, como os casamentos e rituais sazonais.
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A serpente de dançarinos passou por nós. Coll e Eilis estavam lá dentro.
- Clodagh! - gritou a minha irmã mais nova. - Vem!
De repente, eu e Aidan também fomos puxados, com ou sem vontade. De mãos dadas com a minha irmã e com Aidan, dei por mim a dançar ao relento, no pátio, onde um turbilhão de sombras subia as paredes ao sabor da luz movediça da grande fogueira. As nossas formas transformavam-se em veados gigantes, empinados, em corujas e lebres, ou em criaturas misteriosas, meio humanas, meio outra coisa qualquer. Aidan sorria. A mão dele na minha era quente e forte. Senti o coração a bater mais depressa. O músico que tocava tambor na banda de Illann seguiu-nos até ao pátio, parando nos degraus principais e acompanhando o ritmo enquanto nos afastávamos da casa. A fila já começara, entretanto, a cercar a fogueira, descendo até aos estábulos e regressando, e as pessoas puseram-se
a cantar.
- Estás bem? - vi, mais do que ouvi, Aidan perguntar-me. Acenei, respondendo ao seu sorriso com outro sorriso. Era impossível conversar normalmente. As vozes engrossaram-se e a dança tornou-se mais indisciplinada. A fila virava de repente, e tínhamos de agarrar-nos com força para não sermos puxados. Eilis ria-se, histérica. Tive esperança que ela não conseguisse seguir a letra da canção, que se tornava, estrofe a estrofe, mais picante. Talvez tivesse chegado a hora de levá-la para dentro. Mas eu estava a divertir-me e Aidan também - apertou-me a mão, rindo loucamente. O tambor empenhava-se com afinco. Agora, o músico do assobio juntara-se ao primeiro, acrescentando uma versão erudita e rigorosa da melodia à versão errática que os convivas bradavam.
Lá em baixo, junto dos estábulos, Eilis tropeçou, puxando-me com força. Eu cambaleei, largando a mão dela e a de Aidan. Num piscar de olhos, alguém me arrancou à fila e mergulhou comigo na escuridão, junto dos degraus, puxando-me para dentro da selaria. Senti os braços presos com firmeza; o meu atacante sabia exactamente como se agarrava uma pessoa de maneira a que esta não pudesse ripostar.
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- Larga-me! - gritei. Mas era tão inútil como os esforços que fazia para me libertar. A cantoria abafava todos os outros sons. Se alguém quisesse raptar-me, aquele era o momento perfeito.
- Pára de lutar, então - segredou-me ao ouvido uma voz inconfundível; sentia-lhe o hálito quente. Cathal. - Acredita que não tenho qualquer desejo de molestar-te. Quero apenas dar-te um conselho amigável.
- Amigável?! Não gostaria de ver como tratas os teus inimigos. Larga-me, Cathal! Estás a magoar-me.
E a assustar-me. Mas não lhe daria a satisfação de ouvir-me dizê-lo em voz alta.
O seu amplexo atenuou-se ligeiramente. Tentei libertar-me, e ele voltou a apertar-me. Escolhera bem o seu esconderijo, a esquina do estábulo separava-nos da companhia tumultuosa. Eu não conseguia ver ninguém, e ninguém no pátio conseguiria ver-nos.
- O que vem a ser isto, em nome dos deuses? - silvei. - Como te atreves a tratar-me com esta rudeza?
Assim que ele me deixasse ir, correria para dentro e contaria ajohnny o erro que tinha cometido ao contratar aquele bárbaro arruaceiro.
- Estás a pensar ir a correr para casa denunciar-me? - murmurou Cathal. - Mas não o farás. Não queres estragar a festa de casamento da tua irmã, pois não? Agora, ouve-me: uma boa menina como tu não se põe a dançar a noite inteira com o mesmo homem, se não houver entre ambos alguma espécie de compromisso. Não acredito que haja uma promessa dessas entre ti e Aidan. Segue o meu conselho. Deixa o meu amigo em paz. As aparências iludem, Clodagh. Ele não é para ti.
Era esta a razão pela qual considerara legítimo atacar-me em público? Inacreditável.
- Já terminaste? - repliquei, esmagando a tentação de perguntar o que queria dizer com aquilo, ou de ripostar de uma maneira óbvia, lembrando-lhe que não era da sua conta com quem eu escolhia dançar.
- Clodagh! - a voz de Aidan estava ali perto, com uma nota de preocupação. - Clodagh, onde estás?
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Ele está apaixonado - disse Cathal, retirando abruptamente
as mãos dos meus braços. Nesse momento, algo se agitou atrás dele uma sombra, uma silhueta talvez a vinte passos de distância, pouco mais do que uma ligeira perturbação nos muitos tons de cinzento que havia entre aquele ponto e os portões. Pestanejei e a sombra desapareceu. - Certifica-te de que tu não estás - acrescentou. Daí só virá o mal. Agora, é melhor ires, antes que o meu amigo perceba tudo ao contrário. Ah, Aidan, estás aí. Pareceu-nos ver algo, um cãozinho perdido, talvez, mas já se foi embora.
- Um cão.
O tom de Aidan não disfarçava a sua absoluta incredulidade. O sorriso solar evaporara-se. Os olhos julgaram Cathal primeiro e, depois, julgaram-me a mim.
- Com licença - exclamei, passando por eles de cabeça erguida e o coração a trovejar. Fui directamente para casa, apanhando Eilis pelo caminho. Não informei Johnny, nem o meu pai. Cathal tinha razão: não ia estragar a festa da minha irmã acusando um dos guerreiros de confiança do meu primo. Limitar-me-ia a afastar-me do caminho daqueles dois homens. Cathal era tortuoso. Tudo nele me inquietava. Quanto a Aidan, gostara muito da sua companhia na passada Primavera, e ainda a apreciava mais agora, mas não me tinham agradado o ciúme e a suspeita que vira no seu olhar. Deixá-los-ia resolver o assunto entre eles, ou o que quer que fosse. Por agora, estava farta de homens.

CAPÍTULO DOIS

No dia do casamento de Deirdre, a casa de Sevenwaters também cumpriu o Meán Earraigh, o ritual do equinócio da Primavera. Ciarán não participara de todo nas festividades da noite anterior, mas apareceu para ajudar Conor a orientar o rito. O druida, tio do meu pai, era alto e pálido, tinha uma cabeleira de um vermelho profundo e ardente e olhos intensos, cor de amora. Parecia um homem solitário, mesmo quando estava acompanhado. Embora fosse meio-irmão de Conor, era muito mais novo; mais próximo do meu pai, em idade.
Meán Earraigh era uma das minhas festas preferidas. Lá em baixo, no relvado à beira do lago, fazíamos um círculo com folhas e pétalas. Era aí que se celebrava o ritual, família e convidados unindo-se nos cânticos e partilhando ervas e hidromel. Despedíamo-nos do Inverno, saudando o calor e a promessa da nova estação. Sibeal desempenhou o papel da donzela virgem, usando uma coroa de flores enquanto dançava no interior do círculo. Naquela estação, ela tinha a idade perfeita - começara há pouco tempo a sangrar mensalmente. Dançou sem consciência de si, com a cabeleira negra a ondular-lhe nas costas, os olhos distantes, as feições solenemente compostas. Enquanto durasse o seu papel no ritual, Sibeal não era uma menina reservada de catorze anos, mas a encarnação da deusa na sua forma florescente.
Ao lado da minha irmã, dançava o filho de um dos homens livres que trabalhavam para o meu pai, representando o Sol no seu
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poder nascente. O assobio e o tambor, a flauta de cana e a harpa fizeram-me bater os pés, embora o ritmo daquele compasso fosse contemplativo. Conor estava imponente com a sua túnica branca, o torque de ouro e a cabeleira nivosa distribuída por muitas tranças finas. Observava com orgulho os jovens dançarinos, de uma maneira distinta de Ciarán, em cujo rosto parara uma sombra, como se a própria frescura e inocência daquele par despertasse nele uma mágoa secreta. A dança chegou ao fim. O rapaz depositou um molho de flores primaveris nas mãos de Sibeal, simbolizando a expansão florescente daquela estação, e ela fez uma pequena vénia.
Ao contrário de alguns dos seus parentes do Uí Néill, que se tinham convertido à religião cristã, Illann mantivera-se fiel à antiga fé. Isso fortalecera-o como pretendente de Deirdre e significava que a cerimónia dos Punhos Ligados - que se seguia ao ritual da Primavera - podia ser conduzida como um ritual integralmente druídico. Eu nunca considerara Deirdre especialmente bonita; reconhecer a sua beleza seria o mesmo que admirar-me um pouco a mim mesma - um sentimento vão e errado. Mas a minha irmã gémea estava encantadora naquele dia, a felicidade brilhava-lhe no rosto, o vestido verde realçava-lhe os olhos cintilantes, o cabelo caía-lhe sobre os ombros das fitas que o apanhavam atrás, elevando-o. Era uma jovem noiva perfeita e a admiração acendeu-se nos olhos de Illann quando ambos deram as mãos diante de Conor, prometendo amor, confiança e verdade até que a morte os separasse para sempre. A felicidade de Deirdre fazia-me feliz. Mas não conseguia deixar de pensar que, mais tarde, quando fosse deitar-me, entraria sozinha no nosso quarto e não teria a minha gémea a quem desejar uma boa noite. O meu espírito enchia-se dos longos meses que se estendiam à minha frente, sem uma única palavra daquela irmã que me fora mais próxima do que qualquer outra pessoa no mundo.
Mais depressa do que seria desejável, a cerimónia dos Punhos Ligados terminou, os bolos e o hidromel da celebração foram consumidos e estávamos a despedirmo-nos de Deirdre e da sua comitiva, pois seguiriam de imediato para a casa de Illann, em Dun na Ri. A maior parte dos nossos convidados também estava de partida.
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O caminho pela floresta de Sevenwaters não era fácil, especialmente para aqueles que não o conheciam bem, e o pai providenciara uma escolta dos seus homens de armas para acompanhar os visitantes até à saída.
com o delicado estado de saúde da mãe, estava ansioso que a casa regressasse ao seu ritmo habitual, embora não o tivesse dito publicamente. Por isso, abracei Deirdre e disse-lhe adeus e nenhuma de nós chorou, mas, quando os cavaleiros desceram a ladeira e entraram no arvoredo, senti que uma parte de mim partia com eles.
- Sabes, Sean - disse Conor, mesmo ao meu lado -, gostava de sentar-me um pouco a saborear aquele delicioso hidromel que não foste buscar enquanto os nossos convidados aqui estavam. Johnny, talvez convencesses o teu companheiro bardo a tocar para nós, uma melodia tranquila, e reflectíssemos um pouco acerca do passar do tempo e das mudanças que nos esperam. Ciarán, ficas?
- Obrigado, mas não ficarei.
Ciarán tinha o manto vestido e levava o bordão, pronto para a partida. Compreendia-se o seu desconforto nas reuniões familiares, porque Ciarán era o filho que Lorde Colum de Sevenwaters tivera da segunda mulher, uma feiticeira descendente de uma linhagem negra das Criaturas Encantadas. As minhas irmãs e eu só sabíamos da sua existência há poucos anos. De repente, surgira entre os druidas um membro da família de que nunca nos tinham falado. Aparentemente, Ciarán superara o seu tenebroso legado, uma vez que se esperava que fosse o próximo chefe druida, depois de Conor.
Ciarán inclinou a cabeça com cortesia para o meu pai.
- Adeus, Sean. Partilhámos momentos decisivos, uns dolorosos, outros felizes. Espero que a tua filha encontre a felicidade ao lado do seu novo marido. Adeus, Aisling; os deuses caminham contigo e com a tua criança.
Dizendo isto, partiu.
- O tio Conor tem razão, pai - comentou a minha irmã mais velha, Muirrin, que chegara a Sevenwaters mesmo a tempo da cerimónia. - Que melhor ocasião do que esta para partilharmos aquele hidromel tão especial?
-Já há algum tempo que não vejo Eilis - observou a mãe, apoiada no braço do pai. O esforço de sair de casa para assistir ao ritual cansara-a. - E Coll, onde está?
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vou à procura deles - declarei. Tinha visto as duas crianças
no fim da cerimónia, a afastarem-se na direcção dos estábulos, e temia que o pior pudesse acontecer às suas melhores roupas.
Eilis e Coll não estavam nos estábulos. Nem no pátio exterior.
- Lá pra baixo, minha senhora - disse um dos moços de estrebaria, apontando para o lago, visível entre os portões abertos. Estão seguros; um dos homens de Johnny ia com eles.
Levantara-se uma brisa fresca e senti frio com o vestido de lã fina que usara no casamento. Hesitei, sem saber se devia ir a correr a casa buscar um xaile. Era melhor não; Eilis e Coll não deviam estar longe e, quanto mais depressa os trouxesse de volta, menos razão teria a mãe para se preocupar.
Enveredei pelo carreiro que percorria a margem do lago, esperando localizar as crianças a qualquer momento. Quando cheguei ao ponto em que o caminho se bifurcava, um dos trilhos subindo a colina em direcção à floresta, comecei a ficar nervosa. Já tinham ido longe de mais. E não havia sinais deles ao longo da margem, mais à frente. Será que tinham subido a encosta e estavam metidos no arvoredo? Ambos sabiam bem que deviam ter ficado no salão o resto da tarde. Havia algo de errado. Não fazia sentido.
Detive-me na bifurcação, com a cabeça cheia de memórias indesejadas da estranha experiência do dia anterior. Se alguém fora capaz de aproximar-se o suficiente para me seguir no caminho entre o espinheiro-alvar e a fortaleza, o que impediria essa mesma pessoa de raptar a minha irmã e o meu primo nas barbas da família? E a silhueta indistinta que eu tinha visto na noite da festa, quando Cathal me puxara para fora da fila de dança? Estremeci. E agora? Corria para casa e chamava um guarda? Ou continuava, na esperança de não estar muito longe das crianças e de conseguir alcançá-las em breve? Se desperdiçasse um tempo precioso a ir buscar ajuda, podíamos perdê-las por completo. Além disso, era possível que estivessem ali mesmo, depois da próxima curva, e nada de fatídico lhes tivesse acontecido. Preocuparia os meus pais em vão. Suspirando, comecei a subir em direcção à floresta.
E foi o que fiz durante algum tempo, o suficiente para aquecer consideravelmente. Enquanto avançava, gritei "Eilis! Onde estás?
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Coll!", mas a minha voz perdia-se no arvoredo cerrado. A única resposta era o grito estridente de um pássaro a voar alto. Icei-me até ao topo de um outeiro íngreme. Os meus melhores sapatos estavam cobertos de lama e o estado da bainha do vestido bordado não me permitiria voltar a usá-lo tão depressa. Sentia o coração acelerado, em parte do esforço, em parte do medo que crescia. A minha irmã mais nova só tinha nove anos. E confiava nas pessoas.
Ouvi passos atrás de mim, lá em baixo, na base da colina.
- Clodagh?
Era a voz de Aidan. Invadiu-me uma onda de alívio.
- Aqui em cima! - gritei. - Estou à procura de Coll e de Eilis, penso que vieram por aqui.
- Espera por mim, então.
Num ápice, Aidan apareceu ao meu lado e eu deixei escapar uma explicação atabalhoada dos receios que sentia.
-... E o moço da estrebaria disse-me que um dos homens de Johnny estava com eles, mas eu não sei qual...
- Cathal, penso eu. Uma das criadas viu-o a afastar-se com as crianças. Johnny sugeriu-me que viesse atrás de ti e me tornasse útil. Talvez não seja muito seguro andares sozinha por aqui.
- Estamos sempre a fazê-lo - repliquei, embora começasse a pensar que a prudência de Aidan era legítima. - Afinal, é a nossa casa. E a floresta tem... enfim, tem os seus métodos, misteriosos, para afastar inimigos. Os intrusos perdem-se simplesmente, mesmo quando pensam ter memorizado o caminho. Anda, é melhor continuarmos a andar.
Cathal, pensei. O que estaria ele a tramar? Havia definitivamente algo de errado com aquele homem. Se eu encontrasse Eilis e Coll
- quando os encontrasse -, deixaria bem claro que não queria que voltassem a conviver com Cathal. Como é que Eilis podia ter caído no disparate de partir com ele para a floresta?
- Eilis! - chamei de novo, quando saímos para uma pequena clareira, e desta vez obtive uma resposta.
- Aqui! - gritou a minha irmã com uma voz trémula.
O som vinha de um pequeno bosque de carvalhos muito altos. Na base de cada tronco musgoso, um emaranhado de raízes densas
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mostrava as suas garras. A abóbada de ramos carregados de folhas mergulhava o espaço numa estranha penumbra. Eilis estava sentada por baixo de um gigante da floresta, a assoar o nariz com um lenço de linho. Tinha os olhos vermelhos e arranhões nas mãos e na cara.
- O que é que aconteceu? - perguntei, com uma voz serena, enquanto a abraçava, - Alguém te magoou, Eilis? Onde está Coll?
- Eu desci sozinha - anunciou-me, com uma ruidosa fungadela que desmentia a firmeza das suas palavras. - Mesmo até cá abaixo. Mas Coll ainda lá está. - Eilis olhou para a copa da árvore; por cima de nós, o tronco do carvalho erguia-se até ao céu. - Ele está preso. Quando cheguei cá abaixo, em segurança, Cathal voltou a subir para ir buscá-lo.
Segui o olhar de Eilis. Se o meu primo se encontrava naquela árvore monstruosa, já ultrapassara o ponto em que a abóbada de ramos me bloqueava a vista. Senti o coração apertado; um suor viscoso nas palmas das mãos. A ideia de que a minha irmãzinha subira até ali causava-me náuseas.
- Pateta insensato! - Aidan aproximou-se de mim de sobrolho franzido. - Como é que se atreveu a afligir-te desta maneira? Mas não há motivo para alarme. Cathal é um excelente trepador. Vai trazer o rapaz para baixo são e salvo.
- Mas é tão alto! - Obriguei-me a respirar fundo. - Eilis, tu e Coll tinham a obrigação de saber que isto era demasiado perigoso. Como é que conseguiram subir o primeiro troço? Aquele galho está à altura da cabeça de um homem adulto. Podes ter jeito para trepar, mas sei que não és capaz de chegar até ali.
- Cathal ajudou-me.
Seguiu-se um silêncio breve e intenso, interrompido pelo som de alguma coisa a mover-se na copa da árvore, muito acima das nossas cabeças.
- Cathal ajudou-te - repeti, num tom neutro. - E de quem foi a ideia?
- Nós queríamos trepar às árvores. Cathal disse que nos levava. Disse que conhecia um bom lugar. Só estava a ser simpático, Clodagh. Não fiques tão zangada.
- Não estou zangada - respondi, cerrando os dentes. No fundo da copa, distingui, então, duas silhuetas humanas, cada uma do
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tamanho de uma falange do meu dedo mindinho. Cathal surgiu primeiro, movendo as pernas compridas de um ramo para o outro, com a confiança de uma aranha. Logo a seguir, vinha Coll, e percebi que Cathal lhe mostrava onde pôr os pés, onde se agarrar.
- Cathal encontrou estas árvores grandes - disse Eilis. É um excelente trepador. Não teríamos conseguido subir sem a sua ajuda. Coll disse-nos que se fôssemos mesmo até ao topo, veríamos toda a floresta de Sevenwaters, talvez até o mar. Mas eu não cheguei ao topo. Cathal achou que já tínhamos subido o suficiente e obrigou-me a descer.
Uma chuva de galhos e de outros detritos abateu-se sobre nós; alguém escorregara lá em cima. Agora já conseguia ver o rosto de Coll - o maxilar comprimido numa expressão fechada, a pele lívida e macilenta - e ouvi a voz de Cathal, baixa e firme, embora não percebesse o que estava a dizer.
- Então, fez, pelo menos, uma coisa certa - repliquei. - Mas tu fizeste um grande disparate. É demasiado alto para ti. Se tivesses caído, terias... Terias morrido. Terias partido um braço ou uma perna. Mesmo assim, estás cheia de arranhões. O que dirá a mãe quando te vir?
Ouviu-se o som de uma coisa a estalar e a escorregar por cima de nós e eu recuei, puxando Eilis para o lado. Um ramo baixo partiu-se e aterrou no chão, no lugar onde ela estava, interrompendo-lhe o protesto meio verbalizado. Olhámos os três para cima. Coll e Cathal estavam ambos sentados no mesmo ramo, talvez a dez metros do chão.
- E claro - dizia Cathal - que os carvalhos da minha terra são muito mais altos do que este. É em cima deles que nos caem os primeiros dentes. Este, sou capaz de trepá-lo a dormir. Mas o topo é alto de mais para Eilis. Afinal, é uma rapariga e, segundo ouvi dizer, mais nova do que tu. Não podem fazer isto sozinhos, percebes?
O facto de Coll não responder mostrava o medo que sentia. Vi-os descer com cuidado em direcção ao ramo mais baixo. Apesar da fúria, tive de admitir que Cathal estava a dirigir a operação com habilidade. Em cada etapa do caminho, colocava o corpo de modo a dar o maior apoio e segurança ao trepador mais novo, e o tom de
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voz fora calculado para tranquilizar o rapaz assustado. Por fim, chegaram ao ramo mais baixo. Enquanto eu pensava no que ia dizer a cada um deles, Cathal fez um breve comentário a Coll e, de repente lançou-se do ramo como se não estivesse de todo consciente da distância até ao solo. O meu coração ainda teve tempo de saltar de susto quando ele aterrou, num movimento teatral, mesmo ao meu lado, virando-se logo de seguida com os braços erguidos.
- Eu apanho-te - chamou, com absoluta confiança. - Anda, tu consegues!
Pálido e claramente trémulo, Coll saltou. Cathal e Aidan apanharam-no, almofadando o impacto.
- Não houve danos - declarou Cathal, de ânimo leve.
- Estás ferido, Coll? - perguntei, ignorando Cathal ostensivamente. - Mostra-me as tuas mãos.
Tinha as palmas terrivelmente esfoladas e ia precisar de um curativo. A camisa e as calças estavam ambas rasgadas.
- Não vamos falar disto à mãe - disse às duas crianças.
- Não vale a pena preocupá-la agora que já estão cá em baixo, seguros. Vão regressar os dois comigo imediatamente e mudar de roupa, sem um único protesto. Sabiam perfeitamente que nos devíamos ter reunido no salão esta tarde.
Olhei para Aidan de relance.
- Johnny mencionou qualquer coisa a respeito de tu tocares para nós. Este episódio varreu-me as suas palavras da memória.
Senti o olhar de Cathal fixo em mim.
- E tu - disse-lhe, sem olhar para ele -, tiveste um papel nesta escapadela que ultrapassa a mera irresponsabilidade. Não voltes a fazer uma coisa destas.
Contive outras palavras, palavras de fúria, indisciplinadas. Aidan falou antes de o seu amigo poder responder.
- Vamos ter um comportamento exemplar, Clodagh, podes ficar descansada. Espero que me ajudes com a música.
- Talvez - respondi, com uma timidez em grande parte fingida.
Por fim, Cathal falou.
- Que os deuses nos protejam - disse. - Duas harpas!
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- Já para casa, Eilis - ordenei com rudeza. - Imediatamente. Tu também, Coll. Estão todos à nossa espera.
- Fazemos uma corrida? - desafiou Cathal, partindo como uma lebre. Após uma pausa de espanto, as duas crianças lançaram-se numa intensa perseguição.
- Não vejo razão para corrermos também - disse-me Aidan.
- Se formos mais devagar, podemos falar do nosso repertório. Conheces O lamento de Mac Dara?
- Qual é o problema deste homem? - murmurei por entre dentes, enquanto os outros desapareciam no meio do arvoredo, do outro lado da clareira.
- Mac Dara? - replicou, de sobrancelhas arqueadas.
- Não. Cathal. Eu sei que é teu amigo, mas há qualquer coisa nele de... peculiar.
Não podia contar-lhe o que Cathal me dissera na noite anterior, uma vez que as suas palavras eram um aviso a respeito do próprio Aidan. Não sabia ao certo se Cathal quisera dizer que Aidan era bom de mais para mim, ou o contrário. De qualquer modo, era irrelevante, porque não tencionava ter em conta os seus avisos. E duvidava muito que Aidan apreciasse os esforços de Cathal para seleccionar as raparigas com quem ele podia dançar.
- Ele disse alguma coisa que te arreliasse, ontem à noite? - perguntou-me, subitamente sério.
- Não - apressei-me a dizer. - Foi apenas um pequeno equívoco.
- Cathal não quer estar aqui - explicou-me. - Não se sente confortável nas festas dos chefes de clã. Fica nervoso. Mas não pretende com isso ofender ninguém.
Custava-me a acreditar. A justificação de Eilis para o episódio da subida às árvores era plausível do seu ponto de vista. Mas nenhum jovem responsável levaria as duas crianças sozinhas consigo para a floresta, quando ambas tinham instruções claras para estarem noutro lugar, incitando-as depois a fazer uma coisa arriscada. E se Coll estivesse destinado a cair e a nossa chegada, minha e de Aidan, lhe estragara os planos? E se houvesse alguém, um cúmplice, um desconhecido de manto cinzento, à espreita, preparando-se para fazer desaparecer a minha irmã mais nova?
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Devíamos caminhar mais depressa - disse-lhe, olhando de
un lado para o outro, por baixo da copa das árvores, e acelerando o passo. Não devia ter deixado as crianças correr atrás de Cathal. Devia ter insistido para que se mantivessem à vista durante o caminho de regresso.
- As crianças estão em segurança, Clodagh. - Aidan pareceu-me perplexo. - Não há motivos para preocupação.
- Como é que vocês os dois se tornaram amigos? - perguntei. - Tu és tão diferente...
- Fomos criados juntos. Habituámo-nos um ao outro.
- Mas são irmãos-de-leite?
Não me lembrava que Aidan tivesse mencionado Cathal durante a sua última visita.
- Não exactamente. Ele cresceu na casa do meu pai. Nascemos com uma diferença de dias. A mãe dele era uma mulher da terra, de origens humildes. O meu pai acolheu-o e tornámo-nos amigos, partilhámos a mesma educação. Quando decidi tentar a sorte em Inis Eala, Cathal veio comigo, garantindo que eu não brilharia em feitos de armas. Na Ilha, Johnny é o único capaz de vencê-lo. Devia ter vindo connosco a Sevenwaters no ano passado, mas arranjou maneira de se esquivar.
- Não há dúvida de que sabe trepar - concedi.
- Cathal sabe fazer muitas coisas, incluindo bater-me numa luta, mas isso não me incomoda. Já me sinto feliz por ter conseguido o meu lugar na escolta pessoal de Johnny. Não tenciono ficar para sempre em Inis Eala. Planeio regressar a casa dentro de um ano ou dois, assentar, levar uma vida diferente. O meu irmão mais velho vai herdar Whiteshore. Mas é uma grande herdade, há lugar para mim.
Era evidente que Aidan não se daria ao trabalho de contar-me todas aquelas coisas se não tivesse por mim um interesse sério.
- Em Whiteshore, mesmo na costa? - perguntei, sentindo-me simultaneamente satisfeita e constrangida.
- Fica no cimo de uma colina, com vista para o mar ocidental. Talvez seja um pouco desabrigada no Inverno; o vento sopra como uma chicotada. Mas ias gostar dos Verões, Clodagh. De caminhar na areia, apanhar conchas, explorar as poças nas rochas. As focas cos-
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tumam descansar à beira-mar e é um lugar de repouso para muitas espécies de pássaros. Gostava que a visses um dia. É claro que a tua casa também tem a sua beleza.
- A tua parece-me encantadora. Imagino que conheças muitas canções do mar?
Aidan sorriu.
- Algumas. A maior parte é demasiado atrevida para uma reunião de família em casa de Lorde Sean. E que tal uma ravNT a seguir ao nosso lamento? Quais é que conheces?
Quando saímos da floresta, a minha disposição melhorara substancialmente. Encontrámos Eilis e Coll a fazer equilíbrio sobre o muro de pedra sobre pedra, conduzidos por Cathal. Eilis levantara a saia e prendera-a ao cinto. Levei as crianças para dentro, deixando os dois homens aos seus afazeres.
Depois, ordenei a Coll que fosse lavar-se e conduzi Eilis ao quarto, certificando-me de que estaria apresentável quando a mãe a visse. Sibeal estava aí, a mudar de sapatos, e encarreguei-a da tarefa, dirigindo-me por fim ao meu quarto, na porta ao lado. Como o vestido bordado que tinha usado na cerimónia dos Punhos Ligados já não servia para uma aparição pública, escolhi um mais simples, num tom azul-acinzentado, com um discreto padrão floral nas mangas de dentro. Sacudi, então, o cabelo, voltei a entrançá-lo e calcei uns chinelos limpos. Por fim, peguei na minha harpa e desci.
Depois da azáfama dos últimos dias, o salão parecia tranquilo naquela tarde. Uma luz baixa entrava em viés pelas janelas estreitas e vidradas, realçando notas de cores vivas nas tapeçarias que decoravam as paredes. Estas eram guardiãs de uma grande parte da história da nossa família. Uma delas tinha sido feita pela minha mãe nos primeiros tempos do seu casamento e mostrava a torre em fundo verde que era o símbolo da sua família e ao lado, em fundo branco, os torques azuis que representavam Sevenwaters. Deirdre e eu tínhamos passado um Inverno inteiro a fazer uma peça só nossa, que agora ocupava um lugar de relevo à frente da lareira. Era o desenho de uma rapariga a caminhar à beira de um lago, com seis cisnes ao

NT Dança de origem céltica.
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longe. O meu avô gostava muito daquela tapeçaria porque a rapariga que aí habitava era a esposa que ele tanto amara. A minha preferida era uma pequena peça feita pela irmã mais velha do meu pai, que tinha morrido antes de eu nascer. De uma ponta à outra, estava cheia de imagens exuberantes de pássaros e de borboletas. Olhar para ela dava-me ânimo. Na sua juventude, a tia Niamh devia ter sido uma pessoa feliz.
Agora que os nossos convidados tinham partido, o salão voltara a pertencer à família. A minha mãe sentara-se ao lado de Muirrin, as duas ocupadas a pôr as notícias em dia. Depois de informar a mãe que as crianças já tinham regressado a casa e que desceriam em breve, fui ao encontro dos homens, que estavam junto da lareira, profundamente absorvidos numa conversa.
O meu pai conservara o traje negro e prateado que tinha usado durante o ritual. Era uma presença imponente; em todos os aspectos, um chefe de clã. Ao seu lado, estavam Conor, Johnny e Gareth, e os outros andavam ali perto - em Sevenwaters, os homens de armas do meu primo eram acolhidos como membros da família. Reconheci Mikka, alto e esguio, de cabelos claros, e um guerreiro chamado Sigurd, ambos oriundos de terras distantes, no Norte. O bando de guerreiros de Johnny incluía homens de todas as proveniências, como já acontecia com a comitiva ainda mais invulgar que o pai dele liderara, esse exército de mercenários que servira de inspiração à aventura de Inis Eala.
Johnny e Gareth abriram um espaço para mim, entre eles.
- Falávamos da ausência dos chefes de clã do Norte na cerimónia dos Punhos Ligados, Clodagh - disse Johnny. - E o que fazer a respeito de Eoin de Lough Gall.
Lá se ia a reflexão serena acompanhada de um copo de hidromel. Eu sabia que Eoin era a figura mais influente do Uí Néill do Norte e o mais susceptível de interpretar o casamento de Deirdre com um homem do Sul como um insulto à sua facção. O meu pai já era há muito tempo uma figura neutra nos conflitos do Uí Néill, posição sábia, na medida em que Sevenwaters se situava precisamente no meio dos dois territórios.
- É uma infelicidade - disse-nos - que eu não tenha conseguido enviar a Eoin um mensageiro pessoal com a notícia do
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casamento. Idealmente, ele teria sido informado com antecedência, em privado, com votos renovados da nossa amizade com o Uí Néill do Norte. Eoin é um homem sensível nos momentos decisivos. Ficará muito descontente ao encontrar a notícia à sua espera, no regresso de uma longa viagem. Na sua ausência, Naithi e Colman, geralmente mais amigáveis, tomaram uma posição por ele, mantendo-se afastados.
- Imagino que tenhas enviado uma palavra à mulher de Eoin?
- perguntou Conor.
- Uma mensagem breve, sim. Mas foi uma coisa desajeitada; teria sido preferível informar Eoin antes de qualquer outro chefe de clã do Norte, uma vez que é o elemento central daquela aliança, mas já está ausente há vários meses, por causa da sua aventura mercantil, e as coisas aconteceram mais depressa do que seria de prever. Enviei a mesma mensagem a todos eles.
- Para quando está previsto o regresso de Eoin? - perguntou Gareth.
- Para daqui a um mês ou dois, segundo ouvi dizer - respondeu-lhe o meu pai.
Gareth ejohnny trocaram olhares.
- Precisamos de um homem lá em cima - disse Johnny -, pronto a fazer-nos chegar a notícia assim que o barco de Eoin acostar. Da última vez que um chefe de clã ofendeu Eoin, ele não tardou a aparecer à porta deste com vários parentes e cinquenta homens de armas, exigindo um pedido de desculpas. Uma desavença desta natureza pode facilmente desencadear uma guerra, e todos sabemos que o Uí Néill do Norte não se desvia do caminho para evitar conflitos. Seja qual for a posição que Eoin tomar a respeito deste assunto, os outros segui-lo-ão com toda a certeza.
- Devias preparar-te para convocar um conselho, Sean - disse Conor. - E julgo que quanto mais depressa, melhor. Reúne todas as facções, expõe claramente a tua posição, torna bem claro que Sevenwaters só deseja paz e cooperação com ambos os ramos do Uí Néill. O ideal era pormos um convite nas mãos de Eoin assim que ele pisasse terra, por assim dizer. Johnny tem razão; isto pode tornar-se sério.
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Seguiu-se um momento de silêncio, em que a ideia do nascimento iminente do bebé se desenhou perigosamente no nosso horizonte.
- Têm ambos razão, é certo - concordou o meu pai. - Na verdade, já tenho um informador em Lough Gall, pronto a enviar-me notícias imediatas do regresso de Eoin. Mas não estou preparado para reunir um conselho até meados deste Verão, no mínimo.
Não teve de explicar-se. O casamento já tinha sido de mais para a mãe; um conselho geral em Sevenwaters, com mais uma enchente de convidados, era uma aventura impensável até muito depois do parto. E o meu pai não viajaria para longe de casa com a mãe num estado de saúde tão precário.
- Devíamos adiar estes assuntos pesados para mais tarde disse Conor, quando as minhas irmãs mais novas entraram no salão, seguidas de Coll. - Clodagh, vejo que trouxeste a tua harpa. Queres tocar-nos uma ou duas canções?
- Por deuses, venha a música - exclamou Johnny. - Se Aidan também tocar, talvez consigamos persuadir as Criaturas Encantadas a sair da floresta e a fazer-nos uma visita.
Tanto Aidan como Cathal tinham entrado no salão enquanto falávamos, mas nenhum deles se envolvera na conversa.
- As Criaturas Encantadas não sairiam apenas para ouvir alguém tocar harpa, Johnny - contestou Eilis. - A música delas é tão sublime que as pessoas até se esquecem das suas vidas humanas e acabam por perder-se na floresta. É uma música capaz de fazer os pássaros descerem das árvores e de acender arco-íris no céu. Criaturas como elas dificilmente sairiam da floresta para ouvir Clodagh tocar.
Eilis revirou os olhos na minha direcção e recebeu um olhar penetrante da mãe.
- Tal e qual - repliquei, pensando que, desde a sua última escapadela, Eilis se atrevia a fazer piadas a meu respeito. Encontrei um banco baixo, pousei a harpa no joelho e comecei a afinar o instrumento. - A assistência aqui presente já é mais do que suficiente para mim. Perdi a prática.
Aidan tinha ido buscar a sua harpa e sentou-se ao meu lado.
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- Começamos com um ritmo lento e vamos crescendo gradualmente - sugeriu.
- Está bem. Desde que eu não tenha de cantar e tocar ao mesmo tempo.
Em pouco tempo, a música arrebatou-me e deixei de pensar no público. Juntas, as duas harpas produziam um som generoso que enchia o salão com um rendilhado límpido de notas ressonantes. Aidan acenou-me, encorajador, e os seus dedos voaram pelas cordas. Fomos aperfeiçoando a nossa cumplicidade, a resposta às deixas um do outro, e só quando parámos para descansar, depois de uma excitante série de reels, é que reparei como me tinha divertido.
- Bom entretenimento - disse o meu pai, que se viera sentar ao lado da mãe e parecia mais descontraído do que nos últimos tempos. - Estás menos enferrujada do que pensavas, Clodagh. E surpreende-me que Aidan encontre tempo para treinar o jeito. Sei o que exiges dos teus homens, Johnny.
- E que tal uma canção? - propôs Muirrin. - Os teus rapazes sabem umas quantas; já ouvi algumas em primeira mão - acrescentou, com um sorriso malicioso.
- Esse repertório não se adequa a um salão requintado como este - contestou Gareth. - E a execução é... Bem, grosseira é uma maneira simpática de dizê-lo.
- Vamos lá - encorajou Muirrin. - Os nossos dois músicos precisam de descanso e de uma bebida. Hão-de ter, pelo menos, uma ou duas cantigas adequadas a um espectáculo em família.
Os jovens formaram uma fila; Aidan levantou-se e juntou-se a eles. Trocando olhares entre si, começaram a bater com os pés no chão e a marcar com as palmas um ritmo complexo. Quando o som já fazia vibrar o salão, Mikka começou a cantar e a sua voz de tenor leggero levava consigo cada verso, seguida das vozes mais graves e menos polidas dos companheiros, rosnando um refrão. Era uma história tola e incoerente acerca de um homem que perdera um carneiro premiado e se envolvera em situações cada vez mais espinhosas para tentar recuperá-lo. Imaginei que houvesse uma versão mais obscena, embora com aquela assistência os guerreiros optassem pela mais decente. Todos eles sabiam entoar a sua canção, uns mais há-
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beis do que outros. Até Johnny, cuja voz não era digna dos seus outros talentos, se uniu ao coro. Mas não Cathal. Cathal permaneceu desligado do grupo, num silêncio fechado. Nenhum deles sugerira que se juntasse aos demais.
Levantei-me para ir buscar um pouco de hidromel, que estava num cântaro sobre a mesa. Cathal encostara-se à parede, não muito longe dali, e observava os cantores com a sua habitual expressão de tédio. Maldito homem! Era evidente que não se importava de todo com o perigo em que colocara Eilis e Coll nessa tarde. Falar-lhe-ia do assunto nesse preciso momento.
- Quero que me justifiques o teu comportamento na floresta
- afirmei, servindo-me do coro de vozes jovens para disfarçar a voz. - Arriscaste a vida da minha irmã. E a de Coll. Foi muito estúpido da tua parte, Cathal.
Ele não olhou para mim e, por momentos, pensei que ia ignorar-me por completo. Foi então que me disse:
- Será que as crianças aprendiam melhor a lição se as proibissem de trepar? Apanharam um susto, sim. Mas estão aqui, sãs e salvas. Não me parece que Coll, pelo menos, volte a tentar sozinho semelhante feito. Não sei bem se posso dizer o mesmo da tua irmã, mas com sorte aprendeu a ter alguma cautela. Como eu disse na altura, não houve danos.
Encetei uma resposta irritada, mas corrigi-me. Tinha de reconhecer que havia algum bom senso naquilo que Cathal me dissera. Se alguma vez tivesse filhos, gostaria que vivessem as suas aventuras, que se pusessem à prova, que experimentassem toda a liberdade possível nos limites do razoável. Nos limites do razoável: eis a chave.
- Era demasiado alto - disse-lhe. - Podiam ter caído facilmente.
Cathal olhou para mim.
- Falas como se suspeitasses de mim, Clodagh.
- Depois do episódio da noite anterior, suspeito, no mínimo, que tentes insistentemente assustar-me - repliquei.
- Deves assustar-te com facilidade - retorquiu, os olhos negros imperscrutáveis. - Presumo que a tua educação não te tenha
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equipado para lidares com desafios. Bem podias arrancar uma página ao livro da tua irmã mais nova. Ela parece-me ser completamente intrépida.
Tinha tentado ser cortês. Naquelas circunstâncias, julguei até que me tinha portado muito bem. Mas aquilo era de mais. A minha mão estava ansiosa por esbofetear aquela face arrogante, mas achei que apenas se riria de mim se eu o fizesse. Respirei fundo.
- Se pensas que a minha educação foi ser apaparicada por um bando de criados que corriam para satisfazer os meus caprichos, estás muito enganado - disse-lhe.
- Não te dês ao trabalho de te justificares perante mim, por favor. - O tom era de uma inexprimível lassitude. - A tua pequena exibição, ainda há pouco, ao lado de Aidan, ilustrou claramente que és surda a qualquer bom conselho que eu queira dar-te. Quanto à história da tua vida, não podia estar menos interessado. Tenho a certeza de que é tão enfadonha como a tua harpa.
- Posso não ser uma harpista experiente - disse-lhe, numa fúria sussurrada, porque a canção chegara ao fim e o aplauso que a saudara esmorecia. - Mas pareceu-me que as outras pessoas estavam a gostar de ouvir.
- Duvido que seja uma assistência muito crítica - observou Cathal. Os homens começavam uma nova canção, desta vez acompanhada de gestos que sugeriam uma série de animais: ursos, veados, peixes, lebres. - Metade é a tua família.
Deixei-me corar de irritação.
- E a outra metade não é - retorqui.
- Bem, mas essa outra metade é constituída por jovens viris, Clodagh. - Cathal não tinha baixado a voz e foi com alívio que ouvi o coro crescente dos guerreiros sobrepor-se ao seu discurso.
- Eles não querem saber se tocas bem ou se a tua música é abominável. Agrada-lhes muito simplesmente olhar para ti e para o teu bonito vestido cinzento e imaginar que estão a tirar-te os ganchos do cabelo, um por um, e a desapertar essas fitas...
- Chega! - os olhos de Cathal tinham viajado para os atilhos da frente do meu vestido e eu sentia as faces a arder. - Nunca ouvi tamanho disparate!
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Virei-lhe as costas, tencionando afastar-me, mas reparei que Muirrin estava a olhar para nós e fiquei no mesmo sítio, a tremer de
fúria.
- De qualquer modo - disse-lhe, sem me virar -, querias dizer-me o quê a noite passada, com aqueles horríveis avisos acerca de
Aidan?
- Estás mesmo preparada para ouvir uma explicação?
Não sabia bem como é que a conversa chegara àquele ponto. A minha intenção era nunca mais discutir o assunto com ele, porque sabia que nunca aceitaria nenhum conselho daquela figura duvidosa.
- A explicação já vem tarde - declarei, tentando um tom glacial. - Tenho nódoas negras nos sítios onde me agarraste. É uma maneira estranha de argumentar.
- Penso que não vais querer ouvir - disse Cathal, surpreendendo-me.
- Então não devias ter tentado dizer-mo com tanta insistência. Anda, conta-me, seja lá o que for. Estão quase a terminar a canção.
- Já que mo pedes com tanta simpatia, vou contar-te. O meu conselho é que te afastes do caminho de Aidan. Diz ao teu pai que o exclua da sua lista de pretendentes elegíveis.
- Não existe nenhuma lista. Porque é que me estás a dizer isso? Aidan não é teu amigo de infância?
- Ah, ele tem andado a contar-te histórias, não tem? Aposto que não mencionou o facto de estar prometido em casamento a uma rapariga lá da terra. Dois anos em Inis Eala e depois regressa a Whiteshore, para um casamento simpático com a filha do chefe de clã vizinho e uma vida doméstica. Deixa-o seguir o interesse evidente que tem por ti e partirás o coração dessa jovem. Ou o teu.
Fitei-o, abismada. Aidan com os seus olhos honestos e o sorriso rasgado; Aidan, que ainda há pouco me falara dos seus planos para o futuro, insinuando que gostaria que eu fosse parte deles, estava prometido em casamento a outra mulher? Nunca se referira a nenhuma rapariga da terra, nem nesse ano nem no ano passado. Mas também nunca me tinha falado de Cathal.
- Estás a mentir - repliquei, mas num tom de pouca convicção.
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- Pergunta-lhe, se quiseres - disse Cathal, descontraído. - Estão mesmo a acabar. Vá, pergunta-lhe agora. Desafio-te.
A canção terminou num desfecho tumultuoso. Aplaudi, como todas as outras pessoas, só para dar um minuto a mim própria. Observei a vénia sorridente dos jovens cantores. Devia ter enchido copos de hidromel e distribuído os mesmos pelo salão. Aidan olhou à sua volta, localizou-me junto de Cathal e avançou na nossa direcção.
- Não foi propriamente o meu melhor desempenho - exclamou, ao chegar junto de nós. Estaria a imaginar coisas, ou será que aquele seu sorriso parecia contraído? - Devíamos tocar de novo, Clodagh. Talvez eu possa compensar a minha falta de talentos vocais. Estavam a falar de quê?
Eu tinha razão. Havia uma nota na voz de Aidan que fazia lembrar a sua expressão na noite anterior: de ciúme.
- Cathal falava-me de Whiteshore - respondi. - Se bem percebi, tens uma rapariga à tua espera na tua terra. Prometida em casamento.
Vi-o estremecer e obriguei-me a continuar.
- Agora vejo que faz sentido quereres ficar apenas mais um ano ou dois com Johnny. Tinha-me intrigado, porque os homens que conseguem lugar no seu círculo restrito de eleitos não o trocariam por nada deste mundo. Quando casam, espera-se que as suas mulheres vivam em Inis Eala e façam parte da comunidade, como Muirrin fez quando se casou com Evan. Deves gostar muito dessa rapariga.
Esforcei-me por conservar um tom casual. Aidan corou. Olhou directamente para Cathal, e os seus bonitos olhos castanhos exprimiam agora uma fúria indisfarçável.
- Não olhes para mim - disse Cathal. - Só estava a fazer conversa.
- Como é que ela se chama? - perguntei, incapaz de conter-me.
- Rathnait - respondeu Aidan, tenso. - E a situação não é exactamente o quadro que Cathal te pintou. Se me deixares explicar...
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Não é preciso - interrompi, desejando com todas as minhas forças estar noutro lugar. - A tua vida na tua casa não me diz respeito.
Mas, tenho de...
Não ouviste a senhora?
Assim que Cathal falou, Aidan cerrou os punhos.
- Cathal! Aidan! - Era a voz de Johnny; em tom de comando - Gareth sugeriu que contrariássemos os efeitos do hidromel, da boa comida e de um dia de inércia com uma exibição de combate singular. Combates com eliminatórias, entre nós os seis, com armas à escolha. Uma vez que não nos honraste com a tua voz, Cathal, espero um esforço suplementar da tua parte.
Cathal endireitou-se, modificando a postura encostada.
- com certeza - respondeu, acrescentando num sussurro que apenas eu e Aidan conseguíamos ouvir: - Que altura tão propícia. Isto dará tempo ao meu amigo para engendrar uma possível desculpa, se é que ela existe, enquanto tu, Clodagh, és poupada a ter de ouvi-la num salão cheio de gente. Entretanto, ambos podem desejar que eu sofra um acidente infeliz no campo de luta. Vem, Aidan, ele disse que éramos nós os seis.
Aidan virou as costas e afastou-se. Tinha os ombros rígidos.
- Não vens assistir? - perguntou Cathal, de sobrancelhas arqueadas. As suas finas feições não deixavam de ter algum encanto quando ele permitia a si próprio descontrair-se.
- Talvez devesse estar presente apenas para impedir que ele te mate - respondi. - Custa-me acreditar que sejam amigos de infância.
- Ah, bem - replicou, - há certas coisas que só um amigo faria.
- Como obrigar alguém a dizer a verdade quando não o quer fazer?
Aidan era só embaraço e vergonha. Não havia nenhuma promessa formal entre nós; nenhuma menção oficial de casamento ou de aliança. Contudo, havia um entendimento mútuo, implícito, e eu sentia-me magoada. Pensara que Aidan gostava de mim. Aparentemente, estava enganada a seu respeito. Exasperava-me saber que Cathal me fizera um favor.
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- É melhor ir andando - afirmou. - Deseja-me sorte. Dito isto, afastou-se.
A mãe e Muirrin ficaram dentro de casa, mas eu e os outros saímos em grupo para o pátio. Coll e Eilis instalaram-se à frente da multidão - cozinheiros, palafreneiros, homens de armas e serviçais saíram em massa para assistir ao espectáculo. Quando estava em Sevenwaters, Johnny tinha o hábito de desafiar os seus homens para exibições desta natureza, para que não perdessem o treino.
No primeiro assalto, lutaram só com os punhos. Cada guerreiro tinha o seu estilo próprio. Mikka era ágil, mas não era um rival para Johnny, que possuía um domínio admirável da técnica. Gareth e Aidan eram mais próximos, embora a concentração de Aidan me parecesse instável. Esperei que a força obstinada de Gareth o esmagasse, mas foi Aidan quem venceu o combate, com um golpe oportuno que apanhou o adversário sem defesa, atirando-o para o chão. Aidan ajudou-o a levantar-se e olhou para Cathal enquanto o fazia. Nos seus olhos, havia uma simples mensagem: és o próximo.
Sigurd não teve sorte com o seu adversário. Rapidamente, tornou-se claro para mim que Cathal tinha algo que mais nenhum dos seus companheiros possuía: uma capacidade de antecipar movimentos, quase como se lesse os pensamentos do adversário, combinada com um talento para criar situações imprevistas e a preparação física necessária para levar esse talento a atingir um efeito devastador. Lutava como o mercúrio, impossível de imobilizar, nunca onde o adversário o esperava, evasivo e fluido, mas forte quando precisava de sê-lo. Comecei a perceber por que motivo Johnny o conservava ao seu lado. O combate acabou depressa, com Sigurd a rir e a felicitar o adversário.
- Mais um assalto - anunciou Johnny. - Eu luto com Gareth, Sigurd enfrenta Mikka e Aidan fica com Cathal. Se alguém vencer duas vezes, o terceiro assalto decide quem é o vencedor absoluto. Gareth, que arma escolhes?
Os combates entre estes dois eram sempre divertidos. Tanto quanto me lembrava, Johnny e Gareth eram amigos inseparáveis. Tratávamos Gareth como se fosse quase da família. No campo de combate, moviam-se com uma perfeita cumplicidade, como duas
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partes de um só organismo. A luta aproximou-se do fim com uma deslumbrante exibição de bordões voando pelos ares e sendo apanhados, rodados e lançados de novo, enquanto os dois combatentes davam uma cambalhota ou duas pelo meio. Por fim, Johnny rodou o seu bordão num golpe baixo e apanhou Gareth entre as pernas, fazendo-o estatelar-se no chão. O homem mais alto levantou-se de um salto, deu-lhe uma palmada no ombro e declarou-o vencedor. Ambos os guerreiros sorriam.
Mikka e Sigurd lutaram com espadas. Nenhum foi capaz de deitar o adversário ao chão, ou de arrancar-lhe a arma, e Johnny acabou por declarar o empate e felicitou os combatentes, indicando algumas medidas que cada um podia ter tomado para ganhar vantagem. Por fim, chamou Cathal e Aidan.
- Arma escolhida?
- Facas - respondeu Cathal, rápido como um batimento cardíaco.
- Concordas? - perguntou Johnny, dirigindo-se a Aidan.
- Perfeitamente.
Aidan não olhou para ninguém em particular. Pegou na faca que Gareth lhe estendera, examinando a lâmina com atenção. Por momentos, gelei, mas obriguei-me a não pensar em disparates. Era apenas uma desavença entre amigos, nada mais. As pessoas não se matavam umas às outras por coisas tão insignificantes.
Aquele combate distinguiu-se dos outros dois. Desde o início, foi intenso e brutal, com o par a mover-se de chave cerrada em chave cerrada e as lâminas das facas a uma distância ínfima de pulsos, virilhas, pescoços. Ninguém gritava instruções. A assistência caiu num silêncio tenso quando Aidan empurrou o companheiro ao longo do círculo, até ao muro de pedra da casa, até Cathal conseguir escapar por um lado, mais rápido do que os nossos olhos, aparecer atrás do adversário e encostar-lhe a lâmina ao pescoço. Sustive a respiração mais tempo do que seria confortável; mordi o lábio. Aidan desferiu habilmente um golpe para trás, com o cotovelo, e quando um Cathal ofegante deixou a arma deslizar da garganta do adversário, Aidan enganchou a perna à volta da perna dele e tentou desequilibrá-lo. Cambalearam, presos um ao outro, cada um procurando
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uma oportunidade de usar a faca com eficácia.. Custava-me a olhar porque sentia que um impulso violento animava os dois homens, colocando aquele combate num plano distinto dos outros que tínhamos visto nesse dia. Johnny poria certamente fim ao confronto antes que um dos combatentes enterrasse a arma no coração do adversário.
Olhei de relance na direcção do meu primo, mas ele observava-os com uma aparente serenidade. Aqueles olhos cinzentos diziam-me que estava a avaliar a técnica dos dois guerreiros e nada mais. Em voz baixa, fez um comentário a Gareth, atrás dele, e Gareth sorriu, murmurando uma resposta. Mikka e Sigurd, do outro lado do círculo, pareciam atentos, não preocupados. Talvez eu estivesse a exagerar. Talvez não fosse tão mau como parecia.
Cathal escorregou e tocou com um joelho no chão. A assistência parou de respirar. Aidan prendeu os braços de Cathal, torceu-os atrás das costas e apertou o pulso direito do adversário com uma violência assustadora, tentando obrigá-lo a largar a faca. Cathal segredou-lhe algo e, de súbito, o rosto de Aidan tingiu-se de raiva. Por momentos, parecia outra pessoa. Silvando uma resposta, sacudiu os braços de Cathal, mas este torceu-se como uma enguia e libertou-se, levantando-se logo de seguida com uma expressão que não era mais do que gozo indiferente. Desta vez, ouvi o seu comentário.
- Terás de fazer melhor do que isso, menino do papá!
Aidan atirou-se para cima de Cathal como um aríete, negligenciando a sua própria segurança e a do círculo de espectadores. Cathal desviou-se com a rapidez de um relâmpago, e foi por um triz que Aidan não chocou de cabeça contra um par de criadas brancas como a cal. Conseguindo parar a tempo, rodopiou para enfrentar o adversário, de arma em punho.
- Pelo menos eu sei quem é o meu pai - retorquiu, numa voz cuja tranquilidade parecia uma ameaça.
Por momentos, Cathal estacou. Então, numa espiral de movimento, os dois homens encontraram-se de novo e, instantes depois, Aidan estava deitado de costas no chão, coberto pelo adversário e com os dois pulsos imobilizados em cima da cabeça. Procurei a faca de Cathal e vi, para meu espanto, que algures durante o com-
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bate ele voltara a prendê-la ao cinto. Cathal estreitou o seu amplexo. A mão direita de Aidan abriu-se e a arma caiu ao chão.
Basta - disse Johnny tranquilamente, aproximando-se dos
dois guerreiros. - Tecnicamente, muito bom, Cathal, mas quase baixaste as tuas defesas. Tens de aprender a ignorar as provocações do adversário. Aidan, levanta-te. - Johnny estendeu a mão para ajudar Aidan a levantar-se. - Se ainda não sabes que no combate a raiva é um obstáculo, chegou a hora de aprenderes. Nós somos profissionais, tanto num exercício como este, como no campo de batalha. A cabeça fria, uma técnica perfeita e um poder de concentração absoluto são os segredos do sucesso. Resolvam as vossas divergências até ao cair da noite. Não quero mais discussões entre os dois.
Cathal e Aidan olharam um para o outro. Cathal estendeu a mão, mas o seu olhar era glacial. Passado algum tempo, Aidan apertou brevemente a mão do amigo e virou-lhe as costas.
- Muito bem - disse Johnny. - Combate final, Cathal. O que é que vai ser? Depois do último susto, penso que a nossa assistência gostaria que evitássemos coisas afiadas.
Aidan estava a observar-me. Fora sentar-se ao lado de Sigurd e de Mikka, mas eu sentia o seu olhar e isso perturbava-me. O que se passava entre ele e Cathal? Será que tudo se devia ao facto de Aidan ter omitido um pormenor decisivo da sua vida pessoal? Isso podia ser importante para mim, mas era um rastilho improvável para um conflito entre dois amigos. A situação não só revelara um lado mais negro do músico sereno que tanto me encantara, como até parecia ter transtornado o impenetrável Cathal. Não pela luta em si; lidara com esta com a mesma frieza com que Johnny o faria. Mas o comentário acerca do pai tinha-o abalado. Ambos sabiam perfeitamente como ofender o outro.
Aidan ainda não desviara os olhos de mim, embora Cathal e Johnny, tendo escolhido a luta-livre, já tivessem assumido as suas posições de combate no recinto. Decidi que já tinha a minha dose. Não me ocorria nada para dizer a Aidan, e já se sabia que Johnny ia vencer o combate. Vencia sempre. Cathal era bom, mas não o suficiente. Decidi voltar para dentro e esquecer os homens, aqueles que
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mentiam por omissão e os que não faziam ideia de como se lidava com uma mulher. Ocupar-me-ia dos preparativos para a refeição da noite. E se, mais tarde, Aidan quisesse entreter a casa com a sua música, fá-lo-ia sem a minha ajuda.
Não conseguia adormecer. Fiquei deitada de costas, às escuras, com saudades de ouvir o som delicado da respiração da minha irmã. Se ao menos Deirdre não tivesse cortado o elo que nos unia, podia ter-lhe falado de Aidan, que omitira a existência dessa rapariga de Whiteshore, enquanto expunha as suas referências como pretendente. Podia ter discutido com ela o comportamento peculiar de Aidan e de Cathal; o facto de serem aparentemente os melhores amigos e de terem, porém, lutado como se se odiassem. Podia ter-lhe perguntado o que pensava de um homem que conseguia ser amável e sorridente num momento, e cheio de uma fúria explosiva no momento seguinte. Ou de alguém com um trato chocante e uma lastimável falta de bom senso, que dava provas de um perfeito autodomínio no campo de batalha. Era indiferente que Deirdre percebesse tão pouco de homens como eu. Só queria falar com ela. Nós falávamos de tudo.
Não me agradava a solidão da noite. Às escuras, isolada, não conseguia diluir os pensamentos indesejados na azáfama contínua do dia. Ali, não havia refeições para preparar, nem encomendas de provisões para fazer, nem reservas a verificar. Não havia conservas em vinagre, nem compotas com que me entreter, não havia lavagens nem remendos, nem a manutenção dos registos com que abstrair-me dos meus problemas. Ali, no escuro, eu só me lembrava da minha mãe, que passara o dia tão abatida, apesar da alegria de ver Deirdre bem casada; só me lembrava do vago pesadelo do parto; da estranha sensação que me assaltara na floresta, no dia anterior, quando me sentira observada enquanto caminhava; dessa figura indistinta que eu julgara ver a noite passada, no pátio, quando Cathal me arrastara para uma esquina, procurando, de uma maneira irreflectida, ser prestável; do olhar inquieto do meu pai quando falava de Eoin de Lough Gall.
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Johnny também me preocupava. O que sentiria ele a respeito do nascimento iminente e da possibilidade de essa criança, se a minha mãe desse à luz um rapaz saudável, vir a substituí-lo como herdeiro de Sevenwaters? Embora qualquer homem que tivesse o sangue da nossa família pudesse reivindicar a liderança, um filho de descendência directa seria provavelmente favorecido relativamente a um primo, sobretudo se este descendia da linha materna. A formidável capacidade de chefia de Johnny não compensava o facto de o seu pai ser Bran de Harrowfield.
Fitei a escuridão e tentei distrair-me, murmurando uma balada sobre uma mulher que se apaixonara por um sapo. Não funcionou; não conseguia deixar de imaginar Aidan a tocar a balada na sua harpa, os seus olhos castanhos a sorrirem para mim. Tentei virar-me para o lado direito e depois para o esquerdo. Virei a almofada, dei-lhe uma pancada e ordenei à minha mente que parasse de dar voltas. Mas não me obedeceu. Por fim, levantei-me, pus um manto sobre a camisa de dormir e desci até ao salão.
Ainda havia candeias acesas e o fogo brilhava na grande lareira, embora a casa estivesse em silêncio; devia ser perto da meia-noite. Diante das chamas, vi o meu pai e Muirrin, ele na sua grande poltrona com os cães a dormitar aos seus pés, ela num banco ali perto. Na luz trémula, a parecença era flagrante - tal como Sibeal, Muirrin herdara o cabelo negro e a pele branca do pai, bem como o seu ar reservado e contido. Pareciam ainda mais solenes do que era habitual, e não foi difícil adivinhar o que os mantinha acordados àquela hora da noite. Aproximei-me e sentei-me no tapete, ao lado da minha irmã.
- Não consegues dormir? - perguntou Muirrin.
- É estranho adormecer sem a Deirdre.
- Vivemos tempos de mudança. - Na voz do meu pai, havia uma nota que eu nunca ouvira antes. - Clodagh, eu e Muirrin temos estado a conversar acerca da tua mãe.
Eu queria perguntar e não queria. Forcei-me a falar.
- Ela parece tão cansada o tempo todo... O que achas que vai acontecer, Muirrin?
A minha irmã hesitou.
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- Sê franca, por favor - pedi, juntando as mãos com força, por baixo do manto. - Sei que o risco é grande.
Olhei de relance para o meu pai.
- Muirrin - disse ele -, diz a Clodagh exactamente aquilo que me disseste a mim. Ela precisa de saber.
A sua tentativa fugaz de esboçar um sorriso deu-me vontade de chorar.
- Se o pai tem a certeza - disse Muirrin, e eu vi como a minha irmã se esforçava por falar com uma voz serena, recorrendo à mesma técnica que usaria se tivesse de dizer a um guerreiro valoroso que nunca mais poderia voltar a combater, ou a uma jovem esposa que o marido com quem se casara há tão pouco tempo morrera das suas lesões. Os curandeiros carregavam um grande fardo. Clodagh, tu já sabes como é perigoso para uma mulher com a idade da mãe conceber uma criança. Ter carregado o bebé até aqui já foi um feito notório. Mas... eu disse ao pai que temia que houvesse uma grande possibilidade de a perdermos, a ela e ao bebé. Os rigores do parto e do nascimento chegam a abalar a saúde de uma mulher jovem e forte. Além disso, corremos o risco de uma febre de parto. E se a mãe sobreviver, mas perder a criança, o pai e eu receamos muito que ela entre em desequilíbrio. Está absolutamente confiante de que tudo vai correr bem.
Passado um momento de silêncio, respondi:
- Obrigada por teres sido franca. Na verdade, eu já sabia. Mas penso que tinha esperança que pudesses acrescentar alguma coisa que nós não soubéssemos, algo que tornasse tudo isto menos assustador. Eilis não faz ideia do que pode estar prestes a acontecer. Não sei o que hei-de dizer-lhe.
Apesar dos meus esforços, a minha voz tremeu.
- É possível - disse calmamente o meu pai, - que a tua mãe tenha razão. Talvez os deuses queiram mesmo que esta criança nasça em segurança. A tua mãe não se preocupa de todo consigo própria. É uma coisa que me custa aceitar.
Levantei-me e pus-lhe o braço à volta dos ombros, embora o gesto procurasse confortá-lo tanto a ele como a mim. Aterrorizava-me ouvir a sua voz menos confiante; aterrorizava-me vê-lo aquém
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daquele homem capaz e sereno que o mundo admirava no dia-a-dia, um chefe com um perfeito controlo de si mesmo e do seu poder. Naquela noite, parecia um rapazinho magoado.
- Talvez corra tudo bem - disse-lhes, sem acreditar sequer por um instante nas minhas palavras. - Talvez devêssemos confiar nos instintos da mãe.
- Já disse ao pai que ficarei até a criança nascer, Clodagh declarou Muirrin. - É uma pena que a tia Liadan não possa estar aqui, porque as suas competências como parteira excedem de longe as minhas, mas vou orientar o trabalho de parto e o nascimento, e talvez fique um pouco depois disso, consoante o que tiver acontecido. Mas preciso mesmo de regressar a Inis Eala assim que for possível. É um peso demasiado grande para Evan ter de levar a cabo todo o trabalho sozinho.
- Fico-te grato, filha - disse o meu pai. - Todos temos de ser fortes. A vossa mãe precisa de sentir optimismo à volta dela, nada de caras tristes e carregadas. Já conversei com Sibeal a respeito disto e pareceu-me que ela percebeu, mas Eilis... É um fardo muito pesado para ela.
A expressão do meu pai perturbou-me muito. Perguntei-me se teria tido aquele aspecto quando, há muito tempo, o par de gémeos recém-nascidos exalara o seu último sopro. Se assim fosse, eu era ainda demasiado jovem, demasiado fechada na minha própria dor, para me aperceber disso.
- Creio que temos de rezar - suspirou, e na sua voz havia uma esperança ténue, suspensa por um fio.

CAPÍTULO TRÊS

Mantive-me ocupada. Nunca os nossos criados tinham sido tão bem dirigidos, a casa tão bem limpa, as refeições servidas com tanta prontidão, ou preparadas com tanto zelo. Sibeal e Eilis faziam o dobro do seu habitual trabalho de costura e progressos impressionantes na leitura e na escrita. Na companhia de uma criada, eu dirigia-me ao espinheiro-alvar todas as manhãs, para dizer uma oração e deixar uma oferenda antes de começar o trabalho doméstico do dia. À noite, dizia sempre que estava demasiado cansada para tocar harpa, o que não deixava de ser verdade.
Aidan continuou a tentar apanhar-me sozinha, para dar-me alguma explicação. Não podia propriamente tratá-lo com descortesia, pois fazê-lo significava que eu alimentara, de facto, algumas expectativas e que a existência daquela rapariga, Rathnait, as tinha esmagado. Não permitiria que ele visse o quanto a sua desonestidade me magoara.
- Clodagh!
Estava a dirigir-me da cozinha ao armazém de cereais, com o cabelo preso num lenço e os pés enfiados em botas grosseiras de andar ao ar livre, quando Aidan surgiu ao meu lado, encurtando a sua longa passada à medida da minha.
- Quero falar contigo. Por favor.
- Estou ocupada, Aidan.
- Deixa-me explicar-te. O que se passa lá em casa, a promessa de casamento. Não é o que parece. Clodagh, prometo-te que...
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Já te disse - respondi, - não preciso de explicações. Não
tem qualquer significado para mim. É inútil transformar isto em algo mais do que aquilo que é. Agora tenho de ir.
- Para mim, tem significado - replicou, quando eu já lhe tinha virado as costas, e quase parei para ouvi-lo, porque me parecera genuinamente abatido. Mas fiz um esforço para não olhar para trás, não fossem os seus comovedores olhos castanhos levar-me a agir em desacordo com o meu bom senso.
O tempo passou; a lua nova tornou-se cheia. Muirrin persuadiu a mãe de que o descanso era imperativo e esta deixou de descer para as refeições. Eu visitava-a várias vezes ao longo do dia. Ajudava-a saber que a casa continuava a ser gerida de acordo com as suas regras. Nenhum rato se atreveria a meter o focinho nos armazéns de víveres, nenhum lençol deixaria de ser lavado a preceito, nenhuma aranha ousaria tecer a sua teia num armário de louça enquanto eu estivesse a dirigir as operações. Os tornozelos da mãe estavam gordos e inchados; o rosto continuava com um aspecto pouco saudável, mas os olhos reluziam de confiança. Elogiou-me pelos meus esforços e mostrou-se, de certa forma, agradavelmente surpreendida pelo facto de eu ter conseguido assimilar tudo o que ela procurara ensinar-nos nos últimos anos. Por vezes, considerara excessiva a forma como a minha mãe se dedicava à perfeição no governo da casa; tinha chegado a desejar que a sua postura fosse mais descontraída. Mas agora percebia como era tão parecida com ela. Será que a mãe também cumpria meticulosamente os rituais de uma gestão doméstica exemplar para afastar o medo do seu pensamento?
Dois dias depois da lua cheia, o tempo melhorou consideravelmente. O Sol brilhava, as flores desabrochavam e a floresta ganhava vida com a música dos pássaros e o ruído dos insectos nos seus afazeres primaveris. No salão, ao pequeno-almoço, o pai disse:
- Clodagh, chegou a hora de teres um dia de folga. Aidan perguntou-me se podia levar-te, a ti e às tuas irmãs, a dar um passeio de cavalo.
Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, um sorriso rasgado iluminou o rosto de Eilis.
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- Por favor, Clodagh, podemos ir? Por favor, por favor? Podíamos levar um piquenique até lá acima, ao Pudding Bowl, e pescar.
Pudding Bowl era o nome que a nossa família dava a um pequeno lago redondo, no cimo das colinas, a meia hora de cavalo da fortaleza.
Coll também ficara radiante. Até Sibeal parecia animada no seu jeito discreto. Olhei de relance para a mesa onde os guardas de Johnny estavam sentados. Aidan evitou o meu olhar. Encontrei, porém, os olhos irónicos de Cathal, que arqueou as sobrancelhas, trocista, até eu desviar os meus.
- Não sei - respondi. - Tinha planeado orientar uma limpeza geral à cave de legumes.
Mas apercebi-me, enquanto pensava nisso, que adoraria passar um dia fora. Imaginei que isso significava ter de ouvir, finalmente, a explicação de Aidan, fosse ela qual fosse, embora no contexto de um piquenique, com as crianças presentes, tudo se tornasse menos constrangedor. Se a conversa se desviasse para assuntos que eu não desejava visitar, teria sempre a alternativa de me dedicar à pesca.
- Precisaríamos de uma escolta.
- Posso dispensar tanto Aidan como Cathal - sugeriu Johnny. Começava a suspeitar de uma conspiração. Olhei para o meu
primo com atenção, mas ele estava a comer as suas papas de aveia e não me pareceu que tivesse reparado na minha desconfiança.
- Penso que ficaríamos mais seguras com três guardas.
Não me agradava uma escolta constituída apenas por Aidan e Cathal. Segundo o que me era dado a ver, já tinham feito as pazes, mas aquele par já me surpreendera antes, e eu não queria envolver-me em discussões a quilómetros de distância de tudo.
- Darei ordens a Doran para vos acompanhar - disse o meu pai. - Não te esqueças de dizer-nos a que horas pensam estar de volta.
Doran era um dos guardas mais competentes de Sevenwaters. Já vivia connosco desde que eu era uma criança e tinha os seus próprios filhos. A mulher, Nuala, trabalhava na nossa cozinha.
- Obrigada, pai - retorqui, sentindo-me mais animada com a ideia.
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Depois do pequeno-almoço, fui para a cozinha organizar algumas provisões, uma vez que Eilis queria que o passeio durasse o dia inteiro. Quando cheguei, encontrei Nuala e duas ajudantes ocupadas com os assados do dia, e uma estranha mulher, idosa, sentada na cadeira de onde a nossa última cozinheira, Janis, costumava vigiar o seu domínio com um olho de lince, ao longo de anos passados a depenar, a verter molhos, a descascar e a cortar. Já tínhamos perdido Janis há dois Invernos, mas a sua influência fora tão importante na nossa casa que aquela cadeira especial permanecia vazia desde o dia em que nos deixara. A desconhecida ocupava-a como se tivesse todo o direito de estar ali. Era uma figura pálida e miúda, como o esqueleto de um pássaro, toda ela resumida aos olhos brilhantes e ao nariz adunco. As roupas cor de cinza e prata que a envolviam podiam ter sido um vestido, uma capa, um manto. Assim que eu entrei, o seu olhar voou, astuto e penetrante, na minha direcção.
- Veio aqui ter, logo de manhãzinha - segredou-me Nuala ao ouvido. - Diz que quer abrigo por umas noites, mas que só fala com a senhora da casa.
Aproximei-me da cadeira.
- bom dia - disse-lhe. - Sou Clodagh, uma das filhas de Lorde Sean. Disseram-me que procurava abrigo?
Ela confirmou com um aceno.
- Sou familiar de Dan Walker - declarou. Dan era o chefe do Povo Errante. Janis era tia dele.
- Posso perguntar-lhe qual é o parentesco?
Vi que a mulher idosa não carecia de entendimento: uma inteligência aguçada brilhava naqueles olhos analíticos.
- Sou irmã da mãe dele.
Aquela voz era demasiado profunda e poderosa para tão frágil criatura. Era um som tão forte e ressonante como a madeira do carvalho.
- Viaja sozinha?
Não estávamos na época do ano em que o povo de Dan costumava passar por Sevenwaters, uma vez que a sua rotina era vir para Norte no Outono, para as feiras de cavalos, não na Primavera.
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Ela sorriu. Não era o sorriso de uma velhinha amável, mas um sorrir entendido e subtil. Senti-me transparente.
- Eu viajo sempre sozinha, Clodagh, filha de Sean - respondeu. - Se me deres abrigo, eu pago.
- Não será necessário.
Chocou-me que ela não soubesse que uma grande casa como a nossa oferecia naturalmente comida e alojamento aos viajantes.
- vou pagar, Clodagh. com três histórias que valem cada porção de comida que me derem enquanto usufruo da hospitalidade do salão do teu pai.
- Obrigada - repliquei, momentos depois. Provavelmente, valeria a pena ouvir as histórias daquela velha mulher. Tivera, com toda a certeza, uma vida longa e, se era, como dizia, uma viajante, essa vida devia estar recheada de aventuras desta ou daquela natureza. - Como se chama?
- Que nome preferes?
Podia ter-lhe dito que para mim não fazia diferença como se chamava. Em vez disso, respondi:
- Gostava de saber o seu nome de contadora de histórias. A velha enrugada riu por entre dentes.
- É uma boa resposta, rapariga. Chamo-me Willow NT. Já tive uns quantos ao longo dos anos, mas este serve.
- Só Willow?
- Uma árvore nunca é apenas uma árvore - replicou. É maior, mais profunda e mais sábia do que uma rapariga como tu alguma vez será. Agora, gostaria de descansar; esta vossa floresta torna as viagens mais longas do que deveriam ser. Qualquer canto me serve, desde que seja sossegado. Esta noite, depois da ceia, contar-vos-ei uma história. Gostas de histórias?
Talvez tivesse visto algo nos meus olhos.
- Adoro - respondi. - Especialmente as mais mágicas. Mas é claro que contará a história que quiser.
- Aí está uma coisa boa na velhice, rapariga. As pessoas estão à espera que se transgrida as regras, que se perca a calma e se faça

NT. Salgueiro.
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exactamente o que nos dá na cabeça. Não te preocupes, enquanto estiver por baixo do tecto do teu pai, vou portar-me bem. É um homem forte, Sean de Sevenwaters; forte em sabedoria e em bondade. E vai precisar de toda a sua força nos tempos que aí vêm. Mas isso já tu sabes.
Aquelas palavras gelaram-me. Ela tinha acabado de chegar a Sevenwaters; como é que podia saber o que se passava com a minha mãe, o espectro do parto iminente? Mas a verdade é que o povo de Dan Walker não era uma casta comum; o dom da Visão abundava naquela comunidade. Não lhe perguntei o que queria dizer com aquilo. Na verdade, temia a sua resposta.
Willow não quis ficar na parte central da fortaleza, onde se situavam os aposentos da família, nem partilhar o dormitório comum com as nossas criadas. Acabei, então, por instalá-la na pequena divisão contígua aos estábulos. Tinha um odor confortável a couro limpo e a cavalos. Uma varridela rápida e um ou dois cobertores foi tudo o que a nossa convidada achou necessário.
- Já dormi em sítios muito mais rudes do que este, Clodagh
- disse-me, pousando o pequeno saco aos pés da enxerga improvisada e aguardando a minha saída. - Aqui, numa caverna enlameada, ali, na forquilha de uma árvore: dêem-me uma cama macia, de penas, e passarei a noite a mexer-me e a virar-me de um lado para o outro. Agora, vai à tua vida. Pareces uma pessoa ocupada, por isso vai fazer o que devias estar a fazer. Não é preciso rodear-me de tantos cuidados. Não será a última vez que me deito; ainda há seiva nestes velhos ramos.
Passando pela porta do estábulo, a caminho da cozinha, ouvi as vozes de dois homens que conversavam no interior. Percebi rapidamente que se tratava de uma conversa privada, mas já não podia afastar-me sem chamar a atenção de ambos. Deviam estar a preparar os cavalos para o passeio dessa manhã.
- ... nem sequer olha para mim - dizia Aidan. A voz tremia-lhe, não de raiva, mas de aflição.
- Porque é que isto é tão importante para ti?
Era Cathal, também ele com uma voz diferente, sem sinais de escárnio. Parecia genuinamente preocupado.
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- Não é óbvio?
- O verdadeiro amor, é disso que falas? - acrescentou Cathal, num tom mais próximo do seu tom habitual. - Aidan, se transformei a tua vida num desastre, perdoa-me. Estou a falar a sério. Pretendia apenas impedir que mergulhasses mais fundo ainda num pântano que tu próprio criaste. Talvez tenha interpretado mal a profundidade do que sentes por ela. Pareceu-me tudo muito repentino.
- Não estiveste aqui no ano passado - disse Aidan. - Ela gosta de mim. Gostava. Se eu tivesse falado naquela altura, teria sido cedo de mais. Durante essa primeira visita, tornámo-nos amigos, divertimo-nos juntos, e nada mais. Desta vez é. diferente. Soube-o no momento em que ela saiu da floresta a correr, directamente para os meus braços. Devia ter-lhe contado, logo à partida; ela ter-me-ia ouvido. Mas agora...
Seguiu-se uma pausa, durante a qual me perguntei se devia correr para casa, mas decidi que não era possível fazê-lo sem ser apanhada. Nunca na vida poderia revelar a Aidan que tinha ouvido aquela conversa.
- Mas é verdade que lhe mentiste - salientou Cathal. - Clodagh não parece ser o tipo de pessoa que tolera mentiras. Enfim, querias uma oportunidade para falar com ela e o passeio de hoje é a tua oportunidade. Certifica-te de que tiras bom proveito dela. E acalma-te, ou a senhora ainda descobre que tiveste um ataque de melancolia. Toma.
Ouviu-se o som de alguém a assoar-se.
- Obrigado - disse Aidan. - E obrigado por teres falado com Johnny por mim. Ter o dia todo livre para fazer isto é mais do que eu podia esperar.
- Sempre às ordens - replicou Cathal, num tom jovial. - Sê honesto, é o conselho que te dou. Não é uma mulher a quem se arranca um perdão com falinhas mansas. Se queres que ela mude de opinião, faz aquilo que devias ter feito desde o início. Conta-lhe a verdade.
Seguiu-se o som do movimento dos cavalos e, ao virar da esquina do estábulo, novas vozes, as de Doran e Eilis. Aproveitei a opor-
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tunidade para me dirigir a casa, profundamente envergonhada e muito surpreendida. Aidan tinha, de facto, intenções sérias a meu respeito. E Cathal não era, pelos vistos, o indivíduo desagradável que parecia ser, pelo menos com o amigo. O piquenique desse dia, como eu já suspeitava, resultara de uma pequena conspiração, mas fora Cathal quem se ocupara do assunto. E o seu único objectivo era dar a Aidan a oportunidade de se explicar perante mim. Nunca me ocorrera que Cathal fosse capaz de semelhante prova de amizade - nunca pensei que ele próprio apreciasse a ideia de um passeio. Enquanto empacotava o nosso almoço, vi-me obrigada a reconhecer que talvez me tivesse enganado a seu respeito.
Era uma manhã fresca e luminosa. Não havia nuvens no céu e a floresta parecia viva com os chilreies e zumbidos de criaturas que reagiam ao Sol da Primavera. Enquanto cavalgávamos pelos caminhos manchados de luz e nos distanciávamos da fortaleza de Sevenwaters, a magia do dia arrebatou-me. Decidi que, por momentos, poria de lado a preocupação com a saúde da mãe e os problemas políticos do meu pai, e mesmo com Aidan e o diálogo constrangedor que vinha a caminho. Limitar-me-ia a saborear o dia e a lidar com as situações à medida que fossem surgindo.
- Podemos ir até ao Pudding Bowl, não podemos, Clodagh? perguntou Eilis. A minha irmã cavalgava ao meu lado. Doran seguia à nossa frente, juntamente com Coll, e os outros vinham dispersos atrás: Aidan, Sibeal e Cathal. O caminho subiu lentamente pelas colinas da floresta de Sevenwaters, serpenteando no terreno inclinado e atravessando vários regatos ao longo da subida até ao lago. Em alguns pontos, era suficientemente largo para acomodar três cavaleiros lado a lado, mas havia zonas estreitas e íngremes por onde tínhamos de passar em fila indiana.
- Eu disse a Johnny que era esse o nosso destino - respondi.
- Significa que vocês, crianças, vão poder passear os vossos póneis.
- Gostava que não continuasses a chamar-nos crianças, Clodagh - disse-me Coll, por cima do ombro. - Eu já tenho quase
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onze anos, sabias? Cormack não era muito mais velho quando participou na sua primeira batalha.
Cormack era o irmão a seguir e um guerreiro digno de nota.
- Ele tinha pelo menos catorze - repliquei. - E esses quatro anos fazem uma grande diferença. Mas, se não te agrada, deixarei de chamar-te criança. Quanto a Eilis, o assunto muda de figura.
- Olhei de soslaio para a minha irmã. - Quando aprender a cumprir a sua parte nos deveres domésticos sem protestar, talvez eu comece a referir-me a ela como uma jovem senhora.
- Desafio-te para uma corrida, Coll!
Assim que Eilis falou, o seu pónei ultrapassou a égua de Doran e desceu pelo caminho a meio galope. A minha irmã mais nova era uma cavaleira experiente, de longe mais hábil do que eu. Coll pontapeou os flancos do animal e partiu atrás de Eilis. Num piscar de olhos, perdemo-los de vista.
- Ela sabe o caminho - afirmei, contrariada. - Mas talvez fosse melhor um de vocês segui-los.
- Eu vou, minha senhora - ofereceu-se Doran.
- vou eu. - Cathal já deslocara a sua montada de modo a ultrapassar-nos, de olhos fixos no caminho mais à frente. Não levarei muito tempo a alcançá-los, desde que não se desviem do caminho.
Não esperou por uma aprovação. Em resposta a um sinal invisível, o seu cavalo acelerou o passo e, num ápice, animal e cavaleiro desapareceram por baixo das árvores.
Continuámos ao nosso melhor ritmo. Não estava propriamente preocupada, embora preferisse que tivesse sido Doran a ir atrás das crianças. Eilis e Coll dominavam ambos a arte de montar e o caminho até ao Pudding Bowl era perfeitamente directo. Ainda assim, ficaria mais satisfeita quando estivéssemos todos juntos no nosso destino.
O caminho alargou-se ligeiramente. Aidan avançou com a sua montada e colocou-se ao meu lado; Doran ficou para trás, para acompanhar Sibeal.
- Clodagh?
Olhei de relance para Aidan. Lançar-se-ia tão cedo na sua explicação? Por momentos, perguntei-me se o desaparecimento das
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crianças, seguidas de Cathal, não seria parte de um esquema para criar aquela oportunidade.
- Sim? - perguntei com frieza, embora sentisse, de repente, o coração a bater mais depressa.
- Eu sei que tu não queres ouvir isto - afirmou, envergonhado. - Evitaste-me vezes sem conta. Entristece-me que já nem sequer queiras tocar comigo. Penso que não o mereço. Não sou um mentiroso, Clodagh. Por favor, deixa-me explicar-te.
- Muito bem - respondi, esperando que Sibeal e Doran não conseguissem ouvir a nossa conversa. Mas não ia virar a cabeça para me certificar disso; seria demasiado óbvio.
Aidan aclarou a garganta.
- Pratiquei este discurso todos os dias desde que Cathal te falou de Rathnait, a rapariga de Whiteshore - confessou. - Mas sei que não me vai sair bem. Clodagh, Rathnait só tem doze anos de idade. Há muitos anos atrás, o meu pai e o pai dela combinaram que nós devíamos casar um dia e assim fortalecer a aliança entre as duas herdades vizinhas. Rathnait é uma criança tímida e ainda lhe faltam alguns anos até estar preparada para casar. Nunca consegui vê-la como uma potencial noiva. Para mim, é a rapariguinha da porta ao lado, que brinca com bonecas e corre pelo jardim com o seu temer, sempre escondida atrás das saias da mãe quando a família visitava Whiteshore. Sou um homem adulto, Clodagh. No Outono, farei vinte e uma Primaveras. Sou um guerreiro. Já matei homens e venci batalhas, já viajei para longe de casa e assisti a situações estranhas e terríveis. Quando canto canções de amor, ponho nelas a paixão de um homem adulto, não os sonhos de uma criança.
- Mas continuas a estar prometido em casamento - repliquei, enquanto virávamos numa curva do caminho e víamos surgir à nossa frente uma sumptuosa cascata ladeada por dois carvalhos jovens. Na verdade, eu sentia uma certa compaixão por ele, especialmente à luz da sua angústia nos estábulos, nessa manhã. - O pai dela e o teu esperam que vocês se casem. Talvez ela só tenha doze anos, mas as raparigas crescem. Em quatro anos, grosso modo, estará pronta para ter um marido e filhos e para governar a sua própria casa.
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Enquanto o dizia, reconheci que a maior parte dos homens preferia casar muito antes de alcançar as vinte e cinco Primaveras. Eram tantos os riscos que um jovem guerreiro corria no campo de batalha, que os homens como Aidan preferiam ter crianças mais cedo. O celibato de Johnny, que tinha vinte e dois anos e era um líder de homens e herdeiro de um chefe de clã, era considerado invulgar.
- É verdade, esse é o pacto que os nossos pais fizeram - confirmou. - Mas nada foi assinado, nem selado. A verdade é que o meu pai conseguiria facilmente libertar-me desse acordo. Sobretudo se a noiva que eu sugerisse fosse mais promissora do que Rathnait.
Dirigi-lhe um olhar interrogativo e Aidan corou.
- Promissora? - indaguei.
- Que os deuses me ajudem - disse Aidan. - Isto é o mesmo que atravessar um lamaçal com botas de chumbo. Parece que todo o meu talento com as palavras me abandonou. Se eu pudesse transmiti-lo através de uma canção, Clodagh, exprimir-me-ia de uma forma muito menos desajeitada.
Contive um sorriso.
- Não é necessário nenhuma canção - repliquei. - Explica-me, apenas, com clareza o que queres dizer. E depressa. Não vejo sinais de Cathal ou das crianças e já estou a ficar preocupada.
- O meu pai gostaria que eu me casasse com uma rapariga cuja linhagem fosse equivalente ou superior à minha. Pelo menos, a filha de um chefe de clã - acrescentou. - Ele não participa nas lutas territoriais desta região: Whiteshore fica demasiado distante, a Oeste, para isso. Mas seria um excelente aliado para um chefe de clã do Ulaid, Lorde Sean ou outro. Possui uma influência considerável em Connacht e os chefes dessa região têm o seu lugar nos conselhos do Rei Supremo. Por sua vez, o meu pai acolheria de bom grado um aliado a Este, alguém que estivesse no centro da vida política. Se eu apresentasse ao meu pai a filha desse homem como potencial esposa, ele ficaria, no mínimo, interessado.
- Compreendo. - Agora, também eu tinha corado. - E quanto à pobre Rathnait? Cathal disse-me que uma alteração de planos podia partir-lhe o coração.
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Aidan comprimiu os lábios; os seus olhos escureceram.
- Cathal gosta de interferir - respondeu. - Essa conversa de corações partidos é um disparate. Ele sabe perfeitamente que não existe nada entre mim e Rathnait, a não ser um vago acordo entre os nossos pais, feito há muito tempo. Como eu disse, ela é ainda uma criança. Dentro de alguns anos, terá uma série de propostas.
Havia qualquer coisa que não me soava bem na sua explicação.
- Se Cathal sabia disso, por que motivo tentaria assustar-me?
- O que te disse ele, ao certo?
- Que, se tu mostrasses algum interesse por mim, eu devia desencorajar-te.
A conversa estava a tornar-se constrangedoramente directa.
Aidan ficou em silêncio durante algum tempo, enquanto seguíamos o nosso caminho, atravessando dois pequenos ribeiros. Ainda não havia vestígios das crianças. Talvez tivessem avançado até Pudding Bowl, na companhia de Cathal. Pensei que iam parar e esperar por nós. Mas com Cathal nada era previsível.
- Talvez ele tenha ciúmes - disse Aidan, por fim.
- Ciúmes?
Considerei aquela hipótese. Será que Cathal dava assim tão pouca importância à relação que tinha com Aidan, um laço que existia mais ou menos desde a infância, ao ponto de se atravessar no caminho deste e das suas expectativas relativamente a uma mulher? Será que Cathal teria alguma vez ciúmes de mim? Antes de ter tempo para ponderar esta ideia, Aidan tornou a falar:
- Ele quer-te para ele - disse-me, sem rodeios.
- O quê?
- Ele tem ciúmes - repetiu. - Quer-te para ele.
- Não, não. Não pode ser isso. Cathal nem sequer gosta de mim. Acha-me completamente enfadonha. Se tem ciúmes, é por causa da vossa amizade. Além disso, ele é de origens humildes, não é? Deve saber que nunca estaria à altura das exigências do meu pai para um pretendente. Se é disso que estamos a falar.
Aidan sorriu.
- É disso que estamos a falar, Clodagh. Cathal não pensa como as outras pessoas. Não se rege pelas mesmas regras.
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- Mas é um guerreiro de Inis Eala. Deve estar pelo menos preparado para seguir as regras de Johnny.
- Isso é diferente - replicou Aidan. - Cathal vive para o combate. Já viste como se destaca nesse campo. Só está aqui em Sevenwaters porque Johnny lhe ordenou que viesse. Cathal tentou esquivar-se. Odeia ter de fazer conversa, exibir as suas melhores maneiras, respeitar os códigos de uma grande casa como a do teu pai. Irrita-se com as restrições. Em Inis Eala, as suas excentricidades não dão tanto nas vistas como aqui, ou como em Whiteshore. Como guerreiro, nunca põe um pé em falso.
Ia pedir-lhe que me explicasse as provocações que tinham trocado naquele feroz encontro de facas, quando ouvimos o som de cascos a aproximarem-se e mais adiante, ao virar da esquina, chegou Eilis no seu pónei cinzento, perfeitamente calma. Atrás dela, vinha Coll no seu cavalo baio.
- Pensámos que não devíamos avançar demasiado - disse Eilis -, para não corrermos o risco de tu te zangares, Clodagh. Voltámos para trás no terceiro ribeiro.
- Onde está Cathal? - perguntei. Eilis olhou para mim sem expressão.
- Não está aqui? - replicou, olhando de relance para os outros e, depois, para mim.
- Ele foi atrás de vocês. Não o viram? Tu e Coll desviaram-se do caminho?
- Claro que não. - Coll falou com clareza. - Talvez tenha sido Cathal a desviar-se do caminho. Se tivesse seguido este trilho, não lhe teríamos escapado.
Praguejei entre dentes. Maldito Cathal! Como é que tinha desaparecido? Parecia ter talento para se meter em sarilhos.
- É melhor avançarmos - disse Aidan, olhando de relance para Doran, que se aproximara de nós, seguido de Sibeal.
- Concordo - respondeu Doran. - Só existe este caminho; ele não pode ter ido longe. Penso que nada de mal lhe terá acontecido, mas é sensato mantermo-nos juntos. Chegaremos ao lago em breve. Talvez já lá esteja à nossa espera.
- Desculpa, Clodagh. - Eilis parecia invulgarmente bem-comportada. - Não devíamos ter cavalgado para longe; eu sei.
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- Está bem - retorqui. - Não falamos mais disso. Mas não tornes a fazê-lo, por favor. O mesmo se aplica a ti, Coll.
Enquanto avançávamos, um sinal de alerta despertou dentro de nim. Os homens de Inis Eala tinham uma grande prática, não só de combate, mas também de outros exercícios, como seguir rastos e descobrir trilhos, já para não falar de um domínio único da arte da cavalaria. Como é que Cathal se podia ter perdido num caminho tão simples? Que farsa era aquela?
Chegámos ao lago a tempo e horas. Era um lugar encantador, aninhado num vale cimeiro, nos flancos de uma colina densamente arborizada. Havia nele uma tranquilidade que apaziguava a mente, porque entre a água cristalina e a abóbada do céu só existiam o sonho e o canto dos pássaros. Quando ali estávamos, gostava de deitar-me de costas sobre a erva e de respirar fundo, libertando-me das minhas preocupações.
Naquele dia, isso não era possível. Não havia sinais de Cathal. Quando Sibeal e eu estendemos no chão a comida e as bebidas que Doran transportara nos alforges, e os homens entraram na água com as crianças para ver se a pesca seria boa, eu ainda estava a pensar no que podia ter acontecido, e nenhuma possibilidade me agradava. Todos sabíamos que os caminhos da floresta de Sevenwaters eram enganadores. Quando as Criaturas Encantadas queriam que um homem se perdesse, ele perdia-se. No passado, alguns viajantes tinham entrado no mato a cavalo e nunca mais voltaram a sair. Mas aquele caminho era simples. Aliás, essa era uma das razões por que eu tinha concordado com o destino escolhido por Eilis. Como Cathal acompanhava a família de Sevenwaters, as Criaturas Encantadas deveriam tratá-lo como nos tratavam a nós. Nós nunca nos perdíamos, e tão pouco se perdiam os membros de confiança da nossa casa.
Para mim, não tinham significado os rumores idiotas que circulavam do outro lado das fronteiras das nossas terras, acusando os Tuatha De de se manifestarem contra a humanidade. Era verdade que possuíam um enorme poder e que estavam preparados para usá-lo.
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Mas não contra nós. Quem conhecesse a história da nossa família saberia que não podia ser essa a razão do desaparecimento de Cathal.
Teria cavalgado para longe, numa missão só dele? O diálogo nos estábulos sugeria que fora Cathal quem planeara o passeio desse dia. Talvez não o tivesse feito para ajudar o amigo, mas com um desígnio mais obscuro. Pensei em espiões, em raptos e assassínios e comecei a sentir-me muito nervosa. O casamento de Deirdre com Illann tinha ofendido os chefes de clã do Norte. Talvez Naithi ou Colman tivessem decidido raptar um de nós para chantagear o meu pai, de maneira a causar boa impressão junto do influente Eoin de Lough Gall. Talvez Cathal estivesse com eles naquele preciso momento, a indicar a alguém o nosso paradeiro exacto.
Quando começámos a comer, ele apareceu por baixo da copa das árvores no seu cavalo negro castrado. Desmontou, deixando a montada a pastar ao lado das nossas, e veio sentar-se ao meu lado. Enquanto o observávamos, mudos, Cathal pegou calmamente num osso de carneiro.
- Podiam ter esperado por mim.
- Onde é que estavas? - Contive a minha irritação, ciente de que era justo dar-lhe o direito de se explicar.
- Tu sabes que eu fui à procura de Coll e de Eilis, Clodagh. Mas vejo que estão aqui, ilesos, a não ser que as Criaturas Encantadas os tenham transformado em simulacros espectrais deles próprios. Vamos ver... - Cathal estendeu o braço e beliscou Eilis ao de leve, no braço, fazendo-a gritar. - Não, é mesmo o original. Pelo menos, guardaram-me alguma comida.
- Onde é que foste, Cathal? - Aidan parecia sereno. Claro que estava mais habituado à excentricidade do amigo do que eu.
- O caminho era a direito e as crianças deram meia-volta e regressaram, depois de uma curta cavalgada. Mas de ti não havia sinal.
Os olhos negros de Cathal dirigiram-se, reservados, ao amigo.
- Nem de vocês - replicou. - Cavalguei atrás deles até ter a certeza de que já os tinha ultrapassado. Depois, voltei para trás, pensando que podiam ter enveredado por algum caminho secundá-
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rio; explorei vários, em vão, e regressei ao lugar onde vos tinha deixado, mas já não estavam aí. Deduzi que deviam ter continuado sem mim. Shadou NT teve um bom exercício hoje - acrescentou, olhando para o cavalo.
- Estou a ver - comentei, sem conseguir afastar uma nota de suspeita da voz. - Que estranho não te teres cruzado connosco.
- Os caminhos que atravessam a floresta têm o hábito de mudar - afirmou Sibeal, numa voz solene, fitando o rosto de Cathal.
- Não é sensato desviarmo-nos dos trilhos, a não ser que conheças o lugar e o lugar te conheça a ti.
Detectei uma mudança subtil na sua expressão, como se uma brisa fresca tivesse passado por ele. Era estranho aquele olhar. Quase diria que Cathal estava com medo. Mas respondeu-lhe num tom descontraído.
- Nem tudo em Inis Eala é manejo de espada e prova de força. Também somos treinados noutras habilidades. Coll, passas-me esses bannock NT.
Sibeal continuava a observá-lo. Por vezes, as pessoas que não conheciam a nossa família sentiam-se desconfortáveis com o seu escrutínio, porque ela tinha os olhos de uma vidente, de um azul tão pálido que quase não possuía cor, e um estranho poder de concentração.
- Ser um homem de Inis Eala não te protege das Criaturas Encantadas - insistiu. - Se quiserem desviar-te do caminho, os teus talentos de batedor não te servirão de muito. Como é que descobririas o trilho, através dos sons e dos sinais, se o próprio trilho se modificasse?
- Não passam de superstições tolas - disse Cathal. Doran aclarou a garganta.
- Acredita no que quiseres - antecipei-me, sem vontade de ver o nosso homem de armas envolvido numa discussão constrangedora. - Esta é a tua primeira visita a este lugar. Se ficares connosco tempo suficiente, descobrirás que é verdade. É uma das ra-

NT Sombra.
NT Pão achatado, oval ou arredondado, geralmente feito de cevada ou de farinha de aveia, usado na Escócia e Norte de Inglaterra.
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zões por que Sevenwaters é um domínio tão cobiçado. A zona é mais ou menos inexpugnável. Mas é certo que, embora a presença das Criaturas Encantadas ajude a proteger-nos, não deixa de ser uma responsabilidade.
- Uuu - replicou Cathal, absolutamente incrédulo.
- É um lugar fora do comum - disse Aidan. Crescer rodeado por esta enorme floresta, com as suas histórias invulgares, e depois ter de partir e viver num sítio banal... Penso que a vossa irmã Deirdre terá alguma dificuldade.
Lembrei-me de Deirdre a jurar que, se a nossa mãe morresse a dar à luz um rapaz, ela esqueceria Sevenwaters e nunca mais voltaria a casa.
- Depende - retorqui, dando um rumo mais confortável à conversa. - Se a alternativa for boa, as pessoas partem de boa vontade. Muirrin, por exemplo, adora a sua nova vida. A minha tia Liadan, mãe de Johnny, foi parar à Bretanha. É claro que ela...
- interrompi, evitando falar do dom da minha tia para comunicar à distância na presença do céptico Cathal.
- Ela o quê? - perguntou Eilis distraidamente, cortando uma fatia de queijo.
- Ela fala com o pai a uma grande distância - respondeu Sibeal. - Em silêncio, de mente para mente. É um talento comum entre os gémeos da nossa família. Significa que a tia Liadan consegue partilhar as suas notícias com o pai, e saber as nossas, sem esperar que as cartas percorram todo o caminho de Harrowfield a Sevenwaters - explicou, voltando a observar Cathal. - Deirdre e Clodagh também conseguem fazê-lo - acrescentou.
Levantei-me, espalhando as migalhas pelo chão.
- vou dar um passeio à volta do lago - anunciei.
- Não te afastes do caminho, que as Criaturas Encantadas podem apanhar-te.
Cathal era incorrigível. Devia ter-me enganado, momentos antes, quando pensei que as palavras de Sibeal o tinham perturbado.
- Não é assunto para brincadeiras - retorqui. Não te levantes, Doran. Sibeal vem comigo e ficaremos à vista o tempo todo.
Na outra extremidade do Pudding Bowl, a minha irmã e eu sentámo-nos nas rochas, à beira de água. Dali, víamos os outros do ou-
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tro lado do lago: Coll e Eilis a pescar, Aidan a ajudá-los com os anzóis e o isco, Doran parado ali perto, de vigia. Cathal estava sentado na erva, mais acima, ao pé dos cavalos, com os braços à volta dos joelhos. Não era uma posição relaxada. Tive a impressão de que os seus olhos escuros nos fitavam, a mim e a Sibeal. Mas talvez estivesse simplesmente a olhar para o espaço, absorto. Apesar das ironias, da resposta rápida, dos escárnios e travessuras, havia uma tristeza naquele homem. Lembrei-me da sua amabilidade com Aidan, naquela manhã. Depois, pensei no seu estranho desaparecimento e no que este podia significar. Cathal era um mistério. Um enigma.
Sibeal contemplava a água, de uma extraordinária transparência. Pequenos peixes sarapintados passavam como setas por cima de um padrão castanho e esverdeado de rochas escorregadias, procurando refúgio nos fetos subaquáticos. A minha irmã não estava em transe; com o tempo, eu tinha aprendido a reconhecer aquele estado, e os seus olhos não se tinham desfocado nem o corpo se imobilizara numa quietude sobrenatural, sugerindo a passagem a uma forma diferente de consciência.
- Podia ler o futuro aqui - afirmou. - Esta água transporta muitas visões. Mas sei que me pediste que viesse contigo para podermos conversar.
- Sim, é verdade - confessei. Aquilo era embaraçoso, apesar de nos entendermos muito bem. Como vidente, Sibeal tinha uma janela com vista para o futuro que mais nenhum de nós podia abrir. Ela nunca falava das suas visões. Aliás, não costumava sequer revelar os seus pensamentos. - Devíamos falar da mãe e do bebé e daquilo que pode vir a acontecer.
- Eu sei que ela pode morrer - afirmou, numa voz débil e nítida. - E o bebé também. O pai contou-me. Ou o bebé pode ser uma menina. Outra desilusão, como eu e Eilis. Como todas nós, imagino, à excepção de Muirrin, porque a primeira deve ser especial.
Sibeal transmitia uma calma sinistra. Senti uma enorme compaixão por ela.
- Ela ama-nos a todas, Sibeal - retorqui. - Nunca duvides disso. - Por momentos, hesitei. - Viste alguma coisa no futuro a respeito de tudo isto? Alguma das tuas visões revelou o que ia acontecer?
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Seguiu-se um silêncio. Do outro lado do lago, Eilis gritou de alegria quando um peixe mordeu o seu anzol. Aidan ajudou-a a puxá-lo para cima. Cathal ainda não tinha mudado de posição.
- Sabes que não posso falar dessas coisas. - Havia um som comprimido na voz de Sibeal, como se aquilo em que estava a pensar a magoasse. - Quando vejo o futuro, não sei distinguir se é o que vai acontecer, ou apenas o que podia acontecer. E, de qualquer modo, as visões nunca são claras. Estão carregadas de símbolos, de sugestões e de pistas e cabe ao vidente interpretar tudo isso. Ciarán disse-me que, quando for mais velha e tiver mais prática, serei capaz de transmitir uma parte daquilo que vejo, para que esse conhecimento ajude as pessoas a tomar decisões. Mas não vou fazê-lo agora, Clodagh.
Senti-me gelada.
- Queres dizer que viste alguma coisa acerca da mãe e do bebé? Já viste e não me contas?
Ocorreu-me, de súbito, como devia ser aterrador possuir o dom da Visão. O talento de Sibeal era, ao mesmo tempo, uma dádiva e uma maldição.
A minha irmã acenou-me discretamente.
- Se eu não consegui interpretá-lo, o mais provável é que tu também não consigas - afirmou, tranquila. - Não era evidente, Clodagh. Não sei o que vai acontecer. Mas, se o que te inquieta é que eu possa não ter consciência da gravidade da situação, não te angusties. Eu tenho essa consciência. É com Eilis que deves preocupar-te.
Em silêncio, olhámos para a outra margem do lago, do outro lado de Pudding Bowl, onde Eilis pousara o seu peixe e Aidan continuava a ajudá-la. Parecia bem grande; Eilis devia estar triunfante. Esperei que se tivesse lembrado de dizer uma oração, agradecendo o sacrifício que aquele ser fizera para nos alimentar.
- Talvez ambos sobrevivam, a mãe e o bebé, e Eilis não precise de saber que foi por pouco - sugeri. - Por outro lado, se não a avisarmos e o pior acontecer, ela não estará preparada. Seria ainda mais cruel.
- Clodagh - disse Sibeal. Olhei para ela e ela devolveu-me solenemente o olhar. - Estás muito assustada, não estás? - per-
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guntou. - Assustada, nervosa e preocupada com tudo, não apenas com as grandes questões de vida ou de morte, mas também com as pequenas coisas: manter a casa em ordem, enquanto a mãe não se sente bem e o pai anda absorto, ou garantir que nós todas fazemos a nossa costura e tomamos o nosso pequeno-almoço... Não podes fazer tudo, Clodagh. Por vezes, temos apenas de esperar para ver o que acontece.
- És muito madura para uma rapariga de doze anos - observei. - Diz-me uma coisa, o que pensas de Cathal?
Sibeal dirigiu-me um olhar penetrante.
- Pensei que era de Aidan que gostavas.
- Não estou a perguntar porque gosto do homem - esclareci.
- Queria apenas saber se pensas que ele é... Não sei bem como dizer isto. Viste o que aconteceu há pouco, Sibeal. Cathal comporta-se de maneira estranha. Uma coisa é ser idiossincrático, outra é ser inequivocamente suspeito. A verdade é que conseguiu perder-se num abrir e fechar de olhos. E não conseguiu explicar-nos o motivo por que saiu daquele caminho. E... enfim, tem agido comigo de maneira estranha várias vezes. Não confio nele.
Sibeal parecia-me agora uma coruja a observar o outro lado do lago, de olhos postos no pequeno grupo à nossa frente. Doran e Aidan estavam a fazer uma fogueira; provavelmente, Eilis queria comer o seu peixe.
- Clodagh - respondeu a minha irmã -, acabámos de explicar a Cathal o que se passava com os caminhos, o modo como se alteram para enganar viajantes incautos. Agora, não podes voltar atrás e dizer que ele é suspeito porque se perdeu.
- Mas ele estava connosco e nós somos a família.
- Ele não está connosco - replicou. - Ele não está com ninguém.
E antes que eu pudesse pedir-lhe que se explicasse, Eilis chamou-nos da outra margem, acenando-nos para que regressássemos.
Uma vez que Aidan fora honesto comigo no que dizia respeito a Rathnait, permiti que fizesse o caminho de regresso ao meu lado.
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Ele aproveitou a oportunidade para me falar da casa dele, em Connacht, e da sua família. Fiquei a saber que Aidan tinha ido para Inis Eala para receber uma formação superior na arte da guerra e ajudar o pai, em casa, nas suas disputas de terras. O problema acabou por resolver-se de uma maneira mais pacífica, mas ele começou a gostar do que Inis Eala tinha para oferecer e decidiu deixar-se ficar. Entretanto, tratou de certificar-se que eu percebia que ele prolongara a sua estadia em Inis Eala por mais dois anos, mas que, depois disso, o seu lugar junto de Johnny seria preenchido por outra pessoa.
Não falámos mais de Rathnait ou da promessa de casamento. com os outros a cavalgarem tão perto de nós, aquele assunto tão delicado não podia correr o risco de ter uma maior exposição. Além disso, embora me sentisse feliz por ter recuperado a nossa amizade, sabia que não podia fazer planos para o futuro antes de o bebé da minha mãe nascer. Esse momento teria uma influência determinante e inevitável no nosso destino daí por diante. Queria questionar Aidan acerca da história do amigo, porque não percebia como é que Cathal se tornara o homem difícil e estranho que era, e pensei que as suas origens pudessem ser uma pista. Uma ascendência humilde, a amizade do filho de um chefe de clã, o excesso de orgulho... Mas agora não era a altura indicada para fazer essas perguntas.
Quando chegámos a casa, no final do dia, um grupo de homens preparava-se para atravessar a floresta. Gareth, Mikka e Sigurd faziam parte da comitiva. com o crepúsculo tão próximo, aquela partida só podia estar relacionada com um assunto urgente. Enquanto Aidan e Cathal se dirigiam aos companheiros de guerra, eu entrei em casa para falar com o meu pai, deixando que Doran ajudasse as raparigas a desmontar e recolhesse os cavalos.
Encontrei o pai e Johnny na pequena sala do conselho. A porta estava aberta e ouvi Johnny dizer:
- De certeza que não queres que eu vá?
- Desculpem-me a interrupção - disse, sentindo que nesse dia já ouvira demasiadas conversas inadvertidamente. - Podem dizer-me o que se passa?
- Recebemos a notícia de que Eoin de Lough Gall está de volta - respondeu o meu pai. - Quero que lhe seja entregue uma
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mensagem sem demoras. Gareth vai levá-la. E não, Johnny, não quero que tu vás. - Olhou de relance para mim e, depois, para o meu primo. - Vivemos tempos difíceis; precisarei de ti aqui, em Sevenwaters. Gareth saberá transmitir a mensagem com diplomacia a Eoin. Basta que os teus outros homens se conservem ao seu lado, como um aviso de que eu ainda tenho as forças de Inis Eala comigo, caso alguém decida fazer desta questão um pretexto para o conflito.
- O pai quer convidar Eoin para um conselho? - perguntei.
- Gareth estender-lhe-á também esse convite, sim. Depois de estar com Eoin, seguirá caminho, para fazer o mesmo aos outros chefes de clã do Norte. Não me comprometerei com uma data precisa enquanto vivermos aqui nesta incerteza. Na ausência de Gareth e do seu pequeno destacamento, que ainda se demorará algum tempo, era aconselhável mandarmos vir alguns homens de armas de Glencarnagh, para reforçar os nossos aqui, Johnny. Podias tratar disso de manhã.
Glencarnagh era a nossa outra herdade, no Sudoeste. Pertencera à família da minha mãe.
- Há alguma coisa que eu possa fazer para ajudar, pai? - perguntei. - Os homens já têm provisões suficientes para a viagem?
O meu pai sorriu, mas havia uma ansiedade naquele olhar.
- Podes confirmar isso na cozinha - respondeu. - Ainda tens tempo; temos de dar as últimas instruções a Gareth. Obrigada, Clodagh.
Uma inquietude angustiada apoderou-se de Sevenwaters depois da partida dos cavaleiros. Quando subi para ver como estava a minha mãe, descobri que tinha sangrado. Sentei-me por momentos ao seu lado, procurando não revelar a minha preocupação, embora me chocasse a sua palidez. Expliquei-lhe o que estava a acontecer lá em baixo, realçando a capacidade de Gareth e dizendo-lhe que Eoin seria certamente aplacado pelo convite para participar num conselho. Mas ela não estava a ouvir-me. O seu olhar virara-se para dentro, parecia que cada partícula de energia se centrava agora na pequena
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vida que crescia no interior. Cada ínfima parcela de vontade mobilizara-se para ajudar aquele coração minúsculo a bater, até ser suficientemente forte para dispensar o seu auxílio. Ao deixar o quarto, fiquei sozinha algum tempo, ao pé da porta, para recuperar a calma antes de descer e confrontar o resto da família.
O meu pai esteve invulgarmente silencioso durante o jantar. com o problema de Eoin no horizonte, já para não falar da saúde incerta da minha mãe, eu tinha a certeza de que ele teria gostado de evitar diversões durante o serão e enviar as pessoas da casa para a cama mais cedo. Mas quando Willow se levantou, depois do jantar, e se dirigiu, apoiada no bordão, à nossa mesa, percebi que queria contar a sua primeira história. A mulher idosa pousou o olhar astuto e avaliador em cada um dos membros da família e, enquanto nos observava, perguntei-me o que estaria a ver. Adivinharia que Sibeal era uma mística, e que na sua pequena cabeça se precipitavam visões do inexplicável, de uma estranheza inquietante? Conseguiria ver a bondade inata de Johnny, a força estóica do meu pai, ou a energia feliz e irreprimível que constituía uma parte tão importante da identidade de Eilis? Saberia decifrar a incerteza oculta sob o ar de serena competência que eu esperava transmitir? Talvez aos seus olhos fosse muito evidente que cada um de nós caminhava sob uma nuvem de possibilidades ominosas.
- Lorde Sean - disse a velha enrugada -, agradeço-vos a hospitalidade desta grande casa. Trago-vos as boas graças do Povo Errante e as saudações reverentes do próprio Dan Walker.
O meu pai acenou, solene.
- Os parentes de Dan serão sempre bem-vindos nesta casa
- afirmou. - A minha filha disse-me que eras uma contadora de histórias. Acolheríamos de bom grado uma história que nos divertisse esta noite.
- Dar-vos-ei um bom entretenimento, meu senhor. A seguir, talvez os músicos mais novos desta casa possam tocar para nós. Gosto de ouvir harpa.
Willow olhou para mim e permitiu que Aidan lhe arranjasse um banco, onde se sentou com alguma rigidez, pousando o bordão no chão, ao seu lado. A família ali reunida silenciou-se. Vi que Cathal
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estava de pé, junto da porta principal, com um ar entediado e arrogante. Quando o seu olhar se cruzou com o meu, não mostrou sequer uma centelha de reconhecimento.
Vivemos tempos difíceis - disse a mulher idosa, percorrendo aquele círculo de caras atentas. - Tempos árduos e exigentes. Esta noite, procurarei iluminar os vossos espíritos com uma história. Uma história que não nos fala do grande povo dos Tuatha De, nem de lordes e ladies e das suas loucuras e aspirações, mas de gente mais pequena. É a história de dois clãs em guerra, que se envolveram em conflitos e emboscadas, em intrigas e retaliações, por baixo dos canaviais nas margens do lago, entre as raízes dos carvalhos e o emaranhado de espinheiros que escondem a pedra esboroada dos muros antigos.
- dunchauns NT- exclamou Eilis, cobrindo a boca com a mão logo a seguir.
Willow sorriu.
- Sem dúvida, jovem senhora. E eles dividiam-se em dois clãs. Por falta de melhores nomes, autodenominaram-se Vermelhos e Verdes. Esta designação permitia aos dois grupos rivais distinguirem-se entre si através de uniformes minúsculos e inequívocos, de uma ou da outra cor. Os Vermelhos faziam os seus casacos com penas de piscos-de-peito-ruivo, folhas de carvalho no Outono, ou fios coloridos, surripiados dos cestos de costura das senhoras. Os Verdes fabricavam capacetes com as carapaças descartadas dos escaravelhos, capas de musgo e botas de ervas entrelaçadas. Ambos os clãs tinham armas: lascas afiadas de sabugueiro, paus guarnecidos de espinhos de rosa selvagem. A pequenez do clurichaun em nada atenuava o seu espírito belicoso. Cada grupo tinha o seu chefe, o seu bardo, o seu campeão. Cada tribo possuía o seu esconderijo: os Vermelhos entre rochedos cobertos por uma trepadeira com folhas castanho-avermelhadas; os Verdes mais abaixo, numa cavidade à beira do lago, com uma rã-touro de sentinela. Devo dizer-vos que o ódio que sentiam pelo inimigo se estendia às cores que usavam. Um Ver-

NT O dunchaun, figura mitológica do folclore irlandês, é um pequeno espírito brincalhão parecido com o duende.
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de não tolerava nada que fosse vermelho na sua vida, e o mesmo se passava no sentido inverso. Os Vermelhos comiam carne e maçãs rosadas; os Verdes comiam agriões e bagas azedas. A desgraça abatia-se sobre qualquer bebé verde nascido com um fio de cabelo da cor do de Clodagh: a mãe seria imediatamente acusada de se deitar com o inimigo.
"E porque é que estes dois clãs rivais tinham entrado em guerra? Tudo acontecera por causa de uma pequena colina situada entre os seus territórios. Do meu ponto de vista, e do vosso, esta colina não seria mais do que uma pequena bossa no chão, uma leve protuberância que um homem de pernas compridas pisaria sem quase dar por isso. Para os dunchauns, era uma montanha sagrada, o lugar onde tinha nascido um grande líder da sua espécie: Mochaomhóg, o Antepassado. Se Mochaomhóg tinha sido um Vermelho ou um Verde era a dúvida que residia no coração da longa disputa entre estes dois partidos, uma vez que cada clã o reclamava como seu.
Willow continuou, descrevendo os longos anos de guerra, a dor das mulheres dunchauns pela morte dos pais, dos maridos, dos irmãos e dos filhos, e o esforço destas mulheres para proteger os seus homens no campo de batalha.
- Porque elas usavam os mesmos truques que nós usamos: bordar uma cruz de sorveira-brava nas roupas de um guerreiro antes de este deixar a sua casa, fazer-lhe uma trança tripla no cabelo, esconder-lhe maços de ervas protectoras na bota ou na algibeira. E se caíam menos homens graças a estes sortilégios, tanto melhor.
"Houve uma altura em que os Verdes dominaram o conflito. Tinham estabelecido um acampamento mesmo na colina de Mochaomhóg, desafiando, no entender dos Vermelhos, os limites da decência, e até acenderam uma fogueira em miniatura e sentaram-se à sua volta, descarados. Os Vermelhos conceberam um plano astucioso: como não eram conhecidos pelos seus dotes de nadadores, surpreenderiam o adversário de barco, acostando numa pequena enseada por baixo da colina e subindo, depois, por um caminho encoberto - o ninho de uma ratazana-de-água - para atacar pela retaguarda. Era um bom plano, embora desconfie que os excepcionais chefes de guerra aqui presentes fossem capazes de encontrar nele algumas falhas.
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A mulher idosa olhou de relance para Johnny enquanto dizia isto e ele sorriu-lhe.
- Os Vermelhos vestiram o traje de guerra completo. Todos levavam a capa sobre os ombros, porque na água estava frio. com alguma dificuldade, lançaram a barca e empurraram-na com varas ao longo do lago, até à colina de Mochaomhóg, onde o fumo da fogueira dos Verdes se erguia como uma pequena nuvem, reduzindo-lhes convenientemente a visibilidade. O som da festa abafou o chapinhar provocado pela passagem do pequeno barco. Acostaram. Dois guerreiros pararam para prender a barca; os outros avançaram pelo túnel da ratazana, o ninho cheio de crias, as passagens superiores do antro da fera. Avançaram em fila indiana, a única maneira de atravessar aquele canal apertado. Os dois guerreiros que tinham ficado para trás, a prender o barco, apressaram-se a ir ao encontro dos companheiros, mas, antes de chegarem à saída, uma pequena forma surgiu a cambalear, com um punhal enterrado no coração. Uma segunda caiu do topo, com o uniforme vermelho ainda mais manchado de vermelho. Uma terceira... uma quarta... Um a um, todos os guerreiros que tinham subido naquele primeiro destacamento eram empurrados de novo para baixo, mortos ou moribundos. "Retirada", sussurrou um dos dois sobreviventes para o outro. E voaram ambos pelo túnel abaixo, atiraram-se para dentro da barca e empurraram-na freneticamente para longe dali. Ocorreu pelo menos a um deles que alguém devia ter contado ao inimigo que eles estavam a chegar. Alguém tinha preparado uma comitiva de boas-vindas: umas boas-vindas sangrentas.
"Assim que o infeliz relato foi ouvido pelo clã Vermelho, as criaturas olharam umas para as outras, desconfiadas. Quem seria o traidor? Um dos homens acusou outro porque a avó deste tinha comido uma vez uma vagem de favas. Um terceiro disse que um quarto devia ser o culpado, pois já tinha admirado os olhos cor de esmeralda de uma certa jovem senhora. Era evidente que aquele assunto continuaria a provocar grandes divisões até ser resolvido.
"A anciã do clã mandou, então, reunir todos os seus membros. "Tirem as vossas capas", ordenou. "Coloquem-nas no chão." Ninguém sabia porque é que a velha enrugada pediria uma coisa daque-
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las, mas obedeceram, como sempre faziam, porque nunca se enganara em muitos, muitos anos a resolver as suas desavenças. Não apenas os dois sobreviventes da debandada, mas todos os machos ali presentes estenderam as suas capas no chão, até o chão da floresta ficar coberto por uma manta de copiosos tons de vermelho. A mulher idosa andou de um lado para o outro, examinando com minúcia cada uma das capas. Quase todos os homens tinham cruzes de sorveira-brava cosidas no avesso da roupa, porque se trata de um poderoso sortilégio contra a morte no campo de batalha. Parecia que era para elas que a velha enrugada olhava. Enquanto passeava por entre as capas, um dos dois sobreviventes começou a ficar muito nervoso. Por uma ou duas vezes, tentou recolher a sua, alegando que se sentia enregelado depois da travessia do lago, e a mulher idosa deteve-o. "Ainda não acabei", disse ela.
Willow virou a cabeça e olhou directamente para mim, fitando-me com os seus olhos pequenos e brilhantes. Alarmada, endireitei-me na cadeira. Estaria a tentar dizer-me alguma coisa? Haveria no seu conto alguma mensagem menos óbvia, um significado oculto que me cabia a mim decifrar? Se assim era, passara-me despercebido. Sorri, pouco à vontade, e ela olhou noutra direcção, concluindo a sua história.
- A velha parou; olhou. Olhou de novo. Por fim, endireitou-se e virou-se para os anciãos: "Este homem é o traidor, afirmou. "Ele entregou-vos ao inimigo. É... um Verde."
"Todos arquejaram, horrorizados. O homem acusado negou-o com veemência. Não era nenhum traidor. Não se precipitara ele no assalto, juntamente com o resto do destacamento? O facto de ainda estar vivo era uma questão de sorte, não de traição. Por acaso, acontecera ser o último da fila.
"Naquele momento, a velha mostrou aos anciãos a capa do homem. Tinha uma cruz de sorveira-brava, como todas as outras. Mas, enquanto o fio usado pelas esposas e mães dos outros guerreiros para coser os galhos de sorveira ao tecido era, como devem imaginar, vermelho, as mulheres da família daquele soldado tinham usado um fio verde, do verde mais profundo da floresta.
"Não era necessário apresentar mais provas, porque todos sabiam que uma mulher vermelha não tocaria, nem com o dedo min-
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dinho, numa coisa verde. O homem devia ser um espião inimigo. Sendo a justiça dos dunchauns como é, o castigo foi severo; tão severo na verdade, que talvez não devêssemos falar dele diante destas crianças.
Willow olhou para Coll e para Eilis com um meio sorriso.
- Não podes deixar de contar-nos! - protestou Coll, indignado.
- Muito bem - disse Willow. - O traidor foi levado para o maior lago da floresta. Aí, obrigaram-no a caminhar numa prancha de rocha sobre a parte mais funda e, depois, empurraram-no.
Coll ficou muito desiludido.
- É só isso? - perguntou.
- No lago, vivia um peixe fêmea muito velho e muito grande
- acrescentou Willow. - O guerreiro foi perseguido à volta do lago até ficar tão cansado que quase se afogou. Nesse momento, ela comeu-o. E assim termina a minha história, embora deva apenas acrescentar que, até hoje, os dunchauns continuam a pelejar pela colina de Mochaomhóg.
Era uma boa história, narrada com perícia. Quanto à possibilidade de Willow ter incluído nela algum significado especial, só a mim dirigido, devia ser apenas uma impressão. Se Willow dedicara a história daquela noite a alguém, fora certamente a Eilis e a Coll.
- Obrigado - disse o meu pai. - Nesta casa, todos nós gostamos de histórias. E é fácil esquecermo-nos do poder que elas têm para esclarecer o sentido das coisas. Aidan, talvez pudéssemos ouvir um pouco de música antes de nos retirarmos. Clodagh, também tocas? Já não te ouvimos há algum tempo.
- Talvez amanhã - respondi. Perdoara a Aidan a sua mentira, mas ainda era muito cedo para voltar a tocar com ele. Ainda não me tinha esquecido da sensação perigosamente boa. Voltar a sentir o mesmo levar-me-ia a imaginar um futuro que podia não acontecer, um futuro em que o bebé da minha mãe nasceria em segurança e em que ela recuperaria o suficiente para tornar a assumir todos os seus antigos deveres, um futuro em que o pai de Rathnait aceitaria, afinal, com satisfação não casar a filha com Aidan, e em que... Havia demasiados ses naquele quadro e eu sabia que não podia encorajá-lo, não para já. - Estou demasiado cansada esta noite, ia estragar tudo.
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- Eu toco - disse Aidan, indo buscar a harpa a um nicho ali perto. - Uma história tão boa merece uma melodia de desfecho. Lamento não conhecer nenhuma canção acerca de dunchauns, terá de ser outra coisa.
Cathal pareceu-me especialmente rígido. Talvez não gostasse de histórias, sobretudo as que tinham um fundo de magia. Estava sempre pronto a rejeitar conversas a respeito das Criaturas Encantadas e a decretá-las pura fantasia. Se ficasse connosco tempo suficiente, acabaria por descobrir como estava enganado.
Aidan cantou uma balada e a melodia ressoou docemente na sua voz profunda e macia, acompanhada do som aveludado da harpa. Era uma canção de amor e, embora ele não me envergonhasse, olhando-me nos olhos enquanto a cantava, seria difícil não reparar que a senhora naquela composição tinha uma cabeleira que lembrava uma nuvem em chamas e olhos como duas jóias verdes, e que o guardador de porcos que tentava conquistá-la a admirava não só por essas qualidades, mas também pela sua natureza franca e decidida e o amor que dedicava à família. Era uma peça bonita e eu tinha a certeza de que fora escrita por ele. No fim, a senhora deixou a família e foi viver para a floresta, com os porcos e o seu guardador, o que me agradou - esperava uma história previsível, em que o guardador de porcos seria, afinal, um príncipe disfarçado, mas a surpresa acrescentou encanto à canção.
Quando Aidan terminou, não me pareceu que as pessoas tivessem pressa de ir deitar-se, mas o meu pai desculpou-se e saiu do salão. Tinha poucas oportunidades para estar com a nossa mãe e, se Gareth não conseguisse amenizar Eoin de Lough Gall e os outros chefes do Norte, esses momentos tornar-se-iam ainda mais escassos. Apesar da presença de Muirrin e de uma série de auxiliares, eu sabia como a minha mãe precisava dele. O meu pai sempre fora capaz de tranquilizá-la e de dar-lhe confiança nas fases mais críticas. Mas ele preocupava-me mais do que eu dizia. O que seria do nosso pai se a perdêssemos? Parecia-me que não o veria choroso ou enfurecido, mas virado para dentro, sem a capacidade de sorrir para uma história, ou de rir com as piadas tolas de Eilis.
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Vejo que Aidan conseguiu voltar a cair nas tuas boas graças.
Estremeci. Desviara-me para um canto com o copo de hidromel tão imersa nos meus pensamentos que não vira que Cathal estava ali.
- Ele foi honesto comigo - repliquei, olhando por cima do ombro para ver se alguém podia ouvir a nossa conversa. Aidan ausentara-se por momentos, para guardar a harpa; Sibeal, Eilis e Coll estavam todos sentados aos pés de Willow, a fazer-lhe perguntas. Os homens falavam uns com os outros, à lareira. - É verdade que Rathnait é uma criança de doze anos, não é? - Cathal confirmou com um aceno, sem dizer palavra. - E também é verdade que a promessa de casamento é apenas verbal, feita casualmente há muitos anos atrás pelos dois pais?
- Não sei nada disso - respondeu-me. Não parecia exactamente empenhado na causa do amigo. Recordando a conversa nos estábulos, fiquei surpreendida com aquela nova postura. - És rápida a perdoar, Clodagh - acrescentou. - No próprio dia em que ele te apresenta a sua explicação, tal como ela é, já permites que componha canções a teu respeito.
Senti-me corar.
- Não lhe pedi que inventasse aquela canção. E não podia abandonar tempestuosamente a sala só porque nela se falava de uma mulher ruiva. E que objecções são as tuas, afinal? Sou assim tão pouco adequada?
Maldição, como é que aquilo me escapara? Fazer a pergunta era o mesmo que encomendar um relatório dos meus defeitos, com "enfadonha" logo à cabeça.
- Esquece o que eu disse - murmurei entre dentes, olhando para os pés.
- Não - disse Cathal. - Ele é que é inadequado para ti.
- O quê? - Agora tinha toda a minha atenção. - O filho de um chefe de clã, um guerreiro experiente, jovem, bonito, que, além de tudo isso, é músico?
Cathal parecia desconfortável. A arrogância desaparecera.
- Dito dessa maneira - replicou, - o meu amigo seria um bom partido para qualquer mulher. Ainda assim, não devias precipitar-te.
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- Não que isso te diga respeito - afirmei, abismada que ele tivesse decidido dar-me aquele conselho -, mas hoje Aidan conseguiu convencer-me que o acordo entre o pai dele e o de Rathnait podia ser desfeito sem prejudicar ninguém. De qualquer modo, é-me indiferente. Seria inapropriado para mim encorajar agora um pretendente. A minha mãe está prestes a dar à luz. Não está bem de saúde. Serei precisa aqui em casa.
Não era minha intenção falar tão abertamente daquele assunto, mas talvez se me ouvisse Cathal parasse de interferir na minha vida pessoal.
- Se pretendes desencorajá-lo, estás a fazer um péssimo trabalho - retorquiu, numa voz categórica. - É claro que não vês a forma como olhas para ele. Mas não me culpes se tudo correr mal.
- Não o farei - disse, momentos depois. O seu tom não fora atrevido nem arrogante, mas tão sério como se estivesse a avisar-me de um perigo real e iminente. - Cathal?
- Sim?
- Hoje, a caminho do Pudding Bow, o que é que aconteceu de facto? Onde foste quando desapareceste?
As feições de Cathal fecharam-se, impenetráveis.
- Não sei do que estás a falar - respondeu.
- Sabes, Cathal. - Não sabia até que ponto poderia levar a minha insistência. - Não acredito que te tenhas perdido; isso não aconteceria a nenhum dos homens de Johnny. Deves ter ido a algum lado. Não era possível desencontrarmo-nos naquele trilho.
- Tens tantas certezas, Clodagh. E, no entanto, parece-me que quase tantas vezes como respiram tu ou alguém da tua família me falam de criaturas sobrenaturais que vivem na floresta, de caminhos que pensam e têm vontade própria e de mais um número infinito de estranhezas com as quais deverei ter cuidado. Imagino que esta noite tu e as tuas irmãs tenham acreditado em cada palavra do conto disparatado daquela velha mulher. E vens-me falar de verdade?
Fora um erro pensar que valia a pena tentar conversar com ele.
- Esquece o que eu te disse - repliquei. - É melhor voltar para junto dos outros.
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- Antes que Aidan fique com ciúmes? - quando olhei para ele, acrescentou: - Por vezes, o músico de voz suave tem um feitio intratável. Mas isso já tu viste. E não penso que sejas tão desprovida de imaginação como me pareceu de início.
- Dito por ti, creio que pode ser entendido como um elogio. Não prevejo um coração partido, Cathal. Sou feita de uma fibra mais rija do que isso.

CAPÍTULO QUATRO

Apenas três homens de Inis Eala tinham ficado em Sevenwaters: Johnny, Aidan e Cathal. A atmosfera tornara-se mais tensa enquanto esperavam por notícias de Gareth, que ficara de enviar uma mensagem assim que tivesse falado com Eoin. Duas manhãs depois de termos ido ao Pudding Bowl, o pai chamou-me à pequena sala do conselho, para eu me reunir com ele e com Johnny. Sentei-me à mesa, em frente de ambos; Aidan estava de vigia, à porta.
- Estamos a tentar chegar a uma decisão, Clodagh - disse-me, sem rodeios. - Relaciona-se com a missão de Gareth e a hipótese de convocar um conselho. Talvez Gareth consiga aplacar Eoin, talvez não. Pelo menos, terá de persuadi-lo de que não houve segundas intenções na minha decisão de conceder a mão de Deirdre a um homem do Sul. Ainda assim, dada a natureza de Eoin, é urgente convocar um conselho. As tensões entre o Norte e o Sul já fervem em lume brando desde que tu e Deirdre eram crianças, e é possível que o casamento as potencie. Isto pode arrastar Sevenwaters para uma guerra em grande escala. Aquilo de que precisamos é de um tratado entre regiões.
Lembrei-me das palavras que as pessoas geralmente empregavam para descrever Eoin de Lough Gall: irascível, difícil, instável, influente.
- Gareth vai apresentar essa ideia a Eoin? - perguntei.
- Vai apresentar-lhe o meu convite pessoal para um conselho, com a data a definir a seu tempo. Por agora, não será mais do que
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isso. Mas receamos que não seja suficiente. Sem um lugar, uma data, é possível que o interprete como uma promessa vaga, oferecida apenas para apaziguar. Se ao menos eu soubesse o que vai acontecer
aqui...
O olhar carregado do meu pai era sinal de uma luta interior.
- Seria preferível, na minha opinião, se convocássemos o conselho agora - acrescentou Johnny, numa voz serena. - Convidar tanto o Norte como o Sul. Sermos ousados. Estabelecer uma posição de domínio antes que alguém o faça.
- Não tens mulher, nem filhos - replicou o meu pai. - Espera que aqueles que amas estejam em perigo e depois diz-me se me darias o mesmo conselho.
Instantes depois, acrescentou:
- Perdoa-me. Acredita, eu compreendo quais são as dificuldades, e se todos estivessem bem concordaria plenamente contigo. Mas avançar com os pormenores do conselho de imediato parece...
- hesitou, de queixo na mão, os olhos cinzentos alterados. - vou ser honesto contigo: parece-me que, de certo modo, estaríamos a desafiar os deuses, e eu não faria isso, não com as vidas da minha mulher e da criança que está para nascer em risco. Talvez seja uma loucura dar ouvidos a esta voz que me sussurra. Sacrificarias aqueles que mais amas para alcançar a paz? Não tenho razões para a ouvir; não é a voz da razão. Mas devo fazê-lo. Penso que o conselho deve esperar.
- És sensato, pai, ao confiares nos teus instintos - afirmei. Nunca nos deixaram ficar mal no passado.
- Estás enganado a respeito de uma coisa, Sean. - Johnny tentou esboçar um sorriso. - Posso não ter uma mulher e filhos, mas isso não significa que não tenha também os meus reféns nas mãos do destino.
- Sem dúvida - concordou o meu pai, embora eu não compreendesse bem as palavras do meu primo. Os seus pais e irmãos, à excepção de Coll, viviam longe. Era verdade que Gareth era o seu melhor amigo e os outros homens que o acompanhavam seus camaradas leais, mas não era bem a mesma coisa.
- Talvez eu devesse ter ido em pessoa - disse Johnny.
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- Podemos confiar em Gareth; ele tem toda a competência necessária a esta missão. É um homem instruído, o seu discurso é cortês e diplomático. Embora não o seja exactamente, é quase um membro da família. Além disso, talvez essas famílias não te acolhessem com verdadeiro entusiasmo. Clodagh, parece-me que já tomei a minha decisão. Talvez seja a tua presença tranquila que me permite ver com mais clareza. Obrigada, minha querida.
Na terceira noite, depois de Willow nos ter contado a história da guerra entre dunchauns, Aidan convenceu-me a levar a minha harpa até ao salão e tocámos em conjunto algumas jigas e reels. Talvez aquela música exuberante não fosse adequada ao momento, porque a mãe tinha estado a vomitar e a purgar-se e a postura enérgica e competente de Muirrin não me enganava. Todavia, pareceu-me que a casa apreciara o espectáculo, e o nosso concerto encorajou mesmo um grupo de criadas e de homens de armas a dançar. Enquanto avançávamos a custo pelos acordes da última jiga, o ritmo acelerou-se e, muitas vezes, não falhámos por um triz. Sobrevivemos, eu corada e ofegante, Aidan perdido de riso, enquanto examinava os seus dedos, como se quisesse certificar-se de que ainda estavam inteiros. A assistência aplaudiu com vontade. O meu pai, contudo, permaneceu em silêncio.
- Tenho mais um conto para todos vós, esta noite. - Era a voz de Willow, forte e profunda, e, quando olhei para ela, a mulher idosa saiu do seu canto, com a mão ossuda fechada em torno do bordão. - Se Lorde Sean mo permitir. É a segunda das três que vos devo, e a história certa para este dia e para os tempos que correm.
- com certeza - respondeu o meu pai, embora para mim fosse evidente que os seus pensamentos estavam noutro lugar. Eu sabia que, apesar de preferir ir para cima fazer companhia à minha mãe, ele não abandonaria o salão até ao fim das diversões dessa noite. As pessoas gostavam de rotinas; gostavam que as coisas seguissem um padrão. Dava-lhes segurança. E um chefe de clã nunca podia pôr os seus receios pessoais à frente do resto.
Como era seu hábito, Willow deu uma boa vista de olhos pelo salão, antes de começar a contar a sua história. Sibeal estava presen-
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te, junto de Eilis e de Coll, os três sentados no chão, à cabeça da assistência. A partida da comitiva chefiada por Gareth significava que Aidan e Cathal passariam uma grande parte do tempo de serviço. Naquela noite, Aidan fora incumbido de ficar perto de Johnny, embora tivesse sido dispensado durante algum tempo, para tocar para nós. Cathal estava mais longe, junto da entrada.
- Alguma vez acreditariam - disse Willow, fitando Coll e Eilis com o seu olhar penetrante - que uma mãe fosse capaz de abandonar o seu bebé numa floresta escura e profunda, a meio da noite? Só a mais aflita das mulheres faria semelhante coisa. Só uma mulher a quem o medo e o desespero impediam de dar ao filho o amor que lhe cabia por direito é que entregaria assim uma criança, de mão beijada, à vontade dos deuses. Isto aconteceu, e o bebé estava às portas da morte quando uma loba se aproximou.
As crianças não conseguiam desviar os olhos de Willow, já enredados na teia do seu conto.
- Ora, esta loba - continuou - era muito mais mãe do que a rapariga frágil e confusa. Tinha crias, numa gruta nas entranhas da floresta, e leite de sobra para os alimentar a todos. Por isso, pegou no pequenino com todo o cuidado, abocanhando com os dentes afiados a roupa que ele trazia vestida, e levou-o consigo para casa. Amou-o com o amor que a sua natureza lhe permitia, de uma forma pragmática, sábia, e continuou a alimentá-lo muito depois de os seus pequenos terem crescido e ido às suas vidas. Lavava-o com a língua áspera, aprendendo as texturas do seu estranho corpo, sem pêlos; descobriu-lhe a fragilidade. Caçava para ele, uma vez que não parecia feito para dominar aquela arte. Aquecia-o durante a noite; fazia-lhe camas de fetos e de folhas, onde ele se abrigava depois de as suas roupas se gastarem, desfeitas em fiapos. E o rapaz-lobo aprendeu a trepar, a romper em corrida, a fugir, muitas vezes de gatas, como os seus irmãos e irmãs, outras de pé, apoiado nas duas pernas, desajeitado. Aprendeu a reconhecer os cheiros e os sons da floresta; aprendeu a proteger-se. Aprendeu a decifrar os rugidos, latidos e ganidos que compunham a linguagem da alcateia. Os outros toleravam-no por causa da mãe, porque ela ocupava uma posição cimeira naquela hierarquia, tendo parido muitas ninhadas vigorosas.
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Nem o líder da alcateia tão pouco considerava a criança-lobo uma ameaça, uma vez que o que não tinha pêlo era uma cria fraca. A natureza singular do rapaz garantiu-lhe, perante os outros, um respeito desconfiado.
"Os anos passaram e a criança-lobo tornou-se um rapaz da idade deste jovem - disse Willow, apontando para Coll -, capaz de construir o seu próprio abrigo e de armar uma cilada a um pássaro, quando queria carne. A mãe ainda tomava conta dele, mas já tinha criado muitas crias desde o dia em que acolhera a criança abandonada, e o seu filho humano estava a aprender a desenvencilhar-se sem ela. Só quando o Inverno atacava com mais força, em tempos de temporal e neve fina, é que o deixava dormir junto de si, enroscado no calor do seu corpo. A desgraça abateu-se sobre eles quando os homens vieram àquela parte da floresta, bem cedo de madrugada nesse dia, homens que não acreditaram nos seus olhos quando viram a loba envelhecida a emergir do seu sono e o rapaz quase adulto, despido naquele frio, a saltar e a sacudir os braços para protegê-la das suas setas de caçadores. Não mataram a mãe loba - o espanto tornou-os mais lentos - e ela desapareceu num ápice, com pés-de-lã, por baixo das árvores. Foi o rapaz que eles perseguiram e foi o rapaz que acabaram por apanhar, quase sem saber o que fazer com aquele ser que rosnava e se debatia nos seus braços.
"O rapaz-lobo foi arrastado para a aldeia local e comportou-se como qualquer criatura selvagem em cativeiro: ficou desnorteado, apavorado, furioso. com violência atacava quem quer que se chegasse perto. Tiveram de fechá-lo numa cave, com uma tranca na porta. com o tempo, quando ganhou fome, já exausto e desanimado, o rapaz acalmou-se, mas rosnava um aviso sempre que alguém lhe levava comida. Não conseguia beber do copo que lhe davam, derramando a água enquanto tentava lambê-la. Não conhecia a carne cozinhada, mas devorava-a, de cócoras sobre a escudela, sem usar as mãos.
"Talvez se perguntem porque é que a mãe loba não o defendeu naquele dia, na floresta. Porque é que fugiu, abandonando o filho aos predadores? Para ela, ele já não era uma criança. Aquela estranha cria já tinha cruzado há muito o seu caminho. A tolerância da
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loba à proximidade do rapaz diminuíra à medida que fora envelhecendo e ficando mais cautelosa. Sentia que o seu tempo como loba principal da alcateia estava a chegar ao fim. Seria capaz de defender uma ninhada de crias com a própria vida, mas aquele teria de desenrascar-se sozinho.
"Durante algum tempo, a criança-lobo foi matéria de assombro, espiada pelas fendas da porta da cave, um prodígio que era também uma diversão. Mas a novidade rapidamente perdeu interesse. Um ou dois aldeões tentaram falar com o rapaz, gesticulando de uma maneira que ele pudesse compreender, mas ele respondia-lhes sempre com rugidos ou gemidos e rapidamente se desinteressaram daquela criatura tão pouco compensadora. O rapaz-lobo, por sua vez, tremia de frio e sentia-se sozinho e confuso. Tinham-lhe dado roupa, uma camisa grosseira e um par de calças, e algum tempo depois habituou-se a vesti-las, sentindo o seu calor. Mas, confinado à cave, não podia lavar-se como fazia na floresta. O fedor tornou-se tão insuportável que já ninguém conseguia aproximar-se.
"Os aldeões viram que se tinham enganado: não havia lugar para o rapaz na comunidade. Era um ser humano, sem dúvida. Mas não sabia que o era, e estava para lá das suas forças ensiná-lo. Sem quererem simplesmente deixá-lo ir, porque lhes parecia tão errado como mantê-lo na prisão, pediram ajuda ao druida local.
"Ora, os druidas, como todos nós sabemos, conseguem ver para além da superfície das coisas. Esse é um dos seus poderes; o outro é a capacidade de ficarem imóveis e mudos - o dom da grande paciência. Conseguem permanecer no mesmo lugar um dia inteiro, sem nunca se aborrecerem. Quando a cabeça de um homem está cheia de sabedoria, nunca lhe faltam os meios de se entreter sozinho. O druida pediu aos aldeões que lhe emprestassem uma pequena casa, com um pedaço de terra bem vedado, e levou a criança-lobo consigo, fechando o portão atrás de si.
"Levou muito tempo, mas acabou por conquistar a confiança do seu jovem companheiro e conseguiu ensinar-lhe algumas coisas. O rapaz-lobo aprendeu a lavar-se, não à maneira dos lobos, lambendo-se, rebolando ou nadando, mas com a ajuda de um pano e de um balde. Aprendeu a beber de um copo e a comer de uma escudela,
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embora fosse desajeitado com a colher e com a faca. Aprendeu a sentar-se num banco, mas preferia o chão. O druida encorajou-o a sentar-se mais direito, a andar sobre as duas pernas, em vez de usar os quatro membros, e, em parte, foi bem-sucedido. No que dizia respeito à linguagem humana, a missão era bem mais difícil. O druida pressentiu que o rapaz compreendia bem o que lhe era dito, embora achasse muito difícil formar palavras com os lábios. Só uma palavra é que aprendeu com facilidade. Demorava-se junto do portão, portão esse trancado com uma corrente de ferro que os seus dedos lupinos não conseguiam abrir, e apontava para a floresta. "Fora", dizia ele, produzindo um som onde o discurso se confundia com o latido. "Fora".
Pressenti que aquela história não teria um final feliz. Não sabia bem se queria ouvir o resto, mas não me encontrava na melhor posição para sair às escondidas da sala, sem ofender Willow. Não havia falhas na sua narração. Simplesmente, para mim, aquele não era o momento certo para ouvir uma história triste. com a mãe deitada lá em cima, tentando desesperadamente sustentar a criança por nascer, e o pai com um aspecto tão cansado e tão sofrido, eu dispensaria de bom grado a história de um rapaz que dificilmente se adaptaria a um mundo ou ao outro: o da humanidade bem-intencionada e ignorante, ou o dos animais governados pelos seus instintos. Quando Aidan foi levar um copo de cerveja a Willow, olhei de relance para a porta principal. Talvez pudesse aproveitar aquele intervalo para sair discretamente e voltar apenas quando a história terminasse. Quando o meu olhar encontrou Cathal, senti o coração falhar um batimento. Crua e notória naquele rosto esguio e fechado, vi a solidão miserável do rapaz-lobo. Vi o seu reconhecimento de que seria sempre uma criatura de fora - o outro - sem nunca pertencer completamente à comunidade em cujas franjas residia. Vi que essa consciência lhe doía mais do que qualquer outra dor.
Momentos depois, Cathal percebeu que eu estava a olhar para ele. com o que me pareceu ser um extraordinário esforço de vontade, descontraiu as feições e esboçou com os lábios finos o habitual sorriso de troça, a expressão evocando apenas o vago desejo de estar noutro lugar. As sobrancelhas negras ergueram-se, como se
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Questionassem o meu aparente interesse. Imaginei-o a perguntar Não encontras nada de mais interessante para onde olhar?
Willow bebeu um bom trago de cerveja e pousou o copo.
- É claro que o druida tentou descobrir quem eram os pais do rapaz selvagem, mas os seus inquéritos não deram frutos - disse ela - A rapariga que abandonara o filho aos lobos já caíra há muito no esquecimento. A criança-lobo não era ninguém, apenas um enigma; um quebra-cabeças. E o druida, muito embora fosse um homem paciente, ansiava por regressar à sua gruta no interior da floresta, à sua casa, onde podia dormir ao abrigo dos carvalhos e dizer as suas orações sob a abóbada de estrelas cintilantes, sem a opressão de muros ou vedações. Se tivesse anos ao seu dispor, podia ter transmitido à criança selvagem competências suficientes para que ela conseguisse um lugar nas margens da sociedade. Seria essa a atitude certa? É uma pergunta a que podíamos levar uma vida inteira a responder. O rapaz não teria crescido lobo nem homem. A mãe não lhe fizera um grande favor naquela noite gélida, ao decidir abandoná-lo ao seu destino.
"Dito isto - prosseguiu Willow -, existem muitos desfechos possíveis para esta história, e aquele que é mais adequado a esta assistência pode não ser o que eu prefiro. Um deles caberá a um guerreiro, o outro a uma senhora e o último a um rapaz da idade da criança-lobo. Por isso, teremos três finais esta noite e conto convosco para me ajudarem a narrá-los. Começamos pelo guerreiro, uma vez que há uma boa reserva de guerreiros aqui connosco. Que tal seres tu, jovem?
A contadora de histórias olhou para Johnny. O meu primo sorriu.
- Aidan é simultaneamente guerreiro e bardo - respondeu.
- Delego a tarefa nele.
- Muito bem - disse Willow. - E como é que Aidan concluiria este conto?
Aidan aclarou a garganta. Fora apanhado desprevenido.
- Gostaria de ver o rapaz a fazer algo da sua vida - arriscou.
- Na minha versão da história, o druida continuaria pacientemente a treinar o jovem que lhe fora confiado e, em acréscimo, procuraria
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a ajuda do nobre da sua terra - acrescentou, acenando com cortesia na direcção do meu pai, - que talvez devesse ter sido a primeira pessoa consultada pelos aldeões. Quando o nobre veio visitar o rapaz, trouxe o seu filho consigo, um aprendiz de guerreiro. Vieram a cavalo e, enquanto o nobre conversava com o druida, o filho deu os primeiros passos para se tornar amigo da criança-lobo, pois eram próximos na idade, se não mesmo no entendimento. O rapaz selvagem rosnou para o cavalo, que arrebitou as orelhas e sacudiu a cauda. Mas, nesse dia, aprendeu uma coisa em que não tinha pensado antes. Naquele jovem atraente, viu uma imagem do ser humano que ele próprio poderia ser. A partir daí, as coisas começaram a mudar mais depressa para o rapaz-lobo, porque agora ele já queria aprender, crescer, tornar-se um homem. Terminaria a história neste ponto: o momento em que o rapaz abandonado de forma tão cruel descobriu que tinha um futuro à sua frente.
Willow acenou com a cabeça. Não havia maneira de saber o que pensava daquele final para o seu conto.
- E tu, meu rapaz? - perguntou, olhando para Coll.
- Um dia, o druida deixou o portão aberto - disse Coll, respondendo instantaneamente ao desafio. - Talvez se tenha distraído, talvez não. Quando se lembrou e saiu para trancá-lo de novo, o rapaz-lobo já tinha fugido. E nunca ninguém descobriu se a alcateia o acolhera de volta como um dos seus, ou se o rejeitara por ter passado tanto tempo na companhia dos homens. Mas, por vezes, no silêncio da noite, quando os lobos uivam para a Lua, as pessoas que ali moram falam de um outro som, misturado com as vozes dos lobos: o grito de um homem cujo coração anseia por algo que nunca poderá ter.
Um silêncio atónito abateu-se sobre nós. Olhei para o meu primo com mais respeito. Sabia que ele adorava histórias, mas nunca o tinha ouvido contar nenhuma. Era um final poderoso. Olhei para Cathal, perguntando-me qual seria a sua opinião, mas ele já não estava ali. Algures depois de Willow interromper bruscamente a sua narração, Cathal abandonara a sala.
- E tu, Clodagh?
Sobressaltei-me, admirada, quando a velha mulher me dirigiu a palavra. O outro a uma senhora. Willow esperava que eu fornecesse
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a terceira versão. O final que me ocorreu era ainda mais sombrio do que o de Coll, e eu não ia contá-lo.
- Os outros foram muito bons - respondi, tentando ganhar
tempo. - Não sou capaz de fazer melhor.
- Melhor? - indagou Willow, com um sorriso. Não há melhor nem pior no mundo das histórias, apenas diferente. O que farias desta história? Como é que a resolverias? com tristeza, alegria, aprendizagem? No rosto de Willow surgiu, de novo, aquele olhar, o mesmo que eu vira enquanto nos contava a história dos dunchauns. Era um olhar que me desafiava a compreender, que me incitava a retirar da história uma lição que ainda não era óbvia. Não fui capaz de decifrá-la. O meu pensamento recuou ao rosto devastado de Cathal, aos seus olhos sós e assombrados. A sua angústia superava tudo aquilo que o conto conjurara. Porquê?
- O druida, é claro, aprenderia sempre com a experiência, fosse qual fosse o seu desfecho - comecei por dizer. - Está na sua natureza de druida fazê-lo.
Uma sombra moveu-se junto da porta; Cathal ainda ali estava, atento, mas rondando a saída, como se não soubesse bem se queria ou não ouvir. De repente, senti-me determinada a cumprir a tarefa o melhor possível, e a não concluir aquela história infeliz com a miséria e o derrotismo que me pareciam inevitáveis. Mas não queria torná-la pouco realista, como na versão de Aidan. O mal feito à criança-lobo não podia ser desfeito tão facilmente.
- O druida sabia, porém, que as coisas não podiam continuar assim - acrescentei. - Era tarde de mais para o rapaz voltar para o seu clã de lobos. Depois de uma ausência de tantas estações, a alcateia já não o aceitaria como um dos seus. Teria o aspecto errado, o cheiro errado. O rapaz sentiria a falta deles, é claro. Eram a única família que tinha conhecido. Qual era a alternativa? Talvez o druida acabasse por ensinar a criança-lobo a ser um homem. Mas seria assim uma coisa tão importante que merecesse sacrificar a sabedoria que ele aprendera com os lobos? Os seus parentes adoptivos tinham-lhe dado muito e o druida via que ali, naquele recinto fechado cujos muros altos excluíam a floresta, essas forças, esses instintos, esse conhecimento apurado continuariam a esmorecer. Seria correc-
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to substituir os dons que já tinha por competências de uma cultura à qual o rapaz podia nunca vir a pertencer completamente? Como é que um ser tão selvagem aprenderia a amar, a trabalhar, a sustentar-se? Mas a criança-lobo já não podia voltar atrás. Era um desafio capaz de atormentar a mente mais experiente.
"O druida ensinou, então, ao rapaz que lhe fora confiado uma última competência. Conseguiu transmitir-lhe a ideia de que o "Fora" que tão sofregamente desejava podia ser obtido, se ele tolerasse uma espécie de trela, uma corda grossa que ligaria o seu pulso ao do druida. Treinou, então, o rapaz a levar a trela como se fosse um cão, odiando o que estava a fazer, mas sem ver outro meio de conservar a criança-lobo com ele tempo suficiente para que esta percebesse as suas intenções. Se simplesmente abrisse o portão, o rapaz-lobo fugiria. E a fuga acabaria em desastre, de uma maneira ou de outra.
"Na manhã a seguir ao dia em que o rapaz-lobo aprendeu a aceitar a trela, o druida levantou-se cedo, reuniu os seus parcos haveres e dirigiu-se ao portão. A criança-lobo já lá estava, de olhos postos na floresta. O druida amarrou a trela ao pulso do rapaz e ao seu pulso e abriu o portão.
"Saíram juntos, o rapaz-lobo a puxar com força, quase derrubando o homem mais velho. Podia ter escapado, porque era forte, mas o druida já conseguia controlá-lo e falou-lhe calmamente, tranquilizando-o com o seu tom de voz. Caminharam durante muito tempo, o suficiente para o rapaz-lobo perceber que já não iam voltar para trás. O druida detectou uma mudança nas feições do companheiro, um despertar, uma luz, como se o véu cinzento do desespero que cobrira o rapaz desde o momento da sua captura começasse lentamente a dissipar-se. Escalaram juntos as montanhas mais altas da grande floresta, onde espumosos cursos de água jorravam dos rochedos em catarata, por cima da copa das árvores, e um manto de pinheiros protectores mergulhava a encosta que jazia por baixo numa sombra profunda. Foram subindo e subindo até chegarem à gruta onde o druida construíra a sua casa solitária. À entrada, corria um regato que desaguava numa bacia de pedra redonda, com uma orla que os fetos tornavam mais macia. Ali perto, cresciam sorveiras-bravas; o azevinho formava uma barreira defensiva.
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"O druida pousou a sua trouxa. com a mão livre, tirou dois bannocks e uma fatia de queijo, embrulhados num pedaço de tecido, de uma bolsa que trazia presa ao cinto. Colocou estes elementos em cima de uma pedra lisa. "Minha casa", disse o druida, apontando primeiro para si, depois para a entrada da caverna e, por fim, chamando com o braço a pequena clareira, a bacia de água, o interior rochoso. "Vai em liberdade", acrescentou, tirando a faca do cinto e cortando a trela que o ligava à criança-lobo. "Ficarei aqui. Casa; comida; abrigo." Tentou mostrar-lhe, com gestos, o que queria dizer. Quem sabe até onde iria o entendimento do rapaz?
"A criança-lobo tinha permanecido muito quieta enquanto a trela estava a ser cortada. O druida sentira a tensão a crescer no rapaz, cada músculo retesado na iminência da fuga. Quando o pedaço de corda caiu, cortado, aos seus pés, a criança-lobo não saiu do lugar onde estava durante um longo momento e, nesse espaço de tempo, um olhar viajou entre ele e o druida, um olhar que era tão animal como humano. Um olhar tão complexo que não serei capaz de o descrever por palavras. Instantes depois, a criança-lobo mergulhou na floresta, um movimento esbatido que desapareceu antes mesmo de o druida ter tempo de assimilar o que acabara de acontecer.
"Eu podia terminar a história aqui - declarei, adoptando vagamente o estilo de Willow, - mas isso deixaria os meus ouvintes insatisfeitos. Por isso, vou contar-vos o que aconteceu a seguir. O druida tinha razão a respeito dos lobos, eles não quiseram receber de volta aquele filho perdido. O rapaz pairou durante vários dias na fronteira do território da alcateia, tentando encaixar-se, tentando deslizar discretamente para o meio deles, mas o líder do clã manteve-o à distância. Os lobos não atacariam o rapaz: sabiam que ele não era um ser humano comum. Mas não podiam recebê-lo como se fosse um dos seus. Já era tarde de mais para isso. Era possível que aquilo acabasse por acontecer de qualquer maneira, mesmo se o rapaz tivesse permanecido na alcateia, quando crescesse e se tornasse um homem. Os lobos pressentiam a ameaça inata nos da sua espécie. E a verdade é que não tinham sentimentos. O facto de ter sido criado por um deles não significava absolutamente nada.
"Passado algum tempo, o druida reparou que já não estava sozinho no seu recanto isolado da floresta. De tempos em tempos,
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o rapaz-lobo aproximava-se suavemente, hesitando à beira da clareira, pálido e desconfiado. O druida começou a dividir a sua ração em duas e a colocar uma porção lá fora, nas rochas lisas ao pé das sorveiras-bravas. De início, a criança-lobo roubava a comida e fugia. Mas, quando começou a recuperar a capacidade de confiar, deixava-se ficar de cócoras à beira da bacia redonda e comia enquanto o druida comia. O druida começou a falar com ele. Muito, muito tempo depois, a criança-lobo começou a responder, não em rugidos e ganidos, mas em palavras. E assim começa uma história completamente diferente.
Tinha terminado. Willow inclinou a cabeça com cortesia na minha direcção, oferecendo-me o reconhecimento que era devido entre contadores de histórias. Deixei o meu rosto corar de prazer.
- Muito bem, Clodagh - disse Aidan. - Gosto muito mais do teu final do que do meu.
- Herdaste uma parte do talento de Conor para contar histórias, Clodagh - acrescentou o meu pai, com um sorriso. - Este conto, em todas as suas versões, tem muito para nos ensinar.
Quando se iniciou uma conversa acerca da história, eu levantei-me sem fazer barulho e saí do salão. Já tinha ouvido o suficiente a respeito do rapaz criado pelos lobos. Era uma história triste, fosse qual fosse o seu desfecho. Se algo semelhante acontecesse na vida real, era muito provável que o rapaz tivesse encontrado a morte antes mesmo de atingir a idade adulta. Na verdade, seria mais natural que a loba encarasse o recém-nascido como um jantar fácil, e não como uma cria para alimentar. Já tinha preocupações que me chegassem para me deixar absorver por assuntos daquela natureza. Além disso, havia algo que me sentia obrigada a fazer.
Cathal estava sentado no cimo das escadas, à porta da selaria. Tinha os braços cruzados, a cabeça inclinada para trás, encostada à porta, os olhos semifechados. Tanto podia dar-me uma descasca quando eu começasse a falar, como tomar a decisão de confiar-se a mim. Mas alguém teria de falar com ele; era evidente que se sentia miserável. As longas noites que eu passara em branco, nos últimos tempos, a pensar em tudo aquilo que me preocupava e cheia de saudades de Deirdre, tinham-me ensinado o que era estar sozinho e triste.

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- Diz-me o que se passa - pedi, sentando-me no degrau do meio. Ali fora, estava frio; era uma pena não ter trazido o xaile. Como é que uma história como esta pode transtornar-te a esse ponto?
- E boa noite para ti também - replicou Cathal, num murmúrio.
Tentei de novo.
- Para um homem sempre tão pronto a escarnecer das coisas sobrenaturais, pareces-me estranhamente perturbado. Deixaste o salão antes do fim. Antes da minha versão, em todo o caso.
- Sabes como me aborrecem estas pequenas diversões. Fiquei calada. Fosse ele qual fosse, o sentimento que aquele rosto reflectira não tinha sido o tédio.
- Na verdade - disse Cathal, momentos depois, - eu ouvi a tua versão do fim. Penso que reflecte a tua preferência por um mundo arrumado e sob controlo. Aidan concluiu o conto como um guerreiro o faria, com o rapaz-lobo a reconhecer a sua virilidade. Coll deu-lhe a forma de um mito antigo. A tua versão foi um bom compromisso. Mas, à sua maneira, tão pouco realista como as outras. Aquela criança não era um lobo; não era um homem. Foi condenada a uma exclusão perpétua.
Senti um prurido no pescoço. Abri a boca para falar, mas a voz dele, rápida como um chicote, interrompeu o meu discurso.
- Não! Não te metas!
Engoli uma pergunta acerca da sua ascendência. Não me dizia, de facto, respeito. Mas pensei que falar lhe faria bem e, naquele momento, eu era a única disponível para ouvi-lo. Alguma coisa semeara aquele olhar terrível no rosto de Cathal nessa noite; algo o transformara na criatura vulnerável e susceptível que ali estava.
- Caso a ideia te tenha ocorrido, eu não fui criado por lobos
- afirmou, rompendo o silêncio. O tom de voz parecia-me mais sereno, mas, quando me virei de lado, nos degraus, para olhar para ele, estava a esfregar a face freneticamente com uma mão furiosa. A luz trémula de uma tocha ali perto projectava-lhe um estranho padrão de sombras no rosto. Vi lágrimas a brilharem-lhe nos olhos e desviei os meus para não o envergonhar.
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- Há várias espécies de lobos - retorqui.
- Fabricaste-me um passado que é, de longe, mais complexo e misterioso do que o real, Clodagh. As mulheres são assim, pelo menos é o que dizem: preferem criar uma história fascinante a aceitar a verdade banal acerca de uma pessoa.
- Se pensas que passo os meus tempos livres a inventar histórias excitantes a respeito da tua juventude desperdiçada, Cathal, a tua capacidade para a auto-ilusão é bem mais impressionante do que eu imaginara. Além disso, como é que posso aceitar a verdade se não a conheço?
- Por que razão desejarias conhecê-la? Alguma vez te perguntei como foi a tua infância?
- Se o fizesses, não teria razão para não te falar dela.
Assim que acabei de dizer isto, vi que era mentira - qualquer história passada em Sevenwaters teria de incluir a influência mágica das Criaturas Encantadas. Podia prever qual seria a reacção de Cathal se eu lhe contasse, por exemplo, que Conor e os irmãos deste tinham passado três anos transformados em cisnes.
- Mas tu nunca me farias essa pergunta - acrescentei. - Na tua opinião, a minha história seria indescritivelmente enfadonha.
Seguiu-se um silêncio, e depois Cathal surpreendeu-me dizendo:
- Perdoa-me ter-te chamado isso, Clodagh. Por vezes, estes comentários escapam ao meu controlo e, depois de serem ditos, já é tarde de mais para os retirar. Eu não te conhecia na altura.
- Mal me conheces agora, Cathal. Tal como eu a ti.
- Não há nada para contar. A minha história é que é enfadonha. A minha mãe era a ama-de-leite de Aidan. Ele e eu nascemos com dias de diferença e fomos amamentados juntos. O pai de Aidan é um bom homem. Viu que, quando eu crescesse, a minha mãe teria dificuldade em sustentar-me e acolheu-me na sua casa, como amigo e companheiro do filho. Assim, tive uma educação superior àquela a que teria direito segundo a ordem natural das coisas. Recebi ainda treino como guerreiro, o que me permitiu acompanhar Aidan quando ele foi para Inis Eala. E a história acaba aqui. Eu avisei que seria aborrecida.
Os seus cotovelos tinham-se apoiado nos joelhos e a cabeça escura caíra para a frente. Estava a fazer um nó com os dedos.
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Faltava um elemento óbvio àquela história. Pelo menos, eu sei quem é o meu pai, dissera Aidan, a provocar o amigo. Mas não era algo que eu pudesse perguntar a Cathal.
- Clodagh.
O tom mudara de novo.
- O que é?
- Preciso de dizer-te uma coisa. Podes não gostar muito. Ouves-me?
Fiquei intrigada.
- Depende daquilo que for - respondi. - Não posso ficar aqui muito tempo.
- Quero que consideres uma situação hipotética. É uma questão de estratégia militar.
Era a última coisa que eu esperava.
- Estás a falar com a pessoa errada - repliquei. - Fala com o Johnny. Ou com o meu pai.
- Espera que eu termine, Clodagh, está bem? Lembras-te daquilo que Sibeal disse acerca dos gémeos da tua família e do dom especial que costumam ter?
- Sim - respondi, com cautela. - Pensei que eras completamente céptico no que dizia respeito a esses fenómenos.
- Esquece isso. Diz-me, como é que reagirias se a tua irmã gémea entrasse em contacto contigo dessa forma, talvez interessada em problemas estratégicos, a distribuição dos exércitos, ou os planos para um conselho? Falarias com ela? Contar-lhe-ias o quê?
Torci-me para olhar para ele.
- Porque diabo quererias saber uma coisa dessas? - perguntei. - De qualquer modo, Deirdre e eu já não comunicamos assim. Ela tomou a decisão de não voltar a fazê-lo quando deixasse esta casa e cumpriu a sua promessa. Mas o que tem isto a ver contigo, Cathal?
- Neste momento, o teu pai está especialmente preocupado com Eoin de Lough Gall; receia uma escalada de distúrbios no Norte. Pergunto-me se não haveria uma outra hipótese a considerar, uma hipótese que Lorde Sean talvez nunca tenha equacionado. A tua irmã gémea acabou de casar-se com um vizinho do Sul, um chefe poderoso.
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E se o teu pai estiver a olhar na direcção errada? E se a verdadeira ameaça não fosse Eoin, mas o novo marido da tua irmã, Illann?
- O quê?
Pus-me de pé, arrepiada com aquela afronta.
- Illann? Como é que podes sugerir uma coisa dessas?
Era ridículo. Porque é que Illann desposaria uma mulher da nossa família para logo a seguir se virar contra o meu pai?
- Tu disseste que ias ouvir-me.
- É um disparate, Cathal. Não pode ser verdade. E mesmo que fosse, porquê contar-mo a mim?
Cathal continuou sentado, em silêncio, com os olhos negros postos em mim e, passado um momento, acrescentei:
- Porque é que me questionaste a respeito de Deirdre? Estás a insinuar o quê?
Cathal desdobrou as pernas nos degraus onde estava e veio sentar-se ao meu lado.
- Porquê contar-te a ti? - repetiu, e na sua voz já não havia vestígios de cinismo. - Isto não é coisa que eu possa dizer ajohnny ou ao teu pai, Clodagh. Não tenho provas. Só um palpite. Os meus instintos dizem-me que podes estar pessoalmente em perigo. Era justo avisar-te. Enquanto mulher de Illann, a tua irmã encontra-se numa posição privilegiada para espiar por ele. Basta-lhe trocar notícias contigo através desse laço especial que vos une, basta-lhe fazer uma ou duas perguntas inocentes acerca do que Lorde Sean planeia fazer, para onde enviou os seus homens, em que contendas territoriais anda envolvido, ou em que conselhos vai participar. Não terias razão para não lhe responder. Ela é tua irmã; tu confias nela.
Estremeci de fúria.
- Os teus instintos estão muito enganados - repliquei. Deirdre não sonharia sequer vestir o papel de espia. Somos todas leais ao meu pai. Amamo-lo. Amamos Sevenwaters. É um laço de confiança sagrado para toda a família...
- Clodagh. - Cathal pôs-me as mãos sobre os ombros. - Ouve-me. Por favor.
Aquele toque fez o meu corpo vibrar de fúria.
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- Não! - disparei, libertando-me das suas mãos. Depois, ouvindo o som estridente da minha própria voz, acrescentei com mais calma: - Está bem, vou ouvir. Mas não quero mais acusações infundadas. Baseaste esse pensamento em quê? E porque é que não podemos apresentá-lo directamente ajohnny?
- Não! - Cathal levantou as mãos, como se quisesse tocar-me de novo, e tornou a baixá-las. - Isto é entre nós, Clodagh. Por agora, não passa de uma suposição. Um palpite esclarecido. Não será necessário agir, a não ser que...
- A não ser que Deirdre entre em contacto comigo e me faça o tipo de perguntas que faria um chefe de clã rival?
Cathal suspirou.
- Se o fizer, deves informar o teu pai de imediato. Imagina o que seria se transmitisses certas informações à tua irmã e Illann usasse essas informações como base para um ataque a Sevenwaters. A coisa não ficaria bem para o vosso lado.
- Isto não faz sentido - declarei, num tom definitivo. - Um ataque? Que ataque? Porque é que Illann tomaria uma atitude dessas? Ele e o meu pai são aliados.
- É apenas uma teoria. - Cathal começou a andar de um lado para o outro, com os braços cruzados, agarrados ao corpo. - Mas não deixa de ser uma teoria possível. Como é que posso convencer-te a dar-lhe algum crédito?
- Não podes - respondi. - Pensei que estávamos quase a tornar-nos amigos, Cathal. Mas estas acusações contra Deirdre são profundamente ofensivas. E absurdas. Como é que podes saber uma coisa dessas? Como é que conhecerias os planos de Illann, se o próprio Johnny os desconhece?
Cathal suspirou.
- Deixa-me descrever-te este quadro, Clodagh. Estamos algures no Oeste, mesmo na fronteira das terras do teu pai. Ao cair da noite, um grupo de salteadores cerca uma casa imponente que pertence a Lorde Sean. O lugar é fortificado, mas está menos bem protegido do que devia. São muitos, os agressores, trinta homens no mínimo, e não foram conduzidos por Illann, embora ele esteja por detrás da operação. Porquê, não sei dizer-te, mas talvez tenha a ver
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com as suas relações com parentes do Rei Supremo. Perto da casa da herdade que estão a atacar, existem ulmeiros e carvalhos. Existe um ribeiro, um lago, uma cerca de faias. Dois homens foram enviados antecipadamente para desmobilizar um posto avançado. Em resultado disso, os salteadores conseguem aproximar-se o suficiente para incendiar a casa principal antes de a sua presença ser notada. No meio do alvoroço, matam quase todos os guerreiros que lhes fazem frente, e o mordomo da casa vê-se obrigado a fugir para a floresta com a família. A herdade arde. Os salteadores apresentam o relatório ao homem que os enviou: Illann. E Illann agradece à mulher a informação que ela recolheu: a fragilidade daquele lugar, uma vez que o seu casamento atenuara o receio de ataques naquela zona.
Uma grande parte daquele discurso passou por mim como uma imagem desfocada; eu não tinha qualquer desejo de ouvir um disparate daqueles. Ou o homem enlouquecera de vez, ou queria pregar-me uma partida elaborada. Dentro de momentos, rebentaria numa risada trocista, com um comentário do género: Acreditaste mesmo em
mim!
- A questão continua a ser a mesma: porque é que Illann atacaria o meu pai? - perguntei friamente.
- Estes actos são geralmente praticados para alcançar uma vantagem estratégica. No mínimo, a notícia de um golpe como este transmitiria a todos a mensagem de que a autoridade de Lorde Sean é mais fácil de abalar do que antes se julgara. com o nascimento iminente de uma criança que pode substituir Johnny como herdeiro do teu pai, as pessoas ficarão a contar com um período agitado em Sevenwaters. Talvez o Uí Néill do Norte e o do Sul se tenham aliado e planeiem desafiar o teu pai de ambos os lados. Clodagh, não olhes para mim dessa maneira. Estou a falar muito a sério.
- Se estás a falar a sério, conta ao meu pai.
- E ele acreditaria nesta história, sem a mais ínfima prova? E Johnny, acreditaria? Só quero avisar-te. Se souberes, podes evitar o teu próprio envolvimento. Até pode ser que consigas impedir que isto aconteça, se te recusares a dar qualquer informação à tua irmã que o marido dela possa usar para consumar essa operação.
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Toda a simpatia que eu sentira por ele depois da história do rapaz-lobo desvaneceu-se completamente. Afinal, a minha primeira impressão de Cathal estava certa: era um autêntico desordeiro. Mais grave do que isso, tinha uma mente retorcida.
- Tu és um dos homens de Johnny - lembrei-lhe. - A tua primeira prioridade não será fazeres a coisa certa ao lado dele? Pensei que todos os seus guerreiros lhe eram irrepreensivelmente leais.
- Não sou nem mais nem menos leal do que os outros. Johnny acredita que Illann é um aliado; tal como Lorde Sean. Eu tenho dúvidas. Mas não irei ter com nenhum deles com informações que não posso provar.
- Então, porque é que as trazes até mim? Consideras-me completamente crédula?
Os seus lábios torceram-se num trejeito de auto-ironia.
- Porquê, de facto, uma vez que é evidente que não vais ouvi-las?
- vou voltar para dentro - declarei. - Não prometo que não falarei disto ao meu pai. Ele devia saber que questionas as intenções de familiares próximos. Boa noite, Cathal. Por favor, não tornes a vir ter comigo com mais teorias insanas. Já tenho preocupações que cheguem neste momento.
Virei-lhe as costas e afastei-me dele.
A sua voz chegou-me aos ouvidos, macia, vinda de trás.
- Eu não vim ter contigo - disse-me. - Tu é que vieste ter comigo.
Entrei no salão perfeitamente decidida a descrever aquela conversa ao meu pai. Ele reconheceria de imediato que as conjecturas de Cathal eram ridículas. Deirdre a trair a família? Nem merecia que se pensasse nisso. A minha gémea não só tinha uma grande devoção pelos meus pais, como nunca demonstrara nenhum interesse por assuntos estratégicos ou políticos. Na improvável eventualidade de alguém querer que ela obtivesse essas informações, Deirdre nem sequer saberia que perguntas fazer.
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Tinha acabado de entrar em casa quando Sibeal desceu a correr as escadas principais, chamando por mim. A sua expressão produziu-me um aperto firme no peito.
- Onde estavas, Clodagh? - a voz da minha irmã tremia; estava a fazer um esforço heróico para parecer serena. - Procurei-te por todo o lado. Muirrin precisa de ti lá em cima imediatamente.
Quando subimos juntas, Sibeal contou-me aquilo que eu adivinhara no momento em que a vi.
- O bebé está a nascer mais cedo do que era previsto. Ainda faltava muito tempo. Clodagh, tenho medo.
Deduzi que Muirrin não precisasse da minha ajuda no parto e não me enganei. Ela estava a resolver a situação com competência e tinha muitas criadas à sua volta. A mãe estava sentada na cama, apoiada em Eithne. As suas feições davam forma a uma grotesca máscara de dor. Ervas aromáticas ardiam na lareira; o aroma que delas se libertava não conseguia disfarçar completamente o cheiro do sangue. Esperei até o espasmo passar e depois balbuciei alguma coisa tranquilizadora, sem saber bem o quê. Convicta de que o terror que sentia se espelhara no meu rosto, senti-me profundamente aliviada quando Muirrin me empurrou para fora do quarto.
- Clodagh, conto contigo para manteres a ordem e a calma lá em baixo - disse-me, em voz baixa. - Receio que não vás dormir muito esta noite. Johnny diz que ficará acordado, com o pai. Por favor, afasta os mais novos daqui enquanto isto não tiver terminado.
O silêncio abateu-se sobre a casa. Fosse qual fosse o seu desfecho, aquela noite mudaria as nossas vidas. Os servos moviam-se de forma discreta, aparecendo regularmente com jarros de cerveja e escudelas de comida e desaparecendo do salão quando já não eram precisos. De vez em quando, uma das mulheres descia com um pedido de Muirrin - lençóis lavados, água quente, provisões para aqueles que acompanhavam o parto. Eu entrava e saía da cozinha, certificando-me de que esses pedidos eram supridos na hora. Ninguém se foi deitar. Quem não a conhecesse bem, podia pensar que
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a minha mãe, com aquele seu jeito apressado e a insistência para que tudo fosse feito exactamente como ela queria, não seria bem-amada entre os criados da casa. Mas era o oposto. Casara-se com o meu pai quando tinha apenas dezasseis anos e, desde então, as pessoas de Sevenwaters tinham assistido a todas as alegrias e tristezas da sua vida. A lavadeira mais robusta, o mais severo homem de armas tinham lágrimas nos olhos naquela noite. Recordei a mim própria que eu era a senhora daquela casa, mesmo que temporariamente, e que tinha de ser forte.
Sibeal e Eilis recusaram-se ambas a ir para a cama. Tinham-se instalado à lareira, cada uma com o seu cobertor, e Aidan quedara-se junto delas, de pernas cruzadas sobre as lajes, a mostrar-lhes truques com dados. O meu pai não parava de levantar-se e de sentar-se, pegando no copo de cerveja e devolvendo-o, intacto, ao tabuleiro. Johnny tentava conversar com ele, mas era o mesmo que falar com um carvalho sacudido por um temporal.
Não pensei uma única vez em Cathal, até Johnny me ordenar que me sentasse, muito tempo depois, para beber e comer alguma coisa. Olhei para a porta principal, agora fechada para não deixar entrar o frio, e apercebi-me de que já não o via desde a nossa conversa no pátio. Observando o meu pai a andar de um lado para o outro, e notando o sobrolho franzido e os maxilares rígidos, sabia que não era a altura ideal para partilhar com ele a teoria louca a respeito de Illann.
- Cathal está de serviço esta noite? - perguntei ao meu primo.
- Dei-lhe o resto da noite. Se tiver algum juízo, já foi dormir. Porque é que perguntas?
- Por nada - respondi, pensando que, se assim fosse, Cathal seria a única pessoa na casa inteira a não passar a noite numa vigília angustiada. Preparava-me para fazer uma pergunta a Aidan a respeito da sua infância quando uma criada desceu as escadas a correr e entrou no salão. As suas palavras fizeram eco.
- Meu senhor, a criança já nasceu! É um rapaz! O meu pai empalideceu.
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- Aisling - sussurrou. Antes que a mulher pudesse responder-lhe, Muirrin apareceu atrás dela com uma trouxa minúscula nos braços, o pequeno cobertor embrulhado à volta de um ser não muito maior do que uma boneca.
- A mãe está muito bem, tendo em conta a situação. - A voz da minha irmã tremia mais do que era habitual. - Vai poder vê-la em breve, pai.
Quando o meu pai não deu um passo em frente para acolher o seu novo filho nos braços, Muirrin estendeu-me o bebé a mim.
Era muito leve, como um coelho jovem, ou uma galinha. Dobrei o cobertor que o envolvia para trás e vi um rosto limpo, as pálpebras delicadas, fechadas sobre olhos de uma cor que eu só podia tentar adivinhar, o nariz muito direito, o crânio frágil, coberto por uma densa penugem negra, amassada pelos detritos do parto. A tez era de um vermelho-mosqueado. Sibeal aproximou-se de um dos lados e Eilis do outro e mostrei-lhes o bebé. Um sorriso doce emergiu no rosto de Eilis, mas Sibeal estendeu a mão, com uma expressão solene, e tocou-lhe na sobrancelha com o dedo.
- Que nome vai dar-lhe, pai? - perguntou.
- Ainda não tinha pensado nisso...
Pareceu-me distante, o meu pai, como se estivesse sob o efeito
de um choque profundo. Constatei, com alguma surpresa, que até àquele momento ele nunca considerara a hipótese de que ambos, mãe e bebé, se salvassem. Sentou-se, então, devagar, com o rosto pousado nas mãos.
O instinto disse-me o que eu devia fazer. Fui arrojar-me aos seus pés, erguendo a criança ao lado do seu joelho.
- Pegue nele, pai - murmurei. - Ele é a dádiva da mãe para si. Aceite-o.
O meu pai segurou no bebé, colocando-o no colo. com uma mão cuidadosa, penteou a penugem da pequena testa.
- É tão pequeno - declarou. com os dedos, percorreu o desenho vago das sobrancelhas, o nariz vigoroso, o minúsculo botão que eram os lábios. A criança fez uma tentativa de sucção e uma mão saiu para fora do cobertor, os dedos em miniatura a tentar agarrar.
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- Ele tem as feições de Sevenwaters, Sean - disse Johnny, em voz baixa. - Talvez devesse ser Colum, em homenagem ao teu
avô.
O bebé fungou e fechou os dedos à volta do dedo do pai.
- Não - retorquiu, com uma voz trémula. - Chamar-se-á Finbar.
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Capítulo Cinco
Não houve celebrações. O nascimento de um filho na família de Sevenwaters era um acontecimento decisivo, mas por agora a saúde precária da nossa mãe ensombrava-o. Embora o parto não tivesse sido demorado, pusera-a à prova, e o risco de febre era elevado. Sempre que Muirrin descia ao salão, emudecíamos todos, antecipando más notícias.
Como a mãe estava muito frágil, o bebé não ficou no seu quarto e foi instalado na alcova contígua, sob os cuidados de uma ama. Sibeal e eu revezávamo-nos a tomar conta dele, quando a rapariga parava para comer ou para descansar. Não era propriamente um trabalho árduo, porque Finbar dormia a maior parte do tempo. Era difícil acreditar que era a mesma criança que pontapeara com força as paredes do ventre da minha mãe. Sabia-me bem sentar-me ao seu lado no sossego daquele quarto. Gostava das suas pálpebras escuras e dos dedinhos bem desenhados. Quando acordava, via que os seus olhos seriam do mesmo tom dos olhos de Sibeal - um azul-acinzentado, tão pálido que quase não tinha cor - e pensei que o nome que o pai lhe dera talvez fosse mesmo apropriado.
- Não penso que seja uma vida muito feliz, a de Vidente
- segredei ao ouvido do meu irmão bebé. - Pergunto-me se será tarde de mais para mudares de ideias?
O drama da chegada de Finbar, seguido do contínuo desassossego provocado pela doença da mãe, afastara tudo o resto do meu pensamento. Os jantares decorriam num silêncio sombrio; ninguém
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queria diversões. Quando Finbar já tinha cinco dias de idade, o olhar perturbado de Muirrin desvaneceu-se e ouvi-a dizer, embora com prudência, que a mãe estava a recuperar melhor do que seria de esperar.
Nessa noite, Willow aproximou-se, depois do jantar, e dirigiu-se ao meu pai.
- Lorde Sean, felicito-vos, em nome do Povo Errante, pelo nascimento do vosso filho - disse a velha mulher. - Que ele cresça tão forte em sabedoria e lúcido em visão como o seu homónimo.
Finbar herdara o nome de um parente amado, um dos irmãos de Conor, que vivera a maior parte da sua vida num exílio solitário e morrera num acto abnegado de grande nobreza. Alguém na nossa casa devia ter contado aquela história a Willow. Seria, sem dúvida, grão para o seu moinho, matéria de contos futuros.
- Terei de partir de manhã - acrescentou Willow - e ainda tenho uma história para vos contar. Não abandonarei a hospitalidade desta casa em dívida.
- Por favor, conta-nos a tua história esta noite - disse o meu pai. - Será bem-vinda.
O olhar da mulher idosa percorreu o salão, como se averiguasse exactamente quem estava presente e o que podia convir às necessidades de aprendizagem daquela assistência.
- Não insistirei nos problemas da humanidade - disse Willow. - vou contar-vos uma história que pertence sobretudo ao reino das Criaturas Encantadas. Conhecem Mac Dara, o poderoso príncipe dos Tuatha De Danann? Espero não chocar os jovens aqui presentes ao dizer-vos que indivíduos como Mac Dara são, de vez em quando, pais de crianças que pertencem ao mundo dos humanos. E não são apenas os príncipes que se envolvem nestas bizarrias. Muitas vezes, as deslumbrantes senhoras dos Tuatha De namoriscam homens e carregam os frutos desses encontros. Por vezes, agem deste modo para alcançarem um meio de obrigar os mortais como vós a satisfazerem-lhes todas as vontades. Outras vezes, fazem-no por amor, embora as paixões dessa natureza se desvaneçam rapidamente. Que mulher deseja um amante que ficará enrugado,
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cinzento e curvado enquanto ela ainda viver o rubor perfumado da juventude? Vezes há, porém, que o fazem pelos motivos mais simples. As Criaturas Encantadas não concebem com facilidade entre si. A maneira mais certa de dar à luz uma criança é acasalar com um mortal jovem e saudável.
"A história que vos conto evoca estes comportamentos. Fala-nos da maldição que pesa sobre aqueles cuja ascendência é simultaneamente mágica e mortal. É claro que esta realidade não é completamente alheia à família de Sevenwaters.
Willow devia estar a referir-se a Ciarán, filho de Lorde Colum de Sevenwaters, meu bisavô, e de uma feiticeira, descendente de uma linhagem negra das Criaturas Encantadas. A velha contadora de histórias parecia saber muita coisa a nosso respeito.
- Não iremos falar do próprio Mac Dara - prosseguiu Willow. - Ele é, de longe, uma criatura demasiado obscura e problemática. Começaremos, em vez disso, por falar de uma senhora deslumbrante, a quem chamaremos Albha, que há muito ansiava por ter uma criança, um bebé para amar, alimentar e vestir de teias de aranha, filamentos e penugem de cisne, as roupas caras aos Tuatha De. Ora, as Criaturas Encantadas, como todos devem saber, não são conhecidas pelos seus nobres sentimentos. Não têm grande capacidade para o amor ou para o perdão, para a lealdade ou para a misericórdia. Mas conhecem o desejo, o ciúme, a revolta e o orgulho. Se nasce neles a vontade de possuir alguma coisa, são capazes de persegui-la com todo o seu poder. Se perdem um prémio, lidam com essa perda com a mesma tenacidade. Os Tuatha De não gostam de ser contrariados. Não suportam vir em segundo.
"Dito isto, não deverá surpreender-vos que Albha tratou de alcançar friamente o seu objectivo. Não tinha qualquer desejo de acasalar com um mortal, mas sabia que essa era a maneira mais provável de conseguir o seu bebé. Por isso, elegeu um homem adequado, escolhendo-o não pela nobreza de nascimento, pela sabedoria, ou pelo poder que tinha no mundo dos mortais, mas pelo corpo vigoroso e harmonia de feições. Não foi difícil persuadi-lo a cumprir a tarefa que ela requisitou. Tal como todos os da sua natureza,
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Albha possuía uma beleza que excedia de longe os encantos da mais graciosa mulher mortal. Enquanto precisou, permaneceu com o indivíduo. Quando sentiu a barriga a inchar, deixou o amante e regressou ao reino dos Tuatha De. Conseguira aquilo que queria. Um breve silêncio.
- E o homem? - perguntei. - O que é que lhe aconteceu? Willow sorriu, arqueando as sobrancelhas.
- Ele já não entra mais nesta história, Clodagh. Albha só se interessava pela sua capacidade de lhe dar uma criança. Talvez se tenha tornado mais sábio em resultado da experiência e decidido ter mais cuidado com as mulheres bonitas, a partir daí. Talvez, como tantos homens que entram nestas histórias, se tenha consumido até à morte à procura da sua amante do Outro Mundo. É possível que se tenha suicidado, de desgosto.
Nas palavras de Willow, parecia que o destino daquele homem não tinha importância.
- Mas... - interrompi, calando-me em seguida. Afinal, era apenas uma história. Se parecia injusta, talvez fosse porque era um reflexo da vida real, especialmente tratando-se da relação com as Criaturas Encantadas.
- A seu tempo, uma criança frágil nasceu, e era tão encantadora e sobrenatural como a mãe, apesar de ser semi-humana. A mãe chamou-lhe Saorla e amou-a com todo o amor de que os Tuatha De são capazes. O tempo passou. Saorla transformou-se numa jovem deslumbrante. Até ao seu décimo quinto aniversário, nunca perguntou quem era o pai. Na verdade, sempre partira do princípio que era Mac Dara, que não fazia segredo da sua virilidade e reclamava a paternidade de mais crianças do que qualquer homem teria tempo ou energia de semear, fosse humano ou Tuatha De. Mas todos nós conhecemos a capacidade de Mac Dara para a maledicência. Um dia, meteu na cabeça interferir. Contou a Saorla quem era o seu verdadeiro pai e como é que Albha usara um mortal da mesma forma que se usa um boi de cobrição: apenas para fabricar uma cria saudável.
- Pensei que tinhas dito que Mac Dara não entraria nesta história.
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- Não interrompas - disse Johnny ao irmão mais novo.
- Mac Dara arranja sempre maneira de se insinuar numa história, mesmo à revelia de quem a conta. Tenho a certeza de que seria esta a justificação de Willow.
- Nem mais, meu senhor - comentou a própria. - Dê-se por feliz que a sua ascendência não deixa margem para dúvidas. E a tua, meu rapaz.
Willow fitou Coll e o meu indomável primo mais novo encolheu-se perante aquele olhar incisivo.
- Se podemos ou não dizer o mesmo a respeito de todos os homens e mulheres presentes nesta sala é um mistério que fica por desvendar. Por isso, regressemos a Saorla. No momento em que Mac Dara lhe contou a incómoda verdade, a rapariga decidiu voltar ao mundo dos mortais e procurar o pai que fora tão injustiçado. Saorla sentia-se repugnada pelo que Albha fizera. E o segredo explicava tudo, pensou: o facto de se sentir sempre deslocada; o seu fascínio pela ideia de um outro mundo; a sua aversão pelos esquemas de indivíduos como o todo-poderoso Mac Dara. Saorla decidiu virar as costas às Criaturas Encantadas. Abandonaria o Outro Mundo para nunca mais voltar.
"Mas não era assim tão fácil, é claro. Albha ouviu falar das intenções da filha e perseguiu-a por todo o reino, recorrendo ao seu poder considerável para impedi-la. Mas Saorla não desperdiçara os quinze anos que tinha passado na companhia das Criaturas Encantadas. Também ela aprendera alguns truques. E, assim, deslizou por um pequeno portal até ao mundo dos humanos, e não houve quem a detivesse.
A história dilatou-se, dando lugar a um longo e perigoso duelo entre mãe e filha, em que tantas vezes Albha manipulava Saorla, empurrando-a até às fronteiras do Outro Mundo, apenas para ser superada no último minuto, quando Saorla sentia o perigo e engendrava de novo a sua fuga. Eu não conseguia imaginar o fim daquele conto.
- Peço desculpa por interromper - disse Sibeal, muito educada, a certa altura. - Mas as Criaturas Encantadas nas tuas histórias parecem muito diferentes daquelas que conhecemos. Esta família tem
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tido conselhos sábios dos Tuatha De Danann ao longo dos anos, especialmente daquela a que chamamos Dama da Floresta. Têm guiado as nossas decisões e ajudado nas escolhas difíceis. Esses indivíduos de que falas, Mac Dara e Albha, parecem-me seres menores, encurralados nos seus ludíbrios e no seu egoísmo. Será apenas em Sevenwaters que as Criaturas Encantadas são sábias e boas?
- Uma questão interessante, que eu podia discutir contigo a fundo, Sibeal, se tivéssemos tempo. -? Havia respeito nos olhos de Willow quando fitaram a minha irmã. - É claro que se trata apenas de uma história. Mas Mac Dara entra em muitas histórias. Dizem que é uma criatura de Connacht, no Oeste. Mas o reino dos Tuatha De alonga-se por toda a extensão de Erin e a sua disposição é muito parecida com a da nossa terra, pelo que não há motivos para que Mac Dara não possa aparecer em Sevenwaters, se decidir fazê-lo, e também não há nada que impeça a vossa Dama da Floresta de visitá-lo na sua terra de origem. Há quem diga que os Tuatha De se diluem agora numa grande maré de mudança. Sevenwaters é um lugar antigo. Já alojou esse povo muito depois de os seus refúgios noutros lugares desaparecerem. Mas os grandes, os nobres, estão a retirar-se, talvez rumo às ilhas do Oeste, talvez para os confins da nossa memória, criança. E, quando os sábios partirem, tudo o que ficará é Mac Dara e os seus semelhantes. O reino das Criaturas Encantadas é um lugar mais sombrio do que foi no passado. Uma pequena Vidente pode entrar na floresta à procura de sabedoria nas águas límpidas de um lago e, em vez da amável senhora que costumava aparecer para oferecer o seu conselho, deparar-se com uma criatura egoísta como Albha. Devias ter cuidado. Todos nós devíamos ter cuidado.
Sibeal não disse nada, mas parecia destroçada. Talvez houvesse um fundo de verdade nos estranhos rumores, afinal.
Willow descreveu-nos o momento em que a encantadora criatura e a sua filha semi-humana se confrontaram quase cara-a-cara, tão próximas que, enquanto Saorla voava até à aldeia vizinha, a voz da mãe vibrava atrás dela, afiada como o vidro, murmurando o seu feitiço.
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Um, dois, esquerdo, direito
Mundo ao longe, rio a eito
Entra no sonho do tempo
Cai no fim do firmamento.
É um caminho de temor
De mágoa, dúvida e dor
E da porta sem idade
Di adeus à humanidade
À entrada, um passo em frente,
Serás minha para sempre...
A história ainda não tinha terminado, mas vi que Muirrin me chamava no fundo do salão e, pedindo desculpa, saí.
A mãe queria ver-me. Quando cheguei ao quarto, ela estava a alimentar o bebé. Finbar marcava o compasso de uma melodia inaudível na pele nacarada do seu peito, sugando energicamente. Puxei um banco para junto da cama e, fazendo um esforço, a mãe desviou os olhos da criança e virou-os para mim.
- Queria agradecer-te, Clodagh. Receio que este foi o primeiro dia em que me senti com forças para fazer algo mais do que ficar aqui deitada e deixar que Muirrin cuidasse de mim. Parece-me tão errado. Quando vocês, raparigas, nasceram, um ou dois dias depois já eu me tinha levantado e andava pela casa. Talvez os rapazes sejam diferentes. E eu estou mais velha, naturalmente, como todos insistem em recordar-me.
- Agradecer-me? Pelo quê?
Senti-me animada porque havia algo naquela postura que fazia lembrar o seu velho espírito, e a palidez de cera, o aspecto enfermiço, quase lhe tinham desaparecido do rosto. Talvez eu pudesse, por fim, abrir espaço na minha consciência para a possibilidade de um final feliz.
- Por assegurares o governo desta casa de uma forma tão competente enquanto eu estive indisposta. Todos me falam do teu empenho em conservar as coisas à minha maneira. Sei o trabalho que isso dá. E, na ausência de Deirdre, não há, de facto, ninguém com quem possas partilhar esse fardo. O teu pai está muito preocupado com este problema com os chefes de clã do Norte, embora seja hábil
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a esconder a dimensão dos seus receios. Ajuda-o muito, minha querida que tenhas conseguido poupá-lo à necessidade de pensar em questões domésticas ao longo desta fase. Serás uma excelente esposa quando a tua hora chegar.
- Obrigada, mãe.
As suas palavras aqueceram-me por dentro, mesmo enquanto pensava como seria triste se aquilo fosse o melhor que alguém era capaz de dizer a meu respeito.
- Faço-o com todo o gosto.
- Apesar do que possas pensar, reparei que estavas a ficar cansada e ansiosa. Tens feito um trabalho extraordinário, Clodagh. O teu pai e eu temos ambos muito orgulho em ti.
Os meus olhos encheram-se de lágrimas. A mãe não me elogiava com frequência. Os seus padrões de exigência eram elevados; e partia do princípio que os das outras pessoas eram iguais.
- Continuarei a tentar dar o meu melhor - disse-lhe, comovida. - É um bebé encantador, mãe. Devias ter visto o olhar do pai quando pegou nele pela primeira vez. Ele não estava à espera... Quero dizer...
- Os deuses foram generosos - murmurou, acariciando com a mão livre a penugem densa e escura de Finbar, enquanto ele continuava a mamar. - É mais do que eu merecia.
- Tu mereces cada pedacinho dessa felicidade, mãe - retorqui. - Vai ser interessante ver um rapazinho a crescer em Sevenwaters, depois de tantas raparigas. Pergunto-me se será como Coll.
Os seus olhos tornaram-se distantes.
- Não me parece - comentou, e eu lembrei-me que ela nunca tinha verdadeiramente aprovado o laço com Bran de Harrowfield, pai de Coll e de Johnny. A questão da sucessão era uma sombra indistinta no meu pensamento, algo que ficaria pendente até o assunto ser resolvido de uma maneira ou de outra. Por enquanto, Finbar era apenas um fiapo de gente, embora ninguém fosse capaz de ignorar aquilo que, no futuro, ele podia vir a ser.
- E talvez seja melhor assim - afirmei bruscamente. - Coll é um rapaz inteligente, mas ocupa sempre mais espaço do que aquele que lhe é concedido. Agora, é melhor eu deixá-la descansar.
- Muirrin deve voltar daqui a pouco para me encher de poções de ervas. Clodagh, antes de ires, queria pedir-te um favor.
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- Claro, mãe.
- O teu pai pode ter-se esquecido de enviar uma palavra a Deirdre e a Illann acerca da chegada de Finbar. Entre o susto que apanhou comigo e a apreensão com os homens do Norte, desconfio que seja a última coisa que ele tem em mente. Sei que podes transmitir a boa nova à tua irmã de uma maneira muito mais rápida. Ficaria satisfeita se o fizesses. Deirdre vai gostar de saber.
O pedido apanhou-me desprevenida. Sugestões de deslealdade e traição acenderam-se vivamente na minha memória, tão indesejadas agora como no momento em que tinham sido proferidas, e não consegui responder-lhe de imediato. Eu sabia que, em quaisquer circunstâncias, nunca mais seria capaz de falar com Deirdre de mente para mente sem sentir uma suspeita constante. Maldito Cathal por ter plantado a semente da dúvida nos meus pensamentos!
- Não sei se posso, mãe - respondi. - Deirdre disse-me que nunca mais falaria comigo dessa maneira, não agora que está casada e longe de casa.
- Deirdre gostaria de saber que tem um irmãozinho, Clodagh
- insistiu, com uma nota de censura na voz.
- Claro.
Gostaria, sem dúvida, agora que os deuses não tinham exigido a vida da nossa mãe em troca do filho há tanto desejado.
- vou tentar, claro. E farei com que enviem também um mensageiro. Já devia ter pensado nisso.
A minha mãe sorriu. Parecia de súbito cansada. O bebé ador-
mecera a mamar.
- Não podes pensar em tudo, Clodagh. Obrigada por tudo o que fizeste. És uma boa filha.
Fiquei acordada, nessa noite, a planear o que ia dizer-lhe; que informação daria a Deirdre, que parte lhe ocultaria. Fá-lo-ia de manhã, quando fosse a minha vez de vigiar o bebé. O sossego e a solidão do quarto de crianças ajudar-me-iam a concentrar o pensamento na minha irmã gémea e talvez a restabelecer o laço que ela quebrara. Se Deirdre estivesse disposta a deixar-me entrar, perguntar-lhe-ia qual
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era a sensação de governar a sua própria casa e quando é que contava fazer uma visita a Sevenwaters, agora que os seus piores receios não se tinham concretizado. Se eu lhe falasse apenas do nascimento de Finbar e da melhoria da saúde da mãe, a absurda teoria de Cathal nem sequer seria posta à prova.
Finbar dormia. Tinha sido alimentado há pouco e descansava, envolto num xaile, aconchegado no seu berço de salgueiro. O quarto estava aquecido; algumas achas ardiam na lareira. Momentos antes, tinha espalhado bagas secas de sorveira-brava e de junípero nas chamas, porque estas ervas possuíam o dom de clarificar a mente. Era a primeira vez que sentia a necessidade daquele auxílio.
Deirdre?
Ela não respondeu. Sentei-me, muito quieta, centrando nela todos os meus pensamentos. Ouvir-me-ia; não tinha dúvidas disso. Quando éramos crianças, a nossa sintonia era tão profunda que o mais leve murmúrio no pensamento era suficiente para sentir uma pergunta, uma emoção, um plano a partilhar. À medida que fomos crescendo, cada uma de nós aprendeu a fechar o portal que unia as duas mentes, fazendo deslizar uma cortina que ocultava os nossos pensamentos mais íntimos. Nem sempre queremos partilhar o que nos vai na alma, mesmo com a irmã gémea que nos é tão querida. Gostava de ter falado mais com o meu pai acerca desse laço, uma vez que ele ainda se servia dele para comunicar com a sua gémea, Liadan. Decerto já teria sido informada do nascimento do primeiro filho e anunciara a novidade à casa de Harrowfield, incluindo à minha irmã Maeve. A minha mãe tinha razão. Não era justo manter Deirdre na ignorância.
Deirdre? Tenho notícias para te dar.
Não conseguia sentir nada da sua presença; nada de nada.
Boas notícias. Deixa-me entrar, Deirdre. É uma mensagem da mãe.
Então, abruptamente, ela apareceu ali, junto de mim.
Eu avisei-te, Clodagh! Eu avisei-te que não queria fazer isto...
Temos um irmão, Deirdre. E a mãe está bem.
Depois, nada, embora eu sentisse que ela fervilhava de emoção, um turbilhão de sentimentos em que o alívio e o prazer constituíam apenas uma parte do quadro.
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É verdade?
Ocorreu-me que Deirdre nem se atrevia a acreditar.
Claro que é verdade! O bebé nasceu mais cedo do que era previsto. Mas parece que está tudo bem. Chama-se Finbar. A mãe pediu-me que te dissesse. De outro modo, não teria quebrado o nosso acordo.
Mais um silêncio. Depois, sentia-a dizer Tens a certeza, Clodagh? Isto é... é difícil de assimilar. Não sei o que dizer.
Os meus olhos inundaram-se de lágrimas. Era tão bom voltar a falar com ela.
Muirrin diz que o bebé é forte e saudável, mesmo tendo nascido mais cedo. E a mãe parece estar a recuperar, embora se sinta cansada. Não posso prever o futuro, Deirdre. Nem uma Vidente é capaz de o fazer com precisão. Mas temos motivos para nos sentirmos felizes. Podes esquecer todas as coisas terríveis que disseste antes de partir, e que nunca mais voltarias a Sevenwaters. Vais querer ver o bebé, Finbar. É encantador. Tens de vir visitar-nos.
Olhei para o berço, onde um cobertor enrolado, de onde saía um tufo de cabelo preto, era o único sinal visível da presença do meu irmão.
Por favor, diz à mãe que eu fiquei muito feliz por ela.
Deirdre pareceu-me fria. Talvez achasse difícil absorver a boa nova, tão inesperada.
Sinto a tua falta, Deirdre.
Um silêncio e, depois, Eu também sinto a tua falta, Clodagh. Mais do que alguma vez Julgara possível.
Estaria a chorar?
Oh, Deirdre. Está tudo a correr bem?
Por momentos, a sua presença estremeceu, como se estivesse prestes a retirar-se para longe do meu alcance e, depois, respondeu-me:
Claro que está tudo bem. Porque é que não haveria de estar? Só que... é diferente. Há tanto para fazer e... Não me apercebi de como me habituara a ter-te sempre por perto. Devias vir visitar-me. Há muito bons partidos por aqui. Talvez encontrasses um namorado, alguém melhor do que Aidan. Afinal, é apenas um filho mais novo.
Ainda bem que ela não podia ver a minha expressão.
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Talvez possa ir visitar-te um dia destes, mas esquece os namorados. Além disso não há falta de homens jovens em Sevemwaters enquanto Johnny aqui estiver.
Ele ainda aí está?
Pelo menos, por agora.
Não se importou com o facto de o bebé ser um rapaz. Isso não o afasta da sucessão?
Talvez - respondi. Mas Finbar é apenas um bebé. Johnny não parece nada preocupado. Além disso, tem outras coisas em mente.
Não me digas que o nosso primo se interessou, por fim, por uma mulher.
Não tem nada a ver com mulheres. É apenas um problema com um dos chefes de clã locais, já sabes como é. O Johnny está um pouco inquieto, e o pai também. Nada de importante.
Um dos chefes de clã? Qual?
Senti um calafrio. Quase como se Cathal me sussurrasse ao ouvido eu bem te disse.
Não sei bem, menti. Mas tu já sabias que o pai estava à espera disto. Que os chefes do Norte vissem o teu casamento com Illann como uma afronta.
Deves lembrar-te de que chefe se trata.
Não me lembro, Deirdre. Não faço a mais pequena ideia.
Mas tu sempre te interessaste por estas coisas, Clodagh.
E tu nunca te interessas, pensei. Ou não te interessavas.
Tenho andado demasiado ocupada para tomar atenção a esses assuntos, respondi. A chegada de Finbar virou a casa do avesso. Não penso que seja algo com que nos devamos preocupar.
Não falei da testa enrugada do meu pai, ou das conversas sérias que agora reuniam os homens a todo o momento, conversas que incluíam com frequência o nome de Eoin de Lough Gall.
A. sério? Detestaria ver o pai partir para uma batalha com um filho recém-nascido em casa.
Ele não partiu para nenhuma batalha, Deirdre. Não é nada disso, é apenas Gareth que foi ao Norte com alguns homens, para entregar uma mensagem.
Senti o coração a bater com força. Se Cathal tivesse razão, eu já tinha dito mais do que devia; se não tivesse, estava a aborrecer a minha irmã ao recusar-me a responder a perguntas perfeitamente razoáveis. De repente, falar com Deirdre era como tentar equilibrar-me sobre um fio.
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Tenho de ir, disse-lhe. Encarregaram-me de tomar conta de Finbar e ouço-o chorar. Como se quisesse evitar a minha mentira, o bebé mexeu-se, produzindo um ruído subtil e sonolento, e calou-se logo de seguida.
Oh. Então, ele está aí ao teu lado? Onde estás?Quem mais está aí?
Deirdre, tenho de ir.
Um breve silêncio e, depois, rematou:
Podemos fazer isto de novo, Clodagh? lembro-me daquilo que te disse antes de partir, mas não pensei que teria tantas saudades tuas. Faria tanta diferença poder simplesmente falar contigo, trocar notícias, saber como estão todos... Podemos?
Claro, respondi, mas no meu peito senti uma frieza, uma rigidez. Se desejava ter notícias, porque é que não me tinha perguntado por nenhuma das nossas irmãs? Questionara-me a respeito dos chefes de clã do Norte, mas nem sequer mencionara Muirrin, Sibeal ou Eilis. Era com Deirdre que eu estava a falar; Deirdre que, tanto quanto me lembrava, nunca discutira na vida assuntos estratégicos comigo.
Adeus, por agora, Deirdre. Direi aos outros que lhes mandas muitas saudades.
No momento em que ela desapareceu do meu pensamento, uma vaga de cansaço abateu-se sobre mim. Afundei-me no banco ao lado da pequena lareira, feliz por constatar que o bebé parecia ter adormecido de novo, pois não me sentia sequer com forças para pegar nele ao colo, quanto mais para lhe mudar a fralda ou levá-lo aos aposentos da minha mãe, para ser alimentado. Uma lágrima rolou-me sobre a face. O que é que se passava comigo? Nem parecia uma jovem mulher a quem a mãe ainda há pouco agradecera pela sua competência. Procurei um lenço e sequei os olhos.
Alguém bateu à porta. Praguejei baixinho. Companhia era a última coisa que me apetecia ter naquele momento. Mas devia ser apenas Sibeal que vinha mais cedo para o seu turno com Finbar. Não me faria perguntas embaraçosas se me visse a chorar.
Abri a porta e encontrei-me face a face com a pessoa que eu menos queria ver.
- Estás a chorar - observou Cathal, de sobrancelhas arqueadas.
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- Vai-te embora.
Comecei a fechar a porta, mas ele esticou o pé e impediu-me.
- Clodagh, diz-me o que se passa.
- Nada que te diga respeito. O que estás a fazer aqui em cima? Estou a tomar conta do bebé.
- Podes tomar conta dele e conversar comigo. Não há nenhuma regra que o proíba. E seria mais cortês da tua parte se me convidasses a entrar, para podermos conversar sentados, com mais conforto. Estes encontros à entrada da porta são muito incómodos.
- Afasta o teu pé da porta, Cathal.
- Diz-me qual é o problema e irei.
-Já te disse, não tens nada a ver com isso. Mas o que é que tu queres, afinal?
- Vem cá para fora e fala comigo e depois eu vou-me embora. Prometo.
- Duvido que as tuas promessas tenham algum valor, Cathal. Como é que eu podia ver-me livre dele sem chamar a atenção?
Aquele corredor era um local de passagem para os criados e para a família.
- Está bem, eu falo, mas tem de ser breve. Não posso deixar Finbar.
Cathal recuou. Podia ter-lhe fechado a porta na cara, mas seria um gesto infantil. Saí do quarto, mas mantive a porta entreaberta com uma mão, de maneira a ver o berço de salgueiro com o seu pequeno ocupante a dormitar à luz das labaredas.
- Porque é que estás aqui? - perguntei.
Cathal trazia o manto vestido e as botas de montar. Reparei naquele momento que, apesar da sua irreverência, estava pálido e abatido.
- O que se passa? - acrescentei, sem querer. - Pareces transtornado.
Ele não me respondeu. Estava encostado à parede, ao pé da porta, com os ombros descaídos, de olhos fixos numa laje do chão de pedra, afastados de mim.
- Cathal?
- Posso não voltar a ver-te durante algum tempo - disse-me.
- Não creio que seja sensato para mim ficar aqui.
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Não esperava ouvir aquela notícia.
-Johnny enviou-te em missão ao Norte? Já há notícias de Gareth?
A estranha conversa com Deirdre regressou bruscamente ao meu pensamento, mas sabia que não a discutiria com ele. Se não fosse a sua angustiante teoria, eu teria dado a boa notícia da nossa família à minha irmã gémea, sentindo apenas o prazer de encontrá-la, de novo, disponível para falar comigo. Cathal era o culpado pela miserável confusão de sentimentos que agora me invadia. Quanto ao facto de ele estar de partida, não sabia bem o que sentia acerca disso.
- Não propriamente. Mas não penso ficar aqui muito mais tempo. Sei que consideras a minha presença incómoda e nociva, Clodagh. Mas não queria, porém, ir-me embora sem me despedir.
O seu tom de voz gelou-me. Não gostava nada do ar perdido daqueles olhos negros, onde não havia, nesse dia, vestígios da malícia habitual.
- O que se passa? - perguntei. - Até parece que vais partir para sempre. Johnny não vai passar aqui o Verão? Aidan também vai partir?
Cathal tentou esboçar um sorriso; uma triste sombra do original.
- Ele não, só eu. Imagino que fiques contente por te veres livre de mim.
Não rejeitei o comentário como um pedido de simpatia, como podia ter feito no passado.
- Sinto-me dividida a esse respeito - retorqui, sem saber por que motivo não conseguia juntar as peças daquele sentimento e tentar decifrá-lo. - De qualquer modo, vais voltar, não vais? Johnny costuma vir aqui quase todos os anos. Voltarei a ver-te, mais tarde ou mais cedo.
Cathal tornou a fazer aquele sorriso desamparado. De súbito, lembrei-me da história de Willow, do rapaz-lobo, e senti um aperto no coração. O que seria aquilo? Eu nem sequer gostava do homem. Porque é que sentia a necessidade de abraçá-lo e de dizer-lhe que estava tudo bem?
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- Duvido - disse Cathal. - Agora, é melhor voltares para junto do bebé. É uma boa prática para quando tiveres um ou dois dos teus. Adeus, Clodagh.
Inclinando-se, beijou-me. Por momentos, fiquei demasiado espantada para reagir e, depois, apreciei a pressão dos seus lábios nos meus, um sentimento doce e intenso que acordou todo o meu corpo de uma maneira absolutamente inesperada. Quando a mão dele se aproximou para tocar-me no pescoço, tive de controlar-me para não me enroscar no seu peito e pôr os braços à sua volta. Em vez disso, afastei-o, chocada com a minha reacção e horrorizada com o facto de ter autorizado aquela intimidade na parte da casa reservada à família. Não devia sequer ter permitido que se demorasse à porta do quarto.
- Pára! - silvei. - Isto é uma loucura! Sai daqui, está bem?
Os olhos de Cathal fitaram os meus e não havia neles o mais ínfimo sinal de troça. Depois, virou-se, o manto ondulou à sua volta e eu vi uma coisa curiosa: espalhados pelo forro da roupa, muitos objectos pequenos, cosidos ao tecido como amuletos de protecção, que faziam lembrar a cruz de sorveira-brava na história dos dunchauns. Haveria certamente uma cruz no manto de Cathal; mas também havia uma pena, um pedaço de tecido brilhante e acetinado e um objecto feito de vidro verde. Vi outras bugigangas, mas não tive tempo de identificá-las, porque ele desapareceu num abrir e fechar de olhos, rápido como uma sombra e silencioso como um túmulo. Senti um movimento no fundo do corredor. A camareira da minha mãe, Eithne, tinha estacado a olhar para nós, com uma pilha de roupa dobrada nos braços. O seu olhar cruzou-se com o meu e, logo a seguir, correu para o quarto da minha mãe. Assistira sem dúvida a todo aquele intercâmbio, beijo incluído.
Então, chorei de verdade, sem ter uma razão clara para o fazer. Retirei-me para o quarto do bebé e fechei a porta. Depois, sentei-me no chão, perto da lareira, com os braços à volta dos joelhos. A pequena luz das chamas reconfortou-me. Quando Sibeal chegasse, já estaria de novo tranquila, se me empenhasse nisso. Talvez mais tarde, quando fosse lá abaixo, viesse a descobrir que aquilo que acontecera fora mais uma brincadeira de Cathal. Devia bani-lo com-
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pletamente do meu pensamento; não podia deixá-lo perturbar-me daquela maneira. Porque diabo subira as escadas para me ver? E o que significava aquele beijo, aquele beijo terno, assustador, completamente inapropriado? Como se atrevia Cathal a confundir as minhas defesas e, ao mesmo tempo, a dizer mais ou menos adeus para sempre? A ideia de vê-lo partir criou dentro de mim um estranho vazio, e isso era uma coisa profundamente errada. Eu devia, como ele muito bem assinalara, sentir-me feliz por me ver livre dele.
Deixei-me ficar a olhar para as chamas e inspirei o aroma subtil das ervas que aí espalhara nessa tarde, procurando compreender o insondável. Cathal, Deirdre, Johnny, o meu pai... Havia demasiado em que pensar e era muito fácil ceder à autocomiseração. Eu devia estar feliz por Cathal partir. E feliz por Aidan ficar. Tinha de ter algum domínio sobre mim própria.
Finbar estremeceu, fazendo o berço ranger, e apercebi-me de que já me deixara absorver há algum tempo pelos meus pensamentos. Já devia ter passado há muito a hora da próxima mamada. Tinha de levá-lo à mãe e esperar que ela não reparasse nos meus olhos vermelhos. E se Eithne lá estivesse e lhe tivesse contado que me vira a agir como se eu não soubesse o que era o decoro?
Finbar fez um pequeno ruído. O meu corpo contraiu-se, em sinal de alarme. A voz estava diferente; errada. Não era o choro de um bebé saudável, com fome, mas um ruído estranho, áspero e triste. Nenhuma criança normal faria um som daqueles. Finbar devia estar doente. Sufocava, não conseguia respirar... Levantei-me de repente e corri para o berço, com o coração aos pulos. Olhei para baixo, com a imagem do meu irmão bebé ainda fresca na memória os dedos delicados, as pálpebras macias, a pele de pêssego e os lábios de cereja. O meu coração disparou e, logo a seguir, sossegou, quieto. Um vento frio percorreu-me o corpo todo. Finbar tinha desaparecido. Tudo o que remanescia no seu pequeno berço era uma curiosa mistura de galhos e de pedras, folhas e musgo.
O bebé não podia estar longe. Respira, ordenei a mim própria, dominando o pânico. Não podia sequer ter saído do quarto, porque estava no berço, eu tinha-o visto com os meus próprios olhos, e só me afastara até à soleira da porta. Finbar continuara à vista o tempo
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todo, mesmo quando dei um passo para fora do quarto. Tinha a certeza disso. Excepto... excepto por um momento ou dois, quando a minha atenção se centrara em Cathal. Excepto no instante em que ele me tinha beijado. Mesmo então, ninguém podia ter passado por mim sem eu ver - tudo acontecera ali mesmo, à porta. O meu irmão tinha de estar ali. Tinha de estar.
Dei início a uma perseguição frenética, sempre consciente de que não havia nenhum lugar naquele quarto onde esconder um bebé com êxito durante tanto tempo. Por baixo da pilha de toalhas. Atrás do banco. Na alcova. Nada. Sentia o coração a bater com violência; a pele húmida, de terror. Como é que uma coisa daquelas podia acontecer? Como é que ele tinha desaparecido? Eu mal desviara os olhos dele. Deve ser um pesadelo. Deixem-me acordar agora, por favor, por favor. Só depois de ter passado uma eternidade a escrutinar às apalpadelas todos os cantos do quarto é que me lembrei do som que tinha ouvido, vindo do berço. Galhos e pedras não gritam. Talvez tudo aquilo fosse um delírio. Talvez as Criaturas Encantadas me tivessem comunicado uma espécie de Visão maligna. Obriguei-me a respirar fundo duas vezes e voltei a espreitar para dentro do berço.
A pequena pilha de paus e de pedras ainda ali estava, sobre o branco pálido do cobertor de baixo. Não era, portanto, uma Visão. Senti, de novo, o coração pesado, de chumbo. Finbar desaparecera. Tinha de pedir ajuda, tinha de contar-lhes...
Tornei a ouvir o ruído, um choro dorido, arranhado, uma caricatura da voz de um bebé. E os galhos e pedras estavam... Estavam... Senti uma náusea. Obriguei-me a olhar e vi duas pálpebras musgosas a abrirem-se e dois seixos no lugar dos olhos; vi galhos esticados dando forma a uma boca minúscula e gengivas castanhas, com casca; vi um par de mãos e paus escanzelados no lugar dos dedos, a tentar agarrar-me, como se implorassem o conforto do meu colo. A coisa estava a chorar, esfomeada. Afastou os cobertores com os pés - os cobertores macios do meu irmão bebé - revelando a sua forma, como a de uma criança recém-nascida, mas feita de uma amálgama grotesca de toda a espécie de rudimentos da floresta: aqui, um galho de sorveira-brava, ali, uma folha castanha, além, uma crosta de musgo ou uma pedra polida mosqueada de
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preto e branco. Cobria-lhe a cabeça não um cabelo espesso e. saudável, como o de Finbar, mas um emaranhado de remendos, feito, ao que parecia, de penas de peito de corvo. A voz, aliás, era semelhante à dos corvos, e gritava cada vez mais alto, num som arranhado, pela minha atenção. Belisquei-me no braço, com força, mas a única coisa que senti foi uma escalada de guinchos. Eu estava acordada e aquilo era verdade. Alguém levara o meu irmão, o tão desejado filho de Sevenwaters, a dádiva dos deuses à minha mãe, e no seu lugar deixara o duplo mais feio do mundo.

CAPÍTULO SEIS

Tranquei a porta do pequeno quarto atrás de mim e desci as escadas a correr. Encontrei o meu pai no salão, com Johnny e Aidan. Assim que me viram, calaram-se.
- Pai, aconteceu uma coisa terrível. Foi o Finbar. Alguém... o levou. - Vi-o estremecer, como que fulminado. Depois, levantou-se, branco como a cal. Fiz um esforço para continuar. - Foi trocado. Não sei como é que aconteceu, estive ali o tempo todo, mas...
Ele já estava a correr pelas escadas acima. Levantei a saia e corri atrás dele.
- Pai, espere! Preciso de dizer-lhe... Pai, está uma... uma espécie de duplo no berço...
Ele não me ouviu. Passámos pela porta fechada que dava para os aposentos da mãe. Quando chegámos ao quarto do bebé, as mãos tremiam-me tanto que o meu pai agarrou nas chaves e destrancou a porta.
Havia sinais da minha busca frenética e inútil por todo o lado: roupa espalhada pelo chão, bancos de pernas para o ar, vasilhas tombadas. O pai aproximou-se do berço, levantou o cobertor, olhou de relance para o que ali estava e virou-se, agarrando os meus ombros com tanta força que me magoou.
- O que aconteceu? Diz-me depressa!
Naquele momento, Johnny já estava à porta e Aidan vinha atrás dele. Os soluços ásperos do bebé-de-paus-e-pedras encheram o quarto.
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- Só desviei os olhos dele por um segundo, pai, um segundo apenas. Nunca me afastei mais do que a soleira da porta. Mas, quando olhei para o berço, no momento seguinte, ele já tinha desaparecido, substituído por este duplo. Não sei como é que isto aconteceu.
- Há quanto tempo?
O meu pai fixou uma máscara de controlo, mas a sua voz parecia pouco mais firme do que a minha. Senti a pressão das mãos dele nos meus ombros.
- Agora mesmo, pai, há instantes atrás. Revirei o quarto de uma ponta à outra e depois fui buscá-lo a si.
- Comecem uma busca - exclamou, largando-me bruscamente e virando-se para Johnny. - Um grupo aqui dentro, primeiro no andar de cima, e depois pela casa toda. Um segundo grupo lá fora, espalhando-se em todas as direcções, rumo à floresta. Deuses, porque é que eu não pensei na possibilidade de um rapto?
Johnny e Aidan desapareceram antes mesmo de ele terminar a frase. Ouvi o meu primo a dar uma série de ordens rápidas enquanto descia as escadas. Ouvi pessoas a correr.
- Estás a dizer-me que alguém levou o bebé na tua presença?
- perguntou-me. - Como é que isso aconteceu?
- Pai, não creio que tenha sido um rapto. Pelo menos, não um rapto político. Nenhuma pessoa deste mundo podia ter entrado aqui sem que eu desse por isso. Estive apenas alguns minutos lá fora, à porta. Deve ser obra de criaturas sobrenaturais. Como é que se explica este pequeno ser, este duplo...?
O berço de salgueiro chiava por todos os lados enquanto o seu pequeno ocupante se movia de um lado para o outro, a gritar por atenção. O estridor mal me deixava ouvir a minha própria voz. O meu pai dirigiu-se, de novo, ao berço e olhou para baixo, para a coisa que ocupava agora o lugar do seu filho.
- Uma caricatura cruel - disse ele. - Uma cópia grosseira de uma criança, mas não mais do que um monte de galhos e de pedras, Clodagh.
- Mas...
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Olhei para ele, sem perceber. O duplo guinchava. Abanava os braços freneticamente, desesperado por uma resposta aos seus gritos de angústia. Não seria decerto a única a ouvi-los?
- Saíste do quarto - disse-me, numa voz definitiva. - Deixaste Finbar sozinho. Porquê?
Só queria enrolar-me e esconder-me. Só queria encolher-me, transformar-me numa bola minúscula e rolar até um canto onde ninguém pudesse encontrar-me. Sentia-me uma geleia por dentro.
- Fiquei mesmo aí, à entrada - respondi, num fio de voz.
- Mesmo aí. A falar com Cathal. Voltei a entrar logo a seguir. Pai, ninguém podia ter passado por mim. Teria de ser invisível. Pai, não ouve a criança a chorar?
- Estás a ouvi-lo? Finbar?
Uma súbita esperança iluminou-lhe o rosto.
- Não - retorqui, confusa e miserável -, o duplo, o bebé-de-paus-e-pedras. Vejo-o mexer-se, pai, ouço-o gritar. Pai, isto deve ser obra das Criaturas Encantadas. Lembra-se do que disse Willow, que se comportavam de maneira diferente?
Ele dirigiu-me um certo olhar. O tipo de olhar que podia ter aplicado a um chefe rival que se atrevesse a desafiar a sua autoridade. Nunca tinha olhado para mim daquela maneira.
- Estás exausta - replicou. - Eu não ouço nada. Não existe nenhum duplo. Isto é apenas uma brincadeira cruel.
- Mas...
Os gritos eram ensurdecedores. Como é que ele não os ouvia?
- Não quero voltar a ouvir essa conversa, Clodagh. Respira fundo e recompõe-te. - O tom era suficiente para calar todos os protestos futuros. - Este quarto tem de ficar trancado. Guardarás a chave contigo. Ninguém pode entrar ou sair. Mais tarde, quando Johnny me disser alguma coisa, mandarei reunir todas as pessoas da casa. Tens a certeza - a voz começou a quebrar-se -, tens a certeza absoluta de que não viste mais ninguém aqui em cima? Nenhum servo, nenhum homem de armas, ninguém?
- Eithne saiu do quarto da mãe enquanto eu estava aqui, à entrada, e Cathal esteve cá em cima, por momentos, mais ninguém.
- A tua mãe tem de saber.
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A voz dele parecia-me, agora, distante, como se tivesse de afastar a dor e o choque para um canto da consciência, para poder agir como um chefe de clã.
- Penso que é inútil adiá-lo. Vem, Clodagh.
Enquanto saíamos para o corredor, os gritos guturais do duplo atravessaram-me como setas. Aquele som fazia-me doer o peito. O pai esperou que eu fechasse a porta à criatura. Depois, fomos despedaçar o coração da minha mãe.
Mais tarde, dei por mim de pé, à frente do meu pai, na pequena câmara do conselho, com o estômago contorcido em nós de dor e de ansiedade. Finbar não estava dentro de casa, nem no pátio ou anexos, nem em nenhum lugar perto da floresta. Não havia marcas de pegadas, cascos ou rodas; quem levara o bebé desaparecera sem deixar rasto. Johnny organizava uma busca mais ampla, recorrendo a todos os homens de armas que podiam ser dispensados.
Eu devia estar lá fora, a tranquilizar as crianças e a assegurar, apesar da crise, a continuação da rotina doméstica da casa. Mas parecia que as minhas tarefas habituais me tinham sido retiradas, como se, agora que eu permitira que o meu irmão fosse raptado, nada me pudesse ser confiado. Para agravar o quadro, o meu pai chamara Aidan para dentro da sala e ele estava ali connosco, provavelmente na qualidade de guarda. O que é que lhe passara pela cabeça? Que a própria filha se tornara uma ameaça? Fixos em mim, os seus olhos eram dois círculos gelados e distantes. Ocorreu-me que, no seu espírito, o mesmo som que me enchia o pensamento devia tocar a sua incessante melodia: o gemido destroçado da minha mãe no momento em que ouvira a notícia. Logo a seguir, o rosto dela definhara, mirrado, como o de uma criatura morta.
Eu tinha voltado a contar tudo ao meu pai, passo-a-passo: estava no quarto, Cathal apareceu à porta, falei com ele brevemente, sempre de olho no berço. Voltei a entrar, sentei-me por momentos e, quando olhei para dentro do berço, Finbar já tinha desaparecido. Tentei explicar-lhe, de novo, porque é que não podia tratar-se de um rapto político, mas o meu pai, um homem tolerante e razoável,
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foi completamente surdo a esta ideia. Pior do que isso, pareceu-me que estava a querer deduzir que as minhas explicações significavam apenas que eu perdera temporariamente a razão, ou que evocava as Criaturas Encantadas para justificar a minha própria negligência. Que razão teriam os Tuatha De para raptar um filho recém-nascido de Sevenwaters, perguntou-me. Os membros da nossa família eram guardiões e protectores da floresta desde tempos imemoriais; esta era um abrigo para as Criaturas Encantadas. Por que motivo nos quereriam fazer mal? Além disso, era evidente que o duplo só existia na minha cabeça. Nem o meu pai, nem Johnny ou Aidan tinham visto nele algo mais do que um rudimentar manequim de madeira. Quando voltei a protestar, ele cortou-me a palavra abruptamente, alegando que estávamos a perder um tempo precioso. Cada instante que passava, um dos seus rivais políticos afastava Finbar para longe de casa.
O interrogatório prosseguiu.
- Que razão teria Cathal para ir ter contigo? - perguntou.
- Veio dizer-me que se ia embora para algum lado. Veio despedir-se.
- Ia para onde?
- Não sei, pai. Ele não me disse.
- Aidan? - perguntou o meu pai, olhando por cima do ombro.
- Não sei nada acerca disso, Lorde Sean. Johnny não nos deu ordens para sairmos daqui.
Aidan fez questão de não olhar para mim. Parecia sombrio.
- Percebi que tencionava partir em breve e que nunca mais voltaria a Sevenwaters - acrescentei. - Não creio que tivesse ido lá acima se não achasse que era uma coisa importante.
- Porquê tu? - continuou o meu pai, num tom de indisfarçável suspeita.
- Não sei, pai. Olhei para o chão.
- Não te ocorreu, Clodagh - replicou -, que a cronologia é uma estranha coincidência? Cathal decide ir lá acima, directamente aos aposentos da família, ao que parece para falar contigo em priva-
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do, enquanto tu estavas a tomar conta do meu filho. Nesse preciso momento, o bebé é levado.
O tom de voz era categórico, firme. Eu sabia o que isso devia estar a custar-lhe. Queria dizer-lhe, liberta-te, chora, grita, atira com coisas. Ser um chefe de clã não significa que tenhas de ser sobre-humano. Mas não o disse. A minha mãe mal conseguia conservar a sua sanidade mental. Finbar estava lá fora, em parte incerta, um bebé minúsculo na vastidão da floresta. Se o meu pai podia ser forte, eu também devia sê-lo.
- O que me impede de pensar que a distracção provocada por Cathal deu a alguém a oportunidade perfeita para roubar o meu filho? - perguntou. - Se isto não é uma conspiração concebida pelos chefes de clã do Norte, o que é então, em nome dos deuses?
- Meu senhor! - protestou Aidan. - O que insinuais?
- Não insinuo nada - respondeu o meu pai. - Levaram o meu filho. Tenho de considerar todas as hipóteses, por muito perturbadoras que sejam, para ti ou para qualquer outra pessoa. Pensas que é fácil para mim interrogar a minha própria filha?
Logo a seguir, recompôs-se, claramente arrependido de ter falado de forma tão impulsiva, e tornou a imprimir às suas feições uma expressão de simulada tranquilidade.
Eu estava a odiar aquilo; odiava cada segundo daquele momento cruel.
- Pergunte a Cathal - declarei. - Ele dirá que veio apenas despedir-se. Pai, eu não estou a mentir-lhe.
- Então, explica-me isto.
O meu pai pôs-se de pé e pousou as mãos em cima da mesa. A sua pele assumira uma tonalidade cinzenta e os olhos eram os de um homem velho.
- Eithne viu-te com Cathal no corredor, no momento que me descreveste. Não estavam propriamente a trocar saudações, ou envolvidos numa conversa casual, nem sequer a despedirem-se de uma maneira cortês. Estavam unidos num abraço. "Um abraço apaixonado", foram as palavras que ela empregou. Se é verdade, e o teu rubor diz-me que é, como é que podes afirmar que estavas atenta ao teu irmão?
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Fiquei em silêncio. Aidan fitou a parede em frente. Também ele estava a fazer um esforço grande para conservar a calma, mas eu sentia a sua fúria recalcada, a mesma que lhe incendiara os olhos quando encostara a faca à garganta de Cathal.
- Responde-me, Clodagh - exclamou o meu pai. - Não temos tempo a perder.
- Sim, Cathal beijou-me. E não, eu não o convidei a fazê-lo; fiquei tão surpreendida que demorei alguns segundos a libertar-me dos seus braços. Mas não foi um abraço apaixonado, pai; não existe nenhuma relação dessa natureza entre mim e Cathal. Eithne está enganada. Foi... um beijo amigável, de despedida, nada mais. E durou apenas um breve momento. Já lhe disse, ninguém podia ter passado por mim sem eu ver.
- Mas alguém passou - retorquiu. - Aidan, traz-me Cathal aqui, imediatamente. Johnny ficaria chocado se pensasse que um dos seus homens de confiança podia estar, de alguma forma, envolvido nisto, mas temos de ouvir o que Cathal tem para nos dizer, pelo menos para excluir essa hipótese. Temos de chegar ao fundo da questão.
Cathal não compareceu para apresentar a sua versão dos factos, porque não o encontraram em lado nenhum. Uma busca aos seus aposentos revelou que ele não só não estava ali, como tinha levado a trouxa e todos os pertences. O cavalo ficara nos estábulos. Tirando a conversa secreta que tivera comigo, não deixara nenhuma mensagem a ninguém. Embora a fortaleza estivesse cercada de guardas, ninguém o vira partir. Entretanto, descobri que estavam a ser tomadas decisões sem que eu fosse de todo consultada. Muirrin pediu que Coll e Eilis fossem transferidos para a parte da fortaleza onde se alojavam os homens de armas que tinham mulher e filhos, para que Doran e Nuala se ocupassem deles enquanto a minha mãe digeria o choque inicial do desaparecimento do bebé. Como já tinha visto a mãe, reconheci que era uma ideia sensata, mas devia ter sido eu a tratar do assunto e deviam ter esperado que eu falasse com as crianças, que as tranquilizasse, que ouvisse as suas perguntas. Assim
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sendo, quando o pai me deixou finalmente ir para cima, descobri que Sibeal já levara os mais novos para os aposentos de Doran e que passaria ali a noite com eles, ajudando-os a instalarem-se. Muirrin saiu do quarto da nossa mãe para me dizer isto e acrescentar, sem indelicadeza, que a mãe não queria ver-me, nem a mim nem a ninguém, à excepção do pai, de Eithne e da própria Muirrin. Esperavam-nos tempos difíceis se Finbar não fosse rapidamente descoberto.
- Não fiques assim, Clodagh - disse Muirrin. Via-se que tinha estado a chorar; estava com os olhos inchados e vermelhos.
- Não consigo evitá-lo - sussurrei, eu própria à beira das lágrimas. - Eles pensam que a culpa é minha, o pai, a mãe, todos. Já ninguém confia em mim. Tomei conta dele o tempo todo, salvo naquele instante.
Não verbalizei o meu pior receio. O pai tinha insinuado que eu estava a perder a razão. Talvez fosse verdade.
- Eles não te culpam propriamente - contestou. - Estão demasiado chocados para pensar com clareza. Mais tarde, tomarão consciência de que não podia ter sido culpa tua, mas agora a mágoa não os deixa serem racionais. Tens de esperar que esta fase passe, Clodagh. Limita-te a cumprir a tua rotina diária e vive um dia de cada vez. É tudo o que podemos fazer.
- Eu nem isso posso fazer - retorqui. - Parece que já ninguém precisa de mim para nada.
- Penso que a casa poderá funcionar razoavelmente bem sem ti. Habituaste-te a fazer as coisas à maneira da mãe, que significa ter de supervisionar tudo.
- Mas Eilis e Coll... Nem sequer os vi antes de serem rapidamente afastados daqui.
- O pai acha que estás demasiado transtornada com aquilo que aconteceu para cumprires os teus deveres habituais - disse Muirrin. - Na verdade, dadas as circunstâncias, é melhor deixares que Sibeal se ocupe dos pequenos.
- Ele pensa que eu ando a imaginar coisas - murmurei.
- Mas não ando. Não estou a enlouquecer, não é possível. Aquilo que está ali dentro não é um monte de galhos e de pedras, é um pé-
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queno indivíduo, com braços e pernas e uma voz. Talvez algumas pessoas não consigam vê-lo, mas isso não significa que não esteja ali. Olhei a minha irmã nos olhos.
- Vens vê-lo comigo, Muirrin? - perguntei. - O pai não acredita que é um duplo e, se não conseguir vê-lo, não vai procurar nos sítios certos e nunca encontrará Finbar.
Os lábios de Muirrin contraíram-se.
- O pai disse-me que o quarto do bebé devia manter-se fechado - replicou. - A mãe queria ir lá ver. Ele disse-lhe que tinha mandado trancar aquela divisão até decidir o que ia fazer.
- Eu tenho as chaves - insisti, em voz baixa. - Por favor, Muirrin. É num instante.
Em silêncio, Muirrin seguiu-me ao longo do corredor e esperou que eu abrisse a porta do quarto do bebé. Não se ouvia nenhum ruído vindo de dentro. Respirei fundo. Talvez o bebé-de-paus-e-pedras tivesse sido, de facto, um produto da minha imaginação e do meu choque perante o súbito desaparecimento de Finbar. O berço já não rangia nem estremecia e, naquele momento, estava perfeitamente imóvel. Aproximámo-nos dele e olhámos lá para dentro.
O cobertor fora sacudido para o lado, de novo, mas o duplo não estava a espernear. Dormia, enrolado, a chuchar num galho fino que era o seu polegar. As bochechas de musgo pareciam mais cavadas do que antes, e as órbitas mais escuras. Senti uma enorme vontade de curvar-me, embrulhar a criatura no cobertor e pegar nela ao colo. Mas fiz um esforço para ficar quieta enquanto Muirrin se inclinava, observando atentamente.
- Eu... - hesitou.
- O quê? - perguntei, prevendo, pelo tom de voz, o que ela me ia dizer.
- É uma cópia eficaz do corpo de uma criança - disse Muirrin, - mas não é real, Clodagh. Não é sequer real de uma forma estranha ou sobrenatural. Se tentasses pegar nele, caía ao chão, desfeito em galhos e folhas. Que brincadeira tão cruel! Porque diabo chegaria alguém ao ponto de fazer uma coisa destas? Já imaginaste se a mãe o tivesse visto? Tens de manter a porta sempre trancada.
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Não podemos correr o risco de ela vir até aqui, e é o que fará se tiver oportunidade; ainda não acredita que Finbar desapareceu. Tive de pôr Orlagh de vigia à porta do quarto para ela não sair sozinha. Muirrin dirigiu-me um olhar penetrante.
- Ainda pensas que é real, não pensas? Clodagh, estás a enganar-te a ti própria. Vê bem, é apenas uma amálgama de fragmentos e pedaços. - Muirrin estendeu a mão e tirou uma lasca da perna do duplo, um pedaço de casca de vidoeiro do tamanho do meu dedo mindinho. - Vês? - perguntou, preparando-se para atirar a lasca para a lareira quase extinta.
- Não! - gritei, arrancando-lha das mãos. Em resposta ao meu grito, ou ao ferimento que acabara de sofrer, os olhos de seixo do duplo abriram-se de repente, os membros contraíram-se e desatou num chamamento áspero. - Estás a magoá-lo!
Tornei a colocar o pedaço de casca o mais próximo que pude do sítio a que pertencia. Os gritos intensificaram-se. Pus o cobertor à volta da pequena criatura, envolvendo-a naquele abafo apertado; tremia-lhe o corpo todo, o berço vibrava. Dei-lhe umas palmadas nas costas, a um ritmo regular, desejosa de poder pegar na criança e confortá-la, sem me sentir, porém, preparada para dar esse passo enquanto a minha irmã estivesse a olhar para mim.
- Larga-o, Clodagh!
A ordem acutilante de Muirrin foi como uma bofetada. Era a primeira vez que ela falava comigo naquele tom; uma das muitas primeiras vezes daquele dia. Afastei a mão da criança e recuei, distanciando-me da pequena cama.
- Sai e tranca a porta atrás de ti - acrescentou.
Quando recuei para a saída, o tom do choro alterou-se, tornando-se tão pungente que senti uma dor no coração. O impulso para tirar a criança do berço e apertá-la nos meus braços era tão forte que tive de fazer um esforço para deixar o quarto. Como é que eu podia abandonar um ser tão pequeno e tão frágil à escuridão, ao frio e à solidão daquele espaço durante a noite? E a comida? Quanto tempo sobreviveria um recém-nascido sem alimento? Perversamente, parecia-me que aqueles que tinham levado Finbar tratariam, no mínimo, de arranjar-lhe algum leite. Quando as Criaturas Encantadas
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raptavam crianças humanas não era, de um modo geral, para lhes fazerem mal, mas para criá-las como suas. Costumavam também raptar mulheres para servirem de amas-de-leite. Se tinham trocado um dos seus bebés pelo meu irmão, não era importante que nós cuidássemos dessa criança, se queríamos que Finbar fosse bem tratado?
- Tu não acreditas em mim - disse-lhe, enquanto dava a volta à chave. Assim que a porta se fechou, deixei de ouvir aquele soluçar desamparado. Mas, na minha cabeça, a melodia continuava. Toca-me! Alimenta-me! Ama-me!
- Não sei em que é que devo acreditar - respondeu Muirrin, devagar. - Sei que tu acreditas naquilo que estás a ver, Clodagh. Sei que não eras capaz de inventar isto tudo, nem mesmo para encobrir um comportamento impróprio. Sim, ouvi o que aconteceu com Cathal. Eithne certificou-se disso, anunciando a todos, sem excepção, que vos tinha visto a comportarem-se como amantes. Mas não consigo ver aquela trouxa de resíduos como uma criança. O pai vai mandar alguém buscar Conor. Talvez ele chegue daqui a um ou dois dias. Como druida, será seguramente capaz de dizer-nos o que significam os paus e as pedras e o que deveríamos fazer com eles.
Não se as Criaturas Encantadas tiverem decidido que eu sou a única a poder ver o duplo tal como ele é, pensei.
- Sim, penso que é sensato - respondi, entre dentes. Quando Muirrin regressou aos aposentos da mãe, retirei-me para o meu quarto, sentei-me na cama e chorei.
No dia em que Finbar desapareceu, não houve um jantar formal em Sevenwaters. As buscas prolongaram-se até começar a escurecer e já não ser possível revistar a floresta. Homens partiam e regressavam nos seus cavalos às horas menos convencionais. Os nossos criados na cozinha serviram-nos, sem que a minha intervenção fosse necessária. Muirrin acertara no seu juízo franco: eu, que me julgara uma peça fundamental daquela casa, não era, na realidade, indispensável.
Como estava sem apetite, não me importava que não houvesse jantar. No entanto, desci à cozinha, apenas para me certificar de que
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as pessoas que tinham ficado de serviço paravam algum tempo para descansar e comer alguma coisa. Enquanto ali estava, enchi um pequeno jarro de leite fresco do dia e levei-o para o meu quarto tapado com um pano.
Fiquei sentada, à espera, durante muito tempo, o suficiente para ter a certeza de que todos os criados se tinham recolhido. O meu pai devia estar algures de pé, como eu, a preocupar-se, a planear a perguntar a Si próprio se havia alguma coisa que
pudesse ter feito para evitar que aquela desgraça se tivesse abatido sobre a nossa casa. Talvez Johnny lhe fizesse companhia. Muirrin teria dado um soporífero à mãe. Era improvável que encontrasse alguém nessa curta viagem que ligava o meu quarto ao quarto do bebé, ou no regresso. De qualquer modo, preparei uma desculpa: tinha perdido o meu xaile fàvorito e pensei que podia tê-lo deixado aí.
com a vela e a chave numa mão e o jarro na outra, deslizei pelo corredor, onde apenas uma tocha ardia na escuridão. A chave rodou sinuosamente na fechadura, graças ao óleo que pus previamente. O som assaltou-me assim que abri a porta: um som engasgado ofegante, mais desesperado do que antes, mas também mais débil. O duplo começara a definhar. Se eu não agisse de imediato, podia estar morto pela manhã.
O meu avô o pai do meu pai, conhecera profundamente a arte de cuidar das plantas e criaturas. Tinha salvo muitos bezerros e cordeiros recém-nascidos que outro agricultor teria abandonado por serem seres demasiado fracos para merecerem a sua preocupação. Eu tinha aprendido muito nos joelhos do meu avô, e parecia-me que aquilo que funcionava com um cordeiro também funcionaria com um bebé. Pousei o jarro numa pequena mesa. As coisas de Finbar jaziam espalhadas pelo chão - os sinais da minha busca desvairada horas antes. Peguei num pedaço de tecido de boa qualidade de musselina, e aproximei-o do jarro, mergulhando uma ponta no leite. Depois, dirigi-me ao berço e peguei no duplo.
Era muito leve, muito mais leve do que o corpo quente e sólido do meu irmão bebé. A boca pequena, feita de galhos, abrira-se escancarada; os gritos ásperos metiam dó. Assim que o encostei a mim, desatou num violento estrebuchar, a mão agarrada a uma
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prega da minha camisa de dormir, a cabeça a virar-se contra o meu corpo, a boca estranha abrindo-se à procura do peito da mãe.
O tom dos gritos mudou quando me desloquei para me sentar ao
pé da mesa, murmurando-lhe sempre "Pronto, pronto, está tudo
bem, vou tomar conta de ti."
Encostei-o a mim com um braço, enquanto lhe chegava a ponta ensopada do pano à boca. Era estranho; pegar nele ao colo era muito diferente de pegar em Finbar, que fora sempre um peso quente e descontraído, sem vontade aparente de lutar comigo. A criança que o substituíra era quase frenética. Espremi algumas gotas de leite sobre os seus lábios, rezando para que ele bebesse.
Chupou; engoliu. Um silêncio abençoado encheu o quarto e eu consegui, por fim, respirar. Tornei a molhar o tecido, com o pensamento acelerado, em busca de maneiras de escapar à percepção da família, especialmente à de Muirrin. Se pudesse lá ir várias vezes por dia, talvez conseguisse mantê-lo vivo até encontrar uma maneira de convencer alguém de que aquele ser existia de verdade.
Nesse momento, um sufoco hediondo saiu dos lábios do duplo. As suas costas arquearam-se com violência e foi por pouco que não o deixei cair.
- Chiu, o que se passa?
Tinha os olhos muito fechados, a boca escancarada, o corpo possuído por espasmos e tremores.
- Deuses, o que se passa? Que fiz eu?
Agindo por instinto, levantei o bebé e encostei-o ao ombro. Momentos depois, estava a vomitar, cuspindo a pequena quantidade de leite que tinha ingerido sobre a minha camisa de dormir e para o chão, por baixo da cadeira. A criança arquejou e soluçou e, depois de um momento de silêncio, recomeçou a gemer, um gemido febril, esfomeado: Alimenta-me!
Não voltaria a tentar a mesma coisa. O leite fazia os bebés humanos crescer, mas não me parecia que tivesse o mesmo efeito nos sobrenaturais. Segurando a criança nos meus braços, enquanto caminhava de um lado para o outro no espaço estreito do quarto de bebés, sussurrei-lhe o que me ia na alma, esperando que a minha voz ajudasse a acalmá-lo.
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- Quem me dera que Deirdre aqui estivesse. Não seria grave se ela não acreditasse em mim, só queria que me ouvisse. Nós ouvíamo-nos sempre uma à outra. Quero contar-lhe tudo, mas não posso chamá-la mentalmente, não agora. Por causa daquilo que Cathal me disse e das perguntas estranhas que ela me fez quando conversámos ontem. Tudo mudou. Tudo se virou do avesso, e eu odeio o que está a acontecer. Odeio aquele juízo crítico no olhar do meu pai. Odeio não ser capaz de te alimentar, minha criaturinha infeliz. De que precisas? O que posso dar-te?
Por fim, os gritos do duplo atenuaram-se, dando lugar a um lamento exaurido. Tornei a sentar-me e deixei-o chupar a ponta do meu dedo mindinho - tinha visto Nuala a usar aquele truque para acalmar um dos seus filhos e pensei que valia a pena tentar. Os lábios da criança não eram macios e húmidos, como os de um bebé humano, mas secos e quebradiços. Doía-me o dedo, mas deixei-o chupar porque parecia retirar daí algum conforto.
- Precisas de um nome - disse-lhe. - Devias ter um nome bonito e requintado, um nome que mostrasse que mereces o amor a que qualquer bebé tem direito, mesmo se tens um aspecto um pouco... invulgar.
Observei o cabelo preto desigual, a tonalidade esverdeada das faces e testa, o corpo feito de cascas, de folhas e de galhos. Perguntei-me se não devia tentar vestir aquele pequeno ser - será que os duplos tinham frio? O fogo já se extinguira e o quarto arrefecera demasiado para uma criança humana. Mas parecia errado vesti-lo com as roupas de Finbar.
A vela que eu tinha trazido comigo iluminou as cinzas na lareira e as tapeçarias, que estremeciam com a corrente de ar. Passar a noite no quarto das crianças era correr o risco inaceitável de ser descoberta, embora houvesse um colchão num dos cantos, onde costumava dormir a ama de Finbar. Se eu não quisesse que o bebé gelasse até à morte, teria de levá-lo comigo para o meu quarto. Senti-me perdida. Quanto tempo conseguiria mantê-lo ali, mesmo se descobrisse como alimentá-lo? Era uma loucura; só podia terminar em desgraça.
O bebé libertou-me o dedo e virou a cabeça para o meu peito. Senti aquela forma incómoda, cheia de linhas rígidas e de ângulos espetados, descontrair-se encostada a mim, num suspiro trémulo.
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- Vou chamar-te Becan - murmurei. - É um nome sonoro.
O nome de um sobrevivente.
Não era possível saber se o duplo era um rapaz ou uma rapariga mas, como tinha substituído o meu irmão, presumi que fosse um
macho.
- Agora dorme, pequenino. Sonhos cor-de-rosa.
Murmurei uma velha canção de embalar de que me lembrava vagamente e vi as duas pálpebras indistintas fecharem-se devagar sobre os olhos de pedra. Seguro nos meus braços, Becan adormeceu.
Quando achei que já dormia a sono solto, saí em silêncio do quarto de bebés e transportei-o pelo corredor até ao meu quarto. Tive de deixá-lo ali, aninhado entre duas almofadas, enquanto regressei ao outro quarto para ir buscar a minha vela, o jarro e o pano e certificar-me de que a porta ficava bem fechada. De volta ao meu quarto, montei um esconderijo provisório atrás da arca de arrumos, forrando a área com um cobertor e colocando as almofadas em cada uma das pontas. Não seria duradouro. Uma criada de quarto podia entrar, ou uma das minhas irmãs, e descobrir o segredo rapidamente. Além disso, se eu não conseguisse alimentá-lo, Becan não sobreviveria muito tempo. Quando ele acordasse, teria de tentar outra coisa.
Deitei-me sem sono, com o pensamento cheio dos choques, das confusões e do sofrimento que tinham marcado aquele dia: o meu irmão bebé, tão novo e tão pequeno, sozinho na floresta, em parte incerta, sem ninguém da família por perto para confortá-lo; a minha mãe com aquele olhar parado no rosto, perdendo a alegria de um momento para o outro; o meu pai glacial e severo, como se eu me tivesse subitamente transformado numa outra pessoa, de quem ele não gostava e em quem não confiava. E Cathal. O elemento mais intrigante daquele quadro. Nessa tarde, parecera-me que o meu pai o acusara, de alguma forma, de estar envolvido no rapto de Finbar. Não tinha sido apenas uma impressão; Aidan também ouvira aquela denúncia, mas o meu pai cortara-lhe a palavra de protesto. Seria verdade? Seria possível que Johnny, que possuía um talento quase lendário para avaliar a natureza humana, tivesse acolhido um traidor no seio da sua comunidade?
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Nada impedia que o beijo de Cathal não tivesse nada a ver com uma súbita vaga de emoções, e fosse antes parte de uma espécie de conspiração. Ele tinha tornado bem clara, desde o primeiro dia, a antipatia que sentia por mim. Mais tarde, conseguira ser vagamente simpático, mas não mais do que isso. Recordei as palavras de Aidan depois daquela luta: Ele quer-te para ele. Mas era absurdo. Se Cathal gostasse de mim, não estaria constantemente a relembrar-me os meus defeitos. Um homem como ele não seria tímido a declarar os seus sentimentos. Talvez o beijo - que me agradara mais do que devia - tivesse sido, de facto, uma manobra de distracção. Mas, mesmo nesse caso, eu sabia que, naquele curto espaço de tempo, ninguém podia ter passado por mim. Nenhum humano, pelo menos.
Onde estava Cathal? Porque é que tinha desaparecido em circunstâncias tão suspeitas? Era decerto um homem demasiado subtil para atrair as atenções daquela maneira. Talvez regressasse de manhã, depois de ter ido tratar de um assunto perfeitamente legítimo, provando que não estava envolvido em nada. Dei por mim a desejar que ele voltasse com um bom álibi. Eu não gostava do homem. Não confiava nele, mas também não queria que fosse um espião ou um raptor. Tentei afastar do pensamento a figura indistinta que estivera, ou não, no pátio naquela noite, o estranho desaparecimento de Cathal a caminho de Pudding Bowl, os insondáveis conselhos que ele me tinha dado. Mas era indecifrável; não conseguia ligar as peças do puzzle de maneira a fazerem sentido.
Antes de amanhecer, dormi um pouco e sonhei que estava lá fora, na floresta, e que monstros parecidos com árvores me perseguiam. O bebé Finbar estava sozinho, numa caverna profunda, rodeado de presenças sombrias, que o vigiavam. Tinha de chegar junto dele antes que morresse de frio, mas as árvores espetavam as suas raízes e faziam-me tropeçar, prendendo-me o cabelo entre os ramos; um vento estranho uivava na folhagem, como o grito de uma criança faminta... Acordei com suores frios e a almofada encharcada de lágrimas. Para lá da janela estreita do meu quarto, a primeira luz da madrugada inundara o céu, e do pátio mais abaixo chegou -me o som de cascos a martelar nas lajes de pedra. Um cavaleiro,
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tão cedo? Um mensageiro que chegava com notícias? Talvez Finbar tivesse sido descoberto, são e salvo. Ou talvez o tivessem encontrado numa gruta, enregelado e morto, porque ninguém conseguira chegar a tempo. Levantei-me a tremer e salpiquei o rosto com a água gelada da bacia que estava junto da alcova. Água, pensei, de repente. Árvores, plantas... Talvez um bebé feito de toda a espécie de rudimentos da floresta não precisasse de leite, mas de algo muito mais simples.
As pessoas tinham-se habituado a verem-me cedo na cozinha, uma vez que era eu quem geralmente se certificava de que os assados estavam em curso e de que alguém se ocupava da limpeza e preparação dos fornos. Reparei que as actividades domésticas do dia decorriam a preceito, sem a minha supervisão. A minha única tarefa naquela manhã era encher o jarro de água e pegar, à socapa, num pote de mel. Olhei de relance para o salão, não vi sinais de actividade e tornei a subir as escadas, a correr. Talvez o cavaleiro não fosse, afinal, um mensageiro.
O som atingiu-me assim que abri a porta do meu quarto. O duplo livrara-se do xaile que o envolvia. Tinha os braços no ar, vacilantes, os olhos fechados com força, e chorava, sacudido por soluços que se combinavam com uma respiração ofegante. Pousando o jarro e o pote, apressei-me a pegar nele, a envolver a sua forma feita de galhos no xaile quente, a acalmá-lo.
- Pronto, pronto, sossega, meu querido, já estou aqui...
O pequeno corpo contraíra-se de angústia; estava inconsolável. Não me tinha afastado muito, mas ele acordara sozinho e esfomeado e eu sentia o seu pânico no meu próprio corpo.
Encostei-o ao ombro e tentei tirar a rolha do pote de mel. Depois, verti algumas gotas no jarro de água. Peguei num pano. O bebé gritava e soluçava, contra o meu peito. Ainda bem que eu era a única a ouvi-lo.
- Sossega, meu pequenino - segredei-lhe. - Preciso que me ajudes. Acalma-te.
Sentei-me na cama, aninhando-o num só braço, e mergulhei o pano no jarro. Por fim, espremi uma gota ou duas para dentro da boca escancarada.
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- Só um bocadinho - murmurei. - Devagar. Por favor, não vomites, implorei. Por favor, por favor, bebe isto.
Ele bebeu, engasgou-se, bebeu outra vez. Estava a soluçar com tanta violência que não conseguia engolir. Tornei a levantá-lo, encostei-o ao ombro e cantei-lhe um verso da canção de embalar.
- Dorme bem, meu pequenino, as estrelas lá em cima iluminam o caminho, a coruja voa, cinzenta na floresta, e chegou a hora de fazeres a tua sesta.
Os soluços começaram a esmorecer. O bebé esfregou o nariz no meu ombro, virando a cabeça de um lado para o outro. Quando voltei a tentar a água com mel, ele bebeu com mais sede, sem se engasgar. Chupando com força o pano ensopado, sorveu a mistura à velocidade a que eu conseguia prepará-la. Quando parei para acrescentar mais mel, guinchou em protesto.
- Chiu, chiu - murmurei. - Espera um pouco.
Quando voltei a alimentá-lo, os olhos suavizaram-se e fecharam-se, satisfeitos. Tive de fazer um esforço para não me desfazer em lágrimas de cansaço. Afinal, não teria de vê-lo morrer à fome.
O jarro estava vazio; Becan bebera-o até ao fim. Sentei-me na ponta da cama, aninhando-o nos meus braços. A sua mão miúda e rugosa emergiu do xaile para arranhar e, depois, agarrar-se ao tecido da minha camisa de dormir. Por fim, virou a estranha cabeça contra o meu peito. Eu cantei-lhe baixinho, vendo-o adormecer.
- Estás em segurança, meu pequenino - murmurei. - E agora, em nome dos deuses, que farei eu de ti?
Depois de instalar Becan nas almofadas, regressei lá abaixo. Queria ficar com ele, tomar conta dele, conceber sem pressas um plano de acção. O bebé não podia ficar muito mais tempo no meu quarto sem ser descoberto. Como todos pensavam que se tratava de uma espécie de manequim, era muito fácil adivinhar o que podia acontecer-lhe se o encontrassem ali, ou se o meu pai regressasse ao quarto das crianças e visse que ele tinha desaparecido. Seria seguramente o seu próximo passo quando Conor chegasse, e eu converter-me-ia na sua primeira suspeita. Isso dava-me, no máximo, um dia para encontrar uma solução.
Manter-me fiel à minha rotina diária, sempre que pudesse, parecia ser uma boa ideia. Teria de ir lá acima muitas vezes, alimentar
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o bebé, mas seria mais discreta se, nos intervalos, cumprisse as minhas tarefas quotidianas.
Quando cheguei ao salão, um pequeno-almoço variado fora posto em cima da mesa, para quem precisasse. O meu pai estava presente, de traje completo, e com o aspecto de quem passara a noite em branco. Acenou-me friamente, sem dizer palavra. Tinha o maxilar contraído. Não me pareceu que pudesse oferecer-lhe um abraço, ou palavras de conforto. Depois do que acontecera no dia anterior, receava nunca mais voltar a ser uma verdadeira filha aos seus olhos.
Johnny entrou, seguido de Aidan.
- Chegou um homem do Norte - disse ele. - Traz uma mensagem de Gareth - acrescentou, olhando para o meu pai e depois para mim. - Precisamos de saber já do que se trata.
- Claro - replicou o meu pai, sem sequer olhar para mim.
- Clodagh, pede aos criados que não entrem até ouvirmos o mensageiro.
Falou num tom seco e claro; nesse tom, vi que tinha esperado, mais do que a esperança prometia, que fossem notícias de Finbar.
Mas era uma boa notícia: Gareth encontrara-se com Eoin de Lough Gall. Embora o casamento de Deirdre com Illann não tivesse agradado ao chefe de clã do Norte, este prometera pensar seriamente na proposta de um conselho e oferecera à comitiva liderada por Gareth a hospitalidade da sua casa por dois dias. Daí, cavalgariam até ao vizinho mais próximo de Eoin, dando seguimento às outras visitas diplomáticas.
O meu pai agradeceu ao mensageiro e Johnny levou-o para fora, para descansar e comer alguma coisa, deixando-o a ele, a Aidan e a mim num silêncio incómodo no meio do amplo salão. Não consegui reunir coragem para dizer o óbvio: se Eoin de Lough Gall respondera de uma forma tão civilizada à mensagem de Gareth, não podia ser responsável pelo rapto de Finbar. Havia outros chefes de clã no Norte, é claro. Mas não deveria a notícia obrigá-lo a analisar a minha teoria com outros olhos? Estava com um ar tão sinistro que apenas perguntei:
- Como se sente a mãe esta manhã?
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- Não é a mesma pessoa - respondeu, numa voz sem emoção. - Os soporíferos de Muirrin não fizeram efeito. Hoje, temos de ampliar a busca. Se não o encontrarmos em breve, receio que...
As suas palavras perderam-se no silêncio.
Percebi-o perfeitamente. Eu própria tinha visto o rosto em agonia, olhando para mim da almofada, e aquelas não eram as feições doces da minha mãe, mas as de um cadáver. Se Finbar não fosse encontrado são e salvo, e depressa, ela escapar-nos-ia. Tinha de haver uma maneira de endireitar aquela situação. Mas eu não podia dizer nada. Fazê-lo era pôr em risco a vida de Becan. E não estava apenas a pensar na sua fragilidade, na sua juventude e necessidade de alimento. Lá bem no fundo, sentia crescer dentro de mim a convicção de que a sobrevivência do duplo se prendia à de Finbar; se o deixássemos morrer, os meus pais podiam nunca mais voltar a ver o seu único filho.
- Lorde Sean - disse Aidan, - ontem mencionastes Cathal e uma conspiração. Sinto que devo defendê-lo. Sei que Cathal nunca faria nada para merecer a vossa suspeita. Por vezes, é importuno, mas a sua lealdade é irrepreensível e admira Johnny acima de qualquer outro homem. Ser um dos guerreiros de Inis Eala foi, para ele, um sonho tornado realidade, especialmente porque tem origens humildes. Por muito que as circunstâncias o incriminem, estou perfeitamente convicto de que Cathal não tem nada a ver com...
- com o rapto do meu filho? - o meu pai dirigiu-lhe um olhar gélido. - Não podes ter a certeza, Aidan. O laço de lealdade que te une a Cathal é forte, e não é de admirar, uma vez que são amigos de infância. Mas as crianças crescem e tornam-se homens, e os homens têm motivos para se desentenderem que as crianças não têm. Questões de ascendência e de sangue. - Olhou para mim.
- Rivalidades por causa de mulheres.
- Não existe nenhuma prova concreta que sustente qualquer acusação contra Cathal, e não desejo ouvir mais nenhuma que não seja fundamentada.
Johnny regressara ao salão. Falou num tom equilibrado, mas detectei na sua solidez de ferro essa qualidade que fazia com que os homens o venerassem como chefe.
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- Ele desapareceu sem dar uma explicação, é verdade, mas não
é a primeira vez que acontece. Há sempre uma boa razão, algumas surpreendem-nos, mas todas apresentam uma base fiável para uma acção independente. Se eu vir que é necessário repreender Cathal, fá-lo-ei assim que ele regressar. Seria um erro precipitar conclusões nesta matéria. Eu conheço o homem. Tal como Aidan.
- O meu filho desapareceu - limitou-se a dizer o meu pai.
Cathal desviou a atenção de Clodagh no preciso momento em
que alguém o raptou. Esse facto, acrescido da sua partida abrupta e injustificada, parece-me ser prova suficiente para sustentar uma suspeita. Estás à espera que eu fique de braços cruzados, quando um caminho que pode conduzir à descoberta de Finbar permanece por explorar?
Nunca os tinha visto tão próximos de uma desavença, e aquela tensão preocupava-me profundamente. O rapto de Finbar parecia um seixo lançado às águas de um lago, criando um círculo crescente de injustiças que se estendia a toda a família. O que é que nos estava a acontecer? Será que as Criaturas Encantadas se tinham lembrado de envolver-nos num jogo particularmente sinistro, ou a sua conspiração acabara por misturar-se, de alguma maneira, com os planos de um dos inimigos terrenos do meu pai? Pensei nas histórias de Willow e no modo como olhara para mim enquanto as contava, como se eu devesse ser capaz de retirar delas alguma sabedoria. Seriam as histórias e o duplo elementos do mesmo enigma? Porque é que eu não conseguia decifrar aquela sequência de acontecimentos?
- Perdoa-me, Sean - disse Johnny. - Claro que não é isso que eu quero e farei tudo o que estiver ao meu alcance para encontrar o teu filho. Mas os meus homens são da minha responsabilidade e não gosto que ninguém questione a integridade deles sem apresentar provas sólidas. É muito provável que a presença de Cathal à porta do quarto das crianças, naquele preciso momento, tenha sido uma coincidência. Até eu ter uma boa razão para duvidar disso, não voltarei a admitir que ele seja acusado. Deixem-no regressar e explicar-se e, então, julgaremos a sua conduta.
Sentámo-nos à mesa. Enquanto esfarelava o pão no meu prato, os homens planearam as buscas desse dia.
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- Liderarei o grupo que parte para Oeste, na pista de Glencarnagh - disse Johnny. - Aidan ficará convosco. Sinto-me mais tranquilo se um dos meus homens estiver aqui neste momento de instabilidade, embora reconheça que Sevenwaters também tem bons guardas. Na verdade, os homens de Sevenwaters possuem uma vantagem nesta busca, uma vez que conhecem muito bem a floresta. Ontem, cobrimos uma extensa área, Sean. Temos de considerar a hipótese de que quem raptou Finbar já o tenha levado para fora dos limites das tuas terras.
- Só se cavalgaram a noite inteira - replicou o meu pai. Ou se saíram do mundo dos humanos, pensei.
- Sabes que não podíamos continuar a busca às escuras - disse Johnny, com calma. - Acredita que dedicarei toda a minha energia a este problema até o encontrarmos.
O meu pai acenou com lassidão.
- Quem fez isto é altamente qualificado. De outro modo, tê-lo-íamos apanhado.
- Pai? - senti-me muito mal por ter medo de fazer uma simples pergunta.
Ele olhou para mim, em silêncio.
-Já pensou em pedir a Sibeal que leia o futuro? Eu sei que ela não gosta de partilhar as suas visões, mas numa situação destas...
- Sibeal só tem doze anos de idade. Reconheço o seu dom, mas penso que é preferível esperarmos por Conor. Deve chegar amanhã. Eu não seria capaz de sobrecarregar alguém tão jovem com um fardo tão pesado. Tens esperança, suponho, que ela forneça uma resposta que apoie a tua teoria, que aquele monte de detritos lá em cima seja, de facto, um ser que vive e respira, não é assim?
- Não, pai - menti, de coração gelado. - Começo a pensar que talvez me tenha enganado. Estava chocada e aflita. E sentia-me culpada, embora continue sem perceber como é que alguém pôde entrar e sair tão depressa, imperceptível. Lamento se o modo como me comportei só piorou as coisas.
Não era possível saber se o meu discurso tinha sido ou não convincente. Aidan e Johnny fitavam-me ambos, Johnny confuso, Aidan de olhos semicerrados. E, embora eu tivesse dito uma menti-
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ra para desviar a atenção daquilo que ocultara lá em cima, constatei, esmagada por aquele escrutínio, que começava a duvidar dos meus próprios olhos e ouvidos. Embora ainda soubesse, no coração, que não me enganara a respeito de Becan, tornava-se difícil ignorar a possibilidade de a minha mente estar a pregar-me partidas. Aqueles homens eram bons e sensatos, eram homens que costumavam tratar-me com respeito e amabilidade. Como é que podiam estar todos errados? Por que razão é que as Criaturas Encantadas me mostrariam a verdade a mim e não a Muirrin? Não fazia sentido.
- Podes ajudar-nos hoje com as provisões para os homens que participam na busca - disse o meu pai, e eu interpretei a ordem como uma ligeira atenuação da sua postura. - Vão partir assim que acabarem de tomar o pequeno-almoço. Aidan, parece-me que precisas de umas horas de sono. Se vais ser o guardião da família na ausência de Johnny, aproveita para descansares agora e vem ter comigo no fim da manhã.
- Sim, meu senhor.
Aidan levantou-se e deixou o salão nesse preciso instante. Pouco depois, fiz o mesmo, dirigindo-me à cozinha, onde dei as instruções necessárias para a preparação das provisões e tratei de um novo reforço de água e mel. Era cedo. Muirrin não tinha ainda descido, mas Eithne já ali estava, enchendo um tabuleiro de coisas para o pequeno-almoço.
- Como está a mãe? - perguntei-lhe, ignorando de modo severo o assunto do beijo inoportuno que ela devia ter guardado para si.
- Não muito bem, minha senhora. - Teve a amabilidade de corar. - Isto é para Muirrin, para mim e para Orlagh, que está a vigiar a porta. Lady Aisling recusa-se a comer. Tem sido difícil convencê-la a beber água. Passa o tempo sentada na cama, de olhos postos no vazio. Não creio que tenha percebido realmente o que aconteceu.
- Compreendo. Bem, tenho a certeza de que estão a fazer o vosso melhor.
Que mais podia eu dizer? Queria entrar naquele quarto e abraçar a minha mãe. Queria dizer-lhe que, se a culpa fosse mesmo minha,
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estava mais arrependida do que alguém podia imaginar. E que desejava, mais do que tudo no mundo, ter o poder de tornar, de novo, a vida dela feliz. Mas de que me serviria isso? Eu não podia consertar o sucedido. Ninguém me ouvia. Se alguém me tivesse perguntado ontem se alguma vez mentiria ao meu pai, eu teria considerado uma afronta colocarem sequer essa hipótese. Hoje, fizera-o. E, no meu quarto, embrulhado no xaile macio de Finbar, dormia a criatura que alguém trocara pelo filho querido da minha mãe.
Quando saí da cozinha para o átrio do piso térreo, Aidan estava à minha espera. Afinal, não se apressara a sair para recuperar o sono merecido.
- Aidan - exclamei, apertando desastradamente o jarro e o pote contra o peito.
- Posso falar contigo um minuto? - parecia constrangido, cerimonioso. Era mais um sinal da profunda mudança que, desde ontem, se operara.
- Claro. Obrigada por ajudares o meu pai.
- Isto pode parecer descortês da minha parte, Clodagh, mas tenho de perguntar-te: o que aconteceu ontem com Cathal? O que te disse ele? Eu sei que já contaste, mas...
Pelo menos, não me tinha perguntado: Incitaste-o a beijar-te?
- Que ia partir, qualquer coisa desse género - respondi, pousando a minha carga num nicho de parede. - Insinuou que seria melhor não estar aqui. Não me explicou bem porquê. Disse-me que eu me sentiria provavelmente feliz por vê-lo partir, e eu respondi-lhe que me sentia dividida a esse respeito. Perguntei-lhe para onde ia, mas não quis dizer-me. Para mim ficou claro que não estava a pensar voltar. Nunca.
- E ele beijou-te.
- Se não o tivesse feito, Aidan, posso garantir-te que eu não teria dito que o fizera. Não foi como Eithne contou. Foi um beijo rápido, de modo nenhum apaixonado. Apenas um beijo de despedida.
Não era exactamente verdade: um beijo casto, de despedida, não me teria feito reagir daquela forma. Fora encantador aquele beijo, um beijo que nunca pensei que um homem como Cathal tivesse dentro de si para dar.
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Ele apanhou-me de surpresa. Foi um gesto estranho da sua
parte, porque nem sequer éramos amigos. Depois, partiu sem dizer palavra.
Aidan olhou para o chão.
- Ele não me disse nada - confessou. - Partiu sem sequer me dizer a mim.
- Talvez Johnny tenha razão. Ele não disse que Cathal já tinha feito uma coisa parecida no passado? O mais provável é que regresse ao cair da noite, com uma boa explicação.
Vi que Aidan acreditava tanto nisto como eu.
- Desculpa - acrescentei. - Ele irritou-te. Vocês parecem ter um talento para isso.
Aidan fez uma careta.
- Nós conhecemo-nos demasiado bem. Tivemos a vida inteira para aprender os pontos fracos um do outro. E Cathal nunca deixou de tentar provar que é tão bom como eu, ou melhor, seja em feitos de coragem e proezas técnicas com armas, seja simplesmente a dar espectáculo. Graças à sua natureza susceptível, eu tive poucos amigos na infância. O meu pai tem um afecto genuíno por ele. O resto da família tolera-o. Apesar de todas as oportunidades que o meu pai lhe deu, Cathal nunca aprendeu a comportar-se de uma maneira que as pessoas julguem apropriada. Por vezes, a rivalidade é penosa. Até pior do que isso, nos últimos tempos. O seu comportamento aqui em Sevenwaters já me pôs bastante à prova.
Lembrei-me da conversa que tinha ouvido nos estábulos e da inesperada gentileza na voz de Cathal enquanto confortava o amigo. Lembrei-me que fora Aidan quem me mentira. E da aflição no rosto de Cathal na noite em que tinha ouvido a história do rapaz-lobo.
- Sabes quem era o pai de Cathal? - perguntei. - Eu sei que o teu pai o acolheu em sua casa, porque a mãe dele não conseguia sustentá-lo, mas...
- Ela era uma mulher da aldeia. Pobre, solteira, grávida. Nunca disse quem era o pai. Cathal recusa-se a falar disso. Não sei se alguma vez ela lho disse, ou se a própria não sabia.
Não gostei muito daquela última insinuação.
- Ela ainda está viva?
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Aidan abanou a cabeça.
- Morreu quando ele tinha sete ou oito anos. Cathal e eu podemos ter as nossas questões, mas somos como irmãos, Clodagh. Sou mais próximo dele do que dos meus irmãos verdadeiros. É isso que me fere no seu comportamento. Um homem não beija a mulher que o irmão ama.
Dito isto, Aidan corou dos pés à cabeça.
- E não se vai embora sem dizer ao irmão para onde e porquê
- acrescentei, decidindo fingir que não tinha ouvido a última parte da conversa. - Cathal parecia transtornado. Triste. Gostava que ele me tivesse explicado melhor.
- Então é verdade que te preocupas com ele.
Havia agora uma veemência na voz; enganava-me se pensasse que aquela primeira fúria de ciúmes se dissipara.
- Apenas na medida em que me preocupo com qualquer pessoa que seja convidado na minha casa e que esteja infeliz - repliquei. - Aidan, tenho de ir, e tu devias estar a descansar.
- Clodagh?
- Sim?
- Falei de uma forma imponderada; disse mais do que devia. Não queria ofender-te. Tenho a mais alta consideração por ti - pegou na minha mão e levou-a aos lábios. - Sei que é má altura para falar contigo destes assuntos. O teu irmão bebé... Deves estar tão preocupada.
- Não fiquei ofendida - disse-lhe, retirando a mão e virando-me antes que ele pudesse ver-me inundada em lágrimas. Aquelas breves palavras ditas de uma forma tão amável quase arruinaram os meus melhores esforços para manter a postura. Ansiava que ele me abraçasse e me dissesse que ia correr tudo bem. Mas era uma insensatez. Ninguém conseguiria melhorar a situação, não tão facilmente.
- Agora devias ir descansar, e eu sou precisa lá em cima. Adeus, Aidan.
Fiz um esforço para me afastar dele sem olhar para trás. Quando passei pela porta do quarto da mãe, esta abriu-se e Muirrin saiu, destroçada.
- Estás bem? - perguntei-lhe. Era uma pergunta escusada; um olhar dizia-me que a resposta só podia ser negativa.
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- Cá me arranjo - disse a minha irmã mais velha, e o tom
fazia tanto lembrar o da nossa mãe que me sobressaltou.
- Clodagh, sabes que o pai não queria que ela fosse ao quarto do bebé. Pergunto-me se ele não estará errado.
- Porquê? - crocitei, com os nervos a chocalhar de pânico.
Seguiu-se um silêncio tenso.
- Já tentei tudo - acabou por dizer Muirrin. Tinha círculos escuros por baixo dos olhos. - Não me parece que consiga ajudá-la. Temos de fazer alguma coisa para arrancá-la a este transe. Ela não está a ser racional, Clodagh. Na ausência de Finbar, a febre do leite é praticamente inevitável. Não me deixa tocar-lhe; insiste que, se tentarmos aliviar a pressão nos seios, o bebé não terá nada para beber quando regressar a casa. Nem sequer ouve o pai, não inteiramente.
- Isto está tudo errado - declarei, vencida por emoções reprimidas. Ver a eficaz Muirrin trémula e derrotada era profundamente perturbador. - Quem me dera que ela nos deixasse entrar e visitá-la. Ela precisa de pessoas que a abracem, que chorem com ela, que partilhem a sua dor... E eu também, pensei, recordando como estivera quase a lançar-me nos braços de Aidan instantes antes, apenas porque ele me falara amavelmente.
Momentos depois, Muirrin afirmou:
- Tenho feito o meu melhor. Agora tinha-a magoado.
- Claro que tens. Mas tu és só uma e és uma curandeira, estás ocupada com outras coisas.
- Clodagh, estou mesmo convencida de que devíamos deixar a mãe ir ao quarto do bebé, tal como ela pediu. Talvez a ajude a aceitar que Finbar já não está, de facto, aqui.
- Não será demasiado cedo para isso? - perguntei rapidamente. - Pode ser um grande choque para ela. Talvez devesses esperar um pouco. Podias consultar Conor quando ele chegasse.
Muirrin pareceu-me ligeiramente surpreendida, mas concordou.
- Penso que mais um dia não fará diferença. É melhor não incomodar o pai com isto neste momento. Suponho que Conor chegará amanhã de manhã.

CAPÍTULO SETE

Um dia. Um dia era o tempo que eu tinha para salvar Becan e encontrar uma solução para o pesadelo que se abatera sobre todos aqueles que eu amava. Como druida, Conor seria receptivo à ideia do Outro Mundo. Mas ele e o meu pai já tinham um pacto de confiança mútua há muito tempo. Costumavam concordar a respeito das coisas. Provavelmente, Conor veria Becan como o pai, Muirrin e Johnny o viam: o simulacro cruel de uma criança. Eu sabia que o meu pai levaria Conor ao quarto do bebé. Perguntar-me-iam onde estava o manequim. Isso obrigava-me a levar Becan para fora de casa, em segurança, antes que Conor chegasse. E este era apenas o primeiro problema. A minha família estava a agir erradamente; cada vez me convencia mais disso. Eu não tinha enlouquecido. Recusava-me a aceitar essa ideia. Continuava a ser a mesma pessoa que fora antes de tudo aquilo acontecer, independentemente do que os outros pudessem pensar. O instinto dizia-me que os homens de Johnny podiam revistar a floresta para sempre e não encontrar o meu irmão bebé. Finbar fora levado para lá das fronteiras deste mundo.
Sentada, no meu quarto, corria em pensamento de plano impossível para plano impossível, enquanto Becan dormia a sono solto no seu berço improvisado. A certa altura, nessa manhã, acordou e eu alimentei-o de novo e mudei-lhe os cueiros, que estavam húmidos, rasgando um vestido velho. Quando acabei de instalá-lo, ouvi um alvoroço lá em baixo. O meu pai só levantava a voz muito raramente, mas era o que fazia naquele momento.
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- O quê? Não posso acreditar!
Ouvi Johnny, que devia estar ausente à procura de Finbar, responder-lhe numa voz mais comedida.
Tinham encontrado Finbar. Acontecera-lhe algo de terrível. Que outra notícia levaria o meu pai a gritar daquela maneira? Com o estômago revirado, deixei o quarto, fechando a porta com firmeza atrás de mim, e desci as escadas a correr, até ao salão.
Um homem estava de pé diante do meu pai, com o peito ofegante e a roupa em desordem. O cabelo parecia chamuscado e tinha uma marca vermelha numa das faces. Johnny estava ao seu lado, em traje de viagem. Havia dois homens de armas do meu pai à entrada. Dirigi-me calmamente à lareira, esperando o pior.
- Glencarnagh - disse o homem, ofegante. - Um ataque, um incêndio terrível. - Curvou-se, fazendo um esforço para recuperar o fôlego.
- Demora o tempo que precisares, Cronan - disse o meu pai, embora no seu rosto já soasse o sinal de alarme. - Johnny, onde é que o encontraste?
- No caminho principal, na direcção Oeste - respondeu.
- Regressámos de imediato. O assalto a Glencarnagh aconteceu ontem, ao anoitecer. Parece que mataram muitos homens.
- Meu senhor - disse Cronan, com uma voz ainda áspera.
- Foi uma carnificina autêntica. O fogo pegou tão depressa... Quando fugimos de casa, eles atacaram.
- E Lughan e a sua família? - perguntou o meu pai. Lughan era o mordomo que tomava conta de Glencarnagh por nós; eu conhecia bem a mulher e a filha.
- Conseguimos tirá-los de lá em segurança, meu senhor. Montámos guarda na floresta, até os salteadores desaparecerem. De madrugada, Lughan ordenou-me que vos trouxesse a notícia. - O homem suspirou, arquejante. - Tantos perdidos, meu senhor. Usar o fogo daquela maneira, sem querer saber das mulheres ou das crianças... Dos guardas da casa de Lughan, eu sou um de apenas três sobreviventes. E a casa desapareceu. Desapareceu nas chamas...
Cronan oscilou.
- Este homem sofreu queimaduras - disse Johnny. - Devia ser tratado antes de nos contar o resto.
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O meu pai parecia sombrio como a morte.
- Cronan, quem eram estes atacantes? - perguntou, numa voz cuja serenidade assustava. Se momentos antes quase perdera o controlo, agora era um homem diferente. - Não tens nenhum palpite? Quem se atreveria a ridicularizar a minha autoridade?
- Não sei quem eram, meu senhor. Usavam máscaras e roupas modestas. Sem insígnias; nada. E escurecia. Era um grupo de trinta homens, talvez. Não tivemos qualquer aviso. Devem ter neutralizado os postos avançados de sentinelas.
Senti um arrepio no corpo todo. Eu já tinha ouvido aquela história. Glencarnagh: uma casa graciosa rodeada de carvalhos e ulmeiros. Uma cerca de faias, um lago, um jardim. Trinta homens. As sentinelas. Eu já sabia que aquilo ia acontecer. Cathal tinha-me contado e eu mal lhe dera ouvidos porque me parecia impossível. Nem sequer identificara o lugar de que ele estava a falar. E agora os pormenores acendiam-se todos na minha memória e eram os mesmos, exactamente os mesmos... Enquanto os homens de armas acompanhavam Cronan, ferido, até à saída, eu fiquei de pé, paralisada, diante da lareira, com a cabeça imersa numa vertigem. A misteriosa figura, naquela noite; o estranho desaparecimento de Cathal no dia do piquenique. Os seus comentários, enigmáticos: Os meus instintos dizem-me que podes estar pessoalmente em perigo; Não creio que seja sensato para mim ficar aqui.
- Pai - obriguei-me a dizer -, tenho de contar-lhe uma coisa. Aidan devia estar presente. Penso que devemos ir para um lugar mais reservado.
Fomos para a pequena sala do conselho, onde os vários mapas, roteiros e notas através dos quais o pai mantinha um controlo rigoroso das buscas de Finbar se encontravam espalhados sobre a mesa. Havia uma tocha acesa e um pequeno fogo brilhava na lareira. Johnny trouxe Aidan, que ainda bocejava, e fechou a porta. De pé à frente dos homens, balbuciei uma lista das insinuações, pistas e avisos que tinha recebido desde o dia da chegada de Aidan e de Cathal a Sevenwaters; sinais que eu ignorara como ilusões minhas, ou partidas de Cathal. Apesar da lareira acesa, senti frio naquela sala. A expressão do meu pai era invernosa; a de Johnny, feroz. Aidan tentou interromper várias vezes e foi silenciado por Johnny.
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Expliquei-lhes como a descrição de Cathal de um possível assalto a uma das herdades do meu pai coincidia ao pormenor com aquilo que aquele pobre homem, Cronan, nos contara instantes antes.
- Nunca pensei em Glencarnagh, pai. Perdoem-me. Nunca me ocorreu que a sua história se tornasse, de facto, realidade. Enfim, Cathal está - estava - sempre a dizer coisas ultrajantes. Pensei que era mais uma das suas brincadeiras. São frequentes. Mas, no relato de Cronan, os pormenores são rigorosamente os mesmos: os homens vão à frente para neutralizar os postos avançados, a estimativa do número de assaltantes, o fogo, a família a fugir para a floresta... E a sua descrição da casa correspondia a Glencarnagh, embora eu nunca imaginasse...
- Como é que Cathal podia saber? - perguntou Aidan. - Ele nunca esteve em Glencarnagh. Não pode ser uma pura coincidência?
- Porque é que Cathal te contaria essa história a ti, Clodagh? Era a voz de Johnny, profundamente sombria.
Agora, a parte mais difícil.
- Ele pensava que Illann pudesse estar por detrás disto - respondi, destroçada. - Como sabia que eu podia comunicar com Deirdre, quis avisar-me para não deixar escapar nenhuma informação importante. Disse-lhe que era ridículo, que Illann pertencia à família, que era um aliado, e que Deirdre, de qualquer modo, nunca se envolveria em nada de ilícito. Cathal sugeriu que eu podia meter-me em sarilhos se lhe desse informações que Illann podia converter numa vantagem estratégica. Eu disse-lhe que ele devia contar-te a história a ti, Johnny, ou ao meu pai. Ele argumentou que não acreditariam nele sem provas.
- Em nome dos deuses, Clodagh, porque é que não me contaste isto a tempo?
O meu pai estava a tentar controlar a fúria, mas esta vibrava-lhe
na voz.
- Por causa da mãe, do bebé, dos problemas no Norte - respondi, num sussurro. - Parecia uma coisa absurda e eu não queria incomodá-lo com isso, pai.
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- Conta-nos, de novo, o que aconteceu na noite do banquete de casamento. - Johnny falou bruscamente. - O que é que viste ao certo?
- Uma figura no fundo do celeiro. Alguém com um manto cinzento.
- E Cathal também lá estava?
- Estava, sim. Mas essa figura... Não tenho a certeza absoluta de a ter visto. Pensei que sim, mas quando olhei de novo já tinha desaparecido. Não pensei que valesse a pena incomodar-vos com os meus medos e fantasias.
- E na floresta, quando estavam a passear de cavalo? - os olhos do meu pai fitaram-me, críticos. Ardia-me o estômago, de tensão.
- Eilis e Coll avançaram; Cathal foi atrás deles. Eles voltaram, ele não. Como sabem, é um caminho directo. Só apareceu mais tarde, no lago, e disse-nos que se tinha aventurado por alguns caminhos secundários, mas nada de especial. Era uma explicação plausível, pai.
- Mas Cathal esteve ausente tempo suficiente para se encontrar com alguém na floresta. Podia ter trocado informações. De ambas as vezes.
- Lorde Sean! - protestou Aidan. - Cathal não é nenhum espião! É um homem leal...
- Basta - disse o meu pai. - Morreram homens em Glencarnagh ontem à noite. O meu filho foi cruelmente raptado. Nós vamos chegar ao fundo desta questão e, se Cathal for de alguma maneira responsável, pagará o derradeiro preço pela sua traição.
- Sean - O rosto de Johnny empalidecera por baixo da tatuagem de corvo. - Não há nenhuma prova de que Cathal tenha estado envolvido no ataque a Glencarnagh, ou no rapto de Finbar. A primeira impressão de Clodagh pode estar correcta; é possível que o estranho rigor do relato de Cathal seja uma coincidência. Para mim, é quase impraticável acreditar que Cathal se envolveria nisto. Os meus homens são absolutamente leais. Os testes de perícia e de carácter que têm de superar para serem admitidos na minha comunidade são minuciosos e exigentes.
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- Cathal nunca fala muito dos seus sentimentos - disse Aidan, com serenidade. - Mas Johnny sabe, e eu sei, o que significou para ele ser aceite na comunidade de Inis Eala. Para Cathal, tornar-se um dos homens de confiança de Johnny não foi apenas entrar numa irmandade de guerreiros ímpares, foi... foi como se tivesse chegado a casa. Como se tivesse encontrado a casa que nunca tinha tido. Ele não podia fazer isto, Lorde Sean.
- Talvez tenha sido hábil - retorquiu o meu pai - a enganar aqueles que mais confiavam nele. - Olhou para Johnny. - Apressas-te a defender a sua inocência. Se é verdade o que Aidan nos disse, Cathal tem uma dívida para contigo, porque o acolheste no pequeno círculo dos teus guardas pessoais: uma elite dentro da elite. Sabemos que Cathal te admira. Tal como todos os teus homens, empenha-se em agradar-te. Também sabemos que o seu comportamento não é convencional. Será que um homem desses não podia decidir agir unilateralmente, para afastar alguém que ele via como uma ameaça futura para ti?
Seguiu-se uma pausa. Apertei as mãos atrás das costas e tentei não ver o modo como as feições de Johnny se endureceram, ou a angústia no rosto de Aidan, ou o olhar frio e analítico do meu pai. Eu sabia o que ele queria dizer com aquilo, e senti o coração mais pesado.
Foi Johnny quem transformou o silêncio em palavras.
- Sean, estás a sugerir que houve uma conspiração para afastar o teu filho porque, no futuro, disputará comigo a liderança de Sevenwaters? A tua opinião é que Finbar não tenha sido levado como refém, mas... - Johnny não terminou a frase; a alternativa era demasiado terrível.
- Não é verdade! - explodiu Aidan, dizendo as palavras que me estavam atravessadas na garganta. - São apenas conjecturas! Não vou ouvir isto...
- Senta-te. - Johnny parecia muito abatido; exausto até às lágrimas, embora homens como ele não chorassem. - Sean tem razão. Temos de considerar todas as hipóteses. Na verdade, Cathal não pode ter sido responsável pelo rapto de Finbar, uma vez que Clodagh tê-lo-ia visto a levá-lo para fora do quarto.
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- Os dois acontecimentos não se encontram necessariamente ligados - aventurei-me. - O ataque a Glencarnagh e o rapto do bebé.
- Mais uma coincidência? Não creio - disse o meu pai. Alguém está a tentar enfraquecer-me em duas frentes. Tirar força à minha autoridade de todas as maneiras que conseguir. Quanto à impossibilidade de Cathal ter levado o bebé, existe um cúmplice, segundo me pareceu: essa figura indistinta que Clodagh viu pelo menos uma vez. Talvez mais do que um cúmplice. Cathal pode não ter raptado o bebé, mas encarregou-se da manobra de distracção que permitiu a outro fazê-lo. - Os seus olhos dirigiram-se a mim.
- Não gostaria de pensar, Clodagh, que tentaste, de alguma maneira, proteger este jovem. Parece que vocês os dois eram mais próximos do que qualquer um de nós podia imaginar. Se há mais alguma coisa que não nos tenhas dito, agora é o momento de o fazeres. Os motivos por que escondeste de nós esta informação durante tanto tempo são suspeitos.
Era o mesmo que levar uma chicotada.
- Porque é que eu protegeria alguém que quisesse prejudicar o meu irmão? - perguntei, sufocada. - Como é que pode pensar isso de mim, pai?
- Ocorreu-me - respondeu ele - que essa tua estranha fantasia com duplos podia ter sido fabricada para facilitar a fuga do teu amigo.
- É uma loucura - começou Aidan, mas Johnny silenciou-o com um gesto inequívoco.
- Não é uma estranha fantasia, pai - tentei dizer. Senti o coração acelerado e a pele transpirada. - Eu acreditei naquilo que disse. E ainda acredito que as forças que roubaram Finbar não são deste mundo, são forças sobrenaturais. Estou convencida de que, se não procurar de uma maneira diferente, nunca vai encontrá-lo. No que diz respeito a Cathal, não vejo porque é que mentiria para protegê-lo.
- Ele dá-te um aviso muito específico, com informações que podiam, se transmitidas, incriminá-lo. Entra numa zona da fortaleza onde não tem de estar para se despedir de ti. Beija-te apaixonada-
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mente. Aparentemente, és o único membro desta casa a quem falou da sua iminente partida. E queres que eu acredite que não há nada
entre vocês?
- Eu não posso dizer-lhe em que é que deve acreditar, pai.
Era cada vez mais difícil dar voz às palavras; ele olhava para
mim como se me desprezasse. - Compreendo que tenha de descobrir quem foi responsável pelo ataque a Glencarnagh. O comportamento de Cathal parece, de facto, incriminatório, embora não consiga imaginar por que motivo se envolveria numa coisa dessas. Devo dizer-lhe que falei com Deirdre não muito antes de Finbar ter sido levado. Foi a mãe quem mo pediu, para lhe comunicar a boa notícia da chegada do bebé. - Senti a garganta seca. - Mencionei que Gareth fora enviado em missão e Deirdre questionou-me a esse respeito. A certa altura, parei de responder às suas perguntas, mas deixei escapar que envolvia os chefes de clã do Norte. É possível que ela tenha pensado que o facto de enviarmos homens ao Norte deixaria Glencarnagh mais vulnerável. Mas o pai conhece a Deirdre. Ela nunca se interessou por estas coisas.
O meu pai continuou sentado, imóvel. Rompendo o silêncio, Johnny disse:
- Qualquer coisa que lhe tenhas dito, Clodagh, teria chegado demasiado tarde para influenciar aquilo que aconteceu em Glencarnagh.
A sua bondade foi quase a minha perdição. Fitei, por momentos, o olhar de Aidan e apressei-me a olhar noutra direcção, não fosse deixar escapar algumas lágrimas.
- Isso pode ser verdade - disse o meu pai. - Mas não altera o facto de que, se tivesses vindo ter comigo quando Cathal te fez essa primeira descrição de um assalto hipotético, ainda chegaríamos a tempo de impedi-lo e vidas seriam salvas. Illann. Será verdade? Por que razão, em nome dos deuses, faria ele uma coisa dessas? Glencarnagh fica precisamente na fronteira das suas terras.
- Pai - disse-lhe -, não creio que o rapto de Finbar tenha alguma coisa a ver com o ataque e o incêndio. A maneira como foi levado a cabo, a figura no berço, o espaço de tempo impossível em que foi feito, só pode ter sido obra das Criaturas Encantadas. Mais
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ninguém conseguiria apoderar-se dele de uma forma tão rápida e invisível.
Mais um silêncio pesado.
- Clodagh - replicou o meu pai, naquele tom sereno que me arrepiava da cabeça aos pés, - espero que tenhas sido honesta comigo esta manhã, quando admitiste que estavas errada nessa matéria. Espero que não te prepares para dizer-me, de novo, que alguém deixou uma criatura viva no lugar do meu filho. Hoje já me chocaste e desiludiste o suficiente com a tua teimosa inobservância do senso comum. A tua negligência no que diz respeito a Cathal teve um custo muito alto.
- Peço perdão, pai. - Mantive-me rígida e direita, cerrando os dentes, mas os meus lábios tremiam e a voz vacilou. - Lamento profundamente que esses homens em Glencarnagh tenham morrido por minha causa. Tentei fazer o que estava certo. Foi só isso que eu tentei fazer.
O meu pai respondeu-me apenas com um aceno. Pareceu-me que estava a ter tanta dificuldade em segurar-se como eu. A velha Clodagh, a rapariga que eu fora no dia anterior, teria posto os braços à volta dele e oferecido palavras de conforto. Fiquei muito quieta, pestanejando para conter as lágrimas. Nunca mais voltaria a ser essa rapariga.
- Penso que podemos dar licença a Clodagh para se retirar, Sean - disse Johnny. - Chamá-la-emos de novo, se precisarmos. Temos de tomar rapidamente algumas decisões.
Johnny pegou-me no braço e acompanhou-me até à porta, abrindo-a. Não disse mais nada, mas, quando saí, pôs-me a mão no ombro por momentos e esboçou-me um sorriso. Virei-me abruptamente, com as lágrimas a caírem-me sobre as faces, e ouvi a porta a fechar-se atrás de mim.
Esperei no átrio, sem vontade de me recolher no meu quarto e de o meu pai me chamar. Se ele enviasse alguém à minha procura, essa pessoa tropeçaria de certeza em Becan. Caminhei nervosamente, de um lado para o outro, enquanto criados e homens de armas
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saíam e entravam ocupados com as suas várias tarefas, os olhares tocando-me e retirando-se em seguida. Fiz dobras na saia; aticei o lume e deitei-lhe mais achas; brinquei com os copos vazios de cerveja que estavam em cima da pequena mesa. Sentia os nervos à flor da pele. Quem é que podia odiar o meu pai ao ponto de deitar fogo à encantadora casa de Glencarnagh e de matar todos aqueles homens? Por que razão estaria Cathal envolvido nisso? Porque é que me tinha avisado do ataque, sabendo que isso podia sugerir precisamente a sua culpa? Tudo indicava que não podia ter sabido com tanto pormenor o que ia acontecer se não estivesse ligado aos criminosos. Se não estava a espiar para Johnny, então devia ter-se aliado à facção oposta, aos homens de Illann ou a outros quaisquer. Porquê? Porquê sacrificar a sua posição no grupo de Johnny, a casa e a profissão porque tanto ansiara? Não fazia sentido nenhum. O meu pensamento corria de explicação inverosímil em explicação inverosímil e, durante todo esse tempo, a memória do rosto severo do meu pai, a voz fria com que me interrogara, adoeciam-me o coração.
Ouvi-os levantarem a voz no interior da sala do conselho, mas não conseguia perceber o que diziam. Momentos depois, a porta abriu-se de rompante e Aidan saiu, seguido de Johnny.
- Não vou! - gritou Aidan. - Ele é meu amigo! Não podes pedir-me que faça isto!
Eles não me viram. Ouviram-se quatro passos no átrio, Johnny pôs uma mão impeditiva no ombro de Aidan, e o outro homem virou-se de repente, de punhos cerrados. Encolhi-me na sombra.
- Recusas-te a obedecer a uma ordem? - perguntou Johnny, com uma calma sepulcral.
- Não posso fazê-lo!
- Respira - disse Johnny. - Acalma-te. Nós somos profissionais; não permitimos que as nossas lealdades pessoais interfiram com as missões de que somos incumbidos. Se não és capaz de respeitar isso, não terás lugar entre os meus homens, Aidan.
- Talvez não queira esse lugar - vociferou Aidan, sacudindo com violência o toque de Johnny. - Não se isso significa perseguir o meu melhor amigo e arrastá-lo para um interrogatório.
- Aidan. - Senti na sua voz que Johnny se debatia para conservar a calma. - Acredita que, se houvesse outro qualquer a quem
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pudesse confiar esta tarefa, ordenar-lhe-ia que o fizesse em vez de ti. És o meu único homem neste momento.
- Uma vez que estás tão disposto a acreditar na culpa de Cathal - rosnou Aidan - vai tu atrás dele. Tens assim tão pouca noção do que é a lealdade para me pedires isto?
Momentaneamente, Johnny fechou os olhos e eu vi nele o rosto do meu pai, o rosto de um chefe que tem de carregar fardo após fardo e permanecer forte. Estava prestes a anunciar-me, pois não eram conversas para os meus ouvidos, mas Johnny falou primeiro
- Eu não posso ir - disse ele. - Tenho de ir directamente para Glencarnagh e descobrir que facção foi responsável por aquela carnificina. Temos de estar preparados para retaliar sem demoras E não podemos deixar de procurar Finbar; Sean continuará a coordenar as buscas a partir daqui, mas, por agora, os seus homens terão de executá-las sem a minha ajuda. Precisamos que Cathal seja descoberto e apreendido. Se existe alguma ligação entre os dois acontecimentos - o rapto e o ataque - ele é a chave dessa ligação. Selecciona um ou dois homens de Sevenwaters e segue o seu rasto com todos os conhecimentos que possuis. Leva os cães. E não me fales de leal dade, Aidan, Quando Cathal for trazido à minha presença dar-lhe-ei oportunidade de se explicar. Não tomei nenhuma decisão arbitrária a respeito da sua culpa, ou de outra coisa qualquer. A pergunta mantém-se: se ele é inocente e não se envolveu em nada disto porque é que não está aqui?
- Acusas Cathal com facilidade - retorquiu Aidan, num tom acido. -Já pensaste que outros poderão acusar-te a ti?
Aidan não levantara a voz, embora a sua fúria fizesse vibrar cada palavra.
Por momentos, Johnny não respondeu. Quando falou, fê-lo com uma extraordinária contenção.
- Sim, já pensei. Talvez o autor destas calamidades tenha agido com o único objectivo de lançar a suspeita sobre mim, de lançar a discórdia entre mim e o meu tio. Há quem me considere capaz de fazer mal ao meu primo bebé e de desestabilizar a autoridade de Sean, destruindo uma das jóias do seu território. Devem imaginar que vejo Finbar como uma ameaça. Ou, pelo menos, acreditam que
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há quem me julgue capaz disso. O meu pai não era apreciado nesta região. Há pessoas que temem a minha influência junto do meu tio.
Havia uma novidade naquele rosto; algo que me inquietava profundamente.
Vi o olhar de Aidan fitar a porta da sala do conselho e, depois, regressar a Johnny. A seguir, a porta fechou-se discretamente, por dentro.
- com certeza que ele não duvida de ti - disse Aidan, sem sinais da fúria de há pouco.
- Não sei - disse Johnny. Nunca lhe tinha ouvido aquela nota de incerteza na voz e fiquei impressionado. - Quem me dera que Gareth já tivesse voltado. Quem me dera não ter de te pedir isto, Aidan. Mas devo fazê-lo. Quanto mais depressa o encontrarmos, mais depressa Cathal poderá defender-se. Se a tua fé nele se justificar, não há nada a temer. Mas podemos vir a ter, muito em breve, uma grande tarefa entre mãos, e eu tenho de estar preparado para ela.
Aclarei a garganta e os dois homens viraram-se de repente para o canto da lareira onde eu estava.
- Desculpem-me - disse-lhes. - Nenhum momento me pareceu oportuno para vos interromper. Fiquei à espera que o pai eventualmente me chamasse.
Johnny acenou-me, compreendendo.
- Então? - perguntou a Aidan.
- Suponho que queiras que esta caçada comece de imediato.
- Quanto mais tempo demorares, mais o rasto arrefece. Antes de reunires os homens, fala com Clodagh. Clodagh, conta-lhe tudo acerca dessa última conversa que tiveste com Cathal, pode ser? Todos os pormenores que te venham à memória. Uma coisa que julgues insignificante pode ser uma pista crucial. Aidan, ainda não me respondeste.
- Parece que não tenho escolha.
- A tua escolha é obedeceres-me ou regressares a casa, a Whiteshore. E se isto te parece cru, são as circunstâncias que o exigem. Dá-me uma resposta. Eu também tenho de partir em breve.
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- Eu faço-o. Podes chamar-lhe uma escolha, mas ambos sabemos que eu não vou para casa porque isso seria virar-lhe as costas.
- Aidan hesitou. - Johnny?
- Se tens perguntas para me fazer, sê rápido.
- Quero participar no contra-ataque. Não quero ficar aqui como um guarda doméstico. Os homens de Lorde Sean podem assegurar-se disso capazmente.
- Já sabes que eu não negoceio - replicou Johnny. - Faz aquilo que te pediram e falaremos mais tarde. Acredita, eu compreendo a tua dificuldade. Lidar com este tipo de situações faz parte do treino de disciplina de um guerreiro, Aidan. É uma oportunidade de mostrares a tua fibra.
Assim que o meu primo deixou a sala, Aidan caiu num silêncio glacial. Depois, olhámos um para o outro.
- És um amigo fiel - afirmei, numa voz engasgada.
- Não sei como vou arranjar coragem para isto - desabafou.
- A disciplina é o elemento-chave no nosso treino. Em alturas como esta, duvido muito da minha capacidade de a conjurar. Talvez ele tenha razão. Talvez eu não pertença a Inis Eala.
Estendi a mão para pegar na dele.
- É melhor que sejas tu a fazê-lo - sugeri, sem saber ao certo se eu própria acreditava no que estava a dizer. - Podes explicar a situação a Cathal. Podes tentar que ele perceba que Johnny está disponível para ouvir o que ele tem a dizer.
Ocorreu-me que Cathal podia não estar preparado para se explicar a Johnny, tal como não se explicara a mim. Afinal, tinha partido sem dizer nada a mais ninguém. Nem o melhor amigo fora avisado. Olhando para o rosto lívido de Aidan, para o seu olhar aflito, vi quão cruel tudo aquilo estava a ser para ele.
Aidan pegou-me na mão com ambas as mãos.
- Uma vez que Johnny me encarregou desta missão, terei de cumpri-la - afirmou. - E tenho de partir depressa. O que ele disse... acerca de Cathal e da conversa que teve contigo...
- Não tenho mais nada para dizer. Já contei tudo o que se passou.
Enquanto falava, lembrei-me de ter repreendido Cathal depois do beijo e da maneira como ele se virara, com o manto a rodopiar
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à sua volta. Curiosamente, uma outra imagem agitou-se na minha memória: Willow e os seus dunchauns. O vermelho e o verde; a cor denunciadora.
- O manto - disse-lhe, tomada por um estranho sentimento.
- Já reparaste em todos aqueles pequenos objectos que ele traz
agarrados ao forro? Vi aquilo pela primeira vez e... enfim, pareceu-me estranho.
Uma coisa feita de vidro verde. Verde: a marca do traidor. Estremeci.
- Um motivo de contínua chacota em Inis Eala - respondeu Aidan. - Mais uma das excentricidades do meu amigo. Quase todos os homens usam, de facto, uma cruz de sorveira-brava cosida na roupa, mas Cathal transporta consigo as memórias de uma vida inteira naquele manto coçado. Um seixo branco, do tempo em que tínhamos quatro ou cinco anos e passámos uma manhã memorável a aprender a fazer as pedras saltar pela superfície do lago. Uma pena encontrada na praia num Verão qualquer; um pedaço de couro da coleira de um cão. Um fiapo de lã de uma roupa que Cathal usava em criança. Um berloque que a mãe lhe ofereceu.
Tudo aquilo parecia inofensivo, embora invulgar. Na verdade, lançava uma nova luz sobre a personalidade de Cathal. Tinha reunido vestígios de momentos bem passados, de amizade, amor, reconhecimento. Cobrira-se com esses símbolos para lhe darem força nos momentos de solidão, que deviam preencher uma parte muito maior da vida dele do que os instantes de calor e de alegria. Seria um disparate precipitar conclusões por causa de uma história colorida. Por outro lado, o meu pai tinha bons motivos para suspeitar dele; não havia como contornar o facto de Cathal me ter resumido o ataque a Glencarnagh com demasiados pormenores para se tratar de uma mera coincidência.
- Clodagh, tenho de ir - disse Aidan, ainda a segurar-me nas mãos. - Não gosto de ver-te tão triste e preocupada. Lamento que isto tenha causado problemas entre ti e o teu pai. Oxalá tudo fosse diferente.
- Também desejava o mesmo - retorqui, pensando em Becan, escondido lá em cima, e nas decisões que teria de tomar. - És
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um bom homem, Aidan. Isto é muito difícil para ti. Johnny tem razão, sabes? Se Cathal for inocente, nada de mal lhe acontecerá. O meu pai pode estar transtornado e furioso neste momento, mas é um homem justo.
Aidan não disse mais nada. Queria oferecer-lhe um abraço de despedida, um beijo na cara, algum sinal de que eu reconhecia o turbilhão de emoções que o invadia naquele momento. Mas senti que se debatia por alguma contenção e que, se eu tivesse esse gesto, podia perder o autodomínio de uma maneira que, mais tarde, lhe pareceria indigna.
- Tem cuidado contigo, Aidan - disse-lhe, retirando as minhas mãos das suas. Depois, observei-o a sair de casa.
Do outro lado da porta da sala do conselho, tudo estava silencioso. Depois, a tapeçaria dos gansos estremeceu com uma corrente de ar e pensei em Deirdre. Será que o pai me pediria que a contactasse? Que lhe fizesse perguntas que sondassem o envolvimento de Illann naquilo que acontecera, podendo conduzir a uma revelação? Se assim fosse, eu sentiria precisamente o que Aidan sentia naquele momento. Não suportava sequer pensar nisso. Alguém devia odiar-nos profundamente. Aquele jogo terrível estava a destruir a nossa família de dentro para fora.
O resto do dia passou sem eu saber como. Regressei ao meu quarto e, quando Becan acordou, tornei a alimentá-lo. Agora que as suas necessidades tinham sido saciadas, fazia menos barulho, satisfeito por se aninhar, entre as refeições, no berço provisório e dormitar como um bebé saudável devia fazer. Estudei-lhe o rosto miúdo e grotesco, onde os componentes de casca de árvore, madeira, musgo e pedra se articulavam de uma maneira que desafiava toda a lógica. Toquei naquela mão feita de galhos e os dedos ásperos agarraram um dos meus, como se mesmo no abismo do seu sono ele sentisse o perigo do abandono ainda à espreita. Pensei na história do rapaz-lobo e no rosto aflito de Cathal enquanto a ouvia. Em cada história havia uma lição clara: a verdade virá à superfície; compreende a diferença; não desistas do que, para ti, é importante. Mas talvez fosse
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mais do que isso. O danchaun e o fio verde; os três finais diferentes para a história do rapaz-lobo. Se eu analisasse as histórias em profundidade, encontraria certamente respostas para o problema com que me debatia. Ali, nos meus braços, dormia o duplo que, ao meu pai, eu descrevera como um mero produto da minha imaginação. Ali, embrulhada num cobertor macio, jazia a amálgama de resíduos que eu concordara ser um objecto inanimado, um mero manequim. E à minha frente estendiam-se os muitos amanhãs que eu teria de enfrentar e um segredo que as paredes daquele quarto, ou mesmo os muros da fortaleza, não saberiam guardar. Faltou-me coragem para pensar na enormidade daquilo que tinha feito e no que ainda teria de fazer.
com tantas exigências - a missão junto dos chefes de clã do Norte, a busca de Finbar, a perseguição de Cathal - quase todos os nossos homens estavam longe de casa. Como muitos guerreiros tinham acompanhado Johnny a Glencarnagh, ou integrado a comitiva de Aidan, uma grande parte dos criados e palafreneiros pusera os seus deveres de lado para reforçar as buscas do bebé e, à hora do jantar, o salão estava praticamente deserto. Comemos em silêncio. Muirrin não desceu. Eithne levou um tabuleiro para cima; parecia que já não dormia há dias.
Eilis e Coll não vieram jantar, nem Sibeal. Permaneci em silêncio, incapaz de comer mais do que uma ou duas garfadas. Sentia-me uma estranha na minha própria casa, uma estranha que não era bem-vinda.
Cumprindo a tradição, esperámos que o meu pai se levantasse para sair da mesa. Assim que pude, corri para o meu quarto, sem vontade que alguém me interpelasse. Ao passar pelo quarto da minha mãe, hesitei, porque sentia uma necessidade muito forte de a ver, de lhe dizer que a amava e de pedir-lhe que me perdoasse se a culpa do que tinha acontecido era minha. Mas não tive coragem de bater à porta. Ela não me queria ver. Não queria confrontar a filha que, por pura negligência, afundara a sua família naquela escuridão. Ou, pelo menos, era nisso que todos aparentemente acreditavam.
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Entrei no meu quarto e parei. Sibeal estava sentada na cama de Deirdre, de pernas cruzadas, a contemplar a forma adormecida de Becan, que jazia, enrolado no cobertor, atrás da arca de arrumos. Parecia pensativa.
Fechei a porta atrás de mim com o coração a bater muito depressa. O segredo já não era um segredo.
- Como é que subiste até cá acima? - perguntei. Na verdade a resposta era óbvia: havia um lance estreito de degraus, na outra ponta do corredor, ligado a uma entrada nas traseiras que costumava ser usada pelos criados. Essas escadas permitiam o acesso ao piso de cima sem passar pelas pessoas que estavam no salão.
- O que é que tu vês ao olhar para isto? - perguntou Sibeal ignorando a minha pergunta e continuando a escrutinar Becan.
- Muirrin disse-me que estavas tão nervosa que a tua mente se confundira.
- E tu, o que vês? - respondi, esperando sem esperança que aquela irmã, conhecida desde pequena pelos seus excepcionais dons de vidente, pudesse partilhar a minha convicção de que Becan era mais do que uma trouxa de paus e pedras.
- Fala primeiro, Clodagh. Depois, eu digo-te.
Não protestei. Se quisesse, Sibeal podia ir a correr contar ao pai que eu tinha socorrido uma coisa que ele queria posta de parte e trancada. Podia dizer-lhe que eu lhe tinha desobedecido deliberadamente.
- Vejo um bebé recém-nascido feito de todos os componentes da floresta - respondi. - Neste momento, está a dormir, mas vejo o seu peito a levantar-se e a baixar-se e ouço-o respirar. Quando tem fome, chora. Quando está assustado, grita. Bebe água com mel; aperta os meus dedos. Está vivo, Sibeal. É um duplo.
Seguiu-se uma longa, longa pausa, enquanto a minha irmã analisava aquela figura embrulhada e minúscula. Por fim, eu disse-lhe:
- Tu não consegues vê-lo. Até tu pensas que estou a imaginar isto tudo.
- Não é assim tão simples - replicou. - É verdade que vejo um monte de galhos, com um par de seixos no lugar dos olhos.
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Tem a forma de um bebé, não há dúvida, embora não consiga perceber como é que todas estas partes se mantêm unidas. Mas, Clodagh, não é apenas isto que eu vejo.
O quê? - sussurrei, lembrando-me que tinha de respirar.
O que queres dizer com isso?
- Nas minhas visões - disse ela -, esta criatura aparece como uma criança: mexe-se, faz barulho, age como um bebé humano. Sempre contigo, Clodagh. Sempre tu com ele nos braços, afagando-o, cantando para ele, levando-o de um lado para o outro. Não aqui em casa. Noutros lugares: escondida na floresta, a atravessar um rio, a descer uma espécie de passagem subterrânea. Por vezes, sozinha, outras com mais alguém, mas não consigo dizer-te quem é. Quando olho para isso - para ele - vejo as duas imagens ao mesmo tempo: o que o pai e os outros vêem e a criança que habita as minhas visões, um duplo. Clodagh, estás a chorar.
- Desculpa - disse-lhe, sentando-me na cama e secando os olhos. - Tu és a única pessoa que acreditou pelo menos em metade daquilo que eu vejo. O pai tem sido tão frio comigo, tão frio e tão colérico, nem parece ele. E eu sinto-me culpada. Ele pensa que sou responsável por terem levado Finbar, porque...
- Porque estavas a beijar Cathal, sim, já todos conhecemos a história - disse Sibeal, num tom grave. - Isso não é importante, Clodagh. O que é importante é o que farás a respeito disto.
- Pensei que talvez pudesses ajudar-me. Uma vez que já tiveste visões que explicam o que Becan é, não podias falar com o pai ou com Johnny? Se continuarem a procurar Finbar em lugares onde um raptor humano podia tê-lo escondido, nunca mais vão encontrá-lo.
O bebé estremeceu; levantei-me e fui preparar uma nova dose de água com mel. A minha irmã observou-me com um ar solene.
- Não podes correr esse risco - replicou. - Eles podem rejeitar aquilo que eu disser. E depois o teu Becan (é um bom nome, a propósito) podia ser-te retirado e deitado fora. Clodagh, já ouvi a história de alguém que conseguiu recuperar uma rapariguinha que fora levada pelas Criaturas Encantadas.
- Conta-me - pedi.
- Eles foram buscá-la - disse Sibeal, surpreendendo-me.
- Encontraram aquele que a tinha roubado e negociaram uma troca.
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- Onde? - perguntei, enquanto a esperança e o temor travavam uma batalha dentro de mim. - Queres dizer que alguém encontrou uma passagem para o Outro Mundo? Como?
- Não me recordo dessa parte. O que sei é que, quando a criança voltou, estava... diferente.
Na minha imaginação, surgiu uma criança a quem tinham nascido umas asas, como uma coruja, ou cujas pernas se haviam transformado na cauda de um salmão.
- Diferente em que senado? - perguntei. Nesse momento, Becan acordou e começou a berrar. Era evidente que Sibeal não ouvia os seus gritos.
- Apenas diferente. Continuava a ter a mesma aparência. Mas penso que, quando uma pessoa passa algum tempo no reino das Criaturas Encantadas, ele ou ela começa a assemelhar-se a elas. Pode ser bom ou mau.
Senti-me sufocada. Obriguei-me a sentar-me de novo, com o bebé nos braços, e esforcei-me por acalmar a respiração enquanto humedecia o pano, preparando-me para alimentá-lo.
- Sabes por onde se entra? - perguntei-lhe. - É verdade que a Dama da Floresta vem falar contigo de vez em quando, não é?
Sibeal olhou para as mãos, entrelaçadas no colo.
- A Dama já não aparece há muito tempo - respondeu.
- Aquela velha mulher, Willow, tinha razão. Algo mudou no mundo dos Tuatha De. Quanto à entrada... Não sei. Nas histórias, as pessoas costumam tropeçar nesses portais por acidente.
A boca de galhos de Becan abriu-se, escancarada. Os seus lábios fecharam-se em torno do pano ensopado e ele começou a chupar. Cantarolei-lhe uma canção, num sussurro.
Oh meu pequenino...
Sibeal observou-me com um olhar estranho. Instantes depois, disse-me:
- Pode ser que Ciarán saiba.
- Ciarán? Porquê?
- Porque a mãe dele era um deles. Ele não gosta de falar nisso.
- Não podemos perguntar-lhe - repliquei, voltando a mergulhar o pano. - A floresta está cheia de homens à procura de Fin-
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bar ou a perseguir Cathal. Não há maneira de chegar aos Nemeton1 sem Ser vista. Conor está a chegar, mas provavelmente partilhará a opinião do pai.
- A perseguir Cathal? Onde pensam que ele foi?
Expliquei-lhe o que tinha acontecido.
A minha irmã virou os seus olhos grandes e claros para mim.
- Parece que terás de ser tu a fazer isto, Clodagh - disse-me.
Tens de devolver Becan e tentar trocá-lo por Finbar. Não vejo
outra saída. Talvez quando estiveres na floresta a entrada no Outro Mundo se revele para ti. Mas só se fores a pessoa destinada a trazer Finbar de volta para casa.
Senti um estremecimento no peito; a consciência a recuar perante aquela ideia, que me parecia disparatada, ridícula, insensata. Porém, sabia que ela tinha razão. Os meus instintos diziam-me o mesmo desde a noite anterior, quando segurara Becan nos meus braços e sentira a sua desesperada necessidade de amor. Mas estava com medo.
- Suponho que seja possível - afirmei, trémula. - Se faz parte das histórias, é porque já foi feito no passado, pelo menos
uma vez.
- Penso que sim, Clodagh. - A minha irmã endireitou os ombros estreitos. - Proteger-te-ei o tempo que puder. Quando já estiveres longe, contarei ao pai o que foste fazer. Caso contrário, ele pensará que fugiste para avisar Cathal, ou que também foste raptada. Tens de partir bem cedo, de madrugada. É a única altura em que podes sair sem ser vista. Já disse a Doran e a Nuala que dormiria aqui esta noite, para te fazer companhia.
- Tu disseste... Queres dizer que já sabias disto, Sibeal? Antecipaste esta situação?
- Sou uma vidente, Clodagh - recordou-me. Sibeal estava a olhar para Becan; o nível de água no jarro descia rapidamente.
- Tens de levar cueiros - observou. - Se ele bebe isso tudo, vai continuar a molhar-se. Desconfio que a viagem será longa.

NT. Santuários de árvores; bosques sagrados dos Druidas.
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No dia seguinte de manhã, reunimo-nos no solitário espinheiro-alvar. Acima das copas escuras das árvores, uma leve pincelada de ouro diluiu-se no céu; em breve, veríamos o nascer do Sol. Nenhuma de nós dormira mais do que pedaços soltos durante a noite, mas a tensão que contraía o meu corpo não me deixava sentir o cansaço. Sibeal acompanhara-me no primeiro troço da viagem, levando fiapos de tecido para atar aos ramos do espinheiro, um fraco pretexto para estarmos na floresta àquela hora. Não ajudaria muito, se encontrássemos alguém da nossa casa, porque eu levava Becan ao colo, aninhado contra o peito e suspenso numa bolsa de pano rudimentar.
Pousei a mala, por momentos, e pus o braço à volta da minha irmã.
- Obrigada, Sibeal - disse-lhe. - Não sei quando é que voltarei a casa.
Não houve lágrimas, mas a enormidade daquilo que me preparava para fazer dava-me arrepios. Talvez nunca regressasse. Se as histórias eram verdadeiras - as de pessoas que ficavam encurraladas no reino dos Tuatha De e que, ao voltarem a casa, viam que já tinham passado cem anos, - talvez nunca mais tornasse a ver Sibeal. Talvez nunca mais visse ninguém da minha família. Tinha ficado acordada durante a noite, com esse receio a criar-me nós no estômago, pensando como era improvável que as Criaturas Encantadas se interessassem pelos meus argumentos e pelos motivos por que Finbar devia ser devolvido - se conseguisse encontrá-las.
Enquanto a casa dormia, deslizara em silêncio até ao piso de baixo, para reunir as provisões necessárias à viagem - um odre de água, uma porção de mel numa pequena malga de barro, uma reserva de pão duro, queijo embrulhado em tecido, um sflex e uma faca. Sibeal dera um salto à despensa e trouxera algumas ervas medicinais, que unimos em maços e guardámos no fundo do saco. Não levava muita roupa comigo - um xaile sobresselente para Becan, uma muda de roupa interior, um rolo de cueiros eram quase tudo. Não conseguia prever a escala da viagem. Podia chegar a casa no dia seguinte. Ou passar uma vida inteira à deriva.
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Adeus, Clodagh. - Sibeal parecia serena, como era hábito.
Daí a alguns anos, seria um druida formidável. - Se essa entrada existir e quiser ser descoberta, é possível que seja um lugar onde a terra e a água se encontram: uma gruta junto de um ribeiro, uma nascente perto de carvalhos, uma fenda num rochedo à beira do lago. Não tenho mais conselhos para te dar, a não ser que, se as Criaturas Encantadas quiserem que faças esta viagem, acabarás por encontrar o teu caminho.
- Por que motivos o quereriam? Já têm Finbar, não têm? Já conseguiram o que pretendiam.
Sibeal contemplou-me com o seu olhar grave.
- Não sei, Clodagh. Tenho feito a mim própria a mesma pergunta desde que reparei que tinhas socorrido Becan. Há uma profunda estranheza na maneira como tudo isto aconteceu. Quando ouvi pela primeira vez que pensavas que ele era um duplo, perguntei-me se estarias sob o efeito de um sortilégio, que fazia com que visses as coisas de maneira diferente dos outros. Mas talvez sejas a única cuja visão permanece verdadeira; talvez o sortilégio nos afecte a todos, incluindo a mim. Talvez estejas destinada a fazer isto.
Não me senti mais tranquila.
- Não encontro nenhuma razão para que assim seja, Sibeal.
- Nem eu - replicou a minha irmã. - Mas isso não significa que não exista uma. É melhor ires, Clodagh. Espero que o tragas para casa são e salvo. com alguma sorte, todos estarão demasiado ocupados para notar a tua ausência até ao fim do dia. Farei o que combinámos: direi ao tio Conor primeiro, a ele apenas. Acenderemos uma vela por ti.
- Obrigada - disse-lhe, virando-me. Agora sim, vinham-me lágrimas aos olhos, uma torrente delas, cegando-me. Enquanto me afastava, atravessando a colina em direcção às sombras por baixo dos carvalhos, soube, sem precisar de ver, que Sibeal estava a atar a sua oferenda ao ramo musgoso do velho espinheiro-alvar, enviando por mim uma oração silenciosa.

CAPÍTULO OITO

Caminhei a maior parte do dia sem ver ninguém. Afastei-me dos caminhos, obrigando-me a percorrer aqueles lugares recônditos da floresta que costumava evitar: lugares onde o arvoredo era mais cerrado, estancando a luz do Sol e mergulhando o chão da floresta numa penumbra densa. Por baixo dos meus pés, os fetos eram espessos, o musgo estendia-se como uma carpete esponjosa e cogumelos venenosos rebentavam em maciços grotescos que lembravam aldeias acasteladas em miniatura. Nos lugares onde o terreno se elevava, fios de água seguiam os seus vários cursos por entre as rochas, gotejando, formando poças, saltando de penhascos em ponto pequeno e caindo em gotículas sobre a folhagem íngreme. Pensei nos dunchauns em guerra e sobressaltei-me com o sussurro das folhas e o grito repentino dos pássaros que viviam mais acima. Apesar do que Sibeal me dissera acerca da água, não me aproximei do lago, convencida de que na margem ficaria demasiado exposta. Se alguém me visse, o meu pai sabê-lo-ia de imediato. Assim que Sibeal lhe contasse que eu tinha partido sozinha, ele enviaria homens à minha procura. O mais provável era que julgasse que a filha perdera, de uma vez por todas, a razão. Esperei que Conor ouvisse o que Sibeal tinha para lhe dizer. Talvez o fizesse. Conor sabia que ela era sábia para a idade que tinha. Talvez chamassem Ciarán. Talvez ele aconselhasse o meu pai a ter confiança em mim e a esperar.
Por vezes, enquanto caminhava, Becan acordava e pedia-me comida, e eu fazia uma pausa para cuidar dele. Parecia gostar da bolsa
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De pano. Sempre que voltava a aconchegá-lo nela, enroscava-se com a cara encostada ao meu peito, e tornava a deslizar para um sono sossegado, deixando-se embalar pelo movimento regular dos meus passos. Agarrava-se a mim, com a mão fechada em torno de uma prega de roupa, mesmo quando dormia profundamente. Por vezes, acontecia um braço ou uma perna arranharem-me a pele, porque Becan era anguloso e cheio de arestas afiadas, mas eu gostava da sensação de segurá-lo. Sentia a sua confiança no modo como se descontraía encostado a mim; julgava ver compreensão nos seus olhos de pedra.
- Pelo menos tu acreditas em mim - murmurei. - Não deixa de ser insensato da tua parte, uma vez que não sei o caminho.
No fim da tarde, senti-me tão cansada que percebi que não seria capaz de avançar muito mais. A noite ao relento ia ser fria e eu tinha apenas um manto para nos proteger a ambos do ar fresco. Enquanto não me distanciasse o suficiente da fortaleza, não podia arriscar acender uma fogueira. O meu plano era chegar a um lugar que conhecia, onde uma parede de rocha se erguia atrás de uma cortina cerrada de vidoeiros. Uma vez, quando éramos mais novas, Deirdre e eu tínhamos acampado ali durante a noite. Era uma zona cercada por uma densa mata de fetos e samambaias, e seria um lugar tão bom como os outros para passarmos a noite. Suspirei, puxando Becan para cima e apertando a bolsa de pano. Tinha sido uma esperança tola imaginar que, no primeiro dia de viagem, descobriria uma entrada para o Outro Mundo antes de anoitecer. Sibeal sugerira que, ao precipitar-me na floresta à procura de Finbar, eu estaria a ir ao encontro das intenções das Criaturas Encantadas. Mas, se assim era, porque é que ainda não tinha descoberto a passagem? E, de qualquer modo, por que razão seria eu a única a ver Becan como ele era? Porque é que me caberia a mim trazer o meu irmão bebé de volta? Eu não era ninguém: a irmã enfadonha. Não havia razões para ser a escolhida.
Se conservasse aquele ritmo, talvez conseguisse chegar à parede de rocha antes do crepúsculo. Saí de baixo do arvoredo e fui dar a uma ladeira larga, coberta de erva. De cada um dos lados, a floresta recomeçava, carvalhos compridos cobrindo azevinhos de folhas pontiagudas, escuras e densas. Algures ali dentro, ficava o lugar que
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eu procurava. Para alcançá-lo, teria de atravessar aquela clareira. A única alternativa era subir bem alto e transpor uma zona rochosa no cimo da colina, tarefa praticamente impossível com Becan e o saco às costas. Por outro lado, enquanto atravessasse a ladeira até um esconderijo mais profundo, ficaria à vista de qualquer pessoa que estivesse por perto. Tinha sido prudente o dia todo, afastando-me dos trilhos, caminhando por baixo das árvores sempre que podia, movendo-me de lugar oculto em lugar oculto. Olhei para o cimo da encosta, para a base, e para os carvalhos do outro lado da clareira. Nada se movia, a não ser a silhueta suspensa de uma ave de rapina, talvez um milhafre, à espera do momento certo para mergulhar a pique e agarrar a sua presa.
Quando reuni coragem para uma corrida rápida, um clamor emergiu do sopé da colina, atrás de mim: eram os latidos guturais, impressionantes, dos cães-lobo do meu pai. Estaquei. Deuses, pareciam tão perto! Às vozes dos cães, juntaram-se as dos homens: Por aqui! Bem em cima, por baixo dos carvalhos! Depois, alguém a praguejar e o som de um deslize, de um pé a escorregar mais abaixo, no caminho íngreme.
Corri. O instinto levava-me; no pensamento, apenas a vontade de fugir. Bati com o tornozelo direito algures a meio da encosta, derrapando na erva molhada, mas continuei a correr. À minha frente, do outro lado, algo se mexeu na sombra dos carvalhos. Atrás de mim, alguém gritou:
- Ali! - parecia Aidan. Becan chorava de angústia, sacudido de cima para baixo na bolsa de pano. Continuei. Mais dez passos, cinco, três...
Por baixo da copa das árvores, tentei recuperar o fôlego, sabendo que teria de mergulhar na floresta antes que os cães, ou os homens, me encontrassem. Olhei de relance, por cima do ombro, e vios parados no outro lado, no lugar de onde eu tinha partido: um homem alto e de cabelo castanho, Aidan, acompanhado por dois homens da nossa casa. Os cães estavam presos. Ninguém parecia vir atrás de mim. Em vez disso, os homens ficaram a conferenciar, e um deles apontou para cima, como se dissesse Por ali. Ela teria ido por ali. Talvez, contra todas as expectativas, eles não me tivessem
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visto. Tentei fundir-me com as sombras, caminhando com prudência.
Um movimento brusco era capaz de atrair a atenção de um homem; um lento podia ser sentido como uma mera alteração da luz na folhagem, um estremecimento provocado pela brisa do fim de tarde. Abri caminho através do arvoredo cerrado. O azevinho deixou-me marcas na pele. Os espinheiros estenderam os seus braços para me puxarem o manto e rasgarem as meias. Baixei-me por baixo das arcadas de folhas entrelaçadas e emergi com o cabelo coberto de teias de aranha. Escurecia. Ouvia os cães, mais acima. Escureceu ainda mais. Becan começou a chorar.
- Chiu, pequenino, sossega agora. Em breve estaremos a salvo, algures. Talvez nenhum lugar fosse seguro. Se me encontrassem, levar-me-iam para casa, humilhada. O duplo seria atirado às chamas e perder-se-ia a última oportunidade de reaver Finbar. Talvez tivesse sido uma perfeita loucura da minha parte acreditar que podia corrigir as coisas.
Ouvia-os enquanto avançava: os latidos, o movimento sussurrado, por vezes as vozes, embora não conseguisse perceber o que diziam. Passado algum tempo, as vozes cessaram, mas não acreditei que tivessem desistido. Os cães tinham farejado alguma coisa. Não iam parar até descobrirem a sua presa.
Cheguei à margem de um ribeiro corrente, inchado pelas chuvas da Primavera. Não havia ponte; teria de passar a vau. Se a memória não me falhava, a parede de rocha não ficava muito longe dali, daquele lado da colina, embora as árvores, tão densas, não me deixassem vê-la. A luz esmorecia; ali, nas profundezas da floresta, era como se caísse a noite. Pareceu-me que os homens e os cães tinham adivinhado para onde eu ia e atravessavam naquele momento a zona rochosa, mais acima na colina, enquanto nós abríamos caminho pela floresta. Será que já tinham dado a volta e se preparavam para enfrentar-me, quando eu chegasse à parede de rocha? E se, à saída do meu esconderijo, me prendessem e levassem para casa, como se faz às crianças em fuga? Aidan... Se Aidan tivesse de cumprir essa tarefa, seria, para ambos, mais do que uma humilhação.
Próximo do ribeiro, vi uma rocha desgastada pelo tempo, sobre a qual um emaranhado de silvas formava uma teia de espinhos. Por
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baixo desta, havia um espaço onde uma pessoa pequena podia esconder-se. Deixei escorregar o saco que levava às costas e pus-me de gatas, para empurrá-lo lá para dentro. Depois, protegendo a cabeça de Becan com a mão, enfiei-me a mim. Aquele buraco era uma descoberta feliz, mais amplo do que parecia visto de fora e com um chão de terra seca. Sentia o coração a bater, as palmas húmidas. Fiz um esforço para respirar mais devagar.
Algo passou como um relâmpago pela entrada do esconderijo, sobressaltando-me. Um homem a correr, pernas compridas, um manto esvoaçante, tão próximo que sentira o ar em movimento a bater-me no rosto. Ouvi a sua respiração, difícil mas controlada, os pés leves no chão da floresta e depois a chapinhar na água quando atravessou o ribeiro. E logo a seguir, do cimo da colina, os cães de novo, num estridor mais intenso, movendo-se mais depressa
- os perseguidores tinham, de facto, subido a colina e voltado para trás. Os sons diziam-me que os cães corriam agora à solta, desabridos, atrás da sua presa: o homem cujas roupas tinham farejado. O homem que, instantes antes, correra ao seu encontro. Enganara-me: Aidan não fora incumbido de encontrar-me a mim. Fora incumbido de encontrar Cathal.
Eles estavam a chegar. Desciam a colina, e Aidan teria de apreender o seu amigo de infância. Cerrei os dentes, fazendo um esforço para ficar quieta. Envolver-me não resolveria nada. Faria apenas com que eu também fosse recambiada para casa. Então, porque é que todos os meus instintos me diziam que o fizesse, que corresse para a clareira e me colocasse entre os dois homens, que impedisse uma coisa verdadeiramente terrível de acontecer? Tinha visto o modo como lutavam, como se não fossem amigos íntimos, mas inimigos implacáveis, e não acreditava que aquele confronto tivesse um desfecho feliz.
O choro de Becan transformou-se num grito de pânico ensurdecedor. Não, articulei, em silêncio. Não, cala-te! Mas o ruído só se acentuava. Desdobrei as pernas para me sentar direita, de novo surpreendida com o tamanho daquela cavidade. Tirei o bebé da bolsa de pano, encostei-o ao ombro e dei-lhe palmadinhas nas costas. Não me atrevia a dizer-lhe palavras de consolo. Pela primeira vez, esperei que mais ninguém fosse capaz de ouvi-lo.
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De novo, o chapinhar; alguém atravessava o ribeiro, vindo do outro lado. A luz ténue que entrava pela abertura da cavidade desapareceu abruptamente. Encolhi-me de medo, pensando que fosse um dos cães de caça, mas era um homem quem rebolara para o interior, rápido como um golpe de espada, e que veio chocar comigo com violência, a praguejar. Na quase penumbra, os nossos olhos cruzaram-se, os dele esbugalhados com o choque, os meus, sem dúvida iguais. O seu olhar desceu até à criança nos meus braços e ainda se arregalou mais. Apontando para Becan, encostou um dedo aos lábios. Mesmo na quase escuridão, a mensagem era muito simples: silencia-o. Depois, gesticulou na direcção da abertura da cavidade, indicando que havia homens a segui-lo; que o ruído que Becan estava a fazer atrairia o grupo liderado por Aidan até nós. Ele ouvia o choro. Cathal ouvia-o.
Se não estivesse tão apavorada, teria chorado de alívio. Enfiei a ponta do dedo mindinho na boca do bebé e senti as suas gengivas duras fecharem-se em torno deste, enquanto chupava. O choro cessou. Cathal despiu o manto e embrulhou-o para tapar a entrada, mergulhando-nos na escuridão. Ouvi os homens de Aidan passarem por nós. Até onde me foi possível discernir, não me pareceu que os cães tivessem sequer parado à entrada do esconderijo. Esperámos muito tempo até o último som se perder na distância. Quando Cathal retirou o manto, estava quase tão escuro lá fora como no interior do refúgio.
- O que é que fazes aqui ao relento, em nome dos deuses?
- sussurrou.
- Tu consegues ouvir a voz dele - suspirei, ainda incrédula.
- Responde à minha pergunta, Clodagh - silvou Cathal.
- Porque é que te escondias deles?
- Pela mesma razão que tu, imagino - murmurei, a tremer.
- Não queria que me levassem de volta para casa. Deves imaginar porquê.
Deuses, estava frio. Oxalá tivesse havido lugar para um cobertor
no meu saco.
Instantes depois, Cathal tornou a falar.
- Devo imaginar porquê? Quando parti, parecias-me muito satisfeita, ocupada com a lida da casa e em dar uma ajuda com o novo
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irmão. E estavas a gostar da companhia de Aidan, e ele da tua. E agora aqui estamos nós. Desculpa-me se a pergunta for demasiado óbvia, mas não achas que a tua mãe é capaz de querer o bebé de volta?
Fitei-o, mas escurecera demasiado para conseguir ler as suas feições. Talvez ele não tivesse visto Becan pelo mesmo motivo. Talvez não soubesse, afinal, o que tinha acontecido.
- Só podes estar a brincar - retorqui, desta vez numa voz menos sólida.
- Vejo que continuas decidida a pensar o pior a meu respeito
- comentou, em voz baixa, como se ainda houvesse homens por perto que pudessem ouvi-lo. - Clodagh, precisas de um abrigo melhor, especialmente por causa da criança. Não posso levar-te para casa, mas posso acompanhar-te até onde fores e assegurar-me de que nada de mal vos acontece nesta escuridão. Tenho o que é preciso para acender uma fogueira.
- Eu também. Mas não estava a planear fazê-lo esta noite. Eles podem ver.
- Quem? O grupelho de caçadores que ali anda? Porque é que terias medo de Aidan? O homem está perdido de amores por ti. E não acredito que seja a minha segurança que te preocupa. Até onde estás a pensar ir?
Não valia a pena continuar a guardar segredo. Becan estaria decerto mais seguro se alguém nos acompanhasse no último troço do caminho, através do ribeiro e por dentro da floresta, durante a noite. Disse a Cathal onde pensava situar-se a parede de rocha.
- Em breve, haverá luar - acrescentei. - Devíamos esperar até lá. E isto não é Finbar. É um ser que foi deixado em troca dele.
- Um ser? - senti-o aproximar-se e estender a mão, para tocar no xaile com que eu embrulhara o bebé. - O que queres dizer com isso, Clodagh?
- Eu mostro-te quando chegarmos lá acima. É um... Penso que é um duplo. Mas, quando lhes disse, ninguém acreditou em mim. Tê-lo-iam deitado fora.
A escuridão adensou-se; as sombras envolveram o nosso esconderijo, isolando-nos do resto do mundo. O silêncio prolongou-se.
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Mal conseguia ouvir a respiração de Cathal. Passado algum tempo, perguntei:
Estás bem, Cathal? Não estás ferido, pois não?
- Um duplo - repetiu, numa voz neutra.
Um bebé feito de galhos, pedras e folhas - acrescentei, à espera que ele me dissesse como tudo aquilo era improvável. - Trocado por Finbar enquanto tu e eu... nos despedíamos à porta do quarto. O pai desconfia que estás envolvido nisto. Pensa que me distraíste de propósito, num momento crítico. Todos se convenceram de que se trata de um rapto político, até Johnny.
- Se esse duplo é visível, porque é que não acreditam na tua história?
O seu tom de voz pareceu-me sereno. Para lá da abertura na rocha, um ténue reflexo de prata espalhou-se no chão. A Lua crescia sobre a floresta. Uma coruja piou lá em cima, na copa dos carvalhos, e uma outra respondeu.
- Aos seus olhos, é apenas um manequim grosseiro, não uma criança viva. E eu sou a única que consegue ouvir a voz dele, além de ti. Nem Sibeal a ouvia, embora tenha acreditado em mim quando lhe contei o que ele era. - Seguiu-se mais um longo silêncio. O luar avivou-se. - Cathal, talvez já haja luz suficiente para vermos o caminho - acrescentei. - Devíamos ir; não estamos propriamente a aquecer.
- Estás preparada para que eu te acompanhe? - a sua voz, indecisa, já nada tinha do habitual tom de troça.
- Atravessar um terreno exposto, durante a noite, com um bebé nos braços não é algo que eu costume fazer com frequência respondi, perguntando-me se ele não estaria prestes a conduzir-me a uma armadilha. - Se não me queres prejudicar, aceitarei de bom grado a tua ajuda.
- Prejudicar? - repetiu. - Bem, suponho que nunca me tiveste em grande conta. É verdade que devo-te alguma coisa por teres ficado calada. Não posso dizer o mesmo do duplo, mas parece-me que os caçadores de Aidan não ouviram os seus guinchos, nem os cães. Já te ocorreu como isso é estranho? Transportar-vos-ei a ambos
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por cima do ribeiro. As minhas botas já estão molhadas e não é preciso que passes pelo mesmo incómodo. Onde está o teu saco? Eu saio primeiro e depois podes passar-me a criança.
- Eu levo-o.
Uma coisa era certa: não entregaria Becan a ninguém.
A parede de rocha ficava precisamente onde eu me lembrava, não muito longe dali. Quando chegámos, Cathal insistiu em fazer uma fogueira.
- Está muito frio para vocês. Eu sei como disfarçá-la, Clodagh. E tenho bons ouvidos. Caso continuem à procura durante a noite, coisa que é improvável, saberei tirar-vos daqui antes que eles cheguem.
- A sério? - tomei a desapertar a bolsa de pano, embrulhando Becan no segundo xaile, para o proteger do frio cortante. - Custa-me a acreditar nisso. Não te aconteceu correres precisamente ao encontro deles?
- Eles não nos encontraram, pois não? Pelos testículos de Lugh, é a criança mais feia que alguma vez já vi.
- Ele não tem culpa - retorqui, intrigada com a naturalidade com que Cathal aceitara aquela verdade inverosímil. De todas as pessoas que eu conhecia, ele era quem eu menos esperava que pudesse partilhar a minha habilidade de ver e ouvir o bebé tal como ele era. Observei-o, em silêncio, enquanto improvisava uma lareira de pedra, reunia galhos caídos das árvores e, por fim, tirava uma faca e um sflex da trouxa para fazer uma faísca e acender o fogo. Era eficiente, como se esperaria de um homem de Inis Eala.
- Tens a certeza de que isto não vai trazê-los directamente para aqui? - acabei por perguntar, quando o fogo pegou. No meio do azul gélido das rochas ao luar, da fronde prateada dos fetos, do brilho ténue dos troncos dos vidoeiros, a luz da fogueira era como um coração pequeno e quente. Aproximei-me.
- Não, não tenho a certeza - respondeu. - Mas, se vierem, saberei. E parece-me que tens jeito para encontrar esconderijos.
Não era um cenário animador.
- Posso ajudar-te com alguma coisa? - perguntei. Era desconfortável ser preguiçosa enquanto o via tão ocupado. Entretanto, já tinha posto um pequeno tacho sobre as chamas e estava a aquecer
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água. Becan adormecera nos meus braços, aconchegado no seu
xaile duplo.
Esta é a parte que eu sou capaz de fazer - disse-me. - Tu
tomas conta dele; essa é a parte que eu não sou capaz de fazer. Tens comida?
- Algum pão. No saco.
Senti outro arrepio de frio. Apertei o bebé. Mesmo com a fogueira, estava gelada até aos ossos.
- Toma.
Antes que eu pudesse protestar, Cathal despiu o manto e colocou-mo à volta dos ombros, sobre a minha capa. Aqueci de imediato. Era uma sensação de felicidade intensa.
- E tu? - perguntei.
- Ao contrário de ti, eu costumo fazer alguns preparativos antes de partir em expedições desta natureza. Tenho um cobertor no meu saco. Pelos deuses, Clodagh, o que te passou pela cabeça para saíres assim de casa, sozinha?
Cathal já tinha encontrado o pão e estava a desfazer uma parte deste no tacho com água.
- Porque é que eu to diria?
Ele recostou-se, e os olhos negros observaram-me com circunspecção.
- Porque não? - retorquiu.
- Por causa do que se passou. O ataque a Glencarnagh. O facto de mo teres descrito ao pormenor, dias antes de acontecer. Como é que podias saber tanto, a não ser que...
- Espera - Levantou uma mão, estancando a torrente de palavras. - Glencarnagh?
Podia jurar que Cathal ficara genuinamente perplexo.
- A herdade do meu pai no Sudoeste; o lugar de que me falaste quando tentaste explicar-me que Deirdre e Illann podiam virar-se contra ele. Foi atacada e reduzida a cinzas. Mataram quase todos os guardas. Quando ouvi falar disso, eu... tive de contar-lhes, Cathal. Era uma coincidência tão grande: a descrição da casa, a maneira como o tinham feito, tudo.
- Compreendo - disse-me, momentos depois. - Quando é que foi o ataque?
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- Na noite de anteontem. Johnny encontrou um sobrevivente pelo caminho e trouxe-o para casa. Eu estava lá. Não tive alternativa senão contar-lhes o que me tinhas dito. Johnny enviou Aidan à tua procura, para te levar de volta.
Cathal concentrou-se no tacho, mexendo o conteúdo com um pau. Percebi que não queria que eu visse o que os seus olhos diziam.
- Temi que isso acontecesse - comentou. - Então, todos eles acham que eu sou culpado. Até Johnny.
- O facto de desapareceres também não ajudou. E não vejo como é que podias saber tanto acerca do ataque, antes de este acontecer, a não ser que...
- A não ser o quê? - o tom de voz tornara-se amargo. - A não ser que eu tivesse conspirado com os inimigos do teu pai para, de algum modo, facilitar o assalto? Que razão teria eu para fazer uma coisa dessas, Clodagh? Porque é que sacrificaria o meu lugar junto de Johnny?
- Não sei - respondi. - Fiquei tão chocada como os outros. Não me parecia que houvesse alguma razão para alguém querer atacar Glencarnagh. Era a casa dos antepassados da minha mãe: a herdade mais encantadora do nosso património. Não sei por que motivo terias alguma coisa a ver com o que aconteceu, mas se estiveste envolvido de alguma forma, gostaria que confessasses e que ajudasses o meu pai a encontrar o criminoso. Isto está a destruir a minha família, Cathal. O rapto de Finbar quase arruinou a minha mãe. E agora o ataque... O meu pai está a perder o bom senso, e isso nunca acontece. Já abriu uma racha na sua amizade com Johnny. Fez com que Johnny e Aidan brigassem. E culpa-me; pensa que já não pode confiar em mim. E isso magoa-me.
- Ele desconfia de ti? Porquê?
- Por causa do que eu e tu estávamos a fazer quando Finbar foi levado - respondi, com alguma relutância. - E também não me perdoou eu ter esperado que o ataque acontecesse para lhe contar o que tu me tinhas dito. Pensou que eu podia ter razões pessoais para proteger-te.
- Ah! - não era bem uma gargalhada, mas uma explosão de incredulidade. - E tu desenganaste-o, tenho a certeza.. Desconfio
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que o teu nome figura na lista daqueles que me julgam uma espécie de traidor. Toma. Não é aquilo a que estás habituada, mas está quente.
Cathal? estendeu-me uma malga de caldo fumegante, feito de Dão e água. Pousei Becan, que já adormecera, no chão, embrulhado nos dois xailes, entalando-o entre o meu saco e o de Cathal, e peguei no recipiente. Aqueceu-me as mãos.
- A lógica não está propriamente do teu lado - disse-lhe.
Mantive o espírito aberto. E Aidan também. Defendeu-te com
veemência. Não queria vir atrás de ti. Johnny ameaçou expulsá-lo de Inis Eala, se ele não obedecesse. Como já disse, isto virou tudo do avesso. É como se alguém estivesse a brincar com todos nós; alguém empenhado em criar o maior alvoroço possível.
Cathal deslocou-se para apoiar as costas na parede de rocha. Como só havia uma malga, bebeu a sua parte do tacho. Seguiu-se um longo silêncio.
- Então - acabei por dizer -, vais contar-me a verdade?
- A respeito de quê?
- A respeito de como sabias do ataque antes de este acontecer, uma vez que não és aliado dos seus autores. A respeito da tua abrupta partida de Sevenwaters, no preciso momento em que tudo isto começou, sem sequer uma palavra de aviso a Aidan. Para onde ias, afinal, e porque é que ainda aqui estás?
- Podias, pelo menos, exprimir alguma gratidão pelo facto de eu ter aparecido exactamente quando precisaste de alguém para acender uma fogueira e fazer o jantar - retorquiu, em tom de brincadeira. - Esquece essas coisas. Pertencem ao passado; falar delas não vai mudar nada. Clodagh, estás a fugir para onde? Deves saber que o teu pai vai mandar homens à tua procura, para te levarem de volta. A pé, não conseguirás ganhar vantagem sobre eles.
Não lhe respondi. Não me tinha dado nenhuma razão para confiar nele.
Cathal suspirou.
- Muito bem, vou dizer-te qual é a minha teoria e verás se acertei ou não: tencionas devolver o duplo ao lugar de onde veio e negociar para recuperares o teu irmão. Vais sozinha, porque nin-
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guém acreditou em ti quando lhes contaste o que era esta criança. Como os duplos pertencem, em teoria, ao Outro Mundo, é para aí que queres ir. Mas não sabes o caminho, e por isso andas às voltas, sem rumo, à espera de tropeçar numa entrada, antes que tu e a criança morram de frio ou de fome, ou sejam apreendidas pelas expedições de socorro de Lorde Sean. Um resumo rigoroso, não? Não olhes assim para mim, Clodagh, até parece que estás a sugerir que não tenho inteligência suficiente para juntar dois e dois.
- Quem te ouvisse pensaria que eu sou tola, Cathal. Estou a fazer o melhor que posso.
Momentos depois, disse-me:
- Eu sei. Mas estás ciente de que isto não vai ser o mesmo que esticar lençóis e preparar o jantar ideal?
Pestanejei.
- Isto? - perguntei-lhe. - O quê, exactamente?
- O que vem a seguir - respondeu-me, rapando com o dedo os últimos pedaços de pão ensopado do fundo do tacho. - Vai ser difícil. Perigoso. Desde que percebas isso...
- Não é nada com que devas preocupar-te - retorqui, desejando que ele tivesse esperado pelo nascer do Sol para começar a dar nomes às coisas. - É claro que eu sei que é perigoso. As histórias sobre o Outro Mundo dizem-no de uma forma inequívoca. E eu não quero ir. Mas vou à mesma. Não vejo alternativa.
- Pois, imagino que não - replicou numa voz serena e, quando olhei de relance, vi um meio sorriso.
- Isso, ri-te da minha tentativa de melhorar as coisas - disse-lhe. - Só tens de me aturar até de madrugada, Cathal. Depois, cada um pode seguir o seu caminho. Na verdade, talvez nem devas esperar tanto; ainda estás perigosamente perto da fortaleza. Quanto mais tempo ficares aqui comigo e com Becan, maior é a possibilidade de seres apanhado. Não posso ajudar-te, só te estorvo.
- É verdade; não podes ajudar-me - replicou, categórico, desviando os olhos para a escuridão cerrada, por baixo dos carvalhos.
- Mas eu posso ajudar-te.
- Tu? - não consegui disfarçar a minha incredulidade. - Um fugitivo? Um homem conhecido por fazer troça da mínima referên-
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cia ao estranho ou ao sobrenatural? Não vejo como, mesmo se pudesse confiar em ti o suficiente para aceitar a tua ajuda.
Talvez estivesse a ser um pouco injusta. Cathal tinha ouvido voz de Becan; aceitara a minha explicação da sua origem e natureza. Mas talvez tudo fizesse parte de algum esquema.
- Aceitaste o manto - assinalou.
- Toma, leva essa maldita coisa.
Levantei-me, tentando desapertá-lo, e algo nas pregas do manto reflectiu a luz da fogueira, exibindo um reflexo verde. As minhas mãos pararam. Tentei ver de perto. Era um anel, de vidro ao que parecia, simples e sem adornos, cosido no forro. Perto deste, uma pena de coruja, um seixo branco, um fiapo de seda brilhante. Relíquias. O passado de um homem levado às costas, por falta de casa onde o guardar. Verde: a marca do traidor. Havia muito a aprender com as histórias. Mas podiam ser interpretadas de várias maneiras possíveis, e era difícil escolher a interpretação certa.
- Veste-o, Clodagh. Não vais conseguir dormir bem se sentires frio. Talvez fosse melhor falarmos disto de manhã.
- Não, agora - declarei, envolvendo-me, de novo, no manto e voltando a sentar-me. Decidi não lhe fazer perguntas acerca do anel. - De manhã, haverá homens cá fora, à nossa procura. Preciso de encontrar um portal para o Outro Mundo. Sei que existem passagens na floresta de Sevenwaters. Se é verdade que esta missão me foi destinada, deviam mostrar-me uma, antes que alguém me apanhe. Pensei que seria hoje, mas... Cathal, o que se passa?
A sua expressão alterara-se abruptamente. No rosto esguio, reconheci algo que já vira antes. Nessa altura, parecera-me tão inquietante como agora: uma mistura de gozo e amargura, como se ele visse naquela situação uma ironia que me escapava.
- Qual é o problema?
- Lês-me demasiado bem - respondeu. - Porque não hoje, podíamos perguntar; porquê amanhã? Talvez para que não faças a viagem sozinha. Clodagh, eu sei como levar-te até esse portal.
- Tu? Que ideia mais disparatada. Como é que podes encontrar algo que nem sequer acreditas que existe? Não brinques comigo, Cathal.
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- Sou um homem de Inis Eala. Somos todos experientes. Sei como encontrar todo o tipo de coisas.
- Até aposto que o treino a que são submetidos na Ilha não inclui lidar com os poderes do Outro Mundo - repliquei. - É verdade que Johnny já foi objecto de uma profecia. Há muito tempo, as Criaturas Encantadas previram que ele seria o próximo Lorde de Sevenwaters. Mas nunca ouvi dizer que ele e os seus homens tinham talentos sobrenaturais.
- Mas tentaste encontrar essa passagem sozinha, Clodagh. Não me vais dizer que tu possuis esses talentos.
O seu olhar devolveu-me uma imagem de mim própria: uma rapariga cujo maior talento residia em governar uma casa na perfeição.
- Sabes bem que não, Cathal, mas penso que fui destinada a tentar. Sinto que essa tarefa me pertence.
Cathal observou-me com alguma perplexidade, os olhos negros intensos num rosto cuja palidez se aquecia à luz do fogo. Estava sentado num ramo caído, com as pernas compridas esticadas até à fogueira. Nas mãos irrequietas, os dedos cruzavam-se e descruzavam-se.
- Não tens muito tempo - afirmou tranquilamente. - Sei como encontrá-la. Cabe-te a ti permitires, ou não, que eu o faça. Se preferires, parto de madrugada e deixo-te entregue aos teus próprios meios. A minha previsão é que o teu pai te apanhe antes do meio-dia. Se queres mesmo levar essa missão por diante, terás de confiar em mim, pelo menos até eu encontrar aquilo que procuras: uma passagem.
Dormi enrolada no manto de Cathal, com Becan enroscado ao meu lado. Não cheguei a saber se Cathal tinha ou não dormido. Lembrava-me, momentos antes de adormecer, de o ver na outra ponta da fogueira, a olhar para as chamas, com os braços à volta dos joelhos e o cobertor sobre os ombros. Parecia profundamente inquieto. Desconfiei que o impulso de ajudar-me, talvez uma forma de compensar as suas incorrecções no passado, se debatia com
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o desejo sensato de se afastar o mais possível de Sevenwaters. De manhã, pensei, deixá-lo-ia partir. Depois, adormeci.
Antes de amanhecer, Cathal acordou-me com outro caldo. Desta vez, cebolas selvagens em água quente - e, enquanto eu comia e alimentava o bebé, ele cobriu de terra os vestígios da fogueira e reuniu os nossos pertences com toda a eficácia de um guerreiro. Por momentos, entrei na mata, para me aliviar. Quando voltei, ele estava acocorado sobre o duplo, examinando-o de perto, sem lhe tocar.
- Becan, foi o que disseste?
- É um nome tão bom como os outros. Não me parecia justo não lhe dar nenhum. Já foi suficientemente cruel que todos o rejeitassem como uma simples... coisa.
Admirou-me que ele se tivesse lembrado do nome; eu devia tê-lo mencionado uma ou duas vezes, no máximo. Cathal dirigiu-me o seu olhar irónico.
- Não achas que estás a levar o princípio da lealdade familiar ao extremo? - perguntou.
- Faço apenas aquilo que me parece certo. - O seu escrutínio irritou-me e desviei o olhar enquanto despia o manto. Esforcei-me por dizer o que era preciso. - É melhor devolver-te isto. Penso que devias deixar-nos, Cathal. Tive esperança de que te entregasses ao meu pai e lhe desses alguma explicação. Consideraste que não era importante. Para mim, é.
Cathal encolheu os ombros e não disse nada.
- Bem - prossegui, desiludida, embora a reacção fosse mais ou menos a que eu esperava -, é melhor saíres das terras do meu pai o mais depressa possível.
- Não queres a minha ajuda? - insistiu, e os seus olhos negros continuavam a observar-me, analíticos.
Sim, queria. Não acreditava de todo que ele soubesse como se entrava no Outro Mundo, mas esmagava-me a perspectiva de mais um dia à deriva, mais uma noite ao relento, desta vez sem a fogueira e o calor do manto, ou da companhia, para afastar do pensamento a infinitude de problemas que me absorviam.
- Penso que é melhor ires - respondi.
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- Melhor para quem? - Podia ter mentido, mas não o fiz.
- Para ti - disse-lhe. - Talvez penses que consegues encontrar o portal, mas nas histórias não é uma tarefa fácil. Geralmente, estas passagens só se abrem quando as Criaturas Encantadas têm motivos para querer deixar entrar alguém. Por vezes, as pessoas precisam de um sortilégio, ou de um símbolo, para que as deixem passar num sentido ou no outro. Ou encontram algo por acaso, um círculo de cogumelos, por exemplo.
- Não há tempo para discutir - disse Cathal. - Eu conheço Aidan e ele conhece-me a mim. Ontem, quase me apanhou. Ele e os seus homens devem ter acampado algures aqui em cima, durante a noite. Assim que tiverem comido qualquer coisa à pressa, sairão de novo à minha procura. Por outras palavras, vão estar na floresta ao mesmo tempo que nós. Aidan pode não querer ser aquele que me prende, mas é um homem de Johnny. Se Johnny lhe deu uma ordem, ele executá-la-á com eficácia, mesmo que isso lhe despedace o coração. Por todas as razões e mais algumas, não quero que ele o faça. Como tal, temos de apressar-nos.
- Não me ouviste? - impressionava-me que não fosse o medo de ser capturado que o perturbava, mas o facto de o amigo ter de desempenhar esse papel. - Eu disse para partires sozinho, agora, enquanto ainda tens tempo de fugir.
- Sei que não tens uma boa opinião de mim - disse Cathal, vestindo o manto à pressa. A seguir, pôs o saco ao ombro e pegou no meu. - Acredita, quando és casmurra como estás a ser agora, o sentimento é mútuo. Ouve-me, sem me interromperes: tens três razões para confiar em mim. Primeiro, falei-te do ataque a Glencarnagh na tentativa genuína de te avisar. Se foi inútil, a culpa não é minha. Segundo, reconheci o que era esse bebé com tão mau aspecto e ouvi a sua desgraçada voz. Acreditei em ti quando mais ninguém acreditava. Terceiro, estou aqui, quero ajudar, tenho alguns talentos físicos que podem ser úteis para te proteger a ti e à criança, até chegarem ao vosso destino. E é verdade que sei onde se situa um portal.
- Bem, são seis razões - repliquei, perguntando-me por que motivo decidira ajudar-me. Por altruísmo não era de certeza; nem
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era o desejo insensato de conquistar o meu afecto, apesar do beijo; não havia sinais de amabilidade naquela expressão. Tudo o que eu via no seu rosto era uma grande impaciência por partir. - Estás a dizer que não só me vais ajudar a encontrar o portal, como me acompanharás depois de eu entrar?
Como é que eu podia aceitar uma oferta tão louca? Já era demasiado arriscado atravessar sozinha aquela fronteira. Seria uma perfeita loucura levar alguém comigo, alguém que não tinha nenhum papel a desempenhar naquela missão. E, porém, sentira um alívio profundo quando Cathal nos oferecera a sua protecção. Se alguma vez chegasse ao Outro Mundo, teria de enfrentar toda a espécie de perigos. Um guerreiro com a perícia que ele exibira no pátio naquele dia era provavelmente o melhor companheiro que eu podia ter.
- Sim, foi isso que eu te disse, Clodagh. Decide-te, depressa.
- Porquê? Porque é que farias uma coisa dessas? Cathal suspirou, revirando os olhos.
- Imagino que o próprio Johnny teria dificuldades em capturar-me lá em baixo, no Outro Mundo - respondeu, com secura.
- É uma razão suficientemente boa para ti?
- Não.sei - respondi, com vontade de dizer que sim, mas convicta de que devia dizer não.
- Podemos, pelo menos, começar a andar? Ou tencionas ficar aqui a discutir a questão até os cães de Aidan correrem até cá cima
e nos mostrarem os dentes?...
- Muito bem. Leva-me até onde pensares que existe um portal, seja lá onde for. Testamos essa hipótese primeiro e depois preocupamo-nos com o resto.
Tinha instalado Becan na bolsa de pano. Quando ia a pegar no meu saco, Cathal pô-lo debaixo do braço.
- Eu levo isto; tu tens de ocupar-te dele. Pronta?
- Não. Mas vou à mesma.
Ele dirigiu-me um sorriso torcido.
- Então, vamos. Penso que não será longe.
Segui Cathal numa direcção que me pareceu vagamente Noroeste. Não fomos por trilhos visíveis. Fizemos um percurso sinuoso, desviante e em ziguezague, por entre árvores e fragas. Cathal movia-
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-se como se soubesse o caminho. Desconfiei que a sua aparente confiança podia ser uma forma de manter a ilusão do controlo, mais do que outra coisa qualquer. Ninguém que viesse de fora conhecia o caminho na floresta de Sevenwaters. Não podia conhecê-lo. Para ele, o caminho nunca era o mesmo. Em silêncio, pedi às Criaturas Encantadas que não se demorassem a mostrar-nos uma passagem.
De vez em quando, ouvíamos os cães algures atrás de nós, incapazes de vencer a distância, embora também não conseguíssemos afastar-nos muito deles. Perguntei-me se Aidan estaria a usar as mesmas técnicas de Cathal para encontrar um rumo no terreno difícil, naquela zona da floresta. Havia ladeiras que se revelavam bem mais íngremes do que pareciam; rochas que emergiam nos piores lugares para servirem de apoio às mãos e pés; troços inesperados de areia movediça, escamoteados por tapetes escuros de folhas apodrecidas no Outono precedente. Atravessámos um ribeiro, empoleirados num tronco estreito. Cathal levou os dois sacos para a outra margem e regressou logo depois, com um equilíbrio confiante, para me pegar na mão e conduzir-me até ao outro lado. Lembrei-me de o ver equilibrar-se no cimo de um muro de pedra sobre pedra, com Eilis e Coll. Eilis... Já não via a minha irmã mais nova desde que Finbar fora levado.
- O quê? - perguntou Cathal, perscrutando o meu rosto assim que eu desci, em segurança, na outra margem.
- Nada. Já estamos mais perto?
- Estou a dirigir-me para o rio. Não pode ser longe daqui. Senti uma vertigem.
- Que rio? Não existe nenhum rio, apenas os sete ribeiros. E o escoamento do lago fica no extremo leste, longe daqui.
Lembrei-me das palavras de Sibeal acerca dos pontos onde água e terra se encontravam, circunstância em que era mais provável encontrar passagens para o Outro Mundo. Instantes depois, recordei-me de outra coisa que ela me tinha dito: que eu não levaria a cabo aquela demanda sozinha.
- Não vejo o rio - repetiu Cathal, sem emoção. - Tinha a certeza... Deixa estar. Penso que é por aqui.
A minha memória das palavras de Sibeal impediu-me de questioná-lo e retomámos o nosso caminho, descendo uma colina e atra-
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vessando um bosque de vidoeiros jovens, com os pés a escorregar na encosta enlameada. Começou a chover. Os troncos esguios do arvoredo eram úteis para abrandar a descida arriscada, mas a folhagem delicada não nos protegia do temporal. O capuz recusava-se a cobrir-me a cabeça. Por ora, a bolsa de pano protegia Becan, mas em breve ficaria ensopado. Continuava a ouvir os cães, pareciam mais próximos.
Perto da base da colina, perdi o equilíbrio e caí com violência sobre a anca. Becan guinchou de susto. Senti lágrimas nos olhos.
- Depressa, Clodagh! - Cathal falou com uma nova urgência na voz. Agarrando-me na mão, pôs-me de pé. - Estás a ouvir?
Mais acima, atrás de nós, alguém gritou. Olhei de relance para trás, mas não disse nada.
- Não são eles, é o rio. Estamos quase lá. Corre!
Eu não ouvia rio nenhum. Não havia rio nenhum, não nas terras de Sevenwaters. Mas corri, embora o meu corpo protestasse a cada passo. De novo, ouvimos os gritos, a voz de Aidan incitando os outros, o estridor dos cães. A minha mão ainda na de Cathal. Em vez de cair de cabeça, fiz um esforço para acompanhar aquele ritmo. Becan prolongou o seu grito de protesto e a minha barriga enrijeceu em sintonia. Corremos por um trilho estreito, por baixo de uma arcada de árvores mais altas, os troncos pálidos passaram por nós, quase imperceptíveis, a chuva caía miúda, escorregando de todas as folhas sobre as nossas roupas, o cabelo ensopado. Cathal afastou os caracóis negros da cara, num gesto impaciente. O ritmo nunca abrandou.
Saímos, então, disparados do bosque de vidoeiros para dentro de uma cortina de chuva. De repente, já não se via o caminho. Água à nossa frente, atrás de nós, de ambos os lados, um véu cinzento-prateado que cobria pedras, árvores, trilhos, tudo, excepto o pequeno pedaço de chão por baixo dos nossos pés. Abrandámos; continuar a correr era um convite ao desastre. Cathal apertou a minha mão com mais força.
- Cathal! - Era a voz de Aidan, algures na tromba de água.
- Não me obrigues a soltar-te os cães, meu lunático! Entrega-te, eu sei que estás aí em baixo!
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- bom sinal - murmurou Cathal, avançando para a garganta da chuva e puxando-me atrás dele. - Ainda não soltou os cães. O que estás a fazer, Clodagh? Mexe-te!
Mexi-me; a alternativa era largar a mão dele e esperar que os cães me apanhassem. O chão inclinou-se de novo, abrupto e íngreme. Podíamos estar a caminhar em direcção a qualquer coisa. Por três vezes, enquanto descíamos, Cathal teve de segurar-se e agarrar-me nos braços, para eu não cair. Sentia os gritos de Becan a vibrar no seu pequeno corpo. E, de repente, mais forte do que o choro, mais forte do que o ruído da chuva a martelar no chão, ouvi uma outra coisa: uma melodia impetuosa, fluida, torrencial, o som de um enorme corpo líquido em movimento. Como que por encanto, as cortinas de chuva dissiparam-se e ali, à minha frente, em tantos matizes de cinzento como as estrelas que há no céu, estava o rio.
Não era um dos sete ribeiros. Mesmo quando inchava com as chuvas de um Inverno invulgarmente húmido, o mais amplo desses cursos de água seria uma miniatura, em comparação. O leito era da largura de um campo de pasto, a superfície das águas, misteriosamente lisa, a corrente, rápida; fragmentos de folhas e de cortiça, transportados com uma força insana, reviravam-se, torciam-se e passavam por nós como estranhos corredores. Parecia profundo. E frio. Do outro lado, a paisagem era distinta de tudo aquilo que eu vira na floresta de Sevenwaters: as árvores eram gigantes, os seus troncos e ramos, nodosos, deformados e velhos. Não pertenciam a nenhuma espécie que eu conhecesse. Uma sombra profunda pendia sobre elas e parecia-me que, por baixo daquele manto de escuridão, nenhum pássaro se atreveria a cantar, nenhuma criatura ousaria aventurar-se em busca de alimento. Não vi nenhuma ponte, e foi um grande alívio, porque sentia o coração apertado só de pensar em pôr um pé na outra margem. Não existia nenhum rio nas terras do meu pai. E, porém, ei-lo.
- Cathal!
Senti um arrepio; a voz de Aidan estava mesmo atrás de mim. Preparava-me para me virar e olhar para trás quando Cathal me sussurrou:
- Ali em baixo. O barco. Depressa, Clodagh.
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Um barco. Danu nos guarde. Enquanto Cathal me ajudava na última descida íngreme, vi-o: um bote, o convés de madeira enegrecido pelo tempo, as bordas esfareladas e o espaço mínimo, que dava apenas para duas pessoas muito juntas e muito quietas. Boiava na água pouco funda, num balouçar ominoso, preso à margem por uma corda curta. Uma outra corda, mais espessa, muito mais comprida, estendia-se de uma riba à outra, unindo aquela distância considerável; a meio caminho, apenas um palmo a separava da superfície veloz da torrente de água. As estacas a que se prendiam as duas pontas da corda estavam longe de parecer seguras. Uma laçada mais leve jazia no chão do barco. Talvez houvesse maneira de a prender àquela linha improvável e de puxar, ou empurrar, a coisa até ao outro lado. A ideia gelou-me.
Estávamos na margem do rio. Cathal pegou-me no braço, puxando-me em direcção ao bote vacilante. Estremeci de terror. A minha cobardia horrorizava-me, mas não podia obrigar-me a ser corajosa naquela situação. Era como se visse o transporte decrépito a virar-se a meio do caminho e a projectar-nos a todos na torrente. Becan voaria dos meus braços num piscar de olhos. E eu não sabia nadar.
- Não - murmurei, quando chegámos ao pé do bote. - Tem de haver uma alternativa.
- Pelos deuses, Clodagh! - disparou Cathal. - Tens ou não uma missão a cumprir? É este o caminho. Não há outro.
- Pára! - A voz era sonora e imperiosa. Olhei por cima do ombro e fiquei petrificada. Aidan estava dez passos mais acima, visível entre os lençóis de chuva misteriosamente apartados, com o cabelo castanho escorrido e colado à cabeça, o maxilar tenso e a seta do arco de caçador apontada com firmeza na nossa direcção.
- Larga-a, Cathal. Já.
Era o tom de um guerreiro, com a sua calma sepulcral. No momento em que Cathal obedecesse, Aidan estaria pronto a disparar. Se Cathal não se rendesse, o seu melhor amigo acabaria com ele.
- Aidan, não! - gritei. Não era certamente a solução certa. Nem o meu pai nem Johnny desejariam a morte de Cathal. - Não o faças!
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Podia não ter falado.
- Deixa-a ir, Cathal - repetiu Aidan. - Ela não é para ti. Não sei o que tens em mente, mas Clodagh não vai envolver-se nisso.
O arco parecia absolutamente firme.
Cathal largou a minha mão. Eu colocara-me entre ele e a seta de Aidan. Aidan não dispararia enquanto corresse o risco de me acertar. E agora, Cathal dava-me a hipótese de escolher. Salva-te; vai para casa. Esquece-me e à minha precipitada oferta de ajuda. Ou...
- Sobe para o barco - disse-lhe. Primeiro, o pé esquerdo. Mantém-te atrás de mim. Dá-me a mão, por favor. Preferia não escorregar para dentro de água.
A mão dele voltou a fechar-se em torno da minha; ouvi-o suster a respiração. Tinha mesmo pensado que eu ia abandoná-lo. Que o deixaria sozinho à frente daquela seta. O bote rangeu quando ele entrou; senti-o apertar-me a mão, quando o chão balouçou e teve de lutar para manter o equilíbrio. Instantes depois, sentei-me ao seu lado, vacilante, com o estômago contraído de medo. Lá em cima, na margem do rio, Aidan pousara o arco. A sua expressão era a de um homem que via uma coisa que lhe era querida morrer à sua frente. Os dois companheiros apareceram ao seu lado, cada um com um cão à trela. Um deles gesticulou, perguntando claramente se devia soltar os cães, e Aidan respondeu-lhe com uma negativa ríspida.
Não conseguia equilibrar-me; era impossível conservar-me direita. Tentei colocar-me entre Cathal e a margem, enquanto ele fazia uma coisa complicada com o laço da corda, assobiando entre dentes enquanto trabalhava. Esperei que Aidan soltasse os cães; enquanto estivéssemos atracados, éramos uma presa fácil. Esperei que ele descesse e tentasse cortar a corda. Esperei que os três homens se precipitassem num ataque concertado a Cathal - mesmo um guerreiro da sua têmpera não resistiria a um combate tão desequilibrado. Mas Aidan limitou-se a guardar a seta na aljava. Quando a corda mais curta foi presa à mais longa, com um anzol de osso elaboradamente ornamentado, e Cathal começou a puxar-nos pelo rio, uma mão atrás da outra, o seu amigo de infância permaneceu absolutamente imóvel, com os olhos escuros no rosto de cinza, limitando-se a ver-nos partir.
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Capítulo Nove
O rio era veloz. A corrente apanhou o bote a uma pequena distância da margem e arrastou-nos ao longo da corda mais comprida, esticando tanto a mais curta que pensei que ia rebentar. Cathal respirava com dificuldade; o esforço que fazia para lutar contra a corrente retesava-lhe todos os músculos dos braços. Encolhi-me ao lado dele, protegendo Becan. Chovia a montante e a jusante, mas não ali. O aguaceiro parava logo no início da corda, de ambos os lados, como se quem decidira brincar connosco considerasse que a chuva talvez fosse um desafio a mais naquele momento. Ainda assim, o meu manto estava encharcado e a bolsa de pano, húmida; Becan devia ter frio. Apertei-o contra o peito, tentando conservar os olhos abertos, embora todos os instintos me ordenassem que me encolhesse e subtraísse à realidade, até concluirmos a passagem. Não tinha onde segurar-me. Sempre que o bote mergulhava de um lado ou do outro, a água gelada do rio invadia o convés, tornando a encharcar-me o vestido. Sentia o estômago contraído de medo. Doíam-me as costas com o esforço de manter o equilíbrio.
De súbito, a mão de Cathal escorregou na corda. Praguejando, deitou-lhe a mão e agarrou-a. O seu rosto estreito exibia um esgar de absoluta concentração. Não me atrevi a dizer uma palavra. Onde é que eu tinha a cabeça quando consentira que ele arriscasse a vida para me acompanhar? Se caísse, não só era provável que se afogasse, como eu ficaria presa no meio do rio, sem forças para puxar o barco até uma margem ou outra. Nunca o devia ter permitido.
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Arrisquei-me a olhar para trás. Por um breve instante, um instante apenas, vi a silhueta de Aidan a diminuir na margem que ficara para trás, e pareceu-me que quase levantara a mão, num esboço de despedida. Antes que eu pudesse responder-lhe, a chuva abateu-se sobre ele. Ficou apenas o lençol cor de cinza. A floresta desconhecida começou a desenhar-se, sombria, à nossa frente, cada vez mais próxima, enquanto Cathal nos arrastava palmo a palmo, pressionando uma mão atrás da outra, sopro laborioso após sopro laborioso.
- Estás bem? - perguntei, com vergonha do pavor que sentia e de estar encolhida no bote, incapaz de ajudá-lo.
- Hum. Tu? - foi tudo o que conseguiu dizer.
Abri a boca para lhe dizer que estava bem. Mas, antes de dar voz à flagrante mentira, algo se atravessou como um raio a um palmo dos meus olhos, a rufiar, a chiar e a gritar, numa vincada atitude de troça. Estremeci, recuando. Cathal praguejou quando outra criatura passou por ele à tangente, em voo picado, e voltou a subir, batendo as asas, em direcção ao arvoredo da margem em frente. O bote levou um sacão e começou a abanar com violência na torrente. Agarrei Becan, que gritava, apavorado. Quando tornei a olhar para cima, vi que Cathal tinha perdido o controlo da corda principal. Ainda estávamos presos a esta pelo laço mais curto, mas o rio exercia uma pressão poderosa sobre a corrente e, se continuasse a esticá-la, não tardaria a rebentar.
- Tudo o que posso dizer é que espero sinceramente que haja outro caminho de regresso.
com um ar carregado, Cathal agarrou-se à corda mais curta com ambas as mãos e foi subindo, debruçando-se sobre a água, até conseguir apanhar a corda guia de novo. Tinha as palmas vermelhas; ia ficar com as mãos cheias de bolhas.
- Estás a ir bem - disse-lhe, fitando a margem. Ainda parecia distante. E se as criaturas voltassem? Morcegos, pássaros, híbridos?
- Desculpa-me, não estou a ajudar.
- Estás sim - disse Cathal. - Alguém tem de segurar na criança. Baixa-te, eles vêm aí.
Do canto do olho, vi-os aproximarem-se. Tinham penas e bico, como os corvos, mas o corpo lembrava o dos morcegos, com gar-
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ras no lugar das mãos e dos pés. Olhos pálidos brilhavam no meio da plumagem escura, da cor do carvão. A certa altura, naquele movimento de asas a bater, as criaturas fecharam-se e avançaram para nós em voo picado. Desta vez, senti um golpe agudo, de raspão, na face e gritei de terror, pressionando a cabeça de Becan contra o peito. Cathal tirou uma mão da corda, pegando no punhal que levava à cintura. Enquanto via as criaturas a circular à nossa volta, preparando um terceiro ataque, semicerrou os olhos.
- Deixa estar, leva-nos só à outra margem - exclamei, ofegante. Sentia sangue a escorrer-me no rosto. - Eu estou bem.
- Malditos! - silvou, cerrando os dentes. Pegou no punhal, sentindo-lhe o peso como se preparasse o arremesso. O bote balançou para um lado e para o outro; a água cobriu-me as pernas.
- Por favor, Cathal! Esquece-os, leva-nos para a margem. Ahh!
- Descida rápida, mergulho a pique. Uma coisa afiada abriu-me um golpe por cima da sobrancelha. O sangue cobriu-me os olhos, cegando-me. Encolhi-me em torno de Becan e murmurei uma oração incoerente. Pareceu-me que o bote estava a avançar mais depressa; Cathal reconhecera o valor das minhas palavras e concentrara-se em levar-nos para terra.
- Fora, verme! - gritou. Senti uma dor aguda na nuca, outra no braço, rompendo o tecido do manto e do vestido. - Fora!
- e depois - toma, Clodagh! - Ofereceu-me o punhal. O bote dançava na água de um lado para o outro; agarrei na arma com relutância. Cathal tornou a segurar na corda e estabilizámos. - Tenta desviá-los - disse-me com uma calma que os seus olhos desmentiam.
- Já não estamos longe - sussurrei, sentindo que podia desmaiar a qualquer momento e sabendo que não podia dar-me a esse luxo. Cathal só se metera naquela trapalhada por minha causa. Becan só me tinha a mim. - Estou bem, a sério.
Brighid me ajude, o bote abanava com tal violência que eu tanto podia acertar num dos atacantes, como espetar o punhal no próprio Cathal.
As criaturas investiram de novo, três alinhadas, precipitando-se em voo picado sobre o alvo. Visavam-me a mim e a mim apenas.
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com o braço esquerdo à volta do bebé, segurei no punhal com a mão direita, brandindo-o mais ou menos às cegas, com a cabeça meio enevoada e a visão turva.
- Saiam! - berrei. Os meus gritos de combate não eram muito impressionantes, mas daquela vez as criaturas passaram sem deixar marcas.
- Linda menina - ouvi Cathal dizer. - Mão firme; braço relaxado. Prepara-te para recebê-los.
E assim fiz, na vez seguinte. Os três mergulharam na minha direcção. Desferi um golpe com convicção e senti a arma chocar contra alguma coisa. Ouvimos um guincho sinistro e a criatura ferida desviou-se do barco, com os companheiros a chiar sonoramente atrás. As três silhuetas escuras fundiram-se na escuridão cinzenta da chuva. A minha mão afrouxou no punhal e, logo a seguir, voltou a apertar. Não podia deixá-lo cair. Uma coisa era certa: na outra margem, íamos precisar de uma arma. A figura alta de Cathal estremeceu à minha frente. A margem estava perto, mas só conseguia ver uma imagem desfocada. Pensei que talvez fossem lágrimas, ou o sangue.
- Clodagh! - gritou-me Cathal, numa voz imperiosa. - Não desmaies, fica comigo! Não posso ajudar-te agora, mas estamos quase lá. Segura a criança; faz o que te compete.
Becan. Tornei a limpar os olhos, reparando com alguma indiferença que a minha mão se tingira de vermelho, e olhei para o bebé. Soluçava com uma voz débil; já não era só medo o que sentia.
- Quase lá - murmurei para ele. - Quase lá, meu querido. Oó, meu pequenino... Tinha a voz áspera como a de um sapo, mas Becan não parecia importar-se. Enquanto Cathal se debatia com a corda, içando-nos até ao outro lado, continuei a cantar. O bebé acalmou-se, os soluços esmoreceram, a mão minúscula, de madeira, enrolou-se confiante no tecido ensopado da minha camisa, e os lábios curvaram-se naquilo que estranhamente parecia um sorriso. Será que os bebés começavam a sorrir tão cedo? Chegou a hora de fazeres a tua sesta, cantei, e chegámos ao outro lado.
Cathal prendeu o bote a um poste corroído, entalado entre as rochas. Em seguida, estendeu a mão para me ajudar a subir. As pernas tremiam-me de cansaço.
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Esquerdo ou direito, desta vez? - perguntou-me, na borda
da embarcação. Parecia surpreendentemente calmo.
- Esquerdo para quem entra - respondi. - Direito para
quem sai. Ouvi uma história acerca disso.
O que acontece se te enganares?
Cathal saiu do barco com o pé esquerdo, guiando-me atrás dele. A margem estava coberta de pequenas pedras brancas, tão lisas e regulares como ovos, que estalavam por baixo dos nossos pés.
- Não sei. Penso que podemos ir parar a um sítio diferente, não onde queríamos ir. Ou podemos não conseguir atravessar para a outra margem. São coisas importantes. Quem me dera lembrar-me delas convenientemente.
Levantei a mão para voltar a limpar a cara.
- Toma - disse Cathal. Tinha pousado os dois sacos no chão e estava a desatar o cordão que fechava o seu, talvez à procura de um pano com que estancar o fluxo de sangue.
- Não te preocupes, eu estou bem. - Ouvi a minha própria voz como se estivesse no fundo de um túnel, um som surdo e distante. - Abrigo. Temos de secar-nos... - Instantes depois, rochas e seixos rodopiaram à minha volta e tudo escureceu.
Acordei com o som de uma fogueira a crepitar e a voz de Cathal a resmungar por entre dentes:
- Pronto, pronto, estou a fazer o melhor que posso.
Becan chorava. Por baixo do manto de Cathal, abri os olhos e vi o céu: uma extensão plúmbea, cinzenta e arroxeada, sem Sol ou Lua à vista. Não consegui perceber se era de dia ou de noite. Seria o crepúsculo? Teria passado o dia inteiro desmaiada? Apalpei o rosto com uma mão prudente, procurando lesões, e estremeci ao tocar na pele inchada e ferida. O meu cabelo estava empastado de sangue.
Sentei-me. Uma vaga de tonturas atravessou-me o corpo, provocando-me um ardor no estômago. Engoli, respirei e deixei-me ficar sentada por instantes, à espera que a náusea passasse. Não podia permitir a mim própria mais momentos de fraqueza.
- Acordaste - disse Cathal. - Óptimo. Os meus esforços para alimentar o nosso amigo não correram bem e ele tem boa voz.
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Tenho medo que os seus gritos atraiam companhias indesejáveis. Tendo em conta a recepção que tivemos durante a travessia do rio, diria que não temos uma viagem fácil pela frente. Podes pegar nele? Cathal estava sentado ali perto, de pernas cruzadas, com Becan nos braços. Os membros da criança tinham-se libertado dos xailes. Os seus gritos exprimiam indignação.
- Passa-mo. - Estendi os braços e reparei, tarde de mais, que não tinha muita coisa vestida por baixo do manto. - Onde estão as minhas roupas?
- A secar - respondeu Cathal. - Ali, vês?
O meu vestido, a capa, a camisa interior e as meias estavam penduradas numa armação improvisada, feita de ramos e de cascas, do outro lado da fogueira, na companhia de várias peças de roupa de Cathal. Delas libertava-se suavemente uma nuvem de vapor de água.
- Não precisas de corar - acrescentou. - Ainda estás coberta, à justa. Está frio. As roupas que tinhas vestidas estavam ensopadas e a muda que trazias no saco não era muito melhor. Não tive alternativa.
Como não sabia o que dizer, embrulhei-me o melhor que pude no seu manto e peguei no bebé para o alimentar. Momentos depois, quando Becan já se descontraíra e bebia a bom ritmo, Cathal e eu entreolhámo-nos à luz da fogueira e, se o seu olhar me parecia apreensivo, imaginei que o meu o fosse ainda mais. Estávamos na floresta, a estranha floresta que avistáramos de relance, na outra margem do rio. As árvores eram gigantes - o suficiente para esmagar os mais imponentes carvalhos de Sevenwaters - e uma escuridão intensa e inquietante, que lembrava a de uma vasta câmara subterrânea, enchia os espaços por baixo. Havia uma quietude arrepiante naquele lugar, uma sensação de iminência que a delicada crepitação da fogueira não conseguia atenuar. A seguir à zona plana onde tínhamos acampado, o terreno descaía suavemente para Este, num declive pouco pronunciado. Pensei ouvir, à distância, o murmúrio do rio.
- Como é que me trouxeste até aqui? - perguntei, e embora não houvesse mais ninguém a não ser nós os três, não levantei
a voz.
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- Foi fácil transportar-te - disse Cathal. - A parte mais difícil foi ter de deixar-vos, a ti e à criança, neste lugar, enquanto fui buscar os sacos. Estive sempre à espera que, assim que virasse as costas, uma entidade misteriosa vos levasse para longe, só para me mostrar que este sítio é... diferente.
Embora não quisesse agravar a minha dívida para com Cathal, parecia-me um facto consumado. Não só me trouxera para um lugar seguro, como me tinha despido, lavado e deixado dormir, tratando de acender a fogueira, secar as minhas roupas e cuidar de Becan. Na situação em que nos encontrávamos, o facto de Cathal me ter visto de perto, em roupa interior, era muito menos chocante do que teria sido no dia anterior.
- Como está a tua cara? - perguntou. - Dói-te?
- Não muito. Sinto-me enjoada, mas já passa. Os golpes são graves?
- Não tão graves como isso. Voltarei a ocupar-me deles amanhã - respondeu, num tom pragmático.
- Cathal, quanto tempo é que eu estive inconsciente? É verdade que já está a anoitecer?
- Acredita, se assim fosse, eu já teria tentado acordar-te há muito mais tempo. Becan mobilizou uma grande parte da minha atenção. Tem uma voz poderosa. Que sorte extraordinária não precisar de leite. Imagina o que seria ter de transportar uma cabra naquele bote. Enfim, e agora?
- Continuamos, suponho eu. Mas talvez não imediatamente. Quando é que as nossas roupas ficam secas, para podermos vesti-las?
- A tua roupa só está pronta amanhã de manhã. Sei que não queres cirandar por aí assim vestida, por isso é melhor passarmos aqui a noite, sem deixar a fogueira esmorecer. É verdade que hesitei antes de acendê-la. O fumo chamará a atenção, se alguém estiver por perto. E depois, que direcção tomamos?
Olhei para ele. Parecia extraordinariamente optimista, apesar de tudo o que tinha acontecido. Também devia fazer parte do treino, pensei. E dos seus lábios não saíra uma única palavra de censura. Era quase irritante. Fazia-me sentir profundamente imprópria e eu não gostava dessa sensação.
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- Pensei que eras tu quem sabia o caminho - respondi.
- Prometi encontrar um portal. E fi-lo.
Era verdade. Onde quer que estivéssemos, já não nos encontrávamos na floresta de Sevenwaters.
- Odeio dizer isto - prossegui, - mas penso que devíamos continuar a andar e, mais tarde ou mais cedo, acabaremos por encontrar aquilo que procuramos. Isto é, alguém que saiba dizer-nos onde está o meu irmão bebé. Depois, dirigir-nos-emos a esse lugar e pedirei a esta gente que mo devolva.
- E entregas Becan em troca.
Senti uma ligeira dissonância no tom de voz, como se houvesse uma pergunta implícita na afirmação. "!
- Qual é o problema? - perguntei.
- Nenhum, Clodagh. Faz todo o sentido, se as regras que regem o nosso mundo se aplicarem ao problema.
- Não tenho outras para aplicar - retorqui calmamente.
- Cathal, como é que sabias que tínhamos de atravessar o rio? Como é que sabias que existia um rio? O lugar não figura em nenhum mapa de Sevenwaters, e eu sei que não saímos das terras do meu pai.
Ele encolheu os ombros.
- Um palpite - respondeu.
- Como o palpite de que Glencarnagh seria atacado?
- Hum. Isso é importante? Tu querias vir aqui e agora estás aqui. Fria e molhada, seminua, com algumas cicatrizes que talvez preferisses não ter, mas na terra dos Tuatha De Danann. Pelo menos, é onde julgamos estar.
Por momentos, detectei uma profunda inquietude naquele olhar. Cathal apressou-se a disfarçá-la e as suas feições assumiram uma expressão insípida.
- Porque é que agora já é tão fácil para ti acreditares, quando, na fortaleza, escarnecias da mera existência destas criaturas?
Mais um encolher de ombros.
- Pára de fazer isso - disparei, fazendo com que Becan gemesse de medo. - Chiu, chiu - sussurrei-lhe, levantando o bebé para encostá-lo ao ombro, enquanto tentava conservar o manto posto e alguma decência.
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- Paro de fazer o quê?
- Recusares-te a responder-me adequadamente. Agires como
se nada no passado fosse importante. Fingires que não foi uma perfeita loucura da tua parte vir comigo até aqui. Não explicares porque é que decidiste ajudar-me, porque é que te deste ao trabalho de fazer seja o que for. E a tua amizade com Aidan? Não viste a sua expressão quando nos afastávamos da margem? Parecia que estávamos a partir-lhe o coração. Como é que podes ser tão... tão frio a respeito de tudo isto?
Cathal tinha tirado o pequeno tacho do saco e colocara-o sobre as chamas. Já o enchera de água e agora acrescentava-lhe uma pequena colheita de cogumelos, cortados aos bocados. O silêncio prolongou-se entre nós enquanto o caldo levantava fervura e um odor delicioso se libertava do cozinhado, fazendo-me tomar consciência da fome que tinha. Cathal acrescentou uma mão cheia de verduras e mexeu o preparado. Por fim, levantou a cabeça e os nossos olhares cruzaram-se por cima da fogueira.
- A camisa que eu trazia está quase seca - referiu. - Toma.
- A peça de roupa estava pendurada num arbusto; Cathal puxou-a para baixo e lançou-a na minha direcção. - Não te esqueças
- acrescentou - que já te vi com muito menos roupa e não te preocupes de mais com isso. Fiquei exausto depois da travessia e não tenho a mais pequena vontade de me aproveitar de ti.
Observei-o, por momentos, e depois disse-lhe:
- Obrigada.
- Não se trata de altruísmo - replicou. - Se voltarmos a ser atacados, é importante que tenhas as duas mãos livres para te defenderes. A necessidade de conservares o teu pudor intacto, cobrindo-te com uma capa, tornaria tudo mais difícil. Quero que fiques com uma das minhas facas, Clodagh. Não sabemos o que nos espera, mas julgo que podemos deduzir daquele episódio com os morcegos, ou lá o que eles eram, que não somos inteiramente bem-vindos nestas terras. O que pensas fazer se estas pessoas não te devolverem o teu irmão?
Como não tinha resposta para aquela pergunta, dei-lhe a provar um pouco do seu próprio veneno e encolhi os ombros. Becan ador-
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mecera encostado ao meu ombro. Os seus xailes estavam húmidos, assim como os cueiros.
- Maldição - exclamei. - vou ter de lavá-los.
- Come primeiro - disse Cathal.
- Onde é que apanhaste os cogumelos? - perguntei. - Não devíamos comer nada daqui, é uma das regras.
- Senão?
- Senão ficaremos no Outro Mundo para sempre. Deuses, cheiravam mesmo bem.
- Já os tinha guardado no meu saco antes de fazermos a travessia - disse-me. - Saboreia cada pedaço; se tiveres razão a respeito da comida, teremos de racionar as nossas doses até voltarmos a atravessar para o outro lado. Quanto tempo pensas que vamos demorar? E ele?
Cathal apontou para o bebé adormecido. Eu tinha pousado Becan no chão, enquanto despia o manto e vestia a camisa sobre a roupa interior húmida. Naquelas circunstâncias, o melhor que podia fazer para salvaguardar a minha decência era virar-me de costas e esperar que Cathal não estivesse a olhar.
- Parece-me que ele gosta de água com mel - respondi. Posso encher o meu odre nos ribeiros deste lado. Não vejo por que razão Becan não poderia consumir alimentos do Outro Mundo. Não sei quanto tempo durará esta viagem. Espero que não seja demasiado. A minha mãe está a definhar rapidamente e precisa de Finbar de volta.
- Fica-te bem - observou Cathal, quando acabei de apertar os cordões da sua camisa e me virei para ele. Era uma peça de lã de boa qualidade, quente e leve. Dava-me pelos joelhos.
Tentei imaginar qual era o meu aspecto. Levei a mão ao rosto e aflorei os golpes com cuidado.
- vou ficar com cicatrizes, não vou? - perguntei-lhe.
- Tenta vê-las como um acréscimo de personalidade. Fiz uma careta.
- À minha cara enfadonha? Enfim, é o que menos me preocupa neste momento. Cathal, eu devia voltar ao rio para lavar estes xailes.
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É mesmo relevante que ele esteja molhado e cheire um bocadinho mal? Não se pode dizer que seja uma criança de carne e osso. A mim, parece-me mais uma planta do que um bebé. É natural que as plantas estejam molhadas.
Olhei para baixo, para a criança adormecida, embrulhada nos seus xailes húmidos, sobre o chão da floresta. Pálpebras de folhas cobriam os olhos de pedra e as lascas de cortiça que faziam a vez dos lábios moviam-se delicadamente, para dentro e para fora, como se estivesse a sonhar que mamava. Tinha as mãos abertas, confiantes.
- É uma criança real, com necessidades e sentimentos reais, apesar da aparência estranha - repliquei. - Merece que cuidem dele, tal como Finbar merece, como qualquer bebé humano merece. Não seria correcto negligenciá-lo. Roupa limpa é apenas uma parte daquilo que lhe devemos. Ainda faltam as histórias e as canções; comida, protecção, amor. Todas as crianças precisam dessas coisas. Não devíamos negá-las a Becan só porque ele é... diferente.
Talvez quando regressasse a casa e me olhasse no espelho, também eu estivesse diferente. Talvez tivesse tantas cicatrizes que as minhas hipóteses de atrair um bom marido, alguém como Aidan, se desvaneceriam por completo. Pensei na minha irmã, Maeve, tão longe em Harrowfield, e nas queimaduras cruéis que lhe desfiguravam o rosto.
- Muito bem - disse Cathal. - Quando acabarmos de comer, mostro-te um lugar que descobri, onde existe um pequeno ribeiro e um lago. Podemos embrulhá-lo no manto; entretanto, empresto-te a minha túnica. - Cathal despiu-a enquanto falava.
- E agora vamos provar estes cogumelos.
Mais tarde, quando chegámos à beira do lago, incomodámos um texugo que estava a beber água. Sustive a respiração, vendo-o virar a cabeça e espreitar na nossa direcção, recuando depois para dentro do abrigo de fetos que orlava o curso de água. Era um texugo vulgar, sem sinais de uma natureza sobrenatural. Algures no cimo da abóbada que nos cobria, pássaros trocavam chilreies melancólicos,
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confirmando que havia mesmo vida naquela margem do rio. No matagal, algo fugiu à pressa, temendo os nossos passos cautelosos.
Instalei o bebé adormecido entre as raízes gigantes de uma árvore. Cathal deixou-se ficar numa rocha lisa e eu ajoelhei-me à beira do lago, para lavar os dois xailes e os cueiros. A frescura daquela água não parecia pertencer ao nosso mundo; era como mergulhar as mãos em gelo líquido. Enquanto batia com as roupas na rocha, tentei concentrar-me num plano para o dia seguinte. Até onde podíamos caminhar, dentro de uma expectativa razoável? Talvez fosse necessário procurar um ponto elevado, de onde pudéssemos observar a configuração do terreno. Se víssemos algum sinal de vida, seria preferível escondermo-nos ou revelarmo-nos? Manifestar a nossa presença e pedir que nos levassem até aos raptores de Finbar não me parecia, porém, um plano ajuizado. As criaturas no rio tinham-se empenhado em atacar-nos.
- Já acabaste? - perguntou Cathal em voz baixa. - Devíamos voltar para junto da fogueira.
- Penso que já devem estar limpos; a luz não é grande coisa. Talvez agora já fosse o crepúsculo. A presença de texugos e de
corujas era um indício. Ou talvez nunca deixasse de ser crepúsculo naquele lugar. A ideia era assustadora. Era muito mais fácil ter confiança à luz do Sol.
- Pareces cansada - disse Cathal, quando já tínhamos voltado a instalar-nos junto da fogueira. - Tens de dormir. Aperta a criança contra ti e usa o meu manto. Tens de aquecer-te. Ficarei acordado, de vigia, a alimentar o fogo.
- A noite inteira? - estudei-o, absorvendo o rosto esguio, as feições solenes, de onde desaparecera a habitual ironia. - Não posso deixar-te fazer isso. Tens de acordar-me daqui a algumas horas. Sei que não consigo defender-nos se nos atacarem, mas posso ficar de vigia e avisar-te, se vir ou ouvir alguém a aproximar-se.
Os lábios finos contorceram-se num sorriso.
- Se insistes.
- Insisto - repliquei. - Não quero que fiques heroicamente acordado a noite inteira e que, de manhã, estejas demasiado cansado para cumprir o teu dever. Se houver uma manhã.
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Estremeci.
Vai haver, Clodagh. - Assim que Cathal falou, uma luz prateada começou a espalhar-se furtivamente pelo chão da floresta, tocando nos troncos das grandes árvores, onde espessas camadas de musgo cintilaram com um brilho verde, e revelando nos espaços por cima de nós uma nuvem de criaturas minúsculas, a bater as asas iridescentes. Moviam-se tão depressa que os seus contornos se tornavam indistintos. Não eram insectos. Nem pássaros. Eram outra coisa.
- Pelas nádegas de Morrigan! - murmurou Cathal. - O que são?
- Pelo menos, são pequenas - respondi, recordando o ataque no rio. - Cathal, promete-me que me acordas.
- Dou-te a minha palavra, Clodagh. Sabes, não és exactamente a rapariga que eu pensei que eras quando nos conhecemos.
- Não, sou precisamente aquilo que parecia ser nessa altura -? repliquei, com algum azedume. - O meu forte é a lida da casa. Sou o tipo de pessoa que dará uma bela esposa para alguém, um dia. Não possuo nenhuma das qualidades necessárias a uma expedição como esta: não sei nadar; não sei combater; não sou corajosa; não sou persuasiva quando é preciso sê-lo. Gostava de ter a capacidade de surpreender-te, Cathal, mas não sou mais do que pareço ser.
Os olhos de pedra de Becan abriram-se naquele momento e fitaram-me, enquanto eu voltava a embrulhá-lo, usando pedaços de uma camisa de sobra que Cathal me tinha dado. A criança fez pequenos ruídos. A sua voz suavizara-se; perguntei-me por que motivo, de início, me parecera áspera como a de um corvo.
- Lamento o modo como te falei quando nos conhecemos disse Cathal, pondo os braços à volta dos joelhos. - Como Aidan certamente te contou, nunca tive talento para as conversas consideradas aceitáveis nos salões dos que nasceram nobres. Não consigo jogar esse jogo sem sabotar o meu próprio esforço; não consigo levá-lo a sério. Clodagh, parece-me que dedicas toda a tua energia a tentar fazer todos os que estão à tua volta felizes. O teu próprio bem-estar não te interessa? É difícil para mim compreender isso.
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De repente, senti-me à beira das lágrimas. Devia estar mesmo cansada. Pestanejei, afastando o choro, e peguei em Becan e nos seus cueiros, embalando-o nos meus braços.
- É difícil para mim não me preocupar com a minha família
- expliquei. - Especialmente com a minha mãe, que esperou estes anos todos para ter um rapaz. Há muito tempo, ela e o meu pai tiveram dois gémeos. Não viveram um dia sequer. Lembro-me de Muirrin nos ter levado até ao espinheiro-alvar, Deirdre, Maeve e eu, quando os rapazes nasceram, para orarmos pela saúde deles.
Talvez tivesse sido nesse dia que eu começara a perder a fé na influência benigna do Outro Mundo. Fora uma prova difícil para uma criança pequena.
- Cathal, se não fizermos isto bem, se não conseguirmos levar Finbar de volta, sei que a minha mãe não sobreviverá. Deixar-se-á simplesmente... definhar. Quem me dera saber o que está a acontecer em casa. - Lágrimas rolaram-me sobre as maçãs-do-rosto.
- Bolas. Não quero chorar - exclamei, limpando o nariz à manga da camisa emprestada. - Pelo menos, sabem onde me encontro. Contei a Sibeal o que estou a tentar fazer. Ela disse-me que ia avisá-los.
Cathal levou o seu tempo a responder. Era estranho; um dia ou dois antes, nunca teria falado tão livremente na sua presença. E, se o tivesse feito, esperaria uma resposta acutilante, acusando-me de ter um grande talento para sentir pena de mim própria. Mas eu sabia que naquela margem do rio tudo era diferente, e Cathal não fugia à regra.
- Pouco sei desses assuntos - disse, por fim. Parece-me que talvez seja razão suficiente para chorar. Envergonha-te chorares à minha frente?
Olhei para ele, intrigada.
- Não te envergonharia a ti que eu te visse a chorar? - perguntei.
- Não sei - respondeu. - Se alguma vez tiver razões para isso, dir-te-ei qual é a sensação. Clodagh, disseste que não sabias nadar?
Confirmei com um aceno.
- Não sei porquê, nunca cheguei a aprender.
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- E mesmo assim entraste no bote?
- Na altura, não havia grande alternativa.
Cathal não comentou. Tirara algumas lascas de carne seca do saco e acrescentou-as ao tacho. com a fome que eu tinha, o odor pareceu-me muito apetecível. Embalei Becan de novo, cantando-lhe para ele adormecer. Quando a criança se aninhou, de novo, no manto, Cathal passou-me uma malga cheia de carne e de caldo.
- Em breve, deixaremos de ter água potável - declarou.
- Essa regra acerca da comida do Outro Mundo também se aplica aos lagos e ribeiros?
Tentei lembrar-me de histórias que evocassem esse tema.
- Não sei. Mas acredito que as Criaturas Encantadas queiram que eu faça isto. Por isso, devo conseguir encontrar Finbar e levá-lo de volta. Talvez seja seguro beber a água. Enfim, não há nenhuma razão para desejarem encurralar-me no Outro Mundo.
Depois de um silêncio que me pareceu ligeiramente longo, Cathal comentou:
- É verdade. Mas, se a nossa viagem durar mais de um ou dois dias, não teremos alternativa se não pôr essa teoria à prova.
- Cathal?
- Sim?
- O manto. Há qualquer coisa que me intriga nele.
- Hum. - O tom não era minimamente encorajador.
- Aidan contou-me que os talismãs cosidos no forro eram objectos do teu passado; disse-me que eram memórias. Pergunto-me se...
- O quê, Clodagh? - nesse momento, ouvi o velho Cathal, aquele que mais depressa me castigava por ser metediça do que se dava ao trabalho de oferecer uma explicação. - Procuras confidências em troca daquelas que fizeste?
Esperei um pouco, analisando a sua expressão. De novo, a inquietude, o reflexo de um medo estrutural. Tinha a certeza.
- Pensei simplesmente que já estivesses preparado para falar
- retorqui. - Sobretudo agora que não há ninguém, a não ser eu, a ouvir-te.
- Não tenho nada para dizer. - Cathal mudou de posição, agitado, atiçando o fogo com um pau. - Disseste-me que eras
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a mesma pessoa que eu vi no dia em que nos conhecemos: um modelo de virtudes domésticas, uma rapariga superficial. Ora, eu sou precisamente o mesmo homem que era quando me conheceste: um forasteiro egoísta e arrogante, com um défice de sensatez que chega a ser mais grave do que a falta de educação. O que é que precisas de saber mais? - Atirou o pau para a fogueira.
Fiquei em silêncio. Era verdade, ainda há pouco lhe dissera que só tinha potencial para ser uma boa esposa. Mas isso não significava que gostasse de ouvir a confirmação dos seus lábios.
- É evidente que eu me tinha enganado - acrescentou.
- Não és de todo essa mulher. Mas eu, infelizmente, sou esse homem. Por baixo de todas as minhas peles, só encontras mais do mesmo. Muita parra e pouca uva.
- Não acredito. - Mantive o mesmo tom de voz, devolvendo-lhe o olhar. - Se isso fosse verdade, responderias com agrado a perguntas acerca do teu passado, porque não seria importante para ti. Um homem para quem o passado não é importante não carrega as suas memórias consigo para todo o lado, como talismãs protectores.
- Talismãs - repetiu, sem emoção. - Tal como os outros homens levam cruzes de sorveiras-bravas, é isso que queres dizer? Sabes que eu não acredito nessas coisas.
- E também não acreditas no Outro Mundo, não é? - fitei-o por cima das labaredas. - Terás de fazer melhor do que isso, Cathal. Fico feliz por já não me considerares uma criatura fútil e doméstica. Não sei se te interessa, mas também tive motivos para rever a minha opinião a teu respeito. Se não, nem sequer teria imaginado fazer-te perguntas desta natureza. Na verdade, pensei que a anterior era inofensiva. Outras haveria bem mais arriscadas.
- Tais como?
A sua expressão desafiava-me a responder e a enfrentar o sarcasmo. Respirei fundo.
- Podia perguntar-te quem é o teu pai.
Lembrei-me da forma como Aidan tentara convencer o meu pai de que Cathal não era um traidor, como se fosse uma questão de vida ou de morte. Lembrei-me como Cathal tinha sido amável para
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Aidan naquela manhã, nos estábulos, quando ouvi a conversa privada entre ambos. Pensei nas provocações que tinham trocado, quando exorcizaram o conflito no campo de treino. Eu tinha uma teoria acerca dessa paternidade, uma teoria que não podia partilhar com ele. Dois rapazes criados juntos, tão próximos como irmãos; a generosidade inusitada de um chefe de clã para com um rapaz da terra, de origens humildes; uma mãe que nunca quis revelar o nome do homem que lhe fizera um filho...
- Mas não o farás - retorquiu. Se era uma afirmação ou um aviso, não consegui perceber.
- Não seria apropriado - disse-lhe. - Embora me pergunte se é essa a chave da tua infelicidade, Cathal. Penso que, se decidires confiar em mim como uma amiga, talvez um dia mo contes de livre vontade.
- Para ti, eu não tenho pai - replicou, sucinto. - Ficaste triste por Lorde Sean não ter acreditado na tua história acerca do duplo, por agir como se já não acreditasse em ti. Isso vai passar. Prevejo com toda a certeza que, quando chegares a casa, o teu pai irá abraçar-te e agradecer aos deuses o teu regresso, sã e salva, mesmo que não tenhas conseguido encontrar o teu irmão bebé. E, nessa altura, vai pedir-te desculpa e admitir que errou. Dá graças por teres um pai assim, Clodagh. Por vezes, até pode parecer-te duro, mas é um dos melhores homens que existem.
- Eu sei - murmurei, com um nó na garganta. - Isto não é justo, Cathal. Nós não estávamos a falar de mim.
- Ah, sim, o manto. Bem, gosto de coleccionar pedaços e fragmentos e parece-me lógico trazê-los comigo. Cada um tem a sua história, é verdade. Podes vê-lo como parte de uma imagem cuidadosamente cultivada: a imagem de um homem excêntrico, sem residência fixa. Daí a minha necessidade de transportar objectos que me lembram quem sou e de onde venho.
Era uma resposta muito pouco satisfatória.
- Quando estávamos escondidos por baixo da rocha, no momento em que Aidan quase nos apanhou com os cães, tu enfiaste o manto na cavidade - disse-lhe -, e os cães passaram por nós sem hesitar. Eu conheço aqueles cães. Têm um treino intensivo. Não lhes teríamos escapado.
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Cathal não disse nada.
- Quando atravessámos o rio, o manto continuou seco. Mas as outras roupas ficaram quase todas encharcadas - prossegui.
- Quando me cubro com ele, aqueço logo, e não é só porque a fazenda é espessa... é algo mais. Inexplicavelmente, sinto-me mais segura. Isto pode parecer-te estranho, Cathal, mas pergunto-me se aqueles talismãs não terão algum poder. Não encolhas os ombros, estou a falar a sério. O meu tio Conor disse-me uma vez que a magia do lar, como pôr pedras brancas na soleira da porta para manter uma casa segura, ou tecer o vime de uma determinada maneira para proteger as provisões que guardamos num cesto, pode ser muito eficaz se for cumprida com uma fé genuína. Pergunto-me se... se os testemunhos de bons tempos, se os símbolos de amor e de amizade, por exemplo, não poderiam dar a uma peça de roupa, como este manto, um poder protector. Vês? Não estou a fazer-te uma pergunta difícil e pessoal, limitei-me a apresentar-te uma teoria.
- Estás a ver se caio na armadilha - replicou.
- Não lanço armadilhas aos meus amigos. Silêncio. Depois, acrescentou:
- Talvez não tenhas percebido bem as minhas razões para estar aqui.
- Talvez devas dizer-me quais são.
De repente, a atmosfera entre nós adensou-se com o sentimento de uma coisa perigosa e não expressa. Senti um estranho formigueiro na pele.
- Não posso falar sobre isso - respondeu. - Não posso explicar-te. Clodagh, eu tinha um amigo naquela margem. Pensa no que aconteceu nesse lugar. A última vez que o vi, tentou matar-me.
Não me agradava o rumo daquela conversa. Ali estávamos nós, nas entranhas da floresta, numa terra desconhecida e indecifrável, e o meu único companheiro queria que eu me afastasse. Entretanto, as entidades minúsculas e cintilantes que rodopiavam e revoluteavam por cima das nossas cabeças tinham desaparecido e, de um momento para o outro, a floresta pareceu-me grande e vazia.
- Não precisavas de ter vindo comigo - disse-lhe, tentando não mostrar a irritação que sentia.
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Cathal suspirou.
- Vai dormir, Clodagh.
Senti nas suas palavras a rejeição, abrupta. Ele não queria falar comigo. Não queria ouvir-me. Fora uma tolice da minha parte tentar aproximar-me.
Pousei a malga vazia e estendi-me ao lado de Becan, cobrindo-nos a ambos com o manto. Uma coisa fria e macia roçou na minha face ferida e eu levantei a mão para lhe tocar. Um anel; em vidro verde, simples e pequeno. Um anel de mulher. Servir-me-ia, pensei.
- É da minha mãe - disse Cathal, que não me via certamente do lugar onde estava sentado. - É a única coisa dela que eu tenho. Não quero falar do anel e não quero falar da minha mãe. Nem dele. Nem agora, nem nunca. É melhor conservarmos alguma distância um do outro. Não estou aqui por ter um desejo ardente de ser teu amigo, de contar-te todos os meus segredos. Estou aqui porque sinto que esta infeliz trapalhada, até ao mais ínfimo pormenor, aconteceu por minha causa. Eu disse ao Johnny que não queria vir para Sevenwaters. Ao trazer-me, trouxe a catástrofe para o seio da sua família. Agora, dorme. Receio que amanhã seja um longo dia.
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Capítulo Dez
Não foi Cathal quem me acordou antes de amanhecer, mas Becan, exigindo alimento com um gemido esganiçado. Alimentei-o, a bocejar. Cathal informou-me que não tinha detectado nenhum sinal de perigo e aceitou dormir um pouco, com alguma relutância, enquanto eu ficava de vigia. Não quis cobrir-se com o manto, insistindo que eu teria demasiado frio. Mas esperei que adormecesse e, depois, estendi-o sobre ele, instalando-me perto da fogueira com Becan nos braços. A floresta emudecera. Nada estremecia na folhagem; nenhum grito agitava, lá no alto, a copa das árvores. O luar desaparecera e a cor do céu sugeria que o nascer do Sol não estava longe, se é que o Sol alguma vez descia àquele reino sinistro. Embora o ar fosse puro e fresco, algo na natureza do lugar me fazia sentir como se estivesse por baixo de terra, com um peso sobre mim. Tinha saudades do meu pequeno quarto de dormir, dos átrios e escadarias familiares de Sevenwaters, do conforto da minha rotina diária. Ansiava por lucidez e clareza de pensamento. O que significava o desabafo de Cathal, de que tudo tinha sido culpa sua? Seria, afinal, uma maneira de confessar a traição? Custava-me acreditar nisso. Cathal fugira de Sevenwaters pouco antes de o ataque ser comunicado. Tinha-me distraído no momento em que raptaram Finbar. E, depois, deixara-se ficar na floresta, a vaguear, em vez de fugir, e decidira acompanhar-me até ao Outro Mundo. Nada daquilo fazia sentido.
Observei-o enquanto dormia, esticado por baixo do manto, com a cabeça apoiada num braço dobrado. Em repouso, as suas fei-
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ções eram agradáveis: não eram atraentes como as de Aidan, ou harmoniosas como as de Johnny, mas graves e fortes. Nas pálpebras, havia uma sombra de cansaço; os traços vincados da tatuagem de raposa realçavam as sobrancelhas escuras e enfáticas, o nariz aquilino e os ossos salientes das maçãs-do-rosto. Os contornos da cara eram todos angulosos, sem um traço de suavidade, embora os seus olhos parecessem menos severos enquanto dormia. Se era realmente meio-irmão de Aidan, como eu suspeitava, havia poucos sinais físicos desse parentesco. É melhor conservarmos alguma distância um do outro, dissera-me. Perguntei-me, de novo, por que motivo me teria beijado.
- Não quero que ele seja um inimigo - murmurei. Naquele momento, ouvi um som parecido com uma tosse seca,
que vinha de baixo do matagal, mesmo ao meu lado. Levantei-me de um salto, apertando Becan contra o peito.
- Quem está aí? - silvei, dizendo a mim própria que devia ser apenas um texugo, mas sabendo intimamente que não era.
Um ruído de passos rápidos nos arbustos. Não eram garras, nem patas; eram pés calçados. Pensei tolamente em dunchauns com botinhas verdes.
Cathal estremeceu, tapou os olhos com um braço e rebolou para o outro lado, virando-se de costas para mim. Não queria mesmo acordá-lo, a não ser que não conseguisse resolver o problema sozinha. Ele parecia-me tão cansado... Adormecido, era quase como se estivesse em paz. Mas se aquela coisa, o que quer que fosse, emergisse da folhagem armada até aos dentes, eu não hesitaria em gritar. Não valia a pena ter um guerreiro de Inis Eala ao meu lado se não pudesse servir-me dele num momento de crise.
- Mostra-te! - exclamei, com a coragem que pude, fechando a mão em torno do cabo da pequena faca que trazia presa ao cinto.
- Amigo ou rival?
Um riso abafado libertou-se dos fetos e, momentos depois, surgiu uma figura de baixa estatura, envolvida num manto de pêlo cinzento, com capuz. Não conseguia ver-lhe o rosto, porque uma máscara lhe cobria as feições, uma máscara de cão feita de prata reluzente e trabalhada com uma extraordinária riqueza de pormenores, até ao mais
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ínfimo dente da boca escancarada, e ao pêlo mais fino do forro cintilante. As orelhas eram arrebitadas, como as de um cão de caça em alerta. A criatura por baixo daquele disfarce era do tamanho de uma criança. A mão, segurando a haste de prata que sustinha o rosto falso, era humana na forma, mas coberta de pêlos, como o manto. Talvez fosse uma luva; talvez não. Através dos furos na máscara, consegui ver uma nesga de olhos brilhantes.
- Um desafio! - a voz da criatura era profunda e vigorosa; não se tratava de uma criança. - Amigo ou rival: agrada-me. Porque é que viajas com ele? - A criatura sacudiu a cabeça na direcção de Cathal. - Ele não me cheira bem. Porque é que o trouxeste para aqui? É melhor livrares-te dele o mais depressa possível.
- O quê? - fiquei chocada. O facto de ter estado justamente a pensar se o meu companheiro era um traidor pareceu-me irrelevante. - Porquê? E em que medida é que isso te diz respeito?
A pequena entidade não tinha um ar particularmente ameaçador, mas era melhor ter cuidado. Fosse lá quem fosse, aquele ser canino não era certamente uma Criatura Encantada.
- Livra-te dele! - silvou. - Mau sangue! Sombras e escuridão!
Do canto do olho, vi Cathal estremecer de novo. Não virei a cabeça.
- Porque é que eu te daria ouvidos? - perguntei, com a maior tranquilidade que pude, embora as suas palavras me tivessem arrepiado.
- Queres um guia, não queres? Eu posso guiar-te. Mas a ele não o levo a lado nenhum. Se continuares ao seu lado, seguirás o inevitável caminho do desgosto. Tens de deixá-lo amanhã. Parte numa direcção e deixa-o partir na direcção oposta. Enquanto ficar contigo, ver-te-ás cercada de dificuldades. Serás agredida, magoada, escoriada, lacerada. Verás a tua beleza desfigurada por esses cortes. Acredita, o pior ainda está para vir, se o conservares ao teu lado. Não precisas dele, Clodagh. Não o queres. São escumalha, os da sua laia.
- Como é que sabes o meu nome? Era profundamente perturbador.
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- Nós sabemos. Como não interessa. Livra-te dele, depressa.
- Eu nunca teria atravessado o rio sem a ajuda de Cathal repliquei, sem levantar a voz, embora começasse a ficar zangada.
Sem ele, nunca o teria sequer encontrado. Independentemente
do que possa ter feito no mundo real, Cathal está aqui porque quer ajudar-me. Ele disse-me isso e eu acredito nele.
A máscara virou-se para mim.
- Tu tens pena dele - afirmou, num tom de voz neutro.- Como também tens pena desse pequeno destroço que jaz sobre os teus joelhos.
Cobri com uma mão protectora a forma enroscada de Becan, envolvida na túnica de Cathal.
- Pena? - retorqui. - Não creio. Tento apenas dar aos outros o benefício da dúvida. Tento não fazer juízos precipitados.
- Ah, muito bem - retorquiu Máscara-de-Cão, despreocupadamente. - Depois não digas que não te deram uma oportunidade de seres ajudada.
A figura atarracada começou a desaparecer diante dos meus olhos.
- Espera! - gritei. A criatura deteve-se, oscilando dentro e fora do meu campo de visão. - Quem és tu? Porque é que queres ajudar-me?
- Isso é irrelevante se escolheres conservá-lo contigo. Se o fizeres, terás de descobrir o caminho sozinha.
- Ele é um homem de Inis Eala - repliquei, perguntando-me se não seria uma ousadia extrema da minha parte, mas sabendo que não cederia a chantagens. - Ele descobrirá o caminho por mim.
com uma gargalhada estrepitosa e sarcástica e um rumor na folhagem, a criatura desapareceu. Por todo o lado, senti uma mudança e um movimento no jogo de sombras, como se uma multidão, e não apenas uma criatura, tivesse estado ali presente. Senti que recuavam para dentro da paisagem, fundindo-se com a terra, com os troncos das árvores e com os arbustos. Depois, o silêncio absoluto. Apertei Becan contra mim.
- Não digas nada - sussurrei-lhe. - Provavelmente, imaginei tudo isto. Uma pancada na cabeça provoca estes delírios.
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Tentei lembrar-me de todas as histórias que tinha ouvido a respeito dos vários povos que habitavam o Outro Mundo: os grandes e poderosos Tuatha De Danann e as outras raças com quem partilhavam esse reino. Estas incluíam uma tribo comummente conhecida como os Anciãos, que se definia por uma invulgar capacidade de se diluir na paisagem, assumindo formas semelhantes às das árvores, rochas e ribeiros. Por vezes, os Anciãos não eram mais do que vozes na sombra. Outras, adoptavam a imagem de certos animais. Não eram amigos das Criaturas Encantadas. Na verdade, existia entre os dois povos uma amarga rivalidade, que datava de tempos imemoriais, altura em que uma grande guerra grassara em Erin e os Anciãos haviam sido recambiados para as suas grutas profundas, para os seus poços recônditos e ilhas remotas. Desejei que um dos meus tios druidas ali estivesse e que eu pudesse questioná-lo a propósito desse povo. Ocorreu-me, contudo, que um dos antepassados fundadores de Sevenwaters se casara com uma mulher da tribo dos Anciãos. Isso significava que um pouco do sangue deles corria nas minhas veias.
- Ainda assim - murmurei, ao ouvido de Becan -, não significa que sejam de confiança. Não quero fazer isto sozinha, pequenino. Não quero abandonar Cathal. Seria injusto. Desgosto, disse a criatura. Isso quer dizer que não recuperarei Finbar se não for sozinha? Ou será que é tudo uma espécie de armadilha?
Mas Becan adormecera de novo, com o rosto pequeno e estranho em repouso nas dobras da túnica. Senti-me gelada. Cathal tinha razão, o seu manto era a única peça de vestuário que nos protegia do frio da floresta, durante a noite. Por momentos, permiti-me imaginar que me enfiava, sem fazer barulho, por baixo dele, enroscando-me ao seu lado, e que os nossos corpos se aqueciam mutuamente. Senti as faces a arder. Na verdade, era um disparate que alguém se arriscasse a morrer de frio só para não agir de maneira imprópria. Se o tempo continuasse a arrefecer, a tentação seria grande. No entanto, eu devia estar de vigia. Entre suspiros, levantei-me e apalpei o meu manto, ainda pendurado junto da fogueira. Estava quase seco. Cobri-me e instalei-me, à espera que amanhecesse. Não saberia dizer quanto tempo faltava para a madrugada. O tempo ali compor-
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tava-se de outra maneira; nas histórias, era um fenómeno recorrente. A nossa viagem podia parecer uma aventura de apenas alguns dias e, no mundo dos humanos, o tempo escoar-se muito mais depressa. Pensei que não seria capaz de sobreviver à ideia de regressar a casa triunfante, com Finbar nos braços, e descobrir que a minha família envelhecera vinte, trinta, quarenta anos, que os meus pais já estavam mortos, que Sibeal e Eilis se tinham transformado em mulheres de meia-idade e que a minha casa mudara com a passagem de uma geração inteira. Talvez pior ainda: cem anos e já não haveria nada. Afaguei o corpo adormecido de Becan, procurando tranquilizar-me. Nas histórias, algumas pessoas nunca regressavam.
Quando Cathal acordou, eu já quase decidira não lhe contar o que tinha acontecido. Ter de explicar por que motivo recusara aquela oferta de ajuda era particularmente incómodo, uma vez que ele tornara bem claro que não sentia por mim qualquer amizade, apenas um estranho sentimento de dever. Eu sabia que Cathal não tencionava explicar-me porque é que as desgraças que se tinham abatido sobre a minha família eram, de algum modo, culpa sua. Ele nunca se explicava. Se quisesse chegar ao fundo da questão, teria de me empenhar muito para conquistar a sua confiança. E talvez o meu visitante nocturno tivesse razão. Talvez Cathal fosse o impostor que eu começara por pensar que ele era, e eu me preparasse para entrar no campo de batalha ao lado do inimigo. Talvez me deixasse enganar pelos meus sentimentos. Fossem eles quais fossem. Não era pena; nisso, a criatura falhara. Cathal não era uma pessoa que inspirasse pena - era um enigma. Nunca tinha conhecido ninguém tão marginal como ele. Parecia-me até que se sabotava a si próprio. Como era incapaz de integrar-se, fazia questão de se alhear ainda mais das regras que regiam a vida das pessoas comuns. E, no entanto, havia nele uma profunda infelicidade. Se ser estranho, excêntrico e imprevisível era uma escolha sua, não o fazia de bom grado. Eu tinha quase a certeza de que Cathal desejava, acima de tudo, pertencer a algum lugar; sentir-se em casa. Talvez em Inis Eala tivesse encontrado um mundo onde isso era possível. Johnny não lhe
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facilitara a vida ao trazè-lo para Sevenwaters. Era evidente que teria preferido nunca me ter posto a vista em cima.
Por fim, acabei por contar-lhe tudo, enquanto arrumávamos o acampamento, depois de um pequeno-almoço frugal. A visita invulgar, o aviso enigmático, a oferta de ajuda se certos requisitos fossem cumpridos.
- Por isso, disse-lhe que não - concluí. - Disse-lhe que confiava em ti, que sabia que encontrarias o caminho.
Cathal permanecera em silêncio durante a maior parte do meu longo e pormenorizado relato; e continuava em silêncio, concentrando-se em atar as tiras de couro à volta do saco.
- Talvez tenha sido um disparate - comentei, enquanto ajustava a posição de Becan na bolsa de pano. Era de dia. Não se via o Sol, mas uma luz esbatida enchia a floresta à nossa volta e, por cima dos ramos entrançados daquelas árvores gigantes, o céu estava dourado. com a roupa seca e o meu manto por cima, sentia-me, por fim, confortavelmente quente. Aos poucos, recuperei a minha coragem.
- Devias ter-me acordado - disse Cathal. - E se a criatura te tivesse atacado? É para isso que aqui estou, para proteger-te.
- Estavas cansado. Queria que dormisses um pouco. E não me atacou. Tudo leva a crer que, se estivesses acordado, não teria falado comigo. Tentou persuadir-me de que eras um perigo. Escumalha, penn só que foi a palavra utilizada.
- Ah, pois - disse Cathal. - Já me chamaram nomes piores. Quanto ao caminho, vamos encontrá-lo juntos. Estás pronta?
Cathal estendeu-me a mão e surpreendi-lhe uma expressão que era rara no seu rosto - um sorriso doce e descomplicado, que se desvaneceu quase instantaneamente.
- Estou pronta - respondi, e avançámos juntos.
Na floresta, reinava o silêncio, mas já não era um silêncio vazio. Por baixo de cada árvore gigante e musgosa, na mais subtil depressão de terreno, à volta de cada amontoado de rochas, morava a sensação de que algo estava prestes a acontecer. Sentia que de todos os lados nos fitavam. Esperavam-nos; observavam-nos. Caminhei com a pele arrepiada, empenhada em controlar a respiração. Cathal im-
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primia o ritmo; eu acompanhava-o. Comecei a sentir dores nas pernas, mas não me queixei.
Depois do que me pareceu ser uma manhã inteira a caminhar, os intervalos entre as árvores dilataram-se, as árvores em si tornaram-se mais esguias, mais jovens, a luz, mais viva. Contudo, a neblina pairava ainda por todo o lado - uma luz difusa e dourada que nos impedia de ver mais além. Saímos da floresta para uma encosta verdejante, que descia abruptamente mais à frente, e cujo fundo desaparecia na claridade intensa. Não se via uma fracção daquela paisagem; apenas a incerteza resplandecente do nevoeiro.
Parámos, lado a lado, perscrutando a escuridão branca.
- Pergunto-me se vai dissipar-se, como uma vulgar neblina murmurou Cathal. - É melhor pararmos aqui e ver se as condições melhoram. Não me agrada entrar naquilo. Talvez haja outro caminho.
A ideia de recuar, de novo, até à floresta, à procura de um outro caminho, era assustadora. Agradara-me sair dos seus espaços escuros, aliviada por libertar-me do peso daqueles olhos invisíveis que espiavam a nossa passagem.
- Muito bem - respondi, uma vez que não havia mesmo alternativa.
Ficámos sentados durante algum tempo, a partilhar o odre de água de Cathal. Os nossos olhares cruzavam-se quando o recipiente mudava de mãos, confirmando que no final do dia estaria vazio.
Por fim, julguei ver uma zona em que a mortalha de vapor parecia menos densa. Pedras brancas despontavam na erva, reunidas em grupos de três, de cinco e de sete: um trilho. Conseguia ver talvez até doze passos mais à frente.
- Penso que podemos ir - declarei. - Parece que alguém assinalou o caminho.
Descemos a encosta em direcção à claridade, seguindo o trilho estreito. Começava a tornar-se evidente que, se continuássemos a progredir naquele reino, esse progresso teria de obedecer às regras de outros. O véu ofuscante afastou-se apenas o suficiente para permitir o nosso avanço, sem nos deixar ver o que nos rodeava. Acontecera o mesmo na travessia do rio: enquanto o caminho nos era ré-
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velado, a margem que ficara para trás cobria-se de nevoeiro. Não me agradava, e percebi que Cathal sentia o mesmo. A tensão nos seus maxilares dizia-me que teria preferido, de longe, ir à procura do seu próprio trilho. Muito possivelmente, conduziam-nos a uma espécie de armadilha. Na bolsa de pano, Becan dormia em paz. Assustava-me a sua profunda confiança.
O terreno endireitou-se. Agora, à volta dos nossos pés, cresciam plantas por entre as rochas: uma vegetação rasteira, cinzenta e esverdeada, aromática. O lugar cheirava a um jardim de ervas, e aquele odor devolveu-me uma memória muito viva da minha infância: na cozinha de Sevenwaters, com a minha mãe, a aprender a melhor maneira de fazer um caldo de legumes. A nuvem de cabelos vermelhos da mãe cintilava à luz de um raio de sol que entrava pela janela; tachos e caçarolas bem polidos brilhavam nos seus suportes; os meus olhos enchiam-se de lágrimas enquanto descascava cebolas. Maços de ervas secas pendiam por cima de nós - rosmaninho, lavanda, tomilho - e um surtido de folhas acabadas de colher jazia na tábua de cortar à minha frente. Muito bem, Clodagh, dizia-me ela, e eu sentia o coração mais quente. Tens um verdadeiro talento para isto.
Tropecei numa rocha, pestanejando para afastar as lágrimas. A neblina desvanecera-se ligeiramente e Cathal retomara o ritmo inicial, caminhando mais à frente. Esquecera-se de que as minhas pernas eram muito mais curtas do que as suas. Corri atrás dele, amparando Becan com um braço.
O aroma tornou-se mais forte. Invadiu-me as narinas, a garganta, os pulmões. Senti-me tonta. Estava a ficar, de novo, para trás. As pernas perdiam força; o corpo exigia repouso. Um protesto ergueu-se de todos os cantos do meu ser: demasiado longe, demasiado rápido, demasiado tempo... Senta-te... Deita-te... Dorme...
Mais à frente, Cathal vacilou. Deu mais dois passos e caiu de joelhos, levando a mão à testa. O manto arrastou-se pelo chão, roçando nas plantas rasteiras e libertando uma vaga ainda mais poderosa daquele odor soporífico. Ouvi a sua voz como se fosse um sonho.
- Clodagh? Clodagh, onde estás?
Pareceu-me um esforço imenso responder-lhe.
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Aqui - chamei, num fio de voz, porque não conseguia encher os pulmões de ar. Algo me puxava para baixo, me pesava nas pálpebras; não conseguia conservá-las abertas. Becan estava tão pesado... Se desprendesse a bolsa de pano, podia pousá-lo por momentos. Tinha de descansar...
Acocorei-me, reparando distraidamente que ali as pedras brancas formavam uma pequena espiral, com uma planta minúscula no meio, talvez uma variedade de tomilho, com folhas cinzentas esverdeadas e cachos de delicadas florinhas cor-de-rosa em miniatura. Que calor... Talvez pudesse despir o manto, estendê-lo no chão e deitar-me um pouco... Num lugar tão encantador, teria certamente bons sonhos.
- Clodagh! - uma mão agarrou-me o braço, apertando-o com tanta força que me encolhi. Cathal ajoelhara-se ao meu lado. Olhei para cima. A sua silhueta coberta pelo manto flutuou à minha frente, agora um homem, depois outra criatura, uma que seria certamente mais rival do que amiga.
- Clodagh, levanta-te! Vamos!
Cathal sacudiu-me. Como não reagi, esbofeteou-me com força. Por cima dos cortes do dia anterior, era cruel. Choraminguei, baixando-me para proteger o bebé.
- Clodagh, pelos deuses, levanta-te, está bem? Este lugar está enfeitiçado. Temos de avançar!
- Não - gemi, cerrando os olhos. As pernas e os braços pesavam-me como chumbo. Estavam quase ao meu alcance, esses sonhos deslumbrantes, de calor, amor e felicidade. Era injusto que ele mos quisesse tirar, tão injusto... Aquela criatura na floresta tinha razão, Cathal não era um amigo, queria estragar tudo...
Dei por mim a ser agarrada por dois braços, içada até ficar de pé e pendurada ao ombro do meu companheiro. Apanhado no meio daquela manobra, Becan começou a gritar.
- Pára! - berrei, súbita e dolorosamente acordada. - Vais esmagá-lo! Põe-me no chão, eu posso andar! Cathal, por favor!
Ele ignorou-me, caminhando em direcção à obscuridade do nevoeiro a um ritmo demasiado veloz para ser seguro.
- Cathal, eu consigo andar! O que é que estás a fazer?
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- Pára de lutar, Clodagh - nem sequer me parecia ofegante.
- Assim que sairmos deste lugar amaldiçoado, poderás andar tudo o que quiseres.
Cathal reajustou o seu amplexo para dar mais espaço a Becan, mas o bebé já estava aterrorizado. Os seus guinchos encheram-me os ouvidos e reviraram-me o estômago. Não havia maneira de acalmá-lo; eu estava de cabeça para baixo, com a cabeça a baloiçar, e o máximo que podia fazer era evitar que ele caísse da bolsa de pano. Fechei os olhos e cerrei os dentes. Ardiam-me as faces. Sentia o nariz entupido de lágrimas.
Cathal só parou quando o tapete de ervas por baixo dos nossos pés deu lugar a um solo pedregoso e o terreno começou a subir. O odor atenuara-se. Senti a cabeça desanuviar-se, embora ser transportada como uma saca de legumes me tivesse provocado uma dor latejante nas têmporas. Quando Cathal me pousou finalmente no chão, as minhas pernas cederam e desmoronei-me como um castelo de cartas. Cathal deixou cair os dois sacos e acocorou-se ao meu lado. Até ali, não tinha tomado consciência do peso que ele carregara.
Desfiz-me em lágrimas. Era um comportamento miserável, inteiramente indigno de uma rapariga incumbida de uma missão, mas não consegui evitá-lo.
Cathal abriu o saco e tirou um pedaço de tecido limpo, um pequeno púcaro com bálsamo e o odre. Depois, molhou o tecido. Funguei uma última vez, num alvoroço húmido e palpitante, e ouvi-o dizer:
- Respira fundo várias vezes e, depois, faz-me o favor de ficares quieta.
Cathal começou por limpar os cortes que eu tinha no rosto. O tecido percorreu as linhas dos golpes feitos no dia anterior. Tocou-me nos cantos dos olhos, num sulco na testa. Quando tudo ficou limpo, untou as lesões com o bálsamo, tocando-me com os dedos delicadamente. Os seus olhos pareceram-me fundos e solenes, os lábios comprimidos num gesto de concentração. Não me disse mais nada. Apercebi-me de que eu própria estava a suster a respiração. Na bolsa de pano, Becan tranquilizara-se, embora o seu pequeno peito ainda palpitasse de indignação.
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- Desculpa - disse-lhe, sabendo que estava a ser inconveniente. Comecei a ver imagens da minha casa, da casa tal como era
antigamente, quando tudo estava bem. E só me apetecia dormir,
tanto...
- A mim também - disse Cathal, afastando-se um pouco e examinando o meu rosto com um ar crítico.
- Vi que quase caíste - comentei. - Depois, tudo se enevoou e não consegui... Lamento muito, Cathal. Como é que foste capaz de vencer o sono e tirar-nos dali a salvo?
Ele fez uma careta e começou a arrumar os seus objectos.
- Quem sabe? - respondeu, de ânimo leve. - Julgo que deve ser do treino. Aprendemos a resistir a vários ataques, incluindo os que se dirigem à nossa mente. Clodagh, penso que devíamos seguir caminho de imediato. Consegues?
- Claro - respondi, levantando o queixo.
- E ele? - Cathal já tinha o saco preparado e estava pronto para partir. com a cabeça, apontou para Becan. - Desculpa-me se o magoei. Fiz o que me pareceu necessário na altura.
- Penso que ele está bem.
Pus-me de pé. Os joelhos ainda tremiam. Queria ser forte e corajosa; pensava que podia sê-lo. Era profundamente vergonhoso sentir-me à beira das lágrimas ao mínimo revés.
Cathal pôs o saco dele às costas e içou o meu.
- Tu não és um guerreiro - declarou, tímido. - Estás a fazer o melhor que podes. E a mais, ninguém é obrigado.
Fiquei em silêncio. Havia um certo consolo nas suas palavras, porque eu sabia que ele não era o tipo de homem que diria aquilo apenas para me confortar. Ainda assim, o meu melhor era bem pior do que eu esperara.
Cathal murmurou qualquer coisa, de costas para mim.
- O que foi?
- Eu não queria bater-te, Clodagh.
- Tentarei manter-me acordada daqui em diante, para não teres de voltar a fazer o mesmo - respondi, com alguma severidade.
- Vamos?
Subimos, e a luz foi mudando. Dissipou-se a neblina dourada e, numa infinita lentidão, a paisagem em nosso redor emergiu do ne-
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voeiro: estranhas protuberâncias de rocha, caminhos estreitos e pedregosos serpenteando para fora e para dentro, árvores anãs fincadas entre rochedos. Ao longe, colinas escarpadas e vales fundos e secretos. Um manto de árvores cobria as depressões mais marcadas, ocultando pormenores. Mais acima, montanhas despidas culminavam em cumes escarpados que faziam lembrar fortalezas grotescas, das quais, a qualquer momento, podiam sair enxames de morcegos gigantes ou aves de rapina em missão de ataque. O firmamento, plúmbeo, cor de chumbo. Os últimos raios quentes de luz já tinham desaparecido. No céu, havia algo de opressivo. Invadiu-me, de novo, a sensação de esmagamento, como se todo aquele reino fosse, de algum modo, subterrâneo. E, no entanto, na noite anterior, tinha havido luar.
- O que procuras? - perguntou Cathal, protegendo os olhos de um Sol invisível, enquanto observava os vales arborizados que se estendiam mais abaixo. - Uma povoação? Uma fortaleza? Onde é que esta gente vive?
Histórias fluíram, em desordem, pela minha memória.
- No fundo dos lagos - respondi. - Em colinas ocas. Em cavernas. Não creio que haverá povoações. As histórias falam de salões, palácios e afins. Ou de seres que apenas... vagueiam pela floresta.
- E os cumes das montanhas? - Cathal estava a olhar para cima, para aquele pico escarpado que atraíra a minha atenção e que parecia uma fortaleza. - Há qualquer coisa a mover-se lá em cima e não são árvores batidas pelo vento. Talvez nos devêssemos esconder, até percebermos o que é. Aqui em baixo.
Acocorámo-nos atrás das rochas.
- O que é que viste? - sussurrei.
- Talvez sejam apenas crias de águia no ninho. Não me pareceu convincente.
- Ou?
- Ou uma espécie de posto de vigia, embora fosse difícil estar sempre a subir e a descer. Estas criaturas têm asas?
- Não creio.
Os mais pequenos é que costumavam esvoaçar de um lado para o outro, disfarçados de pássaros ou de insectos. As Criaturas En-
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cantadas, tanto quanto sabia, eram semelhantes aos seres humanos, embora fossem mais altas e mais bonitas, mais impressionantes, de um modo geral.
Vem mais para baixo, para aqui.
Era uma espécie de saliência plana, na rocha, bem protegida por dois grandes blocos de pedra arredondados, mas parcialmente aberta à encosta mais abaixo. Cathal guardou aí os dois sacos.
- vou escalar e ver se consigo encontrar uma vista melhor. Não levantes a cabeça acima destas rochas até eu dizer que é seguro.
Por momentos, tudo se acalmou. Estendi o manto e ocupei-me da criança, pensando na estranha visita da noite anterior. Perante as dificuldades que tínhamos enfrentado nesse dia, seria um disparate recusar a orientação da criatura. Se tivesse sido mais perspicaz a lidar com aquela situação, talvez pudesse tê-la convencido a levar-nos a ambos, a mim e a Cathal. Nem sequer lhe perguntara se sabia onde estava Finbar. O meu irmão... A sua imagem desfocava-se na minha memória: as feições delicadas e infantis, o tufo de cabelo preto tornavam-se, apenas, uma vaga lembrança, uma mistura de todos os bebés humanos que eu tinha visto. A criança nos meus braços, com os seus membros vincadamente angulosos e o corpo frágil composto de folhas e de galhos torcidos, era muito mais real. Quando Cathal me içara sobre o ombro e Becan se vira, por momentos, entalado entre os dois, eu tinha sentido um angústia dilacerante só de pensar que ele podia ser esmagado.
- Não deixarei que ninguém te magoe - murmurei. - Ninguém. Comigo, estás em segurança. Prometo.
Não sei bem o que ouvi primeiro: se o grito de Cathal, se o ruído surdo e prolongado das rochas a deslocarem-se. Aconteceu num piscar de olhos. Eu estava sentada de pernas cruzadas, com a criança nos braços, a vê-la beber e, no momento seguinte, os blocos de pedra que cercavam o nosso pequeno abrigo começaram a mover-se inexoravelmente na minha direcção, rolando para dentro de moto próprio, como se quisessem esmagar-me. Levantei-me de um salto, deixando cair o trapo e o odre e apertando Becan contra o peito.
- Cathal! - gritei, recuando perante aquela parede de pedra em movimento. Frenética, procurei uma saída à volta, por baixo,
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por cima, mas com a criança ao colo não havia maneira de voltar ao trilho. A única direcção em que podíamos fugir era pela encosta abaixo. Embora não fosse demasiado íngreme, era acidentada, crivada de rochas mais pequenas e salpicada de tufos de musgo de aspecto escorregadio. A uma distância razoável, lá em baixo, havia uma cortina de arbustos. Não era possível ver o que estava do outro lado.
As rochas rangiam, friccionando-se umas nas outras.
- Cathal! - gritei, de novo, e fugi pela encosta abaixo, abandonando as nossas provisões. Ainda olhei de relance, por cima do ombro, quando os blocos de pedra alcançaram o limite da plataforma, rolando mesmo até à borda e recuando em seguida, como se troçassem de mim. Se viessem atrás de nós, não conseguiria esquivar-me. Becan e eu seríamos eliminados.
- Clodagh!
Algures lá em cima, para lá do afloramento de rochas, Cathal ouvira-me. Voltei a olhar de relance para trás, mas não consegui localizá-lo. Desci de lado, tentando conservar o equilíbrio no declive duvidoso.
Um bloco de rocha caiu do cimo da colina. com um ruído estrepitoso, de pedra triturada, rebolou pela encosta sem seguir um caminho lógico, mas avançando directamente para mim com um aparente desígnio, como se um gigante invisível estivesse a jogar à laranjinha. Fiquei petrificada, incapaz de mover-me para um lado ou para o outro. O projéctil passou por mim à tangente. Era um aviso. Nem à esquerda, nem à direita. Directamente para baixo.
com o coração aos pulos, desci pela encosta a correr, enquanto Becan protestava tardiamente pela refeição interrompida e pelo movimento sacudido e caótico.
- Clodagh! - gritou Cathal, parecendo mais próximo, mas naquele momento eu não podia olhar, porque vinham mais rochas a caminho, à esquerda, à direita, e a minha única alternativa era seguir pelo meio. Corri directamente para os arbustos. Algo cruzou os ares por cima de mim, uma coisa com asas, negra e pesada. Baixei-me, protegendo o bebé como podia, e depois desatei a correr.
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À minha frente, as rochas romperam a cortina de arbustos e desapareceram. A criatura deu meia volta e regressou, voando baixo, aos guinchos, sobre a minha cabeça, empurrando-me pelo caminho. com a criança apertada nos braços, atravessei os arbustos a correr e caí de cabeça no vazio.
Em menos de um instante, todas as pessoas de quem eu gostava desfilaram, como relâmpagos, no meu pensamento: as minhas irmãs, os meus pais, Johnny, Aidan... Becan, que morreria comigo; Cathal, cuja história eu nunca chegaria a conhecer; Finbar, perdido no Outro Mundo para sempre... Caí e continuei a cair, e o ar puxava-me os cabelos e a roupa enquanto eu apertava o bebé, tentando enroscar-me à volta dele, na tentativa inútil de amortecer a sua queda. Senti-me liquefeita por dentro; o meu coração, de terror, deixou de bater...
Aterrámos, não numa amálgama de carne esmagada e ossos estilhaçados, mas com um ruído surdo numa superfície elástica que apenas me tirou, temporariamente, o ar dos pulmões. Não abri os olhos. No meu corpo, não havia um único músculo que não estivesse transformado em pedra. Senti, então, uma coisa por baixo de mim, algo que me sustinha, uma superfície maleável, como uma rede. Vozes de pássaros circulavam à minha volta. Uma brisa fresca soprava-me o cabelo para cima do rosto. Becan gritava. Abri os olhos.
Estávamos numa árvore, talvez uma espécie de salgueiro-anão. Crescia numa bolsa de terra alojada numa reentrância do penhasco, de onde caíramos a pique. As suas raízes deviam ter cavado fundo para conseguirem sustentá-lo num espaço tão reduzido. O emaranhado de ramos, estendendo-se sobre o vazio, apanhara-nos. A copa que tinha brotado na Primavera amortecera a nossa queda. Estávamos salvos. Estávamos vivos.
Um momento de júbilo; um momento de reconhecimento daquela dádiva extraordinária. Depois, olhando à minha volta, senti uma vertigem. Não havia saída. Estávamos encurralados. As raízes da árvore tinham descoberto um ponto de apoio no penhasco. Mas não havia espaço para pés humanos. Não havia nenhum rebordo ou saliência a que pudesse agarrar-me, mesmo se conseguisse atravessar o tronco horizontal com o bebé nos braços. Se tentasse, cairia e lê-
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varia Becan comigo. Olhando para baixo, através da folhagem, vi a abóbada da floresta e uma faixa prateada, que podia ser um rio muito largo. A mão gelada do terror revolveu-me o ventre. Pássaros esvoaçavam no fundo do abismo, pequenos pontos claros no verde profundo do arvoredo distante. Talvez tivéssemos caído até metade do penhasco. Este erguia-se a perder de vista, íngreme, abrupto e destituído de qualquer fenda com espaço suficiente para acomodar um dunchaun.
Combati o pânico, esforçando-me por encontrar uma solução. Cathal, no cume... Antes da queda, tinha-o ouvido gritar. Talvez jazesse lá em cima, esmagado e desfeito, vítima dos sinistros blocos de pedra rolantes. Se naquele lugar até as pedras possuíam vontade própria, que hipótese teríamos nós? Pára, Clodagh. Pensa num plano. Eu não acreditava que tivesse sido um acidente. Alguém preparara as coisas de maneira a fazer-me cair. Talvez fosse um teste. Se as Criaturas Encantadas queriam que eu fizesse aquela viagem e salvasse o meu irmão, tinha de haver uma saída. Cathal escalava bem; fora ágil como um esquilo no dia em que tirara Coll daquele carvalho gigante. De novo, observei o penhasco, com a sua fachada íngreme e a ausência total de saliências úteis. O mais hábil montanhista do mundo não seria capaz de escalá-lo. Pára de tremer, Clodagh. Mostra alguma coragem. Não era fácil com os berros de pânico de Becan a encherem-me os ouvidos e aquele abismo interminável lá em baixo, à distância de um gesto em falso.
- Faz uma lista - murmurei para mim mesma. Em casa, este truque ajudava-me a conservar a calma em inúmeras situações de pânico. Fiz um inventário das circunstâncias a meu favor: não estava ferida, tirando os inchaços e arranhões que sofrera antes daquele último acidente. Becan estava nervoso, mas parecia ileso. Ainda trazia um pequeno punhal preso ao cinto. A lista das coisas que me faltavam era mais comprida: não tinha saco, nem comida, nem água. Nem corda. Nem Cathal. Mesmo se estivesse bem, talvez não conseguisse ver-me ou ouvir-me lá de cima. E, de qualquer modo, o que é que ele podia fazer?
Se se tratasse de uma velha lenda, talvez pássaros amigáveis viessem ao nosso encontro e nos levassem até ao sopé da monta-
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nha ou uma porta mágica se abrisse junto das raízes do salgueiro. Mas isso não ia acontecer ali. Ao recusar a única oferta de ajuda que se cruzara no meu caminho naquele reino, condenara-me provavelmente a morrer naquela árvore. Pior: teria de assistir primeiro à morte de Becan, a criança que eu levara comigo para tão longe, numa tentativa inglória de fazer o que estava certo. Ele olharia para mim com aquela profunda confiança, e eu nem sequer seria capaz de dar-lhe água.
- Bolas - murmurei. - Não vou desistir. Tem de haver uma saída.
Ouvi um grito do cume do penhasco. Estiquei o pescoço e consegui distinguir uma figura minúscula, com uma camisa clara, entre a cortina de arbustos e o precipício súbito e abrupto que eu só tinha visto depois de já o ter transposto e de cair no vazio. O meu coração disparou, desafiando a lógica.
- Aqui! - gritei. Talvez Cathal pudesse ir buscar ajuda, uma sentinela, ele tinha falado de uma sentinela, talvez alguém tivesse uma corda ou outra coisa qualquer... Não, estava a ser idiota. Não havia sentinelas. Não havia pessoas prestáveis naquela terra. O penhasco era demasiado alto, demasiado íngreme, impossível...
Cathal saltou. Foi um movimento arrojado e atlético, conduzido ao pormenor. Serviu-se das pernas compridas para imprimir uma direcção específica à queda. Nos escassos instantes que demorou a cair, vi que o alvo era precisamente a árvore onde eu estava empoleirada. Por fim, aterrou ao meu lado, fazendo com que a copa do salgueiro-anão se afundasse e balouçasse com alguma violência. Segurei-me a um ramo com uma mão, agarrando Becan com a outra. Por fim, respirei, horrorizada. Respirei pela primeira vez desde que o vira saltar.
- Louco, completamente louco - sussurrei.
- Vejo que estás bem - disse Cathal, num tom ligeiramente mais trémulo do que era habitual.
- Não estamos feridos, mas este lugar não tem saída. Porque diabo é que fizeste isto?
- Queres que eu volte a subir e vá para casa? Preferes ficar sozinha?
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Abanei a cabeça, tentando sorrir.
- Clodagh - disse-me -, tens razão, é verdade que aqui não temos praticamente alternativa.
Cathal olhou de relance para baixo, através dos ramos, e fítou-me. Não tive de olhar para ver o rio a piscar-me o olho, não mais do que um fio de cabelo cintilante no fundo verde.
- Não me digas - disse-lhe, com uma pedra de gelo no lugar do coração. - Temos de saltar?
- Correcto - respondeu, levantando-se com dificuldade.
- Só há uma saída: para baixo. E penso que devíamos fazê-lo antes de termos tempo para pensar duas vezes. Tu agarras a criança, e eu agarro-te a ti. Se fizermos pontaria para a água, temos uma boa hipótese.
Brighid nos salve. Talvez se tivesse esquecido de que eu não sabia nadar. Levantei-me, vacilante. Apertei Becan com força com o braço direito e enfiei a mão esquerda na de Cathal. Era uma mão quente e forte.
- Eu tomo conta de ti - disse-me. - Vais ficar bem e Becan também. Fecha os olhos, se isso ajudar.
- Não, eu... Deuses, Cathal, acho que não consigo fazer isto...
- Consegues sim, Clodagh. Respira fundo. Antes de te aperceberes de alguma coisa, já o fizeste.
Cathal estava branco como a cal. Talvez, apesar da aparente confiança, o terror lhe revirasse o estômago, como a mim.
- Não me vais largar, pois não?
Eu podia aterrar no sítio certo, mas se ele me largasse, afogar-me-ia, e Becan também.
- Não - respondeu. - Eu tinha muitas razões lógicas para ficar lá em cima, sabias? Mas parece-me que a lógica deixou de intervir nas minhas decisões. E, por via das dúvidas...
Cathal inclinou a cabeça e beijou-me. Foi como da última vez, mas não exactamente. O toque dos seus lábios nos meus percorreu-me o corpo todo, como antes. O facto de estarmos ambos em desequilíbrio e prestes a dar um salto suicida não fazia diferença. Mas aquele beijo levava com ele uma promessa, uma despedida, arrependimento, confiança e toda uma paleta de segredos por revelar, se
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tivesse mais tempo. Quando nos separámos, pareceu-me que respirava com dificuldade, como eu, mas continuou a apertar a minha mão com firmeza.
Pronta? - perguntou.
- Sim - menti.
- Vou contar até três. Um... dois... três...
E caímos. Para baixo, e mais baixo ainda. A mão de Cathal na minha, única âncora à realidade. Os gritos de Becan asfixiados na velocidade da queda, desfazendo-se no ar enquanto passávamos através deste. O penhasco, uma mancha de cinzento, castanho, azul, preto. Um vislumbre do rosto de Cathal, branco sepulcro, os olhos enormes e sombrios, o cabelo preto esticado sobre a testa. O manto, inchado de vento, erguendo-se em ondas e revelando os seus tesouros. O anel de vidro verde a cintilar, embora não houvesse Sol no céu. O coração a esmagar-me o peito, ressoando numa litania de lamentos: Se eu morrer agora, nunca chegam a conhecê-lo. Se eu morrer agora, nunca terei filhos. Se eu morrer agora, terei desiludido toda agente...
Só tive tempo de respirar muito fundo antes de o rio nos levar. Mergulhámos a pique. A água era gelada, atordoante, e perdi instantaneamente a mão de Cathal. Becan, deuses, Becan... Apertando o bebé contra o peito, pontapeei o meu caminho até à superfície, uma longa, longa viagem até emergir com os pulmões a rebentar. Em pânico, inspirei uma lufada de ar antes de a água me cobrir de novo. O vestido e a capa pareciam feitos de chumbo, as pregas puxavam-me para baixo. Agitei um braço, batendo as pernas, frenética, desesperada para conseguir manter-me à tona. Senti uma dor aguda no peito. Becan, Becan... Não conseguia conservar a minha própria cabeça à superfície, quanto mais puxar aquele pequeno rosto para cima. A corrente levou-nos, e as margens arborizadas passaram por nós, fugazes, enquanto me debatia no centro do rio. Se fosse arrastada para longe, talvez nunca mais voltasse a ver Cathal. A água entrou-me pelo nariz e pela garganta. Não conseguia respirar. Becan... Já não se mexia nos meus braços, provavelmente afogado.
Naquele momento, choquei dolorosamente contra alguma coisa e agarrei-me. Era uma árvore caída, atravessada a meio do canal, com uma massa de detritos alojada nos seus ramos sem vida. Agar-
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rei-me com firmeza, içando-me até metade do corpo estar dentro de água e a outra metade fora. Os olhos de pedra de Becan pareciam vidrados, a boca escancarada. Já não era senão o manequim inanimado que toda a minha família acreditava que ele fosse. O terror asfixiava-me. Becan não podia, não devia, morrer. Não tão jovem, tão desprotegido...
- Cathal! - gritei, mas o som da torrente de água afogou a minha voz. - Cathal, ajuda-me!
Virei-me para um lado e para o outro, procurando desesperadamente um sinal da sua presença, em vão.
Sem saber como, consegui arrastar-me ao longo do tronco até os meus pés tocarem no fundo do rio. Cambaleei até à margem e estendi o corpo encharcado e imóvel de Becan na areia. Depois, virei-me para o lado e vomitei. Perscrutando a riba ao longo do canal, procurei por baixo das árvores e no curso de água. Ninguém; ninguém em lado nenhum. Cathal desaparecera. Afastei a imagem dele afogado, ou levado para tão longe pela corrente que já não conseguiria alcançar-me. Naquele momento, tinha de salvar Becan. Recordei vagamente um velho poema rimado para crianças, acerca de um cão que parara de respirar e de uma mulher minúscula e mágica que o tinha ressuscitado, cantando-lhe para dentro das narinas. Se conseguisse controlar a respiração e parar de tremer, tentaria algo semelhante, por muito ridículo que parecesse. Não me ocorria mais nada. Inclinei-me sobre a forma imóvel do bebé. com todos os fiapos de coragem que consegui reunir, tranquilizei-me. Depois, encostei a minha boca à de Becan e respirei por ele. Um, dois; Um, dois. A floresta estremeceu à nossa volta; o rio seguiu o seu curso, o mesmo que no dia anterior e no dia antes desse, indiferente aos pequenos dramas de vida e morte que decorriam nas suas margens. Um, dois; Um, dois. No meu espírito, já não havia espaço para mais apenas o padrão da luta pela sobrevivência.
Ajoelhei-me e respirei até me doerem os braços e as pernas com cãibras e as lágrimas me arderem nos olhos. Estava morto. Não valia a pena continuar. Tinha-o perdido. Tinha-o arrastado comigo e agora deixara-o morrer, antes de ele ter a possibilidade de conhecer outras coisas no mundo para além da solidão, do terror e da fúria.
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No entanto, continuei a respirar. Não conseguia parar. E, por fim torcendo-me o coração, Becan tossiu, engasgou-se, estremeceu, respirou. Chorou. E aquele soluçar aflitivo foi o som mais doce que eu alguma vez ouvira na vida. O meu cabelo, encharcado do mergulho no rio, escorria água fria que me caía sobre o rosto e se misturava com o calor das lágrimas. Não tinha nada com que embrulhá-lo. Nada com que alimentá-lo. Mas estava vivo. Por momentos, senti apenas uma imensa alegria, até recuperar a memória. Cathal. Onde estava Cathal?
- Clodagh!
O meu coração disparou ao som da sua voz. Virei a cabeça e vi-o ao longe, mais abaixo na margem do rio, com o cabelo preto a pingar e o manto a rodopiar à sua volta enquanto corria até nós. O seu olhar parou-me o coração: estava lívido, aterrorizado, os olhos cheios de fantasmas.
- Clodagh, deuses. Clodagh, estás viva!
Cathal acelerou nos últimos cem passos, tropeçando em destroços pelo caminho, e caiu de joelhos ao meu lado, no lugar onde eu estava sentada com Becan aos gritos agarrado ao meu peito.
- Não consegui segurar a tua mão e depois não conseguia encontrar-te e pensei... - a voz quebrou-se. Instantes depois, abraçou-nos aos dois e eu encostei o rosto ao seu peito e fechei os olhos.
- Odeio-te - disse-lhe, num impulso, libertando um braço e enlaçando-o, apertando-o com força. - Como é que te atreveste a obrigar-nos a fazer isto? És louco. Becan quase se afogou. Tive de respirar por ele, ressuscitá-lo... E depois desapareceste...
Sentia o coração a bater muito depressa, a cabeça numa vertigem. Agarrei-me a ele como se fosse uma tábua de salvação. Era quase impossível, naquele momento, acreditar no que tínhamos feito; tínhamos mesmo dado aquele salto e sobrevivido para contar a história.
- Perdoa-me - sussurrou-me ao ouvido, encostado ao meu cabelo. - Perdoa-me ter-te obrigado a saltar, perdoa-me ter perdido a tua mão e perdoa-me mais ainda por não termos nenhum dos nossos mantimentos connosco. Espero que não tenhamos de andar
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muito mais. É melhor vestires o meu manto, Clodagh, e cobrires a criança com ele. E hoje vamos testar essa regra da água. Faremos o resto da viagem junto dos rios e dos lagos, uma vez que não temos nenhum recipiente onde transportá-la.
Libertámo-nos um do outro e levantámo-nos. De repente, tive a consciência aguda de que estava completamente encharcada e gelada até aos ossos. Cathal pingava, embora o seu manto tivesse sobrevivido intacto, como de costume. Quando me envolveu nele, senti aquele conforto familiar que o manto parecia produzir. Uma nódoa negra escurecia-lhe uma das faces e sangrava da mão direita. Enquanto eu travara a minha guerra com o rio, o meu companheiro devia ter passado pelo mesmo um pouco mais abaixo.
- Esqueceste-te de trazer os sacos - disse-lhe, e apenas metade de mim estava a brincar. Agora que a êxtase causado pela sobrevivência de Becan começava a dissipar-se, tornei a sentir o peso da realidade: não tínhamos sflex, nem mel para o bebé, nem roupas secas, nem comida...
- Um lapso que Johnny não deixaria passar, sem dúvida - retorquiu tranquilamente. Pareceu-me ouvi-lo tiritar.
- Porque é que saltaste para o abismo? Foi um gesto de pura insanidade, Cathal - indaguei, enquanto enrolava Becan no manto e lhe esfregava as costas, fazendo tudo o que podia para aquecê-lo.
Cathal fez uma careta.
- Avaliei a situação e fiz o que me pareceu melhor. Receei que caísses. Os sacos deixaram de ser importantes.
- Tudo isso num piscar de olhos. - Cathal demorara-se apenas um instante na beira do penhasco. - Podias ter morrido.
- Quando não consegui encontrar-te, pensei que o salto tinha sido fatal. Depois, vi-te na copa da árvore e... Esquece. Portanto, agora estamos em apuros. Creio que consigo fazer uma fogueira sem o sflex. Mas, primeiro, devíamos encontrar um abrigo.
Olhámos para a floresta - densa, escura, proibitiva.
- Suponho que haverá um caminho - disse-lhe. - Fui mais ou menos empurrada até aqui abaixo. As rochas começaram a rolar e a única coisa que eu podia fazer era correr. E cair. Por isso, julgo que
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estamos no caminho certo. Espero que isto esteja a chegar ao fim,Cathal.
Mas Cathal não tinha nada para dizer. Limitou-se a olhar para mim, eu olhei para ele, e partimos juntos, por dentro do arvoredo, rumo à escuridão.

CAPÍTULO ONZE

Nenhum de nós estava em condições de fazer uma longa caminhada. Becan chorava. Eu sentia o seu tormento no meu coração e não havia muito que pudesse fazer para aliviá-lo. Sem a bolsa de pano, tinha de segurá-lo nos meus braços e talvez a minha ansiedade contagiasse o seu pequeno corpo. Cathal adiantou-se no trilho estreito e praticamente indefinível que tínhamos encontrado e eu seguia-o, sabendo que era muito justo que fosse eu a usar o manto, porque Becan dependia do meu calor, mas desejando que houvesse uma maneira de partilhá-lo com ele. Cathal não podia estar suficientemente quente só com a camisa, a túnica e as calças, todas a pingar água. Tinha um aspecto miserável, a pele esbranquiçada, as feições contraídas numa audácia feroz, que proibia qualquer demonstração de interesse pelo seu bem-estar. E eu, apesar do facto extraordinário de termos sobrevivido os três, começara a perder o ânimo. A floresta parecia recheada de ameaças, um reino de súbitas escuridões, ramos espinhosos, poças de água fétida e declives enganadores. Fungos germinavam entre as raízes das árvores, com uma luminosidade viscosa. Criaturas pálidas, de muitas patas, rastejavam sobre o tapete de folhas mortas. Os gritos de Becan perdiam-se nos espaços vazios por entre as árvores. Não vivia ali ninguém. Podíamos continuar a caminhar até sucumbirmos de cansaço, fome e desespero.
O pequeno trilho seguia o curso de um ribeiro. As minhas botas chapinhavam na lama. Sentia novas bolhas a crescerem-me nos
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pés, Não havia esperança que alguma coisa secasse naquele lugar, mesmo que Cathal conseguisse acender uma fogueira sem sílex. Tinha visto Johnny a fazê-lo uma vez; Deirdre ficara muito impressionada. Oh, Deirdre... As saudades que eu tinha de conversar com ela, de falar-lhe dos meus sentimentos, de ouvi-la tagarelar acerca do cabelo, do vestido ou da beleza de EIllann quando montava a cavalo, só para recordar que havia um outro mundo lá fora, um mundo onde eu não precisava de sentir-me confusa e assustada. Como eu gostava de poder abraçar Sibeal e Eilis e de dizer à minha mãe que estava quase a encontrar Finbar... Queria pedir ao pai que me perdoasse todos os meus erros e dizer-lhe que o amava mesmo quando ele era frio comigo... Não vou chorar, disse a mim própria com firmeza. Cathal continua a andar e nem sequer tem o manto.
- Talvez devêssemos descansar um pouco. - Cathal tinha parado e virara-se para mim, à espera. - Pareces exausta. Senta-te um pouco, Clodagh. Há um lugar por baixo daquele carvalho.
Depois, pegou numa faca que trazia presa ao cinto.
- O que é que estás a fazer? - perguntei, obedecendo-lhe. Agora que tínhamos parado, as pernas não queriam suster-me nem mais um instante.
- Precisamos de um trapo para alimentar o bebé. Sem água, não vai sobreviver muito mais tempo. Penso que podemos humedecer isto no ribeiro. - Antes que eu pudesse falar, Cathal despiu a túnica e usou a arma para arrancar um pedaço da camisa que trazia por baixo. - É melhor do que nada.
- Obrigada - disse-lhe, sem saber o que podia acrescentar. Vi-o vestir a túnica de novo, aproximar-se do ribeiro e molhar o tecido, torcendo-o levemente. Depois, entregou-mo. Os gritos de Becan tinham aumentado quando parámos de andar; já antecipava a sua refeição. De início, chupou avidamente, porque precisava do líquido. Depois, percebeu que não havia mel e sacudiu a cabeça, gemendo um protesto indignado.
O que se seguiu foi mais parecido com uma guerra do que com uma refeição. Becan morria de sede, mas eu debatia-me só para conseguir que bebesse algumas gotas. Uma eternidade depois, caiu num sono agitado. Pousei-o no chão, embrulhado no manto, e lê-
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vantei-me, secando as lágrimas que me caíam sobre o rosto. Sentia a cabeça a latejar. Momentos depois, Cathal pôs-me um braço sobre os ombros, como um irmão teria feito, e disse:
- Não faz mal, sabes? Não precisas de ser sempre corajosa. Deixei-me encostar a ele, a testa contra o seu peito, mas não por
muito tempo. Algo mudara entre nós depois de saltarmos do penhasco. O toque das suas mãos, o calor do corpo dele contra o meu despertavam-me sentimentos que não eram de todo fraternais. Já o tinha abraçado antes, à beira rio, e naquela situação extrema sentira o mesmo - um brilho, um calor, uma consciência de certas partes do meu corpo que era absolutamente nova para mim e que iluminava alguns comentários de Deirdre acerca de Illann e da sua noite de núpcias. Apesar do cansaço e do desânimo que sentia, o meu corpo não permitia que eu ignorasse esses sentimentos. Devia ter percebido, quando Cathal me beijou no corredor, que a minha resposta tinha sido a primeira gota de chuva que precede a tempestade. Era perigoso. Libertei-me do seu abraço.
- Clodagh - disse tranquilamente o meu companheiro -, temos de beber antes de retomarmos o nosso caminho. Provamos a água juntos?
- Se nos transformarmos em sapos, pelo menos faremos uma boa companhia um ao outro. - Forcei um sorriso. - Muito bem, vamos a isso.
Ajoelhámo-nos, lado a lado, na margem musgosa do ribeiro e levámos aos lábios mãos cheias de água acastanhada. Lado a lado, bebemos. Era fresca, doce, ligeiramente turfosa. Reparei num maciço de cogumelos carmesins, mais acima no ribeiro, e num tufo de agriões. Era possível encontrar comida, se não nos importássemos de correr esse risco.
- Pareces... cansado - comentei, ao recostar-me na margem. Era um eufemismo.
- Bem - disse Cathal, com um trejeito familiar -, não foi um dia fácil. Sabias que o teu cabelo ainda se torna mais selvagem quando se molha?
Levei involuntariamente a mão ao cabelo, como se tivesse alguma importância o facto de este se parecer, naquele momento, com um ninho de ratos.
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- Cathal? Hum?
- Não vamos longe, se continuarmos assim, pois não? Cometi
um erro idiota ao recusar aquela oferta de ajuda. Pousei a cabeça nos joelhos levantados. Momentos depois, ele disse:
- A maior parte das pessoas concordaria contigo, tenho a certeza. Talvez eu também devesse concordar. Se a tivesses aceitado, eu teria ficado para trás. Neste momento, podia estar de volta a Sevenwaters, a gozar um banho quente e uma boa refeição.
Nenhum de nós evocou Glencarnagh, o meu pai, ou o facto de Aidan ter perseguido o amigo para o levar a um interrogatório.
- Eu nunca te deixaria ficar para trás - declarei.
Seguiu-se um longo silêncio. Quando olhei para cima, estranhando a ausência de resposta, vi-lhe uma expressão estranha no rosto.
- O que se passa? - perguntei. - Há algum problema? Cathal tornara a empalidecer, como se tivesse visto algo que
o assustava mais do que o espectro da própria morte. Procurando afastar aquele pensamento, abanou a cabeça. Evitou olhar para mim.
- Nada - respondeu. - Clodagh, se voltarem a oferecer-te ajuda, deves aceitá-la. Não te preocupes comigo. Já conheço a tua capacidade para criar empatia. Para lidar com casos perdidos. Como Becan. Como eu. Se alguém quiser guiar-te, aceita de imediato e esquece que eu existo.
Fitei-o, chocada.
- Mas... Cathal, preciso que estejas comigo. Que me protejas; que protejas Becan; que...
- Se essas criaturas quiserem que cumpras a tua demanda, zelarão pela vossa segurança - interrompeu, e o seu tom de voz criou uma distância entre nós. - Reunirão todos os guardas de que precisas. Eu é que não estou a fazer um bom trabalho, Clodagh. Basta olhar para nós. - com o olhar, Cathal percorreu a floresta sombria que nos cercava, acolhendo o bebé exausto, as roupas molhadas, as sombras que, por todos os lados, pareciam ganhar terreno sobre nós. - Quando caímos no rio, perdi-te. Não sabes nadar. Pensei
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que te tinhas afogado. E, antes disso, quando os blocos de pedra se deslocaram, pensei que ia encontrar-te esmagada por baixo da rocha, ou desfeita no sopé da montanha. Não me deves nada. Não sirvo para ti. Não sirvo para ninguém. Especialmente neste lugar aziago.
- Não digas isso!
As palavras rebentaram-me na boca, num protesto violento. Sem pensar duas vezes, inclinei-me sobre ele e esbofeteei-o, com força suficiente para lhe deixar uma marca vermelha na face. Não me agradou fazê-lo, mas, pelo menos, o choque que encheu os seus olhos era preferível ao olhar desamparado e sem esperança.
- Agora, estamos pagos - rematei. - Não te atrevas a desistir, Cathal. Preciso de ti. Quero-te aqui, ao meu lado. Não me interessa se fizeres mal as coisas, se errares; eu também tenho errado inúmeras vezes. Sinto-me cansada; tenho frio, estou em pânico. Não posso continuar sem um amigo.
Por momentos, Cathal limitou-se a olhar para mim, e não consegui perceber o que lhe ia na alma. Depois, disse-me:
- Isso significa que, se esse guia voltar a aparecer, lhe dirás, de novo, que não?
- Dadas as circunstâncias, seria imprudente se o fizesse - respondi. - Se voltar a aparecer, tentarei negociar. Deve haver maneira de dar a volta a estas criaturas para que nos ajudem a ambos. Desculpa-me ter-te batido, Cathal.
- Sempre que quiseres.
- Devíamos avançar - propus. - Sinto que este lugar espalha tristeza.
Ao dizer isto, uma memória estremeceu, indistinta, no meu pensamento. Relacionava-se com o desgosto e a tristeza. com um caminho. Onde é que eu tinha ouvido aquilo? Seria possível que o desânimo que sentia não se devesse tanto ao choque, ao cansaço e ao medo, mas ao lugar onde estávamos? Talvez a falta de confiança temporária de Cathal tivesse a mesma origem.
- Naquele campo de ervas - comecei por dizer -, o aroma tornou-nos sonolentos; fez com que ambos perdêssemos a vontade de lutar. E agora sentimo-nos tristes e miseráveis. Talvez a solução
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seja avançar, sair daqui. - Levantei-me. - Temos de continuar andar, Cathal. E temos de parar de discutir um com o outro. É possível que este lugar exerça, de algum modo, um poder sobre aqueles que o atravessam, algo que faz com que nos sintamos abatidos e sem esperança.
Cathal não disse nada, mas ergueu-se e, assim que peguei em Becan, retomámos o nosso caminho ao longo do trilho. Durante algum tempo, muito tempo, a escuridão entranhou-se, opressiva; à nossa volta, sombras profundas e melancólicas pareciam contagiar-nos; a floresta permaneceu sombria e húmida, como antes, embora de vez em quando eu ouvisse, ao longe, um grito fantasmagórico. Não saberia dizer se era o grito de um pássaro ou de outro animal, ou de um ser muito mais estranho. Nele, uma nota aguda e lancinante encheu-me o coração de amargura. Tentei assobiar uma canção, algo que me animasse, mas ao sair dos meus lábios, o assobio esmoreceu até deixar de ser audível. Becan caíra num sono agitado. Quando olhei, de relance, para baixo, pareceu-me que as suas maçãs-do-rosto, feitas de galhos finos, se tinham encovado e que os olhos de pedra se turvavam, como se morresse aos poucos. Talvez fosse uma loucura pensar que os meus esforços podiam salvar-lhe a vida. Não. Tinha de parar de pensar daquela maneira. Era apenas um feitiço; um feitiço de desespero. E eu não ia ceder.
Alguns passos mais à frente, Cathal deteve-se, de súbito. Quase choquei contra ele.
- O que foi? - perguntei-lhe.
- Está a abrir-se. - Deu um passo em frente. - Olha, parece um corredor, algo construído por mãos humanas.
- "Humanas" talvez não seja a palavra certa - repliquei, observando o espaço à minha volta. À nossa frente, as árvores eram mais altas e os seus troncos mais espaçados. Os intervalos entre estes estavam cobertos de relva. A luz, pálida e pura, já conseguia penetrar na abóbada de ramos, declinando o verde das folhas em centenas de matizes diferentes. Uma curiosa simetria no padrão da folhagem fez-me lembrar tapeçarias e estandartes. A paisagem atraía o olhar, levava-o mais fundo, como se pretendesse incitar o visitante a caminhar entre as árvores, onde uma avenida se abria numa espé-
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cie de corredor majestoso e cerimonial. Por momentos, os meus olhos mostraram-me um cortejo de lordes e ladies vestidos com trajes reluzentes, cavalos aparelhados com tecidos de seda e de cetim, um sumptuoso desfile. Pestanejei, e desapareceram. Só estávamos ali nós os três: um homem, uma mulher e um bebé, enlameados e exaustos perdidos na vastidão de tudo aquilo.
-Julgo que devemos estar quase lá - afirmei.
Como se respondesse às minhas palavras, surgiu à nossa frente uma pequena personagem vestida de cinzento, o rosto oculto por uma máscara de cão prateada. Cathal e eu recuámos, em sobressalto, e a mão dele tocou no punhal.
Mordi a língua para evitar um comentário grosseiro, como Tu, de novo?
- É a criatura que encontrei da outra vez - murmurei.
- Deixa-me falar.
Contornei Cathal, colocando-me entre ele e a figura de capa e capuz cinzentos.
- Ora, ora - disse a pequena criatura. - Vieste de longe. Já mudaste de ideias?
- Não - respondi, com firmeza. - Por favor, diz-me onde está Finbar. Até onde teremos de ir?
Atrás de mim, ouvi o movimento de Cathal. Sabia que ele tinha desembainhado o punhal e que estava preparado para se servir dele assim que me julgasse em perigo.
- Responde-lhe - ordenou-lhe, e o seu tom de voz até a mim me assustou. - Não temos tempo a perder. Se podes ajudar-nos, fá-lo sem mais demoras.
A criatura silvou. Os olhos atrás da máscara desviaram-se de mim para Cathal e, depois, voltaram a fixar-se em mim.
- Os da nossa espécie não falam com os da espécie dele rosnou o pequeno ser. - Se insistires em mantê-lo contigo, chamarás a ti a desgraça. Uma amarga desgraça.
- Isso cabe-me a mim decidir.
Que desgraça seria mais amarga do que o rapto de uma criança?
- Se puderes informar-me, por favor, fá-lo. Estamos a ir no bom caminho? Quando é que chegaremos ao lugar onde o meu irmão foi aprisionado?
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- É este o caminho. Aqui perto, existe um sítio onde poderás
descansar e recompor-te.
Senti que a criatura me olhava dos pés à cabeça e vi-me tal como ela devia estar a ver-me: um novelo emaranhado no lugar do cabelo, o vestido cheio de lama e colado ao corpo, os botins encharcados, o rosto arroxeado pelas escoriações. Cathal e eu não tomávamos um bom banho desde que nos tínhamos cruzado na floresta de Sevenwaters. O mergulho no rio não contava.
- Nesse estado, não vais causar uma grande impressão - disse Máscara-de-Cão, com secura. De qualquer modo, ele só chega amanhã, ao cair da noite. Usa sabiamente o tempo de que dispões. Prepara-te para apresentar argumentos sólidos.
- Ele só chega amanhã? Quem?
- O Senhor do Carvalho. - Este nome imponente foi dito num tom de troça. - Aquele que assumiu a autoridade nestas terras desde que os outros partiram. Agora, é ele que manda; todos fazem aquilo que ele quer.
- Tu também? - não consegui deixar de perguntar. Uma gargalhada gutural.
- Não, nós não! Os da sua espécie nunca dominaram os da nossa, filha de Sevenwaters. Nós seguimos a nossa via; fazemos os nossos próprios caminhos. Mas foi ele quem levou o teu irmão e é ele que tem o poder de restituí-lo. E não vai ficar impressionado com essa cabeleira desgrenhada e a imitação barata de vestido. É melhor usares o tempo que te resta a aprontares-te.
- Não lhe fales nesse tom.
A voz de Cathal parecia afiada como uma lâmina.
- Segue-me, filha - disse a criatura, ignorando-o por completo. Depois, virou-se, afastando-se na extensão cada vez mais ampla de relvado.
- Espera, Clodagh - segredou-me Cathal ao ouvido. Tens
a certeza...
- Não propriamente - respondi. - Mas penso que será seguro, se continuarmos juntos.
Máscara-de-Cão não avançou muito mais, desviando-se por um caminho secundário coberto de seixos brancos e ladeado por uma
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sebe em miniatura. Esta era constituída por uma planta aromática que não consegui identificar. O caminho não possuía nada de natural e era claramente construído. Fazendo uma curva por baixo das árvores, desembocava numa cerca de espinheiros, onde se erguia um portão curioso: os ramos retorcidos e cobertos de espinhos juntavam-se para formar um padrão de linhas que se uniam num ponto central. Aqui, os finos pedaços de madeira organizavam-se num complexo emaranhado de nós, que lembrava um rosto grotesco e sorridente, com dois buracos feitos por vermes no lugar dos olhos. Por baixo das órbitas vazias, um golpe com a forma de uma boca abriu-se de repente, cortando-me a respiração.
- Palavra-passe? - pediu uma voz que rangia.
O nosso guia não se preocupou com palavras-passe. Bastou-lhe levantar a mão peluda e o portão abriu-se de rompante. Quando já tínhamos passado por ele, fechou-se com violência atrás de nós.
A cerca de espinhos delimitava um espaço forrado de erva do tamanho de um pequeno prado. De um lado, havia um bosque exíguo de árvores antigas e nodosas, cuja espécie não fui capaz de adivinhar. Um ribeiro tímido corria entre o arvoredo, em direcção ao espaço aberto, onde desaguava num pequeno lago. Ali perto, ardia uma fogueira entalada entre rochas. Junto desta, havia uma pilha de lenha e, ao lado, um rolo de roupa para dormir. A seguir, estavam as nossas duas trouxas.
- Dagda nos guarde - disse Cathal numa voz serena.
- Tudo aquilo de que precisas está aqui. - O nosso guia fez um gesto largo, acolhendo o espaço delimitado pela cerca. - Usa-o bem. Tens de estar pronta amanhã ao pôr do Sol e lembra-te daquilo que eu te disse: ele terá mais vontade de ouvir-te se te apresentares no teu melhor. É pena os golpes no rosto.
Senti que Cathal se preparava para dizer um disparate e antecipei-me.
- Trouxeste as nossas coisas - exclamei, sentindo um alívio profundo. - Já posso alimentar o bebé... Obrigada. Ficamos-te muito gratos.
- Hum - murmurou Máscara-de-Cão. - Se quisesses ouvir-me, ter-te-ias livrado dele há muito tempo. Cairão lágrimas antes de
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isto acabar, escreve o que te digo. Agora, deixo-te. Quando chegar a hora, virei buscar-te. Não te afastes. No interior da cerca de espigos ficas a salvo. Fora dela, o perigo está em todo o lado. Adeus, por agora.
E desapareceu diante dos nossos olhos.
Quem quer que nos tivesse preparado aquele refúgio, fizera-o com um extremo desvelo. Não só nos tinham devolvido todos os nossos mantimentos, como a muda de roupa que trazíamos estava lavada e seca, os nossos odres, enchidos de novo, e o rolo de roupa de cama continha três cobertores espessos. No fundo do meu saco, encontrei peças de roupa que não estavam aí antes. Escolhi uma túnica de boa qualidade, um vestido de lã verde-pálido, com um bordado de borboletas na bainha, cujos pontos minúsculos podiam ter sido feitos por um rato, e um xaile fino e leve. Aparentemente, não só havia alguém que queria que cumpríssemos a nossa missão, como fazia questão que o fizéssemos com estilo.
Pedi a Cathal para se virar de costas, enquanto me libertava das roupas molhadas e vestia a túnica, o vestido e o xaile. Ele obedeceu. Mas não consegui deixar de imaginar que me observava enquanto eu me despia, e tentei adivinhar os seus pensamentos se o fizesse. Quando acabei, desviei o olhar e ele vestiu, por sua vez, a sua muda de roupa. Tudo o que eu precisava para alimentar Becan estava ali e, quando terminei, o bebé sucumbiu a um sono profundo e saciado. Pendurei as nossas roupas molhadas nos arbustos e Cathal preparou um caldo com água quente e carne seca. Por fim, sentámo-nos a comer, perto da fogueira. Era bom estar seca. O toque macio do vestido verde-pálido era uma bênção para a minha pele ferida; o calor do fogo, um bálsamo para o corpo exausto. O caldo aguado sabia a ambrósia. Através das chamas, Cathal e eu entreolhámo-nos, circunspectos..?
- Então - disse ele -, tens amigos por aqui. f
- Penso que a criatura é um parente distante - respondi. Cathal arqueou as sobrancelhas.
- São conhecidos como os Anciãos. Há muito tempo, um homem da família de Sevenwaters casou-se com uma mulher que pertencia a este povo. Talvez nos tenham socorrido por sentido de de-
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ver, ou de parentesco. Pode ser esse o motivo por que querem ajudar-me, mas não a ti. Os da espécie dele, insistiu a criatura. Referindo-se, suponho eu, à humanidade sem qualquer traço sobrenatural.
- Compreendo.
Cathal fez, de novo, um olhar assombrado. A súbita dádiva de todo o conforto que podíamos almejar não conseguira melhorar o seu estado de espírito.
- Estás bem? - perguntei.
- Não te preocupes comigo, Clodagh. - O tom era depreciativo.
- Preocupo-me, sim. Continuas com esse ar de quem vai ver um fantasma. Como se uma coisa que superasse os meus piores receios estivesse na iminência de acontecer. Fico preocupada contigo.
- Não fiques. Sinto-me feliz por estares quase a chegar ao fim da tua missão. Tenho esperança de que a cumprirás com êxito. Não devias incomodar-te comigo. Como vês, estou bem.
- Se assim o dizes.
Não acreditei nem por um instante. Os seus olhos diziam muito; demasiado, para conseguir decifrá-los. Desagradava-me ouvi-lo dizer tu e não nós, como se a minha missão não tivesse, de facto, nada a ver com ele.
- Eu sei que alguma coisa não está bem - arrisquei, com prudência. - Não seria melhor que me dissesses o que é?
- Esquece, Clodagh.
Desta vez, foi ríspido e remeteu-me, de imediato, ao silêncio.
Concentrei-me no meu caldo, aquecendo as mãos em torno da malga. O tempo passou. À medida que foi passando, mais denso se tornou o peso daquilo que ficara por dizer. Lá fora, na floresta, um ser indefinível lançou, de novo, o seu chamamento melancólico. Por fim, Cathal recolheu a malga e o tacho e lavou-os no ribeiro. Eu fiquei sentada, hipnotizada pelas chamas da fogueira, a sentir os meus olhos a fecharem-se. Ainda era de dia, mas não conseguia manter-me acordada.
- Porque é que não dormes um pouco? - perguntou-me, estendendo-me um dos cobertores. - Eu fico de vigia.
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- Penso que podemos dormir ambos em segurança - replicou ele - Parece-me que foi isso que a criatura nos disse. Que não precisávamos de preocupar-nos até ao crepúsculo de amanhã.
- Seja como for, por agora, ficarei acordado. Vamos, dorme. Precisas de descansar. Sonhos cor-de-rosa.
Enrolei-me no cobertor e adormeci de imediato, talvez mesmo antes de pousar a cabeça, mas os sonhos que me aguardavam não eram cor-de-rosa. Uma selva de imagens invadiu-me o pensamento: um grupo de guerreiros carrancudos e tatuados entrava a cavalo no pátio de Sevenwaters; Sibeal corria sozinha pela floresta, branca como a cal; a minha mãe estendida na cama com o rosto virado para a parede e os olhos esbugalhados, mas sem ver; Muirrin a chorar; Coll e Eilis sentados, lado a lado, a meio da escadaria de pedra da torre, num profundo silêncio, e os seus pequenos rostos distorcidos de agonia enquanto ouviam uma discussão acesa no salão em baixo: era o meu pai que gritava e Johnny respondia-lhe num tom entrecortado e ferido; uma criatura com uma máscara de cão prateada anunciava um futuro sombrio. Depois, caí e continuei a cair, perseguida por blocos de pedra...
Sentei-me, alagada em suores frios, com o coração a rebentar no peito. O brilho da fogueira criava um círculo de calor, mas havia uma frescura no ar. No cimo das árvores que nos rodeavam, os pássaros chamavam, inquietos, trocando avisos. Prepara-te!, alertava um. Prepara-te! Um outro desafiava: Agora ou nunca! E algures, no exterior da vedação que garantia a nossa segurança, o grito de lamento ressoava ainda na floresta.
Tinha dormido muito mais tempo do que pensava. Embora a luz daquele mundo pudesse ser enganadora, depreendi que fosse quase de noite e que já passara há muito a hora de revezar Cathal. Embrulhado no manto, Becan ainda dormia profundamente, respirando com suavidade. Procurei Cathal, pensando que podia oferecer-me para preparar mais uma refeição.
Por momentos, como não conseguia vê-lo, pensei o pior: não que algum mal lhe tivesse acontecido, porque acreditava na garantia de segurança do nosso guia, mas que sucumbira às suas dúvidas e decidira partir, abandonando a missão agora que o fim se aproxi-
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mava. Depois, localizei-o, sentado, de pernas cruzadas, junto do lago. Abri a boca para chamá-lo, mas fechei-a logo a seguir, pronunciando o seu nome em silêncio. Eu conhecia aquela pose: a quietude sobrenatural, as costas muito direitas e os olhos fixos na água, com o mesmo ar de profunda concentração da minha irmã Sibeal durante um transe visionário. Eu sabia que, se lhe dirigisse a palavra, ele não me ouviria. Cathal a adivinhar o futuro. Cathal, que há tão poucos dias escarnecera da mais ínfima referência ao maravilhoso. Cathal, que era valioso para Johnny por causa dos seus infalíveis instintos; Cathal, que soubera do ataque a Glencarnagh antes de este acontecer. Se esse conhecimento viera ao seu encontro porque ele possuía o dom da Visão, por que razão, pelos deuses, não o dissera?
Esperei que ele terminasse, com o coração em alvoroço, enquanto reunia toda a informação de que dispunha: o que ele me tinha contado e o que ficara por dizer. A descrição da casa de Glencarnagh, sem o nome, porque a tinha visto sem saber como se chamava; Illann e Deirdre: tê-los-ia visto, numa Visão, a conspirar contra o meu pai, ou fora apenas um palpite, como me dissera? As visões, de qualquer modo, nem sempre reflectiam a realidade; esse era um dos motivos por que Sibeal não partilhava as suas. Por vezes, mostravam-nos apenas o que podia acontecer, o que podia ter acontecido, ou um cenário enigmático, algo que só um druida especializado na interpretação de símbolos saberia decifrar. O que quer que Cathal fosse, não era um druida. Deuses, tinha permitido que o acusassem da mais infame traição, tinha fugido da maneira que mais sugeria a sua culpa, e a única coisa que devia ter feito era revelar a Johnny a fonte do seu conhecimento. Cathal não podia ter desconfiado que Johnny ia duvidar da verdade de uma Visão, Johnny, cuja mãe era uma vidente digna de nota. O que é que lhe passara pela cabeça? Saltando de dúvida em dúvida, reacendi a fogueira, fervi água e apressei-me a cozinhar mais uma refeição baseada no caldo de carne seca, enquanto o bebé dormia, exausto com as agruras do dia.
Quando acabei de preparar o caldo, Cathal já estava a mexer-se, a esticar os membros, a fazer aquilo que um vidente tinha de fazer para acordar o ser de pedra e retirar-se do mundo estranho e envol-
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vente da Visão. Era natural que demorasse algum tempo. Eu já tinha acompanhado Sibeal vezes suficientes para saber que o ritmo daquela operação devia ser respeitado, ou o vidente corria o risco de ficar com uma terrível dor de cabeça e de perder toda a memória da sabedoria dos deuses. Não disse nada quando Cathal regressou para junto da fogueira e mordi a língua quando se sentou, não muito longe de mim. Estendi-lhe a sua porção de comida e sentei-me a tomar a minha refeição. Ainda não me tinha esquecido do seu estado de espírito de há pouco, disparatando como um animal selvagem insistentemente espicaçado por uma criança curiosa. Muito tempo depois, Cathal disse-me:
- Obrigado. - Estava rouco.
- Pela sopa? - perguntei descontraidamente. - Quando regressarmos a casa, a Sevenwaters, cozinho-te uma melhor. É uma das minhas presumidas competências.
- Pela sopa, sim. E por... por seres tão tolerante.
- Ah. Nessa matéria, costumo ser menos hábil.
Sentia-me nervosa e irritável. Queria que ele confiasse em mim, mas temia que se fechasse, como geralmente acontecia, deixando todas as minhas perguntas sem resposta. De repente, conquistar a sua confiança era a coisa mais importante do mundo.
- Não o faço com frequência - murmurou, por entre dentes, olhando fixamente para as chamas. - Não é um dom de que me orgulhe. Mas é uma... uma coisa compulsiva. Às vezes. Às vezes, não consigo evitar. E é útil. Para Johnny. Ajuda-me a conservar a minha posição junto dele. Se não fosse isto, eu já teria regressado a Whiteshore e a essa fronteira indecisa entre ser o protegido de um chefe de clã e um bastardo de origens humildes.
Momentos depois, comentei:
- As tuas aptidões como guerreiro são excepcionais, Cathal. Até eu sei reconhecê-las. Tenho a certeza de que Johnny te conservaria no seu grupo mesmo se não possuísses esse... instinto.
- Instinto. Já quis fazer passar essa ideia. Penso que Johnny deve imaginar qual é a origem dos meus palpites. E muito perspicaz. Mas não comenta, e não tenta explicar.
- Aidan sabe?
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Não.
Cathal pousou o caldo e olhou para a fogueira.
- Cathal.
- Porque é que eu não te disse que era capaz de fazê-lo? Porque é que te descrevi um ataque sem referir como é que sabia que ia acontecer? Olhando para trás, arrependo-me amargamente. Não te conhecia nessa altura. Não como agora... Nunca contei a ninguém, a vivalma. Detesto este meu dom. Desprezo-o. É uma maldição.
- Uma maldição?
Parecia uma criança furiosa e magoada e eu senti um desejo intenso de contornar a fogueira e abraçá-lo. Mas Cathal não era uma criança e deixei-me ficar onde estava, assustada com a ternura que despertara no meu corpo e no meu coração.
- Cathal, na minha família, a Visão é considerada um dom extraordinário. Sei como é difícil possuí-la. Sibeal costuma falar comigo e ajudou-me a compreender o peso que esse conhecimento deposita nos ombros de um vidente. Em todo o caso, é um dom de que uma pessoa deve orgulhar-se. Não é motivo para fúrias e vergonhas.
- No meu caso, é diferente.
- Porquê, Cathal?
Enquanto falava, a resposta atravessou-me o espírito. Sustive a respiração, à espera.
- Porque vem dele. Só pode vir. A minha mãe era uma mulher comum, filha de um pescador, trabalhadora, pobre; não lhe corria no sangue uma gota de poder sobrenatural. Era bonita, na juventude; e foi a sua desgraça. Se tenho o dom de adivinhar o futuro, não é por ser filho dela, Clodagh. É porque sou filho dele. De um homem cuja existência quero esquecer. Um homem que partiu o coração da minha mãe com promessas que não cumpriu. Abusou da confiança dela e aproveitou-se casualmente do seu corpo e depois afastou-se, como se nada fosse, como se o facto de ela se ter oferecido a ele não significasse nada. Nunca voltou para conhecer o filho que lhe fizera. Sete anos esperou a minha mãe pelo seu regresso. Por fim, morreu. Acredita, se eu pudesse, seria capaz de queimar, espancar, perseguir este talento prodigioso por todo o meu corpo.
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E a suprema ironia que a capacidade de prever o que está para vir tenha conquistado um lugar em Inis Eala, o único lugar a que alguma vez senti que pertencia.
Aquilo era o banquete depois da fome. Durante muito tempo, Cathal recusara-se a dizer uma palavra que fosse acerca do seu passado. Estas abruptas revelações eram difíceis de assimilar. Reuni toda a minha coragem para lhe dizer exactamente o que me ia no coração.
- Aqui, és genuinamente bem-vindo, Cathal. Onde quer que eu esteja, haverá sempre um lugar para ti.
Ele olhou para cima e os seus olhos eram duas piscinas negras, onde a luz do fogo projectava fiapos de ouro cintilantes.
- Ah - murmurou, com os lábios a tremer -, tens um verdadeiro talento para atingir um homem quando ele está em baixo.
O que queria ele dizer com aquilo? Será que o convencera a abrir-me o coração, um coração já carregado de sofrimento, fazendo algo a seguir que tornara aquele peso insuportável? Tinha-me limitado a dizer-lhe a verdade. No fundo do meu pensamento, uma canção começou a escrever-se a si própria, uma canção triste.
- Posso perguntar-te uma coisa? - ousei.
- Hum.
- Ocorreu-me que talvez tu e Aidan fossem meios-irmãos; que o pai dele, o lorde de Whiteshore, também fosse teu pai. Pelos vistos, enganei-me.
Cathal abanou a cabeça.
- Havia pessoas em Whiteshore que pensavam o mesmo. Que ainda pensam, creio eu. Lorde Murtagh é um bom homem. É um homem da mesma têmpera que o teu pai. Homens assim não abandonam as suas mulheres. Ele acolheu-me por pura bondade. Aidan e eu tornámo-nos amigos, e essa amizade valeu-me uma educação e outras oportunidades. Lorde Murtagh também assegurou a sobrevivência da minha mãe, mas ela nunca aceitou viver em casa dele, não depois de Aidan e eu sermos desmamados. Por isso, continuou a viver na aldeia. Costumávamos ir vê-la à ponte. Parecia um fantasma, uma mulher apagada, sem vida. Passava aí horas, a olhar para a água. À espera. À espera até não conseguir esperar mais.
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Não lhe perguntei se a mãe dele se tinha suicidado, ou se simplesmente a levara o desespero. O sonho que eu tivera com a minha mãe demorava-se, ainda, na memória: o seu rosto assombrado, os olhos fixos na parede.
- Ela contou-te alguma coisa acerca do teu pai? - perguntei. Cathal abanou a cabeça.
- Costumava desviar-se do caminho para não ter de falar comigo, para não ser vista comigo, como se, de alguma forma, eu a envergonhasse. Lembro-me de a ouvir dizer-nos, a mim e a Aidan, para não irmos à sua casa, na aldeia. - Cathal era pragmático, factual, mas eu conseguia ver a dor aí latente, enterrada bem fundo.
- Vivendo na casa de Lorde Murtagh, tive uma existência mais privilegiada do que ela alguma vez podia ter-me proporcionado. Imagino que isso a fizesse feliz, embora nunca a tenha visto sorrir. Quando aquele tipo abusou dela, foi como se lhe tivesse sugado a vida. Ficou sem nada para me dar. Quando, por fim, aceitou que ele não ia voltar, deixou de ter uma razão para viver. Eu só tinha sete anos, Clodagh. Não vi o que estava a acontecer. Uma criança não compreende um desespero daquela natureza. Aidan e eu encontrámo-la no rio.
Cathal tinha os ombros caídos. Via coisas nas chamas da fogueira, memórias que lhe cavavam as maçãs-do-rosto e lhe sulcavam uma ruga vincada na testa.
- Depois disso, quase permiti que o ódio me devorasse. Aidan salvou-me. Esteve lá quando precisei dele. Aturou-me quando mais ninguém se dava a esse trabalho. Graças a ele, nunca perdi a noção de que a vida continua, por muito que o ódio nos queime, por muito profunda que seja a nossa dor. Aidan tem os seus defeitos e não lhe permito que saia impune dos momentos em que estes se manifestam. Ele faz-me frente de uma maneira muito semelhante.
- Respirou fundo. - Se tu e ele... Quando regressares, imagino... Aquilo que eu disse acerca da sua prometida, Rathnait, e do futuro... Ignora as minhas palavras, Clodagh. Faz o que o teu coração te ditar. Já houve demasiada amargura. Tu e Aidan seriam felizes juntos. Tu és forte. Eras capaz de ajudá-lo a controlar a sua raiva. Se é isso que desejas, devias abrir os braços e acolhê-lo.
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Fiquei em silêncio. Dois dias antes, talvez tivesse pensado que se tratava de um óptimo conselho. Mas, naquele momento, enquanto observava Cathal do outro lado da fogueira - as planícies extensas e angustiadas do seu rosto, a boca ferida, os olhos sombrios soube, com uma profunda convicção, que acontecesse o que acontecesse quando regressasse a Sevenwaters, eu não me casaria com Aidan. Mas não podia dizê-lo em voz alta. Na verdade, tinha de desviar os olhos de Cathal, não fosse ele ver no meu rosto algo que eu não me sentia preparada para partilhar.
Becan começou a estremecer e a agitar-se.
- Aí está - observou, recuperando um pouco da sua maneira arrastada e indolente de falar. - A vida continua.
- Tenho mais uma pergunta. - Afastei o manto do bebé para ele poder dar pontapés à vontade. - Falaste de adivinhar o futuro. Disseste-me que sabias que o ataque a Glencarnagh ia acontecer. Sibeal contou-me que as suas visões nem sempre lhe mostram um futuro certo, mas um leque de possibilidades e de alternativas que facilmente conduzem a falsas interpretações. Mas tu afirmaste que...
- As minhas visões têm sido sempre verdadeiras - declarou, com uma simplicidade arrasadora. - Oxalá não fosse assim. É muito mais cómodo não conhecer o futuro. Não ter caminhos bloqueados, possibilidades goradas. Por regra, evito águas paradas. Fujo de espelhos. Odeio o meu pai por ter destruído a minha mãe e por me ter rogado esta praga. Tudo o que é mau em mim, os sarcasmos, as artimanhas, as descortesias, devo-o ao sangue dele. O seu legado significa que não posso fazer parte do teu mundo, Clodagh. Estou condenado a troçar, a provocar, a ofender vezes sem conta.
- Tu não és esse homem, Cathal - repliquei tranquilamente.
- Não és o teu pai. És tu próprio. Talvez lhe devas isso, à mãe que tanto amaste, transcender essa condição. Ser forte o suficiente para superá-la.
Seguiu-se um breve silêncio. Depois, ele disse:
- Não me perguntaste o que eu vi.
- Sibeal ensinou-me que era uma coisa que não se devia fazer. Se tiveres alguma coisa útil para me dizer, talvez o faças. Mas eu não estou à espera disso.
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Cathal suspirou.
- Tinha esperança de ver alguma coisa que nos ajudasse. Mas aquilo que vi era obscuro. Não saberia como decifrá-lo.
- Se eu fosse uma vidente neste momento - comentei - gostaria de ver Sevenwaters. Para saber como está a minha família. Tive sonhos angustiantes centrados neles.
- Tentarei de novo amanha de manhã, se quiseres.
- Tive uma espécie de sonho - contei-lhe -, que parecia mostrar o que pode acontecer em Sevenwaters se não cumprirmos esta missão. No fim, vi guerreiros de Inis Eala a cavalgar para a batalha.
- Os homens pintados. - Cathal sorriu. - Os guerreiros desse chefe mítico, Bran de Harrowfield. Na ilha, o teu tio é venerado. As suas raras visitas são pretexto para grandes celebrações, com bebida, banquetes e extraordinários feitos de armas.
Nunca tinha sido capaz de pensar no marido da tia Uadan como um tio. Ele evocava coisas perigosas; o seu passado à margem da lei afastara-o de tudo aquilo que eu considerava normal. Perguntei-me o que teria achado de Cathal quando se conheceram.
- Gostei daqueles homens mais velhos, quando visitei Inis Eala - afirmei, com prudência. - Pareceu-me que os antigos mercenários de Bran possuíam algo que falta às pessoas comuns. Uma... tolerância, penso que podemos chamar-lhe isso. Como se tivessem visto e sofrido tanto que conseguem elevar-se acima dos problemas do dia-a-dia.
Cathal trespassou-me com o olhar.
- Não estás a tentar ensinar-me algo, pois não? - perguntou.
- Se estivesse, seria muito mais subtil, Cathal. Esta lição é daquelas que tu e eu podemos levar algum tempo a aprender. Temos de regressar a casa e pesá-la, longe dos medos e desafios que nos aguardam deste lado.
- Que sensate2 a tua, Clodagh. E que ponderação. - Estava a fazer pouco de mim. - E se não tivermos tempo?
- Nesse caso, penso que não sairemos do mesmo lugar - respondi, com um nó na garganta. - As coisas importantes ficarão por dizer. Os mistérios, por resolver. O tesouro, submerso para
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more, infinitamente à espera que o descubram. Os segredos, por partilhar.
Cathal olhou para mim, agora sem sinais de troça. Talvez seja mais seguro assim - comentou.
No mundo dos humanos, a Primavera já ia avançada e a luz macia da noite permitia actividades ao relento muito depois da hora do jantar. Neste reino sobrenatural, nada era previsível, nem mesmo a passagem do Sol e da Lua pelo céu. Naquele dia, a noite caiu de repente, como se uma mão gigante estendesse um cobertor por cima da paisagem, fechando-nos num mundo de sombras. Para lá do círculo de luz criado pela nossa pequena fogueira, grassava uma profunda escuridão. Fui dar um passeio para me aliviar num recanto isolado e mal consegui encontrar o caminho de regresso. A cinquenta passos de distância, a fogueira não era mais do que um reflexo indistinto no meio das trevas.
Becan estava deitado sobre o manto, a abanar as mãos de madeira e, ao seu lado, sentara-se Cathal, com as pernas esticadas. Quando me aproximei, ouvi-o a falar com o bebé numa voz muito séria.
- ... espero que saibas como ela é bondosa contigo - disse-lhe. - És um privilegiado, rapaz.
Quando cheguei junto do fogo, Cathal levantou os olhos.
- Não vai ser fácil para ti separares-te dele - declarou. - Estás preparada para isso?
Quem me dera poder fingir perante ele, perante mim própria, que a ideia de entregar o bebé às Criaturas Encantadas não me enchia de aflição. Becan era vulnerável. Só tomava conta dele há alguns dias, mas ele confiava em mim. Conhecia-me. Alguém o abandonara, sem hesitações, em Sevenwaters. Se eu não o tivesse socorrido, agora estaria morto. Como é que eu podia saber se a sua própria família cuidaria dele? Como é que eu podia ter a certeza de que sentiriam por ele o mesmo amor que eu sentia?
- Não estou de todo preparada - respondi. - Quando chegar a altura, penso que o farei e pronto.
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- Desde que saibas que vai ser doloroso... - disse Cathal.
- Vejo como te preocupas com ele e isso enche-me de espanto. É um pequeno farrapo de gente.
- Até um farrapo merece ser amado - retorqui. - Imagino que Becan tenha uma mãe e um pai neste mundo, mas não estou ansiosa por devolvê-lo. Ainda não tinha pensado muito nisso até sermos trazidos para aqui e tudo indicar que a missão podia, afinal, ser cumprida. Se assim for, se levarmos Finbar de volta, terei um outro problema para resolver.
O calor que eu sentira ao ouvir, sem querer, aquelas palavras de elogio já se dissipara. No meu pensamento, abriu-se o caminho longo e escuro através da floresta; o rio; o penhasco, que desta vez teria de ser escalado; os campos envoltos nesse doce aroma que adormecia a mente; e, por fim, o perigoso bote em que teríamos de confiar para atravessar o portal até ao nosso mundo. Nos meus braços, um bebé que não sobreviveria muito tempo a água com mel.
- Pode ser que o caminho de regresso seja diferente - disse Cathal, numa voz serena. - Se sempre estiveste destinada, como tudo leva a crer, a cumprir esta demanda, tenho a certeza de que não permitirão que falhes por causa de um pouco de leite.
- Podem fazê-lo - retorqui, imaginando a possibilidade cruel de conseguir a libertação de Finbar e de vê-lo sucumbir de fome a caminho de casa, antes de chegarmos a Sevenwaters. - Ouviste aquela criatura confirmar o que Willow disse, que agora são forças mais sombrias que imperam neste lugar. É precisamente uma partida que podiam pregar-nos.
- Clodagh - disse Cathal.
- Sim?
- É evidente que existe uma certa animosidade contra mim neste mundo. A criatura disse claramente que eu não era bem-vindo. Concordo com aquilo que sugeriu: temo que a minha presença te ponha em risco. Penso que o meu papel de protector está a chegar ao fim. De certa maneira, ficarias melhor sem mim.
As suas palavras arrepiaram-me.
- Não, Cathal! - exclamei, com a voz a tremer de pânico.
- Tens de ficar comigo! Se nos separarmos, é possível que nunca mais nos voltemos a ver.
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Cathal arqueou as sobrancelhas.
E tu gostarias de voltar a ver-me?
Nem acredito que precises de perguntar isso! - desviei
o olhar. Se deixasse escapar demasiada emoção, podia fazer com nue ele se refugiasse atrás das suas velhas paliçadas: o cinismo, o humor mordaz, o silêncio. Peguei em Becan, embalando-o nos meus braços. Devia prepará-lo para a noite.
- Tu subestimas a coragem que tens, Clodagh. - A luz da fogueira projectou um estranho brilho, vermelho, nas feições de Cathal. Tinha as mãos agitadas, os longos dedos não paravam de torcer-se e encavalitar-se uns nos outros. - Começaste esta missão sem mim. Se não te tivesse encontrado na floresta, enquanto tentava fugir, terias continuado o teu caminho sozinha. Terias encontrado o teu irmão e tê-lo-ias trazido de volta. Tenho a certeza. Não...
- disse-me, olhando para cima, como quem pressente uma pergunta. - Não o digo por ter tido alguma Visão. Não sei qual será o desfecho. Mas tenho confiança em ti. Uma capacidade para amar como a tua conduzir-te-á certamente ao êxito. Se existe algum fardo a puxar-te para baixo, esse fardo sou eu. Este povo não me quer aqui. E, de facto, se não tivesse acompanhado Johnny a Sevenwaters, desconfio que o teu irmão bebé nunca teria sido levado.
- Já tinhas dito algo parecido, numa outra ocasião. O que queres dizer com isso? Como é que as duas coisas podem estar relacionadas?
Cathal suspirou.
- Aí está uma coisa que não posso explicar-te; nem mesmo agora, que já sabes um dos meus segredos mais bem guardados. Se correr tudo bem... Se ambos chegarmos à outra margem e o herdeiro de Lorde Sean for salvo, responderei a qualquer pergunta que queiras fazer-me. É uma promessa, Clodagh.
- Farei com que a cumpras - disse-lhe, momentos depois. - O herdeiro de Lorde Sean? Finbar não é o herdeiro, não nas circunstâncias actuais. Existe uma profecia que exprime, segundo se diz, a vontade dos Tuatha De. Sempre a interpretámos como sendo Johnny o próximo chefe de clã de Sevenwaters. O meu pai prometeu-o, e é um homem de palavra.
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Cathal hesitou antes de falar.
- Um homem pode mudar de ideias depois de ter um filho
retorquiu. - Nem todos os pais rejeitam essa dádiva como se não tivesse qualquer utilidade. E a opinião de Johnny acerca do assunto? Talvez tornar-se chefe de clã, assentar e produzir herdeiros não seja uma perspectiva que ele acolha de braços abertos.
- Sempre me pareceu perfeitamente satisfeito com a ideia
- declarei, surpreendida. - É verdade que o meu pai fez essa promessa numa altura em que acreditou que nunca teria um filho. Mas seria difícil para Johnny se ele mudasse de opinião. As terras de Bran em Harrowfield estão destinadas ao seu segundo filho, Fintan, porque todos esperam que Johnny fique com Sevenwaters. Se aquilo que sugeres acabasse por acontecer, Johnny ficaria sem nada.
- Ah - exclamou. - Talvez isso não o incomode. Talvez preferisse que as coisas continuassem a ser como são. Johnny tem uma casa e uma vocação em Inis Eala.
- Mas nenhum domínio; nenhuma terra para além da ilha propriamente dita. Nem mulher e filhos. Inis Eala não é um lugar acolhedor para criar uma família.
- É verdade, Clodagh. - Estranhei aquele tom de voz e, quando olhei para ele, vi compaixão e tristeza. - Johnny prefere conservar a sua reputação; tal como o pai, raramente deixa que os outros o conheçam em profundidade. Clodagh, ele adora a ilha. Adora ser o líder de outros homens. Quanto ao resto, não penso que deseje ter uma mulher e filhos. Deves saber que relação existe entre ele e Gareth?
Por momentos, não percebi a insinuação. Depois, perguntei-me se não estaria a troçar de mim, como era hábito em Sevenwaters. Mas Cathal parecia - e estava - a falar a sério. Em vez de verbalizar a negação que me aflorou os lábios, porque aquilo que sugerira era, para mim, uma completa surpresa, mordi a língua e considerei a hipótese de ser verdade. Lembrei-me da minha visita à ilha e das viagens de Johnny a Sevenwaters, a maior parte das quais na companhia de Gareth. Eram certamente muito chegados. Mas, se existia algo mais para além da amizade, ambos sabiam disfarçá-lo bem.
- Tens a certeza? - perguntei.
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- Tenho, embora talvez não te devesse ter contado. Pensei que tu sabias. Na ilha, não é nenhum segredo.
Eu não sabia, Cathal.
Recordei a ambiguidade da minha mãe perante a ideia de Johnnv ser herdeiro de Sevenwaters, coisa que eu sempre relacionara com o facto de ela nunca ter aprovado o pai de Johnny. Ninguém seria capaz de não gostar do próprio Johnny. Era o tipo de homem que todos gostariam de ter como amigo.
- Talvez os meus pais saibam, mas não é um tema que abordassem comigo: não somos tão liberais nas nossas conversas. Pobre Tohnny; tantas expectativas e todas tão capazes de tornar a sua vida profundamente infeliz.
- Um homem pode casar e ter filhos, mesmo se não tiver essa inclinação - replicou Cathal, com secura. - Mas não haveria muito amor nessa parceria.
- Amor? - repeti. - Nos nossos círculos, as pessoas casam-se por razões estratégicas. Para mim, Deirdre teve a grande sorte de até gostar de Illann. Nenhuma de nós está à espera de amor.
- Que sorte teres encontrado Aidan, então. com ele, terás tanto uma aliança estratégica como amor. E eu não devia de modo algum criar-vos qualquer espécie de obstáculos.
- Obstáculos? Como o facto de já existir uma promessa de casamento? Não se pode dizer que foste tu quem criou esse obstáculo, Cathal. É certo que fizeste tudo para que eu ficasse a saber. Posso não te ter agradecido na altura, mas a verdade é que nos fizeste um favor, a mim e a Aidan. Uma relação não pode ser criada com base numa mentira. De qualquer modo, é ridículo termos esta conversa aqui e agora. Está escuro e frio, e estamos a léguas de distância de tudo. Assim que Becan adormecer, farei o meu turno de vigia. Devias descansar um pouco.
- Na verdade, não me referia à promessa de Aidan a Rathnait
- retorquiu, numa voz muito serena. - É possível que tenha exagerado ligeiramente a importância desse facto.
Olhei para ele e, de imediato, Cathal desviou o olhar para que eu não visse o que aí estava escrito.
- Então, referias-te a quê, Cathal? - perguntei.
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- A nada. Esquece. - O tom proibia mais perguntas. - Quanto ao resto, duvido muito que consiga dormir esta noite. Este lugar inquieta-me.
Depois de eu adormecer o bebé, Cathal acabou por deitar-se. Pensei que depressa cairia de sono, inquieto ou não, porque o dia fora longo e cheio de peripécias. Eu, por outro lado, tinha muito em que pensar durante as horas de vigia. Aprendera mais acerca de Cathal naquele dia do que durante toda a sua estadia em Sevenwaters. A história da mãe era triste, embora não fosse invulgar. Mulheres pobres eram muitas vezes vítimas de homens egoístas. Mal podia imaginar o horror que tinha sido para as duas crianças encontrarem o cadáver; como devia ter sido difícil para Cathal concluir que a mãe não vira no filho uma razão para continuar a viver. Cathal crescera com a certeza de que todos os traços da sua personalidade que não lhe agradavam eram herdados do pai desconhecido. E, embora ajudado pela bondade de Lorde Murtagh, ansiara pelo amor da mãe. Por isso, tinha simultaneamente acolhido e ressentido o seu lugar na casa do chefe de clã. Facto que se repercutia na relação com Aidan. Eram tão próximos como dois irmãos e conheciam os pontos fracos um do outro. Como Deirdre e eu, pensei. Muitas vezes, a minha irmã gémea irritava-me profundamente. Mas isso não lhe roubava o lugar especial que teria para sempre no meu coração. Fizesse Deirdre o que fizesse, eu nunca deixaria de amá-la. Guardei um pensamento para Aidan, recordando-o enquanto nos via a deixar o mundo dos humanos: parado, com o arco nas mãos e os olhos inundados de lágrimas. Não por mim - por Cathal. Se o meu companheiro achava que ninguém o amava, enganava-se redondamente.
Observei-o de novo. Estava muito quieto, de olhos fechados, com o cobertor puxado até ao queixo. Desejei-lhe melhores sonhos do que os meus tinham sido.
Quando a noite caiu, os pássaros calaram-se nas árvores e a fogueira tornou-se a minha única companhia. Teria de ficar acordada e alerta até Cathal conseguir descansar tudo o que precisava. O cansaço que ele sentia já superara a simples exaustão. Alguma coisa o perturbava, algo mais do que a certeza de que não devia acompa-
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nhar-me até ao fim da viagem. Apesar da força e solidez de recursos que o tornava um excelente companheiro, Cathal estava com medo. Em casa, quando precisava de ficar acordada, tratava de ocupar as mãos e a cabeça, dedicando-me a um bordado complexo ou praticando harpa. Ali, não era possível fazer nenhuma destas coisas, mas havia uma tarefa em atraso: o meu cabelo estava cheio de nós. Revirei o saco e encontrei o pente. Desembaraçar aquele emaranhado de caracóis seria uma missão demorada e dolorosa, e Deirdre não estava comigo para me entreter. Mas podia cantar. Pareceu-me que Cathal já dormia profundamente; por isso, se cantasse baixinho, não devia incomodá-lo. Uma balada desenhava-se há algum tempo no meu pensamento, inspirada numa forma tradicional, mas com uma letra e melodia próprias. Enquanto me penteava, trabalharia na nova balada.
Por onde andaste, meu querido, meu amor Por onde andaste, galante senhor? Corri todo o rio e ao poço desci E no meu reflexo foi o Inferno o que vi Mas ainda não sei voltar para casa. Ainda não sei voltar para casa.
Pratiquei a melodia até ficar quase satisfeita, com uma incerteza no final que reflectia as palavras, palavras que me tinham ocorrido mais cedo nesse dia. Perguntei-me o que pensaria Aidan daquela peça.
Por onde andaste, meu querido, meu amor
Por onde andaste, galante senhor?
Corri a floresta e subi à montanha
Lutei com a loucura uma luta tamanha
Mas ainda não sei voltar para casa
Ainda não sei voltar para casa. "
Estremeci quando o pente encravou em mais um nó renitente. Chegar a uma aparência minimamente aceitável era trabalho para
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a noite inteira. Todavia, tinha de ser persistente. Se bem compreendera, esse Senhor do Carvalho seria tão permeável à minha beleza como à súplica sentida que tencionava dirigir-lhe. Teria de fazer tudo o que estivesse ao meu alcance para recuperar o meu irmão.
Trauteei baixinho, só para mim, trabalhando um novo verso. Perdi-me nos nós de um bosque escarninho... Não tinha planeado que a canção fosse inspirada em Cathal, mas era-o inequivocamente. Contudo, a tristeza que havia nela transcendia a história dele. Quando pensava no rapaz que Cathal tinha sido, e no momento em que encontrara a mãe sem vida, via a minha mãe e o seu rosto quando lhe dissemos que Finbar tinha desaparecido. Pensei na desilusão do meu pai comigo e pensei em Johnny e Gareth e em como devia ser difícil amar alguém e ter de esconder esse amor do mundo. Olhei, de novo, para Cathal. Estava deitado de costas, com a cabeça virada para o outro lado, o cabelo preto espalhado no chão, a pele clara do pescoço exposta sob o tecido da túnica. Tinha esticado um braço e a mão abrira-se, com os longos dedos descontraídos.
Senti que o mundo tinha parado. De repente, com urgência, queria tocar-lhe, senti-lo, encostar a mão ao seu pescoço, ao seu rosto. A pose dele era a de uma criança adormecida, toda ela confiante. Mas os sentimentos que me invadiam eram os de uma mulher por um homem, os mesmos que sentira antes, mas cem vezes mais intensos. Queria deitar-me ao seu lado. Queria sentir aquele corpo contra o meu. Imaginei as suas mãos a tocarem-me com ternura e com paixão, e imaginei-me a retribuir da mesma maneira. Não me tinha sentido assim quando Aidan me sorrira e falara docemente. O meu corpo não reagia da mesma forma quando dançava com ele. E embora eu e Aidan tocássemos muito bem juntos, nunca tinha sentido a mínima vontade de escrever uma canção a seu respeito. O desejo que o primeiro beijo de Cathal me despertara, quando pensámos que estávamos a dizer adeus, tornara-se tão forte que chegaria o momento em que já não seria possível escondê-lo. Ali, ao pé da fogueira, durante a noite, cercados pelo silêncio da floresta, era demasiado fácil render-me a esse desejo. Pensei no comentário de Cathal a respeito dos obstáculos que criara entre mim e Aidan, esse comentário que ele não quisera explicar. A sua atitude para comigo
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melhorara muito; só se fosse cega é que não teria reparado
nisso. Será que essa atitude escondia alguma coisa? Ou era apenas o meu próprio desejo a falar? Na verdade, ele continuava a afastar-me.
Imaginei que lhe dizia Amo-te. Ou, mais ousada ainda, Quero-te.
Qual seria a sua resposta? Ternura, um sorriso trocista? Quando regressássemos ao nosso mundo, era provável que ele voltasse a ser o velho Cathal que eu conhecia, aquele em quem eu nunca podia confiar inteiramente. O trapaceiro.
- Ui - exclamei, quando o pente voltou a prender-se.
Um grito sinistro e familiar ressoou na floresta. Do outro lado da barreira de espinhos, algo se moveu. Um arrepio percorreu-me o corpo todo. Fiquei muito quieta e perscrutei a escuridão, perguntando-me se teria sido apenas um pássaro, ou uma raposa. Talvez Máscara-de-Cão tivesse vindo confirmar se estava tudo bem. Mas também podia ser outra coisa. Talvez a criatura dos gritos desolados estivesse, naquele momento, encostada à vedação. Era a minha vez de vigiar. Levantei-me sem pressas, com o coração a bater com violência. Não podia acordar Cathal de cada vez que a brisa agitasse a folhagem. Por outro lado, se houvesse uma ameaça, não devia ficar ali sentada, à espera que nos atingisse. Inclinei-me e apanhei um tronco em chamas da fogueira, retraindo-me quando uma farpa me rasgou a pele da mão. Depois, caminhei na direcção do portão, iluminando irregularmente o caminho com o archote improvisado. Não estava longe; o arco feito de ramos entrelaçados depressa se tornou visível. O portão permaneceu fechado - eu não tinha qualquer intenção de aventurar-me no exterior sem o nosso guia. Mantive-me a uma distância de quatro passos e levantei o archote o mais alto que pude.
Do outro lado da cerca de espinhos, a floresta parecia deserta de vida. O lamento cessara. Nada se mexia; nenhum pássaro articulava um apelo sonolento, nenhum rato ou ouriço-cacheiro avançava aos sussurros através do tapete de folhas caídas. Preparava-me para baixar a tocha e regressar para junto do fogo quando os vi: um cortejo de figuras cobertas por mantos cinzentos metalizados, movendo-se lentamente, mas de uma forma decidida, à volta do perímetro
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da vedação. Seguiam sozinhas, conservando uma distância de quatro passos entre si. Caminhavam sem ruído, passando como sombras. O que estariam a fazer? A vigiar a cerca, zelando pela nossa segurança afugentando possíveis intrusos? Ou a garantir que continuávamos confinados? Uma coisa era certa: a altura distinguia aqueles guardiões da espécie de Máscara-de-Cão. Nas histórias, os Anciãos eram sempre descritos como seres pequenos e atarracados.
Os meus olhos começaram a acostumar-se àquela estranha luminosidade, ao clarão indeciso projectado pelo tronco da fogueira, à escuridão cheia de sombras em torno do portão e mais além. Os caminhantes vindos da floresta estavam escondidos sob os capuzes; não lhes conseguia ver os rostos. Aqui e além, o tição em chamas apanhava um ponto de luz, talvez o brilho de um olhar; aqui e além, uma mão branca de dedos compridos recortava-se no cinzento do manto. Pensei ouvir o som de uma respiração lenta. Senti bem fundo o calafrio provocado por uma presença sobrenatural e tive medo.
- Sai - sussurrou um deles. - Abre o portão. Queres o teu irmão, não queres? Vem buscá-lo.
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Capítulo Doze
Finbar. Deuses, estaria ali, do outro lado da cerca, talvez nos braços de um daqueles fantasmas cinzentos? Estava escuro e frio. Tinha de trazê-lo para dentro, para junto da fogueira... Dei um passo na direcção do portão e tropecei numa pedra, quase deixando cair a tocha. Agarrei no tronco com firmeza e senti uma dor aguda na mão, no sítio onde a farpa se enterrara na pele. O que é que se passava comigo? Era uma loucura considerar a hipótese de sair. Fora da cerca, o perigo está em todo o lado, dissera Máscara-de-Cão.
- Clodagh.
Alguém falou do outro lado do portão, uma voz macia. Uma mulher. Emoldurado pelo capuz cinzento, o seu rosto oval era deslumbrante. Os olhos, azuis, eram da cor do céu no Verão, e a pele lembrava natas frescas. Senti uma secura nos lábios; o coração a bater mais depressa. Não seria Deirdre da Floresta, a mulher dos Tuatha De que, no passado, guiara a minha avó ao longo de uma terrível prova de resistência? Correspondia perfeitamente à descrição de Sibeal. E agora sorria-me, embora tivesse uns olhos tristes. Parecia uma amiga.
- Minha senhora - respondi, numa voz entrecortada e nervosa -, o que quereis de mim?
- Temos o teu irmão - disse a mulher. - Está mesmo ali, olha.
Estiquei o pescoço. Uma das figuras aproximou-se, segurando uma pequena trouxa. Na luz vacilante, não consegui ver com clareza.
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- Abre o portão, Clodagh, atravessa-o. Estou aqui para ajudar-te, filha de Sevenwaters. A tua missão chegou ao fim.
Tão fácil. Tudo o que tinha de fazer era destrancar o portão, dar cinco ou seis passos e acolheria Finbar nos meus braços. A esperança da minha mãe, a alegria do meu pai. Estava ali, ao meu alcance. Mas...
- E a palavra-passe? - perguntei.
Ela respondeu com um riso abafado, divertida.
- Não te preocupes com isso. O portão vai deixar-te sair; só é preciso a palavra-passe para entrar. Uma artimanha criada por gente metediça. Ignora-a. Vem, minha querida, vem buscar a criança. Deves estar ansiosa por levá-lo para casa.
Alguma coisa não estava bem. Não tinham feito nenhuma alusão a Becan. Não estava previsto que fosse uma troca? E, se queriam ajudar-me, porque é que não me passavam Finbar por cima do portão, ou traziam-no para dentro?
- Por favor, segurai-o bem alto para que eu possa vê-lo - exclamei, tremendo com a minha própria audácia. Não cabia a uma rapariga humana questionar as motivações dos Tuatha De. Eram detentores de um imenso poder.
A mulher estalou os dedos brancos e compridos e a outra figura aproximou-se do portão, segurando a trouxa de maneira a que eu pudesse inspeccioná-la. Como eu não era suficientemente alta para olhar por cima do portão, espreitei por entre os galhos e ramos entrelaçados, tentando pousar a tocha sem pegar fogo a nada. Entre as dobras cinzentas, um bebé dormia tranquilamente. Lábios de botão de rosa; nariz definido; um caracol de cabelo negro. Senti o ar preso na garganta. Era mesmo Finbar. Apenas a um passo de distância. Nem sequer precisava de sair do espaço sagrado da clareira. Tudo o que me pediam era que destrancasse o portão, pusesse um pé de fora e o acolhesse nos meus braços.
- Não terás de enfrentar o Senhor do Carvalho - disse a mulher. - Leva o teu irmão agora e foge, antes que Mac Dara saiba que estás aqui. Chegarás a Sevenwaters de manhã. O caminho para casa é mais fácil.
Mac Dara? Seria o Senhor do Carvalho o príncipe perverso de que falavam as velhas lendas? Como é que eu podia enfrentar uma
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figura mítica com aquela importância, sem dúvida uma das forças mais poderosas do Outro Mundo? Devia aproveitar a oportunidade e sair dali o mais depressa possível.
Pensei que isto seria uma troca - obriguei-me a dizer.
O... - Não era capaz de chamar duplo a Becan. - O outro bebé em troca do meu irmão.
Seguiu-se um breve silêncio.
- Não é preciso - respondeu a mulher. - Vem, atravessa o portão.
Será que estava a dizer-me que, contra todas as expectativas, eu podia levar ambos os bebés para casa? Que eu podia poupar Becan à incerteza de um futuro no seio de um povo que estava preparado para se desfazer dele e, ao mesmo tempo, salvar o meu irmão? Se não aproveitasse aquela oportunidade, arrepender-me-ia a vida inteira.
- Muito bem - respondi, estendendo o braço para destrancar o portão. Era difícil, com o archote na mão.
- Clodagh! - atrás de mim, um grito e passos de corrida. Uma mão arrancando-me a tocha acesa, a outra agarrando-me os dedos e afastando-os do trinco. - O que é que estás a fazer?
- Não, Cathal! Deixa-me ir! Não estás a perceber, eles têm Finbar... - Lutei para deitar a mão ao fecho, mas Cathal arrastou-me para trás e este ficou fora do meu alcance. Agora, enlaçara-me a cintura, atrás de mim, com um braço sólido como o ferro. - Larga-me! - solucei. - Ele está mesmo ali, posso tocar-lhe! Cathal, por favor!
Do outro lado da cerca, a mulher de cinzento manteve-se em silêncio, de olhos fixos em nós. Observou-nos por momentos, enquanto eu me debatia e suplicava, e depois tornou a falar. O seu tom, glacial, emudeceu-me e imobilizou-me nos braços de Cathal.
- Como guardião, fazes um péssimo trabalho - observou.
- Abandonaste-a, praticamente. Agora deu-te para dormires enquanto ela vagueia?
- O que quereis de nós?
Era um desafio, forte e arrojado, mas senti um estremecimento no corpo de Cathal que desmentia a confiança que emanava das suas palavras.
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- Fizeste todo este caminho e ainda não sabes? - perguntou a mulher e, naquele momento, não percebi como é que me parecera amigável, porque os seus atraentes olhos azuis eram hostis.
- Mentistes-lhe - disse Cathal. - Se voltardes a fazê-lo, é comigo que tereis de lidar.
Desta vez, havia algo na voz dele que me assustou e, para meu espanto, a mulher das Criaturas Encantadas recuou um passo.
- Foi um aviso - replicou ela, com um pequeno sorriso de gelo. - Não voltes a deixá-la sozinha. Da próxima vez, talvez vá longe de mais para que possas segui-la.
Depois, fez um gesto para o companheiro e, juntos, viraram as costas e afastaram-se em silêncio, levando Finbar.
- Não... Esperem! - gritei, mas o cortejo mergulhou nas sombras e desapareceu.
- Vamos voltar para junto da fogueira - disse Cathal.
Fiquei parada, resistindo à força do seu braço. Será que me tinha enganado tanto? Estaria completamente cega? Aquele era mesmo o meu irmão. Tinha a certeza.
- Eles traziam Finbar - murmurei, num fio de voz trémulo. Pingava dos olhos e do nariz e doía-me a mão. - Eles traziam-no com eles, Cathal. Estava mesmo ali.
- Vem, Clodagh. Quer fosse Finbar ou não, já se foi embora e aquela gente também. Estás gelada e em estado de choque. Vem para junto do fogo e podes gritar comigo à vontade.
Mas, quando chegámos ao pé da fogueira, sentei-me e descobri que a fúria me tinha abandonado e que, no seu lugar, ficara apenas a angústia.
- Estava tão certa de que era Deirdre da Floresta - expliquei-lhe. - A mulher que apareceu a Sibeal no passado, como já tinha aparecido à minha avó, há muito tempo atrás. Uma presença benigna. Parecia tão fácil. Ela disse que queria ajudar-nos. Parecia certo, Cathal.
Inclinei a cabeça, tentando prender a ponta da farpa com as unhas.
- Deixa-me fazer isso. - Cathal sentou-se ao meu lado, pegou na minha mão e examinou a farpa de madeira com os olhos semicerrados. - Está enterrada; posso ter de usar a faca.
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Fá-lo, por favor. Desculpa, Cathal. Aquele olhar no final...
Esqueci-me dos avisos. Ela fez pouco dos Anciãos. Disse que eram metediços. E talvez sejam. Já não sei em quem devo acreditar. Em quem posso confiar.
- Confiar em mim pode ser um bom primeiro passo.
Cathal foi buscar uma faca de lâmina longa. Segurando-me na mão com firmeza, manuseou a arma habilmente. Fechei os olhos; assim, parecia doer menos.
- Se não confiasse em ti, pensas que te deixava fazer isto?
- perguntei-lhe, sombria. - Cathal?
- Hum? Fica quieta.
- Ela disse que o Senhor do Carvalho e Mac Dara eram a mesma pessoa. Sabes quem é? Esse príncipe do Outro Mundo de que falam as velhas lendas, aquele que manipulava e conspirava incessantemente, fazendo tudo para alargar o seu poder? Um grande chefe militar, mas destituído de qualquer sentido do Bem e do Mal.
- Hum. Respira fundo, Clodagh.
Uma dor aguda. Instantes depois, chocante na sua doçura, o toque dos seus lábios na palma da minha mão, no lugar da dor. Abri os olhos repentinamente mas Cathal já tinha largado a mão e desviado o olhar.
- Deixa-me pôr um pouco de bálsamo no golpe. Cuidarei dos teus cortes ao mesmo tempo. Já devia tê-lo feito.
- Mal conseguiste dormir...
- Quando adormeci mesmo, quase te perdi.
- Já pedi desculpa. - Senti os ombros caídos. - Devia ter percebido que era demasiado fácil: um lugar seguro, todos os nossos objectos devolvidos, tempo para pensar, para reflectir... Mas, por que motivo trariam Finbar e, logo a seguir, o levariam de volta? Não pertencem eles aos Tuatha De? Se são súbditos de Mac Dara e se está previsto que eu lhe apresente o meu caso amanhã, por que razão fariam isto? Aquela mulher era... - um arrepio percorreu-me o corpo todo. - Pensei que era uma amiga, mas o modo como nos falou... Parecia zangada.
- Não posso dizer-te quem são - respondeu Cathal. - Mas creio que o seu único objectivo era atrair-te para fora da cerca, sozinha. Para te afastarem de mim e da minha protecção, Clodagh.
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- Se isso é verdade, fui estúpida. Máscara-de-Cão disse-me que era perigoso sair do recinto vedado e, mesmo assim, eu tê-lo-ia feito.
- Não te tortures a ti própria - disse Cathal, tornando a sentar-se com uma malga de bálsamo na mão. - Ambos cometemos erros. É humano fazê-lo. Acredita, não tenho grandes certezas a respeito das decisões que tomo. Deixa-me cuidar do teu rosto, Clodagh. Olha para mim.
Olhei para ele, e talvez houvesse alguma coisa nos meus olhos que eu queria encobrir e reservar para uma outra altura, um outro lugar, mas, naquele momento, não tive forças para velar a minha expressão. Cathal respirou fundo com dificuldade e, num suspiro, expirou o ar.
- Prometi a mim próprio que não o faria - murmurou e, depois, segurou-me no rosto com as suas longas mãos e beijou-me. E embora já o tivesse feito duas vezes no passado, teve o sabor de um primeiro beijo. Terno e encantador, profundo e vibrante. Foi um repique de sinos, o canto de uma cotovia no céu da madrugada, o aroma das macieiras em flor, a explosão de cores de um arco-íris. Pus os meus braços à volta do pescoço dele, encostando-me ao seu corpo. Senti as suas mãos nas minhas costas, na cintura, depois os dedos delicados na curva do meu peito, acendendo uma chama no fundo do meu corpo. Fiz um som involuntário, de prazer, e senti-o parar de repente. Instantes depois, os seus lábios deixaram os meus e as mãos retiraram-se.
- Não - disse-me, a tremer. - Não posso. Não posso fazer isto, não aqui, não agora.
Uma desilusão amarga apoderou-se de mim. O meu corpo ansiava por ele; os sentimentos que me invadiam superavam os limites do possível.
- Porquê? - explodi.
Cathal pôs as mãos à sua frente, com as palmas viradas para mim, como se quisesse defender-se.
- Não posso permitir que isto aconteça - disse-me. - Não seria correcto. Quando regressares a Sevenwaters, hás-de agradecer-me por isto, Clodagh.
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- Não podes permitir que isto aconteça? - o desconforto tornara a minha voz estridente e não havia nada que eu pudesse fazer para evitá-lo. - Não achas que tenho cabeça para pensar?
Cathal evitou o meu olhar.
- Tu sabes o que o meu pai fez - retorquiu. - A minha mãe ofereceu-se a ele, acreditando nas suas falsas promessas. E ele teve o seu momento de prazer e abandonou-a, sem uma única hesitação. Eu sou filho desse homem. Agora, diz-me se ainda não compreendes porque é que tenho de dizer que não.
- É um disparate - objectei, lutando por recuperar alguma calma. - Não tenho nada a ver com a tua mãe; sou uma mulher completamente diferente. Além disso, não me lembro de ouvir-te fazer qualquer promessa, falsa ou não, a não ser a de zelares pela minha segurança durante esta viagem. De qualquer modo, não temos de chegar efectivamente a... - Senti o rosto a arder.
- Continua - disse Cathal, num tom já mais próximo da sua velha maneira de ser.
Respirei fundo.
- Não estava necessariamente a sugerir que... - imaginei que Deirdre ouvia aquele discurso e se ria de mim. - O que quero dizer é que até podemos estar sozinhos, longe do nosso mundo, mas...
- Estás cansada, chocada e nervosa - disse Cathal. Naquele momento, parecia um pai a aconselhar uma criança agitada. - Se não estivesses, nunca te passaria pela cabeça considerar essa hipótese, Clodagh. Tu és filha de Lorde Sean de Sevenwaters. E eu sou... sou o que sou. Se eu permitisse que isto acontecesse, estaria a aproveitar-me de ti num momento de fraqueza, mesmo que não queiras dar-lhe esse nome. Guarda-te para Aidan. Ficar-me-ás grata por isso, acredita.
- Tretas - disparei, submersa numa maré de humilhação. - Esquece tudo. Claramente, interpretei mal a situação. - Fiz um grande esforço para esconder que estava à beira das lágrimas.
- Passa-me o bálsamo, cuidarei eu própria dos meus golpes.
- Eu faço-o - declarou. - Será um exercício de autodomínio.
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E foi mesmo, para ambos. Quaisquer que fossem as razões de Cathal para rejeitar-me, era um erro pensar que eu lhe era indiferente. Os seus dedos, tão delicados como da primeira vez que cumprira aquela tarefa, mostravam-se muito menos seguros. Enquanto percorriam as linhas do meu rosto, não paravam de tremer. Vi o desejo nos seus olhos e no modo como os lábios rígidos se suavizavam, e escutei-o na sua respiração, tão irregular como a minha. Mantive-me muito quieta. Lágrimas brilharam-me nos olhos, mas não chegaram a cair. Afinal, talvez eu não tivesse interpretado mal a situação. Cathal não tentava sequer disfarçar o desejo que sentia por mim.
- Quando chegarmos a casa - sussurrei -, não vou deixar-te fugir. Não vou mesmo.
- Ah, bem - replicou -, se esse dia chegar, talvez te conte algumas coisas que agora não me é permitido revelar. - com o polegar, limpou a pele macia por baixo dos meus olhos, contendo o derramamento de lágrimas. - Já terminei, e agora devias tentar dormir, Clodagh. Aconteça o que acontecer amanhã, vais precisar de todos os teus talentos. Estas pessoas distorcem facilmente o nosso pensamento. Espero que o teu protector da máscara de cão te acompanhe até concluíres a tua missão e não permita que voltes a desviar-te. Preferia não ter de recorrer à força para impedir-te.
- Não suporto pensar que Finbar esteve tão perto e que tenha sido levado, de novo, para longe de mim. Não me pareceu de todo que estivessem interessados em Becan.
Olhei de relance para a criança adormecida - um montículo quase imperceptível por baixo do cobertor.
- Era uma armadilha. Quem quer que tenha estado junto do portão, não é a pessoa com quem terás de lidar. Não é um povo que conceda favores sem uma contrapartida. Deverá ser uma troca, como esperavas. Não posso dizer que tenha simpatizado com aquela criatura da máscara de cão, mas tudo indica que é mais seguro confiares nela do que nos outros.
- Por causa do laço de parentesco?
Cathal esboçou um sorriso que era pura auto-ironia. Mas não havia um sinal de divertimento nos seus olhos.
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Um laço de parentesco não é necessariamente uma garantia
de confiança - afirmou. - Mas aqui estamos nós, com pouco conhecimento do reino onde andamos à deriva, a debater-nos com a necessidade de tomar decisões de vida ou de morte. Se eu estivesse no teu lugar, consideraria estes Anciãos entidades tão benéficas como alguém pode ser num lugar como este. Quando chegar a altura da audiência final, ou seja lá o que for que te espera, é melhor confiares apenas em ti própria. Não confies em mais ninguém.
- Excepto em ti, queres tu dizer.
- Quando chegares ao fim, talvez não seja relevante, Clodagh. Vamos, cobre-te agora e descansa um pouco. Ficarei de vigia até amanhã de manhã.
A noite pareceu-me interminável. Dormi em permanente sobressalto, o meu sono um labirinto de sonhos inquietantes, e quando acordava via Cathal de guarda, sentado junto da fogueira, ou de pé nas imediações, perscrutando a cerca de espinhos, agora invisível na escuridão opaca. A certa altura, acordei de repente, com a voz silenciosa da minha irmã gémea a invadir-me o pensamento: Clodagh! Responde-me! Fechei com violência as minhas portadas mentais, banindo Deirdre. Naquela noite, não tinha simplesmente espaço para ela.
Pouco depois, Becan acordou, ocupei-me dele e voltei a deitar-me, puxando-o para mim, consciente de que aquela era a última noite em que eu sentia o seu corpo estranho e cheio de arestas enroscado no meu. Estava quase a chegar a hora da despedida. Trauteei uma canção de embalar, enquanto ele adormecia, usando a melodia da minha balada, mas não a letra. Era uma canção demasiado triste para uma criança tão pequena. Lá fora, na floresta, a criatura em pranto acrescentou à música a sua voz gemente.
Por fim, chegou um simulacro de madrugada: uma luz ténue atravessou a copa das árvores; os pássaros emitiram ruídos tímidos. Talvez, talvez!, exclamava um, e um outro respondia: Cedo de mais! Cedo de mais! Não era um início de dia animador, mas havia pelo menos luz suficiente para vermos o que estávamos a fazer. Cathal per-
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correu o perímetro definido pela vedação e informou-me que, tirando os pássaros, não havia sinais de vida lá fora, embora tivesse olhado por cima do portão e visto pegadas na terra macia. Aticei o fogo e preparei uma refeição. Em casa, o meu pai, um madrugador, estaria sentado diante das suas papas de aveia, eventualmente absorto numa estratégia para lidar com os atacantes de Glecarnagh. Os homens continuariam lá fora, à procura de Finbar. No dia seguinte à noite, ou na manhã do outro dia, talvez estivéssemos a entrar no pátio com o bebé, são e salvo, nos braços. Sê forte, mãe, incitei-a. vou levá-lo para casa.
Comemos em silêncio, mantendo uma distância entre nós. A expressão no rosto de Cathal espelhava o que eu sentia por dentro. O meu estômago contorcia-se de nervos. Havia muito a perder se aquele confronto com as Criaturas Encantadas não corresse bem. Eu tinha de chegar a casa em segurança, não só para entregar o meu irmão aos cuidados da nossa família, mas também para dizer ao meu pai que Cathal era um homem bom, que nunca nos tinha traído e que só não divulgara a fonte do seu invulgar conhecimento por motivos que apenas a ele diziam respeito. Tinha de chegar a casa em segurança para poder... O quê? Convencer Cathal de que aquilo que sentia por mim era mais do que desejo físico, quando eu própria não tinha a certeza disso? Persuadi-lo de que devia considerar a hipótese de passar o resto da vida ao meu lado, quando era muito claro que alguém com o seu perfil não encaixaria no meu mundo? Explicar ao meu pai que Cathal era um melhor pretendente a marido do que Aidan, um jovem bem-parecido e de boas famílias?
- Pareces preocupada - observou Cathal.
- E estou preocupada. Há tanta coisa que depende disto e não posso ter a certeza de nada. Aquelas figuras, ontem à noite, perturbaram-me. Nas velhas lendas, quando as pessoas se dedicam a uma missão, costumam lutar contra dragões, serpentes ou cães gigantescos. Ou alguma espécie de guerreiros das trevas, entidades que são inimigas desde o início. Mas tudo se torna mais assustador quando alguém que parece amigável e bom, como aquela mulher, se revela uma coisa completamente diferente. O estranho e o sobrenatural não são aterrorizadores em si mesmos. Aquilo que mais nos inquie-
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ta é esse momento em que o familiar se torna estranho. Quando as coisas que são seguras e banais deixam, de repente, de... estar bem.
Pensei na minha casa e em como o meu lugar de filha amada e de confiança desaparecera de um momento para o outro. Pensei nas faces encovadas da minha mãe, no seu olhar vazio.
Aí está um dos motivos por que é mais fácil não ter laços de
afecto - disse Cathal. - Assim, não temos nada a perder.
Olhei para ele.
- Isso é terrível - retorqui. - Viverias a tua vida inteira sem amor. Dominado pelo medo.
Cathal encolheu os ombros, como se não atribuísse significado a estas considerações.
De qualquer modo, pensei, não é verdade. Podes desmentir o que quer que seja que sentes por mim, mas não podes ignorar o laço que te une aAidan. Ou o amor que sentes pela tua mãe. Não podes pôr de parte a tua lealdade para com Johnny. Mas não o disse. Já me parecia suficientemente inquieto para ainda ter de ouvir as minhas opiniões. Se não fosse por minha causa, ele não estaria sequer naquela situação.
- Na verdade - referiu, esboçando um sorriso -, alegra-me muito que não nos tenhamos cruzado com nenhum dragão. Clodagh, eu sei que a tua família te preocupa. Tentarei ver Sevenwaters mais tarde. Espero conseguir dizer-te o que se passa por lá.
- És capaz de fazer isso? Ver aquilo que procuras na água? Por vezes, Sibeal sondava o futuro para encontrar respostas
a problemas específicos, mas as suas visões podiam mostrar-lhe algo que não estava de todo relacionado com o que procurava.
- Poderei ver isso ou apenas uma confusão, como da última vez.
- Tens a certeza de que não te importas?
- Desconfio que vou ser uma ajudinha preciosa daqui por diante. É uma tarefa relativamente fácil. Se te consola, fá-lo-ei de bom grado.
- Obrigada, Cathal. Ficarei aqui, para não te incomodar, de sentinela.
- Vem sentar-te ao meu lado, se quiseres. O convite foi lançado com timidez.
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- Tens a certeza de que a minha presença não te distrai?
- Tenho toda a certeza, Clodagh. Talvez até ajude a convocar a Visão que queremos. Mas primeiro tenho de untar esses golpes de novo. Estão com melhor aspecto. Começaram a sarar.
- Se vamos sentar-nos à beira do lago, posso fazê-lo eu mesma. Ainda não me atrevi a olhar para o meu reflexo e, mais tarde ou mais cedo, terei de enfrentá-lo.
Mais tarde, nessa manhã, sentámo-nos lado a lado à beira da água, e Becan ficou por perto, enroscado em xailes e cobertores. Cathal colocou-se de imediato na posição do vidente, fixando os olhos no desconhecido, e eu encarei a minha imagem reflectida na superfície lisa do lago.
Se os golpes já estavam com melhor aspecto, não gostaria de tê-los visto no dia anterior. Um deles era um vergão que me atravessava a testa, direito e profundo. O segundo estendia-se da extremidade do olho direito até meio caminho em direcção ao queixo. O terceiro completava o quadro, desenhando o contorno vago e grosseiro de um pássaro ou morcego na minha face esquerda. Imaginei as pessoas a olharem para mim como tinham olhado para a minha irmã Maeve depois do incêndio, vendo apenas a desfiguração, não a rapariga que a exibia. E perguntei-me se Muirrin teria algum tratamento para fazer desaparecer aquelas marcas, ou se eu estaria condenada a carregar para toda a vida as feridas dessa missão de que me tinha incumbido a mim própria. Cerrei os lábios e comecei a untar o rosto de bálsamo.
Estava quase a terminar quando Cathal murmurou algo e se inclinou para mim, sem tirar os olhos da água. Peguei-lhe na mão; estava a tremer. O rosto empalidecera para um branco sepulcral. O meu olhar deteve-se, seguindo a sua linha de visão, e um estremecimento de pânico percorreu-me o corpo todo. A água que há momentos reflectira o meu rosto desfigurado enchia-se agora de cor e de movimento, imagens de um homem a cavalo, de árvores e de figuras envoltas em mantos, deslocando-se dentro e fora da luz manchada de sombras... Parecia que, assim que segurara na mão de
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Cathal, a Visão me tinha sugado. O seu dom só podia, de facto, ser poderoso.
Cathal apertou-me a mão com mais força. Aproximei-me da margem até ficar de joelhos, mesmo ao lado dele. Os seus olhos negros abriam-se, arregalados, e a linha do maxilar parecia mais vincada. Respirava com dificuldade. Obriguei-me a olhar para a água.
Um homem cavalgava pela floresta, um homem jovem de cabelo castanho, com um rosto franco e atraente. Aidan. Estava sozinho, embora os dois cães de caça corressem atrás do cavalo. Levava o arco pendurado ao ombro e trazia a mesma roupa que tinha no dia em que nos perseguira até à margem do rio. Passou por baixo de carvalhos gigantes, de troncos negros e maciços, separados por intervalos extensos e sombrios. Eu conhecia aquele lugar. Situava-se no interior da floresta de Sevenwaters, perto dos nemetons, onde se alojava a comunidade de druidas do meu tio Conor. Aidan não parava de olhar para trás, por cima do ombro, como se pressentisse que alguém o seguia, mas também parecia estar à procura de alguma coisa. Os cães não abrandavam o passo; não faziam incursões para fora do caminho. O cavalo mostrava-se nervoso e o cavaleiro também.
Outro caminho; mais uma avenida de carvalhos. Aidan acelerou e os cães acompanharam-no de perto. O cavalo desceu uma pequena encosta a meio galope e deteve-se bruscamente, obedecendo ao sinal do cavaleiro. Aidan desmontou e deu três passos em direcção a uma das árvores imponentes, ajoelhando-se de repente. O nosso campo de visão alterou-se um pouco e passámos a olhar por cima do ombro dele, para os olhos esbugalhados e sem vida do homem que ali jazia, com o pescoço trespassado por uma seta e o sangue a congelar numa poça no chão. Era um dos dois homens que tinham acompanhado Aidan dois dias antes, quando este saíra em busca de Cathal. Engoli uma exclamação de horror; Cathal inspirou abruptamente. Vimos Aidan estender a mão para fechar os olhos do companheiro, dizer alguma coisa, talvez uma oração, e levantar-se devagar. Os cães esperavam ao pé do cavalo, conservando alguma distância.
De repente, Aidan estacou. A mão deslizou até ao punhal que trazia à cintura. E agora eu via aquilo que ele via: uma figura saindo
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do seu esconderijo, vinte passos mais à frente, com um arco na mão e a seta já presa na corda; uma figura com um manto cinzento e capuz, semelhante ao que todos os homens de Johnny usavam, mas com uma ligeira diferença de estilo, um corte e movimento invulgares. O portador do manto era alto, de cabelos escuros, rosto pálido e intenso e lábios finos. Não consegui evitar um murmúrio de choque. Cathal ali, naquela Visão? Cathal perseguia Aidan na floresta de Sevenwaters, embora estivesse ali comigo, ao meu lado? Será que o que víamos acontecera no passado? Não, o homem que jazia, sem vida, aos pés do carvalho estava vivo e em forma no dia em que tínhamos atravessado o rio e, desde então, Cathal estivera sempre comigo. Seria uma Visão do futuro?
O Cathal da imagem deu um passo em frente e disse algo. Parecia muito calmo. Talvez convidasse Aidan a pousar a arma e a conversar. Aidan não tinha concluído o movimento que poria uma faca nas suas mãos. com a arma do outro homem apontada a si, a única alternativa era render-se. com o rosto a arder de fúria, Aidan levantou as mãos, mostrando-as abertas e vazias - um gesto de negociação. Um momento depois, súbita e brutal, a seta atingiu-o no peito e ele desabou.
Cathal ficou imóvel como uma pedra, como se tivesse sido ele a sofrer aquela seta. Senti a cabeça a andar à roda; o coração a martelar-me no peito, de choque. Não é verdade, não pode ser, é apenas uma Visão, balbuciou uma voz dentro da minha cabeça, a voz de uma criança em pânico. São apenas símbolos, é só isso. Mas Cathal dissera-me que aquilo que via era sempre verdade. A minha mão apertou a dele e fiz um esforço para continuar a olhar, porque se era corajoso o suficiente para seguir aquilo até ao fim, eu também teria de ser.
Soube, no momento em que Aidan caiu, que ninguém podia recuperar daquela ferida. Jazia agora, estendido por baixo das árvores, perto do cadáver do companheiro, e a figura que era quase Cathal mas não exactamente - quando se aproximou, detectei muitas diferenças subtis - avançou até ao homem que caíra e, depois de um breve momento de escrutínio, ajoelhou-se para lhe tirar as armas. O arco de Aidan ficara entalado por baixo do seu corpo inerte.
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O homem do manto fê-lo rolar pelo chão casualmente, libertou a arma e limpou à erva as mãos ensanguentadas. Do dedo de Aidan, retirou um anel. E ali ficou, alto e esguio, no seu manto comprido e ondulante. Por fim, dirigiu-se ao cavalo, num passo majestoso, e pôs-lhe a mão no pescoço. Os cães de caça tinham recuado para debaixo dos fetos, de caudas caídas.
O homem que parecia Cathal içou-se para cima do cavalo de Aidan e partiu sem olhar para trás. Mal se tinham afastado dez passos, cavalo e cavaleiro fundiram-se com as sombras, nos intervalos entre carvalhos. A visão turvou-se e dissipou-se. A superfície do lago voltou a mostrar os nossos reflexos: o de Cathal, branco e destroçado; o meu, torcido num esgar de escandalizada descrença. Tinha sido tão... tão casual.
Estava habituada a esperar que Sibeal demorasse todo o tempo que precisava a emergir de um transe. Cathal não demorou tempo nenhum. Assim que as imagens desapareceram, levantou-se de um salto. Um grito sem palavras libertou-se do seu corpo, um som de fúria e de angústia. Pôs as mãos em concha à volta do rosto e depois arrancou-as, com violência, para baixo e eu soube exactamente o que lhe ia na mente. Eu devia ter lá estado. Se estivesse, talvez conseguisse salvá-lo. Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, Cathal afastou-se a passos largos, com as mãos agarradas ao cabelo, o corpo inteiramente possuído pelo ímpeto de fazer alguma coisa, de corrigir o que tinha acontecido, e a consciência inequívoca de que era demasiado tarde para fazer o que quer que fosse. Depois, aproximou-se da fogueira, agarrou num tronco da nossa pilha de lenha e lançou-o às chamas com tanta força que as brasas se espalharam por todo o acampamento. Momentos depois, já estava ao pé da sebe de espinhos, agarrado ao tronco de um espinheiro, a bater com a cabeça contra a madeira como se quisesse expulsar as imagens que a invadiam. Desde o primeiro grito, não articulara um único som, mas naquele momento, como se a dor que infligia a si próprio as convocasse, as palavras começaram a jorrar-lhe da boca.
- Isto é obra minha, é culpa minha, tudo isto! Se eu não tivesse vindo para Sevenwaters, se não os tivesse deixado convencerem-me... Morrer sozinho, sem mãos afáveis a segurá-lo, ninguém para dizer palavras de conforto, nenhum amigo para o levar para casa...
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E ele pensou que era eu! Morreu a acreditar que eu o tinha assassinado! Como é que se atrevem, como é que se atrevem a fazer isto?
Não encontrei palavras certas para lhe dizer. Não podia abraçá-lo - ele estava a bater com a cabeça contra a árvore, o corpo tremia-lhe de ódio e de desgosto. Se lhe tocasse, era possível que me afastasse com violência. Aproximei-me, sem fazer barulho, e instalei-me no chão a alguns passos de distância. Senti o rosto molhado de lágrimas. Aidan morto, Aidan com o seu sorriso doce e a sua música... Não merecia aquele fim abrupto e cruel. Mal conseguia acreditar que ele deixara de existir. Se era verdade o que tínhamos visto.
Esperei em silêncio. Algum tempo depois, a torrente de palavras furiosas esgotou-se e Cathal sossegou, deixando-se cair no chão, aos pés da cerca. O dia clareara; o céu enganador mostrou-nos uma nesga de Sol atrás das nuvens. Lá bem no alto, uma cotovia desatou, de repente, num canto de júbilo.
- Cathal - disse-lhe, em voz baixa, - lamento. Lamento mais do que sou capaz de exprimir em palavras. Imagino que tenha sido uma Visão verdadeira, uma Visão do presente, já que disseste que a água nunca te mentia. Onde quer que Aidan esteja neste momento, ele sabe que não foste tu.
Cathal cobriu o rosto com as mãos.
- Como é que pode saber, se o assassino tinha a minha cara?
- sussurrou.
- Ele sabe, porque sabe que tu és um bom homem. Conhece-te melhor do que ninguém, não foi o que tu próprio me disseste? Aproximei-me dele, com cuidado, porque não sabia como iria reagir. - Dá-me as tuas mãos, Cathal. Por favor.
Ajoelhando-me à sua frente, segurei-lhe nas mãos, afastando-as delicadamente do rosto. Tinha os ombros caídos, os joelhos levantados, a boca cerrada com firmeza. Um tremor incontrolável sacudia-lhe o corpo. Inclinei-me e beijei-lhe a testa, no lugar onde a pele estava rasgada e coberta de sangue.
- Feriste-te a ti próprio, meu querido - disse-lhe. - O que quer que seja que tu pensas que fizeste, Aidan perdoar-te-ia. No teu coração, tu sabes disso.
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Cathal inspirou com uma voz rouca e, de repente, pôs-se de joelhos também, pousando a cabeça no meu ombro. Os meus braços enlaçaram-no e ele chorou, não em silêncio, mas com um desgosto que arranhava a garganta e destroçava corações, um desgosto que ressoava na clareira e fazia vibrar todos os cantos do meu corpo. Amparei-o, ele continuou a chorar, e uma brisa ligeira passou pela folhagem dos carvalhos, do outro lado da cerca, rumorejando em contraponto. Por fim, como uma criança exausta, soluçou até ao silêncio, mas deixámo-nos ficar ali ainda algum tempo, abraçados, incapazes de ultrapassar a coisa inconcebível que tinha acontecido. O choro faminto de Becan quebrou o feitiço.
- Vai - disse Cathal, libertando-me e passando a mão bruscamente pelo rosto. - Vai e cuida dele, vai.
Sentei-me nos calcanhares, observando-o com atenção.
- Ele pode esperar - repliquei. - Cathal, vem para junto da fogueira comigo.
Ele levantou-se e eu fiz o mesmo. Sentia as pernas paralisadas com uma cãibra, o que era um bom pretexto para pôr o braço à volta dele enquanto regressávamos, pegando em Becan pelo caminho. Facilitava tudo ter coisas para fazer; é difícil ignorar um bebé aos gritos. Cathal tratou de atiçar o fogo. Eu alimentei a criança. Quando terminou, peguei no tacho de água que ele tinha aquecido, acrescentei uma parte da nossa preciosa reserva de mel e dividi o caldo entre nós os dois.
- Bebe - disse-lhe. - O mel é um fortificante. Precisamos dele.
Cathal bebeu em silêncio, sentado de pernas cruzadas, a olhar para as chamas. A sua expressão assustou-me. Quando começou a falar, esperei uma declaração de vingança; talvez o voto de perseguir e apanhar o indivíduo que matara o amigo a sangue-frio. Mas, em vez disso, disse-me:
- Perdoa-me. Esqueci-me daquilo que deves estar a sentir. Tu e Aidan... Ele gostava tanto de ti... Estava sempre a falar de ti. E o teu pai gostava dele. Aprovava-o. Se eu não tivesse permitido que matassem o meu amigo, tu e ele teriam... Roubei-te o teu futuro, Clodagh. Como é que poderás perdoar-me?
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Olhei para a ferida que ele tinha na testa, molhada e em carne viva, e na nódoa negra que crescia. O tacho tremia-lhe nas mãos. Teria de escolher as palavras com cuidado:
- Não fizeste nada disso - contrapus. - A não ser que tenhas desenvolvido a capacidade de estar em dois sítios ao mesmo tempo. Aidan foi morto por outra pessoa; um indivíduo capaz de mudar de aparência quando quer, de modo a ficar parecido contigo, embora não exactamente igual. Não sei por que razão alguém faria uma coisa dessas. Mas não devias culpar-te pela morte de Aidan, ou pelas consequências que essa morte venha a ter. Vieste para Sevenwaters porque trabalhas para Johnny. E estás aqui agora, comigo, porque decidiste ajudar-me, por motivos que são só teus. Se tu e Aidan foram parar a lados opostos de um conflito, foi apenas por falta de sorte. Talvez o homem do arco esteja relacionado com o ataque a Glencarnagh; talvez aquilo que vimos seja um episódio no contexto de uma guerra mais vasta.
- Não acredito. Aidan recuou e deixou-nos atravessar o rio, Clodagh, mas talvez o tenha feito apenas porque te colocaste entre mim e ele. Na Visão, ainda estava à minha procura. Levava os cães de caça com ele. Procurava os companheiros. E só posso tentar adivinhar os motivos por que se separaram.
Pensei que tinha razão, mas não ia dizê-lo. A última coisa de que Cathal precisava era de mais pretextos para se encher de culpa.
- Disseste que tinhas roubado o meu futuro. - Eu tinha de falar, por muito que isso me custasse. - Cathal, magoa-me que Aidan tenha desaparecido. Magoa-me terrivelmente. Sinto-me chocada e abatida. Ser arrastada para a tua Visão e assistir a uma coisa daquelas... Quem me dera, de todo o coração, que tu tivesses algumas dúvidas a respeito da veracidade daquilo que vimos. Mas, Cathal, o que quer que fosse que Aidan pensava sentir por mim, eu não o amava dessa maneira. Ele era certamente um bom pretendente e, durante algum tempo, considerei essa possibilidade. Gostava muito dele. Entristece-me a perda de um bom homem. Mas não o amava como um... um namorado. A certa altura, tornou-se evidente para mim que nunca me casaria com ele. Não parece justo dizê-lo neste momento; é quase uma traição. Mas ele está aqui algures, a observar-nos, e perceberá. Tenho a certeza.
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por onde quer que o espírito de Aidan viajasse, já não fazia parte daquele corpo sem vida que jazia, sozinho, na floresta, com os cães de caça como única companhia. Pensei na rapariguinha, Rathnait em Whiteshore, à espera do marido prometido, que nunca mais voltaria para casa. Choraria a sua morte?
Cathal tinha pousado a malga e estendera o manto sobre os joelhos, com o forro virado para fora. Depois, tirou uma pequena faca do cinto e começou a picar o tecido com a ponta.
- Achas que a morte elimina o desgosto instantaneamente?
- perguntou. - Que na vida do outro lado todos os crimes são perdoados, a culpa aliviada? Não sou capaz de partilhar a tua fé. Pensas que o espírito da minha mãe está a ver isto ao lado de Aidan, com o coração cheio de piedade por esse canalha que lhe arruinou a vida?
Parecia tão amargo, tão zangado.
- Talvez se orgulhe do homem bom em que te transformaste
- respondi. - Talvez perdoe o teu pai, uma vez que, sem ele, tu nunca terias existido. Por muito triste que a sua vida tenha sido, ela deve ter partilhado momentos com o seu amante, momentos de felicidade, em que se sentiu a mulher mais amada, mais bonita do mundo. Talvez no lugar onde agora se encontra, ela possa olhar para trás e ver que houve alguma felicidade na sua vida.
Cathal olhou para mim.
- És uma criatura rara, Clodagh - afirmou. - Transbordas de esperança, de compaixão, de amor. Não vi isso quando nos conhecemos. Mas senti uma faísca. Uma afinidade. E senti desejo. Vibrava dentro de mim a cada meneio dessa cabeleira cor de fogo. Impedia-me de dormir durante a noite e agitava-me por dentro durante o dia. A cada palavra amável, a cada palavra ríspida, atraías-me mais um pouco. Isso perturbava-me profundamente. Não era apenas a ideia de que eu podia ser o meu pai e que a história podia repetir-se. Eu sabia que, quanto mais forte se tornasse esse sentimento, mais poderosa era a arma que eu punha nas mãos dos meus inimigos. Como vês, falhei redondamente na tentativa de criar uma distância entre nós. E empenhei-me muito nisso: de início, julgo que a minha rudeza foi bastante eficaz. Mas magoava-me falar-te daque-
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la maneira. Desprezava-me por ter de tratar-te assim, embora fosse a pensar na tua protecção. Mas não contei com a tua capacidade para... para envolveres no teu manto de aceitação um homem que se excedera na sua grosseria, um homem com muito poucas qualidades redentoras. Tornámo-nos próximos e eu pus a tua vida em perigo, como a de Aidan. Se ele não tivesse sido meu amigo, não estaria agora estendido no chão, sobre uma poça de sangue, completamente só. - A voz tremia-lhe. - Agora que vi o desprezo total que esta gente tem pela vida humana, a única coisa que me interessa é manter-te a salvo até chegares a casa. Quero que guardes isto.
Cathal cortou um fio e levantou um pedaço de tecido brilhante do sítio onde estivera cosido, no forro do manto. Os seus gestos encheram-se de uma fria determinação.
- Tendo em conta aquilo que a criatura com a máscara de cão disse, parece-me que não devias usar o manto nesta troca, apenas o vestido bordado e o xaile. A ideia de que poderás ter de usar a tua beleza para encantar esse indivíduo inquieta-me. Quero que leves estas coisas contigo. Tens de pô-las dentro do saco e carregá-lo às costas.
- Para me protegerem, é isso? Pensei que tinhas dito que estes talismãs não detinham esse poder.
Cathal colocou todos os objectos no chão, ao seu lado, depois de cortar os fios que os prendiam ao manto; uma pena acastanhada, um seixo branco, uma tira de couro.
- Talvez sim, talvez não - declarou. - Terás de levá-los na mesma.
- E tu?
- Eu cuido de mim. - Retirou mais um objecto do manto e pô-lo no chão. Parecia uma pequena trança de cabelo. - Deixei-os matar Aidan. Não deixarei que te magoem a ti também, não se houver alguma coisa que possa fazer para evitá-lo.
Observei-o, descobrindo-lhe no rosto aquela expressão assombrada e uma fúria no olhar tão perturbadora que mal consegui assimilar o discurso extraordinário que acabara de fazer: não chegava a ser uma declaração de amor, mas era certamente mais do que a confissão de um desejo carnal. Em todo o caso, tinha acendido
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uma pequena luz no meu peito. Pareceu-me errado sentir, ao mesmo tempo, um desgosto dilacerante pela morte de Aidan e aquela centelha quente, de esperança.
- Cathal - disse-lhe, - estás a falar deles. Quem são? Um homem comum não saberia alterar a sua imagem daquela forma, para se tornar quase igual a ti. Disseste Esta gente. Estás a falar de povos do Outro Mundo? Dos Tuatha De?
Estremeci, enregelada pela consciência de que, ao cair da noite, eu estaria na presença dessas mesmas entidades, suplicando que libertassem o meu irmão. Hesitante, acrescentei:
-Já vi alguém semelhante àquele homem. Na floresta, no dia em que nos conhecemos. Um indivíduo de manto cinzento, à observar-me por baixo das árvores. Assustou-me, mas depois pensei que era imaginação minha. No entanto, na noite que antecedeu o casamento de Deirdre, tornei a vê-lo. No pátio, onde tu estavas.
Os dedos compridos de Cathal ficaram imóveis em torno de uma cruz em miniatura, feita de madeira de sorveira-brava. Estava enrolada num fio verde.
- O que confirmou a tua suspeita de que eu andava a preparar alguma. Mas não informaste o teu pai.
- Era apenas isso, uma suspeita. Podia tê-lo imaginado. Mas contei-lhe depois, quando atacaram Glencarnagh. Desculpa, Cathal. Pensei...
- Fizeste o que te pareceu correcto. Devia ter sido honesto contigo desde o início, suponho. Sinto asco por este pretenso poder que herdei. - Agitou uma mão na direcção do lago. - Foi por causa dele que quis evitar todos os indícios da presença do sobrenatural. Pensei que era muito mais fácil se eu me afastasse dessas coisas. Sim, acredito que estava alguém no pátio, nessa noite. A observar-me. A ver quem era o meu amigo mais íntimo, em que rapariga os meus olhos se demoravam, de que maneira é que eu podia ser vencido e manipulado.
- Quem seria capaz de fazer isso? E porquê?
- Não posso dizer-te, excepto que não são forças humanas. Já me perseguem há muito tempo, Clodagh, desde os meus doze anos.
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Não o tempo todo; escolhem os seus momentos. Em Whiteshore, acontecia cada vez com mais frequência: ardis para me separarem dos meus companheiros, esquemas que me atraíam para fora do caminho. Vultos feitos de sombra; vozes misteriosas. A presença deles deu-me uma razão ainda mais forte para acompanhar Aidan a voz quebrou-se-lhe ao pronunciar o nome do amigo - a Inis Eala. Pensei que seria suficientemente distante de Whiteshore, que ficaria longe do alcance dessas forças perversas.
- E era?
De súbito, fez-se luz. Era a isto que Cathal se referira quando me dissera que a sua presença em Sevenwaters nos punha a todos em perigo.
- Assim me pareceu. Nunca me incomodaram em Inis Eala. As pessoas dizem que a ilha está, de certo modo, protegida. Johnny contou-me que um dos tios do teu pai tinha lá vivido, um homem de grande força espiritual, e que a cave onde ele morava ainda é guardada por forças benignas. Aparentemente, esta influência estende-se a todo o território de Inis Eala.
- Então, em Inis Eala estiveste em segurança e, quando chegaste a Sevenwaters, essas forças começaram de novo a perseguir-te.
Não era verosímil. Será que Cathal imaginara tudo aquilo? Não seriam esses misteriosos perseguidores os fantasmas de uma infância infeliz, ganhando corpo na sua imaginação? Não era raro que as pessoas se iludissem daquela forma. Mas não Cathal. Cathal era demasiado racional, demasiado capaz.
- Tinha ouvido dizer que Sevenwaters era um lugar estranho
- prosseguiu. - Precisamente o tipo de lugar, pensei, onde esses poderes voltariam a reunir-se à minha volta. E assim aconteceu. Naquele dia em que demos um passeio com as crianças, eles desviaram-me do caminho. E não foi o meu duplo que me enganou. Foste tu.
Olhei para ele, admirada.
- Eu? - repeti. - Mas estive com os outros o tempo todo, com Sibeal, Doran e... Aidan.
Doía dizer o nome dele. Era como se surgisse à minha frente, com os seus olhos castanhos, ternos, e o sorriso afectuoso. Ouvi as notas vibrantes da sua harpa.
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- A rapariga que eu vi era tão parecida contigo exteriormente como aquele assassino era comigo. O suficiente para enganar à distância, embora duvide que agora voltasse a cair na armadilha. Segui-te, surpreendido por ver-te ali sozinha, receando que pudesses estar metida em sarilhos. A certa altura, no meio da floresta, tu, ou a rapariga que eu pensava que eras tu, desapareceste. Era uma experiência; um teste. E fizeram a escolha certa. Nesse dia, aprenderam que, se alguma vez estivesses em perigo, eu quebraria todas as regras para vir em teu auxílio.
Um sentimento curioso apoderou-se de mim. Era como se estivesse a abrir uma caixa de surpresas e cada segredo descoberto desse a conhecer um outro, ainda mais denso, no interior. Cathal era um vidente; as Criaturas Encantadas perseguiam-no, levando-o a perder-se, talvez pondo em perigo todas as pessoas que lhe eram próximas; Cathal gostava o suficiente de mim para dar mais valor à minha segurança do que ao seu futuro. Explicava muita coisa, mas não a questão fundamental: porquê? Porque é que as Criaturas Encantadas se interessavam tanto por Cathal? Que relação é que isso podia ter com o rapto de Finbar e com a minha missão de levá-lo para casa?
- Estavas assustado - disse-lhe, lembrando-me das sombras que tinha visto nos seus olhos enquanto atravessávamos o rio e quando acampámos na floresta, durante a noite. - Se eles já te atormentam há anos e anos, foi uma loucura teres vindo comigo.
- Eles sabiam que eu viria - disse-me, com uma simplicidade aterradora.
- Era isto que eles queriam? Estás a insinuar que... Cathal, estás a insinuar que não foi por acaso que eu e tu nos encontrámos na floresta? Que foi tudo orquestrado pelas Criaturas Encantadas, trazerem-nos aos dois até aqui? Mas isso significaria que somos apenas... marionetas. Significaria que não temos escolha. - Era uma ideia quase impossível de aceitar. - Porque é que o fariam? Não te aliariam a mim como protector. Estas criaturas dominam as artes mágicas. Podiam facilitar ou dificultar o meu caminho até ao salão de Mac Dara como bem entendessem. Além disso, disseste que eles te perseguem há muito tempo, muito antes de teres qualquer relação com Sevenwaters. Que motivo teriam para fazer uma coisa dessas?
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Cathal fez uma careta.
- Tenho uma teoria, mas não faço ideia se é correcta. Espero sinceramente estar enganado. Não é algo que eu possa contar-te aqui. Se voltarmos para casa, sãos e salvos, falar-te-ei dela. Quem diria que a ideia de uma conversa franca podia ser tão sedutora e tão impossível?
- Cathal.
- Sim, Clodagh?
Cathal tinha acabado de descoser os objectos do forro do manto e agora reunia-os numa pequena pilha.
- Estás a dizer-me que acreditas que até o rapto de Finbar não teria acontecido se não estivesses em Sevenwaters? Que ele foi levado para garantir que me seguirias até aqui?
Parecia o género de teoria que só um homem com uma ideia muito exagerada da sua própria importância na ordem das coisas seria capaz de inventar. Estava preparada para aceitar que Cathal se iludia a si próprio, que errava os seus raciocínios, mas sabia que ele não era a pessoa arrogante que, de início, eu pensara que era. Além disso, não conseguia encontrar uma boa razão para as Criaturas Encantadas castigarem os meus pais, que eram há tanto tempo sábios guardiães da floresta e partidários fiéis da velha fé. Considerei a hipótese de que a minha família tivesse sido envolvida apenas porque... porque o que Cathal sentia por mim era muito mais significativo do que jamais podia ter imaginado. Um homem não acompanha uma mulher a um lugar onde sabe que estará em perigo, se não sentir por esta mais do que um simples desejo sexual. Nesse dia, aprenderam que, se alguma vez estivesses em perigo, eu quebraria todas as regras para vir em teu auxílio.
- Faz sentido - disse Cathal, em voz baixa. - Eles conhecem-te. Conhecem a tua família. Sabiam que farias esta viagem para que tudo voltasse a ser como dantes. Já viste que conseguem manipular as nossas percepções, Clodagh. Imagino que tenha sido muito fácil para eles fazer com que reconhecesses a verdadeira identidade de Becan, enquanto o resto da família via apenas um manequim de madeira. Depois, de uma maneira ou de outra, provocaram o nosso encontro na floresta. Os meus instintos indicaram-me onde se situa-
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va o portão. Não sei explicar-te como é que sabia, apenas que tinha a certeza de que havia um rio naquela zona e que, ao atravessá-lo, entraríamos no Outro Mundo. Tudo leva a crer que aqueles que nos perseguem me conhecem tão bem a mim como a ti. Sabiam que eu nunca te deixaria partir sozinha numa missão tão perigosa. Ao longo do caminho, em todas as etapas da nossa viagem, puseram a tua vida em perigo para garantir que eu permaneceria ao teu lado. Até as figuras de ontem, que vieram ao portão mostrar-te uma criança igual ao teu irmão: o que foi aquilo se não uma óbvia tentativa de afastar-te deste lugar seguro enquanto eu dormia? Se te tivessem levado, eu ter-te-ia seguido, mesmo se o teu rasto me mergulhasse tão fundo no Outro Mundo que deixasse de haver uma saída. Pode ser precisamente isso que eles querem.
Respondi-lhe como sabia que tinha de responder, embora a ideia de partir sem ele me desse náuseas.
- Quando me chamarem hoje à tarde, é melhor ficares aqui e esperares que eu traga Finbar - disse-lhe. - Depois, regressaremos a casa juntos. A última coisa que eu desejo é pôr-te em perigo, Cathal. Em mais perigo ainda, quero dizer. Que poderão querer de ti?
Mas Cathal limitou-se a encolher os ombros.
- Guarda-os no teu saco - disse-me. Embrulha-os numa peça de roupa e arruma-os no fundo.
Enfiei os pequenos objectos numa meia e empurrei-os para o fundo do saco. Perguntei-me se seria possível que a teoria bizarra de Cathal correspondesse à realidade. Será que em toda aquela sequência de acontecimentos eu era apenas um peão? Será que as decisões que tomava, as escolhas que fazia não produziam qualquer consequência? Custava-me a aceitá-lo. Aliás, perseguia-me a sensação de que algures nos confins da minha memória estava a chave de tudo, uma chave que eu teria de encontrar antes que fosse tarde de mais.
- Cathal, porque é que fugiste de Sevenwaters mesmo não sendo culpado de nada? Teria sido claramente preferível contar a história toda ajohnny.
- E tornar pública a minha desgraça?
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Era uma voz amarga. Olhei para ele. A morte de Aidan acrescentara novas sombras aos seus olhos. Se uma ou duas vezes, no passado, aquele olhar me parecera alienado, não se comparava com o que via agora à minha frente.
- Repudio o legado do meu pai - declarou. - Se pudesse apagar essa mancha de uma vez por todas, fá-lo-ia. Além disso, à medida que os dias foram passando, mais certeza tinha de que a minha presença em Sevenwaters seria uma catástrofe na tua vida e na vida da tua família. Não podia, em consciência, ficar ali mais tempo.
- Ao decidires não falar - retorqui - deste-lhes uma arma que usaram contra ti. Fizeste exactamente o que eles queriam. Mas, não percebo como é que o ataque a Glencarnagh se encaixa nesta história. Cathal, nessa visão, o que é que te fez desconfiar de Illann?
- Antes de ver o ataque, vi fragmentos de outras situações. Tu a penteares a tua irmã. Illann a mostrar um mapa a Deirdre. Illann a dirigir-se a um grupo de homens, alguns dos quais pensei ver mais tarde, no bando que atacou a propriedade do teu pai. Ordenados de uma determinada maneira, os fragmentos sugeriam, pelo menos, a possibilidade de Illann estar envolvido. Pensei que era justo avisar-te, uma vez que eras uma potencial fonte de informação para a tua irmã. Pode não ter qualquer relação com o outro assunto.
- Se estamos a ser manipulados, tu e eu - deduzi tristemente,
- é possível que as Criaturas Encantadas povoem estas visões a seu bel-prazer. Podem mostrar-nos imagens com o único intento de provocar distúrbios. Aquela mulher idosa, Willow, disse que Mac Dara era pérfido, não disse?
A minha memória estremeceu: as histórias de Willow, o efeito perturbador que tinham tido em Cathal; os dunchauns, a criança-lobo... Também havia uma referência a Mac Dara, mas, ao tentar recordá-la, escapou-se.
Cathal baixou a cabeça.
- Aidan morreu - declarou. - Não posso permitir a mim próprio ter esperança de que a Visão era uma mentira. Sei, dentro de mim, que é verdade.
- Perdoa-me. Não era minha intenção fazer-te sentir pior.
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Cathal ficou em silêncio.
Não te contei - disse-lhe -, mas, momentos antes de subires até ao quarto para me veres, no dia em que levaram Finbar, eu entrei em contacto com Deirdre para lhe dar a notícia do nascimento. E... e ela fez-me umas quantas perguntas inusitadas. Não eram muito precisas, mas relacionavam-se com o dilema que o meu pai estava a viver, com os chefes de clã do Norte, um tema que nunca interessou Deirdre no passado. Por isso, talvez a tua Visão fosse verdadeira; talvez ela e Illann estivessem, de algum modo, envolvidos. Se as Criaturas Encantadas têm um desígnio maior, que te diz respeito, não me parece que aquele ataque se encaixe, de facto, nele.
- Se for uma conspiração humana, Johnny e Lorde Sean serão capazes de resolvê-la sozinhos. Espero ter-me enganado a respeito da tua irmã. Seria difícil para ti. Clodagh?
- Hum?
- Não consigo ficar aqui à espera que tu enfrentes esse Mac Dara. Teria de lutar contra todos os meus instintos. Não posso deixar-te fazer isto sozinha.
Cathal parecia destroçado.
Olhei para cima e vi o seu rosto, sem disfarce. Estava branco como a cal, os lábios reduzidos a uma linha, mas o amor ardia-lhe nos olhos, feroz e inabalável. Por momentos, parou-me o coração. Aproximei-me para me ajoelhar ao seu lado e abraçá-lo, pressionando o seu rosto com o meu.
- Quero que estejas em segurança - segredei-lhe. - Se eles querem fazer-te mal, não podes vir comigo.
- Se a minha teoria se confirmar - murmurou, com os lábios encostados ao meu cabelo -, não poderás fazê-lo se eu não estiver presente.
- Deixa-me tentar. Afinal, sou uma filha de Sevenwaters. Há centenas de anos de boa vontade mútua entre nós e os Tuatha De. Não é certamente algo que se apague de um momento para o outro.
- Chiu - sussurrou Cathal. - Não vamos falar disso agora. Não vamos falar de todo.
A mão dele moveu-se no meu cabelo e descreveu uma linha delicada pela têmpora, face, pescoço, detendo-se com o polegar no sí-
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tio onde o sangue pulsava à superfície da pele. Aquele toque era como o de um bardo no seu instrumento, e despertou no meu corpo uma música profunda e misteriosa. Suspirei e aproximei-me, aninhando-me nele. Ficámos assim sentados durante muito tempo, tocando suavemente um no outro, sem deixar que a faísca se tornasse uma chama, porque não era ainda o momento certo. Se tudo corresse bem, quando voltássemos a Sevenwaters, teríamos todo o tempo que quiséssemos. com alguma sorte, uma vida inteira. Ali, nos seus braços, eu sabia que nenhuma objecção, nem ninguém, me impediriam de estar com ele. Na nossa família, havia, aliás, um bom precedente: o meu pai aprovara o casamento de Muirrin com Evan, um homem de Inis Eala que não só não descendia de famílias nobres, como não era rico em bens materiais. Evan fora considerado adequado porque era um curandeiro experiente e filho de um amigo da família, e porque ele e Muirrin se amavam. Em última instância, era este o argumento a que o meu pai seria mais permeável, uma vez que ele e a minha mãe tinham tido a sorte de casar por amor.
Não devia fazer planos com tanta antecedência, alertei-me a mim própria. Era um convite ao sofrimento. Mas não conseguia evitá-lo. A missão aproximava-se do fim. Nesse dia, ao cair da noite, teria o meu irmão de volta. No dia seguinte, ou no outro, talvez chegássemos a casa os três. Hoje, a tristeza dominara o dia. Amanhã, haveria esperança. Amor. Um futuro. com ou sem Criaturas Encantadas, eu assegurar-me-ia disso.

CAPÍTULO TREZE

Mais tarde, deitámo-nos por momentos, com Becan entre os dois. O bebé dormitava, mas Cathal e eu não conseguíamos dormir.
- Conhecias aquela canção? - perguntou-me, num murmúrio.
- Que canção?
- A que cantaste ontem à noite, acerca de um senhor galante. Encontraste uma rima para bosque escarninho?
- Pensei que estavas a dormir, ou nunca teria cantado em voz alta - respondi, envergonhada. - E, sim, encontrei uma rima, mas não ias gostar.
- Experimenta - replicou.
- É demasiado íntimo - disse-lhe.
- Vá lá, Clodagh. Quero ouvi-la.
Pelo menos, Cathal parecia-me mais alegre. Cantei:
Por onde andaste, meu querido, meu amor Por onde andaste, galante senhor? Perdi-me nos nós de um bosque escarninho... Gritei como um louco e chorei como um menino
E ainda não sei voltar para casa Ainda não sei voltar para casa.
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- Achas-me galante? - indagou.
- É uma balada tradicional - disse-lhe. - Os jovens nestes versos são sempre galantes.
- Ah, isso explica tudo. Nunca pensei, quando tu e Aidan tocavam juntos no salão do teu pai, que um dia farias uma canção inspirada em mim.
- A palavra "galante" não é adequada para descrever-te, Cathal. És diferente de todos os outros: és uma criatura rara. Escolhi compô-la na forma de uma balada porque facilita a narração de uma história triste. - Não era por ali que eu devia ir. Ambos precisávamos de algo que nos desse ânimo. - Cathal, como é que Aidan era em criança, quando estavam os dois a crescer? Ele já gostava de música nessa altura? Fala-me dele, incitei-o. Fala dos bons tempos, das memórias
felizes.
- Ele gostava de cantar, como tu, Clodagh. Por vezes, quando estávamos a pescar ou a colocar armadilhas, tinha uma ideia de repente e começava a assobiar ou desatava a cantar. Não admirava que não apanhássemos grande coisa. Passávamos muito tempo no exterior. Construímos uma casa nos ramos de uma árvore; acampávamos durante a noite; tínhamos aventuras em botes de madeira. Lorde Murtagh não pretendia que nos comportássemos como pequenos nobres em miniatura. Quando precisávamos, deixava-nos correr em liberdade. Mas também tínhamos tutores: alguns ensinavam-nos letras, outros asseguravam-se de que aprendíamos a montar, a disparar setas, a usar armas. Aidan não gostava de ser o segundo melhor nestes exercícios. Não se apercebia de que tinha talentos que eu nunca conseguiria igualar.
- Como a música?
Entre nós, o bebé adormecera; a sua forma esguia ocupava tão pouco espaço que eu sentia a coxa de Cathal encostada à minha, uma sensação inquietante.
- Isso e o dom de seduzir as pessoas com o seu calor humano e o seu bom humor. Aidan era amado. Por causa disso, as pessoas aceitavam-me, apesar da minha... A sua voz perdeu-se no ar.
- Singularidade? - sugeri.
- Da minha falta de jeito para jogar os jogos certos. Da minha incapacidade para comportar-me da maneira esperada. Aidan era um
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amigo fiel. Muitas vezes, eu magoava-o, irritava-o, dificultava-lhe a vida. E ele perdoava-me, apoiava-me muitas vezes. Não era perfeito. Fez algumas coisas que tive dificuldade em perdoar. Cathal não disse mais nada, talvez porque sentisse que não era correcto criticar um homem que morrera há tão pouco tempo.
É verdade que Aidan tinha mau génio - arrisquei. - Apercebi-me disso durante o vosso combate e fiquei surpreendida. Deve ter ficado com ciúmes. E, no entanto, noutros momentos, era um homem muito meigo.
- Ele matou a minha cadela - disse Cathal, numa voz neutra.
- Fleet. No teu saco, tens uma tira da sua coleira, no meio dos outros objectos que estavam cosidos ao manto. Mesmo em criança, Aidan tinha ciúmes. Lorde Murtagh deu-me Fleet não muito depois de a minha mãe morrer. Nunca tinha tido um cão e adorava-a. Aidan ofendeu-se. Talvez tivesse considerado injusto que o pai me desse um presente daqueles, ao filho bastardo que ele tinha adoptado. Seja como for, Fleet foi pontapeada nos quartos traseiros. As lesões nunca sararam. Ficou coxa e, depois, adoeceu e morreu. Aidan jurou que não o tinha feito, mas viram-no. Esse traço cruel da sua personalidade foi uma das razões por que tentei afugentar-te.
- Uma delas?
- Os meus sentimentos também exerceram uma influência considerável naquilo que eu te disse.
Um sorriso passageiro brincou-lhe nos lábios. Não era o momento de aprofundar o tema, embora o meu coração tivesse começado a bater mais depressa.
- Que mais havia no manto, Cathal?
Enquanto estávamos tranquilamente ali deitados e o dia passou por nós, Cathal contou-me a história de cada objecto: um seixo branco que entrara num jogo de infância - lançar pedras e fazê-las saltitar na superfície do lago, usando-as em seguida num elaborado concurso de lançamento e recolha de projécteis. Uma pena de águia? - trofeu da escalada a um rochedo perigoso e proibido. Aidan torcera o tornozelo; Cathal apanhara um pónei num prado vizinho e conseguira levar o amigo para casa. Um pedaço de tecido brilhante e multicolor - fragmento de um vestido da mãe de Aidan, es-
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quecido num saco de trapos e recuperado por um rapazinho para quem um tecido tão exótico só podia ser mágico.
- Ela era boa para mim - limitou-se a dizer Cathal.
A trança era feita com o cabelo dele e o de Aidan, entrelaçados e atados um ao outro.
- Foi uma coisa que fizemos quando éramos muito pequenos
- explicou-me. - Um ritual: jurámos que seríamos amigos verdadeiros, até à morte. - Foi perdendo a voz à medida que o dizia.
- E tu foste - insisti, com ternura. - Não é importante teres fugido e ele ter sido incumbido da tua captura. Eu vi a expressão de Aidan enquanto nos observava a desaparecer no bote. Não ressentiu o facto de tu lhe escapares. Estava triste por ter de despedir-se e aliviado por não seres levado de volta e submetido a acusações baseadas em mentiras.
E estava com ciúmes, pensei, sem o dizer.
- Aidan defendeu-te até ao fim. Mas também era cumpridor, uma lição que o filho ou a filha de um chefe de clã aprendem cedo. Johnny ameaçou expulsá-lo de Inis Eala se ele não obedecesse à ordem de ir à tua procura. Teve de fazê-lo.
- Talvez eu não tenha sido uma influência tão negativa como tinha pensado: Aidan nunca aprendeu a gostar de quebrar as regras.
- Cathal estendeu a mão e envolveu a minha. - És tão sábia, Clodagh - disse-me.
- Na verdade, a maior parte das vezes, vou inventando pelo caminho - retorqui, ruborizada. - Cathal, ouviste alguma coisa?
Os meus ouvidos tinham detectado um sussurro tímido, o som ritmado de cascos de cavalos, um tinido quase imperceptível para lá da fronteira de segurança da vedação de espinhos. Soergui-me devagar, com cuidado para não perturbar o sono do bebé, e Cathal fez
o mesmo.
Alguém se aproximava. Do outro lado da cerca, entrevi luzes e movimento e ouvi vozes, sonoras e estranhas, chamando e rindo cada vez mais perto do nosso santuário. Cathal encostou o indicador aos lábios, pedindo silêncio. Peguei no bebé e levantámo-nos com prudência. A luz começava a escassear. Em sintonia com os caprichos do tempo no Outro Mundo, o crepúsculo caía de repente.
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O portão abriu-se com uma chiadeira e tornou a fechar-se com um estrondo. Uma pequena figura atravessou o relvado na nossa direcção, com a máscara de prata no rosto. Atrás dela, vinham mais duas. Uma fazia vagamente lembrar uma pedra coberta de musgo: os olhos eram dois círculos de líquen, a boca, uma fissura; a outra possuía uma forma indefinida, mudando de cada vez que eu olhava para ela. Fez-me pensar em água.
- Céus... - exclamou Máscara-de-Cão, detendo-se a alguns passos de distância de nós.
Do outro lado da cerca, passava agora um cortejo, embora eu não o conseguisse ver com nitidez, através do emaranhado de espinhos. Havia archotes; figuras majestosas montadas a cavalo; um rebrilhar de tecidos sumptuosos e cintilantes; e vozes, de novo, falando quase como vozes humanas, não fosse uma nota de estranheza, que arrepiava, embora nos sentíssemos simultaneamente atraídos pela sua beleza. Ouvia-se o som ressoante de uma harpa e a música superava em graciosidade qualquer melodia criada no meu mundo. Subjacente a tudo isto, um choro, desesperado, de luto.
- O que queres dizer com isso, céus? - atrevi-me a perguntar. E, apesar das palavras de desafio, uma inquietude gelava-me os ossos. Apertei Becan contra o peito. - Disseste-nos para estarmos prontos ao cair da noite. Estamos prontos.
Pelo menos, em breve, tudo estaria terminado.
- Eu disse-te para te arranjares. Tens o aspecto de quem saiu agora de uma cambalhota numa meda de feno. Lava a cara e penteia-te, Clodagh. Endireita o vestido. Vais pedir um favor a Mac Dara. Não queres falhar por falta de asseio.
Cathal preparava-se para dar uma resposta enfurecida, mas silenciei-o. Não valia a pena protestar. Dirigi-me ao lago e ajoelhei-me, salpicando o rosto de água com a mão livre. Junto da fogueira, recuperei o pente, mas Cathal tirou-mo antes que eu pudesse iniciar o processo de repor ordem nos meus caracóis.
- Deixa-me fazê-lo.
Era um toque delicado. com Becan aninhado nos meus braços, fiquei a ver o desfile a passar do outro lado da vedação - aqui, uma mulher alta com uma cabeleira de prata salpicada de minúsculas
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estrelas cintilantes; além, um homem de pose arrogante, com uma coruja negra como a noite empoleirada no ombro - e senti o movimento cuidadoso do pente nos meus cabelos e as pontas dos dedos de Cathal a roçarem a pele do meu pescoço, da testa, das têmporas. Conseguia transformar aquela simples tarefa num gesto de ternura arrebatador.
- Está pronto - disse, por fim. - Estás muito bonita, Clodagh.
- Obrigada - sussurrei.
- Sempre às ordens - murmurou, e ouvi um tremor na sua voz.
- Tens de ficar aqui - disse-lhe. - Deixa-me fazer isto sozinha. - Olhei de relance para os três pequenos seres em fila que me observavam. - São amigos; vão ajudar-me. Espera por mim aqui e regressaremos a casa juntos.
- Muito sensato - disse Máscara-de-Cão. Os seus estranhos companheiros articularam uma aparente aprovação: o de pedra emitiu um som triturado, o outro, um gorgolejo líquido. - Se queres ajuda, deixa-o ficar. Nós não caminharemos com os da sua espécie. Agora, vem, Clodagh.
Cathal tinha ido buscar o meu saco, no fundo do qual eu guardara os objectos mágicos do manto, os talismãs que me protegeriam.
- Não vais precisar disso - disse o meu guia. - O caminho para casa é mais curto. O saco é feio. Mac Dara não te dará ouvidos se pareceres uma vagabunda, com todos os seus bens terrenos às costas.
- vou levá-lo - retorqui asperamente, e virei-me para que Cathal me ajudasse a pôr o saco às costas. - Se Mac Dara toma decisões com base no aspecto das pessoas, é tempo de aprender que há melhores maneiras de fazer as coisas.
A criatura aquosa libertou um som efervescente que podia ser uma gargalhada. Máscara-de-Cão suspirou.
- Mac Dara é um príncipe - disse ele. - E poderoso. E caprichoso. E tu és uma rapariga comum, sem a mais ínfima habilidade mágica. Se não seguires um simples conselho...
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Um ruído surdo e prolongado saiu dos lábios do rochoso e o meu guia calou-se. Talvez tivesse sido uma repreensão, quem sabe? Do outro lado da cerca, desfilava a cauda do cortejo. Deduzi que estivessem a percorrer o caminho de volta à avenida larga, por baixo das árvores, esse corredor que fazia lembrar a entrada imponente de um salão real. Ouvi um tinido de sinos em miniatura e um riso feminino, sonoro e contagiante. Depois, os sons esmoreceram. A luz assumira a tonalidade arroxeada de um crepúsculo primaveril e o silêncio regressou, de novo, à clareira. Os pássaros tinham interrompido o seu canto. A nossa fogueira extinguira-se, as brasas remanescentes não eram mais do que um ténue lampejo por baixo de uma instável pilha de cinzas.
- Chegou a hora - disse Máscara-de-Cão.
Cathal estava de pé à minha frente, a dois passos de distância, imóvel e silencioso. Aclarei a garganta.
- Não vou demorar - disse-lhe, tentando mostrar uma voz confiante.
Os seus olhos diziam-me que ele não se deixara enganar. Cathal sabia que eu estava apavorada. Sabia que eu queria mais do que tudo que ele estivesse ao meu lado quando eu confrontasse o Senhor do Carvalho. Virei-me rapidamente; ele não podia vir. Aquela era a minha missão, independentemente dos motivos por que Cathal julgava que estava ali comigo. Não devia correr riscos por causa da minha fragilidade.
Os meus pequenos guardiães dirigiam-se ao portão, o trio formando o seu próprio cortejo.
- Não - exclamou Cathal, atrás de mim. - Não, Clodagh! Não podes ir sozinha!
- Não podes vir comigo - repliquei, com lágrimas nos olhos.
- Foi isso que eles disseram. Por favor, não discutas; só torna tudo mais difícil.
- Vem! - chamou Máscara-de-Cão, à saída. - As luzes estão acesas no salão de Mac Dara! Se queres assistir à audiência, segue-me!
- Tenho de ir - sussurrei. Contra a minha própria vontade, virei-me, pegando nas mãos de Cathal.
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- Espera, Clodagh!
Cathal libertou as suas mãos das minhas para procurar algo na bolsa que trazia presa ao cinto.
- Toma - disse-me, e senti-o enfiar-me um anel no dedo. Não precisei de olhar para saber que era feito de vidro verde.
- Era dela, da minha mãe. Quero que o uses.
Por momentos, fiquei sem fala. Depois, protestei.
- Tens de conservá-lo, Cathal, já me deste todas as outras coisas.
Cathal pegou-me na mão. Os seus lábios afloraram a palma; os dedos envolveram-na, por instantes e, depois, largaram-na.
- Quero que fiques com ele - disse-me. As suas palavras, murmuradas, perderam-se na noite. - Clodagh, não suporto ver-te partir sozinha. Não sabemos o que podes ter de enfrentar. vou seguir-te. Guardarei alguma distância e não revelarei a minha presença a não ser que precises de mim. Não consigo esperar aqui enquanto fazes tudo sozinha. É um erro.
Sentia o coração cheio de uma mistura confusa de alívio e de medo. Talvez ele tivesse razão e forças desconhecidas o perseguissem; talvez a sua teoria se confirmasse e eu tivesse sido trazida para o Outro Mundo apenas como um isco, para que ele me seguisse. Mas Cathal era um guerreiro acima da média. Forte, corajoso, experiente. Era rápido e esperto. Não tinha receio de quebrar regras. Era, sem dúvida, o companheiro de que eu precisava para enfrentar um inimigo como o Senhor do Carvalho. Mas não lhe disse isto tudo, limitei-me a pousar-lhe uma mão na face e a dizer:
- Obrigada. Foste um amigo formidável, o meu amigo mais verdadeiro... Por favor, assegura-te de que ninguém te vê.
- Vem agora, ou perderás a tua oportunidade - disse Máscara-de-Cão, num tom profundamente reprovador.
Levando Becan nos meus braços, segui aquele estranho trio de guardiões, através do portão de espinhos, por entre filas de árvores majestosas, até um lugar onde o brilho de lanternas iluminava a floresta. De vez em quando, olhava para trás, por cima do ombro, mas se Cathal nos seguia fazia-o tão discretamente que se tornara invisível. Talvez o manto o protegesse, mesmo sem a carga de talismãs.
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Senti a presença destes no saco, encostados às minhas costas: lembranças do mundo que tínhamos deixado, o mundo a que pertencíamos o mundo onde morava a esperança do futuro. No dedo, sentia o anel de vidro verde, macio e fresco.
Enquanto caminhávamos, Becan acordou. Os seus olhos de pedra despertaram lentamente; a boca de galhos abriu-se num largo bocejo. Por baixo dos xailes, flectiu as pernas e os braços, enterrando-me o cotovelo pontiagudo no peito. Oó, meu pequenino, cantei baixinho, mas o nó que tinha na garganta era tão denso que não consegui altear a voz.
A avenida de gigantes da floresta abriu-se numa clareira delimitada por um círculo de pedras claras, ordenadamente dispostas, cada uma delas do tamanho de uma criança pequena. Lá em cima, o céu tingira-se de azul-violeta, mas não se viam estrelas nem luar, e eu continuava a sentir-me oprimida pela sensação de que todo aquele reino - árvores, animais e tudo o que estava à minha volta - se situava por baixo da terra. Em torno do recinto a céu aberto, por cima das pedras, ardiam lanternas de muitos formatos e cores diferentes, suspensas dos ramos das árvores. Estas projectavam uma luz quente no grupo heterogéneo reunido no interior do círculo de pedras. Eram tantos e tão diversos que dei por mim a abrir a boca de espanto, como uma rapariga simples, incapaz de digerir o que via. Quase todas aquelas figuras eram altas e elegantes; muitas usavam vestes e adornos desta ou daquela natureza, embora as suas roupas pouco se assemelhassem às do meu mundo. Uma mulher trazia um vestido tão fino e leve como uma teia de aranha, e a sua nudez não exactamente humana surgia à transparência. Fez-me corar. O homem da coruja preta também ali estava, falando com outro cuja túnica lembrava a textura das asas de uma borboleta - se assim era, centenas teriam sido sacrificadas para fabricar aquele traje extravagante. Havia quem se cobrisse de folhas e quem viesse embrulhado em estranhos tecidos líquidos. Outros ainda vestiam-se de penas resplandecentes. Deduzi que os mais altos e imponentes fossem os Tuatha De, que já habitavam a terra de Erin muito antes de o meu povo se instalar na região. Mas não eram os únicos seres presentes no salão de Mac Dara naquela noite. Criaturas mais pequenas mistu-
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ravam-se com eles. Algumas davam-me pela cintura. Outras pouco mais eram do que espirais de fumo com olhos esquisitos; e havia aqueles que tanto podiam ser ouriços-cacheiros, raposas e aves dos pântanos como homens e mulheres. A minha cabeça virava-se de um lado para o outro, tentando absorver tudo aquilo.
- Ali - disse o meu companheiro de máscara, apontando.
No centro do círculo, no cimo de um outeiro, erguia-se um pavilhão fechado, suportado por fios de seda de um verde profundo. Uma bainha de prata reluzia à luz das lanternas. Hera entrelaçada e grinaldas de bagas vermelhas decoravam as estacas. Segundo parecia, era ali que o Senhor do Carvalho daria a sua audiência. Guardas colossais ladeavam a entrada, onde o tecido era puxado por cordas cintilantes. Mal conseguia ver o interior do pavilhão, mas pareceu-me que havia uma fogueira - risco disparatado, pensei, embora, por outro lado, não pudesse esperar que aquele lugar se regesse pelas leis do nosso mundo. Os elmos segmentados dos guardas tornavam-nos parecidos com besouros gigantes. As mãos, revestidas de manoplas, seguravam lanças com lâminas dentadas que brilhavam nas extremidades.
Um toque de trombetas vibrou no recinto. Olhei para baixo e reparei que os meus pequenos companheiros se preparavam para partir. O pânico apoderou-se de mim.
- Esperem! - chamei. - Não me deixem! Onde está Mac Dara? O que faço a seguir?
- Nós não entramos no salão de Mac Dara. - A máscara encobria todas as expressões do rosto, mas o tom de voz era categórico e definitivo. - A nossa espécie não se mistura com a dele. Tens de entrar no círculo. Quando chamarem o teu nome, sobe para o pavilhão. Serás convidada a entrar e a apresentar o teu caso. Assim que tiveres recuperado o teu irmão, apressa-te a voltar para junto de nós. Nós levar-te-emos em segurança para fora deste reino.
Vi-os regressar discretamente para debaixo das árvores. Não havia sinais de Cathal. Disse a mim própria que era uma coisa boa. Ele estava em segurança. E eu podia concluir a minha tarefa sozinha. Teria simplesmente de atravessar aquela multidão assustadora, com as palmas suadas e o coração a martelar, entrar no pavilhão
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densamente policiado e fazer um discurso coerente diante do príncipe dos Tuatha De.
Aqui vamos nós, Becan - murmurei.
Caminhei em frente, com o bebé nos braços. Estava com fome, de novo. Os seus pequenos queixumes atraíram a atenção das figuras de trajes sumptuosos e gerou-se um silêncio entre os mais próximos, que depressa se espalhou pela multidão. Olhos estranhos viraram-se para nos ver passar: olhos alongados como os dos gatos; olhos brilhantes, facetados; olhos salientes, que podiam ser olhos de sapo. Levantou-se um burburinho, mas não consegui perceber o que diziam. Levantei o queixo. Eu era uma filha de Sevenwaters. E faria aquilo que tinha de fazer.
Havia um espaço vazio à volta do pavilhão, como se ninguém estivesse preparado para se aproximar para além de certo ponto. Hesitei à beira da multidão, sem saber se devia aventurar-me para lá dessa fronteira. Tinham-me dado instruções para esperar até ser chamada. Becan começou a guinchar, sedento da sua água com mel. O som vibrou ruidosamente; esgares de aflição começaram a despontar nos rostos deslumbrantes e inumanos das figuras que se encontravam ao meu lado. O pânico apoderou-se de mim. Havia alguma coisa profundamente errada com aquele lugar, com aquelas figuras, com a própria missão. Eu pressentia-o. Encostei o bebé ao ombro, dando-lhe palmadas nas costas. Nunca me sentira tão deslocada em toda a minha vida.
- Pronto, pronto - murmurei. - Já não falta muito, meu " querido.
Como se as minhas palavras fossem um convite, a multidão começou, de súbito, a reunir-se à minha volta, segredando, murmurando entre si. Dedos curiosos enrolaram-se no meu cabelo, afloraram o meu corpo, tocaram no rosto de Becan. A sua pequena forma contraiu-se nos meus braços. Tentei protegê-lo com uma prega do manto, mas eram muitos e alguns mais altos do que eu. Alguém me empurrou. Tropecei, quase a perder o equilíbrio. Uma mão puxou-me o cabelo, com força.
- Libertem-na.
Era uma voz profunda, sombria. E o tom tão imperioso que os meus agressores recuaram de imediato, deixando-me completamente
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sozinha entre a turba e o pavilhão de seda. Olhei para a entrada da tenda e senti uma vertigem. O homem que se erguia, agora, entre os dois guardas, era alto, esguio, tinha cabelo escuro e um manto negro esvoaçante. Era Cathal.
- Aproxima-te - disse-me, esticando uma mão de dedos compridos, e os seus lábios finos esboçaram um sorriso irónico.
Por momentos, fiquei paralisada, em estado de choque, mas depois vi que não era Cathal, mas o outro homem, o da Visão.
Eram muito parecidos, mas este era mais alto e, embora parecesse jovem, não mais do que vinte e cinco Primaveras, tinha uns olhos velhos. Os olhos de alguém que assistira a tanto sofrimento, tantas perdas, tanta crueldade e impostura, tantos desgostos que já não havia muita coisa no mundo com que se importasse.
- Vem, filha de Sevenwaters - disse, desta vez com uma nota doce, de familiaridade, na voz. E era uma voz tão parecida com a de Cathal que senti um aperto no coração.
Recordei a mim própria que aquele homem tinha morto Aidan a sangue-frio. Não conseguia perceber que truque cruel se preparava agora para executar. Faltava-me a coragem para desafiá-lo à frente daquela multidão sussurrante, de dedo esticado. Cerrando os dentes, caminhei na sua direcção, apertando Becan com tanta força que este guinchou um sinal de alarme.
- Está tudo bem, pequenino - segredei-lhe.
Instantes depois, estava diante do desconhecido, nem a três passos de distância, e ele estendeu-me a mão, num gesto cortês, para apoiar o meu cotovelo e conduzir-me ao interior dos seus aposentos. Tremi de medo.
Lá dentro, o pavilhão era muito mais espaçoso do que parecia visto de fora. O fogo ardia numa lareira de pedra, impecavelmente limpa, que não fazia fumo. Suportes de lanternas em forma de várias criaturas distribuíam-se à volta do espaço: um dragão segurava uma luz, uma Fénix outra, uma serpente sinuosa a terceira. Havia bancos baixos forrados por tecidos que podiam ter sido peles de lobos e cobertos de almofadas bordadas. Numa mesa pequena, reparei num jarro com uma pega graciosamente arqueada e em vários cálices de vidro colorido e delicado, três dos quais cheios de um líquido cor de rubi.
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Sê Bem-vinda - disse o Senhor do Carvalho. - Foi uma viagem difícil. Feriste-te.
Estendeu a mão, de novo, desta vez para tocar nos cortes que eu tinha no rosto. O tom afável e a delicadeza do gesto podiam ser os de Cathal. Horrorizada, senti um rubor nas faces e um calor a espalhar-se pelo corpo.
- Não - disparei, recuando, encolhida. - Não precisais de fazer isto, de imitar o tom, a aparência do meu amigo. Eu sei que não sois ele. Não me enganastes nem por um instante. Ele nunca mataria um homem que se mostrara disponível para conferenciar.
Embora soubesse que não podia hostilizá-lo, pois devia ser o príncipe poderoso com quem teria de negociar o regresso do meu irmão, senti-me orgulhosa por ter sido honesta.
Ele lançou a cabeça para trás e riu-se. Era uma gargalhada gutural, de imperturbável diversão.
- Senta-te, por favor - disse-me, quando terminou. - Deixa-me oferecer-te uma bebida.
Em seguida, deslocou-se até à mesa. Era uma criatura elegante, isso via-se; até uma mulher com experiência sucumbiria rapidamente aos encantos de um homem daqueles. Teria assumido a forma de Cathal para me seduzir? Lembrei-me que as histórias acerca de Mac Dara incluíam numerosas proezas daquele género. Era provável que o príncipe das Criaturas Encantadas nos tivesse observado, a mim e a Cathal, desde o início; talvez tivesse mesmo espiado os nossos momentos mais íntimos. Mas, se pensava que podia ofuscar-me com os seus encantos, enganava-se muito. Só havia um homem que eu queria e não era ele.
- Obrigada, mas não vou beber.
Sentei-me, com cautela, à beira de um dos assentos forrados, e ele veio de imediato instalar o seu longo corpo ao meu lado, com a perna quase a tocar na minha.
- Suponho que sejais Mac Dara, o Senhor do Carvalho - prossegui. - Como podeis constatar, trouxe de volta a criança que foi deixada em Sevenwaters, no lugar do meu irmão. O meu desejo é levar Finbar para casa.
Becan sossegara; estava a olhar para as luzes. Fiquei grata por essa pequena clemência.
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- Não vamos já direitos ao assunto - disse Mac Dara, numa voz lenta e arrastada, esticando o braço por cima das almofadas, atrás de mim. - A tua família, segundo consta, já apoia há muito tempo os esforços da minha espécie para conservar o pouco território seguro que nos resta. É verdade que um ou dois dos vossos acasalaram com um ou dois dos nossos ao longo dos tempos, pelo menos foi o que ouvi dizer.
Estaria a referir-se à mãe de Ciarán, que era uma feiticeira negra? Era a única de que eu ouvira falar que pertencia à espécie de Mac Dara na árvore genealógica da minha família. Não me parecia que se estivesse a referir aos Anciãos, embora eu soubesse que ocupavam um lugar na minha ascendência.
- Assim o dizem - murmurei.
Tudo a respeito dele me inquietava. Oxalá se transformasse de novo no seu verdadeiro ser, mesmo que este fosse hediondo nos limites do possível. Detestava que tivesse assumido aquela forma não exactamente, mas quase - igual à de Cathal. Uma coisa familiar tornava-se subtilmente estranha: era a sensação mais assustadora do mundo.
- A família de Sevenwaters fez um pacto com os Tuatha De, há muito tempo, em que se comprometeu a proteger a floresta e o lago, a zelar pela vossa segurança e a não permitir que os descrentes desalojassem os da vossa espécie. Cumprimos essa promessa o melhor que pudemos. As Criaturas Encantadas, por sua vez, também nos ajudaram. Mas suspeito que isso foi antes do teu tempo.
Ele riu-se de novo, como se conseguisse ouvir o pensamento não verbalizado.
- Assim o dizem - comentou. - Eu venho do Oeste. Aqueles com quem a tua avó e os seus irmãos pactuaram já partiram, atravessaram o mar com a mudança de maré. Pareces um coelho assustado, rapariga. Não te desejo nenhum mal.
Tinha de perguntar:
- Se sois amigo de Sevenwaters, porque é que levastes Finbar? O seu desaparecimento quase destruiu a minha mãe. Já ansiava por um filho há muito tempo.
- A criança era um meio para alcançar um fim. Podes levá-lo de volta. Não o queremos.
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Falara como quem comenta o excesso de sementes num jardim, ou um galispo a mais na ninhada.
- Obrigada - disse-lhe, momentos depois. - Será que posso ver o meu irmão agora? Quero fazer a troca e partir. Em minha casa estão todos muito preocupados. Tenho de voltar.
- Acalma-te, filha de Sevenwaters. O teu irmão tem sido bem tratado; nós arranjámos uma ama-de-leite para cuidar dele. Teve tudo aquilo de que uma criança humana necessita. Não há motivo para pressas ou para ansiedades. E esse sobrolho franzido não assenta bem num rosto tão bonito, minha querida.
Senti os seus dedos gelados no meu pescoço, a brincar com o meu cabelo. Tentei disfarçar a repulsa que sentia.
- Tenho mais uma pergunta - disse-lhe. - Matastes um jovem chamado Aidan, disparastes sobre ele a sangue-frio, na floresta, não há muito tempo. Porquê?
Mac Dara encolheu os ombros.
- Porque é que fazemos estas coisas? É preciso haver uma razão?
A sua indiferença aterrou-me,
- Como é que se mata sem razão? - explodi. - É perverso. Mac Dara tornou a encolher os ombros.
- Foi divertido. Enfim: tenho-me aborrecido nestes últimos tempos.
Não me lembrava de nada, absolutamente nada para lhe dizer. Se era verdade o que contavam as histórias, aquele homem liderara, no passado, grandes exércitos, governara um imenso território, resistira a poderes terrenos e às forças do outro mundo com uma irrepreensível capacidade estratégica. Podia nunca ter sido uma personalidade agradável, mas fora um homem influente, um líder. Que alguém como ele pudesse descer tão baixo provocava-me náuseas.
- Talvez - acabei por dizer - já vivais há demasiado tempo. Seguiu-se um momento de silêncio. Os seus dedos apertaram-
-me o cabelo, puxando com força suficiente para me magoar. Depois, os lábios finos esboçaram um sorriso. Os dedos descontraíram-se; levantando-se, dirigiu-se à pequena mesa, pegou num copo e esvaziou o conteúdo.
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- És franca - comentou. - Condiz com os caracóis vermelhos flamejantes. Tens coragem. Não admira que ele te deseje tanto.
Olhei para ele. Ele fitou-me de volta, os olhos negros subitamente sérios no rosto longo e pálido. E se um feitiço ou sortilégio tivesse banido da minha memória, durante tanto tempo, a pista de que eu precisava, impedindo-me de ligar as peças do puzle, até ser quase tarde de mais, e agora, de repente, ei-la. Lembrei-me do terceiro conto de Willow: a mulher do Outro Mundo, Albha, a filha semi-humana, e os truques e artimanhas da mãe para a trazer de volta. O feitiço de Albha... Deuses, no feitiço estava tudo, todos os passos da viagem que nos tinha conduzido, a mim e a Cathal, até aos aposentos de Mac Dara. Um, dois, esquerdo, direito... o sonho do tempo, não, de timo... Cai no fim do firmamento... um caminho de temor... aporta sem idade...
- Sois seu pai - concluí, num sopro. Tenho uma teoria, dissera Cathal. Espero sinceramente estar enganado. Cathal odiava o talento de vidente que o pai desconhecido lhe transmitira. Não seria ainda mais aterradora a confirmação de que era filho daquele príncipe negro do Outro Mundo e, como tal, apenas semi-humano?
- Não assumistes a sua forma. Ele assemelha-se a vós porque é vosso filho. Vós pareceis jovem por causa daquilo que sois. Cathal tinha razão. Planeastes tudo, até ao mais ínfimo pormenor, apenas para trazê-lo de volta. Como é que não percebi?
- É uma simples troca - disse o Senhor do Carvalho. - Um filho por um filho. Não quero o duplo. Leva-o contigo para casa, se assim o desejares. Tens mais estima por ele do que qualquer um dos nossos será alguma vez capaz de sentir. Um quase excesso de estima, aliás. Podes recuperar o teu irmãozinho. Em troca, tens de entregar-me o teu companheiro, é só isso. Por falar nele, onde está? É um pouco negligente da sua parte deixar-te vir até aqui sozinha, não é verdade? Pensei que tinha sido treinado como um guerreiro de elite.
Sentia-me gelada. Agradeci a todos os deuses que Cathal não me tivesse acompanhado até ali; agradeci a todos os poderes que havia neste mundo e no outro que ele tivesse tido o bom senso de ficar para trás, invisível. Como é que eu podia ter esquecido aquela
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rima? Como é que eu podia ter sido tão cega? A entrada, um passo em frente, serás minha para sempre. com estas palavras, Albha tentara cercar a filha que fugira do Outro Mundo para levar uma vida livre. Se, a longo prazo, conseguira, eu não o saberia dizer - não tinha ouvido o final da história. Tudo o que eu sabia era que Cathal não podia entrar ali dentro. Eu tinha de impedir que ele entrasse no pavilhão. Se o fizesse, nunca mais poderia voltar a casa.
- Então? - o Senhor do Carvalho parecia descontente.
- Onde está o meu filho? Ele é o preço que tens de pagar pelo
herdeiro de Lorde Sean. O acordo tem uma agradável simetria. Saberás apreciá-la, tenho a certeza. Sou um homem viril, Clodagh. Já gerei mais do que a minha quota-parte de crianças ao longo dos anos. Mas tenho algo em comum com o teu pai, o Lorde de Sevenwaters. Ambos temos filhas em abundância. Tantas filhas e apenas um filho!
O meu pensamento desdobrou-se em mil situações. Era preciso recuperar Finbar e fugir dali antes que Cathal se revelasse. Tinha de encontrar os Anciãos e esperar que nos levassem a casa. Mas Mac Dara não me deixaria partir até conseguir o que queria. Nos seus olhos, vibrava uma resolução inabalável. Se eu tentasse fugir sem cumprir a minha parte do acordo, os guardas, e as lanças que traziam, não seriam nada perante a ira do Senhor do Carvalho. Talvez pudesse ganhar algum tempo, continuar a falar enquanto pensava num plano.
- A mãe dele afogou-se. Sabíeis disso?
- Sim, é verdade que ouvi algo do género - respondeu, cruzando os braços e observando-me de olhos semicerrados.
- Um desperdício. Ela devia ter encontrado outro homem, um lavrador, um pescador, alguém da sua espécie. Como tu o farás, não com um lavrador, suponho, mas com um jovem que figure na lista do teu pai, alguém que ofereça uma vantagem territorial aceitável. Não podes ficar com o meu filho. Está destinado a coisas mais elevadas.
- É uma pena - repliquei -, que não o deixais decidir por si próprio. Se queríeis que eu lhe virasse as costas e me casasse com alguém que o meu pai tivesse escolhido, talvez não devêsseis ter
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perdido a seta que matou Aidan de Whiteshore. Não só era meu pretendente, como o melhor amigo do vosso filho.
- Confesso que começas a desafiar ligeiramente a minha paciência. Esses assuntos não me interessam. Leva o filho do teu pai para casa e ele terá uma dívida tão grande para contigo que poderás casar com qualquer homem da tua escolha.
- Excepto um - retorqui.
Mac Dara acenou, em concordância.
- Excepto o meu filho - declarou. - É parecido comigo, não há dúvida, e sabe como seduzir uma mulher. Mas não é para ti. O seu futuro está noutro lugar. Agora, diz-me, onde está ele?
Inexplicavelmente, parecia que Cathal conseguira esconder-se do olho de águia daquele príncipe do Outro Mundo, mesmo no coração do seu próprio reino. Por outro lado, sendo filho de Mac Dara, talvez tivesse outros poderes sobrenaturais. Não apenas o extraordinário dom da Visão, mas todo um leque de talentos ainda por explorar.
- Não sei - respondi. - Como desconfiou que lhe preparavam uma armadilha, decidiu não se aproximar. Espero que já esteja bem longe, a caminho de casa.
Por momentos, vi uma expressão no rosto de Mac Dara que me aterrorizou, uma fúria à beira de explodir com tanta violência que temi pela própria vida. Depois, recompôs-se.
- Estou a ver - murmurou. - Mas não irá longe; tenho sentinelas por toda a parte. Perdoa-me este mau génio, por favor. Esperei muito tempo por este dia. É frustrante ainda não ter podido acolher o meu filho de volta. Mas não devo atrasar-te indevidamente, não seria justo. Sei que anseias por conduzir o teu irmão a casa. Ficarei com o duplo em vez dele.
Mac Dara estendeu-me os braços.
Era demasiado rápido, demasiado fácil. Ele não queria Becan, dissera-o há pouco. Só podia ser uma armadilha.
- Não tão rápido - obriguei-me a dizer. - Não vos dou Becan antes de ver Finbar. Preciso de ter a certeza de que está bem e ileso.
Mac Dara estalou os dedos compridos. Quase de imediato, uma jovem entrou no pavilhão, uma rapariga humana, bonita, talvez com
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dezassete anos, vestida como uma mulher do campo. Escoltavam-na duas mulheres dos Tuatha De, ambas com mantos cinzentos. A rapariga trazia um bebé nos braços. Tinha um olhar estranhamente vazio e isso perturbou-me.
- Pousa a criança em cima do banco, ali - disse, com rispidez, o Senhor do Carvalho.
Ela obedeceu, movendo-se com pressa, com os olhos colados ao chão. Até o ar parecia carregado de ameaças. Fazendo um esforço para respirar lentamente, ajoelhei-me ao lado da criança para a observar, segurando Becan com um braço, enquanto usava a outra mão para afastar o xaile do rosto do outro bebé.
Era Finbar. Reconheci-o de imediato e tive de conter o impulso de o tirar dali nesse mesmo instante. Aquele era um mundo de enganos e ludíbrios. Mac Dara era profundamente desonesto. Teria de agir com prudência; não era aconselhável apressar uma coisa tão importante.
Fiz um inventário: cabelo negro abundante, nariz audaz, bem desenhado, boca rosada, olhos singulares, já mais claros do que eram à nascença - os olhos de um vidente. Confirmei que o meu irmão estava inteiro e intacto. Embrulhei-o, de novo, no xaile macio, finíssimo, olhando para cima, para a rapariga, com um sorriso. Se era aos seus cuidados que ele fora entregue, tinha feito um bom trabalho. A rapariga devolveu-me o olhar, sem a sombra de uma expressão no rosto.
- Nós não faríamos mal ao herdeiro de Sevenwaters - disse Mac Dara. - Até pode estar ligeiramente mudado. Nenhum humano que passe algum tempo no nosso reino regressa exactamente igual.
- Mudado? - repeti, lembrando-me do que Sibeal me dissera.
- Em que sentido?
- Para melhor, sem dúvida - respondeu Mac Dara, com um sorriso. - Não te preocupes. São variações muito subtis.
Não tinha motivos para continuar a desafiá-lo. O meu irmão estava ali; o Senhor do Carvalho oferecia-me precisamente o que eu tinha esperado: um bebé pelo outro. Mas, alguma coisa me escapava. Tínhamos chegado até ali com demasiada facilidade. O único
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que Mac Dara queria realmente era Cathal; seria capaz de apostar a minha vida nisso.
-Jurai-me que não existe nenhum artifício nesta troca - insisti, sabendo que nenhum lorde dos Tuatha De fazia promessas comprometedoras a uma mulher humana. - Entregais-me Finbar em troca deste bebé, de uma forma honesta. E o vosso povo permitir-me-á regressar a casa, em segurança, com o meu irmão.
O corpo de Becan contraiu-se; as suas mãos agarraram-se ao meu vestido, apertando-o com força. Olhava-me fixamente, os olhos de pedra esbugalhados de ansiedade. Lá fora na floresta, para lá da clareira, libertou-se um grito fúnebre e demorado.
- Claro - disse Mac Dara. - Estaria a mentir-te? A troca é simples: essa criança por esta. Depois, pegas no teu irmão e regressas em segurança ao teu reino.
Parecia perfeitamente calmo e pragmático. De confiança. Mas eu não tinha coragem de pôr Becan nos seus braços. Um homem daqueles não desistia de um momento para o outro. Uma criatura daquelas, capaz de matar a sangue-frio sem outro objectivo a não ser um ou dois instantes de diversão, não se rendia sem luta.
- Não confio em vós - disse-lhe, num murmúrio. Mac Dara cruzou os braços.
- Porque é que vieste até aqui? - perguntou. - Pensei que era para levares o teu irmão para casa; para impedires que a tua mãe morresse de desgosto; para devolveres ao teu pai o filho que é mais importante para ele do que jamais imaginara que fosse possível, antes de tomá-lo nos seus braços pela primeira vez e de sentir um amor como nenhum outro. Não era essa a tua missão?
- Sim - murmurei, com lágrimas nos olhos. - Mas... Inclinei a cabeça sobre Becan, sabendo que teria de fazê-lo, sabendo como seria difícil.
- Eu levo-o. - A voz delicada era a da ama-de-leite. Quando olhei para cima, ela estava mesmo ao meu lado, de braços estendidos. - Eu tomo conta dele, prometo.
Já não havia um vazio naquele olhar, mas uma expressão doce e tímida. Perguntei-me como é que fora ali parar, ao Outro Mundo, e se estaria satisfeita.
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E Chegara o momento.
- Muito bem - obriguei-me a dizer. Beijei Becan na testa, salpicando-lhe a pele de folhas com as minhas lágrimas. Separei os seus dedos de madeira da minha roupa - estavam tão agarrados...
e confiei-o aos braços da rapariga. Ele começou a chorar, um
som frágil, desamparado. Peguei em Finbar. Embora fosse pequeno, era muito mais pesado do que Becan; um bebé humano, quente, real. E no entanto... no entanto, naquele momento, sentia um aperto no coração, um desejo de voltar a agarrar no meu duplo, o meu pequenino, amado em toda a sua singular estranheza.
Mac Dara sorriu. E era o sorriso de um homem que pressente a vitória num desafio de talentos. Logo a seguir, estalou os dedos. A ama-de-leite depositou Becan nos seus braços e ele lançou-o às chamas.
Um grito profundo soltou-se de dentro de mim. Deixando cair Finbar em cima do banco, precipitei-me para a lareira. O braço de Mac Dara enlaçou-me, detendo-me. Os guinchos de Becan atravessaram-me, como lâminas. Debati-me, mordendo, arranhando, soluçando, cada ínfima parcela do meu corpo esticada em direcção ao fogo.
- Tenho a certeza de que foi alto o suficiente para funcionar
- observou o Senhor do Carvalho.
Deuses, oh deuses, não... Becan estava a arder, a arder, os galhos, a cortiça, os musgos arrepiados como numa tocha. Pontapeei e lutei, o corpo em convulsão com soluços que me rasgavam por dentro. Por fim, Mac Dara libertou-me e eu lancei-me para o chão, junto da lareira, esgaravatando nas brasas incandescentes, à procura de algum pedaço do meu pequenino.
- Cuidado - disse Mac Dara. - Não queimes essas mãos bonitas.
com os olhos toldados de lágrimas, pesquei um canto do xaile de lã, o único fragmento de Becan que conseguia ver, arrancando-o às chamas. Uma coisa rolou com o tecido: um seixo chamuscado, o olho cego e sem vida do meu bebé. Fechei-o na minha mão; o seu calor queimou-me a palma. Senti uma náusea violenta e vomitei tudo o que tinha no estômago no chão dos aposentos de Mac
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Dará, salpicando o vestido bordado que me tinham obrigado a usar para aquela farsa de audiência.
Ouviu-se um alvoroço no exterior do pavilhão, passos de corrida, gritos, uma colisão de metais. O Senhor do Carvalho inspirou sofregamente e, depois, alguém se baixou ao meu lado, pousando a mão no meu ombro descaído. Sacudi-o com violência.
O que é que lhe fizeste?
Não era a voz de Mac Dara. Era a de Cathal, cheia de uma fúria glacial. Ele estava ali. Ali, ao meu lado, a tentar apoiar-me, e as suas mãos eram tão delicadas como o tom de voz fora implacável.
- Becan - chamei, arquejante, entre soluços. - Oh, Cathal, ele... ele...
Cathal abriu-me os dedos fechados com força, revelando o seixo e o fiapo chamuscado do xaile. Por momentos, todo o seu corpo se imobilizou. Depois, levantou-se de um salto, alcançou a mesa em duas passadas, agarrou no jarro e atirou o líquido para o fogo. Ouviu-se um silvo. No momento em que as chamas esmoreceram, Cathal enfiou as mãos no fogo e tirou algo para fora, praguejando entre dentes. A seguir, inclinou-se ao meu lado, segurando no destroço. Obriguei-me a olhar, contendo mais um vómito. Becan estava calcinado e partido, faltava-lhe um braço, o rosto era uma imitação grotesca do seu antigo ser, doce e mágico, e o corpo, uma massa enegrecida e recurvada.
Uma espiral de fumo libertou-se dos seus lábios de cortiça; por dentro, ainda ardia. Estava completamente imóvel e o único olho que lhe restava, parado e sem vida. Parecia exactamente o boneco feito de resíduos da floresta que a minha família pensara que ele era
- uma coisa que não tinha, e nunca tivera, vida. De mim, saíam ruídos que eu nunca ouvira ninguém fazer: soluços tremendos, exorbitantes, que me feriam o corpo todo. Cathal pousou o bebé no chão e foi buscar o odre ao meu saco. Sem dizer uma palavra, colocou-o na minha mão.
com as mãos a tremer como varas verdes, tirei a rolha e verti com cuidado um fio de água sobre o corpo em ruína do meu bebé. Além de nós, ninguém dizia nada.
- Clodagh - murmurou Cathal -, tens de levar o teu irmão e partir. Agora. Sei que é difícil, mas tens de fazer o que eu te digo.
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Alguma coisa no seu tom de voz me trouxe de volta à realidade num rasgo, percebi o que Mac Dara conseguira fazer. Por causa dele eu entregara não um, mas dois seres que amava, ao inimigo. Tudo fora calculado. Planeado. Peguei nos restos miseráveis da criança e pus-me de pé. Cathal levantou-se e pôs-se atrás de mim, com as mãos à volta dos meus braços, apertando-me contra ele. Olhei de relance para o Senhor do Carvalho. O triunfo brilhava-lhe no rosto, quase gémeo do rosto do seu filho, embora não exactamente. Era um mestre das ilusões. No fim, iludira-nos a todos.
- Não - murmurei, num sopro. - Não! Não podes fazer
isto!
Mas Mac Dara sorria. O truque tinha funcionado. Matara Becan sem qualquer escrúpulo, apenas para me fazer gritar. Sabia que o meu grito chamaria o seu filho; sabia que Cathal seria incapaz de ouvi-lo e conter-se. E Cathal viera, em meu auxílio. Atravessara a soleira da porta sabendo que, ao fazê-lo, o pai podia fechá-lo para sempre no Outro Mundo. Sacrificara o seu futuro por mim.
- Bem-vindo a casa, filho - exclamou Mac Dara. - Deste-me muito trabalho. Devo confessar que tenho um certo orgulho no modo como conseguiste escapar-me estes anos todos. Provaste que és digno de ser meu sucessor.
Naquele momento, parecia quase afável; os seus braços estenderam-se na direcção do filho, como se oferecesse um abraço. Cathal virou a cabeça para o lado e cuspiu para o chão.
- Eu não tenho pai - declarou.
- Não podes voltar atrás, como sabes - disse Mac Dara, na sua voz lenta e arrastada. - Não agora que pisaste o chão dos meus aposentos. O engenho do meu feitiço é insuperável; não conseguirás nunca romper as barreiras que ergui à tua volta. E por que razão quererias partir? Aqui, espera-te um futuro como príncipe e soberano, uma vida que o mundo dos humanos nunca ofereceria a um homem de origens humildes, como as tuas. Agora, podes pensar que não queres essa vida, mas não será assim por muito tempo. Vais mudar. Este lugar vai mudar-te. Lá bem no fundo, meu filho, já conheces a verdade. Interiormente, és igual a mim.
- Vai, Clodagh. - A voz de Cathal tremia. - Leva-o e vai.
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-Julgo que podemos conservar a rapariga - comentou o Senhor do Carvalho, num tom de banal descontracção. - Vejo que te afeiçoaste a ela. É uma criaturinha arrojada. E eu gosto de ruivas. Na verdade, até pode ter alguma serventia, para garantir que me obedeces até perceberes qual é a tua nova função aqui. Chegaste depressa, quando ouviste que ela estava em apuros. Ah, o amor; torna-nos tão tolos! Tu e a tua mulherzinha; ela e esse duplo infeliz... E ainda temos o herdeiro de Lorde Sean. Tinha planeado devolver a criança, mas ainda pode vir a ser-nos útil.
Mac Dara dirigiu um olhar pensativo ao pequeno vulto de Finbar, que continuava deitado no banco onde eu o deixara cair, sem pensar um segundo no seu bem-estar.
- Vai, Clodagh - disse Cathal. - Minha corajosa menina. Minha menina extraordinária. Por favor, vai agora.
Cathal retirou as suas mãos dos meus braços. Sem olhar para trás, soube que ele estava a chorar.
Não havia alternativa. Para salvar Finbar, teria de fazer o que ele me dizia. Mas recusava-me a deixar Becan ali. O seu corpo devia ser posto em sossego com ternura, amor e respeito, e não abandonado àquele mundo de desconhecidos cruéis. Tirei o saco do ombro, abri-o e pu-lo lá dentro, por cima das roupas dobradas. Era o melhor que podia fazer por ele. Depois, tornei a pôr o saco ao ombro e dirigi-me ao banco onde estava o meu irmão. Eu ainda respirava com dificuldade; os olhos e o nariz não paravam de pingar. Limpei a cara, e a superfície fria e sólida do anel de vidro verde roçou no golpe que eu tinha numa das faces. De repente, embora o choque me tivesse deixado quase paralisada e sentisse o coração esmagado e exangue, acendeu-se dentro de mim uma pequena chama de coragem. Peguei em Finbar. Os seus olhos brilhantes fixaram-se nos meus, curiosamente lúcidos. Era um membro da minha família; sangue do meu sangue. Fiz-lhe uma promessa silenciosa: Desiludi Becan; não vou desiludir-te a ti, meu irmãozinho. Por fim, virei-me e enfrentei Mac Dara.
- Não penses que isto acabou - declarei. Se ele era um príncipe, naquele momento eu era uma rainha e a minha voz era fria, dura e sólida como uma rocha. - Não vou desistir. Se voltares
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a quebrar a tua palavra, se alguma coisa de mal nos acontecer, a mim ou ao meu irmão, a caminho de casa, terás destruído toda a benevolência em relação aos Tuatha De Danann que existe no território de Sevenwaters. O teu povo nunca mais voltará a sentir-se seguro nestas terras. Juro em memória do meu parente Finbar, o homem com a asa de cisne, em homenagem a quem esta criança foi nomeada. Juro em memória da minha avó, Sorcha de Sevenwaters, que os Tuatha De amavam e auxiliavam. Quanto ao teu filho, ele é mais homem do que alguma vez serás capaz de imaginar. Não vais derrotar-nos. Nada vence o amor.
Mac Dara franziu ligeiramente os lábios. Instantes depois, juntou as mãos num aplauso preguiçoso e trocista.
Ignorei-o. As luzes pareciam, agora, menos intensas; extinguira-se o fogo maldito. As outras pessoas que estavam connosco no pavilhão, as duas mulheres de manto e a excessivamente submissa ama-de-leite, tinham desaparecido e, em vez delas, homens de armas das Criaturas Encantadas forravam as paredes da tenda, em fila e em silêncio. Eram tantos... Será que aquele príncipe temia assim tanto o seu filho guerreiro? Virei-me para Cathal, que estava pálido e calado junto da lareira. Não tinha tentado lutar. Lembrava-se das histórias melhor do que eu; sabia melhor do que eu o que significava pôr um pé nos aposentos do pai. Já era tarde para tentar resistir pela força das armas. A entrada, um passo em frente, serás minha para sempre. Se a história de Willow era verdadeira, Cathal não teria saída.
Segurei em Finbar, aconchegando-o na curva do meu braço esquerdo. Por fim, levantei a mão direita e afaguei o rosto abatido de Cathal. Olhei-o nos olhos. Tinha a pele molhada de lágrimas.
- Amo-te - segredei-lhe. - Virei buscar-te, prometo. Encontrarei maneira.
Cathal cobriu a minha mão com a sua, levando-a ao rosto, e encostou os meus dedos aos seus lábios.
- Meu amor - sussurrou e, depois, largou-a. - Adeus. Afastei-me. Foi a coisa mais difícil que alguma vez tinha feito
na vida. Saí do pavilhão. Os guardas já não se encontravam de pé, à entrada, mas jaziam feridos e ensanguentados no chão da clareira.
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Senti que a coragem me abandonava; o desgosto e o choque preencheram-me, como uma onda. O meu momento de força acabara. Apertei Finbar contra o peito, temendo mais truques cruéis e armadilhas.
Enquanto me afastava, ouvi a voz de Mac Dara, no interior do pavilhão:
- Ela não vai voltar - declarou. - Assim que chegar a casa, tomará consciência de que a ideia é uma perfeita loucura. As mulheres humanas não foram talhadas para serem heróicas. A única coisa que Clodagh quer é ter um filho, e isso, qualquer homem lhe pode pôr na barriga.
Depois, a voz de Cathal, a voz do meu amor, erguendo-se num desafio rouco e colérico:
- Não conspurques o seu nome com a tua língua porca e mentirosa!
O som de um estalo.
- Detenham-no - ordenou Mac Dara friamente. Imaginei o cerco de guerreiros do Outro Mundo a fechar-se à sua volta. Cathal era um lutador exímio, mas ali não valia a pena recorrer aos seus talentos, não se a magia do Senhor do Carvalho era tão poderosa como ele apregoava. Ouvi Mac Dara acrescentar:
- E quanto ao nome dela, meu filho, esquecê-lo-ás em breve. Vais ficar admirado com a rapidez com que a tua memória se desvanecerá.
Fiz um esforço para continuar a andar. Pelo menos, tinha a certeza de que Cathal não morreria, como Aidan. O pai amava-o, com todo o amor de que é capaz uma Criatura Encantada. Queria-o vivo e a salvo; a salvo sob o seu controlo, para ser moldado como uma cópia do progenitor: cruel, insensível, poderoso, cheio de estratagemas sombrios. A semente dessa pessoa existia em Cathal, tal como a semente do homem bom que ele lutava por ser. Quanto mais tempo ali se demorasse, mais parecido com o pai se arriscava a ficar. Por minha causa, teria de enfrentar aquilo que mais temia no mundo. Enquanto atravessava a clareira, aos tropeções, com o meu irmão nos braços e sob o escrutínio de uma multidão de olhos desconhecidos, tive a certeza de que não abandonaria Cathal a essa sorte.
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Devia-o a Becan, que eu não conseguira socorrer, provar-lhes que uma mulher humana também podia ser heróica. E pouco me importava que não fosse druida, nem maga, nem guerreira. Pouco importava que o verso dissesse para todo o sempre. Eu amava Cathal. Não ia abandoná-lo. Tão certo como a chegada da Primavera no fim do Inverno, viria buscá-lo e levá-lo-ia para casa.

CAPÍTULO CATORZE

Para lá do círculo de pedras brancas, no cimo de um outeiro, sob as árvores gigantescas que ladeavam o caminho cerimonial, os Anciãos aguardavam-me: eram sete numa fila silenciosa e dois traziam archotes que projectavam uma pequena mancha de luz à volta do grupo, na escuridão da floresta. Quando me aproximei, a voz do outro mundo ressoou de novo, agora num pranto mais intenso, como se a criatura a quem pertencia estivesse cada vez mais perto.
- Vem - exclamou Máscara-de-Cão, aparentemente alheio ao facto de eu estar a tremer, sacudida por um choro convulsivo.
- Não há tempo a perder. Segue-me.
Virando-se para trás, embrenhou-se no caminho. Os seus companheiros, que já não eram só as duas criaturas de rocha e de água, mas um ser com uma capa de penas e outros com o rosto escondido atrás de máscaras de animais, seguiram tranquilamente o seu chefe.
- Então, sempre acabou por ficar com o duplo - acrescentou Máscara-de-Cão, por cima do ombro, como se soubesse desde o início que era provável que isso acontecesse.
- Becan está morto - solucei. - E Cathal... - Não conseguia continuar. Os meus lábios recusavam-se a dar forma ao que acontecera: Becan a cair, a cair, e as chamas erguendo-se para o levar. A voz de Cathal, tão afectuosa, tão insistente, incitando-me a partir. A última palavra de ternura. O último toque, a sua doçura. Mac Dara a dizer ao filho: Vais mudar. Este lugar vai mudar-te.
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Ele atravessou a soleira da porta, como nos versos - acabei
por dizer. - Eu gritei, Cathal veio em meu socorro e caiu na armadilha. Mac Dara prendeu-o. Vai distorcê-lo e mudá-lo, fará tudo para transformar o filho num homem perverso como ele, alguém que mata por mera diversão. E tudo isto aconteceu por causa de mim, tudo! Entreguei Becan, entreguei-o às chamas onde ardeu, e conduzi Cathal à boca do lobo...
- Ardeu? - repetiu Máscara-de-Cão, e todos pararam. - Ardeu até não ficar nada?
- Não propriamente - solucei. - Mas está morto, ficou todo chamuscado e desfeito. Temos de parar em algum lado para...
- A palavra enterrá-lo ficou-me entalada na garganta. - Para eu pôr o seu corpo em descanso - sussurrei.
Finbar gorgolejou e enfiou a mão na boca. Em breve, teria fome e não havia nada com que o alimentar.
- Onde é que ele está? - A voz de Máscara-de-Cão perdera a sua habitual indiferença; era uma voz intensa e urgente. - Mostra-nos!
- Está no meu saco - respondi, pensando que não queria separar-me de Finbar nem por um breve instante, o tempo que demoraria a mostrar-lhes os infelizes restos mortais do meu pequenino.
- Mostra-nos!
Desta vez, era um coro de vozes, todas elas abafadas, pois não estávamos assim tão longe da clareira e da sua multidão de figuras sumptuosamente vestidas. O pavilhão de Mac Dara ficava a dois passos dali. O grupo reuniu-se à minha volta, tagarelando, sussurrando, chocalhando, num grande alvoroço. Dedos estranhos, cobertos de pêlo, rochosos, líquidos, com garras ou penas estenderam-se para tocar no saco que eu levava às costas.
- Dá-me o teu irmão - disse Máscara-de-Cão.
- Não! - respondi, apertando Finbar contra o peito. Máscara-de-Cão suspirou.
- Passa-mo a mim para eu pegar nele enquanto pousas o saco.
- Nós vamos ajudar-te, Clodagh - disse o ser aquoso, e cada palavra fazia lembrar o marulho das ondas, uma pequena melodia marítima.
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- Confia em nós - roncou a criatura rochosa. - Parentes são parentes.
- E tu precisas gravemente de ajuda, acredita - acrescentou Máscara-de-Cão. - Vem, o tempo urge e ainda não chegámos a um lugar seguro.
- Muito bem - concordei, passado algum tempo. - Mas sem truques, percebem? Fiquem aí todos, bem à vista.
Confiei Finbar aos braços de Máscara-de-Cão, pensando que, naquele momento, devia parecer muito pouco heróica, com os olhos marejados de lágrimas e o nariz a pingar, a roupa salpicada de vómito e o peito ainda palpitante de aflição. Pus a mão no cabelo para afastar uma mecha dos olhos.
- Ohhh! - murmurou a criatura da capa de penas, cuja máscara lhe dava a aparência de uma coruja. - Pobre mão, pobre mão! O fogo magoou-te!
- Tentei salvá-lo - expliquei. - Tentei mesmo. Mas ele... ele...
- Mostra-nos - disse Máscara-de-Cão.
Tirei o saco com cuidado - as minhas mãos queimadas doíam-me de verdade - e pousei-o no chão. Não tivera tempo para fechar o saco depois de guardar Becan. Os Anciãos juntaram-se à minha volta e espreitaram lá para dentro. Obriguei-me a olhar. O meu bebé estava no sítio onde eu o deixara: o solitário olho de pedra olhava para cima, sem ver, a boca continuava torcida e disforme, as folhas verdes da pele tinham ardido até ficarem castanhas e quebradiças. Era uma coisa pequena e ressequida que nunca podia ter estado viva. Enfiei a mão no saco e ergui-o.
- Ahhh! Um grande suspiro de choque e de desgosto fez vibrar o círculo
dos Anciãos. Segurei Becan junto ao peito, desejando do fundo do meu ser que ele estendesse a mão e agarrasse a minha roupa, como fizera no passado, quando lutara para conservar a sua segurança. Desiludira-o profundamente.
Seguiu-se um breve silêncio. Depois, a criatura rochosa disse:
- Depressa! A cerca de espinhos!
E todos começaram, de novo, a andar, desta vez muito mais depressa. Máscara-de-Cão ainda tinha Finbar com ele.
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- Espera!
Fiz sinal de que queria voltar a guardar Becan no saco, mas ele virou a cabeça para trás.
- Não, não! - exclamou, com aspereza. - Não o relegues
para a tua bagagem. Leva-o nos teus braços, junto do coração. Dobra o xaile à volta dele. Fala com ele. Canta-lhe.
Num gesto desajeitado, pus o saco ao ombro e apressei-me a segui-los, com a forma inerte de Becan aninhada contra o peito. Talvez tivessem razão; talvez merecesse mais do que ser arrumado num sítio escuro. Mas, cantar já superava as minhas forças. Contudo, murmurei algo enquanto subia o caminho aos tropeções, por dentro do bosque de carvalhos.
- Pronto, pronto, meu amor, meu bebé... dorme bem, meu pequenino...
Chegámos à vedação de espinhos. O portão guinchou, deixou-nos entrar e fechou-se atrás de nós com um estrondo convicto. A bagagem de Cathal ainda estava ao pé da fogueira, já extinta. Talvez ele tivesse pensado vir buscá-la mais tarde, a caminho de casa. Ou talvez soubesse, desde o início, qual seria o desfecho da viagem. Um pouco mais longe, vi uma cabra branca, presa a um poste.
- O leite alimenta o pequenino sequioso - disse a criatura feita de água.
- Trabalho - exclamou o ser rochoso, com rispidez. - Há trabalho a fazer!
- Recompõe-te, rapariga - acrescentou outro. - Não há tempo a perder!
Mas fraquejei e caí de joelhos, a embalar a criança sem vida, com o coração encolhido e as minhas lágrimas a pingarem-lhe o rosto pequeno e chamuscado. Máscara-de-Cão deteve-se ao meu lado, segurando com confiante facilidade no vulto do meu irmão embrulhado nos seus xailes. Os outros reuniram-se à nossa volta. Até aqueles que traziam máscara conseguiam, de algum modo, transmitir a sua ansiedade.
- O que é? - perguntei, abatida. - O que devo fazer? Ele está morto. Becan está morto. Não respira. Qualquer um vê isso. Tudo o que posso fazer é cavar uma sepultura e... - balbuciei, sem
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conseguir continuar sob a pressão de todos aqueles olhos estranhos fixos em mim.
- Clodagh - disse uma criatura que era uma mistura curiosa de anão e ouriço-cacheiro -, ninguém está a pedir-te que sejas uma heroína neste momento. Tudo o que tens de fazer é ser igual a ti própria.
- O que é ser igual a mim própria?
- Consertar! - disse o rochoso, com um estalido da boca em forma de fissura. - Encaixar! Remendar!
- Cuidar, reparar, unir, mimar... - murmurou o ser aquoso.
- És conhecida por seres uma dona de casa exemplar - afirmou Máscara-de-Cão. - Diz-me: se um tacho ganha ferrugem, deita-lo para o lixo? Desfazes-te dos lençóis quando ficam esburacados? Se a boneca favorita da tua irmã perde um braço ou uma perna, dizes-lhe que a lance à estrumeira?
- Claro que não - respondi, sem perceber a analogia. - Numa casa bem gerida, nada é desperdiçado.
- Uma vez que o duplo não ardeu inteiramente, porque é que lhe queres encontrar uma sepultura? Tenho a certeza de que uma jovem laboriosa como tu é capaz de fazer melhor, não?
Aquilo era cruel.
- Sabem perfeitamente que Becan não é uma boneca, nem um lençol, nem um tacho de cozinha, mas um ser vivo - exclamei, enfurecida. - Quando uma criança morre, não pode ser reconstruída como se fosse um brinquedo partido.
- Ah! - disse o ouriço-cacheiro-anão, agitando os espinhos com um som que fazia lembrar o de grãos secos a cair dentro de um pote de ferro. - Mas se uma outra pessoa que não tu, Clodagh, se alguém como o teu pai, Sean de Sevenwaters, por exemplo, olhasse para esta criança, era provável que dissesse: É apenas um manequim de madeira; é claro que pode ser reconstruído. Aos olhos dessa pessoa, a tarefa seria relativamente simples. Não queres sequer tentar, antes de entregares este ser tão pequeno, a quem deste tanto amor, a uma cova sombria e solitária?
- Mas ele não respira - repliquei.
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- Também não estava a respirar quando o tiraste do rio - argumentou Máscara-de-Cão. - Aquilo que fizeste uma vez, podes tornar a fazer.
O grito ressoou por toda a floresta, um lamento lancinante que me gelou até aos ossos. Tinha a sensação sinistra de que o dono daquela voz nos observava e ouvia tudo o que dizíamos. Quanto à ideia insana que me haviam sugerido, mal me atrevia a ter esperança.
- Tentar uma coisa dessas seria desafiar a ira dos deuses -
sussurrei. Embora quisesse fazê-lo. Oh, como eu queria fazê-lo...
Falou uma criatura com uma máscara de gato e a sua voz lembrava o calor da lareira e recantos confortáveis aquecidos pelo Sol.
- A tua mãe nunca te ensinou aquele velho verso, Clodagh: pica e cere, remenda e conserta, a agulha da mulher é a amiga mais certa? Trouxeste material de costura para esta tua demanda?
- Não - respondi, sentindo uma esperança irracional a crescer-me no peito. - Mas penso que Cathal trouxe.
O dono daquele manto não viajaria para longe sem levar consigo meios de conservar a carga de amuletos. Além disso, um guerreiro de Inis Eala estava sempre preparado. E fazia a sua própria costura em movimento, por assim dizer. Nos tempos em que Johnny tinha vivido com os Homens Pintados, em criança, eles costumavam cortar as suas próprias roupas para fazerem as dele. Era uma história que a tia liadan gostava de contar.
Máscara-de-Cão silvou, num tom de censura.
- Cathal! - disse. - Como se aceitássemos a ajuda dos da sua espécie...
- Se me tivesses explicado a razão por que desconfiavas tanto dele - argumentei, - talvez o tivesses ajudado a ficar longe das garras do pai. Porque é que não te explicaste? Porque é que tudo têm de ser insinuações, símbolos e puzzles?
- Quando enfrentas uma crise em tua casa, Clodagh - disse o ouriço-cacheiro-anão -, de que é que precisas? De choros e prantos ou de algum pragmatismo? Se queres corrigir as coisas, não percas mais tempo.
- Pequeno, frágil, partido, esquecido - murmurou o ser de água.
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- Depressa! - rugiu o rochoso. - Age!
Encara isto como um exercício prático de costura, ordenei a mim própria. Não duvides de ti, limita-te afazer.
Como eu já suspeitava, a bagagem de Cathal continha agulhas de osso e fio grosso. Seria fácil remendar um par de calças ou consertar o fecho de uma camisa. Mas a tarefa que me aguardava eu nunca tinha tentado na vida. Descobri a muda de roupa de Cathal e estendi a túnica na erva. Pousei Becan em cima desta, embrulhado no meu xaile. Ele ficou ali deitado, imóvel, sem mexer um dedo sequer. Era, de facto, uma esperança muito ténue, a de conseguir trazê-lo de volta. Mas tinha de tentar. Levantei-me aclarei a garganta.
Um dos Anciãos estava a ordenhar a cabra e o esguicho de líquido cremoso jorrava para dentro de um pequeno balde cintilante. Um outro deitava mais lenha para a fogueira. O terceiro estava a encher uma malga de metal com água do lago. Outros tinham-se posicionado perto do portão, talvez em serviço de vigia. Alguém colocara um archote junto de nós, mas já anoitecera e não seria fácil coser àquela luz tão incerta.
Máscara-de-Cão sentou-se de pernas cruzadas, com Finbar nos braços. A máscara permanecia no seu lugar, mesmo quando o portador não tinha uma mão livre para segurá-la. Olhos negros fitavam-me através dos buracos.
- Tomas conta de Becan enquanto recolho aquilo de que preciso? - pedi. - Por favor?
A criatura inclinou a cabeça solenemente. Instantes depois, o ouriço-cacheiro-anão apareceu ao meu lado com um archote, pronto a iluminar o caminho.
Evoquei mentalmente a imagem de Becan, aquilo que ele era antes de Mac Dara, antes do fogo. Não seria capaz de voltar a fazê-lo exactamente igual; certas bagas, certas folhas não existiam no recinto seguro delimitado pela cerca de espinhos. Mas havia muito para colher: folhagem fresca das árvores e dos arbustos; lascas de cortiça que podiam ser transportadas se eu tivesse cuidado, mas sem nunca exagerar componentes de nenhuma planta, para não a ferir gravemente; galhos do chão por baixo dos meus pés. Por cada oferta que a terra me fazia, murmurava uma prece de gratidão.
Quando já tinha reunido o que precisava, regressei para junto da fogueira, com os materiais guardados no regaço, e instalei-me ao lado de Máscara-de-Cão. O ser aquoso estava a verter o leite para dentro de um prato; havia um pedaço de pano preparado para alimentar o meu irmão. Os anciãos sabiam o que estavam a fazer.
Comecei, então, a remendar o meu pequenino. Ponto por ponto folha a folha, galho a galho, refi-lo de novo, e se as minhas lágrimas o salpicavam enquanto eu avançava na tarefa, nenhum dos meus companheiros articulou uma palavra de protesto. Sempre que podia coser ou atar fragmentos sem usar a agulha, fazia-o, achando aquele método mais natural. Além disso, corria o risco de gastar o fio de Cathal demasiado depressa. Cathal... Estava mesmo ali em baixo, a uma breve caminhada de distância... Ansiava por correr de volta, encontrá-lo de imediato e levá-lo para casa são e salvo nessa mesma noite, porque ainda não me tinha esquecido dos caprichos do tempo naquele lugar. Podia ser que, quando eu regressasse, já tivessem passado cem anos. Cathal seria um homem velho; o sangue humano nunca o deixaria viver tanto tempo como o pai dele e os seus semelhantes. Também podia ter desaparecido, para longe. E eu passaria o resto da vida a procurá-lo, até ao fim dos meus dias, em vão. Senti um aperto no peito.
Endireitei o olho de Becan o melhor que pude, cosendo um remendo de musgo à volta, para que ficasse mais seguro. Tirei o outro seixo do bolso e pu-lo no seu lugar. Não ficara exactamente com o aspecto que devia.
Máscara-de-Cão estava a alimentar Finbar com a malga de leite. De repente, aquela voz sobrenatural ergueu-se de novo e, desta vez, parecia que estava mesmo do outro lado do portão, gritando um desgosto visceral. O som gelou-me o sangue.
- O que é isto? - sussurrei.
Os olhos por detrás da máscara de prata viraram-se para mim.
- É a mãe dele - disse o meu companheiro. - Chora a sua morte.
- A mãe dele?
- Ela é impotente perante a magia de Mac Dara - explicou Máscara-de-Cão, espremendo o leite do pano sobre os lábios de

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Finbar. - Tem-nos seguido, observado, ouvido, torturada pelo desgosto. Ajuda-a.
A ideia encheu-me de terror. A minha própria dor pela perda de Becan empalidecia ao lado da sua. Ficar sem o filho, saber que o levavam para o mundo dos humanos, talvez para sempre, e depois trazerem-no de volta para acabar sacrificado aos desejos de um nobre cruel... Era inconcebível. Ver Becan queimado, disforme, ali estendido, imóvel e indefeso... Engoli em seco, retomando a minha tarefa, e, desta vez, cantei enquanto trabalhava. Não uma canção de embalar: sabia que não seria capaz de fazê-lo sem sucumbir. Cantei a canção de Cathal, a balada do homem perdido, que erra à deriva, e enquanto cantava tirei do saco a meia onde embrulhara os amuletos do seu manto, os seus emblemas de amor. Entrelacei um cabelo preto e um castanho da pequena trança que Cathal tinha conservado e juntei-lhes um cabelo vermelho, que arranquei da minha própria cabeça. Acrescentei um pedaço da coleira de Fleet e um pequeno remendo do tecido reluzente que fora usado pela mãe de Aidan. Corri todo o rio e ao poço desci... Acrescentei um ou dois fios do cobertor de lã branco que quase ardera por completo - um cobertor que a minha mãe tinha tecido com as próprias mãos para esse filho varão que há tanto tempo desejava. Corri a floresta e subi à montanha... Chorei, de novo. Vi Cathal a levantar das chamas o vulto chamuscado e partido de Becan, as suas mãos delicadas mesmo naquele momento extremo. Ouvi-o dizer Meu amor.
- Não é suficiente - murmurei por entre dentes.
Todos eles se reuniram, então, à minha volta. Uma mão em forma de garra esticou-se até mim, segurando uma pena dourada extraída de uma exuberante capa de plumas. Um outro estendeu-me uma lasca de pedra em forma de coração, o terceiro, um espinho afiado do seu casaco de ouriço-cacheiro. Cada um deles fez, por sua vez, a sua oferta e cada presente que me davam eu cosia ou tecia no corpo de Becan, tornando-o mais forte, mais bonito. Máscara-de-Cão não me deu nenhum emblema, mas, quando os outros terminaram, apontou para Finbar, que já acabara de beber e jazia sonolento sobre o joelho da pequena criatura. Usei o meu punhal para roubar um caracol ao belo cabelo do meu irmão e entrelacei-o no
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corpo de Becan. O ser aquoso aproximou-se e verteu uma mão cheia de líquido sobre o duplo.
Cresce, rebento, desabrocha - murmurou.
Todos se calaram. Não se ouvia um único murmúrio na escuridão da floresta; nada se movia para lá das fronteiras seguras da cerca de espinhos. Os Anciãos sentaram-se em círculo à minha volta, à espera. A costura estava feita; Becan voltara a ficar inteiro. Inteiro, mas rígido e sem vida. Sem sopro. E, algures na floresta, a mãe dele observava-me.
Toquei com os dedos na testa de folhas e, depois, encostei os meus lábios aos seus e respirei por ele, como já fizera antes. Um, dois. Pausa. Um, dois, outra vez. Vive, incitei-o. Há seres aqui que te amam. Vive. Vive! Enquanto eu respirava, Os Anciãos cantavam e as suas vozes uniram-se numa estranha música que enchia o lugar seguro de uma beleza trepidante, sussurrante, gorgolejante. Era uma música antiga e indecifrável, a música da própria pulsação da terra, intemporal, profunda. Estremeci ao ouvi-la e, ao mesmo tempo, continuava a soprar, a soprar, segurando o fio que ainda ligava o meu bebé à vida. O fio de uma história tão antiga que recuava ao tempo dos nossos primeiros antepassados. Um fio de amor tão forte que nem um príncipe das Criaturas Encantadas seria capaz de romper. Vive!
A canção esmoreceu. Não sabia há quanto tempo ali estávamos, eu a respirar, eles a cantar, mas, de repente, senti que na outra extremidade da cerca, mesmo do lado de lá do portão, alguém esperava, em perfeito silêncio. Quando levantei a cabeça para ver, o peito de Becan continuou o delicado movimento de subida e descida. Estava a respirar. Sozinho.
- Ahhh - exclamaram os Anciãos, em coro, e viraram-se para o portão. Máscara-de-Cão ainda tinha Finbar nos seus braços.
O portão rangeu e abriu-se, sem dificuldade. Ei-la, à entrada, uma figura da minha altura, com uma silhueta semelhante à minha, vestida com um fato de folhas, flores e trepadeiras que se arrastava pelo chão, e com uma cabeleira que lhe caía em cascatas sobre o fato, em novelos de gavinhas escuras, entrelaçadas. O archote perto do portão cintilou. Ela encolheu-se e recuou, a tremer, aterrada.
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A chama iluminou um par de olhos grandes e cautelosos num rosto que era simultaneamente doce e estranho, porque não era uma mulher humana, mas uma criatura feita de bosques e matas, de plantas e ramos entrelaçados, de arvoredo cerrado, e o seu corpo tinha o desenho deslumbrante de um vulto feminino feito a partir dos mais selvagens e secretos componentes da floresta. Aproximar-se tanto de um humano devia provocar-lhe um grande medo. Mas era eu quem tinha o seu filho. E agora, pouco depois de trazê-lo de volta do limiar da morte, teria de separar-me dele, de novo.
Desta vez, não hesitei. Aqueles olhos enormes, que me fitavam com terror e assombro, encheram-se de lágrimas brilhantes quando me aproximei com o bebé que era seu encostado ao meu peito. Sentia-o respirar; sentia a vida a regressar ao seu corpo a cada passo que dava. A mãe soltou um grito, não um guincho sinistro, de desgosto, mas um chamamento brando e saudoso que saía do âmago do seu ser.
E Becan respondeu. Abriu a boca e soltou o berro faminto e simples de uma criança saudável que apanhou um susto e precisa de um bom jantar. com os meus olhos também inundados, dei o último passo e depositei-o nos braços estendidos da mãe.
- Lamento tanto ter deixado que o ferissem... - disse-lhe.
- Mas agora ele está melhor. Só precisa que o alimentem.
Um nó na garganta impediu-me de continuar a falar.
Ela segurou-o à sua frente, examinando-o com a mesma atenção que eu observara Finbar no pavilhão de Mac Dara, quando ainda acreditava que o Senhor do Carvalho era capaz de uma troca honesta. Olhou para os olhos de pedra de Becan, inspeccionou a sua boca escancarada e ruidosa, sorriu, intrigada, para o fiapo de tecido iridescente e para a pena cintilante, para os fios de cabelo e para o xaile macio que envolvia o seu filho. Depois, fez-me uma vénia, cortês, apesar do medo que lhe sacudia o corpo como um vidoeiro exposto ao vento do Outono. Por fim, apertou o filho contra si e beijou-lhe a cabecinha estranha e as lágrimas caíram-lhe sobre o rosto.
- Lamento - tornei a dizer. - É um bebé extraordinário, doce e bondoso. Não merecia isto, e vós também não. Cuidei dele o melhor que pude.
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pensei, por momentos, naquela jovem ama-de-leite nos aposentos de Mac Dara e nas suas falsas garantias.
A mulher da floresta não emitiu um único som. Acenou-me, apenas, e depois virou-se com o filho nos braços e afastou-se com os seus pés de lã. Antes de chegar à primeira fila de carvalhos, já se perdera nas sombras. Durante um breve instante, ainda ouvi o choro de Becan, mas daí a nada até o som se diluíra no silêncio.
- Toma - disse Máscara-de-Cão, rompendo o sossego do momento e pondo-se em bicos de pés para depositar Finbar nos meus braços. - Agora, já tens espaço para ele. Leva-o para casa; deixa este lugar para sempre. A tua missão acabou aqui.
A criatura de rocha roncou como se aclarasse a garganta.
- Espera - disse, com os seus olhos de pedaços de líquenes postos em mim. - Pergunta. Procura.
- Alivia a pobre pele - piou o ser da máscara de coruja.
- Acalmando, untando, curando - murmurou a criatura de água.
- Ao dizer pergunta e procura - disse o ouriço-cacheiro-anão, virando-se abruptamente para a fogueira numa perigosa tangente a Máscara-de-Cão, que por pouco se picava num dos seus espinhos abundantes -, o meu amigo quer dizer que agora seria o momento de pedires algumas explicações, se precisares delas. Conselhos também, se achas que podemos ajudar-te. E tens de descansar. Há tempo de sobra para continuar o caminho amanhã de manhã.
Máscara-de-Cão encolheu os ombros, notoriamente em minoria, e regressámos para junto do fogo. Finbar parecia pesado nos meus braços; estava quase a adormecer. Teria de habituar-me àquele peso, àquela substância, à natureza real e concreta do meu irmão. Olhando para baixo, para os seus olhos invulgares, senti que lhe devia uma desculpa. Penso que não conseguirei amar-te como amei Becan, disse-lhe, em silêncio. Mas há amor mais do que suficiente à tua espera, em casa.
Sentei-me e deixei que os Anciãos cuidassem das queimaduras nas minhas mãos. O ser aquoso pôs-me uma espécie de bálsamo e senti os seus dedos incorpóreos, frescos e leves na minha pele. A dor aguda e assanhada das queimaduras desapareceu de imediato.
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A criatura com a máscara de gato aplicou-me o mesmo material curativo no rosto, com as suas patas macias, percorrendo as linhas dos golpes. Mal consegui conter a tristeza que sentia ao recordar os dedos de Cathal e o seu toque delicado.
- Quanto tempo levará a chegar a uma passagem para o meu mundo? - obriguei-me a perguntar, embora no momento em que me tinha sentado se tivesse apoderado de mim um cansaço que turvava o pensamento. Só me apetecia embrulhar-me nos cobertores, com Finbar aninhado ao meu lado, e dormir.
- Se partirmos de madrugada, quando é que chegarei a Sevenwaters? Finbar é tão pequeno e...
- Vais lá chegar muito a tempo - respondeu Máscara-de-Cão.
- Arranjaremos leite para a viagem de regresso. - A criatura da máscara de coruja já estava a encher um pequeno cântaro de barro.
- Não será difícil. Não creio que Mac Dara te persiga. O mais provável é que já se tenha esquecido de ti.
- Mas eu tenho... - comecei por dizer.
- Quando estiveres com a tua família, tu e a criança estarão a salvo e haverá quem cuide de vós. Poderás apagar esta desventura da tua memória.
- Mas eu não vou lá ficar...
- Dorme - disse o ouriço-cacheiro-anão, estendendo um cobertor ao lado da fogueira. Os seus espinhos brilhavam, vermelhos flamejantes, à luz das chamas. As mãos pareciam pequenas e humanas, se não reparássemos nas unhas, que eram longas, sólidas e afiadas, como se tivessem sido feitas para escavar. - Nada de sonhos maus esta noite, só descanso.
- Preciso de explicar uma coisa primeiro. - Sentia o pensamento turvo de cansaço, mas tinha de dizer-lhe algo. - Depois de levar Finbar a casa, voltarei para aqui de imediato. Tenho de salvar Cathal.
Seguiu-se um silêncio súbito e glacial. Depois, Máscara-de-Cão falou:
- Oh, não. Não, não, não. Uma filha de Sevenwaters não se associa ao filho do Senhor do Carvalho. Sai já, afasta-te, não te alies mais aos da sua espécie. São perigosos. Cheios de mentiras e artimanhas. Se fundires a tua sorte com o destino do filho de Mac Dara, terás uma vida de sofrimento.
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Estás enganado - retorqui com firmeza. - Amo-o e ele
ama-me. Sim, ele é o filho de Mac Dara; carrega consigo esse legado e não sou eu quem o vou negar. Mas também é filho de uma mulher. E durante toda a sua vida procurou ser senhor de si mesmo. É um guerreiro de extraordinário talento. Sei que ele pode ser uma boa pessoa, só precisa de... só precisa de encontrar o caminho para
casa.
Seguiu-se uma pausa e todos suspiraram como um só, apertando o círculo à minha volta. Senti que a atmosfera se descontraía.
- Céus... - disse Máscara-de-Cão. - O que é que fará as pessoas de Sevenwaters amarem com tanto fogo e determinação? Já o vimos antes, uma e outra vez. É uma coisa disparatada, perigosa. Mas o que é que podemos fazer?
- Se assim não fosse - salientou o ouriço-cacheiro-anão -, a criança da profecia nunca teria nascido. E isso não foi uma coisa disparatada. E se não fosse Johnny, o filho de Mac Dara não teria conseguido escapar às garras do pai durante tanto tempo. Talvez seja o destino. O jovem tem-se saído bem até aqui.
- Forte - disse o ser rochoso, com veemência, e martelou o peito com o punho, ilustrando o seu ponto de vista. O ruído súbito da pancada fez os pássaros chilrear de medo em todas as árvores que havia à nossa volta. - Duro. Corajoso.
- Tortuoso, manhoso - acrescentou a criatura aquosa, como se estas fossem qualidades admiráveis.
Os olhos atrás da Máscara-de-Cão brilharam de impaciência.
- Ele é o filho de Mac Dara - exclamou, como se falasse para um bando de tolos.
- O verdadeiro amor! - piou Máscara-de-Coruja. - Puro! bom!
Máscara-de-Cão silvou de mansinho.
- O descendente de Mac Dara nunca pode ser um homem bom - contrapôs. - O sangue vence sempre.
- Isso não é verdade - contrapus, lembrando-me de algo. - E o tio do meu pai, Ciarán? A mãe descendia de um ramo negro das Criaturas Encantadas. Segundo ouvi dizer, era tão perversa como Mac Dara. Mas prevê-se que Ciarán seja chefe-druida depois de Conor. Se isso não é ser bom, não sei o que será.
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Um murmúrio de diversão percorreu o círculo.
- Prometi a Cathal que voltaria para o levar comigo - declarei, mais animada. - Não vou abandoná-lo aqui. Mas não conseguirei entrar pelo mesmo sítio sozinha. Se existe outro portal, preciso de saber onde se situa.
- Encontrar um portal é o que menos te deve preocupar disse o ouriço-cacheiro-anão. - Pensas que Mac Dara vai deixar o filho à solta, de maneira a poder ser descoberto e desviado pelo primeiro que lhe aparecer no caminho? O Senhor do Carvalho pode não acreditar que voltes de livre e espontânea vontade a este reino, mas tomará na mesma as suas precauções. Mac Dara tem tentado recuperar o seu único filho desde que o rapaz fez sete anos e ficou preparado para começar a aprender. Para conquistares o teu Cathal terias de ser ainda mais trapaceira do que o trapaceiro.
- Então, é isso que farei. Fiz uma promessa. Não estou à espera que me ajudem; já me ajudaram muito e fico-vos grata por isso.
Podiam ter ajudado muito mais, pensei, se me tivessem informado melhor desde o início. Mas era notório que aquele povo desprezava os Tuatha De e que, para eles, Cathal era tão perverso como o pai.
- Hei-de encontrar uma maneira.
- Verde-espuma - murmurou o ser aquoso, batendo-me na mão com os seus dedos frios. - O anel é dele?
Confirmei com um aceno, lembrando-me.
- Pertencia à mãe. Cathal ofereceu-me todos os seus talismãs. Devia tê-los guardado para si.
- Se assim fosse, não terias salvado o teu irmão, Clodagh disse o ouriço-cacheiro-anão. - Esta história reserva-nos algumas surpresas. Por amor, o filho de Mac Dara sacrificou a sua própria liberdade. Desistiu da sua vida no mundo dos homens. Foi um acto de altruísmo. Cathal não é nenhuma cópia do pai.
- Ah! - escarneceu Máscara-de-Cão. - O pai leu-o na perfeição. Mac Dara previu o que o filho ia fazer desde o primeiro instante em que o jovem pôs os olhos em ti, Clodagh. Quem sabe se o Senhor do Carvalho não te colocou no seu caminho?
Lembrei-me do dia em que tinha conhecido Cathal, o dia em que sentira uma presença sinistra na floresta, algo que me vigiava
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e que me fizera correr pelos bosques em pânico, directamente para os braços de Aidan.
A ideia perturba-me - comentei.
- As Criaturas Encantadas gostam de interferir e algumas são muito poderosas - disse Máscara-de-Cão. - Já desempenham um papel na história da tua família há mais anos do que aqueles que saberás contar, Clodagh. Muitos dos teus antepassados foram manipulados por elas.
- Mas não todos - discordou o ouriço-cacheiro-anão. - De tempos em tempos, surge inesperadamente alguém que não obedece às regras do jogo. A tua tia Liadan foi uma dessas excepções. Tudo indica que tu serás outra. E isso é uma surpresa. Julgava-te feita de uma massa mais simples. Se conseguires levar o filho de Mac Dara, são e salvo, para longe daqui, ficaremos todos muito impressionados.
- Uma missão dessa natureza transcende qualquer mulher humana - disse Máscara-de-Cão, categórico.
- Não é verdade que a tia Liadan enfrentou os Tuatha De quando decidiu levar Johnny para longe de Sevenwaters? - perguntei.
- Não foi a mesma coisa? A minha tia desafiou as Criaturas Encantadas para se casar com o Homem Pintado e ir com ele para a Bretanha, onde os seus filhos cresceriam em segurança.
- Não estamos a lidar com Deirdre da Floresta, nem com o seu Lorde de Fogo - retorquiu Máscara-de-Cão. - Estamos a lidar com Mac Dara. Ninguém consegue ser mais astucioso do que ele. Atreve-te, e ele destruir-te-á com a facilidade e a indiferença com que parte um galho ou esmaga um insecto maçador. Vai para casa, Clodagh. Isto supera as tuas capacidades. Não faças sofrer a tua família com mais uma perda. - O tom era definitivo.
- O que aconteceu à Dama da Floresta e aos outros que a minha irmã costumava ver? - perguntei. - Para onde foram? Porque é que o Senhor do Carvalho reina agora neste mundo?
Máscara-de-Cão encolheu os ombros.
- O que é que nos interessam as peripécias dos da sua espécie?
- exclamou.
- À deriva, em mudança, longe, longe... - o gesto vago da criatura aquosa traduziu-se numa chuva de gotas a dançar no ar.
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O ouriço-cacheiro-anão sacudiu-se, num chocalhar metálico e disse:
- Quando a tua prima Fainne foi para as Ilhas para ser guardiã dos seus mistérios, a Dama da Floresta e os seus companheiros retiraram-se destas terras. Não creio que regressem antes que a neta da tua neta seja uma mulher adulta, Clodagh.
- Perdidos, perdidos - disse Máscara-de-Coruja, num tom pesaroso.
Já tinha ouvido a estranha história de Fainne, que era apenas uns anos mais velha do que eu e vivera connosco pouco tempo, antes de partir para ser guardiã de uma gruta sagrada. Quando nos contou essa história, o meu pai não quis entrar em pormenores e, passado algum tempo, as minhas irmãs e eu desistimos de fazer perguntas.
- Perdidos - repeti. - E o único que ficou foi ele. Não está certo. A floresta de Sevenwaters não pode ficar sob o controlo de Mac Dara. O nosso antepassado, aquele que nos incumbiu de zelar por ela, sentir-se-ia traído.
- Uma coisa de cada vez, Clodagh - disse a criatura felina, e eram quentes os olhos amendoados por detrás da máscara dourada. - Salva o teu amor antes de enfrentares os Tuatha De. Cura o teu coração partido antes de tentares mudar o curso da História. Mostra-nos esse anel.
Estendi a mão e três ou quatro criaturas aproximaram-se para examinar de perto o anel de vidro verde. Olharam para ele; olharam uns para os outros. Viraram os olhos graves na minha direcção.
- O que é? - perguntei, sentindo-me, de súbito, novamente exausta.
- É antigo - disse um deles.
- E muito antigo - disse outro.
- É tão antigo como nós - acrescentou um terceiro.
- Quem era exactamente a mãe desse jovem? - perguntou o ouriço-cacheiro-anão.
- Uma mulher comum, de origens humildes, a filha de um pescador, penso eu. Cathal não me falou muito dela, apenas me disse que era uma mulher muito bonita e que esperou anos e anos pelo regresso de Mac Dara.
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- Ela vinha do Oeste?
-? Precisamente. Um lugar chamado Whiteshore, na costa de Cormacht.
- Era filha de um pescador - meditou o ouriço-cacheiro-anão. - Há uma boa magia nisto, Clodagh, uma magia do mar, antiga e poderosa. O teu companheiro fez bem em enfiar-te o anel no dedo antes de enfrentares o Senhor do Carvalho.
- Se o tivesse usado ele...
- Não, não - atalhou o ente coruja. - Tu, tu!
- É um anel de senhora - disse o ouriço-cacheiro-anão.- Para o teu dedo. Quanto a Cathal, se tentares socorrê-lo, deverás usá-lo. Não te sintas tentada a devolvê-lo. Ele precisará do seu próprio talismã protector e cabe-te a ti defini-lo. Será que o jovem compreendeu o legado da mãe?
- O legado? Qual?
- Ah, talvez a tenha rejeitado, como alguém que ele amou e que o desiludiu. Mas, se ela era a dona deste anel, foi muito mais do que isso. Existe uma força neste povo que flui muito fundo, Clodagh. Ele é filho dela; também flui nele. Deu provas disso ao passar-te o anel a ti; ao assegurar a tua segurança em sacrifício da sua.
- A única coisa que Cathal me contou a respeito da mãe foi que ela amava Mac Dara e que se suicidou de desespero quando percebeu que ele não ia voltar. Se existe mais alguma coisa, tenho a certeza de que ele não sabe. Só tinha sete anos quando ela morreu. Sete.
Mac Dara tem tentado recuperar o seu único filho desde que o rapaz fez sete anos. Sem saber muito bem porquê, senti-me, de súbito, gelada.
- Estão a dizer-me que isto pode ser o segredo da sua libertação? Será possível?
- Possível, talvez - disse Máscara-de-Cão, com algum azedume. - Mas improvável, e nada aconselhável. Agora, dorme. Poupai as tuas forças. Amanhã, estarás em casa junto dos teus.
- Podem falar-lhe disto? Se houver alguma coisa que ele não sabe acerca da mãe, algo que possa usar...
- Os da nossa espécie não falam com os da sua - replicou Máscara-de-Cão, previsível. - Agora, dorme.
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- Mas...
Eu não conseguia suportar a ideia de que existia uma pista que podia ajudá-lo a escapar e que não havia maneira de lha transmitir.
- Se ele for quem acreditas que ele é - disse o ouriço-cacheiro-anão -, saberá procurar as suas próprias respostas.
Deitei-me com Finbar aninhado no meu peito e cobrimo-nos com um cobertor. À minha volta, os Anciãos ocuparam-se de várias tarefas: atiçar o fogo, verificar os archotes que iluminavam a vedação, alimentar a cabra. Dois ficaram de guarda ao portão; outros dois patrulharam o recinto. Do outro lado da cerca de espinhos, reinava o silêncio.
O meu último pensamento antes de adormecer foi para Cathal. Imaginei-o como ele era no dia em que o conheci: os lábios finos torcidos num sorriso de troça, a travessura a dançar-lhe nos olhos negros. Desde o início, Cathal fora um enigma, um irritante, intrigante puzzle humano, a fervilhar de uma inteligência inquieta. Ocorreu-me que, se havia alguém capaz de ser mais trapaceiro do que o trapaceiro, esse alguém era o filho do trapaceiro, se não deixasse que o desespero o destruísse entretanto.
A madrugada acordou-me, introduzindo-se por baixo das minhas pálpebras numa onda gloriosa de ouro-pálido. Finbar ainda dormia profundamente - uma trouxa húmida e quente encostada ao meu corpo. O cobertor cobria-nos e alguém colocara o saco por baixo da minha cabeça. Mas já não me encontrava no recinto seguro, no interior da cerca de espinhos. A luz do Sol disse-mo antes mesmo de eu me soerguer e reparar que, em vez das árvores escuras e gigantes do Outro Mundo, um bosque de graciosos vidoeiros rodeava a pequena clareira onde nós os dois estávamos deitados. Era a luz do Sol genuína. Por cima de mim, o céu tingia-se agora de um azul pálido. Havia uma frescura no ar, uma abertura que me iluminou por dentro. Por todo o lado à nossa volta, pássaros saudavam em coro o Sol que nascia. Já estávamos cá fora. Estávamos de volta.
Nessa noite, tinha sonhado com uma longa digressão por trilhos estreitos e subterrâneos, carreiros secretos, com os Anciãos a cami-
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nhar tranquilamente à minha frente e atrás de mim, segurando nos archotes, guiando-me, enquanto eu transportava Finbar junto do meu peito, na bolsa de pano. Esse caminho não se comparava com aquele que Cathal e eu tínhamos percorrido para entrar no reino dos Tuatha De, e eu sentira que era uma passagem apenas conhecida daqueles pequenos seres. No meu sonho, tinha passado a noite em movimento, e agora, ao acordar, concluí que talvez isso tivesse acontecido de verdade. Sentia-me retemperada, como na manhã a seguir a uma boa noite de sono, mas as pernas doíam-me. Espreguicei-me, olhando de novo à minha volta. Aquela zona parecia-me familiar. Havia uma pedra de sinalização, não muito longe no cimo da colina, com entalhes Ogham. Mais além, cresciam carvalhos. Era perto dos Nemetons, a morada recôndita dos druidas de Sevenwaters. Ainda me esperava uma longa caminhada até casa, mas não tão longa que eu não conseguisse fazê-la.
O jarro de barro tinha sido posto ali ao pé, coberto por um pano meticulosamente dobrado - os Anciãos tinham cumprido a sua promessa de deixar leite suficiente para Finbar. Pensei que o meu sonho talvez tivesse incluído uma paragem numa gruta sombria onde eu alimentara o meu irmão bebé e lhe mudara os cueiros. Teria de fazer ambas as coisas de novo, antes de partir.
Mas para onde? Directamente para casa, para ser eu própria a entregar Finbar aos braços da minha mãe? Como é que podia fazê-lo e, logo a seguir, anunciar a minha partida? Não era difícil imaginar a reacção do meu pai à ideia de me ver regressar ao Outro Mundo, para confrontar um príncipe negro dos Tuatha De. Sentiria que era sua responsabilidade impedir-me; garantir que eu recuperava a minha lucidez e que ficava em segurança. Eu não podia voltar para casa. Mas Finbar tinha de voltar, de imediato.
Por isso, dirige-te aos Nemetons. Procura a ajuda dos druidas. Como é que reagiriam à minha chegada? Conor era um homem sensato e de espírito aberto, mas tinha a certeza de que partilharia a opinião do meu pai. Ciarán, eu não conhecia muito bem. Possuía a mesma natureza, híbrida, de Cathal. Mas eu ignorava se essa condição faria com que me ajudasse ou se, pelo contrário, procuraria deter-me. Talvez conseguisse entrar discretamente nos Nemetons, dei-
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xar Finbar num lugar seguro e, depois, desaparecer na floresta. Não isso seria irresponsável. Mesmo que eu não o amasse como amara Becan, era meu dever perante o meu irmão entregá-lo em segurança nos braços da família.
Como se lesse os meus pensamentos, Finbar acordou, exigindo o seu pequeno-almoço. Era barulhento. Se estávamos tão perto da casa dos druidas como eu pensava, o seu choro não tardaria a despertar curiosidade. Alimentei-o e, enquanto ele chupava e engolia, olhei à minha volta, à procura da fenda, racha ou gruta da qual devia ter emergido na noite anterior, mais a dormir do que acordada. Não encontrei nada. Nenhum ribeiro ou lago, nenhum aglomerado de rochas, nada que pudesse ocultar uma abertura. Apenas o outeiro delicado, coberto de vidoeiros. E, naquele momento, descendo o declive na minha direcção, aproximava-se uma mulher idosa vestida com uma roupa estranha, indefinida, que podia ter sido um manto, um vestido ou uma túnica. Apoiava-se num bordão, mas deslocava-se com uma energia e um propósito que desmentiam a sua idade avançada.
Eu não devia ter ficado surpreendida. Depois da vivência dos últimos dias, devia estar preparada para tudo.
- Pensei que tinha partido - comentei, quando Willow chegou e se instalou numa pedra lisa ao meu lado.
- Onde está o teu homem? - perguntou a velha enrugada, indo directa ao assunto. - Vejo que trazes o pequenino contigo. Saíste-te bem. O preço foi mais alto do que esperavas, Clodagh?
Olhei para ela, de boca aberta.
- Como é que sabe tanto? - repliquei. - As histórias que nos contou eram todas acerca de Cathal e da viagem que ambos teríamos de fazer. Sei que o Povo Errante possui dons acima do comum, mas aquilo que fez transcende tudo isso. Foi inquietante.
Enquanto falava, sentia a cabeça a fervilhar de perguntas que precisava de fazer, coisas que eu tinha de descobrir e que podiam ajudar-me a salvar Cathal.
- O meu homem, como lhe chama, está preso no Outro Mundo. Foi o pai dele que o prendeu; exactamente como na história de Albha e da filha: À entrada um passo em frente, serás minha para sempre.
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Deve haver uma maneira de contornar esse feitiço, mas Mac Dara é muito poderoso e eu não tenho magia nenhuma... - balbuciei, e detive-me, reparando que Willow estava apenas à espera que a torrente de palavras se esgotasse. - Por favor, ajuda-me? - perguntei, lutando para conservar a calma.
Willow sorriu e um mapa de rugas desenhou-se no seu rosto.
- Eu não lanço feitiços - respondeu. - Não travo batalhas. Sou apenas uma contadora de histórias.
Por Brighid, seria de novo como Máscara-de-Cão: uma parede impenetrável caso pretendêssemos obter algum conselho útil. Baixei a cabeça, para ela não ver a frustração que se espelhava no meu rosto, e o meu olhar cruzou-se com o olhar azul e tranquilo de Finbar, deitado no meu colo, sonolento e saciado, agora que tinha o estômago cheio de leite. A irritação que sentia desvaneceu-se tão depressa como surgira e a pergunta certa veio ao meu encontro:
- Pode contar-me uma história? - perguntei. - Não ouvi o fim da história de Albha e da sua filha meio humana. Gostaria de saber o que aconteceu.
- Se não foste suficientemente sábia para ouvi-la da primeira vez - respondeu Willow, pousando o bordão ao seu lado -, a culpa não é minha. Tenho uma outra história em mente para esta manhã e serei breve. Depois, vais querer tomar o teu pequeno-almoço.
- Muito bem - disse-lhe, pois se alguma coisa tinha aprendido acerca de Willow era que havia uma lição relevante em todas as histórias que contava. Só esperava ser capaz de decifrá-la.
- Era uma vez uma jovem encantadora chamada Firinne, filha de um pescador assim o era, e vivia num lugar chamado Whiteshore, na costa de Connacht. Vejo que já estás ansiosa por interromper, Clodagh, mas, se fores sensata, deixarás uma mulher idosa contar a sua história de seguida. Não precisas que te relembre que não temos muito tempo.
"Ora, Firinne teve a infelicidade de perder os pais antes de fazer quinze anos de idade, mas era hábil a consertar as redes, e com um trabalho aqui, outro ali, um vizinho bondoso aqui, outro ali, lá conseguiu sobreviver. Tinha muitos pretendentes na aldeia onde vivia,
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mas nenhum que conquistasse a sua atenção. Os anos passaram e um homem veio bater-lhe à porta, um homem cheio de encantos envolto num manto grande e comprido. Tão cheio de encantos era na verdade, que apesar dos seus instintos certeiros, Firinne se deixou enfeitiçar, pois nenhuma mulher seria capaz de resistir àqueles ombros largos, às pernas compridas, aos olhos escuros e maliciosos. O desconhecido sabia como fazer a corte a uma mulher e, embora Firinne o tivesse mantido afastado durante algum tempo, acabou por ceder ao seu inegável poder de sedução. E um dia, apanhando-a de surpresa - embora não a ti, desconfio -, o homem partiu sem um beijo de despedida e ela ficou sozinha, com um bebé na barriga e parcos meios para o sustentar.
"Eu devia, porém, ter mencionado um certo anel, um verde, modesto, muito semelhante ao círculo de vidro que vejo agora no teu dedo, Clodagh. Firinne tinha recebido o anel de presente do seu pai e este explicara-lhe que aquele simples objecto, passado de geração em geração, possuía um fortíssimo poder de protecção. O pai ordenara-lhe que o usasse sempre, porque o anel livrá-la-ia de todos os tipos de sarilhos, especialmente aqueles em que uma mulher ingénua era capaz de cair, se entrasse num círculo de cogumelos, ou desse atenção ao forasteiro ou sedutor errados. Foi, por isso, uma infelicidade que Firinne tivesse lavado roupa no dia em que esse desconhecido lhe bateu à porta, e que tivesse tirado o anel do dedo e guardado o talismã numa pequena caixa, para não o perder. Assim que pôs a vista em cima do visitante, esqueceu-se do anel e nunca mais se lembrou dele até ao dia em que o sombrio desconhecido partiu, deixando-lhe um presente indesejável. Agora, com a criança a crescer-lhe depressa no ventre, Firinne percebeu quão incauta tinha sido. Porque na sua família corria um fio invulgar, um fio que lhe dava certos instintos que não estavam ao alcance das pessoas comuns. Fora vítima de um logro, de uma impostura. Pensara que aquele homem alto, misterioso e perverso a amava; acreditara nas suas palavras ternas e passionais. E agora, à luz fria dos dias seguintes, Firinne percebeu quem ele era e o que queria.
"Firinne sabia, como nós sabemos, Clodagh, que as Criaturas Encantadas não são bons reprodutores. A melhor maneira de arran-
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jarem um filho é acasalando com um homem ou mulher, compatíveis, do nosso mundo. Firinne escolheu o sombrio desconhecido, porque não conseguiu resistir aos seus encantos. Ele escolheu-a a ela porque Firinne era a mãe ideal para o seu filho - era excepcionalmente bonita, para uma mulher humana; era saudável; era uma rapariga modesta, de uma aldeia de pescadores, e seria improvável que lhe desse luta quando, mais tarde, viesse buscar o filho, caso tivesse a sorte de conseguir um rapaz através daquela união. Ou, pelo menos, assim pensou. Mas nunca viu o anel. Nunca soube que algures na ascendência daquela mulher, há muito, muito tempo atrás, existira um dos do Povo do Mar. E isso foi o grande erro de Mac Dara.
"Firinne conhecia as histórias. Sabia que tinha sete anos, nem mais nem menos; sete anos para tecer uma teia protectora em torno do filho, para que o pai não pudesse reclamá-lo e levá-lo para sempre para o Outro Mundo. Aos sete anos de idade, um rapaz já cresceu o suficiente para deixar as saias da mãe e a sua influência e começar a aprender o ofício do pai. Esse ofício pode ser a carpintaria, a pesca ou a escrita. Mas, se o pai for um príncipe do Outro Mundo, então, a partir dos sete anos, o futuro do rapaz reside nesse reino indefinido. De uma coisa Firinne tinha a certeza: Mac Dara ia voltar; não por ela, pelo filho.
- Está a dizer-me que a mãe de Cathal não definhou por amor a Mac Dara? - perguntei, chocada por ver a história virada do avesso. - Não se matou por causa dessa espera infinita e impotente? Como é que soube disso?
Willow tornou a sorrir.
- Parece-me que te admira o facto de a minha memória ter alguma coisa lá dentro. Espero que quando fores velha, Clodagh, os teus netos não estejam à espera que passes o dia todo a resmonear junto da lareira. Lembro-me, sim, de te ter dito, no dia em que nos conhecemos, que sou tia de Dan Walker. Mas, como todos nós, tive dois progenitores. O meu pai não pertencia ao Povo Errante. Era um charmoso desconhecido que a minha mãe conheceu uma noite, no meio dos bosques; um indivíduo que, pela descrição que ela me fez, era extraordinariamente parecido com o teu jovem. A minha mãe era uma rapariga um pouco selvagem. E, enfim, calhou-lhe mais
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na rifa do que ela esperava desse encontro à meia-noite, tal como aconteceu a Firinne. Felizmente, ninguém veio à minha procura no dia do meu sétimo aniversário. Mac Dara só está interessado em filhos, não em filhas.
Senti a cabeça a andar à roda.
- Mas...
- Mas eu sou uma velha? - Willow riu-se por entre dentes.
- E que idade pensas que ele tem? Esse homem anda a conceber filhas desde o tempo das velhas lendas. Porque é que pensas que dá tanto valor ao único filho que conseguiu ter? Demorou muito, muito tempo. Tempo suficiente para lhe partir o coração, embora geralmente se diga que ele não o tem. O teu Cathal tem irmãs mais velhas em todos os cantos de Erin, Clodagh. É claro que nem todas recorrem aos talentos invulgares que a paternidade lhes legou; a maior parte nem sequer sabe quem é. E agora, queres ouvir o resto da história, ou não? Não temos muito tempo. Esse bebé tem de ir para casa.
Olhei, de novo, para Finbar: parecia ter adormecido.
- Sim, por favor - respondi, ainda com vertigens por causa do que ela me contara. Aquela velha enrugada era uma das filhas de Mac Dara? Não admirava que as suas histórias trouxessem à superfície verdades inquietantes.
- Ora, para o pai, o rapazinho era muito especial, por razões óbvias. Mas isso não o tornava menos precioso para Firinne, e ela prometeu a si mesma que faria tudo o que estivesse ao seu alcance para impedir que Mac Dara o levasse. Prometeu que não permitiria que o pai o transformasse numa criatura igual a ele: um homem que não sabia a diferença entre o Bem e o Mal. Por isso, pegou no anel de vidro verde, a dádiva daquele invulgar antepassado, enfiou-o num cordão e atou o cordão ao pescoço do bebé. Depois, subiu até à fortaleza de Lorde Murtagh, que governava a terra de uma maneira sábia e eficaz, e ofereceu-se como ama-de-leite para o filho recém-nascido daquele chefe. E, quando se ofereceu, contou a Lorde Murtagh um pouco da sua própria história, mas não tudo, e convenceu-o a acolher o pequeno Cathal em sua casa e a mantê-lo a salvo, até crescer e se transformar num homem. Firinne fez com que
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sua senhoria prometesse ensinar ao filho dela que nunca, em circunstância alguma, devia ir para fora sem o anel de vidro
verde ao pescoço, ou guardado algures no meio da roupa. Lorde Murtagh era um chefe de clã extraordinário, um homem extraordinário; ainda é. Não só prometeu fazer o que ela lhe tinha pedido, como ofereceu a Firinne um lugar permanente na sua casa, mas ela recusou a oferta. Era melhor, pensou, afastar-se do filho, porque seria através dela que o pai tentaria encontrá-lo.
- Isso deve tê-la ferido terrivelmente - comentei, recordando como me custara a mim separar-me de Becan, que me pertencera apenas por uns dias. - Cathal pensa que a mãe não quis saber dele.
- Foi um acto de amor puramente desinteressado - disse Willow, acenando. - Ela sabia que devia afastar-se, deixar Whiteshore para sempre, limpar o rasto que Mac Dara seguiria. Mas não teve coragem. Vivia para os breves momentos em que vislumbrava o seu filho, espaçados no tempo: a pescar no rio com o amigo; a cavalgar pela aldeia com Lorde Murtagh e a família; por vezes, a passear sozinho à beira-mar, de olhos perdidos nas ondas. Firinne fez tudo para que ele não a visse enquanto o observava. Pensou que era melhor que o filho a esquecesse. A nova família era boa para ele; ela via que o tratavam como se fosse um dos seus, ou quase. Por vezes, o melhor sítio para esconder uma coisa é mesmo à vista de quem a procura, pensava Firinne. Quando Mac Dara voltasse a passar por ali, ela dir-lhe-ia que o filho tinha morrido.
"Esse momento chegou. Cathal fez sete anos e, precisamente nesse dia, Mac Dara tornou a bater à porta de Firinne. Dessa vez, não eram jogos e diversão o que pretendia, mas levar o filho de volta ao Outro Mundo. E quando Firinne lhe disse que Cathal adoecera e morrera dois anos antes, o Senhor do Carvalho não acreditou nela. Pressionou-a; ela agarrou-se à sua mentira. Ele usou um feitiço para obrigá-la a soltar a verdade. Ela fugiu pelas traseiras, para a margem do rio. O que aconteceu a seguir, não saberei descrever com precisão, porque não houve uma única testemunha do sucedido. Não acredito que Firinne se tenha suicidado. Os seus antepassados eram o Povo do Mar. Ela não teria escolhido a morte por afogamento. Nem penso que Mac Dara a tenha assassinado, porque
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com ela morreria uma pista vital sobre o paradeiro do filho. De qualquer modo, Firinne levou a verdade consigo, para a sua sepultura de água. Creio que devem ter lutado e que, de algum modo, ela terá encontrado a morte nessa luta. Passaram-se alguns dias até os dois rapazes descobrirem o cadáver a boiar na água; tempo suficiente para que se apagassem todos os indícios. Era quase de mais para aguentar.
- Isso muda tudo - declarei, desejando de todo o coração poder contar tudo a Cathal, naquele preciso instante, porque se a história era verdadeira podia devolver-lhe a mais preciosa dádiva de todas: o amor que a mãe sentia por ele. - Se ao menos eu tivesse sabido disto, antes de fazermos a travessia para o Outro Mundo... Se ao menos alguém pudesse contar-lhe... Ele vai sentir-se tão só, tão perdido, sem nenhum amor. E se sucumbir ao desespero?
Willow arqueou as sobrancelhas.
-Julga-lo assim tão fraco? - perguntou, com um meio sorriso.
- Fraco? - sentia-me insultada. - Claro que não! Só queria que alguém lhe contasse a verdade acerca daquilo que aconteceu à mãe dele. E acerca dos poderes que ele pode ter herdado dela. Se foi capaz de enfrentar Mac Dara e de guardar o segredo até à morte, deve ter sido uma mulher de coragem.
- E era - disse Willow. - Cathal é seu filho; também será corajoso. Mas é verdade que ele precisa de ti, Clodagh. Por isso é melhor ouvires, enquanto te conto rapidamente o resto da história. Mac Dara levou mais cinco anos a descobrir onde estava o filho. Era uma coisa muito invulgar. Qualquer um esperaria que um príncipe poderoso dos Tuatha De demorasse uma estação, no máximo, a descobrir a verdade. Porquê tanto tempo? Bem, não foi por causa do anel de vidro verde. O anel era um talismã que garantia a protecção física do rapaz, não um esconderijo. A razão por que Mac Dara teve tanta dificuldade em encontrar o rapaz era a própria ascendência de Cathal: Tuatha De, do lado do pai; humano e descendente do Povo do Mar, do lado da mãe. O jovem Cathal era uma combinação explosiva de poderes do outro mundo, concentrados no corpo de um rapazinho triste, esperto e confuso. Pouco tempo depois da morte
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da mãe, começou a pressentir que alguém se esforçava por afastá-lo de lugares seguros. E deu os seus primeiros passos para resolver a situação, sem perceber bem o que estava a fazer. Tratou, então, de fabricar essa espécie de amuletos que todas as crianças inventam. Como Cathal era quem era, os seus talismãs funcionavam. Por vezes, olhava para a água e via coisas que não deviam lá estar. Nunca contou a ninguém, embora de vez em quando se servisse do que as visões lhe ensinavam. Odiava ser diferente. Mas essa parte já tu sabes. Acenei em concordância, embora não fosse a imagem da criança vidente que me invadira o espírito, mas a de Firinne a observar o filho a caminhar sozinho na praia de Whiteshore. Sentia a sua dor no meu coração.
- Cathal conseguiu, assim, despistá-los durante alguns anos. Depois, quando Aidan partiu para Inis Eala, aproveitou a oportunidade e foi com ele - concluí. - Por fim, veio a Sevenwaters e acabou por sacrificar a sua liberdade por minha causa.
- Estás a ser um pouco severa contigo própria - retorquiu Willow. - Cathal diria que ter conquistado o teu coração compensou tudo o resto. E é verdade que te ofereceu o anel. Um presente de amor desinteressado.
Seguiu-se uma pausa; Willow esperava que eu dissesse algo.
- O anel manteve-me a salvo até eu conseguir sair - disse-lhe, devagar. - Se eu fabricasse um talismã para Cathal, um símbolo do amor desinteressado, isso protegê-lo-ia do pai?
- Talvez. Não é o seu bilhete para fora do Outro Mundo. Mas pode ser que ajude. E ele vai precisar de ajuda.
Ainda estava a pensar na minha próxima pergunta quando Willow pegou no bordão e se levantou, preparando-se para partir.
- Oh, espere, por favor! - supliquei-lhe. - Diga-me se existe alguma maneira de quebrar o feitiço, aquele que acontece quando se atravessa a soleira da porta. Como é que eu posso contrariar uma força tão poderosa?
- Já te disse que sou uma contadora de histórias - respondeu a mulher idosa, sem ser indelicada. - Já tens aquilo de que precisas. E agora devo retomar o meu caminho. Espero que a tua viagem
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corra bem, Clodagh. - Pôs a mão em concha no ouvido. - Será que ouço algo? A floresta parece-me demasiado agitada a esta hora do dia, não achas?
Enquanto Willow se afastava, descendo a colina, ouvi vozes; alguém subia a encosta pelo outro lado. Perscrutei o cimo da colina, sob os vidoeiros, e distingui dois vultos que se aproximavam rapidamente: uma rapariga esguia, de cabelo escuro, com um vestido azul
- Sibeal; um homem alto e ruivo com uma capa e capuz - Ciarán. Quando me virei para o outro lado, Willow já tinha desaparecido.
A minha irmã estava radiante. Fez o último troço do caminho a correr, caiu de joelhos à nossa frente e abraçou-nos, a mim e a Finbar, fazendo com que o bebé protestasse vigorosamente.
- Clodagh! Trouxeste-o! - lágrimas caíam-lhe sobre as faces.
- A mãe - disse-lhe. - Ela está bem, Sibeal?
A minha irmã confirmou com um aceno, sem fala. E, nesse momento, Ciarán surgiu atrás dela, inclinou a cabeça com cortesia e disse:
- Estamos acampados aqui perto, do outro lado da colina. Quando estiveres pronta, levamos-te lá. Temos comida, água e uma muda de roupa para ti.
Devo ter feito uma cara de estupefacção. Sibeal deu uma gargalhada trémula e explicou-me:
- Nós sabíamos que chegavam em breve e sabíamos onde encontrar-vos. Vimo-lo na água, os dois. Mas não podia dizer nada ao pai nem à mãe. Seria muito cruel dar-lhes esperanças e vir a descobrir mais tarde que as visões tinham outro significado. O tio Ciarán disse-lhes que eu tinha de vir até aqui para receber algumas aulas. Oh, Clodagh, têm estado todos tão preocupados contigo! O que são esses arranhões que tens no rosto? E Finbar? Está inteiro?
Para Sibeal, era um discurso invulgarmente animado.
- Penso que está bem - respondi. - Tomaram bem conta dele. É uma longa história. Obrigada por estarem aqui. - Olhei para Ciarán, tentando perceber o que estaria a pensar, mas os seus olhos cor de amora eram imperscrutáveis. - Tio, eu preferia que mais ninguém me visse nos Nemetons. Nem sequer Conor. Tenho de
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explicar-vos uma coisa, a si e à Sibeal, algo que os meus pais não vão gostar. Não tem nada a ver com o bebé - acrescentei à pressa, vend? o súbito pânico no rosto da minha irmã. - É um outro assunto.
Ciarán parecia impassível.
- Os meus irmãos não me incomodam quando eu estou a ensinar, Clodagh, e o nosso pequeno acampamento fica a alguma distância do lugar onde nos reunimos. Conor está em Sevenwaters, onde decorre neste momento um conselho. Nós também temos algumas notícias para te dar.
- Um conselho? Não é cedo de mais? O pai ejohnny ainda nem sequer... - Detive-me; um arrepio de ansiedade percorreu-me o corpo. - Há quanto tempo estou ausente? - obriguei-me a perguntar.
- Há quase um ciclo lunar - respondeu Sibeal, numa voz grave.
- Clodagh, tenho uma má notícia para te dar. A respeito de Aidan.
- Eu sei, ele morreu - disse-lhe. - Mac Dara matou-o. Nós vimo-lo.
- Nós? Quem...
- Isso pode esperar, Sibeal - interrompeu Ciarán, observando-me com atenção. - Vamos até ao outro lado da colina e, depois, partilhamos notícias.
- Um ciclo lunar completo - murmurei. - Tanto tempo... Estes enganos do tempo funcionavam para ambos os lados.
Pensei em Cathal e no que podia acontecer se meses e anos se escoassem no Outro Mundo antes de eu conseguir alcançá-lo. Não deixem que ele me esqueça, orei. Não deixem que Mac Dara lhe envenene irreversivelmente o espírito.
Chegámos a um pequeno acampamento, metodicamente arranjado, no outro extremo da colina, com uma fogueira acesa entre pedras e abrigos rudimentares onde passar a noite. Um toldo que abrigava vários instrumentos - ramos de augúrio de madeira de vidoeiro, um pilão e um almofariz, uma tigela de cobre e um cântaro de água - indicavam que a minha irmã e o seu tutor tinham estado a trabalhar afincadamente, enquanto esperavam pela minha
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chegada. Havia um tacho com papas de aveia junto do fogo. Ciarán homem de uma grande economia de gestos e de palavras, encheu-me uma malga e obrigou-me a comer tudo antes de eu lhes contar a minha história.
Sibeal ficou surpreendida por Cathal me ter acompanhado naquela viagem. E por se revelar não apenas o amigo difícil de Johnny, mas o filho de Mac Dara em pessoa. Ciarán ouviu com atenção, sem dizer muito, mas nada parecia impressioná-lo. Tive a sensação de que já sabia muito.
- E por isso - rematei -, não posso ir para casa. Tenho de voltar atrás e trazê-lo de volta. Os Anciãos não me disseram onde podia encontrar uma passagem; assim terei de perder-me na floresta até descobrir uma, como fiz no passado.
Ali, no meu mundo, com a fome saciada, o calor da fogueira e a minha irmã a meu lado, com o bebé sonolento no colo, fazer tudo aquilo já não me parecia tão possível como antes. Afinal, tinha sido Cathal a encontrar o rio; Cathal a atravessá-lo.
- Tenho de ir, Sibeal - acrescentei, vendo os seus olhos arregalados de espanto. - Não há mais ninguém que possa ajudá-lo.
Depois de um momento de silêncio, a minha irmã explodiu:
- Queres dizer agora, de imediato? Clodagh, não podes! Tens de ser tu a levar Finbar para casa! A mãe está desvairada de preocupação contigo. O pai nunca se perdoaria a si próprio se alguma coisa te acontecesse agora, depois de teres regressado em segurança. Tem estado, aliás, fora de si com a culpa de te ter julgado mal a respeito do duplo. E ainda há o problema de Illann...
- O melhor é contares-me tudo desde o início - disse-lhe, num tom mais severo. Se até Sibeal, a mais sábia e solene das minhas irmãs, balbuciava, como se do fim do mundo se tratasse, eu podia prever que género de recepção me aguardava se fosse para casa e lhes anunciasse os meus planos.
- Quando partiste - disse Ciarán -, o teu pai chamou-nos a ambos, a Conor e a mim, em busca de conselho. As experiências que tive no passado ensinaram-me que a melhor resposta a estas crises é dizer a verdade. Foi esse o conselho que dei ao teu pai. Sean foi falar com a tua mãe e explicou-lhe aquilo em que tu acreditavas
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a respeito do duplo e o motivo por que tinhas partido. Alguns achavam Que ao ouvir semelhante notícia, ela abandonaria de vez toda a esperança, uma vez que a perda do bebé já a debilitara gravemente, no corpo e na mente. Mas Aisling é feita de uma fibra mais rija Jo que parece. Embora temesse por ti, a notícia da tua missão deu-lhe coragem. Ela acreditou em ti desde o início; acreditou que, por motivos muito seus, as Criaturas Encantadas lhe tinham tirado o filho e que tu lhe trarias Finbar de volta. Para ela, foi um alívio saber que o bebé estava nas mãos delas, e não nas de algum rival político sem escrúpulos. Sean não tinha tanta certeza disso. E repreende-se a si próprio, como qualquer pai o faria, por ter deixado a filha correr um risco tão grande. Mas ganhou ânimo através de um contacto com a irmã, não há muito tempo.
A tia Liadan; irmã gémea do meu pai. Unia-os o mesmo laço que existia entre mim e Deirdre. Liadan revoltara-se contra os desejos expressos pelos Tuatha De; casara-se com um homem que ela própria tinha escolhido, um homem de fora, e levara o filho para longe de Sevenwaters. Era mais uma dessas histórias complicadas que abundavam na família. Sabia que havia partes dessas histórias que eu e as minhas irmãs nunca tínhamos ouvido. Ainda residia nelas alguma coisa sombria, secreta, ou uma reviravolta do destino que nunca fora esclarecida publicamente.
- Liadan apoiou a tua decisão - prosseguiu Ciarán. - Sean não nos contou exactamente o que ela lhe tinha dito, mas foi o seu conselho que fez com que ele percebesse que se enganara a respeito do rapto político, a respeito da conspiração, e que tinha sido injusto contigo ao recusar ouvir-te, Clodagh. Sean ficará alarmado e triste, se não voltares para casa hoje, com a criança.
Reparei que Ciarán não me estava a dar nenhum conselho, nem num sentido nem no outro.
- Sibeal pode levá-lo para casa - retorqui. - O tio, ou um outro druida, podem escoltá-la.
Ciarán fitou-me, com os estranhos olhos muito atentos.
- Ou podíamos enviar uma mensagem aos meus pais, dizendo que Finbar se encontrava junto dos Nemetons, ileso - acrescentei.
- O pai enviaria alguém buscá-lo de imediato, tenho a certeza.
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O que quer que façamos, temos de agir depressa, porque o leite não vai conservar-se fresco por muito tempo e Finbar é muito novo e precisa de ser alimentado com frequência. - A última parte era a mais delicada: - Mas tenho de ter tempo para me preparar e partir antes que eles cheguem. Sei que o meu pai tentaria impedir-me.
- Mas, Clodagh - disse Sibeal, agora mais serena -, como é que o farias? E porquê? Cathal é um guerreiro; sabe certamente cuidar de si.
- Mac Dara é uma criatura que não distingue o Bem do Mal
- expliquei. Não lhes tinha contado o que se passara com Becan e o fogo, apenas que o duplo se ferira e que eu o remendara com a ajuda dos Anciãos, devolvendo-o depois à mãe. Omitira uma grande parte da história, menos para poupar a minha irmã do que pela dor que a verbalização de certos momentos me provocava.
- Vai tentar vergar o filho à sua vontade. Quer transformar Cathal numa cópia de si próprio. É verdade aquilo que Willow nos contou nas suas histórias. Houve uma mudança no reino dos Tuatha De desde a última vez que este povo comunicou com a nossa família. O lugar tornou-se sombrio; os bons partiram para o mar. Não é justo que um chefe cruel como Mac Dara governe esse reino. Talvez não haja nada que possamos fazer quanto a isso, mas eu tenho de salvar Cathal. Ele só aí está por minha causa. Se eu não tivesse corrido em busca de Finbar, se não tivesse aceitado a ajuda de Cathal, se não tivesse gritado num momento crucial, ele ainda estaria a salvo.
Sibeal virou os seus olhos grandes e cheios de luz na minha direcção. Neles, havia uma pergunta.
- Amo-o - respondi simplesmente. - Pronto, já o disse. E tenho de ajudá-lo.
- Clodagh, isso seria... - a minha irmã hesitou.
- Perigoso? Eu sei.
- Seria mais do que perigoso. O mais provável era que não voltasse para casa.
Seguiu-se um silêncio. Ciarán olhou para as brasas da fogueira. Sibeal observou-me, com Finbar adormecido sobre os joelhos. Pensei em Cathal e lutei para conter as lágrimas.
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- Falei agora mesmo com Willow - disse-lhes, por fim.
Creio ter de fazer um talismã para Cathal, algo que simbolize
o amor desinteressado. Esse talismã terá um poder protector, porque representa um sentimento que as Criaturas Encantadas não são capazes de compreender. Depois, há que encontrar um portal. E, por fim, o mais difícil de tudo, Cathal e eu teremos de quebrar o feitiço. Mac Dara deu a entender que se tratava do mesmo feitiço que entrava na história de Willow: A entrada, um passo em frente, serás minha para sempre. E não consigo descobrir uma maneira de contrariar esse poder. Mac Dara está absolutamente determinado a ficar com Cathal. E ele é... Poderoso. Implacável. Sem escrúpulos. É forte disse, levantando o queixo. - Mas tenho de tentar.
- Vais mesmo tentar - disse Sibeal, num sopro. - É mesmo verdade que amas aquele homem estranho, desajeitado. Aidan parecia muito mais adequado.
- Eu gostava de Aidan. Era uma boa pessoa, apesar dos seus defeitos. Mas nunca o amei, não como amo Cathal. Digam-me uma coisa, Johnny já levou o corpo de Aidan para casa?
- Johnny encontrou-o na floresta - disse Ciarán, com uma voz grave. Aidan e os dois homens que o acompanhavam foram mortos pelo mesmo tipo de seta. Era de um fabrico que Johnny nunca tinha visto, mais um sinal de que forças sobrenaturais podiam estar envolvidas naquela sequência de acontecimentos. Aidan foi enterrado em Sevenwaters; Conor conduziu o ritual. Um mensageiro foi enviado a Whiteshore com a notícia. A respeito de Glencarnagh, ainda não existem respostas e o assunto provocou um grande conflito entre Sean e o marido da tua irmã. Na investigação que levou a cabo, Johnny não conseguiu provar de maneira conclusiva quem teria sido responsável pelo ataque. Por fim, visitou Illann e confrontou-o com a sugestão de Cathal de que ele estaria, de algum modo, envolvido. Illann negou com alguma veemência e exigiu um pedido de desculpas, que lhe foi negado. Em resultado disso, gerou-se um certo alvoroço entre os chefes de clã do Sul.
Parecia-me um cenário grave, com potencial para reacender as contendas territoriais que tinham infestado a região durante gerações e gerações.
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- É por causa disso que se convocou um conselho tão cedo?
- perguntei, pensando na pobre Deirdre, apanhada no meio de tudo aquilo.
- Illann e Deirdre encontram-se, neste momento, em Sevenwaters - disse Sibeal. - Os chefes de clã estão a tentar definir um tratado, mas desconheço pormenores. O pai anda sombrio, Illann zangou-se e Deirdre está furiosa contigo, Clodagh. Contou-me que tinha tentado contactar-te e que tu lhe negaste acesso à tua mente.
- Não tive espaço para ela - disse-lhe. - Contem-me, o que é que as pessoas têm dito acerca de Cathal?
- Falou-se muito dele quando desapareceu - respondeu Ciarán. - Era um mistério: para onde tinha ido, quem lhe pagava, como é que conseguira desaparecer sem deixar rasto? Ninguém parecia tomar em consideração a possibilidade de que o jovem não fosse inteiramente humano, ou que as suas razões para fugir de Sevenwaters não tivessem nada a ver com as disputas entre Lorde Sean e os chefes de clã vizinhos.
- Têm de contar ao meu pai que Cathal não desempenhou nenhum papel no rapto de Finbar, ou no ataque a Glencarnagh - pedi-lhes, fitando ora Ciarán, ora Sibeal. - Expliquem-lhe o que vos contei, que ele apenas tentou escapar às garras do pai e avisar-me acerca do conteúdo das suas visões. Certifiquem-se de que Johnny também fica a saber. Por favor.
- Clodagh - disse Ciarán tranquilamente, - a respeito deste assunto de Illann... Talvez possa esperar, não sei. De que modo precisamente é que Illann entrou nas visões de Cathal?
- Teria de ser ele a responder a essa pergunta - disse-lhe, sentindo um grande desânimo ao perceber que o meu tio devia acreditar, de algum modo, na culpa de Illann, ou não teria motivos para questionar-me sobre o assunto. - Na verdade, Cathal comentou que talvez o pai dele tivesse interferido nas suas visões, mostrando-lhe certos cenários apenas para semear a discórdia. Mac Dara pode ter tentado meter Cathal em sarilhos, para que ele fosse obrigado a deixar Sevenwaters e a aventurar-se sozinho na floresta.
Ciarán acenou, em concordância.
- com o tempo, com o treino certo, Cathal podia aprender a evitar essa interferência. A menos que, e até que, descubra o alcance
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das suas capacidades, temo que esteja em grande perigo. Tens razão, Clodagh; tens de apressar-te.
Olhei para ele, e Sibeal também.
- Obrigada - disse-lhe, em voz baixa. - Não tinha a certeza
de que apoiaria a minha decisão de partir. Não creio que Conor o fizesse e sei que o meu pai nunca o faria.
Memórias atravessaram os olhos escuros de Ciarán, memórias tristes e felizes.
- Não é a primeira vez que me vejo em desacordo com ambos a propósito de um assunto de foro pessoal - confessou. - Quando aconteceu no passado, a opinião deles prevaleceu. Tomaram a decisão errada; teve um custo amargo. Não permitirei que isso volte a acontecer, Clodagh. Se amas este jovem, tens de ir em seu socorro. Lamento não poder acompanhar-te; seria desaconselhável por muitas, muitas razões, e talvez um dia eu vos fale delas, a ti e ao teu Cathal. Mas posso mostrar-te onde se situa uma passagem e dar-te alguns conselhos úteis.
- Uma passagem? - perguntei, ofegante. - Quer dizer que o tio... - Não conseguia bem dizê-lo em voz alta.
De súbito, Ciarán tornou a ficar sombrio.
- Já não entro nesse reino há muito tempo - confessou.
- Agora, sou um dos irmãos; o meu caminho deu uma reviravolta e, há alguns anos atrás, decidi cumprir uma disciplina que exige que eu me prive de certos... certos dons, certos talentos que, no passado, cheguei a pôr em prática diariamente. Senti-me tentado; especialmente desde que o Senhor do Carvalho anunciou a sua presença
na floresta de Sevenwaters. Gosto tanto dos seus métodos como tu, Clodagh. Mas há um tempo para tudo, e agora não é altura de eu declarar guerra a Mac Dara. Se te acompanhasse, a nossa viagem podia assumir dimensões muito maiores e mais perigosas do que algum de nós estaria preparado para enfrentar.
Vendo que nem eu nem Sibeal desviáramos os olhos dele, fascinadas, Ciarán esboçou um sorriso tímido e acrescentou:
- Já chega. Temos decisões muito concretas para tomar. Se concordares, Sibeal e eu levaremos o bebé para baixo, para junto dos meus irmãos, e trataremos de enviar uma mensagem a Lorde
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Sean. Sibeal, peço-te que fiques nos Nemetons com Finbar até vir alguém recolhê-lo. Depois, podias voltar a casa e explicar ao teu pai aquilo que Clodagh nos contou a respeito de Cathal e a razão por que ela não regressou contigo. Imagino que me mande chamar e me dê uma valente descompostura. Ou talvez não. Ele sabe, como eu sei, pela triste experiência do passado, o que esta família já perdeu em virtude das maquinações dos Tuatha De. Não podemos perder-nos uns aos outros. - Ciarán olhou para mim. - Quanto a um talismã que simbolize o amor desinteressado, talvez não precises de fazer nenhum.
- Porquê? Ciarán sorriu.
- Regressar àquele mundo de sombras para salvar alguém, Clodagh, é uma prova de amor desinteressado de cortar a respiração. Penso que és o único talismã de que ele precisa.
Sibeal pegou na sua capa, segurando Finbar no outro braço com um desembaraço competente.
- Lembras-te das rimas, Clodagh? - perguntou-me, indecisa.
- Serás minha para sempre, e assim por diante? O poema continua depois disso. Esqueceste-te da história?
Por momentos, o meu coração parou.
- Fui chamada para fora do salão antes de Willow terminar respondi-lhe, num fio de voz. - O que foi, Sibeal? Qual é a última parte do poema? Como é que Serás minha para sempre não é o último verso? Para sempre é... para sempre.
- Estão a falar da história de Albha e Saorla? - perguntou Ciarán. - Oh, existem três ou quatro versões desse conto. Há sempre uma espécie de corolário depois de para sempre, que varia em cada versão. Por vezes, só entra no final do conto. Qual delas é que Willow contou, Sibeal?
Sibeal franziu o sobrolho, tentando lembrar-se, e eu cerrei os dentes de impaciência.
- Tinha qualquer coisa a ver com ondas - disse, por fim. E as ondas mãos humanas domarem era o último verso. É poético, mas pouco útil. Penso que domarem rimava com tornarem.
- Até velhos rivais amigos se tornarem, e as ondas mãos humanas domarem - concluiu tranquilamente Ciarán. - Pode ser interpretado de
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muitas maneiras. Agora, temos de ir. Ficarás em segurança se esperares por mim aqui, Clodagh. No interior da fronteira delimitada pelas pedras Ogham, somos protegidos pelas forças da natureza.
A minha irmã parecia tão pequena, ali de pé, com o bebé nos braços.
- Obrigada, Sibeal - disse-lhe, levantando-me para abraçá-la.
Já fizeste tanto por mim, e agora ainda vais ter de explicar aquilo
que me cabia a mim explicar. Tenho sorte por ter uma irmã tão solidária.
- Não tem importância, Clodagh - replicou, com um ar sério. - Espero que fiques bem. Procurar-te-ei na superfície das águas.
Enquanto esperava que Ciarán regressasse, tentei imaginar em que circunstâncias mãos humanas podiam influenciar uma coisa tão vasta e poderosa como o mar, e não fui capaz. A outra parte não foi difícil de interpretar. Num reino onde se diziam coisas como: Os da nossa espécie não falam com os da espécie dele, havia inimigos aos rodos. Mudar essa mentalidade parecia-me a missão de uma vida.
O meu tio demorou ainda algum tempo a regressar. Voltei a encher o odre num ribeiro ali perto e servi-me de algumas provisões da reserva de comida que havia no pequeno acampamento, arrumando-as cuidadosamente no saco. Lavei a cara e as mãos e mudei de roupa. Era um prazer voltar a vestir as peças familiares que Sibeal me trouxera - um dos meus vestidos preferidos, tecido em casa, roupa interior lavada e um xaile quente. Enrolei o vestido bordado, que tinha usado até ali, numa trouxa e deixei-o por baixo de uma árvore. Por fim, sentei-me tranquilamente, a pensar naquilo que me esperava, procurando reunir forças. O meu pensamento regressou à história de Firinne, detendo-se na tristeza e na força daquela jovem mulher. Se ela conseguira ser mais astuta do que Mac Dara, pensei, talvez eu também pudesse vencê-lo. Afinal, ainda havia um ténue fio do outro mundo na minha árvore genealógica.
Estava profundamente absorvida e não ouvi Ciarán aproximar-se, a não ser quando já subira até ao acampamento. Trazia o corvo, Fiacha, empoleirado no ombro. O pássaro tinha uma plumagem lustrosa e os olhos reluziam com um brilho sobrenatural. Senti um arrepio na nuca.
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- Uma mensagem seguiu agora mesmo, dirigida ao teu pai anunciou, pousando um pequeno saco junto da fogueira e sentando-se à minha frente, de pernas cruzadas e costas direitas, como uma criança. O corvo observou-me com o seu olhar penetrante.
- Obrigada.
Sentia-me pouco à vontade na presença daquele pássaro e subitamente tímida sem a companhia de Sibeal. O facto de conhecer a história de Ciarán não significava que conhecia o homem. Era meio-irmão de Conor, nascido em Sevenwaters depois de o pai deste, Lorde Colum, desposar a segunda mulher, que revelou ser algo mais do que aparentava. Esta fizera Ciarán desaparecer, como que por encanto, mas o pai encontrara-o e levara-o de novo para casa, onde foi criado ao abrigo dos Nemetons. As minhas irmãs e eu só tínhamos conhecido Ciarán quatro anos antes, quando ele viera ajudar o meu pai e Johnny a resolver uma contenda territorial com os Bretões. Parecera-me estranho, uma vez que Conor fora mais ou menos responsável pela educação de Ciarán e costumava visitar a nossa casa com frequência. Era mais um assunto que os meus pais abordavam com relutância; uma parte da história da nossa família ainda envolta em segredos.
- Falámos de talismãs - observou o meu companheiro.
- Creio não me ter enganado a respeito de a tua presença ser suficiente para proteger Cathal. Mas não será de mais levares isto também. - Ciarán abriu o saco e tirou um simples pedaço de cordel escuro. Nele, estava enfiada uma pequena pedra branca com um buraco no centro. - Isto é mais precioso para mim do que podes imaginar - confidenciou-me, seguindo o meu olhar. - Pertencia à irmã do teu pai, Niamh.
A sua voz alterou-se quando disse o nome dela e, naquele momento, o mistério aclarou-se no meu pensamento, tão simples que fiquei admirada por não o ter percebido mais cedo. Os seus olhos eram iguais aos da minha prima Fainne, olhos escuros, cor de amora, o legado da feiticeira. Tinham-nos contado que Fainne era filha de Niamh e de um segundo marido anónimo, alguém que a irmã mais velha do meu pai tinha conhecido e com quem se casara, muito longe de Sevenwaters. Era essa a história oficial. Se Ciarán era pai
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de painne, havia uma razão de peso para ocultar o facto: a sua união com Niamh seria proibida pelas leis do parentesco. Se Ciarán era o pai de Fainne, tinha perdido a sua única filha para as Criaturas Encantadas quatro anos antes. E há muito, muito tempo, tinha perdido Niamh. Resolvi não comentar.
- Leva-o - disse-me, estendendo-me o colar. - Ofereci-o uma vez e foi uma oferta do coração; era tudo o que eu tinha para oferecer. Niamh ofereceu-o à filha, que lhe era tão preciosa. com o tempo, veio de novo parar às minhas mãos. Quando encontrares Cathal, coloca-o à volta do seu pescoço. É uma recordação de que o amor dura mais do que os mais poderosos feitiços.
- Obrigada - disse-lhe. - Deve ser muito difícil desfazer-se disto. Farei o meu melhor para trazê-lo de volta, intacto. - Apontei para o outro objecto que ele tinha trazido: uma pedra cinzenta em forma de ovo. - O que é, tio Ciarán?
- Clodagh, aguardam-te vários desafios. Entrar talvez seja uma tarefa fácil. Encontrar Mac Dara pode não ser muito difícil, se ele não te considerar uma ameaça. Mas ter acesso a Cathal será complicado. Se Mac Dara pensar que o filho ainda deseja fugir do Outro Mundo, é improvável que queira que ele te veja. Mas deve ter agido sobre Cathal e pode lembrar-se de usar a tua presença como um teste. Se Cathal te vir e permanecer indiferente, ou se não te reconhecer, Mac Dara ficará a saber que tem o filho de volta, de corpo e alma.
Senti-me gelada.
- Está a dizer-me que, se eu pedir para ver Cathal e Mac Dara mo permitir, isso significa que Cathal já me terá esquecido?
- Talvez. Se há uma coisa de que tens de lembrar-te quando entrares nesse mundo é que, ali, nada é o que parece. Prepara-te para artimanhas, pusgles, enigmas. Lembra-te que o amor é a única verdade. Agora, suponhamos que consegues encontrar Cathal e que ele quer fugir. É possível que o teu próximo desafio resida na capacidade de Mac Dara de vigiar os teus passos, onde quer que vás. Uma criatura como ele é capaz de convocar o que lhe aprouver à sua bacia de visões. É capaz de seguir-te até aos lugares mais recônditos; de espiar os teus momentos mais íntimos. Escapar a um
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indivíduo que possui um poder como o dele é praticamente impôssível, a não ser que o próprio decida deixar-te partir.
- Havia um lugar seguro - comentei. - Um lugar que pertence aos Anciãos, protegido por uma vedação de espinhos. Não acredito que ele conseguisse ver-nos aí. E, quando entrei no pavilhão, ele não sabia onde estava Cathal, embora nos tivéssemos separado na floresta, não muito longe dali.
- Podiam abrigar-se no interior da cerca, é verdade - disse Ciarán, como se conhecesse o lugar. - Mas ele adivinharia o vosso paradeiro. Enviaria os seus escudeiros para vos esperarem à saída, logo a seguir à vedação. Os Anciãos não poderiam escoltar-vos até ao portal, sem se aventurarem no território de Mac Dara. Ficariam encurralados. Se eu pudesse acompanhar-vos, era capaz de esconder-vos até saírem para uma zona segura. Mas não vou entrar, Clodagh; ainda não chegou o momento. Leva-a e usa-a apenas quando precisares. - Ciarán passou-me a pedra em forma de ovo, uma coisa macia e fresca na minha mão. - Atira-a para o chão e terás onde esconder-te durante algum tempo. Não muito tempo; escolherás o momento com cuidado.
- Assim farei - disse-lhe, arrumando a pedra no saco e fazendo um esforço para não parecer admirada. Por muito dotado que o meu tio fosse como druida, não esperava que possuísse um objecto tão semelhante aos sortilégios de uma feiticeira.
- Mais uma coisa - disse Ciarán. - Eu nunca encontrei esse Senhor do Carvalho, mas a sua chegada a estas terras interessou-me. Ao longo destes últimos anos, estudei-o. Clodagh, corres um grande perigo. Não te atrevas a fazer nada se não tiveres perfeita consciência das consequências dos teus actos, não apenas para Cathal, mas também para ti. O teu pai ficará abismado por eu não ter tentado impedir-te.
- Eu sei que posso morrer. Tal como Cathal também sabia, quando decidiu acompanhar-me, que corria o risco de perder o seu futuro no mundo dos humanos. Os riscos são grandes.
- Podes morrer. Ou podes sofrer um outro destino. Mac Dara gosta de mulheres. Já te ocorreu que pode decidir guardar-te para si próprio?
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Não acredito que fizesse tal coisa - repliquei, e a ideia fezme estremecer de repugnância. - É verdade que teceu um comentário desse género, mas apenas para provocar Cathal. Não creio ser
o tipo de mulher que o interessa a esse nível.
- Talvez não sejas - retorquiu Ciarán. - Mas ele pode ter outros motivos. Segundo o que me contaste, passou anos a tentar atrair o filho para o Outro Mundo. Mac Dara ama esse filho com todo o amor de que os da sua espécie são capazes. Pode atacar-te apenas para demonstrar o seu poder, ou para castigar Cathal de alguma forma. É um ser perverso.
Enquanto Ciarán falava, um plano começou a esboçar-se no meu pensamento, um plano que podia garantir-me algum tempo a sós com Cathal, se eu tivesse coragem de pô-lo em prática. Senti uma certa relutância em falar dele. Se verbalizasse uma ideia tão escandalosa, era possível que a coragem me faltasse.
- É mesmo verdade que as Criaturas Encantadas não conseguem entender o amor desinteressado? - perguntei.
- Sem dúvida - respondeu Ciarán, e o seu rosto transformou-se numa imagem do sofrimento. - Não lhe encontram um objectivo. Para eles, o amor está ligado ao poder e à influência. Mac Dara dá valor ao filho porque através dele pode exercer um controlo no seu reino sobre as gerações vindouras. Valoriza Cathal como se este fosse o seu segundo ser: um ser mais jovem, mais fresco, mais enérgico. Um pai como ele esforçar-se-á por transmitir o seu conhecimento e os seus talentos; por impor ao filho a sua própria visão do mundo. É a experiência quem mo ensina. Pode ser difícil resistir-lhe, sobretudo se houver promessas de um poder incalculável, oferecido em jeito de recompensa. Mas esse poder tem um custo terrível.
- Então - concluí, num sopro, assustada com a velocidade com que o plano se definia no meu espírito, - ter um filho a quem passar o testemunho é o que Mac Dara deseja acima de tudo. E também espera que Cathal, por sua vez, tenha filhos.
Ciarán observou-me, em silêncio. Momentos depois, disse:
- Não deves fazer-lhe promessas que tencionas quebrar. Ele destruir-te-ia.
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- Não o farei - retorqui, embora o plano pudesse levar-me quase a esse extremo. Teria de ficar alerta e conservar a cabeça fria acontecesse o que acontecesse. Mesmo se Mac Dara me ferisse Oxalá tivesse força suficiente.
- Por todos os deuses - murmurou Ciarán, entre dentes.
- Quem me dera poder ajudar-te mais.
- Provavelmente, é melhor que não possa - obriguei-me a dizer. - Deixei Cathal ajudar-me e veja o que lhe aconteceu. Mas tenho mais uma pergunta a fazer-lhe.
- Pergunta, Clodagh.
- Esse feitiço, o verso... Se existem três ou quatro versões da mesma história, e os dois últimos versos diferem de versão para versão, como é que eu sei qual foi a que Mac Dara proferiu quando teceu o feitiço em torno de Cathal? Partindo do princípio que podíamos transformar velhos rivais em amigos e, de alguma forma, domar o mar, por muito impossível que isso pareça, Mac Dara podia contornar o problema, alegando que não era essa a versão que tinha usado, mas uma outra, em que a última parte era ligeiramente diferente. Serás minha para sempre, até as estrelas caírem do céu, e Eilis se voluntariar para fazer a costura. Podia ser qualquer coisa.
A minha tentativa de humor levou um sorriso ténue aos lábios de Ciarán.
- Se foi essa a versão que a velha mulher contou - disse ele,
- então é a versão correcta dos versos rimados. Willow deu-te a chave para desfazeres o feitiço. Parece-me que quis ajudar este seu irmão mais novo. O facto de o fazer de uma maneira cifrada, através de uma história, foi claramente para se proteger a si própria. A fúria de Mac Dara deve ser profundamente temida. Se a última parte do poema se concretizasse, ele seria obrigado a deixar partir o filho. Como é que uma velha mulher podia saber uma coisa dessas? Imagino que tenha havido testemunhas quando o feitiço foi lançado. Se uma contadora de histórias errante fizesse uma pergunta ou duas a essas testemunhas, que razões teriam para não lhe responder? Mac Dara tem, pelo menos, um ponto fraco: ao longo dos anos, habituou-se a subestimar as mulheres.
- Mas - protestei, sentindo dificuldade em assimilar tudo aquilo -, Willow contou essa história há muito tempo, muito antes
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de Cathal e eu irmos ao Outro Mundo. Como é que ela sabia que feitiço é que Mac Dara ia usar? E porque é que não se limitou a explicar a Cathal o perigo que ele corria?
Não estás a pensar, Clodagh. - Por momentos, Ciarán pareceu-me exactamente aquilo que era: um mestre do saber druídico.
O feitiço terá sido lançado há muito tempo, no dia em que Mac
Dará descobriu onde se encontrava o filho. E, desde esse dia, o encanto cercou o rapaz como uma maldição. Quem sabe se Willow ouviu falar dele? E, quanto a explicá-lo a Cathal, em que medida é que isso teria mudado a sua forma de agir? Será que, ao sabê-lo, deixaria de acompanhar-te na tua missão?
Eu sabia que ele teria ido à mesma.
- De qualquer modo, era uma ajuda, se ela nos tivesse explicado.
- Willow é uma contadora de histórias. Deu-te aquilo de que precisavas.
- Espero saber usá-lo. - com a ansiedade e o temor, o meu coração começara a bater mais depressa. - Agora, penso que devia pôr-me a caminho, se puder indicar-me onde fica o portal. Por favor, não dê ao meu pai demasiados pormenores acerca do que eu vou tentar fazer. Ficaria morto de preocupação.
- Traz tudo aquilo de que precisares. Eu levo-te até à passagem. Não viajarás completamente sozinha: Fiacha acompanha-te.
- Ciarán olhou para o pássaro com ar de ave de rapina que trazia
ao ombro e, depois, olhou para mim. - Ele pode conduzir-te, proteger-te e avisar-te - acrescentou. - E conhece o caminho de volta.
Dito isto, o corvo estendeu as suas asas negras, levantou voo do ombro do meu tio e pousou num ramo ali perto. A sua postura inquieta e o olhar penetrante diziam-me muito claramente: Vamos.
Pus o saco ao ombro.
- Estou pronta - declarei.
- Mais uma coisa - disse Ciarán, enquanto descíamos a encosta, por entre os vidoeiros. - Como referi, Mac Dara gosta de mulheres. O meu conselho seria abordá-lo num aparente espírito de conciliação. Pede que te devolva Cathal, uma vez que ele acharia suspeito que não o fizesses, mas fá-lo de uma maneira simpática.
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Deixa-o falar; encoraja as suas confidências. Talvez não seja assim tão diferente do filho como imaginas. Joga o jogo dele até onde te for possível. O meu palpite é que Mac Dara veja nisto uma oportunidade de testar Cathal e de ver se o filho já aprendeu a lição.
- Lição? - repeti, numa voz trémula.
- A lição do esquecimento - disse Ciarán. - Deves preparar-te para todos os cenários, Clodagh. Até para a eventualidade de o homem por quem vais arriscar tanto já não desejar ser salvo.

CAPÍTULO QUINZE

Despedi-me de Ciarán à entrada de um túnel sombrio que se abria entre dois rochedos, perto de uma nascente. Não consegui perceber se era o mesmo caminho por onde os Anciãos me tinham levado até à saída do Outro Mundo. Por vezes, o corvo voava à minha frente, parando com notória impaciência, à espera que eu o alcançasse, e tornando a levantar voo logo a seguir, sem me deixar alternativa a não ser correr atabalhoadamente atrás dele. Outras, parecia menos confiante e viajava empoleirado no meu ombro, com as garras afiadas a romperem-me o xaile e o vestido. Sem os archotes dos Anciãos, o caminho era escuro; o brilho ténue dos pirilampos, agregados aqui e ali no tecto do túnel, pouco fazia para tornar a viagem possível. Em certos lugares, via-me obrigada a apalpar o terreno com os braços estendidos, a roçarem pelas paredes. Os joelhos cedo se cobriram de nódoas negras das quedas que dei; num espinho de rocha, fiz um rasgão doloroso na perna esquerda. Os meus olhos ansiavam pela luz do Sol. Até a luz estranha e esbatida do Outro Mundo seria preferível àquela escuridão.
Parei duas vezes para descansar e forcei-me a engolir comida e água. Ali acocorada, na penumbra, com o olhar de Fiacha fixo em mim, a única coisa que eu queria era continuar e sair dali o mais depressa possível. Mas tinha de poupar forças. Ia precisar de todas as minhas capacidades quando chegássemos ao outro lado.
Havia obstáculos. A certa altura, vacilei à beira de um precipício, a milímetros de mergulhar no desconhecido. Recuando um passo,
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tacteei às cegas, na penumbra, até descobrir um caminho alternativo. Numa passagem estreita, a água escorria pelas paredes de rocha e reunia-se em poças por baixo dos meus pés; avancei acocorada equilibrando Fiacha, e saí com a saia a pingar. Algum tempo depois, entrei numa caverna pejada de teias de aranha de monstruosa espessura, as suas ocupantes invisíveis nos cantos escuros de onde pendiam aquelas redes pegajosas. Fiacha deteve-se para explorar uma racha com o bico; reparei que engolira algo. Fui dar muitas vezes a aparentes becos sem saída, vendo o meu progresso interrompido por barreiras de pedra intransponíveis. Sempre que isso acontecia, era necessário voltar a descobrir o caminho: aqui, uma fenda quase invisível, oculta por detrás de uma saliência grosseira. Fiacha saltou lá para dentro e eu encolhi-me atrás dele e rompi o xaile; ali, uma pequena abertura ao nível do chão, por onde passei com um movimento coleante, tipo enguia; a terceira vez, não havia passagem de todo, mas encostei a mão à parede rochosa e enviei um apelo silencioso aos Anciãos, pedindo-lhes que me guiassem, e.abriu-se uma pequena porta, suficientemente larga para eu passar.
Quando emergimos, por fim, na floresta do Outro Mundo, já anoitecia. Agora, era preciso encontrar o caminho para o pavilhão de Mac Dara. com alguma sorte, daria uma audiência nessa noite. Se eu soubesse jogar aquele jogo, ele aceitaria, pelo menos, receber-me.
Avancei por um bosque de árvores gigantes e antiquíssimas, de alguma forma semelhantes a carvalhos. Por baixo dos meus pés, estalavam folhas secas; aqueles antepassados da floresta tinham perdido quase toda a sua folhagem. Corria uma aragem fresca. Bagas murchas e ressequidas pendiam dos arbustos à minha volta. Uma neblina começara a encher a floresta, serpenteando por entre os troncos das árvores num bailado de tentáculos rastejantes. Naquela altura, os bosques que rodeavam os Nemetons enchiam-se de vida com os sons da Primavera, o canto dos pássaros, o zumbido dos insectos. As árvores cobriam-se com o verde resplandecente da nova estação. No mundo de Mac Dara, era Outono.
Ordenei calma a mim própria. Estaria pronta, acontecesse o que acontecesse. Fá-lo-ia mesmo se já tivessem passado anos e anos. Levava
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o anel de vidro verde, o colar, a pedra-ovo e Fiacha. E ainda tinha um plano, um plano que quase me enlouquecia de medo, mas a verdade, pensei, é que a simples ideia de enfrentar Mac Dara faria a maior parte das raparigas virar as costas e fugir. Talvez para sobreviver num sítio daqueles fosse preciso uma certa dose de loucura; a loucura de um homem capaz de sacrificar o futuro para salvar uma amiga; a loucura de uma mulher capaz de amar uma criança feita de galhos e de pedras.
Fiacha sabia mesmo o caminho. Segui-o pelos trilhos da floresta até à grande avenida que as Criaturas Encantadas tinham percorrido na noite em que Becan ardera na lareira. Preparava-me para entrar na clareira quando o corvo soltou um grasnido de alarme e recuou no ramo onde estava empoleirado, deixando que as sombras o engolissem. Encolhi-me junto do tronco.
Mais abaixo no caminho amplo, por baixo da arcada de ramos entrelaçados, os súbditos de Mac Dara aproximavam-se no seu cortejo imponente. As luzes das lanternas anunciavam a sua presença; as vozes estranhas e atraentes entoavam melodias alegres sobre o relvado, rindo e cantando. A música de uma harpa ressoava na floresta e um assobio acrescentava uma nota mais premente, que quase despertou nos meus pés a vontade de dançar. Os cascos dos cavalos não faziam barulho na erva macia; os grandes cães de caça cinzentos que avançavam ao seu lado não olhavam para a esquerda nem para a direita, apenas em frente. Vi o homem da coruja negra
- Fiacha mudou de posição no seu ramo - e a mulher que, por momentos, eu pensara que fosse Deirdre da Floresta vindo em meu socorro. Os seus olhos azuis deslumbrantes eram frios como a geada. Vi ainda o indivíduo da túnica de asas de borboleta e a mulher coberta de plumas cintilantes, lançando a cabeça para trás enquanto se ria de algo que o homem do lado lhe dissera. Não havia sinais de Mac Dara, nem de Cathal. Um novo medo entrou de mansinho no meu coração. Talvez tivessem partido, regressado ao Oeste de onde viera o Senhor do Carvalho. Ou mais longe ainda, para um lugar onde eu nunca os encontraria.
Esperei que os últimos cavaleiros do cortejo desaparecessem no fundo da avenida, com as lanternas bem erguidas, e olhei para Fia-
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chá. O corvo levantou voo; respirei fundo e segui-o. Percorremos a avenida verde em silêncio, embora o meu coração batesse com tanta força que temi que ressoasse como um tambor, anunciando a minha chegada. À entrada da clareira delimitada por pedras brancas, Fiacha voou para cima, para a copa de uma árvore, e deixou-se ficar, alisando as penas com o bico. Era evidente que só me acompanhava até ali.
- Formidável - murmurei, olhando para cima com um ar reprovador. O corvo ignorou-me. - Vê lá se te lembras de estar por perto quando eu precisar de ti.
Não havia maneira de saber se tinha ouvido ou compreendido. Por agora, eu estava definitivamente por minha conta.
Avancei entre as pedras brancas com o meu vestido simples e coçado e juntei-me aos membros reunidos do povo dos Tuatha De Danann. De cabeça erguida, caminhei em frente, direita ao pavilhão de Mac Dara. A cortina que dissimulava a entrada estava corrida e não havia vestígios de luzes no interior. Nem guardas à entrada. Caminhei em frente sem abrandar. Ninguém me observava propriamente, mas a multidão separou-se para me deixar passar.
À entrada do pavilhão, hesitei. Da última vez, o Senhor do Carvalho tinha saído para me receber. Agora, as cortinas de seda permaneciam corridas. Os aposentos de Mac Dara pareciam desertos. Mas tinham-me dito que esperasse armadilhas. Aclarei a garganta. Faria um esforço para que a minha voz soasse confiante e cortês.
- Sou Clodagh, filha de Sevenwaters! - chamei. - Procurq, uma audiência com o Senhor do Carvalho!
Fez-se um silêncio. Atrás de mim, no relvado a céu aberto, as gentes do Outro Mundo abafaram as suas conversas. Depois, as cortinas afastaram-se e Mac Dara surgiu à entrada, olhando-me dos pés ( à cabeça, sem sorrir. Atrás dele, o pavilhão continuava às escuras.
- Não há audiência esta noite - declarou, numa voz neutra.
- Não tomarei muito do vosso tempo, meu senhor - repliquei, forçando-me a descair numa pequena vénia. - Quero ver Cathal. Dizei-me onde posso encontrá-lo e não precisarei de incomodar-vos mais.
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O olhar de Mac Dara pareceu-me tão vazio enquanto ali se demorou, a olhar para mim, que comecei a suspeitar que estivesse sob a influência de uma erva potente ou de um cogumelo, desses que nos fazem mergulhar num transe. Ou talvez eu tivesse interrompido uma Visão. Por fim, disse-me:
- Entra - e levou-me para dentro.
A lareira estava extinta; as velas, apagadas. O lugar mergulhara numa atmosfera sombria e viscosa. Algo de errado se passava. A única luz que havia atravessava as paredes de seda, vinda das lanternas lá de fora. Essa luz iluminou o rosto de Mac Dara, pálido e engelhado, com os olhos escuros afundados nas órbitas. Apontou para um dos bancos com almofadas e sentou-se no outro, esticando as pernas compridas.
- Devia oferecer-te uma bebida - disse-me, com um ar vago, olhando de relance para a mesa pequena.
A mesma lareira, o mesmo jarro, os mesmos copos... Vi tudo outra vez: Becan a cair, as chamas erguendo-se para o levar; ouvi o meu próprio grito de angústia.
- Não é preciso - disse-lhe. Não conseguia olhar para Mac Dara sem ver Cathal. Eram tão parecidos... Havia uma terrível tristeza no rosto de Mac Dara e nele vi Cathal quebrado, vencido, desesperado, sozinho algures lá fora. - Meu senhor, passa-se alguma coisa?
Ele fitou-me, na penumbra.
- Porque é que estás aqui? - perguntou.
Tinha de cumprir o plano; não podia permitir a mim mesma ter pena daquele homem que fizera coisas inconcebíveis.
- Não sei se vos lembrais de mim - disse-lhe. - Vim até aqui com o vosso filho e vós fizestes com que ele ficasse. Chegou a altura de ele regressar. Vim buscá-lo.
Mac Dara levantou-se e começou a andar, inquieto, à volta do pavilhão, com o manto negro a esvoaçar atrás dele como um rasto de fumo.
- Já o deixaste há muito tempo - retorquiu. - Porque é que te preocupas agora? Devias ter casado com um bom rapaz da tua espécie e ter tido uma ninhada de filhos.
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- Meu senhor, eu parti daqui num dia e voltei no outro, segundo a contagem dos humanos. Disseste há muito tempo. Quantos ciclos lunares passaram no vosso reino desde que parti? Não me fales em anos, incitei-o.
- Recorda-me - disse o Senhor do Carvalho -, em que estação do ano é que nos honraste com a tua presença?
Como se alguma vez se pudesse ter esquecido do dia decisivo em que conseguira finalmente que o filho atravessasse a sua porta.
- Na Primavera - respondi.
- E agora é Outono, como deves ter reparado. Não deves ter perdido assim tantas capacidades que não consigas contar sete ciclos lunares, filha de Sevenwaters. Ou imaginaste que tivesse passado mais tempo? Tempo suficiente para que a sua amiguinha fosse completamente varrida da memória do meu filho? Era isso que temias?
Senti a boca seca.
- Sabia que era uma possibilidade - respondi. - Foi por isso que voltei para trás e regressei de imediato. Meu senhor, eu espero que Cathal esteja bem. - Fiz um esforço por conservar a voz firme. - Bem de corpo e alma. Não o vi acompanhar a vossa corte esta noite.
Mac Dara fez uma careta. Deteve-se ao pé da mesa, encheu um copo e ali ficou, parado, de cabeça baixa, a olhar para o copo.
- Isto não pode ser o que parece - comentou. - O meu filho não se ligaria a uma mulher burra. Qual é o teu verdadeiro objectivo ao vires até aqui?
Porque é que ele não me dizia que Cathal estava bem? Será que acontecera alguma tragédia? O plano. Eu tinha de cumprir o plano.
- Em primeiro lugar - obriguei as palavras a saírem -, gostaria de agradecer-vos por terdes permitido que, no passado, eu saísse deste lugar em segurança e que levasse o meu irmão bebé comigo. Sei que não éreis obrigado a fazê-lo. Tenho uma dívida de gratidão para convosco. Os meus pais ficarão loucos de alegria ao ver Finbar.
Mac Dara fixou os seus olhos negros em mim.
- E, no entanto, nem sequer perdeste um momento a entregá-lo tu própria, isto se estiveres a dizer a verdade a respeito de teres regressado de imediato. Quem é que o levou para casa?
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-? A minha irmã, que por acaso estava na floresta quando eu saí. - Tinha de passar para outro assunto; não queria ver Sibeal envolvida naquela conversa. - Por isso, agradeço-vos em nome dos meus pais pela vossa generosidade. É uma prova de que a boa vontade entre a família humana de Sevenwaters e o vosso povo ainda não se extinguiu por completo, apesar da partida daqueles que a minha família conhecia melhor do que vos conhece a vós.
Um sorriso glacial despontou-lhe no rosto.
- Não me achaste tão generoso da última vez que nos encontrámos.
- Não o nego. Fiquei horrorizada com o facto de vos livrardes do duplo sem uma única hesitação. Odiei aquilo que fizestes para atrair Cathal a este mundo.
- Referes-te ao ataque à herdade do teu pai, no Sudoeste? - perguntou Mac Dara despreocupadamente, fazendo-me ficar de queixo caído. - Consideraste esse gesto excessivo? É verdade que foi um belo incêndio. Um espectáculo de arromba, diria eu. E cumpriu o seu objectivo. Juntamente com o desaparecimento oportuno do teu irmão, obrigou Cathal a fugir de Sevenwaters antes que a sua presença causasse mais estragos. Coisa que acentuou a sua culpa aos olhos de Lorde Sean, como eu já tinha previsto. O meu filho partilhou a sua Visão contigo, não foi? Aquela em que um certo membro da tua família aparece a uma luz menos favorável? Eu tinha a certeza de que Cathal se sentiria no dever de avisar a sua amiguinha. Não olhes assim para mim, rapariga.
- Vós... - respirei, ofegante. - Foi tudo obra vossa. Deitastes fogo a Glencarnagh. Uma casa encantadora...
- As casas podem ser reconstruídas. Até os duplos podem ser refeitos, segundo ouvi dizer.
- Morreram pessoas naquele incêndio - exclamei, escandalizada. A sua resposta tinha sido tão casual; tão negligente. Tinha falado da morte de Aidan exactamente no mesmo tom. - Foi completamente desnecessário, mesmo no vosso esquema mental. Nessa altura, Cathal já tinha partido...
Obriguei-me a parar. Estava ali para apaziguar o Senhor do Carvalho, não para questionar os seus actos.
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- Meu senhor - prossegui -, vim aqui precisamente pela razão que já vos apontei. Amo o vosso filho. Quero-o de volta. Peço-vos que tenhais em consideração os meus sentimentos e os de Cathal e que nos deixais ficar juntos. Ele nunca quis esta vida. Tudo o que deseja é regressar a Inis Eala e ser um guerreiro. Ter uma família.
- Eu sou a família dele. - A afirmação era definitiva, absoluta.
- Amais o vosso filho. Eu compreendo isso. Sei o que o meu próprio pai sentiu quando Finbar nasceu: que o mundo inteiro tinha mudado. É um laço muito forte. Mas um filho não pode amar o pai se esse pai lhe negar o futuro que ele deseja ter, meu senhor. E se Cathal nunca concordar com a vossa maneira de pensar? - estava a pisar terreno perigoso; inspirara-me naquilo que vira no rosto de Mac Dara, à entrada: uma espécie de desespero. - E se ele não for simplesmente talhado para ser um príncipe dos Tuatha De?
Mac Dara olhou-me directamente nos olhos.
- Estás a desperdiçar o meu tempo - declarou.
- Tendes medo de responder às minhas perguntas? Interiormente, tremi de medo.
- São irrelevantes. O meu filho está aqui. Pisou o chão dos meus aposentos. Isso significa que terá de passar o resto da sua vida no meu reino. Não existe nenhum feitiço que seja suficientemente forte para quebrar esse. Nenhum inimigo com poder suficiente para me enfrentar. Certamente não serás tu, rapariga, por muito corajosa que sejas. Talvez "imprudente" fosse o termo mais adequado. Segue o meu conselho. Vai para casa, encontra um pretendente que Lorde Sean aprove e vive o resto da tua vida.
Respirei fundo.
- É exactamente isso - disse-lhe. - Eu amo Cathal e apenas Cathal. É ele o homem com quem quero passar a minha vida. É ele o pai que eu quero para os meus filhos. Não terei outro. Não deveis rejeitar as minhas palavras como a loucura de uma rapariga, meu senhor. Eu não quero um pretendente escolhido pelo meu pai. Quero o vosso filho.
Vi-o nos seus olhos enquanto eu falava: uma centelha, uma faísca de interesse. Mac Dara era rápido. Tinha percebido a mensagem que eu queria que ele ouvisse.
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- E se ele não te quiser? - perguntou.
- Seja o que for que Lhe tenhais feito - respondi, contendo as lágrimas -, pode ser desfeito. Acredito nisso. Vejo que estais infeliz. Desiludido. Talvez seja porque o vosso filho foi mais resistente do que pensáveis.
- Isso não te diz respeito - retorquiu, e os seus olhos negros fixaram-se em mim. - Sabes que não podes tê-lo. Sabes quem eu sou e que poder exerço.
- Levastes muito tempo a recuperá-lo - argumentei, sem conseguir deter-me.
Ele sorriu de novo, tenuemente.
- O meu filho é forte - declarou. - Teria menos consideração por ele se não me tivesse enfrentado, se não tivesse conseguido escapar, se não tivesse sido mais astuto do que eu. Teria menos consideração por ele se se vergasse facilmente à minha vontade. Mas não vai sair daqui.
Deixei as lágrimas correr.
- Já sabia que recusaríeis - disse-lhe, limpando os olhos. Cada palavra teria de ser escolhida para contribuir para o meu plano.
- Mas... é muito difícil. Se não puder ter Cathal, nunca me hei-de casar. É o único homem do mundo para mim. E gela-me o coração imaginar um futuro sozinha, sem marido. Não suporto a ideia de nunca vir a ter filhos.
Momentos depois, falou:
- É muito fácil ter crianças. E tu és uma mulher graciosa, à tua, maneira. Não haverá falta de interessados, imagino eu.
Vi nos seus olhos que Mac Dara providenciaria de boa vontade esse serviço.
- Eu quero ter uma criança, quero muito - sussurrei. - Mas não uma criança qualquer. Quero uma criança dele. O filho dele.
- Que seria naturalmente o meu herdeiro a seguir a Cathal
- disse Mac Dara. - Oh, és muito espertinha.
Tinha identificado a minha estratégia como se eu fosse transparente. Espertinha? Comparada com ele, eu tinha a subtileza de um recém-nascido.
- Obrigada - respondi, numa voz macia, continuando a jogar o jogo, uma vez que não tinha outro plano. - Vós sabeis o que eu
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quero. Quero que Cathal seja meu marido, para o resto da minha vida. Quero que ele viva no meu mundo. Quero que nós criemos os nossos filhos juntos.
Era fácil ser convincente porque o meu coração vivia naquelas palavras.
- Sabes que isso não vai acontecer - disse Mac Dara. - Mas talvez haja espaço para um compromisso. Estarias disposta a isso? Terias um filho de Cathal sabendo que não podiam ficar juntos? Sabendo que esse filho só poderia ser teu até ao seu sétimo aniversário? Porque eu não concordaria com um plano desses, a não ser que tivesse a certeza de que o filho do meu filho atravessaria a fronteira deste mundo quando estivesse pronto a ser treinado nos costumes da sua espécie. E se criasses o teu filho e, depois, quando chegasse o momento, sentisses que não eras capaz de desfazer-te dele? Um dilema dessa natureza seria o teu fim. Além disso - acrescentou, momentos depois -, o mais provável era teres uma filha.
Levantei o queixo e endireitei os ombros.
- Dito por vós, parece-me uma troca muito desequilibrada retorqui. - Não esqueceis aquilo que eu vos daria. Seja qual for a vossa opinião acerca da humanidade, deveis considerar que o meu sangue é das linhas mais nobres que existem em Erin. Não só represento a linhagem dos chefes de clã de Sevenwaters, como trago comigo o sangue dos Anciãos, que corre na nossa família há muitas gerações. - Mac Dara silvou em voz baixa; talvez a última parte tivesse sido um erro. - O meu filho possuiria não só uma ascendência humana sem mácula, como o poderoso sangue dos Tuatha De, transmitido por Cathal - acrescentei. - Imaginai o que uma criança dessa natureza poderia vir a ser. Herdaria tanto os vossos notórios talentos no campo da magia, como a sabedoria e a força da linhagem humana de Sevenwaters. com o tempo, podia tornar-se um chefe único.
Mas não no teu reino. Certificar-me-ia disso.
O Senhor do Carvalho esvaziou o copo. Eu tremia de nervos, com as mãos enclavinhadas uma na outra e as palmas a suar. Não conseguia imaginar qual seria a sua resposta
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- Deixa-me esclarecer uma coisa. - Os olhos negros fitarame, - Estás a sugerir que eu deveria substituir Cathal? O meu próprio filho?
- Não, meu senhor. Mas, mesmo que Cathal se tornasse precisamente aquilo que queríeis que ele fosse, presumo que ainda daríeis valor a um neto. Não quero entregar-vos a minha criança. Se o fizesse, não seria uma boa mãe. Mas quero ver Cathal e quero um bebé dele. Ter essa criança durante sete anos é melhor do que nunca chegar a tê-la.
- Surpreendes-me de verdade - disse Mac Dara, e eu senti um lampejo de esperança. - Sou obrigado a confessar que aprecio o teu estilo. Supondo que eu concordava com isto; supondo que eu dizia que podias ter uma noite com o meu filho, uma noite apenas, para fazeres aquilo que precisas de fazer. Ainda haveria um impedimento.
- Oh? - tentei fazer uma voz calma.
- Um homem não pode pôr uma criança no ventre de uma mulher, por muito que esta o queira, se não a desejar - disse Mac Dara. - Já observaste um garanhão ou um carneiro quando as fêmeas estão com o cio? O membro deles ergue-se de excitação; o corpo prepara-se para a fricção de uma forma drástica. O mesmo se passa com os homens, embora o teu rubor me diga que não estás habituada a falar abertamente destes assuntos. E, no entanto, aqui estás tu, a pedir-me para partilhar a cama do meu filho esta noite. Não tens medo, virgenzinha recatada como és? Tens a certeza de que não estás a mentir-me?
A simples veemência do tom era uma ameaça. Aclarei a garganta.
- É claro que estou nervosa. Nunca me deitei com um homem. Mas quero fazê-lo. Esta noite. Se não puder levar Cathal comigo para casa, não ficarei aqui mais tempo do que devo.
- Não estás a perceber o principal - disse Mac Dara, numa voz neutra. - Ele não te quer. Ele não quer ninguém. Pensas que eu não tentei, oferecendo-lhe mulher atrás de mulher ao longo dos vários meses em que ele aqui esteve? Pensas que não fiz tudo o que pude para quebrar aquela barreira de reserva? Ofereci-lhe uma rapa-
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riga moldada à tua imagem. Cathal foi-lhe tão indiferente como a todas as outras. E tu não és propriamente uma perita na arte da sedução. A insuportável verdade é que o meu filho não está, simplesmente, à altura da tarefa. Se o que pretendes é ter uma criança, o melhor é deixares que ta dê.
Mac Dara deve ter-me visto a tremer; deve ter sentido o terror na minha voz.
- Eu quero um filho de Cathal - repliquei. - Quanto à sua capacidade de... desempenhar a função... lidarei com isso quando estivermos os dois sozinhos. E gostaria que não me incomodásseis nesse momento. Que não me vigiásseis. Uma mulher não gosta de ser espiada na sua intimidade.
As sobrancelhas de Mac Dara arquearam-se subitamente. Naquele momento, ficou dolorosamente parecido com o filho.
- Ah, estás a impor condições? - perguntou, numa voz lenta e arrastada. - Então, vou certificar-me de que as minhas são absolutamente claras: no seu sétimo aniversário, o teu filho será meu. E tu dar-mo-ás de livre e espontânea vontade.
Senti o coração a bater mais depressa. Encontrar as palavras certas era o mesmo que tentar equilibrar-me sobre um fio. Não deves fazer-lhe promessas que tencionas quebrar, dissera-me Ciarán. Ele destruir-te-ia.
- Se eu conceber um filho no encontro desta noite - declarei,
- dar-vos-ei esse filho quando ele fizer sete anos. Prometo.
Se as Criaturas Encantadas não compreendiam o amor desinteressado, Mac Dara nunca sonharia com a possibilidade de Cathal querer, poder e desejar entusiasticamente fazê-lo e, apesar disso, ser capaz de controlar o seu ímpeto para bem do nosso futuro juntos. Estava a contar com isso. Sentia o ventre contraído de apreensão. Se me enganasse, deitaria tudo a perder.
- No encontro desta noite, ou no de amanhã à noite - retorquiu Mac Dara, cortante como uma lâmina. - Porque é essa a outra condição. Se o meu filho não cumprir, se for incapaz de deitar-se contigo esta noite, amanhã serás minha. Desse modo, terás duas hipóteses de ter uma criança. O acordo não é pouco generoso. Se for uma rapariga, como tem sido uma grande parte da minha proge-
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nitura, poderás guardar a tua filha sem quaisquer condições. Se não conceberes, podes voltar a casa e esqueceres tudo o que se passou. Não serás pura na tua noite de núpcias, mas parece-me que isso não te incomoda.
Os seus lábios torceram-se num sorriso que era o eco do sorriso mais sardónico de Cathal.
Inspirei fundo, trémula.
- Se aceitardes as minhas condições, concordarei com as vossas - declarei.
Se alguma coisa corresse mal, se eu fosse obrigada a deitar-me com aquele homem horrível, a minha vida ao lado de Cathal seria corrompida para sempre por essa memória. Se tudo corresse como eu tinha planeado, prometia a mim mesma que nunca mais voltaria a correr riscos. Dedicar-me-ia a uma vida a remendar as camisas do meu marido e a cozinhar-lhe sopas substanciais.
- Tereis de deixar-nos sozinhos esta noite - lembrei-lhe.
- Sem espiar. Sem procurar a Visão. Sem entrar no nosso quarto. Será exactamente como uma noite de núpcias: privado.
Mac Dara riu-se.
- Receio que te desiludas profundamente. Mas compensaremos amanhã à noite, prometo. Quanto a espiar, não darei nenhuma espreitadela. Duvido que aconteça alguma coisa que valha a pena ver.
- Quero a vossa palavra. E quero ter a certeza que me deixareis voltar a casa em segurança, no fim.
Mac Dara fez um ar de espanto, como se fosse extraordinário que existisse alguém no mundo capaz de considerar que a sua palavra era algo que valia a pena ter.
- Dou-te a minha palavra, então - afirmou. Sem espiar. Mas terei de deixar os guardas à porta. Não confio em ninguém, nem sequer naqueles que parecem demasiado fracos para constituir uma ameaça. Quanto ao resto, não me importo de passar uma noite contigo para conceber a criança, mas não encontro nenhuma razão por que quisesse reter-te aqui. Vamos?
Ele conduziu-me para fora do pavilhão. Já escurecera - uma noite sem Lua - e a extensão relvada onde ainda há pouco os súb-
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ditos de Mac Dara se tinham reunido estava completamente deserta. Uma brisa gelada cobria a erva ressequida de espirais de folhas mortas. Perguntei-me se a resplandecente companhia se deslocara para outro lugar, assim que se tornara claro que sua senhoria não desejava entretê-los naquela noite. Ou talvez o tempo me estivesse de novo a pregar partidas e horas se tivessem escoado enquanto eu apresentava o meu caso. Fiquei feliz por não ter de suportar os olhares incómodos daquele povo. Sentia-me transparente, com um turbilhão tão grande de sentimentos dentro de mim que só podiam ser visíveis. Mac Dara devia saber que eu planeava enganá-lo. Como não saberia? Estaria eu a caminhar para a boca do lobo? Inexplicavelmente, já nada era importante. A única coisa que me interessava é que, daí a pouco, eu voltaria a ver Cathal.
Não nos afastámos muito. Mac Dara levou a lanterna suspensa do lado de fora do pavilhão e ergueu-a enquanto atravessávamos o círculo de pedras brancas e percorríamos um caminho sinuoso, ladeado por espinheiros. Olhei discretamente para a esquerda e para a direita, para trás, por cima do ombro, e para cima, para as sombras escuras das árvores, perguntando-me se Fiacha faria uma aparição e se Mac Dara acharia o pássaro suspeito. Não existe nenhum inimigo com poder suficiente para me enfrentar, dissera o Senhor do Carvalho. E Ciarán tinha dito: Há um tempo para tudo, e agora não é altura de eu declarar guerra a Mac Dara.
- Aqui.
Mac Dara parou de uma forma tão abrupta que choquei contra ele. Quando estendeu a mão para me segurar, fiz um esforço para não me encolher e recuar.
- Onde? - perguntei, olhando à minha volta sem ver nada que se parecesse com uma habitação ou um abrigo.
O Senhor do Carvalho apontou para a frente. O trilho contornava uma parede de rocha coberta de roseiras bravas. Numa curva dessa parede, a lanterna iluminou um espaço mais escuro: a entrada para uma gruta. Algo se moveu. Estremeci e o medo alterou-me a respiração. Uma figura encapuçada emergiu das sombras; vi o brilho de uma lança numa mão com manopla.
- Está tudo em ordem, meu senhor - disse uma voz masculina.
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- Ela pode entrar - disse Mac Dara. - Não os incomodem antes de amanhecer. Avisem-me se houver algum problema.
- Sim, meu senhor.
O homem recuou. Via agora que uma segunda figura, vestida de maneira idêntica, guardava a outra ponta da entrada.
- Submeteis o vosso próprio filho a uma vigilância armada? perguntei. - Que temeis?
- Estás a perder o teu tempo - disse Mac Dara. - Se queres aquilo por que vieste, tens de deitar mãos à obra. Entra.
- Lembrai-vos daquilo que vos disse: Não quero ser espiada. Deuses, não conseguia parar de tremer. Cathal estava ali dentro,
tão perto. Sentia o coração a explodir-me no peito.
- Duvidas da palavra de Mac Dara?
Diria, pelo tom de voz, que ele estava a sorrir. Momentos depois, virou-me as costas e desapareceu, levando a lanterna consigo.
Os meus olhos demoraram algum tempo a adaptar-se à escuridão. Por fim, entrevi uma luz trémula no interior da caverna. Ignorando os guardas, encostei a mão à parede para me guiar e entrei.
Uma vela ardia num nicho de rocha, a escassos passos dali, e uma outra sobre uma mesa pequena. As duas chamas incertas iluminavam um espaço mais parecido com a cela de um druida ou de um estudioso do que com a habitação de um príncipe, ou até uma prisão. A cama, um catre estreito, parecia dura; aos seus pés, havia um cobertor, meticulosamente dobrado. O quarto, sem lareira, era frio. À frente de uma mesa de pedra, havia um banco. Era aí que Cathal estava sentado, de costas para mim, com um pergaminho estendido à sua frente, e uma pena e tinteiro à direita, sobre a mesa. Estava vestido de preto, como o pai.
- Vai-te embora - disse-me, sem se virar.
- Cathal - murmurei, num fio de voz trémulo. - Cathal, estou aqui.
Parte de mim queria correr para ele e abraçá-lo. A outra parte, mais sensata, prendia-me ao lugar onde me encontrava.
Por instantes, o tempo de um sopro, Cathal ficou perfeitamente imóvel. Dir-se-ia feito de pedra. Depois, exclamou:
- Maldito seja o meu pai. Não consegue imaginar nada de novo? Eu disse para saíres.
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Fazia-me lembrar o Cathal do início da Primavera, o Cathal dos comentários cruéis e depreciativos que tanto me irritavam.
- Cathal. Vira-te e olha para mim.
Vi-o encher o peito de ar antes de se mover, como se precisasse de ganhar coragem. Talvez tivessem passado por ali muitas mulheres que eram parecidas comigo, que falavam como eu, que afirmavam ser Clodagh de Sevenwaters, regressando para vir buscá-lo, como prometera. Por fim, virou-se, levantou-se e olhou-me nos olhos.
- Vai-te embora - ordenou. - Estás a fazer-me perder tempo.
Cathal estava com um aspecto miserável; parecia ter envelhecido anos. Sombras profundas cercavam-lhe os olhos e o rosto cobrira-se de rugas de amargura. Emagrecera muito; já não era o guerreiro esguio e saudável que combatera com tanto engenho e intuição no pátio de Sevenwaters, mas o fantasma lívido e amargurado desse homem. Enchi-me de pena dele.
Atravessando o recinto, sentei-me na beira da cama dura.
- Então, continuarás a perdê-lo até de manhã - retorqui.
- Porque foi esse o tempo que me foi acordado pelo teu pai, nem mais nem menos, e não planeio voltar a casa sem fazer o melhor uso do pouco que ele me dá.
Esforcei-me por falar de uma maneira descontraída. Vê-lo naquele estado confrangia-me e não conseguia afastar a angústia da minha voz.
- Cathal - disse-lhe -, no nosso mundo, o mundo humano, só passou um dia desde que te deixei nos aposentos do teu pai. Lamento que para ti tenha passado tanto tempo. Pensei que me conhecias o suficiente para saberes que eu ia voltar, por muito que me demorasse.
Tinha de ser cuidadosa, muito cuidadosa. Não acreditava, nem por um segundo, que Mac Dara renunciasse à oportunidade de nos observar e, se pudesse, de ouvir cada palavra do nosso diálogo. Um homem como ele não dava qualquer valor às promessas que fazia.
- Hum - murmurou Cathal, cruzando os braços e encostando-se à parede, de tal modo que o seu rosto ficou mergulhado nas sombras. Os olhos negros observavam-me atentamente. Sobre
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a mesa, ao lado dos instrumentos de escrita, algo emitia um brilho ténue. Não era uma lanterna; era um objecto liso que eu não conseguia identificar do sítio onde estava. Também vi um almofariz e um pilão e hastes de milefólio num pote. Será que o filho de Mac Dara se entregara às artes da adivinhação? Deu-me ânimo saber que se tinha empenhado numa actividade, pois significava que não ficara sentado no escuro, sozinho com os seus pensamentos. Embora me parecesse destroçado, não fora ainda vencido.
- Como é que posso provar-te que sou mesmo eu? - perguntei-lhe. - As marcas que trago no rosto, do dia em que atravessámos o rio de barco e vimos Aidan a desaparecer no nevoeiro, atrás de nós? As queimaduras que fiz nas mãos ao tentar salvar Becan? Ou deverei cantar a canção?
- Não! - vociferou. Vi que se recompunha, e depois disse-me, numa voz mais serena: - Não és diferente das outras. Se não fores uma mulher que o meu pai desencantou, mudada pelas suas artes para ser parecida com ela, és um fantasma dos lugares recônditos do meu pensamento. Um sonho enviado para me atormentar. Quantas vezes terei de dizê-lo? Não vou jogar este jogo.
- Não é o jogo que tu pensas - respondi, com doçura.
- Então o que é? Nunca me libertarei deste lugar; nunca me libertarei dele. Se fosses mesmo Clodagh - a voz quebrou-se-lhe quando disse o meu nome -, e se tivesses falado com aquele homem antes de vires ter comigo, saberias que ele nunca me deixará partir. Faz parte do feitiço, não é? Eu soube o que seria de mim no momento em que ouvi aquela velha mulher contar a sua história.
- Havia uma lição em cada uma das três histórias - afirmei. Era melhor ter cuidado com o rumo da conversa, se Mac Dara nos estava a ouvir. - Todas elas ofereciam pistas. Respostas. Se eu as tivesse identificado, teria impedido que viesses até aqui, quanto mais que atravessasses a porta do pavilhão do teu pai. Até na história ingénua das guerras entre dunchauns havia uma mensagem.
Girei o anel de vidro verde no dedo e notei que o olhar de Cathal se intensificara. O objecto em cima da mesa brilhou, por momentos, com mais fulgor e esmoreceu.
- O que é isso? - perguntei.
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- Estás cega? É um espelho. Como único filho de Mac Dara, sou obrigado a zelar pela minha imagem. Não posso deitar um manto velho qualquer sobre os ombros.
Senti um sobressalto peculiar. Cathal sabia quem eu era. Apesar de toda a arrogância exterior, depreendia-se da sua escolha de palavras, dos seus olhos, embora tivesse tido o cuidado de disfarçar o brilho do reconhecimento. Tivera esse cuidado porque acreditava, tal como eu, que Mac Dara observava cada movimento, ouvia cada palavra. Talvez me tivesse reconhecido no momento em que eu tinha entrado, quando estacara ao ouvir o som da minha voz.
- É assim que zelas pela tua imagem? Não és muito eficiente. Porque é que não me deixas, ao menos, cuidar-te do cabelo? Parece que já não vê um pente desde a Primavera passada.
Levantei-me e aproximei-me da mesa.
- Não! - exclamou, recuando encostado à parede, para longe do meu alcance. - Não tentes os teus truques comigo!
- Vê as coisas desta maneira - sugeri, olhando de relance para o pequeno espelho redondo que estava sobre a mesa e vendo que era, de facto, a fonte da estranha luz que se acendia e apagava.
- Se eu for um sonho, não posso fazer-te mal, pois não? E se não for, sou apenas uma simples rapariga humana, sem poderes que te afectem de alguma maneira, e certamente incapaz de influenciar um príncipe tão forte como o teu pai. Tudo o que tenho é o que vês à tua frente. - Apontei para a minha silhueta, com o vestido modesto, de fabrico caseiro. - É tudo o que tenho para negociar, e é isso que estou a oferecer. Não para sempre; tens razão quanto a isso, ele não o permitiu. Apenas por esta noite. Um dia, chamaste-me amor. - A minha voz reduziu-se a um murmúrio, porque aquela parte do jogo se aproximava demasiado da verdade. - Por momentos, pensei que me achavas bonita. Desejável. Mas talvez me tenha enganado a mim própria, como é hábito nas mulheres. Ansiamos sempre por ouvir essas palavras de adulação que os homens usam para alcançarem os seus objectivos. Para terem os filhos que querem. Vejo nos teus olhos que és tão mentiroso como ele é.
Cathal cerrou os lábios. Magoou-me ter de feri-lo. Eu não sabia sequer se estávamos ambos a jogar o mesmo jogo, apenas que a in-
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tenção era enganar Mac Dara até podermos escapar ao seu escrutínio tempo suficiente para falarmos honestamente um com o outro. Como é que podíamos iludir os receios do Senhor do Carvalho? Qual era o segredo para que ele se fartasse de olhar para nós? Assistir ao falhanço das minhas desajeitadas tentativas de sedução, ou o oposto? E como é que eu podia transmitir a Cathal que também estava a desempenhar um papel dedicado ao pai dele?
- Toma - disse Cathal, tirando um pente do bolso e colocando-o em cima da mesa. - Podes tornar-te útil. Mas nada de truques. Eu sei quem tu és. Sei porque é que ele te enviou. Estás a fazer uma imitação mais convincente do que aquelas que te precederam, mas continuo a não estar interessado. O meu pai só quer ver-me a usar uma mulher da mesma forma casual e desumana com que se serviu da minha mãe. Falas de conceber uma criança. Se eu aceitasse aquilo que, de uma forma absurda, me estás a oferecer, se me deitasse contigo esta noite sabendo que amanhã já terias partido e que nunca mais voltaria a ver-te, estaria precisamente a corroborar o teu último argumento: que eu sou filho do meu pai não apenas no sangue, mas também no carácter e intenções.
Cathal sentou-se no banco de costas para mim e eu estendi a mão para reunir o cabelo negro que já ultrapassava a altura dos ombros. Sete ciclos lunares? Ou muito mais? Mac Dara era um poço de mentiras.
- Tu és filho dele, Cathal - disse-lhe tranquilamente. - Isso l significa que nunca poderás ser meu. Foi isso que ele me disse. l; Quanto à ideia de eu ser um mero simulacro da mulher que um dia E amaste, tudo o que posso dizer-te é que nada aqui é o que parece.
Peguei no pente e comecei a passá-lo pelo seu cabelo, tentando desfazer os nós. Esperava que ele me tivesse compreendido.
- Perdi-me nos nós de um bosque escarninho - murmurou.
- Não há nó tão cego que não possa ser desfeito - sussurrei, tocando-lhe no pescoço com delicadeza. Cuidado, cuidado; era preferível que Mac Dara acreditasse que o filho não me conhecia por quem eu era. Se tudo levasse a crer que Cathal achava que eu era mais um fantasma conjurado pela sua imaginação, ou mais uma mulher moldada, por artes mágicas, à imagem de Clodagh, seria menos
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provável que o pai antecipasse o que estava para vir. Ainda nos encontrávamos nas profundezas do reino de Mac Dara e éramos apenas dois. Teria de avançar com o maior dos cuidados. Penteei e continuei a pentear e, enquanto o fazia, pousei a mão no pescoço do meu adorado, sentindo o seu sangue a latejar por baixo dos meus dedos; acariciei-lhe as têmporas; com as duas mãos, aliviei-lhe a tensão nos músculos dos ombros e ouvi-o respirar com sofreguidão, ao sentir o meu toque. Agora, já nada fazia para me deter, embora os seus olhos, no pequeno espelho, me parecessem simultaneamente brilhantes de desejo e desconfiados, como os olhos de uma criatura selvagem sob perseguição. E o mais difícil era desejá-lo realmente, querer tocar-lhe, beijá-lo, acariciá-lo, querer ser abraçada, acariciada, amada. Sensações fluíram pelo meu corpo, mais poderosas do que alguma vez sentira, sensações maravilhosas, urgentes, que me atraíam para junto dele como um curso rápido de água transporta um galho à deriva. Mostrar o meu desejo para satisfazer Mac Dara era errado, completamente errado. Mas, se queria salvar Cathal, era isso que eu devia fazer. Teria de convencer o Senhor do Carvalho de que estava disposta a cumprir o nosso tenebroso acordo. Peguei no cabelo de Cathal e afastei-o do pescoço, inclinando-me para encostar os meus lábios à pele nua.
- Não - disse-me, num tom severo. - Não faças isso!
- Ele disse que serias incapaz - murmurei. - Explicou-me que, se não sentir desejo, um homem não pode ser pai.
- O quê... - Cathal falara sem pensar, apanhado de surpresa, e agora engolia as palavras que tinha dito. - Decerto não te deitarias comigo se ele estivesse a ver - disse-me. - O que quer que sejas, quem quer que sejas, deves ter algum pudor. Ele está sempre a ver. Não há como evitá-lo.
O seu olhar fixou o pequeno espelho, desviando-se logo a seguir.
- Então, não te aproveitaste das mulheres que ele te ofereceu
- declarei, fazendo um esforço para não olhar para o disco de metal polido. - Parece-me que, em vez disso, te transformaste num estudioso.
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O colar de Ciarán estava guardado na bolsa do meu cinto. Seria fácil, naquele momento, fazê-lo deslizar para o pescoço de Cathal. Mas não enquanto Mac Dara estivesse a observar-nos. Se o Senhor do Carvalho me visse a tentar algo do género, ficaria a saber que eu queria muito mais do que uma noite na cama do seu filho.
- Já passou muito tempo - disse Cathal - e não estou habituado a ser preguiçoso. Concentrei-me em certas habilidades de que antes possuía apenas os rudimentos. - Tinha posto as mãos em cima da mesa à sua frente e o indicador moveu-se ligeiramente, apontando para o espelho. - Um homem mal precisa delas num lugar como este, mas há que dedicar-se a alguma coisa para passar o tempo. Espero, um dia, vir a fazer uma descoberta importante; algo de novo na arte da magia. Mas o meu progresso é lento. O meu pai sente-se frustrado com isso.
- Cathal - disse-lhe, abraçando-o por detrás e pousando a cabeça no seu ombro.
Senti o corpo dele mais tenso, mas não me disse nada.
- Por favor - insisti. - Por favor, deita-te comigo, só desta vez, só esta noite, é tudo o que te peço. Se não podemos ficar juntos como marido e mulher no mundo dos humanos, pelo menos terei esta recordação. Amo-te. Desejo-te. Deves saber isso.
E, enquanto eu falava, embora fosse um jogo, embora fosse uma ilusão, senti aquelas palavras com todo o meu ser. O meu corpo ansiava por ele; o meu coração suspirava por ele. Ouvi o desejo que sentia palpitar na minha voz.
Cathal sacudiu-me e levantou-se.
- Não! - exclamou. - Não te darei ouvidos. Fazes uma boa imitação dela; tão boa que, por momentos, quase me enganaste. Mas eu sei que não és Clodagh. Não podes ser. Se ela aqui estivesse, eu não seria capaz de afastar as minhas mãos do seu corpo. Apertá-la-ia com tanta força que ela teria de implorar-me para respirar. Beijá-la-ia até me suplicar por clemência. Desapertaria as suas roupas e deitar-me-ia com ela naquela cama dura, e aquilo que aconteceria entre nós estaria tão longe das relações comuns entre homens e mulheres como as estrelas distam do seu pálido reflexo no lago, cá em baixo. Sei que não és Clodagh porque quando me tocas
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eu não sinto nada, compreendes? Nada de nada. Até podes ser uma criatura feita de galhos e de folhas, como aquele pobre duplo que ela tanto amava. Agora, quero que vás. Pelos deuses, deixa-me em paz.
Se aquilo era uma representação, estava a fazer um bom trabalho. As suas palavras causaram-me náuseas de angústia. Cathal retirou-se de novo para as sombras, junto da parede, e cruzou os braços, com os olhos a brilhar de desgosto.
- Compreendo... - disse-lhe, e a minha voz tremia com uma mágoa que era inteiramente real. - A tua posição é bastante clara. Mas eu não me vou embora. O acordo permite-me ficar até de madrugada, e é isso que farei. Como tal, parece-me que vou sentar-me num canto do quarto e tu no outro e ignorar-nos-emos até chegar a altura de eu partir. É uma maneira encantadora de passar a noite. Quando ele me disse que tu não serias capaz, não acreditei por um segundo. Afinal, é verdade. Estar aqui privou-te da tua virilidade. E cegou-te. É como se ele tivesse erguido uma parede entre ti e aquilo que está à tua frente, uma barreira que não te deixa ver a verdade.
Voltei a sentar-me na cama, com os joelhos no queixo, os braços à volta dos joelhos, e o saco ao meu lado. Na outra ponta do quarto, envolto em sombras, Cathal fez um sorriso tímido e enigmático.
- Uma barreira que elimina a verdade - murmurou. - Acreditas que o meu pai tem o poder de criar um feitiço desses?
Não, pensei, fazendo o melhor que podia para não olhar para o espelho. Mas talvez tu tenhas. Talvez seja isso que estás a tentar dizer-me. Será que esse objecto se encontra, de algum modo, ligado a Mac Dara? Ele vê através dele? Não; se assim fosse, limitar-te-ias a virá-lo ao contrário para não o deixares entrar. Será possível que te indique quando ele está a observar e quando não está? Ciarán sugerira que Cathal podia aprender, com o tempo, a contrariar a magia do pai. E Cathal já possuía um extraordinário talento de vidente, mesmo antes de entrar no Outro Mundo. Teria já reunido conhecimentos suficientes para fabricar essa poderosa ferramenta? Num espaço de tempo tão curto? Mac Dara podia ter mentido. Talvez eu me tivesse ausentado anos, e não
meses.
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- O teu pai pode fazer tudo aquilo que quiser - respondi.
Incluindo aquilo que tu, pelos vistos, és incapaz de fazer. Ele
prometeu-me que, se não conseguisses satisfazer o meu pedido esta noite, ele fá-lo-ia amanhã.
Cathal perdeu a cor. com os olhos a faiscar de fúria, preparou-se para falar, mas fechou os lábios com violência.
- É verdade que ele te deu a oportunidade de provares a tua virilidade - obriguei-me a dizer. - Mas tu nem sequer queres tentar. Odeio-te, Cathal. Odeio que não me reconheças, odeio que não me desejes, amaldiçoo o dia em que te conheci. Agora, pára de falar e deixa-me em paz.
Pousei a cabeça nos joelhos e, embora o meu discurso fosse uma farsa, as lágrimas que me caíram pelo rosto eram reais.
Depois, esperei. Sentei-me na cama; ele ficou de pé, encostado à parede, à minha frente. Tentámos não olhar um para o outro, mas o espaço entre nós encheu-se das palavras cruéis que tinham sido ditas e das mais ternas que não podíamos dizer. Era um espaço vivo com o meu desejo de tocar-lhe, de abraçá-lo, de agarrar-me a ele e nunca mais largar. No silêncio, ouvi as palavras de Cathal: Beijá-la-ia até me suplicar por clemência. Não seria capaz de afastar as minhas mãos do seu corpo. E, embora conservasse uma expressão fria e distante, uma chama ardia-lhe no rosto. E se Mac Dara nunca desviasse o olhar? Não podíamos tentar a fuga à vista. Se amanhecesse sem que nos tivéssemos deitado juntos e Mac Dara culpasse Cathal por não ser capaz de cumprir a sua função, eu seria obrigada a partilhar a minha cama com o Senhor do Carvalho na noite do dia seguinte. Talvez fosse condenada a entregar-lhe o meu primeiro filho. E Cathal nunca me perdoaria. Eu nunca me perdoaria a mim própria.
Passou muito tempo. Sentia o corpo tão apertado de desejo que não conseguia pensar em mais nada. Tentei respirar devagar, descontrair-me, esboçar alguns planos para acautelar o que se seguiria, mas não fui capaz. Havia apenas eu e Cathal e a distância dolorosa que nos separava.
Então, muito mais tarde, o brilho do espelho diminuiu, e diminuiu ainda mais, até se extinguir completamente e as chamas bruxuleantes das velas serem a única luz naquele quarto pequeno. Cathal
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deu dois passos na minha direcção. Quando me levantei, os seus braços enlaçaram-me, apertando-me com tanta força que me debati para conseguir respirar.
- Clodagh - sussurrou-me, com os lábios no meu cabelo.
- Clodagh, estás mesmo aqui, voltaste finalmente. Deuses, passou tanto tempo...
Não encontrei palavras. Tudo o que podia fazer era encostar-me a ele, pôr os meus braços à volta do seu pescoço, render-me a um beijo que era profundo, violento, curioso, sentir aquele corpo contra o meu e saber inequivocamente que o que Mac Dara dissera a seu respeito era falso, porque era claro como água que Cathal me desejava com o mesmo fulgor com que eu o desejava a ele. Caímos na cama num novelo de braços e pernas e roupa, de respirações aceleradas e irregulares, de mãos urgentes e corpos famintos. O espelho continuou apagado; Mac Dara não se divertira com a nossa longa vigília. Remexi desajeitadamente nos fechos da camisa de Cathal. O joelho dele estava entre as minhas coxas, a mão puxava-me o vestido para cima.
Lá fora, um grasnido áspero e trocista encheu-nos os ouvidos. Fiacha, só podia ser.
- Não! - exclamei, de súbito, ainda nos braços de Cathal.
- Não podemos, nem se houvesse tempo, nem se fosse aquilo que mais desejávamos no mundo!
- O quê?
Cathal fez um esforço para compreender; estava ofegante. E sentou-se, endireitando a roupa.
- Cathal! Temos de ir! Temos de sair daqui imediatamente! Tu ouviste o que eu disse: ele fez-me prometer que eu me deitaria com ele amanhã se tu não conseguisses...
- Não faz sentido - replicou, mas levantou-se e calçou as botas enquanto falava.
- Confia em mim - disse-lhe, apertando os colchetes do vestido com as mãos a tremer. - Não devia ter perdido a cabeça, nem sequer por momentos. Dizer que queria uma criança tua foi apenas um estratagema para vir até aqui, nunca esperei que ele... Isto é, eu quero ter um filho teu, Cathal, mas... Esquece, explico-te mais tarde.
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Será que pensei bem? O espelho mostra-nos se ele está a observar-nos?
- Mais ou menos.
Cathal enfiou o disco de cobre num saco, juntamente com mais alguns objectos que estavam em cima da mesa de trabalho, pôs um casaco à volta dos ombros e olhou para mim de sobrancelhas arqueadas.
- Tens algum plano? - perguntou.
- Não propriamente - respondi, com um nó na garganta. Tenho alguns amigos e meia dúzia de coisas úteis que podem ajudar. Mas a verdade é que confiei que pensarias num plano para a etapa seguinte. Tinha esperança de que, quando te encontrasse, já tivesses truques e estratégias suficientes para dar conta do resto.
Cathal olhou para mim com um ar grave.
- Compreendo - disse-me, e os seus lábios torceram-se num sorriso assimétrico. Perguntei-me se ele já me conheceria o suficiente para saber que aquilo também fazia parte do meu plano. Se não conseguisse salvar-me, se não conseguisse liderar a nossa fuga, o mais provável era que nunca mais voltasse a ganhar respeito por si próprio. Cathal precisava de derrotar o pai; teria de ser mais astucioso do que o Senhor do Carvalho.
- Nesse caso, é melhor eu pensar depressa. Coisas úteis, como por exemplo...?
Falávamos aos sussurros, porque os dois guardas ainda estavam de certeza de serviço, lá fora. Seriam o nosso primeiro obstáculo.
- Como isto, para começar - respondi, tirando o colar de dentro da bolsa. - Inclina-te. Penso que será mais eficaz se fores tu a usá-lo,
Cathal não se inclinou, ajoelhou-se à minha frente e pôs-me os braços à volta da cintura. Nos olhos negros, vi resolução, solenidade. Não havia vestígios de malícia; talvez aquela longa espera no Outro Mundo tivesse apagado essa centelha para sempre.
- Amo-te mais do que à própria vida, Clodagh - disse-me.
- Aconteça o que acontecer, quero que o saibas. Espero não vir a arrepender-me disto para o resto dos meus dias. Da oportunidade que nos escapou esta noite.
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O seu sorriso quase me partiu o coração.
- Haverá outras - repliquei, atando-lhe o colar à volta do pescoço. Quando terminei, deixei ficar ali as mãos, por momentos.
- Melhores ainda. Em camas mais confortáveis. Prometo.
Ele levou a minha mão aos lábios. Depois, ergueu-se e o seu rosto já não era o de um amante, mas o de um guerreiro.
- Diz-me primeiro - perguntou - qual é o poder deste amuleto.
Os seus dedos seguraram no colar com a pequena pedra branca.
- É o mesmo que o do anel de vidro verde - respondi.
- É um símbolo do amor desinteressado; proteger-te-á do mal.
- Hesitei, com algum embaraço. - Na verdade, Ciarán disse-me que eu era o teu talismã; o colar é apenas um reforço. Penso que significa que Mac Dara não pode magoar-te se estiveres comigo. De qualquer modo, ele não vai querer fazer-te mal.
Cathal esboçou um sorriso implacável.
- É verdade. Ele tem planos para mim. Clodagh, o pássaro que guinchou lá fora é um dos teus amigos?
Confirmei com um aceno.
- Ele conhece a saída. Guiar-nos-á até ela.
- Há mais alguma coisa que eu deva saber?
O meu pensamento viajou da última história de Willow até ao meu diálogo com Ciarán e parou nas revelações de Mac Dara a respeito do ataque a Glencarnagh. Não havia tempo.
- A tua mãe - comecei por dizer, escolhendo o que era mais importante. - Ouvi uma história acerca dela, uma história verdadeira. Ela não se suicidou, Cathal. Morreu a tentar proteger-te de Mac Dara. Afastou-te de si para ficares mais seguro. E... - detive-me, vendo na sua expressão que aquilo não era uma novidade. -Já sabes - sussurrei-lhe.
- Aprendi muito neste lugar - declarou, com aquele sorriso doce e descomplicado que oferecia tão raramente. - Coisas que o meu pai nem sequer sonha, Clodagh. Vi um rapaz a pescar e uma mulher sobre a ponte com o coração nos olhos. Vi que a minha mãe possuía uma capacidade para amar igual à tua, e a mesma extraordinária força de vontade. Pensei que ela tinha falhado comigo.
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pensei que era fraca. Foi para mim uma grande alegria e um grande desgosto descobrir o quanto me tinha enganado. Cathal aclarou a garganta e acrescentou:
- O melhor é partirmos sem mais demoras. Há mais alguma surpresa?
- Trouxe um amuleto que posso usar para nos esconder, mas apenas por pouco tempo. Disseram-me que o reservasse para um momento em que precisássemos mesmo dele. Cathal, o feitiço, o da soleira da porta, é vital na nossa fuga. Esse feitiço tem uma segunda parte. - Citei-lhe o resto do verso. - Significa que existe uma maneira de quebrar o feitiço, ainda que os versos nos pareçam impossíveis.
Cathal arqueou as sobrancelhas.
- Temos de torná-los possíveis. Mas primeiro temos de chegar a um portal. Já percebeste que ele pode decidir procurar-nos no seu espelho a qualquer momento? Não creio que confie mais em ti do que em mim, o filho que se recusa a cumprir as suas expectativas. Por outro lado, não desconfia que tenhas tantos truques na manga. Imagino que não trouxeste nada para neutralizar os guardas?
- Lamento - respondi, sentindo uma mistura de terror e de entusiasmo, íamos mesmo fazê-lo. íamos mesmo enfrentar o Senhor do Carvalho, o seu poder, a sua magia e a sua absoluta amoralidade. - Terás de tratar disso sozinho.
Cedo se verificou que o aspecto escanzelado e abatido de Cathal não reflectia qualquer esmorecimento das suas excepcionais qualidades como guerreiro. Enquanto tratava dos guardas, obrigou-me a esperar dentro da gruta. Ouvi gritos abafados, um ruído de botas arrastadas pelo chão e um grasnido. Por fim, regressou, apenas ligeiramente ofegante.
- Aquele pássaro tem um bico afiado - referiu.
- Magoou-te?
- Felizmente, dá ideia que percebeu que estou do lado dele disse-me. - Vamos? - Cathal estendeu-me a mão e eu dei-lhe a minha. Na outra, levava um punhal que não estava ali antes de ele sair. - Só matarei se precisar - acrescentou, seguindo o meu olhar. - Mas o meu pai vai ficar furioso e a sua fúria pode ser calamitosa. É melhor corrermos, Clodagh.
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- Como é que vemos o caminho?
Para lá da última fronteira de luz criada pelas duas velas tremeluzentes que se encontravam no interior da gruta, havia agora uma ponta de luar, que mal iluminava o caminho.
- Eu vejo o suficiente. Seguiremos o pássaro. Não largues a minha mão.
Corremos, e eu lembrei a mim própria que o homem que eu amava era apenas semi-humano e que, se conseguíssemos sair daquele lugar, era provável que eu viesse a descobrir muitas outras coisas formidáveis a seu respeito, para além da capacidade de ver no escuro.
Não me pareceu que Fiacha se dirigisse ao portal por onde tínhamos entrado no reino de Mac Dara, embora imaginasse que essa fosse a passagem mais próxima. Chapinhámos ao passar um ribeiro pouco fundo, escalámos uma colina íngreme por baixo de um bosque de faias, rastejámos por um emaranhado de arbustos espinhosos - o corvo voava lá em cima - e emergimos, tentando não praguejar em voz alta, à frente de uma outra parede de rocha. De lá do cimo, Fiacha chamou-nos com a sua voz áspera. Assim que parei, senti as pernas a tremer. Respirava aos soluços.
- Parece que temos de trepar - disse Cathal. - Eu ajudo-te, Clodagh. Do topo, talvez tenhamos uma vista desafogada.
A mensagem implícita era clara: mais tarde ou mais cedo, Mac Dara perceberia que tínhamos fugido e viria atrás de nós. Quanto mais nos distanciássemos antes de isso acontecer, mais hipóteses teríamos. Cerrei os dentes, procurei ranhuras na rocha onde apoiar as mãos e os pés e icei-me.
Sozinha, não o teria feito. Ignorando os gritos impacientes de Fiacha, Cathal escalou perto de mim, ajudando-me a encontrar pontos de apoio, sussurrando-me palavras de conselho e de encorajamento, tranquilizando-me, embora eu avançasse dolorosamente devagar. Quase a chegar ao topo, a entoação do corvo mudou, e a luz também. Lá em baixo, na floresta, acendeu-se o brilho dos archotes e no céu estalou uma chiadeira, um som de asas pesadas, e um guincho cruel que me horrorizou. O ruído transportou-me de volta ao bote e ao ataque das criaturas que tinham mergulhado a pique sobre
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mim, golpeando-me. Fechei os olhos com força. Falhou-me uma mão e tive de segurar-me com violência à fachada rochosa.
- Aqui. - A mão de Cathal cobriu a minha, dirigindo os meus dedos para uma ranhura. - Agarra-te e iça-te; há um ponto de apoio para os pés à tua direita. Ignora as criaturas. O corvo vai afugentá-las. Estás a duas braçadas do cume, Clodagh. Vais ver que consegues.
- Archotes - murmurei quando cheguei ao cimo. - Lá em baixo.
- Mais um esforço... Maldita criatura! - com uma mão, Cathal deu uma pancada num vulto em voo picado, agarrando-se com a outra mão. - Já está, Clodagh. Levanta o pé esquerdo cerca de três palmos e ligeiramente para a esquerda. Muito bem. Já deves poder agarrar a erva do topo, mas não confies nela todo o teu peso... Linda menina, conseguiste.
Ele empurrou-me para cima, onde me esparramei como uma trouxa. No ar, travava-se uma batalha sangrenta, uma luta de guinchos, chiadeiras, asas a bater. Seria insensato olhar para o céu. Ouvi Cathal a içar-se até à borda do penhasco e, momentos depois, os ruídos cessaram. Quando me sentei, uma pena preta caiu-me, flutuante, no colo.
Obriguei-me a olhar. Na luz esbatida, vi o corvo ali perto, empoleirado num ramo baixo, com as asas levemente rasgadas e os olhos mais brilhantes e sagazes do que nunca. Não havia vestígios do seu adversário. Ou adversários. Dir-se-ia que Fiacha era um guerreiro sem paralelo, tal como Cathal, capaz de despachar vários inimigos com facilidade.
- Vamos - exclamou Cathal. - Temos uma vantagem momentânea, apenas isso.
Desta vez, nenhum de nós correu. Um bosque cerrado coroava a fachada do penhasco e o luar pouco fazia para iluminar o caminho estreito por onde Fiacha nos conduzia. Não podíamos andar de mãos dadas. Cathal obrigou-me a seguir o corvo e pôs-se atrás de mim. Na floresta, ressoavam agora barulhos de toda a espécie: clamores furiosos, gritos surdos e cavernosos, um gemido de arrepiar, como o lamento da Banshee. E vozes, gritando. O bosque era tão
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cerrado, o novelo de troncos, ramos, galhos, folhas, agulhas e videiras tão intrincado, que o menor lapso podia fazer com que nos perdêssemos completamente. Desejei com todas as minhas forças que o caminho de Fiacha fosse o melhor, o mais seguro, aquele em que seria menos provável que Mac Dara nos encontrasse. Não era certamente o mais rápido.
- Não pares - disse Cathal, e detectei-lhe uma urgência na voz. - Talvez se abra mais além. Não pode continuar assim para sempre.
Ele tinha razão. A cem passos dali, a paisagem mudou outra vez e a vegetação opaca desembocou abruptamente num terreno a céu aberto. Senti erva por baixo dos pés e um odor adocicado, como o de plantas curativas. Curiosamente, pareceu-me uma versão mais curta do caminho por onde Cathal e eu tínhamos entrado. Voltámos a dar as mãos e, enquanto Fiacha voava à nossa frente, desatámos a correr. O meu pensamento percorria em relâmpago todos os obstáculos que tínhamos sofrido em sentido contrário e, quando me perguntei quantos mais teríamos de enfrentar, uma fileira de luzes emergiu da penumbra, mais à frente. Fiacha voou para cima e saiu do nosso campo de visão. Cathal deteve-se, olhando para trás. Quando me virei, vi uma série semelhante de luzes - archotes, aproximando-se - não muito longe atrás de nós. Cathal largou a minha mão e pegou no punhal.
- Disseste que tinhas um talismã de ocultação? - segredou-me.
- Hum.
- Prepara-te para usá-lo. Aquilo são cavalos e os cavaleiros devem estar armados. O meu pai não quer que eu me fira gravemente, mas não hesitará em usar-te para me vergar. Penso que serias protegida pelo anel, mas prefiro não pôr isso à prova. Não impedirá certamente que ele nos separe e te recambie para casa. Usa o teu feitiço antes de chegarmos a esse ponto, ou tudo acabará muito depressa. Não consigo combater tantos.
- Muito bem.
Tentei respirar devagar; tentei recordar as palavras exactas de Ciarán.
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Os cavaleiros apertaram o cerco. Todos traziam mantos cinzentos com capuz; todos empunhavam lanças, espadas, ou lâminas cobertas de espinhos, denteadas ou serrilhadas. Havia armas cortantes em forma de foice e instrumentos ainda mais estranhos que evocavam as artes da feitiçaria. As duas filas aproximaram-se em silêncio atrás e à frente. Quando já estavam mais próximas, formaram um círculo comigo e com Cathal no centro. Os archotes mergulharam-nos numa luz vermelha bruxuleante.
Um cavaleiro guiou o cavalo para a frente, um animal alto e negro com um olhar ameaçador. Depois, desmontou e tirou o capuz. O seu olhar sombrio passou por Cathal e coseu-se a mim.
- Então, mentiste-me - declarou. - Querias muito mais do que uma noite com o meu filho. Mentiste a Mac Dara.
Senti o coração a martelar-me contra o peito.
- Não estavas à espera? - perguntei. - Estamos no teu reino, não no meu. Deves estar habituado às mentiras.
- Talvez ela não te tenha dito - disse o Senhor do Carvalho, aproximando-se de Cathal. - A tua pequena companheira de brincadeiras fez-me uma promessa esta noite, e eu espero que as pessoas cumpram as suas promessas. É óbvio que não cumpriste a tua função. E ainda bem, porque o teu filho ser-te-ia confiscado se o tivesses feito. O teu fracasso significa que ela é minha. A filha de Lorde Sean prometeu dar-me outro filho, se tu não conseguisses dar-lhe um. Digamos que seria uma reserva, caso não consigas adaptar-te à minha visão do mundo. Já vimos como Clodagh gosta de bebés. E ficará satisfeita por criar um para mim no conforto da fortaleza do seu pai e entregar-mo quando eu quiser. Não é verdade, Clodagh?
Por baixo daquele sorriso ultrajante, maldoso e satisfeito, julguei detectar uma dor bem disfarçada. Não consegui olhar para Cathal.
- Não foi exactamente isso que prometi - repliquei, a tiritar. - O que eu disse foi...
- O discurso exacto é irrelevante - interrompeu Mac Dara friamente. - No mínimo, deves-me uma noite pelo incómodo que me causaste. Agarrem-na.
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Dois homens da sua comitiva avançaram e desmontaram, mas antes que pudessem dar mais um passo, Cathal colocou-me atrás dele.
- Toquem num fio de cabelo de Clodagh e eu mato-vos exclamou com frieza. - Lutarei convosco até que haja ar no meu corpo. É claro que, se o meu pai estiver tão desiludido comigo que me queira ver morto, isso será conveniente. Por outro lado, se por acaso acabarem comigo, é possível que ele se enfureça. Ainda não tem quem o substitua.
Mac Dara levantou a mão, coberta por uma luva preta. Algo naquele gesto me dizia que não estava a ordenar aos seus guerreiros que me apreendessem, ou que atacassem Cathal, mas preparava-se antes para lançar um feitiço. Enfiei a mão no bolso e tirei a pedra em forma de ovo.
- Agora - murmurei, e atirei-a para o chão à minha frente.
Uma névoa ofuscante ergueu-se de repente, um cobertor espesso e branco que apagou árvores, rochas e cavalos, homens, mulheres e criaturas. Não conseguia ver um palmo à frente do nariz. Fiquei paralisada, sem qualquer sentido de orientação.
- Por aqui!
Era a voz de Cathal e a mão de Cathal agarrou na minha e desatámos a correr, às cegas através da neblina, a ouvir o som dos cascos atrás de nós. Que o portal esteja perto, rezei. Deixai-nos encontrá-lo depressa...
Corremos até as minhas pernas já mal me poderem transportar; até sentir uma vertigem e a vista se turvar. E a névoa continuava a envolver-nos. Podíamos estar em qualquer sítio. Doía-me o peito e sentia as pernas dormentes. A paisagem tornou a mudar e agora via carcaças esqueléticas de salgueiros e sabugueiros que emergiam vagamente no nevoeiro. Senti o chão por baixo dos pés mais húmido e musgoso. Ouvia água a correr ali perto. Cathal apertava-me a mão com uma força dolorosa. Puxava-me atrás dele com tanta velocidade que mal conseguia manter-me de pé. Atrás de nós, na penumbra, alguém gritava.
Senti o meu corpo ser arrastado por uma encosta acima, sobre rochas escorregadias da humidade. O vapor sobrenatural começou a dissipar-se; o feitiço de Ciarán já perdera potência.
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- Tenho de... recuperar o fôlego - murmurei, ofegante. - Fiacha... Onde está Fiacha?
- Não faço ideia.
Pareceu-me estranha, a voz de Cathal. Havia qualquer coisa que não estava bem. Através dos últimos fiapos de nevoeiro, olhei para cima e o meu coração parou. O homem que me tinha conduzido, o homem cuja mão eu agarrara como se a minha vida dela dependesse, não era Cathal. Era o pai.
Capítulo Dezasseis
Arranhei, pontapeei, tentando libertar-me, mas ele era demasiado forte. Limitou-se a agarrar-me pelos ombros e a conservar-me à distância dos seus braços, de sobrancelhas arqueadas e os lábios torcidos num sorriso, como se o meu desespero o divertisse vagamente. Só havia uma coisa a fazer: enchi os pulmões de ar e gritei:
- Cathal! Estou aqui!
Não houve resposta. Agora que a neblina se dissipara, os troncos das árvores cintilavam como fantasmas prateados à luz de uma Lua baixa e invisível. Mais além, estendia-se uma escuridão vasta e sussurrante; certamente o mesmo rio que tínhamos atravessado naquele bote raquítico quando entrámos pela primeira vez no reino de Mac Dara. Na outra margem, erguia-se um salgueiro antigo e moribundo, e os seus ramos envelhecidos estendiam-se na água como se me chamassem para casa. Não vi o bote, nem a corda. Mas havia alguma coisa: uma linha pálida atravessando a água, sob a superfície.
- Não vale a pena chamares pelo meu filho - disse Mac Dara, enterrando os dedos nos meus ombros. - Ele não é homem que valha, Clodagh. Primeiro, revelou uma perfeita falta de entusiasmo pela tua sedutora oferta. Depois, entregou-te directamente nas minhas mãos. Foi um truque básico. Ele próprio devia ter pensado nisso, sabendo como somos parecidos um com o outro.
- Parecidos? - o meu corpo inteiro contraiu-se de repugnância. - Sois tão parecido com ele como o cadáver de uma larva
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é parecido com uma criatura viva e saudável. Meteis-me nojo. Deixa-me ir!
- Ah, não creio. - Puxou-me para si, envolvendo-me com ambos os braços e encostando o meu corpo ao dele. - Porque é que não fazemos esse filho agora? O lugar é tranquilo. Terás a privacidade que tanto prezas. E não temos nada para fazer até amanhã de manhã.
- Não tens o direito! - a minha mente quase mergulhou no completo pânico. Não havia maneira de libertar-me, e já tinha usado a única ferramenta que possuía; usara-a demasiado cedo, e para nada. - O acordo era que eu vos deixaria fazer isto amanhã, se Cathal fosse incapaz. Ele não foi incapaz, meu senhor.
Deuses, a mão dele percorria-me o corpo todo, arrepiando-me a pele. Não o deixaria fazer aquilo.
- Eu também sei jogar esse jogo - disse Mac Dara. - O jogo da verdade e da mentira. E, sempre que jogarmos, vou derrotar-te. Olha-me nos olhos e diz-me que o meu filho fez amor contigo esta noite.
Mac Dara afastou-me dele, agarrando-me de novo pelos ombros, com as duas mãos.
- Isso seria uma mentira - respondi, vendo o seu sorriso de satisfação. - Mas ele podia tê-lo feito. Era capaz. Escolheu não o fazer. Isso significa que eu não tenho de cumprir a minha parte do acordo.
- Não acredito em ti - retorquiu Mac Dara, calmamente. - Tu és nova, deleitável, intacta. Que homem desperdiçaria a oportunidade de ser o primeiro a provar-te? Se não o fez, foi porque não podia. - Puxou-me, mais uma vez, para junto dele e eu coloquei ambas as mãos no seu peito, numa tentativa vã de defender-me. - Estás com medo de mim - disse-me, surpreendido. - Não há razão para isso. Eu sei como agradar a uma mulher, mesmo se esta for inexperiente.
Mac Dara moveu as mãos e cobriu as minhas e os seus dedos tocaram no anel de vidro verde. Nesse preciso instante, todo o seu corpo se imobilizou.
- O que é isto? - perguntou-me, e havia uma nota na voz que me pôs os cabelos em pé.
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- Nada - sussurrei. Logo a seguir, Mac Dara arrancou-me o anel do dedo e segurou o pequeno talismã na mão pálida e comprida. Depois, atirou-o para longe, algures para a escuridão entre as árvores, e o anel desapareceu. Se antes me sentia assustada, nada se comparava ao terror que se apoderou de mim naquele momento.
- Então - disse Mac Dara - era por causa disto que uma insignificante mulher humana me fez frente durante tanto tempo. Foi isto que te deu coragem para voltares e procurares o meu filho. Tola. Não sei onde é que encontraste a bugiganga, mas conduziu-te a uma situação que está muito além das tuas capacidades. E agora colocaste exactamente a arma de que eu precisava nas minhas mãos. Vamos saltar o namorico e enviar-te directamente para casa. Por aqui. Eu sei que gostas muito de água.
Não entres em pânico, não entres em pânico, balbuciou uma voz dentro da minha cabeça. O anel era a tua protecção, é verdade. Mas não significa que te transformes numa gelatina, agora que desapareceu. Cathal precisa de ti. Respira. Usa os teus talentos. Mas, essa última centelha de razão, sufocou-a aquela mão de ferro no meu braço, o andar firme do meu raptor a arrastar-me para a margem do rio, o terror que as suas últimas palavras tinham despertado em mim. Já não havia gritos. Não conseguia produzir mais do que um guincho aterrorizado.
- Chegámos - disse o Senhor do Carvalho, parando comigo à sua frente, ambos virados para o rio. - Vês, estou a dar-te uma oportunidade de voltares sã e salva para casa. E depois não digam que as Criaturas Encantadas não são generosas. Atravessa a ponte e estarás lá.
A ponte era um só tronco de árvore, os restos de um gigante da floresta. Cobria o leito do rio e ficava uma mão abaixo da torrente de água. Naquela luz enganadora, teria sorte se conseguisse dar três passos sem cair. A travessia era um desafio mesmo para um homem com excepcionais talentos físicos, como Johnny, por exemplo.
- Vamos - disse Mac Dara, libertando-me os braços e dando-me um pequeno empurrão. - E não tentes fugir; posso ser obrigado a fazer algo que não ias apreciar.
- Não consigo... - comecei por dizer, e cambaleei quando o pequeno empurrão se tornou mais forte e fui obrigada a descer
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a riba e a entrar na ponte submersa. - Por favor - supliquei, estendendo ambos os braços para conservar o equilíbrio. A água puxava-me a saia; não tinha tido tempo de arregaçá-la antes de ser empurrada para cima do tronco. A madeira tornara-se escorregadia por ter passado tanto tempo submersa. As minhas botas não agarravam o chão. Sentia o coração aos pulos no peito. - Por favor...
Fiquei ali, vacilante, à distância de um braço da margem.
Mac Dara levantou a mão e apontou para mim. Não o ouvi proferir as palavras de um feitiço, mas entre o lugar onde eu estava e a segurança da margem surgiu uma língua de fogo, abrasadora, fatal, e eu afastei-me dela, avançando pela ponte. Os meus joelhos cederam; obriguei-os a resistir. Naquele momento, já nem conseguia ver o tronco por baixo da água escura. Mais um passo e desaparecia, arrastada para o esquecimento. Tudo por falta de um ponto de apoio, de uma saia mais curta, de um pouco mais de coragem. Cathal, disse uma voz minúscula dentro de mim, Amo-te. Desculpa.
De repente, algo se precipitou sobre mim, rápido como uma seta e negro como a noite. Baixei-me, fechando os olhos com força, como quem antecipa o ataque. Um súbito peso no ombro; garras firmando o seu ponto de apoio. Quando me endireitei, um bico ameaçador surgiu ao nível dos meus olhos, segurando num objecto pequeno que reluzia, com um brilho verde, ao luar. O anel. Fiacha trouxera-me o anel. Assim que peguei nele e o enfiei no dedo, uma voz adorada, familiar, que vinha da margem do rio, mais abaixo, disse:
- Clodagh, apanha!
Ele estava ali. Cathal estava ali. Naquele momento de alegria, senti alívio, e depois vi a mão de Mac Dara a apontar para mim, e a chama explodindo de novo dos seus dedos. O manto de Cathal atravessou o fogo na minha direcção. Ao tentar apanhá-lo, as minhas botas escorregaram perigosamente no tronco. O corvo voou para longe do perigo e, de alguma maneira, o manto veio parar aos meus ombros e o capuz envolveu-me a cabeça. Tu tens o anel. Cathal tem o colar. Estamos perto do portal. Não te atrevas a perder o equilíbrio.
- Oh, tira o capuz. - Era a voz de Mac Dara, arrastada e preguiçosa. - Deixa-nos ver essa cabeleira flamejante a levantar-se.
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O fogo cresceu de ambos os lados, tórrido, em turbilhão. Encolhi-me no interior do manto, com o coração a trovejar, e o braseiro sinistro mergulhou, com um silvo, dentro do rio.
- Louco! - cuspiu Mac Dara, já sem o tom de troça de há pouco. Não era a mim que ele se dirigia. - Desperdiçarias todas as riquezas que te ofereço por ela? Ela não é nada. Não é bonita sequer, mesmo numa escala humana, e é uma metediça. Insiste nisto e serei obrigado a mostrar-te quão descartável é a tua amiguinha.
- Clodagh - disse Cathal. Estava de pé, não muito longe na margem do rio, com um ar perfeitamente tranquilo. Tinha os olhos fixos no pai e não os desviou sequer para olhar para mim. - Confia em mim.
- Pois, é isso - disse Mac Dara. - Tal como confiou na tua mão da última vez que caiu em águas profundas. Os pequenos truques que aprendeste desde que aqui estás são insignificantes, Cathal. Contra a minha magia, são como velas acesas no meio de um grande incêndio. Tive esperança de que o meu filho tivesse sido feito a partir do meu molde: um amante, um guerreiro, um chefe ímpar. Quanto tempo terei de esperar até que essa promessa seja cumprida?
- Esperarás para sempre.
Cathal ficou no lugar onde estava, descontraído e imóvel, as mãos soltas ao lado do corpo, o olhar fixo no do pai.
- O meu futuro reside no mundo dos humanos. com Clodagh. Não quero nada daquilo que me ofereces. Não quero riquezas nem poder, não tenho qualquer interesse pela arte da magia.
- Não? - Mac Dara arqueou as sobrancelhas. - Custa-me a acreditar. Talvez te sintas frustrado com a lentidão com que progrides, mas podes aprender, Cathal. Agora mesmo, desviaste aquelas chamas, não foi? - Estaria enganada, ou seria que uma leve nota de incerteza lhe toldara a voz? - Quanto ao poder e às riquezas, não existe um único homem no mundo que não as deseje.
A corrente puxava como um cavalo selvagem. A água tinha subido, dava-me pelos joelhos, embora eu não tivesse dado um passo sequer na ponte submersa. Doíam-me as costas. Doíam-me as pernas. Sentia-me tonta. Já tens o anel, tens o anel, cantei em silêncio.
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Sê corajosa. Sê forte. Senti o corpo sacudir-se em arrepios convulsivos, prio ou medo? Talvez ambos. Apesar disso, apercebi-me de alguma actividade por cima de mim. Nas árvores das duas margens, no ar sobre a ponte, havia um movimento contínuo, sussurrante, como um ruído de asas ou a passagem da brisa pela copa das árvores. Pareceu-me imperativo não olhar para cima. Identifiquei um desígnio na postura de Cathal, uma resolução no modo como sustinha o olhar do pai. Fiquei tão quieta como pude, pedindo às minhas pernas que me segurassem mais um pouco.
Uma vaga abateu-se sobre mim. O rio não só estava a subir, como estava a mudar. O seu curso tranquilo tornara-se turbulento, a superfície da água pulava, salpicava e criava nuvens de vapor como se uma mão maldosa a agitasse. Não se contentando em queimar-me viva, Mac Dara queria afogar-me. A água subiu-me até às ancas, à cintura, e não consegui manter o equilíbrio por muito tempo. Quando desabei, arquejando de terror, duas linhas caíram em ambos os lados, cordas verdes, sólidas, que atravessavam o rio à altura da minha cintura. Agarrei primeiro numa, depois na outra, apalpando terreno para firmar as botas sobre o tronco. Não havia tempo para interrogações. Agarrei-me, sorvendo o ar, trémula, e senti madeira sólida por baixo dos pés. Ele não pode matar-me se eu tiver o anel, lembrei a mim própria, enquanto as árvores, a água e a margem do rio começavam a girar à minha volta e se fundiam num nevoeiro. Ondas despenhavam-se em ambas as margens com o som de uma explosão; o rio estava tão picado como se fluísse por cima de rochas denteadas. Nuvens de salpicos dançavam à minha volta enquanto as águas continuavam a subir, o seu amplexo ansioso e arrepiante. Fechei os olhos, agarrei as cordas e rezei.
A voz de Cathal ressoou, então, na atmosfera, fria e nítida.
- Acabou, pai.
Quando abri os olhos, vi-o levantar a mão e gesticular na direcção da água. Foi um movimento gracioso e fluido, que fazia lembrar a dança das frondes na corrente.
O rio acalmou-se. A misteriosa turbulência abrandou; a superfície tornou-se tão lisa e espelhada como a de um lago na floresta.
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Vacilei sobre o tronco, com o peito a latejar e o vestido encharcado, enquanto o nível da água descia até me dar pelos tornozelos. O lugar tornou-se seguro, apesar do estranho murmúrio que vinha de cima. Sobre a margem, Mac Dara parecia uma estátua de mármore branco, estupefacta e incrédula, observando o filho que agora olhava para cima, para as árvores na outra margem do rio.
Segui o olhar de Cathal. Centenas de pequenas figuras cercavam o velho salgueiro, correndo pelos ramos, rápidas e ágeis como esquilos. Passavam e voltaram a passar, trabalhando com dedos que lembravam galhos, pálidos e esguios. E, na margem mais próxima, outros desempenhavam as mesmas tarefas, tecendo, fabricando, lançando cordas de videiras e trepadeiras que ligavam as duas margens. Teciam tão depressa! Aquela arte enraizava-se numa magia profunda, invocada na Terra e no Céu, e enquanto os observava sustive a respiração. Num piscar de olhos, lançaram uma terceira corda sobre o leito do rio, e uma quarta. com aquele apoio e a água baixa e calma, uma mulher ou um homem confiantes podiam tentar a travessia, mesmo durante a noite.
Vi Mac Dara levantar o braço e baixá-lo de novo enquanto Cathal dizia:
- Não, pai. Até as ondas mãos humanas domarem, lembras-te? Graças à minha mãe, essa mulher corajosa a quem fizeste tanto mal, posso reclamar o meu sangue humano. E, graças a ela, tenho um certo jeito para lidar com a água. Chegaste tarde de mais. O feitiço quebrou-se.
Cathal desceu até à beira rio. Enquanto isso, uma pequena figura de manto cinzento emergiu da floresta, mais acima. com uma mão segurava a máscara de cão prateada que lhe cobria o rosto; na outra, levava o saco de Cathal. Mac Dara observou, imóvel, a criatura escorregar pela riba e juntar-se ao seu filho, à beira-rio. Na margem oposta, vi o ouriço-cacheiro-anão fixar uma corda com firmeza, o ser que fazia lembrar uma rocha entregar algo lá em cima, ao povo nas árvores, e a criatura com cara de coruja empoleirada num ramo baixo, aparentemente a dar instruções. Sustive a respiração. Até velhos rivais amigos se tornarem. Cathal tinha conseguido. Ganhara a confiança daquele povo e quebrara o feitiço.
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- Obrigada - disse a Máscara-de-Cão, pegando no saco. por favor, transmite a minha mais profunda gratidão a todos os teus. Sem a tua ajuda, e sem a ajuda deles - Cathal olhou de relance para cima, para as criaturas que estavam em cima das árvores, que tinham concluído a sua construção e se seguravam agora, meio ocultas, na folhagem, os olhos brilhantes muito atentos - nunca teria sido capaz de encontrar o caminho para fora deste lugar. Fico em dívida para convosco.
Mac Dara desistira de lançar relâmpagos de fogo. Continuava imóvel, com uma fixidez que não era do nosso mundo, e o rosto branco como a cal. Nos olhos, um desalento; fazia lembrar a minha mãe quando lhe contámos que Finbar tinha sido levado. Compreendi, naquele momento, que o amor nem sempre é simples; que as decisões que tomamos podem ser certas e erradas ao mesmo tempo. E mesmo com a esperança a rebentar-me com força no peito e a casa tão perto, quase podia senti-lo - sabia que aquele olhar de desalento me ficaria gravado para sempre na memória. Mac Dara abriu a boca para falar e eu encolhi-me, esperando uma praga, um feitiço, alguma tentativa derradeira e maligna de praticar feitiçaria. Mas limitou-se a dizer:
- Enganei-me.
Não foi uma desculpa; seria incapaz de fazê-lo. Foi o reconhecimento de que o seu filho era, de facto, tudo o que o pai esperara que ele fosse, e que essa consciência lhe chegara tarde de mais.
O feitiço tinha sido quebrado. Não havia como refazê-lo.
- Adeus, pai - disse Cathal. - Agora vou para casa. Subestimaste-me. Durante todo este tempo em que me mantiveste aqui preso, passei cada instante a preparar-me para sair. Aprendi novos talentos; pus em prática aqueles que tinha adquirido no mundo dos humanos, como a capacidade de fazer alianças e de saber em quem podemos confiar. E comecei a aprender a sabedoria e o ofício da família da minha mãe. Houve uma coisa que não foste capaz de entender: para mim, a esperança nunca morreu. - Cathal olhou para cima, para a copa das árvores. - Nunca esquecerei a ajuda que me deram - disse, e o estranho povo que aí estava inclinou a cabeça, como se ele fosse um rei.
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Depois, subiu para a ponte, virando as costas ao Outro Mundo. com as mãos nas cordas de segurança, atravessámos para o outro lado e a água estava tão tranquila por baixo dos nossos pés que se viam pequenos peixes a cintilar no fundo do rio, iluminados pelo luar.
- Adeus - chegou-nos a voz de Máscara-de-Cão, mas, quando olhei para trás, a pequena criatura não estava na margem, apenas Mac Dara, com o manto negro, o rosto lívido, os lábios cerrados e sepulcrais e, por cima dele, nos salgueiros, as silhuetas do povo das árvores com as suas roupagens de folhas, teias de aranha e musgo, rostos estranhos e cabelos arrastados pelo vento. Por momentos, vi-a, nos ramos mais altos - uma criatura com uma forma parecida com a minha, feminina, pequena e elegante, de olhos grandes e brilhantes na luz indistinta de uma Lua invisível, e cujo corpo parecia ser feito dos materiais mais sublimes que a floresta tinha para oferecer. Numa bolsa que levava às costas, trazia um bebé enrolado num xaile de lã e, antes de desaparecer, acenou-me num gesto de saudação e de despedida. Depois, trepou pela abóbada de ramos e perdi-a de vista.
Noutras circunstâncias, eu teria achado a travessia assustadora, porque a ponte submersa ainda estava escorregadia e as cordas feitas de caules finos ofereciam um apoio pouco sólido. Mas agora caminhava com a cabeça erguida e as costas direitas, como um guerreiro depois de uma batalha comprida e bem travada. Mesmo antes de chegarmos à outra margem, lembrei-me de algo.
- Pé direito primeiro, Cathal - disse-lhe.
- Claro - retorquiu a voz dele atrás de mim, agora trémula, embora eu não soubesse se de riso ou de exaustão. A ponte não se estendia até à outra margem. Terminava junto do velho salgueiro e, como tal, não descemos em terra seca, mas dentro de água, que nos dava pelos joelhos, num chão forrado de seixos redondos que se deslocavam por baixo dos nossos pés. Quando escorreguei e quase caí, Cathal segurou-me. Quando ele vacilou, à beira de perder o equilíbrio, eu apoiei-o. Assim que subimos para a margem, com o pé direito primeiro, a floresta à nossa frente encheu-se de luz: os raios dourados da madrugada romperam de súbito, oblíquos, a folhagem primaveril, os pássaros chilreavam os seus cânticos, as flores mostraram os seus rostos minúsculos e brilhantes na sombra mos-
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queada por baixo dos carvalhos. De repente, senti as faces molhadas de lágrimas e, quando olhei para cima, vi que Cathal também estava a chorar.
- Chegámos a casa - disse-lhe. - Finalmente chegámos a casa. Ele abraçou-me, puxando-me para junto de si.
- Sabes - sussurrou -, prometi-te um dia que te diria qual era a sensação de chorar à tua frente. É boa. É melhor do que alguma vez podia ter imaginado. - Fez uma pausa. - Clodagh, é verdade que prometeste ao meu pai o teu primeiro filho?
- Não propriamente - respondi, trémula. - Formulei-o com cuidado. Se eu concebesse uma criança ontem à noite, depois de deitar-me contigo, e se essa criança fosse um rapaz, eu entregar-lho-ia quando ele fizesse sete anos. O teu pai concordou, com uma condição: caso, no acto, te revelasses incapaz - que era o que ele esperava -, eu deitar-me-ia com ele na noite seguinte e abdicaria de qualquer filho que resultasse dessa união. Não fiques assim, Cathal. Se eu não tivesse um plano, Mac Dara nem sequer me deixaria ver-te. E não nos deixaria certamente passar nenhum tempo juntos.
Cathal assobiou baixinho.
- O que é que te deu para correres esse risco? Tornaste-te pior do que eu. E que história é essa de eu ser incapaz? Acreditaste que o tempo que passei naquele lugar me teria emasculado?
- Claro que não - respondi. - Mas pensei que conseguirias dominar os teus instintos. Conhecendo a história da tua mãe, imaginei que fosse importante para ti esperar até nos casarmos para partilhar a mesma cama. Durante todo este tempo, acreditei que, se eu chegasse ao lugar onde estavas, tu serias capaz de nos tirar dali em segurança.
- Por todos os deuses - observou, com brandura. - Tendo em conta a história da nossa relação, a tua confiança em mim é extraordinária.
- Eu acredito no homem que és - retorqui, sentindo como estava exausta e como o corpo me doía de muitas dores e tensões acumuladas, embora me sentisse mais feliz do que jamais tinha sido em toda a minha vida. - Amo esse homem, com todas as suas estranhezas e artifícios.
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- Mas sabes que não é verdade, não sabes? - observou.
- O quê?
- Que eu não ia querer deitar-me contigo antes de nos casarmos. A noite de ontem foi por um triz, não sei se te apercebeste, mas estivemos perto.
Dei por mim a corar.
- Apercebi-me, sim, Cathal.
- De qualquer modo, tens razão - disse-me. - Seria correcto esperar. Pode não ser o que nós queremos, mas é o que devemos fazer. Ainda temos alguns desafios à nossa frente, Clodagh. O teu pai...
- Ele acabará por aceitar a ideia.
- Sou o tipo de homem que nunca figuraria na lista de maridos potenciais para as suas preciosas filhas.
- Chiu - sussurrei, parando e pondo-me em bicos de pés, para lhe dar um beijo na bochecha. - Tu és o filho de um príncipe, não és? Estás muito bem qualificado. É melhor continuarmos a andar. Não sei por quanto tempo as minhas pernas vão poder suster-me.
Só olhei para trás uma vez e se, ainda há instantes, o Outro Mundo se situava na margem oposta do rio, agora já não havia vestígios da sua existência. Em ambos os lados do curso de água, a floresta reluzia com a luz da Primavera; em ambas as margens, brilhava o sol da manhã, as flores desabrochavam e as árvores erguiam-se, altivas, com os trajes da nova estação. Algures lá em cima, um pássaro cantava como se o seu coração pudesse explodir de alegria.
- Desta vez, não há ninguém à nossa espera - murmurei, enquanto subíamos uma colina, olhando em volta à procura de sinais que nos ajudassem a identificar aquele lugar. - E parece que Fiacha regressou directamente a casa.
Chegámos a um sítio onde uma árvore tombada se atravessava no caminho e, sem dizer palavra, sentámo-nos, encostados ao tronco. Afinal, não me parecia que fosse assim tão urgente continuar a caminhar, chegar a Sevenwaters, explicarmo-nos. Naquele momento, só queríamos estar ali, juntos, longe do resto do mundo. Começámos a tomar consciência da imensidão de tudo aquilo que nos
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acontecera. E essa consciência criou um silêncio entre nós. Senti uma tensão no corpo de Cathal e, quando olhei para ele, vi que se debatia num qualquer conflito interior.
- Passou muito tempo, não foi? - perguntei-lhe, por fim. - E provavelmente passará outro tanto, até nos reconciliarmos com isso. Sete ciclos lunares, foi o que o teu pai disse. Mas talvez tenham sido mais. Vi Becan. Cresceu muito.
- Foi longo - disse Cathal. - E eu estou cansado. Mas vai passar. Clodagh, antes de continuarmos, tenho de contar-te algumas coisas; coisas que precisas de saber.
- Conta-me, então - disse-lhe. - Podias começar por explicar-me como é que conseguiste estar ali, com o povo das árvores, naquele preciso momento. Foi Fiacha quem te conduziu? E quem é Fiacha ao certo?
- Não sei dizer-te o que é o corvo - respondeu. - Um ser antigo e poderoso, é tudo o que sei. Sim, ele conduziu-me ao portal, mas os meus instintos ter-me-iam guiado de qualquer maneira, tal como aconteceu no dia em que te levei ao Outro Mundo.
- Quanto ao que tu fizeste... Não sei o que dizer a esse respeito. Tenho uma pergunta a fazer-te.
- Pergunta, Clodagh.
- Se Mac Dara lançou o feitiço original, incluindo a parte de domar as ondas, que diabo lhe passou pela cabeça para me intimidar através de um rio revolto? Teria sido certamente mais seguro para ele recambiar-me para casa através de um daqueles túneis que os pequenos seres usam para circular entre os dois mundos. Devia ter escolhido um lugar sem uma gota de água à vista.
- Ah - murmurou Cathal. Naquele momento, evitou olhar-me nos olhos. - Já esperava que me perguntasses isso. Na verdade, não foi o meu pai que provocou aquelas ondas. Fui eu.
E, enquanto eu olhava para ele, sem saber se o que sentia era admiração ou horror, acrescentou:
- Lamento que tenhas ficado assustada. Foi a única coisa de que me lembrei para quebrar o feitiço e tirar-nos dali: fazer as ondas primeiro e, depois, acalmá-las. O meu pai não sonharia sequer que eu era capaz de uma proeza semelhante. Nunca deixei que ele per-
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cebesse que eu estava a aprender algo de útil. Nunca lhe mostrei que possuía alguma aptidão natural para a magia. Quanto à outra parte do feitiço, os velhos rivais, já a tinha resolvido; já há muito que se haviam tornado amigos e aliados. A sua capacidade de se esconderem um pouco por todo o lado, de se fundirem e misturarem, tornou possível persuadi-los sem o conhecimento do meu pai. Eles deram o primeiro passo; isso surpreendeu-me. Foi por tua causa que o fizeram, Clodagh. A tua coragem impressionou-os profundamente. Quanto às ondas, houve um momento difícil quando percebi que tinhas perdido o anel, mas Fiacha tem uma visão formidável.
- Talvez demore algum tempo a perdoar-te - disse-lhe, fazendo um esforço para sorrir. - E nunca mais poderás fingir à minha frente que és um guerreiro comum, sem um toque do sobrenatural. Não admira que o teu pai parecesse vidrado. Como é que aprendeste a fazer uma coisa tão poderosa?
Cathal apertou a minha mão com mais força.
- Lembrei-me de uma coisa, de uma velha memória de infância - respondeu. - Caminhar à beira de água e sentir que podia alterar a forma das ondas, se pensasse nisso com muita força. Conquistei a amizade dos Anciãos; levou tempo e foi preciso alguma paciência. Eles, por sua vez, trouxeram-me a história da minha mãe e guiaram-me no caminho da aprendizagem. Mas sou apenas um principiante, Clodagh. Jamais em tempo algum quis que Mac Dara te levasse. Quando recorreste ao talismã para nos esconderes, ele foi demasiado rápido para mim. O que ele não percebeu é que eu podia chamar ajuda quando precisasse dela. Não desperdicei o meu tempo no Outro Mundo. Estudei muito e forjei alianças com aqueles que estavam descontentes com o reinado do meu pai, e havia muitos. Os Anciãos agiram como intermediários. Mais cedo, o povo das árvores prometeu ajudar-me; sentiam-se em dívida para comigo, porque tinhas tomado conta de Becan. Temi que pagassem um preço elevado por virem em nosso socorro. Mas eles compreenderam esse risco. Clodagh, agora sei viajar de outras maneiras; posso perseguir o rasto do meu pai, como ele persegue o meu. O medo deu-me asas quando soube que ele te tinha levado. Fiacha indicou o caminho.
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Alertei os meus amigos; eles vieram em meu auxílio, como tinham prometido. Quanto aos truques com a água do rio... - por momentos, Cathal pareceu-me muito jovem e nada seguro de si. - Lamento muito que tenhas tido de passar por isso. A minha intenção era atravessarmos juntos. Só queria, com todas as minhas forças, correr até lá abaixo e trazer-te para uma zona segura. Foi preciso uma enorme contenção para ficar onde estava e prender o olhar dele com o meu. Devo confessar-te que não esperava que os meus feitiços funcionassem. Podias ter-te queimado. Podias ter-te afogado.
- Eu tinha o manto - contrapus, sem gostar da sombra que surgira nos seus olhos. - E o anel.
- Mesmo assim. Parecia pouco convencido.
- Julguei que o povo das árvores não era suficientemente forte para combater a magia de Mac Dara - comentei. - Tenho a certeza de que Máscara-de-Cão sugeriu isso.
- Sozinhos, não conseguiriam enfrentá-lo - disse Cathal.
- Mas, no fim, não estavam sozinhos. Estavam comigo.
- Johnny teria ficado impressionado - comentei, maravilhada, pensando que a maneira como o estranho povo das árvores olhara para Cathal, com temor e reverência, não fora assim tão surpreendente, uma vez que ele se tinha tornado um príncipe e um chefe.
Cathal sorriu; o aspecto pálido e oprimido desvaneceu-se ligeiramente.
- Talvez ficasse, embora ele devesse colher uma parte dos louros. Sem o treino que nos deu e o exemplo de carácter que nos mostrava diariamente na ilha, eu não teria tido forças para suportar esta longa provação. Quanto aos talentos invulgares que adquiri, podem ser vistos como uma coisa simultaneamente boa e má, uma bênção e um fardo. A diferença reside nas intenções de quem os usa. Mas não porei esses dons em prática neste mundo, Clodagh; a não ser que o meu pai...
- Achas que ele vai continuar a perseguir-te, a tentar convencer-te a passar para o outro lado?
Era uma ideia arrepiante.
- Ele não gosta de ser vencido. Penso que nunca lhe ocorreu que eu pudesse travar amizade com povos que, no seu entender, são
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as raças menores deste reino, apesar da pista no verso que ele próprio criou. Considera-os insignificantes. Não percebe que aí também se encontram bons corações, embora lentos a confiar. A influência de Mac Dara não se estende a todas as terras e gentes do Outro Mundo, por muito que ele o desejasse.
Não tive coragem para lhe dizer o que me ia na mente: que esses povos queriam que ele voltasse, que permanecesse e enfrentasse o pai e até, quem sabe, transformasse o mundo onde viviam num lugar melhor e mais luminoso. A ideia, de qualquer modo, estava presente - uma sombra no limiar da felicidade daquele dia.
- Ficou certamente zangado por ver-nos escapar - comentei.
- Mas também ficou triste. O que ele disse a propósito de ter ficado desiludido contigo é um disparate. Imagino que ser vencido por ti fê-lo sentir orgulho, embora lhe partisse o coração. Se ele ainda te quiser de volta, não é para castigar-te; é porque tu és filho dele e, à sua maneira, ele ama-te.
Cathal esboçou um sorriso contrafeito.
- Isso é precisamente aquilo que eu esperava que tu dissesses, Clodagh. O teu coração está tão cheio de afecto e de amor que até consegues ver o bem num tirano empedernido como Mac Dara.
Cathal fez uma pausa, observando as nossas mãos enlaçadas.
- Clodagh, tenho de dizer-te uma coisa antes de continuarmos. Sei o que a tua família significa para ti. Para mim, tu és a coisa mais valiosa no mundo. Mas não posso ficar em Sevenwaters. Não consigo viver na casa e no contexto familiar em que cresceste. Não se trata apenas de não estar à vontade no meio dessas pessoas e de não saber viver segundo aquelas regras. Se eu me instalasse aqui contigo, era capaz de atrair a fúria do meu pai sobre toda a tua família. E colocava-te a ti de certeza numa posição de perigo. Ele sabe que tu és a ferramenta com que mais facilmente me controla. Só consegui manter-me longe do seu alcance, nestes últimos anos no nosso mundo, porque vivia em Inis Eala, onde estava protegido. Clodagh...
- Eu já sei disso, Cathal - disse-lhe, soerguendo-me, de maneira a ficar de joelhos, e virando-me para olhá-lo nos olhos. Deuses, estava magro e consumido. - Presumi que, quando nos casas-
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semos, viveríamos em Inis Eala. Sim, terei saudades de Sevenwaters, mas também tenho família na ilha. E conhecimentos que podem tornar-se úteis aí. Sei que não há lugar para gente preguiçosa nessa comunidade.
Cathal pôs-se de joelhos e puxou-me para si.
- Tens a certeza? - perguntou, com os lábios encostados ao meu cabelo. - Tens a certeza de que queres casar-te comigo, sabendo de quem eu sou filho? Ele não vai esquecer essa promessa da qual te libertaste a ti própria, sabes? Se nós tivermos filhos - filhos homens - eles passarão a vida em risco. Ficaremos mais ou menos encurralados naquela ilha. Mac Dara não vai desistir dos seus esforços para me recuperar, e tu serás um alvo porque poderá usar-te para forçar a minha anuência. É possível que não seja uma grande vida para ti, Clodagh.
- É a vida que eu quero. Eu quero estar contigo, Cathal. Nada mais me interessa.
Os seus braços envolveram-me com mais força.
- Porque é que abdicarias de tanto só por minha causa?
- perguntou, num tom de assombro.
- Tu abdicaste de quase tudo por mim - retorqui. - A razão é precisamente a mesma. Eu amo-te. É tão simples como isso.
Toquei no colar que ele trazia ao pescoço, com a sua pedra branca.
- Tenho de perguntar-te uma coisa - disse-lhe. - É evidente que desenvolveste um grande talento nas artes mágicas, embora te consideres ainda um principiante. Talvez pudesses ter fugido mais cedo, usando os teus poderes e as alianças que conseguiste forjar. Talvez já fosses suficientemente forte para derrotá-lo.
- Não sem ti - declarou, numa voz tão definitiva que acreditei nele de imediato. - És o meu talismã, Clodagh. Para deixar aquele lugar em segurança, eu precisava de ti ao meu lado. Tenho tanta certeza disso como do facto de as folhas do carvalho caírem no Outono. Durante todo esse longo período de espera, mesmo nos momentos de maior desânimo, nunca perdi a fé de que voltarias para vir buscar-me. Nunca deixei de me sentir admirado por me amares, a mim, um forasteiro, um homem que te tinha ofendido, ig-
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norado, provocado apenas sofrimento. Esse espanto acompanhar-me-á todos os dias da minha vida. Contigo ao meu lado, sinto-me... Sinto-me vestido de amor. Enterneci-me.
- Quando puseste o anel no meu dedo - sussurrei -, ele encheu-me o coração de alegria, Cathal. Nunca mais quero dizer adeus.
Ficámos algum tempo nos braços um do outro, em silêncio, enquanto as criaturas da floresta cantavam, chilreavam e rumorejavam à nossa volta naquele dia de calor.
- Terei de explicar tudo ajohnny - disse Cathal. - Tenho de ficar na ilha e treinar outros; não poderei acompanhá-lo nas suas missões. Espero que ele possa conservar-me, apesar dessa limitação.
- É claro que vai conservar-te - repliquei. - E talvez, com o tempo, o Senhor do Carvalho deixe de ter o mesmo domínio sobre este território. É possível que um dia se torne seguro para nós e para os nossos filhos, se os tivermos, ir para mais longe. Até no mundo das Criaturas Encantadas, o tempo passa e o equilíbrio de poder altera-se.
Lembrei-me das palavras de Ciarán: Ainda não é altura de eu declarar guerra a Mac Dara. Dizê-lo era insinuar que esse momento haveria de chegar um dia. Quando chegasse, o meu tio tencionava enfrentar o Senhor do Carvalho sozinho.
- Se tens a certeza - disse Cathal.
- Tenho a certeza.
Levantámo-nos, mas, antes de retomarmos caminho, eu pus-me em bicos de pés e beijei-o, mostrando-lhe que não havia uma sombra de hesitação na matéria. O beijo que ele me devolveu fez disparar a temperatura do meu corpo. Era difícil resistir ao impulso de nos afundarmos no chão da floresta, de nos deitarmos abraçados na quietude daquela manhã de Primavera e de fruirmos um do outro até à saciedade. Mas contivemo-nos. Ele afastou os seus lábios dos meus. Eu recuei um passo. Ele estava corado; eu respirava aos bochechos. Momentos depois, explodimos ambos numa gargalhada nervosa.
- Vamos, então - disse-lhe. - Vamos para casa. Pensa naquela cama confortável. Talvez consigamos convencer o meu pai
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a fazer a cerimónia dos Punhos Ligados muito em breve. Espero que Ciarán aceite conduzir o ritual.
- Tenho um novo verso para a tua canção - disse-me, enquanto caminhávamos. - Tentei imaginar, enquanto esperava por ti naquele mundo, como é que podia acabar. Concebi várias versões, mas, tendo em conta o desenvolvimento da história, esta é mais adequada:
Por onde andaste, meu querido, meu amor
Por onde andaste, galante senhor?
Conheci uma jovem de cabelos como chamas
Ela abriu-me o coração e baniu a minha infâmia.
- E depois, é claro - prosseguiu, - precisarias de um novo final, uma vez que o jovem galante encontrou finalmente o caminho para casa.
Os meus olhos encheram-se, de súbito, de lágrimas.
- Podia ser mais ou menos assim: Juntos, acharemos o caminho para casa - rematei. - Pensei que não sabias cantar.
- Por ti, meu amor - disse Cathal -, estou preparado para tentar quase tudo.
O tempo não nos pregou mais nenhuma partida. Entrámos no pátio de Sevenwaters um dia depois de o meu pai interromper de repente o seu importante conselho, cavalgar a uma velocidade vertiginosa até aos Nemetons e levar o filho varão para casa; um dia depois de a minha mãe ter recebido a criança perdida nos seus braços. A uma certa distância da fortaleza, duas sentinelas mandaram-nos parar, identificaram-nos e deixaram-nos passar. Fomos observados com curiosidade - talvez não fosse do conhecimento geral que Cathal me acompanhava, ou talvez a sua aparência os tenha intrigado. Era como se tudo nele se tivesse agudizado ao longo desse período de ausência: Cathal estava mais alto, mais magro, mais pálido, os seus olhos mais intensos. Se antes já era uma presença impressionante, agora tinha um ar perigoso.
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A primeira pessoa que vimos no pátio foi Sigurd, que estava de vigia.
- Pelo martelo de Thor! - exclamou o imponente homem do Norte, paralisado e de olhos fixos em Cathal. - O que é que te fizeram? És uma sombra de ti próprio, rapaz!
Sigurd avançou a deu uma palmada no ombro de Cathal, em calorosa saudação, recompondo-se em seguida. -Já sabes da má notícia?
- Sim, soubemos o que aconteceu a Aidan - respondi.
Outros homens deram pela nossa presença; reparei na abundância de guerreiros de Inis Eala espalhados à volta da fortaleza. Era por causa do conselho. O lugar devia estar apinhado de gente. Senti a tensão de Cathal a crescer. Acabara de sair do isolamento da cela, de uma longa batalha de espíritos, do confronto com o pai...
- Minha senhora, a casa está cheia. Neste momento, estão todos a sentar-se para tomar o pequeno-almoço. Não vai querer entrar directamente no salão.
Os seus olhos regressaram a Cathal, avaliadores.
- Podias entrar discretamente e avisar Johnny de que estamos aqui? - pedi ao nórdico. - Tens razão, é melhor não criarmos uma confusão à frente dos convidados do meu pai. Esperaremos no jardim de ervas aromáticas. E, por favor, certifica-te de que os outros homens não comentam a nossa chegada antes de os meus pais serem notificados.
Dirigimo-nos ao pequeno jardim murado ao lado da porta da despensa. Era um lugar tranquilo, com bancos de pedra à sombra de árvores em flor e um lilás adorável no centro. O ar enchera-se dos aromas terapêuticos da lavanda e do timo. Entra no sonho de timo, cai no fim do firmamento... Nunca mais sentiria o mesmo a respeito daquele aroma. Cathal e eu sentámo-nos num banco, ao lado um do outro, de mãos dadas, e esperámos.
Quem nos encontrou primeiro foi o meu pai, que saiu da porta da despensa com todo o ar de chefe de clã, no seu traje dos dias de conselho: a túnica e calças pretas, a camisa de linho branca imaculada e uma capa curta. Atravessou o pequeno pátio a correr e, quando me levantei, envolveu-me num abraço muito intenso.
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- Clodagh! - exclamou, numa voz sumida. - Estás viva!
perdoa-me, perdoa-me, minha querida.
- Não tem importância - respondi, disparatadamente trémula - Compreendo o motivo por que agiu daquela forma, pai. MacDará conseguiu envolver-nos a todos na sua rede de mentiras. Como está a mãe? Está bem? E Finbar?
Mas o meu pai já se virara para Cathal e Cathal, de pé e muito quieto ao meu lado, devolvia o seu olhar com firmeza. Havia muito naquele olhar; quase demasiado. Abri a boca para explicar, mas, naquele momento, Johnny saiu de casa com um sorriso aberto no rosto tatuado e abraçou Cathal.
- Voltaste - disse o meu primo. - Graças a todos os deuses.
- Não é aos deuses que deves agradecer - disse Cathal tranquilamente. - É a Clodagh. Devo a minha presença aqui hoje inteiramente à sua intervenção.
Cathal pegou, de novo, na minha mão. Senti que a dele tremia.
A sua incerteza a respeito do futuro era real, apesar do acolhimento caloroso nos olhos de Johnny.
- Preciso que me faças o mais depressa possível um relatório
das tuas acções - disse o meu pai, ainda a olhar para Cathal.
- Temos uma série de chefes de clã influentes reunidos aqui em casa e o teu regresso tem... implicações.
Subjacente às suas palavras, desenhava-se não só a dúvida que
recaíra sobre Cathal, mas o problema de Glencarnagh e o facto de ter sido Cathal a levantar a suspeita sobre Illann.
Olhei para Johnny, tentando não ser muito óbvia.
- Estamos os dois muito cansados - disse-lhes. - Muitas das coisas que temos para contar podem esperar, não podem? Mas tenho de falar-vos de Glencarnagh...
Rostos, muros, arbustos começaram a girar à minha volta e deixei-me cair no banco.
- Desculpem - murmurei, enquanto Cathal se veio sentar ao
meu lado, colocando-me o braço sobre os ombros.
- Glencarnagh? - repetiu, num tom inquisitivo, como se nunca tivesse ouvido aquele nome. Levei alguns instantes a recordar que ele estivera ausente muito tempo.
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- A herdade do meu pai, que foi atacada e incendiada - respondi, vendo os olhares perplexos dos outros homens. Deuses, a minha cabeça estava estranha. Só me apetecia tomar um banho e dormir. - Pai, Mac Dara, o pai de Cathal, disse-me que o ataque tinha sido obra sua. Posso explicar melhor, mais tarde. Se ainda é uma fonte de problemas entre si e Illann, não devia ser. Illann não teve nada a ver com o que aconteceu.
O pai e Johnny trocaram olhares e depois viraram-se para Cathal, que se levantou.
- Clodagh e eu ainda não tivemos oportunidade de discutir esse assunto em particular - disse, endireitando os ombros. - Parece que já foi há tanto tempo... Vão querer que vos explique o motivo da minha súbita partida de Sevenwaters... e outras coisas.
- Terás certamente algumas explicações a dar - disse o meu pai. - Gerou-se um conflito. E se aquilo que Clodagh nos acabou de dizer é verdade, talvez haja agora meios de resolvê-lo enquanto os chefes de clã ainda se encontram em Sevenwaters, para o conselho. É um assunto urgente.
- Bem-vinda a casa, Clodagh! - Gareth apareceu à entrada da despensa. - E tu também, meu amigo! Por tudo o que é sagrado, homem, parece que já não dormes há dias - observou, olhando para Cathal com uma clara preocupação. - Presumo que já te contaram o que aconteceu a Aidan. Uma perda terrível; lamento muito.
- Olhou para o meu pai e para Johnny. - vou levar este rapaz comigo para comer qualquer coisa e descansar, posso?
- Não é preciso - retorquiu Cathal. - Se tiver de apresentar o meu relatório agora, fá-lo-ei, Lorde Sean.
Foi uma tentativa corajosa de parecer acordado e capaz, mas ouvi-lhe o cansaço na voz e pareceu-me que Johnny também.
- Sean, isto pode esperar até mais tarde - disse o meu primo.
- Não é todos os dias que se recupera uma filha vinda do Outro Mundo. com a tua aprovação, informarei os convidados de que a sessão completa será adiada. Penso que acolherão de boa vontade a oportunidade de descansar um pouco, a seguir ao pequeno-almoço. Cathal ser-nos-á mais útil depois de descansar e de comer alguma coisa. E vais querer levar Clodagh para cima, para ela ver a mãe.
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- Sim, com certeza - disse o meu pai. Devia estar, de facto, muito distraído, pensei, para que fosse necessário relembrar-lhe semelhante coisa. - Obrigada, Johnny. Cathal, os meus pêsames pela perda de um bom amigo; era um excelente guerreiro - observou, e tanto o tom de voz como a expressão se tinham, de certo modo, suavizado. - Clodagh, subiremos pelas escadas das traseiras. Hoje, a tua mãe está na sala do tear. A tua partida repentina provocou mais mudanças do que aquelas que imaginas. Vem, minha querida.
Eu não queria perder Cathal de vista. Mas ele ficaria igualmente bem no meio dos homens de Inis Eala. Eram os seus camaradas; cuidariam bem dele.
- Vai e descansa - disse-lhe, em voz baixa. - Não estarei longe.
Cathal levou a minha mão aos lábios, à frente dos três homens, conservando-a aí por momentos.
- Até logo - disse-me.
- Até logo - repeti, sorrindo enquanto me virava. Talvez o meu adorado parecesse exausto, consumido, envelhecido para além da idade que tinha. Mas não perdera claramente a coragem.
Seguiu-se um turbilhão de saudações, abraços, lágrimas, sorrisos e explicações balbuciadas. Quando o meu pai e eu chegámos à sala do tear, já levávamos uma comitiva atrás de nós: Sibeal, Eilis e Coll. A minha mãe estava sentada numa cadeira confortável e os restos do seu pequeno-almoço jaziam num tabuleiro ali perto. O sol da manhã entrava pela janela e apanhava-lhe uma mecha do cabelo flamejante, no sítio onde os seus caracóis excediam os limites do véu. Estava a bordar um padrão de flores primaveris numa pequena camisa. O bebé dormia ao seu lado, num cesto de salgueiro. com ela, estavam Muirrin e Eithne, a coser.
Tinha imaginado vários cenários graves para a saúde da minha mãe. Mas vi de imediato que me preocupara em vão. Ela levantou-se, abrindo bem os braços, e eu avancei para eles. Instantes depois, separámo-nos. Ambas tínhamos lágrimas nos olhos.
- Eithne - disse a minha mãe, com vivacidade -, Clodagh precisa de beber e de comer algo; vai buscar mais um tabuleiro,
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sim? E pede a alguém que leve água quente e uma tina para o seu quarto, para ela tomar um banho, por favor. Estará pronta para isso assim que tiver tomado o pequeno-almoço. Vocês, pequeninos, vão à vossa vida! Terão muito tempo para falar com Clodagh mais tarde. Não quero que a incomodem antes de ela descansar. Vamos!
Fiquei surpreendida por ver a minha mãe recuperada de uma forma tão extraordinária, uma vez que passara apenas um dia desde que Finbar lhe fora devolvido. Mas talvez não devesse admirar-me tanto. Embora a minha segunda viagem tivesse durado apenas alguns dias, segundo os meus cálculos, a primeira ausência correspondera quase a um ciclo lunar no mundo dos humanos. Lembrei-me que Ciarán me dissera que a esperança tornara a dar forças à minha mãe, que a devolvera a si própria - a esperança de que eu trouxesse Finbar para casa, são e salvo. Comoveu-me pensar que ela tinha tanta fé em mim.
Enquanto comia pão e queijo e bebia uma boa caneca de hidromel, contei, em traços largos, a minha história. Não mencionei o pacto arriscado que fizera com o Senhor do Carvalho, segundo o qual podia ter de entregar-lhe o meu primeiro filho varão, ou partilhar o seu leito. Não lhes contei toda a história de Becan. Mas expliquei que havia agora uma nova ordem no reino dos Tuatha De e que tínhamos de ser prudentes. Não verbalizei aquilo que existia entre mim e Cathal, mas devo tê-lo tornado bem claro quando descrevi a forma como Mac Dara me usara para atrair o filho para o Outro Mundo, e os riscos que corri ao regressar para trazê-lo de volta. O meu pai ouviu-me em silêncio. A minha mãe continuou a bordar, fazendo, aqui e ali, uma pergunta. Muirrin pareceu-me, em diferentes momentos, estupefacta, divertida e horrorizada.
- Por fim - concluí -, vadeámos o rio e vimo-nos de novo no nosso mundo. Fiacha levantou voo e partiu, provavelmente directo aos Nemetons, e nós caminhámos em direcção a casa pela floresta. Já há muito tempo que nenhum de nós dorme, pai, por isso espero que conceda a Cathal uma pausa de descanso, antes de chamá-lo para ouvir as suas explicações. Ele não fez nada de mal. Não teve qualquer relação com aquilo que aconteceu em Glencarnagh: foi tudo obra de Mac Dara, especificamente planeada para lançar as
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suspeitas sobre Cathal. E é claro que o Senhor do Carvalho também gosta de semear a discórdia apenas para se entreter.
Não me pareceu que o meu pai tivesse ficado tranquilizado.
- Espero que tenhas razão, Clodagh. Há a questão da acusação de Cathal contra Illann; gerou muitos problemas com os clãs do Sul. Temos hoje a possibilidade de conseguir assinar um tratado sem precedentes, com os chefes dos clãs do Sul e do Norte à mesa do conselho. Illann recusa-se a assinar, argumentando que o seu bom nome foi manchado pela dúvida que pesa sobre ele a respeito do ataque a Glencarnagh. Se esse assunto for resolvido para sua satisfação, e para minha, ainda é possível que consigamos gravar as marcas de todos os chefes de clã no tratado. Quero falar contigo e com Cathal, ao mesmo tempo, assim que tiverem descansado.
A minha mãe dirigiu-lhe um olhar particular.
- Clodagh está a dormir em pé, Sean - declarou. - Se ela disse que Mac Dara foi responsável pelo ataque, é porque ele foi mesmo responsável.
Nos seus olhos, lia-se a mensagem clara que ficara por dizer: Não acreditaste na nossa filha uma vez e repara onde é que isso te levou. Serás tolo ao ponto de reincidir, pouco tempo depois?
- Pai - disse-lhe -, já deve saber que a descrição que Cathal me fez do assalto a Glencarnagh lhe chegou através de uma Visão. Mac Dara é suficientemente poderoso para alterar as visões de Cathal, de modo a que estas sirvam os seus próprios interesses. Mac Dara só queria que Cathal ficasse em sarilhos e se visse obrigado a deixar a nossa casa e a partir, sozinho, para a floresta.
Perguntei-me, enquanto falava, se o novo Cathal, aquele que podia transformar a disposição de um rio turbulento, ainda se deixaria enganar.
- Sibeal empenhou-se seriamente em explicar-me os dons de Cathal como vidente quando fui buscar o meu filho aos Nemetons.
O meu pai olhou para baixo, para o bebé adormecido, e a severidade das suas feições atenuou-se.
- Também troquei algumas ideias com Ciarán, que parece ter a mesma fé na integridade de Cathal que tu tens, bem como Johnny. Mas é fundamental ouvirmos o que Cathal tem para dizer. Precisamos de todos os pormenores que ele conseguir fornecer-nos.
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A minha mãe pôs o bordado de lado e pegou nas minhas mãos.
- Temos uma enorme dívida para contigo, o teu pai e eu - disse-me. - Os últimos tempos puseram-nos à prova, mas não é nada comparado com o que tu sofreste; tu e este jovem que eu ainda mal conheci. Sean, é melhor desceres e apresentares-te lá em baixo, para assegurares os nossos convidados de que está tudo bem. Clodagh tem de tomar um banho e descansar um pouco. Insisto.
- Claro - murmurou o meu pai, entre dentes. - Desculpa-me, filha; fui imponderado. Este problema com Illann tem sido... tem sido difícil - confessou, colocando o polegar e o indicador sobre a cana do nariz, um sinal inequívoco de que lhe doía a cabeça.
- Na verdade, o meu desejo é que se fossem todos embora para casa para eu poder sentar-me aqui ao teu lado, até ao fim do dia. A história que nos contaste é extraordinária. Deste provas de uma coragem excepcional e arrependo-me amargamente de não te ter ouvido desde o início. Ter-te de volta a casa, em segurança, é mais do que eu mereço, minha querida. A tua mãe tem razão: tenho de ir.
Beijou-me na face e saiu.
- Vais precisar de um bálsamo para cuidar desses golpes, Clodagh - disse Muirrin, fixando o seu olhar profissional no meu rosto. - vou trazer-te alguma coisa da despensa e deixo-o no teu quarto, está bem? E vou ver se a água quente para o teu banho já está pronta.
Quando a minha irmã saiu, a minha mãe perguntou-me, em voz baixa:
- Arriscaste-te muito por este jovem, Clodagh. Quando dizes o nome dele, vejo algo nos teus olhos que me lembra aquilo que eu sentia quando cresci o suficiente para perceber que o teu pai já não era o companheiro de brincadeiras da minha infância e se tornara um homem notável. Diz-me, minha querida: é verdade o que Sibeal nos contou? É mesmo amor aquilo que sentes por Cathal?
- É sim, mãe. Sei que, a certos níveis, ele deve parecer inadequado, mas é o único homem para mim. Espero que o pai não lhe dificulte muito as coisas. Cathal passou por uma terrível provação. E ficou muito tempo naquele lugar, muito mais tempo do que aquele que fluiu no nosso mundo.
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- Se ele te merecer - replicou a minha mãe, numa voz serena - não terá dificuldades em explicar-se perante o teu pai. Glencarnagh provocou grandes distúrbios, Clodagh. Fico muito aliviada por saber que Illann não teve nada a ver com aquilo que aconteceu. Espero que o orgulho ferido não o impeça de fazer as pazes com o teu pai.
- Certamente que não - comentei, pensando em Deirdre, que ainda não tinha aparecido.
- Têm sido momentos difíceis para Sean. Foi um prodígio conseguir reunir tão depressa tantos chefes de clã e, depois, conduzi-los à concórdia. Mas Illann está amargamente ofendido e os outros chefes do Sul partilham a sua indignação; não aceitaram com bonomia a chegada de Johnny a Dun na Ri, com um grupo de guerreiros armados até aos dentes. Para agravar as preocupações do teu pai, Eoin de Lough Gall ainda não se conciliou a fundo com Illann e esta questão deu-lhe o pretexto que ele desejava para poder ser, se não abertamente hostil, pelo menos perigosamente próximo disso. Fora das conversas formais, os dois têm de ser separados.
- Antes de eu partir - disse-lhe -, o pai e Johnny desentenderam-se. E, quando estava naquele lugar, sonhei que discutiam. Como é que estão as coisas entre eles neste momento?
- Sem a presença de Johnny, Sean teria atingido o seu ponto de ruptura - respondeu-me. - O teu primo tem sido sólido e fiel, um rochedo quando Sean se sentiu à beira do desespero. Fico-lhes profundamente grata, a Johnny e aos seus homens, por terem estado aqui quando tudo isto aconteceu. Nem sempre os olhei de maneira favorável, a presença deles lembra-me demasiado os momentos negros do meu passado, mas durante esta crise vi-os brilhar, apesar de terem perdido um dos seus. Clodagh, diz-me uma coisa.
- Sim, mãe?
Já sabia o que aí vinha.
- Não é fácil aceitar que Cathal é filho de Mac Dara. Mas tudo indica que isso é verdade, e que ele estará em perigo se ficar aqui. Johnny explicou-me que Cathal não possui riqueza própria. E vai querer regressar à ilha e levar-te com ele. Ele vai pedir isso ao teu pai?
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Respondi-lhe com um aceno, reparando que as suas feições definidas, uma versão mais velha das minhas, mostravam resignação e não desagrado.
- É possível que Mac Dara persiga Cathal a vida inteira - expliquei. - Inis Eala é o único lugar onde estaremos em segurança. Perdoe-me, mãe. Nunca pensei sair de casa tão depressa. com o bebé, vai precisar de ajuda...
- Vai tomar o teu banho - disse-me. - O teu pai deve-te muito, mas tens de dar-lhe tempo para aceitar este pretendente em particular.
- É precisamente esse o problema - retorqui. - Não creio que tenhamos muito tempo.
Estremeci, lembrando-me de Aidan a cair com aquela seta disparada tão casualmente. Mac Dara podia entrar no nosso mundo sempre que quisesse.
- Não fiques assim, Clodagh. vou falar com o teu pai. Abracei-a.
- Obrigada, mãe.
Um bocejo foi mais forte do que eu.
- Vai-te lá embora - exclamou -, ou adormeces antes mesmo de entrares no banho. E não te fazia mal nenhum passares-te por água, minha querida.
Deirdre entrou de rompante, enquanto eu estava a tomar banho.
- Clodagh, estás aqui! Estás bem? Porque é que não me deixaste entrar quando tentei contactar-te?
Observei-a do lugar onde estava sentada, na tina pouco funda, com os joelhos por baixo do queixo. A água arrefecia depressa, mas eu não encontrava energia para sair.
- Estou bem - respondi, acolhendo o sumptuoso vestido da minha irmã gémea, o seu cabelo cuidadosamente tratado e as feições lívidas e perturbadas. - Completamente nua e meia a dormir, mas bem.
- Onde está Cathal? Veio contigo, não veio? Ele já falou com o pai, já lhe explicou o que disse acerca de Illann? Isso provocou tantos problemas!
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Fechei os olhos e deixei as suas palavras flutuarem à minha volta. Por fim, quando Deirdre fez uma pausa, eu disse-lhe:
- Se Cathal tiver algum juízo, neste momento estará na cama a dormir profundamente. E tem cuidado com o que dizes a seu respeito, porque ele será o teu futuro cunhado.
- O quê?
Era o mesmo que dizer-lhe que tencionava casar-me com um ogre devorador de homens.
- vou casar-me com Cathal. Vamos viver em Inis Eala. Quanto a Glencarnagh, cabe a Cathal explicar o que disse no passado. Mas está tudo bem; tenho informações que ilibam completamente Illann. Penso que o teu marido receberá alguns pedidos de desculpa antes do fim do dia. O pai só precisa de falar com Cathal e comigo primeiro.
- A sério? - o tom de Deirdre mudou abruptamente. Pareceu-me que estava quase a chorar. - Tens mesmo provas de que Illann não esteve envolvido, provas que o pai aceite? Nem posso acreditar. Foi tudo tão horrível... Durou tanto tempo... É como se se odiassem um ao outro. Esforcei-me muito para que chegassem a um acordo, Clodagh; para fazer a paz entre eles. Mas nenhum me ouvia.
- Acredita - disse-lhe, num tom melancólico. - Conheço bem a sensação. Deirdre, estou quase a dormir e o meu cabelo está imundo. Lavas-mo, por favor?
- Brighid nos salve - exclamou a minha irmã, observando-me com mais atenção. - E tu sempre foste a mais limpa e arranjada de nós as duas. Como é que arranjaste esses cortes na cara?
Deirdre procurou o sabão e uma concha, arregaçou as mangas do seu sumptuoso vestido e deitou mãos ao trabalho. Enquanto me ensaboava e esfregava, contei-lhe uma versão abreviada da minha história. Disse-lhe que lamentava não a ter deixado entrar na minha mente quando quis falar comigo, mas lembrei-lhe que tinha sido ela quem decidira pela primeira vez interromper aquela forma de comunicação. Quando acabou de lavar o meu cabelo, Deirdre embrulhou-me a cabeça numa toalha, ajudou-me a sair do banho e a vestir
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uma camisa de dormir e sentou-me diante do espelho, observando-me com um olhar crítico.
- Se tencionas casar-te, vais querer algo que ajude esses cortes a sarar e a desaparecer o mais depressa possível - disse-me.
- Nem posso acreditar que o pai tenha concordado. Um homem que é apenas semi-humano... És a última pessoa que eu esperaria ver escolher alguém tão... tão invulgar.
- O pai ainda não concordou, mas fá-lo-á. Quanto aos cortes, Muirrin deu-me um bálsamo. vou aplicá-lo enquanto me penteias o cabelo. Se não te importares de fazê-lo por mim.
Deirdre pegou no pente. Já estava muito mais calma.
- Nem posso acreditar - murmurou, entre dentes. - Hoje pode ficar tudo resolvido, este pesadelo todo entre o pai e Illann... Illann é muito orgulhoso, Clodagh. Estar sob suspeita pô-lo mesmo à prova. E os chefes de clã do Sul estão desejosos de transformar a coisa num pretexto para arranjarem sarilhos. Até Illann começar a confiar-me certos assuntos, nunca imaginei que fosse tudo tão complicado. Não fiques admirada. Afinal, casei-me com o homem. Fiz o melhor que pude para aprender essa parte da função de uma mulher de chefe de clã, como um dia me sugeriste. Pensei que estava a sair-me bem. Mas isto... tem sido um horror. Odeio ver Illann tão infeliz.
Aparentemente, tinha subestimado a minha própria irmã gémea.
- Então, esperemos que ele e o pai resolvam tudo hoje, e que todos possamos aprender com a experiência - comentei. - Tive saudades tuas, Deirdre. Lamento muito não te ter deixado entrar. Não voltarei a fazê-lo. Se precisares de mim, estarei aqui.
- Eu também - disse Deirdre. - Clodagh... Mac Dara. Chegaste mesmo a conhecê-lo naquele lugar. É tão estranho... Isto é, para mim, ele sempre foi uma personagem das histórias; é difícil imaginar que é real.
Mas era bem real; tão real como um pesadelo e tão próximo como a sombra vizinha.
- Ainda te falta muito? - perguntei-lhe. - Mal consigo manter os olhos abertos.
- Quando secar, vai ficar muito encaracolado, mas tirei os piores nós. Clodagh, mal posso acreditar que tiveste coragem de ir buscar
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Finbar. E que ainda foste mais corajosa ao partires de novo para salvares o teu homem. Eu nunca o teria feito. Tenho pena que vás viver em Inis Eala. É tão longe... Raramente nos veremos.
Virei-me e abracei-a.
- Eu sei e isso entristece-me - disse-lhe. Deirdre ia fazer-me falta. Seria sempre a minha gémea - a irmã com quem tinha um laço especial. Mas, no fundo, eu sabia que a ideia de viver na ilha com o homem que eu amava relegara rapidamente o resto da família para segundo plano. O meu mundo tinha mudado. Ao longo daquela estação, desde que Johnny trouxera Cathal para Sevenwaters, eu tinha mudado de uma maneira que nunca julgara possível.
Capítulo Dezassete
Pensei que cairia num sono profundo como a morte assim que Deirdre saísse, mas os meus pensamentos continuaram a girar em círculos e, algum tempo depois, percebendo que não ia conseguir dormir, levantei-me e tornei a vestir-me. Fui à procura das minhas irmãs mais novas, porque queria agradecer mais uma vez a Sibeal a ajuda que me tinha dado. Sibeal disse-me que não era preciso agradecer; limitara-se a fazer aquilo que qualquer irmã faria. Mas Eilis bombardeou-me com perguntas acerca da minha estadia no Outro Mundo.
- Havia pessoas com asas, Clodagh? Que tipo de cavalos tinham? E a comida? As histórias dizem que é tão deliciosa que os humanos não conseguem parar de comer e depois têm de ficar lá para sempre. Ou então, voltam para casa e morrem de desgosto e de saudade, porque a comida humana lhes sabe a cinzas.
- A única coisa que provei foi a água de um ribeiro - respondi, sentindo que estava a desiludi-la. - Pelos vistos, não me fez mal.
- E Cathal? - Eilis era insistente. - Disseste-nos que ele tinha lá ficado uma eternidade. Ele deve ter comido essa comida.
- Bem, sim, é verdade - respondi, com alguma relutância.
- Mas as regras não se aplicam a ele da mesma forma.
- Porquê? Ah, porque ele é uma espécie de mistura, não é?
- Exactamente.
- E talvez a razão por que Clodagh podia beber a água em segurança - acrescentou Sibeal - era porque um dos nossos ante-
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passados pertenceu ao povo dos Anciãos. Por isso, até nós temos um bocadinho do Outro Mundo dentro de nós.
Isto não me tinha ocorrido, mas, tendo em conta todas as maravilhas a que assistira nos últimos dias, pareceu-me perfeitamente plausível.
- Viste Deirdre da Floresta? - perguntou Eilis.
- Não - respondi. - Pensei que a tinha visto, mas não era ela. Eilis, não é uma boa ideia falar destas coisas de uma maneira demasiado livre, não enquanto a casa estiver cheia de convidados.
- Posso falar com Coll?
- Duvido que sejas capaz de conter-te - respondi secamente.
- Mas não se algum dos convidados do pai estiver por perto, compreendes?
- Sim, Clodagh.
O sorriso atrevido desmentiu as palavras de anuência. Enfim, mais tarde ou mais cedo, deixaria de ser um segredo, o facto de uma das filhas de Lorde Sean desposar um homem que era apenas semi-humano. O meu casamento faria com que fosse ainda mais importante que Eilis se casasse, como Deirdre fizera, quando chegasse a sua hora. Desejei que fosse com um homem adequado não só aos olhos do mundo, mas também aos seus.
Saí para o pátio, perguntando-me se Cathal, como eu, não teria conseguido dormir. Descendo em passeio até aos estábulos, recordei o dia em que instalara Willow na pequena selaria, quando esta visitara Sevenwaters. Pensei de novo nas suas estranhas histórias e na lentidão com que eu decifrara o significado mais recôndito daqueles contos. Os dunchauns, os símbolos mágicos escondidos na roupa, o sentido da cor verde deviam ter-me alertado para a importância do manto de Cathal, com a sua carga de talismãs concebida para protegê-lo do pai. Em vez disso, fizera-me pensar, durante algum tempo, que ele podia ser um traidor. O rapaz-lobo - vi Cathal naquela história desde o início. Reconheci nela a consciência gelada daquele que se sente sempre à margem, sempre diferente. Quanto à história da mulher fada e da sua filha semi-humana, o feitiço lan-
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çado por Albha era uma rigorosa revelação daquilo que aguardava Cathal no Outro Mundo. Cathal percebeu a história; eu só percebi quando já era quase tarde de mais. E se não tivesse abandonado o salão antes de Willow terminar, talvez tivesse descoberto, logo aí, no início, que até o feitiço mais poderoso pode ser desfeito, se conhecermos o seu segredo.
Junto dos estábulos, algo estremeceu. Semicerrei os olhos contra a luz do Sol, tentando ver. O que era aquilo à porta da selaria? Uma sombra recortada no cinzento-prateado da madeira puída? Uma figura de manto, com capuz? Senti um calafrio que me gelou até aos ossos. Mac Dara não podia estar ali, não tão cedo, pelo menos. O Senhor do Carvalho era subtil, era um conspirador. Se regressasse numa nova tentativa de atingir-me ou de atrair Cathal - quando regressasse - planearia com cuidado a sua missão. Voltei a olhar. Agora estavam aí vários homens, guerreiros de Inis Eala, conduzindo os cavalos para fora, até ao pátio. Um deles usava um manto cinzento, mas o capuz não lhe cobria a cabeça, expondo o cabelo cortado rente e as tatuagens faciais. Os outros vestiam calças e túnicas. Era um falso alarme. Talvez. Mais tarde, diria o que se tinha passado a Cathal. E contaria ao meu pai. Mac Dara não podia ter mais uma oportunidade de usar a minha família como objecto de chantagem. E preferia morrer a deixá-lo levar Cathal de novo.
- Clodagh? Virei-me, em sobressalto.
- Desculpa se te assustei - disse Gareth. Estava mesmo atrás de mim. - Mandaram-me chamar-te. Cathal já está preparado para falar com Lorde Sean.
Afinal, também não tinha conseguido dormir.
- Claro - respondi. - Onde estão eles?
- Eu levo-te.
Acompanhei-o. Depois do susto que acabara de dar a mim própria, uma escolta armada era muito bem-vinda, mesmo na minha própria casa. Voltámos a entrar pela cozinha, seguimos por um corredor, subimos um lance estreito de escadas e atravessámos uma galeria em direcção a uma série de salas de armazenamento. Era evidente que o meu pai tomara medidas para que aquele encontro tivesse lugar longe da vista dos seus convidados.
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- Gareth? - arrisquei, depois de olhar à minha volta e certificar-me de que não havia ninguém por perto.
- Sim, Clodagh?
- Houve desenvolvimentos a respeito da sucessão, agora que Finbar está fora de perigo? O meu pai já nomeou oficialmente o seu herdeiro?
Gareth esboçou um sorriso.
- Ainda não - respondeu. - Johnny disse-me que, se o tratado for assinado, Lorde Sean planeia fechar o conselho com uma declaração pública. Eles já trataram dos pormenores.
Decidi ser arrojada, uma vez que ia viver na ilha, onde os códigos sociais eram ligeiramente menos rígidos do que nos salões dos chefes de clã.
- Cathal falou-me de ti e de Johnny - disse-lhe, em voz baixa. - Espero que a decisão que o meu pai tomar a respeito da sucessão não vos faça infelizes, Gareth.
- As pessoas aprendem a aceitar soluções de compromisso
- comentou. - Aquilo que me é oferecido enche-me de alegria. O que não está ao meu alcance, não perco tempo a lamentar. Inis Eala é um bom lugar. Serás bem-vinda, Clodagh.
- Obrigada - disse-lhe, enquanto subíamos até à porta de uma câmara discreta. Gareth bateu três vezes de forma enérgica, contou até cinco e depois voltou a dar três pancadas secas.
Entrem. Era a voz do meu pai.
Gareth abriu-me a porta. Na pequena sala, reunira-se um grupo de homens formidáveis: o meu pai, acompanhado do seu tio druida, Conor, Johnny e Cathal. Conor estava sentado, uma figura tranquila com a sua túnica branca. O meu pai estava de pé, com os braços cruzados. Johnny estava ao pé da janela estreita, a olhar para o outro lado do pátio que se situava em baixo. Cathal parecia muito quieto, com os braços ao lado do tronco, os ombros direitos, a cabeça erguida. Estava virado para o meu pai, de costas para a porta. Vê-lo foi o suficiente para o meu coração começar a bater mais depressa. Seria apenas uma manhã o tempo que nos tinha afastado? Parecia uma eternidade.
- Estou aqui - anunciei, entrando, seguida de Gareth. Uma tensão percorreu o corpo de Cathal quando ouviu a minha voz e, por
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momentos, regressei àquela pequena cela, onde o vira pela primeira vez desde que Mac Dara o tinha levado. Avancei para ficar ao seu lado, enfiando o meu braço no dele. Ele libertou de um jorro o ar que sustivera. Descansei a cabeça brevemente no seu ombro. Atrás de nós, Gareth saiu e fechou a porta.
- Sê bem-vinda, filha - disse friamente o meu pai. - Cathal apresentou-nos um relatório da sua Visão a respeito de Glencarnagh e explicou os motivos porque a partilhou contigo. Este episódio causou-nos grandes perturbações; só posso ficar grato por termos, aparentemente, chegado à verdade. Agradeço aos deuses que esta guerra de palavras não se tenha transformado noutra coisa. Aquilo de que precisamos agora é de algum esclarecimento da tua parte. Podes repetir-nos exactamente aquilo Mac Dara disse acerca do assunto?
Eu nem sequer queria pensar em Mac Dara. Aquilo que eu tinha visto - ou pensado que tinha visto - ao pé dos estábulos aterrorizava-me. Mas aclarei a garganta e expliquei que Mac Dara admitira abertamente a sua responsabilidade no assalto e no incêndio, acrescentando que ele devia ter manipulado a Visão de Cathal para implicar Illann no ataque.
- O seu único objectivo era fazer com que Cathal atravessasse a fronteira para o Outro Mundo - respondi. - Mac Dara previu que Cathal me alertaria. Raptou Finbar em circunstâncias que lançariam a suspeita sobre Cathal; sabia que eu me sentiria obrigada a ir à procura do meu irmão. Assegurou-se de que eu seria a única a reconhecer Becan como um bebé real. Mac Dara sabia que Cathal insistiria em acompanhar-me. Usou o amor como uma arma: o amor que tenho pela minha família e o amor de Cathal por mim. Não pensou duas vezes no que isso podia significar para as outras pessoas, para Illann, por exemplo, ou para a mãe. As Criaturas Encantadas não compreendem o amor, não como nós o entendemos. Tudo para elas é um jogo de poder.
O meu pai não fez qualquer comentário. Em vez disso, olhou para Conor.
- É perfeitamente consistente com o meu conhecimento dos Tuatha De - disse o druida.
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- No entanto - disse o meu pai, franzindo o sobrolho -, as Criaturas Encantadas já são, há muito tempo, amigas da família de Sevenwaters. Por que razão se virariam agora contra nós, semeando a nossa desgraça sem a mais ínfima hesitação?
- Espero que não duvideis da palavra de Clodagh. - A voz de Cathal era serena, precisa e perigosa. - ... meu senhor.
O meu pai suspirou.
- Não cometerei o mesmo erro duas vezes - replicou. - Mas o quadro é inquietante. Embora fique aliviado por ver a inocência de Illann restabelecida, parece-me que em tudo isto se desenha uma ameaça ainda maior.
- Por essa ameaça, eu assumo a responsabilidade. - A tensão abandonara a voz de Cathal. - Os males que se abateram recentemente sobre a vossa família foram uma consequência directa do empenho do meu pai em recuperar-me. Se eu não tivesse vindo a Sevenwaters, Mac Dara ter-vos-ia deixado em paz.
- Nesse caso, a culpa é, pelo menos em parte, minha - acrescentou Johnny, com um sorriso tímido. - Tu argumentaste com veemência contra a tua vinda. Eu pensei que a viagem te faria bem. Da próxima vez, ouvir-te-ei com mais atenção quando apresentares razões para ficares para trás.
- Lorde Sean tem razão quando fala de uma ameaça maior - disse Cathal. - Se eu ficar aqui, o meu pai concentrará a sua atenção em Sevenwaters e recorrerá a todos os truques de que dispõe para me arrastar, de novo, para o seu reino. Quando Clodagh decidiu solidarizar-se comigo, colocou-se numa posição particularmente arriscada. Temos de falar muito em breve, meu senhor, a respeito das implicações dessa decisão. O risco que corremos torna vital agirmos depressa.
No curto silêncio que se seguiu, vi nos rostos de Johnny, de Conor, do meu pai que cada um deles percebera perfeitamente o que Cathal queria dizer.
- Trataremos dos vários assuntos numa sequência lógica - disse Conor. - Sean, parece-me que deves uma desculpa a Illann. Chamamo-lo?
- Tenho uma sugestão a fazer a esse respeito - disse Cathal.
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- Diz-nos qual é.
O tom do meu pai tinha mudado. Embora ainda não fosse caloroso, tornara-se mais casual.
- Pedirei desculpa a Illann em nome de todos nós - disse Cathal. - Dar-lhe-ei uma explicação integral. Ele é marido da vossa filha; devia saber a verdade. A culpa aqui não é vossa, Lorde Sean. No que diz respeito a Glencarnagh, agistes como qualquer chefe de clã agiria naquelas circunstâncias.
Reconheci no tom de voz, nas suas palavras, que Cathal era um líder nato e que não se subjugaria a nenhum homem. Soube ainda que, sem precisarmos de falar nisso, ele já fazia de certo modo parte da família.
- Pedir desculpa - repetiu o meu pai, fitando-o com alguma perplexidade. - Tens a certeza de que consegues alcançar o tom de humildade apropriado?
- Consigo alcançar o tom que for necessário.
- Muito bem - disse o meu pai. - Fá-lo-emos agora. Acrescentarei algumas palavras minhas; não posso permitir que carregues sozinho o peso desta situação, Cathal. Se Illann estiver preparado para aceitar o teu pedido de desculpas, talvez consigamos assinar o tratado esta noite e uma coisa boa terá decorrido desta maldita sequência de acontecimentos.
Nessa noite, depois do jantar, oito chefes de clã do Ulaid assinaram o tratado do meu pai, e Illann foi um deles. Pareceu-me um pouco reservado e à parte, mas os outros ficaram satisfeitos. Os dois chefes que não tinham comparecido no casamento de Deirdre estaj vam ambos presentes e Eoin de Lough Gall sorriu ao colocar a sua marca no pergaminho. Depois, fez um breve discurso, agradecendo ao meu pai tê-los reunido a todos na mesa do conselho e impedido que este degenerasse numa rixa, e a assistência desfez-se em gargalhadas e aplausos.
As minhas irmãs e eu permanecemos no salão a seguir ao jantar, para assistir à assinatura do tratado, que era um feito de grande importância a muitos níveis. Saímos da mesa assim que a refeição ter-
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minou e deixámo-nos ficar ao pé da lareira, enquanto os homens concluíam os seus trabalhos. Os guardas de Inis Eala estavam espalhados pelo salão, uma presença que nunca podia ser considerada discreta, uma vez que os rostos tatuados e o ar assustador dificilmente passariam despercebidos. Naquela noite, porém, parecia que Johnny lhes ordenara que não dessem nas vistas; e eles fizeram o melhor que podiam para se confundirem com o ambiente de fundo, embora os seus olhos fossem afiados como lâminas. Cathal não estava presente. Não o tinha visto desde o seu encontro com Illann. Esperei que estivesse a dormir.
- Graças aos deuses - segredou-me Deirdre ao ouvido, enquanto Conor espalhava areia sobre o documento do tratado, para a tinta secar mais depressa, e os chefes de clã se misturavam afavelmente em cima do estrado. - Assinaram, finalmente. Illann contou-me que Cathal lhe pediu desculpa esta tarde. Convenceste-o a fazer isso, Clodagh?
- Eu? Não. Foi ideia dele.
- Fiquei surpreendida - disse Deirdre. - Não parece o tipo de homem que alguma vez admitiria ter cometido um erro. É, de facto, uma estranha escolha para futuro marido, Clodagh.
- Ainda assim, espero que possas ficar para a cerimónia dos Punhos ligados.
- Para quando está marcada?
Como o nosso pai ainda não autorizara, de facto, o casamento, eu não tinha uma resposta para lhe dar. Muirrin, do meu outro lado, disse:
- Eu vou regressar a Inis Eala dentro de cerca de dez dias. Faria sentido partilharmos a mesma escolta, Clodagh.
Dez dias. Não era muito para preparar um casamento. Mas, por outro lado, eu não precisava do banquete, nem da dança ou dos convidados finos.
- É uma boa ideia - respondi. - vou falar com o pai.
- É muito cedo - comentou Deirdre, dirigindo-me um olhar desconfiado. - Não nos estás a esconder nada, Clodagh?
De início, não percebi a insinuação. Depois, lembrei-me que tinha passado tempo suficiente no mundo dos humanos para eu ter
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partilhado a minha cama com Cathal, concebido uma criança e tido os primeiros sinais da gravidez. Deuses, pensei, se as coisas tivessem seguido um rumo diferente, eu podia estar grávida dessa criança que Mac Dara tanto desejava. Podia ter saído do Outro Mundo com o filho de Cathal, ou do pai dele, no ventre e uma promessa sombria pesando sobre o meu destino.
- Não, Deirdre - respondi. - Nada de nada.
Fez-se, de súbito, silêncio no salão. Assinado o tratado, o meu pai subira para o estrado e erguera os braços, pedindo sossego.
- Meus senhores, amigos. Antes de nos retirarmos, gostaria de falar-vos brevemente de um outro assunto. Tenho pensado que, nestes tempos de instabilidade, um chefe de clã deve dar a conhecer os seus planos para a sucessão no âmbito da família. Durante muitos anos, não tive nenhum filho, embora tenha sido abençoado com seis filhas, e todas elas me são muito queridas. - O pai permitiu-se olhar de relance na nossa direcção. - Saberão certamente, depois da minha partida precipitada e rápido regresso de ontem, que a minha mulher e eu fomos há pouco tempo abençoados com um filho; uma criança que, por momentos, julgámos perdida. Graças à coragem da minha filha Clodagh, Finbar foi-nos devolvido. - O meu pai olhou em volta, para o salão, reunindo no olhar a sua assistência.
- Um homem com um filho apenas, um filho ainda muito jovem, pode ser considerado, por alguns, vulnerável - disse, e eu ouvi a força de aço subjacente ao tom cortês do seu discurso. - Quem fizesse essa conjectura a meu respeito estaria a cometer um erro grave. A minha irmã tem quatro filhos, dois deles presentes neste salão, esta noite: Johnny, chefe dos guerreiros de Inis Eala, e o seu irmão mais novo, Coll. Entre estes dois, existem mais dois irmãos, ambos homens adultos. Um herdará as terras do pai, na Bretanha. Segundo as minhas contas, ainda ficamos com quatro herdeiros elegíveis para substituir a minha liderança. Que nenhum homem semeie o conflito, julgando a minha família de algum modo enfraquecida ou dividida.
"Esta noite, declaro o meu sobrinho mais velho, Johnny de Inis Eala, meu herdeiro; será chefe de clã depois de mim. O pai é lorde de um extenso território na Bretanha. A mãe é uma filha de Seven-
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waters. Johnny é um líder que já deu provas, experiente e sábio. Tenho nele uma profunda confiança. Por agora, trabalharemos juntos. Quando eu desaparecer, ele chefiará a comunidade de Sevenwaters com a competência com que liderou até aqui o seu estabelecimento militar, no Norte. Quanto ao meu filho, connosco há tão pouco tempo, faltam-lhe ainda muitos anos para atingir a idade adulta. Finbar será o herdeiro de Johnny; quando chegar a sua vez, também ele será chefe de clã de Sevenwaters. E agora agradeço-vos a vossa contribuição para este conselho e congratulo cada um de vós pelo acordo que forjámos juntos. Desejo-vos, a todos, uma boa noite.
Quando os chefes de clã avançaram, para agradecer ao nosso pai e desejarem boa noite, eu olhei para as minhas irmãs e elas olharam para mim.
- Quem decidiu aquilo? - sussurrei, vendo como era uma solução limpa, sábia e justa. Nem Johnny nem Finbar eram afastados da sucessão. E anulava toda a hipótese de futuras rivalidades entre ambos e quem os apoiasse. Também excluía a necessidade de Johnny se casar e ter filhos.
- A mãe, o pai e Johnny, em conjunto - respondeu Muirrin. Depois, vendo-me bocejar, dirigiu-me o seu olhar de curandeira, perspicaz e analítico. - Clodagh, ainda não dormiste? O que é que se passa contigo e com Cathal? Não vão aguentar para sempre.
- Creio que Cathal deve estar a dormir - disse-lhe -, uma vez que não está aqui no salão.
- Ciarán chegou mesmo antes do jantar - disse Sibeal.
- Talvez Cathal esteja a falar com ele.
Se assim fosse, deviam ter ido lá para fora, onde era mais fácil encontrar privacidade e sossego. Saí, pondo um xaile sobre os ombros, porque a noite estava fria. A Lua surgira por cima da muralha da fortaleza, uma presença bem-vinda depois dos céus vazios do Outro Mundo. O luar banhava a pedra antiga. Sigurd e Mikka estavam de guarda, cada um numa ponta do portão principal. Era fácil identificá-los à distância: Sigurd, pela corpulência; Mikka, pelo brilho do cabelo, pálido como o trigo ao luar.
Dirigi-me a eles.
- Viram Cathal? - perguntei.
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- Foi por ali - respondeu Mikka, apontando na direcção do jardim de ervas. - Posso escoltar-te, Clodagh?
- Obrigada, não será preciso.
Havia tochas acesas em suportes por todo o pátio, e a Lua iluminava os intervalos entre estas. Ansiava por ver Cathal de novo, desta vez como devia ser: sem o olhar do meu pai sobre nós, nem a presença bem-disposta de Johnny ou de Gareth, como testemunhas. Ansiava por apertar o meu mais querido nos meus braços, beijar-lhe o rosto cansado, lembrar-lhe que o amava e dizer-lhe como tinha admirado a sua força nesse dia. Queria sussurrar-lhe segredos ao ouvido e ouvir as suas palavras de ternura e de paixão. Apressei-me ao longo do caminho, de cabeça baixa, cobrindo-me com o xaile. É claro que era muito possível que Ciarán ali estivesse. Eu sabia que ele iria querer falar com Cathal. Ciarán tinha perguntas para lhe fazer, perguntas só dele. Pedir-lhe-ia educadamente que nos deixasse sós, pelo menos nessa noite.
No arco que conduzia ao jardim de ervas, parei. Cathal estava sentado no banco de pedra, por baixo do lilás, com a cabeça tombada para trás, encostada ao tronco da árvore, e os olhos fechados. Um manto com capuz envolvia-o; podia estar a dormir ou, talvez, profundamente absorvido pelos seus pensamentos. O luar dançava-lhe na superfície branca das faces, na negrura do cabelo.
- Cathal? - chamei, de súbito hesitante. Talvez devesse deixá-lo descansar. Estava tão quieto, como se enredado num sono sem sonhos. Dei um passo em frente e, depois, outro. - Cathal, estás bem?
Devagar, ele levantou a cabeça, abriu os olhos e sorriu para mim, e o sangue gelou-me no corpo. Outra vez. Tão cedo. Mesmo entre muros, na casa do meu pai, dentro do pequeno jardim que outrora fora um santuário para a minha avó, que os Tuatha De amavam e honravam. O terror paralisou-me. Não conseguia sequer gritar.
Mac Dara pôs-se de pé, uma figura imponente no manto esvoaçante. As sombras moviam-se à sua volta, como se também elas se vergassem à sua vontade. Fitou-me, com aquele olhar sombrio e envolvente que já era velho de muitos anos. Levantou a mão, talvez para me chamar, talvez para lançar um feitiço.
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De repente, a porta da despensa abriu-se. Um jorro de luz inundou o jardim. Uma figura alta, com uma túnica simples, recortou-se na claridade, o cabelo cor de cobre flamejante à luz do archote. Ciarán. Quando olhei de novo, o Senhor do Carvalho tinha desaparecido. Não passara por mim, não levantara voo, nem se esgueirara por uma fenda nas lajes do pavimento. Desaparecera simplesmente.
Respirei. Por pouco. Deuses, por tão pouco! Afinal, dez dias eram de mais.
Cathal apareceu atrás do druida. Assim que me viu, passou por Ciarán e dirigiu-se a mim.
- O que é? O que aconteceu?
- Ele esteve aqui - consegui dizer, agarrando-me a ele com mãos trémulas. - Esteve aqui mesmo, no jardim. Pensei que eras tu, e depois olhou para mim e...
- Está tudo bem - murmurou, puxando-me para si. - Eu estou aqui; estás segura.
Ciarán falou atrás dele.
- Senti a sua presença - disse o druida. - O teu pai é forte; cada vez me surpreende mais a tua capacidade para contrariares a sua influência. E é arrojado. Aparecer aqui, no coração da casa familiar de Lorde Sean... - Baixou a voz, olhando de relance à volta do pequeno jardim, antes de falar. - Tens razão - acrescentou. Quanto mais tempo aqui ficares, maior é o risco de atraíres a desgraça sobre ti e sobre toda a família de Sevenwaters.
Ciarán estava a olhar para Cathal.
- Pouco me inquieta o perigo que corro, meu senhor - disse Cathal. - É através de Clodagh que o meu pai tentará manipular-me. Ela e eu temos ambos de sair de Sevenwaters. Temos de retirar-nos para Inis Eala, sem demora.
- E porém - disse Ciarán -, se existe alguém capaz de enfrentar o Senhor do Carvalho, esse alguém és tu. Serias capaz de deixar tanto os humanos como os residentes do Outro Mundo desprotegidos, perante um príncipe que reina através da crueldade e da malícia? Tu tens o poder de acabar com a sua influência para sempre, se apenas quisesses usá-lo.
- Não! - retorqui com veemência. - Não é justo pedir uma coisa dessas a Cathal. Fala como se pensasse que ele devia sentir-se
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culpado por partir. E, porém, ao mesmo tempo, sublinhou como seria perigoso para nós se ficássemos aqui; perigoso, aliás, para toda a família de Sevenwaters, incluindo para vós. Ele não vai fazer isso. Nós não vamos fazê-lo. Aquilo que sugeriu seria o mesmo que pôr os nossos filhos em perigo. Significava ter de sacrificar o nosso futuro.
Seguiu-se um silêncio. Depois, Cathal disse:
- Ouvistes Clodagh. Derrubar um tirano é instalar o caos, a não ser que haja outro pronto a ocupar o seu lugar.
Ciarán olhou para ele, e os seus olhos cor de amora pararam à luz do luar. Não disse nada.
- Escolhi este mundo - disse Cathal. - Escolhi Clodagh. Não o farei.
Momentos depois, Ciarán concordou, com um aceno.
- Era o que eu esperava. Ajudar-te-ei explicando a Lorde Sean porque é que é tão importante que partam sem demoras. Desejo-vos alegria e contentamento e peço-te que fiques atento apenas a uma coisa: neste momento, aquilo que sugiro parece-te impossível. Durante muito tempo, temeste e desprezaste os poderes que o sangue do teu pai te deu. Agora, começas a aceitar, penso eu, que a sua herança é uma faca de dois gumes: pode ser empregue para exercer o Bem ou o Mal, embora seja sempre perigosa. Sei que desenvolveste esses dons enquanto estiveste prisioneiro e que, no fim, te serviste deles para escapares ao controlo de Mac Dara. Parece-me que tens uma grande facilidade com a magia da água. É certo que o teu pai não devia saber disso, ou podia ter previsto que, com o tempo, acabarias por quebrar o feitiço que te confinava ao Outro Mundo. Não sei se compreendes, de facto, aquilo que isso significa: significa que possuis, ou podias vir a possuir, um poder tão grande como o dele. com os aliados certos, talvez ainda maior. Voltaremos a falar disto. Creio que o teu regresso é inevitável.
- Estais enganado - retorquiu Cathal. - Mas agradecemos a ajuda, no passado, no presente e no futuro. Tenho algo que vos pertence. - Desatou a corda com a pedra branca que trazia ao pescoço e estendeu-a na palma da mão. - Isto ajudou-me muito
- afirmou.
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- Obrigado. - Pelos olhos de Ciarán, passou uma sombra. Pegou no pequeno talismã e guardou-o na bolsa que trazia presa ao cinto. - Ela ficaria feliz por saber que ajudara a reunir amantes separados. E desejar-vos-ia que encontrassem a felicidade um no outro.
- Esperamos - disse-lhe eu -, que possa conduzir o ritual dos Punhos Ligados.
Um sorriso de prazer e de surpresa iluminou as feições sombrias do druida, rejuvenescendo-o de um momento para o outro.
- Têm a certeza? - perguntou.
- Temos a certeza - disse Cathal.
- Então, teremos de perguntar a Lorde Sean se ele pode falar connosco esta noite. Concordo com o vosso juízo de que o tempo urge.
Pobre pai. Só ontem é que conseguira recuperar o seu filho. Só hoje é que persuadira, por fim, os seus influentes convidados a assinar um tratado, e alcançara uma paz precária com o genro ofendido. E, nessa mesma noite, depois de Cathal, em primeiro lugar, e de Ciarán, em segundo, lhe descreverem o que realmente se passava, pediam-lhe que autorizasse a filha a casar e a partir, poucos dias depois de esta ter chegado de uma viagem longa e perigosa ao Outro Mundo. Nessa sequência de acontecimentos extraordinários, o facto de o meu noivo ser filho de um príncipe negro dos Tuatha De não constituía o mesmo entrave que, noutras circunstâncias, poderia ter sido.
Também ajudava o facto de Cathal se ter comportado tão bem desde o seu regresso. E o facto de ter tratado o meu pai com um respeito cortês, sem deixar de intervir no debate, de igual para igual. Tanto Johnny como Gareth apoiaram-no enquanto meu futuro marido. Ciarán argumentou com veemência, tornando muito claro que eu corria um perigo imediato se permanecesse em Sevenwaters, quer Cathal e eu nos casássemos quer não, porque Mac Dara sabia que o seu filho me amava; sabia que Cathal faria tudo para me proteger. Esse sentimento dava ao Senhor do Carvalho uma grande
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vantagem. Conor ficou impressionado com os argumentos de Ciarán, mas indeciso quanto ao facto de a nossa viagem para Norte ser a melhor escolha para mim. Talvez não compreendesse que o amor podia ser a arma mais afiada de todas.
Ficámos acordados pela noite dentro a debater a questão. Contive-me para não dizer aquilo que estava em primeiro lugar no meu pensamento, e sem dúvida no de Cathal: que, mesmo que o meu pai não aprovasse o nosso casamento, partiríamos juntos de Sevenwaters. O amor que sentíamos um pelo outro dava mais força à nossa união do que qualquer cerimónia formal dos Punhos Ligados; duraria até à morte, quer fôssemos ou não oficialmente marido e mulher. Casar seria bom, porque agradaria mais à nossa família do que um acordo não ortodoxo. Este podia criar um desconforto entre o pai e Johnny, se fôssemos viver para a ilha. Mas a cerimónia dos Punhos Ligados não era essencial. Deixar Sevenwaters era. Mac Dara estava mesmo à porta.
Por fim, quando as velas na pequena sala do conselho se reduziram aos cotos e Gareth, ao pé da porta, já desistira de tentar disfarçar os seus bocejos, o meu pai disse que autorizaria a cerimónia dos Punhos Ligados desde que a mãe concordasse; perguntar-lhe-ia no dia seguinte de manhã. Se ela ficasse feliz com a ideia, o ritual seria executado assim que os convidados deixassem a fortaleza, provavelmente daí a dois dias. Isso daria tempo para organizar uma escolta adequada para nós - teria de ser sólida. Sentia-me demasiado cansada para assimilar a boa notícia. Cathal beijou-me à frente de todos, e eu retirei-me para o meu quarto. No momento em que pousei a cabeça na almofada, adormeci.
Teria ficado feliz com o mais simples dos casamentos: Ciarán a dizer as palavras, Cathal ao meu lado e a família a olhar para nós. Mas as minhas irmãs viram o período de preparativos de dois dias como um desafio. Deirdre e Muirrin trabalharam de madrugada até ao crepúsculo para me fazerem um vestido de casamento numa lã azul macia, com as mangas e a bainha decoradas com faixas de renda, tiradas de um antigo vestido da nossa mãe. Sibeal planeou o ri-
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tual com Ciarán e Conor, acrescentando os seus toques pessoais. Eilis fez-me uma grinalda de flores frescas para eu usar no cabelo. Até Coll se tornou útil, entregando recados e, de um modo geral, conservando todos de bom humor. Sabendo que Cathal e eu não esperávamos, nem queríamos, uma celebração com a magnitude da de Deirdre, a minha mãe organizou um jantar especial para a família, os homens de Johnny e os criados da nossa casa. Todos, à vez, teriam tempo de folga do serviço de guarda ou da cozinha, para partilhar a nossa refeição, contar histórias e cantar. Seria um momento de alegria; não deixaríamos que a partida iminente lançasse uma sombra na nossa felicidade. Entristeceu-me o facto de Maeve não poder estar ali connosco. O pai tinha recorrido ao seu laço com a tia Liadan para contar à família que vivia em Harrowfield a surpreendente notícia, e a minha irmã ausente enviara o seu amor. Mesmo assim, não era a mesma coisa.
Antes do ritual, sentei-me com o meu pai na pequena sala do conselho, enquanto, lá em cima, a mãe dava de mamar ao bebé. Custava a acreditar que no dia seguinte eu já não estaria ali; que podiam passar anos até voltar a ver os meus pais. Teria pena de não ver Finbar crescer. Se Deirdre tivesse filhos, eu seria uma estranha para eles.
- Obrigada por concordar com isto, pai - disse-lhe. - É pedir muito, eu sei. Lamento não estar aqui para falar consigo e ajudar a mãe com tudo.
Ele acenou, em silêncio. Um olhar pensativo destacava-se das suas vigorosas feições.
- Tenho um pai extraordinário, que é também um extraordinário chefe de clã - disse-lhe. - O tratado foi um grande feito. Tendo em conta como estava preocupado com Finbar, o modo sereno como geriu tudo mostrou a força que existe dentro de si. E Eoin de Lough Gall? Qualquer pessoa que consiga fazer aquele homem sorrir e dizer uma piada só pode possuir qualidades excepcionais à mesa de um conselho.
- Ainda acreditas em mim, Clodagh. E, no entanto, tratei-te com tanta injustiça. Fui cruel contigo. Não posso perdoar isso a mim próprio.
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Pus o braço sobre os seus ombros.
- Nós somos família, pai. Amamo-nos. Além disso, a culpa de ter visto Becan apenas como uma amálgama de galhos pertence a Mac Dara. Pai, se alguma coisa correr mal aqui, se o pai de Cathal voltar a semear o conflito, tem de enviar-nos uma mensagem de imediato. E alertar Ciarán. Não creio que o Senhor do Carvalho continue a importuná-los depois de estarmos fora do seu alcance, mas é um conspirador por natureza. Pode acontecer. Eu não disse nada à mãe a respeito disto, mas temo por vós.
Ele acenou com sobriedade.
- Se eu for o bom chefe de clã que tu pensas que eu sou, julgo que saberei lidar com as ameaças deste mundo e do outro. Ficarei atento. E agora, atrevemo-nos a sair? Espero que este jovem seja tão merecedor como tu acreditas que ele é. Tem uma ascendência... invulgar. O seu comportamento nos últimos dias impressionou-me, mas nunca pensei que tivesse de tomar uma decisão tão depressa.
- É a escolha certa, pai; a única escolha. Tenho tanta certeza disso como de que o Sol nasce todas as manhãs. E, embora me entristeça deixar Sevenwaters, também estou feliz. Mais feliz do que alguma vez estive na vida.
- Então, é a escolha certa, Clodagh. Que os deuses te acompanhem, minha querida, onde quer que esse teu novo caminho te leve.
Na margem do lago, por baixo de um gracioso vidoeiro, Cathal e eu ligámos os punhos, e eu vi nos olhos do meu adorado que era a coisa mais preciosa da sua vida, e que o amor que ele sentia por mim era sólido e verdadeiro. O que existia entre nós duraria para sempre, ou o mais perto que uma vida humana pudesse chegar do sempre. Cathal sobreviver-me-ia, talvez por muitos anos; assim ditava o seu sangue. Mas hoje, com o coração cheio de alegria, não pensaria nisso. E não pensaria no convidado indesejado, nessa presença invisível que assistia ao casamento do filho com uma mulher humana, que provara ser apenas um pouco mais poderosa do que o príncipe do Outro Mundo imaginara. Um pai devia ficar feliz por
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ver o filho com aquele olhar de satisfação. Mas Mac Dara não ficaria feliz. Continuaria a conspirar e a entregar-se às suas maquinações, decidido a fazer vingar a sua vontade.
Quando o ritual chegou ao fim, Cathal e eu não fomos directamente para dentro, mas caminhámos juntos até ao lugar onde Aidan fora enterrado. Não fomos sozinhos; até chegarmos a Inis Eala, raramente dispensaríamos a presença de guardas. O aparecimento de Mac Dara no jardim privado da nossa casa de família tinha sido um aviso eficaz. Por isso, Gareth e Johnny acompanharam-nos, ambos bem armados, bem como Ciarán, cujas armas, embora menos visíveis, eram quase de certeza mais poderosas. No que dizia respeito ao Senhor do Carvalho, a protecção de que precisávamos superava a capacidade de dois guerreiros de elite, quer fossem ou não de Inis Eala.
Quando chegámos à campa de Aidan, numa clareira cercada por vidoeiros, os nossos três guardiães recuaram generosamente, e Cathal e eu parámos junto da pequena elevação tumular, onde jazia o nosso amigo. A terra ainda estava despida, mas já começara a cobrir-se de erva. No fim do Verão, o lugar de repouso de Aidan ficaria forrado de verde. Pássaros chilreavam uma bonita melodia nas árvores à volta; não era tanto uma elegia, mas uma dança agitada. Pensando em Aidan, pareceu-me apropriado.
Peguei na mão de Cathal. Depois do júbilo da cerimónia, o seu estado de espírito alterara-se radicalmente. O olhar perdido regressara-lhe, de novo, ao rosto. Tínhamos pensado oferecer orações; dizer algumas palavras de louvor e de adeus, já que na manhã seguinte partiríamos de Sevenwaters. Mas ficámos em silêncio, ambos. Na beleza daquele dia de Primavera, com os troncos dos vidoeiros a brilhar, direitos e pálidos, na luz do Sol, e uma suave brisa a agitar as folhas verdes e prateadas, com a melodia dos pássaros, o rumor da floresta e o grande silêncio que lhe estava subjacente, a morte de um homem tão jovem e tão importante semeara um peso nos nossos corações.
- Não sei o que dizer - murmurou Cathal. - Não conheço orações; e nenhuma seria suficiente. No entanto, devo-lhe algo. Ele era meu amigo.
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- Fala com ele como se ele estivesse mesmo aqui, ao teu lado
- disse-lhe. - Esteja onde estiver, Aidan ouvir-te-á, tenho a certeza.
Cathal aclarou a garganta; passou a mão pelo rosto.
- Costumavas dizer-me que eu falava de mais - disse, em voz baixa. - A prontidão com que gracejava e fazia troça levou-te, muitas vezes, à loucura. "Se não consegues escolher as palavras com mais cuidado", dizias-me, "cala-te, por piedade". - Os lábios curvaram-se. - E agora, aqui estou, com o coração cheio e sem palavras.
Seguiu-se uma pausa; Cathal limpou as lágrimas, mas ainda havia lágrimas na sua voz quando tornou a falar.
- Qualquer mal que me tenhas feito em vida, perdoo-to. Não sei se podes perdoar-me a mim, porque retribuí parcamente a tua bondade. Foste chacinado na flor da idade por uma razão apenas: por teres tido coragem de ser meu amigo.
Cathal inclinou a cabeça.
- Estás a ir bem - murmurei.
Ele olhou para cima, agora com as lágrimas a caírem-lhe sobre o rosto.
- Passámos bons momentos juntos - disse simplesmente.
- Nos maus momentos, apoiámo-nos um ao outro. Adeus, meu irmão.
Ajoelhando-se, encostou a palma da mão, por instantes, ao solo despido, e ficou em silêncio.
- Adeus, Aidan - acrescentei, e a cantiga do pássaro cresceu num coro alegre de louvor. - Eras um bom homem. Viveste bem a tua vida. Parte em segurança nesta tua nova viagem.
Passar a noite de núpcias por baixo do tecto dos meus pais podia ter sido para mim, no passado, um programa insólito, mas Cathal e eu não nos importámos e apenas sentíamos a preciosa dádiva do tempo em que estávamos juntos, sozinhos, e o extraordinário turbilhão de sentimentos que não parava de crescer entre nós. Foi uma noite de doce ternura e paixão explosiva, dor fugaz e prazer duradouro, lágrimas e riso. Era bom rir; o riso escasseara nos últi-
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mos tempos. Não dormimos muito, mas não teve importância; haveria poucos momentos de intimidade durante a viagem até ao Norte, com uma escolta tão apertada e a necessidade de chegarmos em segurança ao nosso destino a acelerar o ritmo da viagem. Conscientes disso, aproveitámos com energia o tempo que nos restava. Pouco antes de amanhecer, descansámos, enlaçados nos braços um do outro, com um brilho de suor na pele e um cansaço doce no corpo, e sentimos a pulsação dos nossos dois corações, sintonizados como o verso e a melodia, o rufar do tambor e os pés de um bailarino. Quando o Sol nasceu, estremecemos, acordámos e preparámo-nos para enfrentar o novo dia.

 

 

                                                   S.D. Perry         

 

 

 

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